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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ACESSO ILIMITADO / James Rollins
ACESSO ILIMITADO / James Rollins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ele não era grande coisa de se ver... mesmo pendurado de cabeça para baixo numa armadilha para javali. De nariz achatado, o cabelo enlameado e cortado rente ao crânio, um pedaço de carne com um metro e oitenta e dois pendurado e nu, com exceção de uns boxers cinzentos molhados. O peito estava marcado por velhas cicatrizes e um corte irregular e ensanguentado da clavícula à virilha. Os seus olhos arregalados brilhavam com ferocidade.
E por boas razões.
Dois minutos antes, enquanto soltava o paraquedas na praia próxima, a doutora Shay Rosauro ouvira os seus gritos na floresta e fora investigar. Avançara sub-repticiamente, movendo-se em silêncio, espiando a curta distância, a coberto das sombras e da folhagem.
— Para trás, sacana peludo...
As imprecações do homem nunca pararam, um fluxo contínuo marcado por um sotaque rosnado do Bronx. Era claramente americano. Tal como ela.
Olhou para o relógio.
Eram 8h33 da manhã.
A ilha ia explodir dentro de vinte e sete minutos.
Aquele homem morreria antes.
A ameaça mais imediata provinha dos outros habitantes da ilha, atraídos pelos gritos do homem. O mandril adulto pesava em média mais de quarenta e cinco quilos, sobretudo em músculo e dentes. Usualmente eram encontrados em África. Nunca numa ilha selvagem ao largo do Brasil. As coleiras rádio amarelas sugeriam que o bando fora outrora parte de um grupo estudado pelo professor Salazar, enviado para aquela ilha remota para as suas experiências. Os Mandrillus sphinx eram considerados frugívoros, o que significava que a sua dieta era composta por frutas e nozes.
Mas nem sempre.
Eram também famosos por serem carnívoros oportunistas.

 


 


Um dos babuínos andava em círculos em redor do homem preso na armadilha: um macho de pelo cor de carvão, largo focinho vermelho, delimitado de ambos os lados por riscas azuis. Aquela coloração indicava que estavam perante o macho dominante do grupo. As fêmeas e os machos subordinados, todos eles de um castanho mais baço, tinham-se instalado sobre os quartos traseiros ou pendiam de ramos vizinhos. Um dos espectadores bocejou, expondo um conjunto de caninos com mais de sete centímetros e meio, e um focinho repleto de incisivos cortantes.

O macho farejou o prisioneiro. Um punho enorme moveu-se na direção do babuíno inquisitivo, falhou e silvou através do ar.

O babuíno macho ergueu-se nas patas traseiras e uivou com os lábios arreganhados, expondo todo o comprimento das suas presas amarelas. Uma exibição impressionante e horripilante. Os outros babuínos aproximaram-se mais.

Shay avançou para a clareira, atraindo para si todos os olhos. Ergueu a mão e apertou o botão do seu aparelho sónico, alcunhado guinchador. O som de sirene do aparelho teve o efeito desejado.

Os babuínos fugiram para a floresta. O macho que os liderava saltou, agarrou um ramo baixo e lançou-se para a escuridão protetora da selva.

O homem, que continuava a girar na corda, viu-a.

— Ei... que tal...?

Shay já tinha um machete na outra mão. Saltou para cima de uma pedra e cortou a corta de cânhamo com um golpe da arma.

O homem caiu com força, batendo na lama macia e rolando para o lado. Por entre uma nova torrente de imprecações, lutou com a corda que lhe envolvia o tornozelo. Por fim, libertou-se do nó.

— Malditos macacos!

— Babuínos — corrigiu Shay.

— O quê?

— São babuínos, não macacos. Têm caudas curtas.

— Como queira. Tudo o que vi foi o raio de uns dentes enormes.

Enquanto o homem se erguia e sacudia os joelhos, Shay viu a âncora da marinha dos Estados Unidos tatuada no bíceps direito. Ex-militar? Talvez pudesse vir a ser útil. Shay voltou a verificar as horas.

Eram 8h35 da manhã.

— O que faz aqui? — perguntou.

— O meu barco avariou-se. — O olhar dele deslizou pela forma esguia dela.

Estava habituada a receber tais atenções dos machos da sua própria espécie... mesmo agora, estando vestida de uma forma que não a favorecia em nada, com um camuflado verde e botas resistentes. O cabelo preto, que lhe chegava aos ombros, encontrava-se firmemente preso atrás das orelhas com um lenço preto, e, sob o calor tropical, a pele brilhava num tom de café escuro.

Apanhado a olhar fixamente, o homem desviou os olhos para a praia.

— Nadei até aqui depois de o meu barco afundar.

— O seu barco afundou-se?

— Está bem, explodiu.

Ela fitou-o, aguardando mais explicações.

— Havia uma fuga de combustível. Deixei cair o charuto...

Shay acenou com o machete, mostrando-lhe que não precisava de continuar a falar. A sua boleia estava marcada para daí a menos de meia hora, na península mais a norte. Nesse período, tinha de alcançar o complexo, entrar no cofre e obter os frascos de antídoto. Começou a andar para a selva, apercebendo-se da existência de um trilho. O homem seguiu-a, arrastando-se na sua peugada.

— Uou... para onde vamos?

Ela tirou um poncho para a chuva que trazia enrolado na mochila e passou-lho.

O homem debateu-se para o vestir enquanto avançava.

— Chamo-me Kowalski — disse. Enfiou o poncho ao contrário e lutou para lhe dar a volta. — Tem um barco? Ou uma maneira de sair do raio desta ilha?

Shay não tinha tempo para subtilezas.

— Dentro de vinte e três minutos, a marinha brasileira vai lançar bombas incendiárias sobre este atol.

— Como? — O homem olhou para o seu próprio pulso. Não tinha relógio.

Ela continuou:

— A evacuação está marcada e irá descolar da península mais a norte, às 8h55 da manhã. Mas primeiro tenho de recolher algo que está na ilha.

— Espere. Recue um pouco. Quem é que vai lançar bombas incendiárias sobre este buraco de merda?

— A marinha brasileira. Dentro de vinte e três minutos.

— Claro que vai. — Ele abanou a cabeça. — De todas as malditas ilhas, eu tinha de vir parar à única que vai ser bombardeada.

Shay ignorou a diatribe. Pelo menos ele continuava em movimento. Isso tinha de lhe conceder. Ou era muito corajoso ou era muito burro.

— Oh, olha... uma manga. — Ele estendeu a mão para o fruto amarelo.

— Não toque nisso.

— Mas já não como...

— Toda a vegetação desta ilha foi pulverizada com um rabdovírus transgénico.

Ele baixou a mão.

— Uma vez ingerido, estimula os centros sensoriais do cérebro, realçando os sentidos da vítima. Visão, som, cheiro, paladar e toque.

— E o que há de errado nisso?

— O processo também corrompe o aparelho reticular do córtex cerebral. Desencadeando ataques maníacos.

Um uivo ecoou através da selva atrás deles. Foi respondido por alguns grunhidos roucos e uivos de todos os lados.

— Os macacos...?

— Babuínos. Sim, estão certamente infetados. Sujeitos experimentais.

— Excelente. A Ilha dos Babuínos Raivosos.

Ignorando-o, Shay apontou na direção da fazenda caiada que se espraiava no topo da colina seguinte, visível através de uma abertura na folhagem.

— Precisamos de alcançar aquele complexo.

A estrutura de terracota tinha sido alugada pelo professor Salazar para a sua investigação, financiada por uma sombria organização de células terroristas. Ali, numa ilha isolada, tinha levado a cabo a última fase de aperfeiçoamento da sua arma biológica. Depois, dois dias antes, a Força Sigma — uma equipa científica secreta dos EUA especializada em ameaças globais — capturara o cientista no coração da floresta tropical brasileira, mas não antes de este ter infetado toda uma aldeia indígena às portas de Manaus, incluindo um hospital pediátrico internacional.

A doença estava já nas suas primeiras fases, exigindo a rápida quarentena da aldeia pelo exército brasileiro. A única esperança consistia na obtenção do antídoto do professor Salazar, trancado no cofre do médico.

Bem, pelo menos os frascos podiam lá estar.

Salazar alegava ter destruído todo o stock.

Perante tal afirmação, o governo brasileiro decidira jogar pelo seguro. Esperava-se que a ilha fosse atingida de madrugada por uma tempestade com ventos ciclónicos. Temiam que a tempestade pudesse transportar o vírus da ilha para a floresta tropical costeira do continente. Bastaria uma só folha infetada para comprometer toda a floresta tropical equatorial. Por isso o plano consistia em lançar bombas incendiárias sobre a pequena ilha, de modo a queimar por completo a sua vegetação. O ataque estava programado para as nove horas em ponto. Era impossível convencer o governo de que a possibilidade remota de uma cura valia o risco de um adiamento. O seu plano era a aniquilação total. O que incluía a aldeia brasileira. Perdas aceitáveis.

Shay sentiu a sua raiva aumentar, enquanto imaginava Manuel Garrison, o seu parceiro. Este tentara evacuar o hospital pediátrico, mas ficara encurralado e subsequentemente infetado. Juntamente com todas as crianças.

Perdas aceitáveis não faziam parte do seu vocabulário.

Não hoje.

Por isso Shay avançara com a sua operação a solo. Lançando-se de paraquedas a uma grande altitude. Comunicara os seus planos por rádio enquanto mergulhava em queda livre. O comando da Sigma concordara em enviar um helicóptero para proceder à evacuação de emergência na ponta mais a norte da ilha. Desceria apenas durante um minuto. Ou ela chegava a horas ao helicóptero... ou morria.

Para ela, as parcas hipóteses de sucesso eram irrelevantes.

Mas agora não estava sozinha.

O naco de carne caminhava pesada e ruidosamente atrás dela. Assobiava. Ele estava a assobiar. Virou-se para ele.

— Senhor Kowalski, lembra-se da minha descrição de como o vírus reforça o sentido de audição da sua vítima? — As palavras pronunciadas em tom baixo crepitavam de irritação.

— Desculpe. — Ele olhou de relance para o trilho atrás de si.

— Cuidado com essa armadilha — disse ela, contornando um buraco grosseiramente camuflado.

— O quê...? — Com o pé esquerdo, pisou o alçapão de canas entreligadas. O seu peso destruiu-o por inteiro.

Shay usou o ombro para empurrar o homem para o lado e caiu em cima dele. Foi como se tivesse caído sobre um monte de troncos. Só que os troncos eram mais espertos.

Saiu de cima dele.

— Depois de ter ficado preso numa armadilha, seria de esperar que prestasse mais atenção a onde põe os pés! Toda a ilha parece uma armadilha gigantesca.

Shay levantou-se, endireitou a mochila e contornou o fosso repleto de picos.

— Fique atrás de mim. Pise apenas onde eu pisar.

Na sua raiva, não reparou na corda.

O único aviso foi um breve tuang.

Ela saltou para o lado, mas era demasiado tarde. Um tronco preso a uma corda libertou-se da floresta e bateu-lhe num joelho. Shay ouviu o estalar da tíbia e saiu disparada pelo ar em direção ao buraco aberto da armadilha anterior.

Contorceu-se para evitar os espigões de ferro do fosso. Não havia esperança.

Depois embateu... de novo contra os troncos.

Kowalski mergulhara e bloqueara o buraco com o seu próprio corpo. Shay rolou de cima dele. A agonia incendiava-lhe a perna, subia-lhe pela anca e explodia pelas costas. A sua visão estreitou-se para pouco mais do que a cabeça de um alfinete, mas não o suficiente para que não viesse o ângulo retorcido formado pela perna abaixo do joelho.

Kowalski colocou-se ao seu lado.

— Oh, meu... oh, meu...

— Tenho a perna partida — disse ela, tentando controlar a dor.

— Podemos pôr-lhe uma tala.

Shay olhou para o relógio.

Eram 8h39 da manhã.

Faltavam vinte e um minutos.

Kowalski apercebeu-se do gesto dela.

— Posso levá-la ao colo. Ainda conseguimos chegar ao local da evacuação.

Reequacionou mentalmente o problema. Imaginou o sorriso rasgado de Manuel... e os muitos rostos das crianças. Uma dor pior do que a provocada por um qualquer osso partido trespassou-a. Não podia falhar.

O homem leu a sua intenção.

— Não vai conseguir chegar àquela casa — disse ele.

— Não tenho escolha.

— Então deixe que eu o faça — disse ele de rompante. As palavras pareceram surpreendê-lo tanto quanto a ela, mas não as retirou. — Siga para a praia. Eu vou buscar o que quer que seja que precisa daquela maldita fazenda.

Ela virou-se e fitou o estranho, olhos nos olhos. Procurou neles algo que lhe desse esperança. Uma força escondida, uma qualquer fortaleza subjacente. Não encontrou nada. Mas não tinha escolha.

— Há mais armadilhas.

— Desta vez vou manter os olhos abertos.

— E o cofre do escritório... não conseguirei ensinar-lhe a tempo como abri-lo.

— Tem um rádio extra?

Ela acenou com a cabeça.

— Nesse caso, explica-me quando eu lá chegar.

Shay hesitou, mas não havia tempo sequer para isso. Tirou a mochila das costas.

— Baixe-se.

Levou a mão a um bolso lateral da mochila e retirou do seu interior dois adesivos. Prendeu um atrás da orelha do homem e o outro na sua maçã de Adão.

— Um microrrecetor e um transmissor subvocálico.

Shay testou rapidamente o rádio, enquanto explicava o que estava em jogo.

— E eu que estava a contar com umas férias relaxantes ao sol — balbuciou ele.

— Mais uma coisa — disse ela. Retirou da mochila três secções de uma arma. — Uma espingarda VK. Variable Kinetic. — Montou rapidamente as peças e enfiou um carregador cilíndrico grosso no respetivo encaixe por baixo da arma. Parecia uma espingarda de assalto atarracada, só que o cano era mais largo e espalmado horizontalmente. — A patilha de segurança fica aqui. — Apontou a arma para um arbusto próximo e apertou o gatilho. Tudo o que ouviu foi um leve zumbido. Um projétil emergiu do cano e zumbiu por entre o arbusto, cortando folhas e ramos. — Discos afiados com dois centímetros e meio. Pode regular a arma para um só tiro ou para rajadas automáticas. — Demonstrou. — Duzentos tiros por carregador.

Ele voltou a assobiar e aceitou a arma.

— Talvez devesse ficar com este corta-relva. Com a perna assim, vai ter de se arrastar a passo de caracol. — Apontou para a selva — E os malditos macacos ainda andam por ali.

— São babuínos... e ainda tenho o guinchador portátil. Agora, ponha-se a andar. — Shay olhou para o relógio. Tinha dado a Kowalski um segundo relógio sincronizado com o seu. — Dezanove minutos.

Ele acenou com a cabeça.

— Vemo-nos em breve. — E saiu do trilho desaparecendo quase de imediato na densa folhagem.

— Para onde vai? — gritou-lhe Shay. — O trilho...

— Que se lixe o trilho — respondeu ele através do rádio. — Prefiro procurar a sorte na selva virgem. Há menos armadilhas. Além disso, tenho esta beleza para abrir um caminho a direito até à casa do cientista louco.

Shay esperou que ele tivesse razão. Não havia tempo para recuar ou para segundas oportunidades. Aplicou rapidamente uma dose de morfina com o injetor automático e usou um ramo partido como bengala. Enquanto avançava para a praia, ouviu os ferozes gritos de caça dos babuínos.

Esperava que Kowalski se mostrasse mais esperto do que eles.

Tal pensamento arrancou-lhe um gemido que nada tinha que ver com a perna partida.

Felizmente, Kowalski tinha agora uma faca.

Estava pendurado de cabeça para baixo... pela segunda vez nesse dia. Curvou-se pela cintura, agarrou o tornozelo preso e cortou a corda que o prendia. Esta partiu-se com um pop. Ele caiu, enrolado como uma bola, e chocou contra o chão da floresta com um sonoro uf.

— O que foi isso? — perguntou a doutora Rosauro pelo rádio.

Ele endireitou os membros e deixou-se ficar deitado de costas para recuperar o fôlego.

— Nada — resmungou. — Tropecei numa pedra. — Franziu o sobrolho à corda que se agitava por cima da sua cabeça. Não ia dizer à bela médica que tinha ficado pendurado numa árvore outra vez. Ainda lhe restava algum orgulho.

— Maldita armadilha — balbuciou num sussurro.

— O quê?

— Nada. — Tinha-se esquecido de quão sensível era o transmissor subvocálico.

— Armadilha? Voltou a ficar pendurado, não foi?

Ele manteve-se em silêncio. A mãe tinha-lhe dito certa vez que era melhor manter a boca fechada e deixar que as pessoas o julgassem um tolo do que abri-la e acabar com quaisquer dúvidas.

— Tem de ter atenção ao caminho — censurou a mulher.

Kowalski refreou uma resposta. Ouviu a dor na voz dela... e o medo. Por isso, ergueu-se e recuperou a arma.

— Dezassete minutos — recordou-lhe a doutora Rosauro.

— Estou a chegar ao complexo neste momento.

A fazenda descorada pelo sol parecia um calmo oásis de civilização num mar de crua exuberância da Natureza. Eram linhas direitas e ordem estéril por oposição à proliferação descontrolada e fertilidade desordenada. Três edifícios erguiam-se em quatro hectares de terreno cuidado, separados por passeios e aninhados em redor de um pequeno pátio ajardinado. Uma fonte espanhola de três níveis estava no centro, ornamentada com azulejos azuis e vermelhos. Não havia água nas suas bacias.

Kowalski estudou o complexo, espreguiçando-se para aliviar as costas. O único movimento sobre os terrenos cultivados eram as frondes oscilantes de uns quantos coqueiros. O vento já se fazia sentir com a aproximação da tempestade. As nuvens começavam a acumular-se no horizonte a sul.

— O escritório fica no piso principal, perto dos fundos — disse-lhe Rosauro ao ouvido. — Tenha cuidado com a vedação elétrica do perímetro. É possível que a eletricidade ainda esteja ligada.

Ele estudou a vedação de arame, com quase dois metros e meio de altura, encimada por uma espiral de arame farpado e separada da selva por uma faixa queimada com cerca de nove metros. Terra de ninguém.

Ou antes uma terra sem macacos.

Pegou num ramo caído e aproximou-se da vedação. Encolhendo-se, estendeu uma das pontas na direção dos elos da vedação. Estava consciente dos pés descalços. Deveria ter alguma proteção? Não fazia ideia.

Quando a ponta do pau tocou na vedação, ouviu um som estridente. Saltou para trás, depois apercebeu-se de que o som não vinha da vedação. Erguera-se à sua esquerda, do lado da água.

O guinchador da doutora Rosauro.

— Está tudo bem consigo? — perguntou Kowalski para o transmissor.

O longo silêncio fê-lo suster a respiração — depois as palavras sussurradas alcançaram-no.

— Os babuínos devem ter cheirado o meu ferimento. Estão a convergir para a minha localização. Prossiga.

Kowalski espetou o pau na vedação mais algumas vezes, como uma criança com um rato morto, para garantir que estava realmente morto. Uma vez satisfeito, cortou o arame farpado com o alicate que a doutora Rosauro lhe dera e apressou-se a passar a vedação, certo de que a eletricidade estava prestes a regressar com a sua morte azul-elétrica.

Deixou-se cair com um suspirou de alívio na relva aparada, tão luminosa e perfeita quanto um campo de golfe.

— Não tem muito tempo — pressionou a médica desnecessariamente. — Se tiver sucesso, os jardins das traseiras descem até à praia. Os promontórios a norte estendem-se a partir daí.

Kowalski pôs-se a caminho em direção ao edifício principal. Uma mudança no vento trouxe consigo a humidade da chuva... juntamente com o fedor da morte, a maturação da carne abandonada ao sol. Viu o corpo no lado mais distante da fonte.

Contornou a forma do homem. O rosto tinha sido roído até aos ossos, a roupa esfarrapada, a barriga estraçalhada, os intestinos inchados estavam espalhados pelo chão como serpentinas. Aparentemente os macacos tinham feito a sua própria festa desde a partida do bom doutor.

Enquanto o contornava, apercebeu-se da pistola preta apertada na mão do cadáver. O ferrolho estava aberto. Já não lhe restavam balas. Não tivera poder de fogo suficiente para obrigar todo um bando de carnívoros peludos a recuar. Kowalski ergueu a sua própria arma, levando-a ao ombro. Observou os cantos mergulhados nas sombras em busca de quaisquer macacos escondidos. Não havia sequer corpos. Ou o atirador tinha fraca pontaria, ou os macacos de traseiro vermelho tinham levado os corpos dos seus irmãos caídos, talvez para comer mais tarde, numa espécie de takeout babuíno.

Kowalski realizou um círculo completo. Nada.

Atravessou o edifício principal. Havia algo que o perturbava, mas que se mantinha no limite da sua consciência. Coçou o crânio numa tentativa se livrar daquilo... mas falhou.

Subiu para o alpendre de madeira que corria a todo o comprimento do edifício e tentou o puxador da porta. Fechado mas não trancado. Empurrou violentamente a porta com um pé, de arma em punho, pronto para um ataque frontal dos macacos.

A porta abriu-se por completo, ressaltou e voltou a fechar-se.

Bufando de irritação, agarrou de novo no puxador. Recusou mexer-se. Rodou com mais força.

Trancada.

— Só podem estar a brincar.

A colisão devia ter feito mover a tranca.

— Já está lá dentro? — perguntou Rosauro.

— Quase — resmungou ele.

— Qual é a demora?

— Bem... o que se passa é que... — Tentou a inocência, mas adequava-se tanto a ele como o tosão a um rinoceronte. — Parece que alguém a trancou.

— Tente uma janela.

Kowalski olhou de relance para as grandes janelas que se abriam de ambos os lados da porta trancada. Avançou para a direita e espreitou para o interior. Aí encontrou uma cozinha rústica com mesas de carvalho, um lava-louça de mármore e eletrodomésticos antigos de esmalte. Ainda bem. Talvez tivessem uma garrafa de cerveja no frigorífico. Um homem podia sonhar. Mas primeiro havia trabalho a fazer.

Recuou, apontou a arma e disparou um tiro solitário. O disco prateado e afiado partiu o vidro com a mesma facilidade de uma bala. Estilhaços projetaram-se do buraco.

Sorriu. De novo feliz.

Recuou mais um passo, descendo cuidadosamente do alpendre. Com o polegar ativou o fogo automático e partiu o que restava do vidro.

Passou a cabeça pela abertura.

— Está alguém em casa?

Foi então que viu os fios elétricos expostos que se agitavam e cuspiam fagulhas em redor de um disco prateado embutido na parede de gesso. Tinha cortado os fios elétricos. Os outros discos estavam espalhados pela parede mais distante... incluindo um que tinha perfurado o cano do gás que alimentava o fogão.

Nem se deu ao trabalho de praguejar.

Virou-se e saltou, ao mesmo tempo que uma explosão se dava atrás de si. Uma parede de ar superaquecido empurrou-o para longe do caminho, lançando-lhe o poncho para cima da cabeça. Caiu ao chão a rebolar, ao mesmo tempo que uma bola de fogo deslizava pelo pátio, por cima da sua cabeça. Emaranhado no poncho, cambaleou, caindo mesmo em cima do cadáver eviscerado. Os seus membros debatiam-se, o calor ardia e os dedos que procuravam libertá-lo encontraram apenas a gélida ferida na barriga do homem e coisas que esguichavam.

Sentindo-se prestes a vomitar, Kowalski lutou para se libertar e despiu o poncho. Levantou-se, sacudindo-se como um cão molhado, limpando o sangue e as vísceras dos braços, enojado. Fitou o edifício principal.

As chamas dançavam atrás da janela da cozinha. O fumo escondia a vidraça partida.

— Que aconteceu? — arquejou a médica ao seu ouvido.

Ele limitou-se a abanar a cabeça. As chamas alastravam, emergindo da janela partida e lambendo o alpendre.

— Kowalski?

— Armadilha. Estou bem.

Retirou a arma do poncho que deitara fora. Encostou-a ao ombro, tencionando contornar o edifício. De acordo com a doutora Rosauro, o escritório ficava nas traseiras.

Se trabalhasse rapidamente...

Olhou para o relógio.

Eram 8h45.

Estava na hora de ser um herói.

Dirigiu-se ao lado norte da fazenda. O calcanhar descalço escorregou num pedaço de intestino, escorregadio como uma casca de banana. A perna torceu-se debaixo dele. Caiu para a frente, batendo com força no chão, a arma golpeou a terra compacta, o seu dedo apertou o gatilho.

Os discos prateados saíram disparados e atingiram a figura que se agitava no pátio, com um braço em chamas. Esta uivou — não de agonia, mas de raiva ferina. A figura envergava as vestes rasgadas e brancas de um mordomo. Os olhos estavam brilhantes e febris, mas cobertos por uma matéria viscosa. A espuma cobria a sua boca e pingava dos lábios abertos num esgar. O sangue manchava a parte inferior do rosto e ensopava a camisa outrora branca e imaculada.

De súbito, Kowalski apercebeu-se do que o estava a perturbar antes. A falta de cadáveres de macacos. Presumira que tinham sido canibalizados, mas, se assim fosse, então porque tinham deixado para trás um pedaço de carne em perfeitas condições?

A resposta: os macacos não tinham atacado.

Ao que tudo indicava, os animais selvagens não eram os únicos seres infetados na ilha.

Nem os únicos canibais.

O mordomo, ainda em chamas, lançou-se na direção de Kowalski. O primeiro impacto dos discos prateados atingira-o no ombro e no pescoço. O sangue jorrava. Mas não o suficiente para parar o maníaco determinado.

Kowalski apertou o gatilho, desta feita fazendo pontaria.

Um arco de morte afiada cortou o ar à altura do joelho.

Os tendões estalaram, os ossos estilhaçaram-se. O mordomo desabou e caiu na direção de Kowalski, aterrando quase nariz com nariz com ele. Uma mão com garras agarrou-lhe a garganta, as unhas enterraram-se na sua carne. Kowalski ergueu o cano da espingarda VK.

— Desculpa, amigo.

Kowalski apontou para a boca aberta e puxou o gatilho, fechando os olhos no último segundo.

Um uivo gorgolejante irrompeu... silenciando-se quase de imediato. A pressão na sua garganta cessou.

Kowalski abriu os olhos e viu o mordomo cair de cara no chão.

Morto.

Kowalski rolou para o lado e voltou a pôr-se de pé. Olhou à sua volta em busca de quaisquer outros atacantes, depois correu para as traseiras da fazenda. Olhou de relance para cada janela por onde passava: um balneário, um laboratório com jaulas de aço para animais, uma sala de snooker.

O fogo rugia do outro lado da estrutura, atiçado pelo vento cada vez mais forte. O fumo erguia-se para os céus cada vez mais escuros.

Através da janela seguinte, Kowalski viu uma sala com uma gigantesca secretária de madeira e estantes de livros do chão ao teto.

Tinha de ser o escritório do professor.

— Doutora Rosauro — sussurrou Kowalski.

Nenhuma resposta.

— Doutora Rosauro... — tentou um pouco mais alto.

Agarrou a garganta. O transmissor tinha desaparecido, arrancado no seu confronto com o mordomo. Olhou de relance para o pátio. As chamas lambiam os céus.

Estava por sua conta.

Virou-se de novo para o escritório. Uma porta nas traseiras abria-se para a divisão. Estava entreaberta.

Porque seria que aquilo não lhe parecia nada bem?

Com o tempo a escassear, Kowalski avançou cautelosamente, de arma em punho. Usou a ponta da arma para abrir mais a porta.

Estava pronto para tudo.

Babuínos raivosos, mordomos raivosos.

Mas não para a jovem num fato de mergulho cinzento-escuro justo ao corpo.

Estava agachada em frente de um cofre aberto e levantou-se devagar ao ouvir o gemido da porta, com uma mochila ao ombro. O cabelo solto e molhado era tão negro quanto as asas de um corvo, a pele da cor do mel queimado. Os olhos, do tom esfumado do caramelo escuro, fixaram-se nos dele.

Por cima de uma SIG Sauer de 9 milímetros prateada, que ela segurava numa mão.

Kowalski desviou-se para um dos lados da porta, mantendo a arma apontada para o interior.

— Quem raio é você?

— O meu nome, señor, é Condeza Gabriella Salazar. Está a invadir a propriedade do meu marido.

Kowalski franziu o sobrolho. A esposa do professor. Porque seria que as mulheres mais bonitas ficavam sempre com os tipos inteligentes?

— Que está a fazer aqui? — gritou ele.

— É americano, si? Força Sigma, sem dúvida. — A última parte foi pronunciado com um esgar. — Vim buscar a cura do meu marido. Irei usá-la para negociar a liberdade dele. Não me conseguirá deter.

Uma detonação da arma dela abriu um buraco na porta. As farpas voaram na sua direção.

Havia algo na forma calma como usava a pistola que sugeria mais do que competência. Além disso, se tinha casado com um professor, o mais certo era ter mais alguns pontos de QI do que ele.

Cérebro e um corpo como aquele.

A vida não era justa.

Kowalski recuou, cobrindo o lado da porta. Talvez tivessem de conceder aquela vitória aos maus da fita.

Uma janela estilhaçou-se junto à sua orelha. Uma bala passou de raspão na parte de trás do seu pescoço. Lançou-se ao chão e encostou-se à parede de adobe.

A cabra saíra do escritório e avançava para ele pelo lado de dentro da casa.

Corpo, cérebro e conhecia a disposição do espaço.

Não era de admirar que tivesse conseguido evitar os monstros que ali se encontravam.

Um som distante intrometeu-se nos seus pensamentos. O vump-vump de um helicóptero que se aproximava. Era o helicóptero de evacuação. Olhou de relance para o relógio. Claro que tinha de chegar mais cedo.

— Devia correr para os seus amigos — gritou a mulher do interior. — Enquanto ainda tem tempo!

Kowalski fitou o relvado cuidado que se estendia até à praia. Não havia cobertura. A cabra apanhá-lo-ia passados alguns passos.

Era uma questão de fazer ou morrer.

Retesou os músculos das pernas sob o corpo, inspirou fundo, depois saltou. Lançou-se de costas contra a janela enfraquecida pelas balas. Manteve a arma encostada à barriga. Aterrou com força e rebolou sobre o ombro, ignorando os pedaços de vidro que o cortavam.

Assumiu uma posição agachada, ergueu a arma, girando.

A divisão estava vazia.

Fora-se de novo.

Seria, portanto, um jogo de gato e rato através da casa.

Avançou até à porta que conduzia ao interior da estrutura. O fumo fluía em rios junto ao teto. No interior, a temperatura estava elevada como a de uma fornalha. Recordou a mochila no ombro da mulher. Já esvaziara o cofre. Iria avançar para uma das saídas. Estava sujeita à mesma escassez de tempo.

Avançou para a divisão seguinte.

Um jardim de inverno. Uma parede de janelas abria-se sobre a extensão dos jardins e do relvado. O mobiliário de verga e os biombos ofereciam uma mão-cheia de esconderijos. Teria de a atrair de alguma maneira. De ser mais esperto do que ela.

Pois, certo...

Avançou para a divisão, mantendo-se perto da parede do fundo.

Atravessou a divisão. Não houve qualquer ataque.

Chegou à arcada do lado oposto. Abria-se para um átrio nas traseiras.

E para uma porta aberta.

Kowalski praguejou. Quando ele entrara, ela tinha certamente saído. O mais certo era que já estivesse a meio caminho das Honduras. Correu para a porta e saiu para o alpendre das traseiras. Perscrutou o terreno.

Desaparecera.

E ele que planeara ser mais esperto do que ela.

A pressão do cano quente contra a parte de trás do seu crânio realçou quanto ficava atrás dela em QI. Tal como Kowalski concluíra antes, também ela devia ter-se apercebido de que uma corrida em terreno aberto era demasiado arriscada. Por isso esperara para lhe fazer uma emboscada.

Nem sequer hesitara por um instante para qualquer réplica espirituosa... não que ele tivesse sido um bom parceiro de luta. Só lhe fora oferecida uma palavra de consolo. «Adios.»

A detonação da arma foi abafada pelo som súbito de uma sirene.

Ambos saltaram com o som estridente.

Felizmente, ele saltou para a esquerda, ela para a direita.

A bala rasgou a orelha direita de Kowalski como uma lança de fogo.

Ele virou-se, apertando o gatilho da sua própria arma. Não apontou, limitou-se a apertar o gatilho e esperar pela rajada, com a arma à altura da cintura. Perdeu o equilíbrio no limite do alpendre e caiu para trás.

Uma nova bala cortou o ar passando junto à ponta do seu nariz.

Caiu no caminho empedrado e o seu crânio bateu com um som distinto. A arma foi-lhe arrancada dos dedos.

Tentou levantar-se e viu a mulher aproximar-se da borda do alpendre.

Apontava a SIG Sauer para ele.

A outra mão apertava a barriga, mas foi incapaz de servir de barragem. O conteúdo abdominal caiu da sua barriga aberta, jorrando num fluxo de sangue escuro. Ela ergueu a arma, o braço trémulo, os seus olhos fixaram-se nos dele, estranhamente surpreendidos. Depois a arma deslizou-lhe dos dedos e ela tombou na direção dele.

Kowalski rebolou, conseguindo sair a tempo do caminho.

Ela aterrou sobre o caminho de pedra.

O som do helicóptero fazia-se ouvir mais forte enquanto os ventos mudavam de direção. A tempestade chegava veloz. Ele viu o helicóptero sobrevoar a praia uma vez, como um cão que se instala para dormir, e depois descer em direção a uma extensão rochosa e plana.

Kowalski virou-se para o corpo de Gabriella Salazar e tirou-lhe a mochila. Começou a correr em direção à praia. Depois parou, voltou para trás e recuperou a espingarda VK. Não a ia deixar para trás.

Enquanto corria, apercebeu-se de duas coisas.

Um. A sirene que explodira da selva próxima calara-se. E dois. Não tinha ouvido uma só palavra da doutora Rosauro. Verificou o recetor preso com um adesivo atrás da orelha. Continuava no local.

Porque estava em silêncio?

O helicóptero — um Sikorski S-76 — pousou mesmo à frente dele. A areia redemoinhava no vento provocado pelos rotores. Um artilheiro de uniforme apontou-lhe a espingarda e gritou sobre o rugido das pás.

— Pare! Já!

Kowalski estacou. Baixou a espingarda, mas ergueu a mochila.

— Tenho o maldito antídoto.

Percorreu a praia com os olhos em busca da doutora Rosauro, mas não a viu em parte alguma.

— Sou o marinheiro Joe Kowalski! Marinha dos Estados Unidos! Estou a ajudar a doutora Rosauro!

Passado um momento de consulta com alguém dentro do helicóptero, o artilheiro fez-lhe sinal para que avançasse. Baixando-se sob as pás do rotor, Kowalski entregou a mochila. Uma figura mergulhada nas sombras aceitou-a e vasculhou o seu interior. Algo foi dito através do rádio.

— Onde está a doutora Rosauro? — perguntou o estranho, claramente o responsável pela missão no terreno. Os seus duros olhos azuis estudavam Kowalski.

Este abanou a cabeça.

— Comandante Crowe — disse o piloto. — Temos de ir já. A marinha brasileira acaba de ordenar o bombardeamento.

— Entre — ordenou o homem a Kowalski com um tom inequívoco.

Kowalski avançou para a porta aberta.

Um guincho estridente impediu-o. Um tiro solitário. Vinha de algures para lá da praia.

Da selva.

A doutora Shay Rosauro agarrava-se ao emaranhado de ramos a meio caminho do topo do coqueiro de folhas largas. Os babuínos algaraviavam em baixo. Ela sofrera uma dentada profunda na barriga da perna, perdera o rádio e a mochila.

Minutos antes, depois de ter sido perseguida até à árvore, tinha constatado que a sua posição elevada lhe permitia avistar a fazenda suficientemente bem para ver Kowalski a ser conduzido na ponta de uma arma. Incapaz de ajudar, usara a única coisa que ainda lhe restava: o guinchador sónico.

Infelizmente, o som estridente deixara em pânico os babuínos por baixo dela e a sua fuga súbita sacudiu o ramo. Perdera o equilíbrio... e o guinchador. Quando recuperou o equilíbrio, ouviu os dois tiros.

Sentiu a esperança morrer dentro de si.

Em baixo, um dos babuínos, o macho dominante do bando, tinha recuperado o aparelho sónico e descoberto o botão da sirene. O som estridente dispersou momentaneamente o bando. Mas apenas momentaneamente. O dissuasor estava a tornar-se progressivamente menos eficaz, nada fazendo para além de os enfurecer.

Shay abraçou o tronco da árvore.

Verificou o relógio, depois fechou os olhos.

Imaginou os rostos das crianças... do parceiro...

Um ruído atraiu a sua atenção para cima. O duplo vump de um helicóptero de passagem. As folhas agitavam-se à volta dela. Ergueu um braço... depois baixou-o.

Demasiado tarde.

O helicóptero estava de partida. O ataque brasileiro ia começar numa questão de segundos. Shay deixou o taco, a única arma que lhe restava, cair dos seus dedos. De que servia? Esta tombou no chão, nada mais fazendo além de atrair a atenção dos babuínos. O bando renovou o seu ataque, trepando os ramos mais baixos.

Não podia fazer mais do que olhar.

Depois ouviu uma voz familiar.

— Morram, merda de macacos imundos e raivosos!

Uma figura corpulenta surgiu em baixo, disparando uma VK.

Babuínos gritavam. Pelo voava. Sangue esguichava.

Kowalski avançava para a refrega, uma vez mais envergando apenas os boxers.

E a arma.

Avançava e disparava, girando, rodando, mudando de direção, derrubando.

Os babuínos estavam agora em fuga.

Com exceção do líder. O macho ergueu-se e uivou tão alto quanto Kowalski, expondo as longas presas. Kowalski fitou-o com expressão idêntica, mostrando também os dentes.

— Cala-te!

Kowalski terminou a declaração com uma explosão contínua de poder de fogo, transformando o macaco em papa. Uma vez acabado, colocou a arma ao ombro e avançou. Encostando-se ao tronco, ergueu os olhos.

— Pronta para descer, doutora?

Aliviada, Shay deixou-se cair da árvore. Kowalski apanhou-a.

— O antídoto...? — perguntou.

— Em boas mãos — garantiu-lhe. — A caminho da costa com o comandante Crowe. Ele queria que eu o acompanhasse mas... bem, eu... acho que estava em dívida para consigo.

Kowalski amparou-a. Coxearam rapidamente para o exterior da selva, para a praia aberta.

— Como é que vamos sair...?

— Tenho isso tratado. Parece que uma senhora simpática nos deixou um presente de despedida. — Apontou para junto da linha de água, onde repousava um jet ski. — Para nossa sorte, Gabriella Salazar amava o marido o suficiente para vir até aqui.

Apressaram-se para junto do veículo aquático e, uma vez chegados, ele ajudou-a gentilmente a subir, sentando-se, em seguida, à frente dela.

Shay pôs os braços à volta dele. Apercebeu-se da orelha ensanguentada e das lacerações nas costas. Mais cicatrizes para juntar à coleção. Fechou os olhos e encostou o rosto às costas nuas dele. Grata e exausta.

— E por falar em amor pela vida — disse Kowalski, ligando o motor e acelerando o veículo aquático. Olhou de relance para trás. — Acho que me estou a apaixonar...

Shay ergueu a cabeça, sobressaltada, depois voltou a baixá-la.

Aliviada.

Kowalski estava a olhar para a espingarda que trazia ao ombro.

— Oh, sim — disse ele. — Esta preciosidade não vai mesmo a lado nenhum.


OS ELOS DE LIGAÇÃO DOS ROMANCES
GANHAM VIDA PRÓPRIA

Os cinco contos que se seguem tiveram a sua origem numa tendência editorial, a de os autores escreverem histórias que levantem o véu dos romances seguintes. Não tenho a certeza de quem começou, mas lembro-me de ter amaldiçoado o escritor — não pelo trabalho extra exigido, mas devido à pressão adicional conferida à já tensa arte de criar um conto. Tendo escrito «Kowalski Apaixonado», sabia quão difícil era controlar a minha tendência natural para escrever longos calhamaços complexos e reduzir uma história aos seus elementos essenciais.

Agora o meu editor precisava dessas histórias para fazer a ligação com o romance seguinte.

Depois de muito resmungar, contudo, acedi a tentar. Lembro-me de me ter sentado à secretária, de caneta e papel na mão, a tentar deslindar o puzzle. Não queria escrever uma história que terminasse num momento de suspense, uma história que exigisse que o leitor comprasse o romance seguinte para saber como terminaria o enredo. Queria que o trabalho fosse fechado, com o seu próprio arco de personagens e história.

Na altura, o romance que seria publicado em breve era A Colónia do Diabo. Revi os elementos do enredo do livro e, lentamente, constatei três coisas. Primeiro, que havia uma história de fundo no romance — um mistério, por assim dizer — que nunca chegava a ser esclarecida. Segundo, que esse mistério estava relacionado com uma personagem que nunca tivera uma história só sua. A personagem era a antiga assassina transformada em aliada, Seichan. Terceiro, acabara de regressar de Paris onde tivera a oportunidade de visitar as macabras catacumbas por baixo da Cidade das Luzes. A sua história e intriga estavam bem vivas na minha mente. Todos esses elementos fundiram-se na terrível história de um assassino em fuga que veio a ser «A Chave Mestra».

Depois de ter escrito esse primeiro conto de ligação, descobri rapidamente que, na realidade, era divertido e desafiador escrever tais histórias. Permitia-me explorar mais uma vez os recessos e brechas das vidas de diversas personagens, ligar um romance a outro e escrever histórias que podiam ser breves e brutais. Em «Turno da Meia-Noite» pude enviar de novo Kowalski numa missão a solo. Em «Navio Fantasma», o comandante Gray Pierce e Seichan têm direito a um pouco de sopas e descanso, até as férias descarrilarem loucamente. Em «Queda Flamejante», juntei dois dos aliados mais improváveis, Kowalski e Seichan. E «Batedor» permitiu-me apresentar duas novas personagens: o capitão Tucker Wayne e o seu cão de guerra. Regressarei a este duo dinâmico mais à frente.

Mas, até lá, espero que se divirtam com estes curtos vislumbres das vidas secretas e missões furtivas da Sigma.


A CHAVE MESTRA

JAMES ROLLINS

Ela acordou com uma faca na garganta.

Ou pelo menos foi o que pensou.

Seichan estava plenamente alerta, mas mantinha os olhos fechados, fingindo estar a dormir e sentindo algo afiado morder-lhe o pescoço. Soube instintivamente que não se devia mexer. Não ainda. Desconfiada, recorreu aos seus sentidos, mas não ouviu qualquer sugestão de movimento, não sentiu qualquer agitação de ar sobre a sua pele nua, não detetou qualquer odor corporal ou respiração para além dos seus. O único cheiro que sentiu era um vestígio de rosas e desinfetante.

Estarei sozinha?

Com a forte pressão ainda no pescoço, entreabriu um olho e, numa fração de segundo, assimilou o ambiente à sua volta. Sobre a cama, as cobertas eram de um brocado com uma fina textura; sobre a cabeceira, um antigo tapete de tapeçaria; no lintel da lareira, uma jarra de cristal com rosas acabadas de colher repousava ao lado de um relógio de ouro do século XVIII com uma volumosa base de mármore. O mostrador indicava que passavam poucos minutos das dez, algo confirmado pelo moderno despertador pousado sobre a mesa de cabeceira de nogueira. Pelo tom quente da luz que entrava pelas cortinas translúcidas, presumiu que era de manhã.

Captou o som de vozes abafadas de passagem no corredor fora do quarto, que falavam francês, o que combinava com a decoração e o mobiliário.

Quarto de hotel, calculou.

Luxuoso, elegante, nada que ela pudesse pagar.

Esperou mais alguns segundos, assegurando-se de que estava sozinha.

Quando era mais nova, passara alguns anos a correr pelos bairros de lata de Banguecoque e pelas vielas de Phnom Penh, meio selvagem, uma criatura da rua. Nessa altura, tinha aprendido as competências rudimentares daquela que seria a sua futura profissão. A sobrevivência nas ruas exigia vigilância, astúcia e brutalidade. Quando os antigos empregadores a encontraram e a recrutaram nessas mesmas ruas, a transição para assassino revelou-se fácil.

Doze anos depois, tinha outro rosto, uma evolução que parte de si ainda repudiava, deixando-a meio formada, à espera de que o suave barro endurecesse na sua nova forma. Mas no que se tornaria? Traíra os seus antigos empregadores, uma organização criminosa internacional chamada Guilda, e mesmo esse nome não era real, apenas um pseudónimo útil. A verdadeira identidade e propósito da organização permaneciam vagos, até mesmo para os seus operacionais.

Depois da sua traição, não tinha casa, nem país, nada a não ser uma ténue aliança com uma agência secreta americana conhecida como Sigma. Tinha sido recrutada para descobrir quem, de facto, puxava os cordelinhos na Guilda. Não que tivesse grande escolha. Tinha de destruir os seus antigos senhores antes que estes a destruíssem a ela.

Fora por isso que viajara para Paris atrás de uma pista.

Sentou-se lentamente e captou o seu reflexo num espelho do roupeiro. O cabelo preto estava despenteado pela almofada, o esmeralda dos seus olhos estava baço, sensível à luz fraca do sol matinal.

Drogada.

Alguém a despira até ficar apenas de cuecas e soutien, provavelmente em busca de armas e escutas, ou talvez apenas para a intimidar. A roupa — calças de ganga pretas, t-shirt cinzenta e casaco de cabedal tipo motard — fora dobrada e arrumada sobre uma cadeira antiga, estilo Luís XV, não muito distante. Numa mesa de cabeceira do período imperial, as suas armas tinham sido dispostas numa fila cuidada, como se troçassem da sua letalidade. A pistola SIG Sauer continuava no respetivo coldre de ombro, ao passo que os punhais e as facas tinham sido desembainhados, brilhando mordazmente.

Tão brilhantes como a nova joia que lhe adornava o pescoço.

A faixa de aço inoxidável tinha sido aplicada com força num ponto baixo do pescoço. Uma minúscula luz LED brilhava na cova da garganta, onde dentes afiados se enterravam profundamente na pele macia.

Então foi isto que me acordou.

Levou a mão à coleira eletrónica e deslizou cuidadosamente a ponta do dedo pela sua superfície em busca do mecanismo que a prendia. Por baixo da orelha direita, descobriu uma abertura minúscula do tamanho de um alfinete.

Um buraco de fechadura.

Mas quem terá a chave?

O coração batia-lhe na garganta, pressionando os dentes afiados a cada batimento. A raiva corou-lhe a pele, deixando atrás de si um frio temor na base da coluna. Enterrou um dedo por baixo da faixa apertada, estrangulando-se, enterrando ainda mais os espinhos de aço, até...

... a agonia trespassar o seu corpo, incendiando-lhe os ossos.

Deixou-se cair na cama, contorcendo-se de dores, de costas arqueadas, o peito demasiado apertado para gritar. Depois a escuridão... o nada...

O alívio inundou-a depois de ter caído para trás, mas a sensação foi de curta duração.

Seichan voltou a acordar, provando o sabor do sangue por ter mordido a língua. Um olhar lacrimejante lançado na direção do relógio por cima da lareira revelou que decorrera apenas um momento.

Pôs-se de pé, ainda a tremer em consequência da quase eletrocussão, e pôs as pernas fora da cama. Manteve as mãos bem longe do pescoço e avançou para a janela, precisando de se orientar. Mantendo-se ligeiramente de lado, para não lançar qualquer sombra, fitou, em baixo, a praça, em cujo centro se erguia uma gigantesca coluna de bronze sobre a qual se encontrava uma estátua de Napoleão. Uma galeria de edifícios elegantes e idênticos rodeava a praça, com arcadas no piso térreo e janelas altas no primeiro andar, separadas por colunas e pilastras.

Continuo em Paris...

Recuou. De facto, sabia exatamente onde estava, tendo atravessado aquela mesma praça ao raiar da madrugada, quando a cidade começava a acordar. A praça em baixo era a Place Vendôme, conhecida pelos seus joalheiros elegantes e casas de moda. A alta Colonne de Vendôme, que se erguia no centro, era um marco parisiense, criado a partir do bronze derretido de mil e duzentos canhões russos e austríacos reunidos por Napoleão para celebrar uma qualquer batalha. Pela sua superfície subia uma faixa contínua de baixos-relevos que representavam cenas de diversas guerras napoleónicas.

Seichan virou-se e estudou o quarto opulento, com cortinados de seda e decorado a folha de ouro.

Ainda devo estar no Ritz.

Tinha ido para o hotel — o Ritz Paris — para uma reunião ao início da manhã com um historiador que tinha ligações à Guilda. Passava-se algo de importante dentro da organização, o que provocara grande agitação entre todos os seus contactos. Sabia que esses momentos de sublevação, quando as portas trancadas eram momentaneamente deixadas abertas e as medidas de proteção relaxavam, constituíam o momento perfeito para recolher o que pudesse. Por isso, procurara bem fundo, insistira e arriscara expor-se talvez um bocadinho demais.

Tocou suavemente com uma mão na coleira, depois baixou-a.

Sem dúvida, demais.

Um dos seus contactos de confiança tinha marcado aquele encontro. Mas, aparentemente, a confiança que o dinheiro podia pagar era limitada. Tinha-se encontrado com o historiador no Hemingway Bar, no piso térreo, uma homenagem ao escritor americano, com painéis de madeira e mobiliário forrado a pele. O historiador estava sentado numa mesa lateral segurando um Bloody Mary, uma bebida que tivera a sua origem naquele mesmo estabelecimento. Ao lado da cadeira, repousava uma pasta de cabedal preto que encerrava em si a promessa de segredos ainda por revelar.

Bebeu qualquer coisa.

Apenas água.

Ainda assim, um erro.

Mesmo agora, a boca sabia-lhe a papéis de música, a cabeça parecia cheia de algodão.

Enquanto regressava ao interior do quarto, um gemido baixo atraiu a sua atenção para a porta da casa de banho. Praguejou contra si mesma, censurando-se por não ter revistado o resto do quarto ao acordar, atribuindo a culpa ao estado de entorpecimento dos seus pensamentos.

Tamanha falta de vigilância terminava ali.

Avançou com passos silenciosos e rápidos através da sala, retirando a pistola ainda no coldre de cima da mesa de cabeceira. Sacudiu a pistola, para a libertar, quando alcançou a porta, deixando o coldre cair silenciosamente no tapete.

Escutou à porta. Quando um segundo gemido — agora mais sofrido — irrompeu, ela entrou repentinamente na casa de banho de pistola em riste. Varreu com o olhar a pequena divisão de mármore, não encontrando ninguém junto ao lavatório ou ao toucador.

Depois um braço magro coberto de tatuagens ergueu-se da banheira, acenando fracamente como um banhista que se estivesse a afogar. Uma mão descobriu a torneira de ouro com a forma de um cisne e agarrou-a, apertando-a com força.

Enquanto Seichan se aproximava mais, avançando de lado, um rapaz magro, de cabelo castanho-avermelhado — que provavelmente não tinha mais de dezoito anos — usou a torneira para se içar, ficando visível. Todo ele era costelas, cotovelos e joelhos, mas ela não ia correr riscos, pelo que apontou a pistola ao seu peito nu. Atordoado, o rapaz pareceu vê-la por fim, abrindo muito os olhos perante a seminudez dela e a ameaça óbvia da arma. Voltou atabalhoadamente para a banheira vazia, de mãos levantadas, parecendo prestes a trepar pela parede de mármore atrás de si.

Não tinha vestido mais do que um par de boxers... e uma coleira de aço inoxidável.

Igual à dela.

Talvez sentindo a mesma forte pressão no pescoço que Seichan sentira ao acordar, o rapaz levou as mãos à garganta.

— Não faças isso — avisou ela em francês.

Em pânico, o rapaz puxou. A luz verde da coleira passou para vermelha. Todo o seu corpo foi agitado pela descarga que o lançou trinta centímetros no ar. Voltou a cair dentro da banheira. Seichan mergulhou e impediu que a sua cabeça batesse no mármore duro, sentindo a corrente elétrica morder-lhe a palma da mão.

O seu gesto não fora motivado pelo altruísmo. Claramente, o miúdo partilhava a mesma situação difícil em que ela se encontrava. Talvez soubesse mais sobre o que quer que se estivesse a passar do que ela. O corpo do rapaz agitou-se em convulsões durante mais alguns segundos, depois ficou inerte. Seichan esperou que os seus olhos se voltassem a abrir; nessa altura levantou-se e recuou. Baixou a arma, sentindo que o rapaz não representava qualquer ameaça.

Cautelosamente, o rapaz sentou-se. Seichan estudou-o, enquanto ele respirava pesadamente, recuperando-se lentamente do choque. Era mais alto do que ela pensara inicialmente. Talvez com perto de um metro e oitenta, mas muitíssimo magro, não tanto descarnado quanto seco. O cabelo era comprido, até aos ombros, de corte irregular com a descontraída casualidade da juventude. As tatuagens cobriam-lhe os braços, subindo até aos ombros e abrindo-se em duas asas negras de intrincados desenhos ao longo das costas. O peito estava limpo, permanecendo ainda uma tela vazia.

— Comment t’appelles-tu? — perguntou Seichan, sentando-se numa cadeira.

Ele respirava pesadamente.

— Je m’appelle Renny... Renny MacLeod.

Embora tivesse respondido em francês, o sotaque era claramente escocês.

— Falas inglês? — perguntou ela.

Ele acenou com a cabeça, o alívio visível no relaxar da sua postura.

— Aye. O que se passa? Onde estou?

— Estás em apuros.

Ele parecia baralhado, assustado.

— Qual é a última coisa de que te lembras? — perguntou ela.

A voz dele continuava titubeante.

— Estava num pub. Em Montparnasse. Alguém me pagou uma cerveja. Só uma. Não estava com os copos nem nada, mas essa é a última coisa de que me lembro. Até ter acordado aqui.

Portanto, ele também fora drogado. Tinham-no levado até ali e posto a coleira, tal como a ela. Mas porquê? Que jogo se estaria a desenrolar?

O telefone tocou, ecoando no quarto.

Seichan virou-se, desconfiando que a resposta estava prestes a ser dada. Levantou-se e saiu da casa de banho. O som dos pés descalços no chão de mármore disse-lhe que Renny a seguia. Pegou no telefone na mesinha de cabeceira.

— Estão os dois acordados — disse a voz do outro lado da linha, falando em inglês. — Ótimo. O tempo já começa a escassear.

Seichan reconheceu a voz. Era o doutor Claude Beaupré, o historiador da Universidade Panthéon-Sorbonne, em Paris. Imaginou o elegante francês de cabelo grisalho sentado no Hemingway Bar. Envergara um casaco de tweed coçado, mas a verdadeira medida do homem não estava no corte da sua roupa, mas na capa altiva do seu ar e dos seus modos aristocráticos. Calculou que algures, no passado, a sua família tivera títulos nobres apensos aos nomes: baron, marquis, vicomte. Mas já não tinha. Talvez fosse por isso que se tornara historiador, numa tentativa para se agarrar a esse passado outrora ilustre.

Quando se encontrara com ele naquela manhã, esperara comprar documentos pertencentes aos verdadeiros líderes da Guilda, mas as circunstâncias tinham-se alterado claramente.

Terá o homem percebido quem sou? Se assim for, por que razão ainda estou viva?

— Preciso das suas aptidões únicas — explicou o historiador, como se lesse os seus pensamentos. — Despendi grandes esforços para a atrair a Paris, para a aliciar com a promessa de respostas. Quase chegava tarde demais.

— Então tudo não passou de um logro.

— Non. De todo, mademoiselle. Tenho os documentos que procura. Como a senhora, aproveitei plenamente o tumulto entre os nossos empregadores (o seu passado, o meu atual) para libertar os papéis que procura. Tem a minha palavra de honra. Veio comprá-los. Eu estou apenas a negociar o preço.

— E que preço é esse?

— Quero que encontre o meu filho, que o liberte antes que seja morto.

Seichan esforçou-se por acompanhar aquelas negociações.

— O seu filho?

— Gabriel Beaupré. Caiu sob o feitiço de um outro compatriota da sua organização, um que considero muito desagradável. O homem é o líder de um culto apocalíptico, l’Ordre du Temple Solaire.

— A Ordem do Templo Solar — traduziu ela em voz alta.

O rosto de Renny MacLeod endureceu ao ouvir o nome.

— Oui — disse Claude ao telefone. — Há uma década, o culto esteve por trás de uma série de suicídios em massa em duas aldeias na Suíça e uma no Quebeque. Os seus membros foram encontrados envenenados pela sua própria mão ou drogados para se submeterem. Um dos locais foi arrasado por bombas incendiárias num derradeiro ato de purificação. Muitos acreditavam que a OTS tinha sido dissolvida depois disso, mas na verdade limitaram-se a esconder-se, passando a servir um novo mestre.

A Guilda.

Os seus antigos empregadores aproveitavam frequentemente aquele tipo de loucura e usavam a sua violência para servir os próprios fins.

— Contudo o novo líder da OTS, Luc Vennard, tem ambições maiores. Como nós, planeia usar a folga momentânea nas rédeas da Guilda para obter a sua própria independência, mergulhando no caos a minha bela cidade. Só por isso, já o desejava matar, mas agora atraiu o meu filho com mitos sobre a existência dos Cavaleiros Templários e o dever sagrado do culto de proclamar o reinado de um novo rei-deus (provavelmente, o próprio Vennard) com uma transformação sangrenta que exigiria fogo e sacrifício. Sacrifício humano, para ser mais específico. Para usar as palavras do meu filho antes de desaparecer, uma grande purga poderia prenunciar o nascimento do novo rei-sol.

— Quando é que tudo isso deverá acontecer? — perguntou Seichan.

— Ao meio-dia de hoje, quando o sol está mais forte.

Seichan olhou de relance para o relógio por cima da lareira. Faltavam menos de duas horas.

— Foi por isso que tomei estas medidas extremas. Para garantir a sua colaboração. As coleiras não se limitam a castigar, também podem matar. Se deixar os limites da cidade de Paris, terá um fim francamente agonizante. Se não conseguir libertar o meu filho, encontrará igual destino.

— E se concordar... se for bem-sucedida...

— Será libertada. Tem o meu juramento. E quanto ao pagamento pelos serviços prestados, os documentos que possuo também serão seus.

Seichan considerou as suas opções. Não demorou muito. Só tinha uma.

Cooperar.

Também compreendia o porquê de Claude Beaupré lhe ter posto a coleira e a ter transformado no seu cão de caça. Não se atreveria a transmitir à Guilda o que soubera através do filho. A organização limitar-se-ia a permitir que Vennard levasse a cabo o seu ato violento e usá-lo-ia em proveito próprio. O caos representava frequentemente uma oportunidade para os seus antigos mestres. Ou erradicariam Vennard e o seu culto pelo atrevimento e tentativa de amotinação. Independentemente do cenário, o mais provável era que Gabriel Beaupré acabasse morto.

Por isso, Claude procurara ajuda fora dos canais regulares.

— Então e o rapaz? — perguntou Seichan, fitando Renny MacLeod, incapaz de encaixar aquela peça no puzzle.

— Ele será o seu mapa e o seu guia.

— O que significa isso?

Renny apercebeu-se, decerto, da atenção súbita e empalideceu visivelmente.

— Veja as costas dele — ordenou Claude. — Pergunte-lhe sobre Jolienne.

— Quem é Jolienne?

Desta vez o rapaz estremeceu, como se lhe tivessem dado um soco no estômago. Mas em vez de ficar ainda mais pálido, o seu rosto corou. Saltou para a frente, tentando agarrar o telefone.

— O que sabe esse sacana sobre a minha Jolie? — gritou Renny.

Seichan esquivou-se facilmente ao ataque, mantendo o telefone encostado ao ouvido e fazendo o rapaz girar com a outra mão. Lançou-o de frente para a cama e manteve-o preso com um joelho no fundo das costas.

O rapaz debateu-se, praguejando furiosamente.

— Fica quieto — disse ela, pressionando com o joelho. — Quem é Jolie?

Ele virou a cabeça para a fitar apenas com um olho.

— A minha namorada. Desapareceu há dois dias. Em busca de um grupo chamado Solar Temple. Eu estava no pub a noite passada, a tentar reunir um grupo de busca entre os outros cataphiles.

Seichan não conhecia o significado daquela palavra. Mas, antes de fazer quaisquer perguntas, a sua atenção voltou-se para as costas nuas do rapaz e a extensão da sua tatuagem. Era a primeira vez que tinha a oportunidade de olhar para ela.

Com tintas preta, amarela e carmesim, tinha sido gravado indelevelmente na sua pele um estranho mapa — mas não era um gráfico de ruas e avenidas. Num pormenor meticuloso, o desenho artístico apresentava uma rede intricada de túneis que se cruzavam, câmaras que alargavam e piscinas repletas de água. Parecia o mapa de um qualquer sistema de cavernas perdido. Era também, claramente, uma obra inacabada: algumas passagens esbatiam-se na obscuridade ou terminavam abruptamente nos limites da tatuagem.

— O que é isto? — perguntou ela.

Renny sabia o que lhe chamara a atenção.

— Foi onde a Jolie desapareceu.

Claude, que continuava do outro lado da linha, respondeu de forma mais direta.

— É um mapa das catacumbas de Paris, a nossa cidade dos mortos.

Quinze minutos mais tarde, Seichan forçava o motor da sua motorizada e acelerava sobre os doze arcos de pedra da Pont Neuf, a ponte medieval que se estendia sobre o rio Sena. Serpenteou por entre o trânsito mais lento, atravessando para a Rive Gauche de Paris e apontado para o Quartier Latin.

Sentado atrás dela, Renny agarrava-se com os dois braços. Apertou ainda com mais força quando ela saiu da ponte e fez uma curva apertada, penetrando no labirinto de ruas do lado oposto. Não abrandou. Estavam a ficar rapidamente sem tempo.

— Vira na próxima à direita! — gritou-lhe Renny ao ouvido. — Segue quatro quarteirões. Depois teremos de continuar a pé.

Seichan obedeceu. Não tinha outro guia.

Instantes depois, estavam ambos a correr pela rua Mouffetard, uma antiga via pedestre que cortava um caminho estreito e serpenteante através do Quartier Latin. Os edifícios de ambos os lados remontavam há séculos. Os pisos térreos tinham sido convertidos em cafés, padarias, queijarias, crêperies e um mercado de frescos que se estendia para a rua. Por todo o lado, comerciantes negociavam os seus produtos, enquanto os clientes regateavam ruidosamente.

Seichan ia abrindo caminho por entre o bulício, reparando nas ementas de lousa que estavam a ser preenchidas, os pães enormes que iam sendo empilhados nas montras. Sem fôlego, com dificuldade em respirar, apercebeu-se do odor almiscarado que se erguia de uma minúscula fromagerie e das fragrantes exposições de uma florista a céu aberto.

Ainda assim, permaneceu demasiado consciente do que estava por baixo daquele animado tumulto: uma necrópole deteriorada onde estavam guardados os ossos de seis milhões de parisienses, três vezes a população que se encontrava em cima.

Renny ia abrindo caminho com as suas pernas compridas. A sua forma esguia deslizava por entre a multidão com facilidade. O rapaz olhava constantemente para trás, para se assegurar de que não a tinha perdido.

Ainda no hotel, tinha encontrado a sua roupa no guarda-fatos: calças de ganga rasgadas, botas da tropa e uma t-shirt vermelha com a figura do rebelde Che Guevara. Além disso, tinham posto lenços em volta do pescoço para esconder as coleiras de aço. Enquanto se vestiam, Seichan explicara a situação em que se encontravam, como as suas vidas dependiam de mergulharem nas catacumbas e encontrarem o filho perdido do historiador. Renny escutara, fazendo poucas perguntas. Nos seus olhos, apercebeu-se da centelha de esperança por trás do vidrado do terror. Desconfiava que o passo determinado que tinha assumido pouco tinha que ver com o salvar da sua própria vida e mais com a possibilidade de encontrar o seu amor perdido, Jolie.

Antes de vestir a t-shirt, apontou desajeitadamente para a área inferior da omoplata direita. Esse canto do mapa tatuado era recente, a pele ainda vermelha e inflamada. «Foi isto que a Jolie descobriu, era para lá que ia quando desapareceu.»

E era para onde seguiam agora, perseguindo a sua única pista, preparando-se para seguir os passos da namorada de Renny.

Claude Beaupré também acreditava na importância do paradeiro de Jolienne. O seu desaparecimento coincidira com o último dia em que vira o filho. Antes de desaparecer, Gabriel tinha dado ao pai uma pista sobre o local onde Vennard e os restantes membros do culto se deveriam reunir para a purga. Era naquele mesmo bairro. Por isso, quando Claude soube da busca de Renny pela namorada desaparecida naquela área, começou a mover as peças do seu jogo de xadrez: o guia humilde e a caçadora mortífera.

Os dois estavam agora inextricavelmente juntos, avançando para a entrada secreta das catacumbas. Renny tinha partilhado tudo o que sabia sobre a rede subterrânea de criptas e túneis. Como os mundos escuros sob a luminosa Cidade das Luzes haviam sido, outrora, pedreiras antigas, chamadas les carrières de Paris. A antiga escavação descia dez pisos no subsolo, abrindo câmara gigantescas e estendendo-se por trezentos e vinte quilómetros de túneis entrecruzados. Outrora, as pedreiras estavam situadas nos arredores da cidade, mas com o tempo Paris cresceu e estendeu-se sobre o velho labirinto, até metade da metrópole ficar situada sobre as minas.

Depois, no século XVIII, as autoridades ordenaram que os cemitérios sobrelotados de Paris fossem escavados. Milhões de esqueletos — alguns com mil anos — foram lançados sem cerimónia para os túneis da pedreira, onde foram desmontados e empilhados como lenha. De acordo com Renny, era provável que ali estivessem enterradas algumas das figuras históricas mais famosas de França: de reis merovíngios a personalidades da Revolução Francesa, de Clovis a Robespierre e Maria Antonieta.

A busca de Seichan, contudo, não era pelos mortos.

Por fim, Renny abandonou a rua principal e enfiou-se pela viela estreita entre um café e uma pastelaria.

— Por aqui. A entrada de que falei fica mais à frente. Os meus amigos (também eles cataphiles) devem ter-nos deixado algum equipamento. Ajudamo-nos sempre uns aos outros.

A viela era tão apertada que tinham de avançar em fila indiana. Terminava num pequeno pátio, rodeado por edifícios com centenas de anos. Algumas das janelas tinham sido entaipadas; outras mostravam alguns sinais de vida: um cão pequeno que choramingava um lamento, algumas cordas com roupa a secar, um rosto infantil que os espreitava por entre os cortinados.

Renny conduziu-a a uma tampa de esgoto escondida num canto mergulhado nas sombras do pátio. Retirou um pé-de-cabra de trás de um caixote do lixo, juntamente com dois capacetes de mineiro com lanternas na parte da frente.

Apontou para o caixote do lixo.

— Também nos deixaram umas lanternas.

— Os teus cataphiles?

— Sim. Companheiros exploradores do submundo de Paris — disse ele, deixando brilhar um sorriso orgulhoso, o sotaque adensando-se. — Vimos de todos os cantos do mundo, de todos os sectores da sociedade. Alguns percorrem os velhos túneis ou linhas de esgoto; outros chapinham e mergulham nos fossos repletos de água que se abrem para salas inundadas bem abaixo. Mas a maioria, tal como eu e a Jolie, somos atraídos pelos cantos por mapear das catacumbas.

Renny calou-se, com a preocupação a abater-se pesadamente sobre os seus ombros, claramente receoso quanto ao destino da namorada.

— Vamos abrir isto — disse Seichan, precisando de o manter em movimento.

Ajudou-o a erguer a tampa do esgoto e a desviá-la. Uma escada metálica, aparafusada à parede do poço, descia para a escuridão. Renny colocou e prendeu o capacete. Seichan optou pela lanterna.

Lançou o feixe luminoso para as profundezas.

— Este poço conduz a uma secção há muito abandonada do sistema de esgotos que remonta a meados do século dezanove — disse Renny, agarrando-se à escada.

— Um esgoto? Pensei que íamos para as catacumbas.

— Sim, vamos. Com frequência, esgotos, caves e poços antigos têm entradas secretas para as antigas catacumbas. Vem, eu mostro-te.

Renny desceu e ela seguiu-o. Estava à espera de que o túnel cheirasse mal, carregado com os dejetos da cidade por cima. Mas achou-o apenas húmido e bafiento. Desceram pelo menos dois andares, até finalmente ela poder pisar solo firme. Moveu a luz de um lado para o outro. Blocos ligados com argamassa cobriam as velhas paredes e o teto baixo do esgoto. As botas chapinhavam no fundo de um pequeníssimo riacho de água.

— Por aqui. — Renny conduziu-a ao longo do esgoto, com a certeza de uma ratazana bem-ensinada. Ao fim de cerca de trinta metros, viram um portão de grades que se abria para a direita. Ele atravessou até ele e abriu-o, empurrando. As dobradiças rangeram. — Agora por aqui.

Degraus grosseiros conduziam para a escuridão ainda mais profunda, descendo até uma sala que fez Seichan arquejar. As paredes tinham sido pintadas com um jardim caótico de flores e árvores por entre canais gotejantes e piscinas de um azul resplandecente. Era como entrar num quadro de Monet.

— Bem-vinda à verdadeira entrada das catacumbas — disse Renny.

— Quem fez tudo isto? — perguntou ela, fazendo deslizar a luz e apercebendo-se de algumas secções desfiguradas por graffiti.

Renny encolheu os ombros.

— Descem até aqui pessoas bastante diferentes. Artistas, foliões, cultivadores de cogumelos. Há alguns anos, os cataflics (é o nome que damos aos agentes da polícia que patrulham cá em baixo) descobriram uma grande câmara preparada como uma sala de cinema, com um grande ecrã, uma máquina de pipocas e bancos esculpidos. Quando os investigadores da polícia regressaram, no dia seguinte, descobriram que nada restava. Tudo o que tinham deixado fora um bilhete, no meio do chão, com um aviso: «Não tentem encontrar-nos.» Esse é o submundo de Paris. Grandes secções continuam por explorar, isoladas por desabamentos ou simplesmente perdidas no tempo. Os cataphiles, como eu e os meus amigos, fazem os possíveis por preencher esses vazios nos velhos mapas, assinalando as nossas descobertas, registando cada pormenor.

— Como fizeste com a tatuagem.

— Foi ideia da Jolie — disse com um sorriso triste. — Ela é tatuadora. E muito boa. Queria imortalizar a nossa viagem juntos pelo submundo.

Calou-se de novo, mas apenas por um momento.

— Conheci-a cá em baixo, não muito longe daqui, estávamos os dois todos enlameados. Trocámos números de telefone à luz da lanterna.

— Fala-me do dia em que ela desapareceu.

— Eu tinha aulas. Ela tinha a tarde de folga e saiu com uma rapariga da Alemanha, a Liesl. Não sei o apelido dela. Vieram até aqui depois de terem ouvido rumores sobre um grupo secreto que teria passado pela zona.

— A Ordem do Templo Solar.

— Sim. — Ele ergueu a parte de trás da t-shirt. — Na base do pescoço, verás uma sala marcada com uma pequena flor.

Seichan espreitou mais de perto para a tatuagem, apontando a lanterna. Descobriu uma rosa celta minúscula e tocou-lhe com um dedo.

Renny estremeceu.

— É onde estamos agora. Vamos seguir o mapa da Jolie até à parte mais recente da minha tatuagem; era para aí que se dirigia. Ela descobriu uma entrada para uma secção esquecida do labirinto, mas, mal tinha começado a explorá-la, quando ouviu o rumor sobre o Templo Solar. — Ele baixou a t-shirt e apontou para um túnel que partia da sala. — Conheço a maior parte do caminho de cor, mas vou precisar de ajuda quando estivermos mais perto.

Pôs-se a caminho através do escuro labirinto, serpenteando ao longo dos túneis e atravessando salas pequenas e poços inundados. As paredes eram de calcário bruto, húmidas e a pingar água. Fósseis pontuavam as superfícies, alguns deles polidos por cataphiles anteriores para os realçar, como se o passado pré-histórico estivesse a tentar emergir da rocha.

O caminho foi-se tornando rapidamente mais fresco. Em breve Seichan conseguia ver a sua respiração. Os ecos dos seus passos transmitiam a sensação constante de estarem a ser seguidos. Ela parava frequentemente, olhando para trás, desconfiada.

Apercebeu-se de que Renny começava a ficar impaciente.

— É pouco provável que encontremos aqui alguém. Mesmo os cataflics raramente vêm a esta secção remota. Além disso foi reportada uma fuga de gás perto da área turística das catacumbas. Está fechada há três dias.

Ela acenou com a cabeça e voltou a olhar para a tatuagem dele. Não estavam muito longe da secção acabada de pintar do mapa.

— Se estou a ler isto bem, a nova descoberta da tua namorada fica para lá daquela passagem. — Seichan apontou para um túnel estreito e olhou para o relógio de pulso.

Restam setenta e dois minutos.

Ansiosa, Seichan seguiu à frente. Avançava rapidamente, procurando a passagem lateral ramificada marcada na tatuagem.

— Para! — gritou Renny atrás dela.

Seichan virou-se e viu-o agachado junto a um monte de pedras caídas. Tinha passado por aquela pilha sem pensar nela duas vezes.

Renny apontou a luz do capacete para uma seta cor-de-rosa desenhada com giz por cima da pilha de pedras.

— A entrada é aqui. A Jolie usa sempre giz cor-de-rosa.

Seichan juntou-se a ele e localizou um túnel baixo escondido pela sombra das pedras.

Renny enfiou-se de gatas através da abertura. Seichan seguiu-o. Passados alguns metros e duas curtas descidas, a passagem abria-se para outro túnel.

Quando Seichan se levantou, viu mais poços e passagens laterais mais pequenas que seguiam em todas as direções.

Renny tocou com a palma da mão na humidade que ressumava da parede de calcário.

— Esta é certamente uma secção muito antiga das catacumbas. E, ao que parece, parte daqui um labirinto abafado. — Contorceu-se e esforçou-se por erguer a t-shirt. — Vê o mapa.

Ela assim fez, mas a tatuagem terminava precisamente no local onde se encontravam. Um primeiro exame dos túneis não revelou quaisquer outras pistas desenhadas a giz que indicassem o caminho que Jolie poderia ter seguido.

Ao que tudo indicava, a partir dali estavam por sua conta.

— O que fazemos? — perguntou Renny, com o medo pelo que poderia ter acontecido à namorada a gelar as suas palavras. — Por onde vamos?

Seichan escolheu um túnel e avançou.

— Porque vamos por aqui? — perguntou ele, apressando-se atrás dela.

— Porque não?

Na verdade, havia um motivo por trás da sua decisão. Seichan tinha escolhido aquela passagem porque era a única que descia. Por aquela altura, já se tinha tornado claro que aqueles rastejadores de túneis eram atraídos para as regiões mais profundas do mundo, impelidos pela curiosidade pelo que haveria mais abaixo. Tais buscas obrigavam-nos sempre a descer mais fundo. Só depois de alcançarem o fundo, começavam a explorar para os lados.

Esperava que isso também se aplicasse a Jolienne.

Alguns passos depois, contudo, Seichan começou a lamentar a sua escolha. De ambos os lados, nichos profundos tinham sido completamente cheios de antigos ossos humanos, escurecidos e amarelecidos como um velho pergaminho. Os esqueletos tinham sido desarticulados e separados nos seus componentes, como se tivessem sido inventariados por um contabilista macabro. Um nicho só tinha braços, delicadamente empilhados uns sobre os outros; outro estava repleto de costelas. Foram os dois últimos nichos — um de cada lado da passagem — que mais a perturbaram. Duas paredes de crânios fitavam o túnel, parecendo desafiá-los a passar pelo seu olhar vazio.

Seichan avançou rapidamente com um arrepio de pavor.

O túnel terminava numa câmara cavernosa. Ainda que o teto não fosse mais alto do que a passagem, estendia-se para fora, para uma grande sala do comprimento de um campo de futebol. Filas e filas de pilares sustentavam o teto, como um pomar de pedra. Cada um deles era composto por blocos de pedra, uns em cima dos outros. Vários pareciam tortos e prestes a cair.

— Este é o trabalho ancestral de Charles Guillaumot — disse Renny, falando num tom nervoso e sussurrado. — Em 1774, uma grande secção das catacumbas colapsou, engolindo várias ruas e matando imensas pessoas. Depois disso, o rei Luís contratou um arquiteto, Guillaumot, para escorar as catacumbas. Este tornou-se o primeiro verdadeiro cataphile. Mapeou e explorou grande parte dos túneis e mandou colocar estes grandes pilares. Não que tenham deixado de ocorrer desmoronamentos. Em 1961, o solo abriu-se e engoliu todo um bairro parisiense, matando uma data de pessoas. Ainda hoje ocorrem desabamentos todos os anos. É um grande perigo aqui em baixo.

Seichan só ouvira metade da história de Renny. Um brilho num dos pilares chamara a sua atenção. O seu reflexo era demasiado brilhante para aquele local húmido e sombrio. Aproximou-se do pilar e descobriu um anel de fios a envolver o centro das pedras empilhadas, ligando transmissores e detonadores a blocos de barro cinzento-amarelado.

Explosivos C-4.

Aquele não era o trabalho de um arquiteto francês do século XVIII.

Examinou a bomba, tendo o cuidado de não lhe tocar. Uma pequena luz LED vermelha brilhava no transmissor aguardando um sinal. Tapou com a mão a luz da lanterna e fez sinal a Renny que fizesse o mesmo com a lanterna do capacete.

A sala mergulhou na escuridão. Enquanto os seus olhos se ajustavam à escuridão, reconheceu as luzes reveladoras que brilhavam por toda a sala, centenas delas, projetadas dos pilares por toda a parede. A sala tinha sido integralmente armadilhada para explodir.

— O que é tudo isto? — sussurrou Renny ao lado dela.

— A purga de Vennard — resumiu Seichan, imaginando a movimentada cidade por cima deles.

Perguntou-se quantas câmaras ao longo daquela necrópole estariam igualmente armadilhadas com explosivos. Lembrou-se de Renny ter referido uma suposta fuga de gás. Um tal ardil teria sido uma boa maneira de evacuar as catacumbas, deixando o culto livre para colocar as cargas de explosivos ao longo daquele mundo subterrâneo.

Renny devia ter temido o mesmo. A sua voz tornou-se mais sombria com a implicação.

— Podem provocar o desmoronamento de metade da cidade de Paris.

Claude Beaupré dissera que Vennard queria um sacrifício humano, a fim de anunciar o nascimento de um novo rei-sol com fogo e sangue. Ali estava o plano prestes a ser posto em prática.

Enquanto Seichan mantinha a mão sobre a lanterna, os seus olhos habituaram-se o suficiente para se aperceberem de um ténue brilho do outro lado da sala, assinalando a entrada para um túnel do lado oposto.

Continuou através da câmara, dirigindo-se para essa luz. Empunhou a pistola e apontou-a para a frente, mantendo a lanterna na outra mão, permitindo apenas luz suficiente para evitar obstáculos. Renny continuava atrás dela com a luz do capacete apagada.

O túnel do lado oposto era um espelho do primeiro. Os ossos enchiam os nichos; os esqueletos, uma vez mais, tinham sido desmembrados e separados por partes. Só que estes ossos eram brancos. Não havia qualquer pátina da idade. Com horror crescente, apercebeu-se de que não estavam a olhar para cadáveres antigos — aqueles eram os restos mortais de vítimas recentes.

Um nicho, com um metro de profundidade, estava meio repleto de crânios.

Um trabalho em curso.

Pelo seu tamanho diminuto, apercebeu-se de que alguns daqueles crânios tinham pertencido a crianças, algumas de colo.

Antes de ter terminado as suas instruções pelo telefone, Claude falara de um ato hediondo cometido pelo antigo cabecilha da Ordre du Temple Solaire no Quebeque. O homem tinha sacrificado o próprio filho, apunhalando-o com estacas de madeira, por acreditar que a criança era o Anticristo. Ao que parece, o gosto da ordem pelo infanticídio não se limitara a esse caso isolado.

O túnel terminava depois de mais uma curva. A partir dali ecoavam vozes como se proviessem de um outro espaço cavernoso. Seichan fez sinal a Renny para se manter atrás. Avançou cautelosamente, colada à parede, e espreitou na esquina.

Mais uma sala — mais pequena, mas igualmente pontuada por colunas — abria-se à sua frente. Só que os pilares desta sala eram colunas de calcário naturais, deixadas para trás à medida que os mineiros iam escavando a câmara, dando ao espaço um ar mais antigo. Mas, como os outros, aqueles pilares tinham sido igualmente decorados com cargas explosivas.

No centro da sala, Seichan conseguia distinguir vinte pessoas num círculo, todas de joelhos — mas não estavam vestidas com trajes cerimoniais. Envergavam roupa de todos os dias. Um casal, de braço dado, envergara roupa mais formal para a ocasião. Alguns pareciam drogados, oscilando lentamente no local onde estavam ajoelhados ou com as testas encostadas ao chão. Três corpos jaziam caídos mais perto do túnel onde Seichan se escondida: de barriga para baixo, em poças de sangue escuro como petróleo contra a rocha. Pareciam ter sido atingidos a tiro pelas costas, ao tentarem fugir à destruição que se aproximava, tendo-se provavelmente arrependido da ideia de abdicarem das suas vidas numa orgia suicida.

Um par de guardas, de espingardas de assalto e envergando coletes Kevlar, colocara-se um de cada lado do grupo reunido, à sombra dos pilares, observando o grupo, prontos para desencorajar quaisquer outros desertores.

Seichan ignorou-os de momento e concentrou-se nas duas figuras que se erguiam no centro do círculo. Uma, de cabelo grisalho e feições gaélicas, envergava uma túnica branca com capuz, resplandecente sob a luz projetada por um candeeiro de sódio próximo. Seichan conseguia ouvir o som suave do gerador que alimentava a sala. O homem, de braços erguidos, sorriu beatificamente ao seu rebanho.

Aquele deve ser Luc Vennard.

— Chegou a hora — entoou em francês. — Quando o sol atingir o seu zénite, a destruição aqui forjada começará. Os gritos dos moribundos, as almas dos mortos em ascensão, irão elevar-vos a todos até à próxima fase exultante da existência. Tornar-se-ão os meus anjos negros, enquanto reclamo o meu trono solar. Garanto-vos: este não será o fim, mas apenas o início para todos nós. Agora tenho de vos deixar, mas o meu braço direito espiritual irá tomar o meu lugar e guiar-vos para fora da escuridão e para o dealbar de uma nova era.

O homem afastou-se, claramente planeando abandonar o rebanho. Pela maneira como Vennard lançou um olhar na direção dos dois homens armados, parecia que não ia ficar para as festividades e que tinha arranjado quem o guiasse até ao exterior das catacumbas — não fosse dar-se o caso de o rebanho se opor à sua partida. Seichan desconfiava que as contas bancárias dos que ali se reuniam tinham sido esvaziadas para os cofres de Vennard, prontas para financiar a próxima aventura, para espalhar ainda mais a influência da Ordem do Templo Solar — ou talvez para comprar o novo iate que tinha debaixo de olho.

Seria ele um fanático, um burlão ou simplesmente um assassino em série da pior espécie?

Tendo em conta as órbitas vazias dos mortos que a fitavam do nicho próximo, desconfiava que a resposta seria todas as anteriores.

Vennard acenou ao segundo homem para que avançasse. Já na casa dos trinta, envergava roupa comum, o seu rosto brilhava de suor, os olhos estavam vidrados pelo que parecia uma mistura de drogas e adoração. Mesmo sem a fotografia que Claude tinha deixado no quarto de hotel, Seichan teria reconhecido o filho do historiador, tanto pelas feições patrícias como pelo ar aristocrático que partilhava com o pai. Seichan imaginou Claude a encher o filho com histórias de títulos nobiliárquicos passados e heranças perdidas, instilando no rapaz a mesma sensação de prerrogativa amarga que o motivava. Mas enquanto o pai procurara consolo no abraço da história, parecia que o filho olhara para o futuro em busca do seu próprio caminho para essa antiga glória.

E encontrara-o ali.

— Gabriel, como o anjo de igual nome, serás transformado pelo sangue e pelo sacrifício no meu anjo guerreiro, o mais exultante da minha nova legião celestial. E a tua arma será uma espada de fogo. — Vennard afastou o manto para revelar uma espada curta, de aço. Parecia uma antiguidade, uma peça de museu. — Como tu, este aço arderá em breve com as energias da fornalha do sol. Mas primeiro essa arma terá de ser forjada, preparada para a sua transformação. Deverá ser coberta de sangue, como todos vocês. Esta última morte pela tua mão, este sacrifício único, irá anunciar os que estão por vir. Esta honra te concedo, meu anjo guerreiro, meu Gabriel.

Vennard ergueu a espada e ofereceu-a ao jovem.

Gabriel pegou nela e ergueu-a bem alto, depois os dois homens afastaram-se, revelando um altar baixo atrás deles. Tinha o seu próprio holofote.

Uma mulher de cabelo preto estava acorrentada à pedra, nua, as pernas abertas, os braços esticados. Um segundo sacrifício — de cabelo louro e pálido — estava de joelhos, não muito longe, estremecendo num fino vestido branco.

No altar, a cabeça da mulher oscilava num torpor drogado. Mas devia ter sentido o que estava para vir e lutou contra as correntes quando Gabriel se virou para ela com a espada. Desviou-se o suficiente para o lado para revelar o rosto da mulher — mas as tatuagens no corpo tinham sido suficientes para a identificar.

Pelo menos para um deles.

— Jolienne!

O grito de Renny atravessou o túnel como um tiro de besta.

Todos os olhos se viraram na sua direção.

Antes de Seichan se conseguir mover, uma figura corpulenta avançou para a abertura do túnel — um terceiro guarda. Tinha-se mantido oculto num dos lados, garantindo que ninguém saía. Seichan amaldiçoou silenciosamente Renny. Sem tempo para conceber uma estratégia, tinha de improvisar.

Quando o guarda ergueu a espingarda, Seichan deu-lhe um tiro no joelho. O estalido da pistola foi explosivo no espaço confinado. A tão curta distância, a bala de calibre .357 fez explodir a rótula do homem numa névoa de sangue e osso.

Seichan saltou quando o guarda gritou e se inclinou para a frente. Agarrou-o, envolvendo-o com um braço como um amante há muito perdido, e usou o impulso para o levar para o interior da câmara. Apontou a SIG Sauer para lá do seu corpo, na direção do guarda da direita, quando este se afastou do pilar. Atingiu-o no rosto.

Gritos irromperam por toda a sala. O rebanho correu para todos os lados, como um bando de codornizes assustadas. O guarda que restava disparou na sua direção, metralhando loucamente, mas Seichan usou o seu novo «amante» como escudo, avançando sem parar. As balas cravaram-se na armadura de Kevlar do homem, mas uma delas atingiu-o na parte de trás da cabeça. O seu corpo, que até aí se debatia, ficou subitamente mole.

Seichan carregou o peso morto mais dois passos, o suficiente para conseguir um bom ângulo a coberto do pilar. Disparou na direção do homem exposto, apertando o gatilho duas vezes. Acertou na orelha do homem, lançando a sua cabeça para trás. O segundo tiro acertou-lhe na garganta exposta, cortando-lhe a coluna. Ele desabou no chão.

Seichan largou o guarda que tinha nos braços e assumiu uma postura de atirador, apontando na direção do altar. Vennard tinha-se refugiado atrás dele. Gabriel, ainda atordoado e lento a reagir devido às drogas que ingerira, parecia confuso. Continuava a empunhar a espada junto à garganta da mulher. Um fio de sangue corria do ponto onde a lâmina afiada já cortara a pele macia.

O outro sacrifício, agora livre, ergueu-se de um salto e fugiu. Seichan acenou à mulher loura para que se dirigisse à saída, quando esta correu na sua direção... só demasiado tarde Seichan se apercebeu do punhal apertado na mão da mulher.

Com um grito de raiva, a jovem mergulhou na direção de Seichan.

Incapaz de se afastar a tempo, Seichan virou-se de lado, pronta para receber o golpe no ombro em vez de num ponto mais vital.

Revelou-se desnecessário.

Antes de o punhal a atingir, algo voou sobre o ombro de Seichan e acertou no rosto da mulher. Um crânio humano, branco, ressaltou no chão de pedra e rolou para longe. Pelo canto do olho, viu Renny correr na sua direção, apertando nas mãos outro crânio. Claramente retirara de um dos nichos as armas que tinha à mão.

O seu ataque fez a mulher tropeçar, o suficiente para Seichan virar a pistola e disparar à queima-roupa contra o seu peito. O impacto derrubou a atacante. Esta deslizou pelo chão, com uma flor de sangue a iluminar a parte da frente do seu vestido branco.

Renny correu para ela. Atirou o crânio para o lado e apanhou do chão uma das espingardas de assalto dos guardas, mas, pela forma desajeitada como lhe pegava, parecia que se sairia melhor com o crânio. Renny fitou a mulher morta, o seu rosto uma máscara de confusão. O motivo para aquela confusão tornou-se claro um segundo depois.

Do altar, Gabriel gritou, a dor trespassando o seu torpor drogado.

— Liesl!

Seichan reconheceu o nome. Era a rapariga alemã que Renny tinha mencionado durante o relato do desaparecimento de Jolienne. As duas tinham ido até ali, explorando juntas, quando Jolienne desaparecera. Parecia agora que as circunstâncias que rodeavam o seu desaparecimento não eram tanto uma questão acidental quanto supusera inicialmente. A namorada de Renny não tinha tropeçado por acaso com o local do culto, tinha sido atraída para ali por Liesl, como uma vaca para o matadouro, a fim de ser o derradeiro sacrifício.

— Non! — uivava Gabriel de coração partido. Com os olhos fixos no corpo, caiu de joelhos, a espada tilintando contra o altar.

Outros elementos do rebanho começaram a correr pelo túnel, abandonando o seu líder. Mas Vennard não ia desistir assim tão facilmente.

De um bolso da túnica, retirou o que parecia ser um transmissor. Uma luz verde brilhava no topo. Com um dedo carregava num botão.

— Se eu largar o botão, morremos todos — disse calmamente, a sua voz ressoando com uma qualidade hipnótica que facilmente teria convencido os mais crédulos. Contornou o altar. — Deixem-me ir. Até podem seguir-me para o exterior, se quiserem. E podemos sobreviver todos.

Seichan recuou e fez sinal a Renny para que se afastasse. Apesar da visão grandiosa de Vennard, este não era suicida. Seichan acreditou no que lhe dizia. Não faria explodir as catacumbas, pelo menos até estar a salvo.

Vennard estudou-a, tentando lê-la. Um bom líder de culto precisava de um olho arguto para avaliar as pessoas, para prever as suas ações. Avançou lentamente, passo a passo, em direção à saída, empurrando Seichan à sua frente.

— Tu queres viver tanto quanto qualquer um de nós, Seichan. Sim, demorei um pouco, mas reconheci-te. Pelo que li, sempre foste razoável. Nenhum de nós tem de morrer...

Uma espada irrompeu no meio do seu peito, impelida com força por trás.

— Todos temos de morrer! — gritou Gabriel, enquanto Vennard caía de joelhos. — Liesl não pode ascender sem o sacrifício adequado. Sangue e fogo. Foste tu quem o disse. Para nos tornarmos os anjos que prometeste!

Gabriel empurrou ainda mais profundamente a espada, com a loucura, o sofrimento e a exaltação a brilharem no seu rosto. O sangue jorrou da boca de Vennard.

Seichan largou a pistola e mergulhou para a frente, agarrando o transmissor com as duas mãos. Conseguiu colocar o dedo sobre o gatilho antes que Vennard o pudesse largar. Cara a cara, ele fitava-a, os olhos brilhantes de incredulidade e choque — mas também com compreensão.

No final, tinha colhido o que semeara.

Gabriel puxou o punho da espada para trás e pontapeou o corpo de Vennard para libertar a lâmina. Seichan caiu de costas, ficando presa quando o líder do culto caiu em cima dela. Gabriel ergueu a espada bem alto com as duas mãos, pronto a mergulhá-la em Seichan.

Mas Renny aproximou-se dele por trás e bateu-lhe na nuca com a coronha da espingarda. Os olhos de Gabriel reviraram-se e o seu corpo caiu no chão.

— Que maluquinho — disse Renny.

Avançou para ajudar Seichan a erguer-se, mas esta acenou na direção do altar.

— Vai libertar a Jolienne.

Ele fitou o transmissor que Seichan apertava nas mãos.

— Já acabou?

Seichan viu o brilho do aço por cima do lenço dele.

— Ainda não.

Com o sol do meio-dia a erguer-se bem alto sobre a sua cabeça, Seichan esperou ao lado de um Peugeot 508 sedan em frente ao Ritz Paris. O carro de aluguer tinha sido contratado pelo doutor Claude Beaupré para os transportar do Quartier Latin até ao ponto de encontro no hotel.

Como precaução, Seichan mantivera o veículo entre ela e as portas do hotel. Além disso, dissera a Renny que ficasse no centro da Place Vendôme. Jolienne estava em segurança num hospital local, para lhe tratarem o corte no pescoço. Renny quisera ficar com ela, mas Seichan ainda precisava dele.

As portas do Ritz Paris abriram-se finalmente e deixaram sair um trio de figuras. No centro avançava Claude, de novo vestido de tweed, mas usava um chapéu num ângulo inclinado que lhe mergulhava as feições nas sombras, claramente tão cauteloso quanto Seichan em relação àquele encontro público. Não seria bom para ele ser associado a um assassino da Guilda transformado em traidor. Estava acompanhado por dois homens corpulentos, um de cada lado, com fatos pretos e sobretudos compridos, que escondiam, claramente, um arsenal de armas nas suas pregas.

Claude dirigiu-lhe um ligeiro aceno de cumprimento.

Seichan contornou a traseira do sedan para o cumprimentar. Manteve as mãos visíveis, não representando qualquer ameaça. Claude fez sinal aos dois homens para que ficassem no passeio enquanto se juntava a ela na parte de trás do carro. Levava consigo uma pasta de cabedal preto Louis Vuitton.

O historiador ergueu os olhos semicerrados para o céu luminoso, protegendo os olhos com a mão livre.

— É meio-dia e Paris ainda está de pé. Presumo que isso signifique que o plano de Vennard falhou, a sua grande purga foi esmagada.

Seichan encolheu os ombros. Por aquela altura, os cataflics de Renny, a polícia de elite daquele mundo subterrâneo, estavam muito provavelmente a percorrer as catacumbas, acompanhados pelos démineurs da cidade, a brigada de minas e armadilhas.

— Então e o senhor Vennard? — perguntou Claude.

— Morto.

Um breve sorriso de satisfação aflorou o seu belo rosto. Olhou de relance para os vidros escuros do sedan.

— E, de acordo com o seu breve telefonema, resgatou o meu filho.

Seichan avançou para a traseira do Peugeot sedan e carregou no zero do emblema prateado do 508 junto à luz traseira. O botão escondido fez abrir o porta-bagagens. No seu interior espaçoso estava Gabriel Beaupré, os membros presos com fita adesiva e uma mordaça de bola segura com o lenço de caxemira de Seichan. Gabriel estremeceu perante a luminosidade súbita, depois debateu-se quando viu o pai.

Interrompendo a reunião de família, Seichan fechou o porta-bagagens. Não queria que ninguém que por ali passasse se apercebesse do que estava a acontecer. Nem Claude, que não levantou qualquer objeção ao gesto abrupto. Não se atreveria a tentar libertar o filho preso no porta-bagagens num local tão público.

— Como pode ver, Gabriel está bem — disse ela, e ergueu o comando eletrónico do sedan. — E aqui está a chave para a sua liberdade.

Claude levou a mão ao comando, mas ela afastou-o.

Mais devagar.

Seichan baixou a gola do casaco e expôs o aço por baixo.

— Então e isto? — Também acenou para Renny, que ainda tinha o lenço no lugar. — Uma troca de chaves. A liberdade do seu filho pela nossa.

— Oui. Foi esse o acordo. Sou um homem de palavra. — Levou a mão ao bolso e retirou um keycard de hotel. Pousou-o sobre o porta-bagagens. — No interior do quarto irá encontrar aquilo de que precisam para se libertarem.

Claude deve ter lido a desconfiança no rosto dela e sorriu tristemente.

— Não tema. As vossas mortes não me serviriam de nada. De facto, planeio lançar a culpa pela perda de Vennard sobre os seus ombros traiçoeiros. Com a Guilda atrás de si, nenhuma suspeita recairá sobre mim. E quanto mais depressa correr, ma chére amie, melhor para todos nós. Mas, num sinal adicional de boa-fé, eis a prometida recompensa.

Atirou a pasta para cima do porta-bagagens e passou a mão pela luxuosa superfície de pele.

— O melhor da Vuitton. A pasta Président Classeur. Pode ficar com ela. —Sorriu-lhe com uma expressão de diversão e orgulho francês. — Mas desconfio que o que está no seu interior é o verdadeiro preço pela liberdade do meu filho. Uma pista quanto aos líderes sombrios da Guilda.

Abriu a pasta, revelando uma pilha de ficheiros no seu interior. Na pasta de cima, impressa na capa, estava a imagem de uma águia de asas abertas, segurando entre as garras de uma das patas um ramo de oliveira e entre as da outra um feixe de flechas. Era o Grande Selo dos Estados Unidos.

Mas o que teria aquilo a ver com a Guilda?

Ele fechou a pasta e empurrou-a na sua direção.

— O que fizer com esta informação, para onde ela a conduzirá, será um território muito perigoso — avisou. — Talvez fizesse melhor em virar-lhe simplesmente as costas.

Nem pensar.

Seichan pegou na pasta e no keycard do hotel. Com os prémios na mão, deixou o comando do sedan em cima do porta-bagagens e recuou para o passeio, ficando fora do alcance dos guardas de Claude.

O historiador não fez qualquer movimento para agarrar na chave do sedan. Em vez disso, pousou ternamente a palma da mão no porta-bagagens. Fechou os olhos de alívio à medida que a tensão saía dos seus ombros. Já não era um associado da Guilda, apenas um pai aliviado com o regresso em segurança do filho pródigo. Claude inspirou longamente, depois fez sinal a um dos seus homens para que pegasse na chave e ocupasse o lugar do condutor. Os guardas sentaram-se nos lugares da frente, Claude enfiou-se na parte de trás, talvez para ficar mais perto do filho.

Seichan esperou que o sedan arrancasse e avançasse rua abaixo.

Quando o carro desapareceu, Renny atravessou a rua para se juntar a ela.

— Conseguiste o que querias?

Seichan acenou com a cabeça, imaginando o alívio que Claude devia estar a sentir. Para segurança do filho, o historiador não podia correr o risco de Seichan querer analisar os papéis antes dele. Tinham de ser autênticos.

— Achas que podemos confiar nele? — perguntou Renny, tocando no lenço.

— Isso é o que vamos ver.

Enquanto ambos olhavam para o outro lado da praça, Renny tirou o lenço de caxemira e revelou um segredo bem guardado, um segredo que Seichan tinha guardado de Claude.

O pescoço de Renny estava nu.

Esfregou a marca vermelha do choque que recebera há algumas horas.

— Foi bom tirar esta porcaria.

Seichan concordou. Levou a mão ao pescoço e retirou a sua própria coleira. Baixou os olhos para a luz LED verde. Depois da morte de Vennard, tinha-se descoberto com uma hora extra antes do prazo do meio-dia. Aproveitando o tempo adicional nas catacumbas, Seichan tinha apelado à rede de recursos de Renny. Este gabara-se de que os seus parceiros cataphiles vinham de todo o mundo e de todos os sectores da sociedade.

Seguindo as suas instruções, Renny fizera soar o pedido de ajuda. Um dos seus irmãos cataphile respondeu, um especialista em engenharia eletrotécnica e microdesign. Conseguiu retirar-lhes as coleiras e remover da de Seichan o mecanismo responsável pela descarga elétrica. Tudo isso foi realizado no subsolo, onde era pouco provável que Claude conseguisse receber quaisquer avisos emitidos pelas coleiras.

Uma vez livre, Seichan arriscou uma tentativa de deitar as mãos à pasta.

Enquanto fitava a coleira, a pergunta inicial de Renny bailava-lhe na mente: Seria possível confiar em Claude?

A resposta surgiu um instante depois.

A luz verde da sua coleira passou para vermelha ao receber o sinal transmitido, porém, com o mecanismo de choque neutralizado, não havia perigo.

Pelo menos para ela.

Ao longe, uma explosão tremenda ecoou pela cidade. Olhou na direção seguida pelo sedan e viu uma coluna de fumo oleoso subir na direção do céu azul-vivo.

Afinal, parecia que não se podia confiar em Claude. Aparentemente, apesar dos seus argumentos em contrário, era demasiado perigoso deixá-la viver, e ele tinha transmitido a ordem fatal para as coleiras.

Uma má jogada.

Ela dera a Claude a oportunidade para fazer a coisa certa.

Ele não a aceitara.

Imaginou o lenço que segurava a mordaça de Gabriel. Escondida por baixo da caxemira e cuidadosamente apertada em redor da boca e da cabeça do jovem estava a coleira eletrónica que fora de Renny. A mordaça em si era uma bola formada com C-4 moldado, retirado de uma das cargas de explosivos das catacumbas. A coleira tinha sido ligada ao detonador. Se e quando a coleira eletrónica fosse acionada, despoletaria a explosão do C-4. Tinha calculado a quantidade e a forma do explosivo de tal modo que levasse consigo o sedan e os seus ocupantes com poucos danos colaterais.

Seichan suspirou, sentindo uma pontada de arrependimento.

Era um bom carro.

Renny fitou boquiaberto o sinal de fumo nos céus, em choque, com uma mão a apertar a garganta. Por fim, desviou os olhos e fitou-a.

— Então e agora?

Ela lançou a coleira para uma papeleira próxima e tomou o peso à pasta. Lembrou-se das últimas palavras que Claude Beaupré lhe dirigira. O que fizer com esta informação, para onde ela a conduzirá, será um território muito perigoso.

Enquanto lhe virava costas, Seichan respondeu à pergunta de Renny.

Então e agora?

— Agora vem a parte difícil.


NOTA DO AUTOR

Verdade ou Ficção

No final dos meus romances, adoro explicar o que é real e o que é ficção nas minhas histórias. Achei que, de forma concisa, poderia fazer o mesmo aqui.

O Ritz Paris. Nunca lá estive, mas os pormenores são tão exatos quanto consegui: do Hemingway Bar (onde foram inventados os Bloody Mary) às torneiras banhadas a ouro com a forma de cisnes na casa de banho.

A Ordem do Templo Solar. Trata-se de um culto apocalíptico verdadeiro iniciado em 1984 por Luc Jouret e Joseph Di Mambro. Originalmente chamava-se Ordre International Chevaleresque de Tradition Solaire e acabou por ver o seu nome simplificado para Ordre du Temple Solaire. O grupo ficou famoso pelos seus suicídios em massa e sacrifícios humanos, incluindo o homicídio do filho bebé de um dos fundadores no Quebeque.

As Catacumbas de Paris. Todos os pormenores sobre este local são verdadeiros. As catacumbas estendem-se por perto de duzentos e noventa quilómetros numa rede de túneis e câmaras por baixo da Cidade das Luzes, sobretudo através dos arrondissements (freguesias) do Sul, que compõem a Margem Esquerda da cidade. A história dos colapsos e da instabilidade é real, bem como os pormenores do jogo de gato e rato a que se dedicam cataphiles e cataflics. E, sim, as catacumbas estão repletas de esqueletos desarticulados, alguns deles com cerca de mil anos. E acontecem ali em baixo muitas coisas estranhas: desde o cultivo de cogumelos a câmaras cobertas por elaboradas obras de arte. Os exploradores estão constantemente a descobrir novas entradas, túneis e câmaras. Até a história do misterioso cinema descoberto no subsolo é verdadeira.

O Peugeot 508. Sim, é assim que se abre o porta-bagagens: carregando no zero do emblema 508. Detestei explodi-lo.

E assim termina esta aventura, mas uma maior espreita um pouco mais à frente, pois esta história continua em A Colónia do Diabo. Os documentos encontrados naquela pasta, tão penosamente obtida, irão desencadear uma cadeia de eventos que mudarão a Sigma para sempre e até poderão alterar a forma como vê a fundação da América.


O TURNO DA MEIA-NOITE

JAMES ROLLINS

25 de abril, 00h21 EDT

Washington, D.C.

Estamos a ser atacados.

Sem casaco, com as mangas arregaçadas até ao cotovelo, Painter Crowe andava para trás e para a frente no ninho de comunicações no coração do comando central da Força Sigma. Os dados corriam pelos monitores que cobriam as paredes curvas, enquanto um guerreiro solitário travava uma batalha contra um inimigo sem rosto.

Jason Carter estava sentado em frente de um dos computadores, a teclar com uma mão e com um copo do Starbucks na outra, enquanto estudava o ecrã à sua frente.

— Parece que incluíram a sua própria backdoor na rede do Smithsonian usando um acesso de administrador de sistema de alto nível. Nesta altura, estão literalmente na posse das chaves do reino.

— Mas quem são eles? — Painter parou para olhar por cima do ombro de Jason. O jovem de vinte e três anos era o principal analista de informação da Sigma. Fora recrutado por Painter depois de ser expulso da marinha por ter pirateado os servidores do Departamento de Defesa, usando apenas um BlackBerry e um iPad modificado.

— Podem ser os russos ou os norte-coreanos, mas aposto nos chineses. Isto tem as impressões digitais deles por todo o lado. Há alguns meses entraram no Gabinete de Gestão de Pessoal e roubaram informações sobre milhões de funcionários federais. Utilizaram uma backdoor semelhante, que lhes concedia privilégios de administrador dos servidores OPM.

Painter acenou com a cabeça. Sabia que o governo chinês empregava um exército de piratas informáticos, que chegavam a mais de cem mil, dedicados exclusivamente a invadir os computadores americanos. Corriam rumores de que tinham conseguido piratear com sucesso todas as grandes empresas americanas ao longo dos últimos anos, subtraindo plantas de centrais nucleares, apropriando-se de tecnologia de fábricas de aço, chegando mesmo a entrar nos servidores da Lockheed Martin para copiar os esquemas ultrassecretos do caça F-35 do exército dos EUA. Caso houvesse dúvidas em relação a este último, bastava ver o novo FC-31 chinês. Era quase uma cópia exata do jato americano.

— Se são os chineses, o que procuram? — perguntou Painter. — Porquê piratear os servidores do Smithsonian?

Jason encolheu os ombros.

— Ou roubo de dados ou sabotagem. Esse é o objetivo da maior parte dos ataques, mas, tendo em conta o código, parecem estar a apoderar-se aleatoriamente de ficheiros. Não vejo qualquer tentativa de instalar malware nos sistemas.

— Portanto, roubo de dados — disse Painter. — Podes pará-los?

No reflexo de um monitor desligado próximo, Painter viu o sorriso enviesado do jovem.

— Tratei disso há um minuto — disse Jason — e bati a porta atrás deles quando os expulsei. Não vão voltar a entrar por ali. Neste momento, estou a tentar identificar que ficheiros foram retirados de que servidores.

Painter olhou de relance para o relógio.

00h22

O ataque tinha sido iniciado precisamente à meia-noite, muito provavelmente cronometrado para atacar numa altura em que seria menos provável que fosse detetado. Ainda assim, vinte e dois minutos era demasiado tempo para um inimigo ter livre acesso aos servidores do Smithsonian. O Instituto era a sede de nove centros de investigação diferentes, abarcando uma multiplicidade de programas que se estendiam pelo globo.

Ainda assim, tinham tido sorte. A única razão por que o seu ataque fora tão prontamente detetado era o facto de os servidores da Força Sigma estarem ligados aos sistemas do Smithsonian, embora as operações da Sigma estivessem fortemente protegidas por trás de múltiplas firewalls para manter a sua presença oculta. Painter imaginou as altas paredes digitais. Era uma metáfora adequada. O comando central da Sigma tinha sido secretamente instalado por baixo do Castelo Smithsonian. Olhou para cima, imaginando as torres e torreões de arenito vermelho por cima da sua cabeça, um verdadeiro castelo normando empoleirado na orla do National Mall.

Uma fortaleza que alguém tentara penetrar.

Ou pelo menos era esse o maior receio de Painter: que os servidores do Smithsonian não fossem os principais alvos do ataque, que os piratas informáticos estivessem, isso sim, a cheirar as paredes da fortaleza digital da Sigma. A Sigma era a ala secreta da DARPA, a divisão de investigação e desenvolvimento do Departamento de Defesa. A unidade recrutava antigos soldados das Forças Especiais e treinava-os em diversas disciplinas científicas para atuarem como agentes de campo para a DARPA. Era uma das razões por que o Castelo tinha sido escolhido para instalar o seu comando central. Tinha uma localização ideal no coração da paisagem política, ao mesmo tempo que permitia que a Sigma e os seus operacionais tivessem acesso aos recursos e alcance global do Smithsonian.

Se a Sigma alguma vez fosse comprometida, os seus agentes expostos...

Um pequeno suspiro impaciente atraiu a atenção de Painter de volta ao mundo tangível.

Jason deslizou com a cadeira para trás, afastando-a do computador, levantou-se e fitou as filas de monitores que continuavam a correr os dados encriptados. O jovem estudou os ecrãs, passando a mão pelo cabelo louro, claramente preocupado.

Painter colocou-se ao seu lado.

— Que foi?

— O padrão do roubo não é aleatório, embora se tenham esforçado por que assim parecesse. — Apontou para um dos monitores. — Isto não foi uma simples recolha. Há aqui intenção, ainda que mascarada pelo restante ruído.

— Que intenção?

Jason regressou ao seu computador e começou de novo a teclar, desta feita com as duas mãos, o nariz a poucos centímetros do ecrã.

— A maior parte dos ficheiros foram roubados de um centro de investigação específico.

— Qual?

A voz de Jason estava tensa, revelando uma clara confusão.

— O Conservation Biology Institute do Smithsonian.

Painter compreendia a sua consternação. Era um alvo estranho para um ataque cibernético tão sofisticado e elaborado por parte de um inimigo estrangeiro.

Jason continuou ao mesmo tempo que teclava.

— O CBI do Smithsonian tem laboratórios e instalações na Virginia e aqui em D.C., no National Zoo em Rock Creek Park. Neste caso, tanto o campus como o zoo estão a ser atacados.

— Há alguma lógica por trás dos ficheiros específicos que estavam a ser roubados?

— Não uma que faça qualquer sentido, mas uma parte considerável do material de investigação que estava a ser retirado provém de um programa específico. — Jason olhou por cima do ombro, com um franzir de sobrolho profundo. — Um programa intitulado ADN Ancestral.

— ADN Ancestral?

Jason encolheu os ombros, igualmente perdido.

— Os ficheiros pirateados pertencem todos à mesma investigadora, uma pós-doutoranda de seu nome Sara Gutierrez.

O jovem afastou-se do monitor, revelando um cartão de identificação no ecrã. A mulher no cartão não parecia mais velha do que Jason, o cabelo preto cortado num bob curto, os olhos intensos e um sorriso tímido estampado no rosto.

— Devem ter levado metade dos ficheiros dela antes de eu lhes ter fechado a porta.

— Então não conseguiram levar tudo... — Painter sentiu uma ponta de inquietação. — Em que estava ela a trabalhar?

Jason abanou a cabeça.

— Tudo o que tenho aqui são nomes de ficheiros, o que não me diz grande coisa. Mas se puder aceder ao computador dela, talvez consiga rastrear a localização dos piratas. Quando cortei a ligação, é possível que algumas peças de código possam ter ficado no terminal dela, uma impressão digital que nos possa dar alguma pista quanto a quem esteve por trás deste ataque.

— Podes fazer isso?

— Posso tentar, mas admito que é um tiro no escuro. Ainda assim, as probabilidades serão maiores se conseguir aceder ao computador antes que mais alguém o use e limpe acidentalmente essa impressão digital.

— Compreendido. Vou ver o que consigo arranjar. Também vamos querer entrevistar a doutora Gutierrez assim que possível. De preferência esta noite. — Olhou de relance para o relógio de parede. — Esperemos que seja uma notívaga.

— Tirei o número de telefone dela dos registos. — Jason agarrou no seu próprio telefone, erguendo uma sobrancelha.

— Telefona-lhe. Diz-lhe que sabemos o que aconteceu e que precisamos da sua ajuda. Devíamos combinar o encontro no gabinete dela.

Enquanto Jason marcava o número, Painter considerava quem poderia enviar àquela hora tardia. O operacional a quem normalmente recorria, o comandante Gray Pierce, estava num voo transatlântico com destino à Europa para se encontrar com Seichan em Paris. Monk e Kat estavam de regresso de uma viagem a Boston com as duas filhas pequenas. Mentalmente, percorreu a lista de agentes de campo restantes que melhor se adequavam à investigação.

A voz de Jason chamou-lhe a atenção quando a doutora Gutierrez atendeu o telefone. Depois de uma breve troca de palavras, o jovem sentou-se mais direito e pôs o telemóvel em alta-voz.

— E quem lhe telefonou? — perguntou Jason.

Uma voz fraca sussurrava do telefone, mas a sua confusão era simples.

— Disseram que eram da polícia do jardim zoológico. Alegaram que alguém tinha entrado no meu escritório. Iam mandar um agente para me levar até lá. Mas...

A voz calou-se.

— Mas o quê? — perguntou Jason.

— É que... não quero parecer racista, mas a pessoa que telefonou era difícil de compreender. Tinha um sotaque carregado. Asiático, pareceu-me. Provavelmente não é nada, mas fiquei com um mau pressentimento quando desliguei.

Jason olhou de relance na direção de Painter.

— Revelou-lhe a sua localização? — perguntou à mulher.

— Eu... sim.

— Onde está agora?

— Estou no Museu Nacional de História Natural. Estava a recolher amostras de ADN em algumas das exposições como parte do meu programa. É mais fácil depois de estar fechado ao público. Disse à pessoa que telefonou que esperaria por eles no exterior do museu, na esquina da Twelfth com a Madison.

— Fique onde está. — Jason olhou para Painter em busca de confirmação. — Vamos ter consigo dentro do museu.

Painter acenou com a cabeça.

Do pequeno altifalante do telefone irrompeu um som novo: um toque agudo e estridente.

O alarme.

A voz da investigadora ergueu-se sobre o ruído. Parecia assustada.

— Que faço?

Jason olhou para Painter enquanto oferecia à mulher a sua única esperança.

— Esconda-se.

Painter pensou rapidamente. Com o alarme a soar no museu, não tinha tempo para chamar nenhum operacional de campo que não pertencesse à equipa. Considerou momentaneamente ir ele mesmo, mas sabia que a sua presença era precisa ali, para ajudar a manter ao largo as forças da lei locais, pelo menos durante o tempo suficiente para extrair a mulher em segurança.

Isso deixava apenas um membro da Sigma capaz de apoiar Jason, alguém que ainda estava nas instalações àquela hora tardia. Veio-lhe à mente a figura corpulenta do ex-militar da marinha, a cabeça rapada, o nariz torto e o forte sotaque do Bronx.

Deus do céu, ajudai-nos a todos...

Joe Kowalski estava deitado de costas numa poça de óleo. Deu um último puxão à chave para apertar o novo filtro do velho Jeep. Limpou a superfície para se assegurar de que a junta tinha deixado de pingar.

Isto deve bastar.

Rolou de debaixo do veículo e virou-se para agarrar no charuto que repousava sobre um copo de vidro virado. Ainda de costas, pôs a beata entre os lábios e deu duas passas com força para fazer a ponta brilhar, depois suspirou libertando uma longa torrente de fumo. Talvez fosse estúpido — e definitivamente contra as regras — fumar na garagem da Sigma, mas quem havia por perto para se queixar àquela hora tardia?

Tinha o espaço todo para si, que era como preferia.

Levantou-se e inspecionou o Jeep CJ7 de 1979 que estava a restaurar. Tinha comprado o todo-o-terreno três meses antes a um funcionário dos Serviços Florestais reformado que tinha puxado bastante por ele e depois o deixara parado durante quase uma década. Isso nunca era bom para uma criatura que adorava cortar através da paisagem inóspita. Kowalski já tinha feito uma pequena reconstrução do motor Chevy 400, ao mesmo tempo que procurava possíveis problemas com a caixa de velocidades, a direção e a transmissão, mas ainda não estava completamente satisfeito com a parte elétrica.

A carroçaria aberta era uma manta de retalhos de resina Bondo e primário, onde ainda se via parte da sua pintura verde-azeitona original. Os lugares da frente e o banco de trás, todos eles originais, estavam rasgados e gastos. Haveria de os arranjar, mas por agora apreciava o progresso da sua obra.

— Podes ser um filho da mãe feio — balbuciou em torno do charuto —, mas pelo menos agora consegues andar.

Fitou a mão-cheia de outros veículos na garagem, a maioria uma mistura elegante e reluzente de Land Rovers, sedans alemães e um par de motorizadas Ducati. Passou a mão pelo painel traseiro do Jeep, sentindo a rude textura de Bondo e uma pequena mossa de um antigo choque, um testemunho do seu uso intenso e da sua resistência.

Mal podia esperar por levar aquela besta para o ar livre, para a deixar verdadeiramente à solta.

Enquanto o imaginava, agarrou na barra de segurança e trepou para trás do volante, uma manobra relativamente fácil dado que as duas portas estavam encostadas à parede vizinha, à espera de ser instaladas. Rodou a chave. O motor tossiu duas vezes, libertando fumo do escape, depois aquietou-se num som rouco.

Recostou-se, permitindo que um sorriso de satisfação se abrisse no seu rosto.

— Kowalski!

A voz aguda fê-lo saltar. Contorceu-se e viu a forma esguia do cromo da informática residente da Sigma a correr pela garagem. Um corta-vento largo, azul-escuro, agitava-se em redor dos ombros magros do miúdo, revelando o coldre que trazia ao peito.

— Temos de nos pôr a andar!

Kowalski soprou o fumo do charuto que lhe enchia os pulmões.

— Para onde? — rosnou, em torno da ponta brilhante.

— Para o outro lado do Mall. Para o Museu Nacional de História Natural.

Uma pontada de medo deslizou pelas costas de Kowalski, não por ele, mas por outra pessoa. Era uma reação instintiva. A namorada — ou melhor, ex-namorada — trabalhara lá nos últimos dois anos, supervisionando as exposições sobre mitologia grega e história antiga. Mas Elizabeth partira para o Egito há três meses para ajudar numa escavação arqueológica. A relação deles já tinha passado por momentos difíceis antes disso e estava a dar as últimas. Por muito que os opostos se possam atrair inicialmente, não era necessariamente a melhor receita para uma relação duradoura. E embora aquela escavação no Egito tivesse sido uma oportunidade para ela, sabia que uma grande parte do seu impulso para partir estava relacionado com a vontade de pôr alguma distância entre ambos, menos por ela do que por ele, desconfiava Kowalski. Não era segredo nenhum entre os dois que a paixão dele era mais inflamada.

E ainda era.

Era uma das razões por que tinha comprado o Jeep e levado a cabo o seu restauro. Precisava de algo que o distraísse.

Jason apontou para um dos BMW sedans.

— Vamos! Vou-te dizendo o que se passa no caminho!

Kowalski apagou o charuto numa bacia com água próxima de si.

— Traz para aqui esse traseiro! — gritou, acelerando o motor para realçar as suas palavras. — Vamos levar o meu Jeep!

Jason derrapou até parar e olhou com ceticismo para o veículo, mas adaptou-se à mudança com a flexibilidade própria da juventude. Correu para o lado do passageiro e saltou para o assento. Procurou o cinto de segurança, mas, como as portas, também os cintos estavam ausentes.

Kowalski pôs o Jeep em movimento e o veículo soluçou para a frente. Jason teve de se agarrar à barra de segurança para se manter no assento.

Hum... talvez a caixa de velocidades precise de um pouco mais de afinação.

Kowalski agarrou o volante e lançou o Jeep a roncar em direção a uma rampa que subia em espiral até uma saída privada na Independence Avenue.

Jason foi falando rapidamente enquanto subiam, informando Kowalski acerca dos pormenores de um ataque cibernético aos servidores do Smithsonian — e para a presença de um potencial elemento crucial escondido no museu do outro lado do Mall.

— O diretor Crowe acha que o inimigo pôs em andamento um plano de recurso. Não tendo sido capazes de obter eletronicamente a informação, vão diretamente à fonte.

A esta mulher...

Uma vez no cimo da rampa, Kowalski apontou para o porta-luvas.

— Abre isso.

Jason obedeceu, abrindo com um estalido o porta-luvas e revelando no seu interior uma grande pistola de aço. Passou a arma a Kowalski, usando as duas mãos.

— Que raio é isto?

Kowalski aceitou a grande pistola com um sorriso. O punho revestido a borracha encaixava na perfeição na palma da sua mão.

— Uma Desert Eagle calibre cinquenta.

— Cinquenta? — disse Jason com um assobio. — Qual é o problema da quarenta e cinco?

— O facto de fazerem uma cinquenta — declarou Kowalski, afirmando o óbvio.

Enfiou a grande pistola no cinto.

Uma vez a caminho da Independence Avenue, Jason recebeu uma chamada de Painter, enquanto Kowalski os levava num grande círculo à volta do Mall. Viram-se atrás de um gigantesco camião do lixo que avançava lentamente e enchia o seu lado da rua. Embora o Museu Nacional de História Natural e o Castelo estivessem situados em frente um do outro, ficavam em lados opostos do Mall e o caminho indireto era complicado por um projeto em curso para restaurar o relvado irregular do Mall, o que tinha transformado aquela secção do parque e relvados em pilhas altas de terra e pedra.

Jason desligou.

— O diretor conseguiu convencer a DC Metro de que se tratou de um falso alarme, atribuindo as culpas a uma descarga elétrica do projeto de construção vizinho. Mas esse ardil só nos dá uma janela de tempo limitada.

Kowalski abanou a cabeça. Tinha de dar crédito ao diretor. Painter era um mestre no que dizia respeito a puxar os cordelinhos em Washington.

— Também estamos autorizados a entrar no museu pela entrada do lado noroeste — acrescentou Jason. — Está localizada...

Kowalski interrompeu-o.

— Sei onde fica.

Por vezes tinha usado essa entrada para chegar ao gabinete de Elizabeth. Era o caminho mais direto, contornando o tumulto da entrada principal e o seu rebanho de turistas. Quando o camião do lixo virou para Madison, Kowalski pôde finalmente ultrapassá-lo e acelerar, alcançando o parque de estacionamento do lado ocidental do museu.

Acelerou pelo parque vazio e carregou no travão, derrapando até à entrada. Ambos saíram e correram para a porta. Jason virava a cabeça para um lado e para o outro em busca de um qualquer sinal do inimigo. Alguém tinha ativado o alarme. Mas significaria isso que já estavam lá dentro ou teriam meramente ativado o alarme para atrair a sua presa para céu aberto?

Só há uma maneira de descobrir.

Jason chegou à entrada primeiro e passou um cartão preto com um S holográfico em baixo-relevo de um dos lados pelo leitor eletrónico. A porta foi destrancada com um clique sonoro. Jason começou a abrir a porta, mas Kowalski afastou-o para o lado e seguiu à frente, empunhando a sua Desert Eagle. Entrou numa antecâmara vulgar com uma porta que dava para os pisos principais do museu. À sua esquerda ficava uma escadaria sombria.

— Onde está essa doutora? — perguntou Kowalski com Jason na sua esteira.

— O alarme foi acionado numa janela do rés do chão do edifício do lado norte. — Apontou nessa direção genérica. — Para a manter bem longe desse local, disse-lhe que se fosse esconder no antigo gabinete da doutora Polk, na cave.

Kowalski lançou um olhar cortante ao miúdo.

— O velho gabinete da Elizabeth?

Porquê mandá-la para o gabinete da minha ex?

— Sabíamos que o gabinete da doutora Polk estava vazio. O diretor escolheu esse ponto de encontro porque tu estás familiarizado com a área envolvente. Para o caso de nos depararmos com problemas.

Excelente... começo mesmo a odiar este sítio.

Com um suspiro, Kowalski guiou Jason até à escadaria e desceu. Os degraus terminavam num labirinto de passagens estreitas que se estendiam por baixo do museu. O caminho em frente estava fracamente iluminado com o clarão carmesim das luzes de emergência. Era uma das secções mais antigas do edifício, quase intocada durante as renovações periódicas dos espaços públicos. Por baixo das suas botas, o velho piso de mármore tinha sido polido por décadas de pés de passagem. Portas de madeira com janelas de vidro fosco alinhavam-se de cada lado, cada vidro gravado com designações académicas:

Kowalski conhecia bem o caminho para o gabinete de Elizabeth. As recordações piscavam nas sombras da sua mente enquanto ele tentava concentrar-se e ouvir qualquer sinal de ameaça. Lembrou-se de terem feito um piquenique no gabinete de Elizabeth, de ouvir as suas gargalhadas, de se deliciar com os seus sorrisos. Lembrou-se de os dois se terem esgueirado para os antigos túneis de exaustão do vapor por baixo do museu para fumar charutos, que até ela por vezes experimentava. Também se lembrou de outras horas tardias em que dormitava no sofá do gabinete de Elizabeth enquanto esta acabava de catalogar um novo carregamento vindo da Grécia ou de Itália, outras vezes em que se envolveram em demandas menos eruditas nos braços um do outro. Sentiu o seu sangue agitar-se perante esses últimos pensamentos e afastou-os bem para o fundo da mente.

Agora não era o momento certo.

Ainda assim, não conseguia fugir às memórias sombrias desses tempos em que a sua impaciência a irritava, quando os sorrisos se transformavam em franzires de sobrolho; quando as palavras, pronunciadas de ambos os lados, se tornavam dolorosas. Eram ambos estouvados, ambos demasiado fáceis de ferir. Talvez com o tempo aprendessem a adaptar-se um ao outro com mais cuidado, mas ele fora chamado para missões no estrangeiro com demasiada frequência, operações sobre as quais não podia sequer falar ao regressar. Da mesma maneira, ela ausentava-se durante semanas a fio: para escavações poeirentas, laboriosas conferências científicas. E enquanto estavam afastados, os seus íntimos telefonemas diários, que até então tinham durado horas, acabaram por desaparecer em secas mensagens de texto.

E quando o fim chegou, não foi devido a um qualquer ato operático de traição. Foi simplesmente a maré da sua relação a recuar, até nenhum deles poder ignorar o inevitável. Indubitavelmente mais inteligente que ele, Elizabeth foi a primeira a reconhecê-lo e a apresentar os factos durante um longo e frio jantar.

Ainda assim doía.

Por fim, uma porta escura surgiu à sua frente. No vidro fosco lia-se ANTROPOLOGIA. Por baixo disso, pendurada em pequenos ganchos na porta, estava uma placa de metal preta com letras prateadas onde se lia ELIZABETH POLK, PHD.

— Chegámos — disse Kowalski desnecessariamente.

Surpreendido por ela ter deixado ficar a placa, curvou-se para a soltar. Ao fazê-lo, o vidro por cima da sua cabeça estilhaçou-se, acompanhado pela forte réplica de um tiro de pistola.

Jason caiu sobre um joelho e deu meia-volta, sacando da sua arma num só gesto, uma SIG Sauer P226. Apertou o gatilho duas vezes, disparando cegamente pelo corredor na direção do tiro, na esperança de desencorajar o atirador de voltar a disparar. Não foi completamente bem-sucedido. Um segundo tiro soou vindo das sombras, estilhaçando a moldura da porta junto ao seu ombro.

Depois um canhão ressoou junto ao seu ouvido.

Ouviu-se um grito abafado ao fundo do corredor.

Kowalski empunhou a arma fumegante e rosnou-lhe.

— Entre!

Jason mergulhou atrás do corpulento homem, rodou a maçaneta — felizmente a porta estava destrancada — e abriu-a, empurrando com o ombro. Rolou para o interior, com Kowalski no seu encalço. Uma vez a salvo, Jason fechou a porta do gabinete, fazendo cair alguns estilhaços de vidro. Embora este lhe oferecesse pouca proteção, fechou o trinco com o polegar.

— Sara — chamou na sala escura, mantendo-se agachado. — Sou o Jason Carter.

Um pequeno arquejo fez-se ouvir atrás da secretária.

— Estou aqui.

Jason viu uma sombra que se erguia atrás da secretária.

— Fica agachada — avisou.

— Devem ter-nos seguido até aqui — resmungou Kowalski, erguendo-se o suficiente para espreitar para a janela estilhaçada.

Fazia sentido. Deviam ter sido mais cautelosos. O inimigo decerto não sabia onde a doutora Gutierrez se tinha escondido.

Até os termos trazido para aqui, constatou Jason.

Ou ele e Kowalski tinham sido vistos a entrar no edifício, ou uma pequena força expedicionária estava já no interior e cruzara-se com eles ali em baixo. De qualquer modo, estavam encurralados.

— Por aqui — disse Kowalski, e afastou-se da porta, agachado e curvado. — Há um pequeno armazém nas traseiras.

Jason seguiu-o, levando a doutora Gutierrez de passagem.

Envergando uma bata branca por cima das calças de ganga, ela deslocou-se furtivamente ao lado dele. Apertava uma pasta de cabedal preto contra o peito com um braço.

— Obrigada — sussurrou-lhe.

Não nos agradeça já.

Jason olhou à volta. O gabinete era grande, com paredes repletas de prateleiras, uma secretária de grandes dimensões e um velho sofá de pele contra uma parede. Com exceção de uma mão-cheia de papéis perdidos, tinha sido completamente esvaziado. Kowalski conduziu-os a uma porta estreita do lado oposto, que estava entreaberta.

Entraram na sala seguinte, que tinha o dobro do tamanho do gabinete e estava dividida por estantes de metal altas. Um par de paletes de madeira estava encostado a uma parede. Jason calculou que o armazém tivesse sido usado como sala de exposição para o trabalho da doutora Polk com a sua coleção de antiguidades.

Kowalski fechou a porta de pinho sólido. Ainda assim, não representaria grande obstáculo a um inimigo determinado, em especial tendo em conta que não havia forma de a trancar por dentro. Aquilo não pareceu incomodar Kowalski enquanto este avançava para o meio da sala e se inclinava para uma sólida grelha no chão. Estava fechada com um cadeado.

Apoiando um joelho no chão e usando a luz do telemóvel como iluminação, Kowalski girou o mostrador para um lado e para o outro. Atrás dele, o som de vidros a caírem sussurrava vindo da divisão adjacente. Jason imaginou uma mão a estender-se através do vidro partido em busca da fechadura.

Depressa...

Kowalski soltou o cadeado e ergueu a pesada grelha com um braço. Uma passagem escura abria-se por baixo.

— Há uma escada do lado esquerdo. É uma breve descida até um dos túneis de serviço por baixo do museu.

Jason não questionou o plano de Kowalski, nem se perguntou onde os conduziria. De momento, o objetivo era manterem-se um passo à frente do inimigo. Foi o primeiro a descer, agarrando-se aos degraus de aço, ajudando em seguida Sara a descer. Apressando-se, tropeçou quando uma bota escorregou. Acabou por deslizar ao longo do resto das escadas, que felizmente tinham menos de dois metros. Aterrou desajeitadamente, mas conseguiu manter-se de pé e trazer Sara em segurança para o chão.

Por cima deles, Kowalski fechou a grade com um som metálico suave, depois deslizou pela escada sem que as suas botas tocassem num único degrau. Claramente já tinha feito aquilo antes.

Jason acendeu uma lanterna e apontou-a para o corredor. O espaço era abafado, cheirava a cimento molhado e ecoava com o pingar da água. Canos velhos, cobertos por teias de aranha, percorriam o teto.

— Onde estamos? — perguntou Sara.

Kowalski passou entre eles e guiou-os em frente.

— Nos velhos túneis de exaustão do vapor e de serviço. Por vezes, eu e a Elizabeth costumávamos esgueirar-nos cá para baixo para fumar. — Tocou nas paredes com a mão. — Era o lugar mais seguro, sem que tivéssemos de subir até ao exterior.

Jason ouviu uma miscelânea de tristeza e desejo na voz de Kowalski.

— Para onde vamos? — perguntou Sara, dando voz à preocupação de Jason.

Kowalski tossiu para limpar um pouco a garganta.

— Este espaço é um labirinto autêntico. Há quem diga que estes túneis chegavam em tempos à Casa Branca, mas, com a segurança crescente, uma grande parte foi seccionada e emparedada. — Apontou em frente, enquanto virava uma esquina. — Há ali escadas que conduzem a uma porta de serviço que dá acesso ao museu.

Quando dobraram a esquina, um som metálico forte fez-se ouvir atrás deles.

O inimigo tinha descoberto a sua via de fuga.

Jason apontou a luz para o chão do túnel. As suas pegadas na sujidade seriam fáceis de seguir.

Vozes abafadas ergueram-se atrás deles.

— É tempo de acelerar — avisou o homem grande, incitando-os a seguir em frente.

Uma vez mais, Jason não questionou o plano.

Kowalski enfiou de novo a Desert Eagle no cinto e seguiu os outros pelas escadas de cimento. Atrapalhou-se com a carteira enquanto subia, vasculhando o seu conteúdo.

Onde raio estás tu...?

Por aquela altura, Jason já tinha alcançado o patamar de cimento manchado no topo das escadas. Uma lâmpada de emergência oferecia uma parca iluminação, o suficiente para revelar uma porta de aço sem qualquer marca diferenciadora. Parecia datar do dia da abertura do museu, mas estava trancada por uma moderna fechadura eletrónica.

Jason rodou o puxador sem sucesso.

Os dedos de Kowalski tiraram finalmente um cartão entre os muitos que tinha guardados na bolsa lateral da sua carteira de pele. Era um velho keycard de colaborador. Num canto, quase impossível de distinguir sob o brilho da lâmpada solitária, estava uma foto minúscula de Elizabeth Polk. O cabelo cor de avelã emoldurava-lhe as maçãs do rosto altas, enquanto um par de óculos pequenos se empoleirava no seu nariz. Elizabeth tinha-lhe dado o cartão pouco depois de começarem a namorar, facilitando as suas idas e vindas quando a visitava. Ele devia ter-lho devolvido ou destruído, mas não fora capaz de o fazer.

O som furtivo de botas a bater na pedra ecoou vindo debaixo.

— Kowalski... — silvou-lhe Jason.

Kowalski avançou com o cartão, rezando para que este ainda mantivesse o código da porta de serviço. Passou o cartão pela ranhura por baixo da luz que brilhava vermelha... e que permaneceu vermelha.

Filho da...

Jason fitou-o de olhos muito abertos. A doutora Gutierrez encolhia-se contra o seu ombro. Gotas de suor perlavam-lhe a testa, enquanto os seus lábios se mantinham fixos num esgar de medo. Eram um alvo fácil ali.

Kowalski esfregou a tira magnética do cartão na manga do casaco.

— Por vezes, estes leitores antigos são temperamentais.

Deus, espero que seja isso.

Um gritou ergueu-se em baixo, quando o inimigo abandonou qualquer tipo de furtividade.

Jason girou para o lado e usou o cano da arma para estilhaçar a lâmpada solitária na sua gaiola. A escuridão caiu à sua volta, oferecendo algum abrigo. O miúdo puxou a mulher para baixo, ao mesmo tempo que apontava a arma na direção das escadas. Disparou uma vez para encorajar os seus perseguidores a avançarem com maior cautela.

Kowalski voltou a passar o cartão.

Vamos lá, Elizabeth, não me dececiones.

Apesar da sua súplica silenciosa, a minúscula luz permaneceu vermelha.

Mas que raio!

Tocou com o dedo no cartão, perguntando-se se não mereceria aquele destino. Mas sob as pontas dos dedos, apercebeu-se que a tira magnética estava do lado errado. No escuro, voltara o cartão para o lado errado.

Virou o cartão, deslizou-o pelo leitor e viu a luz passar a verde, acompanhada pelo gratificante abrir da fechadura. Agarrou no puxador e abriu a porta.

Passaram todos para o corredor. Kowalski fechou a porta atrás deles, depois encostou-se a ela, aliviado. O som de tiros abafados fez-se ouvir do outro lado, fazendo ricochete no aço, recordando-lhes que não tinham tempo para apreciar aquele pequena vitória.

— Temos de continuar em movimento — avisou Jason. — Não temos como saber quantos mais estarão aí.

Kowalski acenou com a cabeça.

— Sigam-me.

Empurrou a porta e correu ao longo do corredor até uma escadaria. Era a mesma que ele e Jason tinham usado para chegar ao nível da cave. Voltaram a subir em direção à saída lateral. Kowalski tinha de novo a Desert Eagle na mão e fez sinal a Jason e à doutora Gutierrez para que passassem pela porta enquanto a mantinha aberta e lhes cobria a retirada. Analisou o parque de estacionamento em busca de sinais de uma emboscada, ao mesmo tempo que mantinha um ouvido atento a qualquer som que indicasse que estavam a ser seguidos do interior do museu.

O Jeep erguia-se a poucos metros. Jason ajudou a jovem a sentar-se no lugar da frente do passageiro, depois saltou para o banco de trás. O miúdo colocou-se de pé, as costas encostadas à barra de segurança, e ergueu a SIG Sauer movendo-a em arco de modo a cobrir o parque de estacionamento.

— Vai! — ordenou Jason.

Kowalski rolou para longe da porta, deixando que esta se fechasse atrás de si, e correu para a frente do Jeep, para alcançar o lugar do condutor. Ao entrar, ouviu um lamento gritado vindo das traseiras do museu. Lembrou-se de Jason ter dito que o alarme tinha sido acionado por uma janela partida daquele lado.

Enquanto Kowalski enfiava a chave na ignição, observou um farol solitário a dobrar velozmente o canto mais distante do parque de estacionamento. Era uma mota, sobre a qual se encontravam dois homens de capacete. O que seguia atrás ergueu-se no assento com uma espingarda ao ombro.

Kowalski rodou a chave e o motor tossiu e morreu.

Uma rajada da espingarda explodiu na noite silenciosa.

O vidro traseiro partiu-se.

Filho da mãe...

Jason respondeu aos tiros na parte de trás, disparando por cima da barra de segurança. Kowalski pisou uma vez o acelerador, depois voltou a tentar a chave, subitamente preocupado com o seu trabalho elétrico na bobina da ignição. Mas o motor tossiu... depois pegou com um sacão da estrutura, rosnando roucamente.

É o suficiente.

Engatou a marcha-atrás, depois carregou com a bota até ao fundo. O Jeep recuou, arrancando um uf sonoro a Jason quando a barra de segurança lhe bateu no peito. Mas o ataque do miúdo tinha forçado a mota a desviar-se para o lado, obrigando o inimigo a ziguezaguear por entre o conjunto de árvores que flanqueava a Twelfth Street.

Aproveitando o momento, Kowalski gritou «Agarrem-se bem!» e puxou com força o volante.

O Jeep fez um pião.

Jason agarrou-se à barra de segurança com um braço para manter o equilíbrio.

A doutora Gutierrez deslizou do seu assento para o lado de Kowalski, mas ainda assim este conseguiu engatar a primeira. Acelerou, levando-os na direção de Madison Drive, que corria ao longo da frente do museu.

— Kowalski! — gritou Jason.

Mas ele já tinha visto a ameaça. Outras duas motas convergiam para a sua posição, vindas de direções oposta ao longo da Madison: uma viajando no sentido do trânsito, serpenteando veloz por entre os poucos carros que aí circulavam àquela hora; a outra avançando em sentido contrário pela rua de sentido único.

Os tiros irromperam atrás deles, enquanto da primeira mota disparavam erraticamente na sua direção.

As balas cravavam-se no para-choques e painel traseiro.

Jason disparava com igual ferocidade.

Enquanto o Jeep alcançava o final do parque de estacionamento, Kowalski pensou rapidamente. Detestava a ideia de levar aquele confronto para as ruas, onde os transeuntes inocentes podiam ser apanhados no fogo cruzado. Além disso, se tentasse entrar na Madison, ficaria encurralado de ambos os lados.

Isso só lhe deixava uma escolha.

— Baixem-se e agarrem-se! — ordenou aos seus passageiros.

Acelerou, passando rapidamente pelas três mudanças, e disparou pela Madison. Cortou o caminho de um autocarro da linha noturna e passou entre as duas motas que convergiam. Bateu no passeio oposto, o que fez saltar o Jeep, e chocou contra a vedação temporária que rodeava a secção do National Mall que estava em obras. Aterrou com força sobre os quatro pneus e continuou sem abrandar.

O terreno à frente era uma confusão de pilhas de pedras, dunas altas de terra e fossos traiçoeiros. Aquela fase do projeto de construção estendia-se pelos oitocentos metros da Seventh Street quase até à base do Washington Monument.

— Que estás a fazer? — gritou Jason.

— Que raio te parece?

— Parece que não sabes o que estás a fazer!

— Exatamente! Chama-se improvisar!

Enquanto Jason resmungava alto e bom som, Kowalski avançava ainda mais profundamente pelo terreno acidentado a uma velocidade alucinante. Pelo retrovisor viu as três motas aproximarem-se atrás dele. O inimigo não ia desistir facilmente.

Kowalski lembrou-se de quanto tinha desejado, mais cedo, testar o Jeep em terra batida.

Parece que estou prestes a ter a minha oportunidade.

Jason pôs o braço à volta da barra de segurança, enquanto o Jeep acelerava cada vez mais através do local das escavações. Mais à frente, a flecha bem iluminada do Washington Monument erguia-se no céu noturno.

Enquanto o Jeep chocalhava sobre o solo irregular, ele fazia os possíveis por manter o equilíbrio no banco traseiro, auxiliado pelo facto de uma das botas ter atravessado o tecido gasto e se ter afundado até às molas.

Uma espingarda disparou atrás dele e a bala ressaltou na parte de trás do veículo. Mantendo o braço na barra para se segurar, Jason ergueu a SIG Sauer e disparou ferozmente para a motorizada mais próxima. Esta levava uns bons nove metros de avanço em relação às outras duas e parecia prestes a alcançá-los.

Mais tiros irromperam da motorizada. Uma vez mais as balas atingiram zonas baixas: enterrando-se no chão ou fazendo ricochete no para-choques.

Devem estar a tentar rebentar os pneus traseiros...

Se assim fosse, isso queria dizer que queriam Sara viva.

Mas porquê?

— Agarrem-se! — gritou Kowalski.

Que achas que estou a fazer aqui atrás?

Enquanto a mota da frente acelerava na sua direção, Kowalski curvou abruptamente para contornar um monte de terra solta. O veículo inclinou-se precariamente. Com mestria, Kowalski reduziu, depois voltou a carregar no acelerador.

Os pneus de rasto largo enterraram-se no montículo e lançaram uma nuvem vermelha para trás do Jeep. A onda de terra e gravilha atingiu a motorizada que os seguia, engolindo-a e atirando-a ao chão.

Kowalski afastou-se do monte e acelerou de novo.

Jason recuperou o equilíbrio, observando o espaço atrás deles.

Menos um...

As outras duas motas alcançaram o monte, voaram e aterraram habilmente sobre a roda traseira — e aceleraram atrás deles.

Uma nova rajada de tiros seguiu-os, vinda de ambas as motas.

Jason sentiu uma bala assobiar ao passar junto ao seu ouvido. Outras duas bateram no cimo do para-brisas. Kowalski empurrou Sara, obrigando-a a baixar-se mais, enfiando-a no espaço à frente do banco. Jason seguiu o seu exemplo e deitou-se sobre o banco traseiro.

Aquela súbita alteração da tática utilizada pelo inimigo sugeria que as circunstâncias tinham mudado, que tinham sido emitidas novas ordens pelos seus superiores.

Atirar a matar.

Kowalski mantinha um olho no terreno mergulhado nas sombras à sua frente e o outro no espelho retrovisor. As duas motas pretas iam ganhando terreno. Os seus condutores tinham deixado momentaneamente de disparar, optando antes por se baixar e abdicar do ataque para acelerar mais depressa.

Kowalski compreendeu o plano.

Tencionavam flanqueá-lo, encurralar o Jeep entre fogo cruzado.

O tanas... agora estão no meu território.

Embora reconhecidamente fosse um território algo acidentado. Ao longo do último mês, subira frequentemente ao telhado do Castelo e observara o equipamento pesado a arrancar o antigo relvado, transportando camiões cheios de terra nova e escavando valas de irrigação e fossos profundos para as futuras cisternas. Achava o roncar dos motores John Deere e a conversa dos trabalhadores calmante. Era o seu ruído branco, a sua versão do tamborilar da chuva ou dos sonoros chamamentos das baleias.

— Para onde vais? — gritou-lhe Jason com uma ponta de pânico na voz.

À sua frente, uma montanha de terra bloqueava o caminho, subindo à altura de dois andares.

— Para cima — respondeu.

Não tinha qualquer dúvida de que o Jeep fosse capaz de chegar ao topo, mas precisava de toda a aceleração que conseguisse arrancar ao motor Chevy. Abrandou momentaneamente, metendo uma mudança mais baixa. As duas motorizadas reduziram a distância para o Jeep, afastando-se uma da outra e preparando-se para o flanquear. Pelo ruído estridente das motas, calculou que estivessem a forçar os motores a dois tempos até ao limite.

Mas seria suficiente para a íngreme encosta de terra solta?

Vamos descobrir.

Quando chegou à base do monte, carregou no acelerador ao mesmo tempo que metia a primeira. As rodas do Jeep rodaram momentaneamente — depois aderiram ao terreno e o veículo saltou para a frente como um cavalo chicoteado. Disparou pela íngreme encosta, acelerando rapidamente, provando que aquele veículo era, no fundo, um verdadeiro puro-sangue.

A doutora Gutierrez arquejou, caindo para trás no assento; Jason praguejou nas suas costas.

O inimigo perseguiu-os, subindo pelo monte de terra. Os dois condutores eram claramente hábeis, fazendo oscilar os pneus traseiros para impedir que se enterrassem no solo. Em breve ficaram junto ao para-choques traseiro de Kowalski, os seus reflexos enchiam os espelhos retrovisores de ambos os lados. Os condutores soltaram as pistolas dos seus coldres, preparando-se para abrir fogo sobre o Jeep.

— Kowalski! — gemeu Jason.

O cimo do monte estava a poucos metros. Ainda assim, jamais chegariam ao topo antes de serem alcançados.

Não faz mal.

Kowalski carregou com força nos travões, obrigando o Jeep a parar.

A manobra foi demasiado súbita para que o inimigo conseguisse reagir. As duas motas passaram velozes para lá da posição imóvel do Jeep, alcançando o cume e saindo disparadas. Kowalski tentou imaginar a vista a partir dessas motas.

Sorriu sombriamente e avançou lentamente até ao topo com o Jeep. Desse ponto elevado, viu as duas motas desenharem um arco — caindo depois de cabeça na direção de um fosso gigantesco do lado oposto. O monte tinha sido formado quando a equipa de construção escavara uma profunda cisterna, destinada a armazenar mais de setecentos e cinquenta mil litros de água.

E, agora, mais duas motas.

O par de motas caiu com força na lama do fundo do fosso.

Jason deu uma palmadinha no ombro de Kowalski, enquanto este descia a encosta de marcha-atrás.

— Fico a dever-te uma.

— Uma dúzia de cubanos enrolados à mão e ficamos quites. — Kowalski virou-se para a doutora Gutierrez, que parecia pálida e quase em choque. — Então porque é que a senhora é tão importante?

Jason deixou Sara respirar pesadamente durante alguns minutos antes de seguir a linha de interrogatório de Kowalski. Logo que o Jeep saiu da zona em obras e entrou em Madison Drive, inclinou-se para a frente no banco traseiro. Atrás de si, eram visíveis as luzes brilhantes dos veículos de emergência que se aproximavam do Mall.

Era tempo de saírem dali e obterem algumas respostas.

— Sara, podes explicar-nos em que estavas a trabalhar para o Smithsonian? Porque estavas no museu?

Ela virou-se para Jason. Os seus olhos ainda estavam muito abertos, mas a respiração era mais calma.

— Estou aqui com uma bolsa, a trabalhar no programa de ADN Ancestral do Smithsonian.

Isso já Jason tinha compreendido graças à análise do seu ficheiro.

— Que tipo de trabalho estavas a fazer para eles?

Sara abanou a cabeça, confusa.

— O objetivo do programa é estudar a variabilidade genética e as alterações ocorridas com o passar do tempo em diversas espécies. Para o fazer, eu e os meus colegas extraímos e analisámos o ADN de fontes ancestrais.

— Fontes ancestrais?

— Ossos mineralizados, artefactos arqueológicos ou, no caso desta noite... — Agarrou na mochila de pele que estava aos seus pés e pousou-a no colo como se estivesse a protegê-la. — Espécimes do museu.

Kowalski olhou para a mochila com uma careta.

— Que tipo de espécimes?

— Foi atribuída uma família taxionómica diferente a cada um de nós. No meu caso, trabalho com todos os Hominidae. Isso cobre todos os grandes macacos. Orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos.

— Mas também um outro — acrescentou Jason. — Os Hominidae também incluem o género Homo, que inclui os humanos.

Ela acenou com a cabeça, olhando para Jason mais atentamente por ele o saber.

— É verdade. Recolhi e documentei amostras genómicas de quase todas as espécies hominídeas, do homem mais antigo ao mais moderno. — Foi-os enumerando pelos dedos. — Homo erectus, Homo habilis, Homo neanderthalensis, e vários outros antepassados obscuros. Era para fazer isso que estava no museu esta noite. Para recolher amostras de ADN de um conjunto de fósseis recentemente adquiridos.

— E tem estado a armazenar esses resultados no computador do laboratório?

— Sim.

Jason recostou-se, esforçando-se por compreender o que poderiam os chineses querer com aqueles dados científicos tão esotéricos. Não fazia sentido. Mas por agora, isso podia esperar. Lembrou-se da missão que lhe tinha sido atribuída: garantir a segurança não só da doutora Gutierrez, mas também do seu computador. Para além de salvaguardar os ficheiros que não tinham sido roubados no ataque cibernético inicial, ainda esperava que pudessem existir provas digitais no computador que apontassem para o perpetrador.

— Sara, vou precisar de aceder ao teu computador... esta noite... antes que alguém possa corromper o que lá se encontra. Depois de te deixar num local seguro...

Ela virou-se para ele.

— Terei de ir convosco.

— Porquê?

— O meu computador tem uma dupla proteção, com uma palavra-passe alfanumérica e um sistema EyeLock myris.

— Que é isso? — perguntou Kowalski.

Jason resmungou, sabendo a resposta. Era um scanner de íris disponível comercialmente e usado para autenticação da identidade.

— Parece que vamos ficar todos juntos mais algum tempo.

Quinze minutos depois, Kowalski conduzia o Jeep por uma estrada estreita e sinuosa através do Rock Creek Park. A sombria estrada florestal ia dar à entrada das traseiras da propriedade do National Zoo, onde um portão privado oferecia acesso fácil ao campus do Rock Creek Research Labs.

— O portão deve ser logo depois da próxima curva — disse Sara, tremendo sob as rajadas de vento frio que varriam o veículo aberto.

Kowalski aumentou a temperatura do aquecimento tanto quanto possível, mas era como tentar proteger com as mãos a chama de uma vela no meio de um nevão. Até os seus dentes tinham começado a bater.

— O meu gabinete fica a pouca distância depois da vedação — garantiu-lhes.

Jason inclinou-se na direção de Kowalski.

— O diretor mandou a polícia do parque fechar o campus. Devem estar à nossa espera no portão.

Sara ergueu um cartão branco.

— Se não, tenho o meu passe.

Quando o Jeep contornou a curva, a vedação em torno do perímetro tornou-se visível. O pequeno portão de serviço estava aberto, iluminado por um só poste de iluminação. Kowalski não viu quaisquer guardas nas proximidades nem a prometida escolta policial.

Trocou um olhar preocupado com Jason.

— Talvez o pessoal o tenha deixado aberto para nós — alvitrou o miúdo. — Ou talvez estejam à nossa espera no gabinete da Sara.

E talvez saiam porcos voadores do meu traseiro.

Quando se aproximou do portão, Kowalski acelerou ainda mais o Jeep, não fosse alguém tentar fazer-lhes uma emboscada junto à vedação. Nenhum dos passageiros lhe pediu para ir mais devagar.

Acelerou através do portão e da propriedade do jardim zoológico. Um grupo de edifícios de escritórios abraçava dos dois lados a estrada à sua frente, parecendo-se com qualquer outro complexo de empresas. Para lá deles, depois de outra vedação, estava localizado o parque principal.

— O meu gabinete fica no segundo edifício à esquerda.

Parecia ser o único iluminado naquela noite. Uma figura solitária desenhava-se contra aquele clarão.

— Aquela é a Jill Masterson — disse Sara, suspirando de alívio, claramente feliz por ver um rosto familiar. — Faz parte da polícia do parque.

Kowalski parou ao lado da oficial, continuando atento a qualquer ameaça. Mesmo com o motor ligado, distinguia os gritos e chamamentos noturnos dos residentes no parque vizinho. A brisa transportava consigo o cheiro das flores de cerejeira, juntamente com um cheiro almiscarado mais pesado vindo dos terrenos do parque.

A tenente aproximou-se. Parecia estar na casa dos trinta. Em forma, envergando um imaculado uniforme do parque, com o cabelo castanho-acobreado preso num boné. Pelo franzir de sobrolho fixo no seu rosto, não estava satisfeita com aquela missão noturna.

Apresentou-se e depois acrescentou:

— Não sei ao certo por que razão o meu chefe convocou os serviços do parque para abrir o portão e garantir a segurança deste edifício. Tem estado tudo calmo. — Dirigiu um breve sorriso a Sara. — Mas parece que teve uma noite difícil, doutora Gutierrez.

— E ficarei feliz quando chegar ao fim.

Saíram todos do carro e avançaram para o edifício de escritórios.

— Pensei que teriam mais homens no terreno — comentou Jason.

Masterson fitou-o, erguendo uma sobrancelha.

— A esta hora? Não somos a DC Metro. Com os cortes orçamentais, quase não temos pessoal durante o dia. Ainda assim, consegui três agentes para passarem o edifício a pente fino e garantirem que está tudo bem. Ainda tenho um homem lá dentro.

— Então e os outros dois? — perguntou Kowalski.

— Quando terminaram, mandei-os de volta ao parque. Recebemos um alarme de vidro partido no quiosque do portão principal há alguns minutos. Foram ver o que... — Tendo em conta as expressões deles, a tenente deve ter percebido que havia algo de errado. — O que foi?

— É como no museu — gemeu Sara.

Jason obrigou-os a avançar mais depressa.

— Todos lá para dentro. Precisamos de chegar ao computador e montar uma defesa. Comunique com o seu homem, tenente.

Ela obedeceu, confirmando que tudo permanecia calmo no interior.

Ainda assim, Kowalski sacou da sua Desert Eagle, o que lhe mereceu um segundo olhar de Masterson. Jason pegou no telemóvel e ligou a Painter, fazendo uma rápida atualização da situação. Quando passaram a porta da frente do edifício, Sara guiou-os apressadamente em direção aos gabinetes do seu laboratório nas traseiras.

— A ajuda vem a caminho — disse Jason ao desligar.

Esperemos que aqui cheguem a tempo.

Quando atravessaram o lobby, um forte rugido ecoou até eles.

Kowalski estacou, mas Sara sorriu-lhe nervosamente.

— É o Anton, um tigre-siberiano que se encontra numa jaula no Departamento de Ciências Reprodutivas aqui ao lado. Têm estado a recolher sémen como parte de um programa de reprodução de tigres em risco de extinção.

Sorte a dele.

Ela olhou de relance para um corredor lateral.

— O Anton por norma é um gatinho, mas fica consideravelmente rabugento quando o acordam cedo.

Também eu.

Apressaram-se para as traseiras do edifício e encontraram o outro homem de Masterson à espera no interior do gabinete de Sara. Este apresentou-se como John Kress e juntou-se à chefe, ficando de guarda no corredor enquanto Jason seguia Sara para as profundezas do seu laboratório. O pequeno espaço estava repleto de equipamento de aço inoxidável, prateleiras de frascos de vidro e pipetas, congeladores altos e uma bancada de trabalho com um trio de computadores.

— O meu é o do meio — disse Sara.

Jason sacou de uma pen-drive.

— Se me puderes dar acesso, preciso de uma cópia do diretório de raiz para captar qualquer código malicioso executável e para obter um registo das ligações TCP/IP desta noite. Depois disso, vou tentar...

Sara interrompeu-o.

— Faz tudo o que tiveres de fazer.

Tirou o computador do modo de pausa, introduziu a longa palavra-passe e ergueu o aparelho azul até ao rosto. Um pequeno flash de luz iluminou-lhe o olho esquerdo, depois o ecrã de login branco desapareceu, dando lugar ao ambiente de trabalho.

Ela recuou.

— É todo teu.

Jason tomou o lugar dela e enfiou a pen numa porta USB na lateral do teclado. Começou a teclar rapidamente com uma mão, ao mesmo tempo que manipulava o rato sem fios com a outra.

— Interessante — balbuciou Jason.

Sara aproximou-se mais.

— Que foi?

— Os piratas pareciam estar interessados nos teus ficheiros marcados como N¬¬_sis. — Jason olhou de relance para ela. — O que significa isso?

— É apenas a minha abreviatura para Neanderthalensis — respondeu ela. — Esses são os ficheiros onde comparo as sequências dos neandertais com as do homem moderno, realçando os genes que obtivemos dos nossos antepassados há muito perdidos. A maioria de nós tem uma pequena percentagem de genes neandertais, uns mais que outros.

Kowalski esperou que alguém olhasse de relance na sua direção perante aquela última afirmação, mas felizmente ninguém o fez.

Jason praguejou de súbito, erguendo as mãos do teclado. Os ficheiros surgiam no ecrã, abrindo-se e fechando-se sozinhos, como se houvesse um fantasma na máquina. Mas não era um fantasma.

— Estamos a ser atacados — constatou Jason. — Agora mesmo.

Jason censurou-se por ser tão idiota, tão curto de vistas. Considerou desligar o cabo de alimentação do computador, mas sabia que era tarde demais. Numa mísera fração de desatenção, tinham roubado tudo.

— O que está a acontecer? — perguntou Sara, observando enquanto ele teclava furiosamente.

— Mal fizeste o login, a primeira coisa que fiz foi isolar o teu computador da Internet, do mundo em geral, mas alguém usou a LAN para entrar. A rede local.

— E o que significa isso?

— O pirata ainda deve estar suficientemente perto para estabelecer uma ligação local ao sistema. Provavelmente no mesmo edifício. Devem ter esperado para fazer uma emboscada ao sistema, mas precisavam que a Sara o desbloqueasse primeiro.

Não era de admirar que o inimigo tivesse evitado matá-la. Queriam levá-la até ali para aceder ao computador.

— Até o falso alarme deve ter sido usado para atrair os homens de Masterson para longe tempo suficiente para conseguirem introduzir um operacional por perto para orquestrar o ataque — constatou Jason em voz alta.

— Mas onde estão? — perguntou Kowalski.

Jason continuava a matraquear nas teclas.

— É isso que estou a tentar descobrir, mas quem quer que tenha feito isto espelhou o rasto através de oito computadores diferentes.

Sara cruzou os braços sobre o peito.

— Esse é o número de computadores ligados em rede neste edifício — disse ela, confirmando o seu receio.

— Não importa — disse Kowalski, avançando para a porta. — Eu sei onde estão.

Jason olhou para ele por cima do ombro.

— Como?

Kowalski apanhou a tenente Masterson e o outro oficial no corredor.

— Um de vocês vá lá fora e dê a volta ao perímetro. O outro fique no átrio e cubra a porta da frente.

Não se vá dar o caso de eu estar enganado.

Tinha uma janela estreita para apanhar os culpados em flagrante e recuperar o que fora roubado. Deixou Masterson no átrio enquanto o outro agente corria para a porta da frente. Quanto a si, virou à esquerda, para o corredor para onde vira Sara olhar de relance quando o tigre rosnara.

Lembrou-se das suas palavras: O Anton por norma é um gatinho, mas fica consideravelmente rabugento quando o acordam cedo.

Esperou que ela estivesse certa nas duas coisas.

Inicialmente, tinha atribuído a explosão do tigre a um protesto contra a sua chegada, mas e se o que quer que tivesse incomodado o tigre estivesse mais próximo e à mão, tendo invadido o espaço privado do animal? Talvez tivesse sido isso que o deixara zangado.

Era uma pista fraca, mas era melhor que nada.

Alcançou um conjunto de portas duplas com um sinal onde se lia DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS REPRODUTIVAS. Esperou que Jason fosse tão bom quanto alegava ser. O miúdo tinha dito que conseguia entrar no sistema de segurança e desativar as fechaduras eletrónicas do edifício, abrindo um caminho para Kowalski.

Experimentou a maçaneta e esta rodou livremente.

Bom trabalho, miúdo.

Empunhando a sua Desert Eagle, abriu a porta o suficiente para se esgueirar para o interior, depois fechou-a atrás de si. O corredor à sua frente estava escuro, flanqueado por pequenos gabinetes. O principal laboratório reprodutivo estava diretamente à sua frente, no final do corredor.

Fora ali que Sara dissera que estava o servidor principal do departamento. Esperou que aquele fosse o computador certo, tinha uma hipótese em oito de estar certo.

Avançou ao longo do corredor, mantendo-se colado a uma parede.

Os seus ouvidos esforçavam-se por captar um qualquer sinal do intruso, depois ouviu um vidro partir-se seguido por um grito no exterior. Um tiro fez-se ouvir no interior do laboratório.

Kowalski correu para a frente, irrompeu pelas duas portas oscilantes e avançou para a sala. Deslizando de joelhos, analisou o espaço ao mesmo tempo que apertava nas mãos a Desert Eagle. O laboratório de reprodução parecia-se mais com uma sala de operações com duas mesas hidráulicas de aço inoxidável, um braço de luzes sobre elas e filas de armários de vidro.

Entre as mesas, estava um computador pousado numa grande secretária.

À sua frente, uma figura pequena e magra removia um disco externo do tamanho da palma de uma mão da parte de trás do monitor, enquanto à esquerda de Kowalski um homem que lhe equivalia em tamanho e músculo se erguia banhado na luz do luar que entrava pela janela estilhaçada. O tipo tinha na mão uma pistola fumegante, provavelmente utilizada para disparar contra o agente do lado de fora. A arma girou na direção de Kowalski e disparou.

Incapaz de se afastar suficientemente rápido, o tiro acertou-lhe em cheio no peito. O impacto roubou-lhe o ar dos pulmões e uma dor violenta explodiu na sua caixa torácica. Deixou-se cair de costas — e disparou em resposta por baixo da mesa daquele lado. O canhão ribombou ensurdecedoramente na sua mão. O estuque atrás das pernas do homem explodiu, quando o tiro passou ao largo. Ainda assim, Kowalski aproveitou o momento para rebolar para trás de um carrinho de aço. O homem disparou na sua direção, as balas cravaram-se na lateral do carrinho, mantendo Kowalski imobilizado.

Levou a mão ao peito, esperando encontrar sangue, mas em vez disso sentiu a placa de aço amolgada que enfiara no bolso do casaco. Era a placa de identificação que retirara da porta do gabinete de Elizabeth. Tinha-se esquecido de que a tinha roubado, tendo-a guardado sem pensar no bolso de dentro do casaco. Tinha-lhe salvado a vida, pelo menos de momento.

As sirenes soavam ao longe, apressando-se na sua direção.

Devem ser os reforços enviados pelo diretor Crowe.

Kowalski apertou a pistola nas mãos e arriscou-se a espreitar para lá do limite do seu abrigo.

A pequena figura ao computador — uma mulher jovem — também reconheceu a ameaça que se aproximava e chamou o parceiro, apontando para a janela.

— Kwan, zou!

O homem fez uma careta, claramente recebendo ordens para sair.

Com o disco externo na mão, a mulher colocou-se ao lado do parceiro, pronta para fugir. Tinha sacado a sua própria pistola e apontava-a na direção da posição de Kowalski, como se o desafiasse a mostrar-se.

Mas Kowalski não era o único irritado pelos intrusos.

À sua esquerda, a porta da jaula alta e mergulhada nas sombras abriu-se com um ranger das pesadas dobradiças e uma criatura gigantesca avançou pelo laboratório. Aparentemente, quando Jason destrancara todas as fechaduras eletrónicas do edifício, também incluíra a jaula do tigre. Um rugido sibilante irrompeu da garganta do felino e o seu pelo eriçou-se em faixas de preto e ferrugem. Patas do tamanho de pratos avançavam pelo chão em passos lentos e determinados, atraídos pelos vultos que se erguiam à luz da Lua.

A mulher recuou, assustada com o que via. Tentou guardar o disco externo no bolso, mas este deslizou entre os seus dedos e caiu no chão. Claramente em pânico, ela agarrou a pistola com as duas mãos.

O parceiro também virara a arma para o animal.

— Bù, Shu Wei — sussurrou à mulher, avisando-a de que não devia disparar, pois arriscar-se-ia a antagonizar o tigre, que ainda estava claramente baralhado pelo ruído e pela confusão.

Com o braço livre, o homem rodeou a cintura da mulher, erguendo-a e puxando-a para si tão facilmente como se ela fosse uma boneca, depois o par deixou-se cair para trás, através da janela aberta. O tigre aproximou-se, atraído pela confusão. Cheirou o ar, depois esticou o pescoço e abriu a boca num bocejo de fazer estalar o maxilar.

Kowalski aproveitou a distração para recuar lentamente do seu esconderijo — mas o joelho embateu no canto do carrinho de metal. O tigre virou-se com o ruído súbito, agachando-se e sibilando. Kowalski mergulhou para o único refúgio próximo. Lançou-se de cabeça pela porta aberta da jaula e fechou-a atrás de si.

O tigre saltou atrás da sua presa, batendo contra a porta da jaula.

Kowalski mantinha as mãos nas grades, segurando a porta fechada.

O tigre rolou, levantou-se, andou para trás e para a frente, agitando o pelo como se sacudisse água. Os seus grandes olhos castanhos fitavam Kowalski, ao mesmo tempo que a sua respiração quente passava entre as grades.

— Anton, gatinho bonito — disse Kowalski baixinho, na esperança de que fosse verdade.

Um grande suspiro escapou-se da garganta do animal, como se tivesse reconhecido o nome. O tigre voltou a andar para trás e para a frente mais duas vezes, depois deitou-se no chão, encostando-se às grades. Passados alguns momentos de tensão, um ronronar baixinho fluiu do seu corpo.

Kowalski engoliu em seco, depois, sabendo que nunca mais teria uma oportunidade melhor, arriscou-se a estender a mão por entre as grades e deslizar os dedos pela pelagem quente da enorme criatura. O ronronar tornou-se ainda mais profundo, provando que Sara estava certa.

És um gatinho.

Como se Anton tivesse pressentido os seus pensamentos, o timbre do seu ronronar transformou-se num rosnar profundo de aviso. Kowalski afastou a mão.

Está bem, talvez não.

Três horas depois, Kowalski estava de volta à garagem. Painter tinha-o inquirido e o departamento médico dera-lhe alta. Embora ainda lhe doessem as costelas sempre que respirava, não tinha sequer uma costela partida.

Com um charuto fumegante apertado entre os molares, Kowalski fitava o aço comprido, dobrado e amolgado no centro pela bala de nove milímetros. Queria considerar a sua sobrevivência como nada mais do que sorte, como algo saído de um filme, mas sabia que parte de si tinha posto a placa no bolso de propósito.

Colocando-a sobre o meu coração.

A única sorte que tivera fora a de o assassino chinês ter uma grande pontaria.

Se ele tivesse acertado alguns centímetros em qualquer outra direção...

Deslizou os dedos pelas letras prateadas, sabendo naquele momento que o seu amor o salvara naquela noite.

Obrigado, Elizabeth...

Considerou reparar a placa, devolver-lhe o seu estado imaculado. Talvez até enviá-la para o Egito com um bilhete, uma derradeira tentativa de reconciliação. Em vez disso, deixou sair uma nuvem de fumo, reconhecendo a futilidade de um tal ato e aceitando a realidade da situação, fazendo-o, talvez, verdadeiramente pela primeira vez.

E não fazia mal.

Com um movimento do pulso, atirou a placa com o nome para um caixote do lixo, sabendo que era aí que pertencia.

Virou-se e avançou para o Jeep. Deslizou a mão ao longo do painel da frente, sentindo também aí as marcas das balas.

Sorriu em redor do charuto.

Tu, minha preciosidade... posso arranjar-te.

Painter Crowe encontrava-se no interior do ninho de comunicações do comando Sigma, enquanto Jason Carter trabalhava uma vez mais em frente de um dos computadores. Tinha sido uma noite longa, com mais reuniões marcadas ao nascer do dia. Havia ainda muitas perguntas por responder, mistérios que necessitavam de mais investigação nos dias vindouros.

Ainda que a Sigma tivesse recuperado o disco abandonado pelo par de espiões chineses no laboratório — assim protegendo quase toda a investigação da doutora Sara Gutierrez —, a análise forense de Jason ao ataque cibernético não oferecia respostas concretas sobre quem estaria por trás de tudo aquilo. O governo chinês já tinha entrado em modo de negação plausível, e Painter duvidava que qualquer tentativa para identificar os três corpos recuperados do local das escavações do Mall permitisse ligá-los a Pequim. Os outros atacantes, juntamente com os dois espiões no jardim zoológico, tinham desaparecido sem deixar rasto.

Mas ainda mais desconcertante era o facto de o objetivo por trás de tudo aquilo continuar a ser um enigma absoluto.

Em frente do computador, Jason resmungou.

— Desisto. Não consigo encontrar qualquer significado para este símbolo. Talvez quando chegar a capitã Bryant seja capaz de usar os seus contactos nas agências de informação para obter mais alguma resposta.

Painter juntou-se a Jason, fitando o conjunto de caracteres chineses que brilhavam no ecrã. Os símbolos estavam gravados na caixa do disco externo recuperado.

— Tudo o que lhe posso dizer é que em mandarim significa «A Arca» — disse Jason. — Mas, para além disso, não faço ideia do que possa significar.

Painter pousou a mão no seu ombro.

— Por ora terá de chegar. Porque não vais para casa, para um bem merecido descanso?

Jason acenou com a cabeça, mas não parecia feliz.

Nem eu.

Quando ficou com a sala para si, Painter passou um ficheiro de vídeo noutro ecrã. Era a gravação de uma das inúmeras câmaras de segurança que monitorizam a capital da nação. Neste caso, cobria o National Mall.

Observou enquanto um pequeno Jeep subia por uma montanha de terra, parando abruptamente. O par de motorizadas passou pelo veículo parado e saiu disparado antes de mergulhar para a morte naquele fosso escuro.

Painter esfregou o queixo, apreciando a rapidez de raciocínio e a perícia necessárias para levar a cabo aquela manobra. Sentiu que havia naquele condutor capacidades inexploradas. Até se permitiu considerar uma proposta impossível.

Talvez tenha chegado a hora de dar a Kowalski a sua própria missão.


NOTA DO AUTOR

Verdade ou Ficção

No final dos meus romances, adoro indicar o que é verdadeiro e o que é ficção. Achei que, de forma concisa, poderia fazer o mesmo aqui.

Smithsonian’s Conservation Biology Institute. O edifício principal deste instituto dedicado à investigação abarca cerca de treze quilómetros quadrados em Fort Royal, Virginia, mas também tem um campus no Rock Creek Research Labs no National Zoo. Um dos programas aqui referidos — o projeto «ADN Ancestral» — é um empreendimento em progresso. Os investigadores procuram identificar os padrões de mudança das variações genéticas ao longo do tempo, analisando o ADN recolhido de espécimes de museu e artefactos arqueológicos. Onde isso nos poderá levar — bem como as implicações para a nossa espécie — é algo fascinante. E deixa imenso espaço para mais exploração a uma escala ainda maior.

Restauro da Turfa e do Solo do National Mall. Este é, de facto, um projeto ativo de restauro dos cinquenta e dois mil metros quadrados de relvados fortemente percorridos. Dado que a fase atual deste projeto arrancou os vários metros quadrados de relvado entre o Castelo Smithsonian e o Museu Nacional de História Natural, achei que não haveria melhor ocasião para uma cena de perseguição todo-o-terreno, em especial com as enormes pilhas de terra e os buracos profundos, incluindo a escavação de uma cisterna para setecentos e cinquenta mil litros de água para recolher água da chuva.

Piratas Cibernéticos Chineses. Parece que quase nunca se passa uma semana sem que ouçamos a notícia de um ataque cibernético efetuado por agentes chineses, seja infiltrando-se no Gabinete de Gestão do Pessoal, seja pelo roubo dos esquemas de um caça a jato. Mas estas incursões não são apenas para roubar propriedade intelectual; são também para comprometer os sistemas. As forças cibernéticas chinesas — cujo número atinge as centenas de milhares — provocaram danos em sistemas a bordo de navios comerciais e até de um avião usado pelos Estados Unidos. E estão a ficar mais arrojadas, chegando em tempos recentes a enviar agentes para as costas dos EUA numa tentativa de capturar desertores chineses, tal como o presidente anunciou há pouco tempo. Quanto ao nível seguinte de ataque, acredito que irá chegar... em breve.

E assim termina esta história, mas, como poderá imaginar, este é apenas o início de uma história muito maior, O Labirinto de Ossos, uma aventura épica como nunca houve, uma aventura que irá revelar um mistério arqueológico da vida real relacionado com Neil Armstrong, um mistério que mascara um segredo monumental em relação à própria Lua... tudo isso e a apresentação de uma nova personagem, diferente de tudo o que já viram impresso.


NAVIO FANTASMA

JAMES ROLLINS

21 de janeiro, 09h07

Queensland, Austrália

Ora aí está algo que não se vê todos os dias...

Do alto da sela do seu cavalo, o comandante Gray Pierce observou o crocodilo de água salgada de três metros e meio que avançava bamboleante pela praia. Há um instante emergira da floresta tropical e apontara ao mar vizinho, ignorando por completo o trio de cavalos que aguardava por perto.

Divertido e espantado, Gray estudou a sua passagem. Os dentes amarelos cintilavam sob o sol da manhã; a cauda de pele grossa balançava o seu volume oscilante. A sua presença era uma recordação de que o passado pré-histórico desta extensão remota do norte da Austrália ainda estava bem vivo. Até a floresta tropical atrás deles era o derradeiro vestígio de uma selva que outrora cobrira o continente, um fragmento que remontava a cerca de 140 milhões de anos, praticamente intocado pela passagem do tempo.

Enquanto o crocodilo deslizava por fim para as ondas e desaparecia, Seichan fitou Gray, de sobrolho franzido, do dorso do seu próprio cavalo.

— E mesmo assim tu queres ir mergulhar nessas águas?

O derradeiro membro do grupo — que agia como guia — afastou a preocupação dela com um aceno da mão fortemente bronzeada.

— Sem espinhas. Aquele amante de água salgada em particular não faria mais do que dar-te uma dentadinha no tornozelo. É bastante pequeno.

— Pequeno? — Seichan ergueu uma sobrancelha, numa expressão cética.

O australiano sorriu.

— Alguns machos chegam a atingir os sete metros ou mais, ultrapassando os mil quilos. — Esporeou o cavalo e conduziu-os ao longo da praia. — Mas, como disse, não são motivo de preocupação. Estes crocodilos de água salgada só costumam matar duas pessoas por ano.

Seichan disparou um olhar fulminante na direção de Gray, os seus olhos esmeralda brilhando sob a luz do sol. Claramente aquela era uma quota que não queria preencher. Lançou por cima do ombro o longo rabo de cavalo, visivelmente irritada, seguindo atrás do guia.

Gray viu-a afastar-se durante uns segundos, apreciando a graciosidade dos seus movimentos. A visão da pele cor de amêndoa cintilante sob o calor sufocante arrastou-o atrás dela.

Enquanto Gray se juntava a ela, Seichan olhou de relance para a floresta tropical.

— Ainda vamos a tempo de voltar para trás. Passar o dia no spa do hotel, como tínhamos planeado.

Gray sorriu-lhe.

— O quê? Depois de termos vindo até aqui?

Não estava a referir-se apenas à viagem a cavalo até chegarem àquela extensão de praia isolada.

Durante o último meio ano, os dois tinham circum-navegado lentamente o globo, parte de uma sabática do seu trabalho na Força Sigma. Tinham andado de um lado para o outro, sem um itinerário em mente. Depois de deixarem D.C., passaram um mês numa aldeia medieval em França, em seguida voaram para o Quénia, onde andaram de acampamento em acampamento, movendo-se ao sabor do fluxo intemporal da vida selvagem que ali vivia. Por fim, descobriram-se na fervilhante Bombaim, na Índia, gozando da humanidade em todo o seu esplendor. Depois, durante as últimas três semanas, tinham conduzido pelas amplitudes da Austrália, começando em Perth a leste, percorrendo as estradas poeirentas do Outback, até terem chegado, por fim, a Port Douglas, na costa tropical do noroeste da Austrália.

Seichan apontou com a cabeça para o guia.

— Quem sabe onde nos levará realmente este tipo?

— Acho que podemos confiar nele.

Embora os dois tivessem viajado pelo globo com documentos falsos, Gray nunca duvidou que a Sigma fosse mantendo secretamente o seu paradeiro debaixo de olho. Fora algo que se tornara evidente na noite anterior quando, ao regressarem de um dia de passeio pela Daintree Rainforest, tinham dado de caras com uma figura familiar aboletada no lounge do hotel, virando um uísque enquanto tentava manter-se discreto.

Gray fitou as costas largas do rude guia australiano. O homem chamava-se Benjamin Brust. O australiano de cinquenta anos era o padrasto do jovem analista de informação da Sigma, Jason Carter. O australiano também tinha ajudado a Sigma a resolver uma situação há cerca de um ano na Antártida.

Por isso, encontrar o tipo sentado no bar do hotel onde estavam alojados...

Ben tentara apresentar o encontro fortuito como uma mera coincidência, citando na altura o filme Casablanca, «De todos os bares de gin de todas as cidades de todo o mundo...»

Gray não acreditara.

Ben reconhecera-o e limitara-se a encolher os ombros, como quem diz: Está bem, apanhaste-me.

Pela presença de Ben, Gray constatou que o diretor da Sigma devia ter solicitado a antigos colegas e associados para manter a dupla debaixo de olho durante aquela viagem de meio ano.

Aceitando esta realidade, Gray não insistira com Ben em relação ao subterfúgio. Exposto e aparentemente apologético por ter concordado em espiá-los, o homem oferecera-se para os levar numa visita guiada a alguns dos pontos altos da região conhecidos apenas pelos locais.

Tendo em conta o equipamento de mergulho que levara com eles, Gray desconfiava que se dirigiam a um qualquer local de mergulho remoto. Ben recusara-se a fornecer quaisquer pormenores, mas, considerando o brilho malicioso nos seus olhos azuis, tinha-lhes certamente reservado uma surpresa.

— Podemos prender os cavalos ali à sombra. — Ben apontou com um braço na direção de um monte de pedras entre a copa das palmeiras.

Gray inclinou-se na direção de Seichan.

— Vês, já chegámos.

Ela resmungou num sussurro, mantendo uma atenção desconfiada sobre a praia e a floresta. Gray apercebeu-se da tensão nas suas costas. Mesmo depois de meses na estrada, Seichan recusava-se a baixar a guarda. Ele acabara por aceitar que assim fosse. Treinada desde tenra idade para ser uma assassina, a paranoia e a desconfiança faziam parte do seu ADN.

De facto, Gray partilhava parte desse código genético, cortesia da sua passagem pelos Rangers do Exército dos EUA e dos anos com a Sigma Force, que operava sob os auspícios da DARPA, a agência de investigação e desenvolvimento do Departamento de Defesa. Membros da Força Sigma agiam como agentes de campo secretos para a DARPA, protegendo o globo contra as diversas ameaças que iam surgindo.

Numa tal linha de trabalho, a paranoia era uma competência que garantia a sobrevivência.

Ainda assim...

— Vamos tentar apreciar esta aventura — disse Gray.

Seichan encolheu os ombros.

— Uma massagem com pedras quentes teria sido aventura mais do que suficiente para mim.

Chegaram ao monte de pedregulhos e desmontaram. Logo em seguida, prenderam os cavalos.

Ben espreguiçou-se com um suspiro ruidoso para relaxar as costas, depois apontou para um promontório coberto de floresta densa que se projetava para o mar azul.

— Bem-vindos a Cape Tribulation. Onde a floresta tropical se cruza com o recife.

— É espantoso — admitiu Seichan com uma clara relutância.

— O único local do mundo onde duas regiões marcadas como Património Mundial pela UNESCO se unem. — Ben apontou para a floresta. — De um lado têm os Trópicos Húmidos de Queensland. — Depois fitou o mar, de olhos semicerrados. — E a Grande Barreira de Coral que se estende até bem longe.

Seichan tirou as sandálias e afastou-se ao longo da praia, o olhar assimilando a vista dos penhascos cobertos pela selva que desciam até às ondas ribombantes. O chamamento dos pássaros ecoava através da praia, enquanto o perfume da floresta fragrante se misturava com o sal pungente do mar de Coral.

Gray olhou com apreço para ela, algo de que Ben se apercebeu.

— Uma bela vista — disse ele com um grande sorriso. — Devias pôr-lhe um anel no dedo antes que percas a oportunidade.

Gray fitou-o de sobrolho franzido e apontou para os cavalos carregados.

— Vamos buscar o nosso equipamento.

Enquanto trabalhavam, Gray acenou para o promontório.

— Como é que este local ganhou o nome de Tribulation? — perguntou. — A mim parece-me terrivelmente pacífico.

— Ah, podes atribuir a culpa às fracas capacidades de navegação do capitão James Cook. No século dezoito, encalhou o navio em Endeavour Reef. — Ben apontou para o mar. — Rasgou toda uma secção do casco e quase perdeu o barco. Só graças a algumas medidas desesperadas é que conseguiram manter o navio a flutuar e o repararam. Cook chamou ao local Cape Tribulation, escrevendo no seu diário de bordo «aqui começaram todos os nossos problemas».

— E não apenas para o capitão Cook — chamou-os Seichan, tendo claramente ouvido a explicação de Ben. Apontou em direção à praia, arrastando os dois homens na sua direção.

Quando Gray ultrapassou a pilha de pedras, viu uma elevação meio enterrada na areia e envolta pelas algas compridas. Um braço pálido esticado repousava sobre a praia.

Um corpo.

Correram para lá. O cadáver jazia de costas, os olhos abertos e vidrados. As pernas estavam cobertas pela areia molhada, mas o peito exposto estava raiado de marcas escuras, como se tivesse sido flagelado com um chicote flamejante.

Ben deixou-se cair de joelhos, com uma imprecação cortante.

— Simon...

A testa de Gray enrugou-se.

— Conheces este homem?

— Ele é a razão por que estamos aqui. — Ben olhou para o mar, claramente perscrutando as águas. — Era um biólogo ao serviço do Australian Research Council. Fez parte do estudo sobre a Grande Barreira de Coral. Estava aqui a monitorizar a disseminação do branqueamento do coral. Matou já dois terços do recife. Uma maldita tragédia internacional. Algo cuja disseminação Simon estava a tentar evitar.

Seichan franziu o sobrolho para as marcas escuras no seu corpo.

— O que lhe aconteceu?

Ben cuspiu para a areia quando se levantou.

— Chironex fleckeri.

— E o que é isso? — insistiu Gray.

— Uma vespa-do-mar australiana. Uma das criaturas mais venenosas do planeta. São grandes como bolas de basquete com tentáculos que chegam aos três metros de comprimento repletos de células que picam. É por isso que lhes chamam vespas-do-mar. Se fores picado por uma delas, poderás perecer vítima de uma morte agonizante antes de chegares à costa. — Ben abanou a cabeça, continuando a fitar o mar. — Multiplicaram-se como loucas desde que o branqueamento começou, prosperando nestas águas privadas de oxigénio.

Gray estudou o corpo dilacerado, reparando na expressão de dor estampada no rosto do morto. Seichan pegou suavemente na mão esticada, examinando a maleabilidade dos dedos. Dirigiu a Gray um olhar cúmplice.

Naquelas temperaturas quentes, com o corpo a cozer ao sol, a rigidez cadavérica ter-se-ia instalado no período de quatro horas. O que significava que tinha morrido recentemente.

— Não faz sentido — murmurou Ben, recuando, enquanto deslizava a mão pela barba de três dias que lhe cobria o queixo e a cara.

Gray seguiu-o, ouvindo a preocupação por trás daquelas palavras.

— O que não faz sentido?

Ben acenou para o equipamento espalhado sobre a areia.

— Foi por isso que carreguei o equipamento de mergulho completo. Ainda que os mares por estas bandas possam ser quentes o suficiente para podermos entrar despidos, ninguém mergulha nestas águas sem se cobrir por completo.

Enquanto descarregavam o equipamento, Gray apercebera-se do conjunto de máscaras Ocean Reef Neptune, destinadas a cobrir o rosto e a cabeça do mergulhador. Até tinham unidades de comunicação integradas que lhes permitiam comunicar uns com os outros debaixo de água.

— Simon sabia que não podia nadar nestas águas sem a proteção adequada. — Ben abanou mais uma vez a cabeça. — Há aqui algo de muito errado. Onde está o catamarã dele? Onde estão os outros?

— Outros? — perguntou Gray.

— Ele estava a trabalhar com uma pequena equipa da ANFOG. — Ben apercebeu-se da confusão de Gray. — A Australian National Facility for Ocean Gliders. São um grupo de oceanógrafos que usam planadores submarinos, drones não tripulados, que patrulham os recifes. Os aparelhos podem realizar análises contínuas à água, monitorizando a temperatura, a salinidade, o nível de luz.

— Para ajudar a estudar o branqueamento do coral — disse Gray.

— Eram quatro os cientistas da University of Western Australia a bordo do barco dele, juntamente com uma aluna de mestrado. — Ben olhou para Gray com um olhar preocupado. — A filha do Simon, a Kelly.

Gray compreendeu.

Os outros não teriam abandonado o falecido, em especial a filha.

Seichan juntou-se a ele, a testa marcada pela desconfiança.

— Disseste que o falecido era a razão por que estamos aqui. Porquê?

— Simon sabia que eu estava na região de Queensland. Queria saber se o poderia ajudar a solucionar um mistério que se adequava ao meu conjunto de competências em particular.

Gray franziu o sobrolho.

— Que conjunto de competências?

— Mapear e atravessar sistemas complexos de grutas.

Gray conhecia a história do homem. Tinha servido no exército australiano, tendo-se especializado em infiltração e extrações. Fora recrutado do interior de uma prisão militar para ajudar numa operação na Antártida há duas décadas, uma operação que envolvera um sistema de grutas inexplorado e uma equipa de cientistas desaparecida.

— Porque precisava o Simon das tuas competências aqui? — perguntou Gray.

— Há três dias, um dos planadores do grupo revelou a abertura para uma gruta subaquática, provavelmente exposta pelo ciclone que varreu esta costa o mês passado.

Seichan cruzou os braços.

— E queria que o ajudasses a explorá-la. Porquê?

— Por causa do que encontrou na areia da entrada. Um par de grilhões de ouro e o sino parcialmente enterrado de um navio. Recuperaram os objetos e descobriram um nome inscrito no sino. Trident.

Ben olhou de relance de um para o outro, para ver se algum reconhecera o nome.

Gray encolheu os ombros.

— O Trident era um navio prisão que transportava prisioneiros da Grã-Bretanha para a Austrália. Enquanto estava atracado em Melbourne, em 1852, um grupo de prisioneiros aliou-se a um punhado de tripulantes do navio amotinados. Apoderaram-se do Trident, fugindo com várias caixas de ouro extraído das minas auríferas de Vitória. Depois disso, o navio desapareceu para não mais ser visto.

— Até agora — comentou Seichan secamente.

Gray olhou para o promontório que se projetava para o mar.

— Talvez o capitão Cook não tenha sido o único a ter problemas ao navegar estas águas.

— Isso é, sem dúvida, verdade. É possível encontrar por aqui muitos navios naufragados. Como os destroços do S.S. Yongala mais para sul. O navio afundou-se durante um ciclone, há um século.

Seichan suspirou.

— Portanto, trouxeste-nos para os limites de um cemitério de navios.

— Pensei que iam gostar de fazer uma pequena caça ao tesouro connosco. Nunca pensei... — As suas palavras morreram, enquanto olhava de relance para os restos mortais do amigo.

— Se se tratar realmente de um crime — disse Gray —, então alguém soube da descoberta de Simon. O que mais te disse o teu amigo?

— Apenas para me encontrar aqui com ele e, se ele se atrasasse, que fosse indo para as coordenadas do local onde o planador fizera a sua descoberta.

Gray franziu o sobrolho.

— E onde é isso?

Ben apontou para o promontório de Cape Tribulation.

— Do lado oposto daquela crista.

Antes que pudesse baixar o braço, o som cortante dos tiros de uma arma de fogo ecoou vindo dessa direção. Um bando de pássaros sobressaltados levantou voo na floresta lá perto.

Sabendo o que isso significava, Gray amaldiçoou-se por ter deixado o seu telefone por satélite em D.C., mas o aparelho era propriedade da Sigma.

— Sem rede nos telemóveis e sem rádio — disse Gray —, não temos como alertar as autoridades.

— Então o que fazemos? — perguntou Ben.

Gray virou as costas ao mar e avançou com passos determinados em direção ao seu equipamento.

— Vestimo-nos e pomo-nos ao trabalho.

09h51

Enquanto Seichan nadava dos baixios para águas mais profundas, o seu corpo libertou os meses entorpecedores de relaxamento. A cada braçada e movimento de pernas, uma frialdade gelada impregnava-lhe os membros. Aguçava-lhe os sentidos, apurando os seus reflexos. As semanas de lazer desvaneceram-se num sonho, provando quão ilusórios tinham sido esses meses.

Instalou-se no centro frio do seu ser. A sua verdadeira natureza tinha um sangue tão frio quanto qualquer tubarão que nadasse naquelas águas, ambos eram predadores que precisavam de se manter em movimento para sobreviver.

Era uma lição que conhecia muito bem.

Seguia atrás de Gray e Ben enquanto estes deslizavam sobre os recifes coloridos. Estudou o físico de Gray, o bater das suas pernas musculosas, o varrer dos seus braços. Lembrou-se do brilho nos olhos dele quando virara as costas ao mar para se preparar para aquele mergulho.

Como ela, estava no seu elemento.

Depois dos eventos recentes nos Estados Unidos, os dois tinham tentado fugir, desaparecer durante algum tempo, usar esse período para sarar, para se descobrirem um ao outro de novas maneiras. E assim tinha sido. Mas ambos pareciam pressentir que aquele interregno não ia durar.

Não para sempre.

Eles não eram assim.

Sentia-o, agora, com uma veemência ainda maior.

Aceitando-o, olhou à sua volta. A vida agitava-se por todo o lado, tão rica quanto a mais densa das florestas. O trio atravessou velozmente um cardume de esguias barracudas pretas e prateadas, dispersando-as como se de um bando de pássaros se tratasse. Tartarugas-marinhas pairavam imóveis na água, vendo-os passar com olhos que não pestanejavam, enquanto os corais moles lhes acenavam das cristas de corais duros. Noutro ponto, raias-águias e mantas deslizavam do seu caminho com uma elegância do outro mundo. Durante vários metros, uma garoupa de olhos esbugalhados, do tamanho de uma carrinha Volkswagen, avançou ao lado deles antes de perder o interesse e se afastar.

Nesta terra de maravilhas, foram avançando lentamente ao longo do promontório, tencionando contornar a sua ponta para alcançar o lado oposto. As suas únicas armas eram o elemento surpresa e uma faca de mergulho cada. Seichan lamentou a falta de poder de fogo, em especial depois de terem ouvido aquela primeira rajada de tiros.

— Abrandem — transmitiu Ben através das unidades de comunicação.

Enquanto se aproximavam uns dos outros, Seichan estendeu uma mão enluvada para o fundo arenoso, de modo a equilibrar-se. Antes que conseguisse tocar no fundo do mar, Ben afastou-lhe o braço.

— Cuidado — avisou.

A areia onde estava prestes a pousar a palma da mão ganhou subitamente espinhos. Uma criatura emergiu de debaixo dos sedimentos e nadou para longe.

— Peixe-pedra — explicou Ben. — O peixe mais venenoso do mundo. Se a picada daqueles espinhos for suficientemente má, podes morrer em segundos. Por vezes, devido apenas à dor. O único ponto seguro para os agarrar é pela cauda.

Seichan puxou a mão para o peito.

Dispenso.

— Ultrapassámos o promontório — informou Ben, enquanto olhava para o GPS de pulso. — Vou assumir a liderança a partir daqui, enquanto percorremos o lado oposto em direção às coordenadas de Simon.

As coordenadas de um homem morto.

Como se isso não fosse suficientemente ominoso, o terreno à sua volta alterou-se subitamente — de um esplendor multicolorido para um deserto cinzento. Tinham alcançado uma secção de recife branqueado. A vida marinha parecia ter fugido à desolação.

— Meu Deus... — balbuciou Gray.

Ben foi falando enquanto avançavam em direção à costa, usando a distração para diminuir a tensão.

— Não é tão desesperado quanto parece. O coral branqueado ainda está vivo. Foi simplesmente levado pela tensão das temperaturas elevadas a expelir as algas simbióticas que conferem ao recife as suas cores vibrantes. Se deixado à sua sorte, os pólipos do coral acabarão por morrer. Mas se os elementos de tensão puderem ser eliminados a tempo, os recifes poderão regressar à vida. Infelizmente, a Grande Barreira de Coral tem sofrido eventos de branqueamento consecutivos. Se isto continuar, de acordo com algumas estimativas, todo o recife poderá desaparecer nas próximas décadas.

— Resolver esse perigo em particular terá de esperar para já — disse Gray, e apontou para a frente.

A cerca de trinta metros de distância, duas grandes sombras pairavam à superfície, ligadas ao fundo do mar por cabos de ancoragem esticados. Um dos barcos só tinha uma quilha. Os cascos gémeos do outro assinalavam-no como o catamarã da equipa de cientistas.

Ben fitou o navio maior, de casco único.

— Sem dúvida, companhia indesejada.

Gray aproximou-se mais dele.

— A que distância estamos das coordenadas de Simon para a gruta subaquática?

Ben apontou na direção da linha de costa do promontório.

— Cinquenta metros mais à frente.

Gray acenou e dirigiu a sua atenção para a superfície.

Seichan conseguia adivinhar os seus pensamentos. Sem qualquer conhecimento do que se passava por cima, estavam perante uma escolha difícil.

Que barco deviam tentar abordar primeiro?

Foram privados da possibilidade de escolha de forma súbita e violenta.

As sombras escuras por baixo do catamarã irromperam subitamente numa explosão flamejante. O barco ergueu-se das águas por breves instantes, depois voltou a descer. O casco estilhaçado desabou sobre si mesmo, depois afundou-se lentamente, enquanto o mar inundava os seus compartimentos.

Seichan abanou a cabeça, expelindo o ar.

A concussão da explosão doía-lhe nos ouvidos e no peito.

Se estivéssemos mais perto...

Ben praguejou, fitando os destroços que se afundavam.

Seichan viu um corpo que se afastava do convés destruído, deixando um rasto de sangue.

Um dos oceanógrafos.

Os tiros anteriores ecoavam na sua mente. Imaginou o corpo dilacerado do amigo de Ben. Quem quer que fossem aqueles piratas, não estavam meramente a executar prisioneiros. Estavam a limpar a casa.

Mas o que significaria isso? Será que algum dos cientistas ainda estava vivo? E a filha de Simon?

Será já demasiado tarde?

Só havia uma maneira de saberem com toda a certeza.

— Vamos — disse Gray friamente.

10h10

Gray permanecia na sombra do barco com Ben. A embarcação parecia ser um antigo barco de pesca, com o convés traseiro aberto, uma pequena casa do leme erguida e um cubículo por baixo da proa.

Ele e Ben tinham assumido posições por baixo do convés de mergulho de aço, na popa. Do outro lado do casco de seis metros, Seichan mantinha-se perto da proa. Com uma mão agarrava o cabo da âncora. Por cima da sua cabeça, o cabo emergia das águas e subia até um enrolador de proa e um guincho. Ia usar o cabo como uma corda para subir a bordo por aquele lado.

De momento, não se atreviam sequer a usar os rádios, temendo que, estando eles tão próximos, o inimigo os pudesse ouvir. Não podiam correr o risco de perder a melhor das armas.

O elemento surpresa.

Ergueu-se até a palma da mão estar contra o lado de estibordo do convés de mergulho. Ben seguiu-o, assumindo posição do lado de bombordo.

Uma vez prontos, Gray fitou Seichan, depois cortou a água com o braço livre.

Moveram-se todos ao mesmo tempo.

Gray agarrou a beira do convés de mergulho e içou-se calmamente para fora da água, torcendo o corpo de modo a ficar sentado no aço. Manteve a cabeça abaixo da amurada da popa. Ben espelhou os seus movimentos do lado oposto. Sem que despoletassem qualquer alarme, mudaram de posição para terem as pernas por baixo do corpo e libertaram as facas de mergulho.

Enquanto se agachava ouviu vozes baixas, furtivas, uma gargalhada profunda e alguém a chorar baixinho. O som parecia vir do convés aberto, mas estaria alguém na casa do leme do navio ou na cabina inferior?

Só havia uma maneira de descobrir.

Esperou pelo momento certo — e este ocorreu com um grito de surpresa oriundo do convés. Ao receber o sinal, tanto ele como Ben ergueram-se rapidamente e saltaram a amurada da popa. Na outra ponta do barco, estava alguém sobre o convés da proa.

Enquanto ainda estava debaixo de água, Seichan abrira e despira a parte superior do seu fato de mergulho. Erguia-se agora com a parte de cima do biquíni, descontraidamente apoiada na amurada vizinha, as ancas espetadas, uma mão a apoiar o corpo. Com a parte inferior do fato de mergulho preto ainda a envolver-lhe metade do corpo, parecia uma sereia encalhada no convés.

O seu aparecimento súbito — juntamente com a expressão de tédio — confundiram momentaneamente os dois homens armados que guardavam um par de prisioneiros. Mesmo antes de conseguirem apontar as armas na direção dela, Gray aproximou-se por trás e apunhalou o primeiro homem num dos lados da garganta. Ben foi menos letal e bateu com o punho da sua arma no alvo, atingindo-o com mestria atrás da orelha esquerda. O osso estalou e o homem caiu inerte no chão.

Gray agarrou na pistola Desert Eagle que o seu alvo tinha consigo e concentrou-se na casa do leme vazia, onde uma porta fechada dava acesso ao cubículo da cabina. Pegou na outra arma e lançou-a a Seichan, que a apanhou só com uma mão.

Seichan avançou rapidamente para a porta do cubículo, abriu-a com um pontapé e analisou o espaço apertado.

— Nada a assinalar — gritou, enquanto voltava para junto deles.

Os dois prisioneiros eram um jovem ruivo e uma mulher de quarenta e muitos.

Ben ajoelhou-se à sua frente, enquanto eles os fitavam de olhos muito abertos e chocados com o ataque súbito.

— Somos amigos do Simon — assegurou-lhes. — Calculo que façam parte da equipa ANFOG que trabalha com ele.

A mulher inspirou subitamente, limpou as lágrimas do rosto e acenou com a cabeça.

— O que aconteceu aqui? — perguntou Gray.

A história foi narrada aos solavancos pelos dois sobreviventes, Maggie e Wendell. Três horas antes, os assaltantes tinham fingido ser um barco de pesca. O ardil durou o suficiente para os homens armados atacarem o catamarã. Simon lutou com eles, mas foi subjugado, despido e lançado borda fora.

— Porquê? — perguntou Ben. — Porque não se limitaram a dar-lhe um tiro?

Maggie parecia quase em choque com a narrativa.

— Estavam a tentar obrigar a filha a cooperar.

— A Kelly?

Ela acenou com a cabeça.

— Só a Kelly conhecia as coordenadas do local onde tinham sido encontrados os artefactos do Trident. Estávamos todos a mergulhar nesse dia, pelo que a deixámos, sendo ela apenas uma aluna, a bordo do navio para monitorizar a análise de rotina do planador. É um trabalho entediante. Enquanto observava a transmissão, viu o sino e os grilhões. Entusiasmada, lançou-se em mergulho livre para recolher os troféus. Mas quando reconheceu o nome no sino (e o que uma tal descoberta implicava) apagou o registo do planador. Embora nos tivesse falado da descoberta, manteve em segredo a sua localização exata.

— Mas não do pai — acrescentou Ben.

Wendell pareceu sobressaltada.

— Como?

— A Kelly disse ao Simon — continuou Ben. — Depois ele disse-me a mim.

Gray desconfiava que Simon tinha partilhado a informação com Ben por motivos egoístas. Provavelmente queria recrutar Ben antes que a filha tentasse fazer algo ainda mais idiota, como pesquisar aquelas grutas sozinha.

— Kelly acabou por ceder e revelar as coordenadas aos homens armados — explicou Maggie. — Mas antes que conseguissem tirar Simon da água...

Ben fez uma careta.

— Teve um encontro com uma vespa-do-mar.

Maggie acenou com a cabeça.

— A Kelly testemunhou tudo. Pobre rapariga.

— Onde está ela agora? — perguntou Seichan.

A mulher olhou para os penhascos cobertos pela floresta.

— Obrigaram-na a acompanhá-los. Quando ela recusou, inicialmente, deram um tiro ao Tyler e ameaçaram-nos.

Gray recordou o homem morto a flutuar entre os destroços.

— Quantos foram com ela?

— Seis, incluindo o doutor Hoffmeister.

Ben franziu o sobrolho.

— O doutor Hoffmeister?

— O líder da nossa equipa — explicou Wendell com um franzir de sobrolho amargo. — Foi ele quem nos entregou àqueles sacanas assassinos.

Seichan fungou.

— E ainda falam da pureza da investigação científica.

Maggie baixou os olhos.

— Já todos tínhamos ouvido rumores de que ele tinha um problema com o jogo, mas nunca imaginei que poderia ser tão insensível. Em especial com as pessoas com quem trabalha.

Gray não ficou surpreendido. Com demasiada frequência a ganância sobrepunha-se à amizade e à lealdade.

— Têm de fazer alguma coisa — disse Wendell. — Vão matar a Kelly quando descobrirem o que procuram.

Gray sabia que ele tinha razão. E pelo desespero na voz do rapaz, o seu interesse por Kelly não se ficava pela mera amizade de trabalho.

Seichan olhou para a costa e encolheu os ombros.

— Três contra seis. Não está mau.

— E ainda temos o elemento surpresa — acrescentou Ben.

Gray começou a acenar com a cabeça quando um som crepitante chamou a sua atenção para o atacante morto sobre o convés. O ruído vinha do auricular do rádio.

Agarrou-o rapidamente e levou o rádio ao ouvido e aos lábios. Um rasto de palavras chegou até ele.

— ... atrasados nas comunicações. Qual é o ponto da situação?

Gray tinha de correr o risco.

— Tudo calmo aqui — disse com voz rouca.

Houve uma longa pausa, antes de a voz regressar, furiosa e desconfiada.

— Quem é você?

Seichan fitou-o enquanto ele baixava o rádio.

Gray abanou a cabeça.

Lá se foi o elemento surpresa.

10h25

— Vamos passar bem ao largo destes tipos — disse-lhes Ben pelo rádio.

Seichan não discutiu e seguiu os dois homens. Um trio de tubarões-de-cabeça-chata nadava em círculos em redor dos destroços do catamarã, provavelmente atraídos pelo sangue do oceanógrafo assassinado. O grupo passou bem ao largo dos destroços e avançou para a costa.

Mais cedo, antes de saltarem de novo para a água, tinham procurado rapidamente a chave do barco nos guardas, mas não tiveram sorte. Também descobriram que o rádio do navio estava desligado, necessitando de um código digital para ser ativado. Assim, como precaução, tinham ordenado a Maggie e Wendell que vestissem os fatos de mergulho e nadassem até à costa, enviando-os para longe do perigo, com instruções para encontrarem alguma figura de autoridade a quem pudessem dar conhecimento da situação.

Seichan sabia bem que não deviam esperar ajuda.

Estamos por nossa conta.

Antes de partir, Maggie também os informara quanto ao que iriam enfrentar. A tripulação tinha partido com arpões e levava consigo sacos com cargas de demolição.

Seichan olhou de relance para os destroços do catamarã, reconhecendo neles o trabalho desses explosivos. Os ladrões tinham, claramente, vindo preparados para o caso de terem de abrir caminho pelo sistema de cavernas de modo a alcançar o ouro escondido.

Imaginou a tripulação amotinada, em 1852, penetrando com os botes a remos nessas mesmas grutas para esconderem os seus tesouros, talvez temendo que o Trident pudesse ser recapturado por forças britânicas. Mas será que o ouro ainda lá estava passado tanto tempo?

Ao aproximarem-se das coordenadas de Simon, Ben acenou-lhes para que se afastassem mais entre si, o que diminuía a possibilidade de o grupo ser visto como um alvo. Avançaram com grande cautela, usando as cristas do recife como cobertura. Caso os atacantes suspeitassem de alguma coisa depois da chamada de rádio abortada, o inimigo teria, provavelmente, um guarda escondido perto da entrada do sistema de grutas. Se um dos elementos da equipa o conseguisse atrair, os outros dois poderiam apanhá-lo.

Infelizmente, quando se aproximaram mais das coordenadas aperceberam-se de que a entrada não era o que esperavam. Quase não a viram, quando as águas se tornaram mais turvas, toldadas pela areia e os sedimentos agitados pelas ondas que batiam nos enormes penhascos da linha costeira.

Através da semiobscuridade, um tubo amarelo, com a forma de um torpedo com barbatanas, pairava alguns metros à frente do olho negro do túnel. O seu nariz apontava para o mar, com o seu comprimento flutuante a oscilar suavemente na corrente.

— Um dos planadores da ANFOG — silvou Ben.

Os ladrões tinham deixado aquele cão de guarda eletrónico para manter a entrada para o sistema de cavernas sob vigilância. O mais certo era que alguém estivesse a acompanhar as transmissões no interior das grutas subaquáticas.

— É impossível conseguirmos passar despercebidos pelos sensores do planador — disse Ben. — Se nos aproximarmos demasiado, o inimigo saberá que vamos a caminho do interior.

— Então temos de encontrar uma maneira de o cegar — disse Gray.

— Como?

Gray agarrou num saco de rede que pendia do seu cinto de lastro. Retirou uma das duas cargas de demolição que tinham encontrado a bordo do barco quando o passaram em revista.

— Se tentares explodir o planador — avisou Ben —, será como sermos vistos. Eles saberão que vamos a caminho.

— Não é esse o meu plano.

Gray nadou alguns metros para trás, depois usou a faca de mergulho para remover três quartos da carga de explosivo plástico, enfraquecendo a explosão que poderia causar. Em seguida, enterrou-o trinta centímetros na areia, na base de uma crista de corais branqueados e quebradiços.

— Afastem-se mais. — Acenou-lhes para que se afastassem mais da linha da costa. — Defini o temporizador para daqui a trinta segundos. Preparem-se para ir quando eu disser.

Com a carga enterrada, recuaram.

Seichan foi fazendo mentalmente a contagem decrescente enquanto nadavam. Quando chegou a zero, um vump abafado ressoou nos seus ouvidos e na caixa torácica. Virou-se de novo para trás, quando a secção do fundo do mar onde Gray enterrara a carga explosiva se ergueu numa coluna de areia e coral estilhaçado gigantesca. A corrente levou de imediato a nuvem na direção da costa.

— Agora! — disse Gray pelo rádio. — Metam-se no meio dos destroços e mantenham-se juntos.

Seichan compreendeu. Nadou com os outros para a densa nuvem de sedimentos. Depressa deixaram de se ver uns aos outros, ainda que estivessem a agarrar um cotovelo ou a barbatana do vizinho. Ainda assim, Ben guiou-os em frente sem falhar, nadando apenas pelos instrumentos, seguindo o GPS de pulso. Conduziu-os pelo lado do cão de guarda eletrónico cego, depois ao longo das rochas.

Momentos mais tarde, o australiano estava a puxá-los para a entrada do túnel. Mesmo dali, Seichan não conseguia ver o planador entre os sedimentos agitados. Era como se o mundo inteiro tivesse desaparecido do outro lado do túnel.

Ben tomou-lhe a mão e conduziu os seus dedos para um pedaço de corda preso com uma estaca ao fundo do mar. Conduzia às profundezas do túnel.

Ela compreendeu.

Segue a corda.

Partiu atrás de Ben, com Gray atrás dela. Depressa se sentiu grata ao inimigo por lhes ter deixado aquele caminho para seguir. A cada movimento dos pés e a cada braçada, os seus movimentos agitavam mais sedimentos no interior do túnel. Para além de quase não conseguir ver as barbatanas de Ben, à sua frente, a sua leveza, apesar do equipamento, aumentava a sua desorientação. Era quase impossível distinguir o lado de cima do de baixo.

Uma vez afastados o suficiente dos sensores do planador, Ben arriscou acender um par de pequenas luzes que lhe flanqueavam a máscara.

— Muito bem, adoro espeleologia e adoro mergulho, mas quando se combinam os dois em espeleologia subaquática — entoou — transforma-se num desporto sangrento. E agora ainda mais.

Ben abrandou e apontou para uma luz vermelha que cintilava fixa de um dos lados do túnel. Era uma das cargas de demolição. O inimigo devia estar a planear rebentar com a entrada quando saíssem, uma vez assegurado o tesouro.

Enquanto Seichan prosseguia, seguindo a corda presa ao chão, orientou-se o suficiente para perceber que o túnel não era tanto uma passagem aberta na rocha sólida quanto um caminho serpenteante e tortuoso através e à roda de um monte de rochedos e pedras soltas.

— Foi um antigo desmoronamento — confirmou Ben, apontando as luzes à sua volta enquanto passava entre dois blocos de granito apoiados um no outro.

Enquanto o seguia, Seichan pressentiu a natureza precária daquela pilha, desconfiando que não seria preciso uma grande explosão para fazer desabar toda a estrutura.

Depois de mais um minuto a espernear e a contorcer-se, a voz de Ben desceu para pouco mais do que um sussurro.

— Vejo luzes lá à frente.

Apagou as suas próprias luzes e abrandou. A passagem abria-se o suficiente para que os três pudessem colocar-se lado a lado. O caminho estendia-se mesmo à sua frente, iluminado por uma pessoa que flutuava, sem peso, no equipamento de mergulho para lá do túnel. A atenção do homem estava fixa no aparelho brilhante que tinha nas mãos, o seu ecrã tão luminoso quanto uma lanterna nas águas escuras.

Ben olhou de relance para eles, com uma expressão determinada.

Devia ser o aparelho de monitorização e a unidade de controlo para o planador que se encontrava na entrada.

Gray ergueu a palma da mão, indicando aos outros dois que se deixassem ficar para trás.

Em seguida utilizou o piso do túnel para ganhar impulso e deslizou na direção das costas do homem. Um qualquer movimento de aviso na corrente deve ter alertado o seu alvo.

O mergulhador girou, procurando a arma de caça submarina, mas Gray já estava em cima dele.

Mergulhou a faca por baixo do queixo do homem e agarrou-o com o outro braço. O corpo contorceu-se durante vários segundos, depois ficou flácido. Gray tirou o ar ao colete que permitia ao homem flutuar e deixou que o peso do corpo o arrastasse para as profundezas escuras, mas não antes de lhe tirar a arma de caça submarina e a unidade de controlo do planador.

Ben e Seichan juntaram-se a Gray, enquanto este desligava o aparelho, devolvendo as águas a uma escuridão estígia... ou pelo menos, assim devia ter sido.

Todos viraram os rostos para cima.

Através da água sobre as suas cabeças, um suave brilho tremeluzente chamava por eles. A luz difusa concedia dimensão à gruta inundada à sua volta. Devia ter metade do tamanho de um estádio de futebol. O brilho também revelou a superfície do lago interior. Estendia-se a cerca de dez metros por cima deles.

Subiram lentamente em direção à claridade.

Com grande cautela, arriscaram espreitar, trazendo os limites das máscaras para a superfície.

Ben arquejou ao lado de Seichan.

— Santa mãe de Deus...

10h42

Gray compreendia o choque e espanto do australiano.

O teto da gruta brilhava com o que pareciam ser aglomerados de estrelas, que cintilavam em vários tons de um profundo azul-esverdeado a um prateado luminoso. O brilho revelava longos filamentos que pendiam do teto, onde se alinhavam filas de gotículas nacaradas.

— Pirilampos — explicou Ben.

Gray tinha ouvido falar de grutas na Austrália e na Nova Zelândia onde residiam estas larvas bioluminescentes, mas nunca imaginara que produzissem um espetáculo tão brilhante. Eram decerto milhões a brilhar através dela, tentando atrair com o seu brilho as presas para as suas armadilhas pegajosas.

Contudo, a verdadeira maravilha não estava no teto.

Os pirilampos tinham encontrado um ponto de ancoragem mais adequado.

Os destroços do Trident.

O navio de três mastros jazia enviesado na caverna, tendo ficado encalhado num banco de areia do lado oposto. Toda a superfície do navio estava envolta em pirilampos e nas suas finas redes sedosas. Era como se os destroços do Trident se tivessem erguido de mares fantasmagóricos, ainda envolto em algas bioluminescentes.

Apesar do carácter impressionante da imagem, o movimento — tanto no banco de areia como no convés — levou Gray de novo para debaixo de água, arrastando os outros consigo.

— Reparaste que as velas do navio estavam ferradas e amarradas? — disse Ben, juntando-se a Gray. — A certa altura, esta gruta deve ter sido aberta ao mar. A tripulação provavelmente procurou aqui abrigo durante a tempestade. Talvez até resguardando-se de um ciclone.

Gray recordou o desmoronamento de pedras que tinham atravessado para ali chegar.

— E ao fazê-lo os sacanas ficaram aqui presos.

— Tentemos não sofrer igual destino — recordou-lhes Seichan.

Gray acenou com a cabeça.

— Temos de encontrar a filha do Simon, libertá-la e sair daqui.

— Vi uma mulher loura no grupo do banco de areia — disse Seichan.

— É possível que seja a Kelly — confirmou Ben.

Gray partiu em direção à costa.

— Então vamos ter com ela.

Enquanto atravessavam o lago, mantiveram-se a grande profundidade. O fundo do lago subia lentamente por baixo deles, à medida que se aproximavam do lado oposto. Mesmo aqui, a vida prosperava. Corais com centenas de anos agitavam-se com corais moles. Peixes de cores luminosas fugiam apressados do seu caminho, enquanto lagostas albinas, do comprimento do antebraço de Gray, espreitavam entre os recifes.

Seichan nadou ao seu lado, fitando cautelosamente a areia e as pedras em busca de ameaças. Algo captou a sua atenção e atraiu-a para o lado.

Antes que pudesse investigar o motivo do seu interesse, alcançaram o Trident. A partir daqui, teriam de trabalhar rapidamente. A qualquer momento alguém podia tentar contactar por rádio o homem que tinham abatido há pouco. Gray sabia que tinham apenas uma estreita janela de oportunidade antes de a sua presença na gruta ser notada.

Escondido nas sombras do casco do navio encalhado, trabalhou rapidamente com os outros, assegurando-se de que estavam todos preparados. Uma vez satisfeito, partiram de novo. Contornaram o casco do Trident e aproximaram-se do banco de areia, mantendo-se colados ao fundo do lago. Gray contava que o brilho dos pirilampos que se refletia na superfície escura do lago mantivesse o grupo escondido o máximo de tempo possível.

Ao alcançarem os baixios, Gray conseguiu vislumbrar figuras sobre a areia, não muito longe de onde o Trident encalhara. O navio erguia-se sobre o pequeno grupo, revelando um buraco enorme no casco. Um trio de baús de madeira erguia-se nas redondezas. Tendo em conta os rastos na areia, parecia que as caixas tinham sido arrastadas do porão destruído do navio.

Gray não duvidava do que continham.

O tesouro perdido do Trident.

Ignorando as riquezas guardadas nesses baús, concentrou-se na imagem aquosa dos três mercenários que se erguiam sobre o tesouro — e da rapariga solitária.

Kelly estava ajoelhada na areia, de ombros caídos e rosto abalado.

Um dos homens tinha uma pistola descontraidamente apontada à parte de trás da cabeça dela, claramente a aguardar a ordem para despachar a testemunha. Os outros dois estavam igualmente armados. Os seus arpões estavam encostados a pedregulhos atrás deles. Aparentemente, a equipa levara armas adicionais em bolsas à prova de água.

Gray praguejou pelo facto de estarem tão bem preparados, mas não havia nada que pudesse fazer. A sua equipa estava empenhada. Dobrou o corpo e colocou as pernas por baixo de si. Olhou de relance para a direita e para a esquerda para se assegurar que os outros estavam prontos.

Mentalmente, tinha estado a fazer uma contagem decrescente, acompanhando o temporizador que colocara na carga de demolição. Há instantes prendera o material restante ao lado mais distante do casco do Trident. Até acrescentara o resto do explosivo plástico que lhe sobrara da detonação anterior.

Quando a contagem decrescente chegou a zero, saltou da água.

Nesse mesmo instante, a explosão abalou a caverna com um estrondo ensurdecedor. Água e pedaços de madeira partidos ergueram-se no ar atrás dele.

Gray já tinha a arma da caça submarina roubada apoiada no ombro. Apontou ao alvo e apertou o gatilho. O arpão de aço cortou o ar e atingiu o homem que guardava Kelly num olho. A ponta trespassou-lhe o crânio e lançou o seu corpo para trás.

À sua esquerda, Seichan moveu o braço e lançou habilmente a faca de mergulho com os dedos. Ninguém era mais mortífero do que ela com uma lâmina. O punhal empalou o seu alvo pela maçã de Adão, fazendo-o desabar num monte gorgolejante.

De faca na mão, Ben emergiu da água à direita de Gray. Avançou para o terceiro atacante, que se erguia mais perto do limite das águas. O inimigo — chocado pela explosão e pelo ataque súbito — conseguiu, ainda assim, virar a pistola na direção de Ben.

Antes que conseguisse disparar, Kelly ergueu-se da areia e fê-lo levantar o braço. A pistola disparou com um relâmpago, mas o tiro perdeu-se. Ben caiu em força sobre o homem, que rechaçou o seu ataque. A estocada inicial foi bloqueada por um cotovelo.

No entanto, Ben ainda não tinha acabado.

Com um forte empurrão, o australiano fez o seu alvo cambalear para trás — diretamente para os arpões encostados a um pedregulho atrás do homem. O impacto enterrou o arpão carregado nas costas do homem, saindo pelo peito. Este tombou para trás, abrindo e fechando a boca, arquejando como um peixe fora de água, antes de, por fim, desabar sobre si mesmo e cair para o lado.

Antes que alguém conseguisse falar, um gemido trovejante atraiu a atenção de todos para o lago. Em câmara lenta, o casco brilhante do Trident tombou para o lado, caindo em direção à água, colapsando do lado que a carga de Gray fizera explodir. Os mastros tremeram e o convés rodou.

— Olhem! — gritou Kelly.

Duas figuras — uma delas de membros magros e ágil, a outra encorpada e musculada — saltaram sobre a amurada do lado oposto e mergulharam em direção ao lago. Caíram à água juntos e desapareceram nas escuras profundezas. Gray calculou que aqueles dois homens tinham estado a percorrer o Trident em busca de quaisquer tesouros que ainda restassem.

— Não, não, não... — disse Kelly.

Gray virou-se para ela, apercebendo-se do terror no seu rosto.

— Aquele era o líder destes sacanas — explicou. — E o doutor Hoffmeister.

O traidor.

— Não irão longe — garantiu-lhe Ben. — Havemos de os descobrir.

— Não, não compreendem — disse Kelly. — O Hoffmeister tem o transmissor para as cargas de demolição.

Gray compreendeu.

— Vai rebentar a gruta atrás dele, uma vez em segurança.

Ben apontou para o local onde algumas linhas mais fortes de luz solar percorriam o teto, indicando a presença de rachas.

— Pode fazer desabar toda a estrutura.

Sabendo que isso era verdade e que não tinham tempo a perder, Gray abandonou todo o material não essencial, agarrou numa das armas de caça submarina e correu para a água.

Seichan seguiu o seu exemplo e mergulhou ao seu lado.

Nadaram em sintonia atrás dos homens em fuga. Com o inimigo já com um avanço considerável era muito provavelmente uma perseguição vã. Ainda assim, Gray recusava-se a desistir.

Olhou de relance para Seichan.

Atrás dos seus ombros, o Trident afundou-se nas profundezas, o casco ainda a brilhar enquanto encontrava o seu fim.

Quando se virou de novo, algo prateado deslizou em frente do seu nariz.

Um arpão.

O objeto passou entre os dois.

À sua frente, uma sombra erguia-se por trás de uma elevação no recife. Era o líder dos mercenários. Este erguia já uma segunda arma de caça submarina. Para lá dele, um pequeno ponto de luz oscilava na escuridão.

Hoffmeister.

Estava a escapar.

10h55

Seichan sabia que só teriam uma oportunidade.

Ergueu a arma com um braço e bateu com os pés. Ao passar por Gray, empurrou-lhe o ombro com a mão livre.

— Vai! Eu trato deste sacana.

Gray não hesitou nem se demorou. Era uma das razões por que o amava. Por exasperante que por vezes pudesse ser, confiava plenamente nela. Não padecia de um qualquer preconceito arrogante de coragem masculina. Em vez disso, eram uma equipa. Conheciam os pontos fortes e os pontos fracos um do outro, e Gray era melhor nadador.

Provando-o, contorceu-se para um lado e afastou-se. Desapareceu quase de imediato, contornando a ameaça.

Seichan prosseguiu a direito.

Ergueu a arma de caça submarina.

O inimigo fez o mesmo.

Vamos a isto.

Quando só alguns metros os separavam, dispararam os dois. Os arpões brilharam pelas águas escuras. Seichan torceu o corpo para o lado, mas o arpão raspou-lhe a coxa, cortando o fato de mergulho e deixando uma linha de fogo ao longo da perna.

A sua pontaria foi melhor. Contudo, no último instante, o líder dos mercenários afastou o arpão com o cabo de aço da sua arma, lançando o arpão para o lado.

Assim seja.

Seichan encurtou a distância entre ambos. Tinha sempre desconfiado que o combate terminaria numa luta de facas.

Levou a mão à bainha que trazia na cintura, mas os seus dedos regressaram vazios.

Praguejando silenciosamente, imaginou a lâmina que empalara a garganta do seu alvo na praia. Na pressa de partir, tinha-se esquecido de a recolher.

O inimigo estava mais bem preparado.

Desembainhou um punhal de trinta centímetros.

10h58

Do outro lado do lago, Gray continuava a sua perseguição à luz em fuga. Era um farol na escuridão e concentrou-se exclusivamente nele, enquanto batia com os pés e movia os braços. Usou-o para se distrair da preocupação em relação a Seichan.

Lentamente, o ponto de luz foi-se tornando maior, oferecendo-lhe tanto encorajamento quanto esperança. Ainda tinha a arma de caça submarina ao ombro.

Se conseguir aproximar-me o suficiente...

De repente a luz desapareceu à sua frente, apagando-se por completo. Apanhado de surpresa, abrandou momentaneamente... depois percebeu o que implicava aquela perda.

Hoffmeister tinha alcançado o túnel.

Estou sem tempo.

11h01

Desarmada, Seichan fugiu do seu atacante.

Como Gray, era prática. Conhecia as suas limitações e reconhecia a perícia do adversário. A sua única esperança consistia em manter-se à frente da figura musculada. Com esse objetivo em mente, regressou ao banco de areia, seguindo o caminho que a equipa usara antes.

O seu treino brutal como assassina ensinara-lhe a memorizar sempre o seu meio envolvente, apesar de todas as variáveis presentes.

Por isso avançou sem falhas pelo caminho anterior.

Imaginou a faca de mergulho abandonada no banco de areia.

Fora um lapso estúpido.

Algo que não voltarei a repetir.

Mas primeiro tinha de sobreviver.

Já estava a abrandar, tanto pela exaustão como pela perda de sangue do corte na perna. Tornava-se cada vez mais difícil mover o membro ferido. Ainda assim, quanto mais não fosse, o seu ferimento atraíra o atacante como um cão atrás de um pássaro ferido.

Um olhar de relance por cima do ombro revelou que o homem estava quase em cima dela.

Ótimo.

Abrandou ainda mais quando se aproximou do local que memorizara, um ponto que tinha chamado a sua atenção antes, a caminho do banco de areia, o suficiente para a afastar de Gray por breves instantes.

Passou por cima de uma crista de coral e mergulhou em direção a uma extensão de areia exposta.

Tinha-se apercebido da presença de uma arma.

Uma dessas muitas variáveis.

Com os dedos enluvados, tentou agarrá-la, ao mesmo tempo que uma sombra pairava sobre ela.

Seguindo o aviso de Ben no início do dia, agarrou naquela arma pela cauda. Girou sobre si mesma no preciso instante em que o mercenário mergulhava o punhal na direção das costas dela. Evitou com facilidade o golpe, aproveitando o excesso de confiança do homem.

Moveu o braço e bateu com o peixe-pedra no pescoço do homem. Os espinhos penetraram-lhe a pele. O veneno jorrou. O efeito foi instantâneo. O corpo ficou rígido. Ele baixou o punhal e levou as mãos ao pescoço, afastando o peixe que o empalara, mas os estragos estavam feitos.

O seu corpo debateu-se na água. A dor era de tal modo enlouquecedora que ele arrancou a máscara e o regulador. Arranhou o rosto com as unhas. Depois os membros ficaram flácidos, caindo pesadamente. Ficou a boiar na água. Fitando-a com olhos cegos. Seichan não sabia se tinha sido a dor que o matara, o veneno ou se simplesmente se afogara.

Tinha apenas uma certeza, lembrando-se do corpo dilacerado do pai de Kelly.

Boa viagem.

11h05

Gray apressou-se a seguir a corda que serpenteava pela antiga derrocada. Puxava com os braços e empurrava com as pernas um qualquer ponto de apoio. Os ombros mantinham-se perto das orelhas. A qualquer momento, esperava que as cargas escondidas ao longo da passagem explodissem e enviassem todos aqueles pedregulhos para cima dele.

A sua única esperança era que Hoffmeister esperasse até estar afastado dos penhascos costeiros para arriscar a utilização do transmissor. O oceanógrafo sabia, decerto, que a explosão poderia projetar pedregulhos enormes que cairiam na água à sua volta.

Mas o sacana em pânico seria cauteloso a esse ponto?

Gray agarrou na corda com as duas mãos e puxou o corpo em redor de mais uma curva no túnel. A corda ficou subitamente mole. O puxão seguinte limitou-se a trazê-la para junto de si.

Praguejou sabendo o que aquilo significava.

Hoffmeister tinha cortado a corda de segurança.

Gray teve o cuidado de não puxar a corda. Precisava de seguir a sua extensão pousada no fundo para o guiar dali para fora. Ainda assim, os sedimentos tornavam difícil ver a corda. Tinha de avançar com mais cuidado, o que o fez abrandar consideravelmente.

Assim jamais conseguirei.

Mas depois, numa quase impossibilidade, uma luz surgiu entre os sedimentos, mais à frente.

A luz do dia.

Voltou a apressar-se, percorrendo velozmente a distância em falta. Quando emergiu do túnel, descobriu Hoffmeister a uns meros nove metros de distância. Estava agachado no leito do mar.

Gray ficou chocado ao ver o homem tão perto. Pegou rapidamente na arma de caça submarina que tinha ao ombro.

Hoffmeister não tinha para onde fugir.

Gray estava errado.

Do fundo do mar, um torpedo amarelo saiu disparado, afastando-se do oceanógrafo.

Era o planador ANFOG.

De súbito, Hoffmeister foi puxado. O corpo voou atrás do planador, arrastado na sua esteira. O homem tinha-se prendido ao planador com um pedaço de corda. Por certo, tencionava escapar usando a sua própria ferramenta, provavelmente tinha definido manualmente o motor do planador para a potência máxima há poucos instantes.

Gray disparou contra a figura que se afastava, mas o seu disparo não passou sequer perto.

Até tentou nadar atrás do sacana, mas depressa reconheceu a futilidade do gesto. Em menos de um minuto, Hoffmeister estaria longe o suficiente, em águas abertas, para usar o seu detonador.

Acabou.

Porém, enquanto Gray o observava, o torpedo amarelo guinou abruptamente para a esquerda, afundando-se depressa. Arrastou Hoffmeister atrás de si como uma boneca de trapos através das águas.

Confuso, Gray nadou para mais longe de modo a seguir a sua trajetória.

O planador avançou para os destroços do catamarã e para o frenesim de tubarões-de-cabeça-chata atraídos pelo sangue do colega assassinado de Hoffmeister. O oceanógrafo deve ter sentido a ameaça, ainda mais por o planador ter começado a abrandar quando se aproximou dos destroços.

Hoffmeister tentou, freneticamente, soltar a corda que o prendia ao planador antes de ser arrastado para os tubarões. À medida que o torpedo desacelerava, o oceanógrafo libertou-se finalmente e lutou contra o perigo.

Contudo, os tubarões não eram os únicos predadores naquelas águas.

De entre os destroços em baixo uma forma escura lançou-se pelas águas, os maxilares abertos num ângulo impossível. Os dentes amarelos agarraram Hoffmeister pelo braço e ombro esquerdos. Uma cauda grossa agitou-se num círculo, lançando o crocodilo de meia tonelada numa espiral aterrorizante.

O corpo de Hoffmeister foi projetado... sem todo o braço esquerdo.

Ainda assim o homem estava vivo, com o sangue a escorrer do ombro bateu os pés e nadou com o braço que lhe restava. Mas um tubarão-de-cabeça-chata desceu sobre ele, apanhou-o e, com um movimento da cauda poderosa, desapareceu no mar.

Em choque, Gray recuou para o túnel subaquático. Olhou de relance para a passagem. Desconfiou, de repente, da razão da curva mortífera do planador.

Hoffmeister não era o único capaz de operar o planador.

Havia uma certa aluna de mestrado que também o sabia fazer.

11h11

Pobre rapariga...

Seichan viu Kelly largar a unidade de controlo do planador na areia. Gray abandonara ali o aparelho antes de mergulhar na água atrás de Hoffmeister. Fora Ben quem sugerira que a rapariga usasse os drones subaquáticos para monitorizar o mar para lá da gruta.

Mal sabia o australiano quão fortuita se revelaria tal sugestão.

Kelly manteve-se de joelhos. Ben estava ao seu lado. Envolveu-lhe os ombros com um braço e puxou-a contra o peito.

— Fizeste bem, Kelly... fizeste bem.

A única resposta da rapariga foi um estremecimento dos ombros magros, enquanto soluçava silenciosamente contra o peito de Ben. Embora Kelly tivesse conseguido vingar-se, isso não traria o pai de volta.

Seichan avançou para a água, deixando a rapariga no seu luto, sabendo que não havia palavras que pudessem aliviar a sua dor.

Fitou as estrelas brilhantes, tentando encontrar significado. Há muito tempo, a ganância conduzira uma tripulação amotinada a um trágico fim naquela gruta. E, séculos depois, fora de novo a ganância a conduzir a mais derramamento de sangue e morte.

Estariam alguns locais simplesmente amaldiçoados?

Lembrou-se do nome que o capitão Cook dera àquele canto do mundo.

Cape Tribulation.

Abanou a cabeça.

Talvez aquele local não estivesse amaldiçoado, mas tinha, sem dúvida, feito jus ao nome.

19h56

Um leve gemido atraiu a atenção de Gray para a sua esquerda. Ergueu o rosto do buraco almofadado na mesa de massagem e fitou a origem da queixa.

Seichan estava deitada na mesa vizinha. Completamente nua, coberta apenas com uma toalha modesta sobre as nádegas e uma fila de pedras fumegantes ao longo das costas. Gray fitou a linha de Steri-Strips que fechavam a laceração pouco profunda na coxa.

— Estás bem?

— Mais do que bem — respondeu-lhe com um suspiro satisfeito. — Como disse antes, isto é aventura mais do que suficiente para mim.

Ele sorriu e instalou-se de novo na mesa.

Uma pedra aquecida foi suavemente pousada no fundo das costas de Gray.

Foi a sua vez de gemer.

Permitiu-se entregar-se ao prazer do momento. Ben tinha-os ajudado a fugir de Cape Tribulation, mantendo-os longe das atenções mediáticas que se seguiram. Ben também prometeu proteger Kelly nas semanas seguintes, determinado a conseguir que o reconhecimento pela descoberta do Trident fosse para ela e para o pai, bem como o ouro.

Kelly, por sua vez, tencionava usar o tesouro para financiar a paixão do pai.

Proteger os recifes.

Seria a maneira perfeita de honrar o seu sacrifício.

Seichan emitiu um novo som, desta vez mais pensativo.

Gray olhou de relance para ela.

— Que foi agora?

Ela virou o rosto para ele, fitando-o.

— Estava a pensar onde deveremos ir a seguir.

— Alguma ideia?

— Um sítio quente e tropical. — Ergueu o rosto, fitando-o intensamente. — Mas sem vespas-do-mar, crocodilos de água salgada ou peixes-pedra.

— Como por exemplo.

— Estava a pensar no Havai... talvez Maui.

— A sério? Isso não são ilhas demasiado domadas e aborrecidas para ti?

Ela encolheu os ombros

— Nunca lá estive. E neste momento aborrecido parece-me perfeito.

— Então que sejam umas férias no Havai. — Volto a enfiar o rosto no orifício da mesa de massagem. — Decerto lá nada poderá correr mal.


NOTA DO AUTOR

Verdade ou Ficção

No final dos meus romances, adoro explicar o que é verdadeiro e o que é ficção nas minhas histórias. Achei que, de forma concisa, poderia fazer o mesmo aqui.

Cape Tribulation. Tive a sorte de passar algum tempo nesta zona, perto de Port Douglas, em Queensland, e sempre quis escrever um romance que tivesse Cape Tribulation por cenário. Trata-se de um local verdadeiramente mágico, onde a floresta tropical se cruza com o mar de Coral. Também andei a cavalo na praia que surge nesta história, tendo aí visto um enorme crocodilo de água salgada percorrer o areal e mergulhar nas ondas. O local foi, de facto, batizado pelo capitão Cook depois do acidente que sofreu nos recifes próximos. Por isso achei que seria engraçado contar uma história acerca de um navio que tivesse sofrido destino idêntico, embora mais trágico.

O Trident. Ainda que o navio que surge nesta história seja puramente ficcional, baseei a sua história na de dois navios prisão verdadeiros: o Sucess e o Hive. As suas histórias combinadas envolvem amotinação, ouro e navios naufragados perdidos. Por isso, usei-as nesta aventura.

A Grande Barreira de Coral. Enquanto preparava a história, não podia deixar de referir o trágico branqueamento que afeta atualmente dois terços dos recifes de corais, cobrindo uma extensão de quase mil e quinhentos quilómetros. O recife é o lar de muitas espécies em vias de extinção, juntamente com quatrocentos tipos de coral e mil e quinhentas espécies de peixes. Trata-se de um habitat inestimável, do qual dependem trezentos milhões de pessoas para obter alimento, emprego e sustento. Por isso, não o percamos.

Planadores ANFOG. Sim, estes torpedos de investigação amarelos são verdadeiros... embora eu possa ter exagerado um pouco as suas capacidades. Mas não por muito!

O QUE SE SEGUE?

No final desta história, Seichan decide, esperançada, viajar para o Havai, especificamente para Maui. Claro que Gray os amaldiçoou ao declarar que nada pode correr mal. A sua sabática da Força Sigma está prestes a chegar ao fim com estrondo e nada voltará a ser o que era para qualquer um deles. Existem já forças em movimento, alimentadas por um horror antigo conhecido apenas como A Coroa do Diabo. Por isso, agarrem-se bem, e espero que gostem da louca aventura que está a chegar!


QUEDA FLAMEJANTE

JAMES ROLLINS

17 de abril, 19h48

No ar sobre o Atlântico Norte

Só podem estar a brincar comigo.

Um assobio lupino de apreço atraiu a atenção de Seichan para o outro lado da elegante cabina do Gulfstream G150. A configuração do jato privado permitia quatro passageiros, mas de momento partilhava aquele voo de D.C. para Marraquexe apenas com um outro viajante, embora as suas dimensões fossem suficientes para encher quase todo o lado de estibordo do avião.

Joe Kowalski erguia-se bem acima do metro e oitenta, quase todo ele músculos e cicatrizes. As pernas estavam estendidas de um banco ao outro, as botas apoiadas no assento de cabedal. Tinha no colo um estojo comprido, aberto. Esfregava o lábio inferior com um dedo, as sobrancelhas irregulares unidas numa expressão de concentração, enquanto estudava o conteúdo acondicionado no interior do estojo. Com a outra mão desenhou os contornos da caçadeira de canos curtos que aí repousava.

— Fixe — murmurou.

Seichan franziu a testa.

— Que tal não brincares com uma arma a trinta e cinco mil pés de altitude?

Sem dúvida o lugar errado, à hora errada.

Ele franziu o sobrolho perante a preocupação demonstrada e pegou na arma, virando-a para um lado e para o outro.

— Nem sequer está carregada. — Abriu a arma, expondo as duas câmaras, juntamente com as duas balas que ainda lá estavam. Removeu-os rapidamente e aclarou a garganta. — Pelo menos, não agora.

No estojo estava também um cinto com munições extra. Ainda que os canos duplos da caçadeira transmitissem a imagem de algo saído do Velho Oeste, Seichan sabia que aquela arma nada tinha de antiquado. O rótulo impresso na caixa confirmava-o.

PROPRIEDADE DO PROJETO DE INVESTIGAÇÃO AVANÇADA DA SEGURANÇA INTERNA

O protótipo militar chamava-se Piezer. A coronha da arma tinha no seu interior uma poderosa bateria. Cada munição de calibre 12 — em vez de estar cheia de chumbos ou sal-gema — estava repleta de cristais piezoelétricos capazes de conter uma carga elétrica. Uma vez carregada, a arma eletrificava a carga e, ao apertar o gatilho, o projétil disparado explodia no ar, lançando uma chuva de cristais de choque, cada um deles transportando uma carga equivalente a uma Taser. Sem necessidade de fios elétricos, a arma não letal tinha um alcance ligeiramente abaixo dos quinze metros, perfeita no controlo de multidões.

— Pensei que tínhamos concordado em manter o teu brinquedo novo fechado até aterrarmos — disse ela.

De acordo com o protocolo da missão, as armas — incluindo os punhais dela — estavam guardadas numa caixa camuflada, especificamente criada para resistir a qualquer escrutínio.

Ele encolheu os ombros com um ar envergonhado. Claramente estava aborrecido e decidira quebrar as regras, querendo algo para brincar durante o longo voo.

— Volta a guardá-la — disse-lhe ela. — O Crowe concordou que podias testar a arma no teu tempo livre, mas queria dizer em terra firme.

E de preferência bem longe de mim.

Uma vez chegados a Marrocos, cada um seguiria o seu caminho. Seichan tinha sido enviada pelo diretor Painter Crowe para investigar o mercado negro de relíquias roubadas em Marraquexe. Os fundos obtidos nesse tráfico financiavam vários grupos terroristas e, com as suas ligações passadas a tais organizações, Seichan era a escolha perfeita para se infiltrar e expor a operação.

Kowalski, por outro lado, estava a apanhar uma boleia, prestes a iniciar uma licença prolongada da Força Sigma. Quando aterrassem em Marraquexe, continuaria até à Alemanha para visitar a namorada em Leipzig, onde esta trabalhava num laboratório de genética.

Para além de partilharem aquele voo, Seichan e Kowalski também partilhavam a honra questionável de serem as ovelhas negras da Força Sigma. O grupo secreto era parte da DARPA, a agência de investigação e desenvolvimento do Departamento de Defesa. Os seus membros eram antigos soldados das Forças Especiais que tinham sido treinados em diversas disciplinas científicas para atuar como agentes de campo para a DARPA, a fim de proteger os interesses dos EUA contra diversas ameaças globais.

Ela e Kowalski não se enquadravam nesse molde.

Seichan era uma antiga assassina, que trabalhava agora, oficiosamente, para a Sigma. Kowalski fora um marinheiro que se vira no lugar errado à hora errada, mas que se revelara suficientemente hábil a mandar coisas pelos ares para servir de músculo e apoio extra para o grupo.

E embora ela e Kowalski partilhassem este estatuto de forasteiros, os dois não podiam ser mais diferentes. Ele era cem por cento americano, ruidoso e desabrido, rude, com um forte sotaque do Bronx. Ela era euro-asiática, esbelta e ágil, treinada para atuar nas sombras.

Ainda assim, apesar das suas diferenças, ela reconhecia neles um ponto em comum. Tinha-o ouvido a falar com a namorada, Maria, ao telefone antes de o jato descolar. A relação era nova, ainda não fora posta à prova, estava cheia de possibilidades. O sorriso dele era rasgado ao falar, ria com o corpo todo. Na sua voz, ouvia as mesmas notas familiares de saudade e desejo, em parte físico, em parte surgido de fontes mais profundas.

Também ela tinha encontrado alguém, um homem com capacidades notáveis e uma paciência incomensurável. Ele parecia saber quando se aproximar e quando se afastar. Era um talento necessário para amar alguém como ela. Depois de décadas nas sombras, para fazer o que tinha feito, tivera de deixar entrar a escuridão dentro de si.

Mesmo agora, continuava atormentada, descobrindo que a sua nova vida com a Sigma não era assim tão diferente da anterior. Continuava a ter de se manter nas sombras.

Não que tenha qualquer outra escolha.

Depois de ter traído os seus antigos empregadores, os inimigos rodeavam-na agora por todos os lados. O seu único refúgio era dentro da Sigma, mas mesmo aí ela era um fantasma, apenas com uma mão-cheia de pessoal a par da sua presença ou do seu passado.

Seichan virou-se para a janela; o sol descia em direção ao oceano. A sua luminosidade magoava-a, mas não pestanejou, tentando deixar que a luz entrasse profundamente em si, afastando os seus pensamentos negros e dissipando essas outras sombras. Mas sabia que não era possível. Em breve a noite cairia. Nem mesmo o sol poderia refrear a escuridão para sempre.

O piloto comunicou pelo rádio.

— Vamos aterrar em Ponta Delgada dentro de quinze minutos.

Seichan olhou por baixo das asas, para o arquipélago de ilhas vulcânicas que se estendia à sua frente. Os Açores eram uma região autónoma de Portugal. O jato em que seguiam iria aterrar em São Miguel, a maior das nove ilhas do arquipélago — mas apenas por tempo suficiente para reabastecer. O alcance do Gulfstream não era suficiente para permitir que a viagem transatlântica fosse feita de uma assentada.

Enquanto o avião começava a sua descida, estudou a extensão dos Açores, reparando nos minúsculos lagos prateados que cintilavam nas bacias das caldeiras verdes. A maioria dos habitantes agrupava-se em pequenas cidades ou na cidade maior, Ponta Delgada. O grosso das ilhas permanecia intocado.

O piloto voltou a falar.

— Fiquem nos vossos lugares para a...

As suas palavras terminaram com um guincho sonoro vindo do rádio. Ao mesmo tempo, o corpo de Seichan pareceu incendiar-se. Cega pela dor, arquejou enquanto sentia a pele a arder. Kowalski uivou do outro lado da cabina. Enquanto inspirava chamas, todo o avião balançou. O jato girou e mergulhou de nariz. Ainda a arder, Seichan sentiu-se erguer do assento, impedida pelo cinto.

Depois tudo acabou.

A sua visão regressou e a dor dilacerante na pele diminuiu para o ardor de uma queimadura solar. Kowalski estava sentado, em choque, curvado sobre si mesmo, as grandes mãos a apertarem os apoios para os braços.

Mas que raio...

Embora a agonia tivesse terminado, o jato continuava a mergulhar. Seichan inspirou fundo para se recompor e para ver se o piloto recuperava o controlo do avião. Quando nada aconteceu, tirou o cinto e deixou-se cair na direção do pequeno cockpit. Forçou a porta e deixou-se ficar na entrada. O piloto — um veterano da força aérea de sessenta e dois anos chamado Fitzgerald — estava pesadamente tombado na sua cadeira, preso pelo cinto, mas claramente inconsciente, se não mesmo morto.

Ela deixou-se cair no lugar vazio do copiloto e passou os controlos para o seu lado. Agarrou no controlo de voo com as duas mãos e puxou-o para trás com força. Do outro lado do vidro, oceanos azuis enchiam o horizonte, erguendo-se rapidamente na direção dela. Lutou para levantar o nariz do avião.

Vamos, vamos...

Enquanto a frente do avião se erguia lentamente, a imagem mudou, revelando a linha de uma floresta verdejante... depois os seus limites... e por fim o flanco íngreme de um vulcão.

Ainda que Seichan tivesse conseguido interromper o mergulho, continuavam a descer a uma velocidade demasiado elevada. Não tinha nem tempo nem espaço para voltar a subir. Um rápido olhar lançado ao painel de instrumentos — que revelou um altímetro em queda livre e um mapa de uma trajetória de descida condenada — confirmou a sua sombria avaliação.

Vamos cair.

Sabendo-o, cortou a aceleração.

Gritou para Kowalski:

— Posição de acidente! Já!

Com uma mão, puxou as alças de retenção sobre os ombros e pôs o cinto. Enquanto o jato acelerava para a água, continuou a puxar a manete de voo na direção da barriga. Ajustou os flaps, lutando por manter as asas do avião direitas.

Ainda assim, no final, teve de abandonar os instrumentos altamente tecnológicos e seguir o seu instinto. Olhou pela janela, fitando o oceano que se aproximava veloz, reparando na linha curva da praia à frente. Para lá dela, uma extensão de floresta contornava a base de uma muralha gigantesca de rochedos negros. Mas entre a praia e os rochedos cobertos de vegetação, um grande hotel brilhava sob os últimos raios de sol. Os seus doze andares de paredes brancas e janelas a brilhar fortemente com se fossem os portões nacarados de um qualquer paraíso tropical.

E estamos prestes a mergulhar contra elas.

Para evitar um final em chamas, Seichan teve de tentar uma amaragem. À medida que o oceano se ia aproximando, esperou até ao último momento e sincronizou os seus movimentos o melhor que pôde. Imediatamente antes de atingirem a água, baixou os flaps e acelerou. Espicaçado pela aceleração súbita, o avião ergueu-se, levantando o nariz. A cauda foi a primeira coisa a bater nas ondas. Perante esse sinal, ela desligou os motores. O resto do avião deslizou de barriga na água.

Lançada para a frente, contra as alças de retenção, nada mais podia fazer enquanto o impulso do jato lançava o avião a deslizar e a rodopiar sobre a água como uma pedra chata. A ponta de uma das asas bateu numa onda, fazendo o jato capotar ao longo dos últimos trinta metros, até por fim se enterrar na areia, parando repentinamente nos baixios.

Ela afundou-se no assento ainda presa, respirando com dificuldade, tentando forçar o coração a descer-lhe da garganta.

— Ainda estou inteiro! — gritou Kowalski da cabina. — Não tenho é tanta certeza em relação ao avião.

Claro, Kowalski estava bem. O tipo tinha demasiados parafusos a menos para ser verdadeiramente abalado pelo que quer que fosse.

— Ajuda-me com o Fitzgerald — ordenou ela.

O piloto continuava inconsciente, mas pelo menos parecia estar a respirar. Seichan soltou o cinto, depois libertou Fitzgerald, suportando o seu peso quando ele tombou para a frente.

Kowalski juntou-se a ela, agarrou no piloto por baixo dos braços e içou o seu corpo inerte para fora do cockpit.

— O que lhe aconteceu?

— Tentaremos perceber mais tarde. — Lembrou-se da explosão de dor flamejante, mas não fazia ideia de qual a sua origem ou significado.

Um problema de cada vez.

Seichan passou pelos dois homens e abriu a porta com o ombro. Uma brisa soprou para o interior, trazendo consigo o cheiro da água salgada, juntamente com o do combustível a arder. Um olhar em frente revelou o fumo que escapava por baixo da cobertura do motor desfeita. Embora estivessem a voar com um depósito de combustível quase vazio, mantinha-se o risco de explosão.

Saltou para a água, que lhe chegou às coxas, ensopando-lhe as botas e as calças de ganga. Puxou o casaco para cima, de modo a mantê-lo seco, enquanto as ondas lhe banhavam as pernas.

Apontou para a praia.

— Depressa!

Kowalski saltou para fora, sem se preocupar em manter seco o casaco de pele que lhe chegava aos joelhos. Pegou em Fitzgerald, passando os braços por baixo das axilas do piloto, e arrastou-o atrás de si.

O grupo afastou-se rapidamente do avião e avançou para a areia seca. Àquela hora, o sol afundava-se já no oceano, deixando o céu a brilhar atrás deles, mas o pico vulcânico escuro pairava à sua frente, emoldurado pelas primeiras estrelas.

Calculou que se tivessem despenhado numa das ilhas exteriores dos Açores.

Mas exatamente onde?

Fitou a praia. A cerca de noventa metros, o hotel que tinha visto do ar parecia ser a única habitação. Erguia-se de uma densa floresta de palmeiras e árvores escuras. Tochas tremeluzentes iluminavam os muitos terraços do hotel. Ténues acordes de música flutuaram até eles.

Seichan sabia que poderia encontrar ajuda nessa direção, mas continuava nervosa desde o acidente. Há aqui algo de errado.

Até Kowalski o reconhecia.

— Porque será que não vem ninguém a correr ver como estamos?

Um gemido chamou-lhes a atenção para a areia. O piloto estava finalmente a despertar, tremendo por ter sido arrastado pela água fria.

Kowalski pousou um joelho no chão, ajudando Fitzgerald a erguer-se.

— Então, meu, estás bem.

Mas não estava.

Os seus olhos viraram-se para Kowalski, o seu gemido transformou-se num rosnar enfraquecido. Em choque, Kowalski recuou. O rosto de Fitzgerald transformou-se numa máscara de raiva, e ele empurrou Kowalski para trás com força suficiente para o fazer cair sentado. O piloto saltou, erguendo-se, mas manteve-se apoiado nos nós dos dedos de uma mão.

Os olhos de Fitzgerald alternavam entre os dois, os lábios arreganhados num rosnar, expondo os dentes.

Depois, sem qualquer aviso, lançou-se a Seichan, optando provavelmente pelo alvo mais pequeno. Seichan agarrou-o e usou o impulso dele para o lançar sobre a sua anca. Ou pelo menos era esse o plano. Ele pôs o braço em redor da cintura dela, movendo-se muito mais depressa do que ela esperara de um homem de sessenta anos. Enredados um no outro, ambos caíram com força na areia. Ela aterrou de costas e desviou a cabeça para o lado quanto ele tentou morder-lhe a cara, ficando perto de lhe arrancar uma orelha.

Lutaram durante vários segundos, rolando pela areia. Seichan lutou para se libertar, mas os músculos do homem eram fortes como ferro, os seus reflexos apurados. Por fim ela conseguiu libertar as pernas e pontapeou-o na barriga com força suficiente para o obrigar a largá-la e o fazer voar para trás.

Antes que conseguisse recuperar o equilíbrio, Fitzgerald aterrou agachado, deslizando pela areia, mas mantendo-se direito. Voltou a lançar-se contra ela.

Porém, uma explosão soou atrás dela. Uma cintilante cascata azul foi disparada sobre a sua cabeça e atingiu o piloto no peito. Alguns pedaços brilhantes passaram por ele e dançaram sobre a areia escura.

Fitzgerald ficou estendido na praia, os seus membros a tremerem e a contorcerem-se. A roupa molhada era percorrida por teias de aranha de eletricidade. Quando o espantoso efeito se desvaneceu, o seu corpo ficou mole e inerte, de novo inconsciente.

Seichan olhou para Kowalski, que se erguia com o seu novo brinquedo ao ombro. A boca da Piezer de cano duplo brilhava ainda, suavemente, com a energia descarregada. Claramente, recusara-se a abandonar a arma e escondera-a debaixo do casaco comprido. O cinto de munições estava já preso em redor da cintura.

Graças a Deus pelo amor deste tipo aos seus brinquedos.

Kowalski baixou a caçadeira, fitando-a com apreço.

— Parece que funciona.

Ela olhou de relance para o piloto inconsciente.

Sem dúvida.

Seichan observou o avião a jato fumegante, perguntando-se se devia arriscar-se a ir buscar as suas próprias armas.

— Vamos ter companhia — disse Kowalski, atraindo a atenção dela para a praia.

Para lá da propriedade do hotel, um par de faróis piscava e brilhava intensamente ao longo da curva escura do areal. O roncar do motor ecoou sobre a água, à medida que um camião grande avançava na sua direção.

— Parece que, finalmente, alguém vem ver se há sobreviventes — disse Kowalski.

Depois de todos aqueles estranhos acontecimentos, Seichan desconfiava que o oposto era mais provável. Apontou para Fitzgerald.

— Arrasta-o para a floresta.

— Porque vamos...?

— Faz o que te digo. Já!

Enquanto Kowalski obedecia, Seichan correu em busca de uma folha seca de palmeira. Fez o que pôde para apagar o seu rasto até ao bosque ou para, pelo menos, esconder o número de pegadas. Uma vez sob a copa das árvores, deitou fora a vassoura improvisada.

— Continua a andar. Encontra um sítio para escondermos o Fitzgerald.

— Depois o que vamos fazer?

Seichan olhou através das árvores na direção das tochas tremeluzentes.

— Vamos tentar um check-in tardio.

20h38

Escondida atrás de uma sebe fragrante de hortênsias azuis, Seichan estudou os terrenos mergulhados nas sombras atrás do hotel. Nada se agitava para lá dos vários hectares de relvados aparados e caminhos ajardinados. O único som provinha das pequenas fontes que borbulhavam no centro dos lagos decorativos. Mais acima, as velas acesas no centro de um grupo de mesas iluminava o terraço do primeiro andar, completamente deserto.

Há, sem dúvida, algo de errado aqui.

Observando mais de perto, apercebeu-se de que a propriedade fora recentemente construída. Mostrava ainda sinais dos trabalhos em curso: andaimes de um dos lados, canteiros de terra revirada mas ainda não plantada, filas de pequenas árvores que aguardavam em baldes.

Ainda assim, a música que se ouvia ao longe e as tochas acesas indicavam claramente que o espaço já estava aberto, ainda que se tratasse de uma abertura para testar a equipa e as instalações.

Ao seu lado, Kowalski agitou um braço quando algo escuro lhe passou junto do rosto.

— Que raio se passa com todos estes morcegos?

Seichan reparara no mesmo ao atravessar o bosque. Dezenas de asas de pele que se agitavam entre os ramos, acompanhadas por um coro ultrassónico que lhe deixara os dentes sensíveis. Do outro lado da propriedade, nuvens de morcegos redemoinhavam em bandos, descendo e subindo a pique. Mais e mais pareciam voar, deixando a encosta escura do vulcão atrás deles, erguendo-se das grutas e dos seus poleiros rochosos para uma noite de caça.

Mas os morcegos não eram a sua verdadeira preocupação de momento.

Seichan olhou de relance para a esquerda. Junto à praia, brilhavam luzes por entre as árvores, assinalando a localização da carrinha e de quem quer que tivesse sido atraído para o jato acidentado. Vozes mais altas, ocasionais, chegavam até eles, as palavras demasiado abafadas para serem claras. Ela sabia que, decerto, havia já grupos de busca a percorrer a floresta depois de terem encontrado o jato vazio. Ela e Kowalski precisavam de se esconder rapidamente, e o hotel oferecia-lhes uma multiplicidade de esconderijos.

Kowalski tocou-lhe e apontou.

— Junto à moto-quatro. Aquilo são pernas, ali atrás?

Seichan espreitou nessa direção e viu que ele estava certo.

— Vamos ver.

Esgueirou-se por uma abertura na sebe e avançou para os terrenos nas traseiras, mantendo-se baixa e evitando a ocasional tocha acesa junto à periferia. A pequena moto-quatro Kawasaki tinha um atrelado carregado de bandejas de flores envasadas. Estava parada à frente de um canteiro vazio. Um homem estava deitado de rosto para baixo na relva ao lado do atrelado. Tendo em conta o fato-macaco verde, fazia parte da equipa de jardinagem.

Ela viu-lhe o peito subir e descer.

Estava inconsciente.

Kowalski inclinou-se, o dedo em busca do pulso.

Seichan puxou-o para trás, recordando o esgar de Fitzgerald.

— Não faças isso. — Apontou para as portas altas do pátio, por baixo da varanda onde estavam dispostas as mesas. — Vamos entrar, sair do espaço aberto.

Seguiu a direito, apressando-se ainda mais quando luzes de lanternas começaram a mover-se através da vegetação à sua esquerda. Chegou às portas e puxou. Trancadas. Deslizou ao longo das traseiras do edifício, experimentando cada porta até uma, por fim, ceder. Abriu-a e avançou para o corredor escuro, com Kowalski atrás de si.

— Então e agora? — sussurrou ele.

— Armas.

Ela percorreu o corredor alcatifado, imaginando a esplanada no exterior. Deve haver uma cozinha por perto. A meio do corredor vazio, descobriu uma porta que indicava Empregados Apenas. O seu português estava algo enferrujado, mas facilmente percebeu que se tratava de um acesso exclusivo a funcionários.

Testou a maçaneta, concluiu que a porta estava destrancada e avançou por ela. Para lá desta, uma escada estreita permitia o acesso aos andares superiores. Subiu os degraus.

— Vamos.

Os espaços do outro lado da porta eram mais utilitários. As paredes estavam por pintar, mais uma prova de que o hotel era ainda uma obra em curso. No patamar seguinte, seguiu o cheiro de gordura frita e especiarias até um conjunto de portas de vaivém de aço inoxidável.

Espreitou por uma das aberturas laterais e viu uma grande cozinha comercial, com pilhas de fornos e filas de fogões a gás. Várias panelas borbulhavam. Um conjunto de quatro frigideiras fumegava com o que poderiam ter sido filetes de peixe, agora queimados e negros.

O motivo para tamanha confusão era claro. Uma dúzia ou mais de corpos com aventais brancos jazia no chão, com os membros emaranhados, alguns caídos em cima dos outros. Como o jardineiro, pareciam ainda respirar.

— Cuidado — sussurrou Seichan. — Vê onde pões os pés.

Entrou à frente e avançou através do espaço, pousando com todo o cuidado os pés no chão, de modo a não perturbar as pessoas caídas. Não queria repetir o incidente com Fitzgerald.

Embora não soubesse ao certo o que se tinha passado, começava a ter uma ideia. Lembrou-se da explosão de dor flamejante a bordo do jato. Sentado na parte da frente, o piloto devia ter suportado em cheio o impacto daquela força desconhecida. Isolados atrás, ela e Kowalski tinham sofrido um impacto menor.

Passou por cima da barriga protuberante de um homem, cujo chapéu de chef estava caído no chão ao lado da cabeça. Ressonava ruidosamente. Seichan não sabia que golpe tinha sido desferido ali, mas não parecia fatal. Ainda assim, tendo em conta a forte agressividade e a força alimentada pela adrenalina de Fitzgerald, havia danos duradouros, uma alteração violenta da personalidade.

Seichan levou a mão a uma fila de utensílios de corte e agarrou numa comprida faca de talhante e numa faca de desossar mais pequena. Kowalski pegou num grande cutelo de carne. Ainda tinha a caçadeira numa mão, mas estava claramente à procura de algo mais letal, para o caso de terem de travar um combate corpo a corpo.

— Assim está melhor — disse, recuando.

O seu calcanhar bateu no nariz de um copeiro adormecido. Um fungar de dor abrupto alertou-os para o passo em falso. Viraram-se e descobriram um par de olhos semicerrados a fitá-los. O trabalhador sacudiu os braços e as pernas, movendo-se uma vez mais a uma velocidade chocante. Ergueu-se — sendo recebido pelo movimento descendente do cabo em madeira do cutelo de Kowalski. O impacto ressoou como um martelo a bater num coco. O copeiro pareceu pairar no ar por uma fração de segundos, depois o seu corpo voltou a cair no chão.

— Isso mesmo — disse Kowalski. — Volta a dormir.

Seichan curvou-se. Os olhos do homem tinham-se revirado, ficando completamente brancos, mas deveria ficar bem, com exceção de um grande galo atrás da orelha esquerda. Endireitou-se e olhou para Kowalski de sobrolho franzido.

— Eu sei, eu sei. — Kowalski fez-lhe sinal para que seguisse caminho. — Tenho de ver onde ponho os pés.

Seichan guiou-os para fora da cozinha, mas apercebeu-se da presença de um bolo alto num carrinho de serviço perto da porta. A sua cobertura estava enfeitada com flores cor-de-rosa e um cão vermelho que parecia saído de uma banda desenhada e que dizia Parabéns, Amélia! Feliz aniversário! Claramente alguém estava a celebrar o seu dia de anos. Porém, a presença de apenas nove velas gelou-lhe o sangue.

— Vamos — disse, e apressou-se a sair da cozinha e percorrer um curto corredor.

Um novo conjunto de portas de vaivém abria-se para um átrio de quatro andares. À sua esquerda ficava o terraço iluminado pelos archotes. Seichan virou à direita, querendo observar os terrenos anexos à praia. Recordou o bolo de aniversário de criança e correu mais depressa. À sua frente, o conjunto de portas envidraçadas altas tinham sido abertas. Uma suave brisa deslizava para o interior de mármore, levando consigo uma miríade de morcegos que voavam em arcos mergulhando por entre os candelabros de cristal.

Mais perto, outros corpos pontuavam o chão de cerâmica do átrio ou estavam afundados em cadeiras. Avançou para uma sala de cocktail em frente do balcão da receção. O bar era contíguo à parede de vidro que se abria sobre o oceano. Podiam abrigar-se atrás do balcão e manter sob vigilância os terrenos lá fora.

Serpenteou por entre as mesas, evitando uma senhora bem vestida caída ao lado de um copo de martíni estilhaçado.

Contornando o bar, Seichan arrastou Kowalski consigo.

— Mantém-te baixo — avisou.

O espaço atrás do balcão estava ocupado pela figura tombada de um homem que envergava um fato preto. Tinha caído sentado, as costas apoiadas na porta de vidro da garrafeira. Tinha a cabeça tombada para o lado, com um fio de baba a escorrer dos lábios.

Seichan apontou para o barman, mas, antes que pudesse dizer alguma coisa, Kowalski fez-lhe sinal para que avançasse.

— Tenho de ver onde ponho os pés — disse ele. — Eu sei.

Passaram por cima do obstáculo e agacharam-se do lado oposto, onde uma janela oferecia uma ampla vista sobre o terraço envolto pela sebe que rodeava a piscina de um azul-escuro.

Kowalski instalou-se com um suspiro. Tinha tirado uma garrafa de uísque da prateleira e abria o selo com os dentes. Quando ela franziu o sobrolho, ele balbuciou junto da tampa.

— O que foi? Tenho sede. — Cuspiu a tampa e inclinou a cabeça na direção da janela. — Além disso, é uma festa.

Seichan voltou a sua atenção para o terraço ao lado da piscina. As mesas tinham sido espalhadas pelo espaço, cada um delas com balões cor-de-rosa no centro. Como nos outros espaços, havia corpos espalhados por todo o lado. Torsos estendiam-se sobre os pratos; cadeiras viradas. Os criados jaziam entre bandejas de pratos e copos partidos. A maioria dos corpos pareciam ser adultos.

Com exceção da mesa no centro.

Um triplo conjunto de bouquets de balões decorava a mesa. Ao lado, um banco largo estava coberto por uma pilha de presentes embrulhados com cores alegres. A toda a volta, corpos pequenos — como um bando de pardais caídos — cobria o chão. No lugar de honra, uma figura pequena estava tombada sobre a mesa, o rosto virado para o lado, como se estivesse demasiado cansada para manter a cabeça direita, sobrecarregada pela coroa de papel que usava.

Ali estava o motivo daquela celebração.

Seichan lembrou-se do nome da criança escrito a cor-de-rosa no bolo.

Amélia.

A rapariga era, claramente, muito amada, provavelmente filha de um dos elementos do pessoal ou da administração. A família devia estar a aproveitar o ensaio de abertura do hotel para fazer aquela festa de aniversário.

Seichan perguntou-se como seria ser aquela criança, crescer com tamanho amor, ter a vida celebrada ao sol. O que imaginou era quase incompreensível para si, tendo passado os seus primeiros anos nas vielas de Banguecoque e Phnom Penh, e depois nos recessos estígios da Guilda. Fitou a coroa de papel brilhante e sentiu as sombras dentro de si tornarem-se ainda mais escuras por contraste.

— A carrinha está de volta — disse Kowalski.

Seichan voltou de novo a sua atenção para a extensão de praia do lado oposto da piscina. Sem luz e sombrias, varridas por ondas negras, as areias tornavam-se mais brilhantes à medida que a carrinha abandonava o local do acidente. Os faróis trespassavam a minúscula baía, revelando uma estrada de gravilha do lado oposto, que cortava através da floresta, seguindo provavelmente na direção de uma pequena cidade ou aldeia.

Desejou que a carrinha seguisse nessa direção.

Em vez disso, travou e as luzes iluminaram a escadaria de mármore que subia da praia para o terraço. O veículo tinha uma cabina dupla com uma cama aberta. Homens com espingardas e lanternas saltaram da parte de trás e as portas abriram-se, mas foi o que estava preso à cama que chamou a atenção de Seichan.

Antes de evacuarem o veículo, as lanternas da equipa revelaram uma caixa de aço do tamanho de um frigorífico, com cabos grossos ligados a uma fila de baterias de carro. Em cima do aparelho estava um prato metálico de um metro de diâmetro, meio inclinado, a apontar para o céu.

Aquela é, de certeza, a causa do que quer que aconteceu aqui.

Kowalski acenou na direção do grupo que subia os degraus.

— Fitzgerald.

O piloto estava de pé, as mãos amarradas atrás das costas. Parecia atordoado, tropeçando nos degraus, mas um gigante vestido com um equipamento dos comandos preto tinha o cotovelo de Fitzgerald bem preso entre os dedos e mantinha-o de pé, obrigando-o a subir as escadas. Contudo, o piloto parecia ter recuperado a sanidade. Embora assustado, olhava à sua volta, claramente a tentar compreender o que estava a acontecer.

Seichan estudou o piloto. Seria a recuperação de Fitzgerald uma questão de tempo ou ter-lhe-iam dado algum antídoto para contrariar a loucura que demonstrara antes?

O seu olhar voltou-se para Amélia.

Mas uma voz aguda chamou-lhe de novo a atenção para o grupo que chegava ao deque da piscina. As palavras ecoavam pelo terraço e entravam pelas portas abertas.

— Não tenham medo, cavalheiros. Os sons não os irão acordar. — O homem que falou tinha cabelo grisalho e envergava um fato branco imaculado; o seu sotaque era claramente britânico. Acenou com um braço para as mesas, à medida que se aproximavam. — De acordo com os nossos estudos preliminares, ficam surdos neste estado comatoso. Mas tenham cuidado para não perturbarem o seu sono, atacarão tudo o que se mexa.

Estava acompanhado por um homem mais jovem, de barba e uniforme bege, claramente persa, provavelmente iraniano. Falou quando o grupo se aproximou mais do hotel.

— Doutor Balchor, fale-me mais desta alteração do estado mental das vítimas. Para que continuemos a financiar a sua investigação, o exército vai querer todos os pormenores do seu progresso.

— Claro, coronel Rouhani. O que aqui vê é um efeito secundário do Colossus. — Apontou na direção do aparelho que permanecia nas traseiras da carrinha. — Um efeito secundário que não tínhamos previsto. O objetivo inicial da minha investigação era construir um novo sistema de negação ativa, uma arma de energia defensiva não letal. Os sistemas típicos usados pela polícia e pelas forças militares atuais empregam feixes de micro-ondas que penetram as camadas superiores de pele de modo a desencadear uma experiência verdadeiramente dolorosa. Mas os sistemas de hoje têm um alcance e uma capacidade limitados.

— E o Colossus?

Balchor sorriu orgulhosamente.

— Eu queria criar um sistema que pudesse fazer o mesmo, mas com a capacidade para afetar quarteirões inteiros penetrando, inclusive, nos edifícios.

Rouhani olhou à sua volta.

— E como é que conseguiu?

— É uma questão técnica, mas, no fundo, descobri que, se cruzar um raio de micro-ondas de elevada potência com um pulso eletromagnético, podia produzir uma onda de ressonância única. O feixe resultante é capaz de atravessar os objetos mais sólidos de modo a atingir os alvos definidos. Uma vez mais, pensei que o feixe atuaria apenas como forma defensiva, desencadeando uma dor intensa e debilitante em todos os que estivessem no seu caminho.

Seichan lembrava-se desse efeito. A pele ainda lhe doía com o ardor fantasma.

Balchor prosseguiu.

— Mas, ao modular a onda, descobri que podia penetrar mais fundo do que as camadas exteriores da pele. A componente eletromagnética do feixe podia alcançar o cérebro. Ora, normalmente o pulso eletromagnético (o PEM) não tem qualquer efeito deletério no tecido vivo, pelo que pode imaginar o meu espanto quando as vítimas desmaiaram e vi o seu comportamento alterado.

Rouhani franziu o sobrolho.

— Então o que está a acontecer?

— Responder a essa pergunta exigiu mais alguma investigação. Acabei por descobrir um estudo que está a ser realizado na China, no decorrer do qual os cientistas descobriram que uma determinada frequência de PEM pode provocar um aumento na permeabilidade vascular do córtex cerebral. Por outras palavras, torna os vasos sanguíneos do cérebro mais porosos. O meu aparelho estava a fazer algo semelhante, mas afetando diretamente a permeabilidade dos neurónios.

— Não compreendo — disse Rouhani. — Porque é isso significativo?

— Porque os neurónios porosos não conseguem transmitir a eletricidade adequadamente. O Colossus desliga o córtex cerebral do alvo, deixando-o inconsciente. Quando são acordados, os sujeitos reagem a um nível primitivo. É tudo o que ainda funciona. Uma resposta de luta ou fuga pura, acima de tudo luta, pelo que temos visto. Alimentados pela adrenalina, os sujeitos revelaram-se inusitadamente fortes e agressivos.

Rouhani acenou com a cabeça.

— Foi por isso que alegou que o Colossus era o primeiro PEM biológico.

— Sem dúvida. Um PEM típico desliga os circuitos eletrónicos sem prejudicar os seres humanos ou outras formas de vida biológicas. Mas quando o modulamos e cruzamos com uma micro-onda de elevada potência (uma HPM), o resultado é o oposto. O Colossus afeta os seres vivos, aqueles que tenham um córtex cerebral avançado, deixando os aparelhos eletrónicos inalterados.

— Uma tal arma poderia incapacitar o inimigo, deixando a infraestrutura intacta, possibilitando dessa forma a sua utilização pela força invasora.

— Precisamente. E, como pode ver, fizemos muitos progressos. Mas gostaria de compreender este efeito com maior pormenor. É uma das razões para o teste de hoje, que, além de servir de demonstração para si, permite-me aprofundar os meus estudos. — Balchor virou-se para o gigante inflado pelos esteroides que mantinha Fitzgerald refém. — Dmitry, pede aos teus homens para selecionarem sete ou oito sujeitos para exames laboratoriais mais aprofundados. Vou precisar de uma amostra de cada faixa etária para uma avaliação adequada.

Dmitry acenou com a cabeça e gritou ordens em russo aos outros homens. Tendo em conta o corte de cabelo do gigante, o homem claramente já pertencera ao exército, agindo como destacamento de segurança para o teste no terreno da arma.

Os seus homens tinham armas de cano longo, que carregaram com dardos emplumados, claramente tencionando disparar tranquilizantes sobre os seus alvos antes de os transportar. A equipa de sete homens afastou-se, falando uns com os outros, em busca dos melhores sujeitos.

Um par aproximou-se da mesa das crianças. Os dois olharam para Amélia e acenaram em confirmação. Um deles ergueu a arma e disparou para o pescoço da criança. A rapariga estremeceu, rolou ligeiramente para o lado, como se estivesse prestes a despertar, depois voltou a deixar-se cair, enquanto o sedativo de efeito rápido fazia efeito.

As mãos de Seichan fecharam-se em punhos cerrados.

Filhos da...

O atirador manteve-se de guarda junto da rapariga enquanto eram escolhidos outros sujeitos. Um dos alvos — um jovem de vinte e poucos anos — reagiu de forma mais violenta ao impacto do dardo. Esbracejou cegamente e levantou-se, descrevendo um círculo aos tropeções. Um segundo dardo coberto de penas voou para o seu peito, mas por essa altura ele já tinha pisado outros dois. Um deles levantou-se e lançou-se ao jovem atordoado, arranhando-lhe o rosto. O outro correu, movendo-se rente ao chão, na direção do atirador.

Antes que a situação se descontrolasse ainda mais, um outro atirador avançou com uma pistola normal e disparou duas vezes — dando dois tiros certeiros na cabeça dos homens e pondo um fim sangrento à ameaça.

O jovem que iniciara toda aquela confusão, agora duplamente sedado, caiu pesadamente ao chão.

Enquanto o resto da equipa avançava por entre os convivas, levando a cabo a sua seleção, Balchor conduziu o coronel iraniano em direção às portas altas.

— Vamos entrando. Pago-lhe um copo enquanto os homens de Dmitry acabam aqui.

— Só água. — Rouhani parecia abalado pelo episódio violento. Lançou um olhar preocupado aos outros trinta ou quarenta corpos que permaneciam espalhados pelo terraço.

— Ah, sim, desculpe. Esqueci-me de que a sua religião proíbe o uso de álcool. Felizmente, a minha religião é a ciência, e um copo de champanhe é bem merecido tendo em conta as circunstâncias.

Rouhani baixou-se de súbito e agitou os braços junto à cabeça. Uma pequena forma preta afastou-se, esvoaçando.

— Por que razão há tantos morcegos?

Balchor ergueu os olhos para as nuvens negras que voavam e desenhavam espirais sobre o terraço. Alguns elementos ocasionais lançavam-se mais abaixo, mergulhando e rodopiando, deixando para trás alguns morcegos solitários que deslizavam sobre as pessoas reunidas no exterior.

— Acho que os perturbámos nas suas grutas, que os agitámos. Com o seu apurado sentido sónico, devem ter sido atraídos para aqui, concentrando-se na origem do feixe. — Balchor encolheu os ombros e dirigiu-se para a porta do pátio. — É curioso... e uma das razões por que realizamos testes no terreno. Para ver como a arma funciona em cenários do mundo real. E isso inclui também os morcegos.

Seichan perdeu-os de vista quando entraram no átrio, mas ouviu os passos que se aproximavam sobre o chão de mármore. Ergueu os olhos para a parede de garrafas por cima do bar, duvidando subitamente da sua escolha de esconderijo.

Kowalski deve ter-se apercebido do mesmo e agarrou a caçadeira com mais força. Passou para o lado dela do bar, ambos de costas encostadas ao balcão.

Dmitry tinha acompanhado os dois e continuava a agarrar Fitzgerald.

— Então e o homem que encontrámos no bosque? — perguntou, o seu inglês truncado e de forte pronúncia.

Os passos pararam, e Balchor respondeu.

— O homem alega que era só ele a bordo do avião. Por isso devemos ficar bem.

Seichan trocou um olhar com Kowalski.

Muito bem, Fitzgerald.

— Mas, Dmitry, acredito que será útil um interrogatório mais vigoroso do piloto antes de deixarmos a ilha. Peço-te que trates disso com os teus homens quando terminarem.

—Mas o que é que se passou com o avião? — perguntou Rouhani. — O que o fez cair? Pensei que o Colossus não afetava os sistemas eletrónicos.

— De facto, não. Desconfio que quando o apontámos do parque de estacionamento em direção ao hotel, o feixe deve ter-se refletido no edifício (ou nos penhascos atrás dele) e atingiu o avião por acidente.

Seichan refreou um gemido perante o azar que tinham tido.

Sem dúvida local errado à hora errada.

Balchor prosseguiu.

— A onda deve ter sido suficientemente dolorosa para que o piloto perdesse o controlo, mas não para ter grande impacto neurológico.

Seichan sabia que o médico estava errado em relação a essa última parte, o que a fazia questionar-se quanto à recuperação de Fitzgerald. Claramente a equipa de Balchor não tinha administrado nenhum antídoto que tivesse ajudado Fitzgerald a recuperar os sentidos. Olhou de relance para a arma na mão de Kowalski, recordando a descrição que o médico fizera do efeito Colossus, de como desligava o fluxo elétrico através do córtex cerebral.

Teria o choque da arma de Kowalski recuperado esse fluxo, funcionando como um desfibrilhador para o cérebro?

Os passos prosseguiram, avançando em direção ao bar.

Espreitando pelo lado, viu Amélia ser erguida da cadeira. A coroa de papel caiu para o tampo da mesa. O homem com a arma içou-a sobre o seu ombro como se se tratasse de uma saca de farinha e dirigiu-se à carrinha parada na praia.

— O que vai fazer com as outras pessoas que aqui estão? — perguntou Rouhani enquanto os dois se dirigiam ao balcão, conversando exatamente por cima de onde ela e Kowalski estavam escondidos.

Balchor suspirou pesadamente.

— Vou disparar mais uma onda quando nos afastarmos. Testes anteriores revelaram que o segundo disparo sobre os indivíduos já atingidos anteriormente resulta em morte cerebral. Não vão contar história nenhuma. — Bateu palmas, mudando de assunto. — Parece que o bar está em modo self-service de momento, por isso vou ter de contornar o balcão e ir buscar o meu próprio champanhe.

Estamos sem tempo.

Seichan ergueu o punho à frente de Kowalski, fazendo-lhe um sinal.

Não te mexas.

Depois de ter obtido um aceno de cabeça dele, virou-se para o outro lado e pontapeou o homem que partilhava o esconderijo com eles. O barman ergueu repentinamente a cabeça, lançando um fio de baba para o rosto de Seichan. Esta manteve-se imóvel, sem sequer pestanejar, lembrando-se do aviso de Balchor quanto aos recém-acordados.

Atacarão tudo o que se mexa.

Rouhani inclinou-se sobre o balcão, a cabeça virada, falando com Balchor.

— Talvez sempre aceite essa bebida.

O barman teve todo o gosto em ajudá-lo.

O homem levantou-se de repente e mergulhou na direção do iraniano. Apanhado desprevenido, Rouhani foi incapaz de reagir a tempo. Os dedos do barman agarraram-se à garganta do coronel. Rouhani tentou afastar-se do bar para lhe escapar.

Tão depressa, não.

Seichan saltou e virou-se. Baixou o braço e espetou a faca de talhante que tinha roubado na cozinha nas costas da mão do coronel, prendendo-o ao balcão de mogno. Sem esperar, rolou por cima do balcão e aterrou, agachada, do outro lado.

Balchor corria já para as portas do pátio, gritando por ajuda.

Antes de ela o poder seguir, tinha de lidar com outro obstáculo.

Do outro lado do lounge, Dmitry empurrou Fitzgerald para o chão e levou a mão à arma que tinha no coldre.

Nada bom.

Kowalski tinha a única arma.

Olhou de relance para a direita, na esperança de que o seu parceiro visse a ameaça, mas Kowalski estava concentrado noutra coisa. Junto ao bar, Rouhani lutava e gorgolejava. Os dentes do barman estavam profundamente enterrados no pescoço do homem, rasgando-lhe a garganta. Kowalski disparou a Piezer, mas não na direção do russo. O relâmpago azul cintilante atingiu o barman, fazendo-o voar para trás e, com sorte, deixando-o de novo a dormir.

Ainda assim, a explosão estonteante conseguira sobressaltar Dmitry. O russo recuou vários passos, mas infelizmente já tinha conseguido soltar a arma.

Usando a sua distração momentânea, Seichan virou nos dedos a faca de desossar e lançou-a para o outro lado do lounge. Dmitry desviou-se facilmente da faca, mas o russo não era o alvo.

A faca atingiu a coxa da mulher atrás de Dmitry. Tratava-se da cliente do bar caída no chão, junto a um copo de martíni estilhaçado. A dor provocada pela faca fez a mulher levantar-se com um grito furioso. Olhou para a pessoa mais próxima a quem lançar as culpas.

Apanhado de surpresa, Dmitry não conseguiu virar-se a tempo. A mulher atingiu-o em cheio, lançando-o ao chão, mas o russo não era um amador. Atirou a mulher para longe e rebolou, levantando-se, mas o golpe súbito fizera-o largar a arma.

Estava debaixo da mesa ao seu lado.

Avançou nessa direção, mas Kowalski disparou. Um raio de fogo azul explodiu sobre a mesa, poupando ao russo que se abrigara sob ela o grosso da carga elétrica. Ainda assim, foi atingido por vários cristais que o fizeram afastar-se, o rosto contorcido pela dor. Dmitry deu meia-volta, fincou os pés no chão e mergulhou em direção à porta do terraço.

— Tenho de recarregar — gritou Kowalski.

Seichan correu para Dmitry, mergulhando pelo chão. Apanhou a pistola abandonada, uma Desert Eagle calibre .50, e disparou na direção do russo. No entanto, o russo que corria agachado no encalço do seu patrão tinha conseguido chegar ao terraço onde se preparava uma tempestade.

Na sua pressa para fugir, Balchor devia ter pisado alguns dos clientes comatosos, despertando-os ao passar. Estes, por sua vez, tinham perturbado outros. Choros e gritos erguiam-se no exterior, acompanhados pelo som das peças de mobiliário partidas.

A arma de Kowalski disparou de novo. Seichan baixou-se e virou-se a tempo de ver a mulher enlouquecida, na sua roupa elegante, a voar para trás, o peito iluminado por um bailado de fogo azul.

Quase me tinha esquecido dela.

No terraço, Dmitry fugia por entre o motim crescente, distribuindo socos e cotoveladas enquanto avançava. Do outro lado da piscina, Balchor tropeçou e caiu pelos degraus, aterrando perto do para-choques da carrinha. Um dos homens de Dmitry ajudou-o a levantar-se e conduziu-o à cabina enquanto o motor se fazia ouvir mais alto, preparando-se para partir.

Kowalski deslizou para junto de Seichan, o cano da arma a brilhar.

— Já estou pronto. E agora?

Ela ignorou-o por um momento e pegou na faca de desossar que se tinha soltado durante a refrega e avançou para Fitzgerald.

— Como te sentes?

O piloto sentou-se, parecendo atordoado, mas acenou com a cabeça.

— Estou... bem. Melhor.

Ótimo.

Tinha claramente recuperado o juízo, e Seichan acreditava ter percebido o porquê.

Enquanto cortava as cordas que prendiam o homem e o libertava, respondeu por fim à pergunta de Kowalski. Acenou com a cabeça para a arma dele.

— Isso parece despertá-los da sua loucura. — Apontou para o exterior. — Por isso ficas responsável pelo controlo das multidões.

Seichan deu meia-volta e dirigiu-se para o lado oposto.

— Para onde vais? — gritou-lhe Kowalski.

Seichan pensou em Amélia. A rapariga estava já na carrinha com os outros.

— Assegurar-me de que alguém tem um feliz aniversário.

21h09

Erguendo-se ao lado do canteiro por plantar, Seichan soltou o atrelado carregado de flores da moto-quatro Kawasaki e saltou para o assento. Tinha-se apercebido, quando por ali passaram, que as chaves do jardineiro adormecido ainda estavam na ignição.

Ligou o motor e carregou a fundo no acelerador, fazendo erguer o veículo nas rodas traseiras. Depois, os pneus da frente bateram no chão e ela saiu disparada. Avançou pelo relvado acabado de semear e sobre os caminhos de gravilha, apontando para a ala escura que ainda estava em construção.

Ali não brilhava qualquer luz, mas era em espaços como aquele que melhor trabalhava.

Nas sombras.

Não era a única. O ar estava repleto de morcegos, que voavam e rodopiavam numa fúria ultrassónica. A horda alada decuplicara de tamanho no pouco tempo em que estivera dentro do hotel. Um morcego perdido bateu no rosto de Seichan e esvoaçou para longe, deixando atrás de si um vergão dorido. Ignorou-o e acelerou ainda mais, os pneus de sulcos profundos a avançar rapidamente através do terreno. Não se atrevia a abrandar.

Um minuto antes, quando abandonara o hotel pelas traseiras, ouvira o rugido do motor da carrinha dar lugar a um som constante.

Os outros já estavam de saída.

Com a equipa de Balchor com um bom avanço, recusava-se a perder mais terreno. Alcançou a ponta mais distante do hotel e acelerou em redor da esquina, erguendo-se sobre dois pneus, desafiando os limites da moto-quatro. Quando terminou a curva, teve de se desviar de uma confusão de equipamento e material de construção: pilhas de lajes de betão e barrotes de madeira, bem como uma retroescavadora estacionada.

Praguejou contra a pista de obstáculos, tentando não abrandar. Na sua pressa, o para-choques raspou numa estátua encaixotada. A moto-quatro derrapou para o lado. Em vez de travar, deixou-a deslizar um pouco mais, depois acelerou e lançou o veículo na direção de uma laje de granito que tinha escorregado de cima da sua pilha e caíra enviesada à sua frente. Lançou-se pela rampa improvisada, levantou voo e deslizou pelo ar vários metros. Aterrou com um estrondo e um solavanco na gravilha de um parque de estacionamento.

Tendo, finalmente, ultrapassado a área de construção, acelerou em direção à estrada que conduzia à floresta. Ao longe, entre as árvores, viu as luzes traseiras da carrinha. O veículo em fuga estava ainda mais distante do que temera.

Atrás dela, ecoavam disparos ocasionais, prova de que Kowalski ainda estava vivo e a fazer os possíveis por controlar a multidão. Deixou-o entregue ao seu trabalho e acelerou pela estrada e pela floresta. Manteve as luzes apagadas e seguiu o clarão através das árvores.

A estrada seguia as curvas e contracurvas da costa da ilha, permitindo-lhe manter-se escondida, mas o caminho acabou por se endireitar. Temendo que a pudessem ver, conduziu a moto-quatro para a orla das árvores, esforçando-se por permanecer nas sombras mais escuras, sob a sua copa, escondendo-se da lua e das estrelas.

A carrinha guinou subitamente para a esquerda, deixando a estrada que seguia ao longo da linha da costa. Seichan acelerou para reduzir a distância. Quando chegou à curva, apercebeu-se de que esta dava acesso a um longo cais no fim do qual esperava um hidroavião: um Cessna Caravan. Uma grande escotilha de carga abria-se de um dos lados, o seu interior iluminado brilhava na escuridão.

Quarenta e cinco metros mais à frente, a carrinha estava estacionada junto ao cais. Os homens atarefavam-se à sua volta.

Podia ter abandonado a moto-quatro e seguido a pé, usando a cobertura da floresta, mas ouvira Balchor gritar.

— Metam o Colossus no avião! Depois as cobaias!

Seichan lembrou-se da coroa de papel a cair da cabeça tombada de Amélia e guinou abruptamente para a estrada lateral, avançando diretamente para a carrinha. Ergueu a pistola enorme — a Desert Eagle roubada — e disparou por cima do tejadilho da carrinha. Acertou no ombro de um dos homens, fazendo-o girar sob o impacto da bala de calibre tão alto. O coice quase lhe arrancava a arma das mãos, mas apertou ainda mais os dedos e manteve a mira alta, longe da traseira e da cabina da carrinha, temendo que pudesse acertar numa das «cobaias».

De imediato se fizeram ouvir os tiros de resposta, mas estes eram erráticos, dado que a equipa fora apanhada de surpresa. Baixou-se, apoiando o pulso no curto para-brisas da moto-quatro, e disparou.

Quatro homens conseguiram retirar o aparelho da caixa de carga da carrinha e correram com ele pela doca, arrastando os cabos atrás de si. Balchor corria ao seu lado, guardado por Dmitry. O corpo da carrinha impedia-a de disparar contra eles. Ainda assim, aniquilou mais um russo junto ao para-choques traseiro. O resto da equipa abandonou o veículo e seguiu os outros — especialmente porque o motor do hidroavião se fazia ouvir agora mais alto, preparando-se para a descolagem. As hélices giravam mais depressa.

Quando Seichan chegou junto à carrinha a todo o gás, travou e fez a moto-quatro deslizar, embatendo de lado. Saltou do assento e verificou rapidamente a parte de trás da cabina e as traseiras da carrinha. Os corpos sedados tinham sido lançados para o interior de ambos os compartimentos como se fossem lenha. Entre eles viu os membros magros de uma criança.

Amélia...

Seichan avançou para a frente da carrinha, mantendo a arma pesada direita sobre o capô do veículo. Balchor estava já a bordo do avião, gesticulando para que erguessem o Colossus para o porão de carga com ele. Dmitry ajudou, parecendo capaz de carregar sozinho o pesado aparelho.

Ela não disparou, temendo atrair o fogo de resposta para a carrinha onde uma bala perdida podia ferir ou matar as pessoas inconscientes no seu interior. Além disso, se não se enganara nas contas, já só lhe restava uma bala. Ainda assim, tamanha contenção fazia-a rilhar os dentes de frustração.

Ainda antes de o último homem ter subido a bordo, o avião acelerou pelas águas. O último passageiro largou as cordas que tinham prendido o hidroavião e mergulhou para o porão. Seichan observou enquanto o avião ganhava velocidade e se erguia das águas, saltando sobre as ondas e depois subindo. Calculou que o laboratório de investigação de Balchor deveria estar escondido numa das muitas ilhas que pontilhavam o Atlântico Norte. Encarregaria Painter de descobrir onde o doutor poderia estar escondido.

Impotente e furiosa, viu o Cessna continuar a subir, mas depois as suas asas inclinaram-se. O avião fez uma curva larga e baixa, dando a volta. Seichan olhou de relance por cima do ombro, para o hotel. O eco distante de uma detonação chegou até ela. Fitou de novo o avião enquanto este virava na sua direção. O porão de carga continuava aberto. As luzes no interior revelaram os homens reunidos à volta do Colossus, a posicionar o prato de modo a ficar virado para a porta.

Aparentemente os sacanas não iam partir sem se despedirem primeiro. Decerto pretendiam fazer um último disparo antes de fugirem. Lembrou-se da descrição que Balchor fizera do efeito de uma segunda onda que atingisse as mesmas vítimas.

Morte cerebral total.

Recuou vários passos, vendo o Cessna a completar a sua curva lenta, a escotilha aberta a dar a volta. Os homens recuaram para o interior do porão. Viu uma figura corpulenta erguer-se atrás do Colossus.

Dmitry.

O russo soltou o prato e fê-lo girar. Apontava na direção da floresta à sua frente, mas esse não era o seu verdadeiro alvo. Quando o avião virasse, a onda lançada pelo aparelho varrê-la-ia e à carrinha.

Embora não houvesse qualquer som, qualquer sinal visível, Seichan sentiu o Colossus ativar-se.

Foi como uma explosão de sol na floresta, um calor que lhe queimava o rosto e os braços — e soube que aquilo era apenas o refluxo da arma. A sua pele foi ficando cada vez mais quente, enquanto o avião continuava a curvar, virando toda a força do feixe na sua direção.

Ainda assim, manteve a posição, determinada a proteger a carrinha e os seus ocupantes.

Fincou as pernas, segurando a Desert Eagle com as duas mãos. Ergueu os braços e apontou para o porão de carga, para Dmitry. A pele ardia-lhe, os olhos choravam, mas manteve-se firme. A dor crescente despertava em si o desejo de gritar, e foi o que fez quando disparou.

O coice da grande arma fê-la levantar os braços.

Não acertou em Dmitry.

Por outro lado, esse não era o seu alvo.

A bala de grande calibre bateu na área superior do prato; o impacto fê-lo erguer-se, apontando para o teto do porão de carga. Gritos agudos de agonia sobrepuseram-se ao rugido baixo do motor enquanto a onda escaldante varria os passageiros.

O avião inclinou-se descontroladamente. Depois o nariz subiu, lançando o avião mais para cima e para mais longe, como se o piloto estivesse a tentar fugir ao fogo da parte de trás da cabina. Em seguida voltou a mergulhar, as asas estremecendo para trás e para a frente. Porém, enquanto fugia em direção ao hotel, começou a endireitar-se.

Seichan franziu o sobrolho.

Alguém devia ter conseguido desligar o Colossus.

O avião endireitou-se e deslizou sobre o hotel, virando para os penhascos vulcânicos, mas será que ia continuar ou iriam os sacanas dar a volta e tentar de novo atingir o hotel com o feixe do Colossus?

Seichan susteve a respiração.

No final, a decisão foi-lhes retirada.

A grande nuvem escura que rodopiava sobre o hotel elevou-se, traçando uma espiral na direção da origem da explosão ultrassónica. O avião depressa se perdeu numa massa de morcegos furiosos.

Uma vez mais o avião oscilou descontroladamente, como se as suas asas estivessem a tentar enxotar os morcegos. O motor engasgou-se, provavelmente tendo inalado parte da horda. Cego e atacado, o Cessna inclinou-se e mergulhou velozmente sobre o cimo das árvores, ainda fora de controlo, inclinando-se loucamente — depois chocou contra os penhascos vulcânicos próximos e explodiu.

Uma bola de fogo iluminou a pedra negra, depois rolou penhasco acima, arrastando o fumo atrás de si.

Seichan soltou a respiração que estivera a suster.

Mas outro tiro de caçadeira ao longe recordou-lhe que ainda havia trabalho a fazer.

Dirigiu-se ao lugar do condutor da carrinha, descobrindo que as chaves tinham ficado na ignição depois da apressada partida da equipa, e subiu para o interior. Rapidamente, inverteu a marcha da carrinha e regressou ao hotel.

Quando chegou à praia, estacionou o veículo na base da ampla escadaria que conduzia ao terraço. Os faróis da carrinha revelaram figuras atordoadas sentadas nos degraus, algumas a chorar, outras com a cabeça entre as mãos.

Desceu, cautelosa de início, mas depressa se tornou claro que aqueles homens e mulheres tinham, como Fitzgerald, recuperado da sua loucura. O responsável provável da sua «cura» chamou-a do deque superior.

— São os últimos? — gritou Kowalski.

— Acho que sim! — respondeu Fitzgerald. — Pelo menos cá fora!

Seichan subiu apressadamente os degraus. Chegou ao topo a tempo de ver Kowalski agarrar uma mulher de meia-idade e empurrá-la para a piscina. Outras cinco figuras chapinhavam e gritavam na água, os dentes a ranger, as mãos a arranhar.

Kowalski apercebeu-se da sua chegada.

— Olha para isto.

Ele recuou, apontou a Piezer para a piscina e disparou.

Um relâmpago azul irrompeu para a água. A eletricidade dançou, cintilante, em linhas que se espalharam pela superfície. A meia dúzia de corpos — encurralados na piscina e apanhados na onda de choque — contorceram-se e estremeceram. Mas, à medida que o efeito se dissipava, as figuras afundavam-se e debatiam-se na água, desnorteadas, a custo conscientes, mas claramente a recuperar os sentidos.

Fitzgerald chamava e acenava na sua direção, pronto para as ajudar. Outros convivas já recuperados corriam em seu auxílio.

Seichan olhou de relance para Kowalski com a arma apoiada no ombro. Um charuto aceso estava preso entre os molares.

Quando é que ele teve tempo para...

Não interessava.

Seichan abanou a cabeça, tendo, pelo menos, de respeitar o engenho do homem por ter encontrado uma forma útil de usar as munições.

Kowalski dirigiu-se a ela e suspirou pesadamente.

— Então agora já posso ir de férias?

18 de abril, 07h09

Na manhã seguinte, a ordem tinha sido praticamente reposta.

Enquanto o sol se erguia sobre um novo dia, Seichan manteve-se no limite da floresta. Uma motorizada emprestada estava estacionada atrás dela. Olhou para toda a extensão do hotel, a curva de areia, a piscina brilhante.

Junto à baía, um navio da marinha portuguesa oscilava nas águas. Um par de ambulâncias aguardava na praia. Durante a noite, as equipas médicas tinham transformado um dos pisos do hotel num hospital improvisado, assistindo os feridos, tudo fazendo para mitigar, dentro do possível, os danos físicos e psicológicos. Os feridos graves já tinham sido evacuados de helicóptero para Ponta Delgada.

Seichan também tinha falado com Painter Crowe na noite anterior. Este estava já a trabalhar com os serviços de informação portugueses para localizar o laboratório de Balchor. O diretor também tinha conseguido esconder o seu envolvimento naqueles eventos, bem como o de Kowalski e Fitzgerald.

Os dois homens seguiam já para uma pequena cidade no lado oposto da ilha, onde um novo avião aguardava para os evacuar. Dali, Seichan seguiria para Marrocos, enquanto Kowalski partia para a Alemanha a fim de gozar as férias.

Estamos de novo a caminho... como se nada tivesse acontecido.

Mas antes de subir para a motorizada e partir atrás de Kowalski e Fitzgerald, ela quis aquele momento a sós para assimilar tudo o que tinha acontecido.

Tinha-se despenhado ali, vítima do acaso. E embora fosse mais fácil atribuir o sucedido ao azar, sabia que não era assim. Sabia exatamente por que razão se tinha despenhado naquela ilha. Não se tratava de estar no lugar errado à hora errada.

Pelo contrário, estava no lugar certo à hora certa.

Para que aquilo pudesse acontecer.

Das sombras, Seichan observou uma rapariguinha que corria pelo terraço iluminado pelo sol, com o vestido rosa-vivo a resplandecer atrás dela. Corria para o pai e abraçava-lhe as pernas. Ele pousou uma coroa de papel nova na cabeça dela, ergueu-a nos braços e beijou-lhe a testa.

Satisfeita, Seichan virou costas, mergulhando ainda mais fundo nas sombras. Compreendia agora que tinha de permanecer na escuridão, para que outros pudessem brincar ao sol.

Feliz aniversário, Amélia.


NOTA DO AUTOR

Verdade ou Ficção

No final dos meus romances, adoro explicar o que é verdadeiro e o que é ficção nas minhas histórias. Achei que, de forma concisa, poderia fazer o mesmo aqui.

Primeiro, pensei em partilhar a génese desta história. Culpo as estações do ano. Quando comecei a escrever, outubro estava ao virar da esquina, pelo que pensei que a melhor forma de celebrar esse mês fantasmagórico era escrever uma história da Sigma com um hotel assombrado, hordas de morcegos e zombies furiosos, e depois atirar Kowalski lá para o meio com um brinquedo novo. Por falar nisso...

Piezer. O novo brinquedo de Kowalski é baseado num conceito real que está a ser explorado pela HSARP (Homeland Security Advanced Research Project). Trata-se de uma caçadeira de cano duplo capaz de disparar grandes feixes de cristais piezoelétricos que dão choques, tendo um alcance de quarenta e cinco metros, tudo sem aqueles irritantes fios das Tasers. Por isso, claro, a Força Sigma seria perfeita para testar no terreno um tal protótipo, e quem senão Kowalski seria o mais adequado para uma tal arma? Poderá ver mais sobre esta arma quando é posta à prova — de formas que só ocorreriam a Kowalski — em A Sétima Praga, o romance da Sigma que se segue.

Colossus. A outra arma apresentada nesta história tem por base uma patente da Boeing para uma arma defensiva HPM (high-powered microwave — micro-ondas de elevada potência). Como o aparelho apresentado nesta história, a Boeing está a explorar a possibilidade de cruzar estes dois raios e modular a frequência e a ressonância de modo a produzir um efeito único e poderoso. Já alguém pensou em cruzar uma HPM com uma PEM? Até ver, só eu, mas não consideraria impossível que alguém explorasse a possibilidade. Em especial dado que os investigadores da Fundação para a Ciência Natural da China publicaram um artigo sobre como certos comprimentos de onda e pulsos eletromagnéticos (um PEM) têm efeito sobre o cérebro dos ratos, desencadeando uma maior permeabilidade vascular cerebral. Poderá criar zombies? Estarei errado em imaginar que crie?

Açores. Nunca estive neste arquipélago português do Atlântico Norte, mas, com as suas cavernas verdejantes, nascentes quentes, lagos em crateras e praias espantosas, estou pronto para ir quando quiserem. Basta que não visitemos um certo hotel que está prestes a realizar a sua grande abertura.

O QUE SE SEGUE?

No final desta história, Seichan segue em missão para Marraquexe e Kowalski parte para visitar a namorada em Leipzig, na Alemanha, mas infelizmente nenhum deles poderá apreciar essa separação durante muito tempo. Em breve o par será convocado para juntar de novo forças a fim de derrotar um perigo antigo, arrancado às páginas da Bíblia em A Sétima Praga. Espero que gostem do caos que está prestes a chegar!


BATEDOR

JAMES ROLLINS

4 de março, 17h32

Budapeste, Hungria

Ele percebeu que ela estava a ser perseguida.

Sentado a uma mesa de um frio bistrô, envolto num casaco de lã, Tucker Wayne observava a mulher que se apressava pela gelada praça medieval conhecida como Szentháromság tér, a Praça da Trindade. A loura, de vinte e poucos anos, olhava de relance por cima do ombro demasiadas vezes. Usava óculos de sol, embora a maior parte da praça estivesse já mergulhada nas sombras do pôr do sol. O lenço de seda carmesim estava puxado sobre o queixo, e não por causa do frio; aquele tipo de material oferecia pouca proteção prática contra as rajadas geladas que varriam a praça. Além disso, ia a andar demasiado depressa quando comparada com as outras pessoas que deambulavam pelo Bairro do Castelo Real, no coração da cidade, um polo de atração turístico importante em Budapeste.

O exército treinara-o para manter essa prontidão, para estar atento ao inusitado entre o comum. Quando era capitão nos Rangers do Exército dos EUA, ele e o seu parceiro tinham servido como batedores da unidade em duas missões no Afeganistão: para operações de busca e salvamento, para extrações, para identificar e localizar alvos. Nas áreas mais periféricas e nas aldeias do Afeganistão, a diferença entre viver e morrer não estava tão dependente das espingardas, do Kevlar e das mais recentes análises de risco, quanto de ter a perceção dos ritmos do ambiente, do normal fluxo e refluxo da vida, e de se manter atento em relação a algo incomum.

Como agora.

A mulher não se enquadrava ali. Até as cores claras da sua roupa estavam deslocadas: o casaco cor de marfim pelos joelhos, os sapatos vermelhos que combinavam com o lenço e o chapéu. Entre a multidão de inverno, vestida de castanhos, pretos e cinzentos, destacava-se.

Pouco sensato quando se é perseguido.

Observando a sua progressão agitada pela praça, ele aconchegou nas mãos a caneca de café quente. Envergava um par de luvas às quais cortara as pontas dos dedos. Os outros clientes da pastelaria reuniam-se no interior do espaço exíguo, quente e apinhado àquela hora. Estavam encostados ao balcão ou empoleirados nas pequenas mesas junto às janelas. Ele fora o único banido para o pátio exterior, no limite da praça fria.

Ele e o seu parceiro.

O cão pastor compacto, conhecido como pastor-belga-malinois, estava deitado aos seus pés, com o focinho pousado sobre a biqueira da sua bota, pronto para qualquer ordem. Kane tinha servido ao seu lado nas duas missões no Afeganistão. Tinham trabalhado juntos, comido juntos, até dormido juntos.

Kane era tanto parte do seu corpo quanto um braço ou uma perna.

Quando Tucker deixou o serviço, levou Kane consigo.

Desde então, Tucker tinha andado pelo mundo, determinado a continuar perdido, aceitando trabalhos ocasionais para se sustentar e depois seguindo viagem. Gostava das coisas assim. Depois de tudo o que vira no Afeganistão, precisava de novos horizontes, novas paisagens, mas, acima de tudo, sentia a necessidade de continuar em movimento.

Sem quaisquer ligações familiares que o prendessem aos Estados Unidos, já não precisava de uma casa.

A casa era onde ele estivesse.

Baixou a mão e afagou o denso pelo preto e castanho do cão. Kane ergueu o focinho. Olhos castanho-escuros, salpicados de dourado, fitaram-no. Era uma das características dos cães domesticados: estudam-nos tanto quanto os estudamos a eles.

Tucker fitou-o também, com um pequeno aceno de cabeça, e depois desviou os olhos para a praça. Queria que o cão estivesse pronto, enquanto a mulher corria na direção deles, prestes a passar em frente à esplanada.

Tucker analisou o fluxo de humanidade que entrava e saía da praça, contornando a estátua que se erguia no centro. A fachada barroca estava coberta de figuras de mármore, que subiam para os céus em direção a uma brilhante estrela dourada. Representava aqueles que, na cidade, tinham escapado à Peste Negra no século XVIII.

À medida que a mulher se aproximava, Tucker manteve um olhar atento a todos os que a fitassem. Eram alguns. Tratava-se de uma mulher que fazia, naturalmente, virar cabeças: esguia, curvilínea, com cabelo louro que lhe caía até ao meio das costas.

Por fim, do outro lado da praça, identificou o seu caçador, ou melhor, caçadores.

Um homem gigantesco, flanqueado por duas figuras mais pequenas, entrou na praça por uma rua a norte. Envergavam gabardinas. O líder tinha cabelo preto, bem mais de um metro e oitenta, era fortemente musculado e, tendo em conta as bexigas que lhe marcavam o rosto, era um consumidor crónico de esteroides anabólicos.

Tucker apercebeu-se dos volumes sob as gabardinas, cujas formas sugeriam armas escondidas.

A mulher não reparou no grupo, os seus olhos passaram por eles sem se deterem.

Portanto, sabia que alguém a perseguia, mas não tinha a perícia ou o conhecimento que lhe permitisse identificá-los. E, no entanto, tivera o instinto certeiro de permanecer junto de outras pessoas.

Passou velozmente pelo local onde ele se encontrava, deixando atrás de si um ténue rasto de jasmim.

Kane levantou o focinho para o perfume.

Ela avançou na direção das portas da gigantesca Igreja de Matias, com a sua imponente flecha gótica de pedra trabalhada e relevos do século XIV que representavam a morte da Virgem Maria. As portas ainda estavam abertas, aguardando a saída dos últimos turistas. Ela dirigiu-se para o interior, lançando um último olhar à sua volta antes de atravessar a porta.

Tucker terminou o seu café, deixou uma gorjeta e levantou-se. Pegou na trela de Kane e abandonou a esplanada, precisamente quando o trio de caçadores passava por ele. Enquanto os seguia, envolto no casaco e no sobretudo, ouviu o mais alto dos três dar ordens rápidas em húngaro.

Bandidos locais.

Tucker seguiu o grupo enquanto este avançava para a igreja. Um dos três olhou de relance para ele, mas Tucker sabia o que este veria.

Um homem de vinte e muitos anos, mais alto do que a média, cabelo louro-acinzentado, um pouco despenteado, a passear um cão de camisola castanha. Tucker escondia parte da sua musculosa altura com um curvar dos ombros e das costas. A sua roupa era banal: calças de ganga puídas, um casaco verde-azeitona coçado, um gorro de lã enfiado na cabeça. Sabia que não devia evitar o contacto visual, que isso levantava tantas suspeitas quanto olhar fixamente. Por isso limitou-se a acenar educadamente e a mostrar desinteresse.

Enquanto o outro se virava, Tucker tocou no nariz e apontou com o dedo para o homem grande como uma montanha no meio.

Apanha o cheiro daquele.

Kane tinha um vocabulário de mil palavras, compreendia cem gestos, o que fazia do cão uma extensão de si mesmo. O pastor-belga avançou, cheirando o rasto do homem, perto dos seus calcanhares, o focinho próximo da bainha da gabardina.

Tucker fingiu ignorar os esforços do seu parceiro, fitando o outro lado da praça.

Quando Kane apanhou aquilo de que precisava, afastou-se e ficou à espera da ordem seguinte. As orelhas permaneciam rígidas, a cauda erguida, expressando o seu estado de vigilância.

Ao alcançar a igreja, foram dadas mais ordens bruscamente, em húngaro, e o grupo dividiu-se de modo a cobrir as saídas.

Tucker aproximou-se de um banco, agachou-se ao lado de Kane e prendeu folgadamente a ponta da trela em volta da perna de ferro, mas soltou a outra ponta. Limitou-se a passá-la por trás da coleira de Kane, dando a impressão de que o cão estava preso.

Em seguida, deslizou os dedos por baixo da camisola castanha, chegando ao colete tático K9 Storm. Era à prova de água e reforçado com Kevlar. Os seus dedos tocaram na câmara incorporada e puxaram a sua lente de fibra ótica, mais pequena que uma borracha de lápis, escondendo-a entre as orelhas erguidas do cão.

— Fica — ordenou.

Kane sentou-se nas sombras profundas da igreja, mais um cão à espera do regresso do seu dono.

Coçando uma última vez a orelha do seu parceiro, assegurando-se de que o auricular Bluetooth estava bem colocado, Tucker inclinou-se para a frente, aproximando o seu rosto do focinho do cão. Era um ritual deles.

— Quem é um menino lindo?

Kane aproximou o nariz frio e tocou no de Tucker.

Isso mesmo. És tu.

Uma cauda bateu despedindo-se enquanto Tucker se endireitava. Virando-se, observou o homem enorme que avançava em direção à entrada principal da igreja com a confiança plena de um caçador cuja presa fora encurralada.

Seguiu-o, retirando do bolso o telemóvel modificado, cortesia do exército, tal como o colete tático, ambos roubados quando deixara o serviço. Aliás, também Kane o fora. Mas depois do que acontecera naquela aldeia às portas de Cabul...

Estremeceu perante a dolorosa memória.

Nunca mais...

Toda a sua unidade o ajudara a fugir com o cão.

Mas isso era outra história.

Ligou o telefone, premiu alguns ícones no ecrã. Depois surgiu uma transmissão em vídeo: as suas costas a afastarem-se, a imagem estava a ser transmitida pela câmara de Kane.

Estava tudo em ordem.

Tucker guardou o telefone no bolso e seguiu o alto caçador através das portas da igreja. No interior, gigantescos pilares em espiral sustentavam um espaço cavernoso. A toda a sua volta, as paredes de estuque exibiam um frenesim de brilhantes frescos dourados que retratavam as cenas da morte de santos húngaros e a que a luz trémula das velas dava vida através da nave. Mais à frente, uma série de capelas abria-se para os lados, contendo alguns sarcófagos e um museu de entalhes medievais. Todo o lugar cheirava vagamente a incenso e bolor.

Tucker identificou facilmente o alvo, que se destacava, mais uma vez, no seu casaco cor de marfim. Estava sentada num banco, a meio do comprimento da nave, a cabeça baixa.

O homem gigantesco tomou posição perto da entrada, encostando-se à parede, aguardando que ela saísse. Claramente, o grupo temia agarrá-la à frente de testemunhas e tentava ganhar tempo antes de avançar. Com o sol quase posto e a igreja a esvaziar-se, não seria uma longa espera.

A menos que Tucker fizesse alguma coisa.

Deslizou para lá do homem encorpado, reparando no auricular enfiado no seu ouvido esquerdo, e depois dirigiu-se ao centro da igreja. Avançou até ao banco onde a mulher se sentara e deslizou para o seu lado. Ela afastou-se alguns centímetros sobre o banco, quase sem olhar na sua direção. Retirara o chapéu e os óculos de sol, em sinal de respeito pela igreja. Ele ergueu a mão e fez o mesmo com o seu gorro.

O cabelo dela brilhava como ouro à luz das velas. Os olhos, quando os virou para ele de relance, eram de um azul aguado. Nas mãos segurava um telemóvel, como se não soubesse ao certo a quem telefonar... ou talvez estivesse à espera de uma chamada.

— Fala inglês? — perguntou ele baixinho.

Até aquele sussurro a fez estremecer, mas, após uma longa pausa, ela respondeu secamente.

— Sim, mas prefiro não ser incomodada.

Proferiu aquelas palavras como se já as tivesse pronunciado inúmeras vezes antes. O seu sotaque era claramente britânico, tal como a reserva que demonstrou, deslizando bem para longe dele.

Ele ajoelhou-se no banco, apresentando assim uma postura menos intimidante, baixando a cabeça para as mãos ao falar.

— Queria avisá-la de que estão três homens a segui-la.

Ela ficou tensa, parecendo pronta para fugir.

— Acho que devia rezar — disse ele, acenando para que se ajoelhasse.

— Sou judia.

— E eu só estou a tentar ajudá-la. Se quiser.

Uma vez mais a pausa calculista, mas pôs-se suavemente de joelhos.

Ele sussurrou sem olhar para ela.

— Estão de guarda a todas as portas. — Quando ela tentou olhar para trás de relance, ele aplicou alguma tensão na voz. — Não faça isso.

Ela inclinou a testa, pousando-a nas mãos.

— Quem é você?

— Ninguém. Vi os homens armados a segui-la. Vi como parecia assustada...

— Não preciso da sua ajuda.

Ele suspirou.

— Muito bem. Eu ofereci.

Tucker começou a levantar-se, sabendo que tinha feito o que a sua consciência exigia. Não podia ajudar aqueles que eram demasiado orgulhosos ou tolos para o aceitar.

Ela estendeu o braço e puxou-lhe a manga do casaco.

— Espere. — Quando ele voltou a ajoelhar-se perto dela, a mulher perguntou: — Como é que sei que posso confiar em si?

— Não pode ter a certeza. — Ele encolheu os ombros. — Ou confia ou não confia.

Ela fitou-o e ele cruzou o seu olhar com o dela.

— Lembro-me de si. Estava sentado na esplanada com um cão.

— Nisso reparou. Mas não nos bandidos armados atrás de si.

Ela olhou para o lado.

— Gosto de cães. Ela é bonita.

Ele sorriu para as palmas das mãos erguidas, começando a gostar da mulher.

— Ele chama-se Kane.

— Desculpe. Então ele é bonito. — Ela aproximou-se um pouco mais, parecendo mais calma. — O que pode o senhor fazer?

— Posso tirá-la daqui. Levá-la para longe deles. O que fará depois disso é consigo. — Aquela era uma das suas especialidades.

Extração.

A mulher olhou de relance para ele, engolindo em seco.

— Então, por favor, ajude-me.

Ele estendeu a mão para ela.

— Vamos sair daqui.

— Como? — perguntou ela, surpreendida. — Então e...?

A mão dele fechou-se na dela, silenciando-a. A palma da mão dela era como uma brasa quente na dele.

— Mantenha-se perto de mim.

Ele puxou-a para fora do banco, largando-lhe a mão, mas fazendo-lhe sinal para que se mantivesse atrás dele. Na outra mão tinha uma KA-BAR preta, uma faca de combate, escondida ao longo da perna. Ao ajoelhar-se, fizera-a deslizar da bainha em redor do tornozelo. Esperava não ter de a usar.

Levou-a para longe da entrada principal, na direção de uma saída mais pequena do lado sul da igreja. Olhou de relance para o homem alto. O caçador começava já a afastar-se, tocando na orelha, claramente alertando o homem que guardava aquela porta. Depois, a sua forma curvada desapareceu de vista quando ele se virou e percorreu a igreja para se juntar ao seu camarada. O mais provável era que estivessem a planear emboscá-la quando ela saísse.

Quando o homem desapareceu, Tucker virou-se abruptamente, agarrou a mulher pela cintura e fê-la virar-se.

— O que está...?

— Mudança de planos — disse ele. — Vamos sair pelo outro lado.

Sem a largar, apressou-a em direção à porta virada para norte, na esperança de que a mensagem de rádio do tipo mais alto tivesse atraído todos os olhares para sul, antevendo que ela saísse por aí.

Chegados à porta, parou. Manteve-a atrás de si e consultou o telemóvel. A transmissão de vídeo iluminou o pequeno ecrã. Embora o sol já se tivesse posto, a imagem transmitida pela câmara de visão noturna era clara, apesar de granulosa. Mostrava a praça e a entrada principal da igreja enquanto Kane fitava a porta por onde o seu parceiro desaparecera, aguardando pacientemente.

Lindo menino.

Satisfeito, avançou para a saída, na esperança de que o guarda aí posicionado tivesse sido enganado e se tivesse retirado para o outro lado da igreja, juntamente com o líder.

E aparentemente o ardil funcionara, infelizmente não para seu benefício.

A porta abriu-se quando Tucker estendeu a mão para ela. O terceiro caçador entrou de rompante, claramente determinado a fazer um atalho através da igreja em vez de a contornar, planeando aproximar-se pela retaguarda da presa em fuga.

Tanto Tucker quanto o homem foram apanhados desprevenidos.

Tucker reagiu primeiro, enquanto os olhos do caçador viam a mulher de casaco de marfim e se esforçavam por compreender como poderia ela estar ali.

Aproveitando a confusão momentânea, Tucker mergulhou e empurrou o homem com o ombro, fazendo-o recuar pela porta e para uma viela escura e estreita. Lançou o homem contra a parede de tijolo do lado oposto, desferindo uma cotovelada no seu plexo solar com força suficiente para que ficasse sem ar.

O homem arquejou e tombou sobre si mesmo, mas teve o discernimento suficiente para levar a mão a uma arma escondida. Tucker girou sobre si mesmo, movendo o braço com toda a força do ombro. Acertou com o cabo do punhal KA-BAR na têmpora do homem e fê-lo cair de joelhos, tendo tombado em seguida de rosto no chão.

Tucker revistou-o apressadamente. A mulher saiu, tendo o discernimento de fechar a porta para a igreja, embora parecesse aterrorizada.

De momento, com a igreja praticamente deserta, ninguém pareceu ver o ataque. Confiscou uma pistola semiautomática FÉG PA-63, normalmente usada pela polícia e pelos militares húngaros. Também encontrou uma carteira de identificação com um crachá e abriu-a, tendo reconhecido o rosto do homem, mas não o crachá, embora parecesse oficial. No topo lia-se Nemzetbiztonsági Szakzolgálat, e no fundo três letras: NSZ.

A mulher arquejou ao vê-lo, reconhecendo-o.

Isto não pode ser bom.

Ele fitou-a.

— Este homem faz parte dos serviços de segurança nacionais húngaros — disse ela.

Tucker inspirou fundo e levantou-se. Acabara de pôr a dormir um membro do FBI húngaro. Em que se teria metido? Naquele momento, as únicas respostas estavam com aquela mulher.

Sabia que não queria ser encontrado agachado sobre a forma inconsciente daquele homem, em especial pelos colegas dele. As pessoas ainda tendiam a desaparecer naquele antigo país do bloco soviético, onde a corrupção se mantinha galopante.

E, naquele momento, estaria ele do lado certo ou errado?

Quando se levantou, estudou os olhos assustados da mulher. O seu medo parecia genuíno, baseado na confusão e no pânico. Lembrava-se de como ela atravessara a praça, oferecendo-se como um alvo aberto. Quem quer que fosse, não era um génio do crime.

Tinha de confiar nos seus instintos. Uma das razões por que o tinham colocado com Kane fora o seu elevado resultado nos testes de empatia. Os tratadores de cães de guerra militares tinham um ditado — Correm pela trela — descrevendo como as emoções de ambos se tornavam partilhadas com o passar do tempo, unindo-os com a firmeza de uma qualquer trela. A mesma perícia permitia-lhe ler as pessoas, reconhecer nuances de linguagem corporal e expressões em que outros poderiam não reparar.

Fitou a mulher e concluiu que esta estava realmente em sarilhos.

O que quer que estivesse a acontecer, não era culpa dela.

Determinado a ajudá-la, pegou-lhe na mão e avançou rapidamente para uma viela nas traseiras. O seu hotel estava próximo, o Hilton Budapeste ficava mesmo ao virar da esquina. Quando a conseguisse esconder num local seguro, poderia tentar perceber o que se estava de facto a passar e fazer algo para pôr fim à situação.

Mas primeiro precisava de mais informações. Precisava de olhos e ouvidos no terreno... e, naquele caso, também de um nariz.

Pegou no telefone, premiu um botão e transmitiu uma ordem.

Kane ouve a palavra no ouvido, pronunciada com autoridade.

— BUSCA.

Levanta-se e puxa a trela para se soltar, ignorando o som do fecho a bater no chão atrás de si. Desliza para trás do banco, cujas sombras o manterão escondido. Ergue o nariz para a noite, os sentidos atentos, enchendo o mundo à sua volta com informação para além da mera visão, suficientemente apurada para ver no escuro.

O odor forte do lixo ergue-se de um caixote...

A acidez da urina velha desliza da parede de pedra...

O fumo dos escapes dos carros tenta sobrepor-se a todos os cheiros...

Mas ele mantém-se concentrado, captando o único cheiro que recebeu ordens para seguir. É um rasto ardente pelo meio de tudo o resto: o cheiro do cabedal e do suor, do sal sobre a pele, a humidade almiscarada mantida presa por baixo do casaco comprido, enquanto o homem avançava à sua frente.

Segue agora o rasto através do ar, onde este paira como um farol aceso entre o miasma dos outros cheiros. Segue-o do banco à esquina de pedra, permanecendo nas sombras. Observa a presa que se aproxima a correr, dando a volta até ficar visível.

Ele afunda-se.

A presa e um outro homem passam por ele a correr, cegos à sua presença. Ele espera, espera, espera... só então os segue.

De barriga colada ao chão, avança de sombra em sombra até ver a presa curvada sobre um outro homem. Pegam nele, olhando em volta, depois afastam-se.

Ele segue-os, um fantasma no seu encalço.

Tucker apressou a mulher pela entrada principal do Hilton Budapeste. A histórica estrutura estava situada a poucos metros da Igreja de Matias. Não tiveram qualquer problema em alcançá-la sem serem vistos.

Ele conduziu-a rapidamente para o lobby, de novo espantado com a mistura de modernidade e ancestralidade que era típica daquela cidade. O hotel incorporara secções de um mosteiro dominicano do século XIII, integrando uma torre de igreja pontiaguda, uma abadia restaurada e as caves góticas. Todo o espaço era metade hotel moderno e metade museu. Até a entrada por onde tinham passado correspondia à fachada original de um colégio jesuíta, que remontava a 1688.

Fora-lhe permitido reservar um quarto ali com Kane graças ao passaporte internacional especial que declarava que o cão era um animal de trabalho. Kane até tinha o seu próprio grau militar: major, um posto acima de Tucker. Todos os cães de guerra militares tinham postos superiores aos dos seus tratadores. Isso permitia que qualquer agressão sobre os animais fosse uma ofensa passível de julgamento em tribunal militar por agressão a um oficial superior.

E Kane merecia plenamente o seu posto e tratamento especial. Salvara centenas de vidas durante as suas missões. Ambos o tinham feito.

Mas agora tinham outro dever: proteger aquela mulher e descobrir no que se teria metido.

Tucker conduziu-a através do lobby e até ao seu quarto: um quarto single com cama de casal. O quarto era pequeno, mas a vista abria-se sobre o rio Danúbio que dividia a cidade em duas metades: Buda daquele lado e Peste do outro.

Puxou a cadeira junto à secretária e convidou-a a sentar-se, enquanto ele se empoleirava na beira da cama. Olhou de relance para o vídeo e viu que Kane continuava a seguir os dois homens que agora carregavam consigo o terceiro companheiro, atordoado e amparado entre ambos. O grupo percorreu uma série de ruas estreitas e serpenteantes.

Tucker manteve o telemóvel em cima do joelho enquanto a fitava.

— Bom, talvez agora me possa dizer se estou em grandes apuros, menina...?

Ela tentou sorrir, mas não conseguiu.

— Barta. Aliza Barta. — As lágrimas acumularam-se de súbito, enquanto todo o alcance dos acontecimentos se abatia por fim sobre ela. Afastou o olhar. — Não sei o que se está a passar. Vim de Londres para me encontrar com o meu pai... ou melhor para o procurar. Ele é professor de Estudos Judaicos na Universidade de Budapeste.

Aliza fitou-o de relance, tentando perceber se ele conhecia a universidade.

Quando ele a mirou com uma expressão vazia, ela prosseguiu, com o orgulho que sentia pela família a transparecer por entre as lágrimas.

— É uma das universidades de estudos rabínicos mais distintas, remontando a meados do século dezanove. É a instituição mais antiga do mundo para treino e formação de rabis.

— O seu pai é rabi?

— Não. É historiador, dedica-se em especial à investigação das atrocidades nazis, com ênfase particular na pilhagem dos tesouros e da riqueza judaicos.

— Já ouvi falar em tentativas de localizar e devolver o que foi roubado.

Ela assentiu com a cabeça.

— Uma tarefa que se prolongará por décadas. Para que compreenda um pouco a sua dimensão, o ministério britânico para o qual trabalho, em Londres, estima que os nazis tenham pilhado vinte e sete biliões às nações conquistadas. E a Hungria não foi exceção.

— O seu pai estava a investigar esses crimes em solo húngaro? — Tucker começava a perceber o problema: historiador desaparecido, tesouros nazis perdidos, e agora o envolvimento dos serviços de segurança nacional húngaros.

Alguém tinha encontrado algo.

— Durante a última década, esteve a investigar um roubo em particular. A pilhagem do Banco Nacional húngaro perto do final da guerra. Um oficial nazi, o Oberführer Erhard Bock, e a sua equipa fugiram com trinta e seis caixas de barras de ouro e pedras preciosas avaliadas em noventa e dois milhões de dólares. De acordo com os relatórios da época, o tesouro foi colocado a bordo de um cargueiro que deveria subir o rio Danúbio com destino a Viena, mas o grupo foi bombardeado por caças e o tesouro lançado borda fora, perto do ponto onde o rio Morava se une ao Danúbio.

— E esse tesouro nunca foi encontrado.

— O que pareceu estranho ao meu pai, dado que o roubo era tão famoso quanto o destino do tesouro. E a boca do rio Morava é bastante rasa nessa altura do ano, tornada ainda menos profunda pela seca que, na altura, já durava há dois anos. O meu pai achava que alguém tinha descoberto as pesadas caixas antes de a lama do rio as reclamar.

— Mas o seu pai tinha uma outra teoria, não tinha?

Os olhos brilhantes dela cruzaram-se com os dele.

— Ele acha que o tesouro nunca foi removido, mas escondido algures aqui, em Budapeste, mantido nas sombras até que Erhard Bock considerasse que era seguro regressar. Claro que isso nunca aconteceu e, no seu leito de morte, Bock deu a entender que o tesouro ainda aqui estava, alegando que tinha sido enterrado nas profundezas onde nem as garras dos judeus mortos o conseguiriam alcançar.

Tucker suspirou.

— É como dizem, uma vez nazi, sempre nazi.

— Então, há dois dias, o meu pai deixou-me uma mensagem críptica no atendedor de chamadas. Afirmava ter feito uma descoberta graças a uma pista que encontrara num arquivo recentemente restaurado na biblioteca da universidade, algo sobre a gruta de Praga.

— A gruta de Praga?

Aliza assentiu com a cabeça, depois respondeu.

— A biblioteca da universidade contém a maior coleção de literatura teológica e histórica judaica fora de Israel. Mas quando as tropas alemãs marcharam sobre a cidade, fecharam de imediato a escola rabínica e transformaram-na numa prisão. No entanto, imediatamente antes de isso ter acontecido, os manuscritos mais valiosos foram escondidos num cofre subterrâneo. Ainda assim um número significativo de documentos importantes, três mil livros, foram enviados para Praga, onde Adolf Eichmann planeava a construção de um Museu de uma Raça Extinta, na velha Judiaria.

— Que tipo simpático.

— Só nos anos oitenta é que esses livros foram encontrados numa gruta por baixo de Praga. Foram devolvidos à biblioteca depois da queda do comunismo em 1989.

— E o seu pai descobriu algo num desses livros recuperados.

Ela fitou-o com uma careta.

— Num texto de geologia, veja bem. Na mensagem pedia-me que solicitasse a ajuda do ministério britânico para obter dados de satélite. Algo a que o meu pai não teria fácil acesso na Hungria.

— Que tipo de dados?

— Informações de um radar capaz de penetrar o solo, recolhidas por um satélite geofísico norte-americano. Precisava de um scan em profundidade do distrito de Peste no lado oposto do Danúbio.

Ela olhou de relance para a janela em direção ao rio, enquanto a extensão da cidade brilhava contra a noite que caía.

— Depois de ter recebido a mensagem, tentei telefonar-lhe para obter mais pormenores, mas nunca obtive resposta. Passadas vinte e quatro horas, fiquei preocupada e pedi a uma amiga que fosse ver o seu apartamento. Ela contou-me que o apartamento tinha sido saqueado, destruído, e que o meu pai tinha desaparecido. Por isso apanhei o primeiro avião para cá. Passei o dia com a polícia húngara, mas esta praticamente não tinha feito qualquer progresso e prometeu manter-me informada. Quando regressei ao meu quarto no hotel, encontrei a porta forçada, toda a minha bagagem revistada, o quarto virado do avesso.

Ela olhou de relance para ele.

— Não sabia o que fazer, não sabia em quem confiar, por isso fugi e acabei na praça. Estava certa de que alguém me observava, seguindo-me, mas pensei que talvez não passasse de uma paranoia. O que poderia alguém querer comigo? De que estariam à procura?

— Chegou a obter a informação por satélite que o seu pai lhe pediu?

Os olhos dela abriram-se mais e os dedos saltaram para o bolso do casaco. Retirou deste uma minúscula flash drive USB.

— Era disto que estavam à procura?

— Disso, e possivelmente de si. Para a usar contra o seu pai.

— Mas porquê? Onde poderá estar o meu pai?

Tucker baixou os olhos para o telemóvel pousado no joelho. O grupo que Kane seguira tinha chegado junto de um sedan estacionado para lá da zona histórica. Viu Kane abrandar até parar e deslizar de novo para as sombras próximas. O líder era fácil de localizar, apoiado no capô, com um telemóvel encostado ao ouvido.

— Talvez estes tipos nos possam dizer — respondeu. — Fala húngaro?

— Falo. A minha família é de cá. Perdemos quase toda a família na sequência da deportação dos judeus húngaros para Auschwitz. Mas alguns sobreviveram.

Tocou na cama ao seu lado.

— Então ouça isto.

Aliza juntou-se-lhe e fitou o vídeo que passava no ecrã.

— Quem está a filmar isto? — perguntou ela, aproximando-se. — Esses não são os homens que me seguiam?

— Sim.

Ela fitou-o, semicerrando os olhos.

— Como...?

— Disse ao meu cão que os seguisse. Ele está apetrechado com um equipamento de vigilância completo.

A explicação dele não fez mais do que aumentar a sua expressão preocupada. Em vez de elaborar mais, Tucker limitou-se a aumentar o som para que pudessem ouvir o que era dito no vídeo. Os ruídos do trânsito e o sussurro do vento comiam quase todas as palavras do homem, mas algumas frases roucas foram claramente audíveis.

Aliza inclinou a cabeça para o lado, ouvindo.

Tucker apreciou a curva longa do pescoço dela, a maneira como os seus lábios se apertavam ligeiramente quando se concentrava.

— O que estão a dizer? — perguntou ele.

Ela falava de forma titubeante, escutando e falando ao mesmo tempo.

— Algo acerca de um cemitério. Um cemitério judaico perdido. — Abanou a cabeça quando o homem terminou a chamada e desapareceu no sedan. — Ele disse qualquer coisa no fim. Uma rua. Salgótarjáni.

Quando o carro partiu, Tucker ergueu o telefone e carregou num botão para comunicar com Kane.

— Volta para casa. Lindo menino, Kane.

Baixando o telefone, viu Kane dar meia-volta e iniciar o seu caminho de regresso ao hotel. Satisfeito, virou-se para Aliza.

— Calculo que o trio esteja a agir por conta própria. Uma qualquer fação tomou conhecimento das pesquisas do seu pai, do provável avanço na descoberta do tesouro perdido. E estão a tentar pilhar o que já foi pilhado.

— Então o que fazemos? Vamos à polícia?

— Não tenho a certeza de que seja o plano mais sensato, em especial se quiser recuperar o seu pai vivo.

Ela empalideceu perante aquelas palavras, mas ele não se arrependeu de lhas dizer. Aliza tinha de conhecer os riscos.

— Agora que lhe perderam o rasto, vão ficar assustados. — Percebera-o mesmo com a imagem granulosa. — A polícia já está a investigar o desaparecimento do seu pai. Dado que vieram atrás de si, pretendendo usá-la para o pressionar, podemos depreender que ainda está vivo. Mas com a polícia a fechar o cerco e a Aliza desaparecida, irão agir de forma mais irracional. Temo que, se não conseguirem o que pretendem esta noite, possam matar o seu pai para encobrir o seu rasto. Por outro lado, se ele lhes der o que querem, o resultado final poderá ser o mesmo.

— Então não há esperança.

— Há sempre esperança. Estão assustados e será mais provável cometerem um erro.

E serão mais perigosos, acrescentou para si, em silêncio.

— Então o que fazemos?

— Descobrimos para onde levaram o seu pai. Essa rua que referiu. Sabe onde está localizada?

— Não. Não conheço a cidade assim tão bem.

— Eu tenho um mapa.

Tucker foi buscá-lo e abriu-o em cima da cama.

Aliza inclinou-se ao lado dele, ombro com ombro, o seu perfume de jasmim distraindo-o.

— Aqui está — disse ela. — Rua Salgótarjáni.

Ele deslizou o dedo ao longo da rua sem saída.

— Fica perto do centro de Peste e parece seguir adjacente a... — Ele leu o nome e olhou para ela. — Cemitério de Kerepesi. Poderá ser o tal cemitério judaico perdido de que os ouviu falar?

— Não. Não vejo como. Kerepesi é o cemitério mais antigo da Hungria. — Ela deslizou o dedo para mais perto do Danúbio. — Este é o bairro judeu, onde poderá encontrar a maior parte dos nossos cemitérios. Fica a quase cinco quilómetros do cemitério de Kerepesi.

— Então terei de levar o Kane comigo e ver pessoalmente essa rua.

— É demasiado perigoso. — Ela tocou-lhe no braço. — Não lhe posso pedir que faça isso.

— Não me pediu para o fazer. Se não levar isto até ao fim, também virão atrás de mim. Aquele tipo que deixei inconsciente na viela sabe que não estava sozinha. Prefiro não passar o resto da minha vida a olhar por cima do ombro com medo de um agente da NSZ húngaro a agir por conta própria.

— Então vou consigo.

— Lamento. O Kane e eu trabalhamos sozinhos. Ficará mais segura aqui.

Ela impediu-lhe a passagem quando ele avançou para a porta.

— Não fala a língua. Não conhece o aspeto do meu pai. Não sabe nada sobre a cidade. É a vida do meu pai que corre perigo. Não vou ficar sentada, à espera de que tudo corra bem. Não funcionou muito bem para o meu povo no passado.

Aliza estava pronta para argumentar, mas Tucker encolheu os ombros.

— Convenceu-me com a parte do não fala a língua. Vamos.

Tucker partilhou o banco de trás com Aliza enquanto o táxi atravessava o arco magnífico da Ponte das Correntes que cruza o Danúbio. Ela estava sentada no meio, entre ele e Kane. O pastor-belga passou quase toda a viagem com o focinho na frincha da janela, a cauda a abanar alegremente.

Ao seu lado, Aliza acariciava o dorso de Kane, o que provavelmente contribuía em grande parte para o abanar da cauda. Pelo menos a presença do cão tinha ajudado a acalmá-la. A tensão no seu corpo, embora ainda estivesse presente, diminuíra ligeiramente. Ainda assim, segurava com força no colo uma camisola velha do pai, os nós dos dedos pálidos.

Ao saírem do hotel, tinham recolhido Kane, que os esperava diligentemente à porta do Hilton. Além disso, no caminho de saída de Buda pararam para se encontrarem com um amigo do pai de Aliza, que se mostrara disposto a esgueirar-se para o apartamento isolado com fitas da polícia e roubar uma peça de roupa suja do cesto dentro do roupeiro. Precisavam do cheiro do pai dela. Era um passo arriscado, mas aparentemente ninguém estava a vigiar o local. Ainda assim, Tucker manteve-se atento à possibilidade de estarem a ser seguidos quando saíram da ponte e se dirigiram a Peste, deixando Buda para trás.

Passados mais quinze minutos, alcançaram o coração daquela metade de Budapeste e deslizaram pela paisagem verdejante do cemitério de Kerepesi, com os seus mausoléus maciços, hectares de estátuas e colinas cobertas de lápides.

O táxi abrandou até parar na rua Salgótarjáni, nos limites do cemitério. Aliza trocou algumas palavras em húngaro com o condutor, que passara grande parte da viagem a olhar para Kane com desconfiança. Aliza pagou-lhe, dando-lhe algumas notas extra pelo incómodo.

Saíram todos e esperaram que o táxi arrancasse.

Quando este se afastou, Aliza virou-se para Tucker.

— Que fazemos agora?

— A partir daqui deixamos que o Kane nos guie, mas primeiro tenho de o preparar.

Tucker apontou para um banco escuro, bem escondido e mergulhado nas sombras de um velho carvalho. Toda a rua à sua frente estava invadida pela vegetação e parecia esquecida, densamente arborizada com faias e bétulas, carregada de arbustos de folha larga e emaranhados de roseiras selvagens. Algumas casas pontuavam o caminho, evidentes pelas luzes que brilhavam entre as árvores. A rua em si estava a desintegrar-se, esburacada, há muito esquecida.

Ele conduziu-a ao banco e sentaram-se.

Kane aproximou-se, trotando, depois de ter levantado a pata sobre um velho tronco, reclamando aquela rua para si. Tucker fez-lhe uma festa e abanou o colete tático oculto, para se assegurar de que não havia ruídos que pudessem denunciar o cão. A partir dali, precisavam de atuar tão silenciosamente quanto possível. Tocou com o polegar na câmara, ergueu a lente e verificou o auricular na orelha do cão.

— Tudo pronto, rapaz — disse Tucker, aproximando o nariz. — Pronto para a caçada?

Um abanar selvagem da cauda foi resposta suficiente. Os seus olhos escuros brilhavam nas sombras.

Aliza entregou a Tucker a camisola de lã. Kane já tinha cheirado bem o odor do seu pai, mas não havia mal nenhum em reforçá-lo.

— Alvo — disse Tucker, enquanto Kane cheirava a peça de roupa de lã. Quando o cão voltou a erguer o focinho, Tucker apontou para a rua escondida pelas árvores. — Busca e encontra.

O cão virou-se e partiu. Em segundos desapareceu nas sombras, como se nunca ali tivesse estado.

Tucker levantou-se, sacando do telemóvel. Tinha colocado o seu próprio auricular e prendido um microfone à garganta para poder comunicar em sistema de mãos-livres com o pastor-belga. Ouviu o cão a cheirar e a arquejar suavemente, os sons ampliados pelos microfones sensíveis do equipamento de vigilância.

Tentando uma última vez, Tucker virou-se para Aliza.

— Pode esperar aqui. Se encontrarmos alguma...

Ela pareceu tentada, mas levantou-se.

— Estou mesmo atrás de si.

Tucker acenou com a cabeça e verificou a pistola FÉG PA-63 que prendera na parte de trás do cinto.

— Vamos ver o que o Kane consegue encontrar.

Partiram pela rua. Tucker manteve-os nas sombras mais escuras da rua verdejante, evitando as poças de luz geradas pelas ocasionais casas de tijolo. Não que uma tal preocupação fosse muito necessária. Conseguia ouvir Kane e, com a ajuda da câmara, via através dos olhos do pastor-belga. O cão era tanto uma extensão dos seus sentidos quanto era um parceiro.

Enquanto avançavam, outros cães ladraram ao longe, talvez sentindo a presença de Kane. Enquanto os seres humanos têm, em média, seis milhões de recetores olfativos nos seus narizes, os cães de caça como Kane têm trezentos milhões, o que aumenta mil vezes o seu sentido de olfato, permitindo-lhes cheirar um alvo a uma distância de dois campos de futebol.

Tucker manteve um olho na estrada à sua frente e um ouvido atento a qualquer ruído atrás de si. Durante todo esse tempo, foi monitorizando o progresso de Kane enquanto este andava de um lado para o outro e seguia qualquer pista olfativa ao longo da rua. Tucker sentiu a sua perceção ampliar-se, estendendo-se para abarcar a do cão, esbatendo a linha entre ambos.

Ficou ainda mais consciente de Aliza: o cheiro da sua pele, o som dos seus saltos, o sussurro da sua respiração ofegante. Até sentia o calor do seu corpo atrás de si quando ela se aproximou.

No ecrã, Kane corria agachado pela rua uma vez mais, traçando um círculo na direção do que parecia ser um beco. Ali atrás não havia casas e a floresta parecia crescer mais densa e alta, as árvores ainda mais antigas. Uma arcada de tijolo tornou-se visível, meio enterrada no bosque, a sua fachada rachada e esburacada. Um portão de ferro preto, enferrujado, bloqueava a passagem através da arcada.

O que estará para lá dele?

Enquanto Kane se aproximava, Tucker manteve-se nos limites da rua, continuando escondido. Adjacente à arcada existia uma pequena casa do guarda, evidente pelas janelas escuras de um dos lados. Quando Kane alcançou o portão, cheirou ao longo do limite mais baixo, depois o seu corpo ficou rígido, focinho esticado, cauda para trás.

A postura do pastor-belga anunciava silenciosamente o sucesso do parceiro de Tucker.

Este virou-se e tocou no braço de Aliza.

— O Kane detetou o cheiro do seu pai mais à frente.

Os olhos dela abriram-se esperançosos. Ela avançou, prestes a estugar o passo, mas ele impediu-a apertando os dedos sobre o seu braço.

— Fique atrás de mim. — Tocou no microfone junto à garganta e murmurou a Kane. — Lindo menino. Retira. Esconde.

No ecrã, viu Kane alterar a posição, afastar-se e deslizar para as sombras à direita da arcada.

Tucker guiou Aliza em frente. Quando chegaram ao final da estrada, tudo parecia silencioso. Levou-a para debaixo de uma faia.

— Vou verificar o portão — disse ele. — Confirmar se estará fechado. Mantenha-se escondida até lhe fazer sinal de que pode avançar.

Aliza acenou com a cabeça, erguendo uma mão, nervosamente, até à garganta.

Depois, ele seguiu o exemplo de Kane e avançou ao longo da periferia em vez de correr em frente, mantendo-se nas sombras mais profundas. A lua brilhava sobre eles, lançando demasiada luz.

Tucker agachou-se e evitou posicionar-se diretamente em frente às janelas da casa que se fundia com a arcada de tijolo. Sem ser notado, chegou ao portão. Viu que não tinha qualquer corrente e arriscou estender um braço para empurrar uma das metades do portão, mas, antes que o pudesse fazer, um par de luzes — faróis — acenderam-se do outro lado, incindindo sobre ele e cegando-o.

Uma voz rouca, familiar, gritou no meio da escuridão; infelizmente, fê-lo em húngaro. Por isso Tucker decidiu ignorá-la. Virou-se para o lado, sacando da pistola FÉG PA-63, e disparou contra os faróis.

Os tiros em resposta fizeram ricochete no portão e arrancaram lascas aos tijolos.

Um dos faróis apagou-se num pop de vidro a estilhaçar-se.

Depois o carro acelerou em frente.

Raios.

Tucker afastou-se da arcada, mergulhando para o lado quando o sedan avançou na sua direção. Rolou sobre um ombro, afastando-se assim do caminho, os portões abrindo com estrondo atrás dele quando a enorme besta preta irrompeu na via. Os tiros fizeram-no fugir para a orla da floresta. Escondeu-se atrás do tronco de um velho carvalho e recuperou o fôlego.

Sussurrou uma ordem a Kane.

— Fica escondido.

Planeava fazer o mesmo.

Depois uma voz em húngaro gritou-lhe, audível sobre o roncar do motor do carro parado. Arriscou um olhar de relance para o caminho. A porta de trás do lugar do passageiro estava entreaberta. Viu Aliza ser arrastada para o clarão do farol. O sedan tê-la-ia apanhado de surpresa, a luz revelara o seu esconderijo e expusera-a.

O húngaro grosseiro de rosto marcado por bexigas segurava-a pela garganta, uma pistola encostada a uma das têmporas. O homem tentou falar em inglês.

— Vir agora ou mulher morrer!

Sem escolha, Tucker avançou para terreno aberto, com as mãos no ar, a pistola suspensa num dedo.

— Atirar arma! — ordenou o homem.

Tucker lançou a arma rente ao chão na direção do sedan. A arma deslizou para debaixo do carro.

— Vir agora!

Bom, aquilo ia ficar interessante... o que nunca era uma coisa boa.

Juntou-se a Aliza, que lhe lançou um olhar contrito. Ele abanou a cabeça. A culpa não era dela.

Depois de uma rápida revista ao seu corpo, ele e Aliza foram obrigados a avançar sob a ameaça da arma na direção da arcada e do portão, agora amolgado e dependurado nas dobradiças. O sedan fez marcha a ré atrás deles, obrigando-os a avançar.

Para lá da arcada de tijolo, a floresta era ainda mais densa, repleta de heras e fetos. Campas e mausoléus pareciam atirados para todos os lados como blocos de construção de brincar. Muitas das campas pareciam ter sido abertas, deixando no solo buracos escancarados. Outras lápides estavam caídas ou apoiavam-se ebriamente umas nas outras. Musgo e líquenes manchavam o mármore e a pedra branca. Montes de folhas e ramos partidos ocultavam grande parte das restantes.

Tucker olhou de relance para Aliza.

Viu o reconhecimento nos seus olhos.

A campa mais próxima exibia uma Estrela de David profundamente gravada.

Ali estava o cemitério judaico perdido.

Foram obrigados a desviar-se, avançando em direção à casa do guarda. Uma pequena divisão nos fundos brilhava tenuemente com a luz que se esgueirava por entre as cortinas pesadas.

Ao aproximarem-se, uma porta abriu-se e permitiu que o brilho os varresse.

Um estranho encontrava-se ali, um homem alto de constituição esquelética e óculos de grossos aros pretos. Os seus olhos passaram por Tucker e concentraram-se em Aliza.

Ela avançou, hesitante, depois conteve-se.

— Professor Csorba.

Portanto, conhecia o homem.

— Jó estét, menina Barta — cumprimentou ele. — Lamento que este reencontro seja em tão más circunstâncias.

Ele afastou-se da entrada.

— Domonkos, traz os nossos dois convidados para dentro. — Os olhos do professor fixaram-se finalmente no rosto de Tucker. — Nunca imaginei que a independente menina Barta fosse contratar um guarda-costas. Um descuido da minha parte, mas não faz mal.

O gigante de rosto marcado pelas bexigas chamado Domonkos empurrou Tucker na direção dos degraus e através da porta.

No interior, a sala era pitoresca, com um chão de tábuas em bruto coberto de tapetes espessos, mas puídos, pesadas traves de madeira a segurar um teto baixo e uma pequena fogueira onde as brasas brilhavam.

Tucker foi empurrado contra uma parede, vigiado por Domonkos. Um dos outros dois brutamontes ficou de guarda junto a uma janela próxima. O último desapareceu por um corredor, provavelmente para vigiar o exterior, pronto a responder caso a breve troca de tiros tivesse despertado alguma atenção indesejada.

Ao encostar-se à parede, Tucker sentiu uma acidez familiar no ar, que provinha dos espaços mergulhados nas sombras para lá daquela sala. Algures lá atrás, um corpo ou dois apodreciam e começavam a cheirar mal. Provavelmente os guardas originais.

Mas nem todo o derramamento de sangue era antigo.

Preso a uma cadeira encontrava-se um homem idoso, o seu cabelo completamente grisalho. O rosto estava ferido, um olho inchado, o sangue seco deixara um rasto a partir das duas narinas. Quando Tucker entrou, o olho que ainda permanecia aberto cintilou em desafio — mas não por muito tempo, não depois de a figura esguia seguir Tucker para o interior.

— Aliza! — crocitou.

— Papá! — Ela correu em frente, deixando-se cair de joelhos ao lado dele. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto. Virou-se para o homem que a cumprimentara. — Como pôde?

— Temo ter noventa e dois milhões de razões, minha querida.

— Mas trabalhou com o meu pai durante trinta anos.

— Sim, dez deles sob o domínio comunista, enquanto o teu pai passava o tempo em Londres a criar uma família, a gozar da liberdade de uma tal vida. — A voz do homem denotava ciúme e raiva reprimida. — Não compreendes como foi a vida aqui, se é que se lhe pode chamar tal coisa. Perdi a minha Marja porque não havia antibióticos suficientes. Depois a minha pequena Lujza, fazendo jus ao seu nome de guerreira, foi morta a tiro durante uma manifestação. Recuso-me a ver este tesouro entregue ao governo húngaro, um governo pouco melhor do que o anterior, com muitos dos mesmos jogadores ainda no poder. Nunca!

— Então vai guardá-lo para si? — perguntou Aliza sem hesitar, apesar da veemência dele.

— E usá-lo-ei para o bem, para ajudar os oprimidos, para curar os doentes.

— Então e o meu pai? — soluçou ela. — Também o vai curar?

— Deixá-lo-ei viver. Se ele cooperar, se tu fizeres o mesmo.

Nem por sombras, pensou Tucker.

A mesma dúvida brilhou no rosto de Aliza.

Csorba estendeu a palma da mão.

— Alisa, tenho contactos suficientes para saber que conseguiste o que o teu pai pediu. As imagens de satélite dos americanos.

— Não lhas dês... — disse-lhe o pai, embora cada sílaba lhe provocasse dor.

Ela olhou de relance para o pai, e depois fitou Tucker.

Ele reconheceu que ela não tinha escolha. Revistá-la-iam, castigá-la-iam e, no final, conseguiriam o que queriam.

Tucker baixou o queixo, transmitindo a sua opinião — mas também escondendo o microfone. Tinham-lhe tirado o telefone e a faca, mas não se tinham apercebido do auricular enfiado na orelha esquerda ou dos sensores do microfone-rádio preso sobre a laringe. Era suficientemente sensível para captar o mais leve dos sussurros.

Enquanto Aliza entregava a flash drive USB, gerando agitação na sala, Tucker cobriu a boca e sussurrou as suas ordens silenciosas.

Kane esconde-se nas sombras, o seu coração ribomba, arfa baixinho.

Lembra-se das explosões dolorosas, do guinchar dos pneus, do cheiro do fumo de escape. Queria correr para o seu parceiro, ladrar, uivar e morder.

Mas fica nas sombras porque foi isso que lhe disseram. Agora um novo propósito enche-lhe o ouvido.

— VAI BUSCAR A MINHA ARMA. ESCONDE-TE DEBAIXO DO CARRO.

Ele fita a escuridão, olhando para o chão iluminado pelo luar, para a arma que lá se encontra. Sabe o que são armas. Viu-a deslizar para debaixo do carro quando o seu parceiro a atirou. Depois o carro partiu. A arma ficou.

Kane dispara da escuridão, deslizando junto ao chão. Abocanha a arma, sentindo o cheiro do fumo e do fogo e a sugestão de suor do seu parceiro. Corre de novo para a escuridão, escondendo-se, mas não para. Avança sobre patas silenciosas, dando a volta. Corre através da arcada, atraído pelo som suave de um motor a arrefecer, pelo cheiro forte do combustível queimado, pronto para deslizar para debaixo dele e esperar.

Mas ouve rosnar à sua esquerda.

Sombras emergem da floresta, a maior de todas à sua frente. Tinha sentido o cheiro de outros cães ao longo da estrada, nos arbustos, no ar. Tinham marcado aquele espaço como seu. Baixa a arma para a terra. Reconhece o líder pelos movimentos rígidos das pernas quando avança furtivamente entre as sombras que partilham aquele espaço. Aquela era a sua terra selvagem e reclamavam-na para si.

Para ajudar o seu parceiro, Kane tem de a tornar sua, nem que seja apenas por uma noite.

Rosnando baixinho, salta sobre a maior das sombras.

Os uivos e latidos de uma violenta luta de cães ecoaram fantasmagoricamente através da casa. Parecia algo saído de uma época pré-histórica, carregado de sangue, raiva e sobrevivência.

Tucker ouviu-o também pelo auricular. Kane.

Sentiu o coração apertado de medo.

Domonkos sorriu, atraído por aquele coro. Disse algo em húngaro que fez rir o homem à janela.

Csorba não ergueu o rosto do portátil que retirara de uma pasta.

— Cães selvagens — explicou enquanto trabalhava. — Fizeram deste cemitério esquecido a sua casa.

Não espantou que ninguém tivesse reagido quando Kane sondara o espaço. Para os presentes não passava de mais um rafeiro a percorrer as sombras.

— Cães! — continuou Csorba. — É a eles que queres entregar esse grande tesouro, Jakob.

O pai de Aliza ergueu a cabeça o suficiente para fitar o homem. Pai e filha apertavam as mãos um do outro. Nenhum deles se enganava acreditando na sobrevivência.

— Mas os homens no poder são mais selvagens do que os cães — continuou Csorba. — Se lhes deres todo esse ouro, irá alimentar uma tempestade de corrupção e abusos. Muitos irão morrer. É melhor assim.

Tucker tinha dificuldade em concentrar-se no meio do coro constante de latidos raivosos, depois, repentinamente, a luta terminou, tão rapidamente como começara. Sustendo a respiração, tentou perceber o resultado da luta, mas não ouviu nada.

Nem respiração arfante, nem fungar, nem o pisar suave de patas.

A presença contínua e reconfortante do seu cão silenciara-se. Ter-se-ia o áudio da câmara danificado ou sido acidentalmente desligado durante a luta?

Ou seria algo pior?

O coração de Tucker batia-lhe na garganta.

Kane...

Csorba esfregou as mãos.

— Finalmente.

O ecrã do portátil encheu-se com o velho mapa daquele cemitério, desenhado à mão, que mostrava inclusivamente a arcada de tijolo.

O professor apontou para o ecrã.

— O Jakob descobriu este mapa entre velhos papéis que descreviam um enterro em 1888 e que os coveiros descobriram uma gruta por baixo desse cemitério. A paisagem húngara está repleta destes sistemas de grutas naturais. Mesmo aqui, por baixo de Budapeste, existem mais de duzentas grutas, grandes e pequenas, sob a nossa capital, a maioria formada pela atividade geotérmica natural da região.

Aliza agitou-se, os olhos muito abertos.

— As últimas palavras do Oberführer Erhard Bock. Que o ouro roubado estava enterrado nas profundezas onde nem as garras dos judeus mortos o podiam alcançar. Ele estava a ser literal, referia-se ao cemitério judaico. Por baixo do cemitério judaico.

— É mesmo de nazi enterrar o tesouro pilhado num cemitério judaico — comentou Csorba. — Erhard Bock deve ter ouvido as histórias deste pequeno cemitério, bem distante do bairro judaico, e tomado conhecimento da gruta que havia por baixo. Depois de enterrar o tesouro, o mais provável é que tenha assassinado todos os que sabiam dele, apagando quaisquer referências, garantindo que o segredo morria com ele caso não fosse capaz de o recuperar mais tarde.

Jakob ergueu a cabeça, falando com a filha.

— Mas nunca pensou que um destes velhos livros sobrevivesse e regressasse a Budapeste. O mal nunca pensa em tudo.

Aquelas últimas palavras eram dirigidas a Csorba, mas caíram em ouvidos moucos.

— Aqui vamos nós — disse o professor.

No ecrã, dados de satélite modernos começaram a sobrepor-se ao velho mapa desenhado à mão. O radar de penetração no solo tinha a capacidade de identificar bolsas nas profundezas da terra: caves, bunkers, cavernas, até mesmo sistemas completos de grutas. No ecrã, as linhas topográficas revelavam os contornos da superfície do cemitério, enquanto as manchas mais escuras revelavam bolsas escondidas por baixo. No quadrante superior esquerdo, uma mancha de cor oleosa destacou-se, sublinhando uma das campas marcadas no mapa.

Csorba virou-se, o rosto brilhante de entusiasmo.

— É isto!

Os seus olhos viraram-se para Domonkos.

— Chama os teus dois homens e peguem em martelos, pés-de-cabra e lanternas. Se o tesouro estiver aqui, teremos uma noite para o carregar para uma carrinha e sair de Budapeste antes que alguém desconfie.

O homem alto apontou para Tucker, falando em húngaro.

Csorba acenou com a cabeça e respondeu. Tucker virou-se para Aliza.

Ela explicou, parecendo assustada.

— Ele diz que pareces forte. Que podem precisar de mais músculo para abrirem a campa.

Que, provavelmente, tornar-se-ia a sua própria campa.

Csorba apontou para Aliza.

— Amarrem-na. Tratamos deles depois de confirmarmos que o tesouro está aqui.

Os pulsos e os tornozelos de Aliza foram rapidamente presos com abraçadeiras plásticas.

Depois de Aliza ter sido manietada, Csorba ergueu uma pequena pasta, pousou-a sobre a secretária e abriu-a, revelando blocos de C-4 presos com fios aos detonadores. Carregou num botão e uma fila de luzes verdes acendeu-se. Csorba virou-se, falando em inglês, claramente para que os prisioneiros o entendessem.

— Com os cumprimentos dos colegas de Domonkos do serviço de segurança nacional húngaro. — Ergueu o transmissor sem fios. — Um pequeno presente para ajudar a apagar os indícios do nosso trabalho, ao mesmo tempo que cria caos suficiente para fugirmos da Hungria.

De olhar fixo em Tucker, guardou o transmissor no bolso.

— E por enquanto, parece-me, irá servir como garantia extra, para o caso de decidir tentar algo idiota. Basta carregar num botão fazer deste cemitério o último repouso da Aliza e do Jakob.

Tucker foi empurrado em direção à porta e para a noite. Depois da luminosidade no interior, o cemitério mergulhado nas sombras parecia infinitamente mais escuro. Procurou Kane com o olhar.

Teria ele conseguido esconder-se debaixo do sedan com a arma? Não havia como saber sem olhar.

Fingiu tropeçar a deixou-se cair de barriga ao chão, arrancando uma gargalhada a Domonkos. No chão, Tucker espreitou para debaixo do chassis do sedan. Estava escuro, mas não viu lá nada.

Não havia sinal de Kane.

Uma manápula agarrou-o e içou-o.

— Há lápides e pedras tumulares por estes seis hectares — avisou Csorba. — Será fácil partir a cabeça. É melhor teres cuidado onde pões os pés.

Tucker ouviu a ameaça velada.

Csorba avançou, assumindo a liderança, com uma lanterna numa mão e um GPS na outra.

Tucker seguiu-o, levando atrás de si os outros homens, avançando pelo cemitério coberto de vegetação. A hera trepava por todas as superfícies. Gavinhas enroladas prendiam-se no seu casaco. Ramos partidos estalavam como ossos quebradiços debaixo dos seus pés.

A toda a volta, as lanternas dançavam sobre as sombras e revelavam ameaças maiores do que os velhos marcos no chão. Fossos negros começavam a abrir-se à sua volta, meio escondidos pela folhagem ou cobertos de vides, revelando os velhos túmulos colapsados ou pilhados.

Ameaça ou não, Tucker decidiu levar à letra as palavras de Csorba e manteve-se atento a onde punha os pés.

Os homens conversavam entusiasticamente atrás dele, na sua língua natal, provavelmente planeando como iam gastar a sua quota dos noventa e dois milhões de dólares. O professor avançou silenciosa e contemplativamente.

Tucker aproveitou a distração para tocar no microfone da garganta e tentar comunicar com Kane.

Consegues ouvir-me, companheiro?

Kane está agachado entre a matilha de sombras.

Sangra, arqueja e fita os outros de cima.

Nenhum avança para o desafiar. O que o fez inicialmente dá alguns passos, a barriga colada ao chão, com um gemido baixo de submissão. A garganta mostra ainda a marca dos caninos de Kane, mas está vivo, tendo percebido quando submeter-se a um adversário que se mostrara melhor do que ele. Continua a feder a urina e derrota.

Kane permite-lhe agora avançar. Lambem os focinhos e Kane permite-lhe levantar-se, tomar o seu lugar na matilha.

Depois, Kane vira-se. A luta levou-o para longe do carro, da arma. Enquanto olha, pensando no que fazer, uma nova ordem enche-lhe o ouvido.

— ENCONTRA-ME. TRAZ A ARMA. FICA ESCONDIDO.

Com aquela terra selvagem agora sua, Kane regressa ao local onde a luta começou. Corre silenciosamente através do bosque, sussurrando por entre os arbustos, saltando sobre a escuridão, desviando-se das pedras.

Mas não é apenas a terra que agora é sua. As sombras seguem-no.

Não está sozinho.

Csorba gritou em húngaro, erguendo o GPS.

Tinha parado perto de uma cripta plana, cerca de trinta centímetros acima do solo. A sua superfície estava praticamente oculta por um espesso tapete de folhas caídas e matéria em decomposição, como se a terra tentasse engolir o túmulo.

Tucker recebeu um martelo e um pé-de-cabra. Pensou qual seria a melhor forma de os usar a seu favor, mas agora o professor tinha na mão uma pistola apontada na sua direção, claramente não tencionando sujar as próprias mãos. Além disso, o homem ainda tinha o transmissor sem fios no bolso. Tucker lembrava-se da expressão aterrorizada no rosto de Aliza, da dor que reluzira no do seu pai.

Não lhes podia falhar.

Sem outra escolha senão cooperar, Tucker trabalhou com os outros. Usando martelos conseguiram soltar a tampa. Uma vez solta, enfiaram os pés-de-cabra de um lado e, em conjunto, forçaram a grossa laje de mármore como se tentassem abrir uma tampa de esgoto teimosa. Parecia uma tarefa impossível, mas, com um estalido da pedra, a tampa foi subitamente erguida. Um sopro de ar sulfuroso escapou do interior, como o bafo de enxofre do diabo.

Um dos homens que compunha o trio fez o sinal da cruz na testa, numa supersticiosa tentativa de se proteger do mal. Os outros gozaram com o gesto, mas com pouca convicção.

Em seguida, com algum esforço, empurraram, arrastaram e afastaram a tampa da base da cripta. Csorba avançou com a lanterna e apontou o feixe para baixo. Praguejou alegremente em húngaro. Gritos de felicidade ergueram-se dos outros.

Degraus de pedra desciam da beira do túmulo e desapareciam na escuridão em baixo.

Tinham encontrado o túmulo certo. Depressa foram transmitidas ordens.

Tucker foi obrigado a sentar-se na beira de outra cripta, guardado sob ameaça de arma por dois dos homens. Domonkos e Csorba, ambos empunhando lanternas, desceram juntos para ver o que encontravam lá em baixo, desaparecendo e deixando atrás de si apenas o brilho das suas lanternas que emergia fantasmagoricamente do túmulo aberto.

Sem nada a perder, Tucker sentou-se de braços atrás das costas, fingindo uma total cooperação. Como se murmurasse para si mesmo ou rezasse, sussurrou para o microfone preso ao pescoço.

— Kane. Fica escondido. Traz a arma.

Abriu as mãos atrás das costas e esperou.

Inspirou fundo para se manter calmo. Deixou que os seus olhos se fechassem.

Vamos, Kane...

Um dos homens gritou. Viu o homem virar-se e apontar a pistola para o bosque. Um rosnar baixo saiu da floresta, uma sombra correu para a esquerda, ramos estalaram. Outras gargantas rosnaram na escuridão, o som erguia-se de todos os lados. Mais sombras se deslocaram.

Os dois homens falavam rapidamente em húngaro, os olhos muito abertos.

Era a matilha de cães selvagens do cemitério.

Depois Tucker sentiu algo frio e molhado tocar-lhe nos dedos, atrás das costas. Saltou, sobressaltado. Não tinha ouvido nada. Estendeu a mão para trás e sentiu pelo. Depois algo pesado foi largado na palma da sua mão.

A pistola.

— Lindo menino — sussurrou baixinho. — Fica.

Ao que parecia, Kane tinha feito novos amigos.

Tucker pousou suavemente a pistola no túmulo, atrás das costas. Aproveitando a distração, estendeu as mãos cegamente para Kane, atrás de si, tentando perceber o motivo da falha do áudio. Não queria continuar separado do seu parceiro.

Em especial agora.

Precisava daquela ligação mais do que nunca.

Desligou a câmara, depois voltou a ligá-la, reiniciando-a, rezando para que fosse suficiente.

Um momento depois, o som maravilhoso da estática no seu ouvido esquerdo significava que estava tudo bem no mundo.

— Está feito, Kane. Recua e esconde-te com os teus amigos.

Tudo o que ouviu enquanto Kane se retirava foi o suave raspar das unhas no mármore. Passado mais um minuto, a floresta ficou de novo em silêncio, a matilha desapareceu na noite.

Os dois guardas sacudiram o medo, rindo bruscamente agora que a ameaça parecia ter retirado, certos de que tinham intimidado a matilha. Enquanto Tucker escutava o suave arquejar de Kane no seu ouvido, fez deslizar a pistola para o cinto e escondeu-a por baixo do casaco.

E mesmo a tempo.

Um grito ergueu-se da cripta aberta. A luz tornou-se mais forte. Depois o rosto marcado pelas bexigas de Domonkos surgiu e vociferou novas ordens, com um sorriso rasgado. Tucker quase conseguia ver o brilho do ouro nos seus olhos.

Teriam mesmo encontrado o tesouro roubado? Tucker foi obrigado a levantar-se e a seguir Domonkos para a cripta. Calculou que precisassem de tantos homens fortes quanto possível para erguerem o tesouro das profundezas. Tucker desceu os degraus, seguido pelos outros dois homens.

As escadas estreitas com paredes de tijolo desciam para um túnel cinzelado na pedra natural. Perdeu a conta quando chegou aos cem degraus. As conversas tinham esmorecido agora que desciam, abafadas pelo peso da pedra sobre eles e os sonhos de riquezas mais abaixo. Em breve tudo o que Tucker ouvia eram os homens a respirar à sua volta, o eco dos seus passos e, algures, muito em baixo, o pingar da água.

Ótimo.

Por fim, viu o fim da escadaria iluminada pelo brilho da lanterna de Csorba.

Tendo chegado à gruta, Domonkos entrou à frente deles, abrindo um braço de modo a abarcar o espaço, como se lhes desse as boas-vindas a sua casa. Tinha encontrado de novo a voz e conversava animadamente com os seus camaradas.

Tucker avançou alguns passos, espantado com a abóbada natural, de onde pingava água, adornada com grossas camadas de pedra sedimentadas e guarnecida com estalactites. Perguntou-se quantos escravos judeus o Oberführer Erhard Bock obrigara a trabalhar até à morte para abrir aquele túnel para a gruta secreta, quantos outros teriam morrido para guardar aquele segredo e, enquanto fitava Csorba, perguntava-se como poderia aquele académico judeu fazer pouco caso da sua própria herança e preparar-se para roubar o ouro embebido no sangue dos seus antepassados.

Csorba estava junto de uma pilha de caixotes, cada um deles com capacidade para cerca de trinta litros e marcado com uma suástica gravada a fogo na madeira. Tinha aberto um, retirado do topo da pilha. Centenas de lingotes de ouro, cada um deles do tamanho de uma barra de manteiga, espalhavam-se pelo chão.

Csorba virou-se de olhos muito abertos.

Falou com os outros, que gritaram animadamente. Até partilhou a notícia com Tucker.

— Erhard Bock mentiu — disse, o espanto enchendo-lhe a voz. — Não estão aqui trinta e seis caixotes. Estão mais de oitenta!

Tucker fez as contas na sua cabeça. Isso significava mais de duzentos milhões de dólares.

Nada mal para quem não se importa de assassinar os inocentes guardas de um cemitério, um simpático professor universitário, a filha deste... já para não falar de mim. E sabe-se lá quantos mais.

Já tinha ouvido e visto o suficiente.

Sacou da pistola, ergueu-a e disparou três vezes.

Três tiros na cabeça.

Três corpos caíram. O último foi Domonkos, que se afundou com uma expressão de espanto no rosto.

Sozinho, não poderia levar os quatro homens de volta à superfície.

Demasiado arriscado.

Mas podia levar um, o homem por trás de tudo aquilo.

Csorba tropeçou na caixa e tirou o detonador sem fios do bolso.

— Mais um passo e carrego no botão.

Para ver se o faria, de facto, Tucker deu esse passo e outro. Viu o polegar do homem tremer sobre o botão.

Depois, encolhendo-se, Csorba carregou finalmente no botão.

— Eu... eu avisei-o.

— Não ouvi nenhuma explosão — disse Tucker. — Ouviu?

Csorba carregou no botão várias vezes.

Tucker percorreu a distância que os separava, retirou das mãos do professor o detonador inútil, desligou-o e meteu-o no bolso. Apontou com a pistola na direção dos degraus.

— Não compreendo... — balbuciou o professor enquanto obedecia.

Tucker não se deu ao trabalho de explicar. A partir do momento em que Kane lhe dera a pistola, podia ter disparado sobre Domonkos e os seus dois compinchas, mas temia que, se Csorba ouvisse a troca de tiros, pudesse entrar em pânico e fazer aquilo mesmo — carregar no transmissor.

Por isso Tucker tinha de descer para ter a certeza.

A cerca de um quarto do caminho, perdera a ligação sem fios com Kane. O arfar no seu ouvido voltara a desaparecer. Por isso, sentia-se confiante de que o transmissor de Csorba, enterrado quatro vezes mais fundo, seria igualmente inútil, mas só depois de o saber com toda a certeza, ao descer até ali, sentira que era seguro agir.

Por fim chegaram ao topo da cripta. Csorba tentou fugir para a floresta.

— Kane, para-o.

Irrompendo do bosque, uma sombra bloqueou o caminho do professor, rosnando, os olhos brilhantes no escuro. Outros materializaram-se, aproximando-se de todos os lados, enchendo a noite com um rosnar grave, como um trovão para lá do horizonte.

Csorba recuou, assustado, tropeçou numa pedra e mergulhou de cabeça numa das campas abertas. Seguiu-se um baque sonoro, acompanhado por um estalido preocupante.

Tucker correu para a frente e fitou o buraco. O professor jazia a quase dois metros de profundidade, o pescoço torcido, imóvel. Tucker abanou a cabeça. Aparentemente, os fantasmas daquele local não iam deixar o homem escapar com tanta facilidade.

À sua volta, as sombras escuras regressaram de novo à floresta, desaparecendo depois de um qualquer sinal silencioso, até restar apenas o sussurro das folhas ao vento.

Kane aproximou-se, agachado, temendo ter feito algo de errado.

Tucker ajoelhou-se e puxou a cabeça do amigo para mais perto da sua.

— Quem é um lindo menino?

Kane esticou-se e tocou com o nariz frio no dele.

— Isso mesmo. És tu.

Meia hora depois, Tucker estava sentado no sedan com o farol partido, o motor a trabalhar. Tinha libertado Aliza e o pai e contara-lhes o que acontecera. Ia deixar nas suas mãos explicar às autoridades o melhor que pudessem, mantendo o seu nome de fora.

Aliza inclinou o rosto através da janela aberta.

— Obrigada. — Depositou-lhe um beijo suave no rosto. — Tem a certeza de que não quer ficar? Nem que seja por mais uma noite?

Ele ouviu a oferta por trás das palavras dela, mas sabia quão complicadas se tornariam as coisas se ficasse. Tinha duzentos milhões de razões para partir.

— Então e uma recompensa? — perguntou ela.

Imaginou Csorba a cair na sua própria campa, partindo o pescoço.

— Há demasiado sangue nesse ouro — disse ele. — Mas se sobrarem alguns trocos, conheço uns cães esfomeados que partilham esta floresta. Estão a precisar de alimento, um lugar quente para deitar a cabeça à noite, uma família que os ame.

— Farei com que isso aconteça — prometeu. — Mas essas coisas não são aquilo que todos queremos?

Tucker olhou para a faixa de estrada aberta para lá da arcada de tijolo.

Talvez um dia, mas não hoje.

— Adeus, Aliza. — Tucker acelerou o motor.

A cauda de Kane batia com força no banco ao lado do seu, a cabeça completamente fora da janela. Enquanto Tucker acelerava, o seu parceiro uivou, um chamamento dilacerante que cantava ao seu próprio sangue.

O sedan lançou-se em direção à arcada.

Atrás deles, a floresta irrompeu num coro de uivos e latidos, ecoando na noite e seguindo-os para o mundo.

Enquanto avançavam, o vento soprou as brochuras no interior do carro. Ao que parecia, também o dono anterior sonhara com viagens distantes, maneiras de gastar todo aquele ouro.

Uma voou contra o para-brisas e ficou colada, enviesada.

A foto mostrava palmeiras e praias de areia branca.

O seu nome exótico invocava um outro tempo, uma terra de mistério e mitologia.

Zanzibar.

Tucker sorriu e Kane abanou a cauda. Sim, isso serve.


NÃO HÁ BOA AÇÃO QUE NÃO MEREÇA CASTIGO

Fiz a Steve Berry, bestseller do New York Times, uma das suas primeiras críticas. Ele abordou-me e enalteceu o quanto gostara do meu primeiro romance, Subterrâneo, pedindo-me para ler o seu romance de estreia para uma possível resenha. Já me tinha visto na mesma posição no início da minha carreira e descobri que os autores são pessoas generosas. Clive Cussler, Doug Preston e muitos outros escreveram críticas simpáticas aos meus primeiros livros, por isso, claro, li com prazer o primeiro romance de Steve Berry, The Amber Room, e escrevi algumas palavras entusiásticas sobre ele.

Sem que eu o soubesse, Steve tinha já pedido a um outro autor que fizesse uma resenha, alguém que poucas pessoas conheciam na altura, um tipo chamado Dan Brown, que estava prestes a lançar um livro chamado O Código Da Vinci. Bem, podem imaginar o que aconteceu a seguir. Quando The Amber Room foi publicado, a citação de Dan Brown surgiu em destaque na capa do livro de Steve. A minha crítica foi relegada para a contracapa em letras pequeninas, algo do género: «Também gostei!»

Desde então que temos sido grandes amigos.

Eu e Steve até incluímos as personagens um do outro nos nossos romances, de tal forma que, durante algum tempo, houve quem pensasse que éramos a mesma pessoa que escrevia sob dois pseudónimos literários. Acabámos por ter de fazer uma digressão juntos para refutar o mito. Desde então, em todas as sessões de autógrafos, é-nos perguntado: «Quando é que vocês vão escrever uma história juntos?»

Por isso, para (de certo modo) silenciar este clamor, acabámos por fazer isso mesmo. Pela primeiríssima vez, escrevemos uma história em conjunto, aliando a personagem principal do livro de Steve — Cotton Malone — com o líder da equipa Sigma, o comandante Gray Pierce.

Assim nasceu «Os Ossos do Diabo».

E sim, mesmo depois disso, continuamos amigos.


OS OSSOS DO DIABO

JAMES ROLLINS E STEVE BERRY

O comandante Gray Pierce encontrava-se na varanda da sua suíte no luxuoso barco fluvial avaliando o que o rodeava.

Era hora de dar início ao espetáculo.

Partira há dois dias, rio acima, de Belém, buliçosa cidade portuária brasileira que servia de entrada para a Amazónia, e deixara para trás a última paragem do barco, uma movimentada aldeia fluvial, da qual se despedira há uma hora. O navio tinha como destino Manaus, uma cidade nas profundezas da floresta tropical, onde o seu alvo deveria encontrar-se com os compradores.

Algo que Gray não podia permitir.

O comprido barco fluvial, o MV Fawcett, deslizava pelas águas negras, a selva que o rodeava refletida na sua superfície. A partir da floresta, os macacos bugios gritavam à sua passagem. Relâmpagos escarlates e dourados esvoaçavam por entre os ramos mergulhados nas sombras, assinalando o voo dos papagaios e araras. O crepúsculo da selva aproximava-se, e os morcegos pesqueiros estavam já a caçar sob os caramanchões pendentes, mergulhando e dardejando entre o emaranhado de raízes negras, obrigando as rãs a saírem dos seus esconderijos, o suave plop dos seus corpos na água a anunciar uma retirada estratégica.

Perguntou-se o que estaria Seichan a fazer. Deixara-a no Rio de Janeiro, tendo-a visto pela última vez enquanto vestia um par de calções cor de caqui e uma t-shirt preta, sem se dar ao trabalho de usar soutien. Por ele tudo bem. Nela, quanto menos melhor. Tinha observado enquanto ela enfiava as botas a cascata de cabelo negro, como este lhe deslizava pelo rosto e encobria os olhos cor de esmeralda. Ultimamente dera por si a pensar cada vez mais nela.

O que era bom e mau.

Uma campainha fez-se ouvir por todo o barco.

A chamada para o jantar.

Olhou para o relógio. A refeição ia começar em dez minutos e normalmente estendia-se por uma hora. Teria de entrar e sair do quarto antes que o seu alvo acabasse de comer. Olhou para o nó da corda que tinha atado à amurada e lançou-a pelo lado. Cortara um pedaço de comprimento suficiente para alcançar a varanda diretamente abaixo de si, que dava acesso à suíte que pertencia ao seu alvo.

Edward Trask. Etnobotânico da universidade de Oxford.

Gray tinha recebido um dossiê completo. Um investigador de trinta e dois anos desaparecera na selva brasileira há três anos, tendo regressado há cinco meses, queimado pelo sol e escanzelado, com uma história de aventuras, privações, tribos perdidas e clarividência. Tornara-se uma celebridade instantânea, o rosto enrugado enchendo as páginas da Time e da Rolling Stone. O sotaque britânico e a humildade encantadora pareciam talhados para a televisão e foi convidado para uma miríade de programas, do Good Morning America ao Daily Show. Depressa vendeu a sua história a uma editora de Nova Iorque por uma maquia na casa dos milhões. Mas havia um aspeto da história de Trask que jamais seria impresso, um pormenor descoberto há uma semana.

Trask era uma fraude.

E uma fraude perigosa.

Gray agarrou na corda e desceu rapidamente por ela. Alcançou a varanda por baixo e galgou o corrimão, assumindo a sua posição de um lado das portas de vidro.

Espreitou pela cortina entreaberta e testou a porta.

Destrancada.

Deslizou o painel de vidro e entrou na cabina. A disposição era idêntica à da sua suíte, por cima. Só que Trask parecia desmazelado. As roupas sujas estavam empilhadas no chão. As toalhas molhadas espalhadas sobre a cama por fazer. O que restava de uma qualquer refeição enchia a mesa. O único aspeto positivo? Não seria difícil esconder a sua busca.

Primeiro verificaria o óbvio. O cofre do quarto. Mas teria de manter o silêncio, para não alertar o guarda no exterior. Fora essa medida de segurança que exigira aquele ponto de entrada improvisado.

Encontrou o cofre no roupeiro do quarto e deslizou um keycard, ligado a um descodificador eletrónico, pelo mecanismo de abertura. Já tinha testado e calibrado a unidade no cofre do seu próprio quarto. A combinação foi descoberta e o cofre aberto. Mas neste não estava mais do que a carteira de Trask, algum dinheiro e um passaporte.

Nada que interessasse a Gray.

Fechou o cofre e iniciou um exame sistemático dos cantos e recantos escondidos do quarto, mantendo os movimentos lentos e silenciosos. Tinha realizado o reconhecimento na sua própria suíte, em busca de locais onde fosse possível esconder algo pequeno.

E havia muitas possibilidades.

Na casa de banho, verificou nos espaços vazios por baixo do lavatório, por baixo das gavetas, na portinhola de serviço da banheira de hidromassagem.

Nada.

Aguardou um momento e observou o espaço exíguo, assegurando-se de que não deixara escapar nada. O tampo de mármore do toucador parecia uma colagem de pasta de dentes seca, lenços de papel enrolados e uma miscelânea de cremes e géis. Pelas suas observações nos últimos três dias, sabia que Trask só deixava que a empregada e o mordomo entrassem no quarto uma vez por dia e, mesmo nessa altura, eram acompanhados por um guarda, um tipo encorpado, de cabeça rapada e um franzir de sobrolho perpétuo.

Deixou a casa de banho.

Seguir-se-ia o quarto.

Um umpf sonoro reverberou pela porta da cabina, surpreendendo-o.

Gray estacou.

Estaria Trask de volta? Tão cedo?

O que se parecia com algo pesado deslizou pela porta e tombou para o chão, do lado de fora.

O ferrolho foi destrancado e a maçaneta rodou.

Raios.

Tinha companhia.

Cotton Malone agachou-se sobre o guarda caído. Encostou o dedo ao pescoço grosso do homem e assegurou-se de que tinha pulsação. Ténue, mas estava lá. Conseguira surpreender a sentinela numa manobra de submissão que lhe demorou muito mais tempo do que tinha esperado. Agora que o homem de grandes dimensões estava caído, tinha de o tirar do corredor. Entrara no barco há uma hora, na sua última paragem, pelo que tudo estava a ser improvisado. O que não representava um problema. Ele gostava de ir inventando.

Abriu a porta da cabina de Trask e içou o corpo flácido pelas axilas. Apercebeu-se de um coldre de ombro por baixo do casaco do guarda e retirou rapidamente a arma ao homem. Não tivera tempo para arranjar uma arma, devido à natureza imprevista da sua missão. No dia anterior estava a assistir a um leilão de antiguidades em Buenos Aires, à caça de primeiras edições raras para a sua livraria dinamarquesa. Cassiopeia Vitt acompanhava-o. Era suposto ser uma viagem divertida. Passarem algum tempo juntos no Brasil. Sol e praias. Mas um telefonema de Stephanie Nelle, a sua velha empregadora no Magellan Billet, fizera-o mudar esses planos.

Há cinco meses, o doutor Edward Trask tinha regressado da floresta tropical brasileira, depois de ter estado desaparecido durante três anos, exibindo um conjunto de raros espécimes botânicos — raízes, flores, folhas e casca — todos eles para a empresa farmacêutica que financiara a sua viagem. Alegava que as suas descobertas tinham um grande potencial, representando a esperança para o próximo tratamento contra o cancro, medicamento para problemas cardíacos ou comprimido para a impotência. Regressara também com histórias curiosas para cada uma das suas amostras, narrativas supostamente contadas por xamãs remotos e tribos locais. Durante os meses seguintes, contudo, começaram a ouvir-se rumores, provenientes da empresa, de que as amostras eram inúteis. A maioria nada representava de novo. Um investigador que trabalhava para a empresa farmacêutica tinha oferecido, confidencialmente, a melhor descrição para o tão publicitado tesouro. Foi como se o sacana tivesse agarrado nas primeiras coisas que viu. Tanto para salvar a face como para proteger o preço das suas ações, a empresa impôs o silêncio aos seus funcionários e esperou que o assunto morresse por si mesmo.

Não morreu.

De facto, histórias mais sombrias tinham chegado aos ouvidos do governo dos EUA, pois ao que parecia Trask não deixara a floresta de mãos completamente a abanar. Embrulhado no meio dos seus espécimes — como um grão de trigo por entre uma grande quantidade de joio — estava o verdadeiro jackpot botânico. Uma flor rara, ainda por classificar, da família das orquídeas, que provara conter uma neurotoxina cem vezes mais mortífera do que o sarin.

Isso é que era um jackpot.

Trask fora suficientemente esperto para reconhecer e apreciar o valor daquela descoberta. Tinha analisado e purificado a toxina num laboratório privado, pago por ele do seu próprio bolso, o livro e as presenças na televisão suficientemente lucrativos para financiar o projeto. Parte P.T. Barnum, parte monstro, na semana anterior Trask oferecera secretamente a sua descoberta em leilão, partilhando a sua análise química, o seu potencial, e um vídeo de demonstração de uma sala repleta de chimpanzés que sangravam dos olhos e dos narizes, arquejando, depois caindo mortos, o ar pesado com um vapor amarelo. O anúncio tinha despertado a atenção de organizações terroristas de todo o mundo, bem como dos serviços de informação dos EUA. O velho covil de Malone, o Magellan Billet, tinha sido encarregue pela Casa Branca de impedir a venda e recuperar a amostra. O seu erro fora ter referido a Stephanie Nelle, na semana anterior, durante uma conversa descontraída entre velhos amigos, que ele e Cassiopeia iam a caminho do Brasil.

— A venda vai decorrer em Manaus — dissera-lhe Stephanie no dia anterior, ao telefone.

Ele conhecia o local.

— O Trask vai a caminho com uma equipa de vídeo do Discovery Channel, a bordo de um navio de luxo. Estão a percorrer a floresta tropical vizinha e a preparar-se para um especial televisivo sobre os anos perdidos na selva. O seu verdadeiro objetivo, contudo, é vender a amostra purificada. Temos de lha retirar, e tu és o agente mais próximo do local.

— Estou reformado.

— Vou recompensar-te.

— Como a poderei reconhecer, se a encontrar? — perguntara ele.

— Está armazenada numa pequena caixa metálica, em frasquinhos, mais ou menos do tamanho de um baralho de cartas.

— Presumo que queiras que faça isto sozinho?

— De preferência. É altamente secreto. Diz à Cassiopeia que só irás demorar uns dias.

Cassiopeia não tinha gostado, mas compreendera a condição de Stephanie. Telefona-me se precisares de mim, foram as suas últimas palavras quando a deixou para seguir para o aeroporto.

Cotton puxou o guarda para o interior da cabina, fechou a porta e prendeu o ferrolho.

Estava na hora de encontrar os frascos.

Um movimento perturbou o silêncio.

Girou sobre si mesmo e viu uma forma na luz ténue, que erguia uma pistola. Trask tinha partido. Estava na sala de jantar. Certificara-se disso antes de atacar a sentinela.

Então quem era aquele?

Ainda tinha nas mãos a arma que tirara ao guarda, portanto apontou-a à ameaça.

— Eu não faria isso — disse uma voz rouca, adocicada, com um leve toque texano.

Cotton conhecia aquela voz.

— Gray Pierce de um raio.

Gray manteve a pistola firmemente apontada e reconheceu a entoação arrastada do sul.

— Cotton Malone. E esta, hein? Regressado do passado.

Analisou o antigo agente sob a luz ténue. Quarenta e poucos anos. Ainda em forma. O cabelo castanho-claro com pouco cinzento. Sabia que Malone se tinha reformado, que vivia em Copenhaga, sendo proprietário de um alfarrabista que se dedicava a livros raros. Até o visitara certa vez, há alguns anos. Dizia-se que Malone ia fazendo uns trabalhinhos ocasionais para a antiga patroa, Stephanie Nelle. Malone fora um dos doze agentes originais do Magellan Billet, até ter optado pela reforma antecipada. Gray conhecia a unidade. Altamente especializada. Trabalhava a partir do Departamento de Justiça. Só prestava contas ao procurador-geral e ao presidente.

Baixou a arma.

— Era mesmo disso que precisávamos, de um raio de um advogado.

— É quase tão mau quanto a presença do senhor Feiticeiro — disse Malone, baixando também a sua arma.

Gray percebeu a ligação. A Sigma Force, para a qual trabalhava, era parte da DARPA, a Defense Advanced Research Projects Agency. A Sigma era composta por um grupo clandestino de antigos soldados das forças especiais, treinados em diversas disciplinas científicas, que serviam como operacionais de campo. Enquanto a Sigma lidava com muita ciência e pouca história, o Magellan Billet lidava com ameaças globais que estavam mais relacionadas com a história e tinham pouca ciência.

— Deixa-me adivinhar — disse a Malone. — Souberam da neurotoxina do Trask.

— Foi o que aqui vim buscar.

— Parece que estamos perante uma incapacidade de comunicação entre agências. Os treinadores mandaram dois quarterbacks para o campo.

— Nada de novo. Que tal eu voltar para Buenos Aires e vocês tratam disto?

Gray percebeu o verdadeiro significado.

— Tens lá uma miúda?

— Tenho mesmo.

Uma explosão agitou o barco a partir da popa, fazendo erguer consideravelmente o casco, lançando-os a ambos contra a parede. Gray esbarrou em Malone, batendo em algo sólido, mas conseguiu manter a arma na mão. A explosão desvaneceu-se e os gritos encheram o ar, ecoando pelo navio.

O barco inclinava-se para estibordo.

— Pelo som, alguém acabou com este barco — disse Malone enquanto recuperavam o equilíbrio.

— Achas?

O barco continuava a tombar, inclinando-se mais para estibordo, confirmando que o casco estava a meter água. Um olhar de relance para lá da varanda revelou uma coluna de fumo preto a erguer-se para o céu.

Algo ardia.

O bater de botas soou do outro lado da porta da cabina. Uma caçadeira foi disparada contra o ferrolho e a porta abriu-se com estrondo. Tanto ele quanto Malone viraram as armas na direção da porta meio obscurecida pelo fumo. Dois homens entraram de rompante, envergando roupas paramilitares, os rostos obscurecidos por lenços pretos. Um levava consigo uma caçadeira, o outro uma espingarda de assalto. Gray deu um tiro ao homem da arma de cano duplo, enquanto Malone acabava com o outro.

— Muito bem, isto é interessante — murmurou Malone, enquanto Gray verificava rapidamente o corredor e confirmava que ali só se encontravam aqueles dois atiradores. — Parece que não somos os únicos à procura do veneno do Trask. Conseguiste encontrá-lo?

Gray abanou a cabeça.

— Só tive tempo para revistar metade da suíte. Mas não deve demorar muito...

Tiros fizeram-se ouvir ao longe.

Ele inclinou um ouvido.

— O som veio da sala de jantar.

— Os nossos visitantes devem andar atrás do Trask — disse Malone. — Para o caso de ele o ter consigo.

O que representava uma verdadeira possibilidade. Já tinha considerado essa opção, razão pela qual tanto se esforçara por manter oculta a sua busca na cabina. Caso o esforço se revelasse fútil, não queria alertar Trask e torná-lo ainda mais reservado.

— Termina a tua busca aqui — disse Malone. — Vou buscar o Trask.

Gray não tinha escolha. As coisas estavam a acontecer depressa e de forma imprevisível. Advogado ou não, precisava da ajuda.

— Força.

Malone correu pela passagem inclinada, uma mão na parede para o ajudar a manter o equilíbrio. Já não via Gray Pierce desde aquele dia na sua livraria há alguns anos. Na verdade, gostava do tipo. Havia muitas semelhanças entre eles. Eram ambos antigos soldados. Ambos tinham sido recrutados para os serviços de informação. Ambos pareciam ter cuidado de si mesmos fisicamente. A grande diferença era a idade, Pierce tinha pelo menos dez anos a menos e isso era algo determinante. Em especial naquele tipo de trabalho. A outra diferença era que Pierce ainda estava no jogo, ao passo que Malone não passava de um jogador ocasional.

E não era tão tolo que não compreendesse que isso era importante.

Deslizou até parar, quando se aproximou das escadas que desciam até à sala de jantar do barco. A partir daqui teria de avançar mais devagar. Através de uma janela, fitou o rio no exterior. O barco estava enviesado, afundando-se na corrente veloz. Para lá de uma coluna de fumo, viu uma embarcação de um cinzento metálico a aproximar-se. Um homem de uniforme, cujas feições estavam obscurecidas por um pano negro que lhe envolvia a cabeça, erguia-se na popa, o comprido tubo de um lança-foguetes apoiado no ombro.

Aparentemente, fora assim que atacaram o navio.

Contornou o patamar e as portas duplas tornaram-se visíveis mais abaixo. Um corpo jazia junto à porta, numa poça de sangue, o homem estava vestido como maître d’. Malone abrandou o passo e avançou com cautela, aproximando-se da porta por um dos lados, e espreitou rapidamente para a sala.

Havia mais corpos espalhados pelas mesas e cadeiras caídas.

Pelo menos duas dúzias.

Um grande grupo de passageiros amontoava-se de um dos lados da sala espaçosa, mantidos sob ameaça de arma por um par de homens. Outros dois avançavam por entre os corpos, procurando. Um deles tinha na mão uma fotografia, provavelmente em busca de alguém cujo rosto se assemelhasse ao de Trask. Entre os cativos, Malone viu o cientista. Stephanie fornecera-lhe uma imagem por e-mail. Trask estava de costas para os homens armados, encurvado no interior do seu casaco de gala, uma mão a cobrir parte do rosto. Tentando ser apenas mais um entre muitos.

Um tal ardil não duraria muito tempo.

Trask era espantosamente belo de um modo travesso, com o cabelo castanho-avermelhado despenteado e um rosto de feições aguçadas. Era fácil de perceber como se tornara um querido dos media. Mas esse aspeto distinto permitiria distingui-lo da multidão e lançá-lo para as mãos da força de assalto num instante.

Malone não podia permitir que isso acontecesse.

Por isso, curvou-se e tocou com a mão no sangue do maître d’. Não era a coisa mais higiénica do mundo, mas tinha de ser feito. Pintou o rosto com a palma da mão ensanguentada, depois deslizou a pistola para a cintura das calças, na parte de trás das costas, e escondeu-a com a bainha da camisa.

Porque fazia aquele tipo de coisas, jamais o saberia.

Cambaleou para o interior da sala, coxeando, levando a mão ensanguentada ao rosto sujo.

— Ajudem-me — gritou num tom choroso, enquanto avançava mais para o interior da sala, sendo abordado por um dos homens armados que guardavam os passageiros.

Foram-lhe gritadas ordens em português.

Fingiu surpresa e confusão, embora tivesse compreendido todas as palavras, um benefício da memória eidética que tornava as línguas mais fáceis. Permitiu que o homem o levasse para o grupo de passageiros. Foi empurrado para o meio da multidão, chocando contra uma mulher de ar imponente que o marido mantinha próximo de si. Avançou mais para o meio do grupo, cambaleando ao longo do caminho, até chegar ao lado de Trask. Uma vez ali, deslizou a pistola da cintura e encostou-a ao flanco do botânico.

— Fica quieto e calado — sussurrou. — Estou aqui para salvar a tua triste pessoa.

Trask estremeceu e parecia estar prestes a falar.

— Não abras a boca — murmurou Malone. — Sou a tua única esperança de saíres daqui vivo. Por isso, lembra-te que a cavalo dado não se olha o dente.

Trask ficou imóvel e perguntou, sem mover os lábios:

— O que queres que faça?

— Onde está a biotoxina?

— Tira-me daqui e farei com que não te arrependas.

Um oportunista típico, a adaptar-se rapidamente.

— Não te vou dizer nada, enquanto não me levares para um lugar seguro.

Claramente o tipo pressentia uma vantagem momentânea.

— Posso simplesmente identificar-te perante estes cavalheiros — clarificou Malone.

— Tenho os frascos comigo. Se um que seja se partir, matará tudo e todos num raio de noventa metros. Acredita em mim, não há nada que o possa parar, com exceção da incineração. — Trask lançou-lhe um glorioso sorriso de vitória. — Por isso sugiro que te despaches.

Malone avaliou os quatro homens armados. Os dois que se dedicaram a passar em revista a sala tinham percorrido quase todos os cadáveres. Para aumentar a probabilidade de sucesso, ele precisava que estivessem todos juntos. Enquanto esperava que isso acontecesse, decidiu aproveitar o momento a seu favor.

— Onde encontraste a orquídea?

O cientista abanou lentamente a cabeça.

— Diz-me isso, ao menos, ou abro caminho a tiro e deixo-te entregue a estes homens, assegurando-me simplesmente de que estou a noventa metros daqui bem depressa.

Trask apertou o maxilar e pareceu compreender o que Malone lhe estava a dizer.

Ambos continuaram a fitar a cena macabra.

— Seis meses depois de ter entrado na floresta, ouvi rumores de uma planta chamada Huesos del Diablo — disse Trask mantendo os lábios imóveis.

Malone traduziu silenciosamente.

Os ossos do diabo.

— Precisei de mais um ano para descobrir uma tribo que soubesse alguma coisa de concreto. Mergulhei na aldeia, tornei-me aprendiz do xamã. Por fim, ele levou-me a umas ruínas enterradas na bacia do Amazonas, revelando um vasto complexo de fundações que se estende por quilómetros. O xamã disse-me que, outrora, tinha sido habitado por dezenas de milhares de pessoas. Uma vasta civilização de que não há registo.

Malone já tinha ouvido falar de ruínas com aquela, identificadas em imagens de satélite, localizadas nas profundezas da Amazónia, onde se pensava que não vivia ninguém. Cada descoberta desafiava a sabedoria convencional que declarava a floresta tropical incapaz de sustentar uma civilização. As estimativas colocavam o número dos seus habitantes na casa dos sessenta mil. O destino dessas pessoas permanecia desconhecido, embora se colocasse a hipótese de a fome e a doença terem sido os principais culpados do seu desaparecimento.

Mas talvez existisse outra explicação.

Os homens que passavam revista à sala de jantar, verificaram os últimos corpos. Os dois homens armados mais próximos alternavam a sua atenção entre os colegas e os cativos.

— Entre as ruínas, encontrei pilhas de ossos, muitos deles enterrados. Outros corpos pareciam ter morrido ali mesmo. O xamã contou-me a história de uma grande peste que matava em segundos e descolava a carne dos ossos. Mostrou-me uma orquídea preta incomum, que crescia nas proximidades. Eu não sabia, na altura, se a orquídea seria a fonte da peste, mas o xamã alegava que a planta era a morte em si mesma. O simples facto de lhe tocar podia matar. O xamã ensinou-me a recolhê-la em segurança e a extrair o veneno das suas pétalas.

— E quando aprendeste a colher a toxina?

Trask olhou de relance para ele.

— Tive de a testar, claro. Primeiro no xamã. Depois na aldeia dele.

O sangue de Malone gelou perante a calma com que ele admitia o massacre.

Trask voltou-se para trás.

— Depois, para garantir que tinha a única fonte, queimei todas as bolsas de orquídeas que consegui encontrar. Por isso, meu salvador, como vês, tenho a chave de tudo.

Malone já tinha ouvido o suficiente.

Fique ao meu lado, disse sem mover os lábios.

Avançou para os limites da multidão, levando Trask atrás de si. Uma vez lá, Malone soube que tinha de incapacitar os quatro homens armados tão depressa quanto possível. Haveria apenas alguns segundos de indecisão. Os homens estavam finalmente reunidos num único grupo. O carregador da sua arma tinha sete balas. Não havia grande margem para erro. Olhou para uma mesa virada, com um tampo de mármore, que deveria oferecer-lhe uma cobertura decente. Mas precisava de se afastar dos civis antes que começassem os tiros.

Agarrou em Trask pelo cotovelo e apontou para a mesa.

— Vem comigo. Quando eu disser.

Contou rapidamente até três, depois correu na direção da mesa, revelando a arma, mas o chão por baixo dos seus pés ergueu-se, lançando-o pelo ar. Voou para lá da mesa, caindo com força, deixando fugir a arma, que deslizou pelo chão para longe do seu alcance. Rebolou e viu a parte da frente da sala de jantar a ser arrancada, o vidro a explodir, as paredes a dividir-se.

A selva escura invadiu a sala.

Depois percebeu.

O barco tinha embatido na margem e encalhado.

Todos tinham sido lançados ao chão, até os homens armados. Procurou Trask. O botânico tinha sido atirado para o meio da equipa de assalto. Trask endireitou-se e nem mesmo o sangue que lhe jorrava do nariz partido escondia as suas feições. Vozes surpreendidas irromperam dos quatro homens armados. Foram apontadas espingardas e Trask ergueu os braços, rendendo-se.

Malone procurou a pistola, mas esta desaparecera.

Trask olhou de relance para ele, o medo e a súplica visíveis no seu rosto. Os pensamentos do homem eram claros. Ajuda-me. Senão. Malone abanou a cabeça e levou um dedo aos lábios, fazendo-lhe sinal para que ficasse em silêncio, na esperança de que o cientista percebesse que entregá-lo não era uma boa ideia.

Um deles tinha de se manter livre para agir.

Trask hesitou, foi erguido de forma repentina, mas nada disse.

Um papagaio gritava através das ruínas da sala de estar, palrando, parecendo dar voz à frustração de Malone.

E este não podia fazer mais o que olhar enquanto Trask e os seus captores desapareciam no escuro emaranhado da selva.

Gray fitou as ruínas da sala de jantar, estudando a selva escura para lá das paredes abertas.

— Portanto, perdeste-o.

— Não havia muito que pudesse fazer — disse Malone, de joelhos, procurando no meio de um emaranhado de cadeiras e mesas viradas. — Em especial depois de o barco ter encalhado.

A cabina de Trask nada revelara. Mas Gray sabia agora que o cientista tinha a amostra escondida consigo. Também ouvira enquanto Malone relatava tudo o que Trask dissera.

Malone estendeu o braço por baixo de uma toalha e sacou a pistola que tinha perdido.

— De muito me serve agora. Qual é o próximo passo?

— Não tens de continuar. Estás reformado. Podes voltar para a tua senhora em Buenos Aires.

— Quem me dera poder. Mas a Stephanie Nelle dava cabo de mim. Temo que tenhas de me aturar. No entanto, vou tentar não atrapalhar.

Gray percebeu o sarcasmo.

Até ver, esta breve parceria entre a Justiça e a Defesa revelara-se infrutífera. Mas com Trask capturado por um grupo de guerrilheiros, por muito que Gray odiasse admiti-lo, precisava de ajuda.

Malone avançou pela sala de jantar até à parede demolida do navio. Gray observou enquanto o antigo agente se curvava e examinava algo. Todos os outros passageiros tinham desaparecido, sendo passados para outros barcos.

— Temos aqui um rasto de sangue.

Ele aproximou-se.

— Só pode ser do Trask — disse Malone. — Ele partiu o nariz quando o navio bateu. Estava a sangrar consideravelmente.

— Então seguimo-lo.

— Vi um barco-patrulha há pouco. Podem tê-lo transportado pelo rio.

— Também vi a embarcação, a partir da cabina. Mas partiu pouco depois de termos encalhado. O ataque, o fogo, o choque... atraiu imenso movimento para o rio.

— Achas que a equipa de terra e a da embarcação estão a planear encontrar-se mais à frente no Amazonas? Onde haverá menos olhos?

— Faz sentido. E isso dá-nos uma janela de oportunidade.

— Uma pequena, que está a encolher rapidamente. — Malone apontou para as gotas de sangue, pisadas pelas botas de um dos guerrilheiros. — Uma vez na selva, será difícil segui-los depois de escurecer.

— Mas eles estão com pressa — disse Gray. — Não estão à espera de que alguém os siga. E terão de se manter perto da margem, dado que esperam por boleia. Com quatro homens e um prisioneiro a reboque, devem ser fáceis de seguir.

O que se revelou verdadeiro.

Poucos minutos depois, avançando através da margem lamacenta, Gray constatou que não era difícil identificar o local onde os guerrilheiros tinham penetrado na floresta. Olhou de relance para trás, para o barco encalhado, o casco inclinado no rio, a popa lançando ainda o seu fumo para a noite que escurecia. Outros navios tinham vindo em seu auxílio. Os passageiros eram transportados para longe, enquanto os fogos se espalhavam a bordo.

Virou as costas às ruínas fumegantes do MV Fawcett.

O barco tinha, sem dúvida, sido batizado em honra do explorador britânico Percy Fawcett, que desaparecera na Amazónia em busca de uma cidade mítica perdida. Gray fitou a selva densa, na esperança de que não os esperasse o mesmo destino.

— Vamos — disse, abrindo caminho.

Nem três metros percorridos depois de penetrarem na densa vegetação, a floresta abafava a pouca luz que restava. A noite envolveu-os. Limitou toda a iluminação a uma pequena lanterna tipo caneta, que apontava em frente, assinalando as marcas deixadas pelas botas no solo lamacento e nos caules partidos dos arbustos. O rasto era fácil de seguir, mas difícil de percorrer. Cada gavinha estava armada de espinhos. Os ramos pendiam baixos. O matagal emaranhado era denso como lã de aço.

Avançaram a custo, movendo-se tão silenciosamente quanto possível. Os sons cada vez mais audíveis da floresta noturna ajudavam a mascarar o seu avanço. A toda a sua volta, ouviam-se gritos, zumbidos, piados e coaxares. O brilho da pequena luz era igualmente refletido pelos olhos que os fitavam. Macacos aglomerados nas árvores. Papagaios que faziam os seus ninhos no topo das árvores. Um par de pupilas maiores — como berlindes amarelos com pontos pretos — brilhou.

Um jaguar ou uma pantera, talvez.

O que não era bom.

Passados quarenta minutos de avanços cautelosos, Malone sussurrou:

— Para a esquerda. É um fogo?

Gray parou e cobriu a lanterna com a palma da mão. Na escuridão, viu um tremeluzir carmesim por entre as árvores.

— Montaram acampamento? — sussurrou Malone.

— Talvez estejam à espera de que caia a noite em pleno antes de avançarem para o rio e para o barco.

— Se forem, de facto, eles.

Só havia uma maneira de descobrir.

Gray apagou a lanterna e continuou em direção ao brilho, reparando que o caminho que percorriam também seguia nessa direção. Foram necessários vinte minutos de avanço cuidadoso para percorrer a distância. Pararam junto a um aglomerado de árvores cobertas de vides, que lhes oferecia cobertura e um ponto elevado para espiar o acampamento.

Gray fitou a clareira.

Cabanas de lama e colmo indicavam uma aldeia nativa. Viu um aglomerado de crianças e uma mão-cheia de homens e mulheres, incluindo um idoso enrugado que segurava um braço ferido. Um dos guerrilheiros do barco mantinha-os sob ameaça de uma arma. O fogo no centro da aldeia teria atraído a sua atenção. Gray viu Trask, de joelhos, junto às chamas. Um dos elementos da guerrilha estava inclinado sobre ele, claramente a gritar, mas era impossível ouvir as palavras. Trask abanou a cabeça, a sua teimosia levou a que fosse agredido com as costas da mão, um gesto que lançou o cientista ao chão. Outro dos assaltantes avançou, equilibrando na palma da mão aberta uma pequena caixa metálica. Os captores tinham, decerto, revistado Trask e encontrado os frascos. Era possível ver o ténue brilho de luzes LED na caixa.

— Trancada com um código eletrónico — comentou Malone.

Gray concordou.

— Que estão a tentar obter de Trask.

— E posso dizer-te, pela nossa pequena conversa, que ele vai fazer-se difícil.

Contou os mesmos quatro guerrilheiros, todos eles fortemente armados. As suas hipóteses não eram boas. Dois para um. E qualquer troca de tiros representava o risco de ferir ou matar os aldeãos.

Um novo grupo surgiu no limite ocidental da aldeia, enchendo um trilho bem desgastado que, provavelmente, conduzia ao rio.

Eram mais seis, aos quais se juntava um sétimo, que se erguia mais alto do que os restantes e que desenrolou o pano preto do rosto. Uma cicatriz profunda corria-lhe pela face esquerda, até ao queixo. Vociferava as suas ordens, que eram cumpridas de imediato.

Era ele quem mandava.

— Isto não é bom — disse Malone.

Não, não era. Os dois para um, acabavam de se transformar em cinco para um.

Os recém-chegados também estavam fortemente armados, com espingardas de assalto, lança-granadas e caçadeiras.

Gray apercebeu-se da futilidade da sua situação. Mas Malone não parecia afetado.

— Nós conseguimos.

Malone observou enquanto a força de assalto erguia Trask e apontava para oeste, em direção ao rio, onde era provável que o barco os aguardasse.

— Não os podemos deixar chegar à água — disse. — Quando abandonarem a aldeia, podemos usar a selva a nosso favor.

— Uma guerra de guerrilha contra guerrilheiros. — Pierce encolheu os ombros. — Gosto. É isso que ensinam na faculdade de direito?

— Na marinha.

Pierce sorriu.

— Com alguma sorte pode ser que, no meio da confusão, consigamos deitar a mão ao Trask e aos frascos.

— Eu contento-me com os frascos.

Os seus alvos deixaram a aldeia.

Mantinham-se discretos, correndo em paralelo. Era curioso que o grupo que seguiam não fizesse qualquer esforço por manter o silêncio. As ordens eram ruidosamente vociferadas, o esmagar das botas e o partir dos ramos anunciava claramente o seu avanço em direção ao rio. O grupo movia-se como se controlasse por inteiro o ambiente que os rodeava, e, num certo sentido, assim era. Estavam a jogar em casa. Mas isso não significava que a equipa visitante não pudesse marcar alguns pontos de vez em quando.

Aproximaram-se da clareira da aldeia e Malone apercebeu-se de que dois dos homens armados tinham ficado para trás, as espingardas de assalto apontadas aos aldeãos.

Um problema.

Aparentemente, os guerrilheiros não tencionavam deixar quaisquer testemunhas. Chamou a atenção de Pierce, comunicando-lhe por gestos o que deveriam fazer. Percorreram a correr a distância em falta, emergindo na clareira, surgindo num instante atrás dos dois homens armados.

Com um tiro no peito, Malone abateu um deles.

Pierce matou o outro.

Os estouros das pistolas revelaram-se sonoros, ecoando na floresta.

Malone deslizou de joelhos e apanhou a espingarda de assalto, ao mesmo tempo que o seu alvo caía. Apontando-a para o céu, lançou uma forte rajada na direção das estrelas. Esperava que os tiros iniciais das pistolas, acompanhados pelo fogo das espingardas, fossem entendidos pelos guerrilheiros em retirada como a sangrenta limpeza da aldeia.

Pierce fez sinal aos locais para se manterem calmos e não estragarem o ardil. O ancião acenou com a cabeça, parecendo compreender, e fez sinal aos outros para que se acalmassem, assegurando-se de que as mães mantinham em silêncio as crianças assustadas, fazendo sinal aos homens para que reunissem o que pudessem, de modo a poderem fugir.

Pierce guardou a SIG Sauer e agarrou na espingarda do guerrilheiro. Malone seguiu-lhe o exemplo. Viu um lança-granadas pousado no chão, perto de um dos corpos. Pensou em levá-lo também, mas o mais certo era que se revelasse um empecilho no espaço apertado da selva. A espingarda e a pistola teriam de chegar.

Fugiram em direção ao trilho seguido pelos guerrilheiros.

Percorridos menos de trinta metros, o vulto sombreado de um guerrilheiro bloqueou-lhes o caminho. Alguém teria sido mandado para trás, para se assegurar de que a aldeia já não era um problema. Antes que conseguissem reagir, o homem abriu fogo, cortando folhas e obrigando-os a mergulhar na vegetação.

Malone rebolou para trás das raízes de uma árvore e virou-se a tempo de ver o brilho dos disparos de Pierce.

Nada mau. Resposta rápida.

O guerrilheiro tinha sido empurrado para trás, o peito aberto pelas balas que lhe mordiam a carne.

O corpo caiu ao chão com um baque surdo.

— Continua — disse Pierce. — Vamos tentar manter-nos nos flancos.

Malone refreou um queixume devido aos joelhos doridos. A guerra na selva era, sem dúvida, para os mais novos.

Mas ele aguentava.

Avançou.

Gray foi acompanhando o progresso de Malone, sincronizando o seu ritmo pelo dele. O que lhes daria jeito era que o barco que esperava o grupo estivesse inutilizado. Infelizmente, faltava-lhes apoio e teriam de lidar com a situação quando lá chegassem.

Continuou a avançar pela floresta, seguindo em paralelo ao caminho percorrido pelos guerrilheiros. Ele de um lado do trilho, Malone do outro, invisível. Um vento ligeiro soprava por entre as árvores. A sua direção parecia a oposta ao rio, para terra. Gritos mais à frente fizeram-no parar. Primeiro em português, depois em inglês.

— Mostra-te ou mato o teu homem.

Gray avançou, devagar e agachado.

Uma clareira abria-se mais à frente, no local onde a copa das árvores caíra recentemente abrindo um buraco na floresta. A luz das estrelas banhava a ferida aberta, revelando o líder da guerrilha. Tinha nas mãos a pequena caixa de aço, o ecrã LED ainda aceso. Outro dos guerrilheiros tinha a boca da espingarda apoiada na parte de trás do crânio de Trask. Gray não queria saber da vida do cientista. Malone partilhara com ele como Trask obtivera aquele prémio e a que preço. Tudo o que queria era apoderar-se da toxina antes que esta escapasse para o laboratório de um qualquer inimigo estrangeiro onde pudesse ser produzida em massa.

— Sai já, ou mato-o — gritou o líder.

No limite da clareira, surgiu mais um par de homens armados.

Só então Gray se apercebeu do seu erro.

O teu homem.

Empurrado sob ameaça de uma arma, um segundo prisioneiro ficou visível, amordaçado, o rosto ensanguentado.

Malone.

Malone continuava com os dedos entrelaçados no topo da cabeça. Tinha sido emboscado pouco depois de se separar de Pierce. Uma sombra impusera-se atrás dele, tapando-lhe a boca com a mão, um braço em redor da garganta. Depois um segundo vulto agrediu-o com a coronha da espingarda no estômago, fazendo-o cair ao chão. Atordoado, fora amordaçado com um dos lenços que os homens usavam para tapar o rosto e obrigado a avançar sob a ameaça da arma. Agora fitava a floresta mais escura, desejando que Pierce não se mostrasse.

Infelizmente, o seu pedido silencioso não foi acatado.

A cerca de vinte metros Pierce emergiu da selva, a espingarda erguida sobre a cabeça, em sinal de rendição.

Um dos captores empurrou Malone para a frente.

Pierce cruzou o olhar com o dele, quando Malone cambaleou para a frente, e com os lábios articulou as palavras Prepara-te para fugir.

Gray passou por Malone e gritou «Rendo-me», o que lhe garantiu a plena atenção do líder da guerrilha.

Atirou para longe a espingarda de assalto, rodando ligeiramente o corpo. Como esperara, todos os olhos seguiram a trajetória da arma através da clareira. Baixou rapidamente o braço, levando a mão à cintura e agarrando a SIG Sauer. Disparou a partir da cintura, derrubando os dois homens armados mais próximos.

Agora para o verdadeiro prémio.

Apontou para o líder e disparou.

Em vez de um tiro certeiro, a bala trespassou a mão esticada do homem, furando a caixa de aço, depois penetrando-lhe o peito. Uma névoa amarelada começou de imediato a expandir, engolindo os que estavam mais próximos. Lembrou-se dos avisos do botânico que Malone lhe transmitira. Se um que seja se partir, matará tudo e todos num raio de noventa metros.

A nuvem espalhou-se.

Começaram os gritos.

Recuou, enquanto a brisa apanhava a nuvem e a empurrava na sua direção. Malone, ainda amordaçado, não precisou que lhe dissessem duas vezes e correu para o trilho. Gray virou-se para o seguir, mas viu uma figura que emergia da nuvem tóxica.

Trask.

O rosto parecia escaldado, os olhos a chorar e cegos. Outros passos e uma convulsão agitou-lhe todos os músculos, fazendo o corpo perder o equilíbrio e cair ao chão.

Não haveria pessoa mais indicada a quem acontecer aquilo.

Gray virou-se e correu atrás de Malone. O perigo, empurrado pelo vento, rolava atrás dele. Olhou de relance para trás, para a devastação que se espalhava. Os macacos caíam dos ramos das árvores. Os pássaros levantavam voo e desciam até ao chão. Tudo o que andasse, deslizasse ou voasse parecia sucumbir de imediato. Alcançou Malone e, juntos, desceram a correr a parte final do trilho e entraram na clareira da aldeia.

Que infelizmente não estava vazia.

Os habitantes locais ainda lá estavam, não tendo tido tempo para evacuar a aldeia. As crianças correram para trás das pernas das mães, assustadas com a aparição súbita deles, pensando que os guerrilheiros poderiam ter regressado. O facto de Malone estar amordaçado e ensanguentado não ajudava. Gray estacou e virou-se de frente para o trilho. Por cima da copa das árvores um grupo de morcegos voava em círculos e dardejava, começando a sua refeição noturna de insetos. Depois começaram a cair dos céus, primeiro os mais distantes, a seguir os mais próximos.

A morte corria na direção deles, empurrada pelo vento.

Virou-se para os aldeãos e viu rostos assustados. Nenhum deles, incluindo o próprio Gray, seria capaz de correr suficientemente depressa para escapar à nuvem.

O seu tiro errante tinha-os condenado a todos.

Malone procurou a sua única esperança, colocando-se de novo de joelhos e agarrando no lança-foguetes.

Uma verificação rápida confirmou que a arma estava carregada.

Graças a Deus.

— O que estás a fazer? — gritou Pierce.

Não havia tempo para explicar.

Levou a arma ao ombro, apontou para o trilho e disparou. A arma saltou contra o seu rosto, cuspindo fumo atrás dele. Uma granada assobiou num arco tenso, depois saiu lançada pela abertura do trilho.

Uma explosão de fogo iluminou a noite.

As árvores irromperam numa chuva ardente de ramos e folhas.

O calor chegou até ele. Seria suficiente? As palavras de Trask ecoavam na sua mente. No que dizia respeito àquela toxina, não havia cura ou descontaminação. Exceto a incineração.

Malone tirou a mordaça.

O fogo espalhou-se a partir do ponto da explosão. As chamas dançavam na noite. O fumo subia, mascarando as estrelas, consumindo todo o ar à sua volta, o que, com sorte, incluiria a toxina. Susteve a respiração, não que isso o salvasse caso a nuvem ali chegasse. Depois, no limite da floresta, uma sombra escura saltou para a sua frente, um farrapo de uma sombra viva. Uma pantera. As garras amareladas enterravam-se na terra. Os olhos escuros refletiam o brilho da fogueira. O grande felino silvou, mostrando os dentes, depois saltou para o lado, mergulhando de novo na floresta escura.

Vivo.

Um bom presságio.

Esperou mais um minuto. Depois outro.

A morte nunca veio.

Pierce juntou-se a ele, dando-lhe uma palmadinha no ombro.

— Fizemos aqui uma bela equipa. E isso é que foi pensar depressa, velhote.

Malone baixou a arma.

— A quem estás tu a chamar «velhote»?


DUAS CABEÇAS SÃO MELHORES DO QUE UMA

A história anterior não foi a minha primeira tentativa de coescrita de um projeto. Essa honra duvidosa cabe a uma autora de talento indiscutível, Rebecca Cantrell.

Conheci Rebecca num retiro para escritores associado à Maui Writers Conference. Eu liderava um pequeno grupo de autores durante esse retiro de fim de semana e deparei-me com uma escritora claramente talentosa já prestes a ser publicada. Era de tal forma talentosa que até me apoiei nela enquanto lecionava aquela aula. Depois, mantivemos o contacto, e o primeiro livro da sua série de mistérios Hannah Vogel (A Trace of Smoke) foi publicado pouco depois, com grande aclamação.

Os anos passaram, e como tantas vezes acontece, descobri uma nova história enquanto fitava o quadro de Rembrandt A Ascensão de Lázaro. Tratava-se de uma nova perspetiva sobre o vampirismo e a Igreja Católica. A ideia ficou-me presa na mente e não conseguia afastá-la. Por fim, fiz alguma investigação, construí uma nova mitologia, juntamente com um panteão de personagens. O único problema: não acreditava que se tratasse de uma história à qual sozinho pudesse fazer verdadeira justiça. Não estava bem no meu território. Sentia-me confiante de que podia dar vida às criaturas em cada página, até construir um enredo que se assemelhasse a uma montanha-russa, repleto de quedas súbitas e reviravoltas inesperadas, mas esta história também precisava de uma qualidade gótica e rica que seria difícil de alcançar sozinho.

Ao reconhecê-lo, contactei Rebecca. Eu sabia que ela tinha as competências necessárias para ajudar a conceder a melhor luz a esta história e perguntei-lhe se estaria disposta a trabalhar neste projeto comigo.

Ela perguntou: «É sobre o quê?»

Eu disse: «Vampiros.»

Ela respondeu: «Nem pensar.»

Depois apresentei lentamente o projeto, partilhando a história — tanto canónica como sobrenatural — juntamente com o seu conjunto de personagens. Ela foi lentamente conquistada e começámos a trabalhar juntos nesta história. Nunca nenhum de nós tinha escrito um livro em parceria, por isso tivemos ambos de aprender a fazê-lo. Depressa nos apercebemos que um dos melhores aspetos de um projeto conjunto residia no facto de termos duas mentes às quais recorrer. Podíamos desafiar-nos mutuamente, resolver problemas com que o outro se deparasse, chorar juntos nas trincheiras. Era difícil, mas mágico à sua maneira. Acredito que o resultado final foi algo melhor do que qualquer um de nós poderia ter produzido sozinho.

Para lhe dar um gostinho desta colaboração, os dois contos que se seguem estão relacionados com os dois primeiros romances dessa série vampírica. «Cidade dos Gritos» é uma história fantasmagórica que precede o primeiro livro da série A Ordem dos Sanguinistas, O Evangelho de Sangue. O conto apresenta uma das principais personagens do romance numa aventura a solo nas ruínas assombradas de um Afeganistão dilacerado pela guerra. A segunda história — «Irmãos de Sangue» — apresenta de forma mais direta os vampiros e mergulha na forma como o seu passado assombra o presente.


CIDADE DOS GRITOS

JAMES ROLLINS E REBECCA CANTRELL

23 de outubro, 14h09

Cabul, Afeganistão

Começava com os gritos.

O sargento Jordan Stone escutou uma vez mais o fragmento de uma chamada de SOS que chegara ao comando militar em Cabul, às 4h32 da manhã. Assentou os cotovelos na gasta mesa cinzenta, as palmas a apertar os auscultadores enormes contra as orelhas, tentando retirar todas as pistas que a gravação tivesse para oferecer.

Um almoço de kebab de carneiro e pão lavash aguardava esquecido, embora o cheiro a caril e cardamomo ainda permeasse o ar, contribuindo para as náuseas que sentia enquanto escutava. Estava sentado, sozinho, numa pequena sala sem janelas, na Academia de Técnicas Criminais afegã, um edifício de um só piso, sem nada que o diferenciasse dos restantes, nos limites do aeroporto de Bagram, às portas de Cabul.

Mas a mente estava lá fora, perdida no tiroteio registado na gravação.

Esforçou-se, de olhos fechados, escutando pela décima quarta vez.

Primeiro os gritos, depois um chorrilho de palavras:

Vêm lá outra vez... ajudemnosajudemnosajudemnos...!

O som ia e vinha, mas isso em nada ajudava a esconder o terror e o pânico daquelas palavras simples.

Seguiram-se os disparos — frenéticos, esporádicos, descontrolados, ecoando à sua volta. Mas o que lhe fez levantar os pelos finos da nuca foi o silêncio que se seguiu, uma espécie de vácuo enquanto o rádio continuava a transmitir. Ao fim de dois minutos, uma frase solitária, rouca, distorcida e ininteligível fez-se ouvir, como se os lábios do seu emissor estivessem suficientemente perto para raspar no microfone. Essa intimidade, mais do que qualquer outra coisa, fê-lo rilhar os dentes.

Jordan esfregou os olhos, depois afastou os auscultadores das orelhas. Claramente, o que quer que fosse tinha terminado mal, às primeiras horas da madrugada. Daí a necessidade de chamarem a equipa de Jordan. Ele e os seus homens trabalhavam para a JEFF, a Joint Expeditionary Forensic Facility, a partir de Cabul. A sua equipa atuava como investigadores do local do crime para os militares: reunindo provas de insurgentes suspeitos, examinando e testando bombas caseiras, desmantelando os telemóveis encontrados nos campos de batalha ou em emboscadas. Se houvesse um mistério, cabia-lhes a eles resolvê-lo.

E eram bons naquilo que faziam. Também haveriam de solucionar aquele caso.

— Tenho mais informações — disse o especialista Paul McKay quando entrou e se deixou cair numa cadeira metálica. Esta rangeu sob o seu peso. O homem erguia-se uma cabeça acima e uma barriga a mais do que Jordan, e sabia do seu ofício, tendo sido recrutado à Divisão de Engenhos Explosivos. Esperto e inabalável.

— A gravação foi feita por uma equipa arqueológica no vale de Bamiyan. Quatro homens e uma mulher. Todos americanos. O comando enviou uma equipa de Rangers para guardar o local. Temos uma hora para descobrirmos o que conseguirmos aqui, depois teremos de os seguir para o campo.

Jordan assentiu. Estava habituado à pressão, apreciava-a, até. Mantinha-o em movimento, impedia-o de pensar demasiado.

— Vou trabalhar nesta mensagem. Tu e o Cooper reúnam um kit de homicídio completo e encontramo-nos no helicóptero.

— Certo, sargento. — McKay dirigiu-lhe uma continência rápida e saiu apressado.

Jordan escutou de novo a misteriosa frase no final da mensagem, após o que chamou os tradutores. Isso de nada serviu. Nenhum deles lhe conseguia dizer, sequer, que língua poderia ser aquela; nem mesmo os afegãos locais a reconheciam. Alguns alegavam que não seria sequer humana, mas pertencente a algum tipo de animal.

Alguém localizou rapidamente um historiador e arqueólogo britânico, o professor Thomas Atherton, que tinha estado a trabalhar com a equipa em Bamiyan, e levou-o a Jordan. Académico em boa forma e robusto, de sessenta e poucos anos, o arqueólogo tinha viajado para Cabul dois dias antes, para lhe tratarem um braço partido. Enquanto ouvia os gritos, o historiador empalideceu. Deslizou uma mão pelo cabelo grisalho, de corte aprumado.

— Acho que é a minha equipa, mas não posso ter a certeza. Nunca os ouvi gritar dessa maneira. — Estremeceu. — O que os poderá ter feito gritar assim?

Jordan entregou-lhe um copo de plástico com água.

— Temos um helicóptero cheio de Rangers a caminho para os ajudar.

O professor parecia achar que a ajuda chegaria tarde demais. Ajustou os óculos de aro fino no nariz estreito e nada disse. Quando ergueu o copo, a mão tremia-lhe de tal maneira que entornou água sobre a secretária. Voltou a pousar o copo, batendo com o gesso na mesa.

Jordan deu-lhe um minuto para se recompor. Ouvir a morte dos colegas tinha-o afetado profundamente, uma reação natural.

— Aquela última frase. — Jordan andou para trás com a gravação até chegar àquela última frase sussurrada. — Sabe em que língua é?

Voltou a passar a gravação para Atherton.

Um músculo sob um dos olhos do professor estremeceu.

— Não pode ser.

Agarrou a beira da mesa com as duas mãos, como se estivesse à espera de que esta saísse a voar. O que quer que fosse, deixava-o ainda mais nervoso do que os gritos.

— Não pode ser o quê? — perguntou Jordan.

— Bactriano. — O professor sussurrou a palavra. Os nós dos dedos ficaram brancos quando ele apertou a beira da mesa com mais força.

— Bactriano? — Jordan já tinha ouvido falar de camelos bactrianos, mas nunca de uma língua bactriana. — Professor?

— Bactriano. — O professor fitou os auscultadores como se estes lhe estivessem a mentir. — Uma língua perdida do norte do Afeganistão, um dos dialetos menos conhecidos do iraniano médio. Não é falada desde... há séculos.

Estranho.

Portanto, alguém atacara um grupo de arqueólogos, deixando em seguida uma mensagem numa língua antiga. Ou teria a mensagem sido deixada por um sobrevivente? Fosse como fosse, para Jordan aquilo não parecia um ataque insurgente.

— Pode dizer-me o que significa?

Ao responder, o professor não ergueu os olhos da mesa.

— A rapariga. Significa a rapariga é nossa.

Ainda mais estranho.

Jordan moveu-se na cadeira, ansioso. Seriam aquelas últimas palavras uma ameaça? Indicariam que um dos elementos da equipa — uma mulher — ainda estava viva e mantida refém ou torturada? Há alguns anos poder-se-ia ter perguntado quem faria tal coisa, mas agora sabia. Quando se tratava de lidar com as forças talibãs ou tribos isoladas, já nada surpreendia Jordan.

E isso preocupava-o.

Como é que um rapaz do Iowa rural tinha acabado no Afeganistão a investigar homicídios? Ele sabia que ainda se parecia com quem fora, com o cabelo louro como o trigo, límpidos olhos azuis e rosto de maxilar quadrado. Ninguém precisava de ver a bandeira de estrelas e riscas no ombro da farda para saber que ele era americano. Contudo, se olhasse mais de perto — para as cicatrizes no seu corpo, para aquilo que os seus homens chamavam o olhar vazio — veria um outro lado dele. Perguntou-se quão bem se enquadraria naqueles milheirais da sua antiga casa. Se algum dia poderia regressar.

— Quantas mulheres estavam no local? — perguntou Jordan.

A porta abriu-se e McKay espreitou para o interior, um dedo a apontar para o pulso.

Está na hora de ir.

Jordan ergueu uma mão, dizendo-lhe que esperasse.

— Professor Atherton, quantas mulheres estavam no local?

O professor fitou-o durante um longo segundo antes de responder.

— Três. A Charlotte. Quer dizer, a doutora Bernstein, da Universidade de Chicago, uma mulher local que cozinhava para nós e a filha dela. Uma menina. Talvez com uns dez anos?

Jordan sentiu o estômago às voltas, perturbado com a ideia de que uma criança pudesse ter sido apanhada pelo que parecia ser um massacre. Também se deveria sentir ultrajado. Procurou o sentimento, mas tudo o que descobriu foi a desilusão e a resignação.

Estou assim tão empedernido?

23 de outubro, 16h31

Vale de Bamiyan, Afeganistão

Jordan olhava pela janela do helicóptero para o vale em baixo em forma de taça. Enquadrado pelas cordilheiras montanhosas salpicadas de neve, a norte e a sul, o vale estendia-se por perto de cinquenta quilómetros, um oásis de terras agrícolas e ranchos de ovelhas aninhado entre os picos pedregosos do Hindu Kush. Embora ficasse a um curto salto de helicóptero sobre as montanhas, a cidade de Cabul parecia a um milhão de quilómetros daquele vale isolado.

Contornaram a aldeia vazia, onde os arqueólogos tinham montado acampamento. A aldeia era pouco mais que um pequeno aglomerado de uma dúzia de edifícios de tijolos de lama, alguns com telhados de colmo, outros cobertos por chapas de metal enferrujado, outros abertos para o céu de onde a neve caía. Aparentemente, não vivia lá ninguém muito tempo antes de os arqueólogos se terem mudado.

A neve caía à sua volta, flocos espessos, fofos, que se acumulavam no chão e obscureciam quaisquer provas. Jordan movia-se impacientemente no seu banco. Se não chegassem em breve, a sua presença de nada serviria. Além disso, com o sol a pôr-se na próxima meia hora, estavam prestes a ficar sem luz do dia.

Aterraram, e ele e a sua equipa, que agora incluía o professor Atherton, percorreram o caminho até ao local identificado pelos Rangers como local do crime. Jordan levara o professor com ele para o caso de precisarem de um tradutor de bactriano.

Ou alguém para identificar os corpos dos arqueólogos. Esperava que o professor fosse capaz de cumprir a tarefa. O tipo tinha-se mostrado cada vez mais nervoso à medida que se aproximavam do local. Começara a esgaravatar a ponta do gesso.

Jordan percorreu cuidadosamente os limites da horripilante cena do crime. A neve que espessava e os passos descuidados já tinham perturbado os pormenores do crime, mas sem esconderem o sangue.

Havia demasiado: salpicava as paredes de pedra que desmoronavam de ambos os lados da estrada de terra compactada, arrastado para um trilho vermelho-ferrugem que saía da aldeia. A mancha larga parecia a impressão digital do polegar de um deus sangrento. Parecia que esse mesmo deus roubara os corpos, deixando apenas as provas de um massacre recente.

Mas para onde teriam sido levadas as vítimas? E porquê?

E como?

Fitou os flocos pesados que caíam de um céu cinzento cada vez mais carregado. Tudo o que lhes restava eram farripas de luz do dia.

— Tratem toda a aldeia como o cenário de um crime — indicou aos seus dois colegas de equipa. — Quero tudo intacto. E não quero que mais ninguém entre aqui até termos terminado.

— Em casa roubada, trancas à porta? — McKay bateu no rosto para se proteger da baixa temperatura e apertou o equipamento para o frio ainda mais sobre os ombros largos. Apontou para a impressão de uma bota que marcava uma poça de sangue. — Parece que alguém se esqueceu de tirar os sapatos.

Jordan reconheceu a marca de uma bota das forças armadas dos EUA. Aquela infeliz contaminação do local do crime era, decerto, o resultado da passagem da equipa de Rangers que fechara o vale nas horas anteriores, garantindo a segurança da zona para a chegada da equipa de Jordan.

— Então aprendamos a lição e mantenhamos os nossos próprios passos leves a partir daqui — avisou Jordan.

— Certo. Leves como uma pena — confirmou o seu segundo colega de equipa. O especialista Madison «Mad Dog» Cooper pousou uma grande mão preta sobre o ombro de McKay e tocou no amplo estômago do amigo com a outra. — Mas isso pode ser um problema para o McKay. Em Cabul, tem passado mais tempo na fila da messe do que no ginásio.

McKay empurrou-o.

— Não é uma questão de peso. É uma questão de técnica.

Cooper fungou.

— Eu fico com o lado norte. Tu cobres o lado sul.

McKay acenou, puxando a mochila mais para cima no ombro e pegando na câmara Nikon digital, pronto para começar a fotografar o local.

— O primeiro a voltar com uma pista a sério paga a próxima rodada quando regressarmos a casa.

— Como se precisasses de mais uma cerveja nessa tua grande barriga — disse Cooper, acenando-lhe em sinal de despedida.

Jordan observou-os, enquanto se afastavam em diferentes direções, seguindo o protocolo, preparando-se para passar a pente fino a periferia da vila, em busca de marcas de pneus, pegadas, armas abandonadas, qualquer coisa que lhes permitisse identificar os perpetradores do ataque. Os seus dois homens eram acompanhados, cada um deles, por um agente da polícia afegã — um chamava-se Azar; o outro Farshad — ambos estudantes da Academia de Técnicas Criminais afegã.

Jordan sabia que a troca de palavras entre os seus dois colegas de equipa mascarava a sua inquietude. Leu-o nos seus olhos. Não gostavam da situação, tal como ele. Uma cena do crime sangrenta, sem corpos, no meio do nada.

— Porque haveria alguém de viver aqui? — balbuciou, sem esperar uma resposta, mas obtendo-a.

— É possível que tenha sido esse isolamento a atrair os primeiros monges budistas para este vale — disse o professor Atherton atrás de si. Jordan quase tinha esquecido a sua presença.

— Como assim? — Jordan retirou da mala a sua câmara de vídeo. Se a neve continuasse, era provável que aquelas imagens fossem tudo o que lhes restasse. Desenhou uma grelha mental e avançou até ao limite. Tirou as luvas para poder usar a câmara. — Por favor, fique atrás de mim e não pise o local do crime.

Atherton inspirou longamente através do nariz estreito, os olhos dardejando de um lado para o outro, como se tivesse medo de se fixar num qualquer pormenor. Quando falou, a voz era aguda e apressada.

— Todo este vale era reverenciado pelos budistas. Desenvolveram um vasto complexo monástico, escavando grutas de meditação e túneis nos penhascos. Algumas das primeiras pinturas a óleo ainda decoram as paredes daquelas grutas.

— Mmm-hmm. — Jordan adaptou a câmara à luz fraca. Queria apanhar todos os pormenores que conseguisse.

O professor virou as costas ao vale fitando os penhascos e continuou com o que parecia um discurso muitas vezes proferido, caindo numa narrativa monótona.

— Os monges esculpiram estátuas colossais de Buda na face dos penhascos há séculos. Se semicerrar os olhos, ainda consegue identificar os nichos que, outrora, as abrigaram.

Jordan fitou os penhascos amarelos distantes e conseguiu distinguir as bolsas escuras que marcavam o túnel e a abertura das grutas, juntamente com as arcadas gigantescas, os nichos de que o professor falava.

— Os Budas que os talibãs destruíram em 2001 — disse Jordan, recordando a reação internacional.

— É pena, mas é verdade. Vieram com tanques e bombas e fizeram explodir as famosas estátuas, declarando-as um insulto ao Islão. — O professor manteve os olhos fixos nos penhascos distantes, claramente tentando não olhar para o sangue à sua volta. Sangue que poderia ter sido o seu. Falou mais um pouco, a sua voz nunca abandonando aquele tom uniforme. Jordan começava a achá-lo um bocado assustador. — Tudo o que resta dos antigos colossos são aqueles nichos vazios e os destroços. É como se este vale estivesse amaldiçoado.

Jordan apercebeu-se de que a atenção do professor se tinha virado dos penhascos para um monte alto, sobranceiro à minúscula aldeia, que lançava a sua sombra sobre o local do crime. Conseguiu distinguir ruínas de paredes de pedra, partes de parapeitos antigos e secções de torres. Fê-lo pensar num castelo de areia feito por uma criança e depois espezinhado e abandonado aos elementos. A superfície tinha sido erodida pela chuva, pelo vento e pela neve, até todo o edifício se ter dissolvido numa versão distorcida de si mesmo, esboroando-se em areia e pedra, com meras sugestões do seu passado ainda visíveis.

— Se este vale está, de facto, amaldiçoado — continuou Atherton —, eis a origem. Os muçulmanos chamam àquele conjunto de ruínas Mao Balegh, que significa Cidade Amaldiçoada.

Jordan sentiu a curiosidade crescer face àquelas palavras, juntamente com uma pontada de medo. Havia algo naquele local que o perturbava e eram poucas as coisas que o deixavam desconfortável.

— O que lhe aconteceu? — Continuou a filmar. Mais valia retirar alguma informação de contexto ao professor enquanto ele falava.

— Traição e massacre. Mas, como tantas histórias, começou com um trágico par de jovens amantes. — O professor fez uma pausa, como se esperasse uma reação de Jordan.

Jordan não tinha tempo para lhe fazer a vontade. Tentou mover-se um pouco mais depressa. O vale estava a perder a luz depressa e no dia seguinte a neve já teria coberto tudo. Odiava a ideia de terem de terminar a sua investigação depois de escurecer, quando poderiam deixar escapar algo vital.

— Esta cidade foi, outrora, uma das mais ricas do Afeganistão. — O professor apontou para as ruínas com o braço envolto em gesso. — Servia não só como centro monástico, mas também como importante posto comercial para as caravanas que viajavam pela Rota da Seda, da Ásia Central até à Índia. Para proteger essa riqueza, um rei shansabani chamado Jalaludin construiu aquela cidadela. Durante um século, foi considerada inexpugnável, crescendo até ser habitada por mais de cem mil pessoas. As histórias dizem que estava repleta de passagens secretas que permitiam aos defensores atacar os seus inimigos. Tinha até a sua própria nascente subterrânea, para poder suportar com maior facilidade os cercos prolongados.

— Então, como acabou assim? — As ruínas estavam claramente longe dos seus dias de glória. Jordan filmou um grande plano de uma mancha de sangue, tentando obter uma imagem nítida sob a luz fraca.

— Gengis Khan. De ascendência mongol, queria assumir o controlo deste vale. Por isso enviou o seu neto preferido para negociar uma conquista pacífica, mas em vez disso o jovem foi morto. Assim, Khan fez avançar as suas forças para o vale, jurando matar todas as criaturas vivas como castigo. Mas uma vez chegado, as suas enormes forças não conseguiram encontrar forma de penetrar na cidadela.

Continuando a filmar, Jordan deu mais um cauteloso passo em frente.

— Deve ter encontrado uma forma. Disse qualquer coisa sobre uma traição...

A voz inflexível prosseguiu.

— E uma história de amor. A filha única do rei tinha-se apaixonado durante os meses que antecederam o cerco. Mas o pai recusara-lhe o jovem que desejava como pretendente, decapitando-o quando o casal tentou fugir. De coração partido e furiosa, deixou a cidadela e abordou Gengis Khan a coberto da escuridão. Para vingar o seu amor, mostrou aos mongóis as passagens secretas, disse a Gengis Khan onde se escondiam as forças do rei e revelou a localização da nascente subterrânea.

Jordan escutou a história apenas com um ouvido, concentrando-se no seu trabalho, terminando um dos lados. Os seus esforços não eram tão cuidadosos quanto teria gostado, mas as condições estavam a piorar. Atravessou para o outro lado da rua, limpou um floco de gelo derretido da lente e filmou o seu avanço.

Atherton manteve o silêncio durante um segundo, depois, voltou a falar subitamente como se nunca tivesse parado.

— E quando Gengis Khan derrubou as muralhas, fez o que tinha prometido. Matou todos os habitantes da cidade, mais de cem mil pessoas. Mas não se ficou por aí. Diz-se que chacinou todos os animais que viviam nos campos. Foram esses atos sombrios que deram à cidade o nome que hoje usa. — O professor estremeceu. — Shahr-e-Gholghola. A Cidade dos Gritos.

— E o que aconteceu à filha? — Jordan apercebera-se de que o professor falava quando estava nervoso. Precisava de uma história antiga para o distrair da realidade do que acontecera aos seus colegas.

— Gengis trespassou-a com a espada, por ter traído o pai. Diz-se que os seus ossos, juntamente com os dos outros mortos, tanto homens como animais, continuam enterrados naquele monte. Até hoje, nunca foram encontrados. — Atherton olhou de relance para o trilho ensanguentado que seguia até uma fenda na montanha a algumas centenas de metros e piscou os olhos. O seu tom de voz esmoreceu, dando lugar a um sussurro suplicante. — Mas estávamos perto. Tínhamos de trabalhar tanto quanto possível antes da chegada do inverno. Tinha de ser. Tínhamos de desenterrar quaisquer artefactos históricos existentes e garantir a sua segurança antes que nos arriscássemos a vê-los sofrer o mesmo destino das estátuas de Buda. Tínhamos de trabalhar depressa para alcançar os artefactos, para os salvar.

— A equipa pode ter sido atacada por causa do que descobriu nos últimos dias, depois de o professor ter partido? Talvez algum tipo de tesouro?

— Impossível — disse o professor. — Se as histórias em relação a este local são verdadeiras, Gengis Khan levou tudo o que existia de valor antes de destruir a cidade. Nunca encontrámos nada por que valesse a pena matar. Mas as tribos supersticiosas não queriam que perturbássemos este túmulo gigantesco dos seus antepassados. As histórias sobre fantasmas, djinns e maldições abundam, e eles tinham medo de que despertássemos um qualquer mal. Talvez o tenhamos feito.

Jordan deixou escapar um fungar suave.

— Estou menos preocupado com os inimigos mortos do que com os vivos.

Estava satisfeito por ter o apoio dos Rangers. Não confiava no professor ou nos habitantes locais, nem mesmo nos formandos afegãos sob o seu cuidado. Ali, as lealdades alteravam-se em menos de um segundo. Raios, aquele rei shansabani perdera o reino porque nem na própria filha podia confiar.

Virou as costas às ruínas e fitou um par de helicópteros Chinook CH-47 que repousavam a um quilómetro de distância, a neve cobrindo as pás, posicionados nos limites da cidade vizinha de Bamiyan. Tinham uma equipa de investigadores a interrogar os aldeãos. Todos lutavam contra a noite.

Jordan desligou a câmara. Estudaria o vídeo depois, mas por ora queria pensar, sentir a cena.

O que poderia dizer a partir do que observara? Alguém tinha atacado os arqueólogos com uma brutalidade raramente vista. Havia sangue por todo o lado. Parecia que tinha ocorrido uma luta de facas, não uma troca de tiros, o sangue jorrando em arco de uma miríade de golpes, não em grandes manchas como acontecia com os ferimentos de bala. Mas o sangue era tanto que se tornava difícil ter a certeza.

Quem tinha feito aquilo... e porquê?

Teriam os talibãs considerado o trabalho que ali estava a ser realizado como uma afronta religiosa? Ou talvez um grupo de habitantes locais oportunistas tivesse raptado os arqueólogos como parte de um esquema de resgate que se tivesse descontrolado? Ou talvez o professor estivesse certo — as tribos supersticiosas tinham-nos matado porque temiam o que os arqueólogos ali poderiam perturbar. Esperava que os Rangers tivessem mais sucesso do que a sua equipa, porque ele não gostava de nenhuma daquelas respostas.

Por aquela altura, a neblina gelada tornara-se mais espessa, a queda de neve mais pesada, apagando lentamente o mundo à sua volta. Jordan perdeu de vista os helicópteros, a cidade distante de Bamiyan. Até as ruínas vizinhas de Shahr-e-Gholghola tinham desaparecido quase por completo, oferecendo meros vislumbres das pedras e das ruínas.

Era como se o mundo tivesse encolhido até às dimensões daquela pequena aldeia.

E dos seus segredos sangrentos.

O professor tirou a luva e curvou-se para apanhar alguma coisa.

— Pare! — gritou Jordan. — Isto ainda é um local de crime.

O professor apontou para um pedaço de tecido verde-mar congelado numa poça de sangue. A sua voz tremia.

— Aquilo é da Charlotte. Do casaco dela.

Jordan estremeceu. Havia muitas formas cruéis e sem sentido de morrer.

— Lamento, professor Atherton. — Jordan afastou os olhos do rosto angustiado do professor e fitou as suas próprias mãos. A mão direita torcia a aliança de ouro de um lado para o outro no dedo. Um hábito nervoso. Largou o anel.

Passos pesados, apressados e determinados, fizeram-se ouvir à sua esquerda. Girou sobre si mesmo, libertando a arma, uma pistola metralhadora Heckler & Koch MP7 compacta.

A forma de McKay surgiu da neblina, seguido por Azar, o seu formando afegão.

— Sargento, olhe para isto.

Jordan guardou a arma e acenou a McKay para que avançasse.

O cabo aproximou-se e usou o corpo para proteger a câmara Nikon da neve que soprava.

— Tirei fotografias de uns rastos que encontrei.

— Pegadas?

— Não. Veja.

Jordan baixou os olhos para o minúsculo ecrã digital. Mostrava um rasto de pegadas ensanguentadas através de uma extensão de rocha coberta de neve.

— Isso são marcas de patas?

McKay avançou mais algumas fotos, mostrando um grande plano das impressões.

— Sem dúvida um animal de algum tipo. Talvez um lobo?

— Um lobo não — interveio Azar num inglês afetado. — Um leopardo.

— Leopardo? — perguntou McKay.

Azar aproximou-se deles e acenou com a cabeça.

— Os leopardos das neves vivem nestas terras há milhares de anos. Há muito tempo eram o símbolo real deste local. Mas agora já não restam muitos. Talvez algumas centenas. Atacam as ovelhas e as cabras dos agricultores. Não as pessoas. — Coçou a barba. — Não houve chuva suficiente este ano, mesmo no início do inverno. Talvez tenham descido em busca de alimento.

Aquela era uma ameaça que até àquele momento nem sequer ocorrera a Jordan. Sentia-se melhor ao pensar que tinham sido animais a atacar os arqueólogos. Animais era algo com que podia lidar. Os leopardos não tinham armas, e não era provável que permitissem que os habitantes locais os abrigassem. Também explicava a ferocidade do ataque, a troca de tiros e o sangue. Mas poderia ser assim tão simples?

Jordan endireitou-se com um abanar da cabeça.

— Não sabemos se os felinos os mataram. Podem ter-se aproximado mais tarde em busca de alimento. Se calhar foi por isso que não encontrámos os corpos. Por terem sido levados para onde quer que esteja o bando dos leopardos...

— Alcateia de leopardos — corrigiu McKay, sempre atento aos pormenores. — Os animais ferozes formam alcateias.

Atherton dobrou-se sobre si mesmo.

— Se foram os felinos a levar os corpos, estão por perto. Apontou o olhar na direção das ruínas. — Este local está pejado de esconderijos. Bem como de minas terrestres deixadas pelas muitas décadas de guerra que aqui foram travadas. É preciso terem cuidado onde põem os pés naquelas ruínas.

— Excelente — resmungou McKay —, como se não tivéssemos problemas de sobra com leopardos devoradores de homens. Também temos minas.

Jordan tinha mapas da área onde haviam sido assinaladas as minas, mas não ansiava por percorrer aquele labirinto para recuperar os corpos — em especial no escuro —, embora soubesse que isso se poderia tornar necessário. Era possível que ainda existissem naqueles cadáveres estropiados pistas sobre quem matou os arqueólogos. Não podiam ser leopardos, apercebeu-se. Os leopardos não sussurram em línguas antigas. Assim sendo, as palavras tinham provindo ou de um sobrevivente ou de um assassino. Tinham de partir de imediato. Quanto mais tempo esperassem, menos provável seria que um possível sobrevivente continuasse vivo, ou que o homicida pudesse ser presente à justiça.

— Quão grandes são estes felinos? — perguntou Jordan.

Azar encolheu os braços.

— Grandes. Já ouvi falar de machos que chegam aos oitenta quilos.

Jordan fez as contas, convertendo os quilos na unidade de peso utilizada nos EUA.

— Isso são cerca de cento e setenta e cinco libras.

Assustador, mas não demasiado.

McKay apresentou o seu desacordo.

— Então é melhor olharem para isto.

Passou para outra fotografia, uma que mostrava a impressão de uma pata com uma moeda brilhante ao seu lado, para revelar a perspetiva do seu tamanho.

Jordan sentiu um medo frio profundamente enraizado, uma reação primitiva que remontava ao tempo em que os seus antepassados se reuniam em cavernas para se protegerem dos seres que caçavam na noite. A impressão da pata parecia ter cerca de vinte centímetros de diâmetro, o tamanho de um prato de jantar pequeno.

— Encontrei uma outra série de rastos. — McKay mostrou-lhos na câmara.

Terminava com outra impressão de uma pata, uma vez mais fotografada com uma moeda, esta mais pequena, não por muito, mas claramente diferente.

— Portanto, há pelo menos dois felinos a caçar aqui — disse Jordan.

— E ambos com muito mais de oitenta quilos — acrescentou McKay. — Estimo o dobro disso, talvez mais. O tamanho dos leões africanos.

Jordan fitou as ruínas cobertas de neblina, recordando a história de dois leões africanos, aos quais haviam chamado O Fantasma e A Escuridão, que aterrorizaram o Quénia durante quase um ano no virar do século. Dizia-se que os dois leões tinham matado mais de cem pessoas, muitas vezes arrancando-as das suas tendas a meio da noite.

— Vamos precisar de mais poder de fogo — disse McKay, como se lesse a mente de Jordan.

Infelizmente, a equipa viajara até ali leve, uma arma para cada. Estavam a contar chegar e partir antes de escurecer. Além disso, com uma unidade de Rangers nas proximidades, parecia-lhes que teriam proteção suficiente.

Isso, até àquele momento.

Um estalar no rádio levou Jordan e McKay a estremecer e a levar a mão aos auriculares. Era Cooper.

— Tenho movimento do meu lado — transmitiu Cooper. — Dentro da aldeia. Vi um tremeluzir através de janelas.

— Fica onde estás — ordenou Jordan. — Vamos ter contigo. E fica atento à presença de leopardos. É possível que não estejamos sós.

— Entendido. — A voz de Cooper soava mais irritada do que assustada. Mas ele não vira os rastos.

Depois de Cooper ter transmitido a sua localização, Jordan guiou os outros ao lado oposto da aldeia. Encontrou Cooper agachado com Farshad, junto a um amontoado de pedregulhos no limite da aldeia. As ruínas de Shahr-e-Gholghola erguiam-se atrás da sua posição. Jordan sentia-se inquieto em voltar as costas ao túmulo montanhoso para fitar a aldeia.

— Ali — disse Cooper, e apontou com a espingarda para uma pequena casa de tijolos de lama com o telhado de colmo coberto pela neve. A porta estava fechada, mas a janela encontrava-se virada para eles. — Está ali alguém.

— Ou talvez te estejas a assustar com as sombras — disse McKay. — Os Rangers verificaram todos os edifícios. Não encontraram nada.

— O que não significa que não se possa ter esgueirado alguém para o seu interior quando não estávamos a ver. — Cooper voltou-se para Jordan. — Juro que tive um vislumbre de algo claro a passar pela janela. Não foi um aglomerado de neve ou um rasto de neblina. Era algo sólido.

McKay mostrou a Cooper as imagens das pegadas gigantes.

Cooper agachou-se mais e praguejou.

— Não me alistei para fazer caça grossa. Se isso é um leão enorme que anda por aí...

— Leopardo — corrigiu McKay.

— Estou-me nas tintas para o que possa ser. Se tem dentes e gosta de comer pessoas, vou deixar que o traseiro enorme do McKay assuma a liderança.

— Por mim, tudo bem — disse McKay. — Em especial tendo em conta que são pelo menos dois e aqui o professor acha que estão escondidos naquele monte rochoso atrás de ti.

Cooper olhou de relance por cima do ombro e voltou a praguejar. Jordan resolveu a questão.

— Cooper e Farshad, fiquem aqui com o professor. McKay e Azar, vocês vêm comigo para vermos a casa.

Com a pistola H&K na mão, Jordan conduziu os dois homens em direção à casa, os passos silenciosos na neve acabada de cair. Estava confiante de que a sua arma tinha poder de fogo suficiente para o que quer que estivesse escondido naquela casa. Ainda assim, não parava de olhar por cima do ombro, desejando ter mais munições ao seu dispor.

Enquanto Azar mantinha a arma apontada à janela, ele e McKay aproximaram-se da porta. Deslizaram um para cada lado e prepararam-se. Jordan olhou de relance e obteve uma confirmação silenciosa do seu colega.

Perante o sinal de Jordan, McKay avançou e deu um pontapé na porta.

Esta abriu-se com um estalo sonoro da madeira.

Jordan correu agachado para o interior, com a arma encostada ao ombro. McKay ficou onde estava, erguendo-se mais alto, percorrendo a sala com a sua própria arma.

A casa era composta por uma só divisão, com uma pequena mesa, um fogão de pedra a um canto e um par de camas de palha, uma grande e uma pequena. Vazias. Tal como a equipa dos Rangers tinha relatado. Cooper estava enganado, o que deixou Jordan simultaneamente surpreendido e aliviado. Já devia saber...

— Não se mexa, sargento — disse McKay a partir da porta.

Jordan obedeceu, ouvindo a urgência na voz do colega de equipa.

— Olhe devagar para cima. Às suas oito horas.

Jordan deslizou o olhar na direção indicada, quase sem mover a cabeça. Seguiu a parede de tijolos de lama até ao ponto onde esta se cruzava com o telhado de colmo. Meio escondido por uma viga, um par de olhos fitava-o, brilhando como que iluminado por um fogo interior. Um restolhar de palha sussurrou na sala silenciosa, enquanto o observador escondido deslizava para o interior do ninho de colmo, um esconderijo perfeito, que permitia usar o cheiro almiscarado e húmido da palha para mascarar qualquer odor.

Inteligente.

Jordan guardou a arma e ergueu os braços vazios.

— Está tudo bem — disse baixinho, calmamente, como se estivesse a encorajar um potro assustadiço. — Estás segura. Podes descer.

Ele não sabia se as suas palavras seriam compreendidas, mas esperava que o tom e os gestos tornassem clara a intenção.

— Porque não...

O ataque foi súbito. A criatura escondida nas sombras saltou das vigas, descendo com uma chuva de colmo seco. A arma de McKay ergueu-se.

— Não! — avisou Jordan.

Apanhou com os braços o vulto que assim mergulhava, reconhecendo a pura necessidade naquela forma em queda. Tinha sido criado com um bando de irmãos e irmãs, e agora sobrinhos e sobrinhas. Embora não tivesse filhos seus, conhecia esse desejo simples. Ia para lá das línguas, dos países e das fronteiras.

Uma criança que precisava de conforto e segurança.

Braços pequenos apertaram-se em redor do seu pescoço, uma bochecha macia e quente apertou-se contra a sua. Pernas magras envolveram a sua cintura.

— É uma miúda — disse McKay. Uma miúda aterrorizada.

Ela estremeceu-lhe nos braços, tremendo de medo.

— Estás em segurança — garantiu-lhe, ao mesmo tempo que esperava silenciosamente que fosse verdade. Virou-se para McKay. — Traz o Cooper e os outros para aqui.

McKay saiu a correr, deixando Jordan sozinho com a criança. Jordan calculou que a rapariga não teria mais de dez anos. Atravessou até à mesa e sentou-se. Abriu o casaco e envolveu-a com ele, aninhando a sua forma magra contra o peito. O seu corpo ardia contra o dele, febril através da roupa tipo pijama que vestia. Leu o terror cru em cada estremecimento e nos suaves soluços, enquanto ela pairava no limite do choque.

O que teria ela visto?

Odiava tratar aquela criança como uma testemunha, em especial naquele estado, mas possivelmente seria a única a ter a resposta para o que ali acontecera verdadeiramente.

Os outros homens encheram a sala apertada, o que levou a que a rapariga se agarrasse ainda mais a ele, de olhos arregalados, fixos nos recém-chegados. Cingiu-a, tentando transmitir-lhe tanta segurança quanto possível. O seu rosto pequeno e redondo, enquadrado pelo cabelo preto de risco ao meio, olhava constantemente de relance para ele, como se se quisesse assegurar de que não desaparecia.

— Há rastos de leopardo em redor da casa, sargento — disse Cooper. — É como se tivessem feito um baile lá fora.

Atherton falou a partir da porta.

— É a filha da cozinheira. Não sei o nome dela.

A rapariga olhou para Atherton como se o reconhecesse, depois encolheu-se contra Jordan.

— Pode fazer-lhe algumas perguntas? — pediu Jordan. — Descobrir o que aconteceu?

Atherton manteve a sua distância em relação à rapariga. Disparou as perguntas como se quisesse despachá-las tão depressa quanto possível. O olho estremecia loucamente. Ela respondia em monossílabos, os olhos nunca deixando o rosto de Jordan.

Segurando a rapariga suavemente, Jordan apercebeu-se de que os dois afegãos se tinham aproximado da mais pequena das duas camas. Um deles ajoelhou-se e pegou numa pitada de pó branco do chão de terra batida, levando-o aos lábios. Parecia sal e, tendo em conta a careta e o cuspir, provavelmente sabia ao mesmo.

Jordan apercebeu-se de que um círculo esbranquiçado rodeava a cama, e um pedaço de corda pendia de um dos postes da mesma.

Os dois afegãos mantinham as cabeças próximas e curvadas, olhando para o sal e depois para a rapariga. Os olhos brilhantes de desconfiança, e uma dose considerável de medo.

— O que é aquilo? — sussurrou McKay a Jordan.

— Não sei.

Atherton respondeu à pergunta.

— De acordo com o folclore, os fantasmas ou djinn atacam frequentemente as pessoas enquanto dormem, e o sal mantém-nos ao longe. O mais provável é que a mãe acreditasse que tinha de proteger a filha, estando a trabalhar à sombra de Shahr-e-Gholghola. E talvez precisasse. Acontecem coisas nas montanhas que são inacreditáveis para quem vive na segurança da cidade.

Jordan impediu-se de revirar os olhos. A última coisa de que precisava era que o professor começasse a dizer disparates.

— O que disse a rapariga sobre o que aconteceu aqui?

— Disse que a equipa tinha feito progressos ontem. — Tocou no gesso e fez uma careta. — E eu ausente. De qualquer maneira, o túnel que tinham estado a escavar abriu-se para um repositório de ossos. Tanto humanos quanto animais. Iam começar a removê-los nos próximos dias.

— E a noite passada? — perguntou Jordan.

— Já lá ia chegar — disse Atherton com uma ponta de irritação.

Voltou a fazer perguntas à rapariga, mas Jordan sentiu o corpo da criança a ficar rígido. Ela abanou a cabeça, cobriu o rosto e recusou-se a falar. A respiração tornou-se mais rápida e entrecortada. O calor do corpo dela queimava-o através do casaco.

— Talvez seja melhor parar por agora — disse Jordan, sentindo que a rapariga regressava ao estado de choque.

Ignorando-o, Atherton agarrou-lhe rudemente o braço. Jordan apercebeu-se de um pedaço de corda que pendia do pulso esguio. Ela tinha estado atada à cama?

As palavras de Atherton tornaram-se mais duras, mais insistentes.

— Professor. — Jordan afastou a mão dele da criança. — Trata-se de uma criança doente e traumatizada. Deixe-a em paz.

McKay afastou Atherton. O professor recuou até as suas costas tocarem na parede de lama e depois fitou-a como se também ele tivesse medo dela. Mas porquê? Ela não passava de uma rapariguinha assustada.

A rapariga olhou de relance para Jordan, o corpo ardendo-lhe nos braços. Até os olhos brilhavam com aquele fogo interior. Falou com Jordan, num tom suplicante, leve, antes de adormecer.

Quanto tempo teria ficado sem comer ou beber alguma coisa?

— Por agora chega — disse Jordan a McKay. — Vamos procurar ajuda médica.

Pegou na sua garrafa de água e tentou que ela bebesse um pouco.

A rapariga sussurrou algo tão baixinho que Jordan não conseguiu distinguir as palavras, se é que eram palavras e não apenas um suspiro.

O rosto do professor empalideceu. Atherton olhou de relance para os dois afegãos, como se quisesse verificar se também tinham ouvido as suas palavras. Azar recuou até à porta. Farshad dirigiu-se até à cama, entrando no círculo de sal e curvando-se para reparar a zona de onde, um momento antes, tinha retirado uma pitada de sal.

— Que foi? — perguntou Jordan.

— Que raio se está a passar? — ecoou McKay.

Foi Atherton a responder.

— A última parte do que a rapariga disse. Não foi no dialeto hazara. Foi bactriano. Como na gravação.

Fora? Jordan não estava assim tão certo. Não estava certo de que ela tivesse dito alguma coisa e, se tinha, que o professor a tivesse conseguido ouvir. Ele escutara uma e outra vez a gravação da chamada SOS. As palavras no final decerto não se pareciam com o que a rapariga acabara de dizer. Lembrava-se das palavras, profundas, guturais, que soavam furiosas: A rapariga é nossa.

A voz estava carregada de possessividade.

Talvez fosse o pai dela.

— Então o que disse ela? — perguntou Jordan. Sentia um ceticismo crescente em relação ao professor. Como podia uma rapariga de dez anos falar uma língua que estava morta há centenas de anos?

— Ela disse: Não o deixes levar-me de volta.

Do outro lado das paredes de tijolo de lama da casa, um uivo ululante atravessou a neblina.

Um instante depois foi respondido por outro. Os leopardos.

Jordan olhou de relance em direção à janela, apercebendo-se de que o sol se tinha posto durante a última meia hora, de forma súbita como acontecia nas montanhas. E, com o sol desaparecido, os leopardos tinham saído de novo para caçar.

Azar correu para a porta aberta, em pânico. Farshad chamou-o, claramente implorando-lhe que voltasse, mas foi ignorado. O homem desapareceu na escuridão nevada. Seguiu-se um longo silêncio. Jordan ouviu apenas o suave sussurro da neve a cair.

Depois, passado um minuto, irromperam tiros, seguidos de um grito penetrante. O grito parecia simultaneamente distante e tão próximo quanto a entrada. Soava a sangue e dor e terror absoluto. Depois fez-se de novo silêncio.

— McKay, guarda a entrada — vociferou Jordan.

McKay correu em frente e usou o ombro para voltar a fechar a porta.

— Cooper, tenta contactar o batalhão de Rangers estacionado em Bamiyan. Diz-lhes que precisamos de apoio. Rápido.

Enquanto McKay apontava a arma para a porta, Jordan afastou-se da mesa, colocando um joelho no chão, arrastando a rapariga consigo. Esta agarrava-se a ele, respirando com dificuldade. Ele libertou a pistola automática e manteve os olhos fixos na janela, esperando que os felinos passassem.

— Então e agora, sargento? — perguntou McKay.

— Esperamos pela cavalaria — respondeu ele. — Não devem demorar a levantar voo.

Cooper abanou a cabeça e ergueu o rádio na mão.

— Não estou a conseguir estabelecer a ligação. Só apanho estática. Não faz sentido, nem mesmo com esta tempestade.

Atherton olhava para a rapariguinha como se tivesse sido ela a estragar os rádios. Jordan agarrou-a com mais força.

— Alguém está a ouvir aquilo? — perguntou McKay, inclinando ligeiramente a cabeça.

Jordan ficou tenso, depois também ouviu. Fez sinal para que ficassem todos em silêncio. Através da escuridão, sobre a queda da neve, um sussurro chegava até eles. Uma vez mais, distante e próximo ao mesmo tempo. Não era possível distinguir quaisquer palavras, mas o som fazia-o rilhar os dentes, como uma estação de rádio mal sintonizada. Lembrou-se de ter pensado que já nada o surpreendia. Teria de repensar isso. Toda aquela situação era surpreendente o suficiente para o arrancar à sua zona de conforto.

— Acho que também é bactriano — disse Atherton, a voz revelando uma ponta de pânico óbvia. Agachou-se como um coelho assustado perto do fogão de pedra. — Mas não consigo perceber nada.

A Jordan não soava de todo como uma língua. Talvez o choque do dia tivesse alcançado o professor. Ou talvez nem sequer fosse bactriano o que se ouvia na gravação.

Farshad agachou-se ao lado da cama envolta em sal. Fitava com um olhar assassino a rapariga, como se ela fosse a culpada de tudo aquilo.

— Lembra-se do que traduzi daquele telefonema desesperado? — Os olhos vidrados fitavam o vazio para lá do ombro de Jordan. — Aquelas últimas palavras. A rapariga é nossa. É notório que eles a querem.

O professor apontou um dedo trémulo à criança.

Os sussurros na noite tornaram-se mais sonoros, assumindo um som balbuciante, um coro de loucura para lá do limite da sua audição. Era como se as palavras tivessem comido as suas orelhas, arranhando para entrar no seu crânio. Mas talvez não passassem de sons vulgares de leopardo. Jordan não fazia ideia de qual deveria ser o som de um leopardo.

Atherton tapou os ouvidos com as mãos e agachou-se ainda mais contra o chão.

Farshad gritava palavras em pashto, a sua língua nativa, e apontou uma espingarda a Jordan e à rapariga. Indicou a porta com a ponta da arma. Entre a pantomima e o pouco pashto que Jordan compreendia, a mensagem era clara.

Manda a rapariga lá para fora.

— Isso não vai acontecer — disse Jordan sombriamente, fitando-o de cima.

Farshad tinha ficado de rosto vermelho, os olhos escuros e selvagens. Gritou de novo em pashto. Jordan identificou a palavra djinn e algo como petra. Estava constantemente a repetir a palavra, agitando belicosamente com a arma na direção de Jordan. Depois disparou uma bala e acertou na terra junto ao joelho de Jordan.

Foi o suficiente para os seus homens.

Defendendo-o, Cooper e McKay dispararam as armas ao mesmo tempo.

Farshad caiu para trás sobre a cama, morto antes de tombar sobre o colchão de palha.

A criança gritou e enterrou o rosto no peito de Jordan.

Atherton gemeu.

— O que estava o Farshad a gritar no fim? — perguntou Jordan. — Aquela palavra petra.

Atherton balançou ao de leve, sem nunca erguer o rosto.

— Uma antiga palavra em sânscrito, usada tanto pelos budistas como pelas tribos desta região. Pode traduzir-se como que seguiu e partiu, mas normalmente refere-se a fantasmas demoníacos, aqueles que ainda anseiam por algo, espíritos perturbados.

Jordan queria troçar de uma tal coisa, mas não conseguiu encontrar as palavras.

— O Farshad acreditava que a rapariga estava possuída por um djinn que fugiu e que os fantasmas na neblina a querem de volta.

— O que fotografei lá fora — disse McKay — pareciam pegadas de leopardo, não de fantasmas.

— Eu... eu não sei. — Atherton não parava de se balançar. — Mas talvez ele tivesse razão. Talvez devêssemos enviar a rapariga lá para fora. Então deixar-nos-iam em paz. Talvez eles só a queiram a ela.

— Eles quem? — ripostou Jordan. Não ia enviar a rapariga para a morte.

Em resposta, algo pesado aterrou no telhado de colmo por cima das cabeças deles, fazendo chover palha seca. Jordan girou a pistola automática e disparou para o telhado. Os seus homens seguiram-lhe o exemplo, as explosões ensurdecedoras naquele espaço apertado.

Um grito guinchado — não de dor, apenas de raiva — respondeu aos seus esforços, seguido por uma retirada apressada. Não parecia ter sido ferido, parecia estar apenas irritado. Estaria a criatura a tentar atrair o seu fogo, um ardil para os fazer desperdiçar munições?

Jordan verificou a arma. Apercebeu-se dos sobrolhos franzidos dos seus colegas de equipa quando fizeram o mesmo. Não era bom. Estavam rapidamente a ficar sem balas.

Um novo grito felino fez-se ouvir perto da porta. Cooper e McKay viraram-se, apontando para lá as armas. Jordan voltou o olhar para a janela, fitando as ruínas envoltas na neblina.

— Se os virem, disparem. Mas tenham atenção às munições.

— Percebido — disse Cooper. — Esperem até lhes verem o branco dos olhos.

— O telhado não vai suportar muitos mais ataques como aquele — frisou McKay. — Mais alguns saltos e os leopardos vão cair sobre nós.

McKay tinha razão. Jordan reconheceu a futilidade de ficarem ali escondidos. Não tinham poder de fogo suficiente para manter à distância um par de monstros de mais de cento e trinta quilos, em especial num espaço tão apertado. Era quase tão provável que disparassem uns contra os outros como contra os animais.

Jordan levantou-se, tomando a rapariga nos braços.

— Tens um plano? — perguntou Cooper.

Jordan fitou a porta.

— Mas não é um bom plano.

— O que vais fazer? — perguntou McKay, parecendo preocupado.

— Vou dar-lhes o que eles querem.

17h18

Jordan correu pela neve, através da noite, mantendo-se baixo, mas transportando o fardo sobre um ombro, mole e silencioso. A manga da rapariga tocou-lhe no rosto, cheirando a suor e medo. Não sabia se ela seria a fonte de tudo aquilo, se os leopardos se tinham fixado no cheiro dela. Não sabia se aqueles sussurros na neblina seriam ecos de algo distante ou outra coisa qualquer.

Naquele momento, não importava.

Se queriam a rapariga teriam de seguir o seu rasto, os seus movimentos.

Fugia para longe do brilho distante de Bamiyan e em direção às ruínas de Shahr-e-Gholghola. Seguiu as instruções dadas por Atherton, que o conduziriam ao local das escavações da equipa de arqueólogos. Era apenas uma corrida de menos de cinquenta metros.

Aquele cemitério oferecia-lhes agora a única esperança.

Ele e os seus homens tinham poucas armas e um número limitado de munições. E aquelas criaturas já tinham dado provas de serem caçadores ardilosos e experientes, sem dúvida difíceis de matar, claramente desconfiados das armas. A sua melhor esperança era atrair as feras para longe e encurralá-las.

Depois de as despachar, lidaria com o que quer que andasse por ali a sussurrar na neblina.

Ou pelo menos era esse o plano.

Enquanto corria, McKay mantinha-se próximo.

Tinham deixado Cooper na casa, a cobrir a sua fuga pela janela. Talvez os felinos ficassem no seu campo de visão, e Cooper os pudesse derrubar e resolver assim todos os seus problemas.

Jordan percorreu o que restava do caminho, desviando-se pelo labirinto de carrinhos de mão, montes de gravilha e areia escavada, e pilhas de ferramentas abandonadas, de modo a alcançar a entrada do local das escavações. O vento frio cortava através da camisa dele. Sentia a falta do casaco. Subiu a custo pelo túnel, apoiou melhor o fardo ao ombro, assegurando-se de que não comprometia a arma.

McKay arquejava ao seu lado. O esforço não o deixava com falta de ar, nem a altitude. Era apenas o medo.

— Sabes o que tens de fazer — disse Jordan.

— Vou ver o que consigo desenterrar... literalmente.

Jordan sorriu, apreciando o espírito leve do amigo, sabendo ao mesmo tempo o medo que escondia.

— Se eu não estiver de volta dentro de dez minutos...

— Ouvi-te à primeira. Agora vamos. — Um uivo gritado marcou a ordem.

McKay bateu no ombro de Jordan, depois desapareceu com um mapa a abanar na mão. Jordan ligou a lanterna tática de xénon montada na arma e apontou-a para o túnel que tinha sido escavado no coração das ruínas.

Agora para montar a armadilha...

Agachou-se de modo a impedir que as roupas da rapariga se rasgassem nas paredes rugosas e partiu pelo túnel. Precisava que os felinos o seguissem, atraindo-os com a luz saltitante, a luz frenética, e o odor das roupas húmidas da febre da rapariga. O teto baixo exigia que corresse agachado, os ombros batendo nas paredes de ambos os lados.

Enquanto seguia aquele raio de luz pelas profundezas das ruínas escuras, apercebeu-se de uma brisa mais quente que se erguia de baixo, como se tentasse soprá-lo de novo para o exterior. Cheirava a rocha húmida, com um toque químico, como petróleo a arder. Sentiu-se grato pelo calor, até os olhos começarem a lacrimejar e a cabeça a andar à roda.

Sabia que algumas grutas naturais respiravam, exalando ou inalando dependendo da pressão e da temperatura à superfície. Terá sido assim que os arqueólogos descobriram onde escavar? Teriam notado uma secção do Shahr-e-Gholghola a suspirar, revelando os seus segredos mais escondidos, e escavado na sua direção?

Passados mais alguns metros, teve a sua resposta. As paredes escavadas deram lugar à pedra natural. Descobriu degraus escavados na rocha por baixo dos seus pés. Os arqueólogos teriam entrado numa secção das passagens secretas que, outrora, tinham enchido a antiga cidadela.

Mas, o que teriam encontrado?

Um grito de raiva perseguiu-o, repetido por outro. Imaginou os dois felinos agachados na mesma entrada, sentindo a sua presa encurralada. Suspirou de alívio por McKay.

Continuam atrás de mim...

Incitado por aquele pensamento, Jordan correu mais para o fundo, sabendo onde tinha de chegar, um local atabalhoadamente descrito por Atherton, embora o professor nunca o tivesse visitado pessoalmente.

Alguns passos adiante, o túnel terminava numa grande caverna, um beco sem saída. Deslizou levemente na pedra húmida, parando junto a uma pilha de ossos, uma massa emaranhada de membros, crânios e caixas torácicas. Os ossos espalhados cobriam o solo de pedra da caverna, formando uma praia macabra no limite de uma piscina de águas negras. Outros ossos brilhavam a partir dos baixios.

Jordan recordou a história de Atherton sobre a nascente subterrânea da cidadela e a chacina que aí decorreu séculos antes.

Mas nem todas as mortes eram antigas.

Repousando sobre os ossos, no limite da água, estavam os corpos ensanguentados de presas frescas. Os cadáveres estavam rasgados, esventrados, e tinham os membros partidos. Ali jaziam os restos mortais da equipa de arqueólogos, e do que parecia ser a mãe da rapariga. Pelas marcas de dentes nos corpos, Jordan sabia que tinha encontrado o covil dos leopardos. Não tinham demorado a ocupar a caverna recém-descoberta.

Como se sentisse a sua presença indesejada, um uivo chegou até ele, soando muito mais próximo do que antes. Ou talvez fosse o medo a acentuar os seus sentidos. A cabeça também continuou a girar devido aos gases que enchiam o espaço. Por aquela altura, já os seus olhos choravam, e o nariz ardia.

Tinha de trabalhar depressa.

Avançou até ao limite do cemitério e lançou para longe o seu fardo. As roupas da rapariga abriram-se, espalhando a palha que roubara do colchão dela e colocara no seu interior. Se as criaturas caçassem seguindo um odor ou usando a visão, queria dar o seu melhor para convencer os caçadores de que a rapariga estava com ele.

Ou talvez isso não importasse.

Talvez, como acontecera com Azar, a sua fuga bastasse para atrair as criaturas.

Os gatos caçam coisas que fogem deles.

E para o caso de não os conseguir atrair, deixara Cooper na casa de tijolos de lama com a rapariga e o professor. Era o melhor plano que conseguia conceber, em tão pouco tempo, para os manter em segurança com os parcos recursos de que dispunha.

Jordan soltou a lanterna da arma e atirou-a para o lado oposto da caverna. O feixe de luz girou e girou, um efeito estonteante para quem já tinha a cabeça a andar à roda. A luz parou perto do lado oposto da nascente subterrânea. Agachou-se, sacou da arma e esperou. Não demorou.

Sentiu o cheiro almiscarado dos leopardos antes de a primeira criatura enorme ter entrado na caverna. Era um monstro musculoso, com quase três metros de comprimento, de pelo cor de fogo e marcado por rosetas negras, um macho. Fluiu como a maré pelo espaço, silencioso, determinado, imparável. Uma segunda criatura seguia-o, mais pequena, uma fêmea.

Os seus olhos negros viram qualquer coisa enquanto percorriam o espaço. Arderam com um fogo interior, à semelhança dos olhos da rapariga antes dele.

Jordan susteve a respiração.

O mundo tornou-se aquoso, a sua cabeça mais entorpecida. O movimento parecia ocorrer em borrões desfocados.

O macho correu para as roupas descartadas, cheirando-as profundamente, determinado na sua concentração.

O segundo animal passou pelo companheiro, atraído pela luz, avançando agachada na sua direção.

Um ondular nas águas chamou-lhe a atenção para a piscina alimentada pela nascente. Observou o reflexo do felino a estremecer, a vacilar. Por um brevíssimo tremeluzir, pareceu-lhe ter visto uma outra imagem escondida para lá do pelo ardente, algo pálido e doentio, sem cabelo e encurvado. Jordan pestanejou, sentindo os olhos a arder, e a imagem desapareceu.

Abanou a cabeça e afastou o olhar. Não se atreveu a esperar mais.

Deslizou do seu esconderijo tão silenciosamente quanto possível e avançou para o túnel aberto, esgueirando-se pelo mesmo caminho por onde viera. Teve de se apoiar com uma mão na parede para se manter direito.

Um movimento súbito fê-lo estacar. O leopardo, ainda de costas voltadas para Jordan, ergueu a cabeça do monte de roupas descartadas e uivou a sua frustração para o teto, sabendo que tinha sido enganado.

Debaixo das suas patas, os ossos começaram a mexer-se.

Para os sentidos entorpecidos de Jordan, pareciam mexer-se sozinhos, raspando uns contra os outros, emitindo sons ocos. Arquejou, tentando convencer-se de que o movimento era apenas a criatura gigantesca a mudar de posição.

Não conseguiu.

Atordoado por um terror primitivo, cambaleou para trás na direção da boca do túnel. O tremer dos ossos agravou-se. Observou o corpo de um dos arqueólogos erguer-se, de barriga para cima, as costas partidas.

Queria afastar o olhar, mas o horror deixara-o hipnotizado.

Enquanto fitava, a carcaça ergueu-se sobre membros retorcidos de forma bizarra. Correu sobre o campo de ossos como um caranguejo. A cabeça pendia para o lado, a boca estava aberta. A partir da garganta jorravam sussurros impercetíveis. Palavras na mesma língua arcaica da gravação.

Um segundo cadáver agitou-se, faltava-lhe o maxilar inferior, a garganta estava aberta e exposta.

Juntou-se ao coro insano.

Não pode ser... estou a ver coisas.

Agarrando-se a essa leve esperança, virou-se e fugiu pelo túnel, chocando contra as paredes de tempos a tempos. O mundo continuava a girar à sua volta, trocando-lhe os passos. Esforçou-se por encontrar a lanterna tipo caneta que levava no bolso.

Encontrou-a, acendeu-a e perdeu-a quando lhe escapou dos dedos.

Saltitou para longe atrás dele.

Ainda assim, o brilho projetava luz suficiente desde detrás dele para ajudar a iluminar o caminho em direção ao exterior.

Jordan correu, enquanto um uivo se erguia atrás dele.

Quando o seu eco se desvaneceu, ouviu um ténue sussurro no seu ouvido.

— ... depressa. Estou despachado...

McKay.

Jordan obrigou-se a avançar: impelido por aquele vento nauseabundo, perseguido pelos uivos, caçado por coisas que arranhavam as rochas com unhas e ossos podres.

As sombras lançadas de baixo dançavam nas paredes à sua volta, à sua frente, cambaleando a partir dos fogos do Inferno.

Passos pesados corriam pelo túnel atrás dele. Os uivos tinham terminado.

Restava apenas a caçada silenciosa.

Jordan deslizou as palmas das mãos pela parede para se manter equilibrado. Arranhou a pele na pedra áspera, mas não quis saber. A dor significava que tinha abandonado as paredes lisas da gruta natural e subira para os afiados ângulos escavados pelo homem.

Atrás dele, ecoava um rouco arfar. O brilho da lanterna desapareceu.

A escuridão desceu sobre ele, enquanto as criaturas se aproximavam.

Correu mais depressa, os pulmões a arder.

Conseguia sentir o cheiro das criaturas, o fedor projetado até ele pela respiração nauseabunda da gruta: tresandava a carne, sangue e horror.

Depois viu luz à sua frente. A saída.

Voou na sua direção, mergulhando para ela a quase um metro de distância, ansiando pela liberdade, aterrando com força, quase se esquecendo de dar aquele último salto que lhe salvaria a vida.

McKay apanhou-o nos braços e rolou com ele para o lado.

Um uivo jorrou pelo túnel, carregado com a frustração e a promessa de uma vingança sangrenta.

Enquanto Jordan rebolava para longe, viu o leopardo a alcançar a boca do túnel... então, o mundo explodiu.

Fogo. Fumo.

Saraivada de pedras e o picar da areia.

Jordan libertou-se dos braços de McKay, mas deixou-se ficar de joelhos.

Inspirou grandes golfadas de ar fresco, tentando desanuviar a cabeça.

Procurou um qualquer sinal dos leopardos através do fumo, mas o túnel colapsara por completo. Enquanto o fitava, uma avalancha de pedras continuou a cair das alturas, selando ainda mais a passagem, voltando a enterrar aqueles ossos, juntamente com os dois leopardos, no interior.

— Quantas minas é que usaste? — arquejou Jordan, os ouvidos ainda a zumbir devido à explosão.

— Só uma. Não tive tempo para desenterrar mais do que isso. De qualquer maneira, foi suficiente.

À sua frente, a massa de Shahr-e-Gholghola fumegava e estremecia. Jordan imaginou a caverna subterrânea a colapsar numa pilha de pedras. Mais explosões atravessaram as ruínas, projetando fumo e rocha.

— Os abalos estão a provocar a explosão das outras minas — disse McKay. — É melhor pormo-nos a andar daqui.

Jordan não discordou, mas foi lançando um olhar desconfiado às ruínas.

Retiraram para a casa de telhado de colmo. Cooper surgiu cambaleante, saindo ao seu encontro. O sangue corria-lhe pelo rosto.

— O que aconteceu? — perguntou Jordan.

Mas antes que Cooper conseguisse responder, Jordan correu para lá do colega de equipa, descobrindo a casa vazia.

Mas que raio...

A preocupação pela rapariga crescia dentro dele.

Cooper explicou.

— Mal entraram na gruta, a rapariga mergulhou através da janela. Tentei ir atrás dela, mas aquele maldito professor deu-me uma paulada, enquanto gritava «Deixa-a ir! Deixa que os demónios a levem». Aquele tipo desde o início que se revelou um doido varrido.

— Onde estão agora?

— Não sei. Acabo de despertar.

Jordan saiu a correr da casa. A neve que continuava a cair ia preenchendo os rastos, mas conseguiu ver que os pequenos pés da rapariga apontavam para oeste, os do professor para leste. Tinham seguido em direções opostas.

McKay alcançou-o.

Um tump-tump fazia-se ouvir ao longe.

Um helicóptero, todo iluminado, avançou na direção deles, vindo de Bamiyan, atraído como as traças por uma chama. Os Rangers tinham ouvido as explosões.

— Excelente — disse McKay. — Agora é que vem a cavalaria.

— O que se segue, sargento? — perguntou Cooper.

— Deixamos que outra pessoa vá buscar o professor — disse Jordan, redescobrindo o sentimento de ultraje. Este fluía através dele, aquecendo-o, dizendo-lhe o que tinha de fazer, levando-o a concentrar-se de novo. — Temos de ir atrás da miúda.

Três dias depois, estou sentado no meu quente gabinete da Academia de Técnicas Criminais afegã. Toda a papelada foi preenchida; o caso está fechado.

A culpa pelos eventos dessa noite foi atribuída a uma descoberta inusitada nas ruínas de Shahr-e-Gholghola: um gás que emanava das profundezas do subsolo. O gás era um composto de hidrocarbonetos chamado etileno, conhecido por provocar alucinações e estados semelhantes a um transe.

Lembro-me da minha própria confusão, das coisas que pensava ter visto, as coisas que desejava nunca ter visto. Mas não eram reais. Não podiam ser. Foi o gás.

A explicação científica serve-me. Ou, pelo menos, quero que sirva.

Os relatórios também atribuem a raiva e o comportamento agressivo dos leopardos à mesma intoxicação por hidrocarbonetos.

Outras pontas soltas vão-se também resolvendo.

O professor Atherton foi encontrado a um quilómetro e meio das ruínas de Shahr-e-Gholghola, descalço, delirante e com hipotermia. Acabou por perder quase todos os dedos dos pés.

McKay, Cooper e eu procurámos a rapariga a noite toda e acabámos por descobri-la, aninhada numa pequena gruta, incólume e quente como uma torrada debaixo do meu casaco. Senti-me grato por a ter encontrado, aliviado por me ter preocupado o suficiente para continuar a procurar. Talvez, um dia, afinal, consiga encontrar o caminho de volta àqueles inocentes milheirais do Iowa.

A rapariga não se lembrava dos eventos decorridos nas ruínas, o que provavelmente é uma bênção. Pedi que a enviassem a um médico, entregando-a depois aos familiares em Bamiyan, pensando que seria o fim da história.

Mas a gruta onde a encontrei, não muito distante das ruínas, revelou ser a entrada para uma pequena cripta. No interior repousavam os restos de um jovem, enterrado com as armas e as roupagens de um nobre mongol. Estão em curso estudos genéticos para determinar se o corpo não será o do neto de Gengis Khan, o emissário que o rei de Shahr-e-Gholghola matou há tantos séculos e que pôs em movimento os eventos que conduziriam à destruição da cidadela.

Mas foi a maneira como o jovem morreu que me manteve sentado à secretária nesta manhã de inverno, a olhar para o relatório cuidadoso e a pensar.

De acordo com as histórias de Atherton, o rei Shansabani tinha matado o pretendente da filha, decapitando-o, depois de ter descoberto a fuga que haviam planeado. E o corpo mongol no túmulo não tinha cabeça.

Poderiam, emissário e amante, ser o mesmo homem? Teria a filha do rei caído de amores pelo neto de Khan? Teria esse amor trágico desencadeado o massacre que se seguiu? Todos dizem que o amor conduz sempre a coisas boas, mas não é assim. Dou por mim, de novo, a brincar com a aliança, e obrigo-me a parar.

Não sei, mas enquanto aqui estou sentado, a enfiar os relatórios numa pasta, lembro-me de mais pormenores. De Azar ter dito que os leopardos eram os símbolos dos reis Shansabani. De Farshad ter gritado que a rapariga tinha sido possuída por um djinn e era perseguida por fantasmas.

Estaria ele certo, afinal?

Com a abertura dos túmulos, teria escapado alguma coisa?

Teria o espírito da princesa há muito falecida entrado na rapariga, procurando alguém que a pudesse levar até ao seu amor perdido?

Teria o pai, ainda carregado de raiva e vingança, possuído aqueles dois leopardos, os símbolos reais da família, e tentado levá-la de volta para os horrores escondidos sob Shahr-e-Gholghola?

E, no final, as explosões que voltaram a selar aquele túmulo teriam fechado a sua campa juntamente com os ossos dos leopardos, pondo um fim a demanda fantasmagórica do rei pela sua filha?

Ou eram os dois caçadores meros leopardos, não tendo sido possuídos por nada mais do que a fome, a sua agressividade alimentada pelo gás tóxico do seu novo covil?

E aquelas vozes. Teriam sido apenas os felinos? Não fui capaz de localizar qualquer outro académico que conheça bactriano, pelo que não tive mais ninguém, além do professor, a traduzir aqueles sons fantasmagóricos em palavras. Talvez ele tivesse ficado desequilibrado pela notícia das mortes dos colegas ou já tivesse sido afetado pelo gás durante o trabalho que realizara anteriormente no local da escavação.

Abano a cabeça, tentando decidir entre a explicação lógica e a sobrenatural. Por norma, sou um tipo lógico.

Estes pensamentos loucos devem ser os efeitos secundários de todo aquele gás que respirei na gruta. Mas quando recordo as palavras do professor, não consigo ter a certeza: acontecem coisas nas montanhas que são inacreditáveis para quem vive na segurança da cidade.

Uma pancada na porta interrompe a minha cadeia de pensamento e sinto-me grato por isso.

McKay entra e aproxima-se da secretária. Traz na mão um papel.

— Novas ordens, sargento. Parece que nos vamos pôr a andar.

— Para onde?

— Masada, Israel. Parece que foram reportadas algumas mortes estranhas na sequência de um terramoto.

Estendo o braço para a pasta sobre a mesa e fecho-a, pondo um ponto final no assunto.

— Aposto que esta missão vai ser mais fácil do que a última.

McKay franze o sobrolho.

— Que piada é que isso tinha?


IRMÃOS DE SANGUE

JAMES ROLLINS E REBECCA CANTRELL

Verão, atualidade

São Francisco, Califórnia

Arthur Crane acordou com o cheiro das gardénias. O pânico instalou-se ainda antes de abrir os olhos. Jazia imóvel, paralisado pelo medo, testando a pesada fragrância, captando toques subjacentes de frangipani e madressilva.

Não pode ser...

Durante toda a sua infância passara inúmeras horas a ler na estufa da propriedade da família em Cheshire, Inglaterra. Mesmo agora, lembrava-se do duro banco de cimento num canto mergulhado nas sombras, a dor ao fundo das costas enquanto se dobrava sobre um romance de Dickens ou Doyle. Era tão fácil perder-se nas palavras daquelas páginas, ignorar as imprecações e os silêncios ameaçadores da mãe. Ainda assim, por perdido que estivesse na história, aquele cheiro rodeava-o sempre.

Na sua infância, significava segurança, paz de espírito.

Agora, não.

Agora, significava apenas uma coisa. Morte.

Abriu os olhos e virou o nariz para o cheiro. Provinha da almofada vazia ao seu lado. Os raios do sol da manhã entravam através da janela do quarto, iluminando uma orquídea branca Brassocattleya. Esta descansava num declive no meio da almofada vizinha. As pétalas delicadas e franzidas roçavam o cimo da sua almofada, e uma linha púrpura esbatida corria pelo meio da orquídea.

A sua respiração tornou-se mais pesada, sobrecarregada pelo temor. O coração batia com força contra a caixa torácica, recordando-lhe o ataque cardíaco que tivera no ano anterior, um presente-surpresa para o seu sexagésimo oitavo aniversário.

Estudou a orquídea. A última vez que vira uma flor como aquela, era um homem muito mais jovem, mal chegado à casa dos vinte. Tinha estado a flutuar numa poça carmesim, o seu odor pesado entrelaçado com o intenso cheiro a ferro do seu próprio sangue.

Porquê agora, outra vez... passados tantos anos?

Arthur sentou-se mais direito e vasculhou o pequeno quarto do apartamento. Nada parecia perturbado. A janela estava fechada, as suas roupas estavam onde as deixara, até a carteira se encontrava ainda na cómoda.

Recuperando o controlo sobre si mesmo, tirou a orquídea da almofada e segurou a sua forma fria na palma da mão. Durante anos tinha vivido com o terror de receber de novo uma tal flor. Rebelou-se contra os lençóis e correu para a janela. O seu apartamento ficava no terceiro andar de um velho prédio vitoriano. Estugou o passo porque a estrutura imponente o fez pensar no portão para a propriedade da sua família, onde tantas vezes procurara refúgio junto dos jardineiros e das empregadas quando as tempestades se tornavam demasiado ferozes na casa principal.

Procurou na rua em baixo. Vazia.

Quem quer que lhe tivesse deixado a flor partira há muito.

Inspirou para se recompor e fitou a linha azul da baía no horizonte, sabendo que poderia não a voltar a ver. Há décadas, tinha relatado uma série de homicídios sombrios, todos eles prenunciados pela chegada de uma orquídea como aquela. As vítimas encontravam a flor que lhes era deixada pela manhã, apenas para morrer nessa mesma noite, os corpos ensanguentados adornados com uma segunda orquídea.

Virou as costas à janela, sabendo que a chegada da flor não era um mero acaso. Dois dias antes, recebera uma chamada de um homem que alegava ter as respostas sobre o mistério que perseguia Arthur há décadas. A voz ao telefone dizia ter ligações a uma poderosa organização clandestina, um grupo que chamava a si mesmo Belial. O nome surgira durante a investigação de Arthur sobre os anteriores homicídios da orquídea, mas nunca conseguira estabelecer uma ligação. Tudo o que sabia era que a palavra belial provinha da Bíblia Hebraica, podendo traduzir-se livremente por demoníaco.

Mas significaria isso que os homicídios passados eram uma qualquer forma de ritual satânico?

Qual seria o envolvimento do irmão?

— Christian...

Sussurrou o nome do irmão, voltando a ouvir a sua gargalhada infantil, imaginando o brilho dos seus olhos verdes, o tombar do cabelo preto que sempre deixara crescer demasiado e de forma descuidada.

Embora tivessem decorrido várias décadas, continuava sem saber o que acontecera ao irmão. Mas a voz do outro lado da linha dissera que podia revelar a verdade a Arthur.

Naquela noite.

Olhou de relance para a orquídea que ainda segurava na mão.

Mas será que irei viver o suficiente para o ouvir?

Enquanto ali permanecia, as recordações abateram-se sobre si.

Verão de 1968

São Francisco, Califórnia

Mais um funeral.

A luz da manhã que passava pelos vidros manchados das janelas desenhava padrões grotescos nos rostos dos jovens elementos do coro da catedral de St. Patrick. Mas as suas vozes etéreas erguiam-se até aos céus, claras, belas e marcadas pela dor.

Uma tal graça deveria ter trazido conforto, mas Arthur não precisava de conforto. Não estava de luto. Chegara como um intruso, um estrangeiro, um jovem repórter do Times de Londres.

Estudou o grande quadro enfeitado com lírios do falecido colocado num cavalete ao lado de um caixão de mogno gravado. Como a maioria das pessoas na igreja, não conhecera verdadeiramente o homem, embora todos soubessem o seu nome: Jackie Jake, o famoso cantor de folk britânico que tomara os Estados Unidos de assalto.

Mas a agitação chegara ao fim.

Há dez dias, Jackie Jake fora encontrado assassinado numa viela diante da Mission Street em São Francisco. O jornal de Arthur enviara-o a partir de Londres para cobrir o falecimento, tanto por ser o repórter mais jovem como pelo facto de ser o único a admitir que já tinha ouvido a música de Jake. Mas isso era mentira. Ele nunca tinha ouvido Jackie Jake até lhe ser atribuída a missão, mas o ardil fora suficiente para que pudesse apanhar um avião com destino à Califórnia.

Tinha viajado para São Francisco por outros motivos. Uma esperança, uma possibilidade... de corrigir um erro terrível.

Enquanto a missa de exéquias prosseguia, a multidão movia-se, inquieta, nos bancos compridos. O cheiro dos seus corpos por lavar erguia-se numa nuvem à volta deles. Tinha-os avaliado quando entrara antes, observando os fãs de Jake. Eram, acima de tudo, jovens do sexo feminino envergando saias compridas e blusas brancas, muitas com flores no cabelo. Inclinavam-se em posturas de dor absoluta apoiadas em homens com as barbas dos eremitas ascéticos.

Ao contrário de grande parte da multidão, Arthur envergava um fato preto, sapatos engraxados, algo que se enquadrava sem dúvida num funeral. Por muito que desejasse afastar-se das regras de ouro da sua casa de infância, não conseguia fugir à importância do traje correto. Além disso, queria apresentar um comportamento profissional perante os agentes que estivessem a investigar o homicídio de Jake. Arthur pressentia que as suas simpatias não ficariam do lado daquela multidão hippie.

Quando a cerimónia terminou e os enlutados começaram a sair, Arthur identificou o alvo perto dos fundos da nave, uma figura que envergava um uniforme preto com um crachá à frente. Arthur arranjou maneira chocar contra ele à saída.

— Lamento muito, senhor agente — disse Arthur. — Não o vi aí.

— Não faz mal — disse o homem com o forte sotaque americano que Arthur associava à Califórnia graças a filmes e programas de televisão.

Arthur olhou de relance, com um suspiro pesado, para a igreja.

— Nem acredito que partiu...

O agente da polícia seguiu o seu olhar.

— Era próximo do falecido?

— Amigos de infância, na verdade. — Arthur estendeu a mão para esconder a mentira. — Sou Arthur Crane.

O homem apertou a mão de Arthur com demasiada firmeza.

— Agente Miller.

O agente mantinha a multidão que saía debaixo de olho, o rosto numa expressão de desagrado. Um homem que envergava calças de ganga e sandálias passou a correr, deixando no seu rasto um forte cheiro a marijuana. O agente cerrou o maxilar, mas não foi atrás dele.

Arthur aproveitou aquele óbvio desdém, na esperança de obter informações junto do agente.

— O Jackie e eu éramos amigos antes de ele vir para aqui e se envolver com... — acenou com a mão para a multidão de hippies — esta malta. Não ficaria surpreendido se um destes filhos das flores o tivesse matado. Pela minha experiência, há uma linha muito ténue entre fã e fanático.

O agente Miller encolheu os ombros, os olhos ainda fixos nos enlutados.

— Talvez. O assassino deixou uma flor perto do corpo... uma espécie qualquer de orquídea.

E foi assim que Arthur tomou conhecimentos das orquídeas.

Antes de Arthur poder fazer mais perguntas, Miller mergulhou para o lado quando um homem magro como um ancinho agarrou num cavalete próximo da porta, claramente pretendendo roubar a fotografia ampliada do cantor. Os olhos escuros do ladrão pareciam selvagens sob o cabelo descuidado, as mãos sujas tão magras quanto as de um esqueleto.

Quando o agente interveio, o homem abandonou a foto, agarrou no cavalete e brandiu-o como um taco.

Miller tentou desviar-se, mas bateu com a anca contra um banco vizinho. O cavalete atingiu o agente no ombro, fazendo-o cair de joelhos. O ladrão ergueu de novo o cavalete, mesmo por cima da cabeça do agente atordoado.

Antes que Arthur conseguisse pensar melhor, correu em frente. Era o tipo de ação imprudente que o irmão, Christian, assumiria em tais circunstâncias, mas em nada se adequava ao carácter normalmente reservado de Arthur.

Ainda assim, deu por si a avançar por entre os dois homens enquanto a multidão permanecia afastada. Agarrou no braço do atacante antes que este conseguisse desferir um golpe fatal no agente da polícia caído. Lutou com o atacante, dando a Miller tempo para se levantar. O agente afastou então o atacante de Arthur e prendeu rapidamente os pulsos do homem atrás das costas com as algemas. O homem olhava à sua volta. As pupilas enchiam por completo a íris, levando a que os seus olhos parecessem negros. Estava, sem dúvida, sob a influência de um qualquer tipo de droga.

Miller apanhou o olhar de Arthur.

— Obrigado. Devo-lhe uma.

Respirando com dificuldade, o coração a bater nos ouvidos, Arthur quase não conseguia dirigir-lhe um aceno e avançar para a saída.

Em que estava eu a pensar...

Ao chegar à rua, a brilhante cidade junto à baía parecia, de súbito, um lugar mais escuro, repleto de sombras. Até a luz da manhã era incapaz de as dissipar. Encostou-se a um poste de iluminação e deixou-se ali ficar por um instante, tentando abrandar a respiração, quando um vislumbre de branco lhe chamou a atenção.

Um papel branco tinha sido colado ao poste. O título chamou-lhe a atenção.

Mas foi o que estava por baixo daquelas palavras escrevinhadas à mão que lhe roubou o ar dos pulmões e gelou o sangue. Era uma fotografia a preto-e-branco de um belo homem na casa dos vinte, de cabelo escuro e olhos claros. Embora a fotografia não tivesse cor, Arthur sabia que aqueles olhos eram de um verde penetrante.

Pertenciam ao seu irmão. Christian.

O cartaz não continha mais pormenores a não ser um número de telefone. Com dedos trémulos, Arthur apontou o número no fundo do seu bloco de notas. Partiu a correr pela rua apinhada, em busca de uma cabina telefónica vazia. Quando encontrou uma, depositou o dinheiro na ranhura e esperou. O telefone apitou-lhe ao ouvido, uma, duas, cinco vezes. Mas não o conseguia desligar.

Deixou tocar, balançando entre a incredulidade e a esperança.

Por fim, um homem atendeu, a sua voz com uma ponta de irritação.

— Mas que raio, meu? Estava a dormir.

— Lamento — desculpou-se Arthur. — Vi o cartaz na rua. Sobre Christian Crane?

— Encontrou-o? — O tom do homem tornou-se mais claro, a irritação substituída pela esperança. — Onde é que ele está?

— Não sei — disse Arthur, procurando as palavras certas. — Mas sou irmão dele. Tinha a esperança...

— Raios — interrompeu-o a voz. — És o britânico? O irmão adotivo. Sou o Wayne... Wayne Grantham.

Pelo tom de voz do homem, achava sem dúvida que Arthur o reconheceria, que Christian talvez tivesse falado com Arthur acerca dele, mas este não partilhava uma palavra com Christian há mais de dois anos, não depois da maneira como se tinham separado em Inglaterra, na sequência de uma discussão. Daí Arthur ter vindo para São Francisco, para corrigir o passado e começar de novo.

Arthur pôs tudo isso de lado.

— Há quanto tempo desapareceu o Christian?

— Onze dias.

O dia anterior à morte de Jake. Era uma associação ridícula, mas o cantor de folk ainda estava fresco na sua mente.

— Já contactou a polícia? — perguntou Arthur.

Recebeu uma fungadela em resposta.

— Como se quisessem saber de um homem adulto que desapareceu em São Francisco. Está sempre a acontecer, é o que dizem. A cidade do amor e tudo isso. Dizem que o mais certo é que apareça.

— Mas não acredita nisso?

— Não. — Wayne hesitou. — Ele não teria partido sem me dizer. Não o Christian. Ele não me deixaria sem saber.

Arthur tossiu para limpar a garganta.

— Ele partiu sem me dizer.

— Mas nessa altura tinha as suas razões, não é?

A culpa trespassou Arthur.

— Tinha.

Wayne nada mais tinha a acrescentar e Arthur desistiu relutantemente sem lhe fazer a pergunta mais importante de todas. Havia perguntas que ele ainda tinha dificuldade em fazer, impedido pelo preconceito e sentindo-se desconfortável devido à educação formal que recebera.

Em vez disso, regressou ao hotel e enviou o seu artigo, enterrando o novo pormenor sobre a orquídea ao fim de alguns parágrafos. Para complementar, também relatou o desaparecimento de Christian à polícia.

Tal como Wayne lhe dissera, não quiseram saber.

No dia seguinte, Arthur acordou para ler o título gritante de um segundo homicídio. Leu o jornal de pé na bancada da cozinha, uma caneca de café a arrefecer na mão. Como no caso de Jackie Jake, a garganta da vítima tinha sido rasgada. O corpo do jovem — um meirinho — tinha sido encontrado a poucos quarteirões da Catedral de St. Patrick — onde tinham decorrido as exéquias de Jackie Jake. O artigo sugeria que os homicídios estavam relacionados, mas não elaborava.

Duas horas depois, Arthur estava sentado num pequeno dinner, em frente ao agente Miller, aproveitando o facto de este lhe dever um favor, admitindo ser um repórter do Times.

— Não lhe posso dizer muito mais do que aquilo que está no Chronicle — admitiu Miller, tocando no jornal local. — Mas havia uma flor, outra orquídea, que também foi descoberta na cena do crime. De acordo com o colega de quarto, a vítima tinha encontrado a orquídea no seu próprio quarto na manhã em que foi morto, como se o assassino tivesse deixado um cartão de visita.

— Houve testemunhas? Alguém foi visto no local do crime... ou viu quem quer que tenha deixado essa orquídea?

— Nada de concreto. Há quem diga ter visto um homem magro, de cabelo escuro, que rondava a igreja na altura do homicídio, a tirar fotografias, mas podia ser apenas um turista.

Arthur nada mais conseguiu retirar do que o agente lhe dissera. O fotógrafo misterioso acrescentava um bom pormenor para o relato que tencionava apresentar, mas o facto não era, sem dúvida, tão apetecível quanto o pormenor sobre a segunda orquídea.

Nessa tarde, Arthur compôs e enviou a história. Batizou o homicida de «o Assassino da Orquídea». No dia seguinte, o nome já constava de todos os jornais da cidade e da nação, e a sua reputação como jornalista cresceu.

O editor do Times alargou a sua missão para cobrir os homicídios. Até convenceu o jornal a oferecer-lhe dinheiro suficiente para alugar um quarto delapidado no bairro de Haight-Ashbury, onde as duas vítimas passavam a maior parte do seu tempo. Arthur usou o pouco dinheiro que lhe sobrara para comprar um rádio e ligou-o na banda da polícia.

Durante os dias que se seguiram, trabalhava e comia de rádio ligado. A maior parte das conversas eram entediantes, mas quatro noites depois foi recebida uma chamada frenética. Tinha sido descoberto um cadáver a poucos quarteirões do quarto alugado de Arthur, uma possível terceira vítima do Assassino da Orquídea.

Chamou um táxi para lá chegar mais rapidamente, mas a polícia já tinha isolado a área de modo a manter a Imprensa afastada.

Parado junto às tiras amarelas, Arthur empunhava a sua câmara Nikon. Estava equipada com uma lente zoom. Fora Christian quem a dera a Arthur como presente quando terminara a escola, dizendo-lhe que a poderia usar como um olho extra. Ainda assim, Arthur não era muito bom com a câmara — preferia contar histórias com palavras em vez de imagens —, mas sem que lhe fosse atribuído um fotógrafo teria de se arranjar sozinho.

Para se posicionar num ponto de observação mais vantajoso, afastou-se do cordão da polícia e subiu alguns degraus até ao alpendre de uma casa vitoriana vizinha. Apoiou-se numa coluna recentemente pintada para se equilibrar e examinou a cena do crime através da lente da câmara. Teve de afinar cuidadosamente o zoom para obter uma imagem límpida.

A vítima jazia de costas no passeio. Uma mancha escura ensombrava-lhe a garganta e espalhava-se sobre a pedra. Um braço estava esticado na direção da rua como se suplicasse por uma ajuda que jamais chegaria. Nessa palma aberta estava um objeto branco.

Arthur aumentou o zoom e tentou identificá-lo, discernindo por fim os pormenores das suas pétalas frisadas e tons suaves. Tratava-se de uma orquídea, mas não uma orquídea qualquer. O estômago de Arthur deu um nó de reconhecimento.

Era uma orquídea Brassocattleya.

Essas orquídeas eram bastante comuns, utilizadas como flores para enfeitar as roupas devido ao seu perfume poderoso e beleza duradoura. A mãe tinha criado aquela espécie em particular por adorar o perfume.

Arthur lembrou-se de mais um pormenor. Christian também sempre gostara delas.

O olho da sua mente saltou para o cartaz, para a vida imóvel de Christian aí impressa, o sorriso paralisado do irmão, os olhos com uma vida imensa até na fotografia.

Enquanto fitava a orquídea na palma da mão do falecido, o cheiro doce pareceu erguer-se da rua na sua direção, embora isso não pudesse ser verdade. Estava demasiado longe, mas até o cheiro imaginado era suficiente para desencadear uma memória há muito enterrada.

Arthur estava sentado num banco de pedra no canto da estufa da mãe, segurando uma faca de podar. Os odores familiares das orquídeas e da casca das árvores rodeavam-no, como a luz da tarde, presos sob todos aqueles vidros altos, que transformavam o inverno do exterior num verão fumegante no interior.

Fitou as longas mesas repletas de plantas exóticas. Algumas das orquídeas já as conhecia há anos, vendo-as florescer uma e outra vez durante a sua infância solitária.

Desde que pequeno que ia até ali para ver a mãe a trabalhar com as orquídeas, cantarolando-lhes, molhando-as suavemente, acariciando as suas folhas, dando-lhes o amor que não lhe dava a ele. Eram especiais e raras e belas, e ele não.

Tinha um sonho secreto ao crescer, conseguir fazer algo tão maravilhoso que ela acabaria por erguer o rosto dos vasos e reparar nele.

Mas isso jamais aconteceria.

Tinha morrido há dois dias, pondo fim a sua própria vida num dos seus ataques de melancolia negra. Seria agora depositada na terra, como uma das suas adoradas orquídeas.

Deslizou o polegar pela faca afiada.

Tinha ouvido os empregados a falar sobre o valor da coleção de orquídeas da mãe. Esta passara toda a vida a acumulá-la, comprando cada planta a um homenzinho estranho, todo ele vestido de preto, com um chapéu de coco. Recolhia-as em jardins botânicos de todo o mundo, junto de colecionadores, e até de homens que viajavam para florestas tropicais distantes e traziam os espécimes em sacos de serapilheira.

Agora, todas as suas preciosas orquídeas morreriam ou seriam vendidas.

Uma ténue chuva de inverno começou a bater no telhado de vidro e a escorrer pelas laterais em riscos. Arthur encostou a fria lâmina da faca ao suave calor do seu antebraço.

Foi assim que ela o fez...

Antes que conseguisse agir, a porta da estufa abriu-se e Arthur saltou.

A faca caiu no chão de ladrilhos.

Apenas uma pessoa se atrevia a percorrer assim a propriedade. Christian viera para a casa de Londres quando os dois rapazes tinham catorze anos. Os pais de Christian tinham morrido num acidente de automóvel às portas de São Francisco. O pai de Arthur era primo em segundo grau do pai do rapaz e acolheu o adolescente em sua casa. Embora os dois rapazes fossem aparentados, eram-no apenas pelo sangue, não pelo comportamento.

— Arty? — perguntou secamente. — Sei que estás aí.

Arthur moveu-se no banco e Christian viu-o, avançando para se juntar a ele. O cabelo castanho de Christian estava colado ao crânio devido à chuva, e os seus olhos verdes e brilhantes estavam inchados e vermelhos. Ao contrário de Arthur, Christian podia permitir-se chorar quando estava magoado. Era um traço americano. Algo que o pai e a mãe de Arthur jamais tolerariam.

Alcançando o banco, Christian retirou a tampa da lente da sua câmara. Levava-a para todo o lado. Passava todo o dia a tirar fotografias e metade da noite numa câmara escura improvisada a revelá-las. A mãe de Arthur dizia que ele tinha um verdadeiro talento, e ela não o teria dito se isso não fosse verdade.

Christian planeava ser fotojornalista. Queria viajar por zonas de guerra, tirar fotografias, usar a sua arte para mudar o mundo. Até convencera Arthur de que este também poderia ir, como jornalista. Formariam uma equipa. Arthur não estava certo de ter o talento para uma tal carreira, mas gostava de ser arrastado para os sonhos acordados de Christian. O outro rapaz tinha uma reserva de otimismo inesgotável de que Arthur frequentemente se afastava.

Mas naquele dia nem isso era suficiente.

Christian tirou uma fotografia da faca de podar abandonada nos azulejos, depois virou-se para as filas de mesas de espécimes. Avançou para a sua orquídea favorita: a Brassocattleya.

Primeiro, tirou um grande plano da flor, depois pegou numa folha morta e sentiu os seus contornos para ver se estaria húmida, tal como a mãe costumava fazer.

— Ela vai sentir a falta destas flores — comentou Christian.

Decerto mais do que eu, pensou Arthur obstinadamente. Christian pegou na flor e Arthur arquejou. A mãe jamais o teria permitido.

Christian pousou a flor no colo de Arthur e apanhou a faca de podar do chão.

Arthur observou a lâmina. Imaginou como seria cortar os pulsos, como jorraria o sangue e cairia ao chão. A mãe saberia. Tinha usado uma faca comprida da cozinha para cortar os pulsos no banho. Quando Arthur a encontrou, a água estava já de um vermelho tão profundo que parecia que toda a banheira se enchera com sangue.

Christian tocou na parte de dentro do pulso de Arthur. Os dedos deslizaram para trás e para a frente ao longo do mesmo ponto onde a mãe usara a faca da cozinha.

— Achas que doeu muito? — perguntou Christian, não se esquivando às questões mais duras. Os dedos ainda estavam pousados no pulso de Arthur.

Arthur encolheu os ombros, subitamente nervoso, não pelo tema, mas pela intimidade.

Christian afastou os dedos, substituindo o seu toque pelo do gume frio da faca de podar.

Arthur permaneceu muito quieto, esperançoso.

Christian inspirou fundo, depois cortou o pulso de Arthur, mas não demasiado fundo. Não doeu tanto quanto tinha antecipado. Não era mais do que um pequeno ardor, na realidade.

O sangue acumulou-se.

Os dois rapazes fitaram a brilhante linha escarlate na pele branca de Arthur.

— Ela também me deixou — disse Christian, e depositou a flor na mão de Arthur.

Arthur cerrou o punho, esmagando a orquídea, e o sangue jorrou ainda mais da sua ferida.

— Eu sei.

— Agora é a minha vez. — Christian deslizou a lâmina ensanguentada pelo seu próprio pulso.

— Porquê? — perguntou Arthur surpreendido.

Christian virou o braço e pousou o pulso ferido em cima do de Arthur. O sangue quente assim misturado deslizou pelos braços e pingou para o chão acabado de varrer.

Com o outro braço, Christian tirou várias fotografias: das gotas carmesim sobre os ladrilhos brancos do chão, da flor ensanguentada esmagada no banco. Por fim, Christian apontou a câmara de modo a tirar uma fotografia dos dois juntos, os braços unidos.

— Jamais te deixarei — sussurrou-lhe Christian. — Somos irmãos de sangue, agora e para sempre.

Pela primeira vez desde que Arthur tinha encontrado a sua mãe na água de cor carmesim — o cabelo louro manchado a flutuar à superfície, a cabeça inclinada para trás fitando o teto de gesso — foi-se abaixo e chorou.

Arthur sentiu uma mão empurrá-lo por trás, fazendo-o regressar ao presente.

— Sai do meu alpendre!

Virou-se e descobriu uma mulher de meia-idade ali parada, mais ou menos da idade que a sua mãe teria caso fosse viva. Fitou-o de sobrolho franzido e empurrou-o para fora dos degraus da sua propriedade, a camisa de dormir de flanela enchendo-se de ar da brisa noturna.

Os instintos de repórter de Arthur regressaram.

— Viu alguma coisa?

— Não tens nada a ver com o que eu vi. — Cruzou os braços sobre o peito e avaliou-o. — Mas posso dizer que não gosto do resultado deste Verão de Amor.

Mais tarde, quando Arthur enviou a história, no título podia ler-se Verão da Morte segue-se a Verão de Amor.

— Continuo sem ter notícias do Christian — disse Wayne pelo telefone, três dias depois. — Os nossos amigos na cidade também não.

Arthur franziu o sobrolho, segurando o telefone contra a orelha enquanto percorria as pilhas de relatórios policiais e exames forenses do mais recente homicídio, uma terceira vítima. O jovem chamava-se Louis May, tendo chegado recentemente de Kansas City. Como Christian, o homem tinha, provavelmente, sido arrastado pela promessa da Califórnia, uma corrida ao ouro dos tempos modernos de amor livre e abertura, apenas para morrer no passeio, a garganta dilacerada e uma flor na mão.

Teria o mesmo acontecido a Christian? Estaria o seu corpo ainda por descobrir?

— Mas esta manhã aconteceu algo estranho — disse Wayne, interrompendo as preocupações de Arthur.

— O quê? — Sentou-se mais direito e deixou que os papéis se aquietassem sobre a mesa.

— Um sacerdote católico veio bater à minha porta a uma hora terrivelmente madrugadora.

— Um padre? O que queria ele?

— Perguntou-me se eu sabia onde estaria o Christian, por onde costumava andar, em especial à noite. Estranho, não?

Estranho não era de todo a descrição adequada. Apesar do nome, o irmão não tinha qualquer afiliação religiosa. De facto, não sentia senão desdém por todos aqueles que se curvavam piamente de joelhos perante um deus que não se preocupava com eles, como acontecera com os pais de Arthur. Portanto, que razão teria um sacerdote para se interessar pelo seu irmão?

Como se tivesse ouvido as perguntas silenciosas de Arthur, Wayne explicou.

— O sacerdote disse que era importante descobrir o teu irmão e falar com ele. Disse que a alma imortal do Christian estava em risco. Disse-me que transmitisse ao Christian que ele podia virar as costas àquilo que se tornara e aceitar Cristo no seu coração e encontrar a salvação. Essas foram as suas palavras exatas.

Arthur engoliu em seco, ouvindo o eco das suas próprias palavras a Christian naquela última noite, palavras que não poderiam ser facilmente apagadas. Tinha chamado nomes a Christian, exigido que ele mudasse, dizendo-lhe que o caminho que Christian escolhera conduziria a uma morte solitária. A discussão tornara-se cada vez mais intensa, até os irmãos terem fugido um do outro.

No dia seguinte, Christian tinha partido.

— Devias ter visto os olhos do tipo — continuou Wayne. — Assustaram-me verdadeiramente, tenho de o admitir. Nunca tinha conhecido um padre assim. O que achas que ele queria realmente?

— Não faço ideia.

Depois da chamada, Arthur deixou-se ficar sentado no seu pequeno quarto alugado, a estudar as imagens e os recortes de notícias que prendera à parede. Como Christian, todas as vítimas eram homens na casa dos vinte. Tinham cabelo escuro e eram belos.

Arthur fitou uma foto publicitária de Jackie Jake. O cabelo preto do cantor de folk caía-lhe sobre os olhos, fazendo-lhe recordar fortemente Christian. Jake até tinha os mesmos olhos verdes brilhantes.

Foi nesse momento que Arthur se apercebeu de que não tinha uma única fotografia do irmão. Depois da discussão, numa crise de rancor, destruíra-as a todas. Em muitos aspetos, era tão volátil e temperamental quanto a mãe, acabando por revelar-se igualmente crítico. Nessa altura Arthur fora um idiota. Sabia-o agora. Tudo o que queria era encontrar Christian e pedir-lhe desculpas, mas temia nunca mais ter essa oportunidade. Era possível que nunca mais conseguisse corrigir o acontecido.

Durante os três dias seguintes, embrenhou-se no caso, sentindo que Christian estava ligado aos homicídios. Mas como? Seria uma vítima, ou estaria de algum modo envolvido? A última hipótese parecia impossível. Ainda assim, recordou o louco na cerimónia fúnebre. Poderia Christian ter sido drogado, sofrido uma lavagem ao cérebro por parte de um qualquer culto assassino e sido transformado num monstro?

Precisando de respostas, Arthur deu início a uma investigação em torno das orquídeas, contudo havia demasiadas floristas na cidade que as vendiam. Mostrou por toda a parte a fotografia de Christian que Wayne usara no panfleto, mas nenhum dos lojistas se recordava de um cliente em particular que pudesse ter comprado orquídeas por volta da altura dos homicídios. Não era de surpreender. Era verão, as orquídeas tinham grande procura para os bailes da classe alta, essas criaturas majestosas, ricas, bem distantes dos homens que viviam nas ruas ou nas casas atarracadas, ou que morriam segurando uma nas mãos.

Todos os dias falava com o agente Miller, na esperança de que existissem novidades. Durante todo esse tempo, a cidade sustinha a respiração aguardando pelo homicídio seguinte. Arthur descobriu junto de Miller que a última vítima, como as outras, também recebera uma orquídea na manhã da sua morte. Tinha sido entregue à porta de Louis May, e doze horas depois o jovem estava morto.

Com o café da manhã na mão, Arthur contemplou aquela crueldade, aquela promessa de morte entregue à porta. Subiu até ao seu quarto alugado e regressou ao espaço de trabalho apinhado.

Ali, repousando sobre as teclas da máquina de escrever, estava uma flor branca solitária.

A orquídea Brassocattleya.

— Olhe, senhor Crane — disse o agente Miller. — Consigo imaginar que esteja assustado, mas as pessoas por aqui acham que foi um golpe publicitário. Para vender mais jornais.

Arthur fitava, atordoado, a sala apinhada da esquadra para lá da secretária de Miller. Dirigira-se diretamente para lá depois de ter descoberto a orquídea. Naquele preciso momento estava pousada na mesa de metal gasta à sua frente.

— Não pode pensar...

Miller ergueu uma mão carnuda.

— Não penso. Confio plenamente em si, mas não o posso ajudar. Estou de mãos atadas.

Arthur sentiu um aperto no estômago. Há horas que se debatia com a polícia, na esperança de obter algum tipo de proteção, mas ninguém o levava a sério.

— Então, e se ficar plantado na esquadra da polícia? Só durante vinte e quatro horas?

— Não posso permitir que faça isso. — O rosto repleto de sardas de Miller parecia preocupado, mas o queixo mantinha-se firme. Não cederia.

— Então prendam-me.

O agente Miller deu uma gargalhada.

— E acusamo-lo de quê? — Arthur deu-lhe um murro no rosto sardento.

O Times demorou três dias a pagar a fiança de Arthur. Entretanto, uma quarta vítima recebera a sua orquídea e fora assassinada. A nova morte convenceu ainda mais a polícia de que Arthur mentira acerca da orquídea ou que alguém pregara uma partida cruel ao repórter britânico.

Arthur sabia que não era assim.

No entanto, o que significaria tudo aquilo? Teria o assassino saltado o seu nome? Ou estava apenas a ganhar tempo para o matar? Sem poder ter a certeza, Arthur passou a sua primeira noite de liberdade num pequeno dinner aberto vinte e quatro horas, o Sparky, temendo regressar a casa. Levou consigo uma pilha gigantesca de notas e utilizou o tempo para estruturar o livro, um tratado sobre homicídios. A Sangue Frio de Truman Capote tinha saído há dois anos e a narrativa daqueles homicídios enfeitiçara-o. Queria fazer algo semelhante, descobrir uma forma de dar sentido aos pormenores, de os entrelaçar entre as páginas frias e desapaixonadas de um livro.

Sentado numa mesa de canto do dinner, que lhe permitia ver claramente todas as saídas, beliscou a terceira fatia de tarte de maçã e bebeu a milionésima caneca de café. Durante toda a noite, recusara-se a abdicar da sua mesa, apesar dos olhares rancorosos da empregada.

Mas agora o céu estava manchado de um cinzento-pálido e ele sabia que estava na hora de seguir caminho. Não podia viver eternamente dentro do dinner. Por isso, pegou nas suas coisas, deixou uma generosa gorjeta para a empregada e arrastou-se em direção ao seu apartamento. Enquanto caminhava, ia esfregando o sono dos olhos exaustos. Semicerrou os olhos para o céu que se erguia sobre a fachada de uma loja entaipada e abandonada. O edifício de cinco andares tinha-se transformado na casa de alguns sem-abrigo. Era regularmente alvo de rusgas, esvaziado, apenas para se encher de novo.

Enquanto passava por ele, sentiu o peso da sua sacola de notas. Sabia que aqueles homicídios poderiam dar um livro, algo sombrio, fascinante e significativo, o tipo de coisa capaz de fazer a sua carreira.

A alguns metros de distância, uma figura emergiu de uma loja dilapidada, mantendo-se nas sombras. Embora fosse quase invisível na fraca luz, Arthur reconheceu-o e fê-lo parar, chocado e incrédulo.

— Christian...?

Antes que pudesse reagir, o irmão estava sobre ele, apertando-o num abraço tenso simultaneamente tímido e assustador. Os dedos enterravam-se nos seus ombros, o cotovelo era suficientemente duro para encontrar osso.

Arthur arquejou, tentou afastar-se, mas era como tentar esticar uma barra de ferro. A dor enfraqueceu-o ainda mais, obrigando-o a deixar cair o saco.

Lábios moveram-se para o seu ouvido.

— Vem comigo.

A respiração era gelada, cheirava a carne azeda e podridão. O tom não era um convite, mas uma exigência.

Arthur foi levantado do chão e arrastado, com a facilidade com que uma mãe arrasta um filho errante.

Num instante, tinham passado a porta e subido um lanço de escadas em mau estado até uma divisão mais acima. O lixo enchia o chão. Velhos cobertores esburacados estavam enrolados contra as paredes, abandonados pelos seus antigos residentes. O único local em ordem era uma mesa de carvalho no centro, a sua superfície polida até brilhar, completamente deslocada.

Tal como o cheiro.

Para lá do cheiro do suor, das fezes e da urina, erguia-se a doçura da madressilva e da gardénia. O perfume erguia-se de um ramo de orquídeas brancas, todas Brassocattleya.

Se Arthur ainda tinha algumas dúvidas quanto ao papel desempenhado por Christian nos homicídios mais recentes, estas desapareceram por completo. A mesa parecia um templo ou um altar a um deus sombrio.

Arthur tentou lutar para se libertar daquelas garras férreas, mas não conseguiu escapar à mão que lhe segurava o antebraço. Os seus esforços valeram-lhe ser atirado contra a parede, com força suficiente para magoar o ombro e o deixar prostrado. Temendo pela vida, procurou a sua única arma, a mesma arma que no passado afastara os dois irmãos.

As suas palavras.

Mas o que poderia ele dizer?

Arthur fitou o seu atacante, desiludido pelo que aí encontrou. Christian tinha exatamente o mesmo aspeto e, no entanto, estava completamente diferente. O seu rosto e a sua postura eram os de sempre, mas agora movia-se com uma velocidade e uma força que desafiavam a razão. Pior do que isso, a sua expressão gentil tinha-se tornado dura e furiosa.

A malícia brilhava nos olhos que tinham sido outrora luminosos e cheios de alegria.

Arthur sabia que aquela terrível condição devia ser o efeito secundário de uma qualquer droga. Lembrou-se do louco na igreja, recordou as histórias de terror que lera sobre os viciados num novo produto farmacêutico chamado fenciclidina. A droga tinha chegado ao bairro de Haight-Ashbury no ano anterior.

Estaria a explicação ali?

— Podes parar isto — tentou Arthur. — Posso ajudar-te. Desintoxicar-te.

— Desintoxicar? — Christian ergueu os lábios numa careta fantasmagórica e deu uma gargalhada, uma imitação grosseira do seu riso normalmente brincalhão.

Mudando de tática, Arthur tentou utilizar o passado partilhado num apelo, para o arrastar para si, para o fazer recordar quem fora outrora.

— Brassocattleya — disse, apontando para a mesa. — Como a nossa mãe cultivava e amava.

— Eram para ti — disse Christian.

— As orquídeas?

— Os homicídios. — Christian fitou-o, mostrando demasiados dentes. — As orquídeas foram meramente um ardil para te atrair. Eu sabia que estavas no Times e esperava que a notícia das orquídeas te atraísse até cá. Foi por isso que matei primeiro o cantor, aquele que era de Londres.

Arthur petrificou, imaginando o rosto de Jackie Jake. Tinha contribuído para a morte do pobre homem.

— Vieste mais depressa do que eu esperava — disse o irmão. — Tinha esperado deixar para trás um longo rasto de convites antes de te receber aqui.

— Estou aqui agora. — O ombro de Arthur latejava, até os dentes lhe doíam. — O que quer que esteja errado entre nós, podemos resolvê-lo juntos.

Christian expôs o braço, virando-o para revelar a cicatriz pálida no pulso. Arthur tinha uma cicatriz equivalente.

— Tens razão — disse Arthur. — Somos irmãos de sangue.

— Para sempre... — Christian parecia momentaneamente perdido.

Arthur esperava que aquilo fosse um sinal de que estava por fim a emergir da escuridão, daquele escape alimentado pelas drogas.

— Podemos ser irmãos outra vez.

— Mas apenas de sangue. — Christian fitou-o, os olhos escuros e frios. — Não é verdade?

Antes que Arthur pudesse responder, Christian atirou-o ao chão, baixando-se e sentando-se em cima dele. O rosto branco do irmão parou a centímetros do seu, os seus olhos lendo-lhe as feições como um livro.

Arthur tentou tirá-lo de cima de si, mas o irmão era demasiado forte.

Christian aproximou-se mais, como se o fosse beijar. A respiração fria tocava no rosto de Arthur. O irmão utilizou o polegar para virar o rosto de Arthur, expondo-lhe o pescoço.

Arthur recordou as fotografias das vítimas de Christian na morgue, as gargantas rasgadas.

Não...

Voltou a debater-se, resistindo sob Christian, mas não havia como escapar ao irmão. Dentes impossivelmente afiados rasgaram a pele da sua garganta.

O sangue abafou o grito de Arthur.

Lutou contra a sua morte, debateu-se, gritou, mas em poucos segundos perdeu qualquer capacidade de lutar. Jazia agora imóvel enquanto ondas de dor e um êxtase impossível latejavam através do corpo ferido, levado para longe à medida que o coração fraquejava. Os braços e as pernas estavam pesados e os olhos deslizaram, fechando-se. Estava a enfraquecer, talvez até a morrer, mas não se importava.

Naquele momento sangrento descobriu a ligação que as pessoas procuravam através do amor, das drogas e da religião. Ele tinha-a agora.

Com Christian... Estava certo.

De súbito aquele momento foi friamente interrompido.

Arthur abriu os olhos e descobriu Christian a fitá-lo, o sangue a pingar do queixo do irmão.

Nos olhos de Christian, Arthur interpretou horror — e tristeza —, como se o sangue tivesse alcançado o sucesso que as palavras de Arthur não tinham conseguido. Christian encostou uma mão gelada à ferida na garganta de Arthur, como se pudesse parar o fluxo de sangue que dela emergia.

— É demasiado tarde... — disse Arthur com voz seca.

Christian pressionou com mais força, as lágrimas acumulando-se.

— Lamento. Lamento. Lamento.

O irmão fitava-o, claramente esforçando-se por controlar o mal dentro de si, por se recuperar. Arthur viu as narinas a abrir, como se sentisse o cheiro do sangue derramado. Christian gemeu de necessidade, mas Arthur apercebeu-se de um tom subtil de desafio.

Arthur desejou poder ajudar, afastar aquela dor, aquela luta.

Deixou que o desejo lhe brilhasse no rosto, aquele amor de irmão por irmão.

Uma lágrima rolou pelo rosto de Christian.

— Não posso... não tu...

Com os dois braços pegou em Arthur, avançou para uma janela, e lançou o seu corpo para a luz do sol. Enquanto voava por entre uma cascata de vidros partidos, olhou para trás, vendo Christian afastar-se do sol, regressar às sombras, para sempre perdido.

Então, Arthur caiu na rua.

Imóvel, a escuridão encontrou-o sob a luz do sol, engolindo-o. Mas não antes de ter visto uma orquídea pousada no passeio perto da sua cabeça, flutuando numa poça do seu sangue. O doce perfume encheu-lhe as narinas. Sabia que era a última coisa que iria cheirar.

A sua mãe ficaria feliz com isso.

Vários dias mais tarde, Arthur acordou com dores. Estava deitado numa cama, uma cama de hospital. Demorou vários segundos a perceber que tinha as pernas suspensas à sua frente, envoltas em gesso. Virar a cabeça exigiu todo o seu esforço. Através da janela, viu o sol fraco da tarde.

— Vejo que está acordado — disse uma voz familiar.

O agente Miller estava sentado ao seu lado. O polícia levou a mão à mesa, pegou num copo de água com uma palhinha e ofereceu-lhe. Arthur deixou que o homem colocasse a palhinha entre os seus lábios. Bebeu a água tépida até esta ter desaparecido.

Uma vez terminado, Arthur recostou-se. Até a curta bebida o deixara exausto. Ainda assim, apercebeu-se das manchas arroxeadas que debruavam o olho de Miller, o resultado do murro aplicado por Arthur.

Miller tocou-lhe.

— Lamento que não o tenhamos levado mais a sério, senhor Crane.

— Também eu — crocitou.

— Tenho de lhe perguntar... reconheceu o homem que o atacou?

Arthur fechou os olhos. Na verdade, não tinha reconhecido a criatura que o atacara, mas reconhecera o homem que o lançara para a luz do sol, para longe do monstro que tentava recuperar o controlo. Em conclusão, Arthur sabia que Christian lhe salvara a vida. Poderia ele condená-lo agora?

— Senhor Crane?

Por trás das pálpebras, Arthur viu o rosto de Jackie Jake e o corpo despedaçado do homem no passeio. Mesmo que conseguisse perdoar o ataque de Christian sobre si, não podia deixar que o monstro dentro dele continuasse a matar.

Arthur abriu os olhos e falou até voltar a adormecer.

Quando acordou era de noite. Sentia uma sede terrível, e as suas pernas ainda pendiam à sua frente como uma escultura bizarra. O murmúrio calmo à esquerda era decerto emitido pelo posto das enfermeiras. Levou a mão à campainha para a chamar...

Ele estava na rua, a olhar por olhos que não eram os seus. Uma torre de tijolo pairava à sua frente. Uma igreja. No meio da torre havia uma porta. A luz derramava-se para os degraus da frente escurecidos.

Chorando, correu para a luz, avançando a uma velocidade inimaginável. O trânsito arrastava-se ao seu lado, e ao longe soava uma sirene. Nada daquilo importava. Tinha de alcançar aquela torre. Tinha de atravessar aquela porta.

Mas quando se aproximou da igreja, uma figura tornou-se visível, banhada naquele brilho quente do interior. Era um padre. Embora a distância fosse grande, as palavras sussurradas chegaram ao seu ouvido.

— É solo sagrado. Estás avisado, é inimigo de quem foi amaldiçoado como tu. Se entrares, terás apenas uma escolha. Juntares-te a nós ou morrer.

As palavras do estranho sacerdote revelaram-se verdadeiras. A cada passo, a força dos seus membros ia-se desvanecendo. Era como se o próprio chão lhe retirasse energia. O calor erguia-se através dos seus pés. Por um segundo foi maravilhoso, porque se sentia bastante frio. Mas depois queimou-o com crueldade.

Ainda assim não parou. Erguia primeiro uma pesada perna e depois a outra, lutando contra o calor e a fraqueza. Tinha de chegar àquela porta, àquele sacerdote. Tudo dependia disso.

Estava agora suficientemente perto para se aperceber do design gótico, gravado em verdete, nas portas altas. Viu o cabeção do sacerdote, feito de linho antigo, não de plástico moderno. Cambaleou em direção àquele homem. Apesar da sua fraqueza, sabia que aquele homem era como ele, amaldiçoado, mas que conseguia, de alguma forma, continuar.

Como?

O sacerdote recuou, chamando-o para o interior.

Caiu através do limiar da porta, mergulhando numa nave ampla. Pilares e arcos erguiam-se de ambos os lados, e lá bem à frente as velas ardiam no altar.

Agora de joelhos, ardia no ambiente sagrado que ali encontrara.

O fogo dilacerava-lhe o corpo.

O sacerdote falou atrás dele.

— Sê bem-vindo, Christian.

Arthur agitava-se na cama, ardendo ainda devido ao seu sonho acordado. Uma corda partiu-se e deixou cair uma das suas pernas. Aquela nova dor levou-o a focar-se, arrastando-o para o exterior das chamas.

Uma enfermeira de touca branca correu para o quarto. Segundos depois uma agulha picava-lhe o braço e, abençoadamente, tudo escureceu.

Dias depois, Arthur voltou a acordar. A cabeça estava mais límpida, mas sentia-se terrivelmente fraco. As enfermeiras tentaram convencê-lo de que a sua visão a arder na igreja era um efeito secundário da morfina ou um sonho febril devido ao choque. Não acreditava em nenhuma das explicações. Em vez disso, transportava em si aquelas últimas palavras, sabendo que ali ficariam gravadas para sempre.

Sê bem-vindo, Christian.

Arthur sabia que, de alguma forma, tinha estado ligado ao irmão durante aquele momento breve e agonizante, talvez um presente do sangue que haviam partilhado. Também se lembrava da descrição de Wayne do sacerdote que tinha ido à procura de Christian. Seria aquele o mesmo sacerdote, oferecendo alguma forma de salvação a Christian, um caminho que ele pudesse ainda seguir?

Ou não passaria tudo de uma moca terrível, para usar o vernacular dos jovens que percorriam São Francisco?

Fosse como fosse, Arthur foi sarando aos poucos. Passando a maior parte do tempo preso à cama, aproveitou para ditar o seu novo livro a uma assistente contratada pelo jornal. Chamava-se Marnie, e ele desposá-la-ia mal se conseguisse pôr de pé.

Depois do ataque a Arthur, os homicídios tinham subitamente parado, mas o interesse do público não se desvanecera. Um ano depois, o seu livro O Assassino da Orquídea tornou-se um bestseller internacional. No que ao mundo dizia respeito, ele tinha resolvido o caso, ainda que a polícia nunca tivesse prendido Christian.

O irmão tinha, simplesmente, desaparecido da face da terra. A maioria acreditava que estava morto e que até se tivesse suicidado. Mas Arthur nunca esqueceu o seu sonho de entrar de gatas numa igreja, ardendo naquela santidade.

Agarrou-se à esperança de que Christian ainda estivesse vivo.

Mas caso estivesse certo, qual dos dois teria sobrevivido na igreja?

O irmão ou o monstro?

Verão, atualidade

São Francisco, Califórnia

Enquanto o sol se afundava no horizonte, Arthur levou a orquídea ao rosto e inspirou a sua fragrância. As pétalas fizeram-lhe cócegas na bochecha. Levou a flor para o escritório. Os livros alinhavam-se nas paredes e os jornais cobriam a secretária de carvalho.

Nos anos que se seguiram ao desaparecimento de Christian, Arthur dedicara a maior parte da vida a viajar, a noticiar e a perseguir pistas sobre mortes violentas e sacerdotes misteriosos, tentando localizar o irmão ou, pelo menos, compreender o que lhe teria acontecido. Era uma paixão que partilhara com Marnie, até à sua morte há seis meses. Agora tudo o que queria era terminar o seu trabalho e acabar.

Com tudo.

Pelo menos, agora que tudo chegava ao fim, estava perto.

Há vários anos, Arthur soubera de uns rumores sobre uma ordem secreta enterrada nas profundezas da Igreja Católica, uma cujas raízes remontavam aos seus dias mais antigos, um culto do sangue conhecido como Ordem dos Sanguinistas. Encaminhou-se para a sua secretária e pegou numa folha de um velho bloco de apontamentos, os seus limites rasgados e enrolados.

Tinha-lhe sido presa uma fotografia. Alguém lha enviara anonimamente há dois anos, com uma breve nota que sugeria a sua importância. Mostrava A Ressurreição de Lázaro, de Rembrandt. Arthur tinha-a marcado, anotando as suas muitas questões sobre aquela ordem sombria e os rumores que ouvira.

Deixou que a folha lhe deslizasse dos dedos, recordando o sonho de uma igreja a arder.

Ter-se-ia o irmão juntado àquela ordem no passado? Olhou de relance para a orquídea.

Se assim foi, porquê vires buscar-me agora, Christian?

Arthur desconfiava do motivo. Estava pousado na sua secretária numa pilha cuidada. Ao longo das últimas décadas, Arthur tinha reunido mais provas, o suficiente para que acreditassem nele, sobre o culto dos Sanguinistas dentro da Igreja. Naquela noite, a sua fonte — um representante de um grupo chamado Belial — deveria visitá-lo e apresentar a derradeira prova, algo tão explosivo que a verdade jamais poderia ser negada.

Arthur mexeu numa das suaves pétalas da orquídea.

Reconheceu-a como uma ameaça, um aviso, uma tentativa de o silenciar.

Arthur não seria intimidado. À medida que o dia foi passando, tentou repetidamente contactar a sua fonte dos Belial — um homem chamado Simeon — para anteciparem o encontro daquela noite, mas não conseguia falar com o homem. À tarde, Arthur pensou simplesmente em fugir, mas apercebeu-se de que não valia a pena tentar esconder-se. Já estava demasiado embrenhado. Além disso, desde a morte de Marnie, a indiferença apoderara-se dele, simplesmente já não se importava.

Por isso, esperou que a noite chegasse, gozando a sua refeição preferida de um restaurante italiano ao fundo da rua, complementando-a com uma garrafa do seu melhor pinot noir. Não via qualquer motivo para poupanças. Seria a sua última refeição, mais valia apreciá-la. Comeu-a na cozinha enquanto observava o céu a ficar cor de laranja do outro lado da Golden Gate Bridge.

Por fim, ouviu baterem à porta do seu apartamento. Arthur atravessou a casa a partir do escritório e espreitou através do óculo da porta. Estava parado no corredor um homem com um fato azul-escuro. O rosto e o cabelo preto eram familiares a Arthur graças à fotografia granulada que lhe tinha sido entregue num bar de Berlim. Era Simeon.

Arthur abriu a porta.

— Senhor Crane? — A voz do homem era baixa e rouca, com um sotaque eslavo que Arthur não conseguia localizar com exatidão. Talvez fosse checo.

— Sim — disse Arthur afastando-se. — Pode entrar, depressa. Poderá não ser muito seguro.

As palavras mereceram um sorriso suave do homem, divertido pelas cautelas de Arthur. Mas o homem não sabia de Christian ou da orquídea.

Quando o seu convidado entrou, Arthur verificou o corredor no exterior e as escadas que desciam até ao velho alpendre vitoriano. Não havia ninguém.

Ainda assim, um arrepio deslizou pelas costas de Arthur, um eriçar dos pelos na nuca, uma sensação de perigo imediato. Seguiu rapidamente Simeon para o interior e fechou a porta atrás de si, trancando o ferrolho.

Simeon aguardou no vestíbulo.

— Vamos até ao meu escritório. — Arthur guiou-o.

Simeon seguiu-o e aproximou-se da secretária de Arthur, fitando a sala. O seu olhar pousou na página marcada que mostrava A Ressurreição de Lázaro. Apontou para a folha.

— Já vi que conhece as origens sangrentas dos Sanguinistas — disse Simeon. — Que Lázaro foi o primeiro deles.

— Ouvi rumores estranhos — disse Arthur. — Histórias sombrias de monstros e criaturas da noite. Nada em que se deva acreditar, claro. Desconfio que são histórias contadas para afastar as pessoas da verdade.

Arthur fitou Simeon expectante, na esperança de ouvir essa verdade.

Em vez disso, Simeon tocou no rosto de Cristo na página com uma unha curiosamente longa.

— Há muito nos Sanguinistas que desafia qualquer crença.

Arthur não sabia como responder àquela afirmação, por isso manteve o silêncio.

Simeon deslizou a unha pela página do bloco de notas.

— Mostre-me o que já sabe.

Arthur entregou-lhe uma pasta do manuscrito em que estava a trabalhar, com notas escrevinhadas que indicavam onde seriam inseridos os documentos e as imagens.

O homem percorreu rapidamente as páginas, demasiado depressa para as ler verdadeiramente.

— Entregou isto a alguém?

— Ainda não.

Os olhos de Simeon cruzaram-se pela primeira vez com os dele. Os seus olhos eram castanhos e debruados com pestanas espessas, olhos belos, mas o que teve mais impacto em Arthur foi o facto de não pestanejarem. Sentiu que os pelos dos braços se erguiam e deu um passo atrás, afastando-se do homem, apercebendo-se subitamente de que o medo que sentira antes proviera deste homem, não de uma qualquer ameaça escondida para lá do seu apartamento.

— Está perto da verdade — disse Simeon, já não escondendo a ameaça na sua presença, mostrando-se ainda mais alto. — Mais perto do que pensa. Demasiado perto para o nosso conforto.

Arthur deu mais um passo atrás.

— O Belial...

— Os Sanguinistas desafiam-nos a cada passo, mas essa guerra tem de ser mantida em segredo — Simeon avançou para ele. — A nossa escuridão não pode prosperar na luz.

O som de uma moto na rua distraiu Arthur. Ele olhou de relance na direção do som, e Simeon saltou sobre ele.

Arthur caiu dolorosamente ao chão. Simeon prendeu-o ali. Arthur lutou com ele, mas Simeon tinha uma força implacável que Arthur só experimentara uma vez na sua vida, no dia em que Christian quase o matara.

— Quer a verdade — disse Simeon. — Aqui está ela. — Os lábios do homem apartaram-se para revelar dentes afiados, impossivelmente longos.

Regressou ao momento com Christian, recordando subitamente aquilo que a sua mente omitira, que não permitira que visse plenamente.

Até àquele instante.

Que havia monstros no mundo.

Arthur redobrou os seus esforços, mas sabia que era inútil.

A seguir, um estrondo de madeira e vidros partidos invadiu o quarto. Imaginou a sua janela a explodir. Mas ele vivia no terceiro andar.

Simeon virou-se quando uma sombra escura voou para o quarto, tirando o monstro de cima de Arthur. Arquejando, Arthur afastou-se como um caranguejo sobre as mãos e os pés, recuando do confronto até alcançar a lareira fria do escritório.

A guerra grassava na divisão apertada, demasiado rápida para que a conseguisse seguir, um borrão de sombras, acompanhado por brilhos prateados, como relâmpagos numa tempestade. O combate chocou contra a sua secretária e embateu contra as estantes de livros, lançando vários volumes pelo chão.

Depois um grito animal, todo ele sangue e fúria.

Um instante depois, uma cabeça rolava pelo chão de madeira, derramando sangue negro.

Simeon.

Do outro lado da secretária de Arthur, ergueu-se uma sombra que derramou a sua escuridão. A figura envergava um casaco de motard de cabedal preto, aberto, revelando o cabeção do sacerdócio. Contornou a secretária, o rosto pálido arranhado, a sangrar. Tinha nas mãos duas espadas curtas, que brilhavam como prata líquida, manchadas pelo mesmo sangue que ensopava o chão de madeira dourada.

Num gesto impossível, a figura sorriu-lhe, mostrando nos olhos verdes um brilho divertido e encantador que lhe era familiar, enquanto embainhava as espadas.

— Christian...?

Tendo ultrapassado o medo, Arthur fitava o irmão de boca aberta. Apesar de terem passado quarenta anos, Christian praticamente não mudara, não era mais do que um rapazinho em aparência comparado com o rosto enrugado e envelhecido de Arthur.

— Como? — perguntou Arthur, o mistério erguendo-se à sua frente.

Mas Christian limitou-se a sorrir ainda mais, a aproximar-se e a oferecer a mão a Arthur.

Este aceitou-a, agarrando os dedos pálidos do irmão, descobrindo-os frios e duros, como mármore esculpido. Enquanto Arthur era erguido, viu a cicatriz no pulso do irmão, igual à sua. Embora fosse impossível, era de facto Christian.

— Estás ferido? — perguntou-lhe o irmão.

Como poderia alguém responder quando a sua vida se tinha desequilibrado num só momento?

Ainda assim, conseguiu abanar a cabeça.

Christian conduziu-o de volta à cozinha, à mesa onde repousavam os restos da sua última refeição. Instalou Arthur, depois pegou na garrafa vazia de pinot noir.

— Um bom ano — disse ele, cheirando a garrafa. — Boas notas de carvalho e tabaco.

Arthur voltou a encontrar a sua voz.

— O que... o que és?

Christian ergueu uma sobrancelha divertida, uma expressão que o feria com a recordação do passado partilhado, tão perfeitamente preservada quanto o resto das suas feições.

— Tu já sabes, Arthur. Basta que o aceites.

Christian levou a mão à perna e libertou uma garrafa de couro. Marcadas na superfície estavam as chaves cruzadas e a coroa do selo papal. Christian pegou na taça vazia de Arthur, encheu-a com o conteúdo da garrafa e empurrou-a na sua direção.

Arthur fitou o copo, desconfiado.

— Vinho?

— Vinho consagrado — corrigiu Christian. — Transformado pelo ato mais sagrado de transubstanciação no sangue de Cristo. Foi o que jurei beber. É o que me sustém, a mim e aos meus irmãos e irmãs.

— A Ordem dos Sanguinistas.

— O sangue de Cristo permite-nos andar à luz do dia, combater aqueles que caçam nos cantos mergulhados nas sombras do mundo.

— Como os Belial. — Arthur recordou os dentes afiados de Simeon.

— E outros.

O seu irmão retirou uma outra taça da cozinha, encheu-a e juntou-se a Arthur à mesa.

Arthur bebeu um gole do seu copo, sentindo apenas o gosto do vinho, nada do suposto milagre que continha. Mas, de momento, aceitou aquela verdade.

Christian ergueu a sua própria taça, bebendo profundamente, depois voltou a levantar a taça.

— Parece que somos de novo irmãos de sangue.

Aquilo despertou um sorriso em Arthur.

Christian estendeu o braço e tocou com a sua taça na de Arthur.

— À tua, meu irmão industrioso e persistente. Já te tinha dito que darias um excelente jornalista.

— Sabias o que eu ia descobrir.

— Nunca deixei de te observar. Mas os teus esforços agitaram um ninho de vespas. Há quem, mesmo na minha ordem, necessite de segredos.

Arthur lembrou-se das palavras de Simeon acerca dos Belial.

A nossa escuridão não pode prosperar na luz.

Aparentemente, os Sanguinistas também necessitavam daquelas sombras.

— Para tua segurança — disse Christian — tentei avisar-te.

Arthur ainda conseguia sentir um ligeiro perfume das gardénias.

— A orquídea.

— Tive de ser subtil, utilizando um meio de comunicação que só tu compreendesses. Esperava que abandonasses esta linha de investigação, mas já devia saber que não seria assim. Quando não o fizeste, não pude deixar que alguém te magoasse.

— Salvaste-me a vida.

Christian ficou momentaneamente pensativo.

— Era o mais adequado depois de me teres salvado a alma.

Arthur franziu o sobrolho perante tais palavras.

Christian explicou.

— Foi o teu amor, o nosso laço como irmãos, que, por fim, me vergou o suficiente para procurar os Sanguinistas e aquilo que eles ofereciam, um caminho para o serviço e a redenção dos meus pecados.

Arthur recordou a igreja ardente e o sacerdote à entrada.

Christian animou-se de novo, endireitando as costas.

— Portanto, eu salvei a tua vida e tu salvaste a minha alma... consideremo-lo um empate.

Arthur fez outras perguntas, recebeu algumas respostas, mas outras foram-lhe negadas.

Aceitou-o lentamente, bem como a necessidade de tais segredos.

Por fim, Christian levantou-se.

— Tenho de ir. Devias ir para um hotel durante uns dias. Vou mandar alguém, alguém em quem confio, para arranjar a tua janela, limpar a casa.

Por outras palavras, para se livrar do corpo.

Arthur seguiu-o até à porta.

— Vou voltar a ver-te?

— É proibido — disse Christian, os seus olhos uma mistura de tristeza e arrependimento. — Nem sequer é suposto eu estar aqui neste momento.

Arthur sentiu uma dor que ameaçava partir o seu coração já idoso.

Christian abraçou-o, com gentileza, mas firmeza.

— Estarei sempre contigo, meu irmão. — Quebrou o abraço, pousando a palma da mão no coração de Arthur. — Aqui mesmo.

Arthur viu que Christian tinha algo debaixo da palma da mão, apertado contra o seu peito. Quando o irmão afastou a mão, um quadrado de papel caiu, flutuando em direção ao chão. Arthur lançou-se para o apanhar, tomando-o entre os dedos.

Quando se endireitou, viu que a porta estava aberta e Christian partira.

Arthur avançou para o corredor, mas não havia sinais do irmão.

Baixou os olhos para o que apanhara do chão, um presente de despedida de Christian.

Era uma fotografia a preto-e-branco, ligeiramente amarelecida, estragada nos cantos. Em pano de fundo estava um vidro molhado pela chuva e em primeiro plano dois rapazes de luto fitavam juntos uma câmara. Christian segurava a câmara bem alto e Arthur inclinava-se para ele em busca de apoio, dois irmãos, unidos pelo sangue para jamais se separarem.

Christian devia ter andado com a velha fotografia durante todos aqueles anos.

Agora pertencia a Arthur.

Que a guardaria agora e para sempre.


REGRESSO ÀS RAÍZES

É um segredo mal guardado que, no início da minha carreira, escrevi uma série de romances de fantasia (sob o pseudónimo de «James Clemens»). Por isso, quando fui abordado para criar uma história no género fantástico destinada a um público jovem adulto para uma antologia editada pelo ilustre mestre do género, R. L. Stine, como poderia recusar?

Anos antes, quando vivia em São Francisco, apaixonei-me pela arte de rua que decora muitas das paredes e vielas da cidade. Olhava para obras de arte que eram, muitas vezes, tão espantosas quanto misteriosas. Levava-me a questionar-me sobre o artista, a sua motivação, o significado por trás daquele borrão de spray na noite.

Na minha cabeça, criei um mundo inteiro de defensores secretos da cidade, que usavam a sua arte para afastar as forças da escuridão. Mas nunca tive um espaço onde contar uma tal história, até ter recebido aquele pedido de R. L. Stine.

O resultado deu origem ao conto que se segue: «Tagger».


TAGGER

JAMES ROLLINS

Com um movimento experiente do pulso, Soo-ling Choi agitou a lata de spray e aplicou o último traço de tinta vermelha na parede de cimento da viela escura. Tendo terminado, deu um passo atrás para examinar o seu trabalho, com cuidado para não sujar de tinta o vestido de seda preto.

Não estava completamente satisfeita com o resultado. Já tinha feito melhor. Era o símbolo chinês conhecido por fu, a sua assinatura. Com apenas dezasseis anos, continuava muitíssimo crítica de si mesma. Sabia que tinha talento. Fora aceite para uma inscrição antecipada na Academia de Design de L.A. Mas aquilo era mais importante do que uma qualquer bolsa de estudo.

Olhou para o relógio. A tia Loo já devia estar no teatro. Franziu o sobrolho à assinatura.

Vai ter de servir.

Estendendo o braço, tocou no centro do carácter chinês. Como era habitual, sentiu o formigueiro familiar que lhe provocava um ardor nas articulações. O calor espalhou-se pelo braço e envolveu-a num banho estonteante. O carácter brilhou por um segundo, afastando as sombras escuras da viela.

Feito.

Antes que conseguisse quebrar o contacto com o símbolo, uma dor fria, gelada, trespassou-lhe o pulso como se tivesse sido apanhado pelas garras de um pássaro. A dor foi profunda, até ao osso. Com um arquejo, afastou o braço e cambaleou para trás.

Au... mas que raio foi aquilo?

Examinou o pulso. Não tinha qualquer marca, mas permanecia um eco do toque frio. Massajou o braço, tentando derreter aquele gelo, e estudou o seu trabalho com os olhos semicerrados.

Na parede, a brilhante marca carmesim enegrecera, mais escura do que as sombras da viela.

Continuou a massajar o pulso, dobrando-o para um lado, depois para o outro, esforçando-se por perceber o que tinha acontecido. O carácter simbólico — o seu «tag» dos últimos três anos — estava tal como as centenas que já desenhara por toda a área metropolitana de Los Angeles.

Fiz alguma coisa errada? Desenhei-o demasiado depressa, demasiado atabalhoadamente, cometi algum erro terrível?

A preocupação intensificou-se como uma dor no peito. Pensou em voltar a desenhá-lo, mas já não lhe restava tempo. A cortina do ballet iria levantar-se em menos de cinco minutos. A tia Loo já deveria estar no camarote da família. Com pouca paciência para frivolidades, a tia ficaria furiosa se Soo-ling voltasse a chegar tarde.

Enquanto a dor no braço diminuía, as sombras pareceram abandonar a parede. A riqueza carmesim do símbolo fu regressou, como se nada tivesse acontecido.

Qualquer que tivesse sido o problema, parecia ter desaparecido. Enfiou a lata de spray na sua pasta à carteiro e correu pela viela em direção à limusina que a aguardava.

Lançou um último olhar por cima do ombro, ao mesmo tempo que levava a mão ao puxador da porta. O carácter simbólico ainda brilhava na parede como uma mancha de sangue. Para a maioria dos chineses, não passava de uma bênção de boa sorte, associada à celebração do Ano Novo. Representava duas mãos a pousar um jarro de vinho de arroz sobre um altar, como uma oferta.

Mas para Soo-ling, o carácter pintado de fu era poder, um guarda protetor, onde quer que o pintasse. Não ocorreriam assaltos naquele local, esta noite; o proprietário daquele supermercado aberto vinte e quatro horas ficaria em segurança.

Ou pelo menos era isso que imaginava. Era uma pequena maneira de honrar a mãe falecida e as suas superstições antigas. Uma maneira de manter a sua ligação à progenitora, a um passado que mãe e filha tinham partilhado e que remontava há vários séculos, a aldeias aninhadas entre arrozais, a manhãs fragrantes com flores de cerejeira.

Enviou uma oração silenciosa à mãe e entrou para a parte de trás da limusina. Uma rajada de brisa marítima da praia de Huntington, que ficava próxima, deslizou para o interior, marcada por uma pitada de sal — e um traço de podridão. Um arrepio fê-la estremecer.

São apenas peixes e algas, garantiu a si mesma.

Ao volante, Charles acenou-lhe. Não precisavam de palavras. Estava com a família desde que ela tinha memória.

Desejando um momento de privacidade, ergueu a divisória de vidro entre eles e tentou recompor-se. O seu reflexo pairava na janela à sua frente. O cabelo comprido, preto, tinha sido preso numa pilha precária em cima da cabeça, a cascata contida por um par de ganchos de esmeralda. Os olhos correspondiam aos ganchos em cor e brilho.

Como um fantasma da mãe.

Ao longo dos últimos anos, Soo-ling não pôde deixar de perceber que estava a assumir cada vez mais a imagem da mãe, uma geração dava lugar a outra. A dor da solidão e da perda fazia-a sentir-se oca por dentro.

Recordou aquela última visita à mãe, antes de um linfoma maligno a ter roubado. O quarto do hospital cheirava a lixívia e álcool, não sendo o local certo para a mãe frágil que acreditava em chás de ervas medicinais, no poder curativo das estátuas e dos símbolos e em superstições antigas.

«Passo isto para ti, si low chai, minha filha», sussurrara-lhe a mãe, deslizando na sua direção uma folha de papel com o logótipo do hospital. «É a herança da nossa família, passada de mãe para filha há treze gerações. És a décima terceira geração, e este é o décimo terceiro ano desde o teu nascimento. É um número de poder.»

«Mãe, descansa, por favor. A quimioterapia é muito exigente. Precisas de dormir.»

Soo-ling pegou na folha de papel que a mãe lhe oferecia e virou-a. Numa bela escrita cursiva, a mãe desenhara o carácter chinês da sorte.

Fu.

«Minha pequena rosa, és agora a guardiã da Cidade dos Anjos», disse, com uma mescla de orgulho e tristeza, lutando por pronunciar cada palavra. «Quem me dera ter podido explicar mais cedo. Estes mistérios só podem ser revelados depois de ser derramado o sangue da condição feminina pela primeira vez.»

«Mãe, por favor... descansa...»

A mãe continuou, os olhos vidrados pelas recordações e pelas drogas. Contou histórias de sonhos proféticos e da capacidade para bloquear maldições recorrendo à pincelada de tinta certa numa parede ou porta. Soo-ling escutara-a obedientemente, mas também se mantivera atenta ao toque do monitor cardíaco, ao pingar do líquido intravenoso, ao sussurrar de uma televisão ao fundo do corredor.

Que lugar teriam todas aquelas histórias antigas repletas de fantasmas e deuses no mundo moderno de eletrocardiogramas, biopsias e formulários das seguradoras?

Por fim, uma enfermeira entrou no quarto, com os seus sapatos de sola de borracha.

«O horário das visitas terminou, menina Choi.»

A mãe começou a protestar, mas um beijo rápido de Soo-ling acalmou-a.

«Volto amanhã... depois das aulas.»

Grata pela desculpa, Soo-ling fugiu do quarto aliviada por poder escapar não só às histórias, mas também ao demónio chamado cancro. Ainda assim, a mãe gritara-lhe. «Tens de ter atenção ao...» Mas a porta que se fechou cortou essas últimas palavras, silenciando-a para sempre.

Nessa noite, a mãe entrou em coma e morreu.

Soo-ling lembrava-se de fitar a folha de papel com o logótipo do hospital que apertava nas mãos.

Bênção e sorte, pensou. De muito serviu à mãe.

— Chegámos, menina Choi — disse Charles, arrancando-a ao passado, ao mesmo tempo que encostava a limusina em frente ao teatro de Santa Monica.

Soo-ling arrancou-se ao sonho acordado em que mergulhara e deslizou sobre o banco. O motorista já lhe tinha aberto a porta.

— Obrigada, Charles.

Enquanto descia, um adolescente ansioso, num smoking alugado, desceu aos tropeções os degraus na sua direção.

— Soo! Já não era sem tempo!

Sentiu-se feliz quando o viu, mas não deixou que a sua felicidade lhe chegasse ao rosto. Não era adequado a uma rapariga chinesa mostrar emoções fortes. Tal como a utilização do símbolo, era outra forma de honrar a mãe aderir à tradição nestes pequenos pormenores.

O jovem correu na direção dela. Era mais alto do que ela, desajeitado no smoking demasiado grande. O cabelo comprido tinha sido puxado para trás, preso num rabo de cavalo.

Bobby Tomlinson era da idade dela. Era seu amigo desde o jardim de infância. Um dos poucos. Sentindo-se ambos desenquadrados ao crescer, tinham-se unido. Ele era um cromo da informática e um amante do cinema, ela uma aluna tímida, cuja voz nunca se erguia acima de um suspiro. Com o passar do tempo, tinham partilhado um amor secreto pelo tagging. Ele apresentara-lho quando ela tinha onze anos, tendo ficado de imediato viciada. Tornou-se um escape de rebeldia contra o mundo à medida que a mãe ficava doente, um toque de liberdade e alegria que ajudava Soo-ling a lidar com a dor esmagadora e a raiva. Durante os anos seguintes, percorreram as ruas juntos, fugindo à polícia, lutando por deixar a sua marca na cidade, em manchas de tinta multicoloridas.

O sorriso contido dentro dela cresceu com a recordação. Bobby conduziu-a pelos degraus até ao interior. Falava apressadamente sobre a sua nova posição como estagiário na Titan Pictures.

— Começamos a filmar amanhã aquele musical sobre vampiros de que te falei. Vou ajudar a equipa de gaffers!

Ela olhou de relance para ele e ergueu uma sobrancelha inquisitiva.

Ele encolheu os ombros.

— Eu sei. Também não faço ideia do que façam os gaffers. Mas é lá que vou trabalhar.

Chegaram ao camarote da família quando a orquestra avançava pelo primeiro movimento. Bobby olhou para ela de relance, os olhos azuis a cintilar de divertimento. O camarote privado estava vazio.

— Onde está a tia Loo? — perguntou, esperando encontrar a tia já no interior.

— Telefonou e disse que tinha uma fusão para supervisionar, no banco. Esta noite, somos só nós.

Soo-ling ficou chocada ao dar por si sozinha com Bobby. Não é que os dois não tivessem já passado muitas noites juntos a percorrer as ruas, mas aquilo parecia de certa forma diferente, ambos bem vestidos e a partilhar um espaço privado e escuro. Sentiu-se grata por a intensidade da luz ter sido diminuída. Escondia o calor que lhe aquecia o rosto.

Ainda assim, hesitou antes de se aproximar das cadeiras, pressentindo algo deslocado. Aquela era a paixão da tia Loo. Nenhum deles era fã de ballet. Além disso, uma pequena parte dela queria escapar, continuar em movimento, perturbada por uma sensação inexplicável de estar encurralada.

Esfregou o pulso e virou-se para Bobby.

— Sabes, não estando aqui a tia Loo, não temos de ficar. No Grauman’s estão a passar uma retrospetiva do...

— George Pal! — terminou ele. — Eu sei! A Guerra dos Mundos! Aqueles filmes do Sinbad.

Ela sabia o quanto ele adorava os efeitos especiais dos filmes, dos antiquados modelos em miniatura e da fotografia stop-motion de anos passados aos mais recentes efeitos gerados por computador. Em muitos aspetos, estava tão preso entre o passado e o presente quanto ela, entalado entre o tradicional e o moderno.

— Então, vamos! — disse ela, sentindo-se envolver pelo entusiasmo dele.

Rindo, fugiram do ballet e escaparam na limusina para a Hollywood Boulevard. Eram os únicos no Grauman’s Chinese Theatre nessa noite a envergar um smoking e um vestido de seda formal. Quando passaram por baixo do toldo enorme, Bobby tomou o braço dela no seu como se percorresse o tapete vermelho de uma estreia cinematográfica.

Ainda assim, por divertido que fosse, Soo-ling estava demasiado consciente do simbolismo e da arquitetura chinesa antiga do cinema. Voltou a despertar o fantasma da mãe.

Mas uma vez sentados, o entusiasmo de Bobby invadiu-a e afastou quaisquer recordações dolorosas. Ele falou e falou sobre o porquê de o realizador George Pal ser o verdadeiro pai dos efeitos especiais modernos, como a fotografia stop-motion era uma arte perdida. Depois, as luzes esmoreceram e começou o primeiro filme. Um silêncio confortável instalou-se entre ambos, enquanto se deliciavam com o brilho tremeluzente que separava aquele mundo da terra da ilusão.

A certa altura, a mão dela acabou na de Bobby. Não conseguiria dizer quem tomou a mão de quem. Tudo aconteceu tão naturalmente quanto uma pincelada de tinta.

Ainda assim, nenhum deles olhou para o outro, os olhos fixos no ecrã.

Enquanto as luzes aumentavam de intensidade no intervalo da retrospetiva, virou-se para Bobby, pronta para preencher o silêncio com palavras vazias. Não estava pronta para debater o curso que a relação deles poderia tomar. A mão dela deslizou da dele.

— Bobby...

A dor irrompeu-lhe no peito, uma explosão redemoinhante de gelo e fogo que queimou quaisquer palavras. Arquejando, caiu para a frente, para o chão. O cinema ficou escuro enquanto ela deslizava para as mais puras sombras.

Enquanto a escuridão a submergia, uma gargalhada acompanhou-a na sua viagem. O gozo sombrio ganhou consistência numa voz, rouca de gelo.

— Para a próxima, minha querida. Para a próxima serás minha.

Uma imagem brilhou por breves instantes na sua mente, revelando o proprietário do supermercado. Jazia de barriga para cima numa espiral crescente de sangue, o peito aberto por uma ferida de limites irregulares.

Depois nada, de novo a escuridão.

A realidade voltou a ganhar foco. O rosto de Bobby preencheu-lhe a visão. Observou os lábios a mover-se, mas as suas palavras demoraram algum tempo a fazer sentido.

— ... magoada. Soo-ling, estás bem?

Ela tentou levantar-se.

—S-s-sim. Acho que estou.

— Será melhor chamar um médico? Parece que desmaiaste.

— Não, Bobby. Só preciso de ir para casa. — O ar no cinema parecia mais rarefeito, mais frio.

— Eu vou contigo.

Soo-ling não tinha energia para discutir. Apoiando-se no ombro dele, deixou que ele suportasse parte do seu peso enquanto saíam do cinema e se dirigiam para a limusina.

— Temos de a levar para casa — disse Bobby a Charles.

— Por favor — sussurrou ela, deixando-se cair no interior em pele. — Podemos passar primeiro por aquele supermercado aberto vinte e quatro horas que fica em caminho?

Tinha de ter a certeza.

Bobby sentou-se ao lado dela e partilhou um olhar preocupado com Charles.

Daí a nada, aceleravam pela autoestrada, o trânsito abençoadamente escasso. Soo-ling olhava pela janela, a respiração fraca. Agarrou-se à borda do banco com os nós dos dedos brancos. Quando saíram para a Santa Monica Boulevard, o trânsito serpenteou por uma massa de sirenes e luzes a piscar. As viaturas estavam reunidas em frente ao supermercado. Um polícia de trânsito, iluminado por um flamejante foguete de sinalização vermelho, fez-lhes sinal para que continuassem. A limusina deslizou em frente à loja, no momento em que um paramédico empurrava uma maca tapada para uma ambulância que o aguardava.

— Quer parar, menina?

— Não.

Já vira o que precisava.

— Fizeste o tag nesta loja, não foi? — perguntou Bobby, tocando-lhe na mão, sentindo o seu stresse.

Ela acenou com a cabeça.

— Mas não conseguiste acabar o tag? Como em Laguna?

Soo-ling lembrou-se. Fora aquando do início do seu papel como protetora da cidade. Nunca tinha acreditado plenamente em si mesma. Permitira que a polícia os afugentasse antes de terminar a sua assinatura. Depois um incêndio destruiu a loja.

Mesmo depois disso, não ficara completamente convencida. Ainda não estava. Tinha abraçado a tag fu em memória da mãe, para a honrar, com um sentido de dever para com a tradição nascido da culpa e da perda.

Mas agora aquilo...

— Não — respondeu ela baixinho. — Eu terminei-a. É algo diferente. — Lembrou-se da garra gelada e da gargalhada sombria. As palavras emergiram dela. Sentiu-se parva só por as proferir, mas sabia que eram verdadeiras. — Acho que algo sabe de mim... e está a perseguir-me.

Bobby manteve o silêncio. Ela sabia que ele não conseguia compreender em pleno e, provavelmente, não acreditava realmente nos poderes dela, embora tivesse sido ele a iniciá-la. Bobby sabia o quão profundamente a morte da mãe a ferira. Certa noite, partilhou com ele as histórias da mãe, as suas alegações em relação a uma linhagem mística de transmissão materna. Intrigado, Bobby sugerira que ela usasse o símbolo como a sua nova tag, para acrescentar peso e propósito às suas saídas noturnas. E foi assim que tudo começou.

Mas no fundo — bem mais fundo do que gostaria de admitir — Soo-ling sempre soubera que era mais do que isso. Não conseguia explicá-lo. As tragédias atraíam-na, chamavam por ela, e com uma lata de spray conseguia, de alguma forma, impedi-las.

Até agora.

— O que vais fazer? — perguntou Bobby, por fim.

— Não sei.

— Devo ligar à tia Loo?

Soo-ling franziu o sobrolho. A irmã mais nova da mãe, a tia Loo, acolhera Soo-ling pouco depois da morte da mãe. A tia era gestora de crédito no Bank of America, prática e séria. Desdenhava as antigas tradições que a mãe tanto amava.

— Não tenho a certeza de que a tia Loo nos possa ajudar com isto.

Ou até que o deseje fazer.

— Mas pode saber alguma coisa, algo que nos ajude a dar sentido a tudo isto.

Sem outra escolha, Soo-ling pegou no seu iPhone. Os dedos tremiam, tornando mais difícil escolher o número de entre a lista de contactos.

Bobby estendeu o braço e cobriu a mão dela com a sua. Apertou uma vez, depois deslizou o telefone dos dedos dela.

— Deixa que eu faço.

— Obrigada.

Ela entrelaçou os dedos no colo, para os impedir de tremer. Olhou pela janela enquanto Bobby telefonava à tia dela. A sua voz dissolveu-se no murmúrio de fundo do trânsito.

Passou a viagem até casa a esforçar-se por compreender. Alguém sabia do seu trabalho. Ou alguma coisa...

A visão dela ficou subitamente vidrada, semicerrando-se até à escuridão. Incapaz de ver, tentou encontrar a mão de Bobby. Agarrou-se a ele como se se estivesse a afogar. Mas desta vez, sabia o que estava a acontecer.

Uma visão abriu-se dentro dela. Soo-ling viu tudo.

... um sol que nascia sobre o mar... a linha da costa a agitar-se e a rasgar-se... as casas empoleiradas nos penhascos a cair ao mar...

Os gritos enchiam-lhe os ouvidos.

Depois surgiu uma parede em branco... debaixo do sinal da saída para Riverside... sobre uma falha sísmica escondida.

Sabia o que aquilo significava. A parede branca era a sua próxima tela. Clamava pelo seu trabalho... pela sua proteção contra a tragédia que se avizinhava. Enquanto a visão começava a desvanecer-se, sentiu-se simultaneamente aliviada e aterrorizada. Mesmo passados três anos, aqueles chamamentos assustavam-na até à medula dos ossos. Já não os podia ignorar como coincidências ou pesadelos nascidos da ansiedade e da culpa.

Enquanto os gritos dos mortos se desvaneciam, seguiu-se um riso trocista.

Soo-ling reconheceu o rasto de gozo sombrio. Era o caçador que se revelava, dando a conhecer a sua presença. Tratava-se tanto de um desafio como de um aviso.

Bobby tomou-a nos braços e apertou-a contra si.

— O que se passa, Soo?

Escondeu o rosto nas mãos, não querendo que Bobby a visse tão perturbada e assustada. Num canto da mente, continuava a ouvir as gargalhadas trocistas por cima dos gritos.

— Um terramoto. Amanhã — balbuciou por fim, contra o casaco do smoking dele. — Posso bloqueá-lo, mas ele vai tentar impedir-me.

— Quem?

— Não sei, mas temos de nos apressar. Preciso de respostas.

— ... não passam de velhas histórias. — A tia Loo andava para um lado e para o outro sobre o tapete marroquino vermelho da sala de estar. O fumo do cigarro marcava o seu caminho. Era uma mulher entroncada, cujo cabelo estava cortado num bob agressivo, nada que se assemelhasse à graciosidade esguia da mãe de Soo-ling. — Tolices sem nexo. Tudo incenso e pseudorreligião.

— Tia, não tenho tempo para isto. Toda a minha vida tens mantido segredos. — Soo-ling sentou-se mais direita no sofá de cabedal ao lado de Bobby. — A mãe sabia que eu tinha o poder, e deve ter-to dito.

— Soo-ling, não acreditas mesmo...

— Algo vem atrás de mim — disse ela, interrompendo-a. — Eu sei que vem.

Uma sombra de medo deslizou pelas feições da tia.

— Vai destruir esta cidade para chegar até mim — insistiu Soo-ling.

A tia Loo virou-lhe as costas para estudar os detalhes intrincados de uma jarra de porcelana. A voz pouco mais do que um sussurro.

— Se estiveres certa, ele encontrou-te.

O coração de Soo-ling saltou uma batida.

— Quem?

A tia recusou-se a olhar para ela, como se temesse enfrentar aquilo. Era algo que não se enquadrava no seu mundo de folhas de cálculo e avaliações financeiras.

— Por favor, tia, quem? Diz-me.

— Gui sou — sussurrou por fim a tia, parecendo soçobrar sob o peso da história antiga. — O demónio.

Uma agitação nas profundezas de Soo-ling respondeu àquelas sílabas silenciosas: gui sou. Agora que a criatura tinha nome, o seu corpo reconheceu-a.

— O que sabes, tia?

— Apenas histórias. Contadas para assustar as crianças para irem para a cama. Nada mais do que mitos.

Soo-ling atravessou a sala até junto da tia e abraçou-a pelas costas. A tia Loo estremeceu nos seus braços.

— Não são mitos, tia. São tão reais como a minha carne.

A tia quebrou o abraço e dirigiu-se à lareira.

— Não queria acreditar.

— Mas porquê?

— As histórias da família falam de desonra. Cobardia e vergonha. A linhagem da nossa família está condenada. Eu deveria dizer-to quando chegasses à idade adulta. Mas tudo parecia ficção. Pensei que te podia proteger de uma vergonha desnecessária ao esconder o segredo da nossa família.

— Mas não compreendo. Ter este poder, esta capacidade para proteger, deveria ser uma honra.

A tia apagou o cigarro num cinzeiro de cristal.

— Foi. Outrora. O nosso clã estava entre as trinta e cinco famílias escolhidas, uma de cada província da China. Cada família tinha a responsabilidade de proteger a sua província. A nossa família guardava a província de Shandong na costa do Mar Amarelo. Éramos um clã estimado na China.

— Então o que aconteceu? — perguntou Bobby.

— Segundo reza a história, os deuses da ordem e do caos estiveram sempre em guerra. As famílias guardiãs acabaram por se tornar parte desse equilíbrio. Eram dotadas com a capacidade para interromper determinados tipos de caos e afastar os desastres.

— Como eu faço — disse Soo-ling.

A tia anuiu e sentou-se no braço de uma poltrona de cabedal.

— Sim. Mas com o passar dos séculos, o Senhor do Caos enfureceu-se com as nossas interferências e forjou um caçador com parte do seu baço, o gui sou, para destruir as famílias guardiãs. Este caçador foi libertado e foram eliminadas muitas pessoas antes de as famílias, por fim, se unirem. Cada família enviou um representante para formar uma união suficientemente poderosa para encurralar o caçador. Foram necessários trinta e cinco guardiães para rodear a criatura e encurralá-la, mas antes que o encantamento chegasse ao fim um elemento, aquele que representava a nossa família, entrou em pânico e fugiu. Com o círculo quebrado, o feitiço desfez-se. O caçador destruiu os trinta e quatro guardiães que restavam. A nossa família, caída em desgraça, foi banida da China. Depois de décadas a vaguear pelo mundo, instalámo-nos aqui.

— Então, e a criatura?

— Segundo a história, gui sou ficou ferido pelo ataque falhado e só poderá retomar a sua força plena e regressar ao nosso mundo se terminar a destruição do círculo de guardiães. Ele sabe que o poder do guardião é passado apenas para um elemento em cada geração. — A tia Loo fitou-a, com um olhar duro. — Só resta um elemento dessa linha direta.

Soo-ling regressou ao sofá e sentou-se.

— E claro que sou eu.

A tia Loo assentiu com a cabeça.

Bobby pegou-lhe na mão, uma jura silenciosa de que não estava sozinha.

— Então como é suposto eu deter uma tal criatura? No passado, foram precisos trinta e cinco guardiães experientes para o deter. Eu sou apenas uma. Onde vou encontrar tantos outros antes do nascer do sol?

— Não sei. A história não oferece mais pistas.

Soo-ling fechou os olhos. Se nada fizesse, L.A. estava condenada. Mas como poderia ela enfrentar o demónio sozinha?

No corredor, um antigo relógio de pé, uma herança com três gerações, tocou uma vez. A noite estava a esgotar-se.

Bobby falou.

— Tenho uma ideia. Mas é um tiro no escuro.

Soo-ling fitou-o, pouco convencida.

— Como?

— Magia.

Às duas da manhã ainda havia agitação no estúdio. Os holofotes e as lâmpadas de sódio afastavam a noite. Tipos vestidos com calças de ganga que figuravam num novo western misturavam-se com ninjas de trajes negros de um filme de ação, ao mesmo tempo que as equipas de adereços e os operadores de câmara corriam para trás e para a frente.

Ninguém prestou atenção a Soo-ling e Bobby enquanto estes corriam pelo estúdio.

— E se formos apanhados? — perguntou ela, mantendo-se perto dele.

Bobby apontou para as costas. Tinha substituído o casaco do smoking por um de aviador. Via-se o logótipo das Titan Pictures gravado atrás.

— Recebi isto para o meu estágio. Ninguém vai olhar para nós duas vezes.

Ela terá parecido pouco convencida.

— Não te preocupes — assegurou-lhe. — Esta é a terra da ilusão. Não se trata de quem és... mas de quem pareces ser.

Ele ergueu a gola do casaco.

Soo-ling olhou à sua volta quando deixaram o caos e se embrenharam numa secção mais calma do estúdio. Bobby não tinha chegado a explicar completamente o seu plano.

— O que vamos fazer?

O amigo continuou a andar.

— Bobby...

Ele parou e fitou-a.

— Se o demónio anda atrás de ti, talvez seja melhor só te ir informando à medida que fores precisando de saber. Por ora, quanto menos souberes melhor.

Pela primeira vez, Soo-ling viu o medo no rosto dele. Ele parecia, de súbito, simultaneamente mais velho e mais novo. Os seus olhos brilhavam na escuridão, carregados de preocupação, mas por baixo havia algo mais, algo que sempre lá estivera, mas que ela não tinha visto. Até agora.

— Não tens de fazer isto — disse ele. — Não é demasiado tarde. Podemos telefonar às nossas famílias. Fugir daqui para fora.

As palavras dele tinham a leveza habitual, mas ela sabia que era fingida, tão ilusória quanto o local onde estava. Ele queria mesmo que ela fugisse, corresse para longe, vivesse.

Ela reconheceu o seu receio... e o que lhe estava subjacente. Ambos lhe deram a força para se inclinar para a frente e erguer-se na ponta dos dedos. Quando é o que o Bobby ficou tão alto? Beijou-lhe suavemente o rosto, depois voltou a assentar os pés no chão.

— Não vou a lado nenhum — disse com firmeza. — Esta é a nossa cidade.

Ele sorriu, as bochechas enrubescidas.

— Podes crer que é.

Virando-se rapidamente sobre um calcanhar, guiou-a. E uma vez mais, a mão dela encontrou a dele com naturalidade. Juntos correram pelo labirinto de lotes e vielas até pararem à frente de uma porta onde se lia F/X.

— Efeitos especiais? — perguntou ela, confusa. — Não compreendo.

Bobby cedeu, finalmente.

— Parece que chegámos àquele momento em que precisas de saber.

Enquanto lhe explicava o plano, os olhos de Soo-ling foram-se arregalando.

— Estás louco? — arquejou ela, batendo-lhe no ombro.

Ele esfregou o braço, ao mesmo tempo que encolhia os ombros.

— Se tiveres um plano melhor...?

Não tinha, e decerto não dispunham de tempo para engendrar uma alternativa. Tinha de confiar que Bobby sabia o que estava a fazer.

— Ótimo. Então vamos a isto.

O sorriso dele cresceu.

— Quem diria que eras tão fácil?

— Cala-te.

Bobby usou o seu keycard do estúdio para destrancar a porta e entrar no estúdio de efeitos especiais. Ela seguiu-o até uma sala de trabalho no primeiro andar. Estava repleta de equipamento informático, monitores de plasma enormes, tendo anexo um estúdio de ecrã verde.

— Sabes mexer nisto tudo?

Bobby dirigiu-lhe um olhar de Quão parvo achas que sou?

— Alguém que cresceu com uma Xbox e já conseguia construir um computador aos nove anos? Além disso, enquanto estagiário, passei aqui algumas semanas a distribuir café e dónutes às equipas de pós-produção. Aprendi tudo o que podia. Ficarias surpreendida com as portas que um leite moca com dose dupla de natas consegue abrir.

Ela girou num círculo.

— O que tenho de fazer?

— Primeiro, precisas de um fato novo. — Apontou para uma fila de fatos em spandex preto que pendiam de uma fila de cabides. Os fatos de corpo inteiro tinham bolas de pingue-pongue coladas por todo o lado. — Podes vestir-te atrás daquela cortina.

Ela inspirou fundo, agarrou no fato mais pequeno e dirigiu-se para trás da cortina. Despiu-se rapidamente até ficar de cuecas e soutien e enfiou-se no fato justo. Uma vez terminada, baixou os olhos para o corpo. O spandex agarrava-se a ela como uma segunda pele. Sentia-se nua... e parva.

Bolas de pingue-pongue brancas marcavam cada junta e curva do seu corpo.

— Porquê tanta demora? — perguntou-lhe Bobby. — Eu estou pronto.

Ela saiu de trás da cortina e apontou para ele.

— Nem uma palavra!

Ele ficou de queixo caído quando a viu. Levou um dedo ao próprio queixo e fechou a boca, mas o sorriso permaneceu e dizia muito.

Avançou até ela e entregou-lhe um par de óculos que pareciam saídos de uma grande máscara de mergulho. Os óculos estavam ligados a um conjunto de cordas pretas.

— Então e agora? — perguntou ela.

Bobby apontou para o estúdio vizinho, envolto em panos verdes.

— O fato de captura de movimento funciona melhor contra um ecrã verde. Põe os óculos para poderes ver tudo o que eu vejo no computador.

Bobby avançou até ao estúdio vazio e ajudou-a a pôr os pesados óculos. O interior da máscara era um grande ecrã digital. Um padrão de teste computorizado encheu-lhe o campo visual.

— Muito bem — disse ele. — Fica aí até eu dizer para ires.

— E depois?

— Faz o que fazes melhor. Eu giro os controlos enquanto tu pintas.

Ela ouviu-o a ligar os cabos dos óculos, depois recuou para fora do estúdio. A porta fechou-se. Ela sentiu-se subitamente só. Ao longo dos anos tinha desenvolvido uma forte desconfiança em relação à tecnologia, que associava às máquinas que não tinham sido capazes de manter a mãe viva. Assim, voltara-se para aquilo de que a mãe gostava: a simplicidade do óleo na tela, a tinta em spray nas paredes. Era magia suficiente para ela. Não tinha qualquer utilidade para o mundo frio e calculista da tecnologia informática.

Esse era o domínio de Bobby.

Tinha de confiar nele... confiava nele.

A voz de Bobby chegou até ela através dos minúsculos altifalantes embutidos nos óculos.

— Soo, acena com os braços. Quero ter a certeza de que o computador está a captar adequadamente os teus movimentos.

Ela obedeceu, sentindo-se tonta.

— É isso! Calibragem perfeita. Vou ativar-te agora.

O teste padrão nos óculos dissolveu-se e ela deu por si a fitar um novo mundo. Parecia estar em frente a uma tela, no meio de um prado repleto de flores. Borboletas voavam por entre os botões enquanto os pássaros revolteavam e chilreavam. Ergueu um braço para bloquear a luz do sol, só que não foi o seu braço que se ergueu à sua frente, mas uma cópia gerada por computador.

— Demasiada luz? — A voz de Bobby sussurrava-lhe nos altifalantes minúsculos dos óculos. — É difícil avaliar a partir do monitor.

— Sim... um bocadinho de brilho a mais.

— Vou ajustar.

Soo-ling semicerrou os olhos para o prado. O sol afundou-se de súbito em direção ao horizonte, as sombras estendendo-se.

— Que tal assim? — perguntou ele.

— Muito melhor — disse ela. — Mas o que faço agora?

— Pintas a tua tag, Soo. Isso atraiu a criatura antes. Chama-o para este mundo virtual. Eu gravo a partir daqui.

Concentrando-se, inspirou profundamente e levou a mão ao pincel e à paleta de óleos. Embora nada estivesse realmente à sua frente, o movimento e a resposta eram de tal modo perfeitos que ela se sentia como se estivesse. Era capaz de jurar que quase conseguia sentir o pincel numa mão e a paleta na outra.

Depois de algumas tentativas atabalhoadas, caiu no seu ritmo habitual. Molhou o pincel no óleo e tentou, de forma hesitante, o seu primeiro traço, um risco carmesim na tela branca. Os três traços seguintes completaram em poucos segundos a tag que lhe era característica.

Apertando o pincel virtual, esperou.

Nada aconteceu.

— Bobby?

— Pintaste-o bem, Soo?

Ela estudou o seu trabalho. Estava perfeito.

Do que me estou a esquecer?

Depois ocorreu-lhe. Estendeu um dedo no ar vazio, enquanto, num outro mundo, um dedo gerado por computador se ergueu e tocou no centro do carácter pintado na tela. Quando se estabeleceu o contacto, sentiu um formigueiro familiar a subir-lhe pelo braço. Soo-ling ficou tensa, sustendo a respiração. Esperou vários segundos.

Nada.

Começara a afastar o braço quando um frio cortante se apoderou do seu pulso. Queria desesperadamente afastar-se, como antes, mas sabia que, desta vez, tinha de se manter firme, aguentar, não podia trazer a desgraça sobre a sua família como o seu antepassado fizera, tantos séculos antes.

Memórias que não lhe pertenciam invadiram de súbito a sua consciência, como sonhos há muito esquecidos que de novo ganhavam foco. Lembrou-se da província de Shandong com o sol a erguer-se sobre o Mar Amarelo; lembrou-se de pescar com os irmãos, das flores de cerejeira a flutuar na água; lembrou-se do seu primeiro amor, Wan Lee, que lhe virava as costas devido à vergonha.

— Soo? — disse Bobby com um toque de incerteza na voz. — Como estás? Está uma mulher idosa vestida com uma túnica no ecrã onde tu devias estar.

Soo-ling quase não o ouviu, flutuando entre o passado e o presente. Começou a compreender, à medida que mais memórias ancestrais a enchiam.

— É uma amiga — balbuciou por fim, sabendo que era verdade. — Não sei bem o que está a acontecer, mas o teu palpite estava certo. Ele vem a caminho. Sinto-o. Como a eletricidade antes de uma tempestade.

O frio subiu-lhe pelo braço, procurando o seu coração. Um riso poeirento, velho e rachado, seguiu-se e desfez-se em palavras.

— Encontrei-te, finalmente, siu far, minha pequena flor.

As recordações distantes intrometeram-se. Um vale estreito repleto de neblina, rodeado por árvores altas, o som do gado num arrozal distante, e uma criatura saída dos pesadelos agachando-se, a voz trocista.

Os lábios de Soo-ling moveram-se, mas ela não sabia quem tinha falado; se ela mesma ou o seu antepassado.

— Gui sou.

Mais gargalhadas sombrias.

— Ah, sabes o meu nome. Escondeste-te bem ao longo dos anos, siu far. Mas agora é tempo de seres colhida. Usar-te-ei como ornamento quando ficar livre. Livre para percorrer o mundo do homem.

Uma neblina ergueu-se do solo do prado e formou um rosto antigo, amarelo e enrugado como um alperce seco. O rosto abriu-se num esgar, marcado por caninos. O nevoeiro continuou a rodeá-la, formando as voltas de uma serpente, juntamente com uma garra reptiliana que lhe agarrou o pulso.

Os velhos receios vieram à superfície, como fumo de um fogo extinto.

Encurralada, tenho de escapar, de fugir!

O coração batia violentamente e o mundo começou a inclinar-se, os olhos a arder.

— Soo-ling! — A voz de Bobby puxou-a para o presente. — Consigo ver o monstro no monitor. Sai daí!

O corpo repleto de picos e escamas da criatura surgiu no meio da neve. Ela começou a afastar o braço quando um pensamento estranho se intrometeu.

Não. Mantém-te firme, criança. Tens de resistir.

— Soo, vou desligar o programa.

— Não, Bobby! — gritou ela. A compreensão surgindo dentro dela. — O círculo não está completo. Ele seguir-me-á para o exterior.

— Ele que tente! — disse Bobby. — Eu trato dele.

As suas palavras — carregadas de bravura e amor — conjuraram mais memórias recentes. Correr pelas vielas com o Bobby. Fugir da polícia e dos gangues, rindo. Espalhar tags juntos pela cidade. A minha cidade! A nossa cidade!

— Faz tudo como planeámos — disse ela. — Completa o círculo.

O gui sou inclinou-se para mais perto dela, desconfiado, a respiração fétida como uma campa aberta.

— Com quem estás a falar, pequena? Rezas, talvez? Não te dês ao trabalho de procurar a ajuda dos teus deuses menores. As orações não te irão salvar.

— Quem precisa de orações, quando tem amigos dedicados? — E soube que isso era verdade. — Agora, Bobby!

— Ativar cópias!

O prado vazio encheu-se de súbito com outras trinta e quatro telas, cópias exatas do original. Rodearam o campo. Braços sem corpo, a flutuar livremente, repetindo o que ela pintara antes. Trinta e quatro braços pegaram em pincéis e paletas e pintaram símbolos idênticos em uníssono. Depois estenderam-se todos para tocar no centro dos seus caracteres.

Uma centelha de confusão varreu as feições amarelas da criatura. Os seus olhos ardentes saltavam para todo o lado. As garras que agarravam a mão dela deslizaram de volta à neblina. As voltas da serpente dissolveram-se de novo no nevoeiro. O rosto trocista aproximou-se mais.

— Que truque é este, bruxa?

Ela sabia a resposta.

— Um feitiço há muito quebrado é de novo tecido.

— Impossível. Não há outros guardiães. Que truque é este?

O gui sou puxou a si a neblina, como uma mulher que agarra as saias, e deslizou sobre o prado. Tentou quebrar o círculo, mas foi impedido por uma parede de energia invisível. Usou a neblina para seguir a barreira, em busca de uma abertura. Com um guincho, agitou-se, para trás e para a frente pelo prado, lançando-se contra os lados da nova prisão.

Ao fim de um minuto, parou e correu para ela.

— Baixa o braço, siu far, quebra o círculo e deixar-te-ei escapar outra vez.

O mesmo truque de sempre.

— Não neste século — disse ela com um esgar.

— Não poderás ficar aqui para sempre — avisou, recuando, ameaçador e furioso. — Vais-te cansar e eu vou-te devorar!

Soo-ling fitou o monstro com uma sobrancelha arqueada.

— A sério? Então permite que te dê as boas-vindas ao novo milénio! Não passas de um fantasma do passado. E é no passado que vais ficar. Para sempre preso na memória. — Gritou mais alto. — Bobby, dá-lhe!

— A gravar no disco neste momento!

O mundo dentro dos óculos afastou-se, encolhendo cada vez mais até a janela digital ser do tamanho de um selo dos correios. Enquanto a janela se afastava, viu-as aparecer, erguendo-se atrás das outras telas: diferentes mulheres chinesas, de diversas idades, as guardiãs das províncias assassinadas no passado distante. Fizeram-lhe uma vénia, reconhecendo que a antiga dívida tinha sido paga em pleno.

No último momento, um sussurro alcançou-a, repleto de amor e orgulho.

Si low chai...

Conhecia aquela voz, aquelas palavras ternas. As lágrimas cresceram, explodindo do seu coração inchado.

— ... Mãe...

O calor invadiu-a ao mesmo tempo que a ligação ténue se desvanecia.

Soo-ling esforçou-se por se agarrar a ela, mas era como tentar apanhar fumo. A ligação terminou, como tinha de terminar. Aquele não era o mundo dela.

Ainda assim, o calor permaneceu dentro de si.

O verdadeiro fantasma da mãe.

O seu amor eterno.

A imagem de um desktop surgiu no interior dos seus óculos. Nesta era visível o último fotograma: trinta e cinco guardiães, a rodear um demónio. Depois o ficheiro foi enviado para o ícone de uma pasta informática. O símbolo de um cadeado com combinação sobrepôs-se à pasta. Fechou-se com um clique.

— Está protegido! — gritou Bobby.

Soo-ling inspirou fundo, estremecendo, depois retirou os óculos. Encontrava-se de novo no estúdio vazio. Atrás dela a porta abriu-se com estrondo e Bobby correu para o interior. A preocupação cresceu na sua expressão quando lhe viu o rosto.

— Soo, estás bem?

Ela limpou as lágrimas.

— Nunca estive melhor.

E estava a falar a sério.

Bobby avançou para ela e entregou-lhe um DVD regravável. Uma fina camada de gelo cobria-lhe a superfície.

— Deve ficar encurralado aqui, certo?

Ela assentiu e pegou no DVD.

— Espero que sim.

— Então ganhámos — disse Bobby, suspirando de alívio.

— A batalha talvez, mas não a guerra.

Ela sabia que gui sou era apenas uma pequena parte do Senhor do Caos. Ainda havia um muro em Riverside que precisava do seu trabalho — ou, de madrugada, Los Angeles ia mesmo dançar o rock.

Bobby encontrava-se diante dela.

— Então e agora?

— Tempo de nos lançarmos ao trabalho. Tens uma lata de tinta em spray?

Ele ergueu as sobrancelhas como se se sentisse insultado.

— Claro.

Ela inclinou-se e ergueu-se de novo em bicos dos pés. Desta vez beijou-lhe os lábios.

— Então, toca a salvar o mundo.


ALGO COMPLETAMENTE DIFERENTE

Eu queria impressionar George R. R. Martin.

Foi por isso que escrevi a história que se segue. Fui abordado para apresentar um conto que seria incluído numa antologia a editar por George R. R. Martin e pelo estimado Garder Dozois. O título da coleção era Warriors, e o conceito para este volume era que cada autor escrevesse uma história que envolvesse um qualquer guerreiro de um qualquer lugar na história, até mesmo o futuro.

Cocei a cabeça, tentando pensar sobre que «herói» quereria eu escrever. Imagino que tivesse sido abordado por os meus romances da Força Sigma estarem repletos de soldados com conhecimentos únicos em disciplinas científicas, por outras palavras, «cientistas com armas». Mas isso parecia demasiado expectável e previsível, em especial para apresentar a alguém tão formidável como George R. R. Martin.

Ora, desde o liceu que lia os livros de George R. R. Martin, muito antes de ter alcançado o sucesso com A Guerra dos Tronos. Eu sabia que ele era uma espécie de camaleão. No passado escrevera em diversos géneros, da ficção científica à fantasia, passando pelo terror. Sabendo-o, desafiei-me a fazer algo completamente diferente e inesperado. O meu guerreiro não seria um personagem humano. Em vez disso, ia recorrer ao meu passado como veterinário e escrever uma história sobre um guerreiro singular: um cão num ringue de lutas de cães.

Além disso, queria contar esta história apenas do ponto de vista do cão, para lançar os leitores para esse mundo lancinante pelos olhos de um dos cães obrigados a lutar. Para o fazer, voltei a ler o trabalho de Jack London. Entrevistei pessoas dispostas a falar sobre as suas experiências. Falei com um terapeuta comportamental que se especializou na reabilitação de cães maltratados.

E tudo isso deu origem a «O Fosso», um trabalho que ainda considero um dos mais bem escritos.

Obrigado, George!


O FOSSO

JAMES ROLLINS

O cão grande estava pendurado na parte de baixo do baloiço de pneu pelos dentes. As patas de trás agitavam-se a uns noventa centímetros do chão. Por cima da cabeça dele, o sol permanecia uma bolha vermelha num céu dolorosamente azul. Depois de muito tempo, os músculos do maxilar do cão sofriam de cãibras e tinham dado um nó tenso. A língua transformara-se num pedaço de couro seco pelo sal, pendendo de um dos lados. Ainda assim, no fundo da garganta sentia o sabor do petróleo e do sangue.

Mas não largava.

Tinha aprendido a lição.

Duas vozes falavam atrás dele. O cão reconheceu a rouquidão do treinador. Mas a segunda era de alguém diferente, guinchada e dada a fungadelas entre palavras.

— Há quanto tempo está ali pendurado? — perguntou o estranho.

— Quarenta e dois minutos.

— Não posso! Isto é que é um filho da puta duro. Mas não é pit puro, pois não?

— Pit e boxer.

— A sério? Sabes, tenho uma cadela Staffordshire pronta para ele para o mês que vem. E deixa-me que te diga, a cadela é do demo. Dou-te parte do que fizer com os cachorros.

— Para ele a cobrir são mil.

— Dólares? ‘Tás drogado ou quê?

— Vai-te foder. No último combate ganhou doze milhas.

— Doze? ‘Tás a gozar comigo. Num combate de cães?

O treinador fungou.

— E isso depois de pagar à casa. Derrotou o campeão da Central. Devias ter visto aquele monstro do Crip. Todo ele músculo e cicatrizes. Tinha mais dez quilos do que o Brutus. O árbitro quase não autorizava o combate por causa da pesagem. Chamou ao meu cão isco de ringue! Mas o sacana mostrou-lhes. E com tais odds o retorno foi dos diabos.

Riso. Cru. Sem qualquer calor por trás.

O cão observava pelo canto do olho. O treinador erguia-se do lado esquerdo, envergando umas calças largas e uma t-shirt branca, mostrando braços decorados com tatuagens, a cabeça rapada até ao couro cabeludo. O recém-chegado usava cabedal e transportava um capacete debaixo do outro braço. Os olhos saltavam de um lado para o outro.

— Vamos sair da merda do sol — disse por fim o estranho. — Falar de números. Tenho um quilo a chegar no final da semana.

Enquanto se afastavam, algo bateu no flanco do cão. Com força. Mas ele não largou. Ainda não.

— Larga!

Com aquela ordem, o cão abriu por fim os maxilares e deixou-se cair no chão do pátio de treino. Tinha as patas traseiras dormentes, pesadas de sangue. Mas virou-se para enfrentar os dois homens. De ombros erguidos, semicerrou os olhos contra o sol. O treinador erguia-se com o taco de madeira. O recém-chegado tinha as mãos enfiadas nos bolsos do casaco e deu um passo atrás. O cão sentiu o cheiro do medo do estranho, uma humidade ácida, como ervas ensopadas em urina velha.

O treinador não mostrava igual receio. Segurava o taco com uma mão e franzia o sobrolho de insatisfação. Baixou-se e soltou a placa de ferro pendurada na coleira do cão. A placa caiu na terra compactada do pátio.

— Um peso de nove quilos — disse o treinador ao estranho. — Antes da próxima semana há de subir aos catorze. Ajuda a engrossar o pescoço.

— Se ficar mais grosso, não será capaz de virar a cabeça.

— Não quero que ele vire a cabeça. Isso pode fazer-me perder umas massas no ringue.

O taco apontou para a linha de jaulas. Uma bota pontapeou o flanco do cão.

— Põe esse cu a andar para o canil, Brutus.

O cão revirou o lábio, mas afastou-se, sequioso e exausto. O fundo do pátio está repleto de canis vedados. O piso é de betão sujo. Nas jaulas vizinhas, erguem-se cabeças enquanto ele se aproxima, depois baixam-se sombriamente. À entrada, ele levanta a pata e marca o seu canto. Esforça-se para não tremer na pata traseira dormente. Não pode mostrar fraqueza.

Foi algo que aprendeu logo no primeiro dia.

— Põe-te a andar lá para dentro!

Levou um pontapé por trás ao entrar na jaula. A única sombra é oferecida por um pedaço de estanho pregado ao fundo dos canis. A porta de arame fecha-se atrás dele.

Avança pelo espaço imundo até ao bebedouro, baixa a cabeça e bebe.

As vozes afastam-se enquanto os dois homens se dirigem a casa. Uma pergunta paira no ar.

— Quem é que deu o nome Brutus àquele monstro?

O cão ignorou-os. Essa memória era como um pedaço de osso amarelado profundamente enterrado dentro de si. Durante os dois últimos invernos tentou afastá-lo. Mas permaneceu alojado, uma verdade que jamais poderá ser esquecida.

Ele nem sempre se chamou Brutus.

— Anda cá, Benny! Lindo menino!

Era um daqueles dias que fluíam como leite quente, tão doces, tão reconfortantes, enchendo de alegria todos os espaços vazios. O cachorrinho preto saltava pelo relvado verde e infindável. Mesmo do outro lado do pátio, sentiu o cheiro do cachorro-quente na mão escondida atrás das costas do rapaz. Atrás dele, uma casa de tijolos sóbria erguia-se sobre um alpendre envolto em videiras e flores roxas. As abelhas zumbiam e os sapos coaxavam em coro com o aproximar do lusco-fusco.

— Senta! Benny, senta!

O cachorro deslizou até parar na relva húmida e deixou-se cair sobre as patas traseiras. Todo ele estremecia. Queria o cachorro-quente. Queria lamber o sal dos dedos do rapaz. Queria que o coçassem atrás da orelha. Queria que aquele dia nunca chegasse ao fim.

— Lindo menino.

A mão saiu de trás das costas e os dedos abriram-se. O cachorro enfiou o nariz frio na palma da mão do rapaz, agarrou no pedaço de carne, depois aproximou-se mais. Abanou a cauda e os quartos traseiros e encostou-se ainda mais ao rapaz.

De membros emaranhados, caíram os dois na relva.

O riso era como o brilho do sol.

— Cuidado! Aí vai a Junebug! — gritou a mãe do rapaz a partir do alpendre. Balançava num baloiço enquanto via o rapaz e o cão a rebolar. A voz era gentil, o toque suave, os modos calmos.

Tal como a mãe do cachorrinho.

Benny lembrava-se de como a mãe costumava lavar-lhe a testa, cheirar-lhe os ouvidos, como os mantinha em segurança, aos dez, emaranhados num monte de patas, caudas e queixumes choramingados. Embora essa memória também estivesse a desaparecer. Já quase não se lembrava do seu rosto, apenas do calor dos seus olhos castanhos que os fitavam enquanto se alimentavam, lutando por uma teta. E ele tivera de lutar pois era o mais pequeno dos seus irmãos e irmãs. Mas nunca tivera de lutar sozinho.

— Juneeeee! — guinchou o rapaz.

Um novo peso saltou sobre a refrega no relvado. Era a irmã de Benny, Junebug. Ela latia e ladrava e puxava tudo o que estivesse solto: mangas de camisa, pernas de calças, caudas a abanar. A última era a sua especialidade. Tinha puxado muitos dos seus irmãos e irmãs das tetas da mãe, pela cauda, para que Benny pudesse ter a sua vez.

Agora, aqueles mesmos dentes afiados apertavam a ponta da cauda de Benny e puxavam com força. Ele guinchou e saltou, não tanto de dor, quanto de vontade de brincar. Os três rebolaram sem parar no jardim, até o rapaz se ter deixado cair de costas, rendendo-se, permitindo que irmão e irmã lhe lambessem o rosto, um de cada lado.

— Já chega, Jason! — chamou a mãe desde o alpendre.

— Oh, mãe... — O rapaz ergueu-se sobre um cotovelo, flanqueado pelos dois cachorros.

O par fitava o peito do rapaz, de caudas a abanar, línguas penduradas, a arfar. Os olhos da irmã brilhavam sobre ele, naquele momento parado no tempo, repletos de riso, matreirice e encanto. Era como olhar para si mesmo.

Daí terem sido escolhidos juntos.

«São inseparáveis, esses dois», disse o velhote quando se ajoelhou junto à ninhada e ergueu o irmão e a irmã perante os visitantes. «A orelha direita do rapaz tem uma mancha branca. A orelha esquerda da rapariga é igual. Como num reflexo. São um par e tanto, não vos parece? Odiava separá-los.»

E, no final, não tivera de o fazer. Irmão e irmã foram levados juntos para a sua nova casa.

— Não posso brincar mais um bocado? — gritou o rapaz para o alpendre.

— Não quero discussões, meu jovem. O teu pai deve estar a chegar a casa. Por isso, vai-te lavar para o jantar.

O rapaz levantou-se. Benny leu o entusiasmo nos olhos da irmã. Era igual ao seu. Não tinham compreendido nada, a não ser a última palavra da mãe.

Jantar.

Saltando do lado do rapaz, os dois cachorros correram para o alpendre. Embora fosse mais pequeno, Benny compensava o seu tamanho com uma enorme velocidade. Correu pelo relvado em direção à promessa de uma tigela cheia para o jantar e talvez de um biscoito para roer depois. Oh, se ao menos...

... depois o familiar puxão na cauda. O ataque de surpresa vindo de trás fê-lo tropeçar. Caiu de focinho na relva e deslizou de membros abertos.

A irmã passou por ele e subiu os degraus.

Benny puxou as patas para debaixo de si e seguiu-a. Embora a irmã maior lhe tivesse passado a perna, como era habitual, não se importou. A sua cauda abanava e abanava.

Esperava que aqueles dias nunca terminassem.

— Não devias tirá-lo daí?

— Ainda não!

Brutus agitava as patas no meio da piscina. As patas traseiras agitavam a água, os dedos abertos. As patas da frente lutavam por manter o focinho à tona da água. A coleira, uma pesada corrente de aço, procurava arrastá-lo para o fundo de betão. Cordas entrançadas prendiam-no no meio da piscina de cimento. O coração martelava-lhe na garganta. Cada inspiração carregada de desesperados jorros de água.

— Então, meu! Vais afogá-lo!

— Um bocadinho de água não o vai matar. Tem um combate dentro de dois dias. Um espetáculo dos diabos. Tenho muito em jogo.

Movendo as patas da frente e de trás, a água a ardia-lhe nos olhos. A visão começou a escurecer nos limites. Ainda assim, via o treinador de um dos lados, de calções, sem camisa. No peito nu estavam tatuados dois cães a rosnar um para o outro. Dois outros homens seguravam as correntes, impedindo-o de alcançar o limite da piscina.

Completamente exausto e gelado, o traseiro começou a deslizar para dentro de água. Lutou, mas a cabeça também desceu. Inspirou uma golfada de água para os pulmões. Engasgando-se, deu às patas e conseguiu trazer de novo o focinho para fora de água. Tossiu para limpar os pulmões. Seguiu-se um pouco de bílis, turvando a água à volta dos seus lábios. Espuma saía-lhe pelas narinas.

— Ele está acabado, meu. Tira-o.

— Vamos ver de que é feito — disse o treinador. — O cão está aí há mais tempo do que alguma vez esteve.

Durante mais uma extensão de eternidade dolorosa, Brutus lutou por suportar a corrente e o peso ensopado do seu próprio corpo. A cabeça ficava debaixo de água a cada quatro movimentos das patas. Inspirava tanta água ardente quanto ar. Ensurdecera a tudo com exceção do bater do seu coração. A visão diminuíra até não ser mais do que um ponto ofuscante. Depois, por fim, não conseguiu lutar mais por vir à superfície. A água inundou-lhe os pulmões. Ele afundou-se... para as profundezas e para a escuridão.

Mas não havia paz.

A escuridão ainda o aterrorizava.

A tempestade de verão agitava os estores e ribombava com grandes trovões que soavam como o fim de todas as coisas. Pingos de chuva batiam nas janelas e o brilho dos relâmpagos trespassava o céu noturno.

Benny escondeu-se debaixo da cama, com a irmã. Tremia contra o flanco dela. Ela estava agachada, de orelhas erguidas, focinho atento. Cada ribombar ecoava-lhe no peito, enquanto ela rosnava em resposta ao ruído aterrorizador. Benny deixou escapar parte do seu medo, ensopando o tapete por baixo dele. Não era tão corajoso quanto a irmã.

...bum, bum, BUM...

A luz invadiu o quarto, afugentando todas as sombras.

Benny gemeu e a irmã ladrou.

Um rosto surgiu sobre a cama e agachou-se para os fitar. O rapaz, de cabeça para baixo, levou um dedo aos lábios.

— Chiu, Junie, vais acordar o pai.

Mas a irmã dele não queria saber. Ladrava e ladrava, tentando assustar o que quer que pairasse na tempestade. O rapaz rolou da cama e deitou-se no chão. Esticando os braços, puxou-os aos dois na sua direção. Benny foi de bom grado.

— Blah... estás todo molhado.

Junie contorceu-se para se libertar, depois correu em redor do quarto, a ladrar, de cauda esticada, orelhas levantadas.

— Chiu — disse o rapaz, tentando apanhá-la sem largar Benny.

Uma porta abriu-se de rompante no corredor. Os passos ecoaram. A porta do quarto abriu-se. Pernas grandes e despidas, como troncos de árvore, entraram.

— Jason, filho, tenho de acordar cedo.

— Desculpa, pai. A tempestade está a assustá-los.

Seguiu-se um grande suspiro. O homem grande apanhou Junie e ergueu-a nos braços. Ela lambeu-lhe o rosto, a cauda a bater contra os braços dele. No entanto, continuava a rosnar enquanto o céu ribombava em resposta.

— Têm de se habituar a estas tempestades — disse o homem. — Estas trovoadas vão acompanhar-nos todo o verão.

— Vou levá-los lá para baixo. Podemos dormir no sofá do alpendre das traseiras. Se estiverem comigo... talvez isso os ajude a habituar-se.

Junie foi entregue ao rapaz.

— Está bem, filho. Mas leva um cobertor extra.

— Obrigado, pai.

Uma mão grande tocou no ombro do rapaz.

— Estás a cuidar bem deles. Estou orgulhoso de ti. Estão a ficar enormes.

O rapaz lutou com os dois cachorros que se contorciam e riu.

— Eu sei!

Alguns momentos depois, os três estavam enterrados num ninho de cobertores no sofá de cheiro almiscarado. Benny sentia o cheiro a caganitas de rato e de pássaro, realçadas pelo vento e pela humidade. Ainda assim, estando todos juntos, era a melhor cama em que alguma vez tinha dormido. Até a tempestade acalmara, embora a chuva pesada continuasse a cair dos céus escuros e sem lua. Batia contra o telhado de telha do alpendre.

No preciso instante em que Benny se acalmava o suficiente para deixar que as pálpebras se fechassem, a irmã levantou-se, rosnando mais uma vez, de pelos eriçados. Deslizou de debaixo dos cobertores, sem perturbar o rapaz. Benny não teve escolha senão segui-la.

O que é?

As orelhas de Benny estavam agora arrebitadas e iam girando. Do último degrau do alpendre, fitou o pátio fustigado pela tempestade. Os ramos das árvores agitavam-se. A chuva corria pelo relvado em lençóis ondulantes.

Depois Benny também o ouviu.

Um chocalhar no portão lateral. Alguns sussurros furtivos.

Estava ali alguém!

A irmã saiu disparada do alpendre. Sem pensar, Benny correu atrás dela. Aceleraram em direção ao portão.

Os sussurros transformaram-se em palavras.

— Calado, idiota. Deixa-me ver se os cães estão aqui atrás!

Benny viu o portão abrir. Duas formas mergulhadas nas sombras avançaram. Benny abrandou, depois sentiu o cheiro da carne, ensanguentada e crua.

— O que te disse eu?

Uma luz fraca surgiu na escuridão, revelando a irmã. Junie abrandou o suficiente para Benny a alcançar. Um dos estranhos apoiou um joelho no chão e estendeu a palma da mão aberta. O cheiro rico, a carne, intensificou-se.

— Querem, não querem? Venham cá, cãezinhos.

Junie aproximou-se mais, a barriga perto do chão, a cauda a abanar num cumprimento hesitante. Benny cheirou e cheirou, de focinho erguido. O cheiro tantalizante atraía-o atrás da irmã.

Uma vez perto do portão, as duas formas negras saltaram sobre eles. Algo pesado abateu-se sobre Benny e envolveu-o com força. Tentou gritar, mas os dedos apertavam-lhe o focinho e impediam que o grito crescesse para lá de um gemido abafado. Ouviu o mesmo vindo da irmã.

Foi içado e levado.

— Não há nada como uma noite de tempestade para apanhar isco. Nunca há quem desconfie. Culpam sempre a tempestade. Acham que assustou os merdinhas e os levou a fugir.

— Quanto é que vamos fazer?

— Cinquenta por cabeça, na boa.

— Fixe.

O trovão fez-se ouvir de novo, marcando o fim da velha vida de Benny.

Brutus entrou no ringue. O cão mantinha a cabeça baixa, os ombros altos, as orelhas encostadas ao crânio. Os seus pelos estavam já eriçados. Ainda lhe doía respirar profundamente, mas o cão escondeu a dor. Enterrado nos pulmões, um fogo fraco ardia devido à água da piscina, crescendo a cada inalação. Cautelosamente, atentou a todos os cheiros à sua volta.

A areia do ringue ainda estava a ser raspada para retirar o sangue do combate anterior. Ainda assim, o rasto fresco enchia o velho armazém, juntamente com o toque da gordura e do petróleo, a cal, o cimento, e o cheiro pungente da urina, do suor e das fezes, tanto dos cães como dos homens.

Os combates haviam começado com o pôr do sol e prolongar-se-iam noite fora.

Mas ninguém saía.

Não enquanto não assistissem àquele combate.

O cão tinha ouvido o seu nome gritado repetidamente:

— Brutus... meu, olha para os cajones daquele monstruo... é um sacaninha, mas já vi o Brutus a enfrentar um cão com o dobro do tamanho dele... arrancou-lhe o pescoço.

Enquanto Brutus esperava no seu redil, as pessoas tinham passado por ele, muitas arrastando crianças atrás de si, para o fitar. Apontavam dedos, tiravam fotografias, cegando-o com os flashes, arrancando-lhe pequenas rosnadelas. Por fim, o tratador correra com todos, ameaçando-os com um taco.

— Ponham-se andar! Isto não é nenhum espetáculo à borla. Se gostam assim tanto dele, vão fazer uma maldita aposta!

Agora, enquanto Brutus passava pelo portão da vedação de madeira de noventa centímetros de altura do ringue, os gritos e os assobios saudavam-no a partir das bancadas, juntamente com as gargalhadas ruidosas e as explosões furiosas. O ruído fez acelerar o coração de Brutus. Enterrou as garras na areia, os músculos tensos.

Foram os primeiros a entrar no ringue.

Para lá da multidão estendia-se um mar de jaulas e redis vedados. Grandes formas mergulhadas nas sombras agitavam-se e andavam para trás e para a frente.

Poucos ladravam.

Os cães sabiam que deviam poupar as forças para o ringue.

— É melhor que não percas — balbuciou o tratador e puxou pela corrente presa à coleira com tachas de Brutus. Luzes fortes brilhavam sobre o ringue. Refletia-se na cabeça rapada do tratador, revelando a tinta nos seus braços, preta e vermelha, como nódoas negras ensanguentadas.

O par continuou até ao limite do ringue e esperou. O treinador bateu no flanco do cão, depois limpou a mão às calças de ganga. O pelo de Brutus ainda estava húmido. Antes do combate cada cão fora lavado pelo tratador do adversário, para se assegurarem de que o pelo não tinha sido coberto por gordura escorregadia ou óleos venenosos que dessem uma vantagem ao animal.

Enquanto esperavam que o adversário entrasse no ringue, Brutus sentiu o cheiro da excitação no seu tratador. Um esgar permanecia fixo no rosto do homem, mostrando ligeiramente os dentes.

Para lá da vedação, um outro homem aproximou-se dos limites do ringue. Brutus reconheceu-o pela forma como fungava entre as palavras e o toque amargo do medo que sentia. Se o homem fosse um cão, teria a cauda enfiada entre as pernas, colada à barriga, e da sua garganta sairiam latidos.

— Apostei um monte de massa neste sacana — disse o homem quando se aproximou da vedação e fitou Brutus.

— E então...? — perguntou o tratador.

— Acabei de ver o cão do Gonzales. Credo, meu, ‘tás louco? Aquele monstro é meio bullmastiff.

O tratador encolheu os ombros.

— Sim, mas só tem um olho bom. O Brutus vai acabar com ele. Ou, pelo menos, é bom que o faça. — Mais uma vez a corrente chocalhou.

O homem moveu-se atrás da vedação e inclinou-se para a frente.

— Fizeram algum tipo de acordo?

— Vai-te foder. Não preciso disso.

— Mas eu ouvi dizer que o outro cão já foi teu. Aquele sacana de um só olho.

O tratador franziu o sobrolho.

— Pois foi. Vendi-o ao Gonzales há uns anos. Não pensei que o cão sobrevivesse. Depois de ter perdido a merda do olho e tudo. Ficou todo infetado. Vendi-o a esse latino de merda por duas garrafas de Special K. A venda mais estúpida que alguma vez fiz. E o cão vai e faz àquele mexicano uma batelada de dinheiro. Ainda não parou de o esfregar na minha cara. Mas hoje é dia de vingança.

A corrente foi puxada e ergueu Brutus na ponta dos dedos.

— É melhor que não percas. Ou somos capazes de fazer mais um barbecue quando voltarmos para casa.

O cão ouviu a ameaça por trás das palavras. Embora não o compreendesse plenamente, sentia o significado. Não percas. Durante os dois últimos invernos vira os cães derrotados levarem tiros na cabeça, serem estrangulados até à morte com as suas próprias correntes ou abandonados no ringue para serem estraçalhados. No verão passado, um bull terrier mordera a barriga da perna do tratador de Brutus. O cão estava baralhado pela perda de sangue, depois de ter perdido um combate, e ripostou. Mais tarde, de volta ao pátio, o bull terrier tentara suplicar perdão, mas o tratador ensopara o cão e pegara-lhe fogo. O terrier em chamas correra em círculos em redor do pátio, uivando, chocando cegamente contra os canis e as vedações. Os homens no pátio tinham rido e rido, deixando-se cair ao chão.

Os cães, nos seus canis, tinham assistido em silêncio.

Todos sabiam a verdade sobre as suas vidas.

Nunca perder.

Por fim, um homem alto e magro avançou para o centro do ringue. Ergueu um braço.

— Cães, aos vossos lugares!

O portão oposto do ringue abriu e uma forma gigantesca avançou, trazendo quase de arrasto o seu pequeno e entroncado tratador, que apresentava um grande sorriso e um chapéu de cowboy. Mas a atenção de Brutus estava fixa no cão. O mastiff era uma parede de músculo. As orelhas tinham sido cortadas rente. Não tinha cauda. As patas esmagavam a areia enquanto ele tentava chegar à linha que marcava a sua posição inicial.

O animal puxou, mantendo a cabeça inclinada para um lado, permitindo que o seu único olho analisasse o ringue. O outro olho era um nó cicatrizado.

O homem no centro do ringue apontou para as duas linhas marcadas na areia.

— Às vossas posições! Este é o último combate da noite, malta! Aquele por que todos esperaram! Dois campeões de novo unidos! Brutus e Caesar.

O riso e os vivas ergueram-se da multidão. Pés batiam nas tábuas de madeira das bancadas.

Mas tudo o que Brutus ouviu foi aquele nome.

Caesar.

Estremeceu de súbito. O choque agitou-o como se os seus ossos tivessem chocalhado. Lutou por se manter firme e olhou para o seu adversário do outro lado... lembrava-se.

— Caesar! Vá lá, sacana, tens fome ou não?

Sob o sol de meio da manhã, Benny pendia da mão de um estranho. Os dedos apertavam rudemente o pescoço do cachorro e deixavam-no pendurado no centro de um pátio estranho. Benny latia e deixou escapar um fio de urina para a terra sob ele. Viu outros cães atrás das vedações. Cheirou ainda outros, mais distantes. A irmã estava apertada nos braços de um dos homens que os roubara do seu jardim. A irmã ladrava ruidosamente.

— Cala essa cadela. Está a distraí-lo.

— Não quero ver isto — disse o homem, mas apertou o focinho da irmã dele.

— Oh, vê se tens tomates. Porque achas que te paguei cem dólares? O cão tem de comer, não é? — O homem enterrou os dedos ainda mais no cachaço de Benny e abanou-o com força. — E isco é isco.

Um outro homem chamou das sombras do outro lado do pátio.

— Ei, Juice! Quanto peso queres no trenó desta vez?

— Vamos aos quinze tijolos?

— Quinze?

— Preciso que o Caesar crie bom músculo até ao combate de sexta-feira.

Benny ouviu o bater e arrastar de algo pesado.

— Lá vem ele! — gritou o homem que se mantinha nas sombras. — Deve estar com fome!

Da escuridão emergiu um monstro. Benny nunca tinha visto um cão tão grande. O gigante arfava contra o arnês preso em redor do peito. Fios de baba escorriam-lhe pelos cantos dos lábios. As garras enterravam-se na terra escura, enquanto ele avançava. Atrás dele, preso ao arnês, estava um trenó com patins de aço. Encontrava-se carregado de blocos de cimento.

O homem que segurava Benny riu no fundo da garganta.

— Deve estar com uma fome dos diabos! Não lhe dou de comer há dois dias!

Benny deixou pingar um pouco mais do seu medo. O olhar do monstro estava fixo nele. Benny leu a fome vermelha e crua naqueles olhos. A baba fluía mais espessa.

— Despacha-te, Caesar! Se queres comer o teu pequeno-almoço!

O homem deu um passo atrás com Benny.

O animal de grandes dimensões puxou com mais força, pressionando o arnês, a língua comprida dependurada, coberta de espuma. Arquejava e rosnava. O trenó arrastava-se pela terra com o som rangente dos ossos roídos.

O coração de Benny martelava-lhe no peito pequeno. Contorceu-se, mas não conseguia escapar ao punho férreo do homem... ou ao olhar inabalável do monstro. Vinha atrás dele. Benny uivou e chorou.

O tempo estendeu-se numa longa linha de terror.

A passo constante, o animal foi-se aproximando.

Por fim, o homem explodiu com uma fungadela satisfeita.

— Está bom! Soltem-no!

Um outro homem saiu a correr das sombras e puxou por uma tira de cabedal. O arnês caiu dos ombros do monstro e o cão enorme saltou pelo pátio, lançando baba a cada passo.

O homem puxou o braço atrás, depois atirou Benny para a frente. O cachorro voou pelo ar, rodopiando. Estava demasiado aterrorizado para gritar. Enquanto girava, foi obtendo vislumbres do monstro que corria atrás dele, mas também viu a irmã. O homem que segurava Junie começara a virar-se, não querendo ver. Devia ter aligeirado o suficiente a força com que a segurava, pois Junie libertou o focinho. Mordeu-lhe com força o polegar.

Depois Benny caiu ao chão e rebolou pelo pátio. O impacto tirou-lhe o ar do peito. Jazia atordoado enquanto o cão maior corria para ele. Aterrorizado, Benny usou a única vantagem de que dispunha: a sua velocidade.

Rolou, levantando-se, e correu para a esquerda. O cão não conseguiu virar com rapidez suficiente e deslizou para lá do local onde Benny aterrara. Benny fugiu pelo pátio, puxando as patas de trás para o meio das da frente, no seu desespero por avançar mais depressa. Ouvia o arfar do monstro junto à sua cauda.

Se se conseguisse enfiar por baixo do trenó rasteiro, esconder-se lá...

Mas não conhecia o pátio. Uma das patas acertou num azulejo partido entre as ervas altas e perdeu o equilíbrio. Bateu com o ombro e rebolou. Acabou por parar deitado de lado, enquanto o cão enorme se lançava sobre ele.

Benny encolheu-se. Desesperado, expôs a barriga e fez xixi sobre si mesmo, mostrando submissão. Mas não importava. Lábios recuaram revelando dentes amarelos.

Depois o monstro estacou, subitamente, a meio de um movimento, acompanhado por um latido de surpresa. O brutamontes girou. Benny viu algo preso à cauda dele.

Era Junie. Largada pelo seu captor, lançara-se ao monstro com o seu ataque matreiro habitual. O monstro girou mais algumas vezes, enquanto Junie continuava presa à cauda dele. Não se tratava de uma dentadinha brincalhona. Teria enterrado profundamente os dentes. Enquanto tentava ver-se livre dela, o cão grande conseguira apenas arrancar mais pelo e pele da sua própria cauda ao mesmo tempo que Junie era lançada de um lado para o outro.

O sangue jorrava para a terra.

Mas por fim, nem mesmo Junie conseguira resistir à força bruta do monstro. Saiu a voar, o focinho ensanguentado. O monstro seguiu-a e aterrou sobre ela, violentamente. Bloqueado pelo seu corpo, Benny não conseguia ver... mas ouviu.

Um grito agudo de Junie, seguido pelo esmagar dos ossos.

Não!

Benny levantou-se de um salto e correu para o monstro. Não havia um plano — apenas uma raiva rubra, escura. Lançou-se ao monstro. Apanhou um vislumbre de uma pata rasgada, o osso visível. O monstro agarrou na sua irmã e sacudiu-a. Ela pendia, flácida. O vermelho jorrava, depois pingou-lhe dos lábios, misturado com baba.

Com aquela imagem, Benny mergulhou num lugar escuro, um fosso de onde sabia que jamais conseguiria escapar. Atirou-se ao monstro e aterrou sobre o rosto do bruto. Arranhou e mordeu e puxou, qualquer coisa para que ele largasse a sua irmã.

Mas era muito mais pequeno.

Um movimento da sua cabeça enorme, e Benny saiu a voar... para sempre perdido em sangue, raiva e desespero.

Enquanto Brutus fitava Caesar, recordou-se de tudo. O passado e o presente sobrepuseram-se e fundiram-se num borrão carmesim. Erguia-se na linha traçada no ringue, sem se lembrar de andar até ela. Não sabia dizer quem estava na linha.

Se Brutus ou Benny.

Depois da mutilação da irmã, Benny tinha sido poupado a uma morte brutal. O treinador ficara impressionado com a sua fogosidade. Um verdadeiro Brutus, este. A atacar o Caesar sozinho! E rápido também. Viram-no desviar-se e correr. Talvez seja demasiado bom para ser apenas isco.

Caesar não se saiu tão bem, depois do breve combate. Durante o ataque, uma unha de trás rasgara-lhe a pálpebra e lacerara-lhe o olho esquerdo, cegando-o desse lado. Até a ferida na cauda, da dentada de Junie, infetou. O treinador experimentara cortar-lhe a cauda com um machado e queimar o toco com um pau em chamas. Mas o olho e a cauda ficaram piores. Durante uma semana, o fedor do pus e da carne morta jorrava do seu canil. As moscas rodeavam-no em nuvens negras. Por fim, um estranho, com um chapéu de cowboy, apareceu com um carrinho de mão, apertou a mão ao tratador, e levou Caesar para longe, açaimado, febril e a gemer.

Todos pensaram que ele tinha morrido.

Estavam enganados.

Os dois cães raspavam a linha na areia. Caesar não reconheceu o seu adversário. Nenhum reconhecimento brilhava naquele olho, nada mais do que sede de sangue e fúria cega. O monstro puxou pela corrente, enterrando-se ainda mais na areia.

Brutus baixou as patas traseiras sob o corpo. A velha raiva ardia através do seu sangue. Um longo rosnado escapou pelo seu focinho, erguendo-se das profundezas dos seus ossos.

O homem alto e magro ergueu os dois braços.

— Cães, prontos! — Baixou os braços ao mesmo tempo que recuava. — Vão!

De repente, foram libertados das suas correntes. Os cães saltaram um sobre o outro. Os corpos chocaram por entre rosnadelas selvagens e saliva a voar.

Brutus avançou sobre o lado cego de Caesar. Mordeu-lhe o toco da orelha, tentando agarrá-lo. A cartilagem rasgou-se. O sangue correu-lhe pela língua. Era demasiado pequeno para que o conseguisse agarrar durante muito tempo.

Caesar, por sua vez, atacou com força, usando o seu corpo mais pesado para fazer rolar Brutus. Os caninos afundaram-se-lhe no ombro. Brutus largou-o e viu-se preso sob o peso dele. Caesar ergueu-lhe o corpo e lançou-o contra a areia.

Mas Brutus ainda era rápido. Estremeceu e contorceu-se até ficar barriga com barriga com o monstro. Usou as patas traseiras para o empurrar e obrigou Caesar a largar-lhe o ombro. Solto, Brutus atirou-se à garganta por cima dele. Mas Caesar tentou mordê-lo ao mesmo tempo. Acabaram focinho com focinho, mordendo-se um ao outro. Brutus por baixo. Caesar por cima.

O sangue jorrava e voava.

Voltou a espernear, arranhando com as unhas a barriga tenra do seu adversário, cortando-o profundamente — depois saltou e agarrou-se ao maxilar de Caesar. Usando aquele ponto de apoio, esperneou e deslizou, saindo de debaixo daquele corpo. Manteve-se à esquerda da besta, do seu lado cego.

Deixando momentaneamente de ver Brutus, Caesar virou-se na direção errada. Deixou o flanco exposto. Brutus atacou uma pata traseira. Mordeu a carne espessa na parte de trás da coxa e roeu os músculos com os maxilares. Puxou com força e abanou a cabeça.

Nesse momento de fúria crua, Brutus lembrou-se de uma pequena forma flácida, apertada nos maxilares ensanguentados, sacudida e despedaçada. A escuridão abateu-se sobre os seus olhos. Usou todo o seu corpo — músculo, osso e sangue — para arrancar e cortar. Os fortes ligamentos da parte de trás da pata soltaram-se do tornozelo.

Caesar rugiu, mas Brutus continuou a apertar e içou-se nas patas traseiras. Fez o outro cair de costas. Só então largou e se lançou sobre o adversário. Mergulhou na direção da garganta exposta e mordeu profundamente. Os caninos afundaram-se na carne tenra. Abanou e rasgou, rosnou e escavou.

Do outro lado da escuridão, ouviu-se um apito. Era o sinal para pararem e regressarem aos seus cantos. Os tratadores correram.

— Larga! — gritou o treinador e agarrou-lhe a parte de trás da coleira.

Brutus ouviu os gritos, reconheceu a ordem. Mas estava muito longe. Nas profundezas do fosso.

O sangue quente enchia-lhe a boca, fluía para os seus pulmões, ensopava a areia. Caesar contorcia-se debaixo dele. Uma rosnadela feroz transformada em lamento. Mas Brutus não o ouvia. O sangue corria para todos os lugares vazios dentro dele, tentando enchê-lo, mas não conseguindo.

Algo lhe bateu nos ombros. Uma e outra vez. O taco de madeira do tratador. Mas Brutus não largava a garganta do outro cão. Não podia, para sempre preso no fosso.

A madeira partiu-se nas suas costas.

Depois um novo som cortou o rugido nos seus ouvidos. Mais assobios, mais agudos e urgentes, acompanhados pelo som estridente das sirenes. Luzes tremeluzentes trespassavam a escuridão. Os gritos seguiram-se, juntamente com as ordens ampliadas numa urgência penetrante.

— POLÍCIA! TODOS DE JOELHOS! MÃOS EM CIMA DA CABEÇA!

Brutus ergueu por fim o focinho dilacerado da garganta do outro cão. Caesar jazia imóvel na areia, ensopado numa poça de sangue. Brutus ergueu os olhos para o caos à sua volta. As pessoas tentavam fugir das bancadas. Os cães ladravam e uivavam. Figuras escuras com capacetes e escudos transparentes fecharam um círculo em redor da área, formando um ringue maior em redor do fosso de areia. Através das portas abertas do armazém, os carros iluminavam a noite.

Cansado, Brutus erguia-se sobre o corpo do cão morto.

Não sentia qualquer alegria com a matança. Apenas um torpor morto.

O treinador estava a um passo de distância. Uma torrente de raiva jorrava dos lábios do homem. Lançou o taco partido para a areia. Um braço apontava para Brutus.

— Quando eu digo larga, tu largas, saco de merda burro!

Brutus fitou o braço apontado para ele, depois o rosto. Pela expressão do homem, Brutus soube o que o tratador via. Brilhava de todo o ser do cão. Brutus estava preso num fosso mais fundo do que qualquer coisa coberta de areia, um fosso de onde jamais poderia escapar, um lugar infernal de dor e sangue quente.

Os olhos do homem abriram-se e ele deu um passo atrás. O animal avançou atrás dele, já não era um cão, mas apenas uma criatura de raiva e fúria.

Sem aviso — sem rosnar ou abocanhar o ar — Brutus mergulhou na direção do treinador. Agarrou-se ao braço do homem. O mesmo braço que acenava com os cachorros que usava como isco, um braço agarrado ao verdadeiro monstro naquele ringue de areia, um homem que trazia horrores das sombras e pegava fogo a cães.

Os dentes envolveram o pulso pálido. Os maxilares esmagaram. Os ossos afundaram-se e estalaram sob a pressão.

O homem gritou.

Pelo canto do olho, Brutus viu uma figura de capacete correr para eles, um braço erguido, apontando uma pistola preta.

Viu um brilho na boca da arma.

Depois um crepitar de dor ofuscante.

E, por fim, de novo a escuridão.

Brutus estava deitado no frio chão de betão do canil. Descansava a cabeça sobre as patas e fitava o portão da vedação. Uma lâmpada de teto, envolta em arame, brilhava sobre as paredes de cimento caiado e as filas de canis. Escutou com um ouvido surdo os movimentos dos outros cães, o ladrar ou o uivar ocasionais.

Atrás dele, uma pequena porta dava acesso a um espaço exterior vedado. Brutus raramente lá ia. Preferia as sombras. O focinho rasgado fora tratado com agrafos, mas ainda lhe custava beber. Não comia. Já ali estava há cinco dias, apercebendo-se do nascer e pôr do sol através da porta.

As pessoas vinham fitá-lo de quando em vez. Escrevinhavam numa tábua de madeira pendurada na porta. Homens de casaco branco injetavam-no duas vezes por dia, usando um laço preso a uma vara de aço comprida para o manter preso contra a parede. Ele rosnava e tentava abocanhar. Mais por irritação do que verdadeira raiva. Só queria que o deixassem em paz.

Tinha acordado ali, depois daquela noite no fosso.

E uma parte de si ainda lá estava.

Por que razão ainda respiro?

Brutus sabia o que eram armas. Reconhecia as suas formas e tamanhos ameaçadores, o cheiro dos óleos, o fedor amargo do fumo que libertavam. Vira dezenas de cães serem abatidos, uns depressa, outros por diversão. Mas a pistola que sobre ele disparara no ringue atingira-o com um crepitar e retorcera-lhe os músculos e arqueara-lhe as costas.

Ele vivera.

Isso, mais do que qualquer outra coisa, mantinha-o enraivecido e doente de espírito.

Um arrastar de sapatos de borracha chamou-lhe a atenção. Não ergueu a cabeça, apenas moveu os olhos. Era demasiado cedo para a vara e as agulhas.

— Ele está aqui — disse uma voz. — O Controlo Animal recebeu a ordem do juiz para eutanasiar todos os cães esta manhã. Este também está na lista. Ouvi dizer que tiveram de usar um Taser para o arrancar de cima do treinador. Por isso não teria grande esperança.

Brutus observou as pessoas que avançavam para o canil. Uma delas usava um fato-macaco cinzento com um fecho-éclair à frente. Cheirava a desinfetante e tabaco.

— Aqui está ele. Foi uma sorte terem-lhe feito o scan e encontrado o antigo microchip. Conseguimos encontrar a vossa morada e o vosso telefone. Dizem que alguém o roubou do vosso quintal?

— Há dois anos — disse um homem mais alto, de sapatos pretos e fato.

Brutus moveu uma orelha. A voz era-lhe vagamente familiar.

— Levaram-no, a ele e à irmã de ninhada — continuou o homem. — Pensámos que tinham fugido durante uma tempestade.

Brutus ergueu a cabeça. Um rapaz abriu caminho entre os dois homens mais altos e avançou para o portão. Brutus cruzou o seu olhar com o dele. O rapaz estava mais velho, mais alto, mais magro, mas o seu cheiro era tão familiar quanto uma meia velha. Enquanto o rapaz fitava o canil escuro, o brilho de esperança que lhe iluminava inicialmente o rosto desvaneceu-se numa expressão de horror.

A voz do rapaz era um guincho chocado.

— Benny?

Chocado e incrédulo, Brutus baixou-se de novo sobre a barriga. Emitiu uma rosnadela de aviso enquanto se afastava. Não se queria lembrar... e não queria aquilo. Era demasiado cruel.

O rapaz olhou de relance por cima do ombro, para o homem mais alto.

— É o Benny, não é, pai?

— Acho que sim. — Um braço apontou. — Tem aquela mancha branca sobre o ouvido direito. — A voz ficou carregada de temor. — Mas o que foi que lhe fizeram?

O homem no fato-macaco abanou a cabeça.

— Brutalizaram-no. Transformaram-no num monstro.

— Há alguma esperança de reabilitação?

Ele abanou a cabeça e tocou no gráfico.

— Pedimos a um comportamentalista que examinasse todos os cães. Ela considerou que este não poderia ser salvo.

— Mas, pai, é o Benny...

Brutus enroscou-se no fundo do canil, tão profundamente mergulhado nas sombras quanto lhe era possível. O nome era como uma chicotada.

O homem tirou uma caneta do bolso do fato-macaco.

— Dado que legalmente são os proprietários e não tinham qualquer relação com o ringue de lutas de cães, não o podemos abater sem a vossa autorização.

— Pai...

— Jason, tivemos o Benny durante dois meses. Eles tiveram-no durante dois anos.

— Mas ainda é o Benny. Eu sei. Não podemos tentar?

O homem de fato-macaco cruzou os braços e baixou a voz num aviso.

— Ele é imprevisível e muitíssimo forte. Uma má combinação. Até atacou o treinador. Tiveram de lhe amputar a mão.

— Jason...

— Eu sei. Terei cuidado, pai. Prometo. Mas ele merece uma oportunidade, não merece?

O pai suspirou.

— Não sei.

O rapaz ajoelhou-se e fitou os olhos de Brutus. O cão quis fugir, mas não podia. Olhou para o rapaz e deslizou para um passado que pensava ter enterrado há muito, dedos que seguravam cachorros-quentes, corridas por relvados verdes e infindáveis dias de sol. Afastou tudo aquilo. Era demasiado doloroso, provocava-lhe demasiada culpa. Não merecia sequer essa recordação. Não tinha lugar no fosso.

Um roncar baixo abanou-lhe o peito.

Ainda assim o rapaz agarrou a vedação e fitou o monstro no interior. Falava com a autoridade natural da inocência e da juventude.

— Ainda é o Benny. Algures lá dentro.

Brutus virou as costas e fechou os olhos, com uma convicção igualmente firme.

O rapaz estava errado.

Brutus dormia no alpendre das traseiras. Tinham passado três meses e as suturas e agrafos tinham saído. Os medicamentos na sua comida desapareceram. Com o passar dos meses, ele e a família alcançaram uma trégua inquieta, um empate frio.

Todas as noites tentavam chamá-lo para dentro de casa, em especial quando as folhas começaram a ficar castanhas e a acumular-se em pilhas sob a estrutura de madeira e o relvado gelava ao início da manhã. Mas Brutus continuava no seu alpendre, evitando até o velho sofá coberto com um edredão espesso e coçado. Mantinha a distância de todas as coisas. Ainda estremecia quando lhe tocavam e rosnava enquanto comia, incapaz de o impedir.

Mas já não o mantinham açaimado.

Talvez tivessem sentido a derrota que transformara em pedra o seu coração. Daí passar os dias a olhar para o jardim, só se movendo ocasionalmente, agitando uma orelha se um esquilo se atrevesse a correr ao longo da vedação, a cauda felpuda e sem medo.

A porta de trás abriu-se e o rapaz saiu para o alpendre. Brutus levantou-se e recuou.

— Benny, tens a certeza de que não queres entrar? Fiz uma cama para ti na cozinha. — Apontou para a porta aberta. — É quente. E, olha, tenho uma coisa boa para ti.

O rapaz estendeu a mão, mas Brutus já sentira o cheiro do bacon, que ainda fumegava com a gordura queimada e estaladiça. Virou as costas. Nos seus dias no pátio de treino, os outros também tinham tentado usar isco com ele. Mas depois da irmã, Brutus recusara-se sempre, por muita fome que tivesse.

O cão dirigiu-se ao último degrau do alpendre e deitou-se.

O rapaz foi sentar-se com ele, mantendo a distância.

Brutus permitiu.

Ficaram sentados durante muito tempo. O bacon ainda nos seus dedos. O rapaz acabou por comê-lo.

— Está bem, Benny, tenho trabalhos de casa.

O rapaz começou a levantar-se, parou, depois estendeu cuidadosamente a mão até tocar na cabeça dele. Brutus não rosnou, mas eriçou o pelo. Apercebendo-se do aviso, o rapaz esmoreceu, afastou a mão e levantou-se.

— Muito bem. Vemo-nos de manhã, Benny.

Ele não viu o rapaz afastar-se, mas ouviu a porta fechar-se. Satisfeito por ficar sozinho, repousou a cabeça nas patas. Fitou o jardim.

A lua já se erguera, cheia e brilhante. As luzes tremeluziram. Ao longe, ouviu a casa a aquietar-se para passar a noite. Uma televisão sussurrava na sala. Ouviu o rapaz falar do primeiro andar. A mãe respondeu.

Depois, de repente, Brutus estava de pé, rígido, sem saber ao certo o que o fizera levantar-se. Manteve-se absolutamente imóvel. Só as orelhas se moviam.

Bateram à porta da frente.

De noite.

— Eu vou lá — disse a mãe.

Brutus virou-se. Saltou para o sofá no alpendre e pousou nele as patas da frente, o suficiente para olhar pela janela. A sua posição permitia-lhe ver através do corredor central, escuro, até à sala de estar iluminada.

Brutus viu a mulher avançar até à porta e abri-la. Antes que conseguisse sequer entreabri-la, a porta abriu-se de rompante. Bateu-lhe e fê-la cair. Dois homens entraram, envergando roupa escura e máscaras puxadas sobre as cabeças. Um outro manteve-se de vigia junto à porta aberta. O primeiro homem recuou para o corredor e apontou uma grande pistola à mulher no chão. O outro intruso esgueirou-se para a esquerda e apontou a arma a alguém na sala de estar.

— NÃO SE MEXAM! — gritou o segundo homem armado.

Brutus ficou tenso. Conhecia aquela voz, rouca e implacável. Num instante o coração bateu-lhe no peito e o pelo ergueu-se-lhe pelo corpo, tremendo de fúria.

— Mãe? Pai? — chamou o rapaz do cimo das escadas.

— Jason — griou o pai da sala de estar. — Fica onde estás!

O líder avançou para o pai, na sala. Sacou da arma, segurando-a de lado.

— Senta-te, velho!

— O que querem?

A arma agitava-se de novo.

— Yo! Onde está o meu cão?

— O seu cão? — perguntou a mãe, caída no chão, a voz trémula de medo.

— Brutus! — uivou o homem. Ergueu o outro braço e exibiu o pulso sem mão. — Devo àquele sacana a minha vingança... e isso inclui todos os que queiram cuidar dele! Na verdade, acho que vamos fazer um barbecue à antiga. — Virou-se para o homem à porta. — De que estás à espera? Vai buscar a gasolina!

O homem desapareceu na noite.

Brutus desceu para o alpendre e recuou. Baixou-se nas patas traseiras.

— Yo! Onde têm o meu maldito cão? Eu sei que o têm!

Brutus saltou em frente, impulsionado por toda a força do seu corpo. Chegou junto do sofá e voou sobre o mesmo. O vidro estilhaçou-se, quando chocou contra a janela com o topo do crânio. Voou diretamente para a sala e aterrou na cozinha. As patas da frente já tinham tocado no chão antes do primeiro pedaço de vidro. Saltou para longe, enquanto os estilhaços caíam, e deslizou pelo linóleo axadrezado.

Ao fundo do corredor, o primeiro atirador começou a virar-se atraído pelo barulho. Mas era demasiado tarde, Brutus voou ao longo do corredor e mergulhou. Agarrou o homem pelo tornozelo e rasgou-lhe o tendão, fazendo o homem cair enquanto passava por baixo dele. A cabeça do homem bateu na mesa alta de nogueira e tombou com estrondo.

Brutus viu um homem no alpendre da frente, parado a meio do passo, segurando dois grandes bidões. O homem viu Brutus a correr para ele. Os olhos enormes. Largou os bidões, virou-se e fugiu.

Uma pistola disparou, ensurdecedora no espaço fechado. Brutus sentiu algo na pata da frente. Esta estilhaçou-se debaixo dele, mas já ia a meio do salto na direção do atirador de uma só mão, o velho treinador e tratador. Brutus caiu sobre ele como uma saca de cimento. Bateu-lhe com a cabeça no peito. O peso e o impulso fizeram o homem cair para trás. Caíram juntos.

A pistola disparou pela segunda vez.

Algo ardeu junto à orelha de Brutus e caiu estuque do teto.

Depois ambos tombaram com força no chão. O homem aterrou de costas, Brutus por cima dele. A arma voou-lhe dos dedos e deslizou para baixo da mesa da sala de estar.

O treinador tentou afastar Brutus com um pontapé, mas tinha ensinado o cão demasiado bem. Brutus desviou-se do joelho. Rosnando, lançou-se à garganta do homem. O homem agarrou-lhe a orelha, mas Brutus tinha perdido parte dela num antigo combate. A orelha deslizou das mãos do homem e Brutus lançou-se ao pescoço tenro. Os caninos mergulharam para matar.

Depois um grito fez-se ouvir atrás dele.

— Benny! Não!

Pelo canto do olho, viu o pai agachar-se junto à mesa da sala. Tinha recuperado a pistola e apontava-a a Brutus.

— Benny! Para! Larga-o!

A partir da escuridão do fosso, Brutus rosnou ao pai. O sangue fluiu, enquanto Brutus apertava a presa com mais força. Recusava-se a largar. Debaixo dele, o treinador gritava e gorgolejava. Um punho esmurrava cegamente, mas Brutus apertou com mais força. O sangue fluía com intensidade.

— Benny, larga-o, já!

Uma outra voz guinchou de medo. Vinha das escadas.

— Não, pai!

— Jason, não o posso deixar matar alguém.

— Benny! — gritou o rapaz. — Por favor, Benny!

Brutus ignorou-o. Ele não era Benny. Sabia que pertencia verdadeiramente ao fosso, era onde sempre acabaria. A sua visão estreitou-se e a escuridão abateu-se sobre ele, deixou-se cair ainda mais para aquele fosso escuro e sem fundo, arrastando o homem consigo. Brutus sabia que não conseguia escapar; nem o iria largar.

Era tempo de pôr um fim a tudo aquilo.

Mas enquanto Brutus se afundava no fosso, deslizando para a escuridão, algo o deteve, o impediu de continuar. Não fazia sentido. Embora não estivesse ninguém atrás dele, sentiu que o puxavam. Pela cauda. O agarravam com firmeza, puxando-o depois lentamente do fosso. A compreensão desceu lentamente sobre ele, penetrando o desespero. Ele conhecia aquele toque. Era tão familiar quanto o seu próprio coração. Embora não tivesse uma verdadeira força, quebrou-o, estilhaçou-o em mil pedaços.

Lembrou-se do tapete, de há muito, da emboscada especial dela.

Determinada a protegê-lo.

Sempre a sua guardiã.

Mesmo agora.

E sempre.

Não, Benny...

— Não, Benny! — ecoou o rapaz.

O cão ouviu-os a ambos, as vozes dos que o amavam, toldando a fronteira entre passado e presente, não com sangue e escuridão, mas com luz do sol e calor.

Com um último estremecimento contra o terror, o cão virou as costas ao fosso. Abriu a boca e saiu de cima do corpo do homem. Ergueu-se sobre os membros trémulos.

Ao seu lado, o treinador arquejava e gorgolejava atrás da máscara preta. O pai aproximou-se dele com a arma.

O cão coxeou para longe, sobre três patas, um dos membros da frente dependurado.

Passos aproximaram-se por trás. O rapaz surgiu ao seu lado e pousou a palma da mão no seu ombro. Deixou aí a mão esquerda. Sem medo.

O cão tremeu, depois encostou-se a ele, precisando de ser reconfortado.

E foi.

— Lindo menino, Benny. Lindo menino.

O rapaz caiu de joelhos e envolveu o cão com os braços.

Por fim... Benny deixou que o fizesse.


OS CÃES LADRAM

Todas as histórias anteriores foram já publicadas de várias formas em diversos meios. Espero que reuni-las a todas num único volume tenha sido simultaneamente conveniente e divertido, ao mesmo tempo que fui oferecendo um «acesso ilimitado» aos bastidores da origem destas histórias.

Ainda assim, a minha consciência ditava a necessidade de oferecer algo único neste volume, uma história nova, nunca antes publicada. E não apenas um «conto», mas uma verdadeira novela: um trabalho que ocupasse aquela zona difusa entre o conto e o romance.

Mas sobre o que haveria eu de escrever?

Decidi apoiar-me em tudo o que acabaram de ler.

A novela — Cães do Sol — tem uma ligação ao mundo Sigma, ao mesmo tempo que se concentra numa dupla única. A história tem um elemento fantástico, ao mesmo tempo que se enraíza na areia, na rocha e no pó do deserto de Sonora. Tal como «O Fosso», inclui secções escritas do ponto de vista de um cão.

Os dois personagens principais — o capitão Tucker Wayne e o seu cão de guerra militar, Kane — surgem numa história anterior, «Batedor», e no romance Sigma Linhagem Sangrenta, além de terem os seus próprios livros a solo, The Kill Switch e War Hawk.

Claramente, este duo dinâmico tem um lugar especial no meu coração.

Mas de onde vieram?

Escrever «O Fosso» desempenhou, sem dúvida, um papel. Gostei de colocar os meus leitores nas patas daquele guerreiro singular, num ringue de lutas de cães. Nessa altura, pensei que seria o fim, até ter participado numa digressão USO ao Iraque e ao Koweit durante o inverno de 2010.

Foi uma honra conhecer os homens e as mulheres no terreno, ver a dureza das suas vidas, visitar os feridos nos hospitais. Mas também pude ver os cães de guerra e os seus treinadores, em treino e no terreno, até enquanto brincavam juntos. Formam uma unidade de combate tão especial que soube que queria tentar captar esse laço o melhor que pudesse e partilhá-lo com o mundo.

Ao regressar a casa, visitei a base da Força Aérea em Lackland e pude entrevistar tratadores e treinadores de cães e aprender mais sobre estes guerreiros de quatro patas e os homens e mulheres que se mantinham ao seu lado.

Depois disso, escrevi sobre este par, tanto em romance como em conto. A novela que se segue é a minha tentativa de pegar em todo esse conhecimento passado e contar mais uma história sobre Tucker e Kane, uma história de como a dor fica gravada nos ossos e o sacrifício nunca é esquecido.

O resultado é «Cães do Sol».


CÃES DO SOL

JAMES ROLLINS

(1)

22 de abril, 05h50

Deserto de Sonora, Arizona

A madrugada chegou com o estalido de uma pistola.

Tucker Wayne libertou-se do seu saco-cama ainda antes de o som do tiro se ter desvanecido na paisagem desértica. Ali parado envergando boxers, inclinou a cabeça e escutou enquanto a explosão reverberava nas pedras vermelhas que se erguiam centenas de metros acima da areia e dos arbustos. Depois de vários anos com os Rangers do exército dos EUA — enviado para mares de areia bem mais hostis do que os desertos do Arizona — dormia sempre com um olho aberto e um ouvido apurado.

Enquanto estremecia no frio da madrugada, esforçou-se por localizar a origem do disparo, usando os seus sentidos. Sentiu o perfume das papoilas do deserto. Apercebeu-se da coluna de fumo que se erguia da brasa solitária que acendera no acampamento na noite anterior. Sentiu o gelo nas brisas que corriam através dos desfiladeiros.

Virou a cabeça quando identificou a fonte do tiro.

Para noroeste... talvez a dois ou três quilómetros.

O coração continuava a bater, alimentado tanto pelo perigo presente como pelos ecos do seu passado. As batalhas anteriores tinham ficado indelevelmente gravadas no seu corpo, alterando-lhe os nervos e deixando-os de tal forma tensos que bastava uma sugestão de ameaça — real ou imaginada — para afetar todo o seu corpo, lançando-o num estado de alerta que se aproximava do pânico.

E não era o único.

Kane erguia-se junto ao seu joelho. Os trinta quilos de músculo esguio eram duros como pedra, a cauda estava erguida, as orelhas firmes e direitas. Kane era um pastor-belga-malinois, uma raça de pastoreio frequentemente utilizada pelos militares devido à sua feroz lealdade e inteligência. Depois de terem sobrevivido a diversos destacamentos no terreno, os dois tinham formado uma união mais forte do que qualquer trela, ambos capazes de ler o outro, uma ligação que ia para lá de qualquer palavra ou gesto. Depois de ter deixado o serviço, Tucker levou Kane consigo. Os dois formavam, agora, uma equipa inseparável.

Tucker baixou-se e coçou o pelo preto e castanho de Kane.

Os seus dedos descobriram as cicatrizes antigas, recordando-o das suas próprias feridas: umas fáceis de ver, outras igualmente bem escondidas.

Mesmo agora, Tucker tinha dificuldade em separar o passado do presente. As antigas recordações inundavam-no. Se, por um lado, Kane se transformara numa extensão de si mesmo, uma espécie de braço direito, Tucker também tivera outrora um braço esquerdo.

Enquanto olhava fixamente, um outro deserto sobrepunha-se àquele. As suas narinas encheram-se, subitamente, com o odor de óleo a queimar, o seu olhar regressou à chuva de facas, as orelhas ecoando com os gritos dos colegas de equipa feridos. O seu olhar semicerrou-se, fixando uma forma de pelo escuro que jazia na rocha vermelha.

O companheiro de ninhada de Kane.

Abel...

Um novo tiro estilhaçou aquela memória dolorosa, chamando-o de volta ao presente. Agachou-se mais. Os disparos não eram imaginados. Não tinham emergido do seu passado dilacerado pela guerra. Aquilo era real.

E demasiado próximo para poder sentir-me confortável.

Um terceiro estalido confirmou a sua desconfiança inicial de que a arma não era uma espingarda desportiva ou uma caçadeira. Tratava-se de uma pistola, parte da razão que levara os pelos dos seus braços expostos a erguerem-se.

Quem é que vai caçar para o deserto com uma pistola?

Tentou racionalizar que se poderia tratar de alguém a praticar tiro ao alvo. Mas tinha montado o seu acampamento a sessenta e cinco quilómetros de Sedona, bem longe de qualquer estrada, alcançável apenas com um veículo de tração às quatro rodas, como o Jeep que alugara. Era uma longa viagem apenas para praticar tiro ao alvo com garrafas de cerveja pousadas em pedregulhos.

Fechou os olhos, recordando os eventos do momento que antecedera o seu despertar. Houvera algum ténue grito a acompanhar o primeiro tiro? Teria sido isso a provocar aquele rilhar de dentes? Ou seria o grito apenas uma ilusão, um fantasma que gritava a partir do seu passado?

Kane rosnou ao seu lado, embora o tivesse feito baixinho para não revelar a sua posição. O único sinal de aviso foi a vibração que sentiu nas costelas do cão, quando este se encostou à sua perna.

Depois ouviu-o: o esmagar furioso da areia, o estalar frenético dos ramos secos. Virou-se para uma pequena forma que se tornava visível à sua direita, correndo rente ao chão. Era outro cão, com o pelo malhado e liso e a cabeça castanha de um perdigueiro alemão de pelo curto. O cão corria pelo deserto, direito ao seu acampamento. O seu olfato apurado teria captado a sua localização e fizera-o correr na direção da única humanidade que conseguia cheirar.

Mas porquê?

Tucker apoiou-se num joelho e fez sinal a Kane para que se sentasse ao seu lado, para saudar a chegada do cão numa posição menos ameaçadora.

O perdigueiro de pelo curto abrandou quando se aproximou do acampamento, mantendo uma distância desconfiada de alguns metros. Com a cauda curta baixa, virou-se duas vezes, traçando um nervoso padrão em forma de S. Claramente, queria juntar-se a eles, mas necessitava de se sentir mais seguro.

Tucker acedeu.

— Está tudo bem, rapaz — encorajou baixinho. — Somos todos amigos.

Para reforçar a sua saudação, deu uma ordem silenciosa a Kane. O seu colega de equipa peludo tinha um vocabulário de trabalho de mil palavras e o conhecimento de mais de cem gestos. Tucker estendeu o mindinho e traçou com ele um círculo no ar.

Sê amigável.

Obedecendo de imediato, Kane abanou a cauda com vigor suficiente para agitar os quartos traseiros, acompanhando a sua saudação com um latido de excitação acolhedor.

Depois de mais alguns instantes de hesitação tensa — evidenciada pela respiração pesada do perdigueiro de pelo curto e pelo branco dos seus olhos cor de âmbar — o cão baixou-se ainda mais. Com a cauda ainda no meio das pernas, o perdigueiro atravessou a fronteira invisível e entrou no acampamento.

— Belo menino — garantiu-lhe Tucker.

O perdigueiro aproximou-se alguns metros, parou, depois correu na sua direção. Uma vez à sombra de Tucker, o cão sentou-se rapidamente, estremecendo, tremendo, gemendo baixinho.

Kane cheirou o recém-chegado, enquanto Tucker esfregava o peito e o pescoço do cão, fazendo-o saber que estava em segurança. Verificou a coleira vermelha, a chapinha de bronze.

Leu em voz alta o nome aí inscrito.

— Cooper.

Aquilo garantiu-lhe um ligeiro abanar da cauda do cão.

Tucker também se apercebeu da presença de uma tira de cabedal pendurada na coleira.

Parte de uma trela.

Seguiu o seu curto comprimento até ao fim. Não havia marcas de dentes, apenas um corte limpo. Alguém tinha libertado o cão cortando a trela. Enquanto a sua outra mão continuava a acariciar o flanco do cão, os seus dedos descobriram uma zona de humidade quente. Afastou o braço e apercebeu-se da mancha carmesim na palma da mão.

Sangue.

Uma rápida inspeção não revelou qualquer ferimento.

Portanto o sangue não é do cão.

Os tiros ecoaram na sua mente.

Isto não é bom.

Enquanto debatia a melhor forma de prosseguir, verificou o lado de trás da chapinha do cão e encontrou uma morada de Sedona, um número de telefone e um outro nome: jackson kee. Olhou para o deserto, agora ominosamente silencioso.

Seria o sangue do dono do cão?

Tucker imaginou o homem a libertar o seu companheiro num esforço desesperado para obter ajuda, talvez rezando para que o cão chegasse à civilização. Tucker nem se deu ao trabalho de tentar fazê-lo com o seu telemóvel. Mesmo na baixa de Sedona o sinal era, na melhor das hipóteses, parco. Os picos de pedra vermelha e o solo rico em ferro que os rodeava tornavam a situação ainda pior.

Mas ele tinha uma outra forma de comunicação.

Debateu-se se a deveria usar ou não. Sempre solitário, preferia confiar nas suas próprias capacidades. Confiava em poucas pessoas, uma desconfiança que se entranhara em si muito antes de os horrores da guerra terem revelado a verdadeira dimensão da desumanidade do homem. Durante a sua década no exército, provara ser um tratador de cães soberbo, obtendo resultados extraordinários no que dizia respeito a empatia emocional, o que o ajudava a relacionar-se com os seus sujeitos.

Talvez demasiado profundamente.

Tucker sabia que uma avaliação dos psicólogos do exército tinha atribuído a sua afinidade inata a um trauma no início da infância. Criado no Dakota do Norte, ficara órfão quando ainda era uma criança de colo, tendo os seus pais sido mortos por um condutor embriagado. Fora deixado aos cuidados do avô, que veio a perecer de um ataque cardíaco quando Tucker tinha treze anos. A partir daí, fora entregue ao cuidado do Estado. Durante os anos que passara no sistema, de modo a sobreviver aprendera a ler os outros, para assim sentir o estado de espírito daqueles com quem se cruzava e agir em conformidade. Uma educação tão caótica e instável não só tinha apurado as suas capacidades empáticas, como inculcara em si o pouco que podia contar com os outros.

Ainda assim, para Tucker, tudo se resumia a algo ainda mais simples, uma frase resumida por Sigmund Freud: Prefiro a companhia dos animais à companhia dos seres humanos. Decerto os animais selvagens são perigosos. Mas ser implacável é o privilégio dos humanos civilizados.

A última parte fora consideravelmente reforçada durante a década que Tucker passara no exército. Os campos de batalha revelavam, frequentemente, o melhor e o pior de uma pessoa, por vezes ao mesmo tempo. E não se excluía a si mesmo de um tal julgamento.

Uma vez mais, imaginou as facas a cortar o ar, roubando cada vez mais vida ao companheiro de ninhada de Kane.

Afastou tal recordação enquanto se aproximava do Jeep Wrangler. Antes de sair do stand, pedira para retirarem as portas e os painéis do tejadilho, deixando o todo-o-terreno reduzido à sua estrutura essencial. Tinha o equipamento armazenado na parte de trás. Sacou rapidamente de um par de calças de ganga empoeiradas e uma camisa caqui de manga curta. Enquanto enfiava os pés num par de botas Timberland já gastas, captou um vislumbre de si mesmo num dos espelhos retrovisores.

Precisou der algum tempo para reconhecer o estranho que este refletia. O rosto era demasiado jovem, um homem de trinta e poucos anos, de cabelo louro escuro despenteado e maltratado, e um físico de músculos esguios, mais adequado a um quarterback do que a um linebacker. Era como fitar uma versão mais jovem de si mesmo. Sentia-se muito mais velho do que o rosto sem rugas que o mirava no espelho. No entanto, os olhos que o fitavam desde esse mesmo espelho, esses reconhecia-os, o brilho assombrado, zangado dos olhos de um azul-esverdeado. Enquanto se vestia, apercebeu-se igualmente das cicatrizes que se cruzavam sobre o seu corpo, das marcas protuberantes dos velhos ferimentos de bala no ombro e na parte superior da coxa.

Como se tivesse vontade própria, a mão ergueu-se e tocou na pequena impressão de uma pata tatuada no braço esquerdo, perto do ombro, uma recordação permanente de Abel, do sacrifício do cão. Com um esgar, levou a mão às traseiras do Jeep e enfiou um corta-vento caqui por cima da camisa, como se cobrir a tatuagem diminuísse a dor.

Não o fez.

Agora vestido, incidiu a atenção nas malas que se encontravam na parte de trás do Jeep. De uma delas, retirou uma caixa de aço enterrada no fundo. Levava-a consigo para o caso de se deparar com uma emergência. Fitou o perdigueiro alemão de pelo curto arquejante, o sangue que manchava o pelo do cão.

Isto conta como um desses casos.

Abriu o fecho e levantou a tampa da caixa. No interior repousava uma Desert Eagle negra e um par de carregadores com balas Magnum .44. Enfiou um deles na pistola e prendeu a arma na parte de trás das calças. Em seguida retirou o telefone satélite compacto do interior da caixa. O telefone incluía a mais recente tecnologia militar. O aparelho fora um presente da Força Sigma, uma equipa secreta de operacionais de campo da DARPA que já ajudara no passado.

Ser-me-ia útil o seu apoio agora... ainda que à distância.

Voltou a inserir a bateria no telefone, marcou o código, depois equilibrou o telefone no guarda-lamas do Jeep. Enquanto era estabelecida uma ligação encriptada para o quartel-general da Sigma em D.C., Tucker usou uma corda comprida para prender o perdigueiro ao gancho do atrelado. Tinha comprimento suficiente para que o cão conseguisse chegar ao riacho fresco que corria ao longo do acampamento, ao mesmo tempo que o chassis alto do Jeep lhe oferecia uma boa sombra.

Quando a ligação por satélite foi estabelecida, uma voz fraca ergueu-se dos altifalantes do telefone.

— Capitão Wayne?

Tucker agarrou no telefone e levou-o ao ouvido.

— Diretor Crowe.

Painter Crowe era o diretor da Sigma. Tucker imaginou o homem sentado no seu gabinete sob o castelo Smithsonian no National Mall.

— O que posso fazer por si? — perguntou o diretor.

Tucker olhou de relance para Cooper. O perdigueiro alemão de pelo curto vagueou até ao riacho e deu duas lambidelas nervosas.

— Preciso que tome conta de um cão por mim.

— Teria todo o gosto. Mas parece-me que está a telefonar do meio do Arizona. Não tenho a certeza de conseguir mandar para aí alguém com uma saca de ração nos tempos mais próximos.

Tucker ergueu os olhos para o céu, sabendo que a chamada tinha revelado a sua localização. Era por isso que, normalmente, mantinha o telefone fechado na sua caixa de aço com a bateria ao lado. Preferia manter os seus percursos escondidos. Mas tendo em conta para onde se dirigia em seguida — e sabendo que havia a possibilidade de poder não regressar — não queria deixar Cooper preso ao seu Jeep para morrer lentamente à fome.

Já perdi um cão à minha guarda.

Não tencionava perder outro.

— Acho que estou prestes a meter-me onde não sou chamado — explicou Tucker. — Se não ouvir notícias minhas durante a próxima hora, envie ajuda para esta localização.

— Se estiver em apuros, posso chamar os serviços de emergência de Sedona. Mandar um helicóptero para aí em metade desse tempo.

Tucker fitou Cooper, a mancha carmesim escura no flanco do animal.

Temia que já fosse demasiado tarde.

Ainda assim, sabia que se alguém ainda estivesse em perigo, ameaçado por uma arma de fogo, a ruidosa intrusão de um helicóptero num recanto tão remoto do deserto resultaria na execução imediata de quaisquer cativos.

— Não envie já. — Tucker narrou rapidamente a Crowe os tiros, o surgimento súbito do cão ensanguentado. — Dê-me uma hora para investigar discretamente antes de mandar a cavalaria.

— Compreendido, mas o nome que encontrou na coleira do cão, Jackson Kee.

— O que tem?

— Deve ser o doutor Jackson Kee.

Tucker tentou não revirar os olhos. Claro que, em menos de um minuto, o diretor já tinha localizado o nome do dono do cão, utilizando os consideráveis recursos de informação da Sigma.

— É um médico da área holística, que ensina na Universidade de Sedona e no Yavapai College. De acordo com a sua biografia, toda a sua vida viveu nessa zona, com uma herança que remonta a gerações e que está ligado às tribos da região, tanto entre os Yavapai locais como entre os índios Hopi.

Portanto o tipo conhece, sem dúvida, estes desertos.

— Enquanto vai verificar a origem dos tiros — disse Painter —, vou ver o que mais consigo descobrir sobre o doutor Kee.

Tucker terminou a chamada, pôs o telefone no silêncio e enfiou-o no bolso de dentro do casaco. Preparado e vestido, ajudou o seu parceiro a fazer o mesmo. Da parte de trás do Jeep, retirou um colete tático K9 Storm e ajustou-o ao lombo de Kane. Enquanto colocava o colete à prova de água e reforçado com Kevlar no lugar, sentiu o bater do coração de Kane, o tremor de excitação nos músculos do cão. Kane sabia que estava a ser chamado ao trabalho, preparando-se para se transformar de companheiro peludo em guerreiro silencioso.

Tucker fez festas nas orelhas de Kane, estabelecendo uma ligação física através do toque. Enquanto Tucker se ajoelhava à sua frente, Kane fitou-o, olhos nos olhos, aprofundando essa ligação. Tucker inclinou-se ainda mais, tocando com o seu nariz no do cão num ritual eterno, reconhecendo aquilo que estava a pedir ao cão, que se colocasse em perigo para salvar os outros.

— Quem é um bom menino? — sussurrou ao seu maior amigo.

Kane lambeu-lhe o nariz.

Isso mesmo, és tu.

Tucker inclinou-se para trás e levou a mão ao forro do colete. Ergueu a câmara aí escondida e enfiou um transmissor de rádio sem fios na orelha esquerda de Kane. O aparelho permitia que ambos mantivessem um contacto visual e áudio constante um com o outro.

Para testar o equipamento, Tucker posicionou a lente da câmara de forma a espreitar por cima do ombro de Kane e ligou-a. Em seguida, pôs nos olhos um par de óculos fotossensíveis concebidos pela DARPA. Tocou num botão na haste dos óculos e a transmissão em direto da câmara de Kane surgiu no canto interior da lente: uma imagem de um pinheiro e de uma pedra rente ao chão.

Por fim, enfiou o transmissor rádio na sua própria boca, encaixando-o atrás do último dente. O aparelho — alcunhado Molar Mic — era uma nova tecnologia utilizada pelos soldados no Afeganistão. O rádio minúsculo permitia que homens e mulheres no terreno comunicassem uns com os outros por sussurros, ao mesmo tempo que as transmissões alcançavam o ouvido do recetor diretamente através dos ossos do maxilar.

— Estás pronto, rapaz? — disse Tucker baixinho, testando o canal de comunicação.

Kane olhou de relance para trás e abanou duas vezes a cauda. Os olhos do seu parceiro cintilavam com a excitação reprimida, sabendo o que estava para vir, ansioso por se pôr em movimento.

Tucker levantou-se e avançou na direção que o perdigueiro alemão de pelo curto tinha seguido até ali. Apontou para as marcas das patas na areia, depois para o deserto aberto. Antes sequer de conseguir sussurrar a ordem «segue», Kane já estava em movimento, antecipando as instruções.

Enquanto o cão mergulhava no deserto, Tucker seguia no seu encalço, estudando o terreno, tanto através dos seus olhos quanto através da imagem transmitida para os seus óculos pela câmara de Kane. Durante alguns segundos foi confuso, mas tornou-se rapidamente uma segunda natureza. A imagem saltitante dos arbustos e das rochas do ponto de vista do seu parceiro fundia-se com o seu ponto de vista. O arquejar de Kane enchia-lhe o crânio, harmonizando-se com a sua própria respiração. Até o som das suas botas assumiu uma harmonia fácil com o avançar das patas de Kane. Naquele momento intemporal, os dois tornaram-se um, uma harmonia perfeita de ação e intenção.

Aquela ligação entre eles corria mais fundo do que qualquer treino, para lá de qualquer comunicação dos sentidos altamente tecnológica.

Era uma união forjada em sangue.

Eram ambos sobreviventes, feridos e marcados juntos, presos ao coração um do outro, pela perda e pelo desgosto, mas também pela alegria e companheirismo. Mesmo assim, ainda agora sentia outras patas a correr ao seu lado, um fantasma que os perseguia através do deserto, suplicando-lhes que não o esquecessem.

Nunca, prometeu, nunca.

Tucker corria por um caminho que serpenteava por entre os campos de pequenas flores cor-de-rosa e contornava aglomerados vermelhos e roxos de catos grandes e pequenos. Os seus olhos continuavam a discernir as marcas na areia, os ramos partidos dos arbustos secos, que marcavam a passagem em pânico do perdigueiro.

Perdeu o rasto durante longas extensões sobre as pedras vermelhas despidas, mas os sentidos de Kane eram muito mais apurados, nunca se afastando da pista invisível de marcadores olfativos.

Unidos como estavam, Tucker quase conseguia sentir aquela capacidade.

Quase... mas não completamente.

Kane avança, desemaranhando a teia de perfumes que enche o ar para seguir apenas um fio. Aquilo que a visão não consegue captar, o cheiro preenche, camada após camada, marcando o tempo para trás e para a frente, construindo o enquadramento de velhos rastos à sua volta. Inspira ainda mais cheiros, puxando-os para a sua língua húmida, levando-os para o fundo da garganta e para os seios nasais.

O almíscar amargo dos esporos...

O odor acre do marcador da urina de um coelho...

O perfume do pólen...

O sussurro da humidade de um riacho próximo...

Enquanto corre, as suas orelhas vão-se virando para todos os sussurros abafados: o uivar das curtas rajadas por entre as pedras, o bater das suas próprias patas, o restolhar dos ramos.

Enquanto pinta o mundo à sua volta em cheiros e sons, testa quaisquer alterações na brisa com o focinho erguido. Fluem até ele vindos da frente. Deixa que os novos cheiros o cubram. Neles sente um odor subjacente que fede a suor e a maturação de corpo.

Homens.

Dois.

As suas pernas abrandam.

Obriga a respiração a silenciar-se.

As suas orelhas viram-se na direção do par enquanto este se aproxima; o seu nariz capta o cheiro do petróleo e do fumo velho por entre o almíscar dos homens. A ameaça enterrada naquele odor faz-lhe erguer os pelos das suas costas.

Kane conhece as armas — pela forma, pelo cheiro e pelo som, conhece as armas.

Para e baixa-se sobre a barriga, o nariz virado para a frente, fazendo sinal ao seu companheiro de matilha.

A mensagem é compreendida.

Os problemas aproximam-se.

(2)

06h04

Trémula, Abigail Pike mantinha os olhos fixos no avô, que estava sentado do outro lado das brasas que esmoreciam na fogueira. Esforçou-se por manter o olhar afastado do cadáver caído do seu lado esquerdo, da escura poça de sangue que fumegava na areia fria do deserto. Os seus ouvidos ainda zumbiam devido ao disparo. Sentiu o calor do cano dessa mesma pistola perto da sua orelha direita.

— Vamos tentar outra vez, doutor Kee — disse o atirador ao lado dela, fitando, furioso, o avô. — Ou a Abbie será a próxima. Onde é que aquele velho sacana encontrou a pedra?

Apesar dos seus melhores esforços, os olhos de Abbie saltaram para o corpo de Brocky Oro, um antigo prospetor da tribo Yavapai-Prescott. Já conhecia aquele irascível solitário — a quem sempre chamara «tio Oro» — desde menina. Durante duas décadas, tinha ouvido as suas histórias acerca de minas de prata esquecidas, da cidade perdida de El Dorado, das suas infindáveis demandas por tesouros escondidos nas profundezas sem rasto do deserto. Era provável que tivessem sido essas histórias à volta da fogueira a inspirar, em parte, a sua escolha de um curso de geologia na Universidade do Colorado, para dar continuidade à caçada do tio Oro, se bem que de um ponto de vista mais científico.

E eis onde isso nos levou.

Estava sentada num tronco velho, os pulsos presos por braçadeiras atrás das costas. O avô estava atado da mesma forma. Tal como o outro cativo, um homem de meia-idade sentado ao lado dele, o doutor Herman Landon, um físico da Universidade de Sedona.

O acampamento do grupo tinha sido atacado pouco antes da madrugada. Os bandidos haviam-nos emboscado enquanto ainda estavam deitados nas suas tendas. O único aviso viera de Cooper, que ladrara no exterior. O perdigueiro de pelo curto tinha estado preso por uma trela comprida a uma estaca enterrada na areia, para o impedir de partir atrás dos coelhos pelo deserto. Na altura, acreditando que Cooper tinha visto uma das suas presas de longas orelhas, o avô de Abbie gritara para que o cão se calasse.

Se ao menos tivéssemos dado ouvidos ao cão...

Ainda assim, o resultado final poderia muito bem ter sido o mesmo. Uma equipa de bandidos composta por seis homens tinha-se lançado rapidamente sobre eles, armados com pistolas pretas e espingardas semiautomáticas. Depois de terem sido subjugados, um Ford Bronco bege roncara através do deserto e estacionado junto ao desgastado jipe do avô dela. Do Bronco emergiram mais dois homens que se juntaram aos primeiros. Um deles era o líder do grupo, um homem a quem os outros chamavam Falcão.

Dir-se-ia que era um nome nativo americano, mas nenhum dos bandidos parecia partilhar a mesma ancestralidade de Abbie e do seu avô. Os bandidos envergavam, todos eles, um uniforme semelhante: calças de ganga poeirentas, camisas de flanela fora das calças e por cima de t-shirts manchadas, e uma espécie de boné. Há anos que ela via este tipo de patifes, caçando pelos cantos ensombrados dos bares e saloons do Arizona, homens duros que levavam vidas ainda mais duras de desespero e raiva frustrada. Apercebera-se dos tiques nervosos de alguns deles, os dentes manchados, sinais claros de que tinham preparado os nervos para aquela emboscada com um toque de metanfetaminas.

Enquanto Abbie e os homens eram arrastados para o exterior das tendas, pressentira o perigo ameaçador daquele grupo. O avô não, só quando já era demasiado tarde. Tentara fazer-se de parvo quando o Falcão o confrontou sobre a fonte da ágata de fogo do tamanho de um punho descoberta pelo tio Oro na semana anterior, uma pedra gigantesca que valia uma pequena fortuna. O tio Oro alegara que não passava de uma pedrinha, parte de uma descoberta bem maior escondida no deserto.

Mas não foi tudo o que ele alegou ter descoberto...

O olhar dela deslizou para o doutor Landon.

Claramente, a notícia da descoberta do tio Oro alcançara mais ouvidos do que os deles, o que não era difícil de imaginar... O tio Oro tinha uma queda infeliz por uísque barato e pela invenção de histórias ao balcão dos bares. E agora isso conduzira à sua morte.

O avô respondera à súbita execução do tio Oro retirando um canivete que trazia escondido num dos bolsos das calças e cortando a trela de Cooper, permitindo a fuga do perdigueiro de pelo curto. O cão — que já estava em pânico devido ao tiro e ao sangue que se espalhara — partiu para o deserto. Como castigo, o Falcão batera com a coronha da pistola no avô e prendera-os apertando ainda mais as braçadeiras.

— Uma última vez — insistiu o Falcão, realçando a seriedade com que falava com o pesado clique do cão da pistola a ser puxado. — Onde foi encontrada essa grande pedra?

O avô estremeceu, o seu olho direito já inchado a ponto de não o conseguir abrir.

— Eu... eu digo-lhe. Mas não faça mal à Abbie.

— Dizer não chega. — O Falcão contornou-o e acenou com a pistola. Dois dos seus homens fizeram levantar o avô dela. — Vai mostrar-nos.

O avô já sabia que não devia debater-se, tendo aprendido essa sangrenta lição com o homem que jazia caído na areia. Ainda assim, resistiu o suficiente para lançar na direção de Abbie um olhar culpado, por a ter arrastado para aquilo. Em seguida obrigaram-no a avançar para o Bronco, o motor ainda ligado e a arrefecer junto ao Jeep.

— Se tentar alguma coisa — ameaçou o Falcão, seguindo atrás dele — matamos primeiro o cientista. Depois divertir-nos-emos com a sua neta, todos nós, antes de lhe metermos uma bala no crânio.

O avô prometeu cooperar, enquanto Landon parecia aterrorizado. Abbie observou o avô a ser empurrado para o banco traseiro do Bronco.

O Falcão virou-se na direção da fogueira que se ia apagando. O homem tinha cabelo castanho, que lhe chegava aos ombros, e estava parcialmente escondido debaixo de um boné de basebol da Diamondback, a pala curvada na forma de uma ferradura, e uma sombra da barba escura no queixo e nas bochechas, o que transmitia a sensação de que o seu rosto estava perpetuamente mergulhado nas sombras. Apontou para um par de homens que ainda se encontravam junto à fogueira.

— Randy, Bo, mantenham estes dois debaixo de olho. Esperem pelo regresso do Buck e do Chet. Digam-lhes onde fomos. Estarei disponível pelo rádio.

Randy — que era de todos o que mostrava mais tiques — assentiu vigorosamente com a cabeça.

— E se eles não encontrarem a porcaria do cão?

O Falcão encolheu os ombros.

— Muito provavelmente os coiotes tratarão do rafeiro por nós. Se não o fizerem, há muito teremos partido antes que alguém se aperceba de alguma coisa.

Bo deu uma gargalhada, acrescentando:

— Podes crer.

O Falcão contornou o Bronco até ao lado do passageiro e trepou para o assento da frente. O SUV roncou. O Bronco virou na direção do deserto, triturando a areia e as pedras por baixo dos seus quatro pneus, e partiu.

Abbie seguiu o seu caminho durante algum tempo, depois deu por Bo a fitá-la, um sorriso enviesado expondo os seus dentes apodrecidos pelas metanfetaminas. Ela virou o rosto, olhando para as brasas da fogueira. Viu o trilho deixado pelas patas do seu cão que desaparecia por entre os pinheiros pequenos, e os rastos mais pesados dos dois homens que seguiram atrás dele.

Rezou para que Cooper escapasse, desejando algo mais.

Por favor, encontra alguém que nos ajude.

(3)

06h10

Tucker agachou-se na sombra comprida de um pedregulho vermelho. Os seus ouvidos aperceberam-se do aproximar de pés que pisavam a areia. Pelo canto dos seus óculos, a transmissão da câmara de Kane mostrava dois homens que avançavam através de um caminho rochoso decorado com papoilas douradas mexicanas. O que liderava empunhava uma pistola; o outro seguia-o com uma espingarda de assalto pendurada ao ombro.

Poucos instantes antes, Kane avisara-o da ameaça que se aproximava, dando tempo a Tucker para preparar uma emboscada. O seu colega de equipa peludo tinha-se igualmente escondido cerca de trinta metros mais à frente, deitando-se numa depressão do terreno, à espera de uma ordem. Tucker aguardou até que os dois tivessem passado a posição de Kane e se tivessem aproximado do pedregulho vermelho onde estava escondido.

Através do áudio da câmara de Kane, ouviu os dois homens à conversava, acreditando estarem sozinhos.

— Viste a maneira como o crânio do tipo explodiu quando o Falcão lhe deu um tiro? — perguntou um deles com uma gargalhada rouca.

— Sim, rebentou como uma abóbora madura. O Falcão ensinou, sem dúvida, àquele velho índio que estávamos a falar a sério. Aposto que neste momento o tipo já está a contar tudo o que sabe. E viste bem a neta dele?

— Claro que sim. Ora bem, àquilo é que eu chamo umas abóboras maduras.

Mais gargalhadas de desdém.

— Vamos ver se encontramos a porcaria do cão.

Continuaram para lá da posição de Kane. Pela breve troca de palavras, Tucker rapidamente percebeu o suficiente, em especial as intenções criminosas dos seus alvos. Quem quer que fossem, já tinham matado alguém e mantinham pelo menos mais dois reféns. Sabendo-o, Tucker não sentiu quaisquer reservas quanto a utilizar força letal. Ainda assim, com o coração a bater velozmente, guardou a sua Desert Eagle. Precisava de agir silenciosamente, para não alertar os restantes amigos daqueles sacanas.

Quando o segundo homem passou pela posição de Kane, Tucker transmitiu, quase em silêncio, uma ordem composta por três palavras através do rádio.

— EM SILÊNCIO. APANHA-OS.

Através dos óculos, observou a imagem baixa de um arbusto do deserto que passou em frente à câmara de Kane. Mesmo com a forte sensibilidade do áudio da câmara, Tucker não ouviu qualquer som quando o pastor belga correu a reduzir a distância que o separava de um dos homens. Imaginou as patas de Kane a aterrarem na rocha firme, o seu corpo esguio a evitar qualquer aglomerado de ramos que pudesse alertar para a sua presença.

Depois, no último instante, uma rosnadela.

Com determinação.

Sobressaltado pelo ruído, o alvo de Kane virara-se, apenas para descobrir um cão gigantesco a saltar sobre si. Kane lançou-se contra o peito dele, fazendo o homem desequilibrar-se e cair de costas.

Tucker estava já em movimento. Emergiu de detrás do arbusto, posicionando-se a poucos passos do homem que liderava os dois. O atirador estava de costas para Tucker, tendo sido atraído pela confusão.

As mandíbulas de Kane estavam já a apertar a garganta do seu alvo, esmagando a traqueia do homem, os caninos enterrados profundamente na pele macia. O homem agitava-se, a espingarda presa debaixo das costas. Kane segurava-o com força, montando o homem como se fosse um touro selvagem.

O alvo de Tucker tinha estacado momentaneamente perante a emboscada súbita e a selvajaria do ataque de Kane. Quando o homem, por fim, ergueu a pistola na direção do cão, Tucker já estava junto dele. Prendeu um braço em redor da garganta do outro. Sobressaltado, o homem deixou cair a pistola e agarrou o braço de Tucker. Tucker levantou-o no ar e fê-lo virar, batendo com a cabeça dele contra o pedregulho atrás do qual se escondera.

Os ossos estalaram com um som que o satisfez.

Tucker deixou cair ao chão o corpo flácido e correu para Kane. Sacou da sua Desert Eagle, quando chegou ao par que se debatia. O homem estava deitado de costas, o rosto cada vez mais roxo devido ao aperto que o cão exercia sobre a sua garganta. Tucker usou uma bota para virar a cabeça do homem para o lado, apertando-lhe o rosto contra a areia. Depois ergueu a pistola e bateu com a coronha atrás da orelha direita do homem, quebrando o osso com um golpe abafado.

O mesmo som de uma abóbora madura.

Tucker sussurrou uma ordem ao seu parceiro.

— CHEGA.

Só então é que Kane libertou o pescoço do homem. O cão recuou alguns passos, o seu olhar fixo em Tucker e ainda plenamente alerta.

Tucker recolheu rapidamente a espingarda e atirou a sua alça por cima do ombro. Em seguida aproximou-se, pegou na pistola — uma Glock de 9 milímetros — e enfiou-a na parte de trás das calças. Calculou o tempo que iria demorar a amordaçar e atar os dois homens, mas eles não se iam levantar nos tempos mais próximos, e apostou que mesmo que o fizessem não tentariam ser heróis. Desarmados e zonzos, o mais provável era que desaparecessem no deserto e fizessem os possíveis para nunca mais serem vistos.

Por isso deixou-os na areia.

Anteriormente, tinha ouvido o rugido distante de um motor que desaparecia no deserto. Não sabia o que isso significaria, mas pressentia que se esgotava o tempo de quem quer que estivesse a ser mantido refém.

E isso, se ainda estiverem vivos.

Só havia uma maneira de descobrir. Voltou a partir, enviando Kane à sua frente. O rasto a partir dali era fácil de seguir. Os dois homens que caçavam Cooper não tinham feito qualquer esforço para esconder o seu rasto.

Tucker e Kane avançavam rapidamente através do deserto, viajando em sincronia, os dois unidos como um só na manhã gelada. Ainda assim, apesar do perigo presente e da necessidade de se concentrar, não conseguia escapar aos fantasmas do passado.

Tucker recordou aquele momento doloroso no Afeganistão. Tinha sentido o estalar dos seus ouvidos quando o helicóptero de salvamento levantara do cume nevado de Takur Ghar. A bordo do helicóptero agarrara-se a Kane, ambos ensanguentados pelos disparos, pelo engenho explosivo. Mas enquanto o helicóptero se erguia do cume montanhoso, Tucker nunca desviara os olhos de Abel lá em baixo. Fora Abel a afastar Tucker e Kane do caminho antes de o engenho explosivo ter detonado.

Agora, tinham-no abandonado.

Abel tinha corrido pelo topo frio da montanha, coxeando sobre três patas, em busca de uma saída. As forças talibãs aproximavam-se de todas as direções. Tucker tentara chegar à porta, pronto para saltar para o exterior, para ir em auxílio do amigo. Mas dois soldados agarraram-no, mantendo-o preso dentro do helicóptero.

Tucker gritou por Abel. Ouvindo-o, o cão parara, olhando para os céus, arquejando, os seus olhos concentrados e brilhantes, vendo-o. Partilharam aquele último momento, unidos um ao outro.

Até aquele laço ter sido cortado para sempre.

Mesmo agora, Tucker apertava com força a sua Desert Eagle, utilizando o seu peso e solidez para o ancorar no momento presente. Alguns anos antes, um terapeuta do exército tinha expressado a sua opinião, definindo a causa fundamental do stresse pós-traumático de Tucker como uma condição conhecida como lesão moral, provocada pelo facto de a compreensão fundamental do certo e errado de Tucker ter sido violada pelas suas experiências no Afeganistão. Dissera que essa condição se manifestava sob a forma de vergonha, culpa, ansiedade e raiva, juntamente com alterações comportamentais como a alienação e o distanciamento, o que o definia, sem dúvida, à letra. Tucker desconfiava que o recente caminho que seguira na vida era uma tentativa constante de voltar a encontrar o seu centro, de corrigir o que tinha feito, não tanto pelo que fizera, mas pelo que não tinha conseguido fazer, por quem não fora capaz de salvar.

Embora nessa altura tivesse perdido o seu parceiro, tencionava fazer os possíveis por corrigir todos os males com que se deparasse. Mas para o fazer ali, tinha de se concentrar.

Subiu uma ligeira inclinação e descobriu uma planície, provavelmente criada por séculos de inundações súbitas durante a estação das chuvas. Kane aguardava junto aos limites do regato, parando ao receber uma ordem de Tucker quando a câmara do parceiro revelou um acampamento no fundo da ravina. Quatro tendas rodeavam o suave brilho de uma antiga fogueira. Um Jeep Wrangler verde estava estacionado nas proximidades.

Um movimento atraiu-o para os limites rochosos do terreno alagadiço.

De barriga no chão, Tucker pegou no seu par de binóculos esguios. Através das lentes, viu duas figuras sentadas em troncos, os braços presos atrás do corpo. Uma delas era uma mulher de cabelo preto, provavelmente na casa dos vinte, o cabelo preso num rabo de cavalo comprido, envergando calças de ganga e uma camisa de manga comprida por baixo de um colete tipo militar. O outro era um homem mais velho, de cabelo grisalho, calçando botas de cowboy e envergando um corta-vento azul-escuro.

Tucker prestou mais atenção aos dois homens que vigiavam o par com as espingardas, o equivalente empoeirado aos dois homens que Tucker já tinha despachado. Sabia que não deviam ser apenas aqueles dois. Apontou os binóculos e concentrou-se no limite mais distante do regato, para o rasto enublado de pó que permanecia no ar. Lembrou-se do som de um motor que ouvira mais cedo. Seguiu o rasto de pó em direção às pedras vermelhas e aos penhascos afiados que se erguiam altaneiros. Não sabia para onde tinham ido os outros e, de momento, colocou de parte o mistério. Devolveu a sua atenção ao acampamento, analisou-o bem, depois baixou os binóculos.

Posicionou-se de joelhos e virou-se para Kane. Apontou para baixo e à sua volta, emitindo uma cadeia de ordens que sabia que Kane poderia seguir.

— CONTORNAR. MANTER POSIÇÃO. AGUARDAR SINAL.

Kane arquejava, abanando a cauda uma única vez, e saltando da beira do regato. Tucker partiu em direção oposta. Deslizou pelo velho leito há muito seco que escoava para o terreno alagadiço, mantendo-se junto às sombras mais profundas lançadas pelo sol da manhã que ainda ia baixo. Apertava contra a barriga a espingarda confiscada — uma carabina Bushmaster — utilizando as duas mãos.

Se havia outros atiradores, imaginou que estivessem a bordo do veículo que partira. Se tivesse razão, esses outros não ouviriam quaisquer tiros. Ótimo. Tendo isso em conta, Tucker sabia o que tinha de fazer, o que era necessário para salvaguardar os reféns.

O seu ataque teria de ser rápido e brutal.

Tucker olhou de relance para o local onde Kane tinha desaparecido e corrigiu a sua avaliação.

O nosso ataque.

(4)

06h20

Sentada num tronco de zimbro, Abbie observou um escorpião que corria de uma sombra para a outra. Quem lhe dera poder fazer o mesmo, encontrar um local para onde fugir, onde se esconder. Mais ainda, desejou ter o ferrão de um escorpião.

Olhou fixamente para um dos dois homens, aquele a quem chamavam Bo, que a fitava constantemente como se avaliasse uma vaca premiada. Ele viu-a a olhar e lançou-lhe um sorriso...

O seu rosto desapareceu no meio do sangue e do osso, seguido uma fração de segundo depois pelo ecoar de uma arma.

O outro homem, Randy, deixou-se cair sobre um joelho e ergueu para ela a espingarda, como se ela tivesse alguma culpa. O movimento salvou-lhe a vida quando um outro disparo seguiu o primeiro. A bala passou de raspão pela cabeça de Randy, tirando-lhe o boné.

Sobressaltado, Randy caiu sentado, mas a espingarda permanecia apontada a Abbie. Disparou. Já estando à espera disso, ela rebolou para trás do tronco quando ele apertou o gatilho. A bala penetrou na madeira onde ela tinha estado sentada.

Randy deitou-se apoiado num cotovelo, a espingarda ao ombro, apontada para Abbie. Gritou para o atacante desconhecido.

— Mostra-te ou...

À esquerda, uma forma explodiu de uma densa mata de pinheiros e saltou pelo ar atingindo o braço de Randy. As mandíbulas esmagaram os ossos do pulso. A arma saiu disparada. Randy gritou enquanto um enorme pastor-belga usava todo o seu peso e impulso para rebolar, lançando Randy para o lado como uma boneca de trapos. Randy aterrou com a cara na fogueira, lançando as brasas vermelhas em todas as direções.

Depois uma outra figura correu agachada vinda do lado oposto, surgindo de trás de uma das tendas. Trazia uma pistola erguida e correu velozmente para o lado do cão. Uma vez ali chegado, rosnou um firme:

— SOLTA.

Quando o cão soltou, o homem que acabava de chegar disparou friamente para a nuca de Randy, uma só bala que fez saltar o corpo do homem, que em seguida se imobilizou, fumegante sobre a fogueira.

O estranho manteve-se agachado, de arma erguida, o cão arquejando ao seu lado. Só nesse momento Abbie se apercebeu de que o pastor-belga envergava um colete de camuflagem escuro, e o que parecia ser uma câmara.

— Estão os dois bem? — perguntou o homem.

Abbie não fazia ideia de quem seria aquele homem que os salvara, mas tendo em conta a violência do ataque, assustava-a, deixava-a sem fôlego. Foi o doutor Landon quem falou primeiro. Tal como ela, o físico tinha saltado do tronco e escondera-se atrás dele.

— Eu... eu acho que sim — disse Landon, olhando de relance para Abbie.

Ela limitou-se a acenar com a cabeça, ainda do outro lado, na areia.

— Onde estão os outros que vos atacaram? — perguntou o estranho.

Abbie sentou-se, por fim encontrando a sua voz.

— Partiram. Levaram o meu avô.

O homem virou-se para ela. Os seus olhos eram duros como diamantes, o cabelo louro escuro desgrenhado.

— O doutor Jackson Kee?

Ela voltou a acenar. Como é que ele sabe o nome do meu avô? E mais importante...

— Quem é você?

— Tucker Wayne — respondeu ele. Retirou um punhal da sua bainha, no cinto, e rapidamente começou a libertá-los. No final apontou com a faca para o seu companheiro. — E este rapagão é o Kane.

Quando ouviu o seu nome, o pastor-belga abanou por duas vezes a cauda.

Landon esfregou os pulsos e olhou de relance para o deserto aberto.

— Como... como é que nos encontrou?

— O Kane fez um novo amigo — disse Tucker e relatou em curtas palavras os disparos, a chegada súbita de Cooper e a caçada que ele e Kane tinham encetado aos envolvidos. — Antes de partir, alertei as autoridades, alguém em quem confio. Mas até saber o que se estava a passar, tive de o impedir de enviar a cavalaria. Sendo estas terras tão amplas, temi que quaisquer helicópteros da polícia que se aproximassem ou camiões com luzes a piscar pudessem... bem...

Ele silenciou-se, pelo que Abbie terminou por ele:

— Os bandidos ter-nos-iam matado e fugido.

Tucker fitou-a durante mais um pouco.

— Então e vocês? — perguntou. — Porque estão aqui? Porque é que vos seguiram?

— Por causa disto. — Abbie avançou para a mochila. Abriu-a e retirou do interior um pedaço de ágata de fogo do tamanho de um punho. Ergueu-a ao sol, tendo os seus raios projetado a luz refratada sobre a superfície, polindo-a numa opalescência de fogo. — Vale dezenas de milhares de dólares, senão mesmo mais.

— E, de acordo com o Brocky, essa pedra não passa da ponta do icebergue. — Landon apontou na direção do corpo do tio Oro, que Randy tinha coberto com um saco-cama, como se isso o absolvesse do homicídio, ou talvez fosse só para impedir que o sangue atraísse as moscas. — O antigo prospetor alegava que existia um filão de pedras destas aí fora.

Abbie abanou a cabeça.

— Devem ter ouvido a história do tio Oro. Montaram-nos uma emboscada. Exigiram saber onde está localizado o filão principal.

Tucker acenou com a cabeça, fitando o limite distante da escarpa quebrada.

— E raptaram o seu avô para os conduzir até lá, mantendo-vos aqui para que não perdesse a adequada motivação.

— Aqueles sacanas precisavam dele como guia — admitiu Abbie. — Estamos na parte mais remota do parque nacional de Sonora, mais de oitocentos mil hectares de deserto, pedra e penhascos. A serrania marca a entrada para vinte e cinco mil hectares de desfiladeiros, ravinas e pedras vermelhas gigantescas. A minha tribo, os Yavapai, chama a esta área, quando falam sequer dela, Ingaya Hala, ou Lua Negra. A denominação mais antiga é simplesmente Terra dos Pesadelos, que se adequa tendo em conta a facilidade com que nos podemos perder aqui, já para não falar dos perigos das inundações súbitas, dos deslizamentos de terra, das quedas traiçoeiras.

— E foi lá que o seu amigo falecido alega ter encontrado esse filão de pedras? — perguntou Tucker.

— E talvez algo mais espantoso — balbuciou Abbie, o que lhe mereceu um olhar de censura de Landon.

Tucker pareceu não ter ouvido quando se curvou para passar em revista o corpo de Bo. Voltou a levantar-se com um rádio confiscado na mão e apontou na direção dessas terras inóspitas.

— Presumo que, por traiçoeiro que soe o terreno, os homens que levaram o seu avô terão de continuar a pé a partir daquele ponto.

Abbie assentiu com a cabeça.

— Então há a possibilidade de os alcançarmos. — Tucker virou-se e apontou para o Jeep. — É seu?

— Do meu avô.

— Tem as chaves?

Ela franziu o sobrolho.

— Ele deixa-as sempre na pala.

Tucker avançou, arrastando Kane consigo.

— Vou comunicar às autoridades que estão aqui — disse ele. — Mas a melhor possibilidade de salvar o seu avô é não esperar por eles aqui. Uma vez que o seu avô os tenha levado ao local do filão...

— Vão matá-lo — disse Abbie, seguindo junto dele. — Vou consigo.

Tucker chegou ao Jeep e virou-se para ela.

— Eu consigo localizá-los. — Depois apontou para o cão. — Nós conseguimos localizá-los sozinhos.

Abriu a porta, mas ela voltou a fechá-la com a palma da mão.

— O senhor... — Abbie apontou para o cão. — E o senhor também. Nenhum de vocês conhece o deserto como eu. Não vou arriscar a vida do meu avô na vossa inexperiência.

Tucker fitou-a em silêncio durante algum tempo, depois levou a mão ao fundo das costas e retirou a pistola. Estendeu-lha.

— Sabe como lidar com isto?

Ela franziu o sobrolho ao pegar na arma.

— Isto é o Arizona.

Landon aproximou-se a correr e agarrou a espingarda que estava próximo do corpo de Randy, juntando-se depois a eles.

Tucker fitou a arma, depois o homem.

Landon ergueu um pouco mais a espingarda.

— Habitante nativo do Arizona. Há três gerações. Além disso consegui levar os estudos até ao fim com uma bolsa do Reserve Officers Training Corps.

Tucker limitou-se a encolher os ombros, abriu a porta de trás e assobiou para que o pastor-belga entrasse.

— Então vamos.

(5)

06h32

Tucker conduziu o Jeep sem qualquer consideração sobre o terreno rochoso. A elevação subia num ângulo constante em direção aos penhascos quebrados e altaneiros. Aceleraram através de um terreno aberto repleto de catos, opúncias e extensões floridas de heliotrópios e lupinos selvagens.

Tinha o telefone satélite encostado ao ouvido, segurando-o com o ombro, necessitando das duas mãos no volante para manter o controlo do Jeep saltitante. Já tinha atualizado Painter Crowe em relação ao que acontecera.

— Ainda tens o meu GPS? — perguntou Tucker.

— Estamos a seguir-te desde que abandonaste o teu acampamento — confirmou Painter.

Claro que estão.

— Então continuem — disse Tucker. — Ponham em movimento as autoridades locais de Sedona. Eles que se mexam. Mas não enviem nada pelo ar. Não até conseguirmos encontrar o doutor Kee.

Uma abordagem silenciosa continuava a ser a sua melhor possibilidade de recuperar em segurança o avô de Abigail. Assassinos como eram aqueles tipos, mal ouvissem o som dos rotores de um helicóptero da polícia disparariam uma bala para o crânio do homem de idade e desapareceriam nas profundezas daquelas terras ermas. A velocidade era igualmente essencial. Tucker não tinha tempo para esperar que as autoridades chegassem por terra, e mesmo que as suas forças viessem pelo ar, o mais provável era que chegassem demasiado tarde. Em vez disso, Tucker necessitava de se aproximar rapidamente daqueles bandidos — liderados por um homem chamado Falcão — antes que encontrassem o tesouro. Depois disso, a vida de Jackson Kee estaria perdida.

Ainda assim, não era apenas Tucker que corria risco agora. Olhou de relance para Abigail, que estava sentada no banco da frente ao seu lado. Ela acenou com a cabeça. Obteve o mesmo aceno de confirmação de Landon, que seguia na parte de trás com Kane.

Ambos compreendiam a situação.

Por ora, estamos por nossa conta.

— Vou pôr tudo em movimento — prometeu Painter. — Incluindo o apoio aéreo.

— Mas eu disse...

— Enviarei os helicópteros com indicações para manterem um perímetro de uns quinze quilómetros em relação à tua posição. Quando soubermos que encontraste o doutor Kee, avançarão ao teu sinal.

Tucker gostava da estratégia do diretor. Painter tinha razão. Antes que tudo aquilo terminasse, era bem possível que necessitassem de uma evacuação rápida.

— Está bem — concordou ele.

Tucker terminou a chamada e concentrou-se em manobrar o Jeep à medida que o terreno subia para lá do deserto e dava lugar a uma floresta de zimbros rugosos. Através da janela aberta, o ar fresco cheirava a barro molhado e grés, perfumado por pinheiros frescos.

Estavam ainda a nove ou dez quilómetros dos penhascos que marcavam a fronteira para um labirinto de terras ermas, um território que a tribo Yavapai local considerava simultaneamente sagrado e amaldiçoado. Tucker utilizou esse tempo para abordar uma questão que o perturbava.

Virou-se para Abbie.

— No acampamento disse uma coisa. Que não tinha sido apenas um grande tesouro o que ali fora descoberto, mas algo mais impressionante. O que queria dizer com isso?

Os olhos de Abbie abriram-se muito, obviamente surpreendida por ele a ter ouvido. Olhou de relance para Landon. No retrovisor, Tucker apercebeu-se do profundo franzir de sobrolho do homem.

Landon abanou rapidamente a cabeça.

— Provavelmente não passou tudo de um sonho febril do velho tio Oro. Talvez provocado pelo excesso de sol, pelo excesso de uísque.

Abbie não parecia convencida.

— Talvez. Mas até os teus testes confirmaram a anomalia na pedra.

Para Tucker era o suficiente.

— Estou a arriscar a minha vida — insistiu. — A vida do Kane. Se há algo que eu deva saber, algo que não me estão a dizer...

Landon suspirou e inclinou-se para a frente. Agarrou o apoio para a cabeça de Abbie de modo a manter-se estável no Jeep chocalhante.

— O que sabe sobre os vórtices de Sedona?

Tucker foi momentaneamente apanhado de surpresa pela pergunta. Conduzia o Jeep por uma encosta de cascalho e areia solta, os pneus girando, tentando arranjar tração.

— Não muito — admitiu por fim. — Apenas que se diz que alguns marcos em redor de Sedona são pontos de convergência de estranhas energias terrenas.

De facto, tudo o que sabia acerca do assunto provinha de um residente de Sedona, um antigo motard que Tucker conhecera ao pequeno-almoço num pequeno estabelecimento na principal rua turística da cidade. O homem encorpado e tatuado não parecera a Tucker o tipo de pessoa que acreditaria em tretas místicas. O motard isso mesmo declarara. Quando o homem chegara a Sedona, há vinte anos, tinha encarado essas alegações como disparates de devoradores de cristais. Depois, há uns dois anos, o tipo tinha ido dar umas voltas todo-o-terreno com uns amigos para o deserto profundo e parara junto a um aglomerado de rochas altas para arrefecer o veículo, quando de súbito todos eles se sentiram quentes, arrepiados e de cabeça leve. Nunca tinha sentido nada assim, dissera o motard encolhendo os ombros. Sem sombra de dúvida. Tenho a certeza de que se passa algo de estranho por ali.

Landon continuou.

— Como físico, não é suposto acreditar em tais energias. Decerto não nas alegações de que os pontos dos vórtices de Sedona, como Airport Mesa, Bell Rock ou Boyton Canyon, marcam a interseção de misteriosas energias da Terra. Ainda assim, depois de aqui ter vivido quase toda a minha vida, é difícil ignorar a miríade de relatos de experiências estranhas nesses locais. Formigueiro nas mãos, zumbidos na cabeça, até registos de elevação da temperatura corporal. Por isso, comecei a estudar esses locais, para ver se existe alguma base científica para os fenómenos relatados.

— Parece-me possível que seja meramente psicossomático — disse Tucker. — Querem acreditar, por isso sentem-no.

— Essa é, sem dúvida, uma possibilidade, mas até os céticos o sentiram.

Tucker lembrou-se do relato do motard. O tipo decerto não estava desejoso de se juntar àquele movimento dos devoradores de cristais.

Abbie ofereceu um outro ponto de vista.

— Talvez baste ser-se-lhe sensível. Ou emocionalmente vulnerável. Além dos efeitos físicos, muitos experimentam uma alteração na consciência. Avisamos quem se aproxima de um vórtice para manter a mente calma. Se estiver furioso, ansioso ou deprimido, as energias podem amplificar esses sentimentos, aumentando-os a ponto de deixar a pessoa presa num sonho acordado.

— Um estado hipnagógico — explicou Landon. — O ponto de transição entre o sono e a vigília, frequentemente acompanhado por uma estranha paralisia.

— Que algumas pessoas também relatam acontecer junto aos locais dos vórtices — acrescentou Abbie. — Uma incapacidade para se moverem, presos num estado onírico.

Tucker queria ignorar tudo aquilo — como o motard fizera — mas lembrou-se do quão profundamente sentira a perda de Abel enquanto ali estivera acampado, a culpa esmagadora, até as recordações vívidas do topo daquela montanha no Afeganistão. Mesmo agora, tinha de refrear aquele calor que lhe crescia na barriga, aquela mistura de bílis e arrependimento.

Queria mudar de assunto, precisava de o fazer.

— Isso é tudo muito bonito, mas o que tem isso a ver com o grande tesouro que poderá existir nestas terras áridas?

Landon acenou a Abbie, que retirou a gigantesca ágata de fogo da mochila.

— É por causa disto — disse ele.

Abbie explicou.

— Tal como o doutor Landon, o meu campo de investigação centra-se na área dos vórtices, mas estudo a geologia da região num esforço para explicar algumas das lendas locais. De facto, o alto deserto de Sonora é, em termos tectónicos, peculiar, com dezenas de linhas de falha a entrecruzarem-se na região. Aqui o calcário sobrepõe-se ao basalto, que repousa sobre o arenito de antigos oceanos. A diferente velocidade a que esses diversos estratos foram sendo erodidos é o que provoca os pináculos, mesas e canyons imensos de Sedona. De um ponto de vista de composição, as pedras vermelho-ferrugem são coloridas pelo óxido de ferro nelas contido. Além disso, o solo é rico em cristais vulcânicos, que já foram forjados por forças titânicas em todo o tipo de pedras preciosas. Turquesa, malaquite, ametista, topázio, granada, até diamantes. Por toda a parte, os veios labirínticos de grandes cargas magnéticas geram o caos nas bússolas. Não há qualquer outro lugar assim no mundo. É por isso que só ali, e nalguns locais do México, é possível encontrar sequer depósitos de ágatas de fogo.

Abbie ergueu a pedra.

— E em parte nenhuma se consegue encontrar um espécime como este.

— Porquê? — perguntou Tucker.

— As ágatas de fogo foram formadas durante o período mais quente do vulcanismo local, no tempo do Período Terciário, quando lençóis de sílica e óxido de ferro eram comprimidos em pedra. São as camadas alternantes da microestrutura da pedra que difratam a luz nas suas aparências fogosas únicas. Tais pedras eram valorizadas pelas tribos locais pela sua capacidade para acalmar os que se sentiam perturbados. Ao fitar profundamente a luminescência da pedra gigantesca, dizia-se que era possível acalmar a raiva, aliviar a tensão, criar uma sensação de paz interior.

— Mas não é por isso que essa pedra é tão rara — disse Landon. — Se aquilo que desconfio for verdade, o valor científico dessa pedra excede em muito o seu valor monetário. Poderia reescrever tudo o que sabemos acerca da física.

Tucker pressentiu que aqueles dois estavam finalmente a chegar ao cerne da questão.

— O que tem de tão único?

— Isto não é uma simples ágata de fogo. — Landon apontou para a pedra do tamanho de um punho. — Isto é um cristal do tempo.

(6)

06h48

— Sei o que parece — disse Abbie, apercebendo-se do olhar incrédulo de Tucker, ouvindo o som da sua respiração exasperada. — Eu também não acreditava nele. Mas ouça-o.

Tucker acenou, desagradado, para a ágata na mão dela.

— Um cristal do tempo? A sério?

Landon explicou.

— Em 2012, um físico do MIT propôs uma teoria única. Apercebera-se de que muitos cristais eram formados seguindo o mesmo padrão de cristalização. Como se vê no sal de mesa ou na formação de flocos de neve. Trata-se de uma repetição da estrutura em três dimensões. Especulou que poderia ser possível criar cristais que se repetissem também numa quarta dimensão, nomeadamente o tempo.

— O que é que isso significa? — perguntou Tucker.

— Perguntei-me o mesmo — admitiu Abbie.

— O físico do MIT teorizou um cristal cuja estrutura atómica poderia girar repetidamente, um tique para a esquerda, um tique para a direita, marcando eternamente o tempo. Talvez movendo-se sozinho enquanto os eletrões fluíam infindavelmente através de um círculo fechado, como uma máquina de movimento perpétuo. Ou talvez rodando sob a influência de uma força eletromagnética exterior.

— Parece um disparate — balbuciou Tucker.

— Muitos pensaram o mesmo, até os cristais terem sido criados com sucesso em vários laboratórios, incluindo Harvard e Yale. Até os militares, a DARPA para ser mais precisa, estavam a olhar para eles como forma de refinar os relógios atómicos.

— DARPA? — perguntou Tucker, fitando Landon com uma expressão curiosa, como se tivesse algum significado para o seu salvador.

Landon assentiu com a cabeça.

— Isso mesmo.

Tucker parecia cada vez menos cético.

— Continuem. Estão a dizer que a pedra da ágata é como um desses cristais do tempo feitos em laboratório?

— Mas é possível que seja a primeira ocorrência natural alguma vez descoberta. — Landon explicou a sua teoria. — Quando o Oro trouxe a grande pedra ao doutor Kee e à Abigail, o prospetor falou de uma gruta repleta dessas pedras. Também falou sobre perder a noção do tempo, todo um dia, de ser confrontado com visões aterrorizantes. Conseguiu, por fim, escapar quando a noite caiu e só se sentiu melhor quando o avô levou a pedra para bem longe. Depois de ter ouvido tudo aquilo, a Abigail analisou a pedra no laboratório, identificando uma microestrutura única de óxido de ferro na pedra preciosa.

— Única em que aspeto? — perguntou Tucker.

— O óxido está na ágata — disse Abbie —, quimicamente pertencem todos a um tipo: Fe3O4, mais conhecido como magnetite.

— Ou pedra de íman — acrescentou Landon.

— Descobri que o óxido de ferro da ágata está configurado em camadas ferrimagnéticas microcristalinas. — Abbie rolou a pedra nas suas mãos. — Nunca tinha visto nada assim antes, por isso consultei o doutor Landon.

— Normalmente, os átomos de ferro na magnetite têm um alinhamento fixo — disse Landon. — Criando um polo norte e sul, como qualquer íman, mas os átomos deste espécime estão suspensos numa estrutura microcristalina octaédrica, capaz de se alterar na presença de um impulso eletromagnético.

— Como o tique que referiu antes, a marcar o tempo.

— Exatamente.

Abbie trocou um olhar com Landon que lhe dava autorização para revelar o que tinham teorizado juntos.

— Achamos que a ágata de fogo, talvez todo o filão, o estava a fazer na gruta que o tio Oro encontrou. A girar e a emitir os seus tiques há inúmeras gerações.

— Possivelmente alimentado por um vórtice não mapeado ali existente — disse Landon.

— E quando o tio Oro transportou esta pedra para longe do local, a pedra parou de girar, deixou de o afetar.

— Mas de o afetar como? — perguntou Tucker.

Landon colocou uma possibilidade.

— A magnetite não se encontra apenas nas pedras, mas também nos sistemas biológicos. Acredita-se que as partículas magnéticas no cérebro dos pássaros migratórios permitem que essas espécies naveguem ao longo de vastas distâncias sintonizando-se com o campo magnético da terra.

— E a magnetite não se encontra apenas nos pássaros — disse Abbie. — Temos algumas partículas no nosso cérebro. Podem ser encontradas nos lóbulos frontal, occipital, parietal e temporal, tudo áreas do cérebro onde processamos os estímulos exteriores, virando os impulsos elétricos dos nossos nervos sensoriais para o mundo de modo a vermos, sentirmos, ouvirmos e cheirarmos. Mesmo o tronco cerebral e as glândulas basais, regiões que controlam as nossas emoções mais básicas, estão carregadas de partículas magnéticas.

Tucker olhou de relance para ela.

— Está a pensar que, quando o tio Oro entrou nessa caverna, as partículas magnéticas do seu cérebro se baralharam.

— Levando-o a ouvir, ver e sentir coisas estranhas. Talvez até entrar em curto-circuito durante tempo suficiente para ser temporariamente paralisado, encurralado num estado hipnagógico, e perder a sensação do tempo.

— O efeito no interior da gruta pode ser bastante intenso — avisou Landon. — Com o tempo, talvez as duas forças, cristal do tempo e vórtice, tenham formado uma cadeia de feedback paliomagnético, alimentando-se mutuamente para se tornarem mais fortes.

— Também me fez perguntar — disse Abbie, e virou-se para Tucker — se isto poderá explicar o porquê de algumas pessoas serem mais sensíveis aos vórtices desta região? Talvez os seus cérebros tenham uma maior quantidade de partículas de magnetite, tornando-as mais sintonizadas com as forças que emanam da terra.

— Mas não esqueçam — avisou Landon, cerrando os dentes e conduzindo-os de volta à realidade —, isto pode muito bem ser apenas um sono febril, como eu disse, por ter apanhado demasiado sol e bebido demasiado uísque.

Tucker apontou em frente.

— De uma maneira ou de outra, parece que estamos prestes a descobrir.

Abbie virou-se completamente para a frente. Viu o Bronco bege estacionado no topo da encosta seguinte, quase perdido nas sombras profundas dos penhascos que subiam centenas de metros em direção aos céus. O veículo parecia abandonado. Ninguém surgiu a correr, atraído pelo roncar do Jeep.

Ainda assim, Tucker estacionou o veículo à sombra de um zimbro.

— A partir daqui vamos a pé.

(7)

07h17

Com a Desert Eagle apertada na mão, Tucker correu agachado em direção ao Bronco. Deixou Abbie e Landon escondidos num aglomerado de zimbros.

Kane já tinha contornado o perímetro do SUV estacionado, traçando um círculo completo. Em seguida, Tucker enviou o parceiro para o estreito desfiladeiro no rosto do penhasco para manter a guarda. Naquele preciso momento, através da câmara que transmitia para os seus óculos, Tucker conseguia ver através do desfiladeiro mergulhado nas sombras, onde corria um fino riacho de nascente, delimitado de um dos lados por seixos soltos e zonas de erva, e do outro por uma mistura de zimbros atarracados e carvalhos de tronco mais largo.

Tucker alcançou o Bronco e fez uma rápida vistoria através das janelas abertas para se assegurar de que estava verdadeiramente desocupado, que não havia qualquer guarda a dormir no interior, alguém que Kane não conseguisse ver da sua perspetiva mais baixa. Estava de facto vazio. Na parte de trás, viu uma caixa de madeira, aberta. Continha os últimos bastões de uma carga de dinamite. Uma embalagem de cartão não muito distante tinha sido virada, derramando os detonadores enrolados em rastilho.

Tucker esperara encontrar munições extra, talvez até alguns carregadores para a sua espingarda Bushmaster. Encontrou uma caixa de balas de 9 milímetros que deviam adequar-se à Glock que confiscara para Abbie. Pilhou o que conseguiu, depois espetou a faca de combate KA-Bar nos quatro pneus do Bronco para imobilizar o veículo.

Satisfeito, acenou a Abbie e Landon para que se aproximassem do SUV.

Uma vez junto dele, manteve a voz reduzida a um sussurro, não confiando na acústica daquelas pedras grandes e altas.

— Mantenham o silêncio quando entrarmos nos desfiladeiros. Movam-se em silêncio. Pisem onde eu pisar. — Olhou de relance para o corte no penhasco. — Pela falta de guarda, os ladrões devem sentir-se muito seguros, certos de que têm toda a vantagem. Asseguremo-nos de que assim continuam.

Tucker deu meia-volta para os guiar quando o seu bolso chilreou animado. Tirou dele o rádio que tinha sido retirado a um dos homens mortos. Uma explosão de estática transformou-se numa voz.

— Bo, Randy, relatório. Já tiveram notícias do Buck e do Chet?

Tucker fitou o rosto dos outros. Se não respondesse à chamada, levantaria suspeitas. Poderiam ser enviados homens para verificar o estado dos outros.

Abbie acenou-lhe para que respondesse. Landon limitou-se a encolher os ombros.

Tucker ergueu o rádio. Fechou os olhos, recordando as vozes que tinha ouvido através do áudio de Kane. Fez o melhor possível para imitar o ligeiro sotaque, mas mantendo a voz baixa, as palavras entrecortadas e foi brincando com os botões do rádio para adulterar ainda mais a chamada.

— Repete — disse Tucker. — Não te consigo ouvir bem, Falcão.

— Tens notícias do Buck ou do Chet em relação à porcaria do cão?

Tucker deu uma gargalhada.

— Oh, sim. Já apanharam o sacana. Deram-lhe uns tiros. Não ouviste os disparos?

Tucker não sabia se a equipa do Falcão tinha ouvido alguns dos tiros trocados no acampamento, mas se assim fosse, esperava que a mentira ajudasse a encobrir as coisas.

— Merda, isso é fantástico. Já estamos quase no filão principal. Esperem.

— Com certeza. — Tucker baixou o rádio e fitou os outros. — Funcionou por enquanto, mas, aparentemente, estamos a ficar sem tempo.

Conduziu os outros até à ravina de lados íngremes onde Kane aguardava. Deixou-se cair sobre um joelho ao lado do parceiro e esfregou o pelo espesso do cão.

Cá vamos nós, rapaz.

Kane virou-se e deu-lhe uma rápida lambidela no nariz. Tucker sentiu a tensão trémula no cão. Kane estava claramente ansioso por se pôr em movimento, entusiasmado com a perspetiva da caça.

Tucker apontou para as marcas das botas na areia, depois para o riacho que escorria pela ravina. Terminou cerrando o punho duas vezes, uma vez com o dedo mindinho esticado, a outra com o dedo encolhido. Reforçou o sinal com um comando sussurrado.

— segue. em silêncio. escondido.

Ergueu a mão do pescoço de Kane e, como um lobo atrás de um coelho, o cão lançou-se em frente. Em três saltos, Kane desaparecera sob as copas escuras da floresta de zimbros em direção ao lado esquerdo do riacho. Tucker endireitou-se, já não conseguindo ver o parceiro. Os seus ouvidos esforçavam-se por escutá-lo. Mas não conseguia detetar qualquer estalar de ramos, qualquer som sobre a areia. Era como se Kane se tivesse fundido nas sombras, unindo-se a elas.

Olhou de relance para Abbie, que desenhou um silencioso uau com os lábios.

Tucker tocou no lado dos óculos para ligar o vídeo transmitido pela câmara de Kane. Posicionou o auricular do rádio. Ainda assim nada ouviu, apenas o som muito suave da respiração do seu parceiro. Enquanto Tucker via a imagem de câmara a atravessar e contornar as raízes nodosas das árvores, sentiu a familiar divisão no seu cérebro. Uma parte dele continuava a ver o desfiladeiro a partir da sua posição, a outra metade instalava-se nas patas do parceiro, nos seus olhos, na sua respiração.

Com a Desert Eagle na mão e a espingarda Bushmaster ao ombro, partiu, dizendo aos outros dois.

— Mantenham-se por perto.

Tucker seguiu pelo mesmo lado do riacho que Kane, mas apenas no limite da floresta, sabendo que jamais se poderia mover tão silenciosamente quanto o seu parceiro através dos arbustos densos e das árvores. Com um olho, foi escolhendo o caminho mais silencioso, pisando as pedras, evitando sempre que possível a areia. Com o outro, corria através da floresta com Kane.

Ouviu os outros dois atrás de si, fazendo um trabalho bastante bom em manter o silêncio. Ainda assim, a sua respiração soava rouca e ruidosa. Os seus passos pesados e apressados. Aguardou que assumissem o ritmo dele, depois foi-o aumentando lentamente.

Contudo, jamais conseguiriam equiparar-se à agilidade e velocidade de Kane.

Temendo que o seu parceiro estivesse a adiantar-se demasiado, Tucker sussurrou um comando.

— DEVAGAR. MEIA VELOCIDADE.

Kane quer ignorar aquelas palavras.

O seu coração bate-lhe na garganta. O instinto incendeia-lhe o sangue, impelindo-o a correr mais depressa. O focinho está fixo ao rasto de suor almiscarado, sob o óleo das armas. Mas ele confia no seu companheiro de matilha. Cada sílaba daquela ordem invade-o, refreia-lhe o passo, arrefece o fogo reduzindo-o a um brilho quente.

A sua velocidade fluida torna-se furtiva.

Contorna os arbustos enquanto corre através da floresta. Os seus sentidos abrem-se. Os bigodes detetam que ramos são mais estaladiços e necessitam de ser evitados. Os pelos que lhe cobrem o corpo avisam-no de quando se deve desviar, quando se deve curvar. As sensíveis almofadas das suas patas informam-no de como dividir o peso pelas quatro patas de modo a evitar os sons das folhas secas ou o restolhar das agulhas dos pinheiros. Os olhos apercebem-se das gradações da escuridão à sua frente, guiando o seu caminho até às sombras mais profundas. O nariz é ainda mais sensível, as narinas abrem-se, inspirando cada odor, pintando o mundo num caleidoscópio de rastos, tanto passados como presentes. Enchem-no e estendem-se para fora, emaranhando-se num todo, tornando-o uno com a floresta, com o calcário húmido, com a brisa que flui através do desfiladeiro.

Nesses momentos, sente-se livre da sua carne e dos seus ossos, da sua respiração arfante e do coração que bate violentamente. Sente um mundo mais amplo que o chama. Que o chama na passagem veloz de um esquilo, no marcador amargo da urina de um lince-pardo, no movimento das penas brilhantes quando um rouxinol levanta voo.

Mas mantém as orelhas erguidas, girando-as para um lado e para o outro. Ouve os que vêm atrás de si, apercebe-se da sua passagem ruidosa, abranda o seu passo para se lhe equiparar. Ignora esse chamamento para correr por esse mundo mais vasto que o tenta, que o chama. Em vez disso, sente algo mais forte que ali o prende. É um rasto que remete para aquele poço de calor, aquele cheiro familiar de suor e respiração, a promessa aí enterrada de uma matilha e de um lar.

Por isso corre em frente, mas nunca para demasiado longe.

(8)

07h42

Ao fim de apenas vinte minutos naquelas terras ermas, Abbie já estava perdida.

O suor cobria-lhe o corpo, menos devido ao esforço e ao ritmo rápido do que a uma sensação de que o avô estava a ficar sem tempo. A sua desorientação era realçada pela necessidade de se apressar através de um labirinto de ravinas, desfiladeiros e vales, ao mesmo tempo que tentava acompanhar os passos de Tucker de modo a assentar a sua bota no mesmo local onde ele assentou a dele.

Uma dor de cabeça provocada pela tensão martelava-lhe entre os olhos. A sua respiração tinha aumentado, transformando-se num arquejar de boca seca. Apertava a Glock entre as duas mãos, permitindo que o seu peso sólido e a sua massa a ancorassem, como um equilibrista na corda bamba que utiliza uma pesada vara para se equilibrar.

O grupo virou para uma fenda apertada, de tal modo estreita que, provavelmente, conseguiria abrir os dois braços e tocar com as pontas dos dedos nas paredes de grés de ambos os lados. Tucker não abrandou, apressando-se ao longo da passagem aberta ainda mais profundamente na terra. Ela continuava a não ver sinal do pastor-belga, mas sabia que o cão estava algures mais à frente, guiando-os sem hesitações ao longo do trilho dos bandidos.

Engoliu em seco e tentou distrair-se com a geologia única daqueles terrenos ermos, aquilo a que as pessoas chamavam Ingaya Hala, ou Lua Negra. Lendas sobre aquele território falavam de espíritos que conduziam os viajantes ao seu fim. Mas, com ou sem fantasmas, sabia que seria fácil uma pessoa perder-se naquele labirinto. Lia igualmente o perigo nas pedras à sua volta. Os pedregulhos e os seixos caídos de antigos desmoronamentos, os blocos partidos dos arcos sobre a sua cabeça sob os quais passavam apressadamente, a erosão manchada dos extratos mais baixos assinalando a passagem tumultuosa de inúmeras inundações repentinas.

Aquele labirinto traiçoeiro era um dos responsáveis pela má fama daqueles territórios.

Sabia, pelo seu estudo daquela região, que uma das mais importantes falhas do deserto de Sonora passavam por baixo daquela zona. Era provável que a instabilidade da falha tivesse sido responsável por gerar aquele baluarte de pedras erguidas dando-lhe a sua atual forma, que séculos de chuva tinham erodido, aprofundando ainda mais as falhas e fendas.

Também reconheceu que o caminho retorcido que agora levavam os conduzia cada vez mais para baixo. Conseguia sentir a alteração da elevação nos seus ouvidos, apercebeu-se quando os penhascos se ergueram cada vez mais altos à sua volta, apertando-se cada vez mais sobre eles.

À frente, Tucker ergueu uma mão, fazendo-lhes sinal para que parassem.

Ela obedeceu, olhando de relance para Landon, cujo rosto estava coberto de pó, marcado pelas gotas de suor. Os seus olhos estavam semicerrados de tensão.

Tucker correu à frente, em busca do local onde a estreita fenda terminava. Olhou rapidamente à sua volta, fez-lhes sinal para que o seguissem e desapareceu. Ela correu atrás dele.

A falha terminava numa bacia de paredes íngremes, como um poço gigante. Abbie inclinou o pescoço para os penhascos enormes. Não conseguia ver qualquer saída. Parecia que tinham chegado a um beco sem saída.

Tê-los-ia o cão conduzido pelo caminho errado?

Do outro lado do caminho, Tucker estava agachado ao pé de Kane, que andava para trás e para a frente junto à parede, cheirando ao longo do limite inferior. Abbie ouviu um suave gemido que se erguia do cão normalmente silencioso. Atravessou a bacia de grés para se juntar a eles.

— Olhe para isto — sussurrou Tucker.

Apontou para baixo, para uma passagem que não era mais alta que os seus joelhos. Ela curvou-se e pousou a palma da mão na areia e nas pedrinhas estranhamente macias ao longo do solo. Virou-se para trás e examinou a bacia de grés, apercebendo-se da faixa branca como neve dos estratos a meio dos penhascos, onde a escória e os minerais marcavam a rocha vermelha, indicando o nível de um antigo lençol freático.

Abbie virou-se para trás, para a parede, e apercebeu-se de que se tratava, na verdade, de uma pedra vermelha que devia ter caído pelo desfiladeiro há vários milénios, fechando o espaço e criando uma barragem. Com o passar dos séculos, as chuvas de inverno terão inundado o espaço, enchendo a bacia de água, até a pressão e a erosão terem aberto um canal sob a pedra, conseguindo finalmente atravessá-la e assim escoando a água do lago antigo e expondo aquela passagem.

— Eles foram por aqui — sussurrou Tucker. — É possível ver algumas marcas das mãos e do raspar das botas. O túnel não é muito comprido, não chega a trinta metros. Consigo ver a luz do sol ao fundo. Sigo à frente com o Kane. Fiquem aqui até vos fazer sinal de que podem avançar.

Abbie assentiu com a cabeça.

Tucker fez sinal a Kane e o cão baixou a cabeça e deslizou por baixo da pedra e para a passagem. O pastor-belga já não choramingava, mas, antes de desaparecer, ela apercebeu-se dos pelos erguidos ao longo do cachaço e dos ombros expostos do cão.

Tucker seguiu-o avançando de gatas, deixando-a a sós com Landon. Agacharam-se ambos junto à entrada do túnel, observando a passagem dos outros.

— Consegues senti-lo? — perguntou Landon, posicionando-se mais perto, as palavras um sussurro quase sem fôlego.

Ela franziu-lhe o sobrolho.

Landon tinha a espingarda pendurada ao ombro e esfregava os dedos, estalando os nós. Abanou as mãos.

— O formigueiro? Como formigas que andassem por baixo da pele?

Ela abanou a cabeça, não sentindo mais do que uma enxaqueca, e o bater do seu coração. Mas compreendia o que ele queria dizer, lembrando-se dos lamentos de Kane e dos arrepios de frio.

O cão também o sentira.

— Um vórtice — sussurrou ela, simultaneamente entusiasmada quanto à perspetiva e dececionada por nada sentir. Apontou para trás dela. — Aposto que esta bacia está selada há séculos. Lembra-se daquele infernal inverno húmido há dois anos? As tempestades podem ter inundado o suficiente este lugar para, por fim, abrir esta barragem natural.

— Se tiveres razão, então não é de admirar que nunca ninguém tenha encontrado este local.

— Até o tio Oro dar de caras com ele.

Ambos observaram enquanto Tucker e Kane mergulhavam na passagem e desapareciam. Passados alguns segundos, Tucker tornou-se de novo visível. Recortado contra a luz do sol do outro lado, Tucker acenou-lhes.

Abbie seguiu primeiro. Enfiou a Glock na cintura, colocou-se de gatas e avançou por baixo da pesada pedra. Landon arfava atrás dela, incitando-a a andar mais depressa.

Abbie saiu por fim do outro lado, para uma versão maior da bacia atrás dela. Aquele vale estendia-se por perto de duzentos metros. Os penhascos eram ainda mais altos ali e protegidos por uma escura floresta de zimbros. As árvores mergulhadas nas sombras eram gigantescas, claramente com vários séculos. A corrente, quando a barragem de pedras vermelhas explodira, tinha aberto um caminho através da floresta, desenraizando árvores ao mesmo tempo que escavava uma trincheira pouco profunda na areia. Mas as águas há muito tinham desaparecido, acelerando para as profundezas da bacia arenosa ou evaporando-se.

Antes que ela conseguisse discernir mais, Tucker fez um sinal para que se mantivesse abaixada e incitou-a a avançar pela esquerda, para o limite da floresta. Foram seguidos por Landon e encontraram-se com Kane nessas sombras mais profundas.

Os olhos de Kane brilhavam na escuridão. O cão arquejou, dando alguns passos para trás e para a frente, agitando a cauda em óbvia excitação. Os pelos das costas ainda estavam eriçados.

Até Abbie o sentia agora. Um formigueiro no couro cabeludo; a audição parecia entorpecida como se estivesse dentro de água. No passado, tivera sensações semelhantes em pontos de vórtice por toda a Sedona, mas nunca tão fortes.

— O que pensas disto? — disse Landon, a sua voz um sussurro espantado.

O físico afastou-se para o lado, examinando as raízes de um zimbro enorme, nodoso. O tronco espesso estava violentamente retorcido, tal como os ramos, até a casca. Era como se a velha árvore tivesse sido apanhada num tornado e, depois, solidificado naquela posição. Só por fitar a sua forma torturada, Abbie quase conseguia ouvir o uivar da tempestade, sentir o vento contra ela.

Abbie deslizou os dedos pela casca.

— É frequente ver este tipo de efeito perto dos vórtices. Árvores inusitadamente contorcidas, supostamente reviradas pelas energias do local.

— E não é apenas uma árvore — disse Tucker. Erguia-se nos limites da bacia dilacerada pelas inundações. Baixou um par de binóculos e entregou-os a Abbie. — Veja.

Ela levou os binóculos aos olhos e percorreu o vale sem saída. Inicialmente não o viu, depois o padrão maior tornou-se nítido. Por fim, viu a floresta através das árvores. O conjunto de zimbros antigos que os rodeavam — ainda que todos retorcidos — estavam virados na mesma direção, congelados numa espiral completa em redor do vale, a versão terrestre de um remoinho.

— Veja o centro — disse Tucker.

Ela seguiu o remoinho de árvores retorcidas até ao fundo arenoso da bacia, onde a floresta terminava. Erguia-se ali um monte negro e alto, o seu topo suficientemente alto para alcançar a luz da manhã que se erguia sobre o limite dos penhascos. Cristais na pedra negra refratavam a luz, criando uma coroa de fogo no cume.

— Uma cúpula de cinzas — disse Abbie.

— De um antigo vulcão? — perguntou Tucker.

Ela abanou a cabeça.

— O mais provável é tratar-se apenas de uma borbulha num rosto muito maior que permanece escondido por baixo. — Baixou os binóculos, imaginando a depressão pela qual tinham descido. — Aposto que estamos numa caldeira que colapsou, uma que talvez tenha quilómetros de diâmetro.

Landon apontou para a direita, onde havia movimento perto da encosta de cinzas.

— E aquela deve ser a entrada.

Tucker recuperou os binóculos e estudou o local.

— Há uma arcada de pedra. Parecem ter colocado um guarda solitário nessa abertura. — Virou-se para eles. — Avancem através da floresta e posicionem-se mesmo à frente da entrada.

— O que vai fazer? — perguntou Landon.

— Eu e o Kane vamos deixar aquele guarda fora de combate. Tão silenciosamente quanto pudermos. Depois trataremos de salvar o doutor Kee. — Apontou para o outro lado da ravina despida até à floresta do outro lado. — Se alguma coisa correr mal, permaneçam escondidos.

Ambos acenaram com a cabeça e partiram pela fenda, utilizando as raízes reviradas das árvores caídas para mascarar a sua passagem. A meio caminho, Abbie olhou de relance para trás, mas Tucker e Kane já tinham desaparecido. Apressou-se a seguir Landon. Por um instante, conseguiu uma imagem completa da escura cúpula de cinzas. Tinha forma hemisférica, como se uma gigantesca bola preta ali tivesse batido e se tivesse enterrado até meio na areia.

Não, apercebeu-se, não uma bola.

Ela estremeceu e reconheceu a forma, a cor cristalina e escura.

Aquele era o verdadeiro coração de Ingaya Hala.

A Lua Negra da lenda.

Afastou o olhar e correu atrás de Landon. Lembrava-se do que era dito acerca daquele lugar, do que as lendas alegavam acontecer sob a lua negra.

A terra dos pesadelos.

(9)

07h58

Agachado no limite da floresta, Tucker esperou que Kane se colocasse em posição. Fitava a gigantesca cúpula cinza. As suas encostas cintilavam com os cristais; a coroa resplandecia com os primeiros raios do sol da manhã. Há um instante enviara Kane para contornar a parte de trás da cúpula, para se aproximar da arcada pelo outro lado. Quando o parceiro se posicionasse, Tucker aproximar-se-ia pelo seu lado.

Através dos óculos, observou o ponto de vista de Kane enquanto o cão deslizava ao longo dos limites da cúpula. Enquanto esperava na floresta, a pele de Tucker eriçava-se e formigava. Queria descartar aquela sensação como nervos, tensão ou talvez o poder da sugestão provocada por tanta conversa acerca de vórtices. Ainda assim, os pelos dos seus braços e pescoço estremeciam. Tinha dificuldade em respirar, era como se o seu peito estivesse a ser cingido por um torno.

Sabia que aquilo não estava tudo na sua mente.

Kane também o tinha, claramente, sentido.

Tucker nunca vira o cão tão nervoso. Além da crista de pelo eriçado, Tucker conseguia ler os sinais mais subtis no seu parceiro: a maneira como trazia as orelhas coladas à cabeça, a cauda rígida e direita, o estremecer nos olhos do parceiro, como se estivesse constantemente em busca de um inimigo escondido.

Eu percebo.

Tucker também se sentia como se estivessem a ser observados. Por fim, a câmara de Kane revelou o limite da passagem de pedra do lado oposto. A arcada de pedra era ligeiramente saliente em relação à encosta de cinza.

— FICA — transmitiu por rádio a Kane.

O pastor-belga baixou-se sobre a barriga, o nariz apontado em frente, a câmara fixa na abertura.

Tucker deixou a floresta e correu agachado os quase dez metros a céu aberto até ao monte. Enquanto corria, sentia aquele efeito enervante a crescer. A sua visão toldava-se nos limites. Sentia a pele quente, como se tivesse apanhado sol em excesso. A cada passo, o torno que lhe cingia o peito aumentava a sua tensão. Até a transmissão da câmara de Kane se tornara intermitente.

Por fim, Tucker alcançou a encosta negra e agachou-se mais, menos pela necessidade de se manter escondido do que para fugir daquela pressão como se pudesse, de algum modo, esconder-se dela. Avançou ao longo do limite da colina até ter encontrado a abertura, depois parou. Apercebeu-se do movimento junto à entrada em arco. Obteve o vislumbre de um ombro, um cotovelo enquanto um guarda se movia, provavelmente sentindo-se também tão nervoso e afetado quanto todos eles.

Tucker precisava de o atrair para céu aberto.

Preparou-se para fazer sinal a Kane para que ladrasse de modo a atrair o homem, mas, em vez disso, o guarda avançou, tornando-se plenamente visível, com o rádio nos lábios e uma pistola na outra mão.

— Falcão, que é que se passa aí? — quis saber o guarda. — Tenho o detonador pronto cá fora. De um a seis. Diz-me quando rebentar a primeira carga.

Tucker imaginou a caixa de dinamite quase vazia na parte de trás do Bronco. A equipa do Falcão devia estar a planear a realização de algumas explosões controladas para acelerar o processo de extração. O equivalente, em linguagem de mineiro, a um ataque relâmpago. Era arriscado, mas a equipa do Falcão sabia, decerto, que o tempo era limitado e tinha de arriscar.

— Falcão! — gritou o guarda. — Porque não...

Um grito penetrante, repleto de terror, ecoou vindo do túnel.

Sobressaltado, o guarda saltou e virou-se, demasiado depressa para que Tucker se conseguisse esconder. O homem olhou duas vezes na sua direção. Com um pequeno grito, o homem ergueu a pistola.

Lá se vai a surpresa.

Tucker já apontara a mira da sua Desert Eagle ao guarda e disparou dois tiros rápidos. As duas balas Magnum .44 atingiram-no na massa central, atravessando por completo o homem, fazendo-o cair para trás.

Enquanto as explosões agudas ecoavam nos penhascos, correu em frente. De acordo com Abbie, o Falcão tinha outros dois homens consigo, algures naquela colina. Juntamente com Jackson Kee, que esperava que ainda estivesse vivo.

Chegou à abertura, encimada por um arco de grés. A sua superfície tinha sido gravada com antigos petróglifos: figuras contorcidas de homens e mulheres, a dançar por entre as chamas, uma explosão solar no topo. Avançou para a entrada, apenas para ser atingido por uma onda de energia ainda mais forte. Arquejou, sentindo o corpo a arder. Cambaleou para trás, perdendo momentaneamente a visão até se adaptar à pressão.

Ergueu um braço até ser capaz de ver.

Kane correu para ele, ganindo profundamente.

Eu estou bem, rapaz.

Baixou o braço e fez festas no flanco do cão. Atrás dele, Abbie e Landon emergiram a correr da floresta. Tentou fazer-lhes sinal para que recuassem, com a palma da mão erguida, mas eles ignoraram-no e correram para o seu lado. Claramente também sentiram a energia, os seus rostos tensos, os olhos semicerrados, mas nenhum deles parecia tão profundamente debilitado quanto ele. Mesmo agora, aquela energia parecia-lhe um vento físico que soprava do monte, tentando mantê-lo ao largo.

Lembrou-se das histórias de Abbie sobre como algumas pessoas eram mais sensíveis aos vórtices. Olhou de relance para Kane, sabendo que o seu parceiro — e o seu companheiro de ninhada Abel — lhe tinham sido atribuídos devido à sua natureza inusitadamente empática, um traço que lhe permitia estabelecer uma ligação com os seus cães a um nível mais profundo do que a maioria dos tratadores.

Estará esse traço de alguma forma ligado a esta sensibilidade?

Não sabia.

Não queria saber.

Em vez disso, Tucker enfrentou o vento duro e ordenou aos outros... incluindo Kane.

— Fiquem aqui. Guardem a saída.

(10)

08h01

Enquanto Tucker desaparecia pelo túnel escuro, Abbie andava de um lado para o outro da abertura. A tensão impedia-a de respirar. Os ossos vibravam como um diapasão, tornando impossível que se mantivesse imóvel. Manteve a Glock firmemente apertada nas mãos. Os ouvidos esforçavam-se por captar qualquer indicação do que estaria a acontecer, mas tão perto da cúpula de cinzas a sua audição estava ainda mais debilitada, como se lhe tivessem envolvido a cabeça numa toalha molhada.

Ainda assim, tinha a certeza de que o grito de há pouco não pertencera ao avô.

Por favor, espero que ainda estejas vivo.

Não era a única que estava preocupada. Kane erguia-se debaixo do arco, o focinho apontado para o túnel, as orelhas erguidas, a cauda baixa. As patas traseiras estavam ligeiramente dobradas debaixo do corpo, prontas para saltar em defesa do parceiro.

— Eu é que devia estar lá em baixo — gemeu Abbie. — Devíamos todos.

Abrigado no lado oposto da arcada, Landon discordou. Apontou a espingarda para o túnel.

— A passagem parece-me estreita. Acabaríamos por nos atrapalhar uns aos outros. O Tucker tem razão. Esta é a única saída. Se alguém, com exceção do Tucker e do teu avô, aparecer, acabamos com ele. É possível que sejamos a última linha de defesa.

Ela assentiu com a cabeça e engoliu em seco. Para se distrair, ergueu os olhos para o arco de grés, os antigos pictogramas gravados na sua superfície. Homens e mulheres estilizados dançavam e contorciam-se dentro de chamas vermelho-ferrugem. Sentia a pele a arder, os nervos em chamas. Estendeu a mão e tocou numa das figuras torturadas.

Será uma representação das energias do vórtice?

Inclinou o pescoço e fitou a gigantesca explosão solar inscrita no topo do arco. Os raios atingiam as figuras mais próximas e estilhaçavam as suas formas em pequenos pedaços.

Se assim fosse, o que representariam?

Recuou e ergueu os olhos, para o topo da cúpula de cinzas, para o local onde a luz solar iluminava os cristais como se estes estivessem em chamas. Uma sensação fria de terror abateu-se sobre ela.

A seu lado, Kane encetou um longo e baixo gemido.

Abbie virou-se para o cão.

Tinha agora a cauda enfiada entre as pernas traseiras. O seu corpo tremia, sintonizado com o latido. Tinha o pescoço curvado, a cabeça baixa, as unhas enterradas na areia, como se todo o seu corpo tentasse impedir a erupção de um uivo.

Ela baixou os olhos para o túnel escuro.

O que se estará a passar lá em baixo?

(11)

08h03

Tucker avançava às cegas ao longo do túnel, que descia abruptamente. Não se atrevia a utilizar a lanterna tipo caneta. Os disparos decerto teriam alertado os que se encontravam em baixo, e se alguém viesse investigar não queria que a luz da lanterna revelasse a sua presença no túnel. Precisava de toda a vantagem que conseguisse reunir, em especial encontrando-se em desvantagem de três para um.

Enquanto continuava a avançar mais fundo, a sua Desert Eagle apontava em frente, deslizando as pontas dos dedos da outra mão pela parede de modo a manter o controlo, testando cada passo à sua frente. Apercebeu-se de que o caminho não só descia como curvava no sentido dos ponteiros do relógio, traçando uma espiral em direção ao coração do monte negro.

Por fim, um brilho verde fantasmagórico fluiu da curva à sua frente.

Tucker parou, os ouvidos tensos em busca de qualquer ameaça. Mas por aquela altura, a pressão fantasmagórica já tinha diminuído a sua audição a ponto de o ensurdecer. O corpo ardia como uma tocha, tornando mais difícil sentir a pedra fria por baixo das pontas dos dedos. Enquanto avançava através da escuridão, a sua visão começara a dançar, invadida por chamas nos limites, tornando-se cada vez mais estreita. Era como se todos os seus sentidos estivessem a ser atacados, desligados com a sobrecarga.

Antes que perdesse tudo, prosseguiu.

Dobrou a esquina e descobriu a fonte daquele brilho esmeralda fantasmagórico. Era simplesmente uma dúzia de pauzinhos brilhantes espalhados pelo chão de uma gruta mais à frente. Fez uma pausa e fitou a imagem extremamente iluminada no interior.

As paredes da gruta refletiam a luz ténue e lançavam-na de volta em brilhantes arco-íris de fogo. Toda a câmara, até a curva do chão, estava coberta de ágatas de fogo, de pedras do tamanho de seixos a pedregulhos enormes. Num segundo compreendeu o que via.

É um geode gigante, repleto de ágatas de fogo opalescentes.

Mal o pensou, percebeu que estava errado.

Deu pelos sentidos afetados a girar.

Aquilo não eram ágatas de fogo comuns.

Lembrou-se da descrição que Abbie fizera do óxido de ferro ferrimagnético que cobria aquelas pedras e a explicação de Landon para a verdadeira natureza daquelas ágatas. Fitou de boca aberta a dimensão da gruta.

Aquilo era um geode feito de cristais do tempo.

Teve medo de entrar naquele local, em especial tendo em conta o estado dos corpos no interior. Duas figuras erguiam-se direitas, visivelmente trémulas, olhando um quarto de volta para a direita, as suas feições imóveis e em choque. Tucker reconheceu o de cabelo castanho-avermelhado com a barba escura graças à descrição de Abbie.

Falcão.

Nenhum dos homens sentiu a presença de Tucker, os seus olhares fixos à direita.

Entre eles, um terceiro homem — de cabelo grisalho e rabo de cavalo — ajoelhado no chão. Estava de costas voltadas para o ponto que os dois homens fitavam hipnotizados. Uma das pernas do homem estava torta, virada para o lado errado. Uma poça de sangue banhava o fogo das pedras à sua volta. Aparentemente, tinha levado um tiro. Ainda assim, o homem mantinha a testa encostada ao chão de pedra, os braços presos atrás das costas.

Era Jackson Kee.

Tucker penetrou na gruta, mantendo-se baixo.

— Doutor Kee...

O homem ergueu os olhos, o seu olhar louco, confuso.

— Quem...?

Tucker não tinha tempo para explicar. Não sabia porque permaneceriam os outros homens estáticos, mas lembrou-se da história do velho mineiro que ali ficara preso, mantido num estado hipnagógico até ao anoitecer, preso num sonho acordado. Se o mesmo ali estivesse a acontecer agora, Tucker tencionava aproveitá-lo. Ponderou executar os dois homens no local onde se encontravam, mas isso pareceu-lhe demasiado frio.

Ainda assim, agarrou com mais força a pistola.

Se alguma coisa se alterar...

Respirando com dificuldade, continuando a debater-se com os seus sentidos, apressou-se em direção a Jackson, correndo agachado, avaliando se este se conseguiria mover. Tucker chegou junto do homem de idade, apoiou-se num joelho e cortou as braçadeiras que lhe prendiam os pulsos.

— A Abbie enviou-me — disse Tucker, na esperança de que utilizar o nome da neta pudesse acalmar o homem quanto às suas intenções.

Uma vez livre, Jackson agarrou a camisa de Tucker e puxou-o mais para baixo.

— Não olhe.

Poderia não o ter feito, não fora pelo aviso.

Olhou de relance para lá das costas curvas do velho. Do outro lado da passagem, mais um arco de grés emoldurava uma passagem. Tucker teve dificuldade em concentrar-se. A luz ardente refratada brilhava pela abertura. Abanou a cabeça, o que serviu apenas para aumentar a dor latejante. Pestanejou, tentando desanuviar a visão dificultada, apenas para a ver estreitar-se ainda mais.

Até ter visto um corpo caído a meio do túnel.

No seu estado de confusão, esquecera que o Falcão tinha outro companheiro de equipa. O homem jazia de rosto no chão de ágata, as pernas ainda no interior da gruta, a parte de cima do tronco do outro lado da passagem. Só que não havia um corpo do outro lado, apenas ossos.

Enquanto Tucker o fitava, o crânio desfez-se em pó, como se tivesse vários séculos.

— Tentei impedi-lo — disse Jackson, chamando de novo a atenção de Tucker. O velho apontou para a perna partida, estilhaçada por uma bala.

Junto ao arco, Tucker viu uma pistola abandonada no chão, o cano ainda a fumegar. Tucker imaginou o homem a mergulhar para aquele arco, caindo nele, a parte superior do corpo ardendo — ou talvez envelhecendo — até se transformar em cinza e osso, deixando apenas as pernas intactas daquele lado.

— Eu... acho que começou quando a luz do sol atingiu o topo do monte — disse Jackson, enquanto Tucker lhe passava um braço por baixo dos ombros, pronto a içá-lo. — Foi como um trovão aqui dentro, só que sem som, mas ainda assim poderoso.

Tucker não queria saber. Embora desconfiasse que Jackson estava certo. O velho mineiro só escapara ao cair da noite, provavelmente quando o feitiço hipnagógico se desvaneceu. Tucker olhou de relance para os dois homens ali parados, rígidos, com expressões horrorizadas. Tencionava já estar bem distante quando eles despertassem. Uma vez lá fora, telefonaria a Painter, pediria ao diretor que chamasse os helicópteros, e levaria o Falcão e os seus companheiros à justiça.

Esse era o plano.

Endireitou-se, erguendo Jackson, que arquejava de dor, mas sem se debater.

— Este... lugar — arquejou Jackson, talvez falando para se impedir de gritar. — Amplifica os nossos medos. Desperta o que está enterrado mais fundo.

Tucker lembrou-se da descrição de Abbie do efeito amplificados das emoções dos vórtices de Sedona, da sua crença de que as energias eletromagnéticas podiam gerar o caos nas partículas magnéticas do cérebro, confundindo os sentidos, atiçando a zona primitiva do cérebro, onde estavam enraizadas as emoções mais cruas.

— Talvez os Yavapai tenham encontrado este local — disse Jackson. — Utilizando-o como um teste. Para nos obrigar a enfrentar os medos, a controlar as emoções... ou a morrer. — Olhou de relance para a passagem em arco, e voltando de novo a atenção para Tucker. — Não pode aproximar-se daquele portal. Nada vivo consegue sobreviver às suas energias.

Não estava a planear fazê-lo.

Tucker virou Jackson em direção à saída. Mesmo apoiado, o velho cambaleou, balançando um braço. Acabou por atingir o tipo ao seu lado, o colega de equipa de Falcão. O homem gritou, como se tivesse sido mordido por uma cobra.

Tucker agachou-se e ergueu a sua Desert Eagle para o homem, temendo que Jackson o tivesse acordado. Mas o tipo limitou-se a fitar a passagem, começando a avançar na direção desta, gemendo.

— Mamã, não, espera, mamã...

— Tem de o impedir — disse Jackson.

Mas antes que Tucker pudesse mover-se, o homem lançou-se a correr em direção à passagem, que agora tremeluzia com a luz refratada, como uma televisão mal sintonizada.

Quando o homem se aproximou, traços de energia dançaram pelos seus membros, sobre a sua cabeça. Depois, o rádio na sua anca explodiu, com violência suficiente para fazer girar o homem, para quebrar o feitiço. O homem agitou os braços, mas era demasiado tarde. O impulso lançou a sua forma através da passagem em arco. As energias flamejantes explodiram à sua volta, consumindo-o. Do outro lado, uma nuvem de pó emergiu do túnel mais distante, juntamente com o som de uma cascata de ossos.

— Vamos — incitou Jackson. — Piora logo a seguir...

Tucker tinha olhado durante demasiado tempo.

A pressão nos seus ouvidos estalou, a sua visão em túnel aumentou em pleno tecnicolor. Ouviu o som de um helicóptero. Homens a gritar. Sentiu o cheiro a enxofre do fumo das armas, o fedor da carne a arder. O seu rosto estava imobilizado, marcado pelas lágrimas quentes. Fitava o topo de uma montanha em baixo. Os homens jaziam desfeitos sobre as pedras; o sangue fumegava nas zonas cobertas de neve. O buraco onde a bomba artesanal tinha explodido, emboscando a equipa, fumegava. Ouviu o grito dos soldados talibãs, que se reuniam triunfantes. Observou-os a correr até ao topo da encosta, as cabeças envoltas em panos negros, acenando com as espingardas, vários deles disparando na direção do helicóptero que se afastava.

Outros perseguiam um cão que coxeava, que corria para um lado e para o outro, procurando uma forma de escapar.

— Abel — gritou, então e agora.

O cão parou e ergueu os olhos, fixando-os nos dele.

Abel...

O cão ergueu a cabeça e uivou desolado, implorando ajuda, suplicando que não o deixassem para trás, que não o abandonassem. Abel uivou de novo, estilhaçando o coração de Tucker.

Mas houve outro que também o ouviu.

Kane levanta as orelhas.

Há um instante, ouviu gritar um nome, um que despertou uma velha dor. Ainda assim, manteve a sua posição, seguindo a última ordem do seu companheiro de matilha: Fica de Guarda.

Obedece.

Ainda assim, escuta, menos com os ouvidos do que com o coração. Ali, naquele estranho local, onde o ar zumbe com vespas que não consegue ver, onde o seu pelo estremece com ventos escondidos, a longa ligação que o une a outro tornou-se ainda mais forte.

Ele sente a angústia do outro, o sabor do medo, o cheiro a fogo e fumo.

Depois ténue, mas tão real como uma rocha sob as suas patas, um uivo ecoa até ele — chegando-lhe não aos ouvidos, mas um local ainda mais profundo, a laços e memórias enterrados nos seus ossos, em cada inspiração, em cada bater do seu coração. Lembra-se de se aninhar com o seu irmão no calor maior da mãe, as barrigas cheias de leite. Brinca de novo, perseguindo a cauda do outro. Ombro com ombro, sentam-se rigidamente no treino, prontos para darem provas de si mesmos, para serem recompensados. Por vezes lutam, com maior frequência lambem as feridas um do outro. Depois dois tornam-se três, e tudo se tornou ainda melhor. Os três fazem percursos juntos, correm através dos desertos, através das florestas. Caçam e brincam e festejam. Aglomeram-se juntos numa tenda, cada um aquecendo o outro, as respirações partilhadas até três se tornarem um.

Agora outro uivo.

Não pode ser ignorado.

Estilhaça a ordem que une Kane àquele lugar.

Com todas as fibras dos seus músculos, salta para os unir a todos outra vez.

Para que três se tornem de novo um.

(12)

08h08

Abbie arquejou quando Kane se ergueu da posição agachada tensa e mergulhou no túnel. Sobressaltada, recuou um passo. Não tinha havido qualquer aviso. Nunca desconfiara que o cão se pudesse mover tão depressa — num instante estava ali, no seguinte desaparecera.

Há um instante, ouvira uns ténues gritos, talvez um nome que era gritado. Partilhara um olhar com Landon do outro lado da passagem, sem saber ao certo o que fazer. Não tinham ouvido tiros. Ainda assim, temendo o pior, afastaram-se uns passos da abertura. Landon erguera a espingarda apoiando-a no ombro; ela erguera a Glock.

Depois o cão saíra a correr.

Abbie fitava o lugar onde Kane estivera firmemente sentado.

— Ele deve ter ouvido alguma coisa — disse ela a Landon. — Se violou a ordem, então algo deve estar muito errado.

— O que quer fazer?

— Vou confiar no Kane. — Ela avançou. — Se o cão acredita que o Tucker, e talvez o meu avô, correm perigo, acredito nele.

— Então qual é o plano?

— Estou farta de esperar. — Ela avançou para o túnel. — Vou apoiar o Kane.

(13)

08h09

No interior do helicóptero, braços prendiam Tucker e impediam-no de saltar. Lutou para se libertar, para ir em auxílio de Abel.

— Não se aproxime mais — alguém o avisou, a voz soando distante e ténue, mas familiar.

Os ombros de Tucker estavam estranhamente pesados. Ouvia arquejos de dor nos ouvidos. Afastou tudo. Um corpo caiu pesadamente para o lado num grito de agonia, depois um outro aviso.

— Não avance... por favor...

Ele ignorou-o.

Não posso partir. Não o vou fazer. Não outra vez.

Com aquele pensamento, estava subitamente fora do helicóptero, erguendo-se no topo da montanha. As suas botas pisavam a neve. Ventos gélidos vergastavam e agitavam o seu uniforme. Do outro lado, Abel esforçava-se por escapar aos disparos. Uma faca brilhou. O cão desviou-se no último segundo, coxeando, cada vez mais fraco.

Aguenta, Abel. Vou a caminho.

Deu um passo, depois outro.

Ergueu a pistola na mão, momentaneamente confuso.

Onde está a minha espingarda?

A seguir, sentiu que lhe agarravam a perna das calças. Foi puxado para trás, quase perdendo o equilíbrio. Esbracejou contra o que o segurava. Mas os seus dedos encontraram um nariz frio, pelo macio. Ouviu um latido forte. Aquele era um aviso que ele jamais poderia ignorar.

Kane...

Ainda assim, mantinha o olhar fixo em Abel, que se esforçava por alcançar os dois. Tucker continuava a avançar, arrastando Kane consigo, mas Kane manteve-se firme. O cão fez força nas quatro patas, transformando-se numa âncora.

Mais uma vez fez-se ouvir um latido, mais urgente, carregado de aviso.

Tucker baixou finalmente os olhos para a perna, para o seu parceiro, e o mundo fraturou-se à sua volta.

Viu Kane, que se agarrava com força à perna das calças, mas Tucker já não estava de uniforme. Usava calças de ganga e um casaco caqui. Ao seu lado, viu a forma tombada em agonia no chão, uma perna partida debaixo dele, um braço estendido para si.

Jackson...

Ainda assim, ouvia os gritos dos homens moribundos, os gritos ululantes de triunfo selvagem, o movimento dos rotores. Sentiu o cheiro a fumo, sangue e corpos. Virou-se o suficiente para ver Abel a lutar por escapar, por alcançá-lo, cada passo uma agonia, cada movimento desesperado.

Tucker virou-se para fitar aquilo que mais lhe doía.

Abel fitava-o, ladrando, latindo, o seu olhar choroso.

Kane puxou-lhe pela perna. Quando Tucker deu mais um passo, Kane recusou-se a largá-lo, pronto a ser arrastado para onde quer que Tucker fosse.

Por um momento, encurralado naquele estado hipnagógico, Tucker viu os dois mundos, passado e presente, real e imaginário. Era como quando corria com Kane, vendo simultaneamente através dos seus olhos e dos do seu parceiro.

Tucker fora treinado para aquilo, o seu cérebro preparado para isso.

Sabia o que tinha de fazer.

Não podia condenar Kane, mas também não podia abandonar Abel.

Por isso, manteve-se onde estava.

Jackson tinha dito que nada vivo podia passar através do portal, essa imagem do passado que o seu cérebro febril tinha criado. Lembrou-se do rádio que explodira anteriormente, lançando aquele outro homem através da cortina de fogo. Não eram apenas os vivos, tudo o que tivesse energia era incapaz de suportar a tempestade de energias que ali se concentravam, o que basicamente envolvia todos os seres vivos.

O que somos nós senão máquinas biológicas, tão elétricas quanto um qualquer rádio?

Não, Tucker sabia o que tinha de fazer.

Lançar uma pedra, algo inerte.

Mas com muito mais força.

Apontou a sua pistola para o portal, na direção de onde Abel se debatia. Disparou uma e outra e outra vez. Viu um soldado talibã cair, depois outro. Uma figura envolta em panos negros aproximou-se de Abel com um punhal erguido, um grito nos lábios. Tucker derrubou-o com uma bala através da garganta. Por aquela altura, os outros soldados talibãs já tinham estacado e olhado à sua volta, sem saberem de onde disparava o atirador escondido. Assustados, fugiam em todas as direções.

Até apenas Abel se erguer ali, arquejante, magoado, mas vivo.

O cão fitou Tucker, continuando a pedir que se voltassem a juntar.

Kane largou a perna das calças e aproximou-se do lado de Tucker. Um gemido ergueu-se do cão, não um aviso, mas o choro excitado de um lobo que saúda um membro da matilha há muito perdido.

Kane avançou em direção ao irmão, mas Tucker deixou-se cair sobre um joelho e abraçou-o, apertando-o com força.

— Ele está livre — sussurrou ao ouvido de Kane.

Estamos todos.

Tucker apertou Kane com força, sentindo o calor do corpo do seu parceiro. Fitou Abel, a forma do cão tornando-se já fantasmagórica. Olhou uma última vez para os olhos de Abel.

— Corre, lindo menino... corre até estares de novo em casa.

Abel reconheceu as suas palavras com um movimento da cabeça, depois deu meia-volta e afastou-se. Ganhou lentamente velocidade a cada passo, até estar de novo a correr, e desapareceu sobre o limite da montanha.

Tucker ergueu-se, fitando-o.

Kane ladrou para Abel, como se incitasse o irmão a avançar.

O sonoro ladrar quebrou finalmente o feitiço sobre Tucker. O brilho desapareceu à sua volta até nada restar além da gruta radiante e de um arco de pedra sobre um túnel escuro e vazio.

Infelizmente, o feitiço não desapareceu apenas para Tucker.

Um arquejo ergueu-se à sua esquerda.

Virou-se.

O Falcão cambaleava para longe dele, os olhos ainda assombrados e selvagens. O sacana apontou a sua espingarda de assalto a Tucker e Kane. Tucker ergueu a Desert Eagle, mas a culatra saltara. Esvaziara a pistola a defender Abel.

Tucker não se arrependia.

O Falcão apontou a espingarda e disparou.

Tucker virou-se. Não lograra salvar Abel há tantos anos. Recusava-se a perder agora Kane. Lançou-se ao chão e cobriu Kane com o seu próprio corpo. O tiro soou, ensurdecedor, na caverna.

Mas ele não sentiu qualquer impacto, qualquer dor penetrante.

Em vez disso, as balas passaram sobre ele, arrancando centelhas e fazendo ricochete na ágata do lado oposto. Olhou de relance para trás, a tempo de ver o Falcão a cair de costas, metade do seu rosto desaparecido.

Tucker deu uma volta completa.

Abbie erguia-se na entrada da gruta com uma pistola fumegante na mão.

(14)

08h11

— Esta é pelo tio Oro — disse Abbie.

Baixou a Glock e entrou na gruta.

Landon chegou em seguida e juntou-se a ela. Olhou para a sala, depois retesou-se e passou por ela. Aproximou-se do local onde o avô de Abbie estava tombado no chão, de lado, apoiado. Num braço.

Landon acenou a Tucker.

— Ajude-me com o Jackson. Depressa!

Tucker respondeu à urgência e juntou-se ao físico. Cada um deles agarrou-lhe um braço. A perna esquerda do avô dela sangrava profusamente, ensopando as calças, o osso claramente partido. Os olhos estavam vidrados de choque. Mas essa não era a razão para a urgência de Landon.

Sobre o ombro de Landon, Abbie viu algo a tremeluzir e a zumbir ao longo da parede. Um rastilho. Uma das balas perdidas de Falcão tê-lo-á acionado. Conduzia a um ponto de dinamite que emergia de uma fenda na parede mais distante. Por baixo estava uma pilha de bastões vermelhos. Sendo geóloga, sabia que a dinamite era sensível aos abalos. Se fosse atingida com força suficiente — uma explosão próxima, o cair das pedras — podia rebentar toda.

Tucker também o terá percebido. Tomou o pai dela nos braços e içou-o como se fosse um bombeiro.

— Fujam!

Abbie deu meia-volta e conduziu-os através do túnel. Tinha-se afastado poucos metros quando o mundo explodiu atrás dela. A explosão impeliu-a para a frente, lançando-a de cabeça. Um pó cristalino rolou sobre ela. Ergueu-se rapidamente, sabendo que ainda não terminara.

Lançou para o lado a sua Glock, procurou uma lanterna e acendeu-a.

— Continuem! — gritou aos outros.

Correu mais depressa através da espiral do túnel.

Mais uma explosão, abafada pela distância, mas muito mais forte. Todo o monte abanou com a explosão. Ela cambaleou e esforçou-se por manter o equilíbrio. As paredes e o teto enchiam-se de falhas. Ela ergueu um braço para proteger a cabeça quando as secções começaram a cair, derramando sobre ela pedras e cinzas.

Por fim, a abertura tornou-se visível, a saída fortemente iluminada pelo brilho do sol depois da escuridão do túnel. Ela correu para fora, para céu aberto. Uma vez livre abrandou, arquejando, com o coração a bater veloz.

— Não pare! — gritou Tucker, que continuava a carregar o corpo flácido do avô dela.

Landon e Kane seguiram-nos.

O chão tremeu ameaçadoramente. Atrás deles, a cúpula de cinzas tremeu, desintegrando-se lentamente, lançando avalanchas de pedras. Abbie fugiu para a floresta e virou em direção ao caminho aberto pelas inundações, subindo até à represa de pedra. Olhou de relance através dos troncos retorcidos das árvores e viu um pedregulho gigantesco e negro descer pela encosta e destruir o arco da entrada. Lodo e areia seguiram-no, tapando por completo a abertura até já não restar sinal de que ali existira um túnel.

Por fim, Abbie chegou ao desfiladeiro aberto e trepou para lá das árvores desenraizadas. No topo, olhou para trás. Apoiou-se na rocha vermelha que selara aquele vale durante séculos.

O chão continuava a agitar-se de modo preocupante.

Imaginou a falha que passava através do centro daquela caldeira antiga.

Nenhum deles se sentia suficientemente confiante para gatinhar através do túnel por baixo da pedra. Não com a terra ainda a tremer. Em especial tendo em consideração que o túnel diminuíra já para metade do seu tamanho, à medida que a pedra ia avançando para o chão.

E talvez não tivessem de o arriscar.

Tucker juntou-se a ela. Tinha deixado o avô dela ao cuidado de Landon. Baixou o telefone por satélite.

— A ajuda vem a caminho. Evacuação médica chegará dentro de alguns minutos.

— Obrigada — balbuciou ela, depois virou-se para Kane. — Obrigada aos dois.

— Tendo em consideração que acaba de salvar as nossas vidas — disse Tucker —, eu diria que a dívida foi plenamente paga.

Ela não tinha assim tanta certeza de que isso fosse verdade.

Ainda assim, fitou o centro do vale. Abrira-se lá uma ampla fissura. Enquanto olhava, o que restava da escura cúpula de cinzas deslizou para aquela racha, afundando-se lentamente e desaparecendo.

Sentiu-se simultaneamente aliviada e entristecida.

Por fim, aquela Lua Negra estava a pôr-se.

(15)

26 de abril, 18h50

Quatro dias mais tarde, Tucker estava sentado sobre o arco alto de uma pedra. Enquanto o sol se punha, os seus pés pendiam sobre a abrupta descida de quinze metros. A Ponte do Diabo era um dos marcos de Sedona, um dos seus maiores arcos de pedra natural.

E bem longe de qualquer vórtice.

Kane estava sentado ao seu lado, agitando calmamente a cauda, a língua alegremente dependurada. Tinham apreciado o curto passeio e a subida desde o trilho. Kane perseguira algumas lebres, fizera correr um papa-léguas. O trilho era popular, mas já era tarde e o dia estava frio, pelo que tinham tido aquela singular atração só para si.

Que era como Tucker preferia.

Os últimos dias tinham sido caóticos, repletos de ruído e bulício. Por outro lado, tinham deixado um rasto de cadáveres através do deserto. O diretor Crowe ajudara a aligeirar a situação, pelo que Tucker e Kane não teriam de ficar por ali durante muito tempo. Também ajudava que Abigail Pike, Jackson Kee e o doutor Landon — que eram todos bastante respeitados localmente — os tivessem prontamente defendido. Fez o melhor para evitar a Imprensa, o que era como tentar escapar a uma nuvem de mosquitos zumbidores.

Mas as coisas já estavam a acalmar.

Em especial tendo em consideração que grande parte da sua história permanecia por contar.

Quem acreditaria?

Tucker até se perguntava quanto seria real e quanto seria um sonho febril agitado pelas energias do vórtice. Todos tinham concordado em manter o silêncio, em manterem-se fiéis a uma história de mineiros ladrões e tesouros perdidos, o que se adequava perfeitamente àquelas terras.

Tucker tinha visitado Jackson Kee no hospital. O velhote parecia estar a recuperar bem, em especial tendo em conta que era atendido por um enfermeiro peludo e dedicado. Cooper tinha ficado extasiado por se ver reunido com Jackson e recusara-se a sair do seu lado.

Ora esta é uma lealdade que compreendo.

Tucker estendeu o braço e coçou a orelha de Kane, o que lhe mereceu um vivo agitar da cauda.

Na Universidade de Sedona, Abbie e Landon planeavam continuar o seu estudo da enorme ágata que o velho mineiro tinha descoberto. Era tudo o que restava daquele vasto filão. O geode gigantesco tinha-se desfeito e mergulhado nas profundezas da terra, juntamente com boa parte do vale. Ainda que fosse possível recuperar alguns pedaços, o terreno era parte dos territórios sagrados dos Yavapai, onde era proibida qualquer extração mineira.

E ainda bem.

Enquanto o sol se afundava nesse dia, Tucker tentou lembrar-se do que tinha acontecido. Como na maior parte dos sonhos, sentia cada vez mais dificuldade em lembrar-se dos pormenores da sua visão.

Depois de o grupo ter sido levado para local seguro, todos tinham comparado notas. Tucker partilhara a sua experiência. Jackson alegara não ter visto qualquer sinal do topo de uma montanha dilacerado pela guerra, apenas que Tucker tinha ficado fixo em qualquer coisa e começara a avançar para o arco, apesar dos esforços do homem para o evitar.

Tucker olhou de relance para Kane.

Mas tu viste qualquer coisa, não foi, rapaz?

Ele lembrava-se da reação do parceiro, a maneira como Kane parecia igualmente concentrado em Abel, chamando o seu irmão. Talvez fosse um qualquer testemunho dos seus laços, não apenas entre Tucker e Kane, mas entre os três.

Tucker abanou a cabeça.

Landon tinha sugerido diversas hipóteses para a experiência de Tucker, desde a existência de dimensões alternativas ao entrelaçamento quântico e à teoria das cordas. Abbie deu uma opinião mais clínica, repetindo a ideia de que os vórtices estimulavam as partículas magnéticas do cérebro, despertando traumas emocionais profundamente enterrados nos gânglios basais.

Tudo o que Tucker sabia era que se sentia melhor.

De espírito mais leve.

Por ora, esqueceria tudo aquilo, apreciando o momento com Kane. Ao fazê-lo, um halo enorme formou-se em redor do sol poente. Tucker protegeu os olhos contra o brilho. À direita e à esquerda, sóis mais pequenos surgiam nos limites do halo, miragens fantasmagóricas do sol no centro. Tucker tinha testemunhado este efeito atmosférico. No passado. Era raro, mas não inaudito.

Ainda assim, tomou-o como um sinal.

Os dois pedaços mais pequenos eram os chamados cães do sol.

O fenómeno era efémero, um breve momento no tempo quando estes dois sóis gémeos acompanhavam o seu irmão maior. Ardiam fortes, mas apenas por um curto período. Ainda que o sol continuasse a brilhar, o tempo que partilhava com aqueles companheiros mais pequenos estava destinado a ser fugaz.

Tucker estendeu o braço e puxou Kane para mais perto.

Lembrou-se da última vez que vira Abel, erguendo-se no topo da montanha.

Iria estimá-los a ambos, por muito breve ou longo que fosse o tempo em que brilhassem ao seu lado. Imaginou Abel a virar-se e a desaparecer.

O que significaria, de facto, tudo aquilo?

Fitou os cães do sol no céu.

Quem sabe?

Talvez num outro lugar, num outro tempo, houvesse uma resposta à espera para ser encontrada.

O cão corre através do deserto frio sob as estrelas ainda mais frias. Uma lua brilhante lança sobre a areia e os arbustos tons de prata. Já corre há oito dias, escondendo-se onde pode: um celeiro de pedra, um tronco oco, uma ravina profunda.

Conhece o seu destino, mas não a distância.

Segue aquilo que lhe guia o coração, a trela que o une infalivelmente em direção ao seu objetivo. Continua a seguir em frente. Bebe dos riachos gelados, come animais mortos, tudo o que lhe permita continuar a mover-se. Enquanto corre, a pata esquerda da frente pende inútil, mas ele ergue-a e continua a andar.

Foi-lhe dada uma ordem, um comando que se recusa a esquecer.

A noite ilumina-se, dando lugar à manhã, ele vê um aglomerado de tendas, um círculo de vedações formadas por sacos de areia, sobre o qual foi estendido arame farpado. Coxeia em frente, quase exausto, as costelas visíveis, a pata a arrastar, já não sendo capaz de a manter erguida.

Sente o cheiro das fogueiras de cozinha, a carne a crepitar.

Ouve vozes, alegres e sombrias.

Obriga-se a avançar os últimos metros em direção à vedação. Contorna-a até se erguer, trémulo, perante os portões. Uma luz forte cega-o. O portão geme. Botas correm na sua direção.

Senta-se finalmente, equilibrando o corpo na perna boa.

Mãos acariciam-no, a respiração cobre-o, as vozes entusiasmadas ecoam.

Depois sente-o, bem fundo dentro de si.

A trela encurta-se.

Alguém fala.

— É mesmo ele?

Uma forma baixa-se à sua frente, ajoelhando-se.

Ele sente que outro se aproxima e toca com o nariz no seu, gemendo, latindo.

Ele conhece o seu irmão.

Mas dá-lhe toda a sua atenção, todo o coração àquele que está à sua frente.

Abana a cauda, sabendo que não falhou. Foi-lhe dada uma ordem no topo de uma montanha: Corre até estares de novo em casa.

Sente o focinho a ser erguido suavemente e um nariz toca no seu.

— Quem é o melhor menino?

Abel lambe o nariz de Tucker.

Sou eu.

 

 

                                                                  James Rollins

 

 

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