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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ACHEI QUE MEU PAI FOSSE DEUS / Paul Auster
ACHEI QUE MEU PAI FOSSE DEUS / Paul Auster

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Jamais pretendi fazer isto. O National Story Project aconteceu por acaso e, se não fosse por uma observação que minha esposa fez durante o jantar há dezesseis meses, a maioria dos textos deste livro jamais teria sido escrita. Era maio de 1999, talvez junho, e naquele dia eu dera uma entrevista na npr* sobre meu romance mais recente. Depois que terminamos a conversa, Daniel Zwerdling, o apresentador de Weekend All Things Considered, perguntou-me se eu teria interesse em me tornar um colaborador habitual do programa. Eu não podia nem ver seu rosto quando ele me fez a pergunta. Estava nos estúdios da npr, na Segunda Avenida, em Nova York, e ele estava em Washington, d.c., e durante os últimos vinte ou trinta minutos estivéramos conversando por meio de microfones e fones de ouvido, ajudados por uma maravilha tecnológica chamada fibra óptica. Perguntei-lhe qual era exatamente a sua proposta e ele disse que não sabia ao certo. Talvez eu pudesse ir ao ar uma vez por mês ou coisa parecida e contar histórias.
Não me interessei. Fazer meu trabalho já era suficientemente difícil e pegar um emprego que me forçaria a fabricar histórias por encomenda era a última coisa de que precisava. Mas, apenas para ser polido, disse-lhe que iria para casa e pensaria no assunto.
Foi Siri, minha esposa, que se interessou pela proposta. Naquela noite, quando lhe contei sobre a oferta curiosa da npr, ela apareceu imediatamente com uma idéia que inverteu a direção de meus pensamentos. Em trinta segundos, o não se transformou em sim.
Você não precisa escrever você mesmo as histórias, disse ela. Faça com que as pessoas escrevam suas próprias histórias. Elas podem enviar os textos e então você lê os melhores no rádio. Se muita gente escrever, o programa pode se tornar algo extraordinário.
Foi assim que nasceu o National Story Project. Foi uma idéia de Siri que assumi e pus para funcionar.

 


 


No final de setembro, Zwerdling veio à minha casa, no Brooklyn, com Rebecca Davis, uma das produtoras de Weekend All Things Considered, e lançamos a idéia do projeto por meio de outra entrevista. Eu disse aos ouvintes que estava em busca de histórias. Essas histórias tinham de ser verdadeiras e precisavam ser curtas, mas não haveria restrição quanto a tema ou estilo. O que me interessava mais, expliquei, eram histórias que desafiassem nossas expectativas em relação ao mundo, casos que revelassem as forças misteriosas e incognoscíveis que atuam em nossas vidas, em nossas histórias de família, em nossas mentes e corpos, em nossas almas. Em outras palavras, histórias verdadeiras que parecessem de ficção. Eu estava falando de coisas grandes e coisas pequenas, coisas trágicas e coisas cômicas, qualquer experiência que parecesse importante o suficiente para ser posta no papel. Os ouvintes não deveriam se preocupar se nunca tivessem escrito uma história. Todo mundo conhece boas histórias e, se um bom número de pessoas aceitasse o convite para participar, começaríamos inevitavelmente a aprender coisas surpreendentes sobre nós mesmos e os outros. O espírito do projeto era inteiramente democrático. Todos os ouvintes estavam convidados a colaborar e prometi que leria todas as histórias que chegassem. As pessoas iriam explorar suas vidas e experiências, mas ao mesmo tempo fariam parte de um esforço coletivo, algo maior do que elas mesmas. Com a ajuda de todos, disse eu, esperava reunir um arquivo de fatos, um museu da realidade americana.

A entrevista foi ao ar no primeiro domingo de outubro, exatamente há um ano. Desde então, recebi mais de 4 mil histórias. Esse número é muito maior do que eu previra, e nos últimos doze meses recebi uma enxurrada de manuscritos e quase me afoguei num mar sempre crescente de papel. Algumas das histórias foram escritas à mão, outras foram datilografadas, outras ainda foram impressas a partir de e-mails. A cada mês, batalhei para escolher as cinco ou seis melhores e transformá-las em um segmento de vinte minutos que iria ao ar no programa Weekend All Things Considered. Foi um trabalho singularmente compensador, uma das tarefas mais inspiradoras que jamais empreendi. Mas teve seus momentos difíceis também. Em várias ocasiões, quando eu estava particularmente atolado no material, li sessenta ou setenta histórias de uma única sentada, e sempre que fazia isso levantava da cadeira me sentindo pulverizado, absolutamente exaurido. Eram tantas emoções para dar conta, tantos estranhos acampados na sala, tantas vozes chegando de tantos lugares diferentes. Nessas noites, durante duas ou três horas, era como se toda a população dos Estados Unidos tivesse invadido minha casa. Eu não escutava a América cantando. Eu a escutava contando histórias.

Sim, é verdade que várias arengas e diatribes foram enviadas por pessoas desequilibradas, mas muito menos do que eu poderia prever. Fizeram-me revelações inéditas sobre o assassinato de Kennedy, fui submetido a complexas exegeses que ligam eventos atuais com versículos da Bíblia e recebi informações confidenciais sobre processos contra meia dúzia de empresas e órgãos do governo. Algumas pessoas se deram ao trabalho de me provocar e revirar meu estômago. Ainda na semana passada recebi o texto de um homem que se assinou “Cérbero” e deu como endereço “O Inferno 66666”. Sua história falava de seus dias como fuzileiro naval no Vietnã e terminava com o relato de como ele e outros soldados de sua companhia haviam assado um bebê vietnamita e o comido ao redor de uma fogueira. Seu tom era o de quem sentia orgulho pelo que fizera. Tanto quanto posso saber, a história poderia ser verdadeira. Mas isso não significa que eu tenha algum interesse em contá-la no rádio.

Por outro lado, alguns dos textos de pessoas perturbadas continham trechos espantosos e emocionantes. No outono passado, quando o projeto ainda engatinhava, chegou uma carta de outro veterano do Vietnã, um homem que cumpria prisão perpétua por assassinato em uma penitenciária do Meio-Oeste. Em seu depoimento manuscrito ele contava a história confusa de como chegara a cometer o crime, e a última frase do documento era: “Nunca fui perfeito, mas sou real”. Em certo sentido, essa declaração poderia servir de credo para o National Story Project, o verdadeiro princípio que está por trás deste livro: nunca fomos perfeitos, mas somos reais.

Das 4 mil histórias que li, a maioria era suficientemente emocionante para prender minha atenção até a última palavra. A maioria foi escrita com convicção simples, direta, e honrou as pessoas que as enviaram. Todos nós temos vida interior. Todos nós sentimos que fazemos parte do mundo e, contudo, nos sentimos exilados dele. Todos nós ardemos nos fogos de nossa existência. As palavras são necessárias para expressar o que está dentro de nós, e com muita freqüência os colaboradores me agradeceram por lhes dar a oportunidade de contar suas histórias, por “permitir que as pessoas fossem ouvidas”. O que as pessoas disseram é, quase sempre, espantoso. Mais do que nunca, passei a apreciar com que profundidade e paixão a maioria de nós vive dentro de si mesma. Nossos afetos são ferozes. Nossos amores nos dominam, nos definem, apagam as fronteiras entre nós e os outros. Um terço das histórias que li é sobre famílias: pais e filhos, filhos e pais, maridos e esposas, irmãos e irmãs, avós. Para a maioria de nós, são essas as pessoas que preenchem nosso mundo e, história após história, tanto as sombrias quanto as engraçadas, fiquei impressionado com a clareza e o vigor com que essas conexões foram articuladas.

Alguns alunos do curso secundário mandaram histórias sobre suas tacadas fantásticas no beisebol e medalhas conquistadas no atletismo, mas foram raros os adultos que se aproveitaram da ocasião para se vangloriar de seus feitos. Mancadas hilariantes, coincidências dolorosas, raspões da morte, encontros milagrosos, ironias improváveis, premonições, sofrimentos, dores, sonhos — esses foram os temas sobre os quais os colaboradores escolheram escrever. Aprendi que não estou sozinho na minha crença de que, quanto mais compreendemos o mundo, mais esquivo e confuso ele se torna. Como um dos primeiros colaboradores escreveu de modo eloqüente: “Fico sem nenhuma definição adequada da realidade”. Se você não tem certeza sobre as coisas, se sua mente ainda está suficientemente aberta para questionar o que vê, você tende a ver o mundo com grande cuidado, e dessa observação atenta vem a possibilidade de ver algo que ninguém viu antes. Você tem de estar disposto a admitir que não possui todas as respostas. Do contrário, jamais terá alguma coisa importante para dizer.

Tramas incríveis, lances improváveis, eventos que se recusam a obedecer às leis do senso comum. Com muita freqüência, nossas vidas se parecem com a matéria de romances do século xix. Hoje mesmo chegou outra pilha de e-mails da npr e entre eles estava esta história de uma mulher que mora em San Diego, Califórnia. Cito não porque seja incomum, mas simplesmente porque é a prova mais recente que tenho em mãos:

Fui adotada de um orfanato com oito meses de idade. Menos de um ano depois, meu pai adotivo morreu subitamente. Fui criada por minha mãe viúva com três irmãos mais velhos também adotados. Quando se é adotado, há uma curiosidade natural por conhecer sua família de nascimento. Quando me casei, com vinte e tantos anos, resolvi começar a procurar.

Cresci em Iowa e, depois de dois anos de busca, localizei minha mãe natural em Des Moines. Encontramo-nos e fomos jantar. Perguntei-lhe quem era meu pai e ela me deu o nome dele. Perguntei-lhe onde morava e ela disse “San Diego”, onde eu estava morando nos últimos cinco anos. Eu me mudara para San Diego sem conhecer vivalma na cidade, mas certa de que queria morar lá.

Resumindo: eu trabalhava no prédio ao lado de onde meu pai trabalhava. Com freqüência, almoçávamos no mesmo restaurante. Jamais contamos sobre minha existência para a esposa dele e eu não queria realmente perturbar sua vida. Mas ele sempre fora meio farrista e sempre tinha uma namorada para as “horas vagas”. Ele e sua última namorada estavam “juntos” havia mais de quinze anos e ela continuou a ser minha fonte de informação sobre ele.

Há cinco anos, minha mãe natural estava morrendo de câncer em Iowa. Ao mesmo tempo, a amante de meu pai me telefonou para contar que ele morrera do coração. Telefonei para minha mãe biológica no hospital de Iowa e contei-lhe sobre a morte dele. Ela morreu naquela noite. Fiquei sabendo que ambos os funerais se realizaram no sábado seguinte, exatamente na mesma hora: o dele às onze da manhã, na Califórnia, o dela à uma da tarde, em Iowa.

Depois de três ou quatro meses, senti que seria preciso um livro para fazer justiça ao projeto. Estavam chegando boas histórias em demasia e não me era possível apresentar no rádio mais do que uma fração das valiosas colaborações. Muitas delas eram longas demais para o formato que havíamos estabelecido, e a natureza efêmera das transmissões (uma voz solitária, incorpórea, que flutuava pelas ondas de ar americanas durante dezoito ou vinte minutos por mês) me motivou a reunir as mais memoráveis e preservá-las em forma escrita. O rádio é uma ferramenta poderosa e a npr chega a quase todos os cantos do país, mas é impossível segurar as palavras nas mãos. O livro é tangível e, quando interrompemos a leitura, podemos retomá-la mais tarde a partir do ponto em que paramos.

Esta antologia contém aqueles textos que considero os melhores dentre os 4 mil que recebi no último ano. Mas é também uma seleção representativa, uma versão em miniatura do National Story Project em conjunto. Para cada história sobre um sonho, um animal ou um objeto desaparecido que se encontra nestas páginas havia dezenas de outras sobre o mesmo tema, dezenas de outras que poderiam ter sido escolhidas. O livro começa com uma história de seis frases sobre uma galinha (a primeira que li no ar em novembro passado) e termina com uma meditação melancólica sobre o papel que o rádio desempenha em nossas vidas. A autora deste último texto, Ameni Rozsa, foi levada a escrevê-lo enquanto escutava um dos programas do National Story Project. Eu esperava captar pedaços e fragmentos da realidade americana, mas jamais me ocorrera que o próprio projeto também fazia parte dessa realidade.

Este livro foi escrito por pessoas de todas as idades e de todas as posições sociais. Entre elas estão um carteiro, um marinheiro mercante, um motorista de ônibus elétrico, uma leitora de relógios de gás e eletricidade, um restaurador de pianolas, um limpador de cenas de crime, um músico, um empresário, dois padres, um presidiário, vários médicos e uma variedade de donas de casa, fazendeiros e ex-recrutas. O colaborador mais jovem mal completou vinte anos; o mais velho beira os noventa. A metade é composta por mulheres, outra metade por homens. Moram em cidades, subúrbios e zonas rurais e vêm de 42 estados diferentes. Ao fazer minhas escolhas, jamais levei em conta o equilíbrio demográfico. Selecionei as histórias somente com base no mérito: por sua humanidade, sua verdade, seu encanto. As quantidades aconteceram por si mesmas e os resultados foram determinados pelo acaso.

Numa tentativa de dar alguma ordem a este caos de vozes e estilos contrastantes, dividi as histórias em dez categorias diferentes. Os títulos das seções falam por si mesmos, mas com exceção da quarta, Slapstick,** composta por histórias cômicas, há uma ampla gama de materiais dentro de cada categoria. Elas vão da farsa à tragédia, e para cada ato de crueldade e violência que encontramos nelas há a compensação de um ato de bondade, generosidade ou amor. As histórias vão para a frente e para trás, para cima e para baixo, para fora e para dentro, e depois de um certo tempo sua cabeça começa a girar. Basta passar de um colaborador a outro e você é confrontado por uma pessoa totalmente diferente, um conjunto completamente diverso de circunstâncias, uma visão de mundo inteiramente nova. Mas é da diferença que este livro trata. Há nele um pouco de escrita elegante e sofisticada, mas há muita coisa que é grosseira e desajeitada. Somente uma pequena parcela se parece com algo que poderia ser qualificado de “literatura”. Trata-se de outra coisa, de uma linguagem crua, direta, e, por mais que falte habilidade a seus autores, a maioria das histórias é inesquecível. Acho difícil imaginar que alguém possa ler este livro do início ao fim sem derramar pelo menos uma lágrima, sem gargalhar pelo menos uma vez.

Se eu tivesse de definir estas histórias, eu as chamaria de despachos, relatos da linha de frente da experiência pessoal. Elas tratam dos mundos privados dos indivíduos americanos e, no entanto, repetem-se as marcas inescapáveis da história sobre eles, os modos complexos pelos quais os destinos individuais são moldados pela sociedade em geral. Alguns dos colaboradores mais velhos, ao rememorar os eventos de sua infância e juventude, escrevem necessariamente sobre a Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Outros, nascidos na metade do século xx, continuam assombrados pelos efeitos da guerra no Vietnã. Esse conflito terminou há 25 anos, mas ainda está vivo dentro de nós como um pesadelo recorrente, uma grande ferida na alma nacional. Muitos, de várias gerações diferentes, escreveram histórias sobre a doença do racismo americano — flagelo que está entre nós há mais de 350 anos e para o qual, por mais que lutemos para erradicá-lo, ainda não encontramos cura.

Outras histórias falam de aids, alcoolismo, drogas, pornografia e armas. As forças sociais estão sempre invadindo a vida dessas pessoas, mas nenhuma delas pretende ser um documento da sociedade per se. Sabemos que o pai de Janet Zupan morreu num campo de prisioneiros do Vietnã em 1967, mas não é disso que sua história trata. Com um olho notável para o detalhe visual, ela relembra uma tarde no deserto de Mojave, quando seu pai persegue um cavalo teimoso e recalcitrante, e, sabedores do que acontecerá com seu pai apenas dois anos depois, lemos o relato como uma espécie de preito à memória dele. Não há uma palavra sobre a guerra, mas por via indireta e por um foco quase de pintor sobre o momento que está diante dela percebemos que toda uma era da história americana está passando diante de nossos olhos.

A risada do pai de Stan Benkoski. O tapa no rosto de Carol Sherman-Jones. A mãe de John Keith perdendo a aliança. Os dedos de John Flannelly presos nos buracos de uma grelha de aço. Mel Singer derrubado por seu próprio casaco. A bicicleta de Edith Riemer. O encontro de Ludlow Perry com o homem sem pernas. A caminhada de Juliana C. Nash pela neve. O martíni filosófico de Dede Ryan. Os arrependimentos de Carolyn Brasher. O sonho do pai de Mary McCallum. O botão do colarinho de Earl Roberts. Uma por uma, estas histórias deixam uma impressão duradoura na mente. Mesmo depois de ler todas, elas continuam conosco e nos descobrimos relembrando-as da mesma forma que lembramos uma parábola incisiva ou uma boa piada. As imagens são claras, densas e, contudo, de alguma forma leves. E cada uma é suficientemente pequena para caber em nosso bolso. Tal como as fotos de familiares que carregamos conosco para todo lugar.

Paul Auster
3 de outubro de 2000

 

 

* A National Public Radio (npr) é uma rede de 680 emissoras de rádio públicas, com uma audiência de mais de 20 milhões de americanos. Weekend All Things Considered é a versão de fim de semana de um programa de notícias, entrevistas e comentários. (N. T.)

** Comédia de pancadaria típica do cinema mudo. (N. T.)


animais


A galinha

Certa manhã de domingo, eu caminhava pela rua Stanton quando vi uma galinha poucos metros adiante de mim. Como eu andava mais rápido do que ela, fui me aproximando gradualmente. Pouco antes da 18a Avenida, eu já estava bem perto do animal. A galinha entrou à direita na 18a. Na quarta casa, ela fez uma curva na calçada, subiu aos pulos os degraus da escada da frente de uma casa e bateu com o bico na porta de metal. Depois de alguns instantes, a porta se abriu e a galinha entrou.

Linda Elegant
Portland, Oregon


Rascal

O ressurgimento da Ku Klux Klan na década de 1920 foi um fenômeno que ninguém explicou completamente. De repente, as cidades do Meio-Oeste se viram nas garras dessa ordem secreta cujo objetivo era eliminar os negros e os judeus de nossa sociedade. Em cidades como Broken Bow, Nebraska, que tinha apenas duas famílias de negros e uma de judeus, o alvo eram os católicos. Os membros da Klan espalhavam que o papa estava preparando a tomada da América, que os porões das igrejas eram arsenais e que padres e freiras faziam orgias depois da missa. Já que a Primeira Guerra Mundial acabara e que os hunos haviam sido derrotados, havia um novo foco para os homens que precisavam odiar alguém. O espantoso era a quantidade dessa gente.

Em Broken Bow e Custer County, dezenas deles foram atraídos pela mística da sociedade secreta masculina que apelava para o anseio do “Nós contra Eles”, que parece ser universal entre os homens. Duas das pessoas que se opuseram a isso foram os banqueiros locais: John Richardson e meu pai, Y. B. Huffman. Quando um telefonema da Klan avisou que deveriam boicotar os católicos, eles desafiaram a ordem. Uma vez que ambos os bancos resistiram, a tentativa da Klan foi frustrada, mas minha mãe, Martha, pagou por isso na eleição para o conselho da escola: foi derrotada pelo boato difamador de que estava tendo um caso com o farmacêutico.

Chegou a época do desfile anual da Ku Klux Klan em torno da praça principal. Eles sempre escolhiam um sábado de verão, quando a cidade estava cheia de fazendeiros e pecuaristas. Vestidos com túnicas brancas, chapéus cônicos e máscaras com buracos para os olhos, eles desfilavam para lembrar os cidadãos de sua dignidade e seu poder, liderados pela possante, mas anônima, figura do Grande Kleagle. A calçada ficava cheia de gente que especulava sobre a identidade dos desfilantes e cochichava sobre seus poderes misteriosos.

Então veio saltitando de uma viela um pequeno cão branco com manchas pretas. Ora, assim como conhecia todo mundo na cidade, o pessoal de Broken Bow também conhecia os cachorros, pelo menos os mais proeminentes. Nosso pastor alemão Hidda e o retriever de Art Melville eram personagens famosos.

O cão manchado correu alegremente para o Grande Kleagle e saltou nas suas pernas, clamando por uma festinha na cabeça daquela mão amada. “É o Rascal”, começou o rumor, “aquele é o Rascal, o cachorro de Doc Jensen.” Enquanto isso, o majestoso Grande Kleagle tentava afastar com as pernas, enredadas na túnica longa, aquele que era obviamente seu cão: “Pra casa, Rascal, pra casa!”.

O rumor avançou mais rápido pela calçada do que a procissão. As pessoas não cochichavam, elas falavam alto para deixar claro que sabiam. Cotovelos cutucavam os vizinhos, um riso abafado corria pela calçada como folhas que farfalham diante de uma rajada de vento. Então, o filho de Doc Jensen apareceu e chamou o cachorro: “Aqui, Rascal! Aqui, Rascal!”.

Isso rompeu a tensão. Alguém repetiu o chamado: “Aqui, Rascal!”. Foi quando o riso reprimido se transformou em gargalhadas e uma grande ventania de riso varreu a praça. Doc Jensen parou de chutar seu cão e retomou sua marcha solene, mas os espectadores não deram bola. “Aqui, Rascal! Aqui, Rascal!”

Esse foi o fim da Ku Klux Klan em Broken Bow. Doc Jensen era um veterinário passável de animais grandes e manteve sua clientela de fazendeiros. Talvez gostassem de chamá-lo para depois ter o que conversar com os vizinhos, mas poucos o provocavam. De vez em quando um garoto espertinho via Doc Jensen passar e gritava “Aqui, Rascal!”.

E, desde então, o cachorrinho branco de manchas pretas ficou preso em casa.

Yale Huffman
Denver, Colorado


A borboleta amarela

Nas Filipinas, a tradição era começar os ritos da sagrada comunhão no segundo ano. Todos os sábados, tínhamos de ir à escola para ensaiar como andar, como carregar a vela, onde sentar, como ajoelhar e como esticar a língua para aceitar o corpo de Cristo.

Certo sábado, minha mãe e meu tio foram me buscar depois do ensaio em um Fusca amarelo. Enquanto eu sentava no banco de trás, meu tio tentou dar a partida no carro. O Fusca deu várias engasgadas e então o motor parou. Meu tio ficou em silêncio frustrado e minha mãe se virou para mim e perguntou o que deveríamos fazer. Eu estava com oito anos e, sem hesitar, lhe disse que tínhamos de esperar até que uma borboleta amarela tocasse no carro para que ele voltasse a funcionar. Não sei se minha mãe acreditou ou não no que eu disse. Ela apenas sorriu e se voltou para meu tio a fim de discutir o que fazer. Ele desceu do carro e disse para mamãe que iria até o posto de gasolina mais próximo pedir ajuda. Eu cochilei um pouco, mas estava acordada quando titio voltou. Lembro que trazia um recipiente com gasolina, abasteceu o carro, o carro não pegou, ele fuçou mais um pouco e nada de o carro dar a partida. Minha mãe então desceu e gritou para um táxi. Um táxi amarelo parou. Em vez de nos levar para casa, o taxista examinou nossa situação e sugeriu que meu tio borrifasse um pouco de gasolina no motor. Parece que isso deu certo e, depois de agradecer ao bom samaritano, meu tio girou a chave e o carro pegou de imediato.

Voltei a dormitar. Meia quadra adiante, minha mãe me acordou. Estava toda excitada, e sua voz, cheia de espanto. Quando abri os olhos, voltei-me para onde ela apontava. Voejando em torno do espelho retrovisor havia uma pequenina borboleta amarela.

Simonette Jackson
Canoga Park, Califórnia


Píton

Vic comprou o píton depois de uma semana ruim na casa de reabilitação. Seus clientes estavam enlouquecendo. O suave Marty trouxe umas drogas da rua, o que era terminantemente proibido. Então o Anão pirou, agarrou uma das estudantes voluntárias e a manteve cativa por duas horas. O Anão estava quase sufocando a garota, quando Vic o derrubou e o levou para o hospital. A responsabilidade ficou para Vic, gerente, enfermeiro-chefe — com toda a bagunça sobre seus ombros.

Para piorar as coisas, a mídia estava em guerra contra as instituições privadas de saúde mental. No noticiário das seis, Vic defendeu a abordagem empresarial das casas comunitárias de McLoony. Ele acreditava que as casas privadas eram um grande avanço em relação aos prédios cinzentos das instituições, os pacientes estavam em melhor situação vivendo na comunidade do que armazenados atrás de janelas com grades. Por que as pessoas que faziam esse excelente trabalho não podiam ter lucro? Depois de calar a boca, Vic sentiu uma forte necessidade de encontrar uma distração relaxante.

Sua esposa, Carrie, sublinhara que cobras eram seu limite, mas, com seu emprego diurno de professora e as apresentações noturnas em que tocava saxofone, ficava fora de casa um tempão. Além disso, ela e as meninas tinham adorado quando ele trouxera as iguanas para casa. Zoloft, a prateada, posava o dia inteiro em sua gaiola de vidro que ia do chão ao teto, no meio da sala de jantar. O piscar de seu olho amarelo acalmava Vic. Prozac, o cor-de-rosa, tinha sua própria caixa de compensado no quarto das crianças. Quando Sherry, a menina de quatro anos, se agachava para pôr folhas de couve e alface na toca de Prozac, Vic ficava de olho nela. As iguanas têm garras afiadas e ele mesmo já fora bem arranhado.

Vic leu tudo sobre terapia com animais de estimação e sobre o efeito calmante que cães e gatos podem ter sobre as pessoas idosas. Pensou que a cobra era sua terapia particular, podia declarar como despesa para o exercício de sua profissão. Talvez isso convencesse Carrie. Ele levou as meninas junto para comprar a cobra; depois fez com que aderissem à sua campanha.

“Mamãe, é tão fria”, implorou Ella, a mais velha.

“Ela pode fazer companhia a Prozac”, disse Sherry.

“O que ela come?”, perguntou Carrie. Vic percebeu que ela estava fraquejando.

“Não tem problema”, respondeu Vic. “Come ratos e coelhos, mas posso obtê-los na loja de suprimentos para répteis. Você não vai ter de olhar para eles.”

“Por favor, mamãe”, disseram as meninas em uníssono.

Carrie concordou — ela era legal. Vic jamais se queixava de suas canjas noturnas. Por que seu hobby iria incomodá-la? Ela que esperasse para ver como o píton era lindo, com aquela pele grossa, coriácea, e seus lindos desenhos diamantinos. Ela teria de concordar que seria a mais bela peça de arte que jamais possuíram.

Vic chamou o píton de Jung. Pensou em batizá-lo de Freud, mas seria um certo exagero. A primeira vez que tirou Jung da gaiola e enrolou a grossa serpente em torno do pescoço, Carrie e as meninas ficaram deslumbradas. Ele deixou que tocassem na pele dura e escamosa. Elas adoraram observar a pequena língua que vibrava e tremeluzia, uma chama delgada que se movia com tanta rapidez que era quase uma miragem. Vic sentia o poder da serpente, seu perigo, mas podia controlá-la. Comparado com uma casa cheia de esquizofrênicos, o píton era um refresco.

Ele sabia que seria uma complicação tirar Jung da gaiola e pôr na caixa de transporte, mas precisava de algo diferente no trabalho. Na casa, Vic equilibrou cuidadosamente Jung sobre os ombros. O silêncio baixou na ruidosa sala comum, enquanto oito esquizofrênicos ficavam petrificados em suas cadeiras. Lentamente, Vic circulou, deixando os mais corajosos tocar na pele da serpente. O sorriso amarelo do suave Marty parecia se estender até o rosto rechonchudo do Anão. Melhor que as drogas, melhor que grupo: eles não desgrudavam os olhos. Vic sentiu a besta poderosa enrolar-se com mais força em seu corpo. Ele abriu os braços e deixou Jung desenroscar-se. Com as escamas cintilando, o píton parecia deliciar-se com sua performance. Ele escorregou dos ombros de Vic e enrolou-se no peito largo de seu dono. Enquanto os malucos observavam com admiração silenciosa, Jung desceu pelo torso de Vic, prendendo-o num abraço assombroso.

Judith Beth Cohen
North Weymouth, Massachusetts


Costeleta de porco

No começo de minha carreira como limpador de cenas de crime, fui enviado à casa de uma mulher que vivia em Crown Point, Indiana, distante cerca de duas horas de onde eu morava.

Quando cheguei, a sra. Everson abriu a porta e eu pude imediatamente sentir o cheiro de sangue e de outros tecidos que emanava da casa. Imaginei a verdadeira porcaria que estaria lá dentro. Um pastor alemão um tanto grande seguia a sra. Everson por todo lugar aonde ela ia.

A mulher contou-me como, ao chegar, encontrara a casa em silêncio, embora seu sogro idoso e doente morasse ali. O pastor alemão me cheirou com a curiosidade geralmente exibida por um grande carnívoro.

A luz do porão estava acesa e ela achou que ele devia estar lá embaixo. Encontrou-o afundado numa cadeira. Havia enfiado uma espingarda calibre doze na boca e puxado o gatilho, removendo a maior parte de sua cabeça e espalhando miolos, ossos e sangue por todo o porão.

Desci para dar uma olhada rápida e percebi que teria de vestir uma roupa especial. Mais para não sujar minhas roupas de sangue do que por proteção contra alguma coisa no sangue.

Nossa, que sujeira, pensei comigo. Apesar de meus melhores esforços, logo eu estava coberto de sangue dos pés à cabeça. Por mais que eu faça esse trabalho há bastante tempo, ainda acho que é brutal e repugnante. Suponho que seja um bom sinal.

Fiz várias viagens até o carro com os objetos contaminados do porão: painéis do teto, peças de roupa, partes da cadeira em que o velhote estivera sentado. Observei que o cachorro curioso começou a me seguir com interesse crescente.

Aprendi que muitas vezes é melhor não falar nada do que dizer alguma coisa canhestra durante o tempo de luto de alguém. Mas aquela senhora estava sentada à mesa da cozinha com a cabeça caída, soluçando como se nunca tivesse chorado na vida. Achei que deveria dizer algo para aliviar a tensão. O cão ainda estava me seguindo pela casa enquanto eu trabalhava, pensei que poderia usar isso para quebrar o gelo. Então disse: “Sabe, senhora Everson? Este aí deve ser o cachorro mais amistoso que eu já vi”.

De repente, como se um copo de água gelada tivesse sido jogado na sua cabeça, a sra. Everson endireitou-se na cadeira, olhou para mim como se eu fosse estúpido e disse: “Grande coisa! Você está cheirando a costeleta de porco!”.

Eric Wynn
Warsaw, Indiana


Dois amores

Em outubro de 1977, eu estava com doze anos de idade e era apaixonado por beisebol e por Colby (nosso sofisticado e arrogante gato preto). Uma tarde, esses dois amores colidiram misteriosamente.

Cansado de jogar bolas de tênis contra a parede dos fundos da garagem, catei meu bastão Wiffle e comecei a bater nas minhas quatro ou cinco bolas Spalding no quintal. Uma a uma, elas foram ficando presas nos galhos de uma velha pereira. Em pouco tempo, me restava uma única bola, que finalmente se rendeu ao mesmo destino. A essa altura, eu estava muito desanimado. Sabia que não era capaz de trepar naquela árvore. Comecei jogando minha luva modelo Jim O’Toole nas bolas. A luva ficou presa. Apelei para meu bastão insignificante. O bastão ficou preso. Antes que eu tivesse a oportunidade de perder meus tênis, Colby entrou em cena. Ficou por um instante sentado, estudando minha impotência. Então, meu herói escalou resolutamente a árvore e abriu caminho até seus extremos mais longínquos para localizar e empurrar com perícia cada artigo esportivo mantido como refém. Momentos depois, o último deles caiu no chão, para meu espanto incrédulo.

Will Coffey
North Riverside, Illinois


História de coelho

Há alguns anos, fui visitar uma amiga, levando um cd novo que achei que íamos gostar de ouvir juntos. Empoleirei-me numa cadeira de madeira em sua sala, escrupulosamente evitando contato com o gato que se espreguiçava na poltrona muito mais confortável.

Depois de algum tempo ouvindo música, avistei com o canto do olho um segundo gato que descia a escada. Fiz uma observação levemente desaprovadora, do tipo que se espera de alguém que sofre de alergia.

“Mas aquilo não é um gato”, corrigiu-me minha amiga. “É o coelho de minha filha.”

Lembrei-me de algo que ouvira certa vez. Perguntei-lhe: “Os coelhos, se você os deixa andar sozinhos pela casa, não tendem a morder os fios elétricos e...?”.

“É verdade”, disse ela. “É preciso ficar de olho.”

Foi quando fiz minha piadinha. Disse-lhe que, se ela alguma vez encontrasse um coelho eletrocutado, devia me chamar imediatamente. Eu levaria o coelho para casa e o prepararia para o jantar. Demos boas risadas com isso.

O coelho sumiu. Pouco depois minha amiga saiu da sala para buscar um lápis. Logo em seguida reapareceu, com uma cara de susto. Perguntei-lhe qual era o problema e ela me disse que o coelho acabara de morder o fio de um abajur e morrera eletrocutado — exatamente como eu descrevera. Ela chegara à cena do acidente a tempo de vê-lo sacudir as patas e morrer.

Corri até a sala ao lado para ver com meus próprios olhos. Lá estava o animal inerte, com os dois dentes frontais ainda enterrados no fio marrom. A intervalos de poucos segundos, corria entre os dentes uma minúscula faísca.

Minha amiga e eu nos entreolhamos, um pouco atordoados e desorientados. Não sabíamos se nos divertíamos com a situação ou se ficávamos nervosos. Mas alguma coisa precisava ser feita: peguei uma vassoura e afastei do fio o coelho, que cozinhava lentamente.

Por mais alguns instantes ficamos olhando embasbacados para o cadáver. Então minha amiga falou. Ocorrera-lhe algo.

“Você se dá conta de que poderia ter desejado qualquer coisa?”

“Como assim?”

“Quando você falou em levar o coelho para casa e cozinhá-lo para o jantar”, explicou ela, “quando você sugeriu essa possibilidade. Você poderia ter desejado facilmente um milhão de dólares, ou qualquer coisa que quisesse. E teria conseguido. Foi esse tipo de momento, um momento em que qualquer desejo teria se realizado.”

Jamais duvidei de que ela estava absolutamente certa.

Barry Foy
Seattle, Washington


Carolina

Quando eu trabalhava na zona rural de Honduras como voluntária do Peace Corps, o governo mandou uma equipe de topógrafos com a missão de descobrir o melhor caminho para implantar uma linha de eletricidade. Um dos homens, chamado Pablo, ficou obsessivamente apaixonado por mim. Os sentimentos estavam longe de ser mútuos, quanto mais não fosse porque ele estava totalmente bêbado sempre que eu o encontrava. Ele me seguia por toda parte, batia na minha porta e perguntava aos vizinhos onde estava a gringa quando não conseguia me achar. Pablo decidiu então levar o pensamento positivo ao seu extremo: anunciou que iríamos nos casar no domingo e convidou todo mundo para o casamento, com o maior banquete que alguém já vira na região. Infelizmente, ninguém compareceu ao grande evento, nem mesmo a noiva.

Ele então notou que eu confiava em minha mula, Carolina, que vinha trotando me ver sempre que eu aparecia em sua pastagem. Ela levantava o focinho para mim enquanto eu despejava minhas mágoas em suas orelhas imensas e solidárias. Pablo decidiu conquistar meu coração usando a mula como intermediária.

O problema com essa estratégia é que Carolina detestava bêbados. Ela pateava e bufava sempre que sentia o cheiro de álcool. Bêbado demais para perceber isso, Pablo aproximou-se dela, que tentou se afastar dele. Quando ele a cercou, a mula deu-lhe um coice e derrubou-o. Ele se ergueu, cambaleou até a mula e foi prontamente derrubado de novo. Não desistiu até ficar machucado da cabeça aos pés.

No dia seguinte, Pablo entregou-se à ilusão de que Carolina morrera, embora estivesse ao lado do campo onde ela pastava tranqüilamente. Ele tentou recrutar todos que passavam para trazer pás e ajudar a enterrar a mula, porque eu estava muito abalada com a morte do animal para fazer isso sozinha. E repreendia todos que se recusavam a ajudar, por serem preguiçosos e não terem compaixão de mim, que trabalhava tão duro para ajudar as crianças da região.

Vários amigos vieram até a minha casa para me falar que os rumores sobre a morte de Carolina eram muito exagerados. Ela parecia saudável e tranqüila, apesar do que Pablo estava dizendo. Decidi levá-la para outra pastagem para que ele não lhe fizesse mal nem fosse mais machucado por ela. Quando cheguei lá, ele estava desmaiado no chão e não me viu levá-la.

Dias depois, eu descia uma trilha da montanha montada em Carolina quando encontrei Pablo, que parecia relativamente sóbrio, mas perplexo. Exclamei: “Mire! Se resucitó!” (Veja! Ressuscitou!).

Pablo ficou branco como um fantasma e murmurou: “Dios mio!”. Deu as costas e saiu correndo o mais rápido que pôde, para nunca mais voltar.

Kelly O’Neill
Lock Haven, Pensilvânia


Céu azul

Em 1956, Phoenix, no Arizona, era uma cidade com um céu azul sem limites. Um dia, dei a volta na casa com o periquito novo de minha irmã Kathy no meu dedo, pois queria mostrar a Perky como era o céu. Talvez ele pudesse fazer um amigo passarinho lá fora. Levei-o ao quintal e então, para meu horror, ele saiu voando. O enorme e implacável céu engoliu o tesouro azul de minha irmã e de repente ele se foi, com asas cortadas e tudo.

Kathy conseguiu me perdoar. Com falso otimismo, tentou até me assegurar que Perky encontraria um novo lar. Mas eu era esperto demais para acreditar que isso fosse possível. Estava inconsolável. O tempo passou. Por fim, meu grande remorso encontrou um lugar modesto entre as coisas maiores da vida, e nós todos crescemos.

Décadas depois, observei meus próprios filhos crescerem. Compartilhávamos suas atividades, passando os sábados de futebol em cadeiras dobráveis ao lado dos pais dos amigos deles, os Kissell. As duas famílias acamparam juntas no Arizona. Empilhávamo-nos na van para ir em excursão ao teatro. Tornamo-nos os melhores dos amigos. Uma noite, o jogo era contar histórias de animais de estimação. Uma pessoa afirmou que possuía o peixinho dourado mais velho. Alguém tinha um cachorro neurótico. Então Barry, o pai da outra família, tomou a palavra e anunciou que o maior animal de estimação de todos os tempos era seu periquito azul, Sweetie Pie.

“A coisa mais engraçada sobre Sweetie Pie”, disse ele, “foi o jeito que ganhamos o bichinho. Um dia, quando eu tinha uns oito anos, lá do céu azul desceu um periquito azul e pousou no meu dedo.”

Quando eu finalmente consegui falar, examinamos os indícios espantosos. As datas, os locais e as fotografias das aves combinavam. Parece que nossas famílias estavam ligadas muito antes de nos conhecermos. Quarenta anos depois, corri até minha irmã e disse: “Você tinha razão. Perky sobreviveu!”.

Corki Stewart
Tempe, Arizona


Vertigem

Quando eu tinha dez anos, minha família mudou-se para Apple Valley, uma pequena comunidade do High Desert, na Califórnia. Meu pai era um piloto de teste que servia na Base Aérea de George desde o verão de 1964. Instalamo-nos numa casa cor de mostarda situada numa região aberta que abrigava mais duas ou três casas, milhares de moitas de creosoto, iúcas e cactos num raio de cinco quilômetros, exceto numa direção: o rio Mojave piscava para nós a um quilômetro e meio, no deserto.

Meu pai tinha um metro e noventa e incríveis sobrancelhas hirsutas. Soltava uma risada tão profunda que eu podia sentir seu repique vibrar em meu estômago. Era capaz de imitar um relincho de cavalo como ninguém. Falava um dialeto taiwanês e suficiente alemão para parecer fluente. Costumava dar shows aéreos solitários nas comunidades onde morávamos e seu retrato estava pendurado no posto de gasolina de sua vila natal, onde era considerado um herói. Morreu em um campo de prisioneiros no Vietnã do Norte em 1967, aos 41 anos.

Dou-me conta de que sentia carinho por meu pai graças a sua energia. Ele investia com vigor em situações de risco e tinha um reservatório inesgotável de otimismo. Quando moramos em Taiwan, ia de ônibus todas as semanas a Taipé, onde ele e um carpinteiro local construíram um barco a vela da classe Lightning. Trouxemos o barco para os Estados Unidos e chegamos em último lugar em todas as disputas de que participamos em Chesapeake Bay. Meu pai estava sempre disposto a tentar coisas novas, a provocar mudanças divertidas em nossas vidas. Às vezes, um de nós relutava ou sentia medo, mas ele sempre tinha um jeito de nos encorajar a assumir o risco.

Agora que o relembro, com olhos de 44 anos, percebo que aquilo que eu mais gostava nele era sua fragilidade e, porque sentia isso, desenvolvi um desejo de protegê-lo. Acho que todos da minha família sentiam a mesma coisa. Admirávamos sua exuberância, mas também sentíamos medo por ele. Talvez nutrisse tantas expectativas que nos dávamos conta de quão difícil seria para nós vê-lo desapontado, desiludido ou ferido.

Pouco depois de mudarmos para Apple Valley, adotamos um cavalo que chamamos de Vertigem. Era um baio grande, inteligente e teimoso, um ex-cavalo de desfile cujos anos de exibição o deixaram esperto e amargurado. Não posso falar por meus irmãos, mas eu tinha medo de Vertigem. Ele também tinha um jeito de saber de meu medo e parecia saborear minhas apreensões e hesitações, erguendo um casco ameaçador ou chicoteando-me com sua cauda sempre que eu chegava perto. Por outro lado, meu pai estava disposto a montar e passou horas aprendendo a lidar com os arreios e os cuidados com o cavalo.

Numa tarde de sábado de julho de 1965, meu pai selou Vertigem para ir ao rio Mojave. Fomos todos até o curral para observar. Até minha mãe ficou por perto, arrancando as ervas daninhas da folha-de-gelo que crescia à sombra da casa. Primeiro, meu pai limpou a crina e a cauda; enquanto ele trabalhava, o cavalo deu uma volta e lambeu o limpador de cascos que estava sobre a cerca do curral, derrubando-o no chão. Impávido, meu pai examinou os cascos de Vertigem. O cavalo suspirou, resfolegou e tratou de desamarrar a corda do cabresto da cerca. Segundos depois, empinou. “Rrrrrrmmmmf”, relinchou com brandura meu pai, enquanto pegava a corda pendente do cabresto. Amarrou de novo o cavalo no mourão e encaixou o freio, pôs a sela e amarrou as fivelas e a cilha. Vertigem resfolegou e se sacudiu. Baixou a cabeça e bateu com a crina no rosto de meu pai. “Rrrrrrmmmf”, era tudo o que meu pai tinha a dizer. Por fim, estavam prontos. O dia estava quente e seco. Deviam ser umas três da tarde.

Lembro da visão deles partindo — meu pai sem camisa, de jeans e tênis, o cavalo se arrastando com a cabeça no chão, começando a mordiscar capins e bufando para as formigas. Meu pai segurava com firmeza as rédeas e Vertigem sacudia a cabeça e jogava sua crina branca de um lado para o outro. Não sei o que prendia todos nós na cerca do curral ou minha mãe na enxada, mas nenhum de nós se moveu. Observamos meu pai e o cavalo se afastarem na direção do rio, Vertigem se arrastando e estacando, meu pai puxando as rédeas, o meneio petulante da crina.

Por fim, desapareceram na distância, para além da borda do deserto, num lugar mais clemente, o frescor do rio Mojave. As crianças devem ter voltado para a casa mais fresca e suas ocupações. Não consigo lembrar para onde fui ou o que fiz. Lembro apenas que minha mãe nos chamou para fora uma ou duas horas depois. Ficamos numa fileira de seis, protegendo os olhos com as mãos e perscrutando o terreno entre nossa casa e o rio. Vi Vertigem andando com arrogância, a cabeça e a cauda em posição de desfile, a crina penteada pela brisa. Não parecia ter pressa para voltar; parou e começou a pastar. Não andara muito e o rio brilhava logo atrás dele. Minha barriga doeu enquanto eu me perguntava se papai estaria ferido — derrubado e cheio de espinhos de cacto ou, pior ainda, de formigas e escorpiões. Mas então o divisei, correndo desajeitadamente na areia fofa na direção de Vertigem. O cavalo sacudiu a cabeça, mas continuou a pastar. A sela pendia precariamente de seu flanco. Meu pai se aproximou e estendeu a mão para pegar as rédeas. Vertigem afastou a cabeça e trotou arrogante, não em linha reta na direção da casa, mas em ângulos, com a cabeça ereta, como se soubesse que estávamos observando. De repente, ele parou e voltou a pastar. Meu pai, ainda no lugar onde o cavalo o deixara, pendeu os braços e ficou paralisado por um instante. Depois, caminhou novamente na direção do animal. Mais uma vez, Vertigem esperou que meu pai chegasse à distância de um braço. Dessa vez, saltou de lado, como se surpreendido, e trotou para longe de novo. Observávamos em silêncio. Minha mãe se inclinou sobre a enxada e suspirou.

Vertigem continuou a caçoar de meu pai, andando em ziguezague até perto da casa. Na quarta vez que papai chegou perto e não conseguiu agarrar as rédeas, eu tive certeza de que ele estava frustrado e com raiva. Bateu na anca de Vertigem quando o cavalo se afastou e ouvi um fio de sua voz cansada imprecando contra o animal, enquanto se aproximavam lentamente de nós.

Àquela altura, minha mãe deve ter entrado; nenhum de nós percebeu, preocupados que estávamos com papai. Finalmente, Vertigem trotou até o curral e ficou esperando junto à porteira, com a cabeça erguida. Suas narinas estavam bem abertas e seus olhos brilhavam. Senti minha mãe novamente ao meu lado, com meu irmão e minhas irmãs, todos observando em silêncio meu pai vencer o último trecho até nós.

Quanto mais perto ele chegava, pior eu me sentia. Tinha a aparência afogueada e suada. Seus ombros estavam inclinados para a frente e a cabeça pendia. “O que aconteceu, papai?”, perguntou meu irmão. Sem responder, ele andou até a cerca e abriu a porteira. Vertigem entrou lentamente e começou a mascar feno calmamente. Meu pai fechou e trancou a porteira, depois veio para junto de nós. Havia bagas de suor em suas sobrancelhas. “Este é um cavalo bem espertinho. A gente tem de estar um passo à frente do velho Vertigem.”

Minha mãe ofereceu-lhe uma garrafa de cerveja gelada. Ninguém falou enquanto ele tomava um longo gole. Ficamos ali, olhando para o rio, o vento de Santa Ana assobiando; ninguém foi examinar Vertigem. Mas, quando demos as costas para voltar para casa, ouvimos seu bufo satisfeito. No sábado seguinte, meu pai estava de volta ao curral, a fim de limpar e arrear nosso novo cavalo para outra cavalgada.

Janet Schmidt Zupan
Missoula, Montana


objetos


Estrela e corrente

Em 1961, durante uma visita a Provincetown, Massachusetts, comprei uma estrela-de-davi em uma corrente, peça artesanal única. Passei a usá-la sempre. Em 1981, a corrente se partiu quando eu nadava no mar, em Atlantic City, e a perdi nas ondas. Em 1991, durante as férias de Natal, meu filho de quinze anos e eu estávamos bisbilhotando numa loja de antigüidades de Lake Placid, Nova York, quando uma jóia lhe atraiu a atenção. Ele me chamou para dar uma olhada. Era a estrela-de-davi que fora engolida pelo oceano dez anos antes.

Steve Lacheen
Filadélfia, Pensilvânia


Cigano do rádio

Isso aconteceu na época em que eu era um cigano do rádio. Em março de 1974, arranjei um emprego de locutor de notícias na wow de Omaha e estava saindo com meu Fusca da casa de meus pais, em um subúrbio de Denver, quando tive de meter o pé no freio. Um pneu vinha descendo da colina e passou bem na minha frente. Presságio poético, pensei comigo, e parti.

Dois meses depois, a vaga que eu realmente queria, na kgw de Portland, foi aberta. Enquanto eu pensava se deveria largar o emprego de Omaha tão cedo, olhei pela janela de meu apartamento e vi um pneu rolando no estacionamento. O pneu falou, pensei, e fui para o posto em Portland.

Um ano se passa e Portland vai indo muito bem — tão bem que me oferecem uma promoção para a estação principal da rede, a King de Seattle. Mas não antes de eu estar com meu Fusca na esquina da rua 13 com West Burnside tarde da noite e um pneu sair do meio do fog e descer pela rua.

Mas não acaba aqui. Mais um ano — estamos agora em 1976 — e a empresa quer me mandar de volta para a kgw de Portland, no cargo de diretor de jornalismo e âncora do noticiário matinal. Dessa vez, o pneu — na verdade, apenas um aro de roda — apareceu descendo na direção sul do viaduto Alaskan Way. Foi na pista da esquerda.

Final de 1977. Estou na estrada de novo, a caminho da kya de San Francisco. Meu velho Fusca está abarrotado, com meu aparelho estéreo, meu gato e todas as minhas coisas, e estou prestes a entrar na rodovia expressa. Não vi nenhum pneu rolando, mas então escuto um ruído estridente que vem da traseira do veículo e sinto como se estivesse derrapando, e o carro fica desgovernado. Assustador. Piso no freio, a tempo de ver minha roda traseira, que se soltara, descendo pela estrada até parar numa vala. O mecânico havia esquecido de pôr um contrapino. O pneu rolando era a droga da minha própria roda!

E ali acabou a sucessão de pneus rolando. Ou pelo menos foi o que pensei, até 1984. Estava de volta a Seattle, já então um grande executivo do rádio, mas ainda um cigano da profissão, e aceitei um emprego por muito dinheiro em Houston, Texas. Tudo me falava contra: a cidade, as vibrações, o fato de que agora eu tinha dois filhos pequenos e queria realmente criá-los no Pacífico noroeste. Mas o contrato e o dinheiro embaçaram meu juízo. Fui de avião para assumir o cargo e minha mulher foi depois, de carro. Ela estava dirigindo na Interestadual 5, atravessando North Portland, quando crunch: o capô do seu Volvo recebeu o impacto de algo que viera da estrada que cruzava por cima da auto-estrada. A coisa ricocheteou no carro dela, atingiu outros dois carros e parou no canteiro central. Abalada, mas sem ferimentos, ela pôde ver do que se tratava: um enorme pneu de caminhão.

Fomos para Houston, mas foi terrível. Durou apenas um ano e então voltamos felizmente a Portland para criar nossos filhos. Nunca mais a comichão nos pés, nunca mais o cigano do rádio, nunca mais os malditos pneus rolantes.

Bill Calm
Lake Oswego, Oregon


Uma história de bicicleta

Na década de 1930, na Alemanha, o maior desejo de toda criança era ter uma bicicleta. Eu economizei durante anos, guardando o dinheiro que ganhava de aniversário e Chanuca, junto com as recompensas ocasionais por notas excepcionalmente boas na escola. Faltavam-me ainda cerca de vinte marcos para atingir meu objetivo. Na manhã em que completei treze anos, abri a porta da sala e fiquei chocada ao ver a bicicleta que admirava havia muito na vitrine da loja do sr. Schmitt. Tinha um assento preto largo e uma estrutura de cromo que brilhava. Mas o melhor de tudo: tinha pneus largos e vermelhos, a mais nova invenção que, ao contrário dos convencionais pneus pretos estreitos, dava mais tração e tornava o andar mais suave. Mal pude esperar pelo final das aulas daquele dia para poder andar de bicicleta pela cidade, orgulhosa da admiração dos transeuntes.

A bicicleta tornou-se minha companheira de confiança. Então, numa manhã gelada de janeiro de 1939, tive de fugir da Alemanha e do regime de Hitler. Eu fazia parte de um grupo de crianças organizado às pressas para ser transportado para a Inglaterra. Podíamos levar apenas uma mala pequena, mas meus pais me garantiram que achariam uma maneira de mandar a bicicleta. Enquanto isso, ela ficaria guardada em segurança no porão.

Por um golpe de sorte, alguns novos amigos eram militantes da Igreja metodista de Ashford, Middlesex. Eles convenceram sua congregação a levantar fundos a fim de alugar um apartamento para meus pais, o que, depois da aprovação oficial, lhes garantiria um abrigo na Grã-Bretanha. Com essa documentação preliminar, o governo alemão deixou meus pais mandarem um grande engradado de madeira para meus amigos. Cada objeto tinha de ser aprovado: nada de valor era permitido, mas não fizeram objeções à minha bicicleta. Enquanto isso, os documentos de meus pais ficaram prontos no Ministério dos Negócios Interiores britânico. Tudo estava em ordem, faltava apenas uma última assinatura. Então irrompeu a guerra e o destino de meus pais foi selado. Ambos perderam a vida em campos de concentração, em 1942.

Em setembro de 1939, tudo isso ainda estava no futuro. Esperava-se que a guerra acabasse logo e as famílias se reunissem de novo. Um mês depois, fui aceita numa escola onde receberia formação de enfermeira de crianças. St. Christopher mudara-se de Londres — e da ameaça potencial de bombas — para uma pequena aldeia do Sul da Inglaterra. Após seis meses, recebi permissão para tirar uma semana de férias. Precisava obedecer ao protocolo e colocar etiquetas em todos os pertences que não estava levando comigo. Etiquetei devidamente minha bicicleta e deixei-a em seu lugar costumeiro no estacionamento de bicicletas.

Poucos dias depois, recebi uma carta da enfermeira-chefe, em que ela contava que uma lei nova fora aprovada. Eu era agora uma “estrangeira inimiga” e não podia me aproximar a menos de quinze milhas da costa. Não somente meus estudos estavam sendo interrompidos, como me disseram que eu não obedecera às instruções e que nenhuma de minhas roupas pudera ser encontrada. Quanto à minha bicicleta, eles até duvidavam de que ela existisse. Fiquei furiosa e impotente diante de mentiras tão escandalosas, mas sobretudo senti falta da minha bicicleta, que fora uma companheira tão boa.

Nos anos seguintes, mudei muito de lugar, sem deixar de obedecer à lei que exigia que os refugiados se registrassem na polícia local sempre que se afastassem de sua residência por mais de 24 horas. No final de 1945, quando estava morando em Londres, recebi um postal com o selo oficial da polícia. Entrei em pânico. O cartão dizia que deveria me apresentar à delegacia o mais breve possível. Tremi descontroladamente. O que eu fizera de errado? Incapaz de agüentar o medo e a expectativa, fui imediatamente à delegacia e mostrei o cartão ao sargento de plantão.

“Hei, Mac. Está aqui a garota que você estava esperando!”

Apareceu outro policial. “Você alguma vez teve uma bicicleta?”

“Sim.”

“O que aconteceu com ela?”

Contei-lhe a história. Depois de um instante, quase todos da delegacia estavam me escutando. Achei aquilo estranho.

“Como era ela?”

Descrevi a bicicleta. Quando mencionei os pneus largos vermelhos, todos riram aliviados. Um dos policiais apareceu com uma bicicleta.

“É esta?”

Estava enferrujada, os pneus estavam vazios e o assento tinha um rasgão, mas era indiscutivelmente a minha bicicleta.

“Então, o que está esperando? Pode levá-la embora.”

“Puxa, muito obrigada, muito obrigada mesmo”, disse eu. “Mas como vocês a encontraram?”

“Estava abandonada e alguém a achou. Trouxe para cá porque ainda tinha uma etiqueta com nome.”

Levei-a para meu apartamento cheia de felicidade. Mas, quando minha senhoria viu a bicicleta, ficou horrorizada.

“Você não vai andar nesta coisa em Londres, vai?”

“Por que não? Precisa apenas de uns consertos e ficará como nova.”

“Não é isso. Esses pneus largos denunciam que é uma bicicleta alemã. A guerra acabou, mas ainda odiamos aqueles canalhas e qualquer coisa que os lembre.”

Mandei pintar a armação e consertar o assento e os pneus, mas um único passeio nas vizinhanças me convenceu de que minha senhoria tinha razão. Em vez de olhares admirados, fui alvo de gritos e zombarias. Dois anos depois, vendi a bicicleta por uns poucos xelins para um colecionador de lembranças de guerra.

Edith Riemer
South Valley, Nova York


Caso encerrado

Na década de 1950, quando eu era adolescente, fui visitar meus primos em Bloomington, Illinois. Um dia, andando pela rua, começamos uma discussão sobre os versos de uma canção popular. Eu dizia que eram “um índio chamado Standing Bear”. Meu primo dizia que era “Standing There”. Enquanto caminhávamos, notei uma folha de papel na calçada. Peguei-a e era a partitura daquela canção. Não houve mais discussão. Eu estava com a razão, é claro.

Jerry Hoke
Torrance, Califórnia


A foto

Uma noite, eu estava trabalhando até tarde no escritório, em minha casa. Pelo canto do olho, vi uma foto cair flutuando até o chão. Olhei para ver de onde ela caíra e depois ri de mim mesma, pois sabia muito bem que acima de mim havia apenas o teto e a foto não podia ter caído de lá.

Depois que terminei o que estava fazendo, peguei a foto, que caíra com a face para baixo, virei-a e examinei-a. Eu jamais vira aquela imagem antes e não reconheci as pessoas retratadas: um homem, uma menininha e um menino menor, todos usando orelhas de Mouseketeer. Fiquei intrigada, olhei de novo para o lugar de onde a foto poderia ter caído e concluí que estava cansada demais para pensar no assunto. Fui para a cama e esqueci a foto.

No dia seguinte, a jovem que morava na casa da frente se casou em seu quintal. A festa foi adorável e encontrei muita gente pela primeira vez. A dama de honra me contou que crescera em minha casa, mas que se mudara quando tinha dezoito anos — o que teria acontecido havia cerca de dez anos, imaginei. Sua tia materna estava no casamento, assim como alguns dos seus primos. Ela disse que gostaria de voltar à casa um dia, para mostrar a seus parentes onde crescera. Convidei todos ali mesmo para uma visita e atravessamos a rua.

Brinquei com a dama de honra por saber seu nome, Jane, antes de conhecê-la, porque ela o havia entalhado no balcão da cozinha. Ela foi direto ao lugar e mostrou-o a seus parentes. No meio da risada provocada pela história de como ela e o irmão tinham deslizado pela escada dos fundos e se esborrachado na parede, Jane ficou subitamente muito triste. Disse que também tinha muitas lembranças tristes da casa, porque sua mãe, Nancy, morrera ali.

Fomos ao andar de cima e eu estava mostrando à tia os belos azulejos do banheiro quando Jane gritou de repente lá no escritório: “Meu Deus! Onde você conseguiu esta foto? É meu pai, meu irmão e eu!”. Contei-lhe que ela caíra no chão na noite anterior, mas não sabia como explicar de onde viera, pois jamais a vira antes. Mais lágrimas...

Disse para Jane levar o retrato. Ele lhe pertencia, falei.

Agora, às vezes, quando saio de casa, digo: “Até logo, Nancy. Cuide da casa para mim até eu voltar, o.k.?”.

Beverly Peterson
Uniontown, Pensilvânia


Um manuscrito encontrado no sótão

Na metade da década de 1970, arranjei um emprego no Des Moines Register. Quando disse a meu pai que estava mudando para Des Moines, ele me contou sobre a única vez em que lá estivera. Foi nos anos 30, quando era gerente administrativo da Southwest Review, a revista literária da Southern Methodist University, de Dallas. Seu amigo Lon Tinkle, que depois se tornou um escritor texano bem conhecido, era o editor da Review. Lon também lecionava inglês na smu e em sua turma havia uma aluna com uma grave deformação nas costas. Era a época da Depressão e a moça vinha de uma família tão pobre que não podia pagar pela cirurgia para corrigir o problema.

Certo dia, a mãe dela, que dirigia uma pensão em Galveston, estava limpando o sótão quando encontrou um velho e empoeirado manuscrito. Na capa, estavam escritas as palavras “Por O. Henry”. Era uma boa história e ela a enviou para sua filha na smu, que a mostrou para Lon. Ele jamais vira aquele conto antes, mas parecia ser de O. Henry, tinha o estilo de O. Henry, e ele sabia que William Sydney Porter, também conhecido como O. Henry, morara em Houston em certa época. Portanto, era bem possível que o famoso autor tivesse ido à praia e se hospedado na pensão de Galveston, tivesse escrito a história enquanto estava lá e esquecido o manuscrito. Lon mostrou-o a meu pai, que entrou em contato com um especialista em O. Henry da Universidade de Colúmbia, em Nova York. O homem disse que gostaria de ver o manuscrito, então meu pai pegou um trem e foi visitá-lo.

O especialista autenticou a história, era de fato de O. Henry, e meu pai decidiu vendê-la. Acabou indo a Des Moines para se encontrar com Gardner Cowles, um alto editor do Des Moines Register. Cowles adorou a história e comprou-a no ato. Meu pai deu o dinheiro para a garota da classe de Lon. Foi o suficiente para que ela fizesse a operação de que precisava tanto — e, até onde sei, para viver feliz para sempre.

Meu pai jamais me disse sobre o que era o conto de O. Henry. Mas duvido que pudesse ser melhor do que sua própria história: uma história sobre O. Henry que era uma história de O. Henry em si mesma.

Marcus Rosenbaum
Washington, D.C.


Uma lição não aprendida

Eu perdia tudo. Quer dizer, eu perdia ou destruía. Jóias. Bonecas. Jogos. O que caísse em minhas mãos eu mastigava, estropiava ou enviava para uma morte prematura. Eu comia papel e certa vez consumi um livro inteiro. Coitado do George Curioso, não ficou curioso por muito tempo perto de mim. Foi comido. Papai e mamãe me chamavam de “desastre instantâneo” para os objetos inanimados. E porque eu era tão bagunceira, eles sempre me colocavam à mesa ao lado dos convidados que não planejavam convidar de novo.

Um dia, no segundo ano primário, quando eu saía da escola, minha mãe me olhou surpresa. “Carol”, perguntou calmamente, mas com expressão confusa no rosto, “onde está seu macacão?” Olhei-me e vi meus sapatos de verniz de fivela, o collant branco que estava rasgado nos joelhos e o suéter branco (mas sujo) de gola rulê. Até que minha mãe falasse, eu não havia notado que não estava completamente vestida. Fiquei tão surpresa quanto ela, pois lembrava bem que vestira o macacão naquela manhã. Minha mãe e eu fomos até a escola, olhamos nas calçadas, nos corredores e no playground, mas não achamos o macacão de lã.

No inverno seguinte, meus pais me compraram um casaco de pele sintética com um chapéu combinando. Adorei meu casaco e meu chapéu novos e me sentia como uma moça ao usar o casaco, porque ele não vinha acompanhado por luvas com separação somente para o polegar. Eles queriam me comprar um casaco com capuz, porque sabiam como eu era, mas implorei e prometi que seria cuidadosa e não perderia o chapéu. Adorei especialmente os grandes pompons de pele na ponta do atilho do chapéu.

Um dia, meu pai chegou do trabalho e me chamou na sala. Inclinou-se e me abraçou, e depois me pediu que vestisse o casaco e o chapéu novos para que ele visse. Corri escada acima, saltando de dois em dois degraus, louca para me exibir para o meu pai. Vesti o casaco, mas não consegui achar o chapéu. Olhei nervosamente embaixo da cama e no closet, mas não estava em lugar algum. Talvez ele não notasse que eu estava sem chapéu.

Voei escada abaixo e desfilei como se estivesse numa passarela, com poses e sorrisos, exibindo meu casaco novo para meu pai, que me dedicava toda a sua atenção e me dizia como eu estava linda. Então, ele disse que queria ver o chapéu também. “Não, papai, quero mostrar só o casaco. Olhe só como o casaco fica em mim!”, disse eu, requebrando pelo corredor e tentando evitar o assunto do chapéu desaparecido. Eu sabia que aquilo daria encrenca. Ele estava dando umas risadinhas e eu me achei adorável e amada porque ele estava rindo e brincando comigo. A história do chapéu se repetiu umas duas vezes e de repente, no meio do riso, papai me bateu. Ele me deu um tapa na cara e eu não entendi o porquê. Ao ouvir o barulho do tapa, minha mãe gritou: “Mike! O que você está fazendo?! O que você está fazendo?!”. Ela estava esbaforida e atônita. A fúria de meu pai machucara tanto minha mãe como eu. E fiquei ali, com a mão no meu rosto que ardia, chorando. Então, ele tirou meu chapéu novo do bolso do seu casaco. Achara-o na rua e, enquanto me olhava por cima dos óculos, disse: “Quem sabe agora você aprende a ser mais cuidadosa e a não perder as coisas”.

Sou uma adulta agora, e ainda perco coisas. Ainda sou descuidada. Mas o que meu pai me ensinou naquele dia não foi responsabilidade. O que eu aprendi foi a não confiar em seu riso. Porque até a risada dele dói.

Carol Sherman-Jones
Covington, Kentucky


Um Natal em família

Meu pai contou-me esta história. Ela aconteceu no começo dos anos 20, em Seattle, antes de meu nascimento. Ele era o mais velho de seis irmãos e uma irmã, alguns dos quais haviam saído de casa.

As finanças da família estavam péssimas. O negócio de meu pai fora à falência, quase não havia empregos e o país estava perto de uma depressão. Naquele ano, tínhamos uma árvore de Natal, mas nada de presentes. Simplesmente não podíamos comprá-los. Na véspera do Natal, fomos dormir deprimidos.

Entretanto, quando acordamos na manhã do Natal, havia um monte inacreditável de presentes sob a árvore. Tentamos nos controlar no café-da-manhã, mas foi a refeição mais rápida de nossas vidas.

Então a diversão começou. Minha mãe foi a primeira. Ficamos em volta dela, na expectativa, e quando ela abriu seu pacote vimos que ganhara um velho xale que ela havia “posto em lugar errado” vários meses antes. Meu pai ganhou um machado velho com o cabo quebrado. Minha irmã ganhou seus velhos chinelos. Um dos meninos ganhou uma calça remendada e amassada. Eu ganhei um chapéu, o mesmo que achava que havia deixado num restaurante, um mês antes.

Cada coisa velha trouxe uma nova surpresa. Não demorou para que todos estivéssemos rindo tanto que mal conseguíamos abrir os pacotes. Mas de onde viera toda aquela generosidade? De meu irmão Morris. Durante meses, ele escondera coisas velhas, das quais sabia que não daríamos falta. Então, na véspera do Natal, depois que todos foram para a cama, ele embrulhara em silêncio os presentes e os pusera sob a árvore.

Foi um dos melhores Natais que tivemos.

Don Graves
Anchorage, Alasca


A caneta arrancada

Um ano depois do final da Segunda Guerra Mundial, eu fazia parte do exército de ocupação em Okinawa. Nos últimos meses, houvera uma série de roubos em nossa base. Telas de janelas foram cortadas, objetos de meu barracão sumiram, mas, estranhamente, o ladrão não levara mais do que doces e pequenas bugigangas, nada de valor. Em certa ocasião, vi pegadas de pés descalços molhados no chão e na mesa de madeira. Eram minúsculas e deviam pertencer a uma criança. Sabia-se que pequenos bandos de órfãos percorriam a ilha vivendo do que podiam encontrar, levando qualquer coisa que não estivesse aferrolhada.

Mas, então, minha estimada caneta-tinteiro Waterman desapareceu. Aquilo estava indo longe demais.

Certa manhã, escolhemos um homem do campo de prisioneiros para fazer o serviço. Eu o vira várias vezes antes. Era calmo, bonito, aprumado, ouvia com atenção. Ao olhá-lo, eu imaginava que, qualquer que tivesse sido seu posto no Exército japonês (possivelmente um oficial), ele desempenhara bem suas funções. E agora lá estava minha caneta Waterman presa ao bolso daquele digno japonês.

Não pude acreditar que ele fosse capaz de roubar. Em geral, eu era um bom avaliador de caráter e aquele homem me parecera confiável. Mas eu devia estar enganado daquela vez. Afinal, ele estava com minha caneta e vinha trabalhando em nossa área havia dias. Decidi agir com base em minhas suspeitas e ignorar a simpatia que sentia por ele. Apontei para a caneta e estendi a mão.

Ele recuou, surpreso.

Toquei na caneta e pedi de novo, com um gesto, que ele a entregasse. O japonês sacudiu a cabeça. Parecia levemente assustado — e totalmente sincero. Mas eu não ia me deixar enrolar. Amarrei a cara e insisti.

Por fim, ele me deu a caneta, mas com grande tristeza e desapontamento. Afinal, o que pode um prisioneiro fazer se um representante do exército vencedor lhe dá uma ordem? A recusa a obedecer já provocara castigos e ele já deveria ter tido sua dose daquele tipo de coisa.

Ele não voltou na manhã seguinte e nunca mais o vi.

Três semanas depois, encontrei minha caneta no barracão. Fiquei horrorizado com a atrocidade que cometera. Eu conhecia a dor de ser vítima, de ser injustamente passado para trás, de ver uma confiança ser morta a sangue-frio. Como eu podia ter cometido aquele erro? Ambas as canetas eram verdes com listras douradas, mas em uma delas as listras eram horizontais, na outra, verticais. Para tornar as coisas piores, eu sabia como devia ter sido muito mais difícil para aquele homem do que para mim conseguir um artigo americano tão valorizado como a caneta Waterman.

Agora, cinqüenta anos depois, não tenho mais nenhuma daquelas canetas. Mas gostaria de encontrar o homem, para pedir-lhe desculpas.

Robert M. Rock
Santa Rosa, Califórnia


A bolsa

No começo dos anos 70, trabalhei como leitora de relógios de eletricidade e gás para a pg&e, em San Mateo. Éramos apenas três mulheres no departamento. Uma vez por mês, eu percorria um bairro de Redwood City. As pessoas que moravam lá eram, em sua maioria, casais de italianos idosos, viúvos, viúvas, e, quando eles morriam, seus filhos arrumavam as casas e as alugavam. Era possível saber pela aparência do jardim. As flores e os tomateiros eram substituídos por grama fácil de cuidar.

Era ali que morava Joe: em um pequeno bangalô na última quadra de minha rota. Ele tinha um grande jardim na frente e um quintal muito bem cuidado nos fundos.

Todos os meses, eu lia o relógio do gás na frente e depois batia na porta, para que Joe me deixasse atravessar a casa e eu pudesse ler o relógio da eletricidade nos fundos. Ele era um homem gorducho e baixo, com cabelos que haviam sido pretos outrora, mas que agora estavam quase totalmente grisalhos, e olhos negros sorridentes. Desde o início, insistiu que eu o chamasse de Joe. Tinha provavelmente setenta e tantos anos, estava sempre em casa e parecia viver sozinho. Ele abria a porta e dizia, com sotaque italiano, “Bom dia! Bom dia!”, a qualquer hora do dia. “Entre! Entre! Venha! Venha! Venha!” Joe sempre ficava dentro da casa enquanto eu fazia meu trabalho. Depois, atravessávamos o jardim e ele me dava frutas e verduras, qualquer que fosse a estação.

O relógio da eletricidade ficava acima de uma velha mesa de piquenique que fora encostada na parede, sob a sombra de uma grande parreira. Sobre a mesa, perto da borda, havia uma bolsa velha. Era o tipo de bolsa que uma velha senhora usaria: tinha uma estrutura dura e curva, coberta com couro marrom-escuro arranhado e gasto. O fecho era de pressão, manchado e descolorido pelos anos de uso. No início, fiquei imaginando onde ela estaria, a dona da bolsa. Estaria doente? Ou talvez aquilo fosse um teste, para ver se eu era honesta. Com o passar do tempo, deixei de questionar sua presença. Ficava ao lado do banco, diante da bolsa, e lia o relógio, mas estava sempre consciente de sua presença, sólida e inamovível. Uma vez, quase toquei nela.

Certo dia de agosto, cerca de dois anos depois que eu começara a visitar a casa, o tempo estava extraordinariamente quente. Quando bati na porta de Joe, eu estava desidratada e sofrendo com o calor. Atravessamos o pátio e ele insistiu que eu sentasse no banco, junto à mesa de piquenique. Quando sentei ali olhando para a bolsa, ouvi Joe dizer com voz trêmula: “Nós íamos às compras... Ela pôs a bolsa na mesa... Precisava sentar por um minuto... Não pude tocar nela depois... Não consigo tirá-la”. Assim que ergui os olhos para ele, Joe deu as costas e entrou logo na casa. Quando voltou, seu olhos sorriam ao me dar orgulhosamente um grande saco de tomates e abobrinhas e uma Fanta.

Pensei muito sobre a bolsa durante o mês seguinte e estava ansiosa para ver Joe de novo. Quando finalmente voltei a sua casa, em setembro, notei logo que alguma coisa não ia bem. Seu jardim estava amarelado e havia verduras apodrecendo no pé. Achando que ele poderia estar doente, corri até a porta e bati com força. Um homem magro com os olhos de Joe — mas sem o sorriso — abriu a porta. Eu disse: “Onde está Joe?”.

Ele olhou mudo para a garota de longos cabelos loiros vestida com um uniforme de homem. Insegura sobre o que dizer em seguida, falei que estava ali para ler os relógios. Ele virou-se para outro homem e pediu-lhe que abrisse o portão lateral para mim, um caminho que eu jamais fizera antes. Caminhei rapidamente até os fundos da casa, dei a volta na parreira gigante e cheguei à mesa de piquenique. O homem ficou por perto e esperou. Olhei para o relógio e escrevi uns números em meu caderno. Quando terminei, passei pelo homem sem dizer uma palavra. Deixei o quintal e fechei o portão atrás de mim.

A bolsa não estava mais lá.

Barbara Hudin
Bend, Oregon


Um presente de ouro

Era o inverno de 1937, logo depois do Natal. Ainda estávamos na Depressão, mas eu me sentia animado. No final de janeiro, eu me formaria na escola primária. Tinha apenas doze anos — menos do que todos os outros meninos de minha classe, e muito menor. Minha mãe ainda me vestia de calça curta e, quando chegava o frio, eu usava knickers* de lã e meias até o joelho. A maioria de meus colegas não usava mais calça curta, mas, embora eles fossem mais velhos e mais altos do que eu, ainda usavam knickers. Somente dois dos mais altos de catorze anos tinham passado a usar calça comprida.

Porém, para a cerimônia de formatura, todos os meninos deveriam se vestir da mesma maneira: camisa branca, gravata azul-marinho de tricô e calça de lã azul-escuro. Perguntei a um ou dois dos meninos de knickers o que eles iam fazer e eles me responderam que iriam à formatura de calça comprida.

Esperei até uma semana antes da formatura para contar à minha mãe. Achei que era melhor contar a novidade do jeito mais suave que eu pudesse.

Lembro que era uma tarde fria de segunda-feira. Eu chegara da escola depois de atravessar ruas e esquinas traiçoeiras. Havia profundas trilhas cortadas nas camadas grossas de neve derretida e recongelada. Dentro de casa, estava quente e reconfortante. Deixei meu sobretudo no armário do corredor enquanto sentia o cheiro torturante de peixe frito na manteiga. Fui até a cozinha pegar um copo de leite, um dos poucos luxos em nossa casa.

“Hum, mamãe, que cheiro bom. Adoro peixe.”

“Não comece a me pedir um pouco agora”, disse ela, “como você sempre faz. Lembre que, se você comer agora, não ganha sua parte no jantar.”

Era um pequeno jogo que fazíamos, sempre com o mesmo resultado. Eu a incomodava até ela jurar que eu a estava distraindo. Então ela cedia e me deixava comer uma amostra generosa. No jantar, eu invariavelmente ganhava minha parte inteira.

Daquela vez, não comecei o jogo.

“Mamãe, sobre a formatura...”

“Sim?”, respondeu ela, sacudindo a frigideira no fogo.

“Eles vão me dar a Medalha do Primeiro Lugar”, disse eu.

Sem deixar de mexer no fogão, ela olhou por sobre o ombro para mim e deu um sorriso largo. “Isso é maravilhoso, querido. Papai e eu estaremos lá e seremos os pais mais orgulhosos do lugar.”

Ela deve ter percebido pela minha cara que algo estava errado. Virou as costas para o fogão e perguntou: “E então?”.

“Então, eu tenho de usar calça comprida.”

Ela não demorou muito para me dar a resposta que eu esperava.

“Querido, não temos dinheiro para comprar uma calça nova agora”, disse, com muita calma. “Você sabe disso.”

“Tá certo”, explodi. “Então não vou à formatura. E tem mais: vou fugir de casa!”

Fiquei esperando. Minha mãe sacudiu a frigideira várias vezes e depois virou os pedaços de peixe um por um. Houve um grande silêncio, exceto pelo ruído da manteiga derretida fervendo na panela.

Ela virou-se para mim. Sua mão estendida segurava a espátula na qual ela equilibrava um pedaço dourado de peixe frito.

“Olhe”, disse ela, “corte um dos pãezinhos que estão na mesa e faça um belo sanduíche de peixe para você. E, se eu fosse você, não faria as malas ainda. Vamos resolver de alguma maneira o problema da calça.”

Mamãe observou-me enquanto eu fazia o sanduíche. Continuou me observando enquanto eu comia, divertindo-se com os suspiros de prazer que eu dava a cada dentada.

“Isso deve servir para segurar você”, disse ela.

No sábado seguinte, quando minha mãe disse “vamos às compras”, eu tive certeza de que ela resolvera o problema.

Na metade da manhã, enfrentamos o frio terrível que caíra sobre a cidade e tomamos o trólebus que passava na Westchester Avenue. Descemos no Southern Boulevard, a melhor área de comércio do East Bronx. A loja de roupas ficava poucas quadras adiante. Desde que eu me conhecia por gente, minhas calças eram compradas do sr. Zenger. Eu gostava dele e do comentário que sempre fazia: “Confie em mim, meu filho, vou lhe conseguir o melhor e com essas calças vai parecer que você tem um milhão de dólares”.

Mas primeiro descemos um pouco pelo bulevar e paramos num lugar que eu nunca vira antes.

Minha mãe disse: “Espere aqui”.

Ela abriu a porta e entrou num lugar que parecia um pequeno banco. Li a placa acima da porta: poupança e empréstimo.

Ela saiu dez minutos depois e fomos para a loja de calças. Lá, o sr. Zenger me fez experimentar o que era certamente a calça de lã pura azul-marinho mais magnífica do mundo.

Ele tirou minhas medidas e depois fez as bainhas enquanto esperávamos. O preço foi três dólares e cinqüenta centavos, incluindo os ajustes.

A calça nova foi embrulhada em papel e amarrada com barbante. Fiquei segurando o pacote apertado sob meu braço quando minha mãe foi pagar o sr. Zenger. Ela tirou um pequeno envelope marrom da bolsa, rasgou-o e tirou o conteúdo. Eram quatro notas novas de um dólar, que ela deu ao sr. Zenger. Ele abriu a caixa e deu cinqüenta centavos de troco à minha mãe.

Na volta para casa, sentei no lado da janela do trólebus e passei boa parte do trajeto olhando para fora. Lá pela metade do caminho, não havia muita coisa para ver enquanto atravessávamos a ponte do rio Bronx e, ao me virar para olhar para a frente, vi as mãos de minha mãe dobradas sobre a bolsa, que estava em seu colo. Foi então que percebi: a aliança de ouro que sempre estivera em seu dedo anular da mão esquerda não estava mais lá.

John Keith
San José, Califórnia

 

 

* Calções compridos amarrados na altura dos joelhos. (N. T.)


famílias


Cancelado pela chuva

Na última vez em que fui ao Tiger Stadium (então conhecido como Briggs Stadium), tinha oito anos. Meu pai chegou do trabalho e anunciou que me levaria ao jogo. Ele era fã de beisebol e já havíamos ido a vários jogos diurnos antes, mas aquele seria meu primeiro jogo noturno.

Chegamos suficientemente cedo para conseguir estacionar de graça na Michigan Avenue. No segundo inning, começou a chover e a chuva se transformou numa tempestade. Vinte minutos depois, anunciaram pelos alto-falantes que o jogo fora cancelado.

Ficamos sob as arquibancadas por cerca de uma hora, esperando que a chuva amainasse. Quando eles pararam de vender cerveja, meu pai disse que deveríamos correr até o carro.

Tínhamos um sedã preto 1948, cuja porta do lado do motorista estava quebrada e só podia ser aberta por dentro. Chegamos à porta do lado do passageiro ofegantes e ensopados. Ao tentar pegar as chaves, meu pai deixou-as cair na sarjeta. Quando se abaixou para salvá-las da água corrente, o trinco da porta derrubou o chapéu de feltro marrom de sua cabeça. Consegui pegar o chapéu meia quadra adiante e voltei correndo para o carro.

Meu pai já estava sentado ao volante. Saltei para dentro, desabei no assento do passageiro e dei-lhe o chapéu, que parecia um trapo ensopado. Ele estudou-o por um instante e então enfiou-o na cabeça. A água do chapéu jorrou sobre seus ombros e seu colo, e depois sobre o volante e o painel. Ele soltou um rugido. Assustei-me, achando que ele estava uivando de raiva. Quando percebi que estava rindo, ri também e passamos alguns segundos rindo histericamente juntos. Eu nunca vira meu pai rir daquele jeito — e jamais vi de novo. Foi uma explosão que veio de algum lugar de dentro dele, uma força que ele sempre conservara represada.

Anos mais tarde, quando falei com ele sobre aquela noite e de como eu lembrava sua risada, ele insistiu que aquilo nunca acontecera.

Stan Benkoski
Sunnyvale, Califórnia


Isolamento

Uma semana depois que o corpo de minha mãe foi cremado, meu pai pegou emprestada de alguém uma van Econoline e nos enfiou lá dentro. Sentamos em cadeiras baratas de praia na traseira, bebendo cerveja, que respingava quando ele fazia curvas depressa demais. Levou-nos para um lugar chamado West Meadow Beach, em North Fork, Long Island. O bangalô fora alugado para nós por piedade. Minha mãe acabara de ser assassinada e meu pai ficara sozinho com seis filhos adolescentes.

Estávamos acostumados com uma praia de mar ventosa e rústica. Nossa casa de verão ficava junto ao Atlântico, em Neponsit, uma pequena vila em Queens, e adorávamos o lugar. Mas ele estava contaminado pela morte. Minha mãe fora estrangulada no quarto daquela casa numa noite do final de junho. Não poderíamos ter ficado lá, mesmo que quiséssemos. As pessoas não paravam de passar e apontar e a polícia havia bagunçado tudo com seus copos de café e material de digitais.

O bangalô do estranho ficava no estreito de Long Island. Não havia ondas ou seixos na praia e coisas domesticadas, civilizadas passavam flutuando silenciosamente. Eu tinha dezoito anos. Sarah, a caçula, estava com doze. Gaby, a mais velha, com vinte. Blaise tinha dezesseis, Mark catorze e Heather treze. Meu pai estava com 51 anos. Ele não tinha conforto para nos oferecer, então nos deu isolamento.

Antes de West Meadow Beach, éramos um bando de jovens americanos insignificantes, razoavelmente felizes, entupidos de drogas. Compartilhávamos a maconha, mas não nossas roupas favoritas; odiávamos a música preferida uns dos outros, mas adorávamos os amigos uns dos outros. Tudo isso mudou quando nos vimos naquela casa, amarrados uns aos outros pelo cinismo, a depressão e o álcool.

Dentro do bangalô tudo era frio e pegajoso. Havia uma alegria estranha nele, com brinquedos e almofadas florais iluminados por lâmpadas brilhantes e luminárias à prova de furacão. Nós todos éramos sensíveis à luz, tendo crescido numa casa escura e nas casas escuras de nossas avós. Sentamos com as luzes apagadas, sob a incandescência dos cigarros. Meu pai trouxera muita bebida, de todos os tipos, bem como vários pacotes de cigarro, mas quase nenhuma comida. Foi assim que inauguramos nossa tradição de empatia familiar bêbada.

A bebida não fazia diferença, mas era algo a fazer, algo que parecia um progresso. Ninguém tinha muito a dizer. Então sentamos na mobília de vime do estranho e tomamos bebidas muito fortes: gim-tônica, vodca com suco de uva, rum e qualquer coisa. Em algum lugar lá fora, os vizinhos estavam felizes. Era por volta do Quatro de Julho e eles davam festas.

No dia seguinte, estacionamos nos fundos da praia, nos escarrapachamos em espreguiçadeiras atrás das dunas e da relva, com nossos longos cabelos e nossas longas pernas, queimando Marlboros ao sol. Para os outros, teríamos a aparência de entediados, mas na verdade estávamos mergulhados em pensamentos. Mergulhados em pensamentos. O estreito era como se fosse uma grande piscina chata. Antes de mais nada, começamos a beber, o que parecia uma boa idéia. Ninguém foi nadar.

Tínhamos uma canoa, que caíra da van no meio da estrada, quase matando o cara que vinha atrás. Fora um dos pontos altos da viagem. Depois de alguns drinques, Heather, Sarah e papai levaram a canoa até um banco de areia e ele as puxou, inclinando-se na brisa como um gigante Golias de cabelos grisalhos. A água molhou os pêlos grisalhos de seu peito e seu calção largo grudou em seu traseiro magro. Ele puxou a canoa com dor no rosto, como se fosse uma penitência. As meninas estavam sentadas na canoa, segurando em silêncio seus highballs e olhando para as costas de meu pai.

Continuamos assim pelos dias ensolarados e quentes de verão e pelas longas, estranhas noites. No quarto dia, minha prima chegou para ver como estávamos e passar uns dias ao sol. Ela tagarelava alto e andava entre nós como uma televisão ambulante que fica ligada e ninguém quer ver. Disse que achava que talvez meu pai não devesse deixar as garotas menores beber. Rimos disso, depois ficamos muito quietos e alguns de nós começaram a chorar. Ela foi embora no dia seguinte.

Isso foi em 1980, há vinte anos. Acho difícil de acreditar, porque sei que todos nós ainda estamos lá, flutuando e balançando para lá e para cá, deixando o tempo passar enquanto esperamos que as coisas melhorem.

Lucy Hayden
Ancram, Nova York


Como meu pai perdeu o emprego

Aos sessenta anos, faltando poucos anos para a aposentadoria, meu pai perdeu o emprego. Durante a maior parte de sua vida útil ele gerenciara um pequeno departamento de impressão de uma fábrica de borracha de Connecticut. Durante muito tempo propriedade da B. F. Goodrich, ela fora vendida recentemente para um empresário excêntrico do Meio-Oeste conhecido por citar a Bíblia em um momento e blasfemar no seguinte. Para surpresa de ninguém, o negócio começou logo a perder dinheiro. Felizmente, meu pai conseguiu escapar às freqüentes demissões e, uma vez que a direção precisaria sempre de formulários e papéis impressos, ele supôs que sua sorte continuaria por mais um tempo.

Mas na noite de 1o de março de 1975, três homens armados usando máscaras de esqui apareceram na fábrica, seqüestraram o guarda do turno da noite e o zelador e os abandonaram, amarrados e de olhos vendados, num depósito de madeira, a alguns quilômetros de distância. Os intrusos colocaram explosivos e à meia-noite a fábrica foi pelos ares; o estouro sacudiu as calçadas e destruiu as janelas de ambos os lados do rio Housatonic. Ninguém morreu, mas na manhã seguinte quase mil trabalhadores se viram sem emprego. Apesar das afirmações dos bandidos de que faziam parte de uma organização radical de esquerda, uma investigação do fbi revelou que o responsável fora o dono da empresa, com a ajuda de seu igualmente estranho assistente, que se dizia médium. A dupla queria escapar da ruína financeira com o dinheiro do seguro. Embora a investigação tenha sido rápida, o julgamento subseqüente não foi e a pensão de meu pai ficaria congelada durante vários anos.

Eu estava longe, na universidade, quando ele me telefonou para contar a notícia chocante. A comunidade ficou atordoada; a região já tinha uma das maiores taxas de desemprego do estado. A maioria das pessoas vivia no vale do Housatonic desde sempre. Onde arranjariam trabalho? Meu pai odiava a idéia de apelar para o seguro-desemprego, pois contradizia sua crença sobre como uma pessoa honesta ganha a vida. Se havia conseguido um emprego abrindo valas durante a Grande Depressão quando era adolescente, então, por Deus, ele conseguiria um emprego agora.

Meu pai cuidara bem de si mesmo e ainda parecia um homem de quarenta e poucos anos. Seus cabelos pretos retintos, grossos e ondulados como os de Fred MacMurray em Pacto de sangue, mal revelavam traços de grisalho e um regime diário de flexões o mantinha sem barriga. Com certeza, ninguém poderia usar sua idade cronológica contra ele. Papai esquadrinhou os anúncios de emprego freneticamente, levando em conta tudo, de vigia noturno — minha mãe sufocou essa possibilidade — a encarregado da expedição de mercadorias. Não havia muita procura por impressores.

Por fim, após meses de rejeições e perspectivas ruins, ele ouviu falar de um emprego de gerente de gráfica numa universidade local. O posto era perfeito para suas qualificações. Não pagava tanto quanto seu antigo emprego, mas lhe oferecia a chance de usar o conhecimento técnico que adquirira ao longo dos anos. Apressou-se a se candidatar.

Ele se deu bem com o jovem funcionário do departamento de pessoal, que examinou sua proposta com óbvio interesse e entusiasmo. Meu pai gostou do sujeito e adorou a idéia de estar num ambiente acadêmico. Sempre se arrependera de não terminar o colégio e trabalhar numa escola superior seria a segunda melhor coisa depois do céu.

Após uma conversa amistosa, o funcionário recuou, bateu as mãos na mesa e disse: “Bom, acho que encontramos nosso impressor”. Perguntou a meu pai quando poderia começar. Embora fosse necessário mais um estágio burocrático para a aprovação, disse que meu pai era de longe o candidato mais bem qualificado e que poderia esperar a notificação oficial de sua contratação dentro de poucos dias.

Eles se despediram, mas quando meu pai se dirigiu para a porta, o jovem o chamou de volta. “Só uma coisinha”, disse ele com um sorriso, “você esqueceu de preencher a idade no formulário.” Não se tratava de esquecimento. Tendo sido desqualificado bruscamente tantas vezes por causa de sua idade, meu pai aprendera a prevenir o inevitável deixando aquela linha em branco. Mas dessa vez era diferente. Ele era a melhor pessoa para o cargo. Estava praticamente contratado. Por que não ser honesto?

“Tenho sessenta anos”, disse meu pai, com uma ponta de orgulho. O sorriso do rapaz se apagou. “Sessenta?”, repetiu ele. Baixou a cabeça e sua testa enrugou-se. Era como se alguém tivesse apagado uma luz. “Entendo”, disse ele, com a voz subitamente monótona e impessoal, “bem, temos vários outros candidatos para entrevistar, então não posso lhe prometer nada. Você ficará sabendo. Tenha um bom dia.”

Não houve telefonema, não houve carta. Meu pai perdeu o ânimo e qualquer esperança de que seus últimos anos de trabalho teriam algum valor. Desesperado, mesmo com seis meses de seguro-desemprego por receber, pegou um emprego de operário numa tinturaria. Não havia sindicato. O trabalho era fisicamente extenuante, as pausas eram mínimas e ele era forçado a comer seu almoço no trabalho, dando mordidas quando podia num sanduíche que enfiava no bolso traseiro. Cercado por imigrantes recentes da Europa oriental e da América Central, gente tão faminta por uma vida boa nos Estados Unidos que aceitava quaisquer condições de trabalho sem se queixar, meu pai era quase a única pessoa na fábrica que falava inglês. Era também o mais velho.

Visitei meus pais naquele dia de Ação de Graças, menos de dois meses depois que meu pai começara no novo emprego. Quando ele correu para me abraçar, como sempre fazia quando eu chegava em casa, vi que suas mãos estavam manchadas com tintura indelével e que seus cabelos tinham ficado completamente grisalhos.

Fred Muratori
Dryden, Nova York


Danny Kowalski

Em 1952, meu pai deixou o emprego na Ford, a fim de mudar para Idaho e abrir seu próprio negócio. Em vez disso, teve poliomielite e passou seis meses num pulmão de aço. Após mais três anos de tratamento, mudamos para a cidade de Nova York, onde meu pai finalmente conseguiu um emprego de vendedor, desta vez da companhia inglesa Jaguar.

Uma das mordomias do novo emprego era o carro que a empresa lhe emprestou: um Jaguar Mark ix em dois tons de cinza, o último dos elegantes modelos arredondados. Parecia saído da garagem de uma estrela do cinema.

Eu freqüentava a São João Evangelista, uma escola paroquial do East Side com um pátio asfaltado cercado de arame.

Todas as manhãs, meu pai me levava à escola no seu Jaguar e depois ia para o trabalho. Filho de um ferreiro de Parsons, Kansas, tinha orgulho do carro e pensava que eu devia me orgulhar também. Papai adorava os bancos de couro legítimo e as pequenas mesas de nogueira com nós que ficavam presas nas costas dos bancos dianteiros, onde eu podia terminar minha lição de casa.

Mas eu ficava constrangido por causa do carro. Após anos de doença e dívidas, provavelmente não tínhamos mais dinheiro do que a maioria dos meninos da escola, filhos de operários irlandeses, italianos e poloneses. Mas tínhamos um Jaguar e poderíamos muito bem ser Rockefellers.

O carro me separava dos outros meninos, especialmente de Danny Kowalski. Danny era o que se chamava então de delinqüente juvenil. Era franzino e tinha cabelos loiros esculpidos com óleo e spray, num topete ondeado. Usava as botas pontudas e brilhantes que chamávamos de “escaladoras de cercas porto-riquenhas”, estava sempre com o colarinho levantado e havia um permanente e ensaiado rosnado no lábio superior. Dizia-se que tinha uma navalha, talvez até uma arma de fogo improvisada.

Todas as manhãs, Danny Kowalski esperava no mesmo lugar da cerca da escola e me observava quando eu descia do meu Jaguar de dois tons de cinza e entrava no pátio. Nunca disse uma palavra, apenas fixava seus olhos duros e irados em mim. Eu sabia que ele odiava aquele carro e que me odiava, e que, algum dia, iria me bater por causa disso.

Meu pai morreu dois meses depois. Perdemos o carro, é óbvio, e logo eu teria de ir morar com minha avó, em Nova Jersey. A sra. Ritchfield, uma vizinha idosa, se ofereceu para me levar à escola no dia seguinte ao funeral.

Quando nos aproximamos da escola naquela manhã, vi Danny pendurado na cerca, no lugar de sempre, com o colarinho da jaqueta levantado, os cabelos penteados com perfeição, as botas recentemente afiadas. Mas desta vez, quando passei por ele em companhia daquela senhora idosa e fraca e sem nenhum carro inglês de elite, senti que desabara o muro entre nós. Agora eu era como Danny, como seus amigos. Éramos finalmente iguais.

Aliviado, entrei na escola. E foi naquela manhã que Danny Kowalski me bateu.

Charlie Peters
Santa Mônica, Califórnia


Vingança

Minha avó era uma mulher de vontade férrea, a temida matriarca de nossa família nova-iorquina na década de 1950.

Quando eu tinha cinco anos, ela convidou alguns parentes e amigos para uma festa em seu apartamento, no Bronx. Entre os convidados estava um manda-chuva da vizinhança que ia muito bem nos negócios. Sua esposa tinha orgulho do status social deles e tratou de deixar isso claro a todos. A filha deles era mais ou menos da minha idade, mimada e acostumada a ter os caprichos satisfeitos.

Vovó passou muito tempo dando atenção ao manda-chuva e sua família. Ela os considerava os membros mais importantes de seu círculo social e se esforçava por agradá-los.

A certa altura da festa, fui ao banheiro. Um ou dois minutos depois, a garotinha abriu a porta e entrou em grande estilo. Eu ainda estava sentado. “Você não sabe que as meninas não devem entrar no banheiro quando um menino está usando?”, gritei.

A surpresa por me encontrar lá e a raiva com que a tratei atordoaram a garotinha. Ela começou a chorar. Fechou a porta, correu para a cozinha e queixou-se em lágrimas para seus pais e minha avó.

A maioria dos presentes escutara meus gritos e se divertiu com isso. Mas não minha avó.

Ela estava esperando por mim quando saí do banheiro. Recebi a mais longa e cortante descompostura de minha jovem vida. Vovó bradou que eu era mal-educado e rude e que insultara aquela linda garotinha. Os convidados observaram e se encolheram em silêncio. A personalidade de minha avó era tão poderosa que ninguém ousou me defender.

Depois que ela terminou a reprimenda e eu fui dispensado, a festa continuou, mas a atmosfera ficou amortecida.

Vinte minutos depois, tudo mudou. Vovó passou pelo banheiro e notou uma torrente de água que escorria por debaixo da porta.

Ela soltou dois gritos agudos, o primeiro de espanto, o segundo de ira. Escancarou a porta do banheiro e viu que os ralos da pia e da banheira estavam tampados e as torneiras totalmente abertas.

Todo mundo sabia quem era o culpado. Os convidados formaram uma barreira protetora em torno de mim, mas vovó estava tão furiosa que quase conseguiu me pegar, sacudindo os braços como se tentasse nadar por sobre as pessoas. Vários homens fortes conseguiram afastá-la e acalmá-la, embora ela soltasse imprecações e permanecesse agitada por um bom tempo.

Meu avô pegou-me pela mão e sentou-me em seu colo, numa cadeira perto da janela. Ele era bondoso e meigo, cheio de sabedoria e paciência. Raramente erguia a voz para alguém e jamais discutia com a esposa ou contradizia seus desejos.

Olhou-me com muita curiosidade, sem nenhuma raiva ou contrariedade. “Diga-me”, disse ele, “por que você fez isso?”

“Ora, ela gritou comigo por nada”, expliquei com sinceridade. “Agora ela tem um motivo para gritar.”

Vovô não disse nada. Ficou sentado, olhando para mim e sorrindo. Por fim, falou: “Eric, você é a minha vingança”.

Eric Brotman
Nevada City, Califórnia


Chris

Foi no ano em que minha mãe parou de beber, então foi dois anos depois que um motorista irresponsável matou minha irmã num cruzamento, um ano depois que meu pai morreu de trombose coronária na escada da frente, oito meses antes de meu irmão Ronnie morrer de aids e seis meses antes de ele revelar sua situação.

Era verão, um verão insuportavelmente quente quando minha filha Rachel e eu fomos à Universidade de Boston para ela receber as orientações de caloura e visitamos o que sobrava de minha família. Tínhamos gasto muito dinheiro para vir do Novo México.

Antes de sair de casa, discuti a viagem com minha amiga Janie. Eu havia feito aquela rota para ir a tantos enterros que me tornara apreensiva em relação a viajar de avião. A certa altura da conversa, eu disse: “Gostaria muito de ver meu primo Chris mais uma vez antes que ele morra, mas as chances são mínimas”. Ele estava com aids e contara para a família havia vários meses. “Não quer ver ninguém. Não responde às minhas cartas. Está em algum lugar de Provincetown.”

Ela disse: “Simplesmente vá”.

“Como assim?”

“Vá a Boston. Vá a Provincetown. Não pense. Simplesmente faça.”

Foi o melhor conselho que alguém já me deu.

Depois da orientação na universidade, fomos à casa da família e telefonei a Chris para lhe perguntar se nos receberia. Deixei um total de oito mensagens na secretária eletrônica. Era um daqueles anos em que minha mãe não estava falando com a irmã dela — a mãe de Chris — e, embora eu fosse adulta e soubesse que não fora — pelo menos com muita freqüência — a causa de ela beber, decidi que não faria nada tão impolido quanto telefonar para minha tia Lorraine.

E as palavras de Janie voltaram à minha cabeça: “Simplesmente faça”.

Aluguei um carro e disse à minha mãe que Rachel e eu íamos ver se conseguíamos encontrar Chris. Pensando melhor, perguntei: “Você gostaria de ir junto?”.

“Sim.” Desde que parara de beber, ela se tornara lacônica.

E assim nossos diversos destinos foram determinados. Chegar a Provincetown foi um desafio. Chris não respondera a nenhum de meus telefonemas e não sabíamos onde morava. Depois de uma parada na Triple-A e o sempre necessário “café e”, partimos com mapas e TripTiks na direção geral de Cape Cod. Rachel cochilava e minha mãe examinava o pára-brisa. Chegamos um pouco depois da hora do almoço.

Encontrei uma cabine telefônica convenientemente localizada junto a um restaurante de frutos do mar e deixei mais uma mensagem, dizendo onde estávamos.

Mamãe, Rachel e eu entramos no restaurante escuro com vista para o oceano. Minha mãe pediu uma cerveja. Abstive-me de fazer comentários. Deleitava-me com minhas vieiras. Rachel pediu salada de lagosta. Quando a cerveja começou a fazer efeito, minha mãe se pôs a compartilhar confidências com Rachel. Eu deleitava-me com minhas vieiras.

Depois do almoço, deixei outra mensagem para Chris, sentindo-me cada vez mais desesperançada. Encostei-me no vidro frio da cabine e observei mamãe na areia, jogando alguma coisa com sua única neta.

Não sabia mais o que fazer.

“Ele ainda não está em casa”, anunciei, saindo da cabine. Elas olharam para mim, na expectativa. “Bem, acho que a gente pode dar uma volta a pé. Já que estamos aqui.” Elas foram receptivas.

“Direita ou esquerda?”, perguntei. Parecia uma decisão importante, ainda que ilusória. Estávamos na metade de uma rua de lojas de puxa-puxa, hotéis, restaurantes e lojas de suvenires, com a baía atrás de nós, as colinas à frente. Eu não tinha idéia do que havia em ambas as direções.

Rachel deu de ombros e minha mãe examinou suas unhas.

“O.k.”, disse eu, “que seja a direita.” Se captou o sarcasmo, uma de suas especialidades, minha mãe não revelou. Rachel deu um sorriso de encorajamento e marchamos para a direita.

O que lembro é uma mancha de vermelho-laranja-azul quente se agitando e tremeluzindo no calor, crianças correndo para lá e para cá entre homens de short e mulheres de vestidos de verão.

Atravessamos a rua em diagonal, atraídas, suponho, pela ausência de cor do prédio cintilante da Prefeitura, com sua grama luxuriante descendo até vários bancos convidativos, à sombra de duas árvores. Quando nos aproximamos, minha mãe parou para ler uma placa ao lado do bonde turístico — algo sobre sua rota e preços.

“Veja”, disse ela, apontando. Virou-se para mim e começou a dizer alguma coisa, mas eu estava olhando para Rachel, que estava olhando para alguma coisa atrás de mim.

“Rachel”, falei.

“Patti?”, disse uma voz vagamente familiar ao meu ouvido.

Voltei-me e vi meu primo Chris. O tempo parou. Tenho certeza disso. Toda a Provincetown parou até que o sino do bonde tocou.

“Chris!”, gritei, e minha voz saiu alta e esganiçada, como acontece quando estou assustada ou incrédula.

“Sim, sou eu.” Ele me abraçou de leve, protegendo um saco plástico de líquido preso à camisa, os tubos desaparecendo entre dois botões. Estava magro do jeito que eu imaginava os marinheiros ingleses com raquitismo. Os cabelos estavam ralos. Até seus lábios estavam magros. Somente sua voz era a mesma de sempre. Usava um short apertado e desbotado, uma camisa xadrez justa, óculos escuros e o pacote de plástico de sua vida no peito, como uma estrela amarela judaica anunciando o Holocausto. Naquele momento, ele não era meu primo menino, era cada homem morrendo de aids. Era meu irmão, morrendo em segredo de aids. Era meu primo morrendo de aids.

Eu não acreditava e isso estava estampado no meu rosto. Chris disse, apontando: “Este é o meu banco. Imaginei que você passaria por aqui mais cedo ou mais tarde. Ou não”.

“Titia Mame!”, Chris gritou seu afeto e abraçou minha mãe. “E esta deve ser Rachel...” Outro abraço cuidadoso.

Sentamo-nos todos no banco de Chris e conversamos banalidades, como se não compartilhássemos segredos de família. Rachel falou muito pouco, mas sorriu. Ela é uma observadora. Dentro de poucos meses, ela iria observar literalmente seu tio Ronnie morrer.

Minha mãe também sorriu bastante. O brilho da cerveja se apagara, então ela não falou muito. Após pouco tempo, simplesmente ficamos sem ter o que dizer. Ninguém perguntou a Chris sobre seu tratamento. Eu talvez tenha observado que achava que ele não deveria estar no sol com aquela medicação. Ele talvez tenha rido com ar zombeteiro. Chegamos todos ao “adeus” naturalmente, nos abraçamos e beijamos. Sei que sussurrei “te amo, Chris”. Pareceu tão inadequado. Nós três demos as costas e caminhamos lentamente na direção da Authentic Salt Water Taffy que havia em frente.

Nenhuma de nós voltou-se para ver Chris uma vez mais. Entramos na loja e compramos puxa-puxa. Quando saímos, ele já fora embora.

Senti-me vazia. “Vamos procurar conchas”, disse eu, apelando para a obsessão de infância de Rachel, e atravessamos a baía, largando os sapatos e pisando na areia fria.

Rachel achou uma concha com a forma de uma unha de dedão do pé, mamãe capturou uma concha de mexilhão púrpura-prateada e eu encontrei um pedaço de vidro, um fragmento de azul, afiado, polido e cercado por eras de água salgada, areia e vento. Enquanto caminhávamos ao longo da praia, na direção do carro e finalmente de Boston, lembrei — e espero que tenha contado a elas — que fora Chris que me apresentara aos pedaços de vidros do mar havia muitos anos, quando eu era uma garota de biquíni e ele era meu primo menino.

Guardei o pedaço de azul de Chris num vidro vazio de alcachofras, junto com a “unha do dedão” de Rachel e a concha de mexilhão de mamãe.

No verão seguinte, a cidade de Provincetown dedicou um banco na frente da Prefeitura à memória de Chris Locke.

Edwina Portelle Romero
Las Vegas, Novo México


Odisséia americana

As coisas começaram a se desintegrar para nós no verão de 1930. Foi quando meu pai se recusou a aceitar um corte no salário e acabou perdendo o emprego. Ele passou muito tempo procurando outra coisa, mas não conseguiu achar trabalho, nem mesmo por salário mais baixo do que aquele que recusara. Por fim, instalou-se numa cadeira com sua revista Argosy, e minha mãe começou a resmungar e se queixar. Mais tarde, perdemos a casa.

Lembro de um sonho que tive sobre descobrir jóias para eles, mas, quando punha a mão no bolso, tudo o que encontrava era um furo. Acordei chorando. Eu tinha seis anos de idade.

Um tio escreveu do Texas, dizendo que ouvira falar de um restaurante no Kansas que seria um excelente negócio. Meus pais venderam o que ainda tinham, compraram um velho carro de turismo e alguns cantis de lona. Trocamos a Califórnia pelas planícies desconhecidas do Kansas.

O Kansas era tão pobre quanto a Califórnia, apenas mais frio. Os fazendeiros não conseguiam vender o que plantavam e certamente não podiam comer fora.

Meus pais perceberam que pelo menos os fazendeiros podiam pôr comida na mesa. Decidiram virar fazendeiros também. A terra era mais barata no Arkansas, e para lá fomos. Mas o que meu pai sabia sobre agricultura? Minha mãe, meus dois irmãos menores e eu nos instalamos numa pequena casa sobre um pedaço de terra, e meu pai foi trabalhar para uma senhora fora da cidade. Raramente o víamos.

Minha mãe disse depois que achava que ele trabalhava mais na cama da senhora do que nos campos dela.

Minha mãe trocou seus vestidos californianos por um balde de melaço de sorgo e farinha. Durante todo aquele inverno, comemos panquecas de farinha e água e xarope de sorgo. Minha mãe ficava à janela com lágrimas nos olhos, enquanto seus lindos vestidos passavam no assento da carroça de nosso vizinho.

Quando a primavera voltou, minha mãe encheu uma mala com uma muda de roupa para cada um de nós. Escarranchou meu irmão bebê de um lado da cintura e pegou a mala com a outra mão. Então disse para mim e meu irmão de quatro anos que ficássemos perto e começamos a caminhar de volta para a Califórnia. Seria preciso um livro enorme para contar tudo o que aconteceu naquela viagem. Lembro de tanta coisa!

Uma vez, desmaiei em Oklahoma. Minha mãe passou por sumagres-venenosos para chegar a um riacho e molhar um pano para mim. Quando chegamos ao Texas, suas pernas estavam tão inchadas que tivemos de ficar em Dallas até que ela pudesse caminhar de novo.

Em outra ocasião, um homem mau nos largou no deserto porque minha mãe não aceitou seus planos de dormir para aquela noite. O sol se pôs e não passava nenhum carro. Estávamos a quilômetros de qualquer cidade, de qualquer casa. Ele escolhera um bom lugar para se vingar. Fomos resgatados por um homem da companhia telefônica, que nos levou até uma pousada e nos pagou o quarto para aquela noite.

Uma vez, ficamos durante algum tempo numa pequena casa perto de um acampamento de lavradores mexicanos. Jamais havia conhecido tanta bondade. Eles viviam em abrigos improvisados, feitos com o que encontravam. Sempre, de todos, havia sorrisos, carinho na cabeça, tortilhas quentes e, no dia do pagamento, um punhado de balas de hortelã.

Finalmente, chegamos a Los Angeles. A irmã de minha mãe iria nos encontrar junto ao lago do Lincoln Park e nos mostrar onde morava agora nossa avó. Sempre que um de nós dizia que estava com fome, mamãe apontava para os patos no lago ou nos levava para ver uma flor estranha.

Quando escureceu, um velho que estava jogando migalhas de pão para os patos perguntou para minha mãe quando ela iria nos levar para casa.

Ela contou-lhe que trouxera a família de muito longe e que, com a ajuda de Deus e de algumas pessoas muito boas, “alguma coisa apareceria”.

Ele disse que supunha que era a sua vez. Pegou a carteira, tirou duas daquelas notas grandes de um dólar e deu-as a minha mãe. Foi o suficiente. Um dólar pagou uma cabana no Lincoln Auto Court. O outro comprou uma lata de carne de porco e feijão e um pão, e ainda sobrava para pagar uma passagem, caso tia Grace aparecesse. E eu aprendera tudo o que precisava sobre caridade, fé, confiança e amor.

Era 1931, e eu tinha sete anos de idade.

Jane Adams
Prescott, Arizona


Um prato de ervilhas

Meu avô morreu quando eu era pequeno e minha avó passou a morar conosco cerca de seis meses por ano. Ela ficava em um quarto que fazia as vezes de escritório para meu pai, o qual chamávamos de “o quarto dos fundos”. Ela carregava consigo um aroma poderoso. Não sei que tipo de perfume usava, mas era do tipo de dois canos, noventa graus de graduação alcoólica, capaz de deixar a vítima inconsciente, tiro e queda. Ela o guardava num grande vaporizador e o aplicava com freqüência e prodigalidade. Era quase impossível entrar no quarto dela e conseguir respirar durante algum tempo. Quando ela partia para morar seis meses com minha tia Lillian, minha mãe e minhas irmãs escancaravam todas as janelas e punham o colchão, as cortinas e os tapetes para tomar ar. Depois, passavam dias lavando e arejando as coisas, na tentativa frenética de fazer o odor pungente desaparecer.

Era assim minha avó, na época do infame “incidente das ervilhas”.

Aconteceu no hotel Biltmore que, para minha mente de oito anos, era o lugar mais chique para comer em toda Providence. Minha avó, minha mãe e eu fomos almoçar depois de uma manhã de compras. Pedi um bife à Salisbury, confiante no conhecimento de que aquele nome elegante escondia um bom e velho hambúrguer com molho. Quando chegou meu pedido, vinha acompanhado por um prato de ervilhas.

Não gosto de ervilhas hoje. Não gostava de ervilhas então. Sempre odiei ervilhas. É um completo mistério para mim por que alguém comeria ervilhas voluntariamente. Não as como em casa. Não as como em restaurantes. E certamente não iria comê-las naquela ocasião.

“Coma suas ervilhas”, disse minha avó.

“Mãe”, disse minha mãe com sua voz de advertência. “Ele não gosta de ervilhas. Não implique com o menino.”

Minha avó não retrucou, mas havia um brilho sinistro em seus olhos que indicava que ela não se daria por vencida. Inclinou-se em minha direção, olhos nos meus olhos, e murmurou as palavras fatídicas que mudaram minha vida.

“Pago cinco dólares se você comer estas ervilhas.”

Eu não tinha a menor idéia do destino iminente que vinha em minha direção como uma bola gigante e destruidora. Só sabia que cinco dólares era uma quantia enorme, quase inimaginável, e, por pior que fossem as ervilhas, havia apenas um prato delas entre mim e a posse daqueles cinco dólares. Comecei a enfiar as desgraçadas goela abaixo.

Minha mãe ficou lívida. Minha avó tinha o ar satisfeito de alguém que baixou um trunfo imbatível na mesa. “Posso fazer o que quiser, Ellen, e você não pode me deter.” Minha mãe lançou um olhar dardejante para a mãe dela. Lançou um olhar dardejante para mim. Ninguém lança olhares dardejantes como minha mãe. Se houvesse uma competição olímpica dessa modalidade, sem dúvida ela ganharia a medalha de ouro.

Eu, evidentemente, continuava a jogar ervilhas goela abaixo. Os olhares deixaram-me nervoso, e cada ervilha me dava vontade de vomitar, mas a imagem mágica dos cinco dólares flutuava diante de mim e, por fim, engoli a última. Minha avó deu-me os cinco dólares com fanfarras. E assim acabou o episódio. Ou assim pensava eu.

Minha avó partiu para a casa de tia Lillian algumas semanas depois. Naquela noite, no jantar, minha mãe serviu dois de meus pratos favoritos, bolo de carne com purê de batatas. Junto com eles, veio uma grande tigela de ervilhas fumegantes. Ela me ofereceu algumas ervilhas e eu, nos últimos instantes de inocência de minha infância, recusei. Minha mãe lançou-me um olhar frio enquanto despejava uma enorme pilha de ervilhas em meu prato. Então vieram as palavras que me perseguiriam durante anos.

“Você comeu ervilhas por dinheiro. Pode comê-las por amor.”

Oh, desespero! Oh, devastação! Tarde demais eu percebia que havia me condenado inadvertidamente a um inferno de onde não havia escapatória.

“Você comeu ervilhas por dinheiro. Pode comê-las por amor.”

Que argumento eu poderia contrapor? Não havia nenhum. Se comi as ervilhas? Pode apostar que sim. Comi-as naquele dia e todas as vezes em que foram servidas desde então. Os cinco dólares foram gastos logo. Minha avó faleceu alguns anos depois. Mas o legado das ervilhas sobreviveu, assim como está vivo até hoje. Se eu mal aperto os lábios quando são servidas (porque, afinal, ainda odeio aqueles coisinhas horrorosas), minha mãe repete as terríveis palavras mais uma vez:

“Você comeu ervilhas por dinheiro. Pode comê-las por amor.”

Rick Beyer
Lexington, Massachusetts


Lavar a culpa

Quando eu era adolescente, meu quarto ficava sob um beiral, no segundo andar de nossa casa de duzentos anos. Eu dormia numa cama de casal de ferro junto à janela e havia uma pequena mesa com abajur e livros ao lado da cama. No verão, as tábuas largas de pinho do assoalho do resto da casa não paravam de estalar com a visita de parentes indo e vindo e alguém sempre fazendo algo para comer. Minha mãe, que me criava sozinha e trabalhava longas horas no hospital, costumava tirar uma soneca em meu quarto para escapar da confusão. Não era incomum que eu encontrasse seu bloco de anotações em minha mesa-de-cabeceira.

No verão de meus dezoito anos, pela primeira vez na vida pude ficar na rua até tarde. Eu vivia à deriva de minha confusão adolescente havia anos, mas nessa época comecei a causar preocupações concretas para minha mãe. Saía de meu emprego de férias e ficava até muito tarde na rua com amigos “inapropriados”. Sabia que minha mãe ficava incomodada com isso, mas também conhecia seu medo de um confronto direto. Quando nossos caminhos se cruzavam, em geral na cozinha, por volta das seis e meia da tarde, sua “cena de mãe irada” se resumia a olhares gelados e portas de armário batidas.

Uma noite, ao retornar à casa escura, deslizei até meu quarto, acendi a luz de cabeceira e vi o bloco de notas de minha mãe. No alto da página, escritas com clareza e com as letras grandes e redondas de mamãe, estavam duas palavras: wash guilt [lavar a culpa].

Desviei o olhar do bloco rapidamente e vesti com pressa meu pijama. O que minha mãe estava tentando me dizer? Lavar a culpa. Antes que ela começasse a trabalhar aos domingos, o mais próximo que havíamos estado da religião foram umas poucas visitas à Igreja Unitária de Baltimore. O tom da mensagem era batista demais para minha mãe, mas a abstração enigmática, percebi, era bem o estilo dela. A maioria das mães brandiria uma colher de pau para a filha adolescente beligerante e diria: “Esteja em casa às dez horas ou não saia mais!”. Minha mãe mandaria uma mensagem cifrada antes de sentar comigo à mesa da cozinha e determinar um toque de recolher.

Deixei o bloco exatamente onde estava e nunca disse uma palavra sobre aquilo. Acho que pensei que, se não tocasse nele, não teria de admitir que o lera.

Na manhã seguinte, minha mãe saiu para o trabalho cedo demais para que eu a encontrasse, mas as palavras ficaram comigo. Lavar a culpa. Indo de bicicleta para meu emprego, eu as repetia: lavar a culpa, lavar a culpa. Do que se tratava? O que minha mãe estava tentando me dizer? Por que ela não podia ser uma pessoa normal e simplesmente gritar comigo? Quando voltei para casa naquela noite, a página e as letras bem desenhadas ainda estavam lá. Não toquei no bloco novamente. Quando encontrei minha mãe na cozinha, ela ficou em silêncio. Esperando estar sendo observada, espiei dentro do refrigerador, na expectativa de seus olhares indagadores. Ela devia estar pescando uma reação, um sinal de mudança em mim. Seus olhos nunca encontravam os meus, mas também não pareciam me evitar. Será que se arrependia da adaga que enfiara em meu coração e queria fingir que nada acontecera? Se fosse assim, por que não sumira com o bloco? Será que sentia, como eu, que se tocasse no bloco estaria reconhecendo que ele estava lá, ao passo que, se o deixasse lá, poderíamos ambas fingir que aquelas palavras jamais haviam sido escritas? Ah-ha. Será que eu acabei de ver um olhar inquisitivo? Será que ela tentou captar uma expressão de meu rosto? Estaria inspecionando meu comportamento, de olho em algum sinal de mudança? Não. Ela apenas parecia estranhamente interessada em fazer o jantar, estranhamente normal.

Na manhã seguinte, vesti-me olhando para aquela página. Lavar a culpa. Continuei sem tocar nela. De novo, passei o dia com aquelas palavras na cabeça. De novo, de noite na cozinha, minha mãe não disse nada.

A coisa continuou assim durante uma semana. O bloco não se mexeu. Minha mãe não disse nada. As palavras me acompanhavam por toda parte. A cada noite, eu retornava para elas. Às vezes, era como se houvesse um papagaio no quarto, repetindo estridente: “Laaaaaaavar a culpa!”. Às vezes, era como se houvesse um monge de capuz em silêncio, de pé ao lado de minha cama, com o bloco de anotações na mão.

Durante uma semana eu quase me afoguei naquelas palavras. Elas não mudaram necessariamente meu comportamento, embora eu tenha perdido o namorado, mas as usei como uma camisa de penitência. Então, num dia adorável, milagroso, devia estar claro e ensolarado, cheguei em casa, subi até meu quarto, olhei para o bloco de anotações — e estava escrito: wash quilt [lavar a colcha].

Heather Atwood
Rockport, Massachusetts


Um retrato da vida

Meu casamento com meu marido advogado ia mal. Ele pediu o divórcio em 1989, no dia do meu aniversário, 15 de novembro, e me presenteou com os papéis. Uma de suas namoradas, uma mulher que fora minha amiga, veio me dizer que eu teria de deixar a casa em que havíamos vivido, pois ele não queria continuar pagando o aluguel. Ele cancelou nossa conta conjunta no banco. Eu não trabalhava fora de casa desde que ficara grávida do mais velho de nossos dois filhos, quase dez anos antes. Encontrei e aluguei uma casa grande e velha num bairro decadente em Houston Heights e mudei-me com as crianças, meus fornos de cerâmica e todas as nossas coisas em janeiro de 1990. Em um mês, eu estava fazendo vasos e ensinando cerâmica na nova casa. Dei aulas três ou quatro noites por semana durante quatro anos, fiz vasos para vender num bazar de Natal, levei as crianças para a escola de manhã, ajudei nas lições e li histórias para dormir à noite, depois de minhas aulas. Preparei três refeições por dia do nada, para ter uma alimentação saudável e economizar dinheiro, exceto algumas noites em que, para nosso regalo, comprávamos uma pizza. Quando ficou claro que eu sobreviveria financeiramente ao fim do casamento, meu marido, advogado de crianças que trabalhava para o Estado, entrou com um processo para me declarar incompetente e me tirar os filhos, sob a alegação de que eu era uma mãe que ficava em casa e estava deprimida por causa do estado de nosso casamento. Ele me chamava muitas vezes de “vegetal”.

Meus pais me disseram que eu teria de contratar um advogado e, depois de uma vida inteira de apertos financeiros, me emprestaram 15 mil dólares de sua aposentadoria. Essa quantia não era suficiente para pagar um advogado e serviu apenas para atrair um deles: uma advogada muito gentil e afetuosa, que não largou o caso quando acabou o dinheiro. Ela conseguiu que eu mantivesse a guarda “temporária” das crianças durante os seis anos em que o caso esteve nos tribunais. Isso já valia os 15 mil dólares. Por seis anos, meus filhos e eu vivemos como que num aquário, com uma nuvem negra pairando em cima. Havia um comparecimento no tribunal após outro. Por ordem do juiz, uma assistente social e depois um psicólogo esmiuçaram nosso passado, presente e futuro, tentando fazer um julgamento de Salomão sobre minha capacidade de criar meus filhos. O divórcio foi concedido no dia 6 de junho de 1992. Durante 22 anos, o 6 de junho tinha sido o dia do aniversário de nosso casamento.

A batalha da custódia continuou. Anos antes, numa audiência de custódia temporária, eu recebera ordens para não sair da cidade com as crianças, sob a alegação de que estar perto do pai era mais importante até mesmo do que a segurança deles. Por seis vezes, assaltantes entraram em minha casa e levaram o que quiseram, até que um policial me aconselhou a ter um cão de guarda. Tiroteios noturnos passaram a ser comuns no parque que ficava na frente de minha casa e comecei a temer por nossas vidas. Com freqüência, eu ficava sentada ao lado de meus filhos enquanto eles dormiam, com medo de que alguma coisa lhes acontecesse à noite. Depois de meu bazar de Natal de 1993, consegui o dinheiro necessário para me mudar para a pequena cidade onde eu crescera, onde meus pais ainda moravam e onde havia segurança para criar meus filhos, a trezentos quilômetros de Houston e do pai deles. Não contei meus planos para ninguém naquele fim de ano. No dia de Natal, levei as crianças para o pai ao meio-dia, como vinha fazendo nos últimos quatro anos, e no dia seguinte comecei a procurar uma moradia temporária. No dia 1o de janeiro, fui a Houston pegar os meninos, agradecida por tê-los de volta, e levei-os diretamente para a casa dos avós. No dia seguinte, aluguei a primeira de duas vans de mudança e comecei a mudança de Houston, com a ajuda apenas de minha melhor amiga e seu marido, correndo contra a perspectiva de receber uma ordem judicial para ficar na cidade. Quando cheguei em casa com a segunda van, contei para o pai das crianças. Dentro de poucos dias, ele entrou com um processo em Houston para me fazer voltar.

Espanto-me agora de que não tenha sido presa. Tive de voltar a comparecer diante do tribunal toda semana. Precisei mandar fotos de nosso novo lar (a casa que meu avô construíra em 1930 e o quintal onde eu brincara quando criança) para assistentes sociais de Houston, a fim de que fizessem uma avaliação. A nova escola dos meninos, a mesma em que eu me formara em 1965, teve sua salubridade e qualidade de ensino investigadas. As crianças e eu tivemos de enfrentar os psicólogos de novo. Os meninos estavam deprimidos por terem deixado os velhos amigos e o pai. Eu estava tentando retomar o trabalho com cerâmica e substituição nas escolas. Tinha de cuidar de minha irmã, que estava doente, e de suas crianças pequenas, e precisava ajudar meus pais idosos, que não conseguiam cuidar de tudo sozinhos. Ninguém, nem mesmo minha fiel advogada, esperava que eu vencesse no tribunal. Disseram-me para procurar um lugar perto de Houston para voltar, na certeza de que a corte não concordaria comigo.

Eu começara a rezar anos antes, ou conversar, de fato, com quem quer que me desse ouvidos. Orei a Deus, rezei para a Grande Mãe, falei com meus avós falecidos. Contei-lhes o que estava acontecendo conosco. Pedi-lhes que me dessem o alívio que pudessem e força e coragem para enfrentar o resto. Pedi-lhes que me tornassem uma pessoa mais sábia, mais bondosa, mais útil, mais efetiva por ter passado por tudo aquilo. Pedi-lhes que dessem aos meus filhos a mesma capacidade de extrair força e sabedoria do perigo e da desgraça. Pedi-lhes alegria e prazer no meio da calamidade, pois temia que não chegaríamos ao fim de tudo sem isso. Marcou-se um julgamento e escolheu-se um júri. Por quatro manhãs escuras de novembro de 1995, fui de carro ao centro de Houston para comparecer ao julgamento e depois voltei para casa nas noites escuras para estar com meus filhos e meus pais. A cada noite que passava, as coisas ficavam piores. No quarto dia, minha mãe levantou-se cedo e foi a Houston para testemunhar a meu favor. Minha melhor amiga testemunhou naquele dia também. Então, chegou minha vez de testemunhar. Sentei-me orgulhosa, cheia de esperanças irracionais, certa de que o tribunal estava cheio de meus deuses e antepassados, e contei minha história com simplicidade aos jurados. Pediram-me que mostrasse a eles um retrato das crianças comigo, tirado no Natal anterior. A foto mostrava uma mulher feliz e radiante sentada com os braços em torno de duas crianças radiantes, numa sala onde se viam uma grande e enfeitada árvore de Natal e um assento de janela nevado, com uma pilha de aconchegantes almofadas vermelhas e verdes. Não havia traço da dor, da mágoa e do medo que haviam assombrado nossas vidas nos últimos seis anos. Lembro que ao ver a fotografia pela primeira vez tive certeza de que havia magia solta nela. Passei a foto para os jurados e escutei suspiros de espanto e compreensão de quase todos. O júri retirou-se para deliberar e poucos minutos depois mandou uma nota ao juiz, perguntando se podiam me dar mais do que eu estava pedindo, pois achavam pouco. Quando voltaram, vários me disseram que haviam acreditado no meu marido até o momento em que eu testemunhara e mostrara o retrato.

Nunca recebi a fotografia de volta. Era grande e estava emoldurada em madeira vermelha e verde. Ainda está em exposição em algum lugar do prédio do tribunal de família. Mas eu tenho outras cópias e ainda estou certa de que há magia nela. Faço questão de olhar para ela todos os dias.

Jeanine Mankins
Orange, Texas


Margie

Em 1981, quando meu filho Matthew estava com treze anos, tivemos uma discussão sobre um trabalho que ele tinha de fazer para a escola. Ele simplesmente não queria fazê-lo — era uma bela tarde de domingo — e eu o proibi de sair do quarto até que o dever estivesse feito. Mais tarde, quando voltei para casa, Matthew havia saído e o trabalho estava bem à vista, sobre a mesa da sala de jantar. Infelizmente, o que ele escrevera era uma paródia do tema pedido e a cada três palavras havia uma obscenidade. Meu filho estava obviamente com raiva de mim, o que não era de surpreender para um menino de treze anos, mas aquilo me perturbou muito. Meu marido, Richard, padrasto de Matthew, garantiu-me que eu estava dando importância demais ao incidente. “Venha”, convidou ele, “vamos dar uma caminhada e eu conto para você o que aconteceu comigo quando eu tinha treze anos.”

Naquela época, morávamos na praia de Venice, na Califórnia, onde uma “caminhada” significava participar de uma confusão generalizada. Uma multidão de moradores locais e turistas se embaralhava no passeio de tábuas ao longo da praia. Músicos, mímicos, dançarinos de break, cartomantes e cantores ajudavam a entupir o caminho. Ambulantes coreanos ofereciam óculos de sol, meias, jóias de prata e cachimbos de haxixe, enquanto adultos de patins davam voltas em velocidade alarmante no meio da multidão. Lembro de uma batida constante de bongôs, panelas e garrafas vazias. Richard deu-me o braço. Então entramos na corrente e ele começou sua história.

“Isso aconteceu quando minha família se mudou para Nova Jersey. Eu estava na oitava série e era um magricela com dificuldades para se entrosar. No primeiro dia de escola, me apaixonei por uma garota linda e ruiva chamada Margie, que também parecia gostar de mim. Mas Margie e todos os garotos daquele grupo tinham muito mais experiência sexual do que eu, ou pelo menos era o que parecia na época. Então fiquei nervoso. Tão nervoso que cada vez que ela queria me beijar eu lhe dizia que estava resfriado ou arranjava alguma outra desculpa tola. Eu temia que ela descobrisse que eu não sabia beijar. Não demorou para que Margie se cansasse de minhas protelações e procurasse outro cara. Fiquei magoado e lhe escrevi um carta irada com todos os palavrões que conhecia. Achando, na verdade, que estava sendo muito esperto. Deixei a carta na gaveta de minha escrivaninha, onde minha mãe acabou por encontrá-la. Você conhece meus pais: a Família Pânico. Eles não acreditavam no que eu fizera. Queriam telefonar para os pais de Margie imediatamente, para saber o que estava acontecendo. Devo ter chorado e implorado por um bom tempo até que consegui que desistissem da idéia. Assim, não aconteceu nada por causa da carta. No final do ano escolar, Margie e seus pais se mudaram para Nova York e eu nunca mais a vi.”

No exato momento em que meu marido disse essas palavras, vi uma mulher ruiva e esbelta, de trinta e poucos anos, parada diante de nós. A horda de turistas continuava a se mover, gente de todas as cores, idades e tamanhos subindo e descendo pelo passeio de tábuas ao longo da praia. Todos pareciam andar, exceto Richard, eu e a mulher ruiva. Suponho que os tocadores de tambor, panelas e garrafas não pararam, mas na minha memória houve um grande momento de silêncio e nós três ficamos ali, olhando uns para os outros. “Margie?”, disse Richard, e a mulher respondeu com tranqüilidade: “Richard?”. Meu marido ficou todo animado. “Que surpresa! Eu estava justamente falando sobre você com minha esposa.”

Esta é uma história real. Fazia dezessete anos que Richard e Margie haviam se visto pela última vez em Nova Jersey. Mas este não é o meu fim da história. Outros dezessete anos se passaram desde os eventos daquele dia e agora eu sei que o aparecimento quase milagroso de Margie não é a única conclusão deste conto. É apenas o final que meu marido e eu contamos nas festas. Mas, para ser honesta, penso que a história precisa incluir o fato de que meus instintos sobre meu filho também estavam corretos naquele dia. Seu trabalho não era somente uma exibição de raiva adolescente, mas um ponto crucial de sua vida: uma virada para um futuro mais negro e difícil, do qual ele não saiu até hoje.

Ao longo dos anos, ao lembrar nosso encontro com Margie, meu marido e eu nos perguntamos com freqüência: quais eram as probabilidades de acontecer aquele encontro? Agora, eu gostaria apenas de saber: quais são as probabilidades de um final feliz?

Christine Kravetz
Santa Bárbara, Califórnia


Mil dólares

Vim para Los Angeles com a idéia de vencer na indústria do entretenimento. Comecei como atriz e fui descendo aos poucos. Eu realmente acreditava que seria a sortuda que voltaria para casa rica e famosa e seria finalmente a menina-dos-olhos de papai. Fracassei miseravelmente. Um de meus planos levou-me a um emprego de recepcionista de uma agência literária e de talentos. Minha intenção era tornar-me uma agente de talentos e conseguir vender meu roteiro por meio do agente literário para o qual estava trabalhando. Era um emprego que mal dava para pagar minhas contas.

No meu primeiro ano na empresa, vivi dos cartões de crédito. Eu apostava que iria vender meu roteiro e não teria mais problemas de dinheiro. O segundo ano na agência foi pior. Meus cartões de crédito estouraram. Eu batalhava todos os meses para pagar o aluguel, as prestações do carro e seu seguro. Eu devia cada vez mais. A tática de pagar um mês e deixar de pagar o seguinte não estava funcionando. Para piorar as coisas, me deram um mês para sair de minha casa. O emprego simples de recepcionista acabou exigindo mais do que me haviam dito. Eu tinha de passar as noites tentando terminar a grande quantidade de serviço que caía sobre as minhas costas: pegar fotografias e resumos, manter os arquivos em ordem, escrever cartas, tudo isso sem aprender nada sobre a profissão de agente. Passava os fins de semana trabalhando com meu parceiro de escrita. Eu não tinha vida pessoal. Mas ainda havia onde depositar minhas esperanças: o roteiro. O agente literário achava que era sutil e divertido e eu achava que, uma vez vendido, toda aquela luta teria valido a pena. Eu seria um sucesso.

A falta de dinheiro sempre foi o centro da vida de minha família. Todos os dias pareciam terminar numa briga sobre o custo da comida, grampos, material escolar, viagens, acampamentos, uniformes de bandeirante. No final da minha adolescência, as discussões mudaram para os consertos do carro velho, os custos da faculdade, as viagens a Los Angeles que eu fazia com meu carro e telefonemas. Embora meu pai tivesse parado de me bater depois que cresci, os olhares hostis continuaram. Eles eram quase tão agressivos quanto os tapas usados anteriormente para me disciplinar. Meu pai chegara neste país sem dinheiro e com uma esposa inválida. Minha mãe era uma responsabilidade da qual ele se encarregaria pelo resto de sua vida, como prometeu ao governo americano. Chegou mesmo a assinar um contrato para garantir isso.

Fiquei cada vez mais desesperada por causa da falta de dinheiro. Obviamente, não podia pedir para meu pai. Ele jamais aprovara minhas escolhas na vida. Eu não tinha outros parentes a quem recorrer. Meus amigos de Los Angeles haviam me abandonado, ou por uma passagem de volta para casa, ou porque tinham medo de estar perto de alguém tão desesperançada. Pensei em me atirar do prédio em que trabalhava. Comecei a sonhar acordada com roubos a bancos e pessoas idosas. Na minha cabeça, eu determinara a quantia de que precisava: 10 mil dólares seriam perfeitos e mil já me dariam a chance de sair do atoleiro. Existem jornais gratuitos que vivem do lado mais negro da população da cidade. Anúncios de prostitutas e para trabalhos como modelo e atriz em filmes pornográficos. Telefonei para um deles, que alardeava um pagamento de mil dólares.

Um homem respondeu ao meu telefonema. Um sujeito brusco, mas com jeito profissional. Começou por me fazer as perguntas padrão sobre altura e peso, depois entrou em questões mais detalhadas e pessoais, tais como quais atos sexuais eu faria e quais não faria. Tudo me pareceu muito esquisito. Eu estava com 26 anos na época. Tingira meu cabelo castanho de loiro e me mantinha magra e bem-composta graças ao hábito de fumar. Na época, eu acreditava em Deus, mas não acreditava no mal. Fiquei nervosa ao telefone. Era algo que eu não queria. O sujeito deve ter percebido a hesitação em minha voz. Um instante depois, começou a falar sobre como eu poderia fazer 10 mil dólares por semana. Com essa quantia, conseguiria pagar todas as minhas contas, o carro, respirar de novo. Eu deveria fazer um teste para o papel principal de um filme pornográfico naquela tarde, em um motel das proximidades.

O sujeito me dissera que o astro do filme era bonito. Na verdade, era um baixinho de pele escura, com longos cabelos crespos e um rosto comum, longe de bonito. Apertei sua mão antes de entrar no quarto do motel.

Ele me mandou tirar a roupa e obedeci. Instruiu-me sobre o que eu precisava fazer e como deveria gemer alto; segui suas instruções. Lembro de olhar para cima e ver um grande espelho no teto. Pensei em como estava linda. Jamais havia realmente me olhado nua. Em algum momento entre o espelho e outro ato sexual, precisei vomitar. Pedi licença e fui ao banheiro. Quando voltei, completamos a cena. Ele bateu na parede e disse: “Acabamos por aqui”. Do lado de fora, me disse que “entraria em contato”.

Voltei para casa, tomei um banho quente e esfreguei o homem para fora de meu corpo. Chorei, mas precisei me recompor rapidamente para outra entrevista. Nesta, não fui além de falar. Eu não era capaz de fazer um filme pornô. Não podia suportar o que acabara de fazer. Fui jantar com meu segundo entrevistador, que se revelou um homem muito simpático, embora fosse diretor de filmes pornográficos. Ele me disse que eu fora enganada. Fui para cama com ele naquela noite. Afinal, quem era eu para dizer não?

De alguma forma, consegui sobreviver ao mês sem os mil dólares. Mudei-me para uma casa com uma companheira de quarto. Parei de namorar. Todas as noites, eu comia e depois vomitava os chocolates que minha companheira deixava na mesa de café. Cortei meu cabelo curtinho e tingi de castanho-escuro. Afora isso, continuei minha vida normal. Nunca pensava sobre o incidente. Aconteceu. Acabou. Podia ter sido pior.

No mês seguinte, fui à casa de meus pais para uma festa de aniversário. Minha mãe, que perdera o amor do marido, sempre gostara de erguer barreiras entre mim e meu pai. Ela me contou que haviam recebido um dinheiro inesperado havia cerca de um mês. Eram mil dólares. Minha mãe pedira a meu pai que desse o dinheiro para mim, mas ele se recusara. Desabei. Corri até o quintal, sentei na grama e solucei. Chorei sem nenhum pensamento ou constrangimento. Meus pais ficaram me olhando pela tela da porta da cozinha. Chamaram-me para entrar, mas eu não podia me mover e eles não vieram até mim. Por fim, levantei-me sem dizer adeus e fui embora para casa.

I. Z.
Los Angeles, Califórnia


slapstick


Homem versus casaco

A primeira e única vez em que nos encontramos foi em um bar de gente rica numa noite fria de novembro. Eu respondera ao anúncio dela na coluna de mensagens pessoais: “... gostaria de conhecer um homem seguro de si, de trinta a quarenta anos, que goste de caminhar no parque e conversar no escuro... etc.”. Havia uma qualidade simples, melodiosa em sua escrita que me atraiu.

Ela era uma morena alta, esbelta, de trinta e poucos anos. Era atraente e olhava nos olhos quando falava. Era ao mesmo tempo bonita e inteligente e gostei dela de imediato. Decididamente, eu queria vê-la de novo. Melhor ainda, não percebi nenhuma relutância da parte dela em me encontrar novamente. Bastava que eu administrasse o resto da noite sem mancadas ou contratempos.

Quando nos levantamos para sair, ela foi a primeira a vestir seu pesado casacão de inverno. Arrumou o cachecol e enfiou as luvas nos longos e elegantes dedos. Uma vez pronta, ficou esperando pacientemente por mim.

Tirei minha parca do encosto do banco e, segurando com firmeza o colarinho com minha mão esquerda, enfiei meu braço direito na manga direita. Com o casaco semivestido, estendi meu braço esquerdo para trás a fim de pegar a manga esquerda. Mas, por algum motivo, meu alvo se esquivou. Tentei de novo e, mais uma vez, errei. Mais decidido do que nunca, intensifiquei meus esforços.

Completamente absorto no que fazia, não percebi que meu corpo estava começando a se torcer no sentido anti-horário. E, à medida que meu corpo se torcia, o casaco se torcia também: a manga continuava à mesma distância do braço que a procurava. Pude sentir as gotas de suor que brotavam de minha testa.

Era como se as mangas tivessem se aproximado nas últimas horas. Eu grunhia e gemia enquanto lutava para ganhar o controle da situação. Como poderia saber que estava à beira do desastre? Com todas aquelas viradas, minhas pernas começaram a ziguezaguear.

Ninguém consegue ficar aprumado enquanto se retorce e dá golpes para trás numa manga semovente. Estava perdendo o equilíbrio. Lentamente, desabei. Estatelado no chão, com o casaco me cobrindo parcialmente, olhei para minha companhia. Nenhum de nós disse nada. Ela jamais vira um homem ser derrubado por seu próprio casaco.

Mel Singer
Denver, Colorado


Isto é que é divertimento

No verão anterior ao meu último ano na faculdade, aluguei uma casa no litoral de Nova Jersey com algumas amigas. Numa noite de terça-feira, por volta das nove e meia, saí de casa e caminhei até a praia. Não havia ninguém por perto, então tirei as roupas, deixei-as numa pilha e caí na água. Nadei por volta de vinte minutos e depois peguei uma onda de volta para a praia.

Quando saí da água, minhas roupas tinham desaparecido. Enquanto pensava no que fazer, ouvi algumas vozes. Era um grupo de pessoas que caminhava pela praia — e vinham todas na minha direção. Decidi sair correndo para casa, distante uns quarenta ou cinqüenta metros. Percebi que a porta estava aberta, ou pelo menos saía luz pela porta. Mas ao me aproximar correndo me dei conta no último segundo de que havia uma tela. Atravessei-a direto.

De repente, me vi no meio de uma sala. Lá estavam um pai e duas crianças pequenas sentadas num sofá, vendo televisão, e eu no meio, sem um trapo por cima. Dei meia-volta, saí correndo pela tela rasgada e desabalei para a praia. Continuei correndo em linha reta e acabei encontrando minha pilha de roupas. Eu não sabia que havia uma contracorrente que me levara cerca de quatro quadras adiante de onde eu entrara na água.

Na manhã seguinte, caminhei pela praia em busca da casa com porta de tela quebrada. Encontrei-a e, quando ia bater no que restava da porta, vi o pai lá dentro, vindo na minha direção. Comecei a gaguejar e finalmente consegui dizer: “Sabe, estou muito chateada com o que aconteceu e queria lhe dar algum dinheiro para consertar a porta”.

O pai me interrompe, abre os braços num gesto teatral e me diz: “Querida, não posso aceitar nada de você. Aquilo foi mais divertido do que tudo que tivemos em uma semana”.

Nancy Wilson
Collingswood, Nova Jersey


De carona com Andy

Andy vivia em cima de sua motocicleta. Era seu único meio de transporte, e ele transportava muito. Isso aconteceu nos anos 50, antes das motos com carretas, bolsas laterais enormes e carenagens com lugar para guardar coisas, e ele carregava tudo em suas roupas. Com exceção da época de calor mais forte, usava um grande macacão que cobria uma jaqueta de couro, que cobria um suéter, que cobria uma camisa de flanela, que cobria um par de ceroulas. Seus muitos bolsos estavam cheios de todo tipo de coisa, e para as maiores ele tinha um alforje velho. Embora não fosse gordo, essa parafernália fazia com que se parecesse com o homem do anúncio dos pneus Michelin.

Andy morava perto da Bronx Whitestone Bridge, em Nova York, e trabalhava como guarda-cancela de ferrovia em um lugar distante de Long Island. Eu o encontrava nos fins de semana na loja local da Triumph e bsa, ou em competições e corridas. Às vezes, no entanto, ele aparecia lá em casa de manhã, a caminho do trabalho, e tomava uma xícara de café enquanto eu fazia meu desjejum. Minha mãe jamais ficava feliz de vê-lo, embora fosse gentil e hospitaleira. Ela detestava especialmente ser chamada de “jovem senhora” quando o recebia na porta dos fundos em suas visitas matinais. Embora fosse capaz de ser abrupta e ríspida, ela o classificava como alguém com necessidade de ajuda e atenção. Andy estava com mais de trinta anos. Tinha uma maneira concentrada e maluca de olhar para a gente e sua voz tinha um tom lamuriento e metálico que afastava as pessoas.

Depois de algumas visitas, Andy começou a me dar carona para a escola. Eu freqüentava um colégio católico distante uns cinco quilômetros, que ficava completamente fora de seu caminho para o trabalho. Eu adorava chegar à escola na Triumph Tiger de Andy, em lugar do ônibus escolar, ainda que ele fizesse curvas tão rápidas que arrastava os pedais.

Um dia, quando chegamos ao colégio, percebi que esquecera a merenda. Andy disse: “Isso é muito ruim”. Agradeci-lhe pela carona e ele partiu. Vinte minutos depois, minha mãe ouviu uma batida na porta dos fundos. Quando ela a abriu, Andy disse: “Bom dia de novo, jovem senhora. Jim esqueceu a merenda”. Minha mãe fez com que ele entrasse na cozinha, achou o saco com minha merenda em cima do balcão e o deu a Andy, agradecendo por sua gentileza. Ato contínuo, ele sentou-se e comeu tudo.

Jim Furlong
Springfield, Virgínia


Dama sofisticada

Eu tinha dezoito anos e freqüentava a Universidade de Wisconsin quando meu irmão mais novo ganhou uma bolsa para estudar música na Academia Militar de São João. Numa linda tarde de outono, foi escalado para seu primeiro concerto. Recebi ordens de casa para comparecer ao evento. Meus pais me pegaram na frente da Langdon Hall às onze da manhã e me arrastaram para Delafield. Assistir a um concerto de banda de colégio não era certamente meu ideal de divertimento.

Enquanto esperávamos meu irmão na área de recepção, decidi fazer o papel da irmã mais velha experiente, charmosa e sofisticada. Eu ia impressionar aquele bando de fedelhos. Batendo com impaciência meus saltos de sete centímetros no chão, assumi uma pose de tédio, com alguns bocejos e suspiros profundos, para mostrar àqueles soldadinhos de cinturões vermelhos que eles não me impressionavam.

Durante a espera, pedi licença para ir ao toalete. Voltei um pouco depois, ao som dos sorrisos reprimidos e risadinhas. Preso a um dos meus sapatos e se arrastando atrás de mim a cada passo sofisticado, vinha um desfile de mais de dez metros de papel higiênico.

Joan Vanden Heuvel
Madison, Wisconsin


Como fazer amigos e influenciar pessoas

Para dar andamento à construção de moradias em Fort Lauderdale, o projeto tem de ser aprovado pelo Departamento Municipal de Construções e por um arquiteto da Comissão de Hotéis e Restaurantes. Rick Reiley era esse arquiteto e eu tinha uma reunião com ele no começo da manhã. Atrasado, peguei a faixa da direita e ultrapassei uma dezena de carros que esperavam a abertura do semáforo, na expectativa de sair na frente quando o sinal mudasse. Quis a sorte que o primeiro carro da fila fosse da polícia, e havia uma placa que dizia “Somente para conversão à direita”.

Virei à direita e me perdi num labirinto de ruas e canais de mão única. Não gosto de me atrasar e estava mais preocupado em achar o caminho de volta para o centro do que prestando atenção na rua. Foi quando senti uma batida. Parei e vi um cachorro grande, aparentemente morto, atrás do meu carro. Corri até uma casa, toquei a campainha, mas ninguém atendeu. Fui até a próxima casa, toquei a campainha e uma mulher jovem em trajes de tênis abriu a porta. “Matei um cachorro e preciso chamar a polícia. Posso usar seu telefone?”, perguntei.

Ela olhou para fora e disse: “Aquele é o meu cachorro”.

Depois que chamei as autoridades e acalmei a mulher, ela me perguntou se eu gostaria de tomar um café. Aceitei e sentei-me à mesa da cozinha. Havia um livro de Dale Carnegie sobre a mesa e perguntei quem estava fazendo o curso. Eu era gerente da área para Dale Carnegie e conhecia todos os matriculados. “Meu marido”, disse a mulher, e quando perguntei pelo nome dele ela respondeu: “Rick Reiley”.

Ótimo, pensei. Preciso da aprovação desse homem e acabo de atropelar seu cão.

Expliquei à sra. Reiley que tinha uma reunião com o marido dela e pedi-lhe que telefonasse a ele e explicasse por que eu estava atrasado. Voltei para o carro e cheguei à Prefeitura alguns minutos depois. Quando caminhava na direção do escritório de Rick, vi que ele vinha pelo corredor com uma expressão carregada. Ao me encontrar, deu-me um forte abraço e disse em voz alta: “Você nos fez um grande favor, Jerry. Nosso cachorro estava velho, cego e com câncer, mas nem eu nem minha mulher tínhamos coragem de sacrificá-lo. Muito obrigado pelo que você fez”.

Jerry Yellin
Fairfield, Iowa


Seu pai tem rinite alérgica

Meu pai é obcecado por seu nariz, escravizado por ele. Na sua cabeça, Deus criou o nariz como uma brincadeira e esqueceu dele na correria para criar o mundo antes de domingo, seu dia de folga. Meu pai e Deus têm muita coisa em comum: Deus tem o destino de todas as vidas sobre seus ombros, papai tem rinite alérgica. Para papai, isso dá um empate. “Ele não quer rinite alérgica, podem crer.” Não se passa um minuto sem que nossa família não se preocupe com o nariz de papai. Como poderia ser de outra forma? É como se fosse uma espécie de presença maligna que vive entre nós. Qualquer pequena diversão que planejemos — uma ida de carro à tarde ao Dairy Queen, uma partida de Banco Imobiliário depois da janta — é vetada pelo nariz de papai. E aquelas que conseguimos iniciar enquanto o diabo do nariz cochila são invariavelmente abortadas quando ele desperta, como uma vespa pregada no rosto de meu pai. Diminuímos a duração do piquenique ou saímos na metade do filme e regressamos para andar atrás de papai pela casa, em busca de seu inalador ou spray nasal, como cinco espíritos maléficos que patrulham seus quartos enquanto papai abre caminho com a ladainha “meu nariz, meu nariz, meu nariz”, como se este fosse o objeto de nossa busca. Quem olhasse pela janela seria estúpido se não chamasse as autoridades.

Ele fica diante da pia do banheiro, com ambas as narinas absurdamente entupidas. Seu arsenal está em exposição diante dele: spray nasal, gotas nasais, tampões nasais, creme nasal, Vick Vaporub, óleo de cânfora, azeite de oliva, óleo de motor, 3-em-1, Liquid-Plumr, Drano, detonadores. Ele desenvolveu combinações que exigem a aprovação da Agência de Proteção Ambiental, licenças industriais, evacuação do bairro. Fico junto à porta e observo enquanto ele mistura suas infusões de cobra, aplica-as e depois espera pelo milagre, absolutamente imóvel, como se escutasse um tropel ao longe, a cavalaria, chegando para salvar seu nariz. Invariavelmente, o clarim jamais toca, o exército não chega nunca.

“Meu nariz.”

Às vezes, é uma declaração de resignação. Deitado no sofá com o lenço sobre a barriga, à mão para você sabe o quê, ele geme: “Meu nariz”. Outras vezes, é uma declaração de guerra, em especial quando está tentando fazer alguma coisa que exige concentração, como consertar o cortador de grama. Ele se ajoelha ao lado do aparelho, apertando um parafuso do tamanho de uma pulga, com os olhos cheios d’água, o rosto vermelho e inchado. De repente, sem mais aviso do que aquele que acompanharia uma invasão alienígena, ele atira a chave de fenda no outro lado do jardim, ergue-se de um salto e enfia a mão no bolso em busca do lenço como se um escorpião estivesse ferroando seu traseiro. Assoa o nariz. Eleva o rosto aos céus. E urra: “Meu nariz!”.

Estou com seis anos de idade. Papai está tentando pôr de volta a correia na minha bicicleta. Sou um tremendo delinqüente por permitir que ela saia do lugar. Papai resmunga. Vejo uma gota de líquido claro descer de sua narina e ficar pendendo como um pingente de aborígine. Em silêncio, recuo alguns passos. Ele funga, limpa com a manga da camisa, funga de novo, rosna uma imprecação ao criador de um aparato tão mal desenhado como o nariz humano. Ele pisca os olhos fumegantes, dá uns puxões na correia como demonstração. E então o nariz assume o controle. Papai ruge como um urso ferido, ergue a bicicleta acima da cabeça e a joga no chão. E lá vem o escorpião. Ele assoa. Passarinhos revoam, mamíferos pequenos empurram seus filhotes para dentro das tocas, as pessoas olham para seus relógios e se perguntam por que a sirene do meio-dia está tocando às dez e meia. A rajada ecoa pela cidade e acompanha seu grito angustiado: “meu nariz!”.

Minha mãe conversa com seu médico sobre o assunto. Ela não entende bem o que ele diz e conta para todo mundo: “Jerry tem um desvio no septo”. Ela traz folhetos para casa, coloca-os na marmita dele. Como se ele precisasse de lembretes.

Estamos no verão de meu nono ano de existência, em férias na Flórida. Mamãe quer visitar Cypress Gardens. Papai reluta. “E minha rinite alérgica?” Mamãe abre sua bolsa: lá dentro tem Contac e Triaminic suficientes para encher um pufe. Violações de transporte interestadual e apreensões de fronteira me vêm à mente. Imagino nós cinco perfilados do lado da estrada, os motoristas diminuindo a marcha para observar, o conteúdo da bolsa de mamãe espalhado no chão, fotógrafos registrando a muamba.

Vamos a Cypress Gardens. Antes de estacionar o carro, papai está prestes a entrar para a galeria da fama da rinite alérgica.

“Meu nariz.”

Mamãe acorre com os remédios: “Tome isso”. Ela está equipada com copos de plástico e uma garrafa térmica cheia de suco de laranja. Ela quer realmente conhecer Cypress Gardens. “Não vão adiantar nada”, diz papai, engolindo-os de qualquer maneira. Não vão.

Lembro daquele dia de ira e atrapalhação. O nariz de papai tinha o controle total do itinerário. Mamãe e nós, as crianças, queríamos ver o show de esqui; o nariz de papai queria ir para casa. Queríamos almoçar na área de piquenique sob os salgueiros; o nariz de papai teve um ataque e perguntou se estávamos malucos.

Caminho pelas trilhas sinuosas, cabeça baixa de vergonha, enquanto papai importuna os funcionários do parque. “Mantenham a limpeza. Isso mata todos nós! Vocês provavelmente nunca tiveram de usar um vaporizador na vida!” Aborda os estranhos e pergunta se têm um canivete. “Meu nariz”, ele geme para as pessoas horrorizadas. “Remova o nariz do meu rosto. Corte fora! Estou morrendo. Salve-me de minha desgraça.”

Tony Powell
Murray, Kentucky


Por que sou contra as peles

Tio Morris tinha olhos da cor de limpador de vidros. Usava anéis cor-de-rosa, chapéu de feltro e sobretudo de casimira lindo de morrer. Cheirava a rum e charutos cubanos, uma combinação que até mesmo meu ser de sete anos de idade achava inebriante. Ele era capaz de contar grandes histórias.

Na juventude, fugira para Toronto e durante pouco tempo seguira a carreira de lutador profissional com o nome de Murray. Lá conheceu tia Faye e tia Rae. Tio Morris era incapaz de dizer “não” às mulheres e raramente tentava. Então, casou-se com as duas.

Tia Rae era tão desagradável que até seus bebês a achavam irritante. Tinha uma filha com Morris que se parecia com um jogador de beisebol e não falava com nenhum dos dois desde o dia em que nascera.

Com tia Faye, teve dois meninos gêmeos chamados Erwin e Sherwin. Supostamente, um era brilhante e o outro “devagar”, mas nunca sabíamos quem era o quê. Proibidos de perguntar diretamente, meu irmão e eu passávamos horas inventando testes sutis que poderiam revelar a verdadeira natureza de cada um, mas jamais chegamos a algum resultado conclusivo.

As duas mulheres moravam em apartamentos separados, em lados opostos da cidade. Sabiam uma da outra e, sem dúvida, graças aos encantos de tio Morris, ambas decidiram aceitar o arranjo. Tio Morris gastava muito tempo e dinheiro para manter Faye e Rae felizes. Não era fácil.

Havia jóias, aparelhos domésticos modernos e carpetes de ponta a ponta que tinham de ser comprados em duplicata. Mas, mais do que tudo, naquelas frias vizinhanças canadenses, ambas as mulheres queriam casacos de pele. Tio Morris só tinha dinheiro para comprar um. Portanto, boa parte de seu tempo era gasto levando o casaco de um lado para o outro de Toronto, para que Faye e Rae pudessem fazer uso dele.

Era especialmente complicado no inverno. O vison andava mais como casaco do que andara quando era bicho. Isso começou a pesar na vida de tio Morris. Combinem-se as pressões do casaco com uma dieta de pastrami e Red Pop a vida inteira e um infarto era quase inevitável.

No curto espaço de tempo em que tio Morris se levantou da mesa segurando o peito e desabou no chão, o casaco desapareceu. A família ficou instantânea e irrevogavelmente dividida. Um enorme nó górdio de parentes separou-se em dois campos. Um achava que Faye estava com o casaco, o outro, Rae.

Contaram-se mentiras. Contaram-se verdades. As mentiras e as verdades foram igualmente danosas. Houve gritaria. Houve choradeira. Houve roubo de quinquilharias. O casaco nunca mais foi visto.

Anos depois, eu estava ajudando minha mãe a limpar a área de depósito de nosso porão. “O que é isto?”, perguntei, enquanto puxava das profundezas do armário o que parecia ser uma roupa de urso comida pelas traças. Escutei um silêncio amaldiçoador e senti os inconfundíveis odores de naftalina e Shalimar. Olhei para minha mãe. Ela evitou claramente meu olhar. “Meu Deus”, disse eu ofegante, “isto é o casaco de Faye e Rae! Você pegou o casaco! Foi você!”

Minha mãe, com seu metro e meio de altura, atravessou voando o porão com surpreendente força e ferocidade e me atirou contra a parede. Agarrou minha camisa e sibilou: “Jamais abra a boca”.

“Calma”, gemi, “se você me matar, vai ficar só com meu irmão.”

Sempre prática, ela afrouxou a mão e tratou do assunto em questão. “O que vamos fazer agora?”, perguntou. Eu não sabia. Se confessasse, eles a matariam.

Peguei o casaco. Era tão enorme e pesado — Faye e Rae tinham sido mulheres grandes. Experimentei-o e me virei para olhar no espelho. Nesse exato momento, meu filho de dois anos entrou no porão. Olhou para mim e gritou e gritou e gritou até que tirei o casaco.

Freddie Levin
Chicago, Illinois


História de aeroporto

Meus amigos Lee e Joyce moram em North Shrewsbury, Vermont, distante cerca de quatro horas de carro do aeroporto internacional de Logan, em Boston. Na década de 1970, um tio de Joyce morreu em Chicago. Ela decidiu ir até Logan e pegar um avião para ir ao funeral.

Atravessou as Green Mountains e então, distraída, dobrou à esquerda, em vez de à direita, e andou meia hora antes de perceber o erro. Com certo pânico de chegar atrasada, deu meia-volta e atravessou correndo Vermont, depois um canto de New Hampshire, e agora estava a apenas meia hora de Logan. Viu uma grande placa de saída para o aeroporto e saiu da estrada principal. Continuou seguindo as placas que indicavam o aeroporto e chegou finalmente a um grande campo gramado com um ou dois hangares. Era o aeroporto local de Manchester, New Hampshire.

Agora ela tinha realmente de se apressar para chegar a tempo de pegar seu avião. Voltou para a auto-estrada, entrou em Logan, saiu correndo do estacionamento e implorou aos passageiros que se enfileiravam diante do balcão que a deixassem passar na frente porque seu avião estava prestes a partir. Ao atendente da companhia, disse que precisava pegar o próximo vôo para Chicago, tirou o talão de cheques da bolsa — e descobriu que não tinha mais cheques.

O único cartão de crédito que trazia era exclusivo de uma cadeia de postos de gasolina.

Todo o dinheiro que possuía era uma nota de um dólar. Não havia como comprar a passagem.

Desconsolada e pronta para chorar, decidiu usar a última nota de um dólar para telefonar aos parentes e explicar que não iria ao enterro. Com os olhos rasos d’água, viu uma máquina onde poderia trocar o dinheiro para usar o telefone. Enfiou a nota de um dólar — e saíram dois bilhetes da Loteria Estadual de Massachusetts. Quando as lágrimas começaram a rolar, um homem que passava por ali bateu em seu ombro e disse: “Não se preocupe. É o melhor negócio que a senhora fez na vida”.

Tudo o que Joyce queria agora era ficar sozinha e chorar em paz. Entrou no toalete feminino.

Todas as cabines eram pagas.

Não me importo, pensou. Acabou-se o meu orgulho. Só quero ficar sozinha e chorar. Ficou de quatro e começou a engatinhar sob a porta de metal.

Na metade do percurso, ouviu a voz de uma mulher: “Desculpe, querida. Este está ocupado”.

Randy Welch
Denver, Colorado


Lágrimas e disparate

Era agosto em Louisiana, época da festa anual oferecida por meu pai aos seus internos. O ar estava parado e inchado de umidade. Eu limpava o peixe que seria um dos ingredientes de uma sopa. Meu pai não gastava muito nesse evento; o grosso do dinheiro ia para as bebidas. As escamas do peixe grudavam no fundo da pia de alumínio e brilhavam como lascas de mica.

Durante todos os anos em que vivi em casa, nunca vi nenhum dos estagiários de meu pai expressar uma opinião que fosse diferente da dele. Papai não era homem para ser contrariado ou contestado. Através da janela, eu observava sua silhueta de Mr. Pickwick balançando levemente enquanto esperava seus jovens doutores. Algo chamou sua atenção e ele olhou para o chão atentamente, fazendo pequenos círculos no ar com seu copo de bebida. O dr. Hauser foi o primeiro a chegar e ficou andando nervoso em volta de seu mentor. Quando os outros internos chegaram, numa lenta procissão pelo caminho forrado com conchas de ostras, encontraram os dois debaixo de uma casa de três andares para andorinhas. Meu pai ouvira falar que as andorinhas eram capazes de cortar a população de mosquitos pela metade e construíra aquele edifício em miniatura para elas.

Um dos filhotes caíra da casa e estava no chão, com o bico levemente aberto. Meu pai, já bem sentimental depois do segundo gim- tônica, estudou a avezinha. Sacudiu a cabeça com tristeza e fez um som com a língua. Não me surpreendeu quando ordenou ao dr. Hauser que pusesse o filhote moribundo de volta na casa, com sua mãe.

O dr. Hauser olhou para a casa a quatro metros e meio de altura e depois para o filhote.

“Você tem uma escada?”

“Ora, que diabos, Hauser, sobe pelo poste.”

O dr. Hauser fez algumas tentativas débeis de escalar o poste com o passarinho na mão, enquanto os outros médicos observavam, felizes por terem chegado depois.

Meu pai veio até a casa, renovou seu drinque e voltou. Ficou sob a casa dos passarinhos por um momento, o gelo tilintando no copo.

“Ponha o carro sob o poste e suba no teto.”

“Meu carro?”

“Claro”, disse meu pai.

Então o dr. Hauser trouxe seu carro para junto do poste. Seu peso amassou o capô e depois a capota do carro. Ainda ficava uns cinqüenta centímetros abaixo da casa.

“Acho que não vai dar”, disse acalentando o passarinho.

“Droga”, disse meu pai.

Matt, meu irmão de dez anos, chegou à cena empurrando um cortador de grama. Sua camisa cáqui estava escura de suor; pequenas lâminas de capim estavam presas nas bainhas de suas calças.

“Matt, suba nos ombros de Hauser”, disse meu pai.

Meu irmão deu um tapa num mosquito e depois se aproximou obediente. O dr. Hauser subiu em seu carro e meu irmão conseguiu subir nos ombros dele. Os dois compunham uma figura estranha balançando sobre a capota do carro, com os juncos do pântano ondulando ao fundo. As andorinhas piavam alto em torno da casa, investindo contra os intrusos. Outro médico entregou o passarinho ao meu irmão, que estava bem perto da pequena abertura do ninho. Ele se inclinou para a frente — e caiu. Eles caíram: Matt primeiro, depois o doutor e finalmente o passarinho.

Ouviu-se um ruído surdo quando bateram no carro e depois rolaram pelas conchas.

“Meu Deus!”, gritou o dr. Hauser.

“Papai! Meu braço!”

O braço de meu irmão estava torto, dobrado, como se não lhe pertencesse. Ele pôs o outro braço sobre o rosto para esconder as lágrimas; as conchas de ostra tinham cortado seu corpo.

Os médicos cercaram os dois imediatamente e um deles correu até a casa a fim de achar uma tala para o braço de Matt. Outro foi até seu carro em busca de uma caixa de primeiros socorros. Dois médicos acudiram o dr. Hauser.

“Não se mexa, Don”, disse um deles. “Acho melhor chamar uma ambulância.”

Durante toda essa comoção, meu pai ficou parado, com a atenção fixa no lugar onde o passarinho havia se achatado nas ostras.

“Coitadinho do infeliz”, disse meu pai enquanto se servia de outra dose de gim. “Coitadinho do infeliz.”

Alice Owens-Johnson
Black Mountain, Carolina do Norte


O vagão-restaurante

Quando eu era um jovem marinheiro, recém-saído do acampamento dos recrutas, ganhei uma licença de duas semanas. Decidi ir a Miami visitar meu pai e minhas irmãs e peguei o trem em Norfolk, Virgínia. Depois de umas duas horas, comecei a sentir fome e então deixei meu assento e atravessei todo o trem até o vagão-restaurante. Descobri que era um lugar animado, obviamente a única diversão da cidade. Engoli um sanduíche de queijo e presunto, bebi pelo menos duas garrafas de Coca e fiquei sentado por uma ou duas horas, tentando parecer tranqüilo enquanto folheava umas revistas. Esta foi minha primeira visita. No dia seguinte, voltei, preparado agora com um romance que alguém me dera para ler. Pequeno rincão de Deus, lembro. Desta vez, o vagão estava quase vazio e pude escolher o lugar. Decidi matar o tempo em uma das duas cabines circulares das extremidades do carro. Tinham mesa com tampo de fórmica e confortáveis poltronas de vinil. Pus meu livro sobre a mesa, fui ao bar e pedi um grande copo de café, um pão doce e voltei à cabine. Assim refestelado, devorei o pão e comecei minha leitura.

Atrás da cabine havia uma grade de aquecedor de aço inoxidável, perfurada com buracos redondos. A cada gole de café, eu punha o copo de papel na mesa e jogava meu braço direito sobre o encosto da cabine, esticando-o de modo resplendorosamente suave. Meus dedos começaram a tamborilar na grade. Depois, passei a enfiá-los e tirá-los dos furos. Concentrado na leitura, deixei dois dedos enfiados. Então, pronto para mais um gole de café, puxei o braço direito e, por incrível que pareça, meus dedos não saíram. Estavam presos nos furos.

Isto é ridículo, disse a mim mesmo, isto não está acontecendo. Tentei de novo, mas meus dedos não saíam dos buracos. O vagão começou a encher de gente. A certa altura, um grupo de quatro me perguntou se eu terminara o café porque precisavam da mesa para jogar cartas. Contei-lhes minha dificuldade. Ficaram espantados, mas foram solidários. Seguiram-se várias tentativas para libertar minha mão. Primeiro, um saco de gelo; depois, um pouco de creme frio; depois, a cura pelas palavras: “Fique relaxado, fique calmo, respire fundo!”. Nada! Chegou então um contingente da tripulação do trem. Um dos homens trazia um saco de lona cheio de ferramentas. Desmontaram a cabine, deixando à mostra a grade do aquecedor. Em seguida a desparafusaram e lá estava eu, no meio do vagão-restaurante, em meu traje de marinheiro agora todo amarrotado, preso a uma peça de aço inoxidável de dois metros de comprimento. Mesmo assim, meus dedos não se mexeram. Estavam visivelmente inchados.

Por fim, o trem parou e fui levado à sala de emergência de um hospital, com grade e tudo. Um interno perplexo fez o melhor que pôde, sem resultado. Acabei sendo levado ao porão do hospital, onde um sujeito da manutenção serrou cuidadosamente a grade. Imensamente aliviado, agradeci-lhe do fundo do coração.

No dia seguinte eu estava em Miami, sem o incômodo anel.

John Flannelly
Florence, Massachusetts


Um dia em Higley

Um dia, quando eu era um jovem perito-contador, fui visitar um cliente em sua fazenda, perto de Higley, Arizona. Enquanto conversávamos, escutamos algo que arranhava a porta de tela e ele disse: “Observe isto”. Foi até a porta, abriu-a e deixou entrar um grande lince. Ele o encontrara num campo de alfafa logo depois que nascera e desde então o animal fazia parte da família. Quando ele abriu a porta, o felino correu para o banheiro, saltou sobre o vaso sanitário e agachou-se para “fazer suas necessidades”. Assim que terminou, o lince saltou para o chão, ergueu-se nas patas traseiras e puxou a descarga.

Carl Brooksby
Mesa, Arizona


estranhos


Viagem de ônibus

Era fim de maio ou começo de junho quando embarquei no ônibus, em Reno. O ano era 1937.

Parei ao lado do primeiro assento vazio. “Posso....?”, perguntei. A pessoa sentada junto à janela lançou-me um olhar que dizia que preferia não ter companhia, mas depois assentiu com a cabeça. Era uma mulher idosa (embora provavelmente dez anos mais moça do que sou agora), com uma presença imponente e roupas caras — endinheirada, como costumávamos dizer. Não era o tipo comum que se encontra num ônibus da Greyhound. Fiquei imaginando por que preferira a viagem de ônibus ao luxo de um vagão Pullman. Depois de algum tempo, ousei perguntar.

A veemência da resposta quase me derrubou do assento. “Quero ver o país enquanto ainda resta um pouco dele! Porque não vai sobrar nada quando este sujeito, o Roosevelt, terminar seu serviço!”

Eu adorava F. D. R., mas não disse nada. Os que odiavam Roosevelt jamais davam ouvidos à lógica. Ademais, não estava disposta a discutir.

Eu estivera em Reno pela razão usual naquela época: divórcio. Agora, no ônibus da Greyhound, sentia uma mistura contraditória de alegria e vergonha. Alegria porque estava livre e vergonha por ter feito um casamento ridículo, antes de mais nada. Eu estava com 23 anos.

Minha companheira de viagem desembarcou na cidade seguinte. Disse que ia descansar por um ou dois dias e depois prosseguir em sua inspeção de despedida dos Estados Unidos. Mudei-me para o assento junto à janela e uma mulher gorda sentou-se ao meu lado. Imediatamente ela dormiu. Roncou pelo resto da viagem.

Como Jean e eu nos encontramos? Numa parada de descanso, é claro. Numa viagem longa de ônibus, nada era tão bem recebido como aquelas paradas. Ao sair da estrada, o motorista anunciava: “Pessoal, damas à direita, cavalheiros à esquerda. Parada de cinqüenta minutos”. Os passageiros mexiam-se e murmuravam, na maior expectativa.

Dentro do ônibus, estávamos isolados, dois a dois, mas na parada podíamos nos misturar. Alguns davam vigorosas corridas para lá e para cá, enquanto outros comiam cachorro-quente em torno de uma barraca. E todos ficavam de pé durante a parada, para aliviar a dor no traseiro.

Numa dessas paradas, reparei numa moça mais ou menos da minha idade rindo da mesma coisa de que eu estava rindo. O riso compartilhado é uma apresentação infalível e começamos a conversar. Jean era uma morena baixa com um sorriso encantador. Eu era mais alta — alta demais, achava — e meus cabelos eram castanho-claros. Estávamos ambas provavelmente com vestidos de tecido listrado com superfície crespa, frescos e pré-vincados, com saias compridas até a metade da perna (as calças compridas para mulheres só apareceriam anos depois).

Jean contou-me que morava com uma tia na Califórnia e estava na faculdade. Agora, ia para casa, na Pensilvânia. Contei-lhe que não estudava mais e estava pensando em começar uma carreira profissional.

Quando voltamos ao ônibus, armamos umas trocas de lugar e sentamos juntas. Lado a lado, lemos aquela revista nova, Time, e Thomas Wolfe, o verdadeiro Thomas Wolfe. Alternamo-nos na janela, grunhindo contra o calor terrível. Olhando pelo pára-brisa, víamos a estrada de pista simples se dissolvendo em miragens bruxuleantes, lagos frescos aos quais jamais chegaríamos.

Conversamos. E rimos. E conversamos. Às vezes, dormíamos. Cantávamos baixinho para que ninguém nos escutasse, harmonizando “Old mill stream” e “Stardust”. Fiquei sabendo que Jean nunca amara de verdade — tivera apenas paixonites. Queria ser professora porque, como dizia, “se você é capaz de ensinar, pode fazer qualquer coisa”.

Contei-lhe sobre o divórcio. Ficou chocada, mas aceitou. Comecei a perceber que aquela jovem era notavelmente bem ajustada, enquanto eu me sentia dispersa e agitada.

Durante uma longa viagem, os passageiros tendem a sentir coceiras, cãibras, mau humor e fedor. Jean e eu concluímos que precisávamos de um descanso e passamos a noite em Omaha, Nebraska. Lá, subimos e descemos lindas colinas, à sombra de grandes montanhas. Em Omaha, aprendi que respirar podia ser um prazer sensual.

Tomamos outro ônibus na manhã seguinte e o resto da viagem foi um refresco. Quando chegamos à rodoviária onde Jean desembarcaria, na Pensilvânia, juramos nos manter em contato.

E o extraordinário é que cumprimos o juramento. Durante 62 anos, trocamos correspondência uma ou duas vezes por ano, de costa a costa. Jean apaixonou-se subitamente por um soldado que conhecia havia nove anos. Casaram-se e mudaram-se para o sul da Califórnia. Eu casei de novo, e me saí melhor dessa vez.

No começo de 1999, minha amiga sugeriu um encontro. Hesitei, pensando que uma amizade tão antiga estaria mais segura na memória. Mas Jean insistiu, e estou contente por ter aceitado.

Encontramo-nos num final de semana de agosto, duas viúvas octogenárias, uma baixa e a outra alta, nenhuma robusta, mas ainda com formas femininas, nossos cabelos bem cuidados passando de grisalhos a brancos. Achei que ainda estávamos ambas com boa aparência. Somando entre as duas, tivéramos três ataques do coração, um pequeno derrame, três cirurgias de catarata, uma deficiência de tireóide, enfisema, artrite em incontáveis juntas. Tomamos nossos comprimidos na companhia uma da outra, mantivemos os óculos à mão e caminhamos devagar, mas sem ajuda. Nenhuma de nós precisava de aparelhos para surdez.

Conversamos e rimos durante dois dias, comparando nossas vidas e épocas. Falei de meus dois filhos, dos quais sou muito orgulhosa, e sobre minha carreira, de que não sinto orgulho algum. Ela fracassou, depois de alguns fogos de palha.

Jean distinguira-se realmente. Fundara e dirigira um serviço para ajudar aposentados a encontrar maneiras de continuar sendo úteis. Foi escolhida para uma comissão nacional que estudou pessoas idosas em todo o mundo. Viajara à China, à Rússia e à África do Sul.

Em nosso jantar de despedida, na noite de domingo, surgiu uma pergunta: se tivéssemos a oportunidade de viver nossas vidas de novo, exatamente como haviam sido, sem a menor alteração, faríamos isso?

Jean disse sim. Eu disse não.

Olhamos uma para a outra.

“O que significa isso?”, perguntou ela.

“Precisa significar alguma coisa?”

“Acho que sim”, disse ela.

“Que você gostou de sua vida.”

“Talvez”, disse ela, “e que talvez você não reconhece o mérito da sua.”

“Talvez...”

Mais tarde, erguemos nossas taças de champanhe e fizemos um brinde ao mundo. Brindamos nosso encontro e o declaramos bom. Depois partimos sem nenhuma tolice sobre ter outro encontro, e com amor.

Beth Twiggar Goff
West Nyack, Nova York


Uma pequena história sobre Nova York

Em 1979, eu morava no Upper West Side de Manhattan, no número 47 da rua 85 West, entre Columbus e Central Park West. Naquela época, era um bairro em transição. O lado oeste da avenida Columbus ainda era de classe mais baixa, mas o outro lado da rua estava se tornando chique rapidamente. Gente pobre vivia ao lado de jovens profissionais liberais e executivos, numa espécie de paz inquieta.

Eu conseguia permanecer ali com minha magra renda porque morava no mesmo lugar desde 1976 e se tratava de um apartamento com aluguel controlado. Era um prédio antigo que fora dividido em apartamentos pequenos e eficientes. Um era de dois quartos — a pretensa “cobertura” — e outro era o único com jardim: uma área nos fundos cheia de ervas daninhas cheirando a gato, com plátanos. O senhorio era o sr. Yablons, um homem rabugento de quarenta anos e um início de calvície. Ele estava sempre inventando estratagemas para expulsar seus inquilinos, a fim de transformar o prédio num lugar alternativo para ele e sua mãe.

Nossa relação deteriorava-se sem parar. Minhas finanças estavam um caos e eu geralmente atrasava o pagamento do aluguel. A coisa chegou a tal ponto que ele passou a aceitar pagamento apenas em dinheiro. Assim, na época de pagar, eu tinha de trocar meu cheque-salário e levar o dinheiro até seu escritório modernoso, no Upper East Side.

Eu estava sempre incitando os inquilinos ao motim. Sempre que o senhorio tentava um de seus golpes ultrajantes, eu organizava uma reunião dos inquilinos em meu apartamento. Bebíamos muito vinho branco, desabafávamos e nos divertíamos.

Eu adorava Nova York no verão. Era quente, mas tranqüila e vazia. Durante a semana, caminhava uns dois quilômetros até meu emprego no centro, no sindicato dos atores teatrais, deleitando-me com as ruas desertas e sombreadas e os diferentes bairros pelos quais passava — de Central Park West e seus edifícios velhos e grandiosos à colcha de retalhos da Broadway, com seus restaurantes cubano-chineses de entrega em domicílio e delicatéssen judaicas. À noite, às vezes eu arrastava meu colchão até o telhado e deitava de costas, ouvindo os ruídos da cidade e refrescando-me na brisa. Ou meu gato e eu descíamos descalços e sentávamos no alpendre, onde eu bebia umas Budweisers com outros moradores, aos sons da rua 85. Era uma vizinhança tranqüila, devagar naquela época. Senhoras idosas punham cadeiras nas entradas de seus prédios e ficavam se abanando. Naqueles tempos, todo mundo abria completamente as janelas para o ar circular e podíamos escutar o choro de bebês, a discussão de casais e o barulho dos televisores. Elliot, que morava no segundo andar, ensaiava as músicas de jazz que tocava em clubes, às vezes até depois da meia-noite.

Em uma quinta-feira quente da semana de pagar o aluguel, cheguei em casa cedo com meu punhado de dinheiro no bolso e dois grandes sacos de papel da mercearia nos braços. Tudo o que eu queria era chegar em casa, largar os sacos pesados e ligar meu ventilador. Não havia ninguém no alpendre para me ajudar, então abri a porta externa com o pé e andei de lado até as caixas de correio. Tinha uma leve consciência de que alguém entrara no prédio atrás de mim, mas estava distraída mudando os sacos de mão para poder pegar a chave e abrir a porta interna.

Atravessava o vestíbulo quando escutei uma voz dizer: “Passa todo o dinheiro”.

Mal registrei o significado das palavras. Virei-me e estava começando a dizer alguma coisa quando o vi: um homem alto e troncudo, com uma faca comprida na mão.

Olhei espantada para ele.

Ele disse: “Passa o dinheiro”.

Escutei minha própria voz respondendo: “Está maluco? Acabei de ir às compras. Não tenho mais dinheiro”. Aquilo não fazia sentido e eu não podia acreditar que tivesse falado daquela maneira. Tenho certeza de que ele também ficou surpreso.

“Me passa todo o dinheiro, ou vou te cortar”, disse ele.

Pensei, como vou pagar o aluguel se der todo o meu dinheiro para ele? Não posso dar o meu dinheiro. Preciso dele.

“Não. Vá embora.”

Ele ficou confuso. Afinal, eu era uma mulher indefesa e ele era um sujeito forte, armado com uma faca.

“Passa todo o dinheiro”, repetiu com menos convicção.

“Caia fora deste edifício”, repliquei.

“Passa”, começou ele de novo.

“Você não ouviu o que eu disse?”, interrompi. “Caia fora. Caia fora agora.”

De repente, ele olhou para o alto das escadas. “Tudo bem”, falou, “tá certo.” E saiu do prédio da mesma forma sorrateira como entrara.

Durante um instante, fiquei ali atordoada, depois meus joelhos começaram a tremer. Larguei os sacos de compras no chão e corri para cima o mais depressa que minhas pernas bambas permitiram. Bati primeiro na porta de Elliot, mas ele não respondeu, então subi mais dois lances de escada até o apartamento de Robert. Era um operador de câmera de uma estação de tevê que tinha uns horários de trabalho diferentes. Ele abriu a porta.

Comecei a balbuciar, explicando rapidamente o que acontecera, e implorei que fosse à delegacia comigo. Ficava a umas duas quadras de casa. Mas Robert disse não, a polícia não iria se interessar pelo caso. Afinal, o sujeito não me roubara e eles provavelmente não acreditariam na minha história. Tive de concordar — até para mim ela estava parecendo improvável. Então Robert entrou em seu quarto e fui atrás. Abriu a gaveta de cima de seu criado-mudo e pegou um revólver. Parecia excitado.

“O que você pretende fazer com isso?”

“Não estou planejando atirar em ninguém”, disse ele, “quero apenas assustá-lo.” Falou que sairíamos juntos para ver se eu conseguia identificar o candidato a assaltante. Àquela altura, eu não estava com as idéias claras, pois segui obedientemente Robert até a rua. Mas quando começamos a caminhar pela vizinhança, me dei conta de que provavelmente não seria capaz de identificar o homem. Robert pareceu bastante desapontado quando demos meia-volta e regressamos ao prédio.

Eu não conseguia imaginar porque o sujeito com a faca desistira com tanta facilidade. Não era possível que uma mulher baixa, de cabelos crespos e faces rosadas o tivesse intimidado. Quem ou o que o fizera ir embora? Fora sua consciência? Um anjo? A velha sra. Yablons? Paguei o aluguel prontamente no dia seguinte.

Anos mais tarde, depois que mudei para Wisconsin, fiquei sabendo que Robert se tornara bastante depressivo e passava horas a fio sozinho em seu quarto, com a porta trancada. Conforme me disseram, ainda tinha o revólver.

Dana T. Payne
Alexandria, Virgínia


Meu erro

Eu trabalhava de motorista no turno diurno para uma companhia de táxis de Dayton, ganhando mal como horista. Era o verão de 1966, a cidade estava mergulhada numa onda de calor e todos estavam irritadiços, inclusive eu. Naquela tarde, estava sentado num ponto de táxi do centro, na frente do Hotel Biltmore, um lugar grande e elegante que tivera seu apogeu havia pouco tempo. Todas as janelas do carro estavam abertas para captar qualquer brisa. Minha esperança era pegar uma corrida para o aeroporto.

Em vez disso, recebi uma chamada da central. Pelo rádio, mandaram-me ir até a banca de jornais de Wilkie comprar uma Racing Gazette. Depois, deveria parar no Liberal Market, no centro, e pegar seis garrafas de cerveja Schoenling, um pacote pequeno de comida para peixinho de aquário e uma caixa de cigarros White Owl. Não poderia fazer substituições no pedido e deveria usar dinheiro do meu bolso para pagar as mercadorias; como o cliente me reembolsaria, deveria guardar os recibos. A entrega era no apartamento 3B de um endereço na rua 3, que reconheci ser um prédio residencial de um bairro em decadência.

Protestei, não querendo perder a chance de uma corrida para o aeroporto, mas também porque não queria gastar meu dinheiro, com medo de que não fosse reembolsado ou, pior ainda, fosse vítima de uma armação para me roubarem. A pessoa da central foi ficando impaciente e me disse que aquele homem era um cliente habitual, que não haveria problemas com o pagamento e que eu deveria ir andando ou então devolver o táxi para que outro cumprisse a missão. Diante disso, resolvi ir em frente.

Mas amaldiçoei o cliente em pensamento. Imaginei que deveria ser algum vagabundo vivendo de seguro-desemprego, preguiçoso demais para alimentar seu peixinho e buscar o que precisava para satisfazer seus vícios. Enfurecia-me ter de fazer aquelas compras para alguém que, a julgar pelo lugar onde morava, não teria dinheiro para me pagar.

Fui até o Wilkie e comprei a Racing Gazette, depois desci a rua até o Liberal para comprar a comida de peixe, a cerveja e os cigarros. Então, me dirigi até o endereço do cliente. Era um velho edifício de apartamentos da década de 1890, de quatro andares e tijolos escuros, em condições quase habitáveis. Entrei e senti o cheiro de tabaco velho, bacon e mofo, característico de tais lugares. Quando cheguei ao corredor do terceiro andar, bati na porta escura do apartamento 3B. Não houve resposta imediata. Pude ouvir alguma coisa que se movia no piso, mas não eram passos. Por fim, a porta foi aberta e não vi ninguém. Isto é, até olhar para baixo.

Ali, sentado numa plataforma de compensado e olhando para mim, estava um homem. Era magro, tinha cabelos negros ralos, usava uma camiseta branca, calças de lã cinza e um cinto preto e estreito na cintura. Tinha apenas tocos no lugar das pernas, não mais longos do que minhas mãos.

Era alguém que tivera as duas pernas amputadas e que circulava no apartamento de um cômodo empurrando-se sobre uma pequena plataforma pelo assoalho de madeira. Segurava um cilindro de borracha em cada mão para dar impulso. Eram quase tão grandes quanto uma cabeça de marreta, com alças de borracha para segurar.

O homem foi polido e agradeceu muito pelos meus serviços. Orientou-me a pôr as cervejas numa Frigidaire pequena, uma relíquia do final da década de 1940, e para deixar os cigarros sobre a mesa da quitinete. Os peixinhos estavam num aquário e ele pediu que eu os alimentasse. Depois pediu-me para pôr a Racing Gazette sobre uma velha mesinha de centro de vidro, diante do sofá gasto.

Fiz tudo o que pediu, com satisfação. Não estava mais irritado. Quando larguei o jornal na mesa de centro, notei uma caixa de veludo aberta que parecia um estojo de jóias. Enquanto o homem procurava o dinheiro para me pagar, olhei dentro da caixa. Lá dentro havia uma medalha levemente deslustrada — um Coração Púrpura. Era quase com certeza da Segunda Guerra Mundial, pois o homem parecia ter cinqüenta e poucos anos.

Meu sentimento de culpa começou a crescer enquanto o homem me pagava pelas coisas e pela tarifa do táxi. E se instalou plenamente quando ele me deu uma gorjeta generosa, muito mais do que eu ganharia numa corrida até o aeroporto.

Era um homem tranqüilo, obviamente sem carência de companhia. Depois de acertar nossas contas, ele me acompanhou até a porta. Reconciliara-se havia muito tempo com sua condição e com o sacrifício que fizera. Não precisava de compaixão e não oferecia explicações. Eu faria outras viagens para ele muitas outras vezes até mudar de emprego, mas nunca soube seu nome e nunca nos tornamos amigos, apesar do contato regular.

Eu precisaria atingir mais do que o dobro da idade que tinha então para aprender que prejulgar as pessoas faz com que a gente erre sobre a maioria das coisas na maior parte do tempo.

Ludlow Perry
Dayton, Ohio


A menina nova

Era um dia quente e claro. Tudo queimava — os telhados, os arbustos, o asfalto, o assento de nossas bicicletas, nossa pele, nossos cabelos. O pai de Allison estava regando o gramado e ela e eu andávamos de bicicleta sobre a grama encharcada, atravessando os redemoinhos de água lançados pelo aspersor.

Eu morava na rua Prospect. Tinha oito anos e Allison estava com dez. Éramos as únicas crianças do quarteirão e, portanto, éramos amigos à revelia. Eu respeitava Allison, embora não compartilhasse seu interesse por Barbies. Durante o verão, passávamos bastante tempo andando de bicicleta, jogando Clue e fingindo que éramos casados. Mas não creio que ela gostasse muito de mim e não sei tampouco se eu gostava dela. Também não lembro sobre o que conversávamos a maior parte do tempo, mas esta é uma conversação que não posso esquecer.

Os pneus de nossas bicicletas deixavam marcas profundas no gramado que jamais fechariam completamente. Quatro anos depois, quando meus pais se mudaram, as cicatrizes no chão ainda estavam lá.

Eu fui o primeiro a ver a menininha, de pé no meio da rua Prospect, montando na bicicleta e nos observando. Ouvi alguém rir quando quase colidi com Allison. Ergui os olhos e lá estava ela.

Sorri. Ela sorriu de volta.

A rua Prospect ficava num bairro de baixa classe média branca. A maioria das casas tinha cerca de setenta anos e uma aparência simples e robusta. Viam-se algumas árvores grossas com troncos enodoados, mas o que havia mais eram arbustos baixos, atarracados, que proporcionavam pouca sombra. A garota, de camiseta e short verde, parecia pequena contra o pano de fundo da rua feia, mas seu sorriso era expansivo. A casa que ficava na frente de onde Allison morava fora vendida na semana anterior e imaginei que a menina devia ter se mudado para lá com a família.

Quando Allison saiu de debaixo do arco de água, olhou para mim. Então parou a bicicleta e virou-se para ver o motivo de meu sorriso. Enquanto eu dizia “Oi” para a garota, escutei Allison dizer “Cai fora, negra” com tal desprezo que congelei, com o sorriso ainda colado no rosto.

A garotinha continuou a sorrir também. Allison passou uma perna por sobre o assento da bicicleta e encarou a menina. Segurando a bicicleta com uma das mãos, ela apontou para a casa do outro lado da rua com a outra. “Eu disse cai fora, negra, ou vou bater em você.”

O sorriso da menina desapareceu. Eu também parei de sorrir e olhei para Allison. Seus olhos estavam apertados e de seus longos cabelos pingava a água que batia em suas costas cada vez que o aspersor girava na nossa direção. A luz do sol queimava nos fios que haviam escapado de seu rabo-de-cavalo, dando-lhe uma espécie de halo. A água batia entre meus ombros, empurrando-me para a frente a cada golpe.

Dei as costas para a menina e encenei um sorriso de zombaria, na tentativa de imitar o ódio que vira no rosto de Allison. Evitei os olhos da menina.

Ela disse: “Pensei que poderíamos brincar. Meu nome é...”.

Allison cortou com veemência: “Não brinco com negros”.

Observei a menina rolar sua bicicleta até o outro lado da rua e largá-la no gramado de sua casa. Subiu correndo os degraus da escada da varanda com a cabeça baixa, o queixo tremendo, e desapareceu dentro de casa. Depois de alguns instantes, as cortinas de uma das janelas abriram-se um pouco — não tanto que eu pudesse ver um rosto, mas o suficiente para sentir os olhos quentes da mãe da garotinha. Lembro disso como se fosse hoje: de pé ao lado da minha bicicleta, as cortinas cor-de-rosa da casa em frente se abrindo, a grande mão parda afastando-as apenas o suficiente para que alguém de dentro pudesse espiar para fora.

“Quem era ela?”, perguntei a Allison, enquanto a mão saía de vista e as cortinas se fechavam.

“Quem quer saber? Eles se mudaram na semana passada e mamãe diz que vão arruinar nossa casa.”

“Como é que eles vão arruinar sua casa?”

“Não sei, mas não quero aquela menina negra perto de mim.”

E eis o que eu respondi: “Os negros são estúpidos. Quem sabe eles se mudam”.

Voltamos a andar de bicicleta no gramado, mas eu sentia a casa da frente como se fosse uma presença viva, observadora. Não parava de pensar nas mãos afastando as cortinas. Esperava que a mãe da garotinha surgisse da casa e exigisse um pedido de desculpas para sua filha. Mas isso não aconteceu. Quando o sol começou a se pôr e fui para casa jantar, estava com um nó no estômago.

Depois disso, de vez em quando eu via a garotinha no seu jardim, brincando com amigos, mas nunca falei com ela e nunca disse que estava arrependido. Em geral, eu estava com Allison. Durante o verão, o nó em meu estômago cresceu e se apertou até que ficou impossível desatá-lo. Quando a garota e sua mãe foram embora, após alguns meses, achei que o nó iria desaparecer. Não desapareceu.

Isso aconteceu há vinte anos, mas ainda penso naquela tarde quase todos os dias. Nunca mais falei com Allison depois que minha família saiu da rua Prospect, mas espero que ela pense na garotinha também. E espero mais do que qualquer outra coisa que a menina e sua mãe tenham me esquecido, mas sei que isso não é possível.

Marc Mitchell
Florence, Alabama


O Homem do Gelo da rua Market

No começo dos anos 70, durante três anos fui motorista de ônibus elétrico da San Francisco Municipal Railway, na linha 8 da rua Market. Trata-se de uma rua de tráfego intenso e uma amostra representativa da sociedade passa por ela todos os dias. Trabalhava à noite, pegando no começo da hora do rush. Nas primeiras viagens, levava os funcionários de escritórios do distrito financeiro para a área residencial logo a oeste do centro. Mais tarde, os passageiros eram menos diversificados: trabalhadores noturnos, gente em busca de prazer e os “habitués” da Market. Estes eram pessoas que moravam na própria Market ou nas redondezas, quase sem exceção em hotéis residenciais ou para pessoas em trânsito. O maior dos hotéis que abrigavam pessoas dependentes da previdência social era um edifício colossal conhecido como Lincoln. Situava-se perto do início da rua, a uma quadra do cais.

O hotel Lincoln tinha cinco andares e cerca de trezentos quartos pequenos. Fui uma vez lá visitar um amigo que andava sem sorte. Esta não é a história dele, mas minhas lembranças do prédio vêm daquela visita. Depois de entrar no vestíbulo estreito, dava-se com uma pequena gaiola de tela reticulada. Dentro da gaiola havia um porteiro entediado que cuidava das transações infreqüentes. À direita dele ficava um daqueles elevadores antigos sem vidro ou paredes sólidas: outra gaiola. À direita do elevador havia um corredor longo e estreito, com escadas em ambas as extremidades. O chão de madeira nua apresentava as marcas de anos de uso. Ao longo das paredes, a poucos metros de distância umas das outras, enfileiravam-se as portas que se abriam para os pequenos quartos, semelhantes a celas, que constituíam os aposentos de cada residente.

Uma grande quantidade de tipos muito variados morava no hotel Lincoln. Alguns eram transitórios, enviados pelo departamento de bem-estar social para moradia de emergência. Uns poucos eram presos em liberdade condicional. Mas a maioria era de residentes que ali moravam havia meses ou anos, em geral pessoas solteiras que conseguiam pagar o aluguel modesto com suas pensões, com o dinheiro da aposentadoria por incapacidade física ou com cheques da seguridade social. Uns poucos ganhavam salários de subsistência em trabalhos servis. A maioria era de meia-idade ou idosa. Quase todos tinham uma característica em comum: a dignidade. Seus meios eram limitados, seus futuros quase sempre sombrios, mas se comportavam com dignidade e costumavam ser gentis uns com os outros.

No final do turno, eu tinha um pequeno número de passageiros habituais que subiam e desciam nos mesmos lugares e no mesmo horário todas as noites. Um deles era um homem negro que parecia estar na idade de se aposentar. Era magro, levemente mais baixo que a média, e andava com movimentos rápidos e seguros. Eu o descreveria como “de arame”. Uma vez que ficava quieto e não puxava conversa, poderia ter passado despercebido por mim. Porém, todas as noites de sextas-feiras às 11h20, ele embarcava no ônibus com um resistente saco de lixo que chocalhava e tilintava pendurado no ombro. Era do tamanho de um saco de presentes de Natal, carregado por um Papai Noel urbano, baixo e magro. Eu tinha curiosidade de saber o que ele carregava, mas respeitava a privacidade do tipo. Ele embarcava na rua 7 e descia na Main, o ponto mais próximo do hotel Lincoln.

A cada sexta-feira, minha curiosidade aumentava. Depois de quatro ou cinco semanas, decidi me arriscar a perguntar. Quando ele embarcou e estendeu a passagem, perguntei: “Você se importa se eu perguntar o que carrega neste saco?”. “Gelo”, respondeu ele. “Gelo?” “Sim, gelo.”

Aquele não era certamente um sujeito loquaz. Eu não disse mais nada, esperando que ele oferecesse uma explicação. Em geral, os habitués da Market são pessoas solitárias e logo se abrem quando alguém expressa interesse por eles. Mas o nosso amigo não disse mais nada. Fiquei confuso demais para continuar a conversa. Poucos minutos depois, ele desceu do ônibus com sua carga chacoalhante.

Na metade da semana seguinte, eu estava resolvido a aproveitar a próxima chance para desvendar o mistério do Homem do Gelo da rua Market. Fiquei ansioso. E se ele não aparecesse mais? Seria mais um dos mistérios sem solução da vida? Durante toda a sexta-feira fiquei na expectativa de nosso encontro.

Por fim, quando me aproximei da parada da rua 7 às 11h20, vi o sujeito esperando com o saco. Quando ele embarcou, cumprimentei-o: “Olá”. “Olá”, respondeu ele. Aparentemente, nossa conversa concisa da última sexta havia estabelecido o reconhecimento. Aproveitei a abertura. “É gelo que tem no saco?” “É”, retrucou ele.

Deixando de lado toda a reserva, confessei minha grande curiosidade sobre o objetivo de carregar um grande saco de gelo. Então ele me contou sua história. Trabalhava na Universidade de San Francisco, na cozinha da lanchonete. Fazia a limpeza do chão e cuidava do lixo. Às sextas, a cozinha fechava por todo o fim de semana. Para economizar energia, a escola desligava os freezers. Já que todo o gelo derreteria durante o fim de semana, ele podia levar para casa quanto quisesse.

Quase todos os empregos têm uma vantagem paralela. O pessoal da cozinha ganha comida gratuita. Professoras às vezes ainda ganham maçãs. Aos funcionários de escritórios nunca faltam clipes para papel e elásticos de borracha. Aquele trabalhador tinha licença para levar toda a água congelada que fosse capaz de carregar uma vez por semana.

A esta altura, Querido Leitor, você deve estar pensando o mesmo que pensei na ocasião: que era uma ganância absurda que o levava a transportar aquela carga pesada todas as sextas. Eu estava errado. Ele explicou que morava (como eu suspeitava) no hotel Lincoln. Em seu quarto, tinha uma grande caixa de isopor que conservava o gelo durante todo o fim de semana.

Muitos dos outros moradores do hotel recebiam cheques semanais e podiam, às vezes, investir em uma garrafa de uísque. Assim, davam uma passada em seu quarto para pegar gelo. Com freqüência, ofereciam-lhe um drinque. Às vezes aceitava, mas nem sempre. Seu aspecto deixava óbvio que não era um beberrão. Freqüentemente, um pequeno grupo de vizinhos — pensionistas, inválidos, fracassados — se reunia para compartilhar a sua generosidade, e a deles próprios.

Ele tinha um papel na sociedade como centro de uma irmandade. Carregava gelo que logo derreteria e desapareceria. Mas, enquanto derretia, as pessoas se reuniam para compartilhar gelo e bebidas, companhia e alegria.

Os tempos mudam.

Hoje, onde era o hotel Lincoln, ergue-se o prédio do Federal Reserve Bank.

R. C. Van Kooy
San Francisco, Califórnia


Vidas dos poetas

Em 1958, quando eu ainda estudava na Universidade de Indiana, comecei a ir de carro a Nova York nas férias e nos feriados. Tal como incontáveis aspirantes a artistas antes de mim, eu “batia nas portas”. Allen Ginsberg abriu-me a porta de seu apartamento da rua 10 e disse que conversaria comigo se eu lhe comprasse um hambúrguer. Foi o que fiz, na lanchonete do térreo, e ele falou sem parar durante uma hora sobre Shelley e Maiakovski. Depois disse para eu procurar Herbert Huncke e dizer que Allen me havia mandado lá. Bati à porta e fui recebido por um homem pálido, de aparência gentil, que me convidou a entrar na sala, onde várias pessoas estavam acampadas em silêncio sobre móveis em mau estado. “Estamos cozinhando um poema, cara”, disse Huncke. “Venha.” Conduziu-me até a cozinha e abriu a porta do forno. Lá estava! Um poema datilografado numa folha de papel que estava ficando marrom nas pontas sob o calor de 180 graus. Huncke fechou a porta do forno e voltou para a sala. Fui atrás dele. Todos estavam ainda em silêncio. Depois de ficar por ali por alguns minutos, decidi que não estava com fome e escapuli.

Clayton Eshleman
Ypsilanti, Michigan


Arco-íris

Numa noite rigorosa de inverno, quando Cochran tinha cerca de treze anos e Jennie seis, levei-os à sorveteria local, um dos poucos lugares da cidade em que os estudantes da faculdade e os moradores locais coexistiam pacificamente e, às vezes, até com cordialidade. Não me dei conta de que era a semana de iniciação das fraternidades da escola até que, saído da noite gelada, um rapaz apareceu na porta, com os dentes batendo, vestido apenas com uma sunga marrom e uma camiseta imunda, coberta com arcos de mostarda e ketchup. Seus cabelos estavam borrifados de cebola picada e algo parecido com melado fora jogado em sua cabeça, escorria por seu rosto e pingava das orelhas. De pé na porta aberta, soltando vapor a cada expiração, aquela visão triste anunciou às oito ou dez mesas de clientes e às duas mulheres atrás do balcão que precisava achar uma garota disposta a ir até a fraternidade e dançar com ele durante cinco minutos, será que alguém... por favor...?

Todas as mulheres do lugar ficaram horrorizadas, constrangidas, dando risadinhas e desviando o olhar. As garçonetes, de uniforme branco, gritaram praticamente em uníssono que não podiam deixar a sorveteria sem ninguém. O infeliz começou então a passar de mesa em mesa, mas ninguém queria encará-lo. Era impossível olhar para ele sem sentir repugnância.

Finalmente, ele chegou até onde estávamos. “Minha senhora”, disse para mim, implorando com os olhos. Era quase impossível ficar perto dele. Mas, de repente, tive uma idéia. Inclinei-me para Jennie e disse: “Você gostaria de ir a uma festa de fraternidade? É uma espécie de baile”.

Os olhos verdes de Jennie se acenderam. “Quero!”, respondeu ela, abrindo um grande sorriso. Sem dar atenção ao olhar espantado de Cochran, eu disse ao rapaz: “Esta é Jennie. Você precisa caminhar devagar ou carregá-la. Ela é retardada e tem paralisia cerebral”.

Animal preso na armadilha. “Mas senhora...”, ele começou a protestar, “vou sujá-la toda, veja”, e abriu os braços para me mostrar como estava, se acaso eu não tivesse notado.

“Tudo bem”, disse eu, “ela é lavável. E as roupas também.”

O estudante olhou freneticamente em volta, mas percebeu que aquela era a sua única chance de conseguir entrar na fraternidade de seus sonhos. Assim, enfiei Jennie num casaco com capuz, ele a suspendeu e segurou-a junto à cintura, apertando-a contra os restos de condimento de seu peito. E então carregou-a para a escuridão da rua.

Agora eu tinha de me haver com Cochran. Sempre o defensor mais feroz de Jennie, ele só não interferira para impedir aquele desastre devido ao seu senso desproporcional de respeito. Por sobre o sundae eu percebi seus olhos azuis imensos e terríveis.

“Mãe!”, ele sussurrou (só me chamava assim quando estava bravo). “Você nem perguntou o nome dele! Você nem sabe a qual fraternidade ele vai! Tem alguma idéia do que eles fazem nas fraternidades? E se ele não a trouxer de volta?”

“Ah, não se preocupe”, falei com uma falsa despreocupação, pois me dera conta de quão irresponsável eu fora. “Ele vai trazê-la de volta...”

Mas meu coração desfaleceu. Cochran tinha razão. Fazia mais de um quarto de século desde meus dias de madrinha da Kappa Sig e eu não tinha a menor idéia do que se passava nas fraternidades hoje. Jennie é uma inocente de Deus, uma criança que certa vez descreveu um estranho como “um amigo que eu ainda não conheço”. Qualquer um poderia se aproveitar dela. Meu Deus, por que eu não parara para pensar? Diante de mim, a root beer com sorvete transformou-se num lago poluído de espuma. Não demorou para que se tornasse uma metáfora do descalabro de minha vida. Minha cabeça não parava de me torturar. Eu via as manchetes de jornal: “Criança seqüestrada... Maníaco sexual passa por estudante universitário...”.

Perguntei-me quantas pessoas ali na Sweet Things poderiam dar uma descrição precisa do rapaz à polícia. Lembrei que teria talvez 1,75 metro de altura e que seus cabelos eram loiros acastanhados. Ou seriam castanhos aloirados...

“Eles voltarão logo”, tranqüilizei Cochran.

E logo eles voltaram. O estudante, com aparência bem menos infeliz, largou Jennie na cadeira, agradeceu-me com uma mesura abrupta e truncada e desapareceu de novo na noite, deixando atrás de si seu perfume peculiar e alguns pedaços de cebola no meu sorvete.

“Jennie!”, exclamei loucamente aliviada. “Foi legal?”

“Foi. Nós dançamos, a música estava bem alta e foi ótimo. E mamãe, Cochran, vocês viram? Ele tinha um arco-íris na camisa!”

Katie Letcher Lyle
Lexington, Virgínia


Salva por Deus

Sou uma mulher de 73 anos. Nos primeiros 55 anos de minha vida, sofri de graves ataques de ansiedade. Eu vivia com medo de morrer, de ter um ataque do coração ou de ficar completamente louca. Não sei como consegui casar e ter cinco filhos, mas nenhum médico conseguia diagnosticar meu problema.

Em 1981, comecei a ler artigos sobre ataques de pânico e fiquei muito aliviada ao descobrir qual era o problema. Com muita ajuda da família e de amigos, comecei a me aventurar no mundo que sempre me aterrorizara. Então, alguns anos depois, tive de encarar o que parecia ser um desafio insuperável.

Minha sogra estivera no hospital e precisava de alguém para ajudá-la quando foi para casa. Eu morava em Chicago, ela vivia em Santa Mônica, Califórnia. Eu viajara várias vezes de avião com meu marido, mas aquele seria meu primeiro vôo sozinha. Meu marido trocou a passagem por uma de primeira classe, assegurando-me de que seria ótimo para mim. Minha ansiedade antecipatória foi avassaladora. Tive pesadelos em que enlouquecia e exigia que o piloto aterrissasse e me deixasse desembarcar.

Eu tremia tanto quando me sentei no avião que a comissária de bordo perguntou se eu estava bem. Meu companheiro de assento era uma pessoa muito simpática, que me disse que o filme que iriam passar era excelente. De fato, depois que a projeção começou, fiquei totalmente absorta pelo filme. Entramos numa terrível tempestade de raios e trovões e percebi que meu vizinho estava totalmente paralisado de medo. Tranqüilizei-o dizendo que não havia problema: meu marido fora piloto de B24 durante a guerra e me contara que os aviões eram tão bem isolados que podiam resistir a um raio. Aterrissamos em segurança e eu estava eufórica por ter me comportado tão bem durante o vôo.

Fiquei em Santa Mônica por várias semanas e então veio o momento de pensar na volta. No dia da viagem, eu estava de novo em pânico. Achei que teria de pedir a meu marido que viesse para me acompanhar. Isso não era realmente uma opção e uma vez mais entrei sozinha no avião. Meu assento era junto à janela, na primeira fila da primeira classe. Na luta para não me levantar e sair correndo, decidi rezar. Minha oração foi mais ou menos a seguinte: por favor, Deus, me ajude, e faça isso agora. Agora mesmo!

Sentada de olhos fechados e com as mãos agarradas nos braços do assento, escutei uma comoção do outro lado do compartimento de primeira classe. As comissárias de bordo empurravam caixas pretas sobre rodas para a frente da cabine, do tipo usado por músicos e outros artistas. Observei um homem baixo e idoso ser acompanhado até os assentos ao lado do meu, do outro lado do corredor. Um casal de jovens ajudava-o e ele estava de costas para mim. Eles tiraram seu sobretudo, dobraram-no e o colocaram junto com seu chapéu no compartimento de bagagem de mão. O velho ficou com o cachecol, que enrolou no pescoço e esticou cuidadosamente no peito. Enquanto a mulher jovem ocupava o assento junto à janela, ele virou-se para mim e me deu o sorriso mais lindo do mundo. Era George Burns. Eu acabara de vê-lo desempenhar o papel de Deus no filme Alguém lá em cima gosta de mim.

Eu rezara pedindo ajuda muitas vezes em minha vida, mas Deus jamais respondera daquela maneira tão pessoal. Ele deve ter pensado que era o que eu precisava naquelas circunstâncias. Nunca mais tive medo de voar sozinha.

Mary Ann Garrett
Elmhurst, Illinois


Minha história

Esta é minha história, a história que conto para as pessoas quando as conheço bem. Estou com 23 anos agora; quando estas coisas aconteceram, eu tinha dezenove, quase vinte.

No final de meu segundo ano na faculdade, consegui um emprego de férias no serviço florestal da Califórnia. Não queria dirigir sozinha desde a Geórgia, então convenci Anna, minha melhor amiga há dez anos, a viajar comigo e depois voltar de avião. Nenhuma das duas já atravessara o país. Meu pai encheu o carro com quilos de equipamento de emergência para a estrada: um machado, um conjunto de ferramentas “faça-você-mesmo”, luzes de emergência que durariam até 36 horas, um macaco sofisticado, um galão de água, um cabide torto (caso o amortecedor caísse), um pequeno kit de primeiros socorros e um telefone celular que podia ser ligado no acendedor de cigarros. Ele passou várias noites acordado, pensando nas maneiras de nos proteger de tudo que pudesse acontecer na viagem.

Partimos no começo de junho, dirigindo depressa para sair do Sudeste. Começamos a relaxar quando chegamos às pradarias que margeiam as montanhas do Oeste e nos deleitamos atravessando os desertos do Sudoeste. Lembro de dirigir entre as formações douradas de arenito no calor e Anna pondo as palmas das mãos no pára-brisa e exclamando que parecia que segurava o brilho do sol nas mãos. Naquela noite, paramos numa minúscula cidade de Utah chamada Blanding. No hotel, examinamos nossa rota no mapa e decidimos que acordaríamos cedo, seguiríamos para o sul, na direção do Arizona, e que chegaríamos a Las Vegas na noite seguinte.

Partimos logo após o amanhecer, tomando a direção sul na Highway 81. Era uma estrada de pista simples e, assim que deixamos Blanding, não se via mais do que arbustos e colinas vermelhas distantes. Eu dirigia e Anna pilotava a câmera de vídeo. Pouco antes de desligarmos a câmera, observei como seria horrível sofrer um acidente de carro naquele lugar — o isolamento era palpável, a paisagem sem árvores parecia implacável. Eu ansiava por ver árvores novamente.

De repente, surgiu a figura de um homem diante de nós, no lado direito da estrada. Parecia ter emergido do acostamento baixo e sacudia os braços para nós.

“Meu Deus”, falei, pensando nas histórias que minha mãe via na televisão sobre mulheres atacadas nas estradas, “o que é isto?”

“Rachel”, disse Anna, com a mão na janela, “você está vendo o rosto dele? Está vendo aquele carro?”

Virei-me e olhei. Era a última coisa que eu gostaria de ver.

O rosto do homem estava um tanto coberto de sangue. Cerca de dez metros atrás dele havia um caminhão capotado e destruído na areia. Vi corpos espalhados pelos arbustos, alguns a mais de quinze metros da estrada.

Anna abaixou o vidro. O homem disse que houvera um acidente terrível e que precisavam de ajuda. Estacionei o carro e decidi correr o risco, enquanto Anna chamava a polícia pelo telefone celular. Eu notara uma placa pouco antes: estávamos a oito quilômetros da fronteira do Arizona. Anna perguntou ao homem quantas pessoas estavam lá. Escutei-a dizer ao minúsculo telefone: “Acho que são umas quinze pessoas”. Não havia mais ninguém por perto e nada à vista por quilômetros. Não havíamos visto nenhum outro carro desde que partíramos de Blanding. Depois que Anna desligou o telefone, éramos apenas nós e eles. O homem disse que se chamava Juan.

Os primeiros veículos de emergência chegariam quarenta minutos depois. No decorrer da manhã, viriam um a um, sempre ficando sem esparadrapo e maca e espaço para os corpos. Umas poucas pessoas parariam para ajudar. O acidente envolvia apenas um veículo, um caminhão coberto que transportava dezessete imigrantes mexicanos que haviam viajado toda a noite. Três deles morreram naquele dia e catorze sofreram ferimentos internos, lacerações e ossos quebrados.

Saí do carro e desci pelo acostamento, trêmula e levando a pouca água que tínhamos. Quando cheguei no terreno plano, uma garota da minha idade veio correndo na minha direção. Era a única mulher do grupo e saíra do lado de um rapaz que estava estendido de costas no chão. Havia sangue em seu rosto e sua boca e loucura em seus olhos. Falava em espanhol e pegou a água de mim. Seus longos cabelos negros flutuavam atrás dela. Segui-a até o rapaz e me ajoelhei ao seu lado, enquanto ela jogava água no rosto dele, sem parar de gritar algo em espanhol. Olhei em volta por um instante. Outros homens jaziam silenciosamente na areia, de barriga para baixo. A respiração do rapaz era entrecortada e difícil e algo me disse que estava todo quebrado por dentro. Corri até meu carro para pegar nossos suprimentos.

Quando peguei nosso kit de primeiros socorros, que era do tamanho de duas batatas assadas, comecei a rir. Abri o pacote e olhei para os pequenos pacotes de gaze e band-aid e fui tomada por um súbito sentimento de ódio por mim mesma. Imaginei-me escondendo-me sob o carro para esperar a chegada das ambulâncias. Esse momento pareceu durar, mas não poderia. Outro sentimento acorreu de outro lugar e tirou-me de mim mesma: tinha certeza de que voltaria lá e nada que visse poderia me fazer dar as costas.

Nas quatro horas seguintes, Anna e eu corremos de um corpo para o outro, usando Juan como intérprete, dizendo para ficarem imóveis ou perguntando se sentiam frio. Pegamos todas as toalhas e cobertores que eu trazia e os enfiamos sob os homens, que começavam a tremer de choque. Vimos muitas coisas medonhas. Enfiei a cara na areia para fazer contato visual e passei minhas mãos suavemente sobre costas e cabeças, dizendo em inglês o que eu esperava que fossem sons calmantes, sabendo instintivamente que, quando a gente se sente sozinho, é mais fácil decidir morrer.

Quando as ambulâncias chegaram, ajudamos os paramédicos a pôr os homens nas macas e ficamos com os homens que tinham de esperar no acostamento pela próxima viagem. Para um deles, era quase impossível respirar, seus olhos eram como bolas de vidro e sua boca estava coberta de sangue. Pus meu rosto logo acima do dele e friccionei suavemente seu peito, encorajando-o a continuar respirando.

O rapaz que estava quebrado morreu enquanto eu observava sua esposa de dezenove anos gritar e abrir seus lábios e gengivas, como se procurasse vida em sua boca. Fiquei sentada quieta por um momento, atordoada e paralisada. Quando compreendi que ele estava morto, corri para outro corpo silencioso com o rosto enfiado na areia.

Quando me abaixei para falar com um homem deitado no chão e cujo braço estava partido em dois, olhei adiante e vi o rosto vincado pelas rugas de um velho com longos cabelos grisalhos, a cabeça repousada na areia, os olhos vidrados em mim. Arrastei-me até ele e fechei seus olhos, peguei um lençol para cobri-lo, tentando fazer algo por ele para que não ficasse ali, morto e abandonado.

Um menino que fora jogado mais longe que os outros estava sendo amarrado numa maca pelos paramédicos. Falei com ele, dei-lhe um sorriso aberto e lhe garanti que ficaria bom! Seus olhos e sua boca estavam cheios de sangue, mas pareceu-me que me via e que sorriu de volta. Morreu depois no helicóptero que o levava para Grand Junction.

Quando todos os outros haviam sido levados, Anna e eu já estávamos apaixonadas por nosso intérprete, Juan. Tinha 27 anos, falava inglês perfeito e tinha a cabeça coberta por cabelos grossos e encaracolados. Enquanto uma paramédica navajo cuidava dele, com Anna e eu ao lado, disse que estava com vergonha por não cortar os cabelos há tanto tempo. Anna pegou a bagagem dele no caminhão capotado: um saco de supermercado com meias dentro. Juan tinha quatro ferimentos na cabeça e os cabelos grossos haviam ajudado a controlar o sangramento. Estava entrando em delírio quando finalmente o colocaram na ambulância. Quando percebeu que íamos nos separar, entrou em pânico e ergueu-se da maca na minha direção.

“Para onde vocês vão?”, perguntou, e tive de dizer que estávamos voltando para a estrada. Disse isso porque não sabia o que mais poderia fazer. Não podia segui-lo para o mundo do hospital. Já tivera minha dose. Estava pronta para voltar ao mundo da segurança, de sangue e ossos devidamente contidos dentro dos corpos, às árvores, ao conforto e à misericórdia.

“Não posso pagar vocês, mas Deus vai recompensá-las”, disse Juan.

O cheiro do homem ficou comigo, apesar de me lavar várias vezes. Podia senti-lo emanando de meus pulsos enquanto dirigia, o cheiro amargo de suor velho e pobreza. À noite, tivemos cãibras nos músculos das pernas, devido às horas de correria trêmula para cima e para baixo, e a areia que se misturou com meu suor ainda está grudada nas sandálias que eu usava naquele dia.

Chegamos a Las Vegas naquela noite, exaustas e abaladas. Chorei no telefone ao falar com meu pai, repetindo sem parar: “Foi horrível”. Foi a única vez que chorei por causa do acidente. Um ano depois, acordei suando frio no meio da noite com uma voz martelando dentro da minha cabeça a frase: “Você viu um homem morrer”.

O que fazer com isso? O que fazer com os eventos daquela manhã, engolidos pelo tempo enquanto nos afastávamos, coisas das quais não saberíamos mais nada: nenhuma menção no noticiário noturno, nenhuma notícia em nenhum jornal que tenhamos lido? Poderia muito bem ser um sonho que ambas tivemos.

O que você faz com uma história como esta? Não tem lição, não tem moral, quase não tem um fim. Você quer contá-la, ouvir ser contada, mas não sabe por quê.

Rachel Watson
Washington, D.C.


Mundo pequeno

No verão de 1983, eu acabara de concluir meu terceiro ano de arquitetura e tinha de encontrar um estágio de seis meses. Eu crescera e fizera todos os meus estudos no Meio-Oeste, mas estivera uma vez em Nova York, numa excursão de estudos, e pensei que era um bom lugar para viver. Assim, armado com pouco mais do que um ego inflado e meu currículo escolar, parti para Manhattan, ignorando a má situação econômica e o fato de que a cidade estava transbordando de jovens arquitetos.

Consegui uma carona de Kalamazoo para Nova York com uma ex-namorada que estava de mudança para Boston. Na manhã marcada para a viagem, acordei com terríveis dores de barriga, mas decidi viajar de qualquer maneira. Não deu outra: fui um péssimo companheiro de viagem, com diarréia aguda o tempo inteiro. Acho que minha amiga ficou aliviada quando me largou na estação rodoviária de White Plains, onde peguei um ônibus para Nova York.

Consegui um quarto na acm, na rua 34, conhecida como Sloan House. Era uma tarde ensolarada de domingo, mas estupidamente quente e úmida. Meu quarto dava para um pátio interno fedorento e não circulava ar. Eu me sentia escravo do banheiro e não ousei sair do prédio. Fiquei deitado no catre encaroçado, com a porta entreaberta, consciente de que deveria estar na rua, explorando a cidade antes de começar minhas entrevistas no dia seguinte.

Estava nessa patética posição horizontal quando escutei uma batida na porta. Um sujeito da minha idade, com cabelos pretos e crespos e uma mochila no ombro, enfiou a cabeça pela fresta da porta e convidou-se a entrar. Fiquei um pouco desconfiado, mas gostei de ter companhia. Ele sentou-se na ponta do catre e começamos a conversar. Contei-lhe de onde vinha, que escola freqüentara, esse tipo de coisa. Depois de um certo tempo, a conversa esmoreceu e, após alguns segundos de silêncio, o cara me perguntou se eu me importava que ele usasse um pouco de coca. Fiquei surpreso, mas disse “tudo bem”. Esperava ver uma carreira ou duas enfileiradas sobre a mesa, só que em vez disso testemunhei algo que só vira uma vez no cinema. Ele pegou uma colher torta, um isqueiro e uma seringa usada. Então tirou o cinto. Explicou que, na verdade, misturava cocaína com um pouco de heroína: “Não é só um barato, mas uma tremenda viagem”.

Enquanto preparava sua injeção, contou-me que fora banido da acm, mas que de vez em quando entrava escondido, quando não tinha outro lugar para onde ir. Largara a faculdade e ganhava a vida dirigindo um táxi. Esperava ganhar dinheiro suficiente para comprar um medalhão e seu próprio táxi. Antes de sucumbir ao seu barato, olhou-me pelas pálpebras semicerradas e murmurou: “Sabe, meu melhor amigo está na Universidade de Michigan e acho que a namorada dele é de Kalamazoo”. Depois, apagou, encostado no pé da cama.

Enquanto isso, eu juntava as coisas. Aquilo tudo soava muito familiar. Eu sabia quem era a namorada. Eu sabia quem era o melhor amigo na Universidade de Michigan. Um amigo meu de Kalamazoo freqüentara aquela universidade e, quando voltou no verão, contara-me sobre um de seus companheiros de moradia, um garoto que vinha de uma escola privada de Nova York. Ele freqüentara Vassar ou uma daquelas escolas caras do Leste. Na metade do ano escolar, largara a faculdade, cortara o contato com os pais e vendera tudo o que possuía para comprar drogas. Desaparecera em Nova York. Eu sempre achara que aquela história fazia parte do folclore que se ouve nos campi universitários.

Mas, agora, ali estava eu dentro da história, e mal podia acreditar. Não fazia 48 horas que saíra de Michigan, estava numa cidade imensa e a agulha no palheiro urbano me achou enquanto eu estava incapacitado com diarréia num quarto lúgubre da acm.

A cada quinze ou vinte minutos, o sujeito acordava de seu estupor. Retomava a conversa como se nada tivesse acontecido e então apagava de novo. Na primeira vez que acordou, eu disse: “O nome de seu melhor amigo é Dave e a namorada dele se chama Stephanie. Ela e eu nos conhecemos quando éramos crianças — fomos ao acampamento musical juntos”.

“É”, balbuciou ele. “Cara. Que mundo pequeno.” E apagou de novo.

Três ou quatro horas depois, comecei a pensar em como me livrar dele. Por fim, ele acordou, esticou-se e arrumou sua mochila. Disse que ia até a estação Grand Central, onde posaria de alguém querendo ir embora da cidade, sem dinheiro para a passagem. Era seu jeito de arranjar grana. Ofereceu-se para voltar mais tarde com um sanduíche e perguntou se podia esconder sua agulha no meu quarto. Deixei-o fazer isso para me livrar mais depressa dele, mas, assim que partiu, joguei a agulha fora. Depois disso, tranquei a porta e na manhã seguinte consegui mudar para outro quarto.

Voltei a vê-lo somente uma vez, da janela de meu novo quarto, que dava para a rua.

Não consegui um estágio naquele verão, acabei ficando sem dinheiro e tive de voltar para casa. Combinei com meu amigo John, o que me contara a história do sujeito pela primeira vez, que me encontrasse no norte do estado de Nova York. Gastei meu último tostão na compra da passagem na Grand Central. Mas pelo menos não tive de mendigar.

Paul K. Humiston
Minneapolis, Minnesota


Brooklyn Roberts

Ele chamava a si mesmo de Brooklyn Roberts. Fiquei curioso sobre o sujeito porque ele queria permanecer escondido. Depois, ouvi dizer que fora baleado e morto por quase nada.

Quando eu tinha 23 anos, me envolvi num café cooperativo sem fins lucrativos que servia alimentos feitos em casa, café e chá. Era também o território do eterno microfone aberto. A única regra para tocar lá era que a música deveria ser acústica.

Finalmente, fomos expulsos da casa onde havíamos instalado o café porque a associação de bairro não gostava dos tipos “hippies” que apareciam por ali. Isso era Nova Orleans em 1975: as coisas demoraram um pouco para chegar lá.

Mas, na época em que o café ainda prosperava, Brooklyn Roberts aparecia de vez em quando para tocar. Era magro, ossudo e estava perdendo os cabelos loiros e sujos muito depressa. Imagino que era um pouco mais velho do que eu. Tinha sempre a aparência de um trabalhador do começo do século, com antiquadas roupas domingueiras de operário. Suas performances na guitarra e no piano eram refinadas. Tocava blues de raiz, canções de Robert Johnson, esse tipo de coisa. Quando terminava sua apresentação, juntava as gorjetas, pegava suas coisas e ia embora. Não, ele desaparecia. Sempre.

Uma vez pedi-lhe para tocar numa apresentação beneficente para o café que se realizaria num parque da cidade. Ele chegou vestido com sua elegância habitual e carregando uma pequena mala, além da guitarra. A trilha que conduzia ao nosso palco minúsculo cruzava uma área por onde passavam os trilhos do trenzinho infantil. Ao se aproximar, ele começou a caminhar lentamente entre os trilhos da miniatura de ferrovia. Olhou para mim e sorriu. Estava em seu papel, caminhando sobre os trilhos como um andarilho da época da Depressão.

Ele tocou uma série de excelentes blues antigos naquele dia, intercalando com números extras de prestidigitação. A certa altura, jogou um dólar de prata para o alto, rebateu com o salto do sapato e jogou a moeda para o ar novamente. Quando a apanhou com a mão, parecia tão surpreso quanto a platéia. Terminou sua apresentação e desapareceu. Muita gente queria falar com ele, mas ele simplesmente sumiu.

No final daquele ano, fui a uma primeira encarnação do New Orleans Jazz and Heritage Festival. Estava esperando pela apresentação de Muddy Waters quando vi Brooklyn Roberts perto da beira do palco, falando com um auxiliar ou diretor de palco. Virei-me para conversar com alguns amigos. Minutos depois, quando voltei a olhar para o palco, Brooklyn Roberts estava ao piano, tocando um pouco de ragtime e maravilhosos jellyroll blues. Tocou por cerca de cinco minutos. Imagino que convencera o pessoal da organização a deixá-lo tocar enquanto Muddy se preparava para entrar em cena. Não teve nenhuma apresentação, nada. Brooklyn Roberts simplesmente subiu ao palco e tocou, e depois desapareceu.

No ano seguinte, ajudei a organizar um concerto em benefício dos músicos de rua de Nova Orleans. Meu grupo tocou, assim como Brooklyn Roberts. De novo, executou uma incrível série de blues antigos ao piano; de novo, desapareceu no final da apresentação. Viera com seu traje de época habitual, mas depois, quando o localizei na platéia, a algumas fileiras de distância, trocara-o por roupas modernas e estava com um chapéu velho estilo Gilligan’s Island. Acenei para ele, querendo cumprimentá-lo por sua ótima apresentação. Ele ficou onde estava e sorriu em sinal de agradecimento. Então virou para o outro lado e afundou o chapéu ainda mais na cabeça.

Anos mais tarde, depois que fui embora de Nova Orleans, perguntei por ele a uma amiga. Ela me contou que fora baleado e morto por dinheiro e pela jaqueta. Ela ouvira dizer que ele teria dito aos assaltantes: “Vocês não vão me matar por causa da jaqueta, não é?”. E eles o mataram.

Fiz algumas outras investigações. Tudo o que descobri foi que tinha sido um treinador muito querido — o treinador Bob — no centro comunitário judaico local. Ainda tenho seu cartão de visitas. Tem desenhos florais nos quatro cantos e seu nome aparece em letras maiúsculas no centro: brooklyn roberts.

É tudo o que sei sobre ele.

Adolph Lopez
Nova Orleans, Louisiana


1380 dólares por noite, quarto coletivo

Um verão num hospital de Manhattan com problemas de saúde muito chatos para discutir. Oito companheiros de quarto. Uma descoberta. O quarto semiprivado, o repositório de todos, exceto os muito ricos ou os com doenças muito contagiosas, é o grande nivelador da sociedade. É onde as pessoas que normalmente não se misturariam se vêem de repente dormindo juntas — e compartilhando um banheiro.

“tenho ido ao banheiro quatro vezes por dia durante dezesseis dias e estou com dor de barriga há catorze dias!”, gritava alegremente meu primeiro companheiro de quarto para todos que chegavam perto. Mas ele gritava sempre. O Companheiro de Quarto Número Um era um ex-punguista da rua 42, trinta anos de idade, com aparência de 45. O fato de que não fora ao banheiro nas 36 horas em que estava no hospital não parecia diminuir em nada seu volume. Continuava gritando sobre sua suposta diarréia, até que finalmente produziu um cagalhão do tamanho de um bonde, e sei disso porque ele nunca dava a descarga. Seus médicos disseram que ele não tinha nada. O sujeito gritou mais alto. Tentaram mandá-lo de volta para casa. Ele respondeu registrando uma queixa. A gritaria e os ataques de cólera continuaram, até a visita misteriosa de uma enfermeira e um homem de casaco branco.

“Estamos apenas o ensinando a dar injeções”, tranqüilizou-o a enfermeira, enquanto o noviço sacava uma seringa enorme.

“Ai, meu Deus!”, guinchou o Companheiro Número Um quando a agulha errou de alvo.

No terceiro dia, ele ainda exigia ficar, quando seus amigos com corte de cabelo ruim chegaram. Levaram o Número Um em viagens furtivas ao banheiro público do hospital com propósitos ilícitos indefinidos, e foi depois de uma dessas excursões que ele não voltou. Ninguém pareceu surpreso. Simplesmente aprontaram sua cama para o próximo ocupante.

O Companheiro de Quarto Número Dois era um monsenhor aposentado e fortemente sedado. Fora trazido de um abrigo para idosos e não tinha idéia de onde estava. “Às vezes penso que gosto de você, e às vezes penso que odeio você”, disse mole e grogue para um ajudante de enfermagem que jamais vira. Depois de uma pausa para meditação, deu o veredicto: “Hoje, odeio você”.

Uma assistente social chegou e gritou no ouvido dele: monsenhor! vou buscar sorvete! você quer um pouco?”. Ele animou-se. “chocolate ou morango?” O monsenhor se decidiu por chocolate. “o.k., volto em vinte minutos!”, e saiu correndo do quarto. Cerca de dois segundos depois, chegou uma enfermeira para administrar um remédio.

“Onde está meu sorvete?”, exigiu o padre.

“Não tenho nenhum sorvete. Só comprimidos”, respondeu ela. Ouviu-se um rosnado baixo da cama do monsenhor.

“Cadela”, silvou ele.

O Companheiro de Quarto Número Três fora recentemente um sem- teto viciado em drogas e não passava de um saco de ossos. “Quarenta e cinco quilos!”, trinou a enfermeira depois que pesou o sujeito de mais de 1,70 metro, que poderia ter qualquer idade entre 27 e cinqüenta anos — estava esfarrapado demais para se saber. Dormia a maior parte do tempo e acordava apenas para se queixar da comida ou brigar com o funcionário que tentava coletar sangue. “Eu sei o que você faz com este sangue”, falou de modo ameaçador, “você vende por cinco dólares o tubo — você não me engana.”

Com urgência cada vez maior, os médicos imploravam ao Companheiro Três que lhes desse assentimento formal para um teste de hiv, pois não podiam fazê-lo sem essa autorização. “Se tivermos um diagnóstico, poderemos receitar uma medicação que poderá ajudá-lo realmente”, pleiteavam, mas ele não assentia, dando a impressão de achar que os testes de hiv faziam parte de alguma conspiração maligna do establishment médico. Todos os dias, imploravam um pouco. Todos os dias, ele negava. Pensei em implorar também, mas me dei conta de que escutara informações confidenciais e talvez não devesse me meter. Ainda assim, sempre que ele se arrastava para fora da cama a fim de ir ao banheiro, eu ficava de olho, pronto para chamar a enfermeira caso ele caísse no chão. Não sei como, isso nunca aconteceu. O Companheiro de Quarto Número Três foi finalmente mandado para um abrigo para gente sem-teto com problemas médicos. Rezei para que alguém de lá o convencesse a obter a ajuda de que precisava.

O Companheiro de Quarto Número Quatro era agradável, conversador e coberto de feridas. Também tinha uma namorada que sempre aparecia na hora das refeições. “Vou só provar para ver se você vai gostar”, dizia ela enquanto dava cabo do almoço dele. Falava sem parar enquanto comia, contando fofocas sobre amigos, sobre a televisão, sobre nada. Por fim, ela sussurrava “Estou com o bagulho” e os dois se arrastavam para o banheiro público com o “bagulho” escondido no bolso dela.

Quaisquer que fossem os defeitos de sua namorada, o Número Quatro era comoventemente devotado a ela. Tanto que guardava com cuidado suas unhas cortadas numa garrafa pequena, só para ela. “Ela gosta de roer unhas, mas não quer estragar as dela, então dou-lhe as minhas”, explicou ele.

“Huuummm, estas estão realmente boas!”, escutei-a exclamar.

Sempre me assegurei de que a cortina entre nossas camas estivesse bem fechada.

Enquanto isso, a srta. Thomas passara a residir no quarto que ficava no outro lado do corredor. A srta. Thomas gritava. A noite inteira. Todas as noites. E como a sua porta ficava bem em frente à nossa, era como se gritasse dentro do nosso quarto. “Evelyn!”, gemia, “Evelyn! Evelyn! Meu traseiro está doendo! Evelyn! Ai, que dor! A dor! Eve-lyyn! Meu traseiro está doendo! eve-l-y-n-n!”

De início, senti pena daquela coitada enlouquecida, obviamente agonizante. Isso até escutá-la falando ao telefone na manhã seguinte, com voz normal e razoável: “Ah, o serviço aqui é horrível. Na noite passada, tive de gritar. Gritei e gritei até que alguém apareceu”. Na noite seguinte, a srta. Thomas sentiu sede. “Evelyn! Preciso de um copo d’água! Evelyn! Estou com sede! eve-l-y-y-nn!” Infringi o regulamento do hospital e fechei a porta do nosso quarto.

O Companheiro de Quarto Número Cinco era um astro de novela de tevê. Loiro, bem delineado, dentes perfeitos, as enfermeiras andavam todas em volta dele para conseguir autógrafos. Tinha um telefone celular, um assistente pessoal e uma administração hospitalar à sua disposição. “Você pode pedir comida de fora se não gostar da do hospital”, a sorridente equipe de admissão informou enquanto lhe passava uma pilha de cardápios de restaurantes.

“Estou aqui há três semanas e ninguém me informou sobre isso!”, falei alto, mas ninguém prestou atenção.

O astro de novela estava com os testículos inflamados — fato que fazia questão de compartilhar com qualquer um a qualquer momento, sem que lhe perguntassem nada. Para a pessoa que coletava sangue: “Eu sabia que eles estavam baixos, mas não tanto!”. Para mim: “Quando senti que estavam roçando no meu joelho, desconfiei que precisava examiná-los!”. Ao telefone: “O médico disse que provavelmente é porque não estou fazendo sexo suficiente, mas você sabe que não é isso!”. Todos estavam deslumbrados. Só faltavam as fotos de vinte por 25.

Naquela noite, a srta. Thomas sentiu frio. “Evelyn! Preciso de um cobertor! Evelyn! Estou com muito frio! Me consiga um cobertor! eve-l-y-y-n-n!” Cedo na manhã seguinte, a administração, obviamente envergonhada, disse ao astro da tevê que o removeriam para um quarto privado e distante — à custa do hospital —, para que se sentisse “mais confortável”.

“Eu estou aqui há três semanas...”, comecei a protestar, mas me ignoraram de novo.

Naquela noite, quando a srta. Thomas começou a gritar por Evelyn, uma voz frustrada ergueu-se em resposta. “Senhorita Thomas, tem de parar com essa gritaria! Toda noite dizemos para usar a campainha, mas você continua a fazer todo este barulho! Tem gente tentando dormir, sabia? Se não ficar quieta, vou trancar sua porta e nunca mais volto para ajudá-la, e você sabe como vai odiar isso!” E depois, ao se virar para sair, um golpe de despedida: “E outra coisa. Meu nome é Yvonne!”.

O Companheiro de Quarto Número Seis veio da uti. Acho que estivera em coma. “Você lembra como se feriu?”, perguntou-lhe uma assistente social. Uma longa pausa, e então uma voz hesitante disse: “Você mora em Nova York?”. Depois, ele perguntou ao residente sobrecarregado de trabalho que acabara de lhe ser designado: “Há quanto tempo estou aqui?”. O residente não ergueu os olhos quando lhe deu uma resposta curta: “Não sei, um ou dois dias”. Na verdade, eu ouvira alguém dizer que o Número Seis estava no hospital havia três semanas. “Começo a me lembrar de alguma coisa...”, ele principiou a dizer, mas o médico o interrompeu: “Escute, não posso conversar agora, tenho outros pacientes para ver”. Jamais fiquei sabendo o que o Número Seis começava a lembrar.

Uma coisa que ele esquecia sistematicamente era que estava amarrado na cama porque tinha um ombro quebrado. Às vezes, em minhas idas ao banheiro, o encontrava pendurado no lado da cama, enredado nas tiras de pano, com ar choroso e confuso. Eu perguntava “Você está com problemas?”, ele fazia que sim com a cabeça. “Quer que eu chame a enfermeira?” — e saía para procurá-la. Finalmente, amarraram-no tão apertado que mal conseguia se mover, e ele, esquecendo onde estava, cagava nos lençóis. A auxiliar de enfermagem vinha correndo, soltando chispas de fúria.

“O que há com você?”, gritava ela. “Por que faz toda essa sujeira e nos faz vir limpar? O que você é, um bebê?” Depois de algumas humilhações como esta, ele ficou assustado. Eu passava por sua cama e o via coberto de merda, com um aspecto totalmente deplorável. “Está com problemas? Quer que eu chame a enfermeira?” Ele assentia lentamente com a cabeça, enquanto tentava segurar as lágrimas.

O Companheiro de Quarto Número Sete era um operário idoso de Queens. Estava fazendo quimioterapia para câncer e passou os primeiros dias vomitando. “Estou farto disso”, disse o infeliz à esposa. “De que adianta continuar, se é assim que vou viver?” E tinha novamente ânsia de vômito. Comigo, era cordial e agradável, mas quem agüentava o rojão era sua pobre esposa. “Que droga é isto?”, reclamava, depois que ela viajara uma hora para visitá-lo. “Eu disse uvas picadas! Como você pode ser tão burra?”

Mas ele melhorou um pouco e durante dois dias esteve bem alegre. Contudo, na terceira manhã, quando sua fala começou subitamente a ficar ininteligível, apresentou-me a uma filha que não estava lá e depois adormeceu enquanto o médico falava com ele. Quando acordou, tudo o que disse foi: “Sinto falta de Paris”. Eu estava totalmente de acordo com ele. Levaram-no para outro andar naquela manhã.

O Companheiro de Quarto Número Oito chegou tarde naquela noite. Tinha uma voz profunda e suave, com um sotaque cantado latino. Tinha também unhas compridas e pintadas, um penteado armado e preferia que o chamassem de Cynthia. Tinha apenas vinte anos e estava com febre alta porque um de seus implantes de seio inflamara. Também tinha aids, vivia da seguridade social e não se dava com a família. Porém, apesar de tudo isso, permanecia extraordinariamente calmo e filosófico. No dia seguinte, quando fui para casa, ele atendia com paciência aos telefonemas para o Número Sete, que fora removido tão depressa que ninguém, nem sua esposa, sabia onde estava. “Ele está em outro andar agora, querida”, disse para acalmar uma parente nervosa. “Fale com a telefonista e ela lhe dará o novo número.” Deixei com ele algumas revistas que alguém me trouxera e todo o suco que eu escondera. “Você está indo embora justamente quando a gente estava começando a se conhecer”, disse ele com tristeza, mas eu estava ansioso para chegar em casa.

Além disso, eu sabia que ele teria muitos companheiros em breve.

Bruce Edward Hall
Nova York, Nova York


Um tiro na luz

Verão de 1978: eu estava viajando pelo Sudoeste com jóias e presentes, vendendo uma ampla variedade de coisas, de cristais austríacos a brincos de plumas. Entre Las Vegas e Los Angeles, parei para ajudar um motorista cujo carro quebrara no deserto de Mojave. Ele estava numa fase ruim, não tinha planos nem lugar para onde ir, então deixei-o viajar comigo.

Seu nome era Ray e parecia ter vinte e poucos anos. Era baixo, forte, rijo, mas levemente emaciado, como se não estivesse bem alimentado. Senti pena dele e, nos três dias em que ficamos juntos, passei a confiar nele. Cheguei mesmo a pedir que fizesse algumas coisas para mim enquanto eu visitava lojas para vender meus artigos. A certa altura, dei-lhe algumas de minhas roupas e ele ficou contente de ter algo novo para vestir. Parecia tranqüilo e satisfeito.

Na terceira noite, estávamos acampados perto da represa Puddingstone, a leste de Claremont. Eu estava sentado na traseira da grande van, mudando coisas de lugar nos armários para abrir mais espaço para roupas, livros, alimentos, caixas de amostras e para a mochila e utensílios de viagem de meu passageiro.

Houve uma explosão barulhenta e senti um golpe agudo e seco no topo de minha cabeça. O fogão a gás teria explodido? Olhei para ele, mas estava intacto. Então olhei para Ray, sentado no assento do motorista, e vi a arma preta. Seu braço estava apoiado no encosto do assento, com a pistola apontada para mim. Eu fora atingido por uma bala! A princípio, achei que ele estava me advertindo de que iria me roubar. Tudo bem, pensei de repente. Leve tudo. Apenas me deixe na estrada e vá embora com o carro.

Outra explosão me sacudiu e meus ouvidos foram invadidos por um zumbido terrível e agudo. Senti sangue escorrendo por meu rosto e o topo de minha cabeça pulsava. Ele não está me advertindo, me dei conta. Ele vai me matar. Eu vou morrer.

Eu não tinha onde me esconder. Estava entalado numa posição desconfortável, cercado por armários. Não havia nada a fazer. Ouvi minha voz murmurar: “Calma. Isto está fora do seu controle. Respire. Fique acordado”. Meus pensamentos se voltaram para a morte, e para Deus. “Que Vossa vontade, não a minha, seja feita.” Soltei o corpo, comecei a relaxar, a afundar. Observava minha respiração, para dentro e para fora, para dentro e para fora, para dentro e para fora...

Comecei a preparar-me para a morte. Pedi perdão a todos a quem tivesse causado dano e ofereci meu perdão a todos que me haviam ferido durante toda a minha vida. Era como se passasse depressa e ao contrário um filme colorido dos meus 26 anos. Pensei em meus pais, meus irmãos e irmãs, meus amores, meus amigos. Disse adeus. Eu disse: “Amo vocês”.

Outra explosão sacudiu a van e meu corpo pulsou. Não fui atingido. A bala passou a poucos centímetros da minha cabeça e penetrou no armário onde eu estava encostado. Voltei ao meu devaneio. Minha sorte não podia continuar. Ainda havia três balas, se fosse um revólver. Minha única esperança era que não fosse uma arma semi-automática.

Nada importava mais, senão ficar em paz. Minha van, meu dinheiro, meu negócio, meu conhecimento, minha história pessoal, minha liberdade, tudo perdeu valor, sentido, tanta poeira no vento. Tudo o que eu possuía de valor eram meu corpo e minha vida, e estavam prestes a ir embora. Concentrei a atenção na centelha de luz que chamei de meu eu e minha consciência começou a se expandir para fora, ampliando minha percepção no espaço e no tempo. Escutei minhas instruções claramente: fique acordado e continue a respirar.

Pedi ao meu Deus, ao Grande Espírito, que me recebesse de braços abertos. Amor e luz fluíam através de mim, espalhando-se como uma luz de farol, iluminando tudo a minha volta. A luz cresceu dentro de mim e se expandiu como um grande balão até que a van e seu conteúdo parecessem pequenos. Um sentimento de paz e aceitação me preencheu. Eu sabia que estava prestes a deixar meu corpo. Podia sentir a linha do tempo de minha vida, tanto para trás como para a frente. Vi a próxima bala, a uma pequena distância no futuro, sair da arma, voar até minha têmpora direita e sair com miolos e sangue pelo lado direito de minha cabeça. Eu estava pleno de espanto. Ver a vida daquela perspectiva expandida era como olhar dentro de uma casa de bonecas, ver todos os ambientes de uma só vez, todos os detalhes, tão real e irreal ao mesmo tempo. Olhei para dentro da cálida luz dourada com calma e aceitação.

A quarta explosão quebrou o silêncio e minha cabeça foi empurrada violentamente para o lado. O zumbido em meus ouvidos era ensurdecedor. Sangue quente escorreu de minha cabeça até os braços e pernas, pingando no chão. Mas, estranhamente, me vi de volta no meu corpo, não fora dele. Ainda cercado por luz, amor e paz, comecei a olhar dentro de meu crânio, tentando achar os buracos. Quem sabe pudesse ver luz através deles? Fiz uma verificação rápida de meus sentimentos, pensamentos, capacidades e sensações, procurando pelo que poderia estar faltando. Com certeza, a bala me afetara. Minha cabeça latejava, mas sentia-me estranhamente normal.

Decidi olhar para meu assassino, encarar a morte. Ergui a cabeça e virei os olhos na direção dele. Ele estava chocado. Saltou do assento e gritou: “Por que você não morreu, cara? Você devia estar morto!”.

“Estou aqui”, falei com tranqüilidade.

“Isso é esquisito demais! É exatamente como meu sonho esta manhã! Eu atirava nele e ele não morria! Mas não era você no sonho, era outra pessoa!”

Aquilo era muito estranho. Quem estava escrevendo o roteiro?, me perguntei. Comecei a falar lenta e calmamente, tentando tranqüilizá-lo. Se eu conseguisse que ele conversasse comigo, talvez não atirasse de novo. Ele gritava “Cala a boca! Cala a boca!”, enquanto espiava a escuridão através das janelas. Aproximou-se nervosamente de mim, arma na mão, examinou minha cabeça cheia de sangue, tentando entender como as quatro balas que enfiara em mim não haviam me liquidado.

Eu ainda sentia o sangue escorrer pelo meu rosto e podia ouvi-lo pingar no meu ombro. Ray disse: “Não sei por que você não morreu, cara. Atirei quatro vezes!”.

“Vai ver que não é para eu morrer”, eu disse com calma.

“Pois é, mas eu atirei em você”, disse ele com desapontamento e confusão na voz. “Não sei o que fazer.”

“O que você quer fazer?”

“Eu queria matar você, cara, para pegar esta van e ir embora. Agora não sei.” Ele parecia preocupado, indeciso. Começava a diminuir o ritmo, ficar menos sobressaltado.

“Por que você queria me matar?”

“Porque você tem tudo e eu não tenho nada. E eu estou cansado de não ter nada. Esta era a minha chance de ter tudo.” Ele ainda andava para lá e para cá dentro da van, olhando através das janelas para a noite escura lá fora.

“O que você quer fazer agora?”

“Não sei, cara”, queixou-se. “Talvez leve você para o hospital.”

Meu coração deu um salto diante dessa chance, dessa oportunidade de escapar. “Certo”, disse eu, não querendo fazer com que ele sentisse que não estava mais no controle. Queria que aquilo fosse idéia dele, não minha. Sabia que seu ódio vinha de se sentir sem controle e não queria deixá-lo irado.

“Por que você foi tão bom comigo, cara?”

“Porque você é uma pessoa, Ray.”

“Mas eu queria matar você! Eu pegava a arma e apontava para você quando você estava dormindo ou não estava olhando. Mas você estava sendo tão bom comigo, eu não conseguia atirar.”

Meu senso do tempo estava alterado. Dei-me conta de que não sabia quanto tempo se passara desde a primeira bala. Depois do que me pareceram muitos minutos, Ray veio em minha direção. Eu continuava agachado. “O.k., cara, vou levar você a um hospital. Mas não quero que você se mexa, então vou pôr umas coisas em você para que você não possa se mexer, o.k?”.

Agora, ele estava pedindo minha permissão. “O.k.”, eu disse suavemente. Ele começou a pegar várias caixas de amostras e empilhá-las ao meu redor. “Você está bem?”, perguntou.

“Sim, estou bem. Um pouco desconfortável, mas tudo bem.”

“O.k., cara. Vou levar você a um hospital que conheço. Mas não se mexa. E não vá morrer, certo?”

“Certo”, prometi. Eu sabia que não iria morrer. Aquela luz, aquele poder dentro de mim era tão forte, tão seguro. Cada respirada era como se fosse a primeira, não a última. Eu ia sobreviver. Eu tinha certeza. Ray baixou o teto regulável da van, amarrou as correias e deu a partida. Senti o carro dando ré na estrada de terra, entrando no asfalto e seguindo na direção de minha liberdade.

Ele andou durante um bom tempo — para onde, eu não tinha idéia. Íamos para um hospital, como ele dissera, ou para algum destino horrível? Se ele era capaz de me matar com um revólver, era capaz de mentir, ou coisa pior. Como ele sabia aonde ir? Estávamos em Claremont. Los Angeles ficava a uma hora de distância. Usei essa hora para rever as cenas e analisar os últimos três dias, tentando entender o que acontecera e por quê.

Por fim, senti a van diminuir a marcha, sair da estrada e parar. O motor foi desligado. O silêncio encheu o espaço. Esperei. Ainda estava escuro lá fora. Não tínhamos entrado num estacionamento. Não havia luzes. Aquilo não era um hospital.

Ray veio até mim com a arma na mão. Afastou uma das caixas e sentou-se na cama de espuma, encarando-me. Parecia perturbado, com a cabeça caída. Suas palavras cortaram fundo minha nuvem de esperança. “Tenho de matar você, cara”, ele disse com calma.

“Por quê?”

“Se eu levar você ao hospital, vão me pôr de volta na cadeia. Não posso voltar para a cadeia, cara. Não posso.”

“Eles não vão pôr você na cadeia se você me levar ao hospital”, falei lentamente, fingindo estar ainda muito fraco e passivo por causa dos ferimentos. Eu sabia que poderia achar uma brecha, um momento em que pudesse surpreendê-lo, dominá-lo, tomar-lhe a arma. Enquanto ele não soubesse que eu estava bem, a vantagem era minha.

“Cara, vão saber que atirei em você e vão me prender.”

“Não precisamos contar para eles. Eu não vou contar.”

“Não posso confiar em você, cara. Até que gostaria, mas não posso. Não posso voltar para a cadeia, isso é tudo. Tenho de matar você.” Ele parecia desamparado. Não era o lugar em que gostaria de estar. Não tomava iniciativa. A arma pendia de sua mão, apontada para o chão. As caixas continuavam empilhadas ao meu redor. Eu não era capaz de avaliar quanta força ainda tinha, se seria suficiente para derrubá-lo. Ele era baixo, mas forte. Estaria ainda cheio de adrenalina? Isso o tornaria mais forte. Minha força estava nas palavras, na esgrima verbal. Se conseguisse mantê-lo falando, ele não tomaria uma medida mais drástica.

“Talvez eu possa entrar no hospital sozinho, Ray. Você nem teria de estar lá. Podia ir embora.”

“Não, cara”, ele sacudiu a cabeça. “Assim que você contar para eles, vão me procurar e vão me achar.”

Fiquei em silêncio. Aquilo não estava funcionando, pensei.

Ele disse: “Por que você não morreu, cara? Atirei quatro vezes na sua cabeça. Como é que você está vivo e falando? Você deveria estar morto! Eu sei que não errei os tiros”. Olhou de novo para minha cabeça, pegou-a com uma mão e virou-a para a direita e para a esquerda. “Dói?”, perguntou. Parecia genuinamente preocupado.

“Sim, dói”, menti. “Mas acho que vou ficar bom.”

“Olha, não sei o que fazer. Não posso levar você para o hospital. Não posso deixar você ir, porque você vai chamar a polícia. Por que você foi tão bom para mim, cara? Ninguém foi bom comigo desse jeito antes. Fica mais difícil matar você. Você me comprou coisas e me deu coisas. Eu não conseguia decidir quando fazer o serviço.”

Não se, mas quando.

“O que você faria se ficasse com tudo isso, Ray?”

“Eu poderia voltar para casa e ser alguém, poderia fazer coisas. Teria dinheiro suficiente para pagar a minha saída de lá, cara.” Ray começou a falar. Contou sobre sua casa em East Los Angeles, a pobreza que o cercava, seu ódio, os professores que o faziam se sentir burro, seu pai que bebia demais e batia nele, e sobre ser durão nas ruas. Contou sobre sua entrada para o Exército, como era esperado que isso adiantasse alguma coisa, mas que ele não suportava que lhe dessem ordens o tempo todo e então se ausentava sem permissão. Contou que traficava drogas, de como se deu mal com os negócios e de como passou para trás seus companheiros de tráfico. Foi por isso que teve de ir embora de Los Angeles, porque estavam atrás dele. Contou que roubou a arma e o dinheiro de seu pai antes de partir, depois percebeu que não havia lugar onde se esconder, então decidiu voltar. Talvez pudesse fazer mais um roubo e ficar rico. Precisava apenas de um golpe, um trouxa. Se seu alvo fosse suficientemente rico, poderia pagar o que devia aos traficantes e começar de novo. Então decidiu matar quem parasse. Quem quer que viesse ajudá-lo. Eu.

A noite transformara-se em manhã, o céu mudando lentamente de azul-escuro para azul-claro. O pio dos passarinhos fez com que me sentisse grato por estar vivo.

“Estou todo dolorido, Ray, me sentiria melhor se pudesse levantar e me esticar.” Eu estava na mesma posição havia seis horas. O sangue seco estava grudado nos cabelos e no rosto, minhas canelas doíam porque estavam comprimidas contra a porta do armário e minhas costas latejavam.

“O.k., cara, vou deixar você se levantar, mas não faça besteira, certo?”

“Certo, Ray. Me diz o que eu tenho de fazer e eu faço.”

Lembrá-lo de que era ele que estava no comando da situação. Não deixá-lo sentir que estava perdendo o controle. Procurar uma saída.

Ele removeu as caixas que estavam ao meu redor, recuou com a arma na mão e abriu a porta. Engatinhei lentamente para fora da van e fiquei de pé pela primeira vez. Como o mundo era belo diante de meus novos olhos! Tudo brilhava como se fosse feito de cristal cintilante.

Havíamos parado numa rua residencial, próxima a um pequeno lago, no fundo de um aterro. Ele apontou para a trilha de terra batida que levava até a água. Enquanto eu descia a ladeira, pensei: “Será a morte de novo, batendo no meu ombro? Será que ele vai atirar em mim pelas costas e me empurrar para dentro da água?”. Eu me sentia fraco e vulnerável, mas ao mesmo tempo imortal e impermeável a suas balas. Caminhei ereto e sem medo. Ele seguiu-me até a beira da água e me observou enquanto eu me ajoelhava e lavava o sangue do rosto e das mãos, borrifando água fria em mim mesmo. Levantei-me lentamente e encarei Ray. Ele me olhou com curiosidade.

“O que você faria se eu lhe desse esta arma agora?”, perguntou estendendo o revólver para mim.

Minha resposta foi o primeiro pensamento que me ocorreu: “Eu a jogaria na água”.

“Você não está bravo comigo?” Ele parecia não acreditar.

“Não, por que estaria?”

“Eu atirei em você, cara, você tinha de estar com raiva! Eu estaria furioso! Você não ia querer me matar se eu lhe desse esta arma?”

“Não, Ray, por que deveria? Eu tenho minha vida e você tem a sua.”

“Eu não entendo você, cara. Você é realmente esquisito, realmente diferente de todos que já encontrei na vida. E não sei por que não morreu quando atirei em você.” Silêncio. Melhor deixar sem resposta. Ali, na beira da água, me dei conta de que Ray tinha sofrido uma transformação tão profunda quanto a minha. Não éramos mais as mesmas pessoas do dia anterior.

“O que vamos fazer agora, Ray?”

“Não sei, cara. Não posso levar você para o hospital. Não posso soltar você. Não sei o que fazer.”

E assim continuamos nossa conversa, em busca de uma solução para o dilema dele. Exploramos as possibilidades — no que poderíamos concordar? Fiz sugestões, ele me disse por que não funcionariam. Fiz outras sugestões. Ele escutou, examinou, rejeitou e começou a ceder. Procuramos uma solução conciliatória.

Por fim, chegamos a um acordo: eu o deixaria ir embora, ele me deixaria ir embora. Prometi não entregá-lo à polícia, nem dar queixa, mas sob uma condição: ele tinha de prometer que jamais faria uma coisa como aquela de novo. Ele prometeu. Que escolha ele tinha?

Quando o sol se erguia acima das colinas, voltamos para a van. Sentei-me no lugar do passageiro e ele dirigiu até um lugar que conhecia. Estacionou e eu lhe dei todo o dinheiro que tinha comigo, cerca de duzentos dólares, e alguns relógios que ele poderia penhorar. Atravessamos juntos a rua. O sol brilhava. Ainda era cedo, mas já estava quente. Ele trazia o casaco do Exército e um saco de dormir embaixo do braço e a mochila sobre o ombro. Em algum lugar da trouxa, havia um revólver preto.

Apertamos as mãos. Sorri para ele e ele continuava com o ar de confusão no rosto. Então nos despedimos e nos separamos.

Na sala de emergência do hospital do condado de Los Angeles, um médico raspou pequenos fragmentos de metal, pele e cabelos e deu pontos em meu couro cabeludo. Perguntou-me o que havia acontecido. “Atiraram quatro vezes em mim”, expliquei.

“Você é um homem de sorte. As duas balas que atingiram você ricochetearam no seu crânio. Você tem de registrar a ocorrência na polícia.”

“Sim, eu sei.” Eu já sabia que tinha sorte, mas, mais ainda, me sentia abençoado. Não fui à polícia. Fizera uma promessa e recebera uma promessa de volta. Cumpri minha parte no trato. Gosto de pensar que Ray cumpriu a dele.

Lion Goodman
San Rafael, Califórnia


Neve

Eu sabia que estava nevando antes de abrir os olhos. Podia escutar os sons das pás raspando nas calçadas e havia aquela quietude especial no ar que vem quando a cidade está coberta de neve. Corri até as janelas da frente para dar uma olhada na quadra — meu território. Devia ser muito cedo. Nenhum de meus amigos estava na rua, somente zeladores andavam com neve pelos joelhos. Aliviada por não estar perdendo nada, percebi que meus irmãos e irmãs já estavam acordados. Tinha de ganhar tempo. Se corresse, poderia chegar lá fora antes de todos os meus amigos.

Vesti-me com uma mistura de roupas de lã, mas não havia luvas para manter as mãos quentes. Eu as perdera no começo da estação. Estava atrapalhada quanto ao que enfiar nos pés: meus sapatos não cabiam mais nas minhas galochas de borracha. Poderia usar sapatos ou galochas, mas não ambos ao mesmo tempo. Decidi enfiar dois pares de meias e as galochas.

Enquanto eu enfiava as meias, senti a presença de alguém. Era meu irmão mais velho, Lenny. Perguntou-me se eu queria patinar no ringue coberto do Madison Square Garden. Imediatamente cancelei meus outros planos. Meu irmão de treze anos estava convidando a mim, sua irmã de nove, para patinar no gelo com ele. Se queria ir? Claro que sim. Mas onde iríamos arranjar dinheiro? Lenny disse que custaria um dólar para entrar e alugar os patins. Havia apenas dois obstáculos entre mim e a oportunidade de ir patinar com meu irmão: a nevasca de 1948 e um dólar. Na nevasca eu podia dar um jeito, mas o dólar era um problema.

Começou a busca. Devolvemos algumas garrafas de leite, pedimos uma moeda de cinco centavos para mamãe, imploramos a papai uma moeda de 25 centavos para cada um, catamos um ou dois centavos nos bolsos dos casacos, descobrimos duas moedas que haviam caído embaixo das camas e achamos uma rara moeda de dez centavos escondida num canto de um dos seis cômodos de nosso apartamento de água fria, junto à ferrovia.

Por fim, fortificados com uma tigela de aveia quente e com nossas suadas moedas nos bolsos, partimos para a jornada de vinte quadras.

A neve empurrada pelo vento grudava em todas as superfícies. Lenny e eu brincamos de imaginar que estávamos nos Alpes enquanto escalávamos os montes de neve de um metro de altura que haviam sido amontoados no meio-fio. O mundo agora era nosso — uma miríade de minúsculos flocos de neve fechara a cidade e mantinha os adultos dentro de casa. Os arranha-céus estavam invisíveis atrás de um véu branco de neve e quase que podíamos imaginar que Nova York tinha sido adaptada para nós. Podíamos caminhar pelo meio da Terceira Avenida sem medo de atropelamento. Era difícil conter nossa alegria, o incrível sentimento de liberdade que sentíamos na neve.

As doze quadras até a rua 49 não foram difíceis, mas as longas ruas que cruzavam a cidade revelaram-se enregeladoras. O forte vento oeste que vinha do rio Hudson tornava quase impossível avançar. Não pude mais acompanhar o ritmo de meu irmão. Meus devaneios foram substituídos pelo tormento frio de meus pés. Minha cabeça estava descoberta, minhas mãos sem luvas estavam apertadas dentro dos bolsos e algumas fivelas de minhas galochas ficaram frouxas. Comecei a me queixar mansamente, sem querer me transformar num aborrecimento, pois temia que Lenny não me convidasse nunca mais para ir a algum lugar.

Em algum ponto da Quinta Avenida, paramos numa entrada de edifício para nos abrigar. Eu disse timidamente a Lenny que minhas fivelas estavam abertas. Lenny tirou as mãos vermelhas e nuas dos bolsos e inclinou-se para fechar as fivelas de metal cobertas de neve. Envergonhada por fazer Lenny cuidar de mim, olhei para a frente e vi a imagem de um homem que caminhava na nossa direção através da cortina de neve.

Não consegui saber que idade ele tinha — todos os adultos pareciam ter a mesma idade para mim —, mas era alto, magro e tinha um rosto bonito e bondoso. Estava sem chapéu. Usava um cachecol em torno do pescoço e seu sobretudo, tal como os nossos, estava coberto de neve.

Não lembro se ele falou comigo ou não. O que lembro é que ele se ajoelhou diante de mim, com o rosto à altura do meu. Olhei para seus olhos castanhos suaves e me senti perturbada e muda. Depois que ele foi embora, senti seu calor no cachecol cor de vinho que ele amarrou apertado em minha cabeça.

Não me lembro de ter patinado naquele dia, ou de como voltamos para casa. Tudo o que minha memória guarda é a neve, a bondade de um estranho e meu irmão mais velho, Lenny.

Juliana C. Nash
Nova York, Nova York


guerra


O homem mais rápido do Exército da União

Meu bisavô, John Jones, era um menino de olhos azuis e pernas longas que vivia numa fazenda de Green City, Missouri. Quando a guerra civil começou, tinha apenas vinte anos de idade. Foi até sua mãe e disse que era contra a escravidão e não queria ver o rompimento da União. Ela deu-lhe permissão para se alistar no 18o regimento de voluntários do Missouri. Sua unidade esteve no centro de algumas das batalhas mais horríveis da guerra.

A certa altura, o regimento recebeu ordens de proteger uma linha férrea. Cavaram algumas trincheiras em torno da ferrovia e, nas primeiras horas da manhã, um batalhão de cavalaria dos confederados atacou a posição deles. Conseguiram segurar o ataque até que acabou a munição. John Jones viu o inimigo avançar sobre as trincheiras e, quando os soldados da União das posições mais avançadas saíam de seus bunkers de terra e se levantavam, suas cabeças eram cortadas pelos sabres dos cavaleiros confederados. Ele ergueu-se de um salto e começou a correr. Ouviu vários soldados sulistas gritarem “aquele ianque é meu”. Olhou por sobre o ombro e não havia dúvida: vários cavaleiros vinham atrás dele a todo galope. Ele disse para si mesmo: “Se Deus me deu pernas longas, foi para este momento”. Sabia que estava correndo para salvar sua vida e de alguma forma conseguiu ficar à frente dos perseguidores. Viu um bosque cerrado, enfiou-se por ele e saiu correndo do outro lado. Os cavalos tiveram de diminuir a marcha quando chegaram ao matagal e John Jones escapou.

Os homens que sobreviveram à batalha disseram que foi a primeira vez que viram um homem correr mais do que um cavalo.

Michael Kuretich
Glendale, Califórnia


Natal de 1862

Das memórias de James McClure Scott, dos Estados Confederados da América — meu tio-bisavô —, quando estava sob o comando de Jeb Stuart.

Dezembro de 1862.

Participei com minha companhia do famoso “Ataque de Natal” de Stuart: uma marcha em torno do flanco oeste do exército ianque, depois defronte de Lee, em Fredericksburg, passando por Lignum, atravessando Kelly’s Ford até Dumfries e Buckland, perto de Leesburg, e seguindo para Aldies e Middleburg, onde um grupo de jovens festejava o Natal queimando o presidente Lincoln em efígie.

Logo após a batalha de Dumfries, em que a cavalaria confederada foi rechaçada pela infantaria da União, as tropas confederadas ficaram estacionadas até a noite, depois avançaram para Buckram. Eu estava na coluna avançada e perdera a captura das lojas, pois estava em missão em outro lugar, e estava faminto, 36 horas sem comer, além de exausto das horas passadas sobre a sela, dormindo também na sela enquanto marchávamos noite e dia. Não tinha tempo para alimentar nem a mim, nem ao meu cavalo. O tempo estava ruim e, entre a fome e a fadiga, eu estava desesperado.

Na noite de Natal, quando estava marchando à frente da coluna, vi uma luz do outro lado de um campo, numa casa. Deixei a fileira, sabedor de que poderia retornar à coluna antes que ela passasse. Acompanhado por outro homem, atravessamos o campo na direção da luz. Ao chegar na casa, desmontei e bati à porta. De dentro vinham os sons de um grupo jovial jantando. Por fim, o dono da casa apareceu. Perguntei se dois homens poderiam conseguir uma ceia. O homem respondeu com uma pergunta: “Quem são vocês?”. Respondi: “Soldados de Jeb Stuart”. O homem exclamou: “Bem, vocês estão no lugar errado, porque dentro da casa estão oficiais ianques e suas esposas”. Ao que retruquei: “A não ser que sejam muito habilidosos, será pior para eles”. O homem, ainda hesitante, disse que não queria confusão, pois as tropas da União poderiam queimar sua casa. Respondi: “Quero comida, não prisioneiros ou confusão”. O homem voltou então para a sala de jantar, dizendo que iria falar com sua esposa. Percebi que isso seria uma notificação de minha presença aos ianques e tratei de segui-lo, mantendo-me bem atrás dele.

O grupo que jantava ficou espantado ao ver o anfitrião aparecer à porta seguido por um soldado confederado armado, com a aparência evidente de que acabara de sair da “trilha da guerra”. Fiquei de prontidão para pegar minha pistola enquanto o anfitrião explicava meu pedido.

Um dos oficiais sentado perto de uma porta dos fundos começou a se levantar. Disse-lhe: “Fique sentado, só quero meu jantar”. Uma das mulheres implorou-me que não levasse seu marido prisioneiro. Minha resposta foi: “Quero meu jantar e não farei prisioneiros nem criarei confusão, mas, se confusão houver, eles levarão a pior”.

Arranjaram rapidamente um lugar para mim na ponta da mesa mais próxima da porta por onde eu entrara. Duas das mulheres me serviram, oferecendo-me café, ostras, peru de verdade e todos os acompanhamentos de uma ceia de Natal completa. Com a pistola ao meu lado e os oficiais sentados à mesma mesa, engoli às pressas minha ceia.

Enquanto isso, podia-se escutar o som da coluna confederada que passava. Quando me senti satisfeito, ergui-me e ofereci dinheiro confederado em pagamento pela refeição, que foi recusado. Saí então sem ser molestado e montei no meu cavalo, com um sentimento de intenso alívio com o final feliz da aventura. Reinava silêncio total na casa quando parti e retomei rapidamente a linha de marcha da minha coluna. Meu companheiro desaparecera à primeira notícia de que havia ianques dentro da casa.

Grace Sale Wilson
Millwood, Virgínia


Ele tinha a mesma idade de minha irmã

Estou com quase 67 anos de idade, mas a cada outubro, quando o tempo muda, volto a ter onze anos.

No último ano da guerra, o outono na Holanda foi frio e úmido. Não havia fogões acesos, não havia carvão. Não havia lâmpadas para que as casas parecessem aquecidas, não havia eletricidade. Nenhuma refeição digna deste nome. A sopa da cozinha central, uma mistura de cascas de batatas e folhas de repolho em água sem sal, estava fria quando chegávamos em casa.

Naquele dia de outubro, logo que começou a escurecer, caminhões do Exército fecharam nossa rua, como haviam feito muitas vezes antes, e um pelotão de soldados alemães começou uma busca por homens de casa em casa.

“Raus! Raus!” O alto-falante nos fez sair e ficar na calçada enquanto os soldados corriam pelas casas, espiando em sótãos e armários. “Raus! Raus!” Meus irmãos menores esqueceram de pegar seus casacos. O pequeno corpo de Jacob me aquecia.

Nossa rua encheu-se de mulheres e crianças. Podíamos falar livremente, pois os soldados não entendiam holandês, mas mantínhamos as vozes baixas. Circulavam piadas. Por que há tão poucos homens aqui? Não ouviram falar da imaculada concepção? Eu não entendia sobre o que falavam, mas gostava das risadas. Então trocaram-se notícias. Eles estão em Maastricht! Por que não vêm para o norte?

Ficou mais frio. Os soldados estavam quase no final da rua e não haviam encontrado nenhum homem. Ficamos quietas. E então escutamos alguém chorar. Todas as mães se viraram. Era o som de uma criança chorando. No alpendre da casa da sra. Van Campen estava sentado um soldado, com o rifle apoiado ao seu lado, o rosto escondido no casaco. Ele tentava engolir os soluços, mas depois desistiu.

Uma das mães foi até lá e perguntou-lhe suavemente em alemão: “O que há de errado?”. Ela inclinou-se enquanto ele falava e depois ergueu-se e anunciou para nós: “Esta guerra deve estar perto do fim. Ele tem dezesseis anos e não comeu nada hoje”. Duas ou três mães afastaram-se do grupo e entraram em suas casas. Um oficial alemão apareceu na rua, a meia quadra de distância. Senti medo — e muito frio. As mães conseguiram voltar a tempo. Uma batata assada fria, um pedaço de pão e uma maçã enrugada foram passados pelo grupo até o rapaz. O oficial aproximou-se. O menino transformou-se em soldado de novo. “Danke”, disse, e depois ergueu-se e agarrou o rifle.

Os motores dos caminhões foram ligados. Podíamos voltar para casa. Pelo resto da guerra, pelo resto de minha vida, lembrei daquele soldado que chorou. Tinha a mesma idade de minha irmã.

Mieke C. Malandra
Lebanon, Pensilvânia


A última mão

O jogo de pôquer mais amaldiçoado de que jamais participei aconteceu no meu escritório, em uma ilha perto da linha do Equador, no Pacífico ocidental, durante a Segunda Guerra Mundial. Os bombardeiros japoneses nos interromperam por duas vezes na primeira hora do jogo. A cada vez, tínhamos de sair correndo, sob chuva, para um abrigo rústico, onde sentávamos na escuridão gotejante e esperávamos o anúncio de “barra limpa”.

Por pior que fossem as condições, o mais frustrante é que ninguém estava conseguindo uma mão decente. Em meia dúzia de mãos, as apostas não somaram dez dólares. Cada participante estava jogando com o dinheiro que ganhara durante o mês e, portanto, havia muitos mil dólares disponíveis para apostar.

Finalmente, sugeri uma última mão em que cada jogador faria uma parada de cinco dólares. Desse modo, alguém ganharia uns trocados e depois poderíamos voltar para nossas barracas e deitar em nossas camas de lona para uma noite de sono nervoso.

Mas não foi isso que aconteceu. O jogador imediatamente à minha esquerda abriu pelo valor da mesa — 35 dólares. O seguinte dobrou para setenta. Os demais jogadores pediram mesa ou aumentaram a aposta. Ninguém passou. Quando chegou a vez do tenente Smith, que estava à minha direita, ele elevou a aposta para mil, redondos. Smitty era um bom amigo e muito bom jogador de pôquer, e eu sabia que havia ganhado muito dinheiro nas últimas semanas. Examinei minhas cartas de novo: três, quatro, cinco e seis de ouros e um nove de paus: possível seqüência, possível flush e possível straight flush. Eu tinha de ficar e pedir uma carta, mesmo que isso me custasse pelo menos mil dólares. Fiquei, e o mesmo fizeram outros dois jogadores. Calculei que havia 5 mil dólares na mesa. Senti dificuldade para respirar enquanto distribuía as cartas pedidas.

O sujeito que havia aberto não pediu cartas, e o mesmo fez Smitty. Peguei uma carta. Chuleei novamente, tentando juntar coragem para olhar a mão. Ao espiar a carta nova e ver que era um dois de ouros, achei que ia morrer. Um straight flush! Eu jamais tivera um daqueles em minhas mãos. Minha esperança era que os outros jogadores não vissem minha “cara de ganhador”.

Os dois primeiros apostadores pagaram Smitty, o que elevara a aposta, e Smitty olhou para mim, de cima a baixo. “Capitão”, disse ele com um sorriso torto, “você está com a aparência de quem acabou de ganhar a sorte grande. Vou deixar você mandar no jogo. Mas não quero que ninguém veja minha mão de graça, então vou apostar duzentos dólares.”

Contei o meu dinheiro que estava na mesa: setecentos dólares. A maior parte representava minhas vitórias anteriores, mas cerca de duzentos vinham da grana ganha com o suor do meu rosto. Com um suspiro profundo, empurrei tudo para o centro da mesa e falei entre dentes: “E mais quinhentos”. Parecia um filme — e eu estava suando nas calças.

Somente Smitty pagou. Baixei minhas cartas e anunciei triunfante: “Straight flush!”.

Smitty conteve a respiração e perguntou: “Até quanto?”.

Senti meu coração desfalecer. Sabia que ele ganhara. Meu flush de dois a seis era o menor de todos. Ele ganhou de mim com um straight flush até o sete de paus.

Ele enfiou a grana toda na camisa e nos agradeceu pelas contribuições.

Meia hora depois, um solitário bombardeiro japonês despejou sua carga na barraca iluminada de Smitty. Juntamos mais de 8 mil dólares espalhados pela área e mandamos para a viúva. Em seu funeral, na manhã seguinte, ficamos sabendo que Smitty estava na lista de promoção e prestes a se tornar capitão. Mudamos o posto no marco branco de sua sepultura. Foi realmente a última mão.

Bill Helmantoler
Springfield, Virgínia


Agosto de 1945

O coronel estava nos dando instruções sobre mais uma missão. Seria a sétima desde que chegáramos na frente do Pacífico, seis meses antes. O setor de inteligência descreveu-a como extremamente arriscada, envolvendo a invasão do Japão, e os relatórios sugeriam que os japoneses conheciam de antemão nossos planos e preparavam uma resistência maciça. Por mais espantosa que fosse essa informação, aceitamos os detalhes como instrução de rotina. De qualquer forma, imaginávamos que havíamos apostado nossas últimas fichas de sobrevivência meses antes.

“Esta é uma missão voluntária”, gritou o coronel. “Quem não quiser participar, basta se apresentar na minha barraca, ficar em posição de sentido, olhar-me direto nos olhos e dizer: ‘Coronel, sou um covarde, senhor!’. Quem fizer isso, será mandado de volta à base de Oahu no próximo navio. Está claro? Dispensados!”

Depois de dezenas de missões, estávamos exaustos. Embora nenhum de nós admitisse em voz alta, sabíamos o que cada um estava pensando. Era o que eu estava pensando também. Quisera ter a coragem de ir até o coronel e dizer que eu era um poltrão. Estávamos cansados demais para admitir o medo, orgulhosos demais. Éramos soldados experimentados, veteranos de muitas batalhas que acabariam com condecorações nos uniformes pendurados nos armários, até que as traças abrissem buracos nas lapelas, ou até que alguma criança tirasse o casaco do cabide para se fantasiar no Halloween. E conhecíamos o suficiente das batalhas para ter medo de fato. Mas eu temia algo mais do que encarar o coronel e lhe dizer que estava com medo. Eu temia olhar para meus próprios olhos, ainda que não tivéssemos espelhos no meio do Pacífico, e eu sabia que, por mais cansado das batalhas e assustado que estivesse, jamais conseguiria reunir forças para entrar na barraca do coronel.

Mas um soldado, Symes, fez isso. O coronel cumpriu sua palavra e tirou Symes da unidade. Suas ordens foram para que embarcasse no Jasper, um navio de suprimento que retornava a Oahu para reabastecer.

Fiquei indignado com Symes. Odiei-o. Todos nós o odiamos. Sabíamos que ele lutara ao nosso lado todo o tempo, enfrentando o fogo como qualquer um de nós fizera, nem pior, nem melhor. Mas ele foi o único que tivera a coragem de dizer que era um covarde e agora ia cair fora daquele buraco do inferno. Ia ser mandado embora, para comer à mesa, dormir numa cama com lençóis, sentir o cheiro fresco do mar, em vez do fedor constante de pólvora e cadáveres, ouvir o ritmo calmante do oceano, em vez do assobio das balas e as explosões que latejavam nas entranhas da artilharia pesada. E talvez passasse o resto da guerra atrás de uma mesa, ou na ponta receptora de um rádio numa base. (E ainda teria as condecorações; quem saberia, senão nós, o que ele dissera ao coronel? E, de qualquer modo, dentro de uma semana poderíamos todos estar mortos.)

Tratamos de nos concentrar em outras coisas enquanto Symes arrumava sua mochila e descia para embarcar no Jasper. Então, começamos a nos preparar para a próxima batalha. Escrevemos cartas para nossas famílias, nossas esposas, nossas namoradas, tentando dizer-lhes adeus sem deixar que soubessem para onde íamos e o que estávamos pensando.

Depois, na manhã em que nos preparávamos para embarcar, um dos motoristas de caminhão filipinos veio correndo na nossa direção, com gestos de excitação. “Esqueçam. Não se preocupem. Caiu grande bomba. A guerra acabou!” Ligamos o rádio e escutamos a notícia da bomba que fora lançada em Hiroxima.

Enquanto captávamos todo o significado dessa notícia, recebemos uma segunda mensagem: o Jasper fora torpedeado em alto-mar e não havia sobreviventes.

Robert C. North
tal como contado a Dorothy North
Woodside, Califórnia


Achei que meu pai fosse Deus

Estas coisas aconteceram em Oakland, Califórnia, no final da Segunda Guerra Mundial. Eu tinha seis anos. Não sabia então o que era a guerra, mas percebia algumas de suas conseqüências. O racionamento, por exemplo, pois eu tinha uma caderneta de ração com meu nome. Minha mãe guardava-a para mim, junto com as de meus irmãos. Lembro do blecaute, dos avisos de ataque aéreo e de ver aviões voando no céu. Meu pai era capitão de rebocador e lembro de conversas sobre navios de transporte, submarinos e destróieres.

Lembro também de minha avó levando gordura ao açougueiro para ser aproveitada e indo ao centro para jogar resíduos de alumínio nos recipientes junto à calçada da repartição federal.

Mas o que lembro mais é do sr. Bernhauser. Era nosso vizinho dos fundos. Era especialmente mau e hostil com as crianças, mas era grosseiro também com os adultos. Ele tinha uma ameixeira junto à cerca dos fundos. Se as ameixas estivessem do nosso lado, podíamos pegá-las, mas Deus nos livre se cruzássemos a linha da cerca. Era um inferno. Ele gritava e berrava conosco até que um de nossos pais aparecesse para saber o que estava acontecendo. Em geral, era minha mãe, mas daquela vez foi meu pai. Ninguém gostava muito do sr. Bernhauser, mas meu pai era particularmente contra o sujeito porque ficava com todos os brinquedos e bolas que porventura aterrissassem em seu quintal. Então, lá estava o sr. Bernhauser, berrando que caíssemos fora de sua árvore, e meu pai perguntou qual era o problema. O vizinho inspirou fundo e desandou a soltar uma série de invectivas sobre crianças ladras, infratores de regras, gatunos de frutas e monstros em geral. Imagino que papai estava de saco cheio, pois a próxima coisa que fez foi gritar com o sr. Bernhauser e dizer-lhe que era melhor que morresse. O vizinho parou de gritar, olhou para meu pai, ficou vermelho, depois púrpura, pôs as mãos no peito, ficou cinza, dobrou-se e caiu lentamente no chão. Achei que meu pai fosse Deus. Que ele pudesse gritar com um velho miserável e fazê-lo morrer no ato estava além da minha compreensão.

Lembro que Ray Hink morava na casa em frente. Estávamos no mesmo ano da escola e sua avó morava no andar de cima. Era uma velhinha minúscula que usava sempre um vestido de gola alta. Sentava-se à janela com um binóculo de ópera e vigiava a vizinhança. Se nos comportássemos, deixava que olhássemos pelo binóculo e cheirássemos o perfume das pétalas de rosa que mantinha num jarro de alabastro sobre a mesa. Dizia que as pétalas de rosa eram da Alemanha e o jarro da Grécia. Uma tarde, tive licença para usar o binóculo e estava olhando para a rua. Um táxi parou e um marinheiro alto e magro desceu. Apertou a mão do taxista, que tirou um saco do porta-malas: era meu tio Bill, de volta da guerra. Minha avó desceu correndo a escada e jogou-se nos braços dele. Estava chorando. Lembro das estrelas que pendiam das janelas de alguns de nossos vizinhos. Minha avó contou-me que era porque alguém perdera um filho na guerra. Fiquei contente por não haver estrelas na nossa janela. Naquela noite, fizemos uma grande festa para tio Bill. Fui dormir feliz porque meu tio estava seguro em casa. Não pensei mais no sr. Bernhauser.

Robert Winnie
Bonners Ferry, Idaho


A comemoração

Foi em 14 de agosto de 1945, o dia em que o Japão se rendeu, terminando a Segunda Guerra Mundial. Eu estava em uma base aérea nos arredores de Sioux Falls, Dakota do Sul. Recebemos a notícia da rendição no final da tarde e imediatamente fomos todos para a cidade comemorar. Não havia jipes e caminhões suficientes, então a maioria pegou carona. O cenário era de paz total: suaves colinas onde algumas vacas pastavam sob um céu que estava mais azul e luminoso do que nunca, com algumas nuvens brancas que estavam mais brancas e luminosas do que nunca.

Que situação maravilhosa! Eu participara de 79 missões de combate aéreo sobre a Europa e sobrevivera sem um arranhão, não teria de lutar no Pacífico e logo estaria de volta à faculdade em Colúmbia, depois de quatro anos de serviço militar. O mundo estava em paz e eu estava indo à cidade para comemorar.

Quando cheguei, a comemoração já estava em andamento. Milhares de soldados reuniram-se no centro da cidade, junto com centenas de civis. A bebida corria livremente. Comprei uma garrafa de cerveja e subi no telhado de um sobrado, juntando-me a um grupo que observava a cena turbulenta e ruidosa. Civis agradecidos abraçavam e beijavam os soldados e nos agradeciam por termos vencido a guerra.

Um fazendeiro chegou numa velha picape e, imediatamente e contra a vontade, teve de vendê-la para um grupo intimidador de soldados bêbados que haviam passado o chapéu pedindo doações para pagar por ela. Assim que tomaram posse do carro, atearam fogo nele. Os bombeiros chegaram logo com suas sirenes, prepararam as mangueiras, mas foram cercados pela multidão, que pegou seus machados e cortou as mangueiras. Enquanto o fogo consumia o veículo, a multidão, inclusive soldados, civis e até bombeiros, festejava o incêndio aos berros.

Quando o centro da ação deslocou-se para mais adiante, desci do telhado e segui a festa. Os bêbados ficavam mais bêbados e barulhentos e o que começara como uma comemoração alegre do final da mais sangrenta e terrível guerra da história da humanidade se transformou numa cena violenta, selvagem e caótica. Vitrines foram quebradas e irromperam brigas. Os poucos policiais presentes não tinham como restabelecer a ordem. Nem pareciam ter vontade de fazê-lo.

Seis ou oito soldados brancos começaram a bater em um soldado negro. Ouviram-se gritos de “matem este negro” e “matem este preto filho-da-puta”. Ele conseguiu escapar e correu para uma rua lateral com uma expressão de terror no rosto, expressão que jamais esquecerei enquanto viver. A turba o perseguiu, brandindo garrafas vazias de uísque. Para surpresa do soldado negro, ele descobriu que estava numa rua sem saída. Achei que devia ir até lá para socorrê-lo, mas tive medo da multidão.

Assim que chegou ao fim da viela, ele se virou, encarou seus perseguidores e ficou esperando pelo próximo movimento deles. Estava ensopado de suor. A expressão de terror de seu rosto se transformou num ar de determinação férrea. Os perseguidores pararam abruptamente, com exceção de um soldado que avançou na direção dele, tentou acertá-lo e teve a maior surpresa de sua vida ao ser nocauteado com um único soco. Passando por cima do corpo inconsciente de seu atacante, o homem negro cerrou os punhos e disse: “Estou indo embora agora”. Houve silêncio total. Todos se afastaram e deixaram que se afastasse. Senti a tentação de cumprimentá-lo, mas temi que ele dissesse: “Onde você estava quando precisei de ajuda?”. Depois daquilo, perdi o interesse pela comemoração e peguei uma carona de volta para a base aérea.

Pensando sobre aquele incidente triste, senti culpa por não ter saído em defesa do homem. A culpa me fez lembrar de algo que lera outrora num conto. Um homem observa em silêncio outro homem que é linchado no interior do Sul. Ele fica ao mesmo tempo chocado e fascinado com o que vê.

A multidão se dispersa, deixando o cadáver pendurado em um galho de árvore, e o homem volta para casa envergonhado por ter sentido medo de intervir. Ao chegar, sua esposa, notando a expressão de culpa em seu rosto, explode: “Você esteve com outra mulher, não é?”.

Reginald Thayer
Palisades, Nova York


Natal de 1945

A guerra terminara havia poucos meses e nossa unidade estava estacionada em Quioto, Japão. Nosso Natal prometia ser tão desolado quanto o recinto em que vivíamos. O imperador Hirohito pensava em nós quando disse: “Devemos suportar o insuportável”. No dia 22 de dezembro, mandamos um caminhão pegar uma árvore de Natal e alguns enfeites no quartel-general.

Os cinco piores homens do 569o foram designados para decorar a árvore. Tínhamos a esperança de que ocorresse um motim, para que pudéssemos enfiar todos no cercado de prisioneiros. Nada disso aconteceu. Na verdade, eles fizeram um bom trabalho. Mas jamais uma árvore de Natal foi decorada como aquela, ao som de impropérios e palavrões. Merton Mull, uma estrela entre os “Cinco Impossíveis”, desistiu naquele dia de suas esperanças de uma dispensa médica. Ele mal podia caminhar. Sua espinha, dizia, era uma grinalda de discos desencaixados. De uma pequena fenda na porta do refeitório observei Merton, que, pendurado por um braço de uma viga do teto, prendia uma estrela de prata no topo da árvore.

Era triste. A companhia, outrora orgulhosa de sua unidade e de sua citação no vi Exército, estava rachada ao chegar o Natal. Muitos que haviam participado das campanhas na Nova Guiné e em Luzon tinham voltado para casa e sido substituídos por recrutas novos. A velha guarda achava intoleráveis as bravatas daqueles convencidos de dezenove anos. Até seus ódios eram rasos.

Era preciso um lance de relações-públicas para melhorar o clima. Houve burburinho e rebuliço quando afixamos a lista de deveres para o Natal. Todas as tarefas consideradas inferiores haviam sido dadas aos oficiais subalternos, todos da turma antiga. Quanto mais alto o escalão, mais vil a tarefa. O primeiro-sargento, depois de servir as mesas, lavaria as panelas, a mais desprezada de todas as tarefas da cozinha. O sargento da intendência, de quatro divisas, passaria boa parte do dia de Natal limpando banheiros. Aos sargentos de pelotão couberam os serviços gerais de cozinha e os cabos cuidariam de tediosos postos de guarda. “Os pirralhos não merecem isso”, disseram muitos. O primeiro-sargento saiu do papel durante o jantar, mas apenas por um breve momento. Ele “condecorou” os cinco “malvados” que haviam decorado a árvore. A citação falava de “serviço além do chamado do dever”.

Naquele dia muita coisa foi remediada, mas principalmente por causa de alguns visitantes inesperados na véspera de Natal. De uma forma misteriosa, eles infundiram em nossa hipocrisia de relações-públicas um espírito natalino mais autêntico. Apresso-me a contar.

Eu estava na sala de ordens escrevendo uma carta quando o cabo Duncan, o escrevente de nossa companhia, chegou com uma notícia incrível. Um grupo de japoneses, em um caminhão equipado com um órgão de pedal, estava no portão e pedia para entrar. Estavam vestidos com túnicas brancas de coro e diziam ser cristãos. De acordo com Duncan, duas das mulheres eram inquestionavelmente anjos.

Conceder a permissão significava violar nossos regulamentos de segurança mais rígidos. Depois de alguma hesitação, o caminhão, movido a combustível inferior, entrou tossindo no recinto. O organista começou a tocar e um coro juvenil composto por sete moças e três rapazes cantou canções conhecidas de Natal em japonês. O motorista e o organista talvez compusessem um número doze simbólico. Com os movimentos graciosos de uma cerimônia do chá, os cantores acenderam velas, que deram aos soldados aglomerados ao redor. Durante a última canção, deram presentes — lenços de seda.

Não poderíamos deixar por menos. Com a ajuda de seus cozinheiros, nosso sargento judeu do rancho esquadrinhou a cozinha em busca de excedentes. Puseram caixas de alimentos no caminhão. O cabo que cuidava dos motores deu cinco litros de gasolina ao motorista. Outros correram para buscar coisas. Goma de mascar, barras de chocolate, pasta de dente, creme de barbear, lâminas, papel higiênico, sabonetes em vários estágios de uso, junto com alguns ienes, tudo foi jogado num cesto de lixo que suspeitei ser o meu, roubado da sala de ordens pelo malandro do Duncan. Um crime a mais ou a menos pouco importava. A coisa toda, do começo ao fim, fora ilegal. Como inimigos, os japoneses nos tinham dado unidade. Quando estávamos prestes a perdê-la, um pequeno grupo de cristãos japoneses nos ajudara a refazer a união.

A Bíblia diz que a chuva cai tanto sobre o injusto como sobre o justo. Não pode haver outra explicação. Um mês e pouco depois desse Natal notável, Merton Mull conseguiu sua dispensa médica. Lembro vagamente de ter lido algo como o seguinte: “O soldado Mull sofre de uma aberração mental crônica que o leva a crer que tem um problema na coluna”.

Lloyd Hustvedt
Northfield, Minnesota


Um baú cheio de lembranças

Quando fiquei sabendo do plano para criar um Museu do Holocausto em Washington, lembrei-me imediatamente de um grande baú que estava no porão de meu edifício, em Greenwich Village, cheio de lembranças da guerra. Havia 45 anos que eu não o abria e ocorreu-me que talvez tivesse encontrado uma utilidade para seu conteúdo. Escrevi um bilhete para o diretor do museu e dois dias depois uma das curadoras me telefonou para dizer que gostaria de vir a Nova York e ver o material. Enchendo-me de coragem, trouxe o baú do porão e o abri. A primeira coisa que vi foi minha velha mochila. Dela extraí dois pesados capacetes do Exército nazista, com os nomes de seus donos no forro, e uma enorme bandeira vermelha adornada com uma suástica preta e branca. Lembrei que, quando minha divisão de infantaria entrou na Alemanha, tivemos ordens de confiscar todas as armas e, quando “libertamos” uma sala de armas de oficiais alemães anexa a um quartel, tivemos de desmontar as prateleiras e caixas e levar o conteúdo embora. Disseram-nos que poderíamos ficar com as armas cerimoniais como suvenir e eu me servi de uma espada e uma adaga, com insígnias nazistas nos punhos.

Além da mochila, encontrei duas caixas marrons amarradas com barbante. Elas continham cerca de duzentas fotografias que eu tirara, meu registro pessoal de nosso avanço através da França e da Alemanha. Além das fotos usuais de grupos de companheiros e dos destroços de guerra, havia retratos que tirei quando minha divisão capturou Franz von Papen, o vice-chanceler de Hitler e primeiro nazista da alta hierarquia capturado pelos Aliados. Ao manusear o pacote, cheguei às fotos que temia ver.

Logo antes do fim da guerra, em algum lugar do Ruhr, em uma cidade chamada Warstein, chegamos a um campo de concentração cercado por um muro e arame farpado. Era um dos menos conhecidos, mas igualmente horrível, campos da morte, onde russos capturados eram mantidos vivos como trabalhadores escravos. Nenhum deles sobreviveu. Quando a comida ficou escassa, os ss alemães obrigaram os russos a cavar suas próprias sepulturas e depois os fuzilaram. Nossos soldados encontraram as covas abertas, com os cadáveres descobertos dentro delas e ao seu redor. Nossos oficiais, com toda a razão, exigiram que todos os cidadãos daquela cidade fossem levados a visitar o campo de concentração.

O último objeto que achei no baú não era de forma alguma alemão. Era algo que eu obtivera logo após o armistício. Minha companhia estava localizada numa cidade chamada Ludinghausen. Um dia, um coronel do quartel-general me chamou para servir-lhe de intérprete — eu estudara francês e alemão no colégio — numa conferência com seus colegas ingleses e franceses, cujo objetivo ele não me revelou.

Partimos de manhã cedo e atravessamos uma região rural devastada. Por volta das três da tarde, chegamos ao local do encontro, uma hospedaria, e o coronel entrou para se anunciar. Logo voltou e me disse que a reunião seria em inglês e que minha presença não seria necessária. Fiquei sentado no jipe e durante cerca de uma hora li um romance que trouxera comigo. De repente, o silêncio foi quebrado pelo galope dos cascos de um cavalo. Desci do jipe e segurei firme a alça da carabina. O cavalo avançava rapidamente, um animal enorme, trazendo um cavaleiro de uniforme. Empunhei minha arma e liberei a trava de segurança.

Quando me viu, o cavaleiro deteve o animal. Eram ambos enormes. Contra o sol que se punha, pareciam uma estátua eqüestre. Fiquei com a arma na mão enquanto ele desmontava.

Vi então que não usava um uniforme alemão: era de lã cáqui, com botas de cano alto, e o boné e o colarinho da jaqueta eram decorados com insígnias vermelhas. O que ele poderia ser?, me perguntei. Era muito mais alto do que eu, muito maior e muito mais forte. Mas não fez gestos ameaçadores e abriu um sorriso largo enquanto caminhava na minha direção, revelando uma boca cheia de dentes de ouro.

Ele falou algo que parecia uma pergunta: eu era francês? Inglês? Respondi com uma única palavra: “Americano”.

“Americano?” Ele não podia acreditar. “Americano. Americano”, repetiu. E depois apontou para si mesmo: “Russki”, disse ele, ou algo parecido.

Eu sabia que era inútil tentar descobrir o que fazia um cavaleiro russo solitário naquela estrada. “Americano, americano”, repetiu novamente, com brilho nos olhos azuis. Depois começou a tirar o cinto largo que trazia à cintura.

Um instante depois, tirou o enorme sabre que estava preso ao cinturão, segurou-o com ambas as mãos e ofereceu-o para mim com um gesto cerimonioso. Recuei, mas ele insistiu. Peguei a arma e com ela cortei o ar um par de vezes, para grande alegria do russo. Com gestos, deixou perfeitamente claro que se tratava de um presente.

Dei-me conta de que precisava fazer algo por ele. Mas o que poderia dar-lhe? Ah, eu tinha meu relógio. Tirei-o e o ofereci ao russo. Ele abriu um sorriso e o pôs no pulso peludo. Depois, tirou o boné, inclinou a cabeça, montou em seu corcel e com um aceno partiu a galope pela estrada.

Morton N. Cohen
Nova York, Nova York


Uma caminhada ao sol

Nós, médicos do Destacamento Médico do 3o Batalhão, 351o Regimento de Infantaria, estacionados no quartel de San Giovanni, ao norte dos arredores de Trieste, levávamos uma vida bem relaxada para tropas em alerta contra a ameaça do pós-guerra do marechal Tito. Ao contrário do procedimento normal do Exército, dávamos consulta às quatro da tarde, em vez de pela manhã. Não era de surpreender que aparecessem poucos soldados depois que cumpriam as tarefas do dia e tinham licença para sair à noite. Tínhamos sempre um médico de plantão, pronto para atender quem precisasse de ajuda. Mas, com exceção de alguma doença séria ou ferimentos ocasionais, não tínhamos praticamente nada para fazer durante boa parte do dia. Jamais obedecíamos ao toque de alvorada junto com o resto do batalhão, mas quase sempre levantávamos a tempo de tomar o desjejum. Às vezes, no entanto, perdíamos a hora e, quando acordávamos, mandávamos alguém buscar sanduíches e saladas numa casa de comestíveis da cidade.

Outro privilégio que concedíamos a nós mesmos era passear de ambulância sempre que o batalhão saía em exercícios em marcha que duravam o dia inteiro. O cirurgião do batalhão, tenente William A. Reilly, jamais questionou essa prática.

O inevitável aconteceu. Perto do final de uma marcha, o comandante de nosso batalhão, tenente-coronel Dured E. Townsend, estava na estrada observando seus soldados quando viu nossa ambulância passar, mas notou que não havia médicos à vista. Mandou parar o veículo, fez o motorista abrir a porta traseira e inspecionou o interior. Lá estávamos nós, confortavelmente instalados nas macas, sem nenhum sinal de fadiga. A súbita aparição do comandante deixou-nos mudos e ficamos na expectativa de que ele nos passasse uma grande descompostura ali mesmo. Mas nada disso. Em tom moderado, tudo o que disse foi: “Sargento, quero que você e seus homens se apresentem amanhã de manhã, às sete horas, no portão principal, com todo o equipamento”.

Aparecemos no lugar marcado na hora certa, no momento em que o coronel estava chegando. “Então”, disse ele, “quero que vocês façam a mesma rota que o batalhão fez ontem, mais oito quilômetros, conforme este mapa.” Entregou o mapa ao nosso sargento, Joe Grano, que bateu continência e respondeu: “Sim senhor”. E assim saímos os nove em duas colunas, viramos à direita e subimos o morro, na direção das terras altas da Venezia Giulia.

Após chegarmos à crista da primeira colina, descemos para um pequeno vale. Liderados por nosso engenhoso sargento Grano, dobramos à esquerda e saímos da estrada. Em fila indiana, seguimos uma trilha que, depois de atravessar alguns arbustos, chegava numa área plana, com rampas íngremes de ambos os lados, que formava uma concavidade bastante escondida. Ali nosso líder mandou parar e nos livramos com facilidade das mochilas. Digo com facilidade porque, embora parecessem estar cheias, de acordo com o regulamento, essa aparência era dada pelas caixas de papelão vazias que nelas enfiamos, o que nos permitiu carregar nossos equipamentos de esporte: bola de softball, luvas, tacos e também uma bola de futebol americano. Em lugar das rações regulares, havíamos comprado comida do nosso fornecedor italiano na noite anterior. Também isso tiramos de nossa falsa carga das mochilas.

Passamos a primeira hora em conversa fiada, descansando da caminhada de vinte minutos morro acima. Depois, ficamos só de roupa de baixo, demarcamos um campo de jogo e escolhemos os times para uma excitante partida de softball. Éramos todos jogadores do time do regimento, os “Médicos Azuis”. Racionalizávamos que nosso jogo ajudaria a desenvolver o caráter, a competitividade e o espírito desportivo. Jogamos até ficar com fome e então nos deliciamos com o lanche especial, acompanhado do vinho que alguns de nós haviam trazido nos cantis. Depois disso, deitamos para fazer a sesta sob o céu ensolarado italiano.

Calculamos que deveríamos reaparecer no quartel por volta das quatro da tarde. Então, no meio da tarde, voltamos ao nosso esforço de batalha, escolhemos novamente times e começamos um jogo brutal de futebol americano. Jogamos duro, suando e sujando nossos uniformes e nossas botas, sem mencionar alguns arranhões e equimoses.

Ao final do jogo, acabamos com o que restava do vinho, arrumamos nossas mochilas falsas e partimos de volta. Lá estava o coronel Townsend, observando do portão principal, enquanto nosso suado, fedorento e sujo destacamento se arrastava morro abaixo, executava uma esquerda volver desleixada e parava bem diante dele. Ao nos examinar, sua imensa satisfação era óbvia. Não precisava dizer, mas disse: “Espero ter dado a vocês médicos uma lição que não vão esquecer tão cedo, não é?”.

Ninguém respondeu em voz alta, é claro. Mas todos concordamos com ele.

Donald Zucker
Schwenksville, Pensilvânia


Um tiro no escuro

Eu era um jovem fuzileiro naval no Vietnã, estacionado a pouco mais de vinte quilômetros de Da Nang, mas o local era tão distante da civilização que parecia o fim do mundo. Vivíamos em grandes barracas para catorze homens, com chão de terra batida, e usávamos velas para iluminar à noite. A base inteira de operações ficava dentro de uma aldeia vietnamita abandonada, cercada por mata e folhagem densas. Isso nos abrigava do calor intenso do sol, além de nos proteger de atiradores de tocaia.

Passávamos os dias e as noites em patrulhas, procurando franco-atiradores e mantendo contato constante com a população local. Depois de dois ou três dias em campo, tínhamos permissão para voltar à base por um dia e uma noite. Quando estávamos em nossa área “segura”, não fazíamos muito mais do que ficar à sombra, escrever cartas e ver um filme de vez em quando.

Os filmes eram projetados num cinema improvisado, com um teto de metal sustentado por grandes postes de madeira. Era aberto de todos os lados e os bancos não tinham encosto. A tela era de madeira compensada pintada de branco, apoiada sobre duas balizas robustas de madeira, e na base dela havia um palco elevado.

É uma regra da guerra, um fato cientificamente comprovado, uma lei empírica que determina: nenhum soldado em combate deve ficar de pé, sentado ou deitado próximo de outro, pois eles se tornam um alvo convidativo para o inimigo. Se ocorre uma situação especial e o soldado se vê num grupo de duas ou mais pessoas reunidas, então deve pelo menos ficar em silêncio.

Escurecia e o cinema estava quase cheio. O filme começou, mas depois de alguns segundos a fita se soltou da bobina e o projecionista desligou o projetor. Poucos minutos mais tarde, o filme recomeçou. E de novo a fita saiu dos trilhos. O projecionista desligou novamente o projetor. O cinema estava escuro como breu. Todos tínhamos lanternas para voltar às barracas depois da sessão. A eletricidade escassa na base era usada apenas para refrigeração e outras funções essenciais. Tínhamos sorte por contar com um pouco de energia para o luxo ocasional de algum filme.

Nos quarenta minutos seguintes, houve várias tentativas fracassadas de passar o filme. A multidão se tornou barulhenta e impaciente. Quando alguns começaram a gritar e assobiar, outros ficaram nervosos devido ao barulho. Por fim, alguns dos homens deixaram o cinema. Outro contingente se pôs a jogar luz de lanternas na tela, fazendo desenhos e apontando a luz para o grupo.

No corpo de fuzileiros navais, quando alguém grita a palavra corpsman durante um combate, ficamos sabendo que alguém foi atingido, ferido ou morto. Ela detém nossa marcha e nos damos conta imediatamente de que alguma coisa trágica aconteceu.

De início, mal a escutamos. Então, como sempre acontece na urgência do combate, a notícia se espalhou. Foi um momento estranho e surreal. Primeiro um, depois dez, depois quarenta lanternas iluminaram a frente do cinema, de onde viera o grito. Era óbvio que alguém estava ferido. Logo abaixo da tela, no meio de uma área escura do palco, um fuzileiro amparava outro fuzileiro em seus braços. O segundo fuzileiro estava flácido. Fora baleado na cabeça.

Mais tarde, depois que voltamos para nossas unidades, descobrimos que apenas uma bala fora disparada. Um franco-atirador, tentado pelas luzes e o barulho, dera um único tiro na multidão. Apesar da folhagem densa que nos cercava, sabíamos que a luz podia ser vista de longa distância. Nem sequer escutamos o tiro, devido ao barulho que fazíamos. Fomos descuidados e sofremos a conseqüência disso.

Alguns foram ajudar e então alguém assumiu o comando e declarou com voz autoritária que o filme estava cancelado. Mandaram-nos dispersar. Cautelosamente, decidi esperar até que a maioria tivesse ido embora para retornar à minha barraca.

Ao me dirigir aos fundos do cinema, vi o projecionista ao lado do projetor. Perguntei-lhe o nome do filme que iríamos ver. Era com Peter Sellers e Elke Sommer, disse ele, um filme chamado Um tiro no escuro.

Senti um calafrio na espinha na umidade e na escuridão daquela noite trágica. Aconteceu em 1966. Trinta e quatro anos depois, aquela noite permanece em minha memória como nenhuma outra jamais permanecerá.

David Ayres
Las Vegas, Nevada


Utah, 1975

Meu amigo D. conta que, quando a guerra do Vietnã estava a caminho do fim, seu filho lhe disse que queria comemorar o dia em que a guerra acabasse. “Como?”, perguntou D. “Quero tocar a buzina de seu carro”, respondeu o menino.

Quando a guerra acabou, os americanos não deram muita importância. Não houve desfiles. Não houve banda de música, somente poucas demonstrações externas de contentamento. Exceto numa área suburbana de Salt Lake City, onde um menino de nove anos obteve permissão para apertar a buzina do carro de seu pai até acabar com a bateria.

Steve Hale
Salt Lake City, Utah


amor


E se?

Recebi meus papéis de baixa do Exército em 25 de abril de 1946. Havia sobrevivido a três anos de serviço na Segunda Guerra Mundial e estava a caminho de casa, num trem que ia para Newark, Nova Jersey. A última coisa que eu fizera na base de Fort Dix foi comprar uma camisa branca na cooperativa militar — um símbolo de meu retorno à vida civil.

Eu estava ansioso para pôr em ação meu grandioso plano para o futuro. Retornaria à faculdade, iniciaria minha carreira e procuraria a garota dos meus sonhos. Eu sabia exatamente quem era essa garota. Estava apaixonado por ela desde o colégio. A questão era: como poderia encontrá-la? Havia quatro anos que não mantínhamos contato. Ora, poderia levar algum tempo, pensei, mas eu a acharia.

Quando o trem parou na estação, peguei minhas sacolas, enfiei minha camisa nova embaixo do braço e me dirigi à plataforma dos ônibus — o último trecho de minha jornada de volta para casa. E então, milagre dos milagres, lá estava ela, tal como eu a lembrava: uma beleza atraente, baixa, esbelta, de cabelos negros. Aproximei-me e a cumprimentei, esperando que não tivesse me esquecido. Não tinha. Jogou os braços em volta do meu pescoço e beijou-me no rosto, dizendo quão contente estava em me ver. A fortuna realmente sorria para mim, pensei.

Descobri que ela viajara no mesmo trem: vinha da Universidade de Rutgers, onde estudava para ser professora, a fim de passar o fim de semana em casa. O ônibus que ela esperava não era o meu, mas isso não tinha importância. Eu não estava disposto a perder aquela oportunidade. Pegamos o mesmo ônibus — o dela — e nos sentamos juntos, relembrando o passado e falando do futuro. Contei-lhe meus planos e mostrei-lhe a camisa que comprara — meu primeiro passo para tornar meu sonho realidade. Não lhe disse que ela deveria ser o segundo passo.

Ela falou que eu tinha muita sorte de ter encontrado aquela camisa, pois as roupas civis masculinas estavam escassas. E então disse: “Espero que meu marido tenha tanta sorte quanto você quando der baixa da Marinha, no mês que vem”. Desci na parada seguinte e jamais olhei para trás. Infelizmente, meu futuro não estava naquele ônibus.

Trinta e um anos depois, em 1977, encontrei-a novamente numa reunião de antigos colegas de escola — com os cabelos não tão negros, não tão esbelta, mas ainda atraente. Contei-lhe que minha carreira estava indo bem, que estava casado com uma mulher maravilhosa e que tinha três filhos adolescentes. Ela me disse que já era avó várias vezes. Pensei que havia decorrido tempo suficiente para que eu mencionasse o encontro de três décadas antes — o que ele significara para mim e como cada detalhe dele estava gravado em minha memória.

Ela me lançou um olhar vazio. Depois, pondo um fim a uma vida de “e ses”, disse: “Desculpe-me, mas não me lembro de nada disso”.

Theodore Lustig
Morgantown, Virgínia Ocidental


Os mistérios do tortellini

O meu relacionamento com Brian já durava alguns meses e eu ainda não o convidara para jantar. Ele era um chef profissional, com treinamento clássico, e isso me intimidava à beça. Eu era uma platéia apreciadora e experimentava tudo o que ele preparava para mim quando vinha à minha casa com a wok, as facas e panelas de sauté para me seduzir com sua culinária. Mas a idéia de cozinhar para um chef me aterrorizava. Principalmente porque os pratos que eu sabia fazer envolviam enlatados, frascos e meio quilo de carne de qualquer tipo, que eu jogava numa panela e chamava de refeição. Caçarola. Lasanha. Ou a especialidade de minha companheira de apartamento: costeletas de porco amaciadas em creme de cogumelos. Comida padrão de nossa educação no Sul de Ohio. Mas, com certeza, nada que se pudesse servir para um chef californiano.

Mas eu estava começando a me sentir culpada. Assim, numa quarta-feira, depois que ele preparou um de seus pratos para mim, anunciei que faria um jantar no sábado à noite. Ele mostrou-se impressionado e disse que chegaria às sete horas.

Comprei um livro de cozinha italiana e achei uma receita que me pareceu factível: tortellini. A partir do zero.

No sábado à tarde, fiz o recheio. Sem problemas. Fiz a massa, partindo do ovo jogado na farinha, que se transformou magicamente num bolo de massa. Comecei a me sentir bem confiante. Até convencida, para dizer a verdade.

“Keryn, onde está o rolo de massa?”, gritei para minha companheira de apartamento, que prometera desaparecer naquela noite.

“Que rolo de massa?”, ela gritou da sala.

“Você sabe, aquele de madeira.”

“Nós não temos rolo de massa”, respondeu Keryn.

Fechei os olhos e lembrei onde estava aquele pau de macarrão. Na cozinha de minha mãe, a 3 mil quilômetros de distância. E eram seis e meia da tarde.

Dei uma olhada em volta da cozinha, praguejando entre dentes. Meus olhos se iluminaram diante de uma garrafa de vinho que eu comprara para acompanhar o jantar. Não era tão bom quanto o rolo de massa de minha mãe, pois só tinha um cabo, mas teria de resolver. Rolei a massa o melhor que pude, suando em bicas mesmo com o ar-condicionado ligado. Depois cortei a massa com um copo e a partir dali as coisas pareciam ter voltado aos trilhos. Cobri uma fôrma com os tortellini, devidamente recheados e torcidos para ficar no formato.

No momento em que eu estava terminando, a campainha tocou. Joguei a fôrma com a massa no refrigerador e fui receber meu convidado, com farinha nas roupas e o rosto reluzente e vermelho. Ele trouxera uma garrafa de vinho espumante e uma rosa para celebrar a ocasião.

Uma taça de champanhe depois, eu estava recomposta o suficiente para cozinhar os tortellini. A panela de água começou a ferver. Ele observou com interesse quando tirei a fôrma do refrigerador e seus olhos saltaram quando viu as fileiras de pequeninas formas retorcidas. “Você fez isto? Com as mãos? Eu nem me dou esse trabalho, tenho uma máquina de pasta.”

Joguei a massa na água fervente, depois servi. A aparência estava ótima. Sentamo-nos e observei Brian pôr um na boca e mastigar. E mastigar. E mastigar. Experimentei um. Estava tão denso quanto uma borracha.

Era o fim. Eu sabia. As coisas iam bem entre nós, mas agora ele sobreviveria ao jantar, pediria desculpas por estar com dor de cabeça e desapareceria na noite de verão, com sua caixa de facas e panelas para nunca mais passar a noite em meu apartamento de novo.

Mas ele comeu. Comeu tudo, admitindo apenas que, sim, estavam um pouco duros, mas, de fato, não estavam ruins. Então confessei a história do rolo de massa. Ele não riu. Seu olhar me disse que aquele era o cara certo.

Quando as pessoas nos perguntam quando soubemos que a coisa era para valer, Brian diz: “Na primeira vez que ela cozinhou para mim. Ela fez tortellini — a partir do zero”. E eu digo: “A primeira vez que cozinhei para ele — ele comeu meu tortellini”.

Kristina Streeter
Napa, Califórnia


O túmulo

Quando eu tinha vinte anos, me apaixonei por um homem de 43. Isso foi em 1959 e a notícia chocou todos os meus familiares. Eu estudava enfermagem e John fora um paciente de nossa unidade. Meus pais ameaçaram cortar o financiamento dos meus estudos se eu não parasse de ver aquele homem.

Ele fora casado, se divorciara e não tinha filhos. Para mim, John era a essência da masculinidade: Gary Cooper e Randolph Scott juntos em um único homem. Morávamos no Colorado e tudo nele parecia pertencer ao Oeste: o jeito como olhava e falava, seu amor pela terra. Ele tinha as passadas largas de alguém que sabe quem é e não pede desculpas. Eu adorava seu queixo protuberante e adorava seus quadris pequenos e arrogantes. Nenhum outro homem ficava mais sedutor de jeans.

Sempre que ele sorria para mim e sempre que começava a despejar seus pensamentos com aquela fala arrastada do faroeste, eu achava que iria derreter.

Um dia, quando descíamos de carro pela estrada que passava pelo cemitério local, ele disse: “Ah, por falar nisso, comprei um túmulo hoje. Vou lhe mostrar onde fica”.

“Você o quê?”, disse eu.

“Bem, um cara apareceu lá em casa hoje, vendendo túmulos nessa área nova. Há este lugar logo ao lado da estátua de Jesus e Maria. Acho que gostei da idéia de ser enterrado ali, pois é bem perto da minha mãe.”

Fiquei espantada que ele pensasse na morte com aquela idade. Tanto quanto eu soubesse, estava com excelente saúde. Aquilo não fazia sentido para mim.

“Ora, querida”, disse ele, “não fique tão perturbada. Não há nada de errado comigo. Só achei que o preço era bom, o cara estava lá, gostei da localização, então por que não?”

Já namorávamos havia um ano e eu sabia que, quando ele enfiava uma coisa na cabeça, o assunto estava encerrado. Não haveria volta na decisão. Era o jeito dele.

Passou-se mais um ano e a pressão sobre mim continuava crescendo de todos os lados. Meus pais conseguiram que minhas amigas da escola, meu pastor, minha tia favorita e minhas irmãs ajudassem a me convencer de que deveria namorar alguém da minha idade. Eu sabia que John me amava de verdade. Ele podia ver toda a confusão que aquilo estava causando para mim e minha família, então, certo dia, disse que talvez devêssemos nos separar por um tempo. Chorei durante dias, mas no final concordei. Depois de algum tempo, comecei a sair com um colega do hospital que era mais ou menos da minha idade. Meus pais ficaram exultantes.

Havíamos concordado em não nos encontrarmos durante três meses. Não deveríamos manter nenhum contato, mas John, meu verdadeiro amor, me telefonava de vez em quando e conversávamos pelo telefone.

Antes do final dos três meses, descobri que estava grávida — e não era de John. Isso aconteceu em 1960. As únicas opções naquela época eram casar ou dar o bebê para adoção. Decidi me casar. Escrevi para John, mas ele não respondeu à minha carta.

O bebê nasceria em setembro. No dia 25 de agosto, peguei um jornal e li que John morrera num acidente de carro na Interestadual 25. Fora enterrado no dia anterior.

Eu sabia onde era seu túmulo e fui direto ao cemitério.

Isso aconteceu há quarenta anos. Vinte anos depois, meu pai morreu e minha mãe escolheu um túmulo próximo ao de John. Ela não tinha idéia de que John estava enterrado ali, nem que eu sabia da localização de seu túmulo um ano antes de sua morte.

Todos os dias de Finados eu ponho uma rosa sobre seu túmulo.

Bev Ford
Aurora, Colorado


Afrodisíaco matemático

Na época em que John e eu costumávamos romper a relação o tempo todo, decidimos nos ver apenas casualmente. Tudo bem com os encontros, mas não mais do que uma vez por semana. Levaríamos vidas separadas, vendo-nos ocasionalmente, quando tivéssemos vontade, porém sem nos preocuparmos com compromisso.

Um dia, no começo desse período, estávamos sentados no chão do apartamento de um quarto de John. Ele estava tricotando um suéter e eu estava lendo O último teorema de Fermat. De vez em quando, eu interrompia seu tricô para ler trechos do livro.

“Você já ouviu falar de números amigos? Eles são como números perfeitos, mas, em vez de ser a soma de seus divisores, um é igual à soma dos divisores do outro e vice-versa. Na Idade Média, as pessoas costumavam gravar números amigos em pedaços de frutas. Elas comiam um pedaço e davam o outro para seus amantes. Era um afrodisíaco matemático. Eu adoro isso — um afrodisíaco matemático.”

John demonstrou pouco interesse. Ele não gosta muito de matemática. Não como eu. Era mais um motivo para a gente manter uma relação sem compromisso.

O Natal caiu nesse período e, uma vez que detesto ir às compras, fiquei contente de tirar John da minha lista. Nossa relação era ocasional demais para presentes. Porém, quando estava comprando um presente para minha avó, vi um livro de palavras cruzadas enigmáticas e o comprei para John. Nós sempre fizemos as palavras cruzadas enigmáticas da última página da revista The Nation e, por cinco dólares, achei que podia dá-lo a ele.

Quando chegou o Natal, dei o livro para John — desembrulhado, muito informal. Ele não me deu nada. Não me surpreendi, mas meus sentimentos ficaram um pouco feridos, embora eu não devesse me importar.

No dia seguinte, John me convidou para ir até seu apartamento. “Estou com seu presente de Natal”, disse ele. “Desculpe pelo atraso.”

Ele me deu um pacote mal embrulhado. Quando abri, um retângulo de tecido tricotado à mão caiu no meu colo. Peguei-o e olhei-o, sem entender nada. Em um lado, havia o número 124155 tricotado; do outro lado, havia o número 100485. Quando olhei de novo para John, ele mal continha sua excitação.

“São números amigos”, disse ele. “Bolei um programa de computador e deixei-o rodar durante doze horas. Estes foram os maiores que encontrei e depois os tricotei no pano. É um pegador de panela. Não pude dá-lo na noite passada porque ainda não tinha descoberto como dar a última fileira de pontos. É meio esquisito, mas achei que você ia gostar.”

Depois daquele Natal, fomos muitas coisas, mas não fomos mais parceiros ocasionais. O antigo afrodisíaco matemático funcionara novamente.

Alex Galt
Portland, Oregon


Mesa para dois

Em 1947, minha mãe, Deborah, tinha 21 anos e estudava literatura inglesa na Universidade de Nova York. Ela era linda — impetuosa e introspectiva ao mesmo tempo —, com uma grande paixão por livros e idéias. Lia vorazmente e esperava tornar-se escritora um dia.

Meu pai, Joseph, era um candidato a pintor que se sustentava dando aulas de arte num colégio do West Side. Aos sábados, pintava durante todo o dia, em casa ou no Central Park, e se dava ao luxo de jantar fora. Na noite do sábado em questão, ele escolheu um restaurante das vizinhanças chamado Via Láctea.

Acontece que o Via Láctea era o restaurante predileto de minha mãe e naquele sábado, depois de estudar durante todo o dia, ele foi até lá para jantar, levando consigo um exemplar usado de Grandes esperanças, de Dickens. O restaurante estava cheio e ela conseguiu a última mesa. Sentou-se para uma noitada de goulash, vinho tinto e Dickens — e logo perdeu contato com o que acontecia ao seu redor.

Dentro de meia hora, o restaurante estava cheio de gente esperando mesa. A recepcionista, esbaforida, perguntou à minha mãe se ela se importaria de dividir a mesa com outra pessoa. Quase sem tirar os olhos do livro, minha mãe concordou.

“Uma vida trágica para o pobre Pip”, disse meu pai quando viu a capa esfarrapada de Grandes esperanças. Minha mãe olhou para ele e naquele momento, ela lembra, viu algo estranhamente familiar nos olhos dele. Anos depois, quando lhe implorei para contar uma vez mais a história, ela suspirou docemente e disse: “Eu me vi nos olhos dele”.

Meu pai, inteiramente cativado pela presença dela, jura até hoje que escutou uma voz interior. “Ela é seu destino”, disse a voz, e imediatamente depois ele sentiu um formigamento que foi da ponta dos pés ao topo da cabeça. O que quer que meus pais tenham visto, ouvido ou sentido naquela noite, ambos entenderam que algo milagroso acontecera.

Tal como dois velhos amigos que se encontram depois de muito tempo, conversaram durante horas. Mais tarde, no final da noite, minha mãe escreveu o número de seu telefone no lado interno da capa de Grandes esperanças e deu o livro para meu pai. Ele disse adeus, beijando-a delicadamente na testa, e em seguida partiram em direções opostas noite adentro.

Nenhum dos dois conseguiu dormir. Mesmo depois de fechar os olhos, minha mãe só via uma coisa: o rosto de meu pai. E meu pai, que não conseguia parar de pensar nela, ficou acordado a noite inteira, pintando o retrato de minha mãe.

No dia seguinte, domingo, ele foi ao Brooklyn visitar seus pais. Levou consigo o livro para ler no metrô, mas estava exausto após a noite insone e começou a sentir sono nos primeiros parágrafos. Então, enfiou o livro no bolso do casaco — que pusera sobre o assento ao seu lado — e fechou os olhos. Só acordou quando o trem parou em Brighton Beach, no outro extremo do Brooklyn.

O vagão estava vazio e, quando ele abriu os olhos e procurou suas coisas, o casaco não estava mais lá. Alguém o roubara, junto com o livro. O que significava que o número do telefone de minha mãe também se fora. Em desespero, ele procurou por todo o trem, olhando embaixo de cada assento, não somente em seu vagão, mas nos vagões anterior e posterior. No entusiasmo do encontro com Deborah, Joseph, estupidamente, esquecera de lhe perguntar o sobrenome. O número de telefone era sua única ligação com ela.

A chamada que minha mãe esperava nunca aconteceu. Meu pai procurou-a várias vezes no Departamento de Inglês da universidade, mas jamais a encontrou. O destino traíra os dois. O que parecera inevitável na primeira noite no restaurante aparentemente não era para acontecer.

Naquele verão, ambos viajaram para a Europa. Minha mãe foi para a Inglaterra fazer cursos de literatura em Oxford; meu pai foi para Paris pintar. No final de julho, com uma folga de três dias nos estudos, minha mãe voou até Paris, decidida a absorver o máximo de cultura que pudesse em 72 horas. Levou consigo um novo exemplar de Grandes esperanças. Depois da triste história com meu pai, não tivera coragem de lê-lo, mas então, ao sentar-se num restaurante cheio depois de um longo dia de passeios turísticos, ela abriu a primeira página do romance e começou a pensar nele de novo.

Após ler algumas frases, foi interrompida pelo maître, que lhe perguntou, primeiro em francês, depois em inglês macarrônico, se ela se importaria de dividir a mesa. Minha mãe concordou e retornou à leitura. Um instante depois, ela escutou uma voz familiar.

“Uma vida trágica para o pobre Pip”, disse a voz, e quando ela ergueu os olhos, lá estava ele de novo.

Lori Peikoff
Los Angeles, Califórnia


O primeiro botão

Meus pais tinham idéias rígidas sobre botões de colarinho. Eles eram da escola que acreditava que, com ou sem gravata, o colarinho da camisa de um menino devia ficar fechado. Em casa, ou em outras ocasiões informais, isso não importava. Mas na escola e em ocasiões mais formais o colarinho tinha de ficar fechado. Não se tratava de uma simples questão de estilo. Tinha a ver com decoro e carregava todo o peso de um imperativo moral.

A décima série era o primeiro ano do segundo grau. Sendo um filho obediente, eu ainda seguia as regras e aparecia todas as manhãs na escola com o colarinho abotoado. Mas as regras não contavam com a srta. Scot. Minha professora de matemática era uma mulher alta de cabelos longos que freqüentemente cruzava as pernas e meio que sentava sobre a mesa enquanto falava. Apresso-me a acrescentar que ela usava saias acima dos joelhos — não muito acima, mas efetivamente acima. O sapato no pé da perna que ficava por cima balançava de seus dedos, mas jamais caía.

Quis a sorte que meu lugar fosse na primeira fileira, bem diante da mesa da professora. Eu era muito bobinho para minha idade. Sabia sobre a diferença entre meninos e meninas (minha mãe era enfermeira e me explicara os fatos básicos da vida), mas todo o resto era mistério para mim. Com efeito, entre os potenciais recrutas para a revolução sexual daquela década, eu seria certamente classificado como incapaz. Ainda assim, por alguma força alquímica em ação dentro de nossos cérebros, eu sabia que havia algo especial em relação à srta. Scot.

Certa manhã, não muito depois de iniciado o ano escolar, a srta. Scot inclinou-se para a frente de seu poleiro e, para meu espanto, desabotoou meu colarinho com a mão direita. Um raio atravessou meu corpo e queimou minha alma. Minha mãe me tocara muitas vezes, é claro, mas eu jamais sentira aquilo. A srta. Scot lançou um olhar fugaz na minha direção, mas continuou falando para a classe sem perder o ritmo.

Sabendo que minha mãe queria o colarinho abotoado, fechei-o novamente. Aquela mulher podia ser minha professora, mas não tinha o direito de revogar uma diretriz maternal. No entanto, a srta. Scot não era mulher de ser contestada. Uma vez mais, ela se inclinou e desabotoou meu colarinho — e depois o abriu com ambas as mãos. “Você fica melhor assim”, disse ela. Se tivesse me beijado nos lábios, não creio que teria me sentido mais estimulado do que naquele momento.

O colarinho permaneceu aberto naquele dia, mas aquilo não era o tipo de coisa que se contasse à própria mãe. A partir de então, eu abotoava o colarinho antes de sair de casa, mas depois de me afastar um pouco eu o abria sempre.

Earl Roberts
Oneonta, Nova York


Os cartões de Susan

Quando eu era solteira e tinha vinte e poucos anos, costumava mandar cartões de Natal com minha fotografia. Durante o ano, pedia que me fotografassem em várias poses e depois escolhia a melhor para usar no cartão.

Nessas fotos, eu estava sempre nua.

Conquistei muitos fãs. Alguns homens paravam quando me viam e diziam: “Saudações de Susan?”. Mandei esses cartões de Natal durante seis anos, e no último ano minha lista aumentara para 250 nomes.

Um deles era o homem que cuidava de meu carro, Ted. Tinha trinta anos mais do que eu e bebia muito, mas era um excelente mecânico. Também tinha um coração de ouro. Eu sabia que tinha namoradas, mas jamais as conheci.

Eu precisava de Ted, então lhe mandava um cartão todos os anos. Ele começou a me mandar cartões com fotos também, mas em suas fotografias ele estava sempre segurando um peixe enorme.

Depois que mudei de cidade, raramente vi Ted, mas continuamos a trocar cartões, até que parei com o costume.

Avancemos 23 anos no tempo. Estou de volta ao meu antigo bairro, instalando um rádio em meu carro. Enquanto espero, um homem se aproxima e diz: “Susan? Sou Paul, o filho de Ted”.

“Ah, claro”, digo eu, “como vai?”

Paul contou-me que Ted morrera no outono. Ele e sua irmã tiveram de escolher um terno para enterrar o pai.

A irmã abre uma gaveta de meias e vê meu retrato de Natal ali. “Ei”, ela diz para Paul, “papai tem de ficar com isso”, e enfia a foto no bolso interno do paletó. O que significa que Ted está enterrado comigo nua em seu peito. Ele adoraria isso.

Uma semana depois, encontro um dos cartões de Ted em minha casa. É uma foto dele segurando o peixe e sorrindo para mim. Os cantos do cartão foram roídos por ratos.

Viro o cartão e lá esta a letra de Ted: “Susie, você esteve em meus pensamentos e meu coração durante dezessete anos. Espero que esteja bem e lhe desejo tudo de bom. Amor. Ted”.

Susan Sprague
Willamina, Oregon


As almas voam para longe

Eu estava separando as roupas para lavar quando fui tomada pelo sentimento de que meu marido morrera. Ele estava em viagem de negócios e, embora tivesse falado com ele apenas dois dias antes, naquele momento tive certeza de que ele não estava mais conosco.

Estávamos casados havia dez anos. Nossos três filhos brincavam no quintal naquele instante, sem saber que sua mãe estava no andar de cima perdendo a cabeça. Fiquei tonta e desorientada. Larguei a cesta de cuecas e camisetas que ele não levara na viagem e sentei-me na beira da cama. O sentimento viera de lugar nenhum, uma imensa onda de tudo o que havíamos compartilhado desde que tínhamos vinte e poucos anos. Aquilo caiu sobre mim e me senti sufocada, incapaz de respirar. Meu peito estava apertado e minha boca, seca. Todas as risadas, toda a alegria de ter filhos juntos, toda a paz e segurança de nossa vida em comum foi comprimida em frações de segundo.

Era a mesma sensação que eu tive quando Michele, a esposa de meu vizinho, morreu. Estávamos no casamento do seu filho e ela ficara em casa, morrendo de câncer. A família decidira realizar o casamento, deixando Michele em casa com sua mãe e os remédios para dor. O ministro chegou à parte da cerimônia em que perguntou a Darin: “Quem dá este homem?”, e o pai de Darin, Hugh, levantou-se de seu lugar no banco da frente e disse: “A mãe dele e eu”. Naquele momento, houve uma luz impossivelmente brilhante que irrompeu por entre as nuvens escuras daquela tarde de inverno e atravessou os vitrais que representavam Jesus e seu rebanho, e lembro de ter apertado com tanta força a mão de meu marido que ele quase gritou, bem no meio da cerimônia. Poucas horas mais tarde, depois que chegamos da recepção, ficamos sabendo que Michele morrera no mesmo instante em que Darin fora dado a Ellen. Os narcisos do jardim de Michele florescem todos os anos nesse mesmo dia.

Era também a mesma sensação que eu tive quando minha avó morreu. Eu estava acampada na floresta com marido e filhos, não muito longe de onde minha mãe morava. Já estávamos cansados de dar banho nas crianças no rio gelado, então pegamos o jipe e fomos até a casa de mamãe para tomar um chuveiro quente. Já fazia algum tempo que minha avó estava doente, mas fora removida recentemente de sua casa para o hospital de Penticton. Perguntei à minha mãe como ela estava, ela respondeu que conversara com vovô naquela manhã e que vovó estava agüentando. Naquele momento, lembro que senti que ia desmaiar. Irrompi em lágrimas e abracei minha mãe, e ela me segurou até que a sensação passasse. Mais tarde, no mesmo dia, descobrimos que vovó morrera naquele exato momento.

Agora vocês podem entender minha confusão e meu pânico. Eu tinha certeza de que era a mesma sensação, mas também estava bem certa de que meu marido estava vivo, embora eu pudesse “vê-lo” numa pilha amarrotada sobre o chão, ao lado de nossa cama. Eu me sentia jogada através de seu corpo ainda quente, mas sem vida, e todas a fibras de meu corpo estavam conscientes daquele sentimento de finalidade.

Naquela noite, consegui falar com ele no hotel. Envergonhada para falar de meus temores, contei o que as crianças haviam feito naquele dia e lhe perguntei sobre o tempo em Lima. Nossa quarta filha, Claire, nasceu seis meses depois.

Ele permaneceu no Peru durante quatro meses, terminando seu projeto de engenharia, após uma breve folga de duas semanas em casa, quando as coisas pareceram normais entre nós. Depois que retornou para casa pela segunda vez, explicou que conhecera uma mulher no Peru, perto do final da viagem. Contou-me que ela tinha sido miss Peru e fora sua esposa numa vida anterior. Confessou que cometera um terrível erro ao se casar comigo, em vez de esperar por ela. Disse que sentia muito e pedia desculpas por me apresentar os papéis do divórcio. Ele se casou com a rainha da beleza peruana, que gosta muito dos Estados Unidos. Eles têm uma linda menina de cabelos castanho-escuros anelados que se parecem com os de sua meia-irmã Claire. Mas ele não vê com muita freqüência seus outros quatro filhos nem a mim, embora more a pouco mais de vinte quilômetros de distância.

Demorariam vários meses para que eu me desse conta do que sentira naquele dia, quando cuidava da roupa para lavar. Eu sentira que uma parte dele morrera. Sua alma fugira do ninho de nossa família e voara para o ninho dela, e tudo aconteceu tão depressa que ele não teve tempo de pensar em ficar.

Laura McHugh
Castro Valley, Califórnia


O dia em que eu e Paul empinamos a pipa

Era um dia quente na Flórida, vinte anos atrás, e o vento soprava do oeste. Paul e eu estávamos tentando largar a bebida. Havíamos nos embebedado juntos, assistido um ao outro arruinar nossas vidas, dado força um para o outro, decepcionado um ao outro, e nos amávamos. Paul era meu amigo, meu irmão espiritual. Estávamos tentando transformar em vida normal o que fora, durante muito tempo, um comportamento anormal.

Paul tinha 1,97 metro de altura, uma risada imensa e um enorme sorriso. Era surfista, com os cabelos loiros e os músculos bronzeados que todos eles parecem ter. E, é claro, era um sóbrio recente, tal como eu.

Eu era uma professora primária baixinha, enfiada num biquíni mínimo. Mas a verdade é que eu ainda tinha álcool nas veias e nenhuma pista de como atravessar o dia sem uma cerveja.

Fomos para a praia. O que mais havia para fazer num fim de semana quente de verão na Flórida, em 1980? Enchemos nossa pequena caixa de isopor com água mineral, pegamos um par de toalhas e lá fomos. Paul tinha uma pipa. Lembro de ter pensado... por que ele levaria uma pipa para a praia? Aliás, quem iria querer empinar uma pipa? Qual o barato de empinar uma pipa? Paul sempre foi meio esquisito.

Ele tinha uma linha de náilon. Era clara, firme e em grande quantidade.

Instalamo-nos à sombra de um grupo de palmeiras nas dunas e Paul começou a preparar a pipa. Não lembro o que usava como cauda, mas lembro, sim, que a pipa era vermelha e não muito grande... apenas uma pequena pipa vermelha comum. Ele amarrou a linha na pipa, prendeu a cauda e soltou-a. O vento vinha de nossas costas, um vento oeste forte que ia na direção do mar. Não precisamos correr para levantar a pipa. Não tivemos de fazer nada. Paul simplesmente soltou a pipa e ela voou. Voou para valer. O sorriso de Paul era imenso.

Tínhamos tanta linha, devia haver um quilômetro e meio de linha. Paul soltou a pipa e puxou a linha até que a pipa mergulhou e dançou, meneou e rodopiou — cada vez mais acima do mar. Por fim, perdeu-se no brilho do céu azul. A única maneira de saber que ainda estava lá era pelo puxão forte na linha de pescar que ambos segurávamos. Olhamos para o céu, tentamos localizar a pipa, rimos de como ela desaparecera e então Paul pegou duas latas que amarrara com um barbante. Enlaçou-as na linha de náilon que estava esticada sobre a praia e apontava para o céu.

As latinhas balançaram no que parecia ser puro ar. Na luz brilhante, era impossível ver a linha da pipa que as segurava — elas apenas balançavam e giravam na brisa como se estivessem soltas no ar. Então alguém passou na praia e viu as latas flutuantes lá em cima. A pessoa olhou, olhou de novo, andou para lá e para cá e finalmente nos viu e percebeu que havia alguma armação, mas sem ter certeza. Éramos jovens e demos boas risadas.

Uma moça linda, num revelador maiô preto, viu as latas e ficou olhando para elas durante um bom tempo. Ela não se envergonhou de nos mostrar que estava completamente confusa sobre como as latas tinham ido parar lá. Por fim, veio até Paul e perguntou-lhe qual era o truque. Ele não revelou o segredo e ela não conseguiu descobrir. Finalmente foi embora, ainda admirada. Poderíamos ter contado para ela — ou talvez não. As latinhas pareciam mágicas.

Passamos o dia juntos, com a pipa, observando as latas penduradas no ar, observando as pessoas passarem para lá e para cá sob elas. Na verdade, nunca vimos a pipa de novo, só sabíamos que ela estava lá pelo puxão da linha. Quando chegou a hora de ir para casa, nenhum de nós conseguiu trazê-la de volta... Então a deixamos lá, sobre o mar, com as latas dançando na linha de náilon, acima do alcance de todos.

Mais tarde, no mesmo dia, Paul voltou para amarrar com mais força a pipa e a perdeu. O vento a levou para longe no mar, provavelmente para as ilhas Canárias. O vento quase nunca sopra do oeste na praia. Talvez nunca tenha soprado dessa direção desde aquele dia. Mas não me importo, porque, naquele dia, soprou.

Paul era meu amigo então, e é meu amigo agora. Estamos com mais de cinqüenta anos e moramos milhares de quilômetros distantes um do outro. Ele vive no norte gelado do estado de Nova York, um lugar estranho para um surfista alto e loiro. Eu ainda moro na Flórida. Apaixonamo-nos por outras pessoas, mas jamais perdemos completamente um ao outro. Completaremos vinte anos sem beber no próximo mês de julho. Creio que ainda hoje estamos naquela praia, ainda penduramos nossas latas numa linha que ninguém vê, e ainda sabemos que a pequena pipa vermelha está lá, pelo forte puxão que ambos sentimos.

Ann Davis
Melbourne, Flórida


Uma lição de amor

Minha primeira garota foi Doris Sherman. Ela era uma verdadeira beleza, com cabelos pretos crespos e olhos negros faiscantes. Suas longas madeixas flutuavam e dançavam ao vento sempre que eu corria atrás dela no playground durante o recreio da escola rural que freqüentávamos. Tínhamos sete anos de idade e éramos supervisionados pela srta. Bridges, que batia em nossos rostos pela mais mínima infração.

Aos meus olhos, Doris era a garota mais atraente da minha classe de primeiro e segundo graus combinados e decidi conquistar seu coração da maneira febril de um enamorado de sete anos. A competição pelo afeto de Doris era forte. Mas eu era destemido e fui finalmente recompensado por minha persistência.

Em um dia perfumado de primavera, achei um distintivo de lata no playground. Deveria ser um distintivo de eleição (talvez de F. D. R.). A frente ainda estava brilhante e lustrosa, mas no outro lado já havia sinais de ferrugem. Com pouca hesitação, decidi oferecer o tesouro recém-descoberto a Doris como prova do meu amor. Ao oferecer o distintivo (com o lado brilhante para cima) com a palma da mão aberta, pude perceber que ela ficou impressionada. Seus olhos negros brilharam e ela o tomou rapidamente de minha mão. Então vieram estas palavras memoráveis. Olhando direto nos meus olhos e sussurrando em tom solene, ela disse: “Alvin, se você quiser que eu seja a sua garota, a partir de agora você deve me dar tudo o que achar”.

Lembro de ter meditado sobre aquilo. Em 1935, um único centavo era uma pequena fortuna para um menino da minha idade e circunstância. E se eu achasse alguma coisa realmente importante, como uma moeda de cinco centavos? Poderia escondê-la de Doris, ou lhe diria que achara um centavo e guardaria um lucro de quatro centavos para mim? Será que Doris fizera o mesmo trato com meus rivais? Ela poderia se tornar a garota mais rica da escola.

Diante de todas essas questões, minha consideração por Doris sofreu um lento declínio. Se ela tivesse pedido cinqüenta por cento, poderíamos negociar. Mas sua exigência imperiosa de tudo em um momento tão precoce de nosso relacionamento cortou-o pela raiz.

Então, Doris, onde quer que você esteja e quem quer que você seja, eu gostaria de agradecer por minhas primeiras lições de amor — e, o que é mais importante, por aquele complicado equilíbrio da equação amor-economia. Também quero que você saiba que, de vez em quando, ao cochilar, uma vez mais corro atrás de você no pátio da escola, tentando agarrar suas madeixas negras e dançantes.

Alvin Rosser
Sparta, Nova Jersey


Bailarina

Todos dizem que eu os enlouqueço — especialmente minha mulher. Nunca digo que ela está linda ou atraente, mesmo quando penso que está. Em vez disso, digo que ela está bem. Ela diz que a mãe dela é que parece bem. Eu digo que bem é bom, realmente bom. Bem é bom para mim. E se ela estiver linda um dia e no dia seguinte estiver melhor ainda? Não terei nada de reserva para dizer. É preciso ter sempre alguma coisa de reserva.

Vejo pessoas sem reservas todos os dias. Para começar, foi por isso que me interessei em me tornar um especialista em dor. O ótimo em relação à dor é que não tem conversa fiada. Não há necessidade de gastar muito tempo falando. Quando chego a ver os pacientes, todo mundo já desistiu deles. Não sobra carne no osso. Eu admiro a dor. Ela exige ser honrada. Não há medo mais básico do que o medo de uma dor constante e sem fim.

L. chegou no meu consultório se queixando de dor na perna esquerda. Ela é toda sorrisos. Penso comigo que é uma tonta. Ao examiná-la, vejo que não apenas sente dor, como também não consegue caminhar bem porque sua perna ficou dura. Ela e o marido sorriem como dois idiotas. Suspeito de um tumor na medula e tenho razão. Peço ao neurocirurgião uma biópsia da medula dela. Depois da biópsia, sua medula tem ainda menos reserva e então ela aprende a colocar a sonda em si mesma, começa um programa para os intestinos e não consegue usar sua outra perna tão bem. A biópsia volta inconclusiva. Mal posso acreditar. Passo um tempão no telefone com o patologista de fama mundial e pergunto se ele não pode dar outra olhada para mim. Telefono para o neurocirurgião, que diz: “Acho que fiz um bom trabalho”.

“Bem, às vezes isso acontece”, ela sorri.

Reúno uma conferência. Apresento-a aos meus colegas, tiro seu líquido raquidiano; examino sua pele, seus pulmões, seu cérebro e seu sangue. Exceto por um tumor inexplicado na medula e por urinar e defecar na cama, ela está em perfeita saúde. Nos meses seguintes, seu tumor não cresce e eu lhe aplico alguns medicamentos. Alguns comprimidos para que sua bexiga e suas pernas tenham menos espasmos e alguns esteróides para que eu me sinta melhor.

O marido sorri excitado e me conta que está muito feliz de me ter. Tenho ganas de trancar a porta e mantê-la fechada para sempre, para que eles não saiam às ruas. É tudo de que eu preciso, o sorriso dele e ela em sua cadeira de rodas, magra como um esqueleto com seu tumor, anunciando a todos ao alcance de sua voz: “Vejam que grande médico nós temos. Estamos tão contentes de tê-lo!”.

Não há muito mais a fazer. Nada mudou em meses. Imagino que ela terá uma espécie de vida, mas pelo menos será a dela. Tenho notícias deles de vez em quando. Renovação de receitas, pedidos de mais fisioterapia. Eles moram a quase duzentos quilômetros de distância e às vezes vêm para uma visita de quinze minutos. Conversamos durante treze e depois eu a examino. Tento marcar a consulta quando não há ninguém por perto. Ainda sou o médico favorito deles.

Numa sexta-feira, o marido me telefona. Os sintomas parecem diferentes. Digo que venham até a clínica. Uma tomografia mostra um tumor de cinco centímetros na parte posterior de seu cérebro, onde três meses antes a tomografia mostrava apenas cérebro. Ela está a poucos minutos de morrer devido à pressão. Seu marido corre até mim, aperta minha mão mil vezes e diz: “Estou tão contente que o senhor esteja aqui”. Os olhos dela oscilam devido ao tumor e ela sente dor de cabeça, mas está feliz de me ver. Nessa noite, o neurocirurgião abre seu crânio. Ela começa a se sentir melhor bem depressa. Vários patologistas e oncologistas da cidade verificam que se trata de um tumor incomum, mas não raro.

Ela começou o tratamento e volta hoje para me ver. Estão ambos sorridentes. As pernas dela estão finas e cheias de bolhas vermelhas. Estão sem pêlos e carne. As unhas dos pés são um terror. Ela diz: “Veja, veja!”. Sacode os pés para a frente e para trás em sua cadeira de rodas para me mostrar. Depois repete: “Veja só isto”. Ergue-se com esforço, apoiada nas mãos. Os pés apontam para baixo porque depois do dano na medula espinhal os tendões de Aquiles encurtaram e puxam os calcanhares para cima. Seu rosto está inchado e redondo devido aos esteróides. Uma camada de pêlos finos o recobre. As sobrancelhas estão arqueadas e a testa, totalmente enrugada. Ela é toda sorrisos e seus olhos ainda oscilantes apontam para baixo para me mostrar que ela se ergueu sobre a ponta dos pés. Parece uma criança. Uma bailarina. O marido está orgulhoso e olha para seus pés também. Então ela senta-se de volta e se queixa: “Ah, se eu pudesse ao menos me livrar desse rosto inchado”.

“Não”, digo a ela. “Você está linda.” E ela está.

Nicolas Wieder
Los Angeles, Califórnia


O biscoito da sorte

Durante muitos anos, meus pais conservaram um papelzinho de biscoito da sorte que dizia: “Você e sua esposa serão felizes em sua vida em comum”. Eles o guardavam na moldura de um retrato que tiraram sorridentes numa praia de Cuba. Sempre gostei de ver a fotografia e o papelzinho: dava-me um sentimento de estabilidade. Era como se eles dissessem para todos que se importassem em olhar que eram felizes e planejavam continuar felizes. Eu diria que tinham um maravilhoso casamento de 26 anos. É claro que houve bons momentos e maus momentos, mas eles conseguiam resolver as coisas juntos para ter a vida que queriam. Na minha opinião, não há muito mais o que se possa querer.

Quando minha mãe estava com 51 anos, descobriram que tinha uma forma agressiva de câncer na língua. A cirurgia a deixaria muda e pelo resto da vida teria de usar um tubo para se alimentar. Ela optou pela radioterapia, mas o câncer se espalhou para seus gânglios linfáticos. Ela fez uma cirurgia no pescoço para removê-los. Depois de um ano, o câncer reapareceu na língua. Minha mãe estava tão debilitada e magra que não tinha mais a opção de operar. Semanas depois, foi obrigada a fazer uma traqueotomia, o que a fez perder a voz e ter de usar um tubo para se alimentar. Junto com meu pai, ela decidiu não fazer mais nenhum tratamento e ficar em casa. Nesse período extremamente difícil, eu me casei. Meu marido e eu fomos morar com meus pais para ajudar a cuidar de minha mãe. Cinco semanas depois de meu casamento, mamãe morreu em casa, cercada por toda a família. (Estou chorando enquanto escrevo.)

No dia seguinte ao de sua morte, minha família saiu para jantar — não estávamos com disposição para preparar uma grande refeição familiar. Meu pai escolheu um restaurante vietnamita. Comemos conversando sobre minha mãe e compartilhando lembranças. Foi um momento agridoce. Nós todos a amávamos tanto, mas ao mesmo tempo estávamos contentes porque seu sofrimento acabara. Depois do jantar, abrimos nossos biscoitos da sorte. O de meu marido dizia: “Você e sua esposa serão felizes em sua vida em comum”. Guardamos o papelzinho na moldura de nosso sorridente retrato de casamento.

Sharli Land-Polanco
Providence, Rhode Island


morte


Cinzas

Minha mãe morreu no dia 18 de agosto de 1989. Mulher charmosa e magnética, mas nem sempre a pessoa mais fácil de se conviver, ela havia “vivido mais do que uma vida”. Nasceu na Suécia, mas o sangue cigano que corria em suas veias fez com que rodasse pelo mundo durante quatro casamentos e quatro filhos. Seu primeiro marido era um planejador urbano sueco. O seguinte foi um artista russo, o outro, um carpinteiro de Cape Cod, e o último, um comunista irlandês. Eu fui o produto de seu terceiro e mais curto casamento.

Após sua morte, mandei cremá-la. Meu primo fez uma bela caixa de madeira para guardar as cinzas. Eu não decidira o que fazer com ela e então guardei-a numa cômoda. Havia vários planos possíveis. Um era enviá-la para a Suécia. Outro era jogá-la nas águas do rio Grande, ou então espalhá-la de um morro ventoso de San Francisco, onde vivera por mais tempo.

Enquanto pensava no que fazer, ladrões entraram na minha casa numa noite e levaram a caixa. A polícia me disse que os receptadores locais eram tão eficientes que havia uma boa chance de que minha mãe acabasse numa feira do Arizona em dois dias. Ainda assim, achei que, quando o ladrão percebesse o erro, talvez voltasse e largasse a caixa na soleira de minha porta. Afinal, não havia jóias dentro dela, apenas um montinho de cinzas. Mas isso nunca aconteceu e, pouco a pouco, fui forçada a concluir que minha querida mãe ainda estava rodando pelo mundo, tal como fizera em vida. Era um capricho estranhamente poético.

Cinco anos depois, encontrei uma mensagem na minha secretária eletrônica de um tal padre Jack Clark Robinson, da Igreja Católica da Sagrada Família. Havia uma outra Sara Wilson que morava no bairro e eu recebia freqüentemente chamadas que eram para ela. Como deduzi das mensagens que recebia, minha homônima era uma ativista da igreja e treinadora de futebol. Naturalmente, pensei que o bom padre discara para o número errado. Respondi à ligação e tentei explicar à recepcionista que ele ligara para a Sara Wilson errada, mas ela transferiu minha ligação e tive de repetir minha explicação. O padre perguntou-me então se eu era filha de Kerstin Lucid. “Sou”, respondi devagar. Eles haviam achado a caixa com as cinzas na câmara mortuária da igreja e dentro das cinzas encontraram uma etiqueta de identificação da funerária Vista Verde, a partir da qual tinham chegado a mim. O padre Jack estava na igreja havia apenas dois anos e não sabia como e quando a caixa chegara. Ele falara com o pároco anterior, mas o homem também não sabia nada a respeito.

No mesmo dia, fui de carro ao South Valley de Albuquerque para pegar minha mãe. Ela fora tão pagã durante toda a vida que era irônico encontrá-la numa igreja católica. O padre Jack, vestido com a batina marrom dos franciscanos, levou-me ao seu escritório. O reaparecimento de mamãe foi bastante enervante e creio que ele percebeu isso no meu rosto. Depois que a devolveu gentilmente para mim, decidi conservá-la. Agora, minha família e eu decoramos a caixa nos feriados e festas e fazemos questão que ela fique sobre o piano quando dançamos.

Sara Wilson
Corrales, Novo México


Harrisburg

No dia 27 de agosto de 1996, minha mãe me acordou no meio da noite e me pediu para telefonar para o 911. Uma ambulância chegou em casa e levou meu pai para o hospital, em South Jersey. Na noite seguinte, ele entrou em coma e os médicos decidiram transferi-lo para um hospital em Filadélfia. Quando chegamos ao hospital, ele já estava em cirurgia.

Doze horas depois, os médicos vieram à sala de espera e disseram: “Rompeu um aneurisma no cérebro dele. Não achamos que ele volte a acordar”.

Logo após, ele foi levado para um quarto da unidade de terapia intensiva e fomos vê-lo. Enquanto falávamos com ele, eu disse “oi, papai”, e naquele momento ele abriu os olhos.

Os médicos entraram no quarto e lhe fizeram várias perguntas. Qual é sua idade? Em que ano estamos? Quem é o presidente? Ele respondeu às três primeiras questões corretamente. Mas quando lhe fizeram a última pergunta — Onde você está? —, ele respondeu: “Harrisburg”.

Nos dois dias seguintes, ele pareceu fazer progressos. Então, em 4 de setembro, o primeiro dia de meu último ano no colégio, buscaram-me cedo. Ao chegar ao hospital, minha mãe me esperava: “Ele teve uma recaída. Os médicos disseram que teve morte cerebral”.

Poucos minutos depois, uma enfermeira se aproximou e pediu que sentássemos. Queria saber se tínhamos alguma pergunta a fazer. Palavras vieram a nossas bocas, palavras que ninguém em nossa família jamais pronunciara. Essas palavras eram “doação de órgãos”. Sabíamos que isso poderia dar a outras pessoas uma chance de viver e queríamos ajudar.

Cerca de uma semana depois do funeral, recebemos uma carta do programa de doação Dom da Vida nos contando de onde eram os beneficiários dos transplantes e como ia a recuperação deles.

A lista começava com o fígado e os rins. A frase seguinte dizia: “Um homem de 53 anos com três filhos recebeu o coração de Raymond. Ele mora em Harrisburg, Pensilvânia”. Senti calafrios e deixei cair o papel.

Acredito que meu pai sabia que ia morrer, e creio também que sabia que seu coração não morreria com ele. Será que ele sabia de alguma forma que continuaria a viver em Harrisburg?

Randee Rosenfeld
Egg Harbor Township, Nova Jersey


Boa noite

Era uma perfeita noite de verão, quando as crianças imploram para ficar na rua um pouquinho mais e os pais, lembrando de sua própria infância, permitem. Mas mesmo esses momentos idílicos precisam terminar e os pequeninos foram finalmente para a cama.

Sentamos no pequeno pátio do lado de fora de nosso quarto, desfrutando da tranqüilidade e do calor. Então veio a música. Sem precedentes, hesitante de início, notas exploratórias de um trompete. Depois, ganhando confiança, o som floresceu numa melodia doce e sentimental, uma efusão ao mesmo tempo emotiva e competente.

Nossa casa ficava bem recuada da rua, que, na verdade, não passava de uma alameda curta e estreita. Havia dois lotes ainda vazios em frente, paralelos à propriedade maior de nosso vizinho, e bosques de nogueiras. Olhamos para a casa que ficava logo acima da nossa, no morro, de onde vinha obviamente a música, e ficamos intrigados.

Era uma velha casa de madeira, talvez a primeira da região, um sobrado escondido entre árvores maduras. Não a conhecíamos por dentro, mas nossos filhos sim, e os filhos daquela família, todos os cinco, haviam estado em nossa casa. Eram da mesma idade de nossos três. O mais velho, um menino de cerca de doze anos, era o membro mais velho da comunidade de crianças que vivia e brincava naquela vizinhança protegida, definida pela rua e o morro coberto de carvalhos. A única filha deles, líder das garotas do bairro, ao mesmo tempo feminina e destemida, estava sempre cheia de idéias. Todos as crianças eram educadas, bem disciplinadas e estavam sempre de bom humor.

Não conhecíamos bem os pais. Ele era representante de vendas e viajava com freqüência; nas poucas vezes em que tivemos contato, pareceu amistoso, mas distante. A mãe, cujo sotaque sulista suave revelava sua origem familiar, era uma mulher simpática, sempre graciosa, mas reservada.

Quando ouvimos as primeiras notas, pensamos que uma das crianças começara a aprender o instrumento, mas logo em seguida ficou evidente que se tratava de um músico mais velho e com mais experiência. Era uma música do passado, pungente e emotiva, produto de um talento e uma paixão de que jamais havíamos suspeitado. Linda, porém de curta duração, a música logo terminou. Não demorou muito para que apagássemos as luzes e fôssemos para a cama. No silêncio da noite quieta, dormimos.

Mas o silêncio não durou. Um pouco antes do alvorecer, fomos acordados. Sirenes muito próximas, depois luzes piscando que atravessaram a porta do pátio, o vermelho e o branco pulsando contra os desenhos de folhas da parede. Sons abafados, mais sirenes. Depois, a quietude novamente.

De manhã, nos contaram. As crianças foram as primeiras a saber. O pai da família vizinha, fonte daquela serenata inesperada, sofrera um ataque do coração durante a noite e não sobrevivera.

Ellise Rossen
Mt. Shasta, Califórnia


Charlie, o matador de árvores

Esta é a história que meu amigo Bruce contou sobre seu grande tio Charlie. Chamamos seu tio de Charlie, o matador de árvores. Quando Bruce era menino, passava muitos feriados com ele, um bem-sucedido fazendeiro, e sua esposa. Juntos, criaram uma bela família, em um lar feliz.

Quando jovem, Charlie plantou uma cerca de árvores em torno de sua propriedade, regou-as durante vários verões secos e limpou cuidadosamente o terreno em volta de seus troncos na primavera e no outono, para desestimular o ataque dos ratos-do-mato a suas cascas macias. Quando Bruce o conheceu, as árvores já estavam altas e tinham troncos retos, exibindo espalhafatosamente grinaldas de folhas no verão; no inverno, eram companheiras dignas, vestidas com conservadora discrição.

Mas algo aconteceu a Charlie quando ficou idoso. As árvores que outrora eram seu orgulho e alegria se transformaram numa fonte de irritação. Ele reclamava que elas iriam sobreviver a ele e que ele não suportaria isso, por Deus. Quando Bruce recontava essas cenas, seu rosto se inundava de emoção e eu era capaz de imaginar tio Charlie afiando seu machado e arrastando-se na manhã gelada.

Em poucas semanas, muitas árvores foram abatidas. Os cadáveres jaziam em chocante formação, com as cabeças e os ombros virados para longe da casa. A esposa de Charlie ficou desvairada e passava os dias na fazenda de um vizinho. Ela não podia suportar a visão de Charlie tão perturbado, ou escutar o barulho do machado ou o gemido das árvores enquanto balançavam a cada golpe, antes de perder o equilíbrio e despencar no chão.

Uma noite, ao voltar, ela encontrou a casa às escuras. Charlie não estava em sua cadeira. Ela o encontrou caído do lado de fora, com a cabeça esmagada pelo peso de uma árvore que tombara sobre ele.

Amigos que moravam a quilômetros de distância foram ao velório. Pouco depois, a mulher de Charlie mudou-se para a cidade. Os vizinhos levaram os melhores troncos até a serraria e transformaram os galhos em lenha. A fazenda foi vendida. Nada resta de Charlie, senão os tocos cortados perto do chão, agora recobertos de vegetação, e a dúzia de árvores sobreviventes cujos galhos se espalharam desde então, de tal forma que a casa permanece fresca no verão.

Frank Young
Staten Island, Nova York


Minha melhor amiga

Embora não fosse parente de sangue, eu considerava Patty Minehart minha irmã. Conhecemo-nos em 1943, quando estávamos ambas no segundo ano da Victory High School. Desde o começo, fomos amigas do peito. Sempre havia alguma coisa entre nós que fazia com que uma soubesse quando a outra precisava de ajuda. Quando ela sofreu um infarto em 1996, fiquei devastada. Três dias depois, quando descobriram que tinha um tumor maligno terminal, pensei que minha vida também estava acabando.

Durante sua estada no hospital, os membros de sua família e eu nos revezávamos em sua cabeceira. Numa segunda-feira, prometi que voltaria no dia seguinte às duas horas para substituir sua filha Barbara. Mas na terça de manhã, depois de tomar banho e me vestir, comecei a me sentir extremamente inquieta. Caminhava como mosca tonta pela casa e não conseguia me concentrar em nada. Então, às onze horas, senti um impulso urgente de ir ao hospital.

Quando cheguei à ala da oncologia, a irmã mais velha de Patty, Thurza, estava sentada na sala de espera. Quando me viu, saltou e disse: “Ah, eles chamaram você!”.

Respondi: “Não, eles não me chamaram. Ela chamou”.

“Mas ela está muito fraca para telefonar”, disse Thurza.

“Ah, ela não me chamou pelo telefone”, contei a ela.

Thurza ficou confusa. Juntas, caminhamos até o quarto de Patty.

Mais tarde, Becky, a filha mais nova de Patty, disse para mim: “Eu estava tentando deixar a cabeceira durante toda a manhã para chamar você, mas por volta das onze Patty disse ‘Não se preocupe, já cuidei disso’”.

Como sempre, eu recebera a mensagem de Patty.

Olga Hardman
Clarksburg, Virgínia Ocidental


Eu não sabia

Meu marido morreu de repente, aos 34 anos. O ano seguinte foi de profunda tristeza. Estar sozinha me assustava e eu me sentia irremediavelmente insegura quanto à minha capacidade de criar meu filho de oito anos sem um pai.

Foi também o ano do “eu não sabia”. O banco cobrava uma taxa de serviço sobre contas-correntes cujo saldo fosse menor que quinhentos dólares — eu não sabia. Meu seguro de vida tinha de ser pago trimestralmente — eu não sabia. O supermercado era caro — eu não sabia. Sempre fora protegida e agora estava completamente despreparada para cuidar da vida sozinha. Sentia-me ameaçada pelas coisas que eu não sabia.

Em reação ao alto custo dos alimentos, fiz uma horta na primavera. Então, em julho, comprei um pequeno freezer, na esperança de que ajudaria a manter o orçamento doméstico baixo. Quando chegou, fui advertida pelo entregador: “Não o ligue antes de algumas horas. O óleo precisa de tempo para assentar. Se ligar na tomada muito cedo, pode queimar um fusível ou o motor”. Eu não sabia sobre óleo e congeladores, mas sabia sobre fusíveis queimados. A instalação elétrica de nossa pequena casa, feita por um eletricista demente, queimava muitos fusíveis.

Naquela noite, fui à garagem para ligar o freezer. Enfiei o plugue na tomada. Recuei e esperei. Escutei o zumbido do aparelho, sem fusíveis estourados e sem motor superaquecido. Saí da garagem e fiquei um pouco na rua, desfrutando do ar ameno e cálido. Fazia menos de um ano que meu marido falecera. Fiquei ali, sob a luz de meu bairro, observando as luzes da cidade piscando à distância.

De repente — escuridão por toda parte. Não havia luzes na minha casa. Não havia luzes no bairro, não havia luzes na cidade. Ao me virar para a garagem, onde eu acabara de ligar meu pequeno freezer na tomada, escutei minha voz que dizia: “Oh, meu Deus, eu não sabia...” e escapou-me uma bolha audível de aturdimento. Teria eu estourado os fusíveis de toda a cidade ao ligar meu freezer antes da hora? Será? Eu havia feito aquilo?

Corri para casa e liguei meu rádio de pilha que pegava a freqüência da polícia. Ouvi sirenes à distância e temi que viessem me pegar, “a viúva com o freezer”. Então escutei que um motorista bêbado arrancara o poste do disjuntor na estrada principal.

Fui tomada ao mesmo tempo por um sentimento de alívio e de constrangimento — alívio porque não provocara o blecaute, constrangimento por ter pensado que poderia ter causado o problema. De pé na escuridão, senti também que algo substituía o medo em que eu vivia desde a morte de meu marido. Um sentimento que estava em algum ponto entre a leveza e a alegria. Eu rira de meu suposto poder e naquele momento eu soube que meu humor voltara. Passara um ano dolorido e assustado de “eu não sabia”. A tristeza não se fora, mas no fundo de mim mesma ainda conseguia rir. O riso me fez sentir poderosa. Afinal, eu não acabara de apagar a luz de toda uma cidade?

Linda Marine
Middleton, Wisconsin


Paradas cardíacas

Ele chegou ao departamento de emergência com parada cardíaca total. Os paramédicos estavam fazendo ressuscitação cardiopulmonar. Ele recebera duas rodadas de medicamentos — epinefrina, atropina e bicarbonato de sódio. Fora entubado ao ser atendido. Ao chegar no hospital, descobriu-se que estava em fibrilação ventricular. Mais epinefrina e choques elétricos não produziram nenhuma reação e ele foi declarado morto: um homem de 71 anos de idade que vivia sozinho em um parque de trailers local e que supostamente sucumbira a um ataque cardíaco fulminante.

Ela chegou ao departamento de emergência com parada cardíaca total. Os paramédicos estavam fazendo ressuscitação cardiopulmonar. Ela recebera duas rodadas de medicamentos — epinefrina, atropina e bicarbonato de sódio. Fora entubada ao ser atendida. Ao chegar no hospital, descobriu-se que estava em fibrilação ventricular. Mais epinefrina e choques elétricos não produziram nenhuma reação e ela foi declarada morta: uma mulher de 42 anos de fora da cidade, que viera para o enterro do pai. Estava hospedada na casa dele, num parque de trailers local. Sem gosto, sem cheiro — ela também morreu envenenada por monóxido de carbono.

Dr. Sherwin Waldman
Highland Park, Illinois


O funeral de vovó

Depois que meu avô morreu, minha avó perdeu qualquer interesse que ainda tivesse pela vida. Embora tenha vivido mais dez anos, até os oitenta e tantos, passava a maior parte do tempo aflita e com medo, antecipando sua própria morte. Dois terrores a preocupavam: que pudesse morrer sozinha e que, apesar de suas preces fervorosas e da distância rígida do pecado, fosse consumida pelo fogo do inferno de sua crença religiosa. Ela planejou seu próprio funeral.

Vovó morava com seu filho e sua nora numa casa de estilo rural em Indianápolis. Estava cercada pelas pinturas religiosas de sua irmã, inclusive um óleo de parede inteira de Jesus no domingo de Ramos. Menos do seu gosto, mas que também lhe faziam companhia, havia vários gatos e um casal de cães. Meus tios tinham uma barbearia nos fundos da casa. Uma vez que trabalhavam lá, quase nunca deixavam vovó sozinha.

Uma tarde de domingo, uma amiga que morava logo dobrando a esquina convidou meus tios a visitar seu marido, que acabara de voltar do hospital. Minha avó estava fazendo a sesta. Eles ficariam fora por apenas meia hora, então saíram.

Verdade ou não, os bombeiros garantiram a meu tio que minha avó provavelmente não acordara. Ela morreu dormindo, da inalação da fumaça. A causa do fogo foi um curto-circuito na fiação, que devia estar apodrecendo havia muito tempo e inventou de incendiar naquele domingo. Os animais não sobreviveram. As pinturas foram destruídas.

No dia do enterro, toda a família ainda estava em choque. Tentei pensar em algo para dizer à minha irmã mais velha, que caminhava ao meu lado no cemitério. Por fim, comentei que o vestido branco como a neve que ela e minha mãe haviam escolhido para minha avó era especialmente lindo.

“Nós não escolhemos”, disse ela. “Você não soube?”

“Soube do quê?”, perguntei.

“Foi muito estranho. Fico arrepiada até agora.”

Esperei pela explicação.

“Aquele é o vestido que vovó estava guardando para ser enterrada com ele”, disse ela.

“E daí?”

“Estava na casa, no armário do salão dos fundos. Tudo o que estava no armário foi destruído pela fumaça, pelo fogo ou pela água — tudo, menos o vestido.”

Martha Duncan
Surry, Maine


High Street

Há quinze anos, depois de casar novamente, mudei-me de Massachusetts para a Hall Avenue, em Henniker, New Hampshire, onde meu novo marido tinha (e ainda tem) um consultório dentário. Naquela época, meus pais moravam na Flórida e eu recebia com freqüência correspondência deles. Quando a carta era de meu pai, nosso endereço geralmente vinha com uma palavra riscada antes do “Hall Avenue” de nosso endereço. Um dia lembrei-me finalmente de perguntar ao meu pai por que acontecia aquilo. Ele respondeu que tinha um bloqueio mental com o nome de nossa rua: sempre começava escrevendo “High Street”, em vez de Hall Avenue.

Alguns anos depois de me mudar para cá, fui fazer uma pesquisa histórica na biblioteca. Foi então que descobri que a Hall Avenue se chamava High Street até a Segunda Guerra Mundial, quando foi rebatizada com o nome de um rapaz da cidade chamado Hall que morrera em combate.

Judith Englander
Henniker, New Hampshire


Uma execução fracassada

Tomas é um repórter fotográfico famoso. Ele está falando de suas experiências no meio de tragédias. Sem se vangloriar, fala de zonas de guerra, eventos políticos, amigos perdidos e mortes anônimas. Suas palavras cortantes são acentuadas pelo sotaque suíço. Embora fluente, ele se esforça quando acha que seu vocabulário o está impedindo de comunicar a força da situação. Não deveria se preocupar. Os eventos são simples, as implicações, claras.

De uma época em Sarajevo, conta ter largado a câmera para ajudar em um parto –– depois viu o recém-nascido perder seu leito de hospital para uma criança agonizante, cuja cabeça fora arrebentada por estilhaços de bomba. De uma vez na América, conta que teve os olhos vendados e as pontas dos dedos perfuradas por leprosos que queriam mostrar como era seu sofrimento. A noite avança; nossa discussão se volta para o suicídio de um colega fotógrafo.

“Os fotógrafos são perseguidos por lembranças”, diz Tomas. “Você testemunha todas essas coisas, mas as imagens não abandonam sua cabeça. São como pesadelos.”

“Você tem pesadelos?”, pergunto. Ele assente com a cabeça e começa a contar sua história.

Estamos em 1994 e Tomas vai à África do Sul para cobrir a eleição de Nelson Mandela. Há sublevações em todo o país; ele e vários jornalistas vão de carro até uma região miserável onde os rebeldes que defendem a supremacia branca estão se preparando para enfrentar a população negra, que promove agitações para ganhar o direito ao voto.

Ao chegar na região, Tomas e seus colegas entram inadvertidamente num comboio de rebeldes brancos. As balas passam voando por seu veículo, mas ninguém fica ferido. De repente, os carros param. Soldados negros estão atacando os rebeldes brancos. Começa um tiroteio. Os fotógrafos, aterrorizados, arrastam-se para fora e se escondem atrás do carro.

Aos poucos, os soldados obtêm uma vantagem sangrenta. A maioria dos rebeldes fugiu ou foi morta. Os que sobreviveram jazem feridos e indignados, praguejando e insultando os homens que eles vieram matar.

Tomas ergue-se da poeira de seu esconderijo. Fotografa rapidamente a sinistra rendição que se desenrola. Ninguém sabe o que acontecerá a seguir.

Um soldado negro, com o rifle erguido, se aproxima dos rebeldes.

Ouve-se um tiro e um corpo branco apático cai no chão seco. Com outro tiro, o soldado mata um segundo rebelde. Tomas, aturdido, só pode observar e registrar a horrível cena. Não é possível intervir. As execuções continuam; o caos se aprofunda. Os fotógrafos acabam fugindo, apavorados com o que possa acontecer em seguida.

Vários dias depois, eles recebem um telefonema de um câmera que estivera na cena das execuções.

“Venham até aqui, há algo que vocês precisam ver.”

Tomas entra na sala de edição e a fita roda. A cena da batalha passa lentamente. Ele vê os rebeldes e os soldados. Mas então vê algo mais: ele mesmo.

Ele e um colega fotógrafo podem ser vistos em um canto da imagem, fotografando sem parar as execuções sangrentas. Então aparece uma figura acima deles, um soldado negro. Sua arma não está apontada para os rebeldes, mas para os fotógrafos desatentos. Ele ergue vacilante a arma, aperta o gatilho e... clique. Nada acontece. O soldado hesita e examina sua arma. Está emperrada. Com um ruído surdo, ele ejeta a bala e recarrega. Clique. De novo, nada. Outro ruído surdo, outra bala ejetada e outro recarregamento. Nada, de novo. Então, fora do ângulo de visão, algo distrai sua atenção. O soldado sai de cena, deixando os fotógrafos completarem seu trabalho.

Tomas despenca na cabine de edição. Ela acaba de ver sua própria morte.

David Anderson
Nova York, Nova York


O fantasma

Quando eu tinha quinze anos, me envolvi com uma organização cívica de mexicanos e mexicanos-americanos. Meu pai, mexicano, era membro, e eu participava das danças folclóricas nas festividades do 5 de Maio e da Independência do México, comemorada no dia 16 de setembro.

A jovem professora das danças decidiu me ensinar uma que envolvia apenas duas pessoas. Provavelmente porque eu não tinha muita habilidade para dançar, mas ela queria que todos fizessem o melhor. De qualquer modo, a dança que aprendi era um jogo entre um menino que tentava puxar uma menina para o salão de dança e a recusa dela, até certo ponto, a dançar com ele. Nos anos seguintes, essa dança tornou-se minha especialidade e eu a executava sempre nos programas festivos. A única coisa que mudava era meu parceiro e acabei tendo três deles. Eram todos alguns anos mais velhos do que eu e, por conhecerem meu pai, eram todos muito respeitosos comigo. Por fim, quando minha vida de adolescente ficou cheia de atividades e amigos da escola, minha participação nas festividades diminuiu. Quando completei dezoito anos, meus dias de dançarina já estavam longe, mas meu pai me dava notícias dos meus antigos parceiros de dança folclórica.

Certo final de dia, cheguei da escola e me dirigi ao meu quarto para trocar de roupa. Estou velha o suficiente para ter sido uma daquelas garotas para as quais usar calça comprida na escola era uma fantasia. Abri a porta do quarto e, ao entrar, congelei. O quarto era pequeno e no fim de um dia de primavera já estava escuro às seis horas. Antes de acender a luz, vi uma figura sentada em minha cama, mas a figura estava nos olhos de minha mente. Recuei rapidamente e fechei a porta. Meu coração disparou e eu fiquei realmente assustada. Senti que havia alguém no quarto e, para deixar as coisas ainda mais estranhas, a imagem que vi foi a de um jovem mexicano vestido com os trajes tradicionais de Charro, que consistiam de calça preta justa, um bolero e um grande sombrero de feltro negro. Não preciso dizer que estava chocada com meus pensamentos e me sentia desconcertada por não ser capaz de entrar em meu próprio quarto. Eu literalmente não conseguia entrar nele.

Na época, moravam em minha casa meus pais, eu e minha avó materna, que só falava espanhol. Embora morasse nos Estados Unidos havia cerca de quarenta anos, ela ainda era um produto cultural do México. Contava-me histórias sobre seu lar e seus familiares, todos mortos antes de eu nascer. Infelizmente, seus parentes mortos tinham o terrível hábito de visitá-la, ou pelo menos era o que ela dizia. “Seu pai”, dizia ela para minha mãe, “veio me ver na noite passada. Ficou na soleira da porta e disse...” Eu olhava para a soleira, sem acreditar muito no que ela contava, mas de qualquer forma assustada com a idéia de que um fantasma estivera na minha casa enquanto eu dormia. Menciono isso para explicar como uma garota americana média poderia aceitar a idéia de uma presença invisível de modo tão fácil. Para mim, a presença era tão real quanto a porta que eu não conseguia abrir.

Passei o começo da noite querendo entrar no meu quarto, mas, sempre que tentava, vinha aquela imagem do jovem mexicano sentado e esperando. Eu não sabia exatamente o que ele estava esperando e estava assustada demais para descobrir. Passei uma noite incômoda e francamente bizarra evitando meu quarto, mas finalmente, por volta das dez horas, decidi que tinha de entrar de qualquer maneira. Fui até a porta e, prendendo a respiração, abri-a e acendi imediatamente a luz. Assim que o quarto ficou iluminado, a imagem desapareceu, e o mesmo aconteceu com meu medo. Fui para a cama e, no dia seguinte, havia tirado toda a experiência de minha cabeça.

No fim da tarde, cheguei em casa no horário de sempre e fui direto ao meu quarto para trocar de roupa. Tive um momento de hesitação antes de abrir a porta, mas não havia nada errado e entrei sem problemas. Um pouco depois, fui até a cozinha para ver meus pais, que preparavam o jantar. Ao me ver entrar, minha mãe disse que tinha más notícias para mim. José, um dos meus antigos parceiros de dança, que tinha cerca de 25 anos e era do México, morrera. Eu sabia que ele estava no hospital porque meu pai fora vê-lo, mas me haviam dito que ele estava em tratamento e seria liberado. Minha mãe contou então que ele morreu por volta das cinco da tarde do dia anterior.

G. A. Gonzalez
Salt Lake City, Utah


Cirurgia cardíaca

Sou cirurgião cardíaco em um estado do Oeste. Há vários anos, realizei uma cirurgia de alto risco de implantação de ponte coronária em um cavalheiro idoso. Acredito que ele tinha por volta de 75 anos. A operação parecia ter sido um sucesso, mas três dias depois o paciente apresentou uma arritmia e seu coração parou de bater. Realizei ressuscitação cardiopulmonar durante três horas e, para meu espanto, consegui trazê-lo de volta à vida. Porém, ele sofreu um dano cerebral durante o processo. Os sintomas foram totalmente incomuns. Ele agora achava que tinha cinqüenta anos. Durante as três horas em que fiz rcp, perdera mais de vinte anos de sua vida.

Acompanhei o paciente por uns dois meses e durante esse tempo ele pareceu recuperar dez daqueles anos. Quando perdi o contato, ele estava convencido de que tinha sessenta anos. Tinha a força e a energia de um homem vinte anos mais jovem do que sua idade cronológica.

Cerca de um ano e meio depois, eu estava jogando golfe com um amigo. Ele trouxera para o clube um amigo seu que por acaso era o genro do meu paciente. Ele me puxou para um canto e me contou que o sogro morrera no começo daquele mês. Dei-lhe meus pêsames. Ele então contou-me uma história que jamais esquecerei.

Antes da cirurgia no coração, meu paciente era alcoólatra, batia na esposa e estava impotente havia vinte anos. Depois da parada cardíaca e da ressuscitação — e da perda de vinte anos de memória —, ele esqueceu todas essas coisas a respeito de si mesmo. Parou de beber. Começou a dormir com a esposa de novo e se tornou um marido amoroso. Isso durou por mais de um ano. E então, numa noite, ele morreu enquanto dormia.

Dr. G.
lugar omitido a pedido


O lugar de chorar

No começo dos anos 60, quando eu tinha catorze anos de idade e morava numa pequenina cidade do sul de Indiana, meu pai morreu. Enquanto minha mãe e eu estávamos fora da cidade em visita a parentes, um inesperado e súbito infarto o matou. Voltamos para casa e descobrimos que ele se fora. Nenhuma chance de dizer “te amo”, ou mesmo “adeus”. Ele simplesmente se fora, para sempre. Com minha irmã mais velha indo embora para a universidade, nosso lar passou de uma família feliz e animada de quatro membros para uma casa em que duas pessoas atordoadas viviam em luto silencioso.

Lutei terrivelmente com a dor e a solidão de minha perda, mas também estava muito preocupado com minha mãe. Temia que, se ela me visse chorando por meu pai, sua dor seria ainda mais forte. E, como o novo “homem” da casa, sentia-me responsável por protegê-la de um sofrimento maior. Então, inventei um plano que me permitiria chorar sem causar mais dor à minha mãe. Em nossa cidade, as pessoas levavam o lixo de suas casas para grandes barris nas vielas que passavam atrás de seus quintais. Ali ele era queimado ou recolhido pelos lixeiros uma vez por semana. Todas as noites, após o jantar, eu voluntariamente levava o lixo para fora. Corria pela casa com um saco, recolhendo pedaços de papel ou qualquer outra coisa que pudesse encontrar e depois ia para a viela e jogava o lixo no barril. Então me escondia nas sombras dos arbustos e lá ficava até pôr para fora todo o meu choro. Depois de estar suficientemente recuperado e ter certeza de que mamãe não poderia descobrir o que eu estivera fazendo, retornava para casa e me preparava para dormir.

Esse subterfúgio durou algumas semanas. Uma noite, após o jantar, quando chegou a hora dos afazeres, recolhi o lixo e fui para meu lugar habitual nas moitas. Não demorei muito. Quando voltei para casa, fui procurar mamãe para saber se ela queria alguma outra coisa. Depois de procurá-la por toda a casa, finalmente encontrei-a. Estava no porão escuro, atrás da máquina de lavar, chorando. Ela também escondia sua dor, para me proteger.

Não sei o que é maior: a dor que você sofre abertamente ou a dor que você suporta sozinho para proteger alguém que você ama. Mas o que sei com certeza é que naquela noite, no porão, nos abraçamos e despejamos todo o sofrimento que nos havia levado a nossos lugares solitários e separados de chorar. E nunca mais sentimos a necessidade de chorar sozinhos.

Tim Gibson
Cincinnati, Ohio


Lee

Em fevereiro de 1994, Lee, meu sobrinho de doze anos, morreu súbita e inesperadamente, depois de participar de uma partida de hóquei. Foi a coisa mais horrível que jamais aconteceu em nossa família. Quando minha mãe me telefonou para dar a notícia, eu imediatamente imaginei minha irmã numa fossa profunda. Eu nunca experimentara aquele nível de dor anteriormente. Foi devastador.

Minha irmã e eu engravidamos de nossos primeiros filhos na mesma época e eles nasceram com uma diferença de apenas quatro meses, minha filha primeiro, depois o filho dela. Éramos mamães “velhas” (28 e 31 anos) e ambas largamos os empregos para ficar em casa com os bebês. Amamentamos nossos filhos e uma vez, quando eu estava cuidando de meu sobrinho e ele não aceitou a mamadeira, dei-lhe de mamar. Lee pegou meu seio, olhou para mim com uma expressão de alívio e deixou que eu tomasse o lugar de sua mãe. Foi uma coisa muito íntima. Menciono isso agora para enfatizar como era forte o laço entre nós e como sua morte foi traumática para mim.

Ele morreu em um sábado e o enterro (com todo o time de hóquei presente de uniforme) foi na quarta-feira. Na sexta de manhã, chorei muito de novo e pedi a Deus que me ajudasse. Ajuda-me a compreender, rezei, ajuda-me a aceitar, me dá um sinal de que me escutas, de que existes, de que tudo ficará bem um dia. Era uma manhã gelada e eu estava emocionalmente exausta, mas levei meu cachorro para passear. Estava distraída, perdida em meus pensamentos. Eu mal saíra de meu quintal quando um jovem se aproximou de mim na rua. Parecia que havia saído do nada. Foi muito amistoso e conversador e fez uma porção de perguntas sobre meu cão. Eu jamais o vira, então perguntei se ele acabara de mudar para as vizinhanças. Não, disse ele, morava ali havia dezesseis anos, numa casa logo depois da esquina. Eu mal prestava atenção. Estava confusa e não respondi muito bem ao seu fluxo constante de conversação. Quando chegamos diante de sua casa, nos despedimos e me virei para continuar minha caminhada. De repente, o escutei gritar atrás de mim: “A propósito, sou Lee”.

Ele não poderia imaginar o efeito que isso teve em mim. Eu acabara de pedir um sinal e agora o recebera. Eu pedira ajuda e fora ouvida. Continuei caminhando, com lágrimas rolando pelo rosto. Ele não dissera “A propósito, meu nome é Lee”. Ele dissera: “Sou Lee”. Quais eram as probabilidades de ele estar na rua comigo naquela manhã gelada de sexta-feira, quando ninguém mais estava por perto? Ele morava ali perto nos onze anos em que eu estava naquela casa, e jamais o vira antes.

“Sou Lee.” Essas palavras foram um grande conforto para mim e devido a elas minha fé se solidificou. Sempre que tenho dúvidas sobre mim mesma e o mundo, lembro do que aconteceu naquele dia, e isso ajuda. Ajudou também minha irmã.

Jodie Walters
Minneapolis, Minnesota


Dakota do Sul

Nos anos 70, eu era uma adolescente que morava com os pais, que logo se divorciariam, nos subúrbios de Atlanta. Minha mãe, filha e esposa de fazendeiros, crescera nas planícies de Dakota do Sul. Descendia de alemães e dinamarqueses rijos, gente que viera para este país com poucas e humildes posses, recebera grandes extensões de terra plana e se pusera a viver da agricultura e pecuária. Não era uma vida fácil, mesmo na melhor das épocas. O tempo reinava supremo naquelas planícies e a vida girava em torno dele. Quase todos os domingos, o pastor fazia uma referência ao tempo, geralmente pedindo mudança: o fim da seca para salvar a safra, o fim da chuva para que a colheita pudesse começar, o fim da nevada para salvar o gado. Por fim, meu avô cansou de rezar a Deus por tempo melhor e arranjou um emprego na polícia rodoviária. O que não o impedia de tomar umas e outras no clube Mansfield antes de sair em patrulha pela estrada. Gregário por natureza, adorava brincadeiras, festas, danças e mulheres. Em contraste, minha avó era tímida, reservada e laboriosa. Mantinha a fazenda em funcionamento quando meu avô estava fora, o que era freqüente, e não recuava diante de nenhuma tarefa difícil que se apresentasse diante dela. Certa vez, descobriu que as ovelhas haviam entrado num depósito de cereais e se empanturrado. Estavam inchadas como balões, balindo em agonia. Sabendo que elas morreriam se não fizesse o que precisava ser feito, começou a esvaziar cada ovelha com uma faca afiada na barriga. Eu posso imaginar: seu topete de cabelos castanhos macios, com um vestido simples e botas resistentes, perfurando as ovelhas, o cheiro horrível de grãos fermentados e tripa de ovelha se espalhando pelo ar.

Minha mãe era a última de três filhas. Sua irmã mais velha pertencera ao corpo feminino da Marinha e se casara com um rapaz escolhido por meu avô. Na verdade, ela se apaixonara por outro rapaz, que era católico. Para meu avô, era o mesmo que ser um selvagem de osso atravessado no nariz, tão impossível lhe era a idéia de que sua filha pudesse se casar com um católico. Como membro da polícia local, meu avô poderia tornar-lhe a vida insuportável e expulsá-lo da cidade quando quisesse. A outra irmã de minha mãe casara-se devidamente com um fazendeiro e ficara em Dakota do Sul, onde teve quatro meninos e continuou a arar a terra.

As três irmãs mantinham-se em contato constante. Um dia, minha mãe estava conversando com sua irmã que morava em Dakota do Sul. Esses telefonemas freqüentemente detalhavam algum evento trágico: a prima Bernice escorregou ao tentar tirar o prêmio que ganhou no jantar da igreja do banco traseiro do carro, bateu com a cabeça e entrou em coma; ou uma vaca entrou em pânico quando estava parindo e correu pelo pasto com o útero pendurado e se esvaiu em sangue até morrer. Minha mãe parecia ter prazer em recontar essas desgraças. Naquele dia em especial, no entanto, ela escutou em silêncio, falou pouco e, quando desligou o telefone, estava visivelmente abalada. Minha tia contou-lhe que haviam encontrado Diane Wellington.

Diane Wellington fora uma colega de escola de minha mãe. Era a garota rica da turma e as outras garotas, em geral filhas de fazendeiros que iam a cavalo para a escola, costumavam pegar emprestadas suas roupas e jóias para eventos especiais. Mamãe disse que Diane era quieta e reservada. Apesar de tomarem emprestadas suas roupas finas, as garotas não eram realmente suas amigas. Sua família tirava férias e viajava de avião para lugares com praias e restaurantes chiques. As famílias de fazendeiros jamais tiravam férias. Minha mãe e a maioria de suas amigas nunca haviam saído do lugar e nunca haviam embarcado num avião, exceto para pulverizar as safras. Embora a admirassem, Diane simplesmente não se encaixava. Um dia, não foi à escola. No mesmo dia, seus pais telefonaram à escola para avisar que ela desaparecera. Os professores perguntaram às alunas sobre onde Diane poderia estar. Mas ninguém a conhecia muito bem. Ninguém sabia para onde ela poderia ter ido.

A carteira de Diane ficou vazia durante dias, depois semanas. Por fim, seu armário foi esvaziado e suas coisas mandadas para a casa de seus pais. A possibilidade de crime foi descartada. Exceto por alguma irrupção ocasional de violência doméstica — o que, aliás, não era considerado assunto policial naquela época —, não havia crime naquela pequena comunidade. A polícia classificou Diane como fugitiva e arquivou o caso. Minha mãe e suas colegas inventaram histórias excitantes sobre como Diane fugira para a cidade. Imaginaram-na como atriz ou modelo, com uma vida nova em suas lindas roupas. Imaginaram que havia adotado uma nova identidade e morava num apartamento de cobertura, longe do cheiro de diesel e esterco. Ou talvez ela fosse agora esposa de um homem rico. Os únicos garotos com quem ela saíra eram da escola preparatória, de fora da cidade. Talvez houvesse algum motivo escandaloso para seu desaparecimento. Talvez tivesse fugido com um homem mais velho ou, melhor ainda, com um homem casado. Imaginaram-na nos braços de um belo estudante universitário da Ivy League, ou de um homem de negócios vestido com elegância, obviamente mais velho do que ela. Mas com o tempo e o desenrolar de suas próprias vidas separadas, todas esqueceram do misterioso desaparecimento. Achavam estranho que ela jamais tivesse telefonado ou escrito para seus pais, mas nunca ninguém expressou isso em voz alta. Minha mãe disse que não pensara em Diane durante vinte anos. Agora, minha tia contara que ela estivera lá o tempo todo.

Era prática comum entre os fazendeiros deixar os campos sem cultivo de tempos em tempos. Com os nutrientes exauridos depois de anos de plantação e colheita, eles precisavam descansar para recuperar sua fertilidade. Após anos de absorção de chuva, neve e sol, a natureza os transformava novamente em terrenos férteis. Foi justamente um desses campos que um fazendeiro voltou a arar. E, ao romper a crosta negra, os discos do arado revolveram ossos. Não os de um coiote ou bezerro, mas inconfundíveis ossos humanos. Descobriram que eram os ossos de Diane Wellington. O que gelou meu sangue, porém, foi a coisa que minha mãe contou num sussurro, com a voz sufocada pela vergonha do passado: no túmulo raso, junto com os ossos da adolescente, encontraram um punhado de pequenos ossos, do tamanho dos de uma ave — os ossos de um feto.

O aborto se tornara legal e seguro apenas alguns anos antes de seus ossos aparecerem. Tentei não pensar sobre a situação: uma garota da minha idade, num quarto escuro e sujo com a aborteira e suas ferramentas; seu terror e dor enquanto o carro sacolejava nas estradas cheias de sulcos e ela morria no banco traseiro, sua jovem vida se esvaindo. Ou morrera naquele quarto horrível? O garoto estava com ela? Ou era um homem, alguém que conheciam? Alguém teria segurado sua mão? Ou ela ficara lá no chão, entre as ervas daninhas, e vira as luzes vermelhas da traseira do carro se afastarem e desaparecerem de vista? Ficara lá deitada sozinha na escuridão profunda, olhando para o vasto céu de Dakota do Sul? Se assim fora, eu esperava que a luz das estrelas brilhassem para ela. Que tivesse sido algum conforto para ela, que os céus tivessem descido e ficado com ela até o fim.

Nancy Peavy
Augusta, Maine


Ensaio geral

Diagnosticaram que minha mãe de 89 anos estava com insuficiência cardíaca congestiva. Os médicos disseram que ela era idosa demais, estava doente demais e tudo o que podiam fazer era “deixá-la o mais confortável possível”. Ninguém sabia quanto tempo de vida lhe restava: poderiam ser dias, semanas ou meses.

Nossa vida juntas não fora moleza. Ela jamais fora uma pessoa de fácil convivência, especialmente quando eu era criança. Talvez eu também não fosse fácil. Por fim, quando eu estava com 42 anos, desisti de esperar que ela se transformasse no tipo de mãe que eu sempre quis. Na véspera do Natal, ao visitar meus pais, cortei o cordão umbilical aos berros. Deixei de falar com ela durante um ano e meio. Depois, quando voltamos a conversar, me limitei aos assuntos mais superficiais. Isso assentou-lhe muito bem; com efeito, a certa altura ela me mandou uma carta em que dizia como estava contente que tivéssemos ficado tão próximas.

Ela vivia numa clínica de idosos a quatro horas de distância. Quando soube que ela estava morrendo, comecei a visitá-la com freqüência. No primeiro mês depois do prognóstico, ela estava muito deprimida e distante. Ou dormia, ou olhava para a parede, em silêncio, e seu rosto era uma máscara de aflição. Insistia em usar sonda para não ter de sair da cama e entregou-se ao trabalho de morrer. Um dia, eu estava sentada ao lado de sua cama. O sol desaparecera e o quarto estava quase completamente escuro. Puxei minha cadeira para mais perto e descansei os cotovelos na beira da sua cama. Ela estendeu a mão para tocar meu rosto e o acariciou muito suavemente. Foi uma coisa maravilhosa.

Duas semanas depois, durante outra visita, minha mãe sofreu a primeira das seis pequenas mortes que precederam sua verdadeira morte. Quando cheguei, meu pai saiu para fazer algumas compras. Eu estava jogando cartas com mamãe e ela roubava loucamente, quando disse que precisava ir ao banheiro. Ajudei-a a sair da cama e fiquei de olho nela enquanto caminhava lentamente até o toalete com seu andador. Quando entramos no banheiro minúsculo, ela soltou um longo suspiro e desabou. Segurei-a e deitei-a no chão. Ela soltava os suspiros dos agonizantes e estava inconsciente, com os olhos abertos, mas vazios. Fiquei paralisada. Ela acabou por soltar um longo suspiro final e não respirou mais. Vi seu rosto ficar azul e os lábios, púrpura. Então olhei para a pulsação em seu pescoço, o que era fácil porque ela estava terrivelmente esquálida. Enquanto eu olhava, a pulsação parou. Ela ficou completamente imóvel. Segurei-a por um instante, congelada. Perguntei-lhe em voz alta se estava morta; naturalmente, ela não respondeu. Pensei como era uma honra que ela tivesse escolhido morrer em meus braços e depois — oh, não, não, não! Depositei suavemente sua cabeça no chão e lhe disse que iria dar um telefonema e voltaria em seguida. Fui até o telefone e chamei a portaria. Voltei então para o banheiro e olhei para ela. Parecia pequena e desamparada. Sentei-me no chão, atrás de sua cabeça, ergui-a numa posição semi-sentada e segurei-a em meus braços por alguns minutos, pensando em quanto tempo demoraria para alguém aparecer.

De repente, seu corpo estremeceu. Eu quase entrei em pânico. Daí pensei: é o sistema nervoso dela que está se acomodando. Pouco depois, seu corpo teve nova convulsão violenta. Então, a respiração agonizante voltou.

Eu não podia acreditar: ela estava viva. Tratei de me ajustar a essa nova realidade, enquanto ela começava a inflar e assoprar, fazendo gestos desordenados e batendo os braços na pia e na parede. Ela chorava e gemia. Tentei acalmá-la, contando onde estava. Por fim, recobrou a consciência, o vazio deixou seus olhos e ela viu que estava no chão do banheiro. Eu empurrara seu andador para o canto e ela tentou agarrá-lo, dizendo: “Levante-me! Preciso me levantar!”.

Eu disse: “Não posso levantá-la sozinha, mamãe. Tem gente vindo para ajudar. Fique quieta comigo até que eles cheguem”.

Ela acabou por desistir e despencou sobre mim, respirando fundo. A campainha tocou e a enfermeira de plantão e a recepcionista entraram no banheiro, esperando encontrar minha mãe morta. Mas lá estávamos no chão, duas pessoas vivas, abraçadas. Conseguimos sentar mamãe na privada, a limpamos e a levamos de volta para a cama. Dez minutos depois, ela estava ganhando de mim nas cartas e trapaceava pra danar.

Mais tarde no mesmo dia, eu estava sentada na beira da sua cama. Mal posso imaginar minha cara de espanto e exaustão, porque ela me disse: “Agora, querida, quando eu estiver realmente morrendo — não um desses ensaios gerais que parece que estou tendo —, mas quando eu estiver realmente partindo, quero que saiba que estarei beijando você todinha!”. Então ela sacudiu as mãos em torno de minha cabeça. O amor transbordava de seus olhos quando disse: “Beijo! Beijo! Beijo! Beijo!”.

Eu jamais a vira tão alegre.

No dia seguinte, eu tinha de partir, embora não quisesse. No momento em que eu estava saindo pela porta, o telefone tocou. Era a irmã Pat, uma freira que trabalhava na organização de asilos que cuidava de minha mãe. A enfermeira lhe contara o que acontecera com mamãe e ela perguntou se eu achava que seria uma boa idéia visitá-la. Uma vez que meus pais evitavam qualquer conversa aberta sobre Deus ou espiritualidade, eu disse que não. Mas acrescentei que gostaria de conversar com ela pelo telefone.

Contei à irmã Pat que minha mãe passara por uma transformação completa nas últimas 24 horas. Disse-lhe que ela estivera totalmente infeliz e inconsolável e que agora, depois do que acontecera, parecia feliz e contente. Uma diferença da noite para o dia, expliquei.

Houve uma longa pausa. Então irmã Pat disse: “Sua mãe é uma mulher muito afortunada”.

“Como?”, perguntei, pensando: ela está morrendo — isso é sorte?

A irmã Pat continuou. Em cerca de vinte anos lidando com pessoas agonizantes, ela observara que quem sofria “pequenas mortes” ficava em paz para o resto de sua vida. Era como se tivessem dado uma olhada no outro lado e percebido que não havia nada a temer.

Mamãe e eu tivemos mais seis meses depois disso. Ela teve mais quatro ensaios gerais e sentia-se orgulhosa de todos eles. Uma vez, telefonei-lhe e ela perguntou: “Adivinhe o que fiz hoje?”.

“O quê, mamãe?”

“Morri de novo!”

Nunca conversávamos sobre muita coisa, apenas o tempo, uma ou outra notícia, mas isso não tinha mais importância. Vivíamos em uma pequena redoma de luz e o amor fluía entre nós dentro da redoma. Eu finalmente tive a mãe que tanto esperava.

Ellen Powell
South Burlington, Vermont


O fator decisivo anônimo

Venho de uma família de agentes funerários. Meu avô, meu tio e meu pai estavam nesse negócio e eu cresci num lar em que entre os tópicos normais de conversação estavam cremação, o aumento do preço dos caixões e a súbita contração de um membro morto que se livrava de uma bolha de ar.

“Vocês lembram do Morgan”, alguém diria, “aquele vendedor gordo de ferramentas cujo coração finalmente afundou sob quase oito centímetros de bacon engordurado? Pois não é que eu tinha acabado de esvaziar o sujeito quando ele sentou na mesa? Devia ter uma tremenda bolha de ar naquela barriga de celulose dele. Quase deixei cair meu sanduíche de atum no chão. Passe-me as batatas, por favor.”

Eu jamais estivera no porão da funerária de meus tios. Então, certa ocasião, minha tia me convidou para visitá-lo. Fui atrás dela enquanto descíamos a escada estreita. Meu temor e apreensão aumentavam a cada degrau. Na minha cabeça aparecia a imagem de cadáveres mumificados empilhados precariamente. Imaginei-me, desajeitada como era, batendo num braço enrolado em gaze e provocando a queda de centenas de corpos rígidos e exangues que me esmagariam sob seu peso morto.

Então, alívio. Entramos numa sala acarpetada e quente que cheirava levemente a charuto e mofo. Em toda a minha volta, plataformas de quinze centímetros de altura exibiam lindos e lustrosos recipientes da morte. Cada caixão era luxuoso como uma Mercedes e naquele showroom úmido do porão meu tio era o afável vendedor.

Tive de ficar na ponta dos pés para espiar o interior daquelas caixas caras. O forro acolchoado era feito de cetim branco ou cor-de-rosa brilhante, adornado com rendas delicadas. Como pareciam confortáveis! Por um instante, esqueci o verdadeiro objetivo das caixas e quis entrar em uma delas para sentir a suavidade de um pequeno travesseiro de cetim no meu rosto. Escolhi um pequeno caixão branco para mim.

“Tio Jim, quando eu morrer, você me põe num caixão de princesa como este?”

Mas meus tios haviam desaparecido. Segui-os até a próxima sala.

Sob luzes fluorescentes azuis e frias, jaziam os cadáveres de duas mulheres sobre grandes mesas de aço inoxidável. Fui tomada por uma vontade urgente de correr de volta para a sala dos caixões.

Minha tia aproximou-se do primeiro corpo. Fui atrás dela, respirando cautelosamente e tentando não revelar o choque em meu rosto.

A pele do cadáver era fina, quase translúcida, com uma cor cinza pastosa salpicada de manchas vermelhas escuras da idade. Os seios caíam para ambos os lados de sua caixa torácica, inertes como se sempre houvessem estado naquela posição desajeitada, sob as axilas. A barriga exibia o inchaço característico dos embalsamados, junto com duas dobras extras de gordura gelatinosa. Desviei rapidamente os olhos do monte esparso de pêlos púbicos grisalhos, sentindo-me envergonhada pela mulher idosa que ali jazia nua, entre estranhos. Meus olhos seguiram as longas estradas de veias púrpuras varicosas que desciam por suas pernas pesadas.

Então, é isso a morte.

Toquei em seu braço frio, que estava pesado e rígido como um pedaço de lenha. Foi naquele momento que todo o meu medo amainou. A coisa diante de mim não era mais algo maligno, uma múmia ou um zumbi assustador, mas uma concha vazia, não mais gente do que a mesa de aço sobre a qual jazia.

Pintei cada uma das unhas cianóticas com esmalte cor de pêssego e observei em silêncio minha avó pentear cuidadosamente a massa grisalha de cabelos. Apliquei pó no rosto pálido do cadáver e com a adição de ruge e batom ela se transformou em algo que me lembrava um manequim que vira uma vez na vitrine da Sears.

Não é fácil vestir uma pessoa morta. O corpo pesa o dobro do que pesava em vida e absolutamente nada dobra. Observei meu avô suspender o corpo rígido para que uma anágua modesta pudesse ser puxada até sua cintura. O ângulo em que ele ergueu o torso foi o suficiente para que a bexiga da mulher soltasse um último filete de urina na mesa e na saia de minha avó. Todos rimos.

Naquele mesmo dia, falei com meus pais com urgência incomum. Perguntei a meu pai se, em caso de morte, eu poderia ser cremada.

Ele me olhou com uma expressão atenta e disse: “Claro que pode, se é isso o que você realmente quer”. Naquela resposta escutei o tom de um profissional que havia tranqüilizado incontáveis estranhos angustiados com suas últimas vontades. Escutei também um pai preocupado que acabara de ouvir sua filha tomar sua primeira grande decisão sobre a vida e a morte.

“Sim, papai”, disse eu. “É isso que eu quero de verdade.”

Hollie Caldwell Campanella
Klamath Falls, Oregon


sonhos


4h05 da manhã

Costumo dormir bem e raramente preciso de despertador para acordar de manhã. Meus sonhos são usualmente sobre trabalho e tento esquecê-los o mais rápido possível. Os sonhos que quero lembrar, em geral não consigo. Umas poucas vezes na vida tive pesadelos.

O sonho começou simples. Eu estava dirigindo um caminhão pela auto-estrada de Kansas. Eu jamais dirigira um caminhão e, embora morasse em Kansas City na época, jamais estivera naquela auto-estrada. Era noite no sonho e eu só conseguia ver minhas mãos na direção e o que era iluminado pelos faróis do caminhão. De repente, à minha frente, brilhando sob a luz dos faróis, estava um braço humano. Horrorizado, dei uma guinada para não bater nele e tentei frear, mas não conseguia diminuir a marcha do caminhão e, assim que desviava de uma parte do corpo, outra aparecia na minha frente. Quanto mais avançava, mais pedaços do corpo eu via. Eles continuavam vindo na minha direção, cada vez mais rápido, até que eu finalmente bati em um deles, numa pancada pavorosa. Um instante depois, sentei-me na cama aos gritos.

Dei-me conta de que tivera um pesadelo. Respirei fundo e olhei para o relógio, mais para me tranqüilizar do que para saber a hora. Eram 4h05 da manhã.

Curti meu sábado e esqueci o sonho. No domingo, comprei o jornal e o li do meu costumeiro jeito pachorrento. Perto do final do primeiro caderno havia um artigo de dois parágrafos sobre um motorista de caminhão que passara por cima de um corpo que jazia na auto-estrada de Kansas. O acidente ocorrera no sábado, às 4h05 da manhã.

Matthew Menary
Burlingame, Califórnia


No meio da noite

Em 1946, meu pai comprou uma pequena mercearia em um subúrbio de Cincinnati. A loja ficava aberta seis dias por semana, das sete da manhã às seis da tarde, e ele estava lá quase todo o tempo, de tal modo que conhecia muito bem o lugar e todos os seus equipamentos.

Numa noite do final dos anos 50, minha mãe acordou e viu meu pai todo vestido, de chapéu e casaco. Ao perguntar-lhe o que estava fazendo, ele disse “Há algo errado na loja” e saiu. Mais tarde, ele contaria para minha mãe que fora acordado pelo som de um estouro e seus instintos lhe disseram que acontecera alguma coisa na loja.

A mercearia ficava a cerca de um quilômetro e meio de casa, e não fazia mais de um ou dois minutos que meu pai saíra quando o telefone tocou e alguém perguntou: “Max está?”. Minha mãe disse que ele saíra e perguntou quem estava no telefone. A pessoa se identificou como um policial e disse: “Tem água saindo por baixo da porta dos fundos da loja”. Ela informou-lhe que meu pai estava a caminho.

A sala dos fundos estava cheia de equipamentos de refrigeração à água e a tampa de uma das válvulas de fechamento saltara no meio da noite. De alguma forma, meu pai escutara o som e soube que precisava resolver o problema.

Steve Harper
Fayetteville, Carolina do Norte


Sangue

No verão de 1972, fui visitar meus pais em Burnsville, Minnesota, e fiquei na casa deles por umas duas semanas. Dormi no porão. De vez em quando, um menino de catorze anos chamado Matthew vinha cuidar do jardim. Numa manhã bem cedo, quando eu estava dormindo, escutei-o do lado de fora, cortando a grama. Não dei atenção e voltei a dormir.

Sonhei que estava no banheiro de cima, diante da pia e olhando meu rosto no espelho. Parecia meu rosto, mas ao mesmo tempo havia algo esquisito. Eu via meus cabelos pretos, meus olhos azuis, meu bigode, mas o formato de meu rosto era diferente. Olhei para a pia, onde a água corria em círculo no sentido anti-horário. Pus as mãos sob a água e comecei a esfregá-las com sabonete. Olhei de novo para o rosto que não era meu rosto. Havia algo de diferente nele, mas isso não me perturbou.

Continuei a esfregar as mãos, mas meu polegar doeu. A dor foi bastante intensa e me perguntei o que teria feito para machucá-lo tanto. Era como se o tivesse torcido.

Então olhei para a pia novamente e havia sangue correndo na água, fazendo círculos no sentido anti-horário. “O que está acontecendo?”, perguntei para mim mesmo. O sangue esguichava da parte gorda de meu polegar, logo abaixo da junta, e depois corria por meu braço e pingava do cotovelo na pia. Agarrei minha mão latejante e disse para mim mesmo: “O que você fez, Jim? O que você fez, Jim?”.

Escutei uma voz que me chamava. “Jim! Jim!” Acordei e percebi que era minha mãe me chamando do alto da escada. Ela disse para eu subir rápido. Enfiei uma roupa e saí correndo. Matthew se ferira cortando a grama e ela me pediu para ir até o banheiro ajudá-lo.

Ainda meio dormindo, entrei no banheiro e fiquei atônito ao ver Matthew diante do espelho, segurando a mão esquerda sobre a pia. Pingava sangue de um corte entre o polegar e o indicador. O sangue escorria pelo seu braço e caía na água, que girava até descer pelo ralo.

James Sharpsteen
Minneapolis, Minnesota


A interpretação dos sonhos

Fui um filho temporão e não conheci meus avós paternos. Ambos morreram antes de eu nascer.

Minha irmã, que era vinte anos mais velha do que eu, começou a interpretar sonhos como um hobby. Um dia, quando eu tinha dezoito anos, ela me pediu para contar um sonho, e então me diria o que significava.

A única coisa que lembrei foi de um sonho recorrente que tinha desde os dez anos de idade. Contei-lhe que tinha aquele sonho a cada dois ou três meses e que ele se tornava mais longo e claro a cada nova vez que o sonhava.

Nesse sonho, expliquei, estou sentado no assento do passageiro de um carro vermelho, atravessando um campo. Jamais vejo quem dirige o carro. Chegamos a uma casa cercada por uma bela pastagem verde. Paramos na entrada de automóvel coberta de cascalho. Há um sobrado branco com uma escada de cimento que começou a afundar na terra em um dos lados. Dois degraus levam à varanda, onde há um velho balanço.

Ao entrar na casa, vejo uma sala de jantar à minha esquerda (na qual jamais entro), uma escada diante de mim (que jamais subo) e um cômodo à minha direita. Esse cômodo parece ser uma sala de estar e a cor que lembro é borgonha. Há um velho banco e uma escrivaninha de tampo corrediço, com a fotografia de uma de minhas irmãs agachada atrás de uma velha picape. Posso ver do outro lado da sala borgonha a cozinha, nos fundos da casa, e posso olhar pela janela dos fundos. Noto um varal antigo, embora não haja roupas secando nele.

Enquanto contava essa história para minha irmã, comecei a perceber que ela me olhava espantada. Quando lhe perguntei sobre o significado do sonho, ela ficou muda por alguns instantes. Por fim, falou: “Essa era a casa de nossa avó. Você acabou de descrever a casa de vovó perfeitamente, até a fotografia sobre a escrivaninha”.

Minha avó morreu três anos antes de eu nascer. Imediatamente após sua morte, a casa foi demolida.

V. Ferguson-Stewart
Indianápolis, Indiana


Meia-bola

Quando eu tinha nove anos de idade, no começo dos anos 50, meus irmãos e eu passávamos a maior parte de nosso tempo livre jogando uma coisa que chamávamos de “meia-bola”. Para começar, você pegava uma bola de borracha oca (de preferência uma bola branca com pintas e uma estrela no topo) e a cortava pela metade. Uma vez que nosso “campo” era o quintal minúsculo de nossa casa em Boston onde moravam duas famílias, atirávamos a bola com o braço abaixado e não era permitido arremessar com força.

Mas mesmo jogando devagar podíamos fazer a bola dançar. Se você a agarrasse do modo adequado, a bola pegava ar e caía longe, ou então subia e caía perto. Era maravilhoso vê-la desviar rapidamente do batedor, vê-lo acertar o ar com o bastão de hóquei serrado que usávamos como taco.

A contagem de pontos era determinada pela altura da casa de três andares que você conseguia atingir com a bola — embora sempre mentíssemos para nossa avó, que morava no térreo, e disséssemos que não pretendíamos atingir a casa. O térreo equivalia a chegar na primeira base, o primeiro andar, na segunda, e assim por diante.

Certo dia de verão, eu estava na varanda do primeiro andar olhando meu irmão mais velho jogar com seus amigos. Eram os caras grandes, adolescentes por volta dos quinze anos, e nós, os menores, ficávamos relegados à tarefa de buscar a bola.

Minha função era recuperar as bolas que caíam na varanda, inclusive as que dela rolavam e ficavam presas na calha em torno. Pulávamos constantemente por cima da grade, na qual nos segurávamos e nos inclinávamos para tirar a bola da canaleta.

Fiz isso várias vezes naquela manhã, mas então algo aconteceu. Uma das varetas da grade estava frouxa e se soltou na minha mão. Meu peso me arrastou e lá estava eu caindo ao chão, na direção da escada de madeira e do caminho de concreto, cerca de três metros e meio abaixo.

Mas o estranho é que eu não tinha idéia do que estava acontecendo. Eu entrara em outro mundo. Ainda enquanto caía, lembro ter pensado que devia estar sonhando.

Comecei a relembrar tudo o que fizera naquela manhã, a examinar lenta e cuidadosamente cada atividade, tentando descobrir se tinha sonhado ou não. No fim, cheguei calmamente à conclusão de que não estava, de fato, sonhando. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, bati no chão.

Tudo isso não pode ter levado mais de um segundo, mas pareceram dez minutos para mim.

Meu ombro direito aterrissou no caminho de concreto. Meu traseiro bateu nos degraus de madeira, o que provocou um machucado esquisito em linha reta. Felizmente, minha cabeça não acertou o concreto.

Minha mãe insistiu para que eu fosse levado ao hospital, mas não havia nada quebrado. O doutor disse que eu escapara de um ferimento sério porque pensei que estava sonhando. Meu corpo relaxara durante a queda, disse ele, e eu havia “quicado” quando bati no chão.

Na época, não pensei muito sobre aquilo. Fiquei contente por não estar ferido com gravidade, e foi tudo. Mas agora penso e fico fascinado. Por que pensei que estava sonhando? Será que meu subconsciente “sabia” que eu estaria protegido se meu consciente estivesse ocupado com a idéia de que a queda poderia não estar acontecendo? Se minha mente era capaz de fazer isso, seria capaz também de mover meu corpo de tal modo que mudasse o lugar onde eu cairia? Foi sorte, ou foi outra coisa que impediu minha cabeça de bater no concreto?

Jack Edmonston
East Sandwich, Massachusetts


“Jill”

Conheci Ali em um verão, através da internet, e desde então conversamos quase diariamente on-line. Nossos tópicos de discussão iam da escola (ela estava no penúltimo e eu no último ano do colégio) ao teatro e aos escritos que compartilhávamos num grupo de escrita.

Numa noite do último verão, Ali mandou-me um e-mail explicando seus planos de suicídio. Ela não agüentava mais sua vida e descrevia o que planejava vestir na noite em que se jogaria com o carro fora da estrada. Mandei imediatamente uma mensagem para ela, tentando dissuadi-la daquilo. E, embora ela tivesse me pedido para não contar a ninguém, entrei em contato com sua melhor amiga, na esperança de que ela pudesse ajudá-la.

Passei umas boas três horas conversando com Ali. Eu também tivera ímpetos de suicídio certa vez e aquela correspondência pela internet foi cansativa e traumática para mim. Por fim, não tive outra escolha senão deixá-la nas mãos de sua amiga e ir dormir.

Quando estava adormecendo, tive uma imagem mental de Ali jogando o carro para fora da estrada. Para me confortar, coloquei uma imagem mental de mim diante do carro dela, com as mãos erguidas na tentativa de detê-la. A imagem ficou comigo enquanto caía no sono. Ah, se ao menos eu pudesse causar aquele efeito sobre ela no mundo real, pensei.

O bilhete de suicida de Ali dera a data em que ela planejava se matar. O dia chegou e fiquei aliviada ao descobrir que ainda continuava viva. Ela não fez nenhuma menção ao suicídio, mas uma semana depois descobri um relato fictício do fato numa mensagem que ela mandou para nosso grupo de escrita da internet. Na história, ela mudava meu nome para “Jill” e sugeria que eu morava perto dela, na Flórida, em vez de conversar com ela on-line da Virgínia.

Porém, o verdadeiro choque aconteceu quando ela descreveu o sonho que tivera na noite em que mantivemos a conversação de três horas. No sonho, ela estava prestes a jogar o carro fora da estrada quando, de repente, “Jill” salta na frente de seu carro e tenta detê-la. O sonho a acordara e o choque e o medo, dizia ela, foram suficientes para fazê-la reconsiderar seus planos de suicídio.

Kara Husson
Williamsburg, Virgínia


Céu

Isso aconteceu comigo quando eu tinha seis anos de idade. Tenho agora mais de 75, mas está tão vivo na minha memória como se houvesse acontecido ontem.

Minha irmã Dotty era oito anos mais velha do que eu e responsável por cuidar de mim depois da escola. Ela odiava isso, mas eu adorava acompanhá-la quando ia visitar suas amigas. Numa tarde, Dotty tinha de ir ao apartamento de outra menina para fazer uma lição e arrastou-me devidamente até o edifício e pelos três lances de escadas. Eu sabia que ia me aborrecer. Quando faziam a lição na cozinha, esqueciam de mim totalmente. As duas ficavam rindo e me ignorando. Chamavam-me de pirralha e pestinha e, com freqüência, implicavam comigo até que eu chorasse.

Naquela tarde em particular, eu não tinha nada para fazer. Afinal, estava apenas com seis anos. Tentei chamar a atenção delas, mas estavam mergulhadas na lição e não me davam bola. Então decidi ter um ataque. Deitei no chão e comecei a bater os pés. Gritei, bati, fiz todo o barulho que podia. A moradora do apartamento de baixo não suportou o ruído, pegou uma vassoura e começou a bater no teto. Isso me assustou, porém continuei, teimosa, a chutar e gritar. Fiz um barulho horrível. Mas minha irmã continuou me ignorando e ela e sua amiga riram, para mostrar como não davam bola para o que eu estava fazendo. E a senhora de baixo, na cozinha do primeiro andar, continuava batendo e gritando a plenos pulmões. Por fim, parei de chorar, de pura exaustão, mas a mulher continuou batendo no teto. Eu podia sentir as vibrações no meu corpo, e então a ouvi gritar: “Estou subindo! Você vai se arrepender quando eu chegar aí!”.

Minha irmã e sua amiga entraram em pânico — e eu também. Dotty agarrou minha mão, puxou-me até a porta e a abriu, escutando para ter certeza de que a mulher não estava a caminho. “Cale a boca”, disse ela para mim, e depois me deu um beliscão no braço para se assegurar de que eu me comportaria. Eu estava muito assustada e choramingava, mas ela continuou a beliscar meu braço até eu me acalmar. Enquanto estávamos ali no patamar, atentas aos sinais da mulher, pude sentir o corpo de Dotty tremendo de medo. Não podíamos sair do prédio descendo as escadas, pois isso significaria passar diante da porta da mulher. Dotty achava que ela estava esperando por nós. A única saída era subir as escadas.

Ela me puxou até o terceiro andar, o quarto andar, o quinto andar, e então chegamos a uma porta de aço. Felizmente para nós, ela conseguiu abri-la. Saímos para o telhado do prédio, mas eu não sabia disso. Jamais estivera num telhado e não sabia onde estávamos. Não sabia que lugar era aquele. Lembro que saltamos muros, correndo de um telhado para outro. Então Dotty parou diante de outra porta de aço, abriu-a e me guiou escada abaixo até a salvação.

Saímos para a calçada daquela quadra estranha. Não sei por quê — e isso até hoje —, mas, quando nossos pés tocaram a calçada, achei que tínhamos ido para o céu. Imaginei que estávamos no céu. Olhei em volta e fiquei espantada por ver crianças pulando corda, tal como eu fazia, e que tudo parecia o mesmo — como podia ser assim, se aquilo era o céu? Quando viramos a esquina, vi lojas e pessoas entrando e saindo, carregando pacotes, e fiquei admirada. “Então, é assim que é o céu”, disse para minha irmã, mas ela não estava escutando. Cada nova quadra era mais excitante para mim do que a anterior. Imaginei que chegáramos ao céu subindo as escadas e atravessando telhados. Eu estava tão contente de estar ali, onde as crianças brincavam como eu. Então dobramos mais uma esquina e chegamos à quadra em que morávamos. “Como foi que nossa rua subiu ao céu?”, perguntei à minha irmã. Mas ela não me respondeu. Simplesmente me puxou para dentro de nosso edifício e disse: “Cale a boca”.

Guardei essa experiência comigo durante muitos anos. Era meu segredo. Eu acreditava realmente que estivera no céu. Só não podia entender como chegara lá, ou como achei o caminho de volta para casa. Isso aconteceu no Bronx. Morávamos na Vyse Avenue.

Grace Fichtelberg
Ranchos de Taos, Novo México


O sonho de meu pai

Há muitos anos, meu pai teve um sonho sobre voar. Era tão vívido para mim que contei para todas as minhas amigas. Com o passar do tempo, repeti tanto a história que comecei a pensar nela como algo que acontecera comigo.

Meu pai era gerente da seção de máquinas fotográficas da Macy’s. No sonho, ele pegou a esferográfica azul no bolso interno do paletó para anotar alguma coisa. Ao apertar o botão de mola no topo da caneta, ele subiu ao ar. Em seguida, flutuou acima dos balcões de vidro e foi na direção do teto. Ele sentia-se muito contente consigo mesmo, muito feliz.

Em seguida, apertou no ressalto lateral da caneta. Em alguns modelos, esse ressalto fazia a ponta da caneta retrair-se. Para seu espanto, meu pai viu-se movendo para a frente, em linha reta. Descobriu então que, ao manipular a caneta, podia controlar a velocidade e a direção do vôo; quando tocou no ressalto de novo, conseguiu dar ré. Ele estava entusiasmado, tomado por um sentimento de imenso bem-estar. Começou a esvoaçar pela loja e, como estava lá em cima, ninguém podia ver o que estava fazendo.

Encorajado por esse seu novo talento, ele acenou e sorriu para alguns de seus colegas de trabalho enquanto voava sobre suas seções — um homenzinho voador de bigode, terno escuro e gravata-borboleta. Nenhum dos clientes o notou enquanto ele fazia manobras acima de suas cabeças. Eles estavam muito ocupados olhando as mercadorias da loja.

No café-da-manhã do dia seguinte, papai contou o sonho à família. Disse que era uma coisa maravilhosa poder voar daquele jeito, ser poderoso, livre e feliz. Alguém lhe dissera uma vez que sonhar com voar era um sinal de boa saúde mental. Ele achava que seu sonho confirmava essa teoria.

Ao longo dos anos, tenho pensado muitas vezes sobre o sonho de meu pai. O que eu gostava mais talvez fosse o jeito como ele parecia se expandir sempre que contava a história, o modo como seu rosto se iluminava enquanto ele descrevia a alegria e a liberdade secreta de voar acima das cabeças de seus colegas.

Papai está com 87 anos agora e não lembra de seu sonho de voar. Foi apenas um das centenas de sonhos esquisitos e não catalogados que ele teve. Ele falou sobre aquilo durante algumas semanas e depois esqueceu completamente. Mas as menores coisas impressionam uma criança e seu sonho me marcou. Senti sua leveza, tomei-a e a fiz minha.

Em minha versão, eu decolo, caneta na mão, e vejo ondas de juncos, campos marrons sulcados, as Grandes Planícies e rios cheios de corredeiras passam abaixo de mim enquanto velejo pelo ar. Faço a curva sobre aldeias africanas escaldantes e imensas extensões de neve azulada sem sentir calor ou frio. Vejo exércitos de pingüins na curva da Antártida esperando pela primavera como estátuas mudas e massas rolantes de humanidade esmagando-se em estações de metrô. Apesar das mudanças de geografia, minha paisagem imaginária é sempre ensolarada, permitindo-me acompanhar minha sombra ondulante sobre a superfície esburacada e escarpada da terra.

Acho que meu pai tinha razão com relação ao poder do vôo do sonho. Embora não possa dizer que esses sonhos são indicadores de minha boa saúde mental, tenho certeza de que acordo deles bem descansada, não importa quantos quilômetros tenha viajado. Sinto-me sem constrangimentos, capaz, e uma criança furtiva. Como se voasse às escondidas.

Mary McCallum
Proctorsville, Vermont


Vidas paralelas

Sempre senti inveja das pessoas que podem voltar ao lugar onde cresceram, que têm um lugar que podem chamar de lar.

Durante algum tempo, tive um lugar assim. Foi em Mundelein, Illinois, na parte da cidade conhecida como Oak Terrace, na rua Elmwood, 244. Construída nos anos 40, a casa ficava em um acre de terra cercado de árvores. A propriedade confinava com um canal artificial que levava a um pequeno lago. Pouco depois do divórcio de meus pais, minha mãe perguntou-me se eu concordava que ela vendesse a casa e nos mudássemos para Madison, Wisconsin, para que ela pudesse terminar os estudos. Como eu poderia dizer não, especialmente na idade curiosa de dezesseis anos?

A partir de então, senti uma forte ligação com minha antiga casa. Durante muitos anos, voltei a ela em sonhos quase todas as noites.

À medida que minha vida se tecia cada vez mais distante de Oak Terrace, mudar de casa tornou-se habitual para mim. Suponho que estava procurando por um lugar onde pudesse sentir o nascimento de raízes. Em qualquer lugar em que aterrissava, sempre me senti como um galho caído no asfalto.

Mudei-me para a Califórnia atrás de uma chance. Mudei-me para Chicago atrás do nascimento dos gêmeos de minha irmã Alexandra, Joey e Izzy. Mudei-me para a Europa a fim de sumir. Mudei-me para o Texas atrás de um emprego. Mudei-me para o Colorado atrás da carreira de minha mulher. Mas, em qualquer lugar que estivesse, a casa estava fresca na minha memória por meio desses sonhos vívidos. Gente estranha, gente familiar, a jornada ocasional através das paredes da casa até outra dimensão, onde tudo é o oposto. Sonhos poderosos de estar em cima do lugar em que estava enterrado meu animal de estimação favorito da infância, enquanto a casa se consumia em chamas. Cair na grama, sentindo a frescura familiar e o cheiro de folhas de salgueiro apodrecendo.

Às vezes, voltava e visitava a casa, só para ver o que os donos haviam feito com ela. Da primeira vez, a família estava entrando num barco e partindo para o lago. Não quis me intrometer, então voltei para o carro e fui até a ponte, no final do canal. Quando o barco passou sob a ponte, eu estava na beirada externa e a mãe, o pai e o menino pequeno estavam todos olhando na mesma direção. Mas a menininha deitada no fundo do barco estava olhando para cima. Nossos olhos se encontraram e algo em seu olhar me surpreendeu e me emocionou. Estabelecemos algum tipo de contato, como se nos conhecêssemos a vida inteira ou mais do que isso.

Passaram-se alguns anos e me vi morando em Austin, Texas. Conhecera minha futura esposa, Melissa, em minhas viagens e ela se mudou para Austin para estar comigo em setembro. Na noite em que ela chegou, ouvimos uma batida na porta. Luna, a cachorra de Melissa, começou a sacudir o rabo e farejar pela fresta da porta. Olhei pela janela e não vi ninguém. De repente, a porta se abriu e uma grande cadela labrador cor de chocolate entrou. Ela olhou para mim com uma expressão que parecia dizer: “Estou em casa”. Luna e aquela cadela estranha, mas amistosa, logo começaram a brincar juntas. Ao verificar a coleira, me surpreendi ao ver que o endereço na etiqueta era rua Jones, 914, meu próprio endereço. Do outro lado da etiqueta estava o nome: “Zoey”. Gostamos da cachorra e depois descobrimos a causa da confusão. Após se mudar, o inquilino anterior esquecera de trocar o endereço na coleira da cadela. Ela fugira para voltar à sua antiga casa.

Exatamente um ano depois, minha esposa e eu fomos a Chicago. Quando estávamos lá, decidi mostrar a ela o lugar em Mundelein. Quando estacionamos na frente da casa, o pai da família estava do lado de fora. Expliquei-lhe que crescera naquela casa e ele muito gentilmente me convidou para entrar e me mostrar o que fizera com o lugar. Fiquei emocionado.

Quando ele abriu a porta, saltou para fora uma linda cadela labrador chocolate. Perguntei a idade do animal e ele disse: “Um ano neste mês”. Então perguntei-lhe o nome e ele respondeu: “Zoey”. Minha mulher e eu trocamos olhares.

Entramos. A casa parecia muito menor. A esposa dele levou-me até o andar de cima e fui inundado por lembranças. Numa prateleira de brinquedos, notei blocos de letras que formavam o nome dos filhos deles: Alexandra e Joey. Melissa e eu trocamos novamente olhares.

Estaria aquela mulher sintonizada no meu canal de sonhos? Estávamos tão espantados que resolvi abrir o jogo. Contei-lhe que sonhava sempre com a casa e esperava que ela não se importasse. Sempre sentira uma presença na casa, disse ela, mas ninguém acreditava nisso.

Calculei que sua primeira filha, Alexandra, nascera na época em que minha irmã Alexandra viera me visitar. Fora uma visita forte e importante para nós dois e reatamos as relações depois de viver anos separados. O filho da mulher, Joey, nascera na mesma época em que nascera o Joey de minha irmã. E, para completar, a família pegara uma cachorrinha labrador chocolate e a batizara de Zoey um mês depois que uma cadela da mesma raça e com o mesmo nome batera em minha porta no Texas.

Alguém me disse uma vez que a sincronicidade ocorre quando nossos anjos pessoais nos dizem que estamos no lugar certo na hora certa. Migalhas de pão para o destino.

Timothy Ackerman
Erie, Colorado


Anna May

Cresci numa confortável área residencial, no centro da Carolina do Norte. Nosso bairro era modesto e a maioria de nós morava em casas antigas e pequenas: pais operários e laboriosos, donas de casa atarefadas e filhos cheios de energia de todas as idades.

Em uma das casas, no entanto, morava uma pessoa singular chamada Anna May Poteat. Era uma mulher idosa e, que nós soubéssemos, não tinha família. Algumas das crianças mais imaginativas acreditavam que ela era uma bruxa.

Na verdade, Anna May Poteat era uma pessoa decente que vivia com discrição. Todas as manhãs, descia até a rua para pegar a correspondência e o jornal, mas o resto do tempo ficava dentro de sua pequena casa de ladrilhos brancos.

Quando criança, fui uma das poucas pessoas da vizinhança que chegou a conhecer Anna May. As mães de nossa rua davam-lhe bolos e tortas caseiros na época das festas, mas eu a via habitualmente. No verão, eu cortava sua grama uma vez por semana. Ganhava três dólares por meu trabalho.

Porém, depois que terminava o serviço, Anna May sempre conversava comigo. Eu ficava na sua sala de visitas, suando com o calor e a umidade, respirando os odores estranhos que permeavam a casa, enquanto esperava minha remuneração, e inevitavelmente ela começava a falar sobre seu tema preferido. Lembro que sua voz era débil devido à idade, mas assumia um certo entusiasmo jovem sempre que ela pegava seu livro de recortes para mostrar-me a prova de seu mais recente triunfo. O livro de recortes continha a crônica do que ela gostava de chamar de seu “dom divino”.

O dom era o da profecia. Ela afirmava ter sonhos que anunciavam a morte de gente famosa e mantinha um diário meticuloso desses sonhos e das datas em que haviam ocorrido. Anotava suas lembranças numa página do livro de recortes e depois, quando o sujeito do sonho morria, ela recortava o necrológio daquela pessoa publicado nos jornais e o colava na página, ao lado de seus comentários anteriores. Para sua maneira de pensar, aquilo era uma prova conclusiva de que seu sonho precedera a morte desse ou daquele político famoso ou de uma celebridade.

Lembro que ela me mostrou as páginas sobre Eisenhower, Marilyn Monroe e Martin Luther King. Havia muitos outros verbetes naquele livro grosso, mas a maioria das pessoas era de tempos mais antigos, cujos nomes nem sempre me eram familiares. Suspeito que ela sentia orgulho de seu dom, pois freqüentemente me segurava por até uma hora, folheando as páginas com seus dedos artríticos, contando suas antigas predições com entusiasmo crescente ao ver como estavam corretas, ou se entregando a uma triste lengalenga sobre a perda de gente heróica ou inspiradora.

Eu estava nos primórdios da adolescência naquela época e mais interessado em pegar meus três dólares e sair educadamente de sua casa. Mas, mais vezes do que posso lembrar, eu ficava sentado ao lado de Anna May Poteat, em sua pequena sala de visitas, disfarçando minha impaciência e escutando suas histórias. Quando contei aos meus pais sobre as revelações dela, eles aproveitaram a oportunidade para me instruir sobre o fenômeno da senilidade e senescência. Lembraram-me também de meu dever de tratá-la com respeito e boas maneiras, apesar de sua enfermidade. Segui as instruções deles e continuei a cuidar de seu jardim, suportar suas estranhas ruminações do modo mais polido possível e recolher meus estipêndios.

Então, numa tarde de verão, fui com meu cortador de grama até a casa de Anna May. Como de costume, cortei a grama. Depois de terminar o serviço, bati na porta, mas ninguém atendeu. Aquilo era estranho. A batida sempre assinalava o momento de ela me fazer entrar para tomar um chá gelado e conversar. Naquela noite, durante o jantar, contei aos meus pais o que acontecera. Meu pai ficou preocupado e, para minha surpresa, foi visitar a sra. Poteat mais tarde. Logo fiquei sabendo que ela estava muito doente.

Na mesma noite, vieram a polícia e uma ambulância. Quando a encontraram, Anna May estava em coma e quase morta. Foi levada para o hospital, mas não sobreviveu àquela noite.

Nos dias seguintes, membros de uma das igrejas locais se apresentaram como voluntários para limpar sua casa e empacotar seus pertences, que foram enviados a um de seus parentes, em Juneau, Alasca.

Dois anos depois, quando eu estava na escola secundária, meus pais me contaram o que ficaram sabendo por meio de um membro da igreja que participara da limpeza. O livro de recortes de Anna May Poteat fora encontrado e lido e o pessoal da congregação ficara sabendo de seu “dom divino”. Nas últimas páginas, ela anotara sonhos sobre sua própria morte. Colocara-os em sua crônica, esboçando alguns detalhes dos sonhos e então, no canto da página, acrescentara uma nota de rodapé — um lembrete para si mesma, a fim de deixar dinheiro para o meu trabalho.

Jeff Raper
Gibsonville, Carolina do Norte


Há muito tempo

Jimmy morreu em 1968, mas só comecei a pranteá-lo quando encontrei seu nome no site do Memorial dos Veteranos do Vietnã, há quatro anos. Eu não esperava que ver seu nome numa tela de computador fosse me atingir tão duramente, fosse doer tanto. Trinta anos é muito tempo, sete a mais do que a vida de Jimmy. Mas tempo não suficiente, parece. Senti como se tivesse acabado de receber a notícia.

Naquela noite, sonhei que tinha um enorme ferimento em minha barriga. Tinha a forma de uma cratera causada por uma bomba de morteiro. A médica da sala de emergência sacudiu a cabeça e disse: “Você precisa fazer alguma coisa a respeito disso imediatamente, mas vai ter de encontrar outro médico. Não tenho condições de dar conta de uma coisa tão grande”.

As pessoas que estudam sonhos dizem, às vezes, que cada personagem representa um aspecto diferente da psique de quem sonha. Então, se eu sou a médica, além da paciente, estou dizendo a mim mesma que demorou tanto para eu encarar a morte de Jimmy porque é muito grande e vou precisar de ajuda.

Nos seis meses seguintes, assisti a documentários e filmes e li sobre a guerra do Vietnã — relatos históricos, memórias, histórias orais, cartas, textos de grupos da internet, confissões de ódio e amargor, confusão e desespero sem fim, mesmo de homens que acreditaram na guerra.

Um veterano que mora no sul da Louisiana teme ver os pequenos braços de rios floridos na primavera, porque significa que o verão está chegando, tão cheio de vapor e opressivo como as selvas tropicais do Sudeste Asiático. Tempestades de verão soam como artilharia e, quando os raios iluminam a escuridão, ele vê as faces e os corpos de amigos mortos, tal como acontece a cada verão, nos últimos 29 anos.

“Uma vez, achei que ia acabar esquecendo essas lembranças terríveis”, escreveu ele a um grupo de veteranos da internet certa noite. “Mas agora percebo que isso não vai acontecer.”

Outro ex-soldado, que mora num bairro de classe média, sofre de lembranças tão vívidas que se viu certa noite “vestido com roupa de camuflagem, o rosto pintado de preto, num jardim estranho, onde eu acabara de cortar o pescoço de um cachorro”.

A guerra do Vietnã não ficou para trás de forma alguma: ainda está dentro de nós, como o ferimento profundo, negro e sangrento de meu sonho.

Durante meses, fui dormir na esperança de ter outro tipo de sonho, um sonho que me permitisse dizer adeus a Jimmy. Então telefonei para sua irmã Ann, uma de minhas melhores amigas no colégio, e conversamos pela primeira vez em trinta anos. Foi uma das melhores coisas que fiz para mim em muito tempo. Passamos uma hora rindo e gozando nossos antigos professores e colegas, como antigamente.

Ann tem um filho que chamou de Jim e que partiu seu coração não faz muito tempo ao entrar para a reserva da Marinha. Ela me disse que Jimmy teria folga de Natal na semana em que foi morto, mas decidira passar os feriados com seus companheiros. Seis dias antes do Natal, levou um tiro na cabeça e morreu instantaneamente.

Não é nisso que todos queremos acreditar quando alguém morre?

Na noite em que conversei com Ann, sonhei finalmente com Jimmy. Estava apenas passando, com calça cáqui, uma camisa de malha vermelha desbotada e mocassins, perto o suficiente para ser reconhecido, mas distante demais para que eu pudesse tocá-lo ou conversar com ele. Fiquei olhando para ele, tentando chamar sua atenção, mas, de mãos nos bolsos, Jimmy estava perdido em seus pensamentos, olhando para a frente. Era no crepúsculo e estávamos num campo que se estendia até o horizonte em todas as direções. Estava sozinho, caminhando na direção do sol que se punha, e eu estava com um grupo de pessoas que iam na direção oposta.

Em junho passado, Jimmy faria 54 anos. Em nossa cidade natal, estive diante de seu túmulo pela primeira vez. Fica à sombra de uma magnólia, uma pedra de mármore simples, entre outras 43 mil exatamente iguais, à vista de uma baía azul-celeste e esmeralda. Li as poucas palavras e números várias vezes, mas, se escondem algum segredo ou mistério, eu não os descobri.

Lynn Duvall
Birmingham, Alabama


meditações


Aulas de costura

Tive minhas primeiras aulas de costura quando era criança pequena, sentada no chão, alinhavando pedaços de pano em pequenas e frágeis criações. Acima de mim, na mesa da sala de jantar, minha mãe fazia a máquina de costura voar. De vez em quando, ela interrompia sua costura para me separar da coisa na qual eu me costurara, ou para me mostrar como cuspir na ponta da linha e pô-la de volta no buraco da agulha. Meus pontos infantis pareciam sinais de código Morse que serpenteavam pelo tecido.

Junto com as aulas de mamãe vinham suas histórias — sobre como a mãe dela era capaz de cortar um molde de terno em folhas de jornal, e como, durante a Depressão, seus vestidos eram feitos de sacos de farinha. Ouvi histórias sobre uma infância cheia de perdas, sobre a guerra, a sobrevivência no dia-a-dia e meu próprio nascimento. Essas histórias eram tão naturais quanto a respiração e eu as absorvia do mesmo modo como inalava o ar.

Na hora do jantar, terminada ou não, nossa costura era posta de lado para abrir espaço à refeição e às intrusões dos afazeres familiares. Na manhã seguinte, a máquina voltava e nossos projetos continuavam.

Minhas lições oficiais de costura começaram na sétima série, nas aulas de economia doméstica. Era preciso um semestre de costura e um semestre de cozinha a fim de preparar as meninas para seus futuros papéis de esposas e mães. Eu estava ansiosa para dar início ao meu primeiro desafio de início da adolescência.

Minha professora, a sra. Kelso, era uma mulher simples e dura, com cabelos castanhos encaracolados presos junto à cabeça. Eu estava segura de que ela não tinha imaginação, pois usava apenas tailleurs que fizera de materiais triviais. “Clássicos”, ela os chamava.

A técnica de costura que a sra. Kelso tentava impor a nossas sensibilidades púberes tinha pouco em comum com a de minha mãe. Mamãe punha o tecido no chão, estendia um molde (se tivesse um), prendia alguns alfinetes, cortava e costurava. E dentro de pouco tempo eu tinha um vestido novo.

A sra. Kelso seguia o manual. Nosso primeiro projeto — um rito de passagem, aparentemente — foi costurar colchetes em pequenos quadrados de tecido. Cada vez que puxávamos a linha através do furo do colchete, dávamos um nó, puxando-o para perto da borda do prendedor com a unha do polegar. Meus nós encardidos não se alinhavam em torno do colchete, então tive de repetir o exercício duas ou mais vezes. Quando mostrei para minha mãe o que aprendera, sua reação foi: “Puxa, quem tem tempo para isso?”.

Técnica à parte, a maior diferença entre minhas duas professoras estava na filosofia de trabalho. Minha mãe assobiava e batia palmas. Cantávamos “Sixteen tons” com Tennessee Ernie Ford e marchávamos em círculos ao som gasto de “The gollywog’s cakewalk”. Um dos raros momentos em que vi mamãe chorar foi ao escutar uma música para violino cigano enquanto ela ajustava pregas no corpete de meu vestido.

Para a sra Kelso, costurar era uma ciência, algo que era preciso freqüentar a escola para aprender. Ela não permitia canto, nem mesmo rádio. Era raro que um sorriso rompesse sua fachada de aço. Eu a imaginava sozinha e sem filhos, mas fiquei chocada ao saber que não era uma coisa nem outra.

Quando minha turma foi considerada finalmente apta a enfrentar a verdadeira costura, a sra. Kelso escolheu um infalível jumper de gola em V e em forma de A: sem botões, zíperes, alinhavos ou acabamentos vistosos. Minha mãe ajudou-me a escolher uma flanela cinza adorável para meu jumper. Eu mal podia esperar para fazê-lo.

Antes de termos licença para tirar o tecido do saco, a sra. Kelso nos obrigou a ler toda a folha de instruções do molde e testou nossos conhecimentos de termos de costura. Por fim, abrimos nossos tecidos sobre mesas grandes, prendemos os pedaços do molde exatamente como mostravam as instruções e cortamos ao longo das linhas cheias, fazendo pequenos ressaltos triangulares nas chanfraduras (minha mãe nunca se preocupava com chanfraduras). Com papel-carbono e roda de decalque, devíamos marcar todas as linhas de costura sobre o molde. Tentei e tentei marcar as linhas sobre minha flanela até que cortei o papel e as linhas de costura desapareceram do molde.

Quando contei essa frustração para mamãe, ela apontou para as marcas de guia da máquina de costura, disse que eu escolhesse uma, a seguisse e esquecesse as rodas de decalque.

A sra. Kelso também nos obrigou a fazer a bainha do jumper abaixo da altura dos joelhos. O resultado horrível ficou evidente no espelho: eu parecia uma galinha esquálida dentro de um vestido-saco. Não lembro que nota tirei.

Levei meu jumper para casa, jurando jamais usá-lo. Minha mãe salvou-o subindo a bainha até os padrões de 1965, ajustando as costuras laterais para que ficassem adequadas ao meu corpo magro e comprando uma blusa de crepe cor-de-rosa com longos laços que se amarravam numa laçada sob meu queixo.

Quando chegou o final do semestre com a sra. Kelso, eu não queria mais ser esposa ou mãe. Mas, ao completar 21 anos, eu já era ambas as coisas e não tinha tempo para a maioria dos detalhes que a sra. Kelso me ensinara. Já as aulas de minha mãe ajudaram-me a terminar rapidamente cada projeto. Aprendi a combinar meu esforço com a quantidade de baba de bebê que provavelmente embelezaria os pequenos babadores e camisas que fazia. Enquanto costurava, eu cantava, batia palmas e brincava com meu filho. Pink Floyd substituiu Tennessee Ernie Ford. Em vez de costurar, meu filho construía castelos de Lego aos meus pés. À medida que ele cresceu, minhas histórias foram substituídas por suas leituras do último Star Trek ou do romance de Piers Anthony.

Mais tarde, quando o tempo não era tão precioso e a perfeição podia ser justificada pelo custo de um tecido fino, lembrei das aulas da sra. Kelso — e das lições de outras mulheres. Os nós que ancoravam meus colchetes alinhavam-se como soldados. Descobri que as chanfraduras eram muito úteis.

Agora, minha mãe, que completa oitenta anos neste ano, faz chamadas de longa distância para obter meus conselhos sobre um franzido de colcha ou um chapéu de chuva para seu cachorrinho de dois quilos e meio. Acho que é a sua maneira de me dizer que, por fim, eu tenho algo a lhe ensinar.

Donna M. Bronner
Santa Teresa, Novo México


Sanduíches de maionese

Rita comia fita. Ela andava com um daqueles dispositivos vermelho e verde de fita adesiva Scotch — do tipo metálico, de borda serrilhada — e a toda hora enfiava um pedaço na boca. Eu atribuía sua pele pálida a esse acepipe e me perguntava como a fita conseguia atravessar os quilômetros de intestinos sobre os quais lêramos na Scholastic Science, o boletim semanal que irmã Eduarda nos fazia assinar e ler todas as tardes de quinta-feira para interromper os experimentos arcaicos de laboratório que nós, ou, antes, ela demonstrava, cercada por combustores Bunsen, pipetas e extravagantes baterias de nove volts, numa reação vã, nacional e reflexo-patelar para superar o Sputnik; a mesma irmã Eduarda, ou “Mã” Eduarda, o truncamento usado quando, inclinados sobre as escrivaninhas de madeira e ferro batido aparafusadas em fila no chão, competíamos por nossos quinze minutos de fama sacudindo as mãos erguidas num ângulo de 130 graus diante de sua grande face de pedra de modo a manifestar nossa prontidão para regurgitar alguma trivialidade se fôssemos chamados; a mesma irmã Eduarda, ornamentada com meia dúzia de atilhos de borracha em cada pulso, detentora de uma medalha de tiro por acertar com precisão os nós dos dedos a três metros de distância com uma régua de trinta centímetros e que, tal como Merlin, guardava, entre outras quinquilharias, um lenço dentro da manga. Rita talvez apreciasse fita, mas minha pièce de résistance eram sanduíches de maionese, acompanhados idealmente em sua jornada para o centro do torso por um trago de Ovomaltine que, décadas antes que o pânico do cianureto introduzido no Tylenol fizesse as companhias americanas se engalfinharem por dispositivos engenhosos que as tornassem mais espertas do que ex-empregados descontentes e beligerantes e pirados de carteirinha, trazia um selo de papel encerado que precisava ser rompido para que o cara tivesse acesso aos cristais marrons e que, se enviado com uma moeda de cinqüenta centavos colada num quadrado de cartolina para um endereço de fachada em Battlecreek, Michigan, divulgado no final da meia hora de Capitão Meia-Noite exibido em preto-e-branco nos domingos de manhã, habilitava o remetente a receber um anel decodificador de plástico.

Thomas Corrado
Voorheesville, Nova York


Beira-mar

Não sei de onde tirei a idéia. Apenas sabia que aquele aniversário deveria ser de algum modo diferente. Não que eu não tivesse amigos que quisessem comemorar comigo. Não que eu estivesse longe da minha família. Nem mesmo que tivesse rompido com aquele homem. Tudo o que eu sabia era que queria ir de carro para longe. Queria me celebrar sozinha e separada. Assim, no meu 25o aniversário, peguei um bolo de notas do meu pote de dinheiro, entrei no carro e parti. Eu explicara para todos que não era nada pessoal, que eu simplesmente ia viajar no meu aniversário. Era tudo o que tinha a explicar.

Quando a manhã decisiva chegou, me vi com a sensação mais estranha de contentamento. Na verdade, acordei me sentindo bem. Depois de pegar o dinheiro e entrar no carro, o sentimento só ficou melhor. Só de dirigir pela estrada e ver construções que jamais vira me deu vontade de sorrir. Tudo parecia excitante e cheio de potencialidades. Então vi uma placa que indicava “Nena’s Restaurant”. O apelido de minha mãe é Nena, por isso virei à direita e fui parar na praia. Não sabia em que parte da costa estava ou quando ela terminaria. Notei as gaivotas, a espuma no topo das ondas. O mundo parecia estranhamente em foco, mas eu não sabia até então que estivera fora de foco.

Vi meu carro parar junto daquela estranha fileira de lojas de pedras arredondadas, logo na beira do mar. Era o único traço de civilização que eu vira em quilômetros. Meu carro estacionou-se diante de uma pequena pousada e eu abri a porta. Não lembro por quê, mas entrei e perguntei quanto custava um quarto. O preço não importava, eu ia ficar. Uma mulher vestida com um conjunto de paisley acompanhou-me por uma escada antiga cor de pêssego, com paredes limpas e brancas, e me mostrou o quarto. Vi uma cama de madeira coberta com travesseiros bordados. Havia uma lareira hospitaleira e um pátio com a mesma vista da água que eu seguira durante quilômetros. A banheira de pés tinha uma cortina antiquada em volta. O refrigerador estava cheio de bebidas e a cafeteira elétrica estava programada para acender de manhã. Agradeci à mulher e esperei que ela saísse.

Tirei meus cds da mala, depois meu incenso e meus cigarros. Fiquei sentada por algum tempo, deixando o quarto penetrar em meus poros. Sua energia era tão estranha e perfeita que eu queria apenas senti-la, cada ferroada dela. Passei meus dedos pelos sabonetes que estavam na banheira e joguei-me na cama. Eu era livre, eu era perfeitamente, incrivelmente livre, e sabia, acima de qualquer questionamento ou segundas intenções, que eu deveria estar ali.

Aventurei-me a descer e explorar o pequeno canto junto ao mar que seria meu por aquele dia. Comprei um sanduíche e um maiô e senti o sol no rosto. Conversei com estranhos e li a literatura das paredes, senti o cheiro de padarias e provei o sal em meus lábios. Em algum momento entre o almoço e o pôr-do-sol, tirei um livro da bolsa e li um pouco na praia. Quando o sol desceu e os freqüentadores de unhas bem cuidadas da praia foram para os restaurantes, eu fiquei. Observei o sol começar sua jornada para baixo e o céu iniciar sua dança de cor. Minhas mãos estavam enroladas em torno de meus joelhos e a areia branca, macia e quente entrava entre os dedos de meus pés. Levantei-me e andei na direção da água, desejosa da sensação da espuma contra meu corpo. Enquanto caminhava, senti que meu corpo estava se tornando parte do planeta. Era como se alguma parte de mim lembrasse que eu era apenas uma pessoa neste globo e que pertencia a ele. De repente, eu era parte do oceano, do pôr-do-sol, do nascer da lua, e meu corpo queria dançar. E eu dancei. Comecei a correr e brincar na água, saltar, chapinhar, deslizar, rodopiar, rodar e me molhar, sem me importar com quem estivesse olhando, ou mesmo se havia alguém olhando. Eu perambulei, pulei e galopei. Deitei-me na água e deixei-a correr sobre mim; senti-me sugada de volta para o mar. Eu era tão livre. E estava segura.

Quando finalmente cansei e o céu escureceu, retornei para meu quarto. Ele estava esperando por mim e eu obedeci. Não saí para jantar. Comer o resto de meu sanduíche de salame e ler meu livro sobre amor, isso era tudo o que eu desejava. Tomei um banho e acendi um incenso. Entre cada capítulo novo do livro, eu me encontrava fumando na cadeira de jardim do pátio. Nesses intervalos, eu tinha os pensamentos mais fortes. Lembrei que nenhum homem poderia me fazer feliz ou infeliz. Lembrei das estrelas e de tudo o que representam. Lembrei que sempre quis ser amiga de minha mãe. Não me sentia humilhada por ninguém nem por nada. Tudo parecia perfeito, em alinhamento e realizável. Não queria ir dormir, não queria que aquela sensação parasse. Durante toda a noite, tudo o que fiz foi ler, fumar e olhar para o perfeito céu noturno e saber que eu estava bem. Era a melhor sensação que eu já tivera. Não estava amarrada a nenhuma outra pessoa ou objeto, e não podia ser levada embora. Era minha e vinha de um lugar que jamais se esgotaria. Jamais me sentira assim antes, nada chegara nem perto.

Quando finalmente dormi, foi por apenas duas horas. Acordei e minha sensação ainda estava lá, não me abandonara enquanto eu dormia. Caminhei ao redor da pousada e descobri uma escada de madeira que conduzia a uma janela de vidro no teto. Ao subir, encontrei um conjunto de mobília de jardim e mesas no telhado. Todas as cadeiras estavam em um ângulo perfeito para observar o nascer do sol sobre o oceano. Sentei-me. Parecia que as cadeiras estavam esperando por mim. O sono ainda estava em meus olhos, eu estava de pijama, rosa, azuis e amarelos inundavam minha cabeça. Fechei os olhos. Senti, apenas.

Eu saíra de casa fazia somente 24 horas. Quando meu carro levou-me finalmente de volta para casa naquela tarde, eu sabia que algo estalara dentro de mim. Desde então, nunca mais estalou. Foram apenas 24 horas.

Tanya Collins
Oxnard, Califórnia


Depois de um longo inverno

Washington, D. C.

De pé mais cedo do que o usual. O ar está chamando. O ar da primavera é diferente do ar do inverno. Os galhos das árvores estão pontilhados de dentes de brotos vermelhos. Mais tarde, eles se transformarão em flocos verde-amarelados, compondo auras verde-pálido no sol. As folhas do verão serão escuras e farão sombra, mas as folhas de primavera deixam a luz passar. As árvores da primavera reluzem à luz do dia, espalhando dosséis translúcidos.

Os pássaros estão na rua, levando a algazarra de suas notícias enquanto saltam daqui para ali. Os gatos ainda estão enrodilhados nas escadas de incêndio. Não têm pressa de sair ao ar vigoroso da manhã. Sabem que ficará mais quente depois. Estão à espreita dos passarinhos. Podem esperar.

O ar está claro, limpo e fresco. Os odores são minúsculos, pequenas exalações de verde, uma faixa de lama marrom, o cheiro azul do céu. O meio-dia é ameno o suficiente para mangas curtas. Como meu almoço do lado de fora, sentada num muro quente de tijolos. A brisa levanta meus cabelos e vira as bordas de minha saia. Tenho de apertar os olhos. Tudo tem gosto melhor.

Até hoje, estive embrulhada demais no meu casaco de inverno para perceber a chegada silenciosa das flores. De repente, narcisos sorriem na minha cara, tulipas sacodem suas pétalas e florescências brancas perfumadas estão presas em cornisos como laços nos cabelos de uma menininha.

O final da tarde é fresco, preciso de minha jaqueta fina. Ainda está claro quando caminho do metrô para casa. Eu poderia caminhar horas. Tal como uma criança que brinca na calçada com seus amigos, não quero entrar para dentro de casa.

Quando fui trabalhar esta manhã, deixei minhas janelas abertas. A primavera entrou pelas telas enquanto eu estava fora. É como se eu tivesse usado uma enorme chave de prata e enrolado o teto como a tampa de uma lata de sardinhas. Dentro, o cheiro é o mesmo de lá de fora. Será como deitar na grama para dormir. Os lençóis estão frios. A colcha está quente. A luz desaparece aos poucos do lado de fora de minhas janelas. Neste fim de semana, acho que vou lavar meu carro.

Eileen O’Hara
San Francisco, Califórnia


Martíni com um toque

Não há melhor martíni no estado de Washington do que o servido no bar do velho hotel Roosevelt, em Seattle. Um gole desse solvente apaixonante é ao mesmo tempo frio como chuva de inverno e seco como o deserto. Um gole, e seu passado e seu futuro colidem em um momento cristalizado que é o agora.

Sobretudo, o martíni é frio. Não apenas frio. Frio siberiano. Hipotérmico. Não se vê o gelo, mas a idéia de gelo está embutida em cada gole doce. Como pode alguma coisa tão fria emprestar tanto calor? Essa é a ironia, a magia e o mistério que definem o martíni.

O copo é importante. E essa é apenas uma das coisas que esse barman faz certo. Não há nada que supere o clássico formato de funil. Se você quer entornar seu copo e acalmar seu palato na extremidade rasa da piscina, não o mergulhe instantaneamente nas profundezas do poço de mergulho. O rico aroma do vermute deve sugerir sua presença e não afogá-lo numa vermutidade opressiva demais.

Forma, sim. Mas também tamanho. E esse liberador de libações também acerta nisso. Grande. Ele declara francamente: sou um martíni. Não um vinho com soda. Não um blood mary. Não um daiquiri. Um aventureiro, um alpinista, um bon vivant. A meio caminho do segundo duplo, sou capaz de superar James Bond. Vejo-me exigindo que o barman agite, em vez de mexer, minha libação.

Parte da atração do recipiente em forma de V é a perfeita moradia que ele cria para a azeitona, o melhor adorno. Os lados suavemente inclinados proporcionam a plataforma de escorregar ideal. Lá está ela. Repousada sensualmente no poço do pêndulo, inclinando-se para um lado, depois para o outro, quando o copo é erguido. Uma única perna de pimenta-da-jamaica exposta, balançando no drinque.

Depois que a espada de plástico que perfurou o verde flexível de seu traje salgado e mastigável é removida, a azeitona embebida em vodca chega ao seu destino.

Ambrosia.

O martíni não é tagarela. Uma conversa lubrificada com martíni é significativa, realçada por um catalisador que, ao mesmo tempo, diminui suas inibições e aumenta seu senso de ironia e pathos. O martíni é sutil. Introspectivo. Reflexivo.

Ele é Mahler e crepúsculo e o lado escuro do jazz. Um olhar profundo nos olhos de apenas um que está escutando. Ao mesmo tempo espiritual, físico, ritual e único. Você é um, nenhum e todos. Um gole adiante da compreensão e transformação. Ator, rebelde, sonhador.

Enquanto o martíni é seletivo e ponderado, a cerveja é verborrágica e sem edição. Microfermentada para a discussão em volume máximo, acompanhada de gestos largos e exageros selvagens. A cerveja é exibida e cheia de piadas e vaudeville. Advogados, vendedores, entusiastas dos esportes.

A cerveja é Bartok. É tambores e ação violenta e crescendos dramáticos. A cerveja é para multidões, contar piadas e histórias arrasadoras com finais previsíveis e grandes barrigadas de riso. É imensa e turbulenta. Barco a motor.

O martíni é filosófico. Pensativo. Progressista. Com um toque irônico. Pantomimas. Sorrisos inteligentes. Barco a vela. Toda a simples complexidade da vida aflora à superfície de vodca e vermute. Você vem a ser. Você vive. Você é.

Coado. E limpo. E brilhante. Martínis são brutalmente honestos. Sem cor. Sem aromatizante. Sem aditivos. Sem espuma. Tão bom quanto o pior ingrediente. Um vermute barato define a vodca; uma vodca zurrapa define o vermute. Você é com quem anda.

Um bom martíni realça o que você experimenta no momento. A cerveja exagera o que você foi no passado.

Você pode beber um martíni sozinho, mas jamais está sozinho quando bebe um martíni. A essência dos povos, das gerações e dos países que o precederam está destilada em cada gole. Agite bem com um blues melancólico ao piano e um saxofone agridoce e você tem nas mãos um drinque que ninguém jamais bebeu, ninguém beberá novamente e todos beberam desde o começo dos tempos.

Os martínis estão presos ao lugar e aos povos. Viaje você de costa a costa na América do Norte, ou ao redor do mundo, sempre que encontrar uma garrafa de gim ou vodca e vermute seco, você encontrará um bar que apregoa seu martíni como o melhor da cidade, do estado, do país ou do mundo.

Eles estão todos dizendo a verdade.

Sua experiência. Seu gozo. Sua memória está inextricavelmente ligada — não apenas à sensação do líquido saciador ao salpicar seu palato —, entrelaçada para sempre às ricas histórias do povo e da terra onde o drinque nasceu, viveu e respirou.

Num martíni com vodca, você inala a dor do camponês russo, junto com o remorso de um czar russo. Você une-se aos outros em sua humanidade, em seus triunfos, em suas derrotas, em sua crença nesse elixir transparente, em seu desejo de ser livre, próspero e amado.

Compartilhar um martíni é um convite para explorar a intimidade da ilha gelada em que somente você habita. Cada gole derrete o iceberg até que, gradualmente, imperceptivelmente, uma crosta glacial se dissolve e libera o luxurioso paraíso tropical que está embaixo.

Ao mesmo tempo, você tem consciência de sua profunda solidão e de sua inegável ligação. Em suas veias corre o sangue de cada bebedor de martíni que o precedeu. Juntos, vocês nascem, vivem, envelhecem e morrem. Ao longo da jornada, você ganha e perde a família, os amigos, o amor que tornam a vida suportável e insuportável.

Se você tem sede de conhecimento, não olhe para além do fundo de seu copo. Mexa seus sonhos gentilmente, e seu pensamento e sua imaginação o levarão para além de seus desejos e esperanças mais queridos.

Um bom martíni é a culminação de todas as decisões de sua vida. A epifania explode quando você descobre que o que parece novo e revolucionário no momento na verdade residia em você o tempo inteiro, latente, esperando pelo martíni perfeito.

Dede Ryan
Boise, Idaho


Em lugar nenhum

Manhã no oeste do Texas, quase no Novo México, e a estrada começa a serpentear. Parece que esses últimos sessenta quilômetros foram infindáveis. Desço um declive íngreme, com outros carros impacientes atrás, mas é como se estivesse no mesmo ponto em que estava há uma hora.

A estrada passa rolando; andar a 120 tornou-se habitual. Venho fazendo isso mais do que queria, mas por necessidade, e agora a perda geral de estabilidade atingiu o limite. Algumas das viagens envolviam trabalho para a empresa, outras eram pessoais, e algumas foram a coisa mais importante que já fiz. Não é um fazer ativo. O carro faz o trabalho e o produto de quilômetros de estrada é o único resultado.

Quando retornamos dessas escapadas do familiar, a volta não dá uma sensação de completude. Especialmente difíceis para uma atividade cônscia de ser são as paradas essenciais para comer, abastecer e descansar. Mas, com freqüência, essas coisas são esquecidas, pois os quilômetros precisam ser cobertos...

E agora que a chuva passou, que foram vencidos os últimos trezentos quilômetros de estrada encharcada e quase submersa, percebi a futilidade desse movimento. Não tenho como saber o que outra pessoa possa pensar de mim aqui, neste momento parcial, mas sei por que alguém me percebe passando — porque os pensamentos de alguém estão comigo.

Esse é o momento em que ouço a manifestação daquela consciência interna exterior a mim. Começa tanto acima como entre o cruzamento em que estou. É um ruído que interfere em meu devaneio ruidoso da estrada. Ele assobia na noite, o equilíbrio tonal entrando em foco, e depois vai embora. O ruído é alto, invasivo e um rápido lembrete evanescente de que estou em lugar nenhum.

John Howze
El Paso, Texas


Onde andará Era Rose Rodosta?

É um belo nome e penso nele com freqüência. Era Rose Rodosta. Seus tristes olhos castanhos de olhar parado, longo rabo-de-cavalo castanho-cinzento, silêncio estóico e o nariz que fungava sem parar. Ela morava com avós velhos que tinham sotaques estranhos. Ninguém sabia onde estavam seus pais, e ninguém pensou em descobrir. Não fazia muita diferença. Nós teríamos usado a informação apenas para atormentá-la.

Freqüentávamos a escola de primeiro grau Gundlach, em St. Louis. Éramos todos brancos, puros e cheios de certezas sobre quem e o que era aceitável. Azar de quem apresentasse a mínima diferença. Lembro-me de Stanley, o dos cabelos ruivos crespos. Ele era orgulhosamente judeu e esse era o problema. Se pelo menos fosse um pouco mais... modesto em relação a sua diferença. Depois, é óbvio, havia a pequena Cilia Kay, aquela insensata garota que ousou nascer com um olho verde e outro castanho. E para cúmulo do azar, tinha de ser mais pobre do que todos nós e morava no alto da miserável loja de roscas de seus pais. Todas as manhãs, fazíamos troça da variedade de rosca cujo cheiro emanava de suas roupas, que sempre exalava gordura. Mas, sobretudo, lembro de Era Rose.

No sinuoso caminho que ia de nossas modestas casas e apartamentos para a escola, passávamos por um pequeno bairro negro, obviamente pobre. É muito doloroso dizer isso, mas os moradores daquele bairro eram nossa diversão matinal. Empurrávamos uns aos outros para nos posicionar no lado interno da calçada, pois desse modo podíamos ver melhor. Uma família sentava com freqüência no alpendre, todos comendo da mesma caixa de cereal. Tudo o que víamos era “sem”. Sem pintura, sem tela, sem grama. Era também menos justo, menos bonito e menos afluente. Ríamos à socapa dos penteados estranhos; olhávamos, mas nunca falávamos ou sorríamos. Mas com mais nitidez ainda do que essa imagem recorrente, lembro de Era Rose.

Era Rose era um alvo óbvio demais. Jamais reagia. Ficava firme, distante e separada. Mas certas coisas atravessavam sua armadura, pois eu via alguma lágrima ocasional. Fui criada para saber mais, então ficava na fímbria da multidão que escarnecia. Meu sentimento visceral era “ela é interessante”, mas jamais tive coragem de me aproximar dela. Meu cérebro era incapaz de aceitar o argumento.

Ela usava roupas desajeitadas de segunda mão, desbotadas, com bainha frouxa, meias caídas e estava sempre fungando. Agora sei que tinha ciúmes de Era Rose. Ela era melhor do que eu naquilo de que eu gostava mais: desenhar. Era minha reivindicação de fama na escola, mas dentro de mim sabia que ela era mais talentosa. E o que é mais importante: desenhava para ela mesma. Desenhava o tempo todo, com beleza e naturalidade. Seus rostos tinham linhas e rugas naturais que eu invejava, mas era incapaz de repetir. Meu dia na escola não estava completo se não incluísse uma espiada invejosa no caderno de desenho dela, cheio de imagens criativas e maravilhosas. Eu tentava copiar seu trabalho, sem compreender a impossibilidade da tarefa. Em minha consciência, ela apareceu como um ser sofredor e fascinante por volta do quarto ano, e permaneceu em minha visão periférica até o primeiro ano da escola de segundo grau Beaumont.

No segundo ano, ela começou a mudar. O nariz parou de escorrer. As pernas tornaram-se longas, o corpo delgado e sinuoso — tudo escondido sob aquelas roupas ainda horríveis. De vez em quando, ela dava uma ajeitada nos cabelos e até usava batom. Estava envolta numa pele de veludo e seus cabelos castanho-acinzentados eram grossos e lustrosos. Notei seu nome na lista de clubes de arte dos quais eu estava ocupada demais para participar. Então, um dia, a vi sair de uma sala de arte caminhando e conversando com alguém. Sua boca estava mais próxima de um sorriso do que eu jamais observara. Ninguém lhe deu muita atenção naquele segundo ano, mas agora eu tenho a sensação de uma grande borboleta, secando suas asas antes de voar. Foi há 43 anos que a vi pela última vez. Eu me mudei, fui para o condado de St. Louis e a escola de segundo grau Normandy, mas quando olho para trás, com tanta freqüência, lembro de Era Rose.

O que terá acontecido com essa garota de nome tão lindo? Em impulsos de momento, procuro nas listas telefônicas. Sem resultado. Tenho uma esperança tão intensa que está fora de proporção, uma esperança de que ela está vivendo bem, que teve uma medida extra de recompensa por todos aqueles anos desprovidos de felicidade. Era Rose, a garota com quem eu nunca fiz amizade.

Carolyn Brasher
Wentzville, Missouri


Peter

Peter e eu tínhamos dezessete anos. Éramos ambos estudantes em um internato do norte de Michigan. Aproximei-me dele porque o achava não ameaçador, fácil de conversar e, contudo, exaltado. Tinha constituição frágil. Loiro de olhos azuis intensos, caminhava levemente curvado e usava óculos de armação de metal numa época em que todo mundo usava aro de tartaruga. Queria ser escritor.

Numa noite de neve, estávamos sentados um diante do outro no jantar. Peter olhou-me pensativamente. Por fim, disse: “Pense em um número entre um e dez”. Um pedido esquisito, mas Peter era esquisito. Ganhara um concurso nacional de poesia naquele ano e comemorara indo de smoking à aula. Assim, concordei. Imaginei uma tela de cinema com um número dois radioso espalhado em toda a sua extensão. Peter curvou-se na minha direção, inclinando levemente a cabeça para o lado. “Dois?”, perguntou depois de um instante. Tentamos outras três vezes e Peter sempre adivinhou corretamente. Fiquei perplexo. Perguntei-lhe se poderia fazer a mesma coisa com números de um a vinte. Demorou um pouco mais, mas durante vários minutos Peter continuou identificando os números que passavam pelo palco da minha cabeça.

“Como você consegue fazer isso?”, perguntei. Ele me contou que só podia fazê-lo com certas pessoas, que repassava os números na sua mente até que um deles “colasse”. Intrigado, perguntei se já tentara adivinhar objetos, em vez de números. Ele disse que não. “Escute”, orientei, “vou imaginar um objeto nesta lanchonete e você vai me dizer o que é.” Peter concordou, embora parecesse hesitante. Sentamos na grande sala de refeições, eu com os olhos fechados, Peter com sua cabeça curvada e inclinada. Depois de uns vinte segundos, sua cabeça se ergueu. “A máquina de leite?” Sim! Tentamos duas outras vezes e em ambas suas palavras hesitantes concordaram com as imagens em minha cabeça.

Peter estava com dor de cabeça. Mas eu estava excitado e o empurrava para a frente. “Certo, vou imaginar que estou fazendo alguma coisa... algum tipo de atividade. Você me diz o que é.” Peter concordou relutante. Visualizei-me no chuveiro, com a água correndo pelo rosto e o peito, os dedos da mão passando ritmicamente o xampu nos cabelos. Demorou cerca de um minuto, mas Peter finalmente ergueu a cabeça. Perguntou se eu estava lavando minhas roupas. Certo, a recepção não fora perfeita. Mas ele parecia ter visto o essencial: a água, a espuma branca, o próprio ato de limpar. Na nossa próxima e última tentativa, visualizei-me sentado à escrivaninha digitando um texto. De novo, após um minuto, ele perguntou se eu estava escrevendo uma carta. As teclas, as letras, o processo de combinar palavras... Convenci-me de que ele, de alguma maneira, via o que eu estava fazendo.

Depois do jantar, caminhamos na neve. Eu estava agitado, mas Peter ficara quieto e pensativo. Um estudante saiu de um prédio e passou rapidamente por nós. “Ele fica ansioso perto de mim... Eu o deixo nervoso”, disse Peter. Ele me contou que sentimentos e pensamentos não lhe chegavam separados, mas juntos, como uma coisa só.

Mais tarde naquela noite, quando entrei no corredor para ir até o quarto de Peter, ele já estava na porta, me esperando. Sentamos em seu quarto ouvindo Barbra Streisand. Ele parecia desajeitado e constrangido. Eu percebi que as coisas de repente haviam mudado entre nós. “Não podemos mais ser amigos”, ele falou finalmente, com um sorriso embaraçado. Ficou óbvio que havia algo de doloroso para Peter em seu dom. De algum modo, ao me aproximar dele, eu passara a fazer parte dessa dor. Confuso, eu só podia honrar seu pedido.

Nos 25 anos que se passaram desde aquela noite, continuo a extrair seu sentido à luz cambiante de minha vida. Embora eu tenha me tornado um professor universitário, um cético bem treinado, minha formação não destruiu a convicção de que aquilo que experimentei naquela noite foi real. Há fatos que, embora transcendam nossa capacidade de saber ou compreender objetivamente, são fatos de fato. Tenho contado essa história em círculos acadêmicos, onde o metafísico é visto amiúde com olhares embaçados. “Ele provavelmente lia suas expressões faciais”, afirmam eles. Percebo que é possível acreditar em algo sem precisar entendê-lo.

Anos atrás, vi o Incrível Kreskin, um autoproclamado “leitor de pensamentos”, no programa de Johnny Carson. Durante quinze minutos, ele revelou os pensamentos das pessoas, achou objetos escondidos e incutiu sugestões. Mas não foi isso o que me impressionou. O que me cativou foi seu aparente amor, amor pelo que estava fazendo, e, mais importante, pelas pessoas com quem ele estava fazendo. Sempre considerei a capacidade de Peter uma maldição. Afinal, quem escolheria passar uma vida banhada sem defesa no medo, no ódio e na inveja de outras almas? Mas ali estava Kreskin, nadando em um rio de pensamentos e emoções humanas e alcançando a alegria. Dei-me conta de que a dor de Peter não vinha de se confrontar com um retrato objetivo da alma humana. Tinha a ver com ele.

Fiz várias tentativas de encontrar Peter, sempre frustradas. Pergunto-me como ele se saiu na vida. Pergunto-me se ele alguma vez usou seu dom (dizem que todo grande terapeuta tem essa capacidade em algum grau). Ou será que continuou a fugir dele? Mas, principalmente, espero que Peter, tal como Kreskin, tenha aprendido a ver o lado bom.

Mark Gover
Lansing, Michigan


Aritmética precoce

Às vezes, eu ia com minha mãe à rua das lojas. Na verdade, mal havia lojas lá, mal havia qualquer coisa no lugar onde nossa loja ficava outrora, e agora não tem nada. Somente uma auto-estrada onde os carros passam loucamente, a passagem infindável de carros correndo no lugar onde eu caminhava com minha mãe. Ponho minha mão na dela e acima de nós vejo os galhos das árvores balançando ao vento e ouço as folhas em seu murmúrio verde, um dossel sobre nós enquanto passamos, e o agente de viagem, sentado numa cadeira de espaldar reto, ergue os olhos do jornal húngaro Nepszava e nos saúda com a cabeça, em sua vitrine há uma imagem de um transatlântico, azul e branco desbotados, ninguém que a gente conheça viaja num transatlântico, mas ainda assim a fotografia está lá, um lembrete da possibilidade que pode nos visitar a qualquer momento. Minha mãe carrega sua bolsa que ela chama de sua sacola, tenha sempre um lenço limpo, aonde quer que vá, ela me diz. Vamos comprar o que ela chama de “queijo de rato”, e eu penso que deve ser o preferido dos ratos. Mas é para os sanduíches de queijo que meu pai vende, junto com café e jornais. O Daily Mirror e o Daily News, o Bridgeport Post e o jornal húngaro — ninguém lê o The New York Times. “Dono de uma loja de doces”, diz meu pai quando lhe pergunto o que dizer aos professores quando eles pedem informações para os registros da escola. Mas isso não é tudo o que ele vende, isso não é tudo o que somos.

“E onde fica o negócio de seu pai?”, o professor pergunta. Eles querem números, o endereço exato para os registros que dizem que nos seguirão pelo resto de nossas vidas. Mas jamais consigo guardar os números em minha cabeça. Na esquina de Cereja e Pinheiro, é o que lhe digo, porque são as palavras que consigo lembrar. E adoro dizer essas palavras juntas, cereja e pinheiro, frias florestas do Norte onde nunca estivemos e cereja, como as balas para tosse Smith Brothers na caixa de balas, vermelhas e doces, mas não tão boas quanto alcaçuz preto com o gosto da escuridão na língua, e não tão boas quanto dropes para tosse hb, “Hospital Brand”, leio na caixa, porque estou sempre lendo tudo o que vejo, palavras são como alimento e ar para mim. E minha mãe me manda parar de ler tanto porque não vale a pena ser inteligente demais. Procurem o Dodge azul estacionado, eu poderia dizer aos professores. Ele sai com o carro todas as manhãs, ouço seus passos descendo as escadas dos fundos, ressentida por ter interrompido meus sonhos. As primeiras horas da manhã são as melhores, ele me diz. Procurem o carro azul de meu pai e lá encontrarão o lugar de água gasosa e jujubas na caixa de balas que eu limpei com os trapos de camisetas velhas que ele me dá. Jujubas com gosto de perfume, como jóias que grudam nos dentes, e eu acabei de mandar arrumar seus dentes, diz mamãe, só que ela pronuncia teet, sem o som de th que os professores me disseram que é tão importante. Eu poderia dizer-lhes que não sei o endereço, mas sei chegar lá todas as tardes, como uma sonâmbula andando sob os trilhos da ferrovia e passando pelas fábricas barulhentas até que vejo diante de mim o toldo verde desbotado com nosso nome em letras de fôrma brancas, o degrau de pedra da loja de meu pai e a porta de madeira com tela, com buracos para as moscas passarem. Mas não é isso o que querem de mim. São os números que jamais lembro. Não consigo contar para dar o troco, do jeito que ele me ensinou. “Não deixe a menina perto da caixa registradora”, dizem os clientes ao meu pai. Como posso somar as moedas de dez centavos se o rosto fino do homem representado nela é tudo o que jamais seremos; alguém que tem poder sobre nós, posso dizer só pela aparência dele na moeda, polido e fino. Os clientes batem o troco sobre o balcão e eu vejo o búfalo na moeda de cinco centavos, com a cabeça inclinada na direção do capim, posso senti-la sob meus pés enquanto sou transportada para seu lugar nas pradarias, terra aberta por quilômetros, onde posso sentir a força do sol e o búfalo me ignora, tal como os clientes, com suas cabeças inclinadas para o café ou o jornal, absortos e separados em seus lugares junto ao balcão. Tento não perturbá-los enquanto varro em torno de seus pés, como meu pai me ensinou. Números são o que preciso se pretendo vencer no mundo, isso é algo que todo mundo sabe. Mas ninguém menciona jamais a verdadeira vida dos números que vejo diante de mim com tanta clareza. Ninguém jamais menciona isso na escola. Como eu vejo os números enquanto passam.

Um, com seu poder que ousa começar a longa fila de números em sua marcha. Mas ele está sozinho. Zero, um sem nenhum para acompanhá-lo. De que serve todo o seu poder, se está sozinho? Não como o sortudo dois, parte de um par, não ímpar, mas par. O perigoso três, com raios X de eletricidade disparando à sua volta. Raios da morte de Flash Gordon para matar até Ming, o Senhor Malevolente do Universo. Três como Richie Swenson, que põe fogo nos cestos de papel e é expulso, para que não corramos o perigo de queimar. Quatro-olhos, ele me chama. O que há de novo, quatro-olhos, ele diz. Richie Swenson, expulso e livre como o búfalo para perambular pelas ruas, jamais será como quatro. Gordo, confortável e seguro. O cinco é um conversível vermelho. E o seis é oprimido, tem de fazer hora extra. O sete é dor infinita, disso tenho certeza. A dor do mundo, pesada sobre seus ombros, velho sobretudo de dor que você não consegue tirar das costas. Gostaria de não ter meu conhecimento da dor que é sete. Gostaria de me livrar dela, mas está comigo para sempre, conhecimento da dor infinita contida no número sete. O oito é confiável e chato, jamais saberá do poder do sete. O nove é muito inteligente, mas não importa; o nove jamais pode estar feliz. E o dez manda em todos, mora numa colina, na melhor parte da cidade.

Como posso somá-los ou subtraí-los? Meter-me em suas vidas? Se Johnny tem dez maçãs e Jimmy pega duas, com quantas maçãs fica Johnny? Ah, Johnny, antes de mais nada, como você conseguiu tantas maçãs? Johnny em sua grande casa, com todas as suas maçãs que lhe vêm com tanta facilidade. Jimmy por baixo e por fora. Nada de maçãs na família. E o que dizer do perfume das maçãs? Elas estão enfileiradas sobre o peitoril da janela do quarto do sótão onde minha tia dorme. Verde e deliciosa são seus nomes, ela as deixa na janela porque diz que é uma coisa maravilhosa dormir num quarto com cheiro de maçã. No quarto do sótão, leio todas as histórias de seu livro de civismo, uma após a outra. “Mabel, ouça esta criança ler”, diz a nota que a professora do segundo ano me dá para levar ao quinto. Continuo levando bomba em aritmética. Ela deve ser burra, todo mundo diz. Acredito em todos eles.

Sandra Waller
Nova York, Nova York


Reflexos em uma calota

Era outono no Noroeste. As lembranças do fim de semana com meu velho amigo Keith, em sua casa em Seattle, me aqueceram e me deixaram satisfeito. Agora, depois de várias horas dirigindo, eu me adaptara aos ritmos da jornada de volta para casa. A vibração confortável de meu carro sólido, com seus gordos pneus zunindo embaixo de mim, as luzes douradas iluminando o cenário ao longo daquele trecho pouco movimentado da estrada e o som suave, quase subliminar, do rádio contribuíam para meu humor pensativo. Perdido nessa fantasia, fui levado aos poucos para um estado agradável de consciência em que me sentia particularmente alerta e receptivo. Seguiu-se um intrigante estado de expectativa.

Concentrei-me numa placa de estrada que se aproximava e tive uma vaga sensação de reconhecimento ao ler o nome da próxima cidade. Era um nome lindo e diferente e lembrei que era o lugar para onde minha amiga Shawnee pretendia se mudar na última vez que a encontrara, há vários anos.

A entrada para a cidade estava a pouca distância e me vi tomando a rampa de saída. Era domingo à tarde e as ruas estavam tranqüilas. Atravessei a rua principal, imaginando como seria surpreender minha amiga com uma visita. Em poucos minutos, entendi que aquele era exatamente o tipo de lugar que poderia atrair Shawnee. Uma abundância de velhas árvores graciosas lançava sombras sobre as calçadas e pequenos grupos de pessoas estavam reunidos informalmente, gozando juntos a tarde quente.

Vi uma cabine telefônica, estacionei e procurei a lista a fim de achar pistas do endereço de minha amiga ou a localização de seu negócio, mas não encontrei nada. Surpreendentemente, meu sentimento de expectativa se intensificou. Interpretei isso como um estímulo para continuar minha busca e passei mais duas horas espiando pelas janelas de prédios de escritórios, percorrendo os bairros residenciais à procura do velho carro de Shawnee e perguntando às pessoas do lugar se a conheciam. Nada disso me levou para mais perto de minha amiga.

Por fim, reconhecendo que a noite se aproximava, resignei-me a aceitar a futilidade de minha busca. Depois de uma última volta pela cidade, tomei a rampa que me levaria de volta para a rodovia. Ao pegar velocidade, escutei um estranho som chocalhante que vinha do lado do passageiro do carro. Antes que pudesse determinar sua origem, fui surpreendido pelo som metálico de uma calota que caiu e saiu rolando pelo asfalto. Pisei no freio e dirigi o carro para o acostamento da estrada estreita, mantendo um olho na calota enquanto ela saltava loucamente para longe. Desci do carro e caminhei rapidamente para o lugar onde a vira entrar no capim alto e marrom. Entrei no capinzal cheiroso e, depois de alguns minutos de busca, vi o prato prateado perto do fundo de um declive íngreme. Desci com dificuldade até o buraco que não era visível da estrada e me abaixei para pegar a calota empoeirada.

Nesse instante, escutei o som intermitente de um motor à distância. Ao olhar, vi um velho jipe vermelho que vinha da densa floresta de pinheiros na minha direção. Meus olhos se umedeceram e meu coração saltou quando reconheci a motorista daquele jipe. Era Shawnee. Nossos olhos se cruzaram através do pára-brisa riscado enquanto ela se aproximava do buraco onde eu estava agachado, segurando a calota amassada.

Por um momento, minha atenção foi atraída para o reflexo dessa cena extraordinária na superfície convexa da calota. Naquele plano expandido, vi a mim mesmo e o barranco sombrio atrás que se estendiam e fundiam desproporcionalmente no perímetro do disco com a cena ao redor e atrás de mim. O som do motor ficou mais alto e o veículo apareceu na superfície brilhante. No topo daquele pequeno domo de atividade estavam os matizes avermelhados do crepúsculo.

Naquela estranha dimensão nova pareceu possível, por um instante, que eu pudesse compreender a incrível convergência de eventos que estava testemunhando. Esforcei-me para entender, mas, antes que pudesse enfrentar o desafio, meus sentidos foram ocupados pela presença do jipe enferrujado que parou numa nuvem de poeira poucos metros adiante de mim. Levantei-me de um salto e puxei minha atônita amiga do assento, para uma longa, atrasada e decididamente mística reunião.

Roger Brinkerhoff
Galilee, Pensilvânia


Sem-teto em Prescott, Arizona

Na última primavera, fiz uma grande mudança em minha vida, e não estava sofrendo de uma crise de meia-idade. Aos 57 anos, estou muito além disso. Decidi que não podia esperar mais oito anos para me aposentar e que não podia ser secretária de advogado por mais oito anos. Deixei meu emprego, vendi minha casa, a mobília e o carro, dei meu gato para a vizinha e mudei-me para Prescott, Arizona, uma comunidade de 30 mil pessoas, aninhada nas montanhas Bradshaw, com uma boa biblioteca, uma instituição de ensino superior comunitária e uma bela praça central. Investi o produto da venda de tudo e recebo 315 dólares por mês de juros. É com isso que vivo.

Sou anônima. Não estou inscrita em nenhum programa de auxílio do governo. Não recebo nenhum tipo de pensão, nem mesmo auxílio-refeição. Não como no Exército da Salvação. Não aceito doações. Não dependo de ninguém.

Minha base é o centro de Prescott, onde tudo o que preciso está dentro de um raio de pouco mais de dois quilômetros, uma distância fácil de caminhar. Se quero ir mais longe, tomo um ônibus que faz o circuito da cidade de hora em hora e custa três dólares o passe diário. Tenho uma caixa postal que custa quarenta dólares por ano. A biblioteca está conectada à internet e tenho um endereço eletrônico. Meu espaço de depósito custa 27 dólares por mês e tenho acesso a ele 24 horas por dia. Nele guardo minhas roupas, cosméticos e artigos de higiene, alguns objetos de cozinha e papéis. Alugo por 25 dólares por mês um canto isolado de um quintal que fica a uma quadra do depósito de minhas coisas. Ali é meu quarto, composto por barraca de inverno, saco de dormir, colchão e lampião. Uso uma mochila reforçada, com garrafa de água, lanterna e walkman, artigos de toalete e proteção de chuva.

O Yavapai College tem uma piscina olímpica e um vestiário feminino. Faço cursos nessa escola e tenho acesso a suas instalações, o que me custa 35 dólares por mês. Vou até lá todas as manhãs para fazer minha “toalete” e tomar banho. Vou à lavanderia automática com uma pequena trouxa de roupa sempre que preciso; custa-me quinze dólares por mês. Ter uma aparência apresentável é o aspecto mais importante de meu novo estilo de vida. Quando vou à biblioteca, ninguém pode adivinhar que não tenho um lar. A biblioteca é minha sala de estar. Sento-me numa cadeira confortável e leio. Escuto uma linda música pelo sistema de som estereofônico. Comunico-me com minha filha por e-mail e escrevo cartas no processador de texto. Evito molhar-me quando chove lá fora. Infelizmente, a biblioteca não tem televisão, mas descobri uma sala de estudantes na escola que a possui. Em geral, posso assistir às notícias, Obras-primas do teatro e Mistério. Para satisfazer ainda mais minhas necessidades culturais, freqüento os ensaios gerais da companhia de teatro amador da cidade, de graça.

Comer barato e de modo nutritivo é o meu maior desafio. Meu orçamento me permite gastar duzentos dólares por mês com alimentação. Tenho um fogareiro e uma máquina de café antiquada. Vou ao meu depósito todas as manhãs e faço café, ponho na garrafa térmica, enfio na mochila e vou ao parque, onde tomo meu café num canto ensolarado, enquanto escuto as notícias matinais em meu walkman. O parque é meu quintal. É um lugar lindo para ficar quando o tempo é ameno. Posso deitar na grama, ler e tirar uma sesta. As árvores maduras proporcionam uma sombra bem-vinda quando está quente.

Meu novo estilo de vida tem sido confortável e prazeroso até agora porque o tempo em Prescott na primavera, no verão e no outono é delicioso, embora tenha nevado no fim de semana da Páscoa. Mas eu estava preparada. Tenho uma parca, botas e luvas, todas quentes e impermeáveis.

De volta ao tema da comida. O Jack in the Box tem quatro coisas que custam um dólar — Breakfast Jack, Jumbo Jack, um sanduíche de frango e dois tacos de carne. Depois de tomar meu café no parque, como um Breakfast Jack. Há um programa de nutrição no Centro para Adultos onde posso ter um almoço saudável por dois dólares. No jantar, volto ao Jack in the Box. Compro frutas e legumes frescos no Albertson’s. De vez em quando vou ao Pizza Hut — rodízio por 4,49 dólares. Quando volto ao meu depósito à noite, faço pipoca no meu fogareiro. Bebo apenas água e café; as outras bebidas são caras demais.

Descobri outra maneira de ter uma experiência comestível diferente e combiná-la com uma noite de cultura. Há uma galeria de arte no centro e as inaugurações de exposições são anunciadas no jornal. Há duas semanas, enfiei meu vestido e uma meia-calça, fui ao vernissage, me refestelei com os salgadinhos e admirei as pinturas.

Deixei meu cabelo crescer e uso um rabo-de-cavalo, como na época da escola primária. Não o tinjo mais. Gosto do grisalho. Não depilo as pernas nem as axilas e não uso esmalte nas unhas, nem maquilagem, nem batom. O look natural não custa nada.

Adoro ir à escola. Neste outono, estou fazendo cerâmica, coral e antropologia cultural, para o enriquecimento pessoal, não para acumular créditos. Adoro ler todos os livros que sempre quis ler e nunca tive tempo suficiente. Também tenho tempo para não fazer absolutamente nada.

Naturalmente, há o lado negativo. Sinto falta de meus amigos antigos. Claudette, que trabalha na biblioteca, fez amizade comigo. Ela escreve no jornal local e é adepta de obter informações com as pessoas. Acabei lhe contando quem eu sou e como vivo. Ela nunca me pressiona para viver de modo diferente e sei que posso contar com ela se precisar.

Também tenho saudades de meu gato Simon. Tenho esperança de que um gato cruzará o meu caminho, especialmente antes de o forte do inverno chegar. Seria gostoso dormir e me enroscar com um corpo peludo.

Espero sobreviver ao inverno. Disseram-me que Prescott pode ter muita neve e longos períodos de temperaturas glaciais. Não sei o que farei se ficar doente. Em geral, sou otimista, mas me preocupo. Rezem por mim.

B. C.
Prescott, Arizona


Uma tristeza mediana

É com um pouco de vergonha que ligo o rádio hoje. O rádio é o amigo de quem habitualmente me esqueço, o amigo em quem só penso quando a vida ficou triste e desesperada. Sempre volto a ele enrubescida de culpa — mas está sempre me esperando, está sempre pronto a me aceitar de volta.

Quando morei sozinha pela primeira vez, eu ouvia rádio, como tanta gente, todos os dias: de manhã, ao acordar, e à noite, quando voltava do trabalho. Enquanto esperava o fim do cerco de meu primeiro verão em Nova York, os sons do rádio eram os únicos que eu conseguia tolerar.

E assim, quando minha primeira relação amorosa acabou, me vi num apartamento banhado em marrom, e novamente liguei o rádio. O gosto da mandioca, que fritei pela primeira vez naquela cozinha minúscula, o cheiro das cortinas saturadas de fumaça e Murphy’s Oil Soap, as entrevistas, os noticiários, a longa enumeração de estações associadas nos Berkshires — tudo isso está ligado entre si e comigo, são o gosto, o cheiro, o ar ensopado daquele isolamento.

Afinal, o rádio foi feito para os solitários, para os deslocados e os fora do alcance. Diferentemente da televisão, que olha teimosanuma única direção, que exige a presença do corpo inteiro, o rádio está em toda parte. As pessoas solteiras precisam de rádio, pois somente ele pode preencher os enormes espaços vazios que até o menor dos apartamentos abriga. Ele não nos despreza por nossa distração, mas diplomaticamente começa no momento em que o ligamos.

Seu som é nosso anjo da guarda: ubíquo, mas despretensioso. Andamos de um lado para o outro cuidando de nossas atividades e o rádio pacientemente nos segue. Sua persistência abranda até mesmo nossos isolamentos mais súbitos e cortantes, amacia o espaço entre nossas almas e as paredes sempre distantes.

Desse modo, o rádio é clemente e os solitários carecem de perdão.

Na última primavera, parecia que minha vida inteira me havia abandonado — o emprego de que precisava deu em nada, minha relação amorosa fracassou. Peguei o primeiro apartamento, o menor e mais encardido que se me ofereceu. Não tive paciência, ou coragem, para procurar mais. Troquei de perfumes. Ouvi rádio. E as palavras começaram a cair sobre mim sem aviso.

Enquanto eu tremia na urgência da possibilidade, meus confortos e rotinas arrancados de mim, tornei-me consciente do ar mais próximo de mim. Esse ar conhecia minha pele, esquentava com minha própria voz. Abrigada, fiquei quieta. Tirei palavras simples e brilhantes do frio que apertava minhas entranhas. Elas nadaram na minha direção, se ofereceram à minha rede.

Durante meses vivi assim, evitando novas amizades, negligenciando as poucas que haviam sobrevivido ao meu acasalamento anterior. Protelei a busca de um novo emprego, preferi subsistir com café, com torradas, com o sol que arrostava minhas janelas imundas. Esses dias eram indulgentes e insustentáveis — eu teria de achar trabalho, teria de reviver velhas amizades, teria de fazer novas. A colheita diminuiria.

Embora chorasse para dormir todas as noites, esse tempo foi o mais doce e espesso que jamais vivi. Eu destilava e bebia cada momento ao meu bel-prazer; a cada dia eu reafirmava minha cobiça por meu tempo sem interrupção, e somente o rádio era convidado.

Tornei-me forte, sozinha assim. Mas lentamente as coisas práticas acabaram com minha folga. Fui morar com uma amiga, arranjei um emprego. Apaixonei-me.

Apaixonar-se é como pintar-se num canto. Encantada com a cor que pintou à sua volta, você esquece que a liberdade está encolhendo às suas costas. Negligenciado, meu rio tornou-se mais lento, minhas pescarias ficaram mais magras. Parei de ouvir rádio. Uma vez mais, comecei a pensar no tempo sozinha como algo a gastar ou jogar fora, em vez de algo ao longo de cuja extensão eu pudesse me espreguiçar.

E agora, agora que esqueci, as coisas se preparam para se dissolver de novo — um outro amor irá embora; vou pegar um apartamento sozinha. Sinto o ar ficar revigorante, o gume das paredes mais longe de meu corpo.

Trêmula, nervosa, ligo o rádio, pela primeira vez em meses. Paul Auster está lendo uma história sobre uma garota que perdeu o pai e que arrastou uma árvore de Natal pelas ruas de uma meia-noite no Brooklyn. Ele pede que enviemos histórias.

Há condições: que sejam curtas e verdadeiras.

Mas eu não tenho mortes, não tenho viagens dignas de serem relatadas. Não tenho golpes de sorte súbita ou tragédias incríveis. Tenho apenas uma tristeza mediana. Pior, tenho sido incapaz de escrever por semanas, minha cabeça às voltas com partidas iminentes, mudanças iminentes.

Então me dou conta: esse momento é a mão amiga da solidão. O rádio está me convidando a voltar, a voltar aos quartos que ele enche com sua voz da flanela mais quente, voltar à luz cálida do tempo passado sozinho.

Reconheci o convite somente quando escrevi estas linhas. Esta é minha história, que se completa com o clímax que é agora.

Às vezes, é boa fortuna ser abandonado. Enquanto estamos procurando por nossas perdas, o nosso eu talvez se insinue de volta, para dentro de nós.

 

 

                                                                  Paul Auster

 

 

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