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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ACHERON - P2 / Sherrilyn Kenyon
ACHERON - P2 / Sherrilyn Kenyon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ACHERON

Segunda Parte

 

ACHERON NA ATUALIDADE

    

     Nunca verás os momentos por vir, que mutilarão para sempre tua vida ao menos não até depois que lhe tenham rasgado.

SAVITAR

 

21 de outubro de 2008

 

O Partenón

Nashville, Tennessee

Terça-feira, 6:30 p.m.

    Acheron se teletransportou ao aposento principal onde se encontrava a estátua de Atenas, coberta em ouro. Devido à conferência que ia iniciar em uns minutos em outra parte do Partenón, a área da estátua tinha sido fechada.

     Provavelmente ele deveria obedecer às regras, mas por que? Era uma das poucas vantagens que tinha de ser um deus.

     Moldes dos mármores do Partenón original se encontravam localizados nas cavidades que delimitavam as paredes em ambos os lados. Apesar do interior do Partenón não fosse exatamente igual ao da antiga Grécia, adorava vir aqui. Algo a respeito deste lugar o confortava. E cada vez que estava em Nashville, assegurava-se de visitá-lo.

     Transladou-se ao centro do aposento para poder ver a versão do artista da deusa Atenas. Não se parecia nada com ela. Com cabelo negro e pálido, Atenas era frágil na aparência como surpreendente. Mas sua aparência era definitivamente enganosa. Como deusa da guerra, podia dar um murro tão forte como qualquer homem.

     —Acheron… —disse a estátua, cobrando vida diante dele—. Diga-me o que é que buscas.

     Ele pôs os olhos em branco.

     —Uma noite longe de ti, Artemisa. Como se não souberas.

     Ela saiu da estátua para parar frente a ele em sua estatura normal.

     —Oh, não és divertido.

     —Sim, claro. Sinto muito. Essa brincadeira, a da estátua, perdeu seu humor onze mil anos atrás. Não se tem feito mais atraente com o tempo.

     Cruzando os braços sobre o peito, ela fez-lhe uma careta.

     —Tu sempre mamas toda a diversão.

     Ash deixou surgir um lento e impaciente suspiro.

     —Chupas, Artemisa. A frase é “chupas toda a diversão”.

     —Mamado, chupado. Dá no mesmo.

     Burlou-se dela enquanto caminhava para os moldes que estavam contra a parede.

     —Não, não o é. Toma-o de alguém com um íntimo conhecimento de ambos.

     Virou o rosto para ele.

     —Odeio quando és tão cruel.

     E era exatamente pelo que o fazia. Infelizmente, toda a crueldade do mundo não era suficiente para afastá-la dele.

     —Por que estás aqui? —perguntou sobre o ombro.

     —Por que estás tu aqui? —disse-lhe seguindo seus passos.

     Uma vez mais, afastou-se de sua perseguidora menos predileta.

     —Há um arqueólogo que pensa que encontrou a Atlântida. Senti curiosidade assim, aqui estou.

     Seus olhos se iluminaram.

     —Oh, isto o tenho que ver. Eu adoro quando vais a vernacular.

     —Jugular —lhe corrigiu apertando os dentes. Era uma pena que não compartilhasse seu entusiasmo. Odiava tirar credibilidade a alguém, ou pior ainda, envergonhá-lo publicamente.

     Mas a última coisa que precisava era que o mundo encontrasse a Atlântida e expusera o que ele tinha sido nela. Pela primeira vez em sua existência havia pessoas que o olhavam com respeito e lhe permitiam dignidade.

     Se algum dia se inteirassem…

     Preferia morrer de novo. Não, melhor uma mancha no ego do professor que no seu. Embora tinha momentos de altruísmo, este não era o caso. Ninguém o ia expor de novo.

     Artemisa pestanejou em feliz espera.

     —Onde vai ser esta conferência?

     —Na sala ao final do corredor.

     Ela desapareceu.

     Acheron sacudiu a cabeça. Levou uns minutos para caminhar em torno da exposição e sorrir diante da interpretação do mundo moderno sobre o passado. Como podia a humanidade ser tão estranhamente ardilosa, e ao mesmo tempo tão densa? Suas percepções passavam de ser infalivelmente precisas a francamente ridículas.

     Por outra parte, nem todas as criaturas sofriam do mesmo dilema?

 

     —Doutora Kafieri?

     Soteria olhou a docente que a estava observando com expressão perplexa. Oh, por favor, não me diga que estava falando comigo em voz alta outra vez. Pela cara da mulher já sabia a resposta e odiava ter sido descoberta... outra vez.

     —Sim?

     —Tens uma boa quantidade de pessoas ali fora. Só queria saber se precisas de um pouco de água para sua apresentação?

   Seus intestinos se ataram ante estas palavras. Yeesh. Ela odiava as multidões e falar em público. Se não fora pelo fato de que necessitavam o financiamento de novas equipes na Grécia, nunca teria aceito isto.

     —Sim, por favor, mas assegure-se de que seja com tampa de rosca. Sempre derramo as bebidas quando não a têm.

     A mulher deu meia volta e se foi. Tory olhou para baixo, às notas que estava revisando, mas as palavras da mulher rondavam em sua mente.

     Bastante gente. O que oxímoron[1] para uma mulher que odiava as multidões? Com a garganta feita um nó, foi espiar a sala.

     Sip, era definitivamente uma multidão. Ao menos sessenta pessoas estavam ali. Sentia-se doente.

     Enquanto começava a retirar-se para as sombras, a porta se abriu e entrou um homem que lhe tirou o fôlego.

     Incrivelmente alto, ingressou na sala como se lhe pertencesse. Não, não ingressou, deslizou-se dentro dela como um sedutor predador. Cada mulher na sala virou para observá-lo. Não podiam evitá-lo. Era como um ímã para os olhos.

     Seu comprido cabelo negro tinha uma mecha de um brilhante vermelho na fronte que emoldurava um rosto incrivelmente bonito que seria belo se não tivesse essa aura tão dura. Também o fazia querer saber exatamente como luziam seus olhos, mas já que levava um par de óculos de sol Oakley opacos e negros, não podia sabê-lo. Vestido com um comprido casaco negro, usava um suéter esportivo cinza escuro que se abriu para mostrar uma camiseta dos Misfits. A calça negra estava metida em um par de botas Doc Martens cor cereja escura com crânios e ossos cruzados subindo a cada lado.

     Ignorando as mulheres que o observavam, retirou uma mochila de couro negro de um de seus amplos ombros e a pôs no chão frente a ele em um lugar muito isolado antes de sentar-se. O couro estava tão desgastado como o de seu casaco e a mochila estava marcada com um símbolo branco da anarquia e o símbolo de um sol atravessado por três raios.

     Não sabia o que tinham essas longas pernas, que se estiravam diante dele, que faziam acelerar seus batimentos cardíacos, mas o faziam. Parecia tão masculino sentado aí dessa maneira. Com suas grandes mãos cobertas por luvas negras sem dedos, deslizou as mangas de sua jaqueta até os antebraços, e logo se apoiou na cadeira, completamente a vontade.

     Ela capturou a visão de uma tatuagem de dragão vermelho e negro no braço esquerdo. Também tinha uma pequena peça de prata perfurando o orifício nasal direito, assim como uma pequena argola de prata na orelha esquerda.

     Tomou fôlego profundamente e apoiou um braço sobre o respaldo da cadeira. Demônios, o homem se movia como a água. Lenta, elegante e, entretanto, dava a impressão de que a qualquer momento podia entrar em ação e derrubar a qualquer pessoa que o ameaçasse.

     Definitivamente...

     —Doutora Kafieri?

     Não foi a não ser até a terceira vez que seu nome se repetiu que notou que a docente tinha retornado.

     —Sinto muito. Estava tendo um pouco de pânico cênico. —E um longo minuto cheio de luxuriosas fantasias sobre si mesmo envolvida ao redor do senhor Gótico.

     —Oh, está bem. —A mulher lhe entregou a água.

     Tory não estava tão segura. As multidões a aterrorizavam e diferentemente do homem Gótico de fora, odiava sobressair. Trataria de imaginá-lo em roupa interior, mas isso era ainda mais perturbador já que tudo o que fazia era pô-la quente e ainda mais nervosa...

     Tinha que ser o único homem vivo que poderia se ver intimidante em cueca.

     Deus, e se toda essa maciça sexualidade era mentira?

     Obrigando a si mesma a pôr fim a esses pensamentos, verificou o relógio e viu que era quase hora de começar.

     Tragou fortemente.

     Observou à multidão para ver uma alta, extremamente voluptuosa ruiva aproximar-se do homem Gótico. A mulher era tão bela como o homem, mas não parecia o tipo de mulher que normalmente se associaria com ele. Enquanto ele se vestia de negro, com roupa gótica, ela vestia um traje completamente branco, até delicados sapatos Jimmy Choo. Imaculadamente embelezada, a mulher recordava a uma modelo de passarela. E quando se sentou ao lado do homem Gótico, ele em realidade lhe fez caretas de desagrado apesar dela estar sorrindo e lhe oferecendo algo da bebida que trouxe com ela.

     A mulher lhe falou e ele virou a cabeça para responder com um rude.

     —Fode-te.

     Via-se completamente desolada por sua frieza. Tory apertou os dentes. Era evidente que se conheciam e enquanto a mulher estava apaixonada pelo homem, ele não podia estar menos interessado.

     Típico idiota. Tory odiava julgar às pessoas, mas tinha visto os de seu tipo uma e outra vez nas classes que ditava e inclusive cometeu o engano de acreditar-se apaixonada por um deles uma vez. Usuários que se aproveitavam da mulher que os amava. Não duvidava que a ruiva tinha comprado cada peça das custosas roupas que tão orgulhosamente ele usava.

     Mas a relação não era seu problema. Só esperava que a mulher tomasse consciência e abandonasse a esse imbecil.

     —Vou apresentar-te.

     Tory saltou ao som da voz do doutor Allen enquanto passava frente a ela. Com pouco mais de cinqüenta anos, era magro e muito em forma, com cabelo cinza e um pequeno bigode. Tinha sido o professor que a convidou a falar da Atlântida como parte da série do Partenón sobre civilizações clássicas. Agora, se pudesse utilizar isso para ajudar a financiar sua próxima escavação, teria matado dois pássaros com uma apresentação.

     Só não me deixe cair e gaguejar...

     Benzeu-se três vezes, cuspiu e fez uma rápida prece.

 

     —Sei que muitos de vocês estão familiarizados com o nome Kafieri e a incerteza a respeito do que o pai e tio de Soteria clamavam ter descoberto. Entretanto, com toda segurança, a doutora Kafieri tomou sua bolsa de estudos muito a sério e tenho que dizer que seus descobrimentos me impressionaram tanto que quis trazê-la aqui. Sem mencionar, que ao ser uma das poucas pessoas em receber seu doutorado aos vinte anos demonstra exatamente seu nível de compromisso. Ainda não conheci ninguém que possa refutar suas teorias ou sua dedicação no campo de estudos antigos. Agora, se todos vocês me ajudarem daremos a bem-vinda à doutora Kafieri.

     Ash reteve seu aplauso enquanto esperou para ver a professora que estava a ponto de rostizar.

     —Demônios!

     A vergonhosa palavra não seria audível para ninguém mais que Artemisa e ele, mas a tensão na voz provocou uma quebra de onda de piedade nele. Arqueou a sobrancelha quando ouviu documentos sendo empurrados uns contra outros como se lhe tivessem caído ao apresentador.

     Um instante depois, ela surgiu da porta atrás do pódio. Muito alta e magra, era muito bonita com cabelo marrom e liso que tinha recolhido em um severo coque. Um par de pequenos e redondos óculos com armação de bronze cobriam seus profundos e intrigantes olhos marrons. O traje cor bege a quadros fazia muito pouco para destacar seu corpo e era evidente que não estava cômoda usando-o. De fato, via-se muito chateada.

     Ela localizou os documentos no pódio e clareou a garganta antes oferecer a todos um envergonhado e encantador sorriso que estava seguro a tinha tirado de muitos problemas enquanto crescia.

     —Sei que não se costuma abrir um discurso com uma desculpa, mas me caíram os papéis a caminho daqui, assim se pudessem aguardar um momento enquanto os ordeno o apreciaria muito.

     Ash escondeu seu sorriso.

     O doutor Allen parecia perturbado, mas assentiu amavelmente.

     —Tome seu tempo.

     E ela o fez.

     As pessoas ao redor dele estavam começando a agitar-se pela demora enquanto ela tratava de ordenar seu discurso.

     O doutor Allen se inclinou para frente.

     —Não estão numeradas?

     Seu rosto se voltou de um brilhante vermelho.

     —Não, esqueci de fazê-lo.

     Várias pessoas na audiência riram enquanto um par deles amaldiçoava.

     —Desculpe —disse, olhando para frente enquanto alinhava as páginas—. Realmente o sinto muito. Me permitam retroceder e voltar a começar.

     Com um último e nostálgico olhar abandonou o discurso, fez clique em uma foto no retroprojetor que mostrou uma imagem do Partenón da Grécia.

     —Muitos de vocês sabem que encontrar a Atlântida era a obsessão de toda a vida de meu pai e tio, ambos deram suas vidas por esta busca, assim como minha mãe. E como eles, fiz minha missão na vida resolver este mistério. Desde que estava em fraldas, minha família esteve escavando na Grécia, tratando de encontrar a verdadeira localização da Atlântida. Em 1995, minha prima a doutora Megeara Kafieri encontrou o que acredito que é o lugar correto e embora ela abandonou a busca, Eu nunca o fiz. No verão passado fui finalmente capaz de encontrar a prova definitiva de que a Atlântida é real e que a investigação de Megeara finalmente a descobriu.

     Ash pôs os olhos em branco ante a reclamação que tantos tinham feito. Se tivesse um centavo por cada vez, teria sido inclusive mais rico do que era.

     Soteria pulsou o botão e mudou de foto para uma que lhe fez sentar-se direito na cadeira enquanto a reconhecia. Era um busto quebrado de sua mãe, Apollymi. E só havia um lugar no qual a boa doutora o poderia ter encontrado.

     Em Atlântida.

     Ela empurrou os óculos sobre o nariz com o nódulo.

     —Este é um dos muitos artefatos que minha equipe e eu resgatamos do fundo do mar Egeu. —Utilizou um ponteiro laser vermelho para mostrar a escritura Atlante na parte inferior que detalhava o nome de sua mãe—. Estive procurando a alguém que possa traduzir o que parece ser uma forma antiga de escritura grega. Entretanto, ninguém foi capaz de decifrar as palavras ou inclusive todas as letras. É como se este alfabeto tivesse caracteres que estão desaparecidos do grego tradicional.

     Artemisa o golpeou no braço.

     —Parece que está quebrado, Acheron.

     —Apanhado —lhe corrigiu soltando lentamente o fôlego.

     —O que seja —lhe disse Artemisa zangada.

     Soteria olhou a sua audiência, e a seguir, centrou sua atenção no doutor Allen.            

     —Porque ninguém pode ler isto ou inclusive identificar todas as antigas letras, estou convencida de que é Atlante. Depois de tudo, se a Atlântida se encontrava no mar Egeu, como minha família e eu acreditamos, é possível que seu idioma tivesse uma base grega ou possivelmente é seu idioma o que forma o que hoje conhecemos como grego. A localização da ilha teria que ser no centro de onde os marinheiros gregos comercializavam, fazendo-a uma potência a ter em conta e lhe permitindo dar forma à cultura, as tradições e ao idioma da antiga Grécia.

     Fez clique a seguinte foto que mostrava um fragmento de parede do palácio real Atlante.

     —Este é um edifício que eu descobri...

     —Não vais dizer algo? —sussurrou-lhe Artemisa.

     Ash não pôde. Estava muito aturdido enquanto observava imagens que não tinha visto em mais de onze mil anos. Como pôde esta jovem mulher encontrá-las?

     Como é possível que ele não soubesse?

     Outra vez, havia uma resposta fácil. Maldita fora sua mãe. Teria sabido que estavam perfurando o lugar da ilha, mas em lugar de deixar a ele, sentou-se esperando que um dos arqueólogos a libertasse de seu cativeiro.

     —Meu colega pensa que é de um templo —continuou Soteria—, mas dada sua localização estou convencida de que era um edifício governamental. Pode-se ver aqui, que há mais da escritura que vimos no busto, mas de novo não posso decifrá-la. —Mudou a outra fotografia submarina de colunas—. Agora, este é um lugar irmão que encontramos, que acreditam que é uma ilha grega que negociava freqüentemente com a Atlântida. Encontrei uma parte de pedra com o nome Didymos gravado nela.

     Ash não podia respirar. Tinha-o encontrado. Queridos deuses, a mulher tinha encontrado Didymos...

     Passou a outra foto que literalmente o fez começar a suar frio.

     —Este é um diário que descobrimos em umas ruínas de Didymos do que parecia ser um palácio real. Um diário encadernado —repetiu excitadamente—. Sei o que todos vocês estão pensando, que não encadernavam livros neste período de tempo. Nem sequer deveriam ter tido papel. Mas uma vez mais, temos a mesma escritura e data nela que mostra que são anteriores a tudo o que alguma vez se encontrou na Grécia. O que temos aqui é o Santo Graal da Atlântida. Sei com cada parte de meu ser. Estes dois lugares são importantes um para o outro e o lugar principal é, de fato, a Atlântida.

     —Acheron? —Artemisa o bateu de novo.

     Não podia falar enquanto observava um dos cuidadosamente confeccionados diários de Ryssa, sua escritura estava tão clara como se tivesse sido escrita ontem. Esta página não documentava nada em particular, mas o que mais medo lhe dava era o que outra coisa poderia conter? E, diferente dos outros escritos, era grego. Não havia muita gente no mundo que poderia traduzi-lo. Mas havia suficientes para arruinar sua vida se o fizessem e contivera algo incriminatório.

     —Oh, isto é aborrecido —disse Artemisa zangada—. Vou embora daqui —se levantou e se foi.

     A seguinte imagem era um busto com uma cabeça esmagada. Tinha sido um dos muitos que havia em Didymos, colocaram-nos em linha ao longo da rua e era uma imagem de seu irmão gêmeo Styxx. Ash quase caiu de seu assento.

     Era hora de deter isto antes que ela o expusera.

     Obrigou a si mesmo a parecer despreocupado embora por dentro estava aterrorizado e zangado.

     —Como sabe que a data do carbono do diário não está contaminada?

     Tory olhou para calma voz masculina que era tão profunda que reclamava atenção. Levou-lhe um segundo dar-se conta a quem pertencia.

     Ao idiota senhor gótico.

     Empurrando os óculos sobre a ponte do nariz em um hábito nervoso, clareou a garganta.

     —Fomos meticulosos nisso.

     Lançou-lhe um sorriso zombador que a incomodou a sério.

     —Quão meticulosos? Ou seja, o enfrentemos, é uma arqueóloga com uma agenda que tem como principal meta demonstrar que seu pai e seu tio não eram uns caçadores de tesouros com cabeças ocas. Todos sabemos como os dados podem ser manipulados. Qual é a data do Diário?

     Ela se encolheu ante a pergunta. Minta Tory, minta. Mas não estava nela fazê-lo.

     —Pois algumas das provas iniciais mostraram uma data muito mais antiga.

     —Quanto mais antiga?

     —Do primeiro século antes de cristo.

     Uma fina sobrancelha se arqueou sobre a borda dos óculos de sol negras, burlando-se dela.

     —Primeiro século antes de cristo?

     —É ainda muito cedo para um livro e, entretanto, temos um livro —disse ela com firmeza, retornando à imagem do jornal—. Temos fortes provas empíricas que ninguém pode refutar.

     Em realidade a fez calar.

   —Não, doutora Kafieri, o que temos é uma arqueóloga com uma agenda preconcebida procurando nos impressionar para que financiemos outra de suas férias no Mediterrâneo. Não é correto?

     Várias pessoas do público riram.

     Tory sentia a ira aumentar pelas acusações.

     —Sou uma estudiosa séria! Inclusive se ignorar o diário, olhe as outras peças de evidência.

     Burlou-se dela.

     —O busto de uma mulher? Um edifício? Alguns fragmentos de cerâmica? A Grécia está cheia disso.

     —Mas a escritura…

     —Só porque você não possa lê-lo não significa que não possa ser lido por alguém mais. Pode ser simplesmente um dialeto provincial indocumentado.

     —Tem razão —disse um homem na primeira fila.

     Um homem atrás do pênis Gótico riu.

     —Seu pai era um louco.

     —Não era nada em comparação com seu tio. Tem que ser de família.

     Tory apertou o ponteiro com a mão, querendo lançá-lo ao idiota que tinha começado esta sessão de ridiculização. Pior ainda, sentia a espetada de lágrimas por trás dos olhos. Nunca tinha chorado em público, mas claro nunca antes tinha sido tão humilhada.

     Decidida a ter êxito, colocou a seguinte foto e clareou a garganta.

     —Este…

     —É uma pequena estátua do lar de Artemisa —disse o idiota gótico em um tom sarcástico que podia jurar que ressonou em todo o edifício. — Onde o encontrou? Em um giousouroum[2] em Atenas?

     A risada soou.

     —Obrigado por desperdiçar meu tempo, doutor Allen. —O homem mais velho na primeira fila se levantou e se retirou.

     Tory entrou em pânico pela forma em que a multidão se voltava contra ela. Pelo olhar de desgosto na cara do doutor Allen.

     —Espere! Tenho mais. —Passou a uma imagem de um colar Atlante que tinha o símbolo de um sol. —Esta é a primeira vez que vimos algo tão estilizado.

     O estúpido Gótico sustentou um komboloi que tinha exatamente a mesma imagem.

     —Eu comprei o meu em uma loja no Delphi há três anos.

     A risada soou enquanto o resto das pessoas na sala se levantava e partia.

     Tory ficou ali em completa vergonha e raiva.

     —Qualquer comissão que foi o suficiente parva para aprovar sua tese deveria estar envergonhada.

     O doutor Allen sacudiu sua cabeça antes de retirar-se, também. Tory apertou as páginas tão forte que lhe surpreendeu que as bordas não se convertessem em diamantes.

     O homem gótico se levantou e recolheu a mochila do piso. Baixou trotando as escadas para ela.

     —Olhe, realmente o sinto.

     —Foda-se —lhe grunhiu, utilizando a mesma frase que lhe havia dito à outra mulher.

     Ela começou a sair, logo se deteve, virou-se e o percorreu com um mordaz olhar que era só uma pequena parte do ódio que sentia em cada molécula de seu ser por este homem.

    —Tu vândalo idiota. O que foi isto para ti? Um jogo? É o trabalho de minha vida o qual acabas de arruinar E para que? Merdas e brincadeiras? Ou não foi nada mais que uma brincadeira de fraternidade? Por favor, me digas que não arruinou minha integridade para obter algum tipo de pontos de bebida. Isto é algo no qual estive trabalhando desde antes que nascesse. Como te atreves a zombar de mim. Rogo a Deus que algum dia alguém te degrade desta maneira para que saibas pela primeira vez em tua presunçosa e pomposa vida, como se sente a humilhação.

     Ash ia responder-lhe até que se deu conta de algo.

     Não podia escutar seus pensamentos, tampouco podia ver seu futuro. Era uma lousa em branco para ele.

     —Melhor implorar que eu nunca te veja caminhando pela rua enquanto esteja conduzindo meu carro! —girou airadamente e se retirou furiosa.

     Nem sequer sabia aonde ia. Tudo a respeito dela estava completamente em branco para ele. Tudo.

     —Que demônios passava?

     Não querendo contemplar inclusive o que podia significar, Ash se teletransportou à sala de seu condomínio em Nova Orleans. Não gostava de não estar em controle ou estar cego sobre algo.

     Até que descobrisse o que estava acontecendo, retirar-se era a melhor resposta.

     Tory atirou os papéis em uma cesta de lixo a caminho da saída. Não foi senão até que chego ao seu automóvel que finalmente deixou cair às lágrimas.

     As risadas ainda soavam em seus ouvidos. Sua prima Megeara tinha tido razão, deveria ter deixado a Atlântida em paz.

     Mas seus pais tinham dado a vida em sua busca. A diferença de Geary, ela não ia deter-se até restabelecer a honra e a dignidade no nome de sua família.

     Definitivamente fizeste um bom trabalho esta noite.

     Abriu a porta do carro de aluguel e jogou sua bolsa dentro.

     —Tu maldito, palhaço, estúpido garoto de fraternidade! —gritou, desejando lhe haver tirado o brinco do nariz e obrigá-lo a comê-lo.

     Desgostada, puxou o telefone e ligou o carro. Ligou a sua melhor amiga, Pam Gardner, enquanto saía do estacionamento pelo Parque Centenário e se dirigia ao quarto do hotel.

     —Como foi?

     Tory secou as lágrimas quando se deteve em um sinal.

     —Horrível! Nunca estive mais envergonhada em minha vida.

     —Me diga que não lhe caíram outra vez as páginas.

     Envergonhou-se sobre quão bem sua amiga a conhecia, as duas tinham sido melhores amigas desde que se conheceram na deli[3] de seu tio em Nova Iorque quando eram muito pequenas.

     —Sim, mas não é nada comparado com isto.

     —O que?

     Meteu-se no tráfico enquanto grunhia.

     —Havia este... este... nem sequer posso pensar em uma palavra o suficientemente forte para descrever o que era, estava ali, e fez com que todos zombassem de mim

     —Oh não, Tory. —Podia sentir as lágrimas na voz de Pam por ela—. A sério?

     —Soa como se estivesse brincando?

     —Não, soas realmente zangada.

     E o estava. Deus, Como desejava encontrá-lo caminhando de volta ao seu dormitório para poder cortá-lo em pedacinhos!

     —Não posso acreditar nesta noite. Supunha-se que ia ser aplaudida e em lugar disso, estou arruinada. Juro a Deus que está no céu que se alguma vez vir esse homem outra vez, vou cometer assassinato.

     —Bom, se necessitas de ajuda para mover o corpo, já sabes onde vivemos Kim e eu.

     Sorriu por suas amigas. Sempre podia contar com elas em qualquer crise. Kim e Pam eram a prova vivente de que, embora um bom amigo podia te tirar sob fiança da prisão, um melhor amigo estaria no cárcere junto contigo.

     —Obrigada.

     —Em qualquer momento, doçura. Assim quando voltas?

     —Retornarei a Nova Orleans amanhã. —Não podia esperar para estar em casa outra vez onde tudo era familiar.

     —Mas olhe o lado positivo, Tory. Quem quer que seja o cabeça de pênis, nunca terá que preocupar-se em vê-lo aqui.

     Isso era verdade. Amanhã estaria em casa e nunca teria que ver esse idiota de novo.

 

   A dignidade de Tory ainda estava cambaleando dois dias depois enquanto batia na porta do escritório do doutor Julian Alexander. Era supostamente o principal perito no mundo sobre a antiga a Grécia. Haviam-lhe dito que se alguém no mundo podia ler seu diário, ele era o homem.

     Estava rezando que assim fora.

     Uma profunda voz masculina lhe disse que entrasse.

    Empurrou a porta e encontrou um homem excepcionalmente bonito no começo de seus trinta anos sentado atrás de um desgastado escritório de madeira. Tinha o cabelo curto loiro e uns formosos olhos azuis que pareciam brilhar na débil luz. Seu escritório estava lotado de artefatos gregos antigos, incluindo uma espada da idade do bronze pendurada na parede por trás dele. Livreiros cobriam as paredes e estavam cheios de mais artefatos e livros de texto.

     Homem, ela poderia facilmente chamar a este lugar de lar e estava agradecida de estar com um espírito afim. Embora não o conhecia, já gostava dele.

     —Doutor Alexander?

     Elevando a vista, franziu-lhe o cenho enquanto fechava a agenda de couro.

     —Você não é uma de minhas alunas. Está pensando em tomar uma de minhas aulas?

     Ela odiava o jovem que parecia às vezes, não é que fora mais velha que a metade dos estudantes, mas ainda assim... tinha tido um momento muito desagradável com sua credibilidade que não necessitava esse golpe também.

     —Não, sou a doutora Kafieri. Falamos por telefone.

     Ele se levantou imediatamente e lhe ofereceu a mão.

     —Sinto a confusão, —disse amavelmente enquanto se comprimentavam—. Estou realmente encantado em conhecer-te finalmente. Escutei um montão de...

     —Diferentes opiniões, estou segura.

     Ele riu muito naturalmente.

     —Bom, já sabe como são nossos círculos.

     —Não o suficientemente amplos a maioria dos dias.

     Ele riu novamente.

     —É verdade. Tens o livro contigo?

     Ela colocou sua maleta sobre a pequena cadeira frente ao seu escritório e o abriu. Tinha envolvido delicadamente o livro sobre papel livre de ácido para proteger sua delicada condição.

     —É extremamente frágil.

     —Vou ser cuidadoso.

     Viu como o desembrulhava e franzia o cenho.

     —Passa algo errado?

     —Não —disse com uma nota de sobressaltada reverência na voz—. É simplesmente incrível. Nunca vi um livro encadernado assim antigo.

     Pela cara juraria que também lhe trouxe algum tipo de lembranças dolorosas.

     —Podes lê-lo?

     Abriu a capa cuidadosamente antes de estudar as frágeis páginas.

     —Parece grego.

     —Sim, mas podes lê-lo? —repetiu-lhe, com a esperança de que pudesse reconhecer ao menos uma parte disso.

     Olhou-a e suspirou.

     —Honestamente? Posso decifrar algumas das palavras pelas raízes de significados básicos, mas este dialeto é algo que nunca vi antes. Definitivamente é anterior a minha área de especialização... Provavelmente de várias centenas de anos ou mais.

     Queria amaldiçoar pela frustração. Estava tão cansada de ouvir isso.

     —Sabes de alguém que poderia ser capaz de traduzir isto?

     —Sim, para falar a verdade, sim sei de alguém.

     Levou todo um minuto que a inesperada resposta filtrasse nela. Nem sequer o esperava?

     —Sério?

     Ele assentiu.

     —Ele é o historiador ao qual sempre recorro cada vez que necessito de informação. Não há ninguém no universo que saiba mais a respeito das civilizações antigas que ele. De fato, sabe tanto a respeito delas que parece que tivera vivido nelas.

     Isto era inclusive melhor do que ela tinha esperado.

     —Onde ensina?

     Julian fechou o livro e o envolveu novamente.

     —Ironicamente, não leciona. Mas tens sorte, está aqui na cidade por um par de semanas ajudando com o Projeto Novo Lar e Hábitat para a Humanidade.

     Seu coração estava correndo ante a perspectiva de ter a alguém que corrobore que o livro era tão antigo como a Atlântida, que verificasse que era de natureza Atlante...

     Seria um sonho feito realidade se pudesse ler algo do diário.

     —Há alguma possibilidade de que possamos nos reunir com ele? —perguntou-lhe sem fôlego.

     —Espere um segundo e me deixe ver. —Tirou um telefone celular do bolso e discou.

     Tory mordeu a unha do polegar e rogou em silêncio falar com o homem tinha a chave para decifrar seu livro. Daria qualquer coisa para conhecê-lo...

     Julian lhe sorriu.

     —Olá Acheron, é Julian Alexander. Como vai?

     Ela podia ouvir ligeiramente a voz ao outro lado do telefone.

     Julian riu de algo que o homem disse.

     —Deixo isso para ti... olhe a razão pela qual te chamo é porque tenho a uma colega em meu escritório que tem algo que necessitamos que dês uma olhada, eu pessoalmente nunca tinha visto nada igual, e acredito que de um histórico ponto de vista tu também estarias muito interessado nele. Há alguma possibilidade de que poderíamos passar para ver-te? —Sacudiu a cabeça—. Sim, é realmente merda velha, bonita frase como certo, —deteve-se escutar. — Sim, está bem.

     Julian a olhou.

     —Podes ir vê-lo agora mesmo?

     —É obvio. —Caminharia sobre cristais quebrados para conhecer o homem.

     Retornou à ligação.

     —Sim pode ir. Vemo-nos logo, —desligou e sorriu—. Está um pouquinho ocupado agora, mas estará mais que feliz de dar uma olhada.

     —Oh benditos sejam os dois!

     Julian lhe devolveu o livro.

     —Podes me acompanhar?

     —Claro. Para onde vamos?

     Ele recolheu a jaqueta do respaldo da cadeira e a pôs.

     —Acheron está fazendo voluntariado no Hábitat para a Humanidade. Está na esplanada de um terraço.

     Tory franziu o cenho à imagem de um clássico e robusto professor na parte superior de um telhado.

     —Portanto, seu nome é Acheron...?

     —Parthenopaeus.

     Ela riu.

     —Santo céu! Nunca pensei que havia alguém mais grego que eu. —Com um nome como esse, tinha que ser velho. Nenhum pai moderno seria tão cruel.

     Com um estranho brilho nos olhos, Julian sorriu.

     —Sim, ele é surpreendente quando se trata de fatos históricos. Como disse, conhece a antiga Grécia melhor que ninguém que conheci ou escutei. —Levou-a fora do escritório.

     —Quanto tempo a vem estudando? —perguntou-lhe enquanto segurava a porta do escritório.

     —Desde o momento em que nasceu.

     Ela embalou a maleta em seu peito.

   —Pobrecinho, soa como eu. Juro que meu pai me estava lendo a Ilíada no instante em que fui concebida.

     Rindo, Julian a levou ao estacionamento. Ela se meteu em seu branco Mustang GT e seguiu a sua negra Range Rover ao longo da Esplanada. Até havia um montão de lares em Nova Orleans que não foram reconstruídos do Katrina. Fez-lhe sentir bem saber que o amigo de Julian era tão amável de ajudar com a reconstrução. Dizia muito do homem, sobretudo tendo em conta quão velho devia ser.

     Estacionou na rua atrás de Julian e agarrou a maleta. À medida que se aproximavam da casa com a equipe de voluntários, tratou de decifrar quem era este incrível historiador que o principal perito mundial o consultava.

     Havia um bonito homem mais velho que entregava um pedaço de madeira a um homem mais jovem. Ele luzia como um historiador.

     Julian se dirigiu para ele.

     —Ei, Karl, poderia dizer ao Ash que estou aqui para vê-lo?

     —Claro. —afastou-se deles e dobrou em uma esquina, ficando fora de vista.

     Julian estirou a mão pelo livro. Tory o tirou e o deu.

     Ela esquadrinhou a área e olhou o teto onde cinco pessoas estavam sentadas. Duas eram mulheres e havia três homens jovens. Mas foi um deles o que capturou sua atenção. Usando uma camiseta negra, tinha o melhor par de braços que alguma vez tinha visto. Bronzeados e formosos, cada músculo era perfilado à perfeição... e não só eram seus braços. O suor de seu martelar fez com que a camisa se aferrasse a umas musculosas costas que tinham sido feitas para lambê-las.

     Levava um capuz negro ao avesso e ainda de onde estava podia ver os negros fones que levavam a um iPod no bolso traseiro de seus rasgados jeans. O pé esquerdo mantinha o ritmo enquanto trabalhava.

     Tomou fôlego bruscamente ante a visão que ele oferecia. Minha mãe, se esse homem tinha um rosto remotamente bonito, seria um deus entre os homens.

     Seu telefone começou a soar. Distraída, Tory viu que sua amiga Kim a chamava. Cortou-lhe e voltou a olhar ao teto.

     Demônios, o senhor quente já se foi. Estava bem... não tinha tempo para homens de todas maneiras e um garoto como ele nunca notaria uma mulher como ela. Procurou novamente ao homem que tinha ido encontrar.

     Viu que o que tinha ido atrás de Acheron, dirigiu-se para o outro lado da casa sem dizer uma palavra. Um par de pessoas vieram pelo canto e logo viu o rapaz do terraço...

     Santos deuses do Olimpo! Era incrivelmente alto, magro e musculoso. Sua camiseta se aferrava a esse corpo perfeito e quase não chegava à cintura de suas calças. Em lugar disso, expunha uma deliciosa vista de um duro e bronzeado estômago que parecia uma tábua de lavar. Seus jeans penduravam baixos em seus estreitos quadris, tão baixos que lhe faziam perguntar se trazia roupa interior. Usava um par de óculos de sol escuros e estava mascando chiclete da maneira mais sexy que jamais tinha visto. Suarento e formoso, estirou-se para retirar a boina... e expôs uma juba de cabelo negro carvão com uma mecha vermelha na parte dianteira.

     Não… certamente este não era...

     É obvio que o era. Reconheceria esse meticuloso e sexual caminhar em qualquer lugar.

     Lentamente retirou os fones enquanto se aproximava deles.

     —Ei, Julian.

     E quando a olhou, ela quis gritar.

     —Madito Idiota! —grunhiu-lhe, emocionada pelo fato de que esse tipo de linguagem abandonasse realmente seus lábios frente ao doutor Alexander. Poucas vezes utilizava esse tipo de palavras, mas claro nunca tinha odiado a ninguém tanto como odiava a este cara.

     Olhou a Julian.

     —Vem até ele para assessoramento? Só tem, quantos, cinco anos? Juro que tenho suéteres de sua idade. —virou airadamente para retornar ao seu automóvel.

     —Não querias que visse algo? —mediu o homem com um toque de risada na voz.

     Essas palavras a puseram no reino dos irritados de uma maneira que não tinha conhecido nunca antes. Uma crua e implacável fúria a cegaram e antes que soubesse o que estava fazendo, tirou um martelo da caixa de ferramentas do lado e o jogou na cabeça.

     Por desgraça, agachou-se. . . e logo riu. Riu!

     Incapaz de suportar suas brincadeiras, apressou-se para o automóvel, com a esperança de que não sentisse a urgência de atropelar a ambos.

     Julian olhou atentamente a Ash.

     —Demônios, Atlante! O que lhe fizeste?

     —Aparentemente tenho feito uma nova amiga.

     Rindo nervosamente, Julian sacudiu a cabeça.

     —Fiz um amigo como esse uma vez. O bastardo quase me estripou.

     —Sim. —Ash sentiu uma onda de culpa ao saber que a tinha ferido tanto. Mas não era nada comparado com o que lhe faria se ela tinha êxito na busca—. Suponho que vou voltar para meu telhado.

     Julian inclinou a cabeça para a rua.

     —Tenho que ir e encontrá-la de modo que possa devolver-lhe isso.

     Ash ficou frio enquanto viu o pequeno pacote na mão de Julian.

     —Lhe devolver o que?

     —É um diário que encontrou em uma escavação na Grécia.

     —Posso vê-lo?

     —Claro. — Julian o desembrulhou e o entregou.

     A mão de Ash tremeu enquanto se obrigava a não se deixar trair pelas emoções. Mas em seu interior... em seu interior estava cego de dor. Abriu a capa e viu a escritura que conhecia tão bem.

     Hoje é o décimo oitavo aniversário de meu nascimento. Papai me despertou com um novo colar e Mãe e eu passamos a manhã em nosso jardim. Papai sempre foi o suficientemente amável de deixá-la me visitar ao aniversário de meu nascimento.

     Ash apertou os dentes enquanto imaginava o jardim que Ryssa tinha mantido tão meticulosamente cuidado. Nunca tinha sabido que o compartilhava com sua mãe.

     —Podes lê-lo, não é assim?

    Ash assentiu.

     —É um antigo dialeto. Provincial.

     —Bom, eu diria que a faria feliz saber disso, mas depois de sua reação contigo, não estou tão seguro.

     Nem tampouco ele. Por outra parte, merecia sua ira.

     —Importa-te se fico com isto?

     Ele duvidou.

     —Não é realmente meu. Entretanto, confio em que farás o correto com ele.

     —Me acredite, farei.

     Julian inclinou a cabeça, logo virou para partir.

     Ash ficou ali, sustentando o diário de sua irmã. Não podia acreditar que se conservou tão bem. Tinha estado enterrado sob o mar desde o dia em que ele tinha afundado Didymos. Mas, diferente de sua mãe, assegurou-se de que todas as pessoas vivas se foram antes de havê-la apagado.

     Agora tinha um pedaço de seu passado que retornou como um inquietante fantasma. A questão era o que ia fazer com ele?

 

    Três dias mais tarde quando atravessava caminhando o campus para seu escritório, Tory estava o bastante encolerizada para cuspir pregos de ferro. Que atrevimento por parte do doutor Alexander, dar seu diário a esse... esse...

     Um dia ela ia pensar em uma palavra que descreveria adequadamente a particular espécie de rasteiro, do arroio, repugnante, … infame, de Acheron.

     —Doutora Kafieri?

     Deu a volta para ver Kyle Peltier, um de seus estudantes, correndo para ela. Era o típico estudante do penúltimo ano, com o cabelo loiro e um rosto doce. Acabava de transferir-se de outra faculdade este semestre e era um de seus melhores alunos.

     —Sim?

     —Um amigo meu me pediu que lhe desse isto. —Ele a ofereceu uma caixa envolvida em papel de embrulhar.

     Ela contemplou o inesperado presente.

     —Não entendo.

     —Eu tampouco, mas quando ele pede um favor, fazça o favor sem perguntar por quê.

     Tory franziu o cenho ante suas enigmáticas palavras enquanto pegava a caixa. Imediatamente Kyle se foi correndo antes que ela pudesse lhe perguntar algo mais.

     —Bem isso foi interessante. —A caixa era pesada. Sacudiu-a, mas não podia imaginar o que era que poderia conter.

     Com sua sorte atual, uma bomba.

     Afastando o pensamento, dirigiu-se para seu pequeno escritório, agarrou uma xícara de café e logo começou a abri-la, o qual era mais fácil dizer que fazer. Parecia que o obsequiante a tinha selado hermeticamente atando-a com fita adesiva.

     —Odeio quando as pessoas fazem isto!

     Finalmente, depois de não menos cinco minutos, foi capaz de separar a tampa da caixa e liberá-la de um puxão. Ao abri-la, ficou gelada. Esta continha um martelo, um molho de folhas de oliva, uma nota atada a uma solitária rosa vermelha, e uma bolsa de couro do mesmo tamanho que um pequeno livro. Com o coração palpitando, levantou a bolsa de couro marrom e a abriu para encontrar seu diário.

   Um sorriso curvou seus lábios. Assim que o pequeno monstro tinha feito o que devia. Então foi capaz de rir pelo do martelo e «os ramos» de oliva que ele tinha posto dentro. Tirou sua nota e a abriu para encontrar uma formosa letra masculina.

Não sou realmente o idiota que pensas que sou. O diário é de uma moça em uma isolada parte da Grécia e documenta sua vida durante aproximadamente dezoito meses. É uma leitura mais ou menos aborrecida, mas se quiser mais detalhes, me ligue. 555-602-1938.

Eirini,

Ash

     Eirini, paz em grego. Tory sacudiu a cabeça. Não o idiota, pensou, sim de acordo. Mas era uma espécie de gesto doce e lhe havia devolvido seu diário.

     Com uma rosa.

     Sustentando-a alto, inalou a doce fragrância e sopesou se queria ou não pôr os olhos de novo no troll.

    Com os braços cruzados sobre o peito, Urian olhou carrancudo a Ash, enquanto Ash se sentava em seu trono no Katoteros e tocava guitarra. Quase tão alto como Ash, Urian tinha o cabelo comprido de cor loiro platino e o tinha recolhido em um rabo. Antigo Daimon, Urian tinha sido salvo por Ash depois que o pai de Urian lhe cortasse brutalmente a garganta. E assim como seu pai, Urian tinha uma personalidade extremamente mordaz da qual estava mais que orgulhoso.

     Sem nenhum desejo de tratar com o instável mau humor de Urian ou justificar a si mesmo, Ash ignorou ao homem enquanto continuava cantando «Push» dos Matchbox Twenty em voz baixa.

     Simi estava deitada de barriga para baixo, vendo a QVC enquanto devorava um balde de pipocas de milho com sabor churrasco. Estava vestida com meias negras e uma saia de tecido escocês curto com uma camisa de corte camponês rosa e negra e um espartilho.

     Urian se deslocou para onde estava Alexion mantendo as distâncias de um lado, também olhando fixamente a Ash, como se Ash fora um experimento científico que tivesse saído seriamente errado. Durante milhares de anos, Alexion tinha sido a única pessoa que Ash permitiu em sua casa além de Simi. É obvio isto foi pela profundidade da culpa, já que Alexion tinha sido Ias, um dos primeiros Dark-Hunters que criou Artemisa. Ash tinha conseguido devolvê-lo a uma quase fantasmal existência usando seu sangue para impedir que Ias fosse uma Sombra.

     Muito ruim Savitar por não haver-lhe explicado aqueles poderes a Ash antes. Isto lhe teria economizado tanto a Ias como a ele um montão de sofrimento. Mas ao menos Ias não estava em constante dor e miséria.

     —O que passa ao chefe? —perguntou-lhe Urian.

     Alexion deu de ombros.

     —Não sei. Ontem à noite chegou com um livro, foi ao seu quarto para lê-lo, suponho, e logo saiu daqui esta manhã e esteve tocando... essas canções desde então.

     Essas canções eram baladas, as quais Acheron nunca tocava. Godsmak, Sex Pistols, TSOL, Judas Priest, mas não...

     —Isso... —Urian se encolheu fisicamente antes de cuspir o nome— Julio Iglesias?

     —Enrique.

     Urian pôs cara de espanto.

     —Nem sequer sabia que ele conhecia alguma merda melosa. Queridos deuses... está doente?

     —Não sei. Em nove mil anos, nunca o vi desta maneira antes.

     Urian se estremeceu.

     —Começo a estar assustado. Isto tem que ser um sinal do Apocalipse. Se começar com o Air Supply[4], digo que nos aproximemos sigilosamente a ele, o levamos arrastado para fora e lhe tiramos golpes a merda.

     —Permitir-te-ei isso e que os demônios o façam. Pessoalmente eu gosto muito de meu estado semivivo para pô-lo em perigo.

     Ash levantou a vista e transpassou a ambos com um malévolo olhar aceso.

     —Vocês duas garotas não têm nada melhor a fazer como tirar as penugens dos dedos dos pés?

     Urian sorriu abertamente.

     —A verdade é que não.

     Ash grunhiu por baixo uma advertência, mas antes que realmente pudesse ameaçá-los, seu telefone soou. Reclinando a cabeça para trás, suspirou frustrado. O maldito telefone sempre disparava. Desta vez melhor que não fora Artemisa para trepar com ele ou iria por ela e…

     Seus pensamentos se dispersaram quando viu um prefixo local de Nova Orleans. Não reconheceu o número e não registrou um nome. Que estranho. Com um movimento seco abriu a tampa e atendeu.

     —Está Ash?

     —Soteria?

     A garganta de Tory ficou seca ante o modo em que ele disse seu nome. Posto que ela era grega, nunca tinha pensado realmente que o grego fora uma língua bonita, mas quando ele o falava...

     Quase nem podia formar um pensamento coerente.

     —Um, Tory. Me chame de Tory.

     —Ah, não sabia. Posso fazer algo por ti?

     Sim coração, tire a roupa e...

     Ela sacudiu a cabeça. Nunca tinha pensamentos como estes e não sabia por que os tinha agora, quando tinha assuntos a discutir com alguém a quem detestava absolutamente.

     —Ah, sim, eu me perguntava sobre o diário. Há alguma possibilidade de que pudesse te reunir comigo mais tarde e me contar mais sobre ele?

     —A que horas?

     Agradecida de que não a desligasse depois que lhe tinha atirado um martelo, sorriu.

     —Estarei em casa em aproximadamente uma hora.

     —Ali estarei. —Ele desligou.

     Não foi até que Tory desligou o telefone que se deu conta de algo. Não lhe havia dito onde vivia.

     —Oh meu Deus, ele é um assediador.

     Seu telefone soou.

     Ela o atendeu para encontrar a Ash ali com aquela hipnótica voz profunda:

     —Só é que me dei conta de que não tenho sua direção.

     Rindo-se, ela moveu a cabeça ante sua imaginação hiperativa.

     —Não sou difícil de encontrar. Estou no 982 do St. Anne descendo pelo Quarter.

     —Veremo-nos mais tarde, pois.

     A arcaica maneira em que ele o disse, fez com que um tremor percorresse descendendo sua coluna. Ao desligar o telefone, não pôde menos que sorrir e nem sequer sabia por que.

     Ele é um idiota. Um completo e total imbecil.

     Que lhe tinha enviado uma rosa e que parecia saber ler uma língua que ninguém mais podia. Uma língua que ela desesperadamente precisava entender. Isto era trabalho. Não era um encontro. Poderia suportar sua insistente arrogância tempo suficiente para conseguir o que necessitava e logo ela ia atirá-lo de traseiro.

    Ash vacilou enquanto se teletransportava umas quantas casas mais abaixo da de Tory. Como a proprietária, esta combinava com o resto das casas da rua. Realmente não tinha nada destacável, apesar disso era simplesmente bonita. Pintada de um rosa muito pálido, e decorada com um branco envelhecido, era uma volta ao século das típicas shotgun rowhouse[5] de Nova Orleans. As persianas estavam hermeticamente fechadas e quando tentou olhar ao interior para encontrá-la, não viu nada.

     Nada.

     Provavelmente deverias sair correndo.

     Mas, por que? Tudo o que isto significava era que seriam amigos de algum tipo. Esta não era a primeira vez que lhe acontecia.

     Panaquices. Mesmo quando estavas destinado a ter amizade com alguém captou breves visões deles.

     Com ela não havia nada...

     Isto realmente o assustava e ainda assim se encontrou aproximando-se da porta e batendo.

     Escutou o que soou como a algo tropeçando lá dentro, seguido de um murmúrio baixo:

     —Merda!

     Ele segurou um sorriso ante a óbvia tribulação dela. Houve mais confusão antes que abrisse a porta.

     Seu cabelo castanho hoje caía solto. Grosso, brilhante e ondulado, aquele cabelo incitava a ser tocado... não, incitava a um homem a sepultar o rosto nele e inalar nela. Como podia ter pensado alguma vez que era comum? Não lhe estranha, ela o tinha tido recolhido na outra noite. Sem mencionar, que isto fazia com que parecesse muito mais jovem que quando o levava solto em volta do rosto. Suas bochechas estavam ruborizadas, o que fazia que seus agudos e inteligentes olhos resplandecessem.

     E aqueles lábios...

     Carnudos e cheios, foram feitos para uma noite cheia de beijos.

     Mas a melhor parte eram seus óculos que estavam sempre ligeiramente torcidos. Como se ela o percebesse, endireitou-os e tirou dos olhos uma mecha de cabelo deslocado.

     —Sinto muito. Tenho dificuldades técnicas para atravessar uma sala sem chocar com algo. Graças a Deus minha estupidez está só limitada a terra. Provavelmente me mataria mergulhando se fosse assim penosa debaixo da água.

     —Não há problema. —Ash se agachou para esquivar o dintel da porta ao entrar.

     Os olhos de Tory se abriram de par em par quando o observou entrar na sala de estar. Apesar de saber que sua casa não era grande, sua presença nela parecia encolhê-la reduzindo-a a um nada. Ele literalmente enchia o quarto com sua dominante presença.

     —És extravagantemente alto, certo?

     Ele arqueou uma sobrancelha negra por cima da borda daqueles óculos de sol que pareciam estar permanentemente presos a sua cabeça.

     —Para ser uma mulher que quer minha ajuda estás sempre disposta a me insultar. Acaso eu deveria fazer que isto resultasse tão indolor como fora possível e partir agora antes que o idiota comece a agonizar dolorosamente aguilhoado por suas coisas uma vez mais?

     Ela fechou a porta.

     —Te diria que sinto tudo isto, mas tens que admitir que foi um estúpido. O que faria se alguém tivesse feito isto a ti?

     Ash não respondeu. Isso dependia se tivesse sido antes ou depois de que sua divindade tivesse sido desbloqueada. Antes que ele a tivesse recebido. Agora... Oh eles o lamentariam por toda a eternidade.

     Ele explorou a pequena casa que estava lotada com objetos antigos da Grécia e Roma, assim como toneladas de fotos emolduradas de suas ruínas. Então viu o pequeno balde de lixo com o que ela tinha tropeçado. O conteúdo estava ainda no meio do chão. Ela era um desastre andante o que ele encontrou curiosamente encantador.

     —Interessante lugar tens aqui.

     —Sim, adoro as coisas velhas.

     Uma onda de diversão lhe atravessou quando ele considerou sua própria idade.

     —Como de velho?

     —Ah, quanto mais velho melhor. Tu nunca poderás ser o bastante velho no que a mim concerne.

     Então ela deveria adorar o chão que ele pisava.

     —Posso te oferecer algo para beber? —perguntou ela, empurrando para cima os óculos por seu nariz.

     —Tens uma cerveja?

     Ela franziu o cenho.

     —Não é um pouco cedo para isso?

     —Vinho?

     Pondo os olhos em branco, ela fez um som de supremo desgosto.

     —Juro-te que és igual a um rapaz de uma fraternidade. És o suficientemente crescido para beber?

     O insulto o divertiu.

     —Sim. Confie em mim, sou muito mais velho do que pareço.

     —Já ouvi isso antes. Pediria-te a carteira de identidade, mas provavelmente seja uma falsificação.

     Para falar a verdade o era, mas só porque ninguém acreditaria jamais sua verdadeira data de nascimento e se o fizesse, tratariam de encerrá-lo em uma cela para estudar sua longevidade.

     —Não gostaria de alguma outra coisa? Chá? Café?

     Ash negou com a cabeça.

     —Estou bem, de verdade. Não quero mais insultos. Eu gostaria de experimentar três minutos inteiros em sua presença antes que te lances sobre mim outra vez... e realmente deveríamos nos assegurar de que o instrumental está guardado sob chave. —retirou a manga de sua jaqueta para olhar seu relógio—. Deixe-me pôr em marcha o cronômetro...

     Ela abriu a boca para responder, mas ele elevou a mão.

     —Espera. Restam dois minutos e cinqüenta e cinco segundos.

     —Não sou tão má.

     —Síp... não estás dentro de meus sapatos.

     Ela baixou o olhar aos seus enormes pés que tinham que ser de um tamanho quarenta e sete ou quarenta e oito, se é que se faziam tais coisas.

     —E a julgar pelo enorme tamanho, não acredito que haja muitas pessoas que possam.

     Ele estalou a língua.

     —Quase conseguimos trinta segundos sem um insulto. Acredito que precisamente batemos um novo recorde.

     Ela odiava o fato de que fora realmente encantador. Pior, estava cativando-a.

     —Bem, comportar-me-ei. Se não te importa me seguir, a cozinha está na parte de trás.

     Ash ajustou a mochila sobre o ombro antes de segui-la pela casa. Quando se aproximaram da cozinha se deteve ante um dos quadros na parede. Tratava-se de uma foto familiar com Tory de pé olhando à frente e no centro, mas havia três pessoas nela que ele conhecia intimamente.

     Geary, Arikos e Theodoros Kafieri.

     Não lhe estranhava que não pudesse ver seus pensamentos ou futuro.

     —É esta tua família?

     Ela jogou uma olhada atrás.

     —Sim. Meu papou é o que está junto a mim.

     Theo. Ash sorriu ante seu velho amigo. Theo tão somente tinha sete anos quando foi cegado durante a Segunda Guerra Mundial em um ataque contra sua cidade que tinha aniquilado a toda sua família. Ash foi quem havia trazido o menino a América onde pudesse começar uma nova vida e estar seguro. Tinha estado cuidando de Theo desde então.

     Então não era que Tory tivera algo a ver com ele, era o fato de que estava ligada a Theo e a Arik o qual estava casado com Geary. Arik tinha sido uma vez um deus grego do sonho. Aquelas conexões com Tory explicavam muito.

     Ash relaxou imediatamente.

     —Parece que tens uma grande família.

     Ela sorriu.

     —A típica grega. Há um milhão de parentes, mas por outro lado com um nome como Acheron, estou segura de que sabe do que vai isto. —Ela ergueu sua cabeça como se recordasse algo—. Sabe o que? Meu avô tem um amigo muito querido que se chama Acheron.

     —De verdade?

     —Sim, conheceram-se na Grécia e vieram a América juntos. Mas isso foi há muito tempo. —Ela voltou para a cozinha e abriu uma gaveta que continha pequenos pacotes marrons de café e chá. Tirando um, pôs para funcionar sua cafeteira Flavia, logo assinalou a mesa da cozinha onde tinha um montão de livros, mapas e notas desordenadas.

     Ash se dirigiu para lá e ficou impressionado. Ela era uma mulher muito ocupada.

     —Pegue uma cadeira —disse ela, tirando sua xícara antes de abrir a porta da geladeira.

     Ash abriu os olhos pasmo ante a visão de um frigorífico extremamente organizado. As baldas estavam cheias com vasilhas de plástico de cor clara empilhadas ordenadamente que tinham etiquetas brancas com seus conteúdos cuidadosamente catalogados.

     —Tem-te feito com muitos Rubbermaid[6] aqui, né?

     —Tenho um pequeno problema de Transtorno-obsesivo-compulsivo. Nem importa. —Ela pegou um pote da seção B. Seriamente.

     —Isto está realmente além de um ligeiro TOC. Tens um problema sério, não é assim?

     —Te cale, sente-se e leia.

     À exceção de seu demônio Simi, ninguém desde seu renascimento como deus tinha sido tão desdenhoso nunca com ele.

     —Por favor?

     —Necessitas de alguma coisa?

     Ele elevou uma sobrancelha.

     —Seja cortês comigo, Senhora. Sou proprietária do Mundo, Agora Faça O que Te Digo patético Plebeu.

     Ela zombou dele.

     —Não me pegas como o tipo de sujeito que recebe ordens de todos os modos.

     —Sim, mas um simples por favor chega longe. Sou eu que está fazendo o favor aqui.

     Ela pôs sua vasilha de baklava na mesa.

     —Muito bem. Por favor, sente-se, te cale e leia.

     Ash levantou as mãos em um ato de rendição. Francamente deveria estar horrorizado por seu trato para com ele e ainda assim estava estranhamente divertido com ela. Dando-se de ombros tirou a mochila, sentou-se e se aproximou do diário de Ryssa.

     —O que queres saber?

     —Tu afirmas que podes lê-lo. Leia-o.

     Tory bebeu a goles seu café enquanto o olhava e notou que suas longas pernas quase não cabiam debaixo da mesa.

     Ele o abriu em uma página qualquer e logo começou a falar no que teve que ser a pronúncia mais formosa e fluída do grego antigo que ela tinha ouvido alguma vez. Ela só poderia reconhecer palavras ao azar, mas a facilidade com a qual ele lia e as inflexões de sua voz a levaram a acreditar que ele realmente poderia estar dizendo a verdade sobre que era conhecedor das palavras.

     —Poderias tentá-lo em inglês?

     Ele nem sequer fez uma pausa.

     —Hoje está chovendo. Não sei por que o som disto me incomoda tanto, mas sempre o faz. Antes que começasse a tormenta, fui ver Styxx ao átrio coberto. Ele estava com Papai como de costume e os dois praticavam táticas de guerra. Até as onze, Styxx se mostra como uma grande promessa para ser um líder e o guerreiro de grande renome. Não podia estar mais orgulhosa de meu irmão. Seu cabelo loiro lhe há posto claro neste verão já que passou tanto tempo ao ar livre. Tratei de chegar a ele…

     —Pare —interrompeu ela—. Realmente estás traduzindo isto, verdade?

     A ele pareceu lhe deixar perplexo sua pergunta.

     —Não é isso o que querias?

     Tory nem sequer soube que responder a sua pergunta. Sim, isto era o que tinha querido mais que tudo. Mas ninguém conhecia esta língua.

     Exceto um gótico, um alcoólico rapaz de fraternidade punky com um prego no nariz... e um corpo feito para o pecado.

     Como demônios era possível?

     —Onde aprendeste grego? —perguntou.

     —Na Grécia.

     Ela não podia aceitá-lo.

     —Não, grego antigo. Quem lhe ensinou isso?

     —Cresci com ele.

     —Mentes. Sei que estás mentindo. Ninguém neste planeta fala o grego antigo do modo em que tu o fazes. Consultei a peritos de todo o mundo e nenhum deles poderia fazer o que tu acabas de fazer.

     Ele deu de ombros despreocupadamente como se a inquietação dela não fora nada.

     —O que queres que te diga?

     Sacudiu a cabeça, não muito segura de si mesma.

     —Quero que me diga como é que sabes grego antigo desta maneira.

     —Minha família o falava e o aprendi desde o berço. Em muitos sentidos; esta era minha língua natal.

     O teria chamado de mentiroso, se não fora pelo fato de que seus próprios pais tinham seguido esse sistema com ela. Ainda assim, não podia fazer o que ele tinha feito. Era simplesmente assombroso.

     —Me conte sobre teu acento quando falas. Não é um acento grego típico.

     Ele a respondeu no grego impecável.

     —Nasci em um lugar chamado Kalosis. É tão pequeno que não está em um mapa. É uma ilha provincial e meu acento é uma mescla do de minha mãe e o antigo Ateniense.

     —Quando vieste aos Estados Unidos?

     —Depois de meus vinte e um aniversários.

     —E com todas falas o inglês como um nativo?

     Ele mudou de volta a seu corrente inglês americano.

     —Sou excepcionalmente bom com os idiomas. Quanto ao meu acento natal, vem e vai segundo meu humor e a palavra que esteja dizendo.

     Semelhantes singelas explicações a fizeram de repente sentir-se como Torquemada durante a Inquisição.

     —Me perdoe, Acheron. Verdadeiramente me dou conta como rabugenta devo soar enquanto tu estás tentado me ajudar —soltou um suspiro cansado—. Tu e eu tivemos um começo realmente ruim, verdade?

     Ele deu de ombros.

     —Tive muitos piores durante minha vida.

     Ela apreciou sua gentileza.

     —Sim, mas apostaria que não de alguém a quem tratava de ajudar.

     Ash teve que dissimular uma risada sarcástica ante isso. Se tão somente ela soubesse...

     Ela lhe sorriu e estranhamente tudo pareceu ser perdoado.

     —Outra vez, sinto que te ataquei. É só que a Atlântida foi toda minha vida. Não podes nem imaginar quão importante a história e minha investigação são para mim.

     Provavelmente tão importante como mantê-la oculta era para ele.

     —Olhe, fui um imbecil em Nashville. Admito-o e me desculpo completamente por isso. Normalmente não envergonho as pessoas dessa maneira. É só que por circunstâncias sei que a Atlântida é só um mito. Tu encontraste alguns objetos realmente interessantes, mas isso é tudo o que são. Está claro para mim que é uma erudita brilhante e sincera e posso apreciar a dedicação. Entretanto perde um tempo valioso em um tópico sujeito a discussão.

     Ela entreabriu os olhos.

     —Como sabes que é um mito?

     —Como sabes que não o é?

     Ela se inclinou para frente, tão perto que ficaram quase nariz com nariz.

     —Porque o homem que trouxe meu avô quando era um menino lhe contou histórias da Atlântida e da ilha antiga de Didymos para entretê-lo e afastar sua mente das graves queimaduras que tinha recebido dos Nazistas. Meu papou disse que o modo em que esse homem descreveu a Atlântida e suas maravilhas era como se ele tivesse vivido ali. O homem descreveu exatamente os mesmos edifícios que encontrei sepultados no Egeu.

     Ash ficou frio quando ela atiçou lembranças que ele tinha enterrado. Por que tinha contado a Theo aquelas histórias?

     Porque ele tinha sido um menino aterrorizado e Ash tinha querido consolá-lo. Tranqüilizar-lhe. Maldita seja. Como poderia ele ter sabido que aquele único ato voltaria para lhe explodir na cara sessenta anos mais tarde?

     —Mas o mais importante é isto. —Ela colocou a mão na caixa de madeira que estava na mesa e tirou uma moeda que ele não tinha visto desde que a tinha posto na mão diminuta de Theo quando tinha deixado ao menino com uma família adotiva em Nova Iorque com a promessa de que voltaria para visitá-lo. Esta possuía a imagem da mãe de Ash por uma cara e seu símbolo do sol pela outra.

     Merda.

     Tory deu um toquezinho à moeda.

   —A escritura em um lado é algo que nunca tinha visto em nenhuma parte até nosso descobrimento no verão passado. Na outra cara, é grego e embora não entendo tudo, posso distinguir o nome Apollymi. Agora, me diga que isto não é de Atlântida.

     —Não é de Atlântida —disse ele com sua voz soando vazia aos seus próprios ouvidos. Isto realmente tinha estado em seu bolso—. Poderia ser qualquer coisa. Poderia inclusive não ser uma moeda. Poderia ser um colar. Talvez ela era a esposa de alguém. —Ou sua mãe.

    —Nunca disse que isto fora uma moeda. Naquela época não tinham dinheiro, verdade? —Seu olhar o perfurou—. Tu sabes a verdade, certo?

     Ash fez que seu telefone soasse.

     —Mantenha esse pensamento. —Ele fingiu respondê-lo e se levantou enquanto tentava pensar em uma resposta plausível.

     Maldita fora por ser tão rápida.

     Tory observou como Ash saía do quarto para atender a chamada. Ele voltou uns minutos mais tarde.

     —Tenho que ir.

     —Mas não podes. Tenho mais perguntas para ti.

     Ele parecia frustrado por algo.

     —Seriamente que não tenho tempo para respondê-las.

     —Podes voltar?

     Ele negou com a cabeça.

     —Duvido-o. Viajo muito a trabalho e não estarei na cidade muito tempo. —Agarrou a mochila do chão e se dirigiu para a parte dianteira.

     Ela o seguiu.

     —Posso te pagar por seu tempo.

     —Não se trata de dinheiro.

     Ela puxou-o lhe detendo.

     —Por favor, Acheron... por favor.

     Ash quis afastá-la de um empurrão e assustá-la. O deus nele não gostava de ser crivado de perguntas.

     O homem nele queria provar aqueles lábios que incitavam a um beijo.

     —Não posso, Tory. —Não posso... Sua decisão se assentou, brandamente tirou a mão dela do braço e partiu.

     Tory quis gritar enquanto o via descer a escada dianteira de sua casa que lhe conduzia à rua. Ele virou à direita e se dirigiu para o Bourbon Street.

     Tinha que haver algum modo de conseguir que a ajudasse. Ele era o único que podia ler aquele livro e com essa total convicção em seu interior, não ia aceitar um não por resposta.

     Ao final do dia, ela era uma Kafieri e ninguém dizia não a um Kafieri.

     —Podes correr de mim tudo que queiras, senhor Parthenopaeus, mas não serás capaz de te esconder. Me darás o que quero. —ia assegurar-se disso.

 

    Ash fez todo o possível para tirar Tory da mente, mas era impossível. Simplesmente havia algo a respeito dela que o atraía.

     Ele odiava isso.

     Mas nem a metade do que odiava o modo em que a tinha deixado na estacada como um covarde no dia anterior. Seguia dizendo-se que era por bem e ainda assim, não podia convencer-se completamente disso. Havia algo consolador quando estava ao seu redor, o qual, dada sua habitual hostilidade para com ele, não tinha sentido absolutamente.

     Agora sentado no telhado da casa que estava ajudando a construir, tentou limpar a cabeça e retornar ao trabalho.

     Alguém lhe tocou o pé. Olhou para cima para ver Karl diante dele. Ash tirou um dos fones.

     —Sim?

     —Visita.

     Assumindo que era um de seus colegas em Nova Orleans, Ash deixou o martelo e se dirigiu para a escada de mão. Não foi até que tinha baixado até a metade que viu Tory esperando-o. Seu cabelo estava recolhido para frente em ondulados rabinhos. Levava posta uma saia bege longa e uma jaqueta marrom.

     Mas foram seus grandes olhos marrons o que lhe ficou gravado.

     Por olhá-los e não ao que estava fazendo, perdeu o pé e caiu de repente da escada, diretamente ao chão onde aterrissou com a mais embaraçosa porrada, e que não ajudou o que a escada caísse então sobre ele, atraindo todas as olhadas para sua torpe estupidez. A dor o golpeou com força nas costas, quadril e ombro enquanto lutava por conseguir algo de aparente dignidade.

     Considerando o modo em que ficou escancarado, realmente isto não tinha remédio. Suspirando, afastou a escada de suas pernas.

     Tory se aproximou atropeladamente para ajoelhar-se ao seu lado.

     —Estás bem?

     A resposta teria sido sim até que ela colocou a mão em seu peito. Nesta posição, tudo no que pôde pensar foi puxá-la e tombá-la sobre ele e dar uso a sua mão para algo muito mais agradável.

     —Sim, estou bem. —Então ele jogou uma olhada para as outras pessoas ao seu redor que o contemplavam preocupados. Seu rosto ardeu de vergonha—. Estou bem, a todos —disse mais alto—: Só foi um pequeno escorregão.

     Eles voltaram a trabalhar enquanto ele desejava tornar-se invisível. Nunca tinha feito uma coisa como esta.

     —Deveria ter mais cuidado —disse Tory em tom de repreensão. O que aconteceu com seu respeito para com ele? Obviamente tinha seguido o mesmo caminho que seu último vestígio de dignidade—. Poderia te haver quebrado o pescoço ou com o grande que és ter aterrissado sobre algum deles e lhe carregar.

     De acordo... a mulher estava louca.

     —O que fazes aqui, Tory? —Rodou e se levantou, então se deu conta de que se havia feito algo de verdadeiro dano na perna quando esta palpitou dolorosamente em protesto ao ser usada de novo. Fez tudo o que pôde para não grunhir ou coxear.

     O sorriso dela o deslumbrou.

     —Vim para te tentar.

     Era muito tarde, já o tinha feito e sabia que ela não queria dizê-lo no sentido em que ele o fazia.

     —Não posso ser tentado.

     —Sim, podes. Toda pessoa pode ser tentada.

     Mas ele não era uma pessoa. Recolheu a escada de mão e a devolveu a sua posição original. Então ficou a recolher os pregos que se haviam caído de seu cinturão de ferramentas. Quando empreendeu a volta para a escada, ela se plantou firmemente em seu caminho.

     —Tory... —grunhiu.

     —Olhe, serei honesta. Não houve jamais em toda a história da humanidade um ser humano nascido mais obstinado que eu.

     —Sim, aqui o há. Eu.

     Quando ele se pôs em marcha deixando-a a um lado, ela correu para a escada lhe rodeando e se situou no primeiro degrau. Deveria estar irritado como o inferno e ainda assim ela estava tão adorável ali, de pé, com sua saia longa e sapatos planos com um braço travado ao redor do degrau por cima de sua cabeça que fez tudo o que pôde para não lhe sorrir.

     —Muito bem, não tens que traduzi-lo. Só me ensines como fazê-lo e te deixarei em paz. Se isto ajuda, aprendo realmente rápido.

     Ele chiou os dentes com frustração.

     —Eu não gosto de discutir. Eu não gosto dos conflitos. Basicamente eu gosto que me deixem em paz para fazer minhas coisas e isto não inclui te ensinar nada. Agora, permite-me?

     —Por favor... —A expressão dela era uma mescla da mais ardente e maravilhosa súplica e da mais crua sedução que ele tivesse visto alguma vez—. Serei sua escrava de baklava até que morra.

     Ele franziu o cenho.

     —Minha o que?

     —Escrava de baklava. Faço o melhor que tenhas provado jamais e te manterei sortido deste até que sejas gordo e velho.

     —Não como baklava.

     —Isso é porque nunca comeste o meu. A menos que sejas alérgico às nozes, tu adorarás.

     Tentou soltá-la à força da escada, mas veraz a suas palavras, ela não ia se mover. Sua cólera se rompeu. Como podia ser um dos seres mais poderosos no universo e não ser capaz de tirar do meio uma simples e pequena mulher?

     Ela fez com que seus olhos se parecessem com os de um cachorrinho triste.

     —Por favor, Acheron —disse em grego. Depois mudou ao inglês—. Três dias e logo nunca terás que me ver de novo. Diga-me o que queres em troca e o farei.

     Karl riu quando os ouviu por acaso.

     —Por que não lhe pedes que seja tua escrava sexual? Por isso eu lhe ensinaria tudo o que ela quisesse.

     A mandíbula dela caiu como se esse fora o pensamento mais repugnante que tivesse tido jamais.

     —Agg!

     Aquele único som o pôs em guarda.

     —Agg? —repetiu Ash—. Não podes falar a sério.

     —Sim, agg! Nem sequer te conheço realmente e aqui os dois pensam que simplesmente vou colocar-me correndo na cama contigo. Não obrigada! Deus, és um autêntico porco arrogante.

     Porco arrogante?

   Ela torceu sua cara com repugnância e deixou a escada.

     —Muito bem, investigarei sem ti —tremeu—. Deitar-me com ele por uma tradução, asqueroso —disse em voz baixa enquanto ia.

     Ash deixou pendurando o braço apoiado na escada enquanto a via encaminhar para seu carro. Estava completamente assombrado.

     Ela não queria deitar-se com ele...

     Ela pensava que se deitar com ele era asqueroso.

     Todo mundo que passava da puberdade queria estar em sua cama. Todos.

     Exceto Tory. Um estalo de esperança lhe transpassou quando se deu conta de que poderia ser uma das pessoas excepcionalmente estranhas que eram imunes à maldição de sua Tia Epithymia. Inclusive as mulheres que não encontravam atraentes aos homens o olhavam.

     Até agora, e ao longo da história, os que tinham sido imunes sempre foram homens... ou mulheres que eram cegas.

     Encontrar uma fêmea humana que não o desejasse...

     Poderia comportar-se de maneira normal em torno dela. Baixar a guarda e não ter que estar preocupado porque fora a começar a jogar-lhe a mão a entreperna. A novidade disto unicamente obteve que ansiasse estar a seu lado.

     Antes que pudesse frear-se, foi para o carro dela e a fez deter-se.

     —Ensinar-te-ei.

     Ela se virou airadamente e lhe cravou o índice no peito.

     —Não vou deitar-me contigo, amigo.

     Sorriu-lhe.

     —Não lte estava pedindo isso. Juro-o. Nunca pediria isso a ti.

     Ela ficou com a boca aberta antes que se inclinasse para ele com um grunhido ofendido.

     —O que? Pensas que te deitar comigo seria repugnante? Ah, és um idiota!

     Ash elevou as mãos com frustração.

     —Por que nunca posso ganhar contigo? Se quero me deitar contigo sou um porco e se não o faço sou um idiota. O que queres de mim?

     Ela ficou de pé junto à porta aberta de seu carro e elevou o olhar para ele, com aqueles olhos cheios de sentimento que o abrasavam até as vísceras.

     —Quero que traduzas o diário e te guardes as mãos para ti.

     —E apesar disso ainda tenho atrativo para ti?

     Ela soltou uma risada diabólica.

     —Exatamente. Agora o pegaste. —Deu-lhe uns tapinhas no braço—. Verei-te esta noite às sete.

     Não poderia esperar, pensou ele sarcásticamente. Talvez deveria fazer com que Simi viesse com ele. Cada vez que estava perto de Tory, sentia uma profunda necessidade de proteção. Ao menos deveria assegurar-se de ter posto um suspensório esta noite assim ela não poderia lhe pegar despreparado quando ele não estivesse olhando.

     Que tipo de bastardo masoquista era ele que seguia implicando-se com mulheres que o aborreciam?

     Deverias te esquecer disso de lhe ensinar algo.

     Sim, mas ela possuía uma parte de seu passado e se ele não a afastava de Atlântida e de Didymos, ia haver problemas ainda maiores. A fonte primitiva poderia requerer da indulgência nele, se ela se encontrava com outro dos diários de Ryssa. Ele tinha os quais pensava que eram os mais condenatórios. Mas não sabia sobre o que mais tinha escrito sua irmã. Tinha que se encarregar de Tory e sua busca obsessiva.

     A última coisa que precisava era que os Dark-Hunters averiguassem que sua mãe era quem tinha criado aos Daimons contra os que passavam a eternidade lutando e que estavam sendo dirigidos por um tsoulos que ainda se vendia para protegê-los. Seria desastroso para ele.

     Não, ele tinha que ajudá-la o suficiente para conseguir desviá-la desta busca. Talvez deveria encontrar algo sobre Lemuria[7] e levá-la a esse tema. Depois de tudo, o passado de Lemuria não tinha nada a ver com o seu.

     Poderias simplesmente matá-la.

     Essa seria a resposta de Savitar. Mas Ash não podia fazer isto tampouco. Theo tinha sepultado já a maior parte de sua família e se havia algo que ele sabia sobre seu velho amigo era quanto amava Theo a sua família.

     Não, tinha que encontrar outro modo de mover a massa inerte que era a obstinação de Tory antes que fora muito tarde...

     Escila e Caribdis[8]. Como Odiseo, estava apanhado entre a espada e a parede.

 

    Tory o tinha tudo disposto perfeitamente. Seu caderno, o diário e uma cerveja gelada para seu alto e irritável convidado. Estava no sofá, mordiscando um taco de queijo quando houve uma batida na porta no preciso instante em que o relógio dava as sete.

     Caramba... Como pontual poderia ser uma pessoa?

     Levantando-se, foi para a porta e a abriu para encontrar ao senhor Gótico todo engalanado com uma jaqueta longa de couro uso pirata, calças negras e um par de botas negras com crânios verdes de néon pintados nelas. Seu cabelo estava úmido como se se banhou recentemente e cheirava a morangos. Além disso, ainda levava aqueles óculos de sol escuros.

     —Entra —convidou, retrocedendo para lhe deixar entrar.

     Agachou a cabeça para não se golpear com o dintel da porta e se dirigiu à poltrona onde deixou cair sua mochila no chão e logo tirou a jaqueta. Pôs sobre a mochila e conservou as luvas negras sem dedos nas mãos.

     Ela olhou com o cenho franzido a tatuagem em seus musculoso bíceps que aparecia por baixo de sua camiseta negra.

     —Pensei que estava em teu antebraço.

     Ele jogou uma olhada à tatuagem e deu de ombros.

     —Não deveríamos começar?

     Antes que ela pudesse fechar a porta, o celular dele soou.

     Soltou um desinteressado suspiro antes de abri-lo.

     —Aqui Ash. Diga-me.

     Partiu para lhe abrir a cerveja e a deu enquanto ele escutava.

     Brindou-a um sorriso agradecido enquanto pegava a cerveja.

     —Uf, não. Seria realmente imprudente. Confia em mim, ela não tem senso de humor a respeito de nada que seja macho... Bem verei o que posso fazer. —desligou e discou o telefone ao mesmo tempo em que dava um gole à cerveja.

     —Em seguida estou contigo —a assegurou, logo se pôs a falar com alguém no telefone—. Ouça, Urian, necessito-te para jogar um olho a Zoe em Seattle. Está a um passo de brigar com Ravyn o qual ameaça degolá-la... Não, não vou poder subir lá durante uns dias. —Tomou outro gole—. Obrigado. —Desligou e colocou o telefone no bolso de trás.

     Tory lhe olhou com cenho.

     —E o que é exatamente que fazes?

     —Sou domador.

     —Um domador? —perguntou, divertida ante o mero pensamento dele a cavalo com um chapéu de vaqueiro negro adornado com crânios—. Como um vaqueiro?

     Ele soltou uma gargalhada.

     —Sim, só brigo com gente com atitudes vis. Você gostaria deles. A maioria são uns autênticos imbecis.

     —Ah, uma genuína reunião de mentes então.

     —Algo assim. —Seu telefone soou de novo. Grunhindo, tirou-o e olhou o número antes de abri-lo—. Não... Não tens que pedi-lo, sei o que queres. A resposta é não. Merda, não, posto que isto vem de Dominic. —Desligou e logo discou outro número—. Ouça, Alexion. Vou desviar-te algumas chamadas durante a seguinte hora mais ou menos. Não estou de humor para me ocupar delas agora mesmo. —Fechou o telefone outra vez, logo o deixou cair no bolso de sua jaqueta no chão.

     Passando uma mão terrivelmente grande por seu cabelo negro e vermelho, sentou-se na poltrona e elevou a vista para ela.

     —Estou preparado quando tu o estejas.

     —Estás seguro? Pareces um pouquinho tenso e não quero fazer nenhum movimento repentino se por acaso tomaste um montão de cafeína ou algo assim.

     Um canto da boca dele se curvou para cima em um encantador meio sorriso.

     —Estou bem.

     Tory foi à mesa de centro e recolheu o diário para assim poder dar-lhe.

     —Qual é a melhor maneira de fazê-lo?

     Ele tomou o diário e com cuidado o abriu antes de colocá-lo em equilíbrio sobre a coxa.

     —Quanto do antigo, antigo grego sabes?

     —A nível muito fluido.

     Falou-lhe outra vez e ela o reconheceu como grego, mas não tinha nem idéia do que estava dizendo. Era um formoso tumulto.

     Ela franziu o cenho.

     —É o mesmo dialeto que o do diário?

     —Não... —disse ele em inglês antes de mudar de volta ao grego—: Podes entender o que te digo agora?

     —Esse grego entendi totalmente.

     —Bom —disse em inglês—. É boa com a língua da Idade do Ferro. Isto ajudará.

     Tory cruzou os braços enquanto tratava de assimilar o período de tempo que o diário cobria.

     —Então o diário é da Idade do Bronze.

     Ele esfregou com o polegar a sobrancelha.

     —O que te disse tua datação?

     Suas bochechas se acenderam quando se viu obrigada a admitir o fato de que ele a tinha calado corretamente em Nashville. O troll.

     —Basicamente não foi concludente.

     —Já me imagino —resmungou ele, então mais alto disse—: Te prepare. O diário é da Idade da Pedra. Do período mesolítico para ser preciso.

     Tory balbuciou incrédula. Não havia forma de que fora tão velho. Nem sequer ligeiramente possível.

     —Estás zoando comigo.

     Ele negou com a cabeça devagar.

     Tory o contemplou.

     —Não. Equivocas-te. Completa e absolutamente. Simplesmente não é possível. Entende o que estás dizendo?

     —Entendo-o totalmente.

     De todos os modos se negou a acreditar nele.

     —Naquele tempo não tinham livros. Não estavam civilizados. Não tinham a escrita... Não tinham nem sequer casas! As pessoas ainda viviam em cavernas. Quase nem tinham o fogo.

     Ele permaneceu completamente estóico sob sua diatribe.

     —E como sabes tu isto? Acaso viveu durante aquele período?

     —Bom não, mas o registro arqueológico nos diz que a escrita não é tão antiga.

     —E o registro arqueológico é só tão sólido como o último achado. —Sustentou em alto o diário—. Felicidades, doutora Kafieri, verdadeiramente o ampliaste.

     Totalmente surpreendida, Tory não pôde fazer nada além de contemplar o livro na mão dele.

     —Está muito bem conservado para ser tão velho.

     Ele deu de ombros despreocupadamente.

     —Isto é o que há.

     —Sim, mas se for tão velho, como é que conheces a língua quando nunca tivemos nada daquele período em forma escrita antes?

     —Disse-te, esta é basicamente a mesma língua com a qual me criei. Vivi em uma comunidade muito pequena onde nosso grego não é o mesmo que com o quale tu cresceste falando. —Inclinou a cabeça para livro—. Esta é minha língua.

     Tory sacudiu a cabeça enquanto tratava de entender totalmente a importância de seu descobrimento. Do que ele lhe dizia. Era tão colossal. Muitíssimo mais do que tinha esperado alguma vez descobrir.

     —Entendes o significado de encontrar um diário assim antigo?

     —Mais que tu.

     —Ninguém vai acreditar nele jamais. Ninguém. —ririam dela, da profissão se sequer tentasse expor isto.

     Ash tomou outro gole de cerveja.

     —Provavelmente tenhas razão sobre isso. —Porque ia assegurar-se condenadamente bem disso.

     Com seus olhos brilhantes, embalou o diário contra si mesma como se fora um filho precioso.

     —Estou sustentando algo que alguém uma vez apreciou... há onze mil anos. Há onze mil anos —repetiu—. Meu Deus, Ash, entende o velho que é?

     Melhor do que ela poderia imaginar.

     —Este livro poderia me dizer tudo. O que comiam, como viviam... —Seus olhos se encheram de lágrimas—. Com este livro, temos descoberto um mundo que ninguém vivo vislumbrou alguma vez antes. Não posso acreditar neste descobrimento. Não me estranha que ninguém soubesse as línguas ou que a equipe não pudesse dar com a data correta. Isto saía das datas, mas ninguém acreditou, assim seguimos com os testes uma e outra vez. Oh, meu Deus! —disse em voz baixa—. Faz onze mil anos. Imagine que formoso devia de ser o mundo.

     Não da perspectiva dele. Pessoalmente, gostaria de ser capaz de purgar a maior parte daqueles anos de sua memória.

   —Estás deixando o óleo de tua pele por toda parte do diário. Não acredito que queiras fazer isso dada sua idade.

     Ela o posou imediatamente.

     —Obrigada. Tendo a me deixar levar às vezes. —sentou-se no chão, ao seu lado e capturou seu olhar enquanto ela sujeitava firmemente os braços da cadeira dele com suas mãos—. Que mais podes me dizer sobre ele?

     De novo, mais do que ela acreditaria em toda sua vida. Poderia lhe dizer que todas as pessoas nele existiram e apresentá-la a duas delas que viviam atualmente e respiravam. Essa era a parte mais horripilante de tudo. Mas os conteúdos deste eram inofensivos. Tudo o que mostrava era como tinha sido a protegida e ingênua Ryssa de moça. Quão preciosa tinha sido.

   —Que mais queres saber?

     Antes que pudesse responder, o telefone dela soou com «Bark at the Moon» do Ozzy Osborne.

     —Espera de um segundo. É David.

     Ash se recostou em seu assento enquanto ela atendia. Sabes que não deverias lhe haver dito o que era o diário. Mas por outro lado, realmente não tinha importância. Havia só um punhado de seres que poderiam lê-lo e um deles era humano. Além disso, melhor olhar e ler o livro primeiro ele. Agora sabia que não tinha nada que temer disso. Mas tinha que manter Tory perto de si e distraí-la desta busca antes que ela encontrasse um diário que fora irrefutável.

     Isto poderia ter suscitado perguntas que não queria responder.

     —É terrível! Está alguém ferido?

     Ash franziu o cenho ante a tensão na voz de Tory antes de voltar sua atenção à chamada.

     —De acordo, só mantenha-me a par. Obrigada, céu. —Seus traços estavam pálidos quando voltou.

     —Vai tudo bem?

     —Não, alguém atacou a um membro de minha equipe na Grécia ontem.

     Ash franziu o cenho.

     —O que queres dizer?

     —Oh, foi horrível. Perdemos algo da investigação e um par de objetos que acabavam de ser içados. David disse que Nikolas tratou de deter os assaltantes, mas que não pôde. Ficará bem, mas realmente está destroçado por isso. —Sacudiu a cabeça—. Juro-te que estamos malditos. Cada vez que nos aproximamos para subir pedaços grandes do achado, acontece algo ruim.

     —Talvez seja que os antigos deuses lhes estão avisando para que lhes deixem em paz.

     Ela soprou.

     —Talvez, mas não posso. Meus pais deram suas vidas para demonstrar a existência da Atlântida. Meu tio sacrificou sua vida e sua prudência. Minha prima pode ter abandonado a busca, mas jurei sobre as tumbas de meus pais que eu não o faria. Não antes que a reputação de meu pai seja restaurada. Estou farta de lhe ver ser o arremate da piada nas festas sempre que alguém fala em Atlântida —o olhou—. Estou segura de que tu não tens nem idéia do que é que zombem de ti e que te ridicularizem.

     —Não me conheces o suficientemente bem para fazer essa afirmação.

     —Lamento-o —disse quedamente—. Tens razão. A propósito, quem era a ruiva?

     Sua mudança constante de pensamentos o aturdiu.

     —De que demônios estás falando agora?

     —Em Nashville, estavas com uma bela mulher ruiva que se levantou e partiu ofendida. Quem era ela?

     Maldita seja, ela tinha estado atenta.

     —Uma velha amiga.

     —Realmente foste um asqueroso com ela. Por certo ela estava atuando, dei por certo que vocês dois estavam enrolados.

     Agora foi sua vez de soprar ante a mera idéia.

     —Oh, posso te garantir que não somos um casal. —Isto implicaria que Artemisa admitisse abertamente que tinha uma relação estreita com ele. E que importava se tiveram uma filha juntos e a metade do panteão dela soubesse que dormiram juntos? Ainda não se sentia com a coragem suficiente para confessar que ele era algo mais que seu favorito platônico.

     —Apesar disso és importante para ela —lhe repreendeu Tory.

     Ele teve que sepultar a ira que sentiu ante sua condenação assim que ela não tinha nem idéia de quanta merda tinha suportado de Artemisa durante séculos, incluindo o fato de que tinha guardado o nascimento de sua filha em segredo para ele durante mais de onze mil anos. A deusa teve sorte de que não a tivesse matado por aquele pequeno fato.

     —Olhe, minha vida particular é particular. Se este é o único assunto no qual estás interessada, parto-me.

     Ela lhe aplaudiu ligeiramente o joelho.

     —Não fiques tão resmungão todo o tempo.

     —Sim bom, eu não gosto de falar de mim e me aborreço com as perguntas pessoais.

     —Muito bem. Tudo o que quero é esse teu cérebro durante um tempinho. —Lhe passou um pote Rubbermaid pouco profundo com baklava.

     Ash franziu o cenho.

     —O que é isto?

     —Já te contei. Baklava.

     —E em realidade não o como, mas obrigado pela intenção. —O devolveu.

     —Tu o perdes. —Agarrou um triângulo antes de levá-lo de volta à mesa—. Agora me ensine como ler isto.

     Ash abriu o jornal novamente.

     —Há uns caracteres adicionais e ditongos que não existem no grego clássico ao qual tu estás acostumada. As terminações e as conjugações são também diferentes.

     Ela assentiu com a cabeça, logo assinalou uma palavra.

     —Adelphianosis. Isto é «irmão»?

     Ele ficou impressionado pelo rapidamente que ela identificou a língua desconhecida.

     —Sim.

     Ela franziu o cenho.

     —Assim se estou lendo corretamente, isto diz que seu irmão... —Ela assinalou a palavra anterior—. Styxx?

     —Sim.

     Sacudiu a cabeça confusa.

   —Por que lhe chamam Styxx? Este era um nome feminino de deusa.

     Ele sempre pensou que era uma estranha escolha para o nome de seu irmão também, mas que demônios? Ninguém lhe tinha perguntado e os pais de Ryssa nunca tinham estado em seus cabais.

     —E quantos homens se chamam Artemis[9]?

     —Bom argumento. Só é que me parece estranho.

     —Bem por isso tem um X adicional ano final. Para diferenciar a forma masculina da feminina.

     —Ah, isso tem sentido. —Ela voltou seu olhar ao livro no colo dele e sentiu uma sensação estranha de encolhimento no estômago. Como um murro só que foi mais sexual que isso e o pegou completamente despreparado.

     Ele não reagia ante as pessoas desta maneira.

     Não obstante, teve esta súbita compulsão de inclinar-se para frente e simplesmente aspirar seu cheiro. Tocar sua bochecha e ver se era realmente tão suave como parecia. Ou ainda melhor, tomar sua mão e pressioná-la contra o repentino vulto em suas calças que clamava pelo corpo dela. Seu pênis se esticou ante o mero pensamento dela lhe desabotoando as calças e tocando-o.

     Inconsciente de seu inesperado aspecto, ela arrastou o dedo descendo pela página, tratando de decifrar as palavras escritas por Ryssa com esmero.

     —Então, ela está contando sobre uma briga com seu irmão?

     Levou-lhe três segundos inteiros para que aquelas palavras se antepusessem ao desejo que tinha de beijá-la.

     —Uh... sim. Seu irmão estava zangado porque ela planejava visitar sua tia em Atenas e não queria que seu irmão a acompanhasse porque era chato viajar com ele.

     Tory elevou o olhar quando ouviu a profundidade da voz de Ash. Não podia dizer para onde estava olhando ele posto que ainda levava postos aqueles escuros óculos de sol.

     —Podes ver bem?

     —Muito bem.

     —Por que não tiras os óculos de sol?

     —Vejo melhor com eles postos.

     —Oh. —Ela estendeu a palavra quando teve uma repentina percepção.

     —És um desses, verdade?

     —Desses o que?

     —Um tipo vaidoso que necessita de óculos, mas como não queres que ninguém saiba e não podes pôr lentes de contato, então em lugar disso levas óculos de sol de grau. —Ela pôs os olhos em branco—. Tive uns quantos como tu em minhas aulas. Realmente, ninguém pensará menos de tua virilidade por necessitar de óculos, isso somente faz com que te convertas em um cretino. —destacou os seus dando um toque com uma unha nos óculos—. Olhe para mim. Prefiro ser capaz de ver a ser vaidosa nisto.

     Ash escondeu um sorriso ante sua última conclusão errônea sobre ele. Sem comentar nada, estirou a mão para pegar a cerveja e tomou um gole enquanto ela voltava para o diário.

     Sentaram-se ali durante mais de duas horas enquanto ela aprendia sua língua nativa. Era tão estranho ouvir alguém mais a falando depois de todo esse tempo que não pôde evitar sentir-se calentado por isso. Houve inclusive uma parte sua que ficou nostálgica pelo som. Este era um sentimento que não obtinha freqüentemente, já que ali tinha tido uma menos que desejável existência, mas por outro lado, o lar era o lar.

     Inclusive um ruim.

     E francamente, gostou de ter esta conexão com alguém. Ele tinha estado sozinho durante tanto tempo. Instruiu-se para não confiar em ninguém. Apesar disso, encontrou-se querendo confiar nela e sem saber por que. Possivelmente era pela feroz lealdade dela. Ele desejava ardentemente que alguém fora assim leal com ele. Se tão somente eles...

    

 

     —O que queres dizer é que o diário não estava ali —indagou Costas Venduras enquanto entreabria um olhar penetrante para seu seguidor. Como membros da sociedade Atlantikoinonia (uma sociedade fundada para servir à deusa Artemisa) era seu dever sagrado proteger qualquer coisa relativa a Atlântida.

   George tragou nervosamente antes de responder:

     —Pegamos todos os objetos que o homem tinha com ele, mas o diário não estava entre eles.

     —Sabes o que nos disse o oráculo. A Atlântida nunca pode ser revelada. Usa todos quão médios sejam necessários para assegurar que todos os objetos sejam devolvidos ao mar ou destruídos.

     George assentiu com a cabeça.

     —Sim, senhor. Tal como a deusa deseja, será feito —começou a sair, então vacilou—. A propósito, acreditam que a jovem professora poderia ter o diário com ela em Nova Orleans.

     Costas sentiu que seu estado de ânimo se elevava ante a mera menção daquela pequena intrometida insignificante, a qual tinha sido uma fonte de exasperação para ele durante mais de uma década.

     —Então envie uma equipe para recuperá-lo. De fato, nossa pequena professora se converteu num estorvo excessivo para nós e nossa causa. Estou farto das brigas com ela. Comunique aos outros um CDI para a doutora Kafieri.

     —Cesse De Imediato. Sim, senhor. Será feito.

    

    Ash ainda estava na cama, não de todo acordado, mas tampouco adormecido quando seu telefone soou. Assumindo que era outro Dark-Hunter necessitando de algo estúpido, respondeu sem sequer olhar o número.

     —É, Ash, sou Tory. Estou no supermercado. O que queres para esta noite?

     A ti em uma vasilha… Obrigou-se a afastar essa inusitada linha de pensamento.

     —Em realidade não como muito, Tory. Não há nada que necessite.

     —Oh, vamos. Não cresceste até a altura de uma montanha sem comer algo fora de casa e em casa.

     De fato sim.

     —Tem que haver algo do que te alimentes além de cerveja e se disser vinho, te machucarei.

     Sorriu apesar de si mesmo.

     —Juro-te isso, não há nada que queira.

     —Queres me frustrar verdade? Bem, farei falafel[10] e humus[11], é grego. Viverás com isso, te gostará, e vais comer algo queiras ou não. Verei-te esta noite.

     O que acontecia com Tory e a comida? Era quase tão malcriada como Simi. Como podia uma mulher tão magrinha comer todo o tempo? Desligou o telefone, logo rodou sobre suas costas e cobriu os olhos com o braço, sem querer levantar-se ainda. Tinha estado fora até tarde na noite anterior caçando Daimons depois de ter deixado a casa de Tory. Algo estava cozendo aqui em Nova Orleans, mas não podia averiguá-lo.

     Stryker estava tramando algo. Podia senti-lo.

     Mas não queria pensar em Stryker agora mesmo. Deixando que seus pensamentos vagassem, voltaram para um par de belos olhos marrons circundados por pequenos óculos e postos na cara do ser humano mais frustrante do planeta.

     Soteria.

     Antes que pudesse deter-se, a imaginou nua na cama com ele. Seu cabelo caindo sobre o rosto enquanto se inclinava sobre ele para lhe beijar… Seu pênis se endureceu instantaneamente.

     Incapaz de suportá-lo, estirou a mão para baixo para colocá-lo de modo que não lhe doesse.

     —Queres que te dê uma mão com isso?

     Movendo o braço, seus olhos se abriram de repente para encontrar Artemisa na cama com ele, o que matou instantaneamente seu pacífico humor.

     —Não.

     Ela fez uma careta.

     —Oh, vamos, Acheron. De verdade não vais deixar que tudo isso se desperdice, verdade?

     Ele irou-se para lhe dar as costas.

     —Prefiro me masturbar.

     Deu-lhe um murro no ombro.

     —Estás com esse ânimo outra vez, certo? Odeio quando ficas tão anti-social comigo.

     Então por que seguia ao seu redor quando era seu estado natural na presença dela? Bem, isso e severamente zangado.

     —O que queres, Artie? Não é próprio de ti aparecer em minha cama e não és tão parva para vir ao Katoteros. De todos os modos, como demônios conseguiste deixar atrás a Alexion?

     —Está muito atrás de sua mulher para dar-se conta de mim nestes dias.

     Nota para mim mesmo, matar outra vez a Alexion mais tarde. Ao menos fazer que o bastardo vague pelas margens da Ilha da Morte durante um momento.

     —Assim, para que estás aqui, Artie?

     —Me queres aqui.

     Sim, tanto como um extraterrestre me colocando um dedo pelo traseiro.

     —Como o averiguaste?

     —Já que não podes vê-lo porque afetaria a teu futuro, disseste-me que te fizera saber sempre qualquer coisa que acontecesse que envolvesse os restos Atlantes.

     E já tinha falhado em lhe contar sobre o diário que podia ter sido desastroso para ele se tivesse sido um dos de Ryssa quando estava na vintena.

     —E?

     —Bom, fiz para aquela gente na Grécia por escavar sem licença. Diga obrigado, Artemisa.

     Ash virou a cabeça para olhá-la. Estava literalmente sorrindo bobamente de orgulho pelo que tinha feito.

     —Que gente?

     —Já sabes, essa arqueóloga com pinta patética que vimos? Seu pessoal. Tinham descoberto a localização e estavam tirando coisas da água ontem com as mãos cheias. Encontraram todo tipo de coisas. Sei o irritado que te pões quando as pessoas fazem isso, assim fiz com que as autoridades fossem prendê-los e confiscassem os artefatos.

     —E não te ocorreu também que lhes dessem uma surra para vê-lo?

     —Por que faria isso?

     Burlou-se enquanto esfregava a testa.

     —Pareces ter um orgasmo vendo como golpeiam às pessoas.

     Entrecerrou aqueles malignos olhos verdes.

     —Estás de um humor nauseabundo. Eu não gosto de ver-te ferido.

     Tinha visto o brilho da satisfação sexual muitas vezes em seus olhos enquanto estava sendo castigado para acreditá-lo. Amava lhe fazer sangrar. Era o único momento em que se sentia mais poderosa que ele e a punha mais quente do que o estava agora mesmo.

     —O que tu digas, Artie.

     —Então te vire e me satisfaça.

     —Tenho dor de cabeça.

     Passou a mão pelo cabelo negro, voltando-o loiro.

     —Não podes ter dor de cabeça.

     —Com certeza que sim. Tenho um de cinqüenta e quatro quilogramas esfregando-se contra mim inclusive enquanto falo.

     Ela esbofeteou-lhe as costas nuas.

     —És um idiota —lhe mordeu forte no braço antes de desaparecer.

     Fazendo uma careta, Ash esfregou o lugar. Ao menos não lhe tinha arrancado a pele. Desta vez.

     “Fiz que os prendessem”.

   Suspirou quando se deu conta de que seriam amigos de Tory. Seria melhor que se levantasse e tratasse disso. Tory estaria furiosa e assustada.

 

     —Parabéns, irmão.

     Stryker levantou a vista para ver sua meia irmã, Satara, de pé na porta de seu escritório. Por causa de terem diferentes mães Satara se livrou da maldição de morte Apólita com a qual Stryker carregava, mas logo, desde que seu pai a tinha dado a Artemisa para ser uma criada permanente da puta, não estava seguro de qual deles tinha a pior vida.

     Hoje, o cabelo de Satara era negro carvão como o seu e levava um apertado vestido de couro vermelho que se pegava a cada marcada curva de seu corpo.

     —O que te traz por aqui, irmã?

     —A tia Artemisa, é obvio. Disseste que sempre te contasse quando estivesse excitada por algo. Saiu por algo grande na passada noite.

     —Por que?

     —Parece que uma equipe de arqueólogos encontrou a Atlântida. A de verdade. E alguns dos artefatos, incluído um imaculado diário, foram recuperados.

     Stryker se sentou para trás na cadeira.

     —Um dos diários de Ryssa?

     —Dada à reação de Artemisa, suponho que sim.

     Oh, isto era bom. Os humanos não tinham nem idéia de que os Apólitas e os Daimon viviam entre eles e tinham feito muitos esforços para que permanecesse desse modo. Mas se um dos diários de Ryssa fosse descoberto…

     Podia contar tudo sobre eles.

     Já era bastante ruim que ele e seus irmãos Daimon tivessem aos Dark-Hunter atrás deles. A última coisa que necessitavam de sua fonte de alimentação era que se assustassem e começassem a caçá-los de noite. Só tinham umas poucas horas cada noite para caçar ou morrer. Isto podia ser ruim.

     —Necessito que encontres esse diário.

     Satara caminhou para frente apoiando-se na mesa.

     —Artemisa já vai um passo a frente de ti.

     Ponderou isso. Artemisa rara vez se incomodava em fazer por si mesmo, nada mais que perseguir a Acheron.

     —Por que o quererá tanto?

     Satara deu de ombros.

     —Suponho que tem medo de que alguém possa saber que não foi Apolo que afundou a Atlântida. Ou talvez Ryssa sabia da relação de Artemisa com Acheron e escreveu sobre isso.

     A mente de Stryker girou com outras possibilidades.

     —Ou talvez há algo nesse livro que conte o ponto frágil de Acheron. Talvez inclusive um modo de matar a ele ou a Apolo e a tia Artemisa também.

     Os olhos de Satara brilharam com renovado interesse.

     —Encontrarei esse livro.

     —Faça-o. E se alguém se interpõe em teu caminho…

     —São comida.

 

     —Esqueça a Jake Gyllenhaal e Shia LaBeouf. Viste alguma vez um homem de melhor aparência em sua vida?

     Tory franziu o cenho enquanto caminhava passando um grupo de estudantes femininas que estavam rindo bobamente e mortas de curiosidade por quem sabia o que.

     —Não acredito que vá aí. Nunca lhe vi antes, mas mataria para tê-lo ao menos em uma classe.

     —Mataria para tê-lo debaixo de mim!

     —Eu lhe vi por aqui. Esteve no bar O Santuário de Ursulinas um par de vezes quando estava de festa com amigos. Acredito que está enrolado com essa garçonete alta e loira que tem uma atitude desagradável.

     —Dizes a sério? Como demônios perdi isso? Devo ter estado bem chapada e bêbada.

     Seus comentários se apagaram enquanto Tory se dirigia ao seu escritório. Mas enquanto se aproximava, a recontagem do corpo estudantil feminino ia aumentando, mais e mais até o ponto de ser mais e mais denso. Realmente teve que empurrar para abrir caminho entre elas.

     Sim… isto não estava bem. Nunca tinha visto tanta gente com este interesse no departamento de Antropologia antes.

     Não até que esteve perto de sua porta que se deu conta do porquê.

     Ash estava ali. Vestido com um comprido casaco negro que o fazia perguntar quantos tinha, inclinou-se contra a parede com os braços cruzados sobre o peito. Sua atitude era tão poderosamente indiferente que resultava fascinante. Olhou para baixo e sorriu ante seus pés cruzados embainhados em botas e a sempre presente mochila negra descansando atrás deles.

    Os óculos escuros estavam em seu lugar e seu cabelo comprido estava jogado para trás em um rabo-de-cavalo. E o brinco prateado de seu nariz tinha sido mudado por um que parecia um pequeno rubi vermelho.

     —O que estás fazendo aqui? —perguntou-lhe, alcançando a porta.

     —Te esperando.

     Jogou uma olhada ao redor do congestionamento que tinha causado.

     —De verdade, deverias ter ligado. Acredito que o Chefe de Bombeiros teria tido problemas com isto.

     Um lento sorriso atravessou seu rosto.

     —Sinto muito.

     Abriu a porta e se voltou para trás.

     —Melhor passar pra dentro enquanto as mantenho a raia.

     Agarrando sua mochila, riu antes de concordar.

     Tory se virou para a coleção de estudantes.

     —Vêem o excitante que é a Antropologia? É um destacado perito na Grécia Antiga. Agora deveriam mudar todas suas especialidades de modo que possam comer com os olhos homens como ele durante todo o dia. Ou ainda melhor, descobrir estátuas de homens nus.

     Fechou a porta para encontrar Ash sorrido-lhe com cumplicidade.

     —Era necessário?

     —É, vivo para recrutar estudantes para o departamento. Se posso te fazer bom para algo, então pelos deuses que vou fazê-lo.

     —Pelos deuses?

     Ela deu de ombros enquanto deixava a braçada de livros na mesa.

     —Sim, como se não disseras coisas estranhas também. Assim, o que posso fazer por ti?

     —Quero voltar para essa frase de “te fazer bom para algo” durante um minuto… por que me odeias tanto?

   Tory se retorceu um pouco sob seu oculto escrutínio e a questão assinalada.

     —Não diria que te odeio. O ódio desceu até um leve desagrado.

     —Por que?

     Suspirou enquanto devolvia alguns dos livros às estantes atrás do escritório.

     —Porque tudo parece muito fácil para ti. Tiveste alguma vez em tua vida um dia em que as pessoas não estivessem fazendo fila para te prestar atenção?

     —Sim, Soteria. Tive-o. Asseguro-te isso, minha vida nunca foi fácil e deverias estar agradecida cada dia que vivas de que não possas imaginar o tipo de infância que tive.

     Tory se deteve ante o tom de sua voz e a mortal sinceridade de suas palavras.

     —Sinto muito, Ash. Não sabia.

     Ele pôs a mochila no chão.

     —É fácil olhar às pessoas e fazer julgamentos rápidos sobre eles, seus presentes e seus passados, mas estaria assombrada ante a dor e as lágrimas que escondem um só sorriso. O que uma pessoa mostra ao mundo é só uma minúscula faceta do iceberg escondido da vista. E a maioria das vezes, está marcado com gretas e cicatrizes que percorrem todo o caminho até os alicerces de sua alma.

     Tinha razão e a fez sentir culpada por ser tão rápida avaliando às pessoas. Sempre tinha sido seu defeito no qual tinha tentado não cair.

     —És assombrosamente astuto para alguém de sua idade.

     Ele soprou.

     —Disse-te isso, sou mais velho do que pareço e nunca tive nada em minha vida pelo qual não tenha pagado de um modo ou outro.

     Revolveu uma pilha de papéis da bandeja de entrada.

     —Agora que o penso, hás tido que ser dos que vão em frente para seguir te aproximando de minha dada severa personalidade no que a ti concerne.

     Ash lhe estendeu a mão.

     —Trégua?

     —Paz, meu irmão —disse estreitando-a—. Agora, por que estás aqui?

     Suspirando, deu um passo atrás e cruzou os braços sobre o peito.

     —Bom, ouvi de um amigo que alguns arqueólogos na Grécia foram presos por escavar sem uma permissão. Queria ver se por acaso resultavam ser sua equipe.

     Ondeou a mão desdenhosamente.

     —Por que seria minha equipe?

     —Estavam escavando em um lugar que afirmavam que era Atlântida. Soou-me como a teus rapazes.

     —Mas nós temos todos nossos papéis.

     —Se estiveres segura… —deixou que sua voz desaparecesse de modo significativo.

     Enrugou o rosto como se se desse conta de que sua sorte poderia lhes haver metido em problemas.

     —Espera. Deixe-me ligar.

     Ash se sentou na cadeira frente ao escritório e estirou as pernas enquanto ela tirava o telefone da bolsa.

     Tory franziu o cenho ante sua mochila, que estava no chão, e o modo em que a mantinha ao seu alcance.

     —O que há nessa mochila, por certo? Sempre a está protegendo como se contivera secretos de segurança nacional ou algo assim.

     —Roupa interior suja.

     Pôs os olhos em branco.

     —Muito obrigada por essa imagem.

     —Você perguntou.

     Sacudindo a cabeça, marcou o número de David. Quando não respondeu, chamou a Justina. De novo, não houve resposta. O pânico a sacudiu enquanto o tentava com Bruce.

     —Tory?

     Respirou aliviada quando atendeu.

     —É, querido, não posso…

     —Foram todos detidos.

     Desgostada e temerosa, jogou um olhar a Ash cuja bela cara estava completamente estóica.

     —O que?

     —À equipe inteira. Eu permaneci em terra para esperar e firmar para a nova equipe de mergulho que estava chegando e a coisa seguinte soube era que o navio estava confiscado e todo mundo posto em custódia.

     Tory deixou escapar um suspiro frustrado.

     —Como é possível?

     —Disseram que nossos papéis estavam falsificados.

     —Merda! Não estão falsificados. Solin nos ajudou a conseguir a renovação na primavera passada.

     —Sim e como de costume, Solin voou de cena. Tampouco podemos lhe encontrar. Por tudo o que sei, está no cárcere junto a eles.

     —Oh, céu santo. Está bem, não te movas e verei o que posso fazer —desligando, olhou a Ash, o qual se sentava quieto como uma estátua—. Tinhas razão. Minha equipe inteira. Desaparecida. Detida. Perfeito. Dispare-me agora e me economize o gasto de uma bala mais tarde.

     Deixou escapar o ar cansado enquanto esfregava uma enorme mão contra sua coxa.

     —Não te preocupes. Farei uma chamada e os tirarei fora dali.

     —Podes fazer isso?

     —Posso fazê-lo —tirou seu celular e o abriu com um brusco giro de seu pulso.

     Esperando que não estivesse mentindo, Tory se sentou atrás de sua mesa e conteve o fôlego enquanto apoiava a cabeça entre as mãos. Como tinha ocorrido? Sua pobre equipe. Tinham que ter estado aterrados.

     Ash falou com em um grego tão profunda e ritmicamente impecável que enviou um calafrio por sua coluna vertebral.

     —Olá Gus, sou Acheron Parthenopaeus. Necessito que me faças um favor. Há um grupo de antropólogos que foram presos por escavar no Egeu, esta manhã, acredito. Pode tirá-los e liberá-los de todas as acusações?

     Ele riu.

     —Sei que acreditam que é a Atlântida. Todo mundo quer encontrar um tesouro. Mas não quero lhes ver feridos por uma quimera. São amigos inocentes de uma amiga se sabes o que quero dizer. Tire-os deste problema para mim.

     Ele deu leves golpes com o polegar na coxa enquanto escutava.

     —Não… não acredito que necessitem de uma lição. Estou seguro de que já estão bastante nervosos. Deseje o melhor a Olympia e me faça saber quando nascer o bebê. Verei aos dois na próxima vez que esteja na Grécia.

     Endireitou-se quando ele fechou o telefone.

     —Bem?

     —Pode tirá-los sem problema, mas os artefatos estão confiscados e não há nada que possamos fazer. Se vossos rapazes forem mergulhar ali abaixo de novo, vão executar-lhes.

     —Estás brincando.

     —Em realidade não. As autoridades são extremamente intransigentes sobre isto.

     —Mas temos as permissões corretas.

     Ash sustentou o telefone fechado contra o queixo.

     —De acordo com eles não e estão a um passo de expedir uma ordem de prisão contra ti porque levaste parte de sua herança nacional fora do país sem permissão.

     —O que tenho não é grego, é atlante.

     —O diário é grego e não são estúpidos. Inclusive se fosse atlante, reclamariam-no já que saiu do Egeu, o qual é seu território.

     Tory afundou a cabeça entre as mãos.

     —Não posso acreditá-lo. Ia entregá-lo uma vez que tivesse uma tradução. Sempre lhes dou o que encontramos… só que não necessariamente logo que o encontramos.

     —Bom, Gus pode conseguir lhe subtrair importância. Seus rapazes estarão fora do cárcere dentro de pouco e provavelmente iria a seu melhor interesse se devolveras esse livro ao governo antes que reconsiderem sua decisão e expedam uma ordem para ti.

     Olhou-lhe.

     —Obrigada por toda tua ajuda, Ash. De verdade. Obrigada. Não sei o que teria feito se não tivesse ouvido sobre isto e tivesse vindo aqui.

     —Diria que não há problema, mas realmente o há, assim não o faça outra vez. Pedir favores é algo que realmente trato de não fazer. Por geral, me morede o traseiro de algum jeito.

     Tory lhe deu um triste sorriso, sabendo que lhe tinha posto em uma má posição.

     —Me dirá que posso fazer para lhe compensar isso.

     —Só te mantenha fora de problemas.

     —É o que planejo —lhe grunhiu antes de se afastar do escritório—. Está bem, basta de autocompaixão, eu… —suas palavras foram interrompidas por seu telefone soando—. Mantenho essa idéia —tirou do gancho o telefone—. Sim? Não, não estou em casa. Sim, por favor, envie à polícia. Estou a caminho.

     Ash franziu o cenho.

     —O que acontece?

     —É a companhia do alarme. Houve um roubo de grau três em minha casa —agarrou as chaves e a bolsa.

     —Eu conduzirei.

     —O que?

     —Estás muito nervosa para dirigir e não precisa ir sozinha a enfrentar ladrões. Irei contigo.

     Tory lhe estava tão agradecida nesse momento. Estendeu-lhe as chaves e lhe seguiu enquanto saía do edifício para o estacionamento onde tinha deixado seu Mustang.

     —Que dia… —exalou enquanto se metia dentro—. Não, que merda de semana. Quase tenho medo de me levantar amanhã.

     Ash ligou o motor.

     —Eu sei, a primeira vez que nos conhecemos, Deus nos livre, tua equipe foi atacada. Agora tua casa. Onde há um martelo quando o necessitas?

     Sorriu apesar de si mesmo.

     —Tudo ficará bem —lhe assegurou.

     Assim o esperava. Mas no fundo de sua mente, estava se dizendo que era um falso alarme. Que não havia nada de errado em sua casa.

     Por favor, não deixe que haja nada de errado em minha casa. Não podia suportar a idéia de um estranho tocando suas coisas. De sua vida sendo revolvida.

     No momento em que Acheron estacionou em frente, soube. A porta da frente estava totalmente aberta e não havia sinal da polícia. Começou a abrir a porta do carro, mas Ash a deteve.

     —Espere à polícia.

     —Por que?

     —Não queres contaminar a evidência antes que entrem aí.

     Estava certo, mas o odiava.

     Passaram outros quinze minutos antes que a polícia chegasse. Entraram primeiro e logo fizeram gestos para lhes deixar saber que era seguro.

     Tory sentiu as lágrimas começando inclusive antes que entrasse na salinha. Sua casa inteira tinha sido registrada.

     —Oh, Deus meu… —seu TOC[12] estava horrorizado pelo que tinham feito. Tudo estava fora do lugar.

     Os policiais, um homem e uma mulher oficiais, olharam-na com compaixão.

     —Necessitamos de uma lista de tudo o que falta.

     Tory quase nem entendeu o que estavam dizendo. Cobrindo a boca com a mão, olhou fixamente as fotografias de seus pais e sua família que tinham sido atiradas ao chão. As gavetas tinham sido abertas e seu conteúdo derrubado no chão. Não tinha visto tanto dano desde que tinha ajudado a amigos a limpar depois do Katrina.

     —Não acredito que um ser humano possa fazer isto a outro.

     De repente, Ash estava ali, sustentando-a contra seu peito.

     —Tudo está bem, Soteria. Só respire.

     Aferrou-se a ele, agradecida porque estivesse com ela. Agradecida porque a estivesse sustentando enquanto seu mundo inteiro se voltava do avesso. Primeiro o ataque de Nikolas, logo sua equipe detida e seu material confiscado, agora isto…

     A oficial franziu o cenho enquanto esquadrinhava o dano.

     —Sou eu ou parece como se estivessem procurando algo?

     Tory se voltou para trás ante sua pergunta.

     —O que queres dizer?

     O oficial assinalou as gavetas no chão.

     —Na maioria dos roubos, especialmente quando tem casas assim perto e é de dia, normalmente se levam alguns artigos caros e fogem —dirigiu o flash para o televisor, ainda sobre seu lugar no canto em frente às altas janelas—. Nem sequer levaram seu televisor.

     A oficial assentiu de acordo.

     —Sem mencionar, que parece que o alarme foi ativado ao sair daqui. Como se estivessem tentando atrai-la ou algo.

     Tory lhes franziu o cenho.

     —Por que iam querer me atrair? Não tem nenhum sentido.

     —Não, não o tem —disse a oficial, desligando sua lanterna e devolvendo-a ao seu cinturão—. A menos que estivessem procurando algo.

     A mulher lhe ofereceu um sorriso amável.

     —Temos à unidade da polícia científica vindo para tomar pistas. Em realidade, não há nada mais que possamos fazer. Faça uma lista com qualquer coisa que falte, o poremos em seu arquivo e o passaremos pelas casas de penhora locais. Além disso, terá que apresentar um relatório a sua companhia de seguros.

     O oficial coincidiu.

     —E poderia querer fazer com que seu namorado fique com você esta noite.

     Uma onda de medo a percorreu.

     —Acredita que voltarão?

     O oficial negou com a cabeça.

     —Não sabemos. Além disso, a maioria das vítimas de roubo tem problemas para dormir durante uma noite ou duas depois da invasão.

     Tory se sentou no braço de seu sofá enquanto inspecionava a destruição ao seu redor. Estava agradecida por manter seus preciosos artefatos com ela ou guardados em uma cofre de segurança no campus.

     —Não posso acreditar nisto —Ash lhe agarrou a mão e não falou enquanto a polícia perguntava sobre possíveis suspeitos e sua pessoal entrava para empoeirar vários locais e objetos procurando pistas.

     Não encontraram nada. Nenhuma só mancha. Ou os ladrões tinham usado luvas ou eram mutantes.

     Pessoalmente, votava pelos mutantes. Preferia pensar nisso do que tratar com o fato de que uma pessoa normal e comum pudesse fazer algo assim a outra.

     Quando finalmente a polícia se foi, virou-se para Ash.

     —Estou segura de que tem algo melhor a fazer que me fazer de babá.

     —Certo. Não importa. Há algumas coisas pelas quais não deverias passar sozinha.

     Havia uma ligeira nota em seu tom que a fez pensar que tinha passado sozinho por muitas delas.

     Deteve-se para recolher as fotografias de seus pais antes de devolvê-las a sua toalha. Não disse por que, mas pelo modo em que as tratou fez com que seu coração se apertasse com ternura ante sua consideração por ela.

     —Tens alguma família, Ash?

     Pôs as fotografias de volta onde tinham estado, como se recordasse o lugar exato de sua visita anterior.

     —Todos temos pessoas que amamos.

     Não perdeu o fato de que evitava responder a sua pergunta. Sem olhá-la, foi para os objetos que tinham sido atirados de sua mesinha auxiliar.

     Ajoelhando-se no chão, Ash franziu o cenho quando recolheu uma caixa de recordações[13] que tinha uma pequena rocha negra dentro. Em uma minúscula placa de bronze na parte de trás se lia “PRIMEIRA ESCAVAÇÃO DE SOTERIA. 1985”.

     —O que é isto?

     Seus olhos se empanaram enquanto se movia para pegá-lo de sua mão.

     —É da primeira vez que meus pais me permitiram escavar com eles. Estava tão orgulhosa quando encontrei isto. Pensei que tinha descoberto uma rara ponta de lança. Meu pai não teve coração para me dizer que só era uma pedra. Assim que o emolduraram para mim e o puseram em meu quarto junto a minha cama com uma luz que estava acostumada a brilhar sobre ela —soluçou enquanto uma lágrima escapava de seu controle—. Esses bastardos tocaram os pertences de meus pais!

     Ash ficou em pé para sustentá-la enquanto chorava. Aferrou-se a ele como se seu mundo inteiro se tivesse quebrado em pedaços. Ele tinha aprendido a enterrar as lágrimas tão profundamente em seu interior que não podia entender a paixão e a dor que lhe supunha para chorar assim. Tudo o que sabia era que as poucas vezes em sua vida em que tinha chorado dessa forma, a única coisa que tinha ansiado era consolo.

     E nenhuma só vez havia o havido.

     Assim que lhe ofereceu o que ninguém lhe tinha dado nunca. A deixou soluçar até que se esgotou e a camisa sobre seu peito esteve úmida pelas lágrimas.

     Tory se virou para trás, limpando a úmida mancha que tinha feito.

     —Sinto-o tanto, Ash. Não sou uma pessoa emocional. Não sou —clareou a garganta e lhe jogou o olhar mais decidido que tivera visto nunca—. Não vou deixar que me façam isto. Sou mais forte.

     —Todo mundo chora alguma vez, Tory. Há alguns dores que correm muito profundamente para que o mais forte os aceite sem romper-se. Não penso menos de ti por isso.

     Ela riu nervosamente.

     —Em realidade não és o idiota que pensei que eras, verdade?

     Ofereceu-lhe um sorriso amável.

     —Em realidade, tenho momentos de grande idiotice. Infelizmente, parece ter sido testemunha de um dos mais recentes.

     Tory lhe deu uns tapinhas no musculoso braço em agradecimento por sua compreensão. Às vezes era tão fácil falar com ele. Engolindo as lágrimas, olhou ao seu redor a desordem.

     —Nunca conseguirei limpar tudo isto.

     O telefone da casa soou. Deixou Ash na salinha enquanto ia para a cozinha para atender.

     Ash voltou a recolher as fotografias enquanto tentava entender que tinha passado aqui. Deveria ser capaz de repetir a cena completa em sua cabeça, mas quando tentava ver o futuro de Tory, estava em branco. Isso não era normal para ele.

     Era um deus do destino…

     Jogando um olhar por cima do ombro, observou-a enquanto voltava para seu lado e recolhia uma das gavetas que tinha sido atirada de barriga para cima perto do sofá.

     —Era minha amiga Pam. Assustou-se quando não atendi ao móvel e ligou para casa. Ela e Kim vão vir e me ajudar a limpar.

     —Então, queres que vá?

     Duvidou.

     —Só se quiseres. É realmente reconfortante te ter aqui comigo —afastou o olhar dele como se admitisse que isso a envergonhava e colocou a gaveta de volta em seu lugar. Deu um passo atrás e se estremeceu—. Que estranho.

     —O que?

     —Tampouco roubaram meu aparelho estéreo —moveu um pulôver que tinha sido atirado sobre ele pelos ladrões para lhe mostrar seu aparelho de música branco Bose.

     Era algo estranho que um ladrão esquecesse.

     —Talvez não o viram.

     —Talvez —o colocou na estante, então o ligou.

     Ash franziu o cenho quando os Bee Gees troaram.

     —Night Fever? —estremeceu-se—. Música disco?

     —Silêncio —lhe disse, lhe fazendo gestos antes de pegar outra gaveta—. Me consola quando me sinto mau.

     —Como demônios pode te consolar a música disco?

     Pegou uma fotografia de seus pais e a virou para ele. Sua mãe, que se parecia muito a Tory, levava um top de decote Halter com o cabelo castanho solto enquanto seu pai levava uma camiseta de poliéster amarela com estampado de cachemira e um terno marrom com o cabelo negro encaracolado e bigode. Estavam apoiados um no outro em frente ao que parecia ser um clube disco de Nova Iorque que Ash recordava vagamente dos últimos anos setenta.

     Tory acariciou a foto amorosamente.

     —A melhor amiga de minha mãe, Sheri, que é uma importante fotógrafa amadora, tirou esta na noite que meus pais se conheceram pela primeira vez. Meu pai pensou que minha mãe era a mulher mais bela que tinha visto. Assim timidamente foi e lhe pediu para dançar, esperando que lhe dissesse que não. Não o fez. Pensou que sua tímida indecisão era tão doce que lhe disse que sim. Saíram à pista de dança justo quando a canção “Last Dance” da Donna Summer começava a tocar. A versão estendida. Quando acabou, meu pai ficou de joelhos ali mesmo no clube e se declarou. Casaram-se um ano depois e nunca mais se separaram até o dia em que minha mãe morreu.

     Engoliu com dificuldade como se as lembranças fossem difíceis de lidar. Seu lábio inferior tremeu enquanto se balançava com a canção.

     —Quando era pequena, meus pais estavam acostumados a tirar seus álbuns disco e dançávamos até que estávamos muito cansados para nos mover. Ouvir música disco é como os ter comigo de novo. Juro que cada vez que ouço a canção da Thelma Houston “Don’t Leave Me This Way”, ouço a voz de minha mãe cantando pra mim enquanto me segurava nos seus braços e dançamos ao redor da sala comigo rindo.

     Invejou aquelas lembranças de ser amada e apreciada. Desejou por seu bem que seus pais estivessem aqui para consolá-la.

     —Que idade tinhas quando morreram?

     —Tinha sete quando morreu minha mãe e dez quando morreu meu pai. Nunca foi o mesmo depois que ela nos deixara.

     —Não lhes deixou de propósito.

     —Eu sei —Tory colocou a foto nas estantes no alto de uma velha e usada cópia de “A Odisséia” de Homero—. É mais fácil dizer que nos deixou que dizer que morreu —olhou—. E tu? Tens algumas lembranças como estas?

     Tentou não pensar nisso.

     —Na realidade, não. Cresci sem meus pais.

     —Morreram?

     Virou-se e se concentrou em limpar o desastre do chão.

     —É mais complicado que isso, por isso não falo disso.

     Tory franziu o cenho ante a frieza de sua voz que lhe fez estar segura de que só o estava usando para proteger-se.

     —Sinto muito, Ash. Conheceste-os sequer?

     Não respondeu, mas pôde sentir sua tristeza o que a levou a acreditar que em realidade não tinha sabido nada deles absolutamente.

     Observou-lhe enquanto ordenava o caos que os ladrões tinham deixado. Havia um ar do Velho Mundo nele. Em realidade, uma alma velha presa em um corpo jovem. Mais que isso, havia algo tranqüilizador. Como se estar com ele a acalmasse em seu interior de um modo em que nada mais o tinha feito nunca. Era quase como estar em casa… Não tinha nenhum sentido, mas não havia rechaço no que sentia quando estava perto.

     De repente, houve uma batida brusca na porta.

     Foi abrir para encontrar Pam e Kim de pé fora com duas caixas de pizzas extragrandes e um pack de doze cervejas. Ambas pareciam muito de várias maneiras. Pam era mais alta e tinha o cabelo tingido de loiro nas pontas pela frente e tingido de negro por trás. O cabelo de Kim era do mesmo estilo, mas as cores exatamente ao contrário. De ponta branca com seu estilo gótico único, pareciam combinar com Ash muito mais que Tory.

     Pam assinalou a rua atrás dela com o polegar.

     —Ei, há um policial no carro do outro lado da rua?

     Tory olhou o sedam marrom.

     —Não acredito. Por que?

     —Porque os dois sujeitos nele tinham um par de binóculos enfocados para este lugar quando nos aproximamos.

     Ash estava na porta antes que Tory pudesse sequer piscar. Roçou-a ao passar, mas antes que pudesse dar o primeiro passo o carro partiu a toda velocidade.

     Ash quase convocou Simi para que seguisse o carro, mas se conteve no momento em que as palavras se amontoaram em sua língua. Maldição, tinha estado tão perto. As mulheres teriam estado impressionadas por encontrar um demônio vindo à vida de seu braço…

     —Por que estariam vigiando a casa? —perguntou Tory.

     Ash se virou para enfrentá-la.

     —Acredito que precisas me dizer tudo o que encontraste nessa escavação.

     —O que queres dizer?

     —Acredito que foi descoberto algo no qual muita gente está repentinamente interessada.

     Tory se burlou.

     —São peças de museu. Nada de valor real para ninguém mais que um colecionador.

     Sim e a pequena esfora do colar que Ash tinha dado a sua filha também tinha as capacidades de acabar com o mundo inteiro. O problema com os amuletos mais poderosos e os talismãs era que os mortais não podiam identificar sua importância.

     Mas em boas ou más mãos, mas bem, podiam ter conseqüências cataclísmicas.

     —Me siga a corrente e mostre-me o que encontraste.

 

     —Bom sanduíche de atum, é o homem mais alto que já vi.

     Tory riu de Pam, que olhava embevecida a Ash.

     Ash sacudiu a cabeça ante o que devia ser uma das frases mais repetidas de Pam desde que tinha entrado com ele na casa. Já o havia dito quatro vezes.

     —Pam —lhe disse Kim enquanto punha a pizza sobre a mesa de café—. O vais pôr nervoso.

     Pam deixou a cerveja junto à caixa.

     —Bom, não é como se não soubesse, quero dizer que meço um metro e setenta e nove, e sei que sou alta, Tory mede um metro e oitenta e cinco, assim podemos nos esbaldar. Não é como se todos os dias conhecessem a um homem que nos faça sentir pequenas, verdade Tory? —Pam ficou nas pontas dos pés ao lado de Ash—. Kim, és pequena e quase nem chegas ao metro e cinqüenta. Não tens idéia do que é ser alta num mundo de homens medianos. Por fim posso usar saltos!

     Ash riu antes de tomá-la nos braços e levá-la ao sofá.

     —Oh, meu deus! —Disse enquanto a sentava—. Nunca antes um homem me tinha levado sem queixar-se como se estivesse morrendo. Estou no céu, te case comigo, Ash, por favor!

     —Diria que sim, mas tenho mais bagagem do que inclusive as Samsonite[14] podem armazenar.

     Tory os ignorou enquanto entrava na sala com seus diários da escavação. Empurrou as caixas de pizza ao lado da mesa de café, logo os deixou.

     —Bem, isto é tudo do ano passado.

     Ash se ajoelhou e começou a olhá-los.

     Tory se inclinou sobre seu ombro enquanto revisava o que olhava.

     —Verás, quase tudo são pedaços de olaria e fragmentos. Umas poucas gravuras e garrafas.

     Ash se deteve o encontrar um objeto familiar que fez com que seu fôlego cortasse… era um pente de cabelo de Ryssa que era igual a que tinha encontrado séculos antes. Seu coração se apertou enquanto passava a mão sobre a foto, recordando quão bela tinha sido com os pentes de cabelos em seu loiro cabelo.

     —Está muito bem preservado, verdade? —Disse Tory, sem dar-se conta de quanto significava essa peça para ele—. As pérolas até estão onde devem, parece algo que poderia se comprar hoje. O artesanato que tem é incrível.

     —Sim —se forçou a virar a página e ver mais olaria antes de ser traído por seus olhos chorosos.

     Logo o encontrou…

     —Onde está esta peça?          

     Tory franziu o cenho, ante o profundo, firme tom de Acheron. Olhando sobre seu ombro, viu uma ornamentada adaga de ouro que Bruce tinha escavado.

     —Ainda está sendo examinada no laboratório. Por que?

     —Necessitamos dela.

     Uau, seu tom era mais autoritário que o de um general chamando à Guerra.

     —É tão valioso?

     Ash duvidou. Não des seu ponto de vista, mas como era uma arma que podia matar qualquer coisa que respirasse, era extremamente valiosa para ele e para outras entidades não humanas que fariam qualquer coisa para possuí-la.

     —Sim.

     Pam virou os olhos.

     —Não entendo nem vocês nem a suas coisas velhas.

     Kim baixou os ombros.

     —Está bem, querida, nós não entendemos a ti nem tua obsessão pelas bonecas góticas —olhou a Tory—. Deverias ter estado conosco em nossa busca da Leda Swanson. Arrastou-me por três estados até que enfim encontramos a boneca numa boutique no Alabama.

     Ignorando-as, Ash seguiu olhando o livro, mas não encontrou nada mais que a adaga Atlante que pudesse ser importante. Mas ainda assim, por que um humano em um carro a buscaria?

     Nenhum humano entenderia seu significado…

     E nenhum não humano teria causado este tipo de desastre e a teria deixado. Simplesmente teriam atacado e torturado a Tory até que lhes houvesse dito onde encontrá-la.

     Era desconcertante. Mas que mais poderiam querer?

     Até mais importante, que tão longe estavam dispostos a ir para obtê-lo? Uma coisa era meter-se em uma casa. Mas matariam também?

     Ash ficou de pé.

     —Vou caminhar um momento lá fora e revistar as coisas. Já volto.

     Tory assentiu.

     —Te guardaremos um pouco de pizza.

     Ash não disse nada enquanto saía da casa e usava seus poderes para deixar Nova Órleans e aventurar-se à ilha de Savitar onde o sol literalmente nunca se punha. Mágica em sua natureza, a ilha se movia constantemente ao redor do mundo enquanto Savitar procurava a onda “perfeita”.

     Como o esperava, Savitar estava deitado de costas sobre uma prancha de surfe na água, olhando ao claro céu enquanto as águas o balançavam.

     Diferente do onisciente Chthonian, Ash não era um fanático pela água, odiava o surfe e deitar-se sob o sol. Mas também sabia que quando estás em Roma…

     Subiu a uma das pranchas ao lado de Savitar, que riu quando o viu sentado na longa prancha.

     —Vê-te tão fora de seu elemento.

     —Estou fora de meu elemento. Da mesma forma do que tu o estarias em um clube gótico de Seattle.

     Savitar lhe deu um sorriso seco.

     —Nunca estou fora de meu elemento, Atlante. E deve ser algo muito importante para que ponhas calças curtas e subas a uma prancha. Algum dia vou conseguir que digas “Claro que esse é um excelente traje de neopreno de 4 milímetros de espessura, meu amigo”.

     Cruzando os braços sobre o peito, Ash riu.

     —Não é provável.

     Savitar lhe perguntou antes de voltar a olhar o céu.

     —Escutei isso antes. Então, o que te traz aqui, Grom?

     Ash ignorou o termo surfista que normalmente se usa para se referir às crianças menores de 15 anos. Só Savitar poderia conseguir o que quisesse ao chamá-lo como a uma criança.

     —Há uma mulher.

     —Não há sempre?

     Ash decidiu ignorar o comentário sarcástico.

     —Está sendo perseguida por alguém e não sei quem é.

     Savitar arqueou uma sobrancelha enquanto um de seus braços amplamente tatuados flutuava no oceano.

     —Então sabes que não te posso dizer nada.

     Essas palavras e seu tom condescendente acenderam o temperamento de Ash.

     —Maldição, Savitar, não brinques comigo. Sua vida está em perigo… Talvez.

     Savitar agarrou a prancha de Ash e o aproximou.

     —Como tu, não brincarei com o destino.

     —Merda. Brincas com o destino todo o tempo.

     Empurrou a prancha de Ash longe dele.

     —Mas não brincarei com o teu. Nunca.

     Ash amaldiçoou enquanto se aproximava de Savitar.

     —Tens idéia do frustrante que é ser o destino final do mundo e não ter controle do teu?

     —Claro que sabes, irmãozinho. Cada decisão que tomas faz com que se revele teu destino ou que mude. Acaso não te ensinei nada?

     Savitar tinha razão, mas não era tão simples. Especialmente quando estava envolvida a vida de outra pessoa.

     O que precisaria para que importasse ao Chthonian?

     Ash entrecerrou os olhos.

     —Hão descoberto uma adaga Atlante.

     Savitar se sentou na prancha para olhá-lo.

     —Espero que planejes destrui-la.

     —Tenho que tê-la primeiro, mas esse é o plano —Ash lhe devolveu o olhar hostil—. Podes, por favor, só por esta vez, me dar um pouco de conhecimento sobre o futuro?

     Savitar sacudiu a cabeça.

     —Sabes o que o destino decretou para ti, através de tuas próprias ações te salvarás.

     —Isso poderia significar qualquer coisa.

     Savitar esteve em silencio durante muitos batimentos do coração antes de perfurar Ash com um olhar sinistro.

     —Está bem, estou fodendo as coisas, mas é tudo o que posso te dizer. Não é a adaga o que os ladrões procuram. Há outro diário que encontrou seu pessoal.

     Ash se encolheu ao lhe soltar a bomba.

     —De Ryssa?

     Ele assentiu.

     —Não é o que Soteria te mostrou. Este o encontrou ontem um de seus amigos. E se escreveu depois de que Ryssa se convertesse na concubina de Apolo. Nele está a verdade sobre ele e Artemisa e sua necessidade de sangue. Também diz como matá-los.

     Ash se sentiu doente. Sim, isso causaria uma aniquilação global que impressionaria inclusive a sua mãe sedenta de sangue.

     —E eu? Também estou nele?

     Savitar suspirou.

     —Confie em mim, não o queres nas mãos de alguém mais.

     O estômago de Ash se apertou.

     —Onde está agora?

     —Isso não posso te dizer.

     Ash cintilou sobre a prancha de Savitar para poder enfrentá-lo. Infelizmente, Savitar deslocou a si mesmo e à prancha, e apareceu ao outro lado da prancha recém abandonada de Ash antes que o pudesse apanhar.

     —Me bater não mudará nada.

     Ash nadou de volta a sua prancha e olhou a Savitar.

     —Por que não me disseste isso?

     —Tu dentre todos os seres sabes como trabalha o destino. O que te passou como humano, passou-te porque todos desde teus pais para baixo trataram de rodear o que tinha que ser, o que em última instância foi a destruição do Panteão Atlante. Não se podia mudar essa profecia. Mas a forma em que sofreste foi completamente desnecessária. Se seus pais tivessem aceitado seu verdadeiro destino, te teriam salvado de anos de tormentos. O destino se pode negar. Podemos lhe esculpir, mas ao final só somos peões de nosso destino final. Bom, ruim ou indiferente.

     Essas palavras lhe ofereceram tanto consolo como uma das surras de Artemisa.

     —Vou ser exposto, verdade?

     —Não sei. Estás acaso planejando baixar tuas calças diante de mim? Porque se for assim, me avise primeiro porque não quero ficar cego.

     Ash se levantou da prancha.

     —Sabes o que quero dizer, depois de todas as batalhas que briguei para salvar o mundo e todos os sacrifícios em sangue e dignidade que paguei para libertar tantos Dark-Hunters, todos vão saber que não sou nada mais que um patético puto, verdade?

     O olhar de Savitar foi afiado e zangado.

     —Nunca foste patético.

     Mas ambos sabiam que tinha sido um puto. Que ao final do dia seguia sendo um. Ash queria lhe gritar ante a injustiça disso.

     Não podes fugir de teu passado.

     Suas próprias palavras voltavam a incomodá-lo.

     —Quanto tempo tenho até ser descoberto?

     Savitar deixou sair uma longa, cansada respiração.

     —Há três possíveis resultados para tua viagem, Apostolos. Em um és exposto e perdes tudo, inclusive tua vida, e tua mãe destrói todo mundo num ataque de fúria. No outro, és exposto e os Dark-Hunters te traem e os inimigos de Apolo destroem ao deus, causando horrores terríveis à humanidade enquanto a escravizam e abusam dela…

     Ash duvidou de perguntar mais.

     —E a terceira?

     —Em uma palavra, horripilante.

     Ash amaldiçoou.

     —Então não importa o que faça, o mundo está fodido?

     —Não disse isso, sempre há esperança, Apostolos. De todos os homens, tu sabes disso, só quando deixas de tratar de influir no resultado de tua vida é que estás verdadeiramente derrotado. O que tenha que vir, virá. É como escolhemos dirigir a merda que nos toca, o que nos dá forma.

     Ash se burlou de suas palavras.

     —Tu não diriges nada, senta-se aqui ao sol, apanhando ondas, cuspindo uma filosofia que nem sequer segues.

     —Tens razão, faz muito que deixei de tratar de influir em meu destino. Mas porque cada vez que tratava de mudar o futuro, o fodía muito mais. Eventualmente, os ratos se cansam de apertar a alavanca e se sintam no canto para lamber as feridas. Assim se estiver preparado para deixá-lo e vir a te sentar comigo na praia…

     —Tenho que lutar.

     —Tens que lutar —Savitar se deitou em sua prancha—. Mas é mais que bem-vindo a compartilhar minha praia quando te cansares da luta.

     Ash deixou sair uma longa exalação enquanto o considerava seriamente.

     —Guarde para mim um lugar. Se isto explodir, voltarei com o rabo para sempre escondido entre as pernas —porque muito por dentro conhecia a verdade, tinha suportado muito ridículo. Não podia suportar ver que as pessoas que amava o olhassem da mesma forma que Ryssa o fez quando o encontrou no bordel Didymos. Mesmo quando ela o amava e o tinha perdoado, a decepção em seus olhos se cravou em sua alma.

     Não o poderia suportar de novo.

     —Vem uma onda —advertiu Ash ao seu mentor.

     Não se moveu quando Savitar ficou em pé sobre a prancha num só movimento perfeito.

     No momento em que a onda quebrou, Ash voltou para Nova Orleans. Os esportes de água nunca lhe tinham gostado. Preferia cair do ar ou correr pelo chão.

     E não tinha sido um espectador em uns onze mil anos. Se havia aprendido algo de sua divindade, tinha sido a lutar até que o obrigassem a parar.

     Mesmo assim não sabia como não seguir lutando.

     Havia outro diário lá fora. Bom. Teria que encontrá-lo e assegurar-se de que nenhum humano vivo ou outro ser o lesse jamais.

 

    Ash se deteve enquanto entrava na casa para encontrar a três mulheres alinhadas… cantando… deus querido, qualquer coisa menos isso.

     “Fergilicious”.

     Tudo o que precisava era Simi aqui e que desafinasse com elas, era sua canção favorita e passou a maior parte do ano anterior amaldiçoando a quem quer que tenha sido o suficientemente idiota para mostrar essa canção a uma demônio hormonalmente adolescente. A pior parte? Simi queria que a chamasse de Similicious.

     Sim, como se isso fora a acontecer. Antes, converter-se-ia em um modelo de roupa interior para a Calvin Klein.

     —Vamos, Ash —o chamou Kim—. Une-te a nós.

     Olhou-a com o horror enchendo sua alma.

     —Oh, infernos, não. Não há suficiente cerveja no mundo que me faça cantar “I’ll put your boy in rock, rock”.

     As mulheres riram fortemente, Kim caiu no sofá enquanto Pam e Tory gargalhavam.

     —Assim encontraste algo? —Perguntou Tory depois que finalmente se acalmasse.

     —Um farol quebrado em um carro ao outro lado da rua e dois faróis apagados —Ash pegou o celular de Tory e o manteve longe dela—. Realmente necessito que ligue para seu pessoal e lhes pergunte se encontraram outro diário.

     Tory lhe lançou um olhar malicioso.

     —Me acredite, se tivessem encontrado algo tão monumental haveriam me dito isso imediatamente.

     —Inclusive se o tivessem feito justo antes que os prendessem?

     —Então o teria o governo.

     —Tory, por favor, não é engraçado. Tenho um mau pressentimento.

     Quando pegava o telefone de suas mãos, começou a tocar. Pelo tom e o aspecto de sua cara, podia dizer-se que sabia quem era antes de atender.

     —Ei Bruce, o que… —sua voz se foi apagando enquanto seu rosto perdia cor.

     Ash pôs as mãos sobre seus ombros para acalmá-la.

     —Oh, Meu deus. Não…

     Trocou um olhar confuso com Pam até que escutou o outro extremo da conversa.

     —Foi espantoso, Tory. Acabávamos de ser libertados há talvez uma hora, quando recebi a chamada de que tinha sido atacado, assim como Nikolas caminhou para casa e que estava em cirurgia.

     —O que dizem os médicos?

     —Não sabem. Não parece bem. Mas o que foi mais atemorizante é que os sujeitos que o perseguiram, registraram a mochila e bolsos… como se procurassem algo em particular. Não pegaram nada de dinheiro nem seu relógio. Nada… Harry disse que lhe fizeram perguntas enquanto o batiam, mas dado que seu grego não é fluido não pôde entender nada do que queriam. Seguiram-lhe tirando a merda até que perdeu a consciência.

     Tory jogou uma olhada a Acheron, suspeitando a respeito de todos seus “pressentimentos”. Eram tão infalivelmente acertados que se perguntou se não poderia ser parte deles.

     —Por acaso, ninguém encontrou outro diário durante a escavação?

     —Cedo pela manhã, justo antes que a polícia chegasse, tropeçamos com o depósito de objetos mais importante.

     —Mas havia aí outro diário?

     —Não estava tão bem preservado como o que tens, mas sim, havia outro livro e escuta isto… não estava úmido. Tinha sido selado em um contêiner hermético dentro de um cofre de madeira encravado com ouro. Parecia como se alguém o tivesse escondido aí por medo ou algo assim.

     —Onde está agora?

     —Não sei. A última coisa que soube foi que Dimitri o tinha.

     —Necessito que encontres a Dimitri e me tragas esse livro.

     —Por que? Não é como se alguém pudesse lê-lo.

     —Sim, podem.

     —Quem?

     Olhou a Ash e desejou poder ver seus olhos, que mantinha ocultos do mundo.

     —Um homem aqui nos Estados Unidos.

     — Estás segura?

     —Sim. Foi quem me disse que provavelmente havia mais deles por encontrar e foi quem lhes tirou do cárcere. Agora escuta, minha casa foi invadida e parecia que procuravam algo, rapazes, realmente devem ser cuidadosos e me manter informada sobre Harry e Niko.

     —Farei-o, Doc.

     Fechou o telefone e olhou para essas lentes escuros que, suspeitava, escondiam muito mais que a cor de seus olhos.

     —O que está acontecendo, Ash?

     Esfregou o polegar sobre o lábio inferior.

     —Encontraste uma peça crucial da história e há facções que estão dispostas a matar por isso.

     Não, tinha que ser mais que isso. Tinha que ser.

   —Olhe, isto não é a Múmia. Não é como se o diário de uma garota adolescente pudesse ressuscitar aos mortos ou algo. É só a história de sua inócua vida. O que na terra poderia ter sabido uma menina antiga que merecesse matar a alguém?

     Burlou-se dela.

     —Estás me fazendo essa pergunta? As pessoas matam umas às outras por um par de sapatos ou por vestir a mesma jaqueta.

     Pam assentiu.

     —Tem um ponto aí.

     —Ainda não o compreendo. Não o faço.

     Ash negou com a cabeça.

     —Há um montão de coisas sobre o mundo, e das pessoas em particular, que não entendo —e considerando o fato de que era um deus-de-onze-mil-anos-de-idade, isso quase o dizia tudo.

     Olhou a Tory, desejando poder confiar nela o suficiente para lhe dizer por que esse livro era tão importante, mas tudo o que sabia era que a razão pela qual não podia ver seu futuro era porque terminaria sendo que destruíra a ele ou ao mundo.

     Sou o Arauto. Só eu posso trazer o Telikos.

     Ou talvez não… Sua profecia era trazê-lo. Por ensiná-la a traduzir sua língua materna, podia havê-lo posto em movimento. Se só tivesse sabido sobre o segundo diário. Tudo parecia tão inofensivo, uma maneira de reparar ao ter envergonhado à neta de um velho amigo. Agora parecia ser um desastre.

     Sentindo-se de repente doente, sentou-se no braço do sofá. O que tinha feito?

     —Estás bem? —Perguntou-lhe Tory—. Ficaste muito pálido de repente.

     Não, não estava bem. Sentia-se doente do estômago pelo pensamento do que podia ter feito inadvertidamente. Assim como com o Nick Gautier. No calor do aborrecimento, tinha amaldiçoado ao seu melhor amigo para matar a si mesmo. Infelizmente, Artemisa havia trazido Nick dentre os mortos e criado uma situação asquerosa para Ash. Agora seu melhor amigo queria matá-lo por vingança.

     Seja cuidadoso com o que dizes inclusive de passagem. Tua palavra é lei. A advertência de sua mãe soou em seus ouvidos e agora que o pensava tinha estado desconcertantemente silenciosa durante a semana passada.

     Matera? Chamou-a com sua mente.

     Apostolos? Estava agradecido por sua rápida resposta. Por esta, sabia que não se estava escondendo dele por temor a fazê-lo zangar.

     O que está acontecendo com o descobrimento da Atlântida?

     Nada. Humanos estúpidos. Inclusive quando lhes digo como abrir o selo de minha prisão, não podem seguir a mais simples das instruções. Onde há um Atlante quando o necessito?

     Mortos, por tua cortesia, Mamãe.

     Oh, não me recordes… Necessitas de alguma coisao, m’gios? Estiveste muito calado ultimamente.

     Estive ocupado e tenho um problema. Alguém encontrou um dos diários de Ryssa. Sabes onde está?

     Deteve-se antes de responder, vacilante.

     Sim.

     E?

     Não respondeu.

     Matera?

     Sim?

     Sua voz soava afiada pela impaciência.

     Não jogues este jogo comigo. Preciso saber onde está. Agora.

     Sou sua mãe, não uses esse tom comigo.

     Suavizou sua voz antes de falar de novo.

     Por favor, Matera, onde está o jornal?

     Não posso te dizer.

     —E uma ova, Matera, me responda! —Ash saltou do sofá com ira só para dar-se conta de que as três mulheres o olhavam fixamente com curiosidade.

     Pam clareou a garganta.

     —Alguma idéia do que acaba de dizer?

     Tory franziu o cenho.

     —Um... não realmente.

     —Uau —disse Kim com uma risada rápida—, algo Grego que a princesa Grega não pode entender. Estou impressionada.

     Pam arqueou uma sobrancelha.

     —Devem ser as vozes em sua cabeça às que está respondendo. Só espero que não lhe estejam dizendo que nos assassine.

     Ash sentiu o calor escaldando suas bochechas.

     —Ooo —gorjeou Pam—. Que bonito. Eu adoro a maneira em que suas bochechas se colorem de vermelho quando o envergonhamos.

     —Também o fazem quando está zangado ou suando—disse Tory, comendo um pedaço de pizza fria.

     —Sério? —perguntou Pam—. Tenho que dizer que isso o faz inclusive mais ardente na minha opinião.

     Ash lhes grunhiu.

     —Mulheres, por favor, poderiam não discutir isso enquanto estou na frente?

     Pam elevou sua outra sobrancelha.

     —Estás de volta conosco ou ainda estás falando com as pessoas em tua cabeça? —procurou em sua bolsa e tirou uns fones Bluetooh—. Sabes que te digo… Filho de Sam. Porquê não te põe eles assim terei um pouco de paz mental e poderei fingir que ao menos estás ao telefone com alguém mais e não recebendo ordens de cães ou algo.

     Ash riu de sua verdade pouco entusiasta.

     —Está bem, só estava pensando quantas coisas desastrosas poderiam ter acontecido se Tory tivesse estado aqui quando a casa foi invadida.

     As mulheres trocaram olhares de dúvida.

     Pam olhou para a porta.

     —Sabes, Tory, tem um ponto. Que com os outros sendo atracados…

     —Talvez não deverias permanecer aqui —acrescentou Kim—. Por que não vens e ficas conosco?

     Tory agitou sua cabeça.

     —Não posso lhes pôr em perigo garotas e não quero viver com temor. Posso carregar a Henry e cuidar de mim mesma.

     —Henry? —perguntou Ash com curiosidade.

     Kim respondeu.

     —Sua babá Beretta.

     Estava surpreso de que Tory tivesse uma arma. Não parecia desse tipo.

     —Podes usar essa coisa?

     Pam riu enquanto gesticulava para Tory que parecia extremamente modesta enquanto comia mais pizza.

     —Olhe-a. Parece tão inofensiva e dócil, mas por dentro é uma leoa. Tory é uma viciada em adrenalina das que provavelmente nunca viu… qualquer coisa desde submarinismo a alta profundidade. Infernos, até salta de aviões perfeitamente bem só por diversão.

     Ash estava surpreso e impressionado.

     —Sério?

     Tory deu de ombros.

     —Eu gosto de viver perigosamente.

     —Não —disse Pam, com voz cheia de orgulho por sua amiga—, vive sem medo.

     Ele inclinou sua cabeça com respeito.

     —A valentia é um traço muito desejável em qualquer ser humano. A estupidez, não. Estarei contigo até que isto acalme —a declaração o surpreendeu, mas de novo tinha sentido. Sua equipe lhe conseguiria o diário e se se mantinha perto, seria o primeiro a encontrá-lo. Depois poderia destrui-lo antes que alguém mais tivesse oportunidade de lê-lo.

     Isso esperava.

     Pam enganchou seu braço no de Tory.

     —Eu aceitaria sua oferta. Estiveste em nossa casa antes, o que significa que sabes sobre Kim e seu problema de “roupa íntima no chão”.

     —Essa não é minha roupa íntima! É a tua.

     Pam afastou sua ira agitando a mão.

     —Não vamos discutir sobre as pequenas coisas da vida, como quem possui a roupa íntima. O ponto é, estou caída pelo sujeito grande. É muito mais intimidante que nós.

     —Também mais fofo —sorriu Kim abertamente—. Se recusa a oferta, posso pedir proteção? Acredito que tenho um vizinho que está me jogando mal olhado. Poderia me machucar, sabes?

     Ash riu.

     —Não sei… esse teu problema da roupa íntima…

     Pam rompeu em risadas.

     Kim fez uma careta.

     —Como se nunca o tivesses feito.

     De fato não. Não levava roupa íntima para atirar ao chão. Mas as mulheres não precisavam saber disso.

     —Mudando de assunto novamente. Tiveste notícias de Dimitri sobre o diário?

     —Ainda não.

     —Está na Grécia? —Perguntou Ash.

     Tory assentiu.

     —Ok —Ash balançou a mochila sobre seu ombro—. Odeio lhes deixar, garotas, mas tenho que ir a minha casa a pegar algumas roupas. Têm o número de meu celular. Só ao ver uma simples sombra fora da janela, liguem-me e estarei de volta. Só moro a umas quantas ruas.

     Tory sorriu.

     —Estaremos bem.

     Ash o esperava. Dirigindo-se para a porta, deixou-as e saiu à rua. Logo que esteve seguro de que ninguém podia vê-lo, cintilou para a Grécia fora da porta da casa de Augustus Tsigas.

     O pai de Gus tinha sido escudeiro, um dos serventes humanos que ajudam aos Dark-Hunters. Como adulto, Gus tinha ido trabalhar para o governo Grego, ajudando assim não só a Ash, mas também aos outros Dark-Hunters Gregos quando o necessitavam.

     Golpeou ligeiramente a porta a fim de não assustar a esposa de Gus, Olympia, que não tinha nem idéia sobre o mundo paranormal no qual seu marido estava envolvido. Sem mencionar o fato de que aqui eram as duas da madrugada.

     Escutou passos do outro lado da porta antes que se acendesse uma luz.

     Gus abriu a porta com um cenho na cara.

     —É melhor que seja importante, Acheron.

     —Te despertaria por qualquer outra razão?

     —Sim.

     Ash riu por sua displicência quando ambos sabiam que nunca incomodaria a Gus inecessariamente.

     —Isto é importante. Recorda ao grupo de pessoas às que ajudaste?

     —Os arqueólogos?

     —Sim. Havia um chamado Dimitri. Necessito de sua direção.

     Gus o observou extremamente irritado.

     —Pensei que eras onisciente. Não podes obtê-la tu mesmo?

     —Venho com certas restrições e, infelizmente, Dimitri é uma dessas exceções.

     Esfregando os olhos, Gus bocejou.

     —Entra e te conseguirei isso em tempo recorde.

     —Gus? Há algum problema?

     Ash fechou a porta ao mesmo tempo em que Olympia entrava na sala. Diminuta e miúda, tinha um comprido cabelo negro e grandes olhos cafés.

     —Sinto muito, te acordei.

     Ela sorriu enquanto o olhava.

     —Está tudo bem, Acheron. Sei que provavelmente vocês dois necessitam que os deixe a sós. Voltarei para a cama.

     —Boa noite —seguiu a Gus para seu escritório—. Como certo, é um menino.

     Gus sorriu orgulhosamente.

     —Obrigado por me fazer saber.

     —Não há problema —esperou silenciosamente enquanto Gus registrava em sua conta de trabalho no ordenador.

     Depois que Gus anotasse a direção, a entregou a Ash.

     —Espero que isto ajude.

     —Ajuda. Obrigado.

     Agradecendo que ao menos uma pessoa tivesse sido de ajuda, Ash cintilou da casa de Gus ao departamento de Dimitri ao outro lado da cidade. Tomou uma respiração profunda tratando de pensar na melhor maneira de dirigi-lo. Ou podia teletransportar-se dentro da casa e buscá-lo enquanto o homem dormia ou podia despertá-lo e lhe perguntar onde estava…

     Melhor encontrá-lo enquanto dormia.

     Ash entrou em pequeno e desordenado apartamento e se deteve. A princípio pensou que Dimitri estava adormecido na cama, mas não escutou batidas de coração. Aproximando-se, viu o homem que jazia morto, de barriga para baixo sobre um atoleiro de sangue.

     —Isto não é bom —suspirou, olhando ao redor o caos que alguém tinha deixado para trás quando destruiu o lugar durante a busca.

     Ash respirou fundo e fechou os olhos, esperando que desta vez seus poderes funcionassem. Justo como deviam fazê-lo na casa de Tory, viu tudo com uma repentina claridade cristalina.

     Três homens grandes vestidos de negro tinham atacado Dimitri, querendo o livro. Dimitri tinha brigado e não lhes havia dito nada, até enquanto o torturavam.

     Sua lealdade para Tory tinha terminado com um disparo silencioso fazia duas horas.

     Ash se ajoelhou junto ao corpo e fechou os olhos do homem.

     —Descanse em paz, irmão. Os que lhe fizeram isto pagarão. Prometo-o.

     Os homens partiram frustrados depois de destruir o andar. Mas se eles não tinham o diário, quem o tinha?

     —Matera?

     Vais gritar comigo de novo, Apostolos?

     Sinto muito. Uma onda de culpa o atravessou enquanto lamentava ter sido grosseiro com ela. Em toda sua vida, sua mãe e Simi tinham sido as únicas que realmente o tinham amado. Por isso, odiava perder a paciência com elas. Não quis descarregar meu aborrecimento sobre ti, mas poderia, por favor, me responder uma pergunta?

     O livro não está aqui, pratio. Dimitri o deu a alguém mais.

     Quem?

     Uma imagem de sua mãe apareceu ante ele. Seus tempestuosos olhos chapeados ostentavam tristeza e pesar.

     —Daria minha vida por ti e sabes. Mas não posso responder essa pergunta. Sua existência está atada fortemente à tua própria. Também és pai. Sabes que nem sempre pode dar aos teus filhos o que querem. Sinto muito, Apostolos.

     Queria tão urgentemente tomar sua mão na sua. Sentir seu contato, só uma vez em sua vida.

     —Entendo. Eu não gosto, mas entendo.

     Ela respirou fundo antes de falar de novo com uma voz que estava cheia de convicção.

     —Sei o que Savitar te disse. Mas está equivocado a respeito desses resultados. Não deixarei que ninguém te assassine. Não de novo. Se alguém se aproximar de ti, partirei os reino e desatarei meu exército para tua proteção. Sou uma deusa da destruição e não me importa o que acontecer com este mundo de homens. És a única coisa que amo, e matarei ao que seja e a quem for se tiver que fazê-lo para salvar tua vida.

     Isso não era muito tranqüilizador. Honestamente, preferiria estar morto a sofrer mais humilhações. Mas seu amor e devoção significavam tudo para ele.

     —Te amo, Matera.

     —Então me liberte.

     Negou com sua cabeça ao único pedido que nunca poderia realizar. E isso lhe rompia o coração.

     —Destruirás o mundo se o fizer.

     Para seu crédito, não se incomodou em lhe mentir. Omitia coisas e guardava segredos vitais tais como a existência de sua filha e o fato de que embora Simi fosse a última da linhagem de Xiamara e a última dos Carontes no reino humano, não era o último Caronte que restava vivo, mas sua mãe nunca tinha mentido completamente.

     Sua mãe tragou.

     —Em cólera, jurei matar Artemisa e Apolo pelo que lhe fizeram se alguma vez era libertada do Kalosis de novo. Ambos sabemos que se falho em manter minha palavra, pereceria. Assim tens razão. Não teria escolha, exceto o fim do mundo, em minha libertação.

     —E não tenho escolha exceto te manter aí.

     Ela negou com a cabeça.

     —Nunca entenderei como podes me produzir tanto orgulho e dor ao mesmo tempo. Não coincido com tua lealdade à raça que te traiu… não, eles fizeram algo pior que isso, te torturaram e abusaram de ti de uma forma que não merece compaixão nem indulgência. Mas respeito tuas convicções incluso se chocarem violentamente com as minhas. Nenhuma mãe poderia estar mais orgulhosa de seu filho, Apostolos. Vá encontrar teu livro e que saibas que estou aqui para te ajudar de qualquer forma que possa.

     Levantou sua mão para ela de maneira que pudesse pôr a sua contra a dele. Era o mais perto que podiam estar de tocar-se. Parte dele queria libertá-la a qualquer preço.

     Mas tendo sofrido da maneira em que o tinha feito, não poderia viver sabendo que tinha machucado a alguém mais. A não ser que ao menos o merecessem.

     —Vá com meu amor, Apostolos. Faça com que ambos estejamos orgulhosos.

     Desaparecendo de volta a Nova Orleans, deteve-se na bancada de seu apartamento no 622 no Pirates Alley, que olhava para o pátio da Catedral de St. Louis. Estava escuro, mas podia ouvir a música soando da Casa Old Absinthe, assim como também as risadas e os falatórios das pessoas na rua. Havia Daimons no beco espreitando vítimas, mas antes que pudesse inclusive preocupar-se por isso, chegou Janice. Observou a Dark-Hunter Trinitense segui-los até o Royal Street onde sabia que acabaria com eles.

     Esta noite tinha maiores preocupações que os Daimons procurando vítimas. Alguém tinha um dos diários de Ryssa que nunca devia haver-se escrito. Poderia voltar no tempo e pegá-lo, mas não sabia como alteraria o presente. Que mudanças podiam provocar. Poderia funcionar bem.

     Ou a terra poderia terminar.

     Apoiou-se contra a grade, considerando suas opções. Acaso tinha semeado sua própria destruição? Tinha dado a Tory uma chave que parecia inofensiva e agora era a maior ameaça que podia imaginar.

     Proteja à garota, Apostolos. A mantenha a salvo…

     Inclinou a cabeça para a voz de sua mãe dentro de sua cabeça.

     —O que estás dizendo, Matera?

     Não deveria te dizer isto, mas a sobrevivência do mundo depende dela. A mantenha a salvo.

     Ash riu enquanto era golpeado por uma linha do programa de TV, “Heroes”. Salva à artista. Salva ao mundo.

     —Por que estás me dizendo isso? —perguntou.

     Porque te amo. Agora vá..

     Ash vacilou, mas ao final do dia saberia a verdade. Sua mãe nunca lhe haveria dito isso a menos que fora realmente importante.

     Bem, ele protegeria Soteria.

     E protegeria a si mesmo.

 

     —O que estás fazendo, Apollymi?

     Apollymi se virou longe de sua fonte para encontrar Savitar parado em seu jardim olhando-a zangado.

     —Fora daqui, bastardo.

     Ele negou-se a se mover.

     —Não deverias ter lhe dito isso.

     Levantou o queixo em desafio ao Chthonian. Com todo seu poder, não estava a sua altura e ele sabia.

     —Quem és tu para me dizer que deveria ou não fazer?

     Seus olhos cintilaram do lavanda ao prateado e então se voltaram de um vibrante azul escuro.

     —Estás forçando ao destino.

     Grunhiu-lhe.

     —Estou protegendo a meu filho. Se isso for um crime, então me castigue. Ou espera, já estou sendo castigada por protegê-lo. Que assim seja.

     Savitar estreitou os olhos.

     —Isto não é um jogo.

     —Não, não o é. Não jogo. Nunca o tenho feito —começou a passar por ele, mas a pegou pelo braço e a deteve.

     —Não tinha porque conter os poderes dos deuses que destruiu em Atlântida da maneira em que o fiz quando te voltaste feito uma fúria contra eles. Mas se não fora por mim, os outros Chthonians te teriam matado.

     Apollymi se negou a ser intimidada por ele ou por qualquer outro.

     —E o que? Quer que te agradeças? —libertou o braço de seu puxão—. O único agradecimento que te devo é por ajudar a Apostolos a aprender a controlar seus poderes. Por isso, sempre estarei muito agradecida a ti. Mas é o mais longe que minha gratidão chega. Se de verdade pensas que te temo ou a esses outros deuses mortais com os quais estás, pensa-o de novo. Neste universo, só a fonte primária supera meus poderes. Não há nada que eu tema.

     Sua expressão se voltou fria, brutal.

     —Não é verdade. Temes perder a teu filho e enquanto temas isso, és controlável como o resto de nós.

     Odiava o fato de que estivesse certo.

     —Não me pressiones, Savitar.

     —E não pressiones a mim. Poderás ser uma deusa por nascimento, mas sou mais que um simples Chthonian e sabes. Sobrevivi a um inferno que nem sequer podes imaginar e seus fogos forjaram uma couraça de ferro dentro de mim. Queres uma batalha, toma tua espada. Mas antes recorda o número de deuses que tentou me matar e falhou.

     Repreendeu-o com um cenho acalorado.

     —Em resposta, farias bem em recordar que não só destruí ao meu panteão inteiro, mas também a minha própria família para proteger meu filho. Não te metas em meu caminho, ou teremos que averiguar de uma vez e por todas quem de nós empunha a espada mais poderosa.

     Savitar queria estrangulá-la por sua obstinação. Mas sempre tinha sido dessa maneira. Teimosa desde o centro de seu ser.

     —Bem, mas tenhas em conta o que aconteceu da última vez que tentou protegê-lo. O sofrimento que tua interferência causou a Apostolos. De verdade é o que queres?

     Seus olhos romperam em pranto e odiou a si mesmo por lhe causar tal dor.

     —Maldito.

     Ele burlou-se.

     —Estive maldito desde antes. Deixa o destino desenvolver-se como deveria, Apollymi. Peço-te que fiques fora disto. Pela nossa paz.

     Suas lágrimas de cristal resplandeceram como diamantes em suas escuras pestanas loiras.

     —Mantenha-o vivo por mim, Savitar. De outra maneira sabes o que acontecerá.

     Ele inclinou a cabeça.

     —Farei tudo o que possa, mas por outro lado, ambos sabemos que só Apostolos pode forjar o destino que queremos para ele.

     Porque se Acheron estragasse isto, não estaria sozinho em seu sofrimento.

     O mundo completo seria destruído.

 

    Ash bateu na porta principal de Tory. Ouviu as mulheres rindo como jovenzinhas na sala antes que Kim abrisse a porta de repente e lhe dirigisse um diabólico sorriso que lhe pôs nervoso.

    —Você gosta do negro, verdade Ash?

     Inseguro se deveria responder, franziu o cenho.

     —É correto.

     —Mas, qual é tua cor favorita? —perguntou-lhe, dando um passo para trás de modo que pudesse entrar na casa.

     Entrou e se perguntou se talvez não deveria sair correndo em direção contrária. No que se teriam metido?

     —Nunca o pensei.

     Pam clareou a garganta.

     —Mas se tivesse que escolher um, qual seria?

     Flexionou a mão sobre a alça da mochila.

     —Qualquer um que não seja branco. —Essa era a cor favorita da Artemisa e pensar nele, revolvia-lhe o estômago.

     Tory soprou ante sua evasiva resposta.

     —Poderia reduzir um pouco as opções?

     —Não vai te deixar em paz até que respondas —disse Pam, estalando a língua.

     Ainda apreensivo sobre o que tinham planejado, deu de ombros.

     —Isto, está bem. Vermelho suponho. Por que?

     Algo foi voando até sua cabeça. Sem estremecer-se Ash o pegou e isso chiou. Franzindo o cenho, abriu a mão para encontrar um pequeno demônio vermelho agachado que tinha chifres negros… estranhamente recordava a Simi em sua forma de demônio.

     Franziu o cenho ante as mulheres.

     —Isto… obrigado?

     Romperam a rir.

     Ash lhes jogou um olhar enquanto Kim se movia para sentar-se junto a Pam.

     —Alguma vez vos haveis sentido como se caminhassem no meio de um filme e tivessem esquecido de lhes contar até onde vai?

     Kim ondeou a mão em rechaço.

     —Ocorre-me todo o tempo no trabalho. Vão unidos.

    —O que é realmente ruim tendo em conta que és enfermeira de oncologia —riu Pam.

     —Oh, te cale —disse Kim, golpeando brincalhonamente a sua amiga no braço.

     Pam e Kim agarraram suas jaquetas do sofá. Pam colocou a sua.

     —Bom, já que Ash está de volta, deixaremo-lhes sozinhos. Ash, se te lançar outro martelo, faça-nos saber para repreendê-la por te fazer isso.

     Perplexo, não se moveu nem falou até depois que se foram.

     —Tens umas amigas interessantes.

     Tory fechou a porta enquanto sorria de orgulho.

     —Não, tenho as melhores amigas do mundo. Não sei o que faria sem elas.

     Ash sentiu seu coração afundar-se ao pensar em Nick.

     —Sim, eu tive um desses.

     Virou-se para ele com o cenho franzido.

     —O que ocorreu?

     Deitou-se com Simi e lhe matei por isso. Bom, não tecnicamente. Só tinha amaldiçoado a Nick para morrer o qual era o mesmo que ter apertado o gatilho que acabou com sua vida.

     —Deixamos de nos falar.

     Só lutaram e trataram de matar um ao outro. E tudo foi por sua culpa. Em um arranque de ira Ash tinha destruído sua amizade.

     Ela lhe pôs uma consoladora mão no braço. Estava seguro de que ela não sabia nada disso e, entretanto lhe havia tocado profundamente em seu interior que se incomodasse sequer em estender a mão para ele.

     —Sinto muito, Ash. Não posso imaginar o que faria sem minhas garotas. É tão reconfortante saber que posso chamá-las a qualquer hora do dia ou da noite e que estarão aqui logo que possam. Todo mundo deveria ter amigos assim.

     —Sim, deveriam.

     Tory pegou a pizza que restava enquanto recordava a Ash lhe dizendo que tampouco tinha família.

     —Então a quem chamas quando estás deprimido?

     Ele tirou a mochila.

     —Nunca o faço.

     Ela se deteve.

     —Nunca te deprimes ou não chamas a ninguém?

     Ele olhou ao redor da sala.

     —Assim vou dormir no sofá?

     Ela não perdeu o fato que tinha desviado o assunto longe do pessoal.

     —Não, tenho um quarto de sobra acima. Inclusive podes deixar tua mochila lá e não ter medo de que a toque.

     Ele assentiu lentamente.

     O silêncio era um pouco incômodo enquanto atirava a pizza ao lixo.

     —Finalmente conseguimos devolver ao seu lugar tudo o que os ladrões desordenaram. A ordem compulsiva reina de novo.

     —Bem. Soubeste o que faltava?

     Rangeu os dentes ante a inocente pergunta.

     —Nada.

     —Nada?

     —Obviamente estavam procurando algo que não estava aqui, como a polícia e tu pensaram. O que me faz perguntar quando voltarão.

     —Então queres ir a um hotel para dormir? Ofereceria-te minha casa, mas só tenho um pequeno apartamento de um quarto. De quarenta metros quadrados, não há muito espaço para duas pessoas.

     Certo, isso era um lugar pequeno ao que chamar de lar e lhe disse muito sobre sua natureza solitária.

     —Um montão de entretenimento, verdade?

     Ele sorriu.

     —Disse-lhe, eu gosto de estar sozinho. Mas tenho alguns amigos com os quais podemos contatar se isso te faz sentir mais cômoda. Suas casas são enormes e teria muitos cômodos para estar longe de mim. Estou seguro de que alguns deles inclusive têm caixas de ferramentas se as necessitas.

     Bateu-lhe no braço de novo enquanto ria por sua tenra brincadeira.

     —Se isso te faz sentir algo melhor, o do martelo não o fiz de propósito. Sou uma atiradora de tochas de campeonato. Acredite em mim, se realmente quisesse te fazer mal, faria-o.

     Ele soprou.

     —Não é realmente reconfortante desde minha perspectiva. Não tens muitos encontros, verdade?

     Tory riu de novo enquanto pensava nisso.

     —Tento-o, mas nunca vai bem.

     —De verdade?

     —Sim. É como se estivesse maldita ou algo do estilo. Cada vez que estou realmente perto de um rapaz, ou ele descobre que é gay ou tem um acidente inesperado e decide romper comigo.

     —Acidentes inesperados que incluem martelos?

     Ela pôs os olhos em branco.

     —Não, mas um rapaz quebrou a perna enquanto tentava subir na cama comigo. O maior fiasco de minha vida amorosa. Sem mencionar um sério golpe ao meu ego. Oh, bom… não comeste. Queres algo para comer?

     Ele negou com a cabeça.

     —Não obrigado. Comi um sanduiche em minha casa.

     Ela lhe olhou desconfiada enquanto atirava a última das garrafas de cerveja.

     —Sabes que somos gregos. Supõe-se que comemos e comemos um montão.

     —Isso é um estereótipo.

     —Não em minha família, não o é. De fato, é mais como um esporte olímpico. Minha tia Del é um galhinho de mulher que foi expulsa de bufês de tudo-o-que-possa-comer porque abria caminho para a comida como uma defesa em um campo de treinamento. Em minha família, nós as mulheres cozinhamos e vós os homens comeis. É a ordem natural.

     Ash cruzou os braços enquanto notava a curva de seu traseiro quando ela se inclinou para recolher um pequeno guardanapo que tinha caído ao chão. Maldição, essa posição criou um fogo nele quando uma imagem dela fazendo isso nua lhe torturou. Poderia fazer um uso mais sério dela assim…

     Sua respiração de repente se voltou irregular, era tudo o que podia fazer para não estender a mão e apertá-la em um lugar que garantia que fosse esbofeteado com força. Também poderia ser pior.

     —Bom, na verdade não como muito, assim não te preocupes em me alimentar.

     Dirigiu-se para ele lhe olhando com o cenho franzido.

     —É algum tipo de vampiro estranho? Nunca tiras os óculos e só sobrevives de cerveja…, embora isso também soa como um rapaz de fraternidade e te vi fora à luz do dia… Assim que isso acaba com minha fantasia vampírica.

     Se tão só finalizasse a fantasia de sua nudez tão facilmente.

     —Mudando de assunto —que se aproximava muito à verdade para seu gosto—, vou levar minhas tralhas para cima. Por onde vou?

     —Segunda porta.

     Ash se dirigiu para as escadas e enquanto as subia, as fotos familiares da parede lhe golpearam de novo. Tory era tão absolutamente normal. Tinha passado tão pouco tempo ao redor de gente como ela, que não podia fazer nada mais que sorrir.

     Mas mais que isso, perguntava-se como seria ter crescido em um ambiente familiar tão grande, amado. Todos pareciam tão felizes nas fotos. Tory estava com primos na Grécia enquanto se abraçavam uns aos outros. Havia mais fotos deles na loja gourmet Theo’s em Nova Iorque.

     Sua favorita era uma de Tory com uns quatorze anos em um bote com Geary. Ambas levavam chapéus marrons de aba larga com filtro solar branco em seus narizes enquanto estavam enganchadas em um abraço e risadas. Antes que pudesse deter-se, estendeu a mão para lhe tocar o rosto. E contra sua vontade, tratou de imaginar a alguém que lhe agarrasse assim, alguém que estivesse feliz de estar com ele.

     Como se sentiria isso?

     Estás cansado.

     A única pessoa que lhe amava e lhe tocava assim alguma vez era Simi. Ela lhe apreciava muito e por isso era tão protetor com ela.

     Tocou a tatuagem do peito, agradecido porque estivera com ele. Precisava deixá-la livre logo, mas sinceramente sempre odiava o momento da separação. Havia certo consolo em tê-la com ele…

     Era egoísta, mas não podia evitá-lo.

     Agarrando a alça da mochila, continuou subindo as escadas, para o quarto. Como o resto da casa, era pequeno e acolhedor. As cortinas e o edredom eram bege com flores rosas.

     Alguém tinha entrado e tinha afastado os lençóis para ele. Não sabia porquê, mas isso o fazia sentir bem-vindo.

     Deixou a mochila e estendeu a mão para uma guitarra acústica que estava colocada em uma cadeira de balanço. Sentiu uma presença atrás dele. Voltando-se, viu Tory na porta, lhe observando.

     —Tocas? — ele perguntou-lhe.

     —A torturo de vez em quando. E tu?

     —Faço-o às vezes.

     —És bom?

     —Faço-o bem.

     Ela entrou no quarto com uma pequena pilha de toalhas e toalhinhas que pôs no closet.

     —O banheiro está cruzando o corredor. Necessita de algo mais?

     Tu me tocando como se te importasse… Negou com a cabeça ante o pensamento proibido.

     —Sou um homem de poucas necessidades.

     Ela suspirou.

     —Tinha-o notado.

     Antes que Ash pudesse deter-se, deu um passo mais perto dela. O bastante perto para que pudesse cheirar a maravilhosa essência de Tory mesclada com os pêssegos de seu xampu. Saboreou-a. Como saboreou a visão daqueles inquisitivos olhos que lhe perguntavam tudo sobre ele.

     Deuses, como desejava uma parte desta mulher…

     Tory não podia respirar enquanto Ash permanecia tão perto, que podia sentir o calor de seu corpo. Era tão incrivelmente sexy. Tão belo.

     Vai beijar-te…

     Já podia saborear aqueles lábios masculinos. Sentir seus braços ao redor.

     Mas não era a realidade. No momento em que havia tocado sua pele, ela se afastou de um salto.

     —Muito bem então. Deixarei-te sozinho.

     Ash queria choramingar enquanto ela saía do quarto tão rápido que deixou um rastro de vapor. Como podia não lhe desejar? Toda a vida tinha estado rechaçando as pessoas. Defendendo-se de manuseios e toques indesejados. Agora que por fim encontrava a alguém que queria que lhe tocasse lhe tratava como se fora um leproso.

     Que demônios era isto?

     Exasperado, passou a mão pelo cabelo e amaldiçoou em voz baixa. Ia ser uma longa noite com ela dormindo tão perto e mesmo assim tão longe.

    

 

    Muito cedo na manhã seguinte, Tory estava acordada e ainda com cara de sono enquanto cambaleava escada abaixo para a cozinha. No momento em que entrou na cozinha, ficou congelada sobre seus passos.

     Ash estava ali. Vestido só com jeans, estava de pé de costas a ela.

     Mãe santíssima! A extensão da impecável pele bronzeada era mais do que uma mera mulher mortal podia ver e não salivar em cima. Largos ombros musculosos se estreitavam para baixo até seus estreitos quadris e um perfeitamente formado traseiro. Com o cabelo ainda desordenado pelo sono, abriu uma cerveja.

     Tory fez um som de desgosto por suas ações.

     —Tens que estar brincando comigo.

     Ele se virou e a pouca prudência que restava voou. Sim, ele ainda tinha aqueles molestos óculos de sol postas, mas o botão de acima de seu jeans não tinha sido abotoado. Levava-os baixos nos quadris, e o rastro escuro de pêlo que ia ao sul de seu umbigo era ligeiramente mais espesso na abertura.

     Não levava roupa íntima…

     E esse alongado e duro corpo estava feito para o pecado. Realmente, nenhum homem deveria aparecer assim e definitivamente não o que estava de pé em sua cozinha… Em sua cama era outra história. Cara, como ela gostaria de lhe devorar.

     —Passa algo errado? —perguntou ele inocentemente.

     Levou-lhe três pulsados antes que pudesse recordar o protesto por seu estado de nudez.

     —Estás bebendo uma cerveja na primeira hora da manhã. Que tipo de alcoólico és?

     Ele lhe mostrou um tentador sorriso antes de tomar um longo trago.

     —Não sou um alcoólico.

     Sim, claro.

     —Isso é o que todos dizem. Ao menos ponha algo no estômago antes de beber isso.

     Suas feições se endureceram.

     —Não necessito de uma mãe, Tory.

     Durante um minuto não pôde acreditar nisso. Zangada pelo que estava fazendo, tentou lhe tirar a garrafa, mas ele se negou a dar-lhe.

     Fulminou-lhe com o olhar.

     —Necessitas de alguém que cuide de ti. Jesus! Como podes fazer isto a ti mesmo?

     —Só é uma cerveja.

     —E o inferno é uma sauna. —Foi para a geladeira e pegou ovos e um pouco de queijo—. Sente-se e te farei algo para comer.

     —Não tenho fome.

     —E eu estou a ponto de brandir uma frigideira e uma faca assim se sabes o que é bom para ti, deixarás de discutir comigo e te sentarás.

     —Eu não tomo café da manhã —murmurou em voz baixa enquanto se afastava de seu caminho.

     —Realmente não me preocupa —se burlou ela com uma voz melodiosa que estava tão perto de seu acento como pôde conseguir.

     Ele se moveu para o outro lado do balcão de café da manhã.

     —És tão mandona.

     —Sim o sou. Agora te sente.

     —Sim, Sua Majestade. Há algo mais que possa fazer por ti?

     —Ponha uma camisa em cima como uma pessoa civilizada. Sabe o anti-higiênico que é estar numa cozinha sem camisa?

     Ash riu inclusive apesar de que desejava estrangulá-la. Tinha que ser a única pessoa que tivesse conhecido alguma vez que desejava que levasse mais roupa. Começou a levantar-se, mas ela fez um som de desaprovação.

     —O que passa agora? —perguntou-lhe, realmente desconcertado por suas mudanças de humor.

     Ela lhe assinalou ameaçadoramente com a faca.

     —Não te atrevas a te mover até depois de que te veja comer algo.

     Deixou escapar um suspiro frustrado.

     —Disseste-me que fora a me pôr uma camisa.

     —Desde quando escutas uma só coisa do que te digo? Nunca. Sei o que está planejando fazer. Irá lá em cima e não voltarás. Assim sente-se.

     Levantou as mãos em rendição enquanto a observava quebrar dois ovos e pô-los em uma tigela para assim poder batê-los com um ardor que lhe teria assustado se não fora um deus com poderes protetores.

     —Não és uma pessoa madrugadora, certo?

     Ela pôs um punhado de queijo em cima.

     —Não e não tive minha cafeína intravenosa tampouco, o qual significa que seria mais sábio para ti me seguir a corrente.

     Ash escondeu um sorriso. Por que lhe divertia tanto? Não o entendia e a não ser que quisesse lhe dizer a verdade sobre o que realmente comia, não tinha mais escolha que sentar-se aqui enquanto o fazia uma omelete, bacon e torradas.

     Ela deixou cair o prato frente a ele.

     —Fie! —Comer em grego.

     Olhou fixamente a comida que cheirava deliciosamente quando emoções enterradas surgiram. Queres comer, puto? Me dê prazer…

     No fundo de sua mente, viu si mesmo no escritório de Estes, de joelhos no chão, nu e encadeado a mesa enquanto seu tio lia na última hora da tarde. Esfomeado porque não lhe tinha sido permitido comer em todo o dia enquanto tinha trabalhado até que esteve sangrando e dolorido por isso, para fazer mais rico ao seu tio, Ash tinha olhado a tigela de figos açucarados que Estes tinha deixado frente a ele. Durante uma hora olhou fixamente a comida, mordendo os lábios em desesperada agonia. Convencido de que Estes estava tão absorto em sua leitura que não lhe via, Ash tinha estendido a mão para um.

     Ainda podia sentir a picada daquela bofetada desumana. Ver a ira nos olhos de Estes enquanto lhe puxava pelo cabelo e punha Ash de pé. Dei-te permissão para comer, puto? Não tomes nunca nada de mim sem ganhá-lo.

     Inclusive Artemisa lhe negava seu sangue num intento de lhe controlar. Se não a contentava, morria de fome. Mais que isso estavam às lembranças de ser obrigado a comer pelos guardas de seu pai. Mete-lhe pela garganta. Agarre-lhe a boca e lhe tampa o nariz até que engula. E quando se engasgava por que estavam lhe vertendo o alimento brutalmente pela boca, lhe batiam e esbofeteavam, também.

     Odiava comer.

     Tory estirou a mão pelo queijo e se congelou quando captou a estranha expressão do rosto de Ash. Se não o conhecesse melhor, teria jurado que tinha medo da comida frente a ele.

     —O que está errado?

     —De verdade não tomo café da manhã.

     Desta vez ela ouviu a nota subjacente em sua voz que recordou a um pequeno e apavorado menino. Antes que pudesse deter-se, foi até ele e se deteve ao seu lado. Ele continuava olhando o prato.

     Docemente, agarrou-lhe o barbudo queixo na mão e lhe virou a cabeça para que pudesse olhá-la.

     —Não vou te obrigar a comer contra tua vontade, Ash. Mas não quero te ver faminto. Por favor, coma algo.

     Ash olhou fixamente a veia de seu pescoço que pulsava com a vitalidade de sua vida. Podia ouvir seu coração pulsando… que era a comida que ansiava.

     Os incisivos se alargaram ante o aumento da fome que lhe percorria. Seus sentidos se afiaram enquanto sentia os olhos voltando-se vermelhos.

     Coma…

     Mas não podia obrigar-se a se alimentar dela do modo em que Artemisa o tinha feito com ele quando havia sido humano. Embora podia torná-lo prazenteiro para ela, não podia fazê-lo. Era uma sensação de ser violado ter a alguém drenando o sangue de seu corpo. Tê-los rasgando sua carne com seus dentes enquanto é incapaz de detê-los…

     Não o farei.

     Ela estendeu a mão para baixo e cortou um pedacinho dos ovos antes de levar o garfo aos seus lábios.

     —Faria-me o favor de tomar um pedacinho?

     Seus instintos eram empurrá-la longe dele enquanto seus dentes se retraíam. Em vez disso, encontrou-se abrindo os lábios de modo que ela pudesse colocar os ovos na boca. O sabor lhe assombrou. Nunca havia voltado a provar a comida desde que tinha morrido.

     Mas melhor que a comida foi o sorriso satisfeito no rosto de Tory. Ela estendeu a mão e lhe acariciou a mandíbula com o dorso dos dedos.

     Fechando os olhos, saboreou a ternura desse toque enquanto seu pênis endurecia energicamente. Nesse momento, custou-lhe cada grama de força que tinha não atrai-la para ele e beijá-la. Ou mais concretamente, despi-la e satisfazer a dor do vazio em seu interior.

     Nunca em toda sua existência tinha saboreado a luxúria assim. Era mais que um simples desejo, era uma crua e exigente necessidade.

     Ela pegou um pedaço de torrada e o sustentou contra sua boca. Obedientemente, abriu os lábios e deixou que o alimentasse de novo.

     Tory não podia explicar a peculiar sensação de satisfação que tinha lhe alimentando, mas não havia recusa. Sentia como se estivesse domando um leão selvagem. E quando o alimentou com um pedaço de bacon, mordeu-a brandamente os dedos.

     Um calafrio a percorreu.

     —Não é tão ruim verdade?

     Ele negou com a cabeça.

     Ela lhe deu outro pedaço de ovos. Engoliu-os, logo tomou um gole de cerveja. Ela não podia lhe ver os olhos, mas podia sentir o peso de seu olhar nela e isso lhe esquentava todo o corpo.

     —Agora que te apazigüei… —Puxou-a contra ele e a beijou.

     Tory gemeu quando sua língua tocou a dela. Nunca em sua vida um homem a tinha beijado assim, como se estivesse respirando-a. Possuíndo-a. Seu beijo era quente e exigente enquanto lhe embalava o rosto entre as mãos.

     Ash estava em chamas por seu sabor, pela sensação de sua língua contra a dele. Uma e outra vez, podia imaginar a si mesmo enterrado profundamente em seu interior. Sentir suas mãos nas costas lhe acariciando com a mímica ternura que tinha usado para lhe tocar a bochecha.

     Incapaz de resisti-lo, passou uma mão para baixo por seu braço e ao redor de seus quadris para aproximá-la mais a ele.

     O corpo de Tory vibrou com uma incrível exigência. Queria desfazer-se daqueles jeans e provar cada centímetro de seu corpo até que estivesse cega de êxtase, mas definitivamente, não era estúpida.

     Um homem como esse não tinha um encontro com uma mulher como ela. Simplesmente não ocorria.

     —Abaixo, rapaz —disse, voltando-se para trás—. Abaixo. Acabamos de nos conhecer. Em realidade, nem sequer sei de que cor são seus olhos.

     Ash quis queixar-se quando ela deu um passo afastando-se. Seu olhar caiu nos mamilos que eram claramente visíveis sob a camiseta sem mangas que levava. Tudo o que queria fazer era empurrá-la para cima e meter um deles na boca.

     Abraçaria-lhe como se lhe importasse?

     Ou lhe esbofetearia depois que a tivesse satisfeito e lhe jogaria de um chute da cama?

     O último pensamento caiu sobre ele como água gelada. Não queria sentir-se usado nunca mais. Sem mencionar que tinha um enorme problema ruivo que lhe golpearia até que não tivesse pele sobre o corpo se alguma vez se inteirava de que tinha beijado a outra mulher.

     Maldita seja. Sua vida nunca tinha sido sua.

     —Desculpe —exalou—. És extremamente irresistível.

     —Que estranho, os homens resistiram a mim durante anos.

     —Sim bom, eram idiotas.

     Sorrindo, estendeu a mão para os óculos.

     —Posso tirá-los?

     Ash jurou enquanto o medo lhe rasgava.

     —Desejaria que não o fizesses.

     —Por que?

     —Porque lhe farão sentir incômoda. A ninguém gosta de me olhar aos olhos.

     Ela lhe olhou com o cenho franzido.

     —O que és? O bebê de Rosemary[15]?

     —Mais ou menos.

     Ela negou com a cabeça ante seu medo.

     —Bom, no caso de que não te tivesse dado conta, não sou como a maioria das pessoas.

     Não, não o era. Mas nem sequer os deuses podiam lhe olhar aos olhos sem que seus lábios se curvassem de desgosto.

     —Só recordas, quando fizeres isto, não haverá volta atrás.

     Tory se congelou ante aquelas graves palavras. Agora tinha que saber como eram. Estendendo a mão lentamente, tirou-lhe os óculos dos olhos.

     Ash olhou ao chão, lhe impedindo de ver sua cor. Mas maldição, o homem era inclusive mais bonito sem os óculos. Nunca tinha visto um conjunto mais perfeito de feições.

     —Me olhe, Ash.

     Ash rangeu os dentes quando recordou Artemisa lhe dizendo o mesmo. Mas então, não tinha temido que lhe fizesse mal por eles. Agora não havia medo de que Tory lhe fizesse mal, mas inclusive depois de todos estes séculos sabia que rara vez as pessoas encontravam seu olhar sem lhe observar com desprezo ou vergonha. Odiava que alguém visse a evidência de sua divindade.

     Tory lhe acariciou a testa com um leve e tenro toque.

     —Por favor, Ash?

     Fortalecendo-se para seu horror e medo, olhou para cima e encontrou seu olhar levemente.

     Tory lhe olhou com surpresa pelo redemoinho de cor prateada. Nunca em sua vida tinha visto nada como isso. A cor era tão pálida e pura. Recordaram-lhe ao mercúrio.

     —És cego? —Inclusive enquanto a pergunta saía de seus lábios, sabia que era absurda.       Ele podia ver claramente.

     Sua expressão era estóica.

     —Não, não sou cego. É só um desafortunado defeito de nascimento.

     Ela viu a vergonha em seus olhos enquanto falava, e isso fez com que seu peito se esticasse porque algo tão belo lhe ferisse tanto.

     —Não é um defeito. Teus olhos são lindos. Únicos… como tu. Acredito que são demais.

     Ele afastou o olhar.

     Agarrou-lhe o queixo e lhe obrigou a olhá-la outra vez.

     —Quem te fez mal?

     Seu olhar era cauteloso.

     —O que?

     Tory lhe acariciou a mandíbula enquanto se dava conta de quão rabugenta devia ter soado.

     —Sinto muito, isso foi muito intrometido de minha parte. É só que és tão cauteloso e reservado inclusive com as coisas mais inocentes. Como que tens medo de deixar sair algo que será devolvido contra ti. E isso é tudo, o que nos leva diretamente a sua cor de olhos. Apostaria a que o negro nem sequer é a cor natural de teu cabelo, verdade?

     Ash tragou com dificuldade ante sua pergunta. Ela era inquietantemente perceptiva.

     —Como disseste, apenas nos conhecemos um ao outro.

     Afastou-lhe o cabelo do rosto.

     —Te relacionaste alguma vez com alguém?

     —Naturalmente que sim.

     —Não quero dizer intimidade sexual. Não tenho dúvidas de que estiveste com incontáveis mulheres, inclusive na sua idade. Pelo que estou falando é de ter a alguém que conheça teus pensamentos mais íntimos. Alguém com quem possas estar sem medo de que te julgue ou pense mal de ti?

     Ash riu amargamente ante a mera idéia de ser tão aberto com outra pessoa.

     —Está na natureza das pessoas ferir uns aos outros. A ninguém importa teus pensamentos ou teus sentimentos.

     Tory se doeu por ele. Era tão fechado que lhe fez querer chorar.

     —A mim importam teus pensamentos.

     —A ti? Julgaste mal tudo em mim desde o mesmo começo. Não sou nada mais que outro idiota com o qual tens que lidar.

     —Porque não me deste nada mais que o pior de ti para que te julgue por isso. Por que veio a Nashville? Hã? Por que arruinar minha reputação era tão importante para ti?

     Ela viu a luz apagar em seus olhos enquanto se retirava ainda mais em seu interior. Mas foi a dor neles o que a fez doer-se por ele e nesse momento soube que teve uma razão muito pessoal para o que tinha feito.

     —Por que, Ash?

     O relógio da entrada soou.

     Ele se voltou para trás.

     —São nove horas. Tenho um encontro.

     Desconcertada, franziu o cenho enquanto ele saía da cozinha com a cerveja e se dirigia para a salinha onde tinha conectado uma Xbox 360 à televisão. Ao menos isso era o que acreditava que era, mas em vez de ser branca estava coberta com adesivos negros nos quais punha “Hacker” e “pwn3d”.

     Ignorando-a, tirou uma camiseta da mochila, a pôs, logo se sentou no sofá e colocou um auricular na cabeça.

     Ela se sentou no braço do sofá.

     —O que significa pwn3d? Vejo-o por toda Internet.

     —É um termo de jogador que significa que foste vencido ou derrotado totalmente. —Ligou tudo.

     —Faz isto freqüentemente?

     —Cada sábado pela manhã.

     Ela pôs os olhos em branco esperando ver começar algo como Halo ou Gears of War ou algum outro jogo de machos. Assim quando começou com animais rosas dançando, franziu o cenho.

     —Viva Piñata[16]? —Parecia um jogo de crianças.

     —Sim —disse ele enquanto se registrava sob seu próprio nome—. Ei Tobe.

     Ela se deu conta de que estava falando com alguém pelo auricular.

     —Sim, sei que cheguei um pouco tarde. Sinto muito.

     Confusa, viu Ash escolher o personagem de uma raposa enquanto alguém chamado Tobinator era um urso. Então JadeNX se uniu a eles e Toki-san.

     Ash lhe jogou um olhar, logo voltou toda sua atenção ao jogo.

     —Toby, olhe a Jaden. Ouvi que teve uma má noite e está em modo aniquilação. —Riu—. O fim do mundo não me toca hoje, cara. Ei Takeshi, tire seu gordo traseiro de mim. Está esmagando à raposa. —Deslizou seu personagem lateralmente correndo—. Não há honra em sacrificar à raposa, tu, feio ouriço.

     Completamente perplexa pelo fato de que homens adultos estivessem jogando um jogo de criancinhas, foi se banhar e se vestir.

     Voltou trinta minutos mais tarde para lhe encontrar ainda em guerra com seus oponentes.

     —Onde há um fodido foguete quando o necessita? Ah merda, Jaden, pare com o pólen. Odeio isso. —Levantando a cabeça, bateu um botão—. Sim, prove o mel, vândalo.

     Ouviu o som da risada de uma criança através do auricular.

     O telefone de Ash soou. Jogou-lhe um olhar antes de desligar o auricular e atender.

     —Ei, Trish. Sim, entendo. —Desligou o telefone e voltou para jogo—. Meninos, acredito que tenho que declarar Toby o ganhador final. Sua mãe diz que tem que tirar o pijama e assear-se para conhecer o mundo. —Houve um audível gemido de protesto—. Eu sei, Tobe. A ginástica fede, mas te verei mais tarde, certo?

     Ash sorriu tristemente.

     —Escuta a Takeshi, colega. Tem razão. —deteve-se para escutar—. Bom jogo, cavalheiros. Obrigado pela competição. Jaden, tu e eu vamos ter a revanche mais tarde. Paz, irmãos. —Desligou e apagou o jogo.

     Tory lhe olhou enquanto ele guardava tudo.

     —Quantos anos tem Toby?

     —Oito.

     —E os outros dois?

     —Têm mais de oito.

     —Assim homens crescidos ficam online para vencer a um menino de oito anos cada sábado pela manhã?

     Ele riu.

     —Não, Toby sempre ganha.

     Tory deixou escapar um irritado suspiro.

     —Vê, estás fazendo outra vez. Não me estás contando nada.

     Ash se virou para olhá-la.

     —Sabes que confiar é uma boa idéia… para outra pessoa. Cada vez que cometi o engano de confiar em alguém… foi um engano do qual me arrependi e o paguei caro. Estou realmente contente de que ninguém te tenha ferido gravemente. Eu não tive tanta sorte, certo?

     —Eu nunca te trairia, Ash.

     Ele sacudiu a cabeça amargamente.

     —Tive gente que conheci muito melhor que a ti me dizendo isso. Ao final, mentiram e fui fodido por eles. Sem ofender, mas não quero repetir.

     Tory quis chorar. Quão duramente tinha sido traído para que nem sequer pudesse lhe contar se as pessoas ao outro lado do jogo eram amigos, família ou outra coisa?

     —Vou tomar uma ducha. —Agarrou a mochila e a levou com ele.

     Maldição, nunca tinha visto ninguém tão desconfiado. Provavelmente não havia nada mais na mochila que roupa íntima suja. Mas Deus proibisse que alguém visse alguma vez sua roupa íntima, poderiam aprender algo pessoal sobre ele como seu tamanho de roupa. Chama os federais! Tal coisa poderia pôr em perigo a segurança nacional.

     Suspirando, pegou o comando negro da mesa de café e se deteve enquanto outra idéia lhe ocorria.

     Não o faças.

     Não pôde deter-se. Ligando o sistema de novo, registrou-se com o perfil de Ash. JadeNX não estava, mas Toki-san ainda estava lá.

     Ele enviou uma mensagem.

     —É um amigo de Acheron?

     Respondeu-lhe.

     —E tu?

     Maldição, todos aos que conhecia Ash eram tão defensivos?

     —Sim, meu nome é Tory, poderia me ligar? 204-555-9862.

     Seu telefone soou uns poucos segundos mais tarde. Tory desligou o jogo e a televisão antes de atender.

     —Sou Tory.

     —Takeshi —lhe respondeu uma voz profunda com acento japonês—. O que queres de mim?

     De repente se sentiu ridícula e intrometida.

     —Sinto muito, não deveria te haver incomodado. Perdoe-me. —Começou a desligar.

     —Espera. Não teria contatado comigo se não fora importante. Acheron está com problemas?

     —Não. Sou uma arqueóloga e ele está ficando comigo porque acreditamos que alguém pode estar tentando roubar alguns artefatos atlantes que minha equipe encontrou. —Não tinha nem idéia do porquê estava contando tudo isto a ele—. Ash é tão reservado sobre tudo que eu… não sei.

     —Não lhe contarei nada do que me digas. Ele é muito reservado sobre certas coisas e tomaria isto airadamente.

     —Eu sei. Não deveria ter contatado contigo. Só precisava saber que é… que não está louco ou algo.

     Takeshi riu.

     —Está mais segura com ele que com tua própria família. Tem sua honra por cima de todas as coisas, inclusive sobre sua própria vida.

     Isso a fez sentir melhor.

     —Obrigada.

     —De nada. —deteve-se antes de falar de novo—. Cuide dele, Soteria. E recorda que precisa de grande coragem e coração para um homem que não conhece a amabilidade demonstrar-lhe a outro. Inclusive a mais selvagem das bestas pode ser domesticada com paciência e uma mão amável. —Desligou.

     Tory ficou de pé ali, digerindo a última coisa quando algo a golpeou… a tinha chamado Soteria.

   Como demônios tinha sabido ele seu nome real quando não o tinha dado?

    

     —O que é que fizeste?

     Tory saltou ao som da profunda voz de Ash Atrás dela. Culpada por ter contatado ao seu amigo, girou em redondo para enfrentá-lo e se paralisou ao vê-lo. Vestido com calças negras e botas, tinha deixado que seu úmido cabelo caísse livremente sobre seus ombros. Boa noite, o homem era incrivelmente gostoso. Mas foi a descolorida camiseta cinza que tinha um montão de esqueletos que realmente a colheu com a guarda baixa e a fez perguntar-se se sua propensão por elas não lhe faria assassiná-la pelo que tinha feito a suas costas.

     Ela clareou sua garganta e tratou o melhor que pode não parecer nervosa.

     —O que?

     —Ligou alguma coisa enquanto estava na ducha e me congelei até o cérebro.

     Aliviada que fora tudo o que lhe assinalasse, ela riu.

     —Sinto muito. A lava-louça. Não voltarei a fazer.

     —Por favor, não. Em um minuto estava escaldado, no seguinte congelado.

     Ela franziu o cenho quando observou a tatuagem do dragão de volta em seu antebraço—onde tinha estado originalmente.

     —É algum tipo de truque temporário que usas para foder a cabeça das pessoas? Juraria que se move em diferentes partes de seu corpo.

     Antes que pudesse responder, soou seu telefone. Tory grunhiu ante o som.

     —Sabes, entre os dois, não temos um segundo de paz com estes estúpidos telefones — respondeu ela, surpreendida de encontrar a Bruce—. Ei, querido. Encontrou o diário para mim?

     —Não. Alguém assassinou Dimitri ontem à noite e saqueou sua casa. Devem ter levado o livro.

     Afligida antes as inesperadas notícias, Tory soltou o telefone enquanto o horror e a dor a envolviam.

     Ash apenas a agarrou antes que caísse ao chão, soluçando.

     —Respire —sussurrou ele.

     Mas não parecia escutá-lo enquanto dizia, —não, não, não— em um tom baixo.

     Ele levantou o telefone do chão.

     —Olá?

     —Onde está Tory? —exigiu um homem.

     Ash a olhou. Tinha as pernas juntas contra seu peito e soluçava sobre elas enquanto se cobria a cabeça com um braço.

     —Está realmente perturbada. O que ocorreu?

     —Um de nossos amigos foi assassinado ontem à noite.

     Ash apertou os dentes quando recordou o horror das horas finais de Dimitri—ninguém merecia isso.

     —Está bem. Farei com que te ligue quando estiver mais calma. —Desligou o telefone e puxou-a contra ele.

     Tory enterrou o rosto em seu ombro e envolveu os braços em seu pescoço em um abraço de ferro que de algum jeito o machucou.

     —Como pode estar morto? Por que?

     Ele a sustentou mais perto.

     —Não sei, Tory. A merda cai aos melhores.

     —Não. Não por um fodido livro —Sua linguagem o surpreendeu e lhe deixou saber exatamente quão zangada estava—. Por favor, Acheron, me diga que um livro não vale a vida de um homem—. Ela se levantou do chão e agarrou o telefone.

     —O que estás fazendo?

     Afastando os óculos, secou os olhos enquanto suas bochechas se avermelhavam de raiva.

     —Vou chamar a toda minha equipe para lhes dizer que se escondam imediatamente. Não terei a outra pessoa ferida. Não!

     Ele não tratou de detê-la ao tempo que se levantava. Em vez disso, tratou de sentir algo de tudo isto com seus poderes. Era tão frustrante não ter uma visão ou uma pista sobre o que estava acontecendo. Não se havia sentido tão vulnerável desde o dia que morreu.

     Depois de ligar para todos os que pôde pensar, Tory desligou e suspirou.

     —Todos os outros estão atentos e seguros. Esperemos que siga dessa maneira —Inspirando audivelmente, tirou os óculos e usou a camiseta para limpá-los. Ash admirou a forma em que se recompôs.

     Voltou-se a colocar os óculos e o perfurou com um zangado e doído olhar.

     —O que achas que há nesse livro que o faz tão importante?

     —O fim do mundo.

     Ela lhe franziu o cenho.

     —Seja sério.

     —O que que tem se o fosse?— perguntou ele, querendo senti-la e ver o que faria se ela o estivesse—. Que houvesse algo nesse livro que fora totalmente apocalíptico?

     Ela não vacilou em sua resposta.

     —Então terá que ser destruído.

     —Ainda se contivera a prova da Atlântida?

     Ela empurrou seus óculos com o dorso da mão.

     —Bom, como estamos sendo hipotéticos, sim. A prova da Atlântida não vale a destruição do mundo. Quero dizer, realmente, do que valeria salvar a reputação de meu pai se não houvesse ninguém a quem importasse?

     Ele riu ante sua indignação.

     —Pensas rápido em seus cabais.

     —Assim me hão dito —Ela fez uma pausa e fechou seus olhos—. Não posso acreditar no de Dimitri. Deus, espero que não tenha sofrido.

     Ash não fez nenhum comentário. Não queria mentir e a verdade…

     Fedia.

     Em vez disso, tratou de distraí-la.

     —O que fazes normalmente em um sábado?

     Ela suspirou enquanto afastava o pano de cozinha. Era óbvio que ainda estava rasgada pelo de Dimitri, mas tratava de ser valente.

     —Depende do sábado. Aqui, ultimamente, estava fazendo pára-quedismo, mas meu piloto cancelou antes de ontem por doença, assim estava planejando classificar papéis e ver filmes ruins. O que acontece contigo? Além de estampar o ego de uma criancinha de manhã cedo, o que fazes?

     Sorrindo ante o divertido sarcasmo de sua voz, sacou um relógio de bolso de seu jeans.

     —Em umas duas horas, saberás.

     —O que há em duas horas?

     —Uma partida de basquete.

     Ela fez um som de supremo desgosto.

     —Oh, não. Não sou espectadora de esportes. Aborrecem-me até as lágrimas.

     Ash lhe estalou a língua. Nesta questão, ele seria a poderosa montanha que ninguém moveria. Havia feito uma promessa e ia estar lá sem importar o que.

     —Já poderias ir te apaziguando com o fato de que estarás sentada hoje na arquibancada já que não posso te deixar aqui sozinha.

     Ela de verdade sussurrou como gato.

     —Segue sonhando, amigo. Não vai acontecer.

     —Sim, acontecerá.

     —Não —disse ela firmemente—não acontecerá.

     Tory não podia acreditar em sua obstinação. Por que estava sendo tão irracional? Que diferença haveria se perdia um estúpido jogo com seus amigos?

     Mas quanto mais protestava ela, mais a ignorava ele. Literalmente brigaram até que ele desceu vestindo uma camisa de árbitro de poliéster branca e negra. Inclusive levava tênis de basquete em vez de suas requeridas botas.

     A visão dele vestindo assim a aturdiu até que o absurdo disso a golpeou.

     Tudo o que podia fazer para não rir dele vendo seu cabelo vermelho e negro jogado atrás em um rabo e um aro no nariz… não um clavo. Uma pequena argola de prata fazendo jogo com os dois que agora levava no lóbulo esquerdo.

     —Te deixam arbitrar, uh?

     —Ninguém discute com minhas decisões.

     —Apostaria isso.

     Ele colocou seu casaco e recolheu a mochila da morte.

     —Queres ir comigo até a partida?

     Ela se surpreendeu já que não o tinha visto a não ser caminhando ou indo até ela.

     —Tens carro?

     Ash sorriu.

     —Moto. A trouxe na noite passada quando fui recolher minha roupa —Era uma pequena mentira. A verdade era que a tinha materializado essa manhã quando decidiu que queria montar um momento e esperava que ela não se negasse.

     —Não tenho capacete.

     Ele tirou um da mochila.

     —Agora o tens. O que dizes? Pronta para um pouco de aventura?

     Tory enrugou o nariz ante o capacete e cruzou os braços sobre o peito. Ela se encantaria de unir-se a ele, mas não era nenhuma estúpida.

     —Não tenho equipagem apropriada e a última coisa que quero é ser um SQUID.

     Ele riu ante o uso do termo de um motociclista para descrever a alguém tão parvo como para não usar a equipagem de segurança apropriado.

     Ele tirou de sua mochila uma usada jaqueta de couro negra de tecido brasileira. Os ombros, os cotovelos e a cintura estavam fortemente costurados e a armadura em si era leve, mas foi a caveira cinza escura com duas tíbias cruzadas nas costas com um símbolo Hayabusa dourado sobre ela, o que a fez rir.

     —Tens algo com os esqueletos, não?

     —São legais.

     Sua atenção aos detalhes era admirável e para falar a verdade, não tinha montado em uma moto desde o verão passado.

     —Jogas?— perguntou ele.

     Ela tomou a jaqueta e a pôs. Enquanto o fazia, a essência do couro e de Acheron a impactou forte. Ele devia usar muito essa jaqueta. Completamente embutida nela, sentia-se cálida e suave enquanto atava os laços e o velcro. Ajustava-lhe surpreendentemente bem. Era também extremamente cara. Não se surpreenderia se ele tivesse tido que pagar mil dos grandes, ao menos pela maneira como estava feita.

     O que na terra fazia ele para viver e que lhe permitia custear brinquedos como esses? E como fazia para que tudo coubesse nessa mochila de Mary Poppins que tinha?

     Agradecida que fora obviamente maior do que parecia, tomou o capacete de suas mãos e lhe sorriu.

     —Mostre o caminho.

     A garganta de Ash se secou quando a viu usando sua jaqueta favorita. Parecia estranha e adorável nela. Definitivamente não era seu estilo usual, mas o fazia sentir como se de algum jeito o reclamasse vestindo sua roupa. Recordava a uma menina com a jaqueta de seu irmão mais velho quando empurrava os óculos sobre o nariz, logo se trançou o cabelo às costas assim o vento não o embaraçaria. Esperou que colocasse suas botas antes que estivesse pronta para partir.

     Maldição, a mulher era estranhamente bonita. Esses olhos marrons queimavam sua alma e o faziam ficar duro cada vez que ela pousava seu olhar nele. E se não a tirava de sua casa logo, ia carregá-la em seus braços e a levaria pra cima a sua cama e lhe mostraria os talentos que tinha…

     Afastando os pensamentos antes que o metessem em problemas, levou-a pela rua onde sua moto negra e dourada brilhava sob o sol. Esta parecia um predador que rasgava o caminho e o fazia sentir uma liberdade que só tinha quando sonhava. Não havia algo que amasse mais que montar nela e voar sobre a estrada como uma bala.

     Nessa moto, sentia-se livre não importasse quão ruim estivesse, fazia com que tudo estivesse bem.

     —O que, no céu, é isso? —perguntou ela enquanto inclinava sua cabeça para examiná-la.

     —Uma Hayabusa-turvo feita sob medida —. Disse ele enquanto puxava o capacete do guidão e o colocava na cabeça.

    Tory vacilou quando se deu conta que essa motocicleta estava feita para um só passageiro. Mas verdadeiramente, a coisa era linda.

     —Não acredito que caberemos ambos.

     —Claro que o faremos—. Ele puxou a traseira para lhe mostrar um personalizado assento de passageiro antes de prender a mochila no tanque de gasolina com ganchos para sustentá-la em seu lugar. Então montou a moto com uma inegável graça masculina que dizia que estava mais em casa que em outra parte em que o tivesse visto. Aferrou o fecho do capacete e tirou as chaves de seu bolso. Logo assegurou seu casaco a seu redor.

     Oh céus, havia algo naturalmente masculino nele sobre essa motocicleta. Autoridade. Ferocidade.

     Mais que tudo, era mais ardente que o inferno e a fez querer despi-lo e atirá-lo sobre a grama diante de Deus e tudo o que pudesse vê-lo e lhe fazer amor até que ambos pedissem misericórdia.

     —Te monte, houkla.

     Seu coração se emocionou ante a carinhosa palavra grega que significava boneca. Tory estava um pouco mais vacilante que o normal enquanto se aproximava da enorme motocicleta que tinha sido construída, obviamente, para a velocidade. Ela passou a perna sobre o assento e envolveu seus braços em sua esbelta cintura enquanto ele a ligava.

     Oh sim, bebê. Ela poderia ficar assim por uma eternidade. Aconchegada contra seu corpo quente, sua limpa essência lhe encheu o nariz… certamente não havia nada melhor.

     —Te agarre forte. —Sua voz proveio do intercomunicador do capacete.

     Ela o fez e ele se lançou rangendo, para a rua. Seu coração se acelerou pela maneira em que ele montava como se estivesse determinado por Lúcifer. Mas honestamente, ela estava encantada. Havia duas verdades sobre ela — coisas que não eram o suficientemente antigas e a agradavam e que nada podia ser o suficientemente rápido para assustá-la. Amava a história e amava a velocidade.

     —Fazes isto freqüentemente?— perguntou ela.

     —A cada oportunidade que tenho. Vivo para rodar.

     Uau, ele na verdade tinha admitido algo. Seria o primeiro. Possivelmente devesse anotá-lo para recordá-lo. Mas esse pensamento a deixou quando ele voou sobre um buraco que os suspendeu no ar por um minuto.

     Ela gritou e riu pela sensação.

     Ash sorriu ante o som de sua risada em seus ouvidos. Tinha temido ao princípio que ao fazer isso a assustasse. Mas como Pam tinha advertido, era intrépida e isso abrandou seu coração para ela ainda mais.

     E assim como também a sensação de seus braços envoltos ao seu redor enquanto se inclinava contra suas costas. Agora se deixasse cair sua mão uns centímetros para baixo ao vulto que tinha para ela, ele estaria aberto a negociações. Infelizmente, não tinha tanta sorte.

     Grunhiu ante o pensamento e acelerou ainda mais a moto.

     Tory não disse nada mais enquanto se dirigiam velozmente ao Kenner, ao ginásio de uma escola primária no qual devia ser um tempo recorde—graças a Deus ela não tinha que pagar a cota do seguro se ia assim rápido todo o tempo. Não podia nem imaginar o número de multas de tráfego que devia ter compilado—era assombroso que o homem ainda tivesse licença.

     —O que vamos fazer aqui?— perguntou ela enquanto ele se apeava.

     —Jogar —disse enquanto sustentava a moto reta para que ela baixasse. Ele agarrou os óculos da mochila antes de tirar o capacete.

     Tory não omitiu o fato que ele manteve os olhos fechados enquanto trocava o capacete pelos óculos. Por alguma razão que não pôde nomear, incomodava-a que fora tão retraído sobre seus olhos, e de uma vez que essa vulnerabilidade o fizesse mais humano, e de fato, mais adorável. Como podia um homem tão bonito e confiante ser tão tímido sobre coisas que ela encontrava realmente sedutoras?

     Jagando a mochila sobre o ombro, carregou seu capacete sob seu braço e a levou pela porta traseira dentro do ginásio onde um grupo de meninos estavam praticando. Os meninos teriam entre sete e nove anos.

     O coração de Tory se derreteu quando os viu. Oh, eram tão lindos e quando viram Ash foram correndo a chocar as palmas com ele—só que teve que dobrar-se para acomodar sua altura. Ela sabia que era alto, mas nesse momento, realmente parecia um gigante. Eles o rodearam enquanto todos conversavam e competiam por sua atenção.

     Ash ria.

     —Está bem, garotos, têm que praticar enquanto possam. Não quero ver nenhuma passada ou falta. Entendido?

     Eles assentiram e gritaram antes de retornar aos seus lados da quadra de esportes.

     Tory meneava a cabeça enquanto se aproximava dele.

     —Estás cheio de surpresas, não é assim?

     Ele franziu o cenho.

     —Não estou seguro do que queres dizer.

     Ela assinalou aos meninos.

     —Estou verdadeiramente assombrada. É a última coisa que teria imaginado que faria num sábado de manhã.

     —Ash é um dos melhores árbitros que temos. É sempre justo e os garotos o amam.

     Tory girou para ver um homem afro-americano de estatura média, com cabelo cinza e bem cuidado bigode.

     Ash lhe estendeu a mão e sorriu.

     —Ei, Perry, como estás?

     Perry balançou sua mão e o bateu no braço.

     —Contente de que pudesses vir. Tenho dois árbitros que se informaram doentes, acreditei que teria que suspender as partidas. Realmente aprecio que tu e teu amigo possam nos ajudar.

     —Quando seja. Sabes o muito que eu adoro ver os meninos driblar.

     Perry riu e brincalhonamente deu uma cotovelada a Tory em um lado.

     —E não se refere só às bolas.

     Tory sorriu.

     Ash tirou seu casaco e o pendurou de seu ombro.

     —Perry Stallings, te apresento a Tory Kafieri.

     Perry lhe piscou um olho.

     —Assim Ash finalmente tem uma garota. Estava começando a me perguntar se alguma vez se assentaria com uma só mulher.

     Ash soprou.

     —Ah, pensas muito.

     —E T-Rex não pensa o suficiente.

     Ash sacudiu sua cabeça quando um alto e bem feito homem loiro se aproximava deles.    

     —Um prazer ver-te, Talon. Ainda quando é uma dor em meu traseiro.

     —Tu também —Talon atirou um polegar sobre seu ombro—. Era tua Busa, essa lá fora?

     —Sip.

     —Adorável. Em qualquer momento que estejas preparado para deixá-la ir, me chamas.

     —Não contenha a respiração —disse Ash brincando enquanto os apresentava—. Talon estes são Perry e Tory.

     Talon lhes deu a mão por vez, e sustentou a de Tory quando viu o capacete que sustentava pela correia em sua mão esquerda. Ele arqueou uma inquisitiva sobrancelha.

     —Capacdetes da Busa em par?

     —Vim com Ash —explicou Tory.

     Voltou-se com curiosidade para Ash.

     Ash secou o canto de sua boca com o polegar.

     —Amigos, celta. Não faças nada maior disso do que é.

     —O que tu digas, T-Rex, o que tu digas… —havia suficiente dúvida nesse tom para encher o Superdome[17].

     Perry juntou suas mãos.

     —Bom, agora que os dois estão aqui, irei até os treinadores. Vós lhes acomodar e nos poremos em marcha em poucos momentos.

     Ash olhou por cima de Talon aos degraus atrás dele.

     —Sunshine veio contigo?

     —Está estacionando o carro.

     —Bom —Ash tomou gentilmente o braço de Tory e a levou para a pequena multidão de pais—. Deixe-me te situar.

     Tory olhou sobre seus ombros a onipresente mochila que mantinha perto.

     —Vais confiar em mim para guardar tua mochila mágica?

     Ele sorriu.

     —Claro. Sei onde vives e vi onde dormes. —Ele a sentou nos degraus quando uma exuberante e voluptuosa morena chegou com uma enxurrada de emoção.

     Vestida com uma rosada saia florida e túnica que estava coberta com uma jaqueta de denim pintado e abalhado com renda rosa, a mulher avançou direto para Ash e lhe plantou um beijo na bochecha.

     —Como estiveste, querido?

     —Decente —ele assinalou ao Tory com um movimento da cabeça—. Sunshine, te apresento a minha amiga Tory. Sunshine é a esposa de Talon.

     Tory sorriu enquanto dava a mão a Sunshine.

     —O loiro alto que não pode fazer uma cesta?

     A risada de Sunshine era contagiosa enquanto observava a Talon orgulhosamente.

     —Esse é meu bebê. Não é bonito? —Ela levantou uma mão para seu marido—. Vamos Talon, mostre-os como se faz —gritou ela.

     Ash se voltou e riu quando viu Talon fazer um arremesso que caiu bastante fora da marca.

     —Bom, será na próxima vez —sussurrou Sunshine por baixo antes de gritar—. Boa tentativa, amor, boa tentativa! Da próxima vez farás um home-run!

     Ash trocou um divertido olhar com Tory.

     —Sip, e com essa nota me deixe ir detê-lo que se envergonhe mais —Ele deixou cair seu casaco, capacete e mochila a seus pés.

     Tory sorriu quando correu para a quadra de esportes, tirando um apito prateado de seu bolso, o pôs por sobre sua cabeça e soprou. Talon girou para ele e Ash lhe fez um antigo gesto obsceno celta que só Talon, Tory e possivelmente Sunshine reconheceriam como extremamente ofensivo.

     Talon o olhou fixamente.

     —Tens sorte que haja garotos aqui, amigo.

     Ash lhe lançou um malvado sorriso antes de levar aos meninos para os lugares de partida.

     Sunshine se sentou ao seu lado e tirou uma garrafa de água de sua gigantesca bolsa de vime.

     —Assim, faz quanto tempo que conheces a Ash?

     Tory observava a graça com que Ash se movia correntemente entre os meninos, diminutos em comparação com ele. Não soube porquê, mas recordou a algum antigo guerreiro tratando de treiná-los para a batalha.

     —Não muito. Perto de uma semana.

     —E te trouxe aqui?

     Tory deu de ombros, não entendendo realmente sua compaixão por ela.

     —Minha casa foi assaltada e ontem à noite um bom amigo foi assassinado. Ash temia me deixar sozinha.

     O horror encheu os olhos marrons de Sunshine enquanto se aproximava para tocar o braço de Tory.

   —Oh meu Deus, querida… estás bem?

     Tory tragou enquanto pensava em Dimitri e a dor a embargou. Ele tinha sido o brincalhão do grupo. Cheio de vida e preciosamente doce. Realmente ia sentir saudades de vê-lo no bote ou escutar suas brincadeiras.

     —Não realmente. Mas o estou agüentando. Um passo de uma vez, não?

     Sunshine tomou sua mão e lhe ofereceu um amável sorriso.

     —Absolutamente. E se necessitas de algo, nos chame. Talon e eu vivemos aos subúrbios da cidade e pode estar onde seja muito rápido porque dirige como um lunático. Dia ou noite, se necessitar de algo, ligue.

     A calidez da mulher a comoveu profundamente. Eram estranhas e, entretanto, a Sunshine não importava.

     —Obrigada. Ash é muito afortunado de tê-los como amigos.

     Sunshine agitou uma mão enquanto Ash soprava o apito e separava a dois meninos que tentavam morder um ao outro. Mostrando um sorriso que esquentou seu coração, colocou a um menino debaixo de seu braço enquanto afastava o outro antes de pô-lo sobre seus pés.

     —Não sei —disse Sunshine melancolicamente—. Acredito que nós somos mais afortunados por ter a ele.

     Sim, Tory estava começando a sentir a sorte de havê-lo conhecido. Embora, para ser honesta, teria desejado conhecê-lo sob melhores circunstâncias que aquela dele envergonhando-a.

     —Faz quanto que o conheces?

     —Uns quantos anos para mim. Toda uma vida para Talon. Os dois vinham juntos.

     Ela olhou ao loiro alto, que provavelmente não fora a não ser dois ou três anos mais velho que Ash. Seu curto cabelo encaracolado estava suado e tinha duas tranças diminutas que caíam por sua têmpora. Estava contente de encontrar a alguém a quem Ash conhecia realmente bem.    

     —Brincas? Ash nunca fala das pessoas que conhece.

     —Sim, é brutalmente evasivo.

     Tory assentiu de acordo.

     —Boa descrição.

     Sunshine lhe ofereceu uma garrafa de água.

     —Mas ainda assim, tens que amar a Ash. É uma das pessoas verdadeiramente confiáveis que alguma vez conhecerás.

     Tomando a garrafa de água de sua mão, Tory observou como Ash ensinava a Talon como encestar durante o tempo morto, logo riu e sacudiu sua cabeça quando Talon o fez errado de novo. Esta era a primeira vez que via que realmente se estava divertindo. A maior parte do tempo era tão reservado e fechado—como se temesse permitir a alguém ter algum poder sobre ele. Era a única razão que podia pensar de que ele fora assim.

     —Ash teve uma infância difícil, não é verdade?

     Sunshine franziu o cenho.

     —Não sei. Escutei coisas misturadas de diferentes pessoas. Alguns dizem que é privilegiado e muito rico.

     Sim, havia algo de muito rico e Velho Mundo sobre ele. Distinto como se estivesse acostumado a só as melhores coisas do mundo… como a jaqueta costurada à mão que ela levava.

     —Parece ter muito dinheiro.

     Sunshine soprou.

     —Oh não, querida. O que tenha o ganhou. Acredite-me. Mas ninguém que conheça, e conheço muita gente que o conheceu durante anos, sabe algo de seu passado ou sua família. Ele se nega a falar disso.

     O que significava que devia ser brutal. Por que mais o esconderia? Pensar na família deveria ser reconfortante. Ela estava constantemente pensando neles e sorria. O fato que Ash se fechasse completamente ao assunto dizia tudo.

     Eram fontes de dor para ele.

     Com o coração pesaroso, olhou como a partida recomeçava. Ash era realmente adorável enquanto corria junto aos meninos que quase nem podiam jogar. Eles se chocavam uns contra os outros e caíam na quadra de esportes. Ash retornava para assegurar-se que estavam bem antes de levantá-los e pô-los de pé.

     Nunca tinha visto algo como isso. Mas eram completamente adoráveis. Especialmente Ash em toda sua glória Gótica.

     Sunshine desenterrou uma bolsa de bolinhos de aveia de canela.

     —Queres uma?

     —Obrigada —disse ela tomando uma da bolsita.

     Enquanto tomavam o batoque, uma mãe e seu filho pequeno, que se encontrava na cadeira de rodas se aproximaram e se situaram ao seu lado, para que o menino pudesse ver o jogo. Tinha cabelo curto e brilhantes olhos azuis, fez uma careta como se tivesse muita dor enquanto a mãe gentilmente acariciava suas costas. Era quase uma cópia exata da mãe, exceto que tinha um padrão de sardas sobre a ponta do nariz.

     Tory se deslizou para baixo para sentar-se perto.

     —Olá —disse sustentando a mão em sua direção—. Chamo-me Tory.

     Olhou para sua mãe para assegurar-se que estava fazendo bem ao falar com ela.

     —Seu nome é Toby.

     —Toby? —sorriu-lhe—. A sério? Meu amigo Ash estava jogando com um menino chamado Toby esta manhã na Xbox.

     O menino sorriu através das lágrimas.

     —Esse era eu! Chutei-lhe o traseiro!

     —Toby —o repreendeu a mãe —cuida de tua linguagem. O que te hei dito a respeito disso?

     Ele sentou-se mais erguido na cadeira.

     —Bom, pois o fiz.

     Tory se apresentou e o mesmo fez com Sunshine e a mãe de Toby.

     —Então vieram para ver Ash?

     Toby negou com a cabeça

   —Meu irmão Zack é o número sete da equipe azul.

     —Oh —disse enquanto assinalava ao menino de cabelo marrom—. É o melhor jogador da equipe.

     O timbre soou marcando o meio tempo. Ash se aproximou correndo. As bochechas estavam coloridas de vermelho pelo exercício. Sustentou a mão frente a Toby para que chocasse os cinco dedos.

     —Olá Tobinator. Como estás?

     Toby gritou com regozijo.

     —Podemos jogar? —perguntou-lhe.

     Ash olhou para Trish.

     —Está bem?

     Ela franziu o cenho com apreensão.

     —Seja gentil. Teve uma sessão dura com o terapeuta.

     —Serei —o levantou e balançou contra o peito antes de retornar à quadra de esportes onde as equipes estavam praticando novamente.

     Zack passou a bola ao seu irmão. Rindo, Toby a agarrou e Ash o levou para a cesta para que pudesse cravá-la na cesta que tinha sido modificada para seu pequeno tamanho. Sustentou Toby sobre a cabeça e o girou para frente e para trás, fazendo com que gritasse de felicidade.

     Os olhos de Trish se nublaram ao ver Ash com seu filho.

     —Não sei o que faria sem esse homem.

     Tory franziu o cenho.

     —O que queres dizer?

     Trish limpou os olhos.

     —Toby e meu marido estiveram em um horrendo acidente de carro há um ano. Barry morreu imediatamente e Toby ficou parcialmente paralisado. Durante semanas, no hospital, não respondia a ninguém. Não desejava comer ou falar. Então um dia Ash e uma amiga sua vieram e estiveram cantando com as crianças da ala onde estava, lhes dando presentes. Quando o viu, dirigiu-se a Toby e a coisa seguinte que soube era que lhe tinha feito rir de novo. —Soluçou—. Só vê-los aí... Deus abençoe a esse homem.

     Ash estava sustentando-o para que pudesse votar a bola enquanto seu irmão tratava de bloqueá-lo. Levantando-o, simulou ir à direita e correu para a cesta para que pudesse encestá-la de novo. O menino levantou as mãos e gritou triunfante. Ash lhe fez cócegas antes de carregá-lo em seus braços e correr para deixá-lo com a mãe novamente

     Colocou a Toby na cadeira de rodas e deslizou o braço sobre seu rosto suarento.

     —Muito bem Tobe, temos que voltar para partida. Mas Zack quer uma revanche depois.

     —Terá.

     Alvoroçou-lhe o cabelo antes de dirigir um olhar a Tory.

     —Estás bem?

     —Perfeita.

     —Legal. Mas te mantenha longe dos bolinhos de aveia da Sunshine. Talon diz que são repugnantes.

     —Ei! —Gritou indignada Sunshine—. Te pegarei por isso, Ash.

     Rindo se levantou e retornou ao centro da quadra de esportes.

     —Como estás Toby? —Perguntou Trish com a voz cheia de preocupação—. Fez isso que te doesse mais?

     Ele sorriu.

     —Não. Sinto-me demais. Ash diz que estarei caminhando para estas datas no próximo ano.

     A mãe franziu o cenho enquanto o pensamento lhe enchia de dor.

     —Oh bebê... tu sabes o que pensam os doutores.

     Toby levantou o queixo.

     —Eu acredito em Ash. Se disser que estarei caminhando, estarei. Só espera e verás.

     Tory sorriu ao menino.

   —Esse é o espírito.

     Toby lhe tomou a mão enquanto viam o resto da partida e animavam a Zack.

     Quando terminou a partida, Talon tomou uma bola para arremessá-la de novo.

     Ash burlou.

     —Deixa de envergonhar a teu grupo genético, Celta.

     —Te cale T- Rex. —Arremessou e falhou.

     Ash se aproximou para parar em frente a Toby com os braços em jarra.

     —Preparado, mequetrefe?

     —Preparado!

     Ash o levantou e olhou para Tory.

     —Sabes como jogar?

     —Passou um tempo, mas sim.

     Provocou-a com um sorriso.

     —Queres te unir ao jogo?

     —Eu adoraria.

     Talon lhe deu a bola enquanto se aproximava para sentar-se junto a Sunshine e tomava água.

     —Estou cansado de que riam de mim. Vá e me vingue.

     Tory se tirou a jaqueta antes de bater a bola contra o piso. Ash sustentou a Toby contra seu peito.

     —Muito bem Toby, vamos acabar com a kyria.

     Toby franziu o cenho.

     —Kyria?

     — Senhorita.

     —Oh. Muito bem.

     Tory ameaçou ir à esquerda e girou ao redor deles enquanto corria para a cesta. Esteve a ponto de chegar quando Toby tomou a bola e Ash o levantou sobre os ombros. Gritando feliz atirou para a cesta e encestou.

     —E a multidão se volta louca. Ahhhh. —Ash imitou o som de animados expectadores.

     —Ei Ash? —Perguntou Zack correndo para eles—. Posso cravar uma também?

     —Claro —levou a Toby para Tory que tomou ao menino. Ele envolveu os pequenos braços contra seu pescoço, gesto que a desarmou por completo, enquanto Ash tomava a seu irmão e o colocava sobre os ombros.

     Zack cravou a bola e levantou as mãos triunfantes enquanto saltava nos ombros de Ash.

     Trish se aproximou, sacudindo a cabeça ante eles.

     —Muitos bem meninos, agradeçam ao Ash, mas é tempo de irmos e a seguinte equipe ocupe a quadra de esportes.

     Toby fez uma careta.

     —Ai, mamãe —gemeu Zack enquanto o depositavam no chão.

     Então Ash tomou Toby de seus braços e o devolveu à cadeira de rodas.

     —Não te preocupes mequetrefe. Venceremos a Zack em um par de semanas quando voltar.

     —Muito bem e não esqueça o do sábado seguinte. Às nove em ponto!

     Ash fez uma antiga saudação Romana.

     —Sempre ao seu serviço meu senhor e torturante. —Passou a mão sobre o cabelo de Zack—. Jogou incrivelmente bem hoje. Continue praticando.

     —Continuarei. Adeus Ash.

     —Adeus meninos.

     Tory caminhou para ele enquanto a família partia.

     —Não és tão idiota.

     Olhou-a, fazendo-a desejar lhe ver os olhos através das escuras lentes de sol.

     —Confie em mim, posso sê-lo. Mas tenho certos requisitos antes de romper o traseiro de alguém.

     Talon soprou enquanto os passava.

     —Sim, toma-o de alguém que arriscou o traseiro por ele. Ash não é todo jogo e diversão.

     Sem pensar, Tory colocou as mãos sobre os quadris de Ash e se reclinou contra suas costas. Ao momento que o fez, precaveu-se de que se equivocou enquanto uma onda de desejo a golpeava fortemente, isso, foi o que pôde fazer para não atrair a boca masculina para a sua. Oh, querido céu, o homem estava suarento, mas não fedia absolutamente. Em troca, cheirava tão bem que queria mordê-lo.

     Tudo o que queria fazer era percorrer com as mãos esse duro peito e mordiscá-lo até que rogasse por mais.

   Ash não podia respirar enquanto se endurecia até um ponto doloroso. Graças aos deuses que não estava usando calças apertadas. E o pensamento de que as mãos estivessem a uns poucos centímetros de seu pênis só fazia que doesse mais.

     Clareando a garganta ela deu um passo atrás.

     —Quantas partidas mais tens que arbitrar?

     —Duas.

     —Muito bem, vou retornar a meu assento e comer alguns pãozinhos de aveia. Boa sorte com os meninos... Oh, e meu favorito tem que ser esse pequeno menino aí, catucando o nariz.

     Ash não falou enquanto ela ia sentar-se perto de Sunshine. Utilizou toda sua força de vontade para não puxá-la para ele.

     Talon lhe deu a bola.

     —Estás bem T-Rex?

     —Estou bem. Por que?

     —Porquê em todos os séculos que levo te conhecendo. Nunca tinha visto que fizesse isso com uma mulher antes.

     —Fazer o que?

     Ele riu.

     —Homem, não acredito que necessites que te diga que é isso. —Lançou um incrivelmente rápido olhar para a virilha de Ash.

     Ash, incômodo, olhou para baixo para assegurar-se que não estivesse chamando a atenção. Estava duro, mas queria assegurar-se de que não fora óbvio.

     Graças a deus, não o era.

     O qual levava a pergunta... Como soube Talon?

     De um nada uma bola se dirigiu a sua cabeça. Tomou-a. Levantando o apito, soprou para chamar os jogadores e iniciar a partida.

     Tory ainda estava tremendo pelo que tinha acontecido. Pelo loucamente que desejava uma parte desse homem...

     Sunshine limpava as migalhas da blusa.

     —Estás segura de que só são amigos?

     Tratou de parecer indiferente.

     —O que queres dizer?

     —Nunca antes vi que Ash permita que alguém o toque por trás. Normalmente vira na sala se alguém se aproxima de suas costas. O fato de que não virasse... é altamente suspeito.

     Tory franziu o cenho ante o novo descobrimento.

     —Não sabia que isso o incomodava. Trouxe-me aqui na parte de trás da motocicleta.

     Sunshine lhe lançou um olhar cheio de assombro.

     —Chocada, menina. És especial.

     —O achas?

     —Doçura, acredite em mim. O que acaba de fazer é um maldito milagre e realmente desejaria que pudesse apreciar que incrível foi.

     Tomou um gole de água enquanto via Ash dirigir um time de meninos maiores. Enquanto o olhava e refletia sobre o pouco que sabia a respeito de seu passado, teve um pressentimento muito ruim a respeito de sua infância.

     Só havia uma razão em que podia pensar que lhe incomodasse tanto que alguém se colocasse atrás dele. E o pensamento lhe provocava náuseas.

     Cada vez que cometi o engano de confiar em alguém… é um engano do qual me arrependo e pelo que pago eternamente. Estou muito feliz que ninguém te tenha ferido, mas eu não fui tão afortunado, certo?

     Suas palavras corriam adimiravelmente em seus ouvidos enquanto o observava apitar uma falta.

     Por favor, permite que esteja equivocada…

     Quanto mais pensava nisso, mais sentido tinha. Alguém lhe tinha feito muito mal no passado. Tanto, que não podia com isso.

     Por isso escondia os olhos ao mundo. Por que furava um rosto tão perfeito que pedia para ser tocado? Por que se vestia com roupas góticas? Para afastar todo mundo.

     Fechou os olhos. Era tudo o que podia fazer para não correr a lhe abraçar. Para lhe jurar que estava a salvo. Que idéia estúpida era essa? O cara era grande e feroz. A última coisa que precisava era sua proteção.

     Mas nem sempre tinha sido um homem...

     Tory se estremeceu recordando o que havia dito de seus pais. O que lhe tinham feito?

     Não falou muito até que terminaram o último jogo. Ash e Talon ficaram no outro lado para falar com Perry um momento.

     Sunshine estava recolhendo suas coisas quando Talon se aproximou.

     —Te divertiste, céu? —perguntou ao seu marido.

     Talon lhe sorriu.

     —Acredito que teríamos que nos fazer umas quantas dessas coisinhas.

     Sunshine riu.

     —Assim que estejas preparado. Minha mãe está mais que desejosa de ser avó.

     Talon a beijou apaixonadamente.

     —Sim, definitivamente, precisamos ir para casa e praticar.

     Sunshine lhe empurrou com um sorriso e lhe estendeu a bolsa.

     —Me indique o caminho.

     Talon conteve o fôlego voltando-se para Tory.

     —Encantou-me te conhecer.

     —A mim também.

     Sunshine se pendurou no braço de Talon.

     —Não se esqueça do que te disse. Se nos necessitar...

     —Certo

     Ash tirou o apito pela cabeça aproximando-se dela e o guardou no bolso.

     —Espero que não lhes tenham aborrecido muito nos degraus.

     —Não, na verdade é que me diverti. Tens uns amigos estupendos.

     —Sim, os tenho.

     Inclinou-se para recolher o caoacete. No momento em que o fez, decidiu provar sua teoria. Aproximou-se e passou a mão pela tira do rabo-de-cavalo que levava sobre o pescoço. O anel lhe enredou no cabelo e puxou.

     Vaiando de dor, agarrou-lhe a mão e a afastou com brutalidade de seu cabelo.

     —Nunca voltes a me tocar assim. —o grunhido era tão animal que de verdade pensou que poderia golpeá-la.

     Tragou-se o nó que tinha na garganta.

     —Nunca te faria mal, Ash.

     Não respondeu. Recolheu a mochila e o capacete do chão e se foi a pernadas para as portas.

     Amaldiçoando, agarrou sua jaqueta e seu capacete e lhe seguiu, com vontade de chorar.

     —Ash?

     Não parou até que chegou onde estava a moto. Colocou as chaves entre os dentes enquanto colocava o casaco.

     —Ash? —repetiu—. Desculpe. Não pretendia te zangar.

     Ash tentava acalmar-se. Não tinha feito nada de errado e sabia. Só que...

     Rangeu os dentes pelas lembranças. Teria raspado a cabeça a não ser porque só havia uma coisa que odiasse mais que lhe puxassem o cabelo e era sentir o fôlego de alguém ou simplesmente a brisa na nuca. Odiava que as pessoas lhe soprassem nas orelhas ou se aproximasse muito dele, especialmente pelas costas. Depois de todo este tempo, um toque, um fôlego lhe faziam sentir-se desprezível. Faziam-lhe sentir-se...

     Como um puto.

     Mas Tory não era parte do passado. Não era Artemisa que utilizava essas táticas para lhe recordar seu lugar no mundo. Para lhe recordar que deveria estar agradecido de que lhe permitisse qualquer tipo de dignidade.

     Tory era simplesmente uma mulher que tocava a um homem sem conhecer as cicatrizes que marcavam sua alma.

     Soltou o fôlego, acalmando-se.

     —Lamento ter reagido assim. É que eu não gosto que me toquem o cabelo.

     —Tomo a devida nota. Não voltará a ocorrer.

     Assentiu com a cabeça.

     Tory levantou o capacete vendo como fechava os olhos outra vez, tirava os óculos de sol e colocava o capacete. Era consciente do que fazia ou era tão habitual que nem sequer se dava conta?

     —Ash?

     Voltou-se para ela apertando a correia do queixo.

     —Acredito que tens os olhos mais bonitos que já vi.

     Ash ficou de pedra, comovido por suas palavras. Artemisa o havia dito uma vez para depois lhe amaldiçoar por eles. Não te comas o pote.

     —Obrigado. —disse com voz apagada passando a perna por cima do selim da moto. Colocou a mochila sobre o depósito e ela montou por trás dele.

     Deslizou-se contra suas costas com as coxas lhe pressionando intimamente as nádegas.

     Esperava que a repugnância habitual lhe enchesse, mas não. E quando lhe pôs os braços ao redor da cintura e se reclinou sobre suas costas, saboreou-o de verdade. Pôs em marcha a moto e olhou as mãos pequenas entrelaçadas sobre seu estômago.

     Não tinha permitido nunca que nem uma alma montasse na moto com ele, nem sequer Simi.

     Apertou-lhe com um abraço apertado e teve que se conter para não levantá-la da moto e trepar com ela como um animal no estacionamento até sufocar o fogo que sentia. Nunca lhe faria algo assim. Não era um animal e ela era...

     Não havia palavras para descrevê-la. Era exasperante, cabeça-dura.

     E maravilhosa. Absolutamente maravilhosa.

     Tocou-lhe as mãos e lhe deu um ligeiro apertão. Logo agarrou o guidão.

     —Te agarre forte.

     —Agarrarei, Achimou.

     Riu e se encolheu ao mesmo tempo ante o termo grego de carinho. Posto que a pronúncia correta de seu nome era Ack-uh-rahn, a abreviatura era Ack-ee-moo. Algo que sempre tinha temido que alguém usasse. Por isso tinha ajustado seu nome ao inglês Asheron e depois a Ash para evitar que alguém fizesse o que ela acabava de fazer.

     E, por razões que lhe escapavam completamente, não lhe importava que o tivesse feito.

     Assombrado, se dirigiu para a saída do estacionamento dirigindo-se para a parte da cidade onde estava sua casa. Não tinham chegado muito longe quando sentiu uma sensação estranha na espinha dorsal.

     Estavam lhes seguindo.

     Olhou ao seu redor e viu um sedam cinza aproximando-se deles enquanto o carro da frente reduzia a marcha. Ash queria passar ao carro da frente, mas havia muito tráfego na outra pista.

     De repente, o carro da frente parou.

     Pisou nos freios ao mesmo tempo em que o homem do assento de trás do carro tirava uma arma e abria fogo.

     —Te agarre! —rugiu enquanto as balas impactavam contra ele. Se houvesse sido humano, estaria morto. Como não era o caso, levantou um escudo ao seu redor para evitar que Tory resultasse ferida e que ele sofresse mais dano.

     Reduziu a marcha e depois acelerou ao máximo bordeando o carro pela direita pela borda para afastar-se deles.

     Tory estava aterrorizada e se pendurava em Ash com toda a força que dispunha. Não sabia como tinham falhado ao lhes disparar, mas estava agradecida por isso.

     E então viu dois carros aproximando-se.

     Ash tomou uma curva tão devagar que se assombrou de que Tory não se caído até com o escudo. Não brincava. Tinha que ser uma perita em montar moto para tomar essa curva sem cair.

     Considerou ao usar seus poderes para lhes tirar do atoleiro, mas isso lhe daria uma pista muito grande de que não era humano e se voltaria louca literalmente se os transladava ao pátio de sua casa. Não, era um deus. Claro que podia tirá-los disto.

     Isso pensava quando um terceiro carro se cruzou a eles. Girou à esquerda ao mesmo tempo em que um quarto carro foi direto até eles. Ao carro lhe arrebentou a roda traseira.

     Amaldiçoando, sentiu que a moto lhe escapava debaixo. Antes de poder reagir, saíram disparados da moto. Assegurando-se de manter o escudo sobre Tory enquanto deslizava, Ash chocou contra o solo escorregando pela estrada.

     A merda com as conseqüências.

     Estava a ponto de transportá-los longe quando o carro que tinha se chocado com eles lhe passou por cima. Ash uivou de dor quando as rodas dianteiras e depois as traseiras lhe esmagaram as pernas. Incapaz de enfocar em outra coisa que não fora a agonia de dor, deixou cair o escudo de Tory ao mesmo tempo em que ela escorregava golpeando-se contra um contêiner de lixo que havia contra um poste.

     Encheram-lhe os olhos de lágrimas lutando por respirar. Voltou a levantar o escudo ao redor de Tory para protegê-la de mais dano e para deixá-la sem sentido enquanto ficava de pé.

     A dor lhe deu plenamente. Poderia ser um deus, mas não era imune ao dano. Não podia lhe matar. Mas doía pra caralho.

     Os homens abriram fogo contra ele.

     Ash levantou a palma da mão e voltou as balas contra eles. A fúria lhe consumia enquanto os matava tão imisericordioso como eles tinham tentado matar a Tory.

     Todos exceto a um.

     Um homem pequeno e enxuto que se encolhia ao lado do Audi marrom que tinha passado por cima dele.

     —Quem bucetas és? —grunhiu Ash.

     O homem não respondeu.

     Ash lhe agarrou pela garganta e lhe estampou contra o porta-malas do carro.

     —Responda!

     Mas não tinha que fazê-lo. Nesse momento, Ash soube tudo dele e da organização para a qual trabalhava. Não me mates, por favor...

     Ouviu as vozes do passado do homem. Vozes de gente que rogava por suas vidas e às que este imbecil tinha matado sem nenhuma preocupação.

     Que assim seja.

     Ash lhe apertou a traquéia e lhe deixou esparramado sobre o porta-malas sem preocupá-lo o mais mínimo de quem pudesse estar olhando. Ainda não estava satisfeito. Olhou a Tory que jazia imóvel.

     Enquanto se aproximava dela, deu-se conta de que tinha as pernas rasgadas e a maior parte de seu corpo estava coberta de arranhões do asfalto já que tinha posto a ela sua jaqueta. Mas nada disso importava quando se ajoelhou ao seu lado. Com cuidado lhe tirou o capacete e viu as manchas em um lado do rosto e o sangue nos lábios.

     Tirou-se o capacete. O medo e a pena lhe percorriam enquanto toma o pulso. Tinha que estar bem. Tinha que está-lo. Tinha um nó no estômago até que encontrou um fraco pulsado.

     Queria chorar de alívio. Ainda estava viva, mas muito fraca pelos danos internos.

     Ash estendeu a mão e a mochila apareceu em sua mão. Pendurando-lhe às costas, pegou a Tory e os transportou a ambos ao hospital Tulane. Embalou-a em seus braços contra ele e entrou coxeando dolorosamente na emergência.

     Felizmente, no balcão havia alguém a quem conhecia, Wanda.

     Era uma mulher corpulenta afro-americana que ofegou quando lhe viu aproximar-se. Dobraram-lhe as pernas de dor e quase cai. Mas não caiu. Não podia cair enquanto tivesse Tory nos braços. Tinha que conseguir ajuda.

     —Meu deus, Ash! O que te aconteceu?

     Não podia falar enquanto sentia que Tory exalava um último e leve fôlego antes de morrer em seus braços.

 

    Ash caiu sobre seus joelhos em meio da sala de emergência, enquanto a dor por suas feridas e uma insuportável e incrível onda de profunda pena e impotência o assaltava. Não entendia por que, mas nem sequer podia respirar ante o pensamento de que Tory não estivesse aí.

     —Tory.

     Grunhiu, sustentando-a contra seu ombro enquanto tomava seu frio rosto entre as mãos e a agitava gentilmente.

     —Maldita seja, não te atrevas a morrer em meus braços. Tory!

     Wanda estava aí com um doutor e os carregadores de maca. Colocando-se atrás dele, puxou-o pelos ombros enquanto o doutor tirava Tory de seus braços.

     Ash queria brigar com eles e ainda assim sabia que não podia fazê-lo. Tinham que salvá-la. Não interfiras. Não. Interfiras.

     O toque de Wanda era gentil, mas não era o toque que desejava sentir.

     —Ash? —disse, com a voz entrecortada.

     Não pôde responder enquanto escutava o aviso de um Código Azul. Agarraram a Tory de suas mãos e a colocaram em uma maca antes de levar-lhe rapidamente.

     Ash se ajoelhou aí no chão, jogando ao lado seu ensangüentado casaco, vendo-os correr com ela através do corredor enquanto sua alma gritava por vingança contra aqueles que a tinham ferido.

     —Acredito que está em choque.

     Alguém o tocou. Ash grunhiu, empurrando ao interno para trás enquanto ficava de pé e ficava imóvel com suas pernas separadas.

     —Não estou em choque. Estou bem.

     O interno ficou olhando a Wanda com os olhos muito abertos.

     —Doçura —disse Wanda, tocando-o ligeiramente no braço—. Não estás bem —seu olhar se deslizou sobre seu golpeado corpo—. Estás muito ferido e precisas deixar que o bom doutor te examine.

     Ash limpou algo morno que lhe escorria pelo rosto. Pensando que era suor olhou para baixo para ver a mão coberta do sangue que lhe emanava da cabeça. Como podia lhes explicar que se curaria? Se não lhe estivessem olhando fixamente, faria com que suas feridas desaparecessem...

     Quem não poderia curar era Tory. Ela era quem estava morta.

     —Estou bem. Juro-o. Só preciso ir ao banheiro.

     O interno ainda o olhava com suspeita, mas ninguém o deteve enquanto os deixava e entrava em pequeno banheiro. Uma raiva imensa o queimava. Queria sangue e podia notar como os olhos se voltavam vermelhos. Manifestou um par de óculos de sol sobre os olhos antes que alguém o pudesse ver em toda seu imortal glória.

     Sua fúria era tão grande que lhe queimava com um arrebatamento de poder tão forte que fundiu as luzes sobre ele. Pequenas faíscas caíam e chispavam enquanto lutava por controlar-se.

     Salve-a.

     Com um só pensamento podia voltá-la para a normalidade. Sem cortes. Sem feridas.

     Se lança uma pedra e tudo muda... Podia escutar a voz de Savitar na cabeça e odiava essa parte de sua consciência. Toda sua vida humana se arruinou devido a que os deuses jogavam com seu destino. De gente trazendo-o de volta da morte.

     Caindo sobre seus joelhos, gritou com raiva, sem poder mitigar a dor enquanto esfregava o rosto contra o braço em busca de prudência. Não podia fazê-lo com Tory. Não podia arriscar-se a salvá-la, pelo que poderia implicar para o mundo. Se se supunha que morria, teria que morrer. Recusava-se a tentar ao destino.

     Fodido destino! É um deus, com um demônio, Apostolos. Muda teu destino! Salve-a!

     Só porque possas, não significa que devas. Era o único código com o qual tinha vivido toda sua vida.

     —Não morras Tory.

     Sussurrou, sabendo que não podia renunciar ao seu juramento. Não seria como aqueles que o tinham condenado intervindo quando o que deveriam ter feito era deixá-lo sozinho.

     Molesto por sua covardia, lançou um olhar ao espelho e deu de ombros. Sem dúvida se tinham assustado muito. Parecia um morto vivente. Seu rosto estava golpeado, a roupa rasgada e sangrenta. Poderia trocá-la, mas então o pessoal suspeitaria se saía caminhando totalmente restabelecido. Por isso só lavou o rosto e regressou lá fora onde Wanda o esperava. Seu coração se deteve quando viu que sustentava a jaqueta de couro que Tory tinha usado.

     Wanda lhe ofereceu um gentil sorriso.

     —Ressuscitaram a sua amiga. Levaram-na a sala de cirurgia.

     Agarrou a jaqueta enquanto uma onda de alívio o envolvia.

     —Obrigado Wanda.

     Ela assentiu.

     —Estás seguro de que não queres ver um doutor?

     —Seguro.

     Negou com a cabeça como se estivesse desiludida por sua decisão.

     —Bom, levar-te-ei a sala de espera. Tem alguma informação sobre ela para encher a papelada?

     —Não, não realmente. Mas sabe, sou bom com o dinheiro. Faz o que tenhas que fazer, ao diabo com o custo.

     —Eu sei, bebê —bateu seu braço enquanto o guiava para o elevador—. Necessitamos dos nomes de seus familiares próximos.

     —Megeara e Theo Kafieri. Theo é seu avô que vive em Nova Iorque e sua prima Geary vive na Grécia.

     —Muito bem. Levarei-te para cima e então voltarei com os papéis.

     Ash não disse nada enquanto o levava para o elevador onde tinha estado milhares de vezes quando vinha com Simi para fazer o trabalho de voluntário. Assim tinha sido como tinha conhecido Wanda. Seu pai tinha sido guarda quando traziam presentes a um casal uns anos antes que seu pai fizesse um cateterismo no coração. Tinham sido amigos desde então.

     Ela o dirigiu a uma pequena sala que era estéril e fria... justo como ele.

     —Necessitas de algo?

     Negou com a cabeça. O que precisava era saber como estava Tory. Mas seus poderes não lhe diziam nada.

     —Muito bem. Voltarei logo.

     Ele sentou-se para descansar as pernas que ainda lhe doíam desde que o carro o tinha atropelado. Enquanto se movia, captou uma leve essência de Tory procedente de sua jaqueta. Sustentando-a contra seu nariz, inalou e quis chorar. O medo de perdê-la, de fato, fazia com que suas mãos tremessem e não entendia por que. Quase nem conheciam um ao outro.

     Mesmo assim queria correr para o seguinte andar e curá-la.

     Todas as coisas apodrecem. Sua mente lhe arreganhava por permitir que lhe importasse uma simples humana. Olhe o bem que te tratou Artemisa a princípio. Tinha-lhe dado presentes e se assegurou de que estivesse cômodo, para logo voltar-se contra ele na primeira vez que não a tinha agradado. Era uma emboscada progressiva que sempre se voltou contra ele.

     Primeiro Tory te odiou e depois gostou de ti...

     Sorriu ante a lembrança dela lhe atirando o martelo à cabeça. Era irritável. E esperta. E divertida. Sobretudo, tratava-o como se fora normal. É obvio não sabia o que era, mas a diferença de outras pessoas não lhe colocava a mão ou o punha nervoso para tratar de fodê-lo por um cabelo.

     Tratava-o como se fora algum outro menino na rua.

     —Ash?

     Levantou o olhar para ver Kim a amiga de Tory frente a ele. Seu rosto estava desenhado com medo e preocupação enquanto o olhava e à sangrenta jaqueta que sustentava.

     —O que estás fazendo aqui? —perguntou-lhe.

     —Trabalho aqui. Recordas? Sou enfermeira de oncologia. Disse uma amiga da Emergência que haviam trazido a Tory. O que aconteceu? Estás bem? Não deverias estar lá embaixo sendo tratado?

     Negou com a cabeça.

     —Tivemos um acidente em minha moto.

     Kim tragou enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas.

     —Está bem?

     —Hão-me dito que estava na sala de cirurgia. Estou esperando notícias.

     Ela sentou-se junto a ele.

     —Sem ofender, mas tu também pareces muito machucado.

     —Viverei.

   Ele lhe lançou um olhar de dúvida suprema.

     —Porque não me dás teu número de celular e te ligo logo que saiba algo sobre Tory. Sabes que não irei e precisas ver um médico e te limpar um pouco.

     Olhou para o vão de suas calças que revelavam a pele danificada.

     —Por certo, não é um pedido.

     Ash assentiu enquanto se precavia de que tinha razão. Não fazia nenhum bem ficando assim e tinha outro assunto que atender também. Lhe dando seu número, saiu e se dirigiu ao elevador. Logo que esteve sozinho, se trasportou diretamente ao templo de Artemisa no Olimpo.

     Com indignação crescente, empurrou as portas do templo para abri-las com tanta força que golpearam fortemente contra as paredes. Seus koris gritaram antes de correr para deixar Artemisa a sós com ele.

     Artemisa se sentou zangada enquanto o percorria com um furioso olhar.

     —Qual é tua ruína?

     —Dano —a corrigiu enquanto se dirigia para ela—. Podes me dizê-lo?

     —O que? Por que pareces saído do lixeiro? Estas sujo e cheiras. Por que não te banhou antes de vir a mim?

     —Porque um carro me atropelou depois de ser caçado por um grupo de homens que disparavam em mim, Artie.

     —E isso é minha culpa? Como?

     Ele deu um profundo suspiro e contou até dez antes de matar à mãe de sua filha. Sendo honesto, Katra era uma mulher adulta e realmente já não necessitava de sua mãe...

     —A palavra Atlantikoinonia te soa algo?

     —Sim, soa. E o que?

     Esse olhar sem arrependimento o atravessou como uma explosiva granada.

     Quando falou foi através dos apertados dentes enquanto lutava com força para não atacá-la e machucá-la.

     —Tentaram me matar, Artemisa. E como plenamente podes ver, não estou emocionado por isso.

     Seu rosto empalideceu.

     —Eles não tinham que te tocar, nunca.

     —Não —disse, sua voz caindo à baixa cadência de um demônio—. Suas ordens foram executar a uma humana inocente ao vê-la. Mas resulta que estava com ela quando atacaram.

     Lançou-lhe um olhar curioso enquanto descartava sua preocupação e fúria.

     —Por que te preocupas pela humana? Só estava tratando de te proteger.

     —Não, não o fazia. Sei que é o que há no diário perdido. Não dá nenhuma merda por minha dignidade. É seu traseiro o que estás tratando de salvar.

     Engatinhou para trás no sofá, tratando de escapar dele.

     —Significa que tu és quem pegou o livro?

     Ele se deteve.

     —Pensei que o tinha teu pessoal.

     Ela curvou o lábio.

     —Se o tivéssemos, por que andaríamos atrás da cadela?

     O insulto a Tory o incomodou inclusive mais.

     —Não é uma cadela Artemisa. Agora chame aos seus sabujos. Sério.

     Levantou-se de joelhos para enfrentá-lo sem encolher-se.

     —E o que acontece se não fazer o que queres? Eles também são humanos inocentes. Vais matá-los?

     As mãos lhe picavam desejando envolver-se ao redor desse perfeito pescoço de cisne e retorcê-lo até que estivesse satisfeito.

     —Não estou brincando contigo.

     —Tampouco eu —ela gritou—, esse diário ameaça tudo e não descansarei até que o tenha.

     Ele vaiou de raiva, mas não se retratou.

     Moveu a cabeça para trás, orgulhosa de seu desafio.

     —Não me ferirás e sabes. Amas muito a Katra. Ficaria devastada ao saber que seu pai matou a sua mãe. Deveria lhes ter apresentados há muito tempo. Enquanto tenha seu amor, sei que estou completamente a salvo da ira.

     Levantou a mão como se fora a asfixiá-la de todas as maneiras, mas ao final, ambos sabiam a verdade. Ela tinha razão. Tão zangado como estava, não podia feri-la devido a que destroçaria a sua filha.

     Artemisa sorriu sedutoramente.

     —Senti saudades de ti.

     Deslizou um braço ao redor de sua cintura.

     Ash se afastou.

     —Se valorizar tua insignificante vida, mantenha-se longe de mim.

     Se transportou do Olimpo ao Katoteros.

     Urian caminhava para a porta do salão principal quando Ash entrou.

     —Que demônios te aconteceu? Teve um ruim encontro com Artemisa?

     Ash curvou o lábio ante o Ex-Daimon.

     —Um dia, Urian, vou esbofetear-te tão forte que as orelhas te zumbissem toda a eternidade.

     Urian riu.

     —Mas não será hoje, principalmente porque não pareces que possa fazer algo para ferir alguém. Sério. O que te aconteceu?

     —Estrelei-me com a moto.

     Urian girou seus olhos com incredulidade.

     —Bem, não me digas isso. O que seja.

     Ash soltou uma risada amarga enquanto se precavia do ridículo que soava. Nunca tinha caído antes de uma moto. Triste, zangado com Artemisa e preocupado por Tory, deteve-se ao ver o Daimon.

     —Sabes, Uri, há algo seriamente mal comigo.

     —E te dás conta agora? Demônios, é o póster do menino com lenta aprendizagem.

     Apertando os lábios. Ash passou dele.

     Urian o deteve.

     —Era uma brincadeira Acheron. Supõe-se que tinhas que rir.

     —Não estou de humor para rir.

     Urian assentiu pormenorizado.

     —Então o que aconteceu na realidade?

     Ash duvidou. Não estava em sua natureza falar com ninguém a respeito de nada. E, entretanto tinha uma pergunta queimante que não se iria.

     —O que está tão errado em mim que só me excitam mulheres que me odeiam?

     Urian soprou ante essa pergunta.

     —Tens razão. Isso é doentio —aplaudiu o ombro de Ash—. Uma palavra para ti meu irmão. Terapia. Consiga uma.

     —Essas são três palavras.

     —Precisava me expandir... e falando de coisas que se expandem, tens um visitante dentro que deseja ser teu novo melhor amigo.

     Ash amaldiçoou enquanto se precavia quem estava lhe esperando.

     —Quem demônios o deixou sair?

     —A garota fantasma que deseja que vos beijeis e reconcilieis.

     Ash apertou os dentes.

     —Preferiria ser golpeado na cabeça com o martelo que me lançou Tory.

     —Tory?

     —É uma longa história —Ash deixou sair um suspiro cansado—. Obrigado pela advertência. Irei lutar com ele.

     Ash se dirigiu para as portas que conduziam a sua sala do trono. Enquanto passava sobre o emblema do chão, suas roupas mudaram a uma calça de couro negro e uma formesta[18] Atlante. Abriu as portas de repente para encontrar Styxx esperando do outro lado.

     Deteve-se ante a vista de seu gêmeo que sempre o encontrava com a guarda baixa. Cada vez que olhava a Styxx recordava seu passado. A brutalidade. A injustiça de suas vidas.

     E contra sua vontade, escutou a Estes grunhindo bêbado em sua orelha enquanto o sustentava pelo cabelo e o violentava. Como ousas me fazer te desejar como o fazes. Odeio-te pelo que me fazes, puto repugnante. Odeio-te. A única coisa que seu tio lhe tinha dado livremente eram golpes e insultos.

     Agora Styxx estava parado frente a ele, uma réplica perfeita com loiro cabelo curto e os normais olhos azuis que Ash teria matado para possuir.

     Ash olhou ao longe enquanto se recordava que era um Deus e não um puto sem valor a serviço da crueldade de seu irmão.

     —Realmente não estou de humor para lutar contigo hoje, Styxx. A pouca paciência que tinha foi comida viva há dois minutos.

     —Eu sei. Posso sentir tuas emoções.

     Ash lhe lançou um olhar ameaçador.

     —Foi um presente —disse Styxx sarcásticamente—. De Artemisa quando me lançou ao Tártaro e me deu tuas lembranças. Só estou aqui para te pedir um favor.

     Ash sentiu que sua pele mudava a azul enquanto a raiva o atravessava com ardor.

     —Ousas me pedir um favor?

     Styxx deu um passo atrás e assentiu antes de fincar-se sobre um joelho.

     —Pergunto-te como um irmão e como suplicante ante um deus.

     Ash teria rido se não estivesse tão zangado. A que estava jogando Styxx com ele agora?

     —Como suplicante, que sacrifício ofereces por este favor?

     —Meu coração.

     Ash franziu o cenho.

     —Não entendo.

     Stixx o olhou com um olhar sincero que lhe impregnou.

     —Ofereço-te minha lealdade e se isso não for suficiente, então te ofereço meu coração. Se minto ou te traio, podes destroçá-lo uma e outra vez. Me encadeie junto a Prometeo em sua rocha.

     Se alguma vez o traía de novo o faria.

     —E que favor desejas?

     Os olhos de Styxx se angustiaram antes que sussurrasse.

     —Deixe-me ir. Não posso viver mais aqui, isolado das pessoas. Sozinho. Banido. Desejo a oportunidade de viver a vida que nenhum de nós teve a oportunidade de viver.

     Em qualquer outro momento, Ash teria rido em sua cara. Mas hoje estava fraco com o entendimento e a simpatia pela mesma coisa que queria para si mesmo. O que lhe tinham feito não tinha sido justo. A vida de Styxx não deveria ter sido unida à sua e por Acheron, Styxx tinha perdido sua família, sua vida e seu lar.

     Talvez um novo começo faria aos dois bem.

     —Muito bem irmão. Tens tudo o que necessitas para começar de novo.

     Com um movimento de mão, transportou a Styxx a Nova Iorque onde o príncipe se mesclaria com o melhor da população. Também era uma área onde esperava não ter que pôr os olhos sobre seu irmão de novo.

     Além disso, Styxx tinha razão. Podia matá-lo a qualquer momento. Permitiria-lhe ter uma vida se fosse capaz de encontrá-la. Honestamente, desejou-lhe sorte.

     Sobretudo, desejou-lhe uma paz que parecia sempre evitar a ambos.

     —Simi? —tinha-a mantido em seu corpo contra sua vontade.

     Saiu de seu braço e se manifestou junto a ele. Bocejando, lançou-lhe um zangado olhar.

     —Akri deixou a Simi em seu braço muito tempo. Ela se cansou e se zangou. Por que tratas a Simi dessa maneira, akri?

     Tomou sua bochecha na mão antes de beijá-la na testa.

     —Sinto muito, céu. Por isso que te trouxe aqui. Deves permanecer durante um tempo com tua irmã e Alexion.

     Ela franziu o cenho.

     —E o que acontece contigo, Akri? Estiveste muito triste, mas não permitiu que a Simi saísse de ti...

     —Eu sei. Tenho coisas com as quais lutar e não desejo que te machuquem. Fique aqui Simykee.

     Sorriu ante o termo de carinho que não tinha usado desde que era um bebê Demônio.

     —Só se akri promete que chamará Simi se a necessita.

     —Prometo-o.

     Sustentou seu dedo frente a ele.

     —Bom, porque a Simi sabe que akri não pode romper sua palavra.

     Sorriu e tirou seu cartão American Express negro.

     —Vá às compras.

     Ela riu gritando antes de correr para a TV e ligá-la.

     Esperando estar sozinho Ash caminhou através do palácio incluso quando podia teletransportar-se. Havia algumas vezes em que caminhar e ser normal significava mais para ele que todos seus poderes de deus combinados.

     Só porque possas, não significa que devas. Havia algumas coisas que não precisava fazer. Era por isso pelo que nenhum dos seres aos quais tinha consultado lhe diria um fragmento de seu futuro. Porque não tinha curado a Tory. Havia algumas lições, inclusive umas muito difíceis, que todos deveriam aprender. Inclusive os deuses.

     Mas justo agora, não desejava aprender nada mais. Desejava tranqüilidade e conforto e não havia ninguém a quem pudesse se aproximar para encontrá-lo. Então entrou em seu quarto e pegou a guitarra de seu suporte. Tinha duas dúzias de guitarras espalhados pelo palácio e nos vários apartamentos que mantinha no mundo, mas este...

     Esta era seu bebê. Uma Fender James Burton Telecaster com um pescoço de borda vermelho e negro, o corpo coberto com brilhantes chamas vermelhas e o som mais rico que tinha escutado. Tinha guitarras mais caras, claro, mas para ele nada tocava mais doce ou suave que esta.

     Simi incluso tinha gravado uma mensagem para ele na parte de trás. Allagapi akri, Simi. Em Caronte “Simi ama a akri”.

     Ash sorria cada vez que o via e seu coração se enchia de amor por ela. Podia fazê-lo sorrir não importava o preocupado ou triste que estivesse, mas não poderia consolá-lo hoje.

     Sentou-se sobre a cama e só começou a rasgar a guitarra. Antes de dar-se conta, estava tocando “Wish you were here” do Pink Floyd. Era uma canção que o perseguia desde a primeira vez que a tinha escutado. Era como se o escritor soubesse exatamente o que havia em seu coração. Tratava sobre as decisões que mudam a vida e como as percepções podem mudar qualquer um e todas as situações e sentimentos.

     O problema era neste momento que seus sentimentos estavam tão retorcidos e em conflito que não sabia como começar a sorteá-los. A dúvida entre o que devia e o que queria fazer.

     Indeciso entre três mulheres que eram tão difíceis umas com outras como com ele. Sua mãe que queria destruir o mundo, Artemisa que queria matar a Tory e Tory que queria expô-lo para salvar a reputação de seu pai.

     Incapaz de suportá-lo, deteve-se e lançou a guitarra para sua cama.

     —Sou um deus.

     Mas, que bem podia lhe fazer? Ainda estava preso pela Artemisa, controlado por ela. Não lhe tinha menos medo agora que o que lhe tinha quando era humano. De fato estava mais assustado porque agora seu poder era absoluto. Com uma palavra sussurrada, podia acabar com o mundo. Suas decisões não só afetavam a sua vida, podiam afetar a de todos.

     Olhe o que tinha feito a Nick. Se ainda fora humano, só teria golpeado a Nick por dormir com Simi. Como deus, não só tinha provocado o suicídio de Nick, senão para que o destino que tinha desejado que fosse, a mãe de Nick tinha sido assassinada, assim como a irmã de suas amigas Tabitha e Amanda.

     Ele odiava esses poderes. Sobretudo odiava a responsabilidade.

     —Só desejo estar sozinho…

     Um golpe na porta interrompeu seus pensamentos.

     Ash soltou um suspiro cansado enquanto se perguntava que tinha acontecido agora.

     —Sim?

     A porta se abriu para mostrar Urian quieto ali, olhando-o com uma expressão reservada.

     —Realmente não estás bem. Certo?

     Ash estreitou o olhar.

     —Espero que fales do caminho que vou tomar. Porque de outra forma com o humor no qual me encontrava, poderia te chutar o traseiro.

     Urian riu.

     —Sim poderias —entrou no quarto e fechou a porta—. Olhe, escutei-te quando vinha. Não o que dizias, e sim o que estava sob tudo isso. Sei que o melhor para mim é não me colocar onde não me chamam. Entretanto, me salvaste a vida uma vez, apesar de que não lhe pedi isso nesse momento e sinto que possivelmente poderia te devolver o favor.

     Ash lhe franziu o cenho enquanto essas palavras lhe aguilhoavam pelas vezes que haviam lhe trazido da morte contra sua vontade.

     —Não devis ter intervido quando aconteceu, Urian e o sinto pela dor com a qual vives.

     Os olhos de Urian se encheram de agridoce tortura.

     —Em realidade, tudo está bem. Se tivesse morrido, Phoebe teria me seguido à tumba de todas as maneiras —Phoebe tinha sido a esposa de Urian.

     Conheceram-se quando Stryker o tinha mandado atrás dela para que a matasse. Em seu lugar, ele tinha se apaixonado por ela e a tinha convertido em Daimon para poder estarem juntos. Esse amor proibido lhe havia custado a vida e Stryker tinha matado a Phoebe em um arrebatamento de ira.

     Urian clareou a garganta.

     —Diferente de mim, ela era incapaz de tomar uma vida humana, inclusive se o humano merecia morrer. A única forma da qual poderia haver seguido vivendo teria sido alimentando-se de outro Daimon e tampouco o teria feito. Por isso realmente não mudaste seu destino ao me salvar. Meu pai a teria matado de todas as maneiras.

     Mas se Urian tivesse permanecido morto, não teria sido testemunha da morte de Phoebe e não viveria com essa constante dor.

     —Ademais se não tivesse morrido minhas sobrinhas e sobrinhos não teriam com que ameaçar ao seu pai quando é superprotetor com eles —Urian sorriu tristemente—. Sou o único tio que têm. As crianças necessitam de um tio, sabes?

     Não do ponto de vista de Ash, mas essa era uma ferida diferente.

     —Então por que o súbito bate-papo de garotas Urian? Nenhum de nós deseja discutir nossos sentimentos... e sem ofender, eu gosto do fato de que não o façamos.

     O olhar de Urian queimava com sua paixão.

     —Faço-o a maior parte do tempo e estou verdadeiramente agradecido de que não te intrometas, mas como homem que desafiou tudo o que alguma vez valorizou no mundo e que sacrificou o amor de um pai que adorava... inclusive se acabaram mal, os dias que tive com Phoebe valeram cada ferida que sofri —se acercou a Ash—. Sei o que se sente estar dividido entre um amor tão puro que dói profundamente em um lugar onde não sabias que alguém pudesse tocar e entre seus deveres e tarefas. Entre o amor de um pai que sempre tinhas conhecido e que sabes que tens para sempre contra um amor que é novo e pouco provado. Mas sabes o que aprendi? É muito mais fácil viver sem o amor de meu pai que viver sem Phoebe. Só pensava que deverias saber isso.

     Ash não disse uma palavra enquanto Urian o deixava a sós. Mas sentiu a fissura de poder no ar por trás dele. Uma sensação que conhecia bem.

     Jaden.

     —Isso faz que desejes vomitar, verdade?

     Ash arqueou uma sobrancelha ante as sarcásticas palavras.

     Jaden dobrou os braços sobre o peito enquanto se recostava contra a parede de tal forma que seu comprido casaco café caía aberto.

     —Merda caramelada. Agora me diga o que se acontece quando trai a alguém próximo e a cadela não te devolve o favor. Oh espera, já sabes essa lição. O problema é que saltas e não sabes até que é muito tarde para voltar tanto se vais cair sobre um colchão brando ou sobre dentadas rochas que lhe atravessarão, sangrando lentamente e desejando morrer.

     Ash se estremeceu ante a imagem tão vivida.

     —És uma merda amarga.

     Jaden deu de ombros.

     —Minha amargura vem com boa companhia, que normalmente és tu.

     Era certo. Ambos conheciam a traição e o sofrimento extremo que as cicatrizes deixavam na alma e no coração.

     —Por que estás aqui?

     Jaden pôs os olhos em branco.

     —Teu demônio me chamou para negociar por uma bolsa nova. Pensei que seu pai poderia levá-la as compras antes que me fizesse uma oferta que não pudesse recusar e te convertesse em um deus realmente infeliz, não é que me importe, mas como nos ajudamos um ao outro de vez em quando...

     —Aprecio a advertência.

     —Sim, bom, é o que acontece quando consentimos às coisas que amamos. Nem sempre entendem os limites e seus ridículos desejos podem nos matar se não formos cuidadosos.

     Ash inclinou sua cabeça em entendimento. Para ser honesto, não sabia o que tinha provocado com que Jaden se convertesse no demônio vingador. Se havia algum ser que fora menos comunicativo a respeito de seu passado que Ash, era Jaden. E em todos esses séculos, Ash não tinha conhecido de uma criatura que soubesse como Jaden tinha chegado a ser o que era.

     Jaden lhe ofereceu um malévolo sorriso.

     —Mantenha à mulher na cama até que nenhum dos dois possa caminhar, e tire-a de teu sistema. Recorda, não importa o que são ou de onde vêm, todas as mulheres têm um defeito de nascimento. DMP

   —DMP?

     —Desordem Maldita de Personalidade.

     Ash riu amargamente

     —Estás seguro que não escreveram errado teu nome na tua certidão de nascimento? Asseguro-te que se o comprovas, teu nome real é Jaded[19].

     Em lugar de responder, Jaden fez uma careta enquanto esfregava o pescoço como se estivesse queimando-se.

     —Sabes uma coisa? Troco meus demônios por teus Dark-Hunters qualquer dia. Não viste bebês chorões até que lutaste com um maldito demônio que está zangado porque vendeu sua alma ou algo mais e as coisas não resultaram como desejava —apertou os lábios—. Demônios sem coluna deveriam ser assassinados. Verei-te no sábado online —Jaden desapareceu.

     Ash negou com a cabeça, não invejava o papel desse homem. Por ruins que fossem os deuses, odiavam lutar com a fonte primitiva e enquanto os imortais fossem odiosos, não podiam carregar com o tipo de poder que um demônio fazia e como regra, não eram tão... impulsivos.

     Não é que algo disso lhe importasse neste momento. A única coisa que havia em sua mente era Tory e os bastardos que queriam matá-la.

     Eles estavam ainda por aí. Maldição, estava envolvido em tantas coisas que tinha esquecido o fato de que a Atlantikoinonia estava atrás dela. Tinha que voltar ao hospital e protegê-la.

     Estava transportando-se quando recordou que tinha que falar com Simi. Estava recostada no chão, a sós, com o telefone celular na mão, pronta para comprar.

     —Sim?

     Não lhe olhou.

     —Agora não, akri, Kirk’s Folly está a ponto de aparecer.

     Desligou a televisão com seus poderes, fazendo-a grunhir em protesto.

     —Não incomodes a Jaden de novo.

     Ela o olhou e fez uma careta.

     —Mas Xirena dice que pode dar a Simi tudo o que ela deseje. Tudo o que Simi tem que fazer é dizer-lhe o que trocará, assim não custara dinheiro a akri, assim que lhe ofereci minhas botas, mas ele disse, não Simi. Eu não gosto, não, Simi.

     Ash esfregou sua cabeça.

     —Não escute a Xirena, Sim. Escuta ao seu akri. Carrega o cartão como sempre e não negocie com Jaden para nada. Nunca.

     Ela lhe lançou um sorriso infantil.

     —Certo. Podemos ter televisão agora?

     Ligou-a de novo.

     Ela voltou a ignorá-lo.

     Esperando que pudesse estar sem causar problemas nos próximos dias, retornou ao hospital. Pam agora estava na sala de espera onde ele tinha estado mais cedo.

     —Alguma novidade? —Perguntou.

     —Ainda não. Kim foi ver se se inteirava de algo —examinou seu corpo que agora estava coberto com um casaco comprido, um suéter cinza e uma blusa negra com jeans—. Não pareces tão próximo à morte como Kim disse.

     Ele deu de ombros enquanto elevava suas mangas sobre seus braços.

     —Uma ducha faz maravilhas no corpo.

     —Isso me hão dito.

     Ash se sentou junto a ela, seu coração realmente pesado enquanto esperavam e esperavam sem novidade alguma. Kim se uniu a eles e depois do que pareceu uma eternidade, um doutor saiu para falar com eles.

     —Como está? —Perguntou Kim antes que ele tivesse uma oportunidade.

     —Incrivelmente forte e com muita sorte de ter chegado aqui tão rápido como o fez. Seu braço estava prejudicado, mas pudemos reduzir a fratura. A menos que pegue uma infecção rara, estará como nova.

     Ash deixou sair um profundo suspiro de alívio.

     —Podemos vê-la? —perguntou Pam.

     —Ainda estás em recuperação, mas a teremos fora em menos de uma hora. Então poderão vê-la.

     Kim tomou a mão do homem.

     —Obrigado Phil.

     —Nem o menciones.

     Enquanto o doutor se afastava, Ash se virou para Kim.

     —Como estará aqui uns dias, tenho algo que lhes dizer.

   O rosto de Kim empalideceu.

     —Oh deus, és um assassino em série. Certo?

     Sua lógica o deixou perplexo.

     —O que?

     —Verás, isto é o que acontece —disse Kim a Pam antes de voltar-se para Ash—. É muito perfeito o que significa que provavelmente és Dexter. Certo? Escondendo corpos em algum lugar estranho. Provavelmente tem o corpo apunhalado de sua mãe guardado no armário.

     Ash negou com a cabeça.

     —Não, ao menos não esta semana —se deteve enquanto esperava estar fazendo o correto lhes dizendo o que realmente tinha acontecido essa tarde—. Não só caímos. Tiraram-nos da estrada.

     Pam entrecerrou os olhos.

     —Que dizes?

     —Alguém estava tratando de nos matar. Na noite anterior seu amigo Dimitri foi assassinado na Grécia e sua casa revistada. Um de seus colaboradores deve ter encontrado algo significativo e alguém mais o quer o suficiente para matar por isso. Acredito que Tory não deveria ficar só até que saibamos algo mais. Os homens que nos perseguiam, poderiam aparecer por aqui facilmente.

     Pam empalideceu.

     —Podemos lhe pôr segurança?

     Kim negou com a cabeça

     —A polícia não fará nada sem provas concretas.

     —Posso cuidar dela —disse Ash—, mas quero que saibam que se não estiver aqui tem que haver alguém mais. Não pode ficar sozinha.

     Pam assentiu de acordo.

     —Não se preocupe. Sou uma perita em qualquer tipo de conspirações.

     —E sabendo disso —disse Kim retirando-se—, vou passar pela sala de recuperação e vigiá-la só para nos fazer felizes.

     —Obrigado.

     Kim aplaudiu seu braço.

     —Nenhum problema, estarei em contato.

     Mesmo assim, Ash não respirou comodamente até que Tory esteve ao seu lado num quarto particular.

     Estava conectada a muitos monitores e medicações intravenosas. Seu rosto estava tão pálido que o assustou e odiava essa sensação. Também era estranho vê-la sem seus óculos postos.

     Afastando-lhe o cabelo da testa, sorriu ante sua beleza. Não de uma maneira clássica, honestamente não se parecia nada a Artemisa em sua aparência, mas havia algo nela que inclusive enquanto estava inconsciente reluzia. Seu espírito e seu impulso. Inclusive podia escutá-la insultando-o.

     Pensei que sabias como andar de moto. Ora, não posso acreditar que escorregaras e perderas o controle dessa maneira.

     Quase podia rir de seus afiados comentários imaginários enquanto a tomava por deixar que a machucassem.

     Seu olhar caiu sobre sua mão. Levantando-a estudou os detalhes dela. Seus dedos eram longos, magros e grácis. O tipo de mãos que estavam feitas para acariciar e mimar. Dedos que estavam feitos para lamber e mordiscar. Antes de podê-lo pensar melhor, sustentou a mão contra sua bochecha e saboreou a suave sensação de sua pele. Toda sua vida tinha rogado por um toque amoroso. Um que não fora egoísta ou que o machucasse.

     A única que o havia tocado dessa maneira tinha sido Ryssa, mas inclusive ela tinha sido miserável. Em parte tinha sido por sua própria culpa. Tantos anos de ser esbofeteado, golpeado e ferido o tinham condicionado a esticar-se quando alguém se aproximava de seu rosto. Inclusive agora, não gostava que ninguém o tocasse e ainda assim o desejava.

     Sou um psicótico.

     Não, não realmente. Queria o que não conhecia e não sabia como obter o que queria. Era tão simples e tão difícil.

     Mas enquanto sustentava a mão contra sua bochecha, imaginou-a acordada, tocando-o. Seu pênis se endureceu com necessidade e seu coração se rompeu com a realidade de que não poderia estar nunca com alguém como ela.

     Estava unido para sempre a Artemisa. Amarrado a um destino do qual não queria ser parte. Apanhado entre sua mãe e uma deusa que proclamava ser sua proprietária. O que desejava era um só dia de liberdade para ser um homem normal que pudesse tomar decisões que só afetassem a sua própria vida. Um dia para rir e relaxar.

     E as pessoas no inferno querem água fria.

     Os desejos não eram mágicos e sua vida era o que era. Todos os desejos do mundo não mudariam isso. Suspirando colocou sua mão de volta à cama junto a ela.

     O que estava a ponto de fazer estava errado e sabia. Tratou de racionalizá-lo dizendo que ia sarar de todas maneiras... a menos que contraíra uma infecção e… Quais eram as probabilidades de que tivesse uma infecção? Era jovem e saudável. Só estava adiantando o processo para que não estivesse atada ao hospital em caso de que os homens que a caçavam viessem.

     Se se supunha que tinha que morrer, se tinha que morrer...

     Então estaria morta e sua cura não importaria.

     —Não estou jogando com o destino. Só estou sarando-a —enquanto alcançava a tocar seu peito, recordou as vezes que desejou morrer e que o tinham evitado.

     Na vez que tinha morrido e Artemisa o tinha enganado para que tomasse seu sangue e voltasse.

     Mas era diferente.

     Sim, era realmente diferente. Artemisa tinha salvado ao mundo trazendo-o de volta. Despertando a Tory ele poderia terminá-lo.

   Mesmo assim, não podia deter a si mesmo de fazê-lo.

     Dando a oportunidade de conhecer melhor o que arriscava, tocou o vale entre seus seios e deixou que a energia da vida flutuasse de seu corpo ao seu. Os monitores soaram um pouco antes que Tory suspirasse.

     Ash retirou a mão no mesmo instante em que ela abria os olhos e o olhava.

     Tory jazia confusa enquanto via Ash parado junto a ela. Com seus óculos de sol postos, não podia adivinhar seu humor. Todo seu corpo estava dolorido e não podia imaginar onde estava.

     —Me golpeaste?

     Ash lhe deu um sorriso torcido.

     —Por que teria que te bater?

     Tinha razão. E enquanto tratava de orientar-se, uma vaga imagem passou por sua mente... era Ash sustentando-a. Não te atrevas a morrer em meus braços Tory! Essas palavras zangadas lhe trouxeram imediatamente um fluxo de lembranças enquanto recordava aos homens que os perseguiam.

     —Atiraram em ti —disse procurando suas feridas.

     —Não. Falharam.

     Tory franziu o cenho. O homem que lhe tinha disparado tinha quase uma categoria de disparo perfeito. Como poderia ter falhado? E quando viu a motocicleta em sua mente recordou deslizar-se sobre a rua.

     —Onde aprendeu a andar de moto de todas as maneiras? Na companhia de desastres?

     Ash riu.

     —Sabia que me insultarias quando despertaras.

     Não estava emocionada.

     —O que aconteceu para que nos atirassem?

     —Um dos carros nos bateu a roda.

     —E vivemos?

     Ele assentiu.

     —Vivemos.

     —Seguramente?

     —Nisso acredito.

     —Bem, tens razão —olhou ao redor do quarto de hospital que não era muito mais que um borrão de luzes e sombras sem suas lentes—. Não acredito que tivesse tanta dor se tivéssemos morrido. Sem mencionar que se estiver tão cega tenho que reclamar algo com os altos comandos.

     Ash a olhou fixamente com incredulidade. Como podia estar fazendo brincadeiras a respeito do que tinha acontecido?

     —Acredito que deixou seus óculos debaixo do carro que nos golpeou.

     —Imagine. Só estou feliz de que não me deixasses aqui também, para ser honesta, minhas costelas se sentem como se o carro estivesse ainda estacionado em cima de mim.

     Ash não disse nada porque suas pernas estavam iguais.

     —Meu deus. Estás acordada?

     Ash se retirou enquanto Kim entrava e corria para a cama para abraçar a sua amiga. Sempre se surpreendia por esse tipo de amizade e amor. Através de sua história, tinha-o testemunhado, mas nunca o havia sentido realmente. Tinha-a gente na qual podia confiar. Gente que chamava de amigos, mas nenhum deles; nem sequer Alexion; estava a par de como era na realidade. Nenhum conhecia seus pensamentos e como era seu passado, isso certamente ninguém sabia.

     Era um fantasma que caminhava pela vida observando-a, desejando tomar parte, mas muito temeroso de arriscar-se a ser ferido para alcançá-lo. Não havia dúvida de porque ele e Jaden se davam tão bem. Estavam couraçados até o ponto de estarem ocos por dentro.

     E aprendeu durante sua fase de humano que nada podia encher o amplo vazio que não tinha fim e que consumia qualquer coisa que ele tratava de colocar aí.

     Tory tinha uma estranha sensação que a percorria enquanto recordava algo mais do acidente.

     Ash tinha sido golpeado pelo carro...

     Soltando Kim, olhou-o e não viu feridas em seu corpo. Nem sequer um hematoma. Entretanto ela recordava claramente a última coisa que tinha visto antes de desmaiar.

     Ash sendo atropelado. Completamente atropelado. Tinha agüentado porque até esse momento não tinha sentido dor, deslizando-se na rua. Então imediatamente em que o carro o golpeou a dor penetrou nela e o último pensamento que passou por sua mente era que o tinha visto morrer.

     Estás imaginando coisas. É o choque do acidente.

     Ou não o era?

     O que estás dizendo, Tory? Que o homem é imortal?

     Como estúpida podia ser uma mulher? Ele não era imortal de qualquer maneira. Ela tinha uma imaginação hiperativa e estava jogando de novo.

     —Ash disse que alguém os tinha tirado intencionalmente do caminho.

     Piscou ante o comentário de Kim.

     —Sim, fizeram-no.

     —Então, crianças que vão fazer?

     Olhou a Ash que aparentemente a estava observando.

     —O que vamos fazer?

     —Não sei tu, mas meu plano é simples. Encontrar aos bastardos e matá-los.

    

     Os olhos de Kim se abriram como pratos ante as duras palavras de Ash.

     —Um pouquinho sanguinário não?

     Não para ele, e é obvio que, não quando o merecia sobradamente. Lançou-lhe um sorriso zombador.

     —Com o que fizeram a Tory, acredito que uma morte rápida é muito misericordiosa. Sem mencionar que arruinaram por completo uma de minhas jaquetas favoritas e deixaram minha moto para o desmanche.

     Pam soprou.

     —Certo, atormentemos e depois bombardeamos aos safados. Como se atreveram?

     Ash ignorou o sarcasmo e cruzou os braços sobre o peito.

     —Agora pensas como eu. Lhes tiramos os olhos um pouquinho, lhes abrimos as fossas nasais... Poderia pegar o gosto seriamente a tudo isso.

     Kim se estremeceu enquanto falava com Tory.

     —Acredito que seu novo amiguinho é um pouco sanguinário.

     Reprimiu um sorriso ante as palavras. Se soubesse qual era seu alimento principal… Sim, definitivamente poderia virar-se com um pouco sangue dado que fazia mais de uma semana desde que se alimentou pela última vez.

     O telefone de Kim começou a soar.

     —Chamada do trabalho. Voltarei em seguida.

     Ash retrocedeu até a cama para ver como se encontrava Tory.

     —Como te sentes?

     Sorriu-lhe.

     —Assombrosamente inteira. E tu? Acreditei que o carro tinha passado por cima de ti.

     —Desviou-se.

     Entreabriu os olhos com desconfiança.

     —Não o pareceu desde minha perspectiva. Juraria que te passou por cima de ambas as pernas.

     Ele pensou antes de responder.

     —Obviamente que não.

     A expressão de Tory se tornou doce e adorável e o golpeou como um murro no estômago. Pôs-lhe a mão brandamente no braço com o que provavelmente era a mais carinhosa carícia que tinha recebido nunca.

     —Obrigada por me trazer aqui. Kim dice que lhe indicaram que estavas sangrando de maneira ruim quando me deixou na emergência.

     Sentiu que se ruborizava ante sua gratidão.

     —Não te preocupes. Da próxima vez que me faça mal, me trazes tu.

     Ela riu de seu bom humor.

     —Acredito que precisaria de uma equipe inteira de pessoas para te levar.

     —Voltamos para os insultos, não?

     Negou com a cabeça.

     —Não é um insulto. És um cara grande.

     Ash abriu a boca para dizer algo, mas antes que pudesse articular palavra, o médico entrou para examiná-la. Saiu enquanto o doutor conversava com Tory.

     —És uma mulher com muita sorte. Se seu amigo não houvesse te trazido tão rápido, não teríamos podido fazer nada. Danificou-te seriamente o braço no acidente.

     Ainda lhe assombrava o que Ash fazia por ela. Kim lhe tinha contado que tampouco ele estava em muito boa forma e que se alterou muito quando morreu nos braços. Sobressaltou-a a ternura que sentiu.

     Quando a moto caiu, recordou que a tinha protegido. Tinha tentado mantê-la perto dele, mas a força do choque os tinha separado.

     Fez um gesto de dor quando o médico a tocou em um ponto brando do abdômen.

     Afastou-se com um olhar incrédulo.

     —Estás te curando incrivelmente rápido.

     —Bons genes e muitas vitaminas.

     Riu ela.

     —Segues com esse ânimo e te daremos alta em uns três dias.

     Ash clareou a garganta.

     —Há alguma possibilidade de que possa partir antes?

     Tory captou o significado da pergunta de Ash.

     —Sim, a verdade é que não posso me permitir estar fora do serviço tanto tempo.

     —Querida —disse o médico em tom tenso—. Morreste. Deverias pensá-lo um pouco e digeri-lo. Tesn muitíssima sorte de estar ainda conosco, assim nos deixe cuidar de ti uns dias antes de te deixar ir, certo?

     Resultava difícil discutir quando o punham assim.

     —Certo. Obrigada, doutor.

     Fez uma inclinação de cabeça e os deixou sozinhos.

     Olhou a Ash, que estava de pé contra a parede com esse estoicismo que utilizava como um campo de força para manter ao resto do mundo afastado. Sabia quão forte se golpeou contra o asfalto e a queda não tinha sido mais suave para ele. E ainda assim se arrastou até ficar em pé e a tinha levantado nos braços. Sua força a desconcertava.

     —Como pôdes me trazer até aqui?

     —Tenho meus truquinhos sujos de Jedi. —Disse com tom indiferente. —A força é forte em mim.

     Ela riu outra vez. Podia ser tão encantador quando queria… E tão doce.

     —Bom, se o médico disser que não posso ir, o que vamos fazer?

     Ele deu de ombros com os braços ainda cruzados sobre o peito.

     —Jogaremos uma olhada aos nossos novos amigos para nos assegurar que não decidem terminar o que começaram.

     Ela assentiu.

     —Acreditam que tenho o diário, verdade?

     —Acredito que sim. Isso ou se aborrecem muito e pensam que nos atropelar lhes acalmará o aborrecimento.

     —Falando de aborrecimento… O que vou fazer enquanto estou aqui presa?

     —Queres ler algum mangá?

     Olhou-lhe com gesto sério.

     —Falas a sério?

     Ele assentiu.

     —É como o crack. Uma vez que começas, não podes deixar de ler. Tenho alguns do Priest, Hellsing e Trinity Blood à mão. Interessa-te?

     —A verdade é que queria ler o diário que encontramos. Uma pessoa muito alta e varonil não terminou que me ensinar atlante.

     —Não é atlante. É grego.

     —Se tu o dizes…

     Desprendeu a mochila do ombro grunhindo e fez aparecer em seu interior o diário. Uma das razões pelas quais sempre levava mochila era que podia teletransportar quantidade de coisas sem levantar suspeitas nos mortais. Posto que ninguém sabia o que levava na mochila, não podiam saber quando utilizava seus poderes para conseguir o que queria ou necessitava.

   Também levava as coisas que mais significavam para ele e que queria manter a salvo. Os três diários de Ryssa que encontrou depois da destruição de Didymos, seu pente de cabelo e o mordedor de Simi que Savitar lhe tinha dado quando era um bebê. Tinha as marcas das presas de leite gravadas para sempre na madeira. Também levava o medalhão de sua mãe envolvido em um dos cachecóis de seda que Simi havia trazido de uma de suas muitas visitas ao Kalosis.

     E a alma de Nick, pela qual tinha negociado com a Artemisa e esta a tinha entregue.

     Tirou o diário de Ryssa e o estendeu a Tory.

     —Podes ler sem óculos?

     Suspirou irritada.

     —Nenhuma palavra. Odeio ser quase cega. Alguma possibilidade de que passes pela minha casa e me traga os de reserva?

     —Não posso te deixar desprotegida. Já sabes.

     —Então, lerás pra mim?

     Ash baixou os olhos e olhou o couro quando uma aguda dor lhe encheu o peito. Era difícil ler as palavras de Ryssa, porque com cada uma, via-a claramente em sua mente e ouvia a doce e calma voz lhe falando.

     E lhe destroçava o coração.

     Tory lhe tocou o braço outra vez.

     —Por favor, Achimou?

     Encolheu-lhe o músculo da mandíbula quando a tenra voz fez pedacinhos sua resolução.

     —És a única que me chamou assim.

     —Bom, poderia te chamar biscoitinho, mas acredito que te ofenderia ainda mais.

     Ele sorriu.

     —Certo, deixe de me torturar. Lerei-te.

     Viu Ash como uma mancha imprecisa quando tomou assento junto à cama e abriu o livro. Quando começou a ler, fechou os olhos e escutou o tom ressonante e profundo de sua voz. Pela facilidade com que traduzia enquanto lia, poder-se-ia pensar que o diário estava escrito em inglês. Nem sequer duvidava com as palavras.

     —Hoje falei com meu pai para visitar a Atlântida.

     Ergueu-se na cama.

     —A Atlântida?

     Ash se encolheu ao dar-se conta do que havia dito. A verdade é que se esqueceu de que estava lendo para alguém mais. Tinha chegado a ser tão parte dela que realmente queria confiar nela…

     —Sim, é o que diz.

     —Vês! Disse-te que era real.

     Tinha que tranqüilizá-la.

     —Não significa nada. Ao melhor, tudo isto não é mais que o Diário de Bridget Jones à antiga.

     Ela se mofou.

     —Naquela época não tinham novelas.

     —A história nos diz que não tinham livros, mas o que tenho na mão? Quadrado papel encadernado com escrita. Parece-me um livro.

     —Obrigada, Capitão Sarcasmo. Que amável por vir. Podemos voltar para a história?

     —Mas não me atire outro martelo —murmurou baixo antes de voltar para o livro—. Hoje falei com meu pai para visitar a Atlântida e, como sempre, zangou-se. As negociações não vão bem. Tio diz que a guerra poderia declarar-se a qualquer momento. Mas não entendo por que é tão perigoso para mim ir de visita enquanto meu irmão e meu tio vivem lá. Se não for seguro para…—Se deteve quando viu que punha seu nome—. Meu irmão… Não posso suportar não vê-lo. As cartas que manda não são suficientes. Quero… —Se engasgou com as palavras da página quando a dor lhe golpeou fortemente no peito— …meu irmão em casa comigo. Alguém tem que se assegurar de que Acheron está a salvo e, embora tio jura que está bem, eu gostaria de me assegurar por mim mesma.

     —Ela quer o que? —Urgiu-lhe Tory.

     —Doem-me os olhos. —Mentiu—. Acredito que é a luz. Podemos deixá-lo para mais tarde?

     Franziu o cenho ante o tom estranho de sua voz. Soava como se estivesse se afogando em lágrimas, mas não tinha sentido.

     —Como queiras.

     —Legal. Voltarei-o a meter na mochila. —levantou-se e o guardou fazendo ranger o papel.

     —Ash? —Perguntou ao cabo de uns segundos.

     —O que?

     —Ligou para alguém da minha família?

     —Não sei. Queres que pergunte?

     —Por favor. Não quero que minha família nos ataque estando bem, como estou. Especialmente não com esses loucos nos perseguindo. Morro se alguém cai no fogo cruzado.

     —Certo. Vou atrás de Kim e me inteiro. Se necessitar algo… —Lhe pôs na mão o interruptor—. Sei que não pareces bem assim se te assustares, chama à enfermeira e estarei aqui em um momento.

     Sua preocupação a comoveu.

     —Certo.

     Sentou-se em silêncio, processando tudo o que lhe tinha acontecido num dia. O que sabia e o que ainda suspeitava sobre Ash. Sem mencionar o fato de que agora sabia que havia gente que queria acabar com sua vida a qualquer preço para ficar com algo que nem sequer tinha.

     O que ia fazer?

     Ash voltou ao cabo de uns minutos.

     —Kim falou com teu avô e com tua tia Del. Diz que querem que ligues para eles assim que possas. —aproximou-se para que pudesse lhe ver.

     —Obrigada, Ash.

     —De nada. Kim também há dito que Pam vai te trazer os óculos de reserva logo que possa.

     Pôs sua mão sobre a mão que Ash tinha apoiada sobre o parapeito da cama e lhe deu um suave apertão.

     —Obrigada também por te lembrar dos óculos. —Tomou a mão e a pôs contra a sua. Sempre tinha pensado que tinha mãos de homem posto que eram muito maiores que as da maioria das mulheres. Mas comparadas com as dele, as suas eram delicadas. Tinha os dedos longos e elegantes com calos que também marcavam as palmas. Eram mãos masculinas e não podia deixar de perguntar-se como se sentiria se as deslizava por seu corpo…

     —Tens as mãos grandes.

     —E tu pequenas e suaves. —Não lhe passou desapercebida a surpresa em sua voz antes que afastasse a mão.

     —As minhas som muito toscas —disse como se se envergonhasse.

     —Eu gosto de tuas mãos. Acredito que são bonitas.

     —Disso não sei. Fazem o que têm que fazer a maior parte das vezes, acredito.

     Moveu a cabeça.

     —Odeia elogios, verdade?

     Retorceram-lhe as tripas ante as lembranças indesejáveis que lhe provocaram sua pergunta. Como humano, cada elogio tinha ido seguido de que lhe metessem a mão contra sua vontade ou surras brutais de pessoas que não queriam sentir-se atraídas para ele. Como deus não recebia nenhum, o que dadas a suas anteriores experiências, estava bom.

     —Queres que te traga algo para comer?

     Tory assentiu.

     —Sempre tenho fome.

     —Em seguida volto.

     Não se moveu enquanto o via sair outra vez. Era tão estranho e tão sedutor. Protetor, arrogante e ao mesmo tempo, inseguro de si mesmo. O que para ela não tinha sentido. Como podia não se sentir seguro?

     Ponderou a dicotomia ali tombada durante vários minutos.

     —Olá, garota.

     Sorriu ao borrão que devia ser Pam.

     —Olá, céu.

     Pam se aproximou e lhe pôs os óculos. Soltou um suspiro de alívio quando o mundo se enfocou de novo.

     —Bendita sejas.

     —De nada. Como te encontras?

     —Bastante bem considerando que me atropelou um carro e morri.

     Pam grunhiu.

     —Não tem graça. E onde está teu delicioso guarda-costas?

     —Foi atrás de comida para mim.

     —Ooooh, está bom e ainda por cima te busca comida quando tens fome. É um guardião. Quando vais te deitar com ele?

     Ficou parado na porta do quarto quando ouviu o que Pam perguntava ao Tory.

     Deu um bufo pouco digno.

     —Me deitar com ele? Por favor. Como se não tivesse nada melhor a fazer. Juro-te que tal e como pensas só no sexo, deverias ter nascido menino.

    —Sim, certo. Olhe ao cara. Não há modelo que esteja melhor. Acredite em mim. Ao contrário que tu, eu o vejo muito bem. É, sem lugar a dúvidas, a melhor coisa que há sobre duas pernas, ou três se jogar bem suas cartas.

     Deixou escapar um som de total comoção.

     —Deixa de falar assim dele. Morreria de vergonha se te ouvisse.

     Pam estalou a língua.

     —Digo-lhe, se deixas que escape de ti sem te deitar com ele, vais lamentar o resto de tua vida.

     —Sim e por meu histórico com os caras, se tento me deitar com ele, morrerá. O último cara com o qual tentei me deitar acabou com gesso.

     Pam riu.

     —Olhe pra mim e me diga com sinceridade que não o pensaste.

     —Não estou tão cega. Mas não penso em Ash dessa maneira. Estou muito mais interessada em sua mente que em seu corpo. E agora passemos ao seguinte tópico antes que aperte o botão e diga a todas as enfermeiras que está me espreitando uma insana amiga perseguidora.

     —Serias capaz.

     Ash fez sua entrada considerando que agora era seguro. A cara de Pam ficou vermelha automaticamente e se pôs ao outro lado da cama.

     Pôs a bolsa na bandeja de Tory e aproximou dela.

     —Não sabia ao certo o que você gosta, assim trouxe um pouco de tudo.

     Ela sorriu.

     —Não há muitas coisas que eu não goste. A maldição de minha tia Del, que sempre me falava dos pobres meninos que tinham que comer terra para não morrer de fome.

     Ash ajustou a bandeja e lhe abriu um refrigerante.

     —É, caras. —Disse Pam ao desembrulhar Tory um hambúrguer—. Não acredito que possas comer isso recém-operada. Não têm os pacientes dietas líquidas ou algo assim? —Olhou incômoda para a porta. —Onde está Kim quando preciso dela?

     Tory não fez conta.

     —Estou bem.

     Ash tirou as batatas e as estendeu.

     —Não lhe traria nada que pudesse lhe fazer mal.

     Sustentou o hambúrguer ante ele.

     —Quer uma dentada?

     —Não, obrigado.

     Olhando a Pam, assinalou-lhe com o hambúrguer.

     —Juro-te que é a prova vivente de que o ar tem calorias. Se não fosse assim estaria seco de todo.

     —Olha quem fala. Se houvesse justiça neste mundo, estarias mais gorda que minha casa. Comes como um garoto e estas como uma espátula. —Sorriu falsamente a Ash—. Minha mãe estava acostumada a chamá-la de Glutão quando éramos meninas. Graças a deus que tinha uma loja de secos e molhados embora te juro que Tory comia os lucros quando trabalhava na loja.

     Ash riu.

     —Só porque Del faz os melhores koulourakias, kourabiethes e melomacarinas[20] do mundo.

     Pam sorriu a Ash com afetação.

     —Entendeste uma palavra do que há dito?

     —Pois claro que sim. É grego. E embora não coma, conheço os biscoitos. Aposto que sua mãe lhe enchia deles quando era pequeno.

     Ash bufou ante a imagem de sua mãe cozinhando outra coisa que não fora a destruição do mundo.

     —A verdade é que não. Minha mãe não era do tipo das que cozinham. —Ao menos não se a receita não incluía napalm[21] ou pragas.

     Um ofego agudo fez com que todos se voltassem e vissem Kim na soleira.

     —O que fazes comendo isso?

     Tory e Pam assinalaram a Ash.

     —Ele o trouxe.

     Com um som de angústia, Kim se lançou para a cama e lhe tirou o hambúrguer das mãos.

   Tory a afastou.

     —Nem por tua vida, Kim e o digo literalmente.

     —Não podes comer isso depois de uma operação. Ficarás péssima.

     —Melhor a vaca que tua mão, da que vou morder uma parte se tentas me tirar outra vez o hambúrguer. Tenho fome. Todos vocês sabem bem que não devem se interpor entre a comida e eu.

     Voltou-se para Ash com um olhar malévolo.

     —Como pudeste lhe trazer isto?

     —Disse que tinha fome.

     Kim lhe deu uma forte palmada no traseiro.

     —Não voltes a fazê-lo. Verifique sua dieta com o médico ou com as enfermeiras. Não se traz comida às pessoas hospitalizadas. Perdeste a cabeça?

     Estava muito assombrado para reagir quando Kim agarrou a bolsa da bandeja e revolveu dentro.

     —Vós dois são muito maus, mas muito maus. —Começou a enrolar o fecho da bolsa.

     Tory a olhou como um leão selvagem.

     —Se levas essa bolsa, vou fazer com que o lamentes.

     —Seja razoável.

     —Meu estômago quer comida.

     Levantou a mão.

     —E quando depois tiveres uma horrível dor de estômago, recordas que eu tentei te deter. —voltou-se para Ash que se assegurou de que seu traseiro estivesse coberto. Literalmente—. Se vocês dois não estivessem sendo perseguidos por homicidas, mandaria que os expulssassem.

     Ele retrocedeu outro passo.

     —Não vais me bater outra vez, verdade?

     —Deveria. Se fosse meio metro mais baixo, te poria sobre meus joelhos. —Kim fez um último som de desgosto antes de deixá-los a sós outra vez.

     Pam sacudiu a cabeça procurando o olhar de Ash.

     —Quer que te beije o dodóizinho para que não te doa?

     —Pam! —Saltou Tory.

     —Como se tu não o tivesses pensado também. Relaxem os dois, estou de brincadeira. Me deixem acalmar a enfermeirinha antes que os meta em confusões com o médico.

     Suspirou quando Pam partiu.

     —Desculpe a minhas amigas. A verdade é que tentei as adestrar enquanto cresciam, mas obviamente não o consegui.

     Riu ante suas palavras. A verdade é que encontrava refrescante a calma que tinha em sua companhia. A maioria das pessoas se sentia intimidada ou assustada. Só as crianças pareciam indiferentes e o tratavam como a qualquer pessoa da rua.

     —Não passa nada. Eu gosto delas.

     Tory pegou outro pedaço de hambúrguer antes de envolvê-lo.

     —Será melhor que o deixe antes que faça mal. Mas está bom. Muitíssimo obrigada por me trazer isso.

     —Há um sanduíche de presunto, pepinos japoneses, batatas-fritas e iogurte na bolsa.

     —És um encanto. De verdade trouxeste um pouco de tudo. Certo de que não queres um bocado?

     —Estou bem.

     Estendeu-lhe a bolsa.

     —Certo. Que tal se te troco a bolsa pelo diário?

     Ash duvidava. Posto que seu nome estava por todo o diário... Posso lhe dizer que é outro nome. Sim. Ela não sabia as letras. Poderia funcionar se a convencia de que era algo assim como Archon em vez de Acheron.

     Tirando a mochila do ombro, abriu o zíper e tirou o diário.

     —Toma.

     Abriu-o por onde o tinham deixado.

     —Onde estávamos?

     —Ryssa estava falando de seu irmão em Atlântida.

     Juntou as sobrancelhas com confusão.

     —Ryssa? Como sabes que se chama Ryssa?

     Esticou-se ao dar-se conta que sua irmã não tinha escrito seu nome em nenhuma parte.

     —Mmm... não sei. Só lhe pus um nome. Parece-me mais educado que dizer: “É, tu, garota antiga.”

     Enrugou o nariz.

     —Para sua informação, odeio a palavra “garota”.

     —Então a apagarei de meu vocabulário.

     Sorrindo-lhe, lhe pôs a mão no braço e se inclinou contra ele.

     —És tão complacente. É este?

     Levou-lhe todo um segundo conter o fôlego ante a forma tão informal na qual lhe tocava. Ante os tentadores e doces que eram seus lábios.

     —Sim. —Disse forçando-se a olhar a página.

     Ela assinalou uma linha mais abaixo de onde estava lendo.

     —Sente falta dele?

     —Sim.

     Seu dedo foi a seguinte frase.

     —Tinham-no mandado para fora?

     —Aprende incrivelmente rápido.

     —Isso estava acostumado a dizer meu pai. Pôs-me o apelido de Atenas.

     Surpreendeu-se. Não se parecia nada à deusa grega.

     —Atenas?

     —Já sabes, saiu completamente formada da cabeça de Zeus. Meu pai estava acostumado a dizer que eu fiz o mesmo e, assim como Atenas, dei ao meu pai uma dor de cabeça terrível. —Sorriu amplamente—. Ensine-me um pouquinho do que seja e bang, perita instantânea. Mas este idioma é difícil de aprender. Bonito, mas difícil. Podes ler um momento e assim aprendo a cadência?

     Assentiu antes de concordar com o pedido.

     Escutava as inflexões de sua voz, hipnotizada não só pelo sexy que era, mas também por sua inteligência. Sem poder evitá-lo, pôs a mão em sua mandíbula para sentir como trabalhavam seus músculos ao falar.

     Ele fez uma pausa ante a ternura de seu toque e procurou seu olhar.

     —Não deixes de falar —lhe sussurrou. —eu adoro ouvir teu acento.

     Não tinha nem idéia de que faria qualquer coisa que quisesse enquanto seguisse tocando-o assim. Tragou com força antes de seguir lendo. Soteria, queria... queria te fazer amor como um homem. Sem passado entre nós e sem remorso. Venderia minha alma por isso.

     Tory lhe olhou carrancuda ante as palavras que pareciam vir de seu coração.

     —O que hás dito?

     —Que és um diabinho preguntão.

     Ela soprou.

     —Disse nada.

   —Pode ser. Mas não sabes com certeza, certo?

     Grunhiu-lhe embora adorava o fato de que quando falava em inglês o acento era pesado e cadencioso.

     —Sabe que quando usas esse teu acento, poderias te libertar de assassinato? —Baixou os óculos, dobrou as pernas e os guardou no bolso—. Eu gosto de te olhar aos olhos.

     —És uma mulher muito estranha.

     Possivelmente, mas havia algo nele que a fazia sentir-se cálida e a salvo. Passou-lhe a ponta do polegar pelos lábios.

   —Por que te escondes do mundo?

     —Não me escondo de nada.

     —Sim que te escondes. A roupa que usas... é a armadura que utilizas para afastar a todo mundo. Tu gostas de parecer perigoso e rebelde. É como se houvesse uma parte de ti que pensas que, se der às pessoas uma razão para que não gostem de ti, não dirão que está bem. Porque tu és o que decide se lhes permites que te gostem ou não.

     Começou a afastar-se, mas o deteve.

     —Serei tua amiga, Ash. Uma boa amiga, se me permites isso.

   Afastou a vista recordando Artemisa lhe oferecendo sua amizade.

     —Não te ofendas, mas as pessoas dizem isso cheias de boas intenções. Infelizmente quando nos põem a prova, indevidamente falhamos.

     —Falhaste alguma vez?

     —Sim falhei. —Sua irmã confiava nele para que a protegesse e deixou que Artemisa se metesse no meio. Nick tinha sido o mais próximo a um amigo de verdade e tinha causado sua morte.

     Como amigo, fedia e não desejava dar sua amizade a ninguém.

     —Bom, pois eu não falhei. —Disse Tory com firmeza—. Nenhuma só vez. Mas a única maneira de que saibas é confiando em mim. E posto que não podes me dar tua confiança, esquecerei que tivemos esta conversa. —Voltou a olhar o livro—. Qual é esta palavra?

     Ash duvidou ao ver seu nome na escrita de Ryssa. Foi lhe mentir, mas a mentira ficou na garganta. Queria confiar nela. Mas não se decidia. Respirando fundo, fez o que não tinha feito em séculos. Confiou.

     —É Acheron.

     Olhou-o intensamente.

     —Teu nome?

     —Sim. —Disse, assegurando-se de que não havia nenhuma emoção em sua voz—. Tinha dois irmãos. Acheron e Styxx.

     —Como os nomes dos rios da Tragédia e do Ódio? Nossa, que pais mais mórbidos.

     —Possivelmente, mas bem apropriados.

     —Acredito que isso seria pior. —Voltou a página—. É tão estranho lê-lo. Ela se parece com qualquer uma que possas encontrar pela rua. Sua preocupação principal é agradar a seu pai e sente falta do seu irmão. Tem as mesmas preocupações de uma mulher moderna, que a levem a sério. Que a escutem. —Deixou escapar um suspiro nostálgico—. Podes imaginar o mundo em que vivia? Pergunto-me que tipo de roupa usava. Em que tipo de cama dormia...

     —Eu imagino que se parecia muito a ti. Amável e singela. Decidida e protetora para com aqueles aos quais amava. E provavelmente, de vez em quando, irritante para seus dois irmãos.

     As palavras a comoveram.

     —Isso vês quando me olhas?

     —Não. Vejo uma maníaca homicida que não pode me ver nem em pintura.

     Ela riu.

     —Sério?

     A brincadeira parecia séria.

     —Sim, Soteria. Isso é o que vejo quando lhe olho.

     Entrelaçou os dedos com os seus.

     Ash olhou suas mãos entrelaçadas. Era o mais incrível que já tinha visto.

     Pam voltou. Esperava que o soltasse e se estirasse incômoda como todo mundo fazia. Mas não o fez. Deixou a mão na sua.

     —Livraste-nos pelo do hambúrguer? —Perguntou-lhe.

     —De momento estão a salvo. O que posso dizer? Super Pam ao resgate.

     Ash voltou a colocar os óculos de sol e Pam se colocou no outro lado da cama. Olhou as mãos e sorriu.

     —Me alegro de que se acham reconciliados.

     —Ouça, o rapaz me salvou a vida. Isso deve merecer um par de golpes ao meu ego.

     Pam arqueou ambas as sobrancelhas.

    —Quem és tu e o que tens feito com minha melhor amiga?

     Tory olhou a Ash.

     —Morrer tende a lhe dar perspectiva a umas quantas coisas.

     Não tinha nem idéia.

     —Tiveste alguma experiência próxima à morte, Ash? —Perguntou Pam.

     —Poderia dizer que sim.

     Pam soprou.

     —O que? Também te pescou teu pai fofocando fora de casa?

     —Sim. Estive de castigo um mês.

     Tory olhava a Ash. Havia uma nota na voz que lhe dizia que, nesta história, havia muito mais do que deixava entrever. Mas se em particular não lhe contava nada, não havia maneira de que dissesse algo na frente de Pam.

     Seu celular começou a tocar. Soltando-lhe a mão, afastou-se para ver o identificador de chamadas.

     —Tenho que atendê-la. Me desculpem.

     Tory o olhou enquanto saía ao corredor.

     Pam deixou escapar um assobio baixo e apreciativo.

     —Bendito seja deus, esse homem tem o traseiro mais bonito que já vi. Não se estranha que leve casaco comprido. Deveríamos lhe envolver da cabeça aos pés para salvar a sanidade humana.

     Deu-lhe um tapa de brincadeira.

     —Queres parar com isso já?

     Pam fez um gesto para a porta.

     —Tens os óculos postos. Não viste que traseiro tem? E, além disso, é gótico. —Disse fazendo um ronrrono profundo com a garganta.

     —Temos que te enrolar com alguém logo. A sobrecarga de hormônios está te comendo o cérebro.

     —Já sei. Que triste, verdade?

     Riu voltando a olhar a Acheron e se perguntou do que ia a chamada.

     —Estás seguro disso, Urian?

     —Completamente, te compensa ter amigos no lado escuro. Stryker está mandando exploradores para procurar o diário, inclusive enquanto falamos. Quer tirar do meio a Artemisa e Apolo e absorver seus poderes. Também está esperando que haja algo no diário que te fira, o que tem a sua mãe dos nervos e está mandando aos seus demônios para buscá-lo também. —Urian riu diabolicamente—. Bem-vindo ao Armagedón, colega. Parece que começaram sem ti.

 

    Ash acabava de entrar no quarto de Tory quando seu celular voltou a tocar. Suspirou olhando o identificador de chamadas.

     —Me desculpem. Tenho que atender a outra ronda de chamadas do tipo “Me ajude, senhor Mago”.

     Tory moveu a cabeça ante o pobre homem, cujo celular parecia ser uma fonte de irritação constante.

     Pam se sentou na cadeira onde Ash tinha estado sentado.

     —Quantos amigos ele tem?

     —Acredito que são chamadas de trabalho.

     —Ah. A que se dedica?

     —É domador.

     —Uh, uh… —a voz de Pam estava cheia de dúvida.

     —Já sei. A verdade é que não me há dito a que se dedica exatamente, mas parece que sempre lhe estão chamando para o que seja.

     Os olhos de Pam brilharam de interesse.

     —Talvez seja um assassino internacional. Oooooh, seria legal.

     —Temos que fazer que deixes de ver filmes.

    

    Ash ficou calado em meio de uma frase quando uma única fissura de poder lhe correu pela coluna vertebral. A sensação era inequívoca… havia demônios no hospital. E apostava a vida a atrás de quem iam.

     Desligou a chamada e voltou para o quarto de Tory.

     —Temos que partir.

     —Ei, olá. —disse Tory com sarcasmo—. Estou enganchada a uma sonda. Não vou a nenhum lugar em um futuro próximo.

     Aproximou-se da cama e lhe tirou a sonda antes que pudesse piscar.

     Tory estava horrorizada por suas ações e ficou assombrada quando o braço lhe deixou de sangrar.

     —O que acontece?

     —As pessoas que nos querem mortos estão se aproximando. E se não nos movemos, isto vai se pôr feio.

     Martelava-lhe o coração ao pensar que alguém vinha atrás deles.

     —Só há outro problema. Roupa. Não tenho roupa.

     Pam avançou para ela.

     —Sim que tens. Ash, vigia a porta e nos dê um minuto.

     —Tens vinte segundos. —aproximou-se da porta e a fechou.

     —Podes te mover? —perguntou Pam.

     —Surpreendentemente, sim.

     —Certo. Troquemos a roupa e façamos rápido.

     Tory tirou a bata de hospital num instante. Estava um pouco dolorida pelo acidente, mas não tanto como para alguém a quem acabam de operar. Não tinha nem um pingo de sentido.

     Antes que pudesse pensá-lo mais, Ash estava de novo na porta.

     —Estamos ficando sem tempo. —estendeu-lhe a mão.

     —Não tenho sapatos.

     —Já nos apanharemos. Vamos.

     Ela agarrou sua mão.

   Sem mais palavras, arrastou-a pelo corredor para os elevadores. Quando as portas começaram a abrir-se, empurrou-a a um quarto fazendo gestos para que se ficasse quieta. Tudo isto a horrorizava. Quem estava aí fora?

     —Espere aqui. —disse-lhe articulando com os lábios, abriu a porta e desapareceu no corredor.

     Tory não estava segura do que estava acontecendo. Só esperava que Ash soubesse o que fazia.

     Segundos mais tarde, voltou e lhe fez gestos para que se movesse rápido. Praticamente a empurrou dentro do elevador que tinha aberto. Mas ao fechar as portas, voltou-se para olhar seu quarto para onde se dirigiam dois homens muito altos. Vestidos de negro, pareciam sinistros.

     —O que acontece com Pam?

     Ash a empurrou para trás para que as portas pudessem fechar-se.

     —Estará bem. Sabem atrás de quem vão.

     —Quem são?

     Ash se encolheu ante a pergunta que realmente não podia responder. Demônios que vinham torturá-la soava um pouco inverossímil, especialmente quando não estava seguro de como Stryker tinha sabido onde lhes mandar.

     —Não sei seus nomes. Embora a verdade é que não me agrada nada me apresentar nestes momentos.

     —Certo de que não farão mal a Pam?

     Estendeu-lhe seu celular.

     —Quando estivermos no carro, podes ligar para ela.

     —Que carro?

     Não respondeu posto que estava enfocando todo seu poder em mascarar sua presença aos demônios e em localizar ao resto da equipe. Havia pelo menos dez rondando pelo hospital. Podia defendê-los com seu poder e alterar a aparência de Tory.

     Pelo menos de todos menos de um arquidemônio. Nascidos da união de demônio e um deus, eram uma raça única e altamente imprevisível. E um deles estava no hospital liderando aos outros.

     Ash a conduziu pelo estacionamento até seu Porsche 911 GT2 prata metalizada. Abriu a porta do co-piloto enquanto observava o estacionamento.

     Ela parou ante a porta aberta.

     —Por favor, me diga não o roubaste.

     —É meu. —balançou as chaves do Porsche ante seu rosto.

     Tory ainda suspeitava. Tinha dado aulas de dirigir para Porsches na auto-escola, só por diversão e conhecia os modelos e os preços. Este era o creme de la creme dos Porsche e se levava como um sonho. Tinha estado cismada de má maneira tendo um que quase podia saboreá-lo, mas o preço estava fora de seu alcance.

     —Tens um carro de um quarto de milhão de dólares?

     —Dez mil dólares acima ou abaixo, mas sim. Agora entra.

     Tory não estava convencida totalmente. Como demônios podia se permitir um carro como este? Embora quando viu o assento do condutor se deu conta que, definitivamente, estava desenhado para uma pessoa muito alta, não podia negar o óbvio. Tinha que ser dele. Entrou no carro e ele se deslizou no assento do condutor.

     Sim, o carro se adaptava a ele como uma luva e o fato de que soubesse que o aceso estava à esquerda confirmou que tinha usado o carro o bastante como para não duvidar.

     —Acheron!

     Quando Ash fechava a porta, Tory viu o homem que tinha gritado, grande e de cabelo castanho, que corria para eles.

     —Ponha o cinto. —Ash colocou a marcha ré.

     O homem se pendurou na traseira do carro de Ash.

     —Seu safado, —disse Ash irritado— deixando rastros de garras em meu carro. Juro-te que se lhe fizer um arranhão, te mato. —Freou de repente e o sujeito saiu voando para aterrissar sobre um sedam azul.

     Ash girou o volante bruscamente e enfiou direito ao homem, que tinha rodado ao chão.

     Tory se encolheu esperando que lhe passassem por cima. Mas quando lhe alcançaram, saltou para um lado com surpreendente agilidade.

     —Estás louco, verdade?

     Ash não respondeu. Tomou uma curva tão rápido que ela teria jurado que sentiu um puxão de gravidade de 2G. Na rua um BMW branco se colocou atrás deles.

     —Estão nos seguindo.

     Ash soltou uma maldição quando os viu pelo retrovisor. Mais demônios. Mas estava agradecido de que pelo menos tentassem passar desapercebidos. Stryker devia lhes haver avisado para que mantivessem o anonimato no mundo dos humanos. Sua inibição lhes igualava no terreno de jogo posto que tampouco ele podia utilizar seus poderes abertamente.

     Reduzindo marchas, meteu-se entre o tráfego, dirigindo-se a interestadual. Tinha que lhes afastar das zonas povoadas antes que algum inocente resultasse ferido. Algo mais fácil de dizer do que fazer, posto que apareceram dois carros mais e abriram fogo sobre eles.

     Ash levantou um escudo para proteger o carro. Tentou usar seus poderes para que os carros que lhes perseguiam capotassem ou pelo menos lhes parar os motores. Mas posto que os que iam dentro eram demônios e não humanos, rebateram suas habilidades com as suas próprias.

     Maldita seja!

     —Meu Deus. —ofegou Tory—. São uns inúteis atirando ou o que lhes acontece?

     Não fez comentário algum quando captou quatro lustrosas Hondas Blackbird negras lhes fechando a passagem. Duas das motos levavam dois passageiros e os de trás iam carregados com KAC de 6x35 mm PDW que tiraram debaixo das jaquetas.

     Ash amaldiçoou.

     —Parece que estão dispostos a unir-se ao baile.

     Ao menos isso era o que pensava até que uma das motos abriu fogo sobre os carros que os perseguiam.

     Tory enrugou o cenho ante a ajuda dos das motos.

     —Teus amigos?

     —Não que eu saiba. —Se não fosse porque estavam usando armas de fogo, teria suspeitado que eram Were-Hunters posto que muitos deles usavam motos para deslocarem-se quando estavam em forma humana. Mas os Were-Hunters lutariam com magia.

     As motos se puseram em formação forçando ao BMW a estelar-se contra o muro de contenção. Logo foram para o outro Beamer e também deram conta dele.

     Ash manteve a marcha enquanto se aproximavam deles. Ao menos até que compreendeu que estavam definitivamente do seu lado. Desviou bruscamente até a margem e pisou nos freios.

     —Espere aqui. —disse-lhe saindo para enfrentar aos das motos.

     Pararam uns metros atrás do carro. Os dois que iam armados desmontaram primeiro e ficaram de costas a ele para vigiar se por acaso apareciam mais demônios. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi o símbolo do sol gravado nas costas de seus trajes de couro.

     O símbolo de sua mãe.

     Os condutores desmontaram ao mesmo tempo e se aproximaram dele como uma unidade treinada. Pararam diante dele com as pernas separadas, levaram o punho direito ao ombro esquerdo e inclinaram a cabeça. Depois se deixaram cair sobre um joelho ali mesmo, no meio da rua.

     Que porra era tudo isto?

     O líder do grupo ficou em pé e tirou o capacete. Era de uma beleza que tirava o fôlego, de cabelo comprido e loiro que caía em ondas sobre os ombros. Com o couro, seus largos ombros poderiam fazer facilmente que se a tomasse por um homem, mas não havia nada de masculino nela.

     —Sinto não ter podido arrumar uma apresentação melhor. Sou Katherine Zanakis, sacerdotisa principal de Apollymachi.

     Ash as olhou e caiu em conta de que todas eram mulheres humanas a serviço de sua mãe.

     —O que fazem aqui?

     Katherine se colocou a um lado enquanto as demais se levantavam e uma delas avançou e tirou o capacete. Muito linda e provavelmente dez anos mais velha que Katherine, tinha o cabelo negro curto e uns olhos quentes.

     —Justina?

     Voltou-se ao ouvir o tom confuso de Tory franzindo o cenho quando a muito diabinha pôs-se a correr para elas.

     —Disse-te que ficasses no carro.

     —Não te ouvi. —disse desdenhosa quando se aproximou delas.

     Justina se adiantou e tirou do ombro a bolsa de mensageiro.

     —Hão-me dito que te entregue isto. —estendeu a bolsa a Tory.

     Tory parecia tão confusa como ele ante o presente.

     —O que é?

     —Isto é pelo que morreu Dimitri. —explicou Justina—. Eu estava lá quando a Atlantikoinonia irrompeu em sua casa, consegui escapar pela porta de trás com o diário e o selo enquanto ele os entretinha. —Justina se benzeu três vezes enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas pelo amigo que tinham perdido.

     Ash amaldiçoou ao recordar ter visto Justina em sua visão. Só que não se deu conta de que lado estava. Assumiu que estava trabalhando para o inimigo.

     —A Atlantikoinonia? —Tory perguntou a Justina.

     —Um grupo de lunáticos. —soltou Justina—. Nos vieram perseguindo desde a Grécia até Nova Orleans. Cada vez que dávamos a volta, ali estavam, tentando pôr as mãos no diário.

     Katherine assentiu.

     —São um grupo de homens que juraram proteger os segredos de Atlântida e são implacáveis.

     —Destruíram nosso navio. —disse Justina a Tory—. Matei um enquanto fugia e isso foi o que me fez correr para casa de Dimitri atrás do diário. Até então não me tinha dado conta do quão importante era nossa busca.

     Tory moveu a cabeça como se tudo isto a estivesse fazendo enjoar-se.

     —Estou muito confusa.

     Ash lhe pôs o braço ao redor para sujeitá-la.

     —Também acabam de operá-la e quase a matam esta manhã. Sem mencionar que nossos amigos poderiam nos encontrar outra vez e quando o fizerem não quero estar descoberto onde possam nos reter ou ter um alvo claro. Garotas, sabem onde está o Santuário nas Ursulinas?

     —Eu sim. —disse uma das mulheres dos KAC.

     —Nos encontraremos ali. —Ash abriu a porta a Tory que lhe olhou com dureza.

     —Exatamente, o que está acontecendo aqui, Ash?

    —Não estou seguro, mas acredito que estamos a ponto de conseguir algumas respostas.

     —Bom. Porque estou farta de estar na escuridão. —Tory entrou no carro e começou a abrir a bolsa em seu colo, mas Ash pôs a mão sobre as suas.

     —Eu se fosse você não faria isso.

     Olhou-lhe carrancuda.

     —Por que?

     Porque me porás ao descoberto.

     —Esperemos até que cheguemos ao Santuário.

     E ali poderei te libertar dele sem perigo.

     —Certo. —sua confiança cega fez com que uma onda de culpa lhe percorresse todo o corpo. Cruzou os braços em frente da bolsa e a segurou forte sem saber que eram sua vida e sua dignidade que sujeitava perto do coração. Cada um dos segredos pelos quais tinha trabalhado tão duro para guardá-los estavam justo aí...

     Queria amaldiçoar. Tinha um nó no estômago. Passou ao outro lado e se deslizou dentro do carro para lhes conduzir de volta ao Bairro Francês.

     Tory passou a mão pelo couro cor terra do interior do carro como se admirasse o estilo alemão.

     —Sabes o que penso que desentona nestes carros?

     Não tinha nem idéia. Não encontrava nada que desafinasse. Adorava seu Porsche.

     —O que?

     —Os suportes.

     Ele riu. Os suportes estavam metidos em um compartimento que teria que girar para baixo para expulsá-los e poder desdobrá-los.

     —Sim. Os Transformers são suportes disfarçados. Mas não é isso o que tens na cabeça, não?

     —Não. Estou tentando me distrair para não pensar no fato de que estou segurando no colo algo pelo qual alguém está disposto a matar. De que um de meus amigos mais queridos pagou com sua vida por esta descoberta e de que se tivéssemos deixado estar o da Atlântida, Dimitri estaria vivo. Sua esposa não seria viúva e sua pobre mãe não estaria enterrando ao seu único filho. —encolheu-se—. Não posso acreditar que minha estupidez egoísta haja custado a vida de alguém. O que é que fiz?

     A Ash lhe encolheu o coração ao pensar em Nick.

     —É fácil equivocar-se. O difícil é viver com as conseqüências.

     —Diz isso a mim. Tem algum anel espião secreto que me ajude com a dor?

     —Eu gostaria, mas não. Há dores que vão muito profundas para aliviá-las. O melhor que podemos fazer é recolher os pedaços e rogar pela força necessária para seguir adiante.

     —Isso é o que fazes tu?

     —Não, eu me enrolo em porradas. Isso ajuda ainda mais.

     Lançou-lhe uma risada suave.

     —Não te vejo sendo tão duro.

     Não se dava idéia, mas gostava que não conhecesse a parte dele que era capaz da destruição total.

     Tory apoiou a cabeça contra o vidro e olhou pelo guichê.

     Não falaram mais até que Ash se meteu pela entrada por trás do Santuário. As sacerdotisas estacionaram na rua enquanto levava Tory à porta principal.

     Dev Peletier estava de guarda em forma humana… enquanto fora de dia. Havia dois tipos de Were-Hunters. Os nascidos como humanos que podiam converter-se em animais e os que eram animais que podiam converter-se em humanos. Durante as horas diurnas os Were-Hunters preferiam sua forma original que para Dev era um urso. O fato de que estivesse em sua forma humana tinha assombrado a Ash posto que só os mais poderosos de sua raça podiam fazer algo assim.

     Como homem, Dev não era muito mais baixo que Ash. Tinha o cabelo loiro comprido e ondulado e uma covinha que só se mostrava quando falava posto que os ursos não sorriam freqüentemente. Usava jeans e a camiseta negra do pessoal do Santuário e estava sentado com indiferença enganosa. Inclusive em forma humana podia entrar em matéria com a rapidez suficiente para dar a Ash um mau momento. Mas o que mais divertia a Ash era o duplo arco de Caçador Escuro no braço de Dev. Não estava seguro do por que o urso pensava que era divertido levar a marca da Artemisa, mas Dev a levava com orgulho.

     Assim que viu Ash tirou o comando a distância do cinturão e “Sweet Home Alabama” começou a tocar dentro do bar, advertindo ao resto dos habitantes não humanos que Ash estava a ponto de entrar no edifício. Era um jogo. Posto que os Were-Hunters eram primos dos Apolitas, freqüentemente davam proteção aos Apolitas e Daimons. Sendo Ash um Caçador Escuro, estava obrigado a matar a qualquer Daimon que cruzasse em seu caminho, o que queria dizer que qualquer Daimon que houvesse dentro estava correndo para esconder-se nesse momento.

     Os Apolitas preferiam não se cruzar com os Caçadores Escuros assim escassamente se mostravam quando ele estava por lá.

     —Como estás, Dev? —perguntou Ash.

     —Aí vamos. —Dev arqueou uma sobrancelha quando viu Tory e às outras mulheres que se aproximavam—. Obrigado por nos embelezar o bar. Apreciamos muito.

     Ash sacudiu a cabeça.

     —Necessitamos de um canto tranqüilo.

     —Escada acima, à direita. Toda a área está acordada a estas horas do dia. Mando Aimee com as bebidas.

     —Obrigado.

     Tory sorriu ao loirinho que lhe piscou o olho ao seguir Ash. Tinha passado pela frente do bar dúzias de vezes, mas como o heavy metal não era a sua, nunca tinha entrado. Era um lugar enorme, muito maior do que parecia da rua.

     Tinha três andares com seções a parte da área do bar, um bilhar, um palco e pista de dança e um restaurante. Era rústico e ao mesmo tempo bastante caseiro, exceto pelo ataúde em um canto ao lado do bar que tinha uma placa em que se lia “O ÚLTIMO CARA QUE PEDIU PARA SAIR COM AIMEE”, com um esqueleto desmembrado dentro.

     Obviamente, Aimee era alguém a quem os visitantes não deviam pôr a mão em cima.

    Tory seguiu Ash escada acima até uma mesa redonda ao fundo, contra a parede. Colocou-se de forma que estava contra a parede e esperou a que todas estivessem sentadas antes de sentar-se.

     Uma vez que todo mundo esteve colocado, ele inclinou a cabeça para elas.

     —Bom, senhoritas, resolvamos este quebra-cabeças.

     —Não é difícil. —disse Katherine—. Desde que a família de Tory começou a escavar perto das ruínas de Atlântida, a deusa nos atribuiu para vigiá-los e nos assegurar de que não a ofendia com seus atos.

     —Sua deusa? —perguntou Tory.

     Katherine sorriu.

     —Apollymi a Grande Destruidora. Nossa ordem se remonta aos dias em que a Atlântida governava a terra. Depois que Atlântida foi destruída e sob a proteção de nossa deusa que nos salvou da destruição, fomos a Grécia e estabelecemos nossa ordem ali, onde se manteve em segredo desde então.

     —Éramos uma das grandes tribos de Amazonas —disse Justina—. Só que enquanto o resto eram gregas, nós mantivemos os costumes atlantes.

     Katherine sorriu com orgulho.

     —E éramos as mais fortes de todas. Desde o momento em que nossas antepassadas escaparam a Grécia, fomos perseguidas pela Atlantikoinonia. Um grupo criado pela deusa Artemisa. Seu objetivo é erradicar toda evidência de que a Atlântida e Apollymi tenham existido nunca.

     —O que significa matar a todas. —sussurrou Tory.

     Katherine assentiu.

     —Outra das razões pela qual levamos séculos nos escondendo.

     Justina tirou a jaqueta e a pendurou no respaldo da cadeira.

     —Se não fora pela proteção de Apollymi não teríamos sobrevivido tanto tempo.

     Tory admirou o modo em que falavam, a lealdade que mostravam a sua deusa.

     —Falam como se fora real.

     Justina sorriu.

     —Para nós o é.

     —Não —disse Katherine com rapidez—. Pelo que sabemos, ninguém sabe em que língua está escrito. Nosso Oráculo nos disse que o trouxéssemos para Tory e isso temos feito. Há-se predito que ela, assim como à antiga atlante Soteria, será sua guardiã.

     A Tory pegou com a guarda baixa o uso de seu nome de batismo.

     —Como?

     —É uma antiga lenda. —disse Ash—. Quando Atlântida foi destruída a bibliotecária chefa dos arquivos nacionais tentou salvar tanto como pôde. Conta-se que sua Sombra vigia os tesouros de Atlântida e os protege do saque.

     Katherine abrangeu com a mão à totalidade do grupo.

     —As Apollymachi são sua Sombra. Somos as guardiãs e a Atlantikoinonia são os destruidores.

     Ash ficou olhando a bolsa que Tory ainda apertava contra seu peito.

     —Possivelmente nisto nós tenhamos que ser os destruidores.

     Tory negou com a cabeça.

     —Quero saber o que diz o livro antes de destrui-lo.

     —Ninguém sabe lê-lo. —repetiu Katherine.

     Tory negou com a cabeça.

     —Ash sim sabe.

     As mulheres lhe olharam com a surpresa gravada nos rostos.

     Justina trocou um olhar com Katherine antes de falar.

     —Por isso o Oráculo nos disse que o entregássemos ao Elekti?

     —Elekti? —perguntou Tory que não conhecia o significado da palavra.

     —Significa Escolhido. —explicou-lhe Justina.

     Tory as olhou carrancuda, isso parecia bastante ameaçador.

     —Escolhido para que?

     Katherine subiu as mangas da jaqueta.

     —Nossa ordem fala de um homem em cada geração que leva o sinal da graça da Destruidora. Será conhecido por seu anel, que o leva no polegar direito.

     Tory baixou a vista e viu uma banda de ouro grosa no polegar de Ash. Levava o mesmo símbolo do sol que tinham as jaquetas das mulheres e que sua mochila.

     —O que não está me contando? —perguntou a Acheron.

     —Muito. —voltou-se por volta de Katherine—. Que ordens têm agora que entregastes que diário?

     —Devemos proteger a Soteria e seguir as ordens do Elekti.

     —Por que? —insistiu.

     —Porque é a vontade da deusa.

     Ash burlou de suas palavras.

    —Não deveriam obedecer cegamente a ninguém. Te diz um que sabe bem. Vossa deusa não é infalível.

     Katherine tomou fôlego com brutalidade.

     —Isso é blasfêmia.

     Ash não respondeu, mas algo em suas feições fez acreditar a Tory que sabia muito mais sobre a deusa do que deixava entrever.

     —Esses Atlantikoinonia, são humanos?

     Tory estava confusa pela estranha pergunta.

     —O que outra coisa poderiam ser? Rabanetes?

     Ash sacudiu a cabeça ante o sarcasmo. Embora, para ser sincero, divertia-lhe. De todas as maneiras, isso não mudava o apuro em que se encontravam.

     —Sabe alguém que têm o diário?

     —Não —disse Justina—. Dimitri não teria quebrado sua promessa.

     Tampouco ele acreditava.

     —Então, por agora temos que colocar a Tory na cama para que descanse.

     —Estou bem.

     Arqueou uma sobrancelha ante o protesto.

     —Acabam de te operar. Tens que estar na cama, descansando.

     Tory odiava admitir que tinha razão.

     —Certo. Me leve para casa.

     Olhou a bolsa e negou com a cabeça.

     —Não acredito que seja prudente dadas as aventuras de hoje. Quem quer que vai detrás de ti, sabe onde vives. E não acredito que devamos pôr isso fácil. Deixe que os safados o batalhem para te matar. —ficou de pé quando uma atrativa loira se aproximou. Vestia uma camiseta do Santuário muito curta com um lobo uivando na dianteira e levava uma bandeja.

     Afastando-a a um lado, falou-lhe em voz baixa.

     —Sem problema, —disse a loira—. Siga-me.

     Ash pegou a bolsa.

     —Vamos.

     Irritada por sua despótica conduta e porque não tinha pedido sua opinião, Tory lhes seguiu até uma porta próxima. Aimee, cujo nome estava gravado nas costas da camiseta, tirou um jogo de chaves e abriu a porta. Levava a uma sala pequena com outra porta que estava fechada com um scanner de palma.

     Tory estava impressionada pela segurança.

     —Chega fora da cidade…

     Sorrindo, Aimee abriu e lhes mostrou um dormitório grande sem janelas.

   —Há um banheiro atrás dessa porta. É de aço reforçado, ninguém que não seja convidado pode entrar… com grande ênfase no de não convidado.

     Ash lhe fez uma inclinação de cabeça.

     —Obrigado, Aim.

     —De nada. —estendeu-lhe a chave da porta exterior—. Podes deixar aberta esta porta e assim não terás que usar o scanner.

     Ash se dirigiu a Tory.

     —Queres algo para beber?

     —Suco de maçã seria um presente dos deuses.

     Aimee assentiu.

     —Subir-te-ei um pouco.

     Tory se aproximou da cama quando Aimee os deixou sozinhos.

     —Já posso ler?

     Ash fez um ruidinho de irritação.

     —Importa-te se primeiro lhe jogo uma olhada?

     —Sim, importa-me. —estendeu a mão esperando que o desse imediatamente. Estava desesperada para que todo esta baderna terminasse.

     —Eu leio mais depressa que tu. —recordou-lhe Ash.

     Fez um ruído forte de irritação que competia com o seu.

     Ash fez uma pausa. Nesse momento, queria lhe dizer a verdade do que estava acontecendo e por que. Queria que soubesse que a bela garçonete Aimee era a irmã mais nova de Dev e um urso em sua outra forma. Tinha a fantasia de Tory agradecendo-lhe apesar de tudo. Dela aceitando tudo sem assustar-se e sem chiar.

     Dela sem que lhe importasse que fora um deus maldito.

     Mas já sabia. Não era um adolescente com seu primeiro amor. Tinha vivido o suficiente para saber que as pessoas e suas reações ante coisas que eram radicalmente diferentes não costumavam ser positivas.

     Não importava quanto desejava que lhe sorrira e lhe dissesse que não importava nada, já tinha passado por isso. Quantos séculos teria que esperar para que o importasse a Artemisa? E ela era uma deusa que não podia lhe aceitar.

     Como poderia uma mortal tomá-lo com calma? Além disso, ele vivia em um mundo perigoso e ela não tinha os poderes necessários para sobreviver nele.

     Clareou a garganta. Te recuperarás da decepção.

     —Ash… —disse com uma nota de advertência na voz—, não me faças sair da cama.

   Pegou a bolsa e saiu da sala antes que pudesse lhe alcançar. Fechou a porta e a selou.

     —Ei! —O escândalo amortecido lhe fez encolher-se ao sentir sua raiva dentro dele. Tinham-lhe tido prisioneiro o bastante para que odiasse a si mesmo pelo que acabava de fazer.

     Mas tinha que proteger-se… e protegê-la.

     Deteve-se na sala exterior para abrir a bolsa. Havia um selo atlante que tinha o sol de sua mãe com o martelo de Archon e os raios formando um “x” sobre ele. Havia três gargantilhas de sacerdotisa que podiam usar para convocar os poderes de sua mãe em um corpo mortal e havia uma adaga atlante.

     Ash começou a amaldiçoar ao dar-se conta de que tudo isto era mais destrutivo que uma bomba nuclear. Com isto, qualquer um no planeta poderia terminar com o mundo em uma piscada.

     —Há alguma razão pela qual deva estar presa?

     A voz de Aimee lhe distraiu.

     —Sim —disse pondo todas as coisas em sua própria mochila antes de levantar-se—. Necessito que fiques aqui um momento.

     Jogou-lhe um olhar tímido.

     —Te gosta viver perigosamente, né?

     Ele ignorou a pergunta.

     —Lhe diga que voltarei logo e lhe trarei sua roupa.

     Aimee moveu a cabeça quando abriu a porta e se enfrentou a uma humana que parecia preparada para desafiar a um urso. Literalmente.

     —Não deverias estar na cama? —perguntou Aimee.

     Tory lhe lançou um olhar à mulher.

     —Vais me obrigar?

     —Com um pouco de sorte não chegaremos a isso. Ash quer que estejas protegida e acreditava que tu estarias de acordo.

     Tory levantou o queixo em desafio.

     —Fazes sempre o que ele quer?

     —Não, mas sei o que é proteger a alguém pelo que te preocupa, inclusive quando são teimosos suicidas. Não me faças fazer algo pelo qual logo me odeies.

     Isso fez baixar as fumaças um pouco a Tory. Isso e o fato de que Aimee era bastante corpulenta e não muito mais baixa que ela.

     —Eu não gosto que me digam o que tenho que fazer e odeio estar presa.

     —Se me prometer que ficarás aqui e te levarás bem, deixarei a porta aberta. Mas não me faças te perseguir. Asseguro-te que sou muito mais rápida do que pareço.

     Embora seguisse zangada, Tory compreendeu que não podia sair correndo atrás de Ash. Ainda havia gente procurando-a e estava se restabelecendo. Assim foi para a cama e se meteu dentro.

     Sorrindo, Aimee lhe estendeu o suco. Abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e tirou um controle remoto. Um momento depois se abriu um painel na parede que descobriu uma televisão grande de plasma.

     —Isto não é um cárcere. Aperta o botão amarelo se necessitar de algo e subirei.

     —Obrigada.

     —De nada. Tenta não matar ao menino alto de negro. Pode parecer um idiota algumas vezes, mas basicamente é um bom homem e há tão poucos no mundo que não precisamos começar a eliminá-los.

     Tory riu ante a perfeita descrição de Ash. Aimee tinha razão. Não havia uma pletora de gente boa.

     —Faz muito que conheces o Ash?

     Ela colocou a bandeja debaixo do braço antes de responder.

     —Desde que era uma cria... a verdade é que me salvou a vida.

     Tory não sabia por que, mas a surpreendeu.

     —Salvou-te a vida?

     Ela assentiu.

     —Mataram a meus irmãos mais velhos diante de mim. Os homens que o fizeram estavam bêbados de sangue e quando viram que estava me escondendo, tiraram-me de onde estava para me matar também. A seguinte coisa que soube foi que Ash estava lá e eles estavam mortos. Levantou-me e me devolveu a minha família. Se não me tivesse encontrado, sei que teriam me matado também.

     Tory franziu o cenho ante as imagens conflitivas que passavam em sua mente e que não tinham sentido.

     —Mas és mais velha que ele.

     —Não.

     Seu cenho se incrementou. Aimee parecia pelo menos dez anos mais velha que os vinte e poucos de Ash.

     —Quantos anos tem Ash?

     —Não sei exatamente. Não conheço ninguém que saiba com exatidão, mas sei que é mais velho que eu. Ele não o diz e eu não pergunto. A propósito, disse-me que te dissesse que te trará um pouco de roupa. —antes que Tory pudesse dizer uma palavra mais, Aimee tinha ido.

     Tory jazia na cama com aquelas palavras lhe dando voltas na cabeça. Havia muito mais em tudo isto do que sabia e a incomodava que todos pensassem que era tão estúpida que não sabia.

     O que acontecia com Acheron? Quem era em realidade?

     E quantos anos tinha?

     Uma sombra posou sobre a cama. O coração deixou de lhe pulsar um momento até que se deu conta de que a sombra era Justina.

     —Assustaste-me!

     —Sinto muito. Há algo que esqueci de te dar. Era tão pequeno que não o pus na bolsa com o resto. —Tirou uma bolsitnha do bolso—. Acredito que o encontrará realmente interessante.

     Tory a olhou carrancuda agarrando a bolsinha e tirou uma moeda. Não se surpreendeu posto que encontravam muitas moedas. O verso era o mesmo que em outras moedas de Didymus.

     Mas quando a volteou deu um grito afogado.

     O rosto que havia na moeda era o de Acheron.

 

     Não foi Ash quem trouxe para Tory as roupas depois. Ele a tinha enviado com Aimee, quem tinha um sarcástico humor, mas se ele queria ser um covarde depois de havê-la encerrado, que assim fora. Além disso, gostava de Aimee que tinha um picante senso de humor e aguda inteligência.

     Isto também lhe dava tempo para planejar uma vingança sobre o alto Gótico que a irritava até a distração.

     Sem nada melhor para fazer, Tory tomou uma ducha no pequeno banheiro, cuidando de não molhar as suturas. Estava extremamente cansada de estar descansando na cama. Não entendia como podia sentir-se tão bem dado o que lhe tinha acontecido. Honestamente estava um pouco dolorida do quase fatal desenlace.

     Era tão estranho.

     Não querendo estar a sós onde os pensamentos de Dimitri e a preocupação por sua equipe a fizeram machucar-se, deixou o quarto e se dirigiu à área do bar, procurando distração. Quando saiu, Justina e Katherine se levantaram de uma pequena mesa redonda onde tinham estado sentadas… Justina olhando para a porta de Tory e Katherine examinando o bar ao seu redor delas.

     Não sabia onde estavam as outras sacerdotisas, mas o fato de que essas duas estivessem ali a fez arquear uma sobrancelha.

     —O que estão fazendo? —perguntou-lhes, curiosa a respeito de sua nervosa vigilância.

     Katherine afastou o olhar envergonhado.

     —Estamos te vigiando para nos assegurar que ninguém te incomode.

     Bom, ao menos o homem não as tinha mantido presas no quarto. Deveria estar agradecida por um pouco de liberdade.

     —Ordens de Ash?

     Justina sorriu.

     Finalmente encontrei a alguém que é inclusive mais mandão que tu. Quem sabe? Sem mencionar que ele é muito mais feroz.

     Isso, Isso, pensou Tory sarcásticamente. Ela não achava isso particularmente divertido… mais ainda, porque ela estava recebendo o final de seu comendo.

     —Onde está?

     Provavelmente lá fora espreitando à ruiva ou a alguma outra mulher.

     Katherine indicou por cima do corrimão que baixava à área do armazém. Tory baixou o olhar, então ofegou quando viu o homem de volta no palco no qual não tinham posto um foco sobre ele. Não havia engano no gigante vestido de negro que tocava uma guitarra negra adornada com chamas vermelhas.

     Justina se uniu a elas no corrimão.

     —O guitarrista da banda machucou dois dedos justo antes que se supõe que tocariam, assim que rogaram a Ash que o substituíra.

     Tory ficou absolutamente atônita quando viu seus longos dedos voar sobre o braço da quitarra em perfeitos acordes.

     —Te afaste.

     Justina sorriu abertamente.

     —Yeah, sei, é impressionante. Não?

     Não, ele dava solavancos passando do impressionante e ia direto ao reino do deus da guitarra. Devido que ela mesma tocava, podia apreciar facilmente o talento que levava a fazer com que parecesse e o fizesse soar sem tanto esforço. Não cometeu nem um simples engano.

     E quando rompeu em um agudo só rivalizado por Hendrix, Rhodes ou Van Halen, o público se voltou louco.

     Antes que Tory se desse conta do que estava fazendo, dirigiu-se baixando as escadas para lhe ver tocar de perto.

    

    Ash normalmente não olhava ao público essas poucas vezes que havia tocado com os Howlers… o qual era só durante as sessões de teste ou quando o bar estava fechado para algo não sobrenatural, mas por alguma razão sentiu uma pouco característica compulsão a fazê-lo agora.

     Ele viu imediatamente a Tory à frente com Justina e Katherine por trás dela.

     O tempo pareceu deter-se quando se encontrou com aqueles lindos olhos marrons que sempre pareciam olhar através dele, diretamente a sua alma. Enquanto ficava ante ela, esqueceu-se de tudo, especialmente quando finalmente ouviu seus pensamentos a respeito daquelas pessoas que o rodeavam.

     Por que vives nas sombras afastado de todo mundo? Deverias sair à frente e brilhar com esse talento. Nunca ouvi um melhor guitarrista. Como o fazes? Nasceste com uma guitarra nas mãos?

     Ela o olhava com respeito. És tão belo, Acheron. Tudo em ti. Por que te ocultas do mundo e de mim em particular? Eu jamais te machucaria…

     A sinceridade daquelas palavras o alcançaram como nada o tinha feito antes. Mas mais que elas, eram outros vislumbres que finalmente teve dela. Alguns deles nunca os teria suposto. Sua alma era tão bela. Seu coração incrivelmente amável. Ele estava acostumado a tratar com aqueles que, assim como ele, estavam enfastiados. Aqueles que só esperavam o pior de outras pessoas e do mundo.

     Mas ela não. Inclusive ela via o mal ao seu redor com uma infantil esperança.

     Deuses, como queria tocar essa pureza. Sentir a mágica maneira em que ela via o melhor nas pessoas, inclusive, embora não o merecessem. Mais que tudo, queria ver a si mesmo da maneira em que ela o fazia. Ser a pessoa que ela pensava que era, em vez do animal que ele mesmo sabia que era.

     Só durante um minuto.

     Esse teria que ser o maior presente que ninguém lhe tinha dado e ela nem sequer se dava conta de que o tinha feito. Era só quem e o que era ela. Isso era o que o fazia perfeito.

     E queria lhe devolver o favor quando terminassem o repertório do Godsmack que estavam tocando. Ele foi para o vocalista da banda, Angel Santiago, quem tinha o comprido cabelo marrom e um pícaro sorriso, e lhe sussurrou.

   Angel sacudiu a cabeça, rindo.

     —Por ti, cara, qualquer coisa. —Angel foi onde estavam os outros, enquanto Ash ajustava o microfone frente a ele para acomodá-lo a sua altura.

     Um instante depois, Ash deu um pulo quando uma luz se voltou diretamente sobre ele. Ele nunca tinha suportado esse tipo de atenção e cada parte dele queria fugir para esconder-se.

     Mas Tory tinha uma estúpida fantasia e a parte dele que ela havia tocado sem sabê-lo queria dar-lhe.

     A garganta seca pela vergonha e pelo medo, encontrou seu olhar.

     —Isto é para Soteria.

     Ele abriu com os acordes de “Save’ Me” do Nikelback. Ao momento de fazê-lo, quis morrer quando se deu conta do imperfeitamente fodido que estava… em público. O clube estava cheio de gente e animais em forma humana que sabiam quem e o que ele era. Seres que matariam para saber quem era Soteria e por que lhe dedicava essa canção quando jamais tinha feito tal coisa.

     Mais que isso, devia ter zangado a Tory por vincular seu nome ao dele. Maldição. Sabia perfeitamente. Ninguém queria ser visto com ele. Jamais.

     Quando ia aprender o mais básico dos fatos? As pessoas decentes não queriam estar com ele em público. Ele era uma vergonha. Uma abominação.

     Mas já era muito tarde. Tudo o que podia fazer era ver como passar por isso e esperar que ela não fizesse pública sua bofetada pelo atrevimento quando isto terminasse.

     Sou um idiota.

     Tory não podia respirar enquanto ouvia a canção de Ash. Ele tinha uma voz assombrosa. Baixa e profunda, esta a fazia tremer.

     Bons deuses do Olimpo…

     Nunca antes tinha escutado essa canção, mas a letra era linda…

     As portas do céu não se abrem para mim.

     Com essas asas quebradas estou caindo.

     E tudo o que vejo é você.

     Essas letras lhe trouxeram lágrimas aos olhos. Durante toda sua vida, tinha tido a fantasia de que um bonito cara de uma banda cantasse para ela. Sabia que estúpido que era, mas ali estava agora Ash dentre todos os homens cantando para ela.

     Era tão irreal e tão maravilhoso. Mais que tudo, a fazia querer chorar.

     E quando a canção terminou, e os focos se apagaram. Ash deixou a guitarra sobre o stand da bateria e saltou descendo do palco.

     —Tomaremos vinte minutos de descanso —disse o cantor principal.

     Tory apenas o ouviu enquanto Ash se aproximava lentamente a ela e pela primeira vez viu a vacilação em seu poderoso andar. Inseguro, deteve-se diante dela.

     Ash se encolheu, temeroso de sua reação.

     —Desculpe se eu… —ele ia dizer te envergonhar, mas antes que conseguisse terminar a frase, ela lhe tirou os óculos e o agarrou no mais feroz dos beijos que jamais tinha conhecido.

     Tudo ao seu redor retrocedeu quando os lábios dela prenderam fogo a todo seu corpo. Este não era exigente ou doloroso. Era um beijo de compromisso. De carinho.

     Um que lhe fez grunhir de necessidade quando ela cobriu seu rosto com suas mãos, as arrastando descendo por seu corpo para lhe segurar tão perto dela que a cabeça lhe girou com incredulidade.

     E nesse momento, tudo o que quis era estar dentro dela. Para tê-la lhe sustentando assim enquanto não houvesse nada entre eles. Só pele contra pele.

     Tory não podia respirar quando saboreou a Acheron. Seu corpo era tão incrivelmente duro. Não duvidava que não houvesse uma simples molécula que não fosse musculosa e definida. Exceto por seus lábios. Eram tão suaves como um sussurro e saboreavam a puro poder masculino.

     —Maldição, Ash, consiga um quarto.

     Ash se esticou ante o som da voz de Dev quando o urso passou junto a ele. Mas ainda estava incrédulo de que Tory o tivesse agarrado dessa maneira em público. Nenhuma mulher tinha feito algo assim antes. Ele sempre tinha estado relegado às sombras… a lugares onde ninguém poderia vê-los juntos.

     O fato de que ela o tivesse beijado abertamente…

     Era o céu.

     Mordendo o lábio, Tory se afastou para ver seu rosto salpicado de vermelho. Se era de raiva, esforço ou vergonha, não podia dizê-lo com segurança.

     —Sinto muito. Espero não te haver ofendido.

     Ash sacudiu a cabeça enquanto estendia a mão para sua bochecha. Puxando-a contra ele, enterrou o rosto em seu cabelo e inalou a doçura de sua essência. Era uma essência na qual queria banhar-se até estar coberto com cada polegada de sua pele e lhe marcar como seu.

     Tory fechou os olhos ante o mais estreito abraço que jamais tinha tido. Ela o abraçou de volta e o sustentou enquanto as pessoas passavam ao seu redor. Nunca tinha sido partidária das mostras de afeto em público, e ainda assim com ele era diferente.

     Nada parecia importar exceto estar com ele aqui mesmo e agora.

     Ash apertou os olhos quando as cruas emoções o atravessaram. Deixe-a ir. Empurre-a para um lado. Isso era a coisa mais sensata que podia fazer. A mais segura.

     Mas não podia. Tinha vivido toda sua vida para outras pessoas, tentando agradá-las e falhando com cada tentativa. Primeiro tinha sido seu pai humano, depois seu tio. Os clientes que tinha tomado.

     E então Artemisa.

     Nunca tinha sido o bastante bom para merecer seu amor. O bastante bom para que eles lhe fizessem sentir da maneira em que o fazia Tory. Para ela, ele não era nem puto nem deus. Nenhuma profecia ou um tipo de vergonha.

     Só era um homem.

   E esse homem queria lhe fazer amor.

     Não sejas estúpido. Não o faças. Só conseguirás te ferir, Ash. Sabes bem.

     Artemisa te fará sofrer até que implore pela morte… e então te torturará inclusive mais.

     Ainda assim quando olhava nesses profundos olhos marrons que o viam como um humano com sentimentos, esteve perdido. Mais que tudo, estava cansado de não tomar nada para si mesmo. De sacrificar-se pela felicidade de outras pessoas enquanto ele não tinha ninguém que o fizesse sentir assim importante.

     De repente desejava ter alguém que o sustentara perto e o aliviasse. Seria isso tão egoísta?

     Sua resolução se voltou sob o peso da consciência. Fodido se o era.

     Se tinha que pagar por isso depois, pagaria. Tinha sofrido insuportavelmente por muito menos que Tory. E ela ia curar cada cicatriz.

     Dando um passo atrás, tomou sua mão na dela e a conduziu escada acima e ao seu quarto. Ele fechou a porta, isolando-os dos sons e das pessoas de baixo, então se voltou para olhá-la.

     Tory não estava preparada para a ferocidade de seu beijo quando a pressionou contra a parede. Tinha sido sempre tão reservado e frio que ela nunca tinha suspeitado quão sexy poderia ser para ele perder o controle desta maneira.

     O fato de que ela fora a única que o conduzia a isto, só a punha mais quente. Seus lábios a atormentaram quando suas mãos começaram a lhe desabotoar a blusa. Ela tragou ante o calor golpeando através dela. Nunca antes tinha estado com um homem.

     E quase nem lhe conhecia.

     E ainda assim se deu conta de que Pam tinha razão. Se não dormisse com Ash, arrepender-se-ia disso durante o resto de sua vida. Não havia nada nele que a fizesse impaciente e acalmada. Algo que tocava seu coração de uma maneira que ninguém o tinha feito antes.

     Queria estar com ele. Sustentá-lo perto e não lhe deixar ir jamais.

     Ash se separou de seus lábios e abriu o último botão de sua blusa. Seus seios, cobertos por renda púrpura, eram pequenos e convidativos. Adoráveis e perfeitos. Ele continuava esperando que ela o empurrasse a um lado e o rechaçasse.

     Não o fez.

     Respirando profundamente, alcançou o broche dourado entre seus seios. Seus olhares se encontraram e a crua fome ali prendeu fogo nele quando abriu o sutiã e libertou os seios ao seu olhar. Colheu o direito em sua mão, assombrado da suavidade de sua pele quando seu tenso mamilo acariciou sua palma. Morrendo por saboreá-lo, afundou a cabeça para sugá-la brandamente.

     Tory ofegou quando ele revoou sua língua sobre o mamilo. Com cada lambida, seu estômago se contraía bruscamente. Sua boca estava tão quente quando sugava e brincava. Sua respiração lhe queimava a pele. Ela colheu sua cabeça para ela, incapaz de acreditar quanto prazer lhe dava.

     Ele se moveu para o outro seio enquanto lhe desabotoava as calças. Tory se sentiu já molhada.

     —Me toque, por favor. —rogou ela, morrendo por algo que saciasse o fogo em seu interior.

     Ash a agradou quando deslizou a mão sob a barra de suas calcinhas. Deixou que o pequeno pêlo acariciasse seus dedos enquanto afundava sua mão baixando furtivamente até que pôde se deparar com as suaves dobras de seu corpo e correr seu dedo baixando a sua fenda.

     Ela deu um estrangulado choramingo de prazer. Sorrindo com satisfação, afundou a mão mais abaixo para deixar que sua umidade cobrisse seus dedos antes de mover a mão para massageá-la.

     Tory chiou quando sentiu seu corpo explodindo com prazer. Nunca antes tinha tido um orgasmo. Era cru e era incrível e inclusive um pouco aterrador. As palavras não podiam descrever o que sentia. Ela se agarrou a Ash quando ele continuou incrementando o êxtase. Ele se afundou de joelhos frente a ela.

     Ainda tremente e úmida, baixou o olhar para encontrar esse faminto olhar chapeado. Ele se estirou para lhe baixar os jeans pelas pernas com um feroz intento que a deixou inclusive ainda mais sem respiração. Ela deslizou uma perna e depois a outra assim de modo que ficou completamente nua da cintura para abaixo. Sua camisa estava aberta.

     Ash não podia respirar quando lhe jogou uma olhada dessa maneira. Era tão bonita e tudo o que ele queria era agradá-la… ter suas mãos sobre seu corpo, sem machucá-lo ou exigir sua submissão para fazê-la sentir-se mais poderosa. Só simplesmente lhe dar prazer. Acalmá-lo. Levou sua delicada mão aos lábios de modo que pudesse saborear a ponta de seus dedos. A essência e seu doce sabor endureciam seu pênis até o ponto de não poder fazer outra coisa que atacá-la onde estava. Mas queria saboreá-la lentamente.

     A única coisa no universo na qual se sobressaía era nisto e queria que ela conhecesse a altura de suas habilidades.

     Ela se estirou baixando para lhe acariciar o cabelo da nuca. Ash enterrou a cara contra sua coxa e mordiscou a tenra pele ali enquanto lhe acariciava a bochecha.

     —Por favor, não me puxes o cabelo —ofegou em um rouco sussurro, sem querer que nada danificasse esse momento.

     —Eu nunca te machucaria, Ash.

     E isso era pelo qual ele estava se arriscando à ira de uma deusa para estar com ela. Por uma vez em sua vida, queria fazer amor a alguém que não lhe fizesse sentir-se igual à merda por isso. Cobrindo sua mão com a sua, girou o rosto para que assim pudesse beijar sua suave palma.

     Tory estava atônita por sua ternura. Recordava a um cervo quando sugava os dedos. E quando ele levantou o olhar para vê-la, ela viu a pura dor e tortura em seu interior. Sua alma estava tão nua como seu corpo o estava para ele.

     Lambeu-lhe a palma em uma sensual passada antes de alcançar a enterrar seus lábios contra o centro de seu corpo.

     Tory choramingou quando o prazer a cegou. Estirou-se por seu cabelo, só para conter a si mesmo. Em vez disso, aferrou-se ao pomo da porta com uma mão e mordeu os nódulos da outra.

     Seu corpo cobrou vida própria enquanto a lambia e brincava com sua língua. Elevou suas mãos para separar suas dobras de modo de sua língua pudesse lamber e mordiscar profundamente em seu interior.

     Ash gozou no sabor da parte mais particular de seu corpo. Os restos de seu último orgasmo o faziam faminto de seu próprio, mas mais que isso, fazia com que quisera ouvi-la gritar seu nome.

     Morrendo para estar profundamente dentro dela, deslizou seu dedo em seu interior, então se congelou quando encontrou a última coisa que esperava.

     Congelou-se interiormente.

     —És virgem?

     Tory franziu o cenho ante o veneno em sua voz quando cuspiu a palavra como se esta a desgostasse.

     —Isso é um problema?

     Ele se afastou dela como se tivesse descoberto leprosa.

     —Por que não me disseste isso?

     —Não pensei que importasse.

     Ele lhe dedicou um feroz olhar que fez com que fechasse a blusa.

   —Importa. Maldita seja, mulher!

     Ela ficou completamente assombrada por sua inesperada resposta. Por que estaria tão zangado pelo fato de que nunca tivesse estado com outro homem?

     —Pensei que aos homens gostavam de ter virgens.

     Ash passou a mão através do cabelo enquanto lutava para manter seu temperamento sob controle. Mas não era rabia o que sentia. Havia choque, culpa e uma fome por ela, tão profunda que não estava seguro como podia conter-se com ela.

     —Eu não sou a maioria dos ombros. —Ele recolheu os jeans do chão e os estendeu.

     Ela ofegou ante ele.

     —E o que é isto? Vais deixar-me só porque nunca estive com ninguém?

     —Isso é exatamente o que vou fazer. —tentou chegar à porta, mas ela ficou frente a esta enquanto lhe olhava com sua própria brilhante fúria.

     —Oh, o horror desta situação, —disse ela, seu tom tão espesso com o sarcasmo que ele necessitaria de uma motoserra para cortá-la—. Que me dirias se desço as escadas e me enrolo com o primeiro homem que veja. Seria então o bastante boa para ti?

     Os ciúmes o atravessaram ante o mero pensamento.

     Ela entrecerrou seu olhar desconfiadamente.

     —Tampouco tu gostas dessa idéia, verdade?

     Ash ficou sem respiração quando imagens dela com qualquer outro o atravessaram. Não, não a queria com ninguém mais, mas ao mesmo tempo não queria ser o primeiro para ela. Não queria machucá-la e honestamente, não queria que o recordasse ou se arrependesse de algo. Ela merecia algo melhor que isso. Alguém melhor que ele com quem se deitar.

     —Como podes ser virgem na tua idade?

     —Não tenho noventa anos, Acheron. Boa desgraça. Disse-te isso, tive más experiências com os homens. Cada vez que tentava dormir com um, acontecia algo. Ou alguém nos interrompia ou… num caso o cara caiu da cama quando subiu a ela e quebrou a clavícula.

     Ela tomou sua cabeça nas mãos e o obrigou a olhá-la.

     —Eu quero estar contigo, Ash. Sem ataduras. Sem compromissos. Sou uma mulher adulta e não vou espreitar-te. Só quero te amar durante um momento.

     Essas palavras o abrasaram e ao mesmo tempo quis amaldiçoar por que lhe faziam impossível afastar-se dela.

     —Não mereces estar deitada num quarto em um bar na tua primeira vez.

     —E isso é justo aqui, porque eu quero estar contigo. Tu és o único homem ao qual conheci que pensaria nisso.

     Porque ele sabia o que era ser sem piedade violado e estar angustiado por isso. Por alguma razão, a primeira vez ficava na memória de todo mundo. Isso foi pelo qual sempre se assegurou de ter especial cuidado com virgens e por que tinha sido tão bom no que fazia. Ninguém merecia ser humilhado da maneira em que ele o tinha sido. Chorar pela dor disto e que se burlassem enquanto ele rogava piedade.

     Deixa tua maldita choramingação, puto. Isto terminará quando eu acabe contigo. Ele tinha lhe esbofeteado com tanta força com o dorso da mão, que lhe tinha quebrado o nariz. Aí tens. Essa dor afastará o outro de tua mente.

     Por que com todos os poderes que tinha não podia purgar suas próprias lembranças? Por que onze mil anos não eram suficientes para fazer com que a dor desaparecesse?

     Tudo o que queria era um momento livre dessas lembranças. Um lugar a salvo onde ninguém lhe recordasse o que lhe tinham feito. Pelo que se havia feito a si mesmo.

     Tory franziu o cenho ante as sombras que viu nos olhos de Ash como se alguma dolorosa lembrança o torturasse. Ela queria aliviar essa dor mais que tudo. Por que não a deixava?

     —Ash?

     Ele alcançou a baixar a mão sobre a cicatriz onde a tinham operado.

     —Não deverias sair da cama.

     —Não me dói. Não o entendo, mas não me dói. E não quero voltar para a cama sozinha. Vais fazer com que te suplique?

     Ash curvou os lábios.

     —Tu não suplicas por nada.

     Ela lhe baixou a cabeça de modo que pudesse lhe beijar.

     Ash grunhiu quando ela removeu em seu interior uma parte animal que lhe assustava. Mas se negava a admiti-lo.

     —Não vou tomar-te igual à uma puta no quarto de trás, Soteria. Deixe que acabe de tocar com os Howlers.

     Ela o olhou com suspeita.

     —Então voltarás?

     A vacilação em seus olhos fez com que se doesse por ele. Ele deixou escapar um profundo suspiro antes de falar.

     —Voltarei.

     —Promete-o?

     —Prometo-o.

     ela lhe beijou a ponta do nariz, esperando que ele estivesse sendo honesto com ela.

     —Vou reter-te com isso.

     Ash tragou. Não tinha que fazê-lo. Uma vez que fazia uma promessa, estava engrenado pelas leis do universo a vê-la cumprida ou morrer.

     —Descanses até que eu volte. —beijou-a profundamente.

     Tory se derreteu ante a sensação de seu braço ao redor dela enquanto lhe colhia a bochecha com sua outra mão e fazia estragos em sua boca.

     Ele se voltou para trás e deixou escapar outro profundo suspiro como se lutasse pela força para deixá-la ir.

     Ela lhe sorriu.

     —Não me faças esperar muito.

     Ele assentiu enquanto a deixava vestir-se.

     Tory colocou a roupa antes de sair outra vez para encontrar Justina e Katherine de volta nas escadas. O calor acendeu suas bochechas até que recordou que esse quarto estava completamente insonorizado.

     —Podes me deixar o telefone móvel?

     Justina o tirou e o estendeu.

     Ela ligou para Pam.

     —Ei, doçura… não, estou bem. Estou no Bar Santuário à altura do Ursulines. Alguma possibilidade de que tenha as duas aqui?

     —Claro. Estaremos aí em seguida.

     Tory desligou o telefone e o devolveu a Justina.

     —Só para sua informação, vou sair lá fora uns minutos, voltarei logo.

     A expressão de Katherine se voltou severa e inamovível.

     —Não vais sair a nenhum lado sem nós. Temos ordens estritas de te manter a salvo a toda custa.

     Ash… quase poderia lhe golpear por isso, mas então outra vez essa parte protetora que adorava dele era o melhor. Ao menos algumas vezes.

     Incapaz de luta, Tory elevou as mãos.

     —Certo. Só não o digam a Ash. Sairemos para dar uma volta e retornaremos antes de que ele termine o próximo bloco.

     Katherine não parecia convencida.

     —Não estou tão segura disso.

     —Oh, vamos. Será à volta da esquina. Estaremos bem. Além disso, a avançada vai pela frente. Saberemos estar atentas.

     Katherine ainda resistia.

     —Eu confio nela —disse Justina— É teimosa, mas não estúpida. Tory não o faria se pensasse realmente que há um problema.

     Katherine finalmente cedeu.

     —De acordo. Assim, aonde vamos?

     Tory sorriu abertamente.

     —É uma surpresa.

 

    Tory vacilou na soleira da superiluminada loja. Possivelmente não fora tão boa idéia depois de tudo… jogou um olhar por cima do ombro de Pam que estava orgulhosa mostrando sua mais apreciada posse, sua clássica camiseta da turnê de Duran Duran de 1984.

     Pam a empurrou para frente, entrando na loja.

     —Oh, te cale e entre. Este é um de meus lugares favoritos e é perfeito para o que queres.

     O que realmente não consolava a Tory já que o sentido da moda de Pam era o pólo oposto ao seu próprio. Enquanto ela era conservadora, Pam era escandalosa.

     Kim a empurrou desde atrás enquanto Justina e Katherine optavam por permanecer fora no Bourbon Street.

     —Vamos, garotas, estamos bloqueando a saída. Aqui há perigo de incêndio.

     Os olhos de Tory se alargaram quando aprofundou mais na Caixa da Pandora, a qual estava cheia com espartilhos de pregos e couro negro e ursos de pelúcia. Todo tipo de brinquedos sexuais e pomadas. Oh meu mundo! Pode ser que fora aventureira, mas na verdade, algumas daquelas coisas eram muito para ela… assim como os diminutos biquínis de homem que tinham uma tromba de elefante onde deveria estar certa parte da anatomia masculina.

     —Acredito que iremos à pequena loja de lingerie da esquina.

     —Isto é muito melhor —Pam a empurrou a um mostrador de calcinhas comestíveis.

     Tory se encolheu ante o pensamento de colocar algo como isso… Gostaria Ash?

     —Não estou pronta para tudo isto. Não podemos me introduzir lentamente?

     Pam bufou.

     —És uma moralista hipócrita! Como pode uma mulher que vive para atirar-se em queda-livre encolher-se por umas calcinhas comestíveis?

     —Porque ninguém me vê as calcinhas quando salto e certamente não as comem para me tirá-las.

     Pam lhe dedicou uma malvada risada.

     —Me acredite, as calcinhas são muito mais divertidas que saltar de pára-quedas. E dada a altura de Ash, vejo-o mais como uma vara de salto —ela elevou as sobrancelhas brincalhonamente.

     Tory pôs os olhos em branco.

     —O que acham disto? —Kim sustentou um par de chamativas algemas—. Estas rosas poderiam ser divertidas… ooo e olhe o ditado sexual. Consegue girar para posições e atos.

     —Olá. Posso lhes ajudar, garotas?

     Tory se voltou para encontrar uma mulher não muito mais baixa que ela com o comprido cabelo castanho e um muito redondo e grávido corpo. Vestida toda de negro, tinha um colar de pontas que estava decorado com correntes e ametistas. Ela sorriu quando Pam se voltou a saldá-la.

     —Ei, garota. Como foi com esses látegos?

     Pam sorriu com orgulho.

     —Igual a um encantamento, até que os rompemos. Os homens fedem.

     A mulher lhe deu uma diabólica piscada.

     —Sim, mas é então quando mais os amamos.

     Pam riu.

     —Tabitha Magnus, apresento a minha amiga Tory Kafieri.

     Tabitha tomou ar com força enquanto levantava o rosto e levava sua mão em um gesto de cortar a garganta.

     —Ex-nay on the greek ame-nay. Meu marido está na loja de trás fazendo a contabilidade e tem um problema mental com todo o Grego.

     Kim a olhou surpreendida.

     —Seriamente? Pensei que era Italiano.

     —É. É todo esse rol de Roma contra Grécia que nunca superou realmente. É um cabeça oca, mas o amo.

     Pam indicou o ventre de Tabitha.

     —Obviamente, e considerando sua condição e a loja de sua propriedade, diria que ao menos o ama.

     Tabitha riu insidiosamente enquanto colocava uma protetora mão sobre seu distendido ventre.

     —Querida, se visse esse homem nu, também o farias tu. —ela riu— Assim, o que posso fazer por vocês, garotas?

     —Tory está planejando fazer sexo.

     —Pam! —Tory teria se escondido sob o cabide mais próximo se não fosse por que continha asas sexuais e outras coisas nas quais não queria pensar.

     Pam lhe dedicou uma inocente piscada.

     —Bom o estás, não? Não é como se Tabby não fora a adivinhá-lo pelo fato de que estejamos aqui. Sem mencionar que podes ver que ela tem a algo seu. —ela indicou outra vez o estômago de Tabitha.

     Tory grunhiu enquanto sacudia a cabeça, então falou com Tabitha.

     —Desculpo-me por Pam. Golpeei-lhe acidentalmente a cabeça com um taco de beisebol quando estávamos na quinta série e lhe tirei a seriedade. Nunca foi a mesma desde então.

     Tabitha riu.

     —Não podes me envergonhar. Acredite em mim. Pam e eu estamos cortadas pelo mesmo patrão. Assim me fale um pouco desse cara e te encontrarei a coisa perfeita para ele.

     Tory sorriu ante o mero pensamento de Ash. Ela não sabia porque, mas isto a fazia sentir-se tonta e quente.

     —Bom, ele é alto e de cabelo negro.

     —Alto, por favor —bufou Pam enquanto Kim ria— O homem é um gigante. Ela encontrou ao único cara de dois metros e sete que já vi. Ooh e Tab deves conhecê-lo. Ele é gótico e maravilhoso.

     —E grego. —sussurrou Kim.

     Tabitha franziu o cenho enquanto as olhava desconfiadamente.

     —Seriamente? Ele soa igual ao meu amigo… —enrugando o nariz, negou com a cabeça—. Mas não, não pode ser ele.

     —Ele quem?

     —Ash Parthenopaeus.

     Tory abriu os olhos desmesuradamente.

     Então também o fez Tabitha.

     —NÃO! —ofegou em total incredulidade— Conseguiste um pedaço do Ash? Oh, meu deus, garota, conseguiu! —Tabitha começou a abanar-se com as mãos e cacarejou de excitação— Se tiver um pouco de dinheiro, faça fotos. Conheço mulheres em todo mundo que pagariam muitíssimo para lhe ver nu. Eu mesma incluída!

     Pam chocou os cinco dedos com ela.

     Tory enterrou o rosto contra o ombro de Kim enquanto lhe aplaudia a cabeça.

     —Aqui, aqui bebê. Nós ocultaremos depois seu corpo no porta-malas.

     Tabitha começou a correr ao redor da loja, tirando coisas debaixo das prateleiras e estantes.

     —Ash definitivamente requer algo negro… não espera. Vermelho. Vermelho picante. —Ela sustentou um peludo teddy up, fazendo uma careta e sacudindo a cabeça antes que Tory pudesse sequer dizer algo—. Não é realmente sua cor. Oh, espera! —correu a loja de trás, saindo depois com um diáfano babydoll negro que tinha pequenas caveiras e tíbias com suaves laços rosas sobre suas cabeças—. Perfeito para o Ash. Adorará.

     Tory teve que estar de acordo. Mas isso a fazia perguntar-se quão bem lhe conhecia Tabitha.

     —Tabitha hão tu e Ash…?

     —Por favor, não. Nem o desejo —ela se inclinou para sussurrar a Tory ao ouvido—. E não diga ao meu marido que disse isto porque isso só o faria enlouquecer. Antes que conhecesse meu bebê, sonhei freqüentemente tendo um pedaço desse homem se sabes o que quero dizer e desde que estás aqui agora sei que sabes.

     Tabitha foi a uma estante na parte de atrás da loja e pegou dois livros.

     —Também quererá estes.

     Tory franziu o cenho ante a capa do primeiro que mostrava a uma mulher em um espartilho sustentando um pepino.

     —Como Chupar seu Pepino?

     Tabitha assentiu orgulhosa.

     —Pessoalmente meu favorito. É tudo o que precisas saber para voltar louco a um homem.

     O seguinte livro era inclusive mais estranho. Este era inclusive de plástico retrátil. Tory o olhou suspeitosamente.

     —Mangá Sutra?

     —Ash adora o mangá. —Tabitha bateu no livro e sorriu abertamente—. Estará muito interessado neste, não é que pense que não sabe tudo o que há nele. Mas… pode vir bem. —Tabitha foi à frente da loja e abriu o vidro do gabinete perto da caixa registradora antes de começar a tirar outras coisas.

     A cara de Tory ardeu em chamas ante os objetos que Tabitha empilhou sobre o mostrador.

     —Fazem que os mamilos tenham sabor de creme?

     —Oh, sim, são fantásticos. Não só lhes dão sabor, mas sim os tingem para te fazer um pouco mais rosada e o melhor de tudo, tem um toque de mentol que põe realmente duros seus mamilos assim como extra-sensíveis e os homens se voltam loucos por isso. Simplesmente adoram os mamilos duros.

     Kim e Pam riram.

     Tory cobriu o rosto com as mãos e queria morrer de vergonha. Já era bastante ruim ter essas coisas, mas o fato de que Tabitha conhecesse Ash só fazia tudo mais horroroso.

     Ela estava segura que ele estaria mortificado ao saber que uma amiga sua a estava ajudando a tirar estas coisas. E para o momento em que estava subindo de tom, Tory quase estava muito envergonhada de voltar para o Santuário e lhe enfrentar.

     E quando rebuscou para tirar seu cartão de crédito para pagá-lo, um alto e extremamente bonito homem saiu do despacho. Vestido em pulôver negro de pescoço alto e umas calças frouxas, franziu o cenho ante Tabitha que estava ainda conversando com Pam.

     —Estás bem, bebê? —perguntou a Tabitha, seus olhos obscurecidos com preocupação quando foi colocar uma mão contra sua bochecha —estás extremamente corada.

     Tabitha se voltou para ele com um travesso chiado.

     —Oh, te segure, Val. Ash vai ser desarmado esta noite! —ela indicou com ambas as mãos a Tory que queria arrastasse dentro de sua bolsa e ocultar-se até que fosse uma anciã.

     Para crédito de Val, ele nem sequer piscou. Ofereceu a Tory um compadecido sorriso.

     —Ajuda se não reagir aos seus comentários. Tabitha vive para tirar às pessoas do sério. Só lhe siga a corrente e não a estimules.

     Tabitha bufou.

     —Que assim seja. —estendeu a bolsa a Tory e agradeceu.

     —Obrigada —disse Tory.

     —Boa sorte, querida e recorda… fotos! —Tabitha esperou até que partiram antes de girar-se sobre Valerius. —Podes acreditar que nosso Ash tenha um cilindro?

     Val bufou.

     —Me chame de provinciano, mas eu realmente não lhe considero meu. E sim, posso acreditar que o homem tenha sexo. O que encontro surpreendente é que seja a primeira vez que conhecemos a mulher envoltvida. —ele se estirou para seu telefone—Possivelmente devesse lhe ligar e lhe advertir.

     —Oh, afasta isso. —ela o devolveu ao seu bolso—Nosso bebê está crescendo. Estou tão orgulhosa!

 

  Tory apenas tinha deixado a bolsa no quarto antes que a banda tomasse outra pausa. Só tinha se recostado na cama quando Ash abriu a porta com uma bandeja nas mãos.

     —O que é isso?

     —Pensei que possivelmente terias fome. Levei as opções a Kim e ela escolheu o que deverias comer. —ele o deixou sobre a mesa ao seu lado.

     Tory sorriu ante sua consideração.

     —Efharisto.

     —Parakalo.

     Ela se derreteu ante seu único acento quando lhe disse “de nada” em Grego.

     —Eu adoro a maneira em que falas. Poderia escutar seu grego todo o dia.

     Ele lhe estendeu outra garrafa de suco de maçã enquanto tomava um gole de sua cerveja.

     —Estás completamente aborrecida?

     Ela se estirou e lhe tirou os óculos de sol de modo que pudesse ver seus olhos.

     —Não muito. Como vai a apresentação?

     —Vai tudo bem. Poderia matar a Colt por machucar a mão. A verdade é que eu não gosto de tocar em público.

     —Mas tocas muito bem.

     —Yeah, mas prefiro tocar para mim mesmo. —havia um travesso brilho em seus olhos ante o duplo sentido.

     Rindo, Tory sacudiu a cabeça ante ele.

     —Tu e Pam, sempre tentando me envergonhar.

     —Em minha defesa, é só porque ficas adorável quando te ruborizas.

     Ela enrugou lhe enrugou o nariz enquanto tragava um gole de seu suco de maçã.

     —Queres um pouco?

     —Ochi. —não, em Grego.

     —Estás seguro? —tentou tentá-lo outra vez.

     —Sim. —Ash recordou a última vez que tinha comido uma maçã. Tinha sido no dia na horta com Ryssa quando tinha rogado ao seu pai que não lhe enviasse de volta a Atlântida. Inclusive desde então, desprezava a fruta. O só pensar nisso lhe revolvia o estômago.

     —Quantos sets mais vais tocar?

     —Um mais.

     Ela mordeu o lábio de uma maneira que o endurecia de desejá-la.

     —Depois serei eu quem toque a ti…

     Seu pênis saltou, preparado para a ação incluso embora seu cérebro sabia melhor.

     —Deverias reconsiderá-lo.

     Ela se estirou e tomou suas mãos nas dela. Seu polegar acariciava contra sua palma em uma suave carícia.

     —Quando foi a última vez que lhe fez amor a alguém, Ash?

     Ash afastou o olhar quando surgiram as dolorosas lembranças. Honestamente, não podia recordá-lo. Fazia realmente amor a Artemisa? Possivelmente muito a princípio. Mas tinha passado muito tempo e não tinha sido ultimamente.

     Tudo o que ele podia recordar era a dor de suas críticas. A pura agonia de não ser nada mais que seu menino brinquedo, ali só para agradá-la enquanto não se permitisse ter nenhum sentimento ou opinião de si mesmo. Só ela podia mostrar a dor e o desgosto enquanto que ele não tinha permitido nada. Nem sequer sua dignidade.

     O que tinham tido era sexo. Básico e primitivo. Não havia verdadeiras emoções reais envolvidas ao menos que fora a fúria.

     Assim como aos outros antes dela, tinha odiado o fato de que o ansiava e procurava castigá-lo pelo fato de que ela dormia com ele. Simplesmente usavam um ao outro. Se houve algum tenro sentimento real, tinham-no feito migalhas há séculos. Não restava nada exceto destroçados restos de um ontem que ninguém podia recapturar.

     —Não podes recordá-lo? —perguntou Tory.

     —Não realmente. —respondeu ele com sinceridade.

     O coração de Tory se encolheu ante a maneira em que ele pronunciou aquelas palavras. Ela tomou seu queixo e lhe voltou a cabeça até que a esteve olhando.

     —Vou fazer amor contigo, Ash. Esta noite, sacudirei teu mundo.

     Ash pressionou sua mão aos seus lábios e mordiscou as pontas de seus dedos enquanto o temor e a indecisão o enchiam. Esta noite podia lhe custar caro.

     Ninguém deveria pagar por amar com sangue e osso.

     Ainda assim não conhecia outra maneira. Sempre tinha pago por cada carícia e cada amabilidade. Nada lhe tinha sido dado livremente. A única pergunta que importava era, Valia a pena?

     Mereceria Tory o custo?

     Esperava que assim fora. Ele lhe voltou a pôr os óculos.

     —Voltarei.

     Tory o observou quando partia e seu coração se doeu por ele. Quais eram os secretos que o torturavam? Por que parecia tão assustado de tocá-la?

     Terminada sua comida, foi ao andaar de baixo para observá-lo. Pam e Kim estavam de pé na frente, sorrindo. Ela passou por trás delas e lhes beliscou o traseiro.

     Pam a beliscou de volta.

     —É assombroso, verdade?

     —Sim, é. —Tory saudou com a mão quando viu Ash olhando-a.

     Sua resposta foi um sincero embora tímido sorriso que lhe esquentou o coração e a pôs quente por toda parte. O homem era tão seleto…

     Ela ficou ali durante várias canções observando e escutando a Ash. Quando começaram a canção final, voltou a subir de modo que pudesse preparar-se.

 

    Ash franziu o cenho quando viu Tory deixar a pista. Encontra-se bem? Gesticulou a Pam.

     Pam assentiu de modo tranqüilizador.

     Aliviado, não podia esperar até que a canção terminasse. Imediatamente ao fazê-lo, deslizou sua Fender sobre as costas, desligou-a, e saltou sobre a pista.

     —Divirtam-se, crianças —lhe disse Pam enquanto Kim ria bobamente— Veremos os dois mais tarde. Diga a Tory que me ligue amanhã.

     —Direi. —Ash atravessou por entre o público enquanto se dirigia escada acima.

     Justina e Katherine também os deixaram com uma promessa de retornar pela manhã.

     Ash fechou a porta exterior e lhe passou a chave antes de abrir a principal com uma visual. Ao momento em que viu o Tory, congelou-se. Vestida em uma camisola preta transparente que mostrava cada curva de seu corpo, estava deslumbrante. Passou as mãos pelo cabelo, fazendo com que parecesse desordenado.

     Fazendo-a parecer deliciosa.

     —Deixe-me ir dar uma rápida barbeada.

     Ela franziu o cenho.

     —Barbeada?

     Ele passou o dorso dos dedos pela mandíbula, sentindo como raspava.

     —Não quero te arranhar.

     Sua cautela tocou a Tory. Até que tentou entrar no banheiro com a guitarra em suas costas. Ele amaldiçoou quando esta ficou entalada em ambos os lados da entrada. Seu rosto se tingiu com a cor de sua vergonha.

     —Suponho que deveria me tirar isto. —ele a deslizou por cima da cabeça antes de apoiá-la contra a parede.

     Ela cobriu o sorriso com a mão enquanto tentava não rir. Podia ser tão adorável às vezes.

     Enquanto ele estava no banheiro, olhou rapidamente os apontamentos que tinha feito no livro de Tabitha. Quando ele fechou a água, ela deixou o livro na mesinha de noite e tratou de posar de maneira sedutora sobre a cama.

     Ash deteve a toalha contra seu queixo quando viu Tory sobre a cama com suas pernas dobradas embaixo dela. Estava tentando parecer sedutora, mas com os óculos postos, era uma estranha combinação da Tory séria e puta.

     E isto fez com que lhe pusesse dura. Puxando a toalha a um lado, deixou cair o casaco na entrada, então tirou a camiseta pela cabeça.

     Tory ficou atônita por esse corpo e os músculos que se ondulavam. Ele se ajoelhou na cama e engatinhou para ela como algum sigiloso e faminto predador.

     Deteve-se sobre ela quando seu comprido cabelo negro caiu para frente emoldurando seu rosto. Seus corpos não estavam se tocando, mas seus turbulentos olhos chapeados a chamuscavam com calor. Os músculos de seus braços se avultaram ao suportar seu peso quando encontrou seu olhar. Era aberto, honesto, e ao mesmo tempo o medo por trás daqueles olhos e se perguntava que o causava.

     O cheiro do corpo e pele masculina a pôs instantaneamente molhada. Ele submergiu sua cabeça para a sua e ela tremeu quando só seus lábios entraram em contato com os seus. Então embora lentamente enquanto aprofundava o beijo a um de extrema potência, deixou-se ir sobre ela até que seu peso pressionou contra ela.

     Tory suspirou ante a incrível sensação de seu corpo sobre o seu, de seus magros quadris descansando entre suas pernas. Seu coração se desbocava ante o vulto em suas calças pressionando-se contra o centro de seu corpo. Havia só tanto dele. Ela se deleitou no modo que ele a rodeava com força e calidez.

     Ela deslizou suas mãos sobre seu perfeito traseiro, sentindo seus músculos contrair-se e esticar-se enquanto sua boca aprisionava a sua. Abrigando seu corpo ao redor do dele, girou sobre ele até o ter debaixo.

     Ash não se moveu quando ela se retirou para beijar o declive desde seu peito até o umbigo. A visão dela tão faminta por ele o fez doer-se não somente a luxúria, mas sim de alguma parte interior que queria, só uma vez, ter a alguém que realmente o amasse. Ela o cobriu através das calças, fazendo-o grunhir de prazer. Levantando o olhar, sorriu-lhe enquanto lhe beliscava o estômago. Sua travessura era tão encantadora e doce. Tão preciosa.

     Ele colheu seu rosto nas mãos e lhe devolveu o sorriso enquanto procurava eternizar a essa lembrança em seu coração de modo que sempre a tivesse perto. Ela se moveu para lhe tirar as botas. Ainda se sustentou perfeitamente enquanto ela as desabotoava e as tirava. Lançou a bota ao chão.

     Tirou-lhe a outra bota e a lançou por cima do ombro antes de mover-se para suas calças. Ash ofegou por fôlego e o sustentou enquanto ela se estirava até seu zíper. A visão de sua cabeça posicionada sobre seu zíper… Era quase suficiente para fazer com que gozasse.

     Ela voltou a subir os óculos sobre o nariz. Sorrido-lhe, desabotoou-lhe as calças. Ash esperou, seu coração pulsava acelerado enquanto ela lentamente deslizava a zíper para expô-lo.

     Tory se mordeu o lábio em satisfação quando o liberou de suas calças. O homem estava completamente dotado e era enorme. Não é que a surpreendesse. Seus anteriores encontros com esse vulto lhe tinham dado alguma idéia de seu tamanho, mas isso…

     Tirou-lhe as calças e tomou um minuto para vagar pela beleza de seu nu corpo. Tabitha tinha razão, podia fazer-se rica se tirava fotos e as enviava online. Ele era impressionante. Absolutamente impressionante. Dos largos ombros até os estreitos quadris, descendo por essas longas e musculosas pernas salpicadas de escuro pêlo.

     E ela queria dar prazer a cada pedacinho dele.

     Tirando os óculos, deixou-os sobre a mesinha, então voltou para acariciar sua dureza.

     Ash jogou a cabeça para trás quando o prazer o assaltou. Observou-a com os olhos entrecerrados enquanto estudava seu pênis. Abrindo os lábios, começou a tomar a ponta em sua boca, depois retrocedeu e franziu o cenho. Inclinou a cabeça e abriu os lábios como se tentasse averiguar a melhor maneira de prová-lo.

     Ela se moveu de novo para seu pênis, retrocedendo de novo… outra vez.

     —Estás me matando, Soteria.

     —Sinto muito. —apressou-se a se afastar dele e colocou os óculos antes de abrir a gaveta e tirar um livro.

     Ash franziu o cenho enquanto ela folheava as páginas a uma seção que tinha um pequeno marcador de livros e apontamentos na margem.

     —O que estás fazendo?

     Ela baixou o dedo pelas notas.

     —Só quero me assegurar de que o faço bem.

     Inclinando sobre um cotovelo, mordiscou-lhe o ombro, então ofegou ante os gráficos desenhos de uma mulher baixando sobre um homem. Tirou-lhe o livro das mãos e olhou com cenho franzido o título.

     —Como Chupar seu Pepino?

     Ela se encolheu de maneira adorável.

     —Sabes que não sei o que estou fazendo. Queria me assegurar de te agradar, também.

     Aquelas palavras golpearam um acorde tão profundo dentro dele que durante um sólido minuto não pôde respirar devido ao amontoado de emoções que sentiu por ela.

     —Não há nada que possas fazer que não me agrade. —Ele a beijou brandamente enquanto deixava cair o livro ao chão—. Não precisas disso, Tory —lhe tirou os óculos e os voltou a colocar em seu lugar antes de voltar para seus lábios—. Tudo o que tens que fazer é me tocar e te prometo que estarei em êxtase.

     Tory tragou quando lhe dirigiu a mão ao seu pênis e lhe mostrou como lhe acariciar. Querendo lhe fazer feliz, baixou a cabeça para provar a umidade que escapava da ponta.

     Ash deixou de mover-se no momento em que seus lábios se fecharam ao redor de seu pênis. Não querendo machucá-la, não se atreveu nem a respirar enquanto ela o explorava com a boca.

     —Tens a mais doce das línguas —grunhiu ele.

     Ela deslizou as mãos sobre suas coxas até colher seu saco enquanto o saboreava. Ash estava cegado pelo prazer de seu toque. Incapaz de conter-se, separou-se dela.

     —Tenho muito controle, Tory, mas não contigo fazendo isso e desejo tanto estar dentro de ti como para estropeá-lo.

     —Certo. —Ela se inclinou de lado e tirou as luxuriosas calcinhas negras. Ash observou como as deslizava as baixando por essas longas e grácis pernas. Sua boca se fez literalmente água enquanto seu corpo se voltava tão duro que não podia controlar nenhuma unha com ele.

     Ela atirou as calcinhas ao chão antes de tirar um preservativo da mesinha de noite.

     —Como o fazemos?

     Quando o desempacotou e o pôs, mil posições diferentes de como gostaria de tomá-la brincaram por sua mente. E só o pensamento de estar dentro dela era suficiente para lhe fazer gemer.

     Mas o sexo sempre dói na primeira vez e ele era o bastante grande para fazê-lo insuportável para ela. Isso era a última coisa que queria.

     —Primeiro, temos que fazer com que seu corpo esteja preparado para mim.

     —Eu estou preparada.

     Ele riu de sua impaciência. Com o corpo ardendo, afundou o polegar dentro dela. Ela mordeu seu lábio e deu um pulo em resposta.

     —Estás molhada —ele baixou a cabeça para lambê-la e fazê-la inclusive mais escorregadia.

     Tory abriu as pernas desejando sentir tanto dele como fora possível.

     —Estás me matando, Acheron.

     —Paciência, amor, paciência. —ele deslizou um comprido dedo em seu interior. Ela tremeu em resposta quando sua língua girou e brincou. Esse dedo foi seguido por outro. Ele deslizou seu queixo contra ela.

     —Goze para mim, Soteria. Quero te provar.

     Quando ele voltou para ela, não teve escolha exceto obedecer. Seu orgasmo salpicou através dela até que esteve segura que morreria por isso. Onda pós de onda se estrelava sobre ela e ele ainda não a penetrava.

     Em vez disso, deu-lhe a volta, sobre seu estômago. Antes que pudesse lhe perguntar que tentava, começou a massageá-la. Não uma massagem normal, e sim uma que afrouxava cada músculo de seu corpo.

     —Não te quero tensa, —explicou-lhe, sua voz espessa com seu melódico acento.

     —Oh, me acredite, estou uma massa.

     Sua profunda risada encheu seus ouvidos antes que ele deslizasse seus dedos dentro dela outra vez.

     Ash mordeu o lábio enquanto seu corpo se doía, querendo estar dentro dela. Agora estava inclusive mais molhada. Um orgasmo mais e seria capaz de penetrá-la sem muita dor.

     Inclinando-se, beliscou-lhe as nádegas.

     Tory gritou ante a prazerosa dor que foi seguida por suas mãos conduzindo-se inclusive mais profundamente dentro dela enquanto Ash transladava sua boca para beijar a base de sua coluna. Empurrou-lhe o vestido até os ombros com o rosto enquanto suas mãos operavam magia sobre seu corpo. Então ele moveu a mão de modo que pudesse esfregar seu pênis contra ela sem penetrá-la. Ela ofegou ante a sensação enquanto ele movia as mãos para cobrir seus seios.

     Isto era mais do que ela podia suportar. Antes que pudesse recuperar o fôlego, seu corpo explodiu outra vez.

     Desta vez, ele se conduziu profundamente em seu corpo enquanto seu orgasmo elevava-se. Tory grunhiu ante a estranha sensação de seu corpo dentro do seu. A grossura só fazia seu orgasmo mais intenso.

     Ela gritou pelo cego prazer disto.

     Com a garganta seca, Ash não se moveu quando sentiu o corpo dela aferrando ao seu. Tomou toda sua força não empurrar, mas não era ainda o momento. Seu corpo ainda se estirava para acomodá-lo.

     —Estás bem?

     —Estás de brincadeira? —Ela se deslizou descendo por seu eixo.

     Ele ofegou quando o prazer quase anulou seu controle.

     —Isso é que sim?

     —Sim. —ofegou ela, fechando com força os olhos enquanto todo seu corpo tremia.

     Ela se balançou contra ele inclusive mais forte.

     —Pare! —gritou Ash.

     Tory se congelou, temendo que o tivesse machucado.

     —O que acontece?

     Ele saiu dela e rodou sobre suas costas para olhá-la. Afastou-lhe o cabelo do rosto antes de passar a almofadinha de seu polegar por seu lábio inferior.

     —Quero gozar enquanto te olho.

     Ela lhe beijou enquanto ele a puxava sobre seu corpo. Ela se sentou escancarada sobre seus quadris enquanto se beijavam.

     Ash baixou sua mão pelas costas dela até tocar a si mesmo de modo que pudesse guiar-se de volta ao seu interior. Eles ofegaram ao uníssono quando ela se afundou baixando sobre ele.

     Quando o fez, seus pensamentos sussurraram através de sua cabeça. Estarei fazendo direito? Espero que não esteja decepcionado. Por que não posso fazê-lo com os óculos postos para assim poder lhe ver melhor? Por favor, não estejas decepcionado, Ash.

     Aqueles duvidosos pensamentos o atravessaram. Mais que toda a sinceridade neles, a preocupação por ele trouxeram lágrimas aos seus olhos.

     —És maravilhosa, Tory. Perfeita.

     Ela se deteve entortando os olhos ante ele.

     —De verdade?

     —Sim —ofegou ele, estirando-se para baixo de modo que pudesse acariciá-la enquanto ela o montava lenta e facilmente. Com a garganta apertada, sua gentileza conseguia penetrar onde as chicotadas não o tinham feito.

     Uma pequena lágrima se deslizou do canto de seu olho direito. Fechando-os de repente se rendeu a ela. Agora mesmo, neste momento, ela era sua dona de uma maneira que ninguém o tinha sido antes.

     Não, ela não era sua dona.

     Dava a si mesmo a ela e pela primeira vez, entendia a diferença. Entendia o que significava fazer amor. Compartilhar seu corpo com alguém não por obrigação ou medo, mas sim porque os fazia estar mais perto.

     Em um único pulsado de coração, ele era dela e ela era sua.

     Tory ardeu ante a sensação de Ash profundamente em seu interior. Toda sua vida se perguntou como se sentiria. Mas a imaginação não tinha nada a ver com esta realidade. Nada com a beleza de sentir a serena força de Ash debaixo dela.

     Ele era tão duro e feroz e ainda tão gentil. Lamentava não poder avançar em seu interior ou mais ao ponto que pudesse abrigar-se ao seu redor e impedir que lhe fizessem mal para sempre.

     Se só lhe deixasse.

     Ash tomou seu rosto nas mãos e a beijou apaixonadamente um instante antes de gozar com tal força que o deixou temporariamente confuso. Grunhindo, retirou-se para olhar fixamente seus olhos enquanto saboreava a primeira verdadeira sorte que alguma vez tinha conhecido.

     E esta foi seguida por um temor tão profundo que seu coração deixou de pulsar. Agora que tinham terminado, como reagiria?

     O afastaria? Choraria? Odiaria-o? Amaldiçoaria-o?

     Ele conteve a respiração, esperando.

     Sorrindo, ela se inclinou contra seu peito e se aconchegou ali igual a uma gatinha enquanto seus corpos estavam ainda unidos. Ela deixou escapar um profundo suspiro enquanto acariciava seu ombro e braço.

     —Isso foi inclusive melhor do que tinha sonhado.

     Ash se estremeceu esperando ainda o pior.

     —Não estás furiosa comigo?

     —Por que deveria? —ela tomou sua mão nas dela e a levou aos lábios de modo que pudesse mordiscar seus nódulos.

     Ash relaxou quando se deu conta de que ela não estava zangada ou molesta com ele pelo que tinham feito.

     E quanto mais relaxava, mais desfrutava da sensação de seu corpo nu estendido contra o seu.

     —Poderia ficar assim para sempre.

     —Não seria fantástico?

     Ele assentiu enquanto inclinava sua cabeça contra a dela e inalava o perfume de seu cabelo. Infelizmente, ele se sentiu deslizar-se fora dela. Maldição.

     —Será melhor que me encarregue disto —ele se moveu a contra gosto do seu lado de modo que pudesse tirar a camisinha.

     Tory o observou deixar a cama. Odiando não lhe ver, estirou-se para por seus óculos. Depois de os pôr em seu lugar, abriu a Sprite que tinha deixado ali e tomou um gole.

     Ash voltou com um pano molhado para ela.

     —Lamento que seja tão desastroso.

     Ela acariciou seus lábios com os dedos.

     —Eu gosto de seu desastre. Eu acredito que tens um gosto maravilhosamente bom. —ela trocou sua bebida pelo pano.

     Ash nunca tinha provado antes a soda. Curioso, deu-lhe um gole e se surpreendeu pela aguda acidez.

     —Uau, isto é realmente bom.

     —Não tinhas provado antes a Sprite?

     —Não.

     Ela pôs os olhos em branco enquanto se limpava.

     —Eu sei, tu acertas à cerveja.

     Ash não respondeu enquanto tomava outro profundo gole. Ela franziu o cenho ante uma estranha onda de vertigem lhe atravessando a cabeça. Se não soubesse que era impossível, pensaria que estava se alegrando. Mas isso era impossível. Como deus, não podia embebedar-se. E inclusive se o fizesse, não havia nada na soda que o embriagasse.

     Tory franziu o cenho quando viu Ash esvaziar os 600 mililitros da Sprite de um gole.

     —Ash?

     —Há mais disto?

     Ele estava atuando de forma peculiar. Como se estivesse bêbado.

     —Deveria haver outra garrafa na geladeira.

     Ele lambeu os lábios enquanto tomava seu queixo na mão.

     —Sabes, é bonita para ser uma humana.

     —O que seria se não?

     Ele riu antes de beijá-la.

     —Poderia ser uma deusa, mas não és o bastante puta para isso. Embora, Katra não é uma puta. Ela é bonita igual a tu. — Ele inclinou a cabeça como se lhe ocorresse outro arbitrário pensamento—. Tenho que ver logo a minha filha. Vai ter um bebê. Uma menina só que não igual a ela. Este seu bebê terá muito mais poder. Só espero que tenha o bastante de seu pai e não seja uma deusa da destruição. Já há muitos de nós. Necessitamos mais que sejam inatamente bons.

     Tory estava confusa por seu estranho tom que era meio grego e meio inglês.

     —Do que no mundo me estás falando? —Não havia maneira de que fosse o bastante velho para ter uma filha o bastante crescida para dar a luz um bebê—. Estás de sacanagem comigo, Ash?

     Ele lhe beliscou o seio.

     —Já o tenho feito, Soteria, e desfrutei como não desfrutei jamais. Onde está essa bebida?

     Ela lhe estendeu outra garrafa.

     —Estás bêbado?

     —Sinto-me bêbado —ele levantou o olhar e sorriu intensamente—. Estou bêbado de sua beleza. Olhe o que me tens feito, humana. —ele tomou um gole de Sprite, então a deixou a um lado e se estirou atras dela—. Toque-me, Soteria, sinto-me tão limpo e completo quando me tocas.

     Ele esfregou sua mão contra seu seio, arrastando suas unhas sobre seus mamilos e quando o fez, ela viu uma cicatriz aparecer desde sua garganta baixando todo o caminho até seu umbigo. Outra cicatriz, a marca de uma mão, apareceu lhe rodeando a garganta enquanto seu cabelo mudava de negro a loiro.

     —Ash?

     Seus olhos se voltaram de um escuro e feroz vermelho.

     Aterrada, Tory correu para a porta.

     De algum modo Ash apareceu frente a ela.

     —Aonde vais?

     Aterrada e insegura dele, tragou saliva.

     —O que és?

     —Sou um deus, Soteria. O último do panteão Atlante.

    

    Aterrada, Tory se afastou de Ash quando essas palavras a atravessaram. Estava louco… e estava em um quarto insonorizado com um lunático.

     Oh, deus querido!

     —OK —disse lentamente, estirando a palavra até que pôde pensar em alguma forma de conseguir chegar à porta atrás dele e sair ilesa do quarto antes que a matasse—. Nos acalmemos. Posso conseguir com que o Ash normal e amigável retorne?

     Parecia como se suas palavras o machucassem.

     —Não me tenhas medo, Tory. Queria te dizer que era um deus, mas não sabia como —fechando os olhos, deslizou-se contra a porta para sentar-se no chão com as pernas recolhidas contra o peito.

     Esse gesto recordou a um menino pequeno que estava zangado porque tinha sido enviado ao seu quarto por algo que não tinha querido fazer.

     —Sabia que não te gostaria se descobrias a verdade. Ninguém gosta quando o descobrem —levantou o olhar para ela e seus olhos voltaram para esse tempestuoso prateado—. Chamaram-lhe Acheron pelo rio do infortúnio e da dor. Assim como o rio do Inframundo, sua viagem será escura, comprida e sem fim. Serás capaz de dar vida e tirá-la. Caminhará através de sua vida só e abandonado… procurando inclusive amabilidade e encontrando sempre crueldade. Que os deuses tenham piedade de ti, pequeno. Ninguém mais o fará.

     Tory franziu o cenho quando recitou algo que obviamente lhe causava uma grande dor.

     —De onde saiu isso?

     Um tique pulsou em sua mandíbula enquanto suas bochechas se tingiam com cor. Como podia um lunático ser tão bonito?

     —Isso foi o que disse a sacerdotisa sobre mim quando nasci no mundo dos mortais como um deus maldito porque meu pai queria que minha mãe me matasse para evitar que nosso panteão se viesse abaixo —afastou o olhar—. Desejaria que o tivesse feito… Não sabes o que é caminhar sozinho pelo mundo sempre em meio de uma multidão. Todo mundo me vê, mas ninguém me conhece —deixou cair a cabeça nas mãos—. Nunca deveria te ter tocado. O que tenho feito? Pagarei por esta noite durante o resto da eternidade —a angústia em seu tom a atravessou.

     Tory se aproximou lentamente.

     —Se és realmente um deus antigo, prova-me isso. Faça com que veja claramente sem meus óculos.

     Ele manteve o rosto enterrado sobre seus braços.

     —De acordo.

     A palavra quase nem tinha deixado seus lábios antes que sua visão se nublasse. Ofegou com força pela dor. Tirando os óculos, piscou e então ofegou quando tudo começou a enfocar-se. Tudo.

     Então seu emaranhado babydoll se converteu em um vestido de seda flutuante que caía sobre seu corpo e a cobria completamente. Incapaz de acreditár nisso, deslizou as mãos sobre a fria nuvem de material e olhou ao redor do quarto às coisas que sempre tinham sido sombras. Agora era tudo forte e nítido.

     Tudo.

     O que queria dizer que tinha que tomar uma decisão. Estava lhe dizendo a verdade, era um ardente curador ou ambos estavam loucos.

     Optou pela verdade, que explicava muito mais que só sua habilidade para ver claramente. Explicava seus estranhos olhos e a habilidade para ler uma linguagem que ninguém tinha podido identificar sequer.

     Ajoelhando-se no chão ao seu lado, aproximou-se cuidadosamente, pronta para saltar se fosse necessário.

     —Evitaste que morrera, não é certo?

     Levantou a cabeça e se estirou para pôr uma mão sobre a pequena cicatriz no antebraço que tinha de um acidente infantil com uma garrafa quebrada. Quando a tocou, esta brilhou e desapareceu.

     —Sei que é melhor não interferir na ordem natural, mas não podia te deixar morrer. Não queria te ver sofrer.

     —Por que o fizeste?

     Ele dirigiu a mão dela ao seu rosto, de modo que tocasse sua bochecha enquanto a olhava. Seus olhos, e a dor que havia neles, queimaram profundamente sua alma.

     —Porquê não me sinto feito pedaços quando me olhas.

     Essas palavras trouxeram lágrimas aos seus olhos.

     —Por que te sentes feito pedaços?

     Esfregou o rosto contra sua palma e quando falou, sua respiração lhe chamuscou a pele. Mas eram suas palavras as que marcaram a ferro seu coração.

     —Fui destroçado como menino e posto a um lado, igual a um pedaço de lixo que ninguém quer. Mas tu não me tratas dessa maneira. Vês em mim unicamente ao humano e tocas cada parte de mim. Me fazes sentir completo e querido.

     Tory o atraiu para ela e o sustentou perto enquanto as lágrimas caíam finalmente.

     —Amo quando me abraças — Ele sussurrou contra seu ombro.

     Tory inclinou a bochecha contra o cocuruto de sua cabeça.

     —Por que veio a Nashville?

     Ficou rígido em seus braços, então falou em uma linguagem que não podia entender.

     —Não sei o que estás dizendo, Ash.

     Voltou-se para trás e lhe embalou o rosto de modo que ela pudesse ver a fúria que tingia o exterior de seus olhos com uma linha vermelha.

     —Ninguém pode saber de Atlântida. Não podem saber de mim, Soteria. Ninguém pode saber sequer que estive lá ou o que sou agora. Não pretendo te machucar, mas não posso deixar que me exponhas. Jamais —grunhiu a última palavra entre dentes.

     Um tremor de medo passou através dela junto com uma sacudida de fúria.

     —Foste o que matou aos meus pais quando se aproximaram muito?

     Ele sacudiu a cabeça em negação.

     —Eu não gosto de tomar vidas humanas. São muito curtas. Daimons, demônios, imortais e deuses… eles são suficiente entretenimento. Mas não me entremeto com humanos se posso evitá-lo. Não lhes faria o que me fizeram.

     —O que te fizeram?

     Ele fez uma careta e se afastou. Tentou ficar em pé, então cambaleou e caiu de novo ao chão. Sua expressão era de desconcerto, recordava a um menino não a um poderoso deus.

     —O que me acontece?

     —Acredito que estás bêbado —parecia extremamente embriagado.

     —Estou bêbado, mas não sei por que —começou a deitar-se no chão.

     Tory o deteve.

     —Temos que conseguir que voltes para a cama. Vamos, doçura, me ajude a te levar para lá.

     Enquanto se dirigiam para a cama, seu cabelo se voltou negro, depois de um verde muito escuro entrelaçado com linhas negras. Inclusive tendo sido perfurado, o piercing de seu nariz desapareceu junto com as cicatrizes. Ajudou-o a deitar-se e o cobriu com um lençol. Quando fechou os olhos, deu-se conta de algo.

     Pela primeira vez, estava vendo sua pessoa real. Estava completamente nu e exposto. E não estava falando de seu corpo. Não tinha defesas contra ela. Nem óculos de sol ou piercings atrás dos quais ocultar-se. Estava completamente vulnerável e algo lhe dizia que nunca tinha estado dessa maneira com ninguém.

     Passou-lhe a mão sobre o peito quando outro pensamento atravessou sua mente. Acheron era Atlante.

     Atlante… Conhecia os secretos que tinha tratado de aprender durante toda sua vida. Deus querido, estava tocando a alguém que tinha vivido milhares e milhares de anos. Quase nem podia concebê-lo. Ele tinha visto as culturas que sempre a tinham fascinado.

     —Ash?

     —Mmmm?

     —Como era a Atlântida?

     Deixou escapar um cansado suspiro.

     —Era horrível e bela.

     —Podes me mostrá-la?

 

   Ash despertou com a pior dor, imaginável, lhe atravessando a cabeça. Por um mero instante, pensou que era humano novamente, despertando depois de uma noite de beber em excesso e drogar-se.

     Mas essa vida tinha sido há milhares de vidas.

     Piscando para abrir os olhos, encontrou-se nu na cama com Tory sentada no chão, lhe olhando como se estivesse em choque enquanto um estranho ruído de fundo mantinha um ritmo apagado e repetitivo.

     —Ocorre algo errado? —Perguntou, com a voz espessa e rasgada.

     Ela levantou o rosto enquanto franzia o cenho.

     —Defina “algo errado”.

     Ash passou uma mão pelo rosto.

     —Golpeou-me com um martelo enquanto dormia?

     —Não.

     —Então por que me sinto dessa maneira?

     Ela não se moveu de sua posição no chão.

     —Aparentemente não podes agüentar uma Sprite, cara.

     —O que…?

     Assinalou as duas garrafas verdes de plástico vazias sobre a mesinha de noite.

     —Sabias que quando te embebedas, ela se embebeda também.

     —Ela?

     Tory assinalou para o estranho som que Ash tinha estado ouvindo, mas ignorando. Voltou-se para olhar para ver Simi roncando, estendida no chão sob a televisão, com as pernas apoiadas contra a parede enquanto dormia sobre as costas. Isso não teria sido tão ruim, mas o fato de que estivesse em sua forma de demônio, com chifres, cauda e asas fez com que lhe encolhesse o estômago.

     O que tinha feito?

     E então seu olhar caiu no holograma tridimensional sobre o chão que era uma réplica perfeita de Atlântida. Inclusive tinha gente diminuta movendo-se ao redor igual a algum brilhante e claro filme…

     Oh merda.

     Merda, merda, merda. Isso era tudo o que podia pensar em dizer quando a incredulidade o sobressaltou.

     Tory se levantou lentamente e cruzou os braços. Olhando-o com olhos entrecerrados, aproximou-se da cama.

     —Não recordas de nada da passada noite, verdade?

     —Recordo de nós … —baixou o olhar para ver o sangue nos lençóis que provava essa parte de suas lembranças. Tinham dormido juntos. A lembrança dela lhe acariciando estava sobrecarregado em sua mente e em sua pele.

     —Mas não recordas da Sprite?

     Negou com a cabeça.

     —Interessante.

     Não sabia porque essa só palavra o aterrava, mas o fazia.

     —Interessante?

     Ela assentiu.

     —És um bêbado muito tenro e bastante charlatão também.

     Sentiu como se o sangue abandonava sua cara.

     —Como de charlatão?

     —Muito… Apostolos.

     Ash se levantou, mortificado pelo que possivelmente lhe haveria dito. Por favor, deuses, por favor… certamente não lhe tinha contado o que era. Certamente não tinha sido tão estúpido para perder à única pessoa que tinha encontrado que não o via como um puto. E então foi quando se deu conta de que ela não tinha postos os óculos.

     —Fiz…

     —Me curar os olhos? Sim. Depois convocasse ao teu demônio e os dois brigaram sobre me levar a Atlântida. Simi foi a que fez o mapa no chão de modo que pudéssemos ficar aqui porque dizia que ir lá enquanto os dois estavam bêbados possivelmente seria ruim já que provavelmente a destruiria antes que sua mãe tivesse oportunidade de fazê-lo. E então me encolheste ao tamanho brinquedo e me levaste através da cidade, rua por rua, me contando coisas sobre cada lugar, até que ambos foram fritos. Felizmente quando o fez, voltei a ser grande.

     Seu estômago se derreteu.

     —Fiz com que algum de nós te levasse fisicamente à verdadeira Atlântida?

     —Diria-te que sim, para te fazer suar. Mas Simi ganhou a batalha e ficamos aqui.

     Deixou escapar um comprido suspiro aliviado por ter escutado ao seu demônio. Graças aos deuses pelos pequenos favores.

     Mas isto ainda não mudava o fato de se havia exposto a Tory. Completamente. Absolutamente.

     Maldição.

     Tragou ao encontrar-se seu impávido olhar.

     —Estás zangada comigo?

     —Furiosa. Realmente. Mas entendo as mentiras. Quero dizer, verás, quem ia acreditar que o quente cara Gótico de vinte e um anos levando uma mochila negra é um onipotente deus que viaja com um demônio como companheira? Verdade? É ridículo.

     Ash se encolheu quando todos seus segredos prorromperam de sua boca.

     —Por certo, sabes, tu e eu havemos nos conhecemos faz tempo.

     Ele ficou quieto tentando recordar o sucesso sem poder.

     —Quando?

     Ela se sentou ao seu lado na cama.

     —Mil novecentos e noventa e oito. Estava jogando xadrez com meu avô no parque quando teve um ataque ao coração. Eu tinha sete anos.

     Agora Ash o recordava vividamente. Theo tinha movido justamente seu bispo para fazer xeque mate à Rainha quando o ancião agarrou o peito e começou a grunhir.

     Sua pequena neta com grandes olhos marrons e um torvelinho de cachos marrons tinha vindo correndo.

     —Papou! Papou!

     Não querendo que a menina visse morrer ao seu avô… se é que esse era o destino de Theo nesse dia… Ash tinha convocado a Simi para que vigiasse à menina enquanto chamava uma ambulância. Vigie-a, Simi. Mantenha feliz e te assegure de que tenha tudo o que necessite e queira.

     Então partiu com Theo enquanto Simi levava a Soteria de volta ao apartamento de Theo para esperar.

     —Como pude havê-lo esquecido?

     Sacudiu a cabeça enquanto a olhava e finalmente viu as doces feições da menina no rosto da mulher diante dele.

     —Recordo-o.

     —Sabes, pensei que eras Billy Idol.

     Isso era algo que não podia entender de todo.

     —Billy Idol? Não me pareço em nada a ele e nunca tive o cabelo de ponta.

     Ela deu de ombros.

     —Era a única estrela do rock que conhecia que levara calças de couro, correntes e óculos de sol… assim como tu nesse dia. Também tinhas o cabelo púrpura, comprido e uma argola. Depois, estive dizendo a todo mundo que esse cara punky tinha salvado a meu papou. Te idolatrar é em grande parte a razão pela qual Kim e Pam terminassem convertidas em Góticas… irônico realmente.

     Jogou uma olhada onde Simi ainda dormia contra a parede.

     —Não foi até que vi Simi outra vez ontem à noite que tudo encaixou em seu lugar —quando seu olhar se centrou no seu, a inteligência e acusação o fizeram encolher-se—. Tu és o que tirou meu avô da casa em chamas quando tinha sete anos e o trouxe da Grécia. O homem que o esteve vigiando durante todo o caminho até aqui e lhe contou as histórias a respeito de Atlântida que ele contou por sua vez ao meu pai e tio.

     Ash queria negá-lo, mas como poderia? Agora sabia tudo.

   —Sim.

     Ela assentiu.

     —Só por isso estou controlando meu aborrecimento contigo por me mentir e me humilhar em público depois de que não fizesse nada mais que contar as histórias que tu, tu mesmo, contaste ao meu avô. Como posso estar zangada com o homem que salvou a um menino de sete anos de um ataque Nazista tirando-o de sua casa e lhe salvando a vida? Meu avô diz que lhe enfaixou os olhos e então o levou nos braços durante dias até que alcançaram o cais onde tiveste que subornar a todo mundo para conseguir tirá-lo do país. Estava tão assustado e dolorido pela perda de sua família. A única coisa que o manteve são foi a profunda voz do Acheron lhe dizendo que faria que tudo ficasse bem. Que não deixaria que nada lhe acontecesse enquanto o homem o sustentava e acalmava suas lágrimas... esse eras tu. Tu foste quem encontrou à família americana que o adotou, quem lhe ajudou a financiar seu primeiro deli, e toda sua vida foste o homem com o qual se encontrava no parque aos domingos pela tarde para jogar xadrez —limpou as lágrimas que faziam com que os olhos lhe umedecessem—. Como poderia te odiar?

     Ash afastou o olhar quando suas emoções o confundiram. Todo mundo o tinha odiado sempre. Como podia esperar que com ela fora diferente?

     Tory tragou e olhou a Simi.

     —Falei com ela tantas vezes por telefone e por e-mails. Minha prima Geary e eu chamamos a nossa expedição O Projeto Simi porque Simi foi a única que nos ajudou a encontrar a localização de Atlântida.

     Ash abriu desmesuradamente os olhos ante algo do qual não tinha conhecimento. A fúria estalou antepondo-se a suas emoções enquanto desejava golpear ao seu demônio.

     —Que Simi fez o que?

     —Tu me disseste isso, akri —disse Simi desde seu lugar no chão antes de bocejar com força. Quando falou de novo, sua voz era uma perfeita réplica da sua—. Vigie-a, Simi. Mantenha-a feliz e te assegure de que tenha tudo o que necessite e queira —sua voz voltou para a normalidade—. Assim que Simi o fez akri. Justo como tu me disseste-o.

     —Isso era durante uma tarde.

     —Akri não lhe disse isso a Simi. Tu disseste que a fizesse feliz assim Simi o fez. Se queria que me parasse, deveria havê-lo dito.

     Ash passou as mãos através do cabelo ao dar-se conta da dor que tinha causado a Theo quando tudo o que tinha querido era ajudar ao menino… que havia exposto a si mesmo e revelado a localização da Atlântida sem dar-se conta. Maldição.

     —Supõe-se que sei como interagir com humanos. Como posso ter sido tão estúpido?

     Tory se inclinou sobre ele, seu rosto tão doce e convidativo embora, agora mesmo, fosse para ela uma grande ameaça.

     —Não podes viver sozinho todo o tempo, Ash… Ou é Asheron, Acheron ou Apostolos? Nem sequer sei como te chamar.

     Me chame de teu…

     Era um pensamento tão estúpido. E sabia que era melhor deixá-lo voar. A dona de seu corpo e alma era Artemisa.

     —Não me importa qual uses. Respondo ante todos.

     —Deves ter alguma preferência.

     —Só sua mamãe, Akra-Apollymi, chama-lhe Apostolos. Oh e algumas vezes esse homem demônio Jaden e Savitar quem sempre é encantador com a Simi. Sempre traz para Simi boas coisas para comer. Mas eu acredito que ao Akri gosta mais de Ash porque o diz à maioria das pessoas que conhece de vez em quando.

     Ash lhe dedicou uma seca olhar.

     —Obrigado, Sim.

     —De nada, akri —disse, ignorante ao seu sarcasmo—. Agora a Simi dói a cabeça. Posso dormir sobre ti onde se está cômodo até que deixe de doer tanto? Eu não gosto já do chão. Machuca as asas de Simi.

     Ele estendeu seu braço.

     —É obvio que podes, Simykey.

     Sorrindo, transformou-se e voou em uma escura névoa até seu corpo para formar a tatuagem de um pequeno dragão sobre seu ombro.

     Tory entrecerrou os olhos ante a forma de Simi.

     —Agora conheço o segredo da tatuagem cambiante. Tens algumas surpresas mais para mim?

     —Suponho que isso depende do que disse na noite passada. Diabos. Até que ponto passei?

     —Do meu ponto de vista, nem tudo o que tivera desejado.

     Se fosse capaz de digerir o nó do estômago, teria rido disso. Como estava, o melhor que podia chegar a fazer era sorrir.

     —Estás levando tudo isto bastante bem.

     Cruzou-se de pernas antes de dar de ombros de forma descuidada.

     —O que se supunha que ia fazer? Quero dizer, não é como se tivesse precedentes para tratar com isto. Não conheço ninguém que tenha conhecido a um cara que resulte ser um deus com seu próprio demônio pessoal. Demônios interiores, sim, mas um demônio que se converte em uma tatuagem… não. Definitivamente está fora de toda possibilidade.

     —O certo é que isso não é completamente certo.

     Ela piscou.

     —O que queres dizer?

     —Deverias perguntar a tua prima Geary. Seu marido, Arik, estava acostumado a ser um Oneroi.

     Tory permanecia ainda perfeitamente sentada como se não pudesse acreditar no que acabava de lhe dizer. Devia ser divertido para ele dado o modo em que ela parecia aceitar tudo. Depois de uma breve pausa, fez uma simples pergunta.

     —Arik era um deus Grego dos Sonhos?

     Assentiu.

     Tory cobriu a boca com a mão.

     —Assim por isso Geary deixou a caça da Atlântida. Que puta! Foi justo depois que conhecera ao Arik na Grécia —com expressão zangada, bateu-lha na coxa.

     —Ai! —Ash esfregou o golpe, agradecido de que não lhe batesse algo mais acima da perna—. Isso porque foi?

     —Por que não me disseste isso?

     —Não é exatamente algo que falemos com os humanos. A maioria não é tão razoável como estás sendo tu.

     —Sim bom, sabes, isto não muda nada —seu olhar mostrava cada pingo de sua determinação—. Ainda tento ser primeira a descobrir a Atlântida.

     Ash franziu o cenho resolvido a interpor-se. Esta era uma batalha que ia ganhar, sem importar o que custasse.

     —Não seja cabeça-dura, Tory. Deixa-o ir.

     —Para ti é fácil dizê-lo. Não conheceste a zombaria que minha família viveu porque contou ao meu avô uma história que enfeitiçou a imaginação de seus filhos. Ambos meu pai e meu tio deram sua vida por encontrar a Atlântida e provar que estava lá. Não posso fazer menos que ressuscitar sua reputação.

   Ele lhe tomou o rosto entre as mãos e tentou fazê-la entender por que não podia fazer isso.

     —Estão mortos, Tory. Sua reputação não significa nada para eles.

     Ash a sentiu apertar os dentes quando a fúria e a dor piscaram em seus olhos marrons.

   —Eles significam tudo para mim.

     Como podia lhe fazer ver seu ponto de vista?

     —Queres salvar a reputação de teu pai e eu quero conservar a minha. Neste assunto estamos em guerra. Ninguém pode saber sequer que a Atlântida foi destruída.

     —És um deus. Por que deveria essa localização danificar sua reputação?

     Uma pontada de esperança passou através dele.

     —Disse-te porque estava na Atlântida sendo humano?

     —Não.

     Oh graças aos deuses que inclusive estando bêbado ao menos tinha tido um grama de autoconservação. O alívio e a alegria emanaram através dele. Não lhe surpreendia que ainda lhe respeitasse.

     E isso era pelo qual não podia deixar que ninguém soubesse a respeito de Atlântida.

     —Por que não podes deixá-lo estar?

   —Por que amava ao meu pai. Devo a ele.

     Ash entrecerrou os olhos.

     —Me destruirias no processo?

     Tory sacudiu a cabeça, tentando entender porque era tão insistente.

     —Isto não tem nenhum sentido. Como poderia essa possibilidade te ferir?

     Diga-lhe a verdade, Apostolos. Ash se sobressaltou ante o som da voz de sua mãe na cabeça.

     Olhou para o teto quando sentiu sua presença. Estiveste consideravelmente tranqüila todo este tempo, Matera. Por que não me falaste sobre tuas sacerdotisas?

     Por que deveria? Além disso, tu sabes que tenho que ter devotos para manter meus poderes de deusa com sua força atual. Achas que os Daimons são os únicos que me pagam hospedagem?

     Sim, estupidamente o pensava.

     Mostre-lhe o diário, m´gios.

     E se me trai?

     É uma humana. Matarei-a se te machuca.

     Mas não o permitiria e sabia.

     Não posso, Matera. Não quero que também me olhe assim.

     E se não o faz? O que acontece se está sendo honesta e para ela não és nada mais que um amigo? Teu passado não me importa. Tampouco importa a Savitar ou a Simi. Deves aprender a confiar alguma vez, Apostolos. Não achas que possivelmente seja a única pessoa que não te julgue por algo que foi feito contra sua vontade? Dê-lhe uma razão para abandonar a Atlântida. Deixe-a entender.

     Voltou-se para Tory, apavorado ante o pensamento de ver a mesma pena que tinha visto nos olhos de Ryssa, nos seus. Gostava do fato de que Tory o visse como um humano normal.

     Embora agora sabia que era um deus e seu trato não tinha mudado. Possivelmente sua mãe tivesse razão. Possivelmente devesse confiar nela.

     —Não podes viver na escuridão todo o tempo, rapaz —as palavras de Savitar o perseguiam—. Antes ou depois todo mundo fica com o traseiro ao ar. Mas sabes que a maioria das vezes ainda te ris disso, agradecendo a diversão que causa a ferida.

     Isso era verdade. Contudo, a única coisa que Ash entendia na profundidade de sua alma era que a dor física sarava muito antes que uma mental.

     —Por favor, não me machuques, Soteria —ele sussurrou em Atlante. Sentindo-se doente pelo temor, mas decidido a confiar em sua mãe. Estendeu a mão e utilizou seus poderes para trazer a mochila de volta ao seu colo.

     Tory deixou escapar uma risada nervosa.

     —Não estavas brincando a respeito desses truques de Jedi, verdade?

     —Em realidade, não —alcançou o fundo e tirou o último diário. Seu estômago se atou até o ponto de temer que estivesse realmente doente, o estendeu.

     —Concedo-te a habilidade para lê-lo correntemente. Mas quero que saibas que o estou fazendo contra meu melhor juízo e te estou confiando algo sobre mim que não se soube jamais. Ninguém. Este é o segredo pelo qual mataria com tal de protegê-lo. Entendes-o?

     Tory tragou ante o detestável tom de sua voz. O que podia conter que era tão espantoso para um deus?

     —Entendo-o.

     Pôs a mochila no chão.

     —Vou tomar uma ducha enquanto lês.

     Ela não se moveu até que deixou a cama. Curiosa, abriu o livro e ofegou quando se deu conta de que era capaz de lê-lo como se fora inglês. Conhecia cada letra, cada definição. Era incrível e quando leu, viu as cenas tão claras em sua mente como se estivesse vendo um revelador filme.

     A princípio só eram os íntimos e inocentes detalhes da vida de uma princesa até que começou a falar de seu irmão…

     O prostituto.

    

    Ash deixou que a água se deslizasse sobre sua pele enquanto lutava com a dor e a raiva em seu interior. Tory nunca o voltaria a olhar da mesma maneira. Jamais.

     Por que diabos tinha escutado a sua mãe? Deveria ter destruído cada um dos diários de sua irmã.

     Sou um completo idiota.

     Não havia maneira de negar a verdade. Sempre tinha estado marcado por um passado que nunca quis. Nesse momento odiava a Estes inclusive mais do que o tinha odiado antes. Era o único fodido bastardo que o tinha privado de tudo.

     Inclusive do respeito de Tory.

     Fechando a água, saiu da ducha para encontrar-lhe na soleira da porta, lhe olhando fixamente. A vergonha e o sobressalto o encheram ante seu silêncio enquanto agarrava uma toalha para secar-se. Preparou-se para seus insultos e raiva.

     —Sinto te haver manchado, Soteria. Não tinha direito.

     Uma simples lágrima se deslizou por seu rosto quando se aproximou.

     Ash se esticou esperando sua bofetada e insultos. Não merecia menos e não esperava nada mais. Assim quando o atraiu aos seus braços e o beijou, estava completamente atônito.

     Tory se separou de seus lábios e lhe passou os braços lhe rodeando o pescoço para mantê-lo perto quando a verdade do horror de sua vida humana a rasgou. E pensar que se atreveu a acusá-lo de não entender o que era ser burlado e humilhado. Graças a Deus que não tinha idéia da profundidade de sua pena fazia burla da sua.

     Não podia falar devido à teia de emoções que se reuniram em sua garganta afogando-a. Estava zangada por ele e seu quebrado coração.

     E nesse momento, deu-se conta do muito que amava a esse homem. Agora as palavras de Takeshi tinham sentido completo para ela.

     “Cuida dele, Soteria. E recorda que requer uma grande coragem e coração para um homem que não conhece a amabilidade se mostrada aos outros. Inclusive a mais selvagem das bestas pode ser domesticada por uma paciente e gentil mão”.

     Deslizou a mão por suas lisas e perfeitas costas enquanto recordava as histórias de suas surras. Nem sequer tinham deixado que suas costas cicatrizassem para que a densa e cicatrizada pele o ajudassem a se defender da dor de novas chicotadas. O que lhe tinham feito estava errado…

     —Sinto tanto o que te fizeram, Acheron. Sinto-o muito.

     Ash fechou os olhos quando a abraçou contra ele e ofegou.

   —Não me condenas?

     —Por que?

     —Eu sou… —não podia permitir-se lhe dizer a palavra puto.

     Tory apertou seu abraço quando recordou suas palavras a respeito de estar quebrado na noite anterior. Isso era o que tinha querido dizer com elas. Voltando-se para trás, tomou seu rosto nas mãos de modo que pudesse ver sua sinceridade.

     —Nada mudou entre nós. Não me importa teu passado, Ash. A mim não. Tudo o que me importa é o homem em frente a mim agora mesmo.

     —Eu não sou um homem, Soteria.

     Não, não o era. Era um deus. Poderoso. Humilde. Suave e mortal. Pela primeira vez, entendia todos os vislumbres que tinha visto dele.

     —Eu sei. Mas se achas que tua divindade te desculpa de baixar a tampa do banheiro, pensa-o outra vez.

     Ash riu, assombrado por sua força e humor sem importar a situação.

     —Não estou acostumado a ter a ninguém ficando comigo.

     —Eu sei. Sempre tive sorte. Minha família lutaria com o mesmíssimo diabo para me manter a salvo. Não posso imaginar a força que necessitou para estar sozinho no mundo. Não ter a ninguém que te protegesse daqueles que te machucaram. Mas não te abandonarei. Se não sou outra coisa em minha vida, se sou leal para aqueles aos quais chamo de amigos. E estarei mais que honrada de ser teu amiga, Acheron, se me deixares.

     A dor lhe arrasou o coração ante seu oferecimento e a simples verdade que não podia negar.

     —Nunca tive um amigo que soubesse sobre mim antes.

     Não podia contar a Artemisa como amiga e essa carência de conhecimento era o que tinha terminado com a morte de Nick. Se tivesse confiado o bastante em Nick, só por uma vez, para lhe apresentar a Simi, Nick não teria se deitado com ela porque teria sabido que lhe pertencia. Era um engano que havia custado tudo a ambos.

     —Eu sei o que estás pensando, Ash —disse, dando um passo atrás para lhe olhar—. Tens que confiar em mim e nunca te abandonarei.

     O tempo o diria.

     Baixou o olhar e sorriu calidamente.

     —Por certo, estás muito bonito nu. Agora te vista. Tenho algumas perguntas para ti.

     Esteve vestido imediatamente.

     Os olhos de Tory se aumentaram ante seus poderes.

     —Sabes que isso poderia me ser de utilidade. Aposto a que nunca chegas tarde, hum?

     —Tento-o. Agora, que perguntas tens?

     Ela o guiou de volta ao quarto onde o diário estava estendido sobre a cama.

     —Ontem à noite me disseste que tinhas uma filha grávida. Agora pela data do diário, sei a idade que tens. Que idade tem ela?

     —Eu tinha vinte e um quando ela nasceu —era a explicação mais fácil para a idade de Kat.

     Tory levantou o diário e o abriu pela marca de papel onde tinha deixado a leitura.

     —De acordo assim é uma tatara-tatara-tatara-avó —fez uma anotação na margem do jornal—. Quem é sua mãe?

     —Prefiro não dizê-lo.

     —Artemisa. Entendo. Nunca falaremos disso.

     Franziu o cenho ante sua habilidade para supor e estar tão satisfeita a respeito de seu ruivo problema.

     —Como…

     Colocou uma mão em seus lábios para evitar que falasse.

     —Deduzi-o pelo diário já que a protegias inclusive quando se negava a te devolver o favor. Mas minha próxima pergunta para ti é: O que ela vai fazer quando souber sobre mim?

    

    Satara permaneceu oculta nas sombras do Santuário, fingindo ser um cliente em uma mesa tomando sua cerveja long neck, uma desagradável bebida, enquanto esperava que Acheron deixasse o quarto onde tinha estado trancado com sua recém descoberta mascote. O único verdadeiro presente de seu pai, Apolo, tinha sido lhe dar a habilidade de ser indetectível para outros deuses. Tinha-o feito de modo que pudesse espiar para ele. Pouco sabia que usava o presente contra ele mais do que para ele. Para um deus da profecia, seu pai podia ser incrivelmente tapado. Seu ego era tal que não podia conceber que ninguém adorasse o chão por onde passasse.

     E por causa de seu presente, para Acheron, inclusive com todos os poderes que possuía, estava-lhe blindada. Que bonito ter um dispositivo de camuflagem anti-atlante.

     O qual tinha sido de muita ajuda ontem à noite enquanto estava no clube tentando obter informação para Stryker e em vez disso tinha descoberto a atual obsessão feminina de Acheron. Ou deveria dizer, debilidade.

     O diário que procurava estava lá, podia senti-lo puxando-a, mas o deus Atlante o protegia e enquanto o fizesse não seria capaz de tocá-lo sem arriscar-se a sua ira.

     Assim estava esperando a que baixasse a guarda e deixasse sua mochila ou ao bolinho descuidado. E se seus demônios fizessem bem seu trabalho, teria de um tiro o livro de Ryssa e os secretos que continha.

     Satara ofegou quando sentiu dor no peito que significava que Ash tinha deixado o edifício. Sorrindo, levantou-se e se dirigiu escada acima para roubar sua mais apreciada posse.

 

    Satara retrocedeu ao ver Aimee Peltier com a nova mascote de Ash, de pé na porta do quarto onde ambos tinham estado. Merda! Não podia tocar a muito cadela enquanto a ursa estivesse. Uma vez em Seattle, tentou violar a santidade da zona segura de um santuário Were Hunter e quase a matam.

     Savitar tinha deixado muito claro. Para ela, os Weres não estavam no menu.

     Safado.

     Bom, ao menos tinha aprendido da experiência. O que significava que não podia ter-se com o diário até que a ursa se fora ou deixassem a porta aberta e pudesse penetrar. Isso sem mencionar o fato de que duas sacerdotisas de Apollymi agitavam-se por aí. A última coisa que precisava é que qualquer uma delas convocasse os poderes da deusa. Apollymi era uma puta letal, que fazia com que Artemisa parecesse um cahorrinho espancado.

     Tinha que esperar o momento adequado.

     Retrocedendo, voltou para as sombras, para esperar o momento em que pudesse lançar-se ou que chegassem os demônios, se é que podiam conseguí-lo. Os ditos demônios causavam mais problemas do que traziam soluções. Ao contrário dos Daimons, tinham complexo de deus e não gostavam de responder ante ninguém a quem não tivessem que obedecer.

     Embora às vezes lhe vinham bem. E se violavam as leis do santuário, Oh que pena. A quem importava se morriam?

     Ou ainda melhor…

     A tia Artemisa poderia ser o melhor dos aliados neste assunto. Pelo menos poderia manter Acheron afastado por um tempo, especialmente se se inteirava que Acheron tinha estado brincando no jardim de outra mulher.

 

    Tory estava desesperada para seguir lendo, mas como Aimee parecia não conhecer a antiga língua, absteve-se de fazê-lo e guardou o diário em sua mochila para mantê-lo a salvo.

     Olhou a mesinha redonda onde se sentavam Aimee, Justina e Katherine contando histórias de ruins encontros.

     Não era exatamente a maneira preferida de passar o tempo de Tory.

     —Garotas —disse sorrindo-lhes—, não levem a mal, mas estou me voltando louca. Podemos descer ao bar ou fazer algo que não seja estar sentada aqui me aborrecendo de morte enquanto vocês três vêem como me crescem as sobrancelhas? De verdade estou bem. Não vou estalar em combustão espontânea ou algo assim estranho. Juro-o.

     Aimee riu.

     —Certo, mas se descermos e os meninos me vêem, me porão para trabalhar.

     Tory sorriu amplamente.

     —Me ponha a trabalhar, por Deus. —Qualquer coisa antes que ficar inativa.

     Aimee inclinou a cabeça receosa.

     —Sabes servir mesas?

     —É obvio. Minha família tem três lojas e dois restaurantes em Nova Iorque. Trabalho como escrava cada vez que vou lá.

     Justina levantou as mãos e fez uma careta.

     —Eu não toco mesas, pratos, janelas nem nada que implique contato com saliva ou os gérmes de outras pessoas.

     As três a olharam com curiosidade ante a confissão voluntária que, além disso, era mais informação da que qualquer uma delas precisava ter.

     —Certo, sexo e beijos não incluídos. Isso é completamente diferente. A comida é outro assunto. As pessoas não.

     Tory se desparafusava de risada.

     —Eu também ajudo —disse Katherine—, Tina pode ficar com Tory e assegurar-se de que ninguém a apanhe enquanto estamos ocupadas. Isso a manterá a salvo de germes e saliva e a Tory a salvo do aborrecimento.

     Aimee se burlou de Katherine.

     —Senhoritas, não viram os musculosinhos que temos abaixo? Se alguém ou algo entra aqui com más intenções, minha família limpará o chão, as paredes e o teto com eles. Por que acham que Ash trouxe para Tory cá?

     Katherine sorriu.

     —Certo. Vamos. Além disso, vou situar a minhas sacerdotisas entre as pessoas e assim podemos vigiar também. Estaremos bem cobertas.

     —Legal. —Tory seguiu a Aimee escada abaixo para que lhe desse uma camiseta do Santuário e um avental branco para colocar sobre os jeans. Pôs o diário no bolso do avental e começou a servir mesas enquanto Justina tentava segui-la sem chamar a atenção.

     Sim…

     Era difícil não notar à morena alta com ar de “e dái” tão forte que poderia cercar uma cidade. Olhava a todo mundo como se fora sua próxima vítima. Mas tudo ia bem. A Tory adorava a garota, com atitude incluída.

     Sorrindo a sua amiga, foi para uma mesa onde um cara extremamente bonito estava sozinho e usava uns óculos de sol que lhe recordavam os de Ash. Vestia-se todo de negro e tinha a mesma atitude de “que se fodam” que tinha Ash na noite que se conheceram. Levava o cabelo penteado para trás, limpando o rosto onde tinha o mesmo arco duplo e flecha que Dev levava no braço. Ash lhe havia dito que essa era a marca de Artemisa nos Dark Hunters mas ainda era de dia, assim talvez era como Dev e a levava porque pensava que era legal.

     Ao aproximar-se, supôs que era outro Were Animal desses.

     —Olá, querido. —Disse lhe saudando—. O que te trago?

     Não podia saber se a estava olhando pelos óculos, mas podia sentir o olhar como um peso tangível. Antes que pudesse piscar, ficou de pé por trás dela com uma mão em sua cintura. Inclinou a cabeça até o cabelo e aspirou fundo.

     —Fedes a Acheron. —A voz era profunda e tinha um acento cajún espesso.

     Pôs a mão no diário, pronta para lutar até a morte por ele.

     —É melhor que gostarias de me tirar a mão de cima e dar um passo para trás.

     —Se não o fizer o que?

   —Vou te estragar o dia.

   Riu amargamente em seu ouvido.

     —Tu achas?

     Tão rápido como pôde tirou a mão do diário e a pôs em seu entreperna. Chiando os dentes e com a força de seus anos de arqueologia, apertou e retorceu até que se dobrou de dor. Soltou-lhe quando o rosto lhe pôs de um vermelho brilhante e a insultou.

     —Nem o pense, colega. Dado que meço 1,86 deves saber que não sou uma adoentada.

     Justina ficou atrás dela.

     Ele começou a avançar, mas antes que a alcançasse, Dev estava ali lhe empurrando para trás.

     —Nick, sabes que não podes.

     Tirou-se Dev de cima. Quando foi atrás dele, levantou a mão e com uma força invisível, estampou-lhe contra a parede.

     —Não sou sua cadela, Dev. Não voltes a me pôr as mãos em cima. —estirou-se a jaqueta puxando as lapelas e se aproximou dela. Pegou uma mecha de cabelo do ombro—. Dê lembranças a Ash e te assegures de lhe dizer que conheceste a Nick Gautier. —Deixou cair a mecha como se lhe desse asco e saiu.

     Dev caiu de repente ao chão.

     Tory correu até ele para assegurar-se de que estava bem enquanto amaldiçoava por ter sido derrotado.

     —Do que ia tudo isso?

     Suspirando ele ficou de pé.

     —Nick tem seus rolos. Infelizmente, Ash é o maior de todos.

     —Mas como?

     —Estavam acostumados a serem os melhores amigos e agora são inimigos mortais. Não sabia que Nick era capaz de saber que estavas com Ash, senão não lhe teria deixado entrar. Sinto muito.

     Tory lhe subtraiu importância.

     —Não fizeste nada errado. É só que me assombrou sua animosidade. —Pensou que Ash só o fazia aflorar raiva nela—. O que aconteceu para se converterem em inimigos?

     —Honestamente, não sei. Mas com o bem que se davam há poucos anos, deve ter sido uma briga da hora.

     Sacudiu a cabeça ante a revelação. Pobre Ash. Não podia confiar em ninguém que tivesse fé nele? Não lhe estranhava que fora tão desconfiado com todo mundo. Parecia que colecionava inimigos da mesma forma que os outros colecionavam selos.

     Fazia-lhe querer protegê-lo ainda mais.

 

Ash estancou antes de entrar na loja de Liza. Não sabia por que, mas tinha um mau pressentimento sobre Tory. Incapaz de entendê-lo, transportou-se de volta ao Santuário onde a encontrou por trás do bar, atirando cervejas.

     Inundou-lhe um alívio como não tinha conhecido em sua vida. Sem pensá-lo, passou por debaixo do alçapão do bar e a atraiu para poder senti-la, a salvo e inteira.

     Ela lhe tomou o rosto entre as mãos.

     —Estás bem?

     —Sim, é só que… —Soprou ante sua estupidez—. Não importa.

     Aimee se deteve ao seu lado.

     —Se ias dizer que tinhas um mau pressentimento, não estás sendo ridículo. Nick esteve aqui faz um momento.

     Caiu-lhe a alma aos pés e o medo lhe encheu por completo.

     —O que aconteceu?

     Voltou-se para ele.

     —Disse-me que te desse lembranças.

     Ash soltou um impropério ante a ameaça velada.

     —Não me posso acreditar em toda esta merda. Se voltar sequer para respirar em cima de ti, juro que lhe arrancarei a garganta.

     Dev riu inclinando-se sobre o outro lado do bar.

     —Relaxe. Tory lhe pôs as pilhas.

     —O que queres dizer?

     —Quero dizer que seria muito bom com ela se fosse tu, Ash. Deixou-lhe seco como se fora um marinhe de unidade de combate com um apertão muito bem plantado em uma área altamente sensível. Foi muito divertido para os que não estávamos no lado receptor. Nick, pelo contrário, ficará de soprano durante toda a semana. —estremeceu-se—. Por minha parte, penso me manter a não menos de um metro do alcance de sua mão durante o resto de minha vida.

     A cara de Tory ficou de um rosa brilhante.

     —Eu não gosto que me maltratem estranhos.

     Tampouco ele gostava e isso disparou sua fúria até limites insuspeitados.

     —Nick não te fez mal de verdade?

     —Nem um pouquinho. Mas odeio ter tido que fazer-lhe eu. Pobre sujeito.

     Comovido por suas palavras, fechou os olhos atrás dos óculos escuros. Por isso significava tanto para ele. Podia ver o bem na pior das criaturas, bom, menos quando se conheceram. Mas inclusive isso começava a encontrá-lo encantador.

     —E por que estás aqui embaixo em lugar de estar acima descansando?

     —Por aborrecimento. Não está em mim estar sentada todo o dia sem fazer nada. Sou grega. Os gregos devem trabalhar. Citando a minha tia Del não há descanso se estiver sujo.

     Aimee riu.

     —Não te preocupes. Não a perdemos de vista e depois do de Nick, não a deixamos que saia de trás do bar.

     —Sim. —Disse Tory nostálgica.

     Arqueou uma sobrancelha. Dizia-o como se fosse algo ruim. A verdade é que estava agradecido.

     —Bom. Posto que o têm controlado, volto para meus recados. Voltarei logo.

     —Tome cuidado.

     Inclinou a cabeça para Tory recordando as palavras que o tinham comovido antes de voltar para a loja de Liza. Quando ia alcançar o puxador, ouviu na cabeça o estridente chiado de Artemisa que ressonava contra seu cérebro como se fora arame de pontas.

     Acheron. Sobe. Já.

     Não sou seu cachorro, Artemisa.

     Apareceu diante dele na rua com os olhos vermelhos flamejando.

     —Certo, se não te meter no cinto, veremos se posso fazer suplicar a tua cadela. —E começou a desaparecer.

     Agarrou-a pelo braço e a segurou.

     —Do que estás falando?

     Ela sacudiu o braço, soltando-se de seu agarre.

     —Não penses que podes partir e foder a outra mulher sem que eu me inteire, certo? Cão infiel! Vou fazer que chie como nenhum mortal chiou antes.

     Desta vez, quando começou a desaparecer, lançou-se para ela e levou a ambos até seu templo no Olimpo. Manteve-a apertada contra a parede do dormitório. Artemisa gritou tão forte que lhe assombrava não haver ficado surdo.

     —Me deixe!

     Negou com a cabeça.

     —Não até que não tenhamos esclarecido isto.

     —Esclarecer o que? Que és um safado infiel e mentiroso? Como pudeste? —Tentou lhe arranhar o rosto.

     Ele segurou as mãos e a manteve apertada entre ele e a parede.

     —Ficarei com sua vida, com sua alma, contudo!

     —Não a tocarás!

     —Não mandas em mim!

     Essas palavras dispararam sua ira tão alto que mudou imediatamente a sua verdadeira forma de destruidor. Olhou-se as mãos azuis e só pôde imaginar o aspecto que teria o resto.

     —Não me pressiones, Artemisa. Não me alimentei há semanas e com respeito a este assunto, matarei-te! De acordo?

     —Odeio-te. —Grunhiu.

     —Sempre me odiaste. Desde o momento em que te beijei pela primeira vez no templo, desprezaste-me e sabes.

     Com um chiado furioso, começou a soluçar como se tivesse o coração feito pedaços.

     —Isso não é verdade. Éramos amigos. Amava-te! —Espetou-lhe.

     Ele burlou-se das mentiras que ainda acreditava.

     —Me amavas tanto que ficou olhando enquanto me estripavam no chão aos seus pés. Isso não é amor, Artie. Sentiu-se aliviada quando morri.

     Negou com a cabeça.

     —Te trouxe de volta porque te amava.

     —Essa é a mentira que te dizes, mas não é verdade. Trouxeste-me de volta porque te aterrorizava minha mãe.

     —Sou uma deusa!

     —E eu um deus. Um cujos poderes fazem mofa dos teus e sabes.

     Gritou tentando incitá-lo a brigar.

     —Traíste-me e quero vingança.

     —Pois tome-a de mim.

     Ficou de pedra e pela primeira vez desde que o tinha atacado tinha uma expressão de prudência.

     —O que dizes?

     Retrocedeu um passo, preparado para agarrá-la outra vez se se via na necessidade.

     —Sou eu quem te traiu. Se queres o sangue de alguém, ofereço-me como tua vítima. Mas tens que me jurar que não porás a mão em cima de Soteria. Nunca.

     As chamas de excitação sexual nos olhos o adoeceram. Podia negá-lo, mas ficava quente lhe fazendo sangrar e sofrer. Sempre o tinha feito.

     —Só se me juras que não utilizarás teus poderes para te curar. Receberás o castigo que mereces e sofrerás pelo que me tens feito.

     Porque tudo girava sempre em torno de Artemisa.

     Certamente não deveria ter estado com Tory porque ela era amável. A única razão pela qual podia estar com alguém era para ferir a Artemisa e por isso tinha sangrado.

     Sim...

     —Juro-te isso.

     Levantou o queixo.

     —Me liberte.

     —Não até que me dês tua palavra.

     —Oh, prometo-te isso. Não tocarei a tua cadela.

     Estremeceu-se pela palavra e ameaça velada contra Tory.

     —E tampouco mandará a ninguém contra ela.

     Ela ficou calada.

     —Artemisa?

     Fez um bico como uma menina a que lhe tivessem quebrado a boneca favorita. Não foi até que se precaveu de que não ia ceder que cruzou os braços e lhe espetou.

     —Está bem. Juro que sua puta não sofrerá dano de mim, nem de nenhum de meus subordinados.

     Rodeou seu pescoço com as mãos.

     —Juro-te que se voltar a chamá-la de puta, cadela ou qualquer outro insulto, matar-te-ei. Entendeste-me? Seu nome é Soteria e não a chamará de nenhuma outra forma.

     O medo substituiu à ira em seus olhos. Sabia que não tinha mais remédio que cumprir qualquer coisa que tivesse jurado. E nesse momento a idéia de matá-la ocupava o número um em sua lista.

    —Entendo. —Disse Artemisa com frieza—Agora, te prepare para mim, puto.

     Encolheu-se de dor ante as palavras que ela sabia que lhe fariam mal a um nível ao qual ninguém deveria ser ferido e a odiou por isso. Em um segundo destroçaram todos os séculos de dignidade que tão desesperadamente tinha tentado reunir e o reduziu ao menino que suplicava patéticamente ao seu pai que não lhe fizesse mal.

     Maldita fora por isso. Não queria fazer isto, mas sabia que não tinha opção. Tinha o estômago tão tenso de raiva e asco que lhe surpreendia não estar vomitando pela sensação.

     A noite passada o merecia.

     Não... Soteria o merecia. Quando o abraçou, não era um puto. Não era patético nem indesejável. No momento de paz que teve em seus braços, isto não era nada.

     Só esperava que quando Artemisa tivesse terminado, seguisse sentindo o mesmo.

     Doente de medo, retorceu e deixou cair o casaco ao chão. Depois tirou a camisa por cima da cabeça. Deuses, sentia-se como estivesse se vendendo outra vez na casa de seu tio. A única coisa que lhe faltava eram as placas douradas nos pulsos e tornozelos além dos piercings da língua. Que o agarrasse pelo cabelo e lhe dissesse como gostava que lhe desse prazer.

     Passou a mão pelo peito, onde Simi dormia.

     —Simi? Necessito que tomes forma humana. —Se estava em sua pele quando Artemisa começasse a açoitá-lo, sairia e atacaria à deusa. E posto que tinha prometido total submissão, não podia permitir que sua menina fizesse tal coisa.

     Simi apareceu com um sorriso lindo no rosto até que se precaveu de onde estava. Então curvou os lábios com repugnância.

—Por que estamos com a deusa vaca, akri? A Simi acreditava que íamos nos divertir outra vez.

     —E sei, Simi. Necessito que me deixes um pouquinho.

     As asas do nariz se moveram com fúria e os olhos se voltaram vermelhos. Sabia o que acontecia quando a mandava partir dali.

     —Akri...

     —Faça-o Simi. —Olhou atrás e viu a Artemisa observando-os—. Quero que vás ao Santuário e proteja a Soteria para mim. Te assegure de que ninguém lhe faça mal.

     Simi se voltou e vaiou a Artemisa.

     —Irei proteger a akra Tory, akri. Mas a Simi não quer te deixar aqui. Eu gostaria mais que deixasse que a Simi comesse à deusa vaca.

     Tomou seu rosto entre as mãos e lhe deu um beijo rápido na bochecha.

     —Vá Simi e não coma aos humanos nem aos Were.

     Simi assentiu e desapareceu.

     Tragou quando encontrou o olhar fulminante de Artemisa. Um instante depois, seus pulsos estavam rodeados de correntes. Elevaram-se e se estenderam e um látego apareceu nas mãos de Artemisa. Deixou escapar um longo suspiro quando lhe percorreram os séculos de fazer a mesma coisa e lutou contra a ira que crescia em seu coração.

     Como podia lhe fazer isto e sustentar que sentia algo?

     —Traíste-me pela última vez, Acheron.

     Riu amargamente.

     —Eu te traí? Quando me foste fiel tu?

     A resposta a sua pergunta foi um reverso com o dorso da mão que lhe rompeu o lábio. Só agora que lhe tinha encadeado podia lhe golpear. Agarrou-o pelo cabelo, mudando-o a loiro imediatamente e lhe jogou a cabeça para trás tudo o que pôde.

     —Desejaria não te ter conhecido nunca.

     —Asseguro-te que o sentimento é totalmente mútuo.

     Então fez o mais cruel de tudo. Fez aparecer um espelho ante ele e lhe vestiu com o chiton que levava quando se conheceram. Lhe separando o cabelo do pescoço, soprou sobre sua pele, sabendo o muito que o odiava.

     —Isto é o que temes, verdade? Que o mundo inteiro saibas que é um verdadeiro puto. Onze mil anos depois, segues te arrastando à cama de todos o que possam te pagar. Diga-me, Acheron, o que te deu Soteria para que te deitasse com ela?

     Olhou-a pelo espelho e lhe respondeu com a verdade.

     —Comprou-me com a única coisa que tu não foste capaz, Artemisa. Amabilidade. Calidez.

     Puxu-lhe tão forte o cabelo que esteve seguro que lhe tinha arrancado alguma mecha.

     —Puto safado. Teria te dado o mundo se me tivesse pedido, mas em seu lugar preferes estar na cama com uma vulgar humana.

     Lambeu-se o sangue da comissura da boca.

     —Nunca me deste nada, Artemisa, sem me fazer pagar por isso com acréscimo. Nem sequer teu coração.

     —Isso não é verdade. Te dei a tua filha.

     —Não. Tiveste a tua filha. Não conservou Katra por mim. Ficaste com ela por total egoísmo e sabes. Nunca tiveste intenção de me fazer saber que tinha uma filha porque não queria compartilhá-la nem comigo nem com ninguém. Poderias me haver dito a verdade em qualquer momento, mas me escondeste isso durante onze mil anos.—Sacudiu a cabeça ante a verdade que lhe escaldava a alma. —És egoísta e fria e estou cansado de me congelar cada vez que te toco.

     Deu-lhe uma chicotada nas costas. Vaiou quando a dor o percorreu.

     —Me pertences! —Gritou.

     Apertou as correntes que o mantinham no lugar.

     —Não te pertenço, Artemisa. Já não. Não deveria ter me vendido a ti por uma gentileza que já não sinto.

     Voltou-lhe a golpear.

   —Te terias vendido melhor a uma humana que não pode te compreender? Não sabe nada de nossos poderes. Nada do que significa ser um deus. A responsabilidade. O sacrifício.

     Olhou-a pelo espelho com a respiração irregular.

     —Nem tu tampouco. Soteria não me pede nada. Me dá, Artemisa. Sem ataduras. Sem planos ocultos. Puxa-me pela mão em público e não me solta. Não se envergonha de que a vejam comigo.

     Puxou-lhe a cabeça para trás e uivou em seu ouvido.

     —Porque não lhe custa nada que a vejam contigo! Me pedes muito. Sempre me pediste muito.

     —E não te ocorreu que tu me pedes o mesmo? Estive dando durante onze mil anos e me cansei. Estou cansado de que me ridicularizes, tu e teu irmão. Estou cansado de agüentar suas merdas e lutar com teu humor quando não tens a mesma cortesia comigo. Quero a liberdade.

     Soltou-lhe o cabelo e lhe deu três chicotadas mais, depois passou as unhas dolorosamente por suas costas.

     —Não há liberdade para ti, puto. Nunca.

 

    Tory sorriu ao ver Simi subindo ao bar. Ainda recordava a primeira vez que viu a demônio, embora naquele tempo pensava que Simi era um universitária normal e comum que se fazia muito bem de babá. Era difícil de acreditar que depois de todas as chamadas telefônicas e todos os correios eletrônicos que tinham compartilhado, a Simi lhe tivera esquecido de mencionar o fato básico de que era uma demônio.

     Mas bom...

     Ao aproximar-se soube que algo a preocupava.

     —O que acontece, Simi?

     —Essa deusa vaca velha está machucando a akri outra vez e akri não deixa que a Simi faça algo para lhe ajudar. Como se supõe que Simi não pode dizer nada do que a deusa cadela lhe faz, esqueça o que há dito a Simi. —sentou-se em um tamborete zangada e pôs o queixo na mão—. Gire-te e lhe ponha a Simi um sorvete, akra Tory, preciso-o de duas bolas.

     Aimee foi atender a Simi enquanto Tory se sentava com a demônio.

     —O que queres dizer com que a deusa vaca lhe está fazendo mal a Ash? Hera? —Era a deusa a que mais se referiam como “vaca” na mitologia.

     —Essa não. A mesquinha ruiva que a Simi quer comer, mas akri diz “Não, Simi. Não podes comer a Artemisa”. A Simi odeia a essa vaca.

     Ficou de pedra ao recordar o que Ash lhe tinha contado sobre a Artemisa e sua relação.

     —Onde está Ash?

     —No Olimpo. Disse a Simi que ficasse contigo e se assegure de que ninguém te faça mal.

     Não podia ser nada bom e Tory se sentiu mal ao não poder lhe ajudar.

     —O que faz Artemisa a Ash?

     —Supõe-se que a Simi não o pode dizer. —Jogou um olhar ao bar como se fora uma menina travessa e baixou a voz—. Mas akri não diz que não te possa mostrar. —Estendeu a mão e tocou o braço de Tory. Nesse mesmo momento, Tory viu Ash sendo açoitado.

     Incapaz de suportá-lo, ficou de pé e tentou concentrar-se. Mas não podia. Palpitava-lhe o coração, e estava hiperventilando pelo pensamento de lhe causar tal dor.

     —Temos que fazer alguma coisa!

     —Não podemos. Artemisa lhe fará algo pior se tentamos intervir. Acredite em mim, eu sei. Prometeu-lhe que poderia lhe açoitar se te deixava em paz e ela disse que certo. Assim... A Simi odeia à deusa vaca.

     E Tory também. Se pudesse voltar atrás no tempo, a teria dado bem nos focinhos em Nashville.

     Aimee chegou com o sorvete enquanto Tory tentava pensar em algo, qualquer coisa, que pudesse fazer. Olhou a Aimee, logo a Katherine e a Justina mas decidiu não lhes pedir opinião. Ash morreria de vergonha se soubessem que elas sabiam o que lhe faziam.

     Agora sabes todos os secretos que morreria para proteger.

     Não havia dúvida de que este era um dos secretos que guardava mais zelosamente. Não se estranhava que tivesse sido tão desagradável com Artemisa em Nashville.

     —Se alguma vez lhe puser as mãos em cima...

     O que faria? Sangrar sobre seus sapatos caros? Artemisa era uma deusa e Tory era humana.

     Mas... havia algo no diário sobre a Artemisa e suas debilidades. Com o coração lhe pulsando esperançado, foi para a cozinha que havia atrás do bar, onde havia luz suficiente para ler.

     Mas antes que pudesse chegar, viu uma mulher alta, de cabelo negro sentada em uma das mesas do fundo.

     Queres fazer mal a Artemisa? Fala comigo.

     Tory procurou ao seu redor a voz que soava em sua cabeça até que cravou o olhar na mulher desconhecida.

     Sim, sou eu quem te fala, Soteria. A mulher lhe fez um gesto para que se aproximasse da mesa.

   Retrocedendo da cozinha, deu um golpezinho no braço de Aimee.

     —Em seguida volto. —antes que pudesse responder, foi direito para a mulher incrivelmente atraente e provavelmente, tão alta como ela.

     —Olá —disse com um forte acento grego—. Sou Satara. Deves me considerar uma amiga.

     Sim, certo. Esperaria antes de decidir sobre isso.

     —Como fazes para me falar com a mente?

     Sorriu antes que a voz voltasse a soar na cabeça de Tory. Sou filha de Apolo e se quiseres que te ajude, estarei mais que disposta a te ajudar a matar a Artemisa.

 

     Instantaneamente Tory receou da desconhecida mulher e de seus motivos.

     —Por que me ajudaria a filha de Apolo a machucar a sua tia?

     Satara torceu os lábios em um sedutor, ainda impressionante sorriso. Era como se a contra gosto mostrasse algum tipo de respeito a Tory.

     —És uma pequena humana inteligente. A maioria não conhece nossa mitologia. Mas isso não é aqui ou lá, verdade? Deixe-me te dizer que assim como tu, sou uma amiga do Acheron. Estou cansada de vê-lo machucado.

     Conhecendo Ash tão bem como o conhecia, ela sabia que Satara nunca obteria essa peça dele. O que queria dizer que a mulher estava em guerra com Artemisa e agora está tentando enfrentá-la contra sua própria tia. Sim, isso realmente provocava com que Tory não confiasse nela… nem um pouco.

     —Estranho que nunca te mencionasse. —Tory começou a afastar-se.

     Satara saltou para frente e a agarrou dolorosamente por um pulso.

     —Me dê o diário de Ryssa se queres viver.

     Mordendo-lhe a mão, Tory se virou afastando-se e correu para o bar. Simi estava cruzando a sala, vaiando para Satara que desapareceu no momento em que viu a demônio.

     —Essa é a sobrinha da supracitada deusa-vaca. A Simi tampouco gosta dela.

     Concordando com ela, Tory esfregou o pulso. O que acontecia nesse livro que ainda não teria lido? Tinha que conter mais do que ela tinha visto.

     —Simi, pegue teu sorvete e venha comigo lá pra cima. Acredito que tu e eu precisamos fazer um pouco de investigação.

     Quando se dirigiram para cima, Tory considerou chamar a sua prima Geary, mas decidiu não fazê-lo dado quão reservado era Ash. Ele tinha engenhado para assegurar-se que ninguém conhecesse seus assuntos e desde que lhe tinha prometido que podia confiar nela, não faria nada para violar esse juramento.

     Mas era tão difícil…

     Uma vez que Simi se acomodou com ela na pequena sala, tirou uma caderneta de notas e uma caneta e atacou sua leitura com uma renovada energia. Embora para ser honesta era mais fácil dizê-lo que fazê-lo. Cada vez que Ryssa escrevia sobre Ash, rompia-lhe o coração. O abuso e crueldade sem sentido era inimaginável e quando viu o que lhe tinham feito durante a festividade de Artemisa quis sangue por isso.

     Não lhe surpreendia que Simi odiasse à deusa da maneira em que o fazia.

     Como podia Artemisa ter dado as costas a Ash e deixá-lo ali para que sofresse? A verdade, não entendia por que tinha a necessidade de salvar a pele de Artemisa. Mas de novo a Tory não importava o que as outras pessoas pensassem dela. Nunca lhe tinha importado. Sim, burlaram-se dela na escola por ser muito inteligente, por ter tripinha e ser muito alta e esquálida. Seu cabelo era encaracolado, tinha tido aparelhos dentais e óculos tão grossos que tinham acabado com todo um exército de homens de plástico.

     Mas então recordava claramente o dia que tinha chegado em casa chorando ao seu pai com as palavras que Shelly Thornton a tinha dito na escola.

     —Teu pai é um contador de história que todo mundo ri, tua mãe é uma idiota e tu és uma patética grega que nunca teve namorado fora ao qual criaste em tua cabeça e te vestes igual como se encontrarás em um contêiner. —Se isso não tinha sido o bastante, todas as meninas temiam que o que Shelly pudesse lhes dizer se haviam rido dela. Então se tinham unido para atacar suas roupas.

     A pior parte foi, que Tory tinha adorado esse vestido. Tinha sido um que lhe tinha feito Tia Del com sua renda grega e um luminoso e sedoso tecido púrpura que tinham encontrado na loja que Tory sempre tinha adorado.

     Seu coração tinha sido estilhaçado nesse dia por sua crueldade até que seu pai a pôs sobre seus joelhos e a beijou deixando de lado suas lágrimas.

     —Ninguém pode te fazer sentir inferior sem tua permissão, Tory. Não o permitas. Date conta que são tuas próprias inseguranças as que fazem com que ataquem a ti e aos outros. São tão infelizes consigo mesmos que a única maneira em que podem sentir-se melhor é fazendo todo mundo tão infeliz como são eles. Não deixes que essas pessoas roubem teu dia, bebê. Mantenha a cabeça alta e date conta que tu tens a única coisa que eles nunca poderão te tirar.

     —O que, Papai?

     —Meu amor. O amor de tua mãe e o amor de tua família e verdadeiros amigos. Teu próprio auto-respeito e sentido do propósito. Olhe-me, Torimou, as pessoas riem de mim todo o tempo e dizem que estou perseguindo um arco-íris. Disseram que George Lucas era um idiota por fazer Star War; estavam acostumados a lhe chamar inclusive a Loucura de Lucas. Escutou-os? Não. E se os tivesse escutado seu filme favorito não teria sido feito e pensa em quantas pessoas nunca teriam ouvido a frase “Que a Força te Acompanhe”.

     Tinha-lhe afastado o cabelo das úmidas bochechas.

     —Quero que sempre mantenhas a cabeça alta e sigas teus sonhos aonde te levem. Nem sequer escute as pessoas que te machucam ou te fazem chorar. Escuta ao teu coração e serás melhor que eles. Ninguém consegue sair adiante machucando aos outros. A única paz real que alguém pode ter é a única coisa que vem sem isso. Vive tua vida em teus próprios termos e faz dela uma vida feliz. Sempre. Isso é o que importa, Torimou.

     Nem sempre foi fácil escutar aquelas sábias palavras e a triste verdade era que nunca tinha levado outra vez seu vestido púrpura, ou inclusive a cor púrpura. Mas com o tempo, tinha aprendido a se importar menos e menos com o que outras pessoas pensassem dela de modo que pudesse lavrar seu próprio caminho no mundo. A única coisa que não podia aceitar era que burlassem de seu amado pai e seu tio.

     O mundo podia rir dela se o desejava, mas não permitiria que ninguém se burlasse daqueles aos que amava.

     Mas quando lia as inseguranças de Artemisa, ela se deu conta de quanta sorte tinha tido de ter ao seu pai. A pobre Artemisa não tinha tido a ninguém que a amasse dessa maneira…

     Tory se voltou a olhar para Simi, que estava vendo QVC. Estava deitada de costas com a cabeça pendurando pela beira da cama enquanto o via de barriga para baixo.

     De acordo…

     —Simi?

     —A demônio a olhou com curiosidade.

     —Achas que Artemisa está triste?

     —Eu acredito que ela só está amargurada.

     —Sim, mas as pessoas não se amarguram sem motivo. Tem que haver uma razão para isso.

     Simi deixou escapar um melancólico suspiro.

     —Bom, akri diz que a diosa-vaca não tem ninguém que a ame e que por isso temos que ser amáveis com ela. Mas sabes que diz a Simi a isso? Há uma razão para que não tenha a ninguém que a queira. Ela é cruel.

     Dedução simples, quase cômica, com poucas palavras. E a fazia perguntar-se se Ash teria sido reconhecido como um príncipe se sua relação tivesse sido diferente.

     Mas o ponto não era realmente sugerente. E à medida que as horas passavam, Tory aprendia muito mais a respeito da antiga Grécia, de Atlântida e Acheron do que sequer tinha sonhado possível.

     Aimee lhes trouxe comida e em algum momento ao redor da meia noite, Simi dormiu sobre o chão com os pés levantados em noventa graus contra a parede.

     Sacudindo a cabeça ante a estranha posição, Tory tirou uma das mantas da cama e a pôs por cima. Justo quando agasalhava esta ao redor do Simi, uma pequena fissura atravessou o ar.

     Insegura de que o causou, Tory olhou a sua direita para encontrar Ash de pé fora do banheiro com um braço apoiado contra a parede. Seu rosto pálido, parecia estar sofrendo uma profunda dor. Mas o que mais a surpreendeu era o fato de que seu cabelo estava loiro e levava um comprido casaco. Só a camiseta de manga larga tinha sido deixada intacta.

     —Ash? —sussurrou ela.

     Ele não respondeu.

     Preocupada, cortou a distância entre eles e viu que ele estava suando abundantemente.

     —Bebê, o que ocorre?

     Ele a olhou com o cenho franzido.

     —Não sabia aonde ir. Eu… não quero estar sozinho.

     —Precisas te deitar?

     Com o olhar vazio, assentiu.

     Tory esperou que se movesse. Quando não o fez sua preocupação se triplicou.

     —Ash?

     —Preciso de um minuto.

     Ela ficou ali esperando. Depois de uma longa pausa, ele se empurrou afastando-se da parede e se dirigiu à cama. Só tinha dado um simples passo quando caiu de joelhos. Sem pensar, ela se estirou para lhe tocar as costas.

     Ele vaiou e recuou como se tentasse arrastar-se para afastar-se dela. Retirando a mão, ela ofegou ao ver o sangue que cobria sua palma.

     Ajoelhou-se ao seu lado.

     —O que posso fazer?

     Com a respiração rachada, apertou os dentes como se lutasse com uma intolerável agonia.

     —Meus poderes são instáveis. Sinto muita dor para controlá-los adequadamente.

     —De acordo. Podes te apoiar sobre mim e te levarei para a cama. —Ela se levantou e lhe estendeu as mãos.

     Ash não podia falar quando a viu ali lhe alargando sua estendida mão. Não deveria estar aqui e sabia. Ainda assim isso era o que fazia com que a buscasse quando nunca teria procurado a ninguém. Ela não o machucaria ou zombaria dele. Ela o ajudaria. A única pessoa a qual permitia lhe atender quando estava doente era Liza. Mas nem sequer Liza o tinha visto quando estava assim vulnerável.

     E condenadamente seguro que não queria que Alexion ou Urian soubessem.

     Tomando sua mão, permitiu-a puxá-lo. Apertou os dentes quando outra onda de dor rasgou através dele. Ela passou seu braço sobre os ombros e colocou cuidadosamente uma mão ao redor de seus quadris onde não estava tão machucado.

     Juntos, caminharam até a cama e lhe ajudou a deitar-se de barriga para baixo.

     —Não o diga a Simi —sussurrou ele—. Não quero que se zangue.

     Tory assentiu quando o viu desmaiar. Raivosa e doída pelo que lhe tinham feito, cortou com muito cuidado a camiseta de suas costas. E com cada polegada de ensangüentada pele que descobria, sua fúria emudeceu ante a horrível mutilação. Isso era incrível.

     Não lhe importava quando o tinha amado Artemisa. Se tivesse à puta agora mesmo aqui, arrancar-lhe-ia cada mecha de cabelo vermelho de sua egoísta cabeça!

     —Isto vai terminar —lhe sussurrou—. De uma maneira ou de outra, Ash, vou encontrar uma maneira de pôr essa deusa em seu lugar.

    Ash despertou com a estranha sensação de algo frio sobre as costas. Por um momento, pensou que estava no templo de Artemisa até que abriu os olhos e viu Tory em uma cadeira a poucos passos dele, lendo. Tudo o inundou de novo e quando tomou uma profunda respiração, a dor em suas costas lhe recordou quão real tinha sido sua visita a Artemisa.

     Tory pôs imediatamente o livro a um lado.

     —Tenta não te mover.

     —Me acredite, o estou fazendo.

     Ela se ajoelhou no chão frente a ele.

     —Pus-te um dos ungüentos de minha tia Del nas costas. É babosa, pepinos e tomates mesclados com vaselina e lanolina. Sei que soa asqueroso, mas é realmente bom para as picadas, cortes e queimaduras.

     —Obrigado.

     Ela sorriu quando descansou a bochecha sobre a mão que tinha sobre o colchão.

     —Tive que te cobrir com um lençol e disse a Simi que estava dormindo. Ela desceu para comer assim não tem idéia de que estás ferido. Ninguém tem.

     Ele tomou sua mão na sua e lhe beijou os dedos.

     —Obrigado.

     —De nada, doçura.

     Ele entesourou essa palavra carinhosa. Mais que tu, entesourou a ela.

     Ela inclinou a cabeça enquanto brincava com seus dedos.

     —Não podes usar teus poderes de deus para te curar?

     —Poderia, mas prometi não fazê-lo.

     —Por que?

     Porque sou um idiota. Não, tinha-o feito para protegê-la e se este era o preço por sua segurança, que assim fora.

     —Prefiro não dizê-lo.

     Ela lhe deu palmadinhas na mão.

     —Então seguirei te encobrindo com Simi, quem esteve dormindo quando te atendi as costas. E falando disso, finalmente acredito que encontrei a alguém que come inclusive mais que eu. Geary estaria impressionada.

     Como o fazia? Ele estava estendido ali com as costas em carne viva e ela estava ignorando-o alegremente e tratando-o como se estivesse se recuperando de nada mais que um simples resfriado. Como podia ser capaz de tomar as coisas com tal tranqüilidade e não lhe fazer sentir estranho por isso?

     —Não vais me perguntar nada mais que isso?

     Ela negou com a cabeça.

     —Confio em ti, Ash. Completamente —levantou o livro—. Tu me confiaste já muitos de teus segredos. Se queres manter uns poucos para ti, entendo-o e não te pressionarei.

     —És muito boa para ser real.

     Ela sorriu.

     —Não realmente. Recorda, sou a única que te tentou dar com um martelo.

     Ele riu, então se encolheu ante a dor.

     Ela se encolheu em simpatia antes de lhe afastar o cabelo da bochecha.

     —Há algo que possa fazer por ti?

     Me faça humano, assim como tu… Mas esse era um pensamento estúpido.

     —Por favor, não digas a ninguém que estou assim. Estarei melhor em um par de horas. Só preciso descansar um pouco mais.

     Ela lhe esfregou a mandíbula com a ponta do polegar.

     —Dá por feito. De passagem, sua mochila está bem aqui —tomou a mão e lhe dirigiu aonde estava posta no chão junto à cama—. Não a hei tocado exceto para pô-la aí.

     —Obrigado.

     —Não há problema —se levantou lentamente—. Tens fome ou sede?

     Estava faminto, mas não havia nada ali que pudesse lhe saciar.

     —Estou bem.

     Tory inclinou a cabeça quando ele fechou os olhos e deixou escapar um comprido suspiro. Inclusive com sua bochecha arranhada e a ferida em seu lábio, ele ainda era um dos homens mais bonitos que tinha visto. O fato de que tivesse algum interesse nela a assombrava. Honestamente, ela não era Artemisa. A deusa era atônitamente formosa.

   Que humano podia comparar-se a ele?    

     Ainda assim Ash estava aqui com ela. Tinha confiado nela quando não confiava em ninguém. Só isso já tocava seu coração. E quanto mais lia sobre seu passado, mais desejava poder lhe agasalhar com os braços e lhe abraçar até que as más lembranças desaparecessem.

     Baixou o olhar ao diário em sua mão. Havia tanta tristeza nele. Não só por Acheron, mas também por sua irmã Ryssa. Ryssa tinha tentado lhe ajudar de todos os meios enquanto Apolo tinha sido tão cruel como Artemisa o tinha sido com Ash.

     Apesar de estar fascinada com a história e os vislumbres da vida cotidiana que tinha visto através das palavras de Ryssa, já tinha lido bastante. O passado de Ash era trágico e dizia muito dele que pudesse ter um pouco de compaixão depois de tudo.

     Estava espiando sobre ele.

     Pondo o diário em sua mochila, assegurou-se de que estava completamente fechada antes de descer as escadas para dar uma olhada em Simi.

 

    Ash sentiu a ausência de Tory igual a uma dor em sua alma. Havia algo em sua presença que lhe levantava o ânimo e o fazia feliz apenas estando perto dela, o qual, dado o dolorido que estava, dizia muito.

     Deves deixá-la ir.

     Tinha-lhe comprado um indulto das represálias da Artemisa. Mas por quanto tempo? Quando mais ficasse com Tory, maior seria o perigo para ela. Sem mencionar que Artemisa não era a única com a qual tinha que lidar.

     Stryker mataria Tory em um instante e o mais seguro era que Nick já tivesse falado ao senhor dos Daimons sobre ela. Era uma humana que não podia encaixar em seu mundo de ferocidade. De seres que não a manteriam a salvo de ninguém ou de nada.

     Mas o mero pensamento de não vê-la era suficiente para pôr ele de joelhos. Por que não podia ter algo para si mesmo?

     Não vales nada puto. Não mereces nada exceto desprezo e ridículo.

     Como podia alguém amá-lo?

     Simi estava cega a suas faltas por que ele a tinha criado. A tinha protegido. Sua mãe o amava, mas outra vez, era parte do laço mãe-filho. E Katra…

     Eles ainda estavam conhecendo um ao outro.

     —Basta —grunhiu a si mesmo. Não era um menino. Não era a mesma patética criatura quem rogava ao seu pai por uma piedade que nunca tinha tido com ele.

     Ele era um deus.

     Ela era humana.

     Era assim simples e assim impossível. Ele tinha sobrevivido sozinho durante onze mil anos. Em comparação, ela era um embrião. O que sabia ela a respeito da vida? Como sobreviver no mundo que ele conhecia?

     Isso teria que acabar. Era o bastante Velho para sabê-lo. Não havia maneira de um final feliz para ele. Vendeu a si mesmo a Artemisa quando não tinha sido mais que um menino e daquilo não havia maneira de sair. Sua existência era muito complicada. Uma vez que se curasse, acabaria com isto e a afastaria de seu caminho. Isso era o melhor para todos.

  Tory riu quando viu Simi pôr molho de churrasco sobre seu sorvete. Mais que isso, estava agradecida de que ela não tivesse que comê-lo inclusive se ainda Simi continuava tentando sua “frágil” papila gustativa. Melhor isso que a dor de estômago que teria certamente depois a demônio.

     Estava a ponto de brincar com Simi sobre isso, quando uma repentina rajada de ar a rodeou.

     Sem estar segura de que era essa sensação, deteve-se a meia frase e viu a cor desaparecer do rosto de Aimee enquanto ela contemplava com horror o que havia nas costas de Tory.

     Dev e Katherine se adiantaram a toda pressa.

     Tory se voltou para ver ali um grupo de homens extremamente bonitos. O líder tinha os olhos negros como o espaço… e igualmente grosseiro e vazio.

     Ele riu ante o clã de ursos antes de agarrá-la e que tudo se voltasse escuridão.

 

    Ash ouviu abrir de novo a porta do quarto. Esperando que fora Tory, não se moveu até que sentiu a presença de Dev ao seu lado. Abriu os olhos e viu o urso lhe olhando de cima com uma expressão que era uma mescla de terror, medo e cólera.

     —O que? —perguntou Ash meio temendo a resposta.

     —Um grupo de demônios acaba de levar a Tory.

     Levou-lhe todo um minuto que essas palavras penetrassem na negação de seu interior. Quando o fizeram, embargou-lhe uma raiva tão volátil que Ash podia saboreá-la. Chiando os dentes contra a dor se vestiu antes de afastar a colcha e se levantou apesar das feridas que faziam com que pulsasse cada molécula de seu corpo.

     —Onde foram?

     —Kalosis.

     Soltou um palavrão tão duro que Dev se ruborizou. Necessitou cada grama de sua força de vontade para não se lançar contra o urso por lhes haver permitido levar-lhe dali. Felizmente para Dev, sabia que não era culpa do urso. O Santuário só protegia aos Apolitas, Daimons e Were-Hunters.

     Os demônios ficavam fora de suas regras.

     E tinham ido ao único lugar onde não podia lhes seguir. O plano tinha sido cuidadosamente desenhado e executado. Felicitaria-lhes por isso exceto pelo fato de que queria seu sangue.

     Simi apareceu diretamente atrás de Dev.

     —Eu posso ir ao Kalosis, akri. A Simi trará a akra Tory de volta para ti.

     —Não! —gritou com voz completamente demoníaca ante a idéia do que poderiam lhe fazer. Os Gallu e os Caronte eram inimigos naturais e, embora Simi pudesse se enfrentar praticamente contra qualquer um, não poderia conter a todos os Gallu ela sozinha. Ainda era um demônio jovem em termos de poder e força—. Não quero que te arrisques.

     Se tinham levado a Tory para utilizá-la contra ele, capturariam a Simi imediatamente. Sinceramente, estava assombrado de que ainda não o tivessem feito. Certamente, embora Simi fosse jovem tinha os poderes para apresentar batalha e se a tivessem capturado, o teriam pago caro.

     Tory, por outro lado, estava completamente a sua mercê.

     —Simi, volte para mim.

     Obedeceu com os olhos aumentados e se colocou em seu antebraço. Ash se voltou para Dev.

     —Quantos eram?

     —Seis. Apareceram no bar, justo por trás e se dirigiram a ela como se estivesse marcada com algo. Antes que pudesse chegar até ela se foi pelo Portal. Sinto-o muitíssimo. Fizemos tudo o que pudemos.

     —Já sei. —E por isso o urso ainda respirava—. Agora é entre eles e eu. —Ash se transportou ao Katoteros. Com o corpo lhe pulsando passou pelo vestíbulo principal e deixou que a roupa humana trocasse a flutuante fromesta de seda que lhe resultava mais fácil de levar sobre os machucados de seu corpo.

     Saiu ao balcão com vistas ao tranqüilo mar. Embora não tinha muito carinho ao lugar. Recordava-lhe muito ao balcão do quarto onde seu adotivo lhe mantinha em Didymus. Mas nesse momento necessitava da claridade que lhe proporcionava o balcão.

     —Matera? —chamou, convocando-a das profundidades do reino do inferno onde morava.

     —Apostolos?

     Contou até dez para controlar seu gênio e poder falar com sua mãe sem que sua fúria a ofendesse. Embora sempre brigavam pelos humanos, ela era sua mãe e a amava o suficiente para manter um tom respeitoso.

     —Perdoei-te que enviasse a Stryker atrás de Marissa Hunter em seu esforço para me atrair com mentiras ao Kalosis para que te libertasse, mas isto… —Fez uma pausa antes que explodisse de ira—. Como pudeste? —perguntou entre dentes.

     —Como pude o que? —em seu tom havia genuína surpresa—. Do que me estás falando?

     —Os demônios entraram no Santuário e levaram Soteria ao Kalosis. Estás me dizendo que não tinhas conhecimento disso?

     —É exatamente o que estou te dizendo… —A irada negação que havia em seu tom era muito sincera para ser fingida. Sua sombra apareceu ao seu lado e viu se por si mesmo que a ira a embargava em seu nome—. Ocuparei-me deles, Apostolos. Não temas. Em seguida volto.

     Ash inclinou a cabeça com respeito ante a sombra, mas em seu interior algo lhe dizia que não ia ser tão fácil.

 

    Apollymi abandonou o escuro jardim em um redemoinho de fúria e se transportou desde sua parte do palácio ao salão onde Stryker tinha audiência com seu corte de Daimons. Sentava-se indiferente enquanto um grupo de daimons se alimentava de um desventurado humano aos seus pés, ao qual sem dúvida tinham raptado e levado ali.

     Com o cenho franzido, Stryker a olhou aproximar-se.

     —A que devo a honra?

     Ela ignorou o sarcasmo e passou o olhar pela horda de daimons.

     —Quero-os fora daqui. Já.

     Stryker soltou um ruído de irritação antes de assentir.

     —Já ouvistes a deusa. Fora.

    Obedeceram instantaneamente, levando o humano com eles. Apollymi se sentia mal pela pessoa que tinham matado, mas estava na natureza que uma forma de vida se alimentasse de outra. Se não era justo que o humano tivesse sido assassinado prematuramente, os Daimons o deixavam ainda pior. Tinham-lhes amaldiçoado a ver a si mesmos e a todo aquele que amassem perecer em um período de vinte e quatro horas porque há onze mil anos um deus se zangou pelo que tinham feito uma só dúzia de Apolitas.

     Não, a vida não era justa. Era a sobrevivência do mais dotado, o mais ardiloso e o mais rápido.

     E nestes momentos, o era ela.

     Logo que esteve sozinha com Stryker lhe olhou com os olhos entrecerrados.

     —Onde está ela?

     Stryker a olhou com expressão vazia.

     —E ela é…?

     —Soteria Kafieri. Seus demônios a levaram do Santuário em Nova Orleans. Onde a têns?

     Stryker deu de ombros como se não tivesse nem idéia do que lhe estava falando.

     —O que queres dizer com que meus demônios a levaram?

     Por que estava brincando com ela?

     —Os Gallus sumerios aos quais acolheu aqui. Seguro que nem sequer tu podes deixar de cheirar seu fedor. Violaram as leis Chthonian do Santuário e a tomaram como refém contra Apostolos. Não te atrevas a fingir ignorância.

     —Não estou fingindo nada. —levantou-se indignado—. Kessar! —gritou convocando à líder gallu que era um dos seres mais vis que Apollymi conhecia.

     O demônio apareceu ante ele com uma arrogância digna de elogio considerando que, se não tivesse sido porque Stryker lhe tinha acolhido, teria estado morto. Alto e magro e de cabelo e olhos castanhos, parecia mais um modelo que um demônio e utilizava seu de aparência agradável físico em seu próprio benefício quando procurava humanos que comer.

     Curvou seus lábios com repugnância quando olhou a Stryker.

     —Desprezo-te quando fazes isso, Daimon. Não sou um de seus patéticos seguidores para correr para aqui quando gritas meu nome.

     Stryker não estava absolutamente intimidado.

     —Enquanto vivas aqui e te beneficies de minha proteção, virás quando te chamar.

     Os olhos de Kessar se estreitaram perigosamente.

     —O que posso fazer por ti, meu senhor?

     Utilizou o sarcasmo para mofar do tom que Stryker tinha usado com ele.

     —Quero que me contes sobre essa mulher que tomastes como refém. Como te atreveste a subir ao reino humano sem meu conhecimento?

     Kessar se encolheu de ombros.

     —Fizemos o que tua irmã nos disse que fizéssemos. Dava por feito que lhe tinha comunicado isso. Se tiver problemas com o que aconteceu, possivelmente deveriam ter uma reunião familiar. —desapareceu.

     Styker amaldiçoou.

     —Odeio a esse filho de puta.

     —Então por que lhe ofereceu refúgio? —perguntou Apollymi.

     Olhou-a com tal frieza que pôde senti-lo por todo seu corpo.

     —Tu tens teus demônios para que te protejam, parece-me justo que eu tenha os meus. Ambos sabemos que já não desfruto de teu favor, Apollymi. Inclusive embora tenha sacrificado ao meu próprio filho para te fazer feliz. Inclusive embora tenha passado um milhão de vidas em cego serviço a ti, sou só um meio para alcançar um fim. Queres ferir meu pai pelo que fez ao teu filho e eu sou a ferramenta escolhida para isso. A verdade, não me importava que me utilizasses enquanto pensava em ti como uma mãe. Mas me declaraste a guerra e aqui estamos. Nenhum dos dois felizes. Ambos alienados por nossos filhos. —deixou escapar uma risada amarga—. Belo par, né?

   Apollymi se aproximou dele lentamente, com suas emoções contidas. Não era tão singelo como o tinha expressado.

     —Apesar do que pense, Strykerius, amava-te. Mas sou uma deusa da vingança e cometeu o engano de esquecê-lo. No momento em que foi atrás de Apostolos para lhe machucar, foste tu quem lançou a declaração de guerra, não eu. No que concerne a meu filho não tenho nem razão nem lealdade por cima dele. Ele é o que mais amo e ele, sua filha e seu neto são as únicas coisas no mundo pelas quais morreria para proteger. Agora tu reténs o que é sagrado para ele. Liberte-a imediatamente ou nem sequer teus demônios poderão te salvar de mim.

     Stryker a olhou com ira ao dar-se conta de que não brincava.

     —Satara!

     Sua irmã apareceu instantaneamente com expressão de desprezo.

     —Não uses esse tom comigo.

     Apollymi a olhou

     —Onde está Soteria?

     A estúpida menina nem sequer tinha o bom juízo de temê-la. Em seu lugar, deu de ombros.

     —De momento, está a salvo.

     —Liberte-a. —exigiu Apollymi.

     —Acredito que não.

     Apollymi estendeu o braço e atraiu para si a Satara para poder agarrá-la pela garganta com a outra mão.

     —Não estou para joguinhos, pequena. Liberte-a ou te matarei.

     Satara tossia e salivava tentando retirar a mão de Apollymi de sua garganta. Era inútil. Ninguém ultrapassava os poderes de Apollymi.

    —Se me matas ela também morre.

     Apollymi apertou seu pescoço mais forte.

     —Apollymi, espera! —soltou Stryker—, não mente. Olhe seu pulso. Leva um bracelete atlante. E apostaria que o outro está no pulso de Soteria. Se a matas, Soteria morrerá com ela.

     Satara sorriu com maldade.

     —Está correto, irmão.

     Amaldiçoando, Apollymi a jogou contra Stryker.

     —Quero Soteria livre.

     Satara se endireitou e enfrentou sua ira com uma satisfação que lhe fez querer fazer que a desgraçada desaparecesse no esquecimento.

     —Quando Acheron me entregue meu diário, ela será libertada. Acredite em mim, não quero lhe fazer mal mais que tu. —A brincadeira em sua voz não passou desapercebida para Apollymi, que também se precaveu de que a cadela estava mentindo—. Somente quero o que tem Acheron.

     Apollymi se burlou.

     —Achas que confiará em ti para fazer um trato?

     —Não. Por isso meus demônios convocaram a Jaden. Jaden será o negociador. Dessa forma, saberei que Acheron não usará seus poderes contra mim e eu não usarei meus poderes nem meus demônios contra ele.

     Apollymi pôs os olhos em branco ante a ridícula fanfarronada. Estava assombrada pela arrogância da gente que subestimava tão seriamente suas habilidades.

     —Garotinha, tu não tens poderes.

     Satara riu malevolente.

     —Oh, Apollymi, com todos os teus, subestima-me grandemente se pensar isso. —desapareceu.

     Não podia pôr os olhos mais em branco sem ficar cega. Apollymi se voltou para Strykerius.

     —Compreendo a necessidade de uma família, mas se fosse tu, afastar-me-ia dessa antes que arraste a umas profundidades tão fundas que te afogarás. —desapareceu também de volta ao seu jardim onde podia falar com Apostolos a sós.

     Como mãe, odiava lhe dar más notícias e isso a fazia odiar a Satara muito mais.

     —Não posso fazer nada, m’gios. Chamaram a Jaden que contatará contigo e te dirá os termos para trazê-la de volta.

     Podia sentir a fúria da impotência em Apostolos.

     —Matera.

     —Soteria tem um bracelete posto. Se tento algo, Satara a matará.

     Ele suspirou pesadamente.

     —O que querem?

     —O diário de Ryssa.

     —Qual?

     —Não o hão dito, mas estou segura de que Jaden te dirá tudo o que necessitas para trazê-la. —E uma vez que Satara tirasse o bracelete ia desejar não haver-se cruzado nunca com Apollymi ou seu filho.

 

    Ash se separou de sua mãe e lhe desejando seu bem. Nesses momentos tinha coisas mais importantes das quais preocupar-se. Se Satara queria um dos diários só havia uma razão.

     Queria matar a Artemisa e a Apolo.

     —Maldita seja, Ryssa. —por que sempre tinha a necessidade de pôr por escrito tudo o que pensavas? Apesar de tudo, essas palavras lhe tinham consolado durante séculos.

     Agora era a ameaça maior que tinha conhecido.

     Fez uma careta quando uma dor forte lhe correu pelas costas. Só por isso, deveria deixar que Artemisa se virasse com Satara.

     Mas, infelizmente, sua morte desencadearia o fim do mundo.

     Não havia nada que pudesse fazer. Negociaria com Satara, mas por agora, tinha que assegurar a Soteria.

     Fechando os olhos se transportou de volta ao seu quarto do Santuário. Foi ao outro lado da cama e ficou gelado.

     A mochila não estava.

     Que porra? Procurou ao redor, mas nem sequer podia sentir os objetos que continha. A apreensão lhe encolheu o estômago. Isto não era nada bom. Ninguém podia ter acesso a este quarto ou a sua mochila.

     Saiu do quarto e se encontrou com Aimee que estava servindo mesas. Ela foi a um canto tranqüilo ao lhe ver aproximar-se.

     —Ei —disse em tom baixo—. Viu alguém subir ao nosso quarto?

     —Não, por que?

     —Minha mochila desapareceu.

     Sem saber quão importante era, franziu o cenho.

     —Deixa que pergunte para ver se alguém sabe algo.

     Ash dava leves golpes na coxa com o polegar tentando localizar a mochila com seus poderes. Não lhe chegava nada. Era como se a tivessem absorvido da existência.

     Quando Aimee voltou negando com a cabeça, soube que algo ia completamente mal.

     Posto que a mochila não parecia estar no reino humano e não estava no Katoteros nem no Kalosis, só restava um lugar.

     O Olimpo.

     Irritado a um nível ao qual só podia lhe levar Artemisa, foi ao seu templo e a encontrou sentada em seu divã branco como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo. Como se não tivesse açoitado cada fragmento da pele de suas costas. E quando lhe olhou com um sorriso frio e tonto de orgulho, soube que lhe havia fodido bem outra vez.

     —O que tens feito? —exigiu.

     —Não tenho feito nada.

     —Não minta para mim, Artemisa. Não estou de humor.

     Pelo menos tinha conseguido apagar o estúpido sorriso de sua cara.

     —Não te estou mentindo. Não me tens feito nenhuma pergunta real.

     Odiava jogar este joguinho com ela.

     —Certo. Minha mochila desapareceu. Viu-a?

     Imediatamente apareceu aos seus pés.

     Artemisa soltou um suspiro de desgosto.

     —Não sei porque tens tanto carinho a essa toupeira andrajosa.

     —Trapo andrajoso.

     —O que seja. Deveria pensar em comprar uma nova.

     Ash não respondeu. Inclinou-se para revisar o conteúdo. No momento que a abriu a fúria lhe percorreu com renovado vigor.

     —Onde estão os diários de Ryssa?

     —A salvo.

     Certo, mas ela não o estava neste momento.

     —Essa resposta não é aceitável.

     Levantou-se lentamente da cadeira em um redemoinho de cabelo vermelho e roupa branca. Estava majestosa e fria e lhe soltou com um grunhido, —É a única resposta que vais obter. Esses diário são um risco para mim e agora os hei iluminado.

     —Eliminado, Artemisa. Porra, aprende a falar. —Fechou a mochila antes de levantar-se e olhá-la cara a cara—. Esses diários são de minha propriedade. Quero que me devolvas agora mesmo junto com o medalhão de minha mãe e a adaga atlante.

     Nem sequer tinha o sentido comum de parecer assustada.

     —Não.

     Ash bramou enquanto ela continuava lhe provocando com sua indiferença.

     —Não me ponhas a prova.

     —Ou o que? —soltou—. Ambos sabemos que nunca me fará mal. Jurou-o. Estou a salvo de tua cólera. —realmente lhe sorriu como se sua ira a divertisse—. Esqueça de tua humana e te perdoarei pelo que tens feito. —Estendeu a mão para lhe tocar o rosto onde antes lhe tinha esbofeteado.

     Ash lhe agarrou a mão para evitá-lo.

     —Quero que me devolvas o que é meu.

     As asas do nariz lhe dilataram.

     —E eu quero o que é meu. Fazemos uma troca? Tu pelos diários.

     —Não sou de tua propriedade, Artemisa.

     —Então não se dê que vai isso dos diários e outras matérias.

     Apertou o agarrão de seu pulso desejando tanto esbofeteá-la que se assombrava de poder manter o controle.

     —Alguma vez me amaste? Sequer um pouquinho?

     —É obvio que sim.

     E ele acreditava. Não era capaz de amar. Aborrecido, afastou-lhe a mão.

     —Mas só porque pertenço a ti e só a ti. Inclusive como deus, não pensas em mim como um igual. Para ti nunca fui mais que um brinquedo que se despreza quando estás aborrecida ou terminaste comigo. —Retrocedeu um passo. Pegou sua mochila e a pendurou no ombro com intenção de partir.

     Lhe seguiu.

     —Se queres salvar a vida de tua humana, Acheron, terás que me dar o que quero. Me jures que nunca a tocarás nem a verás nunca e podes recuperar teus estúpidos diários e brinquedos.

     Ash a olhou e uma dor desoladora lhe rasgou. Em toda sua vida só tinha desejado uma coisa. Alguém que lhe fizesse sentir como se sentia Tory cada vez que lhe olhava.

     E agora Artemisa estava lhe pedindo que renunciasse a isso.

     Para salvar a vida de Tory.

     As costas lhe queimavam pela fúria de Artemisa, lhe recordando quão deteriorada estava sua relação. Como poderia voltar para ela quando tinha encontrado algo muitíssimo melhor?

     E, além disso, que bem lhe faria manter-se firme se Tory estivesse morta? Poderia viver com a certeza de que tinha morrido por sua culpa?

     Tem que haver uma forma de resolver isto. És um deus, não um inútil peão.

     Não, tinha terminado de jogar este jogo.

     —Não vou pagar teu preço, Artemisa. E deverias saber que, pedindo-me, cortaste o último vestígio de mim que se preocupava por ti.

     Ela riu amargamente.

     —Voltarás me pedindo que te ajude. Suplicando pela vida de tua lastimosa humana. Conheço-te, Acheron.

     Negou com a cabeça.

     —Não, não me conheces. E essa é a parte mais patética de nossa relação. Em todos estes séculos, nunca te incomodaste em saber o mais básico sobre mim absolutamente.

     Doía-lhe o coração de medo por Tory e o ódio por Artemisa. Ash voltou para o Santuário para ligar para Jaden. Ao contrário de muitos dos deuses, Jaden se negava a abraçar a tecnologia moderna. Havia proscrito o uso do celular ao seu redor, mas Ash as tinha se virado para lhe convencer de usar o beeper e assim, pelo menos pôr mensagens ao negociador e poder tomar parte na única coisa da era moderna que gostava a Jaden.

     Os videojogos.

     Quase nem tinha discado o número quando Jaden apareceu ao seu lado lhe olhando tão mal como Ash se sentia.

     —Tory está bem?

     Jaden cruzou os braços sobre o peito e assentiu.

     —Está zangada e indignada, não é que a culpe absolutamente, mas não lhe têm feito dano.

     Graças aos deuses por isso. Mas só era um alívio extremamente temporário.

     —Não tenho o diário que querem.

     Jaden soltou um assobio baixo.

     —Isso vai ser um problema. Podes consegui-lo?

     A resposta lhe teria feito rir se não fora tão nauseabunda.

     —Se jurar eterna escravidão a Artemisa, sim.

     Jaden soprou.

     —Antes me mudaria com Prometeo e que me tirassem as vísceras todos os dias.

     —E eu.

     —E o que vais fazer?

     Parecia que essa era a pergunta do dia. Se tivesse alguma solução.

     —Podes me conseguir um pouco de tempo?

     Jaden evitou responder diretamente.

     —Os demônios não são o que se diz pacientes pelo geral e neste caso em particular. Parece que pensam que o diário de alguma forma os libertará.

     —Libertar-lhes do que?

     —De serem serventes. De viverem enterrados. De terem que sofrer a presença dos Daimons e seu fedor, por este último não posso lhes culpar. Escapar de encontros mortais contigo e com Sin cada vez que saem do subsolo. Por isso tampouco lhes culpo. Mas.... —Jaden sacudiu a cabeça com amargo regozijo—. Tens que recordar que estamos tratando com demônios gallu sumerios. O mais próximo à forma mais baixa de demônio na cadeia alimentícia dos demônios. Realmente são demônios singelos. Humildes. Já sabes... imbecis.

     Ash resmungou.

     —Foram os suficientemente brilhantes para levá-la de um santuário Were sem que os agarrassem.

     Jaden arqueou uma sobrancelha.

    —Isso provavelmente incumbe a Savitar.

     Mais quisera ele. Mas as leis não funcionavam assim.

     —Os humanos não são uma espécie protegida.

     —De verdade?

     —Sim. Savitar compartilha contigo isso de todos-os-humanos-são-insetos.

     Uma das comissuras da boca de Jaden se torceu em um falso sorriso malévolo.

     —Eu não diria todos os humanos são insetos. Têm alguns usos, especialmente as fêmeas por um breve período. É só que são tão patéticamente… humanos.

     —E por isso tratas com demônios.

     —Que, se o pensas, são inclusive mais patéticos que os humanos. Pessoalmente prefiro os videojogos. Seria fantástico que pudéssemos chupar a alma das pessoas que odiamos no console, lhes abater a tiros e dançar sobre suas tripas.

     Ash pôs os olhos em branco ante o regozijo na voz de Jaden.

     —Te levantaste pelo lado esquerdo do carvalho, verdade?

     —Sim. Tenho meus próprios rolos com os quais lutar e, neste momento, o primeiro da lista parece ser foder vivo ao meu único amigo. Vou fazer todo o que condenadamente possa para te conseguir tempo com os demônios, mas tens que arrumar um milagre rápido. —Começou a desaparecer.

     —Ei, Jaden! —Ash esperou a que voltasse a materializar-se antes de falar—. Obrigado. Sei que não tens por que fazer o que estás fazendo por mim e só queria que soubesses o muito que o aprecio.

     —Não há problema. Estou seguro de que algum dia vou necessitar de ajuda para quebrar as regras. E quando te pedir isso não quero escutar merdas de tua parte.

     —Quando quiser, agriato.

     Jaden inclinou a cabeça com respeito ante o uso por parte de Ash de sua língua natal lhe chamando de irmão. Não era um idioma que o negociador de demônios escutasse com freqüência. Fez a Ash uma reverência imperial antes de desaparecer.

     Ash ficou sozinho no quarto que parecia tão vazio sem Tory ali para enchê-lo. Embora fosse alta, era de constituição magra, quase frágil na aparência, mas seu espírito era tão enorme que enchia seu vazio interior de uma forma que nada antes o tinha feito.

     Negócia contigo mesmo com Artemisa por ela e acabemos com isto.

     Não és um puto para que te troquem e te vendam. Podia jurar que ouvia a voz indignada de Tory em sua cabeça. E pela primeira vez em toda sua existência, não se sentia como tal.

     Ash levantou o queixo e uma onda de orgulho e poder varreu a dor dos açoites. A dor que tinha vivido em seu interior tanto tempo que quase tinha esquecido qualquer outra coisa.

     Respirou fundo e tirando sua verdadeira voz disse as palavras que agora ardiam em seu interior.

     —Sou o deus Apostolos. O Arauto de Telikos, O Destino Final de tudo. Amado filho do Apollymi a Grande Destruidora. Minha vontade é a vontade do universo. Não sou teu puto, Artemisa e nunca serei teu escravo.

     Haviam terminado o truque e o jogo. Tory fazia o que não tinha feito ninguém. Tinha-lhe dado sua auto-estima e uma resolução que não tinha conhecido antes. Uma mulher como Soteria Kafieri não amaria a um pedaço de merda. Não amaria a um puto que se arrastava às ordens de uma deusa a qual desprezava.

     Não. Tory merecia algo mais. E o amor que sentia por ela lhe fazia melhor que seu passado. Amava-a não só por quem era e o que era, mas sim pela maneira em que o fazia sentir-se quando lhe olhava.

     Ninguém ia machucar-lhe enquanto ele tivesse um sopro de vida no corpo.

     Se Satara queria uma briga por Soteria, a muito puta ia tê-la.

    

    Tory apertou os dentes ante o indigno da postura. Suas mãos estavam encadeadas a uma tábua sobre a cabeça. As pernas tinham um tanto mais de liberdade, mas estavam igualmente encadeadas em uma ampla postura e ela o odiava. Era tão degradante ser maniatada assim, e não ser capaz de libertar-se. Nem sequer podia coçar a coceira do nariz e isso a voltava louca.

     Mais que nada, deu-lhe uma melhor compreensão do que Acheron passou e que a fez querer matar a todos os que o tinham traído. Quantas vezes teria estado amarrado assim? Grosseiramente golpeado enquanto aqueles ao seu redor estimulavam e se burlavam? Ou pior, tomando prazer sexual de sua humilhação?

     Hoje finalmente levaram a cabo a castração de Acheron, por um crime que sei que não cometeu. Ainda posso escutar os gritos de insuportável dor. Os gritos rogando por piedade e morte. A forma em que soluçava de um modo em que nunca antes o tinha ouvido chorar. Não acredito que saiba como o som de sua miséria fazia eco através das paredes. Como esses gritos marcaram minha alma. E duvido que se serei capaz de silenciá-los de meu coração.

     As palavras de Ryssa lhe chegaram. Agora entendia completamente o que Ash tinha sofrido como ser humano. Um peão de seus inimigos. Um peão das brutais maquinações de pessoas que não tiveram respeito por sua vida ou seus sentimentos. Atacado, traído e abusado. Era incrível que seguisse lúcido. Que não fora desumano e frio com um mundo que foi assim com ele. O fato de que pudesse encontrar um mínimo de compaixão a assombrava. E não ia deixar que estes imbecis a utilizassem para machucá-lo.

     Com raiva e determinação crescendo em seu interior, puxou as correntes de suas mãos tão forte como pôde.

     Soou uma risada.

     —Poderias esquecê-lo. A única coisa que conseguirás é te fazer dano. E ainda se te libertas, nunca sobreviverias aos Daimons e demônios que lhe comerão no instante em que deixe este aposento.

     Deteve-se para olhar a Satara de pé a uns quantos metros vestida com um traje negro, desta vez com o cabelo de um profundo vermelho borgonha. O que acontecia com os deuses que constantemente brincavam com seu cabelo?

     Centrou o olhar sobre Satara.

     —Sabes, toda minha vida estive orgulhosa de ser grega, mas devo dizer que depois de ti e Artemisa, estou começando seriamente a odiar algo de minha herança. É congênito ou há algo mais que te faz ser uma cadela?

     Vaiou como uma gata a qual lhe pisou na cauda.

     —Não me insultes, humana. Supõe-se que não devo te fazer mal. Ao menos em teoria. Embora pensando-o bem, uma pequena desarrumação em suas plumas não seria tão ruim.

     Talvez isso devesse atemorizá-la, mas por alguma razão que não pôde imaginar, não o fez.

     —De verdade, por que queres assassinar a tua tia com tanto afinco?

     Satara se mofou.

     —Sirva ao seu presunçoso e corrupto traseiro por onze mil anos e verás que extremos chegas para te libertar. Ofereci a Acheron um trato há séculos para nos libertar e o bastardo se negou. Merece o inferno que ela lhe oferece e mais. Mas eu não. Diferente dele, não me atei voluntariamente a ela. Fui forçada e de uma maneira ou de outra, libertarei-me.

     —Quando Ash venha atrás de mim…

     ela riu, cortando as palavras de Tory.

   —Não virá aqui, carinho. Não pode. Estás no reino do inferno Atlante. Se teu amante puser um pé aqui te buscando, sua mãe se liberta e o mundo termina. Pensa muito na humanidade para permitir que isso aconteça. Assim és minha por um tempo. Pessoalmente, acredito que deveríamos ter um pouco de distração.

 

    Ash convocou a Simi fora de seu corpo.

     Inclinando a cabeça, estudou-o como uma menina pequena.

     —O que acontece Akri? Te pareces muito triste.

     Não quis responder a pergunta, já que provavelmente a incomodaria e isso era a última coisa que queria.

     —Vou te deixar no Santuário enquanto faço algo.

     —O que vais fazer?

     Cometer suicídio provavelmente, mas isso não importava. Só o bem-estar de Tory importava. Entretanto, se ia lutar, para o que estava preparado, Simi poderia sair para brigar ao seu lado e não podia permitir que a ferissem por sua causa.

     —Me agrade, Simikee. Vou onde tu não podes.

     Enrugou o nariz com desgosto.

     —Vais ver essa vaca, não? Bem. A Simi ficará, assim não terás que ouvir esses sopros, bufos nem nada que revolva o estômago de um demônio. Akri, tens idéia do que é ter náuseas sendo uma tatuagem? Não é divertido, acreditas a tua Simi quando diz isto.

     Sacudiu a cabeça, assombrado que pudesse fazê-lo rir quando se sentia tão mal.

     —Acredito em ti, Simi. Agora fique. —Levou-a abaixo onde Dev, Angel, Kyle e o resto dos ursos estavam tendo uma briga de algum tipo. Algum cliente deve ter feito um comentário para Aimee e eles estavam contemplando fazê-lo o prato especial do dia seguinte.

     —Vou deixar a Simi aqui um momento —disse a Dev—. Poderiam cuidar dela? —Era uma pergunta retórica.

     Ao menos isso pensou até que Dev negou com a cabeça.

     —Vamos contigo.

     Franziu o cenho.

     —Do que estás falando?

     —Sabemos o que estás planejando —disse Angel—, e vamos contigo.

     Estava completamente assombrado. Quando viu Valerius, Talon, Kyrian, Julian, Zarek, Sin, Vane, Kyl, Katra, Fang, Tabitha e Fury entrando, tudo o que pôde fazer foi encolher-se confuso.

     Por que estariam todos eles aí?

     —O que está acontecendo? —Perguntou-lhes.

     Kyrian lhe lançou um divertido olhar.

     —Não há um de nós aqui por quem não tenhas arriscado o traseiro, por alguns, mais de uma vez. Alexion nos contou o que aconteceu a Tory e estamos aqui para te cobrir as costas não importa o que tenhas planejado.

     Talon assentiu.

     —Wulf já está a caminho também. Chegará aqui logo que aterrisse o avião e Otto o trará tão rápido como posso. Ele também planeja unir-se.

     Valerius correu a Tabitha para trás.

     —Tabitha não brigará. Retornará para casa logo, mas queria te fazer saber que estará em espírito.

     Tabitha fez uma careta.

   —É pelo bebê, senão, estaria rompendo bolas por ti, Ash. Sabes disso.

     Ash sorriu.

     —Eu sei, Tabby.

     —Os outros Dark-Hunters quiseram estar aqui —disse Talon—, mas como o sol não se pôs ainda não puderam. Entretanto, uma vez que a resplandecente esfera baixe, estarão aqui se os necessitarmos.

     Estava assombrado pela disposição por sangrar por ele. Comoveu-o em um nível que não sabia que existia. É por isso que queria manter seu passado em segredo. Estariam dispostos a apoiá-lo se conhecessem seu passado? Ou seriam como todos os outros e passariam em cima dele?

     Como Merus…

     Ainda assim, este gesto significava tudo para ele.

     Olhou a Kat.

     —Não te quero nesta briga.

     Grunhiu-lhe.

     —Papai…

     —Sem discussões —disse cortando-a—. Se Simi ficar fora da briga, tu também.

     Sin lançou uma grave e malvada risada.

     —Alegra-me tanto que seja teu pai. E que por esta vez possamos nos ver mano à mano.

     Assinalou com o dedo a Sin.

     —Tu estás fora de meu dormitório esta noite. E tu… —Virou para Ash—. Simplesmente me irritas. Tory é uma muito boa amiga. Se algo sair errado e me necessitas, mais vos vale que me chameis. De outra maneira, irão todos parar na casinha do cachorro. —olhou para trás ao seu marido—. Tu estarás nela de todos os modos.

     Sin acolheu sua ira afavelmente.

     Zarek os ignorava com seu habitual desdém.

     —Isto ainda não significa que goste de ti, Acheron. Mas lhe devo isso por minha esposa e meu filho. Arriscaria a vida por ti, porque sem ti, não teria uma merda e eu sei.

     Essa era, provavelmente, o mais próximo a uma declaração de amor que o homem poderia articular e honestamente o comoveu.

     —Não esperava que nenhum de vós me apoiasse. Lutaremos não só contra Daimons, também o faremos contra demônios.

     Sin soprou.

     —Vivo para rasgar aos demônios. Que tragam aos bastardos.

     Zarek assentiu.

     —Estou de acordo… Adiante com a chuva. Uma coisa que aprendi de Astrid é que não se trata de encontrar refúgio em uma tormenta. Trata-se de aprender a dançar sob a chuva. Não me importa o que é que assassino, sempre e quando me voltar sangrento enquanto o faço.

     Talon sorriu.

     —Estamos aqui por ti T-Rex. Assim como estiveste para nós.

     Pensar que sempre tinha acreditado que estava sozinho. Enquanto treinava aos Dark-Hunters, ou brigava com os Were-Hunters para ajudá-los, nunca esperou que lhe devolvessem o favor.

     —Obrigado, rapazes. Não estou acostumado a ter gente a minhas costas. —Sempre o entregavam aos seus inimigos ou o enganavam. Era bom saber que não estava sozinho—. Sei que todos tendes família que vos amam, assim se desejais partir…

     Vane se mofou.

     —Não estaríamos aqui se não quiséssemos. Val e tu brigaram para salvar a minha irmã quando ninguém mais se incomodou. E isso não o esqueço.

     —Eu não esqueci o que os Dark-Hunters fizeram por Maggie e por mim —disse Wren serenamente.

     Fury assentiu.

     —Sim, somos uma família. Psicótica, bizarra, com uma confusão de personalidades que provavelmente nunca se entenderão, mas aqui estamos. Agora vamos chutar alguns traseiros.

 

    Satara sorriu cruelmente a Nick enquanto o confrontava a Tory.

     —Pensa-o, amor. É a vingança perfeita, Não é assim?

    Olhou fixamente à mulher, que devia ser a mais miserável das criaturas. Alguém realmente precisava lhe dar uma surra.

     Satara o deixou para ir ao lado de Tory.

     —Sei que não é muito para admirar. Mas podes fingir que me estás fodendo. —parou-se diretamente atrás de Tory, rodeou-a para colher os seios para que Nick os inspecionasse—. Pensa no muito que mataria a Ash saber que violentou a sua mulher enquanto não tinha o poder de te deter. Pensa na culpa e agonia com a qual teria que viver dia pós dia, pensando nela gritando e suplicando por piedade enquanto não havia ninguém que a ajudasse. De seus gritos, chamando-o quando não podia estar com ela. É a vingança perfeita.

     Tory se atirou para trás e estrelou a cabeça contra o rosto da mulher.        

     —Melhor te alegrar de que esteja atada, cadela.

     Satara enterrou a mão no cabelo de Tory e puxou com força para trás.

     —É hora de te amordaçar.

   Uma tira de pano apareceu sobre o rosto de Tory.

     Satara cortou a blusa com uma adaga com punho de ouro. Arrastou-a contra a pele até que enganchou a lâmina debaixo do sutiã.

     —Vamos, Nick. A pequena cadela te humilhou no Santuário. Toma tua vingança contra ela e Acheron.

     Ele aproximou-se lentamente. Cautelosamente.

     Tratou de gritar através da mordaça, mas o som não saiu. Aterrorizada, puxou as correntes e odiou estar tão impossibilitada para defender-se.

     Satara cortou o sutiã, derramando os seios para fora.

     —É toda tua.

     Nick tomou a faca de sua mão.

     Tory sentiu lágrimas de frustração inundar seus olhos. Como podia qualquer homem digno fazer isto a uma mulher? Nunca machucaria a outro ser desta maneira. O fato que Satara, como mulher, orquestrasse a violação de outra, a fazia a mais repugnante das criaturas.

     E mais valia que a matassem depois, porque uma vez que estivesse em liberdade, os mataria.

     Com os traços completamente impassíveis, Nick tocou o fio da lâmina.

     Satara resplandecia de satisfação.

     —Em frente, amor. Me faça sentir orgulhosa.

     Deteve a mão e a olhou.

     —Sabe de uma coisa Satara? Só há uma pessoa por quem dei tudo para fazê-la sentir orgulhosa. —Agarrou com firmeza a faca, tirando os óculos. Tory ofegou ao dar-se conta que tinha os mesmos olhos de prata que Acheron.

     Encontrou seu olhar antes de voltar a vista para Satara, quem ria com repugnante vaidade.

     —E essa pessoa não és tu. —No instante em que as palavras saíram de seus lábios, enterrou profundamente a adaga no ventre de Satara.

     Tropeçou, ofegando enquanto cobria a ferida. O sangue fluía entre os dedos. O rosto era uma máscara de dor e incredulidade.

     —O que estás fazendo?

     —Abraçando ao meu destino. —Arrebatou as chaves do bolso. Rodeando-a, removeu a grossa corrente de prata do braço de Tory e a deixou cair ao piso onde aterrissou com um ruído surdo.

     Satara deixou escapar um grito para alertar ao seu irmão enquanto corria para a porta.

     Nick arrojou a adaga ao corpo da mulher com precisão mortal. Esta se estrelou contra a parte baixa de suas costas e a mandou diretamente ao chão.

     Tory estava muito atordoada para mover-se enquanto Nick abria as correntes que sustentavam os braços em alto.

     —Por que me ajudaste?

     Quando se endireitou depois de lhe liberar os pés, fechou a blusa sobre seu seio. Logo tirou a jaqueta e a estendeu.

     —Não me interprete mal. Odeio ao Ash com cada parte de meu ser e o matarei algum dia, tenha em conta minhas palavras. Mas não tenho que imaginar a dor que sentiria se te torturasse. Vivo com essa dor cada maldito dia por sua causa. Escuto a voz de minha mãe clamando por minha ajuda. Para que salvasse sua vida enquanto a estavam torturando e assassinando. Por ela, sou melhor homem do que Ash é. Não deixarei que um inocente morra para me vingar. Tu não mereces morrer mais do que minha mãe o merecia.

     Balançou a cabeça, tratando de entender.

     —Mas me ameaçou no Santuário.

     —Não, só quis agitá-lo. Nunca faria mal a uma mulher. Minha mãe me criou bem.

     Ela observou o corpo sem vida de Satara.

     Mofou-se ante a lástima em seu rosto.

     —Não era uma mulher, me acredite. Merecia mais do que lhe fiz, fez coisas piores a outros, incluindo a mim. Não voltarei a ser um peão para ninguém mais outra vez. —Deixou-a para ir tirar a adaga das costas de Satara.

     Seguiu-o.

     —É Atlante, não é verdade?

     Sorriu vilmente.

     —Te assegures de dizer a Ash que a tenho.

     Então a puxou pelo braço e a arrastou para a porta.

     No instante em que a abriu, deu-se conta que estavam em uma sala que dava a um corredor cheio de Daimons e demônios.

     Encolheu-se enquanto Nick amaldiçoava por baixo.

     —Não podemos ir por esse caminho, verdade?

   Ele negou com a cabeça.

     —Não a menos que desejes ser comida. —Estava por empurrá-la quando o impossível aconteceu. O portal no centro do salão se abriu.

     Flamejava brilhante e dourado.

     E quando se dissipou, Acheron e Urian estavam aí de pé, desafiantes, enfrentando aos Daimons.

 

    Ainda escondida atrás da porta com Nick, Tory pestanejou, e logo sorriu ante a visão de Ash de pé, furioso e extraordinário no meio dos Daimons. A postura o dizia tudo, Aqui estou para limpar sua casa e não terei piedade enquanto o faço. Foda-me e não serás mais que uma má lembrança para tua mãe.

     O cabelo negro tinha mechas vermelhas escuras. A prega do casaco comprido, de duplo peitilho estilo pirata, pendurava ao redor das Doc Martins vermelho cereja que usava na noite que se conheceram. O piercing de rubi estava de volta no nariz e pela primeira vez, adorou a visão dos óculos sobre seu rosto.

     Acheron era formoso e sentiu o coração acelerar-se agradecido, por ter ido atrás dela.

     O homem loiro e alto ao seu lado, estava aparentemente muito mais calmo. Levava roupas simples, uma camisa negra enrolada nos pulsos e jeans. Mas era quase igualmente bonito, de traços perfeitos e o cabelo loiro platino seguro em um rabo-de-cavalo. Não pôde deixar de notar o fato que se não fora pelo cabelo loiro, o homem teria uma notável semelhança com Stryker.

     E como Stryker, tinha um ar mortal que era só superado pelo que envolvia a Ash.

     —Pensei que Ash não podia vir aqui —sussurrou a Nick.

     —Aparentemente está disposto a acabar com o mundo por ti. Deverias estar impressionada. Eu o estou.

     Pela surpresa em seus olhos, estava-. Por que correria um risco assim?

     Todo demônio e Daimon estava congelado ante sua presença. Nenhuma só palavra foi dita pela multidão. Era como se estivessem contendo o fôlego de forma coletiva, enquanto esperavam que o Armaggedon começasse.

     Todos exceto Stryker, que tinha o olhar fixo no homem loiro ao lado de Ash com uma expressão perfeitamente definida de irritado ódio.

     —Te atreves a estar de pé junto ao meu inimigo?

     —Contra ti, Pai, estaria de pé junto ao Mickey Mouse.

     Torceu os lábios.

     —Tu, desprezível filho da puta. Nunca deveria ter sido nada mais que uma mancha de esperma.

     O loiro se mofou.

     —Definitivamente, poderia dizer o mesmo sobre ti. Teríamos o mundo a salvo e a muita gente sem sofrer neste momento, não é assim?

     Os Daimons começaram a aproximar-se, mas foram lançados para trás por uma força desconhecida.

     Ash virou para Stryker e grunhiu.

     —Basta desta reunião familiar de merda. Onde está Soteria?

     Tory franziu o cenho ante as palavras. Embora a voz fosse a dele, tinha um denso acento grego e não o fluido atlante que acostumava ter quando não falava o inglês americano coloquial. Que estranho. Ainda quando falava em grego fluido, seu acento não era tão gutural e tradicional.

     —Está ali. —Uma mulher alta e loira apareceu a poucos metros de Ash e indicou a porta onde estava Tory com um imperioso movimento de queixo.

     Tory ofegou ante sua beleza, enquanto a mulher cruzava a curta distância para abraçar a Ash.

     —Enfim, m’gios. Vieste para me libertar. —beijou sua bochecha e lhe sussurrou algo ao ouvido.

     Estava atordoada quando notou que era a deusa Apollymi. A mãe de Ash.

     A deusa da Destruição Total.

     Ash a abraçou forte e assentiu antes de dar um passo para trás. Com uma brincadeira lançada a Stryker, girou e se dirigiu à sala.

     Antes que Nick pudesse detê-la, Tory empurrou a porta e correu para ele. Atirou-se em seus braços e o abraçou com alívio. E quando seus lábios se encontraram…

     Congelou-se surpreendida.

     Este não era Ash. Na aparência era completamente idêntico, mas não cheirava nem se parecia como Acheron. E definitivamente não beijava como ele.

     Nick correu para o impostor, mas antes que pudesse alcançá-lo, Urian o agarrou e o empurrou dentro do quarto onde tinham estado.

     —Temos que ir —disse Urian enquanto destruía a porta atrás deles. Olhou a Nick—. Tu tens que vir conosco.

     Nick torceu os lábios com evidente ódio.

     —Não vou a nenhuma parte com ele, prefiro estar morto.

     Urian o obrigou a olhar o corpo de Satara.

     —Vou fazer a louca e infundada hipótese de que a morte da Satara foi por tua mão e a de Tory. —lhe aferrando o queixo, obrigou-lhe a manter o olhar— Agora, fica comigo nisto, Cajún. Meu pai me cortou a garganta e matou a minha esposa, porque pensou que o tinha traído ao me haver casado. Antes disso, amava-me mais que a sua vida e era seu único filho vivo. O segundo ao comando. Agora, o que achas que te vai fazer quando encontrar o corpo? Posso te assegurar que não será uma viagem divertida ao Chuck E. Cheese. Apesar de toda a aversão para com os outros, Satara era sua irmã e lhe serve bem durante todos estes séculos. Se realmente queres ficar e ter um pouco de diversão com o Stryker, não te deterei. Mas em realidade, não lhe recomendaria isso.

     Isso pareceu convencer a Nick. A prudência retornou aos seus olhos.

     —Bem, irei convosco.

     —Urian —disse o falso Ash entre dentes— Acredito que já estão percebendo.

     —Perceber o que? —perguntou Nick.

     Tory pôs os olhos em branco ante o óbvio da pergunta.

     —Que este não é Ash.

     As palavras quase nem tinham saído da boca quando desapareceram da sala.

 

    Zolan, o terceiro ao comando de Stryker e líder da força especial de ataque Illuminati, clareou-se garganta dentro do ainda silencioso salão.

     —Mmm… chefe, não digo isto desrespeitosamente, mas por que estamos aqui ainda? Quero dizer, se Acheron tiver vindo a libertar Apollymi, não deveria haver uma explosão ou algo?

     Os Daimons e demônios olharam ao redor como se esperassem a abertura do mundo exterior, ou que Apollymi explodisse entre dança e canções, ou que acontecesse algo mais sobrenatural. Enquanto isso, Apollymi permanecia de pé ali, completamente estóica, com uma aparência angelical e doce, enquanto observava a Stryker fixamente.

     Seu segundo no comando, Davyn, coçou a nuca nervosamente.

     —Estou de acordo, Kyrios —disse a Stryker usando a palavra Atlante para Senhor—. Não parece como o fim do mundo.

     Stryker se virou com frio desdém para Apollymi.

     —Não, não parece…

     Apollymi arqueou a sobrancelha descaradamente.

     —Como diz a canção? “É o fim do mundo tal e como o conhecemos, e eu me sinto bem”?

     Algo ia errado e em um instante se deu conta do que era. Saltando do trono, correu para a sala justo quando Urian, Tory, Nick e o que tinha que ser o irmão gêmeo de Ash, Styxx, desapareciam.

     A fúria cresceu pelo óbvio truque montado até que viu Satara atirada no chão em um atoleiro de sangue. O medo apagou a ira e correu para encontrá-la morta. Os olhos estavam frágeis e a pele pintada de azul.

   Tinha o coração destroçado enquanto a puxava para seus braços para sustentá-la, lutando contra as lágrimas de tristeza e dor.

     —Estúpida e psicótica cadela —grunhiu contra a fria bochecha, lutando com os soluços impossíveis de deter—. O que tens feito agora?

     Apollymi se deteve na porta, sofrendo por Strykerius enquanto balançava a sua irmã nos braços, lhe recordando ao dia em que encontrou o corpo de seu filho jogado nos escarpados. Compaixão e um novo respeito por ele a percorreram.

     O fato de que pudesse amar a alguém tão deteriorado como Satara, dizia muito. Sim, ele poderia ser de sangue-frio, mas não sem coração. Fechando os olhos, recordou o dia em que se conheceram. Era jovem e amargurado pela maldição de seu pai.

     Renunciei a tudo o que me importava por ele e é assim como paga minha lealdade? Vou morrer em agonia em só seis anos? Meus filhos pequenos estão desterrados do sol e condenados a beber sangue um do outro em vez de alimentar-se e morrer com dor quando completem vinte e sete anos? E por que? Pela morte de uma puta grega assassinada por soldados que jamais conheci? Onde está a justiça nisso?

     Assim que ela o tinha atraído a suas facções e ensinado a escapar da maldição de seu pai, absorvendo as almas humanas dentro do corpo para lhe prolongar a vida. Tinha dado a ele e aos seus filhos refúgio num reino onde os humanos não podiam lhes fazer mal, e onde não havia perigo de que as crianças morressem acidentalmente pela luz do sol. Logo permitiu que convertesse aos outros e os trouxesse para viver aqui.

     A princípio, sentiu lástima e inclusive o amou como a um filho.

     Mas não era Apostolos e, quanto mais estava ao seu redor, mais ansiava ter ao seu próprio filho com ela, não importava como. Admitia que era sua culpa ter posto uma barreira entre ela e Strykerius. E ambos se utilizaram para vingarem-se das pessoas que odiavam.

     Agora só restava isso…

     —Sinto tanto, Strykerius.

   Olhou-a, os olhos de prata formavam redemoinhos de dor.

     —De verdade? Ou te alegras?

     —Nunca me alegro com a morte. Pode ser que me entusiasme de tanto em tanto quando é justificado. Mas nunca me alegro.

     —E eu não deixo provocações como esta sem resposta.

 

    Tory não teve tempo sequer de orientar-se em sua nova locação, antes que alguém a sujeitasse em um abraço forte, tão forte, que temeu que suas costelas pudessem romper-se. E não foi até que o cheiro de Ash chegou a ela e a beijou profundamente, que sorriu e riu de alívio. Estava a salvo.

     Ao envolver os braços em suas costas, recordou as feridas. Em vez disso, abraçou-o pelo pescoço e o aproximou.

     Este era o Acheron real, e se sentia muito bem em seus braços.

     Embalou seu rosto com as mãos.

     —Estás bem? —Perguntou, os olhos se escureceram ao ver a blusa rasgada e a jaqueta abotoada de Nick.

     —Estou bem. De verdade…

     —Mas nós não —disse Urian secamente—. Nick matou Satara enquanto estava com Tory.

     —O fez para me proteger —ela exclamou.

     Urian soprou.

     —Poremos isso na lápide por ti. Enquanto isso, Stryker quererá sangue por isso. Muito sangue.

     Nick se burlou com tom grave.

     —Sem ofender, mas seu pai não me assusta, especialmente dado que quero, sem dúvida, uma parte dele. Que venha e o faça.

     Olhou-o menos que impressionado.

     —Sei que compartilhas alguns poderes com ele, mas me acredite, não te deu senão as sobras. Sem mencionar um pequeno detalhe. Ninguém consegue algo dele antes que eu.

     Ash soltou um estridente assobio.

     —Calma rapazes. Temos coisas mais importantes a fazer antes que salvar vosso ego.

     Tory dissimulou um sorriso quando finalmente entendeu o trabalho de Ash e porquê se descreveu como um domador. Realmente o era.

     Ash lançou um olhar para Nick.

     —Temos uma batalha a preparar. Não deixarei que Stryker leve a Nick.

     Ele riu amargamente.

     —Não preciso de tua fodida ajuda. Posso brigar por mim mesmo.

     Não respondeu ao ódio em seu tom.

     —Sei que me odeias. Entendo-o. Mas não acredito que tua mãe quisesse que te matasse de novo. Odeie-me amanhã. Esta noite me tolere como um mal necessário.

     Empurrou-lhe para trás.

     —Isto não nos faz amigos.

     Ash sustentou as mãos para cima.

     —Eu sei. —Virou para Tory—. Styxx, tire-a daqui e a mantenha segura.

     Ofegou quando se deu conta que era o mesmo Styxx de quem tinha lido nos diários de Ryssa, o mesmo que torturou e castrou a Acheron.

     Uma onda de raiva amarga a percorreu. Estava a ponto de dizer a Ash que não tinha intenções de ir a nenhuma parte com o homem que se desviou para feri-lo, mas antes que pudesse abrir a boca, um brilhante raio de luz a cegou.

     Um nanosegundo depois, uma multidão de homens malvados e loiros apareceram. Pareciam-se mortalmente sérios enquanto se emquadravam em formação.

     Stryker avançou, e o olhar caiu diretamente sobre Urian.

     —Traíste-me pela última vez. —Arrojou-lhe algo.

     Tory não teve idéia do que era até que Ash a capturou na mão. Era uma adaga de forma estranha, que lhe recordava um antigo desenho grego e, entretanto, tinha na manga o mesmo símbolo do sol que Ash tinha em sua mochila.

     Ash fixou o olhar nos Daimons.

     —Toma a suas meninas, gritem e corram agora Stryker. Economizará-te tempo. Acredite em mim, não quererás me pôr a prova com o humor que tenho hoje.

     Stryker passou a língua por suas presas como se saboreasse a idéia de alimentar-se de Acheron.

     —Não há nada que anseie mais que provar teu sangue. Seus Dark-Hunters não estão aqui. —Jogou um olhar aos homens que estavam de pé junto a Ash e riu com diversão—. É noite de festa, Spathi, ataquem!

     Tory foi afastada para trás do grupo que permanecia com Acheron. Queria lhes dizer que podia defender-se, mas quando os homens atacaram e os Daimons se defenderam com golpes e ataques de relâmpagos, deu-se conta de que talvez não era tão eficiente.

     Não estavam brigando só com punhos e armas, brigavam com poderes sobrenaturais com os quais nunca poderia competir. Apenas tinha acabado o pensamento, quando um grupo de demônios se uniu aos Daimons para lutar contra eles.

     Stryker foi atrás de Nick, mas Ash o agarrou e ambos caíram ao chão, golpeando-se. Urian apunhalou a um demônio entre os olhos antes de virar e esquivar as presas de um Daimon.

     Tory tropeçou para trás, procurando algum tipo de arma.

     Um demônio se lançou para ela. Tratou de lhe chutar, mas nem sequer se cambaleou. Justo quando ia alcançá-la, Julian apareceu com uma espada. Cortou a cabeça do demônio com um estoque bem dado.

     Balançando a lâmina da antiga espada grega, virou para ela.

     —Podes manejar uma espada?

     —Sim.

     —Kyrian! —Gritou Julian ao outro homem loiro da equipe—. Dê-me uma espada.

     Kyrian arrojou o que parecia só um empunhadura. Com um fluido movimento, Julian a apanhou e apertou um botão na cruz do empunhadura. A folha disparou quase a um metro de longitude. Deu a ela.

     —Os Daimons têm que se apunhalar através do coração. Os demônios entre os olhos e se cortas a cabeça de algum de nós, morremos.

     —Como posso ver a diferença?

     —A maioria dos Daimons é loira e explodem em pó quando perfuras o coração. Golpeia ali e se não funcionar trata entre os olhos. Se apunhalar a algum que geme e logo cai ao chão, então atacaste a um dos bons. Só PTI[22].

     Inclinou a cabeça.

     —Obrigada pelas instruções.

     Ele riu antes de pôr seu rosto de batalha e voltar para a luta.

     Oscilou a espada ao redor do corpo, tratando de conseguir impulso. Saída de quem sabe onde, uma mulher Daimon foi até ela e fez aparecer um bastão. Lançou-o à cabeça de Tory.

     Detendo o golpe com a lâmina, atirou a espada para trás e continuou com a ofensiva. A mulher devolveu golpe por golpe. Sua ferocidade, fez tremer os ossos de Tory.

     Odiava admiti-lo, mas a Daimon estava ganhando. Com um grunhido feroz, tratou de empurrá-la para trás.

     De repente, Nick esteve ali. Tirou-lhe a Daimon de cima e a outro mais.

     —Ninguém machuca humanos em meu turno —grunhiu antes de apunhalar ao Daimon através do coração. Como Julian havia dito, o Daimon gritou e logo se converteu em pó dourado.

     Afastou-se antes que pudesse agradecer-lhe.

     Outro raio de luz anunciou um grupo ainda maior de Daimons e demônios.

     Retrocedeu, com a boca aberta. Eram tão numerosos…

     Os caras em sua equipe eram lutadoras peritos, mas estavam sendo arrasados pelo grande número de inimigos.

     —Isto é mal…

     Ash congelou quando viu um dos Daimons afundar as presas no braço de Vane ao tempo em que mais demônios se uniam a eles.

     Não podia deixar que ferissem seus amigos. Fechando os olhos, convocou seu bastão do Katoteros. Assim que o sustentou na mão, sentiu algo que impactou contra ele.

     Abriu os olhos só para ver Styxx ali com uma adaga Atlante afundada completamente no estômago. Stryker amaldiçoou enquanto o soltava. Então foi atrás de Ash outra vez.

     Apanhou ao senhor supremo dos Daimons com a ponta de seu bastão e o empurrou.    

     —Voa ou morre —grunhiu.

     —Foda-se.

     Olhando fixamente a Stryker, empurrou-o e logo estrelou o bastão contra o chão. Uma onda de duro e selvagem poder se disparou até os Daimons e demônios ao seu redor. Todos se converteram em pó.

     Exceto Stryker. Ele se elevava sobre o chão em forma de dragão, grunhindo e soprando. Bramando, arrojou fogo.

     Retirou o braço, apenas a tempo para que não lhe queimasse. Disparou outro raio dourado contra Stryker, que o esquivou.

     —Isto não terminou, Acheron. Da próxima vez, não serás capaz de usar teus poderes. —Com outra rajada de fogo, desapareceu.

     Vane sacudiu o braço sangrento em um evidente esforço para aliviar a dor da mordida do Daimon.

     —Por que estávamos lutando, se tens esse tipo de poder?

     Ao uníssono, todos os Ex-Dark Hunters e Nick, disseram.

     —Só porque possas, não significa que devas.

     —E algumas vezes, as coisas têm que ir mal para terminar bem —disse Wulf. Quando os outros lhe olharam confusos por sua solitária irrupção, acrescentou—. Suponho que sou o único a quem alguma vez lhe disse isso.

     Fury fez um estranho ruído de lobo.

     —Ainda não vejo porquê estávamos brigando, quando simplesmente podias chutar seus traseiros sem nós.

     —Porque acredito em dar a cada um a oportunidade de lutar… até que me irritem. —Lançou um rápido olhar estóico a Vane—. Trazer reforços foi o erro de Stryker.

     —E estou contente que não fora o teu —respondeu Fury a Vane com uma risada nervosa—. Sei que estou emocionado com que não fora meu. —O lobo olhou ao redor, aos restos de Daimons e demônios ou, melhor, ao pouco que havia—, Acheron. Isto deveria ser total e absolutamente destruído esta noite.

     Ash se ajoelhou ao lado de Styxx para inspecionar o machucado. Não estava muito preocupado, não podia morrer a menos que ele o fizesse. Mas isso não significava que não doesse como o inferno. A adaga que tinha Stryker teria acabado com ele, se Styxx não tivesse detido o ataque.

     Seu irmão, que tinha querido morrer tanto como ele, tinha-lhe salvado a vida.

     Quase nem podia imaginá-lo.

     Styxx encontrou seu olhar, ainda quando estava tremendo de dor pela ferida.

     —Sabes irmão, supõe-se que nunca deves fechar os olhos durante a batalha.

     Ash riu ante o humor negro.

     —Não era eu que treinava para ser general.

     Olhou aos homens que os rodeavam.

     —Talvez. Mas faz melhor trabalho liderando-os do que eu o fiz. Definitivamente, acredito que Papai treinou ao errado.

     Essa era a coisa mais amável que lhe havia dito. Não falou, enquanto punha a mão sobre a ferida.

   Styxx lhe segurou o olhar. Mas quando selou a ferida, deixou sair uma maldição sobre o “delicado” toque de Ash, que teria feito a Stryker sentir-se orgulhoso.

     —Estou morto já? —perguntou sarcasticamente.

     —Ainda não. Tens alguns anos ainda para me encher o saco profundamente.

     Sorriu.

     —Espero-o com impaciência.

     Pela primeira vez, Ash também o fazia.

     —Fez um bom trabalho para mim. Obrigado.

     —Sim, bom, na próxima vez que precise descer a um santuário Daimon, escolhe a outro de teus imbecis para fazê-lo. Não tenho o poder de um deus quando vêm atrás de mim, e isso me põe em absoluta desvantagem.

     Ainda assim, ficou frente a Ash para protegê-lo… percorreu um longo caminho permitindo-se deixar o passado para trás e aceitando ao seu irmão. Sorrindo amplamente, ajudou a Styxx a ficar de pé.

     Talon coçava a cabeça enquanto os observava.

     —Ouça T-Rex? Me recorde que da próxima vez que queira me fazer de sabichão contigo, é uma tentativa estúpida de minha parte.

     Wulf abriu a boca.

     —Oh, não o farás, garotinha. Disse-me que da próxima vez que visse Ash, perguntar-lhe-ias se tinha visto o filme 10.000 a.C. e que se tinha feito sentir nostalgia.

     Talon fez um gesto para Wulf.

     —Importar-te-ia de não conseguir que me fritem esta noite? Eu gostaria de utilizar algumas partes de meu corpo depois, se entendes o que te digo. E como estás casado criando a filhos, sei que o fazes.

     Ash olhou a Tory, qualquer gesto de desassossego que tivera se evaporou. Estava a salvo e era tudo o que lhe importava.

     Olhou ao redor, ao grupo que tinha vindo a ajudá-lo e se maravilhou com eles.            

     —Obrigado, rapazes.

     Kyrian lhe ofereceu a mão.

     —Em qualquer momento que o necessites Acheron, aqui estaremos para ti.

     E um por um lhe deu a mão e fez a mesma declaração.

     Até que chegou Talon.

     —Um dia, vais ter que me contar como fez essa coisa do pau. Poderia ser prático não só com os Daimons, mas também com os crocodilos e os vizinhos insuportáveis.

     Ash riu.

     —Um dia poderia ser.

     Ao menos até que Nick passou junto a ele e chocou o ombro com o de Ash. Foi um ato bastante juvenil. Olhou-lhe com firmeza enquanto Nick vigiava ao longe, nas sombras.

     —Só para que saibas Nick, também amava a Cherisse.

     Virou em redondo e seguiu caminhando.

     Zarek foi o último homem a ir embora. Passeou e sacudiu a cabeça. O olhar foi para Tory, antes de retornar a Ash e lhe falar em grego.

     —Sabes, para mim é assombroso as feridas que podemos carregar por toda a eternidade. Mas o que mais me fascinou nestes poucos anos é como a pessoa correta pode curá-las. Lembrança que uma vez, um homem sábio me disse que todos merecemos ser amados. Inclusive tu.

     Ash soprou ante o conselho que tinha dado a Zarek antes que o homem quase deixasse ir a sua esposa.

     —E segundo lembro, disseste-me que me calasse.

     Zarek se encolheu, dando um passo.

     —Sou um imbecil. Admito-o. Vou semanalmente às reuniões de Imbecis Anônimos, mas leva um pouco de tempo enterrar alguns milhares de anos de costumes. E acredito que tens ainda mais anos a enterrar que eu.

     —Assim, como está Bob? —Perguntou Ash, mudando de assunto— Astrid já ganhou a batalha?

     —Em chamá-lo de Menoeceus? Infernos não. Ainda digo que se parece muito a Menopausa para meu gosto, e nem sequer há um bom apelido para isso. Podes imaginar estar preso a esse nome na escola? Me chame de ridículo, mas quero que o menino cresça sem nenhum tipo de trauma.

     Riu ante a diatribe que Zarek tinha comentado em mais de uma ocasião. Ainda assim, sua esposa seguia chamando o pobre menino de Menoeceus, enquanto que o pai lhe chamava Bob.

     Sacudiu a cabeça.

     —Mas te digo uma coisa, não há nada melhor que olhar a um filho e ver-te unido nele com outra pessoa que sabes que podes confiar e nunca te joderá. E te devo isso, Acheron. Cada vez que olho para eles, nunca esqueço o que te devo. —Deu um passo para afastar-se e mudou ao inglês, sem saber que Tory entendia o grego tão bem como ele—. Se cuidem os dois. E pelo bem dos deuses, se afastem dos problemas. Ao menos até que faça calor. Já sabe o que adeio estar em lugares frios. —desapareceu instantaneamente.

     Enviou o bastão de volta ao Katoteros enquanto Tory se aproximava. Arrumou a blusa.

     Tratou de jogar uma olhada a suas costas.

     —Como te sentes?

     —Neste momento, como se pudesse voar. —Estendeu a mão para ela.

     No instante em que a tomou, transportou-os a seu apartamento no Pirate’s Alley.

     Olhou ao redor, com a sobrancelha arqueada.

     —Uau, não estavas brincando. Este lugar é minúsculo.

     Ele tirou a mochila dos ombros.

     —Não necessito de muito.

     —Sabes o que, eu tampouco. Mas há uma coisa que sim necessito.

     —E o que é?

     O ardente e sincero olhar em seus olhos o chamuscou.

     —Tu.

     Saboreou a palavra e a onda de amor que atravessou seu coração. Mas ao final, sabia a verdade.

     —Não posso estar contigo, Tory. Nunca pode haver um nós.

     —Por que não?

     Estava louca? Tinha apagado de sua memória os acontecimentos que acabavam de viver?

     —Já viu com o que tenho que lidar diariamente. Meus inimigos não são humanos e tenho muitos mais que só Stryker para lutar. Embora Nick te tenha deixado livre esta noite, não o fará amanhã. Sem mencionar o problema ruivo. Não posso te pôr em semelhante risco. Jamais.

     —E se não estiver de acordo?

     —Não o permitirei. Sou um deus, Tory. Se tiver que fazê-lo, apagar-me-ei de tuas lembranças.

     —Se brincar alguma vez com meu cérebro Acheron, juro-te que te farei mal.

     Agora que pensava nisso, provavelmente era como Nick. Muito obstinada para que seus poderes funcionassem com ela.

     —Seja razoável, Tory. Minha vida é muito complicada e perigosa.

     Quis gritar ante a obstinação.

     —Todos merecem ser amados, Acheron —disse, repetindo as palavras de Zarek—. Olhe –me aos olhos e me diga realmente que desejas que vá. Diga-me que não queres me ver nunca mais.

     Tragou enquanto as emoções lhe sacudiam. Não queria que se fora. Queria tê-la e mantê-la junto a ele pelo resto de sua antinatural vida.

     Mas enquanto fosse humana o fazia vulnerável. E enquanto tivesse inimigos que queriam lhe ferir, não podia lhe permitir estar perto.

     —Quero que vá embora, Tory.

     —Sim, bom, as pessoas no inferno querem água gelada. Agora tire a roupa e me deixe ver tuas costas. Deve te estar matando neste momento.

     —Assim, vais ignorar-me por completo?

     —Não completamente. Escuto o que estás dizendo e respeito o fato de que fui vencida e derrotada esta noite. Que esses demônios entraram e me arrastaram de onde estava sentada. Mas não sou uma mulher estúpida, e dito isto, tampouco me rendo quando ponho o olho em algo. Te amo, Acheron, e pretendo estar ao seu lado ainda quando tratar de me afastar.

     Fechou os olhos enquanto desfrutava de cada palavra dita.

     —Não sei como amar a alguém, Tory. Não sei.

     —O grupo de pessoas que vi disposto a dar a vida por ti, me diz que estás mais cheio de amor que adubo em um campo de vacas, amigo.

     —Artemisa não nos vai deixar viver em paz. O entendes?

     —O que entendo é que te disse que tirasse a roupa, e ainda estás aqui discutindo comigo. Te renda a mim. Confie, é mais fácil assim.

     Levantando as mãos em sinal de rendição, usou os poderes para tirar a camisa.

     Aspirou com força quando viu as feridas abertas que destroçavam as costas.        

     —Como podes suportá-lo?

     O olhar vazio que lhe lançou a atravessou.

     —Estou acostumado.

     —Te coloque na cama. Estas costas precisam ser atendidas e precisas descansar.

     —Sim, senhora. —Avançou para o dormitório enquanto Tory ia à cozinha. Fez uma pausa na porta para observá-la. Esquecendo-se dele, tirou uma tigela e a encheu de água.

     Uma onda de desejo o golpeou tão forte que literalmente lhe tirou o fôlego. Se não estivesse tão ferido, não iria à cama sozinho. Mas a dor nas costas era imensamente mais urgente que o de sua virilha.

     Entretanto, nenhum deles podia comparar-se ao de seu coração, que lhe dizia que isto não poderia durar. Apesar de sua obstinação, ia ter que ir embora antes que Artemisa a assassinasse.

     Estava correto. Estava a ponto de voltar arrastando-se para implorar por alimento. Entre a luta e as feridas das costas, estava faminto. Se não se alimentava logo, começaria a matar.

     Estremecendo-se, perguntou-se o que pensaria Tory se visse esse lado dele. O triste era que não queria que lutasse com ele assim. Não queria que visse nunca à besta que vivia em seu interior.

     Suspirou e foi à cama para esperá-la, sabendo que quando a manhã chegasse, teria que deixá-la ir.

 

     Tory se deteve quando entrou no quarto onde Ash estava dormindo. Sua respiração era tão estranha. Não era como a de um humano, parecia mais um cão moribundo. Preocupada, deixou a tijela e o pano sobre a mesinha de noite e se sentou ao seu lado.

     Colocou a mão sobre a ardente bochecha. No momento em que o tocou, todo o corpo se voltou de um vívido azul. Ofegando, observou como a pele se voltava marmórea, mesclada com várias sombras de cor azul. As unhas se tornaram negras e dois pequenos chifres se sobressaíam do topo da cabeça.

     Saltando da cama, franziu o cenho quando a marca do duplo arco e a flecha de Artemisa apareceram sobre as feridas das costas.

     Grunhia inclusive dormido. E quando abriu os olhos para olhá-la, tudo o que pôde fazer foi não correr. Os olhos já não eram chapeados, eram de um luminoso vermelho atravessado com linhas amarelas. Abriu a boca e vaiou, lhe mostrando um par de serradas presas.

     —Bebê? —murmurou, procurando algum sinal do homem que amava na criatura que a aterrorizava.

     Piscou como se a visse pela primeira vez e se encolheu sobre a cama.

     Aproximou-se lentamente. Estendendo a mão posou brandamente a palma contra a bochecha azul. Fechou os olhos e fuçou a mão enquanto parecia lhe farejar o pulso. Isso pareceu lhe acalmar. Disse-lhe algo em Atlante que não podia sequer começar a traduzir.

     —Não entendo —respondeu em Atlante.

     —Akee-kara, akra.

     Afastou-lhe o cabelo do rosto.

     —Necessita de algo, doçura?

     Ash estava tentando concentrar-se, mas era impossível. Tudo era confuso. Nem sequer estava seguro se estava acordado ou sonhando. A dor nas costas parecia ter desaparecido. E estava perto de sangre fresco, podia cheirá-lo e escutar os batimentos do coração.

     Esse som o deixava com água na boca.

     Lambendo os lábios, inalou o perfume da pele feminina que cobria as veias que queria atravessar…

     Comida.

     Supunha-se que não podia fazê-lo. Inclusive nesse estado, recordava as regras que impôs a si mesmo. Não tinha permitido provar aos humanos. Estava errado. Mas agora enquanto se estava morrendo de fome, não podia recordar porquê.

     Em tudo o que podia pensar era em saciar essa dolorosa necessidade.

     Puxou a humana aproximando-a, de forma que pudesse cheirar seu pescoço. Lambendo a suave pele dali, acariciou a pele com as presas, querendo afundá-las profundamente. Sentiu os calafrios percorrendo-a enquanto suspirava de prazer.

     Falava-lhe, mas não podia entender as palavras. Ao menos não até que os lábios tocaram os seus. A doçura da boca tocou ao homem em seu interior e manteve submetida à besta. Tory tremeu quando Ash voltou para a normalidade. A pele era outra vez dourada, os olhos cheios dessa formosa calma chapeada. Inclusive assim, havia uma ferocidade que recordava a um tigre apenas domesticado. E quando levantou a mão para tocá-la, ela vacilou.

     —Estás ferido, Ash. Deverias descansar.

     Sacudiu a cabeça como se tentasse clareá-la. As roupas desapareceram. E ao voltar a tomar posse de sua boca, não pôde seguir o fio, raciocínio. Enlaçou os dedos com os seus e pressionou a mão contra o pênis ereto. Sentiu-se tremer enquanto se esfregava contra sua palma.

     Deixou a mão ali para que pudesse lhe tocar. Em um instante, estava de lado na cama e no seguinte, estava sujeita debaixo dele. Suspirou ante a maravilhosa sensação do corpo nu estendido contra o seu.

     Procurando não lhe tocar as costas, agarrou-lhe o rosto entre as mãos enquanto ele aprofundava o beijo.

     Ainda não estava seguro se estava sonhando ou não. Tudo o que sabia era que o perfume de Soteria lhe enchia a cabeça e tinha que estar dentro dela. Com o coração martelando-lhe, separou-lhe as pernas e se deslizou profundamente. No instante em que o fez, ofegou pelo prazer que sentiu. Mas não passou muito antes que a besta em seu interior retornasse, querendo alimentar-se do sangue que corria pelas veias. Aquilo era tudo o que podia ouvir. Tudo no qual podia pensar. Isto superava ao prazer e o deixava salivando.

     Choramingou quando Ash se retirou. Ao menos até que viu seu rosto. A tortura que havia ali se gravou em seu coração.

     —O que ocorre?

     Queria ficar com ela. Queria estar em seu interior outra vez…

     Não, queria alimentar-se. A urgência de lhe rasgar a garganta era muito forte.

     Estava perdendo o controle. Desataria-se e liberaria até que já não fora capaz de recordar outra coisa que a miséria da fome. Cada segundo o aproximava da margem.

     Incapaz de controlá-lo sem matá-la, deixou o reino humano.

     Piscou quando se deu conta que estava sozinha.

     —Ash? —chamou, perguntando-se aonde tinha ido.

    

     Completamente nu, abriu de repente as portas da câmara de banho de Artemisa. Já não era humano, era a besta que detestava. Nada lhe importava exceto alimentar-se. Destruir.

     Matar.

     Acheron se tinha ido, mas Apostolos fazia ato de presença. E o Arauto Apostolos queria sangue e só havia uma pessoa de quem o ansiava.

     Artemisa…

     Ofegou ante a intrusão no banheiro até que se deu conta que era Acheron. Sorriu ante a pele azul e o cabelo negro.

     —Disse-te que retornarias para mim.

     Voou das portas à piscina em que estava se banhando. Pousando-se, escondido sobre a borda próxima, recordava-lhe mais a um pássaro que a um homem.

     Agarrou-a e aproximou.

     Pôs-lhe a mão na mandíbula e o afastou do pescoço antes que pudesse afundar as presas.

     —Não ganhaste a comida. Estou zangada contigo e não vais comer até que me agrades.

     Incapaz de linguagem algum na forma de destruidor, sussurrou e apertou o agarrão.

     Lançou-o a um lado. Ele voltou a aterrissar de flanco. Em um movimento fluido, ficou de pé e grunhiu.

     Apertou os dentes com raiva antes de lançar-se para ela.

     Se teletransportou se afastando do caminho, sabendo que se lhe punha as mãos em cima, ou neste caso, as garras, a mataria.

     Espreitava-a igual a uma presa. Provavelmente deveria estar aterrada, mas a raiva era mais forte. Normalmente nenhum dos dois permitia que passasse tanto tempo sem alimentar-se. Mas a tinha traído e, honestamente agora mesmo não lhe importava se morria.

     Negando-se a se deixar apanhar, fugiu para o aposento de atrás.

     Tentou lhe cortar a retirada, mas passou através dele e entrou a salvo na sala. Estupidamente, seguiu-a. No momento em que esteve dentro, ela desapareceu na porta e a fechou de repente, deixando-o preso em seu interior.

     Ele lançou-se repetidamente contra a porta, como um animal enlouquecido. Com a força com que a golpeava, assombrava-lhe que não a rompesse.

     —Não podes escapar daí, Acheron. Teus poderes são inúteis nesse aposento e até que te liberte, serás meu.

     Golpeou a mão com garras contra a porta e deixou escapar um uivo tão feroz que fez que o pêlo do pescoço se arrepiasse. Oh, definitivamente a mataria agora mesmo se se libertava.

     Entrecerrando os olhos, cruzou os braços sobre o peito e lhe dedicou um vaidoso olhar.

     —Como disse, sou tua proprietária. Agora se sente aí e passe fome até que esteja preparada para te alimentar.

     Quase nem podia entender as palavras enquanto a fome lhe corroía. Neste estado, era igual às Sombras de Dark-Hunters que tinham morrido enquanto Artemisa mantinha as almas prisioneiras. Sempre famintos e sedentos. Sem razão e incapazes de comunicarem-se. Era a mais miserável de todas as existências.

     A porta se solidificou e ficou sozinho em uma pequena e escura sala. Não havia móveis, nem janelas…

     Nem sequer havia luz.

     Por um instante, a lucidez voltou e se sentiu de novo igual a um menino na prisão. Girou, procurando os ratos que estavam acostumados a lhe morder. Escutando o som de suas pequenas patinhas arrastando-se.

     —Artemisa! —gritou. —Me deixe sair!

     Estou assustado. Essas palavras lhe entupiram na garganta.

     —Acheron? Estás aí?

     Ouviu a voz de Ryssa em sua cabeça.

     Então a fome voltou, afastando toda fresta de humanidade. Esmurrou as portas com as garras. A dor da fome era insuportável. Incapaz de permanecer assim, lançou-se contra as portas, uma e outra vez, decidido a atravessá-la.

 

    Passaram quatro dias enquanto considerava que devia fazer com Acheron. Seu incessante tamborilar contra a parede e os grunhidos e alaridos estavam começando a fartá-la.

     Mas tinha que aprender uma lição. Tinha que ser castigado e até que aprendesse a permanecer ao seu lado, não lhe deixaria sair.

     Sem mencionar, que agora mesmo, honestamente lhe temia. Nunca tinha passado tanto tempo sem alimentar-se. E antigas experiências lhe diziam que uma pequena taça de seu sangue só serviria para aumentar mais o apetite.

     Considerou lhe alimentar com uma das donzelas, mas isso seria cruel.

     E ao terminar esse pensamento lhe ocorreu outro.

     —Não uma kori…

     Não. Algo que rimava bastante com isso. Sorriu ante sua perspicácia. Tinha jurado a Acheron que Soteria não seria machucada por ela ou por algum de seus seguidores.

     Mas não tinha prometido manter a Acheron afastado.

     Havia-lhe dito que lhe acalmava. Bem, deixemos que a puta lhe acalme agora. Deixemos que lhe alimente.

     Resolvendo com satisfação, Artemisa se teletransportou a Nova Orleans onde a pequena puta estava dando aula. Irritada por ter que esperar, ficou no corredor até que terminasse.

 

    Tory estava abatida quando se despediu de seus estudantes. Não tinha visto ou ouvido Ash há dias e, o fato de que lhe tivesse deixado como única posse sua apreciada mochila, a fazia perguntar-se se não lhe teria acontecido algo ruim.

     Colocando os livros em sua própria mochila, levantou-a da mesa e se dirigiu à porta. Mas antes que a alcançasse, uma maravilhosa e alta ruiva entrou na sala. Vestida com um caro traje branco e sapatos da Prada, era impressionante.

     Queria lhe arrancar cada mecha de cabelo da cabeça.

     —Por que estás aqui, Artemisa? —Perguntou friamente.

     Franziu os lábios como se odiasse estar perto dela, inclusive mais do que Tory odiava estar ao seu redor.

     Não, isso não era possível.

     —Acheron precisa de ti, humana. Está ferido e não pode vir.

     Franziu o cenho.

     —Por que virias me buscar?

     —Quer a ti. Acredite em mim, não há outra razão pela qual esteja aqui.

     Ainda suspeitando, agarrou com força a alça de sua mochila.

     —Estás mentindo pra mim?

     Fez um antigo gesto grego de lealdade e verdade.

     —Juro-o, está sofrendo e necessita de ti. És realmente tão egoísta que não lhe ajudará?

     Ela era egoísta? Teria rido se não tivesse estado tão preocupada.

     —Então, me leve até ele.

     As teletransportou fora da sala de aula e entraram no que parecia ser um antigo templo grego. O aposento estava rodeado por colunas e no teto havia uma assombrosa cena de caça estampada em ouro. Era refinada.

     —Onde estou?

     —No Olimpo. —Conduziu-a a uma sala que tinha uma piscina de banho de estilo antigo. Não se deteve até alcançar uma porta ao outro lado. Quando levantou a mão, a porta se iluminou até fazer-se transparente.

     Tory ofegou quando viu Ash estendido nu no chão. O cabelo negro estava sem brilho, a respiração suave. A pele era novamente azul marmórea e dois chifres negros se sobressaíam da cabeça. As magras coxas estavam completamente marcadas por dois tons azuis de pele. As mãos acabavam em longas garras negras e quando as viu olhando-o, despiu um par de afiadas presas para elas.

     Empurrando-se para levantar-se, sustentou um braço ao redor do estômago como se estivesse doente. Deu um passo e caiu de novo sobre o chão com evidente dor. Emitiu um bramido de agonia e frustração.

     —É repugnante em sua forma de deus, verdade?

     Ela percorreu a deusa com um depreciativo olhar.

     —Nunca é repugnante. O que lhe ocorre?

     —Precisa comer. Isso é o que sempre lhe acontece se passa muito tempo sem alimentar-se.

     —Então por que não lhe alimentaste?

     Um lento e malvado sorriso curvou os lábios de Artemisa.

     —Doçura, por que pensas que estás aqui? —afastou-se e abriu a porta.

   A seguinte coisa que soube, era que a tinha empurrado ao interior da sala e fechado a porta, encerrando-a com Ash.

     —Bon Appetit.

     Voltou-se para a porta tentando abri-la. Mas não havia maneira. Não havia fechadura, chave ou algo nesse lado. Tudo o que podia fazer era ver o zombador rosto de Artemisa.

     Oh se tivesse três minutos a sós… Seria uma morte súbita digna de pagar-pelo-evento.

     Sem outra escolha, aproximou-se lentamente de Ash. Cuidadosamente. Poderia distinguir se era ela? Pela maneira em que estava agindo, não sabia.

     —Bebê?

     Olhou-a com olhos vermelho sangre que não continham nenhuma semelhança de entendimento. Eram ferozes e frios. Os olhos de um predador.

     Com uma velocidade que nem sequer pôde captar visualmente, levantou-se. Agarrando-a pela garganta, lançou-a ao chão e afundou as presas profundamente no pescoço.

 

    A Ash lhe zumbia a cabeça e lhe doía o ombro quando finalmente saciou um pouco da fome que o tinha estado atormentando durante dias. O sangue era tão bom. Tão cálido e satisfatório. Lambeu e sugou, bebendo até que voltou para a normalidade.

     Mas quando voltou em si, a fúria aumentou já que o tinha deixado muito tempo sem alimento. Inclusive embora não tenha sido capaz de falar, recordava-a observando-o através da porta.

     Comerás quando me agrades… Sabia o que essas palavras lhe faziam e estava cansado do abuso.

     —Artemisa, tu… —As palavras se apagaram quando se afastou da garganta e se deu conta de que não estava sustentando a Artemisa.

     Era Tory e estava extremamente pálida devido à perda de sangue.

     O horror o encheu. O pescoço estava grosseiramente mutilado por seus dentes, os olhos marrons meio fechados enquanto se esforçava por respirar. Não! Sua alma gritou. Como podia havê-la machucado?

     Como podia ter ido tão longe que não se deu conta de que era a Tory a quem saboreava?

     Porque Artemisa o tinha mantido sem alimentar-se por muito tempo. E então tinha atirado uma humana até ele, sabendo que não poderia sobreviver a sua alimentação.

     —Oh deuses —ofegou, em choque— Fique comigo, bebê. Te conseguirei ajuda.

     Ela tossiu enquanto se estirava para acariciar os lábios que estavam cobertos com o sangue da alimentação. Viu o temor nos olhos e a dor que lhe tinha causado. A culpa era mais do que podia suportar.

     —Soteria? —Sussurrou seu nome igual a uma prece. —Akribos?

     Ela emitiu um último fôlego antes que os olhos se fechassem e a mão caísse sem vida ao chão onde ficou com a palma para cima.

     Uma inimaginável dor o atravessou quando se deu conta que acabava de matá-la. Jogando para trás a cabeça, bramou pelo peso da culpa e da dor que o assaltaram.

     Nunca a teria machucado. Jamais!

     Então viu Artemisa na porta, a salvo do outro lado, observando. A satisfação nos olhos o fazia querer arrancar-lhe.

     Deitou cuidadosamente a Tory no chão antes de carregar contra a porta, decidido a agarrar a essa puta que lhe tinha tirado tudo. Outra vez.

     —Por que?—Rugiu.

     Ela entrecerrou os olhos em desumana fúria.

     —Tu sabes por que. —então a porta se escureceu e o deixou sozinho com o corpo da única mulher que tinha amado realmente.

     A mulher que acabava de matar. E nessa sala onde seus poderes eram inúteis, não podia curá-la ou trazê-la de volta. Estava morta, tinha-a matado. Jogando a cabeça para trás, rugiu de dor.

    

    Tory perambulava através de uma espessa e sufocante névoa. Sentia-se perdida e desorientada. A última coisa que recordava era ver a Ash. Ver o olhar de horror e temor no belo rosto, enquanto o pescoço lhe palpitava de dor.

     Agora não havia dor. Não havia nada. Nem luz. Nem som. Nem cheiro.

     A privação era aterradora.

     —Ash? —chamou, tentando que ouvissem os gritos.

     —Não está aqui, pequenina.

     Voltou-se ante o pesado acento da suave voz atrás dela para encontrar a Apollymi ali de pé na escuridão.

     —O que estás fazendo aqui?

     Estendeu-lhe a mão.

     —Roubei sua alma no momento em que morreu e te trouxe para o Kalosis, mas não posso retê-la a menos que me permitas. Eu não o faria se fosse tu. As almas são muito preciosas para as esbanjar e a tua em particular tem um grande valor para mim.

   —Não o entendo —pôs a mão na de Apollymi e ao momento em que se tocaram, teve total clarividência de tudo o que sabia sobre ela e Acheron. Mais que isso, viu as lembranças de Ash e como morreu. De Artemisa lhe dando as costas e lhe abandonando, enquanto tentava alcançá-la para que lhe ajudasse.

     Como podia ter feito tal coisa?

     As lágrimas se acumularam nos olhos e quando viu sua própria morte e o olhar de satisfação no rosto de Artemisa enquanto Ash gritava, quis sangue.

     —Artemisa me matou?

     Apollymi assentiu.

     —Ainda está castigando ao meu filho e não há nada que possa fazer para detê-lo… mas tu Soteria, tu podes.

     —Como?

     —Posso enviar tua alma de volta ao corpo durante um instante. Uma vez o faça, a única maneira de que voltes para a vida é beber o sangue de Apostolos antes que a alma abandone outra vez teu corpo.

     Teve um difícil momento para acreditá-lo.

     —O que?

     Apollymi deu palminha na mão. A débil luz refletia lágrimas de cristal naqueles olhos de redemoinhos calidamente brilhantes.

     —Sou uma deusa da destruição. Seu pai era um deus da criação. Dentro de Apostolos, nossos poderes se uniram e é um dos raros deuses que podem tanto criar como destruir a vida. São os poderes de criação os quais Artemisa usa para trazer os Dark-Hunters à vida. Sem alimentar-se dele, nunca teria tido essa habilidade. E assim como ela, se te alimentares de meu filho, compartilharás os poderes. Terás a habilidade para te curar e voltar para a vida. Mais que isso, terás os poderes para te proteger. Enviarei as minhas sacerdotisas para te servir como guardiãs para me assegurar de que ninguém te faça mal outra vez.

     Soava muito bom para ser verdade. Poderia voltar a Ash e ao mundo com poderes de um deus… Certamente não era tão simples.

     —Qual é o truque?

     —O mesmo que Artemisa usava com Apostolos. Uma vez que te alimentes dele, terás que te alimentar sempre.

     Ela encolheu-se quando recordou a dor de Ash ao mordê-la.

     —Sangue?

     A contra gosto, assentiu.

     —Por favor, Soteria. Faça o que eu não posso. Salve ao meu filho do monstro que intencionalmente lhe atormenta. Apostolos nunca tomará o sangue de outro e vinculará a essa pessoa a ele por própria vontade. Não depois da cruel maneira em que Artemisa lhe enganou e lhe submeteu a essa escravidão. Se voltares e te alimentas dele e ele de ti, te livrarás dessa puta para sempre.

     Ela afastou o olhar enquanto considerava o que viria.

     —Posso ficar com o Ash?

     —Sim e te darei o suficiente de meus poderes para me assegurar que nem sequer Artemisa, ou qualquer outro inimigo de Apostolos, seja capaz de te machucar outra vez.

     As dificuldades às que Apollymi se entregaria por Ash a comoviam e recordava a sua própria mãe… uma mãe que sentia saudades a cada dia de sua vida.

     —Mas o que acontece contigo? Isso não te debilitará?

     —Debilitará, mas não importa. Quero que meu filho seja livre e o quero feliz, sem importar o que me custe. Estou farta de ver o desalento em seus olhos quando falamos. De ver a dor que não posso aliviar. Ajudarás a ele? Por favor?

     Tory consolidou o apertão na mão da deusa, esperando que soubesse quão sincera estava sendo.

     —Faria qualquer coisa por esse homem.

     Ela sorriu.

     —Pensava que sua prima Geary seria a única que liberaria ao meu bebê. Mas no momento em que te vi pela primeira vez quando só tinhas dez anos, debruçando-te nas ruínas de meu templo sob o Egeu, soube que serias a única. Isso foi pelo qual nunca permiti que nenhum homem te tocasse.

     Cobriu a mão com a sua e a manteve apertada.

     —Soteria. A Guardiça de Atlântida que ficou no posto inclusive contra minha fúria, e quem caiu lutando por proteger o que mais amava. Faz honra a teu nome.

   Ele tirou o pingente do pescoço e então o guardou na palma de Tory.

     —Quando estiveres pronta para lutar por ele, pressionas isto contra o coração e terás os poderes de uma deusa. Para sempre.

     Sustentou o pingente na mão e estudou a tempestuosa névoa vermelha no interior da translúcida pedra. Agradecida pelo presente, abraçou a Apollymi.

     Ela ficou atônita pelo abraço. Ninguém a havia tocado com tanto afeto desde a noite em que tinha concebido a Apostolos. Fechando os olhos, sustentou perto à menina.

     —Enquanto sejas amável com ele, sempre serás minha filha. Se necessitas de qualquer coisa, me chame e atenderei.

     —Não deixarei que lhe aconteça nada outra vez. Prometo-o.

     Beijou-lhe a bochecha antes de afastá-la.

     —Então vá até ele, Soteria. Precisa de ti.

     Assentindo, deu um passo para trás e pressionou a pedra contra o coração. No momento em que o fez, uma aguda dor a atravessou.

     —Oh! Não me disseste que doeria.

     Ela deu de ombros.

     —Nascer sempre é doloroso e não o é menos renascer.

     Não estava brincando. Sentiu algo se fazendo migalhas do interior para fora. Com náuseas e enjoada, piscou ante a escuridão que era tão opressiva para cegá-la.

     A seguinte coisa que soube, era que estava nos braços de Ash. Estava sentado no chão, sustentando-a contra seu corpo, bochecha com bochecha, balançava-a e lhe sussurrava.

     —Por favor, Tory, por favor, não morras. Por favor, não me deixes sozinho. Não quero viver sem ti…

     Essas afligidas palavras a afogaram, mas o que a deixou atônita foi a umidade das bochechas.

     Estava chorando.

     Por ela.

     Levantando a mão, deslizou os dedos contra as costeletas da mandíbula. Ash se voltou atrás com um angustiado ofego.

     —Soteria?

     Assentiu, então sentiu a fome que sua mãe tinha mencionado. Esta queimava através dela com uma incrível ferocidade, alongando seus incisivos. Decidida, sustentou-lhe o olhar.

     —Deixa que fique contigo, Ash.

     Não pôde respirar quando entendeu o que lhe estava pedindo. O que necessitava. E pela primeira vez na eternidade, estava disposto a sangrar para lhe dar a vida.

     —Estás segura?

     Ela assentiu.

     Ele afastou o cabelo a um lado e inclinou o pescoço. Fechando os olhos, preparou-se para a dor da dentada. Para a odiosa sensação da respiração no pescoço enquanto se alimentava.

     Deteve-se quando lhe sentiu ficar rígido. Levou-lhe um segundo para dar-se conta do porquê. Não podia suportar ter a alguém lhe respirando no pescoço e ainda assim, ali estava sentado, oferecendo-se sem reserva ou comentário algum. Nesse momento o amou inclusive mais.

     E com seus recém descobertos sentidos, soube que o pescoço não era o único lugar do qual podia alimentar-se…

     Abriu os olhos quando se afastou. Franzindo o cenho, observou como baixava e lhe mordia no interior da coxa. Ofegou com força quando uma onda de desejo lhe cegou e endureceu seu pênis, estando só a algumas polegadas dessa boca. Mas o que mais lhe surpreendia, era que não lhe tinha agarrado pelo cabelo e ferido enquanto se alimentava do pescoço. Estava sendo gentil e considerada, e quando levantou o olhar, esses olhos coincidiram com os seus.

     Essa profunda prata tempestuosa que tanto odiava, via-se bonita nela. Agora estavam vinculados. Os poderes. O sangue. Eram seus agora. Mas inclusive assim, queria-a como tinha sido. Beijando-a nos lábios, voltou seus olhos à cor marrom que lhe tinha roubado o coração da primeira vez que tinha olhado ao redor da sala, com nervoso pânico.

     Essa era a mulher que amava. A única sem a qual não podia viver.

     Tory sentiu um rigoroso e inimaginável poder em seu interior. Agora podia ouvir tudo. Ver as mais minúsculas cores em cada objeto.

     —É assim como vês o mundo?

     —Sim.

     Era tão vívido. Entristecedor. Ao mesmo tempo o corpo estava quente e necessitado. Olhou-lhe e ele realmente se ruborizou antes de vestir-se.

     Clareando a garganta, indicou-lhe a porta com uma inclinação de cabeça.

     —Não podemos fazê-lo aqui.

     —Artemisa —grunhiu o nome.

     Ele assentiu.

     —Ainda estamos encerrados em seu templo.

     —Não por muito tempo. —Ficando de pé, foi para a porta.

     Franziu o cenho quando Tory fechou os olhos e estendeu as mãos a ambos os lados. Sentiu o vento de sua avó agitando-se ao redor. A mandíbula lhe afrouxou quando se deu conta do que estava acontecendo… sua mãe lhe tinha dado parte de seus poderes. Não só tinha os seus.

     E a combinação desses poderes com os de sua mãe…

     Era algo aterrador.

     O pensamento quase nem tinha terminado antes que a porta se estilhaçasse em milhares de fragmentos.

     Artemisa gritou lá fora, e logo fugiu para a sala do trono.

     Ash se levantou e foi para Tory.

     —Vamos para casa.

     Ela negou com a cabeça.

     —Vá te adiantando. Estarei lá em uns minutos.

     Ele deteve-se ante a estranha nota na voz.

     —Tory…

     Dedicou-lhe um travesso sorriso, cortando as palavras.

   —Só vou falar com ela. Não te preocupes.

     Sim, claro. Não se preocupar? Estava louca? Pela primeira vez, não estava seguro qual delas estava em mais perigo.

     Vacilou, mas finalmente confiou nela.

     —Lhe recorde que saberei se te faz mal e se o fizer, não há bastante poder no Olimpo que a proteja.

     Ela beijou a ponta do dedo e o pressionou contra a ponta de seu nariz.

     —Não estejas tão intranqüilo. Só vamos ter um bate-papo de garotas.

     De algum modo o duvidava. Conhecendo Tory, seria igual a uma briga de gatas. Mas não interferiria. Era hora de que alguém pusesse à deusa de joelhos.

     —De acordo, bebê. Estarei esperando em meu apartamento.

     Não se moveu até que Ash partiu. Imediatamente em que sentiu os poderes a salvo ao retornar ao mundo humano, dirigiu-se na direção em que Artemisa tinha saído fugindo.

     Com os novos poderes desatados, ia ter uma longa conversação atrasada de “Venha com o papai” com a deusa.

 

    Artemisa esperou até que todos os poderes desaparecessem de seu templo. Salvo que não foi assim. Sentiu que os poderes primários de Acheron se iam, mas ainda restavam mais. Poderosos. Frios. Calculistas.

     Isso não era Acheron.

     E quando Soteria cruzou as portas de sua sala de banho para a Sala do Trono com um caminhar mortal, o sangue se drenou completamente do rosto de Artemisa. Não havia dúvida que a mulher queria um pedaço dela e que estava disposta a brigar.

     Apesar de tudo se negou a permitir que a garota visse seu pânico.

     —Não és nada para mim, humana.

     Tory se burlou, e lhe falou em um grego perfeito.

     —Oh, estás equivocada sobre isso, Artemisa. Não sou um nada. Sou a que te vai chutar o traseiro se alguma vez voltar a te aproximar de Acheron.

     Artemisa estendeu sua mão e fez Tory voar ao longo da sala.

     —Tu não és ameaça para mim.

     Tory levantou suas mãos e justo quando ia golpear-se contra a parede, deixou de mover-se. Abrindo seus olhos, surpreendeu-se ao encontrar-se flutuando sobre o piso a uns quantos centímetros da pedra com a qual Artemisa tinha intenção de golpeá-la.

     Artemisa gritou de indignação enquanto Tory ria de alívio. Estes poderes eram grandiosos.

     Mantendo suas mãos a cada lado, colocou-se de novo no piso da sala. Artemisa correu para ela e a agarrou pelo pescoço. Tory se deslizou fora de seu puxão, e a empurrou.

     —Oh, cadela, por favor. —Estirou sua mão e pressionou a Artemisa contra a parede.

     —Me solte!

     Tory apertou seu agarrão sobre ela.

     —Por todas as vezes que feriste a Ash, tens sorte de que não te arranque o coração do peito agora mesmo. Como pôde?

     Formaram-se lágrimas nos verdes olhos de Artemisa enquanto lutava para libertar-se.

     —Amo-o.

     Tory sacudiu a cabeça.

     —Como podes dizer isso? Nem sequer entendes o que significa. Amar não é te envergonhar de ser vista com a pessoa que te importa. Não se trata de castigo ou de dano.

     Sentindo compaixão pela deusa, Tory a deixou ir.

     —O amor é o que te dá a força necessária para enfrentar qualquer coisa sem importar o brutal ou aterradora que seja. É o que fez com que Ash permitisse ser golpeado em lugar de dizer ao seu pai a respeito de ti. É o que lhe fez permitir ser estripado no chão aos seus pés em lugar de te envergonhar publicamente. E tu cuspiste em seu amor e o rechaçou. Para ser uma deusa, és patética.

     Artemisa a olhou desdenhosamente.

     —És humana. A ninguém importa se dormes com um puto.

     Tory fez algo que nunca em sua vida tinha feito antes. Esbofeteou a uma pessoa.

     Artemisa gritou e tratou de agarrá-la, mas Tory aferrou seus pulsos em suas mãos e a empurrou. Brindou-lhe um olhar assassino à deusa para lhe fazer saber que ia a sério.

     —Se alguma vez insultas a Acheron de novo, que Deus me perdoe, mas vou te fazer o que permitiu ao seu irmão fazer com ele. Vou cortar-te a língua. Acheron é o homem ao qual amo e ninguém, nunca, tem problemas com ele sem ter problemas comigo.

     Artemisa libertou uma de suas mãos e tratou de golpeá-la, mas Tory capturou de novo seu pulso.

     —Não és melhor que eu —lhe grunhiu Artemisa—. O sacrificaria em um instante para te salvar.

     Tory sacudiu sua cabeça.

     —Estás equivocada. Não há nada nesta terra, em cima ou debaixo dela, que valorize mais que a Acheron. E ambos temos suficiente de ti. Que tenhas uma grande eternidade e se queres seguir tendo essa eternidade, mantenha-se afastada do meu caminho e deixe Acheron em paz.

     Artemisa curvou seus lábios.

     —Não terminaste comigo totalmente, humana. Sou a mãe de sua filha.

     Isso lhe fez sentir-se mau.

     —Tem razão. É a mãe da Katra, pobre dela. Mas está equivocada em uma coisa.

     —E essa seria?

     Tory deixou que o poder da Destruidora se unisse com o de Ash dentro dela. Um minuto, era normal e no próximo, sentiu que seu cabelo se convertia em um loiro branco que se estendia ao seu redor enquanto raios a rodeavam e saíam de suas mãos.

     —Já não sou humana —disse com uma demoníaca voz—. Sou a Atlantia Kedemonia Theony a Guardiã dos deuses Atlantes. E agora mesmo só há um deles, caminhando pelo mundo e para salvá-lo de outra dolorosa lembrança criada por ti, estou disposta a me banhar em tuas vísceras, cadela. Quanto a Kat, é uma garota crescida, estou segura disso, já que estava acostumada a viver com ela. Vai sobreviver à morte de sua mãe. Confie em mim, tenho experiência de primeira mão com esse assunto.

     Artemisa a olhou surpreendida.

     —Destruiria o mundo inteiro por ele?

     —Sim, destruiria. O farias tu?

     Artemisa afastou o olhar.

     —E é pelo qual que vais desejar-lhe o melhor e sair de nossas vidas. Da próxima vez que te veja, Deusa, será melhor que me leves presentes que me façam sorrir, do contrário o panteão grego estará procurando uma nova deusa da caça. Me entendeste?

     —Entendo. —Mas seus olhos diziam que já estava tramando alguma forma de incomodá-los.

     —Que assim seja.

     Os inimigos eram uma desafortunada parte da vida. Não há nada que Tory pudesse fazer a respeito, salvo cumprir sua promessa se Artemisa descobria ter a suficiente coragem para ir atrás dela de novo.

     Ninguém se levaria alguma coisa sua sem lutar, e por Ash, ela daria a vida.

     —Adeus, Artemisa, e por seu próprio bem, no caso de que encontras a alguém que te ame da mesma forma em que Ash o fez, cuide melhor dele.

     Com estas palavras, Tory retornou a Nova Orleans, onde encontrou a Ash esperando no sofá de seu apartamento. Ficou de pé antes de inspecionar seu corpo em busca de feridas, em realidade era bastante adorável.

     —Estás bem?

     —Disse-te que ficar estar bem.

     Seu olhar estava cheio de dúvidas.

     —Não te fez mal?

     —Nop —levantou suas mãos para lhe mostrar exatamente quão sã estava—. Estou muito bem.

     O alívio em seus olhos a tocou profundamente enquanto ele se inclinava para baixo para depositar um suave beijo sobre seus lábios. Ai, como amava a este homem.

     —Sinto-me mal pelo que te fiz —respirou pesadamente—. Nunca quis te ferir.

     —Eu sei, coração. —Lhe sorriu—. O que foi o que disseste a Wulf? Às vezes as coisas têm que ir mal, para que possam ir bem? Se não tiveste te alimentado de mim, não teria os poderes que necessitava para estar contigo. Assim não se sintas mal, Ash. Porque eu não o faço.

     Ele estremeceu-se como se ela o tivesse golpeado e se sentiu mal por ele.

     —Nunca quis que me visse assim.

     —Ver-te como o que?

     —Como um monstro. Desprezo minha verdadeira forma.

     Ela sacudiu a cabeça enquanto ele punha seus braços ao redor de sua cintura.

     —Não posso imaginar por que, muito além de que me mataras, és realmente lindo em uma forma muito Papai Smurf.

     —Papai Smurf? —Fez um som de total sofrimento e lhe franziu o cenho—. Não me vejo como Papai Smurf.

     —Não, bebê —lhe disse em um fingido e sarcástico tom enquanto brincalhonamente dava tapinhas em suas bochechas—, absolutamente. Parece-te como sexo embalado. Está teu ego melhor? —Uma sobrancelha se elevou ante suas palavras. Ao menos até que ela se esticou para tomá-lo em sua mão. Tomou fôlego bruscamente enquanto ela lentamente desabotoava suas calças.

       —O que estás fazendo?

     Ela lambeu seus lábios ante o calor que corria por suas veias.

     —Ainda estou me sentindo bastante... animada por essa alimentação. E honestamente, Papai Smurf, vê-te o suficientemente bem para te comer.

     Ash quase nem podia respirar, enquanto ela se ajoelhava no chão frente a ele e abria sua braguilha. Quando o olhou, seus olhos brilhavam com amor um instante antes que o tomasse em sua boca.

     Toda a razão desapareceu de sua cabeça enquanto a observou provocá-lo e lambê-lo.

     —Estiveste lendo esse livro de novo, verdade?

     Ela riu e a sensação de sua garganta vibrando em torno dele foi mais do que pôde suportar. Antes que pudesse deter-se, seu corpo se libertou. Ash se inclinou contra a parede enquanto seu corpo convulsionava. Honestamente, foi um dos melhores orgasmos que tinha tido e o fato de que ela não se afastou, só o fazia melhor.

     Até que se deu conta do que tinha feito. Amaldiçoou ante sua estupidez, enquanto esperava que ela o repreendesse.

     —Não foi minha intenção, Tory. Devia ter te advertido.

     Ela franziu o cenho para ele enquanto fechava suas calças.

     —Me advertir sobre o que?

     Ele afastou o olhar, incapaz de olhá-la.

     —Normalmente tenho mais controle. Prometo-te que te darei tempo para te afastar no futuro.

     Tory se levantou e virou seu queixo até que encontrou seu olhar.

     —Ash, não há nada de ti que me pareça repugnante. Nada. Nem teus olhos. Nem teu estranho corpo azul. E, sobretudo não em algo que eu começei. De fato, eu adoro teu sabor e que percas o controle. Isto significa que o estou fazendo bem.

     Agarrando sua bochecha, acariciou-a com seu nariz, deleitando-se na suavidade de sua pele contra a sua.

     —És muito boa para ser verdade.

     —Só dizes isso porque não há um martelo por aqui.

     Ele riu e inclinou sua cabeça para acariciar seu pescoço.

     —Estou tão agradecido de que não me encontres repulsivo.

     Ela acariciou seu ouvido com seus dedos.

     —Só recordas que tens que me avisar antes de soltar os caninos sobre mim de novo.

     Olhou-a com um cenho.

     —Soltar os caninos?

     Ela sorriu brincalhonamente.

     —Sim, é um termo da série de vampiros que L.A. Banks escreve. Deverias ler seus livros alguma vez. São geniais.

     —Com uma sustentação como essa, como poderia me negar? Mas primeiro, acredito que temos que ler um pouco mais desse livro teu, o “Chupar seu pepino”.

   Ela riu até que o pepino lhe fez pensar em comida.

     —Ouça, todas essas coisas sangrentas significam que já não posso comer?

     —Não, Tory —lhe disse sorridentemente—. Simplesmente não precisa comer comida de verdade. Podes saboreá-la, mas não vai saciar a fome de sangue. Vais ter que te alimentar a cada par de semanas.

     —Ou me converterei na senhora Smurfete?

     Ele riu.

     —Não, só eu faço isso. Tu te converterias em...

     —O que?

     —Estava pensando no termo de Simi. Uma deusa cadela.

     Ela brincalhonamente lhe deu um murro no estômago.

     —Não te atrevas a me chamar assim! És um homem mau.

     Ash ficou sério ao dar-se conta da forma em que estavam jogando e brincando. Nenhuma só vez em toda sua vida tinha estado tão a gosto com alguém. Ela sabia tudo a respeito dele.

     Tudo.

     E nada disso lhe importava. Seu passado não era nada.

     Mas ela era seu futuro.

     Tomando sua mão, levou-a para sua cama, onde tinha a intenção de lhe fazer amor durante o resto do dia. Beijou-a enquanto desapareciam suas roupas e a colocava na cama.

     —Te amo, Soteria.

     Tory o aproximou para ela, envolveu seu comprido, e magro corpo contra ele e o abraçou fortemente.

     —Sagapo, Achimou. Sagapo.

   Seu grego o esquentou enquanto os pêlos na junta de suas coxas provocavam seu estômago e faziam com que seu corpo começasse a endurecer-se de novo.

     —Agapay, Sota.

     Tory lhe franziu o janto.

     —Agapay?

     Ele assentiu.

     —Em Atlante significa Te amo. Sota é o equivalente Atlante de teu nome.

     Tory amava esse som, sobretudo a forma tão sexy em que rodava sua língua, nesse musical acento dele, e amava ainda mais o que estivesse compartilhando sua linguagem com ela.

     —Qual seria o equivalente de teu nome?

     —Acho.

     —Agapay, Acho.

     Ele brincou com seu cabelo enquanto lhe sorria.

     —Sempre odiei o Atlante, mas não quando tu o falas.

     Ela não podia imaginar-se por que, considerando o bonito que era. Poderia escutá-lo falar todo o dia, e cada vez que o fizesse, derreter-se novamente. Punha-a extremamente quente.

     Acariciar seu ombro lhe fez perguntar-se outra coisa.

     —Por curiosidade, quantos idiomas sabes?

     —Sou um deus, Tory. Sei todos. E quando entres em contato com eles, também saberás.

     Isso, agora, é definitivamente impressionante. Mordeu o lábio em regozijo e logo seus olhos se abriram amplamente.

     —Oh Oh, tenho outra pergunta. Tu é onisciente, verdade?

     —Para a maioria de coisas, sim.

     —Então tens que me responder isto, porque preciso sabê-lo. O que é o final de tudo?

     Ele deu de ombros.

     —Essa é fácil.

     —Então me diga.

     —A letra G.

     Gemendo, Tory o golpeou na cabeça com um travesseiro.

     —És um caso perdido, Achimou. Por isso, vais ter um castigo. —Rodou, até que ele esteve debaixo dela.

     Ash tomou fôlego enquanto ela rodeava seu mamilo com sua língua. Agora, este era o tipo de castigo que um homem podia esperar com entusiasmo.

     —Que mais posso fazer para te zangar?

     Ela beijou a pele de suas costelas.

     —Poderias me deixar.

     Ele gemeu ente o pensamento.

     —Nunca faria isso, Tory. Ninguém pode viver sem coração e isso é o que és para mim.

     Tory se recostou sobre ele e o abraçou. Até que outro horrível pensamento lhe ocorreu. Esticou-se e se levantou para poder encontrar seu olhar.

     —Ash, espera... Artemisa é proprietária de tua alma?

     —Não, eu não sou realmente um Dark-Hunter. Diferentemente deles, não lhe dei voluntariamente minha alma. Usou meus poderes para me enganar e me reviver contra minha vontade. Mas porque sou um deus, não pôde levar minha alma. Sempre a tive.

     —Mas tens a tatuagem do arco e flecha.

     A qual neste momento não estava em seu corpo.

     —Só porque não queria que os outros Dark-Hunters soubessem que não era um deles. Só queria que me tratassem como se fora normal. É a mesma razão pela qual tenho presas cada vez que estão por perto, apesar de que retrocedam a menos que esteja para me alimentar.

     Ela sustentou sua cabeça em sua mão e riscou círculos sobre seu peito.

     —Sabes que não tens que ser normal ao meu redor, verdade?

     —Eu sei.

     —Bom.

     E pelo resto da noite, Ash tomou seu tempo ao lhe fazer amor. Mostrando-lhe exatamente o muito que significava para ele e quanto a entesourava.

     Foi justo depois da meia-noite, quando finalmente ficou adormecida de puro esgotamento. Seu corpo totalmente satisfeito, Ash a cobriu com uma manta antes de deixar a cama e vestir-se com calças de couro negro e uma longa camiseta dos VG Cat Rat mangual. Colocando seu comprido casaco, transportou-se de Nova Orleans ao Monte Olimpo.

     Pela primeira vez não foi ver a Artemisa. Em troca, caminhou ao longo do templo dos Destinos. No momento em que pôs um pé no vestíbulo, Atropo, Cloto e Laquesis apareceram para lhe bloquear o passo para o resto de seu domínio. Não é como se pudessem. Como Destino Final, ele as governava e elas sabiam.

     —O que estás fazendo aqui? —Perguntou-lhe Cloto, com voz gritã por seu nervosismo.

     —Queria falar contigo.

     —Sobre o que.

     Olhou a Atropo que era alta, loira e que o odiava com uma paixão que ele nunca chegou a entender. Nesse momento, permitiu-lhe ver cada onça da fúria dentro dele.

     —Se alguma vez cortais o fio de vida de Soteria de novo não há poder existente que evite que rasgue suas gargantas. Vocês três me hão fodido pela última vez. Durante todos estes séculos, deixei-lhes em paz. Agora, estou lhes advertindo que me devolvam o favor, porque da próxima vez que se metam com meu destino, vou terminar o vosso.

     O medo em seus rostos lhe disse que o tinham entendido e aceito totalmente sua sugestão. Perfeito.

     Estava cansado de brincar. Quando se tratava de Soteria, não tinha senso de humor. Qualquer um que a ameaçasse, condenava-se a morrer.

     É assim simples.

     Tinha-lhe ensinado a aceitar finalmente o que era. A merda com outros. Porque agora não só era o herói de sua mãe, mas também da pequena mulher que possuía seu coração.

     Por ela, faria qualquer coisa.

    Inclusive destruiria o mundo.

 

Duas semanas depois

Nova Orleans

     Apesar de que Ash confiava em Tory, seu estômago parecia um nó enquanto a seguia para a Sala de Conferências de Tulane, aonde ia dar outro discurso sobre a Atlântida.

     —Por que não me dizes o que planejas dizer?

     A resposta mais óbvia era que o queria torturar, coisa que tinha estado fazendo durante dias.

     Demônios, até poderia dar lições a Artemisa.

     Ela lhe ofereceu o mesmo cálido sorriso que só servia para assustá-lo ainda mais.

     —Não é de tua incumbência. Mas se te metes comigo ou com minha reputação assim como fez em Nashville, vais estar vivendo em teu próprio apartamento. Sozinho. Lembre-te, de que fico com a custódia de Simi. Não é assim, Sim?

     —Exato —disse Simi sorrindo orgulhosamente enquanto se transladava ao lado dele—. Relaxe, Akri. Akra-Tory não fará nada para te zangar. Só Simi faz isso.

     Ele riu, embora o nó em seu estômago se apertava ainda mais com cada passo que dava para a sala.

     —Ainda não hás respondido a minha pergunta —disse Tory, voltando para o assunto que tinha iniciado a caminho aqui—. Como era realmente Julio César?

   Ele se encolheu indiferentemente.

     —O homem era brilhante, mas trapaceava nos jogo de dados.

     Ela deixou sair um impressionado suspiro, enquanto esticava seus ombros sonhadoramente.

     —Não posso acreditar que conheceras a ele e a Alexandre Magno.

     —Bom, Alex foi um acidente. Eu estava perseguindo um Daimon que fugiu para a cidade aonde este se alojava e depois que o matei, tratou de me somar ao seu exército. Disse-lhe que estava dirigindo um próprio e não tinha tempo para me unir a ele.

     Tory nunca se cansava de escutar as lembranças do passado de Ash. Fazia tantas coisas fascinantes e tinha sido testemunha da história sobre a qual ela só tinha lido. Tinha estado ali durante o primeiro saque de Roma. Tinha estado na Muralha da China apenas uns dias depois de ter sido terminada. Tinha debatido sobre filosofia com Confúcio, jantado com o Kublai Khan e inclusive tinha assistido a um banquete com Buda quando ele tinha sido apenas um menino. Tinha caminhado no Egito quando a necrópole da Giza estava sendo construída. Tinha jogado com O Delfín[23] quando o rapaz tinha sido um menino pequeno e jantado com o verdadeiro Rei Arthur. . . a vida que tinha vivido era simplesmente incrível.

     E o fazia perguntar-se que futuros acontecimentos históricos compartilhariam juntos.

     —E com respeito a Jesus? —Pergunto-lhe, morrendo para saber a verdade—. Chegou a conhecê-lo?

     —Ouvi-o falar em várias ocasiões. Cada vez era brilhante e fascinante. Simplesmente havia algo nele que te fazia lhe prestar atenção.

     —Mas alguma vez o conheceste?

     Ele sacudiu a cabeça.

     —Por que não?

     —Pela mesma razão a qual nunca me reuni oficialmente com Gandhi. Não me sentia o suficientemente digno. Eu só gostava de escutá-los falar—. Ash abriu a porta até a Sala de Conferências.

     Tory se congelou quando viu a multidão reunida.

     Ash pôs sua mão sobre seu braço para lhe dar forças.

     —Tudo vai ficar bem. Simi e eu vamos comer a qualquer pessoa que embora seja te pestaneje de mau jeito.

     Ainda assim não se sentia melhor.

     —Não estou segura sobre isto.

     —Então vamos. Minha motocicleta está lá fora, cheia de combustível.

     Ela o olhou antes de sacudir sua cabeça.

     —Pelo menos desta vez minhas páginas estão numeradas—. Tomando um profundo fôlego de valentia, obrigou a si mesma a entrar na sala onde as pessoas pareciam mais como tubarões que historiadores, estudantes e arqueólogos.

     Pelo menos desta vez tinha a Ash e a Simi com ela.

     Ash permaneceu ao seu lado até que chegou a primeira fila. Colocou sua mochila no chão e tomou assento. Simi se sentou ao seu lado e sorriu alentadoramente.

     Tory sentia como se o coração fosse sair do peito, enquanto se aproximava do pódio. A multidão aqui era quase tão grande como a de Nashville.

     Deus, como odiava falar em público.

     Enquanto ela preparava suas páginas, a porta se abriu para que entrassem Kim e Pam quem a saudaram antes de sentar-se ao lado de Simi. Agradecida por seu apoio, Tory ajustou o microfone. E justo quando estava a ponto de começar seu discurso, Artemisa abriu a porta.

     Ficou fria ao vê-la e ante o que podia significar que estivesse aqui. Sem mencionar, que viu a forma em que Ash se esticou visivelmente como se esperasse que o Armagedon começasse.

     Sem dizer uma palavra a ninguém ou dar uma olhada a Ash, Artemisa se sentou na fila de trás, longe de Ash e da multidão.

     Que demônios queria?

     Clareando a garganta, Tory se obrigou a ignorá-la. Artemisa não era importante aqui.

     —Um, olá a todos —disse, falando brandamente pelo microfone—. Queria lhes agradecer por vir hoje. Sei que alguns de vocês estavam em Nashville para presenciar o desastre de minha extrema humilhação... —dirigiu seu olhar para Ash que teve a delicadeza de ver-se envergonhado e contrito —mas como sabem, minha equipe, há um par de semanas, escavou uma grande parte das ruínas sob o mar do que acreditávamos que era a Atlântida.

     Uma mão se levantou, de um homem ao que reconheceu como um historiador, mas não podia recordar seu nome. A oradora o assinalou.

     —Ouvi que entre as coisas encontradas havia artefatos concludentes que datam de 9.000 a.C. Se você poderia confirmar isto. Dá-se conta de que rescreverá completamente a história?

     Antes que pudesse responder as portas se abriram uma vez mais para mostrar a um mensageiro do UPS. Indiferente ante o fato de que estava interrompendo sua conferência, dirigiu-se para ela.

     —Dra. Kafieri?

     —Essa seria eu.

     Ele lhe entregou uma caderneta eletrônica para assinar.

     Confusa, olhou nervosamente ao seu redor.

     —Por favor, me desculpem —disse para a sala enquanto assinava seu nome, logo tomou o pequeno pacote em suas mãos. Franzindo o cenho, abriu-o para encontrar o último diário de Ryssa, o que Artemisa havia feito com que seus homens roubassem junto com a mochila de Ash.

     Era a prova concludente que rescrevería a história e que faria que não só seu nome, mas também o de seu pai e tio fossem lendas em seu campo.

     Este era o momento que sempre tinha sonhado. Desde que tinham enterrado ao seu pai, seu único objetivo na vida tinha sido a redenção de seu nome.

     Com o coração martelando, olhou a Ash cujo rosto estava agora pálido. Olhou-o aos olhos e viu seu temor desaparercer.

     Segue adiante, bebê. Eu sei o muito que significa para ti. Devolva ao teu pai sua reputação. —Só ela podia ouvir a profunda voz de Ash em sua cabeça.

     Essas palavras trouxeram lágrimas aos seus olhos. Ela sabia o que isso faria a Ash. Os homens e as mulheres que ele chamava de amigos saberiam exatamente quão horrível tinha sido seu passado. Embora estava segura de que a muitos deles não importaria, conhecia muito às pessoas para saber que nem todas se sentiriam da mesma maneira. Alguns deles nunca o veriam da mesma forma. Ririam e se burlariam dele.

     Muitos deles nunca o perdoariam por uma verdade que não tinha sido sua culpa. Fariam-no sentir-se da mesma maneira que Artemisa o tinha estado fazendo por todos esses séculos.

     E isso o destruiria.

     —Sinto muito, papai —sussurrou sob seu fôlego antes de pôr o livro de novo em seu casaco e voltar para seu discurso. Clareou-se a garganta—. Sim, encontramos uns quantos objetos que são bastante antigos. Infelizmente, nenhum deles se remonta ao que acredito que foi o tempo de Atlântida. E mais, as ruínas que encontramos não parecem ser nada mais que uma pequena aldeia grega de transporte marítimo. Temo-me que os peritos estão certos. Não há Atlântida no Egeu. Depois de todos estes anos, cheguei a entender que minha família e eu estivemos no caminho errado.

     Dito isto, minha equipe está atualmente dirigindo-se às Bahamas a fim de que possamos ver mais de perto a Caminho Bimini encontrado. Se houver uma Atlântida, coisa que agora duvido por completo, esta poderia ser a chave para encontrá-la.

     Ela tragou enquanto olhava ao seu redor vendo os cenhos franzidos nos rostos de seus companheiros.

     —Eu gostaria de ter melhores notícias e todos vocês podem ler meu relatório sobre nossas conclusões em meu próximo trabalho, assim como em meu sítio na Web uma vez que o tenha terminado. Ao final, entretanto, minha busca pela Atlântida me ensinou algo. Em todo nosso passado se encontra nosso futuro. Por nossas próprias mãos e decisões seremos condenados e salvos. No que seja que façam, ponham seu melhor esforço, inclusive se tudo o que estão fazendo é perseguir um arco-íris sem fim. Talvez nunca cheguem ao final dele, mas ao longo do caminho encontrarão pessoas que vão significar o mundo para vocês e vão fazer lembranças que os manterão quentes inclusive nas noites mais frias. Graças a todos por vir.

     Juntando suas páginas, encontrou-se com o incrédulo olhar de Ash e lhe sorriu.

     Houve murmúrios e sussurros enquanto a multidão se dispersava tranqüilamente, inclusive alguns eram depreciativos sobre ela e seu pai. Mas pela primeira vez, não lhe importava. As palavras não eram nada. Eram as pessoas em sua vida as que realmente importavam.

     À medida que se foram, Simi deu um murro a Ash no braço.

     —Vê, Akri. Simi não cria tolos. Disse-te que minha menina era de qualidade. Akra-Tory nunca vai fazer nada que possa ferir seu Achimou.

     Ash riu.

     Artemisa, entretanto, parecia menos que satisfeita enquanto caminhava para Tory.

     Tory apertou seu agarre sobre o pacote que Artemisa lhe tinha enviado, disposta a lutar até o final dos tempos para manter o diário longe das mãos de Artemisa.

     —Acreditei que certamente usaria isso para manter as aparências.

     Tory encolheu os ombros.

     —Amava ao meu pai mais que tudo. Mas por muito que me doa admiti-lo, sei que ele está morto. Ash não o está. Melhor que todos riam de mim a que riam dele.

     Artemisa a olhou sem poder acreditar que dissesse tal coisa.

     —Tu realmente o amas, não é assim?

     —Mais que a minha vida.

     —E mais que a tua dignidade. —Havia uma nota de respeito em sua voz. Artemisa se virou para olhar a Ash. Quando ela olhou de novo a Tory, tinha lágrimas nos olhos—. Cuide dele, Soteria. Dê-lhe o que eu não pude lhe dar. —Apertou-lhe brandamente a mão antes de retirar-se.

     Ash ficou de pé enquanto Artemisa se aproximava dele. Viu desejo em seus olhos quando ela começou a tocá-lo, mas inclusive agora, não se atrevia a fazê-lo em público.

     —Quero que tu e tua humana tenham uma boa vida. Mas também quero te recordar uma coisa.

     —E é?

     —Nunca haverá outro Dark-Hunter que se liberte. Tua felicidade vem às custas de tua liberdade porque não há ninguém mais com quem queira negociar. Ninguém mais que pague a taxa que tu puseste há séculos. Sabendo isto, espero que durmas bem de noite.

     Ash apertou os dentes de raiva por sua frieza enquanto ela se afastava. Começou a ir atrás dela, mas Tory o deteve.

     —Deixe-a ir, Ash. Temos o diário. Seus Atlantikoinonia foram neutralizados e minha equipe não sabe nada a respeito de nossa busca. Simplesmente acreditam que mudamos de direção. Em conjunto, fizemos um bom trabalho.

     —Mas o que acontece a respeito dos Dark-Hunters?

     Ela sorriu com um novo otimismo.

     —A única coisa que aprendi em tudo isto é que não está terminado até que todas as cartas sejam jogadas. Ela mostrou seu ás, pensando que não podemos ganhar. Mas há cinqüenta e uma cartas a mais no baralho e o jogo não terminou ainda. Pensaremos em algo. Sua pequena cena aqui só demonstra que jogou sua melhor mão. Isso era tudo o que podia fazer para te ferir, o que é exatamente porquê o fez. Não a deixe arruinar teu dia, bebê, e não deixes que nos tire o que temos. Chegamos até aqui juntos. O que é outra deusa amargurada para nós? Como meu papou sempre dizia, ao longo, abaixo, ao redor ou através de. Sempre há um caminho e nos encarregaremos de encontrá-lo.

     Por sua expressão ela poderia dizer que ele ficou impressionado.

     —Como pode uma mulher tão jovem ser tão sábia?

     —Sou uma alma velha.

     —E eu sou um homem afortunado de te ter.

     Ela sorriu enquanto entregou o diário de Ryssa.

     —Sim, é. Mas isso está bom. Sou uma mulher afortunada de te ter.

     —Ainda penso que um de vós deveria deixar que a Simi coma a deusa-vaca. Ela seria boa comida. A Simi incluso a compartilharia com sua irmã.

     Rindo, Tory tomou a mão de Ash e uma vez que a sala estava vazia, ele a transportou ao Katoteros. Simi foi ver televisão.

     Sem dizer nenhuma palavra, ele puxou a Tory através da Sala do Trono para o salão de baile que não se utilizou desde que sua mãe destruiu o panteão Atlante.

     Tory franziu o cenho enquanto Ash virou e começou a caminhar para trás sorrindo-lhe. As portas se abriram quando ele se aproximou e no minuto em que esteve dentro da enorme sala escura trocou sua roupa a vintage punk de 1978, com botas de combate negras, jeans rasgados, uma rasgada camiseta do Union Jack negra e uma jaqueta motociclista com correntes e um símbolo anarquista nas costas.

     —O que estás fazendo? —As palavras quase nem tinham deixado seus lábios antes que sua própria roupa trocasse ao mesmo vestido que sua mãe tinha usado na noite que conheceu seu pai.

     As portas se fecharam, selando a escuridão. Um instante depois, uma luz apareceu para mostrar uma bola prateada de espelhos, ao mesmo tempo em que a canção "Last Dance" de Donna Summer começou a tocar. O chão sob seus pés se iluminou como uma disco da época dos anos 70 enquanto Ash a girava sob o braço.

     Sorrindo-lhe, começou a cantar:

     —Preciso de ti. Comigo. Ao meu lado... Para me guiar. Para me sustentar. Para me repreender...

     Ela riu, inclusive enquanto lágrimas de felicidade enchiam seus olhos. Enquanto o ritmo se incrementou, dançou com ela quando estava chorando e rindo tão exageradamente que chegava a ponto de parecer que tinha perdido a razão.

     O fato de que tinha recriado esta lembrança para ela, apesar de que odiava sua música com paixão...

     Ele era o melhor.

     Ela riu enquanto ele se transladou sem problemas ao redor da pista de dança com ela.

     —Tu farias ao John Travolta preocupar-se com seu dinheiro.

     —Síp, sinto por minha roupa. Tentei-o, mas não posso fazer com que apareça sobre mim esse tipo de roupa. Demônios, não pude vestir o look disco incluso quando era popular. Juro que sou alérgico ao poliéster. Graças a Deus pelo movimento punk. Do contrário teria estado nu durante uma década.

     Ela riu quando tratou de imaginar-lhe em um terno verde. Não, definitivamente não funcionou.

   Ela preferia pensar nele nu. Mas só quando estavam sozinhos.

     —Assim, o que é que usavas no tempo que fostes humano?

     —Um lençol.

     Tory assentiu enquanto pensava nisso.

     —Sabia que disso era do que faziam os chitões. Geary disse que eu estava louca, mas eu sempre o suspeitei.

     Ash congelou enquanto se deu conta de que não tinha entendido sua referência sobre ser um prostituto. Ela pensava que só estava descrevendo a trama de sua roupa. Para ela, ele era um homem. Nada mais e definitivamente nada menos.

     Levantando-a e girando com ela, manteve-a perto, saboreando a forma na qual nunca lhe recordava seu passado.

     E quando a baixou, ela estava vestida como uma princesa Atlante.

     Tory ofegou ante sua longa e fluída bata. De um brilhante azul, descia em dobras de um espartilho azul mais profundo que estava coberto com pérolas e safiras. Mas o que fez seu rosto ruborizar-se ainda mais era o fino material que apenas cobriam seus seios. Seus mamilos eram claramente visíveis.

     —Oh não! Diga-me que elas não usavam isto.

     Assentindo, ele a virou para que se olhasse no espelho que apareceu de um nada, para que pudesse ver todo o conjunto, enquanto se moviam juntos. Correntes de ouro caíam de seus ombros descobertos até seus cotovelos e seu cabelo, que estava encaracolado, estava coberto com uma bela peça de ouro. Tory contemplou a si mesma, adorando a roupa, mas odiando ser muito alta, muito fraca e muito singela para lhe fazer justiça.

     E enquanto observava a Ash sobre seu ombro, ainda vestido como um roqueiro punk, ela quis chorar. Ele era bonito e ela parecia o prêmio de consolação.

     —Ash —disse, sua voz entusiasta—, podes fazer algo por mim?

     —Qualquer coisa, Sota. Diga-o e é teu.

     —Me faça bonita.

     Ele virou seu rosto para ele e lhe deu um beijo nos lábios que prendeu fogo ao seu sangue. Retirando-se lhe sorriu.

     —Já está. És a mulher mais bela do mundo.

     Tory se virou para o espelho, morrendo por ver como luzia.

     Quando viu si mesma, franziu o cenho.

     Não tinha mudado.

     —Ash!

     —O que? — pergunto-lhe inocentemente, puxando suas costas contra seu peito a fim de que possa olhá-la no espelho.

     —Não fizeste nada.

   Seu olhar se encontrou com o seu e a sinceridade nesses tempestuosos olhos de prata a queimaram.

     —Tu és a mulher mais bela do mundo, Soteria. Esta é a mulher pela qual me apaixonei e não há nada a respeito de ti que eu mudaria.

     Recostando-se sobre ele, inclinou-se para tocar sua bochecha.

     —De verdade?

     —É obvio. E espero que algum dia tenhamos uma casa cheia de crianças que pareçam como tu.

  

Três meses depois

Nova Orleans

    Ash ficou na soleira, olhando a igreja que estava cheia de gente. Pela primeira vez em sua vida imortal, estava realmente assustado. Não queria destruí-lo ou pior, envergonhá-la ou pô-la em um apuro diante de sua família. O sonho de Tory era casar-se e ele queria que tudo acontecesse exatamente como ela queria.

     Seu lado da igreja estava totalmente cheio com a família dela. O único que faltava era seu avô que estava esperando para acompanhá-la pelo corredor.

     A sua chegada a Nova Orleans, tinham levado a Theo a um lado e lhe tinham contado a verdade a respeito de Ash.

     A princípio Theo se negou a acreditá-lo, mas ao final, quando Ash lhe contou cada detalhe de sua viagem juntos através do Atlântico, quando Theo tinha sido um menino e de suas partidas de xadrez no parque ao longo dos anos, Theo não teve escolha exceto aceitar a verdade. Então tinha se emocionado ao ter que casar a Tory com o homem que lhe salvou a vida.

     Para o resto de sua família, com exceção de Geary, que sabia a verdade a respeito de Ash, disseram-lhe que ele era o neto do homem que tinha salvado a Theo. Era uma pequena mentira, mas enquanto mantivesse a paz e o segredo do mundo no qual vivia Ash, era necessário.

     —Estás preparado, T-Rex?

     Ash assentiu a Talon que era um dos padrinhos. Desde que Tory tinha onze damas de honra, Ash tinha estado bastante agradecido por todos os Dark-Hunters. Sua amiga Pam, como a dama de honra, estava emparelhada com o Padrinho de Ash… Savitar. Kim estava com Vane, Geary com seu marido Arik, Katra com seu marido Sin, Danger com Alexión, ambos em corpos humanos temporais. Simi estava com Zarek, Justina com Kyrian, Katherine com Styxx e Aimee estava ali com Dev. Sunshine estava com Talon e a prima de Tory, Cyn, que tinha uma misteriosa semelhança com a Artemisa, estava com Urian… algo que tinha irritado à mulher que odiava estar emparelhada com um padrinho grego.

     Por alguma razão que só Tory parecia entender, isso a divertia, assim Ash a tinha agradado dando a Cyn o mais grego de todos seus padrinhos.

     Talon desapareceu quando Savitar avançou para frente.

     —Estás nervoso, Cara?

     Possivelmente devesse está-lo e, contudo, não podia esperar. Ele tirou o anel de casamento de seu bolso, diamantes amarelo-canário de três quilates e observou como refulgia a tênue luz da igreja. A pedra central estava rodeada por pequenos diamantes brancos em um formato muito antigo e único… Tory tinha decidido ir de acordo com o mais tradicional e antigo costume de ter um único anel de casamento com uma pedra… tal e como o teriam feito na época de Ash.

     Estaria belo sobre ela.

     —Nem um pouco —disse a Savitar—, mas tu pareces bastante doente.

     —É toda esta roupa que estou usando. Os smokings me dão urticária. Disse-te que o terceiro resultado seria espantoso. Matrimônio. —estremeceu-se ele.

     Ash sacudiu a cabeça, especialmente quando notou o fato de que Savitar estava usando sandálias.

     —Apenas estás um passo acima do Australopitecos, verdade?

     Ele arqueou uma sobrancelha de maneira condescendente.

     —Ei, tenhas mais respeito quando digas isso, pirralho. Não hás visto os anúncios? Nós os homens das cavernas somos gente muito sensível.

     Ash riu, aliviado pela primeira vez de que ele não fora a pessoa mais velha aqui.

     Eles deixaram a sala para situar-se diante do altar e esperar a que a longa procissão de damas de honra e padrinhos começasse.

     Jaden e Takeshi estavam sentados na primeira fila com Tabitha, Xirena, Grace e Amanda – Estas duas últimas estavam agüentando aos seus hiperativos filhos assim como também a filha de Kat.

     Ash estava realmente assombrado pelo número de atuais e antigos Dark-Hunters que estavam ali. Seu lado da igreja competia com o de Tory. Por suposto era mais provável que se devesse ao choque de que Ash se casasse do que a qualquer outra coisa. A última coisa que tinha ouvido era que estavam apostando na Web Dark-Hunter.com que congelaria e tropeçaria.

     Ainda assim, era agradável vê-los por qualquer razão e sua presença ali era o motivo de que eles levassem a cabo as bodas depois do anoitecer.

     Quando Simi desceu pelo corredor, levou o ramo aos lábios e começou a mordiscar as flores. Ash sacudiu a cabeça, agradecido que não tirasse o molho churrasco de sua bolsa e o derramasse sobre as gardênias. Quando se aproximou de sua irmã, articulou as palavras:

     —Estão deliciosas. Depois conseguiremos uma para ti.

     Então a filha de Kyrian, Marissa e a filha de Geary, Kalliope desceram pelo corredor, espalhando pétalas de rosas vermelhas e róseas pelo chão.

     Ash elevou a olhar às portas quando começaram a tocar a marcha nupcial. Pela primeira vez, estava realmente ansioso. Por favor, não deixes que ela seja a única que tropece…

     Então a viu.

     Ficou sem respiração quando Tory avançou descendo pelo corredor não de branco, mas sim de negro. Ela tinha explicado a escolha da cor a sua família dizendo que desde que o branco era a cor tradicional de luto Grego, não queria que formasse parte de seu casamento. Mas a verdade era, que ela sabia que ele o odiava por causa de Artemisa.

     Inclusive levando um buquê de mavyllos, as sagradas rosas negras que tinham sido criadas pela mãe de Ash. O buquê tinha sido um presente de Apollymi e recebê-las era considerado a mais alta honra que um atlante podia dar a outro.

     Ash sorriu orgulhoso. Mas o que ainda lhe assombrava mais era que ela estivesse disposta a parar diante de toda essa gente e lhe reclamar. Ele havia oferecido inclusive fugir-se para casar-se com ela, mas se havia negado.

     —Garoto —disse ela, furiosa com o fato de que sequer o tivesse sugerido—, tu és meu e quero que todo mundo saiba.

     Como presente de casamento, ela inclusive tatuou no ombro seu emblema do sol com seu nome debaixo.

     Nada no mundo o tinha agradado mais.

     Tory quase tropeçou quando viu Ash de smoking. Seu cabelo negro estava alisado para trás em um sofisticado rabo-de-cavalo. E pela primeira vez seus olhos estavam completamente visíveis para todos. Não tinha piercings—ele tinha renunciado a eles dizendo que não queria nada que a envergonhasse diante de sua família.

     —Tu nunca poderias me envergonhar, Ash —lhe havia dito ela—. Ademais agora tu és minha família.

   Inclusive assim, ele tinha optado por aparecer sem eles.

     Theo a entregou a Ash com uma gentil palmada na mão de Ash e um beijo sobre a de Tory. Pela mão, permaneceram de pé ante o sacerdote grego e pronunciaram seus votos em grego antigo.

     Quando terminou, Ash a atraiu à parte de trás da igreja e a sustentou perto. Ele depositou um beijo sobre seu ombro nu onde seu emblema era amplamente visível.

     —Suponho que é muito tarde para que voltea atrás agora, hum?

     Tory bufou.

     —Coração, foi muito tarde para mim desde a primeira vez que abriste a porta e passeaste em minha conferência. Estava perdida e nem sequer o sabia.

     Ele enlaçou sua mão com as dela.

     —Não tenho idéia de que nos proporcionará o futuro e isso me adoece. Mas te prometo que sem importar o que, nunca te arrependerás de estar comigo. Juro-o.

     Ela o olhou.

     —Sabes o que me assombra? Estava procurando Atlântida e encontrei um deus Atlante. Como poderia me arrepender disso?

 

   Nick permaneceu fora do jardim da casa de Kyrian, observando a recepção de casamento de Ash. Todo mundo estava rindo e celebrando enquanto Ash e Tory dançavam a canção dos Bee Gees, “To Love Somebody”.

     O ódio lhe escaldou a língua quando viu Ash rindo com Tory. E ainda assim a parte de si mesmo que mais odiava estava contente de ver Ash tão aberto e feliz. Sempre tinha havido um ar de desesperança ao redor de Ash.

     Agora se tinha ido. Ele só desejava que ele tivesse podido ser tão feliz.

     —Não é justo, não?

     Ele voltou a cabeça para ver Artemisa de pé por trás dele. Vestida toda de branco, era incrivelmente bela.

     —O que estás fazendo aqui?

     —O mesmo que tu. Espiar. —ela deixou escapar um comprido suspiro e cortou a distância entre eles—. Ele nos volteou, não é certo?

     Nick franziu o cenho ante suas palavras sem sentido.

     —Volteado?

     —Já sabes, jogar-nos.

     Jogar-nos? Quanto repente, entendeu o que estava tentando dizer.

     —Quer dizer foder-nos?

     —Sim, há nos fodido a ambos.

     Ela não tinha nem idéia.

     —E o que há feito a ti?

     —Abandonou-me. Levou a minha filha e o que me deixou? Nada.

     Nick bufou ante sua autocompaixão.

     —Sim, bom, ao menos tu não estás na lista dos mais procurados dos Daimons. Juro que não tive nem um só momento de paz. E a última coisa que ouvi, é que Stryker está preparado para desatar o inferno sobre nós.

     Ela pôs os olhos em branco.

     —Achas que Stryker não me quer morta? Meu irmão é o único que se voltou contra ele. É um mundo gelado no qual vivo.

     —Poderia ser pior. Poderias estar desamparada.

     Ela o olhou com uma sobrancelha arqueada.

     —Achas que não o estou?

     Nick se desentendeu de sua pergunta. Ela não tinha idéia de quão miserável era sua vida. Quão solitária e dilaceradora.

     —Como pode uma deusa estar desamparada?

     —Da mesma maneira que o pode estar um humano.

     Sim, estava louca.

     —Tu tens o poder para fazer tua vida melhor. Eu não.

     —Isso não é verdade. Eu perdi meu único amigo.

     Honestamente assim era como Nick se sentia. Tinha amado a Ash como a um irmão e sentia saudades a amizade que tinham tido. Inclusive embora Ash o houvesse fodido, eles tinham sido incrivelmente próximos.

     Agora, por causa de Stryker podia ver tudo o que Nick via sempre que o semideus escolhesse olhar, estava completamente isolado do mundo que tinha conhecido uma vez. Sem amigos. Sem família.

     Estava sozinho e o odiava.

     Artemisa voltou um especulativo olhar para ele.

     —Serás meu amigo, Nicholas? Prometo-o, nunca te arrependerás.

    

    Uma rajada de ar passou através da festa, levantando a barra do vestido de Tory.

     Ash elevou o olhar ao céu e franziu o cenho quando ouviu o apagado e longínquo som de um trovão.

     —Acontece algo? –perguntou Tory.

     —Está se formando uma tormenta.

     —Queres dizer o tempo, verdade?

     Ash sacudiu a cabeça lentamente quando seus sentidos zumbiram. Não, havia algo vindo atrás deles. Podia senti-lo. Escuro e mortal, e queria uma parte dele.

     —Não te preocupes, Sota. Te manterei seca. —mas inclusive quando dizia essas palavras, sabia a verdade. Ele não era seu asilo. Ela era o seu, e tanto tempo como ele a tivesse ao seu lado, poderia enfrentar qualquer coisa—. Tragam a chuva —sussurrou ele—, tragam a chuva.

 

[1] Combinação numa mesma estrutura sintática de duas palabras ou expressões de significado oposto, que originam um novo sentido; p. ex., um silêncio ensurrecedor. (N.T.)

[2] Lugar de reunião de numerosos comerciantes. (N.T.)

[3] Delicatessen restaurante.

[4] Air Supply, grupo de música pop, que se destaca por suas baladas e canções românticas realmente melosas (N.T.).

[5] Shotgun rowhouse, estilo de casa que se popularizou despois da guerra civil no EEUU (1861-65) até aproximadamente os anos 20, se caracteriza por ser uma construção estreita, que apresenta uma localização em linha e se encostam umas nas outras, em Nova Orleans pode ter até 3 andares. (N.T.)

[6] Rubbermaid, marca de potes de plástico similar ao Tuperware, Cuver, etc.

[7] Lemuria, também chamada Terra de Mu, se trata de um continente imaginário criado no século XIX para dar uma explicação sobre a existência de fósseis similares de lêmures tanto na Índia como no sul da África. Este continente estaria na atualidade sumergido debaixo das águas do Oceano Índico. Desde sua criação se converteu num mito a perseguir assim como a Atlântida e como tal, motivo de estudo e especulação.

[8] Escila e Caribdis, ambos são dois monstros marinhos que habitavam numa estreita passagem marinha, em margens opostas. A expressão «entre Escila e Caribdis» significa estar entre dois perigos de forma que se afastar de um faz com que se caia no outro. Odiseo, na Odisséia de Homero se viu obrigado a navegar por essa passagem perdendo sua tripulação nas mãos de Escila e seu barco com Caribdis.

[9] Em inglês Artemisa é Artemis e efetivamente se emprega como nome próprio masculino.

[10] O falafel é um croquete de grão-de-bicos ou favas cuja origem se remonta aos tempos da Bíblia e se originou en algúm lugar do subcontinente indiano. Atualmente se come na Índia, Paquistão e Oriente Médio. Tradicionalmente se serve com molho de iogurte ou de pasta de gergelim, assim como no sanduíche, em pão de galinha ou como entrada.

[11] Puré libanês de grão-de-bicos.

[12] Transtorno obssessivo compulsivo.

[13] Shadow Box no original: tradição que consiste numa caixa que contém recordações e coisas pessoais importantes como fotos, recortes de jornal ou medalhas.

[14] Marca de mochilas, bolsas e malas de viagem.

[15] O bebê de Rosemary é um filme de terror de Roman Polanski.

[16] Viva Piñata é um jogo de simulação desenvolvido pela Rare, para o videogame Microsoft Xbox 360. O projeto foi iniciado com Gregg Mayles e o grupo por trás da série Banjo-Kazooie.

[17] O Louisiana Superdome (também chamado de Superdome, The Dome ou New Orleans Superdome) é um estádio fechado localizado no Centro Financeiro de Nova Orleans, Louisiana (EUA). É a casa do New Orleans Saints e onde surgiu o time de basquetebol da NBA Utah Jazz (com o nome de New Orleans Jazz).

[18] Formesta é um manto usado pelas pessoas em Atlântida. É preto ou branco, muito longo e fluido, normalmente usado aberto, e muitas vezes usado por Acheron.

[19] Jaded, jogo de palabras, Jaded é entediado.

[20] Biscoitos gregos. O primeiro parece um coockie, o segundo é amanteigado e o terceiro é a base de frutas secas e mel.

[21] Napalm é o agente espessante de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, que quando misturado com gasolina, transformando-a num gel pegajoso e incendiário. É utilizado como armamento militar.

[22] PTI: Para Tua Informação (FYI: For Your Information).

[23] Refere-se ao Rei Luis XV, quiem foi executado na Revolução Francesa. (N.T.)

 

                                                                                            Sherrilyn Kenyon

 

                      

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