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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ÁCIDA / Ton Adalclê
ÁCIDA / Ton Adalclê

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

10 de agosto de 2010, St. Louis – Acre.
A garota continua imóvel, sedada. Penso se não suportará a primeira substância. O medo — e amor — me fazem agir com cautela, sem que outros da equipe notem meus grandes interesses para com essa paciente. Esta é Natalie, a recém-capturada. Sua vida inteira foi apagada dos históricos da cidade. Seus pais e amigos tiveram os lares confiscados e distanciaram-se. Essa obrigação imposta pelo governo — secretamente com a mão da Corporação Ônix por trás — foi um pedido de um louco apaixonado. No caso, eu sou o apaixonado, e por demonstrar um excelente trabalho, tive a chance de ganhar esta cortesia.
Era um corpo eficiente, o da garota, eu a escolhi no meio de poucas. Claro, essa era minha namorada antes. Antes de terminar comigo. Antes de despedaçar meu coração como nenhuma jamais o fez. Agora estou aqui, fazendo algo de bom para nossas vidas. Não permitiria que Natalie fosse de mais alguém, portanto, selecionei-a. Tão boba e nunca se questionou onde eu trabalhava ou que eu assistia, qual era minha comida predileta. Nunca fazia perguntas sobre meu cotidiano. Ela era sempre o centro do próprio universo, e tornou-se meu mundo sem que eu notasse. O grande amor do bobalhão aqui. É por isso que eu afirmo: não se deve ficar apaixonado por ninguém, isso destrói seu ser, causa dores de cabeça. Mesmo que no começo aparente ser as mil maravilhas.
Costumava ser um cara que menosprezava garotas, usava-as como queria e as descartava. Mas esta em questão se sobressaiu, não me deu bola de início. E o que é que a maioria dos caras faz quando uma garota o despreza? Ele corre atrás como um cão procurando osso! Eu fiz mesmo de tudo para conquistá-la. E consegui, parabenizei-me. No entanto, ainda tinha mais a ser conquistado. Ainda faltava fazê-la me amar mais do que a si mesma. E então ela termina comigo, assim, do nada. Superficial por cima daqueles tons de batons avermelhados, cabelos lisos aloirados e longos. Sempre perfumada, tão inquebrável era seu olhar verde quanto seu coração. E aqui está ela agora. Maltrapilha por ter resistido no momento da perseguição. Cabelos sujos, roupa rasgada, cortes de arame farpado pelo corpo. E sou o encarregado de cuidar de tudo que lhe relaciona, consegui este benefício também.
— Você não sabia, não é? — estou falando com minha namorada particularmente enquanto ela dorme. — Não pode terminar com o Oliver, ele não gosta de respostas agressivas — toco em todo canto de seu imaculado e despido corpo enquanto limpo-a gentilmente com um pano umedecido. Visto-a com uma típica roupa de plástico cinza recomendada para pacientes. Penteio seu cabelo com cuidado, prendendo-o numa fita branca. Natalie sempre gostou de fitas brancas. Enlaço os tufos ali com cuidado e beijo seu rosto outra vez limpo. Ainda mantém seu aroma de garota popular fresquinho.
Separo duas seringas para minha garota.
Trabalho na Corporação Ônix, a nova rede de hospitais da cidade St. Louis. O emprego paga bem, muito melhor do que ser garçom no desgastante restaurante do qual saí. Mas paga ainda melhor se você fizer parte dos esquemas que rolam no período noturno, e foi então que aderi ao outro horário de trabalho. Durmo durante o dia, a noite pego o carro novo e quitado — um dos ganhos pelo recente trabalho —, encaro a noite e o serviço proposto pela equipe de cirurgiões e médicos do hospital. Implantamos e fabricamos vírus para serem testados em outros humanos, os que são selecionados a dedo para servir de cobaia. Natalie era o pior tipo de pessoa para esta seleção, pois é daquele tipo popular e de uma beleza incrivelmente graciosa. Poucos olham para suas feições sem soltar um assobio baixo, um sussurro, que garota linda. Mas fiz de tudo para que eles a escolhessem. Assim, ela nunca mais seria de ninguém além de mim. Propriamente bajulei os chefes do hospital, por conta disso.
Natalie será uma das contaminadas logo mais. As cobaias humanas ficam contaminadas após aplicarmos os produtos que são criados na Corporação Ônix. Muitos dos pacientes selecionados são vítimas de câncer ou de outra doença de difícil cura, que já estão quase esquecidos pelos familiares. Os vírus fabricados ajudam a exterminar as outras enfermidades do paciente testado, mas acarreta também resultados inesperados. A maior parte não resiste e morre, seus corpos são descarregados no mar, por outra equipe. Tudo tem um controle. Eu sou um dos que aplicam as injeções, e a ordem para mim é a de não falar com o paciente. Mesmo que gritem, esperneiem, as correntes são firmes, não se libertariam facilmente, então, nada de respostas.
Não admitirei que Natalie corra perigo em seu primeiro teste. Preciso que ela sobreviva, e quero mais: que esta garota seja totalmente diferente de qualquer outro ser humano. E para isso fabriquei o novo líquido, quando ninguém mais notava a falta de produtos no estoque do hospital. De início testei a substância em ratos, o que demonstrou satisfatório resultado.
A primeira agulhada a faz abrir os olhos, e ela começa a gritar depois de notar quem está perto.
— Oliver, socorro! Por favor, me ajude! Eles me pegaram, eles levaram papai e mamãe, eles...
— Calma, meu amor — toco seu rosto com cuidado e ela demonstra incredulidade no olhar selvagem. Gosto da surpresa em seu rosto, é amável, excitante. — Eu cuidarei de você agora, ninguém fará mal algum.
— Oliver! Tire-me daqui! Por favor, por favor, POR FAVOR! — ela começa a implorar e tenho medo de que algum membro da equipe nos ouça e venha verificar-nos. Logo então a garota começa a estremecer, e seus olhos lacrimejam. Ela grita agudamente. — Socorro! Ah! Quero sair daqui! — e sua mão acorrentada tenta chegar automaticamente ao braço onde injetei o líquido suspeito. — Oliver, o que você fez? Oliver!
— Você vai ficar bem, não deixo ninguém tocar em você além de mim, eu prometo — minha voz mantém-se calma. Estou novamente tocando seu rosto e dessa vez ela consegue morder meu dedo com uma raiva assombrosa. Desvencilho minha mão agilmente, antes que seus dentes a perfurem.
— Monstro! Seu monstro! Não acredito que já confiei em você! Monstro! — seus olhos voltaram a lacrimejar, mas com uma espécie amarelada de lágrimas.
— Você fica linda quando está raivosa, Natalie — digo-lhe. — Nunca te vi assim. É sério, fica linda mesmo, como ainda é possível?
— Socorro! Tem um monstro aqui... — suas palavras vão sumindo à medida que a espuma ácida da contaminação inunda seus lábios jovens.
Uma jovem garotinha namorando um cara de dezoito anos. Três anos mais velho e por isso aqueles pais tolos queriam nos separar. Mas suspeitei que ela tivesse se cansado de mim simplesmente, e tenha se escondido nesse dito motivo. Então fui pessoalmente ter uma conversa com os pais dela, que negaram a mentira de imediato.
— Vamos ficar juntos, Natalie, não é legal? Você disse que me amava, lembra? — estou outra vez me aproximando, a nova seringa em mãos, fitando a agulha.
— Monstro! Eu nunca disse isso, seu verme maldito! — é aqui que ela prende meu olhar entristecido.
— “Oliver, amo estar com você. Oliver, você me faz tão bem. Oliver, os outros garotos eram infantis, e você parece ser tão maduro. Oliver, não me deixe.” Natalie, isso é mais que um eu te amo. É uma declaração completa. Eu diria que...
— Socorro! Alguém-por-favor-me-tira-daqui! — ela interrompe-me brevemente.
— Como eu dizia, era quase um pedido de casamento. Agora ficaremos juntos sempre, te prometo. E um dia sairemos daqui e iremos ter uma casa, dois cães, filhos, um carro novo na garagem. E vizinhos invejosos fazendo intriga. Quer vida mais normal, Natalie? — ela não consegue mais responder, a substância que inseri inicialmente em seu corpo está produzindo-lhe sérias convulsões. Sou rápido com a outra seringa, a que contém o outro líquido ácido.
A segunda agulhada a faz desmaiar por completo. Natalie agora é oficialmente uma contaminada.
— Não demorará muito até sairmos daqui. E eu prometo a você, Natalie, sempre será minha — sussurro isso em seu ouvido. Talvez ela ainda consiga ouvir. Apago a luz e a deixo na sala de observação. Os resultados que a contaminação dará já me são certeiros, mas para a equipe ainda não. E é estritamente proibido alguém descobrir que interferi dessa forma em seu processo, ou então me tornarei um dos selecionados também. E não quero perder a chance de acompanhar minha namorada.
O importante agora já foi feito. Natalie será ácida. Viva e ácida.

 


 


. 1 .

LIBERTADA

Acordo e respiro a poeira ao chão, ocasionando um ataque de tosse que não consigo controlar por alguns minutos. Tenho consciência de meu rosto marcado por ter sido espremido no piso desse porão. Dos cacos de vidro estilhaçados a me furar e das teias de aranha camuflando meu comprido e claro cabelo de pontas duplas e triplicadas. Minha aparência é algo raivoso e amedrontado que evito fitar através do inquebrável espelho no qual uma única vez ao dia fica acessível, juntamente com o banheiro. Acho que o espelho está lá para me manter furiosa, para relembrar da aberração que me tornaram. Eles só não sabem que ainda guardo alguma simpatia por mim mesma. Eles a quem me refiro são os monstros que me aprisionaram neste lugar.

Eu costumava ser uma garota normal, com quinze anos superficiais. Tinha amigos, um namorado lindo, pais perfeitos, filha única. Morava num bairro popular e era conhecida por muitos na escola. Não lembro maiores detalhes de como era aquela vida, mas ela me foi arrancada de uma hora para outra, sem fazer o menor sentido para mim. Talvez tenha se passado somente um ano, ou dois, ou dez, eu não sei, nem vi mais a luz do sol para enumerar meus dias.

Tudo o que sou agora é o que me tornaram. Um experimento, uma cobaia. Um ser usado e reutilizado diariamente para serem testadas substâncias desconhecidas. Às vezes não sei como meu corpo inteiro ainda não se deformou, retorceu-se ou murchou até ficarem somente os ossos. Minha língua, que por vezes se cobre de um branco pálido e tenebroso, mostra que isso pode estar perto de acontecer. Que o fim e, consequentemente a paz, estejam próximas. Rezo para estar certa disso.

Levanto confusa por um instante e então tento relembrar todos os passos que dei antes de ser drogada. Falho na busca de uma informação nova. Não existe muito do que se lembrar sobre o dia anterior a este. Nem da semana antes dessa, mês ou ano. Todos os dias têm sido idênticos, a não ser pela notável e exagerada perda de peso que sofro, ou pelo aumento.

Eles, os monstros humanos, não me dirigem uma única palavra. Por isso elas queimaram no ácido de minha língua e não mais retornaram. Não falo com ninguém, pois no início isso era uma falta grave que resultava em dias sem comida e noites congelantes sem cobertor algum. Sou a Ácida, é o que está escrito em letras roxas na pulseira branca que todo dia eu rasgo, e no dia seguinte reaparece em meu pulso — eles a colocam lá após me drogarem.

Sou mantida numa sala com poucos centímetros, camuflada com almofadas que perderam sua cor branca para se tornarem amareladas com o tempo. Amarelas devido ao suor de meu corpo a impregnar-se nelas.

Se eu durmo por muito tempo, minha cela chega a temperaturas insuportáveis, e caso eu não acorde e comece a gritar logo, o calor aumentará até eu me transformar numa torrada. Em outras ocasiões eles preferem transformar o lugar num congelador. Depende do humor de quem controla essa brincadeira decidir se morrerei queimada ou congelada.

No final do dia, ou quando acho que seja o final do dia, colocam algo no líquido que tão pouco me é fornecido, para que eu adormeça e acorde numa sala mais ampla, onde fico acorrentada por horas, onde injetam em meu corpo substâncias que desconheço.

Às vezes, aparece um certo homem de barba rala, com o rosto retorcido em linhas de expressões, me trazendo comida, ou água, e algumas palavras a mais. “Você é tão inconstante. Sei dos seus segredos, mesmo que nem você não os conheça, garota ácida”, é o tipo de coisa que ele fala, que me deixa atormentada por temporadas longas.

Eles, os monstros humanos, avaliam minhas reações com um caderninho de anotações em mãos. Tem vezes que há muitos por perto, em outras ocasiões não. Mas em todas elas eu evito chorar. Chorar não é uma opção segura aqui. Chorar não produz misericórdia naqueles olhares atentos, produz aversão, e resulta em dias ainda mais difíceis.

Nada de choro. Nada de demonstrar fraqueza. Eu sou forte.

Mas há uma diferença no agora. Há esse porão. Nunca, em momento algum, acordei nele, disso estou certa. Tenho certeza, pois a única coisa suja que tenho visto nos últimos meses fora somente meu corpo e as almofadas amarelas. Há também uma saída nessa sala. E um jornal ao chão sendo clareado pela fresta brilhosa que escapa da saída. Essas são as novidades que arrecado com satisfação.

Liberdade? Ou ativarei alguma armadilha mortal depois que passar pela porta entreaberta? Não sei, mas quero descobrir.

Não me permito ficar parada sem tentar.

Quero correr, mesmo que minhas pernas tenham desaprendido tal habilidade com a vida sedentária imposta a mim.

Sem alternativa além de permanecer, eu aceito o que é proposto pela porta. Aceito até mesmo o jornal.

Entro numa ala cheia de corredores de paredes brancas, luzes brancas, com portas brancas de maçanetas também brancas. Isso causa uma fadiga só de levantar os olhos. Tenho medo do que posso encontrar dentro de uma destas salas e é isso o que me detém parada por dois segundos.

Tenho de sair daqui, é o que ditam outros pensamentos.

A curiosidade ataca. Meus pensamentos são uma massa desordenada pelejando para se manter em atividade.

Avanço por mais corredores. Há uma porta dupla no final de um deles. Não há ninguém visível. Não existe som além de meus passos sobre uma chinela rasteira e suada. Isso me acalma de algum modo.

Sozinha.

Estar sozinha me proporciona os melhores momentos que ultimamente tenho conseguido. Estar sozinha é meu período de recuperação, e nele eu gasto cada gota de paciência tentando me manter calma.

Mas como sairei daqui? Como?

Percebo que terei de enfrentar uma daquelas portas e é o que logo faço. Enfrento aqueles medos todos. Monstros infantis estão bailando ao meu redor e sumindo como poeira quando tento focalizá-los. Não quero parecer louca. Ainda me restam boas doses de sanidade, eu tento acreditar. Eu preciso acreditar.

Acredite em você, eu sussurro. Não resta ninguém para acreditar, então confie em você.

Nada a temer na primeira tentativa, é uma sala vazia também. É um grande hospital e parece estar vazio. Há câmeras, mas de alguma maneira penso que não estão ligadas. Não tenho certeza.

Devem estar me bisbilhotando nesse instante, quem sabe. Pode ser tudo um truque barato. Alguém talvez esteja se divertindo com o bichinho de estimação aqui desnorteado. Nem toda câmera precisa ter uma pequena luzinha vermelha acesa ao lado, é o que estou respondendo-me criticamente.

Entro numa segunda sala e ela possui um banheiro, e este banheiro possui uma pequena janela. E a janela possui uma possibilidade que me diverte por um longo período. Já é uma saída. É uma nova saída. Estarei eu com tanta sorte num só dia?

Estico-me e meu estômago se contrai de dor. Dor pela falta de alimentos. Meu corpo está frágil e esquelético. A alimentação e as doses de remédio me fizeram ganhar este corpo debilitado.

Paro. Respiro.

Acalme-se, murmuro.

Avanço.

Tenho êxito em subir na janela e pulo, para depois cair num gramado quebradiço com areia fina.

A grama me recebe. Eu cheiro a grama e sinto todas as suas bactérias sujarem meu rosto. Eu quero rolar pela grama, como já devo ter lido em algum livro algum animal fazer. Eu sou um animal na grama agora.

Livros e grama, coisas das quais mais sinto falta. Coisas que lembro que existem. Coisas que preciso acreditar que existem.

— Ei, parada aí! — grita uma voz masculina distante, e seu dono anda a passos rápidos, segurando uma lanterna.

Já me vejo correndo para o muro tão próximo. Para o céu que não me recebeu com raios solares e sim com uma noite inundada em pontos tão brilhantes. O céu é outra dessas maravilhas que ainda existem e ele também me serve de empecilho, pois me desorienta.

Sou derrubada. Um guarda, eu vejo. Um vigia do lugar. Estou perdida.

Acalme-se.

Não me acalmo.

— Não pode sair tarde da noite, mocinha — ele está dizendo calmamente enquanto prende minhas mãos em algemas. E as lágrimas em meu rosto escorrem pela grama. Escorrem muito mais do que as lágrimas de qualquer outra garota. Não possui um freio, um botão de parada. Mas também não há um soluço sequer.

— Ei, não fique assim. Ninguém vai machucar você — toca meu rosto docilmente. Ele é perverso, estou respondendo-me. Ele quer me enganar. Ele me levará de volta. Ele se certificará de que não fugirei outra vez.

E acontece o ataque ali.

Minhas bochechas começam a arder de uma fúria incontrolável, minha língua está queimando pela saliva ácida que substitui a anterior. Avanço sobre o rosto do guarda e selo nossos lábios. O último beijo do qual ele se lembrará na vida. O beijo mais infernal que ele pode ter tido.

O ácido queima sua língua, corroendo a garganta para por fim derrubá-lo com nenhuma fresta de juízo. Sua voz já foi perdida. Sua sanidade está debilitada. Rápido assim. Ácida assim.

Livre outra vez, surrupio as chaves das algemas que estão presas nas vestes do guarda. Seu corpo inerte estende-se na agradável grama. A grama não merece sustentar seu corpo, penso. E vejo que ele é até atraente, e jovem. Cabelos curtos e negros, uniforme azul, boné branco com letras escuras. Não foi seu melhor dia de trabalho. Mas não está morto. Ainda. Consigo ouvir seu coração pulsar. Sei que lhe causei um estrago mental e tanto. Irreversível, na pior das hipóteses. Pouco estou me importando.

Avance.

Logo pulo o muro, evitando dar a volta pelo edifício, evitando saber de que lugar eu estou fugindo, o que pode até ser um erro. Avanço cautelosamente e a curiosidade me faz olhar para trás. O letreiro distante do local em que fugi mostra-me o seguinte nome: Hospital Ônix.

Chego às avenidas vazias. A sensação de liberdade é tão gostosa que sinto vontade de correr, e estou quase fazendo isso mesmo, porém vejo que ainda há suspeitos caminhando pelas calçadas. Caminhe com cuidado. Caminhe com cuidado. Caminhe com cuidado.

Acalme-se.

Cravo rapidamente um grampo imaginário nos pensamentos perturbadores e difusos que estão surgindo e me aprumo para dar meus passos com a melhor e menos notável rapidez possível. Estou sendo observada e minhas orelhas queimam por entender que estão pensando sobre mim. Estão falando internamente sobre mim.

Calem seus olhos. Não olhem para mim. Não quero que olhem para mim. Saiam da minha frente.

Acalme-se, sussurro aconselhando-me.

A aceitação interna de alguns fatos chega rápida como meus olhos piscando de frio, para tão logo se despedaçar. A noite perturba minhas lembranças, e o reconhecimento de alguns dados navegam pelo redemoinho de ideias afogadas que estão no meio do meu cérebro. Rasgo o jornal que foi deixado para mim naquela espécie de galpão, o qual mostrava uma única matéria sobre uma nova doença contaminando as pessoas.

Sou uma das contaminadas, a informação é obvia para mim assim como tenho noção de meus lábios ardendo. E daquilo que causa o desconforto. Não precisava ser lembrada. Já era óbvio muito antes, só pelo que era submetida. Uma cobaia. Estou acostumada com essa diferença, reflito. Tenho habilidade em me adaptar a terríveis circunstâncias e com a contaminação não foi diferente.

Avance.

Meu vestido clínico, uma espécie de sacola plástica com alças finas que deixam os ombros pálidos a mostra e terminam no meio das coxas, está amassado e o vento arrisca tirar-me esse único conforto. Caminho com os braços protegendo a vestimenta numa espécie de abraço. Meus lábios mantêm-se ressecados. Na escuridão que banha as ruas, minhas características possuem uma importância descartável, mesmo com os estranhos olhares que recebo dos poucos acordados que ainda transitam por ali.

Estou livre. O céu está me informando que sou uma de suas protegidas. Livremente no escuro.

Alguns rostos aparecem vez ou outra me encarando, mas os ignoro, deixando-os todos envidraçados, distantes. Perambulo por praças e parques, permitindo avançar com mais rapidez no decorrer dos minutos.

Não sei meu nome, mas acho que eu deveria lembrar. Tenho muitas dúvidas. Penso que propriamente destruí parte das lembranças devido ao tempo que fiquei presa naquele lugar. E foi um erro, elas poderiam ter me feito companhia. Desisti da esperança de forma fácil demais, rápida demais. Até hoje.

Não devo querer garimpar as boas memórias agora. Primeiro preciso me sentir realmente segura. Quero que a noite mostre um rumo. Revele uma luz, ou sorriso. Sinto falta de sorrisos. Amanhã decidirei melhor como será minha vida. Amanhã procurarei lembrar-me de alguém do passado que ainda se lembre de minha existência, e que possa me oferecer ajuda.

Precisa existir alguém que se importe com você, eu tento me acalmar. Apenas tento em vão.

Avanço.

Tudo aquilo de importante que me lembro sem precisar de esforço é o que estava escrito no jornal, informando sobre os contaminados, e naquela pulseira de tecido branco que rasguei numa primeira alternativa desse dia, onde havia a seguinte palavra marcada com tinta roxa: Ácida.

Literalmente ácida.


. 2 .

ALERTADA

 

 

As ruas escuras escondem minha melancolia, e admiro isso nas sombras quando viro uma esquina iluminada e com pessoas em bares. É a segunda noite em que me aventuro, o dia claro foi longo onde me escondi por vielas, dormindo enrolada em genuínos papelões enquanto a cidade ganhava vida. Onde os gatos ladrões criavam brigas, e seus miados despertaram-me um milhão de vezes.

Mas a noite novamente chegou e me senti segura em sair, em dar uma volta, em refrescar a memória.

— Vem aqui, docinho — chama-me uma voz masculina. Meu olhar é atraído para um homem numa calçada, no lado oposto da rua. Deve ser o meio da semana, se a data do jornal que encontrei numa lata de lixo estiver certa. E este indivíduo parece ser do tipo que adianta a diversão para qualquer dia.

Eu andava no aleatório, em busca de algum reconhecimento do lugar e aos poucos fui recordando-me do bairro. O quarteirão seguinte esconde uma estação subterrânea de metrô, o que passei anteriormente havia uma ponte sobre um rio, no qual me limpei o máximo que consegui. Mergulhei totalmente. Ainda há areia pelo meu couro cabeludo. Ainda não me lembrei de pessoa importante alguma.

Paro ao chamado por notar um fato sobre mim: não tenho dinheiro e preciso de ajuda.

É tão fácil conhecer pessoas novas nessa cidade, assim como há chances para ser morta. Essas ruas são perigosas nesse horário. Sei disso porque agora sou um dos perigos que a rondam. À noite há sempre um mistério.

Olho na direção do homem desconhecido e sorrio. De longe percebo que ele tem uma beleza pouco questionável. A garrafa de 250 ml de vodca que segura está quase vazia. Seu hálito sim é bem questionável.

Eu me aproximo ao notar que não há quase ninguém pelo pequeno estabelecimento e o desconhecido se anima pela rápida aceitação.

Acalme-se.

Avanço.

Consigo ver seus lábios formando a palavra “maravilha” mesmo na distância. Ele deve estar bêbado para não notar minha estranha forma ou já teria corrido para o meio das poucas pessoas, gritando sobre uma louca de vestido plastificado andando pelas ruas.

Eu já me acho bem louca.

— Qual o seu nome, boneca? — diz ao se aproximar rápido. Fazemos uma breve troca de cumprimentos, na qual ele quase me beija na boca, acerta o canto de meu lábio inferior.

Quase.

Ele não possui medo de estar perto de mim. Considero seu desleixo uma das consequências da bebida que tão secamente consome, deixando uma leve baba sobre o queixo. Sua beleza já é questionável tão de perto.

— Preciso de ajuda! — arremato. Seus olhos parecem embaçados pela embriaguez. Estou cogitando sair dali e esquecê-lo.

Acalme-se, sussurro. Preciso mesmo de ajuda, relembro-me.

“Preciso de ajuda”. É fácil dizer, mas nem sempre isso é fácil de admitir. É um ato de coragem, dado que não basta apenas dizê-lo. Estou sendo corajosa essa noite. Estou admitindo.

Preciso de ajuda.

— Você sempre visita o Drink’s Bar? — diz ele. A pergunta estúpida me decepciona e ele nota isso. Tenta reverter nossa situação ao levantar as mãos em rendição. — Opa. Quer sair daqui então?

Isso foi rápido, penso. Rápido. Parece fácil. Devo me dar os parabéns?

— A fumaça de cigarro nesse lugar me incomoda — suavizo sua perturbação, mas com cautela e uma jogada de olhar diferente. Ele precisa reagir da forma que eu quero após ter sido selecionado.

Não há outra maneira, penso. Vou ter que espancá-lo, roubá-lo e depois correr. E aceitar um local diferente deste parece ser uma boa opção para praticar tais atos.

— Conheço um lugar — ele fala rápido.

A praça escolhida é iluminada, mas está deserta e ele me guia para os bancos numa parte em que árvores escondem nossa presença. Seu rosto está suando frio e a respiração é entrecortada. Ao céu nuvens cercam a lua minguante, novamente com a escuridão a me proteger. Outra vez com os calafrios a surgir.

Acalme-se.

— Você pode me ajudar? — chamo sua atenção outra vez, tentando não usar a violência.

— Sim, eu dou conta — se precipita, e de seu bolso tira nada mais, nada menos, que um preservativo.

Fico enojada, e nisto começo a arquitetar o segundo plano.

Avance.

Livro-o da garrafa de vodca em suas mãos e a deixo ao lado do banco, no chão.

— Você não está indo rápido demais? — questiono, ainda pensando em voltar atrás. A sobrancelha dele é pequena, seus cílios são pequenos, olhos e lábios também, um padrão igual. Seu cabelo loiro foge à regra, cobrindo parte de sua bochecha.

— Eu já não te beijei? — o tom da voz dele está falhando, o cheiro do álcool banha meu rosto. Consigo enxergar através de suas pupilas dilatadas e com nervos avermelhados que ele não sabe exatamente o que está vendo. Está brigando consigo mesmo, e um instinto masculino o diz que deve prosseguir com sua amolação pretensiosa.

Nego com um aceno de cabeça. Bingo. Ele chega à parte mais excitante da nossa história.

— Mas você quer me beijar? — lanço a pergunta traiçoeira.

— Opa — ele me agarra de forma rude e seu pé pisoteia o meu. Assanha meus cabelos com a mão suada para aproximar nossos rostos. Tudo isso num ritmo desconcertante.

Sinto toda a minha aversão crescer ainda mais.

— Você gosta de uma pegada mais forte, hein? Você parece tão safada — sua mão desce pelas minhas pernas e sua língua toca meus lábios de forma sufocante.

Tarde demais. Estamos colados. Conectados.

Meu beijo o queima.

Ele perdeu e está percebendo isso. Oprimo sua tentativa de se livrar de mim ao inundá-lo com o ácido de minha saliva.

Sem gritaria, sem sangue.

— Eu gosto assim, docinho — estou lhe respondendo agora enquanto tateio suas vestes e tiro a carteira. Há notas com valor bom o suficiente.

Olho para o que me tornei. Uma ladra. Uma aberração. E estou tirando proveito disso.

Acalme-se.

O rosto do desconhecido está paralisado e sua mão treme de leve enquanto o deito ao banco. Pela identidade descubro que seu nome é Math Sanders. Há uma foto dele beijando uma garota loira e também uma aliança dentro da carteira. Ainda por cima é casado.

Sei o grau de problemas mentais que nele causei com o beijo, os quais o impedirão de pronunciar qualquer palavra com sentido, nem permitirá que assimile direito as coisas ao seu redor. Ele vegetará se seu organismo ficar fraco com o tempo, mas continuará vivo.

A decisão foi tomada e as consequências vieram.

Sei de todas essas coisas, mas sinceramente não sinto compaixão alguma agora. As noites são perigosas para presas fáceis como Math Sanders e hoje ele aprendeu a lição.

Estou pondo novamente a carteira em seu bolso quando um bipe começa a apitar. É o celular do débil indivíduo e o número é desconhecido.

Cogito ignorar o toque de chamada quando vejo um guarda do parque se aproximando a distancia. Não posso ser pega em flagrante. Não posso ser aprisionada em lugar algum. Gosto dessa liberdade.

Atendo a chamada para parecer casual, somos um simples casal no parque, meu falso namorado está bêbado e dormiu. Fico à escuta na linha esperando ouvir uma esposa ciumenta ou até familiares do então presente e incomunicável Math Sanders.

— Você foi avistada, Natalie, precisa se esconder melhor — a voz modificada eletronicamente me pega desprevenida e o arrepio percorre todo meu corpo. — Saia de onde está.

Natalie. Esse é o meu nome, eu consigo recordar agora.

E aguardo a voz continuar, pois deixei de saber como se pronuncia qualquer som além da minha respiração entrecortada. Deixei de piscar devido ao frio, e seguro a respiração por longos momentos.

O guarda do parque se foi.

Acalme-se. Acalme-se. Acalme-se.

Será que ele, ou ela, ouve meus batimentos do outro lado da linha? A pulsação é aguda.

— Às 8h da noite, show dos palhaços — retorna a voz alterada e irreconhecível. — Não se atrase.

O ácido correndo em minhas bochechas é o que me mantém em alerta, mesmo após um leve e prolongado tom anunciar o fim da ligação.


. 3 .

RELAXADA

 


Os vagões do metrô estão quase vazios. As poucas pessoas sentadas estão com roupas de frio, ocupando-se em mexer nos seus aparelhos eletrônicos. Estou ocupando-me em sentir inveja de suas vestimentas, de suas vidas todas certinhas como uma grande orquestra, em sincronia, perto e ao mesmo tempo distantes dos perigos das ruas, com mais pessoas a se importar se vão chegar tarde a suas casas, cansados de um longo dia de trabalho.

Ignore-os.

Tiro um livrinho pequeno, uma edição de bolso que incrivelmente achei quando procurava restos de comida nas latas de lixo e começo a ler. Mesmo com dinheiro, não achei mais sequer uma lanchonete aberta pelos meios da cidade. Disputei embalagens de chocolate com gatos da noite. Aprendi a derrotá-los mais facilmente agora. Sou como uma nova felina noturna e eles já não possuem vez.

O título do livrinho não me chama atenção, mas as frases dentro dele saciam-me, me fazendo esquecer a realidade ao produzir pensamentos tão leves. É isso que eu admiro nesse tipo de leitura, ela me mantém em ordem, em calmaria, mesmo quando há um extenso oceano de dúvidas causando estragos na minha mente.

Desço na última estação, quando já tinha me perdido nas aventuras do livro e me encontro sobre uma parte da cidade mais iluminada que a anterior.

Durmo num motel, o único disponível que encontro. O quarto é pequeno, há cabelo no travesseiro da cama e impregnado num sabonete em barra no boxe do banheiro. É uma luxuosa melhoria em relação ao galpão que me servia de prisão, ou contra os papelões das ruas.

Estou cogitando que deveria dormir nas ruas e racionar o dinheiro roubado, mas sinceramente, com uma breve disponibilidade de dormir num local seguro, eu prefiro aproveitar cada hora tranquila que vier.

A água morna do chuveiro escorre por todo meu corpo e finalmente me sinto relaxada, como se todas as fraquezas estivessem sendo expelidas e descessem na cachoeira uniforme e espumada pelo ralo. Essa sujeira toda é como minha alma sendo excomungada, deixando uma diferente jovem alta e magra, de idade entre os dezessete e vinte.

Enquanto me seco, noto pelo espelho que minha língua está com um aspecto apodrecido devido à recente e selvagem prática. Logo mais voltará a cor normal e de camuflagem, um róseo escurecido. O vírus que implantaram em mim ainda está sob controle, mas de acordo com a matéria do jornal deixado no galpão, não terei muitos dias até o ácido subir para meu cérebro e fervê-lo.

Preciso punir os culpados o quanto antes, começa a surgir o pensamento vingativo, e o primeiro passo para isso é encontrar o responsável pela ligação recebida na presença de Math Sanders. É um novo grito de ajuda e me sinto com coragem para clamá-lo.

A noite é recheada com a mais tênue benevolência do silêncio. Até os sonhos tortuosos resolveram me dar um descanso.

Pela manhã peço dois hambúrgueres médios e sacio-me ao olhar para a televisão da lanchonete numa esquina qualquer. O aparelho mostra um rápido anúncio sobre uma Universidade, e logo após, sobre o novo Circo de atrações da cidade. Vejo palhaços na tela convidando crianças de todas as idades para o evento.

— Às oito da noite, imperdível! — encerram a propaganda.

E é esse o meu chamado. Hoje irei ao famoso Circo Medley. Onde está minha animação? Devo ter perdido quando deixei aquele glorioso e simples quarto alugado.

— Aqui está seu troco — diz o atendente da lanchonete. Percebo que o garoto está me olhando com um pouco além do ‘obrigado e tenha um bom dia’. Estou quase lhe oferecendo um beijo, mas não sou tão cruel assim.

Acalme-se.

Preciso controlar os impulsos, repreendo-me.

— Você precisa de mais alguma coisa? — o garoto diz todo atencioso enquanto limpa o balcão com extremo cuidado.

— Sim — respondo-o num bocejo de sono. — De sorte.


. 4 .

ENCIUMADA

 


Em meu longo cabelo liso e claro, agora lavado e devidamente escovado, há uma singela fita branca que combina com o vestido amarelo que comprei. Dinheiro é uma coisa que some tão rápido...

De alguma maneira sinto que gosto de vestidos assim, com um decote discreto, definindo a cintura. Ou que a primeira e fisicamente normal Natalie deveria gostar de coisas assim.

Meu rosto possui olheiras, mas fora isso está absolutamente comum. Minha língua, a qual preciso evitar a paranoia de verificar a cada minuto para saber se está com sua monstruosidade ácida visível, continua camuflada. Meus lábios continuam com o tom normal, nada de roxo ou azul.

Acalme-se.

Mais tarde pego o metrô novamente, o meio mais rápido e barato para se chegar ao outro lado da cidade nesse horário da noite.

Não tarda e eu chego na hora certa.

Avanço com cuidado.

— Bilhete, por favor — pede o porteiro. Ele tem uma voz firme e parece ser musculoso como um daqueles lutadores de luta livre. Estou me perguntando se ele também tem alguma habilidade que pratica nas apresentações do Circo ao mesmo tempo em que me acautelo para saber onde foi que coloquei o amaldiçoado do ticket.

— Deixou cair — sorri o homem atrás de mim na fila. O detalhe mais alarmante são seus olhos verdes, bem diferentes dos meus que são clareados e quase se perdendo pelo azul. Em sua palma larga e corada há três bilhetes sendo sustentados e direcionados ao meu rumo. Uma garota encontra-se com uma mão no ombro dele, entretida em conversar com a amiga logo atrás de si.

— Obrigada — respondo a ele enquanto pego um dos bilhetes, desconfiada. Entrego rapidamente o pedaço de papel prateado para o cara da bilheteria, que me devolve um olhar de chateação.

Entro ligeira pela abertura na lona do Circo e penso ter ouvido um chamado, mas ignoro, já que há muitos sons ao meu redor. Só aquieto-me quando estou sentada no meio de famílias e mais famílias pelos assentos baixos que circundam o picadeiro logo à frente.

A sensação é de plena nostalgia. Estou voltando ao passado, mas vendo somente outros Circos ao qual visitei, e não este. Há duas pessoas segurando minhas mãos, uma de cada lado, não estou lhes dando atenção porque fico entretida gritando para o domador de leões, falando para que tome cuidado e para não ser atacado. Minha voz se rompe através do corpo de uma garotinha de sete anos, com cabelos loiros cheios de cachos e fitas amarradas por cima. Um vestidinho cheio de rendas me cobre. Ouço risos pela minha boba criancice.

Volte.

Tenho que me lembrar de que serei encontrada aqui. Tenho que me concentrar nos milhões de rostos. Não posso me permitir ficar entretida com a diversão e deixar de ficar em alerta. Há alguém aqui esperando por Natalie, e esse alguém sabe informações das quais necessito. Esse alguém pode me mostrar uma ajuda.

A lona que nos cobre é toda de cor vermelha. Imagino que a coisa se transformará num barco, pois há suportes que se assemelham a mastros.

Logo há a abertura do espetáculo e os profissionais começam a se apresentar. Malabaristas, domadores de animais e de fogo circulam fazendo seus primeiros acenos. Aplausos lhes respondem. Surgem seguidamente homens e mulheres rodopiando pelo ar, agarrando-se em extensos lençóis coloridos suspensos.

— Qual o seu número preferido? — pergunta-me uma voz atrás de mim. Percebo se tratar do mesmo homem de antes, o que achara meu bilhete na fila de entrada. O amarelo de sua camiseta regata me deixa cega por dois instantes. Sua calça preta faz o contraste com a cor. Ele tem belos traços, é o que estou me delimitando a admitir.

— O oito? — respondo, o que o faz rir. Seu riso não é tão alto, mas contagia, dá vontade de acompanhá-lo, ativa minhas boas expressões, derruba meu mau humor.

— Não, me refiro à apresentação. Qual a sua performance preferida? — as palavras dele estão sendo lançadas com ardor, combatendo o barulho dos risos que nos cercam e estreitando seu belo pomo-de-adão. Meu olhar cai sobre a garota que está ao lado dele e ela me nota pela primeira vez. Não parece demostrar tanta simpatia assim.

O vestido dela é bonito, avalio. Mais belo que o meu.

— O domador de leões — respondo-o, meu olhar fugindo para varrer outros rostos. Todos eles desconhecidos. Poucos captam minha bisbilhotice, a maioria está concentrada nas atrações logo ao centro do lugar.

— Mas esse é o mais simples — ele questiona. — A propósito, meu nome é Mark — ele estende a mão e eu hesito. Fito sua palma estendida por um tempo constrangedor.

Mark. Nunca ouvi esse nome antes. Nem nunca vi esses olhos inebriantes. Nem essa sobrancelha larga e este maxilar com uma fina barba enraizada. Minha atenção volta-se para ele por tempo demais para que seja aceitável ficarmos calados.

— Domar aqueles leões... Uh... É o que eu acho mais aterrorizante, Mark — respondo-o, ativando a atenção da garota ao lado dele e omitindo a oportunidade de dizer meu nome.

Não tenho certeza se devo dizer meu nome a ninguém.

Nomes não são seguros.

Mark pode não ser o nome dele.

Mark pode não gostar do meu nome.

Mark tem uma namorada.

Mark é um desconhecido.

— Me chamo Natalie — eu digo pausadamente para que não perca uma sílaba e estendo minha mão, que ele aperta sem demora alguma.

— Tudo bem aí, Mark? — chama-lhe a garota ao lado dele, apertando seu ombro, guinando-o para o rumo dela.

Meu olhar desvia-se rápido e volto a encarar o espetáculo, procurando algum rosto que pareça familiar. Procurando esfriar o rubor mapeando minhas bochechas.

— Tudo bem, Suzan — ouço-o dizer à garota.

Inevitavelmente me perco ouvindo o casal atrás. Eles parecem ter entrado numa breve discussão, e de alguma maneira isso faz minhas bochechas enrijecerem e depois transbordarem em calor, como se eu fosse a culpada disso. E acho que sou a culpada. Quero ser a culpada.

E pretendo sumir desse assento também.

Aproveito o breve momento em que a plateia se levanta para bater palmas perante uma apresentação e me disperso dali. Ouço o chamado do desconhecido Mark outra vez, mas ignoro. Ele tem uma garota e eu deveria parar de ser tão estraga-momentos.

Mark tem um belo nome.

Mark é um desconhecido.

Acalme-se.

Avanço, imaginando que tipo de pessoa marca um encontro num lugar como este, com tão poucos pontos de referência. E que tipo de pessoa sou eu para comparecer, sem a certeza de estar no lugar certo. Essa cidade acreana é pequena, mas poderia ter mais dois circos semelhantes ao Medley por St. Louis. Não pesquisei, porque sou uma tonta e medrosa. Porque sinto desconforto estando perto de outras pessoas, mais do que elas sentem de mim. E isso não tem nada a ver com ser anti-social, nem timidez. Tem a ver com o ácido.

Mesmo que a noite acabe sem ajuda, sinto que ela de alguma forma já foi bem paga. Estou pensando isso enquanto lembro-me do desconhecido e comprometido Mark. Tornei-me um ser um humano tão errado assim? Esvaeço os pensamentos e começo a andar pela parte em que há um pequeno corredor por onde transitam as pessoas do Circo que vendem pipoca e refrigerante. Alguns até conseguem distribuir sorrisos em meio aos oferecimentos de seus produtos.

Sorrisos. Sinto falta deles.

E sou puxada rudemente por uma mão que surge de dentro da lona vermelha.


. 5 .

ATACADA

 


— Sua tonta! — é o cochicho rude da estranha num pequeno cômodo embutido. — Não poderia se vestir de modo mais discreto? Você podia ter sido reconhecida!

— Me solta! — desvencilho-me do aperto ao dar-lhe um seguro tapa como segunda resposta.

Ela arfa de imediato. Seu rosto branquelo ganhando uma esfoliação de vermelho, demarcando o sangue chegando à superfície da pele onde minha palma alcançou. O olhar ficou azedo num instante, depois passou para incredulidade, em seguida evoluiu para medo.

— Natalie! — a garota grita em desamparo. — Não acredito que você me bateu!

Paro, em choque.

— De onde te conheço? — vou notando suas esquisitas vestes coloridas exageradamente, e assimilando que ela trabalha no Circo, ou então está apenas tentando aparentar isso. Seus sapatinhos são de couro preto, com brilhantes grampeados, fazendo fileiras verticais. Há colares e outros acessórios em formato de fruta. Talvez ela seja comediante. Mas no momento não há riso em nenhum dos lados. Embora eu queira compartilhar uma risada, e dizer que a vida é uma grande e tosca piada. Não é o momento. Não existe esse momento.

— Como é? — ela para, estreitando os olhos. — Como não se lembra de mim?

Quando não respondo, ela entende que falo a verdade.

— Robert, Zac, Lisa. Não se lembra desses nomes? — sua mão ajeita o grande cabelo negro, erguido como se fosse um vulcão. Está torto desde minha reação agressora.

— Vagamente — respondo, pois as palavras começam a fazer curvas por partes de meu cérebro que estão enegrecidas de lembranças. Ideias tortas, que um gel não daria jeito.

— Ai meu Deus! Não é possível que eles tenham feito isso. Você é minha melhor amiga! — dobra o vestido largo, cheio de bordados caveirosos e bolotas. — Amigas ajudam as outras, sabia disso, Natalie? Não saem dando tapas assim.

— Qual o seu nome? — tento ao máximo espremer meu raciocínio em busca daquele rosto, mas ele não se deixa captar.

Os olhos dela, eu penso, os olhos dela não me parecem estranhos. Duas esferas de cor acastanhada.

— Tina? Christina? Gina? — fico tentando acertar seu nome pelos que se assemelham de forma lenta. Tem algum ‘ina’ no nome, disso quero acreditar.

Num vislumbre ao redor, vejo como as coisas estão bagunçadas. Como se lobos tivessem atacado o lugar. Arranhões sobre sedas suspensas. Puffs rasgados. Tapetes arreganhados e embolados, com pegadas estranhas de barro. O único eletrodoméstico visível está virado, uma mini geladeira. Uma poça d’água se forma ali.

— Aline — sua expressão é melancólica. —Nataline era a junção de nossos nomes. Você mesma criou isso. Temos uma camiseta com essa junção, cada uma. Bom, nós tínhamos, até destruírem nossas casas e passarem um corretivo em nossas vidas... — ela engole uma golfada de ar com dificuldade, suspira, e levanta o olhar para mim com uma estranha melancolia. — Não lembra quando estudamos juntas? Ah, Natalie, eu lembro tanto. Lembro mesmo. Eles ainda não inventaram máquinas de apagar mentes. E se inventarem, sei que não arrancarão o que guardamos no coração. E isso é meio louco, essa vida de agora. Tenho amigos bem diferentes, mas não são loucos, eles... — A voz de Aline começa a se perder pela minha cabeça, mas também foi diminuindo o volume, até desaparecer. Até ela fechar o rosto com as mãos.

Estou recordando lentamente. Ou apenas acho que estou. Sinto o desconforto da situação. Queria ampará-la, mas um abraço agora seria seco e pouco apreciável.

Acalme-se, eu me aconselho. Ela deve ter sido a dona daquela ligação no parque. Só pode ser ela.

— Natalie, nós...

Ruuuuuuuuush!

As palavras da garota se perdem com os gritos que vêm de onde está acontecendo o espetáculo atrás de nós. Da lona se rasgando brotam pessoas pulando para fora. Muitas crianças começam a gritar e pessoas a correr. O caos reina e se locomover torna-se uma dura tarefa.

— Não, não, não... Deus queira que não tenha acontecido de novo! — a garota choraminga e se perde no meio daquela multidão toda. Decido que o melhor que tenho a fazer é segui-la.

Avanço.

Na correria vejo crianças agarrando-se loucamente aos pais. E no meio da grande arena há uma espécie de...

— Mas o que é aquilo? — berro para as pessoas, percebendo que todos devem estar tentando se abastecer de uma resposta para esta questão.

Pelo meio do picadeiro do Circo Medley há uma grande fera, com pelos grandes amarronzados, fitando uma garota ao chão. Dá para saber que a garota está ferida e, com sorte, somente desmaiada. A fera sustenta-se sobre quatro patas e não demonstra dificuldade em ficar sobre duas também, eu noto isso quando está a aproximar-se da vítima a fim de cheirar suas madeixas. Ou de devorá-la...

Logo os leões são soltos para deter o perigo. Isso não pode fazer parte das apresentações.

Todos se surpreendem ao ver os dois frágeis e aparentemente subalimentados leões sendo mortos pelo predador maior. Um urso matando leões já é espantoso o suficiente.

A única coisa que me detém no lugar agora é o breve reconhecimento da desconhecida ao chão. Porque sei que vi aquele vestido azul com listras verticais num corpo esbelto e com olhos que não simpatizaram comigo. É a garota que estava com Mark, o estranho que achara meu bilhete.

Sem muito em que pensar, começo a correr rumo ao picadeiro, onde percebo: a dita garota está acordando.

Tonta. Fique parada aí.

Acalme-se.

— Natalie! O que você está fazendo? Afaste-se daí agora! — berra Aline, minha amiga que pouco reconheço. Ela está distante, de relance vejo seu corpo agitado pelas fileiras de assentos superiores.

— Ei! — estou gritando enquanto pulo a grade. — Ei, ei, ei, pare! — a fera vira-se para mim e consigo fitar seus olhos embalados por uma presente selvageria. — Calminha — freio.

Tento lembrar algum tipo de truque que se use para domar ursos, enquanto estou rezando para que eu não esteja sendo detectada como uma ameaça.

Não há truques para domar ursos.

Afinal, quem eu acho que sou? Uma dessas heroínas dos filmes com superpoderes? Só tenho um patético beijo que causa a ruína do cérebro de alguém, nada mais que isso. Além do que, onde está o inútil do tal Mark com todo aquele cavalheirismo?

Em curta resposta à minha presença, o animal ruge e empina o grande focinho marrom.

— Você não quer machucar ninguém — a besta começa a intrigar-se com minha insistência.

Noto a garota-de-Mark arrastando-se do local, os braços tremendo, até que alguém a puxa por cima da grade e ela descamba a correr sem parar. Vejo que o olhar do urso selvagem está atônito, ele viu sua presa salvar-se e parece não gostar da substituição.

Quem irá salvar a tonta da Natalie agora?

Acalme-se.

Por cima de mim há lençóis dependurados firmemente em altos postes. Estou cogitando subir por um deles quando meu adversário solta seu maior rugido, tão próximo que fico surda por dois minutos.

— Calminha — me sinto idiota tentando amansá-lo como se ele fosse um grande cachorro. Porque não parece em nada com um grande cachorro. Nem um urso de pelúcia daqueles fofos aumentado de tamanho.

Tenho a nítida visão da besta me encarando com uma nova raiva, até eu estar voando alguns centímetros e aterrissando rudemente no ferro da grade. E mais outra imagem do segundo ataque iminente daquelas brutais patas.

O que eu estava pensando mesmo ao tentar detê-lo? Várias concepções passam ligeiras pela mente e param com o freio do animal a centímetros de mim. Seus grandes pulmões trabalhando com ruídos. O pelo eriçado. A face de expressões intrigadas. Ele parece perguntar: será que você tem um gosto melhor que a anterior?

Cuidado. Cuidado. Cuidado.

Ele me olha atentamente, os olhos embaçados de confusão. O focinho faz um movimento giratório pela minha face, raspando em meu cabelo.

— Não, por favor — lhe peço. E pelo som de minha voz sua ira retorna. — Por favor, não... — eu suplico, em vão.

Um rugido me responde, mas este agora diferente. Um choro. Quase como um pedido. O animal retorna quatro centímetros.

E o reconhecimento dos sinais me surpreende. Os grandes pulmões do animal estão desgastados, consigo ouvir a respiração tentando chegar num movimento uniforme. Seus olhos minúsculos, como botões de café, soltaram duas únicas lágrimas, quase não as notei. E bem a sua frente eu arfo, sem deixar de aproveitar o raro instante da calmaria. Natalie, uma domadora de ursos.

Avanço apenas um passo e beijo o urso.


. 6 .

EXALTADA

 


Todo meu ser se contrai enquanto estou arruinando a mente daquele animal. E o urso selvagem começa a diminuir perante meus olhos. Suas formas vão encolhendo na medida em que seus pelos encurtam, até que sobra somente um rosto quadricular com barba a fazer, me arranhando em meio ao beijo ácido.

Estou beijando os lábios de Mark, o desconhecido. Injetando ácido em seu organismo. Empurro o rosto dele para longe quando noto que seu despido e bem talhado corpo começa a estremecer.

Caio e esmoreço no piso acolchoado.

A dor em meu estômago pelo recente ataque ainda deixa meu interior com sirenes de emergência acionadas. Mas há também uma sensação revigorante surgindo. Como a vida. Uma espécie de força selvagem.

Acalme-se.

Pela minha visão vejo que as coisas não estão mais rodopiando. E que Mark está falando comigo, embora não consiga ouvir ainda. Falta pouco para conseguir ouvi-lo.

Se eu posso notar mais coisas, é que algumas mãos distantes estão a nos aplaudir. Será que eles pensam que fazia parte do show? Bom, improvisamos uma louca apresentação aqui.

As cortinas ao redor do picadeiro são fechadas e ficamos momentaneamente a sós.

— Natalie? Natalie? — ele está repetindo, seu rosto bem próximo ao meu com lábios ressecados. Sua respiração produz uma brisa leve sobre meu rosto. A lona que cobre todo o circo parou de mudar de cor e sustentou-se no vermelho morno.

Ele não está com medo de mim. E não estou com medo dele.

Ele.

Urso.

Mark.

— Natalie? Está me ouvindo? — suas mãos estão tocando meu rosto, com os dedos leves afastando o vasto cabelo que possuo e tirando dali a fita branca. O corpo dele é meu novo teto agora.

— Sim? — minha voz fica embargada por uma sonolência quando finalmente escapa. — Eu te ouço.

Ele sustenta meu peso enquanto luto para sentar. Suas mãos parecem gentis, embora eu note que ele esteja tremendo outra vez. E tentando esconder isso ao mesmo tempo. Mark não é mais um urso, e está nu. Não sei decifrar o que me impressiona mais. Acho que não estou pensando da maneira correta.

Acalme-se.

— Melhor não se mexer muito — ele me instrui.

Não quero me mexer muito. Não quero que ele saia daqui. Por favor, não saia daqui.

— Você é o ursão? — isso o faz rir pelo modo como profiro.

Seu sorriso é lindo, quero responder, ele faz suas bochechas alargarem-se e deixa os olhos quase fechados. Um sorriso dos mais belos. Mas tem uma parte minha ciente de que estou ainda transbordada de sonolência. Devo culpar isso para não parecer tão idiota por não deixar os olhos de Mark.

Olhos.

Sorriso.

Mark.

— E você é a beijoqueira? — ele devolve, e quem começa a sorrir um pouco sou eu.

— Não brinque com isso. Não era nem pra você estar falando...

Ainda trêmula, os braços dobrados no peito, sentada e encarando-o. Se eu deixar os olhos dele por algum instante, talvez eu me amedronte. O que há de errado comigo? Porque não o conheço. Não o conheço. Não o conheço. Mas quero conhecer.

E o momento calmo acabou nessa parte.

— Natalie! — berra Aline ao se aproximar. Mais funcionários do Circo Medley estão chegando. Dois trazem uma maca, um terceiro carrega uma maleta de primeiros socorros. Parecem estar entrando para uma apresentação estabanada de comédia, pois deixam cair coisas, derrapam pelo chão, cambaleiam.

— Estou bem — digo a eles. — Estamos bem.

— Não está nada bem aqui — corta uma voz mais profunda. Parece ser o mágico do Circo, que ainda continua com sua grande cartola azul na cabeça. Esbanja um ar de autoridade, e me vem a suspeita de que talvez ele seja o dono do circo, ou perto disso.

— Como? — a pergunta escapole sem que eu note.

O que poderia ainda estar errado? Eu não acalmei o tal urso louco?

— Vocês foram vistos por muitas pessoas — retorna o mesmo homem após retirar sua cartola, fazendo assim toda sua magia derreter-se em minha visão ao ver o olhar azedo que me lança. Não há um fiado de cabelo para além de sua testa. Talvez tenha sumido num passe mágica, quero lhe responder isso com meu humor desgastado.

— Mas só eu corro perigo. Ela não fez nada de diferente ali — diz Mark, me fazendo ter vontade de lhe dar um soco no belo rosto barbudo.

— Ei, eu parei você! — defendo-me.

— Os dois correm perigo. Você e você — Aline está apontando para nós com aqueles dedinhos rechonchudos. — Mais ainda você, é claro. Mark, não podia ter se segurado? — pousa as mãos na cintura agora, numa posição que demonstra sua irritação. — Aquilo foi uma autoproclamação. Com certeza já deve estar nos jornais! Já não bastava ter destruído meu closet?

Mark enrijeceu. Iria ainda falar algo, mas se conteve a tempo. Vagueio os olhos ao redor e vou assimilando que eles estão me sufocando, o paredão de funcionários nos cerca.

— Ele não teve culpa! — pego as dores de Mark, mesmo sem entender os motivos do ocorrido. Porque sei como é ter de controlar algo diferente. Algo que pode matar.

Mark é um contaminado também. Essa a única explicação que consigo angariar, um sinal de que estou retornado à minha concentração.

— Claro que ele teve! — Aline torna a dizer. — E não fique exaltada a toa, Natalie, você nem o conhece!

As palavras dela desativam minhas defesas. Imagino que eu esteja errada por um instante. Que aquele cara pode ser o mais perigoso dos seres. Revido mentalmente, dizendo que isso é patético. Sou tão prejudicial quanto.

— Não conheço, mas sei vagamente como funciona esse vírus — fricciono as mãos, abano meu rosto, e torno a encará-la. — E vocês, se conhecem tão bem assim?

— Vírus? — uma das bailarinas do Circo questiona.

Quase ninguém lhe dá atenção, mas o mágico se irrita com a garota, gira seu pescoço e o toco de cabeça, com um novo azedume no olhar e voz.

— Sim, o vírus que faz o Mark mudar de forma. Ou você acha que foi mágica, Liza?

Aline abre caminho, passa rente ao mágico, seu ombro bate no dorso dele, e chega até a garota que recebeu palavras carregadas esganiçadas.

— Não seja bruto com ela, Denner. Venha, Liz, vamos — defende Aline, tomando posse dos braços de sua amiga. — E respondendo à sua pergunta — Aline fala à distância, o rosto virando-se para o meu. — Mark trabalha aqui.

— Mark? Você se transforma num urso mesmo? Me mostre isso também, vai? — a tal Liza é arrastada por Aline antes que consiga perguntar mais coisas como esta.

— Não entendemos como o beijo dela o acalmou — ouço um baixinho questionando a outra parceira de espetáculo. Eles usam uma roupa combinando, dois narizes falsos, como uma grande cereja, maquiagem branca rondando sua face, desenhando um imenso sorriso de lábios róseos. Dois palhaços que perderam seus gracejares pelo caos.

— Deve ter sido um golpe de sorte — ela lhe responde. — Eu vi tudo, o urso quase a partiu ao meio...

Percebo que eles não sabem de que forma minha doença se manifesta. Que a forma dela é ainda mais terrível do que imaginam. Que a forma é ácida.

Mas é mesmo um mistério Mark ter reagido tão bem ao meu ataque. Talvez por estar em sua forma de urso. Talvez por eu desconectar o beijo assim que retornou ao seu físico humano. Talvez eu não saiba de nada sobre mim mesma.

— Natalie, precisamos sair daqui. Rápido — Mark está me dizendo, oferecendo suas grandes mãos, o olhar aquecido de confiança através das pupilas inebriantes. — Eles irão chegar logo, temos que dar o fora.

— Eles? — me sinto como a dita Liza por dois segundos.

Acalme-se.

— As pessoas que fizeram isso conosco, Natalie — diz ele de forma calma. — A Corporação Ônix.

— Vocês dois são os únicos contaminados aqui. Segure isso — me surpreendo quando Aline retorna. Ágil, me passa um chaveiro com duas pequenas chaves. — É a única coisa em que posso ajudar agora — sua atenção volta-se para mim. Fitamos-nos por um breve instante, o suficiente para uma troca de amenização, mas não de real amizade. — Confie em Mark, ele é legal, apesar de tudo — seu rosto encara o grandalhão ao meu lado.

— Afinal, eu nem o conheço, e já sei que se transforma num urso louco. Superconfiável, amiga — rebato.

— Não era você me defendendo há três minutos? — questiona Mark, me fuzilando com o olhar.

— Isso aqui é diferente. Nós...

Um bater de palmas quebra a conversa.

— Ei! Vocês não têm outra opção — interrompe Aline. — Mark, eu quero que me prometa: vai cuidar dela, e acima de tudo se controlar!

— Não tem outro modo? — intervenho.

— Natalie! — a voz irritada dela responde minha dúvida.

É isso. Tenho de ir com o cara desconhecido. Segurando um conselho de uma amiga que resiste em aparecer nas minhas lembranças. E eu aceito tudo. O que eu teria de aceitar, além disso? Voltaria para um quarto barato por duas noites até o dinheiro roubado acabar, depois iria perambular pelas ruas outra vez. Dormindo em becos...

Eu aceito tudo facilmente porque não vejo algo tão agradável quanto isso.

Talvez eu goste do urso que há em Mark. Quero dizer, desse mistério que esconde dos outros.

— Então façam ele se vestir, pelo menos — é o que finalmente consigo dizer com um rosto ruborizado, e então me levanto.


. 7 .

SUSSURRADA

 


— É um lugar pequeno. Tem somente uma cama, mas é macia. —Mark anuncia, aquele olhar esverdeado me cobrindo.

Estamos num trailer robusto e com roupas entocadas pelos cantos. Roupas femininas. É o trailer que Aline nos dera para a fuga do Circo. Não vimos sinal algum de perigo antes, mas pelo que estamos vendo agora na tevê portátil, o Circo Medley foi fechado com faixas amarelas e equipes do governo estão monitorando a situação. Para a imprensa não é permitido ver nada além da entrada. Ainda assim alguns repórteres se aventuram para captar uma imagem melhor de dentro do Circo. E o que encontram no interior é somente um local vazio com poucos agentes de uma Corporação Militar rondando por ali. A Ônix limpando os rastros dos contaminados, isso que entendo.

— Eu poderia dormir em qualquer lugar de tão exausta que estou — afirmo a ele, mas aceito a cama de bom grado.

Paramos há algum tempo numa estrada rural, bem distante da cidade. A noite está estrelada e apagamos as lâmpadas do veículo para a escuridão nos camuflar. Só a respiração é algo constante de se ouvir. A respiração dele principalmente.

Tão perto. Forte...

— Aline é uma boa pessoa. Tenho até os documentos dela aqui, e sei que ela deixou para que você use — diz meu novo companheiro de fuga, espantando meus desejos insanos.

Estou processando isso. Aline, uma garota que poderia muito bem ter corrido da situação como a garota de Mark correu ao estar salva e...

— Era sua namorada? — pergunto sem saber se isso lhe causa ou não algum desconforto. Pelo suspiro de incompreensão ele não recebeu a pergunta como esperado.

— Aline e eu somos amigos. Ela tem treinado minha paciência para eu não me exaltar. Nunca pensei nela de outra maneira — ele diz seguro de si.

Tente outra vez.

— Não, desculpe. Às vezes eu penso uma coisa e já acho que a outra pessoa terá a obrigação de compreender — me viro para o lado oposto. — Eu me referi à outra garota, àquela que você levou para o Circo — desconcerto-me. E ele não está vendo minhas mãos cobrindo meu rosto no escuro de modo a esconder a face envergonhada já camuflada.

— Ah... A Suzan — diz.

Assinto com um murmúrio.

— Ah, não. Não ainda, Natalie. E aposto que nem será mais depois do que houve hoje... — Mark solta um bocejo longo e se estica pelo chão. Seus pés dão encontrões em móveis e nas extremidades do trailer.

Próximo. Bem próximo.

Acalme-se.

— Estávamos tentando nos conhecer. Ela é do tipo bem... Ela é ciumenta, sabe? Hoje era meu dia de folga e eu resolvi levá-la ao Circo, pra mostrar como são meus colegas de trabalho. Poderia ter levado ela a outro lugar, é claro. Mas no primeiro encontro oficial, queria que fosse ali — ele pausa por um momento tão longo que imagino se não irá falar mais.

— Então eu vi você — continua. — Por duas vezes essa noite eu te vi, e puxei assunto. Claro que Suzan não gostou disso. Discuti, eu me exaltei. E foi quando aconteceu aquilo tudo lá...

Por minha causa. Por minha causa Aline e os outros perderam seus empregos. Por minha causa tenho de estar com esse estranho agora.

Porém não, não por minha causa completamente. Não pedi que me contaminassem. Não pedi que Mark viesse falar comigo. E não falamos nada demais também, sua companheira deveria ser mais segura de si.

— Está com sono? — ele pergunta depois de um longo minuto em silêncio, sinto sua respiração aproximando-se.

Não estou com sono. Estou com um turbilhão de pensamentos. Estou com vontade de beijá-lo agora mesmo, Mark, só para acalmar as células cheias de ácido que estão queimando minha língua.

— Estou com sono — respondo displicente.

Mark boceja outra vez, o bramido de um novo pontapé pelo trailer o faz soltar um palavrão. O som de seu deslocamento se propaga, e os grilos lá fora se deixam notar. Algumas cigarras reproduzem uma canção de ninar, macia e longa, que vou apreciando.

— Boa noite, Natalie — ele diz, e posso ouvi-lo se revirar de novo, desconfortável. Pela luz azul de um rádio-relógio, vejo que posicionou seu rosto de modo a vislumbrar as pequenas brechas que há no teto enferrujado do trailer. Caso movimento a cabeça de leve, verá o que estou observando, algumas estrelas sorrindo.

— Boa noite, Mark — quem se curva para o seu lado sou eu agora. Consigo apenas enxergar o formato de seu rosto em perfil.

— Não me beije enquanto eu estiver dormindo, Natalie. Não quero morrer ainda — quase sussurra.

Sorrio com isso, mas sem deixá-lo saber.

Sei que não é assim com todas as pessoas estranhas que se encontram. Mas devo sentir algo diferente agora porque talvez, às vezes, as melhores coisas aconteçam por acaso.

— Digo o mesmo. Não se transforme num urso — e nessas últimas frases desconcertadas e enchendo-se de sonolência, nós dormimos.


. 8 .

EMBARAÇADA

 


— E então, o que vamos fazer agora? — pergunto quando estamos no meio da estrada pela manhã, dividindo pães de queijo endurecidos, tomando um café sem açúcar. Foi a única coisa que deu para improvisar pelo trailer de Aline.

— Sei onde fica o centro da Corporação Ônix, que implantou a doença em nós. Estou indo para lá agora mesmo — ele diz ao ajustar o refletor do trailer, como se o assunto fosse a coisa mais natural do mundo. Mark usa agora camisa azul-marinho e uma calça jeans surrada que lhe deram no Circo. Tomamos banho em alguns postos de gasolina que encontramos pela estrada, onde decidimos não entrar nas lojas de conveniência. Tentamos manter distância das câmeras o máximo que conseguimos.

— Vamos chegar lá e... E fazer o quê? Vou sair beijando todo mundo enquanto você destrói o lugar, transformado num urso louco, por acaso? — fico irritada com a calmaria que ele conserva.

Acalme-se.

Não quero me acalmar.

Acalme-se. Acalme-se.

Tudo está me tirando do sério, até mesmo essa estrada que não muda sua paisagem embolorada com pinheiros tenebrosos insistindo em nos rodear. As sombras que eles fazem, e os carros que passam por nós com uma velocidade normal.

Mark dirige muito lentamente. Se eu soubesse comandar o volante, seria outra história. Veloz e furiosa.

— Uma coisa de cada vez, Natalie — ele mantém o tom casual de antes, buzina para um cavalo que mergulhou na pista, e ultrapassa-o com lentidão.

Acalme-se.

— Só quero ver — murmuro a contragosto. Paro de discutir quando avisto uma torre distante à nossa frente. Um posto, com um imenso letreiro no alto onde informa o nome de sua bandeira em amarelo e verde.

— E nada de beijar os outros — Mark encerra.

Paramos no posto de combustível e aproveito para entrar na loja de Conveniência. Dessa vez decidimos enfrentar as câmeras, com algumas ajeitadas de roupas, bonés e óculos retrôs.

Aline, obrigada pela grana também. Preciso agradecer-lhe por isso futuramente. Pego uma cesta e encho-a com os poucos itens alimentícios que encontro no estabelecimento.

— Tudo isso, senhora? — pergunta-me o jovem atendente da loja, com um boné vermelho e espinhas preenchendo sua face cheia de sardas.

Meu olhar seguinte o critica.

— Sim! Tudo isso sim, senhor — respondo-o. Ambos somos jovens, e agora estamos trocando um riso leve devido aos termos.

— Desculpe, eu quis perguntar “Mais alguma coisa?”, sempre me confundo. Regras, regras, regras — ele abaixa o olhar por um instante. Informo que está tudo bem, que deve relaxar, e pago a conta.

Volto ao trailer já abastecido carregando sacolas pesadas.

— Fazendo amigos? — Mark questiona com o olhar seguindo as paredes de vidro da loja de Conveniência, onde o jovem atendente me fita disfarçadamente enquanto limpa seu balcão.

— Algum problema com isso, senhor? — encerro este assunto com ele nesse termo.

Passadas algumas horas de tédio pela viagem, eu relembro do que me deixava mais ordenada em ocasiões assim. Começo a bisbilhotar o trailer de Aline e encontro numa gaveta abaixo do volante, um livrinho pequeno que fala sobre a Primeira Guerra Mundial. Estiro os pés rumo à janela fechada, grudando-os ali, vendo as nuvens passar, minha cabeça vulnerável ao toque de Mark.

Perco-me naquelas batalhas até ser arrancada do brutal mundo histórico para o tedioso mundo real.

— Você gosta de livros? Que surpresa legal — Mark desvia o olhar rapidamente para o espelho retrovisor interno, ajusta-o, e fica me encarando por ali enquanto dirige.

— De ler. De livros, claro. Apenas me importo mais com as palavras dentro deles, não exatamente com o material. Até porque não tenho tido chances de me prender a muitas coisas nos últimos tempos...

— Hm... — Mark murmura. — Que nerd você é, Natalie.

— Quer outro beijo? — isso o faz calar-se rapidamente, fazendo-o voltar sua atenção para a pista banhada pela fina garoa que desce das montanhas. Outras paisagens se passam enquanto folheio o livro, às vezes paro para fitá-las. Rochedos grandiosos. Pontes imensas sobre rios extensos. Nuvens que se transformam em caretas sorridentes, depois em monstros.

Após uma hora lendo, Mark outra vez lança uma pergunta:

— Você já beijou quantos? — ele é direto ao ponto. Não sei se gosto disso ou acho inconveniente. Talvez eu não deva responder, deixá-lo no vácuo, fingir que não ouvi e me atirar dentro do livro.

— Na minha vida toda? — traio minhas ordens.

— Depois de ser contaminada — indica ele.

Mal preciso calcular. Teve o guarda na fuga do hospital e o bêbado na praça.

— Você é o terceiro.

— Poxa... — seu rosto demonstra uma leve frustração. — Você foi a minha primeira, depois da contaminação.

Que estupidez é essa agora?

— Você é o primeiro que teve o cérebro quase frito e ainda consegue falar — ouvir isso faz Mark voltar a me olhar com o sorriso zombeteiro de antes.

— Mesmo? Será que seu beijo me acalma? Como um antídoto, sei lá? Acho que se você me beijasse de novo eu não sentiria nada — ele para de falar subitamente e concentra-se melhor em dirigir. A forma como ele termina a frase me frustra. Agora sou a estúpida do momento.

— Legal, não acha? Mas eu não quero beijar você — digo-lhe, o que deixa nossos rostos avermelhados.

— Não quis dizer exatamente assim. É só que... Droga, Natalie! Só leia. Continue lendo e eu dirigindo.

— É. Ler é o melhor remédio — aponto.

Calamo-nos pelo restante da viagem até que encontramos o final da tarde. Estacionamos o trailer na encosta de uma montanha, razoavelmente próximo da rodovia. De onde ficamos conseguimos ver a nova cidade logo abaixo, já começando a se iluminar.

— Uma hora precisamos enfrentar nossos medos — Mark corta o silêncio. Subimos em cima do trailer e estamos vendo as primeiras estrelas surgirem no céu.

Enquanto vislumbramos o horizonte escurecendo, estamos tomando dois refrigerantes que incrivelmente encontramos numa mini geladeira embrulhada sobre uma pilha de roupas sujas de Aline.

— Eu não tenho medo de enfrentá-los. Tenho medo de morrer e não vencer aquilo que estiver enfrentando — um gole longo, e o liquido efervescente sabor laranja enche minhas bochechas com uma esquisita sensação.

Meus dedos apertam a latinha, amassando lentamente o alumínio. Queria que esse recipiente fosse a Corporação Ônix, mas entendo que sou eu quem está sendo enforcada por suas mãos.

— Pelo menos você terá tentado — Mark dá suas últimas goladas e atira sua lata para o alto, guinando para frente. Ela quica e cai sobre algumas pedras, vai bolando pela montanha até estancar num ponto plano. Sou aquela latinha que fugiu da Corporação, atirou-se no mundo, tentando achar um lugar seguro para estacionar. Mas sou uma latinha que não esquece a forma desumana como foi esvaziada.

— Muitos desistem antes de tentar — Mark volta a defender sua ideia, os braços agora se espreguiçando, deitando as costas sobre o trailer, pretendendo ver as nuvens se apagando no alto.

— Mas ainda será em vão — rebato, ainda fitando com ódio a cidade, que, ao que parece, tem oito por cento de sua população. Poucas são as ruas claras. Dois ou três carros se arriscam e perdem-se por entre alguns prédios escuros.

— Não, não será em vão se for por você. Entende? — Mark está me encarando, noto de reflexo, e nossos rostos são apenas vultos nessa escuridão.

— Continuarei sentindo que foi em vão — torno a dizer, ajeitando meu cabelo que o vento insiste em espatifar.

— Natalie, nem sempre ganhamos nessa vida. Você precisa aprender a aceitar isso. Às vezes nós perdemos, faz parte.

Retornamos para o interior do veículo, e pego uma lanterna diminuta que ele encontrou por ali. Resgato outro livro, um sobre dinossauros, e clareio suas páginas por um instante, mas sem exatamente lhes dar atenção.

Mark tem razão, mas não quero acreditar tão logo. Quero sentir minha razão ser maior só por alguns instantes. Quero curtir essa birra até ela se tornar desgastante, infantil, e me fazer amadurecer os pensamentos quase de forma automática.

— Que nerd você é, Mark — finalizo nosso assunto, bem quando ele liga o carro e a fumaça escurece o pára-brisa.


. 9 .

CORTADA

 


Nosso trailer tem demonstrado alguns problemas mecânicos, e com isso adiamos nossa afronta pela nova cidade e rumamos numa direção contrária, meio contornando-a. Já se passaram três dias de viagem. Três dias lentos, sem mais nenhum livro para me entreter nos momentos de tédio, calor ou frio.

— Coisas inesperadas sempre nos acontecem — ele aponta, sem retirar os olhos da pista sinuosa. Mark possui uma ironia no olhar, mesmo no retrovisor interno, que me deixa inquieta. De reflexo sei quando está me encarando,

— Coisas inesperadas e chatas em maioria.

Massageio as têmporas e lembro-me do rádio. Mas ao ligá-lo sai um ruído ensurdecedor. Nenhum canal fica bem sintonizado.

— Pois é. Agora não venha pôr culpa em mim — a mão de Mark cegamente encontra meu ombro e belisca-o num ato gentil. — Deve ser o lugar. Estamos distantes da civilização — ele nota minha impaciência com o rádio.

— Hey, mas eu não sou tão rabugenta assim — murmuro em sua direção, os braços colados desprendendo-se e tapeando sua mão, os olhos grudados na janela que me revela casas distantes e humildes, com pequenas lâmpadas amarelas iluminando terraços a sua frente.

Empurramos o trailer numa outra encosta assim que o veículo demorou-se a prestar, e Mark não mais conseguia ajustar as peças. Há um lago próximo, e precisamos de um banho. Ele principalmente, sujo de graxa e ferrugem até a cabeça.

Não existem mais postos de gasolina por perto, os postes de iluminação também ficaram para trás, algumas árvores nos encobrem, mas o luar cintila sobre nós fracamente.

— Pouca claridade. Não queremos chamar atenção, e aqui é um ótimo lugar — ele me diz, suando e com a respiração acelerada devido ao cansaço. Descemos do trailer e apreciamos a ventania.

— Não precisava desse aviso, Sr. Mark.

— Só checando se o ácido não corrói suas lembranças recentes também.

— O ácido aqui pode corroer você.

— Duvido muito. Não foi páreo nem para um urso selvagem.

— Se considera mais forte que um urso selvagem? Quer fazer o teste?

Consigo enrubescer no escuro, ele não percebe, mas nota meu afastamento rápido para o lago. Não consigo acreditar nos rumos que este ser consegue empurrar meus pensamentos a ponto de me fazer arriscar palavras. Como pode? Algo queima dentro de meu peito, algo perigoso, algo que não é ácido, é muito mais forte e temível.

— Fique no trailer. Aí mesmo — demando meio distante, severa, com algumas mudas de roupa de Aline sobre as mãos. — Você toma banho depois de mim.

— Está escuro. Nem veria você, de qualquer modo.

Encaro-o cética à distância. Ele me ilumina por sua lanterna ri desdenhoso em seguida.

— Relaxe, garota ácida.

Sinceramente não consigo mesmo imaginar Mark me espreitando enquanto tomo banho. Acho que tenho construído confiança sobre as pessoas. Talvez esta possa vir a ser minha melhor qualidade, ou minha ruína.

Direciono-me para dentro do lago e começo a despir as vestimentas já bem gastas, sujas, poeirentas. A luz da lua não consegue me achar pela margem devido às árvores floridas que cercam o médio agrupamento de água. Enfio primeiro um pé dentro do lago, depois o outro. Ele está gelado, e meu corpo continua quente. Agacho-me quando adentro, até metade das despidas pernas, e utilizo minhas mãos como uma concha, começando a molhar meus cabelos e costas.

Solto um espasmo quando ouço um barulho do outro lado do lago. Alguém pulou ali dentro.

— Mark, volte para o trailer! — urro para a escuridão do lago, que retorna a calmaria de antes. Arrasto-me com intuito de sair dali, e quando dou três passadas fico frisada no caminho por notar Mark dentro do trailer, a pequena luz atravessando uma janela, uma lanterna acesa fracamente, a que ele sempre utiliza. E um frio escorre por meu corpo, agora arrepiado.

— Mark! — eu grito, e minhas suspeitas se concretizam. Há uma mão arrastando-me pelos pés em direção ao fundo do lago.

Enquanto sou arrastada, minha cabeça demora a submergir e solto novos gritos. Mark logo está lá pela margem, me iluminando com a lanterna na claridade máxima. A água ao meu redor está numa cor barrenta devido à agitação, a luz que Mark jogou atravessou meus olhos e queimou alguns nervos.

Meu captor levantou-se assim que Mark se jogou na água também.

— Aproxime-se mais... — a voz é macia em meu pescoço, mas ressecada ao mesmo tempo, como se sua garganta precisasse de mais líquido. —... E ela morre antes de beijar mais alguém.

Mark, agora visível como a mim, pelo meio do lago e a lua sobre nossa visão, estanca-se no lugar.

— Solte-a — ele demanda com a voz raivosa.

— Me dê um motivo, rapazinho — entoa o outro sob meu ouvido, mordiscando-o e me enojando. Meus pés tentam acertá-lo pelo meio de suas pernas, mas é inútil a velocidade dentro da água, e ele percebe isso tão logo, pois me aperta contra seu corpo, um braço ao redor de meu pescoço, o outro com uma faca rente aos lábios. Meu ácido espalha-se pela lâmina junto com as poucas gotas de sangue. Fúria encorpa-se sobre mim como pontadas fragmentadas.

— Ela não fez nada de errado.

— Ela mata pessoas. Isso é errado.

Minha voz quer sobressair para defender-me, mas a faca presa a minha boca me impende de tamanha ação.

— Ela defende-se, isso é certo.

— Meu trabalho é exterminar o perigo desses contaminados. Sou um militar cumprindo minha missão, e esta aqui é a mais procurada dentre esse bando.

— Seu trabalho deveria ser o de exterminar a Corporação Ônix, os contaminados são apenas vítimas! — Mark está irritado, mas sua indignação é engenhosa.

Aquele que me mantém presa alivia a força de seu braço, suas roupas são rígidas e água entra aos goles por cima de sua faca, fazendo-me ingeri-la até arfar.

E num desses meus espasmos, acabo por fazer o captor dar algumas passadas para trás com a faca desequilibrada, mostrando-me uma oportunidade única de virar-me para um ataque de ácido.

— Nada disso — ele prevê minha ação e suas ágeis mãos enluvadas se prendem sobre minha boca e nariz. Meus pulmões começam a esgotar-se e os olhos lacrimejam de modo automático.

— Já conheço esse seu truque barato, garota ácid... — a voz dele para, seus olhos arregalam e ele me solta, com o corpo mergulhando de costas no lago. Por trás se ergue um corpo robusto e agitado, de respiração resfolegada, com uma faca sobre as mãos.

— Mas esse truque foi novo pra você — entoa Mark, deixando de ter pelos longos e amarronzados, voltando à forma humana.


. 10 .

BENÉFICA

 


O próximo abraço é o de Mark. Ele me arrasta de onde continuo congelada. A cena desenrola-se lenta, mas vejo que em uma de suas mãos há outras duas facas, estas diferentes.

— Vamos, Natalie. Caminhe. Ele não está morto, não o acertei numa parte vital — e meus pés desenferrujam-se, as passadas lentas tornam-se apressadas pouco a pouco.

Alerte-se.

O trailer nos encontra. — Já fui atirador de facas profissional no Medley, não se assuste com elas — vê meu olhar para as facas. — São para nossa proteção agora.

Mark liga o veículo enquanto recordo de que estou sem roupas, e que o trailer ainda está quebrado.

— Que merda — seu punho acerta o volante, e a testa gruda-se ali por dois minutos. Depois, ergue o rosto com uma feroz determinação. — Vou achá-lo e amarrá-lo, fique aqui, eu já volto — ele me deixa sozinha e me visto. O olhar voltando às pequenas janelas, tentando achar o homem urso pela escuridão. Ou detectar aquele agressor outra vez rondando a área, com algum corte incapacitando-o de caminhar com bom desempenho.

Mark logo retorna calmo, os cabelos molhados, e não sei identificar se é suor ou simplesmente água do lago em sua testa, mas parecem ser as duas coisas. Estou a iluminar seu rosto com a diminuta lâmpada. Sinto até a respiração agitada chegando aos sopros.

— Estava quase morto — ele me diz ao entrar no trailer, fechando a porta trás de si. — Assim que puxei o infeliz da água, ele começou a se engasgar e vomitar. Deixei-o desacordado e amarrado numa árvore.

— Amarrado? — minha primeira palavra salta apressada e disforme. Meus lábios doem para proferi-la, os cortes sobre a boca estão cheios de ácido e cicatrizando-se de modo lento, vejo-os clareado pela lanterna, inclinada próxima ao retrovisor. Não havia notado essa característica em mim.

— Não se preocupe, no Medley há técnicas de dar nós com cordas que você nunca desataria sem minha ajuda — Mark adianta-se para ver meus lábios de perto também, seus dedos são rígidos, mas afagam com cuidado. — Não parece ter machucado tanto.

— Nós devemos sair daqui — interrompo suas qualificações e afasto sua mão, o olhar agora apregoado na noite além do pára-brisa.

— Me ajuda a ajeitar essa lata velha?

— Agora você a chama de lata velha? — sorrio. Minha voz tênue mostra-me o retorno da calmaria.

Ajudo Mark como posso e na espreita, com o olhar sobre a mata fechada e o meio do lago iluminado pela lua crescente. Testamos o veículo, e até ele dar sinal de vida passam-se mais de uma hora.

É uma benção afastar-se da área.

— Não vou dormir mais — ele me avisa. — Vamos para bem longe, depois damos a volta, quando você estiver mais disposta, e fazemos o combinado sobre acabar com a Ônix... Ou você não quer mais fazer isso? Posso ir lá sozinho...

— Claro que quero acabar com essa Corporação, só que agora existe mais um inimigo. E manipulado por eles. Essa noite não é segura...

— Nunca é, Natalie — ele confirma.

Depois de longos quilômetros percorridos começo a sentir a lentidão dos sonhos.

— Quer dormir? — Mark nota minhas pálpebras fragilizadas.

— Não devo...

— Vou estar aqui quando acordar — ele assegura, com seu braço se estendendo em minha direção. Apenas pelo frio que cedo, deixo-o me puxar para seu colo enquanto dirige.

— Você não trocou a camisa — murmuro ao afastar o rosto de seu corpo úmido. Ele assente com lábios franzidos.

— Pode trocá-la pra mim?

Faço-lhe um olhar desconfiado e duradouro.

— Por favor?

Levanto e cato uma de suas poucas camisas que ainda há pelo trailer. Seleciono uma de manga comprida, que não deixa o frio se manifestar. Quando retorno ao assento, ele para o veículo por alguns instantes ao lado da pista deserta. Retiro sua camisa toda encardida e pegajosa.

O que vejo me assusta, há um pano branco encharcado em sangue, grudado abaixo do peito direito de Mark, bem próximo do coração.

— Ele te acertou — abafo um grito.

— O acertei primeiro.

O ferimento parou de sangrar, estancado pelo pano. A testa dele está suando outra vez, mesmo que em nosso ambiente continue frio.

— Deixe — Mark impede minha mão de retirar seu band-aid gigante e improvisado. Então lembro-me de meus lábios cicatrizando, e que talvez eu possa dar um jeito em sua condição.

— O que está fazendo?

— Um curativo melhor — aviso-o, as mãos apoiando-se em seus ombros, e meu rosto chegando ao seu peito. Sinto o cheiro dele me invadindo, embriagando-me. Retiro os devaneios e foco na atual tarefa, que pode ser bastante perigosa. Pode matá-lo.

— Natalie... — murmura indeciso, constrangido, contrariado e ao mesmo tempo desejoso. Beijo o ferimento de Mark, da forma como beijei o grande urso. E ele estremece num instante depois. — Natalie... Isso... É... Bom...

Quando me afasto, vemos que não há mais ferimento algum, apenas algumas manchas de sangue. Uma leve vermelhidão paira sobre seu abdômen, e com outro pano úmido eu limpo os resíduos de seu peitoral.

— Isso foi fantástico! — ele se admira. — Natalie, obrigado.

— Você me salvou também, lembra?

— Sim, mas...

— Mas nada, Ursão — finalizo.

— Ainda quer dormir aqui? — pergunta-me após vestir a camisa e voltar sua atenção para o volante.

E encostada em seu ombro eu durmo pela primeira vez, meus olhos encontram estrelas distantes, uma lua sinistra e nuvens por um céu tão pouco iluminado acima das estradas sinuosas. Durmo após sentir um braço gentil de Mark sobre minhas costas, e não acho nenhum pesadelo no mundo dos sonhos.


. 11 .

BEIJADA

 


Mark é rápido com o corte. O sumo escorre por seus dedos quando me repassa alguns gomos. As frutas e o restante dos suprimentos andam se acabando. Estamos a comer as últimas laranjas, caminhando sobre uma tarde deserta em busca do distante povoado que avistamos acima de uma montanha. Deixamos o trailer escondido num amontoado de folhas de coqueiros cortadas, camuflado numa mata espessa. Suspeitamos que o veículo tenha nos delatado ultimamente e preferimos deixar para usá-lo somente a noite. Precisamos abastecer o pequeno estoque com comida, nossos estômagos, e ela se encontra à venda na cidade próxima. Ao menos é isso que nossa esperança imagina.

Pelo meio da caminhada achamos uma vasta plantação de jambos, a fruta lilás agrupada aos montes sobre seus galhos. É Mark quem sobe num jambeiro e usa sua camisa como uma espécie de saco. Seguro um fruto no ar quando ele o arremessa. Corto metade de sua massa com os dentes para provar, enquanto vejo Mark descer sobre os galhos. O doce líquido da fruta estoura sobre meus lábios e degusto seu conteúdo macio.

— Jogue — digo para Mark, que se aproxima com outros jambos colhidos, um deles sobre a mão, estendendo-o para mim.

— Não, quero ver uma coisa antes — ele aproxima a pequena fruta sobre meus lábios e eu mordo metade dela outra vez, desconfiada e sem parar de fitá-lo. Ele se afasta e vislumbra o jambo, o novo olhar meio sério, intrigado.

— Seu ácido corrói aos poucos a pele do fruto.

— Qual a novidade... — paro de falar ao ver sua ação seguinte. Mark está ingerindo o restante do jambo, e seu olhar continua normal. Ele me encara após terminar, e penso que com mais dois segundos ele se encontrará remexendo-se ao chão, perdendo a consciência. Mas ele continua firme em seu posto.

— Eu disse que não me afeta muito — afirma todo seguro de si, descontraído ao checar a quantidade do que colheu.

— Acho que minha língua produz ácido em excesso, o que ficou aí não dá nem para meio round.

— Quer testar? — seu olhar está arisco agora, mas o restante do corpo parece leve, tranquilo. As mãos somem dentro dos bolsos.

— Não deve ser boa ideia...

— Ok, eu já entendi.

Agora volta aquele ar de incerteza meio tristonho. Os olhos verdes me arborizando de embaraço, criando raízes que arrastam meus receios. Como ele consegue me manipular desse jeito?

Acalme-se.

— Não é que eu não queira, ahm... — minha voz embrenha-se na minha língua. — Você sabe...

— Não sei. O que você quer, e o que não quer, hein, Natalie?

Meu rosto está mais uma vez colorido de nervosismo. Ele me deixa meio tonta e instável. Mas aquele último olhar sério me faz respondê-lo sem medo, assim como suas mãos firmes me guiando ao tronco do jambeiro.

— Quero te beijar, mas não quero te ferir — levanto o queixo e ele me encosta sobre a árvore, pressiona o corpo de leve, narizes quase se tocando, olhar equilibrado.

— Sou forte como um urso — esbanja um sorriso de lado, trocando uma piscadela que eu não correspondo.

— Não para isso.

— Como você sabe? — seu queixo toca o meu, arranha-o, e desce fazendo caminho até meu pescoço. Não consigo oprimir um suspiro. Meus lábios queimam de ácido. Minha garganta seca.

— Mark, eu não quero te machucar — consigo soltar estas palavras sem atacá-lo, embora seja ele quem esteja me atacando aos pouquinhos, com o rosto aspirando meu cheiro, soltando uma respiração quente que arrepia por onde percorre. Dessa vez não quero que seja como os outros dois. Quero que ele sinta, sobreviva, e me diga o que achou. Que aprecie o momento sem surtar.

Mark ri alto e me enfureço um pouco.

— Aposto que você não tem esse poder todo.

— O que você aposta? — minhas mãos seguram um dos galhos do jambeiro na busca de ficar maior que ele para exibir certa autoridade, e consigo.

— Aposto um beijo — declara sem timidez alguma.

— Aposto que você vai se arrepender.

— Feito.

Ele nos cola contra o tronco, e meu corpo, mais alto, lhe mostra certa facilidade na hora de assegurar-me sobre os braços. Seus lábios são macios, e não duros como imaginei. Eles chegam suaves sobre meu queixo, tocando lentamente e rodeando meu rosto. Para a poucos centímetros de minha boca, suspira e afasta meus cabelos loiros com o nariz enquanto inspira e espira por cima, os dedos apertam meus lábios ácidos e seus olhos fincam-se nos meus.

Tento decifrar os pensamentos que inflamam aquele olhar. Mark segura a ponta do meu queixo, dedos o afagam, e avança num outro beijo vagaroso, cuidadoso, parando aos poucos e retornando naquele ritmo, as mãos subindo pelo meu dorso, descendo por meus ombros, parando na cintura, fazendo aquele mesmo caminho repetidas vezes.

Sinto minha garganta apertar-se, mantendo o ácido e minha fúria estancada, protegendo-o sem que ele note.

— É um pouco quente, depois sua língua fica fria, e depois normal. É divertido, na verdade — sussurra próximo da minha orelha, afastando algumas madeixas e alojando um beijo ali também.

Ele não sabe o esforço que tive de fazer para o ato se realizar da maneira correta. E, enquanto penso nisso, com ele tão próximo, quero provar seu gosto mais uma vez. É quando me lembro da boba aposta.

— Você venceu — admito.

— Certo. Mas espera, se eu ganhei...

Dessa vez eu o beijo. E calo-o por um tempo alongado. Ele estende o segundo beijo num ritmo agitado, e cedo parte do ácido, que o faz estagnar com um olhar tenso.

— Agora foi diferente...

— Desculpe — profiro contristada.

— Não, Natalie — ele segura meu rosto, o mais cortês que consegue. — Esse beijo foi diferente, mas não ruim. Me arrepiou. Nunca senti isso beijando ninguém. Foi bom que aconteceu com nós.

— Não doeu? — tento decodificar se há alguma mentira sobre aquelas esmeraldas em forma de pupilas.

— Só o que dói é parar de te beijar.

— Mark, nós não devíamos ir atrás de comida? — deixo-o encabulado por mudar de assunto abruptamente, mas mantendo suas mãos grudadas em minha cintura. O calor do tempo abafado está agora nos mostrando nuvens arroxeadas como meus lábios.

— Acho que vai chover. Vamos aguardar o temporal passar, não deve demorar tanto — volta a me pressionar contra a árvore, com deleite em termos chegado naquela fronteira de toques.

Mal notamos quando a chuva começa a inundar sobre nós, as gotas pulando pelas folhas do jambeiro e caindo compassadas por nosso corpo, trazendo o fresco aroma de seus frutos, enquanto estamos a provar o quarto, quinto e inúmeros outros beijos ácidos.


. 12 .

AFLITA

 


Demoramos a chegar ao povoado, e somente decidimos ir quando a chuva cessou sem suspeitas de um retorno surpresa. Com os pés dormentes, Mark todo cavalheiro perguntou-me se poderia me carregar em seus braços.

— Não, sou forte também — ergo o queixo e agiganto meus passos. Ainda não detemos toda a afinidade apropriada, embora já tenhamos alcançado o limite para os beijos. Continuo querendo que ele e eu nos tratemos da mesma maneira de antes. Parece-me um ótimo e divertido jeito de convivência. Os flertes seguidos de risadas e rostos corados. Mark provando seu exímio caráter. Eu lhe demonstrando meu humor mutável assim como o vírus distinto em mim. Quase nos esquecendo da Corporação Ônix contaminando o mundo.

— Aqui parece abandonado também — nota ele. Já temos passado por algumas cidades, e a maior parte delas encontrava-se da mesma forma que esta. Deserta. Para onde correram todas as pessoas?

Adentramos no vilarejo e todas as casinhas estão trancadas. Algumas delas mostram-se assaltadas, com janelas quebradas, móveis humildes espalhados a sua frente. A única movimentação visível é a dos nossos passos e dos moinhos empenados.

— É porque está vazio também.

— O que você pensa sobre isso? — pergunto eu.

— Acho que... Talvez, todos tenham sido capturados pela Corporação — Mark está remexendo em sua barba, que de uns dias para cá tem crescido. Aparelhos de barbear não nascem no trailer de fugitivos.

— Impossível. Quero dizer, como? Ainda que fosse, não seria tão rápido assim — vislumbro o céu cinzento, com um sol escondido pelo meio de suas fofas nuvens, anunciando que dali a pouco tempo teria de partir por longas horas.

— Não sabemos como as coisas andam. Não sabemos se o vírus pode contaminar outros com o contato físico...

— Você se sente Ácido? — olho diretamente para sua boca. Continua normal, com uma minúscula cicatriz no lábio inferior. Não, não parece contaminado com ácido. Mas também pode ser uma camuflagem, quem sabe.

Um urso ácido. Está aí uma idéia interessante.

— Da última vez que chequei, estava normal. Quer testar comigo de novo? — sustenta um tom zombeteiro, mas a impressão que o lugar causa, trazendo medos e desconfianças, não me deixa apreciar nem um pouco seu flerte. Rumino se possa ser verdade sobre os contaminados estarem aumentando de número de forma tão acelerada. Se isso terá um freio logo, ou se transformará o mundo num circo de aberrações.

Acalme-se, despejo um sussurro inaudível.

— Natalie, deve existir ajuda, nós temos que acreditar.

— Esperança...

— Sim. Ela não pode sumir — ele toca meu cabelo, alinha as pontas por meu pescoço e ombros, limpando meu rosto dos fios longos com poeira, e beija minha bochecha. — Você foi a esperança que surgiu pra mim.

— Como? Se não consigo nem eu mesma acreditar que tudo dará certo, Mark — miro seu rosto e só em vê-lo já amenizo meus temores. — Com você acredito, mas sozinha, não.

— Então seremos a esperança um do outro. Combinado? — ele aperta minha mão, acaricia e enlaça os dedos pelos meus e rumamos pelo meio do vilarejo.

Nossos passos remoem o chão de barro da única rua rústica presente, a que fatia o agrupamento de casinhas abandonadas. Estamos quase calmos, com os braços grudados, apoiados vagamente um ao outro, quando ouvimos um estrondo de uma das residências renegadas.


. 13 .

DESCRITA

 


— Você ouviu? — o olhar dele está retraído para minha direita, as sobrancelhas juntas, os lábios formando uma linha reta.

— Não sou surda, Mark.

Meu humor escureceu-se e tão rápido retornou à placidez desejada, para em seguida adquirir preocupação. Por que nossa estesia precisa ser tão inconstante? Isso pesa, e fere. Esse mundo gosta de nos manipular como marionetes.

— Vou ver o que é.

— Tem certeza? E se for algum animal selvagem? — vacilo com meu tom, sem deixar sua mão desatar-se da minha. Não quero que ele vá. Prefiro mantê-lo perto. Adoraria correr dali, colher jambos e retornar ao trailer, partindo para outro lugar distante. Este me traz calafrios, apesar da quentura que o solo expele, e o ar exala.

— Esqueceu-se do grande urso?

— Quero ir com você. Se for algum perigo, também quero combatê-lo. Odeio ficar parada, sem fazer nada. — Ele me observa, ofega e tenta manter uma expressão mais rígida, falhando em seguida. — E não quero que se machuque — admito. Vejo-o agora dardejando fascínio de seus olhos.

— Fique. Darei um sinal se precisar de ajuda.

Ele não espera uma resposta minha, mas sela nossos lábios de modo lento, depois corre e espeta-se pela dita casa, sumindo de vista. Fico parada no meio da rua, ela contém barro, poeira sobrevoando-a e destroços dos mais variados. Alguns dos materiais parecem partidos, ou cortados por uma serra elétrica, algo assim. Isso me assusta.

Decido andar um pouco pelo meio daquelas ruínas expelidas no caminho. Acho um jornal por ali, panfletos, garrafas de refrigerante vazias, tevês estilhaçadas. Papéis e mais papéis. Nenhum livro.

Decido ir aos jornais. Eles datam de apenas uma semana atrás, o que me aturde.

Folheio um artigo do governo:

“Não sabemos de onde o vírus surgiu, mas a ação de agora é extingui-lo. Os contaminados estão se espalhando. Muitos deles são letais, causam riscos a todos. Não sabemos ao certo o número, mas já passa de metade da humanidade sofrendo essas mutações.

Estamos correndo contra o tempo para amenizar a situação. Dia e noite um batalhão de capazes enfrentam, sejam cidades contaminadas, ou horas a fio buscando uma cura para os diferentes afetados.

Pedimos à população sã que se oriente até as sedes governamentais de suas cidades, de lá todos serão guiados para o devido abrigo. Pedimos também calma. Todos os dias os caminhões militares checam as cidades, combatendo essa epidemia e procurando os sobreviventes. Fique em sua casa, tranque suas portas, e só abra-a caso ouça a sirene do chamado.”

Arfo. Imagino as formas que os militares tem agido ao me lembrar da visita que tivemos no lago dias atrás, e de como tudo parece errado. Reviro mais páginas do jornal, algumas fotos estão rasgadas. Mas em uma delas eu estanco. Há minha foto junto à de Mark. Vestido amarelo com fita branca sobre o cabelo. Ele com uma velha regata cinza e um jeans encardido. Abaixo das fotos há o seguinte alerta:

“Está é Natalie, a garota ácida, junto a seu companheiro, Mark, um contaminado pelo Vírus U. Não se enganem pela beleza destes corpos, são perigosos em mesma escala que os outros deformados.

Natalie tem acidez pelo interior do corpo, ela consegue expeli-la pela saliva. Um beijo, uma deterioração eterna em sua mente, e você vegetará para sempre. Pelo que sabemos, não há outros com essa característica, então presumimos que esta não repassa seu vírus. Natalie utiliza a sedução como seu primeiro ataque. Se a tiver visto, contate-nos imediatamente.”

Arquejo ao sondar as palavras que me descrevem. Sedução?

Volto o olhar para a figura de Mark.

“Mark transforma-se num urso selvagem. Ele tem uma força descomunal, na proporção que o vírus o contaminou. Trabalhava no aclamado Circo Medley, antes de transformar-se publicamente em um urso marrom e quase devorar uma garota da plateia. Lá também se encontrava Natalie, a garota ácida, os dois estavam mancomunados um com o outro e dali eles fugiram juntos.”

Mancomunados?

Fico a lembrar de que naquela noite no Medley fora onde conheci Mark. Onde esta jornada começara a ficar interessante. E discorro sobre as outras mentiras presentes no jornal.

A Corporação Ônix deve estar controlando os meios de comunicação, imagino, os militares, e sabe Deus mais o quê.

“Acima de qualquer coisa, mantenha sua fé”. Esta é a última frase legível do jornal, a única que concordo e fico a repetir no imo de meu ser.

O primeiro sinal de ajuda ribomba pelo vilarejo inteiro e eu caio pelo susto, juntamente com minhas ideias. A parede dianteira do casebre onde Mark atufou-se, desabou. Vejo seu grande corpo em forma de um amarronzado urso estendido por cima, com a sujidade da poeira a lhe empanar.

Mark.

Uso.

Inconsciente.

Acalme-se.


. 14 .

CAPTURADA

 


Não existe calmaria no momento.

Uma sombra humanóide vai ganhando forma e cor enquanto adianta-se sobre o corpo de Mark. Com braços compridos e mãos grossas, com pinças no lugar dos dedos. Talvez mãos de caranguejo, vermelhas, enormes. Meu berro chama a atenção da criatura para onde estou. O medo me atrapalha quando desanuvio suas formas.

Não posso fugir e deixar Mark, penso.

Estou tentando munir-me de algo além de uma das facas que Mark usava no Medley, que me instruiu, após o recente transtorno no lago com o militar, a ficar com elas sempre por perto. Porém, como isso seria páreo para um caranguejo humano? Poderia furar seus olhos, caso ultrapassa-se aquelas pinças? Pouco provável que ele seja lento.

Enquanto o estranho contaminado se aproxima, eu caminho em sua direção, devagar, uma mão segura no cabo da ferramenta. Distante, Mark reanima-se e corre ao meu salvamento, arroja suas afiadas garras de urso contra o diminuto crânio do caranguejo. Os dois caem no solo seco, a poeira os encobre.

Mark só não previa o seguinte contra-ataque ao se levantar. O corte que ganhou no braço provoca-lhe uma nova lenteza. Sangue jorra em mesma velocidade que meus berros.

— Mark! Mark!

Não deu tempo para responder, estatelou-se no chão junto com meu ânimo. Aquelas mãos monstruosas golpearam-no certeiras e afiadas. Sei disso, pois elas mesmas estão quase cerrando meu pescoço agora.

— Lindinha — o agressor está me dizendo, e seus olhos, também pequenos, espocam de sua face e chegam perto de meu rosto. — Lindinha, lindinha, lindinha! — encaro-o. O rosto dele é cinzento, uma cor mais atenuada ao da poeira, e tem retângulos na carne, como se fosse um plástico retorcido, esmurrado.

Após fitar-me por aqueles estranhos e esticados olhos, ele retira as mãos do meu pescoço. E aproveito para enfiar a faca sobre sua carapaça. Um ato em vão. Acertou a região do peito. Quicou e a lâmina escapou de minhas mãos, sumiu pelo solo.

A criatura sorri ao perceber que cortei parte de sua camisa cheia de remendos. — Lindinha — diz ele mais uma vez, ignorando minha inválida tentativa de assassiná-lo.

Meus olhos vagam procurando por Mark, e de modo triste ainda encontro-o no chão, adormecido, ou, o que mais temo: morto.

Acalme-se, é o pensamento.

Não dá, é a resposta.

— Ir — o esquisito volta a se dirigir para mim, com exasperação, suas mãos gigantes abanando. — Ir, Lindinha, ir.

— Não sem ele — consigo munir-me de duas grandes pedras, e só dessa vez o contaminado demonstra surpresa, conseguindo assim me dar espaço.

Meus pés atropelam-se um no outro ao se afastarem da criatura, abasteço-me de uma bravura que desconhecia. — Vá embora — ergo as pedras e miro na cabeça do homem caranguejo. Nos olhos, a parte que parece mais vulnerável se estiverem esticados. Dessa vez não vou errar. Não vou errar. Tenho certeza que não vou errar. — Vá embora, ou racho sua cabeça!

— Vamos logo, Crusto — ouço o comando de outro desconhecido pelas minhas costas. — Não se brinca com as encomendas do chefe.

Viro-me para ver o novo desafio, e sou apagada com uma pazada na têmpora.


. 15 .

RETRAÍDA

 


O beco subterrâneo é escuro. Estou a ser carregada no mínimo por uma hora, nos incrustados ombros de Crusto. Atrás dele ouço os passos de seu parceiro, remoendo o chão de poças que as estalactites soltam. Aquele que me silenciou. Obrigo-me a manter o silêncio, sem dar sinal de estar desperta, enquanto minhas dúvidas chovem sobre Mark.

Mark.

Inconsciente.

Como ele estará agora?

Provável que muito ferido. Recuso a pensar noutra explicação. Talvez ele tenha conseguido arrastar-se até o trailer, se orientando pelo caminho dos jambos. Achou água pelo caminho também. Quero salvá-lo, abrigá-lo em mim, mas nem eu mesma consigo me abastecer de tamanho propósito.

— Crusto, acenda a fogueira — falou uma voz autoritária quando paramos. — E me passe ela.

Suor escapa de minha testa. Me queimarão viva?

— Não, não, não — Crusto adianta-se sobre o outro e recebe como resposta um pontapé. Dali caímos juntos. Continuei a manter-me inerte.

— Você não tem vontades, esqueceu-se? — agora seguiu-se uma pazada, que originou gritos e gemidos vindos do chão tão próximo de mim. Crusto foi agredido.

Um deslocamento.

— Crusto faz. Faz sim — pelo som, sei que ele levantou-se. Meus cabelos encobrem o rosto, e num desafio interno abro meus olhos. Vejo Crusto gingando e esbarrando em móveis surrados pelo tempo, sumindo de vista. Pelo que vejo mais, essa é uma parte mais ampla, uma sala. Há lâmpadas amarelas que transmitem pouca claridade. Pelas paredes há madeira sustentando um teto de pedras propenso a desabar.

— Hora de acordar a donzela — é a voz arrepiante. E eu percebo ter ficado sozinha com o contaminado mais perigoso daquela dupla.

— Acorda — ele tapeia meu rosto de leve. Meus olhos abrem-se e arejam suas expressões tenebrosas. — Acha que vai dormir para sempre? Não existe espaço para preguiça aqui. Tem uns serviços pra fazer antes do chefe te levar. Trate de levantar esse traseiro logo.

Fico calada ao me levantar. Talvez sem palavras eu consiga ganhar certa confiança e descuido dele para fugir.

Crusto acendeu uma fogueira após outro corredor, um ambiente semelhante ao que estou. Como uma área onde mineiros se alimentam, forrada com madeira. As pedras repreendidas ameaçam invadir o espaço aberto por ali também. O ar sustenta um mofo saturado. As gostas de água chuviscam por meu cabelo, é o cheiro do líquido misturado a barro que nutrem meus pés bem enraizados ao solo.

Móveis abarrotam o lugar, a maior parte que foi salva do povoado encontra-se a vista.

Crusto chega e aproxima-se de onde estou. Afasto-me dos dois para um canto clareado por frestas de luz e sondado em fumaça.

— Vamos deixar ela se acalmar. Vai ter tempo de sobra pra organizar tudo isso — a voz daquele comandante aponta para Crusto, e depois para minha direção. — Está ouvindo? Suponho que não tenha danificado a audição ainda. Se eu voltar e encontrar desarrumação, acho que alguém aqui vai perder um peito — o sorriso foi direcionado à Crusto, mas a ameaça possui um diferente e ácido destinatário.

Tapo minha boca automaticamente, em espanto, mas distancio as mãos assim que o riso do outro prolifera a atmosfera presente. Por mais horrível que sua personalidade seja, o restante de sua carcaça consegue manter alguma beleza nos seus poucos traços humanos. O rosto manteve-se intacto, os olhos não são do tipo que estouram para frente e retornam, são fixos, e claros. Não possui barba alguma, pelo algum sobre o corpo. A pele parecida com alabastro resplendece em formas bem definidas. Imagino-o quando humano, ele talvez tivesse músculos atraentes, que agora se solidificaram por cada parte. Entendo que seu corpo seja tão resistente quando o de Crusto.

— Gosto de como você reage — ele me segreda e volta pelo mesmo corredor ao qual viemos. Antes fecha com estrondo um portão negro de grades metálicas arredondadas.

— Comida — Crusto me diz após os passos do outro silenciarem, distantes. — Ele foi atrás. Comida — ele tem um tique nervoso solto nas palavras que se reveza com a minha inquietação.


. 16 .

CURIOSA

 


Quando o outro sai da nossa visão, Crusto reaproxima-se de mim, um estranho e desdentado sorriso grudado num rosto cheio de quebras e cabelos em falta.

— Ela quer — ele diz de modo sinistro, apontando as duas abertas mãos para mim. — Ela precisa — meus olhos se arregalam e procuram algo que possa impedi-lo, assustá-lo, machucá-lo. Uma coisa como aquela grande pá que seu companheiro carrega sempre. E encontro um objeto útil, após dar saltos, distanciando-me do contaminado presente. Aponto o metal na direção de Crusto, que me ruge uma resposta.

— Ela precisa

— Não, ela não precisa — brado o metal retorcido como se fosse uma espada.

— Ela precisa. Precisa — vejo sua boca de lábios finos tremerem ao decidirem suas palavras, um olhar de confusão se instala acima do nariz rachado ao canto direito. — Ela precisa.

— Ela precisa sair daqui, isso sim.

— Não, Darke, não. Não! — a voz dele alteia e há tristeza e medo misturados ali.

Minha cabeça começa a doer. Penso se minha morte está mesmo próxima, e que talvez, pelo meu distinto vírus, o prazo tenha apenas se alongado mais que o dos outros contaminados.

Crusto chega rápido onde estou, o que me surpreende devido suas pernas serem diminutas e os braços pesados de caranguejo.

— Ela precisa — ele se desvia do meu golpe e arremessa o pedaço de metal para longe, que ribomba na parede do corredor. Uma pedra se solta do teto. Calamo-nos por um segundo ao reparar a poeira se multiplicando como células. Estamos numa armadilha. Ele mora numa armadilha, e agora estou presa aqui também. Outra forma de se morrer.

Ainda assim, Crusto degela do lugar e me pega num aperto contra sua carapaça dura, suja e rude. Os braços se fecham e as pinças cortam parte do meu cabelo. Alguns tufos aloirados se perdem pelo chão. E quando desisto de me retorcer para sair daquele abraço, ele alisa meu rosto com um fino pano macio, delicadamente, depois me mostra a vermelhidão que ali se apregoara. A vermelhidão do meu sangue.

Crusto empenha-se com cuidado em limpar o ferimento que nem eu mesma havia notado.

— Obrigada — é o que agora respondo. Serena, mas cuidadosa, relembrando o que este ser fizera a Mark.

Um suspiro longo rompe meus lábios. Logo vejo que o contaminado presente não quer o meu mal, não da forma como o outro. Entendo que ele cumpre ordens. Ordens erradas. Que talvez ele só precise da instrução certa. Talvez possa fazê-lo me tirar deste lugar com paciência...

Crusto me ajuda na limpeza e fazemos daquele lugar o mais organizado possível. Tentei burlar seu olhar várias vezes para achar um caminho de fuga, mas só havia um, e barrado por um portão trancado a cadeado. A outra sala disponível reservava um fedor insuportável e não continha saída.

Noto que os olhos de Crusto estouram de seu rosto em uma fina membrana quando ele suspeita de algo, e tornam a voltar para sua face quando se mantém calmo. Bizarro, mas estranhamente não sinto medo algum disso.

Uma batida metálica e o puxão de um portão sem óleo nas dobradiças nos mostram o reaparecimento do outro caranguejo humano sem nome. Ele chega com um saco negro nas costas e o atira à nossa frente. Dali uma mão verde escapa, parecendo jovem e feminina pela delicadeza dos traços, com unhas pintadas em marfim.

— Não se preocupe — diz ele ao captar meu olhar alarmado. — Essa aí não fui eu que matei. Crusto está agitado com aquele corpo morto, seus braços agigantados estremecem. — O que é? — indaga o outro com irritação, já com uma mão sobre sua pá, louco para brandi-la e açoitar seu único servo.

— Não precisa.

— Precisa, Crusto.

— Darke, Darke, Darke...

— Pare de falar meu nome e carregue logo a droga do saco!

— Não. Crusto não precisa — exibe um olhar valente. Estou pedindo que ele não o confronte agora, poderemos fazer isso num momento mais oportuno, mas esvaeço minhas deliberações. Precisamos agir. Se Crusto me indicar algo, se eu garimpar uma trilha de fuga, podemos aproveitar a ocasião.

— Carregue agora — demanda o outro, que agora suponho chamar-se Darke. Levanta sua letal pá à frente de Crusto e lhe espreme o pé.

Os urros que ouço me deixam nervosa.

Logo Crusto atende ao pedido, sem nenhuma outra relutância saindo de sua voz chorosa. Perdemos qualquer que fosse o momento da reviravolta. Silenciamo-nos. Abaixamos o rosto. Aceitamos a ruína.

Na medida em que Crusto carrega o corpo ensacado, uma gosma oliva é solta pelos furos presentes no plástico. Algumas esquisitas membranas, quase transparentes, se atiram para o chão como fitinhas de seda, e tenho a curiosidade de abrir aquele saco para verificar que espécie de garota contaminada era aquela.


. 17 .

AMEAÇADA

 


— Crusto, traga água — a autoridade domina aquele timbre e alonga-se por meus ouvidos. Angústia me domina, e percebo que o raciocínio está num penoso estado de deterioração.

— O que vocês querem de mim? — finalmente rasgo o silêncio de minha boca. — O que acontecerá depois que me levarem? Voltarei num saco daqueles? — meus olhos pontuam-se nos deles, firmes, sem medo algum. Minha voz que trai a frágil autoconfiança.

— Você fica com a gente até o chefe vir te pegar — Darke adianta-se, o olhar claro e cinzento não ameaça saltar de suas orbitas, como os de Crusto, mas ficam largos. — Não sabia que ele em pessoa viria te buscar. Quanta honra, não é, senhorita ácida?

— Por que, seja lá quem for, teria todo esse interesse em mim? Sou uma contaminada como todos os outros — cruzo os braços e desafio-o no olhar, flexionando minha fina sobrancelha direita.

— Pare — Darke urra e Crusto estremece junto a mim. — Aqui você não engana ninguém. Seu rosto está nos jornais, não se faça de sonsa. — Darke passeia ao nosso redor, afiando suas mãos, as pinças enormes, uma na outra. — Quanto ao que te acontecerá, isso eu não sei. Mas a maioria dos que envio retornam num saco negro mesmo. Talvez nos revejamos em breve — e semeia um sorriso maquiavélico.

Darke rompe o espaço entre nós, suas mãos crustáceas recortam mais do meu cabelo, e imagino que meu visual esteja assemelhando-se aos meus planos: incertos, contraditórios, desordenados.

— Ops, foi quase sem querer, garota ácida — a voz é desdenhosa e tranquila.

Meus dentes trincam e minam uma nova fúria.

— Vocês capturam contaminados e os entregam para a Ônix, é assim que a Corporação ignora vocês — meus dedos apontam rumo ao seu estranho nariz de pele rígida. — Os restos são depositados aqui, os que sobram, os que são mortos ou não resistem.

— Você me pareceu lenta numa primeira impressão, acho que eu a julguei mal — uma salva de palmas preenche aquele subterrâneo mofento. — Sabe, não existem tantas garotas inteligentes hoje em dia. Muito menos contaminadas. Parabéns, Natalie. — Darke está próximo dos meus lábios agora. Oito centímetros e posso atacá-lo. Fúria burburinha em meu interior, reluzindo nos olhos — Dizem que você tem um beijo arrebatador. Eu até te pediria um agora, mas... Não é muito aconselhável, certo? — e ri aos estrondos.

— Isso é óbvio pelo pouco que tenho visto — menosprezo suas palavras finais, concentrada apenas nas vítimas da Ônix.

Darke vacila na risada, e varre seu divertimento rapidamente. — Eu sou óbvio? — uma nota esquisita ronda meu rosto com sua aproximação.

— Não precisa. Não precisa — Crusto está a adverti-lo, toca seu ombro, mas é ignorado com um empurrão.

Meu olhar não sai do interrogador, assim como ele não quebra nosso desafio visual.

— Você me chamou de óbvio?

— Eu disse que as ações que fazem por aqui são óbvias...

Antes de eu terminar, aquelas patas de caranguejo rasgam meu vestido em grande velocidade. Pouco sobra de tecido para que eu mantenha um olhar de dignidade ou desafiador.

— Me conte, garota ácida — Darke alisa meu rosto com os dedos de pinças afiadas. — Isso agora te pareceu óbvio?

Quando Darke mostra uma expressão provocadora, seus olhos claros e acinzentados, agora parecem apagados, fixando-se num belo rosto. Tirando os agigantados braços, ele até seria charmoso. Seu caráter e modo bruto arruínam tudo. Juntando sua forma de vida e todo o restante da porcaria de seu ser, é um monstro.

— Não vai voltar atrás com sua afirmação?

Sinto o gélido ar subterrâneo trespassar por meu corpo enquanto aquelas pinças tocam minha coxa esquerda perigosamente e sobem num ritmo lento, ultrapassam meu umbigo e continuando a subir. Fico frisada. Dentro de mim há um nervosismo batalhando contra a fúria. Aprisiono-os sempre que tenho força suficiente.

A estranha mão de Darke passeia pelo meio do canal entre meus seios e sobem ao pescoço, parando somente em meus lábios.

— Eu quero ouvir de você, me diga.

— Volto atrás no que disse — palavras forçadas igual a vida que me foi jogada. Natalie sem amigos, familiares, e agora sem Mark.

Acalme-se. Acalme-se. Acalme-se.

— Você terá nossa companhia por alguns dias — profere Darke, como se entendesse meus pensamentos e os quisesse complementar. Gira o corpo, arrastando sua pá pela areia úmida, chutando cascalhos e mais sujeira. — Então é melhor tomar cuidado com sua língua, garota ácida... — um novo acerto sobre o casco de Crusto, e o gemido de dor se alastra pelos corredores. Minha seguinte expressão cria deleite no rosto de Darke.

Chego até Crusto, e agora sou eu a lhe tapar o ferimento. Mas não há sangue derramando, apenas soltou-se um caco de seu braço, como a peça suja e cheia de aranhões de algum quebra-cabeça. Não dá para remontar.

—... Ou você pode quebrar alguns ossos.


. 18 .

RECONHECIDA

 


Dormi sobre um amontoado de isopor, a sensação só não lidera o ranking de noites mal dormidas porque já tenho muitas no currículo. As necessidades são feitas num banheiro improvisado que, se eu me mexer muito, o cubículo de móveis agrupados pode desabar sobre mim. É complicado.

Complicado também é ser despertada com água fria.

— Crusto — é meu pedido do segundo dia encarcerada nesse ambiente sufocante. — Por favor, pare. — Acordar sendo alvejada por galões de água não é a coisa mais educada do mundo, mas para estes dois deve parecer.

— Ainda não — é o comando de Darke. — É só pra te manter limpa —sustenta malícia no olhar. — Não é todo dia que há água limpa por aqui. Meu irmão bem sabe.

Crusto está a proferir coisas sem sentido, suspeito de que sua língua tenha sido cortada, e que seu companheiro — e irmão — tenha algo a ver com isso. Seus braços estão lentos, mas alteia bem os galões, fazendo a água cair sobre minha cabeça com agressividade.

— Achei que você demoraria mais conosco. Foi a hóspede mais tranquila que já recebi — há falsa cortesia em seu tom. — Mas parece que irá embora hoje mesmo, garota ácida. Sentirá minha falta?

Como não respondo, Darke ri aos estrondos. E para ao ouvir o chamado seguinte, um apito fremindo pelo ar.

— Onde está a encomenda? — dita uma voz distante. Talvez eu já a tenha ouvido, o som parece familiar...

— Amarre ela — Darke pede ao irmão enquanto caminha com rapidez, abre o portão e seus passos desaparecem na escuridão do corredor. — Traga a garota, seu lesado!

Crusto olha penosamente para mim. Encharcada, mas com desidratação pela pouca água fornecida. Fraca pela alimentação em falta. — Por favor — lanço-lhe o pedido. Meu estado atual ajuda a embargar dor na voz. — Eles me deixarão igual àquela garota morta de ontem. Igual a todos que trazem depois. Você vai deixar?

— Crusto precisa.

— Crusto precisa ser tratado mal pelo resto de seus dias?

— Crusto... — ele vacila, e estes segundos são raros.

— Não, Crusto não precisa. Crusto pode acabar com isso agora. Crusto pode fugir comigo e meu amigo. Vamos achar um abrigo e procurar pessoas que nos ajudem... — um estalido nos tira da conversa. Passos se reaproximando. — Por favor. Você não quer sair daqui?

— Crusto... Crusto quer, Lindinha. Lindinha.

— Então precisa ser agora.

Ele adianta-se ao meu lado e juntos nós fechamos o portão com móveis e todo o material disponível. Tapamos aquela entrada com o arremesso da tralha. Até o banheiro foi utilizado para fechar o corredor.

Mas logo depois fico atônita. Por onde relembro, não há saída além da que havia por aquele corredor. Imagino que passarei meus dias restantes presa, secando a medida que o oxigênio acaba. Não deve demorar muito...

Entretanto, Crusto me oferece sua mão de pinça e com extremo cuidado eu a seguro, o que não impede de ferir meus dedos enquanto sou direcionada para o outro compartimento, onde são jogados os corpos mortos dos contaminados. Minhas narinas queimam pelo fedor turbulento que a área emana. E com a pouca claridade, através de uma lâmpada com fiação dificilmente grampeada na parede de rocha, eu chego à verdade.

— Não há saída — desvio meus olhos dos corpos em putrefação que semeiam o chão arenoso, com partes encobertas por longas lonas negras. Vejo até mesmo asas gigantes e amarelas sendo devoradas por vermes.

— Lindinha — Crusto levanta minha mão. Acima de nós há um diminuto buraco na rocha, bem no centro.

— Não pode ser a única saída...

— Precisa, precisa! — ele se alarma ao apontar uma corda velha ao chão, mais semelhante a um fino barbante que talvez não sustente nem a mim mesma. Abaixa-se sobre umas caixas de ferramentas e se ergue munido de uma arma estranha.

O tiro dos fogos de artifício ribomba sobre a diminuta fresta ao teto e alarga-a, dando a certeza de que um corpo pode passar por ali. Porém, a altura ainda é um desafio.

Os raios solares que se infiltram sobre nós parecem glorificar o momento. Crusto, com olhos esbugalhados da face ao extremo, possui uma exímia visão, tenho de admitir.

Algumas pedras se descolam das paredes e o teto e nos alveja. Ferimentos se exibem por meus braços como tatuagens avermelhadas. Numa parada da turbulência de pedras, Crusto está a me proteger com os braços agigantados. Captamos outros barulhos ensurdecedores vindos do corredor que tapamos. De lá já conseguimos ouvir Darke nos amaldiçoar das piores formas possíveis. Consigo sorrir pela excitação do momento.

— Precisa — Crusto aponta algumas caixas velhas na extremidade direita da sala oval. Vou até elas, com meus passos decididos e temerosos. No chão, os corpos mortos foram apedrejados também. Algumas lonas se rasgaram e crânios se expuseram.

Arrepios me confrontam.

Quando finalmente chego e abro as caixas indicadas, vejo dinamite e fósforos o suficiente para destruir uma pequena cidade. Qual seria o plano na cabeça desconcertante daquele contaminado presente? Destruir o teto com aquele item? É provável que o lugar inteiro desabe sobre nós antes de escaparmos. Mas é uma fagulha de esperança.

— Precisa ter outro jeito de fazer isso — eu lhe digo, nervosa, com a visão e idéias embaçadas.

Crusto nega minhas palavras. Vejo-o amarrar a corda no dorso de uma pedra do tamanho de um pneu e atirar aquilo para o teto. Agrupo-me com sua frustração nas tentativas perdidas. A pedra não consegue se prender em nada lá em cima.

Acalme-se.

— Consegue arremessar aquilo? — meu indicador lhe aponta uma cadeira de madeira negra. Crusto testa-a no lugar daquela pedra. Sua tentativa inicial foi esplêndida, a cadeira ultrapassou o buraco no teto que alongamos, mas retornou seguida de um baque ecoante ao solo.

O corredor que fora bloqueado explode, e depois de a poeira assentar, nos revela Darke e seu chefe, um homem de estatura formal, cabelos grisalhos, óculos de armação fina. Eu o reconheço do hospital ao qual fui mantida presa por vários anos. Um dos que entregava minha alimentação. Ele nunca era pontual, mas sempre que vinha com comida, palavras soltas, ou apenas um copo d’água, continha um secreto sorriso. Vejo-o estampado ali mais uma vez.

— Você foi muito longe dessa vez, Ácida — se admira ele, os passos cravando o solo por sapatos de couro negro e importado.

— Nem notei — minha voz rompe os lábios.

— E agora você fala. Magnífico! — sorri por dentes tortos. — Pena que não tenhamos tanto tempo agora pra conversar — retira de seu bolso uma pistola e aprecia seu designer prateado brilhando naquela tão leve escuridão.


. 19 .

PARALISADA

 


Somente pela esperança danificada é que meus olhos alcançam um pedaço visível do céu, por uma última vez. Antes de proferir alguma prece, vejo uma sombra lá em cima. Uma sombra com um crânio de cabelos curtos e ouriçados. Ela desaparece muito rapidamente.

Mark. Mark. Mark...

Estarei começando a ter alucinações nos restantes finais dessa estranha liberdade?

— Finalmente nos reencontramos — recomeça meu antigo alimentador do hospital Ônix, continuando com seu falatório e aproximando-se. — Sempre desconfiei que você um dia fosse causar problemas, mais cedo ou mais tarde se rebelaria. Lembro-me dos pratos que você retorcia, pratos de aço... — não sei do que ele está falando, mas não quero lhe dar razão. Quero distância, embora ela não seja mais possível. Embora sua arma esteja sendo balanceada de uma mão a outra, a espreita do momento onde me matará.

Meus olhos tentam focar em coisas além daquele seu olhar curioso. Ele usa um terno cinza. A fraca luz não revelou a cor de seus olhos, mas sei que são amarelados como um limão podre. Em seu sorriso largo há três dentes de ouro. Seu sapato começa a aproximar-se lentamente de mim, tricotando nosso espaço perigoso.

— Brutal por baixo de uma pele de seda, mas ainda tímida sobre seu potencial...

Meus olhos alfinetam Crusto, meus lábios desenham um pedido silencioso: Agora.

Crusto arremessa a cadeira para o alto mais uma vez, e dessa vez ela ultrapassa o buraco no teto e se prende em algo.

Um suspiro.

Os segundos caminham como lesmas. Os olhos de Darke estouram pela primeira vez de sua face por ter compreendido nossa fuga. Seu chefe também prevê a mesma coisa, mas sua estrutura é lenta comparada a dos demais. Ambos fitam o que minhas mãos revelam: uma dinamite acesa sendo-lhes arremessada, enquanto me dependuro na corda e ganho velocidade na subida. Natalie, uma acrobata sem experiência. Eu poderia ter me dado bem no Circo Medley, voando com aquelas cordas e panos...

Um tiro passa raspando por meu braço, e a bala some acima de mim. Estanco, olho para baixo e vejo Crusto arremessar uma pedra na cabeça daquele agente Ônix. Isso o incapacita, com um profundo corte na lateral do crânio.

Retorno à minha meta. A cada metro alcançado meu alívio aumenta, mas logo a adrenalina rompe minhas barreiras de concentração. Quando chego ao topo, um forte braço me iça para um vasto céu sem nuvens. Estou numa montanha, a mesma que avistei o povoado com Mark dias atrás. O abraço que me recebe é bastante acalorado, mas termino-o abruptamente.

— Salve o Crusto — peço para Mark.

Darke conseguiu apagar a dinamite a tempo, e seu irmão segue meu rastro com afinco. Ouço o motor do trailer bem próximo, e vejo o veículo estacionado com portas abertas, ligado, nos aguardando.

— Quem? Aquele?

Fitamos Crusto a subir pela corda, barro a tentativa de Mark em cortá-la.

— Ele me ajudou — quase suplico.

— Foi esse que quase me matou, Natalie.

Vejo o braço mal enfaixado de Mark.

— Quase.

Mark enrijece o maxilar. Os segundos de decisão sendo aniquilados na nossa espera.

— Não solta! — agora eu e Mark estamos a içar a corda, mas Darke agarrou-se nela também, raivoso, demonstrando maior agilidade que a de Crusto. Logo abaixo deles um pulso se ergue, uma arma segura por uma mão ressecada, e vários tiros são direcionados à ambos os contaminados dependurados. Mark me puxa da borda de visão bem quando as balas ricocheteiam pelas carapaças e agridem as internas paredes de pedra, fazendo mais delas rolarem de seus postos.

Meu antigo alimentador na Ônix compreende que usar sua pistola ali lhe traz extremo risco, e cessa seu instável ataque para originar ordens e xingamentos perante todos.

— Não solta! — eu grito mais uma vez para Crusto, que foi alcançado por Darke. Mas a corda se rompe com o peso dos dois. Juntos, os irmãos caranguejos desabam pelo meio da lona dos corpos mortos. E quando penso que nenhum deles se erguerá outra vez, Crusto reanima-se por inteiro, verifica suas vestimentas maltrapilhas e rapidamente me arremessa um objeto de cor avermelhada com um fiapo branco dependurado. É Mark quem apara a dinamite. O pavio desta é mais curto.

— Precisa — diz sua voz debilitada lá de baixo. Por cima de toda a louca situação, minhas lágrimas caem sobre aquele contaminado que tão pouco conheci, e um pouco mais compreendi.

— Não precisa terminar assim — derramo minha voz sobre ele, que rebate-as.

— Precisa, Lindinha — os olhos fixam-se no rosto. — Lindinha — repete, e de seus lábios tão finos suspeito ter avistado um fiasco de sorriso.

— O trailer? — uma pergunta rápida voltada à Mark.

— No aguardo — ele me passa a dinamite acesa. Lanço o último olhar penoso ao contaminado abaixo de mim, Crusto, que agora está sendo agredido por seu irmão e o agente da Ônix, e solto a dinamite sobre eles.

Meus passos morreram, é Mark quem me arrasta para o trailer num intenso alvoroço. Joga-me no banco do carona e pula na direção, desengatando os freios. Pelo espelho retrovisor externo eu vejo o desenfreado veículo descer a encosta da montanha que vem desmoronando atrás dos pneus. Mark não tira o pé do acelerador na medida em que eu oprimo um rosto choroso. Essa é a vida que ganhei, arriscada, com poucas pessoas boas que me escapam facilmente pelos dedos.


. 20 .

RADIOATIVA

 


Os nervos ainda florescem por nossa pele, mas não paramos para um momento de repouso. O momento seria este. Nada de fugir. O alvo estava traçado pelo mapa de Mark, e pelos nossos pensamentos sobrecarregados em ira.

Fizemos o retorno em pouco tempo, agora com o trailer reparado. Aproveitamos uma hora da noite em que não há muitas pessoas se arriscando pelas ruas perigosas para adentrarmos na cidade. Ultimamente, as noites têm acarretado um grande número de mortes por todas as regiões do país, sem deixar nenhum culpado visível. Os contaminados fugitivos é o que está causando esse medo, sabe-se sem precisar de reportagem alguma.

— Essa Corporação Ônix está crescendo. Mas foi aqui, segundo soube, que tudo começou. E ainda acham que é a Central deles. Por isso as pessoas estão se mudando dessa cidade — Mark começa a rodar pelas ruas escuras, de postes quebrados. Faz ainda o que eu achava ser impossível: desacelera a velocidade do trailer.

— Castor City. Nome pacato. Cidade pacata — bocejo isso minutos depois de ver a placa de entrada.

— Seremos uma espécie de dupla justiceira agora? Derrotando os males da contaminação, para livrar do perigo o povo da nossa nação? — sei que ele está imitando uma cena de um velho desenho, à sua maneira. Sei também que está tentando criar um momento agradável acima de tudo o que passamos. É cedo para isso. Não funcionaria. Não vou entrar nessa. Sem chance.

— Mark... — lanço o nome dele.

— Nat... — ele atira o meu, recortando-o. — Equipe R...

— Esquece — corto-o de modo brusco. — Acho que não tivemos infância, já podemos parar.

Mas tem um leve sorriso brotando de ambos os rostos.

— Isso mostra que assistíamos o mesmo desenho — ele está me encarando e voltando o olhar para as ruas tenebrosas, rodeadas de casinhas abandonadas de cores desbotadas na escuridão.

— Isso indica que estamos sendo toscos — revido, já com o humor modificado.

Direciono minha atenção para a noite. Nuvens circundam uma lua prateada como a pistola do agente Ônix. Poucas árvores secas farfalham minha visão do céu. Minha janela está aberta só por cinco centímetros, cerro meus dedos por ali e eles saboreiam o a brisa gélida.

— Qual é hein, Natalie, não seja séria o tempo todo.

Um clarão pelo retrovisor externo me fisga o olhar. Parece um carro. Parece ganhar tamanho. Talvez uma carreta. Ele vem descambado, bamboleando pela pista, fazendo trincheiras de carros estacionados pelas calçadas. Trazendo a destruição.

— Mark, pare o trailer — toco seu ombro e puxo sua camiseta, extasiada de medo. Ele ainda não notou diferença alguma, nenhum som esquisito, não checou seu retrovisor, sua janela mantém-se fechada.

— Tudo bem, eu já entendi. Natalie pode ser brincalhona, mas o Mark não. Natalie pode...

— Par-e-e-e-e-e-e-e!

BAAAM!

O trailer é virado.

Vejo cacos rodopiando em câmera lenta à frente de meu rosto, e os airbags sendo ativados, me sufocando. Não sei de qual lado o veículo recebeu a batida, apenas suspeito de ter sido pelo esquerdo. Ou a luz daquela carreta veio de trás. Não sei. Faróis vermelhos, amarelos, verdes e azuis fazem voltas na minha visão. Suspeito de que não estou mais consciente, pois não há dor.

Sinceramente não sei de mais nada. As coisas estão desconectadas agora. Preciso plugar os fios do reconhecimento. Preciso avisar...

Mark. Mark...


**


Um diálogo distante começa a ruminar depois de um tempo embargada em dor. Essas vozes ranhosas destroçam meu entorpecimento, tilintam e reproduzem ecos assustadores. Acho que estou com frio. Acho que não tenho mais braços, não os sinto.

— Os dois são contaminados. Mas ela... — dão uma breve pausa. — Não consegui detectar de que tipo foi o vírus aplicado — termina a voz fininha.

— Pode ter sido aquele tipo Z. É o menos detectável até agora — responde o timbre agudo.

— Já testei esse, Sr. Holkin’s. Também não foi encontrado nada dele pelo corpo dela. E segundo eu notei, a vida dela se prolongou. A dos dois, na verdade. De algum modo os organismos deles estão fabricando células que destroem o vírus — um bramido metálico se expande pela área. Mesmo sem abrir os olhos, consigo saber que estamos num local pequeno e abafado. — Não entendo como é possível, eu juro. Será a prova de que a Conspiração existe? Não deveria ter cura para esta doença.

— Não jure. Trate de resolver isso imediatamente — a voz grossa demanda bem próxima dessa vez, e sinto uma leve carícia em meu rosto. — Implante mais vírus até eles explodirem. Não me importo. Estes dois já roubaram muito do meu tempo hoje.

Ouço os passos afastando-se em sincronia com minha consciência.


**


A primeira agulhada me faz abrir os olhos. Sinto o líquido injetado se espalhando por meu corpo e adaptando-se ao novo território. Sinto as células combatendo-os e morrendo lentamente. O antigo vírus recebendo calorosamente o novo amigo. Natalie, duas vezes contaminada. Duas vezes com olhos alertados e dispostos.

Duas vezes ácida.

Meus olhos estão vendo uma sala ampla, bem iluminada e com prateleiras e mais prateleiras suportando milhares de frascos. Frascos estes com pequenos fetos em seu interior transbordados em água amarelada. Meus olhos, que notam também onde estou sendo mantida acorrentada e na vertical. Não demoro a encontrar o corpo de Mark atento ao meu lado, na mesma situação.

Calma. Calma. Calma.

— O que fizemos para vocês? — pergunto de forma melancólica para a mulher de uniforme branco, a única presente além de nós. Não consigo conter as lágrimas agora. E elas são tão ácidas quanto o restante da aberração que já sou. — Não possuem o direito de fazer isso conosco! É desumano! Vocês são monstros!

Sou ignorada junto com minhas frustrações.

— Ela não fala com cobaias — responde-me Mark. — É inútil falar com esta aí.

A tal inútil usa uniforme branco, com Ônix marcado em roxo no bolso do peito. Ela estava concentrada em alguns frascos, e líquidos estranhos, misturando-os, colocando amostras sobre um microscópio, mas levanta-se da cadeira metalizada no momento que em ouve Mark. Deixa seus óculos na mesa, munindo-se de duas seringas enormes, de líquido violáceo. Para de frente a ele. Vejo seus olhos asiáticos pontilhados como dois pequenos botões sobre um tecido branco sedoso, rosto no formato de morango, com os lisos cabelos negros grampeados num coque bem estruturado. Ela não sorri em momento algum, não transparece emoção alguma. Apenas segue ordens.

Aplica duas injeções em ambos os braços de Mark, fazendo-o perder a consciência instantaneamente.

— Não! — meu grito revibra pelo lugar.

Sem calma.

Permito-me ficar louca. Minhas lágrimas secam. Não consigo parar de berrar. Não consigo conter a raiva em meu interior. Não consigo parar o ácido que está fervendo meus pensamentos.

As correntes estão se remexendo sozinhas. As luzes começam a falhar e a explodirem naquele ambiente diminuto. Armários se abrem, estremecem-se, derramam seu conteúdo e abraçam o piso de azulejos brancos. Cadeiras se locomovem, colidem contra paredes, mesas se viram pelo chão, mas nada se aproxima de onde estou.

Não. As coisas não se mexem sozinhas. Essa é minha raiva transpassando para o ambiente. Essa é a nova evolução do recente vírus implantado em meu corpo ao misturar-se com o já existente. E de rompante, as palavras de meu antigo alimentador regressam num fragmento de razão:

“Lembro-me dos pratos que você retorcia, pratos de aço... Brutal por baixo de uma pele de seda, mas ainda tímida sobre seu potencial...”

Esta é a Natalie completamente ácida e destrutiva. Talvez seja o maior dos segredos sobre a contaminação deste corpo. Mas não sobre meu ser. Guardo uma lâmpada fluorescente no interior de toda minha essência. Essa luz trespassa pelos olhos e ilumina meu caminho. É onde adquiro conforto e orientação, onde não me deixo destruir. Chamam isso de esperança, mas avalio como bravura.

A maçaneta da porta está quase sendo arrancada pela agente da Ônix.

— Emergência!— agora a inútil da mulher começa a falar. E de modo desesperado. Suas expressões faciais retornaram devido ao medo que está encorpando sua visão. Lágrimas angustiantes permitem-se saltar dali, quando ela se ajoelha em súplica na porta, o rosto virado para o meu.

— Emergência... — eu repito sua palavra com uma voz equilibrada, olhando em seu rumo. Meus pensamentos estão num intenso frenesi. Meus ossos ardem e tenho a impressão de que começarei a queimar.

Estou me divertindo. Sorrindo.

Estou querendo a destruição de todo esse mal.

— Emergência... — todas as frases raivosas contendo-se numa palavra tão pequena. Minha voz está esquivando-se por cada letra. Sinto ondas de ar retorcendo-se pela sala e a certeza de que posso controlá-las com um sopro, com um pedido silencioso, num pestanejar. Olho para minha captora. Não faz parte da mesma equipe que me mantinha presa no último hospital Ônix, mas suas vestes são semelhantes. Ela é uma agente da Corporação. E merece minha raiva. Merece o ácido.

Meus lábios parecem se divertir, meus dentes estão trincados, os olhos banhando-se em calor. Não sei como piscá-los. Não quero saber. Quero aproveitar cada milésimo de segundo do que está acontecendo.

— Emergência... — repito a palavra que ainda é pequena demais para suportar a raiva. As janelas e portas estão entortando e despedaçando-se em minha rápida mudança de olhar, fazendo chover resíduos do material para todos os lados. — Emergência... — as correntes se despedaçam. Canos se rompem das paredes e água jorra sobre nós. Estamos entrando numa escuridão que é iluminada somente pelos curtos circuitos dos fios no teto.

— Emergência! — grita a mulher que não fala com cobaias. A que está encolhida agora abaixo de uma mesa cheia de suas seringas de tortura, mãos tapando os ouvidos, pálpebras fechadas com força.

Frascos de prateleiras suspensas pelas paredes estouram, libertando fetos mortos que bóiam pela água. Fetos que devem ser das mais variadas espécies, percebo.

— Emergência! Socorro! Socorro!

E todo o lugar explode.


. 21 .

ENCONTRADA

 


Mark...

Meus pensamentos se condensam em meio aos destroços. Levanto. Não sei como, mas levanto e rumo pela área. A sala ruiu junto com o edifício e o céu. As nuvens devem ter descido também, pois estão incapacitando-me de respirar com a facilidade de antes. Não sei como ainda estou viva. Não sei como estou tossindo aquela poeira, mas meu corpo quer sobreviver. Meus olhos estão ardendo e não há lagrimas para amortecer o incômodo.

Mark... Preciso encontrar o homem urso...

Mark...

Um rugido enfraquecido é solto por uma boca animalesca. Consigo localizá-lo. Somos dois animais feridos. Dois Contaminados. O urso selvagem e a garota ácida.

O urso choraminga pelo concreto em seu corpo, amassando-o. Estou levantando aquela pedra, mas ela é tão pesada, tão pesada, tão pesada e resiste ao meu toque. Minhas mãos encontram-se queimadas, meus pés começaram a tremer. Para que lugar foi àquela força que fez isso tudo vir abaixo? Deve ter se desmoronado dentro de mim. Deve ter ruído como toda a estrutura.

A garota ácida tosse poeira.

Mark, nós vencemos eles, é o que quero lhe contar. Não foi nada em vão. Quero que meus lábios rachados consigam pronunciar ao menos seu nome. Não consigo. Não consigo nem me aconselhar a ter calma.

Ei Mark, agora temos a chance de ser a dupla contra o mal.

Mark, nós já podemos ir.

Mark...

O nome dele vagueia por meus pensamentos. Ele, que fora um ótimo companheiro esse tempo todo. Um cara legal, como Aline afirmara. O mais legal que lembro ter conhecido. Não que eu me lembre de muita coisa. Não que tenha sobrado tanta coisa da qual mantive na memória. Mas existe ele. No curto tempo o salvei do ácido que tem circundado meus nervos. Então não posso perdê-lo. Nós vencemos, não vencemos?

Só restam nossos dois corpos vivos pela área e... Espere um instante.

— Ei! Tem mais alguém ali — dita uma voz distante.

Estou chocada agora. Seremos aprisionados mais uma vez.

Mark, eu quero que sobreviva, nós fugiremos outra hora.

Mark, eu prometo...

Eles tiram o corpo do transformado Mark de debaixo daquele concreto. Vejo o urso selvagem voltar a ser um homem outra vez, sem roupa alguma. Vivo. Ainda que só uma carapaça da vivacidade que teve. Ele se recuperará, penso rapidamente ao torcer os pensamentos negativos.

Mark é forte.

— Você já fez o bastante — é o que me dizem.

Não irei responder a ninguém. Quero que me aprisionem se isso significar que Mark também ficará vivo. Vivos nós teremos alguma chance. Vivos um dia fugiremos.

Vivos...

Eu tenho paciência, espero que ele tenha isso também. Espero que o homem urso respire por muito tempo. Espero, espero, espero.

Eles tiram o corpo de minha visão e o colocam num veículo branco parecido com o trailer de Aline. Uma ambulância. Ninguém nunca desconfiará de uma ambulância. Fecho os olhos porque não quero ver os rostos que estão a me carregar. Rostos estranhos, rostos estes que me limitarão do mundo mais adiante.

Mas o tempo passa e sinto um leve roçar nas costas, um assento me foi imposto. Uma poltrona.

Não fui acorrentada, é o que meus braços livres ditam.

Abro os olhos e me surpreendo por estar numa espécie de trailer menor. Não, é uma daquelas ambulâncias. As portas traseiras são fechadas e os vidros mostram a rua cheia de escombros desaparecendo a distancia. A fumaça ainda inunda a região e meus olhos.

Quatro rostos estão me observando. Quatro desconhecidos rostos até então.

— Tem que ser ela — cochicha um.

— Ela nem está nervosa com o que fez — profere o outro.

Posso ouvi-los e eles sabem disso.

— Acho que não foi ela quem fez isso. Ela está ferida. Quem fez aquilo não...

— Calados! — corta outro. — Ela não é surda e seu nome é Natalie, idiotas.

Natalie. Natalie. Natalie.

Havia esquecido meu próprio nome depois que tudo explodiu. Não há Mark para me lembrar dele. Não sinto que há tanta razão em ter de me lembrar da simples palavra agora.

— Por que fazem isso? O que foi mesmo que eu fiz a vocês? — minha voz alteia e eles se assustam. Penso que meu ato possa desencadear alguma séria consequência para mim mesma. Sinceramente não me importo com isso.

Não me importo.

— Ela não sabe — outro está rindo.

— Somos os mocinhos aqui, Natalie — diz o garoto que interviu o burburinho de conversas anteriormente. — Somos a Conspiração e vocês estão a salvo agora. Você e seu amigo urso.

— Conspiração? — questiono.

Eles explicam-me sobre o ainda pequeno grupo organizado para combater os planos da Corporação. A Corporação Ônix, que me relembram, é uma extensa e nova rede de hospitais, mas que secretamente serve de fachada para uma empresa que faz pesquisas das mais adversas, pesquisas desumanas. E eu já servi como animal de teste por vezes o suficiente para entender.

— A Ônix está usando humanos como cobaias — diz o homem de óculos largos, que atende pelo nome Stuart. — Mas já temos um abrigo. Na verdade, é uma grande cidade reformada. Tem muitos contaminados se tratando pouco a pouco, estamos salvando vidas por lá. Você quer conhecer?

Stuart oferece sua mão para que eu a aperte, mas enquanto ela chega, solta-se de seus dedos um pequeno lampejo, uma mini explosão. Ao nosso redor surgem risadas alarmantes.

— Desculpe, não queria te assustar — ele retorna suas mãos e esconde-as nos bolsos da jaqueta esvoaçante que usa. — Ainda estou controlando minha contaminação — tapa metade da boca, escondendo-a dos demais, e sussurra para mim: — Vírus de eletricidade.

Fui uma cobaia de minha própria espécie, já estou fisgando a antiga consciência. Um rato em que foram aplicadas doses de líquidos que poderiam ter me matado, mas de algum modo me deixaram viva.

Viva.

Viva nessa espécie de vida louca onde consigo produzir ácido pela saliva. Nessa vida onde agora podem existir pessoas que se transformam em animais e qualquer outra aberração que nos seja injetada. Nessa vida onde há um Mark, um contaminado que pode se transformar num urso selvagem.

Viva e ácida.

Querido Mark, você precisa acordar logo. Precisamos discutir juntos uns assuntos que envolvem os perigos de nossa nação.


. 22 .

DETERMINADA

 


A grama recebe o corpo dele com uma deleitável ternura, pois nem ouço a colisão. A brisa é gentil, suave como as folhas amarelas que arrancam das árvores e despejam por cima de nós. O parque não está cheio. O sol parece um melão. As nuvens são de sorvete derretido, pois soltam respingos vez por outra. Um dia bordado em ânimo.

— Eu não vou parar de pensar em você quando começar a trabalhar — Mark está dizendo. Seus olhos esverdeados estão sorrindo, refletindo a grama, retornando aos meus, serenos.

— Vai sim — digo-lhe, fingindo contrariedade e me jogando sobre seus braços. — Agora mesmo, aposto que já deve estar pensando em um milhão de outras coisas.

— Mas todas elas possuem você como plano de fundo — ele rebate rápido mais uma vez e aperto seu nariz. Mark não gosta do ato, mas eu sim.

O nariz de Mark é médio, pontudo e tem uma pequena cicatriz ganhada há exatos onze meses. Apenas uma das muitas cicatrizes que há por seu corpo.

Onze meses atrás nós não poderíamos sorrir como agora. Não poderíamos nos sentir acomodados com nada, pois estávamos ocupados demais tentando salvar nossas vidas. E não quero pensar nisso por esta breve hora, porque sei que ainda existem noites em que o teto recomeça a ruir sobre nós. Mesmo que agora tenha Mark para sussurrar no meu ouvido, dizendo que tudo já passou, e que não seremos mais cobaias de ninguém além do nosso novo mundo. Só com seu carinho consigo ter calma para vasculhar o sono outra vez.

Mark sorri. Percebo que tudo nele é uniformemente agradável para meus olhos. — Você é todo combinado — solto em meio a pensamentos.

— Como? — ele não compreende o rumo de minhas palavras, está concentrado em acarinhar meu queixo, com sua outra mão afagando lentamente minhas costas, percorrendo-a.

— Quero dizer que tudo em você parece combinar. Seus olhos combinam com seu cabelo. Seu maxilar com uma covinha discreta na ponta do queixo, e por aí vai.

— Seus lábios combinam com os meus — ele me ataca.

O beijo interruptor me pega desprevenida. Mark aperta-me com agilidade contra seus braços. Fico gélida. O ácido, eu sempre lembro. Isso poderia matá-lo antes se imposto em excesso. Mas descobriu-se que dois contaminados pela Corporação Ônix não podem afetar o corpo um do outro dessa maneira. A Conspiração alega que a interação amorosa entre contaminados pode ainda trazer benefícios, e é por isso que nossa vida está novamente prolongada, segundo nossas células indicam. E com arriscados beijos ácidos frequentes.

Mark maneja meu corpo e nossa respiração acelera, o coração pulsa rápido. Ele conhece cada defeito dessa outra Natalie, portanto sei que ficará irritado por eu ter de estragar um dos nossos agradáveis momentos juntos.

Natalie. Não me reconhecem mais por este nome. Perante a lei sou agora Jenny Stuart. E Mark chama-se Ryan Washington. Estamos noivos, é a novidade dos nossos dias.

Conseguimos um apartamento alugado nessa nova cidade, bem distante de onde aconteceram todas as tragédias que persisto em esquecer. A Conspiração nos ajudou com tudo isso, ela foi como uma recompensa de nossa coragem. Pelos novos amigos que possibilitaram esta vida decidimos parar de procurar os culpados das terríveis contaminações e deixamos a Conspiração cuidar disso. Eles continuam a perseguir os agentes da Ônix dia e noite, tratando de devolver uma vida com prosperidade aos que resgatam. Ainda existem pessoas boas pelo mundo, portanto sei que nem tudo está perdido.

Ajuda. A ajuda veio.

Agora há grama e livros com frequência.

— A entrevista! — dou um pulo e começo a catar meu óculos na grama, minhas sandálias rasteiras e a bolsa. — Me desculpa mesmo, Ursão, precisamos ir agora — utilizo o apelido que lhe dei desde nosso primeiro encontro. Volto em sonhos e devaneios ao Circo Medley todos os dias com uma fita branca prendendo o cabelo.

Não o chamo muito por seu novo nome. Às vezes ainda pronuncio Mark, e tento fazer isso o menos publicamente possível. — Eu sei, eu sei. Mas não posso dar bobeira com esse emprego.

Ele nem ao menos responde. Senta-se na grama e me encara com um silêncio que se alarga por seu sorriso jovem. — Você é tão concentrada — por fim diz. — Não consigo me lembrar de coisa alguma quando estou com você.

Quero me aproximar dele outra vez, mas sei que meu corpo relutaria em sair daquele porto seguro, aconchegante. — Então, vamos? — seguro sua mão enquanto levanta e deixamos o parque. Enfrentamos as calçadas lotadas da cidade de mãos dadas também. É o meio do dia.

Nem o metrô desfaz nosso contato.

— Tem alguém sorrindo para nós — ele sussurra em meu ouvido.

Estamos sentados num vagão quase vazio. Outro casal, de idade mais avançada, nos fita por momentos longos, com cochichos e risadinhas silenciosas. Eles parecem felizes. Eles parecem pensar “Vocês dois também estão felizes”. Sorrimos em retribuição e Mark-Ursão-Ryan estende seu braço em volta do meu corpo, me fazendo inclinar sobre ele. E o ato dura tão pouco que me frustro, pois na próxima estação do metrô já estamos nos despedindo.

Deseja-me sorte e eu peço que me prepare um jantar de boas-vindas. Ele segue para nosso apartamento, eu rumo para minha primeira entrevista de emprego. Decidimos lutar juntos pela nossa felicidade, e deixarmos os estranhos acontecimentos para trás. Às vezes, precisamos decidir coisas assim, é necessário. Às vezes, algumas pessoas que entram em nossas vidas nos fazem compreender melhor certas decisões, com novos olhos, com novos sonhos.

Confio em Mark. Confiamos um no outro.

O bipe do celular me faz parar pelo meio do caminho e atendo a ligação sem nem ao menos olhar para o número.

O que será que o Urso se esqueceu de dizer?

— Natalie, me perdoe — começa a voz alterada eletronicamente. Um calafrio arremata todo meu corpo.

— Quem é?

— Nos desencontramos naquele dia pelo Circo Medley, onze meses atrás. Eu te vi, mas você não me ouviu chamar. Natalie, eu peço que me perdoe por ter demorado tanto tempo para te salvar da Ônix. Fiz tudo o que tinha de ser feito para seu bem — um ofegar ruidoso se alonga.

Não consigo pensar em nada para responder. O ácido deve ter corroído minha língua. Mas então recomeço a ouvir de novo:

— A sua fuga foi planejada, e seus feitos seguintes me surpreenderam. Queria te encontrar aquele dia para explicar melhor, mas parece que você achou uma nova ajuda — nisso há um suspiro tão longo que tenho o intuito de desligar. Alguns pequenos flashes de memórias se encaixam em minha visão. O céu de repente parou de ficar azul, parece cinza como o concreto do prédio a minha frente.

— Oliver?

O som de minha voz provoca uma tragada de ar do outro lado da linha.

— Olhe, eu sei que ama uma nova pessoa e não irei me opor a isso. Mas se um dia lembrar-se de tudo o que passamos juntos e quiser voltar, nossa casa estará aqui te esperando. E seus pais também.

Ouço o bip finalizando a chamada. Estariam as pessoas das ruas atentas às batidas desse coração tão pouco conhecido por mim mesma? Tome uma decisão, eu digo. Ignore.

Acalme-se.

E avanço lentamente rumo à uma nova vida. Uma vida contendo ursos e garotas ácidas com chances de cura. Com amigos. Cabe a nós darmos os passos. A felicidade não acontece com pessoas paradas. Avance com cuidado, mas avance.

Respiro profundamente e ergo a cabeça, meus passos determinados em conjunto. E avanço.

 

 

                                                                  Ton Adalclê

 

 

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