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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ACIDENTE / Christa Wolf
ACIDENTE / Christa Wolf

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ACIDENTE

 

Um dia, sobre o qual não consigo escrever no presente, as cerejeiras já terão florido. Terei evitado pensar "explodiram" as cerejeiras explodiram, tal como um ano antes, apesar de já não totalmente ignorante, poderia não só ter pensado como até dito. O verde explodiu. Nunca uma tal frase teria sido tão exacta para descrever um fenómeno da natureza como este ano, neste calor primaveril, depois de um Inverno interminavelmente longo. Acerca dos avisos que muito mais tarde nos foi dado ouvir - não comer os frutos cujas flores tivessem desabrochado nesse dia -, não sabia ainda nada nessa manhã, manhã como todas as outras, em que me enfureci com a grande actividade das galinhas do vizinho na nossa sementeira. Galináceos esbranquiçados. O melhor que se pode dizer de tais bichos é que lá vão reagindo amedrontados aos meus gritos e correrias e que com grande confusão a maioria lá se foi, enxotada, rumo à propriedade vizinha. Com certeza deixar-vos-ão guardar os vossos ovos, pensei maldosa. E à tal instância que desde muito cedo me começou a observar atentamente de um futuro longínquo - um olhar, apenas - dei a entender que a partir de agora não me sentiria ligada a nada. Livre de fazer e sobretudo de não fazer, segundo o meu critério. Aquele objectivo, num futuro muito distante, rumo ao qual até agora todas as linhas se moviam, tinha explodido, ardia juntamente com o material radioactivo nesse preciso momento num reactor: Um caso raro. Sete horas. Aí, irmão, onde agora te encontras, começa-se pontualmente.

O calmante, já o devem ter injectado há meia hora. Agora levaram-te da enfermaria para a sala de operações. Um caso como o teu é sempre o primeiro a ir à faca. E agora sentes, imagino, uma vertigem não de todo desagradável na tua cabeça rapada. Lembra-te como é importante que não te detenhas em pensamentos complicados, que afastes sentimentos fortes, por exemplo medo. Tudo vai bem. É esta a mensagem que tento, antes que te mergulhem no sono da anestesia, transmitir-te sob a forma de uma radiação de energia. Consegues distingui-la? Tudo está bem. Agora deixo que esse meu olhar interior visualise o teu crânio, procuro o ponto mais frágil, aquele por onde o meu pensamento poderá penetrar, para alcançar o teu cérebro em breve posto a nu. Tudo vai bem.

Já que não podes perguntar: as radiações de que falo não são por certo perigosas. Por um processo que me é desconhecido, atravessam as camadas de ar envenenado sem que este as contagie. Sim, o termo exacto é: contaminar. (Enquanto dormes, irmão, eu aprendo palavras novas.) Esterilizadas chegam à sala de operações, procuram o teu corpo exposto, prostrado, percorrem-no e reconhecem-no numa fracção de segundo. Tê-lo-iam reconhecido ainda que estivesse mais desfigurado do que afirmas estar. Sem dificuldade atravessam a profunda resistência da tua inconsciência, à procura desse núcleo ardente e palpitante. De uma forma que não pode ser explicada com palavras, estão a teu lado, ao lado das tuas forças que diminuem mais e mais. Tudo corre como estava previsto, podes estar confiante. Vale! Receosos, no fundo preparados, sem no entanto saber para o quê, assim teremos estado antes de receber a notícia. Não é verdade que quase nos pareceu reconhecê-la? Sim, ouvi alguém perguntar dentro de mim, porquê apenas os pescadores japoneses. Porque não, por uma vez, nós.

Os pássaros e o teste.

Leviana e despreocupadamente deixei a água do duche escorrer pelo meu corpo. Cada um dos inúmeros peritos, que agora, tal como os cogumelos (cogumelos impossível prová-los nos tempos mais próximos), surgem de todos os lados, esclareceu, solícito, que por enquanto não havia qualquer perigo - de maneira nenhuma - de contaminação das águas. Talvez nem mesmo chegasse a haver. Num ribeirinho, tão clara. É um vício, cantar no duche. Além disso torna mais difícil a recepção das notícias vindas do pequeno rádio de marca Sanyo, onde de hora a hora A NOTÍCIA vai sendo comentada, trocada em miúdos. Truta de humores variáveis. Peixe transformado em armazém de detritos radioactivos. Conforme o partido a que cada um pertencia - partidos que fraccionam de forma quase previsível a opinião pública -, e segundo se tratava de um optimista ou de um pessimista, o perito afirmava categoricamente: "Não. Em caso nenhum o núcleo do reactor chegará a fundir". Ou: "Claro". "Mas evidentemente". "Não está de forma alguma fora de questão". Então seria de esperar aquilo que o humor dos cientistas tão explicitamente baptizou de "síndroma da China". Enquanto o incêndio não estiver controlado - e incêndios de grafite, irmão, decerto não o sabes, mas acabam de nos informar, embora muito raros, são dificílimos de extinguir - enquanto a reacção em cadeia continuar, o núcleo do reactor pode, em fusão através do centro da terra, manter-se em actividade, até reaparecer, diferente por certo, mas ainda emitindo radiações, nos antípodas.

 

Recordas-te, irmão, daquele enorme buraco que cavámos na areia em frente à casa e no qual enterrámos, convenientemente revestida de rótulos e avisos, uma garrafa de cerveja cheia de ácido clorídrico confiantes de que, corroendo o seu caminho, chegaria aos antípodas? Lembras-te ainda da carta que prendemos ao gargalo, impermeável no seu embrulho de papel de celofane? Do seu conteúdo? Irmãos e irmãs - assim nos dirigíamos aos habitantes dos antípodas, pedindo que sem demora confirmassem a chegada da garrafa, escrevendo-nos para a nossa morada, que evidentemente acrescentámos.

Era de se ficar grato quando podíamos representar algo por imagens. Lembrei-me se não seria conveniente pedir desde já desculpa aos antípodas, mas não cheguei a aprofundar a ideia, pois um dos locutores da rádio perguntava a um dos peritos, aparentemente jovem, que muito amavelmente se tinha prontificado a ir aos estúdios: que precauções tomaria com os seus filhos, caso os tivesse, claro. Tinha filhos, sim. Tinha recomendado à sua mulher que não lhes desse leite fresco, nem espinafres ou alface. E como medida de precaução aconselhou-a a não os deixar brincar no jardim ou no parque infantil. Enquanto punha a pasta na escova de dentes, ouvi alguém dizer: Pois. Foi preciso chegarmos a este ponto.

E essa tal pessoa que falou, fui eu. Apesar do teste - quanto tempo poderia aguentar sozinha em casa, sem começar a falar comigo mesma - pedaços de conversa em voz alta começaram a surgir logo ao terceiro dia, do género Agora trato de arrumar esta roupa e depois acabou-se! Hoje foi o quinto dia, em condições particularmente difíceis: comecei a falar com outras pessoas, ausentes, em voz alta: Claro, no fundo isso até vos conviria! Por exemplo Que espécie de serra se utiliza para abrir o crânio, não sei. Sei que para o fazer se seguem as linhas que dividem a caixa craniana em vários segmentos, suturas. Se quiséssemos, disse o teu médico, para que, convencido da perfeição da sua técnica, ficasses mais tranquilo, poderíamos levantar-lhe facilmente a parte de cima do crânio, como se fosse um chapéu e tornar a colocá-la no seu lugar mais tarde. Mas não, não é nada disso que queremos fazer no seu caso. O que querem fazer no teu caso - levantar apenas um segmento, aquele que fica do lado direito sobre a testa - certamente já o fizeram neste momento. E todo o conteúdo está agora exposto diante deles. Para mim chegou a altura de me concentrar nas mãos do cirurgião. Na ponta dos seus dedos. Impulsos para os quais não há palavras. Tu, na tua inconsciência cada vez mais profunda, deves estar tranquilo. Sofres? Para onde irá a dor, quando não a podemos sentir? A vida, uma sucessão de dias. Pequenos-almoços. Medir o café com a colher de plástico cor-de-laranja, encher o filtro, ligar a máquina, saborear o cheiro que se vai espalhando pela cozinha. Sentir os cheiros mais intensamente, mais conscientemente, ainda não me tinha ocorrido, não sabia que perderias essa faculdade. Perdas, disse o teu médico, não se podem evitar em cada um dos casos, mas tentamos que sejam tão insignificantes quanto possível. Deixar o ovo cozer exactamente cinco minutos, realizar essa proeza quotidiana apesar da avaria do conta-minutos. Prazeres palpáveis. A estrutura que sustém a vida, mesmo durante os tempos mortos. A superfície cortada do pão escuro do Mecklenburgo. O interior visível dos pequenos grãos de centeio. Quando e por que processo se alojam nuclídeos - mais uma palavra que comecei agora a aprendernos grãos de cereal. Sentada à mesa da cozinha, olhei para a enorme seara de um verde tão farto, atrás da casa, visível através dos sabugueiros ainda tão despidos. Procurei uma palavra para a descrever. Esteira. Uma esteira verde. No campo corre-se sempre o perigo de retomar velhas palavras.

 

Nesse dia o céu não tinha nuvens. (Porque terei pensado em "tempo morto"?) Nesta sombra refrescante / Sobre a relva ondulante / Vou ficar a repousar / Vou ficar a repousar. Canções que durante anos, muitos anos, não me vieram à memória. E à tal instância que controlou com o seu olhar crítico todos os alimentos que eu pretendia ingerir, comuniquei que os ovos do meu frigorífico se tinham desenvolvido antes do acidente nas entranhas da galinha, tinham sido alimentados com erva e milho que não tinham sofrido radiações radioactivas, posteriormente levados directamente para a cooperativa e por isso não tinham carimbo mas eram com certeza frescos. E precisamente por tudo isto não demasiado frescos. Não eram de ontem, por exemplo.

Ó céu, azul irradiante.

Segundo que leis e a que velocidade se espalha a radioactivi dade, no melhor dos casos e no pior dos casos? Melhor para quem? E traria uma dissipação mais rápida, talvez ajudada pelo vento, alguma vantagem para os habitantes da região directamente em causa? Se, sob a forma de uma nuvem invisível, subisse até às camadas mais altas da atmosfera e se fizesse ao caminho? Nos tempos da minha avó a palavra "nuvem" não significava mais do que vapor de água condensado. Branca, com esta ou aquela forma, uma imagem no céu para incitar a fantasia. Nuvens velozes / Barcos no céu / Quem com vocês passeie / Quem com vocês embarque... Irá parar bem longe.

Comentário da nossa avó, que nunca teria viajado se não a tivessem desalojado. Porquê, irmão, porque temos tanta sede de movimento

A compota de ameixa que nós próprios, ainda doridos da colheita, fizemos, teria merecido a sua aprovação. Costumava polvilhá-la de canela, no que não a imitámos. Ela, por seu lado, nunca teria deitado fora os restos de pão seco, como eu, depois de uma leve hesitação, acabei por fazer. Tê-los-ia guardado até ao fim-de- semana seguinte para fazer uma sopa de pão com passas, segundo a velha receita polaca, o seu único prato que não me agradava. É um pecado, dizia ela - palavra que normalmente não empregava -, é um pecado deitar pão fora, insistindo para que eu não o esquecesse. O único ponto em que era radical. Era uma pessoa modesta, a nossa avó! Vivemos. Não propriamente de forma exuberante neste momento, teria de concordar contigo, pelo menos no que te diz respeito. A tua vida está suspensa por um fio: Talvez não propriamente por um fio de seda, mas um fio ainda assim. De perlon, suponho. Pensar que neste preciso momento um instrumento de metal rasga a tua meninge, provavelmente afasta para o lado a tua massa cinzenta, criando lugar para um outro instrumento, com um microscópio na extremidade... Ontem, ao telefone, não te contei o que vi há pouco tempo na televisão: um computador, especialmente desenvolvido para operações no cérebro humano, programado para executar com precisão cortes de centésimos de milímetro, muito mais infalível do que a mão humana, segundo diziam. Nós assegurámo-nos mutuamente que podíamos estar totalmente confiantes na sensibilidade e na experiência do teu cirurgião! Fiquei parada, com a chávena que tencionava colocar na banca, na mão, e com tanta força quanto pude, pensei várias vezes seguidas: podes confiar na sensibilidade e na experiência do teu cirurgião. A caminho do correio parei para visitar o velho Weiss e mais uma vez pensei que ele se parece muito mais com um capitão reformado do que com um antigo tratador de gado. Antigo? Perguntou ele. Qual quê Este ano, como sempre, criaria o seu número de vitelos, já para não falar das pescarias no Mildenitz e das caminhadas pelos terrenos junto ao lago, à procura de cogumelos. Com oitenta e três anos não se é velho. Mas chegar aos noventa, como o pai... isso já não seria tão certo. Pois sim! disse a mulher dele, que carregada com os baldes de água, entrou naquele momento em casa. Estaria ele com vontade de morrer, assim de repente? - O Inverno? Tinha sido bem duro, de facto. Ter de alimentar o fogareiro de carvão várias vezes ao dia, e o frio, que parecia não querer ir embora. E não se poder sair de casa, nem sequer para ir à cidade visitar o filho, os autocarros não circulavam em parte nenhuma, e o "paizinho", assim chamou ao velho Weiss, seu marido, não o podia deixar sozinho em casa por uma noite, vivia aqui como na prisão. Também era só o que faltava, disse o velho Weiss calmamente, as mulheres são para ficar em casa. Está a ouvir? Pois aí tem; disse a mulher, e isto já dura há quarenta anos.

Imagens que nos deveriam ser familiares, irmão. Eu, pelo menos, conheço bem de mais a sequência da rapariguinha desalojada, que tendo ido parar com a mãe a um povoado esquecido, se arrasta para dentro de uma cabana, onde encontra apenas uma camponesa, que mais tarde, tal como a mãe da pequena, morrerá de tifo. Sim, essa epidemia de tifo que logo a seguir à guerra assolou toda a região do Mecklenburgo, de tal forma que o dono da cabana, o tratador de gado Weiss, ao chegar a casa depois de ter cumprido a sua pena como prisioneiro de guerra, apenas depara com aquela menina desconhecida: ainda tão nova, só no mundo, amedrontada, sem pátria, sem outro abrigo além daquela cabana. E as coisas acontecem como têm de acontecer, é a vida, diz a Senhora Weiss, no mesmo tom com que diria: a desgraça, e como tenho tendência para fazer das pequenas desgraças uma grande desgraça, também tenho tendência para querer remediar as pequenas desgraças, e portanto acho que se deveria criar uma linha diária de autocarros. Sim sim, disse o Senhor Gutjahr, que gosta de se intitular a si próprio "ministro dos correios", tanta coisa que se deveria fazer! Orgulha-se de ter sempre uma pequena reserva de dinheiro à disposição, caso alguém, como eu hoje, queira levantar uma determinada quantia. Tudo se arranja, tudo se consegue, o que é preciso é ter vontade, tenho razão ou não tenho? E se não tinha medo à noite, assim sozinha em casa. Medo de quem, perguntei eu, ao que ele respondeu: aí tem a senhora razão. O que o tinha arrastado a ele, um inválido, da Saxónia para estes lados; como tinha encontrado pão e trabalho para si e para a sua numerosa família, tudo escutei mais uma vez com agrado. Tirei de boa vontade um par de rifas da Cruz Vermelha da comprida e esguia caixa, o prémio dos milhões escondi-o bem, disse ele e ambos rimos. Então abri a segunda rifa e mostrei-lha: 5 marcos. Com mil raios, disse o Senhor Gutjahr. Não poderia ter adivinhado como eu precisava de ganhar, quanto aquele prémio inesperado era importante para mim, supersticiosa como estava nesse dia. E o facto de ter tirado com os 5 marcos 5 rifas em branco, já não me incomodou absolutamente nada.

O diabo o dá, o diabo o leva, disse o Senhor Gutjahr enquanto atendia um jovem trabalhador dos estábulos, que veio buscar um registo e deixou uma nuvem de álcool no pequeno e despido posto dos correios. É com certeza a reclamar a pensão de alimentação, disse o Senhor Gutjahr. Ainda se embebeda mais desde que está divorciado. A mulher também não fazia nenhum. Mas qual é a mulher que hoje em dia ainda deixa que lhe batam, sobretudo se o marido é um bêbado, ora diga-me lá! Muito poucas, de facto, respondi eu, sem poder deixar de lhe perguntar a seguir o que é que ele pensava do acidente nuclear. Ah, sabe, disse ele. O que aconteceu, aconteceu. E talvez hou vesse muito exagero no que se dizia. Ele, pelo menos, já se tinha visto metido em piores embrulhadas durante a vida. E que poderia ainda acontecer a um homem velho e doente como ele. Para tudo há um provérbio. O que não se vê, não se sente. Era o que ele pensava, por ali se guiava e nem sequer dava muita atenção a toda a barulheira que se fazia na rádio sobre o assunto.

A operação pode durar três ou quatro horas. Mal passaram duas e começa a ser cansativo, irmão, sinto-o também. Como decorre o teu tempo entretanto? Que trajecto vais deixando para trás, em que terreno, enquanto eu percorro os qua trocentos ou quinhentos passos que separam a nossa casa dos Correios? Mas algo se passou que me forçou a parar. Hei, irmão, o que se passa? Para onde te deixas arrastar? Ouve bem o que tenho para te dizer. Escrevemos o ano de mil novecentos I e oitenta e seis. Tens cinquenta e três anos. Aquilo a que chamamos vida está muito longe de acabar. Dentro de ti há, por um lado, essas células - malditas sejam - casmurras e moribundas, que terrivelmente aborrecidas, condenadas à reprodução eterna, só são capazes de uma coisa: formar tumores. Por outro lado há esses milhões, que digo! biliões de células - queres fazer o favor de não virar a cabeça com esse gesto altivo! Sobretudo hoje! - biliões de células, dizia eu, cheias de vida, especialmente ágeis por entre as estruturas complicadas do teu

cérebro, imensamente curiosas, cheias de vontade de fazer as suas próprias experiências e que não podes deixar ficar mal, que não podes condenar ao desaparecimento só porque durante uns minutos te é completamente indiferente o que possa acontecer contigo. Sentes-te desfalecer, meu querido? Mortificado? De resto, em condições normais não és muito dado a exageros. Só porque estás sob narcose pensas talvez poder voltar as costas ao problema? Que ninguém dava conta? Ou talvez o teu centro vital esteja de facto enfraquecido. Para isso foi criada esta corrente suplementar, cosendo duas vezes aguenta melhor, como diria a nossa mãe. (Toma-me conta do teu irmão mais novo!) Sim, mas tu também tens que ajudar. Não largues, irmão. Segura o ténue fio que te liga a nós. Pois, assim. Agora puxo um bocadinho, já te consigo ver, cada vez mais perto, cada vez mais nítido. E agora já muito próximo... Assim. Era só o que nos faltava. Não tornes a repetir a graça. É contra o acordo.

Aposto que os aparelhos não acusaram absolutamente nada. Nem sequer um ligeiro tremor! Instrumentos muito primitivos, de facto, mas os únicos por onde os cirurgiões se podem guiar. O nervo óptico, que, por azar, se encontra exactamente ao lado da zona a operar, seria observado atentamente, continuamente. Sem comentários. Ou será o nervo óptico da grossura das linhas com que se cosiam os botões lá em casa? Não, disseram eles, contaste-me tu, não havia um perigo especialmente grave para o nervo óptico. Nem mais uma palavra sobre tal nervo, nem sequer um pensamento mais. Como posso saber com que sentido ou sentidos tu assimilas talvez tudo aquilo que eu só muito furtivamente imagino! Ver ouvir cheirar saborear tactear - e é tudo? Quem é que acredita em tal? Por certo não nos iam atirar para a vida assim tão insensíveis. E ainda que uma petição para implantar um contador Geiger no interior do corpo humano possa parecer arrogante, humorística até. Quem poderia adivinhar, há milhões de anos, que precisamente tal aparelho melhoraria as nossas chances de sobrevivência como espécieapesar de, por outro lado, não estar propriamente muito interessada em saber qual seria o resultado de uma medição com o contador Geiger no prado verdejante e suculento em frente à casa. Mas as folhinhas de dente-de-leão, as mais tenras, as mais pequeninas, que, por hábito, colhi à passagem para juntar como sempre à salada do almoço, acabaram por ser deitadas fora, melhor assim. E, como complemento, tanto o rádio pequeno como o grande, sintonizados em diferentes emissores, iam repetindo, unânimes, a toda a hora: não comer nada verde! Não dar leite fresco às crianças. Uma nova denominação para perigo posta a circular: iodo 131. A tiróide, descobriram, é um dos nossos órgãos que mais se prestam à armazenagem de iodo radioactivo. Aquelas pessoas que prevêem as evoluções mais imprevisíveis, esgotaram ontem todo o stock de comprimidos de iodo nas farmácias da cidade onde se situa um dos postos emissores. Tal procedimento, fui sendo informada, não era nem necessário nem aconselhável. É verdade que o consumo deste iodo normal bloqueia a tiróide para a assimilação de qualquer outro, mas...

Telefonei então à pressa para Berlim, mas já tinham ouvido as notícias. De qualquer maneira não havia espinafres ou saladas para comprar, e leite fresco, não, já não o dava às crianças, disse a minha filha mais nova. (Ó leite de pensamento ateu, bebida amarga...) No entanto tinha-os levado a brincar na areia ontem à tarde e depois disso, infelizmente, tinha-lhes dado banho. Sim, então eu não tinha ouvido? Devia dar-se duche às crianças depois de terem estado na rua. O banho amolece a pele e abre os poros, permitindo assim mais facilmente a entrada das radiações radioactivas no corpo. Exagero? Se pelo menos tivéssemos a certeza.

Perguntei-lhe o que tinha a sua voz. Parecia estranha. Respondeu- me que soava exactamente como a voz de alguém que não tinha dormido. E claro que eu lhe iria perguntar porque é que não tinha dormido e por isso preferia contar-me tudo voluntariamente; só nessa altura tinha ouvido a notícia e era tarde de mais, as crianças já estavam na cama e ela sentia-se mal ao olhar para elas, tão inocentes e vulneráveis, e por isso não tinha conseguido dormir, e eu que lhe dissesse se havia melhor razão para ter insónias.

Não, disse eu. Bem, sim. Por outro lado, - Ó mãe, exclamou ela, por favor pare com isso. - Também eu não tinha certezas, ou? Eles não se deram conta de nada, disse a minha filha mais nova. Estão todos doentes. O que faltaria ainda acontecer quando milhares de litros de leite eram deitados fora, quando se corria o perigo de envenenar as crianças precisamente com os alimentos mais saudáveis. Enquanto do outro lado do planeta crianças morriam porque lhes faltavam exactamente esses alimentos.

Durante alguns segundos em que não dissemos nada, tive de novo a sensação de que os nossos pensamentos se roçavam contra as portas de um segredo astutamente escondido. Vi passar imagens que não tenho intenção de descrever. E no entanto perguntei-me se essas imagens, que por vezes emergiam até à superfície das ideias palpáveis, não deveriam ter sido descritas desde há muito, em toda a sua crueldade e contra a minha von tade, mas apercebi-me que não era essa a pergunta certa e, apesar de ter consciência de que tudo aquilo que me passava pela cabeça era pouco nítido, insuficiente em todos os sentidos, tive de reconhecer que tudo se inter-relaciona de uma forma quase matemática: a vontade da maior parte das pessoas de ter uma vida fácil, a tendência dessas pessoas para acreditar nos oradores nas tribunas e nos homens da bata branca, a necessidade de cada um de estar de acordo, o medo dos conflitos, tudo isto parece estar em relação directa com a sede de poder e a arrogância, a ganância, a curiosidade sem escrúpulos e o amor por si próprios de uns quantos. O que era, então, que parecia estar errado nesta adição?

Pedi por fim à minha filha que me contasse mais alguma coisa, de preferência das crianças. O mais pequeno tinha arranjado uma espécie de hélice que atou ao dedo polegar e, com a mão no ar, tinha-se pavoneado pela cozinha, dizendo: sou o bobo, sou o bobo. A ideia electrizou-me. Como é que ele sabia o que era um bobo. E seria frequente que uma criança de ano e meio tentasse tomar uma outra identidade, transformar-se. Além disso, transforma as coisas que vê à sua volta, disse ainda a minha filha. Um batedor de claras com uma pega em cima passa a ser uma velhinha a dançar em cima da mesa da cozinha e quando a irmã vinha por trás e dava, com outra pega, um safanão à velhinha, esta começava a lamentar-se e o pequenito chorava também, as lágrimas corriam-lhe gordas pelas faces, de tal maneira que a brincadeira acabava ali.

Ah, as crianças, disse eu. Tudo o que iria ser preciso ainda para os endurecer para o mundo.

Mas mais tarde eles vingam-se disso, tenho a certeza, disse a minha filha mais nova. Todo aquele a quem se destruiu a capacidade de amar sente depois a necessidade de impedir outros de amar.

Temos de ter cuidado, retorqui, sobretudo com o mais pequeno.

 

Só por cima do meu cadáver, respondeu ela, e falou de Marie. Marie tinha um "namorado", Julius. Trazia-o quase todos os dias com ela do infantário e sentavam-se os dois num banquinho, afastados dos outros, de mãos dadas, e perguntavam um ao outro: És meu amigo? Sou teu amigo. Também és minha amiga? E mordiam os dois a mesma fatia de bolo e bebiam pela mesma chávena, enquanto o mais pequeno se punha de mãos atrás das costas em frente deles, olhando-os e ouvindo- os com um ar ávido e pensativo.

Sabes, disse eu, toda a obra de Shakespeare e a tragédia grega me deixariam indiferente neste momento, em comparação com as histórias dos miúdos. E se ela sabia que, segundo se dizia, as radiações libertadas durante os testes nucleares dos anos sessenta tinham sido superiores.

Sabes consolar, não haja dúvida, disse ainda a minha filha.

O Sol brilhava alto sobre a casa, escorrendo pelo prado até à rua. Podia adivinhar-se que este ia ser um dos dias mais bonitos do ano. Um dia que te vai faltar, irmão. Seja o que for que ocupa os teus sentidos agora, eles não se aperceberão deste dia. Este céu, de um azul imaculado, escapa-te, este símbolo de pureza para onde se dirigem hoje os olhares inquietos de miIhões. Os teus médicos, depois de terem executado o corte em forma de gancho por cima da sobrancelha direita, depois de terem laqueado cuidadosamente todos os vasos sanguíneos, terem afastado o mais possível a pele para os lados, terem apartado a massa cerebral e envolvido parte dela numa folha esterilizada, preocupam-se agora com certeza em localizar tão exactamente quanto possível o núcleo do mal, sem atingir a hipófise. Se, por acaso, disse uma das enfermeiras mais novas, determinadas partes do cérebro fossem atingidas, poderiam dar-se alterações de personalidade. Belas perspectivas, disseste tu, e eu perguntei frontalmente se tinhas muito amor à tua. Questão de hábito, respondeste. Um doente, que antes da operação era pacífico, começava subitamente a atacar as enfermeiras. Vês, disseste tu, assim se poderia resolver o problema da passividade: implantando um eléctrodo em cada recém-nascido. Sim, repliquei, belo novo mundo. O córtex não é apenas responsável pelos movimentos voluntários; é lá que se localiza a maior parte dos centros associativos. Nos seres humanos é também responsável pelo conhecimento. Tentei imaginar instrumentos tão precisos e delicados - será que empregam metal no seu fabrico? - que pudessem estar à altura de uma tal tarefa: palpar o local onde se encontra o conhecimento.

O nosso solo não é apropriado para o cultivo de legumes. Terreno argiloso, duro, demasiado duro, quase impossível de lavrar depois de três dias sem chuva. No entanto tentei destorroar a terra com a enxada e o ancinho, dividindo-a em canteiros, nos quais poderia fazer sulcos com um sacho, nem muito profundos nem muito superficiais, onde espalharia as sementes redondinhas e castanhas das azedas, para a sopa de azedas, as sementes escuras e esguias da alface frisada e as dos espinafres; todos estes afazeres, que fui realizando enervada e cuidadosamente, foram acompanhados de um praguejar a meia voz, que durou até que dele me apercebi, e detendo-me, me perguntei em voz alta: Porquê?

Porque até com a vontade de comer espinafres e saladas eles conseguiram acabar, aí está porquê.

Quem Eles.

 

Aquele resto de terreno por baixo da macieira será para agriões. "Necessitam de vários cuidados para que as vitaminas A, C, e E, assim como o iodo, conservem toda a sua ri queza". De repente perguntei a mim mesma se, por acaso, os homens que manuseavam aquelas técnicas em cuja essência havia um perigo de destruição quase apocalíptico, alguma vez na vida tinham enterrado na terra sementinhas tão diminutas que ficam coladas na ponta de um dedo, para mais tarde as verem rebentar e seguirem durante semanas, meses a fio, o crescimento da planta. Mas logo tomei consciência do meu erro de raciocínio: cada um de nós já tinha lido ou ouvido algures que preci samente os técnicos e cientistas, cujo trabalho exigia uma grande concentração, procuravam frequentemente relaxar-se fazendo jardinagem. Ou será que esta tese apenas é válida para os mais velhos, estando ultrapassada quando se trata dos mais novos, aqueles que agora têm o poder de decisão nas mãos? Tomei a decisão de elaborar uma lista das actividades e prazeres que os homens da ciência e da técnica provavelmente desconheciam. Com que objectivo? Para dizer a verdade: não sei. Passou-me simplesmente pela cabeça que talvez as várias partes do nosso cérebro se influenciassem umas às outras, de tal forma que uma qualquer inibição de uma área específica impediria uma mulher, que durante meses amamentou o seu filho, de apoiar com palavras ou acções as tais técnicas modernas que poderiam vir a envenenar o seu leite.

Ando à volta da casa. Abri todas as janelas de par em par, não só para o calor poder entrar, mas também para estar certa de ouvir o telefone tocar. Os arbustos de groselhas e as cerejeiras que mandámos substituir este ano já estão floridos. Também a erva já está a nascer; o nosso desejo de ter um único e imenso relvado a cobrir todo o terreno vai finalmente concretizar-se. As malvas, junto à parede da casa, deram um grande salto, e até duas dálias romperam a superfície da terra com as pontinhas frágeis das suas folhas. Bravo, ouvi-me dizer. Bravo bravo. Por vossa culpa não será. Vocês fazem o que têm a fazer.

O céu irradiante. Já nem mesmo isto se pode pensar. Em virtude dos resultados da análise histológica, podemos dispensar o tratamento com radiações, dir-te-á o Professor, mas ainda é muito cedo para tal. Por agora ainda estamos na fase em que apenas podemos desejar ardentemente desfechos felizes como este.

Era demasiado cedo para o telefonema de que estava à espera, e no entanto corri para dentro de casa quando ouvi a campainha retinir. Reconheci a voz feminina, embora não falemos muitas vezes ao telefone. Queria apenas ouvir a minha voz.

- Foi uma boa ideia, a sua. - Se eu por acaso sabia que ela gostava de mim. - Tinha-o desejado; e calculado, de resto

- Então eu já o sabia. - Sim, e era uma coisa que me dava alegria. - Este era um daqueles dias. "Reacção em cadeia" era uma expressão que desde a infância lhe causara calafrios.

- Quando a expressão apareceu, eu já não era propriamente uma criança. A propósito, o meu irmão estava a ser operado hoje. - Ah. Ela nem sequer sabia que eu tinha um irmão. Algo grave? Então era melhor ela desligar e deixar a linha livre.

Revi-a no seu quarto, que se ia estreitando à medida que os livros e manuscritos iam aumentando, magra, contraída, os seus movimentos controlados. Os trajectos bizarros que ideias e palavras percorriam no seu cérebro, antes de, cada um no seu lugar, contudo ainda bizarros, se transformarem em escrita. A sua velha secretária. A janela que dava para um pátio interior em Berlim. Pensei que a amabilidade sempre me tinha ajudado a compreender os outros, o que nem sempre acontecia quando se tratava desta amiga. Se calhar, disse ela, devia esforçar-se mais para se fazer entender. Era também uma espécie de autodefesa, não se deixar compreender. Avisei-a do perigo que representavam tais confissões para a apreciação da literatura.

Não há lugar para comoções, muito menos num dia como hoje.

 

Acabou-se o brilho do planeta, não? disse a minha amiga. A frase arrastou-se até às folhas pousadas em cima da minha secretária, da qual experimentei aproximar-me, pensando nos invejáveis colegas de corporação, que - com a morte, o declínio, a destruição e ameaças de várias espécies a escoltá-losseguiam, imperturbáveis e convictos, a linha que um dia tinham traçado e de que nada nem ninguém os afastaria, possessos como estavam para atingir o seu objectivo; e a distância que nos separava desse objectivo seria sempre cada vez menor. Sentei-me na minha cadeira giratória, lancei um olhar sobre as folhas, lendo aqui e ali algumas frases ao acaso, para descobrir que me deixavam indiferente. Elas, ou eu, ou ambas nos tínhamos transformado, e lembrei-me de certos documentos, cujo verdadeiro conteúdo - numa escrita secreta - apenas aparece depois de sofrer um tratamento químico, enquanto o texto primitivo, intencionalmente insignificante, se revela então como um mero pretexto. Sob as radiações, vi desbotar a escrita das minhas próprias folhas, porventura até desaparecer, deixando apenas aberta a possibilidade do aparecimento de um outro texto, entre as linhas, que se concretizaria ou não. Uma nova experiência com uma forma negativa de liberdade: apercebi-me de que também existe a liberdade de recusar obediência, ainda que se trate da obediência a deveres que eu própria me tinha imposto. Pela primeira vez considerei possível que até esta espécie de deveres pudesse desaparecer, e tive consciência de que nenhum hábito seria tão forte que pudesse tomar o seu lugar. Ah, alegremente me deslocaria rumo a um objectivo que se mantivesse sempre à mesma distância.

Mas como poderia eu continuar, sem objectivo? Aliviada, se é que esta palavra tem cabimento aqui, concedi a mim própria um dia de férias. Hoje, nem uma palavra. Continuei sentada por mais um bocado, olhando para o relvado e

para a linha de sabugueiros, nas traseiras da casa, que nessa altura não tinha ainda atingido nem metade da densidade que teria 3 ou 4 semanas depois. A seguir levantei-me, saí, e comecei a arrancar ervas daninhas, com as mãos nuas. Primeiro arranquei as que encontrei por entre a relva e junto aos arbustos que foram plantados este ano e que corriam o risco de ficar atrofiados. Uma minúscula forsítia preparava-se para abrir. Absurdo, pensei, e ajudei-a a desabrochar. O meu pensamento voou de novo para essa minha amiga, o que me forçou a perguntar-me porque é que, por vezes, eu era tão reservada, fria até, com ela - sempre em ocasiões em que tenho motivo para pensar que me privou da sua simpatia. A queda, não só na insegurança, mas até na hostilidade, acontece sempre ou quase sempre através da perda da simpatia. Como é possível que a antipatia, a apatia tenham a força de transformar a imagem que outros fazem de nós. - À sombra, a relva continuava húmida do orvalho. Continuei a arrancar ervas daninhas como um autómato, e tal como um autómato o seu programa, tentei apagar os meus pensamentos. Ao escalracho, que crescendo a partir dos bordos do relvado tenta invadir o nosso terreno, disse: espera, que chegará a tua vez. E sei muito bem, de outras ocasiões, que tal espécie, quando se instala num terreno, é impossível de fazer desaparecer. Depois do sinal horário, ouvi no rádio mais pequeno que era aconselhável para as pessoas que tinham hoje absoluta necessidade de trabalhar a terra, fazê-lo com luvas e ouvi-me soltar um som que se assemelhava a um grito de triunfo de um louco, enquanto, com as mãos nuas, continuava furiosamente a arrancar ervas daninhas. Ainda queremos ver o que acontece, comentei. Será que nesta altura já tiveram ocasião de utilizar na tua cabeça, irmão, tripa de gato ou de carneiro, um material para coser que mais tarde desaparece por si próprio, não o sei, evidentemente, mas tenho fortes dúvidas. Era ainda muito cedo para pensar em tal, com certeza que o problema que se punha nessa ocasião, era, por exemplo, manter a ligação do córtex com a hipófise. O que de resto, antecipemo- nos, foi conseguido.

E apesar de tudo, proceder de uma forma radical, o que num caso como o teu apenas pode significar ter de desalojar o tumor que se tinha alojado muito muito perto da hipófise, a ferro e fogo, até que a sua última célula desapareça de uma vizinhança saudável. E nunca deixar de ter consciência, nem por um segundo, que cada milímetro quadrado desta zona é extremamente sensível. Que qualquer lesão causada pode ter como consequência aqueles temidos casos, cujas vítimas pudeste observar numa das enfermarias da clínica e sobre os quais apenas conversámos por meias palavras. Em vez de me pôr com considerações sobre o assunto, preferi precipitar-me sobre as urtigas porém, desta vez, com luvas de borracha a proteger as mãos. É uma satisfação indescritível agarrar com a mão direita um dos pés da urtiga, seguir com o dedo indicador da mão esquerda o percurso subterrâneo da sua raiz até encontrar um ponto propício, a partir do qual, com um gesto cuidadoso mas decisivo, se pode extrair da terra, em todo o seu comprimento, uma raiz profunda, robusta e cheia de ramificações. Isso é que

era bom! Tu já não fazes mais estragos. Enquanto ao mesmo tempo, sem palavras, numa camada profunda da minha consciência, assegurava a um qualquer deus das urtigas ou a um espírito da Natureza, responsável por um sector mais vasto, que não era intenção minha combater a totalidade das urtigas; que sabia muito bem que havia cinco espécies de borboletas que dependiam das urtigas como única fonte de alimento. E que essas borboletas podiam continuar a contar connosco para o seu sustento. Outra coisa completamente diferente era o que se passava com aquela planta, de que nem sequer sei o nome, uma erva viscosa e decidida, presa apenas por um fiozinho de raiz, a que não se atribuiria a tenacidade com que se firma na terra. As folhecas que produz poder-se-iam confundir com agulhas. Depois de no ano passado, pela primeira vez, ter aparecido naquela aberta entre os sabugueiros, parece este ano disposta a conquistar todos os canteiros por trás da casa, sobretudo aquele outeiro, cuja terra foi recentemente revolvida, e onde a erva recém-semeada ainda mal começou a nascer, ao contrário desta amaldiçoada erva, que se propaga desmesuradamente. Deixa, que se te ponho a mão, disse em voz alta. Ai, se te ponho a mão... Assim falava o meu avô por parte materna. Que venha o demo e te... Qual seria a imagem que o meu avô fazia do diabo? Deixa estar, disse para a tal erva, que hei-de acabar contigo. Prometo-te. Sem respeito algum pela sobrevivência das espécies.

Em Kiev estive uma vez na vida, precisamente em Maio.

Lembro casas brancas. Ruas a descer. Tudo muito verde, botões. O monumento aos mortos da Segunda Guerra Mundial na colina, sobre o Dniepre. Tudo isto difuso, misturado com imagens semelhantes de outras cidades. Difusa também a recordação de um amor, que nessa altura ainda devia ser recente. Um dia - e oxalá ele chegue depressa -, talvez apenas dentro de três ou quatro semanas, terá também a recordação da data de hoje perdido a sua nitidez. Inesquecível: a vista sobre o Dniepre, um rio que vem do Leste. A curva do rio. Na outra margem, a planície.

E o céu. Um céu como este, azul, tão límpido.

"... que as mães, alarmadas, pesquisem os céus, à procura das descobertas dos sábios..." Chegamos a esse ponto. Mas podem procurar à vontade, não vêem nada. Por si só, a dúvida que as consome faz com que a cor inocente do céu tome esta tonalidade venenosa. Um céu cruel. E assim as mães sentam-se em frente do rádio e esforçam-se por aprender as novas palavras. Becquerel. Esclarecimentos de cientistas que nenhuma veneração detém e que não só compreenderam os mecanismos de conservação da Natureza, como até os querem utilizar. Período de semitransformação aprendem hoje as mães. Iodo 131. Césio.

Esclarecimentos de outros cientistas que contestam o que disseram os anteriores; cientistas enfurecidos e impotentes. E tudo isto, em conjunto com os portadores das substâncias radioactivas, - chuva, por exemplo - desaba sobre nós e tu, irmão, que a mão segura do teu cirurgião te conserve a luz dos olhos, verás tão pouco como nós. Que lhe chamemos "nuvem", é apenas um sinal da nossa incapacidade de manter na evolução da língua o mesmo passo do progresso da ciência. Constantemente, o nosso centro de conhecimento - que devo situar, tal como o centro da fala, na metade esquerda do córtex, onde se reúnem as funções cognitivas adquiridas do homem - recebe novas informações, que compara com outras mais antigas, que já tinham sido recolhidas, e escolhe normalmente, para denominar um fenómeno, a designação que possui o maior número de características comuns idênticas às daquelas formas da matéria que desde há muito conhece. Assim me terias explicado o caso. Assim mo explicaste quando, há pouco tempo, me mostraste o novo programa que ti nhas introduzido no teu computador. Apercebi-me de quanto te agradava a sua obediência quando meteste a disquete. Viste? Compreendeu. Agora procura PH 1. Ready. Estás a ver isto? Está pronto. Carrego aqui neste botão. E ele encarrega-se de calcular como se espalham produtos provenientes de uma qualquer fonte à escolha, se essa fonte estiver situada 20 metros acima do solo. Imaginemos, por exemplo, uma chaminé. O produto pode ser, suponhamos, uma cortina de fumo que contenha derivados sulfurosos. Pronto. E para que possas ter uma ideia global numa só imagem: zakzakzakzak. O gráfico correspondente. É a vantagem deste sistema: também desenha. E agora podes observar a evolução: até uma altura de 200 metros, o fumo sobe a pique; depois, aqui, a queda. Tomando por altura convencional da chaminé 20 metros, a concentração máxima da substância nociva seria de esperar num raio de 200 metros em redor da fonte de procedência. E, logicamente, quanto mais alta for essa fonte de procedência, mais se alargaria à sua volta a zona onde a substância nociva se iria abater. Experimentemos com outros valores. Digamos, 30 metros de altura da fonte de procedência. Carregamos no botão. Ready. Zakzakzakzak. Os números. E mais um gráfico. Se faz favor. A curva do gráfico deslocou-se visivelmente. O que era de esperar. - Ou seja, querido irmão, se tivesses à beira da cama o teu computador, poderias calcular o rumo da nossa nuvem - pressupondo que te seriam fornecidos determinados valores, como sejam potência da fonte, altura do reactor, velocidade do vento, para com eles alimentares o teu computador. Mas esses valores não os tens.

Como é curioso que á-tomo em grego queira dizer a mesma coisa que in-di-viduum em latim: indivisível. Aqueles que inventaram estas palavras não conheciam nem a fissão nuclear, nem a esquizofrenia. De onde virá esta ânsia moderna de fragmentação em partes cada vez mais pequenas, de desagregação de partes da personalidade - quando a pessoa na Antiguidade era considerada indivisível -. Será que o cérebro, o único órgão humano - ao lado do coração e dos pulmões - que permanece activo mesmo durante o sono, fica realmente em descanso sob a anestesia? Será que pode, de facto, por algumas horas, parar de procurar incessantemente fontes de estímulo? Ou de ir buscar estímulos a fontes suplementares, caso os não encontre na sua vizinhança? Desperdiçar a sua imensa energia excedentária em problemas secundários: insondável, portanto uma maneira errada de pôr a questão. Nenhum cirurgião poderia perscrutar os cérebros daqueles homens que inventaram os processos da pretensa utilização pacífica da energia nuclear e penetrar até ao tal grupo sináptico que não lhes permite o descanso. Acalmar a sua excitação constante só era possível através precisamente do estudo dos problemas que o átomo indomável punha aos que o queriam domar. Suponho - apenas uma hipótese que formulo - que sem este objectivo não saberiam que fazer consigo próprios e estariam condenados a sofrer desmesuradamente sob a sua actividade cerebral supradesenvolvida.

 

Achar-me-ás injusta, irmão, e, como sabes, envergonho-me de o ser ou até de o parecer. Saberás também porquê? Porque tento, através da justiça contra outrem, desviar ou afastar de mim as injustiças dolorosas dos outros. Consentirei em acreditar-te - mas mais tarde, não hoje, hoje não - quando afirmas que esses homens, na sua perseguição ao pacífico átomo eram guiados por uma utopia: energia suficiente para todos, para sempre. Teriam podido conhecer a tempo o reverso da medalha? Quando estive envolvida pela primeira vez com os seus adversários? Foi no princípio dos anos setenta, a central nuclear chamava-se Wyhl, nunca chegou a ser construída. Os jovens, que nos passaram para as mãos os primeiros panfletos sobre os perigos da utilização "pacífica" da energia atómica, foram escarnecidos, regulamentados, repreendidos. Também pelos cientistas que tentavam defender o seu trabalho; a sua utopia, espero. "Monstros"? Mas terei eu dito que eles eram monstros? Será que as utopias do nosso tempo geram irremediavelmente monstros? Éramos nós monstros quando, por uma utopia que não queríamos adiar - igualdade, humanidade, justiça para todos - combatemos todos aqueles cujos interesses não permitiam (não permitem) a concretização dessa utopia e todos os que ousavam duvidare apesar das nossas próprias dúvidas - que os fins justificam os meios? Que a ciência, o novo Deus, nos traria todas as soluções que lhe pedíssemos? Estará a questão de novo errada? Terei eu, que desde há dias, semanas, giro em vão em torno desta interrogação - provavelmente mal formulada -, aproveitado de bom grado o pretexto que este dia me ofereceu para me es quivar do meu manuscrito encalhado em falsas questões, em aproximações tímidas, em insuficientes e, por isso mesmo, inúmeros começos. Procurando, ao mesmo tempo fugindo do ponto da dor mais aguda, eu devia saber, irmão, de onde vem este sentimento de se estar a ser dilacerado; compreender - meu Deus, sim, posso compreender, quando se tenta esquecer este sentimento até ao cosmos, ou até, precisamente, ao átomo. Lista das actividades que os homens da ciência e da técnica provavelmente não desempenham, ou que, se obrigados a exercer, considerariam uma perda de tempo: mudar as fraldas a um bebé. Cozinhar, ir às compras, com uma criança ao colo ou no carrinho. Lavar a roupa, estendê-la, apanhá-la, dobrá-la, passá-la a ferro, passajá-la. Varrer o chão, esfregá-lo, encerá-lo, aspirá-lo. Limpar o pó. Coser. Tricotar. Fazer crochet. Bordar. Lavar a loiça. Lavar a loiça. Lavar a loiça. Tratar de uma criança doente. Inventar histórias para lhe contar. Cantar canções. - E quantas destas actividades considero eu uma perda de tempo?

Li o seguinte: O homem, mesmo incompleto e imperfeito, pode ser definido como um ser activo que procura o seu máximo desenvolvimento. Eu - aquele eu que, para facilitar a reflexão, se costuma destacar de "mim" - senti-me imensamente cómica, de pé, na abertura entre os sabugueiros, a olhar uma vez mais, e ainda mais uma vez o panorama - a seara verde que em grandes ondas desliza para o mar - interiorizando essa imagem, na qual me poderia viciar, e perguntando-me: O que quer o homem. Eu, querido irmão, pensei: o homem quer experimentar sensações fortes e quer ser amado. Ponto. Cada um de nós sabe-o em segredo e quando não lhe é dado, não consegue, ou lhe fica vedado satisfazer essas suas ânsias profundas, então arranja - sim, nós! - então arranjamos satisfações substitutas e agarramo-nos a uma vida suplementar, um suplemento de vida; toda a monstruosa criação técnica, expandindo-se febrilmente, um substituto para o amor. Tudo aquilo a que chamamos progresso e em que também estou incluída, irmão, quer o queira ou não, não mais é do que um recurso para produzir sensações fortes ("...com a minha pesada máquina entre as pernas, sou muitíssimo mais importante que o banana do meu chefe...") - poder-se-á pôr a questão nestes termos: somos a última geração que acredita que as sensações fortes só podem ser despertas em nós por pessoas, tudo o resto é perverso e depravado mas o telefone tornou a tocar e eu corro quanto posso correr pela porta das traseiras para dentro de casa, através do corredor onde continua um frio de Inverno, passando do vestíbulo escuro para o salão, onde o aparelho, vermelho como um sinal, abençoado seja ele, está pousado em cima da arca de madeira; dele, quando finalmente encostei o auscultador à orelha, veio a voz da tua mulher, a minha cunhada, dizendo-me que ainda não havia notícias tuas. Ainda estavam a operar, tinha-lhe dito a enfermeira. Antes das 14 horas não estarias na enfermaria. Muito tempo, achámos ambas; 6 horas era muito tempo, e não nos perguntámos alto se esta longa duração da operação poderia ter um significado especial e qual, dissemos apenas o estritamente necessário, pois ambas tínhamos medo que uma palavra a mais pudesse rebentar um dique que não podia ceder ainda.

Saí de novo para o exterior pela varanda da frente, mas antes decidi inspeccionar rapidamente os vasos do parapeito das janelas e tive uma agradável surpresa: os rebentos da courgette já tinham começado a aparecer! Dezassete gérmenes em oito vasos.

Tomei-os um a um na mão, olhei longamente as folhinhas ainda enroladas, de um verde pálido; observei como cada rebento, com o cotovelo, por assim dizer, ou mais precisamente com o caule primeiro, surge da terra e só mais tarde, nos dias que se seguem, se endireita, desabrochando as folhas em cuja ponta está ainda preso o gérmen que se parece com uma pevide de abóbora e do qual se desenvolveu a planta - um processo que nunca serei capaz de compreender; que, segundo me parece, nenhum ser humano compreende. Porque é que dei tanta importância ao facto de os rebentos terem aparecido precisamente hoje? Diante de mim vi as plantinhas já mais crescidas, num canteiro ao sol, logo que o tempo estivesse favorável, impelindo as suas primeiras folhas e logo a seguir, num crescimento imparável, serpenteando os seus caules ásperos, entrelaçando-os com os das outras plantas. Vi as suas grandes flores de um amarelo luminoso. Os frutos: com a forma de pepinos, bem torneados, de um verde-escuro lustroso. As refeições ao ar livre, no centro das quais estariam as rodelas de courgette panadas, fritas e barradas com molho de alho. Sim. Haveria de novo um Verão. E todos juntos sentar-nos-íamos à grande mesa por trás da casa, que uma vez mais montaríamos com a velha porta pintada de verde-claro e dois cavaletes, sobre a qual eu estenderia a toalha de encerado azul florido, pondo uma pedra em cada um dos quatro cantos, a fazer peso contra o vento. Imediatamente, naquele preciso instante, tive de ir aos estábulos, certificar-me de que a porta e os cavaletes ainda lá estavam, não houve nesse momento nada mais importante para mim. No que tinha sido a capoeira encontrei um saco de turfa, que muito jeito me faria, mas nem sinal da porta. Foi na antiga estrebaria que encontrei tudo muito bem empilhado e encostado à parede: porta, cavaletes e, à frente, as bicicletas. As bicicletas! Desencostei uma delas, tive apenas que encher urn pouco o pneu da frente e empurrei-a para o exterior. Restava-me o tempo necessário para pedalar até à cooperativa antes que esta fechasse.

Na rua deserta da aldeia estava parada uma ambulância da Cruz Vermelha e eu supus que alguma das velhinhas que moravam nas antigas casas para os trabalhadores rurais tinha adoecido e que a tinham vindo buscar. Mas não estava ali ninguém a quem pudesse ter perguntado. Não seria com certeza a mãe da directora da cooperativa, apesar de já não sair da cama há semanas e ser a filha quem tratava dela; se tivesse acontecido alguma coisa, a vendedora tê-lo-ia sabido. Já no saco, contei as garrafas de leite que tinha encomendado e perguntei se também hoje todas as pessoas tinham vindo buscar leite. Claro, disse a vendedora, todas levavam o leite como sempre, que haveriam as pessoas de fazer. Era horrível, tudo isto que estava a acontecer, mas de qualquer maneira, nós é que não podíamos fazer nada. No fim de contas não se podia deixar de comer e de beber. O jovem Prochnow, que trabalha nos estábulos, entrou para comprar cerveja e olhou-me significativamente. Percebi o que queria dizer com aquele olhar. No Outono passado anunciou à mesa da nossa cozinha estar firmemente convencido de que havia extraterrestres, seres espirituais, que nos eram superiores em todos os sentidos e que tinham a Terra debaixo do seu controlo. Que deixariam a loucura da humanidade chegar até ao limite, mas que interviriam no último segundo, quando estivéssemos em vias de nos autodestruir. Naturalmente, nem o Fritz Prochnow sabia como, mas que o fariamdisso tinha ele a certeza absoluta. E desta vez, na cooperativa, afirmou - Está a ver Já nem precisamos de guerra nenhuma. Rebentamos com tudo, mesmo em tempo de paz. - E então? repliquei eu. - Espere só! respondeu o jovem Prochnow. Lê imensos livros sobre astronomia e futurologia, bem como todos os romances utópicos que consegue arranjar. Não se lhe pode dizer que a humanidade foi criada e condenada a ter a seu cargo todos os trabalhos do seu desenvolvimento, a suportar tudo aquilo que teve de suportar, para no fim ser ela própria a destruir-se. Que ninguém me venha com essa história, disse ele. Que acreditem aqueles que não têm filhos. Eu tenho três. Não posso acreditar.

Fiz o percurso de volta pela estrada, à sombra das velhas tílias, passando pela velhíssima igreja da aldeia, já desafectada ao culto; tive de segurar o guiador com força, a ambulância já tinha partido e eu perguntei-me se as convicções de Fritz Prochnow - todos somos seres comandados à distância, movendo-nos através de fios, que outros têm na mão - lhe facilitam a vida ou não. Na rua estavam paradas algumas mulheres de idade, parei uns instantes e soube que tinha sido o senhor Weiss quem tinha sido levado na ambulância. Tinham-no encontrado caído, inconsciente, não parecia estar nada bem. A minha bicicleta fez sozinha a curva para a fila das caixas do correio; quando a portinhola caiu ao chão, arrastou consigo meia dúzia de cartas; pelos jornais, no entanto, tive de puxar. Empurrei a bicicleta de novo para a estrada, dei uma vista de olhos aos remetentes das cartas. Dois deles despertaram-me uma certa curiosidade. Fiquei com a desagradável sensação de que, do ponto de vista técnico, um osso da cabeça, por exemplo, um frontal, caso se lhe queira cortar um segmento, não é tratado diferentemente de um pedaço de metal: aplica-se uma serra. E, com certeza, é também com uma bomba mecânica muito primitiva que se retira o líquido cérebro-espinal, que impediria a operação propriamente dita. Uma parte das dores de cabeça, que provavelmente aparecerão depois da operação, deve-se precisamente à falta desse líquido, que lentamente se irá formando de novo.

Mais uma vez, ou pelo menos assim me pareceu, a nossa época tinha arranjado um Antes e um Depois. Ocorreu-me que poderia descrever a minha vida como uma sucessão de tais cisões, como uma queda num escurecimento progressivo provocado por sombras cada vez mais densas. Ou, pelo contrário, como uma adaptação contínua a luzes cada vez mais intensas, a conhecimentos cada vez mais agudos, a uma sobriedade cada vez maior. Apesar de estar consciente de que não foi por acaso que tomei a senda que levava ao outeiro, de que não foi sem objectivo que deixei que os meus olhos vagueassem por sobre as manchas de trevos onde já apanhámos alguns exemplares de quatro folhas, soltei uma enorme exclamação de alegria ao ver um enorme trevo de quatro folhas. Só os encontro quando não há ninguém que os possa procurar para mim.

Como brilha esplendorosa a meus olhos a Natureza. Talvez não seja a pergunta mais urgente, o que faremos com as bibliotecas cheias de poemas à Natureza. Mas de qualquer maneira é uma pergunta, pensei para comigo. Apercebi-me de que estava exactamente no sítio que desde há uma semana procurava evitar, quando não estava propriamente ávida de trevos de quatro folhas. Desde que aquela família - pai, mãe, filho; e a mãe cresceu nesta mesma casa onde agora passamos o Verão - na semana passada atravessou o relvado e olhou em volta, como olham as pessoas que sabem o que procuram. Desde que essa mulher, hoje enfermeira, corpulenta, cabelo encaracolado por uma permanente, me contou o que se tinha passado aqui, neste preciso sítio onde eu me encontrava, no Verão de quarenta e cinco. - Pára de vez com isso, intrometeu-se o filho, comprido e desengonçado, mas a mãe não percebia porque se devia calar: - Aqui, a este mesmo lugar, tinham os russos vindo buscar-lhe o pai. Num automóvel militar, Karsten! Ele tinha ainda acariciado a cabeça do irmão mais novo e tinha dito: - Não devem chorar, em breve estarei aqui de novo, é com certeza um mal-entendido. No entanto não tinha voltado. Porque não? O que tinha ele feito? Nada, aí é que está. Não tinha feito nada, era apenas motorista. - Motorista da Gestapo, disse o rapaz, que tinha continuado a olhar aborrecido para o celeiro e que depois desta segunda intervenção se foi embora. Nessa altura intrometeu-se o homem, irónico: - Motorista, sim sim! E isso, Deus do céu, não era razão nenhuma. E foi atrás do rapaz. Mas a mulher ainda tinha de me contar como a sua mãe, que acabou por arrendar a terra, se matou a trabalhar, ano após ano, para sustentar os quatro filhos. E como depois, quando os filhos já crescidos a vinham visitar, ficava sentada lá em cima na varanda a vê- los partir e a acenar. Tal como eu o faço agora, quando alguém parte. Tal como agora, só consegui distinguir chegando-me mais perto, o nosso vizinho Heinrich Plaack: está sentado, na sua posição habitual, inclinado para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, respirando com difi culdade. Homem, dizia, só queria ter a chave da garagem para ir buscar umas batatas de semente. A ver se hoje ainda conseguimos deitar umas quantas à terra. O tempo está mesmo bom para isso. Homem, desde que não venha por aí chuva.

Não, disse eu, é melhor deixar isso para outro dia. A vida de Heinrich Plaack já dura há setenta anos e foi boa, pois foi uma vida de trabalhos e canseiras e não lhe ensinou a dizer nada que não seja aquilo que realmente pensa. E ele pensa que já tivemos chuva que sobre este ano, o solo já está profundamente humedecido, chega bem tanto para batatas como para as outras sementeiras. E eu, se não lhe dou razão, é apenas porque estou a pensar na tal nuvem, que tornando-se cada vez mais cruel, vai errando à procura de condições atmosféricas que lhe permitam chover-se até à exaustão. E até regiões que normalmente imploram chuva preferem agora continuar a sentir-lhe a falta. Que caia em cima de outros. Temos a postos, para uma emergência, guarda- chuvas, gabardinas, botas de borracha. Não deixaremos os nossos filhos ir à escola, caso chova amanhã ou depois de amanhã, nem sequer até à paragem do autocarro. Proibir-lhes-emos também cantar: Ó chuva miudinha / Que molhas a terra / Alegras as crianças / Alegras a erva.

Além do Deus que criou o mundo e que o governa, há, segundo a opinião de alguns dissidentes, um outro Deus, que não criou o mundo e que não o governa. Um Deus estranho, desconhecido. E como virei para ele o meu pensamento e as minhas forças aconteceu que o pude distinguir. Uma experiência de um segundo, que ninguém me convencerá a descrever por palavras. Só isto! Tanto quanto me lembro, o sentido da visão, o nosso principal sentido, não teve nada ou teve muito pouco a ver com o que aconteceu. Apesar de ter sentido que através de um esforço incrível, talvez dilacerante, poderia ter levado essa súbita força ou energia ou potência que me rodeava (uma atmosfera densa até aos limites da dor) a materializar-se: a mostrar o seu rosto. Não me arrisquei a esse esforço. Prontamente, pouco antes de se tornar insuportável, apressei-me a afastar esta tensão e fui invadida por um enorme medo. E alguma desilusão também. A verdade é que me fui abaixo. Não era ele que eu temia, o Antideus. Temia os meus próprios labirintos de onde um tal não-Ser poderia emergir! Não estamos condenados, irmão, a suportar todas as correntes eléctricas que aparecem esporadicamente no nosso cérebro de maneira incontrolável e a deixá-las fazer de nós aquilo que pretendem. Determinados tipos de reacção estão traçados no cérebro, como se se tratasse de arame farpado - é esta a imagem que usam os biólogos, sem tentar evitar a comparação desagradável que através dela nos sugerem. É evidente que seria muito pouco racional, e perder-se-ia demasiado tempo, se uma e a mesma reacção a um mesmo impulso tivesse de procurar de cada vez o seu caminho por entre a selva do cérebro. Um ser com um tal sistema nervoso teria poucas oportunidades de sobreviver. Mas certamente não será arame farpado aquilo que os operadores encontrarão no teu cérebro (onde vão, no entanto, deixar elementos metálicos: agrafos de ouro, com os quais fecharão os vasos sanguíneos que estiverem ainda a sangrar); encontrarão uma massa, que vista ao microscópio se reduziria a células neurónios e, com uma maior ampliação, poderiam encontrar as sinapses: assim se chamam as ligações entre os neurónios, cuja quantidade é maior do que a soma total das partículas elementares do universo. Este é, querido irmão, um dos poucos números que me conseguem impressionar. E precisamente no nosso cérebro: não se terá ido longe de mais, em nome do bem, numa evolução exagerada que ainda assim deve ter durado as suas centenas de milhar de anos? Apercebi-me de que o velho Plaack me falava, já há algum tempo, do seu cunhado, o homem que tinha sido motorista da Gestapo e que tinha morrido em 1945 num campo soviético perto daqui. Ou seja, deve ter sabido que a sua sobrinha me tinha contado o caso. Já tenho reparado várias vezes que o tempo de que ele necessita para falar de assuntos difíceis é muito mais longo do que aquele de que eu necessito. E que o leque de assuntos sobre os quais não falaria de maneira nenhuma deve ser bem maior do que o meu. - O meu cunhado não se apercebeu de nada de con denável, segredou-me ele. Se se tivesse apercebido de algo, ter-se-ia certamente afastado.

- Talvez tenha razão. Tentei imaginar esses automóveis conscientes, que sem condutores não poderiam ter conduzido, transportado, levado para algum lado, deportado. É isso exactamente, apeteceu-me dizer, mas acabei por ficar calada. Ficámos algum tempo em silêncio. Até que Heinrich Plaack declarou: - E agora até as nuvens eles querem meter ao barulhoE para te transmitir as informações mais importantes que tens vindo a perder durante o teu sono ou torpor: No sábado da semana passada, à uma hora e vinte e cinco minutos, hora local, houve um incêndio na casa das máquinas do quarto bloco de reactores. Para o de sencadear houve por certo uma simultaneidade de várias circunstâncias infelizes de carácter imprevisível. Aquilo que, segundo declarações dos físicos, poderia acontecer no máximo uma vez em cada 10 000 anos, aconteceu agora. Dez mil anos fundiram-se num só dia. A lei das probabilidades deu-nos a entender que quer ser levada a sério. Os físicos continuam a falar-nos numa língua para nós incompreensível. O que é um "fall-out de 15 Milirem por hora"? Quanto tempo teria eu, teria uma criança de um ano, um embrião no ventre da mãe, de lhes estar exposta para sofrer lesões irreversíveis? Cada tecnologia relativamente nova, ouvimos agora, exige primeiro as suas vítimas. Tentei preparar-me para a eventualidade de aparecerem no ecrã da televisão rostos de pessoas - apareceram de facto - que se esforçariam por esboçar um sorriso. Cujos cabelos teriam caído. Cujos médicos pronunciariam a palavra "corajoso". Um incêndio de grafite com que ninguém podia contar, ouviremos de novo, uma vez desencadeado, é especialmente difícil de apagar. Mas alguém teve de o fazer. Nesse dia, do qual ainda falo para que não o percas por completo, falou-se em dois mortos. Durante todo o dia uma associação de palavras não me saiu da cabeça: o núcleo incandescente. Neste momento, a dois mil quilómetros de distância de nós, há homens que cobrem com areia, betão e chumbo o núcleo in candescente dos nossos desejos proibidos. A palavra catástrofe só não é permitida na medida em que corremos o risco de que da catástrofe advenha a fatalidade. Parto do princípio de que conheces todos os significados possíveis do termo técnico GAU? Mais uma vez não tomei atenção ao encadeamento do diálogo, o velho Plaack tinha prosseguido com a sua narrativa. Teria eu alguma vez reparado que ele só tem um olho? Tive agora a ocasião de admirar em silêncio como um olho de vidro pode copiar com perfeição a cor natural do verdadeiro olho. A perda do olho salvou-lhe a vida. Às vezes tudo funciona ao contrário. Quando as coisas se puseram feias, por último, na frente leste, ele tinha tirado o seu olho de vidro, tinha-o metido no bolso e posto uma ligadura à volta da órbita vazia e assim parecia ferido com tal gravidade que cada comando mobilizado para entrar em acção o mandava para trás, para longe da frente de combate, e quanto mais suja estava a ligadura, mais favoráveis lhe eram as coisas.

- Se o teu olho direito te incomoda...

Heinrich Plaack foi o primeiro homem a falar-me da guerra e todas as vezes o torturava "como os nossos tinham sido". As coisas mais cruéis, disse ele, ninguém seria capaz de contar. Mas só um pequenino exemplo: em França, onde toda a gente tinha fugido antes da nossa chegada, as casas tinham ficado vazias com embrulhos e caixotes empacotados. Tiveram de abandonar tudo. E ele costuma confessar que sujo e esfarrapado como andava tinha uma vez entrado numa casa e pegado numa camisa e num par de meias lavadas. Tendo o cuidado de deixar todo o resto tal como o tinha encontrado, em ordem. Mas no dia seguinte quando lá voltou encontrou a casa como se os vândalos em pessoa tivessem passado por ali. Os seus camaradas tinham ido às arcas e aos caixotes. Tinham arrombado tudo, tinham arrastado pelo chão a roupa de cama limpa e passada a ferro, tinham-na pisado e para quê, para nada, só por arrogância e estupidez. E quando me apanhei a sós com o tenente, que era um sujeito sensato, disse-lhe: - Isto ainda acaba mal, meu tenente, foi isso que lhe disse, ao que ele tinha respondido: - Tens razão, Heinrich. Nenhum respeito por nada - não podia ter dado certo.

Não quero parecer insistente. Mas está quase a ser meio-dia e a minha pessoa não consegue imaginar o que pode uma boa equipa de especialistas estar a fazer com - ou melhor: na - tua cabeça durante todas estas horas, irmão. Sim, tenho de admitir que me inquieta um pouco o facto de tais pessoas, como todos os especialistas, não serem capazes de compartilhar connosco, os leigos, o horror sacrossanto das profundezas da sua profissão; ou seja, perderam na rotina inevitável do dia-a-dia a minha, a tua veneração tímida perante uma intervenção numa zona onde está decidido o nosso carácter. Quantas, que tipo de "mudanças" poderemos tolerar, em casos extremos, sem nos tornarmos estranhos a nós próprios? Se um dos cinco sentidos tem de ser sacrificado, então, qualquer pessoa o diria, que seja o do olfacto. Mas pude conservar-lhe o paladar, dir-te-á o Professor, e não poderás saber se num momento determinado ele teve de tomar uma decisão, por ti e no teu lugar, entre, por exemplo, o paladar e a visão. O paladar? Não na totalidade. Mas mesmo que no futuro certas qualidades de cerveja tenham um ligeiro gosto a sabão... À cerveja, querido irmão, pode-se renunciar.

 

E a que mais? De resto, parece que em pequenos animais o olfacto e o paladar estão associados. Pensa-se que os primeiros mamíferos apareceram há aproximadamente 200 milhões de anos desenvolvendo-se a partir dos répteis terapsídeos, que perderam a luta com outros répteis pelos nichos ecológicos e que ocuparam os nichos nocturnos que estavam relativamente desertos - um modo de existência que necessitava urgentemente dos sentidos do olfacto e da audição, e por isso os desenvolveu privilegiadamente. Alguns ramos da árvore genealógica dos vertebrados levaram a becos sem saída. Se o ramo que se foi desenvolvendo até ao homem também vai acabar num beco sem saída é uma pergunta que ainda não tem resposta. O homem aparece no holocénico. Adaptando as datas da evolução da vida na terra a uma escala de 24 horas, os vertebrados começam a sua evolução às 21. 30 e os primeiros hominídeos às 23 horas e 57 minutos. Mais ou menos dois segundos antes da meia-noite, irmão, o homem sobe pela primeira vez ao palco da vida. A inteligência será o factor decisivo da sua evolução. O homem inteli gente descobre processos de subjugar a natureza e os seus colegas de espécie. Procura romper, utilizando poderes conhecidos ou secretos, até pelo preço da autodestruição, as regras e as normas que ele próprio se impôs - de tal forma, deveria eu acrescentar aqui, ainda que esta ligação possa parecer forçada, que um homem como Heinrich Plaack, antigo trabalhador rural, depois lavrador de uma cooperativa agrícola, hoje reformado, no fim da sua vida, sentado atrás da balaustrada de pedra daquela que já foi em tempos a casa paroquial, de cotovelos apoiados nos joelhos, mãos caídas, cabeça inclinada, se vê forçado a perguntar-se: - O que é que se passa? O que se passa com algumas pessoas? É como se algumas pessoas, declarou ele, tivessem realmente bichos-carpinteiros que não as deixam em paz. Tinham um assim, lá na companhia, às vezes ainda se lembrava dele. Um gabarola. Um traste, isso sim. Sabe lá as patifarias de que ele foi capaz.

Não consegui levar o velho Plaack a guardar para si a sua his tória, apesar de ter pressentido até à raiz do cabelo que ele se preparava para aumentar a minha galeria interna dos horrores inesquecíveis com mais um exemplo: a história do jovem soldado russo que, vários dias depois dos outros elementos da sua unidade, sai dos pântanos esgotado e quase a gelar e que é obrigado pelo tal infame personagem da companhia, e antes de ir a pé para o campo de prisioneiros por trás das linhas, a tirar as botas. - Com 40 graus negativos, dizia Heinrich Plaack, já reparou bem no que isso significa? Tu, disse-lhe eu, pensa bem no que estás a fazer, ele não vai conseguir chegar ao campo. Mas o maldito limitou-se a encolher os ombros. E as botas nem sequer lhe serviam. Ainda te vais arrepender, disse-lhe eu. Esse dia vai chegar. E quando, uns quinze dias depois, estava deitado no chão, a berrar, com uma bala na barriga, aproximei-me dele: - Tù aí, vê se te calas. Pensa antes no russo e no que lhe fizeste. Ele apenas virou os olhos para cima e não se lhe ouviu mais nada. Lembrar-me-ei para sempre do olhar do jovem russo, do encolher de ombros do jovem alemão e de como estava estendido no chão e desviou o olhar para cima. Não, disse o velho Plaack, coisas assim nunca ninguém as poderá esquecer. Nunca. E quem disser que sim, mente.

O telefone. Corri para dentro. A amiga de há bocado. Queria saber notícias do meu irmão. Não sei ainda, respondi-lhe, continuam a operar. Ah!... Então era melhor ela desligar de novo, deixar a linha livre Às vezes, irmão, encontramo-nos em situações tão difusas que nem sequer sabemos sobre o que devemos reflectir. Fisiologicamente deve tratar-se de uma vibração em diversas partes do cérebro, suponho eu. Mantendo previdentemente pronta a actuar uma corrente de energia ainda sem direcção, que não se envolve directamente nos trilhos de uma rede já traçada mas, pelo contrário, vai tacteando terrenos inexplorados, antes de se ligar, por exemplo, a uma pergunta: - De onde virá este desejo de divisão, de desintegração, de fogo e de explosões?!

Proibiste-me a palavra desejo neste contexto. Desejo, desejo, disseste. De novo um conceito tão exagerado como partidário. A coisa é muito mais simples. Quando alguém começa a descobrir qualquer coisa. Ou a inventar. Ou a desenvolver: - Então é tarde de mais para parar. Quem andava atrás da divisão do átomo, por exemplo, já não podia interromper as suas experiências. Como os ratos, replicara eu, que sem interrupção carregavam na tecla do desejo. Mas esta tinha sido precisamente a minha pergunta. Onde fica o centro do desejo no cérebro desses cientistas?

 

Aparentemente nunca chegaria a perceber na sua totalidade essa "comichão" que tinha levado um punhado de cientistas sobredotados, há cerca de meio século, numa outra era, a continuar, a ir cada vez mais longe. Que de outro modo "outros" o teriam feito - um bem fraco argumento. - Visto de uma perspectiva actual! disseste tu. Não estás a considerar o tempo de que precisaram para efectivamente perceberem o que tinham descoberto. Certamente não acreditas que um dia se reuniram e tomaram a firme resolução: Agora tratamos de descobrir a divisão do átomo! Ou ainda a bomba atómica - Mas mais tarde tomaram essa resolução, sim, dissera eu. Mais tarde tinha havido uma guerra, respondeste-me. - Precisamente! dissera eu, ao que tu me respondeste que não me devia exaltar. Devia, de preferência, tentar pensar na primeira pessoa: - Seria eu capaz de me deter? Não lhe tinha eu uma vez dito que as palavras podiam ferir e até destruir como projécteis? Saberia eu ponderar em todas as ocasiões - estaria eu disposta a ponderar, quando as minhas palavras se tornavam golpes, talvez destrutivos? Que grau de destruição seria necessário para me fazer recuar? Não dizer aquilo que poderia ter dito? Preferir o silêncio?

Foi esse o ponto de viragem do dia.

Depois de um momento do qual não me consigo lembrar encontrei-me de novo na cozinha, arrumando estupidamente no armário a loiça que estava a escorrer. Como se estivesse fora de mim mesma a assistir à cena, vi-me pegar numa das chávenas de cerâmica, por onde tanto gostamos de tomar chá, tomar-lhe o peso na mão, como quem pega em dados antes de os atirar. Arrumei-a no seu lugar no armário, atirando-a quase, sem no entanto a partir, agarrei nos talheres da salada, feitos em madeira de oliveira, e com um arremeso preciso e rigorosamente calculado lancei-os para um canto da cozinha. Vi-me apanhá-los do chão e de novo lançá-los com toda a força para o canto. E outra vez. E mais outra. Assim. E assim. E assim. Vou mostrar-vos como é. Já estou tão farta de vocês! Tão farta. Farta.

Olhei-me com alívio. A raiva, o ódio no meu rosto desfigurado. Pela última vez apanhei os talheres da salada e examinei-os. Um dos dentes do garfo tinha uma falha. Não faz mal. Impassível, arrumei os talheres, que há tempos, no sul de França, tinha escolhido cuidadosamente de um cesto enorme, cheio de talheres de madeira de oliveira, na sua gaveta. Deixei- me cair na cadeira da cozinha. No que diz respeito a sintomas de cisão também eu teria algo a dizer. Lágrimas? - Nervos, irmão, o que quer que seja que isso quer dizer. Só nervos. Que esta maldita nuvem se desfaça em chuva, que desapareça, ou sei lá bem o quê. Que os teus malditos médicos te deixem finalmente em paz. Que tudo torne a ser como era dantes"O sinal para aqueles que pregarem em meu nome: levantarão serpentes com as mãos e, ainda que bebam algo mortífero, nada lhes acontecerá."

(Será então já uma culpa, participação numa culpa, quando se diz aquilo que se pensa saber e - ainda que isso possa magoar - se sente prazer em fazê-lo? Porque se sabe? Porque se pode dizer? E silenciá-lo seria igualmente cruel? Em que espécie de sarilho, querido irmão, estamos afinal todos metidos?) "... e enquanto eles estavam ali parados", disse o homem do rádio, "ele foi elevado nos ares e uma nuvem levou-o ante os seus olhos para o céu. Os nossos conceitos de tempo e de espaço falham perante a realidade omnipresente de Deus. Este Cristo foi ter com o Pai. Isto significa que assumiu o poder. Os senhores da Terra vão-se, o Nosso Senhor vem. Jesus Cristo é o Senhor. Ele voltará. Ele transformará o mundo."

 

Óptimo, respondi ao rádio. Nem sequer era preciso dizê-lo tão distintamente. Ou seja, se a necessidade de poder e de subordinação nos é inerente desde muito cedo, de tal modo que precisamos de os tomar como princípio para a invenção dos nossos deuses; se (acrescentei para mim própria, passando em revista a minha vida) a partir do momento em que nos conseguimos libertar do dever da oração aos deuses, o substituímos por um dever de subordinação a homens, ideias, ídolos - onde está então, irmão, a evasão possível (marcada com setinhas brancas em fundo verde pelos corredores dos hotéis)? A saída de emergência? Céus, irmão, como eu estava cansada. As distracções possíveis tinham-se esgotado. Fiquei simplesmente sentada na cadeira da cozinha e fiz o que mais me custa fazer: esperar. Evidentemente que eu não podia adivinhar em qual dos muitos momentos de que é composta uma operação do género, e dos quais possivelmente nenhum é totalmente livre de perigo, foi tomada a decisão sobre o teu sentido do olfacto. No processo que dá origem aos cheiros está envolvido - além, logicamente, das células sensoriais situadas no nariz e que não serão afectadas - o córtex olfactivo. Dos três sentidos que funcionam à distância - a visão, a audição, o olfacto - dos tais répteis que viveram nos nichos nocturnos, o olfacto começou a perder importância quando, com a extinção dos répteis, os mamíferos começaram a alastrar e se tornaram animais terrestres diurnos. Como a evolução - diferentemente, por exemplo, a técnica - não destrói aquilo que tinha sido criado por selecção, mas pelo contrário o aproveita, deixou-nos, como um dos nossos três cérebros, o cérebro das serpentes e dos crocodilos. Os aspectos rituais e hierárquicos da nossa vida são fortemente influenciados por esse complexo que de certa maneira cumpre ainda no nosso cérebro algumas funções que herdámos dos dinossauros: comportamento agressivo, criação de territórios, de senvolvimento de estratos sociais são, em parte, da sua respon sabilidade. Numa fase posterior da evolução, quando aparece a noção de grupo fechado, o olfacto como meio de diferenciação tornar-se-á indispensável. (As abelhas matam na sua colmeia qualquer abelha estranha que reconhecem através do seu cheiro.) Há na população humana um determinado número de indivíduos para quem o cheiro como elemento que desencadeia ou intensifica a excitação sexual é mais importante do que para outros - por este processo é responsável o nosso segundo cérebro, o mamífero em nós, o sistema límbico cujos componentes são o córtex olfactivo e a hipófise; com as minhas reflexões e as minhas denominações aproximo-me do ponto crítico, irmão, aquilo que o teu operador tem diante dos olhos é para mim apenas visualizável através de um mapa anatómico do cérebro. Pensa-se ser nessa zona sensível que surgem as emoções fortes, as paixões arrebatadoras, as contradições dolorosas... Possivelmente a evolução não julgou ser necessário seleccionar mutantes humanos em que essa forte relação entre o sexo e o olfacto tivesse desaparecido. Mas é melhor não falarmos disso. O cheiro, irmão, se não me engano, é um dos sentidos que tende a desaparecer. Só passados dias lhe sentirás a falta e certamente a propósito de um motivo perfeitamente banal: talvez quando o teu after-shave se tiver tornado inodoro. Antes disso, outras dores, bem mais palpáveis, terão desviado a tua atenção. As vias da tua estrutura de neurónios que estavam destinadas a operar com os cheiros, a desdobrá-los nas suas componentes e a iluminar pontos determinados do sistema de reconhecimento do teu neocórtex de forma a que este depois lhes desse nomes que tos identificavam "Violeta". Ou "Gás " - estas vias são agora improdutivas; o cirurgião dificilmente se poderá permitir um encolher de ombros, lamentando-o, se por acaso reparar que cortou a ligação entre o sistema olfactivo e o neocórtex. As tarefas melindrosas ainda estarão para vir, na zona da hipófise, onde a sua actuação terá de ser extremamente cuidadosa mas também extremamente radical. (A hipófise, a "glândula principal" que rege o sistema endócrino do homem.) Ele está consciente das consequências irreparáveis de qualquér lesão no tecido da hipófise, assim como está consciente das consequências de qualquer hesitação que deixe células cancerosas numa zona saudável.

 

Notei subitamente que tinha entrelaçado de tal maneira os dedos uns nos outros que dificilmente os podia separar e que as costas me doíam. Levantei-me de um pulo e comecei a fazer exercícios de relaxamento. Ao fazê-lo veio-me uma melodia à cabeça, à qual se juntaram passado pouco tempo três palavras ". que olhei longamente. " Não consegui lembrar-me do resto do texto, porque de todas as vezes havia uma pergunta que se impunha no meu pensamento: - Onde está o teu irmão Abel? - Quem o pergunta? Quem se põe, no meu palco interior, esta questão vital, esta questão essencial? Quem ousaria a pergunta oposta: - Devo eu ser o guarda do meu irmão?

Como se estivesse enraizada, fiquei parada no meio da cozinha e pela primeira vez apercebi-me que o segundo, quando se põe esta pergunta, não está a dissimular. Ele, de facto, não sabe a resposta. Não. Profundamente espantado, surpreendido, parado no meio do deserto, pergunta-se: - Devo eu ser o guarda do meu irmão? Isso seria uma novidade. E, caso a resposta fosse "Sim!", bastante inquietante. Poderá Caim depois disto continuar a agir como dantes? Ciumento, invejoso, revoltado de não ser o primogénito, ou seja, de não ter o amor exclusivo do pai e a sua materialização, a propriedade? É uma hora da tarde, irmão, que estarão a fazer contigo?

O telefone, nem um segundo antes. Ouço a mais importante de todas as palavras: normal. Mesmo normal, foi o que disse a enfermeira? A sério? Não precisamos de estar preocupados?

A operação correu bem? Ah, enfim. Eu já sabia. Tu também. Claro que ele ainda não está acordado. Isso é o mínimo, não achas? Encontravas-te, irmão, tão bem quanto as circunstâncias o permitiam, segundo me disseram. E eu estaria disposta a abençoar as circunstâncias.

 

         era uma nuvem, que olhei longamente

         era muito branca e ia muito alta

           e quanto olhei para cima, já não estava lá...

 

E agora vou arranjar algo para comer. Já posso ouvir o rádio. Na Suécia a carga radioactiva do ar começou a diminuir. Em contrapartida a do solo aumentou.

Mas primeiro tive que telefonar à minha amiga. Disse-lhe exactamente aquilo que tinha acabado de saber sobre o meu irmão. - Ah, bem, disse ela. Ainda bem. Vocês estão muito ligados um ao outro, não é? - Ele é precisamente o meu oposto, respondi eu. Somos de facto bastante íntimos. - Perguntou-me o que tencionava eu agora fazer com as minhas colheitas e respondi-lhe - Se eu o soubesse - Teremos todos de nos tornar peritos em períodos de vida médios, disse ela. - Tens por exemplo alguma ideia de qual será o tempo de vida médio do césio? Ou do estrôncio? - Por certo ainda nos transmitirão todas essas informações. Ao que parece há nuclídeos que precisam de centenas de milhar de anos para o seu maldito período de vida médio. - E ela comentou: - Obsceno, não achas? E riu daquela maneira descontrolada que por vezes tanto me irrita nela. Pouco a pouco, disse-lhe então, começo a perceber até a sua maneira de rir. - Não será a realidade que provoca este meu riso? perguntou ela. - Mais ou menos, respondi. - Pois, disse ela, agora já não podem alegar que conseguem controlar todo e qualquer problema. Talvez afinal tudo isto tenha o seu lado positivo, não? Já que de qualquer maneira nos habituámos a inverter a maneira de pensar. - Respondi-lhe que no lugar dela não estaria assim tão segura. Pelos motivos mais variados, a crença de que para tudo há uma resposta da técnica acaba sempre por ressurgir. - Sim, replicou ela. A propósito, não notaria eu também que algo em mim esperava com uma certa lascívia estas más notícias, hora a hora? Uma maldade obscura, dirigida contra nós próprios? - Infelizmente também isso eu compreendia, respondi-lhe. - Ora vejam só, exclamou ela. Afinal já somos duas. Ou seja, talvez devêssemos analisar toda a questão sob o ponto de vista da nossa própria culpa. - É pedir, um

pouco de mais, disse eu. - Co-responsabilidade? propôs ela.

- Tu o disseste, repliquei.

 

             mas esta nuvem desabrochou

             apenas um instante

             e quando a olhei

           já desaparecera com o vento.

 

Oxalá. Oxalá dure apenas um instante, pensei, apesar da canção ainda ser do tempo em que as nuvens eram "brancas", feitas de vapor de água condensado e poesia. Agora, pensei eu, enquanto ia tirando a pele às batatas cozidas, podia esperar-se com curiosidade o primeiro poeta que ousaria de novo cantar uma nuvem branca. Uma nuvem invisível, de uma substância totalmente diferente, tinha conseguido cativar os nossos sentimentos - sentimentos totalmente diferentes. E tinha atirado com a nuvem branca da poesia para o arquivo, pensei com essa tal maldade. Tinha conseguido, do dia para a noite, quebrar este e quase todo o encanto.

Batatas salteadas. Ovo estrelado. Salada. Leite. "As comidas simples são as melhores." Por fim, meu querido, a tua voz também se intromete. Precisaremos de um dia e de uma noite para falar de tudo o que aconteceu durante esta semana. Não te esconderei que a altura escolhida para te afastarem de mim foi muito desfavorável. Segundo ouço, a emissão de partículas radioactivas depois do acidente nuclear é mais concentrada no local onde agora te encontras do que aqui, onde eu estou. Devia tal facto revoltar-nos? Desassossegar-nos? Devemos deixar que confundam os nossos sentimentos; devemos deixar, o que seria pior, que os reprimam por serem insignificantes? Insignificantes, medidos pelos valores de um contador Geiger? Já sei o que vais dizer. Não o digas. Já decidi que a partir de amanhã reduzirei a quantidade de leite e evitarei a verdura. Hoje proponho-me mais uma vez comer e beber tudo o que me apetecer sem sinais de remorsos. A minha instância interior, que se manifesta cada vez mais frequentemente, começou, espontaneamente, a calcular em que idade iria eu sofrer as consequências das refeições destes dias, caso estas refeições contenham substâncias radioactivas, cujo tempo de vida médio... Neste ponto, o calculador pertinaz em mim começou a apresentar-me valores variáveis e eu ouvi a minha própria gargalhada irónica. Trinta anos? Ah, meu caro! E achas verdadeiramente que é com tais valores que vais conseguir assustar-me? A vantagem, hoje em dia, de se ter uma certa idade. Ora sê honesta: querias ter agora vinte anos? Dez? A manifestação interior do horror! Não, de maneira nenhuma Como resultado do teste, isto bastou ao meu inimigo interior. Deixou-me comer em paz, lavar a loiça. Ouvi pelo rádio que eram treze horas e quarenta e cinco minutos. Vi-me de pé, parada na cozinha, com o pano da loiça na mão e ouvi-me cantar bem alto. O hino à alegria. Penetramos, ébrios de deleite, ó Divina, no teu reino. O que quer dizer isto agora, perguntei-me perplexa. Alegria! Alegria! E como de outra maneira não poderia ter explicado este sinal vindo das camadas profundas da minha consciência, decidi perguntar-te mais tarde, irmão, a que horas, neste dia, que então se terá tornado passado, tinhas acordado da anestesia. Treze horas e quarenta e cinco minutos? dirás. Espera. Sim, é perfeitamente possível. Pode acontecer. Muito longe, de contornos indefinidos, apercebeste-te do rosto do teu médico sobre ti e com certeza quase lhe subiram os pulmões à garganta antes que tu pudesses perceber a sua pergunta: - Vê-me? Consegue ver-me? E como tu, apesar de todos os esforços, não conseguiste responder, até que te ocorreu abrir e fechar os olhos em sinal afirmativo. Ele vê, terás ouvido. Vejo, terás murmurado, um murmúrio muito rouco ainda, porque o tubo, que por causa da anestesia te tiveram que introduzir na traqueia, deixa feridas as cordas vocais; mas recompor-se-ão. Sim, poderás dizer de maneira cada vez mais nítida e por fim tão alto que até eu, ao telefone, amanhã mesmo, me poderei aperceber das tuas palavras: - Consigo ver. E durante dias a palavra "ver", nos seus amplos e múltiplos sentidos, estará presente em nós.

Um dia. Um dia como mil anos. Mil anos são como um dia. Como o saberiam os antigos? Esses pequeninos pedaços de matéria à solta obrigam-nos a lidar com mais cuidado com os pequeninos pedaços de tempo. Meu Deus, como estou cansada, ouvi-me dizer a mim própria. Tenho de me deitar um bocado. Já nem sequer quis ouvir que as primeiras evacuações das localidades à volta do reactor acidentado já tinham começado no sábado de manhã e dentro de poucas horas deveriam ser dadas por concluídas. Imagens que eu não quis ainda ter de imaginar nesse dia. "Evacuação" é uma dessas palavras, irmão, que durante toda a nossa vida não conseguiremos separar das nossas próprias vivências. Sequências de imagens fundem- se com o processo evolutivo dos nossos sentimentos e gravam-se na memória, passam a fazer parte das nossas trajectórias cerebrais. Tentei então, já deitada, libertar-me da visão teimosa do teu corpo estendido, de cabeça atada, esses tubos ligados às tuas veias. Tão-pouco quis imaginar as dores que com certeza sentes; a tua sede. Revi a tua cabeça rapada diante de mim, quando ainda era quase uma criança, uma imagem inesquecível, naquele hospital da pequena cidade do Mecklemburgo onde estivemos os dois e onde os dois perdemos o cabelo depois do tifo.

Agora quero dormir. Quero distrair- me, ou seja, ler. Da cama, olhei em volta e descobri que o livro que num dia como este eu teria querido ler não estava ainda escrito. Quem estabelece, fui forçada a pensar, a zona de perigo num raio de precisamente trinta quilómetros? Porquê trinta? Porquê sempre estes números redondos e pares? Porque não vinte e nove? Ou trinta e três? Será isto uma confissão de que a nossa operação não dá conta certa? Que a normalidade e a anormalidade não se orientam segundo o nosso sistema decimal? Excepto nesta zona ime diatamente circundante, não há um perigo real. E quem decide quanto tempo podem as pessoas estar sujeitas a este perigo real? Ou devem? Ou têm de? Quem estabelece, irmão, as fronteiras do perigo em que somos obrigados a viver?

Tudo o que poderia ter pensado ou sentido ultrapassaria as margens da prosa.

Não podemos escrever tal como o nosso cérebro trabalha. Quando quer que eu tenha começado a habituar-me à perda que parece ser inevitável no caminho que vai do cérebro, pelo sistema nervoso, até à mão que escreve - nesse dia a consciência dessa perda reapareceu, mais aguda. Perda de espontaneidade, de plenitude, de precisão, de rigor e de mais uma série de qualidades que não sei denominar, que talvez nem sequer adivinhe. Consegui imaginar circunstâncias que também me deixariam indiferente perante esta espécie de perda, porque pareceria insignificante, medidas pelas vítimas que então nos poderiam ser pedidas.

 

Desejei poder desligar a minha fantasia. Aqueles que sobre nós e sobre si próprios atraem os perigos, pensei, têm de possuir esta capacidade. Ou não têm necessidade de desligar nada; terão eles, em vez dos pressentimentos que nos perseguem, um ponto cego nos seus cérebros? Talvez ele não seja localizável como os centros do apetite, do equilíbrio, da regulação da temperatura, da circulação sanguínea, da respiração. O tal ponto cego não seria estimulável nem sequer através de choques eléctricos, como um certo neurologista chamado Penfield activava vestígios de memória na aracnóide dos seus doentes, fazendo-a ser atravessada por uma corrente eléctrica. Sons. Cores. Um cheiro vindo do passado. Uma composição para orquestra com todas as suas subtilezas... Assim se poderia, pensei para minha angústia (como somos maleáveis, irmão), facultar a seres humanos durante um período determinado - vinte anos? Vinte e cinco? - uma vida normal, sim, uma vida humanamente até bastante rica, com o único objectivo de preencher "até ao limite" a sua capacidade de memorização. Depois estes seres seriam transferidos ou reconduzidos ao destino que afinal lhes tinha estado sempre reservado: uma existência vazia numa qualquer instalação, uma estação subterrânea de mísseis, uma nave espacial. E um especialista ligá-los-ia nos intervalos concedidos à tal corrente da memória. Amor. Ódio. Sucesso. Fracasso. Ternura. Conflitos. A beleza da Natureza - tudo isto eles reviveriam, tão intensamente quanto possível, mais uma vez, e mais outra. Nunca seriam vítimas da sua "verdadeira" e terrivelmente monótona existência. O desejo, antes morrer do que continuar uma vida assim, nunca chegaria a apoderar-se deles. O seu cérebro ter-se-ia, pelas costas (como a linguagem por vezes pode ser tão inadequada), aliado contra eles com os seus manipuladores. Como objectos da mais deplorável espécie teriam deste género, irmão, seriam as fantasias que me proibiria terminantemente se tivesse meios para as transformar em realidades. Deveria eu não as pronunciar, nem sequer pensar?

Haverá no nosso século apenas uma parede finíssima como um sopro entre uma fantasia da técnica que imaginamos e a sua realização?

Mas não são desta espécie os pecados pelos quais nos poderíamos, me poderia repreender. Não foi de mais, antes de menos, o que dissemos, e esse pouco demasiado tarde, demasiado timidamente. E porquê? Razões banais. Por incerteza.

Por receio. Por falta de esperança. E tão estranha quanto esta afirmação possa parecer também por esperança. Esperança ilusória que acarreta o mesmo resultado que um desespero paralisador.

A ligação entre a morte e a invenção nunca nos abandonou desde os tempos em que começou a agricultura, leio. Caim, lavrador e inventor? O fundador da civilização. É difícil de contestar a hipótese de que o próprio homem, através da luta

contra o seu semelhante, através do extermínio de grupos inferiores, foi o instrumento decisivo da selecção que favoreceu um rápido desenvolvimento dos cérebros? Serão aqueles mutantes, cujas agressões se dirigiam sem entraves contra os seus semelhantes (mutantes seleccionados nas demais espécies animais como desfavoráveis), o factor que no caso do "rei dos animais" - relativamente superior aos seus inimigos pela sua inteligência - conduz a uma evolução contínua? Causando a morte dentro da própria espécie para evitar a sobrepopulação? Morte limitada, biologicamente suportável? Assim se teria tornado o homem no seu próprio inimigo?

Pus o livro de lado e agarrei noutro, um número de uma revista. Dentro, um artigo que alguém me tinha aconselhado, não sem ao mesmo tempo me ter criado um certo receio do mesmo. Um alguém que nem sequer está aqui, onde, precisamente hoje, devia estar; alguém que em vez disso se expõe, em regiões longínquas, às radiações, por acaso - supostamente - mais intensas, mais uma prova de que hoje em dia até as separações mais curtas devem ser evitadas. Esse alguém com quem fiquei obviamente furiosa, a quem no entanto não quis telefonar, para que a minha voz, que não poderia disfarçar de modo a que não se apercebesse imediatamente das suas subtonalidades, não o preocupasse. (Quatro vezes "não" numa frase.) Era o que ele conseguia, fazendo com que eu neste momento, desprotegida e ainda furiosa, lesse este artigo sozinha, levada por uma triste coragem ou por um acesso de masoquismo, pois o seu título, já bastante animador, rezava: Os cientistas da "Star Wars". Omedo do artigo confirmou-se imediatamente acertado e alargou-se rapidamente aos muito jovens cientistas de que falava e a que chamava, na sua língua materna "starwarriors". Uma palavra que despertou em mim uma reacção que pude ainda ignorar. Homens supradotados e muito jovens que - receio bem que levados pela hiperactividade de determinados centros do seu cérebro - não tinham vendido a alma ao Diabo (ah, irmão, o bom velho Diabo! Quem nos dera.) mas à fascinação por um problema técnico. Só a pouco e pouco, à medida que a leitura do artigo me ia facultando uma imagem da vida desses homens, é que me fui apercebendo que as minhas fantasias, que há pouco me tinha proibido, há muito tinham sido ultrapassadas pela realidade: estes seres humanos eram criaturas isoladas numa estação de investigação, sem mulheres, sem filhos, sem amigos, sem outros prazeres que não fossem os do seu próprio trabalho, submetidos a medidas rigorosas de segurança e de sigilo; mas eles não precisavam de uma vida alternativa proporcionada por uma memória obtida por corrente eléctrica. Que ingénua eu ainda era! Tudo o que eles afinal de contas precisavam era de uma pseudo-ligação que absorvia a sua vida sentimental. Mas por favor, sem problemas, no problem. Para que servem os computadores? Quando lá chegam, ao seu laboratório da guerra das estrelas em Livermore (recuso-me a expressão "são transportados para"), já são com certeza casos perdidos. Li que não conhecem pai nem mãe. Nem irmão, nem irmã. Nem mulher, nem filho (ali não há mulheres, meu querido irmão! Será este factor sufocante o motivo do amor ao computador destes jovens? Ou a sua consequência?). O que eles conhecem, estas quase crianças com cérebros superiormente treinados, cuja metade esquerda não descansa, noite e dia trabalhando febrilmente – o que eles conhecem é a sua máquina. O seu querido e adorado computador. Ao qual estão ligados, amarrados como só um escravo à sua galera. Alimentação: sandes de manteiga de amendoim. Hamburgers com molho de tomate. Coca-cola a sair do frigorífico. O que eles conhecem é o seu objectivo: construir um raio laser, accionado a energia atómica, o ponto fulcral do sonho de uma América totalmente segura através da transferência de futuras batalhas com armas nucleares para o espaço.

- (O que são eles: legítimos herdeiros daquele cientista possesso pela procura da verdade, um mito que todos conhecemos?

Ou os seus ilegítimos seguidores que sem direito o invocam?

Será a obsessão um defeito? A vida "comum" um valor em si? )

O sinal em mim foi-se tornando mais persistente, a revista foi-me escorregando das mãos. De onde me vinha este sentimento

de que já conhecia tudo isto de que aqui se falava? Starwar-Wors. Star wars. Guerra das Estrelas... Claro! Um dia, há quase exactamente três anos, tínhamos estado numa sala de cinema

superlotada a poucas milhas do tal Livermore National Laboratory, na costa ocidental dos Estados Unidos, em Berkeley, Califórnia, e vimos, primeiro com um espanto embaraçado, depois com uma angústia crescente a terceira parte de "Star Wars", " cujo título em breve me ocorreria, desde que não pensasse nele com demasiada insistência. Pensei primeiro na jovem mulher negra que estava sentada exactamente atrás de mim e que como toda a sala participava freneticamente na batalha espacial dos bons guerreiros brancos do espaço contra os maus, os negros. Como se a estivesse a ouvir agora, recordava a sua voz, estridente, num dos pontos altos da acção - Kill him Kill him – e pensei: as armas utilizadas no filme eram armas de raios e imaginei que o realizador dos filmes, que naturalmente se tornou riquíssimo ("The return of the Jedi", sim, assim se chamava o nosso filme), se devia ter aconselhado com os starwarriors de Livermore ou estes com os cineastas e todos eles com os políticos... E compreendi: - Não é o fantasma "Segurança", não; é antes o redemoinho da morte, a criação do nada, que congrega alguns dos melhores cérebros da América.

O Fausto do relato, ao qual voltei como que debaixo de pressão, chamava-se Peter Hagelstein e não Frankenstein. Margarida: Josie - Josephine Stein. Peter é corredor, nadador, toca piano e flauta, gosta de literatura francesa, sofre de insónia e depressões e não se sente satisfeito com o dia-a-dia. Trabalha catorze, quinze horas por dia, "sete dias na semana". O seu objectivo, conseguir com a descoberta de um raio laser para fins científicos o prémio Nobel, tomara um novo rumo em Livermore. De facto Hagelstein-Fausto detesta bombas. Josie-Margarida apoia este ódio de forma decisiva. Ela começa a juntar-se aos manifestantes que aparecem às portas de Livermore. Hagelstein-Fausto num estado de extremo cansaço e descontrolo deixa escapar uma referência a uma ideia verdadeiramente genial: com uma única bomba accionar dois dispositivos diferentes para gerar um raio laser. Forçam-no então, através de pressões políticas, a realizar cálculos detalhados. Embora ele não queira. Josie protesta. Separa-se de Peter. A experiência, que se revelou superior às outras, teve lugar em 1980. E em 1983 tínhamos estado sentados, sem conhecimento de nada, numa sala de cinema.

Um Fausto que procura a fama e não o saber. Uma Margarida que em vez de ser destruída por ele o quer salvar. Sobre a nova variante de Fausto / Margarida reflectiria mais tarde.

Senti em mim, como já tinha sentido em ocasiões diferentes, uma sensação de frio com tendência para ir alastrando. Não conheço nenhum remédio para as pessoas que no seu íntimo têm sede de morte. As ratazanas. Mais uma vez a imagem das ratazanas que foram ensinadas a estimular o seu centro de desejo exercendo pressão sobre uma tecla. Ficam presas à tecla.

Carregam, carregam, carregam. Mesmo sob o perigo de morrerem de fome, de sede: mesmo ameaçadas de extinção.

Em que cruzamento foi possível enganar-se no rumo a evolução do ser humano, para que tenhamos satisfação e prazer associados ao impulso de destruição. Ou, perguntando de outro modo, que medo isola esses jovens cientistas tão radicalmente na sua concha, que lhes faz tanto pavor naquilo a que nós, as pessoas normais, chamamos "vida". Um medo que deve ser tão imenso que preferem libertar o átomo a libertar-se a si próprios... O meu sono inquieto continuou a incidir sobre o problema da minha própria responsabilidade, girando à volta do ponto cego que as minhas palavras, por mais que se esforcem, não querem conhecer. Não devem conhecer. Sonhaste, irmão, no teu primeiro sono depois da operação, que caías, caías, caías - uma queda de muito alto e aparentemente interminável. E que depois não te desintegraste no momento do embate com o solo mas que aterraste suavemente num fardo de palha. Assim se instalou em nós profundamente, e herdado dos nossos antepassados, os primatas que viviam nas árvores, o medo de cair. É o nosso primeiro medo de crianças, irmão, o verdadeiro medo, e que ele se tenha manifestado em ti espontaneamente e nesse preciso dia não é difícil de entender. Eu, pelo contrário, estive em sonhos com os nossos avós, num quarto estreito em que quase só havia velhas camas de madeira; sentada com a nossa avó Marie num canto da cama, passei-lhe o braço por cima dos ombros, pois aparentemente o seu marido, o nosso avô Gottlieb, tinha acabado de morrer; mas ela não parecia muito triste (na "realidade" ela morreu antes dele) e de alguma maneira esse avô agora morto estava de novo presente, os nossos dois outros avós estavam sentados à nossa frente e falámos de como a pensão de reforma do avô Gottlieb tinha sido alta nos últimos tempos e a avó Marie disse muito calma: a pensão máxima cento e trinta marcos. Eu fiquei muito triste mas a atmosfera no quarto era pacífica, familiar, apesar de os nossos avós maternos e paternos na realidade nunca terem estado muito próximos durante a vida e eu sabia-me protegida no seu seio, amparada e resguardada; também tive a sensação de que me queriam transmitir algum conhecimento e ao acordar pensei: querem dizer-me que todos nós temos que morrer e que podemos tomar consciência disso. Por um momento muito curto apercebi-me de que a nossa vida se encaminha rumo a estas verdades simples e senti- me agradecida aos meus avós e a todos os antepassados que antes de mim e deles tinham lutado pela vida, mas este sentimento desapareceu muito depressa e fui preparar o meu café da tarde, bebi-o, soube que até aí apenas havia a lamentar dois mortos, vítimas da catástrofe do reactor, ouvi as vozes que duvidavam de uma forma quase irónica deste número, e as outras que o achavam realista.

De repente tornou-se-me inadiável transplantar por fim as flores da paz japonesas, dos vasos em que as tinha deixado passar o Inverno para o canteiro. Geadas nocturnas já não seriam de esperar; juntamente com as sementes tinha-me sido distribuída a recomendação de que as plantinhas teriam de ser enrobustecidas e que depois vingariam também no nosso clima. Um soldado japonês tinha levado esta flor da guerra nipónica contra a Birmânia para a sua terra, tinha-a plantado como símbolo da paz e entretanto estava propagada por todo o Japão. Era de desejar que também se aclimatasse na Europa. Cuidadosamente dispus as sementinhas num espaço livre no canteiro das flores, consciente da minha responsabilidade nesta tentativa. (Apenas uma delas resistiu até este frio Outono. Das suas sementes procuro conseguir descendência que, por seu lado, num ambiente propício, sobreviva ao Inverno. Uma actividade que não precisa de justificação) como também é óbvio, pelo menos assim o espero, que quaisquer profundezas do teu corpo, irmão, produzam agora sem cessar forças restabelecedoras para serem transportadas às regiões que mais delas necessitam. Não tem que ser só a cabeça, nem só a ferida que provavelmente agora já começa a doer, uma dor pulsante. Não creio que já penses. O centro em que o pensamento e a linguagem estão associados ainda deve estar mergulhado em trevas. Os centros de formação de sons que nos primatas sub-humanos se situam maioritariamente no núcleo cinzento do cérebro médio.

Senti de repente uma forte necessidade de movimento, voltei ao estábulo, peguei na bicicleta e, apesar de destreinada, pedalando energicamente para transpor pequena subida até ao transformador, notei com satisfação o bater do coração e o pulso acelerado e atirei-me como uma flecha à estreita estrada alcatroada que leva à aldeia vizinha. À direita e à esquerda, observei, até onde alcança o olhar, os campos estariam este ano cobertos de trigo e eu não me cansaria de ver as diferentes tonalidades dos grãos maduros; este dia que devia não só deixar para trás, que tinha de ir vivendo hora a hora, seria apenas recordação. No povoado vizinho só encontrei crianças na rua, gritaram-me qualquer coisa, não me voltei, é raro que um estranho de bicicleta passe por este sítio isolado. No mesmo momento em que passei pelo sinal que marca o fim da localidade, passou exactamente por cima de mim, pelo menos assim me pareceu, o primeiro caça a reactor, ultrapassando naquele momento a barreira do som; e como não sou capaz de me habituar a tal, assustei-me mais uma vez até ao mais íntimo do meu ser, abaixei-me e continuei a pedalar tão depressa quanto possível para alcançar a protecção do bosque, enquanto o esquadrão de caças do novo aeroporto, que não fica muito distante daqui, cumpria o seu programa de exercícios. Durante muito tempo resignei-me a que o medo dos aviões, que nos últimos dias de guerra desciam direitos a mim disparando as suas metralhadoras, não me abandonasse nunca; alcancei, molhada de suor, o perímetro do bosque, deixei a estrada e meti pelo caminho estreito e acidentado que exigiu toda a minha atenção até ao lugar onde, à direita, se encontra o nosso cromeleque. Deixei a bicicleta deitada ao lado do caminho e percorri os trinta, quarenta metros sobre o chão macio do bosque. Aí estavam as pedras. Nove menires primitivos, pontiagudos, em pé, dispostos em círculo por baixo de velhas faias - mais tarde, lá para o meio do Verão, quando a folhagem estivesse bastante espessa, ficariam numa penumbra verde; agora, que as folhas das faias apenas principiam a aparecer, sob uma luminosidade para mim desconhecida, ligeiramente filtrada. A razão por que sempre voltamos aqui, nos pomos na margem ou no centro do círculo marcado pelos menires, não nos é desconhecida: procuramos o segredo. Mesmo que estas pedras não tivessem sido colocadas aqui num passado remoto ("... no núcleo cinzento do cérebro médio..."), mas sim em séculos posteriores - isso não nos interessa. Queremos pensar que antepassados muito longínquos usaram precisamente estas pedras e a sua disposição nesta forma para a realização das suas cerimónias - sangrentas incruentas - com cujo auxílio firmavam a sua certeza da superioridade, da universalidade da sua raça. Face às nossas próprias cerimónias e construções de demarcação, de delimitação de fronteiras, deixámos de chamar bárbaras a estas. Os cérebros dos membros das tribos que aqui teriam dançado, investigado, sacrificado não eram mais primitivos que os nossos. Hoje em dia já ninguém imagina a transição para o homo sapiens como um salto. Ao longo de cerca de cem mil anos o tamanho do cérebro esteve totalmente desproporcionado com as realizações que lhe eram pedidas. Forçados pelo seu sistema nervoso supradesenvolvido e extremamente activo, estes homens primitivos, expulsos do reino animal, tiveram que transformar esta dificuldade numa vantagem: a obrigação de se fazerem Homem. "Jarro seco", chamam hoje as pessoas da região a este local, uma tradição do tempo dos mercadores que, percorrendo a velha estrada da rota do sal, passavam aqui perto rumo à Polónia e aqui descansavam: uma paragem seca, este jarro nunca se enchia!

O desenvolvimento do cérebro pode ter sido durante um longo período da pré-história tanto uma ajuda como um obstáculo para os antepassados do homo sapiens. Estas pedras, irmão, essas danças e cerimónias contribuíram para criar um substrato cultural, formas, com a ajuda das quais conseguiam perceber a sua existência como humanos. Nós dizemos costumes.

Reinava um silêncio imenso no local e fiquei ali parada, encostada ao maior dos menires, durante bastante tempo, abandonando-me às imagens que me passavam pelo espírito. O bosque cheirava intensamente a Primavera. Sabes que não se podem descrever os cheiros. Deve ter sido mais ou menos por esta altura que o médico-chefe se aproximou da tua cama e vendo-te acordado, te falou do decorrer da operação, que tu, no entanto, incapaz de te concentrares, não conseguiste assimilar. À sua pergunta repetida, insistente "Consegue ver-me?" obteve desta vez como resposta um nítido, embora ainda rouco "Sim!", o que pareceu satisfazê-lo, sim, aliviá-lo imenso; a ti, por teu turno, tranquilizou-te a sua afirmação tantas vezes repetida quantas as necessárias, até encontrar um acesso para que o teu sistema de informação, ainda indolente e trabalhando contrariado, a pudesse assimilar: retirámos todo o mal que havia, tanto quanto é humanamente possível medir. Só posso esperar que o perfume do bosque na Primavera esteja bem cimentado na tua memória. O que faz o meu filho / O que faz o meu corço... Avancei mais um bocado pelo bosque, procurando sinais de doenças nas árvores sem os encontrar. Que só possamos ter a opção de viver com a radioactividade ou com a extinção dos bosques levou-me, uma vez que falámos sobre isso, a afirmações exageradas, ou como tu achaste: a exceder-me. Afirmações sobre as alternativas incorrectas entre as quais somos obrigados a escolher. Então - ouvi-te dizer -, então também eu devia estar preparada para abdicar das minhas exigências de conforto. O que faz o meu filho / o que faz o meu corço / agora volto ainda duas vezes e depois nunca mais.

É então verdade? Foram os nossos próprios desejos que nos levaram a este ponto? Refugiou-se a enorme parte inactiva do nosso cérebro numa hiperactividade maníaco-destrutiva que cada vez mais e mais rapidamente, por fim - hoje - a uma velocidade estonteante, vai atirando cá para fora sempre novas fantasias, que nós, incapazes de nos travar, transformamos em alvos do nosso desejo e entregamos ao mundo das máquinas como objectivos de produção para que os realize?

O caminho de volta foi mais difícil de percorrer, tendo pela frente o vento que se tinha levantado durante a tarde. Do lado esquerdo pude ver uma manada de corças a pastar na sementeira de trigo. O que faz o meu filho o que faz o meu corço / agora volto ainda duas vezes e depois nunca mais. Por fim a minha memória descobriu de onde vêm estas palavras, quem as diz e de que maneira está esta recordação ligada aos acontecimentos destes dias. Tive de rir. Irmãozinho e irmãzinha. Quando éramos crianças este conto mergulhava-nos na mais profunda tristeza e no entanto queríamos sempre ouvi-lo mais uma vez. E, de cada vez, lá íamos nós, expulsos pela madrasta malvada de mão dada para o bosque, e as fontes de onde querias beber: - Irmãzinha, tenho tanta sede. Se soubesse de uma fonte ia lá e bebia. Acho que estou a ouvir uma... E as fontes avisavam-nos com uma voz sussurrante que eu te traduzia: irmãozinho, não bebas. Senão transformas-te num animal feroz e devoras- me. Aí começava a minha tristeza de partir o coração e tentava uma vez e outra fazer-te esquecer a sede, mas sabíamos ambos a continuação da história e não podíamos modificá-la. Tu ficavas completamente desvairado de sede e pedias tão insistentemente um golo de água que eu acabava por ceder e deixava-te, por entre choros e lamentos, beber da última fonte. Era a torneira da nossa cozinha e tu transformavas-te, tal como tínhamos sido avisados, num corço, o que já era bastante mau, mas ainda assim melhor do que se te tivesses transformado num tigre ou num lobo e me tivesses feito em pedaços. Eu punha-te, como no conto, uma fita à volta do pescoço e passeava-te por todo o apartamento, que era um espesso, um impenetrável bosque, e estávamos apavorados de medo, até que, debaixo da mesa, encontrávamos um tecto onde ficaríamos a viver em paz, irmãozinho e irmãzinha. Era uma fatalidade que uma pessoa só pudesse morrer de sede ou transformar-se num animal selvagem e eu muitas vezes te repreendi, irmãozinho, dizendo-te que eu, a tua irmãzinha, tinha podido controlar- me; que eu, apesar de tão sedenta como tu, não tinha obrigatoriamente de beber. Mas tu, tu tinhas de beber forçosamente e tinhas, apesar das minhas lágrimas e dos meus pedidos, de sair para o bosque no momento em que havia uma caçada e por isso também foste tu que trouxeste um príncipe estrangeiro até ao nosso esconderijo, com quem eu não queria casar, pois só te queria a ti, irmãozinho, mesmo que fosses um corço, e à noite, deitados sem dormir, perguntávamo-nos em voz baixa se não seria possível que a nossa mãe fosse na realidade uma madrasta e jurávamos jamais deixar alguém separar-nos, mas uma noite perguntaste-me se eu não seria a irmã falsa, que tinha impingido a madrasta má e ciumenta ao rei, sem que ele ou qualquer outra pessoa o tivesse notado e então tive de me socorrer da fórmula mais eficaz que conhecíamos e que reservávamos para as situações mais urgentes: - Que eu caia morta se não for a irmã verdadeira. E tu, irmãozinho, esperaste um bocadinho em silêncio e depois perguntaste cauteloso: - Caíste morta? e eu respondi, uma imensa tristeza no coração: - Não. - E ficou provado aquilo que nunca deveria ter necessitado de provas. O que faz o meu filho o que faz o meu corço... Ah, esta tendência precoce para o verso triste. Este medo precoce do lado cruel da nossa natureza de que nunca nos pudemos libertar de outro modo que não fosse através da morte e do homicídio. A irmã falsa foi conduzida ao bosque onde os animais selvagens a devoraram; a bruxa foi posta numa fogueira onde ardeu no meio de gritos dilacerantes. E quando ficou reduzida a cinzas, o corço transformou-se e retomou a sua forma humana. E assim a irmãzinha e o irmãozinho viveram juntos e felizes até ao fim dos seus dias.

O dia manteve-se sem mácula até ao último minuto. Quando voltei à aldeia, passando de novo pelo transformador, agora empurrando a bicicleta por não conseguir transpor a subida a pedalar, o Sol ainda tinha a altura de dois palmos sobre o horizonte, todos os contornos se tornavam com o anoitecer mais nítidos, as cores mais fortes. Antes de ter estado aqui ninguém pode conhecer as tonalidades possíveis do verde. Nas soleiras das casas da aldeia, à direita e à esquerda, estavam as velhas que ainda restavam, sentadas solitárias, as mãos artríticas pousadas no regaço, a cabeça caída, fitando um ponto no solo. Quase não responderam ao meu aceno. Estará a aldeia daqui a uns anos deserta?

Quando entrei no nosso terreno por entre as duas frondosas tílias, vi um pequeno grupo de pessoas de pé no relvado em frente à casa. Ao aproximar-me reparei que se tratava de uma família, pai, mãe e uma filha quase adulta. Pela maneira como eles olhavam à sua volta e se dirigiam para o jardim, soube que procuravam alguma coisa e tive de reprimir o desagrado que me causava a sua presença. Encostei a bicicleta à parede do está bulo e fui atrás deles pelo relvado. Se procuravam algo de concreto, perguntei-lhes; como que assustados, voltaram-se e o homem - que situei na casa dos cinquenta - explicou-me ligeiramente embaraçado que tinha outrora, em quarenta e cinco, vivido como refugiado com a mãe e a irmã num quarto daquela casa. Sim: devia ter sido nesta casa, repetiu com uma tonalidade interrogativa, como se eu lho pudesse confirmar: esta localização, ligeiramente mais elevada. As tílias. A escada de pedra com o corrimão dos dois lados e a varanda ao cimo. E a aldeia, aí ele tinha a certeza, a aldeia era esta. Ele era naquela altura apenas uma criança, mas certas coisas tinham-lhe ficado gravadas na memória e como moravam na costa, não muito longe daqui, tinham-se decidido por fim a vir mostrar tudo isto à filha. Mas para dizer a verdade ainda havia um outro motivo que o tinha trazido até aqui, é que ele tinha motivos para acreditar que a irmã mais nova tinha sido enterrada neste terreno, quando tinha morrido com o tifo. Tifo tinham tido todos naquela altura. - Sim, disse eu, é verdade. Já o sabia. E apesar de normalmente todo aquele que se refere ao tifo dos primeiros anos do pós-guerra poder contar a partir daí com a minha compreensão, algo neste homem provocava em mim uma certa aversão. O que lhe dava o direito de supor os ossos da sua irmã mais nova aqui no nosso terreno; porque é que mo tinha de dizer? Eu não estava absolutamente nada interessada em saber quem, embrulhado num lençol ou simplesmente enfiado numa caixa de cartão, talvez tivesse sido enterrado há quarenta anos; eu não queria saber que a irmã dele se chamava Anneliese, que só tinha três anos e que eles não tinham nada para lhe dar de comer, eu conheço estas histórias, também as vivi, tu, irmão, ficaste reduzido a ossos no hospital para doentes de tifo de H. para onde te mandaram depois de mim, quase não te consegui reconhecer quando finalmente fui capaz de percorrer os trinta passos que me separavam do teu quarto, por isso este homem de casaco verde-azeitona tem é que me deixar em paz com a sua irmã Anneliese, vim para aqui para poder dormir em paz, não preciso de descrições de meninas pequenas a morrer de fome. Não as queria ouvir de maneira nenhuma. Interrompi de um modo quase grosseiro o homem que a recordação de súbito emocionara, o que, aparentemente, era até para ele inesperado. Disse-lhe que o cemitério ficava tão perto, a pouco mais de cem metros, que era mais do que improvável que uma criança tivesse sido enterrada, não lá, mas num terreno particular do pároco. O homem ficou hesitante. Se a senhora acha, disse, e se ainda havia um pároco a quem pudesse perguntar. Não, respondi, a igreja ainda existe como monumento, mas já não funciona para o culto, o pároco era um rapaz novo que vivia numa aldeia vizinha, dificilmente encontraria alguém que o pudesse informar sobre o período de quarenta e cinco. Pensei que se de facto estivesse muito preocupado com a irmã não teria esperado quarenta anos, apercebendo-me simultaneamente que talvez se tivesse criado uma lacuna na vida daquele homem em que de repente reapareciam o rosto e o pequeno vulto da irmã morta de fome. Mas não o pude ajudar e o pequeno grupo de três pessoas afastou-se para meu alívio em direcção ao cemitério. Virei-me e, em contra-luz, pois o Sol já tinha escorregado para trás do telhado, vi a nossa casa, e o seu rosto, que até aí sempre me tinha parecido amigável, torcia-se agora numa careta. E, como me desabituei de dar crédito a humores momentâneos, atribuí esta horrível sensação ao esforço excessivo, a um cansaço psíquico e entrei em casa sem hesitar. Mas não consegui apagar este momento, mesmo sabendo desde há muito tempo que toda a pele pode romper e que dessas roturas podem sair monstros. Que as estruturas por trás das fachadas de vez em quando cedem; que pedaços inteiros de caminho parecem gostar de se despenhar diante de nós em abismos sem fundo.

Infelizmente, pensei, enquanto começava a andar de um lado para o outro dentro de casa, toda a minha primeira infância tinha sido orientada no sentido de implantar em mim a certeza de que o meu bem- estar físico e a marcha do mundo estão ligados de forma inequívoca e benévola, e se a pequena irmã, que no fundo talvez até esteja enterrada neste terreno que eu perscrutei com o olhar pelas janelas da casa, se tornou através da fome uma presa fácil do tifo, já eu nessa altura me tinha livrado do pior; a história reduzia-se a fragmentos dispersos e eu não sabia como se poderiam voltar a conjugar os fins, mas talvez por eu ser suficientemente crescida para poder trabalhar para leite e batatas, o tifo não encontrou um corpo desprovido de forças e não foi mortífero - tão-pouco o teu, irmão. Tivemos então, assim como algumas vezes antes e depois, sorte e, ainda que eu saiba que não se pode concluir daí que alguns seres têm direito a ter sorte, pareço às vezes ter tendência para acreditar que existe um direito à sorte que vem pela força do uso e por isso não te enganei quando te garanti que acreditava firmemente no êxito da tua operação. Não te enganei nem te disse a verdade total. Mas num ponto eram absolutamente verdadeiras a minha contestação apaixonada e a minha cólera, designadamente quando resolveste começar a afirmar que a tua vida já te tinha dado tudo aquilo que podia dar; que a partir de agora só repetições eram possíveis. Contra os meus próprios pensamentos mais íntimos, encolerizada e convencida, protestei veementemente - tal como agora protesto contra a esposa do homem do casaco verde-azeitona, que declarara ao sair: quem sabe o que foi poupado à tua irmã. A tal Anneliese, se de facto enterrada aqui, então provavelmente por baixo da nogueira, teria agora quarenta e quatro anos e principiei a imaginar-lhe uma vida enquanto contava os locais da casa onde havia gastos de energia, chegava à conclusão que eram de mais e começava a reflectir num método eficaz para reduzirmos substancialmente o consumo. O pequeno rádio que trazia comigo debaixo do braço funcionava a pilhas. Informou-me enquanto percorria o sótão, janela a janela, absorvendo aquelas imagens incomparáveis de que nunca me canso - informou-me de que, em Kiev, mães e avós tinham começado a abandonar a cidade com as crianças e pensei que essas crianças, apesar de tudo o que certamente lhes tinha sido contado sobre a guerra que, outrora, para elas num passado longínquo, tinha assolado a sua cidade, poderiam ter entretanto desenvolvido um sentimento de invulnerabilidade e que, agora, sem que ainda o soubessem, a vida de algumas delas - por um receio supersticioso mantive o número, mesmo em pensamento, tão baixo quanto possível - iria ser marcada pelas consequências de um acaso cego.

Porque não suportamos o facto de estarmos dependentes do acaso. Sentei-me à secretária para ler enfim as cartas daquela manhã, entre elas a carta de uma mulher de mais de oitenta anos que com a sua caligrafia gasta e antiquada me escreve de Londres e que eu tanto desejava encontrar ainda - um desejo que acalento em mim sem me deixar invadir demasiado pelas dúvidas que surgem à medida que a sua doença, que ambas chamamos "esgotamento", se vai prolongando. Medo da velhice? - tinha ela escrito, medo da diminuição da intensidade, da alegria de viver, da elasticidade? Tudo isso não passava de patetices. Muito mais racional era entregar-se ao ritmo de trabalho, de cansaço, de descanso e ter confiança nas nossas forças cuja própria natureza leva à renovação. Ao renascer.

Que palavra. Ouves-me, irmão: renascer. Sim, lembro-me ainda perfeitamente da época em que eu própria usava tais palavras e lhes associava um sentido. Uma curta e aguda dor nostálgica fez-me voltar ao espírito toda essa época e o abismo em que está mergulhada. Compreendi que em algum momento - talvez não de repente, talvez só hoje definitivamente - se romperam as amarras que prendiam a trama da nossa vida a certos cabos. Amarras a que não só se poderia chamar segurança mas também prisão. Aqueles que nos precederam estiveram sempre seguros por elas e ligados a elas; os nossos sucessores cortaram as amarras e vêem-se soltos, livres de fazer ou de deixar aquilo que lhes agrada. Nunca mais nos poderíamos deixar prender a esses laços, mas também, e ainda que fosse apenas por nostalgia, nunca estaríamos totalmente livres deles. O acaso de ser judia, escrevera a minha correspondente londrina, tinha-a obrigado sob Hitler a abandonar Berlim. Não tinha tomado esta decisão voluntariamente: ela, profundamente enraizada no seu círculo de trabalho e de amigos, tão ávida de proximidade, calor, aprovação. Imagine-se uma médica, uma psicóloga, num país onde se fala uma língua que não é a sua. E aconteceu aquilo que ela tinha previsto: nunca mais, em sítio algum se sentiu como na sua pátria. Mas desde então utilizou cada momento de vida até ao limite das suas forças, obrigando-se cada dois anos a encontrar uma nova área de investigação. E assim a desgraça que a tinha atirado para o exílio há mais de meio século, tinha acabado por se transformar, pouco a pouco, ao longo da sua longa vida, num dado positivo.

Ela, pensei, ela sozinha tinha transformado a desgraça. Veio-me de repente ao espírito que também poderia consultar o seu livro sobre a mão humana, na minha procura das raízes do nosso prazer de destruição, que se encontra tão à mão, na estante. As tuas mãos, irmão, conheço-as de cor, posso-as rever a cada instante. Tornar-se-ão mais magras agora e de uma maneira difícil de descrever, mais velhas, suponho. Creio conhecer o modo como estão pousadas em cima da coberta, a única maneira que tens de te dar a conhecer, pois a cabeça está ligada, doente, indefesa, impotente. Quantas vezes pusemos as nossas mãos lado a lado sobre uma folha de papel, tu a direita, eu a esquerda, e cada um com um lápis na mão que ficava livre, desenhávamos-lhes os contornos. As tuas mãos foram cres cendo gradualmente, aproximando-se do tamanho das minhas, mas os contornos mantiveram-se tão distintos que não é preciso ser-se perito para ler nelas os nossos diferentes caracteres e tendências.

A mão humana, encontrei no livro, desenvolve uma teia de linhas bastante características, que a distinguem, por exemplo, da mão dos antropoides. Revi, fascinada como da primeira vez, as imagens da mão do macaco, que não apresenta traços individuais, que é apenas marcada por um sulco que atravessa transversalmente a palma - uma contemplação que de novo me pôs melancólica, como se o macaco estivesse prisioneiro de uma tristeza quase humana por ter falhado a sua evolução. Como se em sinal dessa tristeza nos mostrasse a palma da Sua mão procurando implorante a nossa compreensão. É possível que também os hominídeos, ainda antes de saberem falar, se tenham dirigido a outros elementos da sua horda com as mãos erguidas em sinal de paz. Mas só com a ajuda da linguagem - que, quase imediatamente, ou seja, algumas centenas de milhares de anos mais tarde, completou estes gestos de ameaça e de humildade, nos libertou do elo com o instinto e, finalmente, nos deu a superioridade em relação aos animais - precisamente com o auxílio da linguagem, parecem ter-se diferenciado os elementos de uma horda dos membros da outra: aquele que falava diferentemente era o estranho, não era um homem, não estava sujeito ao tabu do homicídio. Este raciocínio é inoportuno. A linguagem que cria uma identidade também é um factor decisivo para o desaparecimento da inibição de matar membros da mesma espécie que falem diferentemente. A mesma linguagem que marca o salto para a existência plena como homem, abrindo a consciência, empurra o já consciente de volta para o incons ciente: "O brilhantismo dos nossos mais recentes progressos evo lucionais, as capacidades verbais do hemisfério esquerdo", escurecem assim, "como a luz do sol sob um céu estrelado, a nossa consciência para a função intuitiva do hemisfério direito, que nos nossos antepassados deve ter sido o instrumento principal para a percepção do mundo". O rosto duplo da linguagem...

Soube entretanto que a minha velha amiga londrina, minha colega de apelido (uma coincidência que nos pôs em contacto), morreu no preciso dia em que comecei a escrever sobre ela. Esgotada, por fim. E o meu desejo de a ver pelo menos uma vez, para sempre frustrado. Tenho diante de mim um dos seus primeiros livros, na tradução alemã. (Não se deve julgar inofensiva a barreira da língua, tinha-me ela uma vez escrito.) Leio de novo a descrição dos seus primeiros tempos de exílio em Ingla terra, o seu desespero mal disfarçado sobre a dificuldade de comunicação - um mal que o seu inglês cada vez mais correcto aparentemente não conseguia superar, pois estava situado algures para lá da barreira da linguagem; peguei no seu último livro, que me chegou às mãos no mesmo dia que a sua última carta, escrita em inglês, tal como a sua autobiografia, na qual deparei com a seguinte frase: "But in the social plight of our age we have to reconcile ourselves to half measures. We are forced to use our multiple personalities like players acting different plays. We have to hide our authentic Self under a mask, and act a part in order to come to terms with a stereotyped social code." ["Mas, no deplorável quadro social da nossa época, temos de nos reconciliar com as meias medidas. Somos forçados a usar as nossas múltiplas personalidades como actores, representando em várias peças. Temos de esconder o nosso autêntico Eu sob uma máscara e representar um papel para nos conciliarmos com um código social estereotipado." (Charlotte Wolff, "Hindsight", Londres, 1980)]

Será assim? Assim é, de facto. Ao escrever, irmão -já que mo perguntaste - temos cada vez mais que representar o papel do escritor e ao mesmo tempo, saindo do nosso papel, tirar as máscaras e deixar vislumbrar o nosso autêntico Eu - entre linhas que, quer queiramos quer não, obedecem ao código social. A maior parte das vezes somos cegos a este processo. Um dia como este, paradoxal nas suas consequências, obriga-nos, obriga- me a expor aspectos íntimos, pessoais, vencendo a minha própria relutância em fazê-lo.

No naior dos envelopes, o último que abri, encontrei textos seleccionados por mulheres suíças para um cartaz que assinalaria a passagem de mais um ano sobre a tragédia de Hiroxima. Mal me pude admirar que se tratasse de textos sobre o tema "a confusão criada pela língua", habituada como estou a que, em certas ocasiões urgentes, tudo pareça vir ao encontro do meu trabalho. "Em toda a Terra havia somente uma língua e empregavam-se as mesmas palavras"; li e tive a sensação de estar a ler aquele texto tão antigo pela primeira vez. "E os homens disseram: Vamos construir uma cidade e uma torre cuja extremidade atinja os céus..." Mas O SENHOR parece ser muito sensível ao cheiro da hybris. Sem demora desce à Terra e diz: "Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiaram desta maneira, coisa alguma os impedirá de futuro de realizarem todos os seus projectos." E dito isto, confundiu-lhes a linguagem, impedindo assim a construção da torre. Curiosamente, emprega, no caso do arrogante rei Nemrod, o mesmo método: também este, como sinal evidente da sua mania das grandezas, faz construir uma torre que já estava tão alta "que a argila e o tijolo demoravam um ano inteiro a chegar às mãos dos que trabalhavam lá em cima". Mas estes, enquanto trabalhavam, "disparavam flechas para o céu e as flechas caíam manchadas de sangue. Assim, disseram uns para os outros: Agora matámos tudo o que havia lá em cima. Mas tudo isto tinha sido assim decidido pelo SENHOR para os confundir e para os aniquilar da face da Terra. E fê-lo confundindo-lhes a linguagem de maneira a que um nunca mais compreendesse as palavras do outro." Que grande importância dá o SENHOR à linguagem. Como ele procura que a linguagem não se torne num instrumento dos seus súbditos para se voltarem contra ele. Nós, pelo contrário, percebemos todos a basic language, com cuja ajuda edificamos as nossas torres, pensei, mas não nos serve de nada; e todos conhecemos a voz técnica vinda de um aparelho, e contamos também quando ela envia para o céu - que também já não se chama céu, mas Cosmos - um outro aparelho, uma torre com propulsão a jacto: - Five - fourthree - two - one - ZERO! Só às vezes as torres se despenham com a sua carga sangrenta.

 

Este foi um desses dias em que me ocorreram todos os sinais que já tínhamos visto, sem os termos compreendido. Sentei-me e escrevi-te uma carta, irmão, com letras grandes para os teus olhos ainda enfraquecidos e empreguei palavras como "recomeço" e "renascer" e obriguei-me a acreditar nelas, apesar de me ter perguntado se era por obstinação que insistia em tais palavras ou se por incapacidade de me adaptar às novas circunstâncias ou se simplesmente achei oportuno fortalecer a tua vontade de te curares, mesmo que isso significasse iludir-te um pouco. A ligação entre a palavra ilusão - ou melhor "auto-ilusão" - e o "ponto cego" em torno do qual me movo em círculos cada vez mais pequenos, apareceu-me, fugaz mas primeiro exaninei as quatro ou cinco cartas restantes, que continham pedidos ou convites e respondi-lhes, aos últimos negativamente. E durante todo esse tempo nunca deixando de contemplar o exterior. Não queria perder o pôr do Sol; corri para o sótão quando ele ainda estava dois dedos acima do horizonte, fiquei a vê-lo pela janela do sótão dez ou quinze minutos, a descer, num jogo de cores só possível aos céus nórdicos e de que nunca me poderei fartar. Que o pôr do Sol ainda assim não me aborreceria quando cada vez mais daquilo que hoje me parece importante se tinha tornado indiferente ou sem significado (como tanto daquilo que há dez, e mais ainda, há vinte anos, era importante para mim e hoje já não me interessa), foi um pensamento que me consolou um pouco. De resto esse Sol, esfera vermelho-sangue da qual a terra parecia ir ao encontro, milímetro a milímetro, até que num pequeno ponto as suas margens se tocaram, era para mim nesse dia um astro muito distante, estranho e inacessível e não consegui perceber como tinha sido possível que se lhe tivessem dedicado poemas, ainda menos como tinha sido possível cantar: Amado sol da tarde / Como podes ser tão belo. Há meio século ouvia a minha avó cantar isto na cozinha. A contemplação desse astro, injustificadamente, fortaleceu naquela tarde a minha convicção de que estamos sozinhos no universo e que por mais alto ou mais longe que lancemos as nossas torres de foguetão e que mandemos as nossas sondas, nenhum sinal humano nos responderá. Para quê equipar as naves com esses distintivos espaciais em que se vê o esboço de um casal humano - o homem com a mão erguida numa saudação de paz - como mensagem enviada a seres semelhantes noutros planetas, quando aqueles que a inventaram e realizaram se tornaram incapazes de entrar na casa do seu vizinho e de lhe arrancar um gesto humano, um sorriso!

Quando uma lesão do cérebro afecta os centros da linguagem, também o resto da personalidade é atingido, a não ser que, como às vezes acontece, outras partes do cérebro assumam esta função. Agora podemos pensar tais frases livre e francamente, não é verdade, meu irmão? O número e o teor das frases possíveis aumenta de hora a hora desde que sei que vives que vais continuar a ser aquele que conhecemos. "Reduzido", ouço-te dizer, mas o que é que isso significa. Diminuído na capacidade de regularizar o stress, função que a um sinal da hipófise será assumida pelas glândulas supra-renais. O sinal não vem, as glândulas supra-renais não funcionam, a hormona falta, não podes, acima de um certo nível, regularizar situações de stress. Contudo este nível permite-te cinco horas diárias de concentração no teu trabalho. Quem é que o consegue? Não serão as nossas ambições exageradas ou mal orientadas? Não deverias agora aprender a descontrair-te, a deixar-te levar, a repousar; saborear o que se pode alcançar sem esforço. E não fustigar continuamente essas regiões do teu sistema nervoso, que talvez tenham querido dizer-te, através da doença, que as devias poupar um pouco.

Mas isso não é vida.

Não

Uma vida sem oito horas de trabalho intensivo por dia não é vida. Caso o rendimento médio não seja assegurado logo surgem palavras como "inválido". A linguagem entra no jogo, fornece prontamente conceitos e consolida assim um sentimento até aí apenas vago. Está dito, está cá fora, e como fugir depois de determinadas palavras? E mesmo que isto não fosse um problema para ti, irmão - passará agora a sê-lo. De forma que o teu horizonte, a tua área de experiência - tal como tento demonstrar- te mais e mais uma vez - também se alarga de certo modo. A regiões indesejadas, pode ser. A tua tarefa seria a partir de agora transformar as experiências indesejadas em aceites e por fim, quem sabe, em experiências desejadas...

Mas isso é de facto pedir de mais.

Enquanto levava as cartas ao marco ocorreu-me que as exigências insensatas parecem sempre relacionar-se com lacunas deixadas por oportunidades perdidas em zonas não vividas, que não é possível preencher com momentos vividos posteriormente. O que passou, passou: quanto mais velhos nos tornamos, mais aprendemos a respeitar e a temer a inexorabilidade do tempo. Pode-se tentar procurar uma justificação para o que se deixou de fazer, tal como, em vez disso - trabalhei, escrevi. Não serve de nada. A oportunidade perdida é rotulada como culpa e não pode ser remediada.

 

Estamos agora muito próximos do nosso ponto cego. - Seria, biologicamente, absolutamente necessário, não teria havido outra solução para a construção do olho humano senão equipá-lo com um ponto cego? Esse ponto diminuto da retina onde desemboca o nervo óptico, que conduz ao cérebro. Consolação rápida: o outro olho compensa essa falha mínima da nossa percepção. Mas quem ou o quê nos pode ajudar a eliminar essa lacuna da nossa percepção que advém da nossa maneira pessoal de estar no mundo, de nos afirmarmos e que temos irremediavelmente de ser nós a superar. Onde procurar consolo para este facto?

Fraternidade - uma palavra traiçoeira. Unidos fraternalmente, aliados fraternais, saudações de luta fraterna. Não queremos mais saber da luta cruel dos irmãos entre si. As lutas silenciosas e encarniçadas no nosso quarto de crianças. A irmã mais velha desloca o braço do irmão mais novo. Que vergonha inexprimível que filhos de uma só mãe não sintam um pelo outro um amor profundo. Se o braço ficar paralisado a culpa é tua. O pecado original. O crime original que só pode ser cometido por uma irmã ou por um irmão. Mãe e pai, por cujo amor a luta se inflama, retiram-se para trás de um tabu ainda mais impenetrável. O agradecimento eterno ao braço do irmão que nos faz o favor de não ficar paralisado. Desta vez ainda não. Por agora fica-se pelo aviso, aviso que devemos levar a sério. Aliviados, levamo-lo a sério. Atiramos as paixões, que nos incitaram à luta cruel e encarniçada com o irmão, para essa cratera dentro de nós que se revelou suficientemente cedo como cemitério para os insuportáveis sentimentos radioactivos. Mas de que pode servir-nos mantê-la constantemente debaixo de olho?

O ponto cego.

O coração das trevas.

Soa bem, mas algo em mim permanece insatisfeito. Perguntei-me onde poderia estar localizado, muito particularmente no meu cérebro, o tal ponto cego - caso fosse afinal localizável. A linguagem. Falar, formular, pronunciar. Não terá o centro do prazer supremo de estar localizado na vizinhança do ponto mais tenebroso? O cume ao lado da cratera? A linguagem. O falar. Vale a pena voltar ao tema. Sinto uma agitação febril nas margens indeterminadas da minha consciência. Apartir do momento em que uma espécie começa a falar, não poderá mais deixar de o fazer. A linguagem não pertence aos dons que se podem aceitar a título de experiência, levar à condição. Ela reprime muitos dos nossos instintos animais, aos quais não poderemos mais - nunca mais - recorrer; cortámos definitivamente com o reino animal; o recém-nascido que vem ao mundo munido de um conjunto de reflexos arcaicos, tem de o abandonar após algumas escassas semanas para se poder desenvolver normalmente, ou seja, segundo os padrões humanos.

Os lobos frontais do neocórtex tomaram o comando. Cultura é o seu produto. A linguagem, o meio para a sua transmissão, é a condição.

O que é que me incomoda afinal? Desconfiança, por certo, desconfiança de mim própria. O meu cérebro, por de mais sensível aos problemas da linguagem, deve precisamente através deste meio estar programado para os valores desta cultura. Talvez nem sequer me seja possível formular as perguntas que me conduziriam a respostas radicais. Zonas inteiras do meu mundo interior, existentes numa fase da minha vida anterior ao aparecimento da palavra, nessa altura talvez iluminadas por uma luminosidade ténue, devem ter sido empurradas para as trevas pela luz da linguagem. Não me recordo. Em algum ponto, ou em vários pontos, tivemos de assimilar selvajaria, irracionalidade, animalidade numa cultura que tinha afinal sido criada para domar o indomável. O réptil que há em nós agita a cauda. O animal selvagem cá dentro ruge. Com o rosto desfigurado atiramo-nos ao irmão e matamo-lo. Depois desejamos arrancar o cérebro da cabeça e procurar o ponto selvagem para o cauterizar. Corremos possuídos de uma fúria assassina porque o nosso cérebro está em brasa.

 

Levantar-se. Andar pela casa. Ir à cozinha, fazer algo com as mãos. Cortar pão. Picar salsa. Ficar parada no meio da cozinha, balançar os braços, andar com eles à roda como se fossem as pás de um moinho de vento. Saltar. Alguém lá fora chamou o meu nome. A senhora Umbreit, a mulher do pescador, estava diante da porta com um embrulho comprido na mão. - Gosta de enguias, não gosta? - Mas faça o favor de entrar! ("Peixe, o armazém radioactivo!") Sentámo-nos na cozinha. Aprendi até ao mais ínfimo pormenor como é que se cozinham enguias de escabeche e a senhora Umbreit alegrou-se imenso de não me ter contado ainda a história da sua queda nas escadas da cave, há cinco anos. Como se tinha sentido, caída lá no fundo, ainda se recordava como se fosse hoje. E depois: um ano inteiro no hospital! Cinco operações! Pude então compreender o seu andar por vezes ligeiramente inseguro, mas não, ainda não, como tinha podido casar com um pescador apesar da sua aversão ao peixe. É para onde dá a paixão. Mas preparar o peixe para o marido, isso tinha ela feito sempre, ele não se podia queixar, e até lhe sabia bem, sim senhora. Mas de alguns peixes, nem sequer o molho ela consegue provar, de resto, caça também não. Preconceitos.

Comecei então, depois de a senhora Umbreit ter saído, a cortar às postas as enguias, que estremeciam violentamente quando tocadas pela faca. Um dos bocados de enguia, sem cabeça, sem pele, saltou-me da mesa e começou a interpretar no chão uma dança grotesca. Um arrepio percorreu-me pelas costas acima até à raiz dos cabelos e declarei em voz alta: - São só os nervos - peguei num pano, agarrei com força cada uma das enguias e cortei-as. No fim mal conseguia separar os maxilares, com tanta força os tinha cerrado. Após o que, seguindo à letra as instruções da senhora Umbreit, acrescentei tanto vinagre à água da cozedura que quase me pareceu demasiado azeda, depois as cebolas - muitas -, louro, grãos de pimenta, sal e pus as enguias a arrefecer numa taça de porcelana. Toda a cozinha cheirava a vinagre e a peixe.

Tirei do frigorífico aquilo que tencionava comer ao jantar, coloquei tudo num tabuleiro e levei-o comigo para a sala, atravessando o corredor ainda tão frio, onde está pendurado o calendário, a data. Nunca serei capaz de expressar totalmente quais os sentimentos que me percorreram ao atravessar o corredor mergulhado numa penumbra esverdeada, ao ver aquela data. Valerá a pena, irmão, empregar toda uma vida a tentar exprimir-se cada vez com mais precisão, de uma maneira cada vez mais pessoal, inconfundível? Às vezes não me envergonho de tais perguntas retóricas, sobretudo quando não corro nenhum risco, pois tu sempre reagiste da mesma maneira e continuarás a fazê-lo, decidido a reencontrar a teimosia dos nossos tempos de criança para me justificar, a mim, as minhas obsessões - que no entanto te são alheias -, uma das poucas pessoas que não me deseja diferente do que sou.

(Quase cinco meses depois do dia que ainda continuo a descrever, alguém me chama a atenção para uma notícia que há algumas semanas atrás deve ter escapado à minha leitura: um ilustre e jovem cientista abandonou o centro de experiências nucleares de Livermore, depois de ter rescindido o contrato. Impossível encontrar o jornal. Telefono excitada para a redacção, uma das redactoras lembra- se da notícia, mas não do nome do cientista; promete que vai averiguar. No dia seguinte pelo telefone transmitem-me o nome exacto, aquele que eu não ousava sequer esperar Peter Hagelstein. - Não é possível exclamo. É sim, está aqui escrito, diz a jovem redactora. Deve estar surpreendida com a minha reacção. Houve alguém que conseguiu. Nada é definitivo. Tenho de reflectir de novo sobre o destino e as opções do moderno Fausto.)

 

O telefone de novo. A minha filha mais velha; pela voz adivinhei-lhe o cansaço. E no entanto assaltei-a com a pergunta: - Que pensas tu sobre o nosso ponto cego? - Ó mãe! - Perguntei- lhe se da sua resposta constariam as palavras "mentira vital". - Não necessariamente, respondeu-me, falaria antes de fenómenos como a nossa alma, a nossa percepção, que continuavam a ser para nós obscuros, porque nos seria demasiado doloroso olhá-los de frente. - Uma forma de defesa, concluí, e ela confirmou esta suspeita, uma defesa adquirida face ao conhecimento que temos de nós próprios e face aos ataques do exterior. Se ela ainda assim achava que se devia tentar penetrar no ponto cego, perguntei-lhe. - Na tua profissão? retorquiu. Sem sombra de dúvida. Mas não é uma coisa que se possa conseguir sozinho. - Enquanto continuava a falar com ela, comparei as suas certezas com as certezas que eu tinha na idade dela e perguntei-me se ela ainda poderia ou quereria reconhecer em mim uma tendência precoce para o radicalismo; entretanto fui-lhe perguntando onde é que ela via o limite para a possível experiência de desmontagem do nosso sistema de defesa e ela respondeu-me o que eu esperava: não havia limite, uma vez que se tivesse começado, a sério, um tal processo. - Depressões? disse eu. Perigo de suicídio? - Acabariam também por se revelar como uma estratégia defensiva, angustiante de facto, mas ainda assim mais suportável do que a tomada de consciência da nossa verdadeira impotência. Todavia, uma vez que se aceita este novo factor, a pressão depressiva diminui, a coragem para actuar aumenta - um processo por um lado doloroso, mas também animador e cativante. - Que Deus te ouça, minha filha, disse eu. - Vês, retorquiu ela, agora estás de novo na defensiva, e por mais consciente que eu estivesse nesse momento de que a procura de consolo não passa de uma forma de defesa, tive de contestar a sua afirmação e assim que pude desviei a sua atenção para os mecanismos de defesa de culturas inteiras. Isso não era da sua competência, disse ela, mas porque não há-de ser uma oportunidade para toda uma cultura quando, tanto quanto possível, uma grande parte dos seus membros se atrevem a olhar a própria verdade, sem medo, nos olhos? O que significaria não responsabilizar um inimigo externo pela ameaça, mas pelo contrário, reconhecê-lo onde na realidade se encontra, no nosso próprio interior. - Não será esta a mais utópica de todas as utopias? perguntei-me a mim, não a ela. Estávamos ainda a conversar sobre experiências com o medo (não serão os seus medos específicos que diferenciam as gerações mais do que tudo o resto?) quando a minha neta veio ao telefone. Sim, estava tudo O. K. disse ela. Se eu conhecia o "Prince". Um cão, perguntei imprudentemente e no mesmo momento apercebi-me que com isto estava de novo a confirmar a minha assombrosa falta de informação. Quando as violentas reacções se acalmaram do outro lado do fio, verificou-se que "Prince" era um cantor rock e que se parecia com o seu novo namorado.

- Não será antes o contrário, disse eu, mas ela fingiu não ouvir. Tinha conhecido Mike, o novo namorado, na semana anterior na discoteca: é um amor. - Loiro ou moreno? perguntei. - Moreno, claro. Os louros não contam. - Nunca se deve dizer desta água não beberei, disse-lhe eu e ouvi a minha mãe falar por mim; recordei-a, de pé, ao telefone com a sua neta, a minha filha mas menina, não é demasiado cedo para isso? Não repeti esta frase à minha neta, escutei os seus comentários inflamados sobre os vários professores, tendo sempre o cuidado de repartir a minha compreensão entre as duas partes, mas a minha neta não precisava de sentido de justiça, bastava-lhe estar segura das suas simpatias e antipatias.

Minha cara, desabafei contudo, quando a minha filha voltou a pegar no telefone. Agora tudo se passa um, dois anos mais cedo, não? - Eles têm pressa, na verdade, respondeu ela. Talvez algo lá por dentro lhes diga porquê. - Fatigante? perguntei-lhe, ao que ela retorquiu: Às vezes e eu fiz-lhe ver que a justiça compensatória necessita precisamente do espaço de toda uma geração para actuar. Depois quis saber do meu neto. Se ela tinha conseguido mantê-lo em casa estes dias. - Nem pensar, retorquiu. Todo o dia a vaguear lá fora de bicicleta. Mas davam-lhe um belo duche à chegada e se chovesse não sairia. Quanto ao resto, dedicava-se agora às questões fundamentais da existência. Hoje, por exemplo, sentado na retrete, perguntara ao pai através da porta: Papá, como é que uma porta tão grande consegue entrar no meu olho que é tão pequeno?

- Misericórdia exclamei. E depois - Naturalmente o pai fez-lhe um esboço exacto de como tudo se passava: a porta da casa de banho, o olho, onde os raios de luz se cruzam, o percurso através do nervo óptico para o centro de visão no cérebro. E que era do âmbito do cérebro devolver à pequeníssima imagem na consciência do receptor o tamanho normal da porta.

- E? Ele deu-se por satisfeito? - Parece que não o conheces! Sabes qual foi a resposta? "E como posso eu ter a certeza que o meu cérebro me transmite a imagem da porta no seu tamanho real? - Pois, disse eu, depois de uma curta pausa. A propósito: como podemos ter essa certeza? - Deixa-te de brincadeiras, repreendeu-me a minha filha mais velha e falámos ainda e como lhe era difícil depois de um longo e frio Inverno renunciar a comer a verdura que finalmente aparecia nas lojas. Também falámos de ti, irmão, e reparei que agora, após a operação, a minha filha me manifestava mais nitidamente os seus receios, baseados no seu conhecimento da especialidade, do que o fazia antes. Recuso-me a consentir que me poupem a certas coisas, mas reprimi o impulso, perguntei-me em que altura passavam a ser os filhos que poupavam os pais e ter-me-ia de boa vontade revoltado contra isso mais uma vez. E, repentinamente, perguntei à minha filha se ela ainda acreditava na nossa crença comum de outrora, o que está dito está ultrapassado, ou se entretanto a considerava uma superstição. Não obtive resposta e recordei- me que neste ponto específico nunca tínhamos compartilhado exactamente a mesma crença, apercebi-me de que ela já tinha ultrapassado este tipo de questões e não me queria assustar com os seus pontos de vista. Que também não podia acreditar que eu estivesse em condições de os aceitar realmente. Com um solavanco doloroso avancei mais um passo na sucessão das gerações, a sensação corporal de um fóssil propagou-se ainda mais em mim, o bom velho réptil abanou preguiçosamente a cauda no meu interior - ou seria antes uma espécie de golfinho?, pois à noite, ao beber o meu primeiro gole de vinho - à tua saúde, irmão! - abandono-me a toda a espécie de pensamentos, sinto, com um alívio por vezes malévolo, com um certo divertimento até, a minha autocensura desaparecer e por isso, precisamente com esse tal divertimento, entrego-me à fantasia, divago sobre a hipótese de os golfinhos - animais inteligentes, irmão, cujo volume cerebral, em relação ao volume do corpo, pouco menor é do que o nosso - poderem ter recusado, outrora e depois de uma madura reflexão, o dom da fala, que também lhes teria sido proposto, para poderem conservar a sua comunicação por assobios no campo dos ultra-sons, a sua existência brincalhona, o seu comportamento amigável. Pois (compreendi naquela noite, em que sentada no sofá mais confortável, à frente de uma mesa de campismo onde estava colocado o tabuleiro, fui vendo televisão, alternando constantemente os canais e comendo ao mesmo tempo), pois podemos virar-nos e voltar-nos para onde quisermos, podemo-nos pôr de cabeça para baixo, mas ser amigáveis, isso não sabemos. Aceitámos os presentes de deuses falsos e todos nós, cada um de nós, comemos a comida errada por pratos errados.

Mas que quer isto dizer, o que quer ainda dizer qualquer formulação, mesmo a mais conseguida, já se disse tanto, já se escreveu tanto que o cordão da náusea provocada pelas palavras é cada vez mais denso, nunca o teria pensado possível; querido irmão, por agora só to digo a ti, envelhecer significa: tudo aquilo que tu nunca terias julgado possível vai acontecendo e como poderia eu ter previsto que seriam as palavras primeiro e depois as minhas próprias palavras que me causariam nojo e que depressa tudo isto se pode transformar em nojo de nós próprios, também isto eu não teria imaginado, não é portanto verdade que quando se envelhece não aconteça nada de novo e quem procurou escapar antes só conseguiu, por muito forte que por vezes lhe tenha parecido a resistência, transpor a periferia, só agora está de facto diante da cidadela e nas horas mais negras e mais verdadeiras vê nela a sua própria figura e o terror impede-o de falar, um horror tão grande que não soltamos nem mais uma palavra, pois é possível que não haja vento no centro do ciclone, que apenas impere o silêncio (não a calma: o silên cio, a ausência de som), o polo negativo e o positivo passam a ser um só, "vergonha" pode ser uma bela palavra antiga e como são de invejar aqueles que por vergonha se puderam renovar, a quem é permitida uma purificação através do reconhecimento, mas já não é de renovação ou de purificação que se trata, trata-se do desmoronamento total e de nenhuma promessa e não procuraremos sequer uma certeza para o tempo que virá, excepto uma só a de que não há reparação possível mas - pergunta um resto de resistência - têm o prazer da escrita e a destruição de ser coincidentes? A área que circunda um escritor, quantas vezes a observei, a temi, por vezes contornei-a, por vezes não pude evitá-la, pois parece estar na natureza da própria coisa, na essência do vício da escrita, não tomar nada em consideração e a escrita como acto de intervenção, de que tanto se falou aprovativamente, atinge sempre pessoas, pessoas que através da sua descrição passam a ser vítimas, que se sentem obrigatoriamente observadas, trespassadas, rotuladas, incompreendidas, no pior dos casos traídas, mas sempre conservadas à distância, tudo em busca da expressão mais coriseguida e contra isto não conheço outra solução senão o silêncio, que remete o mal do exterior para o interior, ou seja, poupa-nos menos a nós do que aos outros, o que é por isso, de novo enganar-se a si próprio.

O círculo parece fechar-se, o gato mordeu o próprio rabo, senti uma enorme pressão no peito, mas a minha memória, por vezes também minha aliada, lançou-me dois versos de um poeta antigo e só precisei de trocar uma letra para poder saltar do cír culo:

Não te deves desculpar,

Deves só dizer como aconteceu!

Ah, o bom velho século dezanove. "Me" ou "te" - e aí está toda a diferença, numa só letra, pode-se de novo, pensei, não: deve-se de novo ver na linguagem um motivo de alegria. Deves só dizer como aconteceu. Saboreei particularmente o "só".

 

Nessa noite, em vários canais da televisão, mostraram pela primeira vez o esboço do reactor acidentado, um esquema que com o tempo se gravaria em nós como o símbolo do cogumelo atómico. Sentaram senhores em frente às câmaras que através do simples uso dos seus fatos cinzentos ou cinzento-azulados de bom corte, das gravatas a condizer, do seu corte de cabelo a condizer, da sua prudente escolha das palavras e o seu modo oficialmente acreditado de estar ali sentados, irradiavam um efeito tranquilizante - ao contrário de meia dúzia de jovens barbudos vestidos de pullover que pela sua linguagem excitada e o gesticular impetuoso mais despertavam a suspeita de terem tomado de assalto o microfone e pensei nas pessoas do campo, na gente trabalhadora e silenciosa dos dois países, cujos olhares se unificavam cada noite no écran e tornou-se-me óbvio: eles escutarão menos aqueles que estão vestidos de pullover do que os senhores dos fatos por medida com o seu comportamento por medida e as suas opiniões por medida; querem, depois das canseiras do dia, sentar-se à noite no sofá, como eu, e beber a sua cerveja - eu bebo vinho, no fundo é a mesma coisa - e querem ver algo que os alegre e pode muito bem ser um policial intrincado, mas não os deve tocar demasiado e isto é o comportamento normal que nos foi ensinado e seria pois injusto acusá-los de agirem assim, só porque estão a contribuir para nos matar. Senti também em mim uma forte inclinação para este comportamento normal, o meu vinho estava fresco e cintilava com reflexos esverdeados ao segurá-lo contra a luz, senti-me bem no meu sofá; nesta sala e nesta velha casa, também tu, irmão, ficarias de novo bom, e porque é que uma quantidade de outros problemas não encontraria também as suas soluções.

E na minha opinião tudo poderia ter continuado assim mais um bocado, como estava, e nesta esperança secreta também eu ouvi os senhores da televisão. Num canal ocuparam-se pormenorizadamente com a nuvem que já fazia um pouco parte da nossa grande família televisiva, como um menino feio, por assim dizer, e se compreendi bem a nossa nuvem tinha-se dividido algures ou então avançava numa direcção e retrocedia na outra; de qualquer modo o norte e o sul da Europa foram gravemnte censurados pelos seus lamentáveis valores radioactivos, mas ajudar os agricultores, que furiosos berravam diante das câmaras porque não sabiam quem lhes ia pagar as suas alfaces, também eu não fui capaz; o problema deles era o dinheiro. O meu, pelo contrário, foi pensar se nós, num caso grave como este, nos deveríamos de facto considerar norte da Europa, o que fazemos um pouco de ânimo leve e na realidade apenas por vaidade, ou se não pertenceríamos antes à Europa central. Entretanto os senhores dos fatos por medida recontaram entre si todos os factores de segurança que excluem um acidente com um reactor e enumeraram mais uma vez para si e para nós todos os motivos que faziam da pretensa utilização pacífica do átomo um factor irrenunciável - foi esta a sua palavra - e quando um deles não recorria imediatamente a um argumento, o outro vinha em seu auxílio, era como assistir a uma aula numa escola, e eu ouvia-os tão atentamente que passados poucos minutos já era capaz, pelo meu lado, de lhes ditar as suas frases; fi-lo, como se fosse uma experiência, e quase sempre acertei. Mas a certa altura o moderador, apostado em difundir uma atmosfera de moderação e serenidade, pensou que poderia sem mais preocupações levar um dos senhores à afirmação categórica de que também neste campo particularmente avançado da ciência e da técnica se podem encontrar prognoses isentas de erro sobre os aparelhos em causa. - Evidentemente quis eu ajudar o interrogado, mas tinha sido precipitada; pois tanto eu como o moderador descobrimos então, para nossa grande surpresa, uma surpresa dolorosa, que por mais que ele quisesse ir ao nosso encontro, não poderia fazer uma tal afirmação. Pois bem, ouvimo-lo dizer. Prognoses absolutamente isentas de erro - tal coisa não existia numa área tão jovem da técnica. Na evolução da técnica tinha sempre de se contar com uma certa margem de erro, até que esta técnica estivesse completamente dominada. Isto era lei, válida também para a utilização da energia atómica.

Deveria ter sido percorrida por um calafrio. Deveria ter ficado chocada ou indignada. Nada disso. Eu sabia que eles o sabiam. Mas que o diriam, nem que fosse só por esta vez - isso não esperara. Passou-me pela cabeça o texto de uma carta, em que eu -jurando-o, como poderia ser de outro modo - deveria transmitir a alguém que o perigo da técnica atómica não é comparável a nenhum outro e que se devia, mesmo que o factor de risco fosse mínimo, renunciar a esta técnica sem qualquer hesitação. Não me ocorreu para esta carta nenhum endereço real, por isso disse alguns palavrões e mudei de canal. Para desligar o televisor não tenho normalmente a força necessária e nesta noite muito menos. Podes chamar-lhe "mania", querido irmão, como chamaste de facto, numa meiga reprovação não o contestarei a cada um a sua tecla, como às ratazanas a sua, cada um tem o seu ponto fraco, por onde podem penetrar as bênçãos da civilização.

 

Pude escolher entre dois filmes, ambos já meus conhecidos. No velho preto-e-branco o actor que faz o papel de marido da Ingrid Bergman tenta - com a ajuda de lâmpadas de gás tremelicantes e de outros truques igualmente primitivos - enlouquecê-la. No outro, um velho oficial dos serviços secretos ingleses, na realidade já reformado, consegue, com os seus antiquados mas eficazes métodos psicológicos, desmascarar um agente inimigo no coração da própria central. Em tons castanhos de muito bom gosto e com interpretações muito conseguidas. Fui permanentemente carregando no botão e vi mais ou menos metade de cada filme. Se esta alternância constante é um bom treino cerebral on se pelo contrário diminui a capacidade de concentração foi nessa noite a menor das minhas preocupações. Senti-me superior aos agentes dos dois sistemas, porque eles não sabiam, e durante muito tempo - talvez por tempo de mais - continuariam a não se aperceber de que a sua profissão tinha acabado. Uma, duas, três nuvens radioactivas de um, dois, três reactores em diferentes partes do mundo e os governos, por uma questão de sobrevivência, tentariam impingir os seus segredos ao outro lado. Mas naturalmente não tive nenhuma ilusão de que as pessoas que distribuem ordens a estes simpáticos agentes já esta noite tinham registado que esta pequena nuvem radioactiva possuía o dom de eliminar o inimigo - enquanto inimigo. Que entre as renúncias que ela nos exigia categórica, a renúncia ao inimigo não era de todas a mais pequena. Contudo perguntei-me se o instinto de conservação primário dos seres humanos, que durante tanto tempo se ocuparam com a destruição do inimigo, poderá ficar intacto? Dirigi-me de novo para o telefone. Também agora à noite a enfermeira - já a do turno nocturno - tinha transmitido à minha cunhada notícias tranquilizadoras sobre o teu estado, irmão. Sim, tinhas acordado, tinhas tido sede e deram-te de beber. Como fiquei grata à enfermeira que tinha acalmado a tua sede. Tranquilizámo-nos mutuamente, falámos um pouco de como tínhamos passado este dia, não mencionámos e nem quisemos saber que te sentias mal, que tinhas enjoos e dores insuportáveis. Convenci a minha cunhada a tomar calmamente um comprimido, para conseguir adormecer esta noite. Não era ainda altura, não pudemos nem quisemos dizer tudo aquilo que tínhamos imaginado; que filmes tinham passado nos nossos cérebros, em que variantes, entre elas a de que a operação pudesse ter corrido mal. Todas estas sequências foram por nós arquivadas nas zonas do cérebro onde o esquecimento se processa.

Apaguei a televisão, fechei à chave a porta da frente, a de trás, lavei a louça do jantar, pus o fiambre e os enchidos no frigorífico. Ao fazê-lo descobri o carreiro de formigas que lhe passava por trás, bem encostado, e que se dirigia pelo chão fora rumo ao armário da cozinha, escalava em linha recta a parede e já na placa de mármore se encaminhava implacável e certo do seu objectivo para o tabuleiro onde estavam os frascos da compota. Por fim descobria como chegavam as formigas à compota. Tive pois de evacuar as formigas do chão e do armário, espanei-as, afoguei-as, pisei-as, varri-as e tapei o pequeno buraco numa tábua podre da porta com um pedacinho de algodão embebido em vinagre. Duraria uns dias. Por sorte lembrei-me ainda a tempo de encher baldes e tachos com água, pois tal como estava anunciado na cooperativa, na manhã seguinte cortariam a água durante algumas horas para efectuar reparações.

 

No quarto de banho obriguei-me aos mesmos gestos de todas as noites, apesar de estar tão cansada que já só queria dormir. Caía-me agora mais cabelo do que dantes? Quais seriam os primeiros sintomas? Ainda tive de procurar um livro onde pudesse ler umas quantas páginas para adormecer. É de agradecer ao meu cansaço o facto de ter tirado da estante um livro fininho de um autor que já há muito tempo me tinha sido aconselhado calorosamente, mas que ainda não tinha lido por causa da minha aversão a relatos marítimos: Joseph Conrad. Ocoração das trevas. Saboreei os primeiros momentos de repouso na cama, pus o candeeiro por cima de mim na posição ideal e li com um certo distanciamento a primeira página, que tal como esperava trata de um barco. Uma bela chalupa, bem equipada, de nome "Nelly", que ancorada no estuário do Tamisa espera a vazante. Tentei rever o estuário do Tamisa tal como o tinha visto uma vez, mas a imagem foi logo varrida por uma descrição do crepúsculo sobre a água que me despertou imediatamente. "O dia ia de encontro ao seu fim numa serenidade de um intenso esplendor", assim começa. Li-a duas vezes. Depois, subitamente, o narrador, Marlow, atirou-me à cara a seguinte frase "E também este já foi um dos lugares mais sombrios da Terra". E só aí, por fim, senti um baque de encontro ao coração, que só sinto quando um escritor me fala do fundo da sua experiência pessoal.

E também este já foi um dos lugares sombrios da Terra. Também este. E este. Escutei os ruídos da noite que entravam pela janela aberta, uma brisa ligeira, o sonolento latir de um cão, pela primeira vez este ano os sapos. Numa expectativa apreensiva continuei a ler e poucas frases depois compreendi: este Marlow sabe muito bem do que está a falar. Ele já viu e compreendeu tudo, cem anos antes da "Nossa Era", e eu, aqui deitada, ouço-o apavorada, encantada, falar de locais selvagens, falar das trevas profundas do continente desconhecido, África, e dos segredos do coração dos seus habitantes; a que os conquistadores brancos não têm acesso. "Pensai que nenhum de nós poderia sentir o que eles sentem. O que nos salva é o nosso objectivo. Adevoção ao nosso objectivo..." Marfim. Marfim em quantidade, a qualquer preço, arrancado a uma terra selvagem, a uns seres selvagens, por qualquer método imaginável ou inimaginável. Quem poderá esquecer o velho negro que foi espancado. Quem pode esquecer o bosque da morte. As aldeias indígenas abandonadas pelos seus habitantes em pânico: "O que era feito das galinhas, não consegui descobrir. Mas quero crer que foram apanhadas pela causa do progresso." Abri a boca num gemido breve, por vários motivos, entre eles admiração por este autor. Como ele sabia do que falava. Como ele devia estar só. E como posso viver com mais estes seis negros, presos por correntes uns aos outros, formando uma fila, a acrescentar a tudo o resto. "Foram chamados criminosos e a lei violada tinha chegado até eles tal como essas detonações retumbantes, do outro lado do mar, como um mistério incompreensível." Não pude continuar a ler. Não nessa noite. Apanhei ainda algumas frases isoladas ao folhear, elas estavam lá: "Verdade, uma verdade despojada das vestes da época!" - Amanhã continuaria a ler e talvez quisesse analisar com que meios ele atinge tais efeitos. Como ele tinha conseguido libertar-se de conceitos como "meios" e "efeitos" - o mais difícil. Por hoje basta-me. Este autor sabia o que é a tristeza. Ele tinha, e não só em pensamento, atingido o ponto cego de uma cultura a que também ele pertencia. Sem temor até ao coração das trevas. E a luz que fatalmente o tinha guiado também a ele, viu-a como "uma mancha de sol itinerante numa planície, como um relâmpago nas nuvens".

Vivemos neste clarão efémero - que perdure enquanto a Terra girar.

Assim me fala este homem. Tímido, dificilmente encontrarei nele palavras como "ódio" ou "amor". "Ambição", sim, fre quentemente. Ambição, ambição, ambição. Antes de adormecer imaginei esse dispositivo das estações de cuidados intensivos a que chamam "soro". Estás ligado ao soro, irmão? Dormes? Por esta altura comecei a ouvir a voz que acabaria por me adormecer lendo um trecho do conto em que a verdadeira rainha se transforma numa pata. De noite um dos moços de cozinha vê uma pata entrar a nadar pelo bueiro, a dizer: - Filho do rei, que fazes, dormes ou estás acordado...

Já a altas horas da noite acordei aterrorizada por uma voz e por um choro. A voz tinha gritado de longe: - Afaultless

monster! Ochoro, reparei depois de um longo espaço de tempo, vinha de mim. Sentei-me na cama e chorei. O meu rosto estava coberto por uma torrente de lágrimas. No sonho uma lua enorme, muito próxima, nojenta no seu processo de putrefacção, tinha-se afundado muito depressa no horizonte. No escuro céu nocturno estava pendurada uma enorme fotografia da minha mãe morta. Gritei.

Que difícil iria ser, irmão, dizer adeus a esta Terra.

 

                                                                                Christa Wolf  

 

                      

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