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ACQUA ALTA / Donna Leon
ACQUA ALTA / Donna Leon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Reinava a tranquilidade doméstica. Flavia Petrelli, a grande diva do Scala, estava em pé na cozinha aquecida picando cebolas. Uma porção de tomates italianos, dois dentes de alho finamente fatiados e duas berinjelas bojudas formavam pequenos montes diante dela. Parada em frente ao balcão de mármore, inclinada sobre os legumes, ela cantava, enchendo o recinto com as entonações douradas de sua voz de soprano. De vez em quando, afastava uma mecha de cabelo com as costas do pulso, mas, apenas ancorada atrás da orelha, a mecha se soltava e caía de novo sobre seu rosto.
Na outra extremidade da vasta sala que ocupava quase todo o andar superior do palazzo veneziano do século XIV, Brett Lynch, dona do apartamento e amante de Flavia, esparramava-se no sofá bege, os pés descalços apoiados no braço afastado do móvel, a cabeça repousando no outro, seguindo a partitura de I puritani, cuja música estrondeava — os vizinhos que se danassem — de dois alto-falantes montados sobre pedestais elevados de mogno. A música inundava toda a sala, e a cantante Elvira quase enlouquecia — pela segunda vez. Misteriosamente, a voz de duas Elviras ecoava pela sala: a primeira, a que Flavia havia gravado em Londres cinco meses antes e que agora saía pelos alto-falantes; a segunda, a voz da mulher que picavas cebolas.
Às vezes, quando cantava em perfeita sincronia com sua própria voz gravada, Flavia parava para perguntar: “Báá, quem disse que eu tinha um registro médio?” ou “Os violinos estão pretendendo tocar um si bemol?”. Depois de cada interrupção, sua voz voltava à música, e suas mãos, às cebolas. À sua esquerda, uma grande frigideira repousava em fogo baixo, uma poça de azeite de oliva esperando os primeiros legumes.

 


 


Quatro andares abaixo, a campainha da porta soou. “Eu atendo”, disse Brett, pousando a partitura no chão e levantando-se. “As testemunhas de Jeová com certeza. Elas aparecem nos domingos.” Flavia fez que sim com a cabeça, afastou do rosto um cacho de cabelo escuro com as costas da mão, e voltou a atenção para as cebolas e o delírio de Elvira, em meio ao qual continuou a cantar.

Descalça, satisfeita com a temperatura do apartamento naquela tarde de fim de janeiro, Brett atravessou o piso lustroso e saiu para o hall de entrada, onde pegou o receptor do interfone pendurado ao lado da porta e perguntou: “Chi è ? ”.

Uma voz de homem respondeu em italiano: “Somos do museu. Com papéis do dottor Semenzato”.

Estranho o diretor do museu do Palácio dos Doges enviar papéis, especialmente num domingo, mas talvez ele tivesse se alarmado com a carta que Brett lhe enviara da China — embora não tivesse sido essa a impressão que ele dera no início da semana — e quisesse que alguma coisa fosse lida antes do encontro que aceitara, a contragosto, agendar para a terça-feira de manhã.

“Tragam aqui em cima, por favor. Último andar.” Brett recolocou o aparelho no gancho e apertou o botão que abria a porta quatro andares abaixo, depois caminhou até a porta e chamou Flavia por cima dos violinos plangentes. “Alguém do museu. Papéis.”

Flavia anuiu com a cabeça, pegou a primeira berinjela e cortou-a pela metade. Depois, sem perder um compasso, voltou ao assunto sério de perder o juízo por amor.

Brett andou em direção à entrada do apartamento, parou para endireitar o canto do tapete, e abriu a porta. Passos se aproximavam vindos de baixo, e dois homens apareceram, parando no patamar abaixo do último lance de degraus. “Só faltam dezesseis”, disse Brett, sorrindo amigavelmente para eles, e então, tomando consciência, de repente, do ar gelado e cortante do poço da escada, cobriu um pé descalço com o outro.

Eles ficaram um instante imóveis, olhando para a porta aberta. O primeiro carregava um grande envelope de papel-manilha. Ainda pararam um pouco antes do lance final, e Brett tornou a sorrir, falando para encorajá-los: “Forza”.

O primeiro, baixo e loiro, devolveu o sorriso e começou a subir os últimos degraus. Seu companheiro, mais alto e moreno, respirou fundo e o acompanhou. Quando o primeiro chegou à porta, parou para esperar o outro.

“Dottoressa Lynch?”, perguntou o loiro, pronunciando seu sobrenome à maneira italiana.

“Sim”, ela respondeu, recuando da porta para lhes dar passagem.

Educadamente, ambos murmuraram “Permesso” ao entrar no apartamento. O primeiro, que tinha o cabelo claro cortado bem rente à cabeça e atraentes olhos escuros, estendeu o envelope. “Estes são os papéis, dottoressa.” Enquanto os entregava, disse: “O dottor Semenzato pediu que a senhora os examine imediatamente”. Muito suave, muito polido. O alto sorriu e se virou, distraído por um espelho pendurado à esquerda da porta.

Ela abaixou a cabeça e começou a abrir a aba do envelope, fechada com lacre vermelho. O loiro se aproximou um pouco mais de Brett, como se fosse tirar o envelope de suas mãos para ajudá-la a abri-lo, mas, de repente, passou rapidamente por ela e agarrou-a por trás com muita força.

O envelope caiu, ricocheteou nos pés descalços de Brett e pousou entre ela e o segundo homem. Ele o afastou com o pé, como que cuidadoso com o seu conteúdo, e aproximou-se mais pela frente dela. Enquanto ele se deslocava, o outro aumentou a pressão dos braços. O alto abaixou o rosto de sua altura considerável e disse, com voz baixa e muito grave: “Você não quer manter aquele encontro com o dottor Semenzato”.

Brett sentiu ódio antes de sentir medo, e falou pelo primeiro. “Me larguem. E saiam daqui.” Ela se contorceu ferozmente na tentativa de se libertar, mas o homem aumentou a pressão das mãos, prendendo os braços dela em seus flancos.

Atrás dela, o volume da música aumentou e a voz duplicada de Flavia encheu o recinto. Ela dominava a passagem com tanta perfeição que ninguém diria que eram duas vozes e não uma cantando dor, amor e perda. Brett pensou em virar o rosto para a música, mas, de vontade própria, interrompeu o movimento e perguntou, dirigindo-se ao homem à sua frente: “Quem são vocês? O que querem?”.

A voz do sujeito mudou, assim como o seu rosto; ambos se tornaram agressivos: “Não faça perguntas, sua vagabunda”.

De novo, ela se contorceu para se libertar, mas era impossível. Apoiando o peso num pé, ela deu um chute para trás com o outro, mas não causou o menor efeito no homem que a segurava.

De trás dela, ouviu o homem dizer: “Tudo bem. Manda”.

Ela estava virando a cabeça para encará-lo quando recebeu o primeiro murro, que a atingiu no centro do estômago. A dor súbita, explosiva, a lançou para a frente com tanta força que ela quase escapou do homem que a retinha, mas ele a puxou de volta e a sacudiu para colocá-la em pé. O que estava na sua frente a esmurrou de novo, dessa vez acertando-a embaixo do seio esquerdo, e ela reagiu com o mesmo movimento involuntário que atirava seu corpo para a frente para se proteger da dor terrível.

Em seguida, rapidamente, tanto que ela perdeu a conta de quantas vezes, ele começou a esmurrar seu corpo, atingindo-a seguidas vezes nos seios e nas costelas.

Atrás dela, as vozes de Flavia cantavam agora o futuro feliz que ela almejava, de em breve ser a noiva de Arturo, e aí ele a atingiu na lateral da cabeça. Sua orelha direita zuniu, e ela só conseguia ouvir a música com a esquerda.

Brett só tinha consciência de uma coisa — não podia emitir nenhum ruído. Não podia gritar, berrar, gemer. As vozes sopranos se fundiam atrás dela, exultantes de alegria, e seu lábio se partiu sob o punho do homem.

O sujeito que estava por trás soltou seu braço direito. Não havia mais necessidade de contê-la, mas ele manteve uma das mãos sobre o braço dela para mantê-la em pé e a obrigou a girar para ficar de frente para ele. “Não compareça ao encontro com o dottor Semenzato”, disse ele, a voz ainda muito baixa e polida.

Mas ela já se afastara, e não escutava mais o que ele dizia, vagamente consciente da música e da dor, e do obscuro pavor de que aqueles homens poderiam matá-la.

Sua cabeça pendeu, e ela via apenas os pés deles. Ela sentiu o mais alto fazer um movimento brusco na sua direção, e foi tomada por um calor nas pernas e no rosto. Tinha perdido o controle de seu corpo e pôde perceber o cheiro forte da própria urina. Sentindo gosto de sangue, ela o viu pingar no chão e se esparramar sobre os sapatos dos homens. Ela pendia entre eles, pensando somente que não podia fazer nenhum som e desejando apenas que eles a deixassem cair, a deixassem se encolher para abrandar a dor que vinha de todas as partes do corpo. De repente, enquanto isso acontecia, a voz dupla de Flavia Petrelli encheu o recinto com os sons de alegria sobrepondo-se às vozes do coro e do tenor, seu doce amado.

Com um esforço maior do que já aplicara a qualquer coisa em sua vida, Brett levantou a cabeça e encarou o homem alto, agora parado bem na frente dela. Ele dirigiu-lhe um sorriso íntimo como o de um amante. Lentamente, ele estendeu a mão em concha, segurou o seio esquerdo dela, apertando com suavidade, e sussurrou: “Quer um pouco mais, cara ? É melhor com um homem”.

A reação de Brett foi inteiramente involuntária. Seu punho atingiu o rosto dele de raspão sem causar o menor dano, mas o movimento brusco a libertou da mão do outro. Ela caiu de costas contra a parede e teve consciência, de maneira incorpórea, da sua solidez de encontro a suas costas.

Ela desabou, sentindo o suéter sendo puxado para cima pela textura áspera da parede de tijolo. Muito, muito lentamente, como num filme em câmara lenta, afundou contra a parede, que arranhava sua carne enquanto a gravidade puxava todo o seu corpo para baixo.

As coisas foram ficando muito confusas. Ela ouviu a voz de Flavia cantando a cabaletta, mas aí ouviu a outra voz de Flavia, não mais cantando, mas gritando enfurecida: “Quem são vocês? O que estão fazendo?”.

“Não pare de cantar, Flavia”, ela tentou dizer, mas não conseguiu se lembrar de como fazê-lo. Ela desabou no chão, a cabeça inclinada para a entrada da sala de visitas, onde via a Flavia real delineada contra a luz do outro cômodo, ouvia o mesmo contorno de música gloriosa que se esparramava com ela e vislumbrava a grande faca de picar na mão de Flavia.

“Não, Flavia”, ela sussurrou, mas ninguém ouviu.

Flavia se lançou através do espaço que a separava dos dois homens. Tão surpresos quanto ela, eles não tiveram tempo de reagir, e a faca cortou o braço erguido do mais baixo. Ele uivou de dor e recolheu o braço, cobrindo o ferimento com a outra mão. O sangue se espalhou pelo tecido da sua jaqueta.

Outra cena congelada. O mais alto disparou então na direção da porta ainda aberta. Flavia puxou a faca para a altura do seu quadril e deu dois passos na direção dele. O ferido a chutou com o pé esquerdo, acertando-a no lado do joelho. Ela caiu, mas pousou de joelhos, a faca ainda puxada para trás ao seu lado.

Se houve alguma comunicação entre os dois homens, foi absolutamente silenciosa, porém, no mesmo instante, ambos dispararam para a porta. O alto fez uma pausa apenas suficiente para apanhar o envelope, mas Flavia, ajoelhada, atacou sua mão com a faca, e ele recuou, largando-o no chão. Flavia se levantou e correu alguns passos atrás deles, mas parou e voltou ao apartamento, fechando a porta atrás de si com um chute.

Ela se ajoelhou ao lado da forma inerte da outra mulher. “Brett, Brett”, chamou, olhando para ela. A metade inferior do rosto de Brett estava estriada pelo sangue que escorria de seu nariz, de seus lábios e de um pequeno corte no lado esquerdo da sua testa. Ela jazia com um joelho dobrado embaixo do corpo, o suéter arregaçado até o queixo, os seios expostos. “Brett”, disse Flavia de novo — e por um momento acreditou que a mulher completamente imóvel estivesse morta. Ela afastou rapidamente essa ideia e encostou a mão no lado da garganta de Brett.

Com a lentidão da aurora numa manhã brumosa de inverno, um olho se abriu, depois o outro, mas, começando a inchar, ele só conseguiu abrir pela metade.

“Stai bene? ”, perguntou Flavia.

A única resposta que ouviu foi um gemido fraco. Mas era uma resposta.

“Vou buscar ajuda. Não se preocupe, cara. Eles não vão demorar.”

Ela correu para telefone no outro cômodo. Por um segundo, não percebeu o que a impedia de pegar o aparelho, mas então notou a faca ensanguentada, sua mão crispada em volta do cabo. Ela a deixou cair no chão e pegou o telefone. Com dedos ágeis, digitou 113. Dez toques depois, uma voz de mulher respondeu e perguntou o que ela queria.

“É uma emergência. Preciso de uma ambulância. Em Cannaregio.”

Entediada, a voz perguntou o endereço exato.

“Cannaregio 6134.”

“Sinto muito, signora. É domingo e só temos uma ambulância. Vou ter de colocar seu nome na lista.”

A voz de Flavia aumentou. “Tem uma mulher ferida aqui. Alguém tentou matá-la. Ela precisa ir para o hospital.”

A voz adquiriu um tom de paciência cansada. “Já expliquei, signora. Só temos uma ambulância, e há dois chamados na fila. Assim que estiver livre, eu a enviarei a seu endereço.” Quando não obteve resposta de Flavia, a voz perguntou: “Signora, ainda está aí? Pode me dar o endereço de novo? Vou colocar seu nome na lista. Signora? Signora? ” Em resposta ao silêncio de Flavia, a mulher na outra ponta cortou a ligação, deixando Flavia com o receptor na mão, desejando ainda estar com a faca.

Com as mãos tremendo, Flavia recolocou o receptor no aparelho e voltou para o hall. Brett continuava onde ela a deixara, mas de algum jeito tinha conseguido se virar de lado e jazia quieta, segurando um braço sobre o peito, gemendo.

Flavia ajoelhou-se ao seu lado. “Brett, preciso chamar um médico.”

Flavia ouviu um ruído abafado, e a mão de Brett veio lentamente ao encontro das suas. Seus dedos mal tocaram no braço de Flavia, e tombaram no chão. “Frio”, foi a única coisa que ela disse.

Flavia se levantou e foi ao quarto de dormir. Arrancou as cobertas da cama e as arrastou para o hall onde as estendeu sobre a forma imóvel no chão. Ela abriu a porta do apartamento sem se preocupar em espiar pelo visor para ver se os dois homens tinham voltado. Deixando a porta aberta atrás de si, desceu correndo dois lances de escada e bateu com força na porta do apartamento de baixo.

Alguns instantes depois, a porta foi aberta por um homem de meia-idade, alto e careca, segurando um cigarro numa mão e um livro na outra. “Luca”, disse Flavia, ofegante, lutando com o impulso de gritar enquanto as coisas se arrastavam e ninguém vinha em socorro da sua amada. “Brett está ferida. Ela precisa de um médico.” De repente, sua voz embargou e ela estava soluçando. “Por favor, Luca, por favor, arranje um médico.” Ela agarrou seu braço, incapaz de falar.

Sem dizer uma palavra, ele voltou para dentro do apartamento e apanhou suas chaves na mesa ao lado da porta. Largou o livro no chão, fechou a porta atrás de si e desapareceu escada abaixo antes que Flavia pudesse dizer alguma coisa.

Flavia subiu os degraus de dois em dois até o apartamento. Olhou para baixo e viu que uma pequena poça de sangue tinha se formado sob o rosto de Brett, uma mecha de seu cabelo flutuando sobre a superfície. Anos antes, ela tinha lido ou tinham lhe contado que pessoas em choque deveriam ser mantidas acordadas, e que era perigoso elas dormirem profundamente. Então tornou a se ajoelhar ao lado da amiga e a chamou. Agora, um olho estava fechado pelo inchaço, mas, ao som do seu nome, a americana abriu o outro, apenas uma fenda estreita, e olhou para Flavia sem dar sinal de reconhecê-la.

“O Luca já saiu. O médico vai estar aqui num minuto.”

Lentamente, o olho pareceu sair de foco, depois se recompôs para olhar para ela. Flavia se agachou mais. Afastou o cabelo do rosto de Brett, sentindo o sangue escorrer por entre seus dedos. “Tudo vai ficar bem. Eles voltarão num minuto, e você vai ficar bem. Tudo vai ficar bem, querida. Não se preocupe.”

O olho fechou, abriu, se perdeu na distância, depois retornou o foco. “Ferida”, ela murmurou.

“Está tudo bem, Brett. Vai ficar tudo bem.”

“Ferida.”

Flavia permaneceu ajoelhada ao lado da amiga, olhando fixamente para seu olho, desejando que ele ficasse aberto e focado, e continuou murmurando coisas que, no futuro, ela não se lembraria de ter dito. Algum tempo depois, ela começou a chorar, mas não teve consciência disso.

Ela viu a mão de Brett, meio oculta pelas cobertas, pegou-a, segurou-a suavemente, como se fosse feita das mesmas plumas que as cobertas que a envolviam. “Tudo vai ficar bem, Brett.”

De repente, ela ouviu o som de passos e vozes altas vindo de baixo. Por um instante, ocorreu-lhe que poderiam ser os dois homens que voltavam para acabar o que fosse que tivessem vindo fazer. Ela se levantou e foi até a porta na esperança de conseguir fechá-la a tempo, mas quando olhou viu o rosto de Luca e, atrás dele, um homem de jaleco branco com uma maleta preta na mão.

“Graças a Deus”, ela disse, e ficou surpresa de perceber que queria dizer aquilo mesmo. Atrás dela, a música parou. Elvira finalmente se reunira ao seu Arturo, e a ópera chegara ao fim.


2

 

 

 

 

Flavia recuou para dar passagem aos dois homens. “O que é isso? O que aconteceu?”, perguntou Luca, olhando para o amontoado de cobertas no chão e o que elas cobriam. “Dio mio”, disse ele, involuntariamente, e se curvou em direção a Brett, mas Flavia o conteve com o braço estendido e o puxou de lado, abrindo espaço para o médico se aproximar da mulher caída.

O médico se inclinou sobre ela, estendeu a mão e auscultou sua pulsação no pescoço. Sentindo-a lenta, mas forte, puxou as cobertas para ver a extensão dos ferimentos. O suéter dela estava amontoado numa maçaroca manchada de sangue embaixo da garganta, expondo as costelas e o torso. Sua pele estava vermelha e lanhada em alguns lugares, e começava a ficar lívida e escura.

“Signora, pode me ouvir?”, perguntou o médico.

Brett fez um ruído; palavras eram difíceis demais agora.

“Signora, vou movê-la, apenas um pouco, para poder ver o que aconteceu.” Ele fez um gesto para Flavia, que se ajoelhou do outro lado da mulher imóvel. “Segure os ombros dela. Preciso endireitar as pernas.” Ele estendeu as mãos e pegou a perna esquerda de Brett pela panturrilha, esticando-a, e depois fez o mesmo com a direita. Lentamente, ele a virou de costas, e Flavia abaixou o ombro dela até o chão. Tudo isso reverberou por Brett como uma nova onda de dor, e ela gemeu.

Virando-se para Flavia, o médico disse: “Arranje uma tesoura”. Solícita, Flavia foi até a cozinha e pegou uma tesoura num pote de cerâmica florida sobre o balcão. Enquanto estava ali, ela sentiu o calor que irradiava do azeite de oliva, ainda sobre a boca do fogão, assobiando para ela. Apagou a chama e voltou até o médico.

Ele pegou a tesoura e cortou o suéter ensanguentado, e em seguida o puxou do corpo de Brett. O homem que a tinha espancado usava um anel pesado no dedo anular da mão direita, e este tinha deixado sinais, pequenas impressões circulares que se destacavam da pele lívida ao redor.

O médico se curvou de novo sobre ela, e disse: “Signora, por favor abra os olhos”.

Brett se esforçou para obedecer, mas só conseguiu que um deles se abrisse. O médico tirou uma pequena lanterna da maleta e apontou a luz para a pupila da paciente, que se contraiu, e fez com que o olho fechasse involuntariamente.

“Bom, bom”, disse o médico. “Agora quero que mexa a cabeça um pouco, só um pouquinho.”

Embora lhe custasse um grande esforço, Brett conseguiu fazê-lo.

“E agora a boca. Consegue abrir?”

Quando ela tentou fazê-lo, ofegou de dor, um som que empurrou Flavia contra a outra parede.

“Agora vou tocar suas costelas, signora. Diga-me quando doer.” Cuidadosamente, ele apalpou as costelas. Por duas vezes, ela gemeu.

Ele pegou um pacote de gaze cirúrgica na maleta e o abriu. Umedeceu a gaze num frasco de antisséptico e lentamente começou a limpar o sangue das faces de Brett. Assim que o enxugou, mais sangue escorreu das narinas e do corte aberto em seu lábio inferior. Ele fez um sinal para Flavia, que se ajoelhou ao seu lado. “Tome, mantenha isso nela e não a deixe se mexer.” Ele entregou a ela a gaze ensanguentada, e ela fez o que ele pedira.

“Onde fica o telefone?”, perguntou o médico.

Acenando com a cabeça, Flavia indicou a sala de visitas. O médico desapareceu pela porta, e Flavia pôde ouvi-lo discando e depois falando com alguém no hospital, requisitando uma maca. Por que ela não tinha pensado nisso? A casa ficava tão perto do hospital que eles nem precisariam de uma ambulância.

Luca hesitou um pouco, olhando a mulher ferida, até que finalmente se abaixou e puxou as cobertas para aquecê-la.

O médico voltou e agachou-se ao lado de Flavia. “Eles vão chegar num instante.” Ele olhou para Brett. “Não posso lhe dar nada para a dor até eles tirarem os raios X. Está doendo muito?”

Para Brett, não havia nada além de dor.

O médico percebeu que ela estava tremendo e perguntou: “Não há mais cobertas?”. Ouvindo isso, Luca foi até o quarto de dormir e voltou com um edredom que ele e o médico estenderam sobre ela, embora isso não parecesse ter ajudado em nada. O mundo ficara frio, e tudo que ela sentia era frio e uma dor crescente.

O médico se ergueu e virou para Flavia: “O que aconteceu?”.

“Não sei. Eu estava na cozinha. Eu saí, e ela estava no chão, desse jeito, e havia dois homens.”

“Quem eram?”, perguntou Luca.

“Não sei. Tinha um alto e um baixo.”

“O que aconteceu?”

“Fui para cima deles.”

Os homens trocaram um olhar. “Como?”, perguntou Luca.

“Eu tinha uma faca. Estava cozinhando. Quando saí da cozinha, ainda estava com a faca, e quando os vi não pensei. Simplesmente fui para cima deles. Eles dispararam pela escada.” Ela balançou a cabeça, desinteressada daquilo tudo. “Como ela está? O que eles fizeram?”

Antes de responder, o médico se afastou alguns passos de Brett, embora ela estivesse longe demais para ouvir ou compreender as suas palavras. “Ela tem umas costelas quebradas e alguns cortes feios. E acho que seu maxilar pode estar quebrado.”

“Oh, Gesù”, disse Flavia, batendo a mão na boca.

“Mas não há sinais de concussão. Ela reage à luz e compreende o que lhe digo. No entanto, precisamos fazer os raios X.”

Enquanto ele falava, eles ouviram vozes vindas de baixo. Flavia ajoelhou-se ao lado de Brett. “Eles estão vindo agora, cara. Vai ficar tudo bem.” Tudo que ela pôde pensar em fazer foi colocar a mão sobre as cobertas em cima do ombro de Brett, e deixá-la ali, esperando que seu calor passasse para a mulher abaixo. “Vai ficar tudo bem.”

Dois homens de jaleco branco apareceram na porta, e Luca acenou para eles entrarem no apartamento. Eles tinham deixado a maca quatro lances de escada abaixo, perto da porta de entrada, como era quase sempre necessário em Veneza, e em vez dela tinham trazido a cadeira de vime que usavam para transportar doentes pelas escadas estreitas e sinuosas da cidade.

Ao entrar, olharam para o rosto coberto de sangue da mulher que jazia no chão como se estivessem acostumados a ver coisas assim todo dia, e provavelmente estavam. Luca retirou-se para a sala de visitas, e o médico recomendou que fossem cuidadosos ao pegá-la.

Enquanto isso, tudo o que Brett sentia era o abraço forte da dor. Ela lhe chegava de todo o corpo, do peito que enrijecera e fazia de cada respiração uma agonia, dos próprios ossos que constituíam seu rosto, e das costas, que queimavam. Às vezes ela podia sentir partes estanques de dor, mas então elas se fundiam e fluíam por ela, misturando-se e obscurecendo tudo que não fosse dor. Depois, ela se lembraria de apenas três coisas: a mão dos médicos sobre ela, um toque que se transformou num clarão branco em seu cérebro; a mão de Flavia sobre o seu ombro, único calor naquele mar de frio; e o momento em que os homens a levantaram do chão, quando ela gritou e desmaiou.

Horas depois, quando acordou, a dor ainda estava lá, mas Brett podia sentir que algo a mitigara. Ela sabia que qualquer movimento, mesmo que apenas milimétrico, faria com que ela voltasse e ficasse ainda pior, por isso ficou deitada absolutamente imóvel, tentando sentir cada parte do corpo para ver onde o pior da dor despontava, mas antes de poder ordenar que sua mente começasse, foi tomada pelo sono.

Mais tarde, já acordada, tornou a ordenar que a mente explorasse várias partes do seu corpo, dessa vez com mais cautela. A dor ainda estava controlada, e já não parecia que um movimento seria tão perigoso. Ela se concentrou nos olhos e tentou determinar o que havia além deles, luz ou escuridão. Não conseguiu saber, e deixou a mente vagar, descendo pelo rosto, onde a dor espreitava, depois para as costas, que latejavam, e então para as mãos. Uma estava fria, a outra, quente. Ela ficou imóvel durante o que lhe pareceram horas e pensou o seguinte: como uma mão podia estar fria e a outra quente? Ficou deitada em silêncio por uma eternidade analisando o enigma.

Uma quente e uma fria. Ela decidiu que as moveria para ver se isso faria diferença, e, uma eternidade depois, começou. Tentou fechar os punhos e conseguiu movê-las apenas de leve. Mas isso bastou — a que estava quente se viu envolvida num calor maior e por uma leve pressão de cima e de baixo. Ela ouviu uma voz, uma voz que sabia que era familiar, mas não conseguia reconhecer. Por que essa voz estava falando em italiano? Ou seria chinês? Ela compreendia o que a voz dizia, mas não conseguia se lembrar de que língua era. Ela mexeu a mão novamente. Como fora agradável aquela resposta cálida. Tentou de novo, e ouviu a voz respondendo, sentiu o calor. Oh, como aquilo era mágico. Havia falas que ela compreendia, havia calor, uma parte de seu corpo estava sem dor. Reconfortada por isso, tornou a adormecer.

Ela finalmente recuperou a consciência e percebeu por que uma mão estava quente e uma fria. “Flavia”, ela disse, mal conseguindo emitir um som.

A pressão na sua mão aumentou. E o calor. “Estou aqui”, disse Flavia, a voz muito próxima dela.

Sem saber como, Brett tinha consciência de que não poderia virar a cabeça para falar ou olhar para a amiga. Ela tentou sorrir, tentou dizer alguma coisa, mas uma força conservava sua boca fechada e a impedia de abri-la. Ela tentou gritar por ajuda, mas a força invisível mantinha sua boca fechada e não a deixava emitir nenhum som.

“Não tente falar, Brett”, disse Flavia, aumentando a pressão em sua mão. “Não mexa a boca. Ela está amarrada com arame. Um dos ossos do seu maxilar está trincado. Por favor, não tente falar. Está tudo bem. Você vai ficar boa.”

Era muito difícil compreender todas aquelas palavras. Mas o peso da mão de Flavia bastava, o som de sua voz foi suficiente para acalmá-la.

Quando despertou, estava totalmente consciente. Ainda era necessário algum esforço para abrir os olhos, mas ela podia fazê-lo, pelo menos um deles. Ela suspirou de alívio por não precisar mais de astúcia para enganar seu corpo. Olhou em volta e avistou Flavia adormecida, curvada na cadeira, a boca entreaberta e a cabeça inclinada para trás. Seus braços pendiam dos dois lados da cadeira, deixando-a em completo abandono para dormir.

Enquanto observava Flavia, Brett inspecionou mais uma vez o próprio corpo. Ela podia mover os braços e as pernas, mas era doloroso, de uma maneira generalizada, não específica. Ela parecia estar deitada de lado, e suas costas doíam, uma dor forte, constante. Por fim, sabendo que isso era o pior, tentou abrir a boca e sentiu a terrível pressão interna sobre seus dentes. Estava amarrada com arame, mas podia mover os lábios. O pior era que a língua estava presa na boca. Ao tomar consciência disso, ela sentiu um verdadeiro pânico. E se ela tossisse? Sufocasse? Ela afastou violentamente esse pensamento. Se ela estava tão lúcida, então estava bem. Ela não via tubos saindo de sua cama, sabia que tudo funcionava naturalmente. Então a coisa não era tão ruim quanto poderia ser, e no fim das contas era suportável. Sim, até que era suportável.

De repente, com um sobressalto, ela teve consciência da sede. Sua boca queimava, a garganta doía. “Flavia”, ela disse, a voz baixa, apenas audível, quase para si mesma. Os olhos de Flavia se abriram e ela olhou em volta quase em pânico, da maneira como fazia sempre que acordava abruptamente. Um instante depois, ela se inclinou para a frente na cadeira e trouxe seu rosto para perto do de Brett.

“Flavia, estou com sede”, sussurrou.

“Bom dia para você também”, Flavia respondeu, soltando uma risada de alívio, e Brett soube então que ia ficar boa.

Virando-se, Flavia pegou um copo d’água na mesa atrás dela. Curvou o canudo de plástico e o inseriu com cuidado por entre os lábios de Brett para posicioná-lo no lado esquerdo, longe do corte inchado que repuxava sua boca para baixo. “Eu até mandei encherem de gelo do jeito que você gosta”, ela disse, segurando firme o canudo no copo enquanto Brett tentava sugar por ele. Seus lábios secos estavam selados, mas ela finalmente conseguiu abrir um canto, e a abençoada, bendita água gelada escorreu por seus dentes e sua garganta.

Depois de alguns goles apenas, Flavia afastou o copo, dizendo: “Vai devagar. Espere um pouco, e depois você terá mais”.

“Me sinto dopada”, disse Brett.

“Você está, cara. Uma enfermeira vem de tempos em tempos e lhe aplica uma injeção.”

“Que horas são?”

Flavia consultou seu relógio. “Quinze para as oito.”

O número não significou absolutamente nada. “Manhã ou noite?”

“Manhã.”

“Que dia?”

Flavia sorriu e respondeu: “Terça-feira”.

“De manhã?”

“É.”

“Por que você está aqui?”

“Onde esperava que estivesse?”

“Milão. Você tem que cantar esta noite.”

“É para isso que existem as substitutas, Brett”, disse Flavia, tranquilizadora. “Para cantar quando as cantoras principais adoecem.”

“Mas você não está doente”, disse Brett, entorpecida pela dor e as drogas.

“Não deixe que o diretor-geral do Scala te ouça dizer isso, senão você terá de pagar a multa por mim.” Era difícil para Flavia manter a voz leve, mas ela tentou.

“Mas você nunca cancela.”

“Bem, cancelei, e isso é tudo. Vocês anglo-saxões levam o trabalho muito a sério”, disse Flavia, com a voz artificialmente tranquila. “Quer um pouco mais de água?”

Brett assentiu com a cabeça e imediatamente lamentou o movimento. Ela ficou parada por alguns instantes e fechou os olhos, esperando a onda de náusea e tontura passar. Quando abriu os olhos, viu Flavia inclinada sobre ela com o copo. De novo, provou o abençoado frescor, fechou os olhos, e devaneou por um momento. De repente, perguntou: “O que aconteceu?”.

Preocupada, Flavia disse: “Não se lembra?”.

Brett fechou os olhos por um instante. “Sim, me lembro. Tive medo que eles a matassem.” Sua cabeça retiniu com a surda ressonância criada pelos dentes amarrados.

Isso fez Flavia rir, consistente em sua bravata. “Sem chance. Acho que foram todas aquelas Toscas que eu cantei. Eu simplesmente parti para cima deles com a faca, e acertei o braço de um deles.” Ela agitou o braço no ar na sua frente, repetindo o gesto e sorrindo com a lembrança — Brett estava certa — da faca cortando o sujeito. “Queria ter matado ele”, disse Flavia com um tom de voz absolutamente normal, e Brett acreditou nela.

“E depois?”

“Eles correram. Aí eu desci pela escada e chamei o Luca, e ele saiu atrás do médico, e nós trouxemos você para cá.” Enquanto Flavia olhava, os olhos de Brett foram se fechando, e ela dormitou por alguns minutos, os lábios entreabertos, os arames de aço grotescamente visíveis.

De repente, seu olho abriu num estalo e ela correu o olhar pelo quarto como que surpresa de se encontrar ali. Ela viu Flavia e se acalmou.

“Por que eles fizeram isso?”, Flavia perguntou, exprimindo a pergunta que havia dois dias a perseguia.

Um longo tempo transcorreu antes da resposta de Brett. “Semenzato.”

“Do museu?”

“É.”

“Mesmo? O que foi que eles disseram?”

“Não entendo.” Se pudesse balançar a cabeça sem dor, Brett o teria feito. “Não faz sentido.” Sua voz estava deformada pela pesada bugiganga que mantinha seus dentes cerrados. Ela pronunciou o nome Semenzato de novo e fechou os olhos demoradamente. Quando os abriu, perguntou: “O que tem de errado comigo?”.

Flavia estava preparada para essa pergunta e a respondeu sucintamente. “Duas costelas quebradas. E seu maxilar está trincado.”

“O que mais?”

“Isso é o pior. Suas costas estão muito arranhadas.” Ela percebeu a confusão de Brett e explicou: “Você caiu de encontro à parede e raspou as costas contra os tijolos enquanto caía. E seu rosto está muito, muito roxo”, concluiu Flavia, tentando fazer graça. “O contraste faz os seus olhos ressaltarem, mas acho que não gosto do efeito geral.”

“Está ruim assim?”, perguntou Brett, sem captar o tom de brincadeira.

“Oh, não tão ruim”, disse Flavia, obviamente mentindo. Brett lançou-lhe um olhar demorado que obrigou Flavia a corrigir as coisas. “Você terá que ficar com as costelas enfaixadas, e também imobilizada durante uma semana, mais ou menos. Ele disse que não haverá danos permanentes.” Por ser essa a única boa notícia que tinha, ela completou o relatório dos médicos. “Eles tirarão os fios daqui a alguns dias. É uma fissura muito fina. E seus dentes estão bem.” Quando notou que isso não havia animado muito Brett, acrescentou: “E o seu nariz...”. Ainda nenhum sorriso. “Não ficarão cicatrizes no seu rosto quando ele desinchar, você vai ficar ótima.” Flavia não disse nada sobre as cicatrizes que permaneceriam nas costas de Brett, nem disse nada sobre quanto tempo demoraria para desaparecer o inchaço e as escoriações de seu rosto.

De repente, Brett percebeu o quanto essa breve conversa a havia esgotado, e sentiu novas ondas de sono tomarem seu corpo. “Vá para casa um pouco, Flavia. Vou dormir e aí...” Sua voz foi emudecendo e, antes mesmo de terminar a frase, adormeceu. Flavia recostou-se na cadeira e estudou o rosto maltratado na cama à sua frente. As escoriações que se espalhavam pela testa e pelas bochechas tinham quase enegrecido no último dia e meio, e um olho continuava fechado pelo inchaço. O lábio inferior de Brett estava inchado acima e em torno do corte vertical, o que o deixava bem aberto.

Flavia fora impedida de permanecer na sala de emergência enquanto os médicos trabalhavam em Brett, limpando suas costas e enfaixando suas costelas. Tampouco lhe permitiram vê-los passar os finos arames entre os dentes para ligar os maxilares. Ela havia ficado perambulando pelos longos corredores do hospital, juntando seu medo aos dos outros visitantes e pacientes que caminhavam, se amontoavam no bar, captando a pouca luz que escorria para o pátio aberto. Andou de um lado para o outro por uma hora, e filou cigarros de três pessoas diferentes, os primeiros que fumava em mais de dez anos.

Desde o entardecer de domingo, havia permanecido ao lado da cama de Brett, esperando que ela acordasse, e só havia voltado ao apartamento uma vez, no dia anterior, apenas para tomar uma ducha e dar alguns telefonemas, inventando uma falsa doença que a impediria de cantar no Scala naquela noite. Seus nervos estavam tensos pela falta de sono, o excesso de café, a vontade renovada de um cigarro e a película oleosa de medo que gruda na pele de todos que passam tempo demais dentro de um hospital.

Ela olhou para sua amada e mais uma vez desejou ter matado o homem que fizera aquilo. Flavia Petrelli não entendia muito de remorso, mas havia muito pouco que não soubesse sobre vingança.


3

 

 

 

 

Uma porta se abriu atrás dela, mas Flavia não virou a cabeça para ver quem era. Outra enfermeira. Dificilmente um médico: eles eram peça rara ali. Alguns instantes depois, ouviu uma voz de homem perguntar: “Signora Petrelli?”.

Ela se virou, querendo saber quem era e como a haviam encontrado ali. Perto da porta estava parado um homem de estatura acima da média e constituição forte que lhe pareceu vagamente familiar, mas que ela não conseguiu identificar. Um dos médicos de plantão? Pior, um repórter? Ele parecia esperar um convite para entrar no quarto e se aproximar de Brett.

“Bom dia, signora”, disse ele, sem se afastar da porta. “Sou Guido Brunetti. Nos conhecemos alguns anos atrás.”

Era aquele policial, o mesmo que havia investigado o caso Wellauer em La Fenice. Ele não fora nenhum tapado, ela se recordou, e Brett, por razões que Flavia jamais conseguiu entender, o achara simpatico.

“Bom dia, dottor Brunetti”, respondeu Flavia formalmente, mantendo a voz baixa. Ela parou, lançou um olhar para Brett para ver se ela continuava adormecida e caminhou até onde ele estava. Ela estendeu a mão e ele a cumprimentou rapidamente.

“Eles o encarregaram disto?”, perguntou. Mal tinha terminado de falar, ela percebeu o quanto sua pergunta fora agressiva e lamentou tê-la feito.

Ele ignorou o tom e respondeu a pergunta: “Não, signora, eu reconheci o nome da dottoressa Lynch no relatório sobre o assalto e vim ver como ela estava”. Antes mesmo de Flavia poder comentar a sua lentidão, ele explicou: “O caso foi entregue a outra pessoa; eu só vi o relatório esta manhã”. Ele fitou a mulher adormecida, deixando seu olhar fazer a pergunta.

“Melhor”, disse Flavia. Ela recuou e fez um gesto para ele se aproximar do leito. Brunetti atravessou o quarto e parou logo atrás da cadeira de Flavia. Ele pousou sua maleta no chão, apoiou as duas mãos no encosto da cadeira e fitou o rosto da mulher espancada. Por fim, perguntou: “O que houve?”. Ele havia lido o relatório e as transcrições do relato que Flavia fizera, mas queria ouvir a versão dela.

Flavia resistiu ao impulso de lhe dizer que isso era exatamente o que ele supostamente devia descobrir; em vez disso explicou, mantendo a voz baixa: “Dois homens vieram ao apartamento no domingo. Eles disseram que eram do museu e traziam papéis para Brett. Ela atendeu à porta. Depois de ela ter ficado um longo tempo com eles no hall, eu fui até lá para ver por que ela estava demorando tanto, e a encontrei no chão”. Enquanto ela falava, ele anuía com a cabeça; tudo isso estava no depoimento que ela dera a dois policiais diferentes.

“Quando cheguei, tinha uma faca na mão. Estava picando legumes, e simplesmente me esqueci dela. Quando vi o que estavam fazendo, não pensei. Cortei um deles. Um corte feio, no braço. Eles saíram correndo do apartamento.”

“Roubo?”, ele perguntou.

Ela deu de ombros. “É possível. Mas por que teriam feito isso?”, perguntou, indicando Brett com a mão.

Ele novamente fez que sim e murmurou: “Certo, certo”. Ele recuou e voltou a ficar perto dela, e então perguntou com voz normal: “Há muita coisa de valor no apartamento?”.

“Acho que sim. Tapetes, quadros, cerâmicas.”

“Então pode ter sido um roubo?”, ele perguntou, e para Flavia isso soou como se ele estivesse tentando se convencer.

“Eles disseram que vinham da parte do diretor do museu. Como eles sabiam disso?”, ela perguntou. Roubo não fazia sentido para ela, e menos sentido ainda cada vez que olhava para o rosto de Brett. Se esse policial não entendia isso, ele não entendia nada.

“Qual é a gravidade dos ferimentos?”, ele perguntou, sem responder à pergunta dela. “Não tive tempo de falar com os médicos.”

“Costelas quebradas e um osso trincado no maxilar, mas não há sinal de concussão.”

“A senhora falou com ela?”

“Falei.” Sua resposta brusca o lembrou de que não houvera grande simpatia entre eles na última vez em que se encontraram.

“Lamento que isso tenha acontecido”, disse ele como homem, não como funcionário público.

Flavia concordou com a cabeça de forma automática, mas não disse nada.

“Ela vai ficar boa?” A pergunta, formulada dessa maneira, respeitava o conhecimento íntimo que Flavia tinha de Brett, reconhecia sua habilidade para, naquelas circunstâncias, auscultar o pulso espiritual da companheira e ver quanto dano lhe causara aquela agressão.

Flavia ficou confusa com o desejo de lhe agradecer pela pergunta e, com ela, o reconhecimento de sua posição na vida de Brett. “Sim, vai ficar boa.” E, em seguida, de maneira mais prática: “E a polícia? Vocês descobriram alguma coisa?”.

“Não, temo que não”, disse Brunetti. “As descrições que a senhora deu dos dois homens não correspondem a ninguém que conhecemos. Checamos os hospitais, aqui e em Mestre, mas ninguém foi admitido com um ferimento a faca. Estamos analisando o envelope em busca de impressões digitais.” Ele não disse a ela que a camada de sangue em um de seus lados tornara isso difícil, nem que o envelope estava vazio.

Atrás dele, Brett virou-se na cama, suspirou, e em seguida se aquietou.

“Signora Petrelli”, ele começou, mas depois parou, procurando as palavras certas. “Gostaria de me sentar com ela por alguns instantes, se não se importa.”

Flavia se pegou imaginando por que se sentia tão agradecida pela casual aceitação por parte dele do que ela e Brett eram uma para a outra, e depois se surpreendeu ainda mais ao perceber que não tinha uma ideia clara do que aquilo significava. Movida por esses pensamentos, ela puxou uma cadeira de trás da porta e a colocou perto da outra onde estivera sentada.

“Grazie”, disse ele. Ele se sentou, recostou-se na cadeira, e cruzou os braços. Ela teve a impressão de que ele estava preparado para ficar ali o dia todo, se fosse preciso.

Ele não fez nenhuma nova tentativa de falar com ela, ficando ali sentado à espera dos acontecimentos. Ela ocupou seu lugar na cadeira ao lado dele, surpresa pela pouca necessidade que sentia de manter uma conversa com ele ou ser socialmente correta. Dez minutos se passaram. Aos poucos, foi se recostando no alto do encosto e cochilou, mas acordou com um sobressalto quando sua cabeça pendeu para a frente. Ela consultou o relógio. Onze e meia. Fazia uma hora que ele estava ali.

“Ela acordou?”, Flavia lhe perguntou.

“Acordou, mas só por alguns minutos. E não disse nada.”

“Ela o viu?”

“Viu.”

“Ela o reconheceu?”

“Sim, acho que sim.”

“Certo.”

Após uma pausa prolongada, ele disse: “Signora, gostaria de ir para casa um pouco? Para comer alguma coisa, talvez? Eu posso ficar aqui. Ela me viu com a senhora, por isso não terá medo se acordar e me vir”.

Horas antes, Flavia havia sentido uma fome cavalar; agora, todos os sinais dela haviam desaparecido. Mas a combinação de fadiga e sujeira permanecia, e ante a ideia de uma ducha, toalhas limpas, cabelos limpos, roupas limpas, ela quase arquejou de vontade. Brett estava dormindo, e o que seria mais seguro do que deixá-la com um policial? A ideia foi se fortalecendo. “Sim”, disse, pondo-se de pé. “Não vou demorar muito. Se ela acordar, por favor diga-lhe aonde fui.”

“Com certeza”, disse ele, se levantando enquanto Flavia apanhava sua bolsa e tirava o casaco de trás da porta. Antes de deixar o quarto, ela se virou para se despedir e endereçou-lhe o primeiro sorriso de verdade que já lhe dera, e fechou a porta tomando cuidado para não fazer barulho.

 

 

Quando a signorina Elettra lhe entregara o relatório do roubo naquela manhã, ele mal passara os olhos nele, especialmente depois de ver que o caso estava sendo conduzido pelo setor uniformizado. Quando o vira pôr de lado na sua escrivaninha, a signorina Elettra dissera, antes de voltar para a sua sala: “O senhor pode querer dar uma olhada nisso, dottore”.

O endereço não lhe chamara a atenção, mas endereços significam bem pouco numa cidade com meros seis códigos postais diferentes. O nome, todavia, saltara da página: Brett Lynch. Ele não sabia que ela tinha voltado da China, havia se esquecido dela nos anos transcorridos desde seu último encontro. Fora a memória desse encontro e de tudo que o precedera que o levara ao hospital.

A linda mulher jovem que ele conhecera alguns anos antes estava agora irreconhecível, podendo facilmente trocar de lugar com qualquer uma das legiões de mulheres espancadas e desfiguradas que vira em seus anos na polícia. Observando-a, ele compôs uma lista dos homens que sabia capazes desse tipo de violência contra uma mulher — não uma que conhecessem, mas uma que houvessem encontrado ao cometer um crime. A lista resultou muito curta: um deles estava preso em Trieste e o outro estava na Sicília, ou assim se pensava. A lista dos que o fariam a mulheres que conheciam era muito mais extensa, e alguns estavam em Veneza, mas ele duvidou que algum daqueles homens a conheceria ou teria motivo para fazer aquilo.

Roubo? A signora Petrelli dissera aos dois policiais que a inquiriram que os dois homens que bateram no apartamento não tinham a menor ideia de que havia mais alguém ali, por isso o espancamento não fazia sentido. Se eles tivessem a intenção de roubar o apartamento de Brett, poderiam tê-la amarrado ou trancado num quarto, e depois levariam tudo que quisessem à vontade. Nenhum dos ladrões que ele conhecia em Veneza teria agido com tamanha violência. Então, se não era roubo, era o quê?

Como ela não abriu os olhos, sua voz, quando falou, o surpreendeu. “Mi dai da bere? ”

Sobressaltado, ele se acercou dela.

“Água”, ela pediu.

Sobre a mesa, ao lado da cama, ele viu uma garrafa de plástico e um copo com um canudo. Ele encheu o copo e segurou o canudo encostado nos lábios de Brett enquanto ela bebia toda a água. Atrás de seus lábios ele avistou a gaiola de fios que amarrava seus maxilares. Isso explicava a fala engrolada, isso e os medicamentos.

O olho direito dela se abriu, um azul mais claro que a carne em sua volta. “Obrigada, comissário.” O olho piscou, permaneceu aberto. “Lugar estranho para nos reencontrarmos.” Por causa dos fios, sua voz parecia emitida por um rádio mal sintonizado.

“É”, ele concordou, sorrindo do absurdo da observação dela, com sua formalidade banal.

“Flavia?”, ela perguntou.

“Ela foi para casa um pouco. Logo estará de volta.”

Brett moveu a cabeça sobre o travesseiro e ele ouviu a súbita inspiração de ar. Após um instante, ela perguntou: “Por que está aqui?”.

“Vi seu nome no prontuário do crime e vim ver como estava.”

Os lábios dela se moveram minimamente, um sorriso talvez, cortado pela dor. “Não muito bem.”

O silêncio se prolongou entre eles. Finalmente, ele perguntou, apesar de ter dito a si mesmo que não o faria. “Lembra-se do que aconteceu?”

Ela fez um ruído de assentimento e começou a explicar. “Eles tinham papéis do dottor Semenzato, do museu.” Ele fez que sim, familiarizado com o nome e com o homem. “Eu os deixei entrar. Aí isto...” Sua voz decresceu, então ela disse: “Começaram isto...”.

“Eles disseram alguma coisa?”

Seu olho se fechou e ela ficou deitada em silêncio por um longo tempo. Ele não saberia dizer se ela estava tentando recordar ou decidindo se devia lhe contar. Passou tanto tempo que ele começou a pensar que ela havia adormecido de novo. Mas finalmente ela disse: “Disseram para eu não ir à reunião”.

“Que reunião?”

“Com Semenzato.” Então não tinha sido um roubo. Ele não disse nada. Não era hora de pressioná-la, não agora.

Com a voz ficando mais grossa e mais lenta, ela explicou: “Esta manhã, no museu. Cerâmica da exposição da China”. Houve uma longa pausa e ela lutou para manter o olho aberto. “Eles sabiam sobre mim e a Flavia.” Depois disso, sua respiração desacelerou e ele percebeu que ela adormecera de novo.

Ele ficou sentado, observando-a e tentando entender alguma coisa do que ela dissera. Semenzato era o diretor do museu do Palácio dos Doges. Até a reabertura do Palazzo Grassi restaurado, ele havia sido o museu mais famoso de Veneza, e Semenzato, o mais importante diretor de museu. Talvez ainda fosse. Afinal, o Palácio dos Doges havia montado a mostra de Ticiano; tudo que o Palazzo Grassi havia apresentado nos últimos anos fora Andy Warhol e os Celtas, ambas produto da “nova” Veneza, e por isso mais o resultado de badalação da mídia que de um estudo artístico sério.

Fora Semenzato, recordou Brunetti, que havia ajudado a acertar, cerca de cinco anos antes, a exposição de arte chinesa, e Brett Lynch servira de intermediária entre a administração municipal e o governo chinês. Ele vira a mostra muito antes de conhecer Brett, e ainda podia se lembrar de algumas peças expostas: as estátuas de guerreiros de terracota em tamanho natural, uma carruagem de bronze e um conjunto completo de cota de malha decorativa, feito com milhares de peças de jade entrelaçadas. Havia pinturas também, mas ele as considerara enfadonhas: chorões, homens barbudos e as mesmas velhas pontes frágeis. A estátua do soldado, porém, o assombrara, e ele se lembrou de ter ficado imóvel diante dela, estudando o rosto e discernindo nele fidelidade, coragem e honra, signos de uma humanidade comum que se estendera por dois milênios e metade do mundo.

Brunetti havia encontrado Semenzato em várias ocasiões e o considerava um homem inteligente, charmoso, com a pátina de modos graciosos que homens em cargos públicos adquirem com o passar dos anos. Veneziano, de uma família antiga, Semenzato era um de muitos irmãos, todos ligados a antiguidades e artes, ou ao comércio dessas coisas.

Como Brett havia organizado a mostra, fazia sentido ela se encontrar com Semenzato ao retornar a Veneza. O que não fazia nenhum sentido era alguém tentar impedir esse encontro e chegar a extremos tão brutais para isso.

Uma enfermeira carregando uma pilha de lençóis no braço entrou no quarto sem bater e pediu para ele sair enquanto banhava a paciente e mudava a roupa de cama. Obviamente, a signora Petrelli havia dado gorjetas ao pessoal do hospital, cuidando que os pequenos envelopes, bustarelle, fossem entregues nas mãos certas. Na falta desses “presentes”, até os serviços mais básicos não seriam prestados aos pacientes daquele hospital, e mesmo com eles, sobrava para a família alimentar e dar banho no paciente.

Ele saiu do quarto e ficou parado em frente de uma janela no corredor, fitando o pátio central que integrava o mosteiro original do século XV. No lado oposto ao que estava, viu o novo pavilhão que fora construído e inaugurado com tanto alarde: medicina nuclear, as tecnologias mais avançadas de toda a Itália, os médicos mais famosos, uma nova era em atendimento médico para os cidadãos exorbitantemente tributados de Veneza. Nenhuma despesa fora poupada; o prédio se elevava como uma maravilha arquitetônica, seus altos arcos de mármore como um reflexo moderno dos arcos graciosos que permaneciam no Campo SS. Giovanni e Paolo e conduziam ao hospital principal.

A cerimônia de inauguração foi realizada, houve discursos e a imprensa compareceu, mas o prédio nunca foi usado. Não tinha canos de escoamento. Nem esgoto. E nenhuma responsabilidade. O arquiteto se esquecera de colocá-los no projeto original, ou os construtores não os instalaram onde deveriam ficar? A única coisa certa foi que a responsabilidade não recaiu em ninguém e que os canos teriam de ser acrescentados ao prédio já terminado, com uma despesa enorme.

A leitura de Brunetti do caso foi que aquilo havia sido planejado assim desde o momento da concepção, para que o construtor obtivesse não só o contrato original para construir o novo pavilhão, mas o trabalho posterior de destruir boa parte do que fora construído para instalar os canos esquecidos.

Alguém riu ou chorou? O prédio fora deixado sem proteção após a inauguração que não foi inauguração, e vândalos já tinham quebrado e danificado alguns equipamentos, de modo que agora o hospital pagava vigias para patrulhar os corredores vazios, e pacientes que necessitavam dos tratamentos e procedimentos que ele supostamente devia fornecer eram enviados a outros hospitais, ou convidados a esperar, ou ir para clínicas particulares. Ele já não conseguia se lembrar de quantos bilhões de liras haviam sido gastos. E as enfermeiras precisavam receber propina para trocar os lençóis.

De repente, Flavia Petrelli apareceu na extremidade distante do pátio, e ele a observou caminhar, quase imperial, pelo espaço aberto. Ninguém a reconheceu, mas todo homem com quem ela cruzava reparava nela. Ela trajava um vestido longo púrpura que balançava de um lado para outro enquanto andava. Sobre os ombros, uma pelerine de pele, nada mais nada menos do que vison. Vendo-a cruzar o pátio, ele se recordou de uma passagem que lera muitos anos antes descrevendo a entrada de uma mulher num hotel. Ela era tão segura de sua riqueza e posição que se desvencilhou da estola de vison com um erguer de ombros, certa de que haveria um criado por ali para apanhá-la. Flavia Petrelli não precisava ler sobre essas coisas num livro. Ela tinha absoluta certeza do seu lugar no mundo.

Ele a observou enquanto ela entrava em um dos poços de escada arqueados que conduziam aos pavimentos superiores. Ela subia os degraus de dois em dois, ele notou, com uma pressa que destoava do vestido e da pelerine de pele. Segundos depois, apareceu no alto da escada, e seu rosto ficou tenso quando o avistou fora do quarto. “O que há?”, perguntou, caminhando apressada na direção dele.

“Nada. Chegou uma enfermeira.”

Ela entrou no quarto sem se preocupar em bater. Minutos depois, a enfermeira saía carregando uma braçada de roupas de cama e uma bacia esmaltada. Ele esperou mais alguns minutos, depois bateu na porta e foi admitido.

Quando entrou no quarto, ele notou que a cabeceira da cama fora ligeiramente elevada, e Brett estava recostada, a cabeça apoiada em travesseiros. Flavia estava sentada ao seu lado segurando o copo perto de seus lábios, enquanto ela sorvia o canudinho. A aparência de seu rosto era menos chocante agora, fosse porque Brunetti tivera tempo de se acostumar com ele, fosse porque agora se podia ver as partes dele que não estavam machucadas.

Ele se inclinou, apanhou a maleta onde a havia deixado e se aproximou do leito. Brett retirou uma mão de baixo das cobertas e escorregou-a pela cama na direção dele. Ele a cobriu rapidamente com a sua. “Obrigada”, disse ela.

“Eu volto amanhã, se puder.”

“Por favor. Não posso explicar agora, mas explicarei.”

Flavia começou a retrucar, mas se calou. Ela lançou um sorriso a Brunetti que começou profissional, porém surpreendeu a ambos quando ficou inteiramente natural. “Obrigada por ter vindo”, ela disse, surpreendendo a ambos de novo com a sinceridade de sua voz.

“Até amanhã, então”, disse ele, apertando a mão de Brett. Flavia permaneceu ao lado da cama enquanto ele saía do quarto. Ele enveredou pelos degraus que ela havia percorrido e virou à esquerda no pé da escada para o pórtico coberto que corria ao longo do pátio aberto. Uma velha envolvida num capote do exército estava sentada numa cadeira de rodas ao lado do corredor, tricotando. Aos seus pés, três gatos disputavam o cadáver de um camundongo.


4

 

 

 

 

No caminho de volta para a questura, Brunetti estava perturbado pelo que vira e ouvira. Ela se recuperaria, percebeu; as feridas iriam cicatrizar e seu corpo voltaria a ser como era. A signora Petrelli acreditava que ela ficaria boa, mas a experiência lhe dizia que os efeitos de tamanha violência persistiriam durante anos, talvez, quando menos como um medo real e súbito que lhe surgiria inesperadamente. Bem, talvez ele estivesse errado e os americanos fossem mais duros que os italianos, e talvez Brett saísse disso sem sequelas, mas ele não conseguia se livrar da preocupação.

Quando entrou na questura, um dos guardas uniformizados se aproximou. “O dottor Patta o está procurando, senhor”, ele disse, mantendo a voz baixa e neutra. Parecia que todo mundo no lugar mantinha a voz baixa e neutra quando falava do vice-questore.

Brunetti agradeceu e seguiu para a escada no fundo do prédio, o caminho mais rápido até o seu escritório. O interfone estava soando quando entrou. Ele largou a maleta em cima da escrivaninha e pegou o receptor.

“Brunetti?”, perguntou Patta desnecessariamente, antes mesmo de Brunetti ter se anunciado. “É você?”

“Sou eu, senhor”, respondeu, folheando os papéis que haviam se acumulado na escrivaninha nas horas que passara fora.

“Estou tentando ligar para você a manhã toda, Brunetti. Precisamos tomar uma decisão sobre a conferência de Stresa. Venha até o meu escritório agora mesmo”, ordenou, e depois temperou com um resmungado “pode ser?”.

“Sim, senhor. Imediatamente.” Brunetti desligou, folheou o resto dos papéis, abrindo uma carta e lendo-a duas vezes. Ele foi até a janela e leu mais uma vez o relatório do ataque à casa de Brett, depois saiu para o escritório de Patta.

A signorina Elettra não estava na sua escrivaninha, mas uma vasilha rasa transbordando de frésias amarelas enchia a sala de um aroma quase tão doce quanto a sua presença.

Ele bateu e esperou para ser admitido. Um som abafado o convidou a entrar. Patta posava na moldura criada por uma das grandes janelas de seu escritório, fitando a fachada eternamente cercada de tapumes da igreja de San Lorenzo. A pouca luz do ambiente conseguia faiscar nos pontos radiantes do corpo de Patta: as pontas de seus sapatos, a corrente de ouro que pendia na frente de seu colete, e o minúsculo rubi que cintilava de leve em seu alfinete de gravata. Ele fitou Brunetti e cruzou a sala até a sua escrivaninha. Enquanto andava, Brunetti observou o quanto seu movimento pela sala se esforçava para imitar o de Flavia Petrelli no hospital. O contraste estava na absoluta indiferença dela ao efeito que podia estar causando; para Patta, era esse o propósito de cada movimento. O vice-questore ocupou seu lugar atrás da escrivaninha e fez um gesto para Brunetti tomar uma cadeira diante dele.

“Onde é que você andou a manhã toda?”, Patta perguntou sem preâmbulo.

“Fui falar com a vítima de uma tentativa de roubo”, explicou Brunetti. Ele deu um tom vago as suas observações e, assim esperava, o menos significativo possível.

“É para isso que temos homens uniformizados.”

Brunetti permaneceu em silêncio.

Voltando a atenção para o assunto em pauta, Patta perguntou: “E a conferência de Stresa? Qual de nós vai participar?”.

Duas semanas antes, Brunetti havia recebido um convite para uma conferência que estava sendo organizada pela Interpol, a se realizar na cidade resort de Stresa, no lago Maggiore. Como ela lhe permitiria renovar amizades e contatos com policiais dos vários departamentos da rede da Interpol, e porque o programa oferecia treinamento nas mais modernas técnicas de computador para o armazenamento e a recuperação de informações, Brunetti pretendia participar. Patta, ciente de que Stresa era um dos resorts mais badalados da Itália e possuía um clima que convidava a uma escapada do frio úmido do fim de inverno veneziano, havia sugerido que podia ser melhor que ele mesmo fosse. Mas como o convite era dirigido especificamente a Brunetti e trazia uma anotação manuscrita para ele do organizador da conferência, Patta achara difícil convencer Brunetti a abrir mão de seu direito de ir. Com grande relutância, Patta estava quase a ponto de ordenar-lhe que não fosse.

Brunetti cruzou as pernas e puxou o bloco de anotações do bolso. Como era usual, as páginas não continham nada relacionado a assuntos policiais, mas Patta, como sempre, não percebeu. “Vou checar as datas”, disse Brunetti, folheando as páginas. “Dia dezesseis, não é? Até vinte?” Sua pausa foi dramática, orquestrada para a crescente impaciência de Patta. “Já não estou certo de estar livre naquela semana.”

“Que datas você disse?”, perguntou Patta, avançando algumas semanas no seu calendário de mesa. “Dezesseis a vinte.” Sua pausa foi ainda mais dramática que a de Brunetti. “Bem, se não puder ir, eu posso. Terei de remarcar uma reunião com o ministro do Interior, mas acho que posso conseguir.”

“Isso seria melhor, senhor. Tem certeza de que pode dispor do tempo?”

O olhar de Patta era indecifrável. “Tenho.”

“Bem, então está resolvido”, disse Brunetti, com falso entusiasmo.

Deve ter sido alguma coisa em seu tom, ou, talvez, em sua presteza, que disparou campainhas de alarme em Patta. “Onde esteve esta manhã?”

“Já lhe disse, senhor, falando com a vítima de uma tentativa de roubo.”

“Que vítima?”, perguntou Patta, a voz carregada de suspeitas.

“Uma estrangeira que vive aqui.”

“Qual estrangeira?”

“A dottoressa Lynch”, Brunetti respondeu e observou o rosto de Patta registrar o nome. Por um instante, seu semblante ficou vazio, mas depois seus olhos se estreitaram enquanto ele puxava pela memória a identidade dela. Enquanto o observava, Brunetti registrou o momento exato em que Patta se lembrou não só de quem, mas do que ela era.

“A lésbica”, murmurou, mostrando o que pensava a seu respeito com o desprezo conferido à palavra. “O que houve com ela?”

“Foi atacada em sua casa.”

“Quem atacou? Algum sapatão que ela apanhou num bar?” Quando percebeu os efeitos de suas palavras em Brunetti, moderou o tom e perguntou: “O que aconteceu?”.

“Ela foi atacada por dois homens”, explicou Brunetti, e acrescentou: “nenhum deles parecia ser um ‘sapatão’. Ela está no hospital.”

Patta ergueu os ombros para não ter que fazer nenhuma observação e perguntou: “É por isso que você estará ocupado demais para ir à conferência?”.

“A conferência só vai acontecer no próximo mês, senhor. Tenho alguns casos pendentes.”

Patta grunhiu para expressar sua descrença e depois perguntou bruscamente: “O que foi que eles levaram?”.

“Aparentemente, nada.”

“Por quê? Não foi um roubo?”

“Alguém os impediu. E não sei se era um roubo.”

Patta ignorou a segunda parte do que Brunetti dissera e saltou sobre a primeira. “Quem impediu, aquela cantora?”, perguntou, como se Flavia Petrelli cantasse em esquinas de ruas por moedas e não por uma fortuna no Scala.

Quando Brunetti não retrucou a isso, Patta continuou: “Claro que foi roubo. Ela tem uma fortuna naquele lugar”. Brunetti se surpreendeu, não com a inveja nua e crua na voz de Patta, que parecia sua resposta normal à riqueza, mas pelo fato de que ele não tinha a menor ideia do que havia no apartamento de Brett.

“Talvez”, disse Brunetti.

“Não tem nenhum talvez nisso”, insistiu Patta. “Se havia dois homens, foi roubo.” Será que as mulheres, Brunetti impediu-se de perguntar, se ocupam naturalmente de outros crimes? Patta olhava fixamente para ele. “Isso significa que a coisa pertence ao esquadrão de roubos. Deixe isso com eles. Isto aqui não é um clube social, comissário. Nosso negócio não é ajudar as suas amigas quando elas se metem em encrencas, especialmente suas amigas lésbicas”, disse ele num tom que conjurava montes delas, como se Brunetti fosse uma santa Úrsula moderna, com onze mil jovens em seu séquito, todas virgens e lésbicas.

Brunetti precisara de anos para se acostumar com a irracionalidade fundamental de boa parte do que seu superior dizia, mas havia momentos em que Patta ainda conseguia surpreendê-lo com a amplitude e paixão de suas afirmações mais bárbaras. E irritá-lo. “Isso é tudo, senhor?”, perguntou.

“É, isso é tudo. E lembre-se: é um roubo, e não é para ser tratado...” Ele foi interrompido pelo som do telefone. Irritado com o ruído, Patta agarrou o receptor e gritou no bocal: “Eu já disse para segurar qualquer ligação”. Brunetti esperava que ele desligasse o fone com violência, mas Patta apertou-o mais contra o ouvido, e Brunetti observou o choque se estampar em seu rosto.

“Estou, estou, claro que estou”, disse Patta. “Ponha ele na linha.”

Patta sentou-se um pouco mais ereto na cadeira e alisou os cabelos com as mãos, como se o interlocutor na outra ponta do telefone pudesse vê-lo. Ele sorriu, sorriu novamente, e esperou pela voz do outro lado. Brunetti ouviu o trovejar distante de uma voz masculina, e depois Patta respondeu: “Boa noite, senhor. Sim, sim, muito bem, obrigado. E o senhor?”.

A resposta chegou abafada e indiscernível até Brunetti, do outro lado da escrivaninha. Patta pegou a caneta que estava sobre a mesa de trabalho, esquecendo-se da Mont Blanc Meisterstück no bolso do paletó. Ele apanhou um pedaço de papel e colocou-o na sua frente. “Sim, sim, senhor. Ouvi falar disso. De fato, eu estava justamente discutindo isso agora.” Ele fez uma pausa e mais palavras escoaram pelo fone, chegando a Brunetti como um murmúrio abafado.

“Sim, senhor. Eu sei. É terrível. Fiquei chocado de ouvir isso.” Outra pausa para esperar pela voz dizer mais alguma coisa. Seus olhos dardejaram na direção de Brunetti e se afastaram com igual velocidade. “Sim, senhor. Um de meus homens já falou com ela.” Houve uma forte erupção de palavras na outra ponta. “Não, senhor, é claro que não. É alguém que a conhece. Eu lhe falei especificamente para não perturbá-la, só para ver como ela estava e falar com seus médicos. Claro, senhor. Eu entendo, senhor!”

Patta pegara a caneta pela ponta e tamborilava cadenciadamente com ela na escrivaninha. Ele ouvia. “Claro, claro, vou empregar tantos homens quantos forem necessários, senhor. Conheço a generosidade dela para com a cidade.”

Ele disparou outro olhar para Brunetti, e depois fitou a caneta irrequieta, forçando-se a deixá-la sobre a escrivaninha.

Ele ficou ouvindo durante um longo tempo, os olhos fixos na caneta. Uma vez ou outra, tentou falar, mas a voz distante o cortou. Por fim, a mão agarrada no telefone, conseguiu dizer: “O mais breve possível. Eu o manterei pessoalmente informado. Sim, senhor. Sim”. Não teve tempo de dizer até logo; a voz na outra ponta havia sumido.

Ele pousou o telefone suavemente e olhou para Brunetti. “Como você deve ter percebido, eu falava com o prefeito. Não sei como ficou sabendo, mas ficou.” Deixou clara sua suspeita de que Brunetti havia ligado e gravado uma mensagem anônima no escritório do prefeito.

“Parece que a dottoressa”, ele começou, pronunciando a palavra num tom que colocava em dúvida a qualidade da instrução em Harvard e Yale, escolas onde a dottoressa Lynch se formara, “é amiga dele, e”, acrescentou após uma pausa cheia de significado, “uma benfeitora da cidade. Por isso o prefeito quer que caso seja tratado e resolvido o quanto antes.”

Brunetti permaneceu em silêncio, sabendo como seria perigoso fazer qualquer tipo de sugestão a essa altura. Ele fitou o papel sobre a mesa de Patta e depois o rosto de seu superior.

“No que está trabalhando agora?”, perguntou Patta. Brunetti logo percebeu que isso significava que ele receberia a investigação.

“Nada que não possa esperar.”

“Então quero que cuide disso.”

“Sim, senhor”, ele disse, na expectativa de que Patta não especificasse os passos.

Tarde demais. “Vá até o apartamento dela. Veja o que consegue descobrir. Fale com os vizinhos.”

“Sim, senhor”, disse Brunetti, e levantou-se, na esperança de cortá-lo.

“Mantenha-me informado sobre isso, Brunetti.”

“Sim, senhor.”

“Quero isso resolvido rapidamente, Brunetti. Ela é amiga do prefeito.” E, Brunetti sabia, qualquer amiga do prefeito era amiga de Patta.


5

 

 

 

 

De volta ao seu escritório, Brunetti fez uma ligação e pediu para Vianello se apresentar. Alguns minutos depois, o sargento entrou e se deixou cair pesadamente na cadeira diante do comissário. Tirou um bloco de notas do bolso do uniforme e lançou um olhar inquisitivo a Brunetti.

“O que sabe sobre gorilas, Vianello?”

Vianello considerou a pergunta por um momento e depois perguntou, desnecessariamente: “O tipo do zoológico ou o tipo que é pago para machucar pessoas?”.

“O tipo que é pago.”

Vianello ficou em silêncio por um momento percorrendo listas que pareciam arquivadas em sua mente. “Acho que não há nenhum aqui na cidade, senhor. Mas em Mestre há quatro ou cinco deles, a maioria sulista.” Ele fez uma pausa, folheando mais listas. “Ouvi dizer que há alguns em Pádua e alguns que trabalham em Treviso e Pordenone, mas são provincianos. Os de verdade são os rapazes de Mestre. Problemas com eles aqui?”

Como o setor uniformizado havia feito a investigação inicial e conduzido as entrevistas com Flavia, Brunetti sabia que Vianello devia estar informado sobre o ataque. “Falei com a dottoressa Lynch esta manhã. Os homens que a atacaram disseram para ela não comparecer a uma reunião com o dottor Semenzato.”

“Do museu?”, perguntou Vianello.

“O próprio.”

Vianello meditou por alguns instantes. “Não foi um roubo, então?”

“Não, parece que não. Alguém os impediu.”

“A signora Petrelli?”, perguntou Vianello.

O segredo de um banco suíço não duraria um dia em Veneza. “Foi. Ela os afugentou. Mas parece que não estavam interessados em levar coisa alguma.”

“Miopia da parte deles. Seria um bom lugar para roubar.”

Depois dessa, Brunetti sucumbiu. “Como sabe disso, Vianello?”

“A vizinha da minha cunhada é criada dela. Vai três vezes por semana para limpar, e cuida do lugar quando ela está na China. Ela falou do que existe lá, diz que deve valer uma fortuna.”

“Não é muito esperto ficar falando isso sobre um lugar que é deixado tanto tempo vazio, não é?”, perguntou Brunetti, com rispidez.

“Foi precisamente o que eu disse a ela, senhor.”

“Espero que ela tenha escutado.”

“Eu também.”

Como sua reprimenda indireta não havia funcionado, Brunetti voltou aos gorilas. “Verifique de novo os hospitais para ver se o sujeito que ela feriu esteve lá. Ao que parece, o corte foi feio. E as impressões digitais naquele envelope?”

Vianello consultou seu bloco. “Enviei cópias a Roma e pedi para eles nos informarem sobre o que encontrarem.” Os dois sabiam o tempo que isso levaria.

“Tente a Interpol também.”

Vianello fez que sim e acrescentou a sugestão a suas anotações. “E Semenzato?”, Vianello perguntou. “Sobre o que era a reunião?”

“Não sei. Cerâmica, acho, mas ela estava sedada demais para explicar com clareza. Sabe alguma coisa sobre ele?”

“Não mais que qualquer um na cidade, senhor. Ele está no museu há cerca de sete anos. Casado, mulher de Messina, eu acho. Algum lugar na Sicília. Sem filhos. Boa família, e sua reputação no museu é boa.”

Brunetti não se preocupou em perguntar a Vianello como ele conseguira a informação, não se surpreendendo mais com o arquivo de informações pessoais que o sargento acumulara em seus anos na polícia. Em vez disso, disse: “Veja o que pode descobrir sobre ele. Onde trabalhou antes de vir para cá e por que saiu, onde estudou”.

“Vai falar com ele, senhor?”

Brunetti considerou isso por um instante. “Não. Se quem os enviou queria assustá-la para não se aproximar dele, então é melhor que eles acreditem que conseguiram. Mas quero ver o que se pode descobrir sobre ele. E veja o que pode descobrir sobre aqueles homens em Mestre.”

“Sim, senhor”, respondeu Vianello, tomando nota disso. “O senhor perguntou a ela sobre o sotaque deles?”

Brunetti já havia pensado nisso, mas tivera muito pouco tempo com Brett. O italiano dela era perfeito, de modo que pelos sotaques dos homens teria tido uma ideia de que parte do país eles eram. “Vou perguntar amanhã.”

“Enquanto isso, eu vou procurar gorilas em Mestre”, disse Vianello. Com um grunhido, ele se levantou da cadeira e saiu do escritório.

Brunetti empurrou a cadeira para trás, abriu a gaveta inferior da escrivaninha com o dedão do pé, e apoiou os pés cruzados sobre ela. Refestelado na cadeira, com os dedos entrelaçados atrás da cabeça, ele se virou e olhou pela janela. Daquele ângulo, a fachada de San Lorenzo não era visível, mas ele podia ver um pedaço do céu nublado de fim de inverno, uma monotonia propícia a induzir conjecturas.

Brett dissera alguma coisa sobre as cerâmicas da mostra, e só poderia se referir à mostra que ela havia ajudado a organizar quatro ou cinco anos antes, a primeira vez nos últimos anos em que frequentadores de museu do Ocidente tiveram a oportunidade de ver as maravilhas que estavam sendo desenterradas na China. E ele pensava que ela ainda estava na China.

Ele ficara surpreso de ver o nome dela no relatório criminal naquela manhã e chocado ao ver seu rosto machucado no hospital. Desde quando ela tinha voltado? Quanto tempo pretendia ficar? E o que a trouxera de volta a Veneza? Flavia Petrelli só poderia responder a algumas dessas perguntas; ela mesma poderia ser a resposta para uma delas. Mas essas perguntas podiam esperar; por enquanto, ele estava mais interessado no dottor Semenzato.

Ele deixou a cadeira tombar para a frente com um baque, pegou o telefone e discou um número de memória.

“Pronto”, disse a voz grave familiar.

“Ciao, Lele”, respondeu Brunetti. “Por que não está pintando?”

“Ciao, Guido, come stai ? ” Então, sem esperar resposta, ele explicou: “Não há luz suficiente hoje. Fui ao Zattere esta manhã, mas voltei sem fazer nada. A luz está muito uniforme, morta. Então vim aqui preparar o almoço para Claudia”.

“Como vai ela?”

“Ótima, ótima. E a Paola?”

“Bem, e os garotos também. Escute, Lele, queria falar com você. Pode reservar um tempo para mim esta tarde?”

“Falar falar ou assunto policial?”

“Assunto policial. Ou acho que é.”

“Estarei na galeria depois das três se quiser aparecer por lá. Até perto das cinco.” Do fundo, Brunetti ouviu um silvo, um “putanna Eva” murmurado e depois Lele disse: “Guido, preciso ir. A massa está transbordando”. Brunetti mal teve tempo de dizer até logo antes de o telefone emudecer.

Se existisse alguém a par da reputação de Semenzato, essa pessoa seria Lele. Gabriele Cossato, pintor, antiquário, amante da beleza, era tão parte de Veneza, parecia, quanto os quatro Mouros parados em eterna confabulação à direita da basílica de San Marco. Até onde Brunetti conseguia se lembrar, existira Lele, e Lele fora um pintor. Quando Brunetti pensava na infância, recordava-se de Lele, um amigo de seu pai, e se lembrava das histórias contadas então, mesmo para ele, pois sendo menino se esperava que compreendesse sobre as mulheres de Lele, aquela interminável sucessão de donne, signore, ragazze, com quem ele aparecia à mesa dos Brunetti. As mulheres haviam desaparecido agora, esquecidas em seu amor por sua esposa de muitos anos, mas sua paixão pela beleza da cidade permanecia, isso e sua ilimitada familiaridade com o mundo artístico e tudo que ele abarcava: antiquários e negociantes, museus e galerias.

Brunetti resolveu almoçar em casa e depois ir se encontrar com Lele diretamente de lá. Mas se lembrou então que era terça-feira, o que significava que Paola estaria almoçando com os membros de seu departamento na universidade, e que as crianças, portanto, comeriam com os avós, deixando-o sozinho para preparar o almoço. Desanimado com essa perspectiva, ele foi a uma trattoria local e passou a refeição pensando no que poderia haver de tão importante numa discussão entre uma arqueóloga e um diretor de museu que devesse ser evitado com tamanha violência.

Um pouco depois das três, ele cruzou a ponte Accademia e virou à esquerda para o Campo San Vio, em direção à galeria de Lele. O artista estava lá quando ele chegou, empoleirado numa escada portátil, com uma lanterna numa mão, um alicate descascador de fios na outra, mexendo numa maçaroca de fios elétricos com jeito de espaguete abrigada atrás de um painel de madeira no alto da sala dos fundos da galeria. Brunetti estava tão acostumado a ver Lele em seus ternos risca-de-giz com colete que, embora o pintor estivesse se equilibrando no alto da escada, sua posição não pareceu absolutamente incongruente. Olhando para baixo, Lele o cumprimentou: “Ciao, Guido, espere um minuto enquanto eu junto essas coisas”. Dizendo isso, pousou a lanterna no alto da escada, desencapou o plástico que cobria um fio, torceu a parte exposta num segundo fio, depois pegou um grosso rolo de fita isolante do bolso de trás e envolveu a conexão. Com a ponta do alicate, enfiou o fio de novo entre os outros que corriam paralelos a ele. Depois, olhando para Brunetti, disse: “Guido, vá até o depósito e ligue a chave”.

Obediente, ele foi até o grande depósito à direita e parou por um momento à porta esperando seus olhos se acostumarem à escuridão mais intensa.

“Logo à esquerda”, gritou Lele.

Virando, ele avistou o grande painel elétrico preso na parede. Acionou o disjuntor principal para baixo, e o depósito se inundou subitamente de luz. Ele esperou de novo, dessa vez para seus olhos se ajustarem à claridade, e só então voltou ao salão principal da galeria.

Lele já havia descido da escada, o painel fechado acima dele. “Segure a porta”, disse, e caminhou na direção de Brunetti carregando a escada. Ele rapidamente a guardou na sala dos fundos e saiu dali espanando a poeira com as mãos.

“Pantegana”, explicou, usando o nome veneziano para rato, uma palavra que, embora os nomeasse claramente — ratos — ainda conseguia torná-los, no nome, um pouco mais charmosos e domésticos. “Eles comem o revestimento dos fios.”

“Não pode envenená-los?”, perguntou Brunetti.

“Báá”, rosnou Lele. “Eles preferem o veneno ao plástico. Eles vicejam nele. Eu já nem posso deixar pinturas no depósito; eles vêm e comem a tela. Ou a madeira.”

Brunetti fitou automaticamente os quadros pendurados nas paredes da galeria, cenas vividamente coloridas da cidade, cheias de luz e da energia de Lele.

“Não, eles estão seguros. Estão altos demais. Mas algum dia eu ainda vou entrar e descobrir que os sacanas moveram a escada de noite e subiram para comer todos eles.” O fato de Lele rir ao dizer isso não o fez parecer menos sério a esse respeito. Ele largou o alicate e a fita numa gaveta e virou para Brunetti: “Tudo bem, que conversa é essa que deve ser assunto policial?”.

“Semenzato, do museu, e a exposição chinesa realizada anos atrás”, explicou Brunetti.

Lele grunhiu ao ouvir o nome e caminhou pela sala até embaixo de um candelabro de ferro batido preso à parede. Ele estendeu a mão e entortou uma das pontas em forma de folha um pouquinho para a esquerda, deu um passo para trás para observá-lo, depois se curvou para a frente e o entortou um pouquinho mais. Satisfeito, voltou até Brunetti.

“Ele está no museu há cerca de oito anos, Semenzato, e conseguiu organizar algumas mostras internacionais. Isso significa que tem boas conexões com museus ou com seus diretores em países estrangeiros, que conhece muita gente numa porção de lugares.”

“Mais alguma coisa?”, perguntou Brunetti, a voz neutra.

“É um bom administrador. Contratou algumas pessoas excelentes e as trouxe para Veneza. Há dois restauradores que ele praticamente roubou do Courtauld, e fez muitas mudanças na divulgação das exposições.”

“Sim, isso eu notei.” Às vezes Brunetti sentia que Veneza se transformara numa prostituta obrigada a escolher entre clientes distintos: primeiro, ofereceram à cidade a face de um brinco de vidro fenício, que virou um pôster reproduzido milhares de vezes, depois este foi rapidamente substituído por um retrato de Ticiano, que, por sua vez, foi expulso por Andy Warhol, ele próprio rapidamente banido por um cervo de prata celta, enquanto os museus cobriam cada superfície vaga da cidade e disputavam incansavelmente a atenção e a receita de bilheteria dos turistas de passagem. O que viria em seguida, ele se perguntava, camisetas de Leonardo? Não, eles já as tinham em Florença. Ele já vira cartazes de mostras de arte suficientes para durar uma vida no inferno.

“Você o conhece?”, perguntou Brunetti, tentando imaginar se era essa a razão para a objetividade pouco característica de Lele.

“Ah, nos cruzamos algumas vezes.”

“Onde?”

“Os museus me chamaram em algumas ocasiões para perguntar sobre peças de maiólica que lhes ofereciam, se eu achava que eram ou não autênticas.”

“E foi aí que o conheceu?”

“Foi.”

“O que achou dele pessoalmente?”

“Pareceu um homem muito agradável, competente.”

Brunetti cansou. “Vamos, Lele, isto não é oficial. Sou eu, Guido, perguntando a você, não o comissário Brunetti. Quero saber o que pensa dele.”

Lele baixou a vista para o tampo da escrivaninha diante dele, deslocou uma tigela de cerâmica poucos milímetros à esquerda, fitou Brunetti e disse: “Acho que seus olhos estão à venda”.

“O quê?”, perguntou Brunetti, sem compreender.

“Como Berenson. Veja, você vira um especialista em alguma coisa, e aí as pessoas o procuram e perguntam se uma peça é autêntica ou não. E como você passou anos ou talvez até a vida toda estudando algo, aprendendo sobre um pintor ou um escultor, eles acreditam em você quando diz que uma peça é autêntica. Ou que não é.”

Brunetti fez que sim. A Itália estava repleta de especialistas; alguns até sabiam do que estavam falando. “Por que Berenson?”

“Parece que ele vendeu seus olhos. Donos de galerias ou colecionadores particulares lhe pediam para autenticar certas peças, e às vezes ele dizia que elas eram genuínas, mas no fim não eram.” Brunetti começou a fazer uma pergunta, mas Lele o cortou. “Não, nem pergunte se poderia ter sido um erro honesto. Há provas de que ele foi pago, especialmente por Duveen, que ele pegou uma parte do bolo. Duveen tinha uma porção de clientes americanos; você conhece o tipo. Eles não se dão ao trabalho de aprender sobre arte, provavelmente nem gostam muito de arte, mas querem ser conhecidos como colecionadores. Aí Duveen casava o desejo e o dinheiro deles com a reputação e a expertise de Berenson e todos ficavam felizes; os americanos com seus quadros, todos com as ambicionadas atribuições; Duveen com o lucro das vendas; e Berenson com sua reputação e sua fatia do bolo.”

Brunetti fez uma pausa antes de perguntar: “E Semenzato faz isso?”.

“Não tenho certeza. Mas das quatro últimas peças que me trouxeram para dar uma olhada, duas eram imitações.” Ele pensou por alguns instantes, depois acrescentou, resmungando: “Boas imitações, mas ainda imitações”.

“Como soube?”

Lele o fitou como se Brunetti tivesse perguntado como sabia que determinada flor era uma rosa e não uma íris. “Eu as examinei”, disse ele, simplesmente.

“Você os convenceu?”

Lele considerou durante alguns instantes se ficaria ofendido com a pergunta ou não, mas depois se lembrou de que Brunetti era, afinal, apenas um policial. “Os curadores resolveram não comprar as peças.”

“Quem havia decidido comprá-las originalmente?” Mas ele sabia a resposta.

“Semenzato.”

“E quem as estava oferecendo?”

“Nunca nos disseram. Semenzato disse que era uma venda privada, que ele havia sido contatado por um intermediário que queria vender as peças, dois pratos que eram supostamente florentinos, do século XIV, e dois venezianos. Estes dois eram autênticos.”

“Todos da mesma fonte?”

“Acho que sim.”

“Eles poderiam ter sido roubados?”, perguntou Brunetti.

Lele pensou um pouco antes de responder. “Talvez. Mas peças importantes como essas, se forem autênticas, as pessoas sabem delas. Existe um registro de vendas, e as pessoas que conhecem maiólica têm uma ideia muito boa de quem possui as melhores peças e quando elas são vendidas. Mas não é assim com as peças florentinas. Elas eram falsas.”

“Qual foi a reação de Semenzato quando você disse que as peças eram falsas?”

“Oh, ele se declarou satisfeito por eu ter descoberto e poupado ao museu uma aquisição embaraçosa. Foi assim que ele o chamou, ‘uma aquisição embaraçosa’, como se fosse perfeitamente correto o intermediário tentar vender peças falsificadas.”

“Você disse alguma coisa disso a ele?”, perguntou Brunetti.

Lele deu de ombros, um gesto que resumia séculos, talvez milênios, de sobrevivência. “Não tive a sensação de que ele queria ouvir algo do gênero.”

“E o que aconteceu?”

“Ele falou que ia devolvê-las ao intermediário e dizer a ele que o museu não estava interessado naquelas duas peças.”

“E as outras?”

“O museu foi em frente e comprou.”

“Do mesmo intermediário?”

“Foi, acho que sim.”

“Você perguntou quem era?”

A pergunta rendeu outro daqueles olhares a Brunetti. “Você não pode perguntar isso”, explicou Lele.

Brunetti conhecia Lele desde que nascera, por isso perguntou: “Os curadores lhe disseram quem era ele?”.

Lele riu gostosamente ao ter sua pose magnânima abalada de modo tão fácil. “Perguntei a um deles, mas eles não tinham a menor ideia. Semenzato nunca mencionou o nome.”

“Como ele sabia que o vendedor não tentaria vender as que você não havia comprado a um outro museu, ou a um colecionador particular?”

Lele exibiu seu sorriso arqueado, um lado da boca virado para baixo, o outro para cima, um sorriso que Brunetti sempre achou que expressava muito bem o caráter italiano, nunca muito seguro de tristeza ou alegria, e sempre pronto para mudar de uma para a outra: “Não vi razão para mencionar isso a ele”.

“Por quê?”

“Ele sempre me pareceu o tipo de homem que não gosta de ser questionado ou aconselhado.”

“Mas você havia sido chamado para olhar os pratos.”

De novo, aquele sorriso. “Pelos curadores. É por isso que eu disse que ele não gostava de receber conselhos. Ele não gostou de eu ter dito que eles não eram autênticos. Foi cortês e me agradeceu a ajuda, disse que o museu estava grato. Mas não gostou daquilo.”

“Interessante, não é?”, perguntou Brunetti.

“Muito”, concordou Lele, “ainda mais vindo de um homem cujo trabalho é proteger a integridade da coleção do museu. E”, acrescentou, “cuidar que falsificações não permaneçam no mercado.” Ele passou pela frente de Brunetti e cruzou a sala diretamente até um quadro pendurado na parede oposta.

“Há mais alguma coisa que eu deva saber sobre ele?”, perguntou Brunetti.

De costas para Brunetti, olhando para sua própria pintura, Lele replicou: “Acho que provavelmente há muito mais coisa que você deveria saber sobre ele”.

“Como o quê?”, perguntou.

Lele voltou na direção dele e estudou a pintura de uma distância maior. Ele pareceu satisfeito com alguma correção que tivesse feito. “Nada específico. Sua reputação é muito alta na cidade, e ele tem uma porção de amigos bem situados.”

“O que você quer dizer?”

“Guido, o nosso mundo é pequeno”, Lele começou, e então parou.

“Você quer dizer Veneza ou aqueles de vocês que trabalham com antiguidades?”

“Os dois, mas especialmente nós. Só há uns cinco ou dez de nós na cidade que realmente contam: meu irmão, Bortoluzzi, Ravanello. E a maior parte do nosso trabalho é feita por sugestões e insinuações tão sutis que ninguém mais compreenderia o que está acontecendo.” Ele viu que Brunetti não estava entendendo, e tentou explicar. “Na semana passada, alguém me mostrou uma imagem policromada da Madona com o Menino Jesus adormecido no colo. Era um perfeito século XV. Toscano. Talvez do fim do século XIV até. Mas o negociante que a mostrou para mim pegou o bebê — eram duas peças separadas — e apontou para um lugar nas costas da estátua, pouco abaixo do ombro, onde a mais tênue das manchas podia ser vista.” Ele esperou a reação de Brunetti.

Como ela não veio, prosseguiu: “Isso queria dizer que era um anjo, não um Menino Jesus. A mancha cobria o lugar onde ficavam as asas, de onde elas haviam sido retiradas, quem sabe quando, e cobertas para que ficasse como um Menino Jesus”.

“Por quê?”

“Porque sempre houve mais anjos que Cristos. Daí a retirada das asas.” A voz de Lele foi sumindo.

“Deram-lhe uma promoção?”, perguntou Brunetti, compreendendo.

A gargalhada de Lele encheu a galeria. “Foi isso mesmo. Ele foi promovido a Cristo, e a promoção significou que ele pôde render muito mais dinheiro quando foi vendido.”

“Mas o negociante mostrou para você?”

“É aí que quero chegar, Guido. Ele me disse sem me dizer, apenas me mostrando aquela pequena mancha, e teria feito o mesmo a qualquer um de nós.”

“Mas não a um cliente casual?”, sugeriu Brunetti.

“Talvez não”, concedeu Lele. “Aquele remendo era tão bem feito, e a tinta o recobria tão perfeitamente, que pouquíssimas pessoas o teriam notado. Ou se tivessem, não saberiam o que aquilo significava.”

“Você saberia?”

Lele assentiu rapidamente. “Eventualmente sim, eu teria notado, se o tivesse levado para casa e convivido com ele.”

“Mas não o comprador casual?”

“Não, provavelmente não.”

“Então, por que ele te mostrou?”

“Porque achou que eu ainda poderia querer comprar a peça. E porque é importante para nós saber que, ao menos entre nós, não mentimos, ou enganamos, ou tentamos passar alguma coisa adiante pelo que sabemos que ela não é.”

“Existe uma moral nisso tudo, Lele?”, Brunetti perguntou, com um sorriso. Desde a sua infância, muitas vezes tinha havido uma lição oculta no que Lele lhe contava.

“Não estou certo se é uma moral, Guido, mas Semenzato não é um membro do clube. Ele não é um dos nossos.”

“E quem tomou essa decisão, ele ou você?”

“Não creio que alguém tenha realmente decidido. E com certeza nunca ouvi nada sobre ele diretamente.” Lele, um homem de imagens e não de palavras, olhou pela ampla janela da galeria e estudou os padrões de luz no canal distante. “É mais uma questão de ele nunca ter assumido ser um de nós do que de ter sido deliberadamente excluído.”

“Quem mais sabe disso?”

“Você é a primeira pessoa a quem falei da maiólica. E não estou seguro de que se pode dizer que alguém ‘sabe’ disso, ao menos não em algum nível consciente. É simplesmente algo que todos nós compreendemos.”

“Sobre ele?”

Rindo, Lele disse: “Sobre a maioria dos negociantes de antiguidades do país, se quer saber a verdade”. Depois, mais sério, acrescentou: “E, sim, sobre ele também”.

“Não é o melhor atributo para o diretor de um dos principais museus da Itália, não é?”, perguntou Brunetti. “Isso deixaria uma pessoa relutante em comprar uma Madona dele.”

Com outra explosão de riso, Lele disse: “Você devia conhecer alguns dos outros. Eu não compraria um escova de cabelo de plástico da maioria deles”. Os dois riram disso por alguns instantes, mas depois Lele perguntou, seriamente: “Por que está interessado nele?”.

Parte do juramento de Brunetti como representante da lei era nunca revelar informação policial a alguém não autorizado a ouvi-la. “Alguém não quer que ele fale sobre a exposição da China, a que foi realizada aqui há cinco anos.”

“Hum?”, murmurou Lele, pedindo mais informações.

“A pessoa que organizou a exposição tinha um encontro marcado com ele, mas ela foi espancada, seriamente espancada, e lhe disseram para não comparecer.”

“A dottoressa Lynch?”, perguntou Lele.

Brunetti fez que sim com a cabeça.

“Você falou com Semenzato?”, Lele perguntou.

“Não. Não quero chamar nenhuma atenção para ele. Quero que a pessoa que fez isso acredite que a advertência funcionou.”

Lele fez que sim e esfregou a mão de leve pelos lábios, algo que sempre fazia quando estava ruminando um problema.

“Será que podia xeretar por aí, Lele? Ver se existe alguma conversa sobre ele?”

“Que tipo de conversa?”

“Não sei. Dívidas, talvez. Mulheres. Se você consegue ter uma ideia de quem era aquele intermediário, ou alguma pessoa que ele possa conhecer que sabe quem está envolvido em...” Ele se atrapalhou, sem saber como nomear aquilo.

“Ele deve conhecer todo mundo no ramo.”

“Isso eu sei. Mas quero saber se está envolvido em alguma coisa ilegal.” Como Lele não respondeu, Brunetti disse: “Eu nem mesmo tenho certeza do que isso significa, e não estou certo de que você conseguirá descobri-lo”.

“Posso descobrir qualquer coisa”, disse Lele, calmamente; era uma declaração de fato, não uma presunção. Ele não disse nada por um momento, a mão ainda esfregando de leve os lábios comprimidos. Por fim ele abaixou a mão e disse: “Tudo bem. Conheço algumas pessoas a quem posso perguntar, mas vou precisar de um ou dois dias. Um dos homens com o qual pretendo falar está em Mianmar. Ligo para você no final da semana. Tudo bem?”.

“Está ótimo, Lele. Não sei como te agradecer.”

O pintor descartou a ideia com um gesto de mão. “Não me agradeça até eu descobrir alguma coisa.”

“Se houver alguma coisa”, Brunetti acrescentou, como que para desarmar a antipatia pelo diretor do museu que adivinhara em Lele.

“Oh, sempre há alguma coisa.”


6

 

 

 

 

Saindo da galeria de Lele, Brunetti dobrou à esquerda e enveredou pela passagem subterrânea que conduzia ao Zattere, a fondamenta longa e ampla que corria ao lado do canal da Giudecca. Do outro lado do canal, avistou a igreja da Zittelle e depois, mais longe, a do Redentore, com seus domos se projetando acima delas. Um vento forte soprava do leste, levantando ondulações espumosas que se chocavam com os vaporetti, balançando-os como brinquedinhos numa banheira. Mesmo daquela distância, ele podia ouvir a reverberação do baque quando um deles se chocava contra o ancoradouro, vê-lo investir e retesar a corda que o prendia ao cais. Ele levantou a gola do casaco e deixou o vento empurrá-lo para a frente, conservando-se à direita, rente aos edifícios, para evitar os borrifos que espirravam do dique. Il Cucciolo, o bar à beira d’água onde ele e Paola passaram tantas horas nas primeiras semanas depois de se conhecerem, estava aberto, mas o vasto terraço de madeira na sua frente, construído acima da água, estava absolutamente deserto, sem mesas, cadeiras ou guarda-sóis. Para Brunetti, o primeiro verdadeiro sinal de primavera era o dia em que aquelas mesas e cadeiras apareciam após a hibernação invernal. Hoje, a ideia lhe causou um calafrio. O bar estava aberto, mas ele o evitou, pois os garçons eram os mais rudes da cidade, e sua arrogante lentidão era apenas tolerável pelas horas de lazer ao sol.

Cem metros adiante, após a igreja do Gesuati, ele empurrou a porta de vidro e se esgueirou para o calor aconchegante do bar Nico’s. Bateu os pés no chão algumas vezes, desabotoou o casaco e se acercou do balcão. Pediu um grogue, observou o garçom segurar um copo embaixo da torneira da máquina de espresso e tirá-lo cheio de vapor que rapidamente se condensou em água fervente. Rum, uma fatia de limão, uma dose generosa de alguma coisa de uma garrafa, e o barman colocou a mistura na sua frente. Três pedras de açúcar, e Brunetti estava salvo. Ele mexeu a bebida vagarosamente, confortado pelo vapor aromático que se desprendia dela aos poucos. Como a maioria das bebidas, o gosto não era tão bom quanto o aroma, mas Brunetti se acostumara de tal forma a essa verdade que ela já não o decepcionava.

A porta tornou a se abrir, e uma lufada de vento gelado soprou duas garotas jovens para dentro. Elas usavam parcas de esquiar forradas de pele que emergia rodeando seus rostos radiantes, botas grossas, luvas de couro e calças de lã. Pela aparência, eram americanas ou, talvez, alemãs; se eram ricas, isso era mais difícil de dizer.

“Oh, Kimberly, tem certeza que este é o lugar?”, perguntou a primeira em inglês, varrendo o ambiente com seus olhos esmeralda.

“Está no livro, Alison. O Nico’s é, tipo, famoso.” (Ela pronunciou “Nico” para rimar com “sicko”, uma palavra que Brunetti havia pescado em sua última convenção da Interpol.) “Ele é famoso pelo gelato.”

Levou um momento até que Brunetti percebesse o que poderia acontecer logo em seguida. No instante em que percebeu, começou a sorver rapidamente seu grogue, que ainda estava quente a ponto de queimar sua língua. Paciente, pegou a colher e começou a mexer a bebida com ímpeto, fazendo-a subir pelas paredes do copo na esperança de esfriá-la mais depressa.

“Oh, ali está, eu aposto, embaixo daquelas coisas com tampas redondas”, disse a primeira, vindo parar ao lado de Brunetti e espiando por cima do balcão para onde a famosa produção de gelato do Nico’s, severamente reduzida por causa da estação, de fato repousava embaixo aquelas coisas com tampas redondas. “Que sabor você quer?”

“Acha que eles têm Heath Bar?”

“Duvido, não na Itália.”

“É, acho que não. Imagino que vamos ter que ficar no básico.”

O barman se aproximou, sorrindo para a beleza e boa saúde radiante das garotas, para não mencionar sua coragem. “Si? ”, perguntou, sorrindo.

“Vocês têm gelato?”, uma delas perguntou, pronunciando a última palavra em tom elevado, ainda que não da maneira correta.

Sem tardar, e aparentemente acostumado a isso, o barman sorriu de novo e estendeu a mão para trás para puxar os cones de uma pilha alta sobre o balcão.

“Que sabor?”, perguntou num inglês passável.

“Que sabores vocês têm?”

“Vaniglia, cioccolato, fragola, fior di latte e tiramisù.”

As garotas se entreolharam com grande perplexidade. “Acho melhor ficar em baunilha e chocolate, né?”, perguntou uma delas. Brunetti já não conseguia distingui-las de tão parecidas que eram as nasalidades enfadonhas de suas vozes.

“É, acho que sim.”

A primeira virou-se para o barman e disse: “Due baunilha e cioccolato, por favor”.

Num instante, a façanha estava feita, os cones montados e entregues por cima do balcão. O único consolo que Brunetti encontrou foi tomar um longo gole de seu grogue, segurando o copo meio cheio embaixo do nariz por longo tempo depois de ter engolido.

As moças tiveram que tirar as luvas para pegar os cones, e então uma delas precisou segurar os dois cones enquanto a outra remexia nos bolsos para arranjar quatro mil liras. O barman estendeu-lhes guardanapos, possivelmente na esperança de que isso as mantivesse dentro do bar enquanto consumiam o sorvete, mas as moças não conseguiam ficar paradas. Elas pegaram os guardanapos e os embrulharam cuidadosamente sobre a base dos cones, abriram a porta e desapareceram na escuridão crescente da tarde. O bar se encheu com o baque triste de outra lancha se chocando contra o molhe.

O barman fitou Brunetti. Brunetti devolveu o olhar. Nenhum deles disse uma palavra. Brunetti terminou o grogue, pagou e saiu.

Já estava completamente escuro agora, e Brunetti estava ansioso para chegar em casa, longe daquele frio e do vento que ainda cortava os canais. Ele passou diante do consulado francês, pegou um atalho ao lado do hospital Giustiniani, um aterro sanitário para idosos, e rumou para casa. Como andava depressa, levou apenas dez minutos para chegar. O hall de entrada cheirava a umidade, mas o calçamento de fora ainda estava seco. As sirenes para a acqua alta haviam soado às três daquela madrugada, acordando todo mundo, mas a maré tinha virado antes que a água se insinuasse pelas fendas do calçamento. A lua cheia chegaria em poucos dias, e estivera chovendo pesadamente para o norte, em Friuli, de modo que havia uma chance de que a noite trouxesse a primeira enchente de verdade do ano.

No alto da escada, dentro de casa, ele encontrou o que queria: calor, um cheiro de tangerina recém-descascada, e a certeza de que Paola e as crianças estavam ali. Pendurou o casaco num gancho atrás da porta e foi para a sala de visitas. Ali encontrou Chiara, os cotovelos apoiados sobre a mesa, segurando um livro aberto com uma mão e colocando gomos de tangerina na boca com a outra. Ela ergueu os olhos quando ele entrou, deu um largo sorriso e estendeu um gomo de tangerina para ele. “Ciao, papà! ”

Ele cruzou a sala, satisfeito com o calor, subitamente consciente do quanto seus pés estavam frios. Parou ao lado da filha e se curvou o suficiente para ela enfiar um gomo de tangerina na sua boca. Depois outro, e outro. Enquanto ele mastigava, ela terminou os gomos descascados que estavam numa vasilha ao seu lado.

“Papà, você segura o fósforo”, ela disse, estendendo a mão por cima da mesa e entregando-lhe uma cartela de fósforos. Obediente, ele tirou um e acendeu, segurando a chama na direção dela. Da pilha sobre a mesa ao seu lado, ela selecionou um pedaço de casca de tangerina e a curvou até os lados internos se tocarem. Quando o fez, uma fina névoa de óleo esguichou da casca fraturada e se incendiou num jato brilhante de chamas coloridas. “Che bella”, disse Chiara, com um encanto que jamais parecia diminuir, não importava quantas vezes eles o fizessem.

“Tem mais?”, ele perguntou.

“Não, papà, essa era a última.” Ele deu de ombros, mas não sem antes notar um lampejo de verdadeiro pesar no rosto de Chiara. “Desculpe, eu comi todas, papà. Tem laranja. Quer que eu descasque uma para você?”

“Não, meu anjo, está tudo bem. Vou esperar pelo jantar.” Ele se curvou para a direita e tentou enxergar a cozinha. “Onde está a mamma?”

“Oh, ela está enfurnada no escritório”, disse Chiara, voltando ao seu livro. “E está de péssimo humor, por isso não sei quando vamos comer.”

“Como sabe que está de mau humor?”, ele perguntou.

Ela o fitou e revirou os olhos. “Oh, papà, não seja tolo. Você sabe como ela fica quando está com um mau humor desses. Disse para o Raffi que não podia ajudá-lo na lição de casa; e gritou comigo porque não levei o lixo para baixo esta manhã.” Ela apoiou o queixo nos dois punhos e fixou o olhar no livro. “Odeio quando ela fica assim.”

“Bem, ela está tendo muitos problemas na universidade, Chiara.”

Ela virou uma página. “Ora, você sempre fica do lado dela. Mas não é brincadeira quando ela fica assim.”

“Vou falar com ela. Talvez possa ajudar.” Os dois sabiam que não adiantaria nada mas, sendo os otimistas da família, trocaram sorrisos com a possibilidade.

Ela se debruçou de novo sobre o livro, Brunetti curvou-se, beijou-lhe o topo da cabeça e acendeu a luz do teto ao sair da sala. No fim do corredor, parou diante da porta do estúdio de Paola. Falar com ela raramente ajudava, mas ouvi-la, algumas vezes, sim. Ele bateu.

“Avanti ”, ela falou, e ele abriu a porta. A primeira coisa que notou, antes mesmo de ver Paola de pé ao lado da porta de vidro que conduzia ao terraço, foi o caos na sua escrivaninha. Papéis, livros, revistas espalhados pela superfície; alguns abertos, alguns fechados, alguns usados para marcar a página de outros. Somente um autoiludido ou deficiente visual chamaria Paola de organizada ou ordeira, mas aquela confusão ia além até de seus limites muito tolerantes. Ela se virou para a porta e notou a maneira como ele fitava sua escrivaninha. “Estava procurando uma coisa”, explicou.

“A pessoa que matou Edwin Drood?”, ele perguntou, referindo-se a um artigo que ela passara três meses escrevendo no ano anterior. “Pensei que já tivesse descoberto.”

“Não brinque, Guido”, ela disse com aquela voz que usava quando o humor era tão bem-vindo quanto o ex-namorado da noiva. “Passei a maior parte da tarde tentando caçar uma citação.”

“Para que precisa dela?”

“Uma aula. Quero começar com a citação, e preciso dizer de onde ela veio, por isso preciso localizar a fonte.”

“De quem é?”

“Do Master ”, disse ela, em inglês, e Brunetti observou seus olhos ficarem turvos, como sempre ficavam quando falava de Henry James. Faria sentido, ele ponderou, ficar com ciúme? Ciúme de um homem que, assim lhe parecia pelo que Paola dissera dele, não só não conseguia decidir qual era a sua nacionalidade como tampouco seu sexo?

Havia vinte anos que isso acontecia. O Mestre fora na lua de mel com eles, estava no hospital quando os dois filhos nasceram, parecia estar por perto em todas as férias que haviam tirado. Vigoroso, fleumático, dono de um estilo de prosa que se mostrava impenetrável para Brunetti não importava quantas vezes tentasse lê-lo, fosse em inglês ou em italiano, Henry James parecia ser o outro homem na vida de Paola.

“Qual é a citação?”

“Ele a disse em resposta a alguém que lhe perguntou, perto do fim da vida, o que havia aprendido com toda a sua experiência.”

Brunetti sabia o que deveria fazer. E o fez. “O que foi que ele disse?”

“‘Be kind and then be kind and then be kind ’”, disse ela.

 

A tentação foi forte demais para Brunetti. “Com ou sem aspas?”

Ela atirou-lhe um olhar furioso. Obviamente, não estava para piadas, em especial sobre o Mestre. Tentando se desvencilhar do peso daquele olhar, ele disse: “Parece uma citação estranha para começar uma aula de literatura”.

Ela ponderou se devia considerar sua observação sobre as aspas ou partir para a seguinte. Felizmente, pois ele queria jantar naquela noite, comentou a segunda. “Começamos com Whitman e Dickinson amanhã, e eu espero que a citação sirva para pacificar alguns dos alunos mais terríveis da classe.”

“Il piccolo marchesino? ”, ele perguntou, depreciativo, com o uso do diminutivo. Vittorio, herdeiro do Marchese Francesco Bruscoli. Ele, ao que parecia, fora convidado a deixar as universidades de Bolonha, Pádua e Ferrara, e acabara, seis meses antes, na Cà Foscari, tentando graduar-se em inglês, não por ter algum interesse ou entusiasmo por literatura — na verdade, por qualquer coisa que se assemelhasse à palavra escrita — mas simplesmente porque as babás inglesas que o haviam criado o deixaram fluente nessa língua.

“Ele é um fedelho desprezível”, disse Paola, com veemência. “Realmente perverso.”

“O que foi que ele fez agora?”

“Oh, Guido, não é o que ele faz. É o que ele diz, e a maneira como diz. Comunistas, aborto, gays. Basta um desses temas aparecer para ele cair sobre eles como lodo, falando como é maravilhoso que o comunismo tenha sido derrotado na Europa, que o aborto é um pecado contra Deus, e os gays...” Ela fez um gesto de mão na direção da janela como que pedindo para que os telhados a compreendessem. “Meu Deus, ele acha que eles deveriam ser arrebanhados e colocados em campos de concentração, e toda pessoa com aids, isolada. Há momentos em que eu queria bater nele”, disse, com outro gesto de mão, que, como ela própria percebeu, perderam força no final.

“Como esses temas surgem numa aula de literatura, Paola?”

“Eles raramente surgem”, ela admitiu. “Mas ouvi sobre ele de outros professores.” Ela virou para Brunetti e perguntou: “Você não o conhece, conhece?”.

“Não, mas conheço o pai dele.”

“Como ele é?”

“Muito parecido. Charmoso, rico, bonito. E totalmente perverso.”

“Isso é que é tão perigoso nele. Ele é bonito e bastante rico, e muitos alunos matariam para ser vistos com um marquese, por mais merdinha que ele seja. Então eles o imitam e repetem suas opiniões.”

“Mas por que você está tão chateada com ele agora?”

“Porque amanhã começo com Whitman e Dickinson, como já disse.”

Brunetti sabia que eram poetas; havia lido o primeiro e não gostara, achara Dickinson difícil, mas, quando a compreendeu, maravilhosa. Ele balançou a cabeça de um lado para outro, pedindo uma explicação.

“Whitman era gay, e Dickinson provavelmente também.”

“E esse tipo de coisa não está na lista de comportamentos aceitáveis do marchesino?”

“Para dizer o mínimo”, respondeu Paola. “É por isso que quero começar com aquela citação.”

“Acha que isso fará alguma diferença?”

“Não, provavelmente não”, ela admitiu, sentando na sua cadeira e começando a arrumar um pouco a bagunça da escrivaninha.

Brunetti estava sentado na poltrona encostada na parede com os pés estendidos à frente. Paola continuou fechando os livros e colocando as revistas em pilhas bem arrumadas. “Tive um gostinho disso hoje”, disse ele.

Ela parou o que estava fazendo e o fitou. “O que quer dizer?”

“Alguém que não gosta de gays.” Ele fez uma pausa, e então acrescentou: “Patta”.

Paola fechou os olhos por um instante, depois perguntou: “O que foi?”.

“Lembra da dottoressa Lynch?”

“A americana? Que está na China?”

“Sim para a primeira pergunta e não para a segunda. Ela está de volta. Eu a vi hoje, no hospital.”

“O que houve?”, perguntou Paola com real preocupação, as mãos enrijecendo de repente sobre os livros.

“Alguém a espancou. Bem, dois homens, na verdade. Eles foram até a casa dela no domingo; disseram que tinham vindo a negócio, e quando ela os deixou entrar, a espancaram.”

“Ficou muito machucada?”

“Não tanto quanto poderia, graças a Deus.”

“O que significa isso, Guido?”

“Ela está com um maxilar trincado, algumas costelas partidas e escoriações feias.”

“Se acha que isso não é ruim, eu tremo só de pensar no que seria”, disse Paola, e depois perguntou: “Quem fez isso? Por quê?”.

“Pode ter alguma coisa a ver com o museu, mas pode ter alguma coisa a ver com o que meus colegas americanos insistem em chamar de seu ‘estilo de vida’.”

“Que ela é lésbica, você quer dizer?”

“Isso.”

“Mas isso é absurdo.”

“Concordo. Mas nem por isso é menos verdade.”

“Está começando aqui?”, disse ela, claramente retórica. “Achei que esse tipo de coisa só acontecia na América.”

“Progresso, minha cara.”

“Mas o que faz você dizer que essa é a razão?”

“Ela disse que os homens sabiam sobre ela e a signora Petrelli.”

Paola jamais conseguia resistir a uma provocação. “Antes de ela voltar para a China, alguns anos atrás, seria difícil encontrar alguém em Veneza que não soubesse sobre ela e a signora Petrelli.”

Mais pragmático, Brunetti protestou: “Isso é um exagero”.

“Bem, talvez. Mas com certeza houve muito falatório na época”, insistiu Paola.

Tendo corrigido Paola uma vez, Brunetti contentou-se em deixar como estava. Ademais, estava ficando faminto, e queria seu jantar.

“Por que não saiu nos jornais?”, perguntou Paola, num estalo.

“Aconteceu no domingo. Eu só descobri esta manhã e só porque alguém notou o nome dela no relatório. O caso ficou com o setor uniformizado e estava sendo tratado como rotina.”

“Rotina?”, ela repetiu, admirada. “Guido, coisas como essa não acontecem por aqui.”

Brunetti optou por não repetir sua observação sobre progresso, e Paola, percebendo que ele não ia dar nenhuma explicação, virou-se para a escrivaninha. “Não posso gastar mais tempo procurando pela citação. Preciso pensar em alguma outra coisa.”

“Por que você não mente?”, sugeriu Brunetti de modo casual.

Paola levantou bruscamente a cabeça para fitá-lo e perguntou: “Como assim, minto?”.

Parecia muito claro para ele. “Pense num lugar em um dos livros em que a citação poderia estar e diga a eles que é lá.”

“Mas e se eles leram o livro?”

“Ele escreveu um bocado de cartas, não foi?” Brunetti sabia perfeitamente que sim: as cartas tinham ido a Paris com eles, dois anos antes.

“E se perguntarem em qual carta?”

Ele se recusou a responder a uma pergunta tão estúpida.

“A Edith Wharton, 26 de julho de 1906”, ela adiantou, colocando na voz o tom de certeza que sempre a sustentava em suas mais ultrajantes invenções.

“Parece bom para mim”, ele disse, e sorriu.

“Para mim também.” Ela fechou o último livro, consultou o relógio, e depois olhou para ele. “São quase sete. O Gianni tinha lindas costeletas de cordeiro hoje. Venha tomar um copo de vinho e conversar comigo enquanto cozinho.”

Dante, Brunetti lembrava, havia punido os Maus Conselheiros encerrando-os com enormes línguas de fogo, onde eles ficariam se contorcendo e ardendo por toda a eternidade. Não havia, que ele se lembrasse, nenhuma menção a costeletas de cordeiro.


7

 

 

 

 

Quando a história finalmente apareceu, no dia seguinte, ela exibia a manchete “Tentativa de roubo em Cannaregio”, e era noticiada por um relato dos mais sucintos. Brett era descrita como uma especialista em arte chinesa que retornara a Veneza para tentar obter financiamento do governo italiano para as escavações em Xian, onde coordenava o trabalho de arqueólogos chineses e ocidentais. Havia uma breve descrição dos dois homens, que haviam sido afugentados em sua tentativa por uma “amica” não identificada que por acaso estava no apartamento da dottoressa Lynch naquele momento. Quando leu a notícia, Brunetti se perguntou sobre a identidade do “amico” que havia suprimido o nome de Flavia. Poderia ter sido qualquer um, do prefeito de Veneza ao diretor do Scala, tentando proteger sua prima donna favorita da possibilidade de uma publicidade negativa.

Quando chegou ao trabalho, ele parou na sala da signorina Elettra. As frésias haviam sumido, substituídas por um luminoso feixe de copos-de-leite. Ela levantou o olhar quando ele entrou e disse imediatamente, sem se preocupar em dizer bom-dia: “O sargento Vianello me pediu para lhe dizer que não houve nada em Mestre. Ele disse que falou com algumas pessoas de lá, mas ninguém sabia nada sobre o ataque. E...”, continuou, fitando um papel na sua escrivaninha, “ninguém deu entrada em nenhum hospital da área com um corte no braço”. Antes que ele pudesse perguntar, ela disse: “E ainda nada de Roma sobre as impressões digitais”.

Diante de tantos becos sem saída, Brunetti decidiu que era hora de ver o que mais poderia apurar sobre Semenzato. “A signorina trabalhava na Banca d’Italia, não é mesmo?”

“Sim, senhor, trabalhava.”

“E ainda tem amigos por lá?”

“E em outros bancos.” Nenhum à sua altura, signorina Elettra.

“Acha que consegue tecer uma rede no seu computador e descobrir alguma coisa sobre Francesco Semenzato? Contas bancárias, ações, investimentos de qualquer tipo?”

A resposta dela foi um sorriso tão largo que deixou Brunetti imaginando a exata velocidade com que as notícias circulavam pela questura.

“Claro, dottore. Nada mais fácil. E o senhor gostaria de investigar a esposa também? Acho que ela é siciliana.”

“Sim, a esposa também.”

Antes mesmo que ele pudesse pedir, ela se candidatou. “As linhas telefônicas estão com algum problema, por isso pode demorar até amanhã à tarde.”

“Está autorizada a revelar sua fonte, signorina?”

“Alguém que precisa esperar até o diretor do sistema de computadores dos bancos ir para casa”, foi tudo que ela revelou.

“Muito bem”, disse Brunetti, satisfeito com a explicação. “Gostaria de verificar isso com a Interpol em Genebra, também. Pode contatar...?”

Ela o cortou no ato, mas sorriu ao fazê-lo. “Conheço o endereço, senhor, e acho que sei com quem falar.”

“Heinegger?”, perguntou Brunetti, nomeando o capitão encarregado do departamento de investigações financeiras.

“Sim, Heinegger”, ela respondeu, e repetiu seu endereço e número de fax.

“Como aprendeu isso tão depressa, signorina?”, ele perguntou, genuinamente surpreso.

“Tratava com ele com frequência em meu último emprego”, ela respondeu suavemente.

Embora fosse um policial, a conexão entre a Banca d’Italia e a Interpol era do tipo que ele não quisera se inteirar até então. “Então sabe o que fazer”, foi tudo que conseguiu pensar para dizer.

“Vou lhe trazer a resposta de Heinegger assim que eu a tiver”, disse ela, virando-se para o computador.

“Certo, obrigado. Bom dia, signorina.” Ele se virou e saiu da sala, mas não sem antes dar mais uma olhadela nas flores enquadradas pela janela aberta.

 

 

A chuva dos últimos dias havia parado, levando consigo a ameaça direta de acqua alta e trazendo, em seu lugar, céus cristalinos. Não havia, portanto, a menor chance de encontrar Lele em casa. Ele estaria em algum lugar da cidade, pintando. Brunetti resolveu ir ao hospital e continuar a conversa com Brett, pois ainda não tinha uma ideia clara das razões que a haviam trazido do outro lado do mundo.

Quando entrou no quarto do hospital, pensou por um instante que a signorina Elettra estivera trabalhando ali também, pois uma profusão de flores explodia de toda a superfície plana disponível. Rosas, íris, lírios e orquídeas inundavam o quarto com a mistura de seus aromas, e uma profusão de papéis de embrulho amassados da Fantin e da Biancat, as duas floriculturas preferidas dos venezianos, transbordava da cesta de lixo. Ele notou que americanos, ou ao menos estrangeiros, haviam enviado flores também: nenhum italiano teria enviado a uma pessoa convalescente aqueles imensos buquês de crisântemos, flores usadas exclusivamente em funerais e túmulos. Ele percebeu o desconforto que sentia de estar num quarto de hospital com as flores funéreas, mas descartou a sensação como superstição da pior espécie.

As duas mulheres estavam no quarto, como ele havia imaginado ou esperado. Brett recostada na cabeceira elevada da cama, a cabeça acomodada entre dois travesseiros, e Flavia sentada numa cadeira ao seu lado. Espalhados na superfície da cama entre elas estavam alguns esboços coloridos de mulheres em trajes longos e elaborados. Cada uma usava um diadema na cabeça projetando raios enfeitados com joias. Brett ergueu os olhos dos desenhos quando ele entrou, e seus lábios se mexeram minimamente; o sorriso estava todo em seus olhos. Flavia, após um momento, e com menos calor, fez o mesmo.

“Bom dia”, disse ele às duas, dando uma espiada nas imagens. As bainhas com motivo ondulado de dois dos figurinos os faziam parecer orientais. Mas, em lugar dos dragões usuais, eles eram estampados com manchas abstratas que lançavam cores violentas umas contra as outras, e mesmo assim conseguiam criar harmonia, não dissonância.

“O que são?”, perguntou ele com genuína curiosidade, tendo notado logo depois que deveria antes ter perguntado como estava Brett.

Flavia respondeu: “Esboços para a nova Turandot no Scala”.

“Então vai cantá-la?”, ele perguntou. Havia semanas que a imprensa vinha murmurando sobre isso, apesar de faltar quase um ano para a noite de estreia. A soprano cujo nome fora “insinuado” como aquela “sugerida para ser” a “escolha possível” — era assim que as coisas eram ditas no Scala — havia mencionado que estava interessada na possibilidade, e a estudaria, o que significava claramente que não estava interessada e não estudaria nada. Flavia Petrelli, que nunca havia desempenhado o papel, era citada como a outra possibilidade; e ela fizera, havia duas semanas apenas, uma declaração à imprensa dizendo que se recusava absolutamente a até mesmo considerar a ideia, o mais perto de uma aceitação formal que se poderia esperar de uma soprano.

“O senhor podia fazer alguma coisa melhor que tentar resolver os mistérios de Turandot ”, disse Flavia, a voz falsamente calorosa, fazendo-o saber que tinha visto algo que não devia. Ela se inclinou e recolheu os desenhos. Em rápida tradução, as duas mensagens significavam que ele não devia dizer nada sobre aquilo.

“Como está?”, ele perguntou enfim a Brett.

Embora seus maxilares não estivessem mais costurados com arame, o sorriso de Brett ainda foi vagamente idiota, os lábios separados erguendo-se nos cantos. “Melhor. Posso ir para casa daqui a um dia.”

“Dois”, corrigiu Flavia.

“Um dia ou dois”, emendou Brett. Vendo Brunetti ali parado, ainda com o casaco, ela disse: “Queira me desculpar. Sente-se, por favor”. Ela apontou para uma cadeira que estava ao lado de Flavia. Ele pegou a cadeira, colocou-a ao lado da cama, dobrou o casaco sobre o encosto e sentou-se.

“Gostariam de falar sobre o que aconteceu?”, perguntou, abrangendo as duas com a pergunta.

Intrigada, Brett perguntou: “Mas já lhe falei sobre isso, não falei?”.

Brunetti fez que sim e continuou: “O que foi que eles lhe disseram exatamente? Consegue se lembrar?”.

“Exatamente?”, ela repetiu, confusa.

“Eles falaram o suficiente para a senhora saber de onde vinham?”, sugeriu Brunetti.

“Entendo”, disse Brett. Ela cerrou os olhos e, por um instante, voltou ao hall do seu apartamento, recordou os homens, seus rostos e vozes. “Siciliano. Ao menos o que me bateu era. Estou menos certa sobre o outro. Ele falou muito pouco.” Olhou para Brunetti. “Que diferença isso faz?”

“Pode nos ajudar a identificá-los.”

“Espero que sim”, irrompeu Flavia, sem dar pistas se falava com censura ou esperança.

“Alguma das senhoras reconheceu alguém nas fotos?”, ele perguntou, mesmo tendo a certeza de que o policial que trouxera as fotos dos homens que coincidiam com as descrições que as duas haviam dado teria lhe contado se elas tivessem reconhecido.

Flavia balançou a cabeça, e Brett disse: “Não”.

“A senhora disse que eles a preveniram para não ir a uma reunião com o dottor Semenzato. Depois falou alguma coisa sobre as cerâmicas da exposição da China. Estava se referindo à que aconteceu aqui, no Palácio dos Doges?”

“Sim.”

“Eu me lembro”, disse Brunetti. “A senhora a organizou, não foi?”, perguntou.

Ela teve um breve lapso e fez que sim, depois recostou a cabeça nos travesseiros e esperou o mundo parar de rodar. Quando parou, ela disse: “Algumas peças vieram de nossa escavação em Xian. Os chineses me escolheram como ligação. Conheço muita gente”. Apesar de estar sem os arames, ela ainda movia o maxilar com bastante cuidado; um zumbido surdo calçava tudo que dizia e enchia seus ouvidos com um ganido constante.

Flavia a interrompeu e explicou por ela. “A mostra estreou em Nova York e depois foi para Londres. Brett foi para a abertura em Nova York, depois voltou para encerrá-la e despachá-la para Londres. Mas ela teve que voltar à China antes da inauguração em Londres. Alguma coisa aconteceu na escavação.” Virando para Brett, perguntou: “O que foi, cara?”.

“Tesouro.”

Isso, aparentemente, foi o que bastou para que Flavia lembrasse: “Eles tinham acabado de abrir a passagem para a câmara mortuária, por isso ligaram para Brett em Londres e disseram que ela precisava voltar e supervisionar a escavação da tumba”.

“Quem estava cuidando da inauguração aqui?”

Dessa vez, Brett respondeu: “Eu. Voltei da China três dias antes do encerramento em Londres. E aí vim para cá arranjar as coisas”. Ela fechou os olhos, e Brunetti achou que estivesse cansada de falar, mas ela os abriu imediatamente e continuou. “Eu parti antes de a exposição fechar, e aí eles enviaram as peças de volta para a China.”

“Eles?”, perguntou Brunetti.

Brett olhou para Flavia antes de responder, e disse: “O dottor Semenzato estava aqui, e minha assistente veio da China para fechar a mostra e enviar tudo de volta”.

“A senhora não era a curadora?”, ele perguntou.

De novo, ela olhou para Flavia antes de responder. “Mas eu não pude estar aqui. Não vi as peças desde então, até este inverno.”

“Quatro anos depois?”, perguntou Brunetti.

“É”, ela disse, e agitou a mão como se isso ajudasse a explicar. “O carregamento ficou retido no caminho de volta para a China e depois em Beijing. Burocracia. Acabou ficando num armazém da alfândega em Xangai durante dois anos. As peças de Xian só voltaram há dois meses.” Brunetti a observava pesar as palavras, procurando uma maneira de explicar. “E não eram mais as mesmas. Cópias. Não o soldado ou manto de jade: esses eram os originais. Mas as cerâmicas, eu sabia, porém não poderia provar até que as testasse e não podia fazer isso na China.”

Ele aprendera o bastante com o olhar ofendido de Lele para não perguntar como ela sabia que eram falsas. Ela simplesmente sabia, e isso era tudo. Impedido de fazer uma pergunta qualitativa, ele ainda podia fazer uma quantitativa. “Quantas peças eram falsas?”

“Três. Talvez quatro ou cinco. E essas só da escavação em Xian onde trabalho.”

“E as outras peças da mostra?”, ele perguntou.

“Não sei. Esse não é o tipo de pergunta que se faça na China.”

Durante a conversa, Flavia permanecera em silêncio, virando a cabeça para um lado e para outro quando eles falavam. Sua falta de surpresa disse a ele que ela já sabia sobre tudo aquilo.

“O que a senhora fez?”, perguntou Brunetti.

“Até agora, nada.”

Como a conversa estava ocorrendo num quarto de hospital e ela falava através dos lábios inchados, isso pareceu a Brunetti uma meia verdade. “A quem falou sobre isso?”

“Somente a Semenzato. Escrevi para ele da China há três meses e contei-lhe que algumas peças enviadas de volta eram cópias. Pedi para vê-lo.”

“E o que foi que ele disse?”

“Nada. Ele não respondeu à minha carta. Esperei três semanas, depois tentei ligar para ele, mas isso não é fácil da China, por isso vim para cá, para falar com ele.”

Simples assim? Você não consegue pelo telefone, aí pega um avião e atravessa meio mundo para conversar com alguém?

Como se houvesse lido seus pensamentos, ela respondeu: “É a minha reputação. Sou responsável por essas peças”.

Flavia se intrometeu nesse ponto. “As peças podem ter sido trocadas quando voltaram para a China. Talvez não tenha acontecido aqui. E você não seria responsável pelo que houve quando elas chegaram lá.” Havia uma verdadeira animosidade na voz de Flavia. Brunetti achou interessante ela parecer enciumada, entre todas as coisas, de um país.

O tom dela não passou despercebido a Brett, que respondeu de estalo: “Não importa onde aconteceu; aconteceu”.

Para distraí-las e lembrando-se do que Lele havia dito sobre “saber” que alguma coisa era autêntica ou falsa, Brunetti, o policial, perguntou: “Tem provas?”.

“Tenho”, começou Brett, a voz mais engrolada do que quando ele havia chegado.

Ouvindo isso, Flavia interrompeu os dois e disse para ele: “Acho que já chega, dottor Brunetti”.

Ele olhou para Brett e foi obrigado a concordar. As escoriações em seu rosto pareciam mais escuras agora do que quando ele entrara, e ela estava afundada nos travesseiros. Ela sorriu e fechou os olhos.

Ele não insistiu. “Sinto muito, signora”, disse para Flavia. “Mas não posso esperar.”

“Ao menos até ela voltar para casa”, disse Flavia.

Ele deu uma espiada em Brett para ver o que ela estava pensando, mas ela havia adormecido, a cabeça virada de lado, a boca frouxa e aberta. “Amanhã?”

Flavia hesitou, depois lhe deu um relutante “Sim”.

Ele se levantou e pegou o casaco na cadeira. Flavia o acompanhou até a porta. “Ela não está preocupada apenas com a sua reputação, sabe”, disse. “Não entendo, mas ela precisa dar um jeito de essas peças voltarem para a China”, acrescentou, balançando a cabeça em aparente confusão.

Como Flavia Petrelli era uma das melhores cantoras de ópera do momento, Brunetti sabia que era impossível dizer quando falava a atriz e quando a mulher, mas aquilo soara como a segunda. Supondo que fosse assim, respondeu: “Compreendo. Acho que essa é uma das razões pelas quais quero desvendar tudo isso”.

“E as outras razões?”, ela perguntou, suspeitosa.

“Eu não trabalharei melhor se excluir meus motivos pessoais, signora”, ele disse, sinalizando o fim da breve trégua entre os dois. Ele vestiu o casaco e saiu do quarto. Flavia ficou parada por um instante fitando Brett, depois voltou para seu assento ao lado da cama e pegou a pilha de figurinos.


8

 

 

 

 

Ao sair do hospital, Brunetti notou que o céu havia escurecido e um vento forte se levantara do sul varrendo a cidade. O ar estava pesado e úmido, pressagiando chuva, e isso significava que eles poderiam ser acordados no meio da noite pelo uivo agudo das sirenes. Ele odiava a acqua alta com a mesma intensidade de todos os venezianos, sentia uma raiva antecipada dos turistas embasbacados que se amontoariam nas passarelas de madeira, dando risadinhas, apontando, tirando fotos e bloqueando a passagem de pessoas decentes que simplesmente queriam ir para o trabalho e fazer suas compras para poder entrar em lugares secos e se livrar do incômodo, da confusão e da irritação constante que a água incontível trazia para a cidade. Já calculando, percebeu que a água só o afetaria na ida e na volta do trabalho, quando teria que passar pelo Campo San Bartolomeo, ao pé da ponte de Rialto. Felizmente, a área em volta da questura era bastante alta e só era afetada pelas piores enchentes.

Ele levantou a gola do casaco, se lamentando por não ter pensado em vestir um cachecol naquela manhã, e curvou a cabeça, impelido pelo vento. Enquanto passava por trás da estátua de Colleoni, os primeiros pingos grossos se esborracharam no chão diante dele. A única vantagem do vento era que ele impulsionava a chuva em forte diagonal, mantendo seco um lado da calle estreita, protegido pelos telhados. Os mais espertos do que ele haviam pensado em trazer guarda-chuvas e caminhavam protegidos, ignorando qualquer um que tivesse que se esquivar pelo lado ou por baixo deles.

Quando chegou à questura, seu casaco estava completamente molhado nos ombros, e seus sapatos, encharcados. No escritório, ele tirou o casaco e pendurou-o num cabide que depois enganchou na haste da cortina que ficava na frente da janela acima do aquecedor. Quem olhasse para dentro da sala do outro lado do canal veria, talvez, um homem enforcado no próprio escritório. Se trabalhassem na questura, seu primeiro impulso seria, com certeza, contar os andares, tentando ver se era a janela de Patta.

Brunetti encontrou uma folha solta de papel sobre a escrivaninha, um relatório da Interpol em Genebra dizendo que eles não tinham nenhum registro ou informação sobre Francesco Semenzato. Embaixo daquela mensagem bem datilografada havia uma breve anotação manuscrita: “Rumores aqui, nada definido. Vou perguntar por aí”. E logo abaixo estava uma assinatura rabiscada que reconheceu como a de Piet Heinegger.

O telefone tocou no fim da tarde. Era Lele dizendo que havia conseguido entrar em contato com uns amigos dele, inclusive aquele de Mianmar. Ninguém quisera dizer nada sobre Semenzato diretamente, mas Lele ficara sabendo que havia boatos de que o diretor do museu estava envolvido no negócio de antiguidades. Não como comprador, mas como vendedor. Um dos homens com quem ele havia falado mencionara que ouvira dizer que Semenzato havia investido numa loja de antiguidades, mas não sabia mais do que isso, nem onde ela ficava ou quem poderia ser o dono oficial.

“Parece que isso criaria um conflito de interesses”, disse Brunetti, “comprar do sócio com dinheiro do museu.”

“Ele não seria o único”, murmurou Lele, mas Brunetti deixou passar a observação. “Tem outra coisa”, acrescentou o artista.

“O quê?”

“Quando mencionei obras de arte roubadas, um deles disse que ouvira rumores sobre um importante colecionador em Veneza.”

“Semenzato?”

“Não”, respondeu Lele. “Eu não perguntei, mas circula por aí que estou curioso sobre ele, por isso estou certo de que meu amigo teria me dito se fosse Semenzato.”

“Ele disse quem era?”

“Não. Ele não sabia. Mas o rumor é que é um cavalheiro do Sul”, disse Lele, como se considerasse impossível algum cavalheiro ser oriundo do Sul.

“Nenhum nome?”

“Não, Guido. Mas vou continuar perguntando por aí.”

“Obrigado. Fico muito agradecido, Lele. Não poderia fazer isso pessoalmente.”

“Não, não poderia”, disse Lele, imparcial. Depois, sem se dar ao trabalho de descartar com uma palavra os agradecimentos de Brunetti, Lele disse: “Ligo para você se souber de mais alguma coisa”, e desligou.

Acreditando que já tinha feito o bastante naquela tarde e não querendo ser apanhado neste lado da cidade pela chegada da acqua alta, Brunetti foi para casa cedo e teve duas horas de tranquilidade antes de Paola voltar da universidade. Quando ela entrou em casa, encharcada pela intensidade crescente da chuva, contou que havia usado a citação, dado a atribuição espúria, mas ainda assim o temível marchese conseguira estragá-la, sugerindo que um escritor como James, que supostamente gozava de boa reputação, decerto poderia ter evitado redundâncias tão banais. Brunetti escutava a explicação dela surpreso com o quanto, nos últimos meses, ele viera a detestar esse jovem que jamais conhecera. Comida e vinho amainaram o mau humor de Paola, como sempre, e quando Raffi se ofereceu para lavar a louça, ela ficou radiante de alegria.

Por volta das dez, eles estavam na cama, ela profundamente adormecida sobre um trabalho bastante infeliz de um estudante, e ele absorto numa nova tradução de Suetônio. Ele mal havia chegado à passagem descrevendo aqueles rapazolas nadando na piscina de Tibério, em Capri, quando o telefone tocou.

“Pronto”, respondeu, esperando que não fosse assunto da polícia, mas sabendo que, às dez para as onze, provavelmente era.

“Comissário, é o Monico.” O sargento Monico, Brunetti lembrou, estava encarregado do turno da noite naquela semana.

“O que é, Monico?”

“Acho que temos um assassinato, senhor.”

“Onde?”

“No Palazzo Ducale.”

“Quem é a vítima?”, ele perguntou, embora o soubesse.

“O diretor, senhor.”

“Semenzato?”

“Sim, senhor.”

“O que aconteceu?”

“Parece que foi um roubo. A faxineira o encontrou há cerca de dez minutos e desceu a escada gritando pelos guardas. Eles subiram até o escritório e o viram, aí chamaram a gente.”

“O que você fez?” Ele largou o livro no chão ao lado da cama e correu o olhar em volta do quarto procurando suas roupas.

“Nós ligamos para o vice-questore Patta, mas a esposa disse que ele não estava e que não sabia como entrar em contato com ele.” Qualquer uma das duas, Brunetti refletiu, podia ser mentira. “Aí eu decidi ligar para o senhor.”

“Eles contaram o que aconteceu, os guardas?”

“Sim, senhor. O homem com quem eu falei disse que havia muito sangue, e que parecia que ele tinha sido atingido na cabeça.”

“Ele estava morto quando a faxineira o encontrou?”

“Acho que estava, senhor. Os guardas disseram que ele estava morto quando chegaram lá.”

“Muito bem”, disse Brunetti, atirando as cobertas para o pé da cama. “Vou até aí agora. Mande quem estiver aí... quem está esta noite?”

“Vianello, senhor. Ele está no turno da noite comigo, e saiu assim que chegou a ligação.”

“Certo. Chame o doutor Rizzardi e peça para ele me encontrar lá.”

“Sim, senhor, eu ia chamá-lo assim que falasse com o senhor.”

“Certo”, disse Brunetti, balançando os pés e colocando-os no chão. “Estarei aí em cerca de vinte minutos. Vamos precisar de uma equipe para fotografar e coletar as digitais.”

“Sim, senhor. Vou ligar para o Pavese e o Foscolo assim que falar com o doutor Rizzardi.”

“Muito bem. Vinte minutos”, disse Brunetti, e desligou. Seria possível ele estar chocado mas ainda assim não estar surpreso? Uma morte violenta, e apenas quatro dias depois que Brett fora atacada com igual brutalidade. Enquanto se vestia e amarrava os sapatos, ele não quis tirar conclusões precipitadas. Foi até o lado de Paola da cama, inclinou-se e balançou-a de leve pelo ombro.

Ela abriu os olhos e o fitou por cima dos óculos de leitura que começara a usar naquele ano. Usava uma velha camisola gasta de flanela que comprara na Escócia havia mais de dez anos e tinha jogado sobre ela um cardigã tricotado irlandês que seus pais lhe deram de Natal havia quase tanto tempo. Vendo-a desse jeito, momentaneamente confusa ao ser tirada do primeiro sono profundo e fitando-o com olhos míopes, ele pensou em como ela estava parecida com as mulheres sem-teto e aparentemente loucas que passavam as noites de inverno na estação ferroviária. Sentindo-se traidor em pensamento, inclinou-se para o círculo de luz formado pela lâmpada de leitura dela e se curvou para beijar sua testa.

“Foi um chamado soberano do dever?”, ela perguntou, imediatamente desperta.

“Foi. Semenzato. A faxineira o encontrou no seu escritório no Palazzo Ducale.”

“Morto?”

“Sim.”

“Assassinado?”

“Parece que sim.”

Ela tirou os óculos e os apoiou sobre os papéis espalhados nas cobertas à sua frente. “Você mandou um guarda para o quarto da americana?”, ela perguntou, esperando que ele acompanhasse a lógica rápida do que dissera.

“Não”, admitiu, “mas farei isso assim que chegar ao Palazzo. Não acho que eles vão se arriscar duas vezes na mesma noite, mas enviarei um homem.” Com que facilidade “eles” haviam ganhado vida, criados por sua recusa em acreditar em coincidências e na de Paola em acreditar na bondade humana.

“Quem ligou?”, ela perguntou.

“Monico.”

“Bom”, disse ela, reconhecendo o nome e familiarizada com o homem. “Vou ligar para ele e lhe falar sobre o guarda.”

“Obrigado”, disse ele. “Não me espere. Temo que isso vá tomar muito tempo.”

“Isto também”, disse ela, inclinando-se para a frente e recolhendo os papéis.

Ele se inclinou de novo e dessa vez a beijou nos lábios. Ela devolveu o beijo e o transformou em um de verdade. Ele se endireitou e ela o surpreendeu envolvendo seus braços em torno de sua cintura e pressionando seu rosto no estômago dele. Ela disse alguma coisa engrolada demais para ser compreendida. Suavemente, ele acariciou seus cabelos, mas seu pensamento estava em Semenzato e nas cerâmicas chinesas.

Ela se desvencilhou e procurou os óculos. Colocando-os, disse: “Não se esqueça de calçar as botas”.


9

 

 

 

 

Quando o comissário Brunetti da polícia de Veneza chegou à cena do assassinato do diretor do museu mais importante da cidade, ele carregava na mão direita um saco de plástico de compras branco exibindo em letras vermelhas o nome de um supermercado. Dentro do saco estava um par de botas pretas tamanho dez que comprara no Standa três anos antes. A primeira coisa que fez ao chegar na guarita ao pé da escada que levava ao museu foi entregar o saco ao guarda que encontrou ali, dizendo-lhe que o pegaria de volta quando saísse.

Enquanto largava o saco no chão ao lado da sua escrivaninha, o guarda disse: “Um dos seus homens está lá em cima, senhor”.

“Ótimo. Outros virão daqui a pouco. E o legista. A imprensa já apareceu?”

“Não, senhor.”

“E a faxineira?”

“Tiveram que levá-la para casa, senhor. Ela não conseguiu parar de chorar desde que o viu.”

“Está feio assim?”

O guarda fez que sim. “Há uma quantidade horrível de sangue.”

Um ferimento na cabeça, Brunetti recordou. Sim, teria de haver muito sangue. “Ela vai dar um escândalo quando chegar em casa, e isso significa que alguém vai ligar para Il Gazzetino. Tente manter os repórteres aqui embaixo quando eles chegarem, certo?”

“Vou tentar, senhor, mas não sei se vou conseguir.”

“Mantenha-os aqui”, disse Brunetti.

“Sim, senhor.”

Brunetti olhou para o longo corredor que conduzia ao lance de escada na extremidade. “O escritório é por ali?”, perguntou.

“Sim, senhor. Vire à esquerda no alto. O senhor verá a luz no fim da passagem. Acho que o seu homem está lá.”

Brunetti virou-se e começou a percorrer o corredor. Seus passos ecoavam, fúnebres, reverberando nas paredes laterais e na escada à frente. Frio, o frio penetrante e úmido de inverno, exalava do piso embaixo dele e das paredes de tijolos do corredor. Ouviu, vindo de trás, um estridor forte de metal sobre pedra, mas ninguém o chamou, e ele seguiu em frente pelo corredor. A neblina noturna se insinuara, espalhando uma película escorregadia de condensação nos largos degraus de pedra embaixo de seus pés.

No alto, ele dobrou à esquerda e seguiu na direção da luz que vinha de uma porta aberta no fim do corredor. A meio caminho dela, chamou: “Vianello?”. Instantaneamente, o sargento apareceu à porta, trajando um pesado sobretudo de lã de cuja borda inferior se projetava um reluzente par de botas de borracha amarelas.

“Buona sera, signore ”, ele disse, e levantou a mão num gesto que era parte continência, parte saudação.

“Buona sera, Vianello”, disse Brunetti. “Como estão as coisas por aqui?”

O rosto vincado de Vianello permaneceu impassível enquanto respondia. “Muito ruins, senhor. Parece que houve uma luta: o lugar está uma confusão, cadeiras reviradas, luminárias derrubadas. Ele era um homem grande, por isso eu diria que foram dois. Mas essas são apenas as primeiras impressões. Tenho certeza de que os rapazes do laboratório vão dizer mais.” Ele recuou enquanto falava, abrindo espaço para Brunetti entrar.

Era como Vianello havia dito: uma luminária de chão atirada contra a escrivaninha, sua cúpula de vidro estilhaçada; uma cadeira virada de lado atrás da escrivaninha; um tapete de seda amontoado na frente, com longas franjas enroladas no tornozelo do homem que jazia morto no chão. Ele estava de bruços, um braço preso embaixo do corpo, o outro estendido para a frente, os dedos virados para cima, como se já implorasse misericórdia nos portões do céu.

Brunetti observou a cabeça, o grotesco halo de sangue que a rodeava, e rapidamente desviou o olhar. Mas, em todo lugar onde sua vista pousava, ele via sangue: gotas haviam caído sobre a escrivaninha, um fino respingo ia dali até o tapete, e havia mais sangue cobrindo o tijolo azul-cobalto que jazia no chão a meio metro do morto.

“O guarda lá de baixo disse que é do doutor Semenzato”, explicou Vianello para o silêncio que irradiava de Brunetti. “A faxineira o encontrou perto das dez e meia. O escritório estava trancado por fora, mas ela tinha uma chave, por isso entrou para ver se as janelas estavam fechadas e limpar a sala, quando o encontrou ali. Desse jeito.”

Brunetti não disse nada, apenas foi até uma janela e olhou para o pátio do Palazzo Ducale. Estava tudo calmo; as estátuas dos gigantes continuavam guardando a escadaria; nem um gato se movia para perturbar a cena enluarada.

“Há quanto tempo está aqui?”, perguntou Brunetti.

Vianello puxou o punho do casaco e consultou o relógio. “Dezoito minutos, senhor. Tentei sentir o pulso, mas não havia, e ele estava frio. Eu diria que já estava morto há pelo menos umas duas horas, mas o médico nos informará melhor.”

Brunetti ouviu uma sirene uivar vindo da esquerda, perturbando a serenidade da noite, e, por um momento, pensou que era a equipe do laboratório chegando numa lancha e fazendo besteira. Mas a sirene aumentou de intensidade, seu gemido insistente cada vez mais alto e mais estridente, e depois foi se atenuando até o tom original. Era a sirene de San Marco, gritando para a cidade adormecida a notícia de que as águas estavam subindo: a acqua alta tinha começado.

Com o ruído da sua chegada abafado pela sirene, os dois homens da equipe do laboratório montaram seu equipamento no vestíbulo fora da sala. Pavese, o fotógrafo, enfiou a cabeça pela porta e notou o homem morto no chão. Aparentando indiferença ao que via, chamou os outros dois, com a voz elevada para ser ouvido em meio ao barulho da sirene. “Quer um conjunto completo, comissário?”

Ao som da voz, Brunetti se virou da janela e caminhou em direção ao técnico, tomando o cuidado de não passar perto do corpo até ele ter sido fotografado e o chão em volta vasculhado em busca de fibras, cabelos, ou possíveis arranhões. Ele se perguntou se essa cautela teria algum propósito real: gente demais havia se aproximado do corpo de Semenzato, e a cena já estava contaminada.

“Sim, e tão logo acabar com elas, veja se tem alguma fibra ou cabelo, depois vamos dar uma espiada.”

Pavese não revelou nenhuma irritação por seu superior lhe dizer o óbvio, e perguntou: “Quer um conjunto separado da cabeça?”.

“Quero.”

O fotógrafo estava às voltas com seu equipamento. Foscolo, o segundo membro da equipe, já havia montado o pesado tripé e estava fixando a câmera no defunto. Pavese se inclinou e remexeu em sua sacola de equipamento, puxando rolos de filmes e pacotes finos de filtros, e por último tirou um flash portátil conectado a um pesado cabo elétrico. Ele entregou o flash a Foscolo e pegou o tripé. Seu rápido olhar profissional ao cadáver fora suficiente. “Vou tirar umas duas da sala toda a partir desse ângulo, Luca, depois do outro lado. Tem uma tomada elétrica embaixo da janela. Quando tiver acabado com as fotos da sala inteira, vamos nos concentrar aqui, entre a janela e a cabeça. Quero tirar algumas do corpo inteiro, e depois vamos mudar para a Nikon e fazer a cabeça. Acho que o ângulo da esquerda seria melhor.” Ele fez uma pausa, avaliando. “Não vamos precisar dos filtros. O flash é suficiente para pegar o sangue.”

Brunetti e Vianello esperavam do lado de fora da porta, por onde explodia o clarão intermitente do flash. “Acha que eles usaram aquele tijolo?”, Vianello finalmente perguntou.

Brunetti fez que sim. “Você viu a cabeça.”

“Eles queriam ter certeza, não é?”

Brunetti pensou no rosto de Brett e sugeriu: “Ou talvez gostem disso”.

“Não tinha pensado nisso”, disse Vianello. “Imagino que é possível.”

Alguns minutos depois, Pavese esticou a cabeça para fora. “Terminamos as fotos, doutor.”

“Quando vocês as terão?”, perguntou Brunetti.

“Esta tarde, perto das quatro, imagino.”

O diálogo foi cortado pela chegada de Ettore Rizzardi, medico legale, ali para representar o Estado ao declarar o óbvio, que o homem estava morto, e depois sugerir a provável causa da morte, nesse caso não muito difícil de determinar.

Como Vianello, ele calçava botas de borracha, embora as suas fossem de um preto conservador e chegassem apenas até a bainha da capa. “Boa noite, Guido”, ele disse ao entrar. “O homem lá embaixo disse que é Semenzato.” Quando Brunetti fez que sim, o médico perguntou: “O que aconteceu?”.

Em vez de responder, Brunetti deu um passo para o lado, permitindo a Rizzardi ver a posição pouco natural do corpo e as manchas brilhantes de sangue. Os técnicos tinham começado seu trabalho, e agora tiras de fita amarela brilhante cercavam dois retângulos do tamanho de cabines telefônicas onde tênues arranhões eram visíveis.

“Podemos tocar nele?”, Brunetti perguntou a Foscolo, agora atarefado aspergindo pó preto na superfície da escrivaninha de Semenzato.

O técnico trocou um rápido olhar com o parceiro que estava pondo fita em volta do tijolo azul. Pavese anuiu.

Rizzardi se aproximou do corpo primeiro. Depositou sua maleta no assento de uma cadeira, abriu-a e tirou um par de luvas de borracha. Ele as vestiu, agachou-se ao lado do corpo e estendeu a mão para o pescoço do morto, mas, vendo o sangue que cobria a cabeça de Semenzato, mudou de ideia e segurou o punho estendido. A carne que tocou estava fria, e o sangue em seu interior, parado para sempre. Automaticamente, Rizzardi puxou a manga engomada do seu jaleco e verificou a hora.

Não foi preciso procurar muito pela causa da morte: duas mossas profundas penetravam o lado de sua cabeça, e parecia haver uma terceira na testa, embora o cabelo de Semenzato tivesse caído para a frente, cobrindo-a parcialmente. Curvando-se até mais perto, Rizzardi conseguiu ver pedaços serrilhados de osso dentro de um dos buracos, logo atrás da orelha.

Rizzardi se apoiou nos dois joelhos para facilitar a operação e enfiou as mãos embaixo do corpo, virando-o de costas. A terceira mossa estava agora mortalmente visível, e a carne em torno dela, escoriada e azul. Rizzardi recuou e levantou primeiro uma mão do morto e depois a outra. “Guido, veja isso”, disse, indicando o dorso da mão direita. Brunetti ajoelhou-se ao seu lado e fitou as costas da mão de Semenzato. A pele dos nós dos dedos tinha sido arrancada e um dedo estava inchado e fora curvado até quebrar para um lado.

“Ele tentou se defender”, disse Rizzardi, e depois correu a vista por toda a extensão do corpo que jazia abaixo dele. “Que altura você diria que ele tem, Guido?”

“Um e noventa, com certeza mais alto que qualquer um de nós.”

“E mais pesado, também”, acrescentou Rizzardi. “Só podem ter sido dois.”

Brunetti grunhiu, concordando.

“Eu diria que os golpes vieram de frente, por isso ele não se surpreendeu com eles, não se foi atingido com isso”, disse Rizzardi, apontando para o tijolo azul que jazia dentro do retângulo de fita a menos de um metro do corpo. “E o barulho?”, perguntou Rizzardi.

“Há um aparelho de televisão na guarita dos guardas lá embaixo”, respondeu Brunetti. “Não estava ligado quando cheguei.”

“Acho que não”, disse Rizzardi, levantando-se. Ele tirou as luvas e as enfiou descuidadamente nos bolsos do sobretudo. “É tudo que posso fazer esta noite. Se os seus rapazes conseguirem levá-lo para mim a San Michele, darei uma olhada mais cuidadosa amanhã de manhã. Mas me parece bastante claro. Três golpes fortes na cabeça com a aresta desse tijolo. Não precisaria mais que isso.”

Vianello, que ficara em silêncio durante tudo isso, perguntou subitamente: “Foi rápido, doutor?”.

Antes de responder, Rizzardi fitou o cadáver do homem morto. “Depende de onde ele foi atingido primeiro. E com que força. É possível que ele tenha lutado com eles, mas não por muito tempo. Vou verificar se há alguma coisa embaixo das unhas. Minha suspeita é que foi rápido, mas vou ver o que aparece.”

Vianello fez que sim, e Brunetti disse: “Obrigado, Ettore. Vou mandar que o levem daqui esta noite”.

“Não para o hospital, lembre-se. Para San Michele.”

“Claro”, respondeu Brunetti, procurando imaginar se a sua insistência significava um novo capítulo da batalha em curso do médico com os diretores do Ospedale Civile.

“Então, boa noite, Guido. Devo ter alguma coisa para você amanhã à tarde, mas não acho que teremos surpresas aqui.”

Brunetti concordou. As causas físicas de morte violenta raramente revelavam segredos: eles estariam, se em algum lugar, no motivo.

Rizzardi trocou um aceno com Vianello e se virou para partir. De repente, tornou a se virar e fitou os pés de Brunetti. “Você não está de botas?”, perguntou com real preocupação.

“Deixei lá embaixo.”

“Foi bom ter trazido. A água já estava acima dos meus tornozelos na Calle della Mandola quando cheguei. Aquela cambada de vagabundos ainda não tinha colocado a passarela, por isso terei de voltar até Rialto para chegar em casa. Agora já deve estar acima dos meus joelhos.”

“Por que não pega o Número Um e salta em Sant’Angelo?”, sugeriu Brunetti. Rizzardi morava, ele sabia, perto do Cinema Rossini, e podia chegar lá rapidamente daquela parada sem ter de usar a Calle della Mandola, uma das partes mais baixas da cidade.

Rizzardi consultou o relógio e fez alguns cálculos rápidos. “Não. A próxima sai em três minutos. Não vou conseguir. E depois, teria de esperar vinte minutos a esta hora da noite. Posso perfeitamente caminhar. Além do mais, quem sabe eles não se deram ao trabalho de colocar a passarela na Piazza?” E começou a andar para a porta, mas sua real irritação com esse último dos muitos inconvenientes de morar em Veneza o fez voltar. “Temos que eleger um prefeito alemão algum dia. Aí as coisas funcionariam.”

Brunetti sorriu, disse boa-noite e ficou ouvindo as botas do médico rangendo nas pedras do corredor até o ruído desaparecer.

“Vou falar com os guardas e dar uma olhada lá embaixo, senhor”, disse Vianello, e saiu da sala.

Brunetti foi até a escrivaninha de Semenzato. “Acabou com isso?”, perguntou a Pavese. O técnico estava ocupado com o telefone, que terminara no outro lado da sala, esmagado contra a parede com tal força que tinha arrancado um pedaço do reboco antes de se despedaçar no chão.

A um aceno de Pavese, Brunetti abriu a primeira gaveta. Lápis, canetas, um rolo de fita de celofane e um pacote de balas de menta.

A segunda continha uma caixa com folhas de papel e envelopes timbrados com o nome e o título de Semenzato, além do nome do museu. Brunetti achou interessante que o nome do museu estivesse em corpo menor.

A gaveta inferior continha algumas pastas grossas de papel pardo, que Brunetti retirou dali. Ele abriu a pasta de cima na escrivaninha e começou a folhear os papéis.

Quinze minutos depois, quando os técnicos do outro lado da sala disseram que haviam concluído seu trabalho, Brunetti sabia pouca coisa mais sobre Semenzato do que ao chegar ali, mas sabia que o museu estava planejando montar, dentro de dois anos, uma grande mostra de desenhos da Renascença e já havia acertado empréstimos consideráveis de museus do Canadá, da Alemanha e dos Estados Unidos.

Brunetti recolocou as pastas no lugar e fechou a gaveta. Quando levantou a vista, viu um homem parado na soleira da porta. Baixo e atarracado, ele usava uma parca de borracha aberta para revelar o jaleco branco da equipe do hospital. Abaixo deste, Brunetti notou que ele usava botas altas de borracha preta. “Já acabou aqui, senhor?”, perguntou, fazendo um vago aceno de cabeça na direção do cadáver de Semenzato. Enquanto falava, um outro homem, com roupas e botas semelhantes, apareceu ao seu lado com uma maca de lona enrolada apoiada no ombro como se fosse um par de remos.

Um aceno de um dos técnicos informou que sim, e Brunetti disse: “Podem levá-lo agora. Direto para San Michele”.

“Não para o hospital?”

“Não. O doutor Rizzardi o quer em San Michele.”

“Sim, senhor”, disse o assistente, erguendo os ombros. Era tudo hora extra para eles, e San Michele ficava mais longe que o hospital.

“Vocês vieram pela Piazza?”, perguntou Brunetti.

“Sim, senhor. Nossa lancha está ao lado das gôndolas.”

“Está muito alta?”

“Cerca de trinta centímetros, eu diria. Mas a passarela está na Piazza, por isso não foi muito difícil chegar aqui. Que caminho vai tomar saindo daqui, senhor?”

“Para San Silvestro”, respondeu Brunetti. “Gostaria de saber como está a Calle dei Fuseri.”

O segundo assistente, mais alto e mais magro, com os cabelos louros finos se projetando sob as bordas do gorro, respondeu: “Está sempre pior que a Piazza, e não tinha nenhuma passarela quando passei por lá há duas horas a caminho do trabalho”.

“Podemos seguir pelo Canal Grande”, disse o primeiro assistente. “Podemos largá-lo em San Silvestro”, ofereceu, sorrindo.

“É muito gentileza sua”, disse Brunetti, devolvendo o sorriso e, como eles, consciente da existência da hora extra. “Preciso voltar à questura”, mentiu. “E minhas botas estão lá embaixo.” Isso era verdade, mas, mesmo que não as tivesse trazido, teria recusado a oferta. Não gostava da companhia dos mortos e teria preferido arruinar os sapatos a compartilhar a corrida para casa com um cadáver.

Vianello voltou nesse momento e disse que os guardas não tinham nenhuma novidade. Um deles admitira que eles estavam no pequeno escritório assistindo televisão quando a faxineira desceu a escada gritando. E Vianello lhe assegurara de que aqueles degraus eram o único acesso a esta parte do museu.

Eles permaneceram até o corpo ser removido, depois esperaram no corredor enquanto os técnicos trancavam o escritório e o lacravam para impedir entradas não autorizadas. Em seguida, os quatro desceram juntos a escada e pararam do lado de fora da porta aberta do escritório dos guardas. O guarda que estava ali quando Brunetti chegou interrompeu a leitura de Quattro Ruote quando os ouviu chegar. Será que seus concidadãos ilhados pelo mar sonhavam com carros como prisioneiros sonham com mulheres? No meio do silêncio absoluto que reinava sobre Veneza à noite, será que ansiavam pelo rugido do tráfego e o estridor das buzinas? Talvez, menos fantasiosamente, eles quisessem apenas a conveniência de poder dirigir do supermercado para casa, estacionar o carro em frente de casa e descarregar as compras, em vez de carregar as pesadas sacolas pelas ruas atulhadas de gente, subindo e descendo pontes, e depois subindo muitos lances de escada que pareciam, inevitavelmente, estar à espreita de todos os venezianos.

Reconhecendo Brunetti, ele perguntou: “Veio pegar as botas, senhor?”.

“Isso.”

Ele enfiou a mão embaixo da escrivaninha para puxar o saco de supermercado e o entregou a Brunetti, que agradeceu.

“Sãs e salvas”, disse o guarda, e sorriu novamente.

O diretor do museu acabara de ser espancado até a morte no seu escritório e quem houvesse passado pelo posto dos guardas não fora visto, mas pelo menos as botas de Brunetti estavam salvas.


10

 

 

 

 

Como já passavam das duas quando Brunetti chegou em casa naquela noite, ele dormiu até bem depois das oito na manhã seguinte e só acordou, de mau humor, quando Paola o chacoalhou de leve pelo ombro e disse que o café estava ao seu lado. Ele conseguiu se esquivar da plena consciência por mais alguns minutos, mas depois sentiu o cheiro do café, desistiu e puxou a bandeja. Paola desapareceu depois de trazer o café, uma sabedoria adquirida ao longo dos anos.

Terminado o café, ele empurrou as cobertas e foi olhar pela janela. Chuva. E se lembrou então de que a Lua estivera quase cheia na noite anterior, e isso significava mais acqua alta com a virada da maré. Percorreu o corredor até o banheiro e tomou uma ducha prolongada, tentando armazenar calor para o dia inteiro. De volta ao quarto, começou a se vestir e, enquanto dava o nó na gravata, decidiu que seria melhor vestir um suéter embaixo do casaco, porque as visitas que já havia planejado a Brett e Lele o obrigariam a andar de um lado para o outro da cidade. Ele abriu a segunda gaveta do armadio e procurou seu suéter de lã de cordeiro cinza. Não encontrando, procurou na gaveta seguinte, e então se lembrou de que Raffi pegara o suéter emprestado na semana anterior. Isso significava, Brunetti tinha certeza, que o encontraria embolado no fundo do armário do filho ou amontoado no fundo de uma gaveta. A recente melhora do desempenho acadêmico de Raffi infelizmente não havia se estendido aos hábitos de limpeza pessoal ou de asseio em geral.

Ele atravessou o corredor e, como a porta estava aberta, entrou no quarto do filho. Raffi já tinha saído para a escola, e Brunetti esperava que não estivesse usando o suéter. Quanto mais pensava nele, mais queria usar aquele suéter, e mais irritado ficava com a frustração do desejo.

Ele abriu a cômoda: jaquetas, calças, uma parca de esquiar, e no chão botas diversas, tênis, e um par de sandálias de verão. Mas não havia nenhum suéter largado na cadeira ou na ponta da cama. Ele abriu a primeira gaveta da cômoda e encontrou uma parafernália de cuecas. A segunda continha meias, nenhuma combinando e, suspeitou, pouco limpas. A terceira gaveta pareceu promissora: continha uma camiseta sem manga e duas com manga com uma inscrição que Brunetti não se deu ao trabalho de ler. Ele queria o suéter, não publicidade da floresta tropical. Puxou a segunda camiseta para o lado e sua mão congelou.

Embaixo das camisetas, meio escondidas, mas descuidadamente, estavam duas seringas perfeitamente acondicionadas em seus invólucros esterilizados de plástico. Brunetti sentiu o coração disparar enquanto as fitava. “Madre di Dio”, disse em voz alta e olhou rapidamente por cima do ombro temendo que Raffi aparecesse e encontrasse o pai xeretando no seu quarto. Empurrou as camisetas de volta sobre as seringas e fechou a gaveta.

De repente, ele se viu lembrando da tarde de domingo, uma década antes, quando fora ao Lido com Paola e as crianças. Raffi, correndo pela praia, tinha pisado num caco de garrafa e aberto a sola do pé. E Brunetti, calado ante a dor do filho e de seu próprio ardente amor por ele, havia enrolado uma toalha em volta do corte, levantara o garoto nos braços e o carregara, correndo, por um quilômetro até o hospital que ficava na ponta da praia. Ali, permanecera esperando, em seu traje de banho, durante duas horas, gelado até o osso devido ao ar-condicionado e ao medo, até o médico aparecer e dizer que o garoto estava bem. Seis pontos e muletas por uma semana, mas estava ótimo.

O que levara Raffi a fazer aquilo? Seria ele um pai muito rígido? Ele jamais levantara a mão para um dos filhos, raramente elevava a voz; a lembrança da violência em sua própria formação bastara para destruir qualquer impulso violento que pudesse ter tido para com eles. Estaria envolvido demais com seu trabalho, atarefado demais com os problemas da sociedade para se preocupar com os de seus próprios filhos? Quando fora a última vez em que os tinha ajudado na lição de casa? E onde ele obtinha as drogas? E qual era ela? Por favor, que não fosse heroína, não isso.

Paola? Ela geralmente sabia antes dele o que os filhos estavam fazendo. Será que ela suspeitava? Será que sabia e não lhe havia contado? E, se não sabia, será que ele deveria fazer o mesmo, protegê-la disso?

Ele estendeu uma mão trêmula e se deixou sentar na beira da cama de Raffi. Entrelaçou as mãos e as enfiou entre os joelhos, olhando fixamente para o chão. Vianello saberia quem vende drogas no bairro. Será que Vianello lhe contaria se soubesse de Raffi? Uma das camisas de Raffi estava ao seu lado em cima da cama. Ele a pegou e puxou para si, apertou-a contra o rosto e sentiu o odor do filho, aquele mesmo odor que sentira no primeiro dia em que Paola chegara em casa do hospital com Raffi e ele pressionara o rosto contra a barriga roliça do filho nu. Sentia um nó na garganta e um gosto de sal.

Ficou sentado na beira da cama por um longo tempo, recordando o passado e afugentando qualquer pensamento do futuro além da convicção de que teria que contar a Paola. Embora já houvesse abraçado a sua culpa, esperava que ela a negasse, o tranquilizasse e dissesse que havia sido um bom pai para os dois filhos. E Chiara? Ela saberia, ou suspeitaria? E o quê além disso? Ele se levantou com esse pensamento e saiu do quarto, deixando a porta aberta, como a tinha encontrado.

Paola estava sentada no sofá da sala de visitas, os pés apoiados na mesa baixa de mármore, lendo o jornal matutino. Isso significava que ela já havia saído na chuva para recolhê-lo.

Ele parou à porta e a observou virar uma folha. O radar do longo casamento a fez virar-se para ele. “Guido, quer fazer mais café?”, perguntou, e voltou a se concentrar no jornal.

“Paola”, ele começou. Ela registrou o tom e pousou o jornal no colo. “Paola”, ele repetiu, sem saber o que devia dizer ou como. “Achei duas seringas no quarto do Raffi.”

Ela parou, esperando para ele dizer mais, depois apanhou o jornal e continuou a leitura.

“Paola, ouviu o que eu disse?”

“Hmm?”, ela perguntou, a cabeça inclinada para trás para ler a manchete no alto da página.

“Disse que encontrei duas seringas no quarto de Raffi. No fundo de uma gaveta.” Ele andou na direção dela, por um instante com uma gana louca de arrancar o jornal de suas mãos e atirá-lo no chão.

“Então é ali que elas estavam”, ela disse, e virou a folha.

Ele sentou-se ao lado dela no sofá e, forçando o gesto para ficar calmo, estendeu a palma da mão aberta sobre a página diante dela e empurrou o jornal lentamente para seu colo. “O que quer dizer com ‘é ali que elas estavam’?”, perguntou, a voz tensa.

“Guido”, ela disse, concentrando toda atenção nele agora que o jornal se fora, “o que há com você? Não está se sentindo bem?”

Inteiramente inconsciente do que fazia, ele contraiu a mão formando um punho zangado, amassando o jornal numa bola frouxa. “Eu disse que encontrei duas seringas no quarto do Raffi, Paola. Seringas. Não entende?”

Ela o fitou por um instante, os olhos confusos, arregalados, e só então compreendeu o que as seringas significavam para ele. Sua boca se contraiu, seus olhos se arregalaram e ela recuou a cabeça e começou a rir. Seu riso explodiu em reverberações de autêntico prazer, lágrimas enchiam seus olhos. Ela as enxugou, mas não conseguia parar de rir. “Oh, Guido”, ela disse, a mão na boca no inútil esforço para parar de rir. “Oh, Guido, você não pode estar pensando nisso. Não, drogas não.” E mergulhou em novo acesso de riso.

Brunetti pensou por um momento que aquilo era histeria de verdadeiro pânico, mas conhecia Paola demasiadamente bem quanto a isso; aquilo era riso puro de comédia de alta classe. Com um gesto violento, ele arrancou o jornal do colo dela e o atirou no chão. A raiva que o marido transpirava a deixou imediatamente sóbria, e ela se endireitou no sofá.

“Guido, i tarli ”, ela disse, como se isso explicasse tudo.

Será que ela também estava drogada? O que os cupins teriam a ver com isso?

“Guido”, ela repetiu, mantendo a voz suave, o tom uniforme, como se estivesse falando com uma pessoa perigosa ou louca. “Eu contei a você na semana passada. Temos cupins na mesa da cozinha. As pernas estão cheias deles. E a única maneira de se livrar deles é injetar veneno nos buracos que eles deixam. Lembra que pedi para você me ajudar a levá-la para o terraço no primeiro dia ensolarado que houver, para o veneno não nos matar também?”

Sim, ele se lembrava disso, mas vagamente. Não havia prestado atenção quando ela lhe contara, porém agora estava lembrando.

“Pedi ao Raffi para comprar as seringas para mim e umas luvas de borracha para injetar o veneno na mesa. Achei que ele tinha esquecido, mas imagino que ele simplesmente as colocou na gaveta. E aí esqueceu de me contar que tinha comprado.” Ela estendeu o braço e apoiou a mão sobre a dele. “Está tudo bem, Guido. Não é o que você pensou.”

Ele precisou se recostar no sofá, sentindo uma cálida onda de alívio. Recostou a cabeça e fechou os olhos. Queria rir do absurdo daquilo, queria fazer graça com seu medo como Paola fizera, mas era impossível, não ainda.

Quando finalmente conseguiu falar, ele se virou e disse: “Não conte nunca para o Raffi, por favor, Paola”.

Ela se inclinou para ele e encostou a palma da mão em sua face, estudando seu rosto, e ele achou que ela ia prometer, mas ela desabou incontrolavelmente sobre o seu peito, de novo perdida em riso.

O contato com o corpo dela o libertou, enfim, e ele começou a rir, no começo uma risadinha fraca e um chacoalhar de cabeça, mas depois crescendo para um verdadeiro riso, gritos de alívio e alegria, puro deleite. Ela apertou o braço em torno dele, e avançou seu corpo lentamente pelo seu tórax, buscando seus lábios. Como um par de adolescentes, eles fizeram amor ali no sofá, sem se importar com as roupas, que acabaram amontoadas no chão aos seus pés, num abandono muito parecido com o do armário de Raffi.


11

 

 

 

 

Ao chegar à ponte de Rialto, ele se enfiou no passeio coberto à direita da estátua de Goldoni, caminhando em direção à igreja SS. Giovanni e Paolo e ao apartamento de Brett. Sabia que ela estava em casa porque o agente que ficara sentado do lado de fora do seu quarto no hospital por um dia e meio havia se reapresentando na questura quando ela recebera alta e retornara ao apartamento. Nenhum guarda fora colocado na casa porque um policial uniformizado não poderia ficar em uma das calli estreitas de Veneza sem que algum passante perguntasse o que ele estava fazendo, nem poderia um investigador que não fosse um morador do bairro ficar ali parado mais de meia hora sem que a questura recebesse chamadas para denunciar a presença suspeita. Os não venezianos pensam nela como uma grande cidade; os moradores sabem que é apenas uma sonolenta cidadezinha de interior com vocação para a fofoca, a curiosidade e a mesquinharia, não diferente da menor das paese da Calábria ou do Aspromonte.

Apesar dos anos transcorridos desde que estivera no apartamento, ele o encontrou sem dificuldade no lado direito da Calle dello Squero Vecchio, uma rua tão pequena que a prefeitura nem se dera ao trabalho de pintar seu nome na parede. Tocou a campainha e, momentos depois, uma voz no interfone perguntou quem era. Ele ficou satisfeito por elas estarem ao menos tomando precauções mínimas. Era comum os moradores desta cidade pacata destravarem as portas sem se preocupar com quem estava do lado de fora.

O edifício tinha sido restaurado havia poucos anos, e as escadas estavam recém-rebocadas e pintadas, mas o sal e a umidade já tinham começado seu trabalho, devorando a pintura e espalhando grandes fragmentos desprendidos pelo chão, como migalhas embaixo de uma mesa. Quando entrou no quarto e último lance de degraus, ele olhou para cima e notou que a pesada porta de metal do apartamento estava aberta, e que Flavia Petrelli o aguardava. Mesmo que nervoso e tenso, aquilo realmente parecia um sorriso.

Eles apertaram as mãos à porta, e ela recuou para ele entrar. Os dois falaram ao mesmo tempo, ela dizendo: “Estou contente que veio”, e ele: “Permesso”, ao entrar.

Ela trajava uma saia preta e um suéter de um amarelo-canário que poucas mulheres ousariam. A tez cor de oliva e os olhos quase negros de Flavia reluziam em contraste com a cor. Fitando-os mais de perto, porém, ele viu que aqueles olhos, por mais belos que fossem, estavam cansados, e pequenas rugas de tensão irradiavam de suas narinas e boca.

Ela pediu seu casaco e o pendurou num grande armadio à esquerda da entrada. Ele tinha lido o relatório dos guardas que investigaram o ataque, e não conseguiu se impedir de examinar o chão e a parede de tijolos. Não havia sinais de sangue, mas pôde sentir o cheiro de produtos de limpeza fortes e, assim lhe pareceu, de vela.

Flavia não fez nenhum movimento para voltar à sala de visitas, mas sim o reteve ali e perguntou, em voz baixa: “Descobriu alguma coisa?”.

“Sobre o dottor Semenzato?”

Ela fez que sim.

Antes que ele pudesse responder, Brett chamou da sala de visitas: “Pare de conspirar, Flavia, e traga-o aqui”.

Ela fez a gentileza de sorrir e dar de ombros, depois se virou e o guiou para a sala de visitas. A sala estava do jeito que ele se lembrava, cheia de luz, mesmo naquele dia terrível, que entrava pelas seis imensas claraboias recortadas no telhado. Brett estava sentada, vestindo uma calça vinho e um suéter preto de gola rulê, num sofá colocado entre duas janelas altas. Brunetti notou que partes do rosto dela, embora menos inchadas que no hospital, ainda estavam azuis dos hematomas. Ela afastou-se para a esquerda, abrindo espaço para ele ao seu lado, e lhe estendeu a mão.

Ele tomou a mão e sentou-se ao seu lado, olhando-a mais de perto.

“Não mais Frankenstein”, ela disse, sorrindo para mostrar que não só os seus dentes tinham se libertado dos arames que os mantiveram amarrados durante a maior parte do tempo em que estivera no hospital, mas que o corte no lábio cicatrizara o suficiente para ela poder fechar a boca.

Brunetti, familiarizado com a onisciência assumida dos médicos italianos e sua concomitante inflexibilidade, perguntou com genuína surpresa: “Como conseguiu que a deixassem sair?”.

“Fiz uma cena”, disse ela, simplesmente.

Não obtendo mais nada como resposta, Brunetti fitou Flavia, que cobriu os olhos com a mão e balançou a cabeça com a lembrança.

“E?”, ele perguntou.

“Disseram que eu podia ir se conseguisse comer, e assim a minha dieta progrediu para bananas e iogurte.”

Com a conversa de comida, Brunetti a observou mais de perto e notou que, embaixo das escoriações e arranhões, seu rosto estava realmente mais magro, as linhas mais finas e angulosas.

“Devia comer mais que isso”, disse. Ele ouviu Flavia rir às suas costas, mas quando se virou na sua direção ela se lembrou do assunto em questão, perguntando: “E Semenzato? Nós lemos sobre o crime esta manhã”.

“É muito parecido com o que eles escreveram. Foi morto no escritório dele.”

“Quem o encontrou?”

“A faxineira.”

“O que foi que aconteceu? Como ele foi morto?”

“Foi atingido na cabeça.”

“Com o quê?”, perguntou Flavia.

“Um tijolo.”

Subitamente curiosa, Brett perguntou: “Que tipo de tijolo?”.

Brunetti se lembrou de onde o vira inicialmente, ao lado do corpo. “É azul-escuro, cerca de duas vezes o tamanho da minha mão, mas tem alguns sinais dourados.”

“O que o tijolo estava fazendo lá?”, perguntou Brett.

“A faxineira disse que ele o usava como peso de papel. Por que queria saber?”

Ela fez que sim como se respondesse a uma pergunta diferente e, levantando-se do sofá, atravessou a sala até a estante de livros. Brunetti estremeceu com a maneira cautelosa com que ela andava, a lentidão para levantar o braço e puxar um livro grosso de uma prateleira alta. Enfiando-o embaixo do outro braço, ela voltou até eles e colocou o livro sobre a mesa baixa que havia na frente do sofá. Abriu o livro, virou umas folhas, depois o empurrou aberto e o segurou ali com as duas mãos pressionando as bordas externas das folhas.

Brunetti se inclinou para a frente e fitou a foto colorida na página. Parecia um imenso portão, mas não dava para ter noção de escala porque ele não estava preso a nenhuma parede; estava solto numa sala, talvez uma galeria de museu. Havia imensos touros alados em postura protetora nos dois lados da abertura. O fundo era do mesmo azul-cobalto do tijolo que fora usado para matar Semenzato, o corpo dos animais no mesmo dourado vibrante. Um olhar mais atento lhe revelou que a parede era inteiramente construída de tijolos retangulares, e a forma dos touros se destacava da superfície em baixo-relevo.

“O que é isso?”, ele perguntou, apontando para a foto.

“O Portão de Ishtar da Babilônia”, ela disse. “Boa parte dele foi reconstruída, mas é daí que veio o tijolo. Desta ou de alguma construção como ela, do mesmo lugar.” Antes que ele pudesse perguntar, explicou: “Eu me lembro de que alguns dos tijolos estavam nos depósitos do museu quando estava trabalhando lá”.

“Mas como ele foi parar na escrivaninha dele?”, perguntou Brunetti.

Brett sorriu mais uma vez. “As mordomias do cargo, imagino. Ele era o diretor, por isso podia perfeitamente conseguir que trouxessem qualquer coisa da coleção permanente para o seu escritório.”

“Isso é normal?”, perguntou Brunetti.

“É, sim. Claro, eles não podem ter um Leonardo ou um Bellini pendurado só para ficarem olhando, mas não é incomum que as peças do acervo de um museu sejam usadas para decorar um escritório, especialmente o do diretor.”

“E são mantidos registros desse tipo de empréstimo?”, ele perguntou.

Do outro lado da mesa, Flavia cruzou as pernas com um farfalhar de seda e disse mansamente: “Ah, é assim que funciona”. Depois acrescentou, como se Brunetti houvesse perguntado: “Eu o encontrei uma vez, mas não gostei dele”.

“Quando foi que o encontrou, Flavia?”, perguntou Brett, ignorando a pergunta de Brunetti.

“Cerca de meia hora antes de encontrar você, cara. Na sua exposição no Palazzo Ducale.”

Quase automaticamente, Brett a corrigiu: “Não era minha exposição”. Brunetti teve a sensação de que essa mesma correção havia se repetido muitas vezes antes.

“Bem, fosse lá de quem fosse, então”, disse Flavia. “Ela acabara de abrir e eu estava sendo exibida pela cidade, recebendo o tratamento completo — diva visitante, essas coisas.” Seu tom dava a ideia de que a fama, para ela, parecia um pouco ridícula. Como Brett devia conhecer essa história do encontro, Brunetti supôs que a explicação lhe era dirigida.

“Semenzato me mostrou as galerias, mas tive um ensaio naquela tarde, e imagino que devo ter sido um pouco brusca com ele.” “Brusca?” Brunetti já tinha visto o mau humor de Flavia, e brusco dificilmente seria um termo adequado para descrevê-lo.

“Ele ficou me dizendo o quanto admirava meu talento.” Ela fez uma pausa e se inclinou para Brunetti, colocando uma mão em seu braço enquanto explicava. “Isso sempre significa que eles nunca me ouviram cantar e provavelmente não gostariam se ouvissem, mas ouviram o suficiente para saber que sou famosa, por isso acham que precisam me bajular.” Feita a explicação, ela retirou a mão e recostou-se na cadeira. “Tive a sensação de que, enquanto ele mostrava o quanto a exposição era maravilhosa”, nesse momento ela se virou para Brett e acrescentou, “e era”, depois voltou a atenção de novo para Brunetti e continuou, “o que eu supostamente devia estar registrando era o quanto ele era maravilhoso por ter pensado nela. Embora não fosse. Bem, eu não sabia disso na época — que era uma mostra de Brett —, mas ele foi tão insistente sobre aquilo, que ela não me agradou.”

Brunetti pôde imaginar perfeitamente que ela não gostava da competição de pessoas exibicionistas. Não, isso era injusto, pois ela não se autopromovia. Ele teve de admitir que estava errado na última vez em que a encontrara. Não havia nenhuma vaidade ali, apenas a serena aceitação de seu próprio valor e de seu próprio talento, e ele conhecia o passado dela o suficiente para saber como fora difícil chegar lá.

“Mas aí você veio com uma taça de champanhe e me salvou dele”, disse ela, sorrindo para Brett.

“Não é uma má ideia, champanhe”, disse Brett, interrompendo o fluxo de memória de Flavia, e Brunetti se espantou com a semelhança de sua reação com a de Paola sempre que ele começava a contar a outras pessoas a maneira como eles se conheceram, trombando na ponta de um corredor da biblioteca da universidade. Quantas vezes, durante seus anos de convivência, ela lhe pedira para buscar uma bebida ou interrompera sua história de algum outro modo, fazendo uma pergunta a alguém? E por que contar aquela história lhe causava tanta alegria? Mistérios. Mistérios.

Aproveitando a deixa, Flavia saiu da cadeira e atravessou a sala. Eram apenas onze e meia da manhã, mas se elas estavam com vontade de beber champanhe, ele não achou que fosse sua função contradizê-las ou tentar impedi-las.

Brett virou uma folha do livro e acomodou-se no sofá, e as páginas voltaram ao lugar, revelando a Brunetti o touro dourado, parte do qual havia matado Semenzato.

“Como o conheceu?”, perguntou Brunetti.

“Trabalhei com ele na mostra da China, cinco anos atrás. A maior parte de nosso contato foi por cartas porque eu estava na China quando a maioria dos arranjos foi feita. Escrevi e sugeri algumas peças, enviando fotos, dimensões e peso, já que elas teriam de ser despachadas de avião de Xian a Beijing, a Nova York e a Londres para a exposição de lá, depois para Milão, e depois transportadas de caminhão e de barco para cá.” Ela fez uma pequena pausa e acrescentou: “Não pretendia encontrá-lo até chegar aqui para preparar a mostra”.

“Quem decidiu quais peças viriam da China para cá?”

A lembrança que essa pergunta suscitou transfigurou-se numa careta. “Quem sabe?” Quando ele não conseguiu entender, ela tentou explicar. “Estavam envolvidos nisso o governo chinês, seus ministérios de Patrimônio Cultural e de Relações Exteriores, e, do nosso lado” — ele notou que Veneza era, inconscientemente, “o nosso lado” —, “o museu, o Departamento de Antiguidades, a polícia financeira, o Ministério da Cultura e alguns outros departamentos que fiz questão de esquecer.” Ela deu livre curso à lembrança da burocracia. “Aqui, foi horrível, bem pior que em Nova York e Londres. E tive que fazer tudo isso de Xian, através de cartas que ou atrasavam no correio ou eram retidas pelos censores. Por fim, depois de três meses disso — e cerca de um ano antes da inauguração — vim para cá por duas semanas e consegui que a maioria das coisas andasse, apesar de ter sido forçada a voar duas vezes para Roma.”

“E Semenzato?”, perguntou Brunetti.

“Acho que, antes de tudo, o senhor precisa compreender que ele foi uma nomeação bastante política.” Ela notou a surpresa de Brunetti e sorriu. “Ele tinha experiência em museus, esqueci onde. Mas sua escolha foi uma retribuição política. De qualquer modo, havia”, ela se corrigiu no ato, “há curadores no museu que de fato cuidam da coleção. Seu trabalho era principalmente administrativo, e ele o fazia muito bem.”

“E sobre a exposição aqui? Ele ajudou a montar?” Do outro lado do apartamento chegava o som de Flavia se movimentando, abrindo e fechando gavetas e armários, o retinir de taças.

“Um pouco. Já lhe contei como fiquei mais ou menos indo e vindo de Xian para as inaugurações em Nova York e Londres, mas vim para cá para a abertura.” Ele achou que ela havia concluído, mas aí ela acrescentou: “E permaneci cerca de um mês depois dela”.

“Quanto contato teve com ele?”

“Muito pouco. Ele esteve de férias na maioria do tempo em que ela estava sendo montada, e quando voltou teve que ir a Roma encontrar o ministro, trabalhar por um intercâmbio com o Brera de Milão para outra exposição que eles estavam planejando.”

“Mas com certeza lidou com ele pessoalmente por algum tempo durante isso tudo?”

“Sim, lidei. Ele era extremamente charmoso e, quando podia, muito prestativo. Ele me deu carta branca na exposição, me permitiu montá-la do jeito que eu quisesse. E depois, quando ela terminou, fez o mesmo por minha assistente.”

“Sua assistente?”, perguntou Brunetti.

Brett olhou na direção da cozinha e respondeu: “Matsuko Shibata. Ela era minha assistente em Xian, emprestada pelo Museu de Tóquio, numa política de intercâmbio entre os governos japonês e chinês. Ela estudou em Berkeley, mas voltou para Tóquio depois de se formar”.

“Onde ela está agora?”

Ela se curvou sobre o livro e virou blocos de folhas até sua mão repousar ao lado de uma delicada pintura em tela japonesa mostrando garças voando acima de um alto bambuzal. “Ela morreu. Morreu num acidente, no sítio arqueológico.”

“O que aconteceu?”, falou Brunetti de maneira muito suave, consciente de que a morte de Semenzato transformava esse acidente em algo que Brett já havia começado a examinar de maneira absolutamente distinta.

“Ela caiu. A escavação em Xian é pouco mais que um poço aberto, coberto por um hangar de avião. Todas as estátuas estavam enterradas, parte do exército que o imperador levaria consigo para a eternidade. Em alguns lugares, tivemos que cavar três ou quatro metros para alcançá-los. Há um perímetro externo acima da escavação, e um muro baixo para impedir que os turistas caiam nele ou chutem terra em nós quando estamos trabalhando. Em algumas áreas, vedadas aos turistas, não há muro. Matsuko caiu”, ela começou, mas Brunetti observou enquanto ela continuava a processar novas possibilidades e ajustar sua linguagem de acordo com elas. Ela reformulou sua última frase. “O corpo de Matsuko foi encontrado no fundo de um desses locais. Ela tinha caído de uma altura de três metros e quebrara o pescoço.” Ela fitou Brunetti e, com a mudança da última sentença, admitiu abertamente sua nova dúvida: “Ela foi encontrada no fundo, com o pescoço quebrado”.

“Quando ela foi morta?”

Um tiro espocou na cozinha. Sem pensar, Brunetti girou o corpo na cadeira e se agachou em frente de Brett, o corpo posicionado entre ela e a porta aberta da cozinha. Sua mão já estava enfiada por dentro da jaqueta, puxando o revólver, quando eles ouviram Flavia gritar, “Porco vacca”, e então o som inconfundível do champanhe jorrando do gargalo da garrafa para o chão.

Ele soltou a arma e voltou para o seu assento sem dizer nada a Brett. Em outras circunstâncias, poderia ter sido engraçado, mas nenhum deles riu. Em silencioso consenso, decidiram ignorar o incidente, e Brunetti repetiu a pergunta: “Quando ela foi morta?”.

Resolvendo poupar tempo e responder a todas as perguntas de uma vez, ela disse: “Aconteceu cerca de três semanas depois que enviei a primeira carta a Semenzato”.

“Quando foi isso?”

“Em meados de dezembro. Levei seu corpo de volta para Tóquio. Isto é, fui com ele. Com ela.” Então silenciou, a voz paralisada por lembranças que não pretendia compartilhar com Brunetti.

“Eu estava indo para San Francisco, para o Natal”, continuou. “Então saí mais cedo e passei três dias em Tóquio. Visitei a família dela.” De novo, uma longa pausa. “Em seguida fui para San Francisco.”

Flavia voltou da cozinha equilibrando em uma das mãos uma bandeja de prata com três taças flutes, e segurando com a outra, pelo gargalo, uma garrafa de Dom Perignon como se fosse uma raquete de tênis. Nada de economia nessa casa, não no champanhe após o café da manhã.

Ela ouvira as últimas palavras de Brett e perguntou: “Está contando ao Guido sobre o nosso feliz Natal?”. O uso de seu primeiro nome não passou despercebido para nenhum deles, nem seu enfático “feliz”.

Brunetti pegou a bandeja e pousou-a sobre a mesa. Flavia encheu as taças com doses generosas de champanhe. Borbulhas escaparam pela borda de uma delas, escorreram para o lado e pela borda da bandeja, e na direção do livro que ainda estava aberto sobre a mesa. Brett o fechou e o pôs no sofá ao seu lado. Flavia entregou uma taça a Brunetti, deixou uma na mesa diante do lugar onde estivera sentada, e passou a terceira para Brett.

“Tim-tim”, brindou Flavia com esplêndida artificialidade, e eles ergueram as taças. “Se vamos falar de San Francisco, então acho que preciso pelo menos de champanhe.” Ela se sentou de frente para eles e tomou algo demasiado grande para ser chamado de gole.

Brunetti lançou um olhar inquiridor, e ela se apressou a explicar. “Eu estava cantando lá. Tosca. Deus, que desastre.” Num gesto tão conscientemente teatral que zombava de si mesma, ela pôs o dorso da mão na testa, fechou os olhos por um instante, depois continuou. “Nós tínhamos um diretor alemão que desenvolvera um ‘conceito’. Infelizmente, seu conceito era modernizar a ópera para torná-la relevante”, palavra que ela pronunciou com especial desprezo, “e ambientá-la durante a Revolução Romena, e Scarpia devia fazer Ceaucescu, ou sabe-se lá como diabos aquele homem terrível pronunciava esse nome. Eu ainda deveria ser a diva reinante, mas de Bucareste, não de Roma.” Ela cobriu os olhos com a mão, mas seguiu em frente. “Eu me lembro de que havia tanques e metralhadoras, e em certo ponto tive que esconder uma granada de mão no decote.”

“Não se esqueça do telefone”, disse Brett, cobrindo a boca e segurando os lábios fechados para não rir.

“Céus, o telefone. Eis a prova de como tentei apagá-lo da memória, já nem lembrava dele.” Ela se virou para Brunetti, deu um gole mais apropriado para água mineral e continuou, com a memória reavivada. “No meio de ‘Visse d’arte’, o diretor queria que eu tentasse telefonar pedindo ajuda. Então, lá estava eu, estendida no sofá, tentando convencer Deus de que eu não merecia nada daquilo, e não merecia, quando o Scarpia — acho que ele era um romeno de verdade —, eu certamente não entendia uma palavra do que ele dizia.” Ela fez uma rápida pausa, e acrescentou: “Ou cantava”.

Brett a interrompeu para corrigir. “Ele era búlgaro, Flavia.”

O gesto de Flavia, mesmo atrapalhado pela taça, foi vivamente negativo: “Dá na mesma, cara. Eles todos parecem batatas e cheiram a páprica. E todos gritam, em especial as sopranos”. Ela terminou o champanhe e parou o tempo suficiente para reabastecer a taça. “Onde é que eu estava?”

“No sofá, eu acho, rogando a Deus”, sugeriu Brett.

“Ah, sim. E aí o Scarpia, um homenzarrão estúpido, tropeçou no fio do telefone e o arrancou da tomada. Então, ali estava eu no sofá, com a linha para Deus cortada, e além do barítono podia ver o diretor nos bastidores gesticulando para mim como um louco. Acho que ele queria que eu o reconectasse e usasse, fizesse a ligação do jeito que desse.” Ela tomou um golinho, sorriu para Brunetti com um calor que o fez sorver o próprio champanhe, e prosseguiu. “Mas um artista tem que ter alguns padrões”, olhando agora para Brett, “ou, como vocês americanos dizem, traçar uma linha na areia.”

Ela parou e Brunetti pegou a deixa. Ele disse: “O que a senhora fez?”.

“Peguei o receptor e cantei nele, como se houvesse alguém na outra ponta, como se ninguém tivesse visto ele ser arrancado da parede.” Ela pousou a taça na mesa, levantou-se e esticou os braços em agônica forma de cruz, e aí, sem nenhum aviso, começou a cantar as últimas frases da ária. “Nell’ora del dolor perchè, signor, ah perché me ne rimuneri così? ” Como conseguia fazer aquilo? Partindo da voz normal da fala, sem nenhuma preparação, direto para aquelas notas solidamente moduladas?

Brunetti caiu na risada, derramando um pouco de champanhe na camisa. Brett pousou sua taça na mesa e bateu as mãos em suas bochechas.

Flavia, calmamente, como se tivesse acabado de ir à cozinha verificar o assado e descobrir que estava pronto, tornou a sentar na cadeira e continuou a história. “Scarpia teve que virar de costas para o público de tanto que ria. Foi a primeira coisa que ele fez em um mês que me fez gostar dele. Eu quase lamentei ter de matá-lo alguns minutos depois. O diretor estava histérico durante o intervalo, gritando comigo que eu tinha arruinado a sua produção, dizendo que jamais trabalharia comigo de novo. Bem, isso nem precisava dizer, não é? As críticas foram terríveis.”

“Flavia”, brincou Brett, “foram as críticas à produção que foram terríveis; as feitas a você foram maravilhosas.”

Como se explicasse algo para uma criança, Flavia disse: “As críticas sobre mim são sempre maravilhosas, cara. Simples assim”. Ela virou a atenção para Brunetti. “Foi nesse fiasco que ela veio”, disse, apontando para Brett, “para o Natal comigo e meus filhos.” Ela balançou a cabeça algumas vezes. “Ela veio depois de levar o corpo daquela moça para Tóquio. Não, não foi um feliz Natal.”

Brunetti decidiu que, com ou sem champanhe, ele ainda queria saber mais sobre a morte da assistente de Brett. “Houve, na época, algum questionamento de que poderia não ter sido um acidente?”

Brett balançou a cabeça, a taça esquecida diante dela. “Não. De vez em quando, quase todos nós escorregávamos andando pela borda da escavação. Um dos arqueólogos chineses tinha caído e quebrado o tornozelo cerca de um mês antes. De forma que na época todos acreditamos que havia sido um acidente. Pode ter sido”, acrescentou, com absoluta falta de convicção.

“Ela trabalhou na exposição daqui?”, ele perguntou.

“Não na abertura. Eu vim para cá sozinha para isso. Mas Matsuko supervisionou a embalagem, quando as peças saíram da China.”

“A senhora estava aqui?”, perguntou Brunetti.

Brett hesitou bastante, olhou para Flavia, curvou a cabeça, e respondeu: “Não, não estava”.

Flavia tornou a pegar a garrafa e despejou mais champanhe nas taças, embora a sua fosse a única que precisasse ser reabastecida.

Ninguém disse nada por alguns instantes, e então Flavia perguntou a Brett, fazendo uma declaração, não uma pergunta. “Ela não falava italiano, falava?”

“Não, não falava”, Brett respondeu.

“Mas ela e Semenzato falavam inglês, que eu me lembre.”

“Que diferença faz?”, perguntou Brett, a voz aguçada por uma ira que Brunetti percebia, mas não conseguia definir.

Flavia fez um som sibilante com a língua e virou-se com fingida exasperação para Brunetti. “Talvez seja verdade o que as pessoas dizem sobre os italianos, e nós sejamos mais simpáticos à desonestidade que outras pessoas. Sabe o que eu quero dizer, não é?”

Ele fez que sim. “Isso significa”, ele explicou a Brett quando viu que Flavia não o faria, “que ela não poderia lidar com pessoas daqui exceto através de Semenzato. Eles tinham uma língua comum.”

“Espere um minuto”, disse Brett. Agora ela compreendera o que eles queriam dizer, mas isso não significava que gostara disso. “Então, agora Semenzato é culpado, sem mais nem menos, e Matsuko também? Só porque os dois falavam inglês?”

Nem Brunetti nem Flavia disseram uma palavra.

“Trabalhei com Matsuko durante três anos”, insistiu Brett. “Ela era uma arqueóloga, uma curadora. Vocês não podem simplesmente decidir que ela era uma ladra, não podem ficar aí sentados bancando o juiz e o júri e decidir que ela era culpada, sem qualquer informação, sem nenhuma prova.” Brunetti notou que ela não parecia ter o menor problema com a igual suposição da culpa de Semenzato.

De novo, nenhum dos dois respondeu. Quase um minuto se passou. Por fim, Brett se recostou no sofá, estendeu a mão e pegou sua taça. Mas não bebeu, apenas ficou girando o champanhe na taça e depois a recolocou na mesa. “Lâmina de Occam”, ela disse, finalmente, em inglês, em tom resignado.

Brunetti esperou que Flavia falasse, achando que aquilo faria mais sentido para ela, mas Flavia não disse nada. Então ele perguntou: “Lâmina de quem?”.

“Guilherme de Occam”, repetiu Brett, mantendo os olhos na taça. “Foi um filósofo medieval. Inglês, acho. Ele tinha uma teoria segundo a qual a explicação correta para qualquer problema é em geral aquela que faz o uso mais simples da informação disponível.”

O signor Guilherme, Brunetti se viu pensando, claramente não era um italiano. Ele fitou Flavia e poderia jurar que seu cenho franzido trazia a mesma mensagem.

“Flavia, pode me arranjar uma bebida diferente?”, perguntou Brett, segurando a taça cheia pela metade. Brunetti notou a hesitação inicial de Flavia, o olhar de suspeita que lançou para ele, depois para Brett, e pensou em como era parecido com o olhar que Chiara lhe dava quando lhe diziam para ir fazer alguma coisa que a tiraria da sala onde ele e Paola estavam conversando sobre algo que queriam manter em segredo. Com um movimento sinuoso, ela se levantou da cadeira, pegou a taça de Brett e foi para a cozinha. À porta, parou o tempo suficiente para dizer por cima do ombro da amiga: “Vou trazer um pouco de água mineral para você. Cuidarei de demorar bastante para abrir a garrafa”. A porta bateu e ela se foi.

O que queria dizer tudo aquilo, Brunetti se perguntou.

Depois que Flavia saiu, Brett disse a ele: “Matsuko e eu éramos namoradas. Nunca contei a Flavia, mas ela sabe mesmo assim”. Um barulho estridente na cozinha confirmou a veracidade disso.

“Começou em Xian, cerca de um ano depois que ela chegou à escavação.” Então, para deixar as coisas mais claras: “Nós trabalhamos juntas na exposição, e ela escreveu um capítulo para o catálogo”.

“De quem foi a ideia de ela colaborar na mostra?”, perguntou Brunetti.

Brett não fez nenhuma tentativa de ocultar seu embaraço. “Minha? Dela? Não me lembro. Simplesmente aconteceu. Nós estávamos falando disso uma noite.” Por baixo dos hematomas, ela enrubesceu. “E, de manhã, estava decidido que ela escreveria um artigo e iria para Nova York ajudar a montar a exposição.”

“Mas a senhora veio sozinha para Veneza?”, ele perguntou.

Ela fez que sim. “Nós duas voltamos para a China depois da abertura em Nova York. Eu voltei a Nova York para fechar as coisas por lá e Matsuko foi a Londres para me ajudar a montar a abertura. Nós duas voltamos para a China logo depois disso. Em seguida voltei a Londres para embalar as peças para a exposição de Veneza. Achei que ela viria se juntar a mim para a abertura, mas ela não quis. Disse que queria...” a voz de Brett secou. Ela clareou a garganta e repetiu: “Ela disse que queria que ao menos essa parte da mostra fosse toda minha, por isso não viria”.

“Mas ela veio quando a mostra acabou? Quando as peças foram enviadas de volta para a China?”

“Ela veio de Xian por três semanas.” Brett parou de falar e olhou para baixo, para suas mãos entrelaçadas, murmurando “Não acredito nisso, não acredito nisso”, o que, para Brunetti, sugeriu que ela acreditava.

“As coisas entre nós tinham acabado a essa altura, quando ela veio para cá. Eu havia conhecido Flavia na inauguração. Disse a Matsuko quando voltei a Xian, cerca de um mês depois que a mostra abriu aqui.”

“Como ela reagiu quando lhe contou?”

“Como esperaria que reagisse, Guido? Ela era gay, pouco mais que uma garota, apanhada entre duas culturas, criada no Japão e educada nos Estados Unidos. Quando voltei a Xian após a abertura em Veneza — tinha ficado fora quase dois meses — ela chorou ao ver o catálogo italiano com o seu artigo. Ela tinha ajudado a montar a exposição mais importante da nossa área em décadas, e estava apaixonada pela sua chefe, e achava que era correspondida. E ali estava eu, chegando de Veneza sem avisar, para lhe dizer que estava tudo acabado, que estava apaixonada por outra pessoa, e, quando ela perguntou por quê, eu estupidamente disse alguma coisa sobre cultura, sobre a dificuldade de realmente compreender alguém de uma cultura diferente. Disse-lhe que ela e eu não a compartilhávamos, mas que Flavia e eu tínhamos uma cultura comum.” Outro estrondo na cozinha bastou para mostrar a mentira que havia nisso.

“Como ela reagiu?”, perguntou Brunetti.

“Se fosse Flavia, imagino que teria me matado. Mas Matsuko era japonesa, por mais tempo que houvesse passado nos Estados Unidos. Ela fez uma mesura profunda e saiu da sala.”

“E depois disso?”

“Depois disso, foi a assistente perfeita. Formal e distante, e muito eficiente. Era muito competente no que fazia.” Ela fez uma longa pausa e depois disse, em voz baixa: “Não gosto do que fiz a ela, Guido”.

“Por que ela veio para cá para enviar as coisas de volta para a China?”

“Eu estava em Nova York”, disse Brett, como se isso explicasse as coisas. Para Brunetti, não explicava, mas ele resolveu deixar isso para mais tarde. “Liguei para Matsuko e perguntei se ela não podia supervisionar o encerramento aqui e enviar as coisas para a China.”

“E ela concordou?”

“Como eu lhe disse, ela era minha assistente. A exposição significava muito mais para ela que para mim.” Ouvindo como isso soava, Brett acrescentou: “Pelo menos achei que significava”.

“E a família dela?”, ele perguntou.

Obviamente surpreendida pela questão, Brett disse: “O que tem a família?”.

“Família rica?”

“Ricca sfondata”, explicou. Riqueza sem fim. “Por que pergunta isso?”

“Para compreender se ela o fez por dinheiro”, explicou.

“Não gosto como o senhor simplesmente supõe que ela estava envolvida nisso”, protestou Brett, mas sem convicção.

“Já posso voltar?”, perguntou Flavia, em voz alta, da cozinha.

“Pare com isso, Flavia”, respondeu Brett, irritada.

Flavia voltou carregando um copo de água mineral, as borbulhas rodopiando alegremente do fundo. Ela se sentou na frente de Brett, consultou o relógio, e disse: “É hora de você tomar seus comprimidos”. Silêncio. “Quer que eu vá buscá-los?”

Sem aviso, Brett socou o punho na superfície da mesa de mármore, fazendo a bandeja chacoalhar e um jorro de borbulhas rodopiar para cima de todas as taças. “Eu mesma vou buscar os comprimidos, raios.” Ela se levantou do sofá e caminhou rapidamente através da sala. Segundos depois, o baque forte de outra porta batida ecoou pela sala.

Flavia sentou-se na sua cadeira, pegou sua taça de champanhe e tomou um gole. “Quente”, observou. O champanhe? A temperatura da sala? O humor de Brett? Ela despejou o conteúdo da taça na taça de champanhe de Brett e esvaziou a garrafa na sua. Deu um golinho para testar, e aí sorriu para Brunetti. “Melhor.” Ela pousou a taça na mesa.

Sem saber se aquilo era uma pouco de teatro ou não, Brunetti resolveu esperar. Sociavelmente, eles bebericaram durante algum tempo, até que Flavia por fim perguntou: “Que necessidade havia do guarda no hospital?”.

“Até eu ter alguma ideia mais clara do que está acontecendo aqui, não saberei o quanto alguma coisa é necessária”, ele respondeu.

Ela deu um largo sorriso. “Como é revigorante ouvir um funcionário público admitir ignorância”, disse ela, estendendo a mão para depositar a taça vazia sobre a mesa.

O champanhe havia acabado, sua voz mudou e ficou mais séria. “Matsuko?”, ela perguntou.

“Provavelmente.”

“Mas como ela conheceria Semenzato? Ou conheceria o suficiente sobre ele para saber que era a pessoa a contatar?”

Brunetti ponderou sobre isso. “Parece que ele tinha uma reputação, ao menos aqui.”

“O tipo de reputação que Matsuko conheceria?”

“Talvez. Ela trabalhou com antiguidades durante anos, por isso provavelmente ouvira coisas. E Brett disse que a família dela era muito rica. Talvez os muito ricos conheçam esse tipo de coisa.”

“Sim, nós conhecemos”, ela assentiu, com uma sem-cerimônia que ele tinha certeza que era real. “É quase um clube privado, como se fizéssemos um juramento de manter os segredos uns dos outros. E é sempre fácil, muito fácil, saber onde encontrar um advogado tributarista desonesto — não que exista qualquer outro tipo, ao menos não neste país — ou alguém que possa conseguir drogas, ou garotos, ou garotas, ou alguém disposto a cuidar que uma pintura chegue de um país a outro, e sem fazer perguntas. Claro, não estou certa de que essas coisas funcionam no Japão, mas não vejo por que deveria haver alguma diferença. A riqueza tem seu próprio passaporte.”

“Ouviu falar alguma coisa sobre Semenzato?”

“Eu já lhe disse, eu o encontrei somente naquela vez, e não gostei dele, por isso não estava interessada em nada que fosse dito sobre ele. E agora é tarde demais para descobrir, já que todo mundo estará ocupado falando bem dele.” Ela estendeu a mão, pegou a bebida de Brett e deu um gole. “Claro, isso vai mudar daqui a algumas semanas, e as pessoas voltarão a dizer a verdade sobre ele. Mas agora não é hora de tentar descobrir isso.” Ela tornou a pôr a taça sobre a mesa.

Embora achasse que sabia qual seria a resposta, ele ainda perguntou: “Brett disse alguma coisa sobre Matsuko? Quer dizer, desde que Semenzato foi morto?”.

Flavia abanou a cabeça. “Ela não falou muito sobre nada. Não desde que isso começou.” Ela se inclinou para a frente e moveu a taça alguns milímetros para a esquerda. “Brett tem medo de violência. Isso não faz nenhum sentido para mim porque ela é muito corajosa. Nós, mulheres italianas, não somos, o senhor sabe. Nós esbravejamos e peitamos, mas temos pouca coragem física. Ela esteve na China, vivendo numa barraca durante a metade do tempo, circulando pelo país. Chegou a ir ao Tibet de ônibus. Ela me disse que quando as autoridades chinesas não quiseram lhe dar um visto, ela simplesmente forjou os papéis e foi. Ela não tem medo desse tipo de coisa, das coisas que aterrorizam a maioria das pessoas, de se meter em encrencas oficiais ou ser presa. Mas a violência física de verdade a aterroriza. Acho que é porque ela vive tanto de sua mente, resolvendo coisas ali e pondo-as para fora. Ela não tem sido a mesma desde que isso aconteceu. Ela não quer atender à porta. Finge que não ouviu ou que espera que eu vá atender. Mas é porque está com medo.”

Brunetti ficou imaginando as razões para Flavia lhe contar tudo aquilo. “Terei de partir na próxima semana”, ela disse, respondendo à pergunta dele. “Meus filhos estiveram esquiando com o pai por duas semanas, e agora eles vêm para casa. Nós cancelamos três apresentações, mas não posso cancelar mais. E não quero. Pedi para ela vir comigo, porém ela se recusa.”

“Por quê?”

“Não sei. Ela não dirá. Ou não pode.”

“Por que está me contando isso?”

“Acho que ela ouvirá o senhor.”

“Se eu disser o quê?”

“Se pedir para ela ir comigo.”

“A Milão?”

“Isso. Depois, em março, terei de ir a Munique por um mês. Ela poderia me acompanhar.”

“E quanto à China? Ela não tem que voltar para lá?”

“E terminar com o pescoço quebrado no chão daquele poço?” Apesar de saber que o ódio dela não se destinava a ele, pestanejou ao som daquilo.

“Ela falou alguma coisa sobre voltar para lá?”, ele perguntou.

“Não falou sobre nada.”

“Sabe quando ela tem que partir?”

“Não creio que tenha algum plano. Quando chegou, disse que não tinha reserva para a volta.” Ela encarou o olhar inquisitivo de Brunetti. “Isso dependeria do que ficasse sabendo de Semenzato.” Pelo seu tom, estava claro que isso era apenas parte da explicação. Ele esperou que ela terminasse. “Mas parte disso dependia de mim, imagino.” Ela fez uma pausa, desviou o olhar de Brunetti, depois tornou a fitá-lo rapidamente. “Ela mexeu os pauzinhos para conseguir um convite para eu dar master classes em Beijing. Queria que eu voltasse com ela para lá.”

“E?”, Brunetti perguntou.

Flavia descartou a ideia com um gesto de mão, mas disse apenas: “Não chegamos a discutir o assunto antes de tudo isso acontecer”.

“E depois?”

Ela abanou a cabeça.

Toda essa conversa de Brett fez Brunetti perceber subitamente que fazia tempo que ela saíra da sala. “Esta é a única porta?”, ele perguntou.

Sua pergunta foi tão repentina que Flavia levou um tempo para compreender e depois compreender tudo que ela significava.

“É. Não tem nenhuma outra passagem para fora. Ou para dentro. E o telhado é separado. Não há acesso para ele.” Ela se levantou. “Vou ver onde ela está.”

Ela ficou fora um longo tempo, durante o qual Brunetti pegou o livro que Brett havia deixado no sofá e o folheou. Ele ficou olhando demoradamente para a foto do Portão de Ishtar, tentando ver que parte da figura aparecia no tijolo que havia matado Semenzato. Era como um quebra-cabeça, mas ele foi incapaz de encaixar no quadro integral do portão que tinha diante de si a única peça que faltava, que jazia no laboratório da polícia na questura.

Flavia demorou quase cinco minutos para voltar. Ela ficou parada ao lado da mesa enquanto falava, dando a entender a Brunetti que a conversa havia terminado. “Ela está dormindo. Os comprimidos para dormir que está tomando são muito fortes e acho que toma um tranquilizante também. O champanhe não ajudou as coisas. Ela vai dormir até a tarde.”

“Vou precisar falar com ela de novo”, ele disse.

“Não poderia esperar até amanhã?” Era uma simples pergunta, não um pedido autoritário.

Na verdade, não poderia, mas ele não tinha escolha. “Certo. Tudo bem se eu voltar na mesma hora?”

“Claro. Vou dizer a ela que o senhor virá. E tentarei limitar o champanhe.” A conversa podia ter terminado, mas a trégua aparentemente se mantinha.

Brunetti, que havia decidido que Dom Perignon era uma excelente bebida para o meio da manhã, considerou a limitação uma precaução desnecessária e esperava que Flavia pudesse mudar de ideia no dia seguinte.


12

 

 

 

 

Seria isso o começo do alcoolismo, pensou Brunetti quando sentiu desejo de parar num bar a caminho da questura e tomar outra taça de champanhe? Ou seria apenas a resposta inevitável à certeza de que teria de falar com Patta naquela manhã? Preferia a primeira explicação.

Quando abriu a porta da sua sala, sentiu passar uma onda de calor tão palpável que se virou para conferir se poderia vê-la correr pelo corredor e quem sabe engolir alguma alma inocente não familiarizada com os caprichos do sistema de calefação. Todo ano, perto da época da festa de santa Ágata, 5 de fevereiro, o calor exalava de todas as salas do lado norte do quarto andar da questura enquanto desaparecia dos corredores e das salas do lado sul do terceiro andar. A coisa ficava assim durante três semanas, aproximadamente, em geral até a festa de são Leandro, a quem a maioria dos funcionários do prédio costumava agradecer pela sua libertação. Ninguém jamais conseguira compreender ou corrigir o fenômeno, embora ele já viesse ocorrendo havia cinco anos ou mais. A unidade de aquecimento central, por várias vezes e vários técnicos, havia sido manuseada, inspecionada, regulada, remendada, xingada e chutada, mas ninguém conseguira consertá-la. Agora, as pessoas que trabalhavam nesses dois andares estavam resignadas e tomavam as medidas necessárias, algumas tirando os paletós, outras usando luvas no escritório.

Brunetti associava de tal forma esse fenômeno à festa de santa Ágata que bastava ver uma imagem dessa mártir invariavelmente retratada segurando os dois seios amputados num prato para ele a imaginar carregando, em lugar deles, duas peças encaixadas do aquecimento central: grandes arruelas, talvez.

Ele atravessou a sala, tirando o casaco e o paletó enquanto andava, e abriu as duas janelas altas. Ficou imediatamente com frio e voltou para pegar o paletó na mesa onde o havia largado. Ao longo dos anos, desenvolvera um ritmo de abrir e fechar as janelas que não só controlava de fato a temperatura na sala como o impedia de se concentrar em qualquer outra coisa. O zelador estaria a serviço da Máfia, talvez? Toda vez que ele lia o jornal, parecia-lhe que quase todos que trabalhavam na polícia estavam, por que não o zelador, então?

Sobre a escrivaninha repousavam os habituais relatórios pessoais, pedidos de informação da polícia de outras cidades e cartas de moradores da cidade. Uma delas era de uma mulher da ilha de Torcello, pedindo-lhe para cuidar pessoalmente de seu filho, que ela sabia que fora sequestrado pelos sírios. A mulher era louca, e vários membros da polícia recebiam cartas dela todo mês: era sempre o mesmo filho inexistente, mas os raptores mudavam segundo os ventos da política mundial.

Se ele fosse agora, poderia ver Patta antes do almoço. Com esse farol irradiando sua brilhante esperança, pegou a pasta fina com os papéis sobre os crimes de Semenzato e Lynch e foi para a sala de Patta.

Apesar da abundância de íris frescos, a signorina Elettra não estava na sua escrivaninha. Provavelmente tinha ido ao florista. Ele bateu e foi admitido. Poupada dos caprichos do sistema de calefação, a sala de Patta estava em perfeitos 22 graus, temperatura ideal para lhe permitir o luxo de tirar o paletó se o ritmo do trabalho ficasse frenético demais. Tendo sido poupado até agora dessa necessidade, ele estava sentado atrás de sua escrivaninha com o paletó de mohair abotoado, e o alfinete de gravata de diamante no lugar exato. Como sempre, Patta olhou como se houvessem acabado de lhe surrupiar uma moeda romana, os grandes olhos castanhos perfeitamente encaixados entre as outras perfeições de seu rosto.

“Bom dia, senhor”, disse Brunetti, tomando o assento que Patta lhe indicara.

“Bom dia, Brunetti.” Quando Brunetti se inclinou para colocar a pasta na escrivaninha de Patta, seu superior fez um gesto para que não o fizesse. “Já li. Atentamente. Imagino que está trabalhando com a suposição de que o espancamento da dottoressa Lynch e o assassinato do dottor Semenzato estão relacionados?”

“Sim, senhor, estou. Não vejo como não possam estar.”

Ele pensou por um momento que Patta, como sempre, faria objeção a qualquer certeza expressa que não fosse a dele próprio, mas ele surpreendeu Brunetti fazendo que sim e dizendo: “Sim, você provavelmente está certo. O que fez até agora?”.

“Conversei com a dottoressa Lynch”, começou, mas Patta o interrompeu.

“Espero que tenha sido polido com ela.”

Brunetti se contentou com um simples “Sim, senhor”.

“Bom, bom. Ela é uma benfeitora importante da cidade, e deve ser tratada com o devido respeito.”

Brunetti deixou isso passar e recomeçou. “Havia uma assistente japonesa que veio aqui para fechar a exposição e enviar as peças de volta para a China.”

“Assistente da dottoressa Lynch?”

“Sim, senhor.”

“Uma mulher?”, Patta perguntou, rispidamente.

O tom de Patta enlameou de tal forma a palavra que Brunetti ficou em silêncio por alguns instantes antes de responder: “Sim, senhor. Uma mulher”.

“Ah, entendo.”

“Posso continuar, senhor?”

“Sim, sim. Claro.”

“A dottoressa Lynch me contou que a mulher foi morta num acidente na China.”

“Que tipo de acidente?”, perguntou Patta, como se isso revelasse uma consequência inevitável de suas inclinações sexuais.

“Uma queda no sítio arqueológico em que elas estavam trabalhando.”

“Quando foi que isso aconteceu?”

“Há três meses. Foi depois que a dottoressa Lynch escreveu para Semenzato para dizer que achava que algumas peças que tinham voltado à China eram falsas.”

“E essa mulher que foi morta foi quem as embalou?”

“Parece que sim, senhor.”

“Perguntou à dottoressa Lynch qual era o relacionamento dela com essa mulher?”

Bem, ele não tinha perguntado, tinha? “Não, senhor. Não perguntei. A dottoressa parecia perturbada com a morte dela e a possibilidade de envolvimento da jovem em qualquer coisa que houvesse acontecido aqui, mas não houve mais que isso.”

“Tem certeza disso, Brunetti?” Os olhos de Patta realmente se estreitaram quando ele perguntou isso.

“Absoluta, senhor. Aposto minha reputação nisso.” Como fazia sempre que mentia a Patta, olhou fixamente para os olhos dele, tratando de manter os seus bem abertos, o olhar uniforme. “Posso continuar, senhor?” Mal terminou de falar, Brunetti percebeu que não tinha mais nada para dizer — bem, nada que quisesse dizer a Patta. Com certeza não queria dizer que a família da garota japonesa era tão rica que ela provavelmente não tivera nenhum interesse financeiro na substituição das peças. Pensar na forma como Patta reagiria à ideia de ciúme sexual deixou Brunetti um pouco nauseado.

“Acha que essa japonesa sabia que peças falsas tinham sido devolvidas à China?”

“É possível, senhor.”

“Mas não é possível”, disse Patta com forte ênfase, “que ela própria possa ter organizado a coisa. Deve ter tido ajuda aqui, em Veneza.”

“Parece que sim, senhor. Essa é uma possibilidade que estou averiguando.”

“Como?”

“Iniciei uma investigação sobre as finanças do dottor Semenzato.”

“Com que autoridade?”, disparou Patta.

“Com a minha, senhor.”

Patta deixou passar. “O que mais?”

“Já falei com algumas pessoas sobre Semenzato, e espero obter informações sobre sua verdadeira reputação.”

“O que quer dizer com ‘verdadeira reputação’?”

Oh, é tão raro o destino lançar nosso inimigo em nossas mãos para fazermos do nosso jeito. “Não acha, senhor, que todo burocrata tem uma reputação oficial, o que as pessoas dizem sobre ele publicamente, e sua verdadeira reputação, que as pessoas sabem que é verdadeira e sobre a qual falam em particular?”

Patta virou a palma da mão direita para cima sobre a escrivaninha e girou seu anel rosado em volta do dedo com o polegar, examinando-o para ver se fazia o movimento corretamente. “Talvez. Talvez.” Ele levantou o olhar da palma da mão. “Prossiga, Brunetti.”

“Pensei em começar com essas coisas e ver aonde elas me levam.”

“Sim, isso me parece adequado”, disse Patta. “Lembre-se, quero saber tudo que descobrir.” Ele consultou seu Rolex Oyster. “Não quero interrompê-lo mais, Brunetti.”

Brunetti levantou-se, reconhecendo a chegada da hora do almoço de Patta. Ele caminhou para a porta, curioso apenas com a maneira pela qual Patta o lembraria de lidar com Brett com luvas de pelica.

“E, Brunetti”, disse Patta quando Brunetti chegou à porta.

“Sim, senhor?”, ele disse, com real curiosidade, algo que raramente sentia em relação a Patta.

“Quero que lide com a dottoressa Lynch com luvas de pelica.” Ah, então era assim que ele o diria.


13

 

 

 

 

De volta ao escritório, a primeira coisa que Brunetti fez depois de abrir a janela foi ligar para a casa de Lele. Ninguém atendeu, e Brunetti tentou a galeria, onde o pintor atendeu após seis toques. “Pronto.”

“Ciao, Lele, é o Guido. Pensei em ligar para ver se conseguiu descobrir alguma coisa.”

“Sobre aquela pessoa?”, respondeu Lele, deixando claro que não falaria abertamente.

“É. Tem alguém aí?”

“Ah, sim, agora que você mencionou, acho que é verdade. Vai ficar um tempo em seu escritório, signor Scarpa?”

“Vou sim. Mais uma hora, por aí.”

“Bom, então, signor Scarpa, ligarei para o senhor quando estiver livre.”

“Obrigado, Lele”, disse Brunetti, e desligou.

De quem Lele estaria escondendo que falava com um comissário de polícia?

Ele se concentrou nos papéis da pasta, fazendo anotações aqui e ali. Fizera contato com a divisão especial da polícia que lidara com roubo de objetos de arte em diversas ocasiões no passado, mas, a essa altura, tudo o que tinha para dar a eles era o nome Semenzato e nenhuma prova de nada. Semenzato poderia ter mesmo uma reputação que não constava de relatórios oficiais, do tipo que nunca aparecia por escrito.

Quatro anos antes, ele havia lidado com um dos capitães da divisão de arte em Roma, sobre uma peça de altar gótica roubada da igreja de San Giacomo dell’Orio. Giulio qualquer coisa, mas Brunetti não conseguia lembrar o sobrenome. Ele pegou o telefone e discou o número da signorina Elletra.

“Sim, comissário?”, ela perguntou, quando o identificou.

“Teve alguma resposta de Heinegger ou de seus amigos no banco?”

“Nesta tarde, senhor.”

“Bom. Até lá, gostaria que desse uma olhada nos arquivos e visse se consegue encontrar um nome para mim, um capitão do departamento de roubos de objetos de arte em Roma. Giulio qualquer coisa. Ele e eu nos correspondemos sobre um roubo em San Giacomo dell’Orio. Cerca de quatro anos atrás. Talvez cinco.”

“Tem alguma ideia de como estaria arquivado, senhor?”

“No meu nome, já que escrevi o relatório original, ou no da igreja, ou talvez no do ladrão de arte.” Ele pensou um pouco e acrescentou: “Você poderia checar o prontuário de um tal Sandro — Alessandro, quer dizer — Benelli, cujo endereço ficava em San Lio. Acho que ele ainda está na prisão, mas pode haver alguma menção ao nome do capitão ali. Acho que ele depôs no julgamento”.

“Com certeza, senhor. Hoje?”

“Sim, signorina, se puder.”

“Vou descer até os arquivos e dar uma olhada agora. Talvez consiga descobrir alguma coisa antes do almoço.”

O otimismo da juventude. “Obrigado, signorina”, ele disse, e desligou. Mal havia desligado, o telefone tocou. Era Lele.

“Eu não podia falar, Guido. Eu estava com uma pessoa que acho que poderia ser útil para você nisto.”

“Quem?” Quando Lele não respondeu, Brunetti se desculpou, lembrando de que precisava da informação, não de sua fonte. “Me desculpe, Lele. Esqueça que perguntei isso. O que foi que ele contou?”

“Parece que o dottor Semenzato era um homem de muitos interesses. Não só era o diretor do museu, mas também sócio secreto de duas lojas de antiguidades, uma aqui, uma em Milão. O homem com o qual estava falando trabalha em uma das lojas.”

Brunetti resistiu à vontade de perguntar qual. Em vez disso, permaneceu em silêncio, sabendo que Lele lhe diria o que achasse necessário.

“Ao que tudo indica, o dono dessas lojas — não Semenzato, o dono oficial — tem acesso a peças que nunca aparecem nas lojas. O homem com quem falei disse que em duas ocasiões algumas peças foram trazidas e desembaladas por engano. Assim que o dono as viu, mandou reembalá-las e levar embora, disse que eram para sua coleção particular.”

“Ele disse a você o que eram essas peças?”

“Disse que uma delas era um bronze chinês, e a outra uma peça de cerâmica pré-islâmica. Disse também, e acho que isso pode te interessar, que estava absolutamente certo de que tinha visto uma foto da cerâmica num artigo sobre as peças tiradas do Museu do Kuwait.”

“Quando foi que isso aconteceu?”, perguntou Brunetti.

“A primeira vez, há cerca de um ano, e depois, três meses atrás”, respondeu Lele.

“Ele te contou mais alguma coisa?”

“Disse que o dono tem alguns clientes com acesso a sua coleção particular.”

“Como é que ele sabia disso?”

“Às vezes, quando estava conversando com esses clientes, o dono se referia a peças que possuía, mas as peças não estavam na loja. Ou então ele telefonava para um desses clientes e lhe dizia que estava conseguindo determinado item numa certa data, mas aí a peça nunca vinha para a loja. Mais tarde, porém, parecia que a venda havia ocorrido.”

“Por que ele lhe contaria isso, Lele?”, perguntou Brunetti, mesmo sabendo que não devia.

“Trabalhamos juntos em Londres, anos atrás, e eu lhe fiz alguns favores naquela época.”

“E como você sabia que devia perguntar a ele entre todas as pessoas?”

Em vez de ficar ofendido, Lele riu. “Oh, fiz algumas perguntas sobre Semenzato, e alguém me disse para falar com o meu amigo.”

“Obrigado, Lele.” Brunetti compreendia, como todos os italianos, a delicada teia de favores pessoais que envolvia o sistema social. Tudo parecia tão casual: alguém falava a um amigo, trocava palavras com um primo, e uma informação chegava. Com essa informação, criava-se um novo equilíbrio entre débito e crédito. Mais cedo ou mais tarde, tudo era saldado, todas as dívidas cobradas.

“Quem é o dono dessas lojas?”

“Francesco Murino. É napolitano. Tive uns negócios com ele quando abriu sua loja aqui, anos atrás, e ele é un vero figlio di puttana. Se houver alguma patifaria acontecendo por aqui, ele estará dentro para ficar com a sua parte.”

“Ele é o cara que tem a loja em Santa Maria Formosa?”

“É, você o conhece?”

“Só de vista. Ele nunca se meteu em nenhuma encrenca, não que eu saiba.”

“Guido, eu te disse que ele é napolitano. Claro que ele não se meteu em nenhuma encrenca, mas isso não significa que não seja tão mau-caráter como uma víbora.” A paixão na voz de Lele deixou Brunetti curioso sobre os negócios que ele poderia ter tido com Murino no passado.

“Alguém disse mais alguma coisa sobre Semenzato?”

Lele fez um ruído de desgosto. “Você sabe como é quando uma pessoa morre. Ninguém quer falar a verdade.”

“Pois é, alguém me disse isso esta manhã.”

“O que mais lhe disseram?”, perguntou Lele com o que pareceu uma real curiosidade.

“Que eu devia esperar umas duas semanas, e aí as pessoas começariam a falar a verdade de novo.”

Lele soltou uma risada tão alta que Brunetti teve de afastar o fone do ouvido até ele parar. Quando parou, Lele disse: “Eles estão certíssimos. Mas não acho que vá demorar tanto”.

“Isso significa que há mais coisa para contar sobre ele?”

“Não, não quero te iludir, Guido, mas uma ou duas pessoas não pareceram terrivelmente surpresas por ele ter sido morto desse jeito.” Quando Brunetti não perguntou o que ele queria dizer, Lele acrescentou: “Parece que ele tinha conexões com gente do Sul”.

“Eles estão se interessando por arte, agora?”, perguntou Brunetti.

“Estão. Parece que drogas e prostitutas já não bastam.”

“Imagino que é melhor dobrarmos a guarda do museu de agora em diante.”

“Guido, de quem você acha que eles compram os quadros?”

Seria isso mais uma consequência da mobilidade social, pensou Brunetti, a Máfia concorrendo com a Sotheby’s. “Lele, qual a confiabilidade dessas pessoas com quem você falou?”

“Pode acreditar no que elas dizem, Guido.”

“Obrigado, Lele. Se ouvir mais alguma coisa sobre ele, por favor me informe.”

“Claro. E, Guido, se esses cavalheiros do Sul estão envolvidos, então acho bom você tomar cuidado, certo?” Um sinal do poder que ela já havia adquirido no Norte, ponderou Brunetti, era a relutância das pessoas em pronunciar o nome da Máfia.

“Claro, Lele, e obrigado de novo.”

“É sério”, disse Lele antes de desligar.

Brunetti desligou o telefone e, quase sem pensar, foi abrir a janela para permitir a entrada de um pouco de ar frio no ambiente. As obras na fachada da igreja de San Lorenzo na frente da sua sala haviam cessado durante o inverno, e os andaimes continuavam ali, desertos. Um grande pedaço dos painéis de plástico que a envolvia tinha se soltado e, mesmo daquela distância, Brunetti podia ouvi-lo drapejar furiosamente ao vento. Acima da igreja, Brunetti podia ver nuvens escuras deslizando do sul, o que com certeza traria mais chuva no fim da tarde.

Ele consultou o relógio. Não havia tempo para visitar o signor Murino antes do almoço, mas decidiu passar pela sua loja naquela tarde e ver como ele reagia a um comissário de polícia entrando e se anunciando. A Máfia. Arte roubada. Ele sabia que mais da metade dos museus do país estava quase permanentemente fechada, mas nunca havia parado para pensar no que isso podia significar em termos de furto, roubo, ou, no caso da exposição chinesa, substituição. Os guardas eram mal remunerados, mas seus sindicatos eram tão poderosos que impediam o trabalho de voluntários como guardas nos museus. Ele se lembrou de ter ouvido, anos antes, uma sugestão para que os homens que escolhessem dois anos de serviço social em lugar de um ano e meio de serviço militar pudessem servir como guardas de museu. A ideia nem chegou ao plenário do Senado.

Supondo que Semenzato tivesse participado da substituição de peças falsas, quem melhor para se livrar das originais que um negociante de antiguidades? Ele não só teria a clientela e a expertise para fazer uma avaliação precisa, mas, se necessário, saberia como cuidar da entrega sem interferência da polícia do Departamento de Finanças ou da Comissão de Belas-Artes. Facilitar a entrada e a saída das peças era brincadeira de criança. Uma espiadela no mapa da Itália deixava clara a porosidade das fronteiras. Milhares de quilômetros de baías, enseadas, praias. Ou, para os bem organizados e bem relacionados, havia os portos e aeroportos, pelos quais qualquer coisa podia passar impunemente. Não eram apenas os guardas de museus que eram mal remunerados.

Seu devaneio foi quebrado por uma batida na porta. “Avanti ”, ele gritou, e fechou a janela. Hora de aturar o forno.

A signorina Elettra entrou na sala com um bloco de anotações numa das mãos e uma pasta na outra. “Achei o nome do capitão no arquivo, senhor. É Carrara, Giulio Carrara. Ele continua em Roma, mas foi promovido a maggiore no ano passado.”

“Como descobriu isso, signorina?”

“Liguei para o seu escritório em Roma e falei com a secretária dele. Pedi para ela dizer a ele que o senhor vai ligar esta tarde. Ele já tinha saído para o almoço e não voltará antes das três e meia.” Brunetti sabia o que três e meia significava em Roma.

Ele poderia muito bem ter manifestado o pensamento, porque a signorina Elettra respondeu. “Eu perguntei. Ela disse que ele realmente estará de volta, e estou certa de que o senhor poderá ligar para ele.”

“Obrigado, signorina”, ele disse, e de novo fez um agradecimento silencioso por esta maravilha ter conseguido resistir aos ataques diários do reinado de Patta. “Se posso perguntar, como conseguiu achar o nome tão depressa?”

“Oh, venho me familiarizando com os arquivos há meses. Fiz algumas mudanças porque não parece haver nenhuma lógica interna no sistema atual. Espero que não se importe.”

“Não, acho que não. Ninguém jamais conseguiu encontrar nada, por isso não acho que possa causar algum dano ao sistema. Já era para estar tudo no computador.”

Ela fitou-o com um ar de quem havia passado um bom tempo entre os registros amontoados; ele não repetiria a observação. Ela se aproximou da sua escrivaninha e colocou a pasta no tampo. Brunetti notou que hoje ela estava usando um vestido preto de lã, com um cinto vermelho chamativo apertando a cintura muito fina. Elettra tirou um lenço do bolso e enxugou a testa. “É sempre tão quente aqui, senhor?”, perguntou.

“Não, signorina, isso às vezes acontece durante algumas semanas no começo de fevereiro. Geralmente, acaba no fim do mês. Isso não afeta a sua sala?”

“É o scirocco?” Era uma pergunta bastante sensata. Se o vento quente que soprava da África podia trazer a acqua alta, não havia razão para não poder elevar a temperatura no seu escritório.

“Não, signorina. É alguma coisa no sistema de calefação. Ninguém jamais conseguiu resolver. A gente acaba se acostumando, e o problema realmente terminará no fim do mês.”

“Espero que sim”, disse ela, enxugando a testa mais uma vez. “Se não houver mais nada, senhor, vou almoçar agora.”

Brunetti consultou o relógio e viu que era quase uma. “Leve um guarda-chuva quando sair”, disse. “Parece que vai chover de novo.”

 

 

Brunetti foi para casa almoçar com a família, e Paola manteve a promessa de não falar a Raffi sobre as seringas e o temor de seu pai quando as encontrou. Mas conseguiu usar o seu silêncio para arrancar de Brunetti a firme promessa de que ele não só a ajudaria a levar a mesa para o terraço ao primeiro sinal de sol como a auxiliaria a usar as seringas para injetar veneno em cada um dos muitos buracos feitos pelos cupins enquanto abriam caminho para sair das pernas da mesa, onde haviam hibernado durante o inverno.

Raffi fechou-se no quarto depois do almoço, dizendo que precisava fazer sua lição de grego, traduzir dez páginas de Homero para a manhã seguinte. Dois anos antes, quando havia se imaginado anarquista, ele tinha se trancado no quarto para desenvolver pensamentos sombrios sobre o capitalismo, sobre o que fazer, talvez, para apressar sua queda. Naquele ano, contudo, não só havia arranjado uma namorada como, aparentemente, o desejo de entrar na universidade. Seja como for, ele desapareceu no quarto logo após a refeição, levando Brunetti a concluir que sua vontade de ficar sozinho tinha alguma coisa a ver com a adolescência, e não com orientação política.

Paola ameaçou engrossar com Chiara se ela não ajudasse com a louça, e enquanto elas estavam ocupadas nisso Brunetti enfiou a cabeça na cozinha e disse-lhes que voltaria ao trabalho.

Quando saiu de casa, a chuva que ameaçara estava caindo, fraca ainda, mas com a promessa de piorar muito. Ele levantou o guarda-chuva e dobrou à direita para Rugetta, seguindo para a ponte de Rialto. Poucos minutos depois, ficou satisfeito por ter se lembrado de calçar as botas, porque grandes poças d’água se acumulavam no chão, tentando-o a chapinhar nelas. No momento em que atingiu o outro lado da ponte, a chuva já havia engrossado, e quando chegou na questura suas calças estavam encharcadas das panturrilhas até os joelhos, acima da proteção das botas.

No escritório, tirou o paletó e, por um momento, pensou em tirar as calças também e estendê-las sobre o aquecedor; elas secariam em minutos. Em vez disso, porém, manteve a janela aberta por tempo suficiente para esfriar a sala e depois se sentou atrás da escrivaninha, discou o número da telefonista e pediu uma ligação para o escritório do esquadrão de roubos de arte na Chefatura de Polícia em Roma. Quando a ligação foi completada, ele deu seu nome e perguntou pelo maggiore Carrara.

“Buon giorno, comissário.”

“Parabéns, maggiore.”

“Obrigado, já não era sem tempo.”

“Você ainda é um garoto. Tem muito chão para virar general.”

“Quando for general, não terá sobrado um único quadro em nenhum museu deste país”, ele disse. O riso de Carrara, quando veio, demorou tanto tempo para chegar que Brunetti ficou inseguro sobre se a observação era para ser uma piada ou não.

“É por isso que estou ligando para você, Giulio.”

“O quê? Quadros?”

“Não tenho certeza, museus, de qualquer forma.”

“Certo, do que se trata?”, ele perguntou, com a forte curiosidade que, como Brunetti recordava, ele sentia por seu trabalho.

“Tivemos um assassinato por aqui.”

“Claro, eu sei, Semenzato, no Palazzo Ducale.” Sua voz era neutra.

“Sabe alguma coisa sobre ele, Giulio?”

“Oficialmente ou extraoficialmente?”

“Oficialmente.”

“Nada. Não. Nada mesmo.” Antes que Brunetti pudesse fazê-la, Carrara partiu para sua própria ladainha e perguntou: “Isso basta para me fazer a próxima pergunta, Guido?”.

Brunetti sorriu ao telefone. “Tudo bem. E extraoficialmente?”

“Estranho que me pergunte isso. Aliás, tem um recado na minha mesa para ligar para você. Não sabia que estava cuidando do caso até ler o seu nome nos jornais esta manhã, por isso pensei em ligar e sugerir algumas coisas. E pedir uns pequenos favores, também. Acho que algumas coisas poderiam interessar a nós dois.”

“Como o quê?”

“Como os extratos bancários.”

“De Semenzato?”

“Não é dele que estamos falando?”

“Me desculpe, Giulio, mas muitas pessoas andaram me dizendo o dia todo que eu não devia falar mal dos mortos.”

“Se não pudermos falar mal dos mortos, sobra quem?”, perguntou Carrara com surpreendente bom senso.

“Já coloquei alguém trabalhando neles. Devo recebê-los amanhã. Mais alguma coisa?”

“Gostaria de dar uma olhada nos registros das chamadas de longa distância, tanto de casa como do escritório no museu. Acha que pode conseguir?”

“Isso ainda é extraoficial?”

“É.”

“Pode deixar.”

“Ótimo.”

“O que mais?”

“Já falou com a viúva?”

“Não, não falei, não pessoalmente. Um dos meus homens falou com ela. Por quê?”

“Ela pode ter alguma ideia dos lugares para onde ele viajou nos últimos meses.”

“Por que isso?”, perguntou Brunetti, com genuína curiosidade.

“Nenhuma razão especial, Guido. Mas gostamos de saber esse tipo de coisa quando o nome de uma pessoa aparece embaixo de nossos narizes mais de uma vez.”

“E o dele apareceu?”

“Apareceu.”

“Por quê?”

“Nada específico, para dizer a verdade.” Carrara parecia desapontado por não ter uma acusação definida para transmitir a Brunetti. “Dois homens que prendemos aqui no aeroporto, há mais de um ano, com estatuetas de jade chinesas, disseram apenas que tinham ouvido seu nome numa conversa. Eles eram meros transportadores; não sabiam muita coisa, nem sequer o valor do que estavam levando.”

“O que era?”, perguntou Brunetti.

“Bilhões. As estátuas foram rastreadas até o Museu Nacional de Taiwan. Elas haviam desaparecido três anos antes; ninguém jamais descobriu como.”

“Essas foram as únicas coisas levadas?”

“Não, mas foram as únicas recuperadas. Até agora.”

“De quem mais ouviu o nome dele?”

“Oh, de um sujeitinho que conservamos preso a um cordão por aqui. Podemos agarrá-lo por drogas ou por arrombamento e invasão quando quisermos, por isso o deixamos solto, e em troca ele nos traz alguma informação de vez em quando. Ele disse que ouviu o nome de Semenzato mencionado ao telefone por um dos homens a quem ele vende coisas.”

“Coisas roubadas?”

“Claro. Ele não tem outra coisa para vender.”

“O homem estava falando com Semenzato, ou sobre ele?”

“Sobre ele.”

“Ele contou o que ouviu?”

“O homem que estava falando disse apenas que a outra pessoa devia contatar Semenzato. No começo, imaginamos que a referência a ele era equivocada. Afinal, o homem era um diretor de museu. Mas aí apanhamos os dois homens no aeroporto, e depois Semenzato aparece morto no seu escritório. Por isso achei que já era hora de ligar e lhe contar.” Carrara fez uma pausa suficientemente longa para sinalizar que havia terminado o que tinha para dar, e agora era hora de ver o que podia receber. “O que descobriu sobre ele, por aí?”

“Lembra da exposição chinesa de alguns anos atrás?”

Carrara fez um resmungo de assentimento.

“Algumas peças devolvidas à China eram cópias.”

O assobio de Carrara, fosse de surpresa ou de admiração pelo feito, chegou nítido pela linha.

“E parece que ele era sócio secreto de umas duas lojas de antiguidades, uma aqui e uma em Milão”, Brunetti prosseguiu.

“De quem?”

“Francesco Murino. Conhece?”

A voz de Carrara ficou lenta, medida. “Só da maneira como conhecíamos Semenzato, extraoficialmente. Mas seu nome apareceu mais que algumas vezes.”

“Alguma coisa definida?”

“Não, nada. Parece que ele se encoberta muito bem.” Houve uma longa pausa, e então Carrara acrescentou, com a voz subitamente mais séria: “Ou alguém acoberta as coisas para ele”.

“É isso então, não é?”, perguntou Brunetti. Isso poderia significar qualquer coisa: alguma repartição do governo, a Máfia, um governo estrangeiro, até a Igreja.

“É. Cada pista que arranjamos não dá em nada. Ouvimos seu nome, e depois não dá em nada. A polícia financeira o investigou três vezes nos dois últimos anos, e ele está limpo.”

“O nome dele foi relacionado de algum modo ao de Semenzato?”

“Não por alguém daqui. O que mais conseguiu?”

“Já ouviu falar da dottoressa Lynch?”

“L’americana? ”, perguntou Carrara.

“Isso.”

“Claro. Estou familiarizado com ela. Afinal, sou formado em história da arte, Guido.”

“Ela é tão conhecida assim?”

“Seu livro sobre arte chinesa é o melhor da praça. Ela ainda está na China, não é?”

“Não, está aqui.”

“Em Veneza? Fazendo o quê?”

Brunetti se fizera a mesma pergunta. Tentando decidir se devia voltar à China, permanecer em Veneza por causa da namorada ou, agora, esperar para ver se a ex-amante havia sido assassinada. “Ela veio aqui para conversar com Semenzato sobre as peças que foram devolvidas à China. Dois brutamontes a espancaram na semana passada. Racharam seu maxilar e quebraram algumas costelas. Saiu nos jornais daqui.”

De novo, o assobio de Carrara cruzou a linha vindo de Roma, mas, dessa vez, de algum modo, ele conseguiu transmitir compaixão. “Não apareceu nada por aqui”, disse.

“A assistente dela, uma japonesa que veio a Veneza para supervisionar o retorno da exposição à China, morreu num acidente por lá.”

“Freud disse em algum lugar que não existem acidentes, não disse?”, perguntou Carrara.

“Não sei se Freud pretendia incluir a China quando disse isso, mas, não, não parece ter sido um acidente.”

O grunhido de Carrara podia ter significado qualquer coisa. Brunetti escolheu interpretá-lo como uma confirmação e disse: “Vou conversar com a dottoressa Lynch amanhã de manhã”.

“Para quê?”

“Vou tentar convencê-la a sair da cidade por um tempo, e quero saber mais sobre as peças que foram substituídas. Como eram, se têm um valor de mercado...”

Carrara o interrompeu. “Claro que têm valor de mercado.”

“Sim, isso eu compreendo, Giulio. Mas quero ter uma ideia de qual seria o mercado, se elas poderiam ser vendidas abertamente.”

“Me desculpe. Não compreendi o que você queria dizer, Guido.” Sua pausa poderia ser lida como um pedido de desculpa, e então ele acrescentou: “Se elas forem provenientes de uma escavação na China, você pode colocar o preço que quiser”.

“Tão raro assim?”, perguntou Brunetti.

“Tão raro assim. Mas o que quer saber sobre isso?”

“Sobretudo, quero saber se ou como as cópias poderiam ter sido feitas.”

Carrara o interrompeu de novo. “A Itália está cheia de ateliês que fazem cópias, Guido. De tudo: estátuas gregas, joias etruscas, cerâmica Ming, pinturas da Renascença. Pense em alguma coisa, e haverá um artesão italiano capaz de lhe fazer uma igual que enganará os especialistas.”

“Mas vocês aí não têm todo tipo de maneira de detectá-las? Eu li sobre isso, é claro. Carbono 14, essas coisas.”

Carrara riu. “Fale com a dottoressa Lynch, Guido. Ela dedicou um capítulo inteiro em seu livro a isso, e tenho certeza de que pode lhe contar coisas que vão te deixar acordado nas longas noites de inverno.” Brunetti ouviu um ruído na outra ponta e depois silêncio quando Carrara cobriu o receptor do fone com a mão. Logo depois, ele estava de volta. “Me desculpe, Guido, mas tenho uma ligação do Vietnã; levou dois dias para chegar. Ligue para mim se ouvir alguma coisa, e eu ligarei para você.” Antes que Brunetti pudesse concordar, Carrara partira, e a linha estava muda.


14

 

 

 

 

Sem se dar conta do calor que fazia no escritório, Brunetti sentou-se à escrivaninha e pensou no que Carrara havia dito. Pegue um diretor de museu, junte sindicatos de trabalhadores, coloque umas pitadas de Máfia, e o resultado será um coquetel forte o suficiente para causar uma terrível ressaca na divisão de roubo de arte. Ele puxou uma folha de papel da gaveta e começou a escrever uma lista das informações que precisava conseguir de Brett. Queria descrições completas das peças que ela descobrira que eram falsas. Precisava de mais informações sobre a maneira como a troca podia ter sido feita e onde e como as peças falsas podiam ter sido produzidas. E precisava de um relato completo de cada conversa ou acerto dela com Semenzato.

Ele parou de escrever e deixou os pensamentos vagarem para o plano pessoal: Brett voltaria? Enquanto pensava e convocava a imagem da última vez em que a vira, dando um soco na mesa e saindo irritada da sala, ele se deu conta de uma discrepância que lhe passara despercebida. Por que ela fora apenas surrada enquanto Semenzato fora morto? Ele não tinha dúvida de que os homens enviados até ela tinham ordens para lhe dar apenas uma violenta advertência para não comparecer à reunião. Mas por que eles se importariam com isso se Semenzato estaria morto de qualquer modo? A interferência de Flavia teria provocado um desequilíbrio ou Semenzato teria precipitado de alguma forma a violência que causara sua morte?

As coisas práticas primeiro. Ele acionou o interfone e pediu para Vianello subir e, no caminho, passar pela sala de Patta e solicitar que a signorina Elettra viesse com ele. O relatório da Interpol não havia chegado, por isso achou que já era hora de começar a investigar por conta própria. Ele se levantou e abriu a janela para refrescar um pouco a sala enquanto eles não apareciam.

Chegaram juntos alguns minutos depois, Vianello segurando a porta aberta para que ela passasse a sua frente. Assim que entraram, Brunetti fechou a janela, e o sargento, o sempre rude e ursino Vianello, puxou uma cadeira para a escrivaninha de Brunetti e segurou-a enquanto a signorina Elettra se acomodava. Vianello?

Enquanto sentava, a signorina Elettra estendeu uma única folha de papel sobre a escrivaninha de Brunetti. “Isso veio de Roma, senhor.” Em resposta à sua pergunta não formulada, acrescentou: “Eles rastrearam as impressões digitais”.

Embaixo do timbre dos Carabinieri, a carta, exibindo uma assinatura indecifrável, declarava que as impressões digitais detectadas no telefone de Semenzato coincidiam com as de Salvatore La Capra, vinte e três anos, morador de Palermo. Apesar de sua pouca idade, La Capra havia acumulado uma quantidade significativa de detenções e acusações: extorsão, estupro, assalto, tentativa de assassinato e associação com membros conhecidos da Máfia. Todas essas acusações, em momentos diversos dos demorados procedimentos legais que levavam da prisão ao julgamento, tinham sido derrubadas. Três testemunhas do caso de extorsão haviam desaparecido; a mulher que fizera a acusação de estupro retirara a denúncia. A única condenação que se mantinha contra o nome La Capra era por excesso de velocidade, infração que lhe rendera uma multa de quatrocentas e vinte mil liras. O relatório prosseguia dizendo que La Capra, que não estava empregado, vivia com o pai.

Quando terminou de ler o relatório, Brunetti fitou Vianello. “Viu isto?”

Vianello fez que sim.

“Por que o nome soa familiar?”, Brunetti perguntou, dirigindo a pergunta a ambos.

A signorina Elettra e Vianello começaram a falar ao mesmo tempo, mas Vianello, quando a ouviu, parou e acenou para ela prosseguir.

Quando ela não o fez, Brunetti cutucou: “Então?”, impaciente por uma resposta no meio de todo aquele cavalheirismo.

“O arquiteto?”, perguntou a signorina Elettra, e Vianello fez que sim.

Foi o bastante para Brunetti lembrar. Cinco meses antes, o arquiteto encarregado de extensas restaurações num palazzo no Canal Grande havia feito uma queixa contra o filho do dono do palazzo, alegando que ele o ameaçara de violência se houvesse mais atrasos no projeto de restauração, já em seu oitavo mês. A explicação do arquiteto, que alegara dificuldade de obter alvarás de construção, foi desconsiderada pelo filho, que o advertiu que seu pai não era um homem acostumado a esperar e que coisas ruins aconteciam com frequência a pessoas que desagradavam a ele e ao pai. No dia seguinte, e antes que a polícia tivesse tempo de tomar alguma providência, o arquiteto estava de volta à questura, alegando que a coisa toda fora um mal-entendido e nenhuma ameaça de fato fora feita. As acusações foram retiradas, mas o relatório da denúncia original fora elaborado e lido pelos três, e todos se lembravam agora de que o acusado era Salvatore La Capra.

“Acho que devíamos ver se o signorino Capra ou o pai está em casa”, sugeriu Brunetti. “E, signorina”, acrescentou, virando-se para ela, “talvez possa ver o que consegue sobre o pai dele, se não estiver ocupada com alguma coisa.”

“Certamente, dottore ”, ela disse. “Já fiz a reserva para o jantar do vice-questore, e vou começar em seguida.” Sorrindo, ela se levantou, e Vianello, como uma sombra, apressou-se para chegar à porta antes dela. Ele a segurou para que ela saísse da sala, depois voltou ao seu assento.

“Estive com a esposa, senhor. A viúva, quero dizer.”

“Certo. Li o seu relatório. Pareceu muito breve.”

“Foi breve, senhor”, disse Vianello, com a voz inalterada. “Não havia muito a dizer. Ela estava abalada e triste, mal conseguia falar. Fiz algumas perguntas, mas ela chorava o tempo todo, aí tive que parar. Não estou certo se ela compreendeu por que eu estava ali ou por que estava lhe fazendo aquelas perguntas.”

“O sofrimento era real?”, perguntou Brunetti. Policiais como eram, havia muitos anos, os dois já tinham visto mais que o suficiente dos dois tipos, real e fingido.

“Acho que sim, senhor.”

“Como ela é?”

“Tem uns quarenta, dez anos menos que ele. Não tinham filhos; assim, ele era tudo para ela. Acho que ela não se adapta muito bem aqui.”

“Por que não?”, perguntou Brunetti.

“Semenzato era veneziano, mas ela é do Sul. Sicília. E nunca gostou daqui. Ela disse que quer voltar para casa quando tudo acabar.”

Quantos fios do caso seriam puxados do Sul, pensou Brunetti. Com certeza, o lugar de nascimento da mulher não devia levá-lo a suspeitar de seu envolvimento no crime. Repetindo isso a si mesmo, disse: “Quero grampear o telefone dela”.

“Da signora Semenzato?” A surpresa de Vianello era audível.

“De quem mais estamos falando, Vianello?”

“Mas acabei de falar com a mulher, e ela mal consegue parar em pé. Ela não estava fingindo aquela dor, senhor. Disso eu tenho certeza.”

“O sofrimento dela não está em questão, Vianello. Mas sim o marido dela.” Brunetti também estava curioso sobre o que a viúva poderia saber sobre o marido, mas com Vianello num humor incaracteristicamente galante, era melhor deixar isso de lado.

A concordância de Vianello foi um resmungo. “Mesmo sendo essa a razão...”

Brunetti interrompeu: “E o pessoal do museu?”.

Vianello se permitiu ser reconduzido à linha. “Eles pareceram gostar de Semenzato. Ele era eficiente, lidava bem com os sindicatos, e aparentemente era muito bom em delegar autoridade, até o ponto que o Ministério permitia.”

“O que significa isso?”

“Ele deixava os curadores decidirem que quadros precisavam ir para restauração, que técnicas usar, quando chamar especialistas de fora. Do que recolhi das pessoas com quem falei, o homem que estava no cargo antes dele insistia em manter tudo sob o controle pessoal, e com isso as coisas se atrasavam porque ele queria conhecer todos os detalhes. A maioria deles preferia Semenzato.”

“Mais alguma coisa?”

“Voltei ao corredor onde fica o escritório de Semenzato e dei mais uma olhada à luz do dia. Há uma porta que dá para aquele corredor vindo da ala esquerda, mas ela está fechada com pregos. E não há nenhuma maneira de alguém ter chegado pelo telhado, de modo que eles subiram pela escada.”

“Passando pela sala dos guardas”, Brunetti terminou por ele.

“E passaram de novo na saída”, acrescentou Vianello, pouco cordial.

“O que havia na televisão naquela noite?”

Vianello respondeu: “Reprises de Colpo Grosso”, com uma presteza que obrigou Brunetti a imaginar se o sargento ficara em casa naquela noite, junto com meia Itália, vendo celebridades fajutas tirarem peça após peça de roupa para os uivos excitados de uma plateia de estúdio. Se os seios fossem grandes o suficiente, ladrões provavelmente poderiam ter entrado na Piazza e retirado a Basílica, e ninguém teria notado até a manhã seguinte.

Pareceu um momento oportuno para mudar de tema. “Tudo bem, Vianello, veja o que pode fazer para darem um jeito no telefone dela.” Seu tom não poderia ser descrito como desdenhoso, mas quase.

Por mútuo consentimento, a conversa estava encerrada. Vianello se levantou, ainda discordando dessa nova invasão do sofrimento da viúva Semenzato, mas aceitou cuidar do assunto. “Mais alguma coisa, senhor?”

“Não, acho que não.” Geralmente Brunetti pediria para ser informado quando o grampo estivesse instalado, mas deixou isso com Vianello. O sargento moveu sua cadeira alguns centímetros para a frente e colocou-a bem diante da escrivaninha de Brunetti, fez uma saudação vaga e saiu da sala sem dizer mais nada. Brunetti pensou que lhe bastava ter uma prima donna com quem lidar em Cannaregio. Ele não precisava de outra ali na questura.


15

 

 

 

 

Quando saiu da questura, quinze minutos depois, Brunetti usava as botas e carregava seu guarda-chuva. Ele dobrou à esquerda seguindo na direção de Rialto, mas depois virou à direita, de repente à esquerda, e logo se viu descendo a ponte que levava ao Campo Santa Maria Formosa. Logo à sua frente, no outro lado do campo, ficava o Palazzo Priuli, abandonado desde quando ele conseguia se lembrar, o prêmio principal de um litígio feroz sobre um testamento contestado. Enquanto os herdeiros e os herdeiros presuntivos discutiam a quem ele pertencia ou deveria pertencer, a degradação do palazzo seguiu com uma teimosia que ignorava herdeiros, demandas e legalidade. Extensas manchas de ferrugem escorriam pelas paredes de pedra das grades de ferro que tentavam protegê-lo de invasões ilegais, e o telhado se inclinava e cedia, abrindo fissuras aqui e ali, permitindo ao sol curioso espiar o sótão fechado durante todos aqueles anos. O Brunetti sonhador considerara com frequência que o Palazzo Priuli seria o lugar ideal para prender uma tia louca, uma esposa recalcitrante ou uma herdeira relutante enquanto seu espírito veneziano mais sóbrio e prático o via como um imóvel de primeira linha e estudava as janelas, dividindo o espaço interno em apartamentos, escritórios e estúdios.

A loja de Murino, ele se lembrava vagamente, ficava no lado norte, entre uma pizzaria e uma loja de máscaras. A pizzaria estava temporariamente fechada, esperando a volta dos turistas, mas tanto a loja de máscaras como a de antiguidades estavam abertas, suas luzes reluzindo através da chuva de fim de inverno.

Quando Brunetti abriu a porta da loja, uma campainha soou numa sala distante, atrás de uma cortina de veludo adamascado que pendia no corredor que levava aos fundos. A sala irradiava um brilho baço de riqueza, a riqueza de eras de estabilidade. Surpreendentemente, poucas peças estavam expostas, cada uma exigindo atenção concentrada do espectador. No fundo, havia uma cômoda de nogueira com cinco gavetas no lado esquerdo, a madeira reluzindo com séculos de atentos cuidados. Pouco abaixo de sua mão havia uma comprida mesa de carvalho retirada, provavelmente, do refeitório de alguma instituição religiosa. Ela também reluzia de tão polida, mas nenhuma tentativa fora feita para disfarçar ou remover os riscos e manchas do uso prolongado. A seus pés estava um par de leões de mármore agachados com os dentes à mostra numa ameaça que um dia poderia ter sido aterrorizante. Mas a idade desgastara seus dentes e suavizara suas feições até que agora eles enfrentavam seus inimigos mais com um bocejo que com um rosnado.

“C’è qualcuno? ”, chamou Brunetti, dirigindo-se aos fundos. Ele olhou para baixo e notou que seu guarda-chuva fechado já havia deixado uma grande poça sobre o chão de madeira. O signor Murino devia ser um otimista e também um não veneziano para revestir um piso com tábuas de madeira nesta parte da cidade, pois a zona era baixa, e a primeira acqua alta séria certamente inundaria o local, destruindo a madeira e eliminando cola e verniz quando a maré virasse.

“Buon giorno? ”, chamou de novo, dando alguns passos na direção do corredor e deixando atrás de si um rastro de gotas de chuva no chão.

Uma mão apareceu na cortina e a puxou para o lado. O homem que entrou na sala era o mesmo que Brunetti se lembrava de ter visto na cidade e que lhe fora apontado — ele não conseguia se lembrar por quem — como o negociante de antiguidades de Santa Maria Formosa. Murino era baixo, como muitos sulistas, com um cabelo preto lustroso que formava uma coroa de anéis soltos que desciam sobre o colarinho. Sua tez era escura, sua pele suave, suas feições pequenas e bem-proporcionadas. O desconcertante no meio desse clichê de boa aparência mediterrânea eram os olhos, de um verde opalino claro. Apesar de olharem o mundo de trás de uns óculos redondos de aros dourados que os obscureciam parcialmente, e serem sombreados por sobrancelhas tão grossas quanto pretas, eles eram o traço dominante no rosto. Os franceses, como Brunetti bem sabia, tinham conquistado Nápoles séculos atrás, mas o suvenir genético de sua longa ocupação era o cabelo ruivo que às vezes se via na cidade, e não esses olhos claros, nórdicos.

“Signor Murino?”, perguntou, estendendo a mão.

“Sì ”, respondeu o negociante de antiguidades, tomando a mão de Brunetti e devolvendo seu aperto com firmeza.

“Sou Guido Brunetti, comissário de polícia. Gostaria de trocar algumas palavras com o senhor.”

A expressão de Murino continuou sendo de polida curiosidade.

“Preciso lhe fazer algumas perguntas sobre o seu sócio. Ou deveria dizer, seu falecido sócio?”

Brunetti observou enquanto Murino absorvia essa informação, depois esperou enquanto o outro homem ponderava qual devia ser a sua resposta visível. Tudo isso demorou alguns segundos apenas, mas Brunetti vinha observando o processo havia décadas e estava familiarizado com ele. As pessoas às quais se apresentava tinham uma gaveta de respostas que julgavam apropriadas, e parte do trabalho dele era observá-las enquanto peneiravam uma a uma, procurando a ficha adequada para o momento. Surpresa? Medo? Inocência? Curiosidade? Observou Murino repassá-

-las, estudou seu rosto enquanto ele avaliava e depois descartava várias possibilidades. Ele decidiu, aparentemente, pela última.

“Sim? O que gostaria de saber, comissário?” Seu sorriso era polido, seu tom, amistoso. Ele olhou para baixo e notou o guarda-chuva de Brunetti. “Deixe-me pegar isso, por favor”, disse, dando um jeito de parecer mais preocupado com o incômodo de Brunetti do que com qualquer dano que a água pudesse causar ao seu assoalho. Ele levou o guarda-chuva até um porta-guarda-chuva de porcelana que ficava perto da entrada. Enfiou-o ali e voltou até Brunetti. “Quer me dar o seu casaco?”

Brunetti percebeu que Murino estava tentando estabelecer o tom da conversa, e o tom que escolhera era amistoso e informal, a manifestação verbal de sua própria inocência. “Obrigado, não se incomode”, respondeu Brunetti, e com a resposta trouxe as rédeas para o seu próprio comando. “Pode me dizer há quanto tempo ele era sócio de sua loja?”

Murino não deu nenhum sinal de ter notado a luta pelo controle da conversa. “Cinco anos”, respondeu, “desde que a abri.”

“E a sua loja em Milão? A sociedade se estendia a ela?”

“Oh, não. Elas são mantidas como negócios separados. A sociedade com ele era apenas nesta daqui.”

“E como foi que ele ficou sócio?”

“Sabe como é, as notícias circulam.”

“Não, temo não saber como é, signor Murino. Como foi que ele ficou sócio?”

O sorriso de Murino foi deliberadamente relaxado; ele estava disposto a ignorar a rudeza de Brunetti. “Quando me deram a oportunidade de alugar este espaço, contatei amigos aqui na cidade e tentei tomar algum dinheiro emprestado. Estava com a maior parte do meu capital preso no estoque da loja de Milão, e o mercado para antiguidades andava muito devagar na época.”

“Mas mesmo assim abriu uma segunda loja?”

O sorriso de Murino foi angelical. “Eu tinha esperanças no futuro. As pessoas podiam ter parado de comprar por um tempo, mas isso não dura para sempre, e elas voltam a comprar coisas belas.”

Se Murino fosse uma mulher, Brunetti diria que estava fazendo charme e incitando o visitante a admirar as peças da loja e, com isso, relaxar a tensão criada pelas perguntas.

“E seu otimismo foi recompensado, signor Murino?”

“Oh, não posso me queixar.”

“E o seu sócio? Como foi que ele descobriu seu interesse em tomar dinheiro emprestado?”

“Oh, as vozes viajam. As notícias se espalham.” Isso aparentemente era o máximo de explicação que o signor Murino estava preparado a dar.

“E aí ele apareceu, dinheiro na mão, pedindo para ficar sócio?”

Murino caminhou até um baú de enxoval da Renascença e limpou uma impressão digital com seu lenço. Ele se inclinou para colocar os olhos no mesmo nível que a superfície da cômoda e esfregou várias vezes até a mancha sumir. Em seguida, dobrou o lenço num retângulo perfeito, meteu-o de volta no bolso do paletó e recostou-se na beirada do baú. “Sim, imagino que poderia dizer isso.”

“E o que ele recebeu em troca do seu investimento?”

“Cinquenta por cento dos lucros por dez anos.”

“E quem fazia a contabilidade?”

“Temos un contabile que cuida de tudo para nós.”

“Quem faz as compras para a loja?”

“Eu.”

“E as vendas?”

“Eu. Ou a minha filha. Ela trabalha aqui dois dias por semana.”

“Então são o senhor e a sua filha que sabem o que é comprado e vendido, e a que preço?”

“Tenho recibos de todas as compras e vendas, dottor Brunetti”, disse Murino, a voz a um passo da indignação.

Brunetti considerou por alguns instantes a opção de dizer a Murino que todos na Itália tinham recibos de tudo e que todos aqueles recibos eram absolutamente inúteis, exceto como falsa evidência para se esquivar dos impostos. Mas ninguém precisava dizer que a chuva cai do céu ou que as flores desabrocham na primavera. Da mesma maneira, não era preciso mencionar a existência de evasão fiscal, sobretudo para um negociante de antiguidades e, mais especialmente, para um negociante de antiguidades napolitano.

“Claro, não duvido, signor Murino”, disse Brunetti, e mudou de tema. “Quando foi a última vez que o viu?”

Murino parecia estar esperando essa pergunta, pois respondeu de estalo: “Há duas semanas. Nós nos encontramos para um drinque e eu lhe contei que estava planejando uma viagem de compras pela Lombardia no fim do mês. Disse a ele que pretendia fechar a loja durante uma semana e perguntei se fazia alguma objeção a isso.”

“E ele fez?”

“Não, absolutamente nenhuma.”

“E sua filha?”

“Ela está estudando para os exames. Está cursando direito. E tem dias que não passa ninguém na loja. Então achei que era uma boa época para fechar por algum tempo. Nós também precisávamos fazer alguns consertos.”

“Que tipo de consertos?”

“Temos uma porta que abre para o canal, e ela saiu dos gonzos. Assim, se quisermos usá-la, vai ser preciso construir um novo batente”, ele disse, fazendo um gesto na direção das cortinas de veludo. “Gostaria de vê-la?”, perguntou Murino.

“Não, obrigado”, respondeu Brunetti. “Signor Murino, já lhe ocorreu que seu sócio pudesse incorrer em certo conflito de interesses?”

Murino sorriu de maneira inquisitiva. “Receio não ter entendido.”

“Então me permita esclarecer. O outro cargo dele poderia ter lhe servido também para, digamos, trabalhar em benefício do negócio comum de vocês.”

“Devo me desculpar, mas ainda não compreendo o que quer dizer.” O sorriso de Murino não pareceria deslocado na face de um anjo.

Brunetti deu exemplos. “Usando o senhor, talvez, como um consultor, ou tomando conhecimento de que certas peças ou coleções iam ficar à venda. Talvez recomendando a loja a pessoas que manifestassem interesse num tipo particular de item.”

“Não, nunca me ocorreu.”

“Será que ocorreu a seu sócio?”

Murino pegou o lenço e se inclinou para limpar outra mancha. Quando ficou satisfeito com a limpeza da superfície, disse: “Eu era seu parceiro comercial, comissário, não seu confessor. Temo que essa seja uma pergunta que somente ele poderia responder”.

“Mas isso, infelizmente, é impossível.”

Murino balançou a cabeça, entristecido. “É, é impossível.”

“O que acontecerá com a parte dele na loja agora?”

O rosto de Murino era pura inocência ultrajada. “Oh, continuarei dividindo os lucros com a viúva.”

“E o senhor e sua filha continuarão fazendo as compras e as vendas?”

A resposta de Murino demorou a chegar, mas quando veio não passou de um reconhecimento do óbvio. “Sim, claro.”

“Claro”, Brunetti ecoou, embora as palavras nem soassem iguais nem transmitissem a mesma ideia quando as disse.

Uma onda de cólera se espalhou, de repente, pelas faces de Murino, mas antes que ele pudesse falar Brunetti disse: “Obrigado pelo seu tempo, signor Murino. Desejo-lhe sucesso em sua viagem à Lombardia”.

Murino se afastou do baú e foi até a porta para devolver-lhe o guarda-chuva. Ele o segurou pelo tecido ainda úmido e o entregou, o cabo primeiro, a Brunetti. Abriu a porta e a segurou polidamente para o policial, e depois a fechou com suavidade atrás de si. Brunetti ficou parado na chuva e abriu o guarda-chuva. Nesse momento, uma rajada súbita de vento tentou arrancá-lo de sua mão, mas ele aumentou a pressão e rumou para casa. Durante toda a conversa, nenhum dos dois mencionara uma única vez o nome de Semenzato.


16

 

 

 

 

Atravessando o campo varrido pela chuva, Brunetti ficou imaginando se Semenzato confiaria num homem como Murino para manter os registros de todas as compras e vendas. Brunetti já vira com certeza acertos comerciais mais esquisitos e tinha em mente o fato de que só conhecia Semenzato retrospectivamente, uma visão que poucas vezes encorajava a clareza. Mas, ainda assim, quem seria tolo o bastante para acreditar na palavra de um antiquário, uma raça tão escorregadia quanto se podia imaginar? Nesse ponto, uma voz mais forte que sua tentativa de suprimi-la perguntou: “E napolitano, ainda por cima?”. Ninguém compraria a versão deles sem questionar. Mas se o grande negócio de sua parceria eram peças roubadas ou falsas, então os lucros do negócio legítimo da loja não teriam a menor importância. Nesse caso, Semenzato jamais tivera que questionar os recibos de Murino; ou sua palavra de que um armadio ou uma mesa havia sido comprado por um certo preço, vendido por tanto mais. Quando pensou na ideia de lucro, prejuízo, preço, percebeu que não tinha números básicos, nenhuma ideia do valor de mercado das peças que Brett dizia que estavam faltando. Aliás, nem sequer sabia que peças eram. Amanhã.

Como a chuva estava aumentando, e com ela a ameaça de acqua alta, as ruas estavam estranhamente desertas, apesar de ser a hora em que a maioria das pessoas estaria voltando apressada do trabalho para casa ou fazendo alguma compra de última hora antes que as lojas fechassem. Brunetti descobriu então que podia transitar com tranquilidade pelas ruas estreitas sem o renovado incômodo de desviar o guarda-chuva para permitir que pessoas mais baixas passassem. Mesmo a ponte de Rialto estava curiosamente deserta, algo de que ele não se lembrava ter visto algum dia. Muitas bancas estavam vazias, os caixotes de frutas e verduras retirados às pressas antes da hora de fechamento, os donos protegidos do frio cortante e da chuva que continuava martelando.

Ele entrou no seu prédio e bateu a porta com força: no tempo úmido, a fechadura costumava emperrar, e só a violência conseguia abrir ou fechar a porta maciça. Sacudiu o guarda-chuva algumas vezes, depois o enrolou e enfiou embaixo do braço. Com o braço direito, segurou no corrimão e iniciou a longa escalada até seu apartamento. No primeiro andar, a signora Bussola, a viúva surda de um advogado, estava assistindo o telegiornale, o que significava que todo mundo no andar teria de ouvir as notícias. Previsivelmente, ela assistia ao noticiário na RAI Uno; aquela escória esquerdista radical e comunista da RAI Due não era para ela. No segundo andar, os Rossi estavam quietos: isso significava que a briga havia terminado e eles estavam nos fundos da casa, no quarto de dormir. O terceiro andar estava em silêncio. Um casal jovem se mudara para ali dois anos antes e comprara o andar todo, mas Brunetti podia contar nos dedos de uma mão as vezes em que encontrara algum deles na escada. Alguém lhe havia dito que ele trabalhava para a prefeitura. A esposa saía todas as manhãs e voltava para casa às cinco e meia todas as tardes, mas ninguém sabia aonde ela ia ou o que fazia, um fato que Brunetti considerava milagroso. No quarto andar, havia apenas cheiros. Os Amabile raramente apareciam, mas o poço da escada ficava sempre impregnado com os aromas gloriosos e tentadores de comida. Nessa noite parecia ser capriolo e, se não estava enganado, alcachofras, embora pudessem ser berinjelas fritas.

E aí chegava a porta da sua casa e a promessa de paz. Que só durou o tempo de ele abrir a porta e entrar. Do fundo do apartamento veio-lhe o som de Chiara soluçando. Ela era sua pequena espartana, a criança que quase nunca chorava, a garota que podia ser punida com a privação das coisas que mais desejava e jamais derramava uma lágrima, a criança que uma vez quebrara o pulso, mas segurara as lágrimas, embora lívida, enquanto ele estava sendo tratado. E não estava apenas chorando; estava soluçando.

Ele atravessou o vestíbulo às pressas e entrou no quarto. Paola estava sentada no lado da cama, com Chiara aninhada nos braços. “Mas, querida, não há nada que se possa fazer. Eu coloquei gelo, mas você tem que esperar parar de doer.”

“Mas, mamma, está doendo muito. Você não pode fazer ela parar?”

“Posso te dar mais analgésico, Chiara. Talvez ajude.”

Chiara engoliu as lágrimas e repetiu, com a voz estranhamente aguda: “Mamma, por favor, faça alguma coisa”.

“O que foi, Paola?”, ele perguntou, mantendo a voz perfeitamente calma, perfeitamente uniforme.

“Oh, Guido”, disse Paola, virando-se para ele, sem afrouxar o abraço em Chiara. “Chiara deu uma topada na mesa.”

“Qual mesa?”, ele perguntou, em vez de qual dedo do pé.

“A da cozinha.” Era aquela com cupins. O que elas tinham feito, tentado movê-la sozinhas? Mas para que fazer isso com aquela chuva? Elas não poderiam levá-la ao terraço. Era pesada demais para elas.

“O que aconteceu?”

“Ela não acreditou em mim que havia tantos buracos, por isso virou a mesa de lado para olhar, e ela escapou de suas mãos e atingiu seu dedo do pé.”

“Deixe-me ver”, disse ele, e, mal havia falado, notou que o pé direito da filha estava em cima da colcha, envolvido numa tolha de banho contendo um saco plástico com gelo sobre o inchaço.

Era como ele imaginara, e o dedo parecia estar pior. Era o dedão do pé direito, inchado, a unha inteiramente vermelha com a promessa do azul que surgiria com o tempo.

“Está quebrado?”, perguntou.

“Não, papà, posso dobrá-lo que não dói, mas está latejando”, disse Chiara. Havia parado de soluçar, porém ele pôde ver pelo seu rosto que a dor continuava forte. “Papà, faça alguma coisa, por favor.”

“Não tem nada que o papà possa fazer, Chiara”, Paola disse, empurrando o pé um pouquinho para o lado e colocando o saco de gelo em cima dele.

“Quando foi que aconteceu?”, ele perguntou.

“Esta tarde, logo depois de você sair”, respondeu Paola.

“E ela ficou assim o dia inteiro?”

“Não, papà”, disse Chiara, defendendo-se da acusação não dita. A de que ela tinha passado a tarde inteira em lágrimas. “Doeu no começo e depois ficou bom durante um tempo, mas agora está doendo muito.” Ela já havia perguntado uma vez se ele podia fazer alguma coisa. Chiara não era o tipo de pessoa que repetia um pedido.

Ele se lembrou de uma coisa que aprendera muitos anos antes, quando prestava o serviço militar e um dos homens de sua unidade deixara cair a tampa de um bueiro num dedo do pé. De algum modo, aquilo não conseguiu quebrá-lo porque atingiu apenas a ponta do dedo, mas, como o de Chiara, ficara vermelho e inchado.

“Há uma coisa”, ele começou. Paola e Chiara viraram as cabeças para fitá-lo.

“O quê?”, perguntaram em uníssono.

“É nojento”, ele disse, “mas vai ajudar.”

“O que é, papà?” Chiara perguntou por entre os lábios que estavam começando a tremer novamente de dor.

“Vou ter de enfiar uma agulha através da unha e deixar o sangue sair.”

“Não”, gritou Paola, aumentado o aperto em torno do ombro de Chiara.

“Funciona, papà?”

“Funcionou na única vez que vi fazerem, mas isso foi há muitos anos. Eu nunca fiz, mas vi o médico fazer.”

“Acha que pode fazer, papà?”

Ele tirou o casaco e o pôs sobre o pé da cama. “Acho que sim, meu anjo. Quer que eu tente?”

“Vai fazer parar de doer?”

“Acho que sim.”

“Tudo bem, papà.”

Ele lançou um olhar para Paola, pedindo sua opinião. Ela se inclinou e beijou o topo da cabeça de Chiara, apertou ainda mais seu abraço, fez que sim para Brunetti e tentou sorrir.

Ele atravessou o corredor e pegou uma vela na terceira gaveta da direita da pia da cozinha, prendeu-a num suporte de cerâmica, pegou uma caixa de fósforos e voltou ao quarto. Ali, apoiou a vela na escrivaninha de Chiara, acendeu-a e foi pelo corredor até o escritório de Paola. Na gaveta de cima, pegou um clipe de papel e o endireitou num arame reto enquanto voltava ao quarto de Chiara. Ele dissera agulha, mas depois tinha se lembrado de que o médico havia usado um clipe de papel, alegando que uma agulha era fina demais para atravessar a unha rapidamente depois de aquecida.

No quarto de Chiara, acomodou a vela no pé da cama, atrás das costas de Paola. “Acho que seria melhor você não olhar, meu anjo”, disse a Chiara. Para isso, ele se sentou na beira da cama, perto de Paola, de costas para ela, e descobriu o pé de Chiara.

Quando o tocou, ela o afastou com um puxão instintivo, mas disse um “Desculpe” abafado no ombro da mãe e empurrou de novo o pé para perto dele. Ele segurou o pé com a mão esquerda e afastou o saco de gelo. Teve que mudar sua posição na cama tomando o cuidado para a vela não respingar, até ficar sentado de frente para as duas. Ele pegou então o calcanhar da menina e o prendeu entre seus joelhos, pressionando-o para ficar firme.

“Está tudo bem, querida. Só vai levar um segundo”, disse, segurando a vela com uma das mãos e a ponta do clipe de papel no fogo com a outra. Quando o calor queimou seu dedo, largou o clipe e espirrou vela derretida sobre a colcha. A esposa e a filha se sobressaltaram com seu movimento brusco.

“Um minuto, um minuto”, ele disse, e voltou à cozinha, resmungando maldições por entre os dentes. Ali, pegou uma pinça na gaveta de baixo e voltou ao quarto. Quando a vela foi acesa de novo, e estava tudo como antes, ele segurou uma ponta do clipe com a pinça e colocou a outra sobre a chama. Esperou até ela ficar vermelho brilhante e então, rápido o bastante para não ter tempo de pensar no que estava fazendo, pressionou a ponta brilhante do clipe no centro da unha do dedão de Chiara. Ele manteve o clipe ali até a unha começar a fumegar, segurando o tornozelo da menina com a mão esquerda para ela não puxar o pé.

De repente, a resistência cedeu embaixo do clipe, e um sangue escuro escoou do dedão por entre seus dedos. Ele puxou o clipe e, agindo mais por instinto que por qualquer outra coisa de que pudesse ter se lembrado, pressionou a parte de baixo do dedão, forçando o sangue escuro a sair pelo buraco na unha.

Durante tudo isso, Chiara ficara abraçada a Paola, e esta, por sua vez, mantivera os olhos afastados do que Brunetti estava fazendo. Quando ele levantou os olhos, porém, viu que Chiara o fitou por cima do ombro da mãe e depois olhou para o pé. “Pronto?”, ela perguntou.

“Pronto”, ele respondeu. “Como está se sentindo?”

“Já está melhor, papà. A pressão toda sumiu e não está latejando mais.” Ela estudou as ferramentas da operação: vela, pinça, clipe de papel. “Você só precisou disso?”, perguntou com real curiosidade, as lágrimas esquecidas.

“Só isso”, ele disse, dando um aperto no tornozelo da filha.

“Acha que eu conseguiria fazer?”, ela perguntou.

“Quer dizer, em você mesma ou em outra pessoa?”, ele disse.

“As duas coisas.”

“Não vejo por que não.”

Paola, cuja filha parecia ter se esquecido dela no fascínio por essa nova descoberta científica, desenredou os braços da filha já sem dor e tirou o saco de gelo e a toalha da cama. Ela se levantou, fitou os dois por alguns instantes, como se estudando uma forma alienígena de vida, e seguiu pelo hall na direção da cozinha.


17

 

 

 

 

Na manhã seguinte, o pé de Chiara estava bom o suficiente para que ela fosse à escola, mas mesmo assim ela tratou de vestir três pares de meia de lã e calçar as botas de borracha de cano alto, não só pela chuva, que continuava torrencial e trazia uma ameaça de acqua alta, mas porque as botas eram bastante largas e espaçosas para acomodar seu dedo convalescente. Ela já havia saído quando Brunetti se vestiu e ficou pronto para ir ao trabalho, mas no seu lugar à mesa da cozinha encontrou uma folha grande de papel com um imenso coração vermelho e, embaixo dele, nas letras maiúsculas precisas dela, “Grazie, papà”. Ele dobrou o desenho num retângulo perfeito e o enfiou na sua carteira.

Ele não se preocupara em telefonar para avisar Flavia e Brett — imaginou que as duas estariam em casa — que faria uma visita, e eram quase dez quando tocou a campainha, acreditando que era uma hora suficientemente respeitável para falar de assassinato.

Ele se anunciou para a voz no interfone, e abriu a pesada porta quando o botão no alto soltou a trava. Apoiou o guarda-chuva num canto da entrada, sacudiu-se como faria um cachorro e começou a subir os degraus.

Hoje era Brett quem estava parada ao lado da porta aberta e o fez entrar no apartamento. Ela sorriu e ele de novo só pôde ver o branco de seus dentes.

“Onde está a signora Petrelli?”, ele perguntou enquanto ela o guiava para a sala de visitas.

“Flavia raramente está apresentável antes das onze. Nunca é humana antes das dez.” Enquanto ela o conduzia para a sala, ele notou que seu andar era mais normal e ela parecia menos preocupada em poupar seu corpo de alguma dor decorrente de algum movimento ou gesto inteiramente natural.

Ela gesticulou para ele se sentar e tomou seu lugar no sofá; a pouca luz que entrava na sala vinha de trás dela e escurecia parte de seu rosto. Depois que se sentaram, ele puxou do bolso o papel no qual fizera anotações no dia anterior, mesmo sabendo perfeitamente o que era preciso saber.

“Gostaria que me contasse sobre as peças que encontrou na China, as que acha que são falsas”, começou, sem nenhum preâmbulo.

“O que deseja saber?”

“Tudo.”

“Isso é um bocado.”

“Preciso saber sobre as peças que presume terem sido roubadas. E depois preciso saber algo sobre como isso pode ter sido feito.”

Ela começou a falar imediatamente. “Estou certa agora sobre quatro, mas a outra é autêntica.” Nesse momento sua expressão mudou, e o olhar que ela lhe dirigiu foi confuso. “Mas não tenho a menor ideia de como foi feito.”

Foi a vez de ele não compreender. “Mas alguém me disse ontem que a senhora dedicou um capítulo inteiro a isso num livro que escreveu.”

“Oh”, disse ela, com perceptível alívio, “era isso que queria dizer, como elas foram feitas. Achei que se referia a como foram roubadas. Não tenho a menor ideia disso, mas posso lhe dizer como as peças falsas foram produzidas.”

Brunetti não quis trazer à baila a ideia do envolvimento de Matsuko, ao menos não ainda, e perguntou apenas: “Como?”.

“É um processo bastante simples.” A voz dela mudou, adquirindo a certeza rápida da especialista. “Sabe alguma coisa sobre louça de barro ou cerâmica?”

“Muito pouco”, ele admitiu.

“As peças roubadas eram todas do segundo século antes de Cristo”, ela começou à guisa de explicação, mas ele a interrompeu.

“Mais de dois mil anos atrás?”, perguntou Brunetti.

“Isso. Os chineses tinham uma cerâmica muito bela, já naquela época, e meios bem sofisticados de fazê-la. Mas as peças que foram levadas eram coisas simples, ao menos então, quando foram feitas. Elas não são esmaltadas, são pintadas à mão, e geralmente trazem figuras de animais. Cores primárias: vermelho e branco, quase sempre num fundo preto.” Ela se levantou do sofá e caminhou até a estante, onde permaneceu por alguns minutos, analisando, balançando a cabeça cadenciadamente enquanto estudava os títulos à sua frente. Por fim, tirou da estante um livro que estava diante dela e o trouxe para Brunetti. Ela consultou o índice e depois abriu o livro e folheou as páginas até encontrar o que queria. Passou o livro aberto para Brunetti.

Ele viu uma foto de um jarro grosso com tampa, em forma de cabaça, sem nenhum indício sobre a sua escala. A ornamentação do jarro era dividida em três faixas horizontais: o gargalo e a tampa, um largo campo central, e uma terceira faixa que contornava a parte inferior. No largo campo central, situado exatamente na parte mais larga do vaso, ele viu uma representação de uma figura de animal com a boca aberta que poderia ser um lobo estilizado, ou uma raposa, ou até mesmo um cão, o corpo branco ereto e inclinado para a esquerda, as pernas traseiras bem abertas e as dianteiras esticadas na direção oposta. A sensação de movimento criada pelos membros era refletida numa série de curvas geométricas e espirais rabiscadas num padrão repetido por toda a frente do vaso e, presumivelmente, por toda a parte de trás invisível. A borda, como pôde notar, estava esburacada e lascada, mas a imagem central estava intacta, e era muito bela. A legenda dizia apenas que era da Dinastia Han, o que não significou nada para Brunetti.

“É esse o tipo de coisa que se encontra em Xian?”, perguntou.

“É da China ocidental, de fato, mas não de Xian. É uma peça rara. Duvido que encontraremos algo assim.”

“Por quê?”

“Porque dois mil anos se passaram.” Essa, ela parecia acreditar, era uma explicação mais do que suficiente.

“Diga-me como a senhora a copiaria”, disse ele, mantendo os olhos na foto.

“Primeiro, você precisa de um ceramista experiente, alguém que realmente tenha tido tempo e oportunidade de estudar as peças que foram encontradas, as tenha examinado de perto, trabalhado com elas, talvez trabalhado para encontrá-las, ou trabalhado para expô-las. Isso lhe permitiria ter visto fragmentos reais para ter uma ideia clara da espessura das diferentes partes. Depois precisaria de um pintor muito bom, alguém capaz de copiar um estilo, captar o espírito de um vaso como este, e em seguida reproduzi-lo tão bem que ele parecesse a mesma peça que esteve na exposição.”

“Qual seria a dificuldade disso?”

“Muito grande. Mas existem homens e mulheres treinados para isso e que o fazem primorosamente.”

Brunetti colocou a ponta do indicador em cima da figura central. “Este aqui parece gasto; parece realmente velho. Como eles copiam isso?”

“Oh, isso é mais ou menos simples. Eles enterram a peça no chão; alguns usam água de esgoto não tratada e a enterram ali.” Notando o nojo instintivo de Brunetti, explicou: “Ela corrói a pintura e desgasta mais rapidamente. Depois, eles lascam pedacinhos, em geral das bordas e do fundo”. Para explicar, ela apontou para uma pequena lasca na borda superior do vaso da foto, no exato ponto em que ela tocava na tampa cilíndrica, e no fundo, onde o vaso se apoiava no chão.

“É difícil?”, Brunetti perguntou.

“Não, não para fazer uma peça que engane o leigo. É bem mais difícil fazer algo para enganar um especialista.”

“Como a senhora?”, ele perguntou.

“Sim”, disse ela, sem falsa modéstia.

“Como pode saber?”, ele perguntou, e depois expandiu a pergunta. “Cite algumas coisas que lhe informem que a peça é falsa. Coisas que outras pessoas não veriam.”

Antes de responder, ela folheou algumas páginas do livro, parando de vez em quando para examinar uma foto. Por fim o fechou e olhou para ele. “Existe a pintura, se a cor é correta para o período em que o vaso foi supostamente produzido. E a linha, se ela mostra hesitação na execução. Isso sugere que o pintor estava tentando copiar algo e tinha que pensar nisso, fazer paradas enquanto desenhava para ficar direito. Os artistas originais não precisavam imitar um padrão; eles pintavam o que bem queriam, de modo que a linha é sempre fluida. Se não gostavam dela, provavelmente quebravam o pote.”

Ele notou imediatamente o uso da palavra genérica. “Pote ou vaso?”

Ela riu da pergunta. “Agora são vasos, dois mil anos depois, mas acho que eram apenas potes para as pessoas que os faziam e usavam.”

“Para quê elas as usavam?”, Brunetti perguntou. “Originalmente?”

Ela ergueu os ombros. “Para tudo o que as pessoas sempre usaram potes: guardar arroz, carregar água, armazenar grãos. Este com o animal tem uma tampa, o que indica que queriam que qualquer coisa que guardassem nele ficasse a salvo, provavelmente de camundongos. Isto sugere arroz ou trigo.”

“Qual é o valor deles?”, perguntou Brunetti.

Ela se recostou no sofá e cruzou as pernas. “Não sei como responder isso.”

“Por que não?”

“Porque é necessário haver um mercado para haver um preço.”

“E?”

“E não há mercado para essas peças.”

“Por que não?”

“Porque há pouquíssimas delas. A do livro está no Metropolitan em Nova York. Deve haver três ou quatro em outros museus em diversas partes do mundo.” Ela fechou os olhos por um instante, e Brunetti pôde imaginá-la percorrendo listas e catálogos. Quando os abriu, disse: “Posso pensar em três: duas em Taiwan e uma numa coleção privada”.

“Nenhuma outra?”, ele perguntou.

Ela balançou a cabeça. “Nenhuma.” Mas aí acrescentou: “Ao menos nenhuma que esteja exposta ou numa coleção conhecida”.

“E coleções particulares?”, ele perguntou.

“Talvez, mas algum de nós provavelmente teria ouvido falar dela, e não há nada na literatura que mencione alguma outra. Por isso, acho que é uma suposição bastante segura que não há mais que essas.”

“Quanto valeria uma das peças de museu?”, ele perguntou, e explicou quando a viu balançar a cabeça. “Eu sei, eu sei, pelo que a senhora disse, seria impossível colocar um preço exato nela, mas pode me dar uma ideia de qual seria o valor?”

Ela demorou algum tempo para pensar em uma resposta. Quando o fez, disse: “O preço seria o que o vendedor pedisse ou o que o comprador estivesse disposto a pagar. Os preços de mercado são em dólares — cem mil? Duzentos? Mais? Mas de fato não há preços porque existem pouquíssimas peças dessa qualidade. Dependeria totalmente de quanto o comprador quisesse ter a peça, ou de quanto dinheiro possuísse”.

Brunetti traduziu os preços dela em milhões de liras: duzentos milhões, trezentos? Antes que pudesse completar sua especulação, ela prosseguiu.

“Porém isso é apenas para as louças, os vasos. Até onde sei, nenhuma estátua de soldado desapareceu, mas, se isso tivesse acontecido, não haveria realmente um preço a ser colocado nela.”

“Mas também não há maneira de o dono poder mostrá-la publicamente, não é?”, Brunetti perguntou.

Ela sorriu. “Temo que essas pessoas não se interessam em mostrar coisas publicamente. Elas só querem possuí-las, ter a certeza de que certa peça é sua. Não sei se são movidas pelo amor à beleza ou o desejo de propriedade, mas, acredite, são pessoas que apenas querem ter uma peça em sua coleção, mesmo que ninguém jamais a veja. Além delas mesmas, é claro.” Ela notou o olhar cético dele e acrescentou: “Lembra o bilionário japonês, aquele que queria ser enterrado com o seu Van Gogh?”.

Brunetti se recordou de ter lido algo sobre aquilo no ano anterior. O homem teria comprado a pintura num leilão e depois escrevera em seu testamento que devia ser enterrado com ela, ou, para colocar na devida ordem de importância, a pintura era para ser enterrada com ele. Ele se lembrou de certa tempestade no mundo das artes sobre o assunto. “No fim, ele desistiu e disse que não o faria, não foi?”

“Bem, isso foi o noticiado”, ela concordou. “Eu jamais acreditei na história, mas a menciono para lhe dar uma ideia de como algumas pessoas se sentem sobre suas posses, como acreditam que seu direito de propriedade é a medida absoluta ou o principal propósito de colecionar, não a beleza do objeto.” Ela balançou a cabeça. “Temo que não esteja explicando isso muito bem, mas, como disse, para mim isso não faz nenhum sentido.”

Brunetti percebeu que ainda não tinha uma resposta suficiente para sua pergunta original. “Mas ainda não compreendo como se sabe que uma coisa é original ou uma cópia.” Antes que ela pudesse responder, acrescentou: “Um amigo me falou sobre aquele sexto sentido que vocês adquirem, de que alguma coisa simplesmente parece certa ou errada para vocês. Mas isso é muito subjetivo. O que quero dizer é o seguinte: se dois especialistas discordam, um dizendo que a peça é original e o outro dizendo que não, como resolvem a questão? Chamam um terceiro especialista e fazem uma votação?”. Ele sorriu para mostrar que estava brincando, mas não pôde pensar em nenhuma outra maneira de resolver a situação.

O sorriso de Brett mostrou que ela havia entendido a piada. “Não, nós chamamos os técnicos. Há vários testes que podem ser feitos para comprovar a idade de um objeto.” Mudando a voz, ela perguntou: “Tem certeza de que deseja ouvir todas essas coisas?”.

“Tenho.”

“Vou tentar não ser muito pedante”, ela disse, cruzando os pés sobre o sofá. “Há toda sorte de testes que podemos fazer em pinturas: análise da composição química de tintas para ver se elas condizem com a época em que a pintura teria sido feita, raios X para ver o que existe embaixo da camada superficial de uma pintura, até datação com carbono 14.” Ele fez que sim para mostrar que estava familiarizado com tudo isso.

“Mas não estamos falando de pinturas”, ele disse.

“Não, não estamos. Os chineses nunca trabalhavam com óleos, ao menos nos períodos cobertos pela mostra. A maioria dos objetos era de cerâmica ou metal. Nunca me interessei por peças de metal, bem, não muito, mas sei que é quase impossível testá-las cientificamente. Para elas, você precisa do olho.”

“Mas não para cerâmica?”

“Claro, é preciso ter olho especializado, mas, felizmente, as técnicas de verificar a autenticidade são tão sofisticadas quanto são para as pinturas.” Ela fez uma pausa e perguntou de novo: “Quer que eu seja técnica?”.

“Quero, sim”, disse ele, pegando a caneta e, ao fazê-lo, sentindo-se como um estudante.

“A principal técnica que usamos — e a mais confiável — chama-se termoluminescência. Tudo que precisamos fazer é extrair cerca de trinta miligramas de cerâmica de alguma peça que queremos testar.” Ela antecipou a pergunta dele, explicando. “É fácil. Tiramos da parte de trás de um prato ou da parte inferior de um vaso ou de uma estátua. A quantidade de que precisamos é ínfima, suficiente apenas para conseguir uma amostra. Aí uma válvula fotomultiplicadora nos diz, com precisão de aproximadamente dez a quinze por cento, a idade do material.”

“Como isso funciona?”, perguntou Brunetti. “Isto é, sob que princípio?”

“Quando a argila é queimada, bem, se ela for queimada acima de cerca de trezentos graus centígrados, todos os elétrons do material que a compõem serão — imagino que não exista uma palavra melhor para isso — serão apagados. O calor destrói suas cargas elétricas. Então, desse ponto em diante, eles começam a adquirir novas cargas elétricas. É isso que a válvula fotomultiplicadora mede, quanta energia eles absorveram. Quanto mais velho o material, mais ele brilha.”

“E qual a precisão disso?”

“Como disse, cerca de quinze por cento. Isso significa que com uma peça que supostamente tem dois mil anos, podemos ter uma leitura que nos dirá, com um desvio de cerca de trezentos anos, quando ela foi feita — bem, quando ela foi queimada pela última vez.”

“E a senhora aplicou esse teste nas peças enquanto estava na China?”

Ela balançou a cabeça. “Não, não tinha equipamento para isso em Xian.”

“Então como pode ter certeza?”

Ela sorriu enquanto respondia. “O olho. Olhei para elas e fiquei absolutamente certa de que eram falsas.”

“Mas, para ter certeza? Perguntou a mais alguém?”

“Já lhe disse. Escrevi a Semenzato. E quando não recebi resposta, vim para cá.” Ela poupou-lhe a pergunta. “Sim, trouxe amostras comigo, amostras das três peças que achei mais suspeitas e das outras duas que achei que podiam ser falsas.”

“Semenzato sabia que a senhora tinha essas amostras?”

“Não. Nunca mencionei a ele.”

“Onde elas estão?”

“Parei na Califórnia a caminho daqui e deixei um conjunto com um amigo meu que é curador do Getty. Eles têm o equipamento, por isso pedi que ele as testasse para mim.”

“E ele testou?”

“Testou.”

“E?”

“Liguei para ele quando vim do hospital para cá. As três peças que achei que eram falsas foram feitas poucos anos atrás.”

“E as outras duas?”

“Uma é autêntica. A outra é falsa.”

“Basta um teste?”, perguntou Brunetti.

“Basta.”

Mesmo que não fosse prova suficiente, Brunetti notou, o que havia acontecido com ela e com Semenzato era.

Um instante depois, Brett respondeu: “E agora?”.

“Tentamos descobrir quem matou Semenzato e quem eram os dois homens que vieram aqui.”

O olhar dela foi impassível e muito cético. Ela finalmente perguntou: “E quais são as chances disso?”.

Ele tirou do bolso interno as fotos das fichas policiais de Salvatore La Capra e as passou para Brett. “Este era um deles?”

Ela pegou as fotos e as estudou por um minuto. “Não”, disse simplesmente, e devolveu-as a Brunetti.

“Eles são sicilianos”, ela disse. “Provavelmente já estão de volta a suas casas agora, pagos e felizes com a esposa e as crianças. Sua viagem foi um sucesso; eles fizeram as duas coisas para as quais foram enviados: me assustar e matar Semenzato.”

“Isso não faz nenhum sentido, não é?”, ele perguntou.

“O que não faz nenhum sentido?”

“Estive falando com pessoas que o conheceram, ou sabiam dele, e parece que Semenzato estava metido em algumas coisas das quais um diretor de museu deveria se manter longe.”

“Como o quê?”

“Ele era sócio de um negócio de antiguidades. Outras pessoas me disseram que sua opinião profissional estava à venda.” Brett aparentemente não precisava de nenhuma explicação sobre o que significava a segunda questão.

“Por que isso é importante?”

“Se a intenção deles fosse matá-lo, eles teriam feito isso primeiro e depois a teriam prevenido para ficar quieta senão a mesma coisa iria lhe acontecer. Mas não fizeram isso. Eles vieram primeiro até aqui. E se isso tivesse funcionado, Semenzato jamais teria sabido, ao menos não oficialmente, da substituição.”

“Você ainda está supondo que ele teve parte nisso”, disse Brett. Quando Brunetti fez que sim, ela acrescentou: “Acho que é uma grande suposição”.

“Não faz sentido de nenhum outro jeito”, explicou Brunetti. “De que outro modo eles teriam chegado à senhora, sabido do encontro?”

“E se eu tivesse contado a ele, mesmo depois do que eles me fizeram?” Ele ficou surpreso de ela ainda não ter entendido e relutou em lhe explicar novamente. Ele não respondeu.

“Então?”, ela insistiu.

“Se Semenzato tomou parte nisso, está muito claro o que teria acontecido se a senhora falasse com ele”, disse Brunetti, ainda relutando em ser quem expressaria aquilo.

“Ainda não estou compreendendo.”

“Eles teriam matado a senhora, e não ele”, disse ele, simplesmente.

Ele observou o rosto dela enquanto falava, viu a coisa atingir seus olhos, primeiro com choque e descrédito. Um momento depois, ela compreendeu, e sua expressão endureceu, seus lábios se comprimiram e sua boca se apertou.

Felizmente, Flavia escolheu aquele exato momento para entrar na sala, trazendo um aroma esvoaçante de sabonete ou xampu ou uma daquelas coisas que as mulheres usam para cheirar divinamente na hora errada do dia. Por que de manhã e não de noite?

Ela trajava um vestido simples de lã marrom com um lenço laranja vivo dando algumas voltas em redor da cintura e amarrado de lado, a ponta caindo abaixo dos joelhos e balançando quando ela andava. Estava sem nenhuma maquiagem e, vendo-a assim, Brunetti se perguntou por que ela se dava ao trabalho de usá-la.

“Buon giorno”, ela disse, sorrindo e lhe oferecendo a mão.

Ele se levantou para tomá-la. Fitando Brett, ela a incluiu em seu comentário seguinte. “Vou fazer café. Alguém gostaria?” Depois, com um sorriso: “Um pouco cedo para champanhe”.

Brunetti fez que sim, mas Brett balançou a cabeça. Flavia fez a volta e desapareceu na cozinha. A chegada e a partida, embora intempestivas, desviaram a última observação dele, mas agora eles não tinham escolha senão voltar a ela.

“Por que eles o mataram?”, perguntou Brett.

“Não sei. Uma discussão com a outra pessoa envolvida? Um desentendimento sobre o que fazer, talvez o que fazer a seu respeito?”

“Tem certeza que ele morreu por causa de tudo isso?”

“Acho que é melhor trabalhar com essa suposição”, ele respondeu suavemente, sem surpresa com a relutância dela em ver a coisa dessa maneira. Para isso, ela obviamente teria de admitir o perigo que corria. Com Matsuko e Semenzato mortos, era a única que sabia do roubo. Quem havia matado Semenzato podia não ter ideia de que ela trouxera provas, além de suspeitas, da China, e assim eles teriam de acreditar que sua morte efetivamente encerraria a pista. Se a fraude algum dia fosse detectada no futuro, era improvável que o governo da República Popular da China pudesse se interessar pela cobiça assassina de capitalistas ocidentais; ele provavelmente procuraria os ladrões mais perto de casa.

“Quando elas ainda estavam na China, quem ficou encarregado das peças selecionadas para a mostra?”

“Nós tratávamos com um homem do Museu de Beijing, Xu Lin, um dos maiores arqueólogos e um ótimo historiador da arte.”

“Ele acompanhou as exposições fora da China?”

Ela balançou a cabeça. “Não, seu passado político o impedia.”

“Por quê?”

“Seu avô foi um latifundiário, por isso ele era considerado politicamente indesejável — ou, ao menos, suspeito.” Ela notou a expressão escancarada de surpresa de Brunetti e explicou. “Sei que parece irracional.” Aí, depois de uma pausa, acrescentou: “É irracional, mas a coisa é assim. Durante a Revolução Cultural ele passou dez anos cuidando de porcos e espalhando esterco em plantações de repolho. Mas assim que tudo acabou, ele voltou para a universidade e, como foi um aluno brilhante, não puderam impedi-lo de conseguir um emprego em Beijing. Porém não o deixariam sair do país. As únicas pessoas que viajaram com a exposição eram integrantes do partido que queriam fazer compras no exterior”.

“E a senhora.”

“Sim, e eu.” Após um momento, ela acrescentou em voz baixa: “E Matsuko”.

“Então, é a senhora que será responsabilizada pelo roubo.”

“Claro, eu serei responsabilizada. Eles certamente não vão acusar integrantes do partido que vieram dar uma volta, não quando há uma ocidental para levar a culpa pela coisa toda.”

“O que acha que aconteceu?”

Ela balançou a cabeça. “Nada faz sentido. Ou não posso acreditar no que faz sentido.”

“Ou seja?” Ele foi interrompido por Flavia que entrara na sala carregando uma bandeja. Ela passou por ele e foi se sentar ao lado de Brett no sofá, apoiando a bandeja sobre a mesa diante delas. Duas xícaras de café repousavam sobre ela. Flávia entregou uma a Brunetti, pegou a outra e sentou-se no sofá. “Pus duas pedras de açúcar. Achei que é como o senhor toma.”

Ignorando a interrupção, Brett continuou: “Um dos integrantes do partido deve ter sido contatado por alguém daqui”. Apesar de Flavia não ter ouvido a pergunta que causara essa explicação, Brett não fez nenhuma tentativa de camuflar sua resposta. Ela se virou e olhou fixamente para Flavia num silêncio sepulcral, depois virou para Brunetti e encontrou seus olhos. Nenhum dos dois disse nada, e Brett continuou. “Certo. Certo. Ou Matsuko. Talvez tenha sido Matsuko.”

Brunetti estava certo de que mais cedo ou mais tarde ela seria obrigada a retirar aquele “talvez”.

“E Semenzato?”, Brunetti perguntou.

“Possivelmente. De qualquer modo, alguém do museu.”

Ele a interrompeu. “Essas pessoas, as que a senhora chama de integrantes, alguma delas fala italiano?”

“Sim, duas ou três delas.”

“Duas ou três?”, ele repetiu. “Quantas estavam aqui?”

“Seis”, respondeu Brett. “O partido cuida dos seus.”

Flavia fungou.

“Eles falavam bem o italiano? A senhora se lembra?”, perguntou Brunetti.

“Bastante bem”, foi a resposta tensa. Ela fez uma pausa e então admitiu: “Não, não tão bem para isso. Eu era a única capaz de conversar com os italianos. Se foi feito, foi feito em inglês”. Matsuko, lembrou Brunetti, havia se formado em Berkeley.

Exasperada, Flavia exclamou: “Brett, quando é que você vai parar de ser estúpida sobre isso e dar uma olhada no que aconteceu? Não me importo sobre você e a garota japonesa, mas você precisa analisar isso com clareza. É a sua vida que está em jogo”. Tão subitamente como havia começado, ela parou, sorveu seu café, mas, encontrando a xícara vazia, largou-a sobre a mesa à sua frente.

Ninguém falou por um longo tempo até que Brunetti por fim perguntou: “Quando a troca teria sido feita?”.

“Depois do encerramento da exposição”, respondeu Brett com a voz trêmula.

Brunetti desviou o olhar para Flavia. Ela permanecia em silêncio, fitando as mãos entrelaçadas frouxamente em seu colo.

Brett deu um suspiro profundo e murmurou: “Está bem. Está bem”. Ela se recostou no sofá e ficou observando a chuva cair sobre o vidro das claraboias. Finalmente, disse: “Ela estava aqui para a embalagem. Tinha de verificar cada objeto antes de a polícia aduaneira italiana lacrar o pacote e depois lacrar o engradado onde as caixas eram colocadas”.

“Ela teria reconhecido uma imitação?”, Brunetti perguntou.

A resposta de Brett demorou a vir. “Sim, teria notado a diferença.” Por um momento, ele achou que ela ia acrescentar alguma coisa, mas não o fez. Ela observava a chuva.

“Quanto tempo deve ter levado para eles embalarem tudo?”

Brett ponderou por alguns instantes e respondeu: “Quatro dias? Cinco?”.

“E depois o quê? Para onde foram os engradados?”

“Foram mandados de avião para Roma pela Alitalia, mas foram retidos ali por mais de uma semana por causa de uma greve no aeroporto. Dali, foram para Nova York, e ficaram mais uma vez retidos, dessa vez pela aduana americana. Finalmente, colocaram-nos numa linha aérea chinesa e rumaram de volta para Beijing. Os lacres nos engradados eram checados cada vez que eles eram colocados ou tirados de um avião, e guardas ficavam com eles enquanto estavam nos aeroportos estrangeiros.”

“Quanto tempo levou desde que eles saíram de Veneza até chegarem a Beijing?”

“Mais de um mês.”

“Quanto tempo passou até a senhora os ver de novo?”

Ela se remexeu no sofá antes de responder, mas ainda sem olhar para ele. “Eu já lhe disse, não antes deste inverno”.

“Onde a senhora estava quando elas estavam sendo embaladas?”

“Já lhe disse. Em Nova York.”

Flavia interrompeu: “Comigo. Estava fazendo minha estreia no Met. A noite de abertura foi dois dias antes de a exposição fechar aqui. Pedi a Brett para ir comigo, e ela foi”.

Brett finalmente desviou o olhar da chuva e fitou Flavia. “E deixei Matsuko encarregada da expedição.” Ela recostou a cabeça de novo no sofá e levantou a vista para as claraboias. “Fui para ficar uma semana em Nova York e fiquei três. Depois voltei a Beijing para esperar o carregamento. Quando ele não chegou, voltei a Nova York e providenciei sua liberação pela aduana americana. Mas aí”, ela prosseguiu, “decidi ficar em Nova York. Liguei para Matsuko e disse a ela que me atrasaria, e ela se prontificou a ir a Beijing e inspecionar a coleção quando finalmente voltasse à China.”

“Era função dela verificar os objetos no embarque?”, perguntou Brunetti.

Brett fez que sim.

“Se estivesse na China”, perguntou Brunetti, “a senhora mesma teria desembalado a coleção?”

“Acabei de lhe dizer isso”, disparou Brett.

“E teria notado a substituição então?”

“Claro.”

“Viu alguma das peças antes deste inverno?”

“Não. Quando voltei para a China, elas desapareceram em algum tipo de limbo burocrático por seis meses, depois foram colocadas em exposição num armazém, e por fim foram enviadas para os museus que as haviam emprestado originalmente.”

“E foi aí que notou que elas tinham sido trocadas?”

“Foi, e foi então que escrevi a Semenzato. Cerca de três meses atrás.” Sem nenhum aviso, ela levantou a mão e a desceu com força sobre o braço do sofá. “Sacanas”, ela disse, com a voz rouca de raiva. “Sacanas nojentos.”

Flavia posou uma mão sobre o seu joelho para acalmá-la. “Brett, não há nada que você possa fazer a esse respeito.”

Sem alterar a voz, Brett se virou para ela. “Não é a sua carreira que acabou, Flavia. As pessoas irão ouvir você cantar não importa o que você faça, mas eles acabaram de destruir os dez últimos anos de minha vida.” Ela se calou por um momento e depois acrescentou, mais calma: “E toda a de Matsuko?”.

Quando Flavia tentou objetar, ela continuou: “Acabou. Quando os chineses descobrirem algum dia sobre isso, jamais me deixarão voltar. Sou responsável por aquelas peças. Matsuko trouxe os papéis de Beijing com ela, e eu os assinei quando voltei a Xian. Verifiquei que estavam todas lá, na mesma condição em que haviam deixado o país. Devia ter estado lá, devia ter inspecionado todas elas, mas deixei que ela fosse no meu lugar porque estava em Nova York com você, ouvindo você cantar. E isso vai custar minha carreira”.

Brunetti olhou para Flavia, viu o rubor que tomava conta do seu rosto ao som da raiva crescente de Brett. Ele viu a linha graciosa que seu ombro e braço formavam com ela ali sentada virada para Brett, estudou a curva de seu pescoço e seu maxilar. Talvez ela merecesse uma carreira.

“Os chineses não precisam saber isso”, ele disse.

“O quê?”, perguntaram ambas.

“A senhora contou a seus amigos que fizeram os testes o que eram as amostras?”, perguntou a Brett.

“Não, não contei. Por quê?”

“Então parece que somos as únicas pessoas que sabem disso. Claro, a menos que tenha contado a alguém na China.”

Ela balançou a cabeça de um lado para o outro. “Não, não contei a ninguém. Só a Semenzato.”

Flavia a interrompeu nesse ponto e disse: “E duvido que tenhamos que nos preocupar que ele tenha dito a alguém exceto para a pessoa a quem ele as vendeu”.

“Mas eu preciso contar a eles”, insistiu Brett.

Em vez de olhar para ela, Flavia e Brunetti se entreolharam por cima da mesa, compreendendo instantaneamente o que poderia ser feito, e foi só com muita força de vontade que cada um resistiu ao impulso de murmurar “americanos”.

Flavia resolveu explicar as coisas a ela. “Desde que os chineses não saibam, nada aconteceu com a sua carreira.”

Para Brett foi como se Flavia não tivesse falado. “Eles não podem manter essas peças em exposição. Elas são falsas.”

“Brett”, perguntou Flavia, “há quanto tempo elas voltaram para a China?”

“Quase três anos.”

“E ninguém notou que não eram autênticas?”

“Não”, concordou Brett.

Nesse ponto, Brunetti se intrometeu. “Então, é improvável que alguém note. Ademais, a substituição pode ter acontecido em qualquer momento nos últimos quatro anos, não é?”

“Mas nós sabemos que não foi”, insistiu Brett.

“É exatamente isso, cara.” Flavia resolveu tentar lhe explicar de novo. “Afora as pessoas que roubaram os vasos, nós somos as únicas pessoas que sabem disso.”

“Isso não faz nenhuma diferença”, disse Brett, a voz de novo crescendo para a raiva. “Além disso, mais cedo ou mais tarde alguém vai perceber que elas são falsas.”

“E quanto mais tarde”, explicou Flavia com um sorriso largo, “menos provável que alguém associe você a isso.” Ela fez uma pausa para permitir que a ficha caísse, depois acrescentou: “a menos que você queira jogar fora um trabalho de dez anos”.

Durante um longo momento, Brett não disse nada, mantendo-se sentada enquanto os outros a observavam ponderar sobre o que fora dito. Brunetti estudava suas feições, sentindo que podia ler o jogo entre razão e emoção. Quando ela ia começar a falar, ele disse subitamente: “Claro, se descobrirmos quem matou Semenzato, é provável que consigamos recuperar os vasos originais”. Ele não tinha maneira de saber se isso era verdade, mas havia observado o rosto de Brett e sabia que ela estava prestes a recusar a ideia de permanecer em silêncio.

“Mas eles ainda teriam de voltar à China, e isso é impossível.”

“Nem um pouco”, interrompeu Flavia, e soltou uma risada franca. Ao perceber que Brunetti seria mais receptivo, virou-se para ele para explicar. “As master classes.”

A resposta de Brett foi instantânea. “Mas você disse não, você rejeitou.”

“Isso foi no mês passado. O bom de ser uma prima donna é que eu posso mudar de ideia. Você mesma me disse que eles me dariam um tratamento régio se eu aceitasse. Eles dificilmente vasculharão minhas malas quando eu chegar no aeroporto de Beijing, não com o ministro da Cultura ali para me encontrar. Sou uma diva, por isso eles esperam que eu viaje com onze malas. Eu detestaria desapontá-los.”

“E se abrirem as malas?”, perguntou Brett, mas não havia nenhum temor disso na sua voz.

A resposta de Flavia foi imediata. “Se não me falha a memória, um de nossos ministros de Estado foi apanhado com drogas em algum aeroporto da África, e não deu em nada. Com certeza, na China, uma diva deve ser bem mais importante que um ministro de Estado. Além disso, é com a sua reputação que estamos preocupados, não com a minha.”

“Fale sério, Flavia”, disse Brett.

“Estou falando. Não tem absolutamente nenhuma chance de eles revistarem minha bagagem, ao menos não quando eu estiver chegando. Você me disse que eles nunca revistaram as suas, e você entra e sai da China há anos.”

“Há sempre uma chance, Flavia”, disse Brett, mas era audível para Brunetti que ela não acreditava nisso.

“Há mais chance, pelo que você me contou sobre a concepção chinesa de manutenção, que meu avião caia, mas isso não é razão para não ir. E tem mais: eu poderia estar interessada em ir. Isso talvez me dê algumas ideias sobre Turandot.” Brunetti achou que ela havia terminado, mas então ela acrescentou: “Mas por que estamos perdendo tempo falando nisso?”. Ela fitou Brunetti, como se o considerasse responsável pelos vasos desaparecidos.

Brunetti se surpreendeu ao notar que não tinha ideia de se ela estava falando sério sobre tentar levar os vasos de volta para a China. Ele falou para Brett: “Seja como for, a senhora não pode dizer nada agora. A pessoa que matou Semenzato não sabe o que nos contou, não sabe se conseguimos estabelecer um motivo para o seu assassinato. E quero manter as coisas assim”.

“Mas o senhor veio aqui e foi ao hospital”, disse Brett.

“A senhora disse que eles não eram venezianos. Poderia ser qualquer um: um amigo, um parente. E eu não fui seguido.” Era fato. Somente um nativo poderia ter sucesso seguindo uma pessoa pelas ruas estreitas da cidade; só ele conheceria as paradas bruscas, as esquinas ocultas, os becos sem saída.

“Então, o que devo fazer?”, perguntou Brett.

“Nada”, ele respondeu.

“E o que isso significa?”

“Apenas isso, nada. Aliás, seria sábio se a senhora saísse da cidade por algum tempo.”

“Não estou certa se quero levar este rosto a algum lugar”, disse ela, mas falou com humor, um bom sinal.

Virando-se para Brunetti, Flavia disse: “Tentei convencê-la a ir comigo a Milão”.

Como bom jogador de equipe, Brunetti perguntou: “Quando vai?”.

“Segunda-feira. Já disse a eles que vou cantar na quinta à noite. Eles marcaram um ensaio com piano para a terça à tarde.”

Ele se virou para Brett. “A senhora vai?” Ela não respondeu, e ele acrescentou: “Acho que é uma boa ideia”.

“Vou pensar nisso”, foi o máximo que Brett disse, e ele decidiu deixar as coisas nesse pé. Se ela viesse a ser convencida, seria por Flavia e não por ele.

“Se resolver que vai, por favor me avise.”

“Acha que há algum perigo?”, perguntou Flavia.

Brett respondeu a pergunta antes dele. “Provavelmente haverá menos perigo se eles pensarem que eu falei com a polícia. Assim eles não precisam me impedir de fazê-lo.” Depois, para Brunetti: “Está certo, não está?”.

Ele não tinha o hábito de mentir, nem mesmo para mulheres. “Sim, temo que sim. Se os chineses forem notificados sobre as peças falsas, quem matou Semenzato terá mais uma razão para tentar silenciar a senhora. Eles saberão que a advertência não a silenciou.” Ou, percebeu, eles tentariam calá-la permanentemente, mas preferiu não dizer nada sobre isso.

“Maravilha”, disse Brett. “Eu posso contar aos chineses e salvar meu pescoço, mas arruinar minha carreira, ou ficar quieta, salvar minha carreira e aí só preciso me preocupar com o meu pescoço.”

Flavia se inclinou sobre a mesa e apoiou a mão sobre o joelho de Brett. “É a primeira vez que você parece você mesma desde que tudo isso começou.”

Brett sorriu em resposta, e disse: “Nada como o medo da morte para despertar uma pessoa, não é?”.

Flavia se recostou na cadeira de novo e perguntou: “Acha que os chineses estão envolvidos nisso?”.

Brunetti não era menos propenso que os demais italianos a acreditar em teorias conspiratórias, o que significava que frequentemente as via mesmo na mais inocente das coincidências. “Não acredito que a morte de sua amiga tenha sido acidental”, disse a Brett. “Isso significa que eles têm alguém na China.”

“Sejam ‘eles’ quem forem”, Flavia interrompeu, com forte ênfase.

“O fato de eu não saber quem foi não significa que não existam”, disse Brunetti, virando-se para ela.

“Justamente”, concordou Flavia, e sorriu.

Para Brett, ele disse: “É por isso que acho melhor que saia da cidade por algum tempo”.

Ela fez um aceno vago com a cabeça, não de assentimento. “Se for sair, eu o informarei.” Não era nenhuma promessa de boa-fé. Ela se recostou mais uma vez e apoiou a cabeça no encosto do sofá. Acima deles, a chuva continuava martelando.

Ele voltou a atenção para Flavia, que fez um sinal para a porta com os olhos, e depois um pequeno gesto significativo com o queixo, dizendo-lhe que era hora de partir.

Ele percebeu que havia pouca coisa mais para dizer e se levantou. Brett, ao vê-lo, puxou os pés de debaixo do corpo e começou a se levantar.

“Não, não se incomode”, disse Flavia, levantando-se e caminhando para o hall de entrada. “Eu o acompanho.”

Ele se curvou e apertou a mão de Brett. Nenhum deles disse nada.

À porta, Flavia pegou a mão dele e a apertou calorosamente. “Obrigada”, foi tudo que ela disse, e segurou a porta enquanto ele saía e começava a descer os degraus. O barulho da porta ao fechar abafou o som da chuva.


18

 

 

 

 

Mesmo tendo tranquilizado Brett de que não fora seguido, Brunetti olhou para os dois lados antes de virar para a Calle della Testa, procurando vislumbrar alguém de quem pudesse se lembrar ter visto ao entrar. Ninguém lhe pareceu familiar. Ele enveredou para a direita, mas depois se recordou de alguma coisa que lhe disseram quando estivera na área, anos antes, procurando pelo apartamento de Brett.

Ele dobrou à esquerda e caminhou para a primeira grande rua transversal, a Calle Giacinto Gallina, e ali encontrou o que acabara de se lembrar de sua primeira visita: a banca de revistas que ficava na esquina, na frente da escola que dava para a rua que era a principal artéria da vizinhança. E, como se ela não tivesse se movido desde que a vira pela última vez, encontrou a signora Maria sentada no banquinho alto dentro da banca, o torso envolto num cachecol tricotado à mão que dava pelo menos três voltas em torno do seu pescoço. Seu rosto estava vermelho, fosse de frio ou de um brandy matinal, talvez ambos, e o cabelo curto parecia ainda mais branco com o contraste.

“Buon giorno, signora Maria”, disse ele, sorrindo para a mulher acomodada atrás dos jornais e revistas.

“Buon giorno, comissário”, ela respondeu, tão naturalmente como se ele fosse um velho cliente.

“Signora, já que sabe quem eu sou, provavelmente sabe por que estou aqui.”

“L’americana? ”, ela perguntou, mas não era de fato uma pergunta.

Ele sentiu um movimento às suas costas; de repente, uma mão foi esticada e apanhou um jornal de uma das pilhas na frente de Maria, estendendo uma nota de dez mil liras. “Diga para sua mãe que o encanador virá às quatro esta tarde”, disse Maria, entregando o troco.

“Grazie, Maria”, disse a jovem, e se afastou.

“O que posso fazer pelo senhor?”, Maria perguntou.

“A senhora deve ver todo mundo que passa por aqui.” Ela fez que sim. “Se avistar alguém zanzando na vizinhança que não devia estar aqui, será que poderia ligar para a questura?”

“Claro, comissário. Estou de olho nas coisas desde que ela voltou para casa, mas não vi ninguém.”

De novo uma mão, esta claramente masculina, foi esticada diante de Brunetti e puxou um exemplar de La Nuova. Ela desapareceu por alguns instantes, e retornou com uma nota de mil liras e alguns trocados, que Maria pegou com um murmurado “grazie”.

“Maria, viu o Piero?”, perguntou o homem.

“Ele está na casa da sua irmã. Disse que vai esperar você lá.”

“Grazie ”, disse o homem, e se afastou.

Ele viera à pessoa certa. “Se ligar, pergunte por mim”, disse, tirando da carteira um de seus cartões para lhe entregar.

“Tudo bem, dottor Brunetti”, ela disse. “Tenho o número. Ligarei se notar alguma coisa.” Ela ergueu uma mão num gesto amigável, e ele notou que as pontas de suas luvas de lã estavam cortadas, deixando os dedos nus para fazer troco.

“Posso lhe oferecer alguma coisa, signora?”, ele perguntou, indicando com a cabeça o bar que ficava na esquina oposta.

“Um café ajudaria contra o frio”, ela respondeu. “Un cafe corretto”, sugeriu, e ele fez que sim. Se passasse a manhã toda neste frio maldito, também gostaria de uma dose de grapa no seu café. Ele tornou a agradecer e foi até o bar, onde pagou pelo café corretto e pediu que o entregassem à signora Maria. Ficou claro, pela resposta do barman, que esse era o procedimento padrão na vizinhança. Brunetti não conseguiu se lembrar se havia um ministro da Informação no atual governo; se não houvesse, a signora Maria era uma candidata nata ao cargo.

Na questura, ele foi direto ao escritório e, surpreendentemente, não o encontrou nem tropical nem ártico. Por alguns instantes, alimentou a fantasia de que o sistema de calefação tivesse enfim sido reparado, mas aí um uivo de vapor escapando do radiador embaixo da janela pôs fim a ela. A explicação, percebeu, estava no grosso maço de papéis sobre a sua escrivaninha. A signorina Elettra os devia ter colocado ali recentemente, aberto a janela por alguns instantes, e depois a fechara antes de sair.

Ele pendurou o sobretudo atrás da porta e foi para a escrivaninha. Sentou-se, pegou os papéis e começou a folheá-los. O primeiro era uma cópia dos extratos bancários de Semenzato, remontando a quatro anos. Brunetti não tinha a menor ideia de qual era a remuneração do diretor do museu e ficou curioso em descobri-lo, mas reconhecia o extrato bancário de um homem rico quando o via. Grandes depósitos haviam sido feitos, sem nenhuma regularidade aparente; da mesma maneira, quantias de cinquenta ou mais milhões haviam sido sacadas, de novo, sem padrão aparente. Por ocasião de sua morte, o saldo de Semenzato era de duzentos milhões de liras, uma quantia enorme para se manter numa conta de poupança. A segunda página do extrato observava que ele também tinha o dobro dessa quantia investido em títulos do governo. Uma esposa rica? Boa sorte no mercado de ações? Ou alguma outra coisa?

As páginas seguintes listavam telefonemas internacionais feitos do número do seu escritório. Havia inúmeros, mas, de novo, sem nenhum padrão que Brunetti pudesse discernir.

As três últimas páginas eram cópias dos recibos de cartão de crédito de Semenzato dos últimos dois anos, e deles Brunetti conseguiu extrair uma ideia das passagens de avião que ele havia comprado. Ele deu uma olhada rápida na lista, espantando-se com a frequência e a distância das viagens. O diretor de museu, ao que parecia, passava um fim de semana em Bangcoc tão naturalmente como alguém iria à sua casa de praia, ia a Taipei por três dias e parava em Londres para pernoitar na volta para Veneza. Uma cópia dos extratos de seus dois cartões de crédito acompanhava o itinerário e dava prova de que Semenzato não fazia nenhuma economia quando viajava.

Embaixo desses, ele encontrou um maço de cópias de fax preso no alto por um clipe. Todos se relacionavam a Carmello La Capra. Na primeira folha, a signorina Elettra havia rabiscado a lápis a observação: “Homem interessante, este”. O pai de Salvatore, assim parecia, não tinha meios de sustentação visíveis; isto é, não parecia ter nenhum trabalho ou emprego fixo. Mas, em sua declaração de renda dos últimos três anos, registrara sua profissão como “consultor”, um termo que, somado ao fato de que ele era de Palermo, devia fazer disparar as campainhas de alarme na mente de Brunetti. Seu extrato bancário indicava que grandes transferências haviam sido feitas para suas várias contas em moedas interessantes, alguém diria, suspeitas: pesos colombianos, escudos equatorianos e rupias paquistanesas. Brunetti encontrou cópias do documento de venda do palazzo que La Capra havia adquirido dois anos antes; ele devia ter pagado em dinheiro, pois não constava nenhuma retirada correspondente de suas contas.

Não só a signorina Elettra obtivera cópias dos extratos bancários de La Capra, mas conseguira também cópias de seus recibos de cartão de crédito tão completas como as de Semenzato. Ciente do tempo que se levava para obter essa informação pelos canais legais, Brunetti não teve outra escolha senão aceitar o fato de que ela o devia estar fazendo extraoficialmente, o que decerto significava ilegalmente. Ele passou por cima desse fato e continuou lendo. Sotheby’s e a bilheteria do Metropolitan Opera em Nova York, Christie’s e Covent Garden em Londres, e a Sydney Opera House, aparentemente na volta de um fim de semana em Taipei. La Capra se hospedara, é claro, no Oriental em Bangcoc, onde tinha ido, assim parecia, para um fim de semana. Vendo isso, Brunetti repassou de novo os papéis até encontrar a lista das viagens de Semenzato e os recibos de seus cartões de crédito. Ele colocou os papéis lado a lado: La Capra e Semenzato haviam passado as mesmas duas noites no Oriental. Brunetti separou os papéis e colocou as folhas separadas em duas colunas verticais sobre a escrivaninha. Em pelo menos cinco ocasiões, Semenzato e La Capra estiveram numa cidade estrangeira nas mesmas datas, frequentemente se hospedando no mesmo hotel.

Os caçadores sentiriam esse surto de excitação quando viam as primeiras pegadas na neve ou escutavam um farfalhar nas árvores as suas costas e se viravam para ver uma agitação fulgurante de asas? La Capra e seu novo palazzo, La Capra e suas compras na Sotheby’s, La Capra e suas viagens ao Oriente e ao Oriente Médio. A trajetória de sua vida se cruzava repetidamente com a de Semenzato, e Brunetti suspeitou que a razão estava em seu interesse partilhado em coisas de grande beleza e preço maior ainda. E Murino? Quantos objetos sua loja fornecera para a nova casa do signor La Capra?

Ele resolveu descer e agradecer a signorina Elettra em pessoa, dizendo para si que não faria nenhuma inquisição sobre a fonte de suas informações. A porta da sua sala estava aberta, e ela estava sentada atrás da escrivaninha, digitando no computador, a cabeça virada de lado para observar a tela. Ele notou que as flores do dia eram rosas vermelhas, ao menos duas dúzias delas, flores que proclamavam amor e saudade.

Ela sentiu a presença dele, fitou-o, sorriu e parou de digitar. “Buon giorno, comissário”, disse. “Como posso ajudá-lo?”

“Vim lhe agradecer, bravissima Elettra”, disse ele. “Pelos papéis que deixou na minha mesa.”

Ela sorriu pelo uso do seu primeiro nome, como se visse nisso um tributo, não uma liberdade. “Ora, não foi nada, Coincidências interessantes, não é?”, perguntou, sem tentar disfarçar a satisfação de tê-las notado.

“Sim. E os registros telefônicos? Conseguiu?”

“Eles os estão cruzando para ver se eles ligaram um para o outro. Arranjei os registros do telefone do signor La Capra em Palermo e também das linhas de telefone e fax que mandou instalar aqui. Disse a eles para checarem qualquer ligação que pudesse ter vindo da casa ou do escritório de Semenzato, mas isso vai levar um pouco mais de tempo e provavelmente só estará pronto amanhã.”

“Devemos tudo isso ao seu amigo Giorgio?”, perguntou Brunetti.

“Não, ele está em Roma numa espécie de programa de treinamento. Por isso liguei e disse que o vice-questore Patta precisava da informação imediatamente.”

“Eles perguntaram para o que era?”

“Claro, senhor. O senhor não gostaria que eles dessem esse tipo de informação sem a autorização apropriada, gostaria?”

“Não, claro que não. E o que disse a eles?”

“Que era secreto. Um assunto de governo. Isso fará eles trabalharem mais depressa.”

“E se o vice-questore descobrir? E se eles mencionarem para ele, disserem que você usou o seu nome?”

O sorriso dela ficou ainda mais cálido. “Oh, disse a eles que ele teria que negar qualquer conhecimento do assunto, por isso não gostaria que isso fosse mencionado a ele. Ademais, receio que estejam bastante acostumados a fazer coisas assim, checar telefones privados e manter registros das ligações que as pessoas fazem.”

“Sim, eu também”, concordou Brunetti. Temia que também fosse mantido um registro sobre o que algumas pessoas diziam nesses telefonemas, um surto de paranoia que provavelmente compartilhava com boa parte da população, mas não se deu ao trabalho de mencionar isso à signorina Elettra. Em vez disso, perguntou: “Alguma chance de podermos consegui-los hoje?”.

“Vou ligar para eles. Talvez esta tarde.”

“Me trará se chegarem, signorina?”

“Claro”, ela respondeu, e voltou ao seu teclado.

Ele foi até a porta, mas antes de alcançá-la se virou, esperando capitalizar a intimidade dos últimos minutos. “Signorina, me desculpe a pergunta, mas sempre fiquei curioso sobre por que resolveu trabalhar aqui. Não são todos que desistem de um emprego na Banca d’Italia.”

Ela parou de digitar, mas manteve os dedos pousados sobre as teclas. “Oh, eu queria uma mudança”, respondeu casualmente e voltou a atenção para sua digitação.

E o peixe escapou, Brunetti falou para si ao sair do escritório dela e voltar para o seu. O calor havia ficado tropical na sua ausência, por isso abriu as folhas da janela por alguns minutos, segurando-as entreabertas para impedir a entrada da chuva, e depois as fechou e voltou para sua mesa.

La Capra e Semenzato; o homem misterioso do Sul e o diretor do museu. O homem com gostos caros e dinheiro para satisfazê-los. Eles formavam um par interessante. Que outros objetos o signor La Capra teria em sua posse, e onde eles seriam encontrados em seu palazzo ? A restauração estaria concluída e, neste caso, quais mudanças teriam sido feitas? Isso era fácil de descobrir; tudo que ele precisava era ir até a prefeitura e pedir para ver as plantas. Claro, era possível que aquilo que visse nelas e o que fora realmente feito não tivessem uma semelhança muito grande, mas para descobrir a verdade ele só precisava saber quais inspetores municipais tinham assinado os documentos finais, e teria uma ideia bastante boa da proximidade dessa relação.

Restava a questão de quais objetos poderiam estar no palazzo recém-restaurado, mas isso exigia um tipo de resposta diferente. Um juiz que emitisse um mandado de busca com base em recibos de hotel para as mesmas datas não existia em Veneza, uma cidade onde pallazzi como os de La Capra eram vendidos por sete milhões de liras o metro quadrado.

Ele resolveu tentar primeiro os meios oficiais, o que significava um telefonema para o outro lado da cidade, para o escritório do catasto, onde ficavam registradas todas as plantas, projetos e transferências de propriedade. Levou algum tempo até chegar ao escritório certo, e a sua ligação ficou pipocando entre funcionários públicos desinteressados que, mesmo antes de Brunetti ter a chance de explicar o que queria, tinham absoluta certeza de que era outro escritório que poderia lhe fornecer a informação. Algumas vezes, tentou falar em veneziano, certo de que o uso do dialeto facilitaria as coisas, tranquilizando a pessoa na outra ponta da linha de que não era apenas um agente de polícia, mas, sobretudo, um nativo de Veneza. As primeiras três pessoas com quem falou, aparentemente não venezianas, responderam todas as perguntas dele em italiano, e a quarta enveredou por um linguajar sardo absolutamente indecifrável até Brunetti ceder e falar em italiano. Isso, porém, não lhe rendeu o que queria, mas finalmente o transferiu para o escritório certo.

Ele sentiu uma onda de alegria quando a mulher que atendeu ao telefone falou no mais puro veneziano — e, o que é melhor, com o mais forte dos sotaques de Castello. Esqueça o que Dante disse sobre o toscano ser doce na boca. Não, esta era a língua capaz de deleitar.

Durante a longa espera até a burocracia se decidir a atendê-lo, ele resolveu abandonar todas as esperanças de conseguir uma cópia dos planos, e por isso pediu o nome da firma que fizera as restaurações. Brunetti reconheceu o nome, Scattalon, e sabia que estava entre as melhores e mais caras empresas da cidade. Aliás, eram eles que detinham o contrato mais ou menos eterno para conservar o palazzo de seu sogro contra as devastações igualmente eternas do tempo e da maré.

* * *

Arturo, o filho mais velho de Scattalon, estava no escritório, mas não se dispôs a discutir com a polícia assuntos de um cliente. “Lamento, comissário, mas isso é informação sigilosa.”

“Eu só queria uma ideia geral de quanto custou o trabalho, talvez arredondado para os dez milhões mais próximos”, explicou Brunetti, sem entender por que uma informação dessas pudesse ser sigilosa ou de algum modo privada.

“Lamento, mas isso é absolutamente impossível.” O som na outra ponta da linha desapareceu, e Brunetti imaginou que Scattalon estava cobrindo o bocal com a mão para falar com alguém ao seu lado. Um instante depois, ele reapareceu. “O senhor terá de trazer um mandado judicial para lhe revelarmos uma informação dessas.”

“Ajudaria se o meu sogro ligasse e perguntasse a seu pai sobre isso?”, perguntou Brunetti.

“E quem é o seu sogro?”, perguntou Scattalon.

“O conde Orazio Falier”, disse Brunetti, saboreando, pela primeira vez na vida, o som opulento de cada sílaba enquanto elas escoavam fluentemente de sua língua.

De novo, o som do outro lado ficou abafado, mas Brunetti ainda podia ouvir o rumor surdo de vozes masculinas. O telefone foi pousado numa superfície dura, ele ouviu ruídos no fundo, e depois outra voz falou: “Buon giorno, dottor Brunetti. O senhor precisa desculpar meu filho. Ele é novo no negócio. Um bacharel, por isso talvez não esteja familiarizado com o ramo ainda”.

“Claro, signor Scattalon. Entendo perfeitamente.”

“Qual informação disse que precisava, dottor Brunetti?”, perguntou Scattalon.

“Gostaria de ter uma estimativa aproximada de quanto o signor La Capra gastou na restauração do seu palazzo.”

“Claro, dottore, claro. Vou só pegar a pasta.” O telefone foi pousado de novo, mas Scattalon voltou rapidamente. Ele disse que não sabia qual fora o preço de compra original, mas estimava que, durante o último ano, sua companhia havia cobrado ao menos quinhentos milhões de La Capra, incluindo mão de obra e materiais. Brunetti supôs que esse era o preço “in bianco”, o preço oficial que seria declarado ao governo sobre gastos e receitas. Ele não conhecia Scattalon o suficiente para lhe perguntar sobre isso, mas era seguro dizer que boa parte — ou talvez a maior parte — do trabalho fora paga “in nero”, extraoficialmente, e por uma tarifa mais barata, desobrigando Scattalon de ter que declará-la como rendimento e ser obrigado a pagar impostos. Brunetti considerou uma suposição segura a de que poderia somar mais quinhentos milhões de liras, se não para Scattalon, para outros trabalhadores e despesas que teriam sido pagos “in nero”.

Quanto ao que realmente fora feito no palazzo, Scattalon foi mais franco. Telhado e tetos novos, reforço estrutural com vigas de aço (e a multa paga por isso), todas as paredes despojadas até o tijolo original e novamente rebocadas, novos encanamentos e fiação, um sistema completo de calefação, condicionamento de ar central, três novas escadas, pisos de tacos nos salões centrais, e janelas de vidro duplo por toda parte. Mesmo não sendo um especialista, Brunetti podia calcular que a obra teria custado imensamente mais que a soma que Scattalon havia mencionado. Bem, isso era entre Scattalon e o fisco.

“Achei que ele estava planejando uma sala onde pudesse colocar sua coleção”, inventou Brunetti. “O senhor trabalhou nisso, numa sala para quadros ou”, e nesse momento ele especulou enquanto fazia uma pausa, “cerâmica?”

Depois de uma pequena hesitação durante a qual Scattalon deve ter considerado seus deveres com La Capra e suas obrigações com o conde, ele disse: “Havia uma sala no terceiro andar que poderia servir como uma espécie de galeria. Colocamos vidros à prova de bala e grades de ferro em todas as janelas”, prosseguiu Scattalon. “Fica nos fundos do palazzo, e as janelas têm face norte, por isso ela recebe luz indireta, mas as janelas são suficientemente grandes para permitir boa iluminação.”

“Uma galeria?”

“Bem, ele nunca disse isso, mas certamente parece. Apenas uma porta reforçada por aço e ele nos fez cortar alguns nichos na parede. Elas seriam perfeitas para exibir estátuas, desde que fossem pequenas, ou talvez objetos de cerâmica.”

“E quanto a um sistema de alarme? Vocês instalaram um?”

“Não, não instalamos, mas não estamos preparados para esse trabalho. Se ele o fez, foi com uma empresa diferente.”

“Sabe se fez?”

“Não tenho ideia.”

“Que tipo de homem ele lhe parece ser, signor Scattalon?”

“Um homem maravilhoso para se trabalhar. Muito razoável. E muito inventivo. Ele tem um gosto excelente.”

Brunetti entendeu por isso que La Capra era extravagante, provavelmente chegado ao tipo de excentricidade que não ligava para contas ou para examiná-las com atenção.

“Sabe se o signor La Capra está vivendo no palazzo agora?”

“Está. Aliás, ele me ligou algumas vezes para cuidar de detalhes que foram descuidados nas últimas semanas de trabalho.” Ah, pensou Brunetti, a sempre útil voz passiva; os detalhes haviam sido “descuidados”; os operários de Scattalon não tinham cuidado deles. Que coisa maravilhosa era a língua.

“E sabe quais detalhes foram descuidados na sala que chama de galeria?”

A resposta de Scattalon foi imediata. “Eu não a chamei assim, dottor Brunetti. Disse que poderia servir para essa função. E, não, não houve detalhes descuidados ali.”

“Sabe se os seus operários tiveram motivos para entrar naquela sala quando voltaram ao palazzo para os últimos trabalhos?”

“Se não havia nenhum trabalho a fazer na sala, não haveria razão para meus homens entrarem nela, por isso estou certo de que não entraram.”

“Claro, claro, signor Scattalon. Estou certo de que é verdade.” Sua percepção da conversa sugeriu que Scattalon tinha paciência para mais uma pergunta, não mais. “A porta é o único meio de acesso a essa sala?”

“É. Ela e o duto do ar-condicionado.”

“E as grades se abrem?”

“Não.” Um desfecho simples, monossilábico e bastante audível.

“Obrigado pela sua colaboração, signor Scattalon. Eu certamente mencionarei isso ao meu sogro”, concluiu Brunetti, sem dar mais explicações para o fim da conversa do que dera no começo, mas razoavelmente certo de que Scattalon, como a maioria dos italianos, era desconfiado o bastante de qualquer coisa que tivesse a ver com uma investigação policial para não mencioná-la a qualquer um, ainda menos a um cliente que poderia não lhe ter pagado tudo o que devia.


19

 

 

 

 

Ele ficou imaginando se o signor La Capra seria mais um daqueles homens bem protegidos que estavam entrando em cena com uma frequência inquietante. Ricos, mas com uma riqueza sem raízes — ao menos nenhuma que fosse rastreável —, eles pareciam estar se mudando da Sicília ou da Calábria para o norte, imigrantes em sua própria terra. Durante anos, pessoas da Lombardia e do Veneto, as partes mais afluentes do país, se consideraram livres de la piovra, o polvo de muitos tentáculos em que se transformara a Máfia. Era tudo roba dal Sud, coisa do Sul, aqueles assassinatos, os atentados à bomba em bares e restaurantes cujos donos se recusavam a pagar proteção, os tiroteios nos centros de cidades. E, teve que admitir, enquanto isso persistira — toda essa violência e sangue, no Sul — ninguém se preocupara muito com ela; o governo dera de ombros como se aquilo fosse apenas um hábito peculiar do meridione. Nos últimos anos, contudo, como uma praga agrícola que não podia ser controlada, a violência se deslocara para o norte: Florença, Bolonha e agora o centro da Itália industrializada estavam infectados e buscavam em vão uma maneira de conter a doença.

Com a violência, com os matadores contratados que baleavam garotos de doze anos como mensagens para seus pais, vieram os homens com as maletas, os patronos de fala mansa da ópera e das artes, com seus filhos educados na universidade, suas adegas e seu desejo ardente de serem vistos como mecenas, bons vivants e cavalheiros, não como os gângsteres que eram, tagarelando e posando com sua conversa de omertà e lealdade.

Por um momento, ele teve que parar e aceitar o fato de que o signor La Capra poderia não ser mais do que aparentava ser: um homem rico que comprara e restaurara um palazzo sobre o Canal Grande. Mas, enquanto pensava nisso, lembrou das impressões digitais de Salvatore La Capra no escritório de Semenzato e viu novamente os nomes daquelas cidades e as datas idênticas em que La Capra e Semenzato as visitaram. Coincidência? Absurdo.

Scattalon dissera que La Capra estava vivendo no palazzo; talvez fosse o momento de um representante dos braços oficiais da cidade saudar o novo morador e ter uma palavrinha com ele sobre a necessidade de segurança nestes tempos tristemente criminosos.

Como o palazzo ficava do mesmo lado do Canal Grande que a sua casa, ele almoçou ali, mas não tomou café, pensando que o signor La Capra seria suficientemente polido para lhe oferecer um.

 

 

O palazzo ficava no fim da Calle Dilera, uma ruazinha que terminava no Canal Grande. Ao se aproximar, Brunetti pôde notar os sinais da restauração. A camada exterior de intonaco rebocado sobre os tijolos que formavam as paredes ainda estava virgem e sem grafites. Somente perto da base ela mostrava os primeiros sinais de desgaste: a acqua alta recente havia deixado sua marca até a altura aproximada do joelho de Brunetti, desbotando o laranja-escuro do reboco, parte do qual já havia começado a se soltar e agora jazia chutado ou varrido para o lado da calle estreita. As grades de ferro continuavam cimentadas nas janelas do quarto pavimento e barravam qualquer possibilidade de entrada. Atrás delas, ele viu as novas venezianas de madeira hermeticamente fechadas. Ele caminhou para o outro lado da rua estreita e inclinou a cabeça para trás para estudar os andares superiores. Todos tinham as mesmas venezianas de madeira verde-escuro, abertas, e vidraças com vidros duplos. As goteiras que pendiam dos novos ladrilhos de terracota do telhado eram de cobre, assim como os canos que conduziam as águas que escoavam por elas. No segundo andar, porém, os canos mudavam para um estanho bem menos tentador e desciam até o chão.

A placa com nome ao lado da única campainha era o próprio bom gosto, uma simples inscrição em itálico com o nome “La Capra”. Ele tocou a campainha e esperou ao lado do interfone.

“Si, chi è ? ”, perguntou uma voz masculina.

“Polizia”, ele respondeu, tendo decidido não perder tempo com sutilezas.

“Si. Arrivo”, disse a voz, e aí Brunetti ouviu um clique metálico. Ele esperou.

Alguns minutos depois, a porta foi aberta por um jovem de terno azul-escuro. Bem barbeado e de olhos escuros, era bonito o bastante para ser um modelo, mas talvez um pouco corpulento demais para fotografar bem. “Si? ”, perguntou, sem sorrir, mas sem parecer menos amistoso que o cidadão médio chamado à porta pela polícia.

“Buon giorno”, disse Brunetti. “Sou o comissário Brunetti, gostaria de falar com o signor La Capra.”

“A respeito do quê?”

“A respeito do crime na cidade.”

O jovem permaneceu onde estava, parado um pouco à frente da porta, e não fez nenhuma menção de abri-la ou permitir que Brunetti entrasse. Ele esperou Brunetti explicar melhor e, quando se tornou óbvio que isto não aconteceria, disse: “Achei que supostamente não deveria haver crime em Veneza”. Seu sotaque siciliano se tornou audível na sentença mais longa, na beligerância do tom.

“O signor La Capra está em casa?”, perguntou Brunetti, cansado de discutir e começando a sentir o frio.

“Está”. O jovem deu um passo para o interior da casa e manteve a porta aberta para Brunetti. Era um grande pátio com um poço circular no centro. À esquerda, pilares de mármore suportavam um lance de escada que conduzia ao primeiro andar do edifício que cercava o pátio por todos os lados. No alto, a escada fazia uma curva, ainda colada à parede externa do edifício, e subia para o segundo e o terceiro andares. Cabeças de leão esculpidas em pedra se alinhavam a distâncias iguais sobre o corrimão de mármore que acompanhava a escada. Enfiados embaixo da escada estavam os sinais da obra recente: um carrinho de mão cheio de sacos de cimento, um rolo de plástico resistente e grandes latas com tintas de cores diferentes escorridas nos lados.

No alto do primeiro lance de degraus, o jovem abriu uma porta e se afastou para Brunetti entrar no palazzo. No momento em que entrou, Brunetti ouviu música vinda dos andares superiores para baixo. Enquanto seguia o jovem escada acima, o som foi ficando mais forte até que ele conseguiu distinguir a presença de uma única voz de soprano no meio dela. O acompanhamento, parecia, eram cordas, mas o som estava abafado, chegando de outra parte da casa. O jovem abriu outra porta e, nesse exato momento, a voz se elevou acima dos instrumentos e permaneceu suspensa em beleza pelo espaço de cinco batidas do coração, e depois recuou para o mundo inferior dos instrumentos.

Eles cruzaram um hall de mármore e começaram a subir uma escada interna; à medida que avançavam, a música ia se tornando cada vez mais alta, a voz mais clara e brilhante, quanto mais se aproximavam de sua fonte. O jovem parecia não ouvir, embora o mundo onde eles se moviam estivesse tomado apenas por aquele som, e nada mais. No topo do segundo lance de escada, o jovem abriu outra porta e de novo recuou, acenando para Brunetti entrar num longo corredor. Ele só poderia gesticular; não havia maneira de Brunetti poder ouvi-lo.

Brunetti entrou na frente, seguindo pelo corredor. O jovem o alcançou e abriu uma porta à direita; dessa vez, ele se curvou quando Brunetti passou diante dele, e fechou a porta às suas costas, deixando Brunetti lá dentro, quase ensurdecido pela música.

Privado de todos os sentidos exceto a visão, Brunetti avistou em quatro cantos grandes painéis revestidos de pano que iam do chão até a altura de um homem, todos virados para o centro da sala. E ali, no centro, um homem repousava numa chaise longue revestida de couro marrom-claro. Com a atenção inteiramente concentrada num pequeno livreto quadrado nas suas mãos, ele não deu sinal de ter notado a entrada de Brunetti. Este parou a pouca distância da porta e ficou observando o homem. E ouvindo a música.

O timbre da soprano era absolutamente puro, um som gerado no coração e aquecido ali até crescer com a aparente facilidade alcançada apenas pelas maiores cantoras, e mesmo assim somente as da mais alta competência. A voz parou numa nota, se elevou acima dela, inchou, flertou com o que ele agora percebia ser um cravo e repousou, então, por um instante, enquanto as cordas conversavam com o cravo. E aí, como se houvesse estado sempre ali, a voz retornou e arrastou as cordas para cima consigo, mais alto e mais alto ainda. Brunetti podia perceber palavras e frases aqui e ali, “disprezzo”, “perchè ”, “per pietá”, “fugge il mio bene”, todas falando de amor, de saudade, de perda. Ópera, com certeza, embora não fizesse ideia de qual.

O homem na chaise longue aparentava estar perto dos sessenta e exibia na cintura uma prova de boa alimentação e vida mansa. Seu rosto era dominado pelo nariz, grande e carnudo — o mesmo nariz que Brunetti vira na foto policial do acusado de estupro, seu filho —, sobre o qual se encavalavam óculos de leitura. Seus olhos eram grandes, límpidos e escuros o bastante para parecerem quase pretos. Ele estava bem barbeado, mas sua barba era tão densa que uma sombra escura se evidenciava nas faces, embora ainda fosse apenas o começo da tarde.

A música chegou a um diminuendo eletrizante e cessou. Foi somente graças ao silêncio que irradiava do aparelho de som que Brunetti tomou consciência de sua qualidade perfeita.

O homem se recostou totalmente na chaise longue, e o livreto caiu de suas mãos no chão ao seu lado. Ele fechou os olhos, a cabeça reclinada, todo o corpo relaxado. Embora não demonstrasse conhecimento da chegada de Brunetti, este não teve dúvida de que o homem estava ciente da sua presença na sala; mais, o comissário tivera a sensação de que o enlevo estético não passara de exibicionismo.

Gentilmente, bem da maneira como sua sogra costumava aplaudir uma ária que a desagradara, mas que lhe diziam ter sido muito bem cantada, ele aplaudiu com as pontas dos dedos algumas vezes, bem de leve.

Como que chamado de volta de reinos onde mortais inferiores não ousavam entrar, o homem na chaise longue abriu os olhos, balançou a cabeça com fingida surpresa e se virou para olhar a fonte da resposta pouco entusiástica.

“Não gostou da voz?”, perguntou La Capra, com verdadeiro espanto.

“Bem, gostei muito da voz”, respondeu Brunetti, e depois acrescentou: “mas a performance pareceu um pouco forçada.”

Se La Capra captou a ausência de pronome possessivo, preferiu ignorá-lo. Pegou o libreto e agitou-o no ar. “A melhor voz de nossa era, a única grande cantora”, ele disse, agitando o pequeno libreto para realçar as palavras.

“A signora Petrelli?”, inquiriu Brunetti.

A boca do homem se retorceu como se ele tivesse mordido alguma coisa desagradável. “Cantando Handel? La Petrelli?”, perguntou com enfado. “Tudo que ela consegue cantar é Verdi e Puccini.” Ele pronunciou os nomes como uma freira diria “sexo” e “paixão”.

Brunetti ia dizer que Flavia também cantava Mozart, mas em vez disso perguntou: “Signor La Capra?”.

Ao som do seu nome, o homem se levantou, subitamente lembrando dos preceitos estéticos de seu dever como anfitrião, e se aproximou de Brunetti, estendendo a mão. “Sim. E quem tenho a honra de conhecer?”

Brunetti pegou sua mão e devolveu o sorriso muito formal. “Comissário Guido Brunetti.”

“Comissário?” Parecia que La Capra jamais ouvira a palavra.

Brunetti fez que sim. “Da polícia.”

Uma confusão momentânea perpassou a face do homem, mas dessa vez Brunetti achou que podia ser uma verdadeira emoção, e não uma produzida para um público. La Capra se recobrou rapidamente e perguntou com muita polidez: “E a que, se me permite, devo a visita, comissário?”.

Brunetti não queria que La Capra suspeitasse de que a polícia o associava à morte de Semenzato, por isso decidiu não falar nada sobre as impressões digitais de seu filho encontradas na cena do assassinato de Semenzato. E até ter uma ideia melhor do sujeito, não queria que La Capra soubesse que a polícia estava curiosa sobre algum vínculo que pudesse existir entre ele e Brett. “Roubo, signor La Capra”, disse Brunetti, e depois repetiu: “Roubo”.

O signor La Capra, num instante, era todo atenção polida. “Sim, comissário?”

Brunetti ofereceu seu sorriso mais simpático. “Vim falar com o senhor sobre a cidade, signor La Capra, já que é um morador novo, e sobre alguns riscos de viver aqui.”

“É muita bondade sua, dottore ”, retornou La Capra, devolvendo-lhe o sorriso. “Mas, por favor, não vamos ficar como duas estátuas. Posso lhe oferecer um café? Já almoçou, não é?”

“Já. Mas um café cairia bem.”

“Ah, então venha comigo. Vamos descer até o meu escritório, peço que nos sirvam.” Dizendo isso, saiu da sala na frente de Brunetti e o guiou escada abaixo. No segundo andar, abriu uma porta e ofereceu a entrada a Brunetti. Livros forravam duas paredes; quadros que precisavam de uma boa limpeza — e parecendo ainda mais caros por isso — enchiam a terceira. Três janelas até o teto davam para o Canal Grande, onde lanchas tocavam seu negócio aquático. La Capra indicou com um gesto que Brunetti ocupasse um divã forrado de cetim e seguiu até uma comprida escrivaninha de carvalho, onde levantou um telefone, apertou um botão e pediu café.

Ele cruzou a sala de volta e se sentou em frente de Brunetti, tomando o cuidado de puxar elegantemente a calça um pouco para cima dos joelhos para não esticá-la ao sentar. “Como disse, é muita consideração sua vir falar comigo, dottor Brunetti. Com certeza agradecerei ao dottor Patta quando o encontrar.”

“É amigo do vice-questore?”, perguntou Brunetti.

La Capra levantou as mãos num gesto apologético, descartando a possibilidade dessa glória. “Não, não tenho essa honra. Mas somos membros do Lion’s Club, e nos encontramos socialmente.” Ele fez uma pausa e depois acrescentou: “Eu certamente lhe agradecerei por sua consideração”.

Brunetti fez que sim para a sua gratidão, sabendo bem como Patta encararia essa consideração.

“Mas, diga-me, dottor Brunetti, do que é que queria me advertir?”

“Não há nenhuma advertência específica que possa lhe dar, signor La Capra. Eu apenas queria lhe contar que as aparências nesta cidade são enganosas.”

“São?”

“Aparentemente a nossa é uma cidade pacata”, começou Brunetti, e depois se interrompeu para perguntar: “Sabe que somos apenas setenta mil habitantes?”.

La Capra anuiu.

“Assim pareceria, à primeira vista, que esta é uma cidadezinha provinciana sonolenta, que as ruas são seguras.” Nesse momento Brunetti se apressou a acrescentar: “E são; as pessoas continuam seguras em todos os momentos do dia ou da noite”. Ele fez uma pausa e depois falou, como se acabasse de lhe ocorrer: “Elas estão geralmente seguras em suas casas também”.

“Se me permite interrompê-lo, comissário, essa é uma das razões por que escolhi me mudar para cá, para gozar dessa segurança, da tranquilidade que parece restar apenas nesta cidade.”

“O senhor é de...?”, perguntou Brunetti, não obstante o sotaque que borbulhava, por mais que La Capra se esforçasse para mantê-lo sob controle, não deixasse nenhuma dúvida.

“Palermo”, respondeu La Capra.

Brunetti fez uma pausa para assimilar o nome e continuou: “Ainda existe, porém, e é sobre isso que vim lhe falar, ainda existe risco de roubo. Há muitas pessoas ricas na cidade, e algumas, confortadas, talvez, pela aparente paz da cidade, não são tão cuidadosas como deveriam com a segurança que mantêm dentro de suas casas”. Ele correu o olhar em volta e depois prosseguiu com um gracioso gesto de mão. “Posso ver que tem muitas coisas belas aqui.” O signor La Capra sorriu, mas depois rapidamente inclinou a cabeça para aparentar modéstia. “Eu só espero que tenha sido cauteloso o bastante para cuidar de sua melhor proteção”, concluiu Brunetti.

A porta foi aberta atrás dele e o mesmo jovem entrou na sala carregando uma bandeja com duas xícaras de café e um açucareiro de prata apoiado em três delicados pés com garras. Ele parou em silêncio ao lado de Brunetti e esperou enquanto este pegava uma xícara e despejava duas colheres de açúcar nela. Repetiu o processo com o signor La Capra e saiu da sala sem dizer uma palavra, levando a bandeja consigo.

Enquanto mexia o café, Brunetti notou que ele estava coberto por uma fina camada de espuma que só poderia vir das máquinas elétricas de espresso: nada da cafeteirinha Moka Espresso colocada às pressas na boca de trás do fogão da cozinha do signor La Capra.

“Foi muita consideração sua vir me dizer isso, comissário. Temo que seja verdade que muitos de nós veem Veneza como um oásis de paz numa sociedade cada vez mais criminosa.” Nesse ponto, o signor La Capra balançou a cabeça de um lado para outro. “Mas eu lhe garanto que tomei todas as precauções para a minha proteção.”

“Fico satisfeito em saber disso, signor La Capra”, disse Brunetti, pousando xícara e pires numa mesinha com tampo de mármore que ficava ao lado do divã. “Estou certo de que gostaria de ser o mais prudente possível com as coisas belas que tem aqui. Afinal, o senhor deve ter tido muito trabalho para adquirir algumas delas.”

Dessa vez o sorriso do signor La Capra, quando veio, foi discreto. Terminou seu café e se inclinou para pousar xícara e pires ao lado dos de Brunetti. Ele não disse nada.

“Eu seria intrometido se lhe perguntasse que tipo de proteção providenciou, signor La Capra?”

“Intrometido?”, perguntou La Capra, arregalando os olhos de surpresa, “mas como poderia ser? Com certeza, o senhor pergunta apenas em consideração aos cidadãos de Veneza.” Ele mediu o efeito de suas palavras por um momento, e em seguida explicou: “Mandei instalar um alarme contra ladrões. O mais importante, porém, é que tenho um pessoal vinte e quatro horas a meu serviço. Um deles está sempre aqui. Costumo depositar mais confiança na lealdade do meu pessoal que em qualquer proteção mecânica que possa comprar”. Nesse ponto, o signor La Capra elevou a temperatura do seu sorriso. “Talvez isso me faça antiquado, mas acredito nesses valores — lealdade, honra.”

“Com certeza”, disse Brunetti mansamente, mas sorriu para mostrar que compreendia. “O senhor permite que pessoas vejam as outras peças de sua coleção? Se estas”, disse Brunetti, movendo a mão num gesto abreviado que abrangia toda a sala, “são uma indicação, ela deve ser muito impressionante.”

“Ah, comissário, lamento”, disse La Capra com uma leve agitação da cabeça, “mas temo que isso seria impossível neste momento.”

“Sim?”, inquiriu Brunetti polidamente.

“Sabe, a sala onde planejo exibi-las ainda não está acabada de maneira satisfatória para mim. A iluminação, os ladrilhos do piso, mesmo os painéis do teto — nada me deixa satisfeito, por isso eu ficaria embaraçado, sim, realmente embaraçado, em permitir que alguém a visse agora. Mas ficaria feliz em convidá-lo a voltar para ver a minha coleção quando a sala estiver terminada e”, fez uma pausa, procurando a palavra final apropriada, e encontrando-a, “apresentável.”

“É muita bondade sua, signore. Eu planejarei, então, visitá-lo de novo.”

La Capra aquiesceu, mas não sorriu.

“Estou certo de que é um homem muito ocupado”, disse Brunetti, e se levantou. Como era estranho, pensou, um amante da arte ficar reticente em mostrar sua coleção a alguém que mostrava curiosidade ou entusiasmo por coisas belas. Brunetti jamais vira isso acontecer. E, ainda mais estranho, durante sua fala sobre a criminalidade na cidade, La Capra não considerara adequado mencionar nenhum dos dois incidentes que, naquela mesma semana, haviam abalado a calma de Veneza e as vidas de pessoas que, como ele, eram amantes da beleza.

Quando viu Brunetti se levantar, La Capra se ergueu e o acompanhou até a porta. Na verdade, desceu as escadas com ele, atravessou o pátio e o acompanhou até a porta da frente do palazzo. Ele próprio a abriu e segurou para Brunetti sair. Eles apertaram as mãos cordialmente, e o signor La Capra ficou em silêncio diante da porta aberta enquanto Brunetti seguia pela calle estreita para o Campo San Polo.


20

 

 

 

 

A meia hora gasta com La Capra deixou Brunetti relutante sobre o risco de falar com Patta na mesma tarde, mas resolveu voltar à questura assim mesmo para ver se havia mensagens para ele. Duas pessoas tinham ligado: Giulio Carrara, pedindo para Brunetti ligar para ele em Roma, e Flavia Petrelli, dizendo que chamaria de novo mais tarde.

Ele pediu para a telefonista fazer a ligação para Roma e pouco depois estava falando com o maggiore. Carrara não perdeu tempo com amenidades pessoais e partiu direto para Semenzato. “Guido, temos um indício aqui sugerindo que ele estava envolvido em mais coisa do que pensávamos.”

“O que é?”

“Há dois dias, detivemos em Livorno um carregamento de cinzeiros de alabastro provenientes de Hong Kong, a caminho de um atacadista em Verona. A mesma coisa de sempre: ele pega os cinzeiros, cola etiquetas neles e os vende, ‘Made in Italy’.”

“Por que detiveram o carregamento? Isso não parece o tipo de coisa que interessa ao seu pessoal.”

“Um dos nossos nos disse que seria uma boa ideia dar uma olhada mais de perto no carregamento.”

“Por causa do ‘Made in Italy’?”, perguntou Brunetti, ainda sem entender. “Não são os rapazes das finanças que se encarregam desse tipo de coisa?”

“Oh, eles foram pagos”, disse Carrara, descartando a ideia. “Por isso o carregamento estaria seguro até chegar em Verona. Mas é o que descobrimos junto com os cinzeiros que chamou a atenção do nosso homem.”

Brunetti conhecia uma alusão quando a ouvia. “O que vocês encontraram?”

“Conhece Angkor Wat, não é?”

“No Camboja?”

“Se pergunta, é que conhece. Quatro dos engradados continham estátuas tiradas dos templos dali.”

“Tem certeza?” Mal acabara de falar, Brunetti desejou ter formulado a frase de outra maneira.

“Nosso negócio é ter certeza”, disse Carrara, mas apenas como uma explicação simples. “Três das peças foram localizadas em Bangcoc alguns anos atrás, mas elas desapareceram do mercado antes de a polícia de lá poder confiscá-las.”

“Giulio, não entendo como vocês podem estar tão certos de que elas vieram de Angkor Wat.”

“Os franceses fizeram desenhos muito completos dos terrenos do templo quando o Camboja ainda era uma colônia, e de lá para cá boa parte daquilo foi fotografado. Duas estátuas que encontramos tinham sido fotografadas, de modo que temos certeza.”

“Quando as fotos foram feitas?”, perguntou Brunetti.

“Em 1985. Uma equipe de arqueólogos de alguma universidade dos Estados Unidos passou alguns meses lá, fazendo esboços e fotografando, porém aí os combates se aproximaram demais e eles tiveram de sair. Mas obtivemos cópias de todo o trabalho que fizeram. Por isso temos certeza, certeza absoluta, sobre duas das peças, e as outras duas provavelmente vieram da mesma fonte.”

“Alguma ideia do lugar para onde iam?”

“Não. O máximo que temos é o endereço do atacadista em Verona.”

“Vocês já fizeram alguma coisa?”

“Pusemos dois homens vigiando o armazém em Livorno. Grampeamos o telefone de lá e do escritório em Verona.”

Embora Brunetti achasse isso uma iniciativa exagerada para a apreensão de meras quatro estátuas, guardou a ideia para si. “E o atacadista? Sabe alguma coisa sobre ele?”

“Não, ele é novo para nós. Não há nada sobre ele. Nem mesmo o pessoal das finanças tem uma pasta sobre ele.”

“O que vocês acham, então?”

Carrara refletiu por um momento antes de responder. “Eu diria que ele estava limpo. E isso provavelmente significa que alguém retirará as estátuas antes de o carregamento ser entregue.”

“Onde? Como?”, perguntou Brunetti. E acrescentou: “Alguém sabe que vocês abriram os caixotes?”.

“Acho que não. Mandamos a polícia financeira fechar o armazém e armar um grande show da abertura de um carregamento de rendas que estava chegando das Filipinas. Enquanto eles faziam isso, nós demos uma olhada nos cinzeiros, mas fechamos as caixas e deixamos tudo lá.”

“E as rendas?”

“Oh, era o mesmo de sempre. Duas vezes mais que o declarado nos papéis, por isso eles confiscaram o carregamento todo e estão tentando calcular o valor das multas.”

“E os cinzeiros?”

“Ainda estão no armazém.”

“O que vai fazer?”

“Não estou encarregado disso, Guido. É o escritório de Milão que está cuidando do caso. Falei com o encarregado, e ele disse que quer entrar no minuto em que as caixas com as estátuas forem retiradas.”

“E você?”

“Vou deixar pegarem o carregamento e aí tentar segui-los.”

“Se eles pegarem as caixas”, disse Brunetti.

“Mesmo que não peguem, temos equipes vinte e quatro horas no armazém, assim saberemos quando eles fizerem a jogada. Além disso, quem quer que seja enviado para retirar as estátuas não será importante, e provavelmente não saberá muito, exceto onde retirá-las, por isso não faz sentido se apresentar e prendê-los.”

Finalmente, Brunetti perguntou: “Giulio, não é uma manobra complexa demais para quatro estátuas? E você ainda não disse como Semenzato estava envolvido nisso tudo”.

“Não temos uma ideia clara, tampouco, mas o homem que fez o telefonema original nos disse que os caras em Veneza — e ele queria dizer a polícia, Guido — poderiam ficar interessados nisso.” Antes mesmo que Brunetti pudesse interrompê-lo, Carrara prosseguiu: “Ele não quis explicar o que isso significava, mas disse que havia mais carregamentos. Esse era apenas um de muitos”.

“Todos vindos do Oriente?”, perguntou Brunetti.

“Ele não disse.”

“Existe um grande mercado para essas coisas?”

“Não aqui na Itália, mas com certeza na Alemanha, e é muito fácil levar as coisas para lá depois que elas chegaram na Itália.”

Nenhum italiano se daria ao trabalho de perguntar por que os carregamentos não iam diretamente para a Alemanha. Era voz corrente que os alemães viam a lei como uma coisa a ser cumprida, diferentemente dos italianos, que a viam como algo a ser primeiro sondado, e depois evitado.

“E quanto a valor, preço?”, perguntou Brunetti, sentindo-se o veneziano típico ao fazê-lo.

“Tremendo, não pela beleza das estátuas em si, mas pelo fato de terem vindo de Angkor Wat.”

“Elas poderiam ser vendidas no mercado aberto?”, perguntou Brunetti, pensando na sala que o signor La Capra construíra no terceiro andar do seu palazzo e tentando imaginar quantos mais signor La Capra poderia haver.

De novo, Carrara fez uma pausa pensando na maneira de responder a pergunta. “Não, provavelmente não. Mas isso não significa que não haja um mercado para elas.”

“Compreendo.” Era apenas uma possibilidade, mas ele perguntou: “Giulio, você tem a ficha de um homem chamado La Capra, Carmello La Capra? De Palermo”. Ele explicou a coincidência das viagens ao exterior para os mesmos lugares e nas mesmas datas que Semenzato.

Após uma pequena pausa, Carrara replicou: “O nome soa levemente familiar, mas não me vem nada à mente. Me dê uma hora para eu verificar no computador o que temos sobre ele”.

A pergunta de Brunetti fora movida pela mais pura curiosidade profissional. “Quantos vocês têm em seu computador por aí?”

“Montes”, respondeu Carrara com perceptível orgulho. “Temos listagens por nome, por cidade, por século, forma de arte, artista, técnica de reprodução. Você escolhe a obra, diz se foi roubada ou falsificada, temos uma discriminação no computador. O sujeito estaria listado com nome ou algum codinome ou apelido que tenha.”

“O signor La Capra não é o tipo de homem que permitiria um apelido”, explicou Brunetti.

“Ah, um desses, hein? Bem, nós o teremos em ‘Palermo’, de qualquer modo”, e aí Carrara acrescentou, sem necessidade: “Bastante completo, esse arquivo”. Ele fez uma pausa para Brunetti processar a informação e acrescentou: “Tem algum tipo especial de arte em que ele esteja interessado, alguma técnica?”.

“Cerâmica chinesa”, forneceu Brunetti.

“Ah”, disse Carrara num tom longo e crescente. “É daí que o nome veio. Ainda não consigo me lembrar exatamente o que era, mas se a conexão grudou na minha cabeça, ela está no computador. Posso te ligar de volta, Guido?”

“Eu gostaria muito, Giulio.” Depois, levado por uma verdadeira curiosidade, perguntou: “Há alguma chance de você ser enviado a Verona?” .

“Não, acho que não. O pessoal em Milão é o melhor que temos. Eu só iria se estivesse conectado de alguma maneira com alguns dos casos em que estou trabalhando aqui.”

“Tudo bem, então. Me ligue se tiver alguma coisa sobre La Capra. Estarei aqui a tarde toda. E obrigado, Giulio.”

“Não me agradeça até saber o que tenho para lhe dizer”, disse Carrara, mas desligou antes de Brunetti poder responder.

O comissário então perguntou à signorina Elettra se ela havia recebido os registros das ligações telefônicas de La Capra e Semenzato e ficou satisfeito em saber que não só o escritório da Telecom enviara cópias, como ela também descobrira ligações internacionais de um para o outro. “Quer que as leve para o senhor?”

“Quero, obrigado, signorina.”

Enquanto esperava por ela, abriu a pasta sobre Brett e discou o número que constava ali. Deixou o telefone tocar sete vezes, mas não houve resposta. Isso significava que ela havia seguido o seu conselho e saíra da cidade para ir a Milão e ficar lá? Talvez fosse para dizer isso que Flavia havia ligado.

Seu pensamento foi cortado pela chegada da signorina Elettra, hoje num cinza sóbrio; sóbrio, ao menos até ele olhar para baixo e ver as meias pretas profusamente enfeitadas — seriam flores? — e sapatos vermelhos com saltos mais altos do que Paola jamais ousara calçar. Ela veio até a sua mesa e colocou uma pasta marrom diante dele. “Eu fiz um círculo em volta dos telefonemas que correspondem”, explicou.

“Obrigado, signorina. Guardou uma cópia disso?”

Ela fez que sim.

“Bom. Gostaria que pegasse o número da loja de antiguidade de Francesco Murino, em Campo Maria Formosa, na lista telefônica, e visse se há registro de ligações de Semenzato ou La Capra para ele. Gostaria também de saber se ele ligou para algum deles.”

“Tomei a liberdade de ligar para a AT&T em Nova York”, disse a signorina Elettra, “e perguntei se verificariam se algum deles tem um dos cartões de discagem internacional da companhia. La Capra tem. O homem com o qual falei disse que nos enviaria por fax as ligações dele nos últimos dois anos. Eu devo tê-las ainda esta tarde.”

“Signorina, falou pessoalmente com ele?”, perguntou Brunetti, maravilhado. “Em inglês? Um amigo na Banca d’Italia, e inglês também?”

“Claro. Ele não falava italiano, apesar de estar trabalhando na seção internacional.” Brunetti deveria ficar chocado por esse lapso? Porque a signorina Elettra com certeza estava.

“E como foi que veio a falar inglês?”

“Era o que eu fazia na Banca d’Italia, dottore. Estava encarregada de traduzir do inglês e do francês.”

Ele falou antes que pudesse se impedir: “E você saiu?”.

“Não tive escolha, senhor”, ela disse, e depois, notando que ele ficara confuso, explicou: “O homem com quem eu trabalhava me pediu para traduzir uma carta para o inglês para um banco em Johannesburgo”. Ela parou de falar e se inclinou para puxar outro papel. Essa seria toda a explicação que ele iria obter?

“Lamento, signorina, mas temo não ter entendido. Ele pediu que traduzisse uma carta para um banco em Johannesburgo?” Ela fez que sim. “E teve que sair por causa disso?”

Seus olhos se arregalaram. “Bem, é claro, senhor.”

Ele sorriu. “Temo que ainda não entendi. Por que tinha que sair?”

Ela olhou para ele com atenção, como se de repente percebesse que ele não entendia italiano. Muito claramente, ela pronunciou: “As sanções”.

“Sanções?”, ele repetiu.

“Contra a África do Sul, senhor. Elas ainda estavam em vigor então, por isso não tive escolha senão me recusar a traduzir a carta.”

“Você quer dizer as sanções contra o governo deles?”, perguntou.

“Claro, senhor. Elas foram declaradas pela ONU, não foram?”

“Sim, acho que foram. E por causa disso você não faria a carta?”

“Bem, não faz sentido declarar sanções a menos que as pessoas as imponham, não é?”, ela perguntou com perfeita lógica.

“Não, imagino que não. E o que aconteceu em seguida?”

“Oh, ele ficou muito agastado com aquilo. Escreveu uma carta de repreensão. Queixou-se ao sindicato. E ninguém me defendeu. Todos pareciam acreditar que eu devia ter traduzido a carta. Então, não tive escolha senão me demitir. Achei que não podia continuar trabalhando para gente assim.”

“Claro que não”, ele concordou, inclinando a cabeça para a pasta e prometendo que cuidaria que Paola e a signorina Elettra nunca se encontrassem.

“Isso é tudo, senhor?”, ela perguntou, sorrindo para ele, esperando, talvez, que agora ele tivesse compreendido.

“Sim, obrigado, signorina.”

“Trarei o fax assim que ele chegar de Nova York.”

“Obrigado, signorina.” Ela sorriu e saiu da sala. Como foi que Patta a encontrou?

Não havia como duvidar: Semenzato e La Capra haviam se falado pelo menos cinco vezes no último ano; oito, se as ligações que Semenzato fizera para hotéis em vários países estrangeiros nas épocas em que La Capra estava viajando por lá tivessem sido para ele. Claro, poderia se argumentar — e Brunetti não tinha dúvida de que um bom advogado de defesa o faria — que não havia nada de incomum no fato de esses homens se conhecerem. Ambos eram interessados em obras de arte. La Capra poderia ter consultado Semenzato, muito legitimamente, sobre várias questões: proveniência, autenticidade, preço. Ele examinou os papéis e tentou montar um padrão com os telefonemas e as transferências de dinheiro entre as contas dos homens, mas não surgiu nada daí.

O telefone tocou. Ele atendeu e disse seu nome. “Tentei ligar mais cedo para você.” Reconheceu a voz de Flavia imediatamente, notou de novo como seu tom era baixo, como era diferente de sua voz cantando. Mas essa surpresa não foi nada em comparação com o que sentiu ouvindo-a se dirigir a ele no familiar “você”.

“Estava visitando alguém. O que é?”

“Brett. Ela se recusa a ir para Milão comigo.”

“Ela dá algum motivo?”

“Diz alguma coisa sobre não se sentir muito bem para viajar, mas é pura teimosia. E medo. Ela não quer admitir que está com medo dessa gente, mas está.”

“E você?”, ele perguntou, usando “você” e descobrindo como ele soava bem. “Vai partir?”

“Não tenho escolha”, disse Flavia, mas depois se corrigiu. “Não, eu tenho uma escolha, poderia ficar se quisesse, mas não quero. Meus filhos estão vindo para casa e preciso vê-los. E preciso estar no Scala na terça-feira para um ensaio com piano. Já o cancelei uma vez, mas agora disse que cantarei.”

Ele tentou imaginar como tudo aquilo ia se ligar a ele, e Flavia rapidamente lhe disse: “Não acha que poderia falar com ela? Tentar convencê-la?”.

“Flavia”, ele começou, consciente de que era a primeira vez que a chamava pelo primeiro nome, “se não consegue convencê-la a ir, duvido que alguma coisa que eu diga a faria mudar de ideia.” Aí, antes que ela pudesse protestar, acrescentou: “Não, não estou tentando me esquivar. Apenas não acho que funcionaria”.

“E sobre a proteção?”

“Sim. Posso colocar um homem no apartamento com ela.” Quase sem pensar, corrigiu: “Ou uma mulher”.

A resposta dela foi imediata. E zangada. “Só porque escolhemos não ir para a cama com homens não significa que temos medo de ficar no mesmo quarto com um deles.”

O silêncio dele foi tão prolongado que ela finalmente perguntou: “Bem, por que não diz alguma coisa?”.

“Estou esperando você se desculpar pela grosseria.”

Dessa vez, foi Flavia que não disse nada. Enfim, para seu alívio considerável, a voz dela suavizou: “Tudo bem, e por ser rude também. Imagino que tenha me acostumado a intimidar pessoas. E talvez ainda crie caso, sempre achando que insinuam coisas sobre mim e Brett”.

Desculpas concluídas, Flavia voltou à questão inicial. “Não sei se ela pode ser convencida a deixar alguém ficar no apartamento com ela.”

“Flavia, não tenho outra maneira de protegê-la.” De repente, ele ouviu um barulho forte pelo telefone, alguma coisa que soou como maquinário pesado. “O que é isso?”

“Uma lancha.”

“Onde você está?!”

“Na Riva degli Schiavoni.” Ela explicou: “Não queria ligar a você de casa, por isso saí para um passeio.” Sua voz mudou. “Não estou longe da questura. Você tem permissão para receber visitantes durante o dia?”

“Claro”, ele riu. “Sou um dos chefes.”

“Tudo bem se eu passar aí para vê-lo? Odeio falar no telefone.”

“Claro. Venha quando quiser. Venha agora. Preciso esperar um telefonema, mas não faz sentido você ficar andando aí na chuva a tarde toda. Além disso”, acrescentou, sorrindo para si, “está quente aqui.”

“Certo. Pergunto por você?”

“Isso, diga ao guarda na porta que tem uma reunião comigo, e ele a trará até a minha sala.”

“Obrigada. Chegarei num instante.” Ela desligou sem esperar pela despedida dele.

Mal desligou, o telefone tocou de novo. Era Carrara.

“Guido, o seu signor La Capra estava no computador.”

“Estava?”

“Foi a cerâmica chinesa que permitiu encontrá-lo.”

“Por quê?”

“Duas coisas. Havia uma tigela Celadon que desapareceu de uma coleção particular em Londres há cerca de três anos. O homem que eles finalmente prenderam disse que havia sido pago por um italiano para pegar aquela peça específica.”

“La Capra?”

“Ele não sabia. Mas a pessoa que o interrogou disse que o nome La Capra foi usado por um dos intermediários que armaram o negócio.”

“‘Armaram o negócio?’”, perguntou Brunetti. “Simplesmente isso, armaram o roubo de uma única peça?”

“Sim. Isso está ficando cada vez mais comum”, respondeu Carrara.

“E a segunda?”, perguntou Brunetti.

“Bem, dessa só houve rumores. Na verdade, nós a registramos como ‘não confirmado’.”

“O que é isso?”

“Há cerca de dois anos, um negociante de arte chinesa em Paris, um certo Philippe Bernadotte, foi morto num assalto quando estava passeando com seu cachorro numa noite. Sua carteira e suas chaves foram levadas. As chaves foram usadas para entrar em sua casa, mas, curiosamente, nada foi roubado. Apenas seus papéis estavam revirados, e aparentemente alguns foram retirados.”

“E La Capra?”

“O sócio do homem só se lembrou de que, alguns dias antes de ser morto, monsieur Bernadotte havia mencionado uma briga séria com um cliente que o acusara de vender uma peça que sabia ser falsa.”

“O cliente era o signor La Capra?”

“O sócio não sabia. Tudo de que ele se lembrou foi que monsieur Bernadotte se referiu repetidamente ao cliente como ‘a cabra’, mas na ocasião o sócio achou que fosse uma piada.”

“Monsieur Bernadotte e seu sócio seriam capazes de vender uma peça que sabiam ser falsa?”, perguntou Brunetti.

“O sócio, não. Mas parece que Bernadotte estivera envolvido em algumas compras e vendas questionáveis.”

“De acordo com a polícia de roubos de arte?”

“É. O escritório de Paris tinha um registro crescente sobre ele.”

“Mas nada foi tirado da sua casa depois que ele foi morto?”

“Parece que não, mas quem o matou também teve tempo de retirar tudo o que quisesse de seus arquivos e de suas listas de estoque.”

“Então é possível que o signor La Capra fosse a cabra que ele mencionou ao sócio?”

“Assim parece”, concordou Carrara.

“Mais alguma coisa?”

“Não, mas gostaríamos de saber qualquer outra coisa que você tivesse a dizer sobre ele.”

“Vou pedir para a minha secretária te enviar o que conseguimos, e vou te informar de qualquer coisa que descobrirmos sobre ele e Semenzato.”

“Obrigado, Guido.” E Carrara desligou.

O que o conde Almaviva cantava? “E mi farà il destino ritrovar questo paggio in ogni loco! ” Da mesma maneira, parecia ser o destino de Brunetti encontrar La Capra para onde olhasse. De certa forma, porém, Cherubino parecia bem mais inocente que o signor La Capra. Brunetti soubera mais que o suficiente para convencer-se de que La Capra estava envolvido com Semenzato, possivelmente em sua morte. Mas tudo aquilo era circunstancial, não teria o menor valor num tribunal.

Ele ouviu uma batida na porta e exclamou: “Avanti”. Um policial uniformizado abriu a porta e recuou para permitir que Flavia Petrelli entrasse. Quando ela passou diante do policial, Brunetti teve um vislumbre da mão do guarda se movendo numa rápida continência antes de fechar a porta. Brunetti não teve a menor dúvida de quem aquele gesto pretendia honrar.

Ela vestia uma capa de chuva marrom-escuro forrada de pele. O frio do anoitecer dera cores ao seu rosto, que, de novo, estava sem maquiagem. Cruzou rapidamente a sala e apertou a mão que ele estendia. “Então é aqui que trabalha?”, perguntou.

Ele rodeou a escrivaninha e pegou a capa, desnecessária no calor daquele ambiente. Enquanto ela examinava a sala, ele pendurou a capa num cabide atrás da porta. Notou que a parte externa estava molhada, tornou a fitar a visitante e viu que seu cabelo também estava. “Não trouxe um guarda-chuva?”, perguntou.

Inconscientemente, ela passou a mão no cabelo e se surpreendeu de encontrá-lo molhado. “Não, não estava chovendo quando saí de casa.”

“Quando foi isso?”, ele perguntou, cruzando a sala até ela.

“Depois do almoço. Depois das duas, imagino.” Sua resposta foi vaga, sugerindo que ela realmente não conseguia se lembrar.

Ele puxou uma segunda cadeira para o lado da que ficava diante de sua mesa e esperou ela se sentar primeiro. Apesar de tê-la visto algumas horas antes, Brunetti ficou chocado com a mudança de sua aparência. Naquela manhã, ela parecia calma e relaxada, pronta para se unir a ele numa tentativa “italianada” de convencer Brett a pensar na própria segurança. Agora, porém, parecia hirta e tensa, e a tensão se revelava nas rugas em torno de sua boca que, ele tinha certeza, não estavam ali de manhã.

“Como vai a Brett?”, perguntou.

Ela suspirou e girou os dedos de uma mão para o lado num gesto de impotência. “Às vezes é como se eu estivesse falando com um dos meus filhos. Ela concorda com tudo que eu digo, admite que tudo que digo está certo, e aí decide fazer exatamente o que ela quer.”

“Que, neste caso, é o quê?”, perguntou Brunetti.

“Ficar aqui e não ir a Milão comigo.”

“Quando vai partir?”

“Amanhã. Há um voo noturno que chega às nove. Isso me dá tempo para abrir o apartamento e voltar ao aeroporto para me encontrar com as crianças pela manhã.”

“Ela diz por que não quer ir?”

Flavia deu de ombros, como se o que Brett dizia e o que era verdade fossem duas coisas separadas. “Ela diz que não quer ser tocada de sua própria casa, que não vai fugir e se esconder comigo.”

“Essa não é a verdadeira razão?”

“Quem sabe qual é a verdadeira razão?”, ela perguntou com certa raiva. “Para Brett, basta querer fazer alguma coisa ou não querer fazê-la. Ela não precisa de razões ou desculpas. Simplesmente faz o que quer.” Não escapou a Brunetti que apenas outra pessoa com a mesma força de vontade poderia achar essa qualidade tão ultrajante.

Embora ficasse tentado a perguntar a Flavia por que ela viera procurá-lo, Brunetti perguntou, em vez disso: “Existe alguma maneira de convencê-la a ir com você?”.

“Você obviamente não a conhece muito bem”, disse Flavia, em tom seco, mas depois sorriu. “Não, acho que não. Provavelmente seria mais fácil se alguém dissesse para ela não ir; aí ela seria obrigada a fazê-lo, imagino.” Ela balançou a cabeça e repetiu: “Exatamente como os meus filhos”.

“Gostaria que eu falasse com ela?”, perguntou Brunetti.

“Acha que adiantaria?”

Foi a vez de ele dar de ombros. “Não sei. Não tenho muito sucesso com meus próprios filhos.”

Ela ergueu os olhos, surpresa. “Não sabia que tinha filhos.”

“É uma coisa bastante natural num homem da minha idade, não é?”

“É, suponho que sim”, ela respondeu, e ponderou sobre sua próxima observação antes de falar. “É que eu o conheço como um policial, quase como se não fosse uma pessoa real.” Antes que ele pudesse dizê-lo, acrescentou: “Sim, eu sei, e você me conhece como cantora”.

“Bem, não realmente, não é?”, ele perguntou.

“O que quer dizer? Nós nos conhecemos quando eu estava cantando.”

“Sim, mas a performance havia acabado. E, desde então, só a ouvi cantar em discos. E penso que não seja a mesma coisa.”

Ela fitou-o demoradamente, baixou os olhos para seu próprio colo, e depois o encarou de novo. “Se lhe der ingressos para a performance no Scala, você iria?”

“Iria, sim. Com prazer.”

Ela deu um largo sorriso. “E quem você levaria?”

“Minha esposa”, ele disse, simplesmente.

“Ah”, disse ela, com igual simplicidade. Como uma única sílaba podia ser rica. O sorriso desapareceu por um instante, e quando voltou, ainda era amistoso, mas um pouco menos cálido.

Ele repetiu a pergunta: “Gostaria que eu falasse com ela?”.

“Gostaria. Ela confia muito em você, e poderia ouvi-lo. Alguém precisa convencê-la a sair de Veneza. Eu não posso.”

Perturbado pela urgência em sua voz, ele disse: “Não acho que exista realmente um grande perigo se ela ficar aqui. O apartamento é seguro, e ela tem suficiente bom senso para não deixar ninguém entrar. Então há muito pouco risco para ela”.

“Certo”, concordou Flavia com uma lentidão que mostrava o quanto estava pouco convencida disso. Como se houvesse retornado de súbito de um lugar distante e se encontrasse ali de repente, correu o olhar pela sala e perguntou, puxando a gola do suéter de sua garganta: “Ainda precisa ficar aqui por muito tempo?”.

“Não, estou livre agora, se quiser sair. Irei com você para ver se ela me escuta.”

Ela se levantou e foi até a janela, onde ficou parada fitando a fachada coberta de San Lorenzo e depois o canal que corria defronte ao edifício. “É lindo, mas não sei como você aguenta.” Estaria falando do casamento, ele pensou. “Eu consigo aguentar uma semana, mas aí começo a me sentir presa.” Fidelidade? Ela se virou e o encarou. “Mas apesar de todos os inconvenientes, ainda é a cidade mais linda do mundo, não é?”

“De fato”, ele respondeu simplesmente, e entregou-lhe a capa.

Brunetti pegou dois guarda-chuvas no armário encostado na parede e entregou um deles a Flavia quando saíram da sala. Na porta da frente da questura, os dois guardas, que em geral se contentavam em dar a Brunetti um lacônico “Buona notte ”, se colocaram em posição de sentido e bateram continência. Lá fora, a chuva martelava, e a água começara a subir sobre as margens do canal, inundando a calçada. Ele teve que parar para calçar as botas, mas Flavia usava um par de sapatos de couro de salto baixo já encharcados pela chuva.

Ele enganchou o braço no dela e virou para a esquerda. Rajadas ocasionais de vento jogavam chuva em seus rostos, e depois viravam e atacavam a parte de trás de suas pernas. Eles cruzaram com pouquíssimas pessoas, e todas usavam botas impermeáveis, obviamente venezianos que só se arriscaram a sair de casa porque precisavam. Sem um pensamento deliberado, ele evitou as ruas que sabia já alagadas e tomou a direção da Barberia delle Tolle. A uma ponte de distância dela, chegaram a uma calçada baixa aonde a água cinzenta lustrosa chegava à altura do tornozelo. Ele parou, tentando imaginar uma maneira de atravessar Flavia, mas ela largou o seu braço e seguiu em frente, ignorando a água fria que ele podia ouvir esguichando de seus sapatos.

Vento e chuva açoitavam o espaço aberto do Campo SS. Giovanni e Paolo. Numa esquina, uma freira, parada sob o toldo que se agitava frenético na porta de um bar, segurava seu guarda-chuva revirado e inútil. O próprio campo parecia ter encolhido, seu lado distante engolido pelas águas crescentes que transformaram o canal num lago estreito que se espalhava continuamente para fora das margens.

Caminhando depressa, quase correndo, eles atravessaram o campo, chapinhando até a ponte que os levaria à Calle della Testa e ao apartamento de Brett. Do alto da ponte, puderam ver que a água à sua frente chegava à panturrilha, mas nenhum dos dois parou. Quando atingiram a água na base da ponte, Brunetti passou o guarda-chuva para a mão esquerda e segurou o braço de Flavia com a direita. E, quase imediatamente, porque ela tropeçou e caiu para a frente, a impediu de cair na água com a exclusiva força de seu braço quando a puxou para si.

“Porco Giuda”, ela exclamou, endireitando-se ao lado dele. “Meu sapato. Ele saiu.” Os dois ficaram parados fitando a água escura, caçando algum sinal do sapato perdido, mas não conseguiram descobrir. Tateando, ela moveu o pé para um lado e para outro à sua frente, em busca do sapato. Nada. A chuva era torrencial.

“Segure”, disse Brunetti, fechando o seu guarda-chuva e entregando-o a ela. Rapidamente, ele se curvou e a levantou do chão, pegando-a tão de surpresa que ela envolveu seus braços ao redor dele, atingindo-o na parte de trás da cabeça com o cabo do guarda-chuva fechado. Ele cambaleou para a frente, um braço em volta dos ombros dela e o outro embaixo de seus joelhos, recuperou o equilíbrio e seguiu em frente. Ele virou duas esquinas e, chegando à porta do prédio, colocou-a no chão.

Seu cabelo estava ensopado; a chuva escorria por baixo do seu colarinho para o seu corpo. Em certo ponto, enquanto a carregava, ele tinha tropeçado e sentira a água fria subindo até a abertura de sua bota e entrando dentro dela.

Ela abriu rapidamente a porta do edifício e chapinhou pela entrada, onde a água estava tão alta quanto do lado de fora. Ela transpôs a entrada e galgou o primeiro degrau, que estava seco. Ouvindo Brunetti chapinhar na água atrás dela, subiu dois degraus e se virou para ele. “Obrigada.”

Ela se livrou do outro sapato e jogou-o no chão, abandonando-o ali mesmo, e depois começou a subir a escada, seguida de perto por Brunetti. No segundo patamar, eles ouviram a música que escoava pela escada. No alto, diante da porta de metal, ela escolheu uma chave, introduziu-a na fechadura e girou-a. A porta não se mexeu.

Ela tirou a chave, procurou outra e abriu a fechadura no alto da porta, e depois tornou a abrir a primeira fechadura. “É estranho”, disse, virando-se para ele. “Está com tranca dupla.” A ele pareceu bastante sensato que Brett houvesse trancado a porta por dentro.

“Brett”, chamou Flavia enquanto abria a porta. A música trovejou ao encontro deles, mas não Brett. “Sou eu”, chamou Flavia, “Guido está comigo.” Ninguém respondeu.

De pés descalços, pingando água pelo assoalho enquanto andava, Flavia foi até a sala de visitas e depois até os fundos do apartamento para verificar o quarto. Quando voltou, estava pálida. Atrás dela, os violinos cresceram, trompetes ressoaram e a harmonia universal foi restabelecida. “Ela não está aqui, Guido. Ela saiu.”


21

 

 

 

 

Depois que Flavia saiu batendo a porta do apartamento naquela tarde, Brett sentou-se e ficou olhando para as páginas de anotações que cobriam o tampo da sua escrivaninha. Ela examinou gráficos que enumeravam as temperaturas de queima de diferentes tipos de madeira, o tamanho dos fornos desenterrados na China ocidental, os isótopos encontrados nos esmaltes de louças de túmulos da mesma área e uma reconstrução ecológica da flora daquele local dois mil anos atrás. Se interpretasse e combinasse os dados de certa maneira, obtinha determinado resultado acerca da queima das madeiras, mas combinando as variáveis de maneira diferente, sua tese era refutada, era tudo absurdo, e ela devia ter ficado na China, que era o seu lugar.

Essa palavra a fez pensar se algum dia pertenceria àquele lugar de novo, se Flavia e Brunetti poderiam de alguma forma ajeitar tudo isso — ela não conseguiu pensar num termo melhor — para que ela pudesse continuar trabalhando. Empurrou os papéis, irritada. Não fazia sentido terminar o artigo, não se a escritora fosse em breve desacreditada por ter sido usada em uma grande fraude artística. Saiu da escrivaninha e foi parar diante das fileiras de CDs cuidadosamente arrumados, procurando uma música condizente com seu estado de espírito. Nada cantado. Não aquelas gordas cantando sobre amor e perda. Amor e perda. E com certeza não cravo; seu som estridente mexeria com seus nervos. Tudo bem, então, a sinfonia “Júpiter”: no mínimo ela poderia lhe provar que sanidade mental, alegria e amor permaneciam no mundo, era isso.

Ela estava convencida sobre sanidade mental e alegria, e estava começando a acreditar de novo em amor quando o telefone tocou. Ela só atendeu porque pensou que fosse Flavia, que saíra havia mais de uma hora.

“Pronto”, disse, consciente de que era a primeira vez que usava o telefone em quase uma semana.

“Professoressa Lynch?”, inquiriu uma voz masculina.

“Sim.”

“Uns amigos meus lhe fizeram uma visita na semana passada”, disse o homem, a voz bem modulada e calma soando alongada pelos meios tons borrados do sotaque siciliano. Quando Brett não disse nada, ele acrescentou: “Estou certo de que se lembra”.

Ela continuou calada, a mão tensa no telefone e os olhos fechados com a recordação daquela visita.

“Professoressa, achei que poderia lhe interessar saber que sua amiga” — e sua voz abaixou, ironicamente, na palavra — “sua amiga signora Petrelli está conversando com aqueles mesmos amigos meus. Sim, enquanto nós conversamos, a senhora e eu, meus amigos estão conversando com ela.”

“O que você quer?”, perguntou Brett.

“Ah, eu havia esquecido de como vocês americanos são diretos. Ora, gostaríamos de falar com você, professoressa.”

Após um longo silêncio, Brett perguntou: “Sobre o quê?”.

“Oh, sobre arte chinesa, é claro, especialmente sobre algumas cerâmicas da dinastia Han que eu acho que gostaria de examinar. Mas antes de fazermos isso, acho que devíamos discutir sobre a signora Petrelli.”

“Não quero falar com você.”

“Eu temia isso, dottoressa. Foi por isso que tomei a liberdade de pedir à signora Petrelli para se juntar a mim.”

Brett disse a única coisa que conseguiu pensar. “Ela está aqui comigo.”

O homem soltou uma gargalhada. “Por favor, dottoressa, sei o quanto é brilhante, por isso, por favor, não seja estúpida comigo. Se ela estivesse com a senhora, a senhora teria desligado o telefone e estaria chamando a polícia neste exato momento e não conversando comigo.” Ele permitiu que isso fosse assimilado e depois perguntou: “Não estou certo?”.

“Como vou saber que ela está aí com você?”

“Ah, a senhora não vai, dottoressa. Isso é parte do jogo, percebe. Mas a senhora sabe que ela não está aí, e sabe que ela saiu de seu apartamento catorze minutos depois das duas, e seguiu em direção a Rialto. É um dia muito desagradável para fazer um passeio. Está chovendo torrencialmente. Ela já estaria de volta agora. Na verdade, se tenho a ousadia de sugerir, ela deveria estar de volta bem antes disso, não é?” Quando Brett não lhe respondeu, ele repetiu, com voz mais dura: “Não é?”.

“O que você quer?”, perguntou Brett, cansada.

“Assim é melhor. Quero que venha me visitar, dottoressa. Quero que venha agora mesmo, coloque sua capa e saia do seu apartamento. Alguém estará esperando pela senhora lá embaixo, e ele a trará até mim. Assim que fizer isso, a signora Petrelli estará liberada.”

“Onde ela está?”

“Não espera que eu diga, espera, dottoressa?”, ele perguntou, com fingido espanto. “Agora, está disposta a fazer o que eu lhe digo?”

A resposta saiu antes que ela pudesse pensar: “Si ”.

“Muito bem. Muito sábio. Estou certo de que ficará muito contente com essa decisão. Assim como a signora Petrelli. Quando terminarmos de falar, a senhora não vai desligar o telefone. Não quero que faça mais nenhuma ligação. Compreende isso?”

“Sim.”

“Estou ouvindo música no fundo. A ‘Júpiter’?”

“Sim.”

“Qual versão?”

“Abbado”, ela respondeu, com uma sensação crescente de irrealidade.

“Ah, não é uma escolha muito boa, não mesmo”, ele disse rapidamente, sem fazer a menor tentativa de disfarçar sua decepção com o gosto dela. “Os italianos simplesmente não sabem reger Mozart. Bem, podemos discutir isso quando chegar aqui. Talvez possamos ouvir uma performance de Von Karajan. Acredito que é muito superior a essa. Apenas deixe a música tocando por enquanto, pegue sua capa e desça a escada. E não tente deixar uma mensagem porque alguém vai voltar com as suas chaves e dar uma olhada no apartamento, por isso poupe-se desse problema. Compreende?”

“Si ”, ela respondeu vagarosamente.

“Largue o telefone em seguida, pegue a sua capa e saia do apartamento”, ele comandou, sua voz chegando perto, pela primeira vez, do que devia ser seu tom natural.

“Como vou saber se deixou Flavia partir?”, perguntou Brett, lutando para parecer calma.

Dessa vez ele riu. “Você não sabe, sabe? Mas eu lhe asseguro, aliás, lhe dou minha palavra de cavalheiro, que assim que sair do seu apartamento com meus amigos, alguém receberá um telefonema e a signora Petrelli estará livre para partir.” Quando ela não disse nada, ele acrescentou: “Isso é tudo que tem, dottoressa”.

Ela largou o telefone na mesa, caminhou até o hall de entrada e tirou a capa de um grande armário. Voltou à sala, foi até sua escrivaninha e pegou uma caneta. Rapidamente, escreveu algumas palavras num pedacinho de papel e foi até a estante de livros. Olhando para o painel de controle do aparelho de som, apertou o botão “repeat” e depois colocou o pedaço de papel na caixa vazia do CD, fechou-a e encostou-a de pé contra o aparelho. Em seguida, pegou as chaves na mesa ao lado da porta e saiu do apartamento.

Quando abriu a porta principal do prédio, dois homens entraram rapidamente por ela. Ela reconheceu um deles como o mais baixo dos dois homens que a tinham espancado e com um esforço consciente se impediu de se afastar dele. Ele sorriu e estendeu a mão. “As chaves”, pediu. Ela tirou as chaves do bolso e as entregou. Ele desapareceu escada acima e se ausentou por cinco minutos, durante os quais o outro homem manteve os olhos sobre ela e ela observou a primeira onda minúscula de água se infiltrar por baixo da porta, sinalizando a chegada da acqua alta.

Quando ele voltou, seu parceiro abriu a porta e eles saíram para a chuva que engrossava. A chuva estava pesada, mas nenhum deles trouxera guarda-chuva. Rapidamente, um de cada lado dela, alinhando-se com cuidado em fila única quando cruzavam por alguém nas ruas estreitas, eles caminharam para Rialto e subiram a ponte. No outro lado, os dois homens tentaram virar à esquerda, mas a água tinha subido demais ao longo do Canal Grande, por isso tiveram que continuar até o mercado, vazio agora, exceto pelos mais ousados. Eles dobraram à esquerda, subiram na passarela de madeira que havia sido encaixada em seus suportes metálicos e continuaram em direção a San Polo.

Durante a caminhada, ela percebeu como havia sido imprudente. Não tivera confirmação de que o homem que ligara retinha Flavia. Mas, a não ser que a tivesse seguido, como ele poderia saber a hora exata em que Flavia saíra do apartamento e para onde se dirigia? Mas ela também não poderia ter certeza de que ele ou eles a libertariam em troca de sua aquiescência em vê-lo. Era apenas uma chance. Ela pensou em Flavia, recordou a visão dela sentada ao lado da cama quando acordara no hospital, lembrou-se de Flavia no palco no primeiro ato de Don Giovanni, cantando “E nasca il tuo timor dal mio periglio” e se lembrou de outras coisas. Era uma chance; ela a agarrou.

O homem à sua frente tomou a esquerda, saindo da passarela para a água abaixo, rumo ao Canal Grande. Ela a reconheceu, Calle Dilera, lembrou-se de que havia uma lavanderia a seco ali especializada em camurça, e se maravilhou com sua capacidade de pensar em coisas tão triviais numa hora dessas.

Na água que agora chegava a uma altura muito acima de seus tornozelos, eles pararam diante de uma grande porta de madeira. O homem baixo a abriu com uma chave, e ela se viu num pátio aberto, a chuva martelando a superfície da água ali represada. Os dois homens a conduziram pelo pátio, um guiando e o outro seguindo. Eles subiram um lance de escada externa, abriram outra porta e entraram. Ali, foram saudados por um homem mais jovem que fez um gesto de cabeça para eles, sinalizando aos dois que podiam partir. Ele se virou, sem falar, a conduziu por um corredor e subiu uma segunda escada, e depois uma terceira. No alto, virou-se para ela e disse: “Me dê a sua capa”.

Ele foi para trás dela para ajudá-la a desvesti-la. Ela remexia nos botões, os dedos enrijecidos pelo frio e pelo choque, mas por fim conseguiu soltá-los. Ele tirou a capa e casualmente a deixou cair no chão, depois avançou para Brett e a envolveu em seus braços, colocando as palmas da mão em concha sobre os seus seios. Ele forçou seu corpo contra o dela, esfregando-se contra ela ritmicamente, e sussurrou no seu ouvido: “Nunca teve um verdadeiro italiano, eh, angelo mio? Espere só, espere só”.

A cabeça de Brett pendeu frouxamente, e ela sentiu seus joelhos dobrarem. Ela lutou para ficar em pé e perdeu a luta para as lágrimas. “Ah, que beleza”, disse ele por trás dela. “Gosto quando você chora.”

Uma voz falou de dentro. Tão abruptamente quanto a tinha agarrado, ele se afastou dela e abriu a porta a sua frente. Ele ficou de lado para ela entrar sozinha na sala e fechou a porta pelo lado de fora. Ela ficou ali, parada, ensopada, começando a tremer.

Um homem corpulento na faixa dos cinquenta anos permaneceu no centro de uma sala com assoalho de madeira, cheia de estojos de acrílico sobre pedestais revestidos de veludo que os alçavam ao nível dos olhos. Refletores disfarçados nas vigas pesadas do teto iluminavam os estojos, alguns deles vazios. Vários nichos nas paredes brancas estavam igualmente iluminados, e todos pareciam conter objetos de um tipo ou de outro.

O homem se adiantou, sorrindo. “Dottoressa Lynch, é realmente uma honra. Jamais sonhei que teria o prazer de conhecê-la.” Ele parou diante dela, a mão ainda estendida, e continuou: “Gostaria de lhe dizer, antes de tudo, que li seus livros e os achei esclarecedores, especialmente aquele sobre cerâmica”.

Ela não fez nenhum esforço para pegar a mão dele, e ele a baixou, mas não se afastou dela. “Estou muito contente que tenha concordado em vir me visitar.”

“Eu tinha escolha?”, perguntou Brett.

O homem sorriu. “Claro que tinha uma escolha, dottoressa. Sempre temos escolhas. É só quando elas são difíceis que dizemos que não as temos. Mas sempre há uma escolha. A senhora podia ter se recusado a vir, podia ter chamado a polícia. Mas não fez isso, fez?” Ele voltou a sorrir, os olhos se tornando gradualmente calorosos, fosse por bom humor ou por algo tão sinistro que Brett não quis considerar.

“Onde está Flavia?”

“Oh, a signora Petrelli está muito bem, eu lhe asseguro. A última vez que soube dela, estava se afastando da Riva degli Schiavoni, caminhando na direção do seu apartamento.”

“Então não está com ela?”

Ele soltou uma gargalhada. “Claro que não, dottoressa. Nunca estive. Não havia nenhuma necessidade de envolver a signora Petrelli nesse assunto. Além disso, eu jamais me perdoaria se alguma coisa acontecesse com a sua voz. Repare, não gosto de algumas músicas que ela canta”, disse ele com a tolerância dos que têm gostos mais elevados, “mas tenho o mais alto apreço pelo seu talento.”

Brett se virou bruscamente e caminhou para a porta. Ela segurou a maçaneta e a moveu para baixo, mas a porta não abriu. Ela tentou de novo, porém a porta continuou fechada. Enquanto isso, o homem havia atravessado a sala até parar diante de um dos estojos iluminados. Quando ela se virou, viu-o parado ali, olhando para as pequenas peças que estavam dentro do estojo, quase sem notar a presença dela.

“Vai me deixar sair daqui?”, perguntou.

“Gostaria de ver minha coleção, dottoressa?”, ele perguntou, como se ela não houvesse falado ou ele não a tivesse escutado.

“Quero sair daqui.”

De novo, foi como se ela não houvesse falado.

Ele continuou fitando as duas pequenas estatuetas no estojo. “Essas pecinhas de jade são da dinastia Shang, não diria? Provavelmente do período An-yang.” Ele se afastou do estojo e sorriu para ela. “Percebo que isso é bem anterior ao período de sua especialidade, dottoressa, cerca de mil anos, mas estou certo de que está familiarizada com elas.” Ele caminhou até o estojo seguinte e parou diante dele para estudar seu conteúdo. “Olhe só esta dançarina. A maior parte da tinta ainda está aqui; raro numa peça do Han Ocidental. Tem umas lasquinhas na base da manga, mas se a gente a colocar com o rosto meio de lado, bem, não dá para ver, dá?” Ele estendeu a mão e levantou a tampa de acrílico do estojo e a colocou no chão aos seus pés. Cuidadosamente, pegou a estátua, que tinha cerca de trinta centímetros de altura, e atravessou a sala.

Ele parou diante dela e virou a estátua de cabeça para baixo para que Brett pudesse ver as minúsculas lascas na base de uma das mangas. A tinta que cobria a parte superior do vestido ainda estava vermelha, depois de todos aqueles séculos, e o preto da saia ainda reluzia. “Imagino que ela saiu apenas recentemente de um túmulo. Não posso pensar em outra coisa que a tenha preservado com tamanha perfeição.”

Ele endireitou a estátua e permitiu que Brett a olhasse uma última vez, depois tornou a cruzar a sala e a recolocou cuidadosamente sobre o pedestal. “Que ótima ideia era essa, colocar coisas belas, mulheres belas, com o morto.” Ele fez uma pausa para meditar sobre isso, depois acrescentou, enquanto recolocava a tampa: “Imagino que fosse errado sacrificar servos e escravos como acompanhantes na viagem para o outro mundo. Mas ainda assim é uma ideia tão adorável, confere tanta honradez ao morto”. Ele se virou de novo para ela. “Não pensa assim, dottoressa Lynch?”

Ela ponderou se aquilo era algum tipo de show elaborado para assustá-la e convencê-la a fazer alguma coisa que ele desejasse. Estaria fingindo seu grande interesse por aqueles objetos, ou era para ela acreditar que ele estava louco e por isso seria capaz de machucá-la se ela se recusasse a fazer o que ele queria? Mas o que era isso? Ele desejaria apenas que ela admirasse sua coleção?

Brett começou a olhar em volta da sala, vendo realmente os objetos pela primeira vez. Ele agora estava parado diante de um pote do neolítico, decorado com motivo de rã, duas alças pequenas se projetando da parte inferior. A peça estava em condições tão perfeitas que ela se aproximou para examiná-la mais claramente. “Adorável, não é?”, ele perguntou, sociável. “Se vier até aqui, professoressa, eu lhe mostrarei algo de que me orgulho muito.” Ele se deslocou para outro estojo dentro do qual um círculo de jade branco entalhado jazia sobre um painel de veludo negro. “Lindo, não é?”, ele perguntou, observando o objeto. “Creio que vem do período dos Estados Guerreiros, não diria?”

“Sim”, ela respondeu. “Parece que sim, especialmente com esse motivo de animal.”

Ele sorriu com real deleite. “Foi precisamente isso que me convenceu, dottoressa.” Ele olhou de novo para o pingente e depois para Brett. “Não pode imaginar como é gratificante para um amador ter seu julgamento confirmado por uma especialista.”

Ela não era bem uma especialista em artefatos que remontavam ao Neolítico, mas achou melhor não protestar. “O senhor podia ter sua opinião confirmada. Bastaria levá-lo a um negociante ou ao departamento oriental de qualquer museu.”

“Podia, com certeza”, disse ele distraidamente. “Mas prefiro não fazer isso.”

Ele se afastou dela até a outra ponta da sala, onde parou diante de um dos nichos na parede. Dali ele retirou uma longa peça de metal marchetada, com ornatos intricados em ouro e prata. “Eu geralmente não tenho muito interesse por metais”, disse, “mas não pude resistir a esta peça quando a vi.” Ele a estendeu para ela e sorriu quando a americana a pegou e virou para estudar ambos os lados.

“É uma fivela de cinto?”, ela perguntou depois de examinar a peça e constatar que a presilha trazia uma haste que terminava num formato de ervilha. O resto tinha o comprimento de sua mão, achatado e fino como uma lâmina. Uma lâmina.

Ele regozijou-se com o comentário. “Oh, muito bom. Sim, estou certo de que é isso. Existe um no Metropolitan em Nova York, embora eu ache que o trabalho deste aqui é mais fino”, disse, apontando com um dedo grosso para uma curva gravada que corria pela superfície plana. Perdendo o interesse na peça, ele se afastou dela e tornou a atravessar a sala. Ela se virou para o nicho e, mantendo-se de costas para ele, enfiou a fivela de cinto no bolso do casaco.

Quando ele se curvou para outro estojo e ela viu seu conteúdo, os joelhos de Brett afrouxaram de terror, e um calafrio percorreu seu corpo. Porque dentro do estojo estava o vaso com tampa que fora retirado da exposição no Palazzo Ducale.

Ele contornou o estojo e se posicionou do outro lado para que, olhando através das folhas transparentes de acrílico, enxergasse Brett. “Ah, vejo que reconhece o vaso, dottoressa. Glorioso, não é? Eu sempre quis um assim, mas é impossível consegui-los. Como a senhora assinala tão bem em seu livro.”

Ela envolveu os braços em torno do corpo, esperando reter um pouco do calor que lhe fugia com tamanha rapidez. “Está frio aqui”, disse.

“Ah, sim, está, não é? Tenho uns pergaminhos de seda aqui, guardados em gavetas, e não quero me arriscar a aquecer a sala até poder protegê-los numa câmera com calor e umidade controlados. Sendo assim, temo que terá que ficar desconfortável enquanto estiver aqui, dottoressa. Estou certo de que se acostumou a isso na China, a se sentir desconfortável.”

“E com o que seus homens fizeram comigo”, ela disse calmamente.

“Ah, sim, deve me desculpar por isso. Eu lhes disse para adverti-la, mas temo que meus amigos tendem a ser entusiásticos demais no que consideram meus melhores interesses.”

Ela não sabia como, mas tinha certeza de que ele estava mentindo e de que as ordens que havia dado foram diretas e explícitas. “E quanto ao dottor Semenzato, eles também foram enviados para adverti-lo?”

Pela primeira vez, ele a fitou com mal disfarçada aversão, como se ao dizer isso ela estivesse, de alguma forma, diminuindo seu controle absoluto da situação.

“Foram?”, ela insistiu com voz casual.

“Bom Deus, dottoressa, que espécie de homem pensa que sou?”

Ela preferiu não responder.

“Bem, por que não lhe dizer?”, ele perguntou, e sorriu amigavelmente. “O dottor Semenzato era um homem muito assustado. Imagino que isso seja aceitável, mas aí ele se tornou um homem muito ganancioso, e isso não é aceitável. Ele foi bastante tolo para sugerir que as dificuldades que a senhora estava criando lhe rendessem alguma vantagem financeira. Meus amigos, como sugeri, não gostam de ver minha honra comprometida.” Ele franziu os lábios e balançou a cabeça com a lembrança.

“Honra?”, perguntou Brett.

La Capra não explicou. “E aí a polícia veio aqui me interrogar, por isso achei melhor conversar com a senhora.”

Enquanto ele falava, Brett teve um momento crítico de percepção: se ele falava abertamente para ela sobre a morte de Semenzato, então sabia que não teria nada a temer dela. Ela viu um par de cadeiras de espaldar reto encostadas na parede oposta. Caminhou até lá e desabou sobre uma delas. Sentia-se tão fraca que se curvou para a frente e colocou a cabeça entre os joelhos, mas a dor forte nas suas costelas ainda enfaixadas a obrigou a se endireitar, ofegando.

La Capra a fitava. “Mas não vamos falar do dottor Semenzato, não quando temos todos esses belos objetos aqui conosco.” Ele pegou o vaso nas mãos e caminhou na direção dela. Ele se inclinou e o estendeu para ela. “Olhe só isto. E observe a fluidez da linha na pintura, a maneira como os membros se projetam. Podia ter sido pintado ontem, não é? Absolutamente moderno na execução. Absolutamente maravilhoso.”

Ela examinou o vaso, com o qual estava muito familiarizada, e depois fitou o homem.

“Como você fez isso?”, perguntou diretamente.

“Ah”, disse ele, endireitando-se e afastando-se dela, de volta para o estojo, onde recolocou o vaso com cuidado. “Isso são segredos profissionais, dottoressa. Não deve me pedir para revelá-los”, disse, embora ficasse claro que era o que ele mais desejava.

“Foi Matsuko?”, ela perguntou, precisando saber ao menos isso.

“Sua amiguinha japonesa?”, ele disse, sarcasticamente. “Dottoressa, na sua idade já devia saber que não deve misturar vida pessoal com vida profissional, especialmente quando estiver lidando com pessoas mais jovens. Elas não têm a nossa visão do mundo, não sabem separar as coisas como nós sabemos.” Ele parou por alguns instantes, refletindo sobre a profundidade de sua própria sabedoria, e continuou: “Não, elas tendem a levar tudo para o pessoal, a se considerar o centro do universo. E por isso elas podem ser muito, muito perigosas”. Ele sorriu, então, mas não era uma coisa agradável de se ver. “Ou muito, muito úteis.”

Ele atravessou a sala de novo e parou diante dela, encarando-a. “Claro que foi ela. Mas mesmo na época seus motivos não estavam totalmente claros. Ela não queria dinheiro, ficou até ofendida quando Semenzato lhe ofereceu. E por certo não queria ferir a senhora, dottoressa, não mesmo, se isso a conforta. Ela simplesmente não parou para ver a coisa com clareza.”

“Então, por que ela o fez?”

“Oh, no começo, era apenas simples vingança, um caso clássico da amante desprezada querendo descontar na pessoa que a ferira. Não acho que ela tenha compreendido de fato o que tínhamos em mente, a extensão daquilo. Estou certo de que ela acreditava que queríamos apenas uma peça. Aliás, suspeito até que ela esperava que a substituição fosse detectada. Isso levantaria suspeitas sobre a senhora. Afinal, a senhora havia selecionado as peças para a exposição, e, quando as peças voltaram, se a substituição fosse notada, pareceria que a senhora decidira enviar uma falsa em vez de uma original. Foi só mais tarde que ela percebeu a improbabilidade de uma peça falsa já estar no museu de Xian. Mas aí era tarde demais. As peças haviam sido copiadas — devo observar que o trabalho foi feito com despesas consideráveis —, e isso, é claro, tornou ainda mais necessário que elas todas fossem usadas em lugar das verdadeiras.”

“Quando?”

“Durante a embalagem no museu. Foi realmente muito fácil, bem mais fácil do que havíamos pensado. A japonesinha tentou objetar, mas aí era tarde demais.” Ele parou de falar e ficou olhando para longe, recordando. “Acho que foi aí que percebi que mais cedo ou mais tarde ela se tornaria um problema.” Ele sorriu. “E como eu tinha razão.”

“E aí ela teria que ser eliminada?”

“Claro”, disse ele, com a maior simplicidade. “Percebi que não tinha alternativa.”

“O que ela fez?”

“Oh, ela criou alguns problemas aqui, e depois, quando voltou para a China, quando a senhora lhe contou que achava que algumas peças eram falsas, escreveu uma carta para seus pais perguntando-lhes o que devia fazer. Claro, quando ela fez isso, não me restava outra escolha: ela precisava ser eliminada.” Ele inclinou a cabeça para um lado, um gesto que sugeria que iria revelar algo a ela. “Honestamente, fiquei surpreso como foi fácil. Tinha pensado que as coisas seriam difíceis de arranjar na China.” Ele balançou a cabeça de um lado para o outro, lamentando mais um exemplo de poluição cultural.

“Como sabe que ela escreveu a eles?”

“Ora, eu li a carta”, explicou simplesmente, depois parou, corrigindo sua precisão. “Na verdade, li uma tradução da carta.”

“Como conseguiu?”

“Ora, toda a sua correspondência era aberta e lida.” Ele falou quase como uma censura, como se ela devesse saber ao menos isso. “Como conseguiu fazer aquela carta chegar a Semenzato?” A curiosidade dele era real.

“Eu a entreguei a alguém que ia para Hong Kong.”

“Alguém da escavação?”

“Não, um turista que conheci em Xian. Ele ia para Hong Kong e pedi a ele para colocá-la no correio. Sabia que ela chegaria lá mais cedo dessa maneira.”

“Muito esperto, dottoressa. Sim, muito esperto, mesmo.”

Uma onda de frio percorreu seu corpo. Ela tirou os pés, dormentes havia muito, do chão de mármore e os enganchou sobre a travessa inferior da cadeira. A chuva havia ensopado seu suéter, e ela se sentia presa em sua roupa molhada. Foi tomada por uma onda de tremores e fechou os olhos novamente, esperando que passasse. A dor surda que espreitara de seu maxilar durante dias se tornara uma chama ardente, feroz.

Quando abriu os olhos, o homem havia saído do seu lado e estava parado no outro canto da sala, estendendo a mão para outro vaso. “O que vai fazer comigo?”, ela perguntou, lutando para manter a voz uniforme e calma.

Ele cruzou a sala até ela, segurando a tigela com cuidado nas duas mãos. “Acho que esta é a peça mais bela que tenho”, disse, virando-a um pouco para que ela pudesse acompanhar melhor o traço único pincelado no desenho até o outro lado. “Vem da Província de Ch’ing Hai, da ponta da Grande Muralha. Eu diria que ela tem cerca de cinco mil anos, não acha?”

Brett olhou detidamente para ele e viu um homem de meia-idade, corpulento, segurando uma tigela pintada de marrom nas mãos. “Eu lhe perguntei o que vai fazer comigo”, repetiu, interessada apenas nisso, não na tigela.

“Hum?”, ele perguntou distraidamente, fitando-a por um instante e depois de novo a vasilha. “Com você, dottoressa?” Ele deu um curto passo para a esquerda e pousou a vasilha no topo de um pedestal vazio. “Temo não ter tido tempo de pensar nisso ainda. Estava tão interessado em que visse minha coleção.”

“Por quê?”

Ele permaneceu onde estava, bem diante dela, estendendo com delicadeza um dedo para virar a vasilha um milímetro ora numa direção, ora em outra. “Porque tenho tantas coisas belas e porque não posso mostrá-las a ninguém”, disse ele com um pesar tão palpável que não podia ser fingido. Ele se virou para ela e ofereceu um sorriso amistoso de explicação. “Alguém que conte, quero dizer. Veja, se eu as mostrar a pessoas que não entendem nada de cerâmica, não posso esperar que apreciem a beleza ou a raridade do que veem.” Ele parou nesse ponto, esperando que ela compreendesse seu dilema.

Ela compreendeu. “E se as mostrar a pessoas que conhecem arte ou cerâmica chinesa, elas saberão de onde as peças vieram?”

“Oh, como você é esperta”, disse ele, erguendo as mãos separadas com verdadeiro deleite pela rapidez dela. Sua expressão se fechou. “É difícil lidar com pessoas que não compreendem. Elas veem estas coisas gloriosas”, e nesse momento ele fez um movimento com a mão direita abarcando tudo na sala, “como potes e vasilhas, mas não têm ideia da sua beleza.”

“Isso não as impede de trazê-las para você, impede?”, ela perguntou, não fazendo nenhuma tentativa de disfarçar o sarcasmo.

Ele ignorou o tom e respondeu: “Não, não impede. Eu lhes digo para pegar, e eles pegam para mim”.

“Você também lhes diz como pegá-las?” Falar estava ficando cada vez mais custoso para ela. Ela queria acabar com aquilo.

“Isso depende de quem está trabalhando para mim. Às vezes, tenho que ser muito explícito.”

“Você teve que ser ‘explícito’ com os homens que enviou para mim?”

Ela o viu começar a mentir, mas então ele mudou de assunto. “O que acha da coleção, dottoressa?”

Ela de repente perdeu a paciência. Fechou os olhos e recostou a cabeça no encosto da cadeira. “Eu lhe perguntei o que pensa da coleção, dottoressa”, ele repetiu, a voz ligeiramente elevada. Devagar, mais por exaustão que obstinação, Brett rolou a cabeça de um lado para outro, os olhos fechados.

Com as costas da mão e de modo inteiramente casual, mais com a intenção de advertência que de punição, o golpe dele atingiu o lado da cabeça de Brett na altura dos olhos. Sua mão fez pouco mais que roçar o rosto dela, mas a força foi suficiente para separar novamente os ossos em cicatrização do maxilar, que rejuntaram de novo com um espasmo de dor que explodiu em seu cérebro, expulsando todo pensamento, toda consciência.

Brett escorregou para o chão e permaneceu imóvel. Ele a fitou por alguns instantes, depois recuou para o pedestal. Estendeu a mão, pegou a tampa de acrílico, colocou-a cuidadosamente sobre a tigela, fitou de novo a mulher que jazia inconsciente no chão e saiu da sala.


22

 

 

 

 

Brett estava na China, na escavação, na tenda montada para os arqueólogos. Ela dormia, mas o saco de dormir estava mal colocado, e o chão era duro embaixo dela. O aquecedor a gás havia apagado de novo, e o frio agudo da estepe do alto platô roía seu corpo. Ela se recusara a ir à embaixada em Beijing para receber a injeção contra encefalite, e agora estava doente, sentindo a dor de cabeça lancinante que era o primeiro sintoma, torturada pelos calafrios que vinham à medida que o cérebro inchava com a infecção que poderia ser fatal. Matsuko, vacinada quando estava em Tóquio, a advertira da doença.

Se ao menos tivesse outro cobertor, se Matsuko lhe trouxesse algo para a dor de cabeça... Ela abriu os olhos esperando encontrar a parede lateral de lona da tenda. Em vez dela, porém, viu pedra cinzenta embaixo do seu braço, depois uma parede, e então se lembrou.

Ela fechou os olhos e ficou em silêncio, tentando ouvir se ele ainda estava na sala. Levantou a cabeça e julgou que a dor era suportável. Seus olhos confirmaram o que seus ouvidos já lhe haviam dito: ele saíra, e ela estava sozinha na sala com a coleção.

Ela se ajoelhou e, usando a cadeira como apoio, levantou-se. Sua cabeça latejava, e a sala girou ao seu redor por um momento, mas ela se aguentou em pé e fechou os olhos até as coisas se firmarem. A dor irradiava de trás de suas orelhas e se dirigia ao meio de sua cabeça.

Quando abriu os olhos, notou que uma das paredes estava repleta de janelas protegidas por grades de ferro. Ela se obrigou a atravessar a sala para experimentar a porta, mas ela estava trancada. No início, a dor golpeava a cada passo, mas depois ela se obrigou a relaxar os músculos do maxilar, e a dor cedeu um pouco. Ela retornou às janelas, puxou uma cadeira para debaixo de uma delas e, muito devagar, subiu. Além da janela, avistou o telhado da casa do outro lado da rua. Para a esquerda, mais telhados, e à direita, o Canal Grande.

A chuva era torrencial, e ela de repente tomou consciência da roupa molhada grudada no corpo. Desceu cambaleante da cadeira e olhou em volta da sala, procurando em vão alguma fonte de calor. Sentou na cadeira, envolveu os braços em torno do corpo e tentou combater os torturantes tremores de frio. Agarrou os flancos com as mãos, e a mão esquerda sentiu alguma coisa dura. A fivela de cinto. Por cima do tecido ensopado, ela o cobriu com a mão, como se fosse um talismã, e a pressionou com firmeza de encontro ao corpo.

Um intervalo de tempo transcorreu; ela não teve ideia de quanto. A luz que entrava pelas janelas arrefeceu, mudando da opacidade plúmbea do dia para a penumbra da noite que chegava. Ela sabia que devia haver luzes na sala, mas estava sem forças para procurar os interruptores. Além disso, a luz não mudaria nada; somente o calor ajudaria.

Em algum momento, ouviu uma chave na porta, e depois ela se abriu, permitindo que o homem que a espancara entrasse. Atrás dele entrou o jovem que a conduzira pela escada, mas ela não conseguiu se lembrar quando isso acontecer.

“Professoressa”, disse o mais velho, e sorriu, “espero que possamos continuar nossa conversa agora.” Ele se virou e falou com o mais jovem, num dialeto que ela achou que fosse siciliano, e que era tão corrido e cheio de sons suprimidos que ela não compreendeu nada. Juntos, os dois cruzaram a sala até ela, e Brett não pôde resistir ao impulso de se levantar da cadeira e colocá-la entre ela e eles.

O mais velho parou perto do estojo que continha a tigela marrom e voltou sua atenção para ela. O jovem parou ao seu lado, seus olhos indo e voltando para ele e para Brett.

De novo, com a delicadeza de connoisseur que caracterizava cada movimento seu quando manuseava as peças de sua coleção, ele retirou a tampa de acrílico e levantou a tigela. Como um sacerdote conduzindo uma oferenda para algum altar distante, atravessou a sala na direção dela, carregando-a com as duas mãos. “Como estava dizendo quando fomos interrompidos, acho que ela é da Província de Ch’iang-hai, embora possa perfeitamente ser de Kansu. Você compreende que estou impedido de enviá-la para uma opinião especializada?”

Brett levantou o queixo e olhou para ele, depois desviou o olhar para o jovem que havia aparecido, um acólito, ao seu lado. Ela fitou a tigela, percebeu sua beleza e desviou o olhar, desinteressada.

“Você pode ver, bem aqui”, disse ele, virando a tigela minimamente, “onde os anéis foram rejuntados. Estranho, não é, que ela se pareça tanto com um pote moldado num torno. E o desenho. Sempre me interessei pela maneira como os povos primitivos usavam formas geométricas, quase como se eles de alguma forma previssem o futuro e soubessem que voltaríamos a elas.” Ele desviou a atenção da vasilha com alguma relutância e fitou Brett. “Como disse, é a peça mais bela da minha coleção. Talvez não a mais preciosa, mas ainda assim é a que eu mais amo.” Ele deu uma risadinha disfarçada, como se partilhasse uma piada com uma colega. “E o que tive que fazer para consegui-la.”

Ela queria fechar os olhos, tapar os ouvidos e não escutar aquela loucura. Mas recordou-se da última vez que o ignorara, e olhou para ele emitindo um grunhido significativo, incapaz de se arriscar a falar, antevendo a dor que isso lhe causaria.

“Um colecionador de Florença. Um velho muito obstinado. Eu o conheci por causa de uns negócios em comum; quando ele soube que eu me interessava por cerâmica chinesa, me levou até sua casa e mostrou sua coleção. Bem, quando vi esta peça, me apaixonei por ela, sabia que não seria feliz até possuí-la.”

Ele levantou a tigela um pouco mais e virou-a de novo, estudando o fino traçado de linhas negras que corria por sua lateral e se emaranhava perto da borda e para o centro da tigela. “Perguntei a ele se a venderia para mim, mas ele se recusou, disse que não estava interessado em dinheiro. Eu lhe ofereci mais, fiz-lhe uma oferta muito superior ao que a tigela valia, e aí dobrei a oferta quando ele recusou.” Tirou os olhos da tigela e olhou para Brett, tentando reconstruir e assim explicar sua indignação. Balançou a cabeça e voltou a atenção para a tigela. “Ele ainda recusou. Então não tive escolha. Ele simplesmente não me deixou alternativa. Eu havia feito uma oferta mais que generosa, mas ele não aceitou. E assim tive que usar outros métodos.”

Ele a fitou, desejando claramente que ela perguntasse o que ele fora obrigado a fazer. E enquanto imaginava o que ocorrera, Brett de repente percebeu que tudo aquilo não era nenhum script que ele houvesse preparado para justificar suas ações; não era uma cena que estava construindo para levá-la a assumir um papel. Ele acreditava nisso. Havia desejado uma coisa, ela lhe fora negada, e assim ele fora obrigado a tomá-la. Simples assim. E, no mesmo instante, ela percebeu onde estava: atravessada no caminho dele, impedindo-o de possuir a cerâmica que tivera tanto trabalho e tantas despesas para tirar da exposição no Palazzo Ducale. E soube então que ele ia matá-la, apagar sua vida com a mesma casualidade com que a estapeara quando ela se recusara a responder sua pergunta. Involuntariamente, ela gemeu, mas ele tomou aquilo como uma pergunta e prosseguiu.

“Eu queria arranjar a coisa para parecer um simples roubo, mas se a tigela fosse surrupiada, ele saberia que eu estava envolvido. Pensei em tomá-la e depois queimar a casa.” Ele fez uma pausa e suspirou com a lembrança. “Mas eu simplesmente não poderia. Ele tinha muitas coisas belas ali. Eu não poderia vê-las destruídas.” Ele abaixou a tigela e mostrou a ela a superfície interna. “Olhe só este círculo, e a maneira como as linhas desviam em volta dele, realçando o padrão. Como eles sabiam fazer isso?” Ele se endireitou e murmurou: “Simplesmente milagroso. Milagroso”.

O jovem não dizia nada, parado ao lado dele e ouvindo cada palavra, acompanhando cada gesto com olhos inexpressivos.

O mais velho suspirou de novo e depois continuou: “Deixei claro que era para ser executado quando ele estivesse sozinho. Não via nenhuma razão para sua família sofrer. Ele estava voltando de carro de Siena uma noite e...”. Fez uma pausa, procurando a maneira mais delicada de enunciar. “E sofreu um acidente. Coisa mais infeliz. Perdeu o controle do carro na autoestrada. O carro incendiou e queimou ao lado da estrada. Na confusão da sua morte, levou algum tempo para alguém notar que a tigela havia sumido.” Sua voz ficou mais suave quando ele passou para o modo filosófico. “Fico pensando se isso tem algo a ver com o amor que tenho por esta tigela, o fato de que tive tanto trabalho para consegui-la.” Depois, de maneira mais mundana: “A senhora não pode imaginar como estou contente de enfim poder mostrá-la a alguém capaz de apreciá-la”. Com um olhar para o jovem, ele acrescentou: “Todo mundo aqui tenta compreender, compartilhar meu entusiasmo, mas eles não devotaram anos ao estudo dessas coisas, como eu. E como a senhora, professoressa”.

Seu sorriso se tornou absolutamente benigno. “Gostaria de segurá-la, dottoressa? Ninguém mais tocou nela desde que eu, bem, desde que eu a adquiri. Mas estou certo de que a senhora apreciaria a sensação de tê-la em suas mãos, a perfeição da curva no fundo. Ficará admirada como ela é leve. Eu sempre lamento não ter os recursos científicos apropriados. Queria verificar sua composição com um espectroscópio e descobrir do que é feita, talvez isso pudesse explicar por que ela parece tão leve. Poderia me dizer sua opinião?”

Ele sorriu de novo e estendeu a tigela para ela. Ela obrigou seu corpo enrijecido a se afastar da parede e a estender as mãos para pegar a tigela que ele lhe oferecia. Cuidadosamente, ela a segurou com a palma da mão virada para cima, e observou o seu centro. As linhas negras, pintadas por alguma mão graciosa, morta agora havia mais de cinco milênios, desciam para o fundo, enrodilhando-se para cima aparentemente ao acaso para contornar espaços brancos que encerravam pequenos círculos negros, transformando-os em olhos bovinos. A tigela quase vibrava de vida, com o espírito cômico do oleiro. Ela notou que as linhas não corriam com espaçamentos homogêneos, que lacunas e variações proclamavam a falível humanidade do artista que a pintara. Através de lágrimas involuntárias, ela viu a beleza de um mundo ao qual se juntaria. Ela pranteava a própria morte e o fato de esse homem, que ainda estava parado diante dela, possuir uma beleza tão perfeita.

“É fabulosa, não é?”, ele perguntou.

Brett levantou o olhar da tigela e fitou os olhos dele. Ele eliminaria sua vida com a mesma indiferença com que cuspiria um caroço de cereja. Ele faria isso e continuaria vivendo em posse dessa beleza, feliz com a plena posse desses tesouros, sua maior alegria. Ela deu um pequeno passo para longe dele e levantou os braços num gesto hierático, elevando a tigela à altura de seu rosto. Aí, muito lentamente, com consciente deliberação, afastou as mãos e deixou a tigela cair no chão de mármore onde ela se espatifou, espirrando fragmentos em seus pés e pernas.

O homem deu um bote para a frente, mas não a tempo de salvar a tigela. Quando seu pé pisou sobre alguns fragmentos, esfarelando-os, ele cambaleou para trás, esbarrando no jovem e agarrando-se a ele para se apoiar. Seu rosto empalideceu quase tão rapidamente quanto se avermelhara. Ele murmurou alguma coisa que Brett não compreendeu, e depois virou de frente para ela. Ele libertou uma das mãos e deu um passo na direção dela, mas o jovem atrás dele envolveu-o pelo tórax com um braço, puxando-o para trás. Ele falou suave mas ferozmente no ouvido do mais velho, segurando seu braço com firmeza e impedindo-o de atingir Brett: “Aqui não. Não perto de todas as suas preciosidades”. O mais velho rosnou uma resposta que ela não ouviu. “Eu cuidarei disso”, disse o jovem. “Lá embaixo.”

Enquanto eles falavam, as vozes se alteando progressivamente, Brett enfiou a mão direita no bolso e a apertou em volta da ponta estreita da fivela de cinto: a outra extremidade era pontuda, com bordas finas o bastante para cortar. Enquanto os observava e ouvia, suas vozes começaram a enfraquecer e flutuar até ela. Ao mesmo tempo, percebeu que não estava mais sentindo frio; muito ao contrário, estava quente, ardendo de calor. Eles continuavam conversando, mas agora as vozes eram urgentes e apressadas. Ela disse a si mesma para ficar ali, segurando a lâmina, mas, de repente, o esforço foi demasiado, e ela se deixou cair de novo na cadeira. Sua cabeça pendeu e ela viu os detritos despedaçados no chão sem se lembrar do que era.

Muito tempo depois, ouviu a porta abrir e fechar com estrondo e, quando ergueu os olhos, apenas o jovem permanecia no recinto. Depois de um lapso de tempo, ele a agarrou pelo braço e a colocou de pé com um puxão. Ela seguiu com ele porta afora e escada abaixo, a dor explodindo em sua cabeça a cada degrau, depois descendo por mais escadas, atravessando o pátio aberto que ainda era varrido pela chuva em direção a uma porta de madeira instalada no nível do pátio.

Ainda segurando seu braço, embora ela quase risse pela inutilidade disso, ele girou a chave e abriu a porta. Ela olhou para dentro e viu degraus baixos descendo para a escuridão reluzente. Desde o primeiro degrau, a escuridão era palpável, e na superfície ela vislumbrou o reflexo de luz na água.

O homem girou para ela e agarrou seu braço. Ele a atirou para a frente, fazendo com que ela cruzasse a porta, os pés buscando automaticamente os degraus mais abaixo. No primeiro, seu pé afundou na água, mas o segundo estava coberto de algas e musgo, e ela escorregou. Teve tempo de erguer os braços diante de si e depois mergulhou para a frente nas águas que continuavam subindo.


23

 

 

 

 

Tudo que Flavia queria era fazer cessar o som da música que ecoava grotescamente pelo apartamento. Quando se aproximou da estante, a beleza transcendental crescia ondulante pelos instrumentos de sopro madeira e violinos, mas ela só queria o conforto do silêncio. Olhou para o complicado aparelho estéreo, envolvida impotente no som que se derramava dele, e amaldiçoou-se por nunca ter se interessado pelo seu funcionamento. Mas nesse momento a música cresceu com uma beleza ainda maior, toda a harmonia foi proclamada, e a sinfonia terminou. Ela se virou, aliviada, para Brunetti.

Justo quando ela começava a falar, os acordes iniciais da sinfonia estrondearam de novo pela sala. Ela rodopiou, enfurecida, e golpeou com a mão o aparelho de som, como se quisesse silenciá-lo pelo susto. Como a fina tampa de plástico que contivera o CD estava encostada na frente do aparelho, sua mão acertou nela, atirando-a ao chão, onde ela caiu e se abriu, espalhando seu conteúdo aos pés de Flavia. Ela a chutou, errou, e olhou para ver onde ela estava, esperando que seu estrago de alguma forma parasse a música que se espalhava alegremente pelo apartamento. Ela sentiu a presença de Brunetti ao seu lado. Ele estendeu a mão para a frente e virou o controle de volume para a esquerda. A música se extinguiu, deixando-os no silêncio explosivo da sala. Ele se inclinou e apanhou a caixa, depois se curvou de novo e apanhou o folheto que havia caído do seu interior e uma pequena tira de papel que o panfleto encobria.

“Um homem ligou. Eles pegaram Flavia.” Não havia mais nada escrito ali. Nenhuma hora, nenhuma explicação de intenções. Sua ausência do apartamento deu-lhe toda explicação de que precisava.

Sem dizer nada, ele passou a tira de papel para Flavia.

Ela leu e compreendeu imediatamente. Amassou o papel na mão, espremendo-o num bolinho apertado, mas logo abriu os dedos e desamassou o papel na estante à sua frente, em silêncio, aterrada com a ideia de que este poderia ser o último contato que jamais teria com Brett.

“A que horas você saiu?”, Brunetti perguntou.

“Cerca das duas. Por quê?”

Ele consultou o relógio, calculando possibilidades. Eles teriam concedido a Flavia algum tempo longe do apartamento até ligarem, e alguém a teria seguido para verificar se ela não havia voltado inesperadamente para a casa de Brett. Eram quase sete, por isso já estariam com Brett havia algumas horas. Em nenhum momento Brunetti se perguntou quem fizera aquilo. O nome de La Capra estava tão claramente fixado em sua mente como se tivesse sido pronunciado. Ele se interrogava para onde ela teria sido levada. A loja de Murino? Só se o negociante estivesse envolvido nos assassinatos, e isso parecia improvável. A escolha óbvia, então, era o palazzo de La Capra. Mal pensou nisso, começou a planejar maneiras de entrar lá, mas percebeu que não havia a menor chance de um mandado de busca com base em três datas de recibos de cartões de crédito e na descrição de uma sala que facilmente serviria de cela ou de galeria privada. As intuições de Brunetti não valiam nada naquele momento, especialmente quando incidiam sobre um homem da aparente estatura, e, o mais importante, evidente riqueza de La Capra.

Se Brunetti voltasse ao palazzo, havia todas as razões para crer que La Capra se recusaria a recebê-lo, e ele não poderia entrar sem essa permissão. A menos que...

Flavia agarrou seu braço. “Sabe onde ela está?”

“Acho que sim.”

Ao ouvir isso, Flavia foi até o vestíbulo e voltou alguns instantes depois carregando um par de botas de borracha pretas de cano alto. Ela se sentou no sofá, calçou-as sobre as meias molhadas e se levantou. “Vou com você. Onde ela está?”, perguntou. “Onde a Brett está?”

“Flavia...”, ele começou, mas ela o interrompeu.

“Eu disse que vou com você.”

Brunetti sabia que não havia maneira de impedi-la e decidiu imediatamente o que fazer. “Um telefonema primeiro. Eu lhe explicarei no caminho.” Ele pegou o telefone, discou o número da questura e pediu para falar com Vianello.

Quando o sargento atendeu, Brunetti disse: “Sou eu, Vianello. Tem alguém aí?”.

Em resposta ao ruído afirmativo de Vianello, Brunetti continuou: “Então só escute o que eu vou explicar. Lembra-se de ter me contado que trabalhou três anos em Roubos?”. Um grunhido profundo veio pela linha. “Tem uma coisa que eu quero que faça para mim. Uma porta. De um edifício.” O grunhido seguinte foi claramente interrogativo. “É de madeira, reforçada com metal, nova. Acho que tem duas fechaduras.” Dessa vez, ele ouviu um ronco com a insultante simplicidade disso. Só duas fechaduras. Só reforço de aço. Ele pensou rapidamente, recordando a vizinhança. Olhou pela janela; estava totalmente escuro, e a chuva continuava como antes. “Encontro você no Campo San Aponal. Assim que puder chegar lá. E, Vianello”, acrescentou, “não use sua capa do uniforme.” A única resposta a isso foi um riso gutural, e depois a voz de Vianello desapareceu.

Quando Brunetti e Flavia alcançaram o pé da escada, constataram que a água tinha subido mais ainda; de trás da porta se ouvia o rugido da chuva desabando.

Eles pegaram os guarda-chuvas e saíram com a água até o alto das botas. Havia poucas pessoas nas ruas, por isso chegaram rapidamente em Rialto, onde a água estava ainda mais alta. Não fosse pelas passarelas de madeira sobre os suportes de ferro, a água teria inundado suas botas e tornaria a marcha impossível. No outro lado da ponte, eles se enfiaram de novo na água e viraram na direção de San Polo, os dois agora ensopados e exaustos pelo esforço de caminhar na água transbordada. Em San Aponal, entraram num bar para esperar Vianello, aliviados por fugir do martelar insistente da chuva.

Eles estavam enfiados naquele mundo aquático havia tanto tempo que nenhum dos dois estranhou estar dentro de um bar com água acima das panturrilhas, ouvindo o chapinhar do barman andando de um lado para outro do balcão, arrumando copos e taças.

Como o interior das portas de vidro estava embaçado, Brunetti viu-se obrigado a esfregar várias vezes a superfície com a manga, de modo a abrir um círculo que permitisse controlar a chegada de Vianello. Vultos encurvados cruzavam com dificuldade o pequeno campo. Muitas pessoas tinham abandonado a pretensão de carregar guarda-chuvas, tamanho o capricho do vento que vinha da esquerda, da direita, de baixo, atirando chuva de todos os ângulos.

Brunetti sentiu uma forte pressão contra seu corpo e olhou para ver o topo da cabeça de Flavia se apoiar pesadamente no seu braço, levando-o a se curvar para ouvir o que ela dizia. “Ela vai estar bem?”

Nenhuma palavra lhe ocorreu; nenhuma mentira fácil saiu de seus lábios. Tudo que pôde fazer foi soltar seu braço e envolver o ombro dela, puxando-a para si. Ele a sentiu estremecer e se convenceu de que era frio, não medo. Mas nenhuma palavra lhe ocorreu.

Pouco depois, a forma ursina de Vianello apareceu no campo na direção de Rialto. O vento rasgara a parte de trás da sua capa de chuva e Brunetti notou, por baixo dela, um par de botas impermeáveis pretas de cano longuíssimo. Ele apertou o braço de Flavia. “Aí vem ele.”

Ela se afastou lentamente dele, fechou os olhos por um momento e tentou sorrir.

“Você está bem?”

“Sim”, ela respondeu, e balançou a cabeça para provar.

Ele abriu a porta do bar, chamando Vianello, que se apressou pelo campo até eles. Vento e chuva entraram em lufadas no bar superaquecido, e Vianello aterrissou chapinhando, deixando o lugar menor com a sua presença. Ele tirou da cabeça o gorro de marinheiro e bateu com ele várias vezes no encosto de uma cadeira, espirrando água num amplo círculo ao redor. Jogou o gorro ensopado sobre uma mesa e passou os dedos pelos cabelos, espalhando mais água para trás. Olhou para Brunetti, viu Flavia e perguntou: “Onde é?”.

“Indo pela água, no fim da Calle Dilera. É o que acaba de ser restaurado. À esquerda.”

“Aquele com grades de metal?”, perguntou Vianello.

“Isso”, respondeu Brunetti, tentando imaginar se havia algum edifício na cidade que Vianello não conhecesse.

“O que quer que eu faça, comissário, que nos coloque dentro?”

Brunetti sentiu uma onda de alívio ao som daquele “nos”. “Isso. Há um pátio, mas provavelmente não há ninguém lá, não nesta chuva.” Vianello anuiu. Qualquer um que tivesse bom senso estaria dentro de casa num dia assim.

“Tudo bem. Você espera aqui e eu vou fazer uma tentativa. Se é o que eu penso que é, não deve haver problema. Não vai demorar. Me dê cerca de três minutos, e depois você vem.” Ele lançou um rápido olhar a Flavia, apanhou o gorro e saiu para a chuva.

“O que vai fazer?”, perguntou Flavia.

“Vou entrar para ver se ela está lá”, disse ele, embora não tivesse a menor ideia, de verdade, do que isso significava. Brett poderia estar em qualquer lugar no interior do palazzo, em qualquer um dos incontáveis quartos. Talvez ela nem estivesse lá dentro, poderia já estar morta, o corpo flutuando na água imunda que havia tomado a cidade.

“E se ela não estiver?”, perguntou Flavia, tão rapidamente que Brunetti se convenceu de que ela devia compartilhar a sua visão do destino de Brett.

Em vez de responder, ele disse: “Quero que você fique aqui. Ou volte para o apartamento. Não há nada que possa fazer”.

Sem se incomodar em discutir com ele, ela descartou o que ele dissera com um gesto de mão, e perguntou: “Ele já teve tempo suficiente, não teve?”. Antes que Brunetti pudesse responder, Flavia passou na sua frente e saiu do bar para o campo, abriu o guarda-chuva com um tranco e ficou parada esperando.

Ele saiu do bar e se juntou a ela, protegendo-a do vento com seu corpo. “Não. Você não pode ir. Isto é um assunto policial.”

O vento os arrebatou, espalhando os cabelos dela sobre seu rosto, cobrindo seus olhos. Ela os afastou com uma mão irritada e olhou para ele, impassível. “Sei onde é. Por isso vou com você ou vou segui-lo.”

Quando ele começou a protestar, ela cortou: “Esta é a minha vida, Guido”.

Brunetti se afastou dela e entrou na Calle Dilera, vermelho de raiva, lutando contra o desejo de arrastá-la para o bar e de alguma forma mantê-la ali. À medida que se aproximavam do palazzo, ele ficou surpreso de ver que a rua estreita estava vazia. Não havia sinal de Vianello, e a pesada porta de madeira parecia fechada. Quando se aproximaram dela, a porta foi subitamente aberta pelo lado de dentro. Uma mão grande emergiu e fez sinal para eles entrarem, e só então o rosto de Vianello apareceu na luz baça da calle, sorrindo.

Brunetti se esgueirou para dentro, mas antes que pudesse fechar a porta, Flavia conseguiu entrar no pátio depois dele. Eles ficaram parados por alguns instantes até seus olhos se acostumarem com a escuridão. “Fácil demais”, disse Vianello, fechando a porta atrás do grupo.

Como estavam muito perto do Canal Grande, a água ali era ainda mais profunda e havia transformado o pátio num vasto lago sobre o qual a chuva continuava martelando. A única luz vinha das janelas do palazzo, vazando do lado esquerdo para o pátio, iluminando seu centro, mas deixando o lado onde eles estavam envolvidos na pesada escuridão. Silenciosamente, os três saíram da chuva e passaram por baixo da longa sacada que cobria três lados do pátio até ficarem quase invisíveis, mesmo uns para os outros.

Brunetti percebeu que tinha ido ali em resposta ao mais puro impulso, sem pensar no que fazer quando estivesse dentro. Em sua única visita ao palazzo, fora arrebanhado tão rapidamente para o piso mais alto que não tinha nenhum sentido claro sobre a disposição do edifício. Ele se lembrou de ter passado por portas que levavam pela escada externa para os quartos de cada andar, mas não fazia ideia do que havia por trás daquelas portas, exceto a da sala do alto, onde havia conversado com La Capra, e o escritório no andar abaixo. Também lhe ocorreu que ele, Brunetti, um agente do Estado, acabava de participar de um crime; e mais, tinha envolvido nesse crime não só uma civil, mas também um colega policial.

“Espere aqui”, Brunetti sussurrou, colocando a boca perto do ouvido de Flavia para falar, sabendo que a chuva abafaria o som de sua voz. Estava demasiado escuro para ele ver o gesto que ela poderia ter feito em resposta, mas sentiu que ela avançava ainda mais para a escuridão.

“Vianello”, ele disse, agarrando seu braço e puxando-o para perto, “vou subir a escada para tentar entrar. Se houver algum problema, tire-a daqui. Não se importe com ninguém a menos que eles tentem pará-lo.” Vianello confirmou com um grunhido. Brunetti se afastou deles e deu alguns passos na direção da escada, forçando as pernas lentamente contra a resistência contínua da água. Foi só ao alcançar o segundo degrau que suas pernas por fim se livraram da pressão da água que as sugava a cada passo. Com essa liberdade, porém, ele ficou subitamente livre para sentir o frio excruciante que se espalhava da água gelada retida dentro de suas botas, da roupa ensopada que pendia pesada de seu corpo. Ele se curvou e descalçou as botas, começou a subir os degraus, depois voltou e chutou as botas para a água. Esperou até elas afundarem e só então começou a subir de novo.

No alto do primeiro lance, parou sobre a pequena varanda e virou a maçaneta da porta de entrada. Ela se moveu para baixo sob a sua mão, mas a porta estava trancada e não abriu. Ele subiu outro lance, porém encontrou outra porta também trancada.

Ele se virou e olhou por cima do peitoril para o outro lado do pátio onde Flavia e Vianello deviam estar, mas não podia ver nada exceto o padrão fragmentado de luz enquanto a chuva continuava a cair sobre a superfície da água abaixo.

Para sua surpresa, a porta no alto abriu sob a sua mão, e ele se encontrou no início de um longo corredor. Deu um passo para dentro, fechou a porta atrás de si e ficou parado um instante, consciente apenas do som da água escorrendo da capa para o piso de mármore.

Lentamente, seus olhos se ajustaram à luz do corredor enquanto ele esperava, prestando intensa atenção a cada som que pudesse vir do outro lado das portas.

Um calafrio súbito o percorreu até ele inclinar a cabeça e curvar os ombros na tentativa de encontrar calor em algum lugar de seu corpo. Quando tornou a olhar para cima, La Capra estava parado em uma porta aberta a poucos metros dele, a boca aberta de surpresa por ver Brunetti.

La Capra se recobrou primeiro e soltou um sorriso fácil. “Signor policial, então voltou. Que agradável coincidência. Acabei de colocar as últimas peças em minha galeria. Talvez queira dar uma olhada nelas.”


24

 

 

 

 

Brunetti o seguiu pela galeria e deixou seus olhos correrem pelos pedestais e os estojos da exposição. La Capra se virou quando eles entraram e disse: “Por favor, queira me entregar a sua capa. O senhor deve estar gelado, andando por aí na chuva. Numa noite como esta”. Ele meneou a cabeça ante a ideia.

Brunetti tirou a capa, notando seu peso encharcado quando a entregou a La Capra. O outro homem também pareceu surpreso com o volume da capa e não pôde pensar em nada exceto pendurá-la no encosto de uma cadeira, onde ela ficou, a água escorrendo para o chão em densos regatos.

“A que devo a honra de uma nova visita, dottore ?”, perguntou La Capra, mas antes que Brunetti pudesse responder, disse: “Por favor, permita que lhe ofereça alguma coisa para beber. Uma grapa, talvez? Ou um ponche quente de rum? Por favor, não posso deixá-lo aí, enregelado, uma visita em casa, sem tomar nada”. Sem esperar resposta, caminhou até o interfone que pendia de uma parede e premiu um botão. Alguns segundos depois, soou um leve clique, e La Capra falou no receptor: “Quer me trazer uma garrafa de grapa e um pouco de ponche quente de rum?”.

Ele se virou para Brunetti, sorrindo, o perfeito anfitrião. “Não vai demorar. Agora, me diga, dottore, enquanto esperamos. O que o traz de volta para me visitar em tão pouco tempo?”

“Sua coleção, signor La Capra. Fiquei sabendo muito mais sobre ela. E sobre o senhor.”

“Mesmo?”, perguntou La Capra, o sorriso ainda estampado. “Não fazia ideia de que fosse tão conhecido em Veneza.”

“Em outros lugares também”, respondeu Brunetti. “Em Londres, por exemplo.”

“Em Londres?”, La Capra mostrou uma polida surpresa. “Que estranho. Não creio que conheça alguém em Londres.”

“Não, mas talvez tenha adquirido peças lá.”

“Ah, sim, isso poderia ser, imagino”, respondeu La Capra, o sorriso ainda pregado no lugar.

“E em Paris”, acrescentou Brunetti.

De novo, a surpresa de La Capra foi estudada, como se estivesse esperando pela menção a Paris depois da referência de Brunetti a Londres. Antes que pudesse dizer alguma coisa, porém, a porta foi aberta e um homem jovem entrou, não aquele que o havia recebido anteriormente. Ele carregava uma bandeja com garrafas, copos e uma garrafa térmica prateada. Pousou a bandeja numa mesa baixa e se virou para sair. Brunetti o reconheceu, não só pelos retratos das fichas policiais enviadas de Roma, mas por sua semelhança com o pai.

“Não, fique e beba conosco, Salvatore”, disse La Capra. Depois, para Brunetti. “O que gostaria, dottore ? Vejo que temos açúcar. Gostaria que eu lhe preparasse um ponche?”

“Não, obrigado. Grapa está bom.”

Jacopo Poli, delicada garrafa soprada à mão, nada menos que o melhor para o signor La Capra. Brunetti bebeu de um trago e pousou o copo na bandeja antes mesmo de La Capra ter terminado de despejar a água fervente em seu próprio rum. Enquanto La Capra se ocupava com despejar e mexer, Brunetti correu o olhar pela sala. Muitas das peças se pareciam com objetos que ele vira no apartamento de Brett.

“Mais uma, dottore ?”, La Capra perguntou.

“Não, obrigado”, disse Brunetti, desejando poder parar com os tremores que ainda o percorriam.

La Capra terminou de mexer sua bebida, sorveu e pousou na bandeja. “Venha, dottor Brunetti. Permita-me mostrar algumas de minhas peças novas. Elas chegaram ontem, e admito que estou muito excitado por tê-las aqui.”

La Capra se virou e caminhou para a parede esquerda da galeria, mas enquanto ele se movia, Brunetti ouviu um som de trituração vindo de onde ele pisava. Olhando para baixo, viu os cacos de argila num pequeno círculo naquele lado da sala. Um dos fragmentos era cruzado por uma linha preta. Vermelho e preto, as duas cores dominantes da cerâmica que Brett havia lhe mostrado e comentado.

“Onde está ela?”, perguntou Brunetti, cansado e com frio.

La Capra parou de costas para Brunetti e fez uma pausa antes de se virar de frente para ele. “Onde está quem?”, perguntou depois de se virar, sorrindo inquisitivamente.

“A dottoressa Lynch”, respondeu Brunetti.

La Capra manteve os olhos fixos em Brunetti, mas Brunetti sentiu que alguma coisa passara, alguma mensagem entre ele e o jovem.

“A dottoressa Lynch?”, inquiriu La Capra, a voz perplexa, mas ainda muito polida. “A erudita americana? Aquela que escreveu sobre cerâmica chinesa?”

“Isso.”

“Ah, dottor Brunetti, o senhor não tem ideia de quanto eu gostaria que ela estivesse aqui. Tenho duas peças — elas estão entre as que chegaram ontem — sobre as quais estou começando a ter dúvidas. Não estou certo de que sejam tão antigas como pensei que eram quando...” a pausa foi mínima, mas Brunetti estava certo de que fora intencional, “quando as adquiri. Eu daria tudo para poder pedir a opinião da dottoressa Lynch sobre elas.” Ele fitou o jovem e depois, rapidamente, de novo Brunetti. “Mas o que o faz pensar que ela poderia estar aqui?”

“Porque não há nenhum outro lugar onde poderia estar”, explicou Brunetti.

“Temo não o compreender, dottore. Não sei do que está falando.”

“Estou falando disso”, disse Brunetti, esticando a perna e esmagando um dos fragmentos embaixo do pé.

La Capra piscou involuntariamente com o som, mas insistiu: “Ainda não o compreendo. Se está falando desses fragmentos, isso se explica facilmente. Enquanto as peças estavam sendo desembrulhadas, alguém foi muito descuidado com uma delas”. Olhando para os fragmentos, ele balançou a cabeça lamentando a perda e não conseguindo acreditar que alguém pudesse ser tão desajeitado. “Dei ordens para a pessoa responsável ser punida.”

Mal La Capra terminara de falar, Brunetti sentiu um movimento atrás de si, mas antes que pudesse se virar para ver o que era, La Capra deu um passo na sua direção e pegou-o pelo braço. “Venha ver as peças novas.”

Brunetti livrou o braço com um puxão e se virou, mas o jovem já estava na porta. Ele a abriu, sorriu para Brunetti, esgueirou-se para fora da sala e fechou a porta ao sair. Do outro lado, Brunetti ouviu o som inconfundível de uma chave sendo virada na fechadura.


25

 

 

 

 

Passos rápidos desapareceram pelo corredor. Brunetti virou-se para La Capra. “É tarde demais, signor La Capra”, disse ele, esforçando-se para manter a voz calma e racional. “Sei que ela está aqui. O senhor só vai piorar as coisas tentando fazer algo com ela.”

“Me perdoe, signor policial, mas não tenho a menor ideia do que está falando”, disse La Capra e sorriu com polida confusão.

“Sobre a dottoressa Lynch. Sei que está aqui.”

La Capra voltou a sorrir e fez um gesto abrangente com o braço abarcando a sala e todos os objetos que ela continha. “Não vejo por que é tão insistente sobre isso. Com certeza, se estivesse aqui, ela estaria conosco, gozando da visão de toda esta beleza.” Sua voz ficou ainda mais calorosa. “O senhor não me acreditaria capaz de privá-la deste prazer, não é?”

A voz de Brunetti foi igualmente calma. “Acho que já é hora de acabar com a farsa, signore.”

O riso de La Capra, enriquecido pelo som de um verdadeiro deleite, eclodiu quando Brunetti disse isso. “Oh, creio que o farsante seja o senhor, signor policial. O senhor veio até minha casa sem ser convidado; e imagino que a sua entrada tenha sido, em si, ilegal. Sendo assim, não tem nenhum direito de me dizer o que devo ou não fazer.” O timbre de sua voz se aguçou perceptivelmente enquanto ele falava, até que, ao terminar, ele estava quase sibilando de raiva. Ouvindo-se, La Capra relembrou o papel que estava representando, afastou-se de Brunetti e deu alguns passos até um dos estojos de acrílico.

“Observe, se quiser, as linhas deste vaso”, ele disse. “Adorável, simplesmente adorável, a maneira como ela serpenteia em torno da parte traseira, não acha?” Ele traçou um laço diáfano no ar com a mão, imitando o fluir da linha pintada na frente do vaso alto que estava observando. “Eu sempre achei notável o olho para a beleza que aquelas pessoas tinham. Milhares de anos atrás, e elas já eram apaixonadas pelo belo.” Sorrindo, transformando-se de mero connoisseur em filósofo, ele se virou para Brunetti e perguntou: “Não acha que este é o segredo da humanidade: o amor à beleza?”.

Quando Brunetti não respondeu a essa banalidade, La Capra deixou o assunto morrer e se deslocou para o estojo seguinte. Com uma pequena risada, disse: “A dottoressa Lynch teria gostado de ver este”.

Alguma coisa na sua voz, o tom de segredos imundos, fez Brunetti olhar para o estojo diante do qual o outro homem estava parado. Dentro, ele viu a mesma forma de cabaça da pintura que Brett lhe mostrara. Uma raposa com corpo humano, ereta e inclinada para a esquerda, quase idêntica à pintada no vaso cuja foto Brett lhe mostrara, ornamentava a peça.

Espontâneo, o pensamento estava lá. Se La Capra desejava lhe mostrar seu vaso, então estava claro que ele não tinha mais nada a temer de Brett, a única pessoa que poderia identificar sua origem. Brunetti fez meia-volta e deu dois longos passos em direção à porta. Quase chegando nela, parou, virou o corpo de lado, e levantou a perna direita. Com toda a força, ele chutou a porta um pouco abaixo da fechadura. A violência do chute abalou todo seu corpo, mas a porta não se moveu.

Atrás dele, La Capra deu uma risadinha. “Ah, vocês nortistas são tão impetuosos. Lamento, mas a porta não vai abrir para você, signor policial, por mais forte que a chute. Temo que será meu hóspede até Salvatore voltar de sua missão.” Com absoluta confiança, ele se virou para os estojos de vidro. “Esta peça aqui é do primeiro milênio antes de Cristo. Adorável, não é?”


26

 

 

 

 

Quando saiu da galeria, o jovem teve o cuidado de trancar a porta atrás de si, deixando a chave na fechadura. Ele se divertiu com a constatação de que seu pai estaria seguro com um policial, entre todas as pessoas. A ideia era tão bizarra que ele deu uma boa risada ao sair da sala. Seu riso desapareceu quando abriu a porta no fim do corredor e viu que, do lado de fora, o aguaceiro continuava. Como é que as pessoas conseguiam viver nesse tempo, e com esse mar de água preta imunda que subia das próprias calçadas? Ele se recusava a admitir para si mesmo, mas tinha medo dessa água, do que seu pé poderia encontrar enquanto andava por ela ou, pior, o que poderia se esfregar em suas pernas ou se infiltrar no interior de suas botas.

Mas essa, ele acreditava, seria a última vez em que teria de enfrentar a água. Uma vez resolvido o assunto, ele poderia voltar para dentro e esperar que a água horrorosa recuasse para os canais, a laguna, o mar, ao qual pertencia. Ele não sentia a menor afinidade com essas águas frias do Adriático, tão diferentes da ampla vastidão de puro turquesa que se espalhava pela superfície tranquila do Mediterrâneo diante de sua casa em Palermo. Ele não tinha ideia do que fizera seu pai comprar uma casa nesta cidade imunda. O pai insistira que era para a segurança de sua coleção, que havia poucas chances de roubo ali. Mas na Sicília ninguém ousaria roubar a casa de Carmello La Capra.

Ele estava certo de que o pai o fizera pela mesma razão pela qual possuía a estúpida coleção de potes: para ascender no mundo e ser considerado um cavalheiro. Salvatore achava isso um absurdo. Ele e o pai eram cavalheiros por virtude de seu nascimento: eles não precisavam da confirmação desses estúpidos polentoni.

Ele tornou a fitar o pátio inundado, sabendo que teria que calçar botas e chafurdar pela água para cruzá-lo. Mas a lembrança do que faria quando atingisse o outro lado foi suficiente para elevar seus pensamentos; ele tinha gostado de bolinar l’americana, e agora era hora de terminar o jogo.

Ele pegou um par de botas de borracha de cano alto e calçou-as com dificuldade sobre os sapatos. Elas chegavam até seus joelhos e ali se abriam, as bordas abertas e flácidas como as pétalas em torno do centro de uma anêmona. Fechou a porta atrás de si e pisou com força nos degraus da escada externa, maldizendo a chuva incessante. Empurrando a água para a frente a cada passo, forçou caminho pelo pátio até a porta de madeira no lado oposto. Mesmo no curto espaço de tempo desde que trancara a porta para l’americana, o nível da água havia subido e agora cobria o pavimento inferior. Talvez ela houvesse ficado ali tempo suficiente para ter se afogado. Mesmo que tivesse conseguido subir num dos largos nichos recortados nas paredes, seria um trabalho rápido tirá-la dali. Ele só lamentava não ter tido tempo de violentá-la. Nunca havia violentado homossexuais antes; não uma lésbica, ao menos, e achava que era algo que talvez lhe desse prazer. Bem, bastava outro telefonema para trazer a amiga cantora para lá, e aí quem sabe ele não tinha uma chance. Seu pai poderia objetar, mas não havia realmente nenhuma razão para ele ficar sabendo, havia? A cautela do pai lhe negara o prazer da primeira visita a l’americana. Gabriele e Sandro tinham sido enviados em seu lugar e tinham estragado tudo. Essa confusão de violência, ressentimento e luxúria o ocupara enquanto ele atravessava o pátio.

Preparado para a escuridão que o cercava, tirou uma lanterna do bolso do paletó e apontou seu facho para a barra de ferro que mantinha trancada a porta baixa. Ele a retirou e abriu a porta, puxando com força para vencer a resistência da água. Um espaço alto arqueado se estendia à sua frente. Cadeiras e mesas flutuavam na superfície oleosa da água. Tinham sido guardadas ali durante a reforma e estavam abandonadas no que fora um dia um ancoradouro interno para barcos, enfiado meio metro abaixo do nível do pátio e protegido do canal por outra pesada porta de madeira, trancada por uma corrente. Seria trabalho de um minuto, quando houvesse acabado com l’americana, abrir a porta e deixá-la flutuar para fora, para as águas profundas do canal.

À sua esquerda, ele ouviu um barulho de água e virou o facho da lanterna para ele. Os olhos que brilharam na sua direção eram pequenos demais e muito próximos para serem humanos; com uma chicotada de sua longa cauda, o rato se esquivou da luz, abrigando-se atrás de uma caixa flutuante.

A luxúria desapareceu. Ele virou a luz lentamente para a direita, parando por tempo suficiente para examinar cada um dos pequenos nichos escavados na parede e agora cobertos por um palmo de água. Ele a avistou, enfim, agachada de lado em um dos nichos, os joelhos dobrados diante dela, a cabeça assomando acima deles. A luz se demorou em cima dela, mas ela não se mexeu.

Bastava pois cruzar a água até ela e acabar com tudo. Ele se enrijeceu e entrou na água profunda, esticando o pé lentamente até ter certeza de que se apoiara com firmeza no primeiro degrau escorregadio, e depois no segundo. Amaldiçoou ferozmente quando sentiu a água vazar pelo topo para dentro de sua bota. Por um instante, quis arrancar a bota ultrajante e facilitar o movimento, mas aí se lembrou dos olhos vermelhos que vira na superfície da água no outro lado do recinto e mudou de ideia. Tateando, estimulado pelo que sabia que viria, baixou o outro pé e sentiu a água entrar no seu sapato. Ele escorregou o pé direito para a frente, certo de que havia apenas três degraus, mas sem querer acreditar até seus pés confirmarem o fato. Feito isso, fixou o facho de luz sobre a forma enrodilhada na alcova e avançou para ela pela água que chegava até a metade de sua coxa.

Enquanto avançava, ia fazendo planos, determinado a extrair o máximo de prazer daquilo. Não havia onde pudesse apoiar a lanterna, por isso teria de mantê-la dentro do bolso virada para cima, esperando que isso lhe proporcionasse luz suficiente para observar o rosto dela enquanto a matava. Não parecia ter sobrado nenhum espírito de combate na moça, mas ele já fora surpreendido no passado, e achava que o mesmo poderia acontecer desta vez. Não queria muita luta, não com toda aquela água, mas sentiu que merecia ao menos uma resistência simbólica, especialmente se lhe seriam negados os outros prazeres que poderia obter dela.

Enquanto ele chapinhava na sua direção, ela ergueu a cabeça e o fitou com os olhos arregalados, cegados pela luz. “Ciao, bellezza”, ele murmurou, e riu com a risada do pai.

Ela fechou os olhos e abaixou a cabeça de novo sobre os joelhos. Com a mão direita, ele enfiou lanterna no bolso da jaqueta tomando o cuidado de incliná-la para a frente para que a luz incidisse na direção da mulher. Ele só conseguia enxergá-la vagamente, mas imaginou que seria suficiente.

Antes de começar o que viera fazer, ele não pôde resistir à tentação de lhe dar tapinhas leves no lado do maxilar, tocando-os com a delicadeza de alguém que dá piparotes numa peça de cristal fino para ouvi-la cantar. Ele se curvou para o lado, momentaneamente distraído, para ajustar a lanterna que havia rolado para a parte de trás do bolso. Como estava olhando para a lanterna e não para a vítima, não percebeu o punho fechado dela se armando para um golpe. Tampouco viu a antiga fivela de ferro que se projetava desse punho. Ele só se deu conta quando a ponta cega penetrou em sua garganta no exato lugar onde o ângulo do maxilar encontra o pescoço. Ele sentiu a força do golpe e deu um salto de dor para trás. Cambaleou para a direita e olhou para ela a tempo de ver um jorro vermelho espesso. Quando percebeu que era o seu sangue, gritou, mas era tarde demais. A luz se extinguiu quando ele afundou na água.


27

 

 

 

 

O som da chave girando na fechadura fez Brunetti e La Capra se virarem para a porta, que abriu para revelar Vianello, ensopado e pingando. “Quem é você?”, perguntou La Capra. “O que está fazendo aqui?”

Vianello o ignorou e falou para Brunetti: “Acho que é melhor vir comigo, senhor”.

Brunetti se moveu instantaneamente, passando na frente de Vianello e saindo pela porta sem se preocupar em falar. Somente no fim do corredor, antes de saírem para a chuva que continuava torrencial, Brunetti perguntou: “É l’americana?”.

“Sim, senhor.”

“Ela está bem?”

“Está com a amiga, senhor, mas não sei como está. Ficou muito tempo na água.” Sem esperar para ouvir mais, Brunetti saiu rapidamente para a chuva descendo os degraus.

Ele as encontrou abraçadas um pouco além do pé da escada, cobertas pelo sobretudo de Vianello. Nesse instante, alguém na casa deve ter acendido as luzes, pois o pátio se encheu abruptamente de uma claridade cegante, tão intensa que as duas mulheres se transformaram numa Pietà escura colocada sobre o peitoril baixo que corria ao longo da parede interna do pátio.

Flavia estava ajoelhada na água, um braço envolvendo Brett, apoiando o corpo da amiga contra a parede com o próprio peso. Brunetti se inclinou sobre as duas mulheres, não ousando tocá-las, e chamou o nome de Flavia. Ela olhou para ele, o terror palpável em sua expressão, obrigando-o a olhar para a outra mulher. O cabelo de Brett estava manchado de sangue; havia sangue formando estrias em seu rosto e na frente de sua roupa.

“Madre di Dio”, ele murmurou.

Vianello chapinhou até o lado dele.

“Ligue para a questura, Vianello”, ordenou. “Não daqui. Saia e faça isso. Mande enviarem uma lancha com todos os homens que puderem encontrar. E uma ambulância. Agora. Agora mesmo!”

Vianello já estava chapinhando pela pesada porta de madeira antes de Brunetti terminar de falar. Quando abriu a porta, uma onda baixa avançou pelo pátio e veio lamber as pernas de Brunetti.

Vinda de cima, Brunetti ouviu a voz de La Capra. “O que está havendo aí embaixo? O que está havendo?” Brunetti virou de costas para as duas mulheres, que continuavam imóveis, abraçadas, e olhou para o alto da escada. La Capra estava parado ali, rodeado por um halo radiante de luz que vazava pela porta aberta às suas costas, um Cristo pérfido parado na soleira de alguma cripta maligna.

“O que estão fazendo aí embaixo?”, tornou a perguntar, a voz mais insistente e mais alta. Ele saiu para a chuva e olhou para baixo, para as duas mulheres abraçadas e para um homem que não era seu filho. “Salvatore?”, ele chamou na direção da chuva. “Salvatore, me responda.” A chuva martelava.

La Capra girou e desapareceu no interior do palazzo. Brunetti se inclinou e tocou no ombro de Flavia. “Flavia, levante-se. Não podemos ficar aqui.” Ela não deu sinal de ter ouvido. Ele desviou o olhar para Brett, mas ela estava olhando para o vazio, sem enxergar nada. Ele colocou uma das mãos sob o braço de Flavia e a ajudou a se levantar; inclinou-se para Brett e fez o mesmo. Ele deu um passo para a porta ainda aberta que levava para a calle, um braço arrastado para baixo pelo peso bamboleante de Brett. Ela escorregou, e ele soltou Flavia para envolver Brett com os dois braços. Puxando-a para cima de novo, ele meio que a carregou, obrigando suas pernas a se moverem pelas águas geladas na direção da porta, mal consciente de Flavia ao seu lado, seguindo na mesma direção.

“Salvatore, figlio mio, dove sei? ” A voz soou de cima deles, aguda, angustiada e selvagem. Brunetti olhou para o alto e viu La Capra no topo da escada segurando uma espingarda na mão, olhando para eles. Com deliberada lentidão, ele começou a descer os degraus, ignorando os lençóis de chuva que sopravam sobre ele de todas as direções.

Retardado pelo peso desequilibrado de Brett, Brunetti sabia que jamais conseguiria alcançar a porta antes que La Capra chegasse ao pé da escada. “Flavia”, ele disse, com a voz apressada e urgente. “Saia daqui. Eu vou levá-la.” Flavia olhou para ele, para La Capra, ainda descendo a escada como uma espécie de fúria inexorável, e depois para Brett. E para a porta aberta para a rua, poucos metros adiante. Antes que ela pudesse se mover, três homens surgiram no alto da escada, e ela reconheceu dois deles como os homens que havia tocado do apartamento de Brett.

“Capo”, um deles falou para o vulto de La Capra que descia a escada.

Ele se virou lentamente para eles. “Voltem. Esta é minha.” Como eles permaneceram imóveis, La Capra levantou a arma na direção deles, mas o fez casualmente, sem perfeita consciência do que segurava nas mãos. “Voltem. Fiquem longe disto.” Assustados, treinados para obedecer, eles recuaram para o interior, e La Capra se virou para continuar descendo a escada.

Ele se movia depressa agora, tão depressa que chegou ao pé da escada antes de Flavia se mover.

“Ele está lá dentro”, disse Flavia em voz baixa para Brunetti, fazendo um gesto com o queixo para a porta entreaberta no lado distante do pátio.

La Capra entrou na água como se ela não estivesse ali, mas não perdeu de vista as três pessoas que estavam paradas embaixo da chuva torrencial, mantendo o cano da espingarda apontado para elas enquanto ele caminhava pelo pátio. À porta do porão, ele parou e gritou para o espaço que assomava além dela: “Salva? Salva, me responda”.

Seus joelhos desapareceram na água quando ele começou a descer o primeiro degrau. Por um instante, olhou para trás, para Brunetti e as duas mulheres. Mas depois pareceu simplesmente esquecê-las quando se virou para a caverna escura na qual afundou ao dar outro passo, e depois outro.

“Flavia, depressa!”, disse Brunetti. Ele girou o corpo, o peso de Brett equilibrado contra o seu quadril, e a puxou, cambaleando na direção de Flavia. Surpreendida pelo movimento repentino, Flavia estendeu os braços sem pensar e agarrou Brett, mas não teve força suficiente para sustentá-la, e as duas caíram de joelhos na água. Deixando-as, Brunetti correu pelo pátio, chapinhando pesadamente. Do outro lado da porta, podia ouvir a voz de La Capra chamando pelo filho sem parar. Brunetti agarrou a porta com as duas mãos e forçou seu peso de chumbo pela água, depois a fechou com um chute violento, a mão lutando com a barra até encaixá-la no lugar.

Do outro lado da porta, a espingarda detonou, enchendo o espaço fechado com seu eco. Os chumbos tamborilaram na porta de madeira, mas o grosso do tiro errou e picotou a parede de pedra ao seu lado. De novo um tiro, mas La Capra disparava às cegas, e a descarga atingia inutilmente a água.

Brunetti voltou chapinhando pelo pátio até Flavia e Brett, que estavam de pé agora e andava lentamente para a porta principal, que continuava aberta. Ele se deslocou para o outro lado de Brett e agarrou-a pela cintura, apressando seu avanço. Quando eles se aproximavam da porta, ouviram o chapinhar ruidoso e gritos igualmente altos se aproximando pela calle. Brunetti levantou o olhar e viu que Vianello entrou pela porta, seguido por dois policiais uniformizados com pistolas na mão.

“Três deles estão lá em cima”, disse Brunetti. “Cuidado. Eles provavelmente estão armados. Há um outro na despensa. Ele tem uma espingarda.”

“Foi isso que ouvimos?”, perguntou Vianello.

Brunetti fez que sim, e depois olhou além deles. “Onde estão os outros?”

“Chegando”, disse Vianello. “Liguei de um bar no campo. Eles fizeram um chamado pelo rádio. Cinquegrani e Marcolini estavam por perto e atenderam ao chamado”, explicou, fazendo um gesto para indicar os dois guardas que tinham se posicionado embaixo da varanda, fora da possível linha de fogo dos andares superiores do palazzo.

“É para a gente ir pegar os caras?”, perguntou Vianello, olhando para porta no alto da escada.

“Não”, disse Brunetti, não vendo sentido nisso. “Vamos esperar os outros chegarem”. Como que convocada por suas palavras, uma sirene de dois tons uivou à distância e foi aumentando à medida que se aproximava. Por trás dela, ele ouviu uma outra, uivando pelo Canal Grande, vindo da direção do hospital.

“Flavia”, ele disse, virando-se para ela. “Vá com Vianello. Ele a levará à ambulância.” Depois, para o sargento: “Leve-as daqui e volte. Envie os homens para cá”. Vianello chapinhou para o seu lado, e com facilidade curvou-se e levantou Brett nos braços. Com Flavia na sua cola, ele a carregou pelo pátio e pela calle estreita até o embarcadouro, onde duas luzes azuis brilhavam intermitentes através da chuva incessante.

Seguiu-se uma calmaria. Quando Brunetti se permitiu relaxar um pouco, seu corpo começou a pagar o preço, e seus dentes batiam enquanto tremia com um frio mortal. Ele avançou penosamente pela água e foi se reunir aos dois guardas sob o balcão, protegido pelo menos da chuva.

Um grito de puro terror animal soou atrás da porta da despensa, e aí La Capra começou a uivar o nome do filho sem parar. Depois de algum tempo, o nome desapareceu e foi substituído por um queixume aterrorizante que escoava de trás da porta e enchia o pátio com seu sofrimento.

O som provocou um arrepio em Brunetti, que ansiava ardentemente que Vianello se apressasse. Ele recordou a visão do crânio partido de Semenzato, o som da fala torturada de Brett, mas ainda se sobressaltava com a expressão de sofrimento daquele homem.

“Ei, vocês aí embaixo”, chamou um homem da porta do alto da escada. “Estamos descendo. Não queremos nenhum problema.” Quando se virou, Brunetti viu os três homens com os braços levantados acima da cabeça.”

Vianello chegou nesse momento com quatro sujeitos usando coletes à prova de balas e portando metralhadoras. Os três na escada os viram, também, e pararam para gritar de novo. “Não queremos nenhum problema.” Os quatro homens armados se espalharam pelo interior do pátio, impelidos por instinto e treinamento a se esconderem atrás das colunas de mármore.

Brunetti começou a avançar para a porta da despensa, mas congelou quando viu duas metralhadoras apontadas para ele. “Vianello”, chamou, agora com alguma coisa para se zangar, “diga a eles quem eu sou.” Ele percebeu que não devia ser mais que um homem ensopado de chuva com uma pistola na mão.

“É o comissário Brunetti”, gritou Vianello para eles através do pátio; as metralhadoras foram desviadas e redirecionadas para os homens paralisados na escada.

Brunetti prosseguiu em direção à porta, da qual o lamento incessante continuava saindo. Ele moveu a maçaneta e abriu a porta. Ela emperrou, e ele teve que forçar seu batente estufado sobre o piso de pedra para abri-la. Iluminado pelas luzes brilhantes que inundavam o pátio, ele era um alvo perfeito para alguém protegido pela escuridão da despensa, mas nem pensou nisso; o lamento tornava isso impossível.

Levou algum tempo para seus olhos se acostumarem à escuridão interna, mas quando o fizeram, viu La Capra ajoelhado até a cintura na água, curvado numa Pietà masculina que era uma cópia grotesca da que Brunetti acabara de ver no pátio. Mas essa imagem continha uma finalidade que faltava à outra, pois nela um pai pranteava o filho único morto, cujo corpo havia puxado para si da água imunda.


28

 

 

 

 

Brunetti abriu a porta do escritório e, encontrando-o apenas tépido e o sistema de calefação silencioso, murmurou uma oração de agradecimento a são Leandro, apesar das semanas que haviam transcorrido desde que este operara seu milagre anual. Houvera outros sinais de primavera: em casa, naquela manhã, ele havia notado que os amores-perfeitos na varanda tinham aberto caminho pela terra endurecida pelo inverno, e Paola havia dito que teria de replantá-los naquele fim de semana; a mesa de madeira com as pernas injetadas com veneno assava ao sol ao lado deles; naquela manhã, ele vira as primeiras gaivotas de cabeça preta que passavam umas breves férias de primavera nas águas dos canais todos os anos antes de voarem para outros lugares; e o ar soprava com uma suavidade súbita que fluía como uma bênção pelas ilhas e águas.

Ele pendurou o casaco no armário e caminhou até sua mesa, mas desviou-se dela e foi parar diante da janela. Havia movimento nos andaimes que cobriam San Lorenzo essa manhã. Homens subiam e desciam pelas escadas e se arrastavam pelo telhado. Diferentemente da insistência explosiva da natureza, toda essa atividade humana, Brunetti tinha certeza, não passava de uma falsa primavera e terminaria rapidamente, sem dúvida, com a renovação dos contratos.

Ele ficou parado algum tempo diante da janela, até ser distraído pelo jubiloso “Buon giorno” da signorina Elettra. Hoje ela estava de amarelo, um vestido macio de seda que descia até os joelhos, e saltos tão finos que ele se alegrou que o piso fosse de pedra e não de tacos. Como as flores, as gaivotas e as brisas suaves, ela trouxe graciosidade para a sala, e ele sorriu com algo que lhe pareceu alegria.

“Buon giorno, signorina”, disse. “Você está especialmente adorável hoje. Como a própria primavera.”

“Ah, um vestidinho”, ela disse, depreciativamente, e estalou os dedos na direção da saia do vestido que devia ter lhe custado mais que o salário de uma semana. Seu sorriso contrariava suas palavras, de modo que ele não insistiu.

Ela lhe entregou duas pastas com uma carta presa por um clipe no alto delas. “Isto precisa da sua assinatura, dottore.”

“La Capra?”, ele perguntou.

“Sim. É a sua declaração sobre por que o senhor e o guarda Vianello entraram no palazzo naquela noite.”

“Ah, sim”, ele murmurou, enquanto lia rapidamente o documento de duas páginas, escrito em resposta à queixa dos advogados de La Capra de que a entrada de Brunetti em sua casa, dois meses antes, havia sido ilegal. Endereçada ao Praetore, ela explicava que, durante o curso de sua investigação, ele ficara cada vez mais convencido de que La Capra estava envolvido no assassinato de Semenzato e citava como evidência o fato de que as impressões digitais de Salvatore La Capra haviam sido encontradas no escritório da vítima. Agindo nesse pressuposto e estimulado pelo desaparecimento da dottoressa Lynch, ele fora ao palazzo de La Capra com o sargento Vianello e a signora Petrelli. Ao chegar, eles haviam encontrado a porta do pátio aberta (conforme mencionado nas declarações prestadas pelo sargento Vianello e pela signora Petrelli) e entraram, quando então ouviram o que pareceram os gritos de uma mulher.

Seu relatório trazia uma descrição completa dos acontecimentos depois de sua chegada (de novo, confirmados pelas declarações do sargento Vianello e da signora Petrelli); ele oferecia essa explicação ao Praetore para tranquilizá-lo de que sua entrada na propriedade do signor La Capra havia ficado perfeitamente dentro dos limites da lei, já que é, sem dúvida, o direito, aliás, o dever de um cidadão privado responder a um pedido de ajuda, especialmente se houver acesso fácil e legal para isso. Seguia-se um fecho respeitoso. Ele pegou a caneta que a signorina Elettra lhe estendia e assinou a carta.

“Obrigado, signorina. Mais alguma coisa?”

“Sim, dottore. A signora Petrelli ligou e confirmou sua reunião com ela.”

Mais prova de primavera. Mais graça.

“Obrigado, signorina”, disse ele, pegando as pastas e devolvendo-lhe a carta. Ela sorriu e se retirou.

 

 

A primeira pasta era do escritório de Carrara em Roma e continha uma lista completa dos artigos da coleção de La Capra que a polícia de defraudações artísticas conseguira identificar. A lista de proveniência parecia um guia para turistas, ou para policiais, dos tesouros saqueados do mundo antigo: Herculaneum, Volterra, Paestum, Corinto. O Oriente e o Oriente Médio estavam bem representados: Xian, Angkor Wat, o Museu do Kuwait. Algumas peças pareciam ter sido adquiridas legitimamente, mas eram a minoria. Um número razoável delas foram declaradas falsas. Boas, mas ainda assim falsas. Documentos apreendidos na casa de La Capra provavam que muitas das peças ilegais haviam sido adquiridas de Murino, cuja loja foi fechada para permitir que a polícia de arte fizesse um inventário completo das peças ali e no armazém que ele mantinha em Mestre. Ele negou qualquer conhecimento de objetos adquiridos ilegalmente e insistiu em que eles deviam ter sido comprados por seu antigo sócio, o dottor Semenzato. Não fosse pelo fato de que havia sido preso enquanto aceitava a entrega de quatro caixas de cinzeiros de alabastro de Hong Kong e das quatro estátuas contidas neles, ele poderia ter convencido. Naquelas circunstâncias, foi detido, e seu advogado teve a responsabilidade de produzir as faturas e recibos aduaneiros que implicariam Semenzato.

La Capra, em Palermo, para onde levara o corpo do filho para ser enterrado, parecia ter perdido completamente o interesse por sua coleção. Ele havia ignorado todas as ordens para apresentar novos documentos que pudessem comprovar aquisição ou propriedade. A polícia, portanto, havia confiscado as peças que sabia ou acreditava terem sido roubadas, e continuava investigando a origem das poucas que ainda não havia identificado. Brunetti ficou contente de notar que Carrara cuidara que as peças tiradas da mostra chinesa no Palazzo Ducale não fossem listadas no inventário de objetos encontrados na casa de La Capra. Somente três pessoas — Brunetti, Flavia e Brett — sabiam onde elas estavam.

A segunda pasta continha a papelada crescente do caso contra La Capra, seu falecido filho, e os homens presos com ele. Os dois que haviam espancado a dottoressa Lynch estavam no palazzo naquela noite e foram presos junto com La Capra e outro homem. Os dois primeiros admitiram o espancamento, mas alegaram que tinham ido lá para roubar seu apartamento. Eles insistiram em não saber nada sobre o assassinato do dottor Semenzato.

La Capra, por sua vez, sustentou que não tinha a menor ideia de que os dois homens, a quem identificou como seu motorista e seu guarda-costas, haviam tentado roubar o apartamento da dottoressa Lynch, uma mulher por quem tinha o maior apreço profissional. No início, afirmou também que nem conhecera nem tivera negócios de nenhum tipo com o dottor Semenzato. Mas à medida que as informações chegavam daqueles lugares onde ele e Semenzato haviam se encontrado, quando vários negociantes e antiquários assinaram declarações associando os dois homens numa série de negócios, a história de La Capra refluiu como as águas da acqua alta com a virada da maré ou uma mudança favorável do vento. E com a mudança dessa particular maré veio a lembrança de que ele houvera, no passado, adquirido uma peça ou duas do dottor Semenzato.

Ele fora intimado a voltar para Veneza ou se arriscava a ser trazido pela polícia, mas se colocou sob cuidados médicos e estava confinado em uma clínica particular, tendo sofrido um colapso nervoso resultante do sofrimento pessoal. Permaneceu lá fisicamente e, num país onde apenas o laço entre pai e filho continuava sagrado, legalmente intocável.

Brunetti empurrou as pastas para longe e ficou olhando para a superfície vazia da escrivaninha, imaginando as forças que já haviam sido colocadas em jogo naquilo. La Capra era uma pessoa influente. E ele agora tinha um filho morto, um jovem de temperamento violento. Não tinham os dois facínoras, um dia depois de falarem com seu advogado, se lembrado de ter ouvido Salvatore dizer um dia que o dottor Semenzato havia tratado seu pai sem respeito? Alguma coisa sobre uma estátua que ele tinha comprado de seu pai que se revelara falsa — algo assim. E, sim, eles acharam que podiam se lembrar de ouvi-lo falar que faria o dottor lamentar de ter recomendado artefatos falsos a seu pai ou para ele comprar para o pai.

Brunetti não teve dúvida de que, com o correr do tempo, os dois facínoras se lembrariam cada vez mais, e que tudo apontaria para o pobre Salvatore, inclinado apenas a uma defesa equivocada da honra de seu pai e da sua. E eles provavelmente recordariam as muitas ocasiões em que o signor La Capra tentara persuadir o filho de que o dottor Semenzato era um homem honesto, que sempre agira de boa-fé quando endossara peças que eram então vendidas por Murino, seu sócio. Talvez os juízes, se o caso chegasse a esse ponto, teriam de ouvir uma história sobre o desejo de Salvatore de dar ao pai nada mais que prazer, filho devotado que era. E Salvatore, um rapaz absolutamente tosco, mas bom, de coração bom, teria tentado conseguir esses presentes para seu amado pai da única maneira que conseguia pensar, procurando o conselho do dottor Semenzato. E dada sua devoção ao pai, seu intenso desejo de agradá-lo, foi um pequeno passo imaginar sua raiva quando descobriu que o dottor Semenzato havia tentado tirar vantagem tanto de sua inocência como de sua generosidade vendendo-lhe uma cópia em lugar de uma peça original. Daí, foi pouca distância para a injustiça de contribuir para o sofrimento de um pai, um pai que tivera que sofrer de um golpe a morte de seu amado filho único e o triste conhecimento dos extremos a que o filho fora capaz de chegar na tentativa de agradá-lo e defender a honra da família.

Sim, isso se sustentaria, e a associação entre La Capra e Semenzato, em vez de funcionar como evidência de sua culpa, seria usada como o oposto, como uma explicação da boa-fé elementar entre os dois homens, uma confiança destruída pela desonestidade de Semenzato e pela impulsividade de Salvatore, pobre infeliz, hoje fora do alcance da lei. Brunetti não teve dúvida de que a decisão judicial final seria que Salvatore havia matado Semenzato. Bem, ele poderia ter matado. Ninguém jamais saberia. Ele ou La Capra o havia feito, ou mandado fazer, e os dois haviam pagado à sua maneira. Fosse ele um homem mais chegado ao sentimentalismo, Brunetti julgaria que La Capra havia pagado o maior preço, mas como ele não era, a pena de Semenzato lhe pareceu maior.

Brunetti levantou-se e afastou-se da mesa e das pastas que levavam a essa conclusão. Ele vira La Capra com o filho, o havia puxado das águas lamacentas e ajudara o homem em prantos a flutuar o corpo do filho até o pé dos três degraus baixos. E ali, coubera a ele, a Vianello e a dois outros guardas separá-los, afastar La Capra de sua inútil tentativa de fechar com os próprios dedos o orifício exangue no lado do pescoço do filho.

Brunetti nunca acreditou que uma vida pudesse ser paga com outra vida, de modo que novamente descartou a ideia de que La Capra estava quite pela morte de Semenzato. Todo pesar era separado e discreto, relacionado somente com uma perda. Mas ele achou difícil sentir qualquer rancor pessoal pelo homem que vira pela última vez uivando nos braços de um policial cuja única preocupação era impedi-lo de olhar o corpo do filho carregado dali numa maca, o rosto coberto pela capa encharcada de Vianello.

Afastou essas lembranças. Estava tudo fora do seu alcance agora, nas mãos de outra agência da lei, e ele não poderia mais afetar o desfecho daquilo de nenhum modo. Já tivera o suficiente de morte e violência, o suficiente de beleza roubada e cobiça pela perfeição. Ansiava pela primavera e suas muitas imperfeições.

 

 

Uma hora mais tarde, ele saiu da questura e caminhou para San Marco. Por toda parte, via as mesmas coisas que veria por muitos dias, mas hoje preferiu chamá-las de sinais de primavera. Até os onipresentes turistas corados exaltavam seu coração. A Via XXII Marzo impeliu seus passos para a ponte Accademia. No lado oposto dela, vislumbrou a primeira longa fila de turistas da estação esperando para entrar no museu, mas já tivera arte de sobra por algum tempo. A água o atraía agora e o pensamento de sentar-se ao primeiro sol com Flavia, tomando um café, falando disso e daquilo, vendo como o rosto dela passava rapidamente da calma para a alegria e de volta à calma. Ele ia encontrá-la em Il Cucciolo às onze, e já se deleitava com a ideia do som das águas se revolvendo sob o deque de madeira, do movimento inconstante dos garçons ainda não descongelados de sua letargia de inverno, e dos grandes guarda-sóis que insistiam em criar sombra muito antes de haver a necessidade dela. Ele tirou maior deleite ainda ao pensar no som da voz dela.

Diante dele, viu as águas do Canal da Giudecca e, além delas, as fachadas alegres dos edifícios do outro lado. Da esquerda, um navio petroleiro assomou, navegando alto e vazio na água, e até seu casco cinzento riscado parecia brilhante e belo naquela luz. Um cachorro passou correndo, jogou para cima as pernas traseiras, depois girou sobre si mesmo, tentando morder a própria cauda.

Na beira da água, ele virou para a esquerda e caminhou para o deque aberto de um bar, procurando por ela. Quatro casais, um homem solitário, outro, uma mulher com duas crianças, uma mesa com seis ou sete jovens garotas cujas risadinhas ainda eram audíveis mesmo enquanto ele se aproximava. Mas nada de Flavia. Talvez estivesse atrasada. Talvez ele não a tivesse reconhecido. Voltou à primeira mesa próxima e estudou todo mundo de novo, na mesma ordem. E então a avistou, sentada com as duas crianças, um garoto alto e uma garota ainda roliça com a gordura da infância.

Seu sorriso desapareceu, e uma expressão grave tomou seu lugar. Aproximou-se da mesa e tomou a mão que ela estendia.

Ela sorriu para ele. “Oh, Guido, que maravilha ver você. Que dia glorioso.” Ela se virou para o menino e disse: “Paolino, este é o dottor Brunetti”. O garoto se levantou, quase tão alto quanto Brunetti, pegou sua mão e a apertou.

“Buon giorno, dottore. Quero lhe agradecer por ter ajudado minha mãe.” A frase soou como se tivesse sido ensaiada, e ele a pronunciou formalmente, como se tentasse ser um homem com alguém que já o era. Tinha os olhos escuros da mãe, mas seu rosto era mais comprido e mais estreito.

“Eu também, mamma”, disse a garota, e quando Flavia demorou a responder, ficou de pé e estendeu a mão para Brunetti. “Eu sou Vittoria, mas meus amigos me chamam de Vivi.”

Pegando sua mão, Brunetti disse: “Então vou chamá-la de Vivi”.

Ela era nova o bastante para sorrir, velha o bastante para desviar os olhos antes de corar.

Ele puxou uma cadeira e sentou-se, depois virou-a para ficar com o rosto para o sol. Eles conversaram sobre amenidades por alguns minutos, as crianças fazendo perguntas sobre como era ser um policial, se ele carregava um revólver, e, quando Brunetti disse que sim, onde ele estava. Vivi perguntou se já tivera que atirar em alguém e pareceu desapontada quando ele disse que não. Não demorou muito para as crianças perceberem que ser um policial em Veneza era muito diferente de ser um tira em Miami Vice, e depois dessa revelação pareceram perder o interesse tanto em sua carreira como nele.

O garçom veio, e Brunetti pediu um Campari soda; Flavia pediu outro café, mas depois mudou para um Campari. Os filhos foram ficando perceptivelmente irrequietos, até Flavia sugerir que eles caminhassem pelo dique até o Nico’s e comprassem gelato, uma ideia que foi recebida com alívio geral.

Quando se afastaram, Vivi se apressando para acompanhar os passos mais largos de Paolo, ele disse: “São crianças muito bonitas”. Flavia não disse nada, e então ele acrescentou: “Não sabia que os trouxera a Veneza com você”.

“Sim, não é sempre que tenho a oportunidade de passar um fim de semana com eles, mas como não estou programada para cantar na matinê deste sábado, por isso resolvi vir até aqui. Estou cantando em Munique, agora.”

“Eu sei. Li sobre você nos jornais.”

Ela olhou por cima da água, para a igreja do Redentore do outro lado do canal. “É a primeira vez que venho aqui no começo da primavera.”

“Onde está hospedada?”

Ela afastou o olhar da igreja e o fitou. “Na Brett.”

“Oh. Ela está aí com você?”, ele perguntou. Ele vira Brett pela última vez no hospital, mas ela permanecera ali apenas durante a noite, depois ela e Flavia partiram para Milão. Ele não havia falado com nenhuma delas até o dia anterior, quando Flavia havia ligado e pedido para ele encontrá-la para uma bebida.

“Não, ela está em Zurique, dando uma palestra.”

“Quando volta?”, ele perguntou polidamente.

“Vai estar em Roma na próxima semana. Eu termino em Munique na próxima quinta-feira à noite.”

“E depois o quê?”

“E depois Londres, mas só para um concerto, e depois China”, disse ela, a voz carregada de censura que ele havia esquecido. “Fui convidada para dar master classes no Conservatório de Beijing. Não lembra?”

“Então vocês vão levar isso em frente. Vão levar as peças de volta?”, ele perguntou, surpreso de que ela seria capaz.

Ela não fez nenhuma tentativa de disfarçar sua satisfação. “Claro que vamos. Isto é, eu vou.”

“Mas como vai fazer isso? Quantas peças são? Três? Quatro?”

“Quatro. Estou levando sete malas de bagagem, e consegui que o ministro da Cultura me encontrasse no aeroporto. Duvido que eles vão procurar contrabando de antiguidades para dentro do país.”

“E se as encontrarem?”, ele perguntou.

Ele fez um gesto de mão puramente teatral. “Bem, eu sempre posso dizer que as estava trazendo para doar ao povo da China, que ia doá-las depois de dar as master classes, como um tributo de minha gratidão por terem me convidado.”

Ela o faria, e ele tinha certeza de que se sairia bem. Ele riu com o pensamento. “Bem, boa sorte para vocês.”

“Obrigada”, ela disse, certa de que não precisaria de nenhuma sorte naquilo.

Ficaram em silêncio por alguns instantes, Brett era como um terceiro elemento, invisível, mas presente. Lanchas passavam ociosas; o garçom trouxe as bebidas, e eles ficaram contentes com a interrupção.

“E depois da China?”, ele perguntou, finalmente.

“Muitas viagens até o fim do verão. Essa é outra razão por que eu queria passar o fim de semana com as crianças. Tenho de ir a Paris, depois Viena, e depois volto a Londres.” Como ele não disse nada, ela tentou aliviar o clima: “Tenho que morrer em Paris e Viena, Lucia e Violetta.”

“E em Londres?”, ele perguntou.

“Mozart. Fiordiligi. E aí minha primeira tentativa com Handel.”

“Brett vai com você?”, ele perguntou, e sorveu sua bebida.

Ela tornou a olhar para a igreja, a igreja do Redentor. “Ela vai ficar na China pelo menos por alguns meses”, foi a resposta de Flavia.

Ele tomou mais um gole e olhou por sobre a água, subitamente consciente da dança de luzes na superfície ondulada. Três minúsculos pardais pousaram aos seus pés, saltitando em busca de comida. Lentamente, ele estendeu a mão e pegou um bocado do croissant que ficara no prato de Flavia e atirou para eles. Gulosamente, eles saltaram sobre ele e o fizeram em pedaços, depois cada um voou para um lugar mais seguro para comer.

“A carreira dela?”, ele perguntou.

Flavia fez que sim, depois deu de ombros. “Temo que ela a tome bem mais a sério do que...”, ela começou, mas foi silenciando.

“Do que você leva a sua?”, ele perguntou, não preparado para acreditar nisso.

“De certa maneira, sinto que é verdade.” Vendo que ele ia protestar, ela pousou uma mão em seu braço e explicou: “Pense desta maneira, Guido. Qualquer um pode vir e me ouvir pôr a boca no mundo sem precisar conhecer nada que seja de música ou canto. Basta gostar dos meus trajes, ou da história, e talvez apenas grite ‘bravo’ porque todo mundo está gritando”. Ela notou que ele não acreditava nisso e insistiu: “É verdade, acredite. Meu camarim fica cheio deles depois de cada performance, gente que me diz como meu canto foi lindo, mesmo que eu tenha cantado como um cão naquela noite”. Ele observou a lembrança disso perpassar pelo rosto dela, e aí percebeu que estava falando a verdade.

“Mas pense no que Brett faz. Pouquíssimas pessoas sabem alguma coisa sobre o seu trabalho, exceto aquelas que realmente conhecem o que ela faz; elas são todas especialistas, por isso compreendem a importância do seu trabalho. Imagino que a diferença é que ela só pode ser julgada por seus pares, seus iguais, de modo que os padrões são muito mais altos, e elogios realmente significam alguma coisa. Eu posso ser aplaudida por qualquer tolo que queira aplaudir.”

“Mas o que você faz é lindo.”

Ela deu uma gargalhada. “Não deixe Brett ouvir isso.”

“Por quê? Ela não pensa assim?”

Ainda rindo, ela explicou: “Guido, você sabe do que estou falando. Ela acha que o que faz é belo também, e acha que as coisas em que trabalha são tão belas como as coisas que eu canto”.

Ele se lembrou então de que havia ficado alguma coisa pouco clara no depoimento de Brett e ele gostaria de lhe perguntar sobre isso. Mas não houvera tempo: ela permanecera no hospital e em seguida partira imediatamente de Veneza após assinar o depoimento formal. “Há uma coisa que não compreendo”, ele começou, e aí deu uma risada quando percebeu o quanto isso era verdade.

O sorriso dela foi provocativo, inquisitivo. “O quê?”

“É sobre o depoimento de Brett”, ele explicou. O rosto de Flavia relaxou. “Ela escreveu que La Capra lhe mostrara uma tigela, uma tigela chinesa. Esqueci de que século ela supostamente era.”

“Do terceiro milênio antes de Cristo”, explicou Flavia.

“Então ela lhe contou sobre isso?”

“Claro.”

“Então talvez você possa me ajudar”. Ela fez que sim, e ele continuou. “No depoimento, ela disse que a quebrou, que a deixou cair no chão, sabendo que ela se quebraria.”

Flavia fez que sim. “Foi, eu falei com ela. Foi isso que ela disse. Foi o que aconteceu.”

“É isso que não compreendo”, disse Brunetti.

“O quê?”

“Se ela ama tanto essas coisas, se é tão devotada a elas, a salvá-las, então a tigela devia ser falsa, não é, outra daquelas imitações que La Capra adquirira pensando que fosse autêntica?”

Flavia não disse nada e desviou a cabeça para fitar o moinho abandonado na ponta extrema da Giudecca.

“Então?”, insistiu Brunetti.

Ela se virou para ele, o sol incidindo sobre ela da esquerda e cinzelando seu perfil contra os edifícios do outro lado do canal. “Então o quê?”, perguntou.

“Tinha de ser falsa, não é, para ela despedaçá-la?”

Por um longo tempo, achou que ela ia ignorá-lo e se recusaria a responder. Os pardais voltaram e, dessa vez, Flavia partiu os restos de croissant em pequenos fragmentos e os atirou para eles. Os dois observaram os pequenos pássaros engolirem as migalhas douradas e olharem para Flavia pedindo mais. Ao mesmo tempo, eles desviaram o olhar das aves e seus olhos se encontraram. Após um longo momento, ela afastou o olhar dele para o píer, onde viu os filhos retornando com cones de sorvetes nas mãos.

“Então?”, perguntou Brunetti, precisando de uma resposta.

Os dois ouviram os gritinhos da risada de Vivi ressoar sobre a água.

Flavia se inclinou para a frente e colocou a mão sobre o braço dele novamente. “Guido”, ela começou, sorrindo. “Isso não importa, não é?”

 

 

                                                   Donna Leon         

 

 

 

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