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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AGNES DE DEUS E A ROSA / Leonore Flescher
AGNES DE DEUS E A ROSA / Leonore Flescher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AGNES DE DEUS E A ROSA

 

Irmã Agnes era tudo o que uma jovem freira deveria ser: inocente, de uma beleza angelical, devotada apenas a Deus. Até que foi acusada de um dos crimes mais abomináveis que a humanidade conhece.

A polícia diz que ela é uma assassina. A madre superiora garante que ela é na realidade uma santa. E agora compete à psiquiatra Martha Livingston procurar a verdade terrível oculta por trás dos silenciosos muros do convento... e nos recessos mais sombrios da mente de uma jovem frágil e indefesa...

Aí está a essência desta história maravilhosa, originalmente uma peça de teatro escrita por John Pielmeier, traduzida para várias línguas e montada com sucesso em muitos países, inclusive no Brasil. Agora transformada em filme e convertida em romance, a história de AGNES DE DEUS adquire uma nova profundidade, no relato do conflito permanente entre a ciência e a fé.

Irmã Agnes vive no Convento das Pequenas Irmãs de Maria Madalena, em Ber-thierville, perto de Montreal, na província de Quebec. É jovem, bela e inocente, nada sabe das coisas do mundo, levou uma infância apartada, meio traumática. Não possui uma noção exata dos acontecimentos em que se envolveu e sente-se apenas assustada em seus contatos com o mundo exterior que praticamente desconhecia.

Madre Míriam Ruth, a superiora do convento, é uma mulher experiente, conhecedora do mundo e das pessoas, que tenta proteger Irmã Agnes das ameaças externas. Martha Livingston é psiquiatra, rética, convencida de que a ciência e somente a ciência pode dar todas as respostas, e procura descobrir na mente da jovem freira a verdade sobre o trágico incidente.

 

 

Está escuro, e o grito é horrível de se ouvir. Continua e continua, grito após grito, agonia traduzida em ondas sonoras. E há gemidos agora, baixos e assustadores, misturando-se com os berros de angústia, mais terríveis do que os gritos. E depois os gemidos param, e o silêncio é o mais aterrador de todos os sons.

Temo ver o que está além da porta. Mesmo assim, recorro a todas as minhas forças para abri-la.

Cristo, tenha misericórdia de nós! Nunca vi tanto sangue em minha vida... Há sangue nas paredes, na cama, uma poça de sangue no chão...

E ali, ali debaixo da cama...

 

Era mais de uma hora de carro, seguindo para oeste da cidade. Embora geralmente fosse impaciente ao volante, preferindo estar em algum lugar em vez de a caminho, a Dra. Martha Livingston estava achando aquela viagem curta demais. Além das janelas do BMW, o dia estava esplêndido, revigorante e dourado. A estranha claridade, típica dos dias mais curtos do final de outubro, passando enviesada pelas nuvens acumuladas, pretas por baixo e rosadas em cima, banhava a paisagem com a luminosidade de uma pintura de Turner. Mas não era a imponência da paisagem ou o esplendor do dia de outono que constituíam o motivo da relutância da Dra. Livingston em concluir a viagem. Na verdade, ela estava alheia ao mundo além das janelas do carro. O que a perturbava era o que a aguardava quando chegasse a.seu destino.

Ao pensar nisso, ela enrugava a testa, e os dedos compridos apertavam com força o volante. Instintivamente, estendeu a mão para pegar um cigarro. Guiou apenas com a outra mão, enquanto vasculhava a bolsa grande de couro, encontrava o maço e acendia o cigarro. Mas o cigarro, que quase sempre conseguia acalmá-la, não teve agora qualquer efeito sobre sua ansiedade. Tinha sentimentos variados sobre aquele caso, e quase todos ruins.

Como psiquiatra designada pelo tribunal, a Dra. Martha Livingston já deparara com a maioria dos aspectos desagradáveis da condição humana. Forte, inteligente, corajosa, estava acostumada a se aventurar ousadamente pelos recessos ocultos mais sinistros da mente criminosa. Sua vida profissional estava dedicada a levar a luz da razão aos medos secretos, desenraizando-os, expondo-os como irracionais, vencendo-os. Mas aquele caso tinha aspectos que ela jamais encontrara antes, aspectos no mínimo perturbadores.

Assassinato era sempre horrível, mas o assassinato de uma criança recém-nascida era duas vezes mais, não apenas pelo próprio feito em si, mas também pelo insano desperdício de uma nova vida. Desperdício. A palavra era irônica. A criança fora encontrada num cesto de papel no quarto da acusada, estrangulada, o cordão umbilical enrolado no pescoço.

Insano. O trabalho da Dra. Livingston, ao final da viagem, era determinar a sanidade ou insanidade da acusada. Se fosse considerada insana, a acusada não seria levada a julgamento, mas passaria o resto de sua vida num manicômio judiciário. Pensar na acusada provocou calafrios em Martha, apesar de o interior do carro estar bastante aquecido.

Ela não quisera pegar aquele caso, lembrou a si mesma, talvez pela centésima vez. E o dissera a todos, alto e bom som, naquele dia no tribunal, depois que a suspeita fora indiciada.

— Escolham outra pessoa, por favor.

O Juiz Leveau sacudiu a cabeça, firmemente.

— Sinto muito, Martha — disse ele, em sua voz judicial suave — mas o caso é seu.

— O que me diz de Roger? — protestou ela. — Ele está livre neste momento.

Eve LeClaire, procuradora da Coroa, interveio, com brusca autoridade.

— Eles querem uma mulher — disse ela, incisiva, como se isso pusesse fim a toda e qualquer discussão.

Martha soubera desde o início que devia ser algo assim, soubera desde que recebera o telefonema solicitando sua presença no tribunal. Soubera ao passar por cima dos cabos das câmaras de televisão, ao abrir caminho pela multidão de repórteres excitados na escadaria do prédio do tribunal. Havia um verdadeiro pandemônio pelos largos degraus de mármore, um tumulto de vozes falando e gritando em inglês e francês. À sua frente, avistara a acusada, pálida, pequena, muito magra, cercada pelas outras e flanqueada por Eugene Lyon, um advogado de defesa que sempre dava um jeito de segurar os casos que viravam manchete.

E aquele caso — com todos os seus elementos bizarros — era mesmo de muitas manchetes. Não apenas ali, em Montreal, não apenas na província de Quebec, mas também no mundo inteiro. Era matéria sensacional de primeira página, e Martha Livingston não queria ter qualquer participação.

Ela correu os olhos pela sala de lambris e com livros em todas as paredes que era o gabinete do Juiz Joseph Leveau. Estava em inferioridade numérica, três contra um. Leveau, LeClaire e Lyon sentavam-se confortáveis em suas cadeiras de couro, enquanto ela permanecia de pé, os nervos à flor da pele, fumando desesperada o terceiro cigarro em vinte minutos.

— Tudo o que precisa fazer é conversar com ela uma ou duas vezes — disse Lyon, com o tom persuasivo que usava no tribunal — e depois declarar ao tribunal que se trata de uma pessoa insana.

Martha fitou-o, os olhos azul-escuros brilhando furiosamente.

— Está querendo me dizer que posição devo assumir? LeClaire interveio, sempre suave:

— Martha, tudo o que estamos dizendo é que... Mas a Dra. Livingston não estava disposta a se deixar apaziguar e insistiu:

— Estamos entrando num terreno judicial muito perigoso.

— Ninguém quer que este caso seja levado a julgamento — respondeu a procuradora. — Nem a Igreja, nem a Coroa, e muito menos eu.

Martha apagou irritada o cigarro no cinzeiro mais próximo e automaticamente pegou outro.

— Mas ela estrangulou uma criança...

— Ninguém está interessado em mandar uma freira para a prisão — insistiu LeClaire.

O juiz mudou de posição na cadeira, demonstrando o primeiro sinal de inquietação até aquele momento.

— Não estamos lhe dizendo o que deve decidir, Martha — declarou ele, embora sua expressão indicasse justamente o oposto. — Nem mesmo estamos lhe exigindo que aceite o caso. Acontece apenas que estamos sob grande pressão.

— Há algum motivo pelo qual ache que não deve aceitá-lo? — indagou Lyon, o advogado de defesa.

— Há sim — respondeu Martha no mesmo instante, para em seguida morder o lábio.

Como podia explicar suas objeções, quando não era capaz de defini-las claramente para si mesma?

— E qual é? — perguntou Lyon, a voz suave, mas os olhos penetrantes de advogado a sondarem-na.

O que posso dizer-lhes para fazê-los entender?, perguntou-se Martha. Sou o médico errado para este caso. E, mais importante ainda, este é o caso errado para mim.

Hoje é meu aniversário — respondeu ela, depois de uma pausa prolongada. — E sempre tomo as piores decisões no meu aniversário.

Martha sabia que essas palavras eram por demais irreverentes e frágeis, mas sua garganta estava tão apertada que foram as únicas que conseguiu balbuciar.

Todos riram. Depois, o juiz inclinou-se e pegou a pasta onde estavam os documentos do caso da freira. Com um sorriso sardônico, estendeu-a para Martha.

— Feliz aniversário. Relutante, ela pegou a pasta.

— Obrigada.

Era leve em sua mão; não devia conter muitos documentos. Por que deveria haver? Não era um caso simples? Uma freira teria poucos documentos que a ligassem à burocracia do mundo exterior. E certamente nunca dera entrada numa prisão. Numa cela, sim, é claro, mas não numa prisão. Martha estremeceu com seu trocadilho de mau gosto; era um aviso subconsciente de que estava ficando cansada e devia sair dali, enquanto o trio judicial ainda lhe permitia continuar inteira.

Guardando a pasta em sua maleta, ela despediu-se tão graciosamente quanto podia, levando-se em consideração a maneira como fora pressionada pelos três. Os saltos dos sapatos ressoaram muito alto em seus próprios ouvidos ao atravessar o chão de mármore do saguão do prédio do tribunal; estava mesmo com os nervos à flor da pele. Ainda não dera um passo naquele caso e ele já a perturbava.

Uma freira, pensou ela, ao abrir seu carro e jogar a maleta no banco traseiro, o mais longe que podia. Uma freira e assassina. Não, não era assassinato. Estava sempre esquecendo que a acusação era de homicídio culposo. Uma freira estava indiciada por homicídio culposo. De qualquer forma, Irmã Agnes matara o próprio bebê recém-nascido, estrangulando-o com o cordão umbilical. Mas que coisa terrível!, murmurou Martha para si mesma. Não é de admirar que o caso tenha me repelido! Santo Deus! Uma freira!

A Dra. Livingston tentou imaginar a Irmã Agnes enquanto voltava para casa. Procurou recordar a figura que vira na escadaria do tribunal, uma mulher pequena, franzina, cercada protetoramente por um grupo de outras freiras. O rosto era tão branco quanto a touca que ela usava, mas Martha não podia agora definir-lhe as feições. Ao clarão dos flashes, os detalhes do rosto da jovem haviam se perdido, embora os olhos deixassem alguma impressão. Grandes, as pupilas largas e escuras.

Ela olhou para mim, pensou Martha, completamente apavorada, como se estivesse fora de si.

Fora de si. Devia estar, não é mesmo? De que outra maneira se podia estrangular uma criança recém-nascida? Fora premeditado ou insanidade temporária?

O que quer que fosse, Martha já decidira que a melhor coisa a fazer era concluir o caso o mais depressa possível, como Lyon aconselhara. Teria um ou dois encontros com Irmã Agnes e apresentaria seu diagnóstico. De que adiantaria arrastar aquele caso sórdido por mais tempo que o estritamente necessário? Quanto mais cedo acabasse, melhor seria para todas as pessoas envolvidas.

Mas agora ela tentou afastá-lo de seus pensamentos. Era o seu aniversário, sairia naquela noite para comemorar, não dispunha de muito tempo para lavar a cabeça e se vestir antes da hora combinada.

Mas uma freira! Santo Deus! Uma freira!

— Bon anniversaire, Marty — sussurrou Richard Langevin em seu ouvido, em meio ao burburinho alegre do restaurante.

Ele deu-lhe uma pequena mordida afetuosa no lóbu-lo, mas Martha sacudiu a cabeça, impaciente. Os outros à mesa começaram a cantar efusivamente Parabéns Pra Você, enquanto o maitre, radiante, trazia o bolo, a cobertura branca faiscando. O Rive Gaúche era seu restaurante predileto, seu aniversário era a data que mais gostava, as pessoas cantando eram suas maiores amigas, e Richard Langevin muito querido, mas Martha não conseguia se desvencilhar do sentimento de pavor que lhe arruinara o dia. Aquele caso horrível! Não podia evitar que a mente voltasse a ele; nem o patê de coelho, nem o pato com conhaque de maçã Normandy e nem o excelente Bordeaux podiam distraí-la. Nem mesmo aquele bolo ridículo e um tanto embaraçoso, que levou todas as pessoas no restaurante a cantarem também e aplaudirem.

Uma garrafa de champanha chegou, como num passe de mágica, com os cumprimentos da casa. Martha fez um esforço para dar a impressão de que se divertia. Vestira-se com cuidado especial, e a admiração no rosto de Richard lhe dizia que estava muito bem, o corpo esbelto delineado pelo jérsei de seu melhor vestido, o pescoço comprido e a saboneteira saliente sobressaindo de maneira esplêndida. Afinal, aquela era uma ocasião especial.

Sempre que fechava os olhos, no entanto, ela podia imaginar um bebê, a pele do rosto azulada, um cordão ensangüentado em torno do pescoço, os olhos vagos esbuga-lhados, as mãozinhas sacudindo em busca do ar misericordioso. E estremecia.

Já passava de meia-noite quando deixaram o pequeno bistrô na Velha Montreal. Os três casais pararam na calçada molhada — chovera enquanto estavam lá dentro — despedindo-se ruidosamente. Estavam todos cansados do dia longo e mais do que um pouco inebriados do vinho, somado ao champanhas ao conhaque francês depois do jantar. Martha sentia dor de cabeça, que lhe apertava o crânio e comprimia os olhos.

— Você não se divertiu muito — comentou Richard, o tom triste, ao embarcarem em seu velho Peugeot.

Martha inclinou-se e apertou-lhe a mão.

— Claro que me diverti. Juro. Mas estou um pouco angustiada com o caso que me entregaram hoje. Desculpe.

— A freira que matou o bebê? Ela acenou com a cabeça, cansada.

— Dommage — murmurou Richard, compadecido. — Não a invejo. Não será uma decisão fácil.

— Sei disso.

As ruas molhadas brilhavam sob os lampiões antigos da parte velha da cidade. Seguiram devagar, em silêncio, por deferência à dor de cabeça de Martha, mas Richard Langevin a todo instante lançava olhares de esguelha para o seu rosto pálido, como se estivesse ansioso em fazer algumas perguntas. Como um tenente da polícia, ele queria mesmo fazer perguntas. Aquele caso, com todo o seu horror que ganhara as manchetes, parecia-lhe bem definido. Uma freira concebera secretamente um filho ilegítimo e o matara ao nascer, estrangulando-o. Depois disso, no entanto, tornava-se político. Não apenas as autoridades da Coroa estavam envolvidas, mas também os líderes da Igreja Católica Romana no Canadá acompanhavam de perto, prontos para interferir se julgassem necessário.

O Peugeot entrou no Mount Royal Park; o apartamento de Martha ficava numa mansão vitoriana, na área de língua inglesa de Westmount, nas encostas do parque. No alto do Mount Royal havia uma cruz iluminada, visível de grande parte da cidade. Embora fosse um ponto de referência familiar, os olhos de Martha foram agora atraídos, e ela não pôde desviá-los. A brancura e pureza do símbolo pareciam arder em seu cérebro dolorido. Sentiu que a cabeça estava prestes a estourar da pressão de sua claridade. Eles pararam diante do prédio, mas não fizeram qualquer movimento para sair. Richard só entraria de plantão mais tarde. Mesmo assim, havia uma decisão tácita dos dois de que aquela noite não era uma ocasião oportuna para ele subir e ficar. Richard tirou o maço amarrotado do bolso e acendeu dois cigarros, entregando um a Martha, sem dizer nada. Ficaram fumando em silêncio por um minuto, até que ele falou:

— Essa freira... o que sabe a respeito dela? Martha sacudiu a cabeça, contrariada.

— Quer parar de bancar o detetive, Richard? Deixe o emblema na delegacia, está bem?

— Marty, neste caso há perguntas importantes que não podem deixar de ser formuladas.

— Por exemplo?

— Elas são mesmo carecas por baixo da touca?

A pergunta era tão inesperadamente absurda que Martha não pôde conter um acesso de riso.

— Estou falando sério — continuou Richard. — Quando eu era garoto sempre nos diziam que as freiras viviam até os cento e cinqüenta anos.

— E não vivem?

Ainda um pouco embriagados do jantar, os dois riram como uma dupla de garotinhos levados. Houve outro momento de silêncio, enquanto Martha tragava fundo.

— Richard, não sei se posso aceitar esse caso — murmurou, agora muito séria.

— Por que não? Mas se está tão preocupada assim, entregue-o a Roger. Nada perturba Roger...

Martha interrompeu-o bruscamente:

— Sabia que eu tinha uma irmã?

Richard fitou-a, os olhos escuros de detetive sondando-a sob as sobrancelhas grossas.

— Não — respondeu ele, sem acrescentar mais nada, esperando pela história.

— Marie era dois anos mais moça do que eu. — As palavras saíam com dificuldade, como se tivessem passado tanto tempo escondidas que agora sentiam medo da luz. — Ela entrou num convento quando tinha dezesseis anos. E lá morreu, de apendicite aguda, sem qualquer assistência médica, porque a madre superiora não a mandou para o hospital.

Martha esmagou o cigarro no cinzeiro, olhando fixamente para a frente, sem enfrentar os olhos de Richard.

— Santo Deus... — balbuciou ele.

A amargura de Martha, não apenas nas palavras mas também no tom de voz, era mais do que evidente. Dava para entender agora sua ansiedade e a relutância em aceitar o caso. Freiras e conventos eram anátema para ela. Há anos que vivia com aquela raiva, aquela angústia.

Ela se virou agora para fitá-lo, um pequeno sorriso irônico contraindo os lábios cheios.

— Por isso, eu e a religião... — Martha bateu na testa. — Aqui. Esta é a minha religião. Contém as respostas para tudo, absolutamente tudo.

O mais antigo conflito da história, pensou Richard. A fé contra a razão, a razão contra a fé. E ela pensa que encontrou a solução. Em voz alta, ele limitou-se a dizer:

— É verdade, aí está a resposta para tudo... menos se você deve ou não aceitar esse caso.

Ele deu um beijo de leve naquela testa racional de que Martha tanto se orgulhava.

— Dormirei com o problema.

Martha riu. Sentia-se melhor agora; Richard sempre exercia esse efeito nela. Era confiante, seguro. Até parecia sólido, com seu rosto rude, as mãos grandes e competentes, olhos intensos, ombros que pareciam de granito. Ela sorriu-lhe afetuosamente, desejando por um momento poder convidá-lo a subir. Richard olhou para o relógio.

Ei! Só tenho vinte minutos para chegar na delegacia!

Ele ligou o carro. Martha saltou.

— Obrigada pela festa, Richard. Foi maravilhosa. Não precisa me acompanhar até a porta.

— Feliz aniversário. Telefono depois.

Ele se afastou, devagar, olhando para Martha. Quando ela chegou na porta, Richard ligou o holofote no alto do carro, iluminando em seu facho o corpo esguio de Martha. Ela virou-se e acenou em despedida, sorrindo.

A melhora em seu ânimo durou até que chegou ao apartamento. Abriu a porta e estendeu a mão para o interruptor, mas mudou de idéia. A escuridão era de certa forma confortadora, e podia ver surpreendentemente bem. Largou a bolsa, as chaves, a correspondência e o jornal na mesa do vestíbulo em que estava o telefone com a secretária eletrônica. Ligou o aparelho para ouvir os recados, aumentando o volume, a fim de poder escutar da cozinha.

Uma gata pequena, branca e preta, correu em sua direção, miando por atenção, seguindo Martha para a cozinha. Apesar dos seus insistentes pedidos de comida, Martha ainda podia ouvir as mensagens reproduzidas pela secretária eletrônica.

"Oi, Marty, aqui é Helen." Sua secretária, Helen Gervaise. "Só estou ligando para informar que a Sra. Daven-port confirmou a sua consulta amanhã, às nove horas. Tchau." Clique.

Martha abriu a geladeira e tirou uma caixa de leite.

"Oi, querida, sou eu." A voz de Tom. "Só queria lhe desejar um feliz aniversário. Desculpe não poder comparecer esta noite. Telefono para você amanhã. Eu a amo." Clique. Martha suspirou e sacudiu a cabeça.

Serviu-se de um copo de leite e pegou a tigela da gata no armário por cima da pia. Mitzi ronronou e enroscou-se em suas pernas, farejando o leite.

Martha ficou parada diante da porta aberta da geladeira, tomando o leite devagar, à luz da pequena lâmpada lá de dentro. A seus pés, a gata deu um pulo feliz, afastando-se da tigela. A voz seguinte que saiu do aparelho, meio fantástica, fê-la empertigar-se e largar o copo de leite em cima da bancada, os dedos trêmulos. Como sempre, ele falou em inglês e francês, passando de uma língua para outra com uma desenvoltura natural.

"Adivinhe quem é, Martha?" Muito engraçado, pensou Martha. "Eu queria lhe desejar bon anniversaire. Bien des choses à ta maman. E me ligue um dia desses, está bem? À bientôtr Clique.

Embora estivessem divorciados há cinco anos, o som da voz do ex-marido ainda a deixava abalada. Jacques sempre telefonava em ocasiões inesperadas, descontraído, como se tivesse certeza de que seria bem acolhido. Em seu atual estado de fragilidade, os nervos tensos, Martha sentiu-se contente por não estar no apartamento na hora do telefonema. Mas não pôde evitar um sentimento de satisfação; estava igualmente contente por Jacques ter telefonado.

Um último recado. "Marty, aqui é Helen de novo. A Sra. Davenport acaba de ligar, cancelando a consulta de amanhã. Falo com você mais tarde."

Clique. Seus deveres cumpridos, a máquina desligou automaticamente.

Lá se foi a minha última desculpa. Não tinha qualquer compromisso para o dia seguinte. Podia visitar o convento e ter um encontro com a freira assassina. Formidável.

E subitamente, Martha não queria ficar no escuro por mais um momento sequer. Fechando a porta da geladeira, acendeu as luzes da cozinha e voltou à sala de estar, acionando todos os interruptores pelo caminho. A gata, concluída a sua refeição e agora querendo um colo, foi atrás.

Quase toda a correspondência que ela jogara na mesa do vestíbulo, no escuro, caíra no chão. Abaixando-se para recolhê-la, Martha também encontrou nochão a pasta que o Juiz Leveau lhe dera, e o conteúdo se espalhara pelo tapete. Mecanicamente, recolheu os papéis, acertando as beiradas, e tornou a guardá-los na pasta. Largou a pasta na mesa do vestíbulo, ao lado da edição vespertina da Gazet-te, que ainda não lera.

FREIRA INDICIADA POR HOMICÍDIO CULPOSO, dizia a manchete da primeira página. Havia por baixo uma fotografia da Irmã Agnes. Embora a fotografia fosse meio desfocada e granulosa, como todas as fotografias de jornal, ainda dava para se constatar que a freira era jovem, muito jovem. E bastante bonita, linda mesmo, um rosto liso, olhos aturdidos, arregalados pelo terror. Jovem, bonita, e obviamente apavorada.

A Dra. Livingston ficou olhando para a fotografia, que a fitava em retribuição, como que suplicando. Aquele era o rosto de uma assassina? Sã ou insana? Descobriria logo.

Olá, Irmã Agnes.

De repente, Martha sentiu-se exausta; fora um dia longo, emocionalmente carregado. Largou o jornal na mesa e encaminhou-se devagar para a janela da sala de estar. Era uma noite clara, e grande parte da cidade estendia-se à sua frente. As torres de igreja, como compridos dedos de pedra, projetavam-se para tocar as estrelas. No alto da montanha, por cima de sua cabeça, a cruz iluminada parecia desafiá-la, como se sondasse a sua preciosa mente, testando para descobrir de que ela era feita.

 

A estrada fazia uma curva longa, e o terreno plano foi substituído por um aclive gradativo, mas pronunciado. Depois que o carro subiu por cerca de dez minutos, a estrada descreveu outra curva. Ao final, no topo da colina, havia um muro alto de pedra, portões de ferro e um conjunto de prédios cinzentos. O convento. Ela chegara.

O convento e os muros ao redor haviam sido construídos da mesma pedra, cortada do granito das montanhas canadenses e falquejada para parecer muito antigo. Construído no estilo gótico da Idade Média da terra de origem das clausuras famosas, o convento parecia estar ali há pelo menos cinco séculos, embora não tivesse mais de cento e cinqüenta anos.

O portão estava trancado. A Dra. Livingston estacionou no caminho de cascalho, num ângulo reto com o muro de pedra de três metros de altura, e desligou a ignição. Saindo do carro, olhou ao redor. Apartado dos campos sobre os quais predominava, o convento parecia uma cidade murada medieval fora de seu ambiente. Além do portão, Martha podia ver uma série de canteiros de flores e legumes, quase todos vazios, agora que o verão terminara, mas uns poucos ainda ostentando flores retardatárias e vegetais de raízes. Uma freira num hábito de trabalho mais grosseiro, a touca presa para trás a fim de não cair sobre o rosto, estava ajoelhada na frente de um canteiro de vegetais, enfiando as mãos na terra.

No lado esquerdo do imponente portão de ferro, preso na pedra do muro, havia uma placa de latão. Ali estava gravado LES PETITES SOEURS DE MARIE MADELEI-NE. As Pequenas Irmãs de Maria Madalena. Por baixo da placa havia um botão de campainha, que a Dra. Livings-ton premiu. Devia ter soado no interior do prédio, porque a freira ajoelhada na horta nem mesmo virou a cabeça.

Era um lugar muito quieto, sereno e pacífico. Uns poucos pássaros que ainda não haviam voado para o sul, onde passariam o inverno, circulavam bem alto no céu. Principalmente andorinhas. Martha respirou fundo o ar revigorante e, como se os pulmões enegrecidos protestassem contra a invasão de oxigênio puro, enfiou a mão na bolsa, tirou o maço e acendeu um cigarro.

Uma freira corpulenta saiu pela porta da frente e avançou para o portão, a enorme touca francesa adejando ao vento de outono como uma pipa branca. A Irmã Marguerite era uma mulher na casa dos sessenta anos, com o rosto vincado pelo trabalho e pela carranca, pois seu temperamento não era dos mais fáceis. Como uma das duas únicas irmãs "externas", tinha entre as suas funções atender à campainha, destrancar e trancar o portão, uma espécie de São Pedro ameaçador. Agora, ao se aproximar da Dra. Livings-ton, o rosto amarrado assumiu uma expressão ainda mais furiosa.

— Olá — disse Martha, jovialmente. — Sou a Dra. Martha Livingston, a psiquiatra designada pelo tribunal...

Ela parou de falar quando o olhar furioso da freira aumentou, notando que a ira da irmã parecia se focalizar no cigarro aceso em sua mão. Depressa, quase com um sentimento de culpa, jogou o cigarro no cascalho e apagou-o com a ponta do sapato.

A ira da Irmã Marguerite transferiu-se agora para a ponta de cigarro esmagada que profanava o caminho. Se olhar matasse, ela estaria liquidada! Martha empurrou a ponta para a relva, onde sua presença ofensiva não era mais visível. Se isso não der certo, então vou engolir o cigarro.

Com evidente relutância, o olhar irado atenuou-se para uma expressão mal-humorada; com a mesma hesitação, o portão foi aberto. E Martha, como uma colegial repreendida, seguiu Irmã Marguerite pelo caminho e através da pesada porta do convento, que foi fechada com um estrépito conclusivo. Sem dizer nada, a irmã apontou um dedo para uma porta no enorme vestíbulo. Martha entrou.

Parecia uma sala de recepção, decorada de maneira até agradável, com cadeiras antigas mas confortáveis e algumas mesinhas. Mas o simples fato de estar num convento já deixava Martha muito nervosa. Não podia deixar de lembrar de como sua irmã Marie morrera num convento sem qualquer motivo justificável, antes de completar vinte anos. Havia na parede um pesado crucifixo de madeira, com uma imagem policromática esculpida do Cristo crucificado, o sangue pingando dos ferimentos e escorrendo da coroa de espinhos na testa. A expressão de agonia das feições contorcidas de Jesus levou Martha a tatear a bolsa à procura do cigarro, apesar de a ausência de cinzeiros na sala ser bem significativa. Ao tirar o maço e o isqueiro, ela podia quase jurar que a agonia no rosto de Cristo se aprofundava mais um pouco.

— Dra. Livingston, presumo.

Havia uma insinuação de divertimento na voz, como se não pudesse resistir ao gracejo débil e tão familiar.

Martha virou-se. Uma mulher alta, num hábito imaculado, usando uma touca justa e um escapulário de um branco ofuscante, passava pela porta, em passos ligeiros e ágeis. A mão direita estava estendida em cumprimento e ela ria do próprio gracejo ao se adiantar.

— Sou Madre Miriam Ruth.

Contrafeita, Martha transferiu o maço e o isqueiro para a mão esquerda, a fim de poder apertar a mão que lhe era estendida.

— Como vai? Sou...

— Não precisa me chamar de Madre, se não quiser.

— Obriga...

Mas Madre Miriam Ruth não tinha a menor intenção de permitir que Martha entrasse na conversa antes de terminar o que tinha para dizer, e por isso continuou, sorrindo: — A maioria das pessoas acha um pouco embaraçoso.

— Bem...

— Creio que em nossos tempos a palavra acarreta conotações desagradáveis.

Tinha uma voz forte, profunda e melodiosa, e era evidente que gostava do seu som.

— Mas...

— Portanto, pode me chamar de Irmã.

— Obrigada — disse Martha, surpresa por lhe ser permitido completar alguma coisa.

Mas Madre Miriam Ruth terminara por um momento. Foi fechar a porta.

— Deve ter milhões de perguntas — disse ela jovialmente, olhando para trás. — E pode fumar, se quiser. Basta que não diga nada a qualquer das irmãs. Elas não compreenderiam.

Especialmente Irmã Marguerite. Ela ficaria furiosa.

Encaminhando-se para a janela, escancarou-a, a fim de que a fumaça do cigarro saísse para o ar fresco. Atenciosa, Martha aproximou-se da janela para acender o cigarro, a fim de que o cheiro fosse levado para fora da sala.

— Além do mais, sinto saudade — acrescentou a madre, um tanto ansiosa.

Martha alteou as sobrancelhas e indagou, incrédula:

— Quer dizer que fumava?

— Dois maços por dia.

— Estou ganhando — comentou Martha, com uma insinuação de amargura na voz.

— Lucky Strikes. — A madre riu da expressão chocada no rosto da psiquiatra. Lucky Strikes era um cigarro forte, grande poluidor dos pulmões. — Minha irmã costumava dizer que uma das poucas coisas em que se pode acreditar neste mundo louco é a honestidade dos fumantes de cigarros sem filtro.

— Tem uma irmã esperta — disse Martha, sorrindo.

— E você tem perguntas — respondeu a madre superiora, sentando e dobrando o hábito em torno do corpo. — Vá em frente.

As duas mulheres se fitaram por um longo momento, como se estivessem se avaliando para a batalha iminente.

Madre Miriam Ruth viu uma mulher na casa dos quarenta anos que já fora linda. Agora, a beleza se convertera num refinamento atraente da estrutura óssea, uma expressão admirável, combinando intensidade e inteligência. A Dra. Livingston era alta, cerca de um metro e setenta e cinco, esbelta e forte, quase musculosa. Os cabelos abundantes eram castanho-claros mesclados com fios louros e brancos. O nariz era pequeno e fino, os lábios cheios e sensuais, os dentes proeminentes. Mas eram os olhos que se notava primeiro. Sob as sobrancelhas arqueadas como as asas de uma mariposa, havia dois olhos profundos, de um azul-claro, guarnecidos por cílios cerrados. O olhar era direto, penetrante até, como se não houvesse segredos por trás e pudesse sondar os segredos da outra pessoa.

A Dra. Livingston vestia um tailleur simples e austero, mas feito sob medida, com um corte que insinuava ter custado muito caro. As pernas compridas realçavam mais ainda com a meia-calça lisa, e os pés calçavam sapatos elegantes, de couro italiano.

Martha viu uma mulher cerca de quinze ou vinte anos mais velha que ela, com um rosto que sugeria mais experiência e conhecimento do mundo do que se podia esperar numa madre superiora. Não havia nada de santidade translúcida em sua expressão; em vez disso, um magnetismo puro, quase animal. Havia rugas, mas o rosto em si era de certa forma muito jovem, de extrema vivacidade. Talvez fosse pela boca, larga, o lábio inferior polpudo, de uma tonalidade vermelha extraordinária. Era uma boca sedutora, até mesmo sensual, algo surpreendente numa freira. Os cabelos só se podia adivinhar, pois a touca envolvia o rosto de forma muito justa, não permitindo que uma só mecha escapasse. Mas as sobrancelhas eram pretas, espessas, simétricas; era provável que os cabelos de Madre Miriam Ruth fossem também abundantes e pretos, de uma textura forte, transbordando de vitalidade.

Os olhos da madre superiora eram extraordinários, bem separados, grandes, muito escuros, de um marrom quase aveludado. Eram olhos que haviam conhecido tanto a alegria quanto o sofrimento, e conservavam as duas coisas. Podia-se confiar naqueles olhos e ter certeza de que não ficariam surpresos por nada que se pudesse dizer. Aqueles olhos já tinham ouvido tudo antes.

A Dra. Livingston respirou fundo eergueu os ombros, fazendo a primeira pergunta:

— Quem sabia da gravidez de Agnes?

— Ninguém.

— Como ela escondeu das outras freiras?

— Despia-se sozinha, tomava banho sozinha.

— Isso é normal?

— É sim.

Como a altercação em uma tragédia grega, o diálogo avançava depressa entre protagonista e antagonista, sem uma sílaba desperdiçada.

— Como ela escondia durante o dia? — perguntou Martha.

Madre Miriam Ruth pegou uma dobra do hábito largo e pesado entre os dedos e sacudiu-a.

— Se ela quisesse, poderia esconder uma metralhadora aqui.

— Ela não fez nenhum exame médico durante esse período?

A madre superiora inclinou a cabeça para um lado e fitou a psiquiatra calmamente.

— Somos examinadas uma vez por ano. A gravidez ocorreu no intervalo das visitas do médico.

— Quem foi o pai?

— Não tenho a menor idéia.

Com um movimento brusco da mão, a Dra. Livingston jogou o cigarro pela janela aberta e pôs-se a andar nervosamente pelo meio da sala.

— Que homens tiveram acesso a ela?

— Nenhum, que eu saiba.

Um sorriso tênue e amargo pairou por um instante nos lábios da freira. Não resta a menor dúvida de que deve ter sido um homem, dizia.

— Vem algum padre aqui? — insistiu Martha.

Madre Miriam Ruth franziu a testa.

— Claro. Mas não sei como...

Foi a vez da Dra. Livingston interromper:

— Qual era o seu nome?

A madre riu, um som profundo e ressonante, que se espalhou pela sala.

— Padre Martineau — respondeu ela, entre risos. — Mas não posso imaginá-lo como um candidato.

— Pode ter havido algum outro?

O sorriso de Madre Miriam Ruth se desvaneceu.

— É evidente que houve — disse ela, a voz suave, os olhos subitamente velados.

— E não tentou descobrir quem foi?

Não devo altear a voz, Martha disse a si mesma. Devo preservar a pouca objetividade que ainda me resta. A madre superiora respondeu, levantando as mãos:

— Pode estar certa de que fiz tudo o que era possível, menos perguntar a Agnes...

— E por que não perguntou a ela? — indagou Martha com veemência, todos os pensamentos de objetividade e calma saindo pela janela atrás da fumaça do cigarro.

Madre Miriam Ruth levantou-se com extrema dignidade, alisando o hábito em torno do corpo esguio. Fitando a Dra. Livingston nos olhos, ela declarou, em tom incisivo:

— Ela nem se lembra do nascimento. Acha que admitiria a concepção?

Martha pilhou-se desejando não ter sido tão precipitada em jogar o cigarro pela janela. E murmurou, com toda a objetividade de que era capaz:

— Ouça, alguém a deixou com aquele bebê...

— Só que isso aconteceu há dez meses. E não posso entender por que a identidade desse alguém teria alguma relação com o julgamento — disse Irmã Miriam calmamente.

Parecia que a madre superiora adquirira o controle do interrogatório.

— Por que pensa assim?

— Não me faça essas perguntas, minha cara. Não sou a paciente.

Quase desesperada, Martha fez um esforço para recuperar o controle da situação. -

— Mas eu sou a médica! — protestou ela. — E sou eu quem decide o que é ou não importante neste caso!

Olhou furiosa para Madre Miriam Ruth, que sustentou o olhar com a mesma expressão e disse, a voz tensa:

— Escute, doutora, não sei como dizer isso polidamente, mas a verdade é que não a aprovo. Claro que não você, pessoalmente, mas...

— A ciência da psiquiatria — concluiu a Dra. Livings-ton bruscamente.

A touca branca inclinou-se ligeiramente, e a voz assumiu um tom de genuína autoridade:

— Isso mesmo. Quero que trate com Agnes o mais rápido possível e com muito tato. Ela não vai agüentar um interrogatório mais rigoroso.

Martha experimentou uma pontada de alguma coisa semelhante a uma indignação virtuosa.

— Eu não trabalho para a Inquisição!

— E eu não sou da Idade Média — respondeu a madre superiora com surpreendente aspereza. — Sei muito bem o que você é. Só não quero que aquela mente seja destruída.

Em três ou quatro passadas longas e rápidas, ela alcançou a porta e a abriu. Irmã Marguerite estava no outro lado, parecendo confusa, como se escutasse furtivamente a conversa, o que de fato acontecera.

— Irmã Marguerite — ordenou a madre superiora — chame Irmã Anne e peça-lhe para acompanhar a Dra. Li-vingston ao novo quarto da Irmã Agnes, por favor.

Sem dizer mais nada, Martha passou por Madre Míriam Ruth com um ar de desafio, saindo para o vestíbulo amplo, a fim de esperar por Irmã Anne.

Irmã Anne, a outra freira "externa", era muito diferente de Irmã Marguerite. Não havia malícia nela, apenas uma timidez insuperável. Sentia terror e era aterrorizada pela Irmã Marguerite. Anne estava na casa dos quarenta anos, era muito feia, o rosto já marcado pelas rugas da miopia e agonia. Usava óculos de lentes grossas e sofria com freqüência de torturantes enxaquecas.

Estava com uma agora, e enquanto avançava em silêncio, mantinha a mão direita comprimida contra a testa, como se assim pudesse conter a dor. Seu silêncio era decorrência não apenas da terrível dor de cabeça, mas também de sua timidez e do regulamento da ordem, que proibia às irmãs qualquer conversa desnecessária.

Enquanto seguia Irmã Anne pelos degraus de pedra e pelo corredor ressonante, Martha ficou outra vez impressionada pela quietude do convento. Não era a quietude da meditação e contemplação, mas o silêncio do vazio. Aquele convento enorme alojava agora bem poucas freiras. Fora construído numa época em que a dedicação a Deus e o chamado para uma vida religiosa ainda eram muito fortes, especialmente entre as moças que não estavam destinadas ao casamento. Agora, em 1984, as almas conturbadas se encaminhavam com menos freqüência a Deus do que à psiquiatria, álcool, tóxicos, sexo e outras panacéias. Muitos dos quartos do convento haviam sido trancados, a fim de economizar energia naquela década de custos crescentes de combustível.

Uma freira aparecia aqui e ali. Irmã Thérèse, uma camponesa forte e corpulenta, na casa dos sessenta anos, lavava vigorosamente a escada e lançou um olhar furioso para as duas mulheres que se atreveram a macular os degraus que acabara de limpar. Uma jovem feia, de rosto bexiguento, usando um hábito diferente e o véu de noviça, a única ali agora, passou por elas, descendo a escada com um balde de água com sabão para Thérèse

Era Geneviève, que dentro de poucos meses se tornaria Irmã Geneviève, a primeira postulante a entrar no convento naquele ano. Quando Martha a cumprimentou, ela corou e abaixou a cabeça, numa resposta silenciosa. Era inibida com todas, à exceção de Madre Miriam Ruth, a quem idolatrava.

Acima delas, no terceiro andar, Martha podia ouvir uma voz de mulher cantando uma glória, com uma pureza extraordinária. As palavras latinas desciam até seus ouvidos, nítidas e exaltadas:

Gloria in excelsis Deo Et in terra pax hominibus bonae voluntatis...

A mente de Martha traduziu o hino de maneira automática, quase involuntária. Glória a Deus nas alturas epaz na terra aos homens de boa vontade... Quem estava cantando tinha a voz de um anjo da Renascença.

Elas chegaram ao terceiro andar, e a voz soava mais forte agora, entoando louvores a Deus:

Laudamus te Benedicimus te Adoramus te Glorificamus te...

Elas desceram pelo longo corredor, e a voz angelical as envolvia cada vez mais. Anne finalmente parou diante de uma porta aberta, fez um sinal para Martha e se afastou em seguida, tão silenciosamente que até as contas do rosário que lhe pendia da cintura pararam de chocalhar.

Martha adiantou-se até a porta e olhou para dentro.

O novo quarto de Irmã Agnes não era diferente do que ela esperava. Paredes brancas e limpas, uma cama estreita e dura, uma mesa pequena, com um cântaro para água e uma bacia para se lavar. Um baú de madeira para guardar os poucos pertences, uma muda de touca, hábito e roupas de baixo. Na parede havia um singelo crucifixo de madeira, com uma imagem simples de Jesus, sem pintura.

O quarto, voltado para o oeste, estava inundado pela claridade dos últimos raios do sol poente, ao final da tarde. No peitoril da janela sentava uma jovem, entoando louvores a Deus, como um tordo. O sol iluminava seu rosto, proporcionando-lhe o aspecto etéreo de uma pintura medieval. Irmã Agnes.

Assim que ouviu a doutora na porta, a jovem freira parou de cantar e virou-se. Seu rosto era o da fotografia no jornal, a mesma pureza, os mesmos olhos grandes e assustados. A cor era indefinida, tão grandes as pupilas.

— Olá — disse Irmã Agnes, descendo do peitoril.

— Olá. Sou a Dra. Livingston. Pediram-me que conversasse com você. Posso entrar?

— Claro.

 

Martha não avançou muito pelo quarto, parando logo depois da porta, a fim de que Irmã Agnes não sentisse como uma intromissão imediata. A jovem parecia não ter mais que dezoito ou dezenove anos; a pele era alva e lisa, os olhos vidrados por uma expressão distante, como se visse alguma coisa que as outras pessoas não eram capazes de enxergar.

— Você tem uma linda voz — começou Martha.

— Não tenho não.

— Acabei de ouvi-la.

A jovem sacudiu a cabeça.

— Não era eu — negou ela, com firmeza ainda maior.

— Era a Irmã Marguerite? — gracejou Martha. Mas Irmã Agnes não riu, nem mesmo esboçou urr sorriso.

— Você é muito bonita, Agnes.

Desta vez um pequeno vinco apareceu entre as sobrancelhas claras.

— Não sou não.

— Alguém já lhe disse isso antes? — indagou Martha, gentilmente.

O vinco na testa da jovem se aprofundou ainda mais.

— Não sei.

— Pois então estou lhe dizendo agora. Você é muito bonita e tem uma voz maravilhosa.

— Vamos falar sobre outra coisa.

Era evidente que os elogios deixavam Agnes embaraçada. E a proposta de falar sobre "outra coisa" era um bom começo. A psiquiatra aceitou-a. Lentamente, Martha fechou a porta do quarto e depois tornou a virar-se para a jovem, que a observava impassível, os olhos inescrutáveis.

— Sobre o que gostaria de conversar?

— Não sei.

— Qualquer coisa — disse Martha, tentando estimulá-la. — A primeira coisa que surgir em sua mente.

Era um artifício psiquiátrico comum, um convite ao paciente para a livre associação. Agnes virou o rosto pálido para o crucifixo por cima da cama.

— Deus — disse ela, num quase sussurro. — Mas não há nada para dizer sobre Deus.

Encaminhando-se devagar para a outra janela, sem desviar os olhos da jovem freira, Martha sentou no peitoril. Agora, ela e Agnes estavam de frente uma para a outra, sentadas quase lado a lado, nos dois peitoris.

— A segunda coisa que surge em sua mente.

— Amor — respondeu Agnes.

— Já amou alguém, Agnes?

— Deus — declarou a jovem com toda a seriedade.

— Falo de outro ser humano.

Agnes sorriu pela primeira vez, o rosto iluminado por dentro.

— Claro.

— Quem?

— Todo mundo.

O rosto pálido exibia uma expressão de enlevo.

— Mas quem em particular? — insistiu Martha.

— Neste momento?

— Isso mesmo.

— Eu amo você.

Martha não esperava por essa resposta e por um momento ficou atordoada. Tentou evocar a horrível imagem mental do bebê estrangulado, o rosto roxo, a língua pendendo, que tanto a atormentara antes. Mas era impossível associá-la com aquela jovem linda e risonha, a voz angelical e os olhos insondáveis. Agnes estava emoldurada pela janela como a Madona num quadro religioso flamengo.

— Mas já amou um homem... além de Jesus Cristo?

— Claro.

Talvez agora elas estivessem chegando a alguma coisa.

— Quem?

O rosto de Agnes brilhou intensamente.

— Há tantos!

Martha recorreu ao único nome que conhecia.

— Ama o Padre Martineau?

O nome trouxe um rosado adicional ao rosto de Agnes.

— Amo, sim!

— Acha que ele ama você?

— Tenho certeza.

— Ele lhe disse isso? — indagou Martha, a voz incisiva, os olhos sondando os de Agnes.

— Não — respondeu a jovem, falando devagar. — Mas posso sentir quando contemplo seus olhos.

— Já ficaram juntos a sós?

— Já.

Martha respirou fundo.

— Muitas vezes?

— Pelo menos uma vez por semana.

O sorriso de Agnes era deslumbrante, etéreo, ante a alegria da recordação. Era óbvio que acalentava sentimentos muito fortes pelo Padre Martineau. Aqueles sentimentos seriam retribuídos? O padre poderia ser o pai da criança que a jovem freira gerara? Madre Miriam Ruth rira das suspeitas da psiquiatra. Mas seriam mesmo tão ridículas?

Martha riu também para a jovem, partilhando sua alegria, antes de perguntar:

— E você gostou disso... de encontrá-lo todas as semanas?

Irmã Agnes cruzou as mãos brancas com tanta força que as articulações dos dedos saltaram como cristas.

— Gostei muito!

— Onde vocês se encontravam?

— No confessionário.

Uma sensação de vazio invadiu Martha. Pensara estar perto, mas agora a verdade, qualquer que fosse, parecia se afastar, fora do seu alcance. Respirou fundo outra vez.

— Alguma vez se encontrou com ele fora do confessionário?

O sorriso desvaneceu-se do rosto da freira, e ela se levantou, afastando-se de Martha e da janela. O sol já quase sumira, e o quarto começava a escurecer, devagar, mas de maneira perceptível. Na semi-escuridão, o rosto alvo de Irmã Agnes brilhava como a lua surgindo no céu.

— Você quer me falar sobre o bebê, não é? — perguntou ela.

— Você gostaria de falar a respeito? — indagou Martha gentilmente.

Contra o hábito preto que Agnes usava, as mãos adejaram como um par de agitadas mariposas brancas.

— Nunca vi qualquer bebê. Acho que inventaram essa história.

— Por que fariam isso? Agnes virou o rosto.

— Não sei — respondeu ela, a voz abafada pelo medo e mais alguma coisa que Martha ainda não podia identificar.

— Lembra-se da noite em que disseram que ele apareceu?

— Não. Eu estava doente.

— Por que estava doente?

— Por causa de alguma coisa que comi.

— E doeu?

— Doeu.

— Onde?

A jovem tornou-se mais agitada; os olhos ardiam em seu rosto. As mãos adejantes fizeram uma pausa na cintura, hesitaram, e depois apontaram para baixo.

— Lá embaixo.

— E o que você fez? — indagou a Dra. Livingston, o mais gentilmente que podia.

— Fui para o meu quarto.

— E o que aconteceu lá?

— Eu me senti ainda pior.

Agnes respondeu de maneira brusca, depois deu dois ou três passos na direção da porta, como se sua intenção fosse abri-la e sair em disparada pelo corredor, escapando à provação daquelas perguntas agressivas.

— E depois?

— Dormi.

Os olhos de Martha se arregalaram de espanto.

— Em meio a tanta dor?

— Isso mesmo.

Como posso acreditar em qualquer coisa que ela diz? perguntou-se Martha. Será que ela realmente se lembra disso como sua versão da verdade ou tem uma amnésia genuína em relação ao que aconteceu? Ou é uma mentirosa rematada? A madre superiora disse que ela não se lembra do nascimento; Agnes teria conseguido enganar uma mulher tão obviamente inteligente como Madre Miriam Ruth?

— Mas de onde veio o bebê? — insistiu a psiquiatra, com sua voz mais suave.

A esta altura, Irmã Agnes recuara para o canto mais escuro do quarto, como um animal acuado e amedrontado.

— Que bebê?

— O bebê que inventaram.

— De suas cabeças.

— Foi de lá que disseram que ele veio?

— Não. Disseram que saiu da cesta de papel.

— E de onde veio antes disso?

Houve uma fração de segundo de hesitação, e depois Agnes respondeu num sussurro rouco:

— De Deus.

Mas Martha não podia deixar a coisa assim e indagou, à queima-roupa:

— Depois de Deus e antes da cesta de papel?

— Não entendo! — balbuciou Agnes, trêmula.

— Como nascem os bebês?

— Você não sabe?

— Claro que sei, Agnes. Mas quero que você me diga.

Como um animal atormentado ataca quando está acuado, Irmã Agnes explodiu, berrando em tom estridente:

— Não sei do que está falando! Você quer falar sobre o bebê! Todo mundo quer falar sobre o bebê, mas eu nunca vi o bebê, por isso não posso falar sobre ele, porque não acredito no bebê!

Ela estava ofegando agora, os olhos revirando frene-ticamente. Para a psiquiatra, parecia que ela estava à beira de um genuíno ataque de histeria.

Martha levantou-se e aproximou-se da jovem freira com ar tranqüilizador, tentando acalmá-la.

— Pois então vamos falar sobre outra coisa.

Mas Agnes não estava em condições de se acalmar. Estimulada pelo medo e a raiva, a adrenalina fluía por suas veias.

— Não! — ela dardejou as palavras para sua algoz. — Estou cansada de falar! Venho falando há semanas e ninguém acredita quando eu conto qualquer coisa! Ninguém me escuta!

Deixando o canto, a jovem quase correu para a porta.

— Eu escutarei, Agnes. — Martha foi atrás dela apressadamente. — Esse é o meu trabalho.

Mas, desesperada para escapar, Irmã Agnes já abrira a porta e saíra para o corredor, desatando a correr.

— Não quero ser obrigada a responder a mais perguntas! — gritou ela, enquanto se afastava.

— Não gostaria de fazer as perguntas? — perguntou Martha correndo atrás dela.

Agnes parou e virou-se para encarar a psiquiatra.

— Como assim? — indagou ela, cautelosa.

A Dra. Livingston abriu os braços, as palmas viradas para cima.

— Só isso. Você pergunta, eu respondo.

Um sorriso hesitante insinuou-se no rosto da jovem. Parecia uma criança a quem se oferece acesso ilimitado a algum reino mágico.

— Qualquer coisa?

— Qualquer coisa. Martha também sorriu.

A viagem de volta a Montreal foi na total escuridão, mas isso não fazia a menor diferença para a Dra. Livingston. Ela nem mesmo notava. Seus pensamentos estavam em disparada e ela precisava fazer um grande esforço para manter parte da mente na estrada, enquanto ordenava suas impressões. Tanto Irmã Agnes como a madre superiora haviam se mostrado diferentes do que ela esperara, uma parecendo tão fora do mundo, a outra o conhecendo muito bem. A julgar por sua primeira impressão, Agnes era insana?, ela se perguntava incessantemente. Mas não podia optar por qualquer resposta definitiva. Primeiro, precisava descobrir se a jovem estava mentindo ou contando uma espécie de verdade que só ela compreendia. E a madre superiora estava tentando proteger a inocência da freira ou encobrir a sua culpa? Mais uma vez, Martha não era capaz de chegar a uma resposta definitiva.

Tudo o que ela tinha era um conjunto de impressões um tanto confusas e a certeza de que Irmã Agnes não era uma freira comum, e Madre Miriam Ruth não era uma madre superiora comum. E um segundo encontro, marcado para o dia seguinte.

Ela estava cumprindo a sua promessa, de deixar Irmã Agnes fazer as perguntas, para variar.

— Qual é o seu verdadeiro nome? — perguntou Agnes, um tanto timidamente.

— Martha Louise Livingston.

Martha sorriu. Era outra gloriosa tarde de outubro, mais quente que a do dia anterior. A Dra. Livingston chegara ao convento várias horas mais cedo, a fim de poder passar mais tempo com Agnes. Estava ansiosa por encerrar aquele caso e voltar à sua vida normal, à clínica particular. Além do mais, sentia-se contrafeita em visitar conventos e confrontar o torturado rosto de Jesus a cada vez que acendia um cigarro.

As duas passeavam por um campo que pertencia ao convento. O trigo fora ceifado ao final de agosto e ali empilhado para secar. No final de setembro fora recolhido e estava agora guardado em silos, enquanto tudo o que restava ao campo para demonstrar os seus esforços era um restolho escuro e um espantalho desempregado, adejando ao vento firme do outono.

Agnes caminhava feliz pelo restolho como se fosse uma campina cheia de trevos e margaridas. A Dra. Livingston seguia poucos passos atrás, fumando, tomando cuidado para que as brasas do cigarro não fossem levadas pelo vento para atear fogo ao restolho seco.

— É casada? — perguntou Irmã Agnes, com absoluta inocência.

— Não.

— Gostaria de ser?

— No momento não — respondeu Martha com sinceridade.

— Tem filhos? Martha sacudiu a cabeça.

— Não.

— Gostaria de ter algum?

As perguntas entusiásticas de Agnes eram infantis em sua simplicidade. Seria uma encenação ou ela era mesmo tão simplória? Martha ainda não conseguira chegar a uma conclusão.

— Não posso mais ter.

— Por que não?

Martha hesitou, antes de finalmente admitir:

— Bem... parei de menstruar.

É estranho como a admissão causa angústia. Por que deveria? É um fato normal da vida. Mas dói dizer as palavras em voz alta. Imagino que em parte porque significa envelhecer, mas não é só por isso. Ela tinha a sensação incômoda de estar sendo privada de alguma coisa, importante, que a tornava de certa forma completa.

Mas as palavras impregnadas de angústia pareciam não ter qualquer significado para Irmã Agnes, pois ela as deixou passar sem qualquer comentário. Em vez disso, perguntou:

— Por que você fuma?

— Isso a incomoda?

Agnes levantou um dedo em advertência, lembrando o acordo à psiquiatra:

— Nada de perguntas.

A Dra. Livingston aceitou com um sorriso.

— No meu caso fumar é uma obsessão — disse ela ironicamente. — Acho que deixarei de fumar quando ficar obcecada por outra coisa. Mais alguma pergunta?

— Uma.

Ali perto, o espantalho se contorcia ao vento, braços e pernas sacudindo, como um dançarino grotesco.

— Qual é?

Agnes virou-se para fitar a psiquiatra, muito compenetrada. Ao sol forte, era possível ver a cor de seus olhos, pelo menos a cor que tinham agora, pois a tonalidade mudava do cinza pálido para o azul claro e a cor de ardósia.

— De onde você acha que vêm os bebês? — perguntou Irmã Agnes.

— De suas mães e pais, é claro. Antes disso? Não sei. Agnes acenou com a cabeça e disse a Martha, em tom confidencial:

— Pois eu acho que eles vêm quando um anjo pousa no peito da mãe e sussurra em seu ouvido. Isso faz com que os bebês bons comecem a crescer. Os bebês maus vêm quando um anjo caído aperta lá embaixo, e eles crescem, crescem e crescem, até que saem lá por baixo. Não sei por onde os bebês bons saem.

Ela se afastou, correndo pelo restolho para a campina relvada além, o hábito esvoaçando ao vento, como uma vela de navio. Estava gritando agora, como uma garotinha, a voz apanhada pelo vento e dissolvida em fragmentos de som.

— E não se pode dizer a diferença

a não ser que os bebês maus choram muito e fazem seus pais ir embora e deixam as mães doentes, até morrendo às vezes. Mamãe não era muito feliz quando ela morreu, e acho que foi para o inferno. Porque cada vez que eu a vejo ela parece ter saído de um banho de chuveiro quente!

Agnes alcançara um bordo alto e parara de correr, sem fôlego. O rosto estava translúcido, os olhos brilhando, extasiados. Alcançando-a, a Dra. Livingston lembrou-se da origem da palavra êxtase, do grego para fora do lugar. Os sentimentos de Irmã Agnes pareciam-lhe inteiramente deslocados em plena década de 1980, e sua inocência dos fatos da vida, a se acreditar no que dizia, beirava o impossível nesta era.

Agnes resvalou pelo tronco da árvore para deitar de costas na relva, olhando o sol filtrado através das poucas folhas que ainda restavam nos galhos.

— E nunca tenho certeza se é ela ou a Dama quem me diz as coisas. Elas brigam por minha causa o tempo todo. A Dama que eu vi quando tinha dez anos. — Ela estendeu os dedos para cima, na direção dos galhos, como se quisesse arrancar as últimas folhas. — Eu estava deitada na grama, olhando para o sol, e o sol virou uma nuvem e a nuvem virou a Dama, e ela me disse que falaria comigo e depois seus pés começaram a sangrar e eu vi que havia buracos nas suas mãos e no lado do corpo e tentei pegar o sangue que caía do céu, mas não pude ver mais nada porque meus olhos doíam porque havia manchas enormes na frente...

A jovem estava totalmente absorvida em sua visão. A Dra. Livingston nunca ouvira antes imagens tão tumultuadas, em parte histeria religiosa, em parte simbolismo freudiano, como os ferimentos imaginários de Cristo e o "anjo caído" que "aperta lá embaixo". Aquela psicótica a balbuciar seria a pessoa autêntica ou Agnes era uma impostura muito esperta? O caso era muito mais difícil do que previra. E, no entanto, a jovem parece sincera, seus olhos são tão inocentes.

— E ela me diz coisas — continuou Agnes, com uma expressão de beatitude — como agora, quando está gritando "Marie! Marie!" Mas não sei o que isso significa.

Marie! Aturdida, Martha arquejou, a respiração presa na garganta. Agnes sentou, os olhos focalizados em alguma coisa que a Dra. Livingston não podia ver.

— E ela me usa para cantar. É como se ela jogasse um grande anzol pelo ar e me pega por baixo das costelas e tenta me levantar, mas eu não posso me mexer porque mamãe está segurando meus pés. E tudo o que posso fazer é cantar com sua voz. É a voz da Dama! Deus ama você! — Ela virou o rosto para Martha, mais pálido do que nunca, acrescentando suavemente: — Deus ama você.

— Você conhece alguma Marie? — perguntou Martha, os lábios rígidos.

— Não — respondeu Agnes. — Você conhece?

— Por que eu deveria conhecer?

Até para mim mesma, pensou Martha, pareço na defensiva. O que está me acontecendo?

— Não sei.

Agnes ficou de joelho, preparando-se para levantar. Martha perguntou:

— Você ouve essas vozes com freqüência?

Mas Irmã Agnes, levantando-se, limpava a relva e as folhas do hábito.

— Não quero mais falar — declarou ela, em voz normal. — Está bem?

E começou a voltar na direção do convento. A entrevista estava encerrada.

Martha Livingston apagou o cigarro no chão, com todo cuidado, verificando se não restava qualquer brasa. Depois examinou a guimba, por precaução, rasgando o papel e deixando o tabaco ser espalhado pelo vento, até não restar mais qualquer risco de incêndio. Enquanto fazia isso, observava Irmã Agnes atravessar o campo, tão calmamente como se nada tivesse acontecido.

 

Madre Miriam Ruth esperava a Dra. Livingston em sua sala, com Irmã Marguerite ao lado. A madre superiora cumprimentou Martha de maneira cordial, saindo de trás de sua mesa atravancada para apertar-lhe a mão.

— O que você acha? — perguntou ela, com um olhar sugestivo e um sorriso enviesado. — Ela é totalmente louca ou apenas meio desequilibrada? Ou será que ela é perfeitamente sã e apenas uma boa mentirosa?

— Qual é sua opinião?

A madre superiora pensou por um momento.

— Bem... creio que ela é... não é louca. Nem está mentindo.

Sensacional, pensou Martha. Com que ficamos então? A gravidez Virgem? Daqui a pouco ela estará me dizendo que três homens sábios vieram do leste em camelos. Em voz alta, perguntou:

— Mas como ela pôde ter um filho e não saber nada de sexo e nascimento?

— Porque é uma inocente — respondeu prontamente a madre superiora. — É uma página em branco que não foi tocada, exceto por Deus.

A velha história da tábula rasa.

— Isso é bobagem.

No mesmo instante Irmã Marguerite fez o sinal-da-cruz furiosamente, mas Madre Miriam Ruth não se perturbou. Em vez disso, a expressão nos enormes olhos escuros tornou-se mais branda e a voz mais suave ao explicar:

— No caso dela, não é bobagem. A mãe a mantinha em casa durante quase todo o tempo. Ela recebeu muito pouca instrução escolar. E quando a mãe morreu, Agnes veio para cá.

— E nunca saiu daqui, doutora — confirmou Irmã Marguerite. — Nunca assistiu a um programa de televisão ou a um filme. E nunca leu um livro.

— Mas se ela é tão inocente, como pôde assassinar uma criança?

— Ela não fez isso! — protestou Madre Miriam Ruth, alteando a voz. — É homicídio culposo, e não assassinato.

Ela fechou os olhos; a cor fugiu-lhe do rosto, enquanto reconstituía mentalmente aquela noite. Sua voz, quando contou a história terrível, era entrecortada, a respiração difícil, como se cada palavra fosse arrancada de sua memória sob tortura.

Martha ouvia atentamente, meio fascinada, meio horrorizada. O relato foi tão objetivo que só poucas vezes ela o interrompeu com alguma pergunta.

— Estava escuro, e já nos recolhêramos quando os gritos começaram. Era horrível de se ouvir. Continuou e continuou, grito após grito, agonia traduzida em ondas sonoras. Eu não sabia de onde vinham. Peguei um lampião e saí correndo pelo corredor, levantando-o à minha frente. O querosene balançava perigosamente, mas eu não podia prestar atenção, embora houvesse o risco de incêndio, porque os gritos de agonia pareciam me dilacerar o cérebro. Podia ouvir Irmã Marguerite atrás de mim, correndo também. As outras freiras se reuniam no corredor, assustadas, confusas. Gritavam em francês, enquanto eu passava correndo.

"O que foi? O que aconteceu? Quem está gritando? Madre, por favor, diga-nos quem está gritando. Mère, je vous en prie!

"Mal reparei na noviça, Irmã Geneviève, encolhendo-se contra a parede do corredor, o véu torto. Ela foi tão lerda para se mexer que quase a derrubei na minha pressa, mas em vez disso apenas empurrei-a para o lado. Podia ouvir latim ao redor, as palavras suplicantes de orações. Irmã Eli-sabette e Irmã Geraldine, uma quase cega, a outra quase surda, estavam ajoelhadas, os rosários nas mãos. As duas estão na casa dos setenta anos e quase babavam de terror, os lábios tremendo, enquanto recitavam os padre-nossos. Com exceção de Irmã Marguerite, ninguém pode prestar qualquer ajuda numa emergência. Agradeço a Deus por ela, com seu mau humor e tudo o mais.

"O corredor parecia ter um quilômetro de comprimento, mas os gritos estavam cada vez mais próximos, até que alcançamos a porta. O quarto de Agnes. Eu já sabia que seria. Havia gemidos agora, baixos e assustadores, misturando-se com os berros de angústia. Por algum motivo, achei que eram mais terríveis do que os gritos. E depois os gemidos pararam, o que foi ainda mais aterrador. Peguei a maçaneta da porta e virei.

"Não abriu."

— A porta estava trancada? — perguntou Martha.

— Há fechaduras nos quartos de todas as irmãs, mas nunca são usadas, porque só a madre superiora pode ficar com as chaves. Não havia a menor possibilidade de Agnes se trancar lá dentro, mas ainda assim a porta não se mexeu.

Alguma coisa pesada fora empurrada contra a porta, bloqueando-a. Continuei a empurrar, mas sou magra e não tão forte quanto na juventude. Empurrei e empurrei até que, misericordiosamente, a porta cedeu um pouco, o suficiente para que eu me espremesse pela abertura. Irmã Marguerite, que é corpulenta, teve dificuldades para passar, mas eu não podia me deter para ajudá-la. Era Irmã Agnes quem precisava de mim.

"Cristo, tenha misericórdia de nós!, pensei. Agnes estava caída no chão, muito branca e imóvel. Havia sangue em seu hábito, sangue nas paredes, na cama, e uma poça de sangue no chão, ao lado da cama. Eu nunca vira tanto sangue em toda a minha vida e não podia acreditar que tudo saíra de uma pessoa, uma freira pequena.

"Receei que ela estivesse morta, porque não se mexia. Mas ainda estava viva. A respiração era fraca, mas o hábito ensangüentado movia-se ligeiramente por cima do peito.

"Calculei quanto tempo levaria para uma ambulância chegar e concluí que demoraria o suficiente para tirar uma alma do purgatório.

"Agnes já perdera a consciência outra vez quando o interno começou a cortar o hábito em torno de seu corpo. A cada movimento Irmã Madeline Marie gritava estridentemente, como se a lâmina estivesse cortando carne, e não pano."

— E depois? — murmurou Martha, ansiosa.

— Finalmente se foram, a ambulância com suas luzes piscando, a sirene gemendo, uma moça frágil e pálida amarrada a uma maca, mais morta do que viva. Eu devia fazer então o que era necessário.

"Elas ainda estavam no corredor, meu punhado de freiras, chorando e rezando, fazendo-se umas às outras perguntas para as quais não havia respostas. Entrei sozinha no quarto de Agnes, mas Irmã Marguerite observava-me da porta.

"Eu tinha medo do que estava prestes a ver.

"Suspendi o lampião bem alto e corri os olhos pelo quarto. Havia alguma coisa debaixo da cama. Tive de me abaixar para puxar, porque estava pesado. Era uma cesta de papel, com os lençóis da cama, ensangüentados."

— E mais alguma coisa — acrescentou Martha.

— Alguma coisa... no fundo da cesta... debaixo dos lençóis. Alguma coisa macia e coberta de sangue. Toquei-a e soltei um grito, sem ouvir minha própria voz. Estava frio. Minhas mãos ficaram manchadas de sangue, mas fiz o sinal-da-cruz sobre o pequeno cadáver e sussurrei as palavras de batismo.

— Ela matou o bebê? — murmurou Martha, meio para si mesma.

— É homicídio culposo, e não assassinato! — gritou Madre Miriam Ruth.

— Quando a encontramos, ela já havia perdido muito sangue e desmaiara — acrescentou Irmã Marguerite.

— Então alguém mais poderia ter cometido o crime — comentou a Dra. Livingston, pensativa.

Os olhos escuros da madre superiora se arregalaram de espanto.

— Não... não na opinião da polícia.

— Mas na sua opinião?

— Já lhe dissemos em que acreditamos — respondeu Irmã Marguerite, com alguma aspereza.

— Falaram que ela estava inconsciente. Portanto, alguém poderia facilmente entrar no quarto e cometer o crime — insistiu Martha.

Irmã Marguerite ficou boquiaberta.

— Acha mesmo que aconteceu algo assim?

A psiquiatra virou-se para Madre Miriam Ruth, que não dissera coisa alguma.

— Não é possível?

— Quem? — indagou a madre superiora.

— Uma das freiras — sugeriu Martha. — Ela descobriu sobre o bebê e queria evitar um escândalo.

— Isso é absurdo! — explodiu a madre superiora.

— Ninguém sabia da gravidez de Agnes! — berrou Irmã Marguerite. — Absolutamente ninguém! Nem mesmo Agnes!

Aquilo não as estava levando a parte alguma, pensou Martha. Continuavam a andar em círculos, incapazes de escapar à alegação da madre superiora de que Irmã Agnes era totalmente inocente, para quem o nascimento e a morte do bebê não tinham qualquer realidade. E esperava-se que a psiquiatra engolisse essa teoria inteira, sem engasgar, declarando oficialmente que a pequena freira não tinha condições de ser submetida a julgamento. Era de enlouquecer. Martha tragou fundo o cigarro e olhou ao redor, à procura de um cinzeiro. Claro que não havia nenhum... o que ela estava pensando? Ali era um convento, não um café. Bateu a cinza na pequena cesta de arame perto da parede, ao lado da mesa da madre superiora. Oh, Deus, como ela gostaria que aquele caso ficasse para trás!

O dia estava bonito e o sol ainda brilhava quando a Dra. Livingston deixou o Convento das Pequenas Irmãs de Maria Madalena. O sentimento de Martha era de total frustração.

Havia elementos naquele caso que não se ajustavam. Não apenas os intangíveis do misticismo de Agnes, mas fatos concretos que simplesmente faltavam. Quer Agnes acreditasse ou não, dera à luz um bebê real, de carne e osso, o que significava que em algum lugar existia um pai de carne e osso. Mesmo admitindo a inocência de Agnes em matéria de sexo, como ela se encontrara com o homem? Se ela não podia sair para encontrá-lo e se o homem não podia entrar, o que Madre Miriam Ruth jurava que era verdade, então de onde vinha o bebê? Não fora encontrado debaixo de um repolho e com toda certeza a cegonha não o trouxera. E como Martha podia acreditar que a madre superiora, aparentemente, tão experiente, até mesmo sofisticada, nunca descobrira, a não ser quando já era tarde demais, que sua pequena mística estava com um bolo no forno? Não, as coisas não se ajustavam.

Mas sou psiquiatra, e não detetive, pensou Martha. Não me compete deslindar este caso, apenas decifrar a mente da acusada. Mesmo assim, tenho algumas perguntas a fazer a esse Padre Martineau. Era o único homem com acesso regular às freiras, para não mencionar que o rosto de Irmã Agnes se ilumina como um farol ao ouvir seu nome. Que horas são? Ainda não são duas. Ora, tenho algum tempo de sobra... então por que não?

Dando uma guinada brusca para a esquerda, a Dra. Livingston levou o BMW para uma curva em U e voltou para o sul, deixando a estrada cerca de um quilômetro e meio antes do convento e entrando na aldeia de Berthier-ville.

Uma pequena aldeia no coração da região rural, Ber-thierville sempre lembrava aos viajantes os pequenos povoados franceses. Era também construída com pedras locais, que calçavam as ruas e as praças pequenas e irregulares, uma delas ostentando um poço com uma bomba. Até mesmo muitas das árvores eram as que se encontravam na França, lariços, tílias e choupos, além dos onipresentes bordos canadenses. Era como recuar para o século anterior e contemplar as casas antigas, bicicletas paradas nos degraus da frente. As únicas concessões à década de 1980 eram uma ocasional caminhonete e uma antena de televisão no telhado de cada casa.

Como sempre, a igreja católica era o marco mais proeminente da aldeia, tendo ao lado a pequena casa em que o padre vivia. Martha parou o carro e desligou o motor. Subindo para a porta da frente, ela se lembrou de largar o cigarro, esmagando a ponta nas pedras do caminho com o calcanhar.

Havia uma campainha e Martha apertou-a com força, tendo um sobressalto com o som alto e estridente.

A porta foi aberta por uma mulher de meia-idade, num avental amarrotado, os cabelos em rolinhos, um cigarro pendendo do canto dos lábios.

— Oui? — disse ela, desconfiada.

— Le père Martineau, est-il chez lui?

— Pourquoi? — indagou a mulher, com beligerância.

Era evidente que ela sentira aversão à psiquiatra à primeira vista, a menos que se mostrasse hostil com todas as pessoas.

— Je suis ici sur l

avis de Mère Miriam Ruth du cou-vent — mentiu Martha.

Madre Miriam Ruth provavelmente teria um ataque se soubesse que a Dra. Livingston ali estivera a bisbilhotar, fazendo perguntas.

O nome da madre superiora foi a senha mágica que fez com que a porta fosse aberta. A empregada deu um passo para o lado, de má vontade, permitindo que a intrusa inglesa entrasse em sua cozinha. Mas ela conseguiu ficar com a última palavra.

— Limpe os pés — grunhiu em inglês.

A cozinha estava quente, até demais. Mesmo naquele dia lindo, um fogo intenso ardia no fogão de lenha. A velha mesa de pinho estava escalavrada, mas imaculadamente limpa. Havia quatro cadeiras desiguais ao redor, os assentos duros atenuados por pequenas almofadas, trabalhadas em pontos de cruz coloridos. Uma coleção de rosários pendia de um gancho na parede. Na parede do outro lado estava o inevitável crucifixo, de madeira crua, a imagem de Cristo esculpida com simplicidade. Ao lado estava pendurada uma fotografia do Papa chegando ao Canadá, obviamente recortada do suplemento dominical do jornal local. Havia também na parede um cromo religioso de Santa Teresa de Lisieux e dois calendários. Um deles era da Agência Funerária Quercy, de Berthierville, destacando em vermelho todos os dias santos e de jejum católicos. O outro era do revendedor da Ford e mostrava uma loura de seios enormes, na praia, usando o biquíni mais sumário.

Martha virou-se ao som de passos pesados se aproximando da cozinha. O Padre Martineau entrou no instante seguinte.

Ela compreendeu imediatamente por que Madre Míriam Ruth rira tanto de suas suspeitas. O Padre Martineau tinha pelo menos oitenta anos. Praticamente não lhe restava um dente na boca, e as mãos encarquilhadas tremiam na bengala. Mal conseguia se manter de pé. Um xale envolvia-lhe os ombros, e Martha entendeu então por que o fogo era intenso no fogão. Para aquecer os ossos velhos do padre. Uma comunidade mais rica ou mais elegante teria aposentado o velho padre vinte anos antes, mas em Berthierville ele era um acessório amado.

Quando ele a cumprimentou com um sorriso, Martha compreendeu também por que o rosto de Irmã Agnes se iluminara ao ouvir seu nome. O sorriso era tão doce e inocente quanto o de um bebê, e igualmente desdentado. Num rosto tão encarquilhado quanto o casco de uma tartaruga, os olhos sábios brilhavam com juventude e bondade. Sentia-se instintivamente que ele comprenderia; não importava quão horrível fosse a confissão ou rigorosa a penitência, a absolvição estava garantida.

Como não podia deixar de ser, o caso de Irmã Agnes predominava em sua mente. Orava por ela, por todas as freiras, naquele momento de terrível necessidade. Orava também pela alma da criança morta, cuja inocência fora profanada pelo crime, como nos tempos de Herodes. E é claro que teria o maior prazer em contar a Martha tudo o que sabia, embora fosse muito pouco, infelizmente. Mas, primeiro, a doutora tomaria uma xícara de café em sua companhia.

Sentaram-se à mesa de pinho. O café era puro e continha chicória, como na velha terra, sendo servido em xícaras sem alça, no formato de tigelas, como era hábito na França. O padre pegou num armário uma garrafa de bom uísque irlandês e despejou um pouco nas xícaras. Para se manter aquecido, explicou ele, embora a temperatura na cozinha não devesse ser de menos de 24 graus..

— Les Petites Soeurs levantam-se às cinco horas da manhã e já estão na cama às nove da noite — disse ele, com uma voz surpreendentemente jovem. — Trabalham o dia inteiro e só descansam na hora das orações. Cuidam da plantação. Não é nada em grande escala, mas cultivam os legumes que consomem e até mesmo um pouco de cereal. Possuem também alguns animais. Para os ovos, leite e queijo, porque não comem carne. Na verdade, comem muito pouco. Têm algumas árvores e arbustos frutíferos... que dão frutas excelentes, diga-se de passagem. Ameixas, peras e vários tipos diferentes de morangos. Têm até um pequeno negócio de geléias de frutas. Todas trabalham para encher os potes, e Irmã Jeannine cuida das contas.

— Elas recebem visitantes para comprar geléias? — perguntou Martha. — Visitantes do sexo masculino?

— Não, não. É uma ordem enclausurada, e não recebem visitas. Os poucos potes negociados são vendidos pelo reembolso postal, com anúncios publicados nas revistas paroquianas. O Convento das Pequenas Irmãs é totalmente devotado à meditação, jejum e oração. Mesmo que um homem conseguisse alcançá-las, provavelmente as encontraria rezando. Portanto, a questão é não apenas como ele entrou, mas quando.

— E o senhor é o único homem que as vê?

— Mesmo que eu tivesse a inclinação, doutora, como poderia pegá-la? Ela teria de ser uma freira muito lerda e paciente.

Os olhos do velho padre faiscaram com uma alegria maliciosa. Martha riu tanto ao pensar no padre com artrite correndo lascivamente atrás da lépida Agnes que até engasgou com o café.

— Eu levaria muito tempo para sequer me lembrar da mecânica. — O Padre Martineau soltou uma risada. — Não que eu a tenha conhecido algum dia, é claro.

Os dois partilharam um riso suave, que foi um alívio para a Dra. Livingston, depois das tensões dos dois últimos dias.

— Aquelas irmãs são pessoas excepcionais, muito especiais — continuou o padre. — Só restaram umas poucas, consagradas ao louvor de Deus.

Permaneceram em silêncio por um momento, e depois Martha perguntou, cautelosa:

— Era o confessor de Irmã Agnes, não é mesmo?

O riso desvaneceu-se do rosto do velho padre, que fitou a psiquiatra com uma expressão compenetrada.

— Os segredos do confessionário são sagrados.

— Sei disso, mas há muita coisa em jogo neste caso. Se eu considerar que Irmã Agnes é sã, ela será levada a julgamento. Se for considerada culpada, poderá passar muito tempo na prisão. E a menos que eu disponha de uma prova psiquiátrica de sua insanidade, vou apresentar o diagnóstico de que ela é sã. E muito em breve. Não estou pedindo para me contar o que ela confessou. Mas quero que me diga sinceramente se acha que Irmã Agnes é tão inocente quanto Madre Miriam Ruth a considera. Já testemunhei demonstrações de seu... misticismo... mas ainda não estou em condições de dizer se é ou não genuíno. E mesmo que seja genuíno, pode ser definido como loucura? Confesso que não sou especialista nessa área.

Ela riu, tristemente. Por um longo momento, o velho padre fitou-a sério, refletindo sobre as palavras que acabara de ouvir. E depois falou devagar, a voz já não tão juvenil como antes:

— Essas questões de fé são muito complicadas, mesmo quando não envolvem um homicídio involuntário. Não estou qualificado para opinar sobre a sanidade de Agnes. Sinto-me incapaz até para julgar sua alma, que ela me mostrou. "Ou krineis, me krinesthe", dizem os antigos gregos. "Não julgue, para não ser julgado." Tudo o que posso dizer é que sua fé em Deus é muito grande, e ela não sabe quase nada sobre as coisas do homem.

— É o que diz a reverenda madre — comentou Martha.

— E se alguém conhece o coração de Agnes, esse alguém é justamente Madre Miriam Ruth — disse o padre com simplicidade.

— Mas tem de haver mais do que isso, ou não haveria um bebê morto, uma prisão e uma psiquiatra designada pelo tribunal, como eu.

O Padre Martineau suspirou fundo, parecendo de repente ainda mais velho do que na verdade era.

— Não lhe invejo a tarefa, minha criança. — Ele pegou a mão de Martha entre seus dedos entrevados. — Essas responsabilidades pesam muito sobre a alma, dizer sim ou não. É o poder em sua forma mais pura, o poder sobre a vida de outra pessoa. É um poder legitimamente reservado apenas a Deus. Você reza? Martha sacudiu a cabeça.

— Não, Padre. Não rezo mais.

— Quer dizer que confia apenas em sua própria força e inteligência?

— Acho que sim... sim — arrematou ela, com uma firmeza maior.

— Pois então rezarei para que elas não lhe faltem. Martha abriu a boca para dizer "Por favor, não se incomode". Estranhamente, porém, o que saiu foi outra coisa:

— Obrigada, Padre Martineau.

 

A estrada para o convento era agora terreno familiar; a Dra. Livingston não precisava mais se manter atenta às placas de desvio. Esperava que aquela visita fosse a última, mas alguma coisa no mais fundo de sua mente lhe garantia que não seria. Não estaria se envolvendo demais naquele caso? Afinal, não lhe competia decidir a culpa ou inocência; isso cabia aos tribunais. Ela devia apenas dizer se a freira era mentalmente capaz de ser submetida a julgamento. E que apenas ela zombou de si mesma.

Estava virando uma visita tão familiar no convento quanto este era para ela. Desta vez foi Irmã Anne, e não Irmã Marguerite, quem abriu o portão de ferro, carregando um enorme cesto de vime no braço. Ela chegou muito perto de oferecer um sorriso de boas-vindas. Ou talvez Martha estivesse imaginando coisas.

— Antes de entrarmos — disse a psiquiatra — eu gostaria muito de ver o terreno do convento. Posso?

Irmã Anne acenou com a cabeça, a touca branca adejando como asas de pombos.

— Tenho de recolher os ovos agora. Se quiser me acompanhar, posso mostrar algumas das nossas dependências.

— Obrigada.

As duas mulheres contornaram o prédio principal, pegando uma trilha muito usada através das hortas para os fundos do convento. Havia um estábulo grande de madeira descorada pelo tempo, em que uma vaca solitária mascava feno de uma manjedoura capaz de abrigar trinta animais ou mais. No outro lado havia um pequeno galinheiro; algumas galinhas ciscavam a terra no lado de fora, fazendo um barulho característico.

O cheiro do galinheiro era tão horrível que Martha desejou ter a coragem de acender um cigarro, a fim de encher as narinas com fumaça. Irmã Anne não parecia notar o cheiro, enquanto circulava pelos ninhos, removendo os ovos com extremo cuidado e colocando-os no cesto.

— É um lugar grande — comentou a Dra. Livingston.

— Este convento foi construído para mais de cinqüenta freiras. Somos quatorze agora. Fazíamos nosso pão, queijo e conservas, e vendíamos para ter uma renda. Agora, só conseguimos fazer algumas geléias para o Natal.

— Como sobrevivem?

— Somos proprietárias da terra em torno, e a alugamos — explicou a freira, com um forte sotaque francês. — Reservamos alguns acres para nosso uso e plantamos um pouco de milho, trigo, alguns legumes.

— Trabalham a terra sozinhas? — perguntou Martha, curiosa.

Anne lançou-lhe um olhar firme.

— Isso mesmo, com a ajuda de Deus. Irmã Luke e Irmã Mary Joseph fazem uma grande parte do trabalho na horta, porque são mais qualificadas para isso. Mas todas nós, com exceção das muito velhas e das muito doentes, trabalhamos a terra. E ninguém tem permissão para qualquer contato com o público, a não ser Irmã Marguerite e eu. A Dra. Livingston contemplou a massa de pedra do convento.

— Qual era o quarto antigo da Irmã Agnes?

À menção de Irmã Agnes, Irmã Anne empertigou-se e comprimiu os dedos com força contra a testa; podia sentir o início de uma dor de cabeça, em algum lugar, pela base das cavidades oculares. Sem dizer nada, apontou para um quarto lá no alto, acima dos quartos das outras freiras, no terceiro andar.

Por que Agnes era mantida separada das outras?

Quando Martha pediu para ver o quarto onde Agnes dera à luz, Madre Miriam Ruth alteou as sobrancelhas, mas depois de um instante limitou-se a acenar com a cabeça.

— Eu mesma a levarei até lá.

A madre superiora manteve-se estranhamente silenciosa enquanto subiam a escada, mas Martha pôde sentir a sua desaprovação. A psiquiatra estava sondando mais fundo do que qualquer das duas imaginara no início. O que havia para se descobrir em um quarto vazio?

E estava mesmo vazio, além de trancado. A madre superiora selecionou uma chave de ferro comprida do molho que carregava e enfiou-a na fechadura. Virou facilmente, e a porta foi aberta.

Um quarto menor do que o outro que Agnes ocupava agora, mas ainda assim muito claro, inundado pelos raios do sol, numa intensidade quase insuportável. Não havia qualquer outro móvel além da cama de madeira estreita, sem colchão. Até mesmo o crucifixo desaparecera; só restava na parede a marca onde antes estivera pendurado, como se o próprio Deus tivesse partido, deixando para trás apenas recordações.

O assoalho e as paredes apresentavam sinais de uma limpeza meticulosa e recente, que obviamente removera os vestígios de sangue, pensou Martha. Não havia mais nada. Qualquer mistério que houvera naquele quarto ainda estava trancado dentro de Irmã Agnes.

A Dra. Livingston quase pôde ouvir Madre Miriam Ruth dizer "Satisfeita?", numa voz seca. Em vez disso, porém, a freira apenas comentou:

— O convento está bem guardado, um muro de pedra de três metros de altura e um pesado portão de ferro. Irmã Marguerite é a única que tem a chave, e não deixaria nem Cristo entrar depois do anoitecer.

— Sabe-se que essas coisas também acontecem durante o dia. Talvez Agnes tenha ido procurá-lo.

A madre superiora sacudiu a cabeça, impaciente.

— Ora, pare com isso! Você conversou com Agnes. Ela nem mesmo sabe como os bebês nascem, muito menos como são feitos.

Cercadas pelo vazio, as duas mulheres confrontaram-se, frente a frente, olhos azuis fixados em olhos castanhos.

— Quando tomou conhecimento da inocência de Agnes, da maneira como ela pensa? — perguntou Martha.

— Pouco depois que ela veio para nós.

— E não ficou chocada?

Madre Miriam Ruth exibiu seu sorriso enviesado.

— Fiquei estarrecida. Exatamente como você está agora.

— O que aconteceu?

O sorriso sumiu do rosto da madre superiora.

— Ela parou de comer. Completamente.

— Isso foi antes da gravidez?

— Quase dois anos antes.

— Por quê?

— Ela disse que fora ordenada por Deus... Lembro de ver seu rosto apenas vagamente delineado à luz das velas da capela. Os olhos estavam enormes, fixados em mim, o corpo esguio tremia. Era evidente que estava apavorada com alguma coisa. Mas o quê?

"Eu já percebera durante a última semana como ela estava se tornando cada vez mais magra, embora Agnes nunca tivesse sido gorda. Mas agora era diferente. Estava com olheiras, as faces encovadas. O hábitu pendia dos ombros como trapos de um espantalho. O corpo não aparecia por baixo das pesadas dobras de pano, mas podia-se dizer, só de olhar para ela, que as costelas estavam salientes. Perguntei se havia algum problema e ela evitou meus olhos ao responder

Não, Reverenda Madre

"Resolvi observá-la. As refeições no convento constituem um momento sagrado, uma espécie de comunhão cristã. As irmãs não falam; passam as tigelas e travessas e pedem as coisas acenando com a cabeça e apontando com o dedo. Sento à cabeceira da mesa e leio em voz alta os ofícios do dia. Além de Irmã Susanna, que trabalha na cozinha, faz o pão e prova tudo, as irmãs comem com muita moderação. E à exceção do vinho da comunhão, bebemos apenas água.

"Mas Agnes não estava comendo nada. Eu a vigiava mesmo enquanto lia meu breviário. Ela passava as tigelas de legumes e pão sem pegar nada para si. As outras irmãs haviam notado, mas nenhuma me dissera coisa alguma. Penso às vezes que todas sentem ciúme de Agnes, desconfiando que eu a elegi a minha predileta."

— E estão certas? — perguntou Martha, com um sorriso irônico.

Mas Madre Miriam Ruth limitou-se a levantar uma sobrancelha preta e continuou a narrativa:

Depois de cada refeição, Agnes se levantava para tirar a mesa, pondo seu prato na base da pilha, a fim de não atrair minha atenção. Eu não disse nada na presença das outras.

"Depois de alguns dias a observá-la, no entanto, compreendi que precisava lhe falar. E quando a encontrei sozinha na capela, ajoelhada, na semi-escuridão, aproveitei a oportunidade. Ajoelhei ao seu lado, acuando-a mesmo. E falei:

Você não está comendo?

"Agnes respondeu em voz tão baixa que era quase um sussurro:

Não, Reverenda Madre.

Inclinei-me para a frente, a fim de ouvi-la, e passei a sussurrar também.

"Por que não, Irmã Agnes?

"Deus me ordenou que não comesse - respondeu Agnes.

"Ele falou com você pessoalmente?

- Não.

"Por intermédio de outra pessoa?

"Isso mesmo.

"Quem?"

Martha inclinou-se para a frente, o rosto iluminado pela ansiedade.

— "Não posso dizer", - respondeu Agnes. Parecia tão distante que eu não podia ver seus olhos. Estava aconchegada sob o pesado hábito como uma proteção. As mãos de Agnes... e isto era estranho, porque na capela as freiras mantêm seus rosários à vista, a fim de que possam ver as contas enquanto estão rezando... estavam escondidas nas dobras do hábito, por baixo do escapulário, como se congelassem. Fazia frio na capela. Até mesmo a luz das velas era fria, pálida e branca, como geada. Como a testa de Agnes.

“Por quê? - perguntei a ela, sentindo que precisava chegar ao fundo daquela história. Por um lado, era minha responsabilidade, como madre superiora. Por outro... ora, não importa. Mas Agnes é diferente das outras.

"Ela me castigaria - respondeu Agnes.

- Uma das irmãs? - perguntei.

- Não.

"Então quem?

"Neste momento houve um ruído no fundo da capela, e Irmã Agnes deu um salto como se tivesse sido golpeada. Eu nunca vira antes uma pessoa tão nervosa.

"O barulho era apenas Irmã Paul, que está morta agora, que Deus guarde sua alma. Ela estava beirando os noventa anos na ocasião e tinha de fazer o maior esforço para se manter de pé, o corpo rígido do reumatismo. A capela é realmente muito fria para as freiras mais velhas se ajoelharem por muito tempo, mas não podemos dar muita atenção a coisas assim. Depois que Irmã Paul saiu, recomeçamos a falar. Eu estava determinada a não sussurrar, porque não queria que Irmã Agnes ficasse com a idéia de que tinha alguma coisa a esconder de mim.

"Por que ela mandaria você fazer isso? - perguntei.

"Porque estou ficando gorda - respondeu Agnes.

"Era uma resposta tão absurda que não pude conter a irritação, e explodi com ela.

"Estou mesmo - insistiu Agnes.

Tem carne demais em mim. Estou uma elefanta.

E olha que ela não pesava mais que quarenta e cinco quilos, se tanto.

"Fiquei não só contrariada, mas também perplexa. Perguntei a ela se tinha alguma importância que fosse gorda ou não. Mas ela respondeu apenas que importava sim.

"Não pela primeira vez, ocorreu-me o quanto Agnes era mais jovem que sua idade cronológica. Deliberadamente, abrandei a voz, como se faz quando se fala com uma criança. "Não precisa se preocupar em ser atraente aqui - falei para ela.

"Preciso sim - insistiu Agnes, fitando-me com seus olhos enormes.

Tenho de ser atraente para Deus.

"Ele ama você tal como você é.

"Mas Agnes sacudiu a cabeça de um lado para outro, quase violentamente.

Não, Ele não ama de qualquer maneira. Ele odeia as pessoas gordas.

"Quem lhe disse isso?

Eu estava agora completamente desnorteada e ainda mais longe de compreender Agnes do que em qualquer outra ocasião anterior. Ela está com delírios? Sofre de alucinação pela fome? Será alguma forma religiosa de anorexia?

"É pecado ser gorda - declarou ela.

Por quê?

"Repare em todas as imagens. Eles são magros.

Ela sorriu enquanto contemplava as imagens, o rosto iluminado por algo mais além das velas.

"Contemplei as imagens, como se as visse pela primeira vez. São os santos para os quais rezamos, alguns deles mártires.. As imagens são antigas, mais velhas do que o convento, foram-nos enviadas pelo convento matriz na França. Estão nos dois lados do altar, e são esculpidas em madeira e pintadas.

"Há uma linda imagem da Virgem Abençoada para quem rezamos todos os dias. E há também, como não podia deixar de ser, uma imagem de Santa Maria Madalena, cujo nome a nossa ordem assumiu. Ela está ajoelhada aos pés de Cristo crucificado. E Santa Teresa de Lisieux, nossa santa francesa. Santa Agnes a Mártir, que morreu sob tortura. São Sebastião, a quem os romanos crivaram de flechas. São Francisco, que alimentava os animais, o gentil santo a que todos amam. De dois em dois dias, colocamos as flores da estação na base das imagens. Também acendemos velas quando dizemos nossas orações. Há castiçais altos na frente das imagens; contêm velas de cera, que projetam sua claridade pela capela. Não é mais um lugar tão iluminado como antigamente, quando havia muito mais irmãs para acender velas com suas orações.

- Olhe para elas, Reverenda Madre. Veja como são magras. Isso acontece porque estão sofrendo. O sofrimento é bonito, e eu quero ser bonita - disse-me Agnes.

"Pela primeira vez tive medo por Agnes. Sua mente parecia muito simples, mas eu não podia reconhecer o que havia nela.

Quem lhe diz essas coisas? - perguntei outra vez.

"Mas Agnes estava absorvida em alguma visão particular. Nem mesmo me ouviu. Só depois de algum tempo é que ela me disse:

Cristo disse na Bíblia. Ele disse: Sofram as criancinhas. Eu quero sofrer como uma criancinha.

Achei estranho que ela confundisse tanto a definição da palavra, interpretando o significado como a angústia do sofrimento real. É o tipo de erro que crianças estão sempre cometendo. Mas uma freira?

"Não foi isso que Ele quis dizer...

mas antes que eu pudesse continuar, Agnes levantou-se de um pulo, os olhos febris, as mãos ainda ocultas no hábito. A voz, geralmente tão baixa que mal se podia ouvi-la, tornou-se mais alta.

"Eu sou uma criancinha, mas meu corpo se torna cada vez maior e daqui a pouco não poderei entrar. Não poderei me espremer para o paraíso disse ela, com lágrimas nos olhos, sofrendo de verdade.

"Agnes, minha cara, o paraíso não é um lugar com barras pelas quais você tem de se espremer, com portas ou janelas...

Mas Agnes não estava me escutando. Com a mão direita, ela comprimiu os dois pequenos seios, o rosto con-torcido numa máscara de repulsa. A luz das velas fazia rebrilhar sua aliança de ouro de freira, símbolo do casamento com Deus.

"Olhe só para isto! Tenho de emagrecer! Estou uma elefanta! Um dirigível!

A mão puxou os seios, num gesto furioso.

"Eu me sentia tão atordoada que tive de fazer um grande esforço para levantar e avançar em sua direção, tentando confortá-la. Mas ela recuou, como se não me reconhecesse. Eu poderia jurar que naquele momento não me reconhecia mesmo. O rosto estava contorcido por um medo inominável. Aquela era uma Agnes que eu nunca vira antes, embora talvez tivesse uma insinuação, que jamais quisera aceitar. Ela recuou pela nave, à beira da histeria. E bal-buciava de verdade.

"Deus explodiu o Hindenburg, Ele vai me explodir!

Foi isso o que ela disse.

- Quem? - gritei.

- Mamãe! - gritou ela, em resposta.

Vou ficar maior e maior a cada dia que passa e depois vou estourar. Mas se eu ficar pequena, isso não vai acontecer!

"Eu não podia acreditar no que ouvia.

Sua mãe diz isso para você? - perguntei. Mas à menção da mãe, Agnes ficou paralisada, como se já tivesse falado demais, revelado o seu segredo mais bem guardado. Dei um passo em sua direção; ela deu um passo para trás. Olhava fixamente para mim, mas não me via; parecia estar vendo atrás de mim, como se eu fosse uma janela de vidro. Não dei outro passo. Queria que ela saísse daquele estado de histeria, daquele seu pesadelo. Sabe como dizem que é perigoso despertar um sonâmbulo, não é mesmo? Naquele momento parecia-me que Agnes era como uma sonâmbula, e fiquei com medo de despertá-la.

"Falei com ela em voz gentil, mas firme.

Agnes querida, sua mãe está morta.

"Ela acenou com a cabeça, confirmando.

Mas ela me vigia. Ela escuta.

Seria possível que ela realmente acreditasse nisso?

"Tentei outro jeito.

Isso é bobagem. Sou sua mãe agora, e quero que você coma.

"Não estou com fome.

"Tem de comer alguma coisa, Agnes.

"Ela sacudiu a cabeça.

Não, não tenho. A hóstia é suficiente.

"Não sei por que, mas isso me pareceu ridículo. E falei a ela:

Ora, minha querida, não creio que uma bolacha de comunhão tenha as porções recomendadas de qualquer coisa.

"De Deus disse Agnes, muito séria.

"Aceitei a correção. Não havia o que argumentar.

Tem razão, de Deus.

"Notei pela primeira vez que Agnes olhava fixamente para o chão, junto de seus pés, aterrorizada. Acompanhei seu olhar e vi uma poça de sangue, não muito grande, mas ainda se formando.

"Eu não sabia de onde vinha o sangue. Havia também uma mancha vermelha grande se formando no escapulário branco de Agnes, logo abaixo do crucifixo pendurado, onde sua mão estivera escondida.

"O que é isso, Agnes?

"Ela viu agora a mancha no escapulário, o vermelho vazando pelo linho branco, crescendo, se espalhando. Seu rosto era uma máscara de terror, e ela deu um passo largo para trás, quase derrubando o castiçal na frente de São Sebastião.

"Estou sendo castigada - disse-me ela, à beira das lágrimas.

"Pelo quê?

"Não sei! - gemeu Agnes, como uma criança espancada.

"Corri para ela e puxei o escapulário para o lado, pegando sua mão escondida, que estava com a palma virada para cima, o sangue escorrendo entre os dedos.

"Oh, Jesus - balbuciei, a voz rouca. Havia um buraco na palma de Agnes, um buraco que sangrava intensamente.

"Começou esta manhã, e não consegui fazer parar - disse ela, soluçando.

Por que eu, Madre? Por que eu?

"E eu não tinha resposta para lhe oferecer. A madre superiora parou de falar, totalmente esgotada, os ombros vergando em cansaço, as mãos caídas dos lados.

— Por que não a mandou para um médico? — perguntou a Dra. Livingston.

Madre Miriam Ruth virou-se da sombra em formato de cruz na parede.

— O ferimento estava curado na manhã seguinte. Ela voltou a comer, e isso me parecia o mais importante na ocasião... além disso, o ferimento nunca mais reapareceu.

— Ela tinha um buraco na mão! — gritou Martha, perdendo o controle. — Podia ter sangrado até a morte!

— Mas não sangrou, não é mesmo? — a fúria da madre superiora se igualava à de Martha. — Se alguém mais visse o que eu vi, ela se tornaria propriedade pública. Jornais, psiquiatras, escárnio. Ela não merece isso!

Martha respirou fundo.

— Pois é o que ela tem agora.

Dentro de sua cabeça, a voz que clamava "Marie! Marie!" se manifestava outra vez.

— Sei o que você está pensando — disse Madre Miriam Ruth. — Ela é uma histérica, pura e simples.

— Simples não.

— Eu vi! Bem ali, na palma de sua mão! Acha que a histeria causou aquilo?

— Vem acontecendo há séculos, não é mesmo? São Francisco de Assis e Santa Catarina de Siena, para mencionar apenas dois. E os milhares que não eram santos, cujos ferimentos nada tinham a ver com santidade, apenas com obsessão religiosa? Ela não é única, apenas mais uma vítima!

— Isso mesmo, a vítima de Deus! — respondeu a madre superiora, com toda veemência. — Essa é a sua inocência! Ela pertence a Deus!

- E eu tenciono tirá-la dele? Não é isso o que você teme?

— Pode apostar que sim!

Elas se fitaram, furiosas, a ira exposta, as linhas da batalha bem traçadas. Para a Dra. Livingston, a religião era a droga com que aquela adolescente fora viciada e na qual se alimentavam as suas mórbidas fantasias freudianas. Uma infância miserável nas mãos de uma mãe obviamente psicótica, combinada com o misticismo da Igreja, seus rituais e as qualidades antinaturais da vida celibatária, tudo contribuía para uma histeria sexual que barrava o caminho para que Agnes aceitasse a realidade.

Para Madre Miriam Ruth, Irmã Agnes era forjada no molde dos santos e mártires que haviam recebido os estigmas, os ferimentos de Cristo. Era uma coisa a se acalentar e proteger do mundo exterior. A convicção da madre superiora na inocência de Agnes era cega. Fora ela quem encontrara o corpo do bebê, fora ela quem dera à cabecinha ensangüentada o sacramento do batismo, mas de certa forma erradicara a morte de sua consciência quase tão eficazmente quanto Agnes.

Agnes dei, pensou Martha, amargurada. Cordeiro de Deus. Mas quem levara aquele cordeiro à chacina?

 

— Quer me dizer por que está demorando tanto?

Eugene Lyon mastigou furioso o charuto e amarrou a cara, indiferente à vista do centro de Montreal, visível através da janela alta do gabinete do juiz. Como advogado de defesa da acusada, ele estava impaciente, seguro em sua opinião de que uma freira que secretamente dá à luz um bebê e depois o estrangula deve estar insana. Ele estava convencido de que qualquer psiquiatra devia concordar com sua opinião à primeira vista e sentia-se ansioso em apresentar o laudo de insanidade e pedir o arquivamento do processo. Além do mais, seus honorários estavam sendo pagos pela Igreja, e a Igreja cobrava pelo que pagava.

— Há uma porção de perguntas não respondidas neste caso... — começou a Dra. Livingston, na defensiva.

— Sua função é diagnosticar, não curar e muito menos bancar a detetive — resmungou Lyon.

Irritada, Martha respondeu com raiva:

— Sei muito bem qual é a minha função. Não me diga o que devo fazer. Minha obrigação como médica...

— Martha — interveio a procuradora da Coroa, Evle Claire, cansada — você precisa tomar uma decisão sobre a sanidade dela o mais depressa possível, sem interferir com os trâmites legais do processo.

— Tão depressa quanto eu julgar apropriado — corrigiu ela.

Por que sempre me ponho na defensiva diante dessas pessoas?, ela perguntou a si mesma. Minhas qualificações profissionais são tão boas quanto as delas. Minha experiência é igualmente válida. Por que então sempre pareço estar de pé no centro da sala, como uma corça diante de seus perseguidores, enquanto elas acomodam seus rabos nas cadeiras de couro, formando um círculo ao meu redor, como cachorros a latirem? Ou será que estou ficando paranóica? Elas querem que este caso tenha uma conclusão rápida. E o que pensam que eu quero? Para começar, jamais desejei este caso, mas não vou permitir que me pressionem só para acabarem tudo de uma vez.

— Quanto mais tempo você levar para tomar uma decisão, mais difícil será para mim — acrescentou LeClaire.

— Por quê?

— O bispo está nos pressionando.

— Quanto mais cedo ela for para a prisão, melhor será? — indagou Martha, sarcástica.

O Juiz Leveau levantou a mão, num gesto apazigua-dor.

— Qualquer que seja a sua decisão, Martha, vou permitir que ela volte ao convento e cumpra ali a sua sentença.

Moral e legalmente, aquilo era incrível! Os olhos fais-cando, Martha virou-se para o juiz.

— Não acredito! — gritou ela. — Não acredito de jeito nenhum!

— Não recomendaria que ela fosse reencaminhada ao convento? — indagou o juiz, sem elevar a voz.

— Eu não a mandaria de volta para a fonte de seu problema.

— O bispo não vai gostar disso — advertiu Lyon. Foi para Lyon que Martha virou agora seu rosto irado.

— Estou lutando pela vida dessa mulher, não por algum bispo desgraçado!

Era a ciência contra a religião, o velhoconflito, e a ciência estaria sempre perdendo seus aliados enquanto a religião dispusesse de tanto poder político. Infelizmente, Martha não podia levantar essa questão como o verdadeiro problema em discussão ali. Havia algumas coisas que não se podiam dizer quando se queria preservar a eficácia. Além do mais, aqueles homens negariam, e era bem possível que nem percebessem que o problema afinal de contas era esse.

Quando se olha de uma certa maneira, não há tanta diferença entre um convento e um sanatório, pensou Martha, enquanto parava o carro no estacionamento de concreto e subia os degraus da frente. Ambos ficam isolados do mundo; ambos criam uma sociedade artificial, em que nada do mundo exterior, o mundo real, tem permissão para entrar; nada muda de um dia para outro, porque não se permite qualquer mudança; e a libertação costumeira é a morte. Ela estremeceu. Detestava ir ali, dizendo a si mesma em cada visita que aquele era o melhor lugar para sua mãe ficar, a única maneira de poder receber cuidados vinte e quatro horas por dia. Mesmo assim, ela o detestava.

O cheiro sempre a alcançava primeiro. Composto de anti-sépticos, urina, fezes e desinfetantes industriais, atingia-a na cara sempre que entrava na área de recepção e assinava o livro de visitantes. Era um cheiro que passara naturalmente a associar com a mãe, e com a mesma naturalidade sentia-se culpada por isso.

Levando na mão a pequena sacola de papel branco, Martha encaminhou-se para a sala de recreação, onde o aparelho de televisão estava sempre ligado. E a mãe quase sempre estava sentada ali, assistindo à televisão. Martha lá a encontrou, mais uma vez. Grata por isso, pegou um cigarro e acendeu-o. Aquela sala era o único lugar no sanatório em que se podia fumar.

Cerca de meia dúzia de pacientes, quase todos em cadeiras de rodas, estavam sentados pela sala, virados para a televisão, mas apenas um ou dois assistindo de verdade. Um casal dormia, um paciente chorava desolado, uma mulher gemia, como se o coração pudesse se partir, filetes de saliva escorrendo pelo queixo. Tendo aprendido pela experiência que nada que pudesse dizer ou fazer ajudaria qualquer dos dois, que estavam isolados dentro de suas cabeças, Martha encaminhou-se para a mãe, que se sentava mais perto da televisão, vestindo um robe manchado, os cabelos despenteados, o rosto sem lavar. Martha inclinou-se e beijou-a com grande ternura.

— Oi, mamãe.

A velha virou-se para fitá-la, depois voltou a se concentrar na televisão. Um desenho animado colorido, com muita violência, se desenrolava na tela. Martha ajoelhou-se ao lado da cadeira da mãe.

— Eu lhe trouxe uma coisa. Ela estendeu a sacola de papel.

— Cale a boca — disse a mãe, irritada. — Estou tentando assistir ao programa.

Ela sorriu vazia para a tela, no instante em que um super-herói fantasiado de aranha acabava de achatar um inimigo de cara amarela.

Tirando o recipiente da sacola, Martha levantou a tampa e pegou a colher de plástico. A mãe lançou um olhar de esguelha para o sorvete e depois arrancou-o das mãos de Martha, sem dizer nada. Começou a tomar o sorvete, vorazmente.

É o seu predileto — murmurou Martha.

— Quem é você?

— Sou eu, Martha, mamãe.

— Marie também me traz sorvete. De chocolate. O que eu mais gosto.

Seus olhos se estreitaram, numa recordação imprecisa. Marie está morta, mamãe. Fui eu quem trouxe o sorvete de chocolate. Eu, mamãe, Martha quis dizer.

— Pensei que cereja com baunilha fosse o seu sorvete predileto.

A velha levou a colher à boca outra vez.

— Não é mais. Agora eu gosto de chocolate.

— Passou uma boa semana? — perguntou Martha. — Estão cuidando bem de você?

Mas a mãe não estava escutando.

— Quer saber de uma coisa? — confidenciou ela, a boca cheia de sorvete. — Martha nunca vem me visitar. Ela vai direto para o inferno. Depois de todas as coisas que me disse. E ainda por cima casa com aquele filho da puta de um francês. Eu sabia que não ia dar certo. Não é como você, Marie, que casou com Deus.

— Marie está morta, mamãe — disse Martha suavemente.

A velha riu.

— Lembro quando você era pequena, Marie, voltava do cinema e dizia: "Mamãe, aquele final foi muito triste." Eu dizia que todos os finais felizes estavam guardados num cofre em Hollywood. E você acreditava.

Rindo, ela não prestava atenção ao sorvete, que escorria da boca e pingava pelo queixo.

Essa não era Marie, mamãe. Era eu. Quando isso aconteceu com você, mamãe? Sempre foi tão forte, resistente, inteligente. Por que isso aconteceu com a gente? Mas Martha sabia como e por quê. Afinal, não era uma médica? Podia dar uma aula sobre o endurecimento das artérias, a redução do fluxo de sangue para o cérebro, a crescente desorientação, perda de memória, confusão de identidade, fuga da realidade. Fatos. A Dra. Martha Livingston adorava fatos científicos. Mas de que adiantavam os fatos diante do sofrimento? Onde estava a razão quando a razão escapava?

— Essa não era Marie, mamãe. Era eu.

— Quem é você?

Parte de Martha queria voltar ao convento imediatamente, dia após dia, até que o mistério fosse esclarecido, até que Agnes o cordeiro de Deus revelasse seus segredos. Parte não queria voltar nunca mais. O convento a deixava intensamente contrafeita; era um mundo a que desprezava, habitado por uma raça de mulheres a que não podia compreender. A vida de uma mulher religiosa enclausurada parecia-lhe a suprema negação da vida e um campo fértil para o tipo de histeria de que Irmã Agnes era vítima.

No século XVII, recordou Martha, um convento inteiro de freiras francesas fora dominado pelo frenesi sexual, obcecadas pela idéia de que copulavam com um demônio. Um padre pagara com a vida por essa obsessão. Aldous Huxley pusera o episódio sinistro num livro, Os Demônios de Loudun. E no mesmo século, em Salem, Massachusetts, um grupo de moças adolescentes, aparentemente incapazes de lidar com sua sexualidade emergente, fantasiara sobre feiticeiras, levando algumas velhas inofensivas à forca. Agnes parecia ser a candidata perfeita a esse tipo de obsessão clássica. Todos os elementos já estavam presentes nela, uma adolescência retardada, uma aversão e um medo das funções físicas, uma devoção e misticismo que quase equivaliam à mania religiosa.

Mas ela já fora empurrada além da fronteira para a loucura? Isso a Dra. Livingston ainda não decidira. E era estranho. Fora do convento, Martha podia encarar o caso com toda a sua inteligência e racionalidade tão gabadas, todas as suas teorias freudianas. Mas quando se encontrava dentro daqueles muros de pedra, conversando com Agnes, escutando o que ela dizia, as teorias pareciam voar pela janela gótica, e tudo o que restava era a pureza da presença de Agnes, a inocência em seus olhos. Martha começava a compreender por que Madre Miriam Ruth se mostrava tão protetora em relação a sua jovem freira.

Parecia a Martha que ela também começava a perder de vista o bebê morto, o terrível ato que a levara várias vezes ao convento. A pedido de Martha, Richard Langevin requisitara um jogo das fotografias da polícia mostrando o local do crime. Ela se forçara a examinar as horrendas imagens do bebê assassinado, em detalhes, gravando na mente toda a atrocidade.

Estava de volta ao convento hoje, mais uma visita para sondar a psique da jovem e desencavar... o quê?

O mês se aproximava do fim, o tempo se tornava mais frio. Ao final da tarde, porém, o vento estava calmo, e o sol ainda tinha o poder de esquentar. Sentindo-se sufocada entre os muros do convento, Martha sugerira que saíssem, e Agnes concordara alegremente. Queria visitar o cemitério do convento, a fim de orar junto à sepultura da falecida Irmã Paul.

O cemitério ficava perto da capela, simples, pastoral. Não havia mausoléus de mármore com serafins chorando nos cantos, não havia estátuas douradas do Arcanjo Gabriel soprando a trombeta do Dia do Juízo Final. As sepulturas eram marcadas por lápides simples, apenas os nomes e datas — fatos deploráveis — e uma pequena cruz com a inscrição INRI, Jesus, nascido Rei dos Judeus, a expressão escarninha de Seus algozes romanos. A única estátua no cemitério era da Virgem Maria, as sepulturas se agrupando ao seu redor, como se procurassem sua sabedoria e conforto mesmo na morte.

Irmã Agnes ajoelhou-se ao lado de uma sepultura, fez o sinal-da-cruz e sussurrou uma breve oração. A lápide era recente e tinha a inscrição "Soeur Marie Paul, Nascida a 21 de julho de 1898, Morta a 23 de janeiro de 1984."

— Você gostava de Irmã Paul — comentou a Dra. Li-vingston, gentilmente.

— Ela era muito boa para mim. Disse-me que eu era bonita.

— O que mais ela lhe disse?

Martha se colocara atrás de Agnes, a fim de poder observar a jovem, mas sem confrontá-la; além disso, como sempre, sentia a necessidade de fumar.

— Ela disse que todos os anjos de Deus haveriam de querer dormir ao meu lado, se pudessem.

Agnes inclinou-se e removeu as folhas mortas da sepultura, pondo em cima o pequeno ramo de flores de outono que trouxera, ásteres e crisântemos, umas poucas zínias retardatárias que não haviam morrido com a geada noturna.

— Gostei disso — continuou ela. — Irmã Paul viveu aqui por mais de setenta anos, e todos os dias tocava o sino para acordar a gente, a fim de nos chamar para Deus... — Uma pausa, e Agnes acrescentou timidamente: — Foi ela quem me levou a meu lugar secreto.

Todos os sentidos de Martha entraram em estado de alerta.

— Onde fica? — perguntou ela, o mais casualmente que pôde.

Mas Agnes desviou a cabeça, olhando para baixo. Contudo, ela sorriu, como se quisesse partilhar seu segredo com a doutora.

— Leve-me até lá — insistiu Martha, a voz suave. — Prometo que não contarei a ninguém.

E ela foi recompensada com um ligeiro aceno de cabeça.

A subida era longa, os degraus estreitos e íngremes, e Martha sentia que estava ficando sem fôlego, enquanto acompanhava Agnes até o campanário.

— Irmã Paul não estava na casa dos oitenta anos? — balbuciou Martha. — E mesmo assim ela subia aqui com freqüência?

— Não. Só vinha quando tinha vontade. Ela me trouxe aqui no inverno passado, e morreu no dia seguinte.

— Não é de admirar — murmurou Martha, para si mesma.

Ela tentou recuperar o fôlego. Mais acima, na escada, Irmã Agnes subia como um cabrito montês, pulando agil-mente de um degrau para outro. Devo estar envelhecendo, pensou Martha.

— Agnes, como se sente em relação a bebês?

— Oh, eles me assustam. Fico com medo de deixá-los cair. Têm um lugar mole na cabeça, e se a gente deixa cair e batem de cabeça, eles ficam estúpidos. Foi o que aconteceu quando me deixaram cair. Não entendo as coisas — confidenciou ela.

— Por exemplo?

Agnes realmente caíra e batera a cabeça quando era bebê ou seria mais uma brincadeira cruel com uma criança indefesa?

Agnes deu de ombros.

— Números. A gente pode passar a vida inteira contando e nunca chegar ao fim.

— Também não entendo os números — confessou Martha, sorrindo. — E acha que fui largada de cabeça? — brincou.

Mas Agnes considerou o comentário de maneira literal, como fazia com tudo.

— Espero que não — disse ela, muito solene, lançando um olhar ansioso para Martha. — É uma coisa horrível ser largada e bater de cabeça no chão.

Chegaram ao alto da torre do campanário, uma estrutura antiga, quadrada, com arcadas abertas nos quatro lados — janelas sem vidro, abertas aos elementos. O sino pendia de cordas do teto, e por baixo dele havia uma plataforma forte em que ele podia repousar. Pássaros — pombos selvagens — haviam feito seu ninho ali. Os excrementos estavam solidificados nas paredes, mas os ninhos há muito tinham sido abandonados, com a migração dos pássaros para climas mais quentes.

O sino era muito bonito. Moldado em bronze um século antes, tinha anjos gravados, por fora e por dentro, com uma frase em latim em torno da borda: Sum Vox Angelo-rum — Eu Sou a Voz dos Anjos.

O sol viajara pelo céu para oeste e pendia baixo sobre o horizonte distante. O céu ocidental estava colorido em tons brilhantes por longas faixas de rosa, púrpura e dourado, e as formações de nuvem eram de um laranja forte, tingidas pelos últimos raios de sol. Lá de cima se podia ver, por quilômetros ao redor, os campos pontilhados de fazendas e aldeias, sobre as copas das árvores e as torres das igrejas. Era deslumbrante, uma paisagem de sonho, iluminada por um sol poente.

— Irmã Paul disse que eu podia ver o mundo inteiro daqui de cima — comentou Agnes. — Parece muito melhor à distância do que de perto.

— É lindo — concordou Martha, impressionada pela vista.

Passando para a plataforma do sino, Agnes deitou-se de costas, a fim de poder contemplar suas profundezas de metal.

— Às vezes, venho aqui para baixo e canto. Dá um som maravilhoso.

Respirando fundo, ela emitiu uma nota alta. O som ecoou, povoando a torre com sua música e derivando pelas aberturas. Agnes riu como uma criança.

— O que acontece se o sino toca e você está por baixo? — perguntou Martha.

— Fica ainda mais maravilhoso.

Agnes sorriu. A psiquiatra avançou cautelosamente para a plataforma e espremeu-se por baixo do sino, sentando-se ao lado de Agnes. As duas riram, como conspiradoras partilhando um grande segredo.

— É como me esconder de minha mãe quando eu era pequena — disse Martha.

— Para onde você ia? — indagou Agnes.

— Não para um lugar tão maravilhoso como este.

Por um momento, elas ficaram em silêncio, lado a lado. Seu companheirismo era total, como se estivessem unidas por vínculos de afinidade. Irmãs? Não: a diferença de idade entre as duas as faria mãe e filha. É assim ter uma filha?, imaginou Martha. Esse senso de comunicação silenciosa? Devia ser uma coisa rara, mas extremamente satisfatória. E ela experimentou uma sensação de perda.

Por cima, o interior do sino as envolvia, como se estivessem numa pequena casa ou talvez num útero. Um único raio de luz entrava pelo topo do sino, pela haste do badalo, iluminando os baixos-relevos de anjos.

— Agnes, você já pensou alguma vez em deixar o convento e fazer outra coisa?

A jovem sacudiu a cabeça, decidida.

— Oh, não! Não quero fazer mais nada. Só estar aqui me ajuda a dormir à noite.

— Tem problemas para dormir? — indagou Martha, cautelosa.

— Tenho dores de cabeça. Mamãe também tinha. Só que ela não era estúpida. Sabia de coisas que ninguém mais sabe.

— Que coisas?

— Ela sabia o que ia me acontecer, e era por isso que me escondia.

Martha sentiu a pulsação acelerar. Era o mais perto que já chegara, até agora. Seria possível que Agnes pudesse estar à beira de alguma revelação, de contar algo significativo, algo que poderia unir todas as peças do quebra-cabeça? Com extremo cuidado, não muito depressa, Martha sabia que tinha de ser gentil e não assustá-la. Agnes parecia aceitá-la como a uma amiga.

— Como ela sabia?

— Alguém contava a ela — respondeu Agnes ingenuamente.

— Quem?

— Não sei.

Mas era evidente que ela sabia. E que queria contar.

— Agnes...

A jovem sacudiu a cabeça.

— Você vai rir.

— Prometo que não. Quem contava a ela? Agnes virou o rosto para Martha.

— Um anjo. Sempre que ela estava com dor de cabeça.

— Sua mãe via anjos com freqüência?

— Não.

— E você?

— Também não — respondeu Agnes, porém depressa demais.

A psiquiatra resolveu deixar o assunto de lado por um momento e perguntou:

— Acredita que sua mãe realmente via os anjos?

— Não — respondeu Irmã Agnes, falando agora muito devagar. — Mas nunca pude dizer isso a ela.

— Por que não?

O rosto da freira ficou sombrio, e a voz tornou-se tensa:

— Ela ficaria zangada. E me castigaria.

— Como ela castigaria você?

A Dra. Livingston procurou os olhos da jovem. As palavras eram pronunciadas tão baixo que só podiam ser ouvidas porque as duas se encontravam dentro do sino ressonante. Agnes desviou os olhos. O que quer que estivesse recordando era muito amargo para se fixar por muito tempo ou partilhar com Martha.

— Ela... me castigava — murmurou a freira, saindo de baixo do sino e se afastando de Martha, indo até uma das arcadas abertas.

A Dra. Livingston também deixou o abrigo do sino, mas não fez qualquer menção de seguir Agnes. Em vez disso, permaneceu na plataforma e acendeu um cigarro. Seu coração batia forte pela excitação, mas tinha de parecer calma e natural. Se traísse sua ansiedade, Agnes poderia ficar assustada, destruindo o primeiro vínculo de comunicação real entre as duas.

— Você amava sua mãe? — perguntou ela, mudando de rumo, aventurando-se por um terreno perigoso sem um mapa de orientação.

— Amava sim! Claro que amava! Agnes sorriu.

— Alguma vez desejou também ser mãe?

Temos de voltar ao bebê. De alguma forma, preciso levá-la a falar sobre o bebê.

— Eu nunca poderia ser mãe.

A jovem franziu o rosto, e os olhos acinzentados escureceram para um azul-marinho.

— Por que não?

— Acho que não tenho idade suficiente. Além do mais, não quero um bebê.

— Por que não? — perguntou Martha outra vez.

— Porque não quero.

O rosto de Agnes tornou-se obstinado, uma expressão que a Dra. Livingston nunca vira antes. Devagar. Seja gentil.

— Mas se você quisesse um bebê, como poderia consegui-lo?

— De alguém que não quisesse um bebê — respondeu Irmã Agnes prontamente.

— Como você?

— Não! Não como eu!

O movimento da cabeça coberta foi veemente.

— Mas como essas pessoas poderiam ter conseguido um bebê se não o queriam?

— Por engano.

Agnes torceu o nariz em repulsa. Martha prendeu a respiração.

— Como sua mãe conseguiu você?

— Por engano! Foi um engano! — gritou Agnes, a boca tremendo, como uma criança à beira das lágrimas.

— Era o que ela dizia?

A jovem cerrava e descerrava as mãos nervosamente. Estava gritando agora, o rosto contraído pela raiva.

— Você está tentando me fazer dizer que ela era uma mulher má, que me odiava e não me queria, mas isso não é verdade! Ela era uma boa mulher, uma santa! Você não quer ouvir as coisas boas dela!

Martha encarou essa demonstração de ira como uma coisa positiva, uma liberação de emoção genuína e uma abertura nas cuidadosas defesas de Agnes. Era o momento pelo qual esperava. Talvez agora pudesse levar a jovem freira a se abrir ainda mais, expor os fatos relativos ao mistério. Talvez a força da ira de Agnes revelasse a verdade. Martha começou a avançar devagar na direção da jovem freira, que foi recuando.

— Agnes, não posso imaginar que você não saiba nada sobre sexo...

— Não posso fazer nada se sou estúpida! — gritou a jovem.

— Ou que você não tenha qualquer lembrança do momento da concepção...

— Não é minha culpa!

— E que você não acredite que gerou um filho!

— Foi um engano!

A voz da jovem elevou-se para um grito estridente, terminando num gemido.

— O quê? A criança? — insistiu Martha, implacável.

— Tudo! Freiras não têm filhos! — gritou Agnes, desatando a soluçar.

A Dra. Livingston estendeu a mão direita em sua direção, a mão que segurava o cigarro. A visão do cigarro aceso fez Agnes recuar em terror, batendo na mão estendida de Martha.

— Não me toque assim! Não me toque assim!

Os gritos eram de medo genuíno. O recuo brusco fez a jovem se desequilibrar por um momento, balançando perigosamente próximo da abertura na parede da torre. No mesmo instante, Martha a agarrou, puxando-a de volta para um lugar seguro.

Mas Agnes desvencilhou-se da proteção, como se Martha estivesse contaminada por Satã. Instintivamente, levantou a mão para pegar o crucifixo que lhe pendia do pescoço e repousava sobre o escapulário branco do hábito.

— Sei o que você quer de mim! — gritou ela, quase histérica. — Sei o que você quer de mim! Quer levar Deus para longe! Devia se envergonhar! Deviam trancafiar você! Todas as pessoas como você!

Ela virou-se e desceu a escada correndo. Martha ficou parada, olhando, confusa e mais que um pouco magoada. A jovem estaria certa? Ela estava mesmo tentando tirar Deus de Agnes? Em sua paixão pelo racional, pelo cientificamente explicável, estaria tentando privar a jovem de uma coisa que lhe era tão preciosa... seu lar emocional no seio de Cristo? Tudo o que ela queria era que Agnes saísse de trás da barreira de misticismo que erguera contra a verdade, de maneira tão meticulosa, para enfrentar a realidade. E se conseguisse trazê-la para o mundo real, não haveria um preço terrível que ambas teriam de pagar?

 

A madre superiora sentia uma raiva fria. A visão de Agnes em lágrimas despertara todos os seus instintos protetores. Quando a Dra. Livingston entrou em sua sala, Madre Míriam Ruth estava pronta para enfrentá-la. Sem as luvas.

— O que disse a Irmã Agnes? — perguntou ela.

— Fiz algumas perguntas. Não é para isso que estou aqui? — reagiu a psiquiatra, na defensiva. — Para descobrir a verdade?

As duas mulheres se confrontaram na semi-escuridão da sala. O convento dependia o mínimo possível do mundo exterior, e nisso estava incluída a companhia de energia elétrica. Se pudessem dispensar inteiramente a eletricidade, assim o fariam, com a maior satisfação. Mas era tarde demais para isso, quando só faltavam menos de duas décadas para terminar o século XX. Por isso, elas usavam a iluminação elétrica com o maior comedimento, e a sala da madre superiora era iluminada apenas por uma única lâmpada na mesa, que projetava sombras grotescas nas paredes.

— Você nos odeia, não é? — indagou Madre Miriam Ruth subitamente.

Martha foi apanhada de surpresa, como a freira tencionara.

— Como?

— Freiras. Você odeia freiras.

— Odeio a ignorância e a estupidez — respondeu a psiquiatra, embaraçada.

— E também a Igreja Católica — acusou a madre superiora.

Martha estava em terreno instável, e sabia disso. Mesmo assim, tentou uma negativa.

— Eu não disse uma só palavra contra...

Mas Madre Miriam Ruth interrompeu-a, a voz incisiva:

— É com um ser humano que está lidando, não com uma instituição.

Martha tratou de reagir:

— Mas a instituição tem muito a ver com...

Era evidente que a madre superiora não estava disposta a deixá-la concluir qualquer frase, pois tornou a interrompê-la, firmemente:

— O catolicismo não está em julgamento neste caso. Quero que trate com Agnes sem preconceitos religiosos ou entregue o caso a outra psiquiatra.

— Como se atreve a me dizer como devo conduzir os meus casos? — berrou Martha, furiosa.

— É meu caso também! — gritou a freira em resposta, igualmente furiosa.

As duas mulheres explodiram uma contra a outra, gritando a plenos pulmões, interrompendo-se, cada uma determinada a impor sua posição, sem ouvir os argumentos da outra. Parecia a ambas que o destino de Irmã Agnes estava em jogo ali, aguardando o resultado daquela discussão, e mais nada.

— Como se atreve a pensar que posso ser pressionada... — gritou Martha.

— Só estou pedindo que seja justa — reagiu a madre superiora.

— ...ou intimidada ou qualquer outra coisa que está tentando fazer? Quem você pensa que é? Como pode se mostrar tão arrogante, esperando aplausos pela maneira como tratou essa criança?

— Ela não é uma criança — declarou Madre Miriam Ruth, taxativa.

— Ela tem o direito de saber! — continuou Martha, sem dar atenção à outra. — Que há um mundo fora daqui cheio de pessoas que não acreditam em Deus e que não são piores do que vocês! Pessoas que passam a vida inteira sem dobrar os joelhos para ninguém! E pessoas que ainda se apaixonam, fazem bebês e de vez em quando são muito felizes. Ela tem o direito de saber disso. Mas você, sua ordem e sua igreja a mantiveram na ignorância...

— Dificilmente poderíamos fazer isso, mesmo que quiséssemos...

— Porque a ignorância está próxima da virgindade, não é? Pobreza, castidade e ignorância! É para isso que vocês vivem!

— Não sou uma virgem, doutora — disse a madre superiora suavemente.

Os olhos de Martha se arregalaram de surpresa, e o fluxo de suas palavras foi de repente contido. Madre Miriam Ruth ofereceu um meio sorriso para a expressão espantada no rosto geralmente reservado da Dra. Livingston.

Abrindo a gaveta de cima da escrivaninha, a madre superiora tirou um pequeno porta-retratos duplo.

— Fui casada durante vinte e três anos. Duas filhas. — Ela colocou o porta-retratos em cima da mesa, como prova.

Os rostos de duas mulheres jovens sorriam para a atônita psiquiatra. — Tenho até netos. Está surpresa?

Um olhar para a Dra. Livingston foi suficiente para mostrar como sua declaração tivera enorme impacto. Satisfeita, Madre Miriam Ruth guardou o porta-retratos e fechou a gaveta.

— Talvez lhe agrade saber que fui um fracasso como esposa e mãe — continuou ela. — Talvez porque protegia minhas filhas de nada. Elas não me visitam mais. É a sua vingança. Tenho a impressão de que dizem a seus amigos que eu morri. E, por favor, Dra. Freud, não me diga que estou pagando pelos erros passados.

Mas Martha sacudiu a cabeça; não era o que tencionara dizer, nem mesmo o que estava pensando. Em vez disso, pensava que Madre Miriam Ruth, tendo sido esposa e mãe, devia possuir uma profundidade de compreensão ainda maior do que uma mulher que fora celibatária a vida toda.

— Você pode ajudá-la — começou ela, ansiosa, os olhos azuis sondando os olhos castanhos da freira.

— E estou ajudando-a. Com tudo o que está ao meu alcance.

— Não, não está. Ao contrário, está resguardando-a. Deixe-a encarar o mundo grande e mau.

— Ou seja, você? — indagou Madre Miriam Ruth, al-teando uma sobrancelha, numa expressão de ligeiro sarcasmo.

— Se é isso o que pensa, então sim.

— E de que adiantaria? Não importa o que você decida, será a prisão ou o hospício... e a diferença entre os dois quase não existe.

Os lábios da madre superiora se contraíram numa expressão amargurada, e ela pareceu subitamente muito mais velha.

— Há outra opção — disse Martha, falando bem devagar.

— E qual é?

— A absolvição.

A palavra surpreendeu-a no instante em que saiu de sua boca. A esperança brilhou nos olhos escuros da freira e depois se transformou em suspeita.

— Como?

— Inocência. Inocência legal. Sei que o juiz ficaria feliz em tirar o caso do tribunal por qualquer motivo.

Houve um momento de silêncio, enquanto a madre superiora pensava nas palavras da psiquiatra, um silêncio em que a esperança renasceu.

— O que você precisa? — indagou Madre Miriam Ruth.

— Respostas.

— Faça as perguntas.

Reinava uma trégua tácita e frágil entre as duas. Martha tirou o maço de cigarros e o caderninho de anotações da bolsa grande de couro. Acendeu um cigarro e folheou suas anotações.

— Quando Agnes teria concebido a criança?

— Por volta de janeiro.

— Não se lembra de qualquer coisa fora do comum que tenha ocorrido nessa ocasião?

Tornando a altear uma sobrancelha, Madre Miriam Ruth indagou secamente:

— Terremotos?

— Visitantes no convento. A freira sacudiu a cabeça.

— Nada.

— Você mantém um diário? Um registro dos acontecimentos?

— Claro.

— Dê uma olhada.

— Já dei.

— Olhe de novo.

Madre Míriam Ruth abriu a gaveta no lado da mesa e vasculhou-a. Havia ali alguns livros para consulta rápida, as contas, listas de suprimentos e o registro de ocorrências, não muito diferente de um diário de bordo. Pondo em cima da mesa, ela se sentou e começou a folhear as páginas, até chegar às datas aproximadas que poderiam interessar. Passou a prestar atenção maior. Mesmo assim, continuou a sacudir a cabeça.

— Não há nada aqui.

— A criança não seria prematura? — indagou a Dra. Livingston.

Subitamente, os olhos da madre superiora se arregalaram, como se ela se lembrasse de algo que não lhe ocorrera antes.

— Oh, Deus! — balbuciou ela, recomeçando a folhear as páginas.

Martha empertigou-se na cadeira.

— O que foi?

Madre Miriam Ruth não levantou os olhos nem respondeu. Em vez disso, continuou a examinar o livro, uma página de cada vez, os dedos trêmulos.

— Os lençóis — murmurou ela.

— Que lençóis?

— Santo Deus, eu deveria ter imaginado... deveria ter desconfiado de alguma coisa...

— Conte tudo! — exclamou Martha. — É indispensável que eu saiba!

— Está bem — disse Madre Miriam Ruth, lentamente. — Acho que é mesmo. Creio que você tem o direito de saber.

Ela empurrou o diário para o lado, como se estivesse contaminado, e mordeu o lábio inferior com uma expressão pensativa, tentando arrancar toda a história dos recessos de sua memória.

Martha inclinou-se para a frente em sua cadeira, os olhos focalizados no rosto da mulher mais velha.

— Recebêramos a comunhão do Padre Martineau no serviço vespertino. Eu tencionava conversar com Irmã Agnes no início daquele dia, mas mudei de idéia. Desconfio que por razões puramente egoístas. Qualquer que tenha sido o motivo que dei a mim mesma para o adiamento, creio que foi apenas porque eu não queria perturbá-la antes do último serviço. Ela canta de maneira magnífica. Uma voz celestial. Acho que eu queria ouvi-la entoando o Gloria e o Credo nos responsos. Além do mais, ela sempre aguardou com ansiedade as visitas semanais e a missa celebrada pelo Padre Martineau. Adora se confessar com ele. Ela lhe contou isso?

— Contou, sim.

— Estou lembrando de tudo agora, nitidamente — continuou Madre Miriam Ruth. — Já havíamos comido, e o padre voltara à aldeia. As freiras estavam tirando a mesa, dobrando as toalhas. Acenei com a cabeça para que Agnes permanecesse sentada. Pretendia conversar com ela, interrogá-la, descobrir o que estava escondendo. Agnes era então uma noviça, ainda não fizera os votos finais.

"Uma parte importante da vida do convento é o fato de sermos uma comunidade, sem segredos de uma para outra. A vida de uma freira é um livro aberto. Todas vivemos pelas mesmas regras, seguimos a mesma rotina diária; o que pode qualquer uma de nós ter para esconder de suas irmãs em Cristo? Assim, quando uma freira... qualquer freira... observa outra se desviar, de qualquer forma, de nossa rotina, ela tem o dever de relatar a aberração à madre superiora. E a madre superiora tem o dever de interrogar a irmã na presença das outras, a fim de que todas possam partilhar e se beneficiar com a instrução da madre superiora.

"Falei com Agnes com alguma severidade, já que seria uma punição pública.

Irmã Marguerite me disse que a viu dormindo num colchão descoberto, Irmã. É verdade?

"Consciente de que todas a observavam, Agnes inclinou a cabeça, e seu rosto pálido tornou-se vermelho de embaraço.

"Ela disse:

É, sim, Madre. A voz era tão baixa que mal pude ouvi-la.

" Por quê?

" Nos tempos medievais as freiras e monges dormiam em seus caixões - respondeu Agnes."

— Pelo amor de Deus!

Martha não pôde evitar a exclamação, e a madre superiora lançou-lhe um olhar irônico.

— Foi justamente o que disse Irmã Marguerite, acompanhada por uma risada desdenhosa. Mas lancei-lhe um olhar para que se calasse e falei para Agnes: "Não estamos na Idade Média, Irmã."

"Isso fazia com que fossem santificados - insistiu Agnes, que quando quer sabe ser muito teimosa.

"Isso fazia com que tivessem maior desconforto. E se não dormiam bem, tenho certeza de que no dia seguinte estavam mal-humorados como mulas - eu disse a ela. Pelo canto do olho observei Irmã Marguerite, que acho que entendeu o recado. E depois voltei a concentrar toda a minha atenção em Irmã Agnes.

"Irmã, onde estão seus lençóis?

"Ela evitou os meus olhos e não disse nada. Alguma coisa estava muito errada, mas eu não sabia o quê.

"Acha mesmo que dormir num colchão descoberto é o equivalente a dormir num caixão?

"Não - admitiu ela, a voz muito fraca. Eu sabia que ela detestava aquele interrogatório, especialmente em público. Mas eu não podia fazer de outra forma, pois estava determinada a chegar ao fundo da questão.

"Pois então me diga: onde estão os seus lençóis?

Obriguei-a a enfrentar meus olhos, através unicamente da força da minha vontade.

"As faces vermelhas de vergonha, Agnes sussurrou:

Eu queimei.

"Por quê?

"Estavam manchados.

"Tudo se tornou claro para mim, e fiquei realmente irritada. Não havia nada fora do normal ali, era até comum demais, mesmo no mundo exterior ao convento. Levantei-me e alteei a voz, a fim de que todas pudessem me ouvir direito.

"Irmã, quantas vezes gravei em seu crânio duro e no crânio duro de sua colega noviça... Olhei para Irmã Gene-viève nesse momento, e a pobre moça começou a tremer. - Que a menstruação é um processo perfeitamente natural, não há nada de que se envergonhar?

"Tem razão, Madre - sussurrou Agnes. Ela estava mortificada.

"Pois então repitam isso. Lancei um olhar furioso para as minhas duas noviças. Garotas daquela idade tendem a se envergonhar de seus corpos e das funções naturais. Quando se acrescenta a isso um fervor religioso e um chamado para Deus, muitas vezes se tem uma garota que não consegue assumir qualquer coisa que saiba a físico. É preciso tempo e paciência, mas pode-se fazer com que superem isso.

"É um processo perfeitamente natural

repetiram irmã Agnes e Irmã Geneviève em coro, submissas, pois a esta altura já sabiam de cor.- Não há nada de que se envergonhar.

"Falem com convicção! - gritei. Uma boa madre superiora tem muito de um sargento instrutor."

— Sei disso — murmurou Martha.

Mas Madre Miriam Ruth estava agora totalmente absorta em suas recordações, e continuou:

— Elas recomeçaram: "É um processo perfeitamente natural..." E nesse momento Agnes perdeu o controle e desatou a chorar.

"Não costumamos nos tocar no convento; pelo menos não com muita freqüência, e o evitamos ao máximo. Mas Agnes estava envergonhada e confusa, e senti que havia algo mais. Podia ser medo? Mas por que medo? E eu tivera minhas próprias filhas, as quais pegara em meus braços. Assim, por mais antinatural que fosse na vida do convento, achei natural me aproximar de Agnes, passar um braço por seus ombros e lhe dar um pouco de tranqüilização momentânea, além de espiritual.

"Há poucos anos uma de nossas irmãs veio me procurar em lágrimas, pedindo por conforto. Conforto porque ela estava velha demais para ter filhos. Não que ten-cionasse tê-los - acrescentei para Agnes com um sorriso - mas uma vez por mês ela era lembrada da possibilidade da maternidade. Portanto, Irmã, enxugue os olhos e agradeça a Deus por lhe dar essa possibilidade.

Uma pontada de alguma coisa que podia ser um misto de vergonha e amargura invadiu Martha. Para ela, a possibilidade não existia mais.

— Mas Agnes não olhou para mim. Manteve os olhos fixados na mesa, como se desejasse poder se esconder dentro da madeira escura envernizada. O rosto se contraiu, como se estivesse prestes a chorar.

Não é isso. Não é isso.

E ela balançava o corpo para a frente e para trás.

"O que é então? - perguntei.

"Não é minha época do mês.

Compreendi que ela estava perigosamente próxima das lágrimas.

"Aquilo começava a me preocupar. A anorexia já é algo bem ruim, mas uma hemorragia no meio do mês pode ser uma advertência algo mais perigoso.

Precisa ir a um médico? - perguntei a ela, virando-a para que tivesse de me fitar.

"Ao ver a minha expressão preocupada, seu medo tornou-se ainda maior.

Não sei - disse ela, quase gemendo.

Não sei o que aconteceu, Madre. Acordei e havia sangue nos lençóis, mas não entendo o que aconteceu! Não sei o que fiz de errado! Não sei por que eu deveria ser castigada!

As lágrimas se derramavam de seus olhos e escorriam-lhe pelas faces. Nunca a vira tão infeliz e assustada.

"Castigada? Pelo quê? - perguntei.

"Não sei! - soluçou ela. As outras freiras estavam imóveis, como um quadro pintado, olhando fixamente para nós duas. Agnes agarrou-se em mim, chorando alto.

"Irmã... - comecei, mas suas mãos me apertavam com tanta força que doía; ela se comprimia contra mim como uma criança aterrorizada se agarra na mãe.

"Não sei... Não sei...

E isso era tudo o que ela podia dizer. Não fui capaz de lhe arrancar qualquer outra palavra."

— E isso é tudo o que lembra? — indagou a psiquiatra.

A freira acenou com a cabeça. Era tudo.

— Agora entendo — murmurou Madre Miriam Ruth. — Aquilo foi o começo. A noite da concepção. Foi por isso que ela queimou os lençóis.

— Quando aconteceu isso? — perguntou a Dra. Livingston.

— Dia 23 de janeiro. Uma de nossas freiras mais idosas morreu nessa noite.

Lembrando-se da lápide, Martha indagou:

— Irmã Paul?

— Sim. — A madre superiora pareceu um pouco surpresa, mas seguiu adiante. — Não me lembro das atividades de Agnes nessa noite. Eu era necessária no quarto da doente, e foi lá que passei a noite inteira.

"Apesar de Irmã Paul ser muito velha, o fim chegou de maneira inesperada para ela. Mas sua morte foi tranqüila, graças a Deus. Padre Martineau chegou a tempo de ministrar a extrema-unção, e as irmãs reuniram-se diante de sua porta, para se despedirem e rezarem por sua alma. Que Deus conceda a todas nós uma morte tão boa.

"O médico estivera lá e já fora embora, mas ainda havia muito a fazer para aliviar seu sofrimento final; ela não conseguia respirar direito e tinha febre alta. Por isso, eu estava muito ocupada.

"Mas lembro que Agnes apareceu ali. Pareceu-me ver seu rosto na porta, com uma expressão de pesar. Ela adorava a velha; todas gostavam de Irmã Paul, que era muito devota e tinha o toque da verdadeira santidade. Mas Irmã Agnes passava o maior tempo possível com ela, e nunca me opus a isso. Por que deveria? Irmã Paul era absolutamente boa, e Agnes parecia precisar dessa bondade. Agnes mantinha-se bastante afastada, talvez por timidez, ou talvez por uma percepção de que era diferente das outras. Irmã Paul parecia ser sua única amiga.

"Isso mesmo, creio que recordo de seu rosto na porta, os olhos tristes fixados na freira agonizante. O Padre Martineau levou o crucifixo aos lábios de Irmã Paul, para um último beijo. E lembro agora de outra coisa. Depois de beijar a cruz, Irmã Paul virou um pouco a cabeça e olhou para Agnes. E lhe disse alguma coisa, ou tentou dizer, não recordo direito. O que quer que tenha sido, não ouvi."

— Tem certeza? — indagou Martha,. — Faça um esforço para lembrar. Qualquer coisa!

Mas a madre superiora sacudiu a cabeça.

— Nem mesmo tenho certeza se foi uma palavra. Talvez tenha sido uma última bênção silenciosa, não sei. Além do mais, que relação poderia ter com o que aconteceu depois? A pobre velha morreu naquela noite!

"Depois disso, não tenho a menor idéia do lugar para onde Agnes possa ter ido ou o que possa ter feito. Nunca me ocorreu tentar descobrir. Creio que se me perguntasse no dia seguinte, eu poderia responder que ela foi para a capela, a fim de orar por Irmã Paul. Agnes muitas vezes orava sozinha."

— Então foi essa a noite... a noite em que ela queimou os lençóis — murmurou Martha.

— Deve ter sido — disse Madre Miriam Ruth, cansada. — As datas coincidem.

— Mas como ela saiu do convento? Para onde foi? E como entrou de volta?

— Pode estar certa de que eu também gostaria muito de saber.

 

Não chegou a ser uma grande surpresa para a Dra. Livingston quando Monsenhor Tremblay a convidou para um encontro, a fim de discutirem o caso de Irmã Agnes. Ela sabia, desde o início, que a Igreja tinha um grande interesse pelo resultado; o advogado de defesa, Lyon, fora contratado pessoalmente pelo monsenhor, em nome do bispo. E sabia que cada palavra pronunciada no encontro seria comunicada ao bispo, sílaba por sílaba. O bispo era um homem muito importante em Montreal.

O que a surpreendeu foi o fato de eles terem esperado tanto tempo. Ela já trabalhava no caso há três semanas, possivelmente duas semanas a mais do que poderia levar normalmente para oferecer uma avaliação psiquiátrica num caso comum. Não experimentava a impaciência demonstrada pelas autoridades religiosas, já manifestada a ela por Lyon. E agora estava prestes a senti-la diretamente.

Como o braço direito do bispo, responsável pelo convento de Berthierville, o monsenhor poupava o bispado cuidando de todas as tarefas desagradáveis e tediosas. Acho que isso inclui a mim, pensou Martha, ao ser introduzida em seu gabinete, no bispado. Notando com satisfação um cinzeiro na mesa grande de nogueira, ela estava acendendo um cigarro quando o monsenhor entrou, a batina esvoaçando nos tornozelos.

Era um homem alto, de aparência mais distinta do que bonita, mais jovem do que a Dra. Livingston esperava numa pessoa em cargo de tamanha responsabilidade. Ela presumiu — corretamente — que o monsenhor era inteligente e ambicioso, além de diligente. Podia facilmente imaginá-lo no hábito de arcebispo, e ele também não ficaria mal no escarlate cardinalício.

Ele a cumprimentou polidamente e ofereceu um café, que Martha recusou.

— Está um lindo dia, e raramente tenho a possibilidade de esticar as pernas ao ar livre — disse o monsenhor. — Será que se incomodaria se déssemos um pequeno passeio enquanto conversamos?

— Claro que não.

O terreno em torno da catedral e da residência do bispo era amplo e bem cuidado, sebes de buxo impecavelmente aparadas delineando os canteiros de flores. Não era tão bem cuidado por trás da catedral, onde preservava um aspecto mais rústico. Os dois se encaminharam para a área menos tratada, e o monsenhor soltou um assovio. No mesmo instante, o cachorro do bispo, um cão de caça de pêlo dourado, aproximou-se correndo para passear, a correia na boca. O monsenhor ajoelhou-se para prender a correia na coleira.

— Sua Excelência pediu que eu lhe apresentasse seus agradecimentos pelo cuidado especial que está dispensando ao caso.

— Obrigada.

Mas Martha não se deixou enganar. Traduziu as palavras cuidado especial para demorar tanto tempo — e estava certa.

— Fui informado de que não recomenda que Irmã Agnes seja recambiada para o convento.

— É verdade — admitiu Martha, cautelosa.

— Provavelmente, está certa nisso — comentou o prelado, fazendo com que Martha arregalasse os olhos de surpresa. — Mas também pode não ser benéfico para Agnes que a investigação continue por muito tempo.

— Nunca chamei isso de investigação. Por que o faz?

— Sua mãe estava internada no Lar Sainte Catherine antes de você a transferir.

Era mais uma declaração do que uma pergunta. A Dra. Livingston ficou desnorteada com a súbita mudança na linha da conversa.

— O que isso tem a ver com o caso?

— E você teve uma irmã que morreu num convento — acrescentou o monsenhor, suavemente.

Martha sentiu a indignação começar a se elevar da boca do estômago.

— Quem lhe disse isso?

— Ainda freqüenta a igreja?

Fazendo um esforço para impedir que a ira predominasse sobre a razão, ela perguntou, friamente:

— Por que isso é da sua conta?

— Estamos apenas especulando se você tem condições de ser bastante objetiva neste caso.

A frieza do prelado se comparava com a sua.

— Escute, padre, só porque não concordo com todas as suas crenças...

O monsenhor interrompeu-a, e sua voz estava agora um pouco menos cortante:

— Não faz a menor diferença para nós em que você acredita, mas faz toda a diferença para Agnes.

Não era justo; não era o que ela esperava. Pensara que seria convidada a explicar por que estava demorando tanto tempo a chegar a uma conclusão profissional. Não imaginara que seria levada à posição de ter de defender sua fé — ou melhor, a falta de fé.

— Mas não entendo. Espera que eu simplesmente a condene...

— Alguém tem de sofrer por isso, doutora — disse o monsenhor, em voz baixa. — E devemos ser misericordiosos e rápidos.

Martha levou a mão à garganta, instintivamente. Misericordiosos e rápidos. Misericordiosos. Misericordiosos... por acaso pensam que não estou sendo misericordiosa para com Agnes? Vão tirar o caso de mim? Mas não devem! Não posso permitir! Entretanto, com um aperto de angústia, reconheceu para si mesma que eles tinham o poder de fazer isso.

O quarto vazio não continha mais segredos, a menos que as paredes brancas pudessem falar. E se pudessem, o que diriam? Se as paredes tivessem línguas, além de ouvidos, acusariam Martha Livingston de confundir Irmã Agnes com Irmã Marie? Estaria tentando arrancar Agnes daquela vida religiosa estéril, como não tivera a possibilidade de fazer com a própria irmã? Estaria tentando punir Madre Míriam Ruth pelos pecados da madre superiora que fizera o julgamento que custara a vida de sua irmã?

Agnes não é minha irmã; Madre Míriam Ruth é apenas ela, e ninguém mais.

— A filha do demônio...

A voz velha, impregnada de ódio, intrometeu-se no quarto vazio e nos pensamentos da Dra. Livingston. Martha virou-se da janela para deparar com Irmã Marguerite parada na porta do antigo quarto de Agnes, o rosto encarquilhado transformado numa máscara de raiva.

— A filha do demônio... é o que ela é. Venho observando. Estávamos muito bem antes de ela chegar. Foi ela quem trouxe o demônio para cá. — A velha deu um passo para dentro do quarto. E acrescentou, os olhos como carvões em brasa no rosto pálido: — Havia sangue em sua mão naquela noite. Eu vi.

— Agnes?

— Não!

A respiração ficou presa na garganta da Dra. Livings-ton.

— Quem? A madre?

A velha freira chegou mais perto, o suficiente para que Martha sentisse o seu cheiro seco, amargo e velho. E ela disse, numa voz que era quase um sussurro:

— Há mais sangue entre as duas do que você pode imaginar.

— Do que está falando? — indagou Martha, aturdida.

— Cherchez dans les archives du couvent — murmurou a freira, misteriosamente.

— O quê?

— Procure nos arquivos do convento — repetiu Irmã Marguerite, com um sorriso sugestivo.

Depois ela se virou, um pouco depressa demais para uma velha, e deixou o quarto. Martha levou um momento para absorver o que a freira lhe dissera. Avançou apressada até a porta, mas Irmã Marguerite já estava na metade do comprido corredor.

— Irmã! Irmã! — chamou Martha.

Mas Irmã Marguerite não se voltou nem sequer olhou para trás.

Procure nos arquivos do convento. As palavras da freira pareciam pairar no ar, fora do alcance da Dra. Livings-ton.

A estrebaria do convento não podia ser confundida com o estábulo. Este fora construído ao mesmo tempo que o convento propriamente dito, num século mais próspero, quando as filhas não-casadouras da classe média levavam consigo um dote ao ingressarem na vida religiosa. Fora construído para um rebanho, agora reduzido a uma única e solitária vaca. O estábulo estava quase que totalmente desocupado e quase nunca era usado.

A estrebaria, por outro lado, era uma estrutura mais humilde e muito menor, e era usada sempre. A única vaca era ordenhada ali todos os dias.

A ordenha era uma tarefa que Irmã Agnes adorava. O calor da estrebaria, o bafo agradável da vaca, a solidez de seus flancos e a maneira paciente como se postava por cima do balde — tudo isso proporcionava a Agnes uma sensação de segurança e estabilidade. As vacas eram animais tão pacíficos, certamente Deus possuía suas almas acima de todas as outras criaturas estúpidas.

Ela ordenhava bem, o líquido branco espremido entre seus dedos compridos, o úbere escorregadio com a pasta que usavam para evitar qualquer irritação. O balde encheu depressa. Se estivesse sozinha, Irmã Agnes comprimiria o rosto contra o corpo quente da vaca, a fim de sentir a vida fluir dentro de si. Mas não se encontrava sozinha, pois tinha a companhia da Dra. Livingston. Agnes tinha a impressão de que a Dra. Livingston estava sempre ao seu lado ultimamente. Sempre fumando aqueles cigarros, sempre fazendo aquelas perguntas que a atiçavam e sondavam, deixando-a furiosa, quando a ira era um pecado mortal. Jamais ocorreria a Agnes que as perguntas visavam a irritá-la, a liberar suas verdadeiras emoções do esconderijo profundo em seu espírito.

Irmã Marguerite lhe dissera por que a doutora estava sempre ali — para informar a polícia que ela era louca, ou talvez que não era louca, o que faria com que fosse submetida a julgamento por homicídio culposo, sendo obrigada a comparecer ao tribunal, com a presença de uma porção de pessoas. Agnes sabia que Irmã Marguerite a odiava e a invejava.

Mesmo assim, acreditava na velha freira e começava a compreender o que a psiquiatra queria dela.

Era a primeira vez que Agnes tinha uma pessoa só para si. A madre superiora estava sempre muito ocupada com as outras. Sua própria mãe nunca tinha tempo para ela. Irmã Paul a amara, mas morrera. Padre Martineau amava a todas igualmente. Mas a Dra. Livingston concentrava-se apenas nela.

Por que tinha de ser a Dra. Livingston?, pensou Agnes. Por que ela não pode me deixar em paz? Por que sempre me atormenta com perguntas que me levam a cometer um pecado?

— Irmã Marguerite diz que estou doente. Sei que você pensa que estou doente. Mas não estou doente!

— Mas está um pouco perturbada, não é?

O balde de leite estava cheio. Agnes colocou-o fora do alcance dos cascos e do rabo da vaca e levantou-se do banco, sacudindo o hábito.

— Isso acontece porque você está sempre me lembrando. Se fosse embora, eu esqueceria.

— E é infeliz — acrescentou a psiquiatra. Pegando o balde, Agnes encaminhou-se para a porta.

— Todo mundo é infeliz! Você também não é infeliz?

— Agnes...

— Responda! —gritou a jovem, furiosa. — Você nunca me responde!

— Às vezes, sou.

Estava frio na porta da estrebaria, e a respiração das duas mulheres se enroscava no ar como baforadas de fumaça.

— Apenas você pensa que tem sorte porque não tinha uma mãe que dizia coisas para você e fazia coisas que nem sempre eram bonitas, mas isso acontecia por minha causa! Porque eu era má, não ela!

O rosto de Agnes estava rosado pelo esforço de fazer a doutora compreender.

— O que você fazia?

— Sou sempre má! — choramingou a jovem. Martha pressionou, implacável:

— O que você fazia?

Com uma convulsão que pareceu dilacerá-la, Agnes arrancou as palavras do íntimo mais profundo:

— Eu respiro!

Ela bateu com o balde de leite no chão. Um pouco do líquido branco derramou, e o balde se inclinou de maneira precária, quase tombando. Jogando-se ao chão, Agnes segurou o balde. Uma tempestade de soluços a invadiu, longos, convulsivos.

Martha ajoelhou-se ao seu lado na palha perfumada. As defesas da moça haviam sido devastadas por uma força terrível. Ela tinha agora que acabar o que começara. Tinha que ir até o fundo, por mais angustiante que fosse, trazer a dor à tona. Trazer e examinar, a fim de que pudesse começar a sarar.

— O que sua mãe fazia com você?

Mas Irmã Agnes limitou-se a sacudir a cabeça, incapaz de falar através dos soluços, recusando-se a dar voz às palavras assustadoras.

— Se não pode falar, sacuda a cabeça para indicar sim ou não — insistiu Martha. — Ela batia em você?

Agnes sacudiu a cabeça para indicar não.

— Obrigava você a fazer alguma coisa que não queria?

A cabeça coberta acenou um débil sim.

— E você se sentia contrariada por fazer isso? Outro sim.

— E também deixava você envergonhada?

Sim. Era evidente que uma intensa luta se travava no íntimo da jovem; a tensão em seu rosto confirmava isso.

— O que ela a obrigava a fazer?

— Não — disse a jovem, recusando-se a enfrentar os olhos de Martha.

— Pode me dizer.

— Não posso. — Um grito saído do coração, pronunciado num sussurro rouco.

— Ela não está morta? — perguntou Martha.

— Está.

— Não pode mais ferir você.

A jovem levantou a cabeça e fitou Martha.

— Pode sim — murmurou.

— Como?

— Ela vigia. Ela escuta.

Não havia como se enganar com o medo real estampado naquele rosto molhado de lágrimas.

— Não acredito nisso, Agnes — disse a psiquiatra calmamente. Conte-me tudo. Eu a protegerei dela.

Os olhos da jovem procuraram os de Martha, em busca de segurança. Pareceu encontrar, pois tentou falar:

— Ela...

— O quê?

Agnes tinha respirações profundas, aos arrancos, aspirando o ar sofregamente. As palavras saíram de maneira irregular, num balbucio de medo, enquanto revivia o que passara anos tentando esquecer.

— Ela... me obriga... a tirar as roupas... e depois...

— Depois?

— Ela faz... se diverte comigo...

— Ela diz que você é feia? — indagou Martha, a voz muito gentil.

— Diz.

— E estúpida.

— Também.

— E que você é um erro.

Uma expressão de grande sofrimento estampou-se no rosto da moça, e as feições se contorceram em angústia.

— Ela diz... todo meu corpo... é um erro...

— Por quê?

A psiquiatra tragou fundo o cigarro, estreitando os olhos contra a fumaça.

— Porque ela diz... se eu não tomar cuidado... vou ter um bebê.

— Como ela sabe disso?

— As dores de cabeça.

— Ah, sim.

As famosas dores de cabeça, através das quais o anjo falava com a mãe.

Agora a voz da jovem baixara para um sussurro, e ela virou o rosto, a fim de que a doutora não pudesse ver-lhe os olhos. Fora longe demais para voltar, mas se encontrava no ponto mais profundo, onde a dor era dolorosa demais para suportar.

— E depois... ela me toca...

— Onde? — indagou Martha, tendo de se inclinar para ouvir as palavras seguintes de Agnes.

— Lá embaixo... com o cigarro.

Atordoada, a Dra. Livingston soltou uma exclamação de espanto e recuou. E depois tomou consciência do cigarro que tinha na mão, o cigarro que tanto assustara Agnes no último encontro. No mesmo instante, ela o apagou no chão pedregoso. Sua mente estava abalada pelas palavras da jovem. Em seus anos de experiência como psiquiatra, já ouvira muitas histórias de horror, mas nenhuma que se comparasse com a de Irmã Agnes.

A jovem freira estava falando de novo, mas sua voz era agora totalmente diferente. Não se mostrava mais en-trecortada, tornara-se a voz de uma garotinha, uma garotinha assustada.

— Por favor, mamãe, não me toque assim. Serei boa-zinha. Não serei mais a sua bebê má.

Uma tristeza enorme dominou Martha, misturada com uma determinação inflexível de curar aquela pobre criança. Pegou Agnes nos braços, virando-a para poder fitá-la.

— Agnes, querida, quero que você faça uma coisa. Quero que finja que sou sua mãe. Só desta vez, quero que me diga o que sente. Está bem?

Irmã Agnes recuou, sacudindo a cabeça.

— Tenho medo.

Com um gesto suave, Martha pegou-lhe o rosto.

— Por favor. Quero ajudar você. Deixe-me ajudá-la. Pela primeira vez, Irmã Agnes fitou atentamente o rosto de Martha Livingston, a boca resoluta, a honestidade dos olhos azuis, a compaixão na expressão da mulher. Pela primeira vez, Irmã Agnes estendeu a sua frágil confiança.

— Está bem — sussurrou ela.

— Ótimo. — Ela empurrou a moça para o lado e, tornando-se a mãe de Agnes, assumiu uma expressão diferente. Desaprovadora, irada. — Agnes, você é feia. O que você diz?

Confusa, a jovem respondeu:

— Não sei.

— Claro que sabe. Agnes, você é feia. — Como a jovem não respondesse, Martha insistiu com mais veemência:

— O que você diz?

— Não, não sou! — gritou Agnes.

Era o primeiro passo... e um passo gigantesco. Martha sorriu para si mesma.

— Você é bonita?

— Sou!

— Agnes, você é estúpida. A mãe, outra vez.

— Não, não sou — balbuciou Agnes, ainda insegura.

— Você é inteligente?

— Sou, sim.

— Agnes, você é um engano.

A negativa há muito reprimida explodiu agora.

— Não sou um engano! Estou aqui, não estou? Como posso ser um engano quando estou aqui? Deus não comete erros! Você é que é um erro! Eu gostaria que você morresse!

As lágrimas brotaram-lhe dos olhos e escorreram pelas faces, enquanto ela se desvencilhava e saía correndo da estrebaria para o frio.

— Agnes! — gritou Martha.

Ela saiu correndo atrás, alcançou a jovem e abraçou-a. Como uma mãe, uma mãe amorosa, apertou Agnes com firmeza, ninando-a e acalmando-a, sussurrando palavras tranqüilizadoras.

— Está tudo bem, está tudo bem... — murmurou ela. — Eu amo você, Agnes. Está tudo bem.

A jovem inclinou a cabeça um pouco para trás, a fim de fitar o rosto de Martha.

— Você me ama mesmo? — balbuciou ela, suplican-te. — Ou está apenas dizendo que me ama?

— Eu amo você de verdade — sussurrou Martha.

E pensou, aturdida: é verdade, eu a amo realmente.

— Tanto quanto Madre Miriam Ruth me ama?

— Tanto quanto Deus a ama — respondeu a racional psiquiatra.

 

Havia um século e meio de história na sala dos arquivos no porão, a maior parte empilhada até o teto, sem qualquer ordem específica. Escura, apinhada de caixas de madeira, caixas de papelão, alguns antigos arquivos de carvalho, a sala representava um labirinto impenetrável para os não-iniciados. Era o domínio de Irmã David Marie, e praticamente ninguém a perturbava em sua posse. Depois de arquivados, os registros raramente eram tirados outra vez.

A Dra. Livingston não tinha a menor idéia de onde começar. Podia apenas presumir que os registros de Agnes, sendo recentes, e não história antiga, deviam se encontrar em algum lugar um pouco menos inacessível que os registros anteriores. Abriu a gaveta do arquivo mais próximo e começou a examiná-la.

Ela não deveria estar ali, e sabia disso. Invadira propriedade alheia, sem permissão e sem autoridade. Mas as palavras de Irmã Marguerite ressoavam em sua cabeça: "Procure nos arquivos do convento." Havia ali algo que ela deveria conhecer, guardado num lugar em que não deveria encontrar.

Um barulho às suas costas fê-la pular. Virou-se para deparar com Irmã David Marie, observando-a da porta, desconcertada. A irmã era a encarregada exclusiva do arquivo e não podia entender a intromissão de alguém em seu domínio, especialmente uma estranha.

— Boa noite, Irmã. Preciso de alguns dados biográficos sobre Irmã Agnes. A madre superiora disse que eu os encontraria aqui — mentiu Martha, os dentes semicerrados.

Ela prendeu a respiração, em expectativa, enquanto Irmã David Marie pensava a respeito.

Embora as freiras tivessem pouca experiência em mentiras, ocorreu à irmã que uma psiquiatra laica podia muito bem ser capaz de usar em vão o nome da reverenda madre. Apesar disso, ela não tinha autoridade para questionar a doutora. Por isso, Irmã David Marie foi ao arquivo certo, tirou uma pasta da gaveta do meio e colocou-a em cima da peça de carvalho, a fim de que a doutora pudesse ler mais facilmente.

— Obrigada — disse Martha, desconcertada. Esperou até que Irmã David Marie deixasse a sala do porão. Nunca lhe ocorreu que a freira pudesse ir direto à madre superiora para comunicar a ocorrência. Na verdade, Martha quase nada sabia dos costumes de conventos.

Concentrou toda a sua atenção na pasta, que continha pouca coisa, apenas algumas informações biográficas e médicas, e pouco mais. A Dra. Livingston nada encontrou que justificasse o misterioso conselho de Irmã Marguerite. Tentou recordar as palavras exatas da freira.

"Há mais sangue entre as duas do que você pode imaginar."

Entre as duas. As duas.

Abrindo a mesma gaveta de onde Irmã David Marie tirara a pasta de Agnes, Martha verificou rapidamente as outras que ali estavam, até encontrar a que queria. O nome na pasta: Miriam Ruth. Tirou-a, abriu-a e começou a ler.

Ali também as informações eram escassas e comuns. Mas havia mais alguma coisa...

"Nascida: Anna Marie Burchetti", dizia o papel. Madre Miriam Ruth fora Anna Marie Burchetti. E na pasta de Agnes... "Mãe: Mary Eugene Burchetti." Outra peça do quebra-cabeça se encaixava no lugar. Mais sangue entre as duas... Tornou a guardar as duas pastas na gaveta. Armada com aquela informação, talvez a psiquiatra pudesse agora arrancar uma cooperação total da madre superiora.

A Dra. Livingston começava a subir a escada do porão quando deparou com Madre Miriam Ruth, que descia.

— Você mentiu para mim! — disse ela à madre superiora, a voz áspera.

— Sobre o quê?

— Sua sobrinha!

Madre Miriam Ruth empertigou-se, e um pequeno arquejo escapou de seus lábios. Por um momento, as duas se fitaram, furiosas, e depois a madre superiora baixou os olhos.

— Não falei porque achei que não era importante. Ela virou-se e começou a subir a escada, com Martha atrás.

— Mas isso a torna duplamente responsável, não é? Martha seguiu a freira pelo corredor comprido, até sua sala. O convento estava agora em silêncio; as irmãs já haviam se recolhido para a noite. Ao passarem pelo vestíbu-lo, Madre Miriam Ruth apagou as poucas lâmpadas permitidas para a iluminação; as Pequenas Irmãs de Maria Madalena encerravam o seu dia.

— Eu nunca vira Agnes até que ela pôs os pés neste convento! — A madre superiora baixou a voz. Todas as freiras se encontravam em seus quartos, no terceiro andar, mas no silêncio o som sempre viaja. — Minha irmã fugiu de casa. Perdemos contato com ela. Quando meu marido morreu e vim para cá, ela me escreveu, pedindo que cuidasse de Agnes caso alguma coisa acontecesse.

Haviam chegado à sala de Madre Miriam Ruth, mas ela não entrou. Em vez disso, estendeu a mão além da porta e apagou a luz. O convento estava agora numa escuridão quase total. Uma luz no vestíbulo ainda estava acesa, e a madre superiora encaminhou-se em sua direção, deixando claro que conduzia Martha à porta da frente, a fim de que ela fosse embora. Mas Martha ainda não estava disposta a se retirar.

— E o pai de Agnes?

Madre Miriam Ruth deu de ombros.

— Podia ser qualquer um de uma dúzia de homens, pelo que minha irmã me contou. Ela tinha medo de que Agnes seguisse seus passos. E fez tudo para evitar isso.

— Mantendo-a em casa, longe da escola — comentou Martha, com sarcasmo.

— Isso mesmo.

— E escutando anjos.

A madre superiora ignorou o último comentário e abriu a porta da frente.

— Ela bebia demais. Foi isso que a matou.

— Sabe o que ela fazia com Agnes? — indagou a Dra. Livingston, com grande ênfase em cada palavra.

A freira recusou-se a enfrentar seus olhos. Em vez disso, abriu-lhe a porta e murmurou, calmamente:

— Não estou interessada em saber.

— Ela a maltratava — informou Martha, incisiva. Houve um silêncio aturdido, em que lágrimas afloraram aos olhos de Madre Miriam Ruth. Instintivamente, ela levantou as mãos e segurou o crucifixo pendurado no pescoço.

— Oh, Jesus! — balbuciou ela.

— Existem muito mais coisas do que nossos olhos podem ver, não é? Muitos pequenos segredos repulsivos.

Os lábios de Martha se contraíram numa expressão desdenhosa.

— Se eu soubesse o que Agnes estava sofrendo... Mas Martha não a deixou continuar:

— Por que não fez nada? Sabia que ela isolava a criança da escola. Sabia que ela era uma alcoólatra.

A madre superiora sacudia a cabeça, os olhos escuros cheios de pesar.

— Eu só soube depois...

Mas Martha era como um anjo vingador empunhando uma espada. Os olhos azuis faiscavam de raiva.

— Por que não fez nada para impedi-la?

— Eu não sabia! Eu não sabia! — As lágrimas escorriam pelo rosto da mulher mais velha, anuviando-lhe as feições. — E isso não é resposta, não é?

Ela olhava suplicante para Martha, que parecia feita de pedra.

— Não, não é resposta.

Ao entrar no carro, Martha ouviu a pesada porta da frente ser fechada e a tranca bater. Não era absolutamente uma resposta.

O que ela conseguira então, além de fazer a madre superiora sentir-se culpada? Estranhamente, Martha não se sentia tão bem quanto esperava por causa disso. Vinha aguardando a oportunidade de se desforrar de uma madre superiora desde a morte de Marie, há muito tempo. E agora que o conseguira, descobria que se tratava de uma vitória vazia.

Voltando de Berthierville, ela repassou mentalmente o que Agnes lhe dissera, memorizando para anotar depois. Um caso clássico de maus-tratos. Uma mãe alcoólatra, cuja sexualidade estava sempre em conflito com a criação religiosa. Que se embriagava, tinha dores de cabeça e falava com anjos. Um "erro" — uma criança indesejável, punida pelos pecados dos pais. Uma noção de vergonha física incutida na criança desde cedo e reforçada por um comportamento brutal freqüente; privação das ocupações normais da infância, como escola e convívio com outras crianças; um isolamento compulsório — o padrão era evidente. Seria milagroso se Agnes não crescesse ouvindo vozes.

Mas alguma coisa ainda faltava. Quanto mais conversava com a jovem, mais irreal parecia a Martha a idéia de que ela pudesse estrangular um bebê. Tentava imaginar a cena, mas nunca conseguia. O caso parecia mais misterioso do que nunca. Se a Dra. Livingston antes pensava que Madre Miriam Ruth tinha motivos para proteger sua freira, mais razão tinha ela ainda como tia!

Seguindo para Montreal, ela analisou as peças que faltavam no quebra-cabeça. Mesmo presumindo que Irmã Agnes era culpada, como ela conseguira sair do convento para se encontrar com o homem? O sistema de segurança de Madre Miriam Ruth era mais rigoroso que o do Banco do Canadá. O Banco do Canadá dispunha dos mais modernos dispositivos de segurança, mas as Pequenas Irmãs de Maria Madalena contavam com Irmã Marguerite. Se Agnes saía, quantas vezes o fizera antes de engravidar?

Se ela não saíra, como o homem entrara?

E quem era ele?

Ela engravidara. Até que ponto era provável, com hábito largo ou não, que ela conseguisse esconder de todas as outras no convento, inclusive de uma madre superiora que já tivera duas filhas? E o que dizer de seu medo e confusão? Poderia a mesma jovem que tinha um ataque histérico por causa de sangue nos lençóis manter-se calma por nove meses, enquanto seu corpo passava por mudanças tão intensas? E o enjôo matutino?

E quando o trabalho de parto começara, o que Irmã Agnes fizera? Quanto tempo leva para um primeiro parto... horas e horas? Ela realmente acreditara por horas e horas que fora alguma coisa que comera? Quando as cãibras se transformaram em contrações e as contrações aumentaram para ondas de agonia, o que Irmã Agnes fizera? Como agüentara a visão do sangue? E houvera muito sangue.

E o que dizer de Madre Miriam Ruth? Na noite em que o bebê provavelmente fora concebido, ela estava cuidando de Irmã Paul, em seu leito de morte. Mas onde estava nove meses depois, na noite em que o bebê nascera? Qual seria a sua desculpa então?

Não. Havia peças demais faltando. E muitas outras peças que não se ajustavam, que pareciam pertencer a um quebra-cabeça inteiramente diferente.

Inocente ou culpada? Inocente ou culpada? A pergunta atormentava Martha, embora ela soubesse que não estava autorizada a formulá-la.

Sentia-se esgotada pelas últimas semanas. Além das visitas ao convento e dos confrontos com Agnes e a madre superiora, Martha estava também cuidando de sua clínica particular e tentando se esquivar às pressões da Igreja Católica Romana. Sua vida social não mais existia, e a vida amorosa se reduzira a partilhar o travesseiro com a gata. E o pior é que a gata roncava.

Precisava mesmo era de um sono ininterrupto por quatorze horas. Um copo cheio de conhaque Napoleon, um banho quente e demorado, um pouco de leite quente partilhado com Mitzi — isso deveria resolver o problema. Mesmo assim, ao chegar à cidade, descobriu-se seguindo não para Westmount, onde morava, mas para o centro, onde ficava a delegacia de polícia em que Richard Langevin trabalhava. Martha esperava que ele estivesse de serviço naquela noite; há vários dias não se falavam.

Ele estava lá, cansado, interrogando uma vigarista adolescente, sentada, em lágrimas, dominada pelo medo e humilhação. Era a sua primeira prisão, e ela tinha visões de um século de trabalhos forçados em alguma prisão que era uma autêntica Ilha do Diabo.

— Pourquoi me ments-tu, Madeleine? — perguntou o detetive. — Pourquoi me dis-tu que tu ne le connaispas? Tu as quel age?

— Dix-huit — respondeu ela, soluçando. Langevin fitou-a com uma expressão cética. Se ela tinha dezoito anos, então ele também tinha.

— Quel age? — perguntou ele outra vez. A moça baixou os olhos.

ai seize ans. — Pelo menos ela admitia os dezesseis anos. — Maisje vais avoir dix-sept ans le móisprochain.

— Bon anniversaire — disse Langevin, em tom sarcástico. Ele levantou os olhos e deparou com a Dra. Livings-ton observando-o da porta da sala. — Marty! O que está fazendo aqui?

— Richard, tem de haver alguma coisa faltando — começou Martha sem qualquer preâmbulo.

— Já lhe dei as fotos, Marty. O que mais você quer?

— Alguma coisa que possam ter ignorado.

O rosto rude de Langevin assumiu uma expressão de surpresa, algo que raramente acontecia, considerando-se a sua profissão.

— O quê? Acha que a garota é inocente? Martha sacudiu a cabeça.

— Não sei.

— Você deve estar louca — comentou ele, franzindo o rosto.

— Escute, Richard...

— O que deu em você? Já viu o relatório. É um caso líquido e certo.

Mas Martha insistiu:

— Havia alguma coisa que não constava do relatório e que devesse estar incluída?

— Você está envolvida demais! — explodiu Langevin. — Olhe só para você, Marty! Meu Deus! Por que não entrega o caso a outra pessoa?

Ela enfrentou a explosão com silêncio — o silêncio da obstinação. Sabia que ele estava certo. Envolvera-se profundamente. Mas era impossível entregar o caso a outro psiquiatra. Já fora longe demais agora para voltar, não importava o que o bispo ou a polícia pudessem dizer. Tinha de ir até o fim. Ali havia algo mais em jogo do que uma jovem freira ir ou não para a prisão. Até onde Martha podia ver, Agnes já estava na prisão, passara toda a sua curta vida na prisão. A Dra. Livingston era a única pessoa capaz de libertá-la.

O silêncio de Martha derrotou Richard, como as palavras jamais conseguiriam. Ele suspirou, capitulando, levantou-se e foi abraçá-la.

— Está bem, está bem, farei algumas perguntas para ver se descubro qualquer coisa. Enquanto isso, vá para casa, pelo amor de Deus. Durma um pouco. Falarei com você mais tarde.

Ele beijou-a de leve, mas Martha estava cansada demais para retribuir. Aceitou o beijo e as palavras com um sorriso cansado e um aceno de cabeça.

Langevin ficou observando-a se afastar. Depois que ela virou o corredor e não podia mais ser vista, ele tornou a concentrar sua atenção na jovem prostituta.

ai pas fini avec toi. Bon! On recommence par le début.

Não acabei com você. Vamos recomeçar, desde o início. Por que você disse que não conhecia o homem...

Martha quase se arrastou ao sair do carro e entrar no prédio. A exaustão era intensa. Pegou a pilha de correspondência e apertou o botão, chamando o elevador. Estava cansada demais até para folhear a correspondência, a fim de verificar se havia alguma coisa interessante ou mesmo urgente. Talvez amanhã. Ou no dia seguinte.

Abrindo a porta do apartamento, Martha jogou a correspondência na mesa do vestíbulo, que já continha uma pilha grande de envelopes ainda fechados. Ligou a televisão, a fim de pegar o noticiário das onze horas. Não lia um jornal há vários dias e não tinha a menor idéia do que estava acontecendo no resto do mundo.

Mas o locutor estava falando sobre a guerra entre Irã e Iraque, e Martha não conseguiu se concentrar no que ele dizia. As notícias pareciam vir de um planeta distante, em outro século. Com Mitzi miando em seus calcanhares para chamar atenção, Martha foi à cozinha e serviu leite para as duas. A única diferença é que colocou no seu uma pílula para dormir.

— Não há qualquer progresso no julgamento da jovem freira acusada de homicídio culposo e morte de seu bebê recém-nascido — disse o locutor, atraindo a atenção de Martha para o aparelho de televisão. — Alguns meios de comunicação estão acusando a Igreja Católica de protelar deliberadamente o processo. Irmã Agnes, das Pequenas Irmãs de Maria Madalena, uma ordem de clausura, nas proximidades de Berthierville, foi indiciada por homicídio culposo no dia 14 deste mês, mas a data do julgamento ainda não foi marcada. A Gazette de Montreal, em artigo publicado esta manhã, acusou a Igreja, dizendo: "Mentalidade de avestruz, esperando que o caso simplesmente seja esquecido." Monsenhor Tremblay, assistente do bispo encarregado da área de Berthierville, declarou o seguinte...

O rosto do monsenhor, distinto e sério, apareceu na tela.

— A Igreja não está absolutamente tentando se esquivar do incidente — começou ele, em tom solene — mas queremos lembrar ao público que se trata de uma ocorrência excepcional e trágica para todos nós. Posso garantir que a data do julgamento será marcada assim que forem atendidos alguns requisitos legais.

A imagem do monsenhor foi substituída por algumas cenas de arquivo do convento, por trás de seus muros, enquanto a voz do locutor em off dizia:

— Até agora, Irmã Agnes está sendo mantida em isolamento no convento de Berthierville. As outras notícias de hoje...

Desligando a televisão, Martha foi até o banheiro e abriu a torneira da banheira. Sabia que era melhor tomar um banho antes que a pílula para dormir começasse a fazer efeito, caso contrário a encontrariam flutuando de rosto para baixo em oito centímetros de água no dia seguinte. A banheira estava enchendo quando Martha se lembrou das mensagens gravadas na secretária eletrônica. Seminua, voltou à sala para ligar o aparelho, aumentando o volume ao máximo para que o som superasse o barulho da água correndo...

— Oi, Mary. Aqui é Helen. A Sra. Davenport esteve aqui e ficou muito transtornada ao saber que você não estava. Quer que você telefone para sua casa: nove-quatro-três-oito-quatro-sete-sete. Se quer saber minha opinião, pode esperar até amanhã. E dois repórteres estão tentando falar com você, querendo obter informações sobre Irmã Agnes.

Parecem persistentes e podem tentar lhe falar em casa. Não dei seu telefone. Clique.

— Dra. Livingston, aqui é a Sra. Davenport. — A voz parecia mesmo irritada. — Quer fazer o favor de ligar para minha casa? Eu gostaria muito de lhe falar.

Clique.

Martha verificou a água com o dedão do pé e depois abriu um pouco a torneira de água fria.

— Oi, Marty. Venho tentando falar com você há dias. — A voz de Tom, ansiosa e insegura. — Algum problema? Eu adoraria vê-la o mais depressa possível.

Clique.

Martha sacudiu a cabeça, meio satisfeita, meio exasperada. Quando voltaria a ter uma vida social normal? Duvido muito que isso torne a acontecer. Estou cansada demais, pensou ela. Enchendo a pia, Martha pôs na água a meia-calça e o sutiã, para ficarem de molho enquanto tomava banho. Olhou-se rapidamente no espelho do armarinho de remédios e foi tomada de surpresa pela expressão de tensão nos olhos, a boca contraída. Estou horrível, refletiu ela. Preciso descansar um pouco. Não posso continuar assim. Como cientista, estava a par dos prejuízos que a fadiga causava ao cérebro, especialmente ao fazer um julgamento.

— Olá, Dra. Livingston. — A voz tinha um sotaque francês. — Meu nome é Charles Sexton, e estou escrevendo um artigo sobre Irmã Agnes para a edição dominical da Gazette de Montreal. Agradeceria se me telefonasse.

Clique.

Cansada, Martha entrou na banheira, deixando que o corpo exausto afundasse na água quente. Desculpe, Char-lie. Estendeu a mão para o cigarro, em cima da tampa do vaso.

— Oi, Marty — Helen de novo. — Sua presença no tribunal hoje para testemunhar naquele caso de roubo de loja foi transferida para segunda-feira. Também telefonaram do gabinete do procurador da Coroa. Um exibicionista será levado a julgamento dentro de duas semanas. Eles querem que você converse com o homem. Posso ir junto? Tchau.

Clique.

O calor da água, combinado com a pílula para dormir, a embalava, amortecendo-lhe os sentidos. Dentro de um ou dois minutos, teria de sair do banho e deitar-se na cama, enrolada numa toalha...

— Oi, Marty, aqui é Langevin. Acabei de conversar com a Detetive Crowley, que esteve no convento. Ela disse que viu uma coisa que a deixou desconcertada...

Martha estava quase adormecida agora. Oh, Deus, como era bom! Qualquer coisa que Langevin tinha a dizer podia esperar até o dia seguinte...

Langevin? E ele disse alguma coisa sobre o convento, e uma detetive? De repente, Martha estava inteiramente desperta, pegando uma toalha, jogando o cigarro apagado no vaso e correndo para o aparelho, a fim de ouvir outra vez o recado. Enquanto ouvia a voz de Richard, todos os seus terminais nervosos estavam em alerta.

— Oi, Marty, aqui é Langevin. Acabei de conversar com a Detetive Crowley, que esteve no convento. Ela disse que viu uma coisa que a deixou desconcertada e que não foi incluída no relatório. A cesta de papéis. A que estava no quarto de Agnes. Nenhuma das outras freiras tinha uma cesta.

Clique.

A cesta de papéis. Martha pegou outro cigarro e o acendeu, fumando furiosamente, enquanto sua mente trabalhava em disparada. A cesta de papéis. Era importante; estava convencida disso. E havia mais alguma coisa... alguma coisa que não podia lembrar... alguma coisa sobre uma cesta de papéis, não a de Agnes... mas de alguma forma ligada com Agnes... oh, diabo, não conseguia lembrar!

Não vou dormir enquanto não lembrar.

E depois a pílula para dormir dominou-a, e mal teve tempo de chegar à cama, onde sonhou que uma cesta de papel escorrendo sangue tinha pés pequenos e avançava em sua direção, não depressa, mas com um passo seguro de cada vez.

 

Com exceção dos pombos, o estábulo parecia deserto. A vaca estava recolhida para a noite, as baias se achavam vazias. Os pombos haviam estabelecido seu domínio sobre o vasto prédio de pedra. Havia literalmente centenas em seus ninhos, arrulhando, alisando as penas, enquanto se preparavam para a noite. Os últimos raios de sol, entrando pelas janelas do palheiro, transformavam as penas iridescentes em arco-íris. A entrada da Dra. Livingston causou pânico entre os pombos; alçaram vôo, adejaram no ar por alguns segundos e depois, percebendo que não havia ameaça real, voltaram a seus ninhos.

Mas havia alguém ali. Alguém a quem Martha viera procurar.

Em meio aos arrulhos, Martha ouviu o suave murmúrio das orações, o débil estalido das contas do rosário. Ela seguiu o som. Madre Miriam Ruth estava ajoelhada diante da janela, dizendo o rosário, à última claridade do dia. Ao som dos passos, a madre superiora virou a cabeça, mal acreditando que alguém se atrevesse a interromper as suas orações solitárias. Aquele lugar era uma espécie de capela particular sua; vinha até ali para um raro momento de privacidade.

— Obtive a autorização do tribunal para hipnotizá-la — anunciou Martha, sem qualquer cerimônia.

— E a minha permissão?

A freira levantou-se, franzindo o rosto, uma ruga vertical entre as sobrancelhas escuras.

— Eu gostaria de tê-la também.

— Pensarei a respeito — disse Madre Miriam Ruth, passando pela psiquiatra.

— Vai negar? — indagou Martha, ansiosa.

— Ainda não decidi.

— A saúde daquela mulher está em jogo! — protestou Martha.

— Sua saúde espiritual.

— Não estou interessada na saúde espiritual! Faíscas azuis saíam dos olhos de Martha.

— Sei que não — respondeu a madre superiora, um tanto incisiva.

— Vamos condená-la e acabar logo com isso... não é o que está querendo dizer? — gritou Martha com veemência. — Pois ainda não posso fazer isso!

— O que estou querendo dizer — começou Madre Miriam Ruth, num tom persuasivo — é que você tem uma mulher excepcionalmente simples...

— E muito infeliz.

— Ela é feliz conosco! E poderia continuar a ser feliz, se fosse deixada em paz!

— Então por que chamou a polícia? — argumentou Martha. — Por que não jogou o bebê no incinerador e deu o caso por encerrado?

— Porque sou uma pessoa de moral! — berrou Madre Miriam Ruth.

— É porra nenhuma!

— Porra nenhuma é você!

Ao som das vozes das mulheres, alteadas em discussão, os pombos se agitaram apreensivos e bateram as asas, prontos para voar ao próximo alarme.

A Dra. Livingston fez um esforço para se acalmar. Uma competição de gritos não as levaria a parte alguma. Em voz bem mais suave, ela disse:

— A Igreja Católica não tem o monopólio da moral, Madre.

— E quem falou em Igreja Católica? — disse a madre superiora, também baixando a voz.

— Acabou de dizer que...

— O que a Igreja Católica lhe fez? — indagou Madre Miriam Ruth abruptamente.

— Nada — respondeu Martha, evasiva, sem fitar a outra nos olhos.

— O que fizemos para magoá-la tanto? E não negue. Posso farejar uma ex-católica a um quilômetro de distância. O que fizemos? Queimamos alguns hereges? Vendemos algumas indulgências? Isso aconteceu nos tempos em que a Igreja era uma organização dominante. Hoje deixamos que os governos façam essas coisas. Portanto, responda: o que nós fizemos a vocêl Queria trocar carícias no banco traseiro de um carro quando tinha quinze anos e não podia porque era pecado. Assim, em vez de questionar essa pequena regra...

— Não foi sexo! — protestou Martha, o rubor espalhando-se em seu rosto e traindo a sua emoção. — Foi uma porção de coisas, mas não sexo! Quando eu estava no primário, minha melhor amiga foi atropelada a caminho da escola. A freira disse que ela morrera porque não dissera suas orações matinais.

— Uma mulher estúpida — comentou Madre Miriam Ruth.

— Isso mesmo.

— É tudo?

— É tudo, sim! — berrou Martha. — E é suficiente! Ela era uma linda garotinha...

— Mas o que isso tem a ver?

— Não fui eu! Ela era a mais bonita e morreu! Por que não eu? Eu nunca disse as minhas orações matinais. E era feia! Muito magra, tinha dentes enormes e salientes, sardas por toda a cara... Irmã Mary Cletus costumava me chamar de Ferrugem Livingston.

Martha parou de falar, consciente de que revelara mais de si mesma do que tencionara. Madre Miriam Ruth percebeu a angústia por trás das palavras da psiquiatra, mas não estava disposta a deixar a conversa em suspenso, principalmente tendo encontrado uma vantagem. E disse, a voz muito suave:

— Quer dizer que deixou a Igreja porque tinha sardas?

— Não! — gritou Martha, reparando então na sobrancelha alteada e no sorriso enviesado da madre superiora. — É verdade... deixei a Igreja porque tinha sardas. E quer saber de uma coisa?

— O quê?

— É por isso também que odeio freiras!

Ao som alto do riso das duas mulheres, os pombos alçaram vôo e descreveram círculos sobre o telhado do estábulo, batendo as asas em pânico.

— Eu me sinto como uma estátua no parque — gracejou Martha. — Vamos sair daqui.

A ira entre as duas fora dissipada pelo riso, assim como um vento novo dispersa as nuvens à sua frente, deixando os raios do sol passarem para aquecer a terra. Pela primeira vez, elas pareciam se ver como mulheres, não como símbolos de autoridade religiosa e secular. Fitavam-se sem olhos preconceituosos e compreendiam o quanto tinham em comum, como em outras circunstâncias poderiam se tornar grandes amigas. Agora, pela primeira vez, podiam até conversar sobre Irmã Agnes sem as barreiras do ressentimento e incompreensão que antes as mantinham apartadas.

Deixando o estábulo, elas foram andando pelos jardins do convento. A última claridade do dia estava prestes a desaparecer do céu, e começava a esfriar, mas nenhuma das duas queria se separar da outra. Ainda havia muito para dizer.

Um pequeno coreto de madeira e pedra erguia-se no meio dos jardins, uma relíquia de tempos antigos mais grandiosos. Não era mais usado agora, exceto por uma ocasional família de ratos-do-campo, que ali se instalava no verão, sem ser perturbada. Havia um banco que se estendia por todo o interior. A Dra. Livingston e a madre superiora sentaram-se ali, sem dizer nada por alguns minutos, apenas escutando os sons que assinalam a chegada da noite no campo. Martha acendeu um cigarro e tragou fundo, ainda um pouco esgotada. Não estava acostumada a discutir, preferindo sempre o caminho da razão.

Madre Miriam Ruth contemplava a noite cada vez mais densa, e foi com a voz suave que começou a falar, meio para si mesma:

— Quando eu era criança, costumava ouvir meu anjo da guarda. Cantou para mim até eu fazer seis anos. Foi quando parei de escutar e o anjo deixou de cantar, mas ainda me lembro da voz. Poucos anos atrás, contemplei-me um dia e vi uma freira que não tinha certeza de nada. Nem mesmo do céu. Nem mesmo de Deus. E foi então que uma noite deparei com Agnes de pé junto à janela, cantando. E naquele momento todas as minhas dúvidas a respeito de Deus e de mim mesma desapareceram. Reconheci a voz.

Ela se virou para fitar a psiquiatra à luz esvanescente e suplicou:

— Não me tire isso de novo, Dra. Livingston. Depois dos seis anos, minha vida foi muito triste.

Martha respirou fundo. Em seu íntimo, fazia grande esforço para compreender uma mulher como Madre Miriam Ruth. Ali estava uma pessoa que vivera de fato duas vidas opostas. Estivera no mundo, casara, gerara duas filhas. Casamento e maternidade malsucedidos — ou pelo menos ela assim alegava, mas quem sabe realmente o que é o sucesso? E durante todo o tempo ela ansiara por um tipo de vida totalmente diferente — uma vida de celibato, jejum, oração e renúncia. Assim que a viuvez a libertara, ela correra para essa outra vida, e alcançara tanto sucesso que agora era a madre superiora de um convento. Que paradoxo! Mas que força de vontade!

No entanto, aquela mesma mulher, forte e dominadora, ainda se encontrava presa à garotinha que vivia dentro dela, que ouvia um anjo da guarda cantando num tempo mais simples. Uma mulher para quem uma jovem freira passara a simbolizar essa simplicidade e inocência. Inocência... Quando Madre Miriam Ruth ouvia Irmã Agnes cantar, recuperava a inocência passada. Não era de admirar que não quisesse deixar Agnes ir embora. A jovem interpunha-se entre a madre superiora e a perda de sua alma imortal!

— Minha irmã morreu num convento — murmurou Martha. — E é sua voz que ouço.

Ah, então é daí que vêm o medo e o ressentimento de Martha Livingston. Não é tão espantoso assim, pensou a freira, inclinando-se para tocar com delicadeza no braço da psiquiatra. Martha tirou outro cigarro da bolsa e acendeu-o na guimba do que acabava de fumar.

— Meu cigarro a incomoda? — perguntou Martha, subitamente preocupada.

— Não, apenas me lembra.

A madre superiora sorriu. Martha estendeu o maço.

— Gostaria de fumar um? — ofereceu.

Madre Miriam Ruth levantou a mão para afugentar a tentação, mas os olhos permaneceram fixados no maço. Foi uma luta de verdade, e vã.

— Adoraria — ela acabou admitindo, estendendo a mão.

Rindo, Martha acendeu um cigarro e o entregou. A freira deu uma tragada profunda e teve um acesso de tosse.

— Estou sem prática — balbuciou ela, mas deu outra tragada.

— Você acha... — Martha sorriu maliciosamente — ...que os santos fumariam se fosse uma coisa popular em seu tempo?

— Não tenho a menor dúvida. — A freira balançou a cabeça. — Não os ascetas, é claro. Mas... hum... São Tomás More.

— Cigarros compridos, finos e sem filtro — sugeriu Martha, sorrindo.

Madre Miriam Ruth meditou a respeito por um instante.

— Acho que Santo Inácio fumaria charutos e depois os apagaria nas solas dos pés.

As duas acharam o jogo muito divertido, como crianças travessas. Entusiasmando-se com o assunto, a madre superiora continuou:

— E é claro que todos os apóstolos...

— Fumo de rolo — acrescentou Martha rindo.

— E até mesmo Cristo partilharia um cigarro socialmente.

— São Pedro? — indagou Martha.

— Um cachimbo — respondeu Madre Miriam Ruth, decidida.

Por algum motivo, as duas acharam isso hilariante e se engasgaram de tanto rir, as lágrimas aflorando aos olhos. Eram como uma dupla de crianças travessas da escola paroquial, sussurrando blasfêmias no recreio e esperando que Deus fulminasse uma ou outra. O jogo era emocionante, não apenas por ser tão tolo, mas também provavelmente por ser proibido.

— Maria Madalena? — perguntou Madre Miriam Ruth, cedendo a vez a Martha.

— "Percorreu um longo caminho, meu bem."

As duas não agüentaram mais, e as costelas começaram a doer de tanto rir.

— Santa Joana... — balbuciou a freira. — Santa Joana... mascaria tabaco!

Isso foi o máximo, o cúmulo. Elas se dobraram, tentando recuperar o fôlego, até que as lágrimas escorriam pelas faces e não conseguiam mais rir.

Estava bastante escuro agora, o sol há muito já se tinha posto, mas ainda era muito cedo para a lua. O vento aumentara, e as folhas caídas redemoinhavam em torno de suas pernas. Como um acordo tácito, a freira e a psiquiatra se levantaram e sacudiram as roupas.

— E o que você acha que os santos de hoje estão fumando? — indagou Martha jovialmente.

Madre Miriam Ruth sorriu.

— Ah, não há santos hoje. Boas pessoas, sim. Mas pessoas extraordinariamente boas? Receio que estejam em falta, o que é lamentável.

— Acredita que alguma vez existiram?

— Acredito — respondeu a madre superiora solenemente.

— E gostaria de se tornar uma?

Sempre a cientista, sempre sondando. As sobrancelhas pretas tornaram a se elevar, quase até a linha da touca.

— Tornar? — ela perguntou com voz suave. — Uma pessoa já nasce santa. O problema é que ninguém nasce santo hoje em dia. Somos muito... complicados.

Havia um pesar genuíno na voz de Madre Miriam Ruth.

— Mas não se pode tentar? — Martha estava levando a coisa tão a sério quanto a madre superiora. — Tentar ser boa?

— Pode-se, sim. Mas a bondade não tem muito a ver com a santidade. Nem todos os santos foram bons. Na verdade, a maioria era um pouco louca. Mas ainda assim estavam ligados a Deus, entregues em Suas mãos no nascimento.

Ela falou com voz suave, mas os olhos brilhavam, mesmo na escuridão. Martha teve uma visão súbita e espontânea dos santos de séculos passados, infantis, meio loucos, apegados à divindade. Talvez não muito diferentes de Irmã Agnes. Suspirou.

Madre Miriam Ruth apagou o cigarro com todo cuidado e deixou o coreto, avançando em passos rápidos pelos jardins na direção do prédio principal do convento. Seu rosto tinha uma expressão muito triste, e ela murmurou:

— Não há mais. Nascemos, vivemos, morremos. — Ela parou e esperou que a Dra. Livingston a alcançasse. — Não há mais espaço para milagres. Mas como eu sinto falta de milagres!

As duas passaram a andar devagar, lado a lado. Madre Miriam Ruth pegou o braço da Dra. Livingston.

— Acha que Agnes ainda está ligada a Deus? — perguntou Martha.

— Se duvida, escute-a cantar.

— Eu gostaria de começar...

— Começar o quê?

— O hipnotismo. Ainda desaprova? A freira lançou-lhe um olhar irônico.

— Se eu desaprovasse, isso a impediria de entrar em ação?

— Não.

— Era o que eu pensava. Posso estar presente?

— Claro.

— Então vamos começar.

 

O cômodo era lá no alto, exatamente abaixo do telhado do convento, bem longe dos quartos das freiras adormecidas. Não tinha janelas e, por isso, era como um útero. Durante o dia, a claridade entrava por uma clarabóia, mas quando caía a escuridão, a menos que houvesse um luar muito intenso, tinha de ser iluminado por uma vela. Não era usado desde os velhos tempos em que o convento estava repleto, com sua capacidade máxima, e as noviças tinham de ser instaladas nos aposentos lá de cima. Não havia mais quaisquer móveis ali; a única coisa era o crucifixo na parede. Foi para lá que elas levaram Agnes, ainda em sua camisola branca de linho.

Ela foi relutante, e só depois Madre Miriam Ruth tomou-a nos braços por vários minutos, tranqüilizando-a. Mesmo assim, ainda teve medo, e a visão do aposento vazio, tão parecido com uma cela de prisão em sua frugalidade e isolamento, fê-la se desvencilhar do braço da madre superiora e virar-se para fugir.

— Não, Agnes, você tem de ficar. Prometo que nada vai machucá-la aqui — disse Madre Miriam Ruth, segurando a jovem firmemente com uma das mãos e com a outra pondo a vela grande no chão. — Voltarei num instante. Vou buscar cadeiras.

— Não! Não vá! Por favor! — gritou Irmã Agnes, agarrando o hábito da mulher mais velha.

— Eu disse que voltarei num instante. Ficarei aqui com você todo o tempo. E agora deixe-me ir, Agnes, por favor. Precisamos de cadeiras. Não há nada aqui para sentarmos.

— Não precisa trazer mais que duas, pois eu não vou precisar — disse a Dra. Livingston, enquanto a madre superiora se afastava.

Um momento depois, ela tornou a concentrar sua atenção na jovem freira e acrescentou:

— Não precisa ter medo, Agnes. Vai dormir por algum tempo, e eu lhe farei algumas perguntas, mais nada.

Mas os olhos da jovem permaneceram arregalados, mesmo depois que a madre superiora voltou. Aquilo era diferente de qualquer outra coisa que já vivera antes. Ali estava ela, tarde da noite, enquanto o resto do convento dormia, sentada no meio de um aposento cuja existência ignorava até então. Contudo, apesar de todo o seu medo, quando a Dra. Livingston lhe falou em voz suave, Agnes fechou os olhos e deixou que as palavras a envolvessem.

— Você está relaxada... escutando um coro de anjos. A música cerca você como uma poça de água, quente e confortável. Cobre a sua boca, nariz, olhos. Quando eu contar até três, você vai acordar. Pode me ouvir?

— Posso.

Agnes já estava em transe hipnótico.

— Quem sou eu?

— Dra. Livingston.

— E por que estou aqui?

— Para me ajudar — respondeu a jovem, em tom sonhador.

— Ótimo. Gostaria de me dizer por que você está aqui?

— Porque estou numa encrenca.

— Que encrenca?

Não houve resposta, mas os lábios da jovem freira começaram a tremer. Madre Miriam Ruth pusera a cadeira de Agnes no meio do aposento, por baixo da clarabóia, por onde se filtrava um raio fino de luar, mais pálido do que a vela, formando uma pequena poça de claridade a seus pés.

— Que espécie de encrenca, Agnes? — perguntou Martha de novo, mais insistente.

A expressão sonhadora e distante da voz de Agnes desapareceu por completo e tornou-se a de uma garotinha confusa.

— Estou com medo.

— De quê? — pressionou Martha.

— De contar a você.

A Dra. Livingston baixou a voz, tornando-a ainda mais gentil.

— Mas é fácil. É apenas um sopro de ar com som. Vamos, conte. Que espécie de encrenca, Agnes?

Madre Miriam Ruth prendia a respiração, sem desviar os olhos do rosto da jovem.

— Tive um bebê — murmurou Agnes.

Martha deixou escapar um pequeno suspiro. Finalmente. O reconhecimento fatal estava mesmo enterrado no fundo do subconsciente de Agnes. Talvez agora pudessem trazê-lo à tona, libertar a jovem do terrível fardo de culpa e angústia, descobrir o que realmente acontecera na noite em que o bebê nascera e morrera.

— Como você teve um bebê?

— Saiu de mim — respondeu Agnes, a voz muito baixa.

— Você sabia que ia sair?

— Sabia.

Martha e Madre Miriam Ruth trocaram um olhar prolongado e silencioso. Depois, Martha tornou a virar-se para a jovem freira e perguntou:

— Você queria que saísse?

— Não.

— Por quê?

— Porque tinha medo.

E revivendo, em seu estado de sono, o terror daquela noite, Agnes contorceu as feições no medo relembrado.

— Por que tinha medo?

— Porque eu não era digna.

— De ser mãe?

— Sim... sim.

Era como se a resposta lhe fosse arrancada. O rosto da jovem começou a se contrair, uma lágrima formou-se em seus olhos.

— Por quê? — indagou Martha outra vez, inexorável.

Agnes chorava agora, sacudindo a cabeça e se virando, como se procurasse por uma fuga. Mas a Dra. Livings-ton estava ali, incitando-a a recordar.

— Posso abrir os olhos agora? — suplicou a jovem.

— Ainda não — disse Martha, gentilmente. — Daqui a pouco, mas ainda não. Sabe como o bebê entrou em você?

— Cresceu — soluçou Irmã Agnes.

— O que o fez crescer? Você sabe?

— Sei.

Houve outra troca de olhar entre a psiquiatra e a madre superiora, e depois Martha indagou:

— Gostaria de me contar?

— Não! — gritou Agnes, retorcendo as mãos no colo.

Um pequeno gemido de compaixão escapou de Madre Míriam Ruth, que o sufocou no mesmo instante. Depois, pegou o crucifixo em seu peito e automaticamente sussurrou uma ave-maria.

Mas a Dra. Livingston não podia parar agora. Sabia que a recordação hipnótica era um processo penoso, deixando o subconsciente em carne viva, sangrando. Mas era uma cirurgia necessária, se queria ajudar Agnes.

— Alguém mais sabia do bebê? perguntou ela. A jovem hipnotizada contorceu-se na cadeira, como se espetada ali tal qual um inseto empalado por um alfinete.

— Não posso lhe contar isso!

— Ela vai ficar zangada?

— Ela me fez prometer que não contaria!

— Quem? Quem a fez prometer?

Mas um grito abafado foi a única resposta de Agnes. Lágrimas brilharam em seu rosto, refletindo o luar e a claridade projetada pela vela. As mãos se retorciam, como se dotadas de vida própria.

Abruptamente, Martha abandonou essa linha de interrogatório. Sentindo que fora ao máximo possível naquele momento e que Irmã Agnes estava muito agitada para responder a perguntas como "quem?" e "por quê?", ela mudou de rumo.

— Muito bem, Agnes, vamos para o seu quarto. É a noite em que você estava muito doente, há cerca de seis semanas.

— Tenho medo!

A voz da jovem estava trêmula, as pálpebras fechadas adejavam nervosamente.

— Não precisa ter medo — disse Martha, a voz muito baixa. — Estou aqui. Certo?

Agnes assentiu. Mesmo em transe hipnótico, ela sentia a presença tranqüilizadora de Martha, e foi acalmada pelo som de sua voz.

— Conte o que você fez antes de ir para a cama.

— Eu comi — respondeu a jovem, numa voz bem mais forte.

Ela parara de se contorcer e não estava mais soluçando. As palavras vinham de algum lugar muito distante. O transe parecia se aprofundar.

— O que você comeu no jantar?

— Peixe. Couve-de-bruxelas.

A jovem torceu o nariz em repulsa.

— Não gosta de couve-de-bruxelas?

— Detesto — respondeu Agnes, fazendo uma careta.

— E o que aconteceu depois?

— Fomos à capela para as vésperas. Saí mais cedo, porque não estava me sentindo muito bem...

Ela parou de falar e empertigou-se de repente na cadeira, inclinando a cabeça, como para escutar melhor.

— O que foi? — perguntou Martha.

— Alguém está me seguindo.

— Quem?

— Acho que Irmã Marguerite.

Ela olhou ao redor, ansiosamente, embora os olhos ainda estivessem fechados.

— Era Irmã Marguerite que sabia do bebê?

Mas Agnes virou o rosto, recusando-se a responder. Sua resistência a essa pergunta ainda era muito forte, mesmo sob hipnose. Mais uma vez, a Dra. Livingston mudou o rumo do interrogatório.

— Abra os olhos, Agnes. Quero que veja o seu quarto como estava naquela noite.

Com lentidão, as pálpebras se levantaram, e Agnes abriu os olhos. Olhava fixamente para a frente, ainda num profundo estado hipnótico.

— O que você vê?

— Minha cama.

— O que mais?

— Um crucifixo — balbuciou a jovem freira, parecendo de repente exaltada.

— Por cima da cama?

— Isso mesmo.

— Mais alguma coisa?

Agnes inclinou-se para a frente, sobre a pequena poça de luar, como se procurasse por alguma coisa.

— O que você está vendo? Alguma coisa diferente? A jovem assentiu.

— O que é? — perguntou Martha, prendendo a respiração.

— Uma cesta de papéis.

A psiquiatra soltou o ar devagar. Sentia um arrepio nos braços e na nuca.

Estamos chegando perto, muito perto.

— Sabe quem a pôs ali?

— Não.

Agnes falou debilmente, parecia estar se sentindo mal, angustiada.

— Para que acha que está aí? — insistiu Martha.

— Para eu vomitar.

A jovem fez uma careta. Uma súbita lamúria de dor escapou de seus lábios, e ela comprimiu a barriga com as mãos.

— Está se sentindo mal?

— Estou!

O suor começou a brotar em sua testa, enquanto ela passava os braços em torno do próprio corpo e se punha a balançar para a frente e para trás, com o início do trabalho de parto.

— O que sente?

Uma contração violenta sacudiu o corpo magro de Agnes. Ela comprimiu os braços com mais força ainda e soltou um grito de dor.

— Sinto como se tivesse comido vidro!

— O que você faz?

— Tenho de vomitar.

Estremecendo com o esforço, Agnes conseguiu se levantar. Cambaleou para a cesta imaginária e caiu de joelhos ao seu lado, com ânsias de vômito. Mas nada saiu.

— Não posso — gemeu ela, para depois gritar estridentemente, ao ser dominada por outra contração violenta. — É vidro! Uma das irmãs me deu vidro para comer!

— Oh, Santo Deus! — balbuciou Madre Miriam Ruth, começando a se levantar.

Mas um gesto brusco da Dra. Livingston forçou-a a sentar-se de novo.

— Que irmã lhe deu vidro para comer?

Agnes estava chorando agora, o corpo sacudido por soluços convulsivos, enquanto novas ondas de dor a percorriam.

— Não sei qual delas! — gemeu Agnes. — Todas têm ciúme, é por isso.

— De quê?

— De mim!

Outra pontada de dor sacudiu-a, seguida quase que no mesmo instante por mais uma, ainda mais violenta e dolorosa.

— Oh, Deus! — gritou ela. — Oh, meu Deus! Madre Miriam Ruth tornou a se levantar, estendendo automaticamente os braços para a jovem, mas não tentou interferir. Lançou um olhar furioso para a Dra. Livingston, mas a psiquiatra nem percebeu. Toda a sua atenção estava concentrada em Irmã Agnes. Martha também sofria pela jovem, mas não havia nada que pudesse fazer. Por mais angustiante que fosse, a hipnose era o início da cura e devia ser levada até o amargo fim.

Agora, Irmã Agnes apalpava a saia do hábito, confusa e atordoada.

— Água. É tudo água.

Ela revivia o momento em que a bolsa d’água arrebentara.

— Por que ninguém vem? — perguntou Martha.

— Elas não podem me ouvir! -

Balbuciou Agnes, o corpo se dobrando a uma nova contração. — Oh, não, por favor! Não quero que isso aconteça! Não quero!

Santo Deus, pensou Madre Miriam Ruth, já não foi bastante terrível ter passado por isso uma primeira vez? Ela tem de reviver tudo, com a mesma agonia e o mesmo terror? Não pode ser poupada pelo menos de alguma coisa? Ela não era capaz de desviar os olhos da jovem, que se contorceu e gritou a uma nova contração, extremamente forte, que a dilacerava. Por favor, Deus, ajude-a, pensou a madre superiora. Como fazendo eco a seus pensamentos, Agnes gritou, várias vezes:

— Oh, Deus! Oh, meu Deus!

O corpo dobrado, Irmã Agnes estava encharcada de suor, tremendo. A garganta estava dolorida pelos gritos, e ela só conseguia ofegar para respirar, entre as investidas das ondas de dor.

De repente, a jovem empertigou-se e sentou-se, como se visse alguém. A respiração saía em grandes ofegos. A Dra. Livingston inclinou-se para a frente, ansiosa.

— O que é? O que está vendo?

— Vá para longe de mim! — gritou ela, o rosto contorcido pelo medo.

— Quem?

Mas Irmã Agnes olhava para a frente, focalizando a coisa ou pessoa que estava vendo.

— Vá embora! — gritou ela. — Não quero você aqui!

— Há alguém na sala com você?

— Não me toque! Não me toque! — gritou a jovem, a voz estridente, em terror, recuando, como se a ameaça invisível fosse mortífera. — Por favor! Por favor! Não me toque! — suplicou ela, chorando.

Madre Miriam Ruth não podia mais agüentar. Correu para a frente, pegando Agnes em seus braços, enquanto outra contração acometia a jovem.

— Detenha-a! — gritou para a psiquiatra. — Ela vai se machucar!

— Não! — ordenou Martha, a voz áspera. — Largue-a!

— Não vou mais admitir! — declarou a madre superiora, apertando Agnes ainda mais em seus braços.

— Não! — berrou Martha, adiantando-se.

Mas Agnes gritava e sacudia os braços, empurrando Madre Miriam Ruth com uma força surpreendente.

— Você está tentando levar meu bebê! Está tentando levar meu bebê! — ela berrou para a madre superiora, desvencilhando-se de seus braços.

Madre Miriam Ruth recuou, os olhos arregalados.

— Não!

As mãos de Agnes estavam agora entre as pernas, empurrando com força a cabeça do bebê, tentando empurrá-lo de volta para seu corpo.

— Fique! Por favor, fique!

Mas outra contração, a mais forte de todas, sacudiu seu corpo violentamente. Ela gritou em agonia, rolando pelo chão, o grito ecoado por Madre Miriam Ruth.

— Detenha-a! — suplicou a madre superiora, desamparada, virando o rosto desesperado para a Dra. Livings-ton. — Ajude-a!

— Não é culpa minha! — soluçou Agnes, histérica. — Não é culpa minha, mamãe! É um engano! É um engano, mamãe!

Havia sofrimento demais no aposento. Martha sentiu alguma coisa se romper em seu íntimo. Deu um passo rápido para a frente, ajoelhou-se no chão, ao lado de Agnes, e abraçou-a.

— Está tudo bem, Agnes. Um, dois, três. Está tudo bem.

Às palavras um, dois, três, Irmã Agnes saiu do transe. Balançando-se para a frente e para trás, muito fraca, ela teria caído no chão se Martha não a amparasse.

— Sou eu, a Dra. Livingston. Está tudo bem. Mas a jovem ainda tremia; abraçando-a com firmeza, Martha a consolou, como faria com um bebê chorando, com palavras sussurradas e palmadinhas tranqüilizadoras nas costas e ombros.

— Obrigada, obrigada. Como se sente?

— Assustada — balbuciou Agnes em resposta. Madre Miriam Ruth, ansiosa e com ciúmes, queria ser a pessoa a confortar Agnes. Não era apenas seu dever, mas também seu direito. Lembrou a violenta rejeição da jovem quando em estado hipnótico, e vendo-a agora com Martha Livingston, enquanto ela permanecia de lado, ignorada, a madre superiora ficou furiosa e ciumenta.

— Já não é bastante terrível passar por tudo uma vez? E ter de suportar duas vezes?

— É, sim.

— Você foi muito corajosa. Lembra o que acaba de acontecer?

— Lembro — murmurou Agnes, com um sobressalto.

— Ótimo. Sente-se bastante bem para ficar de pé? Agnes acenou com a cabeça. Martha largou-a, e a freira se levantou devagar, com extremo cuidado. A psiquiatra sorriu-lhe, orgulhosa, como uma mãe quando o bebê dá o primeiro passo.

— Pronto!

Agnes inclinou-se para a frente e passou os braços em torno da psiquiatra, agradecida. Entre as duas se formara um vínculo forte, forjado na agonia e na catarse. Era um vínculo estranho, pois na medida em que Irmã Agnes se libertara de uma parte do seu fardo secreto, a Dra. Livings-ton assumira esse fardo, o que tornava as duas ainda mais unidas.

 

Quem sou eu... uma detetive?, pensou Martha, gracejando apenas em parte. Não deveria estar esse tempo todo tentando esclarecer um mistério. Deveria estar em meu consultório, com meus pacientes, ou não terei mais uma clínica particular quando voltar. Mas agora que consegui levar Agnes a enfrentar o fato de que houve um nascimento, o próximo passo é descobrir como aconteceu. Desde que passei a conhecer bem o convento, posso entender a alegação da madre superiora de que nenhum forasteiro poderia penetrar em suas defesas. Um camundongo teria uma chance melhor numa convenção de gatos. Mas tem de haver um meio. Agnes saiu, alguém entrou, ou então, no final das contas, aqueles três homens sábios vieram do Oriente em camelos.

Porque a polícia considerara o caso encerrado, porque o indiciamento de Agnes fora rápido, ninguém se dera o trabalho de investigar o "como" da concepção. Não importava para o mundo exterior quem era o homem e como conseguira se aproximar de Irmã Agnes para gerar-lhe um filho.

Mas importa para mim, pensou Martha. Tudo neste caso importa para mim. Estou afundada até o pescoço agora, mas continuarei por tanto tempo quanto for necessário.

Ela não sabia por onde começar, mas uma repartição do governo parecia um lugar tão bom quanto outro qualquer. Havia arquivos sobre tudo, dos direitos de pesca dos índios às leis de zoneamento do centro de Montreal, em armários empoeirados em prédios públicos bolorentos; e quase ninguém se dava o trabalho de consultar esses arquivos.

Um prédio assim alojava os "Arquivos Provinciais, Arquitetura, Departamento de Terras, Província de Quebec".

Os arquivos se encontravam numa sala grande que recendia a papel mofado e janelas sujas. Havia prateleiras altas que se estendiam quase até o teto de mais de três metros, com mapas enrolados e documentos de agrimensura. Prateleira após prateleira guardava a história canadense, que nunca seria consultada.

Um homem, o bibliotecário, estava sentado por trás de uma mesa, não muito longe da porta, absorvido num exemplar do Cahiers du Cinema. Ele levantou os olhos, surpreso, quando a Dra. Livingston entrou, como se não estivesse acostumado à passagem de qualquer pessoa por aquela porta.

— Com licença — disse Martha. — Estou procurando por plantas do convento de Santa Maria Madalena, em Berthierville.

O bibliotecário largou a revista de cinema, e seu rosto se iluminou.

 

         — Ah, oui. Cest un hérítage. Je crois qu

         il date du dix-neuvième siècle. Suivez-moi, s

         il vous plaít.

 

Levantando-se, ele se encaminhou para as prateleiras empoeiradas. Martha se perguntou como ele poderia saber o que havia ali. Mas o homem parecia a par de toda história guardada ali, porque em poucos minutos pegou um rolo grande numa prateleira e o estendeu aberto numa mesa.

— Le couvent des Peíites Soeurs de Marie Madeleine — anunciou ele, enquanto desenrolava o pergaminho o suficiente para se perceber que era uma planta. — Pourquoi avez-vous besoin de ceei?

Ele lançou-lhe um olhar penetrante por cima dos óculos, e Martha mentiu:

écris une étude des couvents.

Ela não podia explicar por que realmente precisava dele, embora soubesse que sua desculpa era inconsistente. A planta estava agora inteiramente desenrolada, e o bibliotecário examinou-a, feliz em seu elemento, comentando:

— Três interessam. Ce document contient tout, mê-me les entrées secrètes.

Entradas secretas! Os ouvidos da psiquiatra se aguçaram, enquanto ela acompanhava, fascinada, o dedo do bibliotecário, indicando as passagens ocultas.

— Todos os conventos tinham essas passagens — acrescentou ele para Martha, sempre em francês. — Geralmente para se ir de um prédio a outro sob a neve. Como esta.

Ele apontou para uma linha pontilhada no mapa.

— Então foi assim que ele entrou — murmurou Martha para si mesma.

No mesmo instante, o bibliotecário lançou-lhe um olhar desconfiado.

 

               — Pardonnez-moi, qu

               est-ce que vous avez dit?

 

— Rien, rien — Martha apressou-se em responder. — Merci mille fois.

Ela pegou a bolsa e as luvas e partiu. Estava quase correndo ao deixar a sala, e foi assim que desceu os dois lances compridos de escada até a rua, sentindo-se — para sua própria surpresa — a própria detetive.

Assim que chegou no carro, a Dra. Livingston registrou tudo o que descobrira em seu caderninho de anotações, que sempre levava consigo. Tudo o que precisava fazer agora era seguir a passagem assinalada pela linha pontilhada na planta. E se não existisse mais? Afinal, o convento tinha um século e meio; era bem possível que a "passagem secreta" não fosse usada há cinqüenta anos ou mais. Madre Míriam Ruth não a teria mencionado, se soubesse de sua existência? Ou seria aquele mais um exemplo de como ela tentava resguardar Irmã Agnes e manter a Dra. Livingston longe da verdade?

Martha pensou por um instante em comunicar à madre superiora o que tencionava descobrir, mas logo descartou a idéia. Madre Miriam Ruth poderia proibi-la. Nada disso. Atire primeiro e faça as perguntas depois.

A caminho de Berthierville, Martha repassou mentalmente o caminho secreto indicado pela linha pontilhada que levava do convento ao mundo exterior. Depois que a carrancuda Irmã Marguerite lhe abriu o portão de ferro, ela se encaminhou diretamente para a capela. A linha pontilhada começava ali, numa câmara por baixo do altar.

Mas onde? As paredes pareciam de pedra sólida, não havia portinholas de madeira, nenhuma argola de ferro que pudesse servir de alça. O chão também era de pedra. A única iluminação provinha de umas poucas velas que ardiam diante de um pequeno santuário no canto, na frente de uma imagem de São Miguel empunhando uma espada.

São Miguel. Martha pensou por um momento. Não era o anjo que guardava o Jardim do Éden? Isso mesmo, fora ele que, por ordem de Deus, expulsara Adão e Eva com sua espada flamejante. Guardando o portal, a espada na mão direita, a mão esquerda do lado do corpo, mas... Martha sentiu o coração acelerar... o indicador esquerdo apontava para baixo.

Ela se aproximou da imagem, os olhos acompanhando o dedo apontado. Havia à esquerda uma arcada de pedra baixa que não era visível do resto da capela. Além da arcada, estreitos degraus de pedra desciam. O lugar estava bem escondido, e era muito escuro.

Martha pegou uma vela na plataforma na frente da imagem. Abaixando a cabeça, a fim de não bater na arcada de pedra tão baixa, ela começou a descer.

Os degraus levavam a uma cripta abandonada, onde as primeiras freiras das Pequenas Irmãs de Maria Madalena eram sepultadas, nos primórdios do convento. Com o cemitério, a cripta fora relegada a segundo plano e estava ocupada agora pela poeira, teias de aranha e pequenos animais. As tumbas estavam rachadas, a poeira por cima se tornara uma camada grossa, intocada há mais de um século. Havia um caminho estreito de terra por entre os sarcófagos de pedra, e Martha seguiu-o. Nunca vira tumbas assim de tão perto, mas eram parecidas com as antigas sepulturas etruscas que visitara na Itália.

Curiosa, Martha parou ao lado de uma tumba e limpou a poeira, aproximando a vela para ler a inscrição: SOEUR JESUS MATILDE, 1772-1856, DEUS SALVAT. Uma vida boa e longa, pensou Martha, provavelmente muito menos complicada do que teria hoje.

Mas tinha de seguir em frente, entre outras coisas porque o cheiro cediço da cripta começava a sufocá-la. Ela podia avistar na extremidade da cripta a abertura do túnel — a passagem secreta que levava ao mundo exterior. Era o que estava procurando, a saída, o caminho que Irmã Agnes provavelmente percorrera naquela noite de 23 de janeiro, a noite em que Irmã Paul morrera e Agnes concebera um filho.

O túnel era comprido e escuro. A escuridão não intimidou Martha; ela era racional demais para ter medo do escuro. Mas havia murmúrios à frente, ruído de pequenas garras em movimento. Na melhor das hipóteses, camundongos; na pior, ratos. E ratos eram assustadores, até mesmo para a mente racional. Martha respirou fundo.

O que quer que esteja aqui, provavelmente está com mais medo de mim do que eu dele, lembrou a si mesma.

Continuou a avançar pelo túnel, tendo de fazer o maior esforço para que a vela não apagasse. Havia um cheiro opressivo de excrementos animais e outros odores em que ela preferia não pensar, empenhando-se em respirar quase que exclusivamente pela boca. Só tinha uma noção muito vaga do comprimento do túnel, ou de há quanto tempo estava ali. Talvez cinco minutos, talvez dez. As distâncias e o tempo que se passa no escuro são enganadores.

Tentou, enquanto seguia, hesitante, imaginar Irmã Ag-nes percorrendo aquele caminho. Tentou se pôr na situação de Agnes, penetrar em sua cabeça. Estaria ela apavorada, sozinha ali embaixo, na escuridão? Teria fantasias de uma descida para o inferno? Ou era o paraíso que a aguardava na extremidade? Agnes sabia para o que se encaminhava, passo a passo?

Outras indagações ocorreram à Dra. Livingston. Se aquele túnel fora usado por Agnes na noite de 23 de janeiro, como ela descobrira sua existência? Teria o homem, quem quer que fosse, lhe falado a respeito? Já haviam se encontrado antes? Ou o túnel era de conhecimento comum no convento, escondido apenas dela, porque era uma intrusa?

O túnel se aproximava do fim. Alargou-se para um pequeno espaço quadrado. Um beco sem saída. Era absurdo; não podia haver túneis que não levassem a parte alguma. A menos que aquele tivesse sido bloqueado há muitas décadas. Nesse caso, pensou Martha, lá se vai toda a minha teoria por água abaixo.

Martha suspendeu a vela bem alto e projetou sua claridade pela pequena câmara. Ali! No teto baixo, logo acima de sua cabeça. Um alçapão de madeira, preso por três ferrolhos. Erguendo-se na ponta dos pés, Martha puxou os ferrolhos, um de cada vez. Deslocaram-se sem muita resistência; era evidente que haviam sido usados recentemente. Levantando o alçapão com algum esforço, ela se ergueu pela abertura e parou por um instante, ofegante, apoiada nos cotovelos.

Depois da escuridão total do túnel, a claridade intensa de uma tarde de início de novembro ofuscou a psiquiatra, fazendo-a estreitar os olhos. Por um momento, não teve a menor idéia do lugar em que se encontrava; tinha apenas a impressão de um espaço aberto e vasto, a luz forte. E estava frio, muito frio. E depois, subitamente, compreendeu.

Era o estábulo. O estábulo enorme e vazio, há muito fora de uso. Era ali que o túnel desembocava. Claro, claro. Nos velhos tempos, ligava o convento a seus animais. Nos invernos gelados, as freiras podiam alimentar e ordenhar as vacas sem se aventurarem pela neve profunda. Atualmente com apenas uma vaca, guardada na pequena estrebaria, podia ser o local perfeito para um encontro clandestino.

Seria o lugar para onde Irmã Agnes fora na noite de 23 de janeiro, enquanto Irmã Paul, sua única amiga, agonizava?

Martha Livingston deixou o convento sem falar com Agnes ou Madre Miriam Ruth. Precisava de algum tempo para digerir o significado de sua descoberta e pensar na melhor maneira de abordar Agnes com seu novo conhecimento.

Mas não lhe foi dado esse tempo.

Madre Miriam Ruth ficara tão transtornada pela sessão de hipnose que entrara em contato com o bispo. E no dia seguinte, quando soube, por intermédio de Irmã Anne, que a psiquiatra estivera no convento mas não a procurara antes de ir embora, a indignação da madre superiora não teve limites. Ela tornou a telefonar para o bispo, solicitando, exigindo mesmo, um encontro imediato.

O que foi concedido. Sua Excelência mandou sua limusine a Berthierville para buscar Madre Miriam Ruth e levá-la, acompanhada por Irmã Anne, à catedral em Montreal. O encontro foi breve e objetivo, terminando com os dois em absoluto acordo. Só restava comunicar a decisão à Dra. Livingston.

A madre superiora teria o maior prazer em se encarregar disso, e Sua Excelência concordou. As duas freiras voltaram à limusine e foram conduzidas ao consultório da Dra. Livingston, no centro da cidade.

Helen Gervaise, a secretária e recepcionista de Martha, estava datilografando as gravações da doutora quando uma freira de expressão carrancuda entrou na sala, sem qualquer cerimônia, acompanhada por outra, menor e mais tímida. Absorvida no trabalho, com os fones nos ouvidos, Helen não levantou os olhos até que a freira bateu forte na mesa.

— A doutora está? — perguntou Madre Miriam Ruth.

— Quem devo anunciar?

— General MacArthur — disse a freira bruscamente, passando por ela e uma paciente à espera e dirigindo-se para a porta da sala de Martha.

— Ei, espere um pouco! — protestou Helen. — Não pode entrar aí desse jeito! Por favor!

Mas já era tarde demais para detê-la. Deixando Irmã Anne na sala de espera, Madre Miriam Ruth já abrira a porta de Martha. Quando Helen a alcançou, ela já estava no meio da sala.

— Está tudo bem, Helen — disse Martha, em resposta ao dar de ombros culpado da secretária. — Feche a porta, por favor.

Ela olhou inquisitiva para a madre superiora, que foi direto ao ponto, sem qualquer cumprimento de abertura.

— Acabei de conversar com o bispo e a estamos tirando do caso.

— Tirando-me do caso? Mas do que está falando? Não podem me tirar. Fui designada pelo Tribunal.unal.

— Se quisermos contratar uma psiquiatra para Agnes, encontraremos a nossa, obrigada.

— E que fará as perguntas que você quiser que sejam feitas — comentou Martha, em tom áspero.

Furiosa, Madre Miriam Ruth respondeu:

— Uma psiquiatra que trate o problema com alguma objetividade e respeito!

— Pela Igreja? — indagou Martha, ainda mais furiosa.

— Por Agnes!

Os olhos de Martha se estreitaram.

— Acha que ela é uma santa?

Madre Miriam Ruth empertigou-se e empinou o queixo.

— Ela foi tocada por Deus.

A declaração provocou uma explosão de Martha.

— Como? — gritou ela. — Agnes tem alucinações, pára de comer, sangra espontaneamente. Crê que isso é suficiente para me convencer de que ela não deve ser tocada! Dê-me um milagre!

A freira ficou imóvel por um momento, considerando se deveria dizer à psiquiatra o que tinha em mente. Depois, respirando fundo, ela começou:

— O pai...

— Quem é ele? — interrompeu-a Martha, ansiosa.

— Por que tem de ser alguém?

Aturdida, Martha ficou olhando para a madre superiora, enquanto absorvia todo o significado de suas palavras. E depois desatou a rir.

— Oh, Deus... — e riu de novo — ...você é tão louca quanto o resto de sua família!

Não esperando por aquela reação, Madre Miriam Ruth pareceu magoada e confusa.

— Não sei se é verdade... eu... eu apenas acho que... pode ser possível...

— Como? — insistiu Martha, desdenhosa. — Acha que um enorme pombo branco entrou voando pela janela?

— Não seja ridícula! — berrou a madre superiora, ofendida.

— Pois então me dê uma explicação aceitável — exigiu a psiquiatra.

— Um milagre é uma ocorrência sem explicação. Se ela é capaz de abrir um buraco na mão sem um prego, por que não poderia abrir uma célula em seu útero?

Martha fechou os olhos, exasperada, todas as fibras racionais de seu ser protestando contra aquela afronta an-ticientífica.

— Isso é insanidade!

Mas Madre Miriam Ruth continuava, e não havia como detê-la, agora que se entusiasmava pela teoria.

— Não havia qualquer homem no convento naquela noite, e não havia maneira de alguém entrar ou sair.

Ela fechou os lábios, comprimindo-os com força, como se assim o caso estivesse provado e encerrado.

— Portanto, está dizendo que foi Deus — comentou Martha, alteando uma sobrancelha.

— Não! — declarou a madre superiora, com veemência. — Seria a mesma coisa que dizer que foi o Padre Martineau. Estou dizendo apenas que Deus permitiu.

— Mas como aconteceu? — insistiu a Dra. Livings-ton.

Madre Miriam Ruth assumiu uma expressão de beatitude.

— Jamais encontrará resposta para tudo, doutora. Para cada milagre que a ciência explica, surgem mais dez mil.

— Pensei que não acreditasse em milagres hoje em dia.

— Quero a oportunidade de acreditar Quero ter a opção de acreditar.

Martha levantou-se e fitou a madre superiora nos olhos. E disse, falando devagar, com muita ênfase:

— Isso em que está querendo acreditar é uma mentira. Porque não quer enfrentar o fato de que Agnes foi estuprada, ou seduzida, ou ela própria seduziu alguém.

A freira recuou, como se tivesse sido golpeada fisicamente.

— Ela é uma inocente! — protestou.

— Mas não é um enigma. Tudo o que Agnes fez é explicável pela psiquiatria moderna. Do princípio ao fim.

— É nisso que acredita? — indagou Madre Miriam Ruth. — É essa a soma total de seus conhecimentos psicológicos?

— É o que tenho para acreditar.

— Então por que está tão obcecada por Agnes? — Uma expressão de satisfação estampou-se no rosto da madre superiora quando viu Martha tremer. — Está perdendo o sono, pensando nela o tempo todo, disposta a salvá-la. Por quê? É apenas uma pergunta, mas não precisa de resposta.

Madre Miriam Ruth virou-se para ir embora, em triunfo. Era o momento de Martha Livingston lançar o seu trunfo.

— Há um túnel que leva da cripta ao estábulo. Sabia de sua existência? — perguntou com suavidade.

A madre superiora tornou a se virar, a surpresa estampada no rosto.

— Há uma resposta — acrescentou Martha. — Foi assim que ela saiu.

Madre Miriam Ruth fez um gesto desdenhoso com a mão direita.

— Isso é bobagem. Como ela poderia descobrir algo assim?

— Alguém lhe contou.

— Quem? Aquele túnel não é usado há mais de cinqüenta anos.

Chegando ao auge de seu limite, Martha explodiu:

— Pare de mentir, Madre!

— Por que eu mentiria? — indagou a madre superiora, suavemente.

— Porque é de assassinato que estamos falando! Como um míssil hostil, a palavra flutuou entre as duas.

Madre Miriam Ruth balbuciou:

— Assassinato?

— Não está preocupada com o que ela nos disse? — insistiu Martha. — Sobre a presença de outra pessoa no quarto?

— Estou preocupada apenas com sua saúde e segurança!

— Quem era a outra pessoa, Madre? — insistiu Martha. — Era você?

Mas Madre Miriam Ruth eximiu-se da discussão.

— Se acha mesmo que houve um assassinato — disse ela devagar, com extrema dignidade — então deve falar com um procurador da Coroa, e não comigo. E muito menos com Agnes.

Ela encaminhou-se para a porta.

— Espere um pouco! — gritou Martha. — Para onde está indo?

Mas tudo o que a psiquiatra viu foi um hábito preto se afastando, e tudo o que ouviu foi uma porta sendo batida.

 

Martha estava desesperada. Não subestimava absolutamente o poder do bispo de tirá-la do caso, mesmo tendo sido designada pelo tribunal. Ele era um homem influente em Quebec, especialmente em Montreal. Se Madre Miriam Ruth já apresentara o triunfante comunicado, então tudo indicava que o bispo já acionara as engrenagens e àquela altura já deviam estar tomando as providências para afastá-la do caso.

Ela estava certa. Assim que a madre superiora, num acesso de indignação, deixou o consultório, Martha telefonou para o tribunal. A secretária do Juiz Leveau mostrou-se evasiva, o que foi suficiente para deixá-la de sobreaviso. E quando a secretária acrescentou "Nós lhe mandamos uma carta, Dra. Livingston. Deve recebê-la amanhã", Martha compreendeu que precisava agir depressa. Pegando o casaco e a bolsa, saiu quase correndo do consultório, pedindo desculpas à paciente à espera, que já estava de pé. Foi direto para o tribunal.

O Juiz Leveau saía do seu gabinete quando ela entrou apressada, esbaforida. Um olhar para a túnica preta e Martha compreendeu, com um aperto no coração, que ele se encaminhava para um julgamento.

— Não tenho tempo para você agora, Martha. — O Juiz Leveau acenou para dispensá-la. — Mandei-lhe uma carta. Mas se não pode esperar, peça à Srta. Hilliard que lhe mostre uma cópia.

— Por favor, Joe, não faça isso.

Mas ele já se afastara, atravessando o saguão de mármore para a sala do tribunal. Apressado, absorto no caso que estava prestes a julgar, Leveau franziu o rosto quando a Dra. Livingston correu ao seu lado, suplicando:

— Tudo o que quero é mais uma semana!

— Por quê? — O Juiz Leveau não diminuiu as passadas. — Madre Miriam Ruth está intransigente. Você não fez qualquer progresso...

— Ela diz isso porque a incomodo!

— Está incomodando a todos nós, Martha. Vamos encarar a verdade.

— Darei uma decisão dentro de uma semana — prometeu Martha.

O juiz alongou ainda mais as passadas, como se quisesse se livrar de Martha. Havia uma expressão de irritação em seu rosto normalmente plácido.

— Eu gostaria de lembrá-la, Dra. Livingston, de que não queria aceitar o caso no início. Parece agora que estava certa ao hesitar. E já teve um prazo mais do que suficiente. Você está fora do caso.

— Joe! — Eles se encontravam agora diante da porta da sala do tribunal, e Martha estava prestes a perdê-lo e à sua oportunidade de permanecer no caso. — Ela não matou o bebê!

Suas palavras ecoaram de maneira estranha pelo corredor

de mármore, e ainda mais estranhamente no cérebro de Martha.

O Juiz Leveau parou no mesmo instante e virou-se para fitá-la, os olhos solenes.

— Tem alguma prova?

— Terei.

— Quando?

— Na próxima semana.

Deixando escapar um pequeno suspiro de contrariedade, Leveau tornou a virar-se, para entrar na sala.

— Não, Martha...

— Amanhã! — gritou a Dra. Livingston. — Terei a prova amanhã!

O juiz hesitou por um instante, o pé no limiar. Depois, virou-se mais uma vez e olhou para a psiquiatra. As faces de Martha estavam afogueadas pela ansiedade, os olhos muito brilhantes. Leveau suspirou; não era um homem insensível.

— Oui, bon. À demain.

Martha dispunha de tempo até o dia seguinte. Mas não mais do que isso.

Pela primeira vez em todas as suas visitas, Martha encontrou o portão destrancado e entreaberto. Havia também outros carros estacionados do lado de fora, dois velhos Fords com a tinta descascando e uma pickup Chevrolet nova, ao lado do Volvo antigo do Padre Martineau. Alguma coisa estava acontecendo no convento. Martha ficou parada no portão por um momento, especulando se deveria chamar Irmã Marguerite, e se Irmã Marguerite a deixaria entrar. Depois, encarando o portão aberto como um convite para entrar, subiu pelo caminho de cascalho e passou pela porta grande de madeira, também destrancada.

Ninguém apareceu para recebê-la ou rechaçá-la. Não havia ninguém à vista, ninguém limpando os assoalhos do convento, carregando trouxas de roupa ou simplesmente deslizando pelos corredores, como as freiras costumam fazer. Mas, à distância, ela podia ouvir o som de vozes alteadas num cântico sacro. Estavam na capela.

Martha sabia que não devia se intrometer, mas as vozes eram tão belas que a atraíram para a capela, contra a sua vontade. Acima de todas, ouvia a voz clara e pura de Agnes, a voz que Madre Miriam Ruth acreditava ser a de seu anjo da guarda que lhe voltava depois de muitos anos. A idéia não parecia tão absurda agora.

Martha parou à porta da capela, espiando o interior. Um olhar, e ela compreendeu.

Aquele era o dia em que Irmã Geneviève estava fazendo os votos finais. A capela estava cheia de flores, que cercavam a noviça, estendida no chão, o rosto para baixo, os braços abertos, como uma cruz viva. Vestia o branco nup-cial para a celebração de seu casamento com Cristo.

Também vestido de branco, o Padre Martineau estava de pé por cima da jovem prostrada, balançando um incensório, de onde saía uma fumaça aromática. Era um objeto pesado e difícil para ele levantar, mas contava com a ajuda de um padre mais jovem.

Madre Miriam Ruth estava ajoelhada sozinha num banco, o rosário enrolado entre os dedos, a cabeça inclinada, mas ainda com os olhos fixados em Irmã Geneviève. Estaria pensando nos anos em que a capela ficava repleta de noviças prostradas, entregando-se a Cristo? Agora havia apenas uma, e no ano seguinte poderia não haver absolutamente nenhuma.

Nos bancos da frente, com sorrisos orgulhosos, sentavam-se alguns aldeões, vestindo suas melhores roupas, a família de Geneviève, obviamente lavradores, obviamente os proprietários dos Fords velhos e dapickup nova. Uma mulher chorava abertamente num lenço rendado. Devia ser a mãe da moça, entregando a filha pelo resto da vida a outra mãe, uma madre superiora.

As freiras cantavam de maneira magnífica, conduzidas por Agnes, cujo rosto exaltado brilhava mais que as velas diante do altar e dos santos.

 

             Agnus Dei,

             qui tollis peccata mundi,

             miserere nobis.

             Agnus Dei,

             qui tollis peccata mundi,

             miserere nobis.

             Agnus Dei,

             qui tollit peccata mundi,

             dona nobis pacem.

 

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, dai-nos a paz...

Não pertenço a este lugar, sou uma intrusa da pior espécie, pensou Martha com uma pontada de angústia, retirando-se às pressas, antes que alguém pudesse descobri-la. Voltando ao carro, ela partiu, percorrendo cinco ou seis quilômetros pelos campos, antes de parar num acostamento largo e desligar o motor.

Ficou sentada, o coração batendo forte, procurando ordenar os pensamentos, tentando identificar e analisar seus sentimentos confusos. Seria o momento perfeito para um cigarro, mas Martha não estava com o maço. Não fumava desde que se sentara com Madre Miriam Ruth no coreto, empenhadas em seu jogo ridículo. De vez em quando, sentia falta, até lamentava ter parado de fumar, mas na maior parte do tempo estava satisfeita por passar sem a nicotina e agradecida por não precisar mais daquela muleta.

O que dissera a Agnes? "Fumar é uma obsessão para mim. Acho que deixarei de fumar no momento em que ficar obcecada por outra coisa."

Eu me conhecia melhor do que imaginava, refletiu ela agora. Imagino que transferi minha obsessão pelo tabaco para o caso. Ou talvez diretamente para Agnes. Será que estou tão obcecada por ela quanto diz Madre Miriam Ruth? Ela me acusou de perder o sono, de pensar em Agnes o tempo todo. E ela está certa. Estou empenhada em salvar Agnes.

A ironia da situação — as duas mulheres convencidas da inocência de Agnes, por razões muito diferentes — pareceu muito engraçada a Martha. A obsessão de Madre Miriam Ruth era com a inocência espiritual de Agnes, enquanto Martha estava obcecada em provar sua inocência perante a lei. A psiquiatra queria bancar a detetive e provar que Agnes não matara o bebê. A freira queria bancar Deus e provar que Agnes era uma santa comprovável. Qual das duas estava certa? Ou ambas estavam completamente erradas?

Lembrando seu sonho, Martha estremeceu. Sonhara na noite anterior que era uma parteira num pequeno hospital particular, numa terra distante. Estava vestida de branco, a sala em que se encontrava era branca, a janela aberta oferecia a vista de montanhas cobertas de neve ao redor. Na mesa de baixo estava deitada uma mulher, preparada para uma cesariana. Ela começou a gritar, e Martha compreendeu que precisava tirar o bebê o mais depressa possível. Com um bisturi, cortou a barriga da mulher, depois enfiou as mãos lá dentro, até os pulsos. E de repente sentiu uma mãozinha segurar seus dedos e começar a puxar.

Enquanto as mãos da mulher empurravam minha cabeça para baixo, a pequena criatura lá dentro me puxava, até os cotovelos, os ombros, o queixo... Mas quando abri a boca para gritar...

Acordara para descobrir que os lençóis estavam manchados de sangue. Sangue menstrual. A regra, que sempre fora esporádica mas cessara por completo três anos antes, voltara de repente.

Sentira-se como se algo importante que lhe fora tirado tivesse sido restaurado. E apesar do horror do sonho, Martha Livingston ficara animada, como há séculos não acontecia.

Refletiu agora, por um momento, sobre a cerimônia que acabara de testemunhar. Não fora a primeira vez. Anos antes, fora sua irmã Marie, deitada de rosto para baixo no chão da Catedral de Montreal, cercada por trinta outras noviças, fazendo os votos. Um coro grande de freiras entoara a Gloria na ocasião, e o próprio arcebispo celebrara a missa, em vez de dois padres rurais.

Tudo lhe voltou. O orgulho da mãe, sua própria raiva. Estava perdendo sua única irmã para uma instituição inculta e medieval; Marie deixava o mundo real, onde poderia conquistar seu lugar, para ingressar numa ordem que a manteria apartada da realidade. Martha ficara extremamente revoltada, mas sua raiva então não se comparara com a fúria que sentira ao tomar conhecimento da morte da irmã, menos de um ano depois.

Há mais de vinte anos que ela carregava essa raiva em seu íntimo, projetando uma sombra escura sobre sua vida. E também sobre o seu contato com Agnes e a madre superiora, e sobre aquele caso.

Agora, pela primeira vez em todos aqueles anos, sentia o fardo da ira desvanecer-se de sua alma. Ver a pobre noviça fazer os seus votos naquele dia libertara Martha de suas recordações. Talvez fosse a exaltação da cerimônia antiga, o orgulho dos parentes humildes, em cuja vida se derramara naquela manhã um pouco de importância e beleza. Talvez fossem as palavras de Padre Martineau que lhe voltavam. Em seu grego titubeante, ele dissera:

— Não julgue para não ser julgado.

Durante todos esses anos, julguei não apenas aquela madre superiora idiota, mas também minha irmã. Culpei-a pela própria morte, mas quem sou eu para fazer esse julgamento? Todos procuramos aquilo que achamos que nos fará felizes. Como me atrevi a considerar a busca de Marie menos válida e menos significativa que a minha? Ela não poderia levar uma vida como a minha, assim como eu não poderia levar uma vida como a sua. Quem pode dizer que ela estava errada? Eu não posso — não posso mais.

Martha sentiu lágrimas de alívio aflorarem-lhe aos olhos... alívio e alguma coisa muito parecida com alegria. E algo mais: uma determinação ainda mais forte do que antes.

Continuava determinada a provar que Irmã Agnes era inocente. Continuava determinada a fazer com que Madre Miriam Ruth revelasse toda a verdade que Martha sabia que ela estava escondendo. Mas a raiva inflamada desaparecera, fora inteiramente consumida. Não era mais relevante; nunca fora. Martha podia agora confrontar Agnes e Madre Miriam Ruth sem ver os fantasmas de outras freiras sobre seus ombros.

Repassou mais uma vez todos os fatos, concentrando-se em especial na cesta de papéis. E de repente lhe ocorreu. Lembrou finalmente o detalhe relativo à cesta de papéis que lhe escapara antes. Não apenas Agnes era a única freira a ter uma em seu quarto, como também a cesta de papéis no gabinete de Madre Miriam Ruth, a cesta em que jogara a cinza do cigarro alguns dias antes, era muito pequena. Muito pequena; Martha notara com o subconsciente, mas não registrara no consciente. Apenas uma pequena cesta de arame, no lugar em que antes deveria haver uma cesta grande. Mais do que isso, no lugar em que houvera uma cesta grande. Devia ser a cesta de Madre Míriam Ruth que estava no quarto de Agnes na noite em que o bebê nascera. E lá estava porque a madre superiora a pusera. Era uma parte importante da prova da inocência de Agnes que prometera a Leveau. Se Irmã Agnes era inocente da morte de seu bebê, isso só podia significar uma coisa. Que outra pessoa era culpada.

A cerimônia já devia ter acabado àquela altura, a missa celebrada, a noviça uma freira, com uma aliança no dedo. Era hora de voltar.

O portão estava outra vez trancado. Irmã Marguerite abriu-o, com uma expressão irritada, mas não permitiu que a Dra. Livingston passasse pela porta do convento.

— Espere aqui — murmurou ela com raiva, afastando-se para chamar a madre superiora.

A porta estava entreaberta, e Martha pôde ouvir lá dentro os sons de uma festa de casamento, risos e canções folclóricas franco-canadenses, tocadas por um acordeão. Recordando a celebração de sua irmã, ela sabia que haveria um bolo de casamento com glacê branco, e que Irmã Geneviève dançaria com seu vestido branco e flores nos cabelos. No dia do casamento, todas as noivas são belas, até mesmo Irmã Geneviève.

Madre Miriam Ruth apareceu na porta, o rosto tão frio e duro como mármore.

— Pensei que tivesse lhe dito...

Antes que ela pudesse continuar, Martha abriu a bolsa e, sem dizer nada, entregou-lhe um envelope, com o selo oficial do Judiciário canadense.

A freira pegou-o, também sem dizer nada, abriu o envelope e leu a mensagem. Era a autorização oficial do Juiz Leveau para que a Dra. Martha Livingston retomasse os seus deveres psiquiátricos no caso de Irmã Agnes, do Convento das Pequenas Irmãs de Maria Madalena, em Berthier-ville, Província de Quebec. Não havia qualquer menção ao fato de que Martha só dispunha de um dia mais, e ela achou melhor não dizer nada a Madre Miriam Ruth.

— É uma permissão para destruí-la — comentou a madre superiora, amargurada.

— Onde ela está? — perguntou Martha.

— Não acha que ela já sofreu o suficiente? — gritou a freira, os olhos suplicantes.

— Quero fazer mais algumas perguntas.

— Por Deus, como você é determinada!

— Quem sabia que ela estava grávida? — indagou Martha, calmamente.

— Se vai continuar a nos perseguir...

— Era você?

— Ela é uma freira, e você odeia freiras...

— Você sabia que ela estava grávida? — insistiu Martha.

— Sabia!

A palavra ficou pairando no ar. Por trás delas, dentro do convento, a música soava. Lá fora, o silêncio de outono, rompido pelos passarinhos e pela palavra sabia.

Furiosa com Martha, furiosa consigo mesma, Madre Miriam Ruth saiu correndo para o pátio, como se pudesse escapar à psiquiatra e a suas perguntas persistentes.

— Não a mandou a um médico?

— Só descobri quando já era muito tarde.

— Para quê? — indagou Martha. — Um aborto?

— Não diga bobagem!

— Tarde demais para quê?

Implacável, a psiquiatra insistia, como uma broca a perfurar rocha. O rosto de Madre Miriam Ruth se contraiu, e lágrimas afloraram-lhe aos olhos.

— Não sei! — gritou ela. — Tarde demais para evitar!

— O bebê?

— O escândalo! Eu precisava de tempo para pensar.

— E foi ao quarto dela para ajudar no nascimento. A freira sacudiu a cabeça, murmurando:

— Agnes não queria ajuda.

— Mas você queria dar sumiço na criança.

— Isso é mentira!

A voz da madre superiora tremia um pouco da tensão a que estava submetida.

— Escondeu a cesta de papel no quarto — continuou Martha, aproximando-se de Madre Miriam Ruth.

Seus nervos estavam à flor da pele, formigando; sentia-se tão próxima da verdade que era quase como se pudesse estender a mão e tocá-la.

— Não escondi nada! Pus a cesta lá para o sangue e os lençóis sujos...

— E o bebê! — gritou Martha.

— Não!

Os olhos da psiquiatra eram como raio laser.

— Amarrou o cordão em torno do pescoço...

As veias no pescoço de Madre Miriam Ruth estavam saltadas, as mãos apertavam o rosário em sua cintura. E foi numa voz estrangulada que ela respondeu:

— Eu queria que ela tivesse o bebê quando não houvesse ninguém por perto! Eu o levaria para um hospital e o deixaria lá. Mas havia tanto sangue, entrei em pânico...

— Antes ou depois de matar o bebê?

A cabeça de Madre Miriam Ruth balançou violentamente de um lado para outro.

— Deixei o bebê com Agnes! Eu fui buscar ajuda! O que ela está dizendo?, pensou Martha. Que, no final das contas, foi mesmo Agnes quem matou o bebê? Se não foi a Reverenda Madre, quem amarrou aquele cordão, quem mais poderia ser? Não é possível que as duas sejam inocentes.

— Duvido que Agnes diria isso.

As palavras de Martha saíram pelos lábios semicerrados. Madre Miriam Ruth levou as mãos ao rosto, o corpo magro convulsionado, num tremor prolongado.

— Então ela é uma maldita mentirosa! — gritou a madre superiora, desatando a chorar.

 

— Olá, Agnes.

— Olá.

— Tenho mais algumas perguntas que gostaria de lhe fazer. Está bem?

— Está.

— E eu gostaria de hipnotizá-la de novo. Está bem, também?

— Está.

Madre Miriam Ruth estava mais uma vez presente, no aposento sob o telhado do convento, isolado de todos os outros, onde Martha hipnotizara Agnes. Sons de alegria vinham lá de baixo, enquanto a festa de casamento se aproximava do final. A claridade que se filtrava pela clarabóia iluminava o aposento, caindo em hastes verticais sobre a cadeira no centro.

— Ótimo — disse Martha suavemente. — Sente-se. Relaxe. Vai entrar de novo naquela poça de água. Só que desta vez quero que imagine que há buracos em seu corpo, a água morna flui por esses buracos... por trás dos seus olhos, quente, tão quente, tão pura, como uma oração... seus olhos estão pesados... com muito sono. Feche os olhos. Vai acordar quando eu contar até três. Pode me ouvir, Agnes?

— Posso.

— Quem sou eu?

— Dra. Livingston.

— E quem está comigo?

— Madre Miriam Ruth.

— Ótimo. Agnes, quero que se lembre, se puder, de uma noite em janeiro último, a noite em que Irmã Paul morreu. Você lembra...?

— Irmã Paul. Ela disse... ela disse...

A jovem não foi capaz de continuar, e lágrimas afloraram a seus olhos.

— O que houve? — Martha inclinou-se para a frente, ansiosa. — O que Irmã Paul lhe disse?

— Ela disse "Miguel".

— E o que estava querendo dizer com isso?

— A imagem.

— Que imagem? — indagou Madre Miriam Ruth, aturdida.

A Dra. Livingston silenciou-a com um aceno negativo de cabeça, enquanto Agnes continuava, no transe hipnótico:

— Ela me mostrara no dia anterior.

— E a passagem para o estábulo?

— Também.

A madre superiora soltou uma exclamação de espanto; estava aturdida por descobrir que Agnes sabia.

— Por que Irmã Paul mostrou a passagem? — indagou Martha, a voz muito suave.

— Para que eu pudesse ir até Ele!

— Quem?

— Ele!

Pela exaltação em seu rosto, podia-se compreender claramente o significado da palavra.

— Como ela soube sobre Ele? — insistiu Martha.

— Ela também viu.

— Onde?

«— Da torre do sino. Um dia antes de sua morte.

Martha recordou agora que Agnes lhe contara, enquanto as duas subiam os degraus íngremes da torre, que Irmã Paul morrera no dia seguinte à última vez em que estivera lá em cima. Martha imaginou a cena naquela tarde...

As duas estavam juntas na plataforma, a freira mais velha e a freira mais jovem, amigas. O dia estava muito frio, mesmo para janeiro, embora mais claro do que nas últimas semanas. Podia-se divisar uma extensão de quilômetros, do alto da velha torre, dominando os campos, a vista quase alcançando a aldeia.

A velha freira estava morrendo e sabia disso. Não tinha medo de morrer; na verdade, estava até preparada. Jesus a esperava, a fim de tomá-la em Seus braços. Ele estava lá fora, chamando-a.

Venha para Mim, Irmã Paul. Venha para Mim.

Mas ela estava muito velha, muito cansada, tinha dificuldade para respirar. Podia ver Cristo o Senhor Querido do lugar em que estava de pé, mas não podia ir até Ele. Era muito longe, suas pernas muito fracas. Jamais conseguiria alcançá-lo.

Isso significava que estava perdida? Sua alma nunca subiria ao céu? Irmã Agnes ao seu lado era tão jovem, tão forte. Parecia que suas pernas nunca cansavam. Mandarei Irmã Agnes a Ele, pensou Irmã Paul. Ele está chamando; posso vê-Lo daqui. Irmã Agnes irá em meu lugar, para dizer a Ele que O amo e estaria com Ele pessoalmente, se pudesse.

Martha podia ver que Agnes estava igualmente recordando aquele dia.

— E então ela mandou você? — estimulou Martha, gentilmente.

— Mandou.

E o que aconteceu?

— Peguei uma vela na imagem de São Miguel. Sei que ele vai me perdoar. Estava muito escuro na cripta, mas o túnel estava ainda mais escuro e assustador. Alguma coisa passou correndo por cima de meu pé e gritei...

A voz de Agnes vinha de muito longe.

— E o que mais?

O transe parecia se aprofundar; as pálpebras da jovem adejavam depressa, enquanto ela revivia os acontecimentos daquela noite.

— Puxei os ferrolhos. Estavam emperrados, e tive de fazer muita força. Pronto! O alçapão está aberto agora... Estou no estábulo. Está tão frio! Mas não penso no frio. Ele está aqui!

— Você tem medo? — indagou Martha.

— Tenho. Está muito escuro no estábulo e só tenho uma vela pequena. Posso ouvir os pombos se mexendo nas vigas lá em cima. Eles também estão com medo. Mas há outro som... É Você?

Madre Miriam Ruth pegara o crucifixo e começara a orar silenciosamente, os olhos jamais se desviando do rosto exaltado de Agnes.

— Ele não me responde. Sei que eu não deveria ter medo, mas tenho. Muito medo. E depois O ouço...

Ela estava agora no transe mais profundo, vivendo outra vez os eventos daquela noite fantástica. Quando tornou a falar, não foi para a psiquiatra, não foi para a madre superiora, mas sim para alguém... ou alguma coisa... que só ela podia ver e ouvir.

— Está bem, está bem.

Ela fez uma pausa, tornando a escutar a voz.

— Por que eu? — indagou Agnes, um som de lamúria subindo pela garganta. — Espere! Quero ver você!

Os olhos fitavam atentamente, esbugalhados, as mãos magras estendiam-se em súplica.

— O que você vê? — perguntou a Dra. Livingston, fascinada.

- Madre Miriam Ruth estava imóvel, o rosto destituído de cor, os lábios recitando um padre-nosso. Irmã Agnes sorriu.

— Uma flor, de cera, branca — disse ela, como num sonho. — Uma gota de sangue afundando na pétala, correndo pelas veias... halos, dividindo e dividindo... as penas são estrelas, caindo... caindo na íris do olho de Deus.

O êxtase se apoderara de Agnes, que não tinha a menor idéia de onde estava, se no passado ou no presente. Martha nunca a vira tão... translúcida... a luz parecia brilhar através dela, irradiar-se dela.

— Oh, meu Deus, Ele me vê! — gritou Agnes. — Oh, é tão maravilhoso... tão azul, amarelo, asas pretas, sangue marrom... Não, é vermelho, o sangue d’Ele. Meu Deus! Meu Deus!

E ela estava gritando estridentemente agora, no mais absoluto horror. Grito após grito.

— Estou sangrando! Estou sangrando!

Ela se levantou de um pulo da cadeira, mas não foi capaz de ficar de pé. Balançou por um instante e depois tornou a arriar na cadeira, gemendo desesperada. E no momento em que se adiantaram para ajudá-la, a Dra. Livingston e Madre Miriam Ruth viram.

Irmã Agnes sangrava das duas palmas.

O sangue escorria-lhe pelas mãos e caía no chão, ao lado da cadeira. A jovem estava próxima da inconsciência.

— Oh, meu Deus! — balbuciou Martha, horrorizada.

— Oh, querido Jesus Cristo! — sussurrou Madre Míriam Ruth.

Elas ficaram imóveis, observando a moça a gemer na cadeira, sem saberem o que fazer. Mas antes que pudessem tomar qualquer iniciativa, Agnes começou a se contorcer, muito agitada.

— Tenho de lavar isso — balbuciou ela. — Está nas minhas mãos, nas pernas. Meu Deus, não vai parar! Como posso fazê-lo parar?

Mas não era o sangue nas palmas que tanto a apavorava; era o sangue virgem, que encharcara os lençóis naquela noite. A noite em que Irmã Paul morreu e Irmã Agnes se entregou... a quem?... o quê?... queimando os lençóis em medo.

Madre Miriam Ruth recuperou o controle e, outra vez capaz de alguma ação, abraçou Agnes. Mas a jovem se debateu freneticamente, com uma força incrível, como nunca demonstrara antes.

— Agnes, por favor...

— Largue-me!

— Agnes, você tem de me deixar ajudá-la.

— Fique longe de mim! Gostaria que você estivesse morta!

Ela empurrou com força os dedos da madre superiora, a fim de desprendê-los de seus braços. Os lábios estavam repuxados, num rosnado animal, deixando à mostra os pequenos dentes brancos, que brilhavam selvagemente.

Martha Livingston podia ver que Agnes ainda se encontrava no estado hipnótico, por mais violentamente agitada que estivesse. Deu um passo em sua direção.

— Agnes...

— Eu gostaria que todas estivessem mortas! — berrou a jovem, desvencilhando-se das duas e correndo para um canto do aposento, onde se encolheu como um animal acuado, ofegante, dominada pelo medo.

— Agnes, nada tivemos a ver com aquele homem no estábulo... — murmurou Martha, seguindo-a.

— Deixe-me em paz!

Os olhos de Agnes reviravam, o suor escorria-lhe pela testa, debaixo da touca. Martha não tinha a intenção de deixá-la em paz. Precisava alcançá-la, fazê-la compreender a verdade sobre aquela noite, aceitar a verdade, a fim de que pudesse enfrentá-la. Apenas por esse rumo é que se encontraria a salvação de Agnes.

— Ele fez uma coisa horrível com você. Pode entender?

Ela pôs a mão no braço de Agnes, mas a moça repeliu-a.

— Não me toque!

— Ele assustou você, machucou-a.

A psiquiatra tornou a estender a mão, mas Agnes se encolheu.

— Não! — gritou ela, relutando em ouvir aquilo que temia, mesmo sob hipnose.

— Não é culpa sua...

— Mamãe! — gemeu Agnes.

— A culpa é dele — insistiu Martha.

— A culpa é de mamãe! — berrou Agnes, virando-se furiosa para Madre Miriam Ruth. — A culpa é sua!

A madre superiora deu um passo para trás, horrorizada, e pareceu se encolher dentro do hábito, balbuciando:

— Não!

— Diga-nos quem ele é — insistiu Martha — a fim de que possamos encontrá-lo e impedir que ele faça isso a outras mulheres...

Mas Agnes não estava escutando. Olhava com raiva para Madre Míriam Ruth, as mãos pequenas cerradas com toda a força.

— A culpa é sua!

Martha adiantou-se e pegou a jovem pelos ombros, firmemente, a fim de captar sua atenção total.

— Agnes, quem você viu no quarto?

— Eu o odeio!

— Claro que odeia! Quem era ele?

— Eu o odeio pelo que fez comigo!

Aquilo era real. Aquilo era bom. Aquilo a estava curando.

— Isso mesmo — disse Martha.

— Pelo que ele me fez passar!

A respiração de Agnes era acelerada, aos arrancos, estimulada pela raiva.

— Quem? — suplicou Martha.

— Eu o odeio!

O rosto da jovem freira era uma máscara de ódio.

— Quem fez isso com você? — insistiu Martha.

A jovem freira lançou a cabeça para trás, como se fosse uivar que nem um lobo faminto. E depois arremessou as palavras diretamente para o rosto da psiquiatra.

— Deus! Foi Deus! E agora eu vou queimar no inferno porque O odeio!

A pressão frenética da emoção levou-a a um acesso de choro lastimável. O coração de Martha se confrangia pelo sofrimento de Agnes.

— Você não vai queimar no inferno — disse ela, a voz suave, mas veemente. — Não faz mal odiá-Lo.

— Já chega por hoje — interveio Madre Míriam Ruth. — Acorde-a.

A madre superiora parecia exausta, completamente esgotada. O rosto estava muito pálido, as olheiras eram profundas.

192

— Ela não pertence mais a você — disse Martha, calmamente.

— Ela pertence a Deus.

— Agnes, o que aconteceu com o bebê? — perguntou Martha, sem desviar os olhos da jovem freira.

— Ela não pode lembrar! — interveio outra vez Madre Miriam Ruth, depressa demais.

Mas, em seu transe, Irmã Agnes murmurou "Sim" e ficou esperando que a psiquiatra tornasse a falar.

— Ela pegou o bebê nos braços — disse Martha, referindo-se a Madre Miriam Ruth.

— Sim.

A voz estava outra vez muito distante.

— Você viu tudo, não é?

— Vi.

— E depois... o que ela fez?

Agnes virou o rosto para fitar a madre superiora. Madre Miriam Ruth abriu a boca para falar, mas tornou a fechá-la, sem dizer nada. Os olhos escuros fecharam-se em sofrimento.

— Agnes, o que ela fez? — perguntou Martha de novo.

— Ela me deixou sozinha com aquela... coisinha. Olhei e pensei: isto é um erro. Mas o erro é meu, não de mamãe. Pensei: posso salvá-la, posso devolvê-la a Deus.

Martha sentiu a garganta ficar totalmente seca.

— O que você fez?

— Eu a pus para dormir — disse a jovem, sorrindo.

— Como? — insistiu Martha, temendo a resposta, um suor frio inundando-lhe a nuca.

— Passei o cordão no seu pescoço, enrolei-a nos lençóis manchados de sangue e meti na lata de lixo.

O sorriso aumentou, como se Irmã Agnes tivesse feito uma coisa excepcionalmente inteligente.

Então fora assim. A última peça do quebra-cabeça. Agnes de Deus. A ciência triunfara; seja bem-vinda ao século XX. Um gemido baixo e desesperado escapou de Madre Miriam Ruth.

— Não! Oh, não! Ela lembrou. E durante o tempo todo eu pensava que fosse uma inocente inconsciente. Mas ela sabia. Ela sabia.

Os ombros de Martha Livingston vergaram ao peso do desespero.

— Um, dois, três — murmurou ela. E Irmã Agnes despertou.

 

Agnes não foi submetida a julgamento. Como poderia, perturbada como estava? Madre Miriam Ruth insistiu em dizer que ela fora tocada por Deus. Era irônico. Na Idade Média, os loucos despertavam uma aura de reverência. Eram chamados de simples, naturais e tocados por Deus. Eram sagrados. As tribos de índios da América do Norte também consideravam seus loucos sagrados, de alguma forma santificados. Assim, parecia que Madre Miriam Ruth estava certa desde o início. Irmã Agnes fora mesmo tocada por Deus.

Ela era inocente; a Dra. Martha Livingston chegou finalmente a essa conclusão. Estava convencida de que a palavra matar não constava do vocabulário de Agnes. A jovem freira ouvira dizer muitas vezes que os bebês eram um erro, um engano; Martha tinha certeza de que ela só quisera corrigir esse erro, como dissera. Uma freira agonizante tem alucinações, e Agnes, uma mística que tinha visões e recebia os estigmas, fora enviada a um encontro com Deus. E nove meses depois ocorreu um erro. Como Irmã Paul podia saber? Como Irmã Agnes podia saber?

Martha procurara por respostas durante toda a sua vida. Sempre pensara que, formulando-se as perguntas certas, as respostas certas viriam. Jamais acreditara nos que diziam que não havia respostas para algumas perguntas. Esse não era o meio científico. O que sentia de tão belo na ciência era o fato de lhe ensinar as perguntas certas para formular. Mas não todas. Pela primeira vez, admitiu que não conhecia todas.

Sabia agora que havia algumas pessoas que recorriam à ciência, e outras a Deus, embora na essência todas procurassem a mesma coisa, as mesmas respostas às mesmas perguntas. Algumas experimentam, outras rezam, e às vezes as respostas chegam, outras não.

Martha achou de certa forma divertido que Madre Míriam Ruth e ela se encontrassem agora na posição anterior uma da outra. Haviam efetuado um círculo completo, uma volta de cento e oitenta graus. A freira acreditara na inocência de Agnes, agora não acreditava. A psiquiatra não acreditara, e agora acreditava. Divertido, mas amargo. Martha tinha agora um gosto ressequido na boca, como se fossem cinzas, um gosto que não conhecera nem mesmo quando fumava.

Não levaram Irmã Agnes a julgamento, não depois que a Dra. Livingston apresentou seu laudo ao Juiz Leveau. Em vez disso, houve uma audiência, em que Martha testemunhou a insanidade da jovem freira. Madre Miriam Ruth, parecendo muito cansada e muito mais velha, também prestou depoimento, breve, confirmando o laudo. Mencionou as visões de Agnes, mas não discorreu a respeito. Não fez qualquer referência aos estigmas. A platéia do tribunal estava cheia de repórteres, era melhor não os atiçar. Nenhuma das outras freiras foi interrogada. Todos ficaram satisfeitos com o encerramento do caso.

Durante a audiência, Agnes sentou-se como se esculpida em pedra, sem ver, sem ouvir, o olhar perdido no vazio. Na entrada, teve de passar por uma barreira de câmaras apontadas em sua direção, osflashes espocando em seus olhos. Foi a única ocasião em que se retraiu.

Não foi uma audiência prolongada. Talvez duas horas, talvez menos. Depois que a última testemunha foi chamada e prestou depoimento, o Juiz Leveau apresentou sua decisão:

— Parece evidente que a ré não foi absolutamente responsável por suas ações. Portanto, o julgamento deste tribunal é de que ela seja levada de volta ao convento de Maria Madalena, onde receberá os cuidados necessários, sob supervisão médica.

Sentada várias filas atrás de Madre Miriam Ruth e Irmã Marguerite, Martha Livingston pôde ver a madre superiora arriar no assento, aliviada. A freira virou a cabeça e fitou a psiquiatra. Martha pensou que nunca vira antes tanto sofrimento nos olhos de uma pessoa.

Depois de apresentar sua decisão em inglês, o Juiz Leveau preparou-se agora para anunciá-la em francês, como a lei exigia. Mas no momento em que ele ia começar, Irmã Agnes se levantou.

Houve um silêncio palpável no tribunal, todos os olhos fixados na jovem freira. Esperavam que ela falasse, mas Agnes não disse nada.

— Oui? — murmurou o Juiz Leveau, encorajando-a.

A jovem parecia querer falar, mas era como se não conhecesse quaisquer palavras. Madre Miriam Ruth inclinou-se para a frente, estendendo a mão, suplicante. Mas Agnes não olhou em sua direção. Também não se virou para a Dra. Livingston. Simplesmente continuou de pé.

— Tem alguma coisa a dizer? — indagou o juiz. Agnes acenou com a cabeça. Era evidente agora que ela estava esperando pela autorização do Juiz Leveau. Ele acenou com a cabeça para ela em resposta.

A jovem freira não alteou a voz, falou suavemente. Mas a voz era tão clara que alcançou todos os cantos da sala meio vazia. As palavras foram simples, o tom quase sem expressão.

— Fiquei de pé na janela do meu quarto todas as noites, durante uma semana. E uma noite ouvi a mais linda voz que se pode imaginar. Quando olhei, vi a lua brilhando sobre Ele. Durante seis noites, Ele cantou para mim. Canções que eu nunca tinha ouvido. E na sétima noite Ele abriu Suas asas e deitou sobre mim. E durante todo o tempo Ele cantava.

Com a voz mais doce que se podia imaginar, a voz de um anjo da guarda de uma criança, Irmã Agnes começou a cantar. A canção tinha mais de duzentos e cinqüenta anos, e vinha de uma terra muito distante.

Charlie é lindo e Charlie é doce, Charlie tem toda vaidade, Para a namorada traz um doce, Cada vez que vai à cidade...

Houve um silêncio chocado e depois um murmúrio de comentários no tribunal.

— Por favor, levem-na daqui — pediu o Juiz Leveau. Irmã Marguerite levantou-se e tentou puxá-la, mas Agnes continuou a cantar:

Pelo rio e pelas árvores, Pelo rio para Charlie, Pelo rio e pelas árvores, Para dar um bolo a Charlie...

O juiz estava agora batendo com seu martelo, e a voz firme se elevou sobre a canção:

— Alguém quer fazer o favor de retirar a ré deste tribunal?

O meirinho adiantou-se e pôs a mão no ombro da jovem freira, mas Madre Miriam Ruth sacudiu a cabeça, negando. Ela se levantou, pegou Agnes gentilmente pelo braço e foi levando-a. Ao saírem do tribunal, os fotógrafos tornaram a entrar em ação, como barracudas, com suas câmaras, osflashes explodindo no rosto pálido de Agnes. Ao passar pela Dra. Livingston, Agnes fitou-a sem dizer nada.

Já se haviam olhado assim, como estranhas, ao clarão implacável dos flashes. Naquele primeiro dia, nos degraus do prédio, depois do indiciamento. Agnes estava cercada pelas outras freiras, os olhos tão arregalados que Martha não pudera ver de que cor eram. Eu não a conhecia na ocasião, pensou Martha. Mas será que a conheço agora? E será que algum dia tornarei a vê-la?

Martha não esperava encontrá-las de novo, mas ao final acabou tendo de voltar. Em sua busca longa e angustiada pela verdade, muitas perguntas ainda permaneciam sem resposta, embora ela soubesse que não havia respostas para a maioria delas. Na verdade, não havia respostas para as questões mais importantes da vida. Indagamos "Por quê?" e Deus — ou a Ciência — diz "Porque sim", e ponto final. Mas Martha queria perguntar a Madre Miriam Ruth por que deixara Agnes sozinha para ter um filho na angústia do seu eu aterrorizado.

— Agnes disse que não queria qualquer ajuda — dissera a madre superiora.

Mas isso não era uma resposta. Não era absolutamente uma resposta.

E o homem. Irmã Paul realmente tivera uma alucinação e mandara Agnes ao seu encontro, como esta dissera sob hipnose? No tribunal, Agnes declarara que vira um homem de sua janela por seis noites consecutivas. Era essa a verdade? Ela teria confidenciado a Irmã Paul que o vira no estábulo? Que o próprio Deus estava no palheiro? E Irmã Paul, ao final de sua longa vida, oferecera a passagem secreta de presente a Agnes? Se isso acontecera, seria porque ela também pensava que o homem era Deus ou porque sabia que não era? Ela lamentava as longas décadas de seu celibato e queria outra coisa para Agnes? Ou ambas eram fanáticas religiosas, partilhando uma complexa folie à deus? Havia muitas perguntas para as quais Martha jamais conheceria as respostas. E precisava aprender a conviver com isso. Mas era difícil, muito difícil!

— O que está fazendo aqui? — perguntou a madre superiora.

— Eu tinha de vir — respondeu Martha, em voz baixa. — Como está ela?

Ao sol fraco da tarde de um inesperado dia glorioso de dezembro, Madre Miriam Ruth parecia velha e esgotada, como se a seiva lhe tivesse sido espremida, deixando apenas a casca seca. Linhas profundas lhe sulcavam o rosto, entre as sobrancelhas e nos lados do nariz e da boca.

Além dela, nos campos ceifados, as Pequenas Irmãs andavam em procissão, entoando uma bênção para a terra. Era uma cerimônia tão antiga que antecedia em milênios o cristianismo. Martha estava observando, parada sozinha, ao vento cortante de inverno, quando a freira se aproximara e lhe falara.

— Ela não fala mais com ninguém — disse Madre Miriam Ruth, em tom incisivo. — E parou inteiramente de cantar.

Os lábios de Martha tremeram, uma lágrima rolou-lhe pela face.

— Sinto muito.

O som das freiras cantando à distância era trazido pelo vento e depois afastado, quando o vento mudava de direção.

— Sinto saudade dela — murmurou Martha, limpando as lágrimas.

Mas Madre Miriam Ruth não disse nada; estava convencida de que ninguém podia sentir tanta falta de Agnes quanto ela, agora que a jovem se afastara e se tornava mais e mais distante e fraca a cada dia que passava.

— O que significava aquela canção... a que ela cantou? Por acaso sabe?

A freira deu de ombros.

— Provavelmente, foi a canção de sedução que ele usou... quem quer que ele fosse.

— É possível. Mas também pode ter sido um acalanto... de sua infância...?

Madre Miriam Ruth sacudiu a cabeça.

— E o pai?

Martha não recebeu resposta.

— Não sei o que pensar. Esperança. Amor. Desejo.

— Uma crença em milagres — acrescentou a madre superiora tristemente.

A Dra. Livingston suspirou fundo.

— Não sei mais em que acreditar. Mas quero acreditar... quero acreditar que ela foi... abençoada...

Madre Miriam Ruth arregalou os olhos em surpresa.

— Por quê?

As lágrimas escorriam agora abundantes pelas faces de Martha, e pingavam na gola do casaco. Não fez qualquer tentativa de reprimi-las, pois nenhum poder na terra ou no céu poderia detê-las.

— Porque... eu preciso dela!

Cada uma deu um passo na direção da outra. Madre Míriam Ruth, os olhos também cheios de lágrimas, estendeu a mão para Martha Livingston. Porque elas compreendiam o que partilhavam. Cada uma fora tocada por Agnes de Deus e cada uma tirara alguma coisa dela. Um pouco de... fé... de tal forma que suas vidas estavam mudadas para sempre.

E enquanto elas se abraçavam, chorando, o vento lhes trouxe outra canção. Ou será que imaginavam? Pensavam apenas que ouviam Irmã Agnes cantar o Agnus Dei, tão puro como o próprio ar do inverno?

Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, Dona nobispacem...

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, dai-nos a paz. Amém.

 

                                                                                Leonore Flescher  

 

                      

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