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O cheiro a bolos de caramelo aquecia a atmosfera da cozinha, tornando-a amanteigada e doce. Dane abriu a porta com o ombro e entrou, de olhar turvo e com a fralda do pólo preto por fora das calças de ganga. Passava das sete. Dormira de mais e estava irritado consigo próprio por causa disso. Era irracional pensar que seria capaz de funcionar na perfeição com pouco ou nenhum descanso quando o fardo da investigação de um crime pesava sobre ele, mas mesmo assim dava consigo a pensar nisso.
o grande Dane, o herói deus do futebol, possuidor de uma força e de um carácter sobre-humanos. Soltou uma gargalhada amarga e serviu-se de uma chávena do café forte de Mrs. Cranston.
Mrs. Cranston afastou-se do forno e endireitou-se, corada do calor e do esforço de dobrar ao meio a sua figura corPUlenta. As suas mãozinhas estavam enfiadas em duas enormes luvas azuis e seguravam um tabuleiro repleto de bolos doces e fumegantes.
- Vou arrefecê-los e estão prontos daqui a nada, xerife disse ela, dirigindo-se para a mesa no meio da cozinha clara e arejada.
Dane encostou-se à bancada e ficou a vê-la trabalhar, a colocar os bolos em tabuleiros de rede para arrefecerem. Parecia talhada para aquilo: gorda e maternal, com um sorriso radioso numa cozinha amarela e radiosa, e música country em fundo.
A porta da cozinha abriu-se e Amy entrou, hesitando ao ver o pai.
- Bom dia, fofinha - disse ele, esperando que o mau humor da filha tivesse arrefecido durante a noite.
Quando ela acolheu a sua saudação com um olhar duro como uma pedra, Dane percebeu que não conseguiria o que queria.
Amy cumprimentou Mrs. Cranston com um entusiasmo visível, sentou-se à mesa, tirou um dos bolos já frios e começou a comê-lo.
- A Heather pediu-me que passasse a noite com ela disse Amy sem preâmbulos, com os olhos cravados em Dane. - Eu disse-lhe que tinha de pedir autorização ao meu pai, visto que não passo de uma criança.
Dane apertou a cana do nariz e coibiu-se de a repreender pelo seu tom. Estava a ser castigado pelo pecado imperdoável de querer que a sua filha continuasse a ser sua filha. A sua inclinação natural foi ripostar. Não tolerava a insubordinação na sua vida profissional e raramente deparava com ela noutros domínios. Mas conteve-se, sentindo que merecia ser castigado, se não pelo modo como tratara Amy, pelo menos pela maneira como tratara Elizabeth.
-Está bem - disse ele por fim.
Amy deu outra dentadinha no bolo, mas mal o saboreou ao reparar no olhar firme do pai.
-Ela e a tia Mary vão às compras a Rochester. Disseram que me iam buscar às nove.
-E o nosso passeio a cavalo? - perguntou Dane. Pensei que poderia arranjar algum tempo esta tarde, depois do funeral.
o rancor sobrepôs-se ao remorso por uma estreita margem. Amy levantou um dos ombros com um gesto negligente e olhou para o pequeno-almoço a fim de não ser obrigada a ver o ar magoado do pai.
- Terá de ficar para outra altura, creio eu - disse ela, tentando simular indiferença, apesar de estar ansiosa por isso. Andar a cavalo era algo que eles sempre tinham partilhado, só os dois, porque a mãe de Amy nem se aproximava de um cavalo. Não lhe agradava a ideia de que qualquer coisa se intrometesse no hábito, mas tinha uma posição a marcar, e lutou contra o impulso de atravessar a cozinha e abraçar o pai. Já não era uma criança e não seria tratada como tal.
Levantou-se da cadeira da cozinha, deixando metade do bolo em cima da mesa.
-Tenho de ir arranjar o cabelo - afirmou ela, e fez o que julgava ser uma saída imponente, de cabeça erguida e ombros para trás.
Dane viu-a sair, sentindo o seu mundo impecavelmente organizado a abanar outra vez, o que não lhe agradava nada. Mrs. Cranston, que estava a arrefecer o último bolo de
caramelo, levantou a cabeça, com as rugas da face atenuadas pela compreensão.
-Nem sempre é fácil ser adulto - disse ela com ternura.
- Tem toda a razão, Mistress Cranston - resmungou Dane, afastando a chávena do café. - Bem vistas as coisas, eu preferia estar a jogar futebol.
o estaleiro cheirava a serradura e a lama. As árvores lavadas pela chuva agitavam-se com a brisa das primeiras horas da manhã. Uma cotovia entoava um solo algures no ribeiro. «Se não estivesses a olhar para aquilo que vai ser o turístico de Still Waters, estaria uma linda manhã», pensou Elizabeth. Fresca, azul e alegre. As nuvens penugentas e esfarrapadas como algodão deambulavam sem
destino no céu. o Sol erguera-se num horizonte pintado em tons de aguarela. Agora, estendia os seus raios pelo campo de milho jovem que se estendia para leste, estimulando-o a crescer mais do que «à altura do joelho no Quatro de Julho como diziam os antigos agricultores.
Ali, a desfrutar daquele silêncio maravilhoso e tranquilo, era difícil acreditar que a vida podia ser complicada. Elizabeth ergueu a sua Nikon roubada e tirou uma fotografia panorâmica do horizonte a leste e de um homem,, que se arrastava atrás de dois cavalos de trabalho num campo distante. Talvez desse uma bela fotografia para a edição seguinte do Clarion. Podiam fazer uma notícia acerca do tempo e do modo como ele afectava a agricultura e o turismo, desde que ninguém fosse assassinado entretanto.
Elizabeth enfiou a alça da mala Gucei ao ombro e amaldiçoou a Desert Eagle que conseguira enfiar lá dentro. A maldita arma era pesada como uma bigorna, mas Elizabeth não conseguia separar-se dela. o telefonema agitara-a.
POr muito que a sua mente tentasse desvalorizar o incidente agora, à luz do dia. Era inútil dizer a si própria que exagerara. Sempre que o fazia, ouvia aquela voz, ouvia a maldade que havia nela, sentia-a como o dedo frio e ossudo de uma mão. Acocorara-se junto da cama com a pistola, até Trace ter chegado a casa.
Suspirou ao pensar no confronto de ambos. Não conseguira nada do filho. Absolutamente nada. Ele levantara aponte levadiça ao ouvir falar de Carney Fox e recusara-se a deixá-la passar. A frustração devorava-a. Ele estava a esconder qualquer coisa. Até um atrasado mental se aperceberia disso. Se tivesse alguma coisa a ver com Carney Fox, e se este tivesse alguma coisa a ver com o assassínio...
Elizabeth virou-se e tirou uma série de fotografias ao estaleiro: o reboque que fazia as vezes de escritório, a zona de estacionamento cheia de sulcos e a superstrutura. Still Waters no Dia Seguinte, chamaria ela àquela série. Se as publicasse na primeira página, Charlie Wilder teria um ataque cardíaco. o que a tornaria popular.
As fitas amarelas da polícia tinham sido cortadas e jaziam abandonadas na lama, junto do sítio em que Jarvis encontrara o seu fim. Não havia mais nada a assinalar o local. Tinham lavado o sangue na primeira noite, durante a tempestade. Mesmo assim, Elizabeth tirou uma fotografia e depois apontou a máquina para o ribeiro e tirou mais uma série da natureza. Ia a baixar a máquina quando um vulto a oeste lhe despertou a atenção. Dedilhando a lente enorme, fez um zoom.
Parecia ser Aaron Hauer, embora ele estivesse demasiado longe para que ela conseguisse distinguir um amish de outro. A postura dos ombros e a inclinação da cabeça levaram-na a pensar que era ele. Estava ajoelhado à sombra de um bordo que se erguia na encosta junto do ribeiro. Tinha a cabeça baixa e o chapéu de palha de aba larga na mão.
A máquina disparou e zumbiu antes que ela pudesse conter-se. Ohomem, fosse ele quem fosse, estava a rezar. Não competia a Elizabeth registar um momento tão íntimo em filme. As preces dos Amish não eram notícia, e o facto de ela lhes tirar fotografias equiparava-a aos turistas que julgavam ter o direito de se intrometer na vida de pessoas como Aaron Hauer.
o homem levantou-se e pôs o chapéu na cabeça. Depois afastou-se e desapareceu no meio das árvores que cobriam aquela parte da encosta. Elizabeth baixou a máquina e começou a descer a colina em direcção ao ribeiro. A mulher de Aaron morrera. Talvez ela estivesse a passar a eternidade debaixo daquele bordo com vista para o rio.
Não foi um fascínio mórbido que levou Elizabeth a descer a encosta, com as pernas das calças a embeberem a humidade que se agarrava às ervas espessas, mas o interesse. Gostava de Aaron. Sob a capa do dever austero e piedoso, via um homem com fraquezas e forças como qualquer outro. Elizabeth podia saber mais a respeito dele, ser mais amiga dele. Na sua opinião, ambos precisavam de todos os amigos que conseguissem arranjar.
Os pés de inúmeros pescadores de trutas e de passeantes formaram um trilho nas ervas altas que cresciam ao longo da margem, mas era o único sinal que eles tinham deixado.
Não havia entulho. o ribeiro propriamente dito corria lentamente, e as libélulas deslizavam na superficie verde-garrafa,à procura de insectos para o pequeno-almoço. Nos baixios, ao longo da margem, malmequeres palustres cresciam em profusão, com pétalas cor de manteiga e folhas verde-veludo do tamanho de nenúfares. Na outra margem, um veado atrás de uma cortina arrendada de ramos de chorão fitava Elizabeth com uns olhos límpidos. Depois deu meia volta e afastou-se elegante e silencioso.
que belo sítio para descansar! Tão tranquilo! Tão longe dos problemas do mundo!
Elizabeth virou as costas ao ribeiro e olhou para a colina para o sítio sombrio em que o viúvo se ajoelhara para render as suas homenagens e fazer as suas orações. À volta do tronco da árvore cresciam violetas silvestres. Algumas tinham sido apanhadas e dispostas no chão em pequenos raMos, no local em que três lápides se erguiam lado a lado, uma grande ladeada por duas mais pequenas. Sir Hauer, Querida Esposa. Anna Hauer e Gemina Hauer, Querida Filha, lia-se nas mais pequenas.
Elizabeth ajoelhou-se junto de uma das pequenas sepulturas. Dois minúsculos pássaros em madeira jaziam na relva, junto da lápide. Ela passou a ponta do dedo por uma das asas graciosas e sofreu pelo seu estranho e silencioso amigo amish. Queixara-se a ele acerca do filho. Pelo menos, ela ainda tinha Trace consigo, por muito distante que ele parecesse, por muito difícil que fosse chegar até ele. Aaron Hauer só podia tocar nas filhas com orações... E violetas.
Alguém atirara um tijolo à janela do escritório do Clarion. Havia vidros partidos espalhados pelo chão. Aqueles que ainda estavam agarrados à esquadria da janela eram fragmentos afiados que lembravam estalactites. o buraco deixara entrar a chuva e o vento, e o escritório mais parecia o sobrevivente dúbio de um tornado. No velho soalho de madeira brilhavam poças de água. Os exemplares sobrantes da edição especial estavam espalhados por todo o lado. Mas Elizabeth duvidava que tivesse sido o vento a entornar caixas de antigos caracteres tipográficos pelo chão ou a estilhaçar o monitor do seu computador ou a desfazer a fúcsia que ela comprara para celebrar a compra do Clarion.
Jolynn, que fora dar com aquele espectáculo, encontrava-se sentada em cima da secretária porque a cadeira estava escavacada e olhava com interesse para a cena, avaliando as hipóteses.
- Podia ter sido obra da pessoa que te telefonou - disse ela, levando a sua lata matinal de Pepsi à boca. -Podia - admitiu Elizabeth em voz baixa, tirando uma tira de papel molhado do balcão e deitando-a para o chão. - Espero que sim. Detesto pensar que há um bando de gente louca à minha espera para me atacar.
- Pois bem, a edição especial não te enalteceu aos olhos de muita gente.
- Mas compraram-na, não é verdade? - retorquiu Elizabeth, aborrecida.
Jolynn encolheu os ombros e afastou os cabelos emaranhados dos olhos.
- Creio que foi a mesma coisa do que passarem por um acidente. Eles não queriam olhar, mas não conseguiram conter-se.
- Hipócritas - resmungou ela. - É o que eles são-
- Alguém cometeu a loucura de fazer uma declaração acerca disso.
-Sim, se é que foi esse o motivo. -Achas que foi alguém a tentar assustar-te?
- E conseguiu, filha. Garanto-te. - Elizabeth pousou a mala em cima do balcão. - Talvez alguém andasse à procura de qualquer coisa.
- De quê? - perguntou Jo soltando uma gargalhada. Dos nossos milhões escondidos? Da minha reserva de chocolates?
Agarrou-se à beira da secretária, abriu a gaveta de cima e deu um suspiro de alívio exagerado ao tirar um Baby Ruth.
- Da agenda preta do Jarvis, por exemplo - disse Elizabeth, encostando-se ao balcão. - Falaste nela a alguém?
- Não. Tenho andado a pensar nos nomes que poderão lá estar, mas ainda não descobri ninguém. E tu?
- Falei nela ontem - disse ela, atenta à reacção de Jolynn. - Ao Rich.
-Ao Rich? Rich Carmon? - Jolynn deu uma gargalhada. - Julgas que o Rich matou o Jarrold? Nem penses!
- Porque não? Ele ficou a ganhar.
- Ganhava mais a lamber as botas ao Jarrold. o Rich é demasiado preguiçoso para ser ele a gerir a empresa do Jarrold - declarou ela. - Eles tinham uma relação simbiótica, como aquelas rémoras minúsculas que sugam toda a espécie de tubarões. o Jarrold proporcionava ao Rich um belo rendimento em troca de uma dose mínima de trabalho. o Rich era o cavalinho de cortesias do Jarrold, o seu homem de fachada na empresa de construção, o marido elegante da Susie, a Brasa. - Jo abanou a cabeça outra vez e tirou o invólucro da tablete como se fosse uma casca de banana. - o Rich não podia ter morto o Jarrold. Não teria inclinação para isso, nem coragem, nem estômago. Vai por mim. Eu conheço-o há muito tempo.
Elizabeth não estava convencida.
- Não sei, filha. Lamber as botas pode tornar-se cansativo ao fim de algum tempo. Sobretudo se as botas são tão gordas e feias como o Jarrold.
Jolynn levantou a cabeça e gemeu.
-Céus, mas que imagem! Devias ser escritora.
Bret Yeager enfiou a cabeça no escritório através daquilo que fora uma janela, com um sorriso lacónico de um lado ao outro da face quadrada e honesta, e olhou delicadamente para Jolynn.
- Bom dia, minhas senhoras - disse ele. - Podemos entrar?
- Meu Deus, filho! - cacarejou Elizabeth, esmagando os vidros partidos com as botas de cowboy para o obrigar a recuar. - Não enfie aí a cabeça? Não viu o Ghost? Foi praticamente assim que o Tony Goldwyn foi decapitado.
-Há muitas coisas dessas por aí - disse Boyd Ellstrom, imperturbável, abrindo a porta e entrando com um ar fanfarrão.
Seguiram-se Yeager e o cão. Yeager soltou um assobio ao aperceber-se da destruição. o cão farejou um canto seco e limpo, enrolou-se como uma bola e adormeceu.
Elizabeth deitou um olhar irritado a Ellstrom. Este enfrentou-a, com um ar tão convencido e detestável como na noite em que a encontrara com Dane.
-Sim, bem, eu não quero que isso aconteça aqui disse ela.
- Porque não? - perguntou ele com sarcasmo. - Você podia fazer uma edição especial.
Com diplomacia, Yeager meteu-se entre ambos e sorriu a Elizabeth, como que a desculpar-se.
- Não lhe ligue, Miss Stuart. Ele picou-se porque o xerife o seringou ontem por ele lhe ter prestado aquela declaração. - Atrás dele, o rosto de Flintstone de Ellstrom adquíríu um tom vermelho baço. - Estamos aqui para recolher os vossos depoimentos e dar uma vista de olhos.
- o GIC está metido nisto, agente Yeager?
- Bem, não exactamente - respondeu ele, mexendo ligeiramente os ombros. Vestia uma túnica que saíra directamente da embalagem. o modo como meteu um dedo no colarinho e o puxou levou Elizabeth a pensar que se esquecera de tirar o cartão, já para não falar dos vincos. - Mas, mas eu estava ali mesmo quando chegou o telefonema de Miss Nielsen e tinha algum tempo...
Deixou morrer a explicação e sorriu a Jolynn, cuja face redonda adquiriu um tom rosado.
Elizabeth ergueu uma sobrancelha.
- oh, está bem - disse ela, sem ter a certeza de que Yeager estava a ouvi-la. - Foi a Jolynn que deu com isto. Talvez queira falar com ela em primeiro lugar.
Jolynn meteu a mão na gaveta da secretária e tirou uma tablete de chocolate.
- Quer um Butterfinger, agente Yeager? Yeager fez um sorriso rasgado.
-Uma mulher cá das minhas, Vamos, Boozer - disse ele, dirigindo-se ao lavrador. - Temos que fazer.
o cão levantou-se com um gemido e saíram os três para inspeccionar a porta das traseiras que o assaltante deixara aberta. Elizabeth ficou com Boyd Ellstrom.
Ellstrom contornou o balcão, verificando os estragos, tocando no monitor do computador caído com o dedo do pé e remexendo a fúcsia destruída com uma esferográfica. Elizabeth deixou-se ficar junto do balcão, com os braços cruzados sobre o top de seda vermelha e um ar um pouco circunspecto.
- Lamento que tenha ouvido por causa da declaração disse ela, sem se preocupar verdadeiramente se Dane o seringara ou não. - Julguei que soubesse o que o prejudicava.
Ellstrom olhou para ela.
-Eu posso bem com o Jantzen.
«Você eé que exército?» Elizabeth fez um arremedo de sorriso e encolheu os ombros.
- Então estamos quites, creio eu.
- Eu fiz-lhe um favor - disse Ellstrom. Dirigiu-se a ela, de olhos postos na racha que espreitava pelo decote arredondado da blusa. Elizabeth usava uma pedra arroxeada naquela corrente que trazia ao pescoço. A jóia apontava exactamente para aquele vale suave entre os seios. Ellstrom imaginava como ela devia ser macia naquele sítio, e talvez os mamilos fossem rijos como pedra. o seu sexo começou a endurecer só de pensar nisso. - Eu fiz-lhe um favor - disse ele outra vez. - Na minha opinião, você está em dívida Para comigo.
Elizabeth levantou o queixo e semicerrou os olhos quando ele avançou para ela, encurralando-a junto do balcão.
o filho da mãe esperava que ela lhe desse qualquer coisa, e ela não precisava de ser a filha do Einstein para perceber o quê. Já estava arrepiada só pelo modo como o olhar dele se demorava na sua pele. Ellstrom parou a uns escassos quinze centímetros dela, com uma expressão simultaneamente desdenhosa e expectante. Elizabeth olhou para ele com o ar mais implacável de que foi capaz.
Se procura amostras grátis, é melhor ir ao Piggly WiggIy, porque por aqui não consegue nada.
o calor subiu ao rosto de Ellstrom, alimentado pela humilhação e pela farpa da rejeição. Se estivessem num local mais isolado, talvez ele tivesse insistido. A cabra dava troco a qualquer outro homem que agitasse o coiso em frente dela. Talvez estivesse a fazer-se cara só para salvar a consciência. Mas de certeza absoluta que não salvara nada perante Jantzen.
-Você só a dá ao homem com o distintivo maior? perguntou ele com um sorriso trocista.
Elizabeth teve de apertar os braços contra o corpo para não o esbofetear. Optou por atacá-lo onde doia mais. -Não, filho, sabe o que se costuma dizer? o que conta não é o tamanho do distintivo do homem, é o tamanho do homem com o distintivo.
o homem com o distintivo abriu a porta e entrou no momento em que Ellstrom se inclinou para ela. Foi como se a temperatura na sala tivesse descido vinte graus. Dane parou do outro lado do balcão, a olhar para o seu agente.
-Já acabou de fazer a lista dos estragos, agente? perguntou ele com uma voz melíflua.
Ellstrom não disse uma palavra. Virou as costas e foi à sua vida, tirando um bloco de apontamentos e uma caneta do bolso da camisa. Elizabeth suspirou de alívio e voltou-se para Dane.
-Você tem os seus defeitos, filho, mas o sentido da oportunidade não é um deles. o seu agente não está lá muito satisfeito comigo neste momento.
Parece que ele faz parte do clube - disse Dane secamente, apercebendo-se do vandalismo.
- Pois, você tem um diabo de uma cidade, xerife! -- observou ela com um ar sarcástico raspando o balcão com a unha para tirar uma pétala de fúcsia esmagada. - Esta gente sabe receber bem uma mulher.
- Diga-me que seria diferente se eu me mudasse para uma pequena cidade do Sul e começasse a agitar as águas proferiu Dane com ar de desafio, defendendo a sua terra tão instintivamente como se defendesse um membro da família.
- É impossível. Seria ainda pior porque eu sou um ianque e a maior parte dessa gente nunca se compenetrou de que o Lee se rendeu ao Grant em Appornattox. Talvez a esta hora já me tivessem frito e depenado.
- É uma hipótese. - o riso de Elizabeth foi meio trocista, meio histérico. - Porque não vai para a rua e grita isso aos quatro ventos? Se esta confusão é para continuar, os seus agentes nem se darão ao trabalho de intervir.
Dane cerrou os dentes por instantes e refreou-se. Ela tinha o direito de estar furiosa. o que ele não sabia era se tinha o direito de estar furioso por ela. Elizabeth rejeitara a sua proposta, mas ele verificara que continuava a querer assumir o papel de protector, e isso não tinha qualquer relação com o facto de ela ser uma contribuinte, mas sim com instintos básicos e química natural.
- Há algum sítio mais resguardado onde possamos conversar?
Elizabeth pesou os contras. Era um acordo perdido à partida. Ou ficavam ali sujeitos a que o agente idiota os visse e ouvisse a sua conversa, ou ela se fechava num gabinete com um homem que só lhe criava problemas. Deu com Ellstrom a observá-los pelo canto do olho grande e redondo. O meu gabinete - respondeu ela.
Pegou na fúcsia motilada, sem se preocupar com a terra, virOu-se e abriu caminho através da devastação.
o gabinete era um cubículo sem janela que cheirava a cave húmida apesar de todos os esforços feitos para o arejar. Elizabeth dera-lhe uma olhadela e instalara-se na sala da frente com Jolynn. Usava-o apenas como armazém. Ao abrir a Porta, verificou que a sua inutilidade não o poupara à fúria de vandalismo. o chão era um mar de papéis que tinham sido cuspidos dos arquivadores. Seria preciso um mês para arrumar tudo aquilo. Elizabeth pousou a planta esmagada emcima do que restava da secretária e passou o dedo pelas folhas rasgadas e pelas flores cor-de-rosa despedaçadas.
-Quando eu era casada com o Bobby Lee Breland, o pai do Trace, vi uma destas flores na montra de uma pequena florista em Bardette - disse ela em voz baixa. - Perguntei-lhe se ele ma oferecia. No dia seguinte, ela já não estava na montra. Fui para casa cedo, toda contente porque julgava que ele ma tinha comprado e que isso queria dizer que ele me amava e que talvez se deixasse de aventuras e...
Elizabeth deixou morrer a voz. Que disparate, despertar velhas feridas quando já lhe bastavam as novas para se eenterter!
-Ele comprou-a? - perguntou Dane, que já sabia a resposta. Viu-a na posição dos ombros dela, no modo como fechou a boca. Ela abanou a cabeça. - Você está bem? perguntou ele em voz baixa.
- oh, claro - respondeu ela. - Eu gosto do papel de vítima. Fico gira assim.
Ele enfiou as mãos no cós das calças de ganga e ostentou um ar carrancudo.
-Quanto a ontem à noite...
Elizabeth levantou a mão para o interromper.
- Não é preciso sentir-se responsável por mim, xerife disse ela, impassível. - Eu já sou crescidinha.
Dane olhou para a fúcsia mutilada e cerrou os dentes. Raios, ele sentia-se responsável. Nutria um sentimento de posse em relação a ela. Era para admirar que não tivesse dado um murro a Ellstrom por se ter aproximado dela. o facto de se ter sentido tentado a fazê-lo incomodava-o. Céus, há dois anos que ia para a cama com Ann Markham e nunca se ralara que mais alguém andasse atrás dela.
- Ontem à noite, depois de você sair, recebi um telefonema interessante - contou Elizabeth, evitando que ele falasse do que se passara entre ambos.
Dane aguçou o olhar e, apesar de estar de pé com uma perna dobrada ao acaso, a sua atenção redobrou.
- Que espécie de telefonema?
-Alguém que quis exprimir a sua opinião a meu respeito, percebe? - disse ela, tentando mostrar-se o mais natural possível. - Cabra. Puta. Esse tipo de coisas.
Uma fúria cega irrompeu de Dane como um géiser.
-Bolas, porque é que você não me telefonou? Elizabeth fitou-o, de olhos arregalados, admirada com a veemência da reacção dele.
-Não deixaram nome nem número do telefone. Não me consta que você tenha prendido o seu suspeito. -Não é essa a questão. - Apetecia-lhe abaná-la ou, o que era ainda pior, abraçá-la. Ela devia ter ficado muito assustada, sozinha naquela casa a cair de podre, sabendo que o assassino andava à solta. Ao pensar nisso, quase sufocou a um misto de raiva e de impotência. Fez o possível por desanuviar o espírito e pensar como um polícia. - Era um homem ou uma mulher?
Elizabeth estremeceu ao lembrar-se da voz.
-Um homem... Suponho. Não percebi bem. Era uma voz a... Talvez fosse a mesma pessoa que destruiu isto - sugeriu ela, afastando-se dele. - Que telefonou para saber se eu não andava por aqui. De certeza que quem fez isto sabia que tinha o caminho livre. Acho incrível que uma empresa em Main Street possa ser assaltada desta maneira e ninguém tenha visto nada, e que nenhum agente tenha passado de automóvel e espreitado cá para dentro.
Em geral, os vândalos são rápidos - comentou Dan. É por isso que é difícil apanhá-los em flagrante. Por muito mau aspecto que isto tenha, não deve ter demorado mais de dez minutos a fazer.
-Vê-se é que foi um acto de vandalismo. Ele ergueu o sobrolho.
-Anda outra vez à procura de conspirações? -Nunca deixei de andar - corrigiu ela, cruzando osbraços.E não se atreva a divertir-se à minha custa, Dane Janzen. o artigo da edição especial especulava quanto ao móbil do crime. Talvez alguém julgue que temos provas aqui.
Dane arregalou os olhos.
- E talvez alguém não goste que você tenha alterado a orientação do jornal.
Elizabeth deitou-lhe um olhar demorado e frontal. Seja como for, tem de pensar melhor, xerife. Verifico que você não esperava que ninguém de cá, nenhuma destas pessoas que você conhece tão bem, vandalizasse uma empresa ou fizesse um telefonema obsceno. Assim como não imaginava que alguma delas pudesse ter assassinado o Jarvis.
«Parece-me é que você vê o que quer ver - prosseguiu ela. - Vê o que está habituado a ver, o que espera ver. Mas eu cheguei a esta cidade sem conhecer absolutamente ninguém e garanto-lhe que há aqui pessoas tão gananciosas, tão corruptas e tão perturbadas como em qualquer outro lado. E uma delas é um assassino.
Nessa tarde, quando se encontrava numa porta lateral a observar as pessoas que se tinham reunido para chorar a morte prematura de Jarrold Jarvis, Dane remoia nas palavras de Elizabeth.
Era um bom polícia. Apesar de a antiga popularidade e de a antiga fama o terem ajudado a ser eleito, Dane sabia que conseguira o lugar por mérito. Nunca se sentira inclinado a descansar em qualquer lenda poeirenta de juventude, como Rich Carmon. Podia não ter sido ambicioso, mas era consciencioso e dedicado. Apesar daquilo que Elizabeth parecia pensar, ele queria o assassínio resolvido independentemente de quem o cometera e estava a trabalhar incansavelmente nesse sentido. Era verdade que preferia as coisas simples e escorreitas, mas não era preguiçoso.
Lentamente, perscrutou a multidão, examinando o rosto de pessoas que conhecera toda a vida. Sempre pensara que o facto de as conhecer fazia dele um xerife melhor e não pior. Sabia ao que havia de estar atento, quem havia de vigiar. Sabia que Till Amstutz era mau quando bebia porque sempre fora assim. Sabia que os jovens Odegard conduziam demasiado depressa na estrada de Loring porque os homens Odegard conduziam muito depressa desde o tempo de Henry Ford; a velocidade estava nos seus genes. Sabia quem é que tentava sempre viver de acordo com as suas possIbilidades e quais as famílias cujos filhos tinham tendência a arranjar sarilhos. Conhecia Tyler County, conhecia Still Creck. Não queria pensar que esse conhecimento constituía um obstáculo e não uma ajuda.
A Igreja Luterana do Nosso Salvador estava cheia. O sol entrava pela grande janela cujos vitrais representavam Jesus a apertar mãos nos jardins de Getsémani, distribuindo raios coloridos pelas cabeças daqueles que tinham vindo lamentar-se ou apenas vê-lo. Dane sabia que havia dos dois, embora desconfiasse que os basbaques ultrapassavam em muito o número dos aflitos.
Helen Jarvis conseguiu a proeza de sucumbir junto da uma mesa de carvalho polido que se encontrava na parte da frente da igreja. Ia caindo em cima dela e chorava como uma Maria Madalena. Esta reacção era tão diferente da sua maneira de ser - ou de alguém da terra, nas mesmas circunstâncias que ninguém sabia exactamente como havia de reagir. Trocaram-se vários olhares de horror e atrapalhação. Anetta McBaine aumentou o volume do velho órgão tubular e incitou o coro a cantar Como És Grandioso, tão alto que as pessoas se encolheram.
Susie Jarvis Carmon estava sentada na primeira fila com o seu vestidinho preto e um chapéu horrível. Herdara os olhos pequenos de Helen, o nariz adunco de Jarvis e tinha o queixo pequeno, o que lhe dava um certo ar de papagaio. A seu lado estavam os seus dois filhos, muito aborrecidos, a balouçar as pernas e a dar beliscões um ao outro. Ao ver o ataque da mãe, Susie virou-se para o marido, de orelhas arrebitadas, e expulsou-o do banco. Mais mal-humorado do que solícito, Rich levantou-se e endireitou o casaco do fato preto. Depois deu o braço a Helen e tentou conduzi-la ao seu lugar.
Helen prendera o seu véu de viúva atrás da cabeça, sobre um chapéu com uma aba tão exagerada que parecia ter estado envolvida numa das primeiras tentativas humanas para voar. Apresentou o seu rosto pesaroso à multidão e dessa vez Dane encolheu-se um pouco. Parecia Bette Davis em o Que Aconteceu a Baby Jane? Maquilhara-se com tal exagero que parecia uma gueixa - pele branca de porcelana, Manchas de vermelho cor de cereja na face e à volta da boca e grandes pestanas postiças elaboradamente enroladas e empastadas em rímel. É claro que, com o choro, a maior Parte deste caíra, formando estrias negras. As olheiras escuras davam-lhe o ar de uma estranha mulher tribal a sacrificar o guaxinim sagrado.
o aspecto geral era vampiresco e ninguém parecia saber o que fazer. Toda a gente na cidade sabia que Helen e Jarrold só tinham continuado a viver juntos por despeito e maldade. Dane duvidava que qualquer deles conseguisse amar outra pessoa além deles próprios. Por isso este era mais um dos pequenos melodramas de Helen, que parecia cada vez mais estranho.
Era uma mulher ou um homem?
Um homem... Suponho. Era uma voz estranha.
Dane ouviu a resposta de Elizabeth na sua mente ao ver Helen deixar-se cair no seu lugar. Não pôde deixar de pensar no ar da mulher quando ela atirara a gelatina a Elizabeth e no que dissera. Se Helen perdera uns parafusos depois de tudo o que acontecera, era bem possível que fizesse um telefonema como aquele. Não gostava que ninguém lhe roubasse o protagonismo, como Elizabeth inadvertidamente fizera ao tropeçar no corpo de Jarrold e ao provocar uma avalancha de mexericos. Mas o vandalismo estava fora de questão. Era preciso ter força para rebentar o cadeado da porta das traseiras do escritório do Clarion, mais força do que Helen tinha, mesmo com um ataque de fúria.
Dane desviou o pensamento da viúva inconsolável e olhou para Rich com o seu novo fato de político e para Susie, que estava mais preocupada com a má figura que os filhos faziam em público do que com a ideia de enterrar o pai. Nos bancos atrás deles, estava sentada uma dúzia de pessoas que deviam dinheiro a Jarrold, e mais algumas que o tinham enganado de uma maneira ou de outra. Dane observou aquela gente que ele conhecia desde pequeno e apercebeu-se de que o seu conceito acerca delas estava a mudar quase sem ele dar por isso. Pela primeira vez, olhava para elas como potenciais suspeitos, o que não lhe agradava, Não gostava de as encarar sob esse prisma, tal como elas não gostavam de pensar que o crime estava a chegar a Still Creck. Mas os tempos estavam a mudar e, quer gostasse ou não, Dane sabia que ele e o resto de Still Creek teriam de mudar com eles.
Sentou-se num banco quando o reverendo Lindgren saiu da sacristia e pensou em assassínios enquanto o resto da multidão começava a cantar Fiéis aos Nossos Pais.
Elizabeth virou o seu Eldorado para a rampa de serviço da Shafer Motors e desligou o motor. A empresa estava instalada na zona sudoeste da cidade, à beira da auto-estrada, para atrair clientes, desconfiava Elizabeth, mas não havia qualquer indício de que a localização lhe estivesse a ser favorável. Na realidade, a maior parte da cidade parecia deserta quando ela se dirigia para Main Street, como se os seus habitantes a tivessem abandonado. Em frente do Coffee Cup estavam estacionados dois autocarros de turismo e Elizabeth avistou um grupo de turistas a olhar, embasbacados, e a apontar para uma carroça amish que se arrastava pesadamente para Hardware Hank’s. Mas a multidão estava lá em baixo, na igreja do nosso salvador a ver Jarrold Jarvis descer à terra e a banquetear-se com salada de fiambre e bolo de chocolate alemão na cave da igreja. Pensando bem, Elizabeth fora prudente em dizer a Jo que fosse observar o ritual.
Saiu do Cadillac e observou demoradamente o que Garth Shafer fizera sozinho depois de a sociedade com Jarvis ter dado para o torto. o edifício em que estava instalada a concessionária da Ford não era nem novo nem imaginativo. Por sinal, a construção de blocos de escória estava a precisar de pintura; as paredes verde-mar tinham adquirido um tom acinzentado provocado pela poluição ao longo dos anos. Na montra do stand, via-se um Thunderbird cinzento novinho em folha, mas a maior parte dos automóveis parecia usada.
Na tabuleta pendurada à porta lia-se que o estabeleciMento estava aberto, e Elizabeth entrou sem fazer barulho, na esperança de poder dar uma olhadela antes que alguém se dirigisse a ela para lhe vender um automóvel. Da zona que devia ser a oficina vinha um ruído de ferramentas eléctricas a zumbir e a gemer. o gabinete do gerente estava aberto e vazio, Talvez o próprio Shafer estivesse no funeral com todos os outros hipócritas, pensou Elizabeth, encaminhando-se para o gabinete. Mas estava enganada.
Ele apareceu atrás dela, silencioso como um gato, quando ela espreitou para o interior do gabinete. De súbito, o seu reflexo surgiu no vidro e Elizabeth deu um salto, com um aperto no coração, e quase chocou com ele. o homem desviou-se e ela cambaleou e olhou para o Thunderbird, tentando recompor-se, com o coração a bater-lhe descompassadamente no peito.
Oh, meu Deus do céu, você assustou-me! - disse ela sem fôlego, tentando rir-se e mostrar-se simpática e inocente ao mesmo tempo.
Ele não se desculpou. Ficou ali, com uma chave-inglesa assustadoramente grande na mão e uma expressão vazia nos olhos escuros. Era um homem alto, com quarenta e muitos ou cinquenta e poucos anos, e muito parecido com Jack Palance. As palavras do filme A Vida, o Amor e... as Vacas vieram imediatamente à memória de Elizabeth: «Matamos alguém hoje, Curly?», pergunta Jack Palance com aquele sorriso de fazer gelar o sangue a qualquer pessoa. O dia ainda não acabou.»
Elizabeth passou a mão pela mala encostada à anca, tentando ganhar confiança ao contacto com o volume pesado da Desert Eagle que trazia lá dentro e não pensar numa situação em que fosse obrigada a usá-la.
- Posso ajudá-la nalguma coisa?
- Bem... Talvez pudesse, filho - respondeu ela, exibindo um sorriso radioso. - Talvez eu venha a estar interessada em comprar um carro. - «Ou não.» - Disseram-me que viesse aqui e perguntasse pelo Garth. Mas não me parece que ele esteja cá hoje, com o funeral e isso tudo.
A expressão dele não se alterou e o homem limitou-se a pestanejar.
- Eu sou o Garth Shafer.
- É? - Elizabeth procurou mostrar-se mais agradavelmente surpreendida do que assustada com a perspectiva de entabular aquela conversa específica com um homem armado. - Bem, estou com sorte, não é verdade?
o homem parecia não ter qualquer opinião a respeito do assunto. Limitou-se a ficar ali, de fato-macaco azul-escuro, a torcer aquela maldita chave-inglesa nas mãos gordurosas. -Eu sou a Elizabeth Stuart.
-A mulher do jornal.
Ele fez um gesto de cabeça e olhou para o Cadillac, vermelho e reluzente como uma cereja, à luz do Sol da tarde.
- Quer fazer negócio?
-Talvez. - Elizabeth começou a dar a volta ao Thunderbird, devagar, para se afastar um pouco daquela chave-inglesa. Deitou um olhar curioso ao homem. - Não se importa que eu pergunte porque não foi ao funeral? Sei que você e o Jarvis foram sócios.
- Eu tenho de cuidar do meu negócio - respondeu ele, impassível.
Parecia ser o tipo de homem que nem seria capaz de perder tempo a ir ao funeral da própria mãe. De qualquer modo, não parecia sensato pedir-lhe explicações. Elizabeth passou um dedo pela parte lateral do carro e deitou-lhe um sorriso provocante.
- Você gosta de vender automóveis, não gosta? É melhor do que construir estradas?
Aparentemente, Shafer considerara a pergunta retórica. Não disse uma palavra.
Elizabeth encolheu os ombros e enfiou as pontas dos dedos nos bolsos da frente das calças de ganga desbotadas.
- Bem, você deve ter sido obrigado a trocar uma coisa pela outra. o que eu quero dizer é que vender automóveis é um negócio incerto, tem altos e baixos consoante a economía, que está quase sempre em baixo, se quer saber a minha
opinião. Pelo contrário, as estradas são sempre necessárias. É possível enriquecer a construir estradas.
- Onde quer chegar, Mistress Stuart? - perguntou ele tranquilamente, o seu rosto era a mesma máscara vazia, mas havia agora raiva no seu olhar. o homem bateu com a chave-inglesa na Palma da mão esquerda, com um gesto metódico.
Elizabeth engoliu em seco. Sim, ela sabia onde queria chegar. Jarvis atirara-se à mulher de Garth Shafer, obrigara Garth a sair do negócio da construção e deixara-o com uma carreira que nunca faria dele um homem rico, enquanto ele Próprio nadava em dinheiro como um porco a chafurdar numa pocilga. Era aqui que ela queria chegar, mas não sabia qual a táctica a adoptar. A investigação parecia ser sempre Mais fácil nos filmes.
Encolheu os ombros e pestanejou.
- Era só para fazer conversa. Isto é automático? - perguntouela, passando a mão pelo tecto do Thunderbird.
- É. Direcção eléctrica, travões eléctricos, vidros eléctricos, ar condicionado e aparelhagem estereofónica AM/FM. Estas palavras foram pronunciadas no mesmo tom impassível e monocórdico. Um vendedor dinâmico, este Garth. Era para admirar que a cidade inteira ainda não se tivesse convertido ao cavalo e à carroça.
- Hum... Formidável. - Elizabeth encostou-se ao carro, olhando de esguelha para Shafer, concentrada como estava na chave-inglesa. - Foi terrível, o Jarvis ter sido morto daquela maneira. Você devia conhecê-lo há muito tempo. o que pensa disso?
Shafer não se mexeu, mas o campo de tensão à sua volta fez com que Elizabeth o sentisse mais perto de si. De repente, ele parecia mais próximo, maior, mais furioso. Tinha as narinas muito abertas e inspirou com força através dos dentes amarelados. Os cabelos eriçaram-se na nuca de Elizabeth.
- Desapareça - rosnou ele, torcendo as mãos à volta da chave-inglesa e contornando a capota do Thunderbird. Eu não tenho nada a dizer-lhe.
Elizabeth recuou lentamente, olhando ora para a cara de Shafer ora para a ferramenta que ele tinha na mão. Lembrou-se da pistola que lhe pesava na carteira, mas os seus dedos estavam agarrados à alça, frios e húmidos de medo. Engolindo em seco para desfazer o nó na garganta, proferiu: -Mister Shafer, não se zangue. Eu só...
- Andava à procura de porcaria para publicar no seu jornal - observou ele com amargura. - o que aconteceu entre mim e o Jarrold foi enterrado há vinte anos. Não permitirei que uma galdéria como você desenterre o assunto outra vez. Não é bem-vinda aqui, nem na minha empresa, nem nesta cidade. Só veio trazer sarilhos...
Elizabeth levantou uma mão para se defender das palavras dele e até da chave-inglesa.
-Espere lá! Não fui eu que matei...
- Desapareça. Desapareça - repetiu ele, obrigando-a a recuar para a porta e aumentando o tom de voz à medida que falava e que a sua fúria destruía finalmente o seu aspecto imperturbável. - Desapareça! - gritou ele, rubro, e com os tendões do pescoço muito salientes.
Atirou-lhe a chave-inglesa, que passou por ela e foi bater na parede de escória, a tilintar como uma ferradura a cair numa estaca. Elizabeth perdeu a dignidade, deu meia volta e desatou a correr, abrindo a porta e fugindo para o Caddy. Saltou para dentro do carro e ligou o motor. Engatou a marcha atrás sem se preocupar com a transmissão, no momento em que Shafer apareceu à porta e lhe deitou um olhar furibundo. Só oitocentos metros depois, já na auto-estrada, é que ela deixou de sentir aqueles olhos frios e escuros na nu”ca e começou a pensar no poder de um ódio que se alimentara de amargura e de rancor durante vinte anos.
Trace pedalou na direcção de Still Creek, de cabeça e costas curvadas, agarrado ao guiador da sua bicicleta de duas velocidades. Esta, um brinquedo caro, fora comprada em Atlanta. Era uma bicicleta de corrida importada de Itália despertava a inveja dos amigos. Ali, era o seu único - meio de transporte, o que lhe retirava todo o encanto. Por uma razão: não era agradável uma pessoa não ter mais nada, em que se deslocar do que uma bicicleta. E a bicicleta era desastre em estradas de cascalho. Trace gastava quase todo o dinheiro da sua mesada a substituir pneus. E, na estreita auto-estrada de duas faixas que o levava a Still Creek, era constantemente obrigado a esquivar-se a tractores, a carroças amish ou a velhos ao volante de Buicks enormes que conduziam tão depressa quanto a vista lhes permitia.
Do que ele precisava era de um automóvel. Um automóvel mudaria toda a sua vida. Trace seria livre se tivesse um automóvel; não estaria à mercê de carney nem de mais nimguém. Não estaria à mercê dos pneus, nem do tempo, nem dos velhos de oitenta anos que já mão viam o suficiente para conduzir. Se ele tivesse um automóvel, urinava junto daqueles estúpidos amish em vez de deixar que os estúpidos cavalos deles lhe soprassem no pescoço sempre que ele subia um monte. Se tivesse um automóvel, seria dono de si próprio.,, Se tivesse um automóvel, talvez ganhasse coragem para Habordar aquela rapariga que vira na esquadra, na sexta-feira.
Céus, ela era linda! Tinha uns grandes olhos azuis, cabelos compridos e louros e um sorriso capaz de fazer parar um relógio. Ela sorrira-lhe. Ele não podia ignorar tal coisa. Olhara para ele bem de frente e sorrira, como se não o considerasse um reles sulista. Sorrira, e o seu narizinho engelhara-se e as sardas pareciam saltar-lhe do rosto. Trace ainda sentia cócegas na barriga só de pensar nisso.
Queria voltar a vê-la mas não sabia o nome dela e portanto não podia telefonar-lhe. Não era que tivesse presença de espírito para o fazer. Já era difícil falar pessoalmente com uma rapariga quando lhe via a cara e quase adivinhava o que ela estava a pensar. Na opinião dele, o telefone era apenas um instrumento de tortura quando se tratava de falar com mulheres. Com a sorte que ele tinha, se lhe telefonasse, ela descobria quem ele era e o que estava a fazer na esquadra, e sentava-se do lado oposto, sem dizer nada, a desenhar carantonhas e a escrevinhar palavras de rejeição num pequeno bloco cor-de-rosa. Não, ele tinha de a ver pessoalmente para lhe dirigir a palavra. E seria útil ter um automóvel para a impressionar.
Engatou a mudança para subir uma grande encosta e pôs-se em pé nos pedais. A bicicleta balouçava para um lado e para o outro na subida. Os músculos dos ombros e das coxas retesavam-se com o esforço. o suor escorria-lhe pela testa e colava-lhe a T-shirt branca às costas.
Naquele momento ele já teria um automóvel se tivessem ficado em Atlanta e a mãe continuasse casada com Brock. E não seria nenhum Impala velho e ferrugento com um cabide a servir de antena de rádio como aquele que Carricy Fox possuía. Seria uma máquina reluzente e desportiva, um Miata, talvez, ou um daqueles Vipers novos. Preto e brilhante como um disco, com uma aparelhagem Blaupunkt e um Fu=buster. Teria sido Brock a comprar-lho, não porque Brock se importasse com aquilo de que Trace gostava, mas porque constituiria um motivo de orgulho para ele que o filho» tivesse um carro vistoso.
Contudo, eles não estavam em Atlanta e a mãe já não estava casada com Brock. Uma vez, Trace falara-lhe em comprar outro carro, e ela dissera-lhe que mal conseguiam manter aquele que ela conduzia, quanto mais arranjar um para ele e ainda por cima pagar o seguro. Ele não voltara a falar no assunto. Ela também não achava graça ao facto de ser pobre, e não tinha culpa de que o velho merdoso lhe tivesse dado com os pés. Trace conhecia a história toda quem fizera o quê a quem - e sabia quem é que saíra tramado.
Teria de se desenvencilhar sozinho, mais nada. Não era nenhuma criança para que a mãe lhe limpasse o nariz. Era um homem. E os homens desenvencilhavam-se sozinhos, defendiam-se a si próprios e aos amigos, faziam o que havia a fazer. Ele havia de arranjar um emprego e comprar um carro.
Carney dissera-lhe que a maneira mais rápida de fazer dinheiro era traficar droga. Afirmava que tinha um canal em Austin através de um motociclista de Loring e que poderia arranjar um pouco a Trace, se ele quisesse vender, só por serem amigos. Mas Trace dissera que não queria. A mãe já andava com receio de que ele voltasse a consumir. Daria cabo dele se o apanhasse a traficar, já para não falar do que o xerife lhe faria. Além disso, não via Carney nem com um Viper nem com uma aparelhagem Blaupunkt. Ninguém enriquecia a vender droga numa estúpida cidadezinha amish como Still Creek. De qualquer modo, estava farto daquilo. Não justificara o trabalho que lhe dera.
Chegou ao cimo do monte e começou a descer, voltando a sentar-se, com os braços a abanar ao lado do corpo, e a bicicleta parecia voar. Avistou Still Creek, que lhe pareceu algo do século passado, com os seus velhos edifícios de tijolo e pedra. No extremo da cidade erguia-se o silo dos cereais, todo ele em chapa ondulada ferrugenta, forte e feio, com carroças amish atadas ao corrimão, que pareciam brinquedos ao lado dos edifícios imponentes. Trace evitou a rua princiPal e dirigiu-se para a auto-estrada no sítio em que esta virava para oeste e contornava a cidade.
Ainda não tivera a sorte de arranjar um emprego. Jarvis não o aceitara em Still Waters, e Annie, do Red Rooster, dissera que não podia contratar ninguém que não tivesse idade Para beber. o gerente do Piggly Wiggly afirmara que já tinham moços de fretes suficientes, apesar de Trace saber que ele já contratara dois tipos novos depois disso. As suas hipóteses estavam a reduzir-se rapidamente. Uma das muitas desvantagens de viver naquela cidade insignificante residia no facto de não haver onde arranjar emprego. Mas, na noite anterior, Trace ouvira falar de uma nova saída, e estava disposto a consegui-la.
Virou na estação de serviço da Texaco, encostou a bicicleta à parede do prédio e enfiou-se na casa de banho para ver se estava apresentável. Tomara duche em casa e farejou a axila esquerda para ver se o roll-on Ban sobrevivera ao caminho para a cidade. Não cheirava lá muito bem, mas ele nada podia fazer nesse momento. Mesmo que se despisse e se refrescasse no pequeno lavatório, teria de voltar a vestir a mesma camisa suada. o esforço parecia não valer a pena, mas ele lembrou-se de que um homem tinha de dar tudo por tudo numa situação como aquela.
A torneira não deitava água quente. Trace desistiu pouco depois e ensopou lenços de papel no pequeno lavatório sujo. Talvez a água fria o ajudasse a não transpirar. Tirou os óculos e pousou-os cuidadosamente na pequena prateleira por baixo do espelho de parede e depois começou a lavar-se. Quando acabou, vestiu de novo a camisa e enfiou a fralda nas calças. Tirou o pente da algibeira de trás e passou-o pelo cabelo. o cabelo era importante para os patrões. Eles não o queriam ver comprido, gorduroso ou como se não fosse penteado há dois anos. Por fim, limpou os óculos e voltou a pô-los.
Reconheceu que estava com um aspecto razoável, dadas as circunstâncias. Talvez tivesse o mesmo aspecto de todos aqueles que faziam trabalhos esquisitos para a Shafer Motors. Tinha a certeza de que a sua apresentação era melhor do que a do tipo que vira na noite anterior no parque de estacionamento do Rooster, que se despedira para ir trabalhar numa unidade de criação de porcos na fronteira com lowa. Decididamente, esse tipo parecia mais apto a trabalhar con porcos do que com automóveis. Trace pensou que podia apresentar-se cem vezes melhor e queria mesmo aquele emprego. Para comprar um automóvel. Isso devia contar qualquer coisa para um vendedor de automóveis.
Estimulando a sua autoconfiança, saiu, montou na bicicleta e dirigiu-se para a estrada que ia dar à Shafer.
Enquanto limpava e arrumava as ferramentas, Aaron ouvia a história de Elizabeth acerca do acto de vandalismo no escritório do Clarion e do encontro com Garth Shafer. o seu último trabalho do dia fora passado a consertar a porta do celeiro, e encontravam-se ambos junto da velha e degradada construção. Aaron estava concentrado no que fazia, com a sua expressão soturna como era habitual. Elizabeth, encostada ao celeiro, observava-o com um ar indolente, enquanto falava. Nunca pensara nos Amish como obcecados ou escravos do dever, mas Aaron era exactamente assim. Um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar. As suas ferramentas estavam impecaveis e meticulosamente arrumadas segundo aquilo a que se destinavam - chaves de parafusos, alicates, plainas e furadores. Era tão rigoroso como Dane com as canetas.
Elizabeth aspirou profundamente o cigarro e exalou um jacto de fumo. Não queria pensar em Dane Jantzen nesse momento. o simples facto de se lembrar do nome dele despertava-lhe recordações dolorosas e agitava velhos medos que ela queria ver adormecidos. Agora, só lhe apetecia ter um bocadinho para se acalmar. Deixou cair a ponta do cigarro na erva alta e esmagou-a com a biqueira da bota.
- Só lhe digo, Aaron, que para um estado em que toda a gente passa por ser tão calma e estóica, já tive a minha quota-parte de casos excêntricos.
Ele disse qualquer coisa em voz baixa para manifestar o seu desacordo e limpou as mãos a um trapo que trouxera para o efeito,
- É preferível deixar que as coisas sigam o seu curso, é o que eu digo. - Deitou-lhe um olhar firme por cima dos óculos. - Você só se vai magoar. Isso não vai alterar nada.
- Eu quero descobrir a verdade. A Bíblia não diz... «a verdade te libertará»?
- A verdade de Deus e de Cristo, não a verdade de Still Creck. Estou a pensar que tudo isso lhe vai trazer sarilhos. Aaron tirou a caixa de ferramentas do carrinho de mão que lhe servia de bancada. - Agora, vou-me embora. A casa de banho fica para amanhã. Muita coisa ainda há a fazer lá em casa.
A boca de Elizabeth abriu-se num sorriso. Na sua opinião era uma ternura o modo como ele traduzia o que pensava do alemão para o inglês, pois nem sempre a ordem das palavras era a correcta. Fazia-o parecer ingénuo. Mas era um homem que perdera a família, recordou Elizabeth, pensando nas lápides à beira do regato. Não sabia ao certo se, depois de experiências como essa, ainda restaria alguma ingenuidade a alguém.
-Na segunda-feira, monto-lhe as fechaduras nas portas da casa - afirmou ele, encaminhando-se para a carroça. Elizabeth acompanhou-o, com os dedos enfiados nos bolsos das calças.
- Obrigada. Vou passar a dormir melhor.
Ele deitou-lhe um dos seus olhares estranhos e acondicionou as ferramentas na carroça.
- As fechaduras não servirão de nada se você andar por aí a arranjar sarilhos.
- Não me esquecerei disso.
Ele fungou, com um misto de incredulidade e de repugnância. Elizabeth calculou que ele não soubesse exactamente o que fazer de uma pessoa tão voluntariosa como ela. As mulheres amish deviam ser muito mais subtis na maneira como levavam a água ao seu moinho.
Aaron tartamudeou qualquer coisa em alemão, abanando a cabeça, e pousou o pé no degrau da carroça. Num impulso. Elizabeth obrigou-o a parar, agarrando-lhe no braço. Ele olhou para ela, estupefacto.
- Aaron - disse ela, sentindo-se desajeitada, sem saber o que os hábitos dele permitiam. - Obrigada por se preocupar comigo. É uma ternura, realmente. - Pôs-se em bicos de pés e deu-lhe um beijo à pressa na face, por cima da barba. - É um bom amigo.
Afastou-se dele, encolhendo-se um pouco e enfiando de novo os dedos nos bolsos. Por instantes, ele ficou a olhar para ela, mas sem que o seu rosto denunciasse o que estava a sentir. Em seguida, virou-se sem uma palavra e subiu para a carroça. Ela viu-o afastar-se, ouviu os sons da partida - o ruído dos cascos, o chiar dos arreios - e pensou que eles se misturavam com os sons naturais dos pássaros e da brisa que agitava as árvores. Harmoniosos, tranquilos. Nada como o ruído ensurdecedor da 4x4 de Buddy Broan, quando ele chegava da cidade, a levantar nuvens de poeira que se elevavam no ar e rolavam atrás dele, empurradas para leste pelo vento.
Talvez fosse agradável ser amish, pensou Elizabeth. ExCepto aquilo de não ter água canalizada em casa. Era um saCrifício que não estava disposta a fazer por ninguém. Deu meia volta e caminhou ao longo da parede lateral do celeiro, em direcção à floresta, perguntando a si própria quais seriam as vantagens para ela se Aaron fosse inglês. Gostava de conversar com ele. Ao contrário da maioria dos homens que conhecia, ele escutava-a, ou pelo menos era o que parecia. É claro que talvez não concordasse com certas coisas que ela dizia. Estava quase sempre a olhá-la de lado, como se não soubesse ao certo se ela lhe daria uma dentada, se tivesse oportunidade disso.
Não, seriam um desastre juntos, pensou ela, inclinando-se para apanhar um dente-de-leão. o facto de ele ser uma espécie de amigo talvez já fosse um milagre. Não sentia qualquer atracção por ele, mesmo que ele se parecesse com Nick Nolte. Elizabeth abanou a cabeça e continuou a andar pela orla da floresta. Era Dane que a atraía, um sentimento forte e contra a vontade dela.
Que sentido fazia que se desse ares de mulher emancipada? Nenhum. Era obrigada a concluir que as suas hormonas eram irremediavelmente dependentes. Ainda bem que tinha a inteligência de nem sempre lhes dar rédea solta.
Parou e respirou fundo. Naquele sítio, junto da floresta, o ar era puro e saudável. Elizabeth sentia o aroma da terra húmida e das árvores e o perfume suave das flores silvestres e lembrou-se de que crescera na região ocidental do Texas, onde o cheiro especioso da salva e a poeira se sobrePunham a tudo o resto.
As pessoas associavam certos odores à sua terra natal, mas Elizabeth sentia que nunca tivera uma, pelo menos no verdadeiro sentido do termo. Fora criada no Texas, mas a «terra» era onde J. C. pendurava o chapéu. Não tivera qualquer sensação de segurança ou de conforto. Fora atrás dele, e de vez em quando perguntava a si própria se ele sentiria a sua falta no caso de ela se ausentar. Pensara em fugir mais do que uma vez, mas nunca o fizera porque receava verdadeiramente que ele não se desse ao trabalho de ir atrás dela.
Enquanto fora casada com Bobby Lee, sentira-se isolada, não em termos físicos, mas por ser jovem e mãe e por vergonha das inúmeras infidelidades do marido. A casa que partilharam nunca fora verdadeiramente um lar, quer pelo mau estado em que se encontrava, quer porque Bobby Lee não tinha quaisquer escrúpulos em levar para lá as namoradas. Mais parecia um pesadelo do que um lar, uma imagem semelhante ao que sempre desejara mas irremediavelmente distorcida. Lúgubre e vazia quando Bobby ia para um rodeo, deixando-a sozinha com o bebé e sem amigos verdadeiros. Cheia de desespero e de sonhos desfeitos quando ele lá estava, recordando-lhe com olhares e com comentários maliciosos que não gostava que ela o amarrasse.
Durante muito tempo depois de o casamento ter acabado, ela abandonara a ideia de ter um lar a sério. Concentrara toda a sua energia na escola e no trabalho, prometendo a si própria que faria qualquer coisa melhor por si própria e por Trace. Durante algum tempo, San Antonio proporcionara-lhes de novo aquele sonho vivo e lindo - uma promessa de paz, amor e um lar - mas também esse lhe fora roubado, e ela e Trace tinham partido.
Em Atlanta, Elizabeth nunca se sentira à vontade no meio dos conhecimentos arrogantes de Brock e este não lhe permitira fazer as suas próprias amizades. Mantivera-a fechada num casulo de opulência, isolada pelo prestígio e pela notoriedade, sem se importar com o facto de a aristocracia de Atlanta nunca a ter aceite como um dos seus. A Gata Borralheira com os seus sapatos de cristal também se sentira enclausurada em paredes de vidro, barreiras invisíveis. Nunca fora totalmente aceite, mas era demasiado rica para ser rejeitada... Até ao divórcio.
Elizabeth acalentara a esperança de que as coisas fôssem diferentes ali, de que ela e Trace conseguissem instalar-se e arranjar um lar para si próprios. A desilusão trespassou-a quando olhou para o quintal, repleto de dentes-de-leão, e para a pobre e velha casa de campo que devia ser o lar de ambos; no entanto, eles não eram bem-vindos nem desejados em Still Creek. Que pena, pensou ela, porque era demasiado teimosa e estava cansada de mais para se mudar. Havia de fazer daquela casa o seu lar, nem que se matasse.
Jolynn estava sentada à mesa minúscula da sua cozinha branca e acanhada, ostensivamente a rever os apontamentos sobre o caso Jarvis. Mas o seu pensamento estava no jantar que partilhara com Bret Yeager. Chocara com ele na cave da igreja depois do funeral. o agente estava de pé a um canto, inclinado sobre uma tarte de creme de coco, e a ponta da sua gravata lambia o creme como uma grande língua sintética enquanto ele examinava a multidão. Sem qualquer desejo de se misturar com os íntimos de Jarvis, Jo entabulara uma conversa com Yeager acerca de um artigo que lera no jornal,, os requisitos dos casos forenses. A única coisa de que se lembrava a seguir era de estarem os dois sentados num compartimento do Coffee Cup, um em frente do outro, a comer batatas fritas e a conversar.
Ele era um tipo simpático. Jo gostava do seu rosto quadrado e honesto, das suas camisas amarrotadas e do seu cão pateta. Yeager mostrou-se admirado não só por ela não se importar de falar de coisas como impressões digitais ocultas e identificações através do ADN como também por perceber qualquer coisa do assunto. Ela impressionara-o. A ideia deixou-a tonta de orgulho e de prazer.
A porta das traseiras abriu-se e Jo levantou a cabeça, como se esperasse vê-lo aparecer ali. Mas o sorriso morreu-lhe na face quando Rich entrou.
-Esta noite, não - gemeu ela, enfiando os dedos no cabelo espesso, enquanto as boas intenções no seu íntimo se esvaziavam como um balão rebentado. - Estou com dores de cabeça.
Ele não comentou o seu sarcasmo, nem puxou uma cadeira. Encostou-se à bancada e cruzou os braços. «Tirando o máximo partido da estatura», pensou Jo. Havia poucas coisas que Rich gostasse mais do que olhar de cima para as outras pessoas. Ainda trazia o fato do funeral, mas despira o casaco e desatara o nó da gravata. o engomado desaparecera da camisa branca, levando consigo grande parte da sua imagem de «jovem congressista». Ficara pendurado nos seus ombros morenos, dando quase o aspecto de um gorila do mundo do crime organizado. Rich arregaçara as mangas até aos cotovelos, mostrando os braços bronzeados de fins-de-semana passados a subir e a descer o Mississipi no seu barco a motor e profusamente semeados de pêlos ruivos.
- Julgava que estavas a consolar a tua pobre mulherzinha - disse Jo secamente.
Rich tirou um maço de Pall Mall da algibeira do casaco e pegou num cigarro.
- Ela está ocupada a consolar a pobre mãe. Eu já tive a minha dose de consolo por um dia. - Acendeu o cigarro, envolvendo a cabeça num halo de fumo, e atirou o fósforo para o lava-louça. - Céus, nem posso acreditar no espectáculo que a Helen deu no funeral.
Jolynn abanou a cabeça e empurrou o prato vazio em que estivera a comer gelado na direcção dele para fazer de cinzeiro.
-Tu és a imagem da compaixão, Rich. Darás um bom defensor do povo.
- Isto é tudo uma treta - observou ele num tom irónico. - Ninguém lamenta que o Jarvis tenha morrido.
- Eu não faria esse comentário na presença de certas pessoas, se estivesse no teu lugar - salientou Jo, dando mais um empurrão ao prato do gelado. - Como sabes, tecnicamente tens de ser considerado um suspeito.
Rich riu-se e engasgou-se com uma baforada de funo.
- Por quem? - perguntou ele com uma voz rouca. Tirou uma partícula de tabaco da língua e deitou-a fora. Pela Miz Stuart, a Rainha das Cabras do Sul?
- Entre outros.
Yeager fizera-lhe uma ou duas perguntas sobre o velho Rich. Jo não sabia ao certo se o interesse dele era genuíno ou se se tratava apenas de um truque de polícia para meter conversa. Apetecia-lhe desconfiar que se tratara da segunda hipótese, não por Rich mas por si própria.
-Como quem? Tu?
-Não. Estavas demasiado bem instalado para lhe limpares o sarampo - respondeu Jolynn com rispidez. Além disso, não creio que tivesses tomates para matar ninguém.
Os olhos de Rich semicerraram-se e a sua expressão endureceu. Apontou para ela com o filtro do cigarro, deixando cair uma chuva de cinza no oleado sujo. - Andas muito com essa tua patroa, sabes? Tens a língua mais afiada do que é costume.
-Pois bem, se me consideras assim tão insuportável, sabes onde é a porta - disparou ela. - Não fui eu que te convidei a vir cá. E serve-te do maldito prato, ouviste? Estás a espalhar cinza por todo o lado. Céus, és mesmo porco! lamentou-se ela, preparando-se para agarrar na beira do prato.
Deitando-lhe um olhar magoado, Rich pegou nele antes de ela lho atirar.
-Meu Deus, como estás fria esta noite. o que tens? Estás com a bandeira vermelha?
Rich afastou o prato e sacudiu o cigarro com grande espalhafato, ao mesmo tempo que se debruçava sobre a mesa para bisbilhotar os apontamentos dela.
Jolymn recolheu as folhas de papel com o braço e debruÇou-se sobre elas como uma estudante que protegesse a folha de exame do copianço dos colegas. A repugnância crisPou-lhe a face.
- Sabes? Não sei quando é que te odeio mais, se quando mostras a tua verdadeira face e és detestável ou quando fazes de político obsequioso e lambe-botas. Não estou «com a bandeira vermelha como afirmaste com tanta falta de tacto. Talvez esteja cansada, Rich. Como nunca tiveste um dia de trabalho inteiro ou honesto na tua vida, tenho a certeza de que o conceito te é estranho, mas eu tenho trabalhado
muito.
- Porquê? - perguntou ele com um sorriso escarninho.
- Pela verdade. Por um ideal. - Jolynn cerrou os dentes e cruzou as mãos no cimo da cabeça como que para impedir que o cérebro explodisse. - Meu Deus, é como se eu estivesse a falar francês.
Rich aproximou-se da cadeira e passou um dedo pela parte lateral do pescoço de Jo, de olhos pregados nos dela. Um sorriso arrogante levantou-lhe um canto do bigode.
- Podes falar francês comigo se quiseres - disse ele em voz baixa, com um desejo crescente no olhar. - Na cama.
A mão dele desceu e massajou-lhe o ombro. Jo afastou-o. Há três dias, iria com ele para a cama sem uma palavra. Nessa noite, a ideia de permitir que ele lhe tocasse deixava-a furiosa. Talvez isso tivesse alguma coisa a ver com o facto de o ter visto a fazer de marido cumpridor durante a tarde inteira. Ou talvez Elizabeth a tivesse impressionado com um dos seus discursos acerca da independência. Ou talvez lhe tivesse ocorrido que poderia passar uns momentos agradáveis com um homem sem deixar que ele a usasse. Fosse qual fosse o motivo, não estava disposta a aturar as artimanhas de Rich. Afastou a cadeira da mesa e foi para a sala. Pôs um disco e, num abrir e fechar de olhos, os blues começaram a sair dos altifalantes como fumo.
A sala não estava melhor do que qualquer outra divisão da pequena casa. Acanhada e demasiado cheia, precisava de pintura e de mais imaginação do que aquela que Jolynn estava pronta a dedicar à decoração. Um único candeeiro projectava uma luz fraca e pardacenta, como se a noite tentasse entrar por um buraco nos cortinados. o sofá e as poltronas pertenciam ao mesmo conjunto de tweed castanho que ela partilhara com Rich noutros tempos, mas os estofos estavam aos altos e baixos e os coxins rebentados. As estantes cil, que se encontravam o televisor, a aparelhagem estereofónica e pilhas de livros ao acaso eram de madeira vulgar que ela nunca se dera ao trabalho de limpar. o único sinal de vida e de cor na sala era uma gravura em seda de um artista do Novo México, um cacto em flor no deserto. Encontrava-se pendurada por cima de uma mesa em que se via uma profusão de plantas envasadas mortas e moribundas.
Rich instalou-se na soleira da porta entre as duas
divisões e ficou a observá-la, cabisbaixa, a fingir que lia os apontamentos. Jo sentia o olhar dele pregado nela, frio e especulativo
- Então não acreditas que foi o Fox que matou o Jarrold? - perguntou ele com um ar despreocupado.
Ela lançou-lhe um olhar de desconfiança. -Eu não disse que não acreditava.
A tua patroa tem uma ideia estapafúrdia qualquer acerca de uma agenda do Jarrold.
Jo encolheu os ombros.
Se o Jarrold apontava lá alguns nomes, é lógico que podesse desagradar a alguém. Talvez ele andasse a fazer chantagem com alguma pessoa. Com certeza que ele controlava as que lhe deviam dinheiro. o que há de tão fantástico na ideia de que foi uma delas que o liquidou?
- É estúpido, mais nada - ripostou ele com um ar trocista. - Encontraste essa célebre agenda?
Ela respondeu-lhe encolhendo de novo os ombros.
Ele rolou os olhos nas órbitas e rejeitou a teoria dela. -Foi o Fox que o matou. Ele é um monte de merda.
Começou a passear na sala, de um lado para o outro com as mãos nas algibeiras das calças cor de antracide. Parecia descontraído, mas Jo apercebeu-se do seu olhar de ave de rapina. Afastou-se quando ele ergueu a mão para lhe tocar no cabelo.
- Estou a falar a sério, Rich. Não estou com disposição. -Ora Jolynn - disse ele num tom bajulador, obrigando-a a recuar até ao sofá. - Tu estás sempre com disposição. -Esta noite, não.
Jolynn começou a contornar uma mesa baixa que estava repleta de revistas e de pó. Ele bloqueou-lhe o caminho, agarrou-a pelo pulso e atraiu-a para si. Ela bateu com o tornozelo na mesa e deitou ao chão as Newsweek de um mês. Ficou sem fôlego e olhou para ele, sem saber ao certo se devia deixar-se dominar pela raiva ou pelo medo. Rich fitou-a com o desejo no olhar e uma nota de crueldade que lhe encaracolou os cantos da boca.
- Ambos sabemos que eu posso obrigar-te a querer, Jolynn - proferiu ele em voz baixa, num tom de ameaça.
Ela ia a negar, mas as palavras não lhe saíam da boca porque não correspondiam à verdade. Era óbvio que ele podia. Já o provara. Vezes sem conta. E ela deixara. Permitira que ele a usasse. Permitira que ele a rebaixasse. Essa era a verdade. Sentiu um ardor no estômago, azedo e ácido. A questão era antiga, mas por qualquer motivo afectou-a como se fosse algo de novo, ali, na sua sala de estar miserável, com a música de Colin James em fundo a fazer a pergunta Whyd You Lie?». Atingiu-a como se se tratasse de uma revelação, uma terrível manifestação divina que tivesse arrasado a auto-estima que lhe restava. o que estava ela a fazer? A fantasiar acerca de um tipo simpático como Bret Yeager quando não passava da prostituta de Rich Carmon?
Toda a combatividade a abandonou, afastada por uma onda de desespero e de incapacidade. Ficou ali como uma morta-viva, entorpecida, a olhar para a gravata de Rich, quando este baixou a cabeça e a beijou no pescoço. Jolynn estremeceu. A reacção foi de vergonha, não de desejo, mas aparentemente Rich não se importou.
- Tu sempre quiseste, Jolynn - afirmou ele em surdina, libertando a mão para lhe abrir os três primeiros botões da blusa. Afastou a caixa do soutien e tomou-lhe o seio na mão, massajando-o, apertando-o, esfregando-lhe o polegar no mamilo. - Tu desejas-me sempre. E sempre me desejarás.
Os olhos de Jolynn marejaram-se de lágrimas, que lhe correram pela face. Ele tinha razão. Ela sempre o desejara. Sempre se mostrara disponível. Nunca lhe dera motivos para pensar que a situação se alteraria. Ela confiara a Elizabeth que gostava de fazer sexo com ele. E convencera-se de que isso era um hábito. Talvez fosse mais uma questão de dependência. Ou de desespero. Fosse como fosse, era patético. Ela era patética.
- Anda daí, Jo - segredou ele, com uma voz sedutora e envolvente como a música que a suscitava. - Tu queres. Ele parecia não se aperceber de que ela não estava a gostar da situação. Mas nunca se preocupara com nada, a não ser consigo próprio - o seu prazer, a sua satisfação, o seu conforto. Ela era apenas um meio conveniente de ele atingir esses fins. o seu brinquedo particular para usar e deitar fora quando já não o quisesse.
- Anda daí - insistiu ele. - Vamos para o teu quarto. Eu não gosto de ir para o chão, porque tu nunca o aspiras.
- Não - disse ela em voz baixa. Ou porque ele não a ouviu ou porque optou por ignorá-la, Rich pegou-lhe de novo no pulso e começou a dirigir-se para o corredor. Jo retirou a mão e procurou uma réstia de coragem. - Eu já disse,, que não.
Os olhos de Rich semicerraram-se e deitaram chispas de raiva. o seu lábio superior curvou-se num esgar.
- Não sejas má, Jolynn - rosnou ele. - Estou com um tesão.
- Se fores relativamente flexível, posso sugerir-te o que
deves fazer com ele - disse ela. - Vai-te foder, Rich. Esse só pode ser o derradeiro prazer para ti.
Rich ficou rubro de cólera e dilatou as narinas, avançando para ela com um ar agressivo. Estendeu a mão e agarrou-lhe o pulso com uma força capaz de lhe esmagar os ossos. Jo mordeu o lábio para não chorar. o facto de não saber se
ele a ia obrigar ou não assustou-a. Conhecia-o há váriosanos e de repente não teve a certeza do que ele seria capaz de fazer se ela o irritasse.
- Queres que o título de «violador» figure à frente do `teu nome durante a campanha? - perguntou ela, afastando a dor que tinha no pulso com o sarcasmo.
o olhar que ele lhe lançou era de um desprezo total. -Quem acreditaria em ti? - perguntou ele com umsorriso trocista, avançando para ela e torcendo-lhe lentamente o braço.
Jo engoliu um gemido e deitou-lhe um olhar furioso através das lágrimas.
-E o que interessa que alguém acreditasse ou não em mim. Estamos no Minnesota. o mais pequeno laivo de escândalo seria o fim da tua carreira política.
Ele soltou uma praga e afastou-a. Ela chocou com a mesa baixa e deitou ao chão mais uma pilha de revistas. EncostOU o pulso magoado ao peito, massajou-o distraidamente e observou Rich, que afastava a sua frustração.
-Tu não me farias uma coisa dessas.
Ele partia desse princípio. o seu olhar era frio e duro quando a fitou.
Jolynn soltou uma gargalhada, incrédula.
- Porque não?
-Há demasiadas coisas entre nós.
- Não me faças rir. A única coisa que houve entre nós nos últimos cinco anos foi o teu pénis.
-Jesus, Jolynn! - Rich resolveu optar também pela incredulidade. o amante ferido. o amigo traído. - Estamos a falar da minha carreira! Estamos a falar da minha vida! Ela ergueu o sobrolho, admirada.
- E o que sou eu? Um objecto inanimado? Eu também tenho uma vida, Rich.
Ele abanou a cabeça e riu-se para si próprio.
- Tu não és ninguém, Jolynn - disse ele com crueldade, vexando-a com o olhar e com as palavras. - Tu, a cabra da tua patroa e o teu jornaleco estúpido e miserável não são nada. Vocês não são nada. - Bateu com o punho no peito. - Eu vou ser alguém, Jolynn. Não sonhes em meter-te no meu caminho.
Jo viu-o sair, disparado, pelas traseiras, e encolheu-se ao ouvir o vidro da porta a chocalhar, o pulso dorido e a mágoa que sentia fizeram-lhe vir as lágrimas aos olhos. Um misto de emoções resultantes do confronto provocou-lhe um nó no estômago, e Jo chorou um pouco, sem saber o que havia de fazer. Sentia-se só e instável, como se o chão lhe faltasse debaixo dos pés e a realidade se alterasse à sua volta.
Já não era a mulher de Rich Carmon. Já não era a amante de Rich Carmon. Nem queria pensar que alguma vez se definira dessa maneira, mas a verdade é que o fizera. Agora estava ali na sua sala de estar, a olhar para o que restava de si própria, agora que afastara a camada de sujidade. Olhou para a sua imagem reflectida no vidro da gravura do cacto e mirou-se. Estava de olhos esbugalhados e insegura. Com peso a mais e a precisar de um novo penteado. Sentia-se tosca e fraca... E limpa. Limpa, pensou, maravilhada. Fresca. Pronta para recomeçar. Esboçou um sorriso e engoliu uma lágrima por si própria, pela felicidade, por um novo começo.
A campainha da porta interrompeu o seu transe. Jolynn foi ver quem era, tentando endireitar a roupa e enxugar as lágrimas com a mão que não lhe doia. Devia estar com um aspecto horrível, mas não se ralava com isso. Devia ser o paquete do jornal que vinha buscar material.
Yeager encontrava-se à porta, com as calças amarrotadas, uma camisa roxa já puída e uma madeixa de cabelo louro espetada na testa, como uma antena. Yeager e o cão, um ao lado do outro. o cão baixou a cabeça e deitou-lhe um olhar estranho que confirmou os piores receios de Jolynn quanto à sua própria aparência. o sorriso indolente de Yeager denunciou a sua hesitação.
- Venho num mau momento? - perguntou ele em voz baixa, com a preocupação a brilhar nos seus olhos escuros. Jolynn abanou a cabeça.
- Não - respondeu ela. Um sorriso secreto desabrochou na sua boca de botão de rosa e no seu coração. O mau momento já passou.
-Eu trouxe-lhe aquele livro - disse Yeager, exibindo um livro grosso e encadernado. - A Doutrina do Derramamento de Sangue de Arnaut.
Jolynn aceitou a oferta com um sorriso nebuloso. Passou a mão pela capa.
-Que amável.
E trouxe biscoitos - acrescentou ele, sorrindo de novo e tirando uma embalagem enorme de Ziploe de trás das costas. - São de chocolate com nozes. São os meus preferidos.
- Entre - convidou ela, afastando-se da porta e agarrando no livro. - Creio que ainda tenho dois decilitros e meio de leite que não está estragado. - Deu meia volta e encaminhou-se para a cozinha, apontando para a sala de estar. - Desculpe a desarrumação. Nestes dois ou três últiMos dias não me apeteceu fazer limpezas.
-Por mim, não há problema - disse ele com um ar inocente.
Entrou, seguido pelo seu companheiro de quatro patas, tropeçando nas revistas e na profusão de plantas moribundas. Jolynn lançou-lhe um sorriso por cima do ombro. O senhor é cá dos meus, agente Yeager.
o sorriso de Yeager acentuou-se.
- Sim, minha senhora.
A cinco quarteirões dali, estalava uma desordem no parque de estacionamento do Red Rooster. o prédio em que estava instalado o bar e o salão de jogos, e muito bem, parecia um aviário com um problema de tiróide. Em tempos, fora utilizado como armazém dos bombeiros voluntários, depois como garagem para o autocarro da escola e em seguida como sala de baile. Ao longo dos anos, sofrera alterações e melhoramentos, mas ficara sempre coxo. Houvera poupança nos acabamentos e na qualidade dos materiais e fora dado livre curso ao amadorismo. À primeira vista, parecia que o prédio iria pelos ares com a primeira rajada de vento, mas a verdade era que conseguira manter-se de pé há quase quarenta anos.
Por fim, a Assembleia Municipal envergonhara Annie Myers, que se sentira obrigado a pintá-lo - daquele tom de vermelho que era vulgar nos celeiros - e Mrs. Myers contribuíra com um toque de conforto local plantando gerânios em barris de uísque junto das portas. A delicadeza dos turistas levava-os a considerar que o resultado era «original». Amie não se importava muito com isso. Tinha uma carência de ferro e de orgulho cívico que redundava numa espécie de apatia generalizada. Na sua opinião, o que os turistas pensavam não tinha importância; a sua clientela era mais de origem local.
o que havia de pior na gente da terra reunia-se na obscuridade do parque de estacionamento, junto da porta lateral. o fumo e o barulho atravessavam o tabique: o som dos tacos de bilhar, a vozearia, os gemidos, as gargalhadas roufenhas, os copos a tilintar. A música dajukebox sobrepunha-se a tudo - Garth Brooks gabava-se de ter amigos em lugares subalternos. Carney Fox acendeu um cigarro e encostou-Se ao seu Impala, com os olhos escuros a brilhar quando encarou Trace Stuart.
- Com que então rejeitaram-te, hem?
Trace riu-se, não com humor mas com um tom de adolescente magoado.
-Merda! Rejeitaram-me? Ele quase que me pôs dali para fora com as próprias mãos.
Sentia-se furioso só de pensar nisso. o velho Shafer avançara para ele, a mostrar os dentes, a gritar e a berrar que não admitiria Trace por nada deste mundo, que os Stuart não passavam de lixo e de desordeiros e que ninguém os queria em Still Creek. Bem, Trace tinha notícias para ele. Também não queria estar em Still Creek. Preferia viver na Sibéria do que naquela cidade norueguesa fedorenta e tacanha. A humilhação queimou-lhe as entranhas quando Carney se riu. A raiva, com a qual ele nunca sabia o que havia de fazer, aumentou, pronta a explodir.
Trace detestava aquela cidade. Detestava-a, detestava-a, detestava-a.
- E o que tencionas fazer? - perguntou Carney, com malícia. Aspirou fortemente o cigarro. o clarão avermelhado da ponta projectou uma luz sinistra no seu rosto anguloso e ossudo.
Trace fez um ar carrancudo.
-Raios, o que posso eu fazer? Não posso obrigá-lo a dar-me trabalho.
Carney aspirou a última fumaça, pegando no filtro com os dedos imundos. Atirou a ponta de cigarro para os gerânios de Carol Myers; e abriu os braços escanzelados de par em par.
- Pois não, mas podes obrigá-lo a arrepender-se por não to ter dado. - Os seus dentes tortos brilharam na penumbra e a agitação assobiou no ar à sua volta. - Não percas a cabeça, Trace, meu velho. Tem calma.
Elizabeth acordou sobressaltada, como se o seu corpo se tivesse apercebido de qualquer coisa que a mente ainda não apreendera. Adormecera no sofá bege e granuloso, embrulhada nas calças de ganga mais velhas que tinha e numa camisa de seda azul-celeste de Gianim Versace, mais uma coisa que ela roubara a Brock. o candeeiro da mesa de apoio estava ligado no mínimo, e projectava um halo de luz cor de âmbar na casa às escuras. As fichas de oito por treze encontravam-se espalhadas na carpete castanha e esfarrapada como guloseimas, com apontamentos acerca do crime - motivos, suspeitos, palpites.
Elizabeth passara o serão ali sentada, a olhar para os apontamentos até os seus olhos se recusarem a concentrar-se fosse no que fosse, e o seu cérebro há muito que desistira de tentar desfazer os nós. Ela não era nenhum detective. Com os diabos, nem sequer era jornalista. Como se convencera de que iria resolver aquele imbróglio? Como havia de separar os factos da ficção, os mexericos das motivações do crime?
Ignorando estas perguntas, deixou-se ficar sentada, imóvel, à escuta, até se cansar do silêncio. A cassete de Bonnic Raitt ao som da qual ela adormecera chegara ao fim e o gra vador desligara-se sozinho. Não se ouvia nada, nem dentro de casa nem lá fora, e só uma brisa fresca entrava pelas janelas abertas.
Durante toda a noite, esperara, aterrada, que o telefone tocasse, mas o aparelho pendurado na parede da cozinha manteve um silêncio trocista. Segundo o relógio do vídeo, era meia-noite, meia-noite, meia-noite. o despertador que estava em cima do televisor marcava onze e vinte e cinco. Elizabeth julgou ter sentido Trace a entrar, mas não se ouvia nada na cozinha.
- Paranóica - disse ela em voz baixa, esfregando a cara com as mãos.
Levantou-se e dirigiu-se à cozinha, tentando libertar-se da sonolência. A Lua em forma de cunha projectava umaclaridade cor de prata no campo e no interior da cozinha.
Uma bela noite. Calma. Elizabeth encheu um copo de leite para combater a ansiedade e o uísque que tinha no estômago, cheirou-o para ver se ele não se estragara e aproximou-se da bancada para espreitar pela janela.
Lá fora estava tudo em silêncio. Não havia sinais de Trace. Não havia luz no barracão. Não se via a silhueta do jovem na estrada. A ideia de que a distância que os separava não era só feita de quilómetros fê-la sofrer. Queria estar levantada quando o filho entrasse, só para se sentar junto dele, - a conversar, e não para discutir, que era a única coisa que ambos tinham feito nos últimos tempos. Discutir não lhe fazia bem. Nesse momento, talvez ele estivesse algures com Carney Fox, a falar-lhe da cabra da mãe que tinha.
Mas também não lhe fazia bem preocupar-se com isso.,, A preocupação acabaria por consumi-la, o que só agravaria o problema. o que lhe apetecia era meter-se no carro e iratrás dele, encontrá-lo e trazê-lo para casa, mas antevia o tipo de discussão que tal atitude desencadearia. A necessidade de o ter ali, salvo e livre da influência de pessoas como Carney Fox, chocava fortemente com a lógica de o deixar à solta.
Ele tinha dezasseis anos. Ela tinha apenas mais um ano quando engravidara. Ninguém lhe podia dizer que ela não sabia tudo o que precisava de saber acerca do mundo. A situação seria diferente se ela tivesse mãe, mas a existência de J- C. nada adiantava. A única vez que ele se interessara por ela fora na época em que Elizabeth ganhava dinheiro no rodeo, na corrida dos barris, ou quando estava bêbedo e a confundia com a defunta e chorada Victoria. Elizabeth tentara encontrar um certo conforto no facto de saber que era melhor como mãe do que J. C. fora como pai, mas também as,, lesmas eram melhores pais do que J. C. Sheldon.
Era difícil, muito difícil uma mulher criar um filho sozinha, pensou ela, beberricando o leite. Do que Trace precisava naquela fase da vida era de um modelo de comportamento, de um homem ao qual se sentisse ligado e tivesse respeito. Elizabeth lembrou-se de Dane e riu-se amargamente da capacidade da sua mente para desencantar maneiras de justificar uma relação com ele.
Do que ela precisava era de qualquer coisa que lhe ocupasse o espírito até Trace aparecer. Qualquer coisa que a mantivesse calma e distraída. Depois, quando Trace chegasse, teriam a tal conversa franca e ela faria o possível para o orientar no caminho certo sem o empurrar para uma revolta ainda pior.
Precisava de dar uma vista de olhos ao inventário dos estragos provocados nas instalações do jornal que teria de entregar na companhia de seguros, mas esquecera-se dele no Cadillac, que se encontrava no barracão, e não lhe agradava a ideia de sair à noite. Por sinal, estremeceu só de pensar nisso.
Cobarde. A palavra espicaçou-a, desafiou-a. Depois de Aaron montar as fechaduras nas portas, ela seria uma prisioneira na sua própria casa, pensou. Fez um esgar de desagrado ao pensar na sua falta de coragem. Não iria ficar ali sentada todas as noites, petrificada, com medo de todos os sons, com medo de ouvir tocar o telefone. Que vida era aquela? Qual era a jovem texana que se prezava que vivia assim?
Contornando os cavaletes e os montes de sapatos que se tinham mudado para junto do frigorífico, Elizabeth dirigiu-se para a porta das traseiras. Também ali, naquele ponto de vantagem, a noite estava calma. Não se ouviam sons suspeitos, não se viam vultos escuros a espreitar na sombra das velhas construções. Dane prometera-lhe que enviaria um carro mais ou menos de hora a hora durante a noite só para dar uma olhadela. Este pensamento deu-lhe coragem para abrir a porta das traseiras.
Só tinha de atravessar o quintal e entrar no barracão que ficava ao lado do celeiro, procurar os papéis no meio da confusão que reinava no carro e voltar para casa. Não era muito. Nada complicado. Nada que ela hesitasse em fazer à luz do dia. A noite parecia sempre mais assustadora, mas a verdade é que Jarvis fora assassinado em pleno dia. Talvez se sentisse totalmente seguro... Até que a lâmina lhe cortara o pescoço.
Afastando esta imagem antes que ela a perturbasse, Elizabeth desceu a escada e encaminhou-se para o barracão, - descalça, procurando o caminho no quintal repleto de ervas e de espinhos, agarrada ao copo de leite.
Obarracão era acanhado e decrépito. Não era muito mais largo do que o Cadillac, com chão de terra batida, sem janelas e com montes de sucata encostada às paredes, coisas deixadas pelos antigos locatários - velhos caixotes de óleo para motores, latas ferrugentas cheias de pregos ainda mais ferrugentos, partes amputadas de automóveis, pneus carecas. A única claridade vinha de uma lâmpada de setenta e cinco
watts, pendurada nas vigas do tecto, que projectava uma luz, semelhante à de uma vela sobre toda aquela confusão, mas era melhor do que nada.
Elizabeth caminhou ao longo da parede, à procura do interruptor, com um nó na garganta, quando qualquer coisa escorregou no chão, no meio dos pneus recauchutados. Acendeu a luz e virou-se para o Cadillac.
Havia papéis espalhados por toda a parte. Ela atirara para o carro muitas das coisas que se encontravam no escritório do Clarion, e tencionava fazer uma escolha no domingo e aproveitar a oportunidade para pôr em ordem alguns dossiers. Alguém andara já a fazer uma escolha, ou a procurar alguma coisa. A porta do lado do condutor encontrava-se entreaberta, e os papéis saíam lá de dentro num rasto branco que chegava ao chão de terra batida do barracão. Elizabeth ficou sem fôlego. Sentiu os pêlos da nuca a iriÇar-se. De súbito, a casa pareceu-lhe muito, muito longe, e as lágrimas turvaram-lhe a vista quando olhou para a porta aberta. De que lhe serviria estar lá dentro? Não havia fechaduras. Não havia vizinhos ali perto que ouvissem os seus gritos.
Mas havia uma grande pistola na sua carteira, que estava em cima da mesa da cozinha.
Ia a dirigir-se para a porta, como se se deslocasse em câmara lenta, quando as portas do Inferno se abriram atrás dela. o seu cérebro captou a acção em fragmentos, como que através dos clarões ofuscantes de um estroboscópio. Um vulto vestido de negro. Só se via os olhos e a boca. Um olhar desvairado. A boca aberta. Surgiu do canto escuro junto da capota do Cadillac e aproximou-se do ombro dela como um espectro, com um braço no ar.
Elizabeth deu um grito quando o vulto avançou para ela, baixando o braço. Inclinou-se para a frente, a gritar, no momento em que um objecto duro a atingiu no ombro, num abrir e fechar de olhos. Sentiu uma dor no braço esquerdo, que lhe chegou à ponta dos dedos. o copo de leite caiu-lhe da mão e estilhaçou-se no chão. Com as estrelas a turvarem-lhe a visão, Elizabeth tropeçou, vacilou e caiu de joelhos no chão duro e incerto, coberto de vidros. Sentiu um vidro a cortar-lhe o joelho direito, mas a dor desapareceu imediatamente, suplantada pela adrenalina. As pernas tornaram-se dormentes e o mundo parecia inclinar-se e andar à roda debaixo dela, no limiar da inconsciência. Mas, de um recanto da sua mente veio um grito insistente e bem audível: Mexe-te, se não morres! Mexe-te! Mexe-te! Mexe-te!
Elizabeth procurou avançar, frenética, desajeitada, tacteando a parte lateral do carro à procura de um puxador que lhe servisse de alavanca para ela se levantar. Ouviu uma praga abafada atrás de si, no momento em que o assaltante se debatia com a porta do carro, que se abrira e o encurralara junto da parede do exíguo barracão. Ouviu-se uma segunda pancada no Cadillac. A porta fechou-se quando Elizabeth conseguiu levantar-se e continuar a andar.
Ao frio provocado pelo medo juntava-se o calor do pânico. Era como se ela vivesse um pesadelo em que corria, corria, mas nunca chegava a parte nenhuma e, quanto mais se esforçava, mais devagar avançava. o tempo adquiria uma elasticidade estranha. o som ia e vinha, atravessando o ruído semelhante ao do motor de um avião a jacto provocado pelo sangue a pulsar-lhe nas veias - o silêncio, depois um som ensurdecedor, fragmentos das suas próprias palavras de pânico pronunciadas em surdina e o ronco do assaltante que se encontrava atrás dela.
Às cegas, Elizabeth agarrou-se a um monte de sucata que se encontrava à sua direita, tropeçou nele e uma avalancha de velhas garrafas de Coca-Cola espalharam-se no caminho do seu perseguidor. Ouviu-se uma série de choques e de estrondos, o ruído de garrafas de vidro a tilintarem e a partirem-se e mais um baque surdo no Cadillac, mas Elizabeth não olhou para trás e não viu o assaltante a cair. Com um ardor nos pulmões, um zumbido nos ouvidos e o coração a sufocá-la como se se lhe tivesse alojado na garganta,
Elizabeth afastou-se do carro e do barracão. Precipitou-se para o quintal iluminado pelo luar e desatou a correr, sem pensar em nada - nem nas dores, nem na morte, nem em
nada que não fosse chegar a casa e pegar na arma que a esperava lá dentro.
Os gritos atravessaram o silêncio da floresta como facas a assobiarem no ar. o grande cavalo cinzento de Dane levantou a cabeça e relinchou, juntando as pernas debaixo do corpo como se iniciasse uma dança nervosa. Dane pôs-se depé nos estribos e esporeou os flancos do animal. Este partiu a galope, embrenhando-se no caminho estreito e invadido pela vegetação da floresta, com Dane inclinado na garupa e a desviar-se dos obstáculos, enquanto o animal serpenteava, entre as árvores. Dane imaginava-se já do outro lado da floresta, junto de Elizabeth, e sentia o sangue a latejar na garganta.
Raios, devia ter destacado um agente para ficar de guarda à casa dela, mesmo que o único homem disponível nessa noite fosse Ellstrom. Ela recebera um telefonema anónimo e
o seu escritório fora saqueado. Céus, por pouco não fora testemunha de um assassínio! E ele deixara-a sozinha. Pouco importava que já fosse a caminho da sua vigília nocturna. Ele deixara-a sozinha durante várias horas. Bastavam alguns minutos para matar alguém. Alguns segundos.
E se ele chegasse atrasado?
Recusando-se a pensar nessa hipótese, Dane esporeou de novo o cavalo e foi recompensado com um novo acréscimo de velocidade que os levou a transpor um tronco caído e os aproximou da casa dos Drewes. Atravessaram a clareira e o quintal. Quando Dane voltou a sentar-se em peso e pegou nas rédeas, o cavalo começou a derrapar até se imobilizar, enfiando as pernas traseiras debaixo do corpo e deslizando na erva com as pernas dianteiras.
Dane apeou-se e desatou a correr em direcção à casa antes de o cavalo parar completamente. Doía-lhe o joelho esquerdo como se estivessem a apertá-lo com um torniquete, mas o estímulo afectava apenas um canto recôndito da sua mente. Reagindo por instinto - o instinto do homem, não o do polícia - subiu a escada das traseiras, abriu a porta de rede e entrou sem abrandar a marcha.
Se ela estivesse ferida, ou morta...
- Elizabeth! - gritou ele, entrando de rompante na cozinha.
A divisão encontrava-se às escuras. As sombras e os volumes informes dos aparelhos, uma réstia de luar e um vulto junto da mesa. Dane concentrou-se no vulto no momento em que este se mexeu e a luz da Lua incidiu no tambor prateado de uma arma.
No tempo em que jogava nos Raiders, Dane era célebre por se atirar de cabeça. Por esticar o corpo na direcção da bola, concentrado no lance e não na dor que viria a seguir. Nesse momento, executou o movimento com a mesma naturalidade. Atirou-se para a frente, concentrado na arma, de braços estendidos e os dedos prestes a fecharem-se à volta do pulso do assaltante. o impulso do seu corpo atirou ambos para o chão. Caíram em peso e escorregaram no oleado, desviando as pernas de um cavalete e derrubando uma pesada prancha de contraplacado que se partiu. A arma disparou com um ruído ensurdecedor e a bala espetou-se no tecto, provocando uma chuva de estuque que caiu sobre eles como pedras de granizo.
Cerrando os dentes ao sentir a dor nas costelas, Dane içou a parte de cima do corpo para se afastar da forma rígida que tinha debaixo dele. A arma caíra ao chão e ele atirou-a para longe quando se apoiou numa mão e olhou para baixo.
- Elizabeth!
Ela estava deitada debaixo dele, lívida de terror.
A raiva, o alívio e o medo retardado apoderaram-se de Dane ao mesmo tempo. Ele tremia por dentro quando começou a levantar-se. A raiva parecia ser o mais seguro dos três sentimentos, o menos complicado. Dane agarrou-se a ele com as duas mãos e deu-lhe rédea solta.
- Deus seja louvado! - berrou ele, sentando-se. O que diabo julga você que está a fazer..
e Elizabeth nem esperou para ouvir o resto. Ajoelhou-se, atirou-se a ele. Pôs-lhe os braços à volta do pescoço, o que o ia quase deitando ao chão, e enterrou a face no seu peito. Dane sentiu que a crítica morria no seu íntimo e que outra coisa desabrochava no seu lugar. Não reconheceu o sentimento, mas não pôde deixar de a tomar nos seus braços. Não pôde deixar de a abraçar, de lhe afagar o cabelo, nem
de lhe dizer palavras ternas em voz baixa, ao mesmo tempo que os seus lábios lhe afloravam a têmpora. Ela agarrou-se a ele a tremer tanto que ele receou que ela estivesse doente.
- o que aconteceu? - perguntou ele. Afastou a cabeça dela do seu ombro e tirou-lhe o cabelo molhado dos olhos.. O que aconteceu, querida?
Aparentemente, Elizabeth não reparou na sua ternura. IAinda se sentia muito abalada. Contou-lhe a história com todos os pormenores, tanto quanto o seu fôlego o permitiu, e terminou com a busca frenética da arma na carteira.
Carrancudo, Dane apanhou a Desert Eagle do chão e ordenou-lhe que ficasse onde estava enquanto ele procurava lá fora quaisquer indícios do intruso.
Quem quer que lá tivesse estado desaparecera. Os únicos sinais de vida nos velhos anexos provinham de animais. No sítio onde estava estacionado o Cadillac, uma sarigueia saíra do esconderijo para inspeccionar a confusão que se gerara à volta do carro. Estava sentada nas coxas, no meio dos dossiers espalhados no chão, e fitou Dane com uns olhinhos
brilhantes. Em seguida, deu meia volta e desapareceu no meio das enormes pilhas de sucata à frente do barracão.
Se o hóspede indesejável fosse o assassino de Jarvis, ele acabara de perder uma excelente oportunidade de prender o patife pensou Dane, atravessando o quintal para ir buscar o cavalo. Assassino ou não, o assaltante procurava alguma
Coisa. Seria a agenda de Jarvis? Esta ideia deixou-o ainda mais soturno, enquanto atava o cavalo ao poste e lhe desapertava a sela.
Quando voltou a entrar em casa, a luz da cozinha estava acesa e Elizabeth tentava dar uma certa arrumação ao que a rodeava. Parecia ter sido engolida por um casaco de pijama de homem que lhe chegava quase aos joelhos. Apanhou um ténis desirmanado e sacudiu o estuque que lhe caíra em cima, evitando as lágrimas. Dane pegou no sapato e atirou-o para o monte que estava ao lado do frigorífico. Segurou-a pelos ombros e obrigou-a a virar-se e a dirigir-se para uma cadeira junto da mesa.
-Não está ninguém lá fora.
Mas estava! - exclamou Elizabeth.
Ia a levantar-se da cadeira, porém Dane obrigou-a a sentar-se, colocando-lhe uma mão no ombro.
- Acredito - disse ele. - Mas agora foi-se embora. Vou pedir reforços, mas sabe-se lá onde ele estará agora. Vou mandar recolher as impressões digitais no carro...
- Ele trazia luvas - informou ela, impassível, encostando um cotovelo à mesa e apoiando a testa na mão. Dane suspirou. Se tivesse chegado uns minutos mais cedo... Se tivesse chegado uns minutos mais tarde... A raiva apoderou-se dele numa das suas formas mais frustrantes e impotentes. Dane refreou-se e aproximou-se do telefone. Quando acabou de falar com o recepcionista, virou-se para Elizabeth, que continuava sentada à mesa, com um ar pálido e assustado à luz da lâmpada fluorescente.
-Onde é que você arranjou esta arma? - perguntou ele, tirando a Desert Eagle do cós das calças e pondo-a em cima da mesa, no meio da quinquilharia que ela tirara da mala.
Era do Brock.
Dane ergueu uma sobrancelha. Não era o tipo de arma de brincar que um milionário oferecesse à mulher para ela trazer na carteira. Não se tratava propriamente de uma Derringer de duas balas nem uma arma vulgar de calibre... Era uma peça de artilharia, uma Magnum automática de calibre.., com vinte e cinco centímetros de comprimento e quase dois quilos e meio de peso, carregada.
- Ele ofereceu-lhe isto? De presente?
- Não exactamente - respondeu Elizabeth, esquiva, mordendo o lábio. Fungou e empurrou para trás uma dmadeixa de cabelo salpicada de estuque. - Foi um presente. Foi o chefe de um comando israelita que a ofereceu ao Brock, para a colecção dele. Eu roubei-a.
- Roubou-a... ?
A palavra morreu-lhe na boca. Dane afastou-se da mesa e passou a mão pelo cabelo e pelo pescoço. o facto de ela ter roubado aquele troféu a Brock Stuart não devia ter sido divertido, mas agradava-lhe imaginar a frustração do patife ao dar pela falta do brinquedo.
- Então suponho que é ridículo perguntar-lhe se tem licença para usar uma arma de mão no estado do Minnesota disse ele tranquilamente.
Elizabeth fungou de novo e passou a mão pelo nariz. -Calculo que sim.
- E é ser demasiado optimista pensar que você foi ensinada a usar e a manejar esta arma?
- Eu sei disparar uma arma - retorquiu ela com petulância, sentindo-se insultada.
-Isto não é apenas uma arma, Elizabeth. Isto é umabazuca. Você podia abrir um buraco no corpo de um elefante suficientemente grande para deixar passar um camião com esta coisa. Vou confiscá-la.
-Você não pode fazer uma coisa dessas! - gritou Elizabeth, tentando agarrar a Desert Eagle, mas ele pegou-lhe e pô-la fora do alcance dela.
- Escute - murmurou ele, num tom ameaçador. - Eu
sou o xerife desta região. Você está na posse ilegal de uma arma de fogo. Eu podia mandá-la prender se quisesse.
- Oh, isso não tem piada? - ripostou Elizabeth com insolência, recostando-se na cadeira. - Os assassinos andam à solta por aqui e você persegue-me por eu ter uma arma roubada.
Dane perdeu a paciência.
- Céus, você podia ter-me matado!
- Ou salvar a minha vida - contrapôs ela. - E se não tivesse sido você a aparecer à porta?
- Pois.- Dane fez um gesto de cabeça. - E se não fosse eu? E se fosse o Trace? Onde diabo está ele, afinal?
- Saiu. Òptimo. Com a arma ainda a balouçar na mão direita, Dane deu uma volta lenta à cozinha e respirou fundo. Tudo aquilo cheirava cada vez pior. E precisamente no meio estava Elizabeth
Elizabeth, que por pouco não testemunhara o crime, Elizabeth, a estranha na cidade, Elizabeth, a candidata a jornalista de investigação. o único suspeito sólido que possuíam contava com um álibi fornecido pelo filho de Elizabeth.
Elizabeth observava-o a andar de um lado para o outro, cada vez mais aborrecido a cada passo que dava. As ondas de choque do que acontecera começavam a assentar com um propósito de vingança. o braço doía-lhe muito e latejava até à ponta dos dedos. Elizabeth inclinou-se na cadeira e encostou o braço ao peito, desejosa de o sentir de novo dormente. Foi então que reparou na gota de sangue que tinha no joelho das calças. Distraída, mexeu no tecido rasgado. o golpe doía-lhe, mas ela sentia-se demasiado cansada para tratar dele.
- Elizabeth? - Dane arregaçou as calças e agachou-se em frente dela. Falara durante cinco minutos, pregando-lhe um sermão acerca da maldita arma, e ela não ouvira uma palavra. - Ouça. - Estendeu o braço e tocou-lhe no rosto. Ela tinha a pele fria e as cores que recuperara durante a discussão sobre a Desert Eagle tinham desaparecido outra vez. - Sente-se bem?
- Estou ferida - respondeu ela em voz baixa. - Estou a sangrar.
Parecia quase admirada, pensou Dane. Talvez ela estivesse a entrar numa espécie de estado de choque, mas ele hesitou em telefonar para chamar uma ambulância. Queria ser ele a cuidar dela. Não queria que mais ninguém se aproximasse de Elizabeth. o sentimento era forte e instintivo e Dane ignorou as suas implicações com a facilidade de uma pessoa que estava habituada a negar os seus próprios sentimentos.
Com cuidado, retirou a ganga rasgada e ensopada do joelho dela e examinou a ferida à luz do candeeiro da cozinha. Era um golpe com cerca de dois centímetros e meio de comprimento, mesmo por baixo da rótula. Não era suficientemente profundo para ser suturado, mas sangrava e estava cheio de pedacinhos de vidro agarrados. Precisava de ser desinfectado.
As mãos e o rosto de Elizabeth tinham estrias de sujidade e ela queixava-se cada vez mais do ombro, debruçando-se sobre o braço e balouçando-se lentamente. Vamos, querida. - Levantou-se devagar e ajudou-a a pôr-se de pé segurando-lhe o braço que não lhe doia. - Vamos desinfectá-la.
Eu posso fazer isso sozinha - disse Elizabeth em voz baixa.
Era mentira, mas ela sentia que tinha de manter pelo menos uma pequena parcela da sua dignidade.
-Pois é, mas não o vai fazer. -Eu não preciso de uma ama-seca.
-Pois não - concordou Dane, amparando-lhe as costas com a mão. - Do que você precisa é de quem a proteja. Onde é a casa de banho?
A divisão era tão pequena que eles mal cabiam lá dentro juntos. Elizabeth desconfiava que levara o termo demasiado à letra quando instalara a canalização na casa. A sanita fora entalada entre a parede e o compartimento do duche e o lavatório ficava mesmo em frente. A tinta rosa-forte, tão berrante que parecia saltar das paredes, contribuía para acentuar a sensação de claustrofobia.
Bem-vindo à minha luxuosa casa de banho - proferiu ela com sarcasmo, quando Dane franziu o sobrolho ao ver o compartimento do duche com uma cortina de plástico barata e estampas em forma de peixe coladas de lado. Vou mandar instalar um jacuzi.
- não é exactamente aquilo a que você estava habituada - observou ele entre dentes.
Ela encolheu o ombro saudável e desviou o olhar. -Tenho tido coisas tão más ou piores do que coisas melhores. A Gata Borralheira foi princesa por pouco tempo antes de lhe cair o sapato.
«Antes de o príncipe lho tirar», corrigiu Dane. o pensamento irritou-o. Irritou-o por Brock Stuart ter sido um patife, irritou-o por ele próprio ter sido um patife, irritou-o por. se preocupar. Preferia ter ficado indiferente.
-Vamos despir essas calças - ordenou ele com um ar preparando-se para lhe desabotoar o botão da cintura.
Os dedos de ambos chocaram, os olhares de ambos encontraram-se e de repente a casa de banho pareceu ainda mais pequena do que era. Dane tentou dar um passo atrás, mas chocou com o lavatório. Elizabeth tentou mexer-se, mas embateu na sanita. Dane cedeu, afastando as mãos e deixando-a fazer o trabalho.
Cerrou os dentes e pensou que não havia nada de sexual naquilo, enquanto ela desabotoava as calças e abria o fecho. Estava apenas a tomar conta dela, a mostrar uma certa compaixão. Mas, à medida que a ganga lhe escorregava pelas ancas, revelando umas cuequinhas de renda cor de café, de corte francês, teve de fazer um grande esforço para não pensar no que sentira quando estivera dentro dela. Depois, surgiu o golpe feio no joelho dela e, ao vê-lo, Dane sentiu-se aguilhoado pelo remorso. Ela estava ferida e ele estava a ficar excitado. Mas que bela prenda que ele era!
- Sente-se - ordenou ele num tom rude.
Elizabeth baixou-se para se sentar no banco, puxando a fralda da camisa para tapar as cuecas. Sentia-se tímida na presença dele. Estranha, cautelosa. Mas talvez tímida» não fosse a palavra certa. Vulnerável. Era isso mesmo. o que não lhe agradava. Depois de Brock, prometera não voltar a sentir-se vulnerável em relação a um homem. o amor magoava, sobretudo quando a pessoa que amávamos nos amava menos. Ela não queria voltar a passar por isso.
Não era que estivesse a apaixonar-se por Dane Jantzen, apressou-se ela a reconhecer. Não era nada disso.
Ele desinfectou a ferida com todo o cuidado. As suas mãos grandes revelaram-se suaves como as de qualquer mãe quando ele removeu a sujidade, o sangue e os vidros. Elizabeth perguntou a si própria como seria ele como pai antes de Mrs. Jantzen lhe ter dado com os pés. Pensou se ele não teria falhado nesse papel. A maioria dos homens que ela conhecia tinha falhado. J. C., Bobby Lee, Brock... Nenhum deles quisera alguma vez ser pai excepto no nome. De qualquer modo, ela tinha a sensação de que Dane seria diferente. Talvez fosse apenas pelo facto de o único objecto pessoal que ele tinha no gabinete ser aquela fotografia da filha empunhando o cartaz AMO-TE, PAPÁ.
A filha, que devia estar em casa à espera dele.
O que está você a fazer aqui? - Até então, não se lembrara de fazer a pergunta. Mostrara-se muito agradecida por ele estar ali. Dane olhou para ela, com um misto de surpresa e de preocupação. Ela repetiu a pergunta: - Porque está aqui? Como é que veio cá ter?
Dane corou. Pigarreou e baixou a cabeça, dando uma atenção exagerada ao penso que tentava aplicar.
-Eu vinha a cavalo - murmurou ele. - A cavalo? A esta hora?
Dane cerrou um pouco os dentes e fixou o penso no seu lugar o que obrigou Elizabeth a retrair-se. Não queria admittir que resolvera vigiá-la a partir do arvoredo da floresta.,,, Não queria admitir que já passara duas noites a fazer o mesmo. Não queria pensar que chegara tarde nessa noite. Quase,, tarde.
- Isso ajuda-me a descontrair - disse ele.
Era uma versão da verdade. Ele gostava de andar a cavalo. Era uma explicação razoável e não tão reveladora como poderia ter sido outra versão da verdade - que queria estar junto dela, que queria protegê-la, que continuava a sentir-se um grosseirão pelo que acontecera na noite anterior.
- Não devia estar em casa com a sua filha?
Ele franziu o sobrolho ao lembrar-se que, de repente, Amy já não queria estar ao pé dele.
-Foi passar a noite com uma prima. - Dane desviou o olhar da perna bem torneada que estivera a tratar e levantOu-se. - Venha daí. Deixe-me ver como está esse ombro.
Elizabeth aceitou a mão dele, deixando-o ampará-la ao levantar-se. Estavam outra vez muito perto um do outro. A recordação da intimidade da noite anterior pairava no ar entre eles.
Dane também se lembrou disso, ao desabotoar os botões de cima da camisa de homem que ela vestia. Lembrou-se de que não tivera tempo de fazer o mesmo na noite anterior. Céus, como fora desajeitado! Tentou engolir o remorso e o
acesso de desejo ao deixar descair a camisa sobre o ombro de Elizabeth. Bem merecia aquela tortura.
Dói?
Com todo o cuidado, passou uma mão pela curvatura do ombro e, com a outra, obrigou-a a mexer o braço. A pele dela parecia seda e a nuca exalava o aroma suave de um perfume caro que lhe chegava ao nariz. Apeteceu-lhe aproximar a boca do sítio em que o ombro e o pescoço se encontravam e saboreá-lo.
Elizabeth estremeceu. o ombro doía-lhe, mas a dor estava a ser ultrapassada por outros factores.
-Sim - respondeu ela em voz baixa, sem fôlego.
- Não me parece que esteja fracturado - disse ele, tenso. - É apenas uma escoriação. Quer tirar uma radiografia?
- Não - murmurou ela. Sentiu-se invadida por um tremor, que não era provocado pela dor mas pelo contacto da mão dele na sua pele nua. - Eu só quero ir para a cama.
Dane conteve um gemido. Queria levá-la para a cama, mas isso não ia acontecer.
Ajudou-a a subir as escadas até ao andar de cima, passando-lhe um braço à volta do corpo e ajudando-a a aliviar o seu próprio peso. Quando chegaram ao patamar, ele ficou para trás e deixou-a ir à frente para ela não reparar como ele estava alterado.
Elizabeth parou com a mão na porta do quarto e olhou para Dane por cima do ombro.
-Não se atreva a rir-se da minha cama - avisou ela, franzindo o sobrolho.
- Porque me havia eu de rir da sua cama?
Dane entrou no quartinho de paredes cor-de-rosa, espantado, mas não teve vontade de rir. Não se teria rido mesmo que lhe apetecesse. o olhar que ela lhe deitou era demasiado orgulhoso, demasiado terno.
A cama dominava o quarto e mal deixava espaço para a cómoda e a mesa-de-cabeceira desirmanadas. Elizabeth contornou-a, afastando o edredão com ilhós e aconchegando as almofadas de fôlhos, empinando o queixo e desafiando-o a tecer comentários sobre a cabeceira e os pés de latão da cama.
O Brock chamava-lhe a minha cama de bordel disse ela. - Considerava-a grosseira, mas eu gosto dela e não me importo com aquilo que os outros pensam, incluindo você.
o simples facto de o ter dito provou a Dane que ela se importava mesmo. Não queria que se rissem dela, que a importunassem ou que lhe falassem com sobranceria, comorock Stuart fizera. o patife.
-Eu acho-a bonita - disse ele com ternura.
Ela não o devia ter considerado terno. Ele era um homem duro. Elizabeth já conhecia bem essa sua faceta de carácter para acreditar noutra coisa.
Perdeu o fôlego quando ele se aproximou por trás dela e passou a mão por baixo dos cabelos para lhe acariciar a cabeça.
Eu acho que você é bonita - prosseguiu ele, aproximando-se mais. Baixou a cabeça e roçou o rosto nos cabelos dela. - Estou-me nas tintas para aquilo que o Brock Stuart faça. Está a tornar-se óbvio que esse homem é um louco. Ela começou a virar-se para ele e Dane apanhou-lhe a boca com a sua, beijando-a devagar, com ternura, a tremer
por dentro com a força da paixão reprimida. Apetecia-lhe deitá-la naquela cama enorme e beijar todo o seu corpo, mas afastou-se dela, odiando o espaço que os separava.
- Você precisa de descansar - observou ele, fazendo um esforço para controlar a respiração. - Estarei lá em baixo se precisar de mim.
Ela precisava dele naquele momento. Mas era como se Dane tivesse resolvido optar pela dignidade. Em parte, ela admirava-o por isso. Mas, por outro lado, amaldiçoava-o. Queria que ele ficasse, mas não podia pedir-lhe tal coisa. Tinha de pensar em Trace; mais cedo ou mais tarde ele viria Para casa. E havia o seu orgulho. Ela não ia suplicar a um homem que a acompanhasse, por muito que o desejasse.
Enfiou-se no meio dos lençóis, sem despir a camisa preferida de Brock com a assinatura de Gianni Versace, tapou as Pernas com os cobertores e encostou-se ao monte de almofadas de folhos. Dane começara a virar-se para a porta.- Dane? - A palavra saíu-lhe da boca antes que Elizabeth conseguisse conter-se. Procurou algo mais para dizer enquanto Dane a fitava com um ar expectante. - Obrigada por ter estado aqui - acrescentou ela em voz baixa.
Ele correspondeu com um aceno de cabeça e virou-se outra vez.
- Dane? - Ele ergueu o sobrolho e ficou à espera. Eliizabeth debatia-se entre o orgulho e a necessidade. Venceu () orgulho. - Obrigada por não se ter rido da minha cama.
Ficou a olhar para ela durante algum tempo. Algo mais complexo do que a gratidão saturava o ar entre eles.
- Dane - continuou ela em voz baixa. «Que se lixe o orgulho.» - Fique.
Ele virou as costas à porta e à dignidade quando a necessidade vinda do outro lado do quarto o atingiu. Ela estava sentada à beira da cama, de olhos pregados nele, e os seus dedos desapertavam lentamente o resto dos botões. Deixou cair a camisa.
Fique, por favor - pediu ela. - Só um bocadinho. Dane aproximou-se e verificou o ombro ferido.
-Eu não quero magoá-la.
Ela limitou-se a abanar a cabeça, lançando a apreensão para trás das costas. A dor voltaria. Não a dor em que ele estava a pensar, mas outra, mais profunda. Elizabeth abrira-lhe a porta. Agora, só podia manter-se à distância e aceitar o que o corpo dele lhe podia oferecer. Lembrou-se de Jolynn, e pela primeira vez compreendeu o que a levava a permitir que Rich voltasse de vez em quando.
Depois, deixou de pensar. Nem sequer procurou analisar-se ou punir-se. Pegou na mão de Dane e aproximou-a do seu seio.
Dane viu-a fechar os olhos e inclinar a cabeça para trás quando ele lhe tocou. Outro homem melhor do que ele ainda se teria ido embora, mas ele era assim mesmo, pensou. Era apenas um homem, um homem com necessidades simples de tocar numa mulher cuja necessidade estava a consumi-la. Não estava na sua natureza afastar-se disso.
Despiu-se e a cama cedeu quando ele se instalou em peso em cima do colchão.
-Desta vez, faremos as coisas como deve ser - sussurrou, inclinando-se para ela. - Vou beijá-la. Tocar-lhe- Envolveu-lhe o seio com a mão e massajou-lhe o mamilo com o polegar. - Saboreá-la - disse ele, beijando-lhe o pescoço e enterrando a língua na concavidade suave para lhe sentir a pulsação. - Saboreá-la - repetiu ele em surdina, deitando-se.
Possuiu-a três vezes para além dos limites do êxtase e depois acompanhou-a no esquecimento. Na libertação, na doce e quente libertação.
Elizabeth agarrou-se a ele, atordoada com a intensidade do momento e assustada com o vislumbre daquilo que a esperava. Fechou os olhos para se proteger e enterrou o rosto na curvatura do ombro de Dane. Ela não podia amá-lo. Isso não resultaria. Nunca resultara com ela.
Seguiu-se a dor. Elizabeth mordeu o lábio e combateu-a com todas as forças que lhe restavam.
- Sente-se bem? - perguntou Dane em surdina. Magoei-a?
Ela não confiou na sua própria voz e abanou a cabeça. Dane concentrou-se nela, apoiando-se no cotovelo e tirou o cabelo do rosto. Pensou nas inúmeras vezes em que fizera o mesmo com Ann Markham, pensou na expressão quase selvagem de satisfação carnal que brilhava noolhar dela e que lhe intensificava a cor da cara. Elizabeth não estava assim. Tinha um ar frágil e vulnerável e Dane sentia uma necessidade quase insuperável de a confortar, proteger. Inclinou-se ainda mais e beijou-lhe as têmporas, e ela abraçou-o outra vez, puxando-o para si e para dentro do seu corpo.
- Está bem - segredou ele. Não sabia ao certo se estava ou não, mas precisava de lhe oferecer ternura... qualquer coisa. - Está bem.
Abraçou-a ternamente e rolou para o lado, contente por abraçá-la enquanto a respiração dela abrandava, voltava à normalidade e ela adormecia, exausta. Contente. Era algo que nunca sentira com Ann. Em geral, aquele era o momentO em que a fraqueza se apoderava dele e em que aquela dor surda lhe abria um buraco no peito. Agora olhava para a mulher que estava aninhada nele e apercebia-se do seu hálitO suave na pele, e sentia-se... contente.
Isso agitou-o. o macho independente que havia nele levantou a cabeça e farejou o ar à procura do perigo. Não queria amarras. Não queria contentamento. Queria sexo simples honesto e não obrigatório com uma mulher que não precisasse dele para nada excepto para atingir o prazer carnal. o que ele partilhara com Elizabeth fora muito para além da necessidade de satisfazer uma sede puramente física. No horizonte próximo havia um território perigoso, um território do qual ele jurara afastar-se.
Desviou-se do calor da mulher que estava a seu lado e deitou-se de costas. Ficou ali durante muito tempo, a olhar para as fendas do tecto e a pensar naquilo em que se metera, sem saber por que motivo, quando ela se encostara mais a ele e murmurara qualquer coisa durante o sono, não se levantara da cama; em vez disso, passou um braço à volta dela e sentiu-se contente.
A voz arrastada e sentimental de Bormie Raitt murmurava nos altifalantes estereofónicos da sala de estar mal iluminada. Era uma canção acerca de relações frágeis, de amor transitório. Demasiado triste e demasiado próxima da realidade para ser reconfortante. Dane desligou o aparelho e concentrou-se nas fichas de apontamentos que estavam espalhadas pelo chão, à volta dos seus pés. Desistira da ideia de dormir e sentara-se no sofá, a meditar e a beber um copo do uísque que roubara a Elizabeth. As ideias, os palpites e as impressões dela acerca do assassínio de Jarvis encontravam-se espalhados na carpete como peças de um puzzle que ela não conseguira encaixar.
Dane recordou que também ele não conseguia encaixá-las. Tinha o suspeito que queria, mas não possuía provas que o ligassem ao crime. De todas as impressões digitais que haviam recolhido dentro e fora do LincoM, as de Carney Fox não figuravam entre elas. o que não queria dizer que não fosse ele o assassino; mas era o bastante para Dane não conseguir obter um mandado de um juiz. E isso intrigava-o. Carney não era nenhum cientista de foguetões. Era astuto e esquivo, mas não suficientemente esperto para não escorregar algures no caminho.
Dane enfureceu-se consigo mesmo quando a dúvida o aguilhoou. Pensou outra vez nas alegações de Elizabeth. fizeram eco na sua mente. Ele era preguiçoso. Estava a tentar colar aquele assassínio a um desconhecido porque isso era mais fácil e porque ele não queria ver suspeitos nas pessoas que conhecera durante toda a vida.
Seguiu com o olhar o rasto sinuoso dos apontamentos. Helen Jarvis: Desequilibrada. o J enganava-a. Herda muiGarth Shajèr: Sinistro! Rancoroso. Amargo. Temperamento violento. Rich Carmon.- Idiota. Tinha muito a ganhar, :,,,,.,,,, tem um álibi: a Jolynn. AGENDA PRETa: A cHAvE. Onde diabo está ela? Quem figura lá?
o impulso natural de Dane foi ignorar os suspeitos de Elizabeth graças ao conhecimento pessoal que tinha deles. A Helen beneficiava muito do facto de ser mulher de Jarrold. O rancor de Garth era muito antigo e Garth estava demasiado embebido na autocompaixão para fazer alguma coisa tanto tempo depois. Rich era complacente de mais e sentia-se demasiado confortável na sua posição de animal de estimação de Jarrold.
Elizabeth via todas aquelas pessoas com uns olhos muito diferentes, com os olhos de uma desconhecida. Não tinha histórias com essa gente, nem ideias preconcebidas acerca da sua maneira de ser. As suas impressões
acerca deles haviam sido recolhidas instantaneamente e em
condições extremas. Isso permitia-lhe vê-las com rigor ou
exagero.
Dane esfregou os olhos e suspirou. Como gostaria de não ser obrigado a descobrir! Como gostaria que as acusaÇões de Elizabeth não o importunassem! Ela tinha razão. Não queria ver abaixo da superficie da sua cidade ou da sua gente. Queria que tudo continuasse a ser como sempre fora. Você é preguiçoso, é o que é.
E ela era ambiciosa. Pela verdade, pelo seu jornal. Dane olhou para a sala degradada, com as paredes de estuque raChadas e o tecto a ceder, e foi obrigado a concluir que ela ambicionava sair dali. Passara da miséria para o esplendor e VOltara. à miséria. Não era difícil imaginar qual é que ela Preferia. Parecia ser demasiado entendida em rendas francesas para se contentar com menos.
o som da porta das traseiras a fechar-se devagarinho interrompeu instantaneamente o fluxo de pensamentos de Danne e deixou-o alerta. Apagou a luz e saiu da sala sem fazer barulho. Atravessou a casa de jantar em direcção à cozinha, em bicos de pés, sustendo o fôlego. Com a mesma suavidade, abriu a porta da cozinha com o dedo do pé e espreitou lá para dentro.
Trace Stuart estava encostado ao frigorífico, à procura da embalagem do leite.
-Andas a chegar a casa um pouco tarde, não é verdade? - A embalagem de leite escorregou da mão de Trace e caiu no oleado com um esguicho, espalhando leite em todas as direcções. o rapaz virou-se e olhou para o homem que se encontrava na soleira da porta, com o coração a pulsar-lhe na garganta com a rapidez de um bólide em Indianapolis. Era o xerife. Oh, merda! Oh, céus! o que havia ele de fazer agora? - Já passa das duas horas - salientou Dane, impassível. - Onde estiveste, Trace?
Trace tentou dominar o medo que o sufocava. Era um homem morto. Jantzen sabia alguma coisa. Caso contrário, porque estaria ali? Ele sabia alguma coisa; estava escrito naqueles seus olhos azuis assombrados. Trace sentia que aquele olhar o atravessava como dois raios laser, precisamente no cérebro.
- Andei por aí - resmungou ele, encolhendo os ombros, atrapalhado. - Andei por aí, mais nada.
-Com quem? -Com uns tipos. -Com o Carney Fox?
- Sim. E depois? Não estivemos a fazer nada. Andámos por aí.
-Já disseste.
Dane afastou-se da porta e atravessou a cozinha com um ar indolente, reparando, interessado, numa fina camada de suor que perlava a testa do miúdo. Este parecia um potro assustado, pronto a desatar a correr se tivesse oportunidade disso. Estava a esconder alguma coisa. Como afirmara Elizabeth, Trace era um desastre a mentir. Mas Dane não tinha nada para lhe perguntar.
Pegou num pano de cozinha enrodilhado que estava em cima da bancada e estendeu-lho.
- É melhor limpares essa porcaria.
-Sim, senhor.
Trace pegou no pano e agachou-se para apanhar o leite que começava a ensopar-lhe os ténis. Apetecia-lhe tornar-se invisível, ou talvez mais pequeno, e desaparecer nas fendas
do oleado. Queria estar noutro lado qualquer desde que não fosse ali com aquele homem a observá-lo como um falcão, e a fazer-lhe toda a espécie de perguntas com aquela voz que parecia a de Clint Eastwood em todos os filmes do Dirty Larry.
Raios partissem carney. A culpa era toda dele.
-Alguém atacou a tua mãe esta noite, Trace. Trace levantou a cabeça tão depressa que lhe iam caindo
os óculos.
o que? Merda! Ela está bem?
Largou o pano e levantou-se em peso, disposto a ir ter com ela. Surgiu nele um tipo diferente de adrenalina, do tipo daquela que um homem sentia quando a sua família estava a ser ameaçada. A mãe era a única família que ele tinha... pelo menos a única que contava.
-Ela está um pouco abalada - disse Dane. - Está a dormir. -Ora bolas.
Trace suspirou e passou a mão pelo cabelo curto. Pisou o leite que entornara e foi deixando marcas no chão.
-Alguém andou a revolver uns papéis que ela largou no carro. Tu não sabes nada disto, pois não?
-Não.- Trace abanou a cabeça e depois olhou de esguelha para o xerife, com um ar desconfiado. - Porque havia de saber?
Dane encolheu os ombros. Também pretendia ligar Fox àquele episódio e ao vandalismo no escritório do Clarion, mas não tinha um motivo. o vandalismo podia ser dado como perdido, mas agora... Alguém andara à procura de qualquer coisa e, com os diabos, a teoria de Elizabeth acerca da agenda preta era a única coisa que fazia sentido.
- Está a dizer que julga que eu magoei a minha própria Mãe? - perguntou Trace na defensiva, tocando no peito com o indicador. Empinou o queixo com uma expressão
obstinada que fazia lembrar a da mãe e deitou um olhar furiOso a Dane. - É que eu não faria nunca uma coisa dessas.
-Não? - perguntou Dane tranquilamente.
Cruzou os braços e encostou a anca à bancada, sem tirar os olhos de Trace. Era um miúdo bem-parecido, um rapaz à beira da virilidade, que começava apenas a ganhar corpo. Parecia que isso já fora há um século, mas Dane lembrava-se dele próprio nessa idade. Como se andasse à beira de um passeio, a balouçar ora para um lado ora para o outro, sem saber ao certo para onde iria cair - se para a adolescência ou para a idade adulta - nem para onde queria ir.
Trace ostentava agora essa expressão no olhar, como se pensasse que devia fazer-se um homem, mas em parte com medo do que isso poderia significar.
- Julgas que não a magoou que tenhas sido preso e interrogado no outro dia? - perguntou Dane.
Trace desviou o olhar, crispando o queixo. Ele não pedira para ser preso nem interrogado. Isso também era culpa de Carney. Maldito Carney. Mas que grande amigo que ele lhe saíra! A infelicidade transformou-se num nó na parte de trás da garganta e Trace tentou engoli-lo para que fosse misturar-se no estômago aos seus bons companheiros, o remorso e o medo.
- Ela preocupa-se contigo, Trace.
- Não tem motivos para isso. Eu sei tomar conta de mim - proferiu ele em voz baixa, a olhar para os sapatos. Estava a pisar o leite. Não era essa a história da sua vida? Sempre a pisar qualquer coisa. Bem, um homem tinha de resolver os seus próprios problemas, pensou ele, baixando-se para apanhar o pano de cozinha. Reconhecia que teria de encontrar uma maneira de lidar com isso.
- Continua a andar com o Carney Fox e acabas a tomar conta de ti na cadeia. É isso que tu queres?
-Não, senhor.
Dane tirou outro pano de cozinha da bancada e agachou-se para ajudar o rapaz a apanhar o resto do leite.
- Tens algumas opções a fazer aqui, Trace - avisou ele tranquilamente. - Espero que faças as opções certas. Para teu bem e da tua mãe.
Trace empurrou os óculos mais para cima e pestanejou ao sentir a humidade quente a pressionar a parte de trás dos olhos.
-Sim, senhor - disse ele em surdina. Levantaram-se ao mesmo tempo. Dane pegou nos panos
de cozinha sujos e atirou-os para o lava-louça. Trace ficou de cabeça baixa, ombros encolhidos, como um cachorrinho que tivesse acabado de ser repreendido por andar atrás dos carros. Pobre miúdo, pensou Dane. Não tinha um amigo no mundo... Nem um pai...
Aproximou-se do rapaz e pôs-lhe a mão no ombro.
- Porque não vais para a cama? Amanhã há um jogo de softball no campo do Keillor. Talvez eles aceitem mais um batedor. Mas ninguém consegue bater em coisa nenhuma sem umas horas de sono.
Trace limitou-se a concordar com um gesto de cabeça, sentindo-se demasiado infeliz para falar. Duvidava que alguém o quisesse numa equipa. Ele era o merdoso do miúdo sulista que falava com um sotaque esquisito e andava com o Carney Fox. Talvez pudesse viver ali até aos cem, mas ninguém o quereria numa equipa de softball.
Enfiou as mãos nos bolsos e encaminhou-se para a porta.
- Trace?
Jantzen ficou a observá-lo, com o olhar penetrante de um lobo. Trace tinha a sensação de que não havia muita gente que perdesse tempo com ele... Ou que fosse suficientemente louco para tentar. Ficou ainda mais assustado.
- A tua mãe diz que és bom tipo. Não a desiludas. Ela já tem problemas que cheguem por uns tempos.
- Sim, senhor - repetiu Trace em voz baixa.
Deu meia volta e subiu as escadas com um ar furtivo como o cão que ele era, abatido e desconsolado. Na sua opimião se alguma vez viesse a ser um homem a sério como Dane Jantzen, isso seria um autêntico milagre.
Os acordes de um cântico secular chegaram às vigas do celeiro dos Hauer e misturaram-se com o chilrear dos pardais e o arrulhar dos pombos que observavam o que se estava a passar com uns olhos brilhantes e curiosos. o cântico era Dos Lob Lied, um cântico de louvor, um cântico do Ausbund, o livro de cânticos dos Amish, que datava do tempo dos mártires baptistas suíços, do século xvi. A melodia era entoada em uníssono, sem acompanhamento, e não tinha qualquer semelhança com os cânticos que estavam a ser entoados à mesma hora na Igreja Luterana do Nosso Salvador ou noutra igreja de Still Creek. Os versículos arrastavam-se, medievais no tom e no tempo, testemunhos de fé e de sofrimento em nome de Jesus Cristo, cantados no antigo dialecto alemão.
o chão do celeiro onde era armazenado o feno fora varrido. o espaço,estava ocupado com filas de bancos simples de madeira. À direita, sentavam-se as mulheres, novas e velhas, muitas com bebés ao colo, outras dando a mão a crianças pequenas que já se agitavam nos seus lugares, deixando antever o aborrecimento provocado pelo longo serviço que se avizinhava. Os vestidos das mulheres, azul-escuros, verde-escuros e pretos, chegavam-lhe aos tornozelos em pregas graciosas. Por cima do vestido, todas usavam um grande avental de musselina branca, que lhes cobria o peito e estava atado à cintura. Não usavam maquilhagem, nem jóias, nem chapéus complicados. Os penteados eram idênticos - risco ao meio e tranças enroladas e enfiadas debaixo de toucas de malha fina atadas no queixo.
Os homens ocupavam os bancos da esquerda, e alguns rapazes tinham-se sentado na palha que fora varrida para o lado e para trás. Os adolescentes encontravam-se atrás junto da porta que dava para a rua, prontos a esgueirarem-se lá para fora para verificar os cavalos que tinham sido desatrelados e estavam nos estábulos ou andavam à solta no espaço ao lado da igreja. Chapéus de aba larga atapetavam o chão,,., debaixo dos bancos. Tal como as mulheres, também os homens vestiam roupas quase iguais, e apenas a cor do cabelo e o comprimento da barba os individualizavam. Alguns envergavam os tradicionais casacos pretos. Outros tinham optado apenas por um colete de domingo, devido ao calor daquela manhã de Junho.
Aaron encontrava-se junto da porta aberta, impecável no seu papel de receber e ajudar os retardatários que chegavam com os seus cavalos. Parecia-lhe que já haviam chegado quase todos. Cyrus Yoder não estava à vista, mas Aaron não contava com ele. Cyrus, o filho mais velho de Milo Yoder quebrara a Ordnung de todas as maneiras possiveis. Os mais velhos tinham-se reunido em conferência na semana anterior, e esperava-se que Cyrus fosse expulso, como apontava
Meidung. Seria afastado como todos aqueles que abandonavam a congregação.
O olhar de Aaron caiu no velho Milo, cujas lágrimas lhe escorriam pelas barbas ao esforçar-se por cantar o velho hino de fé. Aqueles que eram fortes no serem Weg criavam. Aqueles que eram fortes no Unserem Weg. Na maneira de pensar de Aaron, Cyrus merecia ser expulso e Milo e o resto dos filhos tinham de ser cuidadosamente vigiados devido à sua fraqueza de espírito.
Fraqueza de espírito.
Não me deixes cair em tentação.
o remorso atingiu-o como uma faca no peito, ao pensar na sua própria fraqueza. Elizabeth Stuart Pensara nela de Várias maneiras que nada tinham de cristão e que eram apenas carnais. Uma inglesa. Era um perigo para ele, para a sua fé- Um teste. Um teste de Deus. Deus fizera com que ambos se encontrassem para pôr à prova a força e a convicção de Aaron e ele estava a falhar.
Podia ter-se esforçado mais, ter rezado mais para que Deus o orientasse. Se estava destinado a ser um verdadeiro instrumento do Senhor, teria de se purificar daquele desejo em relação a uma mulher tão estranha a tudo aquilo em que ele acreditava.
Pôs as mãos e cantou um pouco mais alto quando a congregação passou para outro cântico. «... E oriento a minha vida de acordo com a vontade de Deus, um instrumento da justiça do Senhor...»
Em seguida, o bispo entrou no celeiro, seguido por dois sacerdotes e pelo diácono. Dirigiram-se à congregação, distribuindo apertos de mão à medida que avançavam. Aaron manteve-se de lado, pois não se sentia digno de lhes apertar a mão nesse dia. Seria o seu dia de oração e de meditação, Quando a reunião terminasse e todos se fossem embora, ele iria até ao ribeiro, junto da sua Siri, e ficaria ali em meditação até que Deus lhe desse uma resposta para aquele turbilhão de sentimentos.
Amos Schrock, pequeno e murcho, cujas barbas grisalhas lhe pendiam do peito como musgo de um carvalho engelhado, avançou para a frente dos Gemeile começou a pregar com a sua voz quente e suave: «Todos aqueles que têm sede de justiça verão o Senhor Jesus quando ele vier, não em carne e osso mas em espírito.»
Não se encontrava diante de nenhum altar nem de nenhuma imagem de Cristo. Não envergava paramentos elaborados e tinha apenas uma Bíblia muito usada como adereço. Nenhuma janela de vitral espalhava cor pelas cabeças daqueles que se tinham reunido para escutar as suas palavras. Através da janela existente na parte mais alta do celeiro entrava um raio de sol dourado que caía como uma luz poeirenta de um projector vinda do céu sobre Ambos e a parede manchada de debulho que servia de cortina de fundo.
Findo o primeiro sermão, só os mais fracos é que não se ajoelharam no chão do celeiro a rezar. Ouviu-se o roçar da palha quando os rapazes mais novos se deitaram de barriga para baixo e inclinaram a cabeça. No meio do silêncio que se seguiu, um cavalo relinchou e bateu com as patas no chão; em cima, um pombo arrulhou. Aaron inclinou a cabeça e fechou os olhos com força. Pai que estás no Céu
Um som como o de um martelo a abater-se sobre a madeira interrompeu os seus pensamentos. Era um bater insistente vindo de longe, que ecoava na sua cabeça e a fazia latejar como se ele tivesse uma dor de dentes. Aaron tentou recomeçar a sua prece, mas o ruído cada vez era maior, e os martelos aumentavam. o gemido estridente de uma serra eléctrica atravessou a calma atmosfera matinal de domingo.
Aaron levantou a cabeça e espreitou pela porta aberta do celeiro. Do outro lado da rua, em frente da quinta dos pais, onde os fiéis do seu distrito haviam estacionado as carroças,, ao longo do caminho para se reunir na igreja improvisada e celebrar o Sabbath, via-se uma profusão de automóveis e de camionetas. Mesmo de longe, Aaron via os homens a trabalhar no complexo turístico, espalhados pelo estaleiro. Eram doze ou mais.
o bispo começou a ler passagens do Novo Testamento, elevando a voz numa tentativa de abafar o ruído do mundo inglês. A congregação levantou-se. Várias cabeças se viraram para a porta, mostrando uma série de rostos carrancudos. Dois dos rapazes mais velhos passaram por Aaron e `saíram. Aaron foi atrás deles e apanhou-os a olharem, embasbacados, para o que se passava do outro lado da estrada.
-Tratem de fazer o que vos compete - disparou ele, com a raiva a ferver no seu íntimo.
Os rapazes baixaram a cabeça, desceram a colina e contornaram o celeiro para ir verificar os cavalos, que não precisavam de ser vigiados. Do outro lado da estrada, Aaron franziu o sobrolho, de mãos nas ancas.
Não tinham respeito por nada, aqueles ingleses. Nem pelos outros homens, nem por Deus, nem pelo dia de descanSO. Ainda um dos deles não arrefecera na terra e já eles trabalhavam na sua empresa a um domingo. Aquilo era uma heresia, um pecado escandaloso, uma bofetada na face de todos aqueles que cumpriam os mandamentos. Trabalharás durante seis dias e farás tudo o que tens afazer, mas o sétimo é a festa do Senhor teu Deus; nele não trabalharás. Agora anda para dentro, Aaron - disse Samuel em voz baixa.
Aaron virou a cabeça. o pai, com um ar cansado e envelhecido, encontrava-se a seu lado. Aaron era mais alto do que ele - desde a adolescência - mas o pai sempre lhe parecera um pilar de força, física e espiritual. Samuel tinha setenta anos, e o fogo que ardia no seu íntimo começava a extinguir-se, e a energia sem limites que suportara a sua estrutura corpulenta consumira-se, ficara nos campos durante muitos anos de trabalho árduo. A rectidão que em tempos brilhara nos seus olhos azuis dera lugar a uma espécie de sabedoria e de cansaço. o velho esboçou um sorriso terno ao pousar a mão no braço rígido de Aaron.
-Vem para dentro ouvir as leituras - disse ele. Aaron virou-se de novo para Still Waters.
- Só consigo ouvir o som dos martelos. Os hereges trabalham ao domingo.
- Não faças juizos, Aaron - recomendou Samuel, chamando-o à razão com brandura. - Eles não têm a nossa fé.
- Eles só acreditam em si próprios.
-E compete a Deus salvá-los e a nós rezar.
Aaron não conseguiu evitar a amargura que lhe toldou a voz. Nem se deu ao trabalho de tentar afastá-la.
- Eles roubam o que é nosso e tu ainda rezas por eles? Eles levaram a minha Siri...
- Foi Deus que levou a Siri, Aaron - retorquiu Samuel, com um olhar mortiço e triste. - Es waar Gotters Wille. A vontade de Deus. Deus dá e Deus tira. Aaron deixou escapar um suspiro cuidadosamente calculado. Sabia muito acerca da vontade de Deus. Mais do que quase todos aqueles que se encontravam ali, pensou. E isso não o tornava mais tolerante.
Deitou um olhar duro ao pai.
- A Meidung abate-se sobre o Cyrus Yoder por andar com eles.
Samuel abanou a cabeça. As suas sobrancelhas hirsutas, como palha de aço, uniram-se e o velho fez um ar consternado.
-Não podemos expulsar os ingleses, Aaron. Bem sabes. Só os nossos que se afastam da nossa Igreja. Agora andas a trabalhar para os ingleses. És hipócrita.
Aaron crispou o queixo ao lembrar-se de Elizabeth.
Apeteceu-lhe dizer ao pai que a situação era diferente, que havia nela um objectivo mais nobre, que se tratava de um teste divino, mas calou-se. Apetecia-lhe dizer que Elizabeth era diferente, que ele tinha uma afinidade com ela, mas, no seu íntimo, não lhe parecia que essa afinidade estivesse certa e por isso não disse nada.
Ficou a olhar para os campos durante algum tempo, a ouvir o bater sincopado dos martelos, enquanto a voz do bispo subia e descia de tom no interior do celeiro. Na estrada, um carro abrandou e parou, e uma mulher gorda, de vestido verde-claro, saiu e apontou-lhe a máquina fotográfica.
- Nesse momento, Aaron sentiu que o mundo se fechava à sua volta, espartilhando a sua maneira de viver como se ele fosse um insecto debaixo de uma lâmina de vidro, um exemplar digno de ser observado e de fazer as maravilhas de gente que nada percebia da sua fé. Com o rosto crispado, virou as costas à mulher gorda e à sua máquina fotográfica.
-Então reze por eles, pai - proferiu, afastando-se. kich kann net.
Elizabeth acordou sozinha, com o sol a entrar pela janela. Os pássaros cantavam. Sentou-se na cama, sonolenta e perguntou a si própria se a noite fora um sonho.
Em seguida, tentou espreguiçar-se, mas o ombro doeu-lhe e o nevoeiro dissipou-se. Além do ombro, tinha dores noutros
sítios que ela nem sabia que doiam. Os lençóis amarrotados cheiravam a homem e a sexo. o ataque no barracão fora real. Apresença de Dane Jantzen na sua cama fora real. o que se passara entre eles estava para além das palavras. Ela ter-se-ia sentido feliz se não estivesse tão assustada.
Ele não era homem por quem ela se apaixonasse. Era mau, obstinado e cínico para com o sexo fraco em geral e para com ela em particular. Não era disso que ela precisava. Mas ao pensar no tempo que haviam passado juntos naquela cama, Elizabeth não se lembrou de uma única necessidade que ele não tivesse satisfeito. Ele oferecera-lhe mais do que o próprio corpo. Oferecera-lhe ternura, conforto e força.
E agora fora-se embora, e ela pensou na única coisa que ele não lhe oferecera: o seu coração.
-Mas ele foi-se embora, filha - proferiu ela em voz baixa, passando a mão pelos cabelos desgrenhados. - Antes de te habituares a ele.
Vestiu um roupão, pegou nalgumas peças de roupa e desceu a custo as escadas, ao encontro da luz do dia. Trace estava sentado à mesa da cozinha quando ela entrou, preparando-se para ligar a cafeteira eléctrica. Elizabeth deu um salto para trás com um grito e levou a mão ao peito ao sentir a pulsação a disparar como se ela estivesse no Kentucky Derby.
- oh, meu Deus! - exclamou ela, ofegante, recuando na direcção da bancada. - Trace, querido, podias ter-me provocado um ataque de coração!
Trace levantou-se imediatamente da cadeira, com um ar preocupado que os seus óculos à Buddy Holly não disfarçavam.
-Estás bem? - perguntou ele. - o xerife Jantzen disse que foste atacada ontem à noite.
Elizabeth encostou o braço esquerdo dorido ao peito e levou a mão direita aos lábios, fazendo um gesto afirmativo e tentando acalmar-se. Já não se lembrava da última vez em que Trace se mostrara interessado no seu bem-estar. o filho estava numa idade em que o egocentrismo era um estado crónico, ampliado e intensificado pelos seus outros problemas - a falta de um pai, a falta de amigos, a mudança para aquilo que estava a revelar-se um ambiente hostil. Mas agora, de repente, ele encontrava-se ali à sua frente, muito parecido com um jovem disposto a vingar a sua família.
- Eu vou melhorar - respondeu ela em voz baixa, respirando fundo. - Foi alguém que andava à procura de qualquer coisa. Eu meti-me no caminho e fui maltratada. Apanhei um grande susto.
Trace praguejou em surdina e desviou o olhar, passando os dedos da mão esquerda pelo cabelo escuro e curto, com um gesto que herdara de Elizabeth. Sentiu um ardor no estÔmago, em parte pelo Mountain Dew que bebera ao pequeno-almoço, mas sobretudo devido à tensão dos últimos dias. Ainda não se refizera totalmente do choque de chegar a casa e encontrar o xerife na sala. Nem percebia como não caíra morto ali mesmo.
Nós não pertencemos a esta terra - resmungou ele, desolado.
Elizabeth aproximou-se dele e pegou-lhe na mão. Por uma vez, ele não se afastou. Ao pé da mão do filho, a sua parecia minúscula. Ele estava mesmo a fazer-se um homem, mas, quando o encarou, ainda havia nele sinais do rapazinho que Trace era: - incerteza, necessidade de segurança, de conforto moral. o pior era que ela sentia as mesmas coisas e era adulta.
- As pessoas são atacadas em toda a parte, Trace - salientou ela. - É triste, mas o mundo é violento.
- Não é só isso - insistiu ele. - Ninguem nos quer aqui. Nós não nos adaptamos. Disseste que a situação havia de melhorar quando saíssemos de Atlanta, mas isso não aconteceu. Piorou.
-Pois é. - Elizabeth suspirou, desejosa de refutar a afirmação do filho. Mas não conseguiu. - Neste momento estamos mesmo mal, não estamos?
Trace soltou uma gargalhada rouca e sem humor, olhando para o orifício da bala no tecto. Céus, apetecia-lhe chorar. A mãe nem imaginava o sarilho em que ele estava metido. E ele não queria estar perto quando ela descobrisse. Queria estar a milhares de quilómetros de distância. Na floresta tropical do Brasil ou na primeira missão a Marte pilotada pelo homem. Em qualquer lado, mas longe de Still Creek, no Minnesota. Apesar de se sentir confuso em relação a muitas coisas havia uma de que ele tinha a certeza: queria sair daquela terra.
- Sabes, filho? - disse a mãe em voz baixa. - Creio que estamos a descobrir que não podemos fugir aos problemas. Não há nenhum sítio mágico em que ninguém tenha um passado e todos se amem uns aos outros. Pelo menos neste mundo. Foi para aqui que viemos. Resta-nos meter mãos à obra e construir o nosso cantinho. - Elizabeth fitou-o com os seus lindos olhos, com uma expressão de cansaço e tristeza que Trace não suportava. - Durante toda a minha vida não pertenci a lado nenhum, Trace - prosseguiu ela com a voz dilacerada por um sofrimento que atingiu e apertou o coração de Trace. - Estou cansada. Estou cansada de procurar um sítio que não existe.
Trace foi obrigado a disfarçar o nó na garganta, que parecia do tamanho de uma bola de basebol. Merda, que tipo de homem era ele? Aquela mudança não fora fácil para a mãe. Ele sabia o que ela passara em Atlanta com o cara de cu do Brock e as suas mentiras nojentas, e com os problemas que ele próprio lhe criara com as drogas e tudo. Sabia o género de coisas mesquinhas e desprezíveis que as pessoas diziam dela em Still Creck, e sabia as muitas horas que ela trabalhava para tentar fazer alguma coisa do Clarion. Agora alguém destruíra o escritório e a atacara. Deus sabia como ela tinha problemas. Com certeza que não precisava que ele desatasse a chorar como uma criança estúpida e ranhosa que nem sabia calçar os sapatos.
- Desculpa, mãe - disse ele em voz baixa, lutando furiosamente com as lágrimas que lhe marejavam os olhos. Um homem não chorava num momento como aquele. E muito menos na presença da mãe.
Elizabeth olhou para ele com o coração destroçado. Trace sempre se esforçara por parecer mais crescido e mais autoconfiante do que era na realidade. Ainda se lembrava dele a olhar para ela, com aqueles óculos enormes empoleirados no narizinho, a dizer-lhe que não se preocupasse com o facto de ele ir sozinho para o infantário. Ela queria dizer-lhe tantas coisas... Que o amava, que lamentava, também, a infância que ele nunca tivera. Mas as palavras ficaram-lhe presas na garganta.
Nunca tinham sido bons a falar um com o outro. Saía-lhe tudo pela boca fora quando estava a falar fosse com quem fosse, mas, quando se tratava de Trace, interiorizava de tal modo o que sentia que não conseguia pronunciar as palavras. Chegou-o a si e abraçou-o, aproveitando a oportunidade única que ele lhe dava de se aproximar.
Quando se afastou, suspirou e tentou esboçar um sorriso maternal.
- Estás com um ar cansado - observou ela, passando-lhe o polegar pelo canto da boca e tentando desfazer a ruga de preocupação, tal como fazia quando ele era pequeno. Voltaste tarde, creio eu.
-Pois voltei.
O que andaste a fazer? Ele desviou o olhar.
- Nada.
A ponte levadiça emocional ergueu-se antes que Elizabeth pudesse fazer algo mais do que manter o equilíbrio. Suspirou e deixou-a ir, pensando que se sentia satisfeita com o momento que ambos tinham passado. Há muito tempo que ele não lhe proporcionava tal coisa.
Foi para a casa de banho e esvaziou o termoacumulador, numa tentativa vã de se libertar de algumas dores que sentia. Quando saiu, Trace desaparecera. Dane estava sentado à mesa da cozinha, no lugar do filho, a beber uma Coca-Cola e com um ar muito sedutor. De calças de ganga e botas. novamente as longas pernas estendidas à sua frente. Arregaçara as mangas da camisa de ganga desbotada até aos cotovelos.
-Tirou um dia de folga? - perguntou ela.
-Tenho de me encontrar com o Yeager daqui a uma
hora. - Os olhares de ambos cruzaram-se quando ele se levantou da cadeira com um movimento indolente. Ela ficou onde estava e ele aproximou-se e passou-lhe a mão por baixo do cabelo, acariciando-lhe a nuca com o polegar, com um gesto que parecia estranha e incomensuravelmente possessivo. - Você está bem? perguntou ele tranquilamente. Uma pergunta estúpida, pensou Elizabeth, respondendo na afirmativa com um aceno de cabeça. Nada estava bem naquela situação. Ela sentia-se atraída por um homem quenão devia desejar, queria coisas que não podia ter, enquanto
o resto do mundo enlouquecia à sua volta. o que estava bem em tudo isso?
Isto, pensou ela, quando Dane inclinou a cabeça e a beijou, o beijo não foi prolongado nem intenso, mas havia nele uma intimidade quase chocante. Elizabeth sentiu-se ofegante e febril quando ele recuou.
Dane afastou-se e pigarreou, pegando com uma mão Pouco firme na arma que deixara em cima da mesa. -Julguei que ia tirar-ma - disse Elizabeth ao ver a Desert Eagle.
- E ia - resmungou Dane, deitando-lhe um olhar irritante - Depois comecei a pensar que você podia ter roubado um arsenal completo e que esta seria a menos má do lote. Concluí que seria preferível uma lição.
-Eu sei disparar uma arma, filho - disse Elizabeth, pondo uma mão na anca. - No sítio em que eu nasci, isso era considerado essencial.
-Pois, mas nunca fez fogo com esta arma, pois não? Ela olhou para o buraco no tecto.
- A não ser ontem à noite? Não.
- Era o que eu julgava. Venha daí.
Foram para o quintal, onde Dane já instalara um alvo. Empilhara alguns fardos de feno meio apodrecido junto da pocilga desconjuntada. Pregado aos fardos, via-se um homem de papel preto e branco, em tamanho natural, com um ar ameaçador e uma arma apontada para eles.
- Estamos virados para leste por uma razão - explicou ele, carregando o tambor. - Ali só há vacas a pastar. Não queremos que uma bala perdida atinja alguma pobre criança amish em casa dos Hauer.
Elizabeth desviou o olhar para oeste, contemplando a quinta dos amish. o quintal estava cheio de gente que, àquela distância, parecia uma manta humana de retalhos a ondular na erva, com as cores características das suas roupas a vibrar ao sol do meio-dia.
Q que estão eles ali a fazer? Uma festa?
- É o serviço religioso de domingo. Passam a manhã aalimentar a alma e a tarde a alimentar o estômago.
- Se eu estivesse tanto tempo a ouvir os pregadores perderia o apetite - comentou Elizabeth, fazendo uma careta. - Mas imaginava Aaron a ouvir, talvez mesmo a pregar a si próprio, com aqueles olhos azul-escuros à procura num mar de rostos devotos, enquanto ele falava da fé e do dever. Virou-se para Dane e perguntou: - Diz-me uma coisa?
- Sim, mas, conhecendo-a como a conheço, de nada servirá - respondeu ele com brandura, preparando a Desert Eagle.
Elizabeth olhou para ele.
- Que engraçadinho! Estou a falar a sério. o que aconteceu à família do Aaron? Ele disse-me que a mulher tinha morrido, mas eles também tinham filhos, não tinham? Dane franziu o sobrolho.
-Sim, tinham. Duas meninas, a Anna e a Gernina.
morreram num acidente há cerca de um ano. A Siri e as filhas voltavam para casa depois de terem ido visitar uma vizinha que tivera um bebé. Era de noite. o Aaron não quis instalar um sinal reflector na carroça... ainda agora não o tem... porque não era «natural». o motorista só as viu quando era demasiado tarde.
Dane suspirou e abanou a cabeça, desejoso de afastar a recordação dessa noite terrível com a mesma facilidade. Ainda ouvia o choro doentio do cavalo no seu estertor e o tiro que ele próprio disparara para o silenciar. Ainda via Aaron, inconsolável no seu desgosto, a chorar convulsivamente e a tentar pegar nos corpos inertes e ensanguentados das filhas.
- Nunca me esquecerei dessa noite por muitos anos que viva - continuou ele. - Foi a coisa mais terrível que aconteceu nesta terra, incluindo assassínios e actos de violência.
Elizabeth não disse nada. Olhou de novo para os campos, observando os Amish que prosseguiam o seu ritual de domingo. Parecia uma cena do século passado - as carroças no caminho, cavalos atados a todas as cercas, as mulheres com as suas toucas delicadas, e a brisa estival a acariciar-lhes a bainha dos vestidos compridos enquanto elas se deslocavam à volta das mesas para servir os homens e as crianças. Queriam estar à parte, que os deixassem em paz no caminho que tinham seguido. Apesar do que lhe acontecera, Aaron continuava a delimitar bem as fronteiras entre o mundo dos Amish e o dos Ingleses. Mas elas seriam transpostas mais tarde ou mais cedo. Ambos os mundos colidiam diariamente.
- Está pronta?
A voz de Dane roubou-a às suas divagações. Elizabeth afastou o pensamento do pacifismo e do isolacionismo dos Amish quando Dane lhe entregou a arma. Colocou-lhe um Par de auscultadores nos ouvidos que a impediam de escutar qualquer som. Depois de pôr o seu próprio capacete de protecção, tomou posição atrás dela e preparou-a para o disparo, afastando-lhe os pés, endireitando-lhe os ombros, colocando-lhe as mãos na coronha e levantando-lhe os braços em posiÇão. Quando se deu por satisfeito, recuou meio passo.
Elizabeth olhou para Dane por cima do ombro. Ele fez um sinal afirmativo. Ela encolheu ligeiramente os ombros e virou-se para o alvo. Não via onde estava a dificuldade, Já fizera aquilo antes. Se Dane estava à espera que ela agisse como uma idiota, semelhante a uma simplória do Minnesota que nem sabia o que era uma arma, bem podia esperar.
Satisfeita consigo mesma, fechou o olho esquerdo, apontou ao seu assaltante a duas dimensões e disparou.
A arma deu um pulo nas suas mãos, obrigando-a a levantar os braços. A força da explosão fê-la perder o equilíbrio e, com o coice, cambaleou para trás e caiu em cima de Dane. Este agarrou-a e as suas mãos enormes fecharam-se suavemente à volta das mãos dela, crispadas na coronha da Desert Eagle.
Elizabeth olhou para ele, atordoada, sem fala, de olhos arregalados, boquiaberta. Já manejara armas que não tinham dado nem metade daquele coice. A coisa quase lhe saltara das mãos.
- Jesus Cristo de mini-saia! - exclamou ela entre dentes, enquanto Dane lhe tirava os auscultadores e lhos deixava ao pescoço como se fossem uma gola.
- Agora sabe porque é que eu não quero que você ande por aí a apontar isto - disse Dane.
Afastou-lhe os dedos da coronha da Desert Eagle. Elizabeth encostou-se a ele, ainda com os joelhos a tremer.
- Isto não é arma para si, «Dirty Harriett» - proferiu ele secamente. - Repare como o cartucho encravou em vez de ser ejectado. Isto acontece porque você não tem força suficiente para manter a arma bem firme no momento do disparo. - Dane pôs os braços à volta dela e retirou com a mão o cartucho usado. - A arma não consegue rodar senão depois de o cartucho usado sair. Se isto fosse um tiroteio a sério, você estaria morta neste momento. Devia ter roubado uma coisa mais do seu tamanho.
Filho, quando você rouba os símbolos fálicos de um homem, procura os maiores, não acha? - perguntou Elizabeth com uma voz arrastada, passando um dedo pelo tambor da arma e deitando-lhe um olhar provocante.
Dane franziu o sobrolho.
-Volte a pôr os auscultadores, «Miss Freud».
-Depois de ela obedecer, Dane ergueu a pistola, sempre com os braços à volta de Elizabeth e disparou rapidamente vários tiros. o cheiro acre da pólvora afastou-se numa fina nuvem de fumo. o peito do pistoleiro de papel desapareceu, deixando à mostra as suas entranhas de feno.
Elizabeth estremeceu ao pensar no que aquelas balas teriam feito a um homem de carne e osso, no que poderiam
ter feito a Dane na noite anterior, se ele não a tivesse dominado.
Assim que ele tirou os auscultadores, Elizabeth afastou os seus e atirou-os para a erva.
-Eu podia tê-lo matado!
Ele inclinou a cabeça para o lado e fez um sorriso de troça.
Você teve a sua oportunidade e desperdiçou-a. -Ora, cale-se! - ripostou ela. - Não sei porque eu me havia de ralar. Você é mau como as cobras e duas vezes mais duro.
«E eu amo-o».
Isto fazia quase tanto sentido como um nevão em Julho, mas era a verdade nua e crua. A sua atracção fatal por homens que não serviam para ela manifestara-se outra vez, vingativa e em tempo recorde.
- Eu jurei que me afastaria dos homens - disse ela em voz baixa.
Parecia tão desapontada que Dane fez um esforço para não se rir. A arma estava ali à mão. Se ele a irritasse muito, ela poderia repensar e acabar com ele.
- É simples, querida - afirmou ele em surdina, sentindO o desejo dentro de si. - A química... o magnetismo animal... o sexo.
o pager de Dane começou a tocar, a gritar como uma espécie de alarme moralista.
- Se alguma vez eu puser as mãos na pessoa que inventou estas coisas... - rosnou ele, afastando-se.
- Dê-lhe também um pontapé por mim - resmungou Elizabeth ao vê-lo aproximar-se da carrinha. Sentou-se no chão e divertiu-se a descarregar o tambor da Desert Eagle enquanto Dane contactava a esquadra pela rádio.
-Tenho de ir - disse ele pouco depois, olhando para ela com um ar implacável. - Alguém vandalizou a Shafer Motors esta noite. o Shafer anda a dizer que foi o Trace
Trace estava sentado à mesa da sala de interrogatórios, desejoso de arregalar os olhos e de cair morto. Já estivera em sarilhos, lá em baixo, em Atlanta. Piores do que este, apanhado dentro de um carro roubado com um grama de cocaína na algibeira - mas nunca se sentira tão mal. Nessa altura, só quisera lixar Brock, envergonhá-lo,
gastar-lhe dinheiro. Nessa altura, valera a pena meter-se em Sarílhos, quando não passava de um miúdo estúpido. Agora não via qualquer vantagem.
A mãe estava no gabinete do xerife, à espera dele. Trace avvistara-a pela janela quando ia no corredor e nunca a vira tão zangada nem tão aborrecida, nem sequer quando ela dissera que tinham de sair da Torre Stuart. E o xerife Jantzen,, sentado em frente dele, do outro lado da meSa, só a observá-lo. A observá-lo com aqueles seus olhos frios. Há cinco minutos que não dizia uma palavra. Trace nunca julgara que isso fosse possível, mas aquele silêncio era dez vezes pior do que gritarem com ele.
Mexeu-se na cadeira e olhou para as mãos fechadas no regaço a pensar que as levaria ao pescoço de Carney Fox se tivesse oportunidade. o maldito Carney e a sua estúpida filOsofia do «mantém-te calmo». Agora, a única pessoa com quem Trace não se queria manter calmo era com carney. uma coisa era arrombar uma caixa do correio, mas danificar automóveis era de mais. Trace não quisera participar naquilo mas carney levara-o a isso, chamando-lhe medricas e cobarde, e agora ele estava lixado. o Jantzen sabia. Não tinha provas, mas sabia, e por qualquer motivo isso parecia-lhe tão mau como ser o culpado.
-Não dou grande valor ao teu álibi, Trace - declarou Dane em voz baixa.
Não podia perder a cabeça. Não havia testemunhas do acto de vandalismo cometido na Shafer Motors. Trace apresentara Carney Fox como álibi e Carney apoiara-o, sempre com aquele seu sorriso convencido e dissimulado. Mas Dane não tinha dúvidas. Fox estava a mentir. Trace estava a mentir.
Passou um dedo pela ponta do relatório que Garth Shafer fizera. Dois carros novos estacionados atrás da estação de serviço tinham os vidros partidos. Esses dois e mais cinco que pertenciam ao lote de carros usados haviam sido severamente riscados com uma faca ou qualquer outro objecto aguçado, danificando a pintura. Não era o tipo de danos graves que Dane esperara depois de receber a chamada, mas também não era algo que se aceitasse de ânimo leve. A lei era a lei. As pessoas não podiam andar na sua região a infringir as regras e a partir dali alegremente.
Dane respirou fundo e suspirou, sem tirar os olhos de Trace Stuart. o rapaz estava uma pilha de nervos quando chegara a casa na noite anterior. Também não era o paradigma da frieza no dia em que o tinham interrogado quanto ao álibi de Fox para o assassínio de Jarvis. Nesse momento, parecia prestes a vomitar. Era como se tivesse sido apanhado numa situação da qual não sabia como sair. Elizabeth afirmara que ele era um miúdo bom com problemas. Dane deu consigo a querer acreditar nisto, tanto por Elizabeth como pelo próprio Trace.
- Mister Shafer disse que tu foste ao stand ontem à tarde para causar problemas.
Trace levantou a cabeça com um gesto brusco e o seu rosto era a imagem da indignação.
- Isso é mentira! Eu fui lá à procura de emprego. Ele é que perdeu as estribeiras, a gritar e...
-Porquê? o que o levou a gritar contigo?
-Não sei! Porque é maluco! Eu só lhe fui pedir o lugar no stand e ele começou a gritar comigo e a chamar-me nomes e a dizer coisas acerca da minha mãe...
Trace calou-se e reclinou-se na cadeira, cruzando os braços. Não diria mais nada. Limitar-se-ia a negar as acusações e a sustentar o álibi, para se ver livre daquilo.
- o que disse ele da tua mãe? - perguntou Dane impacível. Nada - respondeu Trace entre dentes. Não queria falar nisso. Era doloroso e embaraçoso e na sua opinião, era assunto pessoal.
o que disse ele, Trace? - insistiu Dane com cuidado... Trace fungou e olhou para a parede, furioso e magoado. ”” - Chamou-lhe prostituta.
As palavras saíram-lhe da boca num sussurro, tão cheias de raiva e de dor que a última fraquejou e o rapaz corou, envergonhado. Dane passou a mão pela nuca e suspirou. Não devia mostrar-se compreensivo. Apostava que Trace tinha culpas no cartório. Mas não podia ficar ali sentado a ouvir o rapaz e a vê-lo consumir-se de infelicidade sem ter pena dele. E de Elizabeth. E não podia deixar de pensar que o
verdadeiro culpado era carney Fox. Trace parecia zangado, confuso e infeliz, mas não parecia ser destruidor. Pelo contrário, Fox gostava de armar em desordeiro, de provocar sarilhos e de sair deles. Rira-se na cara de Dane quando ofereceu um álibi a Trace. Trace não se rira.
Dane pousou os braços na mesa e inclinou-se para diante.
-Esse tipo de conversa consegue enfurecer uma pesssoa, não consegue?
- Sim, senhor - respondeu Trace em voz baixa, olhando para o mesmo espaço em branco na parede, sentindo-se infeliz. quase que teria vendido a alma para estar noutro sítio o suficiente para que essa pessoa queira ir aos fagotes de quem a tem.
o rapaz limitou-se a fechar a boca e continuou a olhar para a parede. As suas pestanas pretas adejaram como as de um colibri quando tentou conter as lágrimas.
Dane tinha vontade de enterrar os dentes em Garth Shar por desencadear aquela série de acontecimentos. Porque falara ele daquela maneira acerca de Elizabeth na presença do filho? o que diabo se passava com ele? Amargo. Temperamento violento. Vieram-lhe à mente as palavras dos apontamentos de Elizabeth.
-Um homem tem de aprender a ser superior a essas coisas, Trace - repreendeu ele com brandura. - A vingança, a retribuição, tudo isso só serve para te atolares ainda mais na merda. Percebes?
Sim, senhor.
- E se andares por aí com o Carney Fox irás parar à cadeia mais cedo ou mais tarde. o que achas que diriam as pessoas de ti e da tua mãe se isso acontecesse? - Trace nem queria acreditar que dissessem algo pior do que já tinham dito, mas entendeu a mensagem. Ou era superior ao que os outros diziam ou se deixava dominar por isso.
-Ainda andas à procura de trabalho? - Não, senhor. Dane ergueu uma sobrancelha.
-Encontraste alguma coisa?
-Não, senhor, Já não tenho mais a quem pedir.
E ninguém contratara o miúdo porque a mãe era uma bela mulher divorciada do Texas, que usava calças de ganga coladas ao corpo e tinha um Cadillac descapotável cor de cereja. Dane suspirou. Os Stuart estavam a dar-lhe uma nova perspectiva da vida numa cidade pequena, da qual ele não se orgulhava.
Tens medo do trabalho físico duro? - perguntou ele. Trace deitou-lhe um olhar desconfiado, perguntando a si próprio se haveria grupos de homens acorrentados em Minnesota.
-Não, senhor.
-óptimo. - Dane empurrou a cadeira para trás e levantou-se. - Amanhã, aparece em minha casa por volta das dez horas. Contratei uma equipa para apanhar feno. Eles podem aceitar mais uma pessoa.
Trace levantou-se a custo da cadeira, sem querer acreditar no que estava a ouvir. Esperava que Jantzen lhe arrancasse uma confissão e o atirasse para uma cela onde ele ficasse a apodrecer. E o homem estava a oferecer-lhe trabalho!
- Senhor.. Hum... Eu - gaguejou ele, com o cérebro a funcionar mais depressa do que a boca. - Eu não sei nada do trabalho do campo - acrescentou, corando com a admissão das suas limitações.
Aquilo não era maneira de impressionar um potencial patrão. «.Bom trabalho, Trace. Abre a boca e continua a dizer asneiras.»
Este trabalho requer músculos, e não miolos. Mostra-me que sabes receber ordens e trabalhar como um homem e talvez eu possa utilizar-te durante todo o Verão.
Trace fez uma mesura e os óculos escorregaram-lhe no nariz.
- Sim, senhor. Obrigado, senhor - agradeceu ele. Por pouco não tropeçou ao contornar a mesa. - Vou trabalhar como um cão, senhor, a sério. - Ia a estender a mão a Dane, mas depois viu que tinha a mão suada e limpou-a primeiro à perna das calças.
Dane pegou na mão do rapaz e apertou-lha à homem. ”,Garth Shafer iria insurgir-se contra o facto de um jovem vadio ficar impune, o que ele considerava uma injustiça. Talvez Dane estivesse a permitir que a sua relação com Elizabeth lhe turvasse o raciocínio, mas, na sua opinião, dar uma oportunidade a um miúdo que andava por maus caminhos era um grande serviço prestado à justiça.
Elizabeth estacionou o Cadillac no quintal. Desse modo pôde vê-lo da janela da cozinha. Sem dizer uma palavra, tirou as chaves da ignição e deixou-as cair dentro da mala. Ficou ali sentada durante algum tempo, a verificar o verniz das unhas, e depois saiu do carro e bateu com a porta.
Trace estremeceu. Tinha a sensação de que o interrogatório de Dane iria parecer canja comparado com o que a mãe lhe reservara. Ela não lhe dissera uma palavra. Nem ao cherife Jantzen na esquadra. o que era um mau sinal. A mãe era faladora. Quando não tinha nada para dizer, em geral
Isso significava que estava a guardar-se para uma grande Cena. Nela, o silêncio era como a calma antes de um tornnado
- um período de misterioso silêncio antes de se desencadear a fúria.
Trace arrastou-se para fora do carro, mas demorou a entrar em casa, entretido a fechar a capota rota do Cadillac,
não fosse chover. Em seguida, contornou o carro para verificar os pneus, porque a mãe era mulher e as mulheres não fazen essas coisas. Havia uma amolgadela na porta do lado do condutor e uma série delas no porta-bagagens do mesmo lado. Devia ser do assalto, pensou ele, com uma náusea. Lambeu a ponta do dedo e tentou disfarçar um risco na pintura com a saliva.
-Também vais fazer isso a todos os carros do Garth Shafer?
As palavras da mãe soaram aos ouvidos de Trace como o estalar de um chicote. Encontrava-se na escada das traseiras, com a mão na anca e um olhar furioso. Trace engoliu a custo.
-Não, mãe - respondeu ele em voz baixa. Encaminhou-se para casa, a arrastar os pés como se estes fossem de ferro. A mãe entrou à frente dele, deixando que a porta de rede se lhe fechasse na cara. Ficou à espera dele na cozinha. Depois, atirou a mala para o outro lado da sala e pendurou-a na porta do frigorífico ao lado do filho, fazendo-o dar um salto.
- Com os diabos, Trace, como é que pudeste fazer uma coisa destas? - gritou Elizabeth, cuja raiva brotou com a ferocidade de uma erupção vulcânica. - Como é que pudeste fazer-nos uma coisa destas? Céus, como é que podes esperar que as pessoas gostem de ti se te dás com o pior monte de lixo das redondezas e passas metade da noite a amolgar carros e a fazer sabe-se lá mais o quê?
Trace limitou-se a encolher os ombros e a baixar a cabeça.
- Viemos para aqui para começarmos de novo - continuou ela, pondo as mãos nas ancas para não o abanar. - Eu farto-me de trabalhar e tento construir um lar para nós nesta terra. E tu o que fazes? Sais e fazes amizade com gente como o Carney Fox!
«Eu dei uma olhadela ao cadastro dele enquanto tu estavas a falar com o xerife. Como é que julgas que eu me senti ao saber que ele foi preso por posse de droga com intenÇãO de vender? - Elizabeth mordeu o lábio para lutar contra o medo e abanou a cabeça, andando de um lado para o outro ao longo da mesa. - Trace, ajuda-me, se andas a consumir outra vez...
- Não ando a consumir! - gritou Trace. Já bastava estar a ser acusado de coisas de que era culpado. - Céus, quantas vezes é que tenho de to dizer?
-Então o que andas por aí a fazer com ele? -Ele é um amigo...
- Com amigos como ele não precisas de inimigos. Olha em que ele te meteu agora!
- Bem, talvez a ideia fosse minha. - Trace desviou a mão com um ar aguerrido, empinando o queixo. - Algumavez pensaste nisso? Talvez eu não gostasse da maneira como o merdoso do Shafer te chamou prostituta na minha cara
e eu lhe tenha amolgado dois dos seus estúpidos carros. Elizabeth fechou os olhos e tapou a cara com as mãos. Era tudo culpa dela. Tudo. Ela levara Shafer ao rubro e Trace tentara defender a sua honra daquela maneira terrívelnente errada porque ela era uma péssima mãe. Se o tivesse educado como devia ser.. Se lhe tivesse dado um pai... Se não tivesse tão mau gosto a escolher os homens...
-Eu estraguei tudo - disse Trace com amargura. É aquilo em que eu sou melhor, não é?
Trace...
- Não, é verdade --insistiu ele. Os sentimentos e as palavras atravessaram-no vindos de um canto escuro e triste do coração e surpreenderam-no tanto a ele como à mãe.,, estrago tudo - afirmou ele, incrédulo, abanando a cabeça perante a revelação. - Desde o primeiro dia. o meu pai engravidou-te e desde então a vida tem sido um caos.
-Querido, isso não é verdade - disse Elizabeth em voz baixa, com as palavras a colarem-se à garganta.
- É - repetiu ele com amargura. - Tu casaste com o Bobby lee por minha causa e ele deu-te com os pés. Depois divorciaste-te e continuaste agarrada a um miúdo, e talvez não consigas arranjar um tipo decente porque nenhum homem quer o filho de outro. E talvez o Brock não te tivesse rejeitado se não fosse eu. Ele nunca me quis por perto e quando eu comecei a criar problemas ele pôs os dois na rua.
- oh, Trace...
-Eu nunca devia ter nascido - concluiu ele em surdina.
Antes que a mãe pudesse refutar as suas palavras, Trace deu meia volta, saiu à pressa pela porta das traseiras, galgou os degraus e correu para a floresta a toda a velocidade. Não sabia para onde ia nem porque corria, mas tinha de fazer qualquer coisa com a raiva, a frustração e a dor que aumentavam dentro dele, antes que explodisse. Embrenhou-se na floresta e desceu a correr um velho carreiro coberto de vegetação rasteira. Tropeçou em raizes, afastou ramos do caminho e correu até ficar com os pulmões em fogo e a T-shirt colada à pele como papel molhado.
Depois abrandou e caminhou durante algum tempo com as mãos enfiadas no cós das calças. o ar da floresta estava mais fresco e escuro, adocicado com o odor das folhas verdes e o húmus. Quando o pulso abrandou e o sangue deixou de latejar-lhe nos ouvidos, Trace começou a detectar os sons que o envolviam - o grito de Ladrão! de um gaio azul ao descer rapidamente dos ramos de um carvalho, os gorjeios intrometidos dos pardais, o roçar das unhas dos esquilos nos troncos quando se perseguiam uns aos outros, de árvore para árvore.
Ao embrenhar-se mais na floresta, descobriu um sítio onde morrera um velho bordo que caíra, formando uma clareira. Levantou-se e sentou-se no banco natural a pensar.
Agora que fugira às emoções desenfreadas, sentia-se mais calmo. Ficou ali sentado, a ouvir os sons tranquilos da floresta, como se tivesse atingido as maiores encruzilhadas da sua vida com o projector ofuscante da revelação a incidir nele. Podia continuar a estragar tudo como sempre fizera, agindo como um miúdo estúpido e desiludindo toda a gente, ou podia tomar as rédeas da sua vida e começar a agir como o homem que queria ser. Como Jantzen afirmara, ele tinha opções a fazer e chegara o momento de as fazer.
Trace não sabia há quanto tempo estava ali sentado quando o som de qualquer coisa que atravessava a floresta interrompeu o seu transe. Levantou a cabeça no momento em que um cavalinho preto com uma mancha branca no focinho apareceu na clareira, e o seu coração deu um salto e ficou colado à garganta quando viu quem o montava: a rapariga da esquadra. Amy. Ele vira-a na bancada, a assistir ao jogo de softball e ouvira alguém tratá-la por Amy. Devia ter imaginado que ela teria um nome bonito e luminoso como esse. Condizia com o seu sorriso.
Não se aproximara dela no campo de jogos. Ela estava rodeada de amigas, como convinha a uma rapariga como ela, e Trace andara a passear pelas linhas laterais, desejando conhecer alguém a quem pedisse para participar no jogo.
Era razoável no manejo do taco e tinha um shortstop bastante bom. Pensou que conseguiria impressioná-la se pudesse,,, mas não conhecia ninguém e ninguém o abordou. Depois apareceu o xerife.
Céus, ela devia pensar que ele era o maior desordeiro desde Caim. O cavalo dela assustou-se um pouco ao vê-lo. Amy arregalou os olhos de surpresa... Ou de choque... Ou talvez fosse de aborrecimento. Trace não sabia. Deixou-se escorregar para o chão e endireitou os ombros.
- Desculpa - disse ele em voz baixa. - Eu não queria assustar o teu cavalo.
Amy levou um certo tempo a encontrar a língua. Não podia acreditar. Ele estava ali, na floresta, praticamente à espera dela. o coração batia-lhe com tanta força que julgava vê-lo mexer-se por baixo da camisa enorme que fora buscar ao roupeiro do pai. Vira-o no jogo de softball na margem, a observar tudo com o seu olhar sério, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças de ganga e os ombros a forçar as costuras da T-shirt branca. Era um solitário, um rebelde. Melancólico e silencioso. Como James Dean. Amy adorava James,, apesar de ele ter morrido e ter idade para ser pai dela.
- Não faz mal - disse ela.
refizera-se admiravelmente do susto e virara a cabeça para o lado, mordiscando as folhas de uma silva. Amy desceu da égua e endireitou a saia que lhe chegava quase aos joelhos. Sentiu-se morrer de vergonha. Não estava maquilhada e tinha a certeza de que parecia ter apenas doze anos com aquela saia que a engolia. Não era assim que gostaria de estar quando o encontrasse.
-Desculpa se interrompi os teus pensamentos.
Trace encolheu os ombros, sentindo o cérebro paralisado ao tentar pensar numa maneira fria de reagir. «Age como Um homem, estúpido. Esta é a tua oportunidade.» Deitou fora o pedaço de casca de árvore com que estivera a brincar e limpou a mão à perna das calças.
-Trace Stuart - disse ele.
Amy apertou-lhe a mão, tentando disfarçar o sorriso ridículo e leviano. Nenhum dos rapazes que ela conhecia era suficientemente educado para apertar a mão a uma rapariga. Parecia-lhe um gesto antiquado e terrivelmente maduro. Sentiu um formigueiro no corpo quando a mão grande e quente de Trace se fechou na sua e ela se sentiu derreter.
- Amy Jantzen.
-Jantzen? - Trace tinha a certeza absoluta de que o seu coração parara. Largou-lhe a mão e recuou um passo. Como o xerife Jantzen?
-Ele é meu pai.
A maioria dos rapazes de Still Creek ficava impressionada quando ela lhes dizia quem era o pai. Olhavam-no com admiração, mais por ele ter sido um jogador de futebol profissional do que por ser xerife. Mas Trace Stuart reagira como se ela lhe tivesse dito que o pai era Drácula. Mordeu o lábio, esperando não o ter assustado para sempre. Era uma idiota. Devia ter percebido que um rebelde como ele se mostraria cauteloso perante a autoridade, sobretudo depois de ela o ter visto no gabinete do xerife. Nesse mesmo dia, o pai fora ao campo de softball ter com ele e depois tinham saído juntos com um ar pouco satisfeito.
- Estás metido nalgum sarilho com ele? - perguntou Amy à cautela.
Trace desviou o olhar e encolheu os ombros.
- Hum... Mais ou menos. Bem... Nem por isso. É mais ou menos isso. - Engoliu em seco e recriminou-se. - Ele pediu-me que fosse trabalhar para ele.
Amy arregalou os olhos.
- A sério? - disse ela, ofegante. - Como infiltrado ou coisa no género?
-A empilhar feno - respondeu Trace, sentindo-se o tolo do século.
Se ele fosse mentiroso, poderia ter dito que era um agente especial. Ela riu-se e franziu o nariz, e Trace sentiU um aperto no estômago.
-Acho que tenho uma imaginação hiperactiva - admitiu ela, esperando que ele não a julgasse uma cabeça-no-ar. - É o que diz o Mike. o Mike é o meu padrasto. -Os teus pais estão divorciados?
Ela fez um sinal afirmativo, enrolando as rédeas do cavalo à volta de umas silvas.
Eu vivo em Los Angeles com a minha mãe e o meu padrasto. Venho aqui passar uns dias com o meu pai.
- E tu? - Amy aproximou-se do tronco caído e sentou-se. - Tu não és de cá.
Trace enfiou as mãos nas algibeiras e amaldiçoou o seu sotaque. Naquela terra, toda a gente o olhava de lado quando falava. Amy devia julgar que ele era algum campónio do sul.
- Mudámo-nos para aqui há pouco tempo - informouele em voz baixa. - Eu e a minha mãe. Viemos de Atlanta. Ela sorriu abertamente.
- De Atlanta. Bestial - observou ela, franzindo o nariz com aquela expressão que lhe dava tanta graça. Trace sentiu de novo um aperto no estômago. - Gosto da maneira como falas.
Trace ficou boquiaberto.
- Gostas?
Ela fez um sinal afirmativo e agarrou na fralda da camisa. Por instantes, ficou a observá-lo, com a cabeça inclinada para o lado e os cabelos compridos e ondulados caídos como uma cortina.
-Também gosto dos teus óculos rectro. Esse toque retro é o máximo
Trace sorriu, sem conseguir conter-se. Foi sentar-se no tronco ao lado de Amy Jantzen, e de repente pensou que a vida talvez não fosse assim tão má.
Sentada na escada das traseiras, Elizabeth olhava para a floresta que lhe engolira o filho.
-Sempre que penso que não me posso sentir pior, afumdo-me um pouco mais - disse ela em surdina, fazendo girar o gelo no copo com a estampa do coiote Wile E. Examinou a personagem sorridente de banda desenhada, que parecia estar mergulhada em uísque até aos tornozelos, e fez votos para que ela própria tivesse a mesma resistência de que o coiote dava mostras quando os seus grandes planos saíam furados e as bigornas choviam sobre a sua cabeça. Infelizmente, a vida não era a banda desenhada e tudo o que,, em cima dela deixava uma nódoa negra.
Tivera vontade de ir a correr atrás de Trace mas, além de não conseguir alcançá-lo, não sabia o que iria dizer-lhe se o apanhasse. Não podia dizer que o seu nascimento fora planeado, porque não fora. Não podia dizer que não passara um mau bocado depois de o seu casamento com Bobby Lee ter acabado, porque passara. Apetecia-lhe dizer que ele não tinha culpa nenhuma disto, mas ele não queria ouvi-la.
Olhou para oeste, para a quinta dos Hauer. As festividades religiosas de domingo tinham terminado. As carroças haviam desaparecido. A quinta dos Amish era a imagem da paz e da tranquilidade, e Elizabeth desejou que a brisa lhe trouxesse uma parte dessas sensações. Era capaz de viver de uma maneira mais simples, mas nunca nada fora simples para ela, e não havia motivo para pensar que a situação se alteraria tão depressa.
Como que a confirmar a sua opinião, a camioneta de Dane começou a descer a estrada, com uma nuvem de pó atrás. Dane abrandou, virou para a rampa de Elizabeth e estacionou ao lado do Cadillac. Elizabeth ficou onde estava, vendo-o atravessar o relvado cheio de ervas daninhas. Não era difícil imaginá-lo vestido de futebolista, com aquelas longas pernas a descer o campo, elegantes, as mãos hábeis estendidas para apanhar a bola e as ancas estreitas a esquivarem-se aos médios com movimentos que deixariam uma mulher sem fôlego. Mas ela sabia exactamente o tipo de movimentos que aquelas ancas conseguiam fazer, não sabia? E de facto elas tinham-na deixado sem fôlego várias vezes, na noite anterior. o homem podia ter os seus defeitos, mas não na cama.
Dane parou no último degrau, com os olhos ao mesmo nível dos dela.
-Você bebe muito disso - afirmou ele, pondo as mãos nas ancas.
- o que tem você com isso? - ripostou Elizabeth, mas sem a insolência que pretendia mostrar e com uma grande dose da vulnerabilidade que queria ocultar. A brisa do fin] da tarde despenteou-a e ela afastou os cabelos com a mãO, prendendo-os na nuca.
Dane tirou-lhe o copo da mão e engoliu os dois últimos dedos de uísque, abençoando o calor suave que sentiu na garganta e depois no estômago. Estava exausto. Farto de ler relatórios e ainda mais farto dos motivos que o obrigavam a lê-los e relê-los. Ficara com dores de cabeça depois de ter aturado Carney Fox em mais uma troca de palavras desagradável e inútil, e Garth Shafer desancara-o, furioso por Trace não ter sido preso nem acusado. Bem merecia uma bebida.
Depois, porém, ao ver a expressão desanimada de Elizabeth, admitiu que talvez ela merecesse também beber um copo
-Como correu a conversa com o Trace?
- oh, lindamente - respondeu ela com um sorriso postiço. - Gritei com ele, descobri que ele se culpa por tudo aquilo que é da minha responsabilidade e depois fugiu. Acho que vou entrar no circuito dos talkshows como especialista de pedagogia. Sou o exemplo vivo daquilo que não se deve fazer.
Dane conhecia esse sentimento e não pôde deixar de se aproximar dela, num gesto de compaixão.
-Não seja tão dura para consigo própria - recomendou ele, subindo os degraus para se sentar ao lado dela, está numa idade difícil.
o sorriso postiço tornou-se triste e pensativo quando ela passou mentalmente em revista os últimos dezasseis anos da sua vida.
-De certo modo, o Trace sempre esteve numa idade difícil desde a concepção. Sempre foi tão triste, tão metido... Não creio que alguma vez tenhamos estado no mesmo comprimento de onda.
- Não é fácil ser pai ou mãe.
Dane olhou para o fundo do copo do Coiote para ver se..., ainda havia um resto de uísque, mas não havia.
Elizabeth mirou-o de soslaio e reparou nas rugas de tensão e de fadiga junto dos olhos e da boca, que lhe davam, um aspecto mais duro, mais velho, mais atraente e mais perigoso.
-Essa parece a voz da autoridade - afirmou ela. Dane fez uma careta.
- Estou na lista negra da Amy porque lhe disse que ela ainda não tinha idade para namorar.
- Quantos anos tem ela?
- Quinze.
-Que idade julga você que ela devia ter? -Trinta e cinco.
Pela primeira vez desde há vários dias, Elizabeth sorriu espontaneamente e deixou escapar uma gargalhada. Pobre Dane. Estava ali sentado, com um ar rude e vexado, grande e implacável... E vulnerável. Elizabeth não pôde deixar de lhe tocar. Esfregou-lhe as costas com a palma da mão, em movimentos circulares lentos e reconfortantes, e deitou-lhe um olhar compreensivo.
- Você é um pai superprotector?
- Acho que sou - admitiu ele, contrafeito. - Perdi tanta coisa da infância da Amy que nem quero pensar que ela está a crescer.
- Eu não era muito mais velha do que ela quando tive o Trace - lembrou Elizabeth, com um ar pensativo. Dane estremeceu e ficou visivelmente pálido.
- oh, céus, por favor não diga uma coisa dessas.
- Desculpe, filho, mas é verdade. É claro que eu estava muito mais entregue a mim própria nesse tempo...
A voz de Elizabeth esmoreceu e ela pôs os braços à volta dos joelhos e olhou de novo para a floresta. Dane examinou-lhe o perfil, com uma sensação de fascínio. Dissera a si próprio que não queria saber nada acerca dela, mas agora, quando estavam ambos ali sentados naqueles degraus velhos e rachados, a partilhar dúvidas, apetecia-lhe saber tudo.
- E os seus pais?
Elizabeth encolheu o ombro nu com um movimento demasiado acidental para ser verdadeiro.
-Não me lembro da minha mãe. Ela morreu quando eu era bebé. E o J. C., o meu pai, perdeu-se num mundo que era só dele - elucidou ela com um sorriso triste.
Em criança, pensava muitas vezes como a sua vida teria sido diferente se a mãe fosse viva. Fantasiara acerca de um lar a sério, permanente, com flores à volta e um quintal com uma cerca de madeira para o cachorro não fugir. Imaginara a mãe tal como ela era nas velhas fotografias de J. C. sempre bela, sempre com aquele sorriso doce, como os anjos, sempre com um lindo vestido de flores e um colar de pérolas ao pescoço. Teriam sido uma verdadeira família com amor para dar e vender se ela e J. C. não tivessem ficado sozinhos. Ele com todo o seu amor sempre ligado a uma rijulher que desaparecera para sempre, e sem nenhum para a filha que ela deixara, para a filha que, ironicamente, se parecia com ela na idade adulta.
Dane ouviu-a falar acerca do pai, um cowboy que passara tanto tempo agarrado à garrafa como à sela. Ouviu-a pintar o quadro de uma infância que devia ter sido tão desolada
. em termos emocionais como a paisagem do Texas que lhe servira de pano de fundo, e teve vergonha de si próprio por a ter julgado tão severamente. A sua infância fora do género
orman Rockwell - a família perfeita com filhos perfeitos,,,
a viverem numa cidadezinha perfeita. Fora cumulado de amor e de privilégios, educado a acreditar que podia fazer tudo, ser tudo. Elizabeth fora criada a acreditar que era um estorvo. Crescera esfomeada de amor e de carinho. Isso explicava muita coisa nela.
-Depois conheceu o pai do Trace - adiantou ele.
- Sim - disse ela em voz baixa, sempre a olhar para dentro de si própria, para o passado, sorrindo ao lembrar-se da primeira vez que vira Bobby Lee, com o seu sorriso de mil watts e os seus perversos olhos verdes. - Bobby Lee Breland, o terceiro melhor laçador de bezerros, um Romeu de primeira classe. Esse rapaz podia vender encanto ao litro que ainda lhe sobravam uns baldes. Tivemos um período formidável, prosseguiu ela, mas o seu sorriso desvaneceu-se quando as recordações se tornaram amargas. - Até nos casarmos. Eu tinha dezassete anos e estava grávida e o Bobby não dava grande importância ao facto de ter um comproMisso com uma mulher.
Dane criou uma aversão instantânea ao primeiro marido de Elizabeth. Não suportava um homem que fugisse às suas responsabilidades. Ele teria ficado com Elizabeth se ela trouxesse um filho seu no ventre. A imagem mental dela com o bebé a pesar-lhe no corpo despertou nele uma forte sensação de posse. Abafou-a e concentrou-se de novo na história dela.
-Você ficou assustada?
- Terrivelmente. - Elizabeth riu-se e abanou a cabeça. Fiz de conta que não fora nada, como se tivesse o mundo aos meus pés, mas a verdade é que eu não percebia nada de «dar à luz». E o Bobby Lee também não. A sua especialidade era a parte que antecedia o bebé. Tudo o que se passava depois não pertencia à sua secção.
- o grande fascínio da natureza é que os bebés nascem quer as mães saibam o que têm de fazer, quer não saibam. Seguiu-se um silêncio, que se abateu sobre as suas palavras. A boca de Elizabeth contorceu-se num esgar quando ela voltou a olhar para a floresta.
- Talvez a Mãe Natureza devesse pensar em alterar isso. Pouparia um grande sofrimento a muitos bebés.
- o que aconteceu ao Bobby Lee? - perguntou Dane, tentando afastá-la do precipício emocional em que ela se encontrava.
Tinha uma atracção fatal por rainhas de rodeos. o que resultou enquanto eu fui uma delas. Depois de eu começar a parecer-me mais com um barril do que com as raparigas que corriam à volta deles, a sua linda cabecinha começou a virar-se para um lado e para o outro até termos a sensação de que ele se transformara num chicote. Continuei a viver com ele durante algum tempo, só por teimosia, mas não valia a pena. Por fim, ele punha-se em todas as raparigas que lhe apareciam à frente e eu deixei-o. o resto é história, como se costuma dizer.
Elizabeth lançou-lhe outro dos seus sorrisos sardónicos, daqueles que não eram suficientes para afastar as sombras do passado do seu olhar. Dane teve a sensação de que o resto da história que ficara por contar era longa e triste. Não devia ter sido fácil para ela desenvencilhar-se sozinha con uma criança. Os seus olhos caíram na pequena cicatriz que lhe saía do canto da boca. Dane tocou-lhe com o polegar.
-Como é que você fez isto? - perguntou ele tranquilamente, sem tirar os olhos dela.
Elizabeth não queria contar-lhe. Era como se ele estivesse a chegar à sua alma e a tirar-lhe pedacinhos dela, uns pedacinhos que ele nem se daria ao trabalho de devolver quando a deixasse. Mas respondeu-lhe, sem conseguir fugir àqueles olhos azuis nem à necessidade de estabelecer um contacto emocional com ele.
- Um dia, quando cheguei do emprego, apanhei o Boby Lee em cima da Miss Rodeo. Fui atrás dele com uma pistola com que costumávamos apanhar ratos e furei-lhe o rabinho todo. Então, ele perdeu a cabeça, tirou-me a pistola e deu-me uma tareia com ela.
- Céus! - exclamou Dane em voz baixa, furioso, como se tivesse levado um murro no estômago. A avaliar pelo ar indiferente dela, aquela situação devia ter sido uma entre muitas.
- o Trace estava a dormir - disse ela com um sorriso triste. - Era um bebé formidável.
:, Céus, pensou Dane, ela era pouco mais do que uma criança, com um bebé e um marido que a tratava abaixo de cão. Aquela onda indesejável de protecção invadiu-o de novo. Ele deixou-a aproximar-se. Acariciou o rosto de Elizabeth com a mão, inclinou-se e beijou-lhe a cicatriz.
-Lamento - disse ele em surdina.
Lamentava o quê?, perguntou Elizabeth a si própria.O seu passado ou o futuro que ele não lhe daria? Afastou o,,,,. Apaixonar-se por ele era apenas um obstáculo imprevisto que ela teria de transpor sozinha.
-Agora é a sua vez - ameaçou ela, atirando a bola para o campo dele.
Dane retraiu-se, sem expressão. -A minha vez de quê?
De dar pormenores - respondeu Elizabeth, agitando a mão como um maestro a preparar-se para a acção. - Não sou só eu que vou ficar aqui de calças na mão. Vomite qualquer coisa, Jantzen.
- o quê? - perguntou ele com um ar carrancudo... - o que aconteceu entre si e Mistress Jantzen, por exemplo.
Dane virou a cabeça e olhou para as pastagens a leste. Para a sua propriedade, onde algumas vacas se regalavam a Comer trevo e erva. Não gostava de inverter os papéis, não lhe agradava a ideia de partilhar outras coisas a seu respeito que não fossem aquelas que ele escolhera para aquela relação.
-Não resultou - disse ele, lacónico, reduzindo a história ao mínimo. - Quando eu fui obrigado a deixar de jogar futebol, resolvi voltar para aqui. Ela ficou em Los Angeles e encontrou alguém que podia continuar a proporcionar-lhe o nível de vida a que estava habituada.
Dane omitiu os pormenores desagradáveis. Os sentimentos de traição e de rejeição. A terrível sensação de cair das alturas do estrelato para os abismos do desespero, de se tornar um alvo de compaixão e de ser ridicularizado e de até a própria mulher lhe virar as costas.
Podia ter sido parcimonioso com as palavras, mas Elizabeth detectou um eco de amargura na sua voz. Viu-lhe os músculos do queixo a crisparem-se, a rigidez dos ombros. Dane era um homem orgulhoso, um homem que estava habituado a controlar-se. Ela compreendia que ele não aceitasse bem a existência de divergências na sua vida privada, tal como as não aceitava na vida profissional, e que também não tolerasse a rejeição.
Qual a mulher que rejeitava um homem quando ele mais precisava dela, quando ele se sentia mais vulnerável, perdido? Essa mulher merecia que lhe arrancassem os cabelos pela raiz, concluiu Elizabeth. Perguntou a si própria se Dane ainda amaria a ex-mulher, mas não lho perguntou. Não queria imaginar que ele amasse outra pessoa a não ser ela, o que era um disparate total.
É claro que isso não a impedia de pensar no assunto. Dane Jantzen não a amava, não queria nada dela a não ser sexo. Ela não podia obrigá-lo a amá-la, mas podia fazer de conta que ele a amava. Durante algum tempo. Apenas o suficiente para não se sentir tão sozinha.
-Vamos lá para dentro - sugeriu ela em voz baixa. A casa estava tão silenciosa que parecia suster a respiração enquanto a luz do Sol esmorecia e a poeira do dia assentava nos móveis. Elizabeth subiu as escadas à frente.
Dane desconfiou que o que ela queria tinha pouco a ver com sexo - pelo menos com o tipo de sexo a que ele estava habituado - sexo brutal, desenfreado, para diversão. IstO tinha a ver com bem-estar, com duas pessoas a perderem-se nos braços uma da outra durante algum tempo. Desta vez, ele queria entregar-se a ela, não só porque estava louco de desejo, como também porque lhe doia um canto do coraçãO que ele fechara deliberadamente, um canto em que Elizabeth conseguira tocar e do qual mais ninguém se aproximara.
o cinismo de Dane pô-lo de sobreaviso. Não queria nada permanente e não vislumbrava que tal acontecesse com Elizabeth. Ela não gostaria de ficar por ali, sobretudo depois da recepção de que fora alvo, e ele não queria viver em
mais parte nenhuma. Mas não podia deixar de reagir, de lhe tocar, de a saborear. Ele podia fazê-lo desde que mantivesse a sua objectividade.
Mantém a cabeça fria e o coração fora disto.
Dane deixou a mensagem chegar ao fim e depois desligou o som, fechou-se a tudo excepto a Elizabeth e ao desejo incrível que o consumia sempre que lhe tocava.
Depois percebeu. Aquela necessidade que ele negara vezes sem conta junto de outras mulheres. Quando estava deitado naquela grande cama de latão com Elizabeth a abraçá-lo, a necessidade assaltou-o como se fosse um ladrão.
Dane olhou para ela e tentou negá-la mais uma vez. Elizabeth não era mulher para ele. Não servia para uma relação permanente. Eram demasiado diferentes. o que os atraía tinha mais a ver com as circunstâncias do que com outra coisa qualquer. Tinham-se cruzado numa situação em que as emoções eram fortes e a química natural faiscara e originara incêndio. Assim que o caso estivesse resolvido, as coisas arrefeceriam e eles separar-se-iam. Elizabeth seguiria o seu caminho e a vida dele voltaria à rotina habitual.
- Esta noite ficará um agente no seu quintal - comunicou ele, afastando-se dela e levantando-se da cama. Elizabeth sentou-se, com o cabelo nos olhos e o lençol enrolado na mão, debaixo dos seios.
- Está bem - anuiu ela em voz baixa, vendo Dane a abotoar o fecho das calças.
o tempo dela chegara ao fim. Tinham gozado o seu interlúdio de amizade e a sua hora de sexo. Agora, voltava a cer polícia. Que vida organizada ele tinha! Elizabeth olhou-o e sentiu-se magoada. A vida dela era um caos, como
um novelo de lã, como os ramos entrelaçados de uma trepadeira, como os seus cabelos desesperadamente emaranhados. Ele lançou-lhe um olhar que a atingiu por lhe parecer que era mais de piedade do que de contrariedade.
-Tenho de ir.
o orgulho fê-la empinar o queixo. Os seus olhos faiscaram de raiva para esconder o sofrimento.
-Eu não lhe pedi que não fosse.
Saiu da cama pelo outro lado e dirigiu-se à janela, com o lençol enrolado à volta do corpo como uma toga grega. Lá fora começava a escurecer. Do outro lado do quintal, viam-se os anexos da quinta, cujas fachadas cinzentas e tristes assumiam um aspecto sinistro à medida que o Sol desaparecia no horizonte. Elizabeth olhou para o interior escuro do barracão aberto e sentiu um calafrio na nuca. A sensação de que estava a ser observada apoderava-se dela. Eram arrepios estranhos, pensou ela, afastando-se da janela.
Descobriu um cigarro na mesa-de-cabeceira e tirou um isqueiro da gaveta.
- Obrigada por ser brando para com o Trace - agradeceu ela, largando uma baforada de fumo para o tecto. -Eu não tinha motivos para o prender - disse ele, vestindo a camisa.
- Também não tinha para lhe dar trabalho - contrapôs ela.
- Se ele for bom rapaz, merece uma oportunidade. Elizabeth fez um sorriso forçado e olhou para os pés. Em par-te, queria agarrar-se à esperança de que Dane fora bom para Trace porque se preocupava com ela. Que disparate! Que egoísmo!
Precisava de uma pedicura, pensou distraidamente. Era uma pena que não pudesse pagar a nenhuma senão daí a vinte e tal anos. Pelo canto do olho viu as botas de Dane, que se encaminhava para a porta. Dane hesitou, virou-se para trás e hesitou de novo. Ela não levantou a cabeça. Não queria ver aquela expressão no olhar dele. Não queria que ele tivesse pena dela, pensou, obstinada. Não queria que ninguem tivesse pena dela, incluindo ela própria. Puxou outra fumaça e aproximou-se de novo da janela, arrastando uma coluna de fumo atrás de si como o motor de um avião.
Dane ficou a olhar para ela, sem saber o que havia de dizer. Nunca tivera problemas destes ao despedir-se de Anne Markham, mas também nunca lhe apetecera passar a noite só abraçado a ela. Nunca se importara com o que ela sentia, nem sabia se ela se sentia só depois de ele partir. Olhou para Elizabeth, que tinha o queixo levantado e olhava lá para fora, sentiu o vazio dela como se fosse seu.
Era uma coisa perigosa, a emoção. Ele já participara nesse jogo e perdera. Era melhor passar sem ele. Elizabeth ficou à janela, a ouvir os passos dele na escada e o ruído distante da porta de rede. Viu-o atravessar e entrar na camioneta e afastar-se, com os faróis traseiros a brilharem através da poeira, ao encontro do sol-poente. Ficou ali durante muito tempo, a olhar para a escuridão que se adensava, sem saber que estava a ser observada.
Através da grande montra de vidro que dava para Main Street, Dane viu que o Coffee Cup servia os pequenos-almoços habituais e mais alguns. Estacionou a Bronco atràs da camioneta de Yeager. Este arrumava o carro tal como se vestia. A sua velha Ford castanho-escura tinha uma roda traseira em cima do passeio e um guarda-lamas dianteiro encostado a uma boca de incêndio. Boozer tinha a cabeça fora da janela do lado do condutor e rosnou baixinho a Dane quando este atravessou o passeio e subiu os degraus do restaurante.
o ruído atingiu-o em cheio quando Dane abriu a porta e entrou - a conversa, o tilintar da louça, o chiar e o arrastar das cadeiras, o silvo do grelhador. E com os sons vinham os cheiros - o bacon a fritar, o café quente, os rolos de canela. Dane procurou Yeager, que lhe acenou de um compartimento lá atrás.
Um repórter do Pioneer Press que estava sentado numa das mesas da frente levantou-se da cadeira e tentou encontrar-se com Dane, atravessando o labirinto de mesas e de empregadas apressadas.
-Xerife, tem novas pistas... -Não tenho comentários a fazer.
- E acerca do assalto ao jornal local...
Dane lançou um olhar carrancudo ao repórter, que suspirou e se afastou. Continuou o seu caminho e um braço atravessou-se à sua frente como um obstáculo de uma cabina de portagem. Ele parou e franziu o sobrolho a Charlie Wilder e Bidy Masters, que partilhavam um compartimento e as suas ocupações em frente de pilhas de panquecas de Phyllis. O rosto arredondado de Charlie abriu-se num dos seus sorrisos nervosos.
-Há novidades, Dane?
Você será o primeiro a saber, Charlie.
A careta de Bidy acrescentou mais duas rugas ao seu rosto alongado e magro.
-Que caso é esse de que o Garth Shafer anda a falar esta manhã? Aquele miúdo Stuart assaltou-lhe a loja e você não o prendeu?
Charlie soltou uma risadinha que lhe fez abanar a barriga destinada a realçar os sentimentos que estavam por trás das ssuas palavras.
- Esses Stuart andam mesmo a criar problemas. Aquela mulher..
-Preciso de provas para formalizar acusações - afirmou Dane com rispidez, já a perder a paciência e ainda nem eram oito horas. Deitou aos patriarcas da cidade um olhar
que os fez escorregar um pouco no assento. - Digam ao Shaffer que, se ele me apresentar alguma prova irrefutável, eu prenderei seja quem for.
Charlie soltou outra gargalhada forçada, batendo com os dedos gordos como salsichas no tampo da mesa, ao lado da travessa das panquecas.
- Céus, Dane, nós não queríamos ofendê-lo...
Dane não perdeu tempo a ouvir trivialidades. Passou por Renita Heiming, com os braços cheios de tabuleiros empilhados, enfiou-se no compartimento de Yeager e sentou-se do outro lado da mesa.
-Isto aqui parece uma corrida de obstáculos. Yeager sorriu.
-Você fala como se estivesse mesmo a precisar de um,,. - Chamou a atenção da empregada e contemplou-a ”’Igualmente com um sorriso radioso. - Renita, minha querida, podes mandar cá alguém com um belo sorriso e uma xícára de café quente?
Renita retribuiu-lhe o sorriso. - Com certeza.
Você é a imagem da hospitalidade esta manhã - resmungou Dane.
Yeager encolheu os ombros com espalhafato.
- Ouça, estou apaixonado. o mundo é um sítio maravilhoso.
-Com um assassino por aí à solta.
- Vamos tratar disso, filho. Só que temos de encará-lo sob um ângulo diferente, mais nada.
Yeager bebeu um gole de sumo de laranja, conseguindo entorná-lo no peito da camisa de xadrez amarrotada. Dane fez um ar carrancudo.
-Céus, você está uma desgraça. Não tem um ferro de engomar?
Mais um sorriso idiota.
-Não. A vida precisa de umas rugas para a tornar interessante. - Recostou-se, enquanto Millicent Witt lhe enchia a chávena e servia um café a Dane. - Você está com um olhar raivoso, homem. Acordou com os pés de fora esta manhã?
Yeager piscou o olho a Millicent. A mulher corou e afastou-se a rir, com a cafeteira na mão.
Dane resmungou entre dentes e pegou na chávena, aspirando o vapor como se este fosse sais de cheiro. Acordara na cama errada, depois de uma noite inquieta a pensar em Elizabeth e no caminho difícil que ambos tinham seguido. Não sabia há quanto tempo não perdia o sono por causa de uma mulher. Era uma situação terrivelmente irritante, sobretudo agora, quando precisava de ter a cabeça fria e de não se distrair com outras coisas. Não tinha motivos para se sentir culpado, recordou. Céus, ela convidara-o para a sua cama - duas vezes - sem lhe exigir promessas.
Phyllis aproximou-se da mesa com uma fatia de tarte de limão com merengue para Yeager e uma travessa de bacon com ovos para Dane, que levantou a mão.
-Nada para mim, Phyllis. Só café.
A boca grande e de lábios finos da mulher, que nessa manhã a pintara de escarlate, contorceu-se num esgar de reprovação.
-Pela sua cara, vejo que devia ter trazido ameixas cozidas e cereais - disse ela, pousando a travessa em frente dele. Enfiou o lápis no cabelo pintado, coçou a cabeça com 324
a ponta de borracha e deu uma palmada no ombro de Dane com a mão nodosa. - Você não pode alimentar-se de café e de mau humor. Só eu é que posso. Coma!
Yeager riu-se e começou a comer a tarte enquanto PhylIís se afastava com os seus sapatos de sola almofadada. -Ela é um prato.
Dane empurrou a travessa para o lado e olhou para o homem do GIC com aborrecimento.
- Como é que você consegue comer isso ao pequeno-almoço?
Yeager deitou-lhe um olhar inocente, com uma garfada de tarte no ar e um pedaço de merengue colado ao queixo pendurado como se fosse uma pêra.
- Isto tem ovos.
- Por Judas! - resmungou Dane. Tirou a carteira do bolso das calças e atirou uma nota para cima da mesa. Despache-se, Sherlock. Temos trabalho a fazer.
Levaram a camioneta de Dane e dirigiram-se para Still Crecs, com Boozer sentado atrás, a exalar um hálito rançoso junto do ouvido do xerife. Dane ia ao volante e Yeager tentava tirar uma gota de geleia de uva da gravata castanha detricô.
-Falou com a Jolynn?
- Falei - respondeu Yeager, franzindo o sobrolho. diz que o Carmon chegou por volta das oito e meia na noite do crime.
-E o Rich afirma que foi mais perto das sete.
Seja como for, ele teve tempo para fazer aquilo. Não podemos dizer ao certo qual foi a hora da morte porque o anticoagulante alterou o sangue. o Jarvis pode ter sido morto a qualquer hora depois de os operários saírem do estaleiro. Yeager levantou a cabeça e olhou através do pára-brisas, sem ver os campos ondulantes nem a carroça amish que passou por eles. Os seus pensamentos estavam concentrados em Jolynn e em todo o mal que o ex-marido lhe causara. Os seus olhos escuros chisparam com uma raiva que era rara nele. A doce e bondosa Jolynn merecia muito melhor do que um tipo como Rich Canmon. - Aquele tipo é um patife de luxo. Espero que tenha sido ele para eu o apanhar e lhe dar um pontapé por ter oferecido resistência à prisão.
Dane ergueu o sobrolho. Com que então era para ali que o vento soprava! Ainda bem para Jolynn. Se ela conseguisse suportar o desleixo de Yeager e o cheiro a cão, ele era bom homem.
- Continuo a apostar no Fox - insistiu Dane. - o Rich não tem coragem para matar ninguém.
Yeager respondeu, com um ar decidido:
- Ele tinha motivos para isso e oportunidades e anda a mentir acerca de alguma coisa. Isso basta para mim.
- Do que nós precisamos é de uma testemunha que tenha visto alguém na cena do crime - disse Dane. Levantou o pé do acelerador quando se aproximaram da propriedade dos Hauer. Aaron não lhe fornecera qualquer informação, mas Aaron era assim mesmo. Afastem-se do mundo e das coisas terrenas. - Você viu alguma declaração do Samuel Hauer no processo?
Yeager abanou a cabeça. - Não.
- Merda! Eu disse ao Ellstrom que falasse com todas as pessoas que vivem nesta estrada. o tipo anda de cabeça no ar e já nem ouve ninguém.
Encontraram Samuel Hauer no celeiro, a aparar os cascos de um corpulento cavalo belga. o velho estava debruçado, com o ombro encostado ao flanco do grande cavalo alazão e a perna levantada do animal entre os joelhos. Manejava a turquês com a destreza que a longa prática lhe conferia, desbastando um excesso de casco. Em seguida, trocou a turquês por uma uma e alisou a extremidade. o cão de Yeager agarrou no pedaço de casco e deitou-se na palha a roê-lo.
- Samuel - chamou Dane com um gesto de cabeça. Hauer largou a perna do cavalo e endireitou as costas devagar. Um sorriso cansado iluminou-lhe o rosto envelhecido por cima das barbas.
- Dane Jantzen.
Os dois homens apertaram as mãos e Dane apresentou Yager. Dane perguntou-lhe pelo resto do clã Hauer. Agora, nenhum vivia em casa, excepto Aaron, que regressara depois do acidente que lhe roubara a família. Falaram do tempo e da qualidade da primeira colheita de feno do ano. Por minutos, Dane sentiu que podia abordar o assunto que o levara ali sem embaraçar o velho amish.
Samuel Hauer abanou a cabeça, com um ar grave.
- Eu e a Ruth fomos a casa do Michah Zook nessa noite. A Sylvia tem um cancro no estômago, como sabe. Dane fez um sinal afirmativo.
-Ouvi dizer. É horrível.
- Eles internaram-na na Clínica Mayo, não sei durante quanto tempo, mas agora ela voltou. - o velho abanou a cabeça outra vez, limpou a lima com um trapo e guardou-a na sua caixa de ferrador. - Não fica muito tempo neste undo, a Sylvia. Pouco falta para se ir juntar a Deus. Gotters Ille - proferiu ele, suspirando.
-A que horas chegaram a casa?
-Depois do anoitecer. Depois de ter começado a confusão na estrada com os carros da polícia.
o velho desapertou o cabresto e deu uma palmada na garupa do enorme cavalo, que desceu pesadamente a rampa até à porta que dava para o campo.
O Aaron estava aqui - salientou Dane. - Contou alguma coisa sobre isso? Que viu alguma coisa, que ouviu alguma coisa?
o velho franziu o sobrolho. Pegou numa vassoura e comeÇou a varrer lentamente os restos de casco para a vala.
- Não.
-Você podia falar com ele, Samuel? Isto é muito importante. Se ele viu alguma coisa... um homem, um automóvel... podia ajudar-nos a apanhar um assassino.
Hauer fez um sorriso triste. Tirou um bocado de casco da vala e atirou-o ao cão amarelo. o lavrador bateu com a cauda na palha e deitou-se de costas a gemer, deliciado.
- Eu vou falar com ele, Dane Jantzen, mas o senhor sabe como é o Aaron. A sua justiça não é a dele.
Dane lançou um olhar demorado e frontal ao velho amish.
- Desta vez tem de ser, Samuel. Diga-lhe isto.
As obras decorriam a toda a velocidade em Still Waters, A tranquilidade do campo era arrasada pelo guincho das serras eléctricas e pelo estrépito dos martelos pneumáticos. os operários trepavam pelo esqueleto do edifício principal como marinheiros no cordame de um veleiro, gritando ordens e tagarelando sob o olhar implacável de Dwight Yokum na cabina do guindaste.
Rich Carmon saiu do atrelado que fazia as vezes de escritório precisamente no momento em que Dane e Yeager desceram da Bronco. Ficou sem força nas pernas ao vê-los, mas conseguiu fazer um sorriso forçado e desviar o caminho. Estava vestido para impressionar, com umas calças de lã castanhas e uma camisa creme. Trazia ao pescoço uma gravata com o emblema de um velho colégio inglês que talvez ele tivesse descoberto num mapa.
Aproximou-se com um rolo de fotocópias na mão e deu uma palmada no ombro de Dane, num gesto de camaradagem que pareceu exagerado dada a relação existente entre ambos. Nunca tinham sido amigos. Haviam sido colegas de equipa há muito tempo. Mas, considerando a importância que Rich ainda atribuía a essa fase da sua vida, talvez isso tivesse mais significado para ele do que para Dane. Ou talvez o patife estivesse a engraxar-lhe as botas, pensou Dane.
- o que os traz por aqui? - perguntou Rich, de sorriso aparelhado, olhando para os dois agentes da autoridade. Yeager deitou-lhe um olhar duro.
- Você.
Dane pigarreou.
Temos mais umas perguntas a fazer que talvez nos possam ajudar, Rich.
Com certeza, eu... - Rich olhou para o relógio e encolheu os ombros, fazendo um ar consternado. - Eu não tenho muito tempo. Devo ir a Rochester para me encontrar com umas pessoas do partido. Vou lançar a minha campanha durante as festas dos Tempos do Cavalo e da Carroça. Tenho de tirar partido da cobertura dos órgãos de comunicação, percebem?
Yeager soltou um ronco grosseiro. Dane fez de conta que não deu por isso.
Isto não leva muito tempo. - Apontou para o edifício e encostou-se à camioneta. - Sei que você teve ontem uma equipa a trabalhar aqui. Está a recuperar o tempo per’dído?
- Sim, bem, como sabem, prazos são prazos. Temos de aproveitar o bom tempo.
- Oh, sim, você é bom nisso. A aproveitar - proferiu ’eager.
Rich franziu o sobrolho. O que quer isso dizer?
Dane encolheu os ombros com um ar inocente. -Quer dizer que parece que o Jarvis deixou as rédeas na mão da pessoa certa. Por acaso ele deixou mais alguma coisa nas tuas mãos?
,-Como por exemplo?
Como a agenda em que ele apontava o nome das pessoas que lhe deviam dinheiro.
Rich arregalou os olhos e recuou, a cambalear, como se o carácter totalmente absurdo da pergunta lhe tivesse tirado o equilíbrio.
- Oh, céus, vocês também andam nessa? - perguntou incrédulo. - Já achei péssimo quando aquela cabra me começou comesse assunto no escritório do jornal.
Dane ficou tenso. Rich não reparou. Enfiou o rolo de fotocópias debaixo do braço e tirou um maço de PallMall do bolso da camisa. Pegou num cigarro e meteu-o na boca enquanto procurava o isqueiro.
- Que história de capa e espada é essa de uma agenda preta?
- Pode ter levado alguém a matá-lo - disse Yeager. Rich acendeu o cigarro e exalou uma nuvem de fumo, abanando a cabeça e desviando o olhar para a obra.
- o Fox matou o Jarvis para lhe roubar o dinheiro que ele trazia no bolso. Ponto final. Apanhem o merdoso e dêem ---Cabo dele.
-Não existe pena capital no estado de Minnesota lembrou Yeager.
Rich deitou-lhe um olhar belicoso. -Isso é uma figura de estilo.
- Temos andado a comparar os depoimentos - prosseguiu Dane, desviando a atenção do antigo colega de equipa para si. - Há uma pequena discrepância que talvez tu posas esclarecer.
-Com certeza.
- Disseste que foste a casa da Jolynn por volta das sete horas. Ela afirma que foi mais por volta das oito e meia.
- Sim? - Rich ergueu o sobrolho e encolheu os ombros, desvalorizando a importância do depoimento. Desviou o olhar e deitou fora a cinza do cigarro. - Bem, ela está enganada. o que posso eu dizer? - perguntou ele com Um sorriso emproado. - Acho que ela anda a pensar noutras coisas, percebem? Algumas mulheres são boas na pontualidade. Os talentos da Jo são outros.
Dane afastou-se da camioneta mesmo a tempo de impedir que Yeager se atirasse a Rich. o movimento pareceu totalmente natural e descontraído, contrariando a tensão que aumentava sob o seu aspecto calmo. Deitou a Yeager um olhar de aviso, saltou para a capota do Thunderbird de Carmon e sentou-se.
- A Jolynn parece perfeitamente capaz de consultar um relógio - disse ele tranquilamente, olhando fixamente para Rich. - Tens algum motivo para estares a mentir-me, Rich?
- Não! - exclamou Carmon com veemência. Atirou o cigarro para o chão e pisou-o com a ponta do pé. Começou a andar em círculo, abanando a cabeça com um ar incrédulo. - Céus, Dane, nem posso acreditar que estejas a perguntar-me uma merda destas! Talvez eu me tenha enganado nas horas. Talvez eu tenha errado por uns minutos. Que grande coisa!
Yeager agarrou-o pelo braço e obrigou-o a parar. Inclinou-se para ele e declarou:
- Morreu um homem, fanfarrão. Na minha terra, isso é muito grave.
Rich libertou o braço e recuou, com um ar petulante.
- Sim, bem, eu não o matei. - Virou-se e olhou bem de frente para Dane. - Eu não o matei. - A sua negação ficou a pairar no ar juntamente com o cheiro a serradura e a fumo de cigarro. Olhou de novo para o relógio. -- Tenho de ir.
Dane levantou-se da capota do Thunderbird e afastou-se. OBoozer presenteou a roda traseira do lado direito com mais um borrifo de urina e foi deitar-se pesadamente aos pés do dono.
-Tudo naquele tipo cheira a bosta de cavalo - resnungou Yeager, vendo Rich Carmon afastar-se.
- Ele está a esconder qualquer coisa - comentou Dane em voz baixa, de olhar fixo no automóvel que se afastava, mas a pensar em teorias que nunca quisera associar à sua cidade. - Uma coisa é certa, sócio. Temos de encontrar essa agenda
Elizabeth desligou o telefone, encostou os dedos às têmporas e fechou os olhos. o bater imparável que se ouvia no exterior do escritório do Clarion ecoava-lhe na cabeça ao ponto de lhe apetecer gritar. Aquilo durava há horas - o bater lá fora e a dor de cabeça. A cabina do juiz do cortejo, os Tempos do Cavalo e da Carroça estava a ser construída mesmo em frente do escritório, proporcionando aos juízes uma bela vista e arruinando o acesso a pé às instalações do jornal de Elizabeth ao mesmo tempo.
Procurou mais aspirinas na gaveta do fundo da secretária, mas só encontrou um frasco de Excedrin e um saco meio cheio de M&M. o guincho de um berbequim entrou através do contraplacado que cobria o vidro partido da janela da fachada, atravessou-lhe os tímpanos e atingiu-a em cheio no cérebro. Elizabeth deixou cair os M&M em cima da secretária, tapou os ouvidos com as mãos e apertou os dedos no alto da cabeça para que esta não rebentasse.
Deus estava a pô-la à prova. Como fizera àquele pobre do Job. Ela nunca conseguira perceber por que razão Job não tivera um ataque de fúria e não matara a família toda com um machado. Era o que ela tencionava fazer aos operários que andavam lá fora, assim que a dor diminuisse o suficiente para que recuperasse o controlo das suas capacidades motoras.
Fora para a cama com o resto daquela garrafa de uísque,, de que ela abusava, na opinião de Dane, e levantara-se com aquela bela dor de cabeça. Uma situação que não melhorara,, cinco telefonemas de empresários a cancelar publicidade no Clarion, em especial Garth Shafer, que expusera as ’suas razões durante dez insuportáveis minutos.
Estavam atolados até ao pescoço, para falar com clareza. Era com a publicidade que os jornais - mesmo jornais insignificantes como o Clarion - faziam dinheiro. Não podiam dar-se ao luxo de perder cinco anunciantes. Sobretudo quando metade dos clientes não pagava as suas facturas desde que o primeiro homem aterrara na Lua. A Shafer Motors era o maior, o mais fiável. Agora esse dinheiro desaparecera e o mais certo era a situação piorar se Shafer levasse a sua avante.
- A vida é uma merda e depois morremos - disse Elizabeth entre dentes quando o berbequim recomeçou a trabalhar.
oh, meu Deus, nem vais acreditar! - guinchou Jolynn ao entrar pela porta das traseiras. Avançou de rompante pela sala, com os ténis a baterem no velho soalho de madeira, e só abrandou quando se agarrou ao rebordo do balcão e se encostou a ele. Estava muito corada e arfava debaixo da T-shirt da Harley’s Texaco. Tinha os olhos brilhantes como berlindes, que sobressaíam da franja despenteada. - Nem vais acreditar! - repetiu ela com veemência.
Elizabeth fitou-a com os olhos entreabertos, por trás das lentes dos seus Ray-Ban.
- Estou numa fase em que acredito em tudo afirmou ela em voz baixa, tendo o cuidado de não castigar a sua pobre cabeça com qualquer movimento indevido do maxilar. Os ratos brancos provocam cancro. o Elvis está vivo e anda a explorar petróleo no Dakota do Norte. Continua. Não consegues escandalizar-me. Estou a pensar em ir trabalhar para um tablóide quando sair desta cidade. Diz a verdade.
- o Boyd Ellstrom anda enrolado com a viúva do Jarvis. Durante um momento abençoado, reinou o silêncio absoluto. Elizabeth empurrou os óculos escuros para o alto da cabeça e olhou para Jolynn, levantando-se da cadeira devagar. o entusiasmo agitou-a, enchendo-a de uma espécie de euforia estonteante.
-Mentirosa! - disse ela, tentando não sorrir. Nervosa, Jolynn mudou o peso do corpo de uma perna para a outra, como uma criança que precisasse urgentemente de um bacio.
- É verdade. Passei por casa da Helen para falar com ela. Para saber como ela se sentia depois da morte do Jarvis, etc., etc., etc., e para ver se ela sabia alguma coisa acerca da agenda. - Jolynn calou-se para ganhar fôlego, afastou o cabelo dos olhos e continuou: - Ela vem à porta de robe aberto muito esquisita e a tentar ver-se livre de mim. Diz que não tem conhecimento de nenhuma agenda e que o doutor Truman a aconselhou a estar de cama para acalmar os nervos. Põe-me na rua à força e fecha a porta. Bem, eu começo a achar aquilo estranho, mesmo na Helen, e resolvo entrar,, de Columbo. Sabes como é... «Desculpe, minha senhora, só mais uma pergunta.» Abro a porta da frente, e adivinha quem estava no vestíbulo, em pelota?
- Cristo de mini-saia! - disse Elizabeth, sem fôlego. Perto disso, mas muito mais feio.
Oh, meu Deus!
Elizabeth levou a mão à boca, deu uma volta completa e apoiou a anca na secretária ao sentir uma vertigem. Jolynn contornou o balcão e pegou na embalagem amachucada dos M&M.
- Eu quero um pagamento extra por causa disto - exclamou ela rindo-se e tirando uma mão cheia de pastilhas coloridas. - Se Deus quisesse que as mulheres vissem o Ellstrom nu, tê-lo-ia criado à imagem do Mel Gibson. -Pergunto a mim própria há quanto tempo é que isso durará - disse Elizabeth com um ar pensativo. Tirou os óculos escuros e mordiscou uma das hastes, admitindo várias hipóteses. A desequilibrada da Helen com o ambicioso Ellstrom, que não quisera que o GIC fosse chamado para investigar o crime!
Jo meteu três pastilhas verdes na boca e mastigou-as com um ar pensativo.
-Não sei, mas com certeza que isto confere mais interesse à história, não achas? A intriga adensa-se.
- Lá isso é verdade, minha amiga - respondeu Elizabeth em voz baixa, recordando-se do olhar de predador de Ellstrom quando a encurralara num canto daquela mesma sala. - Lá isso é verdade.
o berbequim recomeçou a trabalhar, e ela pestanejou coMO se ele lhe tivesse atingido um nervo.
-Parece que a ressaca continua - disse Jo. Elizabeth deitou-lhe uma olhadela.
-Tens um jeito especial para o óbvio, filha - observou ela.
-Trata-me por Scoop Nielsen. - Jo atirou a embalagem vazia de M&M para o lixo e encaminhou-se para a porta das traseiras. - Anda daí, patroa. Vou comprar-te uma Coca-Cola. Vamos para qualquer lado em que possamos conversar sem a serenata do Black and Decker.
Dirigiram-se para a entrada das traseiras do Coffee Cup, onde se encontrava uma profusão de cadeiras de jardim dispostas ao acaso num alpendre aberto que fazia as vezes de sala de convívio dos empregados, quando o tempo estava bom, e de abrigo dos caixotes do lixo no Inverno. Elizabeth instalou-se numa cadeira, descalçou as «sabrinas» beges e brancas que comprara em Milão e pôs os pés em cima do corrimão baixo, agradecida pelo ambiente de santuário. Não estava com disposição para enfrentar mais um olhar acusador das pessoas da terra. A notícia dos actos de vandalismo cometidos na Shafer Motors tinha alastrado pela cidade como fogo na floresta, e, apesar de Dane não ter motivos suficientes para acusar formalmente Trace, os habitantes de Still Creck tinham-no posto à prova e concluído que ele era culpado, assim como a mãe.
Jolynn apareceu à porta e manteve-a aberta para Phyllis sair com um tabuleiro de copos altos de Coca-Cola com gelo. Instalaram-se e por instantes ficaram as três sentadas em silêncio, a saborear as bebidas e a calma. A paisagem deixava um pouco a desejar - um caminho de cascalho e ervas daninhas que ia dar às traseiras da oficina de soldadura e da loja de utensílios de jardinagem de Buzz Knutson. Mas alguém pendurara um vaso de gerânios cor-de-rosa num dos postes do alpendre, o que dava ao local um certo colorido e um aroma fresco, e o dia estava bonito. No céu azul-claro não se via uma nuvem e a brisa quente trazia consigo uma certa humidade que, segundo tinham dito a Elizabeth, era habitual em Julho.
Elizabeth fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, fingindo que estava a mil quilómetros de distância dali numa praia privativa da ilha do Paraíso, e que as mãos fortes de um homem lhe esfregavam as costas com bronzeador. As de Dane.
Amaldiçoando as suas hormonas caprichosas, abriu osolhos de repente e olhou de soslaio para as companheiras. Jolynn estava ausente no seu mundo de fantasia. Todavia,,, observava-a como um falcão, com os olhos castanhos muito abertos e um sorrisinho na boca cor de rubi.
- o que é? - perguntou Elizabeth, chegando-se para a frente e alisando a longa túnica Ralph Lauren. Levou a mão à face. - Tenho a cara suja de tinta?
- Estou a pensar se você terá coragem para mexer com isto aqui - disse Phyllis, sugando a palhinha. - Esta cidade não é má, sabe? Mas você chegou no momento errado. Elizabeth ergueu o sobrolho.
O crime desperta o pior que há nas pessoas?
- A adversidade obriga-as a cerrar fileiras. As pessoas têen medo. Unem-se aos seus e os que não são de cá que se amanhem. Eu tenho obrigação de saber porque estava na mesma situação há trinta anos.
, Elizabeth suspirou. Não só não estava a «cerrar fileiras» com os naturais de Still Creek como fazia incidir um projector sobre os podres e os segredos da cidade. Era essa a sua profissão. Como haviam eles de aceitá-la se ela insistia em desempenhá-la bem?
: - Eles foram obrigados a aceitá-la - retorquiu ela secamente. - Você deu-lhes comida. Eu só lhes dou más notícias para alimentar o moinho da má-língua.
-As coisas vão acalmar quando o Dane e o Yeager prenderem a pessoa que matou o Jarvis - afirmou Jolynn. Ainda excitada por ter apanhado Helen Jarvis com Boyd Ellstrom, levantou o copo e passou-o pela testa, perguntando a si própria o que seria do seu romance balofo com ela, logo que o caso estivesse resolvido. Yeager era um agente regional e estava sedeado em Rochester. Rochester ficava muito longe... Se ela tivesse um carro que carburasse bem...
-Talvez isto ande um pouco mais depressa se conseguirmos deitar a mão à agenda do Jarvis - sugeriu Elizabeth. - Se conseguirmos convencer o Dane de que ela existe.
oh, ele está convencido - afirmou Jolynn, inclinando-se pela frente de Phyllis para olhar para a amiga. o Bret disse-me que hoje eles iam dar mais uma olhadela ao interior do Lincoln, não fosse a agenda estar entalada entre os bancos. Acho que o facto de teres sido atacada o convenceu.
Phyllis apurou o ouvido e foi direita ao assunto como um perdigueiro que farejasse uma codorniz.
O Bret?
- o agente Yeager - corrigiu Jolynn, empertigando-se, com um leve rubor na face.
Bem, fico satisfeita por estar a ser útil - disse Elizabeth com irritação, demasiado embrenhada nos seus próprios problemas para se aperceber da reacção de Jo. Ele podia ter-me dito que resolveu acreditar em mim resmungou ela. - Aquele homem é o mais cabeçudo, o mais teimoso, o mais malcriado...
- Parece alguém que eu conheço... - disse Jo secamente.
Elizabeth semicerrou os olhos. -Eu não sou malcriada.
- Desculpa.
Phyllis observou-a cautelosamente, apercebendo-se de todas as alterações na expressão de Elizabeth com a perícia de um psiquiatra. Passara trinta anos a observar as outras pessoas e sabia duas ou três coisas acerca do comportamento humano.
- o Dane é um bom xerife - observou ela. - E um bom homem. A Tricia deixou-o azedo quando se divorciou dele, mas continua a ter bom coração e está à espera da mulher certa.
Elizabeth fungou, esquivando-se ao olhar astuto da mulher mais velha.
-Não olhe para mim, filha. Eu desisti dos homens. Além disso, só há uma coisa que o Dane Jantzen pretende de mim, e não é a minha mão. - Bebeu um gole de Coca-Cola e mudou de assunto. - Então, o que sabe você acerca da viúva do Jarvis e do pateta do agente Ellstrom?
-Não tenho ouvido dizer nada - respondeu PhyIlisEndireitou os ombros ossudos e levantou o queixo minúsculo com um ar convencido. - Mas ando a desconfiar. Há qualquer coisa de estranho acerca desse trio, o Jarrold, a Helen e o Boyd.
-De horripilante, quer você dizer - acrescentou Jo, encolhendo os ombros.
Phyllis ignorou-a, demasiado embebida no seu papel de consultora para se incomodar com piadas.
-Tenho a sensação de que o Jarrold tinha um fraquinho pelo Boyd.
Jolynn fez uma careta.
-Céus, você não quer dizer que está convencida de que eles andavam todos metidos uns com os outros, pois não? Phyllis, isso é nojento!
- Talvez não fosse isso. Talvez tivesse alguma coisa a ver com a empresa, não sei. Mas eu não afastaria essa hipótese só porque o cenário é feio. As pequenas cidades têm a sua quota-parte de perversão e de depravação. Nós é que não gostamos de pensar nisso.
Ideias preconcebidas. Elizabeth pôs o copo de lado, observando a água proveniente da condensação a escorrer e a evular-se no tabuleiro vermelho. Ninguém queria ver o que não estava à superficie. As pequenas cidades tinham a obrigação de ser organizadas, limpas e isentas de pecado. Os agentes da autoridade eram boas pessoas. Os empresários honestos. As mulheres divorciadas que conduziam automóveis vermelhos eram uma fonte de problemas. As pessoas viam o que queriam ver, colavam-se aos seus ideais de vida e combatiam tudo o que pusesse em causa a sua maneira de pensar. Elizabeth não podia dizer que as condenava. Quanto mais sabia acerca da verdade, menos queria conviver com ela.
Carney Fox contornara a verdade durante quase toda a sua vida. Desde os tempos de criança que cultivava a bela arte da mentira. Como dizer que o pai morrera no célebre naufrágio do Edmund Fitzgerald no lago Superior, quando a verdade é que o pai era tio da mãe, um safado que trabalhava nas docas de Duluth e que fodia com tudo o que não fosse suficientemente rápido para lhe fugir. Para Carney, mentir era tão natural como respirar. Nunca conseguira perceber por que motivo é que havia pessoas que não mentiam. Uma mentira podia sempre salvar o coiro a uma pessoa se ela fosse boa nisso.
Por isso lhe parecia bizarro que agora fosse a verdade a deixá-lo a nadar em dinheiro.
- Eu conheço a verdade - disse ele em tom de conspiração.
Quase não se ouviu a si próprio no meio do ruído do Red Rooster ao fim da tarde, apesar de se encontrar enfiado no corredor estreito e escuro que dava acesso às casas de banho. Na sala de jogos atrás dele, Gene Harris iniciou UM jogo de nove bolas e ouviu-se uma vozearia quando estas foram projectadas em todas as direcções. Garth Brooks cantava de novo najukebox. Shameless. Meia dúzia de mulheres que tinham acabado de sair do trabalho na fábrica de móveis estava ali reunida, com vozes que pareciam serras de corrente. Carney enfiou o dedo no ouvido livre e colou a boca ao bocal.
-Eu vi-te lá. No carro do Jarvis.
Já fizera aquele telefonema uma vez. Só para obrigar o seu novo amigo a pensar no assunto, a pesar todas as hipóteses, a reflectir no que poderia ser o preço do silêncio. Com o telefonema. Carney conseguiria aquilo que viria ser a primeira prestação da sua fortuna. Raios, ele também havia de ser mestre na chantagem, pensou, rindo-se baixinho para o bocal imundo do telefone público. Alguém puxou o autoclismo na casa de banho do outro lado da parede. Ele esperou que o ruído abrandasse.
- Acho que cinco mil seria uma boa pipa de massa, e tu?
Trace dirigiu a sua bicicleta para o parque de estacionamento do Red Rooster e arrumou-a ao lado da máquina das pepcy. Tirou duas moedas de vinte e cinco cêntimos da algibeira das calças de ganga e comprou uma Mountain Dew, que bebeu em meia dúzia de tragos, com a maçã-de-adão para baixo e para cima. A soda limpou-lhe a poeira da garganta e chegou-lhe ao estômago com uma explosão de bolhas que vieram rebentar à superficie com um enorme arroto.
Não se encontrava ali ninguém para ouvir. o período em que as bebidas eram mais baratas estava a terminar. Toda a gente no bar bebia a última cerveja barata. Trace gostaria de se juntar a eles. Um homem gostava de emborcar uma ou duas cervejas depois de um longo dia de trabalho no campo, ou pelo menos era o que lhe diziam.
Cumprira o que prometera ao xerife Jantzen e trabalhara como um cão, primeiro debaixo de sol na parte de trás da carroça de feno, a empilhar fardos até os músculos dos braços e dos ombros ficarem duros como pedras, e depois de pé no celeiro, onde a atmosfera era sufocante e poeirenta, carregá-los à medida que o elevador os içava.
Nunca trabalhara tanto na sua vida. Doíam-lhe as mãos de arrastar inúmeros fardos de trinta quilos para junto da farda que os atava. A verdade é que lhe doia o corpo todo, como se alguém o tivesse sovado dos pés à cabeça com a ponta mais estreita de uma vara. Ao fim do dia, tinha as roupas encharcadas de suor, molhadas, como se tivesse apanhado um aguaceiro. Estava coberto de limpadura, que se lhe colara a todos os centímetros de pele nua e se lhe entralhara no cabelo e nos ouvidos. Ainda tinha alguns pedacinhos nos olhos.
Pelas conversas dos seus companheiros de trabalho, percebera que tratar do feno não era o trabalho de que eles mais gostavam. o calor, a sujidade e as infindáveis dores nas costas atingiam todos excepto o felizardo que conduzia o tractor, uma tarefa reservada às mulheres ou aos homens mais velhos, o que acontecera precisamente na propriedade de Jantzen. Pete Carlson supervisionava o trabalho. Os seus dois filhos e Trace forneciam os músculos.
Eram muito bons tipos, os filhos de Carlson. Ryan e Keith. Tinham dezassete e quinze anos respectivamente. Eram eles que tinham ensinado Trace a fazer aquele trabalho. Haviam brincado com ele por ser um miúdo da cidade, mas fora uma brincadeira saudável. Ao fim do dia, já todos se comportavam como velhos amigos. Ryan convidara-o para ir ver o jogo de basebol nessa noite. A equipa estava muito bem fornecida, afirmara ele, mas podiam sempre aceitar mais alguns tipos para ganhar prática.
Era aí que Trace entrava. Nem se importava de estar tão cansado, só lhe apetecendo deitar-se e passar uma semana a dormir. Estava determinado a ir jogar basebol... E a ver Amy.
Amy. Sentiu um duplo aperto no estômago ao pensar nela. Era mesmo bonita. Naquela tarde, servira limonada a todos. Ryan e Keith também tinham olhos para ela - qual o homem que não teria? - mas ela dera a entender a Trace, apenas pelo brilho dos olhos e pela maneira como franzira o nariz ao sorrir-lhe, que era ele o escolhido. Trace abanou a cabeça, fascinado. Tão depressa como um simples estalar dos dedos, toda a sua vida parecia estar a dar a volta.
Amachucou a lata e atirou-a para o contentor do lixo que se encontrava a três metros. A porta lateral do Rooster abriu-se e Carney Fox saiu com uma lata de Old Mil numa mão e um cigarro na outra.
-Olá, pá, onde é que passaste o dia?
Trace amaldiçoou a sua sorte. Não estava nos seus planos encontrar-se com Carney e por sinal tinha mesmo esperança de nunca mais voltar a vê-lo. Encostou-se à máquina das Pepsi e enfiou as pontas dos dedos nos bolsos das calças de ganga já gastas.
-A trabalhar - respondeu ele.
Carney sorveu a cerveja e arrotou com um ar trocista.
- A trabalhar? - gracejou ele. - A trabalhar para quem? Nunca julguei que alguém te contratasse nesta merda de cidade.
-Pois, graças a ti - resmungou Trace. -Ouve lá, estávamos os dois no mesmo barco. -Mas a ideia foi tua.
Carney recuou um passo, como se a mudança de atitude de Trace fosse uma afronta pessoal. Empinou o queixo pontiagudo com um gesto truculento.
Céus, no que deste tu agora... Num maricas que nãose aguenta nas pernas? Julguei que tinhas tomates. Talvez me tenha enganado. - Trace limitou-se a deitar-lhe um olhar furibundo. Carney aspirou profundamente o cigarro e, , exalou duas baforadas de fumo pelo nariz. - E andas a trabalhar para quem?
A resposta ficou colada à garganta de Trace. Não era preciso ser um génio para perceber que Carney não o teria em grande conta quando soubesse que ele trabalhava para o xerife. Que merda! Um homem tinha o direito de trabalhar onde quisesse, onde pudesse.
-Andei a carregar feno para o xerife.
- Merda! - carney deu um salto para trás e os ténis escorregaram no cascalho. Pôs o cigarro de lado. - Para o xerife? o que és tu... Estúpido? Para o xerife! Meu Deus! Abanou a cabeça, incrédulo. Depois levantou-a e, com um ar agressivo, avançou para Trace. Nos seus olhos escuros havia um brilho selvagem. - Não lhe contaste nada, pois não? - perguntou ele, ameaçador, aproximando a cara de Trace
Trace fez um esgar.
Céus, o que comeste ao jantar? Sanduíches de trampa? A expressão de carney endureceu e a pele retesou-se-lhe
O rosto ossudo. Tocou no esterno de Trace com um dedo imundo.
- Contaste-lhe alguma coisa?
- Não.
- Então porque é que ele te contratou? Ele está convencido de que és um delinquente juvenil.
De certa maneira, Trace teve vontade de refutar a afirmação. Dane Jantzen considerava-o uma pessoa decente, chamara-lhe homem e dera-lhe uma oportunidade. Mas Trace dobrou a língua. Não podia vencer uma discussão com um tipo como o Carney. Era melhor calar a boca.
Afastou-se da máquina, de Carney e do seu hálito rançoso e encaminhou-se para a bicicleta.
Tenho de me ir embora.
- Para onde? - perguntou Carney em ar de desafio. -- Vais lamber as botas ao xerife mais uma vez? - A expressão maldosa de Carney deu lugar a um esgar de desconfiança que lhe abriu a boca, mostrando os dentes tortos. - Ou é a filha dele que tu queres lamber? - Trace parou, sentindo despertar em si instintos protectores. Carney soltou uma gargalhada maldosa. - Ah, sim, tens a moca apontada para ela, não tens, Trace? Aposto que ela tem uma rata macia e quente. Já ta deu a provar?
- Afasta-te, Carney - ameaçou Trace em voz baixa, desviando-se devagar. Cerrou os punhos ao lado do corpo e sentiu a fúria aumentar dentro de si como o vapor numa panela de pressão.
Carney soltou outra gargalhada, mostrando os dentes tortos.
- Ora, Trace, conta lá. Ela já te deixou entrar nas cuequinhas?
- Não tens nada com isso - rosnou Trace. Aproximando-se um pouco mais, a cambalear, Carney atirou a cabeça para trás e riu-se outra vez.
Tens medo de foder uma virgem? - o insulto atingiu um ponto sensível de Trace, que reagiu com a rapidez de um raio. Como podia ele ter pensado que aquele verme era seu amigo? Por que razão havia ele de ter aceite tal coisa? - Talvez precises de um homem a sério para te ensinar como isso se faz - proferiu Carney com um ar escarninho. - Eu não me importava de ir a ela. É exactamente o meu tipo...
o resto do monólogo deu lugar a um grunhido quando
-Trace se lhe atravessou à frente, de cabeça baixa e o atingiu em cheio no peito com o ombro. Carney cambaleou paratrás e caiu de rabo no chão e resvalou no cascalho. A lata que continuava a agarrar cuspiu o resto da cerveja, enchendo-lhe a mão de espuma branca como lava saída de um vulcão em miniatura. Carney atirou-a para o lado e levantou-se a custo com um olhar vicioso e um esgar grotesco que lhe distorcia a boca.
- Monte de trampa! - sibilou ele, a cuspir-se. Aproximou-se de Trace com os punhos cerrados no ar e bateu-lhe no estômago e no nariz. Os óculos de Trace voaram. Dobrou-se quando o sangue lhe jorrou das duas narinas. Atordoado pela dor, viu o joelho de Carney a levantar-se, agarrou-o e Carney voltou a estatelar-se de costas. Toda a raiva contida saiu dele como água de uma barraSem rebentada. Trace nem tentou suster o fluxo. Há tanto mtempo que a reprimia que já estava farto. Deixou sair tudo,,,,, a fúria, toda a mágoa, toda a raiva que acumulara ao longo dos anos. E concentrou-a em Carney, permitindo que Carney pagasse por todos aqueles que o haviam magoado ou abandonado - o pai, Brock, Shafer, todos.
Caiu sobre carney, a cambalear, e aplicou-lhe dois murros antes que ele mudasse de posição. Rolaram ambos pelo parque de estacionamento, a rosnar e a praguejar, cada um tentando levar a melhor. Trace era maior e mais forte, mas Carney aprendera a lutar pela sobrevivência. Os clientes do Rooster saíram do bar para assistir e incitar à luta. Trace parecia não os ver nem os ouvir. Sentia apenas o sangue a latejar nos ouvidos e a queimadura ácida da raiva nas veias. LUtava cegamente, sem ver o rosto de Carney Fox, nem sequer quando este rolou para cima dele e começou a abanar-lhe a cabeça. Nem sequer viu o carro da polícia a parar, nem ouviu as portas a bater nem o agente Ellstrom a gritar com ele.
Ellstrom agarrou-o pela nuca e obrigou-o a levantar-se com uma série de safanões. Carney desembaraçou-se e pôs-se de pé, apontando um dedo ensanguentado a Trace.
-És um louco!
Tinha o lábio rebentado e o nariz a sangrar. Por baixo de uma madeixa de cabelos ruivos gordurosos caídos sobre a testa, o olho esquerdo começava já a inchar e a escurecer. Metade dos botões da camisa de xadrez castanha tinham sido arrancados e a fralda estava de fora, o que lhe dava um aspecto ainda mais escanzelado.
Trace não parecia melhor. A parte da frente da T-shirt branca estava ensopada com o sangue que continuava a sair-lhe do nariz. Tinha um golpe de dois centímetros e meio na face. Os nós dos dedos estavam esfolados e sangravam. As calças de ganga rotas no sítio do joelho esquerdo deixavam ver a rótula ensanguentada e salpicada de cascalho. Era como se tivesse deitado fora tudo o que de mau havia dentro de si.,,! Não podia ir jogar basebol naquele estado. Não podia permitir que Amy o visse assim. Maldito Carney! o patife só lhe causara problemas. Trace nem podia acreditar que desejara desesperadamente tê-lo como amigo.
Ellstrom abanou-o com rudeza.
-Por que diabo é que isto começou?
Os dois adversários olharam um para o outro. carney virou a cabeça e cuspiu uma golfada de sangue. Trace tentou suster a hemorragia nasal com o braço.
-Por nada - respondeu ele em voz baixa. Debruçou-se para apanhar os óculos, que pareciam uma bola caída junto do seu pé esquerdo, e pô-los, amaldiçoando mentalmente a lente partida que lhe distorcia a visão do olho direito. A mãe teria um ataque quando visse aquilo. Maldito Carney!
- Se vocês, seus patifes, quiserem dar cabo do canastro um ao outro, façam-no fora da cidade - resmungou Ellstrom. Meteu-se entre ambos como se fosse um árbitro, com a mão direita no cabo do cassetete. - Tenho a cidade cheia de turistas. Não preciso que dois montes de lixo como vocês andem a rebolar-se no chão. Serei obrigado a prender-vos e a deixá-los apodrecer na prisão durante uma semana.
Eu não fiz nada! - protestou Carney, apontando o dedo a Trace como um ponto de exclamação. - Ele é que começou. Ele tentou matar-me!
Trace não disse nada. Carney seria capaz de vender a própria mãe para se livrar da prisão. Safado!
Ellstrom olhou para o filho de Elizabeth Stuart de sobrolho carregado. o miúdo só dava problemas... Ele e a mãe. Acabra. Extorquira-lhe aquela declaração, metera-se no seu caminho e depois afastara-se como se não lhe devesse nada. Depois, a colega dela apanhara-o sem cuecas... Literalmente! As coisas não iam ficar assim... Jantzen estava metido na,, concha, ele não encontrara a maldita agenda e tinha nós nas tripas, Na sua opinião, o mal vinha todo de Elizabeth Stuart. Estendeu o braço e deu um encontrão ao miúdo que o fez perder o equilíbrio.
- Vá, desaparece daqui. Se te apanho a armar sarilhos outra vez, estás feito. Isto também é para ti - disse ele, deitando um olhar furioso a Carney Fox e tirando da algibeira um comprimido de Gas-X que meteu na boca.
Carney empinou ligeiramente o nariz ensanguentado, satisfeito por ter escapado a uma noite na prisão.
- Sim, eu vou - afirmou ele com um ar dissimulado, sorrindo a Ellstrom. - Tenho coisas mais rentáveis a fazer esta noite.
Riu-se quando Ellstrom o encarou. Em seguida, deu meia volta e afastou-se a cambalear. Que se lixasse Trace Stuart. Ele tinha peixe mais graúdo para fritar.
o luar iluminava o esqueleto de Still Waters. Carney estava sentado no braço do reboque que fazia de escritório, com o dedo no nariz. Felicitou-se pela escolha dos locais de encontro. A cena do crime. Que melhor sítio havia para lembrar a alguém que a merda pairava sobre a sua cabeça?
Era um local medonho, pensou ele, olhando à sua volta, enquanto o vento fazia gemer as árvores altas que circundavam o estaleiro. Só o facto de estar ali o arrepiava. A imagem do velho Jarvis com o pescoço cortado veio-lhe à mente. Ele só soubera que o homem estava morto quando o avistara pela primeira vez do arbusto à beira do regato. Jarvis encontrava-se sentado ao volante daquele Lincoln monstruoso, como sempre. Carney julgava que se tratava de uma reunião. Depois, lentamente, apercebera-se de que Jarvis não se mexia, enquanto o companheiro revistava o carro, atarefado.
Carney agradeceu à sua boa estrela que esse dia tivesse corrido desse modo. Resolvera estacionar o seu Impala nun campo e seguir a pé ao longo do ribeiro até Still Waters. Assim, ninguém podia acusá-lo de nada sem se incriminar. Tencionava vingar-se de Jarvis por este não lhe ter dado trabalho. Mas, quando lá chegou, alguém já se adiantara. E fizera o pior que era possível fazer a alguém. Carney não presenciara o acto, mas vira a segunda melhor coisa: quem o cometera.
Com o dinheiro fácil que tencionava obter, faria um rei do seu contacto em Austin e triplicaria o seu investimento vendendo droga em Rochester, onde todos os miúdos tinham dinheiro e pais que eram médicos na Clínica Mayo, Era um negócio da China. Esperto como era, Carney calculava que seria milionário antes dos trinta. Nadaria em dinheiro e teria uma boneca em cada braço.
carney ouviu um estalido na floresta atrás dele. Levantou-se de um salto e virou-se, tirando o dedo do nariz e levando a mão à pistola de calibre.. que enfiara no cós das calças. Do mato saiu uma sarigueia, que o fitou com uns olhos tão redondos como os dele e que depois deu meia volta e se afastou.
- Raios!
Suspirou, deixando sair a tensão. Afastou a mão da coronha da pistola e virou-se mesmo a tempo de ver o varapau um segundo antes de este lhe abrir a cabeça.
Elizabeth recostou-se na cadeira gemebunda da secretária e passou as mãos pela cara, retirando o que restava da maquilhagem. Saboreou o silêncio que reinava no escritório. havia alguma coisa a dizer a favor de ficar a trabalhar até tarde e era aquela... paz. Nem telefonemas insultuosos, nem pessoas a cancelar as assinaturas e a exigir a devolução do dinheiro, nem operários do cortejo a martelar lá fora. Agora, no meio dessa calma, ela podia fingir que tudo estava certo no mundo, desde que não fosse obrigada a olhar para o contraplacado que tapava a janela nem para o sítio vazio onde costumava estar o seu computador.
Não fora jantar e o estômago começava a queixar-se. faltara à sua conversa nocturna com Aaron. E sentia verdadeiramente a sua falta. Começava a ser um hábito para ela comentar os acontecimentos do dia com o seu amigo amish.
Não que o contributo dele fosse de vulto, mas era um bom ovinte e o estoicismo que havia nele acalmava-a sempre. Preocupada, pensou que ele não lhe parecera muito bem disposto ao chegar nessa manhã. Desconfiava que a disposição dele tinha qualquer relação com o recomeço das obras em Still Waters, mas não lhe perguntara nada. o olhar que lhe lançara ao perguntar-lhe se podia oferecer-lhe uma chávena de café fora tão hostil que ela considerara acertado pôr de parte os assuntos mais superficiais. Talvez os amish também acordassem virados para o lado esquerdo às vezes, como toda a gente. o fanatismo religioso não impedia necessariamente as alterações de humor.
-Está a fazer cera?
Elizabeth assustou-se e virou a cadeira para o outro lado da sala. Dane estava à porta, junto da velha máquina de linotipla besuntada de óleo, encostado à ombreira.
- o que é isso? - perguntou ela ao ver a planta que ele trazia na mão. Uma fúcsia cor-de-rosa, igual à que o vândalo destruíra.
Dane encolheu os ombros e entrou. Agora que estava ali com aquilo na mão, sentia-se estúpido por a ter trazido. Passara o dia a convencer-se de que não tinha nada que pedir desculpas. Se não tivesse visto luz no escritório, talvez tivesse ido para casa e oferecesse a planta a Mrs. Cranston.
- Eu... É... É uma oferta de paz - disse ele em voz baixa, estendendo-lhe a planta.
Elizabeth levantou-se e pegou nela, agarrando no vaso com um braço e levantando a outra mão para tocar nas belas folhas verdes.
- Eu ofereci-me a si e você dá-me uma planta... não é? disse ela, esboçando um sorriso amargo.
- Eu não merecia isso - retorquiu Dane sem se alterar, olhando-a de frente até ela virar a cara para o lado. -Não, não merecia - anuiu ela em voz baixa. Virou-se para a secretária e pousou o vaso. - Desculpe - disse ela, passando dois dedos pela têmpora direita. - É que me sinto... derrotada... usada. A culpa não é sua.
Dane aproximou-se dela por trás.
- Eu não quero nada permanente. Tomei essa decisão há muito tempo. Isto não tem nada a ver consigo. -Essas palavras são reconfortantes. - Antes que ele pudesse fazer qualquer comentário, Elizabeth virou-se para ele com um sorriso estóico e acrescentou: - Não precisa de se preocupar comigo, filho. Acabei de me livrar de um marido. Tenho a certeza absoluta de que não ando à pesca de outro. Desisti dos homens, lembra-se?
- Sim. Lembro-me - respondeu ele.
E também se lembrava muito bem do modo como ela cumprira a sua promessa. Tal como ela se lembrava. -Ela marcou-o bem, não marcou?
- Isto não é por causa da Tricia. - Era mentira e Dane sabia-o, mas insistiu, ele que era mestre na negação. - Eu gosto da minha vida tal como ela é.
-Bem, então é um felizardo, não é verdade? - perguntou Elizabeth, ignorando a sua conversa machista. - Nós, os outros, vivemos assustados com o que queremos, desejando coisas que não podemos ter. Você tem tudo. É o homem do leme. Os seus patos estão todos em fila. Os seus ponbos estão todos nos pombais. Aposto que o que mais o irrita neste assassínio é o facto de ele não encaixar no seu sistema organizado.
Elizabeth acertara em cheio. Dane sentiu uma crispação no queixo mas não disse nada.
Elizabeth virou-se e suspirou. Caíram-lhe os olhos na planta. Queria que o facto de ele lhe ter trazido a planta tivesse algum significado. Céus, ela era igual à Jolynn ao permitir que Rich a usasse. o homem sentira-se culpado e trouxera-lhe um presente; era a velha história de sempre. Só porque era uma fúcsia, só porque ele a abraçara quando ela estava a chorar, só porque ele fizera amor com ela com uma ternura e uma paixão que ela não conhecia... Isso não significava nada.
Com ela passava-se exactamente o mesmo. Não precisava de um homem na sua vida. Não precisava de complicações.
-Não se preocupe com a ordem preciosa do seu mundo - insistiu ela. - Eu não quero nada de si, xerife.
Estava a mentir, e não era melhor nisso do que Trace. Dane nem podia acreditar que alguma vez a considerara uma actriz. Elizabeth podia ter representado em várias situações, mas era transparente como o vidro.
Podemos ser amigos. Amantes - propôs ele. Elizabeth olhou para ele e soltou uma gargalhada rouca e obscena.
Você nunca fez amizade com uma mulher na sua vida. Ele sorriu.
-Há sempre uma primeira vez para tudo.
- Claro, porque não? Quer um chocolate, amigo? A Jolyn tem um monte deles na secretária.
- Não, obrigado.
Elizabeth olhou para ele ao atravessar o espaço que separava as duas secretárias e serviu-se de um Snickers.
-Você não tem vícios... Além de mim?
- Claro que tenho. - Dane encostou a anca à secretária, cruzou os braços e sorriu. - Deixo a sanita com o tamppo aberto.
- oh, bem, agora sei que você não é o homem indicado para mim - gracejou ela. - É um hábito que eu detesto. Uma vez caí numa sanita porque um homem não fechou o tampo. - Tirou a embalagem ao chocolate e deu-lhe UMa dentada, fechando os olhos e gemendo de prazer ao senti-lo a derreter-se na língua. Engoliu-o e olhou de soslaio para Dane, lambendo um resto de chocolate ao canto da boca. Descobriu alguma coisa hoje dentro do Lincoln?
- Não.
- E dizia-me se tivesse encontrado?
- Não.
Elizabeth fungou.
-Que amigo que você me saiu. Tenho feito o possível por não lhe dizer que o imbecil do seu agente Ellstrom anda metido com a Helen Jarvis.
Dane franziu o sobrolho.
-Onde é que ouviu dizer uma coisa dessas?
- oh, eu não ouvi dizer, filho. Tenho uma testemunha. Amenos que os seus agentes andem por aí a cumprir os seus deveres em cuecas, isso é um facto.
- óptimo. - Dane arregalou os olhos. Helen e Boyd. Por falar em parceiros de cama estranhos... ou cúmplices num crime? Evitou um bocejo e tentou fechar a loja. Já passava das onze horas. Nada se resolveria a essa hora da noite.
- Bem, ele pode passar a noite a fodê-la, que eu não tenho nada a ver com isso - declarou ele, afastando-se da secretária. - Vou para casa. Vá, Mata Hari, feche a porta à chave que eu mando para aqui um piquete.
Elizabeth fechou à chave a porta principal e foi buscar a mala, as chaves e as fotografias que trouxera do armazém nessa tarde. Pegou na planta e encaminhou-se para o Cadilac que se encontrava estacionado na rua. Dane verificou a nova fechadura da porta das traseiras e seguiu-a até casa. Kenny Spencer estava a dormir dentro do seu carro-patrulha paradO na rampa.
Dane enfiou a mão na janela aberta e tocou a buzina. o agente acordou, sobressaltado.
- Você está de serviço.
Kenny endireitou os ombros e engoliu em seco. -Sim, senhor.
Elizabeth contemplou o agente com um sorriso compreensivo.
-Eu trago-lhe um café, filho. Spencer sorriu timidamente.
- Obrigado, minha senhora - agradeceu ele. - Isso vínha mesmo a calhar.
No caminho para casa, Dane resmungou:
- Há algum homem no meu departamento que você não tenha enfeitiçado?
- Claro que há - disse ela, parando no último degrau virando-se para ele. -- Você.
Não era verdade, pensou Dane, mas não a corrigiu. Isso não seria um acto de inteligência e ele orgulhava-se de ser um homem inteligente.
- Obrigada pela planta - proferiu Elizabeth, tentando fechar a ferida que ardia dentro de si.
Quando ele começou a encolher os ombros desprezando a sua gratidão, ela pôs-lhe a mão nos lábios, os mesmos que a tinham beijado, que a tinham amado, que lhe tinham susurrado na noite anterior.
-Não diga que não foi nada - pediu ela em voz baixa. - Não diga uma coisa dessas.
Virou-lhe as costas e deixou-o ali antes que fosse ele a ir-se embora.
Na manhã seguinte, Elizabeth movia-se na pista de obstáculos em que se transformara a sua cozinha, à procura de uma chávena de café lavada. Doía-lhe a cabeça por mais uma noite com poucas horas de sono. Depois de ter dado ma volta pela casa vazia, cedera ao desejo imperioso de ir à procura de Trace, deixando Kenny Spencer no quintal com um termo de café. Só voltara por volta da uma da manhã, cansada, inquieta e sem o filho. Sentou-se no sofá, à espera, a ver um vídeo de um velho filme com Spencer Tracy e lepbum, resolvida a entender-se com Trace acerca das suas saídas nocturnas assim que ele entrasse em casa.
Quando não pensava nos seus problemas com o filho, pensava em Dane. o filme chegara ao fim, sem despertar grande interesse. A última coisa de que se lembrava era de Katherine Hepburn a repudiar Spencer e do velho Spencer a beijá-la enquanto lhe tirava as meias. Depois, o som começara a entrar pela janela e Elizabeth acordara com o silvo branco do televisor.
- Uma masoquista... é nisso que eu estou a tornar-me, Aaron - disse ela em surdina, afastando uma madeixa de cabelo dos olhos.
Levantara-se do sofá, subira as escadas e enfiara uns calções, que fizera cortando umas velhas calças de ganga, e a sua velha T-shirt da universidade. Franzira o sobrolho quando, ao olhar para baixo, descobrira mais um buraco no algodão, junto do umbigo.
- Vocês têm masoquistas no vosso grupo? - perguntou ela, olhando para o amish que estava ajoelhado no chão da cozinha a fazer qualquer coisa no armário com um pé-de-cabra de aspecto perigoso. - Pessoas que se castigam sucessivamente até termos vontade de as esbofetear?
Aaron levantou a cabeça e percorreu com o olhar o que parecia ser uma perna nua interminável, fazendo um esgar de reprovação, apesar do desejo lhe fazer cócegas no fundo da barriga. Era o que ele merecia por a desejar. Era o que ela merecia por o tentar, por andar seminua pela casa, com as pernas ao léu para toda a gente ver e cobiçar. Mas o castigo era Deus que o decidia, recordou ele, virando a cabeça e concentrando-se de novo no trabalho. Pegou no pé-de-cabra e recomeçou a arrancar pregos.
Elizabeth ficou admirada por ele não responder e continuou a sua busca. Pegou numa caneca de grés, uma recordação das Grandes Montanhas Rochosas, e espreitou lá para dentro.
- Reconheço que as pessoas sempre desejaram coisas que não podiam ter desde que Eva se deixou obcecar por aquela maldita maçã, mas eu estou farta.
Conseguiu o que queria ao descobrir duas chávenas de faiança que pertenciam aos Stuart há cento e cinquenta anos e soltou um gritinho de triunfo. Agachou-se e ficou quase cara a cara com Aaron, que continuava a manejar o pé-de-cabra.
- Quer um café, filho? Servido numa chávena que a bisavó Stuart escondeu dos ianques durante a guerra?
Aaron interrompeu o seu trabalho e ficou a olhar para a cabeça do prego. Ela aproximara-se de mais. Ele sentia-lhe o cheiro, o perfume, o champô que ela usava e, por baixo de tudo isso, a mulher. A quente e iníqua mulher inglesa. Depois da festa de domingo que passara horas a meditar neste momento. Horas a lutar com a consciência e o coração, com desejos carnais e as necessidades espirituais. Cerrando os dentes, encostou-se em peso ao pé-de-cabra e o prego soltou-se com um guincho terrível.
-Eu não quero nada de si, inglesa - declarou ele. o seu tom foi tão agressivo como o prego que ele arrancou do armário. Elizabeth endireitou-se e recuou, sentindo-se talvez mais magoada do que aquilo a que tinha direito. Afinal, ele viera para casa dela para trabalhar e não por amizade. E ela era inglesa. Inglesa, como aqueles que estavam a construir aquele complexo turístico espalhafatoso do outro lado da estrada, mesmo em frente da casa dele.
- Recomeçaram a trabalhar em força em Still Waters disse ela, servindo-se de café quente. - Aposto que você não está muito satisfeito com isso.
- Eles fazem o que querem - redarguiu ele entre dentes, atirando o prego para o lado.
- Sim, bem... - Elizabeth reparou na boca inflexível e olhar desanimado de Aaron e encheu também uma chávena de café para ele. Estendeu-lha e ele aceitou-a sem dizer uma palavra. - Isto não significa que você seja obrigado a gostar.
A sua atenção desviou-se de Aaron no momento em que Trace entrou na cozinha, em palmilhas de meias e com o cabelo eriçado na nuca. Tinha os óculos partidos e os tons do seu rosto - azuis e roxos, com pinceladas de um amarelo doentio - lembravam a paleta de um artista. Elizabeth ia ’deixando cair a chávena.
- Trace! Querido, o que aconteceu? - perguntou ela, entornando café quente na mão quando contornou a caixa de ferramentas de Aaron para se aproximar do filho.
Pousou a chávena na mesa e abraçou-o, com uma expressão de compreensão e de preocupação maternal ao ver o mal que tinham feito ao seu menino.
Trace baixou a cabeça, embaraçado.
- Envolvi-me numa pequena discussão, só isso - respondeu ele em voz baixa.
Preferia ter ficado na cama até a mãe sair, mas tinha de ir trabalhar e, consequentemente, de enfrentar a inevitável cena.
- Uma pequena discussão? - Elizabeth estendeu a mão para lhe tocar no golpe que ele tinha na face, mas Trace afastou-se. - Parece que foste atropelado por um camião.
- Isto não é nada - respondeu ele, afastando-se dela. Sentou-se numa cadeira, mais dorido do trabalho do que da luta, e pegou nos seus Air Jordan, os primeiros do monte de sapatos que estavam no chão. - Não exageres, mamã.
- Nada? - cacarejou Elizabeth esfregando as têmporas. A irritação e a preocupação cresceram dentro dela como duas ondas gigantescas. - Como é que podes dizer que isso não é nada?
- Porque...
Alguém bateu à porta das traseiras, interrompendo a explicação de Trace. Elizabeth suspirou e virou-se, no momento em que a porta da cozinha se abriu e a soleira se encheu com o vulto corpulento de Boyd Ellstrom. Instintivamente, ao olhar para o agente, rodeou-se de cautelas.
- o que está você aqui a fazer? - perguntou ela, abandonando o seu habitual encanto sulista.
Cada vez gostava menos daquele homem e começava mesmo a odiá-lo. Não conseguia olhar para ele sem o imaginar com Helen, e, se isso não era suficiente para lhe dar uma volta ao estômago, nada era.
Ellstrom mirou-a de alto a baixo e, no mesmo instante, Elizabeth desejou ter vestido algo menos revelador, como uma armadura, por exemplo. Pelo canto do olho, viu Aaron abandonar o seu trabalho e deitar um olhar frio ao agente. Ellstrom desconcertou-o, encarando-o.
- Venho aqui à procura do seu filho - comunicou ele por fim.
Elizabeth virou-se para Trace, com o coração aos saltos no peito.
Trace enfrentou o olhar do agente, com um pressentimento terrível.
- Trace Stuart - disse Ellstrom, dando um encontrão a Elizabeth ao tirar um par de algemas do cinto. - Estás preso pelo assassínio de Carney Fox.
-Não posso acreditar que tenhas feito uma coisa destas - disse Dane em voz baixa, o que levou os outros homens que se encontravam no seu gabinete a trocar olhares nervosos.
Kaufman fez estalar os nós dos dedos. o cão de Yeager ganiu um pouco e enfiou-se ainda mais debaixo da cadeira do dono.
Ellstrom ergueu o duplo queixo.
- Eu ia para lá quando chegou o telefonema acerca do Fox. o Stuart matou-o, tão certo como eu estar aqui. Talvez ele tivesse acabado o trabalho no parque de estacionamento do Rooster se eu não o tivesse impedido. o miúdo estava a desancar o Fox...
-Não posso acreditar - grunhiu Dane. Indignado e incrédulo, Ellstrom acrescentou: -Havia cinquenta testemunhas...
Dane cortou-lhe a palavra com o olhar. Apoiou-se no mata-borrão imaculado da sua secretária e levantou-se lentamente da cadeira, sem tirar os olhos do subordinado.
-Atreveste-te a entrar lá sem um mandado, sem me consultares...
- Eu sou polícia - vociferou Ellstrom. - Tinha motivos para pensar que o Stuart cometeu um crime. Não preciso da sua autorização para fazer o meu trabalho.
-Precisas, se quiseres conservá-lo.
-Você não me assusta, Jantzen - afirmou Ellstron, com um sorriso trocista.
Num ápice, Dane contornou a secretária e aproximou-se dele, com aqueles olhos azuis frios como o Árctico a perscrutarem. os de Ellstrom. Este teve de lutar contra o desejo imperioso de se afastar. Uma saudável dose de medo agarrou-se-lhe à garganta, impedindo-o de ripostar. o suor acumulou-se-lhe na fronte como gotas de orvalho na casca de uma abóbora. Sentiu um nó nos intestinos.
-Estou farto de ti, Ellstrom - murmurou Dane. Dos teus deslizes junto da imprensa, da tua desobediência às minhas ordens, da tua negligência no trabalho...
Eu, negligente? - Ellstrom engoliu a bílis que tinha na garganta e continuou ao ataque. - E você, xerife? Toda gente sabe que foi o filho da Stuart que vandalizou a Shafer
e você deixou-o em liberdade. Agora ele mata um homem e você desanca-me! Eu estou a fazer o meu trabalho enquanto você fica na retaguarda e permite que essa cabra de cabelo preto o traga preso pelo coiso - descarregou ele,,, argurado, sentindo que a inveja se ia juntar à fila de emoções que lhe queimavam as entranhas. - Qual é o preço de uma acusação de homicídio? Um grande broche? Aposto que ela é perita nisso.
Dane perdeu as estribeiras. A frieza e o autodomínio pelos quais era tão conhecido estalaram como uma fina placa de gelo sob o peso da provocação de Ellstrom. Com um movimento que vinha dos seus tempos de futebol, levantou o braço e atingiu o agente por baixo do queixo. Os dentes de ’Ellstrom cerraram-se com um estalido audível e o homem ’,foi projectado contra a parede com tal força que as condecoraÇões emolduradas saltaram dos pregos.
A metade lógica do cérebro de Dane aconselhou-o a recuar, visto que Ellstrom estava no seu direito de prender Trace Stuart e ele próprio devia ter sido capaz de se controlar melhor. Porém, Ellstrom ultrapassara muitos limites que nada tinham a ver com a lógica mas sim com o seu lado mais primitivo. Ao dizer mal de Elizabeth, ele invadira o território de Dane, que reconhecia este facto apesar de negar as suas implicações.
-Estás aqui a mais, Ellstrom - proferiu ele em voz baixa, com a cara a poucos centímetros da do agente. Boyd engasgou-se quando a traqueia se encolheu. Mas, apesar do latejar do sangue na cabeça, conseguiu ouvir a sua Própria voz.
- Isto é uma agressão - balbuciou ele, com a saliva a escorrer-lhe da boca, a molhar-lhe os lábios grossos e a formar bolhas aos cantos.
Jantzen sorriu-lhe, um sorriso que lhe gelou as veias e lhe apertou as entranhas como mãos frenéticas.
- Pois, é uma pena que não tenhas testemunhas. Rolou os olhos salientes na direcção de Yeager e de Kaufman. As persianas da janela atrás deles estavam fechadas, impedindo a visão das cerca de doze pessoas que trabalhavam do outro lado. Kaufman olhou para os sapatos e fez estalar os nós dos dedos. Yeager beliscou a cana do nariz e pestanejou.
-Tenho andado a pensar em ir a um optometrista. Já não vejo como via.
Ellstrom fez um som estrangulado e Dane recuou, afastando o braço do pescoço do agente e refreando-se numa fracção de segundo. Viu Ellstrom agarrar-se à garganta e tossir, e ficou descontente consigo próprio por ter permitido que o homem o pusesse fora de si. Esfregou o pescoço, perguntando a si mesmo se teria perdido as estribeiras caso o comentário nojento de Ellstrom visasse Ann Markharn.
- Sai! - vociferou ele.
Ellstrom deitou-lhe um olhar furioso sem conseguir conter as lágrimas.
- Você ainda não ouviu tudo - declarou Ellstrom com voz rouca, agitando um dedo acusador à medida que recuava em direcção à porta. Engoliu uma golfada de ar, que lhe pareceu tão dura e redonda como uma bola de ténis na garganta. - Você foi eleito porque é o menino de ouro. o grande herói do futebol. Mas não pode encostar-se a isso eternamente, Jantzen. o filho da Stuart matou o Fox. Eu digo que também foi ele quem matou o Jarvis. E hei-de prová-lo. Depois veremos quem é o maior nesta cidade.
Ellstrom deu meia volta e saiu do gabinete, esfregando a traqueia e ignorando o olhar dos outros agentes e das secretárias ao dirigir-se para a porta, deixando um rasto de gás tóxico atrás de si. Havia de sair daquilo a cheirar a rosas, prometeu ele a si próprio. Só precisava de uma certa dose de sorte e de encontrar aquela maldita agenda, e seria o dono do mundo, com o Dane Janzen a lamber-lhe as botas e a Elizabeth Stuart a suplicar-lhe que a deixasse lamber outra coisa. Ele encarregar-se-ia disso.
Dane abanou a cabeça ao ver Ellstrom passar por Lorrain jae à pressa, à saída. Lorraine endireitou os óculos e o lenço do pescoço e foi atrás dele para o corredor, a ralhar com ele como um cão enraivecido. Dane nunca conseguira perceber por que motivo é que Ellstrom ficara ali depois de perder as eleições. Talvez Helen Jarvis tivesse alguma coisa a ver com isso. Nem ele sabia, nem o assunto lhe interessava nesse momento. Já estava a pensar em Elizabeth. Apostava que ela não aceitaria isto bem - que Ellstrom lhe interrompesse o pequeno-almoço e acusasse o filho de assassínio. Talvez ela estivesse pronta a matar alguém com as suas próprias mãos.
Dane teve a resposta no momento em que entrou na sala de interrogatórios. Elizabeth, de braços cruzados debaixo dos seios e o queixo resoluto empinado, ostentava um ar de desafio. Lançou-lhe um olhar terrível. Sim, estava pronta a matar alguém.
Dane virou-se para Trace, que se encontrava inclinado sobre a mesa, com um ar derrotado e infeliz.
-Peço-te desculpa pelo modo como foste trazido para aqui, Trace. o Ellstrom gosta de se exibir. Eu estava ocupado. Não imaginava o que ele ia fazer.
- Isso quer dizer que nos podemos ir embora? - perguntou Elizabeth, cuja frieza se sobrepunha ao medo que rodopiava dentro dela como um remoinho.
- Não, receio que não. - Dane olhou de novo para Trace, tentando ler a expressão do rapaz. - Tenho umas Perguntas a fazer-te, Trace.
- Eu não o matei - declarou Trace em surdina, a olhar Para as mãos.
Tinha os nós dos dedos esfolados e magoados de colidirem com o rosto ossudo de Carney, em carne viva, e era assim mesmo que se sentia por dentro, como se alguém lhe tiVesse atravessado o corpo com uma garra metálica. Maldito carney, pensou ele, a tremer de medo.
- Não devíamos ter aqui um advogado, xerife? - perguntou Elizabeth abruptamente, trespassando Dane com o olhar e desafiando-o a fazer-lhe frente, tal como ela enfrentara o jovem agente que tentara impedir-lhe o acesso à sala de interrogatórios.
o pobre homem tentara invocar as leis e os regulamentos e por pouco não levara uma facada na garganta, já para não falar do seu aborrecimento. Ninguém, ninguém a impediria de estar ao lado do filho num momento como esse. o agente recuara, obviamente preferindo arriscar-se à ira do patrão do que à de Elizabeth. Agóra o patrão estava diante dela, a observá-la, tranquilamente, em silêncio, com aquele olhar penetrante que se apercebia de todos os aspectos da fúria dela e talvez do medo que lhe estava subjacente.
- o Trace não foi formalmente acusado - esclareceu Dane, agradecido por Lorraine o ter agarrado antes de Ellstrom conseguir acusar o rapaz. Pelo menos Trace, e Elizabeth, tinham sido poupados a esse processo. - Se se sentirem mais à vontade na presença de um advogado, poderão chamar algum. - Elizabeth continuou a olhar para ele, furiosa, tentando concluir se ele estava ou não a insinuar que ela era uma impostora. Dane enfrentou o olhar dela. - Está bem - prosseguiu ele em voz baixa, num tom demasiado íntimo, recordando-lhe como fora agradável que ele a abraçasse. Agora ele não estava a abraçá-la. Preparava-se para interrogar o filho acerca de uma acusação de homicídio.
- Não, não está bem - ripostou ela afastando-se dele. Nada neste caso está bem.
Sentia-se assustada e traída e só lhe apetecia pegar no filho e sair dali, daquela sala, daquela cidade.
Dane fez-lhe sinal para que se sentasse à mesa e esperou que ela obedecesse antes de puxar uma cadeira para si próprio.
- o Pete disse-me que ontem trabalhaste bem - disse ele, perscrutando os estragos provocados no rosto de Trace. o rapaz levara uns murros a sério. Mas, pelo que lhe tinham contado, dera tanto como recebera. o rosto de Carney estava igualmente muito maltratado, e a cabeça ainda estava pior. A parte lateral do crânio parecia uma bola de basquetebol sem ar.
- Sim, senhor - retorquiu Trace em voz baixa.
Fiquei satisfeito. Julguei que isso queria dizer que tinhas cortado relações com o Carney Fox.
- Sim, senhor.
Trace baixou ainda mais a cabeça quando começou a corar e a vergonha e a humilhação rastejaram à sua volta como dois cães acossados. Ele estivera pronto para dar a volta; agora era obrigado a sentar-se em frente do homem que lhe dera uma oportunidade e a ser interrogado como se `fosse um patife. E a mentir. Ia ser obrigado a mentir. E isso era o pior. Tinha um nó na garganta do tamanho de uma bola de basebol. Tentou engoli-la e quase se engasgou.
- Tu e o Carney envolveram-se à pancada ontem à noite?
- Dane pegou num lápis que alguém deixara em cima da mesa e bateu distraidamente com a ponta de borracha no tampo liso da mesa branca, sem tirar os olhos de Trace.
- Porquê?
-Por nada... - respondeu Trace, mas deparou com o olhar fixo da mãe e corrigiu. - Ele estava a criticar-me por eu trabalhar para o senhor.
-Foi por isso que lutaram?
Trace fez um sinal afirmativo, evitando aqueles olhos azuis penetrantes que talvez vissem através de paredes de chumbo. Não podia dizer nada acerca de Amy, sobre as grocerias que Carney proferira acerca dela.
- Para onde foste depois de o Ellstrom ter interrompido a vossa luta?
- Para casa. Fui para casa de bicicleta e depois fui dar um passeio pela floresta.
- Depois do anoitecer? -Sim, senhor.
- Porquê?
Trace encolheu os ombros doridos e examinou as unhas. -É um bom sítio para pensar.
- Estavas sozinho? - Trace tentou engolir outra vez e desejou não estar ali... No frio cortante e feroz da Antárctida, no deserto mais quente de África, no pântano mais húmido e infestado de cobras... - Trace?
- Sim, senhor - repetiu ele em voz baixa, deixando-se escorregar um pouco mais na cadeira. Dane respirou fundo, lentamente, e recostou-se na cadeira, deixando escapar un suspiro cuidadosamente pensado. o rapaz estava a mentir. Era como se ele tivesse a palavra colada à testa. Elizabeth também o sabia. Parecia estar à beira das lágrimas quando procurou cigarros na sua mala Gueci. As mãos tremiam-lhe no momento em que ela abriu um maço de Virginia Slims, tirou um cigarro e depois voltou a guardá-lo e abandonou a ideia.
- Essa é a tua história - disse ele, desviando o olhar para Trace e batendo com o lápis devagar, metodicamente, na mesa. - Estiveste na floresta sozinho, até que horas? -Não sei. Até tarde.
- Elizabeth?
Elizabeth colou as pontas dos dedos aos lábios por instantes, tentando lutar contra a vaga de pânico que se apoderava dela. A pressão acumulou-se no seu íntimo, ao ponto de ela julgar que poderia explodir.
-Não sei. Não o ouvi entrar.
- Trace, tu não és bom a mentir - insistiu Dane com um ar solene. - Seria muito melhor que me contasses a verdade. - Trace susteve o fôlego por um minuto, com medo de que aquele nó na garganta estalasse a qualquer momento. Olhou para os seus Air Jordan e desejou ser tão bom a mentir como Michael era a marcar pontos no basquetebol. - Não tens mais nada a dizer?
Trace estremeceu ao sentir o desapontamento na voz de Dane. Maldito Carney. A culpa era toda dele.
-Não, senhor.
- Está bem. - Dane atirou o lápis para o lado e levantou-se da cadeira, sentindo os dias longos e duros nas articulações e nos músculos e mais alguns de que ele já se esquecera. - Não tenho muitas hipóteses neste caso, Trace. Serei obrigado a prender-te durante algum tempo...
- Não! - explodiu Elizabeth, levantando-se tão depressa que a cadeira se virou e caiu no chão de oleado. Dane manteve-se concentrado em Trace, que ficara branco como a cal.
- Quero que penses muito nisto, rapaz. És o principal suspeito e não tens álibi. Dizer a verdade não pode ser tão mau como ser acusado de um assassínio.
Encaminhou-se para a porta e chamou um agente. Kaufman entrou, com um ar triste e acabrunhado, e fez menção de se aproximar de Trace. Elizabeth deitou um olhar furioso ao agente e pôs os braços à volta do filho. Abraçou-o com toda a força que tinha, desejando poder pegar-lhe ao colo e afagálo como fazia quando ele era pequeno e esfolava um joelho.,,, -Gosto muito de ti, querido - disse ela em surdina, acariciando-lhe a face com a mão trémula.
Trace olhou para ela através das lentes estaladas dos óculos, com os olhos verde-azulados cheios de medo, de tristeza e de meia dúzia de outras emoções a que não deu voz. E, no seu íntimo, Elizabeth só percebeu que aquele rapazinho de óculos grandes e rosto sombrio estava a dizer-lhe que não se preocupasse que ele fosse a pé para a escola, ele sabia atravessar a rua sozinho.
- Eu fico bem, mamã - disse ele em surdina, desejando de todo o coração não ser obrigado a fazê-la passar por tudo aquilo, poder recuar e desfazer todos os disparates que >cometera, desejando que Carney Fox nunca tivesse nascido.
Kaufman agarrou-lhe no braço e saiu com ele, percorrendo o longo corredor branco que ia dar à prisão e à zona reservada aos delinquentes juvenis. Elizabeth ficou à porta a vê-lo afastar-se, tão desolada que admitiu morrer de tristeza. Quando eles viraram a esquina e desapareceram, ela aproxiMou-se de Dane, porque precisava de dar largas ao medo, à frustração e à raiva que sentia.
Como é que foi capaz de fazer uma coisa destas? Perguntou ela, pestanejando furiosamente apesar das lágrimas que lhe marejavam os olhos. - Ele não passa de uma criança!
Dane passou por ela e fechou a porta, impedindo assim que a tirada de Elizabeth chegasse aos ouvidos curiosos das Pessoas que se encontravam nos outros gabinetes.
- Ele é um suspeito, Elizabeth. Não posso permitir que OS sentimentos pessoais interfiram nisto. Tenho um trabalho a fazer.
- oh, claro - troçou ela, passando a mão pelo nariz e lutando contra o desejo de se atirar a ele e de lhe encher o peito de murros. - Todos os seus leais eleitores exigem a cabeça dele e portanto você vai dá-la de bandeja. Para si, tudo é bom e fácil...
-Não é fácil para mim.
-Ele está inocente! - gritou ela.
- Ele está a mentir! - gritou Dane, cuja voz de trovão ecoou nas paredes brancas e frias. - Não posso deixá-lo sair sem mais nem menos. Ele envolveu-se numa luta com o Fox na presença de cinquenta testemunhas, e depois o Fox aparece assassinado a mil e quinhentos metros da sua casa, e o Trace limita-se a dizer que esteve na floresta. Sabe onde ele se encontrava ontem à noite, Elizabeth? Sabe o que ele andou a fazer?
Elizabeth levou a mão à boca e tentou conter as lágrimas. Era a mãe de Trace. Devia saber onde ele estivera. Devia saber o que ele andara a fazer. Devia saber sem sombra de dúvida que ele não podia ter morto outro ser humano. Mas não sabia. Que Deus a ajudasse, ela não sabia que ele não podia ter feito aquilo. Ele andava tão zangado ultimamente, tão inacessível. Ela sentia-o a afastar-se e queria desesperadamente chamá-lo de novo a si mas não sabia como.
- Oh, meu Deus! - proferiu Elizabeth em voz baixa, sentindo-se sufocada pelo medo.
Dane apercebeu-se do esforço que ela fazia para se dominar. Algo no seu íntimo lhe disse que aquela era uma boa oportunidade de desfazer os laços que existiam entre ambos. Tinha um trabalho a fazer e nada podia interferir nele. Mas, mesmo assim, não pôde deixar de se aproximar dela.
- Venha cá - chamou ele em voz baixa, pousando-lhe a mão no ombro.
Ela afastou-o e recuou.
- Não. Você não pode ter as duas coisas, amigo. Você não pode partir a sua vida em pedacinhos... amigo, amante, polícia... e impedir que eles toquem uns nos outros. A vida real não é assim tão ordenada. Você não pode aproximar-se de mim quando a sua consciência o atormenta e depois voltar a pôr-me numa prateleira. Eu não sou nenhuma boneca com que você brinca quando lhe apetece. Sou uma pessoa com coração e estou farta de sofrer, por isso afaste-se!
Elizabeth não esperou que ele obedecesse. Empurrou-o e precipitou-se para a porta. Desceu o corredor a correr e atravessou o labirinto de secretárias metálicas na zona aberta do escritório. Através das lágrimas, viu rostos distorcidos a olhar para ela, bocas a mexer-se, mas não percebeu o que diziam, não as ouviu. As vozes e os sons do escritório misturavam-se e provocavam um ruído dissonante que lhe feria os ouvidos. Ao aproximar-se da recepção, o cão de Yeager ladrou-lhe e o agente estendeu a mão na direcção dela, mas,’, esquivou-se, abriu a porta com força e correu pelo corredor que ia dar ao parque de estacionamento. Agarrando-se à mala, desceu os degraus e chocou com Boyd Ellstrom.
Ele agarrou-a pelos braços e encostou-a a si por instantes, antes de ela conseguir libertar-se do contacto com o corpo grande e mole do homem.
-Você devia ter-se feito minha amiga quando teve oportunidade - salientou ele, com um ar sombrio. Elizabeth deitou-lhe um olhar furioso e livrou-se das suas mãos.
-Vá-se lixar - disparou ela, afastando-se dele.
- Desculpe, querida - troçou ele, com um brilho frio e malévolo no olhar. - Perdeu a sua oportunidade. Não se esqueça de escrever bem o meu nome quando publicar a notícia da prisão do seu filho, o assassino.
Elizabeth desatou a correr quando uma multidão de repórteres se precipitou para ela, a fazer perguntas e a brandir gravadores e máquinas fotográficas. Empurrou-os e correu para o carro. Atirou a mala para cima do banco e bateu com a porta sem se preocupar com a possibilidade de entalar os dedos. o chassis descaído do automóvel roçou no chão com uma chuva de faíscas quando ela carregou a fundo no acelerador e saiu do parque de estacionamento. Ouviram-se buzinas a tocar no momento em que uma camioneta e um automóvel que vinham no sentido oposto foram obrigados a parar para evitar uma colisão com ela.
Elizabeth nem olhou para os outros condutores. Carregou no acelerador e o Eldorado seguiu em frente, deixando uma coluna de fumo atrás de si e marcas negras no pavimento. Os operários dos Tempos do Cavalo e da Carroça que estavam a construir o estrado do juiz do cortejo interromperam o seu trabalho para a ver passar e um pequeno grupo de cidadãos idosos parou no caminho para o Coffee Cup, onde ia beber o café matinal. Uma mãe amish pegou nos seus dois filhos à esquina da Main com a Itasca e encostou-os à saia comprida quando o Cadillac passou.
Elizabeth abarcou-os a todos na sua visão periférica, mas ignorou-os. Precisava de pensar, não em Still Waters nem naquilo que as pessoas da cidade pensavam a seu respeito, mas em Trace. Precisava de afastar o pânico da sua mente e de dissipar as dúvidas. Mais ninguém viria em seu socorro ou no de Trace. Precisava de pensar com calma e com clareza.
o vento despenteou-a quando o descapotável desceu a auto-estrada como um torpedo vermelho-vivo. Estava sol e o céu era uma incrível mancha de azul. De um dos lados da estrada, uma manada de vacas de focinho branco pastava, enquanto os seus bezerros marravam e corriam uns atrás dos outros. Do outro lado, via-se um grande milheiral, com as folhas verdes ao sol. o dia estava demasiado bonito para estar a acontecer uma coisa como aquela. o tempo devia estar escuro e tempestuoso, com uma chuva fria e um vento brutal.
Escolhendo uma berma ao acaso, Elizabeth ligou o pisca-pisca e desviou-se da auto-estrada. A traseira do Cadillac guinou quando as rodas pisaram o cascalho. Endireitou o nariz do carro, aliviou o pé no acelerador e deixou-o sair da estrada. Quando sentiu que estava suficientemente longe da civilização, virou para um caminho de terra batida e desligou o motor.
o seu primeiro instinto fora ir para casa ’mas Aaron estava lá. Aaron, «o Justo», que talvez já a considerasse a pior mãe do pior filho que havia no hemisfério Ocidental. Já se sentia suficientemente culpada sem ter o rosto de Deus a olhar para ela através da contenção estóica de Aaron Hauer.
Quando o ritmo cardíaco abrandou e a respiração voltou ao normal, Elizabeth olhou à sua volta. Encontrava-se na zona conhecida por «floresta de Hudson», assim chamada talvez por causa de outra família que desaparecera com os Drewes. A zona era acidentada e muito arborizada, e uma estreita faixa de pastagem acompanhava o caminho sinuoso que ia dar a Still Creek. Do sítio em que ela estava sentada não se via um único edifício, nem ninguém, além da decrépita vedação de arame farpado que impedia o gado de ir para a estrada. Era um bom local para pensar.
Como a floresta nas traseiras da sua casa, onde Trace afirmara que estivera no momento em que Carney Fox encontrara a morte.
o filho estava a mentir. Elizabeth ficou destroçada ao ` pensar nisso. Cobriu o rosto com as mãos, pressionando os olhos com os dedos até ver bolas coloridas a rebentar e a serpentear na escuridão. Ele não mentiria se não tivesse qualquer coisa a esconder. o que tinha ele a esconder?
Assassínio
Não. Não, pensou ela, com a sua determinação de mãe a apoderar-se do medo que tinha dentro de si e a apertá-lo com um pulso de ferro. Trace não podia ter morto ninguém. Ela não acreditava, não podia acreditar que ele o tivesse feito. Sim, ele andava com ar circunspecto desde que se tinham mudado para ali, ou mesmo antes. Sim, ele parecia zangado. Sim, ele metera-se em sarilhos antes, mas nunca dessa maneira. Os problemas que ele arranjara em Atlanta tinham nascido de um ressentimento para com Brock. Os problemas que ele arranjara na Shafer tinham de certo modo vingado a honra da mãe. Ele deixara que uma parte da sua fúria juvenil se abatesse sobre objectos inanimados, mas Trace nunca agredira ninguém fisicamente.
Até à noite anterior. o rosto dele e cinco dezenas de testemunhas provariam que ele andara à luta com Carney Fox no parque de estacionamento do Red Rooster.
Todavia, ele não era um assassino. Não podia ser um assassino. Agora que já afastara o medo, Elizabeth tinha a certeza absoluta disso. Trace era o seu bebé, a sua carne e o seu sangue. Ela podia não saber tudo o que se passava na mente turbulenta de um rapaz que queria a todo o custo ser um homem, mas sabia que, no meio da tempestade, tinha bom coração. Ele não podia ter morto ninguém.
Então, porque mentia?
Elizabeth soltou um gemido e encostou a cabeça ao volante, enquanto os seus pensamentos se seguiam uns aos outros Tinha de descobrir a verdade. Cada vez odiava mais esta palavra.
A fungar, virou-se para o lado e procurou um lenço de papel na mala, mas tirou o pequeno sobrescrito castanho em que se encontravam os objectos pessoais de Trace. Desejosa de se sentir mais perto dele, abriu-o e despejou o conteúdo no regaço. Um pente de bolso, duas pastilhas elásticas e a carteira. Passou a mão pela bela carteira de pele e sorriu tristemente. Oferecera-a ao filho quando este fizera catorze anos. Também não fora um dia feliz. Brock prometera levá-lo a um jogo com os Braves, mas depois escusara-se quando surgira a oportunidade de ser visto numa grande festa de embaixada em honra do ministro do Comércio do Japão. Os negócios eram mais importantes do que o aniversário de um rapaz, afirmou Brock. Mas não para o rapaz.
Distraída, Elizabeth abriu a carteira, sem grande esperança de encontrar alguma coisa. Sete dólares e um talão para uma embalagem gigante de pipocas no State Theater. o cartão de estudante da reles escola preparatória que ele frequentara em Atlanta por insistência de Brock.
Atrás do bilhete de identidade estava uma fotografia velha e ratada. Elizabeth puxou-a com todo o cuidado, com um sorriso melancólico nos lábios. Era uma fotografia dela e de Trace. Encontravam-se em frente de uma grande e antiga casa vitoriana amarela, com persianas verdes e um grande alpendre debruado a branco. Elizabeth estava de calções que mostravam um quilómetro de pernas bronzeadas, com uma T-shirt azul-celeste do parque de diversões de Six Flags e o maior, o mais radioso dos sorrisos. Céus, alguma vez ela tivera aquele aspecto tão jovem e se sentira tão feliz? Estava despenteada como de costume e os óculos escuros apresentavam-se tortos, e encontrava-se atrás de Trace com os braços à volta dele. o filho sorria e tinha um ar,bem-disposto, e a sua boca lembrava um tabuleiro de xadrez, tal era a mistura de dentes de leite, dentes definitivos e espaços vazios. Vestia uma T-shirt igual à dela e estava agarrado ao pescoço de um brontossauro insuflável.
Tempos mais felizes. Elizabeth não teve dificuldade em descobrir quem fora o fotógrafo. Donner Price. Um homenzarrão amável que parecia um urso. Um sacerdote metodista. Tinham-no conhecido num Verão passado em San Antonio. o melhor Verão da vida dela, sem contar com aquele em que se apaixonara por Bobby Lee. Esse Verão fora abundante em esperança e em oportunidades. Depois, -Donner morrera num acidente aéreo, quando ia distribuir medicamentos pelos pobres da Guatemala, e ela levara Trace e o seu coração destroçado para Atlanta, para começar de novo e trabalhar na Stuart Comunications.
Passou à divisória seguinte da carteira, afastando as recordações e os remorsos. o seu coração deu um salto e a melancolia volatilizou-se. Outra fotografia. Uma fotografia de passe de uma rapariga de cabelos castanhos em desalinho
sardas no nariz de duende. Sorria para a máquina, com uns olhos azuis meigos e travessos.
Os repórteres seguiram Dane desde a sala de audiências como um enxame de mosquitos, a pairar e a zumbir, mas sem se aproximarem muito para não serem escorraçados.,, acabara de dar a segunda conferência de imprensa no espaço de uma semana. Duas já eram de mais para um homem que nunca conseguira olhar para o cartão de um jornalista. Um bando de abutres. Como o assassínio de Jarvis não lhes fornecera carne fresca, o bando começara a dispersar, mas nesse dia regressara em força, de lápis afiados e olhos famintos. Dois assassínios numa semana talvez não os nova-iorquinos, mas constituiam uma grande notícia quando ocorriam na província. Dane já imaginava o título: Terror Numa Cidade Turística.
Nas escadas para a esquadra, dois agentes robustos subiram atrás dele e imobilizaram-se como dois carvalhos, impedindo efectivamente a passagem da multidão. Dane soltou um pequeno suspiro de alívio, que terminou com um gemido quando Charlie Wilder e Bidy Masters foram ao encontro dele no corredor inferior. Dane limitou-se a estugar o passo na esperança de que eles percebessem e o deixassem passar. Os dois homens postaram-se a seu lado, acompanhando-o e tentando encará-lo, com o rosto marcado pela inquietação.
- Dane, você não pode fazer nada? - perguntou Charlie, sem se dar ao trabalho de untar a pergunta com o seu sorrisinho habitual. Arfava e o seu rosto rubicundo estava a ficar corado do esforço e da tensão. - Há jornalistas que se estão a servir do palco do cortejo dos Tempos do Cavalo e da Carroça como cenário para histórias de assassínios. Você faz ideia do que isto vai provocar junto do público?
- Vai matá-lo? - perguntou Dane num tom sardônico. Bidy ficou lívido.
- Isto não é caso para brincadeiras.
-Não - concordou Dane. - o assassínio não é. Parou em frente da porta que dava para os gabinetes e lançou a ambos um olhar frio, acrescentando: - Tenho mais em que pensar do que na quebra da receita na tenda de bingo,
Bidy meteu a cabeça entre os ombros como um abutre, com uma expressão muito séria.
-Como o seu trabalho.
- Você foi eleito para proteger a comunidade - recordou Charlie. - Há trinta e três anos que não havia um assassínio aqui e agora tivemos dois numa semana!
- Bem, não fui eu que os matei, meus senhores - proferiu Dane em voz baixa, sem desviar o olhar. - E se não andarem atrás de mim por causa desse cortejo miserável, talvez eu consiga concentrar-me na investigação.
Os dois homens recuaram ao mesmo tempo, hirtos com a afronta. Não era uma atitude inteligente ofender as pessoas da cidade, reconheceu Dane ao deixá-los no corredor, de boca aberta. Mas ele atingira um ponto em que já não se importava com isso. o seu principal suspeito da morte de Jarvis estava agora estendido na Agência Funerária Davidson, com uma cabeça que parecia uma abóbora esmagada. Trace Stuart arrefecia os calcanhares na cela e escondia alguma coisa. E Elizabeth andava lá Por fora, a amaldiçoar o dia em que se tinham conhecido.
No gabinete, o barulho era maior do que na conferência de imprensa. Os telefones tocavam sem parar. Os agentes e o pessoal de escritório corriam de um lado para o outro, a entrar e a sair. Ouvia-se um ruído de fundo no meio das conversas. Lorraine dirigia o seu posto com um olhar feroz. Em frente da sua secretária encontravam-se um motorista de autocarro fardado, e uma loura de calções e de top. Dane apercebeu-se da situação com um olhar. o motorista tinha quarenta e cinco anos e era gordo. A loura parecia um engate de vinte e cinco dólares, empastada em maquilhagem e com metade de uma embalagem de mousse no cabelo.
Lorraine saiu de trás da secretária à pressa.
-Dane, o telefone não tem parado de tocar para si.
- Estou incomunicável, Lorraine - avisou ele, encaminhando-se para o seu gabinete. - Falou com o médico legista?
Ela correu ao lado dele, com a corrente dos óculos felinos a balouçar.
- Falei e também com o doutor Truman. Deixei as mensagens em cima da sua secretária.
- Óptimo. Obrigado.
- Está aqui o motorista de um autocarro a participar o desaparecimento de uma turista. o que devo fazer?
Dane deitou outro olhar ao casal que se encontrava junto da secretária.
O Kenny que trate disso.
-Está bem. - Lorraine deu mais uns passos e parou em frente dele quando chegaram à porta do gabinete. Os lábios ficaram reduzidos a nada e as sobrancelhas abateram-se
sobre os olhos como dois raios. - Aquela mulher, a Stuart, está à sua espera. Com a Amy.
- Com...? - Elizabeth e Amy? Elas não se conheciam. Eram dois compartimentos separados da sua vida. Dane abanou a cabeça ao pensar que elas se tinham juntado sem o seu conhecimento nem a sua autorização. - Está bem - anuiu ele entre dentes.
Lorraine fungou, indignada, e regressou ao seu posto. Dane abriu a porta do seu santuário e entrou. Elizabeth,,, na beira da sua secretária, de pernas cruzadas, fumava u cigarro com o seu rosto mais inexpressivo. Amy encontrava-se sentada na cadeira das visitas, com uma T-shirt cor-de-rosa, umas calças de ganga desbotada e as mãos cruzadas no regaço, como um estudante cábula que aguardasse a chegada do reitor. Virou-se para ele, de olhos muito abertos. As sardas destacavam-se na sua face pálida, como leite polvilhado de noz-moscada.
- Papá - disse ela baixinho, como se estivesse a proteger-se de um golpe terrível. - Tenho uma coisa a dizer-te ...
Vou deixá-los sós - disse Elizabeth, escorregando da cecretária. Apagou o cigarro no cinzeiro de Mourit Rushino e estendeu-o a Dane, sem tirar os olhos dele. - Parece que vocês os dois têm muito que conversar.
, Dane não conseguia ler nada na expressão dela. Era mau sinal, pensou, enchendo-se instintivamente de cautelas. Virou-se para a filha. Amy lançou um olhar inquieto a Elizabeth, que parou e deu uma palmadinha no ombro da rapariga.
-Gostei de te conhecer, querida - disse ela em voz baixa, com um sorriso de compreensão e de estímulo. -Também eu, Mistress Stuart. - Amy mordeu o lábio, ao mesmo tempo que os nervos lhe dançavam no estômago. - Tem mesmo de se ir embora?
Elizabeth passou a mão pelo cabelo castanho da rapariga, com uma recordação viva do que era ter quinze anos e estar apaixonada, ou pelo menos embeiçada. Era difícil estabelecer a diferença entre as duas situações, em que todas as noções eram muito ampliadas por aquele primeiro acesso de hormonas.
- Acho que é preferível. Tens de conversar acerca disto com ele, querida. Faz parte do processo.
- Que processo? - perguntou Dane, assim que Elizabeth saiu do gabinete e fechou a porta.
- De crescer - respondeu Amy baixinho, olhando para as unhas que a prima lhe pintara de rosa-vivo no fim-de,semana.
Teria dado tudo para evitar aquela conversa. Não dirigira mais de uma dúzia de frases ao pai desde a discussão de ambos sobre o assunto do namoro. Mantivera a sua vigilância silenciosa, alimentada pela certeza de que o pai fora justo para com ela. Mas, agora, não só seria obrigada a falar com ele, como teria de começar por lhe dizer uma coisa que ele não ia querer ouvir, uma coisa que a fazia sentir-se tão culpada do que como injustamente oprimida.
Dane ocupou o lugar de Elizabeth em cima da secretária, encostando-se à madeira de carvalho lisa, e com as mãos agarradas aos lados do corpo.
O que vem a ser tudo isto? O Trace estava comigo.
Amy balbuciou as palavras, com o coração a bater com força e os olhos postos nas unhas, esperando que o pai se mostrasse calmo, racional e compreensivo.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual uma dúzia de cenários diferentes lhe passaram pela cabeça. Depois, ouviu-se a voz dele - baixa, tensa, enganadoramente suave, como o ruído distante da trovoada que antecede a tempestade. O quê?
Amy levantou o queixo e encarou-o, pensando que agora sabia o que os espiões franceses tinham sentido ao serem interrogados pelas SS. Dane fitou-a, com uma expressão tensa e a raiva a borbulhar nas profundezas do olhar.
- o Trace não podia ter morto esse homem porque estava comigo quando tudo aconteceu.
Dane dominou-se na perfeição, completamente imóvel, com a tensão a crispar-lhe os músculos e os tendões e a resvalar para as extremidades dos nervos como uma navalha.
-Como é que ele podia estar contigo? Tu estavas em casa, na cama.
Mrs. Cranson dissera-lho, quando ele entrara em casa. Dane até se levantara para a ir espreitar, mas encontrara a porta fechada à chave duas noites seguidas.
Amy respirou fundo e contou a história do princípio ao fim. Como ela e Trace se tinham conhecido. Que ela fora ao jogo de basebol, à espera que ele aparecesse, quando chegara a notícia da briga no Rooster. Que encontrara Trace no sítio de ambos, na floresta, e que o convidara a ir a casa dela, para conversar. Que lhe dissera que subisse pelo carvalho perto da janela do seu quarto.
- Estivemos apenas a conversar - tranquilizou-o ela, cruzando as mãos no regaço. - o Trace é tão meigo e eu preocupo-me mesmo com ele. Detestei vê-lo sofrer...
Dane interrompeu-a com um movimento da mão.
- Depois de eu te ter proibido expressamente de namorar.
Ela inclinou-se para a frente na cadeira, muito séria. -Não foi um namoro. Estivemos apenas...
- Com os diabos, Amy, não tentes discutir porrnenores técnicos comigo! - berrou ele, afastando-se da secretária. Tú sabias o que eu queria dizer.
- Sim - gritou ela. - Tu querias dizer que me consideravas uma criança. Bem, não sou, papá! - Amy levantou-se da cadeira, a tremer de raiva e de medo, com os cabelos compridos a dançarem-lhe nos ombros como um véu amarrotado. - Tenho quinze anos. Sou uma jovem. A mãe compreende isso e o Mike também. Porque é que tu não consegues...
Dane viu tudo vermelho ao ouvir falar no homem que usurpara o seu lugar na vida da filha.
-Não quero saber daquilo que o Mike Manetti comcende - vociferou ele. - Eu sou o teu pai...
- o meu pai, não o meu guarda - retorquiu Amy, recusando-se a ceder, agora que a discussão estalara. - Não deves obrigar-me a continuar a ser uma criança. Isso é uma coisa que tu não podes manipular nem controlar, papá. Eu vou crescer, quer queiras quer não.
- Consideras que é crescer pedires a um rapaz que entre às escondidas no teu quarto? - perguntou Dane, erguendo uma sobrancelha. - Eu considero que se trata de uma infantilidade.
- Eu considero que é tentar ter uma vida própria quando meu pai não está disposto a permiti-lo.
- oh, e achas que o São Mike o permitiria? - perguntou ele com um sorriso trocista. Antigos ressentimentos penetravam em velhas feridas e queimavam-nas como ácido. -
Que mais é que ele autoriza a minha filha a fazer? Orgias na ala de jogos?
Amy arregalou os olhos.
-Céus, agora quem é que está a ser infantil? - perguntou ela, abanando a cabeça. Pôs as mãos nas ancas esguias, imitando inconscientemente a posição do pai, e respirou fundo, tentando acalmar as emoções que a agitavam e afastar as lágrimas acumuladas na garganta. - o Mike aceita-me tal como eu sou e confia em mim. Tu só vês o que queres ver. Queres que eu seja a tua menina, a tua «fofinha» para o resto da minha vida, porque esse é o nicho que eu preencho na tua, e tu não queres mudar, nem comprometer-te, nem deixar de seguir o teu próprio caminho.
Dane franziu o sobrolho. O que quer isso dizer?
- Quer dizer que tu não querias viver em Los Angeles, por isso te vieste embora. Não te importaste com o que a mamã queria nem que pudesse ter compromissos. Não te importaste que eu fosse excluída...
- Amy, tu eras um bebé! - exclamou ele, sem perceber como tinham derivado para aquele assunto. Sem saber como sair dele antes que todas as recordações e emoções que guardara dentro de si ao longo de todos aqueles anos se escapassem. - Tu não sabes nada do que se passou entre mim e a tua mãe.
Amy fitou-o com os olhos marejados de lágrimas e um ar magoado.
- Sei que te foste embora.
- A tua mãe podia ter vindo comigo. Eu queria-te ao pé de mim. Com os diabos, eu lutei para ficar contigo.
- Tu lutaste por minha causa - declarou Amy, sentindo o mesmo desamparo, a mesma frustração inútil e a mesma dor que sentira durante o divórcio. Lembrou-se de ter percebido que o pai e a mãe tinham deixado de gostar um do outro e de perguntar a si própria se também teriam deixado de gostar dela. As lágrimas correram-lhe pela face Limpou-as com as costas da mão. - Como se eu fosse um brinquedo - disse ela em voz baixa, com amargura. -- um troféu. Bem, eu não sou um troféu, sou uma pessoa e estou a crescer, a mudar e a relacionar-me com outras pessoas, e se não estás disposto a aceitar isto, papá, talvez seja melhor eu ir para casa!
Abafando um soluço, Amy tirou a mala das costas da cadeira e saiu do gabinete, desvairada, batendo com a porta.
Dane ficou ali de pé como uma estátua, sentindo-se velho e fraco à medida que a ira se dissipava. Suspirou e passou as mãos pelo cabelo. Por que motivo é que a vida tinha de ser tão complicada e que cada acontecimento se enredava no seguinte, obscurecendo e confundindo o cenário geral?,, das coisas que mais lhe fazia falta do futebol era a sua,,, a sua organização. o campo estava claramente,,,, os limites eram absolutos, as regras inflexíveis e o inimigo instantaneamente reconhecível. Os objectivos eram precisos e atingidos com um rigor lógico. Porque não era a vida assim?
Encarava este facto como uma exigência razoável. Nenhuma das coisas que pedira à vida lhe parecia extraordinária: paz, ordem, a sua quinta, o seu trabalho, a sua filha.
E tu não queres mudar. nem comprometer-te, nem deixar de seguir o teu próprio caminho.
Tirou a moldura da secretária e olhou para a rapariguinha de onze anos, feliz, sorridente, empunhando o seu dístico escrito à mão: AmO-TE, PAPÁ.
Os seus dedos agarraram-se à moldura. Era o que ele mais queria, que a filha o amasse. Não lhe agradava pensar,, tinha necessidades emocionais, mas não podia negar esta. Fora privado da infância de Amy, a presença dela fora rro`ubada à sua vida diária. Tudo o que tinha dela eram fotografias e fragmentos de tempo. Parecia-lhe razoável querer prolongar esse tempo como pudesse.
Crescer não podia ser um processo tão rápido no caso de Amy, Ela estava desejosa de experimentar, de provar a vida, de se tornar adulta. Mas para Dane esse tempo passaria tão depressa! Um punhado de visitas. Uma série de dias. Depois,, partiria, com uma vida própria, uma família. E ele ficaria com as suas pequenas recordações... Paz, ordem, a sua quinta, o seu trabalho...
o seu trabalho. A sua mente agarrou-se a estas palavras, ansiosa por escapar ao campo de minas emocional. Dane tinha uma missão a cumprir. Respirando fundo sem grande firmeza, pestanejou para desanuviar a vista, virou a moldura Para baixo e saiu do gabinete.
- Vocês estiveram juntos até quando? - perguntou Dane, tenso.
Viu Trace mexer-se na cadeira, pouco à vontade, e engolir a custo, com a maçã-de-adão a dançar-lhe na garganta. -Até cerca das duas e meia.
Trace viu os músculos a trabalhar no queixo do xerife Jantzen. Agora era um homem morto. Meter-se com a filha do xerife! Jantzen parecia tão furioso que seria capaz de puxar de uma Magnum de calibre.., como o Dirty Harry, e alvejá-lo entre os olhos. Trace avisara Amy que arranjariam problemas, mas ela suplicara-lhe que ficasse, só um bocadinho, e ele não percebia como é que um homem podia olhar para aqueles grandes olhos azuis e recusar-lhe fosse o que fosse. Ele não conseguia. E não queria. Transbordava de amor por ela. Era uma sensação maravilhosa e terrível, e agora ia sofrer com isso.
- Nós não fizemos nada, xerife - garantiu ele, tentando afastar os piores receios de um pai. - A sério, não fizemos. Quero dizer... Bem, eu beijei-a. - As narinas de Jantzen abriram-se desmesuradamente. Trace engoliu o medo. - Mas foi só isso. Juro por Deus - insistiu ele, levantando a mão direita. - Passámos a maior parte do tempo a conversar.
Ele estava a dizer a verdade. Era uma coisa que Trace tinha, pensou Dane. Reclinou-se e passou a mão pela testa para reduzir a tensão. Não teria dificuldade em apanhar o miúdo numa mentira. Trace resplandecia de sinceridade, e os seus olhos muito abertos imploravam a Dane que acreditasse nele. Dane fez tamborilar os dedos no tampo da mesa e olhou para Elizabeth, que se retirara para o lado, de braços cruzados. Ela não tivera muito a dizer durante a entrevista. Não lhe dirigira uma única palavra. Agora não deixava transparecer nada, nem raiva, nem compreensão. Nada.
- Porque não me contaste isso antes, Trace?
Trace inclinou-se para a frente na cadeira, empurrando para cima os óculos partidos.
- Eu não queria que a Amy tivesse problemas. Ela disse que o senhor estava a ser um verdadeiro ditador... - Trace calou-se e amaldiçoou-se por ter sido estúpido. Ficou rubro e tentou de novo explicar-se. - o que eu quero dizer é que o senhor a considerava demasiado jovem e tudo isso.
- Trace, podias ter sido acusado de homicídio...
- Mas não fui eu! - exclamou ele com veemência. Eu julguei que o senhor apanharia o criminoso e que depois tudo acabaria. Eu seria libertado e a Amy não teria problemas consigo. Nós só estivemos a conversar... Quase sempre... Dane levantou a mão para evitar mais revelações. Na escala dos dias maus, este era comparável àquele jogo de 1979 contra o Seattle, em que podia ter vencido os Raiders com facilidade. Deixara cair a bola na linha das vinte jardas e lesionara o joelho na colisão que se seguiu com os Seahawks. Perderam o jogo por 29 contra 24 e ele passou os seis meses seguintes em reabilitação.
- Por favor não se zangue muito com a Amy, xerife pediu Trace com veemência, desolado com a ideia de que a sua doce Amy sofresse as consequências da tempestade que o pai decerto iria desencadear. - Eu assumo toda a responsabilidade. Quer dizer, eu sou mais velho do que ela, e devia saber, mas...
Trace encolheu os ombros e olhou para as unhas, sem conseguir traduzir por palavras o que sentia quando estava com Amy. Ela era tão meiga e alegre, e con seguia que ele falasse de coisas de que nunca falava com ninguem. Como o facto de ele ter querido ir para a universidade para vir a ser engenheiro aeronáutico e Brock lho ter recusado. Apesar de a conhecer há poucos dias, Amy era a melhor amiga que ele tivera, além da mãe, mas as mães tinham uma categoria própria, por isso não contavam. Trace queria que Jantzen compreendesse, mas tinha a sensação de que tal não iria acontecer, por ele ser o pai de Amy.
- Eu só queria estar com ela - proferiu ele em surdina, refreando todos os sentimentos grandiosos e assustadores do primeiro amor e condensando-os nessa afirmação. Olhou para Jantzen através das pestanas. - Eu compreendo se não me deixar trabalhar mais para si.
Dane suspirou. Como é que ele podia ser duro para com um miúdo que quisera ir para a cadeia para proteger a honra da sua filha? Não era com Trace que ele estava desiludido, mas com Amy. Ou talvez não tanto com Amy como com o destino, o destino que o separara da filha, os factores que tinham levado Tricia a desejar coisas que ele não podia proporcionar-lhe. Tudo isso pesava nele como uma mó, tornando-o demasiado vulnerável, demasiado mortal. A culpa não era de Trace Stuart.
- Eu não quero que subas às janelas da minha casa resmungou ele. - Mas não estás despedido. No entanto, é provável que a Amy fique ensinada para o resto da vida. -Mas, xerife...
Dane cortou-lhe a palavra com um olhar. -Não insistas, Trace.
- Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Dane empurrou a cadeira para trás e levantou-se, sentindo-se velho e cansado, com a responsabilidade às suas costas como um roupão turco molhado. Tinha dois assassínios para resolver e uma vida particular que estava a desmoronar-se à sua volta como um castelo de cartas ao vento. -Estás livre.
Dane olhou para Elizabeth, que continuava a observá-lo com aquela expressão neutra, isenta de emoção.
-Eu gostava de falar com a tua mãe em particular. Elizabeth afastou-se da parede e avançou, fazendo sinal ao filho.
-Espera por mim no carro, Trace. -Sim, mãe.
Trace levantou-se da cadeira e saiu da sala de interrogatórios com o agente Kaufman. A porta fechou-se e por instantes o silêncio pairou como humidade no ar, espesso e opressivo. Por fim, Dane encolheu os ombros.
- Desculpe.
Elizabeth sorriu-lhe e abanou a cabeça.
- Você não tem culpa que a sua filha esteja a tornar-se meiga e bela. Por sinal, não me parece que você tivesse contribuído muito para isso... Especialmente no que diz respeito à meiguice.
- Não foi isso que eu quis dizer.
- Eu sei o que você quis dizer. - Elizabeth pôs a alça da mala ao ombro e encaminhou-se para a porta, com a última cena que ambos tinham protagonizado nessa sala ainda muito viva na sua memória. Dissera-lhe tudo, excepto que estava apaixonada por ele. Não lhe parecia inteligente ficar ali e pôr ainda mais em risco a sua dignidade. - Tenho de ir - anunciou ela, olhando para ele. - Tenho um jornal para publicar.
Ele devia tê-la deixado sair. Era o que teria feito um homem inteligente.
, -Lamento esta confusão com o Trace. Eu não o teria prendido se pudesse evitá-lo.
-Você estava apenas a cumprir o seu dever.
De certo modo, quando ela pronunciou estas palavras, a
desculpa não parecia muito boa, pensou Dane. Os diversos caminhos da sua vida tinham-se cruzado e emaranhado o emprego, a paternidade, a amizade, o sexo. Era exactamen’’ te o tipo de confusão que ele evitara com diligência durante
a maior parte da sua vida adulta e que voltaria a evitar logo que esses caminhos se separassem e endireitassem. Desculpe, se ficou com uma ideia errada acerca da nossa relação.
Elizabeth reprimiu a mágoa que sentia e conseguiu fazer outro sorriso estóico.
- Nós não temos nenhuma relação. Temos sexo. Percebe? - perguntou ela, cruzando o seu olhar com o dele durante um segundo breve e penoso. - Agora você conseguiu Partir a minha vida aos bocadinhos. Para a próximanão poderei permitir que a comida me venha parar ao prato.
- Elizabeth encaminhou-se para a porta, a saracotear-se, e deitou-lhe um olhar provocante. - Até à vista, cowboy. Apanhe um tipo mau. Talvez consiga que o seu nome venha no jornal.
Saiu da esquadra de cabeça erguida e a olhar em frente, ignorando as cabeças masculinas que se viraram à sua passagem e o olhar pernicioso da sempre diligente Mrs. Worth. Abriu caminho entre a multidão de repórteres que esperavam à porta, indiferente ao ruído das perguntas que eles lhe dirigiam e bloqueando os olhares ferozes com os seus Ray-Ban.
Trace encontrava-se à espera dela no Eldorado. Puxara a capota, fechara as janelas e trancara as portas para manter a imprensa à distância. Elizabeth sentou-se ao volante e ligou o motor e o ar condicionado. Sem dizer uma palavra, pôs o carro em andamento e afastou-se. Nenhum deles disse nada até saírem da cidade. Depois, Elizabeth parou numa estrada secundária.
Trace olhou para ela, preparando-se para o pior.
- Deves estar lixada comigo, não estás?
- Não me sinto orgulhosa por teres mentido - respondeu Elizabeth, tirando os óculos escuros e pousando-os no tablier. Virou-se para o filho com amor no olhar. - Mas sinto-me orgulhosa pelo motivo que te levou a mentir. Não foi uma atitude inteligente, mas o teu coração estava no sítio certo.
As sobrancelhas de Trace surgiram por cima das armações dos óculos.
-Não estás zangada?
-Não me quero zangar neste momento - respondeu ela em voz baixa, acariciando o cabelo curto do filho. Agora quero apenas congratular-me por estares aqui sentado ao pé de mim e não numa cela qualquer. Quero dizer-te que, apesar dos erros que ambos temos cometido, me sinto contente por seres meu filho. - As lágrimas assomaram-lhe aos olhos e embargaram-lhe a voz. Elizabeth pegou na mão de Trace e apertou-a com força, como se conseguisse transmitir-lhe o que sentia através do tacto. - Nunca penses que deste cabo da minha vida, Trace. Nunca penses que eu não te desejei - disse ela em voz baixa. - Deus sabe que não tenho tido a melhor das vidas até agora, mas tu és o único ponto brilhante. Tu és o que de melhor me aconteceu, querido. Eu nunca te trocaria por ninguém nem por nada neste mundo.
Uma grande bola de lágrimas acumulou-se na garganta de Trace, que percebeu que tinha de dizer alguma coisa estúpida para não desatar a chorar como um bebé. Com um sorriso oblíquo que lhe levantou um dos cantos da boca, perguntou:
-Nem sequer um milhão de dólares e um Ferrari novo? Elizabeth abanou a cabeça, rindo-se e derramando lágrimas que se apressou a limpar com a mão livre.
- Nem mesmo isso.
Inclinou-se e pousou a cabeça no ombro do filho, admirada com a sua corpulência e robustez. A percepção de que ele não seria um rapaz por muito mais tempo atingiu-a como uma seta. Ele já iniciara a luta pela idade adulta, já procurava encontrar o caminho certo. Nesse momento, talvez mais do que noutro qualquer, Elizabeth desejou ter melhores hipóteses para lhe oferecer, desejou poder dar-lhe um lar estável, um pai que o amasse, um homem que o pudesse ajudar a dar os passos certos nessa escalada. Mas não tinha. Tinha de viver com as hipóteses que construíra e com a consciência de que Trace cresceria e partiria dentro de pouco tempo, depois de fazer as suas opções.
-Mamã, por favor não chores - pediu ele baixinho. Elizabeth sentiu o embaraço na voz do filho, mas também a ternura e a preocupação. Sempre o afligira vê-la chorar. Sempre tentara falar com ela nesses momentos. As recordações de outros tempos, de outras lágrimas, fizeram-na esboçar um sorriso amargo e doce. Levantou a cabeça e olhou de frente para o filho, através das lentes rachadas.
- Serei sempre a tua mamã e terei sempre o direito de chorar por ti, mesmo quando tiver cem anos e tu já tiveres idade para deixar a dentadura num copo de água, durante a noite - disse ela, pestanejando para afastar as lágrimas.
- não te esqueças disto.
Trace esboçou o sorriso oblíquo que herdara dela e virou a cara para o lado para esconder os olhos brilhantes.
- Sim, mãe.
Elizabeth fungou e concentrou-se de novo na condução. Pôs o Cadillac em andamento e tomou a direcção de casa. -Vou largar-te - disse ela, assim que todos os sentimentos
assentaram como poeira no seu íntimo. - Podes penitenciar-te limpando o teu quarto. - Olhando para ele de soslaio, acrescentou: - E não te esqueças do cinzeiro debaixo da cama.
As palavras no ecrã do computador alugado misturaram-se, formando uma bola branca com a forma de um boneco de neve. Elizabeth reclinou-se na cadeira e esfregou os olhos, afastando um bocejo. Deixara Trace em casa e depois voltara para a cidade, confinando-se às ruas laterais para evitar atrair as atenções da imprensa que não era da cidade e também dos habitantes de Still Creek. A notícia da prisão e da libertação de Trace não seria bem aceite pela população local, que estava assustada e furiosa com a violência que tanto alterara as suas vidas e que procurava alguém para acusar, alguém que pudesse ver e apontar e que constituísse a personificação dessa violência. As pessoas viam em Trace um candidato provável. Alguém que não pertencesse ao seu mundo, que fosse exterior ao seu domínio de influência e experiência, alguém que pudessem odiar.
Por muito que desejasse que não fosse o filho o escolhido, Elizabeth compreendia-as. Se elas olhassem para os seus, se alguém que elas conheciam e em quem confiavam, se virasse contra elas, todo o seu mundo se inclinaria no eixo e elas não ficariam com nada a que se agarrar, em que acreditar, com ninguém em quem confiar. De certo modo, ficariam sós, e Elizabeth compreendia esse receio melhor do que ninguém.
Esperava, para bem de todos, que o caso se resolvesse depressa. Assim que o verdadeiro assassino fosse apanhado e a verdade conhecida, começaria o processo de regeneração. A cidade nunca mais voltaria a ser a mesma, mas as feridas cicatrizariam e a vida regressaria quase à normalidade.
A agitação que envolvia os Stuart desapareceria e Elizabeth conseguiria publicar uma verdade mais suave no Clarion, a verdade tal como ela era normalmente em Still Creek. A notícia dos parentes que tinham sido visitados no fim-de-semana. Nem assassínios, nem conspirações, nem segredos inconfessáveis.
Elizabeth olhou para o pequeno relógio de corda que comprara e perguntou a si própria porque estaria Jolyn a demorar-se tanto. Fora comer qualquer coisa à pressa às oito e meia. Eram quase nove horas. Através do que restava da janela da frente, Elizabeth avistou os últimos raios de luz que davam lugar à noite. Havia três artigos para acabar e compor, e a montagem para fazer. Se Jo não voltasse depressa, ficariam a trabalhar durante a noite para que o material pudesse ser enviado para Grafton a tempo de imprimir a edição semanal.
- Do que nós precisamos é de mais duas mãos - disse Elizabeth entre dentes.
É claro que não havia dinheiro para admitir mais empregados. Se os anunciantes continuassem a desistir e a tiragem a cair, não haveria jornal.
A vida é uma merda e depois morremos... Sozinhos. Seria tão agradável ter alguém a quem se encostar, só um bocadinho, nesse momento. Duas mãos fortes que lhe esfregassem os ombros depois de um dia como aquele, ou que a acariciassem e consolassem. Mas isso não estava escrito na sua sina.
- Desististe dos homens, querida - lembrou ela, falando consigo própria e dactilografando mais umas palavras a pedido do cursor a piscar no ecrã. - Mantém a tua palavra. Dane Jantzen não lhe iria facilitar a vida. Só ela o poderia fazer. E iria esmerar-se nisso. Olhou de novo para o relógio. e se Jolynn voltasse...
Suspirou de alívio ao ouvir a porta das traseiras a abrir-se e a fechar-se.
-Bem, já não era sem tempo...
As palavras morreram-lhe na boca quando virou a cadeira para o outro lado da sala.
Encostado à velha e besuntada máquina de linotipia encontrava-se Boyd Ellstrom.
Jolynn entrou no armazém de sucata de Bill Waterman pelo portão aberto, abanando a cabeça ao pensar na falta de segurança. Situado a oitocentos metros da cidade, na estrada secundária que ia dar à floresta de Hudson, o espaço fora alugado pelo município e era utilizado como armazém porque estava rodeado por uma cerca metálica, apesar de Waterman nunca se dar ao trabalho de fechar o portão à chave. É claro que raramente havia lá algo que merecesse a pena roubar. Nessa noite, havia qualquer coisa pela qual pelo menos um homem teria dado a vida: a agenda de Jarrold Jarvis.
o local estava deserto e tinha um aspecto fantasmagórico, rodeado de árvores e iluminado por um único candeeiro de vapor de mercúrio empoleirado num poste alto e nu. Viam-se pilhas de metal a enferrujar, a oxidar até se transformar em pó, enquanto Waterman não o tirava dali. No meio dos montes de sucata, erguia-se o barracão de chapa ondulada em que os automóveis velhos e postos de lado eram dissecados nas suas partes e onde Waterman tinha uma espécie de escritório. o Lincoln devia estar por ali.
Jolynn pensou que ficaria eternamente grata a Phyllis por já não ter batatas fritas. Se não fosse isso, ela nunca teria passado pelo Red Rooster e nunca teria metido conversa com um descabelado chamado Harley Cole. Harley, o Harley da Texaco, que concorrera à concessão do armazém de sucata municipal e que perdera por não ter uma vedação adequada. Harley, que se sentira no direito de manter o LincoM amarelo de Jarrold Jarvis em sua casa porque fora sempre ele a trabalhar no automóvel, inclusivamente a instalar uma caixa de ferramentas no chassis.
Se a intuição de Jolynn não falhasse, a obra de Harley não era uma caixa de ferramentas, mas um pequeno esconderijo. Ela ia descobrir. Fez figas e dirigiu ao céu uma pequena prece enquanto contornava os montes de sucata ferrugenta. Se estivesse certa, e descobrisse a agenda, o Clarion conseguiria adiantar-se aos jornais da cidade. Voltaria ao escritório e passaria a noite a trabalhar na notícia. A edição semanal seria impressa de manhã e estaria nas bancas antes de mais alguém ter tempo de confirmar o boato de que agenda existia.
A frase «ocultação de provas» passou-lhe pela cabeÇa, mas Jolyn ignorou-a. Não tencionava levar a agenda consigo. Só queria ver o que lá estava escrito. Depois chamaria Eager.
Ambos tinham passado metade da noite a pensar onde estaria a agenda. Bret apostava que ela se encontrava num esconderijo em Still Waters, algures junto do reboque que fazia as vezes de escritório, mas a busca desse dia revelara-se inútil. Jolynn sorriu ante a perspectiva de se adiantar a ele na descoberta. Bret ficaria a dever-lhe um bolo de fruta. uma massagem nas costas. Acima de tudo, Jolynn sorriu ante a perspectiva de ser ela a deslindar o caso. Elizabeth sentir-se-ia orgulhosa dela, e Bret também. Jolynn orgulhar-se-ia de si própria, o que não acontecia há muito tempo.
Esse pensamento deu-lhe coragem para ignorar os arrepios na espinha que os montes de sucata lhe provocavam. Perdera demasiado tempo a lamentar a perda do seu estatuto de mulher casada. o mérito estava em si própria e não no facto de ser Mrs. Rich Carmon. Não perdera nada do seu talento nem da sua inteligência quando perdera Rich. Só perdera um peso morto. Ele nunca a estimulara nem vislumbrara qualquer valor nas suas faculdades. o único préstimo de Jolynn na vida dele fora render-lhe homenagem e velar pelo seu conforto e pelas suas necessidades.
Susie Jarvis bem podia ficar com ele. o homem que Jolyn amasse partilharia com ela os seus interesses, vê-la-ia pelo lado positivo, pelas suas capacidades, tratá-la-ia com paixão e compreensão, e sobretudo com respeito.
Jolyn desconfiava que esse homem se chamava Bret eager.
Avistou o nariz do LincoM quando deu a volta ao barracão e concentrou-se no assunto que tinha em mãos. A caixa estava precisamente no sítio em que Harley lhe dissera perto do banco do condutor, mesmo por baixo do painel lateral. A facilidade com que ela se soltou provou a frequência com que Jarvis a utilizava. Sem nada que chamasse a atenção, a caixa de metal preto não tinha mais do que dez por quinze centímetros e menos de dois centímetros e meio de altura. A agenda que lá estava dentro - cuidadosamente embrulhada em plástico - era igualmente incaracterística. Uma simples capa preta encadernada com folhas de papel pautado lá dentro. o valor do objecto residia nos apontamentos impecavelmente escritos.
Jolynn sentou-se no chão de cascalho, encostada ao Lincoln e começou a examinar as páginas com a ajuda de uma lanterna de bolso que levara para o efeito. Quase todos os nomes lhe eram familiares. Gente da cidade que recorrera a Jarvis em momentos de necessidade. Ivan Stovich, que estava na iminência de perder a quinta devido ao seu problema de alcoolismo. Todd Morrison, que já falhara em três aventuras empresariais. Verne Syverson, que operava no mercado de utilidades sem habilidade nem senso. Boyd Ellstrom...
Boyd Ellstrom.- 18 700 dólares - dívida de jogo.
- Merda! - exclamou Jolynn em voz baixa. Aparentemente, o agente Ellstrom não era melhor a apostar do que a fazer cumprir a lei.
Ao passar para a página seguinte, arregalou os olhos e sentiu um aperto no estômago. Com o estreito feixe de luz, acompanhou a coluna de datas e de números e depois voltou ao nome que estava no cimo da página, com o coração a bater com força, invadida pelo medo e pela adrenalina.
- Jesus, Maria!...
A voz morreu-lhe na garganta ao virar as páginas seguintes e ao passar os olhos pelos nomes e pelas datas. Era como se tivesse aberto a caixa de Pandora e encontrado cobras enroladas lá dentro e a excitação que se gerara dentro dela tentasse vir à superfície de uma onda crionne. De repente, parecia uma criança que tivesse caído no fundo da piscina.
- Dá cá isso, Jolynn.
Com o coração aos pulos, Jolynn levantou a cabeça. Não o ouvira aproximar-se, de tão absorta que estava na leitura, mas ele encontrava-se a menos de metro e meio dela, suficientemente perto para ela lhe ver o rosto à luz ténue.
- Rich!
Jolynn levantou-se devagar, encostada à porta do Lincoln, de olhos postos no ex-marido. Elizabeth sempre afirmara que ele era parecido com o Robert Redfford a fazer de Sundance Kid, com o rosto quadrado, o cabelo louro revolto e o bigode. Mas naquele sítio, com as sombras a projectarem-se na cara e a boca reduzida a uma linha rígida, a sua maior semelhança com essa personagem era a aura de perigo que irradiava dele.
- Eu fico com a agenda, Jolyn - afirmou ele, impassível.
Estendeu a mão esquerda para ela, expectante, partindo do princípio de que ela lhe daria o que ele queria. Como sempre fizera.
-Desta vez não, Rich - disse Jolyn em voz baixa, abanando a cabeça.
A raiva, a escuridão e o frio faiscaram no olhar dele. Deu mais um passo na direcção dela, com a mão esquerda estendida. Na direita, tinha uma barra de ferro.
o homem estava embriagado. Elizabeth sentia o cheiro do uísque. Levantou-se devagar, tendo o cuidado de não fazer movimentos bruscos, como se estivesse na presença de um urso pardo.
. - Estava à minha espera? - perguntou Ellstrom, fazendo um esgar. - Ou estava à espera do grande Dane, o maior?
Afastou-se da máquina, a cambalear um pouco, e franziu o nariz ao ver a mancha de gordura que ela lhe deixara na manga da camisa amarrotada.
- Do Dane - respondeu Elizabeth maquinalmente. Ele deve estar a chegar.
Ellstrom riu-se e apontou-lhe o dedo, aproximando-se lentamente dela, a arrastar os pés.
- Sua cabra mentirosa! Ele não vem. Recebeu uma chamada. - Percorreu-lhe o corpo com o olhar, demorando-se em todas as curvas femininas e saboreando a ideia de lhes tocar. - o Jantzen... - proferiu ele com um ar trocista, fazendo um esgar como se o nome lhe deixasse um sabor desagradável na boca. - Julga que é muito esperto. Não passa de uma pila deslavada. Não sabe nada acerca do Jarvis nem de coisa nenhuma.
- E você sabe? - arriscou Elizabeth, procurando atrás de si, na secretária, qualquer coisa com que se defendesse. Os seus dedos afloraram a mala e ela lembrou-se da Desert Eagle, mas voltara a guardar a arma na mesa-de-cabeceira depois da lição que Dane lhe dera. com medo do seu poder e do seu potencial de desastre.
Ellstrom ignorou a pergunta dela, concentrando-se no modo como o tecido da T-shirt lhe moldava os seios à medida que ela ia recuando, e sobretudo no U de universidade, que lhe destacava o mamilo direito. Deu mais um passo em frente.
- o Jantzen não vem a caminho mas vou eu - gracejou ele, metendo a mão entre as pernas e envolvendo o sexo, num gesto sugestivo.
Elizabeth recuava lentamente, sem tirar os olhos dele. Afastou-se da secretária e do balcão, onde ele a encurralara uns dias antes. A sua mente funcionava a toda a velocidade. Talvez a embriaguez dele a colocasse numa posição de vantagem em termos de rapidez, mas o homem levava a melhor no perigo. Quaisquer inibições que ele pudesse ter em condições normais quanto ao uso da força tinham sido afastadas pelo álcool. Era um indivíduo corpulento, não só pesado como bem constituído. Seria um disparate pensar que mão existia força física debaixo daquela flacidez. E ele estava furioso. Convencera-se de que ela era a responsável por todos os problemas da sua vida. Ela e Dane. Queria ser compensado. Queria aquilo que, segundo a maioria dos homens da cidade, ela dava em troca de um sorriso e de uma palmada no traseiro.
- Você está em dívida para comigo - prosseguiu ele, endurecendo a expressão.
- Eu sei - respondeu Elizabeth em voz baixa, ganhando tempo. Recuou mais um passo, resistindo à tentação de olhar para trás e ver se já estava perto do seu alvo. - Tenho estado à sua espera.
Ele pestanejou, confuso, e cambaleou. As suas capacidades motoras falhavam quando o cérebro tentava orientar a energia para outro lado.
- Você disse-me que me fosse lixar.
Elizabeth fez-lhe o que julgava ser um sorriso provocante e recuou mais um passo em direcção ao gabinete particular de que nunca se servia.
-Ora, vá lá, querido. Não percebe quando é que uma senhora se faz esquisita para conseguir o que quer?
Elizabeth susteve o fôlego enquanto ele a mirava, tentando perceber através dos vapores do álcool se ela estava ou não ao mesmo nível. Ela apostava que o ego dele venceria... Apostava talvez a sua própria vida. Ellstrom estivera envolvido com Jarvis de qualquer maneira. Pelo menos com Helen. E havia algo de desonesto no facto de ele ter prendido Trace pelo homicídio de Fox. Afirmara que estava precisamente naquela zona quando o telefonema fora recebido e que sabia que havia desentendimentos entre Trace e Carney. Mas podia ter sido ele a matar Fox e a lançar as culpas sobre Trace. Talvez Fox o tivesse visto a matar Jarvis. Ou talvez Boyd Ellstrom estivesse completamente louco.
Elizabeth engoliu a custo o medo. Aprendera cedo a pensar pela sua cabeça e a salvar a pele. A experiência ensinara-lhe que os cavaleiros brancos não prestavam socorro de última hora. Uma mulher estava sozinha neste mundo e... ou salvava o coiro ou se tornava uma vítima.
Atirou os cabelos para trás do ombro e cruzou os braços sob os seios, empurrando-os para cima debaixo do tecido fino e macio da T-shirt.
-Eu estava apenas a excitá-lo, matulão - disse ela, pestanejando. - Não gosta que o excitem? Essa é uma das minhas especialidades.
Elizabeth bateu com as costas na ombreira da porta e Ellstrom deu mais um passo em frente. Elizabeth tentou respirar com o cheiro a suor, a álcool barato e a gases fedorentos. Sentia o coração a latejar na garganta como um punho a bater numa porta.
- E que tal um broche? - perguntou ele, de olhos pregados na boca dela. Já imaginava aqueles lábios cor de rubi à volta do seu coiso. Só de pensar nisso sentia as cuecas a esticar. - Aposto que essa também é uma das suas especialidades.
Elizabeth tentou transformar um esgar num sorriso dissimulado.
- Alguma vez viu Garganta Funda?
A voz de Elizabeth era rouca e ofegante devido ao esforço feito para não vomitar.. De medo, com o cheiro dele ou do que ele propunha. Ellstrom entendeu que se tratava de uma faceta do seu Poder de sedução e sorriu como um adolescente grande. Não estava a mais de trinta centímetros dela. o seu coiso mantinha-se em alerta total e empurrava a braguilha das calças pretas. Pensando que preferia pegar numa cascavel, Elizabeth forçou-se a tocar-lhe. Passou os dedos pelo corpo dele, estremecendo intimamente e rindo-se para disfarçar a repugnância.
- o que é isto, senhor guarda? Tem uma arma na algibeira ou está apenas satisfeito por me ver?
Ellstrom gemeu e encostou-se à mão dela. Sempre fora Jantzen a conseguir tudo naquela cidade - os elogios, a adoração, o lugar de xerife, as mulheres. Isso ia mudar. Daí em diante.
Levou a mão à fivela do cinto. Elizabeth agarrou-lhe na mão.
- Não é aqui, querido - disse ela em voz baixa, olhando para ele a pestanejar. - É no gabinete. Pode sentar-se na minha cadeira enquanto eu o faço feliz.
o homem estava rendido, apostava Elizabeth, a avaliar pelo seu olhar esgazeado. As hormonas e o uísque tinham-lhe deturpado o pouco bom senso que ele possuía. Elizabeth pôs-lhe as mãos no peito, levou-as até aos ombros e empurrou-o para o gabinete atravancado, perguntando a si própria se não fora ele a escolher o lugar.
- Despe a blusa - ordenou ele. - Quero ver-te as mamas.
Ela sorriu-lhe.
- Já vai, querido. Qual é a pressa? Temos o tempo todo deste mundo.
Ele sorriu outra vez, excitado com a perspectiva de passar a noite a fodê-la. Jantzen espumaria de raiva quando descobrisse. E havia de descobrir. Boyd encarregar-se-á disso. Assim como tinha a certeza de que encontraria aquela maldita agenda do Jarvis. Tudo iria correr a seu favor Bem o merecia.
- Isto promete - tartamudeou ele, aproximando-se com a intenção de agarrar num daqueles seios grandes e cheios.
Elizabeth esquivou-se, soltando uma das suas gargalhadas provocantes e roucas. Excitando-o, como ela dizia. Ellstrom tocou-lhe no mamilo com as pontas dos dedos e o seu coiso saltou nas cuecas, Vir-se-ia como um foguete quando ela lho metesse na boca.
- oh, sim - gemeu ele. - Isto promete. Estou ansioso por isto.
- Hum... Também eu - arrulhou Elizabeth.
Não estavam a falar da mesma coisa, mas o estúpido do agente não sabia. Elizabeth passou-lhe as mãos pelas calças empinadas e aproximou-se um pouco mais dele.
-Há dias que desejo fazer isto.
- Sim? - Os olhos dele brilhavam com a luz vítrea do inebriamento e do desejo carnal. - Também eu. Bem o mereço.
- Isso é verdade, querido.
Elizabeth fez-lhe o seu sorriso mais bonito, mais irresistível e depois levantou o joelho com toda a força de que foi capaz, com o objectivo de lhe fazer subir os tomates até ao pescoço. Aplicou-lhe um murro forte, e Ellstrom perdeu o fôlego num instante, dobrando-se e encolhendo-se.
- Cabra! Cabra desavergonhada! - gritou ele, cuspindo-se, com a voz estrangulada e a cara roxa. Fitou-a com uns olhos salientes e cheios de lágrimas e tentou agredi-la mas não conseguiu endireitar-se. - Vou matar-te. Vou matar-te por causa disto!
Elizabeth saiu a correr do gabinete e fechou a porta na cara de Ellstrom. Dirigiu-se para a porta das traseiras, sem perder tempo a olhar por cima do ombro. Ouvia-o berrar como um alce ferido. Se ele a apanhasse antes de ela conseguir ajuda, não tinha dúvidas de que ele a mataria mesmo ou a faria desejar a morte.
No entanto, Elizabeth nem precisou de sair do edifício para ir à procura de um polícia. Quando se aproximou da porta, Mark Kaufman abriu-a.
- Miss Stuart, preciso que me acompanhe - anunciou ele em voz baixa. Os seus olhos castanhos brilharam de inquietação ao aperceber-se da expressão desvairada de Elizabeth e ao ouvir as obscenidades que alguém gritava atrás dela. - Hum... Houve um acidente - gaguejou ele, dividindo a sua atenção para um lado e para o outro, como o espectador de um jogo de ténis.
- Um acidente? - repetiu Elizabeth. Os seus pensamentos voaram imediatamente para Trace, sentindo uma onda de medo a subir-lhe no peito. - Foi o meu filho? Foi o Trace?
- Não - respondeu Kaufman, olhando de novo para ela. - Foi a Jolynn.
o Hospital comunitário de Still Creek era um edifício de tijolo, novo, de um só piso, nos arredores da cidade, mesmo em frente do Lar de Idosos Bom Pastor. Fora construído em parte com as receitas do turismo, e a decoração da
sala de espera inspirava-se num motivo amish. o trabalho de um artista local descrevia a vida quotidiana dos Amish em óleos e aguarelas com molduras toscas feitas de madeira aproveitada das paredes de um celeiro. As cadeiras de balouço e os canapés poderiam ter saído da carpintaria de Aaroon Hauer. o ambiente era muito acolhedor para um sítio em que as pessoas esperavam com os nós dos dedos brancos e o estômago a arder.
Elizabeth passeava-se de um lado para o outro, numa grande carpete aos quadrados, de cigarro na mão, ignorando ostensivamente as placas que proibiam o fumo. Deu uma olhadela à vaca velha e desagradável que estava atrás do balcão das admissões e parou para deitar a cinza no vaso de uma planta viçosa. A mulher fulminou-a com uns olhinhos a brilhar sobre as bochechas gordas, mas não disse nada.
Ela que dissesse alguma coisa, pensou Elizabeth, ansiosa por uma discussão, por qualquer coisa que afastasse o medo que sentia por Jolynn. Não estava disposta a aturar ninguém.
Chegara ao limite da sua resistência. Estava de costas para a parede proverbial. Estava pronta a desancar fosse quem fosse.
Mas as pessoas do Minnesota que a rodeavam tinham-se refujiado atrás da sua frieza, da sua reserva e das suas boas maneiras e ela foi obrigada a dominar-se.
Não era de admirar que as pessoas dessem em doidas num sítio como aquele. Todos reprimiam os seus sentimentos, sempre. A raiva, a amargura e sabe Deus mais o quê ferviam dentro deles e aumentavam como o vapor num radiador até rebentarem. Como Helen Jarvis. Como Garth Shafer. Como a pessoa que cortara o pescoço a Jarrold Jarvis e esmagara a cabeça de Carney Fox. Nem sequer o estoicismo escandinavo conseguia dominar aquele tipo de fúria. Rasgava tudo, como estilhaços num tubo de aço.
No relógio de pêndulo que se via em cima de uma prateleira de estatuetas amish pintadas eram dez e meia. Há mais de uma hora que Kaufman aparecera no escritório. Elizabeth deixara-o a tratar de Ellstrom, metera-se no carro e fora para o hospital. Exigira que a levassem à presença de Jolynn, mas a enfermeira Ratchet confinara-a à sala de espera. Por isso ela andava de um lado para o outro e rezava, sem saber o que acontecera.
Estava quase decidida a tentar uma nova ofensiva e a entrar à força na recepção quando o Dr. Truman apareceu no corredor, vindo da sala de observações. Apesar de ser um homem pequeno, irradiava confiança e uma sabedoria paternal, Tinha um rosto esguio e vincado por rugas de expressão e a cabeça cheia de cabelos brancos de neve, que usava impecavelmente penteados para trás. Trazia o estetoscopi’o enfiado no bolso do peito do casaco branco solto que vestira por cima de uma túnica azul e de umas calças de cor escura. Os olhos de Elizabeth caíram logo nas manchas de sangue que lhe viu no punho de uma das mangas. Sobressaltou-se e sentiu um aperto no estômago.
- Oh, meu Deus, a Jolynn! - exclamou ela, ofegante. levando a mão à boca. As lágrimas deturpavam-lhe a vísão. -Você é a Elizabeth? - perguntou o médico.
Ela fez um sinal afirmativo, abandonando o cigarro no vaso.
- Como está ela? o que aconteceu? Posso vê-la?
As perguntas saíam-lhe ao acaso, sem espaço entre si para uma resposta. Jolynn era quase uma irmã para Elizabeth. Considerava-a mais da sua família do que Jesus Cristo. Era a sua melhor amiga e quase a única em Still Creck. Céus, se ela ficasse sem a Jolynn... Sentiu-se invadida por uma solidão quase opressiva.
o Dr. Truman abriu a capa de aço inoxidável de uma ficha clínica e escreveu qualquer coisa a esferográfica.
- Ela tem um traumatismo, alguns cortes profundos e escoriações - respondeu ele tranquilamente. Fechou a capa e enfiou-a no bolso da camisa, olhando para Elizabeth através das sobrancelhas brancas e felpudas. - Vamos mantê-la em observação durante a noite, mas eu diria que ela é uma senhora com muita sorte.
o alívio inundou Elizabeth e foi juntar-se ao medo, rà iva e a tudo o resto que ela sentia, deixando-a atordoada. O que aconteceu? Posso vê-la?
- Pode vê-la por pouco tempo. Vou dizer ao xerife Jantzen que a acompanhe à sala de observações.
Como um actor a representar o seu papel, Dane apareceu na porta larga do corredor donde saíra o médico. A sua expressão era grave. Elizabeth foi ao encontro dele. Não trocaram uma palavra de cumprimento. Dane virou-se e Elizabet foi atrás dele. A caminho do quarto, fez uma breve referência aos acontecimentos tal como tinham sido relatados por Jolynn, desde a descoberta da agenda de Jarvis até à chegada de Rich e à cena aflitiva que se desenrolara no armazém de sucata de Waterman.
- Ele tencionava matá-la com a barra de ferro, depois metia-a no carro e desviava-o da estrada. Para simular um acidente - disse ele, impassível. - A Jolynn desatou a correr. Sabia que não conseguiria chegar ao carro dela e por isso andou por ali à volta da sucata, tentando despistá-lo. Como era natural, o Carmon foi atrás dela. Mas a Jolynn conseguiu atirar-lhe um punhado de ferro-velho.
Elizabeth estremeceu. Era incapaz de imaginar o terror, a horrível certeza de saber que alguém que outrora a amara estava disposto a matá-la. A sua imaginação reconstituiu cada passo da perseguição, cada som, cada cheiro, o sabor acre do medo e o sal das lágrimas.
- Ele morreu? - perguntou ela.
-Não sei. Estava inconsciente quando o transportaram para o helicóptero. Há pouco falei com uma pessoa da unidade de traumatologia do Hospital de St. Mary. Diseram que a situação não era boa.
Isso dependia apenas do ponto de vista de cada um, pensou Elizabeth. Não teria um momento de tristeza pela morte de Rich Carmon. Ele estragara a vida a Jolynn e resolvera matá-la. Os instintos protectores de Elizabeth por aqueles de quem gostava e o seu forte sentido de justiça levavam-na a considerar que a morte de Rich fora adequada - esmagado por um monte de sucata.
Jolynn estava deitada na cama, com a pele tão branca como os lençóis imaculados. Tinha olheiras. Uma fila de pontos delicados suturava um golpe feio na face direita, Uma ligadura de gaze envolvia-lhe a testa como uma faixa ornamental e as duas mãos estavam ligadas como se fosse uma múmia. Yeager encontrava-se sentado junto dela, ao lado da cama, com a cabeça debruçada sobre a dela e com uma expressão de ternura e de preocupação.
-Olá, miúda, como te sentes? - perguntou ela, sem conseguir produzir mais do que um sussurro devido ao nó que tinha na garganta.
Ia a pegar na mão de Jolynn, mas lembrou-se das ligaduras e agarrou-se à grade de segurança da cama.
Jolynn levantou a cabeça e olhou para ela, de olhos vítreos e com um ar atordoado.
- Que pergunta estúpida! - comentou ela com uma voz fraca, tentando sorrir apesar da lidocaína que lhe anestesiava a face. - Tens de ser uma repórter.
-Não - respondeu Elizabeth com uma voz pausada, abanando a cabeça. - Mas acho que podia tentar a física nuclear. Sei mais ou menos a mesma coisa.
-Desculpa a edição semanal - disse Jo em surdina. Por causa dela não conseguiriam cumprir os prazos. Porque havia ela de lá ter ido e ser apanhada? Não sabia fazer nada que não desse asneira? A culpa era de Rich, recordou ela. Rich tentara... o sinal dissipou-se e Jolynn franziu o sobrolho, confusa. Sentia a cabeça a latejar de dor como se lhe estivessem a dar marteladas.
- Não faz mal, querida - respondeu Elizabeth baixinho, agarrando-se com mais força à grade. - Aposto que Still Creek aguenta passar uma semana sem más notícias.
o remorso assaltou-a como um anjo vingador. Se nãO fosse a sua determinação em publicar a verdade, em gravar essa verdade, aquilo nunca teria acontecido. Afinal, quem em Still Creek é que se dava ao trabalho de ler a verdade no seu estúpido jornal? o que eles queriam era as notícias sobre o Clube H e as promoções do Piggly WiggIy.
A culpa não é tua - disse Jo, interpretando acertadamente a expressão de Elizabeth. - Tu não és Deus, bem sabes que eu fui lá porque quis. Fui eu a tomar a decisão e estou contente por isso.
Jolyn Não se sentia contente por quase ter sido assassinada, mas mão podia dizer que se arrependia de mais nada do que acontecera. Era responsável pela sua vida. Enfrentara o espectro do passado de uma vez por todas. Salvara-se física e psicologicamente Enquanto andara a correr por entre as montanhas de sucata no armazém de Waterman, sem saber
se escaparia ou não com vida, fora atingida pela estranha sensação de estar viva, mais viva do que se sentia há anos e víra tudo com clareza: quem era, quem podia ser, o que queria.
Yeager debruçou-se sobre ela, afastando-lhe ternamente o cabelo da face.
Tens de descansar, querida - disse ele em voz baixa, com uns olhos escuros quentes e brilhantes de inquietação., Jolynn sorriu-lhe - com metade da boca - fechando as pálpebras e sentindo que uma forte fadiga a empurrava para o sono,
És tão querido.
Ele tentou engolir o nó de emoção que tinha na garganta.
- Amo-te - disse ele baixinho, afastando um caracol castanho que escapara às ligaduras e se enrolara na face de Jolynn.
Dane pôs a mão no ombro de Elizabeth. Quando ela voltou a olhar para ele, Dane apontou para a porta e saíram juntos. Os passos de ambos no chão de mármore foram o único som que produziram ao percorrer o corredor escuro que ia dar à entrada principal.
Lá fora, a noite cobria toda a cidade e o campo. o trigo novo na seara ao lado do Lar do Bom Pastor sussurrava com a brisa. Algures no fundo do quarteirão um cão ladrou, !,, depois seguiu-se o nada - nem os sons do trânsito, nem a música a sair das janelas abertas. A tranquilidade ou uma cópia dela pairava no ar, a par do perfume dos gerânios, das madressilvas e da relva acabada de aparar.
Elizabeth encostou-se a uma coluna de tijolo e contemplou a noite, perguntando a si própria se a paz existia ou se era apenas um ideal, algo desejado mas sempre fora do alcance das pessoas. Pensou em Jolynn e no contentamento na sua face quando Yeager lhe dissera em voz baixa que a amava, e concluiu que de vez em quando alguém se deixava prender.
Dane observava-a, com o remorso a consumir-lhe as entranhas.
-Desculpe - disse ele. - Você desconfiou do Carmon desde o princípio e eu excluí-o. Mesmo depois de voltarmos a interrogá-lo ontem, eu não via nele um assassino. Julgava que o conhecia há muito tempo.
Elizabeth lançou-lhe um olhar penetrante e interrompeu os seus pensamentos.
-Acha que ele matou o Jarvis?
-Ele admitiu à Jolynn que matou o Fox. Disse que o Fox o ameaçara de fazer chantagem com ele. Como o Fox não tinha a agenda, parece lógico que o que ele tinha a apontar ao Rich era o assassínio. Ele deve ter assistido.
- E o móbil dele para matar o Jarvis era a agenda.
- Eu limitei-me a dar-lhe uma olhadela, mas os pormenores são fabulosos. o Jarvis andava a subornar gente graúda do estado para o ajudarem a conseguir contratos de construção de estradas. o Rich era o angariador dele. Se isto se tivesse sabido, as ambições políticas do Rich teriam ido por água abaixo.
- Mas por que motivo é que o Jarvis deixaria fugir essas informações? - perguntou Elizabeth. - A verdade também o teria arruinado. Além disso, ele beneficiaria do facto de o Rich vir a ser eleito. Pense no poder que ele teria.
Dane encolheu os ombros. Enfiou as mãos nos bolsos das calças de ganga e encostou-se ao outro lado da coluna, a olhar para a atmosfera nocturna.
- Talvez fosse isso mesmo. Talvez o Rich não gostasse da ideia de ser a marioneta do Jarrold. Ao matá-lo, conseguiria a sua liberdade, a herança da mulher... Talvez nunca venhamos a saber ao certo.
Elizabeth abanou a cabeça, com a dúvida a atormentá-la.
- Não sei...
o sorriso incrédulo de Dane faiscou na escuridão. o xerife deu a volta à coluna, com um ar espantado.
o quê? Você foi a primeira a apontar o dedo ao Carmon. Agora, pensa que não foi ele? Depois de ele ter confessado um assassínio e por pouco não ter dito que cometeu outro?
- É demasiado... - Elizabeth calou-se e depois riu-se sozinha, passando a mão pelo cabelo. - Simples. Exactamente como você gosta.
- Isso não significa que não seja verdade - declarou ele com irritação.
- Não, não significa. - Elizabeth cruzou os braços e aconchegou-se para afastar um arrepio vindo de dentro. - Estou apenas a pensar no modo como o Jarvis foi morto, e parece uma coisa tão... violenta.
- Exactamente como uma barra de ferro na cabeça. Sim, mas é diferente. Uma boa pancada e está tudo acabado. Penso que cortar o pescoço a alguém... o que se deve sentir ao agarrar outra pessoa e tirar-lhe a vida... Os seus pensamentos viraram-se para dentro, projectando a imagem da cena do crime no ecrã da sua imaginação, como um filme em que a cena fosse registada do ponto de vista do assassino, em que este se encontrasse atrás de Jarvis, a abrir-lhe a garganta com a faca, a rasgar-lhe a carne e a ouvir os sons... Elizabeth estremeceu e abanou a cabeça para afastar o pensamento. - É preciso uma extraordinária dose tde ódio para fazer uma coisa dessas.
Ou então não ter sentimentos - contrapôs Dane.
- Parece um crime passional...
- Ou um acto pérfido cometido a sangue-frio.
- Havia outras pessoas cujo nome consta nessa agenda- lembrou ela. - Outras pessoas com os seus motivos.
Shafer, Ellstrom. - Elizabeth admitiu falar-lhe da visitinha
de Ellstrom ao seu escritório, mas não tinha energia para isso. Kaufman levara o agente. Dane viria a saber disso por outra pessoa, por alguém que não quereria ouvir dele palavras de compreensão ou de ternura. Elizabeth desviou o olhar e suspirou. - Talvez tenha razão. Estou apenas a ser perversa. De qualquer modo, é o caminho mais fácil. Se o Rich morrer, nem sequer haverá julgamento. As coisas voltarão à normalidade antes do cortejo dos Tempos do Cavalo e da Carroça.
Dane franziu o sobrolho, sem gostar do que ela estava a insinuar.
- Não há problema nenhum nisso se essa for a verdade. -A verdade - repetiu ela em voz baixa. - Por hoje, já tive a minha dose de verdade. - Afastou-se do pilar. Vou para casa.
- Elízabeth. - Ela virou-se e olhou para ele, expectante, e as palavras que Dane tencionava dizer não lhe saíram da boca. o facto de ter visto Yeager com Jo revolvera qualquer coisa dentro dele. Uma necessidade de aproximação. Uma solidão que ele ignorara durante anos. Uma fraqueza, pensou ele, esmagando-o sem dó nem piedade. - Quer que eu vá atrás de si? Consegue chegar a casa em segurança?
Elizabeth quase pestanejou com o desapontamento. O que esperavas, querida? Uma declaração como aquela que a Jo ouviu?
- Não. Obrigada. Você apanhou o seu assassino. o que poderia acontecer?
Dane viu-a afastar-se. Não queria sentir a falta de uma mulher,,fosse ela quem fosse, sobretudo de Elizabeth. Não precisava que ela andasse a moer-lhe o juizo, a suscitar dúvidas acerca dele próprio, daquele caso ou da sua cidade...
Não. Isso não era verdade. Ela estava a obrigá-lo a olhar para si mesmo. Ela não tinha culpa de que ele não gostasse do que via. Dissera que ele era mentiroso, que queria coisas simples e fáceis. Ele ripostara chamando-lhe ambiciosa e considerando-a outra Tricia, Nada podia estar mais longe da verdade. Tricia teria arranjado uma maneira de se manter atracada a Brock Stuart, independentemente das outras mulheres com quem ele andasse. Tricia nunca teria recomeçado sozinha com pouco dinheiro e ainda menos perspectivas. Nunca teria vindo para uma cidade insignificante como Still Creek nem viveria numa lixeira como a casa dos Drewes. Nunca se teria dado ao trabalho de pensar em quem matara Jarrold Jarvis desde que isso não a afectasse directamente.
Elizabeth não era nada parecida com a sua ex-mulher. Dane olhara para ela e vira o que quisera ver, o que era mais seguro, o que era mais fácil... Essa é que era a verdade.
Dane tinha a vida organizada de acordo com as suas regras para que não houvesse rupturas nem exigências que ele não estivesse disposto a satisfazer. Tinha o seu emprego, a sua posição na comunidade, a sua quinta, a sua relação simples e desprovida de emoção com Ann Markham. o caminho mais fácil. Como Elizabeth afirmara. Como Amy afirmara. Céus, ele não era melhor do que Rich Carmon, repousando em louros passados, vivendo à custa da sua reputação, esperando que a vida se adaptasse aos seus planos.
Elizabeth tinha razão... Ele queria que Rich fosse o culpado, tal como ele pretendera que Carney Fox fosse o culpado, porque isso se traduziria em menos problemas para ele.
Desceu as escadas e atravessou o relvado húmido de orvalho até ao sítio onde deixara a Bronco, junto da entrada das urgências. Entrou na camioneta, ligou o motor, retomou a rua e dirigíu-se para a esquadra, e não para casa. Talvez houvesse mais algumas verdades a desvendar nessa noite.
Boyd estava sentado na rampa das traseiras da sua casa, com a cabeça entre as mãos e uma poça de uísque regurgitado à volta dos sapatos. Kaufman obrigara-o a sair do escritório do jornal, levara-o para casa e ordenara-lhe que fosse dormir. Não o tinham acusado formalmente de nada. Com os diabos, pensou ele, com um aperto no estômago e uma dor que lhe vinha dos testículos até ao cérebro, se alguém tinha acusações a fazer era ele. Aquela cabra de cabelos negros atraíra-o, importunara-o, prometera-lhe o céu e dera-lhe um pontapé mesmo no meio das pernas. Havia leis contra esse tipo de situações. Ele tinha de saber. Ele ia ser xerife... Era para ser. Agora o futuro parecia-lhe tão bom como o
vomitado que se lhe infiltrava nos sapatos. Aquela mulher, a Nielsen, descobrira a agenda. o Kaufman descaíra-se a contar toda a história no caminho para a cidade, desbobinando como é que Rich Carmon tentara matar a ex-mulher paraconseguir pôr as mãos naquela agenda. Mais ninguém se teria lembrado outra vez da maldita agenda se não fosse a cabra da Stuart.
Boyd inclinou-se um pouco mais, dobrando-se numa bola de gordura infeliz e fedorenta. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e do estômago saiu-lhe outra lufada ácida e azeda. Boyd chorou, praguejou, lamentou-se e voltou a praguejar. Doíam-lhe as entranhas e os testículos e sentia a cabeça a latejar. A sua vida acabara. Ele nunca mais seria xerife nem ali nem em parte nenhuma. Jantzen ia despedi-lo e ele nunca mais conseguiria um emprego, excepto talvez como segurança de um estabelecimento. Não era justo. Ele merecia melhor. E teria conseguido melhor se não fosse Elizabeth Stuart.
Quando Elizabeth entrou finalmente em casa pela porta das traseiras, Trace estava sentado à mesa da cozinha à espera dela. Levantou-se logo da cadeira e o seu rosto era uma máscara de preocupação.
- Estás bem? - perguntou ele, dando dois passos na direcção da mãe e afastando alguns sapatos desarrumados com um pontapé. - Não costumas chegar tão tarde.
Elizabeth abraçou-o demoradamente e sorriu, encostada ao ombro do filho.
- Estavas preocupado comigo, querido?
- Estava.
- Que bom! É agradável saber que alguém se preocupa connosco.
Elizabeth abraçou-o de novo e depois afastou-se. Trace, com uma perna dobrada e as mãos nas ancas esguias, ergueu o sobrolho acima das lentes partidas e perguntou:
- o que se passou? Aconteceu alguma coisa, não é verdade?
- Vai buscar uma Coca-Cola à mamã que ela conta-te tudo.
Elizabeth contou a história ao filho, sentada no outro extremo do sofá, ao som pungente do piano de Bruce Horrísby. Omitiu a maior parte da cena com Ellstrom, sabendo que isso iria perturbar Trace. A última coisa de que ambos precisavam era que ele chamasse à ordem um agente para defender a honra da mãe. A história da aventura angustiante de Jolynn bastou para o fazer arregalar os olhos e o manter atento.
- Livra! - exclamou ele, suspirando, no fim da história. - Então o Carmon tencionava matar Miss Nielsen para esconder tudo?
Elizabeth fez um sinal afirmativo e pôs o copo de lado em cima da mesa barata de imitação de cerejeira, onde uma dúzia de rodelas brancas assinalavam o sítio dos copos que por ali tinham passado.
-Ainda bem que a Jolynn tinha a cabeça assente nos ombros, caso contrário teria morrido.
o pensamento agitou-a de novo como a réplica de um sismo e ela passou os braços à volta dos joelhos e aconchegou-se, defendendo-se da sensação. Podia ter perdido Jolynn, a sua melhor amiga. Nos últimos doze anos, tinham feito o possível por se consolarem uma à outra nos bons e nos maus momentos. A perda de Jolynn teria aberto um rombo na vida de Elizabeth.
Trace abanou a cabeça devagar, com um misto de espanto e de aversão.
- Como é que um homem foi capaz de fazer isso a uma mulher que ele amou? Eu nunca poderia pensar em magoar a Amy,..
Trace calou-se de repente e olhou para o pé enorme que pousara no coxim do sofá, corando ao pensar naquilo que acabara--de admitir, Não lhe parecia bem que um homem dissesse à mãe que estava apaixonado. E talvez ela pensasse que ele era tonto, frívolo ou outra coisa qualquer igualmente intolerável por se ter apaixonado em tão pouco tempo. Ficou à espera que ela fizesse qualquer comentário embaraçoso, como as mães costumavam fazer, mas tal não aconteceu. Por fim, levantou a cabeça e viu que ela estava a pensar.
Tinha um ar melancólico, quase triste, embora estivesse a sorrir. A luz do candeeiro atrás dela realçava-lhe o cabelo. Era bonita, e de súbito Trace imaginou-a com a idade de Amy, com a idade dele, demasiado jovem para ser mãe, levando-o ao colo para todo o lado. De certo modo, nunca pensara nela dessa maneira - jovem, assustada e apaixonada. o facto de ela ser mãe enchia-a de sabedoria a seus olhos, colocava-a imediatamente acima de medos e incertezas. o facto de ela ser mãe tornava-a infalível, mas a verdade é que ela era apenas uma adolescente nesse tempo.
Ao pensar nisto, Trace sentiu-se invadido por uma súbita ternura por ela. A mãe passara o diabo Para o ter e criar. Merecia muito mais do que a vida lhe proporcionara. Trace prometeu ali mesmo compensá-la. Tornar-se-ia uma pessoa melhor, seria mais diligente na escola e faria qualquer coisa de si próprio para lhe oferecer coisas boas e permitir que ela se orgulhasse dele.
- Ela é simpática, a tua Amy - observou ela, agarrando-lhe as mãos pousadas nos ténis. - E bonita. É simpática. Eu gosto dela.
Trace baixou a cabeça, tentando reprimir um sorriso ridículo.
- Ela é muito especial - disse ele, abafando uma catadupa de adjectivos para não ficar embaraçado. Amy era o Sol e as estrelas e tudo o que havia de terno e de bom... E só estaria ali mais duas semanas.
-Não creio que consiga vê-la muitas vezes... o xerife Jantzen é muito severo quanto a namoros e tudo isso.
- oh, tu deste-lhe algumas dores de cabeça, querido disse Elizabeth apertando-lhe as mãos. - Ele não quer pensar que a sua menina está a crescer. Um pai sente-se terrivelmente mortal ao ver um filho transformar-se num adulto. Tudo parece tão rápido...
Elizabeth virou a cabeça, olhou para outro lado, enquanto Bruce Hornsby entoava uma canção animada e extraordinariamente simples acerca de estradas não povoadas, que parecia encerrar a essência da vida numa mão-cheia de palavras acerca das opções e dos remorsos.
- Bem - disse ela, forçando-se a regressar ao presente e esboçando um sorriso. - Não quero envelhecer sentada neste sofá deformado. Vou para a cama.
Elizabeth endireitou as pernas, levantou-se e espreguiçou-se, sentindo todos os dias, todos os minutos dos seus trinta e quatro anos. Trace levantou-se também, e a sua figura sobrepôs-se à da mãe.
- Boa noite, mamã - desejou ele em surdina, abraçando-a. - Gosto muito de ti.
Elizabeth sorriu para afastar as lágrimas súbitas e abraçou-o também, lembrando-se do modo como sempre lhe respondera quando ele lhe dava aquele último abraço de boas-noites antes de se agarrar ao seu ursinho de peluche.
Passava da uma hora quando ela subiu a escada. Despiu-se para se deitar, demasiado cansada para fazer algo mais do que deixar a roupa no sítio em que esta caíra. Enfiou uma T-shirt de homem que lhe chegava às ancas, sem disposição para vestir uma camisa de noite sedosa e sexy. Aexaustão puxava-a como a força da gravidade, fazendo-a sentir o peso dos braços, das pernas e do coração. Só queria deitar-se e dormir, mas a mente não lhe daria descanso. Queimava-a e perseguia-a com os acontecimentos do dia, reproduzindo todas as emoções e tensões por que passara, deixando-a descarnada e exposta.
Aproximou-se da janela aberta e sentou-se no parapeito, encostando-se à ombreira. À luz do quintal, via as silhuetas dos anexos, o automóvel no sítio em que ela o deixara, perto da casa, e o carro-patrulha estacionado junto do barracão. Era evidente que a notícia da presumível culpa de Rich Carmon não se espalhara. Ninguém se incomodara a mandar regressar o guarda à esquadra. Nem ela. Demasiado cansada para discutir com um agente, fora logo para casa. Ele que passasse a noite ali sentado. Era para isso que ela pagava impostos. Talvez fosse Kenny Spencer e tivesse adormecido.
Elizabeth levou o copo à boca e bebeu um gole de uísque. o líquido quente escorregou-lhe até ao estômago, mas não lhe acalmou os nervos nem a libertou da angústia. Elizabeth olhou para o copo e franziu o sobrolho. o uísque de malte não era um remédio nem uma panaceia. Era apenas um hábito. Com o qual ela tinha de romper. E sozinha. Não precisava de uma muleta que constituía mais um estorvo do que uma ajuda. Talvez ela enviasse o resto do uísque a Brock com um bilhetinho: Espero que apanhes uma cirrose.
Tentou imaginá-lo sentado junto dela, na sua cama de hospital, abatido pela preocupação e a segredar-lhe sinceras palavras de amor. Nunca! A menos que houvesse uma câmara apontada a ele ou um repórter por perto. Elizabeth imaginava Dane sentado ali, mas tal nunca aconteceria.
Tentou reflectir no caso, mas o seu coração não estava para aí virado. Além disso, as peças que Dane juntara encaixavam tão bem que talvez ele tivesse razão.
Porém, ao olhar para o campo, tranquilo e silencioso na noite de Verão, Elizabeth sentiu aquele mesmo mal insidioso a espreitá-la, o mesmo que experimentara na noite em que Jarvis fora assassinado. Uma sensação de malevolência pairava no ar como fumo. A sensação de que havia um par de olhos concentrados nela, que atraíam aquele mal e o transformavam num poderoso foco que se projectava nela como um raio laser, nela ali sentada à janela, em cuecas e T-shirt. Esse sentimento moveu-se lentamente na sua carne como se fosse uma cobra e Elizabeth afastou-se da janela e enfiou-se nas sombras, abalada e agradecida por o agente se encontrar no seu quintal.
Talvez fosse a imaginação, pensou ela, pousando o copo na mesa-de-cabeceira e subindo para a cama. Resquícios do nervosismo provocado pelo encontro com Ellstrom. A paranóia induzida pelo cansaço, pelos nervos e pela falta de mais uma refeição.
Puxou os lençóis para cima do corpo e deitou-se de lado, enroscada, tentando ignorar a dúvida que a atormentava e o odor de Dane Jantzen na sua almofada.
Dane passou a mão pelo rosto e pelo cabelo. Sentia os olhos secos como se fossem ameixas. Parecia um vagabundo. Sabia-o porque não conseguira deixar de se ver ao espelho da última vez que fora à casa de banho para se aliviar de mais um litro de café de má qualidade. A camisa estava amarrotada e manchada de suor e ele próprio tinha um aspecto perigoso. Precisava de tomar um duche, de fazer a barba, de beber uma cerveja, de uma refeição em condições e de dezanove horas de sono, não necessariamente por esta ordem. A única coisa que iria conseguir era beber mais uma chávena de café requentado.
Tinha os relatórios laboratoriais do GIC espalhados pela secretária, com o número do relatório inicial de participação impecavelmente dactilografado no cimo, reduzindo assim a morte de Jarrold Jarvis a oito dígitos impessoais. Analisara todas as declarações e todas as teorias sob todos os ângulos. Lera e relera a agenda preta de Jarrold, o Quem E Quem» dos negócios escuros na política do estado. Iriam rolar mais cabeças além da de Jarrold por causa daquela agenda. o Minnesota era um estado de políticos convencionais e sem imaginação. Bastava um sopro daquele monte de lixo para que se desencadeasse a agitação entre os eleitores. Mas Dane não sabia ao certo como é que a agenda se articulava com a morte de Jarvis. Sentia a cabeça a rebentar quando recomeçou a raciocinar, tentando organizar todos os dados de que dispunha e chegando a uma conclusão que não podia ser refutada por ser apenas a solução mais simples.
Do outro lado da porta ouviu a azáfama a recomeçar no escritório. Apesar de serem ainda sete e meia, as pessoas começavam a chegar. Já sentia o aroma do café de Lorraine vindo da sala de convívio. Os telefones já começavam a tocar, e Dane imaginou os caçadores de notícias reunidos num grupo desorganizado e faminto à porta da esquadra, à espera que ele saísse.
Ouviu-se uma pancada forte na porta, que se abriu. Lorraine enfiou a cabeça lá dentro e arregalou os olhos, com um ar alarmado e maternal por trás das lentes dos óculos.
Meu Deus, o senhor parece um desenterrado! - exclamou ela ao entrar. Lorraine colou uma mão-cheia de mensagens cor-de-rosa ao peito da sua blusa azul e, com a outra mão, começou a endireitar os dossiers, com eficiência e desenvoltura, pegando na chávena de café de Dane. - Há quanto tempo é que aqui está? - perguntou ela, torcendo o nariz ao ver a sujidade no fundo da chávena. - o que está a beber?
-Acho que é óleo de motores. - Dane lançou um olhar cansado às mensagens. - Tem alguma coisa para mim?
- São sobretudo telefonemas de repórteres. - Lorraine pousou a chávena à beira da secretária e deu uma vista de olhos às mensagens. - Uma chamada do xerife de Oliristed. Um telefonema do Hospital de St. Mary a dizer que o estado de Rich Carmon não se alterou. Três chamadas de Charlie Wilder acerca de uma sessão extraordinária da Assembleia Municipal marcada para esta noite.
Para me repreenderem disse Dane entre dentes, coçando a barba da manhã. Para saberem se todos os doidos serão apanhados a tempo para não prejudicar o cortejo.
- Também tenho em linha uma pessoa acerca da turista desaparecida.
Dane levantou a cabeça, franzindo o sobrolho, confuso. O quê? Ai, sim. Merda! Quem é que está a tratar disso?
- o Mark. Acho que ele quer falar consigo.
- Agora não tenho tempo. Ele que trate do assunto. Não recebo telefonemas de ninguém. E deite fora esse lixo todo, excepto a mensagem de Oltristed. Deixe-a aqui. o olhar de Dane já se concentrara de novo na confusão reinante na sua secretária habitualmente imaculada. - E, Lorraine, serei o seu escravo sexual para o resto da vida se me trouxer uma chávena do seu café acabado de fazer.
Lorraine dobrou a língua ao ouvi-lo, mas corou um pouco ao dirigir-se para o corredor e arrebitou o nariz ao passar por Yeager.
-Não tente lutar contra isso, Lorraine - aconselhou ele com uma voz arrastada, fazendo um sorriso indolente. Ambos sabemos que você está louca por mim.
Lorraine afastou-se sem fazer qualquer comentário e Yeager vinha a rir-se quando entrou no gabinete a arrastar os pés. Boozer vinha atrás dele, a farejar comida. o animal enfiou a cabeça no cesto dos papéis, vasculhando um monte de folhas amachucadas, e voltou à superficie com metade de uma sanduíche.
- Uma sanduíche de carne assada - comentou Yeager, enterrando-se na cadeira das visitas. - Este cão é um felizardo.
o lavrador engoliu a sanduíche com duas dentadas, arrotou e deitou-se no chão, a descansar. Yeager concentrou a sua atenção em Dane.
- Homem, você está com mau aspecto.
- Até parece que sou da sua família - respondeu Dane secamente. Como era habitual, Yeager vestia a mesma roupa da véspera, amachucada como sempre. Nessa manhã tinha uma desculpa, recordou Dane, reparando nos olhos injectados de sangue do agente e nas rugas de preocupação no rosto quadrado e honesto. - Como está a Jolynn’?
Yeager suspirou e esfregou o pescoço para afastar uma cãimbra.
- Finalmente, deixaram-na dormir. Eu prometi levar-lhe um bocado do bolo de chocolate da Phyllis quando ela acordar. Resolvi ir tomar o pequeno-almoço. Vi a sua camioneta no parque quando ia a passar. Quer vir?
A ideia de um dos pequenos-almoços de Phyllís, carregados de colesterol, revolveu-lhe o estômago, mas Dane abanou a cabeça.
-Não, obrigado. -Que confusão é esta?
Vou reler tudo.
A expressão de Yeager dava claramente a entender que, na sua opinião, Dane estava com os nervos em franja. -Porquê? o nosso homem está internado no hospital de Rochester.
Talvez. A cor da face de Yeager passou de um tom cinzento de cansaço para um tom vermelho e saudável de fúria. Chegou-se mais para a frente na cadeira, numa pose agressiva.
o que é isso de «talvez»? Céus, ele tentou matar a Jolynn.
- Eu sei - respondeu Dane tranquilamente. - Mas isso não significa que ele tenha morto toda a gente.
- Ele admitiu que matou o Fox. -Mas não o Jarvis.
Abanando a cabeça, incrédulo, Yeager deixou-se cair para trás.
É o que se pode inferir - concluiu ele, dominando-se.
Acha? - Dane pegou no relatório sobre os vestígios encontrados no cadáver. - Encontraram fibras de algodão azul nas costas da camisa do Jarvis. Algodão azul, de uma camisa de trabalho. o Rich Carmon nunca fez trabalho físico na sua vida.
Por muito que quisesse que Carmon fosse o culpado, Yeager tinha de admitir que nunca vira o homem sem as suas roupas elegantes de jovem senador. o sentido da moda de Carmon irritava-o porque receava que Jolynn se deixasse atrair por aquele tipo de homem com o qual ele não podia competir.
Talvez ele tenha vestido essa camisa de trabalho para não manchar de sangue a gravata de sessenta dólares. Ou talvez tenha contratado alguém para o fazer. Pagou talvez ao Fox para matar o Jarrold e depois limpou-lhe o sarampo para impedir que o Fox fizesse chantagem com ele. A ideia agrada-me. É...
- Simples - concluiu Dane. A palavra pareceu-lhe tão amarga como o sabor do café requentado na boca.
-É assim que as coisas são - afirmou Yeager. o que o leva a prolongar isto? Ontem à noite, você também estava convencido de que o Carmon era o nosso homem.
- Foi uma coisa que a Elizabeth disse. - Muitas coisas que Elizabeth dissera. Acerca dele, acerca do facto de ele permitir que os preconceitos afectassem o seu raciocínio, acerca de ele escolher a saída fácil. Mas também a impressão de que ela encarara o assassínio de uma perspectiva feminina. - Acerca do modo como o Jarvis foi morto. Acerca do ódio que era preciso para matar um homem daquela maneira. Ela afirmou que lhe parecia um crime passional.
- Pois. o Carmon tinha uma necessidade apaixonada de se ver livre de um sogro dominador e manipulador. Ele sai de baixo da tutela do Jarvis e a mulher herda uma batelada.
- Yeager estendeu o braço sobre a secretária e pegou na agenda preta. - Todas as provas de que precisamos estão aqui.
-Há muitos nomes nessa agenda - disse Dane. o do Ellstrom, por exemplo. Ele devia uma pipa de massa ao Jarrold e andava a foder a Helen Jarvis ao mesmo tempo.
- Homem, esse é um pensamento sujo - observou Yeager, estremecendo. A expressão de Dane não se alterou. o xerife respirou fundo e ficou a pensar. - Você não vê nele um assassino, pois não? Céus, ele é da polícia.
-Também eu não via um assassino no Rich - disse Dane. Reclinou-se na cadeira e passou as mãos pela cara, coçando a barba crescida. Estava exausto, não só fisicamente como emocional e psicologicamente. Cansado de ter o seu mundo virado de pernas para o ar. Agora que Elizabeth lhe tirara a venda dos olhos, também ele via muitas hipóteses, muitos suspeitos, muitos motivos e tudo isso o entristecia ao ponto de nem conseguir falar. Era duro verificar que o mundo podia ser feio e brutal. Outra coisa completamente diferente era olhar para a sua terra natal, o seu refúgio, o seu santuário, e ver a mesma fealdade, a mesma brutalidade.
- Eu não estou a dizer que foi o Ellstrom que o matou. Estou a dizer que há mais hipóteses além da mais fácil.
Gemendo ao mexer as articulações que tinham passado uma longa noite numa cadeira ressuscitada da Inquisição espanhola, Yeager fez um esforço para se levantar.
- Se você quiser continuar a falar sobre isso, terá de vir ao Cup. Não consigo pensar com o estômago vazio. o meu corpo é uma máquina impecavelmente afinada, que precisa de ser reabastecida a intervalos regulares.
- Esqueça - disse Dane, distraído, quando lhe ocorreu outra hipótese. Franziu o sobrolho ao examinar o relatório do laboratório. Crime passional... - Preciso de ir verificar uma coisa.
Yeager encolheu os ombros.
- Como queira. Avise-me se for bem sucedido. Estarei no hospital com a Jolynn. - Parou, com a mão no puxador da porta e um olhar embevecido que lhe aliviou as rugas de tensão. - É ela, sabe? Estou verdadeiramente apaixonado. Dane forçou um sorriso.
- Parabéns.
Yeager deitou-lhe um olhar prolongado e pensativo, passando a mão pelo estômago resmungão.
- Você tem de experimentar, homem. Talvez altere essa sua má disposição. - Dane fez-lhe um gesto grosseiro e concentrou-se de novo no relatório. - É o que tenciono fazer, filho - disse Yeager a sorrir. - Assim que a Jolynn estiver melhor.
Elizabeth passou a mão pelo cabelo e bocejou, bebendo a sua primeira chávena de café do dia. Dormir apenas quatro horas era um hábito que ela tencionava quebrar assim que a situação à sua volta se aproximasse da normalidade. Se isso alguma vez acontecesse.
Já telefonara para o hospital a saber de Jolynn, e para St. Mary, para se actualizar sobre o estado de Rich, mas o sistema do hospital de Rochester - que abrangia a mundialmente conhecida Clínica Mayo - não era estranho a celebridades, famosas e infames, e os seus funcionários eram mais discretos do que o pessoal da Casa Branca.
- Como está Miss Nilsen? - perguntou Trace, entrando na cozinha a arrastar os pés.
Já estava vestido, de calças de ganga e T-shirt branca, o uniforme de combate do adolescente. As nódoas negras formavam-lhe uma espécie de arco-íris na cara. o cabelo espetado no alto da cabeça parecia uma pequena crista de galo.
Elizabeth resistiu ao impulso de lamber os dedos e alisá-lo, como fazia quando ele era pequeno. Mas ele já não era uma criança; era quase um homem. Continuava a sentir-se reconfortada ao lembrar-se que o filho esperara por ela na noite anterior.
- Dentro de alguns dias ela estará boa. o que estás a fazer a pé?
Trace desviou-se de uma serra e aproximou-se do frigorífico.
-Tenho de ir trabalhar. Hoje vou limpar o curral do Carlson.
Tirou uma embalagem de sumo de laranja e cheirou o conteúdo.
-Não bebas pela embalagem, Trace Lee - disse Elizabeth automaticamente, com o seu tom maternal. Trace arregalou os olhos e foi à procura de um copo. - Precisas de boleia?
-Não. São só três quilómetros. Vou na minha bicicleta. Elizabeth ia a dizer que isso não seria problema, mas lembrou-se de que o filho estava numa idade em que não gostaria de andar com a mãe atrás. Observou-o pelo canto do olho. Trace estava junto do que restava da bancada, a beber sumo e a comer bolachas da caixa. Talvez na Primavera conseguissem juntar os recursos de ambos e comprar um calhambeque em segunda mão para ele.
-Temos de te arranjar uns óculos novos - disse ela, aconchegando o roupão ao pescoço.
Trace bebeu o resto do sumo, limpou a boca com as costas da mão e saiu, dando-lhe um beijo na face a caminho da porta.
-Amanhã - gritou ele por cima do ombro.
Passou por Aaron, que ia a entrar, com a caixa de ferramentas na mão, e saiu, batendo com a porta de rede. Elizabeth sorriu.
- Dezasseis anos. Tudo parece tão urgente nessa idade. Como era você quando tinha dezasseis anos, Aaron? Aaron olhou para ela ao pousar a caixa de ferramentas na mesa de contraplacado. Era como se ela tivesse acabado de se levantar da cama. Estava despenteada, com um ar desvairado e tentador e uma nuvem de seda preta em cima dos ombros. Devia ter sido com uns cabelos como aqueles que Dalila tentara Sansão. Vestia um pecaminoso roupão de seda fina, verde-esmeralda e brilhante. o roupão chegava-lhe aos tornozelos, cobria-a, mas estava apenas atado à cintura. Abria-se de vez em quando, mostrando umas longas e tentadoras pernas nuas à medida que ela avançava para ele. Ela parecia nem se dar conta disso - da sua sedução, de que podia atormentar um homem que não tinha mulher há muito tempo... Ou talvez soubesse muito bem o que estava a fazer.
- Eu trabalhava - respondeu ele, lacónico, obrigando-se a olhar para as ferramentas.
Imaginou que ela parava em frente dele e abria o roupão verde, mostrando-lhe os seios. o seu sexo agitou-se e Aaron afastou os maus pensamentos sem dó nem piedade. Elizabeth não era para ele... Era apenas um teste, e ele prometera passar em todos os testes que Deus lhe enviasse.
Elizabeth sentou-se numa cadeira da cozinha e enrolou o roupão à volta das pernas o melhor que pôde. Bebeu o café e ficou a olhar para Aaron, que escolhia uma profusão de ferramentas para desmantelar o último armário de baixo. Dispô-las por ordem, como um cirurgião que se preparasse para um transplante cardíaco. Era óbvio que estava de mau humor e tinha um ar soturno como um cangalheiro. Parecia muito empenhado em não olhar para ela. Talvez fosse por causa do que ela trazia vestido, pensou Elizabeth. Bem, se um homem insistia em aparecer em casa de uma senhora antes das oito horas da manhã, tinha de se sujeitar ao modo como a encontrava. Mesmo assim, a frieza dele afectava-a um pouco. Elizabeth começara a pensar nele como um amigo, mas de repente era como se ele não quisesse mais nada com ela.
Determinada a fazê-lo falar, Elizabeth lançou-se num relato pormenorizado do que acontecera a Jolynn. Aaron não disse nada até ela acabar a história e esperou um longo minuto antes de fazer qualquer comentário.
- Então o Dane Jantzen já tem o seu assassino - observou ele em voz baixa, virando-se para o armário com un pé-de-cabra na mão.
-Isso é o que ele pensa. Mas eu não estou tão certa disso. - Elizabeth acabou de beber o café, admitiu repetir a dose, mas desistiu. Viu Aaron agachar-se e espreitar para dentro do armário. Parecia totalmente insensível ao que ela acabara de contar, como se tudo se tivesse passado noutro planeta. A indiferença dele irritou-a, desgastando-lhe os nervos em franja. - Esta também é a sua comunidade, sabe?
- afirmou ela abruptamente, apertando o cinto do roupão ao levantar-se. - Não percebo como é que você pode ficar sentado a brincar com os suspensórios, sabe Deus a pensar o quê, e a fingir que nada disto está a acontecer mesmo em frente da estrada que vai dar à sua casa.
Aaron levantou-se com um movimento brusco, furioso. Agarrou no pé-de-cabra até ficar com os nós dos dedos brancos, corando ao mesmo tempo.
-Não invoque o nome de Deus em vão na minha presença! - vociferou ele.
Elizabeth recuou um passo, chocada com a explosão de mau humor dele, que acelerou o seu ritmo cardíaco.
- Des... Desculpe - murmurou ela entre dentes. Aaron continuou a falar como se não a tivesse ouvido.
- o Gemei é a minha única comunidade. Eu só respondo perante Deus, e não perante os Ingleses!
Os olhos dele faiscavam por trás dos óculos, com o fogo do zelo. De súbito, parecia maior e mais vivo, como se o homem que havia dentro dele tivesse finalmente rebentado a casca da autodisciplina. Elizabeth testemunhou a metamorfose com um misto de fascínio e de medo. o conceito que tinha dos Amish - de Aaron - era de austeridade emocional e de autodomínio silencioso. o destempero de Aaron deixou-a desconcertada.
Aparentemente, desconcertou também ’o próprio Aaron. o homem recuou, dominou-se e olhou para o chão.
- Desculpe - disse ele em voz baixa, olhando para as unhas dos pés pintadas de Elizabeth, enquanto lhe vinha à mente uma prece da infância. Jesu hor dein kleins kind, vergil mir alle meine Sund. Jesus, ouve o teu filho, perdoa todos os meus pecados.
- Não - interveio Elizabeth. - Eu é que tenho de Pedir desculpa. Tenho estado muito confusa nestes últimos dias. Infelizmente, não é preciso muito para eu abrir a boca. - Elizabeth suspirou e de repente sentiu a falta de um cigarro. Vou deixá-lo trabalhar - prometeu ela em voz baixa, recuando até à casa de jantar. Aaron virou-lhe as costas sem dar uma palavra.
Nunca seriam amigos no verdadeiro sentido da palavra, pensou ela, abatida. Os planos da sua existência eram diferentes. o passado, a filosofia de ambos, eram muito diferentes. Teria sido mais fácil transpor o fosso entre dois séculos do que a distância que separava as suas culturas. Elizabeth percebeu que nunca seria capaz de compreender inteiramente os hábitos dele, e que talvez ele nunca deixasse de a ver como «inglesa». Tal como as pessoas de Still Creek a veriam apenas como «aquela sulista».
Inquieta e cansada, atravessou descalça a casa de jantar, onde o cheiro dos ratos começava a desaparecer, e entrou na sala. Os seus apontamentos acerca do assassínio de Jarvis estavam empilhados na mesa baixa, junto de uma montanha de facturas por abrir e do maço de fotografias que ela trouxera do Snyder’s e que nunca se dera ao trabalho de ver. Depois de pôr a tocar um disco de Bonnie Raitt, instalou-se num canto do sofá e enrolou as pernas debaixo do corpo como se fosse um gato. Apetecia-lhe tomar duche e depilar as pernas antes de ir visitar Jolynn, mas era muito cedo para ir ao hospital e, além disso, ainda não recuperara a energia.
Havia um maço quase vazio de Virginia Slims meio suterrado em cima da mesa. Elizabeth debruçou-se para o tirar com a ponta dos dedos, acabando por arrastar metade do lixo para o regaço e segurando um cigarro levemente amachucado na ponta dos dedos.
- Quem não tem dinheiro não tem vícios, filha - avisou ela em surdina, acendendo o cigarro e enchendo os Pulmões de fumo.
Maldito hábito, tal como o uísque, pensou ela distraidamente, expelindo um rolo de fumo para o tecto. Aparentemente, se não tivesse adquirido maus hábitos, não teria hábitos nenhuns. Fumar, beber, homens...
Enquanto Bonnie se lamentava com a sua voz roufenha, dizendo que era demasiado cedo, Elizabeth começou a escolher os papéis e os apontamentos que tinha no regaço. Todos os seus palpites e os seus arremedos de teorias lhe pareciam inconsistentes e disparatados à luz do dia. Talvez ela estivesse apenas a ser perversa, ao não aceitar que Rich fora o causador de todo o mal que existia em Still Creek. Talvez ela não quisesse concordar com Dane em coisa nenhuma.,,, o facto de estar sempre a discutir com ele fosse um motivo para não se aproximar demasiado. Se fosse este o caso, só tinha a perder.
Carmon matara Carney Fox sem escrúpulos. Tentara matar Jolynn. Porque não o imaginava ela a pegar numa faca e a cortar o pescoço a Jarrold Jarvis?
Deixou o cigarro a arder num cinzeiro Baccarat, onde se Viam já os cadáveres inclinados de mais meia dúzia deles. Uma dor de cabeça começava a apertar-lhe a parte de trás do globo ocular. Os detectives que tratassem do assunto. Do que ela precisava era da segunda chávena de café que não bebera. Atirou os papéis para o meio do sofá e levantou-se outra vez. o seu olhar tombou no maço de fotografias e, num impulso, Elizabeth levou-o consigo, preparando-se para atravessar a casa.
As fotografias da noite do crime recordaram-lhe o medo que a assolara e o ambiente fantasmagórico e surrealista que envolvera a cena depois de a polícia e a imprensa terem chegado... o halo de luz à volta do hotel, os carros-patrulha com os faróis intermitentes, os agentes a montarem guarda ao perímetro, com um ar simultaneamente inseguro e implacável e, no meio, o Lincoln e o seu proprietário morto no chão. Mesmo a preto e branco, a cena parecia demasiado real e o crime brutal. Elizabeth franziu o sobrolho ao olhar para o rosto jovem e fresco de Kenny Spencer e viu o seu choque, sentiu o seu desconforto, como se o mundo tremesse debaixo dos seus pés.
Passou as fotografias uma a uma até chegar àquela que tirara no sábado de manhã. o amish a caminhar penosamente atrás dos seus cavalos enquanto o Sol se erguia no horiZonte. A série de fotografias do estaleiro. As que ela tirara quando se encontrava no local em que Jarvis morrera... o ribeiro, os chorões a caírem sobre as margens.
Abriu a porta com a anca e entrou na cozinha quando deparou com a fotografia que tirara por acaso. Aquela em que se via Aaron de pé, de cabeça baixa, a rezar junto das sepulturas da mulher e das filhas. Da família dele, que morrera às mãos dos ingleses.
Olho por olho... Elizabeth lembrou-se do versículo, espontaneamente, e afastou-o da sua mente. Os Amish eram pacifistas. Não matavam. Não respondiam à violência com a violência. Não cediam às pressões do mundo moderno porque se divorciavam dele. Não...
Elizabeth parou e ficou imóvel, sentindo apenas o coração a bater. Congratulara-se por ter sido tão astuta e não se ter deixado influenciar por experiências passadas ou preconceitos. Mas estava a fazer exactamente aquilo de que acusara Dane - a ver o que queria ver, o que fora condicionada a ver.
A morte de Jarvis parecera-lhe um crime passional, dissera ela a Dane. Um crime de ódio, um ódio que irrompera de forma súbita e incontrolável. Quem seria mais capaz de odiar do que um homem cuja mulher e filhas tinham sido mortas?
Os olhos caíram-lhe na caixa de Aaron e em todas as ferramentas impecavelmente ordenadas do seu ofício, martelos, chaves de parafusos, raspadores de lâminas curvas, facas, formões e escopros.
Ao levantar a cabeça, o seu olhar cruzou-se com o de Aaron e um arrepio atravessou-a instintivamente, frio como gelo. o amish fitou-a com um ar firme, calmo, e no seu rosto registou-se uma mudança subtil e estranha. Era como se a pele se lhe agarrasse ao crânio e um leve rubor iluminou-lhe os malares salientes. Por trás das lentes simples e práticas, os seus olhos azuis adquiriram a cor e o brilho das safiras. Elizabeth sentiu um aperto na garganta.
- Es waar Gotters Wille - disse ele em voz baixa. Foi a vontade de Deus.
Dane virou a camioneta e entrou na rampa dos Hauer. Não estava ansioso pela entrevista que ia fazer, mas depois, pareceu-lhe que o dia lhe reservava apenas assuntos desagradáveis. Ainda não eram oito horas quando fora ter com Ellstrom, que encontrara desmaiado no chão da garagem, a tresandar a uísque, doença e fracasso. Agora, tinha de tirar a limpo um pressentimento que todas as células do seu corpo preferiam rejeitar.
Saiu da Bronco e seguiu a rampa gretada que ia dar à impecável casa de quinta branca, pondo de parte os seus sentimentos pessoais. Era polícia e tinha de pensar como tal, não como um herói local, um filho predilecto ou um amigo de longa data.
Ruth Hauer veio à porta, com um pano de cozinha de algodão nas mãos. Era uma mulher vigorosa, de aspecto resistente e a face sulcada por anos e anos de trabalho árduo e de Algumas madeixas de cabelo grisalho tinham escapado aos limites da sua touca e enrolavam-se-lhe à volta do kapp branco. Estava corada devido aos vapores de um cozinhado que fervia no fogão de lenha. Fitou Dane com o tipo de abalo circunspecto de alguém que encontra um primo desastrado e há muito perdido. o estômago de Dane revolveu-se ao sentir o aroma quente e inebriante do pão fresco que vinha da cozinha.
-Bom dia, Ruth. o Aaron está?
- Creio que ele está na oficina, Dane Jahntzen - disse ela, com uma pronúncia desajeitada. - Aconteceu alguma coisa?
Dane esperava que não. Do fundo do coração, esperava que não. Sorriu à velha.
- Só preciso de lhe fazer umas perguntas.
Dane deixou Ruth entregue aos seus cozinhados e atravessou o quintal em direcção ao anexo que Aaron construíra para fazer dele a sua oficina de carpintaria. Da oficina saía um cheiro inconfundível a madeira recém-cortada, óleo de limão, diluente e cera de abelhas. Havia uma bancada a todo o comprimento de uma parede. As ferramentas encontravam-se impecavelmente penduradas por cima dela ou arrumadas em caixas de madeira dispostas ao longo do rebordo. As obras em curso estavam alinhadas junto da parede mais próxima da bancada: uma mesa de casa de jantar em carvalho, um roupeiro alto e diversos armários. Junto da parede em frente viam-se várias peças acabadas, à espera de serem levadas pelas pessoas que as tinham encomendado. Estava tudo no seu lugar excepto o carpinteiro. Não havia sinais de
Aaron.
-Ele já saiu.
Dane levantou a cabeça da mesa que estava a examinar. Samuel Hauer erguia-se à porta, vestido como todos os amish: de calças pretas e largas e camisa azul. A aba do seu chapéu de palha desaparecera, deixando algo que parecia uma versão caseira de um fez. Era o chapéu com que ele costumava mungir as vacas. Dane endireitou-se e aproximou-se do móvel seguinte, um roupeiro mais alto do que ele e corpulento como um carvalho. Passou a mão pela madeira lisa da mesma maneira que poderia acariciar um cavalo, vagamente consciente da beleza e da robustez do móvel. o seu olhar pousou em Samuel quando o velho entrou. Tal como a mulher, como todas as pessoas de uma certa idade, tinha a cara sulcada pelos anos como os anéis no tronco de uma árvore. Os Amish levavam uma vida dura, dedicada a Deus.
- Eu falei-lhe das suas perguntas, Dane Jantzen. Ele não quer nada com a sua justiça inglesa.
-Isso não me impedirá de cumprir o meu dever, Samuel.
Algo parecido com a angústia turvou o olhar de Samuel que Passou a mão deformada e gasta pela face e segredou qualquer coisa em alemão.
-Ele tem sofrido tanto. Não o pode deixar em paz? -Não - respondeu Dane, imperturbável. - Por muito que o Aaron pense de outro modo, vivemos no mesmo mundo, no mesmo município. A justiça é a mesma e aplica-se a todos. Para onde foi ele trabalhar hoje?
-Não sei - respondeu o velho com um ar triste. Havia muitas coisas que ele não sabia acerca do filho. Aaron parecia-lhe tão irritado, tão tenso, como se tivesse uma mola dentro dele que cada vez se enrolava mais. Desta vez, o desgosto causado pela perda dos seus entes queridos não se desvanecia com o tempo; estava a azedar e a endurecer, e às vezes Samuel ficava acordado durante noites inteiras, a cismar no que a amargura podia fazer a um homem.
- Ele saiu sem dizer nada - informou ele. - Talvez tenha ido para casa do Zook. Ou talvez para casa da mulher.
Aproximou-se mais do roupeiro e tocou-lhe com ternura, como se de certo modo pudesse tocar no filho através da obra que este criara.
- Ele trabalha bem, não trabalha? - perguntou Samuel em surdina, tocando na fechadura.
Agarrou no puxador da porta com os dedos grossos e, quando a abriu, caiu-lhe aos pés uma mulher loura morta.
Elizabeth estava colada ao chão, terrivelmente enfeitiçada pelo ar de Aaron, como um animalzinho débil hipnotizado por um predador. A compreensão fluía entre ambos. Ela sabia, e ele sabia que ela sabia. E agora ele ia matá-la por ela saber.
-Ele gabava-se perante mim de que o seu hotel iria atrair os turistas - afirmou ele em voz baixa. - De que iria represar o ribeiro e inundar o vale para os turistas poderem andar de barco.
«A Anna e a Gemina estão sepultadas ali. E a minha Siri. A minha doce Siri. Mortas pelos Ingleses, e ele ainda queria afogá-las. - Aaron abanou a cabeça, e o seu olhar azul e firme nunca abandonou o de Elizabeth. - Ele era um homem perverso. Eu só estava a fazer o trabalho de Deus.
Aaron não tencionava matar Jarvis. Fora ao ribeiro para passar uns momentos de tranquilidade com os seus entes queridos. Em Still Creck, os operários já tinham acabado o trabalho desse dia. Só ficara Jarvis. Jarvis observava-o do cimo do monte, intrometendo-se na sua privacidade, chamando-o.
Ele não tencionava matar o homem. Matar ia contra tudo aquilo em que o tinham ensinado a acreditar. Mas a dor e a raiva haviam fervido no seu íntimo quando ambos se encontravam naquela colina sobranceira ao regato. Como ácido, queimaram tudo o resto, o pensamento, a consciência. Os dedos de Aaron tinham pegado no cabo da faca que trazia na algibeira, a faca de que ele se servia para esculpir os passarinhos para Anna e Gemina, a faca de que ele se servia para cortar os pés das flores selvagens destinadas à sepultura de Siri.
Depois, deixara-se dominar pelo remorso. Mas, ao ajoelhar-se ali no chão, ao lado do cadáver, surgira a resposta, tão quente e reconfortante como a luz do Sol. Ele tinha um objectivo. Aquilo fazia parte dos desígnios de Deus. Deus apoderara-se dele e guiara as suas mãos.
Voltara a depositar Jarvis no interior do automóvel, tranquilamente, para que o cheiro da sua morte não conspurcasse o ar puro do campo. Em seguida, fora lavar as mãos ao ribeiro e limpara a faca com todo o cuidado. Um homem mantinha as suas ferramentas tal como mantinha a sua vida: limpas e arrumadas. Durante muito tempo ficara ali a olhar para o ribeiro. Era um sítio tão bonito, tão calmo. Criado por Deus na perfeição. Não era para o homem estragar. Voltara para casa pelo caminho mais longo, pela orla da floresta de Hudson, a fim de apanhar raiz de ginseng para levar à mãe.
A mente de Elizabeth trabalhava com frenesim. Tinha de sair de casa, mas Aaron encontrava-se entre ela e a porta. Ela não era suficientemente rápida para o contornar nem para correr mais depressa do que ele. Recuou lentamente na direcção da casa de jantar, e ele pegou num longo e brilhante formão de aço.
-Os Gemei são o povo de Deus - declarou ele distraidamente, - Deus quer que eu proteja o Seu povo dos iníquos que nos magoam ou nos transviam.
Tal como a turista que fora à sua oficina na véspera.
uma criatura iníqua. Windfliegel. Uma prostituta. Tentara seduzi-lo, oferecera-se a ele. Uma meretriz inglesa que queria divertir-se com um pobre amish. Tocara-lhe nas calças e a carne dele reagira, mas ele percebera do que se tratava. Fora mais um teste. Tal como Elizabeth era um teste.
- Julguei que éramos amigos, Aaron - disse Elizabeth tentando ganhar tempo, esperando desesperadamente conseguir argumentar com ele.
Não afastou os olhos do formão quando ele o tirou da caixa e reprimiu o impulso de desatar a correr. o tempo, o tempo, cantarolou ela intimamente, e recuou mais um passo.
Ele ergueu o sobrolho e fez um sorriso dissimulado que tanto a enternecera uma vez.
- Você é uma prostituta inglesa - invectivou ele, odiando o sofrimento que a traição dela lhe causara. Ou estaria ele a trair a sua própria fé? Desejava-a e ela era uma devassa, uma pecadora. Tão pecadora como Eva ao tentar Adão. - Eu vi-a pela janela. A tentar os homens. A fornicar.
A confissão dele atingiu Elizabeth como um murro no estômago, tirando-lhe o ar, nauseando-a. Ele andara a espreitá-la. Os olhos de Aaron eram os olhos que ela sentia. A malevolência era dele. A loucura era dele. As lágrimas e a raiva obstruíram-lhe a garganta ao pensar naquele facto. o que ela partilhara com Dane podia não ser amor da parte dele, mas significara muito para ela. Mais do que devia. ’A ideia de um louco a pegar em toda essa situação e a transformá-la numa coisa feia na sua mente era revoltante. Elizabeth sentiu-se violada e aterrada.
Desviou o olhar dele, à procura de uma arma ou de um escudo, de qualquer coisa que pudesse ajudá-la a salvar-se. Não havia nada. A bancada desaparecera. Não havia facas ao alcance da sua mão, nem sequer uma garrafa do seu uísque roubado para lhe atirar. Só viu a pilha migratória de sapatos que se amontoavam a um canto. Deu mais um passo e avistou uma cadeira da cozinha. Olhou de novo para Aaron.
- Deus não havia de querer que você matasse gente, Aaron - proferiu ela. - E os dez mandamentos?
- Honra o Senhor teu Deus - disse Aaron, contornando a mesa de contraplacado. - Eu sou um instrumento de Deus.
Elizabeth engoliu a custo, dando mais um passo e procurando a cadeira pelo tacto. Os seus dedos, pegajosos de suor, tocaram nas costas de vinil e agarraram-se ao rebordo.
- Bem, detesto meter-me nos desígnios de Deus, mas não vou deixar-me matar aqui, Aaron - protestou ela, sem fôlego, como se tivesse acabado de correr mil e quinhentos metros.
Ele não a ouviu. Elizabeth apostava que as suas palavras não haviam sido registadas. Ele retirara-se para algures no seu íntimo, onde acreditava sem dúvida que ouvia a palavra de Deus. De certo modo, isto era mais assustador do que ouvir os seus devaneios lunáticos. Ele não lhe daria ouvidos agora. Talvez nem sequer ouvisse os gritos dela quando lhe enterrasse o formão no corpo. Rompera-se a linha ténue que o ligava à sanidade mental.
Aaron ergueu o formão e avançou para ela. Elizabeth agarrou na cadeira e fez menção de lha atirar às pernas, mas as costas escorregaram-lhe dos dedos como um bloco de gelo e a cadeira estatelou-se no chão, passando de arma a obstáculo. Era melhor do que nada. Elizabeth podia não ter outra oportunidade. Correu para a casa de jantar, direita à sala de estar e à porta principal que ninguém usava.
Aaron foi atrás dela sem uma pressa especial. Apesar do sangue a latejar nos ouvidos, Elizabeth escutou o arrastar da cadeira quando ele a afastou e os seus passos quando ele atravessou o soalho duro da casa de jantar. Aaron parecia estar convencido de que ela não podia escapar. A possibilidade de que ele tivesse razão atravessou-a como estilhaços de vidro, destruindo a compostura que lhe restava.
Correu para a sala, onde Bonnie Raitt entoava uma canção acerca de corações destroçados e de segundas oportunidades. A música era lenta e melancólica, do género daquela que Elizabeth gostava de ouvir em noites calmas e indolentes. Agora, só acentuava o surrealismo do momento. Canções de amor lentas e tristes a tocar enquanto ela estava a ser perseguida por um assassino. No seu íntimo, tudo corria: o seu coração, os seus pensamentos. o ar entrava-lhe e saía-lhe dos pulmões às lufadas quentes e desiguais enquanto o mundo à sua volta se deslocava lentamente.
Bateu com o joelho ferido no canto de uma mesa baixa e apeteceu-lhe dobrar-se com a dor, mas continuou a andar, avançando para a porta e para a salvação. Agarrou no puxador e tentou virá-lo. Este escorregou-lhe nos dedos como um sabonete molhado. A soluçar, quase a perder o fôlego, Elizabeth agarrou nele com mais força, virou-o e sacudiu-o. A porta nem se mexeu. Elizabeth espreitou por cima do ombro e viu Aaron a entrar na sala e a olhar à volta e sentiu o coração a parar quando o seu olhar pousou na fechadura de latão novinha em folha que ele instalara.
Não havia tempo para tentar abri-la. Elizabeth não tinha a chave. Ele estava demasiado perto. Se não desatasse a correr, ficaria encurralada. Passaram-lhe pela cabeça mil pensamentos diferentes. E se ela conseguisse sair de casa? As chaves estariam no Caddy? E se este não pegasse? Conseguiria ela fugir na carroça de Aaron? Iria ele atrás dela e matá-la-ia na estrada? Deixaria o seu corpo na valeta até que fosse descoberto por um desconhecido ou pelo filho, quando este chegasse a casa vindo do trabalho? Trace. Trace ficaria sem ninguém. Ajudá-lo-ia Dane? Choraria Dane por ela?
- Prostituta! - gritou Aaron, quando a adrenalina o atravessou a uma velocidade estonteante.
Ele ia matá-la, quando ela se encostou à porta, com o roupão de seda verde a abrir-se, tentando-o, levando-o a desobedecer a Deus e ao seu povo. Aaron levantou o formão e avançou para ela.
Elizabeth não conseguiu arranjar fôlego suficiente para gritar. A lâmina do formão enterrou-se na porta no momento em que ela se desviou para o lado e tropeçou num pequeno banco. Com movimentos frenéticos, Elizabeth debruçou-se sobre uma poltrona, agarrou num candeeiro pelo pé e atirou-o como um taco de basebol a Aaron, que tentou esquivar-se. A base do candeeiro atingiu-o em cheio no peito e ele cambaleou para trás, gritando de raiva.
Elizabeth nem sequer olhou para ver se o ferira. Desatou a correr para as escadas, rezando para que tivesse tempo. Tal como num pesadelo, os seus passos pareciam produzir um som terrível e as paredes da escada fechavam-se à sua volta como num túnel. Elizabeth subiu os degraus à pressa, de gatas, enrolando-se e tropeçando no roupão. Em desequilíbrio a sua mente corria mais depressa do que o corpo. Chegou ao andar de cima e precipitou-se para o seu quarto.
Ouviu as pesadas botas de Aaron nas escadas e o homem a entoar cânticos em alemão. Ajoelhou-se diante da mesa-de-cabeceira e abriu completamente a gaveta, espalhando uma nuvem de lenços de pescoço coloridos, maços de cigarros vazios, cartões perfumados de estabelecimentos, a Desert Eagle e o carregador.
- Oh, por favor, meu Deus. Por favor, meu Deus! suplicava ela em voz baixa, à procura da arma. Pegou no carregador e tentou colocá-lo, mas verificou que ele estava ao contrário. Os seus dedos pareciam grossos e desajeitados como salsichas ao agarrarem o cano de aço liso, e deixaram-no cair quando Aaron abriu a porta.
- Eu vigiei-a e fiquei à espera - exclamou ele sem fôlego, de olhos brilhantes e com o coração aos pulos. - Você podia ter-se redimido.
Mas ela não se redimira. Ele vira-a com o xerife, espreitara-os a beijarem-se e a agarrarem-se um ao outro como animais selvagens e famintos. A recordação desses momentos excitou-o, e seguiu-se a raiva, que se acendeu dentro dele como o fogo da salvação. Os seus dedos agarraram-se com mais força ao formão e ele entrou no quarto. Era ali que ela devia morrer, na sua cama de meretriz.
o carregador encaixou, com um silvo e um estalido. Elizabeth mordeu o lábio e puxou a mola, introduzindo o primeiro cartucho na câmara. As mãos tremiam-lhe violentamente e as lágrimas turvavam-lhe a visão quando levantou a Desert Eagle à sua frente e carregou no gatilho.
Dane travou e a camioneta derrapou, espalhando cascalho e assustando o cavalo da carroça que estava amarrado ao poste. A imagem da mulher loura morta não lhe saía da cabeça. Aparecia e desaparecia, como as imagens de um filme, antes que ele pudesse expulsá-las. Como um coração a pulsar - morta, morta, morta.
Agarrou na sua arma de calibre.. que estava em cima do banco, abriu a porta da camioneta e desatou a correr quando o som de um tiro atravessou a atmosfera matinal como se fosse um trovão.
Qualquer réstia do treino que recebera se dissipou, dando lugar ao instinto. Pensou em pedir reforços, mas por nada deste mundo iria esperar por isso.
Subiu a escada das traseiras e entrou em casa. Abriu a porta da cozinha com um pontapé e avançou, com a arma à sua frente. A cozinha estava vazia. Por instantes, ficou ali, a arfar, reunindo coragem e integrando-se no ambiente. A confusão era a habitual. Caixas de cereais em cima da mesa e sapatos no chão. A caixa de ferramentas de Aaron encontrava-se em cima do tampo de contraplacado. Alguém virara uma cadeira. Ouvia-se música vinda da sala. Bormie Raitt. o preferido de Elizabeth.
«Oh, meu Deus, faz com que ela esteja bem.» Quando se dirigia para a casa de jantar, ouviu um segundo disparo vindo de cima. Dane acelerou, passou por cima da cadeira caída e abriu a porta com o ombro. Subiu os degraus a dois e dois, esquecendo a dor no joelho. Chegou ao patamar do segundo andar e entrou de rompante no quarto de Elizabeth gritando por ela como se soltasse um grito de guerra.
- Elizabeth!
A maldita arma encravara, como acontecera no dia em que Dane lhe mostrara o tipo de estragos que ela podia causar. A primeira bala fora espetar-se na parede, espalhando estuque por todo o lado. Com o ricochete, Elizabeth batera com a cabeça na estrutura da cama. E quando abriu os olhos, Aaron ainda ali estava, impassível, incólume. Deu mais um passo na sua direcção e ela voltou a disparar, falhando de novo quando ele se desviou para o lado. A bala atingiu o vaso da fúcsia que estava em cima da cómoda e desintegrou-o, provocando uma chuva de cacos. Elizabeth puxou o gatilho pela terceira vez e nada aconteceu. Uma quarta vez. Nada. Desviou o olhar do homem para a arma e verificou que o invólucro gasto estava entalado na câmara.
- Você não pode matar-me - declarou Aaron conscientemente.
Os seus olhos brilhavam por trás dos óculos. A sua boca torceu-se num sorriso que aterrou Elizabeth.
Elizabeth!
- Dane! - gritou ela, conseguindo pôr-se de pé no mesmo instante em que Aaron se virou para a porta.
o amish avançou e atingiu Dane com o formão quando o xerife ia a entrar. Dane sentiu uma dor no braço, no sítio em que a ferramenta se lhe enterrou no pulso esquerdo. «Estúpido», pensou ele, recriminando-se no momento em que sentiu os dedos dormentes e deixou cair a arma ao chão. Só os novatos é que atacavam assim, como numa cena qualquer de Miami Vice. A emotividade podia ter custado a vida a ambos. «Mantém a cabeça fria e afasta o coração, Jantzen.»
Aaron puxou o formão, recuou um passo e agrediu-o de novo, soltando um grito diabólico, com a loucura no olhar. Dane levantou o braço ferido para se defender da agressão e o formão atingiu-lhe o braço no momento em que ele cerrou o punho esquerdo e aplicou um murro no estômago do amish. Aaron grunhiu como um porco e dobrou-se, mas brandiu de novo a arma e enterrou a lâmina de aço até ao cabo no bíceps esquerdo de Dane.
Dane cambaleou para trás, praguejando, cerrando os dentes com a dor e pestanejando furiosamente enquanto o suor lhe escorria pela testa e lhe entrava nos olhos. Tentou pegar no formão para o puxar, mas a sua mão direita estava inerte e inútil, insensível às ordens do cérebro. Ao ver a pistola de Elizabeth, ajoelhou-se no soalho duro e tentou apanhar o revólver, esticando o braço esquerdo e soltando um grito quando o formão lhe atingiu o músculo e arranhou o osso.
Com um grito de triunfo, Aaron atirou-se ao xerife. Estava desvairado. Eufórico com o cumprimento zeloso do dever. Impante com o poder de Deus. Era um anjo vingador, um salvador, cheio de luz e de fulgor. Pegou na arma e levantou-a acima da cabeça, pronto a cravá-la no coração de Satanás.
Dane olhou para o rosto da sua própria morte e exalou aquele que julgava ser o seu último suspiro.
Uma explosão atravessou o ar.
Aaron levantou-se mais, com os braços virados para o céu, arqueando as costas e escancarando a boca quando a bala penetrou no seu corpo, entre as omoplatas, e saiu pelo peito, abrindo um buraco do tamanho do punho de um homem, donde jorrou um esguicho de sangue e de tecido. Dane desviou-se no preciso momento em que o amish caiu de borco, morto, com as mãos ainda agarradas ao cabo do formão, cuja lâmina se espetara no soalho.
Fez-se um silêncio invulgar nos ouvidos de Elizabeth quando ela se ajoelhou em cima da cama, uma forte ausência de som provocada pelo disparo da arma nos seus tímpanos desprotegidos. Mas era natural, pensou ela, olhando horrorizada para a poça de sangue espesso e escuro que se formara à volta do corpo sem vida de Aaron Hauer. Um momento de silêncio por uma vida que terminava. Um momento de silêncio absoluto em que ela tinha de comprender o que fizera.
Matara um homem, pusera fim à vida dele num abrir e fechar de olhos, sem um segundo de hesitação. Ele partira deste mundo tal como ela partiria se tivesse sido ele a apanhá-la, tal como Dane partiria se ela não tivesse conseguido desencravar a arma. Naquele curto espaço de tempo, três vidas haviam ficado em suspenso. Qualquer uma podia ter sido ceifada.
As lágrimas e o terror subiam-lhe na garganta e sufocavam-na. o cheiro acre da pólvora queimava-lhe as narinas. Elizabeth engasgou-se e tossiu, enterrando-se no edredão à medida que a força lhe fugia das pernas. Tremia violentamente mas parecia não conseguir largar a arma. Os seus dedos agarravam-se com força à coronha de madrepérola. Os nós dos dedos estavam brancos como ossos descorados e as unhas vermelhas como o sangue de Aaron Hauer. o ar entrava-lhe e saía-lhe dos pulmões aos espasmos. Desvairada, Elizabeth olhou à sua volta, à procura de Dane.
o xerife conseguiu levantar-se e aproximou-se dela como se tivesse acabado de sair de um pesadelo. Coxeava. No seu rosto viam-se gotas de sangue espesso. o sangue de Aaron. A pestanejar, Dane levantou o braço esquerdo e tentou limpá-lo. o seu próprio sangue escorreu do pulso e dos golpes nos braços. A dor obrigou-o a crispar os músculos do queixo quando estendeu a mão esquerda a Elizabeth.
- Dê-me a arma, querida - ordenou ele em voz baixa. Sem tirar os olhos de Dane, ela levantou as mãos trémulas. A pistola pareceu-lhe pesada como uma bigorna, tão pesada que ela mal conseguiu reunir forças para a levantar e ainda menos para a manter firme. Dane tirou-lha da mão e pô-la em cima da mesa-de-cabeceira atravancada.
- Acabou - disse ele, virando-se de novo para ela. -Eu ma... matei-o - gaguejou Elizabeth, olhando, contrafeita, para o homem que jazia morto no chão do seu quarto. Estremeceu, como se a vida tentasse abandoná-la também. - Eu... Eu matei um homem.
- Eu sei - disse Dane em surdina, de olhos postos em Elizabeth. Estava branca como a cal. Fitava o cadáver com uns olhos vítreos. - Elizabeth - prosseguiu ele, em voz baixa mas firme, uma voz de comando. - Olhe para mim. Olhe para mim.
Ela interrompeu o transe, pestanejando várias vezes, e olhou para ele.
- Foi o Aaron que matou o Jarvis. Ele... Ele... - «Ele estava louco. Andava a vigiar-nos.» Tudo isto lhe passou pela cabeça e lhe deu a volta ao estômago. o medo era um punho cerrado no seu peito e abanava-a como se ela fosse uma boneca de trapos. - Raios o partam! - exclamou ela entre dentes, com as lágrimas a correrem-lhe pela face ao olhar para Dane. - Julguei que ele ia matá-lo!
Dane abraçou-a como pôde e puxou-a para si, enterrando a face no cabelo dela.
- Lamenta que ele não o tenha feito? - perguntou ele. Elizabeth encostou a face ao ombro dele e desatou a soluçar, demasiado impressionada para participar em brincadeiras. Ficara aterrada quando a sua própria vida fora ameaçada, mas essa sensação não se comparava à terrível angústia que sentira ao ver Aaron Hauer a avançar para Dane com aquele formão. Ele podia ter morrido. Por ela. Por causa dela. Ela tê-lo-ia perdido para sempre.
Mas ele não lhe pertencia, pois não?
Elizabeth pôs-lhe os braços à volta do corpo e abraçou-o com toda a força de que foi capaz. Precisava de o abraçar enquanto ele lhe permitisse.
- Amo-o - segredou ela com desespero. - Amo-o.
- Chiu...
Elizabeth tomou os seus murmúrios de conforto por uma censura e abanou a cabeça.
- Eu sei que você não quer ouvir. Mas eu não me ralo, seu filho da mãe. Amo-o.
Dane ia a soltar uma gargalhada, mas a dor enterrou mais as suas unhas. Era como se lhe estivessem a tirar as forças a pouco e pouco, e Dane não sabia durante quanto mais tempo conseguiria manter-se de pé; nesse momento, lutou contra a onda de fraqueza e contra aquele horizonte escuro e feliz da inconsciência. Queria - precisava - de abraçar aquela mulher que afirmava amá-lo.
Também a amo. As palavras atravessaram as paredes das suas defesas e saíram dele, pungentes, meigas e aterradoras. Palavras que ele não queria ouvir e que exprimiam sentimentos que ele não queria ter.
Ao ouvir uma sirene ali perto, afastou-se dela física e emocionalmente.
-Estou a sujar os seus lençóis de sangue - disse ele com uma voz ténue.
Tentou dar mais um passo e sentiu a dor no joelho esquerdo, aguda como os dentes de um gato. A vista turvou-se-lhe um pouco e os contornos do rosto dela perderam a nitidez quando a inconsciência voltou a acenar.
Elizabeth fungou e soltou uma gargalhada frouxa.
- Seu demónio de língua certeira!
Ele não queria o seu amor. o que não era uma grande surpresa.
Lá em baixo, a porta de rede fechou-se e Mark Kaufman chamou Dane.
-Estou cá em cima, Mark! - gritou Dane, sem tirar os olhos de Elizabeth.
- Quem é que disse que nunca encontramos um polícia quando precisamos dele? - perguntou ela secamente. Levantou-se da cama e atravessou o quarto, envolvendo-se
no roupão de seda e voltando a atar o cinto. Mantinha a cabeça erguida. Não precisava dele, apenas o desejava, e Deus bem sabia que ela não estava habituada a conseguir o que queria.
- Elizabeth!
Dane sentiu-se na obrigação de dizer qualquer coisa, de dar uma explicação, de se desculpar para justificar a partida.
433
Parando à Porta, Elizabeth olhou para trás por cima do ombro quando Kaufman apareceu ao cimo das escadas.
-Não faz mal, querido - disse ela em voz baixa. Vou deixar-lhe o caminho livre. De qualquer maneira, eu desisti dos homens.
-Mais uma vez obrigado pela vossa presença, meus senhores.
o procurador-geral Paul Douglas afastou a cadeira da mesa coberta e levantou-se, abotoando o Jaquetão do fato cinzento de corte impecável. Com cinquenta e cinco anos, alto e com uma constituição física harmoniosa, Douglas estava no limiar da elegância para a distinção. o cabelo castanho-escuro começava a branquear nas têmporas. Rugas de expressão sulcavam-lhe o rosto alongado e bronzeado. Era um homem com um futuro brilhante quer no estado quer na política nacional, um futuro que se afigurava ainda mais amplo e radioso graças ao caso que viera parar-lhe às mãos. o facto de expurgar o estado de ovelhas negras não afectaria em nada a sua popularidade.
Dane afastou a cadeira da mesa e levantou-se devagar, endireitando com cuidado o joelho esquerdo, que estava envolvido no último grito da moda em termos de cintas ortopédicas. Apesar de se encontrarem num dos melhores restaurantes de Rochester, uma cidade que acolhia visitantes de alto gabarito, incluindo, presidentes e chefes de Estado do mundo inteiro, Dane quase não tocara no excelente bife que tinha no prato. Os acontecimentos dos últimos dias haviam-lhe tirado o apetite.
o crime não tivera o mesmo efeito em Yager, reparou Dane. o agente engolira tudo excepto o prato. Também se levantou, ao mesmo tempo do procurador de Tyler County ,Jim Peterson. Peterson vestia o seu melhor fato, destinado a impressionar. Yeager parecia uma cama desfeita, com uma túnica amarela com a qual parecia ter dormido e uma gravata castanha com uma nódoa de ketchup mesmo na ponta.
Enquanto os homens trocavam apertos de mão, Ann Markham levantou-se de uma mesa no outro lado da sala e aproximou-se deles. Suave e graciosa como um pequeno tubarão, pensou Dane, registando o fato cor de cerceta e o brilho predatório nos seus olhos escuros. Ann desviou o olhar de Dane para o procurador-geral e concentrou-se no rosto de Paul Douglas, aumentando a voltagem do seu sorriso.
- Ann. - A sorrir, Douglas inclinou a cabeça e envolveu a mão dela nas suas.
-Que prazer em ver-te por aqui.
-Bem, de vez em quando deixam-me sair da minha gaiola - disse ela, com uma voz suave e um pouco ofegante. Profissional, com um veio de sensualidade. - Como tens passado, Paul?
-Bem. Eu ia perguntar o mesmo, mas vejo que estás com um aspecto formidável. - Ann por pouco não arrulhou com o cumprimento. - Estou com pressa, mas não deixes de me telefonar quando vieres à cidade. Para tomarmos um copo - disse ele, desculpando-se.
-Com certeza.
Douglas e Peterson despediram-se e saíram juntos. Yeager olhou para Dane, que lhe fez sinal para que se afastasse quando Ann se virou para ele. o agente franziu o sobrolho e foi-se embora, contrafeito.
- Que prazer em ver-te por aqui, Ann - saudou Dane com brandura, enfiando as mãos nos bolsos das calças castanhas e bem vincadas.
Ela fez um sorriso maroto e triunfante.
-Não faz sentido entrarmos no jogo se não tencionamos ganhar, querido. Só me falta ter um aparelho ligado ao nosso ilustre Mister Douglas.
- Irás longe.
- Tenciono ir. E tu, xerife Jantzen? Aonde te levarão todos esses assassínios e intrigas? - perguntou ela, com os olhos a brilhar de humor contido.
- À sepultura precoce.
Uma gargalhada quente e totalmente insensível saiu-lhe da garganta.
- Pobrezinho - exclamou ela. - De caminho, queres passar por minha casa para dares um bom mergulho no jaCUZzi?
Mirou-o através das pestanas, acendendo uma fogueira nas profundezas dos seus olhos escuros e exóticos.
Dane gostaria de ter dito que sim, mas não tinha nenhuma resposta inflamada dentro de si. Suspirou e abanou a cabeça.
- Não. Obrigado.
Ela examinou-o por instantes, mostrando-se surpreendida e depois céptica, Por fim, esboçou um sorriso oblíquo. -Como é que ela se chama?
Em resposta, ele lançou-lhe um olhar cuidadosamente neutro e ela riu-se. - Dá-me algum crédito, xerife. Eu ganho bem a vida a examinar as pessoas. Como se chama essa criatura maravilhosa por quem te apaixonaste?
Ele não queria admitir que estava apaixonado - nem perante si próprio nem perante Ann Markharn - mas aparentemente não valia a pena prolongar a discussão.
- Elizabeth.
Ann reagiu com um aceno de cabeça. Agora que o seu potencial chefe já saíra da sala, sentiu-se à vontade para abrir a mala de pele e tirar um cigarro.
- Ela é do tipo dona de casa, dócil, suave e meiga? perguntou ela, acendendo o cigarro.
Dane não conseguiu reprimir uma gargalhada, e várias pessoas que se encontravam nas mesas próximas viraram a cabeça.
-Nem por isso.
Ann aspirou fortemente o cigarro e libertou uma coluna de fumo que se diluiu no tecto.
- Ainda bem - disse ela, deitando-lhe um olhar felino. Tenho de me ir embora, xerife. Estou quase na zona de não fumadores. Não queremos violar as leis, pois não? - Deitou-lhe um último olhar pensativo e a boca crispou-se-lhe ante a perspectiva da perda. Ainda que só o quisesse pelo sexo. - Felicidades.
- Para ti também - retribuiu Dane em voz baixa, Mas ela já dera meia volta e afastava-se de cabeça erguida e olhos postos na pessoa mais importante do estado, Yeager já dera duas vezes a volta à sala e saiu da penumbra de uma palmeira envasada, de sobrolho carregado e ar aborrecido.
-Vamos, Casanova - resmungou ele. - Eu disse à Jolynn que estava em casa à hora da sobremesa.
Na comija da chaminé de sala, o velho relógio bateu a meia-noite e o som suave e melodioso atravessou a porta de rede. Dane encontrava-se no alpendre da frente, encostado a uma coluna branca e lisa, a olhar para sul. Tirara a camisa e a gravata, trocando o fato por umas calças de ganga, um par de botas e uma camisa de trabalho aberta, apesar da frescura da noite. Levou à boca a garrafa de Miller que tinha na mão e bebeu um bom gole. Depois, pô-la de lado, em cima do corrimão.
Podia estar na cama, na sua ou na de Ann. Pela primeira vez há mais de uma semana, podia ter-se dado ao luxo de dormir uma noite decente, mas o sono não aparecia. As suas insônias nada tinham a ver com a dor permanente no joelho nem com o facto de ele ter entregue ao procurador-geral a bomba política que era a agenda de Jarvis. Tinha a ver com descobertas acerca de si próprio e da sua vida.
Há vários anos que mantinha a sua vida em ordem, separando as suas diversas partes, cuidadosamente compartimentadas e analisadas sob uma perspectiva fria. Agora, era como se o chão abanasse debaixo dos seus pés e tudo mudasse de sítio. Dane não gostava disso. Nem um bocadinho. Mesmo que conseguisse voltar a pôr tudo como estava, nada seria como dantes. Haveria uma peça solta que se recusava a encaixar: Elizabeth.
Ele deixara-a ir-se embora, pensara que era preferível para ambos deixarem acabar aquela situação. Mas não podia afastá-la do seu pensamento... Nem do seu coração. Não podia deixar de pensar se ela estaria bem, se estaria a dormir nessa noite, se sentiria a sua falta ou amaldiçoaria o seu nome. Não fazia sentido que ele a amasse, que ele se apaixonasse por ela tão depressa. Mas não havia lógica nenhuma nisso e recuar só o deixaria sozinho, como se o futuro à sua frente fosse uma estrada longa e poeirenta sem ir dar a lado algum.
Sozinho. Esse era o caminho que ele escolhera depois do divórcio. Chamara-lhe liberdade e colara-se a ele, enganando-se a si próprio e pensando que era um homem feliz, independente, que não tinha de prestar contas a ninguém. Agora, sozinho, sentia a situação tal como ela era: um vazio, um vácuo, um buraco negro no qual o seu coração batia dias e noites, a um ritmo solitário.
Não era feliz e estava assustado. Era um cobarde. Esta é que era a verdade. Pensar em investir o seu coração noutra relação assustava-o terrivelmente. Já entrara nesse jogo e perdera em grande, e ele não podia pensar que perdia, que sofria.
- Papá?
Dane virou a cabeça ao ouvir a voz de Amy e o estalido suave da porta de rede. A filha estava ali, com a camisola dos Raíders, a pestanejar com um ar sonolento, os cabelos compridos a caírem-lhe sobre o ombro como uma cortina amarrotada, e os braços cruzados à volta do corpo para se proteger do frio da noite. Dane mal a vira depois da discussão no seu gabinete. Esse caso e o que se seguira tinham-no consumido nos dois últimos dias. Agora bebia na presença da filha e desejava que não houvesse tensões entre eles.
- Olá, fofinha - saudou ele em voz baixa. - o que estás a fazer levantada?
- Não conseguia dormir. - Amy atravessou o alpendre, descalça, e pôs-se a seu lado, passando os braços à volta da cintura do pai e enterrando a cara na curvatura do seu ombro. o acto foi tão automático que Dane não pôde deixar de perguntar a si próprio se ela faria isso com o padrasto, se Mike Manetti lhe proporcionaria bem-estar paternal nas noites em que ela não conseguia dormir na Califórnia. o pensamento atravessou-lhe o coração como uma faca. Abraçou a filha, puxou-a mais para si e deu-lhe um beijo no cimo da cabeça. - o joelho está a incomodar-te? - perguntou ela.
-Não - respondeu ele, mentindo. Doía-lhe muito. Nesse dia fora de mais. Era como se uns diabinhos se tivessem instalado nos dois lados da rótula e martelassem a pouca cartilagem que restava. Dane sabia que seria um milagre se passasse essa semana sem se ver obrigado a aspirar o líquido, mas não era o joelho que lhe tirava o sono e por isso ignorou-o.
- Gosto muito de ti, papá.
Dane pestanejou, não de surpresa pelas palavras de Amy, mas com a veemência que havia nelas, uma veemência que os olhos marejados de lágrimas da filha confirmavam.
- Então, o que é isso? - indagou ele, passando os nós dos dedos pelo rosto acetinado de Amy.
Amy encheu-se de coragem e despejou as palavras que passara o dia a ensaiar mentalmente.
-Quando eu soube o que aconteceu ontem, só pude pensar que fui uma miúda e que te desiludi. Tu podias ter morrido e eu nunca teria oportunidade de te dizer que lamentava o que se passou nem que gosto muito de ti. Duas lágrimas gordas atravessaram-lhe as pestanas e formaram dois pequenos regatos na sua face. - Que estupidez! Toda a gente perde tanto tempo a zangar-se, a assustar-se ou a ser orgulhosa... É uma estupidez! - insistiu ela com veemência, a fungar. - Quando gostamos de alguém, devíamos dizer-lhe isso e não esperar que seja demasiado tarde para fazermos alguma coisa.
«... Pela boca das crianças», pensou Dane.
A vida era imprevisível e passava tão depressa, demasiado depressa. Mesmo ali, Mesmo quando ele julgava que tinha tudo organizado e cuidadosamente alinhado, Amy era o exemplo perfeito disso. Dentro de pouco tempo seria adulta e partiria, e eles haviam perdido tanto tempo, tempo em que teria sido preferível armazenar boas recordações em vez de remorsos.
Dane afastou-lhe ternamente as lágrimas da face com o polegar.
- Onde aprendeste a ser tão esperta? - perguntou ele, erguendo um dos cantos da boca.
Amy abafou uma gargalhada. A sua expressão desanuviou-se ao luar, e ela sentiu o coração mais leve. -Com o meu velho.
- Pois - disse ele, com a voz embargada. - Era o que eu pensava.
Abraçou-a com força, esfregando a cara no cimo da cabeça dela, aspirando profundamente o perfume do champÔ de maçãs e da água-de-colónia Loves Baby Soft. Fechou os olhos, sentindo a onda de emoção que ameaçava encapelar-se nos seus olhos.
-Eu também gosto muito de ti, querida. Mais do que tudo.
-Eu sei. - Durante algum tempo, ficou abraçada a ele. Depois, olhou para o pai, invadida por uma confusão de sentimentos, tentando corajosamente ressuscitar o seu sorriso de duende. - o suficiente para me deixares ir ver o fogo-de-artificio com o Trace amanhã à noite?
Dane riu-se maquinalmente, mas o seu sorriso desvaneceu-se ao reparar naquele rosto que passava da travessura à elegância, naqueles olhos grandes cheios de esperança e famintos de maturidade. Sentiu-a afastar-se inexoravelmente e percebeu que não podia fazer nada para o impedir.
- Veremos.
Devia estar a chover. A ocasião era tão solene, tão triste, que devia haver uma lei que impedisse o Sol de brilhar. Mas este, amarelo como a manteiga e radioso como o Verão, iluminava o pequeno núcleo de acompanhantes, indiferente à sua dor.
Elizabeth endireitou as lentes dos seus Ray-Ban e suspirou ao ver a cena que se desenrolava na encosta mais abaixo. Os amish estavam a sepultar o seu morto. Eram poucos. A família de Aaron e não muitos mais, calculou Elizabeth. Aparentemente, os amish não eram muito tolerantes para com os assassinos existentes no seio da sua comunidade. A loucura e a violência não tinham lugar no seu mundo. Parecia que eles preferiam não reconhecer esse tipo de problemas quando ele surgia. Talvez pensassem que, se ignorassem o mal, este não seria real e eles não seriam obrigados a passar noites acordados, a perguntar porquê ou se ele voltaria a bater-lhes à porta. Não se podia dizer que Elizabeth os censurasse.
Não se encontrava suficientemente perto para ouvir as palavras que estavam a ser pronunciadas à beira da sepultura. Estava no cimo do monte, com o vento a despenteá-la e a encostar a T-shirt de algodão macio ao seu corpo. Atrás dela, em Still Waters, no sítio em que deixara o carro, o trabalho prosseguia como era habitual e o som dos martelos e das serras destruía a tranquilidade que Aaron Hauer poderia ter encontrado na morte. Ou talvez ali à sombra do bordo, junto da sua amada Siri, ele ouvisse apenas o regato a gorgolejar e as abelhas a zumbir, suspensas sobre as flores silvestres.
Um homem de cabelos brancos com as barbas ao vento inclinou-se lentamente sobre a sepultura e atirou uma mão cheia de terra. As cinzas às cinzas, o pó ao pó. Isso nunca mudaria. Amish e Ingleses, fundamentalistas e agnósticos, todos tinham o mesmo fim.
No cimo da estrada passou um autocarro de turismo, com pessoas que regressavam à cidade a tempo de ir jantar ao Coffee Cup antes do início do cortejo dos Tempos do Cavalo e da Carroça. Falara-se em cancelar a festa devido às tragédias que haviam desfigurado os últimos dez dias, mas a economia e a necessidade de fazer com que acontecesse qualquer coisa agradável tinham imperado.
A vida em Still Creek continuaria porque tinha de ser assim. Os mundos dos amish e dos Ingleses continuariam a sobrepor-se. o horror do que acontecera dissipar-se-ia com o tempo. Mas nada seria exactamente o mesmo, pensou Elizabeth. Perdera-se uma certa inocência, A verdade que ela se empenhara em aprofundar não só fora ferida como deixara cicatrizes. E ela não podia deixar de se sentir triste com isso.
A tristeza começava a tornar-se um hábito. Um mau hábito, pensou ela, como os cigarros, como o uísque. Nunca mais ouvira falar de Dane desde a manhã em que
Aaron Hauer morrera. A omnipresente Lorraine telefonara, com mensagens breves acerca de declarações. Mark Kaufman passara várias vezes por casa dela, com os seus olhos de cachorro e doce como o mel, para Elizabeth assinar documentos e esclarecer pontos específicos acerca do «incidente», como ele tinha o cuidado de lhe chamar. Mas não havia sinais de Dane, nem telefonemas. Nada, excepto uma nova fúcsia entregue por um rapaz borbulhento da Florista Rockwell. Um presente de despedida. Aparentemente, ele tomara à letra a sua palavra e optara pela saída fácil. Maldito homem! Ele não reconhecia a psicologia de inversão quando a tinha pela frente?
Lá em baixo, os parentes de Hauer começavam a dispersar. Afastavam-se do local da sepultura e subiam penosamente o monte com as suas indumentárias escuras e os seus rostos discretos. As mulheres afastavam as saias compridas dos vestidos quando as ervas altas se agarravam a elas como dedos compridos e esguios. Só um homem ficara para trás para cobrir de terra a cova em que o corpo de Aaron permaneceria para sempre.
- Talvez agora ele encontre alguma paz.
Elizabeth virou-se e deu de caras com Dane, que se encontrava a não mais de três metros. o vento levantava-lhe as pontas do cabelo, e, com os olhos escondidos atrás de lentes espelhadas, a sua expressão era insondável. Tinha as mãos nos bolsos das calças desbotadas e as mangas da camisa de caqui impecavelmente enroladas até ao cotovelo. Duas ligaduras imaculadas no braço direito e a cinta ortopédica no joelho esquerdo eram os únicos sinais da sua luta com o mundo.
- Eu gostaria de pensar assim - afirmou Elizabeth, censurando-se por beber na presença dele. Onde estava o seu orgulho? Enfiou as mãos nos bolsos das calças de ganga gastas e desbotadas e virou-se para o cortejo fúnebre. - Ele fez coisas terríveis, mas não era um homem mau. Apenas infeliz e só.
Elizabeth detestava pensar que a solidão podia levar uma pessoa a cometer os excessos de Aaron, mas era isso que estava na origem da doença dele - solidão e tristeza, amargura e ódio que tinham resvalado para a loucura.
- É isso que vai publicar no jornal? Que ele era infeliz e só?
- Não haverá jornal esta semana - informou ela, vendo o único amish que restava a pegar na pá e a começar a encher a sepultura de terra. - Na próxima semana, isto não será notícia.
Elizabeth pensou no jornal amish, The Budget, e perguntou a si própria se a morte de Aaron seria incluída no meio das informações sobre as colheitas e da notícia escandalosa de que alguém da Velha Ordem aderira à modernidade e comprara um tractor.
- Haverá jornal na próxima semana? - perguntou Dane.
Não a censurava se ela quisesse partir. Nada do que acontecera ali poderia despertar nela o desejo de ficar. Apesar de ele amar aquela terra, a sua beleza tranquila e suave e a sua gente honesta e trabalhadora, Elizabeth fora contemplada com uma perspectiva muito diferente e muito pouco sedutora.
Elizabeth olhou para ele por cima do ombro.
- Não vou para parte nenhuma. Estou farta de andar de um lado para o outro, à procura da minha vida na próxima esquina. Esta é a minha casa, para o melhor e para o pior. Espero subir na consideração das pessoas, com o tempo. Fazer com que não lhes apeteça matarem-me nem atirarem tijolos às minhas janelas e depois continuar o meu caminho a partir daí.
- Foi o Rich quem vandalizou o escritório do Clarion disse Dane. - Também foi ele que esteve na sua garagem. Recolhi ontem o depoimento dele no Hospital de St. Mary. Ele andava à procura da agenda e a tentar assustá-la ao mesmo tempo.
-Ouvi dizer que conseguiu. Que pena!- Elizabeth sorriu ao ver o ar admirado de Dane. - Em geral, as mulheres são seres vingativos, filho.
-Não me esquecerei disso - declarou ele com um ar trocista. - Depositarei a minha vida nas suas mãos se lhe pedir que venha dar um passeio comigo?
- Neste momento estou desarmada. Tem de continuar a andar com isso? - perguntou ela, apontando para a cinta no joelho de Dane.
- Isto não tem importância. Tenho um encontro marcado com um artroscópio na próxima semana.
- Bem, você conseguiu bater a minha agenda social. Dane não fez comentários e começou a descer a colina na direcção do ribeiro. o que ele queria dizer passava bem sem o acompanhamento das ferramentas pneumáticas nem a melancolia de um cemitério.
- o que tinha o Fox contra o Rich além da agenda? perguntou Elizabeth, acertando o passo com ele e sentindo necessidade de adiar o que estava para vir.
A célebre cena final, pensou ela. Como Bogey e Ingrid Bergirian na pista do aeroporto em Casablanca. Só que ela não tinha Paul Henreid à sua espera no avião.
- o Rich encontrou o Jarrold quando ele já estava morto. Em vez de chamar a Polícia, começou à procura da agenda, ciente de que, se nós a encontrássemos Primeiro, ele estaria morto em termos políticos e seria acusado.
Dane parou à beira da água e olhou para o outro lado do ribeiro, onde uma pata ensinava os seus seis patinhos penugentos a nadar nas águas lodosas e pouco profundas que bordejavam a margem.
- o Fox viu-o no local do crime. Calculo que ele se tenha convencido de que fora o Rich a cometê-lo, mas isso não interessava. o simples facto de ele estar ali selou o destino do Carney.
Dane abanou a cabeça ao imaginar Rich Carmon a matar alguém. Conhecia Rich há muito tempo e agora revelara-se que não sabia nada dele. Era um pensamento inquietante.
- Ele não falou nos telefonemas para sua casa - referiu Dane concentrando a sua atenção em Elizabeth. -Não - disse ela. - Aposto que foi a Helen, mas
acho que nunca saberemos ao certo. - De certo modo, naquele momento, à luz do dia e tendo em consideração tudo o que acontecera, aquele pormenor não parecia importante.
- o que se vai passar a seguir? - perguntou ela, com necessidade de olhar para a frente e não para trás.
- Agora a justiça segue o seu curso. o procurador-geral está a investigar o caso de corrupção. Dentro de pouco tempo haverá alguns lugares vagos na política, não duvide. E haverá um louvor para o Clarion.
Elizabeth sorriu ao pensar na ironia da situação. o procurador-geral do estado a elogiar um jornal que os patriarcas da cidade queriam ver encerrado. o mais provável era Charlie Wilder ter um ataque cardíaco.
- A Jolynn é que merece o louvor - disse Elizabeth, apanhando um punhado de ervas para ocupar as mãos. Foi ela que encontrou a agenda. Ia perdendo a vida por causa disso. Eu diria que ela merece essa honra.
O Yeager diz que ela está a evoluir bem.
- oh, sim.
Elizabeth sorriu, divertida. Jolynn estava a evoluir muito bem. Começava a organizar a sua vida pela primeira vez, desde há muito, muito tempo, e Elizabeth sentia-se feliz por ela. E invejosa. E triste por si própria. Mais dois maus hábitos a juntar à sua grande lista. Perguntou a si mesma se restaria alguma coisa depois de se ver livre de todos os seus maus hábitos.
Dane examinava-a enquanto ela cortava metodicamente a folha da erva que apanhara. Parecia um pouco pálida e magra. Desejava que ela tirasse os óculos escuros para ele ver aqueles olhos que reflectiam tudo o que ela estava a sentir, mas retraiu-se. A antiga cautela estava demasiado enraizada nele.
- E você como tem passado?
-Eu? Ouça, eu sou um carro de assalto. - Amaldiçoou o excesso de rouquidão na sua voz. Devia ter sido mais dura. - Não. Não! - exclamou ela. Araiva fervia dentro dela ao avançar para ele, e Elizabeth deu-lhe rédea solta porque esse sinal era preferível ao sofrimento. - Não estou bem. Matei um homem há dois dias. Não há lixívia suficiente no estado de Minnesota que chegue para tirar as nódoas de sangue do chão. Não consigo dormir na minha cama porque continuo a vê-lo ali caído. E também não consigo lá dormir porque só consigo pensar em si! - Elizabeth cerrou os punhos e a adrenalina aumentou nela. - Você obrigou-me a apaixonar-me, seu filho da mãe! Esse foi o truque mais vil, mais reles! Eu só queria paz e sossego. Queria viver como uma pessoa normal. E então apareceu você...
Dane agarrou-a pelos braços e puxou-a para si. Ela debateu-se, soltando um chorrilho de pragas que fariam corar um marinheiro.
- Acabe com isso! - exclamou ele, soltando uma gargalhada que diluiu o tom de comando.
Elizabeth ficou ainda mais furiosa e esbracejou com mais força.
- Não acabo! E não se atreva a rir-se de mim! Eu não o quero. Eu nunca o quis!
Elizabeth deu-lhe um pontapé na canela. Dane soltou um grito e deitou-a ao chão, imobilizando o corpo dela debaixo do seu, prendendo-lhe os braços por cima da cabeça. Os corpos de ambos ficaram colados um ao outro.
Dane levantou-se o suficiente para olhar para ela. Os óculos escuros de Elizabeth tinham caído durante a luta e ela fitou-o com uns olhos injectados de sangue por falta de sono e vermelhos de tanto chorar. Tentara mostrar-se tão dura e era tão vulnerável! Essa duplicidade atingiu o coração de Dane com uma intensidade que ele começava a não conseguir combater. Elizabeth olhou para ele, furiosa como uma gata. ,
-E como dizem os Rolling Stones, querida - disse ele, tentando ganhar fôlego. - Nem sempre podemos conseguir o que queremos.
- Detesto os Rolling Stones - resmungou ela entre dentes. - E detesto-o. Você não presta e...
- Amo-a.
-... Não... - Elizabeth calou-se, confusa. - o quê? Você o quê?
- Amo-a.
Por instantes, Elizabeth ficou a olhar para ele. Depois, conseguiu soltar a mão direita, ergueu-a lentamente e tirou-lhe os óculos escuros, atirando-os para o lado.
- Repita isso - pediu ela em voz baixa.
Precisava de ouvir aquelas palavras, precisava de as ver nos olhos azuis dele.
- Amo-a - murmurou ele. - Se isto lhe serve de consolação, eu também não queria.
- Você sabe mesmo fazer com que uma mulher se sinta especial - disse Elizabeth. - Talvez seja preferível calar-se e beijar-me.
- Sim, minha senhora.
Dane debruçou-se sobre ela e colou a sua boca à de Elizabeth com suavidade, com ternura, com uma veemência que lhe vinha do coração e com um desejo que ela sentiu na alma. Os lábios de ambos uniram-se, provando, saboreando, reaprendendo, recordando. Elizabeth entregou-se à volúpia, ao fascínio do momento. Por falar em momentos, aquele era perfeito. Ela recordá-lo-ia enquanto vivesse.
Dane afastou-se dela ao terminar o beijo.
Com a ponta dos dedos, acariciou-lhe a linha elegante do rosto e tocou-lhe na pequena cicatriz que ela tinha ao canto da boca.
-Eu amava a mãe da Amy, mas ela queria... coisas, tantas coisas que eu não lhe podia dar, tudo aquilo que o dinheiro podia comprar. Não lhe posso oferecer isso, Elizabeth. Sou apenas um polícia, um velho e estafado futebolista transformado em polícia.
Elizabeth via tudo aquilo no rosto dele, o sofrimento, o cansaço, a necessidade que chegava até ela.
- Oh Dane - sussurrou ela. - Eu não quero coisas. Só quero... o seu amor.
- Bem, talvez consigamos alcançar o que queremos, afinal - disse ele, esboçando um sorriso terno. Dane baixou a cabeça e beijou-a de novo. - Eu pedia-lhe que casasse comigo, mas ouvi dizer que você desistiu dos homens. Elizabeth sorriu.
- Ora, filho, onde é que você foi buscar uma palermice dessas? - proferiu ela com uma voz arrastada, pestanejando e puxando-o de novo para si.
Tami Hoag
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