Claire piscou várias vezes, e seu rosto revelava confusão.
As imagens do sonho se confundiam com a realidade. A figura luminosa do seu guardião angelical, pairando sobre os picos nevados, mesclava-se com aquela figura que estava à sua frente. Impressionante!
Parecia que tinha saído dos seus sonhos e estava ali, materializada. Ela apoiou a mão na parede, inspirou fundo e fechou os olhos por um instante.
Então, de repente, já não parecia estar lá. As enormes asas avermelhadas, escuras nas pontas, e que até pareciam refletir sua cor sobre os longos cabelos de Kilaim, desvaneceram-se no ar, como um suspiro. Restava apenas uma leve nuança delas, como uma pintura que se dissolve na água.
Por fim, mais nada. Teriam mesmo estado lá?
Nas costas de Kilaim?
Significava que ela tivera um vislumbre de... de quê?
“Non.”
Era só impressão. Ela apenas sonhara com aquele anjo do Mal e ainda não estava bem desperta. Os acontecimentos da noite anterior ficaram em sua memória. Era só isso. Sua mente lhe pregava uma peça.
Os olhos enregelantes do anjo do Mal não se pareciam com os olhos de Kilaim, observando-a com carinho, exceto pela cor. Muito negros.
Ele estendia a mão para ela, convidativa. Claire esboçou um sorriso e caminhou na direção de Kilaim.
Não era nada. Só impressão.
A luz do amanhecer entrava pela janela do flat. E, com ela, a noite escura dava lugar à esperança.
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DIÁRIO DE CLAIRE
Temos tido dias bastante cheios, e mal há tempo para sentar e ficar quieta, por isso faz tempo que não escrevo; mas tenho que anotar nem que seja um resumo de tudo. Caso contrário, poderia me esquecer de alguns detalhes.
Para começar, o clima. O calor é realmente inacreditável, a primeira impressão que se arquiva na mente e, principalmente, no corpo. Nunca vou me esquecer! No Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, em Manaus, estava relativamente climatizado, mas dar os primeiros passos na direção do estacionamento para arrumar um táxi foi um choque. A umidade do ar dá uma sensação térmica ainda maior, e nós chegamos em um horário ingrato, perto das 13h, depois de um voo de mais de 2.600 quilômetros. Felizmente, foi direto.
“Isso aqui é insano...”, foi a primeira coisa que Kim disse.
E era mesmo, tive que concordar. Parecia que se podia fritar um ovo no chão. Ficou bem claro, logo de cara, parce que os índios nem usavam roupa!
Ficamos hospedados no Tropical Manaus Resort, um complexo cinco estrelas fabuloso, às margens do Rio Negro e na orla da Floresta Amazônica. Tem estilo antigo, mas até que é bem conservado. No primeiro dia, arriscamos ficar um pouco ao sol, mas com cuidado, como qualquer europeu que não deseja estragar sua viagem precipitando-se. Kilaim havia insistido para trazermos filtro solar fator 100 para o rosto e 70 para o restante. Achei um exagero, mas foi a coisa certa a se fazer! Nós nos enchemos de filtro solar e decidimos ficar na piscina. Há dois restaurantes e um bar aquático, que foi onde tomamos sorvetes incríveis dentro de abacaxis.
Aqui escurece tarde, e a água estava morna! Quel délice... Ah! Kilaim fica lindo de short de banho, nossa! E seu cabelo liso e comprido faz inveja a muitas mulheres. Ainda bem que ele é meu, só meu!
No dia seguinte, à tardezinha, participamos de uma visita monitorada ao zoológico do Resort; amei as cores incríveis das aves, mas, quando retornamos, estávamos transpirando até pelas orelhas. O hotel é cercado por “pedaços” de Floresta e oferece outros passeios, como trilhas e aluguel de bicicletas, além de outros programas. Fiquei bem animada em sair pelas trilhas de bike, mas o Kim achou melhor irmos com calma. Tem medo de que eu passe mal com todo esse calor e — isso ele não diz, mas eu sei — tenha um ataque do coração.
Sinto-me ótima, mas entendo sua preocupação. A prudência será nossa melhor amiga, embora eu não tenha grandes restrições médicas e as atividades físicas, inclusive, sejam recomendadas.
“Não uma atividade muito intensa, e ainda por cima debaixo de um calor de mil graus”, foi o que ele me respondeu, dizendo também que, enquanto não tivesse certeza absoluta de que eu poderia aguentar, faríamos programas mais “geriátricos”. Tive que rir dele. Quanta preocupação! Mas fico contente que se preocupe, e mais contente ainda por perceber que não é necessário. Como não temos data para ir embora, podemos relaxar e “curtir” (essa é uma gíria em português para “divertir-se bastante, aproveitar muito”) sem pressa. Haverá tempo para fazer de tudo.
Todos os dias, vamos à piscina para aproveitar o calor mais “ameno” do início da manhã, depois de tomar café. É muito agradável. Às vezes jogamos tênis, mas só se for bem à tardezinha, e devagar. É o único horário em que se suporta ir atrás de uma bola, além disso, nem eu nem o Kim sabemos jogar direito.
Também temos passeado pela cidade. Um lugar bem pitoresco é o Mercado Municipal Adolpho Lisboa, construído às margens do Rio Negro. Segundo nos informaram, foi inaugurado durante o Ciclo da Borracha, em 1883. Pelo menos é desse ano que data o pavilhão principal.
Kilaim disse que esse Mercado é considerado uma réplica do extinto mercado de Les Halles, em Paris. Ele nunca perde o hábito de pesquisar tudo e memorizar os mínimos detalhes!
Segundo ele, o Mercadão — um dos mais movimentados centros de comércio dos produtos regionais, incluindo carnes, peixes de água doce de todos os tipos e tamanhos, frutas exóticas, vegetais e artesanato local — foi construído em estilo art nouveau. Possui um pavilhão central de alvenaria sustentado por colunas de ferro e mais dois pavilhões laterais com estrutura de ferro, igualmente sustentados por colunas. Os pórticos laterais são lindos, de ferro fundido e rendilhado, repleto de vitrais vindos da França. Em todo o contorno da construção há venezianas. O conjunto também mostra traços arquitetônicos da época do Império no Brasil, quando a família real portuguesa veio para governar o país.
Estavam sendo feitas restaurações, que tenderiam a deixar o lugar com um ar mais moderno, especialmente parce que Manaus seria uma das cidades que iria sediar a Copa do Mundo de Futebol em 2014.
“Acho que até a sujeira também deve ser semelhante ao mercado de Les Halles”, comentou Kilaim, depois.
O Mercadão é mesmo sujo, com lixo para todos os lados. Mas é o tipo de coisa que acontece nesse comércio, especialmente nos que são muito grandes, como é o caso. Começamos pela parte dos peixes e escutávamos coisas do tipo: “Que tal uma caldeirada de tucunaré? O ensopado de peixe típico da região é muito rico e saboroso!”.
Kilaim traduzia para mim, e eu ficava rindo, sem saber o que responder, mas morrendo de vontade de experimentar. Quem gosta de gastronomia tem que ter a mente — e a barriga — aberta. Como o Kim ficou com medo de que eu experimentasse aquilo feito ali, no meio da rua, garantiu que comeríamos no melhor restaurante da cidade só para provar aqueles peixes. Agradecemos e continuamos nosso passeio.
Encontramos muitos outros tipos de comidas e bebidas regionais, tipicamente brasileiras. Os feirantes nos cercavam, esticando mãos (não muito limpas) com pedaços de frutas desconhecidas para provarmos. Kilaim não considerava seguro, mas dessa vez não resisti e fui provando. Havia outros vendedores em bancas repletas de temperos e ervas, já querendo nos ensinar algum segredo sobre as poções indígenas ou os remédios caseiros.
Os brasileiros são muito receptivos, gostam de agradar aos estrangeiros e estão sempre sorrindo para nós. Percebo que olham com bastante curiosidade, e até certo respeito, para Kilaim, não só pela altura, força e beleza, mas por seu tipo físico ser tão diametralmente oposto ao da maioria por aqui, que é parda. Aliás, em relação a São Paulo, o número de brancos e pardos praticamente se inverte. São Paulo é uma das cidades mais “brancas” do Brasil, perdendo apenas para as do Sul. Aqui, na região Norte, é o contrário. O Kim não liga de ser seguido pelos olhares de todos, sejam homens ou mulheres, jovens ou velhos. Acho que deve ter sido sempre assim em sua vida. E eu me apresso a ficar ainda mais grudada nele, só para mostrar que sou sua namorada.
Gostei da maioria das frutas. Compramos várias delas, todas diferentes e exóticas, de cores e sabores incríveis (quem iria querer saber de maçãs ou morangos nessa hora?): buriti, cupuaçu, fruta-do-conde, graviola, tucumã e outras que até já me esqueci do nome.
Vou falar um pouco delas, pois estou encantada!
Uma das mais gostosas é o buriti. É muito bonito, para começar, com uma casca cor de vinho e bem amarela por dentro. Dele fazem-se doces, sorvetes, sucos e até vinhos e licores. Aliás, grande parte dessas frutas resulta em polpas muito ricas, que podem ser congeladas e comercializadas em outros estados ou até no exterior. A fruta-do-conde sempre deixo no quarto, para comer bem devagarzinho, gelada, melecando as mãos só para aproveitar a polpa de cada semente até o fim. É preciso comer semente por semente.
Também adorei o cupuaçu! Ele é enorme, pode chegar a até um quilo e meio, e desde que provei no Mercadão não dispensei mais. Prefiro na forma de suco, e tomo todos os dias aqui no hotel. Mas há muitos outros usos para essa fruta. Serve para a feitura de doces em geral, dos quais os bombons são os mais populares; mas desses não gostamos. Parece que o sabor do recheio não combina com o chocolate, que, por sinal, não é de boa qualidade. O cupuaçu também tem uso cosmético: da polpa se produz o extrato aromático, e da semente se extrai a manteiga de cupuaçu, que é um excelente hidratante. É um fruto tão importante e admirado por aqui que existe até uma festa popular em sua homenagem. Dá para imaginar?
Quanto à graviola, que acho meio azedinha, gosto do suco e do sorvete. E o tucumã é muito popular no desjejum — acredite — na forma de sanduíche! Eles comem fatias da fruta misturada com queijo e banana, no pão francês (o “pão francês” dos brasileiros). Tem casca alaranjada e um sabor que lembra damasco. Eu me arrisquei. Até que é bom, mas não para todo dia.
O Kim passou longe, não quis nem provar. Como esse meu namorado é cheio de onda para comer! Disse-lhe que teríamos que encomendar ao chef uma boa leva de foi gras, coq au vin ou salmon poché. Com urgência. Fiquei rindo dele! E ele ficou me dando beijinhos para que eu parasse de rir. Não parei, só para ganhar mais beijinhos. O bom de estar em outro país é cair de cabeça nos costumes regionais, n’est-ce pas?
Apesar de toda essa riqueza, fiquei muito penalizada com a visão de gaiolas enferrujadas e abarrotadas de pequenos animais que encontramos no Mercadão: pintinhos, patos, galinhas, filhotes de cães e gatos, hamsters, coelhos... Sem cuidado, no calor excessivo e com pouca comida e água.
“Isso não é ilegal?”, cochichei para o Kim.
“Mon amour, eles não estão traficando animais silvestres e aves em risco de extinção oferecendo-os aos estrangeiros. Pelo menos, não aqui.”
Risco de extinção. Até me senti mal. Quantos animais não estavam sendo dizimados exatamente naquele momento pelos desmatamentos inconscientes neste país? E quantas espécies de flora?
Foi Kilaim que se lembrou da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável que reuniu representantes de 193 países, incluindo 114 chefes de estado — a Rio+20, realizada no Rio de Janeiro em 2012. Depois que ele mencionou o fato, também me recordei. Falou-se muito disso, na época, já que foi a maior conferência sobre preservação ambiental, desenvolvimento sustentável e economia verde do mundo. Procuraram estabelecer um novo padrão para os anos seguintes, embora os passos estejam ainda muito aquém do ideal. Impossível não fazer comparação com a Rio-92, também realizada no Rio de Janeiro, vinte anos antes. Eu só viria a nascer no ano seguinte, mas depois estudei sobre o assunto na escola, em aulas de Ecologia.
Em 1992, o mundo foi obrigado a reconhecer que o planeta estava em perigo e assinou quatro documentos fundamentais para dar início à longa jornada contra tanta destruição: a Agenda 21, a Convenção sobre Diversidade Biológica, a Convenção sobre Mudanças Climáticas e o Tratado das Florestas. A Rio-92 mudou o mundo no sentido de elevar o debate ambiental ao mais alto nível político mundial. Em outras palavras, os políticos foram obrigados a ouvir o alerta incessante dos cientistas e dos ambientalistas.
Apesar da conscientização, mudar o cenário é como tentar parar um trem desgovernado. Não é possível interromper seu curso de imediato. Muita coisa aconteceu, mas, mesmo assim, passados vinte anos, são evidentes os sinais do esgotamento dos recursos naturais e o desastre que é a interferência humana no equilíbrio dos ecossistemas. A poluição das águas continuou implacável, o desmatamento das florestas aumentou em muitos lugares, milhares de espécies da fauna e da flora desapareceram, a desertificação ganhou espaço.
Se a Natureza fosse deixada em paz, se o Homem não existisse, ela viveria para sempre. O que se levou milhões de anos para criar, o ser humano destruiu, sem peso na consciência, em pouco tempo.
Fico a imaginar se a Rio+20 conseguiu fazer um balanço fidedigno do que aconteceu desde a Rio-92 e se estabeleceu, de fato, rotas tangíveis para um novo modelo de sustentabilidade e de preservação, cada país dentro de sua realidade.
Fiquei envolta naquelas lembranças, até parece que o Mercadão saiu de foco. Num ínfimo piscar de olhos se me descortinou aquele desalentador retrato do Terceiro Mundo. O primeiro que presenciei. Aquela era a Manaus verdadeira, não a que víamos dentro do Resort. Fiquei decepcionada, mas nada posso fazer. Minha vontade foi de ir embora, mas Kilaim convenceu-me a olhar para outro lado e ver outras coisas. Fiquei com tanta pena dos bichinhos que, mesmo tentando me divertir com o resto, foi como ter uma agulha enfiada no peito, latejando.
Acabei reparando melhor também nos garotos sujos e malvestidos que vendiam balas de gengibre ou pediam esmola. Fiquei mais interessada nas condições de vida da cidade e pesquisei alguma coisa na internet depois. Aprendi que o município de Manaus, assim como outras capitais nortistas e nordestinas, concentra um grande contingente de pessoas que, na maioria, vive mal, em condições precárias. É um paradoxo! Ao lado de tanta riqueza natural, o ser humano termina em último lugar. Desde que os turistas venham e se hospedem em resorts como o Manaus Tropical, o fato de as crianças manauaras morrerem nas beiras dos rios — de diarreia, desnutrição e doenças contagiosas que poderiam ser evitadas — parece ser de menos importância. Ao lado desses e outros males endêmicos, há também que se conviver com AIDS e tuberculose.
Fico imaginando o sofrimento de tantas famílias. Aprendi sobre o Sistema Único de Saúde, uma soma dos recursos dos governos federal, estadual e municipal, arrecadados pelos impostos e contribuições sociais pagos pela população. Ele foi criado com a função de diminuir as desigualdades de assistência médica e garantir atenção básica aos pacientes por meio do atendimento em postos, centros de saúde e unidades de saúde da família. Mas, na prática, funciona muito mal, até em grandes capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba. Então, que se dirá dos locais perdidos e distantes, onde até mesmo os profissionais de saúde são escassos?
No vasto território do estado do Amazonas, vivem cerca de 2,8 milhões de habitantes; destes, 50% se concentra em Manaus, o que a torna mais uma das “cidades inchadas” do Brasil. Elas não conseguem abarcar todo esse contingente populacional, muito menos oferecer infraestrutura adequada. Coexistem inúmeros problemas socioeconômicos, de saúde, de educação, étnicos, ambientais e de segurança, para dizer o mínimo. Os índices de violência, aqui, são alarmantes: em média, Manaus concentra mais de 90% dos casos de homicídios de sua região metropolitana e mais de 80% dos homicídios ocorridos em todo o estado do Amazonas.
Embora Rio de Janeiro e São Paulo já tenham ocupado a posição de cidades mais violentas do Brasil, isso vem mudando. As capitais do Norte e Nordeste estão ganhando.
Em Manaus, a origem da migração humana deu-se em função da necessidade de mão de obra durante o Ciclo da Borracha, entre os anos 1830 até fins de 1860. O aumento do uso desse material, que ficou conhecido como “ouro branco”, vinha desde o início do século XIX e fez de Manaus o maior polo de extração e exportação de látex do mundo.
A cidade mudou da água para o vinho, passando por grandes transformações até o final do século XIX. Surgiram sistemas de abastecimento de água e captação de esgoto, telefonia, luz elétrica e linhas de autocarros, que formaram a base da infraestrutura da nova metrópole, fazendo de Manaus a primeira cidade urbanizada do Brasil, a segunda maior cidade brasileira e um dos maiores portos fluviais da América do Sul.
Residências suntuosas foram construídas (como o palacete da família Scholz, que hoje é um importante centro cultural), ao lado de edifícios públicos monumentais, como o Teatro Amazonas — lindo, imponente, cor-de-rosa e branco, com uma cúpula —, o Palácio da Justiça, o Mercadão, a Alfândega, a Biblioteca Pública e tantos outros. Na mudança do século XIX para o XX, Belém, capital do estado do Pará, era igualmente próspera, não só pela sua posição estratégica, quase litorânea, mas em função de concentrar maior número de residências de seringalistas, casas bancárias e outras importantes instituições.
Entretanto, nem tudo foi poesia.
A primeira obra de porte na Amazônia foi a estrada de ferro Madeira-Mamoré, em Rondônia. Serviria para escoar a borracha e outros produtos da Amazônia, tanto da Bolívia como do Brasil. Contudo, foi um fracasso. Durante sua construção, entre 1907 e 1912, mais de seis mil operários morreram de malária, fazendo com que a estrada ficasse conhecida como “Ferrovia do Diabo”. Depois, o preço da borracha caiu vertiginosamente, pois a Amazônia perdeu seu monopólio.
Os ingleses plantaram seringais na Malásia, no Ceilão e na África tropical, com sementes oriundas da própria Amazônia, e foi uma catástrofe para os brasileiros. As pessoas começaram a sair das cidades, abandonando as mansões. Não havia perspectiva para ninguém, e o futuro ficou completamente incerto. Os trabalhadores dos seringais, também sem renda, acabaram indo parar na periferia de Manaus em busca de melhores condições de vida. Mas não havia.
Como se não bastasse, parte da produção que iria pela Madeira-Mamoré acabou sendo desviada para outras ferrovias, no Chile e na Argentina, e para o Canal do Panamá. Hoje, dos quase 370 quilômetros construídos, apenas sete quilômetros de trilhos continuam em operação!
Houve várias outras tentativas de ocupar a Amazônia, fazendo a população crescer ainda mais. Queriam levar adiante o ambicioso projeto de construção de estradas e domínio das extensas fronteiras da região, novamente com intenção de facilitar a exploração das riquezas naturais. Tal política incluiu incentivos fiscais, financeiros e investimentos estatais com participação de capital privado, além da criação de órgãos regionais de desenvolvimento.
“Deu” resultado. Economicamente, o PIB do Amazonas vem crescendo acima da média nacional há várias décadas; porém, isso não se reflete de modo significativo na qualidade de vida e saúde da maior parte da população do estado, como já mencionei. Esses fatores históricos, a má distribuição da terra, a exploração da mão de obra e sua baixíssima remuneração, a ausência de políticas sociais mais eficazes, tudo isso perpetuou as precárias condições.
Mesmo assim, Manaus é única. Realmente não se trata de uma cidade comum. Mistura o corriqueiro com o luxuoso, o belo e o desgracioso, o simples e o exótico, a metrópole com a Natureza, o calor do clima com o calor humano.
Em poucos lugares do mundo poderíamos encontrar uma cidade tão infinitamente singular e fazer dela o primeiro destino do nosso amor e de nossas vidas juntos.
Claire Cécille
* * *
1
Aube
O casal estava em Manaus havia três semanas. Ninguém se lembrava de São Paulo, exceto por uma ocasional interrogação sobre como estaria indo a decoração de seu novo lar. Vez por outra, Kilaim fazia um telefonema ao designer, mas, logo, viu que tudo corria dentro dos conformes. Então deixou ordens expressas, mais uma vez, para que lhe telefonassem em caso de qualquer emergência. Enquanto isso, a viagem acontecia em perfeita harmonia. Dias quentes, boa comida. E o alvorecer do amor, que ia se espalhando devagarzinho, como um dia que começava. O espaço vazio no coração de ambos era preenchido, cada um a seu modo.
O que vinham esquecidos eram os debates intermináveis. O jovem filho de Lucipher deixara sua namorada cristã em paz, e ambos aproveitavam o tempo e a companhia um do outro pela primeira vez. Kilaim quase se esqueceu do estresse causado pelas importunações da Organização Secreta. Preferia não pensar no sumo sacerdote Zor, seu mentor, que, por ora, prometera deixá-lo ficar com Claire; mesmo para contragosto dele e à revelia das entidades. Kilaim sabia que estavam sendo tolerantes.
Como dissera Zor, ele era “um morcego e não um passarinho”, e haveria de aprender, pelo pior caminho, que Luz e Trevas não se misturam. Que para ganhar é preciso perder e, nesse caso, ele deveria perder Claire para alcançar a grandeza do seu destino. Kilaim nem sonhava em contar esses detalhes dos “bastidores” para Claire. Por outro lado, esperava poder contradizer as sentenças da Organização em breve e provar que estavam, afinal, todos errados. Como faria isso? Bem, o tempo haveria de mostrar o modo certo...
Quanto a Claire, embora já soubesse, em parte, que o envolvimento de seu namorado com aquela doutrina terrível — chamada “Satanismo”...? — fora profundo, era bom não ter que discutir filosofias, teorias, doutrinas, religião e afins toda hora, o que Kilaim geralmente fazia de modo acalorado. Era bom apenas aproveitar os dias. Ela supunha que o tempo seria o melhor remédio para que ele, enfim, enterrasse aquele estranho passado...
Como Kilaim estava aproveitando a viagem, ela fez o mesmo e deixou tudo aquilo de lado. Foi assim durante aquelas três primeiras semanas inteiras, e Claire já estava achando que, talvez, nunca mais tocassem no assunto.
“Dieu Merci!”.
Quem sabe Kilaim se esquecesse de tudo e ficasse bem!
“Será?”.
Naquela manhã, porém, o rapaz agiu de modo diferente. Cruzou as mãos sobre a mesa do café da manhã e olhou na direção da namorada como quem tem algo a dizer, algo importante. Claire já imaginou o que vinha depois e esboçou um semblante de simpatia no rosto, um gesto de incentivo. Moveu o corpo para se ajeitar melhor na cadeira, pois “aquilo”, pelo visto, ainda fazia parte dele e de quem ele era. Se ela o amava, então não só o coração deveria amá-lo, mas a mente e os ouvidos igualmente.
No íntimo, Claire se dispôs a não refutar e apenas ouvir. A lembrança do que o Anjo lhe dissera estava bastante vívida em sua memória. Fora pouco antes da viagem, na noite em que se sentira mal no flat em Alphaville, perto de São Paulo. Depois, pensando melhor, ela avaliou o que acontecera, mas suas conclusões não foram muitas.
Kilaim tinha ficado tão estranho, tão agressivo, e não parecia perceber que ela não se sentia bem. Era como se os dois não tivessem mais conexão alguma. Por quê? Claire não sabia, não entendia o que acontecera. Só se lembrava da sensação de torpor que se abateu sobre ela, um cansaço vindo do nada. Do peso nos braços, nas pernas, o mal-estar todo, como se sua energia estivesse se esvaindo e ela fosse simplesmente... apagando. E aquele frio, mesmo numa noite quente!
Foi então que o Guardião veio, pelo menos era assim que Claire se lembrava do fato. Sentira a presença perfumada, o calor que emanava dele e sua proteção. Então, ela começou a se sentir melhor outra vez, quase como acontecera quando ainda estava doente, esperando pelo transplante de coração. O coração que viria da mãe de Kilaim. Haveria modo mais inesperado de conhecer a pessoa que julgava ser a sua metade? Aquele por quem tinha esperado tanto?
O Anjo dissera a Claire naquela noite — de que modo, exatamente, ela não sabia ao certo — que apenas discussões doutrinárias não poderiam produzir o efeito que ela desejava. Não era assim que Kilaim conheceria Deus, pois o ódio que sentia das coisas divinas era pétreo, sedimentado ao longo de toda uma existência. Esse era o resultado de uma vivência muito profunda com o que ele chamava de “Satanismo” (Ah! Teria sido mesmo isso...? Às vezes, ela ainda duvidava...). Pois se tratava de uma vivência com o próprio Lucipher, a quem Kilaim chamava de pai.
Naquela mesma noite, mais tarde, Claire vira o Anjo. Vira sua luz dourada, o contorno de suas asas, quando ele a levara em sonho (ou em espírito?) à sua terra natal, ao cume do Mont Blanc, nos Alpes. Então ela teve certeza de que estava no lugar certo, fazendo a coisa certa: Kilaim precisava de seu amor, e era isso que ela deveria lhe dar. De todas as maneiras possíveis. Ficou dentro dela uma certeza de que suas atitudes falariam mais alto do que as palavras.
Só que, aí, ela tinha visto o outro anjo. O anjo de asas vermelho-rubi, de cabelos compridos e brancos, olhos apavorantes. Uma lembrança enevoada ficou daquela visão, que, de algum modo, parecia ter-se misturado com a figura de Kilaim. Não era real.
“Será que Kilaim, alguma vez, pensou sobre as coisas que eu lhe disse?”. Era o que ela se perguntava naquela manhã, ao olhar para ele, esperando que começasse a falar.
A atitude tranquila da moça diminuiu imediatamente a ansiedade dele, então lhe enviou um sorriso. O jovem percebia, dia a dia, que, de fato, amava-a. Ameaças e imposições não poderiam romper aquilo! Aquelas três semanas tinham sido formidáveis, e Kilaim estava feliz por poder conhecê-la melhor. Claire não era apenas “um transplante e uma Bíblia bem estudada”. Era muito mais que isso. Seu senso de humor, seu jeito comunicativo, sua inteligência e as belas formas que o corpo dela ganhava, depois da cirurgia, faziam-no sentir-se afortunado. Estava mais que pronto para não desistir dela!
Às vezes ele se pegava pensando: teria Claire, talvez, já tido tempo de avaliar adequadamente tudo o que ele argumentara? Estaria, quem sabe, enfin, mais receptiva aos seus argumentos...?
Talvez tenha sido essa constatação que produzira nele a sensação de urgência. Logo cedo, ao acordar, sentira-se abalroado por ela. As tentativas anteriores de fazer Claire compreender um pouco da doutrina satânica não foram muito proveitosas, mas era imprescindível que ela começasse a mudar de opinião. Precisava começar a entender que a crença em Deus era um grande engano, além de enorme perda de tempo. Somente depois dessa constatação, o que era somente questão de tempo, Claire poderia ser aceita no Grupo Secreto. Assim, o relacionamento deles deixaria de ser um incômodo para os líderes e para os demônios. Seriam deixados em paz, finalmente, e isso era o que Kilaim mais queria!
Significava que ele tinha que sondar o terreno, por isso resolvera quebrar o silêncio naquela manhã. Precisava ter tato, dissera isso mil vezes mentalmente. Não deveria parecer que estava tentando obrigá-la a aceitar suas ideias, e muito menos deveria perder o controle e se enraivecer com as respostas da namorada.
Que, ele admitia, “até que eram bem dadas”.
— Claire, alguma vez já parou para pensar se haveria erros na Bíblia? — ele perguntou, calmamente. E afirmou, em seguida: — Eles existem. Grandes ou não, acabam nos mostrando que a Palavra de Deus não é perfeita. — Era melhor dizer “não é perfeita” do que dizer “é falha”. — E se a Bíblia não é perfeita, mas seus princípios são encarados como literais e irrevogáveis, acredito que, isso oui, seria um grande problema. Milhões de adeptos crendo em algo que foi escrito, reescrito, recortado na intenção de agradar à Igreja. E acho até que já comentei isso antes. — “Acho” era melhor do que “com certeza já falei nisso”.
Kilaim ia construindo um sanduíche gigante e procurava não dar ênfase demasiada à pergunta.
— Por outro lado, a bíblia satânica não tem qualquer erro, sapere che?? Parce que o seu texto é, ipsis litteris, tradução das palavras dos demônios e, portanto, compreendidas em qualquer ramificação da Organização, em qualquer cultura sobre a face da Terra.
Claire se preparava para comer sua salada de frutas, tendo o famoso suco de cupuaçu ao lado da taça.
— Mas existe mesmo uma bíblia satânica?
— É claro!
Ela ficou esperando pelo resto. Imaginava que, se seguisse a orientação do seu Guardião e não discutisse demais, algo aconteceria em algum momento. Quem sabe algo sobrenatural... Isso seria perfeito. Acabaria convencendo Kilaim sobre qual o caminho certo a seguir, o que, sem dúvida alguma, não era adorar o inimigo de Deus.
Kilaim notou que ela não comentou sobre sua fala. Aliás, de uns tempos para cá, Claire não falava nada muito “cristão”. Quando muito, deixava uma palavra solta no ar, um pensamento, e só. Mas nem percebia que o fazia. Era de seu feitio falar de Deus, aquelas coisas que ele julgava tolas e irritantes, do tipo “Dieu Merci!”. Como se Deus merecesse tanta gratidão. Ou: “Que manhã mais bonita Deus preparou para hoje”; como se todas as manhãs não fossem agradáveis, até as mais escuras e frias. Ou ainda: “Que bom que Ele criou o sol”. Quanta chateação! Com certeza isso não passaria despercebido num lugar como Manaus, ela não precisava fazer apologia do Criador, especialmente porque o Mesmo que criou a Luz também fez as Trevas.
Mas, aos poucos, Kilaim foi percebendo que Claire não fazia aquilo para irritar ninguém, era só o jeito dela.
— Mas de que erros você fala? — perguntou ela, por fim, vendo que o rapaz estava olhando-a fixamente já há alguns instantes. — Uma vez, você mencionou e...
— E você disse que a questão dos erros não te interessava — ele emergiu de volta.
— Não foi bem isso. Eu disse que preferia ouvir a sua história. Mas, ça va. Pode me falar.
— Por exemplo. O Velho Testamento menciona que se levaram “tantos anos” entre a saída do povo hebreu do Egito até a construção do Templo de Jerusalém; depois, no Novo Testamento, ao se fazer menção a esse fato, relata-se um período de tempo diferente. Outro exemplo: o Evangelho de João fala na presença de dois Anjos presentes no sepulcro vazio de Jesus, e o de Mateus, diz haver somente um. Os quatro Evangelhos também não conseguem decidir se os Anjos estavam dentro ou fora do túmulo. E alors? O que você acha? — perguntou ardilosamente Kilaim.
— No primeiro caso, o que importa para mim é que o povo saiu, sobrenaturalmente, do Egito, sob a liderança de Moisés, e que o Templo foi construído. — Ela não iria argumentar coisa alguma sobre aquelas firulas de datas. — Quanto aos Evangelhos, há ligeiras discrepâncias mesmo.
— Ué, mas você admite isso?
— Oui. Parce que é verdade.
— E não muda nada para você?
Já que ele estava perguntando sua opinião, Claire achou que era adequado dar uma resposta.
— Cada apóstolo pode enfatizar mais, ou menos, um determinado assunto em seus Evangelhos. Ou ainda: podem ter recordações diferentes dos mesmos fatos, já que os relatos foram escritos bem depois dos acontecimentos. Nessa situação específica, os apóstolos estavam sob forte impacto. Jesus tinha acabado de morrer e todas as suas crenças foram postas em cheque. Quando as mulheres que foram ao sepulcro vieram lhes falar dos Anjos e da ressurreição, a maioria não acreditou nelas. Enfin, não foram eles que viram os Anjos. Contudo, depois, o fato mostrou-se importante o suficiente para ser relatado pelos quatro evangelistas. — Claire deu um sorrisinho. — De qualquer modo, o que realmente importa é o sepulcro vazio, d’accord?
Uma mistura de frustração e surpresa estampou-se no rosto de Kilaim. Então, Claire achou por bem chegar a uma conclusão melhor.
— Para mim, a verdade é que, no sepulcro, naquele momento, deveria haver muitos Anjos, muito mais que dois. Imagine a expectativa e o alvoroço do Reino Espiritual com esse acontecimento! Jesus estava ali, vivo! Essa é a Verdade que se destaca: o cumprimento da profecia, da Ressurreição. Se os relatos dos evangelistas fossem absolutamente iguais, a chance de terem sido combinados seria bem maior. — Claire afastou a taça de salada de fruta quase no fim e pegou geleia de jabuticaba para passar no pão. — As discrepâncias é que os tornam mais fidedignos. Jesus é o único personagem da Antiguidade que se beneficia de quatro testemunhas diferentes. Quatro versões que a Igreja sempre conservou, diferentes uma da outra e que, juntas, se completam. A Bíblia contém Verdades imutáveis e infindáveis. E a obra de Cristo não tem a menor chance de mudança.
Kilaim não esperava por aquela reposta “não padrão”!
— Mas como você pode ter certeza de tudo isso? — indagou ele, com curiosidade sincera. — Claire, são apenas promessas: salvação, perdão, redenção. Amor. Você não pode provar que os textos que hoje se leem na Bíblia são os originais. Como eu já disse, sofreram adulteração para que se encaixassem aos dogmas católicos, para que justificassem todas as atitudes da Igreja. E tudo que essa mesma Igreja já fez, em nome de Deus, em nome da “Palavra”? Você acredita que essa é uma fonte pura, mas, veja: muitos livros foram retirados do conjunto da Obra, como os apócrifos, por exemplo. Será que não haveria nada nesses textos que mudasse a essência da Verdade?
— Isso, non. Jamais. Posso te garantir que a Palavra permanece pura.
— E com base em quê?
Ela olhou para ele com seus olhos claros. O azul refulgia neles, na luz clara da manhã, e Kilaim não pôde deixar de admirar a beleza daquele olhar mais uma vez. Um olhar que não mostrava nenhuma sombra de agressividade.
— Com base na fé — Claire respondeu, de modo simples. — Acho que eu também já lhe disse isso, não disse?
Era verdade. Ela podia até não ter lembrança certa, mas Kilaim, sim, se recordava. Mais uma vez ele ouviu aquilo e absorveu suas palavras; entretanto, não as entendeu. Fé era uma verdadeira incógnita para ele. Os demônios nunca pediam fé. Demonstravam seu poder diante de todos os escolhidos, e isso bastava. Ninguém nunca duvidaria deles, ou de sua palavra. Deus era muito estranho em Seu modo de agir. E Claire... well... Claire parecia ser uma rara pérola. Uma cristã verdadeira, talvez a única que conhecera pessoalmente.
Mas era preciso encontrar uma brecha qualquer, uma fenda, mesmo que pequena, naquela armadura que a garota nem sabia que tinha. Ele ia acabar achando.
— Mas, Claire — Kilaim volveu —, falar em fé é uma resposta muito vaga. Tanta gente tem fé em tanta coisa absurda. Fé não prova nada. A própria Bíblia diz que a fé vem pelo “ouvir da Palavra de Deus”. Quer dizer, a fé se vincula ao conhecimento da Palavra, mas se a Palavra foi deturpada... percebe? Não que eu não admire sua fé, que é muito genuína, claro que admiro! Mas não acha que se deixar levar por um Livro que pode conter erros é muito perigoso? — Uma brisa agradável entrava pelas janelas abertas, despenteando os cabelos dele sobre os ombros fortes.
“Fica tão bonito assim...”, Claire refletiu, admirando-o. Mas Kilaim nem percebeu. E continuou:
— O Satanismo é tão mais simples... O branco é branco e o preto é preto. Não há confusão. Além do mais, mesmo que houvesse, as entidades se manifestariam para corrigir os desvios de percurso. Mas Deus não faz nada! Ele só assiste ao Homem se matar e matar os outros em nome Dele. Como um Livro que faz o Homem agir assim pode ser expressão da Verdade?
— Eu entendi seu posicionamento. Mas... — ela achou graça, de repente. — Sérieu! Não é possível que você não saiba disso, Kim. Logo você! Eu falo de fé, e você quer fatos. Mas os fatos existem.
— Quero saber sua opinião.
— A Bíblia é o livro mais bem preservado de todos os livros da Antiguidade. E Jesus aceitava a Bíblia Hebraica exatamente como era na época, ou seja, os mesmos 39 livros do Velho Testamento que temos até hoje. Depois, Ele autorizou Seus apóstolos a escreverem a Verdade segundo o que lhes transmitisse o Espírito Santo, e, então, foram produzidos os 27 livros do Novo Testamento. Assim, nada falta e nada sobra.
— Complicada essa história de “relatar a Verdade segundo o Espírito”. Don’t you think?
— Você não disse que a bíblia negra foi inspirada pelos demônios?
— Inspirada, não. — Ele sacudiu a cabeça. — Ela é literal. Foi praticamente escrita pelos demônios, é a própria palavra deles. Não há espaço para falhas humanas na comunicação da mensagem. Mas o conhecimento como um todo não está apenas nela. Quer dizer, um tijolo não representa muita coisa, apenas o conjunto de tijolos constrói o castelo da sabedoria.
— Mas, no fundo, é a mesma coisa, Kim — Claire falou com suavidade. — Os apóstolos foram perfeitamente capacitados para escrever o que veio a se tornar o Novo Testamento, muito embora Deus não o tenha ditado. O que não foi inserido não era para ser.
— Sei que os livros que foram, supostamente, “impedidos” de fazer parte do Novo Testamento não foram escritos por apóstolos de Jesus. Mas essa é a história que nos foi contada. De novo, digo: você não tem como provar.
— Toda palavra a respeito de Cristo, fosse oral ou escrita, era submetida ao crivo do ensino apostólico. Pois eles representavam a autoridade comissionada por Deus e a provaram com manifestações de poder, sinais e milagres. Se uma palavra, ou obra, não pudesse ser comprovada pelas testemunhas oculares de Jesus, os apóstolos, era rejeitada, pois apenas eles podiam afirmar: “O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos”. Foi mediante o reconhecimento de tal autoridade que a Igreja do primeiro século selecionou os escritos aos quais obedeceria. A escolha vem desde aí.
Kilaim sabia daqueles detalhes perfeitamente, e muito mais. Só não esperava que ela estivesse familiarizada com o tema, então achou que não valia a pena estender-se naquela direção. Não adiantaria de nada falar do que veio depois da Era Apostólica, das traduções do Novo Testamento, da fidedignidade das listas canônicas, dos Concílios, dos historiadores, dos séculos de discussões, das diferenças entre a Igreja do Ocidente e a do Oriente... etc....
Alheia aos pensamentos dele, Claire mudou o rumo da conversa:
— Além do mais, Kim, a Bíblia não é o único modo de se conhecer a Dieu... — Ela fazia ar de mistério.
— Diga-me logo como aprendeu a ser cristã — tornou a falar Kilaim, um pouco inconformado. — Disse que foi sozinha, mas não pode ser, você é muito dura na queda. Não cede! Diga logo onde e com quem aprendeu tudo isso.
Claire dava uma mordida generosa em seu pão integral coberto por um monte de geleia de jabuticaba, deixando escorrer, sem querer, um pouco pelo queixo. Kilaim teve que dar risada, de repente, à visão da geleia escorrida e de todo aquele apetite.
— Mas que fome, hã? Você já não está comendo como uma francesa. Enche a boca como os brasileiros!
— Combien j’aime ce pays! Quem pode resistir a essa fartura toda? — Ela esticava a boca na direção de Kilaim, para que ele limpasse a geleia com o guardanapo ou com a costumeira lambida, tanto fazia.
O rapaz preferiu a segunda opção. A boca de Claire compensava o esforço de provar o doce, que até nem era ruim.
— Boa essa geleia. — Ele estalou a boca. — Fico feliz que esteja gostando tanto de tudo.
— Oh, eu estou mesmo, Kim! Merci! Nunca fui tão feliz na vida!
Ele ficou satisfeito com seu entusiasmo. E pelo fato de estar conseguindo conversar sem perder o controle: Kilaim sentiu que estava ficando bom nisso. Então, ficou a observá-la, satisfeito, vendo-a comer o pão alternadamente com o restinho da salada de frutas.
Claire sempre misturava as coisas mais improváveis no café da manhã, era bem estranho. Mas ele já estava se acostumando. E sorriu, sem perceber.
Parecia que o luto por sua mãe, Camille, estava cedendo lugar a uma réstia de sol. Era como se alvorecesse, aos pouquinhos, um pouco de luz iluminando o escuro do seu coração. E Claire era essa luz.
— Go on! Sua vez de falar, mein lieber. — Kilaim desviou a atenção para a própria comida e começou a pegar, do monte de coisas empilhadas no meio do prato, o que mais lhe agradava para montar um segundo sanduíche. — Conte-me.
— Contar o quê? — A geleia, agora, escorria para o dedo, que foi esfregado de volta no pão antes que pingasse.
— Como se tornou cristã, ué. Se você acabou de dizer que a Bíblia não é o único caminho para se conhecer Deus... Quer dizer que teve experiências sobrenaturais? — perguntou sem fazer deboche.
— Não foi bem assim. Pouco fui a igrejas. Exceto na Páscoa. Ou, eventualmente, podia assistir à Missa do Galo na passagem do ano, por insistência da minha tante. Acho que era um desencargo de consciência da parte dela, por não ter me doutrinado adequadamente e me transformado numa boa menina católica. Fiz primeira comunhão, cresci conhecendo uma coisa aqui, outra ali. Mas nunca gostei de confessionários; além disso, as missas eram chatas.
— Alors... isso é até que bem surpreendente! — Kilaim ergueu a sobrancelha, curioso. — Como se explica, afinal, essa sua “tara” pelo Cristianismo e o conhecimento que adquiriu? Sabe que hoje em dia essa coisa toda de Cristianismo está meio fora de moda...
— Não está, não. Mas sei que você me acha chata com esse assunto.
Ele passou o braço pelos ombros dela, apertando-a, aspirando o suave perfume de seu pescoço. Deu uma risadinha.
— Um pouquinho, c’est vrai. Mas está perdoada, eu acho... desde que não exagere muito. — E, novamente, com ar de curiosidade: — Eu queria entender como essa sua fé se formou. Teve ou não teve experiências sobren...
— Eu não ligava para religião, é verdade — Claire o interrompeu, contente em responder aquela pergunta. — Depois da morte dos meus pais, fui viver com minha tante Charlotte, irmã da minha mãe. Ela era católica praticante, e eu achava tudo chato. Mas, na minha adolescência, me interessei por doutrinas bem diferentes, de pura curiosidade. Gostava dos conceitos do Budismo, da meditação e toda aquela coisa de alcançar o nirvana. Queria ir ao Japão adorar no Monte Fuji. E, quem sabe um dia, conhecer um mosteiro tibetano. Depois, me interessei pelo Islamismo, só parce que queria entrar numa mesquita usando véu, imaginez un peu! Esse tipo de coisa aconteceu na minha fase de “rebelde”, para atormentar minha tante, que me queria católica apostólica romana praticante até a morte. — Ela riu abertamente dessa vez, lembrando. — Quando comecei a escutar discos Hare Krishna que ganhei de amigos, ela não gostou nada, nada. Depois disso, pensei também em me tornar Kardecista. Sabia que Allan Kardec era de Lyon? Além de médico, se formou em letras. Não parecia um idiota qualquer que se deixaria enganar por outros idiotas. Eu queria muito ser médium. — Claire riu de novo.
— Talvez Kardec fosse um idiota que enganava outros idiotas... Péssima escolha. Mesmo porque, hoje, na França, deve haver, quem sabe, uns 20 adeptos do Kardecismo... todos eles muuuito espertos — caçoou Kilaim, que sorria, fazendo um “tsc tsc tsc” divertido de vez em quando.
— Pois é. Se Kardec imaginasse como cairia em descrédito. Mas acabou sendo engraçado, depois que passou. Minha tante e eu até ríamos de tudo isso e de nossas discussões.
— Alors, é isso? As discussões em sua fase de rebeldia vinham da religião, Claire? Pelos chifres da Besta, franchement...
— Da! — Claire imitou o jeito de Kilaim falar, misturando idiomas, e encostou a ponta do seu nariz no nariz dele.
— Nada de festas rave, drogas sintéticas poderosas, passar a noite fora de casa sem dar satisfação? Ou namorados motoqueiros que não gostassem de sexo, já que você era virg...
— Non... — ela falou com certa meiguice. — Teria sido demais para minha tante. E para mim.
— Ok, você sempre foi um anjo, mas e as experiências sobre...
— Espera! Deixa eu contar direito. Quando eu estava na faculdade, tive que fazer um trabalho importante sobre Inteligência Emocional. Tínhamos que escolher um personagem histórico para desenvolver a pesquisa e, enfin... eu escolhi Jesus, nem sei qual o motivo. Foi simples assim. Comecei lendo, estudando os Evangelhos, comparando-os. Fiz uma compilação de textos do Velho Testamento sobre as profecias em relação ao Messias e me apoiei em algumas leituras paralelas também. O resultado do trabalho de graduação ficou incrível, mas não sei bem quando isso tudo começou a virar fé. De repente, percebi que Jesus pregou para todos, e que aquelas palavras poderiam servir para mim. Aprendi a guardá-las no coração como algo precioso, parce que a Sua vida me compungiu. Sua capacidade ímpar de lidar com todo tipo de situação, sua força, seu carisma, sua autoridade. Seu jeito de ensinar. Sem falar em sua rebeldia! — Ela sorriu. — Por fim, a coragem de entregar-se à Paixão e à Cruz. E sua Ressurreição!
Kilaim não gostava nem um pouco daquela história de Ressurreição. Mas hesitou em interromper, engolindo em seco. Depois, inquiriu novamente:
— Quer dizer que você se tornou cristã lendo a Bíblia sozinha e estudando alguns livrinhos paralelos? Nunca frequentou igreja, nenhuma mesmo, ou ouviu pregações?
— Voilà!
— Sua história é bem sui generis. Tenho que admitir. E que tipo de literaturas leu?
— Tive ótimos professores.
— Muito duvidoso. Não há nada de bom por aí. Literatura protestante ou católica?
— Vou lhe contar, Kim. Você chamaria Flavio Josefo de vigarista, inculto? Foi um escritor e historiador judeu que viveu entre 37 d.C. até pouco mais de 100 d.C. e...
— Eu sei quem é Flavio Josefo. Ele é considerado um dos maiores historiadores judeus do primeiro século.
— Ça va, alors você sabe também que ele era filho de sacerdote e, mais tarde, tornou-se fariseu. Por isso teve ótima instrução nas culturas judaica e grega, além de ser fluente no latim e no grego. Seu relato ocular sobre a destruição de Jerusalém talvez seja um dos únicos que sobreviveram. — Claire balançou a cabeça para cima e para baixo várias vezes. — Grande homem!
— Oui.
— E o que dizer do dr. Champlin? Entre suas obras estão o The Old Testament Interpreted, o The New Testament Interpreted e a Encyclopedia of Bible, Theology and Philosophy. Um trabalho realmente incalculável, o resultado de uma vida inteira de pesquisa e dedicação. Sempre que tenho dúvidas ou quero estudar um determinado tema recorro a ele.
Kilaim olhou para Claire com verdadeira admiração. Era uma autodidata em Cristianismo; e, ainda mais, um exemplo vivo de Cristianismo não contaminado.
— A vida de Cristo mudou o calendário e ultrapassou os séculos. Chegou até mim e me abriu os olhos para a espiritualidade. Estudei todo o Novo Testamento e boa parte do Velho. Gosto de ler com muita atenção várias vezes, fazer anotações, comparar textos. E, como devemos ser praticantes, não apenas ouvintes, passei a dar meu melhor para seguir os preceitos cristãos.
— Mas foi só isso mesmo? — Kilaim parecia desapontado. — Você nunca experimentou nada sobrenatural ou algo do gênero, nada que comprovasse a veracidade da sua fé? Que te dissesse que esse é o caminho, de fato?
— A conversão pode ser um momento íntimo com Dieu, no interior do seu quarto. Não precisa descer fogo do Céu. O resto é no dia a dia. Na época da minha doença, vi muitas vezes o Amor Dele por mim.
— Me parece muito pouco. — Ele mordeu os lábios, olhando fixo na direção dela. — Como pode ter certeza?
— Eu já disse: fé.
— Sei que você já explicou, mas fé é como uma névoa, Claire... é... é...
— Bem, pedi a Dieu que me trouxesse um companheiro, e eu sabia que ia acontecer. Ele me trouxe você. Isso é sobrenatural!
Kilaim quase caiu na risada, engasgando com a bebida, e de tal forma perdeu a compostura, deixando Claire perplexa e magoada.
— Você ri? Isso é tudo? — perguntou ela com voz triste, baixando os olhos.
— Ah, Claire, não estou rindo de você... — Kilaim procurou se controlar, tomando as mãos dela entre as suas. — Mas depois dizem que Lucipher é que é o desmancha-prazeres.
— Como assim?
— Se Deus me trouxe, como diz, supostamente sou a sua cara-metade. Alors, Ele tem mesmo muito senso de humor, baby. Muito mesmo!
Ela puxou as mãos que ele segurava, colocando-as sobre o colo, sentida.
— Oh, Claire! — exclamou Kilaim, caindo em si para valer. — Sou mesmo um troglodita! Não foi isso que eu quis dizer, não é nada contra você. É que... Entenda... Parece-me tão estranho que Deus possa condenar você... Justo você! A passar a vida ao lado de alguém como eu. — Ele buscava as palavras. — Você e eu: só me pareceu uma piada de mau gosto — pausa. Mas então franziu a testa e grunhiu, mais para si que para ela. — Se bem que acho que é o tipo de piada que Deus gosta... com o Seu incrível senso de humor.
— Você acha que é tudo fogo de palha? Que não há a menor chance de darmos certo? — Ela olhou de novo para ele. — É somente uma brincadeira, Kim, uma diversão?
— Non — expressou-se ele com toda a sinceridade que lhe foi possível, olhando-a firme. — Por que motivo nós dois nos encontramos e estamos exatamente aqui, Claire, olha... Eu realmente não faço ideia. Mas de uma coisa eu sei: é que não queria estar em nenhum outro lugar do mundo ou com qualquer outra mulher.
— Você pode não entender, mas foi Dieu, Kim. Pedi a Ele, e Ele te trouxe, da maneira mais improvável. Você quis conhecer o receptor do coração da sua mãe, e eu quis conhecê-lo... Qual a chance de isso ter ido adiante? Era mínima, n’est-ce pas? Depois, você escolheu sair da França para ficar longe da... seita. E eu te acompanhei, parce que você me pediu. Agora, tudo o que precisa fazer é se afastar de tudo aquilo, ficar longe das doutrinas do Satanismo, encher sua vida com outras coisas.
— Oui, eu saí da França — Kilaim respondeu, dessa vez gravemente, segurando novamente a mão dela. — Dei as costas aos que me criaram e acolheram. Dei as costas à Organização. Mas daí a abraçar outra crença, especialmente o Cristianismo... — Vendo o rosto aflito da garota, amenizou um pouco: — Ainda é difícil para mim. Você sabe.
— Pourquoi você não me conta o que aconteceu lá, Kim? De uma vez por todas?
— Mas eu estou contando, Claire. Já te contei tanto, desde que começamos nossa viagem.
— Non, Kim, é diferente. Você quase não me fala nada pessoal, não me diz o que realmente se passou.
Ele meneou a cabeça devagar, dividido.
— Por ora, é melhor não.
— Ça va. — A moça suspirou. — Vou continuar esperando.
Pausa.
— Mas você me promete que vai contar um dia? — Ela olhava para Kilaim com uma centelha de expectativa.
— Prometo. Talvez, não tudo... O que for mais importante. Não fique chateada, não há muito o que dizer — ele desconversou um pouquinho.
Claire esticou a mão e afagou os cabelos dele, correndo os dedos entre os fios, quase distraída. Olhava-o de novo com carinho. Kilaim adorava quando ela ficava olhando assim para ele, sem desviar a vista, como se nada mais, ou mais ninguém, existisse no mundo. Naquele momento, ele era o centro do mundo dela, e era assim que deveria ser. Era isso que ele queria ser.
— Nunca pensei que fosse ter um namorado de cabelos mais compridos que os meus — ela disse. — Você é muito lindo, sabia? O mais lindo do mundo todo! Já reparou como essas mulheres brasileiras dão em cima de você? Mon Dieu, não têm a menor compostura, não estão nem aí que você esteja acompanhado.
— Mulheres são assim: um bando de cobras. Nunca confie nelas.
— Já tive muitas amigas. Nem todas são “cobras”. — Ela achou graça.
— Você tinha algo que elas quisessem, por acaso? Uma profissão desejável, uma oportunidade única, um homem?
Claire refletiu.
— Non. Nada de importante.
— Por isso eram suas amigas. Basta ter algo que elas queiram e vão passar por cima de você, sem escrúpulos. É da natureza delas. — Ele sorriu, endireitando-se. — Agora, quanto a mim, eu sou mesmo irresistível! Provoco os piores instintos nas pessoas.
— Os piores — ela concordou, mergulhando em seus olhos.
— Mas eu sou seu. Só seu. — Kilaim correspondeu ao olhar e, então, a puxou pelo pescoço, beijando-a.
Claire se deixou afundar no beijo, sentindo o coração bater mais forte. Queria poder jogar os braços ao redor dele e simplesmente esquecer as questões difíceis.
— Kim... Nós vamos conseguir. Não há motivos para não conseguirmos.
Alguma coisa fazia com que Kilaim fosse absurdamente sincero.
— Ah, Claire, você estaria bem melhor se se envolvesse com... Um médico! Já pensou? Ou um arquiteto, um veterinário. Alguém com a cabeça no lugar e que pudesse cuidar de você. Amá-la, sem lhe trazer qualquer risco...
— Mas eu te escolhi. E embora ainda não o tenha visto tocar piano, por pura falta de oportunidade, você é músico. Tem coisa mais linda? Isso sem falar da sua carreira incrível no ramo publicitário.
— Nem tão incrível assim. Meu Nonno é insistente e quer me arrastar para a empresa a qualquer custo.
— Mas eu te amo — ela continuou, sem se preocupar com o comentário. — O que mais importa? Isso é suficiente, n’est-ce pas? O amor!
Os dois ficaram em silêncio, pensando naquilo. O amor. Deveria ser suficiente. Kilaim tamborilava devagar sobre a mesa. Claire espetava com a ponta do garfo as migalhas de pão caídas na toalha.
— Well, Claire, considerando que sua experiência mais sobrenatural tenha sido me encontrar — Kilaim falou, por fim, mas sem qualquer nota de zombaria —, você não tinha vontade de experimentar algo realmente sobrenatural? Um sobrenatural que venha de Deus, parce que, do meu lado, alguma coisa você já viu.
— Claro — Claire admitiu. — Embora alguns teólogos afirmem que o sobrenatural da época dos apóstolos tenha sido exclusivamente para aquele momento da História. Mas é que, às vezes, eu os sinto...
Claire olhou de soslaio para Kilaim: ele iria caçoar dela. Por isso se interrompeu e ficou quieta.
— Sente quoi?
Ela deu um suspiro.
— A presença de Dieu. Sua Paz. E a presença dos Anjos também. Às vezes. Mas não é isso que busco em primeiro lugar.
— Anjos?
— Oui.
— Mas, e quanto aos teólogos que acabou de mencionar?
— São apenas teólogos. Seres humanos. Tenho minha opinião. Para Dieu, nunca existe sempre e nunca existe nunca, parce que não está engessado pelas crenças dos homens. Sempre pode fazer mais do que aquilo que Dele se espera. Acredito que, se for de fato necessário, mesmo nos dias de hoje, Dieu pode agir de maneiras singulares. Creio que Dieu agirá de todas as maneiras possíveis dentro do tempo e modo corretos para salvar e libertar vidas. E usará as pessoas que estiverem dispostas a se entregar em Suas mãos.
Aquela última frase caiu dentro dele, ressoando como uma tuba.
— Acha que Ele escolheria você? — Kilaim perguntou, com uma nota de receio na voz.
De novo aquela sensação estranha. Igual à que sentira no avião, quando eles estavam a caminho do Brasil, quando Claire dissera que, se fosse necessário, estaria disposta a morrer por Jesus, que seria capaz de entregar a vida pela Glória Dele. Naquele momento, eles estavam falando de morte; mas, agora, Claire falava em Deus usar pessoas escolhidas por Ele...
Claire não notou o desconforto do rapaz e apenas balançou a cabeça.
— Não sei — ela respondeu.
— Não sabe. Hum.
Aquilo, sim, seria um big, um baita, um gigantisch problema!
Será que Claire teria o Selo de Deus? Ele nunca tinha visto um selado. Não nos tempos atuais. Era a marca dos grandes, dos que não recuam, dos que entregam a vida e cumprem o propósito Divino a qualquer preço. E que tanto atrapalham a Organização! Kilaim não queria nem pensar nisso. Seria um verdadeiro pesadelo de olhos abertos.
Olhou na direção dela de modo diferente, avaliando, procurando um sinal. O Selo podia ser vislumbrado, algumas vezes. Geralmente os demônios o notavam antes, mas os mais graduados dentro da hierarquia da Organização podiam, em certas circunstâncias, contemplar aquela aura diferente. Uma luz que somente alguns poucos têm.
“Non. É impossível. Eu já o teria visto”, refletiu Kilaim.
Mas não era uma regra. Aquela marca espiritual não era um chamariz; pelo contrário. Costumava ficar oculta. Como Moisés, que ficou abrigado em plena terra do Egito e de quem nada se suspeitou, a não ser quando já era tarde demais. Como Jesus, que Lucipher procurou por todos os cantos possíveis, pois Ele era o Prometido que pisaria à cabeça da Serpente. Mas não O encontrou, a não ser após seu batismo no Jordão. Pois tinha chegado o Tempo de Deus.
— E se Deus te escolher? — Kilaim estava nervoso e foi direto ao ponto. — Para fazer... alguma coisa?
— Eu O obedeceria.
— Mesmo à custa de sua própria vida? — perguntou ele, mais uma vez. Do mesmo modo como perguntara no avião.
— Quem quiser salvar a sua vida irá perdê-la; e quem perder a sua vida por amor a Cristo, a encontrará.
Se não fosse Claire falando, esse tipo de declaração realmente teria soado bem piegas. Novamente a tuba gritando dentro dele. Aquele modo de agir era para lá de esquisito. Aquela placidez e a inclinação para uma obediência cega; a disposição de entregar a própria vida! Parecia coisa de gente louca.
— Mesmo se fosse para me abandonar? — insistiu ele.
— Eu preferiria que você viesse comigo.
— Juro, Claire. Se eu pudesse escolher...
— Eu sei. — Claire encostou a cabeça no ombro dele, aninhando-se por um instante. — Eu sei. Vamos apenas dar tempo ao tempo.
Silêncio. O coração de Kilaim estava um pouco acelerado, e ele tamborilou sobre a mesa uma cadenza inteira em molto vivace.
“Shit, shit, shit.”
Será que era por isso que os demônios não o queriam perto de Claire, teriam visto que possuía o Selo?! Se fosse isso... que desastre!
O destino dos Selados de Deus não pode ser mudado. Nunca, em nenhum momento da História, nem mesmo diante das mais terríveis investidas dos principados do Abismo, essas pessoas puderam ser demovidas ou derrubadas. Pelo menos, era o que se contava na Organização. Eram escolhidas por Deus de antemão. Já nasciam com um propósito estabelecido. E se tornaram, ao longo da história dos hebreus, da Igreja e do Cristianismo, elos impossíveis de quebrar.
Como conciliar o fato de que seu próprio destino fora traçado por Lucipher e também não poderia ser mudado?
Ele inspirou fundo. Segurou o rosto dela pelo queixo e o ergueu para si. Tocou-o com muita delicadeza, olhando-a de perto. Depois, abraçou-a, apertando forte, apenas querendo protegê-la. Ele queria tanto protegê-la!
“Se, realmente, Claire fosse uma escolhida, Deus não a teria deixado vir, Ele a teria preservado”, Kilaim pensava. “Claro. Ela nem teria se apaixonado por mim.”
E Claire estava bem ali, com ele, no meio da Amazônia. Contra todas as possibilidades aceitáveis, ela o acompanhara, entregando-se de corpo e alma. Cada vez ficava mais claro o que isso representava para ela: certamente, não uma aventura barata.
Aqueles pensamentos o acalmaram um pouco.
“Cachu... que bobagem a minha.”
— Kim, eu acredito realmente que Dieu nos uniu! — disse Claire, erguendo a cabeça.
Tuba.
Isso, para ela, encerrava todos os questionamentos; esse suposto “fato” era a grande chave da felicidade. Kilaim não queria decepcioná-la, mas certamente não fora Deus que o trouxera. Então, ele mudou o rumo da conversa.
— Então talvez você precise realmente entender melhor aquilo que estou tentando dizer. Se Deus não lhe mostrou ainda algo sobrenatural, eu, talvez, possa mostrar-lhe. De verdade.
— Que quer dizer? — indagou ela, desconfiada. — Já sei que você pode... fazer algumas coisas.
Kilaim se deu conta de que estava falando demais, sem pensar. O fato de amá-la dificultava tudo, então melhorou um pouco sua argumentação.
— Quem sabe posso mostrar-lhe melhor do que eu falo, é isso. — Ele tentou sorrir de modo descontraído, mas foi difícil.
Já tinha entendido que Claire não era uma cordeirinha que apenas repete o que ouve. Claire era um ser pensante.
E um ser pensante poderia tornar-se perigoso.
* * *
2
Perle Noire
Claire havia se deitado um pouco à tarde, para descansar antes do jantar. Tinham saído muito cedo para um passeio, e, como Kilaim dificilmente sentia sono naquele horário, ela resolveu se aquietar um pouco apenas enquanto ele tomava banho.
Mas, pelo visto, ele desistira do banho, porque entrou no quarto muito depressa, afogueado.
— Eu tenho uma surpresa para você!
Aquela ideia tinha grudado na cabeça de Kilaim como um molusco e não o deixava pensar noutra coisa. Claire precisava ver — ver mesmo — do que ele estava falando. Só assim iria entender a Organização. E, se entendesse, faria a escolha certa.
Aproximou-se decidido, debruçou-se sobre ela e lhe deu um abraço apertado, falando ao mesmo tempo:
— Me permita fazer com que você veja o que eu vejo, Claire, parce que só assim vai conseguir sentir o que sinto.
Ela meneou a cabeça, avaliando. Não podia negar-lhe a chance de uma tentativa.
— Uma vez você disse que não era possível me explicar Deus. Eu precisava provar Deus. Precisava de uma experiência — Kilaim começou. — Está lembrada?
— Oui, me lembro.
— Deixe-me proporcionar a você, da mesma forma, uma experiência. Compreendo e concordo que certas coisas não se traduzem em palavras. É como a água: não é possível mergulhar nela virtualmente, não tem como explicar a sensação de um mergulho. Quer dizer, o choque térmico, a água fria, a luminosidade diferente, a distorção da realidade e o fato de que, de repente, você está em outro mundo. Num primeiro momento, se nunca mergulhou antes, a experiência pode traduzir-se em desespero e pânico; mas, aí, você percebe que consegue respirar. Imagine isso: entrar na água e poder respirar ali, de verdade. Então percebe que é um deles. Faz parte daquele mundo aquático.
Claire ficou quieta, tentando entender o que ele queria dizer. Kilaim já tinha falado antes sobre outros mundos, sobre outras dimensões. Sentou-se, de olhos fitos nele. Kilaim a tomou pela mão com suavidade.
— Deixe-me lhe mostrar.
— Mas o que você quer me mostrar, exatamente?
— Estamos em Manaus. Tem uma base da Organização aqui. — Diante da interrogação dela: — Uma base do Satanismo, é o que quero dizer. E, hoje, fará lua cheia. A Floresta estará iluminada. E o rio também.
— Você vai entrar na Floresta à noite?
— A escuridão só é assustadora para quem não enxerga no escuro. Venha. Meu guardião vai nos levar até lá.
— Como assim, guardião? Quer dizer que ele está aqui? É aquele que estava em São Paulo?
— Oui. Ele veio para cá renovar suas forças. Precisa da Floresta, ela lhe faz bem. Mas não te causará nenhum mal, parce que você está comigo. E ele sabe que você precisa provar uma coisa.
Claire ficou um pouco reticente e soltou a mão que Kilaim envolvia.
— Fique calma, Claire, não estou te oferecendo uma maçã envenenada. Apenas quero lhe proporcionar uma experiência nova.
— Kim, acho que o melhor é aproveitarmos nossa viagem, como vínhamos fazendo até agora.
Mas o jovem estendeu a mão mais uma vez.
— Venha, Claire. Não precisa ter medo do escuro. Há coisas que você só enxerga quando prova. Afinal, como diria Saint-Exupéry, “o essencial é invisível aos olhos”. Pode ficar tranquila, será inofensivo. Eles me respeitam e irão respeitar você. — Deu um sorriso. — Aliás, será muito diferente do que se eu fosse conhecer sua família, por exemplo; se soubessem exatamente quem eu sou, me rejeitariam. Acha que sua tante ficaria feliz em ter a mim como “genro”? E sabe pourquoi? Dentro das famílias de sangue estão os piores inimigos. Assim foi com Abel e Caim; com José e seus irmãos invejosos. Até com Jesus. Falta-lhe uma família, Claire. Você já perdeu os seus pais e não tem irmãos. Há poucos parentes seus na França. Deseja estar sempre só, à deriva neste mundo?
Ela encolheu um pouco os ombros.
— Claro que quero uma família.
— Aqueles que se unem dentro de um propósito comum de porte acabam forjando uma indescritível aliança. Infinitamente mais forte que os laços familiares. É isso que eu quero que você prove. Essa sensação de fazer parte, de ser acolhida, de ser bem-vinda. Deixe-me mostrar um pouco da minha família para você. E você vai entender o que não consigo explicar em palavras.
Claire continuava titubeante, tentando decidir o que fazer. Eram apenas pessoas, é verdade. E, pelo visto, significaria muito para Kilaim. Mesmo assim...
— Se eles quisessem mesmo, já teriam matado a gente — declarou o jovem, pleno de certeza. — Mas não o fizeram. Isso significa que, de alguma forma, respeitaram minha decisão de me afastar momentaneamente do Grupo. Hoje, sou uma espécie de “filho pródigo”. — Ele riu, mas era uma risada ligeiramente nervosa, misturada com um tom suplicante. — Quero muito poder compartilhar com você.
Kilaim envolveu a cintura dela, olhando bem dentro dos seus olhos azuis.
— Seu amor permite que confie em mim? — Kilaim falou de modo tão terno que Claire se sentiu desmoronando. Os olhos negros dele queimavam seu coração como uma tocha.
— Claro que confio em você, mon amour. Ao seu lado me sinto segura, me sinto mais forte...
Estava convencida.
Kilaim sorriu, ergueu-se e sacou do bolso o iPhone. Fez alguns telefonemas, falando num idioma totalmente desconhecido para ela. Parecia muito animado, feliz. Dava risada. Claire notou um brilho diferente em seus olhos, algo ainda não presenciado. E entendeu que ele sentia saudade...
Quando Kilaim desligou, voltou-se para ela e a puxou da cama, tornando a abraçá-la. Dessa vez, com mais intensidade.
— Você vai gostar muito!
Caía a tarde. Kilaim explicou que deveriam ir até outro hotel da cidade que tinha um cais particular e, dali, tomariam um barco que estava sendo enviado para pegá-los.
— É melhor do que sair do porto.
Claire concordou. Havia pouco tempo para arrumarem-se, então ela foi na direção do banheiro. Mas Kilaim disse-lhe que não se preocupasse com aquilo. Então, pediram um táxi e foram imediatamente.
* * *
O iate particular veio vazio, apenas para levá-los. Claire ficou surpresa. De quem seria aquele barco? Era enorme.
— É de um amigo.
— Você conhece alguém aqui em Manaus?
— Não preciso conhecer pessoalmente alguém da Organização para que ele seja meu irmão e se comporte como tal.
A embarcação levou o casal para um ponto distante no meio do Rio Amazonas, afastado da cidade. Kilaim explicou que iriam entrar por uma espécie de canal que os faria aportar no que era quase uma ilha, com praia privativa, à beira de um lago. Ali ficava um hotel de luxo, pertencente à Organização.
— Neste momento, o hotel está com a capacidade lotada. Todos os hóspedes fazem parte da Organização — explicou Kilaim enquanto passava os braços pelos ombros de Claire. — Estão reunidos para um congresso, pois há muito que ser discutido neste momento da História. Quero levá-la para a festa de abertura do congresso. Depois vamos embora. Não vamos ficar hospedados, e você não precisa mais voltar lá. Só quero mostrar que minha família é feita de pessoas comuns, como eu e você.
Kilaim estava longe de ser “comum”; mas Claire não disse nada. Mesmo assim, engoliu em seco.
— Vão gostar de conhecê-la. E você vai adorar, tenho certeza. Eles sabem se divertir como nenhum cristão nesta Terra sabe. — E Kilaim deu um sorrisinho significativo.
— Ça va, Kim. Eu te acompanho. Mas não vai ter baixaria, n’est-ce pas?
— Non. Mas o que você chama de baixaria? — Olhou-a nos olhos, daquele jeito que queimava. Então, recitou uns versos:
“— Ela é tão livre que um dia será presa./ — Presa por quê?/ — Por excesso de liberdade./ — Mas essa liberdade é inocente?/ — É. Até mesmo ingênua./ — Então por que a prisão?/ — Porque a liberdade ofende.”
Claire ficou pensando, era um texto tão simples e claro ao mesmo tempo que ela até se emocionou. Não deixava de ser verdade.
— De quem são esses versos?
— De uma grande escritora e jornalista brasileira, já falecida. Uma das mais importantes escritoras do século XX, ganhadora de inúmeros prêmios, Clarice Lispector.
— Bonita perspectiva... só uma mulher poderia compreender a profundidade disso.
— Alors, seja livre, Claire. Mergulhe comigo. Vamos conhecer as águas escuras.
— Águas escuras?
— Oui. Deixe eu te mostrar o lado negro do rio.
* * *
O casal foi muito bem recebido na ilha. Bem até demais, exatamente como Kilaim dissera. Claire se sentiu confortável logo de cara, assim que apertou a mão do anfitrião, que veio recebê-los no ancoradouro.
— Este é o dono do iate, Claire — disse Kilaim, antes de apertar a mão do homem e abraçá-lo.
— Oh, seu barco é lindo! Merci.
O homem abraçou-a também, comentando com um sorriso aberto:
— Espero que tenham feito uma boa travessia. Sejam bem-vindos!
O anfitrião era bem mais velho que eles. Exibia madeixas grisalhas bem cuidadas, rosto muito bonito e estava impecavelmente vestido. Tinha certo quê de George Clooney e avaliou Claire. Foi cordial e simpático, de imediato, colocando nas mãos de Claire uma chave do hotel.
— Com certeza irão gostar de um banho e um lugar para se arrumarem.
Foram conduzidos ao lobby luxuoso, e o próprio anfitrião fez questão de oferecer os canapés e champagne que estavam sendo servidos para os convidados de última hora.
— Prove isso, minha jovem. Vai ficar contente de ter nascido.
Claire agradeceu e olhou ao redor. Havia muita gente!
— Estamos esperando mais pessoas para a festa, logo mais.
Foi quando o anfitrião tirou do bolso um colar de pérolas e o estendeu na direção de Claire.
— Para completar sua beleza, minha querida! São pérolas da Amazônia e do Taiti.
Ele também tinha o sorriso do George Clooney. Foi tudo em que ela conseguiu pensar, e olhou o colar de perto, sem saber o que dizer. O que deveria responder? Seria um insulto não aceitar? Olhou na direção de Kilaim e o viu sorrir, confiante, fazendo um gesto de aquiescência.
O colar era muito bonito, uma pérola branca alternada com uma negra.
— Merci beaucoup — ela agradeceu sorridente. — Mas o senhor não deveria dar-se a esse trabalho.
— É um grande prazer recebê-la entre nós. O colar é somente um regalo. — E, então, olhando nos olhos de Claire de forma bem direta, continuou: — Sabia que as ostras felizes não produzem pérolas? Afinal, as pérolas são suas lágrimas, produzidas em meio ao sofrimento de ter um grão de areia ou outro corpo estranho em seu interior.
— Eu sabia disso — respondeu Claire. — O molusco acaba produzindo uma secreção de nácar que vai envolvendo o grão, e isso é a pérola.
— Exatamente. Mas você conhece o segredo da pérola negra? Ela é muito rara. Seria preciso abrir dez mil ostras para encontrar uma pérola negra. E a dor causada é tão grande que a ostra pode acabar morrendo. Mas, vendo o colar, só podemos admitir que a morte não seja ruim quando acontece por uma boa causa, não acha? — Ele se voltou para Kilaim e deu uma piscadinha.
Kilaim devolveu uma risadinha, que Claire não entendeu. Então o anfitrião cumprimentou-os com a cabeça, fazendo menção de retirar-se.
— Fique à vontade e sinta-se em casa, Claire. Preciso cuidar de alguns detalhes ainda. Quando terminarem por aqui, Kilaim poderá ajudá-la a escolher um vestido, qualquer um que desejar, em nossas lojas aqui do hotel. É seu!
Claire agradeceu pelo vestido, dizendo que não seria necessário. O colar de pérolas era mais que suficiente.
— Kilaim, convença-a! Leve-a para conhecer as lojas — brincou o anfitrião. E novamente com grande gentileza: — Deem-me licença, meus queridos. A casa é sua! Aproveitem!
* * *
Mais tarde, usando um vestido vermelho e com o cabelo arrumado, Claire desceu de mãos dadas com Kilaim. Eles foram para a praia do lago, que ficava nos fundos do hotel, do lado oposto ao ancoradouro. Era uma visão arrasadora! O lago estava literalmente encravado no meio da Floresta, e Claire perdeu o fôlego diante do que via.
Uma orquestra inteira tocava ao vivo na praia, a música ecoando alto pelas árvores e depois sumindo nas nuvens. A lua, nascida há pouco, pairava amarela, gigante, sobre as águas, desenhando um halo luminoso. Quase não parecia de verdade. Aquilo era muito mais do que ela tinha imaginado.
Contudo, olhando em torno, notou que havia seguranças por todos os lados. Conforme explicou Kilaim, até a pequena estrada que podia dar acesso ao hotel pelo lado da Floresta estava bloqueada por forças do exército.
— Sérieu... — murmurou ela, imaginando o motivo.
— Quando nos reunimos, não queremos visitantes que não receberam convite.
Uma imensa churrasqueira a céu aberto preparava vários tipos de peixes da região, e o cheiro espalhava-se no ar. Garçons serviam vinho branco. Dezenas de mesas tinham sido montadas sobre um tablado na praia, ao redor da orquestra. Havia uma pista de dança cheia de luzes. Muito glamour. As mulheres estavam lindas, e os homens pareciam se divertir. Claire não sabia o que olhar primeiro.
— Agora você vê que os satanistas não mordem — falou Kilaim, colocando as mãos ao redor da sua cintura. — Eles sabem que você não é das nossas, mas estão lhe abrindo a casa.
De fato, ninguém a olhava com desdém, ou qualquer irritação. Tudo corria muito bem. Comiam, dançavam, conversavam, davam risada. Era uma festa realmente agradável.
Fazia tanto tempo que ela não ia a uma festa.
* * *
Mas, em dado momento, tudo mudou. Quase como no conto da Cinderela. O encantamento do baile, e tudo que o envolvia, só durava até a meia-noite...
A música, de repente, era outra. Já nem pareciam os mesmos músicos. Claire, estupefata, não entendeu. A expressão das pessoas também mudou, especialmente os olhos. Olhos que comiam vivos tudo e todos, que perfuravam o cérebro e dilaceravam a alma. Então, uma explosão. Claire tomou um susto e virou o rosto no exato minuto em que as chamas subiram altas e, no reflexo dos olhos dela, dançaram. Uma fogueira imensa...
Realmente, as pessoas não estavam normais, agora. Alguns pareciam em transe, outros falavam coisas que ela não entendia ou gritavam de repente. Aquilo era... o quê? Uma invocação do Mal, ou algo do gênero...?
Claire se lembrou de Kilaim falando sobre a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Onde dois Mundos se encontraram. De uma coisa ela tinha certeza absoluta: aquelas pessoas, antes simpáticas e cordiais, estavam, pouco a pouco, assumindo um semblante de pura maldade. Como se alguma coisa tomasse conta delas.
De súbito, ela olhou para cima, depressa. No céu havia... ou apareciam...? Sombras. Voavam sobre eles. Muito grandes. Seria impressão? Claire sentiu a boca ficando seca. Não encontrava palavras para descrever aquilo. Ah... seria impressão?
Uma lufada de vento despenteou seu cabelo. Ou seria o deslocamento de ar causado por alguma coisa?
Oui! Eram reais. Havia, realmente, sombras deslizando no meio da noite. Claire começou a sentir que elas vinham se aproximando, voavam cada vez mais baixo e passavam perto dela, muito velozes, com rufadas de ar.
Então, ela sentiu uma baforada forte na nuca e se virou, rápido. Mas não viu nada. Aí, o som do hálito de alguém soprou perto do seu ouvido. Ela se encolheu, colocando as mãos perto do rosto. O hálito tinha um cheiro estranho. Estava começando a se assustar. Podia ouvir um som como se fosse de asas, guinchos.
Olhou novamente para cima, procurando saber de onde vinha aquele som, cada vez mais estridente.
Então ela viu. Dessa vez ela viu mesmo, não havia dúvida. Uma enorme quantidade de seres feitos de sombra, uma invasão de hostes inteiras, um verdadeiro enxame! Um frio escorregou por toda sua espinha e fez seu corpo pular num espasmo. Seria uma visão ou era mesmo real...?
Baixou os olhos para sua taça, olhando em seu interior. Haveria alguma coisa na bebida? Algum alucinógeno...? Era vinho branco, tinha certeza! Mas, observando melhor, agora ela conseguia perceber uma sutil diferença. Ergueu a taça bem diante dos olhos, perplexa. O conteúdo estava ficando mais espesso e, ligeiramente, bifásico. Havia alguma coisa escura, que não estava ali antes, no fundo da taça! Parecia sangue...
Uma sensação de vertigem lhe sobreveio. A praia rodou, e a água escura do lago parecia bater na sua cabeça, fazendo-a afundar.
“Um mergulho em águas escuras...”.
Talvez uma sensação de desespero, de pânico, é isso, Kilaim a havia prevenido antes. Claire abriu os olhos, mas nova vertigem, pior que a primeira, abalroou seu corpo como uma onda.
“Imagine isso... entrar na água e poder respirar ali, então... você percebe que é um deles. Faz parte daquele mundo aquático...”.
Respirar. Tinha que respirar. Esse era o segredo. Claire enchia o pulmão de ar, bem cheio, bem cheio, bem...
Virou o rosto. Quatro homens passaram perto dela carregando alguma coisa grande, pesada. Quando colocaram aquilo no chão, num baque, ela entendeu de que se tratava. Era uma mesa de madeira. E nas quatro extremidades havia cintas de couro. Foi posta bem defronte à fogueira. Mas, para que seria aquilo?
Foi quando Claire notou um grande pentagrama desenhado no chão, ao redor de toda a fogueira. Os sulcos do pentagrama, profundos na areia, estavam preenchidos com sal. Ela podia ver o contorno branco iluminado pelo fogo. E, em volta do pentagrama, havia um grande círculo.
Aquilo a perturbou demais. Aquele pentagrama estaria ali desde quando, não tinha visto antes... Como não vira? Estivera tão entretida na festa que não vira...
O fogo estava muito alto. Do meio dele, uma figura monstruosa ganhou contornos vívidos, e dela saltavam chifres e músculos, envoltos em fumaça. Depois, mais uma, tão medonha quanto a primeira.
Seu pulmão se encheu de ar... e o cheiro... incomodava! Ela queria poder não respirar.
Escutou Kilaim falando, de longe:
— Claire, esse é o Círculo de Salomão. Você tem que entrar no Círculo agora, fora do Círculo é perigoso. Venha para dentro do Círculo comigo.
Mas Claire se sentia paralisada, incapaz de dar um passo. Antes que pudesse se mover, de repente, alguém a segurou com força por trás. O colar de pérolas foi arrancado de seu pescoço com brutalidade. Ela caiu para frente de joelhos e sentiu nova vertigem. Não conseguia ver nada além de borrões.
Uma dor aguda no pescoço, uma ferroada. Tentou gritar, chamar por Kilaim, mas não encontrou voz. De repente, viu o rosto dele diante de si e o ouviu dizer.
— Tudo vai ficar bem, Claire.
Mais uma vez, sua vista não passava de um borrão confuso, escuro e frio. A água era escura e fria.
* * *
Aquela música perturbadora estava cada vez mais alta. Mas não encobria as gargalhadas. Nem os zumbidos e o barulho de asas. Viu-se presa. Braços amarrados, pernas amarradas. Naquela mesa. Não podia se mexer, embora se esforçasse. Percebeu que estava sem o vestido vermelho...
Virou o rosto, e havia alguém muito perto dela. Um homem. De cabeça coberta por um capuz negro. Ela olhou e, no fundo do capuz, uns olhos com brilho aterrador olhavam de volta.
O homem tirou seu capuz, e Claire reconheceu o “George Clooney”. Como estava diferente...! Seu rosto parecia repuxado por ganchos e o sorriso se escancarava como um poço úmido. Claire forçou as correias de novo. Em vão. Um punhal estava erguido, brilhando à luz daquele fogo, um punhal de lâmina extremamente bem polida, grande.
Procurou por Kilaim, mas não o encontrou. De repente, a voz dele sussurrou em seu ouvido, vinda de algum lugar que ela não sabia qual:
— Claire, eu te prometi uma experiência extraordinária, um mergulho no escuro. — A voz estava grave, e era como se tivesse vários ecos. — Hoje você vai produzir uma pérola negra.
A voz soava horrível, e ela ergueu a vista, procurando-o, apavorada. Então viu como ele... (o quê?)... sorria! Sorria sem parar. Aguardando o grande momento.
— Você vai ser a minha pérola negra...
Então, Kilaim começou a dançar, a correr em volta do fogo, como louco.
O som já não era dos violinos. Eram tambores, atabaques, numa cadência pavorosa, cada vez mais intensa. Ela gritou. E teve a sensação de ver uma tênue luz no céu. Era Jesus! Com certeza era Ele!
E então Claire gritou ainda mais, o mais alto que pôde:
— Senhor, Senhor, me tira daqui! Me salva!
Mas apenas o anfitrião, com o punhal nas mãos, lhe trouxe resposta:
— Ele não te trouxe aqui. Foi você que veio, com seus próprios pés. E o demônio só entra quando é convidado a entrar.
O anfitrião colocou a outra mão no cabo do punhal. Ergueu-o ainda mais, lentamente, olhando os olhos de Claire, olhando-a fixamente nos olhos. O reflexo do fogo brincava na lâmina polida.
— Você fez a sua escolha.
O punhal rasgou o ar e desceu com velocidade extraordinária, inumana. Direto no coração. Claire sentiu a força do golpe, a lâmina cortando a carne, destruindo os ossos, atravessando suas costas e fincando na madeira da mesa.
Parou, porque o cabo... o cabo! Já estava colado ao seu peito e não entrava mais.
Em meio à dor excruciante, foi a tristeza que se derramou sobre ela, cobriu-a como um manto pesado. O coração que Deus lhe trouxera...! O coração... de Camille... que era o dela...
Oh, o coração. Despedaçou-se. Não poderia mais usá-lo. Claire entendeu que era o fim. O fim de tudo.
O anfitrião olhava para ela e ria cada vez mais alto, esperando que a morte a tragasse. Claire não suportava o olhar, então virou o rosto para o outro lado. Ainda podia ver Kilaim rindo e correndo em volta do fogo.
Concentrou-se apenas em tentar respirar. Respirar embaixo da água. Mas não era possível, estava se afogando. Jamais seria um deles.
O cachorro resolveu latir. Latia muito, porque deveria sentir o cheiro do sangue e perceber o fogo. Depois uivava. Ficou uivando. Não parava mais.
* * *
Claire acordou num inspirar abrupto, puxando o ar para os pulmões para não se afogar. Estava encharcada de suor. Levou a mão ao peito, procurando sofregamente o local onde tinha recebido a apunhalada. O coração batia forte; estava lá. Ela se apoiou sobre o cotovelo e se virou para olhar pela janela, ver de onde vinham os uivos. Mas, ao fazer isso, deu de cara com Kilaim, que, sentado na cadeira ao lado da cama, olhava para ela. Claire tomou um susto enorme e deu um grito.
— O que foi, Claire? — Kilaim perguntou, sem entender. — Eu não queria te assustar.
Ele saberia do sonho? Sentado ali, era como se soubesse, ou mesmo que o tivesse causado. Os latidos e uivos continuavam. Claire se levantou, exasperada, jogando os lençóis para o outro lado.
— Tive um pesadelo horrível. E o que você está fazendo aí?
— Estava sem sono... — Kilaim respondeu, espreguiçando-se. — E você fica linda dormindo.
Claire se aproximou da janela e olhou. Havia um cachorro do lado de fora, preto e realmente muito grande. Quando ela olhou na direção dele, o animal parou de uivar e olhou de volta para ela. Pelo menos, foi o que lhe pareceu.
— Kim, esse cachorro está me encarando! — Claire virou o rosto para trás, chamando: — Vem aqui ver como ele é esquisito. Parece que olha nos meus olhos!
Kilaim aproximou-se da namorada, e os dois olharam juntos pela janela. Mas já não havia nenhum cachorro do lado de fora.
— Mon Dieu, mas para onde ele foi? — murmurou Claire.
— Devia ser um cachorro de rua, Claire. Já foi embora.
— Mas ele era tão grande...
— Já foi. Já parou de incomodar.
Sem dizer mais nada, Claire deixou a cortina cair de volta no lugar e foi em direção ao banheiro. Abriu a torneira, jogou água fria no rosto, na nuca. Acendeu a luz para ver como estava o seu peito. Ia puxando o decote da blusinha que usava na frente do espelho, mas seus olhos foram desviados para uma pequena pérola negra que estava na bancada. Claire sentiu o coração batendo um pouco mais forte, outra vez.
— Kim... eu sonhei com isso. — Ela foi para perto dele, desconfiada, trazendo a pérola.
— Alguém deve ter esquecido isso aí, algum hóspede. Não se sabe nem se é verdadeira.
— Mas é muita coincidência, parce que eu sonhei com isso.
— Vai ver você viu a pérola ontem e não se lembra.
Será? Pelo jeito como Kilaim falava, não tinha ideia do teor do pesadelo. Aquilo a tranquilizou um pouco.
— Venha se deitar — ele disse. — Vou deitar também.
Pelo sim, pelo não, Claire guardou a pérola dentro da nécessaire antes de acomodar-se na cama ao lado de Kilaim.
— Pourquoi você estava me olhando? — insistiu ela.
— Já disse. Tenho sono leve e não preciso dormir muitas horas para me sentir bem. E você fica linda dormindo.
Non. Ele não tinha nada a ver com o ocorrido. Tinha sido mesmo só um sonho, fruto daquelas conversas que tinha com Kilaim.
— Alguma vez você já parou pra pensar se um demônio não poderia fazer mal a você? Você disse que são seus amigos, mas não faz parte da natureza deles ser fiel a nada ou a ninguém.
— Está totalmente enganada, Claire. Eles sabem o que significa uma aliança.
Um momento de silêncio.
— Seja sincero, Kim. Você nunca teve medo de que algo realmente ruim te acontecesse? Mesmo?
* * *
3
Le Cercle
De Salomon
– O Círculo de Salomão serve para isso. Para proteção — disse Kilaim, simplesmente. — Mas, non. Nunca tive motivos para ter medo. Jamais.
“Círculo...?”.
Claire lembrou-se imediatamente do pesadelo e de Kilaim dizendo que “fora do Círculo era perigoso”.
— Que Círculo é esse?
— Salomão o idealizou. Como ele foi o escolhido de Deus para construir o Templo de Jerusalém, recebeu uma sabedoria notável e uma riqueza sem precedentes, claro: para os demônios, tornou-se um desafio derrubá-lo. Ele era um elo importante na corrente de Deus. Quando já mais avançado em idade, deixou-se enredar. Os demônios experimentaram plantar uma pequena semente: “O peso do ouro que se trazia a Salomão cada ano era de 666 talentos”.
— Isso está onde? Na bíblia negra?
— Non, na sua Bíblia. Livro de Reis. Viu?! Nem você reparou! 666, o número da Besta, só seria revelado séculos depois, no Apocalipse, mas aparece sutilmente aí. Não acha estranho? De onde surgiu esse valor? Além do mais, era muito ouro. Um talento equivale a 35 quilos e 10 gramas de ouro, portanto, estamos falando de pouco mais de 23 toneladas de ouro. Ou por volta de novecentos milhões de dólares, se levarmos em conta o peso do ouro nesses dias.
— Oh, la la!
— Esse ouro vinha, essencialmente, de impostos sobre Israel, muito embora a renda real fosse já bem abastada mediante tributos, que eram taxas pagas pelas nações conquistadas por Salomão, e, principalmente, por meio do comércio. Como Salomão era rei de uma superpotência com relações comerciais com todos os países conhecidos na época, não era pouca coisa. Além disso, “todos os reis da terra” lhe traziam presentes caríssimos, anualmente, ao ir escutar sua sabedoria. Ele tinha uma cidade somente para guardar seus cavalos e outra para os cavaleiros. Também possuía uma frota de naus, que, a cada três anos, vinha do mar trazendo ouro, prata, marfim, dentre outros tesouros. Para dizer o mínimo, era dele o maior reino e o maior exército de que se tinha notícia. Estudiosos estimam que a fortuna de Salomão, convertida para valores atuais, estaria em torno de um trilhão de euros. Ou seja, foi o homem mais rico que já existiu em toda a face da Terra. Mesmo tendo muito além do que realmente necessitava, parecia nunca estar satisfeito.
— Oui... mas Dieu havia prometido essa prosperidade a Salomão.
— Claire, tenha dó! Mesmo com toda essa fortuna, ele colocou um “jugo pesado” sobre o povo na forma de impostos. Isso também está escrito. E por que o rei queria ainda mais ouro? Para mandar fazer 200 paveses e 300 escudos de ouro puro a fim de enfeitar sua Casa do Bosque do Líbano? Ou o trono do qual tanto “necessitava”, de marfim, completamente revestido de ouro puríssimo, com seis degraus e estátuas de leões de ouro puro, algo nunca contemplado em reino algum? As taças todas de sua mesa eram de ouro puro. Não lhe parece um exagero? E à custa de quem? — Kilaim deu uma risadinha. — Mas os 666 talentos, ele não percebeu! Seu discernimento falhou. Criou-se a fenda, uma porta de entrada para sua alma, um constante sussurro em seu coração.
— Mas pourquoi? O ouro estava amaldiçoado?
— Non. O ouro, non. Mas a ganância, oui, desagrada a Deus, e o 666 funcionou como um cavalo de troia. Uma semente do diabo. Recebendo os 666 talentos sem se apiedar do seu próprio povo, ele foi instigado ao segundo erro: a filha do faraó já não lhe bastava, e Salomão começou a se associar às mulheres pagãs, desobedecendo totalmente a orientação dada por Deus. Essas mulheres sequer deveriam estar à disposição; já deveriam ter sido exterminadas com o resto dos estrangeiros. Mas Salomão usava o restolho deles como escravos, portanto, estava acostumado à presença desses povos em Israel. E as mulheres terminaram por perverter seu coração. Sérieu! Era necessário tal exército de mulheres? Ele começou adorando Astaroth, e daí para frente foi a descida da ladeira. Construiu todo tipo de templos pagãos, inclusive a Moloque, que pedia sacrifícios infantis. E a idolatria correu solta por Israel; para Deus, é como pecado de feitiçaria. É prostituição.
— Eu sei. Mas, e o Círculo?
— Calma. Apenas aprecie a cena: Salomão, rendido à ganância, às mulheres e aos cultos pagãos. Você faz uma pálida ideia das coisas com que ele se envolveu?
Claire não respondeu. Apenas ouvia, com a mão apoiada sobre o abdome de Kilaim.
— E pourquoi ele teria feito isso, Claire? O que leva alguém que tem tudo a abandonar o Criador?
— Boa pergunta, Kim...
— Esse era o desejo mais íntimo de Salomão: superação. A sabedoria de Salomão era mais vasta do que a sabedoria de todos os orientais e toda a sabedoria do Egito. Abrangia as plantas e os animais da terra, e seus provérbios, com o livro de Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos, revelavam profundo conhecimento da natureza humana. Mas ele não conhecia uma coisa...
Claire mordeu de leve o lábio inferior.
— O que está Oculto... — Kilaim terminou a frase com tom grave. — E Salomão desejava ir além.
— Acho que já ouvi algo assim.
— Vou te contar agora o que aprendi sobre ele na Organização: observando a conduta dos pagãos, o rei pressupôs que eles só faziam o que era mau em decorrência das entidades demoníacas que pairavam sobre eles; ou seja, eram maus por estarem sob a influência do Mal. Assim, nunca aceitariam o Deus de Israel. Só que Salomão queria encontrar um meio de legitimar seu casamento com as mulheres pagãs. E, se pudesse, de alguma forma, controlar aquelas entidades e sobrepujar seu poder, de modo a mudar a história daqueles povos? Não haveria mais condenação em suas 700 esposas princesas e 300 concubinas.
— Controlar demônios? — A garota fez um ar de quem não está acreditando muito. — Um homem sábio não haveria de pensar nessa possibilidade absurda.
— Percebe melhor, Claire, de onde vem o lamento: “Tudo é vaidade, e correr atrás do vento”? A motivação dele era fútil. Estava pensando em si mesmo. E como, para dominar, era preciso conhecer, essa foi a desculpa inicial para ir fundo no abismo do Ocultismo e nos conhecimentos da Magia. Mas havia um problema: Salomão não demorou a perceber que a prática do Ocultismo também o tornaria um alvo fácil para as entidades, e ele acabaria como os pagãos, que já não pensavam por si. Alors, com uma inteligência poderosa a seu favor, ele conseguiu descobrir algo que mais ninguém conseguiu nem poderia descobrir.
— Quoi? — Os olhos dela estavam grandes e curiosos, brilhando no escuro.
— Ele não era um ser humano comum, usando parcos 5, 10% de sua capacidade mental. Somente ele poderia ter feito isso.
— Mas quoi, Kim?
— Ele compreendeu a simbologia que os demônios respeitam.
— Como assim? — Ela deu um muxoxo, decepcionada. — E os demônios lá respeitam alguma coisa?
— É evidente, n’est-ce pas, baby? Se não fossem tão organizados, não teriam realizado tudo o que realizaram. A Terra lhes pertence! Mas Salomão foi esperto... e com isso os demônios não contavam. Se, para dominar a Magia a tal ponto de controlar os demônios, era preciso conhecer... alors, para conhecer era necessário se proteger. Proteção contra o Mal era condição sine qua non para o domínio do Mal. Aí entra o Círculo.
— O ser humano controlando demônios sem o Poder de Dieu? Controlando-os pelo poder da Magia? Hum...
Kilaim sorriu.
— Se um militar fala ao seu rádio: “câmbio”, significa que ele está cortando a comunicação. Um comandante de navio, ao estipular as latitudes e longitudes iniciais e finais, está determinando qual a rota a ser seguida. No trânsito, se você quer virar à direita, sinaliza com a seta ou com seu braço. A Magia também funciona assim. E Salomão conseguiu aprender não apenas a linguagem espiritual, palavras e gestos cerimoniais, que estava à disposição, mas aquela que os demônios nunca haviam ensinado ao Homem. Sempre esteve lá, à vista; mas ninguém nunca enxergou.
Claire deu um tapinha na barriga dele.
— Ah, Kim, até parece!
— Imagine um computador que tem um programa secreto; ninguém sabe da sua existência, mas está lá. De repente, ao manusear o computador, uma pessoa consegue acessar esse programa e, mais ainda, descobre como fazê-lo funcionar. Há somente uma maneira correta, uma só! E Salomão descobriu isso. Descobriu o programa secreto.
— Mas como? De que fonte veio esse conhecimento?
— Dos livros sagrados dos sacerdotes pagãos: o “computador”. Desde que o mundo é mundo, os poderosos sempre serão bajulados, lambidos, paparicados, incensados, e sempre terão acesso a quase tudo que desejam. Era natural que os sacerdotes quisessem agradar Salomão. Simples assim. E o “computador” foi parar nas mãos dele. Embora o conhecimento mágico estivesse fragmentado, espalhado como peças de quebra-cabeça, fez sentido para ele. É como uma criança superdotada que vê as peças espalhadas de um jogo de Lego muito difícil, e simplesmente sabe como montá-lo. Salomão tinha uma mente absoluta. Assim, idealizou o sistema de proteção. — Kilaim explicou melhor: — Sabe o domador que sobrepuja um leão apenas com a cadeira e o chicote? Embora o leão possa quebrar a cadeira com uma só patada, mascar o chicote e destroçar o domador, a verdade é que o domador encontra um meio de fazer o leão obedecê-lo.
— E daí veio o Círculo... — De novo ela se lembrou do pesadelo. Mas não contou nada. — Como funciona?
— O próprio Círculo é a proteção. Nove metros de diâmetro, um pentagrama no centro, alinhamento com os pontos cardeais, algumas palavras mágicas, dentre elas “Emmanuel, Adonai, Ell Eliom”, objetos consagrados, desenhos, ideogramas, velas, algumas ervas, crânio e fêmur humanos etc. Por todo o perímetro do Círculo, sal na parte externa. — O rapaz parou. — Acho que não devo falar muito sobre isso. Não importa para você.
— Pourquoi citam-se nomes de Dieu? — Foi a primeira pergunta.
— É como se fosse uma placa de aviso.
— Mas...?
— Imagine que cruzar a linha do Círculo seria como entrar no Santo dos Santos sem permissão. Deus não fulminaria esse desavisado? O mesmo com os demônios: seriam fulminados se entrassem no Círculo de Salomão. E Salomão também seria morto pelas entidades se saísse de dentro dele. The End.
— Mas... pourquoi? Qual o motivo?
Um suspiro de Kilaim.
— Pelo visto você não está com sono, hã?
Ela sorriu no escuro.
— O Círculo funcionava como uma demarcação territorial — falou Kilaim —, e isso os demônios entendem muito bem, pois são criaturas territorialistas. É claro que Salomão sabia o que estava fazendo, já que a “brincadeira” poderia custar-lhe a vida. — Kilaim fez uma pausa, o rosto mudando de repente. E caiu na risada: — Ha, ha, ha! Já imaginou o rei de Israel fulminado, queimado que nem carvão, caído no meio de um pentagrama, com os nomes de Deus sujos de sangue e uma caveira rolando? Que bela maneira de dar bom-dia ao povo! Cachu! — Ele rolou na cama, enquanto Claire se apoiava no cotovelo. — Que pena que isso não aconteceu! Pelas portas do Abismo! HA-HAA!
Claire ficou olhando e Kilaim se sentou, rindo solto, a cabeça caindo para trás. Ela fez força para não rir também, diante daquela alegria macabra:
— Kim, fique quieto. E quanto ao crânio e o fêmur? — Ela tentou fazer cara bem séria. — Ele conseguiu esses itens por sacrifício?
— Non. — Kilaim enxugava as lágrimas. — O sangue atrairia os demônios, e o Círculo visava proteção. Salomão apenas os conseguiu em cemitérios. Já imaginou se alguém visse o rei com uma pá, cavoucando, seus braceletes de ouro tilintando... Ha, ha, hááá!
— Certamente ele não foi pessoalmente fazer isso, n’est-ce pas? — Claire deu uma palmadinha no braço dele. — Shhh! Mas que cheio de graça você, minha nossa!
Ele puxou Claire pelo pescoço, dando um selinho estalado nela.
— Você também quer rir, está rindo por dentro. E já imaginou se...
— Non, non vou imaginar mais nada. Continue.
— Alors, no Círculo ele realizava rituais. Ficava a salvo das entidades e escapava de virar churrasco passado do ponto, e...
— Kim!
— Ça va, ça va. É que é muito engraçado. As pessoas poderiam até colocar sal nele e oferecer aos carnívoros do deserto.
— Mas, que espécie de ritual ele fazia? Não estou conseguindo entender.
— O ritual produzido por Salomão foi único, diferente de tudo o mais, e surpreendeu os demônios. Ele não queria favores pessoais, pois já tinha tudo; seu objetivo era dominar os demônios e sobrepujá-los a favor das nações pagãs. Queria que os demônios deixassem de oprimir aqueles povos, assim, estes poderiam conhecer o Deus de Israel, legitimando seus casamentos. — Kilaim deu uma risadinha. — Como se ele pudesse libertar aqueles povos! Esse não era o caminho para isso.
— E o Círculo funcionou?
— Cachu! Como fator de proteção, oui, funcionou. Realmente ele ficou a salvo das entidades. Mas não se tornou o grande “salvador” dos pagãos, isso você sabe.
— Como sabe que o Círculo deu certo?
— Se não tivesse dado certo, não haveria rei de Israel sábio para contar o que aconteceu e escrever poemas se lamentando. Ele seria apagado da História. Ou melhor, seria lembrado como o sujeito mais inteligente da face da Terra e que foi burro o suficiente para morrer num ritual de feitiçaria. Mas o uso do Círculo foi um grande achado, e é comum nas cerimônias. Além da confecção do Círculo, Salomão descobriu e fez uso do que chamou de pantáculos, isto é, 36 símbolos esotéricos que funcionam como um abecedário ou uma Tabela Periódica. O alfabeto latino tem 26 letras, e dele surgem infinitas formas de linguagem, e os 114 elementos da Tabela Periódica dão origem a tudo o que existe no mundo. É fácil entender que os 36 pantáculos possibilitam uma enorme grade de combinações, culminando numa linguagem universal, escrita e falada. Seu uso e domínio são, exclusivamente, para os praticantes da Alta Magia. Dessa linguagem universal vêm muitos dos comandos de voz.
— Comandos de voz?
— Com comandos de voz destrava-se o poder dos encantamentos e, nesse caso, também a possibilidade de dar ordens aos demônios. Fora isso, os livros que Salomão escreveu trouxeram muito aprendizado aos grandes bruxos. As Clavis Salomonis, escritas em aramaico, também trazem descrições de cerimônias de evocação. Há um manuscrito conhecido como Legemeton, dividido em cinco partes, paralelo às Clavis. No início do século XX, elaborou-se uma tradução da obra para o inglês moderno, intitulada The Goetia: The Lesser Key of Solomon the King. Mas só nós temos o original. — Ele se espreguiçou. — Quanto a vocês, cristãos, que grande ensinamento Salomão lhes deixou? Poesias? Provérbios? É bem pouco quando comparado ao potencial que ele tinha... Cachu, como falei...
— Pourquoi essa história de sal? — Claire ainda estava cismada com o Círculo. — Isso é do Candomblé, eu acho. E velas! Parece coisa de macumba, Kim. Pourquoi o Círculo impediria os demônios de se aproximarem?
— Os simbolismos são extensos, Claire. Não temos como falar nisso. As velas simbolizam a Luz que sobrepuja as Trevas. A primeira coisa que Deus criou foi a Luz. “Haja Luz.” Mas velas também simbolizam a luz de Lucipher brilhando na escuridão, apontando um novo caminho.
— Mas, afinal, Salomão queria reverenciar a Luz ou as Trevas? Parece confuso, parece misturado... Parece... uma maluquice.
— Não tem como eu te explicar tudo, Claire. Lembre-se de que foi Salomão quem idealizou o Círculo.
— Ah, me conta só alguma coisa que eu mereça saber. Só umazinha. O... sal?
— O sal é um elemento muito complexo. Seu uso como purificador, e para selar alianças, é difundido por todo o mundo, foi usado por muitas culturas em diversos momentos da História, e ainda hoje faz parte de diversas religiões. No Antigo Testamento, Deus dá o mandamento para que se salguem todas as ofertas de manjares feitas no Tabernáculo e, depois, no Templo. É chamado o “sal do concerto do teu Deus”. E Ele diz: “Não deixarás faltar o sal da aliança do teu Deus” e “Em toda a tua oferta oferecerás sal”, segundo o Livro de Levítico. No Livro do profeta Ezequiel, Deus orienta a salgar o holocausto. Biblicamente falando, o sal purifica; é um símbolo de lealdade e do poder preservador, purificador e mantenedor de Deus. Simbolicamente, a Aliança de Deus para com Seu Povo é uma “Aliança de Sal”: “Yahweh, o Senhor Deus de Israel, concedeu para sempre a Davi o reino de Israel, a ele e a seus descendentes, mediante uma Aliança irrevogável, celebrada com sal” ou em outras traduções: “Yahweh concedeu para sempre uma Aliança de Sal”. Da mesma forma, no Novo Testamento, Jesus diz: “Cada um será salgado com fogo, e cada sacrifício será salgado com sal”.
Claire sempre se admirava pelo modo como Kilaim não só conhecia os textos, mas os sabia de cor.
— Ser salgado com fogo significa ser purificado por meio de sofrimentos e tribulações, seguindo o exemplo de Cristo. “Regozijo-me agora no que padeço por vós”, como disse Paulo. Embora as profundezas do sofrimento sejam insondáveis, quando você entende que isso pode te levar aos Lugares Altos, entende também que deseja percorrer esse caminho.
— Você não sabe do que está falando, Claire... — Kilaim sacudiu a cabeça, atormentado; deitou de novo ao lado dela, puxando-a para perto. — Não sabe mesmo. Colocar-se nas mãos desse Deus e dizer: faça o que quiser comigo. Você não sabe.
Silêncio.
— A verdade, Claire, é que o sal é símbolo de algo que existe no Mundo Espiritual. Talvez você não compreenda inteiramente. Lembra-se do começo de tudo? “A terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava sobre as águas”?
— Bien sûr!
— Wie es ist! Avalie um pouco a Criação. “No princípio criou Deus — Bereshith bará Elohim — os céus e a terra”. O termo bará se refere a criar algo com base no Nada Absoluto. Elohim criou a estrutura física do Cosmos: as dimensões, a matéria, o espaço, o Tempo, as múltiplas apresentações da Energia. Criou todos os seres viventes e criou o Homem. Ou seja, Deus criou — bará — as realidades fundamentais do Universo, a física, a biológica e a espiritual. Com base nessas esferas fundamentais, Deus continuou a fazer muitos outros arranjos complexos da Realidade. O termo Asah significa fazer algo a partir das coisas criadas previamente. Assim, Deus fez o firmamento, fez o sol e a lua, as estrelas. E fez os animais selváticos, os animais domésticos e todos os répteis da Terra. Também “fez” o Homem. Nesse sentido, asah significa aprimorar, tornar especial e único o que foi previamente criado. Tudo veio — bará — de um grande “Big-Bang”; mas cada estrutura do Universo se fez — asah — com particularidades únicas, pelas mãos Dele. Conhece o termo “customizar”? Acho que foi algo assim. Deus criou, depois “customizou” Sua Criação. Inclusive o Homem. E o espírito criado por Deus, capaz de se comunicar com o seu Criador, alojou-se no corpo feito por Ele do pó da terra. Cada um a seu modo.
Claire se emocionou. Quando Kilaim falava daquele jeito era como se fosse cristão, como se conhecesse Deus profundamente. E O amasse.
Era como se fosse...
— Mas Deus não criou as águas salgadas — tornou a falar Kilaim, chegando ao ponto que queria. — Elas já existiam. O Mar já existia. Desde antes da criação do mundo e do Universo. Em momento algum se diz que Deus criou as águas salgadas, as quais Ele próprio chamou de “mares”. Imagine, alors, que dentro de cada cristão verdadeiro deveria haver aquele elemento primordial, o sal, que não foi criado ou feito por Deus. E que aqui, na nossa realidade, era encontrado, primeiramente, nos mares.
Claire ficou pensativa.
— O que você entende quando se fala em “separação de águas e águas”?
— Não sei. Na verdade, nunca pensei nisso.
— No segundo dia da Criação, Deus diz: “Haja entre as águas um firmamento que separe águas de águas”. Então Deus fez o firmamento e separou as águas que ficaram abaixo do firmamento das que ficaram por cima. E assim foi. Ao firmamento Deus chamou céu. Todo o segundo dia, dos sete, fica por conta dessa separação de águas. Se você pensar que o apóstolo Paulo foi levado ao terceiro Céu, ao Paraíso, verá que existe uma separação entre céus e céus. Concorda? Nosso céu não é o Céu em que Paulo esteve. E o Livro de Jó faz menção aos céus como sendo duros como espelho de bronze. Entenda assim: as águas abaixo do firmamento são as que conhecemos. É a água que circula desde tempos imemoriais em nosso planeta, por meio da chuva que infiltra no solo, que entra nas plantas, vai para os rios, mares e evapora, voltando para a atmosfera. Mas... e a água que ficou represada acima do firmamento? Sem a proteção do firmamento, os céus duros como bronze, as águas superiores invadiriam o nosso mundo, d’accord? Foi o que aconteceu no Dilúvio. As fontes do Abismo se romperam e as portas do Céu se abriram. A quantidade de água necessária para inundar a Terra tinha que vir de outro plano, parce que a água que está aqui, no planeta, é sempre a mesma. E o Dilúvio só cessa quando as comportas são fechadas.
Claire avaliou o que Kilaim dizia, mordendo o lábio. Até que fazia sentido, de fato.
— “O Espírito de Deus pairava sobre as águas”. Água é fonte de vida, e o sal é o elemento que proporciona atividade elétrica a essa água. Pelo menos é um deles, talvez o mais importante. Nós, humanos, imagem e semelhança Dele, somos água salgada em cerca de 70% da nossa constituição corporal. A bomba de sódio e potássio, existente em todas as células do nosso corpo, é um mecanismo de transporte ativo contra gradientes de concentração. Ela é responsável pela manutenção dos potenciais elétricos dentro e fora da célula. Essa disposição dos fatos permite a nossa vida. Se a bomba não existisse, seria um verdadeiro cataclismo biológico e nós não estaríamos aqui. Porém, a complexidade da água é muito maior. Além de ela absorver energia, possui energia em si mesma. Bem pouco conhecida pelo homem, é verdade, mas existe. Se você recolher água de um rio em zona de guerra, congelá-la e observar a forma de seus cristais, vai ver que estão deformados. Um rio num lugar onde todos estão felizes vai mostrar cristais bonitos, simétricos e bem formados. Ela reage ao ambiente, acumulando energia positiva ou negativa, que pode ser devolvida ao ambiente. Enfin, Claire, a água salgada sempre existiu no Universo parce que ela faz parte da estrutura bioquímica, ou metafísica, de Deus. Há elementos que sempre estiveram presentes no Universo, pois fazem parte da estrutura de Deus. O “Espírito de Deus pairava sobre as águas”: é o mesmo que dizer que Ele estava presente em todos os lugares.
— Deus era água? — Claire se espantou.
— Non. A água e o sal é que eram elementos do Ser Divino. Por isso não precisavam ser criados. Estavam lá, parce que Deus estava lá. Assim como um ser humano cria uma atmosfera peculiar à sua volta, com produção de calor, emissão de gás carbônico, atividade bioelétrica, atividade mecânica etc., a presença de Deus também emana algo em todo o Seu derredor. Claro que existem muitos outros elementos que são Divinos, mas que o Homem não conhece. Essa seria uma das revelações da Árvore da Vida, cujo fruto o Homem nunca comeu. Portanto, ser “sal da terra” é ser “Deus na Terra”, ou seja, cada cristão verdadeiro como uma partícula de Deus na Terra.
Claire ficou calada, em pura reflexão. Aquilo era incrível! Fazia sentido. No seu espírito, sabia que fazia sentido, que era verdade o que Kilaim dizia.
— Quando Deus exerceu o Juízo sobre a Terra pela primeira vez, no Dilúvio, Ele usou a água. A água foi símbolo desse Juízo. Era algo que partia da própria Natureza de Deus. Depois, a água se torna também símbolo de purificação por meio do batismo. E estão, as palavras de Cristo, dizendo que àquele que cresse Nele, de seu interior fluiriam rios de água viva.
— É verdade, Kim...
— E na Jerusalém Celestial — Kilaim sorriu para Claire, no escuro, contente com a animação dela — flui o rio da Água da Vida.
— Oui, é mesmo! O rio da Água da Vida, claro como cristal, fluindo do trono de Deus e do Cordeiro.
— A água sempre existirá, mesmo que a Terra seja destruída. Em outros planos. Outras dimensões.
— Estou entendendo!
Claire juntou as peças numa coisa só e sorria.
— Mas, enfin, Claire, o que quero dizer, afinal falávamos do Círculo de Salomão, é que Salomão entendeu toda a coesão, a dinâmica dos fatos, o Começo, o Meio e o Fim. Descobriu a Chave. O Segredo. Descobriu aquilo que os faria retroceder e como poderia dar ordens a eles.
— Mas quem os obriga? Não faz sentido. Aliás, o Círculo simboliza o Bem ou o Mal, afinal? Citam-se nomes de Dieu... O sal é posto em volta de tudo... As velas simbolizam a Luz. Mas também há o crânio, o fêmur e as ervas mágicas. E quanto aos desenhos e símbolos? E os objetos consagrados? Também tem um pentagrama. O Círculo não me parece representar o Mal Absoluto, mas também não representa apenas o Bem.
— Existem muitas combinações para todos esses elementos. Você pode afirmar que os nomes de Deus estavam ali para exaltá-Lo ou profaná-Lo? Que os desenhos representavam o Inferno, e não o Céu; ou era o contrário? E que tipos de ervas foram usadas? Há milhares de combinações possíveis na Alta Magia. Ou seria, talvez, algo a recender como um perfume? O Perfume de Deus? A forma circular é fundamental... Mas, por ser a representação de algo sem fim e sem começo, como Deus? Ou um anel mágico?
— E o Círculo tem os nove metros de diâmetro... — Claire dava puxõezinhos no braço dele. — Mas só me diga isso, Kim, o Círculo simbolizava o Bem e o Mal, alors? A junção de tudo? Pois Deus é Bom, porém também cria o Mal... Hum... Não entendi essa parte.
Kilaim deu um beijo na cabeça dela.
— Não tem como você entender, amore mio. Mesmo porque, citei apenas alguns elementos.
— Tá bem. Mas o fato de os demônios obedecerem tudo isso, quer dizer... queria entender o motivo.
— Você não entende parce que não tem a mente de Salomão e por não conseguir entender os demônios como pessoas. Pois eles são, n’est-ce pas? Pessoas. Como os Anjos. E eles foram criados para existir dentro de um modelo de regras e valores.
— Mas se rebelaram contra Deus.
— Rebelar-se contra Deus não significa viver numa completa anarquia. Mesmo afastados da presença Dele, preservaram suas hierarquias e muitos dos seus valores. Wissen? Imagine um indiano, que já nasce dentro de um sistema todo cheio de tradições e rituais imutáveis. A vida dele perderia o sentido se deixasse de fazer parte do modelo. Ele não teria mais família, um lugar na sociedade, não teria pelo que lutar, não sobraria nada. Mesmo se fosse expulso da Índia e fosse parar num lugar estranho, ainda assim preservaria certas tradições. Parce que fazem parte de quem ele é. Não se pode arrancar de alguém aquilo que ele é, não se pode abandonar a si mesmo. Alors, para que a existência dos demônios faça sentido e seja prazerosa, há que se manterem vivas algumas regras, rituais, valores e tradições. Existem limites até mesmo para a rebeldia, Claire. Salomão entendeu isso, e também que a palavra de um demônio, quando empenhada, é irrevogável. Deus também não faz isso? Pactos, alianças firmadas em Sua Palavra? Quer dizer, Deus costuma quebrar bastante Suas Promessas, mas... should be truth, right? Faz sentido?
— Oui.
— Da. Ao aprender como usar esses mecanismos espirituais ímpares, para Salomão, era como estar numa sala de controle blindada. Ele descobriu como extrair das entidades os segredos, mas sem criar o vínculo de comprometimento. E, num duelo de inteligências, acabou prendendo os demônios dentro de pactos favoráveis a ele. O Círculo funciona como instrumento de invocação, mas quando a entidade já está presente, você “muda a chave” e ele se torna proteção. E não pode tocar ninguém.
Claire fez cara de paisagem.
— É assim, alors, que vocês lidam com os demônios? Eles não podem tocar vocês?
— Oh, non! Nós somos filhos do Fogo, temos aliança com eles. Tal seria! Lucipher, além de pai, era meu amigo. Alianças de lealdade não excluem, necessariamente, a amizade. Ela existe, em muitos casos.
Aquilo era algo inconcebível para Claire, e ela não sabia como se posicionar a respeito. Então só se ateve ao assunto em pauta.
— Pourquoi os demônios não destruíram os livros depois que Salomão morreu?
— Salomão os protegeu com encantamentos, usando a própria lei dos demônios. Os livros não puderam ser destruídos, mas, mais tarde, acabaram ficando sob a guarda da própria Organização e de suas mais altas hierarquias.
— Você já viu esses livros...?
— Já li.
Ela olhou de volta para ele, a surpresa estampada nos olhos. Via o contorno do rosto de Kilaim, olhando para frente, na penumbra.
— Mas não acabou de dizer que era apenas para os da alta hierarquia?
O gigante permaneceu em silêncio. Claire não repetiu a pergunta.
— Esse conhecimento acabou sendo revertido em benefício para nós — Kilaim falou, em tom de finalização. — Quando alguém mergulha com tubarões ferozes e famintos, desce dentro de uma gaiola blindada. O Círculo é essa gaiola.
— Pensei que você tivesse dito que os demônios eram “amigos”.
— Oui. Somos. Mas qualquer um que lide com animais selvagens, mesmo conhecendo-os muito bem, dia a dia, sabe que o instinto predatório está dentro deles. Às vezes, o Círculo é muito útil, dependendo de quem vem visitar você ou de quem você visita. Especialmente os demônios que ainda estão no Abismo. Aqueles que só serão libertos para o Grand Finale.
Claire deixou o som da voz dele morrer no ar. Kilaim sempre mencionava o tal Grand Finale com orgulho. Estava com sono agora. Percebendo isso, Kilaim a puxou para perto, e a garota se deixou abraçar, aninhando-se. Já quase dormindo, murmurou:
— Você poderia usar o Círculo para se proteger... — Uma frase solta, sem raciocínio.
— Eu não teria como arrumar todo o material — ele respondeu, num sussurro, com muito raciocínio. Mesmo sabendo que ela nem tinha escutado.
Claire logo adormeceu, sentindo o calor do corpo dele junto ao seu. Não pensou mais no pesadelo. Tinha explicação para isso. Ela já sonhara com aquele anjo do Mal, de asas rubi-escuras, e parecia que Kilaim estava igual; agora, o pesadelo. A questão eram as muitas conversas, presas na sua mente. Estavam fazendo com que fantasiasse sonhos que não refletiam a realidade.
Era só isso.
Quanto à pérola negra dentro da nécessaire, não se lembrou mais dela.
Claire não sabia, mas aquele pequeno objeto era um cavalo de troia. Como o de Salomão.
* * *
DIÁRIO DE CLAIRE
Temos conhecido todos os pontos turísticos, comprado artesanato, comido muito bem, filmado e fotografado como doidos. Uma viagem realmente inesquecível. Tenho que contar sobre o “Encontro das Águas”! É um passeio surreal. Um dos espetáculos mais bonitos da região.
Aqui, no estado do Amazonas, as estradas são os rios e o meio de transporte natural fica a cargo dos barcos. Afinal, são 25 mil quilômetros de rios navegáveis e, para os barcos menores, esse número é ainda maior. Isso vai bem além do dobro das estradas pavimentadas existentes. Praticamente tudo o que é produzido e consumido na Amazônia viaja de barco ou de navio. Há pelo menos um milhão deles na região, navegando pelo indescritível emaranhado de artérias fluviais que ninguém sabe precisar ao certo. São canoas, catraias, lanchas, gaiolas e regatões — estes últimos, verdadeiras lojas flutuantes conduzidas por mascates fluviais. Eles vêm das cidades, cheios de mercadorias e, embrenhando-se na Floresta, vão parando nas casas de caboclo, nos aglomerados de população ribeirinha, em aldeias indígenas.
Os donos desses barcos recebem seu pagamento em diversas “moedas”: artesanato, carne de jacaré, peixe, frutas, madeira. Às vezes em dinheiro. São eles que garantem a maior parte do consumo de bens industrializados para esse mercado de milhões de pessoas, nas margens dos rios da Bacia Amazônica.
(Já imaginou? Levando em conta que minha cidade natal, Lyon, tem pouco mais de um milhão de habitantes...)
Somente cerca de cem mil embarcações são registradas. As demais zanzam por aí sem documento nem fiscalização, o que, às vezes, é um problema. Já que as superlotações podem terminar em acidentes.
Saímos de manhãzinha do Porto de Manaus em um barco de madeira tipo gaiola, o mais comum para o transporte de pessoas, com dois deques. Pode haver gaiolas maiores, mais compridas e com três deques. Estas, geralmente, servem para viagens mais longas, quando as pessoas têm que levar sua própria rede para se “empilhar” (termo usado pelo Kim) durante a noite. O pior é ficar no andar de cima, pois se corre o risco de terminar debaixo de chuva, em traslados que podem durar dias. Mas as pessoas não têm alternativa para se locomover.
Ficamos olhando o porto de longe, repleto de contêineres de todos os tamanhos e cores. Ele fica na margem esquerda do Rio Negro e sua arquitetura é única aqui no Brasil: foi projetado pelos ingleses e possui cais fixos e flutuantes que acompanham as enchentes e vazantes anuais do rio, facilitando a atracação de embarcações em qualquer época. Aliás, em alguns rios da Amazônia, a diferença do nível das águas nas secas e nas cheias pode chegar à altura de um prédio de oito andares. Muitas casas, lojas, armazéns e até postos de gasolina são flutuantes.
Em alguns trechos, o Amazonas chega a atingir 120 metros de profundidade. A Estátua da Liberdade poderia ficar inteiramente submersa nesses locais!
Já cedo estava um forno, bem abafado mesmo, o sol queimando. Era mais um dia de calor abrasador. Como nesta época chove muito, tivemos sorte de poder aproveitar um tempo tão bonito! A brisa deliciosamente agradável diminuía o calor e tornava a viagem perfeita. Para um passeio turístico de ida e volta, nossa gaiola era, é claro, desprovida de redes. Havia assento para todos os muitos turistas estrangeiros, categoria na qual nos encaixávamos.
Parecia incrível estarmos navegando pela maior bacia de água doce do mundo. O guide touristique nos contou que a Bacia Amazônica tem uma série de grandes sistemas fluviais que englobam parte de várias nações: Bolívia, Peru, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana, além do próprio Brasil, o que acaba abrangendo cerca de 40% da América do Sul. Ou seja, uma área de quase sete milhões de quilômetros quadrados! E a mais distante nascente do Amazonas foi descoberta em 1996, no Peru.
Falando sobre a nascente, Kilaim disse que aquela informação estava equivocada. Na verdade, o local preciso só foi determinado em 2006. Enquanto aproveitávamos o passeio, a vista e a brisa, ele me contou. Não imaginava que a história fosse tão complexa. Envolve informações sobre mapas digitais, estudos de hábitat, a dificuldade com os diferentes mapas terrestres fornecidos por cada país, a compilação de dados topográficos e as bases para criação de um mapa hidrológico digital global. Nem pude guardar todos os detalhes. Kilaim é que é um verdadeiro “crânio”.
O que aprendi, de fato, é que foi muito difícil encontrar a nascente do Amazonas. Os pesquisadores sempre especularam a respeito, porém, em regiões mais remotas e difíceis do planeta, como era o caso, são raros os mapeamentos detalhados. A missão parecia impossível.
Até os anos 1970, pensava-se que o Amazonas nascia nas cabeceiras do rio Marañon, no Norte do Peru. Em 2004, alguns biologistas e hidrologistas estudaram mapas topográficos baseados em dados de radar de uma missão da NASA, bem mais completos do que informações por satélite. A “Missão Topográfica da Nave Radar”, ou SRTM, produziu o mais completo mapa topográfico digital de alta resolução da Terra.
Esses dados da estrutura da superfície terrestre foram combinados ao mapa digital do rio. Desse modo, dois corredores contínuos do Rio Madre de Dios, no Peru e na Bolívia, e que iam até sua cabeceira nos Andes, foram considerados como o caminho certo para a nascente do Amazonas. Mesmo assim, não chegaram a identificar com absoluta certeza o local.
Foi em 2006 que cientistas brasileiros do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, da Agência Nacional de Águas e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, junto a peruanos do Instituto Geográfico Nacional, empreenderam, de fato, a primeira expedição científica ao nascimento do Rio Amazonas. As equipes incluíam pesquisadores de mais três países, e todos tiveram que enfrentar viagens a pé, de bicicleta, a cavalo, de jipe, de 4x4, passando por temperaturas muito frias e ventos terríveis em altas altitudes, com o único intuito de explorar os rios remotos dos Andes que se juntavam ao Amazonas. Finalmente, usando tecnologia por satélite, verificaram que a verdadeira origem do Amazonas estava nas cabeceiras do Rio Apurimac-Ucayali, a 5.597 metros de altura.
Cinco pequenos córregos cobertos de neve, como o Loqueta, o Carruhasanta e o Apacheta, são os principais formadores do Apurimac-Ucayali, situado no Pico Nevado Mismi, nos Andes peruanos. Na verdade, o Apurimac-Ucayali é o próprio Amazonas. A precisão foi incrível, o que rendeu também a elaboração de um mapa altamente confiável da região.
Fiquei até arrepiada com o relato, que coisa mais interessante e exótica, e infinitamente feliz de estar ali.
O Rio Amazonas é o maior reservatório de água doce do planeta, com quase sete mil quilômetros de comprimento, o que quase corresponde à distância entre Berlim e Nova York. Desde a nascente, ele é batizado com diversos nomes e recebe muitos afluentes, que o deixam cada vez mais caudaloso. Quando cruza a fronteira brasileira, passa a se chamar Rio Solimões. Pelas margens esquerda e direita, os afluentes continuam chegando — ao todo, são cerca de 1.100. Na foz, num único dia, o Amazonas deságua no Atlântico mais água do que o Tâmisa, em um ano. Ele também abriga a maior quantidade de espécies de peixes do mundo. Quinze vezes mais do que todos os rios da Europa juntos.
Números fantásticos, n’est-ce pas?
Acreditava-se que o Nilo era o rio mais comprido do mundo, mas, depois da descoberta da nascente do Amazonas, o rio sul-americano sai ganhando por alguns quilômetros (além de já ser o maior em volume de água). Mas ainda há discussões sobre isso nos círculos acadêmicos, uma vez que a nascente do Nilo — e seu verdadeiro comprimento — também, ainda hoje, é objeto de especulação.
Levamos pouco mais de uma hora para chegar ao “Encontro das Águas”, ponto onde o curso do Rio Negro deságua no Solimões. É apenas a partir de então que o Solimões é batizado “Amazonas”, e assim vai até a foz. Cada segundo no “Encontro das Águas” valeu a pena!
Como há grandes diferenças na velocidade dos cursos e na composição físico-química dos dois rios, a água negra do Rio Negro e a água barrenta do Solimões — muitíssimo mais clara — correm paralelas, sem se misturar, por vários quilômetros. O rio fica de duas cores! É como café com leite claro de um lado e Coca-Cola do outro. Quando vi, não acreditei! Kim também ficou entusiasmado. Na verdade, todos não paravam de se debruçar sobre a amurada da gaiola para ver, bater fotos e apreciar o espetáculo da Natureza. Lindo, lindo!
Havia turistas de sete nacionalidades diferentes e o guide, além de simpático, foi muito eficiente, falando todo o tempo em português e em inglês, oferecendo-se para bater fotos e responder perguntas.
Depois daquela incrível visão, seguimos até um local onde pudemos aportar na margem e descer do barco. Foi quando o calor nos abalroou em cheio, outra vez. O suor escorria pelas costas, debaixo da roupa, pelo rosto, e molhava nosso couro cabeludo. Mas todos estavam felizes. Atravessamos uma pinguela meio bamba e fomos caminhando por uma trilha que entrava um pouco na orla da Floresta. Ali, praticamente sem nenhum vento, era muuuito quente. Um calor que nunca experimentei.
Era hora de conhecer as vitórias-régias, cujas folhas redondas podem atingir até dois metros e meio de diâmetro. Seu nome foi escolhido pelos ingleses em homenagem à rainha Vitória. É a maior planta aquática do mundo e faz jus à grandeza do seu hábitat natural. Aprendemos que ela gosta de sol pleno e águas quentes, e sua vida é perene. Muita gente pensa que ela flutua na água, mas não é verdade. Trata-se de uma planta enraizada, só as folhas redondas é que flutuam; nem mesmo uma chuva forte pode fazê-las afundar, já que uma delas pode sustentar até 50 quilos. As bordas das folhas são altas e avermelhadas, formando um conjunto muito belo, especialmente se houver flores.
No local escolhido, vimos muitas. Eram lindas, com folhas de vários tamanhos, e a água perto da margem estava forrada delas. Mas não pudemos ver as flores, pois só aparecem de noite, na época da florada. Elas são grandes, muito perfumadas, e duram apenas três dias. Surgem brancas e se tornam róseas na segunda noite, devido à polinização. Na terceira, estão avermelhadas e afundam no rio para espalhar suas sementes.
Enquanto o grupo ficava admirando as vitórias-régias, bebendo muita água e reforçando o repelente, nosso guide contou a lenda tupi-guarani sobre a origem da flor.
Os índios acreditavam que, quando a lua cheia morria no alto da montanha, levava as índias mais bonitas da tribo com ela para transformá-las em estrelas. Por causa disso, as jovens e belas índias se reuniam para cantar e sonhar seus sonhos de amor, e ficavam por longas horas admirando a beleza da lua prateada e o mistério das estrelas, sonhando um dia em ser uma das escolhidas. Enquanto o aroma da noite tropical enfeitava aqueles sonhos, Naia, a mais jovem e mais sonhadora, subia numa árvore alta para tentar tocar a lua, encantada com a possibilidade de ser levada e transformada em estrela. Mas nunca conseguia alcançá-la.
Muito decepcionada por não conseguir tocar a lua nem ser escolhida por ela, Naia, aos poucos, foi sucumbindo em desespero. Uma noite, no auge de sua tristeza, viu a lua deitando intensa luz nas águas e, sem pensar, mergulhou em sua direção. Como estava muito fraca, desapareceu e nunca mais voltou. Nesse momento, a lua, por compaixão, decidiu transformá-la não numa estrela dos céus, mas numa outra, diferente, que brilhasse na Terra. E a transformou na estrela das águas. A vitória-régia.
História muito singela, n´est-ce pas?
Na volta, a caminho da gaiola, o calor parecia ainda mais denso em função do horário e nos envolvia como um véu invisível. Quando nos sentamos e o barco saiu, fomos agraciados de novo com a brisa. Para completar, nosso guide abriu um livro surrado e recitou um poema belo e triste, em português primeiro, depois numa versão parecida em inglês: “Papagaio”, de Werk de Matos, escritor já falecido e que sempre vai ser lembrado como o poeta da Floresta, o poeta das Águas:
“Por falar engraçado, dizer ‘louro’, o papagaio perde a liberdade.
Troca o universo verde da Floresta pelo pequeno espaço da cidade.
Move-se trôpego, andar desengonçado, gingando, vai atrás do carcereiro;
domesticado, esquece a própria espécie — galináceo entre as aves do terreiro.
Para prazer dos homens é um palhaço, em busca da comida é um flibusteiro, acostuma-se ao trato das comadres e segue parolando o dia inteiro.
Já vai longe a lembrança da Floresta. Como escravo, entre as almas mais pequenas, do seu mundo selvagem só lhe resta o verde-claro de suas próprias penas”.
Achei tão lindo e tão triste o poema, que tive de chorar, e Kilaim me abraçou com tanto carinho que chorei mais.
Dieu deu ao Homem o poder de dominar a Natureza, oui; mas foi no sentido de cuidar dela, protegê-la. Se Dieu lhe dá um presente, você o estima, em vez de destruí-lo completamente. O ser humano não podia fazer isso com a Natureza! É desolador, mas o “céu em Terra” será só no Céu, quando estivermos livres desta vida.
“O lobo e o cordeiro se deitarão lado a lado, o leopardo se deitará com o bode; o bezerro, o leão e o novilho gordo pastarão juntos; e uma criança os guiará. A vaca se alimentará com o urso, seus filhotes se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará perto do esconderijo da cobra, a criança colocará a mão no ninho da víbora. Ninguém fará nenhum mal, nem destruirá coisa alguma em todo o Meu Santo Monte, pois a terra se encherá do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar.”
Dieu Merci. O que me consola é que estão todos lá. Os animais todos! Pois tudo o que morre aqui, renasce lá. As espécies extintas de animais estão povoando o Céu. Ficarei muito feliz quando estiver lá e puder ver todos convivendo em harmonia entre si e com o Homem restaurado. Quando um animal é seu amigo, ele o é para sempre. Vou ver minha cadelinha Missi e o Fréderique, meu gato siamês, e eles vão vir correndo para me receber, parce que vão saber que estou chegando. Chegando para ficar.
Kilaim, não querendo me ver chorar, prometeu que iríamos à cidade, depois, para comprar um livro de Werk de Matos, já que eu tinha gostado tanto (escolhi Trilha D’Água; e ele o leu para mim. Gostei muito).
Na volta, navegando de novo pelo Rio Negro, como Kilaim estivesse com fome, pedimos uma porção de pirarucu frito e comemos ali mesmo, numa mesinha minúscula de madeira, em banquinhos meio capengas. Uma das melhores refeições que já fiz por aqui! O pirarucu é o maior peixe de água doce do mundo, podendo atingir até três metros de comprimento e chegar a mais de 200 quilos.
Paramos em seguida para o almoço oficial, num restaurante flutuante de culinária típica.
À tarde, retornando ao Porto de Manaus, vimos de longe uma comunidade ribeirinha. As crianças se jogavam no rio, dando cambalhotas, e acenavam para nós. Havia também mulheres lavando roupa nas margens, agachadas. Os “ribeirinhos” são assim chamados por viverem nas margens dos rios. São milhares de famílias, em mais de 90 mil comunidades, vivendo da pesca e caça, principalmente, mas também de uma agricultura de subsistência. As margens do Rio Solimões e do Amazonas sempre foram bastante povoadas, ao contrário do que eu imaginava.
Há relatos antigos, obtidos de expedições anteriores à colonização portuguesa, informando a presença de aldeias com populações superiores a cem mil indivíduos. Esse padrão de ocupação persistiu ao longo do tempo. Isto é, fora das zonas urbanas, as margens dos rios continuam sendo os ambientes de maior contingente populacional no Amazonas.
Novidade: amanhã vamos mudar de hotel. Conseguimos uma vaga, nem sei como, numa das cabanas do Black Amazon Tower Hotel, a cerca de 50 quilômetros daqui, também às margens do Rio Negro. Parece que estava reservado para uma Lune de Miel, mas o casamento foi cancelado.
Para nós, será como estar numa verdadeira base na selva! O hotel todo é uma construção exótica, sobre palafitas. Como o rio está bem cheio, vamos encontrar tudo inundado! Significa que as palafitas desaparecem e o hotel parece ficar ainda mais próximo da copa das árvores. Tem decoração rústica e tudo o mais.
Antes de deixarmos a Amazônia, tínhamos que conhecer esse lugar e aproveitar outros passeios. Sem contar com a vista do pôr do sol...
Tenho certeza de que nunca fui tão feliz em minha vida! Encontrei minha alma gêmea. Tenho cada vez mais certeza disso, a despeito de nossas diferenças, que não são poucas. Mas o tempo há de mostrar a melhor maneira de lidarmos com isso. Nada como dar tempo ao tempo, pois vamos ficar juntos, de qualquer jeito.
Ele me fez mulher... agora sou uma mulher completa, por inteiro; não tenho palavras para descrever minha alegria em ser capaz de trazer prazer a ele com o meu corpo e de me sentir amada e desejada, como uma joia rara, a mais preciosa. Ele me faz sentir assim: como se eu sempre tivesse sido a única. Aquela sensação de que poderia ser comparada com outras mulheres que ele teve antes de mim já passou. O que temos é único, e sei que ele não pensa em mais ninguém.
Espero que isso não acabe nunca! Nunca vamos nos cansar de nos beijar e nos abraçar o tempo todo, de rir e fazer amor todas as noites.
Ele me mostra várias faces de si mesmo quando me ama. Ensina-me, adestra-me o corpo, as mãos, a boca, sem pudor, de maneira simples; às vezes me fala, às vezes não diz nada e só me toca, e me mostra como tocar; às vezes é meu guia, outras vezes apenas deixa o desejo fluir, como a água. Depois se deita sobre o meu peito, abraçado comigo, e ouve meu coração enquanto brinco com seus cabelos.
Aqui, tudo é muito sensual, e isso nos afeta claramente. As músicas, as danças, as roupas (ou a falta delas), as cores, o calor, o suor, o cheiro e minha confiança crescente nele. Tudo está ligado à água, à Natureza, e é impossível ficar alheio à sua beleza, sua magnitude e ao enlevo que ela proporciona. O amor na água é mais intenso do que em qualquer outro lugar. Assim como ela esconde seus mistérios nas curvas dos rios e nas suas reentrâncias, Kilaim também percorre todos os meus caminhos, cumes e vales, por fora e, depois, por dentro. Quero que ele os conheça, que mon amour me explore e me desvende. Hoje meu corpo amolda-se ao dele numa entrega infinita, de um jeito que eu não julgava ser possível.
Como está escrito no Livro de Provérbios, “Há três coisas que são maravilhosas demais para mim, sim, há quatro que não entendo: o caminho da águia no céu, o caminho da cobra na penha, o caminho do navio no meio do mar e o caminho do homem com uma donzela”.
Tenho vivido meu sonho. Aqui, realmente experimentei o sabor, a textura, o prazer e a dor do amor. Eu o amo mais que tudo! Tão forte, que dói...
E me sinto completamente distante da doença, do medo, da espera, da dúvida do transplante; sinto-me plena, completamente renascida!
Claire Cécille
4
Temps
No último dia, antes de se mudarem para o Black Amazon Tower Hotel, o casal tratou de aproveitar a piscina logo cedo, pois não haviam programado nenhum passeio. Se o objetivo era descansar enquanto a casa de Alphaville era posta em ordem, estava sendo muito bem cumprido.
Naquela manhã, Claire estava estendida sobre uma espreguiçadeira branca, deitada na toalha azul florida. O chapéu branco, presente de Kilaim, com uma elegante faixa vermelha em volta, fora colocado sobre o rosto. Porém, lá pelas tantas, ela levantou a aba comprida e ergueu os olhos para o namorado, com semblante de nítida curiosidade. O rapaz, que estava debaixo do guarda-sol folheando a revista Veja, usando óculos escuros e quilos de filtro solar sobre o corpo, olhou na direção dela:
— Que foi, baby?
— Kim, me responde uma pergunta? Uma perguntinha só?
— Até duas.
— Posso te fazer pensar em um assunto? Você é um homem inteligente.
Ele sorriu com animação na mesma hora.
— Pois é. Modéstia à parte, sou mesmo muito inteligente. Toquei piano aos 3 anos de idade.
— Sérieu! — Claire gritou de surpresa. — Disso eu não sabia!
— Pura verdade.
— Queria tanto ver você tocar...
— Acho que só quando estivermos em casa e o meu piano tiver chegado. Seria difícil arrumar um por aqui. Mas, voltando ao seu questionamento... Qual é o assunto em que quer me fazer pensar?
— Se você encontrar a resposta, fica provado que sua inteligência é mesmo muito acima da média. E pode ser que, com isso, aprenda alguma coisa nova.
Claire não queria engendrar nenhuma discussão. Era apenas um comentário, e ela tinha certeza de que Kilaim saberia a resposta.
— Pois diga! — incentivou ele. — Mas já adianto que você não vai me convencer de nada só por causa de uma charada.
— Não é uma charada!
— Oui, oui! Agora vai, me diz logo! Allez. Pelo visto, deve ser importante, hã? — brincou ele. — Interromper o banho de sol pra fazer uma pergunta!
Ela achou graça no comentário, mas se sentou para enxergá-lo melhor. Os olhos de Claire ficavam tão claros naquele sol que mais pareciam duas contas de cristal transparente. Ela cruzou as pernas e ajeitou o chapéu na cabeça. Depois verificou criteriosamente se a parte de cima do biquíni estava no local certo. Kilaim ficou a admirá-la: estava uma graça de tão charmosa!
— Muito bem! — disse ele. — Ajeitou esse biquíni direitinho, como uma boa moça de família.
— Tem que colocar bem certinho para deixar as marcas perfeitas no corpo. Você não iria me querer cheia de marquinhas diferentes de biquíni!
— Eu iria te querer de qualquer jeito. — Ele cutucou o pé dela com a ponta do pé.
Mas, olhando melhor, especialmente quando ela se ergueu para ajeitar a toalha desarrumada, Kilaim comentou:
— Às vezes acho que esse seu traje de banho precisava ser um número maior, sabia, Claire?
— Ué, não está bom?!
— Eu deveria ter entrado com você no provador quando experimentou esse aí. Não vou deixá-la ficar comprando coisas minúsculas.
— Que ideia, Kim! Esse aqui não é minúsculo. Já reparou como as mulheres brasileiras se vestem para ir à praia? Ou melhor, como elas não se vestem?
— Mas você não é brasileira.
O jovem continuou a observá-la, quieto, com um meio sorriso nos lábios. O mais incrível é que Claire não via nada do que ele via. Não via sua beleza cheia de curvas, seus atributos femininos, seu rosto lindo e a vontade contagiante de ser feliz. Até mesmo a cicatriz do transplante Kilaim achava linda.
— Ok — ela falou depois que se sentou de novo. — As Escrituras, muitas vezes, citaram as genealogias dos filhos de Dieu. No Livro do Gênesis, por exemplo, isso acontece várias vezes. Dieu menciona a idade de cada filho homem em dois momentos: com quantos anos gerou seu primogênito e quantos anos viveu depois disso, gerando outros filhos e filhas. Em algumas genealogias, cita-se apenas o primogênito; em outras, podem ser citados todos os filhos homens; eventualmente, há o caso de aparecerem mulheres, uma maneira ímpar de salientar a importância de pessoas como Raabe, Rute e até Maria, mãe de Jesus.
— Oke.
— Alors, em Gênesis, as primeiras genealogias são a de Caim e a de Adão. Elas foram descritas quando Adão já não estava mais no Jardim, pois ali, enquanto ele e a mulher comungavam com Dieu, não se contava a idade, muito menos o tempo. O Homem foi criado, originalmente, para ser imortal, como os Anjos.
— Ça va, Claire, mas aonde você quer chegar?
Ele bebia um refrigerante com muito gelo, e Claire abriu uma garrafa de água mineral.
— Adão teve dois filhos, Caim e Abel, nascidos fora do Jardim. Abel foi assassinado pelo irmão e não deixou descendente. Quanto a Caim, foi amaldiçoado por Dieu, que colocou nele um sinal de Sua maldição. Depois disso, tendo Caim partido daquela terra, gerou um filho, Enoque.
— E...?
— Na descrição da genealogia de Adão, diz-se que ele gerou um novo filho, Sete, aos 130 anos, e, durante mais 800 anos, gerou outros filhos e filhas. Segue-se, assim, a genealogia de Adão, geração após geração, até Noé. Na época de Noé, Dieu se arrepende de ter feito o Homem e planeja o Dilúvio. Menciona-se que Noé tinha 500 anos quando se geraram seus três filhos, Sem, Cam e Jafé.
— Oui. — Kilaim estava ficando entediado e bufou.
— Espere, já vou chegar lá, Kim — ela falou. — Você concorda que descrever as genealogias é uma forma de Dieu contar o tempo? Ele usa da história do Seu Povo para fazer o calendário correr. Mas não menciona idades nas genealogias nem de Caim, nem de Enoque. Eu pergunto: quantos anos Caim viveu? Com quantos anos gerou seu filho?
— Sei lá. — Kilaim deu de ombros. — Não está escrito, eu acho.
— Sobre Enoque, o filho de Caim, também não se faz referência a idades. E pourquoi? Qual é a diferença?
— Ah, sei lá! — Kilaim repetiu. — Essa é a charada? Vai ver Moisés esqueceu-se de colocar as datas quando escreveu o Gênesis.
— Vou dar uma dica. Noé teve seus três filhos, e todos eles se salvaram do Dilúvio. Nessa situação, Dieu faz questão de mencionar a genealogia completa dos três filhos, parce que deles viria a nova descendência que povoaria a Terra. Entretanto, olha que interessante, Kim, como no caso de Caim e Enoque, as idades de Cam e Jafé são omitidas, assim como a de seus descendentes. Esse tempo só é contado no caso de Sem, e...
— Mas é claro, pois Sem deu origem aos povos semitas — interrompeu Kilaim. — Os outros dois, Cam e Jafé, embora tenham gerado filhos e filhas, têm menor importância.
— Maior importância, menor... Dieu não pensa assim. Pourquoi não são mencionadas as idades deles ao gerar o primogênito e ao morrer?
— Óbvio, de novo, Claire: Deus sempre gosta mais de uns que de outros. Ele sempre faz esse tipo de acepção. Não te falei do meu pai, que foi banido? Primeiro Lucipher era o Querubim ungido e, logo depois, era menos que excremento. Se você não faz exatamente o que Deus quer, um raio cai em sua cabeça e...
— Esse não é o tópico agora — interrompeu Claire rapidamente, sabendo que Kilaim ia começar de novo com aquela linha de raciocínio, que era muito forte dentro dele. — Kim, não estou discutindo... — Ela já estava arrependida de ter mencionado aquele assunto. — Prefere falar de outra coisa?
— Non. Pode completar seu raciocínio.
— Quero apenas te mostrar um detalhe simples. — Ela ajeitou o chapéu depois de uma lufada de vento e bebeu um pouco mais de sua água. — Os filhos de Cam deram origem a muitos povos perversos, que se afastaram de Dieu: os cananeus. Os cananeus englobavam sete nações distintas e moravam na chamada Terra de Canaã. Essa região, mais tarde, foi prometida aos hebreus, pois Dieu queria eliminar os cananeus da Terra.
— Eu não te disse? Seja livre, não ame e não adore esse Deus, e rapidamente um raio cairá em...
— Os cananeus são descritos como poderosos idólatras, profanos e iníquos. De sua influência politeísta, surgiu também o famoso Baal, combatido tantas vezes pelos reis e profetas de Israel. Admitia-se que a “esposa” de Baal era Astaroth. E se lembra de Sodoma e Gomorra, destruídas por completo? Também estavam dentro dos limites das terras cananeias. Dos cananeus veio o culto a Moloque, a quem se ofereciam crianças em sacrifício. A influência da adoração a Moloque foi tão forte que reis de Judá sacrificaram seus filhos a ele. A religião cananeia era sexual e perversa, cheia de sangue e destituída de moral. Foi por esse motivo que Deus ordenou aos hebreus não estabelecerem qualquer tipo de aliança com eles, não tomar suas mulheres e não seguir sua idolatria, mas destruí-los sem misericórdia, por completo.
— Mas não adiantou parce que os filhos de Deus simplesmente não O obedecem. A “limpeza” espiritual daquela terra nunca durou.
— Cam deu, ainda, origem aos povos do Norte da África, como etíopes e líbios, e também do Egito. Da sua linhagem veio Ninrode, o fundador de Babel. É uma figura que faz alusão ao último príncipe do mundo: o anticristo.
Kilaim sentiu um pequeno interesse ao ouvi-la falar no anticristo. Mas, como Claire não acrescentou mais nada nesse sentido, ele apenas indagou:
— E o que teria “aprontado” o pobre Jafé? — Seu rosto denotava já saber o que ela iria falar.
Claire sorriu para ele.
— Não estou discutindo com você, Kim. — Ela esticou o braço e passou a mão na perna dele, num gesto de ternura. — Isso não é uma guerra.
O comentário fez com que Kilaim relaxasse um pouco. Mas não muito, porque, para ele, era, sim, uma guerra.
— Sobre Jafé — Claire prosseguiu —, há um dado importante. O segundo filho de Jafé era Magogue. Ou melhor, “Gogue, da terra de Magogue”, como é citado no livro do profeta Ezequiel; ou “Gogue e Magogue”, segundo o texto de Apocalipse. Embora se especule que Gogue poderia ter sido um líder da Assíria, região ao Norte de Israel, contra o qual vários profetas falaram, acredita-se, hoje, que a junção das diversas tribos que descendiam de Gogue, príncipe e chefe de Meseque e Tubal, todos filhos de Jafé, dentre outros, tenham dado origem a Magogue: povos da “região do Norte”. Biblicamente falando, esses povos do Norte seriam o último inimigo a se levantar contra Israel antes do Tempo do Fim. Antes do anticristo.
De novo, Kilaim passou a ouvir com mais interesse a opinião dela. E insistiu:
— Oui, mas e daí?
— E daí que, assim como os cananeus, os descendentes de Jafé geraram povos que se voltam contra Deus. Mas, nesse caso, é bem diferente, pois, segundo a profecia, Gogue, líder da terra de Magogue, virá contra Israel no final dos Dias. Será um exército como nuvem que cobre o céu e vem em meio a cataclismos e violentos terremotos. Dieu permitirá que Seu povo seja disciplinado mais uma vez e, para isso, fará uso dessas nações ímpias.
Kilaim suspirou e resmungou entredentes:
— Eu só posso ter serrado os chifres de Belzebu para ter que escutar isso agora... — E mais alto: — E que nações seriam essas?
— Bem, você sabe... Geograficamente falando, os povos do Norte seriam aqueles que, hoje, ocupam o território da antiga Assíria, que foi uma implacável máquina de guerra. Nações islâmicas, como a Turquia, partes da Síria, Líbano, Iraque...
— Cachu! Nem precisa me dizer que os muçulmanos são eternos inimigos de Israel. Mas, Claire, alguma coisa está errada nesse seu raciocínio, parce que os muçulmanos são descendentes de Ismael, filho ilegítimo de Abraão, que faz parte da genealogia de Sem. Eles não têm nenhuma relação com Jafé. Como se explica a confusão dessas genealogias? Sempre digo que a Bíblia tem muitos erros, é muito claro, só você é que...
— Nem todos os muçulmanos são descendentes de Ismael — ela interrompeu, mais uma vez. — Jafé teria sido o progenitor de algumas tribos muçulmanas também, ainda que num segundo momento.
— Como assim? — Kilaim queria irritá-la um pouco, exigindo detalhes, mas sem grande expectativa quanto à resposta.
— Provavelmente em decorrência da mistura dos povos na região. Os “povos do Norte” sofreram influências romanas, árabes e turcas.
Dessa vez, Kilaim ficou surpreso pela maneira como Claire se desembaraçou da pergunta e como conhecia parte daqueles meandros históricos. E, mesmo intimamente, concedeu-lhe um ponto positivo. Então, pediu-lhe que explicasse melhor o que estava dizendo.
— Os romanos descendem de outro filho de Jafé, que não é Magogue. Depois da queda do Império Romano do Ocidente, no século V d.C., apenas o Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, sobreviveu. Com o passar do tempo, o Império Bizantino alcançou seu esplendor, tendo vitória contra os povos bárbaros e contra a Pérsia. Mas, no século VII, começou a entrar em lenta decadência. Povos nômades do deserto da Península Arábica começaram a chegar à Ásia e à África. Esses árabes eram mais comerciantes que guerreiros, mas, depois de fundado o Islã por Maomé, no século VII, eles se tornaram importantes politicamente e militarmente. Depois da morte de Maomé, os guerreiros islâmicos, impulsionados pela crença no paraíso após a morte e pelas recompensas terrenas, avançaram rapidamente, numa das expansões mais fulminantes da História. Em um curto espaço de tempo, o Império Árabe conquistou uma área mais vasta que o Império Romano em seu apogeu. Controlavam todo o Oriente Médio e 75% da região do Mediterrâneo, chegando, no outro extremo, até a Índia e a China. Entre os séculos XI e XIII, os cristãos começaram a ser impedidos de circular livremente por Jerusalém e pela Terra Santa, por causa dos muçulmanos. Essa foi a época das Cruzadas, lembra? Por fim, depois do século XIII, o Império Árabe entrou em declínio por causa de outro inimigo: os turcos. Com a tomada de Constantinopla por estes últimos, caiu também o Império Bizantino. E o Império Otomano se instalou. Foi o único grupo muçulmano capaz de fazer frente ao poderio da Europa Ocidental. Entendeu? — Ela fez graça. — Aí estão as influências romanas, árabes e turcas nos povos ao Norte de Israel. Quanto a Israel e à Palestina, esses territórios pertenceram ao Império Romano e eram habitadas, em sua maioria, por cristãos. Depois, em função dos árabes e turcos, ficaram sob domínio muçulmano, principalmente. É importante lembrar que o islamismo foi, desde o início, uma religião conscientemente rival do cristianismo e do judaísmo.
— Parabéns. Você está certa. Mas preciso ir um pouquinho além nesse seu “raciocínio profético”. Tenho algo a acrescentar.
Kilaim sempre tinha algo a acrescentar. Era um superdotado, inteligentíssimo. Não se podia esperar dele conversas banais, e disso Claire já sabia. Deu um sorriso, fazendo um gesto com a mão:
— Allez. Sou toda “ouvidos”!
Já que você falou em Oriente Médio... — Ele, agora, estava gostando do assunto. — São muitos os problemas por ali, que vêm desde o final da Segunda Guerra. Depois do Holocausto, houve muita pressão para que um Estado Judeu fosse estabelecido. A Assembleia Geral da ONU havia aprovado um plano de divisão da Palestina, criando um Estado Árabe independente e um Estado Judeu, além de um regime especial para a partilha de Jerusalém. As diretrizes foram aceitas pelos israelenses, mas não pelos árabes, e acabaram não se concretizando. Assim que se formou Estado de Israel, o Egito, a Jordânia, a Síria e o Iraque invadiram o território judeu. Foi a primeira guerra árabe-israelense, que ficou conhecida entre os judeus como “guerra de libertação”. Para os palestinos, contudo, começava a nakba: a “destruição”. Setecentos e cinquenta mil palestinos fugiram para países vizinhos ou foram expulsos pelas tropas israelenses. O movimento nacionalista palestino começou a se reagrupar na Cisjordânia e em Gaza, também nos campos de refugiados criados em outros países árabes. Mas o número de refugiados só cresceu. Ao longo dos últimos 60 anos, árabes e israelenses atacaram-se com fúria, retaliaram com impiedade, apostaram alto, perderam muito e mancharam de sangue a Terra Santa. Ambos têm sua parcela de razão e erro. E estão distantes da paz. Os conflitos se sucedem desde então, e, apesar dos esforços da Comunidade Internacional, nenhum líder conseguiu, de fato, promover um entendimento entre eles.
— Não compreendo direito o motivo. Não sei por que as diferenças são tão irreconciliáveis.
— São vários pontos. Por exemplo, Israel reivindica soberania sobre toda a cidade de Jerusalém, mas os palestinos querem Jerusalém Oriental como sua capital. As fronteiras, é claro, são outro problema, já que os palestinos exigem de volta o território que possuíam antes do conflito armado de 1967, quando a vitória israelense levou à conquista do Sinai, da Faixa de Gaza, da Cisjordânia, das Colinas de Golã na Síria, e da região oriental de Jerusalém. Na época, tanto o governo como a população israelense acreditavam que o mundo árabe iria aceitar negociações e acordos de paz, mediante a devolução das terras capturadas. Mas os líderes árabes se recusaram a negociar com Israel. Agora, eles querem de volta esses territórios. Mas existe um impasse ainda maior: os assentamentos judaicos. São comunidades civis estabelecidas nos territórios ocupados. Só na Cisjordânia há mais de 300 mil israelenses nos assentamentos, que já praticamente se transformaram em cidades. Ao todo, deve haver mais de meio milhão de judeus em territórios ocupados, fora de Israel.
— Eu não sabia disso — comentou Claire, com espanto.
— E, se por um lado, os judeus estão em território palestino, por outro, os refugiados palestinos também não têm exatamente onde ficar. São pessoas que foram sendo expulsas de suas casas desde 1948 e, especialmente, em 1967. De acordo com a OLP, seriam mais de dez milhões de pessoas que teriam direito de voltar a viver de forma segura na Palestina, mas que hoje dependem de ajuda humanitária. A questão é: como voltariam para o que agora é território de Israel? Se permitisse isso, Israel destruiria sua identidade como um Estado Judeu. Afinal, milhões de judeus estão lá agora. Que fazer com essa gente toda? A maioria dos países não está disposta a absorvê-los, o que só aumenta o sentimento anti-israelense.
— Alors, o problema é mesmo grande...
— Mas, voltando aos seus assuntos, esse conflito entre árabes e israelenses, embora real, não se aplica ao texto de Ezequiel sobre a investida de Gogue. Não nesse caso.
— Como? — Claire estava surpresa.
— Quando Gogue chegar, Israel estará relativamente em paz. Mesmo não havendo um acordo definitivo de paz, a disputa estará em “banho-maria”. Como agora, sem muita confusão. Pois veja o que está escrito sobre Gogue e Israel: “Depois de muitos dias serás visitado. No fim dos anos, virás à terra que se recuperou da espada e que foi congregada dentre muitos povos, junto aos montes de Israel, que sempre se faziam desertos; mas aquela terra foi tirada dentre as nações, e todas elas habitarão seguramente. Então subirás, virás como uma tempestade, far-te-ás como uma nuvem para cobrir a terra, tu e todas as tuas tropas, e muitos povos contigo. [...] Dirás: Subirei contra a terra das aldeias não muradas; virei contra os que estão em repouso, que habitam seguros; [...] Portanto, profetiza, ó filho do homem, e dize a Gogue: Assim diz o Senhor Deus: Porventura não o saberás naquele dia, quando o meu povo Israel habitar em segurança?”.
— Você conhece o texto de Ezequiel? — Claire estava, agora, perplexa.
— Oui, inteiro.
— Uau. É incrível... — Ela ficou olhando para Kilaim com admiração. — Ok. Nesse caso, sobram os russos. A descendência de Jafé foi responsável por originar vários outros povos. Indianos, iranianos, gregos, latinos, dentre outros. Mas também algumas raças brancas da Escandinávia e da Europa Ocidental, o que incluiu os russos, que estão posicionados ao Norte de Israel. Especialmente Magogue é associado à origem dos russos.
— Russos? Hum... — Ele ergueu as sobrancelhas.
Ela não entendeu o motivo.
“Deve estar achando que sou louca”, avaliou Claire.
Mas, na verdade, não era isso o que o rapaz estava pensando. Kilaim olhou na direção dela, curioso:
— E como ficam suas profecias diante desse cenário?
— Num primeiro momento, o anticristo tem que articular a paz. Está escrito.
— Mas você não concorda que é uma tarefa quase impossível?
— Sei que é difícil.
— Se fosse algo fácil de resolver, o anticristo não precisaria fazer tal trabalho. Pourquoi é tão difícil?
Claire ficou pensando, e Kilaim acabou rindo do ar dela, quase com fumacinha saindo pela cabeça.
— É difícil parce que a paz de Israel realmente prenuncia o Final dos Tempos. Israel já se esqueceu, ou talvez nunca tenha realmente entendido, ao longo de sua própria história, a missão irrevogável que repousa sobre ele. Ser o “Relógio de Deus”.
Claire ficou olhando. Ela tentara ensinar algo ao namorado, e era ele a mostrar-lhe as coisas. Quando Kilaim falava sem colocar a doutrina (macabra) no meio, era sempre ótimo!
— Significa que, quanto mais tempo Israel estivesse dividida, destruída e em guerra, mais tempo demoraria a vinda do Messias — Kilaim disse. — Por isso, Lucipher e os demônios sempre facilitaram esse estado de coisas. Até agora.
Claire ia fazer uma pergunta. Abriu a boca, mas mudou de ideia. Ninguém sobre a Terra pode alterar os propósitos de Deus, mas, por outro lado, era verdade que eles podiam ser frustrados, por algum tempo.
— Veja, o palco do Oriente Médio teve que ser montado, totalmente. Durante quase toda sua história, Israel esteve em guerras, ou no exílio, ou debaixo de cativeiro de nações estrangeiras, ou sendo destruído de muitas formas. Mesmo agora, depois de 1948, Israel ainda é lugar de inseguranças. O conflito persiste mais, ou menos, acirrado, e não se tem solução. O Templo de Jerusalém sequer pode ser reconstruído.
— É verdade, você tem razão.
— Quando, porém, esse longo período de conflitos se encerrar e houver paz, alors, virá o ataque de Gogue. Esse, o último inimigo das profecias bíblicas, como você mesma colocou, vai trazer uma guerra terrível. Sete meses serão necessários para se enterrarem os mortos. Você entende a questão das alianças que são compartilhadas aí?
Ela fez que não.
— Nem tudo. É um pouco demais para minha cabeça.
— Well, atualmente, Israel e palestinos não estão envolvidos em nenhum conflito mais sério, alors, analise a questão do Oriente Médio usando a guerra civil na Síria, por exemplo. Aí você vai entender melhor como a estrutura de alianças funciona. Os Estados Unidos e alguns países da Europa Ocidental aprovam a intervenção da ONU na questão da guerra síria. Já a Rússia e o Irã não apoiam; ficam ao lado do governo sírio de Bashar al-Assad. Aí, a China se coloca ao lado da Rússia, e os dois vetam na ONU uma possível interferência na guerra. Os países menores, por sua vez, ficam divididos. A Turquia, o Catar e a Arábia Saudita são acusados de armar os oposicionistas; já a Rússia é uma das maiores fornecedoras de armas ao ditador sírio, e mantém importantes investimentos no país. A presença de navios de guerra do Irã e da Rússia ao longo do litoral da Líbia é mensagem clara contra qualquer aventureirismo dos Estados Unidos. Bombardear os terroristas dentro do território sírio, sem a permissão do governo de Damasco, para a Rússia seria uma “flagrante violação” do direito internacional. Se lembrarmos que o principal aliado de Israel são os Estados Unidos, você começa a perceber como uma coisa puxa a outra. Claro que isso é o que se divulga na mídia, mas há muito mais por baixo dos panos, muito mais. A opinião pública global sempre irá compelir a Comunidade Internacional a tomar responsabilidades em relação ao Oriente Médio. Percebe a confusão? Claro que, dependendo da origem do conflito, as alianças flutuam, mas, de modo geral, esse é um bom vislumbre das coisas.
— Engraçado você falar em Rússia e Irã. De acordo com Ezequiel, Gogue também terá aliados que podem, hoje, ser enquadrados geograficamente no território do Irã e de alguns povos da Europa Oriental. Por outro lado, o texto bíblico menciona alguns opositores, verbais e não militares, à invasão liderada por Gogue. Dentre eles, os povos que deram origem à Inglaterra, o que, por conseguinte, acaba nos levando à América do Norte. Isso poderia significar os Estados Unidos, que ficariam contra a Rússia. Alors, a Rússia é Gogue.
Kilaim não ligou muito para a questão bíblica e apenas concluiu.
— A verdade é que, em se tratando de estabelecer a paz no Oriente Médio, nem mesmo a ONU tem o poder pleno para resolver essas questões. Ela foi criada em 1945, depois da devastação causada pelas duas Guerras Mundiais, com objetivo de salvar as gerações futuras dos flagelos de outras guerras. Sua missão é manter a paz e a segurança internacional, promovendo relações amigáveis entre os países, defendendo os direitos humanos e propondo que as nações trabalhem juntas na intenção de superar problemas sociais, econômicos, humanitários e bélicos.
Claire virou o rosto e olhava com atenção para Kilaim. Ele estava com o rosto erguido para o céu, refrescando-se com a súbita brisa que voava por sobre a piscina, e não viu que ela o encarava com admiração.
— Claro que essa poesia toda não vai impedir o que está por vir — ele disse em seguida. — Quando Israel for atacado por Gogue e envolver outras nações, ninguém poderá impedir. “E subirás contra o meu povo Israel, como uma nuvem, para cobrir a terra. Nos últimos dias, sucederá que hei de trazer-te contra a minha terra, para que os gentios me conheçam a mim, quando eu me houver santificado em ti, ó Gogue, diante dos seus olhos” — recitou Kilaim o texto de Ezequiel, de novo. — Primeiro, “alguém” traz a negociação de paz. E aí, Israel se confunde. Confunde o anticristo com o Messias. Depois de tanta espera... o anticristo profanará o Templo reconstruído de Jerusalém. Quer posição pior para o Povo Escolhido? E aí, “alguém” traz a guerra.
Claire suspirou, um pouco inconformada. Deitou-se de bruços para se bronzear de forma uniforme, mas continuou ouvindo. Kilaim olhava seu belo bumbum, custando a retomar o fio da meada.
— Continua, Kim — ela pediu.
— Non, continua você. Você ia me falar da charada das genealogias. Esqueceu?
— Pois é, até esqueci mesmo. Mas essa é a parte boa de conversar com você: sempre acabamos indo por caminhos que eu não esperava. Só termine seu raciocínio. Não entendo muito bem essa política internacional.
— Mas eu já terminei. Já parou para pensar, nem que fosse remotamente, que os grandes líderes a dar essas cartas poderiam ser da Organização? Que “Gogue” fosse “manipulado” por satanistas estrategicamente colocados para fazer a diferença certa, na hora certa, a fim de causar o caos? Que os países que se associarão a Gogue, em caso de guerra, possam ser governados por satanistas, e mesmo que a ONU tivesse que existir, para ser manipulada e sofrer influência direta deles? Você tem ideia da influência do Conselho de Segurança da ONU? — Kilaim sorriu amistosamente para a namorada.
— Mas, depois, Gogue é julgado e destruído, pouco restando dele. Parce que ter vindo contra a nação de Israel era desígnio de Dieu, mas ele fez uso de sua própria maldade e não deixará de pagar por ela.
— Indeed. Mas quem disse que os poderosos não se salvam, Claire?
Ela ficou pensando durante um tempo sobre o que ele dissera, sem entender exatamente.
— Oke, Claire, manda logo a tal charada. Chega desse assunto.
Claire sempre tinha sido fascinada pelas profecias bíblicas. Pegou a garrafa de água e bebeu bastante antes de voltar ao começo de tudo:
— Quando eu disse que, dos filhos de Noé, apenas os descendentes de Sem têm suas idades mencionadas, e Cam e Jafé não têm, na verdade...
Kilaim já não aguentava mais aquilo e facilitou:
— Ça va, Claire... — ele interrompeu, resignado. — É simples a resposta à sua pergunta. Os anos dos bonzinhos são contados. Os dos maus, não.
Ela riu abertamente.
— Muito bom, seu espertinho! Você acertou a charada! Da linhagem de Sem, filho de Noé, vieram Abraão, Davi e Jesus. Pessoas importantíssimas no conjunto da Obra de Dieu.
Kilaim achava aquilo tudo chato. Que conclusão mais boba!
— Você sabia que nenhum outro povo é chamado semita, nem mesmo os árabes, que também são da descendência de Abraão? — perguntou ele, por perguntar.
— Eu sabia. Mas, Kim — ela foi adiante com entusiasmo —, você não disse tudo. Contar o tempo com base na vida dos filhos revela uma maneira diferente de Dieu se importar. Tudo poderia se resumir em poucas linhas, como fez o apóstolo Mateus: “Todas as gerações, desde Abraão até Davi, são catorze; desde Davi até o Exílio na Babilônia, catorze; e desde o Exílio até Cristo, catorze”. Mas Dieu não faz assim; Ele se importa. As gerações perversas têm seu tempo sobre a Terra omitido, mas isso não quer dizer que Dieu deixou de amá-los. Apenas significa que eles terão que percorrer um caminho mais longo, um caminho de disciplina, de juízo, de dor. São os filhos que optam por abandonar o Pai. Continuam sendo filhos, mas já não há relacionamento.
Claire olhava tranquilamente os olhos negros de Kilaim. O encontro perfeito do céu e do abismo.
— Parce que todos vão voltar um dia para Dieu. Até Lucipher. Mas, por ora, é como se não existissem. Durante um tempo.
— Deus age assim com todos que “optam” por seguir outro caminho... grande novidade você está me contando.
— Você comemora o aniversário do filho que está com você e que mora em sua casa, ou do filho que foi embora e nunca mais deu satisfação? Aquele que nunca se arrependeu de seus erros e ingratidão?
Kilaim meneou a cabeça, enxugando o suor da testa.
— É um bom argumento, Claire. Reconheço.
— Mon Dieu, mas está um forno aqui! Tenho que entrar na água agora mesmo. Quer ir também? — perguntou ela, olhando a água linda da piscina que brilhava debaixo do sol quente.
Kilaim jogou os óculos escuros sobre a mesinha debaixo do guarda-sol, e os dois saíram correndo desabaladamente. Kilaim deixou Claire ganhar. Pularam como focas dentro da água. Que alívio! Claire era boa nadadora, já Kilaim, um desastre. Escapava por pouco de se afogar. Esportes nunca foram mesmo seu forte.
Do outro lado da piscina, com a água escorrendo pelo rosto, ela ficou com o corpo todo mergulhado na água. Só com a cabeça de fora, rindo, foi para perto dele, abraçando seu pescoço com os braços e seu quadril com as pernas. Ficou ali, flutuando, sentindo as mãos de Kilaim em torno dela. E concluiu:
— Dieu tem suas maneiras de contar o Tempo, mas Ele também pode mudar o Tempo. Quando Ele instituiu a Páscoa dos hebreus, o povo ainda estava preso no Egito. Aquele se tornou o principal mês do ano, o primeiro mês. Que mês era para os egípcios? Não importava. Mas, para Israel, era o primeiro mês. Foi assim também com o nascimento de Jesus. O calendário cristão partiu do zero, novamente. Significava outro marco de libertação. De redenção.
— E pourquoi você está falando sobre isso? Essa história de Tempo, de contar o Tempo, de mudar o Tempo. Do tempo dos bons e do tempo dos maus. Hã?
— Imagine que, hoje, você estivesse morto e de repente encontrasse um novo valor para sua vida. Segundo os critérios de Dieu, essa nova existência necessariamente marcaria uma nova contagem de tempo. Sabia que sua vida só passa a ter valor quando você descobre o valor da Vida? O salmista diz: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos coração sábio”. É um pedido que ele está fazendo a Dieu. Você se diz sábio, conhecedor das coisas do mundo e das de fora do mundo também. Mas, como tem contado seus dias? Como usa o seu tempo, o que tem feito com ele? Já pensou nisso? Se Dieu fosse escrever a história da sua vida, Ele citaria seus anos, com orgulho pelo que você fez, pelas marcas que deixou na Terra, ou Ele os omitiria, esperando que, em algum momento, você entendesse o significado de estar vivo?
Kilaim deu de ombros, sentindo-se um tanto humilhado, embora essa não fosse intenção dela, de modo algum. Claire falou com doçura, sem perceber o efeito de suas palavras:
— Quantos anos de vida você tem, Kim? Quantos dias você viveu, de verdade, nesta Terra?
Agora, aquelas perguntas tinham, para ele, um quê de angústia, Kilaim não sabia precisar o motivo. Claire notou o silêncio que se seguiu e como os olhos dele ficaram fixos nos dela, sem nenhuma expressão.
Ela sabia que era hora de parar. Conversar sobre aquilo requeria um feeling muito fino. Era como mexer em pólvora. Então, não disse mais nada. Quanto a Kilaim, de repente, desvencilhou-se dela e entrou no banheiro da piscina, antes mesmo que Claire pudesse dar nele os beijinhos que queria.
Kilaim conhecia de cor aqueles textos. Mas havia uma incontestabilidade na conclusão simples que ela havia exposto, e ele não gostava disso. Não gostava de ter seus conceitos postos em xeque, não gostava de perder, nem que fosse uma discussão.
Bem, não era uma discussão.
“Não é uma guerra”, Claire havia dito.
Para Kilaim, era, oui, uma guerra!
Quando ele voltou para debaixo do guarda-sol, Claire mergulhava vez após vez como um golfinho, só para sentir a água morna acariciando seu corpo, de frente e de costas, com incrível facilidade. Seus cabelos subiam e desciam, desordenados, e ela dava giros graciosos, com braçadas à la Esther Williams. Nem tinha notado o exagero da reação dele.
Sorriu de longe e acenou. Era mesmo uma sereia.
Não valia a pena levar tão a sério aquela conversa.
5
La Flèche Du Midi
– É preciso preparar o terreno para que o Kill volte! — atalhou o sumo sacerdote Zor com voz firme.
Era noite de geada, fria, úmida, e a lareira estava acesa em sua enorme mansão, perto de Chenonceau, na França.
— O cavalo de troia foi plantado. Está lá, e isso deve facilitar as coisas — ele continuou. — Como já disse, não pretendo ficar de braços cruzados.
Diante dele estava Abadom, o destruidor, mais uma vez. Grande, forte, poderoso. Dessa vez, o demônio estava coberto pelo manto negro, de modo que seu longo moicano que descia até a cauda não estava à mostra. Entretanto, Zor podia ver os braços cruzados sobre o peito, ostentando braceletes de ouro. Embora só estivessem à mostra em parte, o sumo sacerdote sabia que os adornos iam até os cotovelos.
Do fundo do capuz, os olhos dele brilhavam, amarelos.
— O grande príncipe permite que você intervenha — disse o demônio, com sua voz gravíssima. Era como se Zor pudesse senti-la vibrando dentro do seu corpo. — Mas não deve tocar nele. Concentre os esforços contra a garota.
— Apesar de termos dado tempo a Kill, não podemos dar sorte para o azar — reiterou Zor, afogueado tanto pelo fogo quanto pela raiva. — Aquela meuf é muito irritante! Como a odeio! E, sendo responsável por Kill, não pretendo cochilar até que seja muito tarde.
— Está bem — volveu Abadom. Nuvens de hálito gelado saíram de sua boca. — Você tem nossa autorização. Mas não toque nele. O alvo é a menina.
— A “adorável” Pollyanna Von Trapp. Vamos ver por quanto tempo ela vai jogar o “jogo do contente”! — reclamou Zor, sarcástico. E, apesar do calor do fogo às suas costas, uma baforada de vapor saiu de sua própria boca, por causa do frio que Abadom exalava. — Muito bem. Preciso de um pouco de sangue dela.
Abadom ergueu os braços num gesto de aquiescência. Depois, cruzou-os diante de si novamente. Apenas as mãos tatuadas com figuras de serpente apareciam sob o manto.
— O terreno já está preparado — afirmou Abadom. — Ela está mais vulnerável agora, mesmo que não se dê conta disso.
— Eu sei, o que é ótimo para nós. Tenho recebido os relatórios. Está encantada com a Amazônia, com a viagem, com o sol, e isso desviou sua atenção das orações. Não tem orado, pelo menos não como estava acostumada a fazer. Está de guarda baixa, a tola.
Um sorriso surgiu no rosto de Abadom:
— Mas o diabo não tira férias.
— Pena que não podemos matá-la logo de uma vez.
— Darei ordens para que os batedores fiquem ao redor, à espera. Não tarda até termos um resultado favorável, e eu lhe trarei o sangue.
Com uma saudação, o demônio desapareceu.
* * *
No dia seguinte, embora Claire preferisse fazer o trajeto até o Black Amazon Tower Hotel de gaiola, Kilaim convenceu-a a ir de helicóptero.
— Mais rápido e mais fresco, mon amour — disse ele. — Já andamos por estas bimbocas, como você queria. Agora vamos aproveitar um pouco da tecnologia do mundo moderno.
— Mas, Kim, ir de barco é fresco... você se esqueceu da brisa do rio?!
— Non, non, eu sei que a brisa é ótima, mas desta vez usufruiremos de um frescor realmente agradável, e de uma velocidade “um pouquinho” maior.
Ela concordou de pronto, atirando os braços em volta do seu pescoço, numa súbita demonstração de amor e afeto.
— D’accord. Je t’aime... — murmurou ela, enquanto dava beijinhos em todo o rosto de Kilaim.
— Moi aussi, baby, como nunca.
O céu estava azul, e o dia, radiante. No heliporto, sorridente e muito cavalheiro, algo que realmente Kilaim nunca fora, a não ser que se esforçasse bastante, estendeu a mão para Claire a fim de ajudá-la a embarcar. Ela deu gritinhos de entusiasmo quando a aeronave começou a subir, deixando o heliporto para trás. Voando, a imensidão de água debaixo deles refulgia sob os raios de sol como se estivesse incrustada por diamantes.
— Caraca, Kim! Agora é possível ver a quantidade de água! Parece que nunca vai acabar.
— Viu? De gaiola não poderíamos ter esse espetáculo.
Claire segurava a mão de Kilaim, entrelaçando os dedos nos dele, e falava o tempo todo, alto e rápido, sem nenhum constrangimento. Dava risada, ora passando as mãos para ajeitar os próprios cabelos, depois os cabelos dele, desalinhados como sempre. Depois estalava um beijo de leve no seu rosto.
Kilaim sorria, meio dengoso, divertindo-se não só com a paisagem, mas principalmente com os carinhos e atenções, e o tamanho do encantamento da companheira com a viagem de helicóptero. Acompanhava o dedo dela, que não parava, girando a todo instante para lá e para cá, apontando as belezas naturais.
Chegaram pouco antes da hora do almoço e, antes do pouso, puderam ter uma visão completa do Amazon Tower do alto. Era incrível! Os pavilhões principais se conectavam por passarelas de madeira muito compridas, com cercas baixas, e o conjunto literalmente parecia flutuar na água escura do Rio Negro, quase ao alcance das mãos em alguns pontos. Qualquer trajeto ali só podia ser feito pelas passarelas, que percorriam os recantos do rústico, charmoso e unique hotel e alcançavam a orla da Floresta.
Logo na entrada do pavilhão de recepção, Claire ficou fascinada com os diversos macaquinhos que perambulavam por ali, soltos, e que se aproximaram deles sem nenhuma cerimônia. Os menorzinhos eram incrivelmente ágeis e espertos. Claire ia chegando perto deles também, devagar, estendendo a mão para que sentissem seu cheiro, já completamente esquecida de tudo o mais.
— Claire, cuidado — alertou Kilaim. — Não precisamos de uma mordida logo de cara.
— Olha como estamos pertinho da água, Kim!
Um rapaz do hotel vinha se aproximando para recebê-los, e Kilaim perguntou logo se os animais mordiam.
— Não, senhor, de modo algum; são muito dóceis. Só atacariam se se sentissem muito ameaçados. Estão acostumados com os turistas. Sejam bem-vindos! Sua graça?
— Kilaim Mastrangello — respondeu o jovem. — E Claire.
Ouvindo o nome dela, Claire se voltou e deu o costumeiro sorriso aberto na direção do funcionário.
— Bonjour!
Kilaim percebeu na hora como o rapaz moreno a olhou com admiração, embora fizesse força para não sair de sua postura profissional. Mesmo que a “postura profissional” brasileira fosse bem diferente da francesa, ele tentou. Afinal, esperava-se que funcionários apenas sorrissem de modo polido, respondessem só o que fosse perguntado e se comunicassem usando a norma culta. Mas, no Brasil, isso raramente acontecia. As pessoas, de modo geral, eram abertas, sorridentes, perguntadoras, faladeiras e sempre usavam roupas confortáveis.
— Ela é francesa, é? — perguntou o rapaz do hotel, curioso, embora esse fato fosse bastante óbvio. — Cunhã poranga!
Até Kilaim ficou a ver navios.
— O que você disse?
— Ah, disse que é uma moça bonita!
Kilaim ficou sem responder por um instante muito breve.
— Somos. Nós dois — respondeu Kilaim, sem muita animosidade. Já estava acostumado ao jeito dos brasileiros, especialmente dos nortistas.
— O senhor também é bonito, claro — respondeu o rapaz, rindo.
— Non, menino — reiterou Kilaim com uma ponta de irritação. — Você me perguntou se ela é francesa, e eu disse que, OUI, nós dois somos.
— Tá de brincadeira. — O jovem do hotel ficou olhando, mas, como Kilaim não esboçou reação, ele mesmo foi fazendo comentários: — Mas, ora... tu fala o português que nem brasileiro da terra! Tem nem sutaque! — Depois, avaliando o gigante um pouco mais, sem nenhuma cerimônia, mudou um pouco sua opinião: — Mas que tu não tem cara de brasileiro, tem não, amigo, tem não. Verdade. Oxe... — O moço estava impressionado.
— Já que estamos falando sobre nossas origens, pelo visto você é da Bahia — Kilaim se referia ao sotaque e ao “oxe”.
— Sou, meu filho. — Realmente os brasileiros não usavam a norma culta. — Graças a Deus! Terrinha boa aquela, né? Tem outra igual, não.
— Sendo assim — Kilaim usou uma pontinha de maldade —, então o que você faz aqui?
— Estou aproveitando a oportunidade de um estágio, sabe como é que é, né? Tem que correr atrás se a gente quer alguma coisa da vida. Me formo em turismo no final do ano, e esta época é boa para estágios. — Ele pôs uma das mãos no ombro de Kilaim, num gesto amigável. — Mas o senhor, vixe maria, como fala bem português!
Kilaim agradeceu, ainda sem sorrisos. Todos falavam isso, o tempo todo. Ele tinha uma facilidade especial não somente para aprender e falar um determinado idioma bem rapidamente, mas também de adaptar-se aos diversos sotaques regionais. E, no Brasil, não faltavam sotaques e maneiras diferentes de falar, se portar, conversar.
Sem dar atenção à conversa dos dois, já que pouco a entendia, Claire falava em francês com os macacos e insistia em chegar perto deles. Bateu várias fotos e olhava em volta, à procura dos melhores ângulos. Os macacos estavam por todo lado: sentados nas cadeiras, pendurando-se nas cercas ou dormindo em suportes nos telhados.
— Mon Dieu, que coisinhas mais fofas... estou encantada!
Quando os bichinhos notavam que a moça não tinha nenhum petisco para lhes dar, ficavam ligeiramente decepcionados e se afastavam um pouco. Mas só um pouco, porque estavam bem interessados em rondar a maioria dos turistas, já que a chegada de Claire e Kilaim coincidia com a ancoragem de um barco. Vinte e três turistas iam chegando, logo depois deles.
O rapaz do hotel, que se apresentou ao grupo como Juca — “Juca, não ‘Jeca’”, brincou —, explicou com muita boa vontade como funcionava o hotel e quais os principais passeios, sem deixar de mencionar que maiores informações poderiam ser recebidas diretamente na recepção. Depois, repetiu as informações em inglês fluente, perguntando quais as nacionalidades dos visitantes, fazendo graça com bom humor e facilitando o surgimento de um ou outro sorriso, até nos mais sisudos, como o quinteto de coreanos de meia-idade.
Claire percebeu que o grupo tinha apenas quatro brasileiros. Dois casais na casa dos 30, 35 anos.
— Já reparou que quase não tem nenhum brasileiro viajando? — Claire comentou, chegando perto de Kilaim. — Será que a maioria já conhece aqui?
— Bem pelo contrário, mein lieber. É caro demais para a maioria. Sabia que para cada 50 mil visitantes estrangeiros neste hotel, apenas dois mil são do próprio Brasil? Sai mais barato, para eles, darem uma volta pelos demais países da América Latina, e até pelos Estados Unidos, do que viajar pelo próprio país. Os preços são bem abusivos. Quem pode pagar 15 reais por um suco de melancia? E já reparou no preço das diárias desses hotéis? São Paulo, por exemplo, é uma das cidades mais caras do mundo, e já foi a mais cara das Américas. Mas não somente ela; de modo geral, os pontos turísticos aqui no Brasil são muito caros, reservados para poucos da própria terra. Pelo menos, se quiserem viajar com estilo. Já os que se contentam com menos glamour, tipo o Piscinão de Ramos, Peruíbe ou cidades do interior dos estados...
— Mas que coisa injusta, n’est-ce pas?
— A vida é boa para os ricos.
— Também não é assim. Dinheiro não traz felicidade.
— Mas ajuda bastante! Ainda bem que você está comigo, parce que se fosse esperar e pedir para Deus, ia ficar mais difícil. “Bem-aventurados os pobres”...
— “Bem-aventurados os pobres de espírito, parce que deles é o Reino dos Céus”. — Claire deu um tapinha no braço de Kilaim, sabendo que ele estava brincando.
— Ça va, outra: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus”. — E dava risada, alto, de bom humor: — Ha, ha, ha! Não é engraçado? Aaah!
— Muito engraçadinho você. Não comece!
Enquanto Juca conversava com os hóspedes — era fluente também no espanhol —, tirando dúvidas e respondendo a perguntas das mais diversas, outros funcionários do hotel foram aparecendo para cuidar da bagagem dos visitantes e encaminhá-los ao check-in. Eram todos jovens e simpáticos, mas não tinham a mesma fluência no inglês e não era esperado que se relacionassem com os turistas — eram apenas porteurs.
Uma moça de traços indígenas, muito nova, chegou quase em seguida. Vestia um traje indígena típico, feito com penas coloridas e flores, e deu a cada um deles um colar de contas pintadas à mão.
Claire sorriu e se inclinou, agradecendo à índia pelo colar; mas ela olhava quase o tempo todo para Kilaim, meio de esguelha. Algumas vezes, esquecida de disfarçar, olhava-o diretamente, quase hipnotizada. Mas seus olhos estavam estranhos, e Claire percebeu que, por algum motivo, o gigante francês parecia despertar-lhe certo temor.
Claire olhou para a moça e perguntou seu nome, uma das poucas coisas que sabia falar em português. A jovem de pele morena respondeu algo que Claire não entendeu, então a índia apenas disse:
— A tradução seria “Flor Nascente”. — Continuava olhando para Kilaim.
Kilaim olhou de volta, de repente, com seus negros olhos. Flor Nascente baixou a cabeça de imediato, parecendo desconcertada, e deu alguns passos para trás. Depois, sumiu. Nem fez muita festa para os outros hóspedes, o que, realmente, acabou por parecer um pouco estranho.
A pouca bagagem de Kilaim e Claire foi levada para dentro do pavilhão principal. Logo que se registrassem devidamente, as malas seriam encaminhadas à cabana deles — uma das exóticas Casas de Tarzan —, que ficava distante da área principal, em meio à copa de árvores fortes e enormes. Outros guides touristiques se juntaram a Juca — um rapaz e uma moça que, aparentemente, haviam chegado de um passeio com outro grupo e que agora estava a se preparar para o almoço. Os três ficaram um tempo por ali, mostrando os macaquinhos para os mais interessados. Outros, aparentemente necessitados de um banho urgente ou alguns litros de água extra, deixaram para depois.
Claire não arredava o pé. Ela e Kilaim ficaram se divertindo e conseguiram acariciar e dar as mãos para os pequenos animais.
— Como sua mãozinha é macia! — Claire falou com surpresa.
Carinhosamente, ela apertava a mãozinha minúscula enquanto olhava o bichinho dentro dos olhos. Ele a olhava de volta, já sem medo, curioso. Eram olhos puros, sem maldade alguma. Enquanto ela esfregava as palmas das mãos do macaco, Kilaim, mais uma vez, não pôde deixar de notar como Claire tinha o mesmo olhar dos animais. Simples, puro, inocente.
À medida que os hóspedes foram saindo dali, Juca chegou perto deles outra vez. Kilaim bateu uma foto quando Claire conseguiu erguer no colo, com a ajuda do Juca, um dos macaquinhos mais peraltas. Seu rosto saiu afogueado, vibrando de alegria.
— O Pedrinho gosta de você — disse Juca para Claire.
Ela sorriu, apenas, apertando nos braços o filhote, então Juca falou de novo:
— Pedrinho. — Ele apontou o animal com ênfase. — It likes you.
— Oh! I like Pedrri... Pedrrrino, too. It’s so cute1.
O rapaz tirou do bolso enorme da bermuda uma banana-maçã e a estendeu para Claire, incentivando-a a dar a fruta para o Pedrinho. Ela pegou a banana, nem bem esticou o braço na direção do macaco, e Pedrinho, mais que depressa, pegou a banana com destreza e foi direto para um poleiro a fim de degustar sozinho seu prêmio.
— Nossa! Mas como ele consegue descascar bem a banana! — exclamou Claire, impressionada. — É muito rápido.
Ela já estava habituada ao uso da típica expressão brasileira que denotava espanto, admiração, surpresa. Aquele “Nossa” derivava da expressão “Nossa Senhora!”, uma referência a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil.
Kilaim não estava muito satisfeito com aquele tal Juca perto de Claire, mas ela estava tão feliz que ele nem disse nada. Apenas se aproximou dela por trás, enlaçando-a com os braços pela cintura e marcando território. Juca percebeu, mas não perdeu o rebolado, puxando conversa com ele também, com extrema simpatia. Claire pousou as mãos sobre os braços de Kilaim e, à vontade com o guide touristique, tentava falar num english-portunhol, o que soava bem estranho.
— Preciso melhorar meu inglês — ela disse, voltando o rosto para trás, na direção de Kilaim.
Foi quando notou Pedrinho vindo, sorrateiro, para perto deles outra vez. Claire se desvencilhou de imediato e foi na direção dele, chamando-o pelo nome com delicadeza. Juca estendeu mais uma banana-maçã para Claire. Mais que depressa, Pedrinho a aceitou novamente e foi descascá-la no poleiro.
Kilaim, normalmente, seria mais arisco e desconfiado com um desconhecido do que se mostrava com Juca, especialmente por ele estar dando atenção aparentemente especial a Claire. Mas Juca fez-se tão gentil e carismático, e seu jeito de conversar era tão peculiar e simples ao mesmo tempo, que Kilaim acabou sendo o tradutor da conversa entre os três. Claire fez-lhe várias perguntas, queria saber como escolhera o turismo, se gostava de ser guide e o que mais lhe agradava na profissão.
— Ser guia sempre foi meu sonho. Meu velho também era, mas lá na Bahia, em Salvador, né? Ele sempre dizia que, pra tu se dar bem nisso, tem que gostar de gente, né, não? De tooodo tipo de gente, gostar de conversar com gente, estar no meio de gente, de mostrar as coisas, aprender e ensinar. Eu amo Natureza, planta, bicho, mato, água. Amo! Quanto mais aprendo, mais quero aprender. Então, se tu faz o que o coração manda, faz bem. O que mais gosto é conhecer gente do mundo todo!
— Ela também adora Natureza e bichos — traduziu Kilaim. — E como aprendeu inglês e espanhol?
— Oxe, foi o mais difícil; minha família tem dinheiro, não, moça. É gente trabalhadeira, mas simples; minha mãe veio lá das roças de cana-de-açúcar, lá de Pernambuco. Mas meu velho era sonhador, queria conhecer o mundo. Não conheceu, mas foi feliz como guia, mostrando o seu mundo para os turistas. Sabendo do meu coração de guia, ajuntou com meu avô e meu padrinho, os três fizeram uma vaquinha na parentela toda, escondido de mim, e me deram um presente do dinheirinho guardado no colchão. O tanto pra ir daqui pros States! A passagem eu ganhei deles, mas lá precisava me arrumar. Tranquei a matrícula na faculdade por um ano e fui. Trabalhei de tudo que foi coisa, peão de obra, entregador de pizza, garçom. Daí aprendi, né? Aprendi inglês, e falava melhor ainda que português, porque não dependi só da vivência; caí nos livros também. Espanhol, aprendi com uma amiga porto-riquenha que conheci nos States.
— Parabéns — disse Kilaim, traduzindo o elogio de Claire. — Desejamos toda sorte para você. Agora, se nos dá licença... — acrescentou Kilaim, puxando Claire pelos ombros.
— Ok, nos veremos mais tarde! — acenou ele.
Longe do Juca, Kilaim ficou totalmente à vontade e até posou para uma foto antes de entrarem no pavilhão. Claire registrou o momento em que ele se colocou bem pertinho de uma rede onde havia três macaquinhos amontoados, juntinhos, observando tudo com olhinhos espertos.
Kilaim foi arrastando Claire para dentro, puxando-a pela mão. Entretanto, ela notou um casal de araras supercoloridas que os acompanhava com os olhos, de seu poleiro dentro de uma casinha toda aberta, só com telhadinho. Um tucano fazia companhia às araras, não muito distante, sobre a balaustrada do corredor de palafitas.
— Olha, Kim! Que lindas! E olhe o tucano.
— São lindas mesmo. O bico do tucano é incrível — respondeu Kilaim pegando a câmera e batendo mais algumas fotos.
Depois entraram, de mãos dadas, e se aproximaram do balcão da recepção para o check-in. O lugar era realmente rústico, todo construído em madeira. Felizmente, ali dentro, o ar-condicionado fazia seu trabalho, e estava muito agradável. Havia vários tipos de sucos regionais para receber os turistas que chegavam para o almoço, de modo que Kilaim e Claire voaram na direção da mesa, atraídos pelas cores e pelas gotas d’água que escorriam das jarras.
— Mas que sede! — disse Claire.
— Quer ir até o quarto ou almoçar primeiro?
Ela sabia que Kilaim já deveria estar com fome, pois era quase meio-dia.
— Vamos almoçar — ela assentiu.
Os macaquinhos foram atrás até onde puderam, o que incluía o refeitório. Claire logo percebeu, para sua alegria, que não haveria como se livrar deles durante a visita, pois brincavam por ali o tempo todo.
O restaurante tinha uma curiosa galeria de famosos cheia de quadrinhos de madeira com fotos e o nome dos muitos visitantes importantes já recebidos ali, o que incluía príncipes, chefes de Estado, empresários, artistas e atletas mundialmente famosos, dentre outros.
— Rei Juan Carlos, presidente Lula, Bill Gates... Alanis Morrissete, Sylvester Stallone... Jacques Cousteau... — ia recitando Claire, enquanto olhava as fotos.
— E, agora, nós! — brincou Kilaim, abraçando-a.
* * *
No Reino Paralelo, os sete Anjos que guardavam Claire, sob o comando de Sol, estavam à espera. A luz de cada um deles resplandecia, às vezes uma se misturando à outra, mas sem ser contemplada por olhos humanos. Eram guerreiros de alta hierarquia, cheios de força e poder.
O relatório dos espias fora bastante satisfatório, de modo que o grupo angelical não tinha sido pego de surpresa pelos batedores inimigos, que haviam chegado durante a madrugada.
Sol, de olhos claros e cabelos escuros, estava parado ao lado do seu principal companheiro, o arqueiro louro, e eles se posicionavam à frente de Claire; Sol à direita, o louro à esquerda. Atrás dela, havia outros dois: um à direita, outro à esquerda. Os demais formavam um triângulo ao redor do grupo central: um batedor bem mais à frente e outros dois na retaguarda, numa diagonal longa com os dois que estavam às costas da protegida.
Quando os batedores negros foram vistos, vinham do Sul. Provavelmente partiram da região central do país, onde Leviathan deveria estar no momento. Os três Anjos da formação externa se aproximaram dos outros quatro, num anel de proteção mais fechado.
Abadom não estava com os batedores. Aquele não era seu território, mas ele costumava aparecer de vez em quando e ficava perto de Kilaim, observando e avaliando a situação como um todo, mas sem oferecer provocações. Os Anjos sabiam que Abadom, o príncipe da destruição, sondava o terreno.
Da última vez em que estivera no Brasil, porém, dias atrás, exibia um ar de regozijo triunfante que irritou, particularmente, o Anjo louro. Ele ergueu o arco, tão grande quanto ele próprio, de súbito e, com a postura tão perfeita que seria difícil imitá-lo, num único movimento, colocou o nock da flecha na corda a fim de, sem pensar — porque aquilo fazia parte dele —, partir para o ataque.
Mas Sol, o responsável pela Guarda, adivinhando-lhe os pensamentos, segurou o arco com força, deixando bem claro que não havia ordens para confronto direto.
Os batedores esperados, por fim, chegaram perto. Era um grupo de cinco, todos com aquele ar de arrogância que exasperava os guerreiros angelicais. Ninguém falou nada. Os cinco demônios se posicionaram lado a lado, a certa distância dos sete Anjos. No centro do grupo demoníaco estava o príncipe das águas, com sua aparência reptiliana. Era o enviado de Leviathan, Dagom; um dos principados regionais da Amazônia.
“O que você quer aqui?”, indagou Sol de imediato, dando uns passos à frente, na direção dele.
“Você é que está no meu território”, Dagom respondeu, sem cerimônia, igualmente se aproximando de Sol. Ele tinha olhos alongados, como os de um indígena, e ergueu o pergaminho, seu grande trunfo.
Todos já sabiam de que se tratava. Era uma autorização do Altíssimo.
Com maus modos, Dagom estendeu o pergaminho bem diante do rosto do Anjo. Mais perto do que o necessário. Sol leu. Era um documento verídico. Nada havia a ser feito diante daquilo, a não ser deixá-lo passar. Tinha autorização para tocar em Claire.
Agrupados, os outros demônios se aproximaram também, olhos avermelhados de maldade e risos de dentes pontiagudos.
Faltavam dois minutos para o meio-dia: horário em que o ritmo biológico do ser humano está mais lento e vulnerável. A chance de um demônio acertar uma seta eficaz nessa hora é maior. Por isso, a Bíblia falava da “seta que voa ao meio-dia”. Por isso, Jesus foi crucificado ao meio-dia. Era seu momento de maior fraqueza.
Dagom olhou para Claire, sentada à mesa com Kilaim. Viu a fenda no campo energético dela e ergueu a longa zarabatana de dois metros de comprimento, que era de ouro e estava coberta de desenhos em relevo. Em seguida, ajustou o dardo de veneno, cuja essência era medo e angústia. Os Anjos apenas observavam, sem poder intervir.
O demônio apontou para o coração de Claire, onde a couraça da justiça não estava bem ajustada por falta de orações. Um sopro poderoso e o dardo lançado a incrível velocidade acertou em cheio. Se pudesse, Sol receberia o dardo no lugar dela, mas procurou não esboçar reação.
Depois daquilo, Dagom e os outros quatro demônios se afastaram um pouco, dando distância segura, e ali ficaram. À espreita. Não iriam arredar pé.
“A prova dela começou”, disse o Anjo louro, observando Claire, sondando sua mente e seu espírito.
“Espero que ela seja aprovada para a honra do Cordeiro”, respondeu Sol, com ar grave.
“Nós não podemos mesmo fazer nada?”, volveu um terceiro Anjo. “O que estava escrito no pergaminho do Altíssimo?”.
“Não podemos intervir”, foi tudo que Sol respondeu. “Esse momento ela terá que passar sozinha.”
Mesmo impedidos, agora, de se aproximarem, os demônios ficaram à espera dos resultados.
* * *
Claire, diante do prato, por algum motivo, perdeu a fome. As comidas que sempre despertavam seu paladar pareciam insossas, e ela parou logo de comer. Pediu uma sobremesa, mas só conseguiu beliscar um pouco.
— Não está bom? — indagou Kilaim surpreso.
— Está. Acho que eu é que não estou com muita fome. Deve ser esse calor todo... — Ela ficou quieta por alguns instantes, os braços caídos sobre o colo.
Ficou olhando para o prato do namorado, que ainda não terminara sua refeição.
— Estou com uma sensação tão esquisita... — admitiu a garota, por fim.
— Que quer dizer? — Ele a encarou com cuidado. — Está se sentindo mal?
— Non... quer dizer, um pouquinho... eu acho.
— Mas, o que é exatamente?
Ela hesitou um pouco. Mas, depois, cedendo àquilo, respondeu meio aflita.
— Como se algo ruim fosse acontecer... Alguma coisa... Que não é boa.
Kilaim, de imediato, soube. Ele quase falou em voz alta, mas se conteve a tempo.
“O que será que esse tal Anjo que ela diz poder sentir estava fazendo?”, ele se perguntou, irritado, e um pouco preocupado. “Que imbecil incompetente, pela sombra do Abismo...”.
O antídoto era um só: não se entregar. Então, Kilaim não demonstrou atitude negativa alguma.
— Ah, Claire, não é nada. Procura pensar em outra coisa. Nada vai acontecer... O que poderia acontecer? — Esforçou-se para fazer a voz soar natural.
Mas Claire colocou a mão sobre o peito.
— Parece que está abafado aqui... estou com uma falta de ar.
Discretamente, Kilaim tomou o pulso dela. Os batimentos estavam um pouquinho acelerados, mas sem nenhuma arritmia.
— Está abafado parce que aqui é a Amazônia, né? — disse ele, procurando brincar.
— Non. Não é o calor. Parece que à nossa volta está abafado, como se fosse... je ne sais pas...
— Está tudo bem, mon amour. Não dê vazão a esses sentimentos — falou com tanta confiança e convicção que Claire achou estranho.
— Pourquoi? — Será que ele sabia de alguma coisa que ela não sabia?
— Pourquoi? — Kilaim repetiu. — Parce que está tudo bem.
Mas Claire estava nervosa. E, de nervosa, de repente, estava com medo.
— Kim, tem certeza de que está tudo bem? Você não está sentindo nada estranho aqui à nossa volta?
— Baby, apenas não pense nisso. Não dê vazão a isso.
Ele segurou as mãos dela entre as dele. Estavam frias, porejando suor. De repente, o jovem teve uma ideia:
— Se você orar, não vai se sentir melhor? — Ele nunca imaginou que diria algo assim, fosse a quem fosse, especialmente a Claire.
A garota olhou para ele e aquiesceu.
— Tem razão...
Baixinho, ali mesmo, na mesa onde estavam, ela engoliu as lágrimas de angústia que já se preparavam para despencar pelo rosto e pediu proteção a Deus. Diante do pedido, os Anjos se aproximaram mais e trouxeram uma sensação de alívio momentâneo.
Mas não podiam retirar o dardo envenenado.
* * *
Dois dias depois, antes do jantar, Claire desabou sobre a cama antes mesmo de tomar um banho.
“Só vou descansar um pouco, depois crio coragem para entrar no chuveiro”, ela pensou.
Aquilo não era de seu feitio, notou Kilaim. Ela vinha meio apagada desde aquele almoço, mas era uma reação ondulante. Havia momentos em que Claire estava totalmente normal, cantarolando os refrãos das músicas de que gostava, dando risada, com a alegria de sempre. Em outros, ela despencava, sentindo-se angustiada ou com medo de alguma coisa indefinida. Então, Kilaim a incentivava a mudar de foco.
De vez em quando, Claire orava um pouquinho, mas o fazia por obrigação, pois não tinha vontade de orar.
Kilaim entrou primeiro no banheiro, deixando Claire relaxar um pouco. Ela não disse nada, mas sentia-se realmente indisposta. Cobriu-se com a colcha e ficou quieta, meio acordada, meio cochilando.
Quando Kilaim saiu, a toalha enrolada na cintura, estranhou mais ainda. Por que ela se cobria, se estava calor? E aquele cansaço repentino, se até há pouco estivera jogando vôlei com alguns hóspedes, na piscina? Seria o coração...? Um calafrio percorreu seu corpo. Nem queria aventar tal hipótese.
Muito preocupado, sentou-se com cuidado ao lado dela, a fim de observá-la. Mas o movimento suave que ele causou sobre a cama foi suficiente para fazer a garota abrir os olhos. Estavam avermelhados, sem brilho. E não foi o sorriso de sempre que se estampou em seu rosto.
— Oi, Kim... Acho que acabei cochilando sem querer. — Ela fez menção de se levantar.
Kilaim segurou-a com delicadeza pelos ombros, fazendo com que continuasse deitada.
— Ce qui se passe, mein lieber? — Ele debruçou-se sobre Claire.
— Rien... não é nada — ela respondeu, passando os braços ao redor dele, apertando-os em torno de seu pescoço.
Mas Kilaim ergueu-se de imediato.
— Você está com febre. Posso sentir no seu corpo.
Claire ficou quieta, porque sabia que algo não estava bem. E reclamou:
— Estou me sentindo mal. Fadiga, muita dor de cabeça. E, oui, estou com febre.
As lágrimas que a moça queria evitar começaram a cair, profusamente.
— Tenho medo de que seja o transplante. Alguma rejeição, uma infecção — ela soluçou alto —, não sei...
— Calma, baby. Está sentindo falta de ar, o coração está disparado?
Ela negou.
— Alors, pode ser que seja outra coisa, bem mais simples.
— Pode ser... — Claire fungou. — Mas também pode não ser...
— Claire, acalme-se. Tudo vai dar certo. Primeiro, vamos tomar algo pra essa febre baixar. Assim você se sente melhor e podemos pensar com calma.
Ele foi até o armarinho do banheiro, onde tinham dipirona, anti-inflamatório, antiácido e antialérgico — medicações indispensáveis para aquela viagem. Remexeu nas caixas, mas estava com um mau pressentimento. Bastante.
Trouxe a dipirona, mas aí se lembrou de que, em caso de suspeita de dengue, aquele medicamento era contraindicado. Por mais que fosse assustador, ele não poderia descartar a dengue. Então, ligou para a recepção pedindo que lhe arrumassem paracetamol. Naquela lonjura de tudo, pelo menos o hotel tinha o bom senso de ter alguns remédios básicos ali mesmo.
— Logo, logo, você vai estar melhor. — Kilaim veio de novo para perto dela. — Quer se sentar e comer uma fruta enquanto esperamos pelo remédio? — Ele não sabia o que fazer. E deixá-la mais preocupada estava fora de cogitação.
— Non. Não tenho fome. E minha garganta está muito dolorida. — Ela puxou a coberta até o pescoço. — Estou com frio e com sono.
Aquilo era alarmante: Claire não querendo comer. Querendo dormir fora de hora.
Então, ele se sentou na cama ao lado dela e acariciava seus cabelos, até que bateram na porta.
— Enfin!
Uma camareira veio entregar o frasco de Tylenol na cabana.
Kilaim colocou 45 gotas no copo e o estendeu para Claire. Ela se aprumou sobre os travesseiros.
— Meu corpo inteiro dói. — E bebeu o medicamento fazendo uma careta.
— O Tylenol vai ajudar nisso, amore. Provavelmente é o começo de uma gripezinha. Agora, tudo a fazer é descansar.
Mas ele estava inquieto.
— Kim, me perdoe por toda essa chatice da minha parte, estragando tud...
— Cachu, não fale mais nada. Deixe de besteira! Estou aqui para cuidar de você.
Ela se deitou de novo e dormiu quase em seguida. Kilaim deixou-a cochilar, enquanto tentava entreter-se, em vão, com o jornal. Olhava para ela o tempo todo, via seu peito subindo e descendo compassadamente e, volta e meia, com o máximo cuidado, lhe tomava o pulso. Parecia normal, apenas um pouco acelerado.
A noite vinha caindo.
Ele sabia que havia espíritos regionais da Amazônia por todo aquele território. Pensou em chamar por Leviathan ou ligar para Zor. Mas desistiu. Iam dizer o que ele não queria ouvir. Iam dizer que a tinham atingido, e Kilaim acabaria por brigar com todos por causa disso. Maldito silêncio forçado! Era difícil ter que conviver com aquilo, logo ele, que sempre tinha se comunicado abertamente com as entidades.
Mas, por outro lado, poderia ser mesmo apenas uma virose. Mesmo assim... que virose? Ia desde uma gripe até algo bem mais sério.
O rapaz decidiu esperar um pouco mais para ver como o organismo dela reagiria. Pediu uma refeição bem leve: purê de batata, carne moída e vitamina de mamão, banana e laranja. Coisas fáceis de comer, que o hotel preparou especialmente para ela.
— Vocês, Anjos, não pretendem fazer nada, não? — vociferou ele, em voz baixa, segurando a bandeja de comida. — Ela é sua protegida. Hellooo!
Kilaim chamou Claire, baixinho. Eram umas nove da noite. A moça já tinha dormido algumas horas, e ele precisava ver se ela estava um pouco melhor.
— Claire... Pedi uma comidinha para você. Espero que goste.
Claire passou a mão pelos olhos e foi se sentando com a ajuda dele, recostando-se nos travesseiros. Kilaim colocou a bandeja sobre seu colo.
— Olha só, tudo bem fácil de engolir. Como está sua garganta?
Ela balançou a cabeça, várias vezes, numa negativa.
— Acho que nunca doeu tanto... nossa... — Claire pegou o garfo e juntou um pouquinho do purê, levando à boca. Engoliu com dificuldade.
Kilaim assistia àquilo com um desconforto ainda maior que o dela, mas fez todo o esforço possível para não parecer muito preocupado.
— Você tem tomado os seus remédios direitinho?
— Bien sûr. Como um relógio, você bem sabe. Não se preocupe, acho que não é nada com o coração. Se fosse, deveria dar algum sinal específico...
Ela se esforçou e deu algumas garfadas, depois passou para a vitamina, que foi tomando devagarzinho. Também causava desconforto. E não havia necessidade de termômetro para notar que ela continuava queimando de febre, apesar da dose de Tylenol.
Depois que ela conseguiu comer um pouquinho, Kilaim sugeriu que entrasse no chuveiro morno, quase frio, em mais uma tentativa de baixar a febre. Ele foi à frente e regulou a temperatura da água. Claire saiu da cama tiritando, despiu-se, deixando cair no chão o short, a camiseta e o biquíni que usava por baixo. Entrou no chuveiro.
— Ai, que ruim...!
Os pelos do corpo dela se arrepiavam, mas mesmo assim deixou a água escorrer pela cabeça, por tudo. Passava o sabonete sobre a pele, rapidamente, numa tentativa de se esquentar um pouco. A pele estava muito sensível; e os músculos, bastante doloridos. A água incomodava ao bater neles.
Kilaim ficou ao lado de Claire, esforçando-se em conversar de outras coisas e ajudando a passar xampu e condicionador nos cabelos dela. Depois de 15 minutos, tinham terminado. Num primeiro momento, a pele dela estava mais fresca; e o rosto e os olhos, menos avermelhados.
Kilaim encostou seu rosto no dela, sentindo a temperatura.
— Parece que está melhor, minha querida. Como se sente?
Depois de vestida com uma calça de moletom e uma camiseta de mangas compridas de Kilaim, ela sentia-se mais disposta. Mesmo a camiseta sendo gigante, o cheiro dele estava nela e a fazia sentir-se confortável. Pediu para ligar a televisão.
— Pelos principados do inferno — murmurou Kilaim, sem perceber.
— Você não vai jantar, Kim? Só eu é que comi. Já são quase dez da noite.
— Na verdade, nem tive fome.
Ela riu, meio desanimada.
— Você, sem fome?
— Tem razão. Vou pedir alguma coisa.
Depois de fazer o pedido de sanduíche e batatas fritas, foi ficar perto de Claire, que estava recostada de novo sobre os travesseiros, mas com um ar bem melhor. Contente, ele se ajeitou ao lado dela, fazendo com que apoiasse a cabeça em seu ombro.
Depois de um tempo, o lanche de Kilaim chegou. Ele cortou o sanduíche e ofereceu um pedacinho para Claire, mas ela recusou, sorrindo.
— Já jantei. Agora é sua vez.
Então ele comeu, e os dois conversaram um pouco, enquanto se distraíam com a pequena televisão. Contudo, uma meia hora depois, ela foi afundando na cama.
— Estou tão cansada — explicou. — Vou descansar bastante e amanhã estarei nova...
Kilaim beijou-a na testa com carinho, mas não ficou feliz. O corpo dela estava quente, outra vez.
— É uma gripe, Kim. Essa febre vai durar uns dois ou três dias.
Mais uma vez ele palpou a frequência cardíaca dela.
— Não está mesmo com falta de ar?
— Non. Está tudo bem.
Ele refletiu um pouco.
— Claire, você passou por um transplante, e eu seria um completo irresponsável se não a levasse ao médico.
— Hoje está tarde. Se eu não estiver melhor amanhã, alors, iremos.
A verdade é que, escondido no mais íntimo recôndito dela, o temor pela mera suposição de haver algo de errado com o transplante a inundou novamente. Estava com um medo terrível por causa disso e não queria pensar. Só dormir. Se morresse, preferia morrer dormindo. Por isso, foi se acomodando debaixo das cobertas enquanto Kilaim preparava uma nova dose de Tylenol.
Será que iria morrer...?
“Tudo está bem... meu coração está bem... só estou gripada, com essa história de levantar cedo, dormir tarde e não parar nunca. É apenas minha imunidade que deu uma abaixada... só isso.”
Por toda lei, procurou se convencer disso e ignorou os sintomas. Mas estava angustiada. Tomou o Tylenol e, assim que encostou a cabeça no travesseiro, adormeceu. Quanto a Kilaim, uma noite totalmente insone estava à sua espera, apenas começando.
* * *
Ele deixou somente a luz fraquinha de um abat-jour ligada do outro lado do quarto, longe de Claire, para não a incomodar. A cabana era simples, mas confortável; e da janela era possível entrever, mais ao fundo, através das árvores, a área de onde saíam os barcos dos passeios.
Kilaim estava condoído. Claire tinha achado tudo tão lindo, estava tão encantada, mas mal pudera aproveitar o hotel. Ele só queria que ela voltasse a se sentir melhor, mas nada havia a ser feito, exceto esperar. Tentou ver mais televisão, deixando-a com o volume bem baixinho, mas nada lhe interessava, então a desligou. Também não conseguiu se concentrar em qualquer tipo de leitura.
Por isso, lá pelas tantas, apenas fincou os cotovelos no batente da janela e ficou escutando o barulho da madrugada. A Floresta nunca dormia. Estava bem escuro lá fora, e ele contornava as árvores enormes com o olhar, partindo do tronco e indo até as folhagens mais altas que sua vista podia alcançar. Em um ou outro espaço mais aberto, conseguia contemplar uma parte do céu escuro e algumas estrelas.
Ficou escutando o farfalhar suave de vegetação, o canto dos grilos e das cigarras e o piar de aves noturnas, incluindo sua preferida, a coruja. Apesar de haver diversas espécies de corujas, não importava: ele realmente gostava do som delas. Acima de tudo, a noite se enchia com o coaxar de dezenas de sapos. Para não dizer centenas.
Volta e meia ele olhava para trás, a fim de verificar se Claire estava dormindo tranquila. Estava. Na mesma posição ainda. Pena que não estava acordada, ali com ele, escutando a noite. Ela adorava o barulhão que os sapos faziam!
“Nunca imaginei que sapos pudessem ser tão agradáveis”, ela havia comentado com ele na primeira noite, extasiada, e em quase todas as outras. “Como eles parecem felizes!”.
Felizes. É verdade. Depois que Claire falou aquilo, ele teve que concordar. Era um som tão sui generis, tão gostoso. Parecia que faziam festa: festa para o calor, festa para a água, para a vegetação, para a vida. Pena que, naquela noite, ele tivesse que escutar os sapos sem a companhia de Claire. Tudo perdia o sentido sem ela.
Ficou prestando atenção como nunca fizera antes, melancólico, e viu como um sapo se sobrepunha ao outro, e ao outro, e ao outro, numa sinfonia que transmitia conforto e paz.
Oui. Paz. Como se cada coisa estivesse em seu devido lugar, tudo em ordem, uma ausência de preocupação com o amanhã. O ruído da Natureza trazia alento para a alma, e era exatamente isso que ele desejava. Alento. Conforto.
Mas estava difícil. E então ele saía da janela e se aproximava da cama, dobrava-se sobre Claire, escutando sua respiração, tocando seu rosto, palpando o pulso. Aparentemente, o Tylenol tinha controlado a febre, e ela dormia, sossegada, o repouso trazendo cura ao seu corpo. Ele sorria de leve ao vê-la tão linda, mas estremecia ao pensar na chegada da manhã. Iria saber se Claire estaria melhor ou não.
Nunca teve tanta vontade de se tornar médico como naquela noite! Nunca teve tanta vontade de ser... outra pessoa. Tudo tinha que ser diferente, menos... menos Claire.
Sentindo-se muito sozinho, acabou por tentar um contato com Leviathan. Sua voz soava quase inaudível no ar fresco da Floresta, levada pela brisa.
— Oh, Leviathan, in the name of the hoathahe Saitan, donde estás? Can the wings of the winds hear your voice of wonder? Adagita vau-pa-he zodonugonu fa-a-ipe salada! Vi-i-vau el! Lape zodir IOIADI!
Ele precisava tanto de uma resposta! Kilaim sabia que os demônios estavam ali, por perto, mas não lhe respondiam. Que silêncio irritante. O ar à sua volta era de bronze; o céu, de pedra; e a escuridão se enrolava como fantasma ao redor das árvores. Estava completa e inexoravelmente só. Baixou a cabeça, sentindo a tristeza inundá-lo como um jarro que fica cheio até a boca, e uma lágrima escapou de seus olhos. Eram tantos os motivos de alegria que a simples ideia de suprimi-los causava-lhe um tormento sem nome. Inimaginável.
“Mais até...”. Ele chacoalhou a cabeça, tentando espantar o pensamento. “Mais intenso do que...”. Novamente a cabeça foi de um lado para outro, com força, como se aquilo pudesse impedir a constatação óbvia.
Mas não era possível lutar contra ela. Então, Kilaim admitiu, pela primeira vez, percebendo como seu corpo todo se retesava diante da verdade: “Perder Claire seria um tormento ainda pior do que quando Camille se foi...”.
E aquilo o amargurou muito.
“Ninguém merece isso. Só quem tenha arremessado o Grimories no Mar Morto...”, pensou, tristemente.
Saiu de novo da janela e voltou para perto da namorada e a olhava. Depois olhava o relógio, esperando que a noite passasse logo e ele pudesse ver, enfim, o que lhes reservava o novo dia. Andava de um lado para outro, ansioso, e já não conseguia escutar os sapos, ou ficar namorando as vozes da Floresta. Agora, a noite vagueava sem rumo; o vento estava vazio, e os sons eram apenas sons. A paz que os sapos tinham trazido jazia esquecida, rota, como um tecido velho.
Era tempo demais ali, expectante. O som de uns versos tristes de Neruda ecoava em seu coração, vez após vez, as palavras dançando diante dele como se pudesse pegá-las com a mão.
“Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.
Ouvir a noite imensa mais profunda sem ela.
E cai o verso na alma como o orvalho no trigo.
Que importa se não pôde o meu amor guardá-la?
A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. À distância alguém canta. À distância.
Minha alma se exaspera por havê-la perdido.
Para tê-la mais perto meu olhar a procura.
Meu coração procura-a, ela não está comigo.”
E se perdesse Claire? E se alguma coisa acontecesse, de verdade, e a levassem dele?
Como seria possível sobreviver?
* * *
1 Tradução: Ele é tão fofo!
6
Poison
No Mundo Espiritual, embora Kilaim não pudesse perceber com clareza, havia certa agitação. Os batedores de Leviathan estavam posicionados em pontos estratégicos da Floresta, observando e aguardando pelas ordens. Dagom continuava entre eles.
No quarto, em volta da cama, Sol e seu amigo arqueiro observavam Claire tanto quanto os inimigos. Os demais faziam a guarda do lado de fora da cabana.
“Se esses demônios atacarem, poderemos intervir desta vez, certo?”, perguntou o Anjo louro, agarrando seu arco com ímpeto.
Ele era quase uma lenda por causa da pontaria mais que exímia, sendo capaz de lançar uma flecha dali e acertar perfeitamente um alvo absurdamente longínquo. O problema era ser voluntarioso demais e querer resolver os problemas à sua moda.
“Eles não vão atacar”, respondeu Sol. “Pelo menos, não agora. Vão usar da legalidade que o dardo envenenado criou e, quanto a isso, você já sabe que não podemos exercer resistência.”
Arkheell, o arqueiro, já sabia disso, mas não parava de perguntar o óbvio. Desviou a vista de Sol e cravou os olhos no perímetro que deveria vigiar, mantendo-se quieto. Sol estava com as asas abertas em torno de Claire. Mas seus olhos azuis se turvavam um pouco.
“Não podemos intervir todas as vezes”, continuou Sol falando ao seu amigo, pois entendia o inconformismo dele. “Sem desafios, não há crescimento, portanto, temos que esperar. Tudo isso está debaixo da permissão do Pai. E Mikhael virá hoje.”
Mikhael, o capitão dos exércitos celestiais, chegaria pouco antes do amanhecer, vindo de outro posto. Ficaria acampado ao lado deles pelo tempo necessário.
“Se Mikhael está vindo, é porque tudo tende a piorar”, comentou o louro, um pouco preocupado.
“Por que Jó passou por tanto tormento, mesmo sendo justo? Para que, no fim, pudesse dizer ao Pai: ‘Antes eu Te conhecia só de ouvir falar, mas agora os meus olhos Te veem’. Nós não podemos impedir que Claire atravesse o deserto, mas andaremos ao seu lado.”
Arkheell suspirou. Ele sabia que Sol estava certo. Mesmo assim, ficou com o arco de prontidão, vigiando atentamente. Quanto a Sol, permaneceu quieto à cabeceira da cama. Além de guerreiro, ele era um Anjo de cura. Seus instrumentos, invisíveis aos olhos dos homens e que podiam exercer a medicina que os mortais desconheciam, estavam todos conectados à sua protegida. Com seus conhecimentos médicos, ele avaliava a garota, especialmente o transplante. De vez em quando, usava de sua própria energia para estimular pontos específicos do corpo dela, e sua luz dourada brilhava um pouco mais forte.
Manteve-se assim toda a noite, debruçado sobre sua irmã na Terra. Embora o veneno a tivesse contaminado, não tocaria o transplante. Isso, não. Isso ele podia fazer.
Arkheell se irritava com a arruaça dos demônios de menor hierarquia que se aglomeravam por ali, bisbilhotando, observando Kilaim e suas reações, e que desdobramento teria a situação. Os batedores estavam mais quietos agora, o que não impedia Dagom de lançar olhares enviesados e sorrisos maldosos na direção do arqueiro. Ele era quase tão detestável quanto Abadom.
Contudo, Leviathan não veio naquela noite. De posse dos relatórios que lhe eram enviados, estava apenas à espera do clímax.
* * *
Os primeiros raios de sol começaram a tingir o oriente. Kilaim olhou e, mesmo de dentro da sua tristeza, teve que admitir que era um espetáculo digno de livro de fotografia.
Muito devagarzinho, ao fundo, por entre as árvores, o Rio Negro começava a aparecer para um novo dia. Saía do meio da escuridão como um corvo abrindo suas asas. As sombras em volta dele se enovelavam, recuando, os feixes de luz alaranjada faziam espelhar as águas escuras, desenhavam caminhos coloridos e mostravam os círculos onde os peixes nadavam, numa recepção festiva ao amanhecer.
Kilaim deixou-se tomar pela vista do dia que nascia e pela estrela da manhã tão linda, tão brilhante... ou não era ela? Estava ali, mas... desaparecera.
De repente, uma luz branca passou tão rapidamente pela sua visão periférica que ele virou o rosto para o lado, procurando a origem daquela fonte luminosa. Por um instante, foi como se o sol tivesse nascido do outro lado e lançado um feixe de luz tão intensa que nem parecia manhã. Mas foi só por um instante...
“Deve ser o cansaço”, ele refletiu.
Ele sempre tolerara perfeitamente bem uma noite sem dormir. Mas uma noite insone associada a tanta preocupação por Claire era bem diferente. Sentia-se um tanto quanto esgotado.
Finalmente, o próprio sol despontou, vindo cheio de ouro, aquecendo o céu azul-marinho, transformando-o em puro anil, aos pouquinhos...
* * *
Pouco antes que o astro-rei surgisse, a luz do capitão despontara ao longe, como uma estrela, e os Anjos a viram logo. A luz distante agigantou-se em milésimos de segundos, chegando à cabana com a velocidade de um cometa, como um relâmpago de prata.
O príncipe celestial pousou de leve no teto, iluminando tudo à volta com seu intenso halo branco-azulado. Era como se a própria luz tivesse vida, podendo ser vista a quilômetros de distância. Mikhael não tinha intenção de passar despercebido naquele momento.
O rosto dele brilhava, espalhando luz à sua volta, refletindo-se no cabelo ruivo. Assim como estava, com as impressionantes asas azul-esverdeadas totalmente abertas, era pura realeza. Os braceletes de ouro pareciam de fogo. O peitoral da armadura, muito brilhante, cheio de entalhes e desenhos, maciço e praticamente indestrutível, era fino em espessura e maleável ao toque, ajustando-se a cada contorno de cada músculo. Um material desconhecido ao mundo dos homens.
No pescoço, o Arcanjo Mikhael trazia uma corrente com um símbolo da Jerusalém Celestial, a Morada Eterna; era um símbolo de lealdade, mas também de saudade.
Naquele momento, os opositores tinham, literalmente, volatilizado.
“Nenhum desses informantes vai se atrever a voltar tão cedo”, murmurou Arkheell, satisfeito.
Sol, Arkheell e os cinco outros Anjos da guarda se voltaram para a figura do capitão e o cumprimentaram: dedos indicador e médio direitos tocando o ombro oposto e depois sendo erguidos na direção do recém-chegado, que repetiu o gesto.
“Ell Shaddai!”, disseram os Anjos em coro.
“Que a força Dele vos honre”, respondeu Mikhael.
O capitão trazia na mão a Zharakrustha, aberta apenas com uma das duas lâminas de luz. A luz branca era intensa como mil sóis e emanava grande calor. Mas ele fechou a arma e a colocou na cintura.
Dispensadas as formalidades, o capitão dirigiu-se a Sol:
“Raphaell, como Claire está?”, ele quis logo saber.
“Dentro do esperado. Kilaim ainda não viu as lesões, senão já teria ido para o hospital. Está esperando que ela acorde”, respondeu Sol.
“Pelo que fui informado, ele não sabe bem o que está acontecendo”, volveu Mikhael.
“Está perdido, no momento. Andou fazendo perguntas aos demônios, mas não obteve resposta. Embora intua que Claire recebeu uma seta envenenada, por ora, prefere acreditar que o quadro atual é só uma virose comum.”
“Acha que teremos confronto acirrado em breve?”, perguntou Arkheell, ansioso, interrompendo.
“Talvez”, respondeu Mikhael, olhando firme para o louro, mas deixando passar a interrupção. “Afinal, o objetivo principal deles não é causar a doença, mas conseguir o material. Essa febre, esse mal que tomba sobre ela, é apenas a ponta da lança. Sua atitude será determinante depois disso. Em algum momento, nossa irmã precisará entender que abaixou a guarda e, por isso, foi atingida. Ela é um alvo em potencial agora, mas ainda não percebeu essa realidade. Quando entender, não esquecerá mais de se colocar no esconderijo do Altíssimo e permanecerá alerta.”
“Pois eu gostaria de dar logo a esses demônios o que merecem”, retorquiu Arkheell, mais uma vez, a luz de seu corpo dançando ao redor dele, irrequieta; mas o olhar do capitão fez com que ficasse quieto.
“Quando Claire entender”, o Arcanjo Mikhael continuou, “tornar-se-á um alvo cada vez mais difícil de ser atingido, o que será fundamental para o que vem depois.”
Sol ergueu o rosto e indagou acaloradamente:
“Nosso Pai lhe revelou o que nossos inimigos pretendem? Isto é, depois de recolherem o sangue dela?”.
“Não. Mas ela será provada. Não há outro modo de trazer os filhos para a verdadeira Luz. O Pai prometeu que Seus filhos teriam poder de pisar a cabeça de serpentes e escorpiões. Mas, onde se escondem essas serpentes e escorpiões?”.
“No deserto”, respondeu Sol. Ele já tinha visto aquilo tantas vezes ao longo da História! Moisés, Elias, João Batista, o próprio Jesus.
“No deserto”, repetiu Mikhael, concordando. “Ao provar o deserto, os olhos dos homens se voltam para o Criador. Agora é o tempo dela. Vamos esperar que a fé de Claire reacenda em breve, para o bem dela e do gigante de Lucipher.”
E ele quase repetiu as palavras de Raphaell:
“Não podemos impedi-la de passar pelo Vale da Sombra da Morte... Mas podemos caminhar ao seu lado. Faremos o nosso trabalho, em tempo e de forma perfeita. Estamos aqui para servir e vencer!”.
Sol tirou força daquelas palavras. Mikhael tinha o poder de produzir o melhor da tropa. Mas, ao olhar de novo para a garota adormecida, enterneceu-se. Por alguns instantes, os outros também a olharam. E depois para o jovem postado à janela, tão solitário e tão vulnerável, apesar de achar-se invencível.
“Claire o incomoda com suas ideias”, disse Arkheell, com uma ponta de esperança. “Quase sempre leio a mente dele. Mas não pretende deixar a teimosia de lado tão cedo.”
“A fé dela poderá vir a ser uma fonte de luz para Kilaim. Mas somente a genuína fé, a que nasce do mais profundo âmago, diante das adversidades. Caso contrário...”. O capitão fez uma pausa incômoda. Ele não queria aquele desfecho.
Todos os Anjos olharam na direção dele; eram luzes espelhadas e olhos de luz, esperando.
“Caso contrário, eles serão separados da pior forma”, afirmou o capitão. “Porque a vitória vem em decorrência de se usar bem o livre-arbítrio. Contudo, há muito que acontecer. Tenhamos bom ânimo.” E com voz de indiscutível autoridade, falou: “Agora, vou reorganizar os postos”.
* * *
A passarinhada estava acordando com a manhã, voando, buscando comida.
Nos galhos das árvores, com um infinito de sons e volteios, os habitantes da Floresta indomada despertavam, escapavam da destruição. Um dia mais. Em que Deus olha para a Criação e se alegra.
Kilaim interrompeu o pensamento que adentrava em sua mente. Adentrava nela como um fogo brando... Ou será que saía dela? Será que sempre estivera ali, e fora preciso estar num lugar assim para perceber?
A noite longa chegava ao fim e, com ela, o medo ficava esmaecido. Ele se virou para trás pela milésima vez e olhou para a cama. Claire estava dormindo de lado, as costas voltadas para ele.
Kilaim se aproximou, ergueu devagarzinho a colcha para cobrir a parte de trás do seu pescoço, que se descobrira durante a movimentação dela.
Então, seu sangue parou nas veias. Ou, pelo menos, era possível que tivesse congelado, tal foi o susto que ele tomou. O pescoço de Claire estava cheio de pequenas pápulas avermelhadas, ou seja lá o que fosse aquilo. É claro que não era normal e, sem sombra de dúvida, não significava boa coisa.
* * *
Eles iriam sair do hotel de helicóptero. Kilaim preferia esperar um pouco mais pelo transporte aéreo do que ir de barco até Manaus, pois, no final, ganhariam tempo. E como Claire garantia que se sentia relativamente bem, exceto pela febre e pela dor de garganta, eles aguardaram. O exantema tinha se espalhado por todo o tronco e parte dos braços e coçava um pouco.
A moça estava otimista — ou aparentava estar — para não preocupar o namorado.
— Não há de ser nada — ela disse. — Quando tive rubéola, fiquei assim. Logo estarei boa.
Mas, no íntimo, Claire avaliava se não seria alguma infecção regional, da própria Amazônia. E se ela acabasse por piorar e morrer, do mesmo modo como os índios morreram de gripe e doenças tolas, depois da chegada dos portugueses? Porém, ainda pior... e se não morresse, mas a doença prejudicasse seu coração?
Aquela era uma opção realmente terrível, e ela teve medo. Pela primeira vez, desde que haviam chegado ao Brasil, ela estremeceu e se assustou de verdade. Porém, ao mesmo tempo em que experimentava o medo, conseguia, claramente, perceber que aquilo não era normal. Nem nos piores momentos da sua doença cardíaca ela se sentira assim, apavorada. Não era de seu feitio. E mais: de repente, era como se estivesse vazia. Como se sua fé tivesse se congelado, e somente naquele instante ela conseguisse notar esse fato.
Era um fato.
Não conseguiu orar. Parecia que orar não traria qualquer resultado. Um turbilhão de pensamentos inundou sua mente: estaria mesmo protegida? Ou Deus teria se esquecido dela porque ela abandonara tudo e todos por causa de Kilaim? Afinal, Kilaim era um satanista e, desde o início, ela fizera de tudo para ignorar essa condição. E se não tivesse sido Deus quem o enviara? E se apenas tivesse visto o que queria ver?
Na mente de Claire, começaram a pipocar os textos que falavam dos muitos que abandonaram a fé. Alguns, mesmo depois de terem andado estreitamente ao lado do apóstolo Paulo, até junto do próprio Cristo...
Será que o mesmo poderia acontecer com ela?!
Isso lhe trazia uma sensação de náusea. Pourquoi aquelas pessoas tinham apostatado, tinham deixado Dieu para trás? Como uma coisa dessas podia acontecer com alguém, depois de ver o poder de Cristo, o poder dos apóstolos?
Claire estava mais apavorada com essa possibilidade do que vir a sofrer um revés com seu coração. Se seu coração parasse, ela ainda teria Vida Eterna no Céu. Mas, se abandonasse a fé, o que lhe restaria?
Claire lutou para engolir as lágrimas e o café com leite que Kilaim pedira para ela. Era a única coisa que aceitara pôr no estômago, porque o calor da bebida acalmava um pouco a dor de garganta. Enquanto tomava, olhou ressabiada para Kilaim. Não queria que ele conhecesse seus pensamentos. E ele, que olhava fixo para ela, tentava, igualmente, parecer calmo.
— Já, já, vamos saber o que você tem — ele falou, esboçando um sorriso.
Claire tentou, mas não sorriu como deveria. Estava apática. E isso o namorado nunca vira; nunca vira Claire assim, derrubada.
— Não se renda a esses sentimentos, meu amor... — ele tentou encorajá-la. — Tudo vai ficar bem. Você verá!
Ela o amava tanto! Kilaim tinha o DNA de Lucipher, era filho do Mal, podia ver e falar com os demônios. Então, ele era do Mal. Mas lhe fazia tão bem! O filho do Mal era bom para ela...
E se, em vez de Kilaim ter que escolher, ela é que precisasse fazê-lo? Nunca tinha pensado dessa forma. Que uma decisão tivesse que partir dela, fosse qual fosse.
Kilaim voltou a andar de um lado para outro dentro da cabana tão logo viu que Claire tomou o leite e se acomodou deitada, outra vez. O helicóptero não tardaria.
Ele não queria ter que levá-la ao hospital, realmente não queria. Se, de fato, fosse uma maldição enviada pela Organização, não iria retroceder pelas vias comuns, e um hospital não era o lugar mais seguro do mundo, nesse caso. Poderiam acabar à mercê dos satanistas muito facilmente. Um único médico da Organização poderia acabar com a vida de Claire.
Por outro lado, iria se arriscar a esperar demais? Como negar atendimento médico a Claire? Se morresse, seria culpa sua, de um modo ou de outro.
“Por todo o fogo do Inferno, como ter certeza do que fazer?”, ele estava explodindo por dentro.
Não havia opção, exceto ir direto ao pronto-socorro do melhor hospital particular manauara. Eram seis da manhã quando saíram do hotel.
* * *
O saguão de entrada não estava muito cheio, mas havia várias macas, médicos e pessoal de enfermagem atarefado por ali. O casal foi atendido em um consultório contíguo por uma médica jovem, de nome Geísa Amarante, como Kilaim bem reparou ao olhar para o crachá que ela usava.
— Bom dia! — cumprimentou a doutora, indicando as cadeiras diante da pequena mesa do consultório. — O que aconteceu?
Kilaim explicou, em nome da namorada, como surgiram os sintomas no final da tarde anterior, e como, depois, durante a noite, apareceram as lesões. A médica fez as perguntas cabíveis e, por fim, também ficou inteirada acerca do transplante. Diante disso, o rosto dela ficou mais sério. Quis saber as medicações que a moça tomava e como vinha a evolução do quadro cardiológico. Kilaim perguntava alguma coisa, esporadicamente, para Claire; mas, na maioria das vezes, ele mesmo respondia às perguntas.
A médica era canhota, de modo que o gigante cravou os olhos no dorso da mão dela, procurando por uma marca que ele conhecia muito bem. Não havia nada. Em alguns casos, a marca poderia ficar noutro lugar. E mesmo que a médica não pertencesse à Organização, poderia ser “usada”.
Ele procurou aguçar seus sentidos espirituais. Contudo, desde que deixara a Organização, eles estavam menos nítidos, superficiais, como que cobertos por uma névoa espessa.
Naquele momento de tensão, era ainda mais difícil. Para não dizer impossível. Estava tão cego quanto qualquer mortal e isso o irritava.
A médica pediu que a paciente se deitasse na maca e a examinou, encontrando vários gânglios cervicais, axilares e inguinais, fibroelásticos, não muito grandes nem muito dolorosos. Havia um exsudato membranoso na garganta, as amídalas estavam aumentadas e o baço ultrapassava em dois centímetros o rebordo costal esquerdo. O fígado era de tamanho e consistência normais, e a temperatura, de 38,8ºC. O exantema maculo-papular era inespecífico, e os achados de exame físico terminavam por aí. O restante estava dentro dos parâmetros da normalidade, incluindo a ausculta cardíaca e pulmonar, a pressão arterial e a ausência de sinais meníngeos.
— Querida, vamos ter que fazer alguns exames, tudo bem? — falou a médica Geísa olhando para Claire.
— Que exames? — perguntou Kilaim.
— Por ora, de sangue; para ver como anda essa infecção. Mesmo não havendo outros sintomas, vou pedir uma radiografia de tórax para ver o tamanho do coração e dos pulmões. Depois, ela volta e fica esperando pelo resultado do sangue antes de tomarmos qualquer outra medida.
— Esperaremos aqui? — perguntou Kilaim de novo, olhando o relógio de pulso: ainda não eram sete da manhã.
— É claro. Ela fica em observação. Uma infecção nunca é boa coisa em transplantados. Vou ver se consigo que o cardiologista de plantão venha dar uma olhada nela.
— Tem ideia do que possa ser? — inquiriu o rapaz ainda mais uma vez.
— Olhe, é uma adenomegalia aguda, associada a uma pequena esplenomegalia. E temos esse exantema. Provavelmente, trata-se de uma mononucleose infecciosa ou uma síndrome monolike. Vamos aguardar os exames. — Voltando-se para Claire, que ainda estava deitada sobre a maca: — Alguém já vem colher seu sangue, viu, Claire? O resultado não demora muito.
Claire não entendeu nada.
— Mas você precisa mesmo desse sangue? — insistiu Kilaim, sem preocupação de traduzir o que a médica tinha dito. — Quer dizer, o que vai mudar no tratamento, se é um agente viral?
— Não queremos surpresas, não é mesmo, jovem? Ela é transplantada e, mesmo estando bem agora, se amanhã ou depois houver qualquer problema, vão querer saber o que fizemos aqui no pronto-socorro. Temos que investigar e fechar um diagnóstico.
A médica saiu do consultório, deixando Claire deitada na maca e Kilaim perto da cabeceira dela, nervoso demais para se sentar.
“Por toda a lava que está no lago de fogo e enxofre! Vão tirar o sangue dela... eu deixo tirar ou vou embora, simplesmente?”.
Estava no escuro.
Dez minutos infinitos se passaram, e uma mulher com uniforme da equipe de enfermagem apareceu. Sorriu para os dois e foi muito solícita. Mas era estranha, de um jeito que Kilaim não sabia precisar. Apesar da gentileza, havia algo em seus olhos, algo em volta dela... Será? Ou era somente impressão?
Kilaim cravou os olhos na mulher e a observou, às vezes lançando indiretas que só um enviado das Trevas conseguiria entender. Mas a mulher parecia inocente; parecia, realmente, estar ali apenas fazendo seu trabalho. O jovem olhava a mulher, olhava o crachá dela — Dulcimara Souza —, andava de um lado, ia para o outro, olhava para a namorada. O envolvimento emocional com Claire dificultava tudo.
A enfermeira pegou a veia, e Kilaim viu o sangue de Claire esguichar para dentro do primeiro tubo de ensaio que a enfermeira ia retirando de dentro do avental. Mas, de repente, Kilaim estranhou a quantidade. Não acabava mais!
— Espere um pouco. — Ele segurou o braço da enfermeira antes que ela conectasse mais um tubo ao sistema coletor à vácuo.
Claire olhou assustada para Kilaim, sem compreender nada.
— Mas tudo isso? Não era somente um hemograma?
— A doutora Geísa também pediu algumas sorologias e testes para detecção de antígenos virais, ela não disse? E umas provas de atividade inflamatória, um perfil hepático...
— Não, não disse — respondeu Kilaim com grosseria.
— Olhe os pedidos aí. — Sem perder a veia de Claire, a enfermeira permaneceu na mesma posição e fez um gesto com a cabeça, na direção da mesa do consultório.
Kilaim pegou os pedidos de exames e as etiquetas. E começou a ler:
— A médica quer... VCA, PCR, transaminases, toxoplasmose, citomegalovírus, rubéola, HIV... — Ele interrompeu-se, ríspido. — HIV? Mas pra que HIV? Ela não tem isso!
— Ninguém tem estrela na testa, meu filho... — respondeu a enfermeira pacientemente. — É só precaução, é rotina nesses casos. Para que a doutora possa estabelecer o diagnóstico correto. Não tem com que se preocupar. Mesmo porque, as sorologias nem ficam prontas hoje. Vocês vão ter que pegá-las depois, com a doutora, provavelmente no ambulatório. Ou com o infectologista, se ela os encaminhar.
Kilaim resmungou um pouco e não interferiu mais. Tudo parecia em ordem. Mesmo assim, ficou intrigado. Ainda parecia sangue demais.
— Vamos colher urina também, querida — falou a enfermeira. Explicou como deveria ser o procedimento para coletar o material sem risco de contaminá-lo.
Kilaim traduziu, e Claire entrou no pequeno lavatório levando os frascos e o material de higiene. Ele estava subindo pelas paredes, olhando, o tempo todo, para os tubos de ensaio ajeitados lado a lado em uma cestinha engradada. Viu a funcionária etiquetar os frascos e pedir que ele os conferisse. Ali estava o nome de Claire em todos eles...
Não havia o que pudesse fazer, já que era inviável seguir o rapaz que passou logo depois até o laboratório, recolhendo os frascos de Claire e juntando-os a outros frascos, de outros pacientes. O sangue e a urina dela sumiram de vista.
Terminada a coleta, Claire deveria seguir para a radiografia. Ao lado de Kilaim, ela recusou a cadeira de rodas que um auxiliar de enfermagem trazia para o consultório.
— Eu poderr andarrr... Obrrigada — disse Claire, erguendo as mãos.
Mas não houve jeito.
— A doutora Geísa já pediu sua internação aqui no pronto-socorro para aguardar o cardiologista e o hemograma. Não podemos deixá-la ir sozinha. Imagine se você cai, tem um mal súbito — falou a enfermeira. — Sente-se aqui bem quietinha que o Dilson leva você.
Claire olhou para Kilaim, e ele apenas fez um gesto de aquiescência quanto ao uso da cadeira.
— Até mais, filha! — exclamou a enfermeira Dulcimara, sorridente. — Melhoras!
Mais uma vez, Kilaim teve a impressão de haver algo estranho naquela mulher. Lançou-lhe um olhar torto antes de postar-se ao lado da cadeira de rodas. Dilson empurrou Claire até o elevador e deixou-os no segundo andar, na frente do setor de radiografia. Foi rápido. Na volta, Claire foi encaminhada para uma maca na retaguarda do pronto-socorro, onde ficaria no soro até os exames principais chegarem.
Kilaim ia sendo posto para fora daquele recinto interno e teria que esperar no saguão de entrada, como todo mundo. Mas conseguiu ficar com Claire depois de deixar bem claro que a moça não falava português e precisava de acompanhante. Sendo assim, foi-lhe permitido, e ele ganhou uma cadeira plástica cujas pernas se abriam demais cada vez que se sentava. Era melhor ficar em pé.
Ele ficou aflito quando conectaram o equipo de soro nela. O líquido transparente começou a gotejar na sua veia, e, a cada gota, a mente dele pinicava junto. Não podia fazer nada. Isso era o pior... Esperar. Felizmente, estava ao lado da garota. Jamais iria deixá-la naquele lugar, sozinha, onde qualquer um poderia colocar o que quisesse no soro dela, causando uma parada cardíaca ou algo do gênero; e a culpa seria do transplante.
Assim, muito embora não houvesse espaço para acompanhantes na retaguarda do pronto-socorro, ainda mais no caso de uma mulher adulta, o jovem gigante ficou. Como um cão de guarda, olhando tudo e todos e sempre perguntando se Claire se sentia bem enquanto o soro ia sendo administrado. Se ela tivesse qualquer reação estranha ao soro, por menor que fosse, ele mesmo arrancaria a agulha do seu braço, imediatamente.
Mas nada de errado aconteceu.
Na maca ao lado, uma senhora idosa, com o estado de consciência alterado, chamava pela filha o tempo todo e reclamava que queria ir para casa. Kilaim já estava cheio daquela ladainha e nutria expectativa de que a idosa fosse sedada cada vez que alguém se aproximava. Mas não aconteceu e não havia o que ele pudesse fazer a respeito.
O cardiologista acabou aparecendo no decorrer da manhã, um homem alto sem sotaque nortista, que foi inspecionado metodicamente por um Kilaim de poucas palavras. O profissional conversou com Claire, examinou-a e pediu um eletrocardiograma, já que a mononucleose, principal hipótese diagnóstica até o momento, pode cursar com algumas alterações reversíveis de condução do impulso elétrico do coração.
Satisfeito em não encontrar nada de anormal, o médico (Adalberto Lucas Gianetti, nome que Kilaim arquivou) fez um comentário otimista:
— Você tem um belo coração aí, menina! Parabéns e boa sorte! Não fique assustada — falou com empatia e certo carinho. — Isso tudo aí deve ser mesmo só uma virose chata...
Deu umas batidinhas no ombro de Claire, amigável, enquanto Kilaim traduzia apenas parte dos comentários. Quando o médico estendeu a mão para se despedir, Claire abriu seu sorriso, ainda que o rosto, agora, exibisse algumas poucas lesões avermelhadas e as pálpebras estivessem ligeiramente inchadas.
— Médico enxerido e antipático... — Kilaim rosnou, entredentes. — Colocando esses eletrodos no peito da minha namorada e olhando para ela, esse maldito Don Juan!
Mas era exagero da parte dele.
* * *
Perto da hora do almoço, a doutora Geísa Amarante veio com o resultado dos exames na mão.
— Claire, você está bem! Quer dizer, dentro do possível, né, querida? Sei que está indisposta, mas o hemograma apresentou um aumento não muito grande dos leucócitos: estamos com 16 mil, à custa, principalmente, de linfócitos; 30% deles são atípicos, o que nos ajuda no diagnóstico; a hemoglobina está normal; e as plaquetas, um pouco diminuídas. As transaminases aumentaram um pouco, mas era esperado, e...
— A senhora pediu sorologias? — disparou Kilaim, querendo testar entendimento.
— É, eu pedi, sim. E mais uns poucos testes. Mas vamos ficar com nossa hipótese de mononucleose aguda, por ora, que é a causa mais comum desse tipo de síndrome que a Claire está apresentando. Se as sorologias apontarem outro agente, ficamos sabendo com certeza. Mas não muda muito o tratamento, tá? Ela vai pra casa com medicação de suporte: antitérmico e anti-inflamatório. E...
— Não precisa de antibiótico para a garganta? — aparteou Kilaim.
— É o que eu ia dizer. A garganta dela não tem aquela “cara” de infecção bacteriana clássica, sabe? Mas, como ela é transplantada, vamos entrar com o antibiótico. Não queremos que essa infecção se espalhe. As chapas de radiografia estão normais. Portanto, repouso relativo: não tem necessidade de ficar de cama, mas não pode exagerar. Bastante hidratação, comer o que tem vontade, pelo menos um pouco, tá, querida? Você pode ir agora! Está “de alta”. Quando melhorar, vai poder continuar aproveitando sua viagem. Um abraço, um abraço!
Kilaim estava mais que feliz em sair dali. Aparentemente, tudo tinha corrido bem. Nenhuma daquelas pessoas era satanista, a virose poderia ser, apenas, uma grande coincidência e, se havia resultado de exames, sinal que o sangue não tinha desaparecido do laboratório.
Contudo, se ele avaliasse a situação um pouquinho melhor, com mais razão que emoção, veria que isso não anulava qualquer possibilidade de a Organização estar por trás daquilo.
* * *
Uma parte do sangue de Claire fora desmaterializada por Dagom. Nem bem a enfermeira tinha entregado os frascos ao rapaz do laboratório, o demônio pegou um, levando, imediatamente, para a França. Um tubo de ensaio bastava.
Kilaim fora enganado. Apesar de ter o DNA de Lucipher e grande inteligência, era passível de erros. Ao ser colocado naquela situação estressante, se perdeu. A mononucleose, causada pela seta envenenada de Dagom, era somente uma cortina de fumaça. Agora eles poderiam lançar a verdadeira seta de maldição.
— Se até o próprio Adão, que tinha o DNA de Deus e uma íntima comunhão com o Criador no Jardim, foi enganado pela Serpente... — comentou Zor, bastante animado, ao receber o sangue. — Kill, obviamente, não está acima disso. Embora ele continue pressentindo as entidades, seu dom está mais fraco em função das decisões precipitadas. Além disso, a energia da Von Trapp também o atrapalha. Por essa nosso jovem amigo não esperava.
* * *
Na França, agora faltavam dez minutos para o meio-dia, e as seis pessoas estavam reunidas na biblioteca de Zor, em sua casa. Eram os elos da corrente, escolhidos para somar forças e causar a destruição. Era tempo de agir.
Naquele dia, não seria usado o pentagrama; seria ainda pior. O antigo símbolo pagão, o hexagrama, era mais poderoso.
Todos estavam prontos, usando apenas túnicas com a figura de um hexagrama grande nas costas e um menor, na frente. Ao pescoço, colares com um hexagrama pendurado na ponta. Embaixo do tapete da biblioteca, bem ao centro, estava pintado o grande hexagrama ritual, direto na madeira. O lustre com candelabros, exatamente acima, também tinha o formato de um hexagrama.
Zor estava na ponta do triângulo voltado para cima. O triângulo masculino. Nas outras duas pontas, Anthon Klevtsky e Pierre Lefréve. Maya, Savannah e Maude ficaram no triângulo feminino, voltado para baixo, com Savannah na ponta. Estavam alinhados ao número 666. E, em poucos minutos, a palavra de seis letras seria lançada contra Claire, a única pronunciada no idioma nativo do território em que ela se encontrava:
PÂNICO.
Acomodados e em silêncio, mantiveram-se reverentes até o horário cravado. A principal janela da biblioteca, apontada para o Norte, estava aberta, e o sol entrava por ali, com um vento frio.
O sangue de Claire fora colocado num recipiente próprio e estava no meio do hexagrama. Era a matéria-prima para aquele ritual e seria misturado com veneno de serpente. Como sumo sacerdote, Zor mantinha diversas serpentes em cativeiro, exclusivamente para garantir o veneno para rituais específicos. Naquele dia, usariam a peçonha de uma naja, que já tinha sido recolhida pouco antes, e estava num frasco comum, também no centro do hexagrama.
Agora, a maldição aguardava pelos filhos do Fogo, pairando no ar, pronta para tornar-se realidade. As entidades espreitavam, esperando pelo comando. O momento em que poderiam partir contra sua vítima.
Ao meio-dia em ponto, Zor começou:
— Que a Sombra nos cubra! — disse com voz forte e firme. — Reunimo-nos hoje, aqui, à luz do dia, para invocar um dos poderes mais profundos das Trevas. O pentagrama reúne apenas as forças terrenas e das dimensões inferiores. É capaz de causar danos físicos, doenças, acidentes e perdas materiais. Mas o hexagrama vai além. Este é o único encantamento realizado na hora sexta: a hora em que Jesus foi crucificado. Invocaremos os poderes do hexagrama a fim de reunir a força da energia das estrelas e somá-la à energia escura das entidades que nos cercam. O sol que entra pela janela norte representa o caminho e a rota que essa seta irá seguir. A seta que voa ao meio-dia! Será lançada por essa janela e atingirá o cordão de prata, o cordão umbilical de Deus, por onde Ele mantém a vida daquela que é nosso alvo. Sua energia vital será contaminada com a energia da confusão e da dúvida. Sua aura será desequilibrada, e a alteração do campo eletromagnético também modificará seus modelos de transmissão neuronal. O cérebro dela será afetado e vai experimentar angústia ainda mais profunda, terror, medo inexplicável, desorientação. É o veneno da Serpente. Desse modo, quando o golpe final vier, nossa inimiga sucumbirá a ele fatalmente.
— Hail, Satan! — ecoaram todos, em uníssono.
Zor passou a falar em enochian, e os demais participavam conforme a preconização do ritual.
Por fim, o sumo sacerdote colocou o veneno da naja no recipiente onde já estava o sangue, misturou tudo e, em seguida, recolheu uma pequena parte da mistura numa caneta-tinteiro. Diante dele estava preparado um pergaminho, para o qual o sumo sacerdote se inclinou e escreveu a maldição com caneta-tinteiro, em enochian, movimentando todas as forças existentes.
Ele leu, alto, o que estava escrito. Os demais repetiram, todos juntos, e assim aconteceu por seis vezes seguidas.
— Que o vento sopre a nossa súplica e leve esse éter ao seu destino — falaram, depois, todos os seis.
O pergaminho foi queimado numa pira de fogo cerimonial. Os bruxos estenderam suas mãos sobre o fogo, enquanto Zor continuava guiando o grupo, e os demais repetiam, com vozes convictas e duras, selando o ritual:
— Que o vento sopre a nossa súplica e o éter chegue ao nosso alvo! Pelo poder de Satã, pelo poder do Fogo e das profundezas do Abismo, e pela autoridade conferida a nós pelos príncipes do inferno, declaramos selada essa maldição, irrevogavelmente. Que ela se cumpra para júbilo do inferno e morte dos fracos.
O pergaminho foi consumido, totalmente, desprendendo um leve odor acre.
— Como gratidão, entregaremos, depois, diante do altar, uma vida por essa vida; uma vida com a metade da idade dela.
Todos rejubilaram.
— Salve Satã, salve Lucipher!
Aquilo foi repetido por todos. Em hebraico, em enochian e em latim. Então, subitamente, ao lado do recipiente com sangue e veneno, estava a entidade que viera validar o rito, no centro do hexagrama. Remontando à época dos celtas, ela era cultuada nos rituais secretos dos druidas. O deus que se apresentava em forma masculina naquele tempo era, na verdade, uma entidade feminina: Mithra.
Como o alvo era Claire, uma entidade feminina teria mais chance de ficar invisível durante a operação, de passar despercebida, tanto em relação aos Anjos como ao próprio Kilaim, menos acostumado à energia dos sucubus. Era o perfeito toque de sutileza.
O ar foi ficando impregnado por uma carga de sedução e poder que logo encheu o ambiente, trazendo, ao mesmo tempo, medo e terror indescritíveis. Uma mistura de mel e fel. Os cabelos compridos até a cintura eram vermelhos como brasa; a pele, clara como porcelana; e os olhos, escuros como carvão. Tinha unhas longas e vermelhas, muitos colares de ouro e rubis, brincos de diamantes negros e o antebraço com dezenas de pulseiras estreitas de couro, vermelhas, pretas, lilases. Os braceletes de ouro, em formato de serpente, ficavam mais acima, ao redor dos braços. Mithra também tinha muitos piercings. E o braço esquerdo inteiro fechado por tatuagens incompreensíveis aos humanos.
Os seis bruxos sentiram a respiração mais difícil. Mithra atraía de modo hipnótico, e não se podia tirar os olhos dela. Era como se ficassem paralisados e não pudessem fugir do pavor que ela provocava.
Mel e fel.
Ela olhou nos olhos de cada um, bem no fundo, e fez um pequeno gesto de assentimento com a cabeça. Em seguida, desapareceu.
Zor aproximou-se do recipiente que ficara no centro do hexagrama durante todo o tempo, pegou-o e o levou ao beiral da janela norte, para que evaporasse.
— Está consumado — murmurou Zor. — Como ela é uma protegida de Deus, foi preciso invocar todos os poderes, unir todas as forças. Mas, logo, estará ainda mais frágil que agora, mais vulnerável. Entrará na zona de trevas. Quanto mais longe da Luz, mais perto do Abismo, pronta para ser tragada por ele. Agora, ela será nossa! Aguardemos para que a maldição se cumpra.
Mithra tinha até nove dias para cumprir a maldição.
* * *
7
Léviathan
Uma semana depois, Claire estava completamente nova.
Sua recuperação fora incrível, especialmente em função dos poderes de cura de Raphaell, que pôde ajudá-la a melhorar. Pois logo viria o segundo golpe.
Embora a moça não tivesse percebido a presença do Anjo, a verdade é que, a cada dia, sentia-se mais disposta, com mais apetite e com vontade de se sentar ao ar livre e caminhar um pouco.
Quanto à recuperação espiritual, apenas Claire poderia cuidar disso, debruçando-se diante de Deus e buscando a Sua face. Contudo, não foi isso o que ela fez. Não tinha muita vontade de orar; às vezes por estar divertindo-se com outras coisas, às vezes por pura apatia.
Tarde da noite, punha-se a pensar e repensar, avaliando as argumentações de Kilaim como nunca fizera antes. Teria ele razão em alguma coisa? Ela já tinha visto um pouco do poder que ele possuía, o que, certamente, era só a ponta de um iceberg.
Desejava conhecer mais daquilo... Ou, definitivamente, não? Tinha dúvidas, sentia-se confusa. Por um lado, queria saber de tudo o que ele tinha vivido na seita. Por outro..., agora tinha medo de saber.
Na verdade, tinha medo de muitas coisas. Aparentemente, de tudo. Se estaria protegida. Se Deus realmente a amava. Se Kilaim era a pessoa certa. Se tornaria a adoecer. Se viveria pouco com um transplante cardíaco...
Aquele estado de coisas tinha vindo de mansinho e se instalara, ela nem sabia como. Dizia a si mesma que tinha ficado um pouco traumatizada com a mononucleose tão repentina. Mas o que era uma infecção viral diante de um transplante cardíaco? Ela não se lembrava de ter estado assim nem antes, nem durante, nem depois da cirurgia.
Outra desculpa para o descontrole emocional era estar apaixonada. Se algo ruim acontecesse, poderia envolver Kilaim, e essa era uma ideia insuportável. Na época do transplante, não havia Kilaim em sua vida.
Mas, por vezes, um medo sem explicação a invadia. Parecia escorrer pelas paredes do coração, denso como betume, aos poucos a afogando; e aquilo se traduzia em medo do presente, em medo do futuro, como se algo terrível a aguardasse. Então chorava sem motivo, escondida de Kilaim, aos soluços.
Tudo aquilo não fazia o menor sentido, ela nunca fora assim, jamais tivera esses pensamentos, esses sentimentos estranhos, que vinham em ondas. Em centelhas. Depois, como por encanto, tudo passava. Era um novo dia de sol, cheio de alegrias a serem vividas.
Naquela tarde, depois de um almoço leve, dando preferência a saladas e peixes, os dois ficaram conversando debaixo do guarda-sol, na piscina. Depois, quando o sol já não estava tão forte, aventuraram-se a andar pelas palafitas sobre o rio e descobriram vários caminhos e algumas escadas que facilitavam o acesso à orla da Floresta.
— Vamos conhecer melhor a Floresta quando sairmos para alguns passeios — disse Kilaim entusiasmado. — Agora que você sarou, podemos aproveitá-los bem mais. Também vai ser divertido quando formos visitar a tribo indígena. — Ele passou o braço pelos ombros dela, dando um apertão, puxando-a para perto.
— Será incrível! — respondeu Claire, acertando a passada com o passo de Kilaim, colocando o braço pela cintura dele e apoiando o polegar no cós da sua bermuda. E lembrou: — Será que é a tribo daquela índia que nos deu os colares, no dia da chegada?
— Quem sabe?!
— Será que ela é índia de verdade ou só alguém que trabalha “fantasiada” no hotel?
— Ela é índia de verdade — afirmou Kilaim, com muita certeza.
— Mas como você pode saber?
— Intuição. — E ficou quieto.
— Parecia estar fascinada por você, mas com medo também. Pourquoi?
— Parce que é índia, e tem medo de tudo.
Claire achou graça na argumentação. Os dois continuaram caminhando devagar, sem se importar com o calor, subindo e descendo, batendo fotos, admirados por estarem tão perto da água do rio. Por fim, acabaram em uma longa trilha, não muito larga, ladeada de vegetação. Ouviam o barulho de aves, esporadicamente, conversando uma com a outra, o vento na copa das árvores e o som de seus passos sobre o fofo tapete de folhas.
— Será que a área principal fica longe daqui? — inquiriu Claire, de repente, olhando para trás. — Já nem sei direito onde estamos.
— Não se preocupe. Será fácil voltar por onde viemos.
Mais um tempo de caminhada e eles deram de cara com uma pirâmide de vidro, incrustada em meio a uma espécie de clareira, e onde havia também o que parecia ser um ovniporto (!) com alguns dizeres escritos no chão: “Bem-vindos, irmãos, esta é a terra da paz e do amor”.
— Nossa, mas que estranho — comentou Claire, com as mãos à cintura. — Não parece algo muito amazonense, n´est-ce pas?
Kilaim ergueu a vista até o topo da pirâmide, não muito alta.
“Então é aqui que você fica...”. O pensamento correu rápido pela mente dele, como um relâmpago que iluminou seus sentidos. Os pelos de seus braços se arrepiaram, mesmo no meio da tarde calorenta, e seu coração começou um galope suave. Sabia que ele estava ali.
“Pourquoi agora?”, Kilaim se perguntou. “Eu o invoquei na outra noite, e ele não me respondeu...”.
Claire contornou a pirâmide. Parecia um elemento totalmente fora de propósito no meio da Floresta; qual o motivo de estar ali? Ela sentiu uma onda de mau humor, como se aquilo fosse uma piada sem graça.
Os dois entraram para ver. Havia pinturas suaves nas paredes, e o forte ar-condicionado trazia alívio ao corpo. Uns tapetes pequenos estavam pelo chão, umas almofadas. Só.
— Sérieu. Não tem nada aqui — disse Claire, olhando em volta. — Mas está bem fresquinho. Por que alguém construiria isso e ainda deixaria o ar-condicionado ligado mesmo sem ter ninguém? Será que é um lugar para os hóspedes relaxarem?
— Oui... — respondeu Kilaim sem pensar, já alheio aos comentários dela, concentrado apenas naquilo que seus sentidos inumanos captavam. Sensações conhecidas.
Fazia tempo que não as sentia, pelo menos não daquela forma. Intenso...
Achando a pirâmide sem graça e totalmente fora de contexto, Claire voltou a sair e ficou a admirar as enormes árvores, esperando por Kilaim.
Quanto a ele, lá dentro, fechou os olhos e respirou fundo. Tudo era silêncio.
— Oh, Leviathan — Kilaim murmurou, esquecendo a irritação por ter sido ignorado, com um tom de saudade. — Estou aqui, no teu berço; no berço da tua força... odo cicale Qaa... Você sempre foi meu amigo. Me alegro em te encontrar assim... aqui...
Inspirou fundo mais uma vez. Abriu os braços para o alto, numa atitude de respeito e adoração. Não imaginava encontrá-lo tão cedo; aquele dia na cripta da Catedral da Sé tinha sido um momento muito fugaz, quase que somente um sopro de sua presença.
Mas, agora, ele estava ali e mostrava seu poder, sua glória. A imensa Bacia Amazônica, o que incluía a Floresta sem fronteiras, era um dos territórios principais de Leviathan. Ali ele se alimentava, carregando suas energias.
— In the name of Satan, the ruler of the Earth, the king of the World, I command the forces of Darkness to bestow their infernal power upon me! — E pediu: — Me renova com o teu poder, Leviathan. — Fechou os olhos, mantendo os braços erguidos.
Segundo as hierarquias demoníacas reveladas nos escritos satânicos, Leviathan — nome oriundo do termo hebraico Liwjathan, cujo significado é “animal que se enrosca” — é um dos quatro grandes príncipes do inferno, conhecido como o monstro marinho, a serpente, o crocodilo. Ele teve a honra de escrever o próprio livro na bíblia negra, e dele vem uma das máximas mais importantes: “Poder à força; morte aos fracos”.
Leviathan estava bem perto. Em todas aquelas semanas, mesmo quando Lucipher lhe mostrara o porão secreto na casa de Alphaville, ou naquela noite no Almanara, nenhum demônio tinha estado tão próximo dele. Kilaim sentiu a energia pulsante de Leviathan, o calor frio e as mãos em suas costas. Suas narinas captaram seu cheiro. Então, uma voz sussurrou do escuro, grave, no seu ouvido esquerdo:
— Sê bem-vindo. Na casa de meu pai, há muitas moradas.
Não se referia ao pai das Luzes. Lucipher era o outro pai. O pai negro, o detentor da Sombra, capaz de compreender aqueles que Deus rejeitou.
Leviathan o convidava para voltar.
* * *
Enquanto esperava pelo namorado, Claire caminhava pela terra tomada por raízes imensas, admirava a quantidade de verde e sentia o cheiro gostoso de mato. Ali, como em vários outros pontos da trilha, o céu sem nuvens ficava encoberto pelo arvoredo intraduzível, e o terreno era quase fechado, oferecendo apenas réstias de luz sobre o chão carregado de líquen. Havia muitas bromélias e orquídeas grudadas nas árvores, e ela estava encantada.
Tentou descobrir de onde vinham os barulhos que escutava lá em cima. Como havia muita folhagem, não conseguiu enxergar nada.
O que poderia ser? Quem sabe um bando de saguis-leãozinho, os menores macacos do mundo, que tinham o tamanho de um pente e pesavam 130 gramas. Era por isso que ela não conseguia enxergá-los. Dizia-se que alguns índios os deixavam brincar no próprio cabelo, para que catasse piolhos e outros bichinhos.
Por outro lado, poderia ter passado por ali a maior de todas as águias! A harpia amazônica tinha quase um metro de altura. Talvez uma águia amazônica tivesse comido um sagui-leãozinho e voado, por isso ela não estava enxergando nada agora, naquele emaranhado de folhas e galhos.
Enquanto zanzava, fantasiando sobre os ruídos, passava a mão pelos troncos das árvores e ia se lembrando de tudo o que lera e aprendera sobre a região. Na verdade, tudo o que alguém possa imaginar ou supor sobre a Amazônia fica aquém de sua realidade fascinante. Era preciso estar lá para saber, para dar de cara com todo aquele impacto. Parecia impossível que pudesse existir tanta Floresta fechada, tanta água e tanta grandeza. Ela continuava fascinada com os dados impressionantes, tanto os bons quanto os ruins.
Se a Bacia Amazônica como um todo abrange quase sete milhões de quilômetros quadrados e é responsável por um quinto de toda a água doce do planeta, a Floresta Amazônica em si corresponde a cerca de cinco milhões e meio de quilômetros quadrados desses sete. É a maior floresta tropical do mundo e, originalmente, ocupava quase metade da América do Sul. A maior parte dela, pouco mais de quatro milhões de quilômetros quadrados, encontra-se no Brasil, ocupando quase 50% do seu território.
O clima equatorial, muito quente e muito úmido, era o responsável pelo casamento indissolúvel entre a bacia hidrográfica mais imponente do mundo e a Floresta Amazônica, propiciando flora e fauna absolutamente espetaculares. A exuberância da fauna se refletia em mamíferos, felinos, répteis, anfíbios, aves, peixes, primatas e insetos. São mais ou menos três mil espécies de peixes; as de mamíferos ultrapassam as 300, os pássaros somam mais de 1.300 espécies e os insetos chegam a milhões. Quanto à fauna, só de árvores são, pelo menos, cinco mil espécies, mas, no total, a fauna da região totaliza mais de dois milhões de espécies, muitas encontradas apenas na América do Sul.
Com frequência, os pesquisadores descobriam novas espécies, algumas muito exóticas. Em poucos metros quadrados da Floresta Amazônica, era possível encontrar mais espécies vivas do que em toda a Europa.
E não era só isso. Às margens dos rios, só no território brasileiro, vivem quase 20 milhões de pessoas, dentre indígenas de 180 etnias, ribeirinhos, extrativistas e quilombolas. Além de garantir a sobrevivência desses povos fornecendo riquíssima fonte de matérias-primas alimentares, medicinais, energéticas e minerais, a Amazônia tem uma relevância que vai além de suas fronteiras. Ela é fundamental no equilíbrio ecológico e climático global.
Claire e Kilaim ainda não sabiam, mas dali um ano o Brasil passaria a enfrentar as piores estiagens já registradas no país em vários pontos do território, incluindo o Sudeste, onde eles iriam morar. Especialmente em São Paulo, iria haver, se não a pior, uma das mais causticantes secas de todos os tempos. A temperatura ficaria mais alta; e os reservatórios, com grande falta d’água. Isso acabaria por gerar, também, um colapso no abastecimento de energia elétrica, já que a maior parte dela vinha das usinas hidrelétricas.
O motivo era, em parte, por causa dos desmatamentos da Amazônia e, secundariamente, da Mata Atlântica.
A área ocupada pela Floresta Amazônica, somada ao que ainda restava da Mata Atlântica, representa um terço do total ocupado por florestas tropicais no planeta. Da Mata Atlântica sobram parcos 8,5%, o que a transforma no mais afetado bioma brasileiro.
Já o diferencial da Floresta Amazônica em relação às outras florestas tropicais do mundo é a Cordilheira dos Andes. Os ventos que vêm do Atlântico são barrados pelo paredão de sete mil metros de altura e impedidos de se perder no Pacífico. Dessa forma, a umidade gerada pela transpiração da Floresta acaba sendo levada por esses ventos para o Sul.
Diariamente, cada árvore amazônica bombeia cerca de 500 litros de água, o que significa que a Amazônia inteira é responsável por elevar 20 bilhões de toneladas de água por dia do solo até a atmosfera. São os “rios voadores”, os quais geram chuvas no Centro-Oeste, no Sudeste e no Sul do Brasil, podendo chegar até a Argentina, a Bolívia, Paraguai, Uruguai e o extremo Sul do Chile.
Contudo, todos os anos, a Floresta perde áreas verdes. Em algumas temporadas, perde menos, e diz-se que o desmatamento está em queda. Em outros anos, acaba perdendo mais. Mas sempre perde. Com a devastação da Mata Atlântica, no estado de São Paulo, por exemplo, acaba se formando uma massa de ar quente na atmosfera. Ela é tão densa que chega a bloquear os “rios voadores”, já enfraquecidos. Represados no céu, eles acabam desaguando ali mesmo, na região Norte. No Acre e em Rondônia, no ano seguinte, Kilaim e Claire veriam registradas as maiores enchentes da História.
“O mais incrível”, recordou Claire, pensativa, enquanto perambulava pelos arredores, “é que, entre o final do século XVI, quando os portugueses pisaram na Amazônia, e os anos 1970, o desmatamento não ultrapassava 1% da Floresta. Porém, de lá para cá foram desmatados quase 20% da área...”.
Eram imensas clareiras que somavam mais que a França e a Alemanha juntas. A questão é que, na década de 1970, o governo militar distribuiu incentivos para que milhões de brasileiros ocupassem aquela fronteira “sem nada” que era a Amazônia, numa tentativa de integrá-la à economia brasileira. Em 2004, milhares de hectares já tinham virado plantações de soja ou pastagens. Grandes obras, como estradas e hidrelétricas, que prometiam desenvolvimento para a região, aumentaram, em muito, o desmatamento. As estradas, de modo geral, não têm boa qualidade, uma grande parte nem é asfaltada, mas facilitaram a chegada das madeireiras, muitas delas ilegais.
Além disso, a descoberta de ouro na região, especialmente no estado do Pará, onde se situava Serra Pelada, afetou muitos rios, que foram, e ainda são, contaminados pelo mercúrio utilizado no garimpo. Isso também acaba com os peixes.
O Ibama e a Polícia Federal têm desativado um número enorme de garimpos em áreas totalmente destruídas por retroescavadeiras. Acredita-se que o número atual de garimpeiros espalhados nesses locais onde há ouro seja quatro vezes maior do que se viu em Serra Pelada, o maior garimpo do mundo, nas décadas de 1970 e 1980: cerca de cem mil trabalhadores em condições sub-humanas.
Claire ficava muito triste com essa realidade. Agora que via tudo com os próprios olhos, um aperto pairou no coração. Essa terra de inexprimível beleza não poderia continuar ameaçada!
As alternativas criadas no Brasil, embora não se possa desprezá-las, ainda eram como gotas d’água numa terra árida. O Ministério do Meio Ambiente queria engajar não somente o apoio federal, mas os estados, os municípios, as ONGs, como o Greenpeace, e outras entidades públicas e privadas num planejamento conjunto, de forma a executar, com mais eficiência, as políticas ambientais: os programas nacionais para a preservação de espécies, a política nacional de meio ambiente, as secretarias e os institutos da área.
Porém, ainda não era suficiente. Tratava-se de cortar a ponta do iceberg que era o problema da conservação da Amazônia e outros biomas brasileiros, incluindo o grande paradigma do desenvolvimento sustentável.
“Pelo menos existem esforços”, Claire refletiu.
O farfalhar de folhas, às suas costas, denunciou a presença de Kilaim, que havia saído da pirâmide.
— Acho que tem algum tipo de ave por aqui, Kim — a moça contou, voltando o olhar para cima. — Ou mais macaquinhos...
— Merde... o calor aqui fora está dez vezes mais insuportável depois daquele ar-condicionado — ele reclamou.
Talvez tenha sido algo no tom de voz dele ou, então, alguma coisa qualquer que os sentidos humanos não conseguem captar, mas que, simplesmente, estava ali. Ele estava diferente. E de repente o sorriso de Claire tornou-se sombrio e morreu no rosto.
— O que foi? — indagou ela olhando para Kilaim, avaliando-o de perto.
Segurou sua mão direita, com certa preocupação, e cravou o olhar no fundo dos seus olhos.
— Quoi? — espantou-se Kilaim, com certo mau modo, puxando a mão sem querer. — Está tudo bem, Claire.
Ela ficou surpresa com a reação dele.
— Aconteceu alguma coisa?
— Nada.
Ela continuava olhando em seus olhos; o brilho estava opaco. Pourquoi aquela diferença repentina? Claire inspirou fundo e olhou em volta. Parecia que o ar à volta deles já não era o mesmo; estava meio... denso. Mas ela não sabia por quê. Uma pontada de temor a invadiu, quase como quando teve a mononucleose. O ambiente parecia perigoso, agora.
Mas perigoso pourquoi?
— Essa pirâmide... — Claire continuou, evitando pensar na pontada de medo, mas sentindo um calafrio mesmo assim. — Que lugar é esse?
— E eu sei lá? Talvez uma opção a mais para os hóspedes relaxarem, como você disse.
— Mas qual a graça de ficar aí dentro? — Uma pausa. Ela lançava o olhar para a pirâmide e de volta para ele, e de volta para a pirâmide. Não estava convencida. — Tem mesmo certeza de que não aconteceu nada lá?
— O que poderia ter acontecido, Claire? — Kilaim entonou a voz novamente com certa irritação.
Claire ficou quieta. Intuía agora que, talvez, aquele não fosse um lugar comum. E o que quer que pudesse haver lá, ou o que quer que significasse, tinha afetado Kilaim.
— Esse lugar seria algo do tipo... hã... Nova era, quem sabe, ou algo... Gótico?
Kilaim deu risada por dentro diante das sugestões dela.
— Vai ver é alguma coisa assim — respondeu.
Porém, Claire insistiu, sempre de olhos fitos nele:
— Ou não é nada disso, n’est-ce pas?
— E pourquoi tanto interesse? É só um lugar de relaxamento, talvez para alguma aula de ioga.
Ela, por fim, baixou os olhos, um pouco magoada:
— Você não confia mesmo em mim.
Será que Claire iria desistir, assim, tão fácil? Ele acabou ficando com pena.
— Você tem certeza de que quer mesmo falar sobre isso, aqui e agora? — Ele suspirou, dando uma ênfase negativa à perspectiva. Não estava disposto.
Ter uma conversa teológica era uma coisa. Outra, bem diferente, era trazer tudo aquilo para o âmbito pessoal. Os dois ficaram parados, frente a frente, se olhando.
— Eu só queria entender você, Kim — ela disse, por fim, com muita sinceridade. — Não quero discutir, tem sido muito bom estarmos juntos aqui. É uma das melhores fases da minha vida, graças a você! Eu te amo muito! Mas sei que alguma coisa muito séria te aconteceu, só que você não me diz nada. Já falou em Satanismo, em Lucipher ser o seu pai, na Organização Secreta. Pourquoi não tenta apenas começar? — Ela optava por engolir aquela sensação de temor que ultimamente a afligia para saber um pouco mais a respeito do namorado. — Me conta...
O jeito brando de Claire falar terminou de amolecer o coração dele. Kilaim percebia que não era apenas uma curiosidade, pura e simples. Na verdade não era nem mesmo curiosidade. Era uma genuína preocupação com ele, um desejo de estar perto; e isso o sensibilizava.
Mesmo assim, continuou quieto. Ele respeitava Claire profundamente. Achava digna sua aflição e justo seu pedido. Mas...
— Temos mesmo que falar sobre isso agora? — volveu, ainda reticente. E diante do sorriso dela: — O que você quer saber, afinal?
Claire se aproximou dele e segurou sua mão de novo. Dessa vez, Kilaim segurou a mãozinha dela de volta, com carinho. Os dois acabaram se sentando sobre a raiz gigante da sumaúma, a rainha da floresta. Ali, a grandeza da Natureza era o prêmio. Isso ficaria para sempre indelével no coração de ambos. Uma obra-prima de Deus.
— Gostaria de começar a ouvir sua história aqui — disse Claire, ignorando as sensações incômodas. — Pois se a pirâmide representa algo feito pelo homem, ou se é algo “ruim”, eu não sei; o fato é que Dieu realizou todo o resto.
Ela ergueu as mãos num gesto para abranger tudo em derredor. Foi a vez de Kilaim ficar em silêncio diante da nua e crua verdade. Luz e Trevas. Ele suspirou. Só havia um modo de falar a respeito. Começando pelo começo.
— Assim como o Deus dos hebreus, o Deus da Bíblia, se manifestava dentro do Tabernáculo, no deserto, sempre dentro do Santo dos Santos, há, igualmente, locais em que as entidades têm maior facilidade para se manifestar.
Ela olhou a pirâmide pela enésima vez.
— Está falando de demônios?
— Demônios.
— Kim... — Ela ia dizer que não deveria haver nenhum demônio ali, mas olhou de novo dentro dos olhos dele.
Tão negros. Estavam diferentes.
— Kim, você foi mesmo um satanista? — indagou ela de chofre, à queima-roupa. — Me fala a verdade.
— Se sou, se fui, não sei dizer ao certo.
Ela não esperava por aquela resposta.
— Mas o que isso significa de verdade? — O tom era um pouco aflito.
— Sou um adorador do diabo. Você já sabe, não escondi esse fato.
— Mas o que é que você fez?
Ele não respondeu.
— Seja como for, já foi. N’est-ce pas? — Claire retrucou, ansiosa. — É passado.
— Quer saber da pirâmide ou não? Era sobre isso que falávamos, não é mesmo?
— Oui. É claro.
— Essa pirâmide é somente uma miniatura. Trata-se de um pequeno Portal, uma via de acesso muito limitada. As verdadeiras pirâmides, essas, sim, foram bem importantes dentro do contexto do Satanismo.
— Como assim, Kim? As pirâmides têm a ver com o Satanismo...? — Sentiu um novo calafrio, só de falar aquela palavra.
— Porque elas são Portais. Mas nem todas estão ligadas à alta casta de poderes, é verdade. — Ele deu de ombros. E perguntou: — Já percebeu, Claire, como a forma piramidal aparece em diferentes culturas espalhadas pelo mundo? No Egito, nas Américas, na China, na Indonésia, no Iraque, dentre outras. É um fenômeno global. Mas, por ora, imagine a grande pirâmide do Vale dos Reis, Quéops. Ela é diferente de todas as outras pirâmides do Egito. Foi construída debaixo de diretrizes que envolviam conhecimentos bem além daquele que, supostamente, os egípcios dominavam na época. E, desde sempre, engenheiros e arquitetos tentam encontrar a chave que desvende como ela foi erguida. Os detalhes de alvenaria são impressionantes! Os blocos de pedra pesavam cerca de duas toneladas e meia cada, e o encaixe milimétrico torna essa construção praticamente um milagre da engenharia. Sem falar nos blocos mais pesados, de até 70 toneladas. Naqueles longínquos tempos, essas enormes pedras foram deslocadas por distâncias inimagináveis, talhadas e superpostas sem auxílio de nenhuma máquina.
— É mesmo? — Ela deu feedback, embora isso não a interessasse tanto.
Kilaim tinha o hábito de não ser sucinto em nada. Era-lhe próprio entreter-se em minúcias, em especial se queria explicar alguma coisa importante, como era o caso, aparentemente.
— Geograficamente, se traçássemos um meridiano passando pelo centro de Quéops, continentes e oceanos seriam divididos na metade. Ou seja, ela está no centro da superfície terrestre do planeta. Como os egípcios poderiam ter efetuado tal cálculo? Além disso, se prolongássemos as diagonais da base da pirâmide, elas delimitariam o Delta do Nilo geometricamente. E o prolongamento do apótema da pirâmide na face Norte divide o Delta em duas partes iguais.
— Apótema?
— O apótema de uma pirâmide é o segmento que parte do vértice até a base da lateral, isto é, trata-se da medida da altura da face lateral.
— Ah.
— Originalmente, Quéops tinha um revestimento externo de mais de cem mil pedras calcárias brancas. Elas receberam polimento, o que resultou num alto brilho. Conta-se que, debaixo do sol, ela brilhava como se feita da própria luz, e podia ser vista a centenas de quilômetros. O que você acha disso?
— Bien...
Ela ia dizer “É incrível”, mas Kilaim nem esperou. Estava começando a ficar entusiasmado.
— Veja, agora, suas estranhas medidas: é a parte de que mais gosto! As faces de Quéops orientam os quatro pontos cardeais com muita precisão. Esse alinhamento é de uma impressionante perícia astronômica, parce que, para isso, os antigos construtores teriam que dispor de um navegador via satélite. Até mesmo agora, com toda a tecnologia disponível, essa não é uma tarefa de fácil execução. Além disso, há muitas outras medidas que deixam os especialistas de cabelos em pé. Assim como os lados de Quéops se orientam pelos quatro pontos cardeais, o reflexo das sombras acusa com exatidão milimétrica pontos essenciais do ano solar, fornecendo as datas precisas dos equinócios de primavera e outono e dos solstícios de inverno e verão. Mas como eles sabiam disso se o calendário solar só viria a ser conhecido e utilizado muitíssimo depois? O quadrado da altura da pirâmide é exatamente igual à superfície de cada uma das faces triangulares. Já essa altura, quando multiplicada por 1 bilhão, resulta em, aproximadamente, 146.590 milhões, ou seja, a distância média da Terra ao sol. Impressionante! Essa distância só pôde ser calculada no século XX. O perímetro da base, isto é, aproximadamente 230,36 metros de cada aresta multiplicado por 4, é de 921,44 metros; ao dividir-se, esse perímetro pela altura da pirâmide multiplicada por dois, o resultado é 3,1416.
Esse último número foi o único que Claire conseguiu captar:
— O valor de PI! Isso eu sei.
— Exato! PI é a razão entre uma circunferência e seu raio. Tudo isso exige enorme precisão matemática. Significa que existem, pelo menos, duas esferas importantes, ocultas dentro da pirâmide. Uma maior, que leva em conta a medida da altura da pirâmide, do lado da base e de seu apótema; e outra menor, que tem como medida da circunferência a mesma medida do perímetro da base da pirâmide. Note que a região delimitada por essas esferas são bem menores do que a pirâmide em si. Não se surpreenda se a câmara do rei ficar dentro de uma delas. — Ele limpou a garganta e continuou: — Já a raiz quadrada de Phi...
— Phi? Franchement... Que história é essa?
— Phi é igual a 1,618. Esse número é muito incrível, Claire! Vem da série de números Fibonacci, uma progressão famosa não só porque a soma dos termos adjacentes equivale ao termo seguinte, mas parce que, ao dividir o último termo da série pelo anterior, os resultados possuem a fascinante propriedade de irem se aproximando gradativamente do número 1,618, o Phi. Quanto maiores os termos, mais precisão de Phi. — Kilaim estava mesmo se animando. — Esse número, geralmente, é considerado como o mais belo do mundo. E sabe pourquoi? Apesar das origens matemáticas aparentemente místicas do Phi, o aspecto surpreendente é seu papel como componente básico da Natureza. Plantas e animais possuem propriedades dimensionais que se encaixam com uma exatidão espantosa à razão de Phi para um, de tal forma que é considerada como a mais agradável proporção entre dois segmentos ou duas medidas. Por exemplo: a disposição do tamanho das folhas em um galho, o miolo de um girassol, o diâmetro do marfim na tromba de um elefante e por aí vai. Por isso, essa relação acabou sendo chamada de “razão áurea” ou “proporção divina”. O Phi foi considerado sagrado.
— Mas...
— Tudo aquilo em que a razão áurea se expressa é visto como belo.
Kilaim se levantou e mostrou o padrão de folhas numa planta que se enroscava na sumaúma.
— Veja o modo como as folhas são arranjadas ao longo do galho e como seu tamanho varia. A relação entre elas se expressa por meio do Phi.
— Hum... — Claire olhava, achando bonito, mas sem saber aonde ele queria chegar.
— Espere, vou desenhar e calcular para você ver melhor, mon amour!
Com semblante feliz, Kilaim espalhou as folhas secas do tapete que tinham sob os pés. Pegou um graveto comprido que estava caído por ali e, com ele, desenhava na terra. Claire se aproximou e ficou a acompanhar o raciocínio, olhos fitos no chão. Volta e meia, dava uma olhadinha para Kilaim. Ele era mesmo muito sui generis!
— Ça va, Kim, mas, voltando à piramidezinha...
— Espere, espere. Não chegamos ainda à melhor parte! Eu falava do Phi, e você precisa ver como ele se expressa na grande pirâmide. Voltando: a raiz quadrada de Phi é 1,2720196. Sua metade, 0,636009, quando expressa em metros, 0,63 metros, revela o chamado “côvado piramidal”. Trata-se de uma unidade de medida específica da pirâmide, vinda do Phi, e que, para dizer o mínimo, reflete dados numerológicos e cabalísticos. Na realidade, esse côvado é mais “interessante” do que o côvado egípcio usado correntemente, de 50 centímetros, parce que 63 centímetros, dá 9. Além disso, essa medida se baseia na metade do comprimento dos diâmetros terrestres. Ou seja, nas próprias dimensões da Terra. O côvado piramidal tem boa ressonância por esse motivo.
— Ressonância com o quê?
— Ressonância energética. O côvado piramidal, como uma das unidades de medida de Quéops, é um facilitador para que ela entre em ressonância energética com o planeta e com o corpo humano.
— Pourquoi o corpo humano?
— Por ter o mesmo comprimento de onda da energia vital humana. Então, o côvado piramidal é descrito como “o comprimento de onda da energia eletromolecular da força vital humana”.
Claire assentiu várias vezes com a cabeça, franzindo a testa, esforçando-se para entender. A que ponto chegava aquilo. Impressionante.
— Esse côvado, multiplicado pelo número de rotações durante uma translação da Terra, dá a dimensão do lado do quadrado da base da grande pirâmide. Mais uma vez, esse cálculo é ainda mais complexo do que parece, já que, aparentemente, estavam fazendo uso do calendário solar.
— ...?
— Imagine, agora, dois cortes: um transversal e outro vertical pelo ápice, coincidindo com os apótemas das grandes faces triangulares — ele falava cada vez mais rápido, rabiscando no chão —, o que divide a grande pirâmide em quatro volumes iguais, onde cada parte é um poliedro de cinco faces. Alors, se estudarmos um dos triângulos retângulos verticais existentes nesses poliedros, veja: a sua base, 116,14887 metros, é o cateto menor, cuja dimensão é igual à metade do lado da base quadrada da grande pirâmide, quando ainda tinha sua cobertura original.
— ...???
— O cateto maior, vertical, tem a mesma altura da pirâmide; a hipotenusa é igual ao apótema de qualquer uma das quatro faces triangulares da pirâmide. Divida a hipotenusa pela altura: teremos a raiz quadrada de Phi; divida o cateto maior pelo menor: resulta na raiz quadrada de Phi; divida a hipotenusa pelo cateto menor: dá Phi! São proporções deslumbrantes! “Divinas”, como artistas e matemáticos perceberam, desde os primórdios da civilização. Além disso...
— Ok, Kim — aparteou Claire, assentindo, achando graça. — Eu sei que você ama matemática, mas estou um pouco perdida. Non! Não me explique. — Ela riu e segurou a mão dele, que já ia rabiscar de novo com o graveto. — Já entendi o principal: Quéops é única e misteriosa e revela algo muito além da coincidência. Mas, a nossa piramidezinha aqui...
— Oui, mas deixe-me só terminar. Só falta uma partezinha! — Kilaim exclamou, totalmente empolgado, soltando a mão e mexendo o graveto para lá e para cá. — Muitas medidas da grande pirâmide estão vinculadas às reais medidas da Terra e do próprio Sistema Solar. Veja isso: a raiz quadrada de Phi multiplicada por dez dá 12.720.196 metros. Sabendo que o diâmetro polar da Terra tem 12.713 quilômetros e o diâmetro equatorial mede 12.756 quilômetros, acredite que essa medida, 12.720 quilômetros, representa o diâmetro do planeta em algum paralelo, escolhido deliberadamente por algum motivo. E adivinhe qual deles?
— Oui...?
— O paralelo 30º ao Norte, quer dizer, o paralelo que corta o Egito na altura de Gizé. Franchement, baby! Tal proeza matemática obrigaria o uso de instrumentos ópticos extremamente avançados. Claro que esse diâmetro de 12.720 quilômetros também representa o paralelo 30º ao Sul, passando aqui pelo Brasil. Em Porto Alegre. — Ele parou e não disse mais nada. — Mas isso já é outra história.
Ele esticou todo o corpo, comentando alegremente:
— Ah, eu adoro matemática. Adoro mesmo! “Do número nasce a proporção, da proporção se segue à consonância, a consonância causa deleitação, a nenhum sentido apraz a dissonância, unidade, igualdade e semelhança, são princípios do contentamento...”. Ok. — Ele se interrompeu, erguendo as mãos, diante do olhar dela. — Sei que estou falando demais.
— De onde vem isso? É bonito. Diferente.
— Do livro Camões e a Divina Proporção. O misterioso número de ouro...
— Pourquoi essas medidas são, assim, tão precisas na pirâmide? — perguntou Claire, por fim, agora realmente querendo saber a resposta. — Pourquoi o uso desse Phi?
— Para que Quéops fosse perfeita. Só assim funcionaria como um Portal. Quem construiu a Grande Pirâmide alinhou-a, minuciosamente, em relação à Terra, porque tanto a Terra quanto a pirâmide são exatas em relação ao número Phi. Sendo assim, a pirâmide é um reflexo da grandeza da Terra, e mais, do modo como flui a energia eletromagnética basal do planeta. Seria a Terra e, por conseguinte, a pirâmide, um espelho da força vital humana, a energia da vida? Ou é a energia vital que é um espelho da Terra e, portanto, pode ressoar também com a pirâmide?
— A Terra foi criada por Dieu primeiro. Alors, a energia humana, se ressoa com o planeta, com a pirâmide, não sei, foi criada para espelhar a energia terrestre. Mas nunca ouvi nada...
— E a Terra está imersa no Cosmos, de modo que a pirâmide teria capacidade de concentrar ou potencializar essa Energia Universal também. Você vai entender. Vamos adiante: o alinhamento de câmaras internas e corredores, o que não era comum de existir dentro das pirâmides, pressupõe um sistema de ventilação. As pirâmides costumavam ser lacradas após o funeral; mas Quéops, aparentemente, estava preparada para que os vivos pudessem entrar nela. Além disso, as câmaras apontam para grandes estrelas. A distância entre as três pirâmides de Gizé — Quéops, Quéfren e Miquerinos — e seu posicionamento entre si é, por “coincidência”, proporcional a três estrelas da constelação de Órion, as “Três Marias”, designadas Alnitak, Alnilam e Mintaka. Órion seria o equivalente celestial de Osíris, o deus da morte egípcio. O cinturão formado pelas três estrelas era o que eles chamavam de Duat, uma espécie de “Portal” pela qual a alma do faraó deveria passar, segundo a crença, pois a vida verdadeira começava depois da morte. — Ele olhou para Claire, sorridente. — Alors, o principal arquiteto da grande pirâmide desenvolveu o projeto como uma “máquina de ressurreição”, esperando que a energia concentrada na pirâmide, em determinados momentos, agisse nesse sentido. Mas... — Deixou um ar de mistério. — Essa era uma das informações vigentes na época. Claro que os mais altos sacerdotes tinham conhecimento um pouco além. E o tempo já passou e a revelação se fez completa.
— Uau... Quer dizer... Quoi?! — A mudança de uma ciência exata para puro “misticismo” foi tão repentina que ela ficou zonza, perdendo o fio da meada.
— Estou querendo dizer que a câmara do rei, dentro da pirâmide, funcionava como o coração desse Portal dimensional. Significa que toda a estrutura de Quéops foi construída a fim de tornar possível o “funcionamento” da câmara do rei, e isso não necessariamente tinha qualquer coisa a ver com a alma do faraó. Olha só: o cristal de quartzo tem uma reação interessante. Ele funciona como se fosse uma “antena”, tá? Pode capturar diversos tipos de energia e direcioná-las, drenando-as para um único local. E guess what? A câmara do rei foi especificamente construída com granito de Assuã, que contém 55% ou mais de cristais de quartzo de silício. Não fique admirada se a câmara ficasse “dentro” de uma daquelas esferas que mencionei antes. Sendo assim, a câmara se comportaria como um concentrador de energia. Percebe como estamos chegando perto?
— Interessante — ela respondeu com sinceridade, mas sem compreender a real importância por detrás daquela informação.
— E pourquoi funciona como concentrador de energias? Não apenas pelo quartzo, é óbvio, mas em função da somatória de todos esses parâmetros que já expus: uma verdadeira fórmula mágica que envolve as dimensões da pirâmide, da Terra, seu diâmetro, sua órbita, suas rotações, sua relação com o sol e as estrelas. Isso vai fazer com que algo extraordinário aconteça.
— Como assim? — Os olhos dela ficaram grandes, e um tremor vindo do nada sacudiu levemente seu corpo, de repente.
Kilaim percebeu, mas nada disse.
“Ela é sensível à presença das entidades”, foi a hipótese que ele aventou.
E alto:
— Basta saber que algo extraordinário acontece quando um Portal desse porte é construído — ele tentava finalizar.
— Ah, Kim! Você só me enrola e não diz nada... — Claire cruzou os braços, bagunçando com o pé as explicações desenhadas, como uma criança. — Caraca!
— Como que não digo nada, Claire? Eu estou dizendo!
Ela estava meio amuada.
— Ça va — Kilaim bufou. Não queria vê-la chateada. — Você é muito insistente.
Ela olhou para ele e deu um sorrisinho lindo, ao qual ele não resistiu. E continuou falando, depois de beijar a namorada.
— O Portal é como se fosse um “elevador”. Primeiro, você constrói toda a engrenagem do elevador: a cabina, o poço, o túnel por onde ele corre, os diversos patamares, a casa de máquinas etc. Depois, coloca a “bateria”, a eletricidade, para que ele funcione. Não é assim que é?
— Para um elevador comum.
— O Portal é igual. A pirâmide é o elevador e as diversas energias que ela concentra são a bateria.
— Tá bem. Já entendi a estrutura do elevador. Mas e essas energias? — Sem querer, Claire fez a pergunta certa. — Me explica melhor sobre a “bateria”...
— São várias energias. E já expliquei.
Kilaim percebeu que Leviathan não gostava muito desse tópico da conversa. O rapaz sabia que ele estava parado defronte à sumaúma, mas não muito perto, e os observava. O demônio notava, claramente, a queda da energia vital de Claire, e a alteração da sua temperatura, que, estando mais baixa, causava calafrios esporádicos e alguns tremores sem causa. Mithra fora bem-sucedida em sua investida. Ninguém a notara, exceto o capitão, mas ele não podia impedi-la.
— Eu entendi que são várias energias — Claire repetiu. — Mas você pode dar um exemplo?
— Você já sabe que o lugar escolhido para a construção da Grande Pirâmide não foi aleatório. Na verdade, ela foi estrategicamente posicionada num lugar de grande concentração de energia eletromagnética. Segundo alguns ensinamentos Wiccanos, a Terra possui centros de concentração de energia semelhantes aos chakras do corpo humano. Esses centros podem vir a se tornar locais de poder, locais facilitadores da Magia; mais ou menos como os chakras corporais também podem — decidiu não falar da Organização. Citar a Wicca era inócuo. — Assim como a energia vital humana flui pelos meridianos do corpo, passando por esses centros energéticos, a energia terrestre também não está “parada”. Ela circunavega a Terra numa variedade de caminhos baseados em leis matemáticas e geométricas chamadas “Linhas de Ley”. Um desses centros de concentração energética fica exatamente no Cairo. Entendeu? — E antes que Claire falasse qualquer coisa, ele se adiantou: — Você consegue entender, alors, que os idealizadores de Quéops possuíam todo esse conhecimento, por isso ela se tornou um grande mistério para a Humanidade? E de onde veio o conhecimento? “Eram os deuses astronautas”, como diria Von Däniken? A verdade é que havia “alguém”, mais “evoluído”, que conhecia não somente a posição do Planeta Terra na Galáxia, mas sua esfericidade e a exata distribuição dos continentes e mares. Você precisa lembrar que, nessa época, se pensava que a Terra fosse achatada e não redonda. Em Quéops, existe um incrível quebra-cabeça que está claramente acima de qualquer acidente de percurso. Muita coisa tem que funcionar ao mesmo tempo: dia, hora, mês, conjunções estelares. Na verdade, céu e terra, e até o que está além do céu e da terra, se uniram para que todas essas “coincidências” culminassem em algo.
— ...?
— A mágica do Ocultismo! — Ele assumia um ar misterioso de novo. — Só que, nesse caso, para fechar o projeto dimensional, a energia dos demônios e a energia humana precisam entrar na equação. Cada uma a seu modo, claro. Alors, Claire... você aceitaria a minha hipótese, aquela que nunca ninguém formulou? Que os demônios tenham sido os reais construtores da pirâmide, entregando as diretrizes aos homens e mostrando como realizar tal trabalho?
Leviathan não estava gostando nada, agora.
— Hãã... — fez Claire. Depois, olhando para os lados: — Nossa, que cheiro estranho está aqui...
Kilaim ergueu os ombros, ignorando o comentário, pois o odor vinha de Leviathan. E disse:
— Oke, Claire, não precisa responder agora. Mas foi assim que a Grande Pirâmide se tornou um Portal Dimensional, uma comunicação entre dimensões. — Kilaim mudou o rumo completamente, olhando-a diretamente nos olhos: — Essa construção tão detalhada não te lembra de nada?
Claire ficou pensando.
— O Tabernáculo! — Kilaim exclamou, alegremente. — Você esqueceu minha premissa inicial, de que o Deus dos hebreus se manifestava ali?
— Ah, oui... É que você já falou tantas outras coisas.
— As diretrizes precisas para a construção do Tabernáculo foram dadas por Deus. Desde os tipos de materiais, como madeiras específicas, ouro e outros metais, pedras preciosas, peles de animais e tecidos tingidos de cores específicas, até as medidas da Tenda em si e de todos os seus móveis e utensílios. A orientação sobre toda a feitura é igualmente bem detalhada, e as coordenadas geográficas sobre como posicionar a Tenda no deserto também não eram aleatórias. A entrada, por exemplo, deveria ficar voltada para Leste. Os ritos sagrados de adoração e sacrifícios foram rigorosamente estabelecidos. Isso incluía a escolha dos sacerdotes, a confecção de suas vestes, as cores, os adornos e os tipos de animais a serem entregues em sacrifício, nos diversos tipos de rituais. O que quero dizer é que, do mesmo modo como o idealizador do Tabernáculo, Deus, construiu com a ajuda dos homens o Seu santuário, os espíritos do lado Negro idealizaram a pirâmide e outros monumentos, também com a ajuda dos homens. Mas, frigindo os ovos, ambos servem para o mesmo fim.
Ao dizer “mesmo fim”, Kilaim deu duas batidas na terra com o graveto para endossar o que dizia.
— O mesmo fim? Não viaja, Kim.
— Pourquoi o Tabernáculo “funcionava”?
— Que quer dizer? Como assim, “funcionava”?
— Ué, o objetivo de ser do Tabernáculo não era haver uma comunicação com Deus? Os ritos eram essa forma de comunicação; e a manifestação anual de Deus no Santo dos Santos, num momento específico, era a resposta. Se algo saísse do planejamento, por menor que fosse, Deus não se manifestaria. Ou, no mínimo, não se manifestaria da mesma forma. D’accord?
— D’accord — admitiu Claire, dessa vez convictamente.
— E pourquoi toda essa quantidade de detalhes?
— Parce que, para servir a Deus, devemos sempre oferecer o melhor. O Tabernáculo era um ensinamento sobre isso.
— Da. Mas vai além. Deus estava ensinando ao povo como abrir um Portal para que Sua Presença se manifestasse.
Ela ficou pensando. Um novo tremor sacudiu seu corpo. E aquele cheiro estranho a incomodava, embora não soubesse definir o que era. Preferiu ignorar. Uma coisa deveria estar queimando em algum lugar.
— Mas Deus não precisa de Portais — Claire disse, depois. — Ele simplesmente Se manifesta.
— Não é bem assim. Em todo aquele vasto deserto, apenas naquele pedacinho de terra onde foi erigido o Tabernáculo, Deus produzia a Shekinah, a Sua Presença. Capaz de matar, instantaneamente, pessoas “desavisadas”. Observe que nem mesmo Moisés pôde entrar no Santo dos Santos. A vivência da Shekinah era exclusiva para o sumo sacerdote; mesmo assim, uma vez ao ano, e somente depois de oferecido sacrifício de sangue por ele mesmo. Depois disso, poderia atravessar o Véu e adentrar o Lugar Sagrado. Ali se abria o Portal de Deus.
Claire não estava muito convencida, mas não entabulou objeção. Só ouvia.
— E pourquoi a Shekinah matava? — Kilaim riu de repente: — A Shekinah fulminava instantaneamente uma pessoa; na verdade, fazia churrasco do pobre coitado! Você já parou para pensar que isso fosse por causa do acúmulo de uma carga energética excessiva ali dentro? O Santo dos Santos era o coração da máquina dimensional de Deus funcionando de modo similar à câmara do rei na grande pirâmide. Como você já sabe, Portais e concentração de energias estão associados.
Claire ficou pensativa de novo. Era outra maneira de ver a situação, mas fazia sentido.
— Só que a Arca da Aliança também tinha o poder de matar quem tocasse nela, excetuando os sacerdotes — ela redarguiu, por fim.
— Claire, Claire. Pense. Onde ficava a Arca?
— Dentro do Santo dos Santos.
— O que acontece com a água do mar depois de um dia inteiro debaixo de sol escaldante?
— Fica quente.
— E depois?
— Depois esfria de novo. À noite.
— É isso. — O graveto voou para o ar e ele o pegou com a outra mão. — A água devolve a energia térmica que acumulou de dia. Se fosse uma energia letal, o tolo que se aproximasse da água morreria. O mesmo acontece com a Arca. Ela acumulou a energia de Deus, parce que Deus também é Energia. Como os Anjos, como os demônios e como você. Mas são tipos diferentes de energia, com intensidades diferentes. Deus deu proteção especial apenas aos sacerdotes, e se cumprissem detalhadamente as regras. Os demônios também são dotados de muita energia e, em alguns casos, ela pode matar. Se eles estiverem reunidos, ainda mais. Se canalizarem alguém, mais forte é a energia que o corpo humano precisa suportar. Também precisamos cumprir regras para nossa própria segurança. Viu? Deus apenas não explicou ao Homem que o Tabernáculo era um Portal.
— Parce que talvez isso não tivesse a mínima importância — Claire respondeu, sem tanta convicção.
— Ou talvez parce que Deus tenha o péssimo costume de falar meias verdades, temendo que o Homem se interesse por assuntos que Ele julga “ilícitos” e condenáveis. — Kilaim riu. Estava mais uma vez contente em se portar de maneira muito controlada. — Eu já te disse que Deus guarda muitos segredos do Homem. Por isso, estou ensinando a matéria da prova para você, va bene? Pois bem: quem está preso quer libertar-se. Essa é a razão de ser dos Portais.
— Nada a ver com a alma imortal do faraó? — Claire perguntou.
— A alma do faraó que se danasse! A não ser, claro, que ele fosse um dos escolhidos do Fogo. A questão é que os demônios construíram Portais de saída para eles mesmos; e os escolhidos ajudaram. Em troca de privilégios, naturalmente.
— Que privilégios?
— A manipulação da energia vital humana é um deles, o que pode resultar na aquisição de poderes. — Aí ele falou demais, mas já era tarde. Pressentiu como se fosse um rosnado de Leviathan e se interrompeu.
— Mas o que significa, na prática, Kim? — perguntou a garota, mesclando uma nota de interesse com duas de temor.
— Claire. Alguma coisa você já viu, certo? Vamos adiante.
Ela suspirou.
— E há outros? — perguntou.
— O quê?
— Portais.
Claire parecia mais curiosa que de costume. Normalmente, a moça já teria interrompido aquela conversa detalhista e o olharia como quem diz: “Isso é bobagem”. Era bom vê-la aparentemente interessada.
— Obviamente que há outros Portais. Ao longo da História, muitos foram abertos na intenção de libertar mais demônios. Stonehenge, por exemplo: os megalitos no Sul da Inglaterra que tinham mais de cinco metros de altura e pesavam entre cinco e 50 toneladas cada. Difícil imaginar como eles foram parar ali ou como foram dispostos daquela maneira ou que povo realizou a façanha, já que Stonehenge é ainda mais antiga do que as pirâmides de Gizé, pelo menos na sua primeira fase de construção. Nessa fase, o monumento ainda era bem rudimentar, e se supõe que fosse usado como observatório astronômico. Havia várias covas dispostas de maneira circular, que se alinhavam com o pôr do sol do último dia do inverno e com as fases da lua. Na segunda fase de construção, foram construídos dois círculos de pedras azuladas, e dali partia uma avenida marcada por valas paralelas que se alinhavam com o sol nascente no solstício de verão. No terceiro período, derribaram-se as pedras azuis e os megalitos propriamente ditos foram erguidos, os trilithons dentro do Anel de Pedra. Estudiosos acreditam que o local era usado por motivos astronômicos, mas também mágicos e religiosos.
— E o que diz você? — Claire estava com um tom quase reverente. Leviathan avaliou como as pupilas dela se dilatavam.
— É, de fato, um lugar muito especial para a Magia. Além das Linhas e dos centros de energia de Ley, que mencionei antes, o planeta possui outro tipo de energia, chamada “telúrica”. Esta se comporta como uma corrente elétrica de baixa frequência que atravessa grandes áreas terrestres abaixo da superfície e nos oceanos, e já foi comprovada pela Ciência. Quando ocorre uma junção dos centros energéticos das Linhas de Ley com o fluxo das linhas telúricas, há uma resultante energética muito expressiva, que pode ser manipulada e controlada por certos monumentos. Quanto mais linhas energéticas telúricas se cruzam em um nodo das Linhas de Ley, mais energia no local.
— Essa energia telúrica também está presente na grande pirâmide?
— Bien sûr! Claro! Mas lá é canalizada de outra forma. Em se tratando de Stonehenge, sua estrutura peculiar faz com que as linhas telúricas cruzem as pedras externas do Círculo. Ao todo, eram 12 pontos que podiam marcar a posição do sol e dos planetas em comparação aos 12 signos do Zodíaco e que canalizavam a energia telúrica para o interior do Círculo. A energia das Linhas de Ley também conflui ali, especialmente porque a Inglaterra tem um padrão bastante peculiar delas. Ainda que haja megalitos circulares espalhados por toda a Europa e Norte da África, só na Inglaterra são cerca de três mil monumentos desses. Em Stonehenge, as pedras centrais delimitam o circuito mais poderoso, usado em determinados rituais, em datas específicas. Para escalões mais altos de feiticeiros.
— Feiticeiros... — Ela chacoalhou a cabeça, evitando pensar no significado daquela palavra, mas seu corpo estremeceu com mais calafrios. E apenas indagou: — De que datas você fala?
— Nada que tenha significado para você. Solstícios, equinócios, noites de lua cheia, certas conjunções estelares ou planetárias. Os parâmetros são complexos, pois alguns Portais têm uma janela de tempo certa para abrir e fechar. Daí a necessidade da precisão em cálculos astronômicos e matemáticos.
— Ah...
— Diante disso, ficam sempre as mesmas perguntas: pourquoi trouxeram pedras tão imensas e pesadas de longe exatamente para aquele lugar? Quais foram os arquitetos do poderoso Círculo de Pedras? Que tipo de civilização, há tantos milhares de anos, possuía conhecimentos de astronomia, engenharia e matemática desse porte? Blá-blá-blá. Mas, note as semelhanças: um monumento construído com interesse no Cosmo, revelando complexos conhecimentos de astronomia e astrologia, a questão da concentração de energias. Detalhe: o solo, em Stonehenge, também tem bastante quartzo... — Ele olhou para ela significativamente. — O homem comum não tem como entender a funcionalidade disso. Aliás, Stonehenge desperta tanta curiosidade que sobre ele já foram escritos mais de mil livros. Houve quem procurasse provar que ali funcionava um observatório com capacidade para prever eventos astronômicos de importância religiosa. Well, não foi tão mal assim, mas a questão é: que função religiosa? Só se pode especular a respeito. Tentou-se também mostrar que a construção de Stonehenge envolvia o traçado de figuras geométricas e medições bastante elaboradas, mas não se ficou restrito apenas a esse monumento. Comparou-se vários outros megalitos mais antigos, e matematicamente bem mais interessantes, que apresentavam formas elípticas e ovoides, e baseavam-se no conhecimento de trincas pitagóricas.
Claire nem ousou perguntar o que seriam trincas pitagóricas.
— Enfin, amore mio, a despeito de todas essas indagações dos cientistas, fui muito bonzinho com você e te contei que a geometria sagrada das pirâmides e dos círculos de pedra, dentre outros, pode canalizar, manipular e controlar diversas formas energéticas, de modo a abrir Portais. Por outro lado, a criação de campos eletromagnéticos muito grandes — Kilaim, aos pouquinhos, voltava ao que tinha interrompido antes por causa de Leviathan; pensou se falava ou não a respeito e decidiu, afinal, confiar nela — também pode interferir na energia vital humana, conforme eu disse antes. Esses campos energéticos, concentrados pelos monumentos de pedra, vibram em ressonância com determinados chakras nos seres humanos, abrindo-os totalmente e desenvolvendo certos... Poderes — ele concluiu. Claire estava sendo boa ouvinte. — É isso.
— Como assim? — Ela arriscou perguntar, mais uma vez.
— Poderes. Afinal, se nada disso tivesse utilidade, qual o motivo de existir? São poderes da Magia, recebidos e desenvolvidos dentro de contextos rituais. Essa é a minha parte pessoal do assunto que você tanto queria. The End! — Era tudo o que ele iria dizer. Definitivamente.
Kilaim poderia sofrer as consequências da decisão de falar tudo aquilo, especialmente porque Leviathan estava ouvindo e contaria ao Príncipe.
— Quer dizer que você esteve na grande pirâmide, num ritual ocultista?! — perguntou ela perplexa. — Alors, saíram demônios pelo Portal, e os chakras do seu corpo vibraram com a energia da Terra e da pirâmide, e também a energia dos demônios, de modo que você ganhou poderes da feitiçaria?
Kilaim caiu na risada, não porque ela tivesse conseguido entender e resumir alguma coisa, mas pelo modo como falou. Parecia um pouco apavorada.
— Pourquoi está rindo? Me diga que poderes são esses! — Claire insistiu. — Como você fez naquela noite, lá no Almanara, com o vaso?
— Aquilo foi simples. Na verdade, não dá nem para chamar de poder, muito menos de Magia. Mas, se estou bem lembrado, você queria entender como uma planta pode murchar totalmente em questão de poucos minutos. — Ele assumiu um ar de ligeira indignação. — Mas depois, nem ligou!
— É claro que liguei, Kim. E fiquei bem encafifada. Mas é que... Achei que ficar esmiuçando muito esse assunto seria prejudicial para você. É o tipo de coisa que não importa mais, n’est-ce pas? Já que você quer se afastar da seita...
Kilaim lhe lançou um olhar de reprovação imediato.
— Tudo bem, tudo bem, não é uma seita, já sei — Claire se corrigiu rapidamente.
— Sua chance de saber já passou. — Ele cutucou o ombro dela com o graveto e sorriu de leve. — Um trem não passa na sua porta duas vezes.
— Mas também teve o episódio com o cego.
— Não fiz nada com o cego. A cegueira era uma punição dos demônios, te expliquei isso na hora. Só falei o que tinha que falar, fiz o que tinha que fazer. Foram eles que retiraram a seta da enfermidade.
Kilaim fez uma pausa. Claire não perguntou mais nada; ficou com um ar distante, incomodado.
— Mas uma coisa posso te dizer! É, na verdade, uma curiosidade, já que estávamos falando em Stonehenge. — Kilaim era hábil em mudar de assunto. — Posso dizer que um dos arquitetos da famosa Dança dos Gigantes foi aquele que, hoje, só nos lembramos como lenda: Merlin.
Claire sacudiu a cabeça e ergueu as mãos, divertida, dessa vez.
— Sérieu, Kim!
Ele não se importou e disse, com aquele ar misterioso, provocando-a:
— O Satanismo enviou ao mundo alguns homens especiais... Cinco homens.
“Como se fossem ‘selados’”, ele ia dizer. “Só que ao contrário: selados não por Deus, mas por Lucipher.”
Mas logo desistiu. Não queria nem mencionar aquele termo. E Leviathan não aprovaria.
— Esses homens tinham que realizar importantes missões. Merlin, ou Myrddin, chamado Emrys, era celta e druida, e conhecia os segredos do Ocultismo. Seus poderes fizeram dele o braço direito do rei da Bretanha, primeiro Ambrosius, depois Arthur. Sua magia acabou rendendo lendas sem fim, que se contam até hoje.
— Oui, você sabe que são lendas!
— A Sombra não se expõe, Claire. Myrddin foi o primeiro enviado. Depois, ao longo da História, surgiram mais três. Falta o último. As revelações do Mal começaram na Antiguidade, e hoje estamos próximos do Apogeu.
— Que Apogeu? Está falando do Apocalipse? Do anticristo?
— Já não o mencionamos inúmeras vezes?
Mas era a primeira vez que Claire sentia medo daquela palavra.
— A vinda dele está narrada na sua Bíblia — continuou Kilaim. — Mas, o que estou querendo dizer, é que ele é o quinto enviado do Satanismo; o mais poderoso de todos. Um homem com características ímpares, como nenhum outro. E vai acontecer. — O tom foi firme, intenso, marcado pela certeza. Ele se ergueu. — Claire. Já chega.
— Já chega? Mas você nem me contou o que estava fazendo dentro da piramidezinha! Essa era a minha pergunta!
— Caraca, mano, eu estava somente cumprimentando um demônio conhecido — ele lançou a frase de uma vez, decidindo que aquela era a melhor maneira de fazê-lo.
Ponto-final.
Um momento de silêncio.
Já não havia ruído em meio às árvores. Parecia que tudo estava quieto, até a própria Floresta.
— Alors... — Ela perguntou com certa aflição: — Já que essa tal piramidezinha é um Portal, quer dizer que você invocou um demônio aí dentro? — E sem esperar pela reposta: — Mas pourquoi fez isso?!
Kilaim deu de ombros.
— Eu não o invoquei. Ele é que já estava aqui pelos arredores e sabia que eu entraria na pirâmide. E como ali é um bom local para comunicação...
— Não vá me dizer que era o mesmo que estava lá na cripta, na Catedral da Sé?
— Ele costuma estar lá também.
— Mas naquele dia foi bem diferente. Quer dizer... Não como agora. Você não estava mais o mesmo de sempre quando saiu da pirâmide. E não havia essa sensação estranha ao redor, esse... Je ne sais pas... Cheiro. Essa... Coisa pesada.
— Naquele dia, não falei com ele. Apenas sabia que estava lá na cripta.
— Mas como foi que você falou agora? — perguntou ela. — Como é que você fala com ele?
— Falando, ué. “Oi, tudo bem, como vai?”. — Ele tentou brincar com a situação, mas não estava adiantando. Então, apenas tentou encerrar o assunto, pela milésima vez: — Claire. Deixe de ser brava. Só falei com ele, nada de mais.
— Mas pourquoi? — O maior calafrio de todos percorreu as costas dela, mas não foi maior que sua perplexidade. — Você não disse que queria esquecer tudo isso?
— Da. Da. Claire, sei que você não vai entender, mas sabe quando uma coisa simplesmente faz parte de sua essência? É isso. Está dentro de mim, já expliquei a você. Não fiquei planejando, arquitetando, procurando um meio de me esconder de você para fazer algo errado... Non. Simplesmente aconteceu. Ele estava aqui e eu estava aqui. Não é algo que eu possa mudar. — Pigarreou, escolhendo as palavras. — Além do quê, eles nunca me fizeram mal; são meus amigos. E devemos cumprimentar nossos amigos, n’est-ce pas?
Kilaim achou por bem não levar em conta a seta inflamada que, ele sabia, tinha sido disparada contra Claire. Naquele momento, Leviathan não viera como intimidador, estava ali em paz, o rapaz sabia.
Por outro lado, Kilaim também sabia que era da natureza dos demônios enviar maldições, porque julgavam, com isso, estar fazendo o melhor para ele, Kilaim. E não se podia culpá-los por serem quem eram.
Ser amigo de um escorpião é assim. Achar que ele jamais picará alguém nem nunca lançará seu veneno, é utopia. Nem por isso eles eram maus de forma absoluta e irrevogável; agiam em nome do bem segundo a sua óptica.
— Eu não estava prestando nenhum culto, Claire — ele tentou acalmá-la, pois percebia seu desconcerto. — Se Leviathan estava aqui...
— Leviathan? — Dessa vez, o tremor foi ligeiramente maior.
— É, Claire, isso! — Kilaim admitiu meio nervoso. — Não vejo parce que não posso falar com ele. Falar e servir são coisas bem diferentes, pode crer.
— Mas você os conhece pelo nome?
— É claro, óbvio. Se tenho relacionamento estreito com alguém, nos tratamos por nossos nomes. Como iria, durch den Schatten der Lucipher, chamá-los? Pelo nome, é claro — respondeu Kilaim. — Será possível que apaguei o fogo do inferno com uma mangueira?! Você não entende! — E, no meio da raiva, mais uma vez falou demais: — Já estive aqui antes, só não me recordava do ponto exato da localização da pirâm...
— Esteve aqui?
— É. — Ele suspirou, sentando-se outra vez ao lado dela. — Fui levado a vários pontos do mundo para conhecer algumas coisas. — O tom demonstrava que ele não iria adiante mesmo naquele assunto.
Claire estava perplexa. Realmente, não conseguia entender. Com tanta beleza ali, em plena Floresta Amazônica, por que cargas d’água Kilaim tinha vontade de falar com um demônio? Mistério insondável.
“Pourquoi Kilaim conversou com ele...?”. A pergunta continuava martelando como um trovão anunciando tempestade.
— Já é tempo de você entender que não sou o mocinho. — Com tais palavras, Kilaim espalhou um incômodo ainda maior no ar. Ele quase conseguia adivinhar os pensamentos dela, e não eram bons. Repetiu: — Não sou o mocinho. Talvez eu seja o cara mau, o vilão, Claire. Melhor: eu sou o vilão.
Ela ergueu a vista para ele, o rosto do jovem estava tão sério, e seu tom era tão grave que, de nervoso, Claire acabou rindo. Era difícil não sentir amor por ele, fosse do modo que fosse, na situação que fosse. O amor sempre estava lá, espetando seu peito, queimando seu coração. Era amor. Disso ela não tinha dúvida.
— Kim, mesmo se você fosse o “vilão”... Eu não me importaria. Não me importo, Kim, de verdade. Sei que seu passado faz parte de você... — Ela deveria ter acrescentado com convicção: “Mas você precisa deixar essas coisas para trás e olhar para frente. Olhar para Dieu”.
Contudo, não o fez. Não achou força dentro de si para dizer isso.
— Não tenho para onde correr, Claire. Só tenho, tinha, eu acho, meu pai. Agora já não sei onde ele está ou se me ama ainda. — Kilaim esboçou um sorriso triste. E, adivinhando os pensamentos dela, acrescentou: — E quanto a Deus, Ele é mau, Claire, é mau; você nunca vai me convencer do contrário. Os cristãos não sabem o que estão fazendo nem quem é Aquele que julgam servir. Ao contrário disso, tudo o que tenho te contado é real. Os satanistas não entregam suas vidas a troco de nada; eles a entregam a um poder verdadeiro.
— Que poder verdadeiro é esse, Kim? — perguntou ela num sussurro.
Kilaim se levantou para esticar um pouco as costas. Deu alguns passos para frente, jogando o graveto ora numa mão, ora noutra, pensando em como poderia responder àquela pergunta.
— Já não é poder suficiente que os demônios tenham saído por passagens que não existiam, e que os libertavam da prisão imposta por Deus, no Abismo? — perguntou Kilaim.
— Non. Você não é um demônio, isso não me importa. Quero saber de você e aonde isso te levou...
— Está bem. Seria poder suficiente pra você um homem saindo daqui e indo para lá? Para outra dimensão?
— Ir daqui pra lá. Acho que você já mencion... — Ela parou de repente, caindo em si, num incômodo pesado. — Isso aconteceu mesmo com você? Você me disse que desenhava... Non, quer dizer, pintava lugares estranhos... Que via nos seus “sonhos”. E, depois, não eram mais sonhos.
Kilaim notou que tinha pisado em falso voltando àquele tema e queria dar um jeito de não a chocar demais. (Por que Claire não parava com aquelas perguntas?!)
“Pelas labaredas...!”, vociferou para si mesmo.
— Por meio de desdobramento é mais fácil — Kilaim acabou respondendo, meio reticente. — É a vulgarmente chamada “viagem astral”... Está lembrada que já comentei? É a forma usual de humanos viajarem entre as dimensões e por este nosso Mundo, claro; como ir de um continente a outro. Seu corpo fica aqui, mas, por um espaço de tempo, somente o espírito se locomove, podendo viajar como se fosse um avatar de você mesmo. Você vai a outros lugares do mundo rapidamente; ou a outras dimensões.
— E pourquoi alguém iria a outros pontos do mundo só com o espírito?
— Para observar pessoas, descobrir segredos, entrar onde não se pode entrar, realizar encantamentos. Uma reunião com vários sacerdotes de vários locais do mundo pode acontecer rapidamente, sem a necessidade de uma viagem “comum”. Numa só noite todos podem estar reunidos para algo importante e, no dia seguinte, acordar em suas camas.
— Tá bem. Mas, alors, pourquoi quereriam ir a outras dimensões?
— Para falar pessoalmente com demônios que ainda não foram liberados, que estão guardados para o Final dos Tempos. O Tempo do anticristo. Para falar com pessoas que já não estão entre nós...
— E você foi?
— Oui. — Ele fez uma pausa leve. — Mas, em se tratando de um Portal, o corpo físico também poderia atravessar, e, já que você queria saber, isso é muito poder... — Kilaim queria era dar uma mordida na língua. Muito tarde. Pourquoi não parava de contar aqueles detalhes para Claire?! — Atravessar o corpo físico é para poucos. Muito poucos mesmo...
Claire não soube o que dizer. O rosto de Kilaim, de repente, parecia o de um menino tentando esconder da mãe que abrira os presentes de natal antes da hora.
Novamente, o amor espetou, bem lá no fundo dela, tão forte que doeu. E Claire, então, erguendo-se, chegou perto dele e passou a mão com delicadeza sobre os cabelos desalinhados, num gesto de carinho e compreensão. Mas uma lufada súbita de vento despenteou-os novamente, com agressividade. Um vento vindo do nada, que subiu do chão, jogando terra longe. Claire se espantou.
— Mon Dieu... — Ela recolheu a mão abruptamente e olhou em volta, assustada.
Kilaim sabia que Leviathan era ciumento e estava irritado com o novo rumo da conversa. Mesmo assim, o jovem não lhe deu atenção demasiada. Ele nem deveria estar mais ali! Era uma entidade muito ocupada, então por que, simplesmente, não ia cuidar de sua extensa lista de afazeres em outro lugar e o deixava ter um pouco de sossego?
Contar a Claire, ou não, sobre sua própria vida era uma decisão que lhe cabia. Não mudava nada para a Organização, pois não estava contando algo tão importante. Nenhuma estratégia, nenhum planejamento esmiuçado, nenhum... ora!
— Sei que você é cristã de verdade, Claire — o jovem tentou, com astúcia, desviar o assunto. — Sei que ama Cristo. Essa é a sua realidade, concentre-se nela, por ora. A minha é diferente. Leviathan... Schauen Sie, ele já não está mais aqui — apressou-se a dizer Kilaim quando Claire olhou em derredor mais uma vez, pelo meio da folhagem, com olhos de receio. — Ele já foi; in memet ipso! Depois que despenteou meu cabel... Isto é... Masz na mysli, aliás... — Kilaim se atrapalhava e já nem sabia em que idioma deveria falar. — Mas o fato é que já... da. Verdade. War auf! Ele já foi.
Na verdade, ele não tinha realmente ido embora, mas se afastara bem. Ainda estava perto. Não tão perto.
“Por qual motivo ele teria se afastado...?”. E foi a vez de Kilaim olhar em derredor. Seriam aqueles Anjos?!
— Como é que você sabe que ele saiu? — Claire franziu de leve as sobrancelhas.
— Apenas sei.
A questão é que o capitão achara ultrajante aquela manifestação abusiva, e o brilho de seus olhos foi aviso suficiente. Embora estivesse em seu próprio território, era inaceitável que Leviathan estivesse a “brincar” tão perto de Claire, naquele momento.
— Mas você o viu aí dentro? Foi alguma sombra, algo de diferente?
— Hoje não o vi. Só escutei. E ele tocou em mim... — Kilaim fez uma careta, sem querer. Comentário errado! — Mas, em outras circunstâncias, oui, é lógico que o vi face a face.
— Mas viu como? Em que circunstâncias você fala?
— Outras.
Silêncio.
— E pourquoi Leviathan estava aqui na Floresta? — Claire continuou, um tanto frenética, já que o rapaz não respondia direito às suas perguntas. — Você disse que ele “estava por perto”.
— Aqui é território dele.
— Mas pourquoi?
— Leviathan é um príncipe, e príncipes reinam sobre territórios específicos, ist es nicht?
— Não é Lucipher o príncipe das Trevas?
— Lucipher é o Grande Príncipe, mas Leviathan é um dos quatro grandes príncipes. Os mais poderosos depois do meu pai.
— Quatro. E quem seriam os outros três?
— Belzebu, aquele com quem os fariseus acusaram Jesus de ter parte. Astaroth, que Salomão adorou. Asmodeo, mencionado no apócrifo de Tobias como o assassino dos noivos de Sara, filha de Raquel. Estou mencionando as Escrituras e o apócrifo pelo fato de ser mais fácil para você entender do que falo.
— Mas pourquoi Leviathan estava aqui? — Ela parecia inconformada e insistia na pergunta. — Parece que ele sempre está onde estamos.
— Nós é que sempre acabamos indo para onde ele está.
Claire deu um longo suspiro. Ficou passando o pé, compenetrada, sobre os rabiscos de Phi, PI e outros números que tinham restado na frente deles.
— E como acontece essa... Passagem pelo Portal? — Ela acabou por indagar, sentindo um aperto na garganta. Engoliu, na tentativa de se livrar daquele caroço, mas não adiantou. Mesmo assim, queria que Kilaim terminasse de contar o que tinha para contar.
— Vamos voltando? — O jovem queria sair pela tangente.
— Kim, me fala primeiro, s’il vous plaît! — Havia muita urgência naquela súplica.
Era como se, deixando passar a oportunidade, ela jamais voltasse a existir. Kilaim poderia nunca mais concordar em mencionar qualquer assunto ligado à Organização, fosse esse ou qualquer outro. Tinha que ser agora. De uma vez.
Kilaim inspirou muito fundo, fazendo barulho.
— Claire, garanto que não lhe acrescentará nada... — falou com brandura. — Pra que se submeter a isso? Vejo o quanto já está assustada...
A garota sabia que ele tinha razão. Mesmo assim, aquela sensação de pânico não era de seu feitio, por isso, teimosamente, Claire insistia em não ceder a ela. Mas a verdade é que, agora, havia momentos em que ela se sentia fazendo parte de um filme de terror. E se assustava muito.
“Pourquoi? O que mudou? Pourquoi estou tão esquisita?”, ela se avaliava intimamente, mas ignorou tudo aquilo e pediu de novo:
— S’il vous plaît?
— Da — Kilaim respondeu. — Mas depois, à noite, em nossa cabana...
— É uma promessa?
Ele assentiu.
* * *
8
La porte de la mort
Depois do jantar, Kilaim cumpriu sua promessa sem Claire ter que pedir. Uma vez na cabana, ele se sentou na cama e colocou o travesseiro como encosto.
— É difícil explicar “como” o corpo humano atravessa um Portal. — Foi assim que começou. — A linguagem humana e a estrutura do mundo físico carecem de parâmetros adequados para elaborar uma descrição. Para simplificar, basta saber que o corpo só consegue passar pelo Portal se estiver revestido de uma espécie de “incorruptibilidade”.
Ele tentou explicar que aquele revestimento, que não era bem um “revestimento”, como se poderia imaginar, funcionava como se fosse uma “capa” de energia protetora sobre o corpo físico, mas uma energia diferente da humana.
— E para quê? Como o Portal aglomera uma grande quantidade de energia, o corpo físico sofreria o efeito de matéria e antimatéria na passagem, e isso seria o fim, parce que matéria e antimatéria não coexistem. Quando se encontram, geram uma explosão que transforma a massa de ambas em energia. Sendo assim, a pessoa que entrasse no Portal seria convertida em energia pura imediatamente. Seu corpo se desintegraria.
Sentada ao lado dele, Claire apenas escutava, antes de chegar a qualquer conclusão. Tentando ser mais claro, Kilaim perguntou:
— Quando Jesus apareceu após a ressurreição, como Ele estava?
— Hum... Diferente... — Foi tudo o que lhe ocorreu.
— Diferente. Certo. Mas diferente de tal modo que não foi reconhecido nem pelos que lhe foram mais próximos. Significa que o corpo físico de Jesus tinha sido modificado. E pourquoi? Parce que, ao morrer, Ele saiu da dimensão terrena. Lembra que Ele esteve no Hades e pregou aos espíritos em prisão? Ele não poderia fazer isso com o corpo físico que tinha antes, Ele não poderia adentrar outra dimensão sem a “proteção incorruptível”. Ou seja, Ele mudou. Já não pertencia a essa nossa dimensão terrena, e ter voltado à Terra durante 40 dias não mudava esse fato. O que eu quero dizer é que atravessar um Portal necessariamente modifica o corpo físico. Temporariamente, no caso de a pessoa ter que voltar para cá, ou permanentemente. Após a ressurreição, Jesus estava aqui só de passagem. Por isso veio com seu novo corpo, que ninguém conseguia identificar. Sua Bíblia fala da incorruptibilidade que o corpo do filho terá após a própria morte e ressurreição. Menciona o corpo terreno e o corpo celestial. O corpo corruptível e o incorruptível. O corpo natural, que será ressuscitado em corpo espiritual. Estou correto?
— Oui.
Claire olhava fixamente para Kilaim, achando muito interessante o raciocínio, mas sem saber o que estava sentindo. Seus olhos deviam estar falando sozinhos, porque Kilaim suspirou e disse:
— Oke, Claire. De uma vez por todas, acredite em tudo o que já lhe contei. É bastante coisa, ouviu? Estou confiando em você e não sei se é o certo a fazer. Sei que funciona, tá bem? Funciona perfeitamente, parce que já fui lá.
De repente, aquela afirmação ganhava contornos de uma realidade enregelante. Não a questão da veracidade dos Portais nem o objetivo de seu funcionamento. O que realmente fazia um frio cortante traspassar os ossos era aquilo: aquele comentário, tão curto, mas que trazia para dentro de Claire uma infinidade de... de... Ah! Questionamentos absurdos.
Em sua mente só se martelava aquilo: ele já tinha “ido lá”. “Ido lá.” “Ido lá.”
Oh, como soava diferente de quando Kilaim mencionara isso pela primeira vez, de passagem, quando ela nem deu muita bola. Agora era tão estranho, o frio nos ossos começava a subir para a pele das costas e, mesmo em meio ao calor da Amazônia, ela estremeceu pela milésima vez. Achou que tivesse entendido errado. Ou melhor, entendera certo, mas a razão não queria aceitar aquilo.
— Você já... já foi... — ela gaguejou sem querer. — Em espírito. Eu entendi. Você “foi lá” em espírito, como uma projeção astral. Entendi.
— Non. Não disse que fui em espírito. Estávamos falando de outra coisa, lembra? Você perguntou sobre o poder a que eu me referia. E eu disse que poderia atravessar um Portal com meu corpo físico. Dessa vez... Foi bem diferente de um desdobramento.
Parecia um pesadelo.
— Você me pediu que contasse, não foi? Quer dar o dito pelo não dito? — inquiriu ele calmamente.
Claire ficou calada, absorvendo as informações e refletindo sobre que motivos absurdos levariam alguém, em sã consciência, a adentrar os domínios de um mundo desconhecido e aterrorizante, habitado por demônios. Era absolutamente esdrúxulo.
— Quero ouvir — ela respondeu.
— Eu já te disse que tenho o DNA de Lucipher, e isso não é só uma forma de expressão. É literal. Tenho alterações genéticas, e elas facilitam o processo de passagem. É uma questão da estrutura molecular do meu próprio corpo, mas, mesmo assim, não deixa de ser arriscado. Por isso eu disse que esse tipo de poder se destina a pouquíssimos. Entende? Você tem alguma dúvida?
Claire abriu a boca, mas não saiu nada. Só segurou as mãos de Kilaim muito forte, como se, num ínfimo segundo, ele pudesse se desmaterializar ali mesmo, na frente dela, e sumir para sempre.
— Mas você foi para onde, Kim? — balbuciou, por fim.
— Ah, Claire. Acho que isso você não deve saber, para seu próprio bem. Já contei o que interessava, e agora você sabe que isso existe e...
De repente, ela ficou bem falante de novo. E quase com raiva:
— Non, non, monsieur! Nem pense que não vai me contar direito o que aconteceu!
Na verdade, talvez Kilaim quisesse contar, quisesse dividir sua existência com alguém, como nunca fizera antes. Isso era amor, não era? Então, ele se decidiu de vez:
— Ça va. Mas com uma condição.
— Qual?
— Não fique me questionando. Aconteceu. É um fato e, contra fatos, não há argumentos.
— Ok. Prometo.
— Na Antiguidade, não havia tantos Portais. Hoje, oui, há muitos. Centenas, milhares... E, naquela ocasião, nós usamos um museu. Pode parecer estranho, mas o que importa é sua localização, por causa das linhas de energia, e o tipo de monumento. No caso, esse museu em particular foi construído justamente para ser um Portal dimensional. Lá, existe um porão secreto, que somente a Organização conhece, para a realização de rituais. Ali também estão guardadas diversas peças do próprio museu. Alguns dos corredores são trancados por barras de ferro, justamente para proteger as peças de maior valor.
— Que museu é esse? — Claire não resistiu perguntar.
E Kilaim sorriu, balançando a cabeça, como quem diz: “Até parece que vou te contar”.
— E, alors, foi isso — ele concluiu de novo.
— Isso quoi?
— Realizamos o ritual, o Portal se abriu. E eu passei para lá, Claire... É isso.
— Passou e foi aonde, Kim?
— Ah, Claire!
— Kim, faça-me o favor, hein?
— Na verdade — Kilaim bufou —, havia dois lugares que eu tinha muita curiosidade em conhecer. “No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra estava sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do Abismo.” O que é o Abismo? É de cunho natural, simplesmente a ausência de luz? Ou se refere a algo espiritual? Segunda opção. No Livro de Jó, dentre várias outras perguntas, algumas mexiam comigo: “Acaso, entraste nos mananciais do mar ou percorreste o mais profundo do Abismo? Porventura, te foram reveladas as portas da Morte ou viste essas portas da Região Tenebrosa? Onde está o caminho para a Morada da Luz? E, quanto às Trevas, onde é o seu lugar, para que as conduzas aos seus limites e discirnas as veredas para a sua casa?”. Em suma, existe uma Morada da Luz, e a entrada do Abismo. E eu queria ver tanto um quanto outro. Naquela noite, no porão do museu, em um dos corredores onde estavam as coisas mais valiosas, havia também uma inscrição no chão empoeirado. Um grande pentagrama. Sem o Círculo de Salomão. E no centro do pentagrama, um círculo menor com um hexagrama dentro. Além, é claro, de outros símbolos que não convém mencionar, palavras mágicas, inscrições em enochian, outras em aramaico... É isso.
— Que é enochian?
— Uma das linguagens mágicas que usamos em certos tipos de rituais. É poderosíssima. Seria a língua dos Anjos e, obviamente, foi a mesma que Deus usou para criar tudo o que existe. Adão conhecia essa linguagem, pois se comunicava com o Criador, mas, depois de ser expulso do Paraíso, ele não conseguiu mais falar o enochian. Ela chegou até nós, filhos do Fogo, por meio das entidades.
Claire estava impressionada.
— Well, voltando ao ritual, na altura da metade da parede, havia duas tochas laterais e, bem de frente para o pentagrama, um grande espelho de dois metros de altura por um metro e oitenta de largura. Era um espelho incrível, com uma moldura de metal bem espessa revestida completamente de inscrições em enochian e muitos desenhos rituais. Um espelho mágico absurdamente raro. Há apenas cinco no mundo, e foram projetados pelo próprio Lucipher. Cada um deles foi construído num determinado período da História; e o último coube a Myrddin. Ou Merlin, se preferir. Ele o confeccionou. Uma vez que o espelho esteja colocado defronte ao pentagrama e o escolhido pise com os dois pés sobre o hexagrama, abrindo os braços na direção de cada uma das tochas e falando as palavras rituais diante do espelho... De repente...
— Quoi? — fez Claire sem se conter.
Kilaim tinha um ar distante, os olhos mirando algo que não estava ali no quarto. Lembrando...
— É estranho para explicar. Apenas senti uma... Permissão. Veio como um sopro no meu pescoço, do lado esquerdo... Do meu pai.
Claire lembrou-se, imediatamente, do sopro que alguém lhe dera no escuro corredor da cripta da Catedral da Sé, em São Paulo. E se encolheu um pouco, sem perceber.
— Depois, um hálito quente, mas que trouxe um arrepio em todo meu corpo. Era o sinal de que podia dar um passo adiante. “Me leva até as profundezas do Abismo”, eu disse. Fechei os olhos e, conforme me instruíram, simplesmente deixei o corpo cair para frente. Me joguei.
— Na direção do espelho?
— Sim. É por ali a entrada.
Claire ficou calada, olhos fixos. Pensando.
— A porta da Região Tenebrosa é por onde se entra no próprio Hades. Nas línguas originais, a Bíblia menciona a palavra hebraica She’óhl, e sua equivalente grega Haí·des mais de 70 vezes. Ambas se relacionam com a Morte. Algumas traduções as convertem em “sepultura” e “inferno”. É que na maioria das línguas não existem palavras que transmitam o sentido exato desses termos. Para você entender, era um pedaço do próprio inferno, e eu vi as almas em sofrimento.
Claire não se atreveu a perguntar nada.
— Mas essa era somente uma parte do Hades. É como visitar uma cidade e conhecer sua prisão. É uma pequena parte. E o resto... Por onde passei, senti uma sensação de acolhimento. Afinal, é a casa do meu pai.
— Mas, se era o inferno, o que poderia te trazer acolhimento ali?
— Uma paisagem bucólica, lagos. Mas muito diferente daqui. Fui recebido numa casa. Como se fosse um chalé, mas com formato de pirâmide, numa colina. Eu ia encontrar um homem lá; um homem que já partiu há muito tempo... — O gigante fez uma pausa, como se visse o lugar mais uma vez. — Era um dos cinco enviados de Lucipher. Sabe? Aqueles cinco...? O primeiro... O que construiu o último espelho...
— Merlin?!?
Claire não ousou duvidar nem por um momento. A forma como Kilaim falava, seus olhos, as emoções que, ela bem sabia, ainda lhe vinham fortes. Era verdade.
— Por isso sei que a história dele não é uma lenda. Fui bem recebido. Pode parecer estranho, mas ele me serviu un thé. E fizemos um pequeno ritual para bebê-lo; algo como uma cerimônia do chá. Depois, ele conversou um pouco comigo e me incentivou a continuar trilhando o caminho. Foi amistoso.
Um longo momento de silêncio que, por fim, foi quebrado por Claire.
— E aí...?
Kilaim mantinha um ar compenetrado, a mão passando de leve sobre o queixo, quase que longe demais dali para escutá-la.
— Kim? — falou ela de novo.
— Pois é. — Mais um instante silencioso. E então ele falou: — Acho que nunca parei para pensar nisso depois que aconteceu. Afinal, eu fui, voltei e vi tudo aquilo, quer dizer, deu certo! Era motivo de regozijo. Mas houve um detalhe... Quando era hora de vir embora e estendi a mão para apertar a de Myrddin... Je ne sais pas. Ele me apertou a mão bem forte; forte demais. Olhou dentro dos meus olhos, como os filhos do Fogo fazem, ou os demônios. Até aí podia ser normal; mas daí apertou mais forte. Foi estranho. Tive a impressão, por alguns centésimos de segundo, que o olhar que me lançou refletia muita angústia e sofrimento. Foi muito rápido, como o vento. Mas parecia que, com os olhos, ele estava dizendo... — Kilaim passou de novo a mão sobre o queixo, alisando os pelos da sua rasa barba com certa impaciência. — “Me leva com você.” Algo assim. “Me tira daqui.” Segurou minha mão com as duas mãos e, alors, puxei a minha de volta. Soltei-me dele. E Myrddin ficou me olhando. Eu me despedi e fui saindo da casa. “Prazer em te conhecer”, falei. Mas parecia que ele perguntava... “Vai mesmo me deixar aqui?” É — O rapaz estava pensativo. — Talvez ele imaginasse que eu soubesse o caminho de saída. Mas pourquoi... Ele quereria sair? Quando ia descer a colina, olhei por cima do ombro, para ele, de novo. Mas ouvi a voz de Lucipher dizendo: “Prossiga. Sem olhar para trás”.
Ele voltou o rosto para Claire.
— Como ninguém me disse nada, nem mesmo meu pai, achei que tivera uma impressão errada por algum motivo. Era a primeira vez que atravessava um Portal daquele jeito. E ainda tinha outro lugar para ir.
Kilaim se calou. Houve outros intermináveis instantes de silêncio. Claire esperou, quieta. Era uma narrativa impressionante. Como Kilaim não percebia que estava sendo enganado? Que o inferno jamais seria bom?
— Quanto ao segundo lugar... — ele retomou o tom de voz confiante. — Eu queria encontrar o caminho para a Morada da Luz. Queria saber se existia mesmo, como era... E, oui, eu vi. Na verdade, uma vez que você está lá, nas dimensões paralelas... Se houver permissão para passar...
— Passar para onde?
— Para a dimensão da Luz. Lembra-se da história do rico e de Lázaro? O rico, estando em sofrimento no Hades, pôde contemplar Lázaro na dimensão celestial. Mas não podia passar para lá sem permissão. Pedi a Lucipher se poderia contemplar o local da sua antiga morada. A Morada da Luz. Aparentemente, ele podia ir até lá.
— Ou Dieu permitiu isso, com algum propósito — Claire arriscou.
— Deus não teve nada a ver com isso, como você mesma vai constatar — Kilaim respondeu de imediato. — Tinha guardiões da Luz ali, mas não os vi logo de cara. Não sei onde estavam. Por sinal, não havia Portão do Céu algum, nada assim. Apenas uma trilha. Larga.
— “As suas portas nunca, jamais, se fecharão de dia, porque, nela, não haverá noite” — recordou-se Claire, de modo cristalino, daquela passagem final do Apocalipse que, dentre outras, descrevia a Jerusalém Celestial.
Ia falar, mas percebeu que não era hora. E apenas escutou.
— Como não havia ninguém, fui passando. Não havia Portão. Incrível! Nenhum Portão. Achei que tivesse dado sorte ou Lucipher me mostrara um lugar por onde passar despercebido.
— Como era a trilha? — perguntou Claire, baixinho, sem se conter.
— Com pedras azuis, polidas, mas não demais; parce que funcionavam como cascalho. Pareciam ágatas. O caminho ia entrando pelo meio de umas árvores muito altas; mas, aí, um dos guardiões da Luz me barrou!
Para Kilaim, aparentemente, uma trilha coberta de ágatas não tinha tanta importância quanto o fato de ser barrado. O gigante estava acostumado a poder tudo, o tempo todo.
— Aquele Anjo se postou na minha frente, nem vi de onde ele saiu! Eu sou forte, mas ele era muito forte também.
Claire podia perceber o tom de indignação.
— Mas admito: ele não foi hostil. Tocou em meu ombro com certa suavidade e me chamou pelo nome. Mas disse que dali para frente eu não poderia seguir. Que a minha entrada não fora concedida. Que guardião idiota! — explodiu. — Era somente uma olhada rápida!
“Nela nunca, jamais penetrará coisa alguma contaminada, nem o que pratica abominação e a mentira, mas somente os inscritos no Livro da Vida do Cordeiro”, refletiu Claire, tocada e compungida por aquela experiência.
Não queria que o namorado notasse sua consternação, por isso manteve o rosto impassível.
— Reclamei bastante, perguntando o motivo de não poder entrar. Pourquoi?! Ali não tinha Porta! Se não tem Porta, quando alguém chega, pode entrar. Aí apareceu outro guardião. Era bem forte também.
— Você foi expulso? — Claire se esforçou ao máximo para que Kilaim não notasse seu tom aflito.
— Nein — ele admitiu novamente. — Também não foi assim. Até sorriram. Mas o primeiro insistiu que eu não poderia entrar. Meu nome não estava “na lista”, e aquele era um local apenas para os “convidados”. Mesmo assim, eu estava decidido a passar por eles. Se houvesse um Portão, pois bem, bastava fechá-lo; mas ali era uma passagem livre! E foi o que eu disse de novo. Só que o segundo, aquele querubim chato, avisou que, se eu desse mais um passo, seria fulminado, como qualquer um que ousasse entrar no Santo dos Santos sem permissão.
— Era bonito?
— Quem? O querubim?! — A voz de Kilaim subiu pelo menos dois tons.
— Non, tonto. — Claire teve que sorrir. E segurou a mão dele. — O lugar... Por ali.
Ele deu de ombros. Aparentemente, Kilaim nunca pensara em responder a essa pergunta.
— Era — respondeu. — Mas agora, admita, Claire: isso é bem arrogante, não acha, não? E muito típico de Deus: fazer acepção de pessoas com um sorriso na cara!
Claire baixou o rosto sem sustentar o olhar do rapaz. Aquilo era tão triste...
— “Ok, ok. Escreva o meu nome aí agora”, falei para os Anjinhos bocós. Escreva meu nome nessa sua listinha idiota com meia dúzia de gatos pingados. São tão poucos os que vão conseguir vir para cá!
Kilaim nem parava para raciocinar que a “listinha” era o Livro da Vida. Ele só se irritava com a lembrança. Seus olhos estavam com ódio. Talvez, o mesmo ódio com que olhou para os Anjos de Deus naquele momento, recriados, agora, apenas pela sua memória.
— “Ki-la-im Mas-tran-gel-lo. Pronto!” Tive que ser sarcástico. “Este é um local para os convidados!” — arremedou. — Péssima impressão eu tive daquele lugar, Claire! Péssima! Por fim, disse a eles que já estava indo, uma vez que não era bem-vindo ali. Eles que ficassem naquele Paraíso de araras, parce que...
— Araras...? — Claire ergueu a cabeça.
Kilaim não notou o interesse genuíno e a surpresa com que ela perguntou aquilo.
— Acho que sim! Embora não tenha visto, escutei sons de pássaros. Pareceram-me araras, maritacas ou... whatever! Quem se importa? O céu só tem árvores e passarinhos. E guardiões impertinentes! Não tem nem casa, não vi casa alguma! — Kilaim ficava mais raivoso ainda. — O que eles tanto poderiam estar escondendo de mim? Crocodilos alados? Maldita hora em que resolvi ir por aquele caminho.
Claire suspirou, dividida entre vários sentimentos. A tristeza por Kilaim não conseguir enxergar a realidade, a alegria de saber o que aguardava os filhos de Deus. O temor de que o namorado nunca conseguisse discernir o certo do errado.
— Era de que cor?
— Ah, Claire, não sei. — Ele estava meio emburrado. — Ah, e agora estou lembrando! Os guardiões negros fizeram uma gracinha bem desagradável comigo.
— Que guardiões negros?
— Os que estavam no Hades. Vi alguns, naturalmente.
— Entendi. — Ela nem percebeu que soltou a mão dele e ficou cruzando e descruzando os dedos das mãos. Então, acabou por perguntar: — Mas, Kim... O que foi que te falaram?
— Não vale a pena contar. Foi só uma brincadeira de mau gosto e que me deixou muito irritado.
— Mas... quoi?
Bufando, Kilaim terminou por desembuchar:
— Pois é. Ein Idiot! Depois que vi as almas em sofrimento e estava saindo, um dos guardiões da entrada me falou algo do tipo: “Estamos aguardando você aqui, Kilaim. Um dia você vai morar aqui. Para sempre”. Não foi mesmo uma brincadeira bem sem graça?
— E para onde você vai quando morrer? — indagou ela, como quem não quer nada.
— Para o inferno dos filhos, bien sûr. Aquele que vi era o inferno dos órfãos, daqueles que não são nem de Deus nem de Lucipher. São os abandonados. Mas eu sou filho de Lucipher. O lugar que ele tem para nós é bem diferente. Eu vi. Vi lagos, uma paisagem...
Ele repetiu o que havia dito antes.
Claire estava triste. Kilaim vivia num engano tão grande...
— Tenho uma história para te contar — ela disse, tendo uma ideia.
— Que história? — grunhiu ele.
— Era uma vez um menino que vinha com uma gaiola na mão e, dentro dela, havia três passarinhos. Os passarinhos estavam sujos, assustados e muito tristes. Então, um homem viu o menino com a gaiola e perguntou:
“O que você vai fazer com eles?”
“Vou levar para casa e me divertir com eles.”
“O que você vai fazer?”
“Ah! Vou arrancar as penas, vou cortar as patas. Vou torturá-los.”
“E depois?”
“Então eu vou matá-los.”
O homem olhou muito para os tristes passarinhos e perguntou, sem hesitar:
“Quanto você quer por eles?”
O menino estranhou a pergunta e respondeu:
“Mas eles não valem nada. Não são importantes, não significam nada.”
“Mesmo assim. Quanto você quer por eles?”
E o menino acabou vendendo os passarinhos com gaiola e tudo por 10 dólares. Então, o homem os soltou de volta na floresta.
Da mesma forma, um dia, satanás estava diante de Deus e os dois conversavam sobre o Homem. E Deus perguntou ao seu filho rebelde o que ele estava fazendo com o Homem.
“Estou só me divertindo. Eu o ensinei a fazer a bomba atômica, e o ensinei a destruir a Terra e se voltarem uns contra os outros, e lhes ensinei toda sorte de atrocidades e abominações.”
“E o que vai fazer depois com ele?”
“Eu vou matá-lo.”
“Pois me diga o seu preço. Quanto você quer por ele?”
“Ah, ele não vale nada. Não serve para nada.”
“Mesmo assim, qual é o seu preço?”
“É um preço que você não vai poder pagar.”
“Quanto você quer?”
“Quero todo o seu sangue e toda a sua lágrima.”
“Então, está bem. Irei e pagarei esse preço.”
Satanás argumentou contra aquela ideia.
“Mas não vale a pena. Eles são egoístas e orgulhosos. Vão escarnecer de Você, vão cuspir na sua cara, torturá-Lo e, por fim, matá-Lo. Por que Você faria isso?”
“Porque Eu os amo.”
Alguma coisa naquela história simples tocou Kilaim, mas ele não parou para pensar exatamente o quê.
— Está contente? — perguntou. — Agora satisfiz todas as suas dúvidas, d’accord?
— É.
— Vou ler a Veja.
* * *
O dia seguinte foi cheio. Kilaim havia dito a Claire que poderia comprar todos os passeios que desejasse para comemorar sua recuperação, e ela chegou de volta à Casa de Tarzan maravilhada, cheia de prospectos das atividades.
Naquela manhã, o programa era conhecer as seringueiras. Kilaim não estava tão interessado nelas, ainda mais na companhia do Juca, que vivia cheio de dengos para Claire, perguntando como estava de saúde e se curtia a viagem. Já tinha corrido pelo hotel em função da cicatriz enorme no peito dela, impossível de esconder, que a simpática garota francesa tivera um problema muito grave no coração.
Mas ele concordou com o passeio para agradar à namorada. Na verdade, ele esperava com certa expectativa para conhecer a tribo indígena. Haviam sido informados de que, se aguardassem um pouco, poderiam assistir a uma cerimônia ritual que aconteceria dentro de alguns dias.
Então, esperançoso quanto a isso, Kilaim deu espaço às seringueiras e, lá pelas nove da manhã, o grupo costumeiro de turistas saiu para a caminhada pela Floresta, tendo o Juca no meio deles, sempre falante.
Havia apenas duas pessoas novas: senhoras idosas, alemãs, usando vestidos florais leves de algodão, sandálias confortáveis, e que deram uma lição de bom humor ao caminhar com toda animação, sem reclamar do calor sufocante.
— Essas duas vão cair mortas depois deste passeio. — Claire ouviu Kilaim resmungar, com risadinhas.
As árvores eram enormes, algumas com troncos realmente poderosos, sendo necessárias várias pessoas para abraçá-los completamente, e raízes incríveis que muitas vezes saíam da terra. Juca mostrou como um dos troncos tinha boa ressonância quando percutido. Era da árvore Sapopema, utilizada pelos índios para comunicação a distância. À medida que andavam, foram vendo várias árvores diferentes: a Paxiúba, uma palmeira que se desloca à medida que novas raízes vão crescendo e as velhas apodrecem. A Breu, uma árvore de porte médio que produzia um óleo usado pelos índios para iluminação; a Ayuasca, de onde se retira um poderoso purgante e alucinógeno que “limpa o corpo de todo o mal”, segundo os indígenas, purificando-o ao causar vômitos e diarreias.
Parecia haver de tudo na Floresta, uma verdadeira farmácia a céu aberto, cujo arsenal ia de plantas medicinais para todos os males a afrodisíacos, como a catuaba, que possui alcaloides e estimula o sistema nervoso central. Os índios tupis foram os primeiros a descobrir as qualidades da planta e, ao longo dos últimos séculos, inventaram muitas canções sobre elas.
— Pourquoi o Juca fala de plantas afrodisíacas olhando para você, Claire? Tem alguma explicação? — perguntou Kilaim, ao ouvido dela.
— Kim, ele está olhando para todo mundo.
Havia também enormes e grossos cipós, e Juca mostrou como se pendurar e balançar em um deles. A maioria quis experimentar, inclusive Claire e Kilaim, e só uma pessoa caiu. Quando o cipó arrebentou, depois de tanto vai e vem.
Chegando ao local escolhido, havia diversas seringueiras enormes, e Juca começou a explicar como se extraía o látex, viscoso e esbranquiçado como leite, a matéria-prima da borracha. Ele riscou a casca da árvore com uma faca, várias vezes, e ajeitou um recipiente no próprio tronco para coletar o líquido.
— Então, minha gente, olhem bem pra isso! Quem poderia imaginar que, no século XIX, os portugueses transformariam o Brasil no maior exportador de borracha natural do mundo? Antes de eles chegarem aqui, os indígenas já conheciam o látex e conta-se que costumavam brincar com bolas de borracha. Mas daí a sermos os primeiros do mundo, oxe!
Claire já tinha pesquisado sobre isso, mas o que ela não sabia é que a Belle Époque Amazônica, graças à borracha, proporcionou aos novos ricos de Manaus renda per capita duas vezes superior à dos grandes produtores de café, no Sudeste do país, o que não era pouca coisa. Estar à frente de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, onde o café tinha feito maravilhas, impulsionando o crescimento urbano, a industrialização, as transações bancárias e o desenvolvimento, só mostra como o látex foi importante. Mas, quando a exportação da borracha entrou em crise, a produção de café foi grande o bastante para torná-lo o principal produto da economia do país, superando, também, a produção açucareira do Nordeste, que vinha desde a época do Brasil Colonial.
O grupo ouvia as informações e observava a substância branca “sangrar” da seringueira. Kilaim tinha os olhos grudados no leite, as mãos apoiadas na cintura e o pé batia de leve no chão, às vezes chutando as folhas.
“Que chatice.”
— Depois desse tombo econômico, por causa dos ingleses, que produziram borracha mais barata no Sudeste asiático, o Brasil ainda teve a chance de vivenciar um segundo ciclo da borracha. Mas muito curto — concluiu Juca, com seu sotaque baiano. — Durante a Segunda Guerra, os japoneses dominaram militarmente o Pacífico Sul e invadiram a Malásia. Significa que o controle dos seringais passou para a mão deles. Oxe! Com isso, o Brasil voltou a ter seu lugar ao sol, mas apenas até o final da guerra.
Kilaim afastou-se um pouco do grupo, mãos às costas, olhando os arredores e andando um pouco além pela trilha. Estava cansado de ouvir a voz do guide. O melhor de estar na Floresta era poder ouvir o silêncio, cortado somente pelos sons da própria natureza. Estava um pouco cansado de risadas, falatório e aglomerações. Ele aproveitou o fato de estar só, cercado pelas árvores, e aguçou o espírito, procurando saber se havia algum demônio por ali.
Mas nada percebeu que denotasse a presença deles. Detestava aquele silêncio.
Quando voltou para perto do grupo, viu logo Claire, que fazia pose ao lado das seringueiras, enquanto Juca, segurando a máquina deles, batia algumas fotos. Kilaim voou em sua direção, e o ar de indignação estava claramente estampado no rosto.
— Fica aí ao lado da Poranga, Kilaim! — exclamou Juca, dando uma de desentendido, abrindo o sorriso. — Vou tirar de vocês dois, agora.
— Não precisa, obrigado — respondeu Kilaim em tom que encerrava a conversa.
Juca foi se afastando depois de devolver a máquina fotográfica. Kilaim já ia questionando Claire sobre aquele “atrevimento” do guide, mas não teve tempo de falar nada porque as duas senhorinhas alemãs se aproximaram, pedindo a ele, em inglês, que as fotografasse. Claire deu uma olhada significativa para Kilaim, como quem diz, “seja cordial”. Então, o rapaz respondeu às senhoras em alemão, pegando-as de surpresa e extraindo sorrisos abertos.
Elas ficaram postadas ao lado da seringueira, de braços dados, e não paravam mais de falar, rindo, satisfeitas em encontrar alguém tão simpático e que conhecesse seu idioma natal tão bem.
— Você até parece que cresceu na Alemanha! — falou uma delas, visivelmente encantada. — Não tem sotaque!
— É o que os brasileiros me dizem quando falo português — Kilaim respondeu.
Claire notou como as vovós o olhavam com admiração.
— Aquela é sua namorada? — indagaram, olhando para Claire. — É uma moça adorável!
Claire acendeu o sorriso e as cumprimentou, mas deixou que continuassem a falar com Kilaim em alemão.
— Pelo visto, gostaram de você — ela cochichou depois, pegando-o pelo braço.
— Neste grupo, não tem quem não me admire — cochichou ele de volta, com um sorriso.
— Je sais — concordou ela, com um pouco de ciúme. — Tem gente que nem disfarça. Como aquelas irlandesas, que vivem querendo puxar papo com você. São as piores!
— Mas eu posso ser um poço de alienação e maus modos quando quero.
— É, eu sei disso. — Claire riu.
— E todos também podem ver que não tenho olhos para mais ninguém. Já aquele palhaço do Juca...
— Kim, não começa.
Ele a abraçou com tanta força, tirando-a do chão, que Claire sentiu o ar saindo dos pulmões. Riu alto, e Kilaim também, atraindo os olhares das amigas irlandesas, logo atrás deles. Quando o namorado a pôs de volta no chão, Claire virou o rosto para trás, olhando para elas com um sorrisinho. Então, passou o braço pela cintura de Kilaim, enfiando a mão no bolso traseiro de sua bermuda e dando um apertão. O semblante das meninas descaiu um pouco, e Claire riu baixinho, achando graça.
Numa clareira mais adiante, perto da margem do Rio Negro, havia um grupo vendendo artesanato, incluindo alguns indígenas. Era um ponto bom, perto do hotel. Eles recebiam turistas o ano todo e extraíam seu sustento. Todos foram dar uma espiada nas bancas e viram muitos quadrinhos feitos com as penas das pobres aves, chocalhos com sementes, além de brincos, colares e vasos em cerâmica. Claire não gostou daquilo e apenas experimentou um cocar multicolorido para bater uma foto.
Um grupo de crianças tinha um bicho preguiça, e os turistas as cercaram, querendo ver e segurar aquele animal tão estranho. Era inofensivo e muito sossegado, tinha pelagem farta, andava muito devagar e dormia o dia todo nas árvores, pendurado pelos quatro pés.
Claire observou atentamente para ver se estavam tratando bem o animal e chegou à conclusão de que a preguiça de estimação estava bem.
Voltando ao hotel, depois do almoço, Claire estava a se preparar para o passeio a uma comunidade ribeirinha. Mas Kilaim foi atrás dela, enquanto a namorada se arrumava no banheiro, escovando os dentes e penteando os cabelos na frente do espelho. Abraçou-a por trás, envolvendo sua cintura e deslizando as mãos sobre seu abdome, enquanto beijava suavemente sua nuca. Puxou o corpo dela de encontro ao seu, e ela se virou para poder afundar num beijo cálido, que depois ficou mais insistente, fazendo latejar o sangue.
Isso convenceu Claire a deixar os ribeirinhos de lado, e os dois passaram a tarde fazendo amor em sua Casa de Tarzan, em meio a palavras murmuradas e infindáveis toques que os levava a compreender mais um do outro. Depois, cochilando juntos, enroscados, aproveitavam a doçura da pele e do entendimento.
* * *
Lá pelo final da tarde, Kilaim estava animado. Tinha conseguido alugar um barco pequeno, parecido com uma canoa a motor, que iria levar apenas ele e Claire para um passeio. Claro que isso custou um dinheiro à parte, mas Kilaim queria ver o rio à noite e a seu modo.
— Tenho uma surpresa pra você — ele disse, puxando Claire pela mão, animado, descendo para o embarcadouro. — Hoje vamos sair só nós dois!
O dono do barco era um sujeito simples e de poucas palavras, que estava ali apenas para fazer seu serviço, que era exclusivamente dirigir a canoa. Seguindo o desejo de Kilaim, dirigiram-se, primeiro, aos caminhos mais distantes, no meio dos igarapés onde não se levavam os turistas. Trajetos conhecidos apenas por gente da região.
A Floresta de Igapó, característica das margens dos rios, é de difícil acesso em função das árvores mais baixas, dos cipós, epífitas e plantas aquáticas. Eles passearam por ali, bem devagar, o espelho d’água refletindo a vegetação que margeava o leito, tão próxima que podiam alcançá-las com as mãos. O sol passava aqui e ali por entre as folhas, num espetáculo único. Qualquer comentário parecia dispensável. Tal cenário ficaria gravado no coração de Claire para sempre. A água, a vegetação, o brilho do sol e a beleza de Kilaim, olhando-a com ternura.
Quando saíram de novo para o meio do rio, a tarde dava espaço a um pôr do sol dourado, rosado, violeta e alaranjado que tomava todo o céu. Kilaim pediu que o canoeiro parasse um pouco, desligando o barulho do motor. O leito do rio parecia quieto como uma lagoa. Ele e Claire ficaram abraçados, observando o belíssimo pôr do sol.
Depois, continuaram navegando, entrando pelos canais mais estreitos, saindo, indo e voltando. Claire estava gostando de fazer parte daquela grandeza. Mas Kilaim tinha outras coisas em mente, por isso continuava zanzando.
Aos poucos, as cores do ocaso deram espaço a uma lua redonda, amarelada, grande, que lançou um suave caminho de luz sobre as águas. Depois de navegarem por mais uma hora, o canoeiro sugeriu voltarem ao hotel, pois estava ficando tarde. Além disso, o vento tinha mudado, e um aglomerado de nuvens mais pesadas se estendia pelo céu como um tapete.
— Vocês não vão querer perder o final do jantar, né? — indagou ele, com animação meio forçada. — Parece que vai chover.
— É. Já percebi — respondeu Kilaim.
A lua era encoberta, volta e meia, pelas nuvens que se avolumavam. O vento soprou mais forte, fazendo o barco balançar. Realmente uma chuva tropical estava a caminho. Só que não era hora de voltarem; pelo contrário.
O gigante ia insistir um pouco mais.
— Não vamos ainda — afirmou. E baixo, para os demônios que, ele sabia, finalmente estavam ali, por trás da tempestade: — Vocês andam muito quietos... Até quando vão deixar de falar comigo?
O passeio à noite pelo rio era um desejo dele, mas também tinha por objetivo tentar fazer contato com as entidades. O dia era propício, e Kilaim sabia que Leviathan estaria pelas redondezas. Desde aquele dia na pirâmide, não tivera qualquer sinal da sua presença. Mas precisava de uma resposta clara. Claire estivera doente, e o jovem gigante queria ter certeza de que fora casual. Uma coincidência, nada mais.
“E não algum encantamento; parce que, se foi... com certeza foi dos piores.”
Kilaim entendia o modo de pensar da Organização e dos demônios.
“Se mandaram uma maldição contra Claire, o tempo vai se cumprir logo. Eu tenho que saber, tenho que estar preparado.”
Apesar de suas tentativas quase diárias, nenhuma invocação era atendida, de modo que ele se preocupava. Como sempre, o silêncio era muito ruim, trazia uma sensação de desconforto e o punha em constante estado de alerta.
Contudo, agora, eles estavam ali!
Kilaim continuou falando, baixo, o ruído do motor impedindo que Claire escutasse. Ele não pretendia sair dali sem uma resposta.
— É perigoso ficarmos — volveu o canoeiro, insistindo. — Lembre-se dos jacarés, das piranhas, da anaconda...
Ele não tinha um ar de quem estava brincando. Mas Kilaim olhou para o homem com desdém e um pouco de irritação. Ele estava atrapalhando e não fora pago para isso.
— Vai ser seguro, oui. Vamos lá. Vamos passear um pouco mais por esta noite.
— Vem tempestade aí, patrão. Chuva de verão, o senhor sabe. Vai cair um pé-d’água, mas depois se acalma. Só que é melhor estarmos no hotel quando começar.
Como que para validar aquelas palavras, um raio caiu na água, de repente, explodindo. Em seguida, o ribombar de um trovão.
— Mon Dieu... — balbuciou Claire, alheia à discussão deles, os olhos enormes voltados para o céu. — Com toda certeza vai chover! Você não acha que é melhor voltarmos? — perguntou a Kilaim.
Foi a vez de o canoeiro ficar à deriva, sem saber o que dizia a moça. Kilaim deu um suspiro.
— Já iremos, mein lieber. Não se preocupe, está tudo bem. — Ele riu. — O nosso barco não vai virar! É só uma chuvinha.
Os demônios não fariam isso. Causar um naufrágio ao filho de Lucipher! Era impensável. Ridículo, até!
— Quanto tempo daqui até o hotel? — Kilaim virou-se para o canoeiro.
— Uns 25 minutos, patrão.
Vinte e cinco minutos era tempo suficiente.
— Está bem. Você está com sorte. Minha namorada também quer voltar.
Bem feliz, o canoeiro deu meia-volta com a embarcação, rumando para o meio do rio. Mais um raio caiu perto deles, pior que o primeiro, e outro trovão. Claire cobriu os ouvidos com as mãos. O canoeiro pôs toda força no motor. Mas Kilaim estava extasiado com a força. O poder. A presença.
Dali poucos minutos, ele fez um gesto impetuoso com a mão.
— Stop! Pare! — gritou, sem pensar, dominado por aquelas sensações. — Desligue o motor.
O canoeiro fez o que o jovem pedia, a contragosto.
— Apague seu lampião aí — ordenou Kilaim.
E eram apenas eles, ali, no meio do rio.
Kilaim soltou a mão de Claire e levantou-se, com cuidado, pois a canoa balançava para lá e para cá, meio abruptamente. A presença de Leviathan era tão palpável! No meio do vento. No meio da sombra. Kilaim tinha que estar mais perto, e foi até a proa, segurando-se nas bordas do barco.
— Odo cicale Qaa, prince of Hell... — ele murmurou.
Dois relâmpagos, bem perto, e mais trovões. Era a resposta. Uma lufada de ar veio por trás da canoa, balançando-a perigosamente e agitando os cabelos de Kilaim.
Claire não escutou o que ele dizia, nem entendeu o que estava fazendo, mas um calafrio percorreu sua espinha ao vê-lo ficar de pé, na proa, quase como se fosse ele a coordenar a tempestade. E se caísse na água, agindo com aquela imprudência? Uma sensação angustiante tomou conta dela e encheu-a daquele medo já conhecido, que a acompanhava nos últimos dias. Paralisada, a garota sabia que deveria orar e pedir proteção, mas não achava forças para fazê-lo.
— Fala comigo, Leviathan... — disse Kilaim mais uma vez.
Os braços dele se ergueram para o alto, quase involuntariamente; o rosto se voltou lentamente para cima, enquanto o vento envolvia todo seu corpo.
“Um dedo fora da mão não tem poder.”
Era a voz de Leviathan. Kilaim ficou atento.
“Um dedo não pode segurar nada. Não pode reter nada. Nem sequer pode lutar, muito menos exigir algo.”
Kilaim queria falar, queria argumentar, mas não lhe foi dada essa chance, porque a entidade logo acrescentou:
“Nós não servimos à parte fora do corpo. Espera que lhe mandemos flores?”.
A resposta que Kilaim queria veio, e o gigante a ouviu. Mas era uma voz fria, destituída de tudo que ele conhecera um dia.
Então, tinha sido um encantamento...
A realidade perfurou seu coração. Mas, antes que ele pudesse absorvê-la, o contato se desfez, de repente, como se um vaso de bronze fosse partido em pedaços por uma força inimaginável. Como uma porta de ferro sendo batida com violência contra o rosto de alguém.
E Kilaim ficava do lado de fora.
— Por que terá ele saído dessa maneira? — indagou-se, surpreso. — Pourquoi tanta irritação?
Com certa dificuldade, Claire ergueu-se de onde estava e se aproximou de Kilaim, tocando seu braço com as mãos.
— Kim... allez. Está na hora. — Ela sentia o corpo tremendo.
— Você não acha lindo? — perguntou ele, inclinando-se para perto do ouvido dela. — Essa força, esse poder todo?
O rapaz estava extasiado, olhando o espetáculo dos elementos. Mas estava triste pela atitude e pelas palavras de Leviathan.
— A Natureza, oui, é linda... — respondeu ela, sentindo as ondas que batiam no casco da canoa. — Mas é melhor sermos prudentes. O canoeiro está assustado, e eu também. Vamos, s’il vous plaît?
Ele atendeu ao pedido dela, sentando-se na proa e fazendo um gesto ao canoeiro, que ligou o motor apressadamente. Kilaim permaneceu em silêncio. Claire acomodou-se ao seu lado, grudando o corpo junto ao dele.
— Dieu Merci.
Ele ouviu Claire murmurar, em meio ao silvo do vento. Depois, ela também ficou quieta. Pressentia algo estranho. Algo ruim.
Teria a ver com Kilaim?
Quando chegaram ao hotel, já as primeiras gotas, pesadas e espessas, caíam sobre eles. Desceram no embarcadouro e correram juntos, de mãos dadas, um puxando o outro sob a mão da tempestade.
* * *
9
Crocodile
No dia seguinte, o papagaio Chico lhes deu bom-dia, empoleirado sem cerimônia sobre o beiral da janela do restaurante, pertinho de uma das mesas do café da manhã. Atraída imediatamente, Claire escolheu aquela mesa.
— Louro quer café! — falou o papagaio com sua vozinha estridente.
— Eu já sei disso! — Claire dava risada, sabendo o que a ave estava dizendo.
Antes mesmo de se sentar, ou se servir do buffet, Claire preparou café com leite morninho numa pequena tigela e deu uma fatia de pão para o Chico. Apoiou tudo no beiral largo, e o papagaio, feliz, jogava pedacinhos de pão dentro da tigela e se fartava.
— Bom dia, gente! — cumprimentou Juca, que vinha passando por ali, logo cedo. — Sabia que ele adora queijo, Claire? Experimente pra ver!
O guide seguiu seu caminho sem ver o olhar irritadiço de Kilaim, e Claire foi buscar o queijo, entusiasmada.
Depois, na piscina, houve uma verdadeira invasão de macaquinhos, estimulados por pedaços de banana e mamão que Claire havia levado justamente para eles. Ali, era impossível impedir as pessoas de alimentarem os animais, que já estavam acostumados a isso, apesar de receberem suas rações específicas nos comedouros, todos os dias.
Enquanto ela se divertia alimentando-os, Kilaim estava um pouco taciturno, de poucas palavras.
Tinha sido um encantamento...
Nem dormira direito por causa daquilo.
A mononucleose não era nada. A verdadeira lança ainda estava por vir.
* * *
Depois, o casal saiu de barco para conhecer os botos cor-de-rosa. Claire até dava pulinhos de animação ante a perspectiva do passeio. Por algum motivo, não havia tantos turistas naquele horário, de modo que bastou uma lancha grande para acomodar todos os interessados. Juca embarcou por último.
A tarde estava linda, cheia de cores no céu, na água, e até o verde estava mais verde depois do temporal. De mãos dadas com Kilaim, Claire admirava a vista, sentindo-se a mais feliz das mulheres. Conversava com quem estava sentado próximo, em seu inglês meio capenga, e atraía a simpatia da maior parte das pessoas com sua alegria quase infantil. (Isso não incluía as irlandesas.)
Meia hora depois, eles estavam próximos ao local escolhido. Foram chegando devagar a uma pequena enseada, totalmente isolada, e que tinha apenas um píer. Os botos começaram a se aproximar, seguindo a embarcação, e vinham de todos os lados. Claire não cabia em si, debruçando-se, rindo, ansiosa com a expectativa de descer logo do barco. Ali no píer, os mais assustados podiam descer e, perto da margem, entrar na água até os joelhos. Mas os mais atirados podiam, literalmente, se jogar nas águas escuras do Rio Negro e nadar com os botos.
Claire, Kilaim e mais alguns não hesitaram, embora Kilaim não ficasse tempo demais na água. Os animais eram dóceis, sem malícias, e se esfregavam neles, lisos e quentes. Foram momentos inesquecíveis que transformavam a viagem numa experiência rara.
— Eles são mesmo cor-de-rosa, Kim! — falava Claire toda hora, fascinada.
Juca tirou da lancha a caixa de isopor com os pedaços de peixes que podiam ser oferecidos aos botos. Kilaim ficou tirando fotos de Claire, que estava linda em seu biquíni floral (meio pequeno!), pulando, mergulhando, se divertindo. A maioria das pessoas falava com ela, pois Claire tinha alguma coisa que mexia com os outros, e não era só por sua gentileza casual ou a beleza de menina, era o modo como demonstrava simplicidade, sorrindo sempre, olhando nos olhos. A maneira como tocava nas pessoas, às vezes um simples toque no ombro, ou um beijinho de cumprimento nas mulheres, à noite, na hora do jantar; ou mesmo a maneira como se adiantava para abrir a porta do hotel para as senhorinhas alemãs.
Depois das fotos, Kilaim se sentou no píer e ficou olhando para ela, sem desviar os olhos, observando-a em sua alegria. Estava linda mesmo! Tinha engordado alguns quilos, o que fizera desaparecer de seu rosto e corpo o ar doentio do pós-transplante e seus cabelos castanho-claros tinham adquirido reflexos dourados, madeixas tocadas pelo sol dos trópicos.
Claire viu quando as irlandesas se aproximaram um pouco de Kilaim, sorridentes, na intenção de puxar conversa.
— Hi! Está gostando dos botos?
Kilaim olhou-as, mediu-as e não respondeu. Foi esticar a mão para Claire, que saía da água subindo pela escadinha do píer. Ao contrário do namorado, a garota fez um tchauzinho para as três e, em seguida, sorrindo, começou a dar um monte de beijinhos no rosto e na boca de Kilaim.
As irlandesas olhavam de longe, se mordendo.
— Ela nem é tão bonita assim essa francesinha risonha — disse uma delas.
— Ela é bonita. Mas não sei como pode fazer o tipo dele.
— E ele não dá bola para ninguém. Incrível — tornou a primeira.
— Vai ver essa tal Claire tem peitos com sabor de cerveja. É a única explicação.
As três caíram na risada, mas continuaram olhando para o casal com olhos compridos.
Kilaim retribuiu os afagos e beijinhos de Claire abraçando-a, estreitando-a forte de encontro ao peito.
— Amo muito você, minha querida.
— Eu também, Kim.
Quando era quase hora de voltar, tiveram a sorte de enxergar uma mamãe peixe-boi com seu filhote, do outro lado da enseada. O peixe-boi, maior animal da Amazônia, não era um peixe, mas um mamífero que podia atingir até meia tonelada. Estavam ali, pastando nas campinas aquáticas, devorando capim. Infelizmente, vinham sendo dizimados pela caça predatória, por causa de sua carne, que era muito apreciada.
Kilaim deu um suspiro de alívio ao perceber que Claire não tinha escutado aquele desaforo, pois estava parada mais na ponta do píer, ainda olhando os botos e o peixe-boi, a distância.
* * *
Na volta ao Black Amazon, anoitecia. O sol já se punha, e as pessoas estavam um pouco mais cansadas, falando menos, apenas apreciando a paisagem e a brisa. Até o Juca estava mais quieto, pois falara bastante durante todo o tempo e agora se sentava ao lado do piloto da lancha.
Claire encostou a cabeça no ombro de Kilaim, olhando para o horizonte. Era bom estar ao seu lado, sentir a textura de sua pele, seu cheiro. O jovem segurava a mão dela, sentindo-se igualmente satisfeito.
Contudo, antes dos dez minutos de viagem, o inesperado aconteceu. De repente, um barulho fortíssimo no casco da lancha, acompanhado de um solavanco que fez a embarcação dar um pinote sobre a água. Todos foram erguidos de repente de seus assentos, depois caíram de volta, pesadamente. Algumas garotas gritaram, e os semblantes de todos empalideceram, porque era óbvio que alguma coisa bastante séria tinha acontecido.
O motor simplesmente parou, fazendo a embarcação deslizar mais alguns metros e, por fim, ficar estacionada no meio do rio. Aparentemente, tinham batido em alguma coisa, mas o quê? Tanto o piloto quanto os guides passavam por ali vezes sem conta, era um trajeto seguro, praticamente sem possibilidade de acidente. Ainda mais de bater em alguma coisa enorme, como parecia ter sido o caso.
O piloto olhou imediatamente para Juca, que olhou para os turistas na intenção de dizer alguma coisa que explicasse o ocorrido. Ele ia abrindo a boca, procurando palavras que conseguissem fazer a situação não sair de controle, mas não houve tempo.
— Está entrando água por aqui! — gritou uma das irlandesas, erguendo as pernas, apavorada.
Juca se levantou de imediato, olhando na direção dela, tentando avaliar o dano.
Kilaim fez o mesmo e viu que o desastre era iminente. Na cabeça dele passou, como um raio, a lembrança do sangue de Claire sendo colhido no pronto-socorro, nove dias antes, e a resposta curta de Leviathan na noite anterior.
Ele não podia acreditar! Justamente aquilo que havia pensado ser impossível: fazê-lo naufragar. Mas estava acontecendo. Estava mesmo acontecendo. Feito o ritual, lançado o feitiço, os demônios, agora, tinham destruído o barco. Ele sabia que só podia esperar o pior.
Olhou em volta, avaliando a distância até as margens, para onde todos poderiam nadar quando o barco afundasse. Não era tanto. E havia alguns coletes salva-vidas.
Por um instante, Kilaim imaginou que poderia ser mais uma coincidência. Um acidente que nada tinha a ver com...
Mas então, virando de lado, notou o ar apavorado do piloto, falando com o Juca. E ele pôde fazer a leitura labial imediatamente, já que uma palavra saltava da boca deles.
Crocodilo.
Kilaim sabia que havia muitos jacarés-açus na região, que podiam atingir até seis metros de comprimento.
— Kim, o que vamos fazer? — perguntou Claire com olhos aflitos, observando a água subir pelos tornozelos.
Os turistas começaram a entrar em pânico, seguravam-se nas bordas do barco, mas aquilo era em vão. Estavam submergindo.
Kilaim olhou para as margens, para as entradas dos igarapés. Era um pesadelo! Não precisou se esforçar muito para conseguir ver os répteis, e havia dezenas boiando como troncos. Esperando. Claro que aquele aglomerado tinha sido minuciosamente preparado pelas entidades e, assim que entrassem na água, seria o fim.
“Alors, era isso. É assim que eles querem destruir Claire”, refletiu Kilaim assustado.
Não havia colete salva-vidas para todos, de modo que Juca ia distribuindo aos que estavam mais desesperados, que, certamente, poderiam morrer afogados antes mesmo de serem despedaçados pelos jacarés.
— Claire, fique perto de mim — atalhou Kilaim, tentando esconder ao máximo o próprio temor e demonstrar a confiança que não sentia. — Vamos entrar na água e nadar, mas não saia de perto!
Nem bem ele disse isso e um dos turistas gritou, apontando:
— Tem jacarés ali!
Aquela constatação fez com que o pânico relativamente contornável cedesse lugar ao pavor. Quem já estava na água fez menção de voltar ao barco, que já quase não existia, afundando no rio. Alguns jacarés vinham nadando na direção deles, devagar, e só se ouviam os gritos.
Claire olhava de um lado a outro, hesitante, sentindo o medo crescer. Subitamente, porém, sua mente se iluminou com uma lembrança: o naufrágio do apóstolo Paulo.
Talvez tenha sido a similaridade da situação que viviam a responsável por despertar a lembrança. Ver-se em meio ao desespero que ia se instalando nas pessoas, perceber o sol se escondendo no poente, a luz do dia ficando fraca. Era aterrador. Ou, então, fora um repente esmagador de fé que pulsou dentro dela, como uma chama quase apagada que se incendeia outra vez.
E ela quis poder ajudar seus companheiros. Sem pensar, gritou, mais alto que todos, em inglês:
— Calm down! Todo mundo! Fiquem calmos!
De tal modo, soou convicta, que, por um breve instante, todos a olharam, esperando que lhes dissesse o que fazer. Ouvia-se o som de soluços e lamúrias chorosas.
— Kim, traduz para mim! — pediu Claire, afogueada.
O barco já não existia, e todos estavam na água.
— Todos nós vamos nadar até a margem o mais rápido possível — Claire falou alto, olhando de um para outro, confiante. — Meu Dieu guardará vocês. Confiem! Ninguém vai morrer aqui!
Pareceu uma voz de comando, uma âncora em que se apoiar. Foi como um jorro de coragem vindo por meio daquelas palavras.
— Mas os jacarés, os jacarés...! — choramingava a mais apavorada das três irlandesas, com o rosto contorcido.
— Não nos farão mal — Claire respondeu. E pediu de novo: — Se acalmem! Tudo vai ficar bem. Não gritem, só nadem.
E ela foi a primeira a dar o exemplo. Havia, sim, o medo de estar no meio do rio. Medo por ela, por Kilaim, por cada um... Mas a história do naufrágio de Paulo, cada detalhe, inundava sua mente como a água inundara o barco.
“Ninguém pereceu naquele acidente, dos 276 tripulantes do navio. Ninguém!”. Essa era a palavra rhema para aquela situação, Claire sabia.
Quanto a Kilaim, que estava afundado na água, deslocando-se ao lado dela, olhava-a como quem diz, “enlouqueceu?”.
— Vamos, Claire! — insistiu ele com mais veemência. — Fique perto de mim.
Kilaim sabia que os demônios estavam só esperando. Ainda assim, ele acreditou que não iriam matá-lo. Não a ele, não naquele momento; ainda não. Leviathan estava irado, mas não a esse ponto. Então, se Claire ficasse bem junto, talvez pudesse escapar dos jacarés. A posição espiritual que ele ainda ocupava seria capaz de salvá-la, e não Deus.
— Allez, Claire, allez!
Ele esticou o braço, puxando-a para bem perto. Bem baixinho, ela murmurava, suplicante:
— Oh, Dieu Altíssimo... Envia teus Anjos para nos proteger e guiar.
Por trás dela, com os últimos raios de sol, mas sem nenhum som, houve um refulgir de luz. O reflexo passou pelos dois lados do seu corpo, como uma lambida de Fogo, e desapareceu. Tão rápido que Claire imaginou se era, ou não, real.
— Dieu...
Então, havia a impressão de um grito pavoroso. Um grito no silêncio, que só ela podia escutar. Algo mais estava ali, podia sentir. Todavia, de repente, como se uma raiz tivesse sido arrancada à força, o grito amainou. E em seu lugar, uma planície verde, forrada de flores, um lago tão cristalino que doía na vista, tão diferente do Rio Negro...
No seu espírito, pairava entendimento. Deus lhe mostrara os “pastos verdejantes”, as “águas de descanso” para onde o Grande Pastor conduz aqueles que O amam.
Ela piscou e tudo tinha durado poucos segundos. Agora, estava embebida na Presença doce, poderosa. Nunca tinha percebido o Poder de Deus daquela maneira. Continuou nadando ao lado de Kilaim, com o mínimo de barulho possível, as cabeças quase se tocando. Claire olhava em derredor. Sabia que o grito ainda rondava; espreitando com olhos amarelados, em fúria, mas não podia se aproximar. Os Anjos de Deus estavam ali.
“Mesmo que eu ande pelo Vale da Sombra da Morte, não temerei mal algum parce que Tu estás comigo...”.
Mesmo com pouca luminosidade, ela pôde ver, mais adiante, que os répteis enormes estavam parados, até mesmo os que antes vinham na direção do barco. Seu peito queimava com uma mistura de sensações, tão forte que era como se o seu corpo pudesse aquecer a água ao redor dela, formando um halo de mornidão.
“De fé”, ela percebeu.
Aquilo tinha agradado a Deus.
Somente, então, se deu conta de como sua fé vinha esmaecida, morta. Porém, estava lá agora, pulsando de novo. Não deixara de existir.
Sob a palavra do apóstolo Paulo, todos no navio foram obedientes e se salvaram. Paulo falara pelo Espírito Santo, do mesmo modo como ela julgava ter feito, porque não parara para pensar. Não parara para avaliar o que tinha dito, nem que expectativa deixara no coração das pessoas.
Por isso, Claire continuava orando, baixo. Sentia-se responsável por todos. Lembrou também como os demônios tinham tentado afundar o barquinho onde estavam Jesus e seus discípulos, mas Jesus repreendera a tempestade, e o ataque cessou. O profeta Jonas naufragou, mas foi engolido por um peixe, e não morreu. A Morte só podia alcançar uma vida debaixo da permissão divina. E eles seriam preservados, ela sabia, embora não soubesse como. Apenas seriam.
Kilaim escutava uma palavra dela aqui, outra ali, mas não lhes prestava atenção, mais preocupado em observar os jacarés. Era hora. Lado a lado, os dois foram passando perto dos animais, pois não havia outro jeito de chegar à margem. Eram dezenas, muito próximos um do outro, um verdadeiro corredor de criaturas mortais. Claire e Kilaim podiam ver os seus olhos fora d’água, observando-os, e Kilaim imaginava que, a qualquer instante, aquele bando atacaria os turistas, num banho de sangue e carne triturada.
Enquanto passavam, os jacarés permaneciam estranhamente quietos. Quando muito, afastavam-se, nadando para mais longe. Algo passou perto deles, roçou em suas pernas. Claire prendeu a respiração, e Kilaim parou por um instante, prendendo a respiração, nervoso. Eram serpentes, que nadavam muito rápidas, com incrível agilidade. Um único bote de uma delas e, de novo, seria o fim. Entretanto, mais uma vez, eles não foram alvo.
Chegando à margem, o gigante se adiantou e ajudou Claire a sair da água, pegando-a no colo e a depositando em terra. Estava escuro, e eles não enxergavam direito. Claire ficou olhando para o rio, expectante. Para surpresa de Kilaim, os outros turistas foram chegando.
Ele não entendeu. Na falta de poder devorá-lo, e a Claire, os demônios instigariam os jacarés-açus com muito mais ferocidade sobre os outros. Claire foi para perto da água de novo e estendia a mão para ajudar quem ia chegando, inclusive uma das irlandesas, que a olhou com espanto por causa daquele gesto de solidariedade.
— Dieu enviou Seus Anjos para nos proteger... — disse ela.
O olhar de Kilaim pousou sobre ela, perplexo. Anjos? De novo, Anjos? Mas que Anjos podiam ser aqueles, que impediram a ação de Leviathan?
Em poucos minutos, todos estavam ali, molhados até os ossos, mas aliviados. Muitos se abraçavam. O piloto da lancha aproximou-se de Claire, e seus olhos estavam profundos.
— Trabalho no hotel há cinco anos, e minha vida toda vivi por aqui, moça. Mas nunca tinha visto tantos, assim juntos, de uma vez só... Não foi normal... Não mesmo.
Juca veio chegando e falou com muita sinceridade, olhando Claire de modo diferente pela primeira vez:
— Poranga... O seu Deus é muito poderoso...
Houve comemoração no jantar daquela noite. Estiveram muito perto de uma tragédia em grandes proporções.
* * *
As notícias não tardaram a chegar à França, deixando Zor e os demais completamente estupefatos e, por fim, furiosíssimos. Contra todas as possibilidades, a investida tinha falhado! O poder invocado pelo hexagrama não cumprira seu propósito.
Como explicar algo assim?!
Era imprescindível reorganizar as estratégias.
* * *
Depois daquilo, Kilaim viu-se, mesmo contra sua vontade, bastante assustado. Afinal, faltou pouco para que a desgraça estivesse feita. Se o auxílio viera dos Anjos, isso, num primeiro momento, ele se recusava a admitir. Por outro lado, não encontrava explicação plausível.
Após um bom banho, um jantar quente e uma cama aconchegante, Claire não tardou a afundar no sono, desgastada pelo excesso de adrenalina e tensão. Quanto a ele, ainda estava agitado demais para dormir, e o que mais queria era conversar diretamente com Lucipher. Mas seu pai não o atendia há semanas! Era uma posição muito desconfortável, e que o deixava, além de temeroso, bastante irritado. Que coisa mais terrível ficar na incerteza, não saber exatamente o que estava acontecendo!
Mas, pelo que estava vendo, queriam mesmo acabar com a vida de Claire?! Eles haviam usado o hexagrama, com toda certeza. Era infalível, pois movimentava forças do mais alto grau. Ninguém escaparia de um encantamento daqueles. Mas alguma coisa a protegera, e a todos os turistas no barco. Quanto mais refletia, menos conseguia compreender o ocorrido.
“Merde...”.
Ele conhecia o poder da Magia, mas também sabia que os Anjos podiam “atrapalhar”, embora isso fosse muito raro. Traduzindo em miúdos, o melhor “atirador de elite” dos demônios, Leviathan, estava postado no alto de um edifício; e então alguém simplesmente “atravessou” sua frente, no momento exato do disparo, fazendo-o errar a mira. Não necessariamente esse que fez o demônio errar o alvo tenha demonstrado muito poder; ele apenas usara de um pouco de sagacidade. Um subterfúgio temporário. Era isso.
Kilaim sabia que estava relativizando e suspirou, colocando a cabeça entre as mãos. Fosse como fosse, fatalidade ou não, subterfúgios, avalanches ou cataclismos espirituais, ele não tinha como responder às questões que pululavam em sua mente.
Apenas de uma coisa ele tinha absoluta certeza.
Se Leviathan fora ludibriado, era só um erro de percurso, que seria corrigido brevemente. E um atirador de elite não erra o alvo duas vezes seguidas. Isso era muito, muito preocupante.
O jovem gigante não era de roer unhas, mas, naquele momento, elas não paravam de ser trituradas pelos seus dentes. E o pensamento rodopiava, voltando sempre ao mesmo ponto: um encantamento sem chance de falhas, tinha falhado.
Intimamente, Kilaim ficava grato por ter dado tudo errado, mas como conciliar esse fracasso dentro dele? O poder ao qual servia era maior, sempre tinha sido maior que o suposto poder de Deus!
Bastante incomodado, tentou invocar Lucipher uma vez mais; quem sabe desta vez...?
Silêncio. Sempre silêncio. Então Kilaim viu que não havia alternativa. Teria que contatar Zor.
Inspirou bem fundo, preparando-se. Entrou no banheiro, fechou a porta, encostou-se à parede. Só de pensar na perspectiva de ouvir a voz do sumo sacerdote, Kilaim sentia sua respiração ficando mais pesada. Uma enorme indignação o invadia. Por que o estavam tratando dessa maneira? Mesmo assim, faria o possível para ser respeitoso. Era mais inteligente tentar conversar primeiro do que sair dando murros em ponta de faca.
Na França, era alta madrugada, mas Zor atendeu logo.
— O que está acontecendo? — A voz de Kilaim soava seca, porém em tom comedido. Precisava se controlar.
Mas o retorno de Zor vinha em tom de deboche.
— Está acontecendo, caro Kill, que a hora do recreio acabou. Ou você volta imediatamente para a aula ou será expulso da escola. Não é assim que funciona?
Kilaim não esperava ser tratado como se fosse um imbecil, e muito menos naquele tom de zombaria. Encheu o peito de ar, pensando em como dar uma resposta à altura.
— Você só tem a vitória se estiver no nosso time. Fora dele, será sempre um derrotado. — Então a voz do sumo sacerdote soou tão gelada que poderia cortar o ar, cheia de ameaça. — Você perdeu, Kill.
A pulsação de Kilaim acelerou rapidamente, como um tambor.
— Você perdeu sua mãe. E agora vai perder essa fedelha também. Não era isso que você queria saber?
— Não posso mesmo ficar com ela? — retorquiu Kilaim, queixoso. — Ela incomoda tanto assim...?
— Lobos não fazem pactos com leões. Ou você se apresenta ou o poço do Abismo será seu destino. Seus piores pesadelos vão se tornar realidade, Kill, e você sabe que eu NÃO estou brincando! Você tem 72 horas.
Ruído de desligar.
Kilaim estava totalmente desconcertado, e dormir ficou fora de cogitação. Precisava pensar. Precisava de estratégias, mas, infelizmente, não conseguia pensar em nenhuma. Com toda aquela pressão, ficava mais difícil.
* * *
Pela manhã, ao dar café com leite e um generoso pedaço de queijo para o Chico, Claire começou a achar Kilaim muito calado.
— O que foi, Kim? Está chateado com alguma coisa?
A moça estendeu o braço, afagou os cabelos dele, olhando-o com carinho. Kilaim não conseguiu conter uma lágrima fugidia. Ela ficou um pouco assustada.
— Que aconteceu...?
— Claire, já perdi muito nessa vida. E agora... Não queria te perder. Não quero te causar mal. Por isso, acho melhor você seguir sozinha.
Aquilo foi dito de supetão e não fez sentido algum para Claire.
— É coisa da tal Organização, n’est-ce pas? — perguntou ela. — Alguém telefonou, te mandou um e-mail, falou alguma coisa para você?
— Fui eu que telefonei, parce que... Tinha que saber uma coisa, ter certeza. E, Claire, acho que não tem mais jeito. Insistir só vai te prejudicar. Aquele acidente... — ele tentava explicar, sem entrar muito em detalhes. — Aquilo foi preparado.
Ela avaliou o que ele dizia por alguns instantes. Então, pousou a mão sobre a mão dele.
— Mas tudo deu certo. Nada de mal aconteceu.
Kilaim deu de ombros, triste.
— Dessa vez. Mas haverá outras investidas. Eu não posso te fazer feliz, Claire. Não tendo que fazer você fugir da morte o tempo todo.
— Não estamos fugindo da morte. E você é o único que pode me fazer feliz.
— Non, Claire, está equivocada. Se eu me afastar de você... Tudo ficará bem. Você vai encontrar alguém que possa lhe dar tudo que eu não posso. E não correrá mais perigo. Não é possível fugir deles. Pensei que conseguiria, mas...
Ela se remexeu na cadeira, inquieta. Depois, cravou os olhos azuis no fundo dos olhos dele.
— Você me ama? — Foi a pergunta.
Kilaim nem conseguiu falar, sentindo um nó fechar a garganta. Só fez um gesto com as mãos, como quem diz, “É claro que sim”.
— Eu vim até aqui por você... — disse ele, quando conseguiu reunir forças. Mas estava de cabeça baixa.
— Está conosco a força mais poderosa do Universo.
Ao escutar aquilo, o rapaz ergueu a cabeça, e dessa vez foi ele quem cravou os olhos nela. Pronto para contestar.
Mas Claire apenas sorriu.
— O Amor, Kim, o Amor. Nada pode sobrepujar essa força.
Kilaim suspirou. Claire, de fato, não entendia. Ela não sabia com o que estava lidando.
— Eu vi o que aconteceu a duas pessoas que se amavam profundamente — vociferou Kilaim. Mas sua voz também demonstrava melancolia. — Vi o que fizeram com eles. O amor verdadeiro deveria ter vencido, mas não venceu, Claire. Não venceu. Parce que eles os destruíram.
— De quem você fala? — Ela se sentia perturbada.
— Dos meus pais.
* * *
Mais três dias de silêncio e calmaria. Ele já deveria estar na França, a essa altura, se tivesse levado em conta a ameaça de Zor. Mas estava arriscando.
O calor continuava escaldante, os temporais iam e vinham, e Kilaim esperava que algo acontecesse a todo instante, mas não sabia o quê. Podia ser uma comida envenenada. Outro acidente. Um câncer fulminante.
Eram tantas as possibilidades que o melhor era nem pensar nisso. Para dizer a verdade, primeiro eles procurariam desestabilizá-los, fosse pelo corpo, na alma ou no espírito, de modo a facilitar uma ação deletéria posterior dos demônios. Novamente.
E, de fato, não demorou muito. Mais uma vez, a alegria da viagem era interrompida da pior maneira.
Ao se vestir, naquela manhã, Claire virou o corpo para o espelho do banheiro, tentando ver melhor a feridinha que tinha nas costas, certamente resultado do acidente. Tinha começado a coçar muito, e estava bem diferente. Agora havia outras, pequenas também, mas vermelhas e inchadas. A primeira estava ulcerada, sangrando um pouco por causa das coçadas.
Ela fincou as unhas nas lesões. Estava difícil de parar.
— Kim, vem aqui! — chamou ela, do banheiro.
— Que foi, Claire? — Ele se aproximou, aparecendo na porta.
— Olha essas feridas nas minhas costas. Será alergia a alguma coisa, Kim? — perguntou Claire, de costas para o espelho, mostrando as lesões. — Coça muito, será que poderia ser uma urticária? Acho que me cocei mesmo dormindo, por isso está assim, sangrando. Será que me encostei em alguma planta venenosa?
Kilaim achou estranho.
— Mas você me falou disso ontem, lembra?
— Eu falei?
— Oui, durante o jantar. Disse que devia ter batido em algum galho, durante o acidente com a lancha, e que estava com um arranhão nas costas... Mas não fez parecer que fosse algo importante. Foi só um comentário.
Claire ficou quieta, refletindo.
— Eu falei, é? — perguntou de novo. — Não me lembro mesmo. Vai ver, eu já estava com muito sono.
Kilaim ficou cismado. Pegou imediatamente sua lanterna, que estava sobre a pequena bancada do banheiro, e jogou luz em cima das lesões. Observava-as, bem de perto e, antes que dissesse qualquer coisa, Claire deu um pulo, assustando-o, e fazendo com que derrubasse a lanterna no chão.
— O que foi?!
— Ai, Kim, não sei se é uma urticária... Non, ai! Aii! — Ela deu outro pulo, pondo a mão sobre as feridas. — Parece que tem alguma coisa aí dentro. Sinto alguma coisa se mexer por baixo da pele. Será que são bernes?! — A simples possibilidade de que larvas de mosca tivessem feito buracos na sua pele a deixava bem nervosa. — Precisamos tirar! Eu estou sentindo! Parece que está me comendo!
— Nós vamos tirar, oui, vamos tirar tudo. Mas fique calma, deixe-me ver.
Foi tudo o que ele disse e tornou a ficar quieto. Olhou por mais um tempo, só que não havia orifícios de respiro para larvas. Ao contrário. Parecia haver pequenos filamentos nas feridas, vermelhos e pretos. As lesões menores pareciam prestes a abrir-se também, como a primeira, uma úlcera de fundo purulento e bordas descamativas, como se formassem uma leve crosta.
— Onde está sua pinça de sobrancelha? — Kilaim perguntou.
— Na minha nécessaire.
Ele foi até o quarto, pegou a caixinha da pinça que estava logo por cima e voltou para o banheiro. Claire estava de novo com o ombro voltado para o espelho.
— Kim, você precisa ver essas feridas nas minhas costas. Será alergia ou uma urticária? — perguntou Claire, novamente, mostrando as lesões.
Kilaim levou um susto tão grande que pareceu um murro na cabeça. Ela não se lembrava de ter acabado de dizer isso a ele?!
— E coça muito — ela continuou. — Devo ter coçado mesmo dormindo, por isso está sangrando. Só tinha uma, mas agora está espalhando... Será que foi alguma planta venenosa?
— Deixa-me olhar, meu bem... — Ele lutou para parecer normal. Claire estava apresentando um claro déficit na memória de curto prazo.
Com a pinça, Kilaim puxou, delicadamente, os tais filamentos que saíam da ferida principal, já aberta. Eles se esticavam um pouco, como se fossem elásticos.
“Será possível?!”, o rapaz custava a acreditar.
— Ai, Kim... Está coçando. E dói.
Pela milésima vez, Claire esticou o braço para alcançar as feridas. Mas Kilaim segurou suas mãos.
— Calma, amore... Você vai ficar bem. Vai ficar muito bem.
— Será que vou ter que ir de novo ao pronto-socorro?
— Você se lembra que fomos, né? — Ele estava desconfiado.
— Oui. — Mas, então, ela parou de falar e assumiu um ar vago. — Mas o que fomos mesmo fazer lá? — Mordeu o lábio superior, tentando se lembrar, completamente alheia aos sintomas que apresentava. — Ah, eu estava com gripe, foi isso! Lembrei. Que será desta vez? Teremos que procurar um médico?
— Nein. — Kilaim estava com o rosto muito sério e a voz sombria. — Ele não teria como te ajudar.
Dessa vez, Claire ficou assustada. Ergueu os olhos e olhava o namorado de frente.
— Que quer dizer?
O jovem inspirou fundo. Sabia o que estava acontecendo, mas não entendia como a contaminação se dera tão rapidamente. Só com uma inoculação direta, o que significava que alguém a teria feito, alguém da Organização. Ou um dos demônios. Em se tratando da urgência que eles estavam dando ao assunto, poderia ter sido Dagom, ou até o próprio Leviathan.
— Claire, vou cuidar disso, tá? Tenho um remedinho que é infalível para essas coisas.
Claire sentou-se sobre a tampa do vaso sanitário, confusa. Com a mão às costas, só tentava não coçar com muita força e ignorar a sensação de que algo ali dentro se movia. Mas não era possível.
— Ai!! Tenho certeza de que tem alguma coisa aí dentro!
Não adiantava querer explicar o que estava acontecendo. Ela não conseguiria reter as informações com aquele dano de memória. Precisava do antídoto primeiro. Ele foi de novo para o quarto, com largas passadas. No fundo de sua mochila, havia uma caixa de couro pequena, com cadeado.
Kilaim abriu-a. Dentro dela, havia alguns instrumentos cirúrgicos, gaze esterilizada, seringas descartáveis, alguns cateteres para veia, um garrote, um frasco de povidine pequeno, um frasco de soro fisiológico de 250 mililitros e algumas ampolas de várias cores e tamanhos. Ele pegou uma delas com cuidado. Continha um líquido amarelo citrino.
Com dedos hábeis, preparou uma injeção endovenosa e foi atrás da namorada, que continuava sentada sobre o tampo do vaso.
— Kim, alguma coisa está coçando muito nas minhas costas... — começou ela de novo.
— Eu sei, baby. Mas já vai melhorar.
Ele colocou o garrote no braço dela, palpou a veia e injetou o medicamento.
— Venha se sentar aqui no quarto — disse Kilaim com suavidade, pegando-a pela mão.
Durante algum tempo, ela sofreu com as sensações de rastejamento sob a pele, a coceira, as dores e as feridas se abrindo. Então, esquecia-se de ter tomado a injeção e de já ter falado dos sintomas, assim, os repetia o tempo todo.
Mas depois, ainda no final do primeiro dia, começou a melhorar. A memória teve uma acentuada reação positiva, e Claire parou de repetir as coisas, começando a entender o conjunto da doença. Kilaim respirou de alívio. Ele limpou as lesões e, no dia seguinte, percebeu que já começavam a formar uma fina casca, e parara de purgar líquido e pus. Agora, o próprio organismo de Claire se incumbiria de cicatrizar os ferimentos, como quaisquer outros.
Parecia um milagre.
— Mas isso não é “milagre” — alertou Kilaim, só para ter certeza de que ela entendia. — Não é Deus que está dando a você este antídoto. Essa cura veio da Organização.
Em 36 horas, Claire não tinha mais nada.
* * *
Kilaim considerava que a namorada deveria saber o que estava acontecendo.
Não seria justo deixá-la na ignorância, achando que a Organização era uma longínqua poesia, que eles não poderiam fazer-lhe nenhum mal real e que o amor entre eles bastava. Mais ainda, ela precisava entender que Deus não iria protegê-la para sempre, todas as vezes, porque isso seria ir contra tudo o que Ele dissera em Sua Palavra. Pois estava escrito:
“No Mundo tereis aflições.”
Ou então:
“Não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa estranha estivesse acontecendo. Mas alegrai-vos no fato de serdes participantes das aflições de Cristo.”
Deus deixara Claire ser alvejada mais uma vez. Primeiro, a mononucleose, depois o naufrágio, e agora... Isso. Mas e se Ele quisesse que Claire passasse por todo esse sofrimento? Já não bastara o transplante? Agora, seria atacada pelos adoradores do diabo por causa do amor? Por que Ele permitira que Claire o conhecesse, afinal? Se apaixonasse por ele?
Isso tudo era bem típico daquele Deus hipócrita!
Kilaim tinha que fazer alguma coisa. Se Claire entendesse o que realmente acontecia, se soubesse que fora atingida de novo, das duas, uma: ou iria deixá-lo, de uma vez por todas, e seguiria seu caminho, preservando sua vida ou talvez cogitasse na hipótese de abrir seu coração à doutrina satânica, salvando sua vida.
Kilaim lembrava-se da voz de Zor ao dizer que ele nunca seria um vencedor fora do Grupo. Ele sabia disso... Sempre soubera disso. E não queria ver Claire ficando ao lado dos perdedores, sozinha e desprotegida. Então, optou por contar toda a verdade, pela primeira vez, sem subterfúgios.
Os dois tinham ido juntos para o banho, mas Kilaim não se demorou muito, apesar do desejo exatamente oposto de Claire. Ele pegou uma garrafa d’água e ficou esperando que a namorada saísse do banho. Ela veio enrolada na tolha e o admirava com olhos sugestivos, demorados. O cabelo solto e recém-lavado de Kilaim caía nas costas, os olhos de petróleo contrastavam com a pele branca (Kilaim não se bronzeava), o pescoço e os ombros fortes aparecendo na camiseta regata, lindos braços, mãos bem-feitas. E o sorriso maroto, quando queria. Tudo isso formava um conjunto que ela amava e ao qual não resistia.
Mas, antes de ser atacado, Kilaim, adivinhando, tomou-a pelas mãos e a puxou para sentar-se ao lado dele na cama.
— Que foi? — Ela estranhou. — Está cansado demais?
— É que preciso falar uma coisa pra você e, enquanto não fizer isso, não vou conseguir pensar em mais nada.
— É tão sério assim? — Ela adivinhava.
— É. É, oui.
Claire ajeitou a toalha melhor em torno de si e, mais uma vez, esperou que Kilaim falasse.
— Depois que Camille morreu, dei um jeito de conseguir alguns antídotos. Por puro medo de que alguém que eu amasse pudesse vir a se infectar e eu pudesse perder, mais uma vez..., essa pessoa. Fui vacinado contra muitas doenças, mas... Voilà! Roubei algumas coisas que posso aplicar sozinho; são simples de carregar e tenho-as sempre comigo. Para... qualquer eventualidade. Por isso, eu tinha a injeção comigo.
— Mas como conseguiu isso?
— Não foi difícil parce que eu estava sempre com os médicos da Organização. Acho a medicina uma ciência linda e até gostaria de ser médico, só que...
— Que coisa incrível! Você tem que ir atrás desse sonho! — interrompeu ela, dando um gritinho.
— Quem sabe, n’est-ce pas? Mas não é disso que quero falar. Eu gostava de estar com os médicos, pois sempre participava das experiências.
— Que experiências?
— Experiências para desenvolvimento de pestes, pragas, venenos, esse tipo de coisa.
Claire franziu a testa, deglutindo a informação.
— Oke. Não importa — volveu Kilaim, abanando as mãos. — O que interessa é que eu tinha o antídoto. Você se lembra da injeção, certo?
— Vagamente, Kim. Acho que me lembro do que você contou pra mim e não exatamente de ter passado por isso.
— Oui. Mas, e se não o tivesse? O antídoto? Nessa altura, você poderia estar coberta de feridas, ficando deformada e até com sintomas psiquiátricos. Nem queira saber o que é uma doença psiquiátrica, Claire...
Kilaim se lembrava do período de internação de Camille e seu semblante escureceu. Também já tinha visto experiências com a mente realizadas dentro da Organização. Um show de horrores, agora ele percebia com mais clareza, só de imaginar Claire passando por algo semelhante.
— Mas de que você está falando, afinal? — Claire interrompeu. — O que foi, exatamente, que eu tive? Você me falou das feridas, da coceira, mas não lembro bem.
— Foi batizado com o nome de Síndrome de Morgellons, mas nós chamamos de outro jeito.
— E o que é?
— É uma doença que foi disseminada.
— Mas, disseminada como?
— Pelo ar, por exemplo. Por meio de Chemtrails. Todo tipo de produtos nocivos à saúde humana podem ser lançados na atmosfera por meio de aeronaves. Num único dia, no céu dos Estados Unidos, por exemplo, podem ser lançadas dezenas de Chemtrails. O Morgellon é só uma ponta do iceberg. Um teste.
— Teste para quoi?
— Para avaliar como se dá a propagação de uma contaminação atmosférica. O objetivo, nesse momento, não é matar muita gente. É apenas o final do preparo. Devemos estar completamente prontos para as coisas maiores que virão. Há... muita coisa sendo feita, Claire. — E como ele estava disposto a ser realmente verdadeiro, continuou: — Armas biológicas e químicas inteligentíssimas, absurdamente letais, armas nucleares. Armas nanotecnológicas. Armas de todos os tipos, o que inclui uma nova modalidade: as armas geofísicas.
— Nossa, mas que vem a ser isso? Tem a ver com a minha doença?
— Non. Não diretamente.
— Armas geofísicas... Essa é nova. E como funcionam?
Kilaim se entusiasmou um pouco, afinal, ele ainda fazia parte daquilo. Há poucas semanas, orgulhava-se muito de todos os preparativos e, mesmo agora, sabendo que Claire já estava bem.
— Já ouviu falar das ondas HAARP? — perguntou o jovem.
Ela fez que não com a cabeça.
* * *
10
Cataclysme
Kilaim ajeitou-se melhor, cruzando as pernas e se encostando contra a cabeceira da cama, apoiado no travesseiro.
— Ah, alors, deixe-me abrir um pequeno parênteses para mencionar as armas geofísicas parce que, de certa forma, também faz parte da disseminação de doenças. O projeto High Frequency Active Auroral Research Program, ou HAARP, foi financiado pela Força Aérea dos Estados Unidos, a Marinha norte-americana e a Universidade do Alasca. O projeto se iniciou nos anos 1990 para dar sequência a uma série de experimentos, durante vinte anos. Num primeiro momento, tratava-se do estudo da ionosfera, região mais alta da atmosfera terrestre, que se estende entre 50 e 600 quilômetros de altitude ou até mais, e que poderia vir a mudar o funcionamento das comunicações. O importante é saber que a ionosfera se caracteriza pela grande quantidade de íons, gerados, principalmente, pela radiação solar. Sendo assim, as características elétricas das diversas camadas da própria ionosfera podem variar muito, justamente parce que a intensidade da radiação solar também se modifica. À noite, como não existe radiação, a ionização diminui. Esta última também se altera de acordo com a estação do ano, a localização geográfica, a altura e até a composição química da alta atmosfera. Ventos, tempestades e eletrojatos solares podem modificar bastante essa camada, temporariamente. O mais importante é que fenômenos ionosféricos podem ter a capacidade de atingir grandes porções do globo. Por esse motivo, o propósito oficial do HAARP era verificar se havia possibilidade tanto de entender como de controlar os processos ionosféricos.
— Mas controlar como? Controlar quoi?
— Entenda um pouquinho como funciona a ionosfera e para que ela serve. Por causa dos íons e elétrons soltos, existe atividade elétrica. As partículas carregadas atuam como escudo contra a radiação solar e outros fenômenos solares, absorvendo-os em parte.
— Mas não era a camada de ozônio que nos protegia das radiações solares?
— Indeed. Na verdade, a camada de ozônio age em conjunto com a ionosfera e com o campo eletromagnético da Terra. Este último também é capaz de interagir com as radiações eletromagnéticas do sol, diminuindo sua velocidade e alterando a trajetória.
— Ah.
— Mas vamos nos concentrar na ionosfera. Além de funcionar como filtro solar, ela age como se fosse uma “placa metálica” refletora daquilo que vem da superfície terrestre. É justamente essa propriedade refletora que permite as comunicações, pois uma ampla faixa de ondas de radiofrequência, quando transmitidas verticalmente, retornam para a Terra. Para transmitir um sinal a longas distâncias, a onda de rádio sai da antena transmissora, alcança a ionosfera de maneira oblíqua, sofre uma reflexão, refração ou difração e atinge o local determinado. Sendo assim, a ionosfera tanto transmite quanto recebe ondas de radiofrequência. Controlar os processos ionosféricos poderia mudar o funcionamento das comunicações e sistemas de vigilância, apesar de serem contínuas as variações nas condições de propagação do sinal. Em determinadas circunstâncias, a ionosfera poderia agir não como refletora, mas como uma “esponja” que absorve determinados comprimentos de onda e inutiliza totalmente sua propagação. Teoricamente, isso provocaria o aniquilamento da comunicação em várias regiões do planeta. Um blackout de grandes proporções. Já imaginou se esse efeito pudesse ser controlado?
— Mas e esse HAARP?
— O HAARP funciona no Alasca. É uma rede de 360 antenas transmissoras de ondas de rádio e que tem a intenção de modificar temporariamente a camada ionosférica. O sinal gerado pelo transmissor principal é enviado ao campo de antenas, que o impulsiona verticalmente para o céu. A princípio, o HAARP poderia trabalhar com ondas de rádio em frequências entre 0,3 e 10 mega-hertz, isto é, ondas de comprimento médio a curto. No entanto, passaram a usar ondas de rádio supercurtas e frequência extremamente alta, de ordem entre 30 a 300 giga-hertz, chamadas EHF, concentradas num raio que aquece zonas da ionosfera. É nesse sentido que digo que seria possível causar um grande blackout. O aquecimento da ionosfera prejudicaria bastante as comunicações.
— Não entendo direito essa coisa de ondas eletromagnéticas — ela interrompeu, suspirando, ao notar que Kilaim ia mencionar bastante sobre aquilo. — Lembro vagamente de ter estudado alguma coisa nas aulas de Física, mas...
— As ondas eletromagnéticas são radiações formadas por dois campos, o elétrico e o magnético, perpendiculares entre si, e que oscilam...
Claire fez cara de paisagem, e Kilaim achou melhor simplificar.
— Olha só, ondas de rádio, micro-ondas, infravermelho, a própria luz visível, os raios UV, raios X e gama: todas são ondas eletromagnéticas. O que as diferencia são os comprimentos e as frequências. Isso você tem que entender, parce que só assim vai alcançar a dimensão de tudo o que vou falar.
Claire ficou curiosa e séria ao mesmo tempo. O que ele teria para falar que fosse, aparentemente, tão grave?
— O comprimento de uma onda corresponde à distância entre duas cristas ou duas depressões. Quanto maior o comprimento, menor é a energia dessa onda. A energia se mede em watts. Já a frequência de uma onda, em palavras que você compreenda, é a “velocidade de vibração”, isto é, quantas vezes ela oscila em um segundo. Isso é medido em hertz. Sumariando: quanto maior a frequência, mais curta é a onda e maior a energia que ela produz. Está claro?
Ela assentiu.
— As ondas de rádio são um tipo de radiação eletromagnética conhecida como “ondas hertzianas”. Na verdade, as ondas de rádio são algumas das que têm menor energia. Ondas de TV e celular também são ondas hertzianas de baixíssima frequência, da ordem de 10º, que é um hertz ou até menos. Essas ondas são não ionizantes, ou seja, não causam mal. Indo adiante: quando o HAARP emite ondas de rádio EHF, frequência extremamente alta, elas entram na ionosfera, alteram suas vibrações e se reduzem em potência. Alors, elas são devolvidas para a Terra em forma de uma frequência extremamente baixa, entre 1 e 20 hertz. A Terra está envolta em um campo eletromagnético em forma de anel, com linhas circulares de fluxo contínuo que passam pelos polos geográficos. O físico alemão W. Schumann constatou, em 1952, a existência desse campo, que se formava entre o solo e a parte inferior da ionosfera. Ele naturalmente emite radiação e vibra. Essa ressonância, que foi chamada de “Ressonância Schumann”, varia dentro do espectro de frequências 7,8; 14; 20; 26; 33 e 45 hertz, com uma variação diária de aproximadamente 0,5 hertz. As frequências da Ressonância Schumann correspondem às faixas de frequências naturais da Terra desde a superfície até o limite de seu núcleo interno sólido. A ressonância fundamental, entre o solo e a parte inferior da ionosfera, é da ordem de 7,83 pulsações por segundo ou 7,83 hertz. E isso é como se fosse um marca-passo, a frequência do coração da Terra, responsável pelo equilíbrio da biosfera e de todas as formas de vida que ela abriga. Desde que as propriedades eletromagnéticas da cavidade da Terra permaneçam as mesmas, as frequências que ela produz também não se alteram. Mas há vários fatores que podem modificar o campo eletromagnético da Terra e, consequentemente, sua ressonância. A atmosfera, a ionosfera e os ciclos de manchas solares são alguns deles. E, como o HAARP mexe com a ionosfera, também tem o poder de interferir na Ressonância Schumann e no campo eletromagnético do planeta.
Claire demonstrava um pouco de reticência. Seria possível?
— Ondas do tipo HAARP aquecem a ionosfera, e essa espécie de “efeito estufa ionosférico” poderia ser direcionada de modo a aumentar em alguns graus locais escolhidos. Não somente o calor poderia aumentar, mas as massas de ar quente alterariam os ciclos de chuva. A verdade é que, coincidentemente ou não, cresceram muito os desequilíbrios ecológicos, particularmente as perturbações climáticas — secas prolongadas ou inundações exageradas — e os terremotos. Avalie o El Niño, por exemplo: é um fenômeno atmosférico-oceânico caracterizado por um aquecimento anormal das águas superficiais do oceano pacífico tropical, além de uma redução dos ventos alísios na região equatorial. Esses ventos provocam mudanças nas correntes atmosféricas, acarretando precipitações e secas anormais em diversas partes do globo, além de aumento ou queda de temperatura, também anormais. A questão principal é que o El Niño afeta não só o clima regional, mas global. E se algo como o El Niño pudesse ser criado artificialmente? Que dizer da onda de calor de 2010 na Rússia ou as principais inundações em 2010 na China e no Paquistão?
Claire escutava, estralando os dedos de vez em quando. Significava que estava um pouco nervosa. O que Kilaim estava dizendo fazia certo sentido, mas as perguntas geravam incômodo.
— Já existem especulações de que o projeto HAARP seria uma arma dos Estados Unidos capaz de controlar o clima e provocar diversas catástrofes. Em 1999, o parlamento europeu afirmou que o Projeto HAARP manipulava o meio ambiente para fins militares e exigia uma avaliação da Science and Technology Options Assessment, órgão da União Europeia responsável pelo estudo e avaliação de novas tecnologias. Em 2002, o parlamento russo apresentou ao presidente Vladimir Putin um relatório assinado pelos comitês de Relações Internacionais e de Defesa, alegando que o Projeto HAARP era uma nova “arma geofísica”, capaz de manipular a baixa atmosfera terrestre.
— Ah, é disso que se tratam as armas geofísicas?
— Também. São armas capazes de alterar a superfície da Terra, mas isso vai além do clima. Wondrous, hã?
Claire nem respondeu.
— Por outro lado, existem equipamentos que utilizam o mesmo princípio do HAARP, isto é, alteram a ionosfera, mas por meio de ondas sonoras em vez de eletromagnéticas. O som é uma onda mecânica que causa oscilação de pressão. Essa vibração poderia produzir ressonância nas placas tectônicas. São ondas inaudíveis ao ouvido humano.
— Sérieu, Kim!
— Calma, escute. O campo eletromagnético terrestre induz nas rochas e estruturas geológicas um campo eletromagnético secundário. A intensidade de um campo eletromagnético pode ser medida por um magnetômetro. Veja só: um magnetômetro verificou que instrumentos semelhantes ao HAARP estavam transmitindo uma radiofrequência “x”, que equivale à “assinatura” de um terremoto, pouco antes da meia-noite em 8 de março de 2011. E continuou a transmitir essa mesma radiofrequência durante todo os dias 9 e 10 de março. A frequência continuou a ser gravada pelo magnetômetro por mais dez horas, em 11 de março de 2011, o dia do terremoto de magnitude 9,1 no Japão, seguido de tsunâmi, o que ficou oficialmente designado como “Grande Terremoto do Leste do Japão”. Além dos milhares de mortos e desaparecidos, panes no fornecimento de energia e água, pelo menos dois reatores nucleares foram danificados. E eu poderia mencionar também o terremoto do Haiti, em 2010, dentre outros. Aliás, o aumento dos terremotos seria um sinal do Final dos Tempos, mencionado na sua Bíblia, não?
Claire pôs as mãos na cabeça, preocupada, como quem diz: “Você está enlouquecendo”.
— Ou seja, o HAARP poderia funcionar como uma arma sísmica eletromagnética: o que você acha? — perguntou Kilaim.
— Mas é o que você está dizendo, n’est-ce pas?
— Oui. Mas... Non. Isoladamente, o HAARP não tem todo esse poder. Em relação ao clima, sim. Mas para causar alteração em placas tectônicas é necessária uma associação com as ondas sonoras.
— Você falou que equipamentos semelhantes ao HAARP poderiam produzi-las. Qual o nome do projeto, e onde funciona? — indagou Claire.
Kilaim meneou a cabeça, com um sorriso diante da ingenuidade dela.
— São equipamentos ultrassecretos, além do domínio público. Isso eu não posso te contar. E também não importa. Basta saber que as ondas sonoras, de forma isolada, também teriam dificuldade de causar um abalo sísmico importante. Mas as duas, associadas... Alors, sim.
A moça coçou a cabeça, numa pequena pausa. Os olhos estavam fixos na ponta dos próprios pés.
— Você esqueceu-se de mencionar o terremoto seguido de tsunâmi na Indonésia, em 2004, que deixou cerca de 230 mil mortos — fez Claire, por fim, apenas por não saber o que falar.
— Isso é outra coisa. O motivo foi outro. Uma coisa de cada vez. Deixa a Indonésia para outra hora. Mas, em relação aos Estados Unidos, façamos-lhes justiça: embora tenham ficado um pouco em evidência, a “culpa” por esses projetos não é desse ou daquele governo. A Organização não se expressa por meio de um só país ou outro; ela é internacional. Faz uso de quem deseja, onde deseja e como deseja. Seja na América, na Rússia, no Oriente Médio, no Brasil, no Reino Unido ou onde quer que Lucipher determine. Seus colaboradores e líderes estão espalhados pelo planeta, independentemente de nacionalidade, por isso é uma rede impossível de rastrear. Um elo pode ser descoberto, mas como saber qual é o elo seguinte? Ninguém imagina que maçãs, bananas, laranjas e uvas possam vir da mesma “Árvore”, n’est-ce pas? — Kilaim deu risada, sem querer, com a comparação frugal.
Claire ergueu os olhos do dedão, sem entender o motivo da graça.
— Mais um ponto importante: além do fato de que a emissão de ondas HAARP possa causar danos graves na ionosfera e no campo magnético terrestre, isso ainda vai além. Alterações eletromagnéticas induzem mudanças no comportamento humano. E o mais avassalador: podem causá-las numa extensa área geográfica, ao mesmo tempo. Lembra que eu disse que as emissões de radiofrequência EHF produzidas pelo HAARP chegam à ionosfera e são devolvidas em frequência extremamente baixa, ou ELF, entre 1 e 20 hertz?
Ela assentiu.
— Agora, veja só — Kilaim continuou. — As frequências naturais do cérebro humano são classificadas em ondas de quatro tipos: alfa, beta, delta e teta, variando entre 1 e 60 hertz. Ou seja, são ondas eletromagnéticas ELF, de frequência extremamente baixa, e LF, de frequência baixa. Elas podem ser colocadas num gráfico por meio de EEG. A frequência cerebral entre 7 e 13 hertz corresponde a ondas do tipo alfa e são semelhantes a quê? Ao pulsar da Ressonância Schumann fundamental. Décadas atrás, estudos já comprovavam que frequências em torno de 7,83 hertz não causam dano às pessoas, pelo contrário, fazem com que se sintam bem, parce que essa é uma das frequências normais do cérebro, compatível com o relaxamento e a tranquilidade. Em frequência alfa estamos na condição ideal para aprender novas informações, guardar fatos ou dados, elaborar trabalhos difíceis, aprender idiomas, analisar situações complicadas ou ficar em meditação. Existe aumento substancial de endorfina, dopamina e serotonina, associadas ao bem-estar, clareza mental e formação de lembranças.
— Caraca... estado alfa. Preciso me lembrar disso — a garota falou, numa tentativa de descontração.
— Já as frequências teta têm a ver com estados de sonolência e de consciência reduzida, podendo facilitar o sonho e processos criativos, pois elas vibram na faixa dos 4 a 7 hertz. Portanto, se submetido a frequências teta, o cérebro assume as características dela. Continuamente, poderia induzir depressão e outras perturbações psíquicas, além de sentimentos inexplicáveis de angústia. Frequências acima de 13 hertz podem gerar comportamento turbulento ou desenfreado, já que operam em beta. O cérebro produz ondas beta, entre 13 e 60 hertz, quando em estado de consciência plena, vigilância ou durante a agitação, tensão ou medo.
— Isso é muito louco... E a onda delta?
— As ondas delta às vezes são patológicas, encontradas quando há inconsciência, sono muito profundo ou catalepsia. Variam entre 0,1 e 4 hertz. Agora, e se submetêssemos o cérebro a radiações desordenadas, em diversas frequências incompatíveis? Já tentou dormir e ter uma televisão falando perto, ou uma inquietação interna sem explicação? E se isso durasse por dias ou meses? E se você fosse impedido de dormir ou, mesmo dormindo, não entrasse em sono REM?
— Mon Dieu... — Foi tudo o que ela conseguiu articular. A chance de descontração era remota.
— Presenciei experimentos inacreditáveis, Claire. Como você vê, o cérebro pode ser vulnerável a tecnologias que enviam essas ondas, parce que ele entra imediatamente em ressonância com o sinal de fora, como se fosse um efeito diapasão. Eu lhe pergunto novamente: se eu carregasse comigo um transmissor de ondas ELF operando em alfa e quisesse explicar alguma coisa controversa a alguém. Esse alguém se sentiria inclinado a aceitar minhas argumentações por “se sentir bem, por estar predisposto a aprender coisas novas, mesmo que difíceis”? Será que uma pessoa vai gostar mais de mim por estar “relaxada”? Em outras palavras, seria possível mudar a resposta de alguém, “formatá-la”, se a submetermos a campos eletromagnéticos específicos? — Pausa. — A resposta é sim. Mas, para funcionar de maneira global, entenda que há necessidade de se trabalhar em diversos níveis usando aparelhagem ímpar, de última linha. Computadores com softwares de manipulação cerebral, transmissores conectados a sistemas de antenas internas e externas, dentre outros “detalhes”.
— Tudo ultrassecreto.
— Ultrassecreto. Com base num modelo tridimensional do cérebro num computador, podemos acionar diferentes áreas e induzir suas funções a distância. Como um controle remoto. Um transmissor eletromagnético cria “impulsos elétricos” anômalos, com a ajuda da ionosfera, capazes de transmitir mensagens específicas: para defender um ideal, para disseminar ideias que favoreçam o anticristo. Para uma lavagem cerebral que gere comportamentos esperados. Ou mesmo a implantação artificial de pensamentos e emoções específicas, e até ações físicas pré-determinadas, como a violência ou o suicídio. Em suma, essa desestrutura eletromagnética poderia alterar o estado de espírito, o humor e o comportamento de milhões de pessoas, o que só facilitaria a ação de exércitos inimigos ou dos demônios. São doenças eletromagnéticas que, em determinados níveis, podem chegar a se tornar físicas. E não haveria causa explicável. Indo além: aparelhagem que trabalhe com ondas sonoras, como eu disse antes, tem seu valor nesse caso também. A neuroacústica estuda como diferentes frequências sonoras levam a respostas elétricas específicas do cérebro. Interessante, n’est-ce pas? Poderiam criar-se “acústicogramas” que levassem mensagens cifradas ao indivíduo. Pesquisas demonstram, por exemplo, que ouvir determinados tipos de música podem reduzir a dor crônica, trazer melhora a quadros depressivos, estimular o desenvolvimento da inteligência e aumentar a atividade do sistema imunológico. Mas e se o “desenho” sonoro fosse modificado para causar exatamente o contrário? E a música é somente um, em meio a dezenas, ou milhares, de efeitos que poderiam ser causados por meio de sons que o ouvido humano não capta.
— Mas para que isso tudo serviria? — Claire deixava de raciocinar com clareza. — Alterações de clima, terremotos, pessoas psiquicamente instáveis...
— Pense nas implicações militares, por exemplo. Um país seria obrigado a se render numa guerra em função de estado de calamidade pública causado por enchentes terríveis. Ou por uma eliminação de seu sistema de comunicação. Populações inteiras poderiam ser neutralizadas sem um único tiro por meio de alterações comportamentais em massa. E, se você pensar bem, ortodoxamente falando, isso não seria preferível à guerra? Não seria melhor “estimular” as pessoas à paz? E quem traz paz...? O anticristo. “Quando disserem: ‘Paz e segurança’, a destruição virá sobre eles de repente, como as dores de parto à mulher grávida; e de modo nenhum escaparão.” Não é o que a sua Bíblia diz?
— Mas...
— Claire, manipular a mente coletiva vai muito além do que você imagina! É um modo de dominação em massa, que facilita o envio de informações para toda a população mundial.
— No Final dos Tempos, muitos escarneceriam de Deus e da promessa da Sua Vinda... — Claire se recordou do texto. — Serão tempos terríveis parce que os homens serão egoístas, avarentos, arrogantes..., blasfemos..., ingratos... e sem domínio próprio. Cruéis. Traidores. E muito mais. Não haveria fé verdadeira. E o Amor se esfriaria de quase todos. Eu sei que vai ser assim, pois está escrito. Por sinal, já é; mas daí a achar que esses experimentos que você mencionou poderiam facilitar esse estado do ser humano...
— Peraí. Eu não disse isso. O livre-arbítrio existe, esse é um fato, você sabe e eu sei. Use mal o livre-arbítrio e colha as consequências. Você também sabe que a genética do Homem só se deteriorou com o passar do Tempo, desde sua expulsão do Jardim. Doenças multiformes e desvios de conduta atingem seu ápice. Mas o Meio também tem influência em tudo. O ser humano está imerso num mundo com “n” fatores nocivos que predispõem ou potencializam efeitos deletérios. Isso vai desde os videogames violentos para crianças até a emissão das radiofrequências que alteram o comportamento. Ponto. A radiação eletromagnética e acústica são facilitadores na formação da personalidade humana nos Últimos Tempos, como você perguntou? Oui. É o único fator determinante? Não. Mas! Pesa bastante, parce que é algo totalmente novo, criado especialmente para o Tempo do Fim.
Ela deu um pequeno muxoxo.
— O que você acharia se eu te dissesse sobre causar alterações semelhantes à esquizofrenia, pelo fato de as pessoas passarem a “ouvir vozes”? — continuou Kilaim. — Sabia que a depressão é praticamente o “mal do século”? E o que diria se soubesse que poderia existir tecnologia para inserir ou deletar memórias, pensamentos e mecanismo de “gatilho” na mente das pessoas, de modo coletivo ou individual, sem que elas se dessem conta? Para isso, o cérebro delas deve estar, preferencialmente, em frequência alfa. É possível inserir dados, depois acessá-los, como num programa de computador. Eu poderia inserir arquivos na sua mente. Afinal, a mente é um imenso computador, com sua atividade bioeletromagnética! Até mesmo o que nós entendemos por “realidade” pode ser modificado. Pois a realidade, tanto externa quanto interna, é uma tradução cerebral dos sentidos e dos pensamentos. Se fosse possível controlar isso — lembra-se da “Matrix”? —, o “existe, não existe”, “verdade, ou mentira”, seriam alterados, permitindo o controle completo do senso pessoal. Em outras palavras, voilà! O planeta acabaria povoado apenas por uma classe superior de seres humanos, consciente psiquicamente, que dominaria o restante. O que eu quero dizer é que a tecnologia está bem avançada para isso, no entanto, são experimentos ultrassecretos que, se forem deflagrados, podem custar a vida de alguém. Por isso, não fale a respeito. Nunca.
— Esses seres humanos “psiquicamente” dominantes serão os da Organização, presumo — falou Claire com certa impaciência.
Kilaim apenas acenou a cabeça como quem diz: “óbvio”. E seguiu:
— A verdade é que alterações comportamentais extremas tornaram-se o “feijão com arroz” do último século. Será que isso poderia induzir às “guerras e rumores de guerras” de que falam a sua Bíblia? Não vê como aumenta o crescimento de tensões e conflitos no mundo, e o comportamento anormal de tantas pessoas, muito mais que no passado? Imagine que o efeito seja ainda maior em pessoas com bioimplantes ou com alterações genéticas específicas.
— Quoi? Mas que bioimplante?
— O 666. A Marca da Besta. O biochip da Grande Tribulação. Hoje existem microchips da espessura de um fio de cabelo, facilmente introduzíveis por uma simples vacina.
— Ok. Nesse caso, as pessoas teriam esse “receptor” ou algo que o valha. Mas você falou de alterações genéticas específicas. Não há como adivinhar as alterações que as pessoas possam, ou não, ter.
Ele assumiu um ar divertido.
— Claire, Claire, você vive num mundo ainda bem pré-histórico. Ao quebrar o código genético do cérebro, com a ajuda de demônios, os dados obtidos via eletroencefalograma e por meio de outros medidores se tornaram quebra-cabeças fáceis de ler. As fragilidades genéticas, as predisposições a todo tipo de males, enfin... Um mundo de informações pode ser armazenado em computadores de maneira coletiva, mas também individual. Imagine a CNS ou a CIA, ou mesmo outros serviços de inteligência importantes, como o britânico, o russo, o alemão, fazendo experimentos de modificação comportamental, submetendo pessoas a frequências de ondas específicas. Isso já está mapeado. E há, oui, maneiras de saber das alterações genéticas. Você sempre pode usar aquilo que você mesmo causou — ele falou enigmaticamente.
— Como assim?
— Populações inteiras podem estar sendo submetidas a ondas eletromagnéticas nocivas por períodos prolongados, há tempos... Tendo seu DNA alterado irreversivelmente...
— Ondas de rádio?
Kilaim não respondeu, então Claire foi adiante e perguntou:
— Mas as ondas de rádio teriam poder de chegar a alterar o DNA? Entendi a questão da ionosfera e tudo o mais. Entendi o efeito das ondas ELF e LF sobre o cérebro. Só que aí já é ir ao extremo oposto. Seria burrice minha acreditar que ondas de rádio... — Ela parou de repente, olhando fixo para ele. — Alors... Só se não são ondas de rádio...
Mais uma vez, Kilaim não respondeu e apenas deu continuidade ao assunto.
— Se hoje somos capazes de entender muito melhor como funciona o cérebro, é claro que isso nos traz, igualmente, a capacidade de prejudicá-lo. Por exemplo: consegue imaginar pessoas viciadas em tecnologia, 20 anos atrás? Isso não existia, era totalmente impensável, mas hoje já faz parte do dia a dia da Psiquiatria. É um distúrbio cada vez mais corriqueiro, inclusive em crianças. Em 2010, na Coreia do Sul, um casal foi condenado por deixar morrer a filha de três meses, por desnutrição, parce que passavam mais de dez horas numa lan house, cuidando de uma criança virtual num jogo on-line. Admitiram ter alimentado a criança com leite em pó estragado e tê-la agredido para parar de chorar.
— Mon Dieu, é mesmo? — Os pelos dos braços de Claire se eriçaram.
— Olhe na Rede. Vai encontrar os fatos. E não é só isso: a Coreia já se tornou conhecida pelos sérios problemas com viciados em jogos on-line e internet, cerca de dois milhões de pessoas que já preocupam os serviços de saúde. E não é só lá que a dependência tecnológica vem aparecendo, com sintomas semelhantes aos do vício em cocaína e outras drogas, inclusive irritabilidade e ansiedade nas crises de abstinência. Isso tudo não é mero acaso. Há pacientes que terão que ser tratados com drogas psicotrópicas e terapia, e jamais poderão voltar a jogar, como os viciados em drogas pesadas ou álcool. A Organização Mundial de Saúde tem discutido os problemas associados à exposição prolongada a campos eletromagnéticos, parce que há pessoas apresentando hipersensibilidade aos eletrônicos, e desenvolvendo uma síndrome inespecífica. — Ele fez uma pausa, olhando para o rosto de Claire. — A Neurociência que, aliás, é um campo que me agrada bastante, já comprovou que quanto mais tecnologia, menor e pior a qualidade da comunicação humana interpessoal. “O amor se esfriará de quase todos.” Percebe? Os grandes avanços tecnológicos dos últimos tempos não foram um tiro no escuro. — Kilaim olhava fixo para ela, mas Claire apenas escutava. — As pessoas estavam sendo preparadas para receber tudo isso, para se deixar envolver, se enredar, se viciar! Claro que isso envolveu um preparo genético. Uma inserção de “facilitadores” dos processos. Apenas imagine que pessoas pudessem controlar tudo isso...
— Oui...
— Imagine que há muitos dispositivos geofísicos ao redor do mundo, inclusive aqui no Brasil; são secretos, é lógico. O HAARP do Alasca acabou sendo fotografado, apareceu muito na mídia e gerou-se todo tipo de especulação. Mas dos outros, aparentemente, não se tem qualquer registro. Eles agem como vírus letais que estão ainda “incubando”, mas virá, em breve, a “grande infecção”, quando atacarão o sistema imune do mundo, convertidos em poderosas armas capazes não só de alterar o comportamento humano, o clima e favorecer diversos cataclismos, mas oferecer mapeamentos detalhados de todo o planeta. Determinados tipos de ondas eletromagnéticas rastreiam e apresentam relatórios completos de tudo o que existe na superfície terrestre e detecta, mapeia e gera imagens bastante realísticas de estruturas abaixo da superfície terrestre, o que facilitaria a destruição de instalações subterrâneas inimigas, mesmo estando a grande profundidade. Além de possibilitar um sistema de comunicação criptografada subterrânea que não seja afetado por qualquer tipo de atividade externa.
— Pourquoi “criptografada”?
— É um modo de segurança. Quem recebe a mensagem precisa ter uma chave logarítmica para entender o código. E essa chave é como o número de um cofre, uma senha de computador ou uma digital. Cada um tem a sua. Assim, as informações permanecem protegidas.
Claire estava mais que pensativa. Se aquilo tudo fosse mesmo verdade...
— Mas, a verdade, Claire, é que o poder refletor da ionosfera é um verdadeiro trunfo. Projetos como o HAARP, e eu falo “projetos”, no plural, parce que os Estados Unidos não foram os únicos a trabalhar com a radiação eletromagnética, começam a ir além. E se, em vez de ondas de rádio, começassem a trabalhar com a propagação de outros tipos de ondas: bem acima das EHF, gerando imensas quantidades de energia? Há mais de 40 anos, pesquisadores já admitiam a possibilidade de que um “sinal” enviado à ionosfera pudesse ser convertido em “algo” que retornasse à Terra e, sendo absorvido pelo corpo humano, causaria uma série de alterações. Sabemos que a medida da dose dos vários tipos de radiação num tecido permite relacioná-la a diversos efeitos biológicos...
— Oui?
— O que eu quero dizer é que todos os níveis de radiação eletromagnética que estão acima da luz visível — os raios UV, os raios X e os raios gama — são capazes de causar grandes danos ao organismo. Eles têm energia suficiente para interagir de maneira catastrófica nos átomos das moléculas que compõem a estrutura celular, alterando, inclusive, o DNA.
— Ah, eu bem que disse que anomalias genéticas não poderiam ser provocadas somente por ondas de rádio! — exclamou ela.
— Sim, você acertou. Esses tipos de ondas são produzidos, geralmente, por elementos radioativos.
— Quer dizer energia nuclear?
— Sim. Proveniente de fontes naturais ou artificiais. Aliás, as reações nucleares artificiais têm poder de gerar muito mais energia. Estou falando de como causar um verdadeiro estrago, não apenas nos seres vivos. O poder ionizante dessas radiações seria capaz de alterar a própria Terra.
— Mas como isso poderia ser feito? Não estou entendendo...
— Pela ionosfera, Claire... Partindo do mesmo princípio da reflexão das ondas de rádio.
— Oui, mas a ionosfera está refletindo algo que parte das antenas...
— Exato. Mas não poderia haver uma emissão à ionosfera de outros tipos de ondas? E se essas ondas, quando devolvidas, criassem artificialmente uma nova radiação “UV”? Ou uma nova radiação de raios X ou raios gama? Os raios gama de energia ultra-alta, por exemplo, são bastante raros, mas estão entre as mais poderosas radiações conhecidas pela ciência: fótons com energia por volta de um teraelétron-volt. A radiação gama pode chegar ao planeta de duas maneiras. Primeiro, no caso de uma explosão de energia vinda do sol, da colisão de estrelas ou buracos negros ou explosões dentro da própria Via Láctea. Só que os raios que chegam aqui, especialmente os que vêm de fontes mais distantes, são absorvidos pela nossa atmosfera. Resta apenas um traço deles que, passando pelo filtro, impregna a matéria. E tem uma segunda maneira: fazer essa radiação partir daqui. Da própria Terra. Entendeu agora? Ela é impulsionada à ionosfera e depois refletida em níveis altíssimos sobre grandes extensões geográficas. Imagine o que isso poderia causar.
— Franchement... Nem sei o que dizer.
— O risco para a saúde de uma determinada radiação é expresso por fatores de qualidade QF. Eles medem o efeito biológico prejudicial dos diferentes tipos de radiações. Os fótons-gama rápidos têm QF 1, mas há radiações com QF próximos a 20, os quais teriam um efeito destrutivo 20 vezes a mais que os fótons-gama para a mesma dose de radiação absorvida.
— Mas não acabou de dizer que as ondas gama são as maiores geradoras de energia que a ciência conseguiu descobrir... Essa radiação assim tão forte... Ela existe?
Kilaim deu de ombros, o rosto sem expressão.
— Ultrassecreta.
— Mas, quoi...
— Não adianta me perguntar nada, pois minha resposta será “non” para qualquer indagação nesse sentido. E essa negativa é irrevogável, visa a sua proteção. Se você soubesse, e se eu revelasse, estaríamos mortos em três dias. Se tanto.
— Mas o que é isso, afinal? — Ela ainda insistiu, um tanto alarmada.
— É uma radiação nova, que vem de uma fonte que não posso revelar. Isso é tudo.
Claire ficou olhando para ele. Kilaim entendeu a pergunta que estava nos olhos dela.
— Oui. Espere sempre o pior do seu inimigo. Quem vai à guerra não vai para perder. Especialmente a guerra do Final dos Tempos.
— Não é verdade — ela respondeu, por fim. — Vocês seriam irradiados também. A Organização.
— Para se proteger dos raios UV bastou o filtro solar, n’est-ce pas? Mas alguém teve que descobrir isso. Quem disse que estamos sendo irradiados? Quem disse que, para nós, não existe proteção?
— Mas o que é? Um creme, uma pílula, uma vacina?
— Para seu próprio bem, Claire: não posso contar. Desta vez, você não vai conseguir extrair nada de mim. — Ele fez uma pausa, olhando para ela, avaliando se tinha entendido bem. Então, lembrou-se de algo que poderia comentar. Era inofensivo. E perguntou: — Você se lembra das baratas?
— Baratas?!
— Descobriram que elas eram poderosíssimas contra a radiação nuclear. Todo mundo sabe disso. Eram os seres mais resistentes que existiam. Experimentos com esses insetos levaram a descobrir o que elas têm que as protege. Esse componente foi isolado e transformado em um sistema de proteção. Eu estou imune e também já imunizei você. Mas, enfin... Vamos deixar de lado as armas geofísicas, não é mesmo? Como falei... E tudo parce que você me perguntou! Voltemos ao Morgellon, que é o que interessa... — Kilaim já se desviara bastante do assunto, tendo falado mais do que pretendia.
— Non, non... — Claire fez um grande sinal com as mãos. — Kim, acho que já ouvi o suficiente por hoje. Amanhã você me fala, não quero saber sobre mais nada. Muito menos outras doenças.
— Mas será que fiz aviãozinho com as páginas da bíblia negra?! Claire, você teve o Morgellon! Realmente preciso te explicar o que aconteceu, te mostrar que...
— Je sais. E quero ouvir — ela interrompeu, com novo gesto de mãos. — Só me deixe absorver melhor tudo isso.
Ela segurou a mão dele e repetiu, com convicção:
— Amanhã.
* * *
11
“Paraponera clavata”
No dia seguinte, estava marcada a ida à tribo indígena, e poderiam assistir a uma cerimônia de passagem. Não acontecia sempre, era pura sorte.
— Como todos já sabem, o longo e conturbado processo de colonização e exploração da Amazônia gerou impactos ambientais seríssimos, além de trazer aos índios muito sofrimento — explicava Juca. — Desde o início da colonização, tribos inteiras acabaram dizimadas em função de moléstias adquiridas dos europeus, como gripe, sarampo, tuberculose e doenças venéreas, também pelo confronto direto com os brancos. Suas terras têm sido invadidas há séculos, e eles se veem cada vez mais desprovidos de sua cultura e tradições. Por isso, a oportunidade de ver esse ritual hoje é ímpar!
— Mas esses conflitos existem até hoje? — perguntou alguém, com espanto.
— Até hoje existem conflitos entre tribos e brancos por causa da demarcação das terras, especialmente no Centro-Oeste do país, onde os grandes pecuaristas ocuparam porções enormes para transformar em latifúndios de criação de gado. Mas aqui na Amazônia também há problemas.
Navegando devagar numa Gaiola pequena, o grupo sentia no rosto e no corpo o vento agradável. Kilaim e Claire se mantinham de mãos dadas, aproveitando o passeio. Claire não tinha ideia de como haviam sido numerosos os indígenas. Ela sempre tivera uma ideia, um pouco distorcida, de que no Novo Mundo não havia muita gente, nem uma cultura bem desenvolvida. Para ela, tudo aquilo era uma grande surpresa.
— Estima-se que, originalmente, quando os portugueses começaram a chegar à Amazônia, havia em torno de duas mil tribos, uma população de mais de dois milhões de índios que viviam nas várzeas, nas matas e nos campos, sempre às margens dos rios ou à beira-mar. Detalhe: sem depredar a natureza. Levando-se em conta o país como um todo, o número de indígenas poderia chegar a sete milhões. Nas últimas décadas, a política de desenvolvimentos para a Amazônia levou à abertura de estradas que são, em sua maioria, de péssima qualidade, mas acelerou o extermínio das tribos, reduzindo ainda mais suas terras. Enquanto não se demarcarem as reservas indígenas de maneira definitiva, impactos de toda ordem vão destruindo e ocupando territórios que pertenceram aos nativos durante milhares de anos. Há também os que tentam provar inutilmente que os índios deveriam adotar a cultura branca para serem reconhecidos como cidadãos.
Claire sacudiu a cabeça com indignação e olhou para Kilaim, comentando:
— Mas que coisa absurda!
Ele deu de ombros, sem se importar muito.
— Na Amazônia, estima-se que vivam em torno de 195 povos indígenas: uma população de quase 240 mil pessoas, o que significa por volta de 56% da população total de indígenas brasileiros.
Os turistas fizeram um “oh” de espanto. Kilaim estava dando uma de “guia”.
— Temos aqui no Amazonas, hoje, talvez uma variedade de 170 a 180 línguas diferentes, embora representem menos da metade das que existiam 500 anos atrás. E prevalecem as epidemias de malária, hepatite, diarreia infecciosa, além de avançarem a sífilis e a AIDS, trazidas pelos garimpeiros. Com menor acesso a cuidados básicos de saúde, esses são problemas sérios.
O grupo desembarcou numa enseada e todos se encaminharam às canoas em fila indiana. Elas esperavam por eles para adentrar os igarapés, único caminho possível para chegar ao destino. O temporal da última noite tinha deixado o mato com um cheiro ótimo, mas havia bastante lodo, de modo que a pinguela estendida sobre a trilha que seguia até as canoas afundava um pouco, a cada passo, chafurdando. Motivo para gritinhos das moças.
Havia muito falatório em vários idiomas e risadas. A maioria estava ansiosa para navegar pelos igarapés, os estreitos canais característicos da Bacia Amazônica, onde só passam embarcações pequenas, pois eles têm pouca profundidade, águas escuras, geralmente, e costumam ficar escondidos no interior da Floresta.
Apesar de Kilaim e Claire já terem se aventurado naquelas trilhas aquáticas por conta própria, quando alugaram o barco, ainda assim era muito bem-vinda a oportunidade de estar, mais uma vez, em contato íntimo com a Floresta.
Acomodaram-se um a um nas canoas, com a ajuda do guide.
— A Amazônia realmente é puro encanto... — murmurou Claire ao ouvido de Kilaim, enquanto tocava a água com a mão e observava o rastro que ela ia deixando.
— “O homem (aqui) é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido, quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão” — ele respondeu.
Claire voltou os olhos para ele, sorrindo.
— Você está poético, hoje!
— Não cabe a mim essa sua admiração — ele brincou. — O comentário é de Euclides da Cunha. Entre os escritores brasileiros, nenhum conseguiu refletir tão bem o estranhamento de um visitante em relação à Amazônia. Já conhecido por ter escrito Os Sertões, Euclides navegou pelos rios Purus, Juruá e Acre em 1905.
As canoas passeavam, devagar, por entre as árvores inundadas, que se erguiam até o céu, e a folhagem mais baixa esbarrava neles. As pessoas, milagrosamente, estavam quase quietas, observando aquele lugar inimaginável. Foi quando um canto diferente, sonoro, fez com que todos erguessem a cabeça, procurando o autor daquelas notas, em meio à folhagem.
— É o canto do uirapuru! — exclamou Juca não muito alto. E fez sinal para que se parassem as canoas, que seguiam uma atrás da outra.
Longo e melodioso, o canto parecia com uma flauta doce...
— Por isso ele é conhecido também como Músico-da-Mata ou Dançarino-Escarlate, dentre outros nomes — disse o guide.
Com as embarcações boiando, sossegadas, apreciaram o presente da Natureza. Ficaram todos olhando para cima, ouvindo, quase sem se mexer; mas ninguém conseguiu ver o pássaro de plumagem avermelhada e laranja.
Depois que retomaram a viagem, Juca continuou explicando:
— Vocês sabiam que há vários pássaros que recebem o nome de uirapuru? Esse nome vem do tupi-guarani, “wirapu’ru”. O mais famoso é o uirapuru-verdadeiro, cujo canto é o mais belo dentre todos. Aqui em Manaus, e em outras regiões do Norte do Brasil, a população acredita que ter o uirapuru-verdadeiro empalhado traz sorte na vida e no amor — ele disse. — Essa é uma das causas do risco de extinção em que se encontra esse pássaro, mesmo não sendo fácil encontrá-lo.
Claire arregalou os olhos de puro espanto e ia dizer alguma coisa veementemente quando o guide entrou com mais um dado entristecedor:
— Falando em coisas que desaparecem, infelizmente, muitos desses igarapés estão condenados a deixar de existir. A poluição causada pelo desaguamento de esgotos sem tratamento, que aumentam em virtude do aumento da urbanização, é a principal causa. São necessários programas de preservação mais eficazes, tanto da flora quanto da fauna. E a maneira de eu colaborar com isso é falando a seu respeito.
Mais uma vez o coração de Claire se entristeceu com a dureza da realidade: a poluição, o desmatamento, o aquecimento global e a perda de tantas espécies. Só a quantidade de litros de gás carbônico que se acumulava na atmosfera por causa da diminuição da flora tinha atingido um milhão e meio de toneladas naquele mês. Claire acessara o “Boletim do Desmatamento” para que Kilaim o lesse. Ela gostaria tanto de poder fazer alguma coisa! Admirava a postura do Juca, que, pelo menos, se inteirava não só das belezas da região, mas de seus problemas.
Depois de mais ou menos 40 minutos, as canoas foram aportando num local onde havia uma margem bem estreita. Seguiriam dali pela trilha que sumia no meio do arvoredo. A maior parte do grupo já estava acostumada ao calor úmido, abafado, inclusive o par de velhinhas alemãs, que sorria para Kilaim sempre que podia. Elas tiveram muita sorte de não estarem presentes no dia do acidente com o barco!
Todos caminhavam devagar para poupar fôlego.
— As vovós dão de dez a zero em muita gente — fez Claire, olhando para as meio ofegantes garotas irlandesas, que vinham atrás deles.
Dessa vez, as moças sorriram para Claire. A silenciosa atitude de cordialidade vinha desde o dia do acidente. E, respeitosamente, haviam inclusive desistido de tentar estabelecer qualquer elo, conversa ou “rá-rá-rá” com Kilaim.
Por fim, a caminhada escaldante os deixou numa área verde menos fechada, uma espécie de clareira. Mas não se tratava do lugar comum da aldeia, onde todos se reuniam. Estava claro que deveria ser uma parte reservada para alguns tipos de festas ou cerimônias. Os índios que se aproximaram para recebê-los sorriram e ajudaram a encostar as canoas na margem. Usavam roupas puídas, shorts e camisetas de cores desbotadas, chinelas. Outros mostravam seus adereços com contas ou penas, particularmente as mulheres e os de maior cargo. Crianças pululavam por aqui e por ali, as menorzinhas com o bumbum de fora.
Logo de cara, porém, Claire percebeu que foi com espanto sobressaltado que alguns dos mais graduados da tribo e, portanto, dos mais enfeitados, fitaram Kilaim. Seus olhos estatelaram-se, quase assombrados.
Juca e o guide da outra canoa aparentemente perceberam aquela atitude e, certamente, julgaram-na anormal, pois começaram a falar quase ao mesmo tempo, às pressas, na intenção de distrair os convidados e animar os nativos.
Claire ia fazer um comentário sobre isso, mas o chefe da tribo sateré-mawé adiantou-se em largas passadas, cocar na cabeça e tornozeleiras enfeitadas, na direção deles. Parou na frente de Kilaim e estendeu a mão; propositalmente à esquerda, ela notou. Que curioso... Kilaim estendeu a sua mão esquerda de volta, com firmeza e sem estranhar o gesto.
Não trocaram palavra alguma; mas a moça viu quando o índio olhou longamente o bracelete com ideogramas estranhos que Kilaim usava no punho esquerdo, e também na tatuagem estilizada do número 9 no antebraço. Depois, os olhos dele correram rápidos pelo dorso da mão do gigante, procurando por alguma coisa.
“A marca na base do indicador?”, ela se perguntava. Se a viu, ou não, Claire não saberia dizer.
Porém, o ar de inquietação se transformou em temor quando, num movimento discreto, Kilaim abaixou a gola da camiseta e deixou aparecer um pentagrama de ouro pequeno no pescoço. O cacique sateré-mawé olhou para aquilo com olhos enormes, curvou a cabeça numa reverência rápida e deu um passo atrás, quase instintivo.
Tudo foi muito rápido; a maior parte do grupo sequer notou. E os que notaram não entenderam. O fato é que a visão dos símbolos e da figura impressionante daquele jovem branco deixou o índio muito respeitoso e continuamente solene. A postura dele influenciava os demais da tribo, que perderam parte do riso e da espontaneidade.
Claire nunca tinha visto aquela pulseira, muito menos o pentagrama, e se perguntava se Kilaim os usava intencionalmente. Teria os trazido na mochila que carregava? Ela nem notara em que momento o namorado pusera os adereços. E com que objetivo?
— Esse é o nosso amigo Kilaim — falou Juca, aproximando-se do jovem e dando umas palmadas fortes em seu ombro. — Ele veio da França. Vixe, acho que vocês notaram o tamanho dele, né? — tentou descontrair o ambiente. — Pequenininho ele, né?
O guide touristique deu mais umas palmadinhas no ombro forte de Kilaim, e os turistas riram, imaginando que, por algum motivo, o biótipo extremamente diferente causava estranheza e respeito. Mas os indígenas não acharam muita graça, o que só aumentava o clima de desconforto entre eles. Por um momento, pareceu até que os anfitriões nativos estavam esquecidos do motivo que levara os estrangeiros até a aldeia.
— Vamos lá, minha gente, vamos lá! — exclamou Juca, entusiasmado, para o grupo, agitando as mãos.
Ele se aproximou do cacique, igualmente oferecendo umas palmadinhas acompanhadas de sorrisos. Os guides tentavam fazer com que o grupo fosse caminhando, e também os indígenas, com toques de bom humor. Dirigiram-se para uma oca grande, onde seria a cerimônia, mas os índios continuavam curvando a cabeça e fazendo sinais na direção de Kilaim. Claire intuía o motivo de tanta reverência: é que os mais graduados, de alguma forma, reconheciam os símbolos que Kilaim usava, e isso inspirava neles aquela reação, e não o tipo físico. Ela olhava para o namorado, pedindo, com os olhos, uma explicação. Mas ele não disse nada.
— Hoje é um dia muito especial, não é mesmo, meu amigo Caramuru? — Juca olhava para o cacique amigavelmente.
Caramuru fez que sim, esboçando um gesto de boas-vindas para todos, finalmente, e abrindo a cortina que fechava a entrada da oca.
Enquanto os visitantes se acomodavam em roda, com outros índios, Kilaim falou baixinho só para Claire ouvir:
— Eles têm outras práticas por aqui, que não são para turistas apreciarem. Poucos brancos têm conhecimento disso. E eles sabem que eu sei e, a seu modo, sabem a quem sirvo. Dentro de sua compreensão limitada dos poderes do Mal, of course.
— A quem você serve? Verbo no presente, de novo? — cochichou ela de volta.
— Da, Claire, você sabe que não estou servindo mais, só que eles não. Apenas reconhecem a autoridade dos símbolos.
— E pourquoi veio usando isso?
Kilaim deu uma olhadinha maquiavélica para Claire, que foi obrigada a sorrir. Ele estava se divertindo. Então, ela deu uma olhada em derredor pela primeira vez. Os que iam participar da cerimônia estavam parados no centro da roda e, atrás deles, no outro extremo da oca, Claire avistou, meio encolhida num canto, a jovem Flor Nascente, que os recebera na chegada ao hotel. Claire sorriu e acenou, mas a índia estava muito assustada para corresponder.
“Talvez tenha sido por isso que teve medo de nós naquele dia e sumiu tão rápido”, refletiu ela.
Os turistas papagueavam, animados. Juca e o outro guide respondiam perguntas ou ajudavam as pessoas a se comunicarem com os indígenas. Ela virou o rosto e notou que agora era o pajé que olhava, volta e meia, com o cacique, para os negros e profundos olhos de Kilaim. Estava claro que reconheciam nele a marca da Sombra. Por fim, o pajé se levantou. Atravessou a oca e veio para perto do casal. Era um homem rijo, de rosto anguloso e olhar de ave de rapina.
— O que fizemos de errado para você vir até aqui? — perguntou ele em sua língua nativa, alto e bom som.
Que ousadia. Claire ficou petrificada. Teria Kilaim entendido o que o outro estava falando? Os que estavam ao redor olhavam: os índios em pânico, e os turistas imaginando se estariam prestando alguma reverência ao gigante.
— Nós sempre obedecemos a vocês. Sempre realizamos tudo de maneira certa — continuou o índio, falando rápido. — Nunca ninguém soube de nada.
E Kilaim sabia a que ele estava se referindo. O jovem olhou com firmeza nos olhos do pajé, um olhar congelante de repreensão.
— Estou aqui como turista. Já chega!
Os visitantes brancos ouviam com atenção a cadência da língua sateré-mawé, perplexos em perceber que o rapaz francês podia se comunicar. O índio entendeu imediatamente o recado e o descontentamento do jovem gigante branco e se abaixou, dando vários passos para trás.
— Perdão. Perdão, mestre.
Dessa vez, falou em português.
— Acho que eles estão pensando que talvez você possa ser um curandeiro ou tenha algum tipo de poder... — aventou o guide, sorrindo amarelo, temendo que os turistas se assustassem.
O que iria fazer caso isso acontecesse?
— Não se preocupem — falou Kilaim com descontração. — Eles apenas não estão acostumados com pessoas da minha estatura. É isso. Quanto a conhecer um pouco o idioma sataré-mawé, o que não fazemos por um trabalho de pós-graduação em antropologia indígena? — Kilaim deu um sorriso aberto, que relaxou os turistas e fez todos retribuírem, entre risadinhas.
E aplaudiram o jovem “antropólogo”!
— Vamos assistir ao ritual, afinal é para isso que viemos, n´est-ce pas?
Era o ponto-final na situação. O pajé e o cacique ficaram lado a lado, na extremidade oposta da oca, exatamente defronte a Kilaim. Não estavam contando com a presença de um representante daqueles na cerimônia de iniciação masculina, mas tiveram que se conformar. E se comportar.
O som de atabaques e tambores começou, acompanhado de estranhos instrumentos de sopro. Os rostos de alguns estavam pintados e levavam colares ao pescoço. A fumaça de um ramo grande de folhas era passada sobre a pele dos iniciantes em meio a cânticos. Os meninos que conseguissem resistir às tucandeiras seriam recebidos na comunidade dos adultos guerreiros.
As tucandeiras, formigas negras de 2,5 centímetros cujo nome verdadeiro é Paraponera clavata, são bastante conhecidas por seu enorme tamanho e picada indescritivelmente dolorosa. O motivo é o seu veneno. O ferrão na cauda provoca dor muito superior às picadas de abelha ou vespa, pois contém uma neurotoxina paralisante que, além da dor, causa inchaço, febre, vômitos e sensação de as mãos estarem em brasa. Isso dura de um a dois dias para passar.
Capturadas em grande número na véspera do ritual, são conservadas dentro de um recipiente de bambu, embebidas numa solução feita de ervas que funciona como tranquilizante. De acordo com a tradição, as kuanas, luvas bem grandes confeccionadas com palha, recebem as formigas ainda anestesiadas, que são presas uma a uma com o ferrão voltado para dentro. Quando elas acordam e se veem contidas, ficam muito irrequietas e bravas.
Nesse momento, o índio sateré-mawé, para provar sua força, coragem e resistência à dor, deve se deixar ferrar por dezenas, até centenas delas. Esse rito deve ser repetido mais de uma dúzia de vezes, em diferentes ocasiões, para que o índio seja aceito como um guerreiro e esteja apto para o casamento.
Um nativo sem camisa passou pela fileira de turistas, mostrando uma das kuanas já preparadas, repleta de formigas. A maioria se surpreendeu, e passaram a olhar para os meninos com uma mistura de respeito e um pouco de dó. Eram oito adolescentes, tinham entre 11 e 14 anos, que haviam se levantado bem cedo naquele dia para que seus braços fossem pintados com o preto do jenipapo feito por suas mães; em seguida, com um dente de paca, sua pele fora riscada até sangrar. Agora eles estavam ali, enfileirados, com o rosto sério.
O responsável por decidir o tempo total da cerimônia seria o cacique. Era necessário que houvesse certeza de que os candidatos cumpriram a prova.
Os turistas, antes empolgados, foram ficando quietos à medida que as kuanas iam sendo colocadas de modo a cobrir as mãos e antebraços dos meninos. Eles rodavam, braços dados com outros índios sem luvas, que os guiavam. Todos batiam os pés no chão duro de terra, o que fazia chocalhar as contas amarradas na altura do joelho.
As mulheres turistas olhavam fazendo caretas, imaginando que as picadas já deviam ter começado. Claire não fez careta alguma, apenas observava com atenção. Cada coisa no mundo...
Os meninos com as kuanas acompanharam os mais velhos durante todo o tempo, e o faziam sem expressar qualquer semblante de dor, ou lágrimas. Quanto a Kilaim, cruzou as pernas como os índios faziam e ficou quieto durante todo o tempo. Alguns turistas, de vez em quando, ainda o olhavam com certa estranheza, e Claire podia ler-lhes o pensamento.
“O que será que aconteceu, afinal?”.
No final, quando já se retiravam as kuanas dos meninos, o gigante se ergueu antes do que qualquer outro e estendeu as mãos. O pajé e o cacique se aproximaram, olhando-o nos olhos. Todos os turistas se voltaram também na direção deles, alguns com desconfiança, outros com perplexidade.
Juca tentou salvar a situação mais uma vez. Levantou-se de imediato e, naquele jeito de baiano, foi falando:
— Nosso Kilaim é muito corajoso! Volta e meia aparecem por aqui pessoas interessadas em participar do ritual! Não é mesmo, amigo Caramuru? Que o diga Richard Rasmussen, nosso amigo naturalista e biólogo, né? Não foi mesmo?
Os dois indígenas apenas assentiram de leve. O pesquisador brasileiro, que tinha um programa na televisão, estivera entre eles para assistir ao ritual.
— Claro que o organismo dos brancos pode reagir de maneira diferente do dos nativos. Acho que a genética sateré-mawé favorece o ritual de alguma forma, porque o pobre naturalista, coitado, aguentou bravamente as picadas, mas depois foi parar no pronto-socorro, tal a dor nas mãos, e teve que tomar medicação na veia. Oxente, melhor deixar pra próxima, não é, não, Kilaim?
E aquela pergunta era a deixa para que o jovem desse um sorriso e abanasse as mãos em negativa: “Você tem razão”.
Mas não foi o que aconteceu. Kilaim deu alguns passos para frente, mantendo as mãos erguidas. Claire achou melhor intervir também e se levantou quase correndo.
— Kim, não faz isso! Vai acabar estragando nossa estadia!
Mesmo não querendo soar impertinente, todos ouviram o comentário. E, embora nem todos entendessem o idioma francês, o pedido era óbvio.
— S’il vous plaît — ela cochichou, então, chegando perto dele, segurando seu braço. — Não faça isso...
— Talvez a cunhã poranga tenha razão! — continuou Juca, vindo atrás.
Mas foi interrompido pelo olhar cortante do rapaz e por sua enregelante frase:
— Os fracos morrem; mas os poderosos não podem ser tocados.
Então, as kuanas enormes de palha foram colocadas nas mãos do gigante francês. Todos ficaram olhando para ele quando se sentou, calmamente, e apoiou os cotovelos nos joelhos. Nos primeiros minutos, ninguém esboçou reação. Claire se apressou em sentar ao lado de Kilaim e avaliava aquilo tudo, cheia de preocupação.
Depois, aos poucos, as perguntas começaram a se fazer ouvir, primeiro baixinho, em vários idiomas, depois mais alto, em inglês:
— Está doendo muito? — fez a mais assustada das irlandesas.
— Non.
— Talvez acabe doendo mais se você continuar aí — opinou um rapaz da Grã-Bretanha que estava com a noiva. Os dois eram relativamente novos no grupo.
— Estou bem — tornou Kilaim.
Ele ficou no meio de uma roda de expectadores. Claire não sabia o que dizer, nem o que pensar.
— Meu querido, melhor não abusar da sorte... — falaram, por fim, as senhoras alemãs, genuinamente incomodadas com aquilo.
— Estou perfeitamente bem aqui.
— Então é uma dor suportável... — aventou, novamente, o rapaz da Grã-Bretanha.
— Não sinto qualquer dor.
Nessa hora, os índios se sentiram insultados. Um dos jovens que tinha participado do ritual quase foi empurrado para frente, para perto dos olhares dos turistas, e fizeram-no estender as mãos. Estavam bem inchadas por baixo da cobertura preta, e seus dedos se moviam com dificuldade.
Todos falavam ao mesmo tempo, índios e turistas. Estes últimos foram obrigados a observar as mãos dos outros garotos e as demais kuanas, cheias de formigas furiosas. Depois, todos olhavam de volta para Kilaim, perfeitamente acomodado na mesma posição e sem qualquer sinal de sofrimento. Pelo contrário: acompanhava tudo com olhos divertidos.
Quando, enfim, o gigante resolveu que era hora de encerrar a cena, com cuidado, chacoalhou as kuanas, que se desprenderam de suas mãos. Todos se acotovelaram para ver. Diferentemente dos meninos, a pele branca de Kilaim não mostrava nenhuma marca das picadas.
O cacique deu alguns passos para trás, empalidecido, mas o pajé se adiantou e pegou as kuanas que Kilaim usara, curvando a cabeça. Estariam mortas as formigas?
Mas não estavam, como todos puderam constatar. Estavam bem vivas e se contorcendo como loucas. Prontas para enfiar o ferrão em qualquer coisa que se aproximasse.
* * *
Na volta, Juca distraiu a todos contando lendas da Amazônia com entusiasmo maior que de costume. Alguns olhares se desviavam para Kilaim, de vez em vez, mas a conversa do Juca acabou por distraí-los. Assim era melhor.
Então, Claire cutucou as costelas de Kilaim.
— Que foi aquilo que você fez? — Discretamente, tomou uma das mãos dele nas suas. Estavam completamente normais, como sempre estiveram.
— Só mostrei uma pequena parte do meu poder.
— E para quoi isso, Kim?
— Aquele pajé era bem folgado. Não gostei do modo como me encarava o tempo todo. Ele é o intruso aqui, não eu. Eu estou no território de Leviathan, sou amigo dele. E esse pajé, o que ele é na ordem das coisas?
Claire deu um suspiro.
— Posso ver seu amuleto?
— O pentagrama? Mostro melhor no quarto, aqui não.
— Pourquoi você os assustou com esses enfeites? — perguntou ela mais uma vez.
Kilaim deu uma risadinha.
— Não são “enfeites”. Entretanto, mais do que reconhecer amuletos, alguns perceberam a presença de algo comigo...
— O que você quer dizer com “algo comigo”?
— Não posso impedir Leviathan de se aproximar. Ele também estava se divertindo.
— Mas de novo esse demônio! É claro que pode impedi-lo, Kilaim!
— Mas será o benedito? Não fiz nada.
— Fez, oui, fez. Pôs esses enfeites intencionalmente. E isso atraiu o demônio. — Ela suspirou. — Ah, mon Dieu... Você precisa mesmo usar isso?
— Tudo bem, eu só... precisava fazer uma coisa.
Na verdade, a intenção em sair com os adornos era atrair a boa vontade de Leviathan e mostrar-lhe que ainda tinha em alta conta a aliança estabelecida entre eles. Mesmo que os objetos consagrados não atraíssem a presença do principado, os demônios menores subordinados a Dagom se incumbiriam de levar o recado. Mas como o próprio tinha vindo até ali, então, melhor. Melhor que Leviathan se divertisse do que o ameaçasse.
Zor havia dito que ele se apresentasse em 72 horas, há dias, e ele ignorara o recado. Talvez tivessem repensado os prós e contras e iam deixá-lo terminar a viagem. Se assim fosse, não precisaria se preocupar até estar de novo em São Paulo. Até lá, muita coisa poderia acontecer.
Do outro lado do barco, as amigas irlandesas olhavam para ele, ignorando mais uma vez a presença de Claire e as “boas normas” de conduta. Elas acenaram para ele, mas não receberam nenhum aceno de volta.
No quarto da Casa de Tarzan, Claire quis ver o pentagrama.
— O que significa?
— O pentagrama é um dos símbolos majoritários da Magia, isso eu já contei. Normalmente, é envolvido por círculos e seu significado é muito extenso. Ele representa os cinco elementos, os cinco continentes, os cinco sentidos humanos, os cinco dedos da mão, que, fechados num punho, remetem à ideia de força e poder. É uma representação de Lucipher e dos quatro grandes príncipes do Abismo. Com a ponta voltada para cima, ele simboliza o homem de braços e pernas abertos, o homem livre para fazer uso de todo seu potencial e pronto para receber todo o conhecimento. Quando invertido, com a ponta para baixo, simboliza o bode. As Trevas. A Organização. A figura do bode é uma alusão à própria figura de Lucipher, a Estrela da Manhã, aquele que traz a luz e o conhecimento — Kilaim foi explicando.
Claire assentia com a cabeça enquanto ele mostrava quão antigo era aquele símbolo e como esteve presente na cultura religiosa e mundana de tantos povos da antiguidade, desde 3000 a.C. Mesmo os hebreus conheciam o pentagrama, para eles uma representação da Torá, o pentateuco. Ele havia passado pela China também, para seguir seu curso durante a Idade Média como um símbolo de proteção contra os demônios, uma vez que os cristãos medievais conectavam o pentagrama com as “cinco chagas de Cristo”.
— Que esquisito.
— A figura do pentagrama também aparece em diversas construções cristãs não tão antigas, já no Novo Mundo — finalizou Kilaim. — Os círculos mágicos que o envolvem são, eles mesmos, rodeados por diversos símbolos; dentre eles alguns dos pantáculos de Salomão. Na verdade, o pentagrama, os círculos mágicos e os pantáculos são usados em praticamente todos os rituais.
Como um assunto puxa o outro, naquele momento Claire pensava apenas numa coisa:
— Kim, toda hora você fala em Leviathan. Pourquoi? O que tanto ele tem a ver com você?
— Eu já disse. É território dele. Não tem necessariamente a ver comigo. Não sempre.
— Leviathan foi citado pela primeira vez na Bíblia como o “monstro marinho”; está escrito no Livro de Jó — volveu Claire. — Só não entendo o que isso tem a ver com o Brasil. Pourquoi toda hora ele está aqui?
— Antes, quando Deus se manifestava a Israel no período do Velho Testamento, os esforços de Lucipher estavam concentrados naquela região. Significa que seus principais colaboradores, os quatro grandes príncipes e suas legiões, também estavam ali. Era o BAAL dos judeus: Belzebu, Astaroth, Asmodeo e Leviathan.
— Nossa... — Claire estava mesmo chocada. — Sérieu!
— Entretanto, depois da fundação da Igreja Primitiva e da difusão das ideias cristãs, o BAAL também se espalhou. Cada um dos principados passou a tomar conta de um quadrante do Globo, exercendo influência de acordo com sua própria natureza. Eu disse que o pentagrama representa os cinco elementos. Leviathan é o elemento Água. Por isso está aqui. É estranho que ele reine sobre a maior bacia hidrográfica do mundo? E a costa brasileira, já reparou no seu tamanho? É muita água por todos os lados! E água é hábitat natural de Leviathan, por isso a América Latina lhe pertence, está a encargo dele e de suas legiões por determinação do Grande Príncipe. Entretanto, o Brasil é o ponto principal; aqui ele concentra sua força e seus guerreiros.
— Pourquoi?
— Por vários motivos, não dá para falar tudo. Mas, grosso modo, tem a ver com a plataforma de lançamento do anticristo, já que o Brasil é um lugar estratégico.
— Sempre o anticristo...
— Deixe o anticristo de lado e avalie a Floresta. A Floresta, com toda a sua água, torna esse lugar um dos mais importantes na recarga de energia de um demônio do porte de Leviathan.
— Como assim, “do porte”?
— Ele é um principado, né, Claire? Não um demoniozinho de macumba. Assim como seu organismo gasta energia e você precisa repô-la, todo ser vivo faz o mesmo, inclusive os seres espirituais. Leviathan é um ser vivo. E aqui... aqui tem muita energia. As plantas emanam energia, a água capta energia solar, as próprias correntes marítimas geram energia. E a maior porcentagem de vida está presente justamente na água, muito mais que em terra. Há uma carga energética gerada também por essa população. Tudo isso é fonte para Leviathan.
— Você tem mesmo certeza de que ele estava na aldeia hoje? Não é só coisa da sua cabeç...
— Mais non — ele afirmou com cara feia. — É claro que estava. Leviathan sempre está por aqui.
Ela não refutou.
— Já reparou que a sucuri, a segunda maior serpente do mundo, vive justamente aqui nos rios da Amazônia? Não acha que Leviathan seria tratado como “serpente” por pura coincidência, n’est-ce pas?
— Mas daí a ser um principado dominante sobre este país... É estranho pensar assim.
Kilaim sentou-se sobre a cama, e ela correu para o lado dele.
— Vou provar a você como Leviathan já estendeu sua influência por todo esse Brasil. Já reparou como as principais entidades adoradas aqui estão, de alguma forma, relacionadas à água? A “Aparecida”, imagem encontrada no Rio Paraíba em 12 de outubro de 1717, foi “pescada milagrosamente”. Primeiro o corpo, depois a cabeça. Era uma imagem escura de Nossa Senhora da Conceição. Depois da pesca da santa, houve uma “pesca maravilhosa”, segundo se conta. Como a da Bíblia. — Ele meneou a cabeça. — Até parece. A imagem acabou guardada na casa de um dos pescadores, e os milagres envolvendo a santa foram surgindo. Negra, ela se revelava contra a escravidão, e o suposto número de graças alcançadas aumentava. Acabou sendo levada para um oratório, mas ele logo ficou pequeno. E o oratório foi substituído por um santuário em 1888, o ano em que se aboliu a escravidão. A coroação de “Nossa Senhora Aparecida” pela Igreja Católica aconteceu no início do século XX, quando ela recebeu uma coroa de pedras preciosas doadas pela princesa portuguesa no Brasil, a princesa Isabel. Mais tarde, o Papa Pio XI, atendendo aos pedidos de muitos fiéis brasileiros, declarou-a “Rainha e Padroeira do Brasil”.
Claire arregalou os olhos.
— Caraca...
— O tempo passou, e o santuário ficou pequeno de novo. Hoje, a Basílica de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é simplesmente gigantesca, a segunda maior do mundo, perdendo apenas para a Basílica de São Pedro, no Vaticano. Além disso, tornou-se um Santuário Nacional! Quero levar você um dia lá, para conhecer esse lugar, o principal reduto da “Serpente”. Dia 12 de outubro é um bom dia, pois é a data das romarias. Leviathan estará lá para receber adoração.
— Não faço muita questão de ir nesse dia, mas gostaria de conhecer a Basílica. É um ponto turístico. Mas você diz, alors, que a Igreja Católica cometeu um grande erro?
— Não é isso. Isso já faz parte da cultura dos católicos. Estão acostumados a esse tipo de coisa, adoração a santos, a imagens, a romarias para pedir milagres. Leviathan apenas aproveitou a deixa e recebeu o maior de todos os santuários.
— Mesmo assim, poderia ser simples coincidência.
— Oke, Claire. Continue ouvindo e vamos ver se você ainda vai achar que é “acaso”. Leviathan também recebeu a Catedral da Sé em São Paulo. Mostrei a você o hexagrama subterrâneo onde estão os ossos do sacrifício... — Kilaim deu uma risadinha, lembrando-se de Claire na cripta escura. — Além de vários outros locais, religiosos ou não. Outro quinhão expressivo do “panteão” brasileiro é a Yemanjá, conhecida aqui como rainha do mar. As raízes de seu culto como orixá africano vieram por influência dos negros, durante a escravidão. Nos mitos da criação do Universo, ela é a representação do princípio feminino e dona de grande poder de sedução, com um tipo inconfundível de beleza. Por outro lado, também representa a grande Mãe, o princípio da fertilidade por excelência. Como orixá marítimo, a deusa Yemanjá rege a mudança rítmica de toda a vida por estar diretamente associada ao movimento das águas. Ela preside todos os rituais, do nascimento à morte, a volta às origens. Note que ela é “Mãe” do mesmo modo como a Aparecida também é “Mãe”, associada à Virgem Maria. Porém, a natureza da Yemanjá é dual. Diferente do catolicismo, que associa às santas apenas características do Bem, os adoradores de Yemanjá reconhecem suas más qualidades também. Mas isso fica oculto do grande público, que prefere cultuar apenas a Mãe doce e protetora.
— Como ela é cultuada? — indagou Claire com certo interesse.
— A mais tradicional festa de Yemanjá acontece em Salvador, capital da Bahia, na praia do Rio Vermelho. Todo dia 2 de fevereiro. Nessa data ela também é cultuada em muitas outras praias por todo o país, com pessoas vestidas inteiramente de branco em rituais de cantos e oferendas de velas e flores lançadas diretamente ao mar ou em pequenos barcos artesanais. Dependendo do local, embarcações maiores saem para atirar presentes em alto-mar. Mais uma vez, a nota da grandiosidade que é marca característica de Leviathan. O culto a Yemanjá é a única manifestação religiosa pública dentre os cultos do candomblé e da umbanda que extrapolam os limites da Bahia. Ela é um dos orixás mais populares e reverenciados também por fiéis de outras religiões, especialmente os católicos. Fora da Bahia, as homenagens começam logo após o Natal e se estendem por todo o mês de janeiro, em todo o Brasil. Na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, acontece uma das mais famosas festas de comemoração a Yemanjá na passagem do ano. Nessa época, elas podem ser vistas também por toda orla marítima desse estado. Leviathan agradece; ele “adora” flores e cantos em sua homenagem, as muitas queixas que lhe são contadas, as esperanças depositadas aos seus pés, os risos e lágrimas, os planos e projetos de amor, de vingança, de vida, de futuro; todos esperando sua concordância.
Claire ouvia. Contra fatos, não há argumentos.
— Mas como isso acontece? Quer dizer... como a crença se espalha dessa maneira?
— As coisas não acontecem do dia para a noite, é preciso planejamento e tempo. Antes, a religião africana dos orixás era restrita a negros e mulatos, e os candomblés eram muito malvistos, tidos pelos mais cultos da sociedade como vivências religiosas perigosas, cheias de fetichismo e “baixo espiritismo”. Praticá-las era considerado crime, e queriam extingui-las. Mas, em 1936, o presidente Getúlio Vargas editou um decreto-lei que retirou o caráter de clandestinidade do candomblé.
— Ele era satanista?!
— Non. Apenas “influenciável”. Mesmo assim, as pessoas de modo geral ainda viam essa expressão religiosa com maus olhos e preconceito. No ano seguinte, durante um congresso afro-brasileiro em Salvador, um documento foi redigido e enviado ao governador do estado, pedindo reconhecimento oficial do candomblé como seita religiosa, e com os mesmos direitos e privilégios de todas as demais formas de expressão religiosa, segundo o que se preconizava na Constituição Brasileira. Imaginez! Ficou desautorizada a intervenção policial nos terreiros de candomblés. Não se pode esquecer, contudo, que algumas altas lideranças desses candomblés mantinham contatos regulares com elites políticas e até amizades estreitas. É sempre aí que a nossa mão intervém: a mão dos poderosos muda o rumo da História. E os principais orixás, especialmente a Yemanjá, envolvem também a população branca deste país.
Claire estava perplexa com as histórias. Agora, ficava bem mais difícil acreditar em meras coincidências.
— Embora a Yemanjá continue bela, pode apresentar-se metade mulher, metade peixe. Assim, ela se torna a Iara, a Mãe d’água, as sereias do universo indígena. Como qualquer sereia, as intenções da Iara são malignas e fatais. Acredita-se que, em cada fase da lua, ela aparece com escamas diferentes, deita-se nos bancos de areia dos rios, brinca com os peixes e penteia seus cabelos, mirando-se no espelho das águas. À espera de suas presas. Ela enfeitiça e atrai os homens com seu canto e beleza, levando-os à morte. Os poucos que sobrevivem ao encantamento da Iara terminam loucos. Alguma semelhança com Leviathan?
Claire encostou o alto da cabeça no ombro de Kilaim. Estava um pouco atordoada.
— Depois de tudo o que lhe contei, acha que Leviathan pode ser destronado desta terra facilmente?
— Acho que não. Quer dizer, Dieu poderia... Claro! Ele é Dieu. — Ela não sabia o que dizer.
— E Israel conseguiu expulsar BAAL, mesmo tendo os profetas e reis com direito de exercer todo o poder? Essas expressões religiosas, que não acontecem só no Brasil, já estão muito arraigadas. São impossíveis de estancar ou modificar. Especialmente os evangélicos acham que podem expulsar demônios do território brasileiro. Com suas campanhas, atos proféticos, orações de “conquista de cidades” e mais uma imensa parafernália de crenças sem pé nem cabeça. Nunca vai acontecer.
— Pourquoi você acha que isso não tem valor, nem poderia mover a mão de Dieu? — indagou a moça.
— Claire, que ideia. Antigamente, quando Israel eventualmente se conscientizava de que o culto a BAAL tinha que terminar, num rasgo de sanidade, todos os altares pagãos eram derrubados, todos os ídolos destruídos. O profeta Elias chegou a matar os profetas de BAAL num banho de sangue. Em toda Israel, o povo se arrependia, voltando-se a Deus. Mas aqui, como, alors, esses que se dizem cristãos poderiam destronar Leviathan? Israel era uma concha de tão minúscula se comparada à extensão do Brasil. Deixemos de lado a Iara, que tem pequena expressão, mas sem derrubar a Basílica de Nossa Senhora Aparecida e interromper as romarias, sem fechar todos os terreiros de candomblés e nunca mais prestar homenagem alguma a Yemanjá, como seria possível afastá-lo? Como você diz, Deus “poderia fazer”. Mas as pessoas teriam que fazer a sua parte; é preciso “remover a pedra”, como no túmulo de Lázaro. E o país teria que se tornar cristão por excelência, não somente de boca. Mas não se pode manipular uma massa de 200 milhões de pessoas. No final das contas: voilà! Que importam os nomes, as formas e aparências que Leviathan usa, se é sempre ele quem governa e nada pode alterar o poder de sua força e reinado?
O dia ia chegando ao fim. Claire estava impressionada, mas cansada também, querendo ir direto para o chuveiro morninho. Não tinha mais disposição para ir adiante com aquela conversa.
— Quer saber dos outros príncipes? — perguntou Kilaim, ainda com animação e nenhuma vontade de parar. — Astaroth, por exemplo, é o segundo príncipe, Asmodeo, o terceiro, e...
— Astaroth não era uma deusa?
— Ele pode aparecer nas duas formas. Na época do Velho Testamento, usava a forma feminina.
— Por um acaso, você teria visto, em algum momento, em circunstâncias... outras... hã... esses outros demônios, também?
— Oui. Conheço todos eles.
Ela assimilou a informação.
— Kim. — Claire segurou a mão dele, erguendo-a e a encostando em seu rosto. — Quando você diz que tudo isso que envolve os demônios e a Organização faz parte de sua natureza, eu consigo entender. Parce que você faz parte de mim, agora, e consigo ver além do que eu via antes. Mas a natureza humana pode ser controlada.
— Mutilada é o que você quer dizer.
— Controlada significa polida. Como um diamante. Mas você hoje está como um vaso cheio e, se não esvaziar-se, não poderá preenchê-lo com outro líquido.
O tom dela era de desapontamento, não de acusação. Kilaim entendia aquilo. Mas não tinha resposta. Por isso não deu nenhuma, e os dois ficaram calados, olhando um para o outro.
Ele nem falou mais dos príncipes.
* * *
12
Extermination
– Claire, você percebe o que estou percebendo?
— Percebo o quê, Kim?
Era manhãzinha, e eles estavam esperando por Juca, junto a outros hóspedes, nas palafitas perto da recepção. O dia estava muito belo, cheio de brisa, céu azul com nuvens bem brancas. A saída era apenas para observar a flora local e, com sorte, também um pouco da fauna, de modo que todos estavam preparados para percorrer uma trilha, considerada das mais bonitas da região.
Quando avistou o guide de longe, Kilaim notou, mais uma vez, como, já daquela distância, o olhar do rapaz baiano se fixava em Claire. A garota nem tinha visto o guide ainda, trocando um sorriso de bom-dia com o casal britânico. Mas Kilaim puxou-a pelo braço e continuou falando. Baixo, mas com raiva.
— Sempre que esse guide idiota está por perto fica com olhares pra você, fica fazendo pose para falar com você. Ninguém fala assim, com o peito estufado, dando esses olhares sinuosos e com rá-rá-rá pra cima e pra baixo. Essas risadinhas já estão mesmo me irritando!
— Imagina, Kim, com tanta mulher bonita no hotel. — Foi Claire que deu risada, achando engraçada a crise repentina de Kilaim. — Desde o início, ele foi simpático conosco, lembra? Mas sempre se preocupa com o grupo e em explicar as coisas para o grupo.
— Não é bem assim, não, senhora! Ele só olha pra você. Eu e o conjunto de turistas não existimos. Já você e o conjunto dos seus seios estão bem em evidência.
— Kim!
— Você que é muito ingênua, Claire.
— Não vi nada de diferente, mas, mesmo se fosse: faça como fiz com as irlandesas. Nem ligue e saia por cima.
— Os homens agem de maneira diferente das mulheres. — E com os olhos baixando na direção do peito dela: — Olha esse seu decote! Já parou pra pensar que pode estar aparecendo muito? Eu já te falei isso.
— Mas, Kim, tá todo mundo assim. Aqui está calor. — Ela baixou a vista para a camisa branca leve, de algodão, aberta no peito e amarrada na cintura com um nozinho. — E não está tão decotado.
— Pois, pra mim, está. Nisso admiro os muçulmanos, sabia? A mulher muçulmana só é apreciada pelo marido — continuou Kilaim, bufando. — E agora você fica aí dando espetáculo! Fazendo exposição da figura para esse cretino idiota! Was zur Hölle!
— Kim. Você está muito ciumento. Você não era assim — argumentou Claire com paciência, completamente certa de que não havia nada de errado com sua vestimenta.
— Só protejo o que é meu. Agora esa bestia já está chegando aqui e... Droga! Claire! Como não reparei direito nessa sua roupa antes? — Ele erguia a manga dobrada da camisa, que escorregava pelo ombro dela. — A recepção havia me dito que íamos sair com outro guide hoje, um cara que estava voltando de férias, mas parece que esse infeliz do Juca faz questão de grudar sempre no nosso grupo.
— Você está vendo coisas, Kim, franchement...! Que exagero desnecessário.
— Non, cachu! Não estou exagerando, não. E olha só as suas unhas. — Ele segurou a mão dela perto do rosto. — Quem mandou pintar de vermelho? Os homens olham para mulheres com unha pintada de vermelho. Eu sei. E sua boca também está muito vermelha.
Claire olhava para o namorado com cara de espanto. Ele estava mesmo muito mal-humorado com aquele assunto, o que ela nem imaginava.
— É que está na moda combinar a cor das unhas com o batom. Está na Revista Claudia deste mês. Não consigo entender bem o que diz, mas as fotos falam por si. Fica bonito!
— Bonito, bonito. Bela moda essa. — Ele ajeitou novamente o ombro da blusa, que caía agora para o outro lado. — Está aparecendo a alça do seu sutiã, com essas coisinhas brilhantes, essas rendinhas colocadas estrategicamente para que todos os homens olhem!
— Kim, para com isso. — Ela sorriu.
— Tá bom. Mas não deixe esse ombro ficar caindo. Ah! — Kilaim fechou o semblante ainda mais. — Ele está aí. Você acha que estou vendo demais? Falando demais? Pois observe. Observe.
Juca foi chegando, óculos de sol no rosto, bermuda cáqui, camiseta regata com emblema do Black Amazon.
— Morning, Claire; olá, grupo! Estão animados hoje?
Claire cumprimentou o rapaz com um sorriso meio desenxabido. Kilaim lançou seu olhar de lince na direção dela, erguendo um dedo:
— Viu só, não te disse? “Morning, Claire”! — arremedou o sotaque do outro. — Só posso ter assado marshmallow na pira sagrada! Ninguém mais tem nome por aqui? Eu, por exemplo, estou invisível. Sou um apêndice do grupo invisível dos turistas. Já você e o grupo dos seus seios estão bem em evidência.
Claire não teve tempo de responder, porque Juca se encostou à balaustrada do corredor de palafitas, perto deles, deixou o Pedrinho escalar seu ombro e começou a falar em inglês.
— Tá vendo, pra que essa cena com o macaco? — continuou Kilaim, inclinando-se e cochichando ao ouvido da namorada. — É parce que ele sabe que você é vidrada no Pedrinho.
— Kim, não viaja, mon Dieu — ela cochichou de volta.
— Já que o objetivo é conhecer a flora, antes de sairmos, hoje, vocês vão ver uma famosa fruta da Amazônia: o cacau — disse Juca. — Ele é a matéria-prima para a feitura do chocolate. O chocolate que as mulheres adoram, né, Claire? — Lançou mais um de seus sorrisos na direção dela. — Alguém quer ver um cacau? Por acaso, tenho um aqui nas mãos.
Tirou a fruta de dentro de sua pochette e passou a explicar o caminho feito desde a plantação até as confeitarias.
— Claire — cochichou Kilaim de novo. — Você reparou que ele está segurando esse cacau bem na frente do pint...
— Shhh!
— Da genitália! Pourquoi não põe essa droga de cacau mais pra cima? Eu sei o que ele está dizendo: “Vem, que é doce”.
Claire deu uma cotovelada nele, esforçando-se para manter o rosto normal, pois Juca chegou mais perto dela para entregar o cacau a ela, todo sorridente. Ela nem estava conseguindo entender tudo o que ele dizia.
— O que você acha, elle ne est pas belle? — Olhou nos olhos dela.
Claire assentiu, um pouco sem jeito. Para Kilaim, foi a gota d’água: aquele francês malfalado! Aqueles olhares que o guide lançava à sua namorada! Ficou pensando em qual seria a melhor forma de “abordagem”.
— Dá uma olhada, Claire, e passe para todos verem — Juca continuou, enquanto voltava a se encostar à balaustrada. — Falando em chocolate, aqui na região nós temos o bombom de cupuaçu. Cupuaçu é outra fruta comum para nós. Não sei se já a provaram.
Alguns assentiram, mas a maioria disse que não conhecia. Como havia turistas novos no grupo, Juca lhes deu atenção especial, e já que tinha mencionado o cacau e o cupuaçu, partiu para a importância do extrativismo e da sustentabilidade.
Por fim, comentou:
— Tenho aqui três bombons feitos com nosso legítimo chocolate amazonense e recheado de cupuaçu. Aquele que acertar minha pergunta leva os três. Vamos lá?
Todos olhavam para ele.
— A seringueira é bastante comum na Floresta. Alguém sabe qual é a importância dela na indústria?
Claire levantou o braço incontinênti:
— Eu sei, eu sei!
Foi a vez de Kilaim cotovelar a namorada.
— Você não sabe de nada — revidou, em tom baixo, mas firme. — Fica quieta.
Mas Juca tinha ouvido o “eu sei!”, em português, da moça francesa.
— Ok, Claire, qual a sua resposta?
— A produção de... borracha — ela falou e logo deu uns passos atrás para encostar o corpo no corpo de Kilaim, como se buscasse proteção.
— Muito bem! Os extratores fazem a árvore “sangrar” e extraem o látex.
— Pois eu acho que vamos fazer uma imitação prática disso agora mesmo, que tal? — vociferou Kilaim, baixando a cabeça e falando perto do pescoço de Claire. — Ele vai virar uma seringueira, parce que eu vou fazê-lo sangrar também.
— Poranga, os bombons são seus! — Alheio aos comentários do namorado da “Poranga”, Juca se aproximou de Claire, todo sorrisos novamente, e estendeu a mão com os bombons.
Aquilo foi ultrajante! Kilaim estava cheio daquele apelido irritante que, volta e meia, Juca usava para se dirigir a Claire. Naquele momento, o guide tinha se tornado pouco mais que um verme, no entender do jovem satanista, por causa daquelas atitudes ridículas. Mas era um verme que tentava cruzar a fronteira. Por que ele simplesmente não deu aqueles bombons horrorosos aos turistas novos em vez daquela palhaçada de perguntar algo que os mais antigos já sabiam, só para poder dá-los para sua namorada?
Por isso, antes que Claire pegasse os doces, Kilaim os arrancou da mão do Juca.
— Ok, amigo, eu fico com isso.
— Você também gosta de cupuaçu?
— Oui, obrri... Ga... Obrrigada, claro — crocitou Claire, gaguejando, sem entender nada, mas tentando salvar a situação.
— A-do-ro cupuaçu, você adivinhou! — falou Kilaim esboçando um sorriso falso. — Mas desse bombom em particular eu não gosto.
Voz baixa, totalmente gelada, e olhos ainda mais gelados se fixaram no rosto do guide.
Então, para surpresa dos que ainda estavam acompanhando a cena, o gigante esmagou lentamente os bombons bem perto da cara do Juca, o papel rasgando, o chocolate passando, espremido, entre seus dedos. Depois, Kilaim apenas deixou a maçaroca cair no chão.
— Kim! — exclamou Claire, olhando do namorado para o guide, e de volta para o namorado.
— Esse chocolate é uma porcaria, você esqueceu? — falou Kilaim, em francês. — E já estou cheio desse Juca enxerido.
— Mas, Kim...
— Claire, não me amole.
Juca já sabia da antipatia do namorado de Claire para cima dele. Mas, diante daquilo, ficou realmente perplexo.
— É. Depois dizem que os selvagens somos nós — ele retrucou, baixo, já saindo de perto.
— É, Claire... — Kilaim olhava para o guide com a raiva saltando dos olhos. Só depois que Juca desapareceu no meio de uma roda dos turistas cheios de perguntas é que ele voltou os olhos para ela. — Já deu, n’est-ce pas? Fui muito paciente até agora. Cansei. Amanhã esse infeliz não vai mais aparecer aqui. Espero que o substituto seja melhor.
— Kim, você não vai bater nele. Não use de violência. — Ela segurou o braço dele, por precaução.
— Acha que eu usaria desse método arcaico? Non. Tenho meios mais eficazes. Estou afirmando: amanhã ele não vai estar com a gente.
— Kim, mas no que está pensando? Você não pretende atiçar o Leviathan...?
— Fique tranquila — a voz ainda tinha a nota da raiva —, ele sobreviverá.
Naquele instante, como um raio, a lembrança dos jacarés passou fulminante pela cabeça de Kilaim. Desde que ele e Claire não fossem o lanche da tarde, a ideia era excelente. Daria cabo daquele imbecil para sempre! E já imaginava as manchetes: “Guia turístico é devorado por jacaré-açu na Amazônia”.
Mas depois achou que, talvez, Leviathan não o atendesse, nem mesmo para fazer aquela “boa ação” que livraria o mundo de mais um idiota. Por isso, Kilaim teve que repensar suas possibilidades.
“Causarei algo mais simples, que posso fazer por mim mesmo, e que o afastará temporariamente.”
Em passos decididos, Kilaim caminhou até a roda onde Juca estava. Sem nenhuma cerimônia, abriu passagem como quem não quer nada. Claire ficou para trás, mas conseguiu ver quando Kilaim parou diante do guide turistique e encostou a mão firme em seu peito.
— Bem-vindo ao meu mundo.
— Com muito prazer — desconversou Juca. — E que mundo seria o seu?
Kilaim passou a mão pelos cabelos, dando uma risadinha.
— Dor.
* * *
Antes mesmo do almoço, na volta do passeio, Juca já estava mal. Embora procurasse disfarçar e “segurar as pontas”.
As senhoras alemãs, mais atentas, a certa altura perguntaram se ele se sentia bem.
— Não sei direito... — Juca reclamou, um tanto pálido. — Está me dando umas cólicas fortes.
— Vai ver foi alguma coisa que você comeu.
— Oxe... Pode ser...
— Onde incomoda?
— Sei lá... Parece que o aperto sai daqui do umbigo e anda até o pé da barriga... Aqui, do lado direito. — Ele enxugou o suor da testa. Mas era um suor frio.
— Você só precisa descansar! — volveram as vovós alemãs. — Tem trabalhado muito, e sempre neste calor.
— É — Juca estava monossilábico.
Kilaim observava, mas sem deixá-lo perceber que o estava fazendo. Viu que o sorriso costumeiro do baiano estava apagado, e ele não caminhava com a energia de sempre. Parava, apoiava-se no tronco de árvores e transpirava horrores. Claire também percebeu, mas nem se atreveu a chegar perto do guide e perguntar qualquer coisa, se estava passando mal ou algo do gênero, como seria do seu feitio.
Pouco faltava para chegarem ao hotel quando, finalmente, o guide não aguentou mais e, apoiado numa sumaúma, vomitou. Sentia a pele queimando de febre.
Os turistas se aglomeraram ao redor dele.
— Cara, que aconteceu? — perguntou o rapaz britânico, que era quem estava mais perto de Juca.
O outro não conseguia nem falar. Seu semblante era de fadiga e... Dor. Apesar de não fazer sentido, ele não se atreveu a olhar para Kilaim.
— Com certeza você comeu alguma coisa que não fez bem. Está com uma intoxicação alimentar — comentou, de novo, uma das senhoras alemãs. — Logo, logo, seu organismo dá conta de expulsar as toxinas e você melhora. Nesse caso, vomitar é bom.
— Talvez tenha uma bela disenteria também — comentou a namorada do britânico. — Sou estudante de enfermagem, e essas coisas são assim. Mas é apenas seu sistema gastrointestinal reagindo para pôr para fora o que está fazendo mal. Só não se esqueça de cuidar da hidratação. E coma bananas, que têm potássio.
— Água de coco e batatas-doces são ótimas para ajudar — disse uma das irlandesas.
As outras duas estavam um pouco enojadas para se aproximar de todo aquele vômito, mas todas gostavam dele, de modo que deram palpite a distância.
— Só não coma doce e frituras.
— Obrigado, gente... — falou Juca, endireitando-se. — Peço desculpas...
— Imagine, amigo! Precisa de ajuda?
— Não... Não. Obrigado.
Todos se preocuparam. Juca era muito carismático, inteligente e dotado de grande senso de humor. Uma pessoa especial.
— Acho que só preciso descansar.
Claire olhava de soslaio para Kilaim, que mantinha o rosto inalterado. Ele foi o último a dar sua sugestão:
— Em caso de piora, procure o médico. Nunca se sabe, né, não...?
— Claro, claro... — Juca respondeu de olhos baixos.
O grupo voltou a andar, dessa vez mais devagar, depois que Juca conseguiu beber alguns goles de Gatorade oferecido pela britânica.
— Kim, o que fez com ele...? — Claire cochichou, longe dos olhos e ouvidos dos demais.
Kilaim deu seu sorrisinho, mas seus olhos estavam escuros.
— Ele vai viver. A não ser que os médicos daqui sejam muito, muito ruins mesmo! Não acho que ele tenha um grande plano de saúde.
— Kim, não faça isso... Faça-o melhorar!
— Agora o processo já se instalou. Vai seguir seu curso.
Durante a tarde, não souberam nada do Juca. Mas à noite, bastante preocupada, Claire deu uma passadinha na recepção antes do jantar e perguntou por ele.
— Is Juca okay?
— Estava passando muito mal, o coitado, com muitcha quentura de febre e dores na barriga. Teve que ir embora, mas, talvez, amanhã já esteja bem. Se não estiver, vai dar um problemão aqui, porque é difícil achar alguém com o borogodó dele.
— Quoi? — grasnou Claire, sem conseguir entender nada, exceto que havia muito a dizer sobre o estado do guide.
— Ele é muito bom no que faz, sabe? É um ótimo guia. Mas está doente — a recepcionista repetiu, usando gestos. — Juca doente! Hospital!
— Hôpital? Mon Dieu... — Ela levou a mão ao peito. — But... what happened?
Ao escutar aquilo, Kilaim acrescentou, em francês, só para Claire ouvir:
— Amanhã ele vai estar pior.
Sem esperar pela resposta da recepcionista, Kilaim passou o braço sobre os ombros de Claire e a levou para o restaurante. Nos dois dias que se seguiram, Claire fez questão de procurar saber o que estava acontecendo, mas descobriu que havia poucas informações. Tudo que conseguiu descobrir foi que Juca tivera dores abdominais fortíssimas e fora ao posto de saúde, donde foi mandado para casa com medicação analgésica.
Mais dois dias, e os comentários entre o pessoal do hotel eram os seguintes:
— Juca teve um ataque de apendicite. Uma pena mesmo. O garoto é um pai d’égua, senão, acho que já tinha ido dessa pra melhor. Os médicos demoraram muito para descobrir o que ele tinha e também para arrumar vaga para a cirurgia. Parece que, nessa demora, o apêndice estourou, eu acho, e ele teve um choque infeccioso; alguma coisa assim — respondeu o gerente do Black Amazon.
— Mas ele está bem? — Quis saber Claire, quase interrompendo a tradução de Kilaim, perplexa com o desenrolar da história.
— Não sei, moça. Ele está na UTI.
Estupefata, Claire não conseguiu evitar cobrir a boca com as mãos.
— Oh, mon Dieu! Espero que ele melhore logo! Mande nossas lembranças pra ele, quer dizer, diga que... Sentimos muito. É... Merci.
E assim que saíram, ela estava até tonta, e se voltou para Kilaim.
— O que você fez?
— Nada de mais. Só alterei o campo eletromagnético dele. Um desbalanço energético. Como com a planta do Almanara. Eu poderia matar com um toque.
Claire estava muito perturbada. Sentia-se culpada, uma coparticipante de tudo aquilo.
— Eu entendo melhor o poder latente da minha alma, agora. Lucipher tirou o lacre.
— Mas que lacre? Do que você está falando? — Ela ficou olhando para ele, mas, por fim, abanou as mãos, inconformada. — Ou melhor: não me fale nada! Pobre Juca.
* * *
No jantar, depois da sobremesa, Claire achou que era o momento, afinal, de perguntar sobre a Síndrome de Morgellon. Estava muito impressionada com o ocorrido ao Juca, justamente depois de Kilaim alardear que o guide iria sofrer algum transtorno sério.
“Ele não era uma planta... Era um ser humano!”. Claire ouvia aquilo, dentro de sua mente, vez após vez.
E, mesmo antes de chegar ao quarto, já tinha pedido a Deus que cuidasse do Juca, a quem, provavelmente, ela nunca mais iria ver. A questão, agora, era saber definitivamente o que tinha ocorrido com ela.
— Você falou da propagação de agentes nocivos pelo ar, por meio dos tais Chemtrails — ela começou, direta. — Ça va. Conte-me o resto.
Kilaim não ficou surpreso com a pergunta e também foi direto ao assunto, como se a conversa nunca tivesse sido interrompida, já que esse era o seu feitio quando algo estava inacabado.
— Exatamente. O ar é uma das vias de difusão do Morgellon e de outros agentes infecciosos. Outra maneira de causar a contaminação seria via cadeia alimentar: mediante interação com culturas transgênicas. Por meio de engenharia genética, agrobactérias modificadas carregam, em seu DNA, o DNA patogênico. Esses micro-organismos vivem no solo e têm capacidade de penetrar em algumas espécies vegetais; essa é uma das maneiras de criar os transgênicos. Mas se a agrobactéria estiver “infectada” infestará as plantações, o solo, os animais e seres humanos. Além disso, as agrobactérias continuamente se desprendem dos milhões de toneladas de resíduos transgênicos que se decompõem pelos campos cultivados. Muitos outros agentes infecciosos são disseminados assim, da mesma maneira. — Ele fez uma pausa e olhou longamente para a namorada. — E, em casos específicos, poderia haver contaminação direta.
— Mas isso seria um atentado.
Kilaim deu de ombros, como quem diz: “As coisas são como são”.
— O ambiente hospitalar favorece bastante esse tipo de propagação direta. Ou quando as circunstâncias favorecem.
— Como assim?
— Quando houver facilidade de colocar um agente infeccioso na sua comida, ou bebida, ou contaminar suas roupas...
“Que é como acho que foi o seu caso”, Kilaim pensou, mas não falou. Achou que era demais.
— Claro que as formas de contaminação em massa mais rápidas são aquelas lançadas diretamente na atmosfera. Vírus que foram erradicados, como os da varíola, por exemplo, ainda existem. A Organização possui cepas prontas para uso. Já imaginou o que não causariam esses vírus, uma vez que mais ninguém é vacinado contra a doença? E esse é somente um exemplo. Há outros agentes infecciosos para serem usados, alguns já bastante aprimorados. Detalhe: além de agentes infecciosos, há muitas armas químicas, e esses tóxicos também podem ser lançados por Chemtrails: metais pesados, por exemplo. Mercúrio, chumbo, cádmio, cromo. Isso já começou, em pequena escala. Será massivo mais adiante. O consumo de alimentos cheios de substâncias nocivas, a médio e longo prazos, causa alterações genéticas, especialmente nas crianças. Lembra que eu te disse que a Organização sempre pode “usar” as alterações que causou? É como reproduzir, em larga escala, o que já foi comprovado em laboratório. Já se nota que a incidência de câncer aumentou de maneira alarmante. Há bactérias mais resistentes. Mas as alterações cerebrais são as que mais interessam, e você já entendeu o motivo. Isso poderia facilitar o efeito das ondas eletromagnéticas e acústicas, além de favorecer o aparecimento de distúrbios psíquicos, como a depressão.
— De novo.
— É. A contaminação por metais pesados pode atingir níveis altíssimos e afetar todo o ambiente.
— Na atmosfera?
— Primeiro ali; mas, depois, isso vai sedimentando, n’est-ce pas? Todos os níveis da cadeia alimentar seriam afetados, pois esses tóxicos inorgânicos não são metabolizáveis. Sendo assim, os Chemtrails, sejam de agentes infecciosos ou inorgânicos, funcionam como constantes nuvens de “inseticidas” lançadas no ar. Melhor: “Humanocidas”. Pois a situação vai além de apenas uma contaminação; é um envenenamento da água, da terra, dos alimentos, dos animais. A alteração de pH que o solo vem sofrendo por causa desses venenos gera um fator a mais de desequilíbrio dos ecossistemas. Num nível microscópico, a biomassa do solo está morrendo. As nuvens de Chemtrails também podem aumentar o efeito estufa e afetar, de modo drástico, o ritmo e a distribuição de chuvas, tendo como consequência a seca ou as inundações, colheitas ruins, catástrofes econômicas e humanitárias.
— Mon Dieu, mas de novo?! — Fez Claire outra vez, indignada. — Isso não tinha a ver com as ondas de radiação?
— Melhor duas frentes de ataque do que uma. Melhor duas, três, quantas forem possíveis. O que acontecerá no Apocalipse é totalmente sem precedentes, você sabe muito bem.
Claire não sabia o que dizer. Aquelas informações todas quase beiravam o quilate de um filme de terror.
— Imagens por satélite mostram extensas áreas de “nuvens”, que não são nuvens. São aglomerados gigantescos de Chemtrails na atmosfera, podendo cobrir grandes extensões do espaço aéreo; uns sobre os outros, uma verdadeira fumaça química, uma “pulverização” do planeta. Alguma coisa já vazou na mídia, em várias partes do mundo, mas não há nenhum órgão que confirme o que está acontecendo. E vem vindo assim há algumas décadas. Nessa altura, é algo que os efeitos não podem mais ser revertidos. Enfin, Claire, eu poderia falar sobre isso durante muito tempo, mas é o suficiente para você entender o que acontece.
Claire balançou a cabeça, irrequieta. Queria voltar ao início.
— Bom, Kim... — ela disse, sabendo que aquilo tudo fugia de uma simples história da carochinha. — Você ainda não disse o que é esse Morge... Morgue...
— Morgellons. Há falsas pesquisas sobre a síndrome. Órgãos de total confiança do público estão escrevendo trabalhos que dizem não terem sido encontradas nas lesões de pele nada que justificasse as queixas dos pacientes. Que a síndrome é de origem psíquica, em primeiro lugar, uma espécie de “parasitose delirante”. O que leva a maioria a afirmar que os “doentes” não necessitam de clínicos ou dermatologistas, mas de psiquiatras.
— Mas espere aí. Que órgãos são esses?
— Órgãos importantes, e que são fidedignos na maior parte de suas pesquisas. Entretanto, como acontece em outros lugares importantes do mundo, quem te garante que os responsáveis por algumas dessas investigações científicas não sejam dos nossos?
Claire mordeu o lábio superior. Detestava aquela atitude de Kilaim de se incluir na loucura toda.
— “Nossos”? — Ela não conseguiu se conter.
— A Organização — Kilaim reiterou. — Em 2012, somente nos Estados Unidos foram registrados mais de cinco milhões de consultas relatando esse tipo de problema. Mas há casos em muitas outras partes do mundo. São pessoas convictas de que algo rasteja sob sua pele.
— Mas rasteja mesmo... Eu senti...
— Eu sei — ele respondeu e afagou os cabelos dela, condescendente. — Era real. Os pacientes tiram dessas feridas pruriginosas os fios que crescem diretamente nas lesões, como eu fiz com você, lembra?
Ela fez que não.
— Lembro-me do que senti, mas não de você ter mexido nas feridas.
— Tudo bem. Para você, já passou. Mas para os outros, não haverá remédio. Alguns pacientes afirmam ter visto nos poros algo parecido com ovos de parasitas. E para livrar-se disso tomam repetidos banhos, esfregando a pele até sangrar, depois desinfetam todo o corpo. Mas nada disso funciona. As infecções secundárias são frequentes e, em casos mais graves, o Morgellon pode chegar a causar calosidades e deformidades maiores. O sistema imune não reconhece o agente nem consegue combatê-lo, de modo que as feridas não cicatrizam. Isso faz muitos pacientes chegarem à loucura ou ao suicídio, parce que sentem o Morgellon rastejando sob a pele e ficam desfigurados.
Claire estava perplexa e ouvia sem se mexer.
— O que realmente ocorre, e isso vi durante as pesquisas das quais participei ao analisar muitos dos afetados pela doença, é que os “fios”, ou fibras, que brotam das feridas são estruturas bionanotecnológicas: testes toxicológicos e patológicos podem identificar cristaloides de silicone, polietileno e outros materiais sintéticos nas fibras, mas também matéria orgânica, isto é, elas são portadoras de DNA e têm capacidade de replicação. Essas são as estruturas que lançamos no meio ambiente. Para você ter uma ideia, só podem ser destruídas queimando a 1.400ºC ou mais. Portanto, é claro que a desordem não é psíquica; embora possa, em seu curso, apresentar alguns danos mentais, como a perda da memória de curto prazo. Por isso você repetia toda hora a mesma coisa; parce que não retinha na memória o que tinha falado pela primeira vez. Para você, era sempre a primeira vez. Nesse sentido, é como o Alzheimer.
— Que loucura.
— Na verdade, o Morgellon é uma doença infecciosa, mas causada por um agente infeccioso novo, com características próprias totalmente desconhecidas. Por esse motivo, nós fomos vacinados.
— Quem?
— Todos da Organização. Estamos imunes a essa e dezenas de outras doenças, incluindo AIDS, varíola, gripe espanhola e doenças novas que o mundo ainda não conhece. Virão no momento certo.
— AIDS? Vacina contra AIDS?
— Para nós, apenas. Antes de lançarmos essa praga contra a Humanidade, a cura já nos pertencia. Dão muito mais lucro os medicamentos de manutenção da doença do que uma dose única para sua cura.
Claire mordeu o lábio novamente, sem saber se acreditava piamente ou se dava o benefício da dúvida. Então, deixou passar.
— O que é bionanotecnologia? — perguntou.
— A nanotecnologia é chamada assim porque seus objetos de estudo costumam ser medidos em nanômetros; e um nanômetro equivale a um bilionésimo de metro. Na verdade, ela se baseia na possibilidade de poder organizar os átomos de uma maneira nova. Já imaginou, Claire, o que poderia acontecer se movêssemos os átomos da maneira que desejássemos? É como montar um jogo de Lego. Por meio da nanotecnologia surgiu a capacidade não apenas de projetar, mas de construir estruturas minúsculas totalmente novas, que não existiam antes, usando as técnicas e ferramentas desenvolvidas para colocar cada átomo e cada molécula no lugar desejado.
— Oui, mas que tipo de proveito poderia vir disso? Causar o Morgellon não interessa.
— Imagine uma microssonda que navegue pela corrente sanguínea, contendo dispositivos médicos com capacidade para facilitar diagnósticos ou detectar células cancerígenas antes que proliferem. Ou microcomputadores que caibam no bolso. A U.S. National Science Foundation disse: “Imagine o que seria ‘encolher’ todo o conteúdo da Biblioteca Nacional num dispositivo do tamanho de um cubo de açúcar. Ou, então, desenvolver materiais dez vezes mais resistentes que o aço e com apenas uma fração do peso”. Na verdade, esse sistema de engenharia molecular tem o potencial de gerar uma nova Revolução Industrial, com indiscutíveis consequências econômicas, sociais, ambientais e militares. Nesse caso, armas e aparelhos de vigilância muito mais potentes. Mas, se esse é o papel da bionanotecnologia, também seria possível “montar” novos vírus, bactérias, fungos e parasitas de todo tipo. Um novo e incalculável arsenal de armas biológicas.
— Bem... pelo visto haverá mesmo uma destruição de pessoas em massa. Armas geofísicas, biológicas, químicas... Com tudo isso que você já me falou, ficar vivo será o grande prêmio.
— Será? Não diz a sua Bíblia que chegará um ponto em que as pessoas “procurarão a morte, sem encontrá-la”? É claro que haverá coisas terríveis, e a morte é que seria um prêmio. Esse tempo está chegando, Claire! Só quero abrir melhor os seus olhos.
Claire sabia que o Apocalipse descrevia muitos episódios apavorantes. Mas entre estudar o Livro do ponto de vista profético e saber da existência de pessoas engajadas nos preparativos era bem diferente. Mais ainda, parecia absolutamente bizarro que Kilaim pudesse ter acompanhado de perto tantas coisas, somente para tornar realidade o que ainda era apenas... Um texto bíblico!
— Como eu disse antes, mencionando a CIA, a NASA e outros Serviços de Inteligência, imagine, só por um instante, que setores da ONU e outras inúmeras entidades políticas, governamentais, ambientalistas “de fachada” tenham, em seus escalões de liderança, pessoas envolvidas direta ou indiretamente com a Organização. Elas facilitam pesquisas e projetos que favorecem todo esse aparato. As armas biológicas, ao lado dos grandes cataclismos, são formas especialmente eficazes de controle da população mundial, e o anticristo precisa disso. Em se tratando de doenças, o que alguém não fará pela vida de seu filho ou sua filha? Caso existisse uma cura possível?
— Oui, só que...
— Contudo, a questão primordial é que muitos têm, simplesmente, que deixar de existir. Por serem “inferiores”, muitos deles, mas parce que o planeta simplesmente não tem como comportar toda essa gente. Noventa por cento tem que desaparecer. Essa poesia sua de acreditar no desenvolvimento sustentável, em fontes alternativas de energia e essa bobagem toda... Não funciona, Claire. É impossível. Carecemos de água, de alimentos, de energia, há um verdadeiro caos na Natureza, na sociedade como um todo, doenças demais, guerras demais, diferenças demais. Só o extermínio resolverá isso. E quando restarem 5% dos sete bilhões, esses poderão, oui, viver em equilíbrio constante com o Meio Ambiente. Claro, com uma só língua, um só governo, uma “religião”. E, claro, controle de natalidade. Controle genético.
— Kim, mas...
— Não se assuste achando que sou mau e frio. Seu texto bíblico diz que o Cordeiro “abre os Selos”, e os seres viventes dizem: “Venha!”. Não é o que está escrito? — Kilaim não esperou Claire dizer alguma coisa. — A abertura de Selos é uma linguagem figurada, significa que o tempo de liberar a ação de Lucipher se cumpriu. Tudo já está preparado.
— Lucipher! O Apocalipse fala do poder de Dieu ao trazer juízo sobre a Terra. Nem tudo tem a ver com essa sua Organização!
— É claro que tem. Por exemplo, o quarto Selo é o cavalo amarelo: “‘Venha!’. Seu cavaleiro chamava-se Morte, e o Hades o seguia de perto. Foi-lhes dado poder sobre um quarto da terra para matar pela espada, pela fome, por pragas e por meio dos animais selvagens da terra”. O cavalo amarelo destrói um quarto da população mundial. Vê o que se diz? O Hades seguia de perto o cavaleiro. O próprio inferno! E como fazer para matar tanta gente rapidamente? Concorda que é um desafio? Auschwitz e Birkenau, por exemplo, mesmo trabalhando dia e noite com as câmaras de gás e os crematórios, não davam conta da “Solução Final” idealizada pelo Terceiro Reich. Ali foram exterminados pouco mais de um milhão de pessoas. Em Treblinka II conseguiu-se a morte de mais ou menos 870 mil pessoas em pouco menos de um ano. E havia todos os outros campos, dezenas deles, funcionando durante um longo período. Percebe que uma matança em massa como a descrita na sua Bíblia não é uma tarefa tão corriqueira? Para levar bilhões de pessoas à morte em curto prazo, e o Apocalipse é um “curto prazo”, faz-se necessária uma associação de fatores de destruição. Por isso a guerra. A fome. Os eventos cataclísmicos. As pestes. Lembra-se da pandemia de gripe espanhola? Deixa qualquer campo de concentração, qualquer guerra, para trás. Foi um verdadeiro divisor de águas para a Humanidade, quebrou a linha da História: antes e depois do ano de 1918, final da Primeira Grande Guerra. Naquele momento, o progresso científico e tecnológico cedeu espaço ao velho primitivismo de corpos queimados a céu aberto ou enterrados em valas coletivas. Nunca foi possível calcular exatamente a extensão desse desastre infeccioso, mas os dados chegam a falar em cem milhões de pessoas em todo o planeta, quase seis vezes mais do que a própria Primeira Guerra. E vai acontecer de novo! Os Selos destroem um quarto da população mundial, e as Trombetas, depois, um terço do que restou. Mas as Taças da Ira acabam com todo o resto.
— Mas nem tudo tem a ver com a Organização! — repetiu Claire, atônita e ansiosa. — Não é possível! Sei que há muitas coisas preparadas, mas há ações que só o próprio Dieu pode causar.
— Sei — ele respondeu por responder. — Sabia, amore mio, que os demônios, eles próprios, têm poder sobre os elementos? — Kilaim preferiu realmente não poupar esforços para mostrar à namorada toda a imensidão do preparo para o Final dos Tempos. — Jesus não repreendeu a tempestade? Se Ele a repreendeu, é parce que os demônios estavam por trás daquele evento da natureza.
— Oui, nesse caso. Mas o Apocalipse é um caso bem diferente. Veja o texto que diz, estou me lembrando: “Ai, ai, ai dos que habitam na Terra, por causa do toque das Trombetas que está prestes a ser dado, pelos outros três Anjos”. Anjos, d’accord! Não demônios.
— Eles apenas “tocam a Trombeta”, Claire, do mesmo modo como os outros Anjos “abrem os Selos”. Estão anunciando o Tempo de Deus. Mas quem é o algoz?
— Dieu.
— Da, mas por meio de quem? Não é assim que sempre acontece? Deus usou os inimigos de Israel para exercer juízo contra a nação escolhida. Ele usou os judeus e os romanos para crucificar Jesus. No Apocalipse, não será diferente. Ele sempre usa “alguém”. Alors, o tempo de Lucipher também está sendo anunciado. Quando a quinta Trombeta soa, é Abadom que entra em cena, o rei e chefe dos gafanhotos que sairão do Abismo, causando uma praga de extremo sofrimento. E os cavalos que expelem fogo pela boca? Trata-se de uma casta de demônios que vai ser liberada apenas nesse momento. “Cavalos”, representando sua força e velocidade; e o “fogo”, mostrando que são querubins caídos. Querubins caídos aliançados com o querubim ungido, Lucipher. O fogo sempre está ligado aos querubins. E a sexta Trombeta? Veja: “O sexto anjo tocou a sua trombeta, e ouvi uma voz que vinha das pontas do altar de ouro que está diante de Deus. Ela disse ao sexto anjo que tinha a Trombeta: ‘Solte os quatro anjos que estão amarrados junto ao grande rio Eufrates’. Os quatro anjos, que estavam preparados para aquela hora, dia, mês e ano, foram soltos”. É nesse momento que um terço da humanidade será morta. Repare que o texto diz que os quatro anjos “foram soltos”. São demônios de alta hierarquia, que ainda estão no Abismo, esperando o momento exato dessa libertação. A Besta que emerge do Abismo matará as duas testemunhas de Deus — e isso ele dizia com alegria, como se fosse um grande trunfo antecipado. — Elas ressuscitarão, mas isso não muda muito o desenrolar das coisas. Esse é somente o começo da Grande Tribulação. Todos serão marcados com o 666. Que diz “Não” ao Pai, “Não” ao Filho, “Não” ao Espírito Santo.
— Tudo bem, mas o apóstolo João, escritor do Apocalipse, também profetizou contra as nações e os reis que tinham se aliado contra o povo de Deus — Claire continuou, para ver como Kilaim se safaria daquele pequeno “detalhe”.
— Ah, alors, você admite que há inimigos que irão se levantar? Pessoas reais?
— Alguns, oui.
— Alguns, non. Milhões! Nós. E “nós” significa a Organização e os demônios.
— Dá pra você parar de falar “nós”? Está me deixando nervosa! — exclamou ela, com ar de irritação. — O que importa é que haverá juízo contra todos esses algozes.
Ao contrário do que ela esperava, Kilaim assentiu, concordando:
— É vero.
— E isso não te preocupa? Se Dieu permitirá tais tragédias sobre a Humanidade, o que não fará àqueles que participaram para aumentar a desgraça desse grand finale?
— D’accord. Você está certa.
— E não te preocupa?! — repetiu ela, pasma.
— Non.
Claire não entendeu.
— Quando se diz que a “Grande Meretriz seduziu os reis da Terra”, o que você imagina?
— Não sei.
Claire não tendo opinião formada sobre algum assunto era novidade.
— A Meretriz é a Organização, simbolicamente nomeada Babilônia, a grande cidade que reina sobre os reis da Terra. Mas quais reis? Pessoas importantes, e muito poderosas, pertencentes à própria Organização. Pessoas que têm o mesmo intento da Besta e entregarão a ela seu poder e autoridade. Lembra-se dos chifres da Besta, dos nomes de blasfêmia? Tudo isso se refere a nós.
— Já ouvi dizer que a Grande Meretriz fizesse menção à Igreja Católica... — murmurou Claire, franzindo a testa.
— É uma afirmação um pouco simplista. Sua Bíblia fala do poder da Meretriz sobre os povos, multidões, nações e línguas. Embora poderosa, a Igreja Católica não tem esse alcance mundial todo, mas a Organização, oui, tem. Ela se expressa em qualquer cultura do mundo. Além do mais, o Papa não é o único rei da Terra. Ele até poderia ceder aos desejos da Organização, ok, mas nós já temos nossos próprios reis, prontos para colaborar no momento auspicioso.
Claire não respondeu. Kilaim argumentava de uma maneira que ela nunca tinha visto, ou ouvido, ou lido a respeito.
— Pourquoi você está me dizendo tudo isso?? — Ela deu um longo suspiro.
— Só quero, mon amour, que você esteja ciente da força desse poder. Você acha que a Organização é só uma brincadeira, Claire? Que Lucipher se preparou ao longo de toda a História da Humanidade para vir a ser um fiasco justo no Fim?
— Mas isso não importa para mim, Kim?
— Importa, parce que eles estão atacando você. Preciso lhe contar essas coisas para que entenda que não poderá “vencer” para sempre. Teve sorte até agora, mas vai piorar. Para nós dois.
Então era aí que ele queria chegar.
— Esse combate mal começou, Kim — falou Claire, dessa vez com convicção. — Dieu não permitirá que sejamos derrotados logo no início da guerra. Deus é um Deus de reversões. Nele, os humildes são exaltados, os pobres são enriquecidos, os loucos recebem sabedoria e os derrotados, a vitória.
— Poesia pura. — E foi Kilaim que suspirou. — Parece que você não me ouve...
— Acontece que a vitória em Cristo não é imediata. O povo de Deus frequentemente sofre. É o nosso caso, agora. As aflições e as provas vêm; é esperado. Se Dieu permitirá que eu seja alvejada pelos membros da Organização, para meu próprio crescimento, que assim seja.
Ela ergueu as mãos como quem dá a palavra final, mas Kilaim bufou, como um rinoceronte. De novo aquela fé cega, aquela abnegação irrevogável, que o punha de cabelos em pé! A disposição de se entregar ao sofrimento por amor a Cristo.
— Você diz isso agora. Dessa vez eu tinha o antídoto contra a síndrome de Morgellon, Claire. Eles não sabiam disso, imagino eu, parce que, se não fosse assim, teriam enviado outra praga. Uma gripe espanhola, que tal? Muito bem desenvolvida com base em testes feitos em laboratórios especiais, com humanos, ouviu? De que adiantaria testar os efeitos em ratos, cães ou mesmo primatas? Uma pesquisa da Organização só tem valor se for testada no organismo humano. Para o desenvolvimento das pragas, alterações genéticas, efeitos de radiações e tudo que já te contei.
— Mas isso não pode ser feito, assim, indiscriminadamente.
— Para a Organização não há barreiras, baby — falou Kilaim, ainda com certo orgulho. — Há médicos dos mais conceituados, laboratórios gigantescos, alas hospitalares secretas. E pesquisa de ponta. Além do auxílio das entidades, é claro, que também analisam os resultados das pesquisas e sugerem alternativas. Já te disse que gostava de participar das experiências médicas.
— Mas como são escolhidos os voluntários?
Kilaim teve que rir.
— Não há voluntários. As pessoas desaparecem, todos os dias, não é assim? Ou morrem e o corpo não é encontrado. Sofrem acidentes violentos, como a queda de um Boeing, que acaba com centenas de pessoas. Quem garante que esse Boeing caiu realmente? Ou teria sido apenas desviado de seu curso, as pessoas são aprisionadas e tudo isso fica em sigilo, por meio dos nossos, que coordenaram todos os passos dessa ação? As famílias recebem os caixões lacrados. Quem vai dizer o que há lá dentro? Há tantas formas de conseguir pacientes, de qualquer idade, com as variantes que quisermos. Sempre tive muita vontade de ser médico.
Claire estava horrorizada.
— Alors, essas pessoas ficam presas, como cobaias?!
— Da. — A resposta simples e direta era a melhor. — É assim que funciona. Elas nunca mais verão a luz do sol.
Dessa vez, houve um profundo silêncio pairando no quarto. Kilaim desejava não ter sido necessário abordar todos aqueles assuntos, mas era preciso. Será que falara demais?
Então, apenas tentou terminar.
— Hoje, alguns homens se tornaram muito mais sábios com o conhecimento adquirido dos demônios. Como já disse, sub-raças indesejáveis desaparecerão. Embora, é claro, seja importante que uma porcentagem permaneça, pois precisaremos de mão de obra.
— Escravos, é o que você quer dizer?
— Não necessariamente. Pessoas controladas. O medo é uma boa forma de controle e, afinal, fazem-se necessários serviçais de todos os tipos, em qualquer conjuntura.
Claire tornou a ficar calada.
— Claire, a decisão é sua — disse o jovem, finalmente. — Não posso obrigá-la, mas estou dizendo que, para vencer, você precisa estar ao lado dos vencedores. Não queira fazer parte do grupo que vai deixar de existir.
— Dieu é o Senhor dos Senhores e o Rei dos Reis. Ele é o vencedor.
— Oke, Claire. Alors, você realmente quer arrumar confusão com a Organização?
— Não estou arrumando confusão, Kim. Só estou? aqui. Vivendo minha vida. Estou aqui? Parce que eu te amo! É simples. Acredito no nosso amor e acredito que Dieu nos uniu. Se Ele nos uniu, trará o livramento, como tem feito até agora? — Para ela, isso bastava.
— Sim, você diz que o poder do Amor está do nosso lado. Mas é você que desconhece o poder do Abismo! O que mais quero é conseguir lhe mostrar do que estou falando...! Quando você entender, isso é o que nos trará salvação.
* * *
13
Déshonorer
Foi apenas no dia seguinte, durante o banho de sol ao final da tarde, que Claire se aventurou a perguntar, mais uma vez.
— Kim... Você me contou um monte de coisas, mas... E quanto a você, Kim? Eu disse que iria esperar pelo seu tempo, pelo momento em que quisesse me dizer o que, de fato, aconteceu com você. Quero saber a que ponto da “Jornada” você chegou, afinal.
Muitas vezes, em seu íntimo, Claire havia torcido para que o envolvimento de Kilaim dentro do Satanismo houvesse sido mais teórico que prático. Ideias, conceitos, algumas experiências, algum contato com o sobrenatural. Mas estava mais que claro: não tinha sido assim. Não mesmo. Cada dia ela se convencia de que a situação era bem pior do que sua imaginação pintara. Tinha o acontecido com o Juca. Tinha o cego, a planta, o ritual da tucandeira. Tinha a passagem pelo Portal. Tinha Leviathan. E tudo o mais.
Kilaim suspirou, compreendendo perfeitamente a pergunta da namorada. E foi sincero.
— Pode ter certeza de que meu envolvimento foi o mais profundo possível.
— Mas... — Claire ergueu-se, jogou as pernas para o lado da cadeira de sol e começou, sem perceber, a torcer as mãos diante daquela resposta. — O que isso quer dizer, Kim, já perguntei tanto! Eu...
— Outro dia, mon amour. Não agora — ele falou em tom brando, mas firme. — As chaves-mestras da Magia estão, em maior ou menor grau, guardadas nas Sociedades Secretas. Não posso lhe dizer tudo. Parce que os pontos fundamentais, o fio de ouro que possibilita conectar todas as pérolas do conhecimento, todo o tesouro obtido, são somente para os integrantes dessas Sociedades. E especialmente para os da Organização, ainda mais para os da alta hierarquia.
— Não estou querendo descobrir segredos, mon amour. Só preciso entender... Você. Sua vida. — Ela olhava-o com intensidade. — E essa história de hierarquia? Quer dizer, a qual delas você pertencia?
— Já disse que meu envolvimento foi muito profundo. E você já sabe que o conhecimento adquirido é amplo e diverso. Mas tenho lhe contado parte dele, n’est-ce pas? Lembra que eu te disse que nem todo o conhecimento está em apenas “um tijolo”, é preciso ter todo o conjunto deles para construir o palácio da sabedoria? É isso. O importante é saber que ele está espalhado em diversas fontes.
— Não pode citar alguns exemplos?
— Algumas informações estão no Livro dos Grimories; outras, em Liber AL vel Legis – The Book of the Law, de Crowley; nos próprios escritos de Salomão ou na bíblia negra...
Kilaim deu levemente de ombros e se calou.
— E você? Onde se encaixa? — Ela tentou ir pela tangente. — Quais desses livros você já leu?
— Todos. E muito mais. Posso dizer que meu treinamento foi pouco convencional.
Claire imaginava que aquilo não era nada, nada bom.
— Mas não leva certo tempo para adquirir todo esse conhecimento? — perguntou ela, mais uma vez, como quem não quer nada.
— Depende de seu lugar na Organização, que tipo de papel virá a desempenhar, de quem está te treinando. Alguns nunca vão saber tudo, nunca vão chegar à abrangência do conhecimento; já outros crescerão muito rápido em hierarquia. E, claro, em poder.
— Digamos, alors, que esse é o seu caso.
— Oui. É o meu caso. Olha, você está ficando aflita sem motivo... O problema que temos em mãos não é por causa disso.
Claire pareceu nem escutar.
— E pourquoi para você foi tudo tão rápido assim?
Kilaim sorriu e se inclinou na direção dela, beijando com suavidade seus lábios, percebendo a crescente tensão.
— Mon amour... — Acariciou o rosto dela. — Não se preocupe com isso, pois não é importante. O que tem importância eu tenho te falado há tempos.
— Mas você vai me contar sobre você, n’est-ce pas, Kim? Usando seu próprio exemplo, de nada me adianta ter todas as peças do seu quebra-cabeça teórico, mas sem nenhuma perspectiva da vida que você levou. E da que você pretende levar a partir daqui. Isso, para mim, é a grande chave-mestra agora.
Claire olhou em derredor, para a Floresta além da piscina, diante da qual estava incógnita, minúscula. Tinha certeza de que tudo aquilo que Kilaim falava era não mais que a ponta do iceberg. Essa certeza a invadia como um bólido e incomodava.
— Só me responda uma última coisa.
— Parlare, bella ragazza! — brincou ele, querendo descontrair o ambiente.
Claire sorriu diante do elogio, mas logo ficou séria novamente.
— Quando você fala em poderes, hierarquias, significa que passou por todo um aprendizado. Um treinamento. E, aparentemente, foi especial. Destinado a poucos.
— Oui.
— Deus faz isso também. “Muitos são chamados, mas poucos os escolhidos.” Os escolhidos para quê? Para fazerem diferença, para conhecerem Deus de perto, para manifestarem os dons espirituais e o Poder Divino. Como os apóstolos. Jesus treinou apenas 12. Ele chamou milhares, mas escolheu apenas 12. E o que esses 12 fizeram mudou a História.
— Ok. E?
— Se os 12 receberam o título apostólico, qual é o seu, Kim? O que você é? Não basta dizer que é um “bruxo” de verdade. Isso parece “simples”, n’est-ce pas? Acredito que muitos foram chamados por Lucipher para serem bruxos, mas poucos são escolhidos para...?
Kilaim ficou em silêncio.
— Você é um bruxo de verdade? — repetiu ela.
— Você sabe que sim. Embora a nomenclatura seja diferente.
— Mas, não é só isso que você é, certo?
— Non — ele admitiu, por fim. — É mais que isso. Bem mais.
— Mas o que isso significa? Você já me mostrou um pouco do que pode fazer. Mas também sempre diz que são coisas “fáceis”, que nem dá para chamar de Magia. Por outro lado, já mencionou mais de uma vez ser filho verdadeiro de Lucipher. Alors... Que poder é esse que você foi escolhido para aprender a manipular?
— O poder da Magia Negra — Kilaim respondeu, sabendo que aquilo era falar, sem falar demais.
— Mas... Mon Dieu. O quê significa? Você age como se eu soubesse!
— Magia Negra é o resultado de uma aliança de sangue que não se pode quebrar, um pacto entre homens escolhidos e entidades demoníacas. Isso torna-nos invencíveis.
— Ninguém é invencível; só Dieu — Claire balbuciou, mais por reflexo. As palavras “Magia Negra” martelavam na cabeça dela.
Kilaim ficou com pena dela, a julgar pelo seu olhar de aflição e a ausência de palavras.
— Lembra quando eu falei, ontem, da Meretriz?
— Oui...
— Imagine o Noivo, Cristo, e a Noiva, a Igreja. Se uma noiva é pura, o que acontece quando consumam o casamento?
Claire ficou parada, olhando para ele.
— O sangue. O sangue é sinal da consumação. No caso, a Igreja e Cristo se unem pelo sangue derramado na Cruz, o sangue da Nova Aliança. Já a Meretriz se une aos reis da Terra, que são pessoas da própria Organização. E qual é o sangue que usam para forjar sua aliança?
Claire continuou em silêncio.
— O sangue ritual. A aliança entre os escolhidos e os demônios é, também, uma união de sangue — respondeu Kilaim à própria pergunta.
— Eu sei que você já mencionou... Quer dizer, não exatamente... — Ela estava confusa. — Isso é Magia Negra?
Kilaim sorriu.
— Digamos que é assim que começa, não é mesmo? A vida com Deus também tem início só depois de você ter aceitado a Nova Aliança. Antes disso, Ele é apenas Alguém que “bate à porta, esperando...”. Não é assim? Primeiro você aceita o Sangue, depois tudo começa. Conosco, é igual.
Fazia sentido. E não fazia de modo algum! Sangue ritual?! O que ele estava querendo dizer? Alors, aqueles satanistas usavam seu próprio sangue para esse tipo de aliança...?
— Por sinal, você já parou para pensar em que sentido a Meretriz difere da Noiva? — perguntou Kilaim, entendendo o silêncio dela como aquiescência, muito embora seu rosto não combinasse exatamente com tal possibilidade.
Novamente, nenhuma resposta.
— Alors, qual a diferença? — insistiu Kilaim.
— A Meretriz é uma prostituta, não está claro?
— A questão é que ela estabelece as próprias regras. Não se curva ao código moral, ético, espiritual e blá-blá-blá de Deus. Ela se une a quem quer, do modo que quer, quando quer. É Deus quem a chama meretriz, parce que ela não age conforme os preceitos Dele, mas de acordo com seus próprios desejos! A rebeldia é como pecado de feitiçaria. E quem são os verdadeiros feiticeiros? “Muitos mortos, montanhas de cadáveres, corpos sem conta, gente tropeçando por cima deles! Tudo por causa do desejo desenfreado de uma prostituta sedutora, mestra de feitiçarias, que escravizou nações com a sua prostituição, e povos com a sua feitiçaria...”: Profeta Naum, da sua Bíblia.
— Muito interessante. Olha só, não é essa a pauta. Até agora você tinha me falado em “Magia”. O que, para mim, poderia ser muita coisa. Nunca você falou “Magia Negra”. Nunca mencionou “aliança de sangue”, seja lá o que isso signifique. Sei, sei! — Ela ergueu as mãos num gesto de “espere” diante da argumentação óbvia que Kilaim se preparava para fazer. — Você mencionou que um sacrifício tinha sido oferecido na cripta da Catedral da Sé. Falou também no seu sangue dentro de um cálice, quando estávamos no avião, vindo para o Brasil. Mas imaginei que isso seria uma metáfora, non? Uma força de expressão. Ou, na pior das hipóteses, certo exagero por causa da tensão.
O jovem tornou a se encasular no seu silêncio, olhando para outro lado. Então Claire se lembrou, murmurando:
— Oh, e eu tive um sonho também... Quando ainda estávamos no outro hotel.
— Que sonho?
— Era um sacrifício... — E ela não acrescentou mais nada.
Como Kilaim não deu qualquer sequência ao assunto, a moça suspirou, dando-se por vencida.
— Já sei. Não quer falar nisso agora.
— Du hast mich!
— Quoi?! — perguntou ela, dessa vez meio irritada por ter que adivinhar o que ele queria dizer.
— Você entendeu. Outro dia. Mas, se fizer muita questão de conversar, posso te explicar alguma coisa sobre o Quinto Elemento.
— Outra hora. — Foi a vez de Claire responder sem interesse. Mas pensou, consigo mesma: “O que será, raios, esse tal Quinto Elemento?”.
Os dois permaneceram em silêncio por algum tempo, cada qual com seus botões. Ela se ergueu, de repente, e disse que iria dar um mergulho. Não o chamou para ir junto, como costumeiramente faria. Kilaim ficou debaixo do guarda-sol, olhando de longe. Sentia-se um pouco culpado. Claire aceitara vir com ele sem restrições, sem nenhuma garantia, e ele não estava sendo leal; estava negando a ela a chance de conhecê-lo por inteiro.
“Estou numa situação muito complicada”, ele refletia, dividido. Queria que Claire entendesse, queria que ela aceitasse, que compreendesse a verdade.
Mas não queria relatar nada que pudesse comprometê-lo ainda mais, que viesse a fazer com que Claire mudasse de opinião a respeito dele de forma irreversível. Já tinha dado a ela muito em que pensar.
A verdade é que era impensável contar-lhe tudo o que já fizera, não lhe parecia necessário.
Como explicar, então, de modo prático, o cerne da Magia Negra? Que era, no fim de tudo, o cerne de Lucipher, seu pai?
Kilaim nem se mexia, esquecido até do sol e do calor, de olhos fixos em Claire. Ela estava frustrada, nem sorriu muito quando o casal britânico passou por ela, cumprimentando. Ele afundou em pensamentos. Como lidar com aquela situação...?
De repente, porém, ele estava lá. Dagom. O gigante sentiu a forte presença dele, pouco atrás, do seu lado esquerdo.
— Cicale quaa — falou Kilaim baixo. — Imagino que tenha ouvido tudo.
Não houve resposta, mas também não parecia haver animosidade por parte do principado.
“Well, pode ser que, nesse caso, Dagom queira me ajudar... Afinal, seria por uma boa, non, ótima causa”, Kilaim refletiu.
Depois de uns 20 minutos, quando Claire voltou para sua espreguiçadeira, ele disse:
— Se enxugue e venha comigo.
— Onde?
— Só venha comigo.
* * *
Eles caminharam pelas palafitas no mesmo sentido que levava à pirâmide.
— Pourquoi estamos aqui na Floresta?
— Parce que não quero que ninguém nos veja.
— E pourquoi?
— Já pensou em sexo bem no meio da Natureza? — Kilaim deu uma risada alta, a cabeça indo um pouco para trás. — Hein, que tal?
Claire olhou para ele.
— Você fez todo esse mistério e é isso, afinal?
— Convenhamos que seria uma experiência única.
— Oui, se você quiser correr o risco de ser picado por alguma cobra escondida nas folhas do chão. — Claire acabou dando risada também. — Ou ficar se coçando depois de rolar sobre alguma urtiga ou erva venenosa.
— Alors, podemos fazer isso na pirâmide!
— É claro que non. — Ela riu de novo. — E se aparecer alguém, Kim?
— Também haveria de ser uma experiência única. Já imaginou a cara de quem chegasse? Se o Juca não estivesse entubado e cheio de fios, eu iria adorar que ele aparecesse dessa vez.
Claire não fez comentários sobre o estado de saúde do guide. Apenas perguntou:
— Ele vai ficar bem, n’est-ce pas?
— Acho que vai.
— Kim!
— Oke, baby. Provavelmente ele vai sobreviver. E quanto ao meu pedido? — Kilaim sorria espevitado.
— O tal Leviathan fica rondando por aqui, alors, eu não...
— Ça va. Deixamos isso de lado. Vou te mostrar uma coisa.
— Quoi?
— Uma coisa que o seu Deus não faz!
— Ah, entendi. Essa história de sexo era só gracinha sua.
— Mas se você topasse, eu não me oporia — ele respondeu, dando seu famoso tapa no bumbum da namorada. — Vamos lá: vou mostrar algo que Deus não faz.
— Isso vai me dizer algo pessoal a seu respeito?
— De certa forma. E, se eu fizer uma coisa que o seu Deus não faz, você pensa com carinho em tudo que eu te disse?
— Em qual parte?
— A parte em que não quero ver você fazendo parte do grupo dos perdedores.
Ela deu uma risadinha.
— E o que você faria? Algo que Deus não faz... Bien, Ele não abre o mar, não anda sobre as águas, não ressuscita os mortos, não cura enfermos... Não expulsa demônios. Oh! — Ela pôs a mão sobre a boca, fingindo grande espanto. — O que poderá ser?
— Levitar! — falou Kilaim, dando ênfase à palavra. E estufou o peito. — Eu não sou Deus, mas detenho grande poder. Se eu voltar à Organização e você estiver ao meu lado, sempre estará segura.
Claire abraçou Kilaim, mas sem dizer nada.
— Pois bem, Claire — falou o rapaz, depois do abraço. — Posso me elevar nos ares como um balão. Isso não foi citado na Bíblia, nunca ninguém fez igual.
Claire tentou conter o riso, mas não conseguiu. A risada foi escapando aos poucos de seus lábios, por causa do jeito como Kilaim falava. Ele só poderia estar brincando.
— Um balão, Kim? Que ideia! Você vai invocar as forças de Hélio, o gás?
— Ah, você duvida. Très bien, Claire. Prepare-se para ver algo surpreendente.
— Tá bem. — Ela apoiou sua garrafa de água no galho de uma árvore e ficou à espera.
— Depois disso, você vai pensar com vontade na minha proposta.
Kilaim sabia que os demônios estavam, agora, sempre de mau humor para com ele. Ficavam por perto mais para vigiá-lo e levar as notícias do que para acompanhá-lo. Entretanto, Kilaim preferia acreditar que Zor e os demais esperariam a viagem terminar antes de fazer algo contra ele, e que os levasse ao arrependimento depois.
Entretanto, uma demonstração daquelas poderia mudar o jogo. Claire veria, de fato, uma manifestação verdadeira do poder das Trevas, o resultado da aliança negra. Não podia comparar-se à aliança com Deus.
— Pelo nome do grande príncipe, conceda-me o poder de tua Sombra — disse Kilaim, baixinho, a Dagom. — Para que eu flutue como as nuvens e deslize como a gaivota. Divida comigo a fração do seu poder para que todos que a vejam possam reconhecer tua força em mim.
Então, Kilaim falou as palavras em aramaico, o que atraiu uma nuvem de demônios com asas que farfalhavam como velas em alto-mar e olhos atentos.
Claire escutou os estranhos dizeres, incompreensíveis. Apenas observava, mas não estava gostando nada daquilo. Infelizmente, era impossível evitar. Pelo menos naquele momento. Por isso, a seu modo, orou pedindo proteção.
Os Anjos liderados por Mikhael ficaram mais próximos de sua protegida, formando um anel ao seu redor. O brilho de seus corpos se misturava num enorme e radiante halo de cores que dançava como água. Quando as espadas foram desembainhadas, o refulgir de luz foi como a explosão de uma estrela.
Os demônios, atraídos pela invocação do filho do Fogo, afastaram-se para uma distância segura, mas ficaram espreitando, agora quase em silêncio. Dagom foi o único que permaneceu; tinha sido chamado legalmente e estava em seu território. Porém, suas espessas sobrancelhas estavam arqueadas e seus olhos alongados fixavam-se em Kilaim com uma mescla de desdém e irritação. Nem de longe expressavam a admiração que sempre nutrira pelo jovem satanista. Como pudera pensar que ele, Dagom, o ajudaria nessas circunstâncias?
Então, enviesados, os olhos muito negros de Dagom se desviaram para Claire, e seu semblante adquiriu um ar de pura fúria. Um rosnado alto escapou de sua garganta, enquanto os dentes de piranha, muito afiados, apareceram rápidos e ferozes. Pousou a mão cheia de anéis sobre a empunhadura da espada e encarou, dessa vez, o capitão, como quem tem certeza da vitória:
“É só questão de tempo, imbecil. Vamos acabar com ela.”
Mikhael não esboçou reação. Os olhos de fogo se mantinham cravados no principado da Amazônia, impassíveis. Dagom não sustentou o olhar daquele Anjo por muito tempo e voltou-se para Kilaim.
Tudo ocorrera em poucos segundos e, naquele instante, de pé e com os braços erguidos em formato de cruz, Kilaim jogou o corpo um pouco para trás. Esperava começar a flutuar em seguida, quando Dagom o sustentasse e erguesse; só que nada aconteceu. Dagom olhava a cena, dessa vez com um leve sorriso nos lábios.
E observou Kilaim perdendo o centro de equilíbrio, as mãos rodopiando no ar numa vã tentativa de se sustentar em plena queda e a aterrissagem pesada, em função, agora, de um leve empurrão do demônio, de encontro ao caule de um pé de pupunha, cheio de espinhos. Em seguida, com a mão apoiada na cabeça do gigante, Dagom ajudou-o a afundar no chão, exatamente onde havia uma poça de lodo, ainda meio mole.
“Possesso de raiva” era só um eufemismo para descrever o imediato estado de espírito de Kilaim, especialmente ao espetar as mãos nos espinhos das folhas da pupunha, que estavam caídas no chão.
— Mas que merde!! Pelo fogo do inferno, maldição! Molhou a minha bermuda, sujou tudo! — Ele passou as mãos sujas sobre a bermuda enlameada, depois as esfregou na parte da frente da camiseta. — E esses espinhos estão me perfurando...
— Acho que seu balão furou, Kim — brincou Claire, querendo apenas amenizar a situação, mas o jovem só ficou ainda mais furioso com o comentário.
— Balão furado, é? A culpa não é minha, é deles!
— Não fique tão bravo, Kim, está tudo bem! — fez Claire, surpresa com aquela transformação. Caminhou na direção dele. — Deixe-me ver esses espinhos.
Mas Kilaim não deixou que ela pegasse em suas mãos e chutou as folhas de pupunha, descontrolado: Claire não entendia o significado daquele fracasso!
— Você não vai fazer nada mesmo, n’est-ce pas, Dagom?! — gritou Kilaim.
Se ele visse ou ouvisse a risada, não só do principado regional, mas dos demais que estavam por ali, teria se enfurecido ainda mais. Aquilo jamais acontecera com ele, ainda mais em circunstâncias tão deploráveis, e na frente de sua namorada!
— Pois você está me envergonhando! E com isso envergonha o grande e supremo Príncipe! Você e esse seu bando de palermas! Incompetentes e idiotas! — gritava Kilaim ainda mais, os punhos cerrados, brandindo no ar.
Aquela reação, por certo, impressionou Claire ainda mais do que se Kilaim tivesse mesmo levitado. Ele falava como se os demônios estivessem mesmo ali, o que mostrava uma de duas coisas: ou estava enlouquecendo, ou de fato...
Ela chacoalhou a cabeça, achando melhor lembrar-se bem depressa de algum texto bíblico que pudesse acalmar a situação.
— Lembra-se dos profetas de Baal, Kim? — ela começou. — Eles não conseguiram fazer com que Baal lhes escutasse os apelos, de modo que... Ora, não fique assim, poderia acontecer com qualquer um.
Comentário errado.
Kilaim se voltou para ela como um búfalo descontrolado.
— Acontece que não sou “qualquer um”, Claire. Eu queria mostrar o poder que vem dos demônios, mas eles não querem colaborar comigo. E sabe pourquoi? Por sua causa, sabia disso? — O tom da voz dele agora era quase um sussurro gélido e cortante. O tom de quem sabe que não precisa gritar para intimidar. — Pois eu vou te mostrar algo do meu próprio poder, algo melhor do que secar uma merde de planta ou invalidar picadas de formiga. Parce que eu posso! Não dependo desses palermas.
Seu rosto mostrava apenas parte da ira que se alojara no coração. Kilaim aproximou-se da garrafa de água enganchada no galho da árvore, encostou a mão sobre ela e, quase imediatamente, a água congelou. Kilaim arrancou a garrafa do galho e a estendeu com força na direção do rosto de Claire, olhando fixo no fundo de seus olhos.
Ela pegou a garrafa devagar e observou o conteúdo congelado. Depois devolveu o olhar fundo, mas sem ira.
— What the hell, alors, o que achou?! — O gigante continuava furioso. Pela negligência dos demônios e pela ousadia de Claire em fazer comentários a seu respeito. Comentários jocosos. — Posso fazer isso com seu sangue, Claire. E aí, nem lágrimas você vai ter para chorar.
Claire sentiu um frio na espinha. Por mais inconcebível que pudesse parecer, naquele momento a garota achou que Kilaim poderia, de fato, atentar contra a vida dela. Afinal, era isso que ele estava dizendo, não era?
— Tá bem, Kim. Já estou bem convencida do seu poder e sei perfeitamente de onde ele vem e por quê.
Aquilo pareceu acalmá-lo um pouco, e sua respiração ficou menos pesada.
— Mas agora vamos deixar de brincadeira — continuou Claire, olhando de novo para a garrafa. Um pedaço do plástico tinha até rachado. Era impressionante! Por fim, ela falou com delicadeza: — Por enquanto, entendo que você ainda está frio como esse bloco de gelo... Mas, um dia, compreenderá o Amor.
Kilaim não esperava por aquilo. Por aquela reação plácida, pela demonstração de fé. Ele sabia o quanto podia ser intimidador, com absoluta certeza ele sabia como amedrontar alguém, ah, se sabia! Mas ela não dera sequer um passo atrás.
Então, quem ficou perplexo foi ele. Ainda mais quando a garota estendeu a mão e pegou a dele, ainda olhando-o com seus olhos de águas-marinhas.
— Não vou desistir de você, Kim.
Aquilo era Amor. Cálido e simples. As palavras cheias de ternura, verdade e compaixão o desarmaram completamente e perfuraram seu coração. Palavras doloridas. E ele havia acabado de ameaçá-la.
Kilaim soltou a mão que Claire segurava e se sentou no chão, a bermuda molhada grudando na pele, e baixou a cabeça. Uma lágrima rolou dos seus olhos, mas a garota não percebeu.
Para escapar daquela situação constrangedora, ele mudou totalmente a perspectiva, mas sem concordar com ela:
— Muitos falam de Amor, Claire, não apenas Cristo. E mais: muitos vivem o Amor, sem nunca O terem conhecido ou servido.
Ele se voltou para ela, erguendo olhos sem luz, nas horas róseas da luz do entardecer.
— Você sabe que eu te amo, né? — Claire apertou a mão dele. Depois, num fio de voz, acrescentou: — E Dieu também te ama, Kim...
Mas ele não respondeu.
Claire pousou seu braço sobre o braço dele, sujo de lama, e o afagou. Em silêncio. Seus olhos se desviaram para a garrafa, caída ao pé deles: a parte externa da água tinha começado a descongelar e escorria pelo plástico quebrado.
A hora certa iria chegar.
E Kilaim entenderia aquilo que as palavras não podem explicar.
* * *
Dois dias depois, durante os quais Kilaim exibiu certo azedume, Claire finalmente arriscou voltar ao assunto.
— Como você fez aquilo? — perguntou, sem delongas ou floreios, referindo-se à água da garrafa.
— Magia — ele respondeu seco, não querendo falar, ou lembrar, do motivo que o levara a fazer tal coisa. — Magia Negra. Poder.
— E pourquoi a levitação não deu certo?
O jovem bufou, ainda ressentido.
— Parce que para isso eu precisava do poder de um demônio também. Não posso fazer usando somente minha energia.
— E funciona?
— Natürlich! É claro! Já fiz isso antes, e é muito fácil. Mas preciso que um demônio acrescente sua energia à minha... É isso. — Ele não estava com vontade de falar no assunto, mesmo assim fez um adendo: — Essa é a diferença entre o poder verdadeiro e o poder falso que está por aí nas igrejas, sendo comercializado por espertinhos e vendido aos idiotas.
Kilaim voltou a afundar o rosto na tela do iPad, no qual assistia ao episódio de Ink Master, um reality de competição norte-americano entre tatuadores dos mais conceituados. Semana a semana eles lutavam pelo título de Ink Master, um artista versado nos principais estilos que dominasse as diferentes técnicas, apto a tatuar de tudo, além de cem mil dólares e uma reportagem na revista Inked.
Kilaim gostava bastante de tatuagens e admirava o trabalho dos tatuadores ao utilizar como tela a pele humana, não plana, para imprimir sua arte. Naquele episódio, os jurados Dave Navarro, Chris Nuñez e Oliver Peck avaliavam a técnica de detalhamento, e havia algumas realmente boas. Também era engraçado ver as provocações. Naquele programa, os tatuadores eram, quase sempre, um pouco arrogantes, o que levava a muito drama e confusões homéricas.
Percebendo que não era hora de conversar, Claire se sentou ao lado dele e ficou assistindo ao programa que, por fim, achou bem interessante.
— Quem sabe não faço uma tatuagem para representar este momento da minha vida?
— A escolha é sua.
— Mas o que você acha?
— Cool! Da hora!
Foi então que, de repente, Kilaim falou algo que não tinha nada a ver com o contexto. Aparentemente.
— “Através do Amor, o que é amargo parece doce. Através do Amor, pedaços de cobre se transformam em ouro. Através do Amor, a borra sabe a puro vinho. Através do Amor, as dores são como bálsamo. Sem amor, um jardim parece uma grelha cheia de cinzas. Através do Amor, ferrões são como mel. Através do Amor, o rei se torna escravo.”
Claire ficou até tonta com a mudança, mas eram bonitos aqueles versos desconhecidos. Ela ficou ouvindo sem se mexer, tentando captar a essência.
— “Olha bem aquele que te causa este percalço, contempla o fluxo e o refluxo das coisas boas e más, abre para ti uma passagem do infortúnio para a felicidade. Vês, portanto, como um estado te leva a outro. Um estado oposto gerando seu oposto em troca. Se não sofreres temores depois de alegrias, como poderás esperar prazeres depois de desgostos? Que possas ganhar duas asas! Um pássaro com só uma asa é impotente para voar, apesar de bem-intencionado! Deves ter a alma iluminada de Abraão para veres as mansões do Paraíso no fogo. Passo a passo, ele ascendeu para além do sol e da lua, e não ficou para trás, como uma corrente que tranca uma porta.”
Kilaim se calou e Claire ficou a olhá-lo. O rapaz tocou os cabelos dela com infinita ternura, alisando-os, colocando as mechas atrás da orelha. Claire ergueu a mão e entrelaçou os dedos nos dedos de Kilaim.
— Que versos são esses? — perguntou.
— Você falou de amor.
— Hã? Eu falei...?
— Na Floresta, anteontem.
Claire sabia que Kilaim nunca falava apenas por falar. Mesmo que ela não entendesse logo de cara, sempre havia uma moral da história.
— Ah, você voltou a esse assunto.
Ele apenas continuou:
— Você falou do Amor de Deus, que Ele me amava. E eu me lembrei de “O Amor suporta infortúnios nas mãos do Amado”. Esses versos traduzem conceitos bíblicos, não acha? Fazem uso de uma linguagem simbólica diferente da sua, mas falam de Amor, e aí está: as facetas dele e seu poder. A capacidade de enfrentar adversidades e extrair delas o melhor. Fé. Esperança. Determinação.
— Tem razão — admitiu Claire com muita sinceridade. — Mas de onde vêm esses versos?
— De alguém que os cristãos condenariam ao inferno. Alors, que importa?
— Importa.
— Já ouviu falar do sufismo?
Ela fez que não.
— Nunca ouvi essa palavra na vida.
— A forma de entender o sufismo é não usar as palavras nem se preocupar com suas origens; é mais simples abraçar seus objetivos, parce que sufismo é ação, e não debate. Não disse o apóstolo Paulo: “Mostra-me essa tua fé sem obras, e eu, por meio das minhas obras, te mostrarei a minha fé”? O sufi, praticante do sufismo, acredita ser possível uma experiência íntima e direta com Deus, e está disposto a deixar sua vida rotineira para se colocar debaixo das condições que o levem a essa realização. “O que fazer, se não me reconheço? Não sou cristão, judeu ou muçulmano. Se já não sou do Ocidente ou do Oriente, não sou das minas, da terra ou do céu. Não sou feito de terra, água, ar ou fogo; não sou do Empíreo, do Ser ou da Essência. Nem da China, da Índia ou Saxônia, da Bulgária, do Iraque ou Khorasan. Não sou do paraíso ou deste mundo, não sou de Adão e Eva, nem do Hades. O meu lugar é sempre o não lugar, não sou do corpo, da alma, sou do Amado”.
— Nossa, que coisa mais linda! Como sabe tudo de cor?
— Gosto bastante desse tipo de poesia. Não te lembra do Cântico dos Cânticos? Um livro que fala de Amor, mas mostra que o verdadeiro Amor é também erótico, e a sexualidade se apresenta como dom Divino. E quando o Apóstolo João escreve de modo carinhoso a seus irmãos na fé: “Filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade”, está exaltando o amor fraternal. Tanto uma e outra expressão de Amor estão expostas na sua Bíblia. Várias vezes.
— É verdade.
— Pode-se dizer que os dois referenciais máximos do sufismo são a liberdade e o amor. Quando Jesus promete “Conhecereis a Verdade, e ela vos libertará”, isso incluía a Verdade sobre o Amor, pois Ele era tanto a Verdade, como o Amor. E um sufi diria: “Limpa teu coração dos velhos rancores, lava-o sete vezes e serve o vinho do amor; torna-te o amor [...]. Sou seu escravo, Ele é senhor. Sou água e seu óleo flutua sobre mim”.
— Entendo o que quer dizer. É uma forma muito bonita de ver, são conceitos muito bonitos... — Claire sentiu os olhos ficando marejados, e a voz embargada, sem saber exatamente o motivo. Talvez fosse por ouvir Kilaim falar daquela maneira sobre o Amor.
— Mas isso não é suficiente para os cristãos ou mesmo para Deus — aspergiu Kilaim com uma ponta de irritação.
“Então era aí que ele queria chegar”, pensou Claire.
— O sufismo é uma forma islâmica de misticismo. Como eu disse: “condenado ao inferno”. Pois os sufis, diferente dos muçulmanos ortodoxos, dão espaço a sentimentos, percepções e revelações, isto é, insights pessoais alcançados por meio de estados de êxtase. Assim, o ensinamento se segue à experiência, e não o contrário. Isso recebe o nome de “Caminho”. O “Viajante no Caminho”, o salak at-tariq, busca eliminar os véus que ocultam a Verdade. Em termos esotéricos, o sufismo não se diferencia da busca mística pela União com o Absoluto que já foi fruto de tantas outras propostas místicas, ainda mais antigas que o Islã, a Cabbala, ou as ideias Platônicas.
Uma pequena sombra turvou o rosto de Claire. Kilaim entendeu o que havia no semblante dela.
— Você vai dizer que os sufis, assim como muitos outros, apesar de bem-intencionados, vão acabar caindo em práticas que não agradam a Dieu.
— E não é?
— Não agradam pourquoi, Claire...? — Kilaim perguntou, dessa vez sem animosidade. — O objetivo deles é puro. Há pessoas muito mais dignas que a maioria dos cristãos e que nunca serviram a Cristo. Para um sufi, Deus é o Sultão, o Um, o Amado, o Incognoscível, o Mistério, o Amor, o Vinho...
— Lindo... — Ela meneou a cabeça de leve e não teceu mais nenhum comentário. — De quem são os versos sobre o Amor?
— Jalal ad-Din Muhammad Rumi. Ou apenas Rumi.
— Mas quem é Rumi?
— Um dos maiores poetas místicos de todos os tempos. Viveu no século XIII, na região do atual Afeganistão. A obra magna de Rumi, o Masnavi i Ma’navi, também chamada de Alcorão Persa, tornou-se das mais importantes coletâneas de poesia mística já escrita. Foi o que recitei.
— Masnavi i Ma’navi? — Claire falou com cuidado, para guardar a palavra sem esquecê-la. — Foi o que recitou?
— Trechos. — Ele sorriu. — O Masnavi completo tem seis volumes e mais de 50 mil versos. E não foi a única Obra importante de Rumi. Os trabalhos dele, embora escritos em persa, viajaram muito além das fronteiras étnicas, chegando aos nossos dias, inclusive no Ocidente. Ele fazia parte da tradição dos dervixes rodopiantes: místicos sufis que acreditam no poder espiritual da música. Por sinal, falando em dervixes, você viu isso! — lembrou Kilaim, de repente. — Na telenovela Salve Jorge, da Rede Globo, que você assiste de vez em quando para treinar o português.
— Alors, aqueles são sufis de verdade? Com aquelas túnicas claras e chapéus de cone, que giram, giram, sem parar?
Kilaim riu do modo como ela os descreveu.
— Oui. Como sabe, muitas cenas da novela foram filmadas na Capadócia, e as imagens dos sufis são verdadeiras. Por meio da dança sagrada, com giros em torno de si mesmos, eles buscam atingir o êxtase que teria poder de alcançar o Divino. Na verdade, não é uma “dança”, mas a meditação em movimento praticada pelos dervixes. E a que conclusão chegamos? Que Rumi amava um Deus que não o amava?
— Non. É claro que Dieu o amava. Mesmo não sendo cristão.
Kilaim esperava que Claire fosse ser mais ortodoxa.
— Quando Rumi morreu, os muezzins cantaram versos fúnebres compostos por ele: “O rei do pensamento sem inquietude foi dançando para outro país, o País da Luz”. Será que ele foi mesmo?
— Provavelmente, sim... — ela respondeu. — Não se esqueça de Melquisedeque.
Claire ficou pensando em tudo que Kilaim dissera. Desde o repente de fúria por causa da suposta não ação dos demônios, há dois dias, e agora aquele discurso incrível sobre o Amor e sua natureza.
— Pourquoi você me contou tudo isso? — indagou depois.
— Você falou que não estou pronto para conhecer o Amor. Que sou frio. — O tom soou ligeiramente queixoso.
Ela entendeu que aquilo tinha ficado espetando o coração dele, como um espinho, por isso voltava ao assunto.
— Não falei com intenção de ofendê-lo, Kim... Só quis dizer que é só uma questão de tempo, e esse Amor vai alcançá-lo.
— Mas eu estou te mostrando que conheço a essência do Amor e não precisei da Bíblia para isso. O sufismo foi somente um exemplo, Claire, parce que o Amor não é exclusividade dos cristãos. Muitos aprendem e vivem o amor de inúmeras maneiras; e ainda assim é amor. Eu aprendi a amar de outro modo, em outro meio, junto a seres que, ao contrário do que você imagina, também são capazes de amar. E não vejo como você pode achar que não sei amar, uma vez que te amo mais que tudo. É você que não entende o que estou tentando mostrar, parce que o seu vaso também está cheio, e você não se abre para mais nada...
— Kim, como no sufismo, cristianismo é experiência, e não conflito.
Ele ficou quieto por alguns instantes. Depois, desabafou:
— Tenho cada vez mais certeza de que todos já desistiram de mim. Todos os que me amavam não me amam mais.
— Je t’aime. Eu não desisti de você... — Claire repetiu. — Nem Dieu.
* * *
Depois que o embaraço e a raiva por causa da levitação amenizaram, Kilaim não se deu por vencido. Estava claro que, a despeito de as ameaças da Organização parecerem estar em suspenso (pelo menos, era nisso que Kilaim queria acreditar), nenhum demônio iria auxiliá-lo em nada.
Mas ele queria muito mostrar algo a Claire. Algo realmente poderoso, mesmo sem a participação de qualquer entidade. O poder sempre estivera nele, desde criança. Mas agora, com o treinamento, estava aprimorado, e Kilaim podia direcioná-lo. Sendo assim, fluía naturalmente, sem esforço, quase como uma transpiração.
Se alguém corre três quilômetros, transpira; é uma reação natural do corpo. No caso de Kilaim, o fluxo do poder era como “transpirar”. Uma reação natural de quem ele era, do seu organismo modificado geneticamente, da sua energia vital diferenciada. Mesmo assim, essa “transpiração”, às vezes, não passava de uma reação ao seu estado de espírito. Era diferente de transpirar por entrar em uma sauna. A sauna seria como preparar-se antecipadamente para fazer fluir o poder.
A questão é que as simplicidades que já mostrara a Claire não eram dignas do poder ao qual ele estava acostumado. Não era o poder do qual falava, o poder de um filho de Lucipher. Escapavam por pouco de bruxariazinhas de fundo de quintal. Ele tinha que mostrar a ela algo melhor, estava convencido disso.
Por isso, não hesitou e foi em frente.
— Claire, dessa vez tenho algo melhor para te mostrar.
Dessa vez, a moça ficou um pouco reticente.
— Ah, Kim... Não quero ver mais nada. Já entendi o que você quis me dizer.
Mas Kilaim foi chegando perto dela, pegou-a pela mão, e os dois caminharam até o local onde acontecera o desastre da levitação, perto da pirâmide. Era manhãzinha e estava fresco ainda, agradável.
— Hum... Estamos aqui de novo. Kim, se algo der errado, eu vou embora, ouviu? Volto para o hotel, sozinha, não vou assistir você ter outra crise de raiva e ficar gritando com os... Demônios.
— Não se preocupe. Não haverá nenhum demônio hoje. Por ora, eles não estão querendo me ajudar.
“Dieu Merci...”, refletiu Claire com alívio, mas nada disse. “Quem sabe isso acaba de vez.”
Kilaim foi conversando com a namorada, falando de coisas triviais, comentando sobre as lindíssimas orquídeas grudadas no tronco das árvores, todas floridas. Fazia planos para a volta a São Paulo e, de tal modo, a conversa foi tão envolvente que Claire passou também a falar pelos cotovelos, animada e esquecida do motivo de estarem ali.
— Quando chegarmos a São Paulo, vamos procurar saber quem é o melhor tatuador da cidade. Isto é, caso você não mude de ideia. Ou, se preferir, podemos dar um pulo em Nova York. Gostei do trabalho do Tommy Helm, e ele tem um estúdio em Oceanside.
— Acho que conseguiremos tatuadores bons em São Paulo. É uma cidade incrível, que tem de tudo!
— Isso é verdade. Mas você tem que estar preparada para uma coisa.
— Já sei. Que nunca mais vai sair.
— Nein, nein, mein lieber. A dor.
— É. — Ela pensou um pouco. — Mas todo mundo aguenta.
— Vamos fazer uma experiência, alors! Se você passar por isso, com certeza poderá se tatuar.
Claire viu que Kilaim estava brincando e ficou feliz pelo namorado estar feliz de novo.
— Bem, e que experiência é essa? — Ela pôs as mãos à cintura, entrando na brincadeira.
Kilaim ergueu os braços, e Claire viu a musculatura perfeita se retesando quando ele deu um puxão forte num dos galhos mais baixos de uma árvore, conseguindo um pedaço de mais ou menos meio metro.
— O que você pretende fazer com isso?
— Você vai ver. — Ele sacou do bolso da bermuda um canivete customizado, lindo, com o cabo azul, cheio de entalhes e desenhos, e uma lâmina enorme de fio dourado.
— Nossa!
Kilaim “apontou” uma das extremidades do galho com muita destreza e, rapidamente, deixando-a fina como o grafite de um lápis.
— Pois muito bem! — falou ele, dando ares de grande importância. — Venha aqui.
Claire não se aproximou e, sorrindo, avisou:
— Se você pensa que vai me espetar com isso aí, pode esquecer.
— AH, mas só um pouquinho, vai.
— Non.
Kilaim estava com o galho estendido na horizontal, uma ponta em cada mão. De repente, sem aviso nenhum, ele gritou:
— Claire, cuidado com a cobra!
O galho caiu das mãos dele, no chão diante da moça e, então, havia aos pés dela uma serpente de cor acastanhada. Foi tão rápido que Claire nem entendeu e, ao baixar os olhos, só teve tempo de ver o animal deslizando com rapidez, agitando seu guizo na cauda e enrolando-se em seus pés.
— Aii! — gritou, sentindo a pele fria do réptil e pondo as mãos juntas, debaixo do queixo, num gesto de desespero. Ficou imóvel, apesar de tudo, pois um movimento poderia pôr tudo a perder.
— Calma, Claire, não grite, parce que ela pode ficar brava – disse Kilaim, divertido, só para assustá-la.
Completamente parada, ela só achou fôlego para pedir:
— Ela está no meu pé, Kim, espanta ela daqui...
— Calma... — Ele se abaixou e estendeu a mão para perto da cascavel.
— Non, Kim, desse jeito ela vai te picar!!
Mas, para surpresa de Claire, a serpente subiu pelo braço do rapaz, ágil, enroscando-se em sua musculatura. Deu a volta por detrás do seu pescoço, agitando o chocalho, e desceu parte do corpo pelo outro braço. Era grande...
— Kim... Mon Dieu! — Claire estava paralisada. — Ela vai...
O gigante ergueu o braço onde a parte da frente da cobra estava apoiada, admirando-a. Aproximou-a do próprio rosto para ver melhor os detalhes dos olhos, da língua.
— Ela é mansinha, Claire. Não vai te fazer mal — ele falou, chegando perto.
— Non, tire-a daqui — Claire estava estupefata; olhava para Kilaim, depois para a cobra, e então para Kilaim, e para a cobra...
Kilaim deu uma beijoca estalada na boca da serpente e virou-a de frente para Claire, esticando o braço.
— Quer dar um beijinho nela também? — E sorria.
— Non — respondeu Claire, já mais senhora de si. — Isso é muito perigoso, ela é venenosa. Olha esse guizo! S’il vous plaît, ponha-a no chão mais ali, longe da gente.
— Mas você não acha que ela é linda?
— É linda, é linda, mas solte-a pra lá...
— Pra lá? — Segurando a víbora com as mãos, Kilaim virou o corpo meio de lado num gesto rápido, como se fosse pra ver o lugar sugerido por Claire. No segundo seguinte, ao ficar de frente para a namorada outra vez, o réptil não estava mais em suas mãos. E ele simplesmente estendeu o galho para Claire.
— A serpente já foi. Prefere o graveto? — Kilaim continuava a sorrir.
Claire pegou o objeto, olhando-o com ar de puro espanto.
— Mon Dieu, mas o que foi isso, Kim? — Ela virava e revirava o graveto. — Onde é que isso estava? E cadê a cobra?
Kilaim começou a rir abertamente.
— A-ha, já sei — exclamou Claire ao ver a reação dele. — Foi algum truque de mágica, pode ir contando! Você estava querendo me enganar! Pronto, descobri! Pode me contar onde foi que você escondeu a cobra. Vai ver nem era de verdade!
Ela passou para as costas dele, procurando. Mas a serpente não estava lá.
— Já foi embora. Caraca, mas como que ela sumiu tão rápido...? — Claire custava a acreditar no que seus olhos haviam presenciado, e tornou a olhar Kilaim com ar de incredulidade.
— Não era uma cobra de verdade... É algum truque — ela repetiu, mas já sem tanta certeza.
— Ça va, vou contar o segredo. Ela está aí — Kilaim apontou para o galho.
— Onde? — fez Claire, olhando para tudo em derredor, menos para o galho. Depois, ergueu o rosto para o alto das árvores: e se a cobra tivesse subido em alguma delas e, de repente, pulasse em sua cabeça?
— Non, bobinha! — Ele apontou para o graveto, adivinhando-lhe os pensamentos. — Aí. Aí na sua mão.
— Ora, pare de fazer piada, Kim. — Ela olhou para o galho-com-ponta-de-lápis mais que desconfiada.
— Mas é verdade, baby! A cobra é o graveto! Ou melhor, era. Antes de eu transformá-la de volta nesse simples e inanimado pedaço de madeira. Gostou? Agora você pode pensar com muito carinho em tudo o que já lhe disse, d’accord?
Claire abriu a boca, que ficou aberta por alguns segundos, depois fechou sem emitir som algum. Estava sem palavras.
— Sérieu... — balbuciou, por fim. Ainda achava que poderia ter sido alguma ilusão de óptica, ou... ou...
— Achei que você fosse gostar de ver um pouco de Magia de verdade.
Claire revirou o graveto ainda mais. A verdade é que não havia qualquer dúvida sobre o que tinha acontecido.
— Entende, agora, do que eu estava falando? Mesmo assim, ainda não é um poder máximo, pois para isso eu precisaria de algum demôn...
— Você havia dito que não haveria demônio algum hoje. Que Leviathan não estava aqui.
— É. E ele não está. Pourquoi a pergunta?
Ela balançou a cabeça várias vezes, mas ainda olhava para os lados, espreitando pelo meio da folhagem.
— Claro que está, Kim. Senão, como você faria tal coisa?
— Está no meu DNA.
— Quoi? O que tem o seu DNA?
— Meu DNA expressa a essência do Mal.
— Ah, isso. — Ela se sentou na mesma raiz gigante da sumaúma onde tinham ficado na primeira vez ao visitar a pirâmide.
— Acredita agora?
Ela não respondeu. Ele veio e se sentou ao lado dela.
— Todo homem é capaz de fazer o Mal. Parce que todo homem já nasce com a essência do Mal dentro de si. Depois que comeram da Árvore do Conhecimento, o Homem e a Mulher começaram a se degenerar. Lembra-se de Caim? Ele já nasceu diferente. Nasceu mau, nasceu psicopata. Planejou e executou o assassinato do irmão, sem remorso. Assim é com todo ser humano, em maior ou menor grau. Mas, no meu caso, isso vai um pouco além. Não é apenas a essência do Mal que carrego comigo. Eu tenho o DNA de Lucipher. Por isso, também herdei parte dos poderes dele.
Dessa vez, Claire encarou a afirmação de outro modo.
— O que quer dizer?
— Ué, você não viu?
— Vi, mas, alors, significa que você fez isso... por você mesmo?! Sem auxílio de nenhum demônio?
— Da — ele respondeu simplesmente.
— Como é que pode?
— O DNA do meu pai alterou o meu. Eu já disse isso antes, que tenho alterações genéticas. São essas diferenças específicas de código genético que me possibilitam fazer coisas que uma pessoa normal não pode. A energia vital individual é, em parte, claro, determinada pelo código genético. A minha é diferente por causa disso, e eu aprendi a manipulá-la, depois da abertura dos chakras.
— Quer dizer que você pode fazer isso sempre, a hora que quiser.
— Mais ou menos. É um talento nato, mas precisei aprender a desenvolvê-lo.
— Quer dizer que todos os satanistas podem fazer coisas assim? — E ela se corrigiu logo: — Bem, é claro que eles podem, eu vi. Pergunta boba.
— Não é boba. A resposta é non. Non podem fazer. Não dessa forma, pois dessa... — Kilaim ia explicar, mas achou melhor ficar quieto. Ele já tinha falado bastante sobre suas condições ao contar que atravessara o Portal.
Havia momentos em que o rapaz desejava compartilhar um pouco mais de sua vida com Claire, mas, às vezes — na maior parte —, o objetivo era deixá-la suscetível ao que ele dizia, e não apavorada. Como agora. Então, apenas finalizou:
— Só alguns podem alterar a matéria dessa forma.
— Alteração da matéria... Foi isso o que aconteceu, alors?
— Sim. A Magia Negra pressupõe o poder de transmutação da matéria. Os sábios e feiticeiros do Egito, os magos versados em ciências ocultas, transmutaram suas varas em serpentes, como Moisés havia feito. Elas foram “criadas”; eram seres vivos, orgânicos. Sinal que esses encantadores do faraó tinham o poder para fazer isso. E eu também! Achou legal? Só que há muito mais. Naquela época, a Magia estava engatinhando. Hoje, há muito mais poder à disposição. Eu poderia me transformar... Quer dizer...
“Xi”.
Claire ficou olhando para Kilaim com atenção.
— Se transformar? Transformar em quoi, Kim?
— Esquece, Claire. Para isso eu precisaria realmente do poder e da energia de um demônio.
— Mas como assim? Se transformar?
Ele suspirou. Não tinha como voltar atrás.
— Sabe as lendas de lobisomens? Algo do tipo. Mas não como uma maldição da qual você não pode se livrar, e sim como demonstração de poder.
— Ah. Tá. Você vira um lobisomem. — Olhos bem abertos, prontos para detectar qualquer sinal mostrando que aquilo era... era... O quê? Qualquer coisa, menos real.
— Não quero dizer “lobisomem” como o personagem que conhecemos das lendas. Estou só me referindo a criaturas muito poderosas.
— Kim. Você não vira um lobisomem. Já tivemos lua cheia e nada disso aconteceu.
— Já disse. Funciona como demonstração de poder. E, hipoteticamente, se você quisesse eliminar alguém, um inimigo, seria bastante seguro. A pessoa seria dilacerada por um animal e ponto-final. Não sobra rastro. Isso era bem interessante nos tempos mais antigos. Hoje, de fato, há meios melhores de matar alguém.
— Eu não sou boba. Isso só existe em filme. E daqueles bem ruins! — Claire estava ficando aflita.
— É somente alteração da matéria, mais uma vez. Energia e massa estão intimamente associadas. A famosa fórmula de Einstein, E=m.c², mostra essa proporcionalidade, isto é, determina a relação da transformação da massa de um objeto em energia e vice-versa. Sendo assim, a energia de um demônio... Ou melhor, não importam esses detalhes. Basta você saber que um demônio poderia manipular sua energia de maneira tal que acrescentasse “massa” à minha estrutura física. Isso cria a transformação. É chamada licantropia.
— E isso já aconteceu com você?
Ele deu de ombros levemente, assentindo.
— Todos os da seita podem fazer isso?
— Non. Alguns.
— Se nem todos podem alterar a matéria... Pourquoi você pode? E se nem todos podem se transformar, pourquoi você pode?!
— Ah, Claire, Claire, você é muito xereta, n’est-ce pas? Já vimos o bastante por hoje. Deixemos essa pergunta para outra hora.
Mas isso era algo que ele nunca iria responder. Nunca.
Num misto de susto e vontade de oferecer-lhe uma proteção que, ela sabia, não poderia dar, Claire abraçou Kilaim com muita força. Toda a força de seus braços.
— Estamos juntos...
O abraço e as palavras foram muito fortes, carregadas de emoção e calor humano. Kilaim, pego de surpresa, abraçou-a de volta. Mas sentia agora um incômodo na garganta.
— Merci, Claire. Se houvéssemos nos conhecido antes... Quer dizer, não antes, parce que minha vida sempre esteve envolvida com o Ocultismo, mas... Se eu não fosse nada disso que sou... Seria melhor.
— O que temos agora é o melhor. Você é o melhor, e eu te amo. Estou junto de você.
Ela ergueu o rosto, tocando de leve a boca na dele, apertando seu pescoço com os braços. Depois ficaram abraçados por algum tempo, aproveitando o aconchego, ouvindo o ruído da Floresta.
* * *
14
Éléments
Era noite de sexta. Noite do jantar dançante. Claire havia esperado com animação pela data, uma espécie de prévia do Carnaval, e insistira com Kilaim que deveriam treinar um pouco para a ocasião. Ele era péssimo dançarino. Não tinha ginga nem ritmo, era mesmo um Boneco de Olinda, com braços desajeitados, todo travado, balançando de um lado para o outro.
— Claire. Dança não é para mim. Nunca vou ser bom nisso nem em esportes — ele sempre dizia.
— Tudo bem. Mas faça só um esforcinho. Por mim, vai... — E fazia beicinho. — Lembra quando fomos dançar em São Paulo?
— Lembro.
— E não foi bom?
— Foi.
— Alors, vamos aproveitar o jantar dançante.
— Nein. — Ele ria, fazendo pirraça.
— Será nosso último fim de semana aqui no hotel. Não acha que a estadia na Amazônia tem que fechar com chave de ouro?
— Isso não é chave de ouro. Alors... Nein!
Claire dava risada e resolvia que a melhor maneira de convencê-lo era por meio de muitos beijinhos e a promessa de infindáveis cafunés e carinhos. Surtia efeito. Algumas vezes o convencera a ensaiar no quarto ou até mesmo nos passeios solitários pela Floresta. Kilaim estava aprendendo. Volta e meia eram flagrados e, sabendo do motivo dos ensaios, outros turistas também incentivavam.
— Como é que você vai deixar uma moça linda como essa sem par para o baile? — havia dito uma das idosas alemãs que adorava Claire, porque a garota sempre corria para abrir as portas para ela com um sorriso.
A garota britânica era a mais chata nesse aspecto, verificou Kilaim, porque também gostava de dançar, e dizia que Claire “tinha mais é que insistir mesmo”.
— Estamos nessa juntos, parceiro! — havia dito o namorado da moça que, aparentemente, simpatizava com Kilaim, pois sempre conversavam sobre computadores e tecnologia.
O britânico se formara em Stanford. Era engenheiro aeronáutico e tinha pós-graduação no MIT. Uma formação de belo calibre. Para todos os efeitos, Kilaim terminava a faculdade de medicina, ponto-final. Ninguém o questionava, pois seu tamanho convencia que já tinha idade para isso. Computação era um hobby. Ponto-final. Qualquer pergunta além recebia outras respostas que eram pura invenção. Não precisava dar a ficha completa para um estranho, ainda que apreciasse a conversa.
Convencido da necessidade de ir ao baile, Kilaim até que se esforçou. À noite, os hóspedes foram para o salão de festas, que estava todo enfeitado com flores e luminárias de papel que pendiam do teto. Uma mesa fora arrumada com farto buffet, incluindo o famoso tacacá no tucupi. Claire ficou entusiasmada com mais uma oportunidade de experimentar a comida local, mas Kilaim até estremeceu ao ver de que se tratava e fez uma careta.
— Claire. Não sei, não, hã? — disse ele, olhando para dentro de uma das terrinas de tacacá.
— Mas é tão comum por aqui, e não experimentamos ainda.
— Esse caldinho fino e amarelo não me apetece, de jeito nenhum. Sabia que isso é servido com goma de tapioca? Seja lá o que for...
— Você nem provou, Kim!
— Mas estou vendo o aspecto.
— Bobo. Eu quero experimentar de tudo.
Ela se jogou corajosamente na experiência gastronômica, para temor de Kilaim, que a olhava, incrédulo, como quem diz: “Vai mesmo tomar isso?”.
Um garçon de prontidão servia o tacacá numa cuia na seguinte sequência: duas colheres de sopa de tucupi, uma concha de goma, uma concha de tucupi, algumas folhas de jambu e cinco camarões, com sal e pimenta a gosto do freguês.
Sorridente e animada, Claire começou a perguntar, em inglês, de que se tratava e como era feito o prato; e o garçon, muito educado, foi falando. O que ela não entendia, Kilaim se incumbia de explicar. O caldo amarelado de mandioca era o tucupi. Para virar tacacá no tucupi, o caldo é bem temperado com sal, cebola, alho, coentro do norte, pimenta de cheiro e cebolinha; por último, vai a goma da tapioca — ou fécula de mandioca —, com camarão seco e maços de jambu.
Deve-se tomar muito quente; é o máximo da tradição. A qualquer hora do dia ou da noite, independentemente da temperatura e do clima, chovendo ou debaixo de sol escaldante, toma-se o tacacá no tucupi direto das tacacazeiras. Algo tão tradicional como o chimarrão é para os gaúchos.
Claire achou graça da palavra e riu, querendo saber se era alguma árvore local, onde as pessoas deveriam se sentar à sombra para saborear o caldo. Foi a vez de o garçon dar risada e explicar que a vendedora de tacacá, ou tacacazeira, é uma figura típica das ruas das cidades amazônicas. Muitas vezes elas têm um ponto fixo onde permanecem por décadas, passando-o de geração em geração, das avós para as mães e netas, mantendo clientela cativa.
Como a maneira tradicional de tomar o tacacá é em via pública, na cidade, era interessante poder apreciá-lo ali no hotel. Claire tomou o seu e insistia que era bom, que Kilaim deveria provar. Um pouco a contragosto, ele deixou o garçon servir uma cuia para ele, não muito cheia. O gosto não era ruim, talvez apimentado demais. Mas tomou.
Depois, zanzando ao redor da mesa, eles se refestelaram com outras comidas típicas já conhecidas, frutas e aperitivos, até que o conjunto que ia tocar ao vivo desse início ao show. O grupo mostrou a que veio: um som agradável, eclético, que agradava a todos os gostos.
Até de madrugada, tocaram e cantaram um pouco de tudo: axé, forró, lambada, funk, samba de gafieira (muito difícil), pagode, salsa, soltinho e, depois, na hora da saudade para os maiores de 50, teve bolero, rumba, tango (muito mal dançado), um pouco de rock’n’roll (também mal dançado) e até uma valsa.
Apesar da dureza de movimentos, os ensaios tinham surtido algum efeito.
— Chibata no balde, que eu estou muito bom nesse negócio! — exclamava Kilaim contente, ao ver que não era mais um Boneco de Olinda. Bem, talvez um Boneco de Olinda com pós-graduação em dança de salão.
— Vamos arrasar! — Claire dava um gritinho.
— Lavando a burrinha! — Kilaim usava expressões amazonenses para ajudar no “clima”. — Por sinal, você está linda hoje, amore!
Referia-se ao vestido curto e estampado, à sandália de salto, à maquiagem que destacava seus olhos incríveis e ao perfume. Tudo adquirido nas melhores lojas de Manaus, antes de virem para o Black Amazon.
— Merci beaucoup.
Kilaim logo viu que estava mesmo se divertindo, principalmente por ter Claire nos braços, o corpo dela de encontro ao seu, abraçando-o, o cabelo caindo no rosto, os olhos grudados nos dele, sugestivos. Ele resolveu que iria dar um baile nela e realmente fez seu papel, conseguindo conduzir quase todas as músicas, puxando-a para si com mãos firmes e levando-a com alguma graça pelo salão.
O suor escorria pelas têmporas dos dois jovens, as costas estavam empapadas e a roupa deixava desprender o aroma de perfume. Num dos intervalos, entre as sobremesas, eles pediram os coquetéis doces de frutas que Claire adorava, e Kilaim bebeu caipirinha, seu drinque favorito, feito de limão amassado com açúcar e misturado com bastante gelo e cachaça, a aguardente nacional. A cachaça podia ser substituída por vodca ou saquê. Ele preferia a caipirinha de vodca, e às vezes pedia misturada com lima-da-pérsia, kiwi ou morangos. A caipirinha era o coquetel nacional e agradava aos mais seletos paladares, incluindo o dele.
O fato é que a mistura da bebida e dança abalroou os dois como uma chuva interminável de desejo, incontrolável, como uma onda do mar que vem e quebra na praia sem que ninguém possa impedi-la.
Entre beijos cada vez mais ousados, de repente acharam que era hora de ir para outro lugar. Alguns dos estrangeiros olhavam com certo ar de pudor, mas não os poucos brasileiros.
— Danem-se! — exclamou Kilaim, que, na penumbra ao lado de uma das janelas, deslizou a mão debaixo do vestido curto de Claire.
— Allez... Na nossa cabana teremos a noite toda — ela balbuciava, rindo com a boca encostada no pescoço dele.
Kilaim avançou mais uma vez.
— Você nunca quis fazer amor num lugar totalmente maluco? — perguntou ele.
Ela apoiou as mãos no cós da calça dele.
— Talvez.
— Da. Alors, dessa vez, não vai ser na cabana. Onde?
— Não sei. — Claire ria de novo, a cabeça voando, leve. Tudo estava muito engraçado.
— Ninguém está reparando, estão todos dançando... — Sem conseguir se controlar, ele empurrava o corpo dela, chegando até o canto da parede.
— Para, Kim... — Um “para” que mais queria dizer “vem”.
— Deixe de puritanismos.
Involuntariamente, ela se inclinava na direção dele.
— Kim, sério, não aqui! — Ofegava e ria.
— Alors, onde?
— No cais principal?... Num dos barcos? Ou melhor, na piscina, na piscina!
Kilaim não achou a ideia ruim.
— Primeiro, na sumaúma.
— Mas Leviathan...
— Leviathan com certeza está em São Paulo, na Grécia, no inferno...
Eles saíram correndo, de mãos dadas, e fizeram amor selvagem debaixo da sumaúma, onde tanto tinham conversado; ele a empurrou com força contra a poderosa árvore, o vestido foi puxado com tanta urgência que deixou um arranhão comprido na lateral da perna dela. Depois ele a ergueu do chão como quem ergue um vaso de flores. Claire sentia-se arrebatada pela força, pelo modo como a desejava.
A piscina acabou sendo o último destino de três. Mergulharam, sentindo todo o frescor da água; ela com o vestido meio caído pelo ombro, ele só com a roupa de baixo. Por fim, exaustos, boiavam de costas, e os seios de Claire apareciam por baixo do tecido fino.
Quando saíram da água, deitaram-se estendidos nas cadeiras reclináveis que colocaram lado a lado sem deixar espaço no meio, e ficaram observando o céu estrelado. Kilaim contava histórias antigas, lendas dos celtas, dos babilônios, dos egípcios. Segurava a mão dela e, de vez em quando, inclinava-se sobre seu corpo para beijá-la.
Quando o sol ameaçou surgir no horizonte, a luz alaranjada e roxa fazendo desaparecer as estrelas e sua lânguida fosforescência, eles foram para a sua Casa de Tarzan. Caíram na cama sem roupa, abraçados, saciados.
Aquela foi a noite mais mágica desde o início da viagem.
* * *
No sábado, Kilaim estava passando mal por causa do tacacá, então Claire lhe fez companhia. Os dois ficaram boa parte do dia na cabana, pois o banheiro precisava ser usado com frequência. O rapaz, um pouco pálido, alimentou-se apenas com purê de batata, peixe grelhado com tempero leve e bananas. Nunca ficava doente. Aquilo foi uma verdadeira tortura, e remédios para dor não funcionavam convenientemente.
Apesar de tudo, foi bom descansar e apenas ler uma revista e assistir à televisão depois de tantos dias indo para cima e para baixo.
Claire assistiu aos capítulos de Salve Jorge, que tinha como núcleos centrais o Complexo do Alemão, favela do Rio de Janeiro, a Capadócia, região da Turquia onde São Jorge nasceu, e a boate onde contrabandistas brasileiros levavam garotas como escravas, para as entregarem à prostituição.
Mesmo que a moça não entendesse muita coisa da língua, acompanhava a história e, se tinha muita dúvida, perguntava a Kilaim o que estava acontecendo. Era uma boa forma de se acostumar ao português. Admirou a dança dos dervixes rodopiantes com outros olhos.
No domingo, o rapaz estava novo em folha. Normalmente se recuperava rápido de problemas de saúde quando os tinha. Animado por estar bem, ele concordou em ver os botos cor-de-rosa mais uma vez. Claire estava querendo se despedir deles, nadar junto e alimentá-los mais uma vez. Então o casal juntou-se a um grupo recém-chegado e navegaram até aquele mesmo píer, onde tinham estado da primeira vez, com o Juca. Claire não disse nada, mas o guide fazia falta; era bem-humorado, brincava com todos e tinha bastante conhecimento.
Na volta, ela ficou olhando a paisagem e a água escura do Rio Negro. Tinha sido maravilhoso estar ali!
No resto do domingo, não fizeram nada, exceto ficar na piscina, jogar vôlei com outros hóspedes (Claire) e conversar. De tardezinha, eles estavam tomando sorvete, sentados debaixo do guarda-sol.
— Deixe-me falar sobre os príncipes.
— Quoi? — Claire indagou.
— Até agora só lhe contei sobre Leviathan. Quero falar sobre os outros grandes príncipes.
— Mas você quer me contar sobre os príncipes agora?
Kilaim deu um sorriso aberto e balançou seguidamente a cabeça, e ela o achou tão fofo que teve de sorrir de volta.
— Ça va. — Ela colocou na boca mais um pouco de sorvete. — Fale dos tais príncipes, allez, fale!
— Você vai prestar atenção?
— Pode falar, estou ouvindo.
— Uma primeira colocação a fazer é que eles estão associados aos Elementos. Leviathan é...
— Água, já sei. E se a água é tão importante no planeta, pourquoi o próprio Lucipher não é água?
— Ah, aí é que está. Vamos deixar Lucipher para o final — arrematou Kilaim. E deu sequência: — Belzebu é Fogo. Ele é o primeiro grande príncipe. Lembra quando eu disse que Leviathan carregava as forças por meio da Floresta e da água? Belzebu se alimenta do fogo. O fogo por si só gera energia térmica e luminosa; um grande incêndio gera muito mais energia. Um vulcão em erupção, nem se fale. Parte da energia de Belzebu vem dos vulcões. Por sinal, muitas culturas antigas, em vários pontos do mundo, faziam dos vulcões o lugar ideal para sacrifícios humanos. Isso também acontecia aqui, nas Américas, na era pré-colombiana. O vulcão Masaya, por exemplo, na Nicarágua, era chamado pelos nativos de “Boca do Inferno”, uma verdadeira passagem para o Abismo. Ali se sacrificavam crianças para apaziguar os deuses. Da mesma forma, “A Donzela” é uma múmia que faz parte de uma descoberta arqueológica chamada “Crianças de Llullaillaco”, sacrificadas no vulcão de mesmo nome, na fronteira do Chile com a Argentina, a mais de 6.700 metros de altitude. E temos os Incas, é claro. Havia vários tipos de rituais, chamados capaccocha: os que eram realizados em templos, como o Templo do Sol, mas também nos vulcões, como o Misti e o Ampato, que ficam no Peru. Geralmente, sacrificavam-se crianças. Durante seis meses elas eram submetidas a uma alimentação específica, depois caminhavam de Cuzco até a base do vulcão, na companhia de suas mães e outros encarregados do ritual. A múmia de uma criança foi encontrada em Ampato, sabia? Uma menina em torno de 12 anos que teria sido usada em um ritual de oferenda aos deuses, no século XV. O que impressiona nessa múmia é o estado de conservação, em função da altitude, quase 6.300 metros, e da temperatura local de 20 graus negativos.
— Realmente impressionante. Mas se o demônio retira sua energia diretamente do fogo, pourquoi sacrifícios humanos?
— Astaroth, do qual nos lembramos ao falar de Salomão — fez Kilaim, sem ater-se à pergunta dela, que, por sinal, fazia muito sentido —, é o segundo grande príncipe. Ele é o Elemento Terra, o que significa que retira sua energia do próprio planeta. A Terra tem várias fontes de energia, embora nem todas sejam úteis aos demônios. Astaroth e os de sua casta se alimentam da energia geotérmica produzida pelo calor que vem do interior da Terra. O núcleo da Terra é formado, em sua maior parte, por uma esfera de ferro líquido com temperaturas superiores a 4.000ºC, e pressão equivalente à de 1,3 milhão de atmosferas. Sob essas condições, o ferro se torna tão líquido quanto a água dos oceanos. Somente no centro dessa esfera, onde as temperaturas chegam a 6.000 ºC e as pressões são ainda maiores é que o ferro volta a se solidificar. Embora a energia geotermal seja importante, Astaroth também utiliza a energia mineral de cada solo, pois cada solo tem uma composição diferente.
— Ah. Mas o que você quer dizer com energia mineral? Algo do tipo do carvão mineral que é usado para gerar eletricidade?
— Warten Sie, você não entendeu. Deixe-me terminar o raciocínio. Lembra-se da câmara do rei na grande pirâmide de Quéops? Existe muito cristal de quartzo ali. Em Stonehenge também, no solo.
— Mas quartzo gera energia? Pensei que a energia mineral da qual você fala...
— Non, non — ele interrompeu. — Falo de pedras preciosas ou semipreciosas. O quartzo é um dos minerais mais abundantes na Terra, e o quartzo incolor é chamado cristal de rocha. Não é por acaso que muitos acreditam que as pedras preciosas são fontes naturais de energização, capazes de equilibrar nossos campos energéticos e funcionar como armazenadoras e captadoras naturais, já que recebem, transmitem e transmutam energia. Os relatos do uso de pedras como tratamento vêm desde a Antiguidade. Os antigos usavam os cristais para focar e canalizar energias de modo individual ou sideral. Nesse último caso, por meio dos monumentos de pedra. Em Stonehenge, como você aprendeu, existe uma imensa concentração de energia, embora essa taxa não seja constante. Os níveis também dependem de vários outros fatores, como a posição da Terra em relação ao sol, à lua e a outros planetas. As flutuações energéticas acontecem e a concentração é maior em algumas datas; como no solstício de inverno, a noite mais longa do ano. Nessa data, abre-se ali um Portal dimensional muito poderoso. Por ele passaram as pedras que formaram o Círculo Mágico.
— As pedras de Stonehenge atravessaram o Portal?! — Claire se espantou. — Kim...
— Oui. Por meio de Magia — o jovem disse simplesmente. — Se demônios podem atravessar Portais e até pessoas, pourquoi não as pedras? Elas precisavam ser transportadas para o local exato de alguma forma. Lembre-se de que Myrddin tinha muitos poderes. Tem ideia da distância da pedreira mais próxima? Meros 400 quilômetros.
Claire ficou olhando para Kilaim com olhos parados, sem saber o que dizer, refletindo, avaliando se acreditava ou não nessa história de menires passando por Portais dimensionais por meio de encantamentos.
— O mesmo aconteceu em Avebury. Lá também existem Círculos Mágicos de pedras que, embora menos explorados turisticamente, são bem maiores, ainda que algumas das pedras tenham desaparecido. Outras foram destruídas no século XVIII, porque a população local achava que antigamente ali eram realizados sacrifícios pagãos, não estavam errados, e que a energia do lugar era “ruim”.
— Mas... Como você sabe que as pedras dos Círculos Mágicos foram trazidas assim? Como tem certeza?
— As Artes Ocultas não podem ser explicadas com base nas leis da Física. — Foi tudo o que ele respondeu.
— Mas isso já é demais, n’est-ce pas?
— O Apocalipse todo é demais, não acha? E tudo é fruto do mesmo poder. Outra maneira de aumentar o potencial energético da Terra é quando ela se “inquieta”, por meio de terremotos. Os tsunâmis têm o mesmo efeito. É interesse das entidades, às vezes, provocar esses eventos, pois, como eu já disse, eles têm poder sobre os elementos. — Kilaim deixou a frase morrer no ar. E antes que Claire falasse ou perguntasse qualquer coisa, ele continuou: — Já o elemento Ar é diferente. Asmodeo é Ar, o terceiro grande príncipe. Por sinal, fazendo um parêntesis, Abadom, citado na sua Bíblia, vem da mesma hierarquia. Também é Ar.
— Abadom. Apolion — lembrou Claire.
— Em hebraico significa destruição. O anjo do Abismo que irá liderar o exército de gafanhotos. Embora a energia eólica possa funcionar como fonte de energia para os demônios do ar, por meio de ciclones, tornados ou um furacão tropical, a recarga da energia de Asmodeo está ligada aos campos magnéticos da própria Terra. Especialmente nos centros geodésicos das placas tectônicas.
— O que é centro geodésico?
— Um centro geodésico é exatamente o centro de uma região geográfica medida. Lembra-se da Pangeia? Depois do afastamento das placas, formaram-se os continentes que conhecemos hoje. Aqui no Brasil, por exemplo, fica o centro geodésico da América do Sul.
— É mesmo?
— Em Cuiabá, no Mato Grosso. O lugar exato está numa praça que antes era conhecida como Campo d’Ourique, lugar onde se puniam escravos e eram realizadas as cavalhadas e touradas.
Kilaim tinha muitos dados sobre tantas coisas, e Claire não achava possível que fosse tudo uma grande divagação. Claro que deveria haver fundamento. Isso incomodava um pouco, mas também despertava sua curiosidade, de modo que continuou ouvindo com atenção.
— A origem do campo magnético terrestre ainda é incerta — continuou o rapaz —, mas a ciência admite que seja decorrente das intensas correntes elétricas que circulam no interior da Terra. Apesar de conhecidas pelos chineses e hindus há milênios, o primeiro ocidental a teorizar as linhas energéticas que passam pela superfície do planeta foi Pitágoras. Entretanto, o assunto só se “popularizou” no começo do século XX, quando tentavam encontrar resposta para a imensa quantidade de eventos “inexplicáveis” ao redor do mundo, incluindo o Triângulo das Bermudas, o Lago Angikuni, a Anomalia do Atlântico Sul e outras regiões de fenômenos magnéticos estranhos. Teoricamente, haveria relação com esses fluxos de energia. Mesmo assim, muitos ridicularizaram a existência deles.
— Mas qual é o embasamento?
— Quando mencionei as pirâmides e os Círculos de Pedra, disse que a energia terrestre não está “parada”, exatamente como a energia vital no corpo humano. A energia magnética da Terra corre por uma variedade de caminhos, determinados matematicamente e geometricamente: as Linhas de Ley. Além dela, a Terra produz energia telúrica, e quando elas confluem, formam nodos muito energéticos.
— Oui, eu me lembro. Mas...?Como você pode afirmar, com plena certeza, que o Triângulo das Bermudas é um ponto desses?
Ela olhou para ele, os olhos cheios de dúvidas, e ele assentiu.
— Ça va. Vou te explicar melhor. Olha só. Já ouviu falar dos “Sólidos de Platão”?
— Talvez em alguma aula longínqua de geometria...
— São apenas cinco: trata-se de poliedros convexos cujas faces são polígonos regulares. Eles foram associados aos elementos, que também são cinco.
— Não eram quatro?
— Calma, por acaso já falei de Lucipher? Contei dos quatro grandes príncipes, mas Lucipher também se associa a um elemento, o Quinto Elemento. Alors, os cinco sólidos de Platão são o tetraedro, o cubo, o octaedro o dodecaedro e o icosaedro, classificados de acordo com o número de faces, respectivamente 4, 6, 8, 12 e 20. Esses sólidos platônicos, ou “corpos cósmicos”, foram nomes dados depois que Platão os empregou para explicar a Natureza, em um texto de seu diálogo filosófico “Timeu”, associando cada elemento a um dos sólidos. Ele dizia haver uma ligação entre a estrutura geométrica dos componentes básicos da matéria, os átomos, descritos bem depois, e os sólidos descritos. Quer dizer, na Grécia Antiga, acreditava-se que a matéria fosse feita dessas estruturas. Mas não se limitava a isso. Para os antigos, a matéria também tinha seu lado místico. Por isso, os sólidos foram associados aos elementos, afinal, deles derivava a vida. O fogo é o tetraedro; a Terra é o cubo; ar, o octaedro; água, icosaedro. E havia um quinto elemento, que Platão associa ao dodecaedro e que seria a própria essência do Universo, aquilo com que Deus “organizou todas as constelações”.
— É interessante, mas, para mim, tal associação não faz sentido.
— É parce que você não entende de matemática e geometria. Na porta da Academia de Platão estava escrito “Não entre aqui ninguém que não seja geométra”, e na Escola Pitagórica dizia “Tudo são números”. Esses são apenas dois exemplos de grandes filósofos e matemáticos que dedicaram a vida ao estudo da geometria. As diversas numerologias surgiram, alors, como reflexo de realidades outras que vão muito além dos próprios números. Na numerologia pitagórica, 600 anos a.C., os ritmos cósmicos manifestavam-se por relações numéricas, e a geometria seria uma ciência oculta, uma espécie de assinatura de Deus a ser descoberta por trás das relações matemáticas. Posteriormente, Kepler associou a geometria à Astronomia, tentando associar os sólidos platônicos para entender a posição dos planetas em relação ao sol e suas órbitas, pois, para ele, um Universo perfeito deveria incorporar aquela geometria elementar. Mais tarde ainda, notou-se que a arquitetura empregada em muitos projetos arquitetônicos, em diversas épocas da História, seguia princípios matemáticos, como a lei áurea, por meio do Phi. E até mesmo a natureza orgânica e inorgânica era descrita, muitas vezes, sob princípios geométricos. Durante a Idade Média, o modelo pitagórico surgiu em textos alquímicos: era chamado de “Esfera Celestial”. E não termina por aí: em meteorologia, destacam-se cada vez mais os modelos do fluxo atmosférico que usam malhas baseadas em um icosaedro, em vez dos que usam as coordenadas naturais de longitude e latitude, além disso...
— Espera, Kim! — Claire interrompeu. — Não se desvie do assunto, ou eu vou me perder. Volte aos sólidos de Platão e conclua seu raciocínio.
— Mas tudo isso tem a ver com os sólidos?
Ela fez uma cara de “atenha-se ao principal”.
— Da. Foram as Escolas Pitagóricas que reuniram todos os sólidos de Platão dentro de uma única esfera, e o resultado foi um mapa de linhas por toda essa esfera, incluindo 120 grandes círculos e 4.862 pontos. A projeção do modelo esférico pitagórico levou à demarcação de pontos específicos na superfície do planeta, algo como que um reflexo do infinito sobre o finito. Depois posso lhe mostrar uma figura. É um mapa realmente impressionante!
— Mas pourquoi teriam feito isso? De onde surgiu essa ideia, essa conexão?
— Mis-té-rio — falou Kilaim significativamente, um sorriso brincando nos lábios diante da confusão dela. — Você queria que eu fosse sucinto. Apenas tenha em mente que boa parte do conhecimento humano veio por meio das entidades.
— Não entendi nada. Você disse que as linhas da esfera resultaram num mapa? Trata-se de um “mapa” de quê?
— De que eu estava falando naquele momento?
— Qual momento? Agora?
— Non. Aquele dia. A primeira vez em que mencionei os fluxos de energia.
— Ué. Das pirâmides, de Stonehenge.
— Da, mas falei disso pourquoi?
— Você estava falando nos Portais. As tais linhas se conectavam e era como se o planeta tivesse chakras, alguma coisa assim...
Kilaim fez um ar de quem diz: “Alors, é isso, tolinha”.
— É isso quoi?
— Adivinhe. O modelo pitagórico é um reflexo das Linhas de Ley, principalmente, e, portanto, dos chakras energéticos da própria Terra.
Claire ainda estava com cara de quem viaja.
— É um mapa de Portais, Claire! De onde poderiam ser abertos os Portais. É por esse motivo que posso dizer, com certeza, que o Triângulo das Bermudas faz parte do mapa como um ponto energético importante. Não que Pitágoras chegasse a esse nível de entendimento, claro! Mas hoje, ao estudar essas linhas energéticas, notam-se “coincidências” que estão além do entendimento. Não poderia ser um fato aleatório que elas passem sobre grandes monumentos antigos, centros geodésicos, picos de montanhas e nascentes de grandes cursos d’água, além de locais onde ocorreram, ou ocorrem, eventos “inexplicáveis”. Já nos cruzamentos principais das linhas há cidades importantes, como Roma, Atenas, Delfos, Jerusalém, Constantinopla, Meca e outras. Cidades que se desenvolveram ao redor de oráculos, círculos de pedra, templos importantes ou monumentos antigos. E fica a indagação: pourquoi? O que o fluxo das linhas energéticas da Terra e seu cruzamento poderiam ter a ver com uma suposta comunicação com os “deuses”, centros religiosos ou a ocorrência de eventos estranhos?
— Hãã...?
— No final do século XX, um pesquisador localizou vários pontos críticos onde ocorria o maior número de acidentes ou desaparecimentos de barcos e aviões no planeta. Foi resultado de uma extensa e minuciosa compilação de relatórios da Marinha de vários países. Ao comparar esses pontos com o modelo esférico de Platão/Pitágoras, “coincidentemente”, ele chegou aos pontos principais do icosaedro projetado no planeta. Acha que é coincidência?
— Acho que non... — Ela estava sendo sincera.
— Uma maneira de fazer evoluir esse mapa de linhas e nodos foi cruzar, de maneira sistemática, outros pontos, obtendo figuras piramidais ao redor de todo o planeta. Essas formas piramidais explicam caminhos que as aves migratórias seguem, marcam locais sagrados ou pontos onde se garantem ter havido a visão de “UFOs” e por aí vai.
— Ora. UFOs não existem.
Kilaim ia falar alguma coisa, mas se calou. Percebendo, Claire deu um cutucão nele.
— Fale, Kim, s’il vous plaît. Você que quis falar, eu estava aqui, tomando sorvete no sossego. Você que começou, agora vá em frente.
— UFOs foram acidentes de percurso... — Um sorriso esboçou-se mais uma vez nos lábios dele. — Não era para eles terem sido vistos.
— Eles quem?
— UFOs são naves. Pois é.
— E daí?
— Existem naves, eu lhe disse.
— Em outras dimensões, não aqui. Meios de transporte. Como as tais “Carruagens de fogo” que você acha na sua Bíblia.
Kilaim sorriu.
— Aqui, lá. Que diferença faz? Os Portais servem para passagem, d’accord? E houve experimentos para aprender a manipular essas naves, o que não tinha nada a ver com a Humanidade. Era um artefato para uso exclusivo das entidades. Mas alguns demônios burros e incompetentes acabaram sendo vistos. Aconteceu. E, é claro, tinha que ser numa dessas regiões energéticas. — Kilaim deu uma risadinha, pensando na cara dos demônios ao serem descobertos. E completou, achando graça: — Hoje, aparecer por aí é mais uma brincadeira...
Claire mordeu o lábio superior e não perguntou mais nada.
— Pois é. Mas o mais impressionante nesse modelo esférico é o fato de que ele é muito complexo e muito extenso. Você nem faz ideia. É possível delimitar a ramificação do fluxo de energia em quadrantes cada vez menores, como se fosse uma enorme rede neuronal. Quase como um gigantesco cérebro. Não se aplica, como erroneamente alguns estudiosos acreditam, apenas à superfície do planeta. É um modelo tridimensional para nós e bem mais que tridimensional para as entidades. O modelo delas abarca inúmeros outros planos que não existem em nossa dimensão. Parce que as linhas energéticas, embora geradas pela Terra, não estão restritas aos planos do nosso planeta. Elas poderiam invadir outras dimensões. Por isso não há parâmetros geométricos terrenos para que eu possa lhe explicar tal modelo.
— Alors, poderia ter um Portal aqui mesmo? Ao meu lado? — Ela fazia ar de incredulidade.
— Oui. Com a ajuda humana, as entidades dominaram o mundo. E o fazem caminhando por essa extensa rede energética que foi dominada pela abertura dos Portais, cada vez em maior número. Cada vez maiores. Para dizer o mínimo, se bem manipulada pelos detentores da Sombra, energia significa abertura de Portais; significa caminhos de demônios sobre o planeta. Parce que as linhas energéticas, particularmente as Linhas de Ley, têm poder sobrenatural.
— Mas quem estabeleceu esses fluxos de energia foi Dieu.
— Mas os demônios fizeram uso deles por meio de um conhecimento que já tinham, de modo a estabelecer pontos de contato com as dimensões do Abismo. Por isso esses locais são propícios para evocar poderes demoníacos e desenvolver capacidades mágicas. Poderes da Alta Magia. O que acontecia antigamente é que, pelo fato de serem poucos os Portais abertos, sua conjuntura específica acabou chamando a atenção. Hoje, porém, não há como determinar como flui essa rede de poder.
Claire absorveu a informação. Não deixava de ser mesmo impressionante.
— Well, voltando aos elementos e aos príncipes, por fim, gostaria de lembrá-la da energia nuclear — Kilaim se preparava para finalizar. — Você sabia que hoje, na fronteira da Suíça com a França, existe um acelerador de partículas sem precedentes? É o Large Hadron Collider, ou LHC, o maior acelerador de partículas já construído. Seu objetivo, a princípio, seria reproduzir o Big-Bang em menor escala: uma chance inigualável para entender o Universo. Ele fica enterrado a mais de cem metros de profundidade e tem a forma de um anel com 27 quilômetros de circunferência e quase nove de diâmetro. O Conselho Europeu de Pesquisa Nuclear de Genebra colocou o acelerador em funcionamento em 2008, e a primeira colisão de hádrons, em março de 2010, gerou uma energia de sete teraeletron-volts.
— Oui, sei. — Aquela unidade de medida não dizia muita coisa a Claire, exceto que era bastante.
— O Hádron é um composto de partículas subatômicas unidas por interação forte no núcleo. Feixes de prótons ou íons pesados são acelerados em direções opostas, a altíssimas velocidades, até atingirem grande nível energético. Ao colidirem em tão elevada potência, esperava-se que os hádrons “explodissem” e daí surgiriam novas partículas, como num “mini big-bang”. A existência de várias partículas subatômicas já tinha sido discutida teoricamente, mas elas nunca foram vistas. A mais procurada era o Bóson de Higgs, chamada “partícula de Deus”, muito difícil de ser encontrada. Sobre o Bóson de Higgs estão definidas as bases do modelo padrão da Física, e é a única explicação disponível, por enquanto, sobre a questão fundamental da origem da matéria.
— O que é esse bóson? Você fala uma linguagem que não se entende!
— Também uma partícula subatômica. Só que “fantasma”, quer dizer, sem massa, feita de pura energia. No começo, logo após o Big-Bang, durante um nanosegundo, o Universo inteiro era só um emaranhado de partículas subatômicas que vagavam na velocidade da luz. Elas eram energia, portanto. Isoladas no Universo, nenhuma partícula teria massa. Se o Big-Bang de verdade fez realmente com que os bósons aparecessem vagando entre as outras partículas subatômicas, o mini big-bang dentro do LHC também faria. E fez. O bóson é uma partícula subatômica em algo que é chamado campo de Higgs. O Campo de Higgs dá massa às coisas. Se você se lembrar de que tudo é formado por moléculas, e as moléculas, por átomos cheios de partículas subatômicas, vai entender que nós todos somos feitos de partículas que não têm tamanho nem massa. Como podemos existir, alors? Os Bósons de Higgs foram os responsáveis por resolver essa equação. Eles estavam espalhados entre essas muitas outras partículas, formando um grande oceano invisível: o Campo de Higgs. O bóson “atrai” partículas, como elétrons e diversos tipos de quarks, que desaceleram e conferem ao bóson massa cada vez maior. Sem o Bóson de Higgs, os quarks, que dão origem aos prótons e nêutrons, os elétrons nunca teriam massa. Ficariam para sempre como “raios de luz”. Sem quarks e elétrons não existiriam átomos. Sem átomos, não haveria moléculas e não existiríamos nós. O Bóson de Higgs seria o responsável pela materialidade do Universo.
— Puxa, que interessante! — Claire exclamou. Mas, depois, lembrando-se da tônica, perguntou, meio mal-humorada: — E o que isso teria a ver com os demônios?
— Nossa, Claire. É por causa da grande quantidade de energia. O LHC é uma incrível fonte de energia para as entidades.
— Ah, c’est vrai! Eles não perdem tempo mesmo.
Kilaim sorriu.
— Lembrei-me do acelerador porque li uma reportagem, ainda nesses dias, dizendo que ele será desligado e reaberto em dois anos, para uma produção imensamente maior de energia. Esse é um fato. Também é fato que os demônios podem retirar a energia dos humanos e outros seres vivos; ou podem doar energia.
— Doar a quem?
— Aos seres humanos ou a outros seres vivos.
Claire ficou a imaginar o motivo de tal benevolência.
— Como os Anjos — volveu Kilaim, facilitando um pouco. — Se você bem se lembra, Jesus foi assistido pelos Anjos após o término de seu jejum de 40 dias no deserto, depois que foi tentado por Satanás. Os Anjos vieram e O serviram. Serviram de que modo? Repondo-lhe as forças.
— Não está escrito isso.
— Oui, mas depois de tudo que Ele passou em 40 dias, é claro que estava exaurido. Se não fosse assim, por que o Diabo lhe ofereceria comida? Grande tentação, non? Mas é que Ele estava fraco fisicamente. Então, os Anjos O fortaleceram; e isso não necessariamente significava trazer alimento, embora fosse possível, parce que aconteceu com o profeta Elias no deserto. Também no Getsêmani, em meio à Sua dor e tristeza antes da morte, um Anjo veio e confortava Jesus. Em outras versões da sua Bíblia, o termo é fortalecer. Quer dizer, dava-lhe parte de sua própria energia, de sua vitalidade, de sua força, para que Ele pudesse suportar tudo até o fim.
Claire assentiu, mais convencida com a argumentação.
— Lembra-se do profeta Daniel? — continuou Kilaim. — Depois do jejum de 21 dias, e detalhe: ele tinha mais de 90 anos, lhe sobrevém a visão do Anjo que chegara em resposta à sua oração. Daniel fica sem força alguma, o seu rosto perde a cor e se desfigura, ele cai desmaiado. Cachu! O efeito da presença angelical sobre Daniel foi muito poderoso. Seus companheiros simplesmente fogem, mesmo sem ter visto nada. Evaporaram! — Kilaim riu solto. — É que as entidades espirituais podem, mesmo involuntariamente, retirar energia vital do ser humano.
— Mas aí o Anjo tocou nele, e Daniel conseguiu ajoelhar-se e depois levantar-se para ouvir a palavra.
— Só que estava trôpego. Parce que o ser espiritual lhe restituiu apenas parte de sua energia. Como ele não conseguia falar, alors “uma como semelhança dos filhos dos homens”, o tocou também. Restituiu um pouco mais da energia. E Daniel enfim consegue explicar que, por causa da visão, o corpo lhe doía e não restava força alguma. Vê o que um ser espiritual de patente elevada faz? Todo aquele impacto físico não foi por causa da visão, como ele imaginou, mas em função da presença dos Anjos. Daniel é tocado a terceira vez, pelo primeiro Anjo. É provável que esse Anjo fosse Gabriel, a quem o Príncipe da Pérsia resistiu por 21 dias, até...
— Até que viesse em seu auxílio Mikhael, um dos primeiros Príncipes, o Capitão dos Exércitos Celestiais. Ao qual Daniel não viu, mas que estava lá também! — exclamou Claire contente pelo assunto mudar de rumo.
— Aliás, era provável que estivessem ali mais.
— Hum...
— Essa característica, de poder retirar ou doar energia, se manteve nos demônios. Eles tanto podem sugar energia vital quanto doá-la.
— E pourquoi a doariam?
— Experimente passar a noite toda em um ritual e ter que estar bem no dia seguinte. — Kilaim deu uma piscadela para Claire, sem se importar muito com o fato, como se não passasse de algo corriqueiro.
Mais uma vez aquela dualidade inundava o coração de Claire: como podia alguém conhecer tão a fundo as Escrituras, falar com tanta convicção e certeza sobre tantos temas bíblicos, e até sobre Cristo, os Anjos, e ainda assim servir ao Diabo? Era um contrassenso!
— Eteenpäin: já o Quinto Elemento é um pouco diferente. Representa o próprio Lucipher. E é uma fonte de energia desconhecida ao ser humano.
— O que quer dizer?
— Bem, a Física considera que o Quinto Elemento é o plasma.
— O componente líquido do sangue? Mas que bobagem!
— Non, tolinha. Quero dizer ectoplasma.
— Citoplasma? A porção da célula entre o núcleo e a membrana?
Kilaim riu gostosamente. Ele estava de muito bom humor depois da noite do jantar dançante, finalizada com muito amor.
— Vamos conversar sobre isso no jantar, que tal? Acho que você está ficando cansada — ele ironizou um pouquinho. — Ou melhor. Vamos deixar tuuudo isso de lado. Não é tão importante.
* * *
15
résidentiel neuf
Depois que deixaram o Amazon Black Tower Hotel, longe da Amazônia e de um dos principais ninhos de Leviathan, Kilaim se sentiu mais livre. Ele até estranhou aquela sensação sem nome. A viagem tinha sido incrível, mas estar longe da Floresta e dos rios gigantescos trazia para o corpo e a mente uma leveza fluida, como gotas de água se espalhando por uma superfície quente, amainando seu calor. Todo o peso, ou grande parte dele, parecia, de repente, não existir. Kilaim esqueceu os tormentos e as ameaças, o acidente com o barco, a doença de Claire e todo o resto, arquivando apenas as coisas boas, que tinha sido o principal.
Falando com o senhor Arruda Paiva pelo telefone, Kilaim ficou sabendo que ainda faltavam detalhes, como a chegada do piano e o término da instalação dos móveis planejados do escritório, que se atrasaram devido a...
— Não me interessa isso — interrompeu Kilaim. — Cuide de tudo. Quanto tempo acha que ainda leva?
— Senhor Mastrangello, no máximo duas ou três semanas, há vários itens que...
— Conto com o senhor — disse Kilaim em tom firme.
E desligou.
* * *
O casal optou por passar três semanas no arquipélago de Fernando de Noronha, que pertence ao estado de Pernambuco, mergulhando com golfinhos e tartarugas, passeando de buggy, fazendo trilha, apreciando o lindíssimo amanhecer, tomando aperitivos exóticos na praia e se esticando ao sol, a tal ponto que até Kilaim começou a ficar um pouco bronzeado. Claire, que estava mesmo morena e saudável, bonita, fazia planos de continuar a se bronzear na piscina de casa.
— Estou tão feliz de nadar no Oceano Atlântico pela primeira vez! — dizia Claire vezes seguidas. Sinal que era verdade!
Fernando de Noronha tinha muita história para contar. Uma das mais interessantes falava da expedição científica que aportou ali no HMS Beagle, a fim de tentar confirmar a longitude exata do arquipélago. Charles Darwin era um dos passageiros do Beagle e tomou notas para seu livro de geologia, dizendo o seguinte:
“Toda a ilha é uma floresta, e é tão densamente interligada que exige grande esforço para passar. O cenário era muito bonito; e grandes magnólias, louros e árvores cobertas de flores delicadas deveriam ter me satisfeito. Mas eu tenho certeza que toda a grandeza dos trópicos ainda não foi vista por mim...”.
As experiências do mais famoso naturalista em Fernando de Noronha foram registradas num diário, que depois se intitulou The Voyage of the Beagle e foi publicado. Uma breve descrição da ilha também foi incluída na sua obra Geological Observations on the Volcanic Islands, com base nas observações feitas durante a viagem do HMS Beagle.
Antes de retornarem a São Paulo, Kilaim e Claire aproveitaram ainda para dar um pulo em Salvador, na Bahia, onde ficaram alguns dias. Eles queriam conhecer uma das cidades mais antigas do Continente Americano, a primeira capital colonial brasileira, fundada em 1549 pelos portugueses. Ali funcionara o maior porto de desembarque de escravos africanos e o primeiro mercado negreiro do continente. Pela grande quantidade de africanos em sua região, a Bahia, e especialmente Salvador, adotou hábitos, costumes e tradições desse povo.
Era comum se ver nas ruas as negras com seus enormes vestidos e turbantes brancos, muitos colares e anéis, chamadas mães de santo pela cultura local do candomblé. Muitos baianos não faziam nada sem antes consultar as mães e pais de terreiro.
Apesar de Kilaim já ter mencionado a Yemanjá e o candomblé, Claire ficou impressionada pelo modo como aquelas crenças estavam impregnadas na vida das pessoas e da cidade, e como havia terreiros enormes.
Kilaim estava querendo assistir a uma sessão num terreiro de quimbanda, mas Claire não se entusiasmou, especialmente ao saber que os adeptos se envolviam com pactos supostamente demoníacos, invocações de exus superiores e “trabalhos” que poderiam envolver o mal.
— Non, non. Nada disso — ela falou.
— Mas é só de noite. Não atrapalhará a visita pela cidade.
— Non.
Ela foi categórica.
Então eles foram ao Centro Histórico de Salvador, o Pelourinho. Apesar de sujo, era muito rico em monumentos dos séculos XVII a XIX, incluindo igrejas, cafés, restaurantes, lojas e edifícios em tons pastel.
— É um pedacinho meio malfadado de Europa, hein? Essa arquitetura, esse ambiente? — registrou Kilaim, não muito entusiasmado e de mãos à cintura, olhando em volta. — Na verdade, acho que os portugueses trouxeram um lixão para cá. Agora entendo melhor parce que os brasileiros gostam tanto de piadas maldosas sobre portugueses. Além de acabarem com os índios e com a Mata Atlântica, ainda trouxeram milhões de africanos para cá. Uma miscelânea digna de nota, uau, pelas labaredas do inferno! Nem tudo deu certo. É só olhar à volta... E imaginar que essa cidade se tornou Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO, em 1985. É. Não achei tudo isso... — ele encerrava a questão.
Mas Claire riu.
— Você tem que olhar para tudo isso à luz do Novo Mundo. Não é a Europa. É Salvador.
Aliás, não há muitos países no mundo com tanta miscigenação, tantas influências no seu tipo étnico, cultural, religioso e social como o Brasil. O povo brasileiro é fruto de muitas influências distintas que vieram dos europeus, dos índios e dos africanos. Levando em conta que os portugueses já tinham séculos de integração genética e cultural com os mouros do Norte da África e com judeus, percebe-se como é extenso o legado brasileiro.
O Sul do país herdou a pele clara e a tradição dos italianos, alemães, eslavos, espanhóis e holandeses que entraram maciçamente no país, nos séculos XIX e XX, em busca de um pedaço de terra. Eles desenvolveram negócios familiares, como policulturas de subsistência, comércio local, pecuária de pequeno porte, algumas indústrias e vinícolas. Os vinhos do Sul são famosos até hoje.
A região Norte, onde fica a Amazônia, gerou-se de forma totalmente diferente. A maior parte da população é de descendência indígena e portuguesa. De sua união vieram os caboclos. Já os filhos de indígenas e negros são chamados cafuzos, mas representam apenas 3% da população total e se encontram principalmente na Amazônia e no Centro-Oeste do país.
O Sudeste e o Nordeste brasileiros tiveram um fator em comum, o trabalho escravo, e, portanto, também os maiores influxos da etnia negra. Entre os séculos XVI e XIX, o tráfico português trouxe milhões de escravos para os mercados negreiros brasileiros. O Brasil foi o país que mais fez uso deles, trazendo para seu território cerca de 40% de todos os escravos traficados no Continente Americano.
No Sudeste, eles foram drenados para os latifúndios cafeeiros. Depois, com a abolição da escravatura no final do século XIX, começaram a chegar os imigrantes de etnias europeias para trabalhar nessas fazendas de café. Foi quando tomou impulso uma política de imigração seletiva que privilegiava europeus, ou “caucásicos”, numa tentativa de “branqueamento” da população. Com o tempo, essa imigração realmente transformou a região Sudeste, tornando-a área de preponderância branca.
Já no Nordeste sempre predominou a etnia negra. Os escravos trabalharam nas imensas monoculturas de cana-de-açúcar, e a mistura dos brancos e negros culminou numa maioria de mulatos e, por fim, com a continuidade da miscigenação, surgiu o que, hoje, se denomina “pardo”. Os pardos são resultado de grande mistura de cores de pele, ou seja, de brancos, negros, índios, mulatos, caboclos, cafuzos, e eles se concentram principalmente no Nordeste e no Norte do país. Claro que a mistura étnica criou um tipo físico específico que vai além da cor da pele.
O último CENSO revelou, pela primeira vez na história do Brasil, que a população negra e parda é maioria, com 51% de um total de quase 200 milhões de habitantes. Paralelamente, também são eles que sofrem a maior taxa de analfabetismo na faixa etária acima de 15 anos, os que ganham salários mais baixos e morrem mais cedo pela precariedade de suas condições de vida, da violência e do difícil acesso a cuidados de saúde.
No outro dia, Kilaim e Claire foram até Porto Seguro. Ali era o berço do Brasil, o lugar onde a História remonta ao tempo das grandes navegações portuguesas e espanholas, o ponto exato onde as 13 caravelas de Cabral aportaram depois da frustrada tentativa de encontrar um caminho alternativo para as Índias. Ali fora rezada a primeira missa, num domingo de Páscoa, em 26 de abril de 1500, quatro dias após a chegada.
Essa missa, oficiada pelos oito frades franciscanos que acompanhavam a esquadra, contou com a montagem de um altar provisório, a presença de todos os capitães e membros da tripulação — determinação de Cabral — e foi assistida pelos índios tupiniquins! Dois dias depois, estava já confeccionada uma grande cruz, que despertou a curiosidade dos índios. Cabral ordenou que os portugueses se ajoelhassem e a beijassem, querendo mostrar aos índios a reverência em relação àquele símbolo. Os portugueses acenaram aos índios, dizendo que repetissem aquele gesto, e eles o fizeram.
— Coitados... — lamuriou-se Claire, quase com lágrimas nos olhos, tocada pelo fato. — Se soubessem o que viria pela frente.
Esses e outros episódios foram descritos por Pero Vaz de Caminha na carta enviada ao rei de Portugal. Nela, ele também dava explicações sobre a então chamada Ilha de Vera Cruz e mencionava os primeiros contatos com os índios: “Foi um encontro pacífico e de estranhamento, devido à grande diferença cultural entre esses dois povos”.
— Claire. Adivinhe? — Kilaim cutucou as costelas da namorada quando eles estavam ao pé da antiga cruz que atravessara os séculos. — Aqui em Porto Seguro, local do nascimento do Brasil, é a entrada predileta de Leviathan na nação brasileira.
* * *
Pouco mais de dois meses haviam se passado quando o casal regressou a São Paulo. O período de viagens chegava ao fim, mas não a Lune de Miel. Tanto Kilaim quanto Claire estavam loucos para uma temporada mais tranquila em casa.
Quando Kilaim tirou a chave do bolso, Claire não aguentava de curiosidade, esticando-se e tentando olhar pelas janelas da sala. Foi um “Oooh!” duplo e verdadeiro do qual Kilaim participou com extrema sinceridade. Antes que Claire passasse o umbral da porta, o jovem segurou-a pela cintura:
— Espere, espere! Vamos fazer isso como manda a tradição!
Ele a segurou nos braços e a carregou, conforme um casal deve fazer ao entrar pela primeira vez em seu lar. Os dois xeretaram por todos os cantos, vibrando com cada detalhe, falando alto, rindo, correndo. Nem parecia a mesma casa de antes agora que tinha lindos móveis, cortinas, quadros, abat-jours, tapetes, espelhos. Até flores o designer Arruda Paiva havia providenciado para a chegada deles, e Claire estava extasiada. Era o começo de uma nova vida, mais brilhante do que ela jamais pudera supor.
Na alegria e entusiasmo da chegada, quase se esqueceram da enorme compra de mercado que tinham feito pouco antes e que estava no porta-malas do carro de aluguel. Eles guardaram tudo na geladeira e na despensa, ainda sem ter subido ao closet master do terceiro andar. Claire corria de um lado para o outro num faniquito, guardando, rápido, os alimentos perecíveis, ansiosa em ver como ficara o quarto deles.
Por fim, os dois subiram. O quarto estava lindo, tudo combinava: as cortinas, tapetes e a colcha da cama king-size primorosamente arrumada, com travesseiros e almofadas à vontade. Claire estava nadando num mar de felicidade, mas o ponto alto ainda estava por vir: o closet dela.
A moça até tomou um susto ao entrar, esperando encontrá-lo vazio. A surpresa foi tanta que pôs as mãos na boca, sem fala. Olhava para as prateleiras e araras abarrotadas, depois para Kilaim e de volta para as prateleiras e araras.
— Oh, mon amour, merci beaucoup! — Ela jogou os braços ao redor do pescoço dele, com lágrimas nos olhos, emocionada. — Eu realmente não esperava por isso... Que linda surpresa você me fez! Nunca ninguém preparou algo assim pra mim. Algo tão generoso, tão gentil, tão inesperado, tão... Tão cheio de amor. Nem sei o que dizer!
Ele aproveitou a proximidade dela e a estreitou num abraço apertado, beijando-a, enfiando os dedos entre seus cabelos e sentindo uma grande felicidade em poder proporcionar tudo aquilo. Isso era amor. Kilaim sabia com tanta certeza, agora! Amor era uma semana sem domingos chatos, sem noites de sexta solitárias; amor era não se importar em compartilhar as escovas de dente e não ligar para fios de cabelo em lugares inapropriados; amor era precisar acordar lado a lado. Acordar para a vida e não saber mais vivê-la sozinho.
— Eu te amo, muito, ma fleur. Mais do que você pode supor... — Ele abriu uma das gavetas, onde sabia que iria encontrar uma caixinha de joias.
Como tinha pedido, ali estavam alguns itens, escolhidos a dedo pela esposa do senhor Arruda Paiva.
— Nossa! — Claire olhava, sem tocar em nada. — Que coisas mais lindas, Kim, não precisava gastar dinheiro com isso...
— Mas fiz questão. Vamos experimentar alguma?
Ela olhou com mais cuidado. Mas foi Kilaim que se adiantou, pegando o pequeno pingente de borboleta, feito de águas-marinhas, e se aproximou das costas dela. Claire puxou um pouco os cabelos para o lado, pois já estavam chegando perto dos ombros, e inclinou levemente a cabeça. Sentiu os dedos dele, mornos e suaves, e os beijos que ele deu em sua nuca antes de virá-la de frente para ele.
— Linda.
Então, ele pegou os brincos delicados que combinavam e a ajudou a colocar. Diante do espelho enorme do closet, ele se postou atrás dela mais uma vez, admirando. Passou os braços em torno da sua cintura e Claire encostou a parte de trás da cabeça de encontro ao peito do namorado, pousou os braços sobre os braços dele.
— Está linda — Kilaim repetiu.
— Nossa... — Claire estava um pouco encabulada diante de tudo aquilo. — Nunca tive essas coisas, não desse jeito. Merci, Kim... Merci beaucoup. — E, virando-se para ele, dava beijinhos delicados, aos montes, no seu rosto, pescoço; passava a ponta dos dedos sobre os pelos da barba por fazer.
Ele retribuiu os carinhos com a mesma delicadeza, mas depois, querendo que ela se divertisse, falou com animação:
— Você já me agradeceu bastante. Chega. Você merece. Agora, allez, vá ver suas coisas novas com calma!
— Fico sem jeito, parce que não lhe dei nenhum presente.
Kilaim balançou a cabeça.
— Que tolinha. Alors, você não me deu nada? Acha que não deu nada? Quanta bobagem. Você é o meu presente.
Ela sorriu, satisfeita e, então, com gritinhos de satisfação, saiu quase saltitando. Passava as mãos sobre os tecidos dos vestidos, das blusas, saias e calças primorosamente arrumadas. Então viu o longuette floral vermelho e branco pendurado em destaque, com sandálias prata bem embaixo. Reconheceu na hora:
— Non! — Olhou para ele. — Sérieu, você o comprou?!
— Mandei fazer. Lembra que vieram tirar suas medidas no flat?
— E eu que não desconfiei de nada. — Ela correu de volta para ele, abraçando-o de novo. — Não acredito que se lembrou desse vestido!
— Como pode ver, sempre presto atenção ao que você fala e nunca me esqueço de nada. — Kilaim falou com orgulho.
— Caraca, vou precisar de duas vidas para usar tudo o que tem aqui, Kim!
— Você é que pensa. Vamos sair muito, aproveitar São Paulo! Vamos conhecer os melhores restaurantes, as casas de shows, teatros.
— Danceterias — ela acrescentou, mesmo sabendo o que ele iria dizer.
Kilaim sorriu ao se lembrar de como era, literalmente, arrastado para esse tipo de evento. Uma vez em São Paulo, uma na Amazônia e várias nos benditos jantares dançantes em Salvador e Porto Seguro, durante o Carnaval, quando Claire tentava mostrar os passos brasileiros que estava aprendendo. Ele já estava até se acostumando e, querendo agradá-la ainda mais, perguntou:
— Se quiser, pode ter aulas. Você gostaria? Agora já sei que você não vai ter um ataque cardíaco por dançar um pouco...
— Nossa! Seria incrível. As mulheres brasileiras dançam muito. Por sinal, nós dois deveríamos ter aulas — ela falou, olhando para ele sugestivamente. A maioria dos ritmos brasileiros e latinos tinha um ritmo que a deixava doida.
Geralmente a letra das músicas era fraca, mas as batidas...
— Nein — volveu Kilaim. — Você dança. Eu olho você. E eu só danço se for uma ocasião especial.
— Vou aprender de tudo. Menos funk.
Kilaim riu do modo como Claire se referia ao estilo musical que nascera nas favelas do Rio de Janeiro, que não tinha nada a ver com o funk norte-americano, e, claro, às mulheres de “corpão” que, inevitavelmente, acompanhavam os MCs dançando como loucas. O “corpão” queria dizer, em primeiro lugar, bumbum. O bumbum era a “paixão nacional”, equiparado, sem dúvida, ao futebol, ao Carnaval e às telenovelas.
As mulheres brasileiras eram muito vaidosas, e valia de tudo para ter um bumbum incrível. Desde sessões absolutamente exaustivas com personal, quando a somatória dos agachamentos e elevações com muito peso bem poderia assemelhar-se a erguer do chão um ônibus, a cada aula; ou, para resultados imediatos, implantes de silicone.
Mas o principal problema do funk era a música em si. Para o casal, não passava de gritarias desafinadas, ausência de qualquer melodia discernível e letras repetitivas que muitas vezes usavam de linguagem obscena ou de apologia à violência.
— Um MC foi baleado em pleno show e morreu — comentou Claire, para justificar sua implicância com o estilo. — No entanto... Justiça seja feita, se for para dançar funk como a Bruna Marquezine, na Dança dos Famosos do Faustão, estou dentro.
Claire se referia a uma das jovens atrizes Globais que participara, com outros famosos, de um concurso de dança em um programa domingueiro de entretenimento.
— Ela é linda e dançou maravilhosamente. Sensual, mas sem vulgaridade.
— Minha mãe era dançarina... — disse Kilaim, num repente de sinceridade, não mencionando nada sobre a Bruna Marquezine ou o funk.
Uma leve turvação nos olhos de Kilaim fez Claire perceber, mais uma vez, o quanto ele sentia a falta dela.
— Vrai? O que ela dançava? — perguntou a moça com suavidade, querendo fazer parte das lembranças dele.
— Um pouco de tudo. Era como você. Mas ela gostava mesmo de dança do ventre e dançava muito bem. Dançava para o meu pai, quando achava que eu não estava vendo.
Claire pensou ter ouvido um tom amargo no comentário, ou seria somente impressão?
— Mas eu sempre estava vendo — ele continuou, esforçando-se para parecer natural. — É. Estava. Sempre.
Kilaim deu um sorriso meio frouxo. Ninguém seria capaz de exercer sobre ele a mágica de Camille. Aquele sentimento era único e insubstituível, diferente do que sentia por Claire. Mas, então, confortado, percebeu que o que tinha no coração por Claire também era único e insubstituível.
Como o namorado não falou mais nada, Claire respeitou seu silêncio e mudou de assunto:
— Preciso aprender o português direito, e logo, por isso estudarei com afinco! Também desejo aprimorar o inglês. Quero usar meu tempo de forma bem útil.
— Uma coisa você pode fazer. Um desfile de calcinha. — Ele sorria já recomposto.
— Tem lingerie aqui? — Ela ficou surpresa. — Até isso? Onde será que está?
— Enquanto você procura, vou experimentar o meu piano. Tem certas coisas que são mais interessantes de ver quando estão no seu corpo. — E riu, enquanto beijava o pescoço dela mais uma vez. — Lingerie na gaveta não tem graça nenhuma.
Ao sair do closet, após seu tapinha no bumbum da namorada, Kilaim sentia-se contente. Nem teve vontade de descer ao porão secreto, a sala de invocação, para tentar saber o que estava acontecendo; afinal, a viagem tinha terminado...
A verdade é que fora difícil contar tantas coisas a Claire, mas estava claro que um peso saíra de seus ombros; e ele não tinha vontade de colocá-lo ali de novo.
* * *
Na saleta de música, ao abrir pela primeira vez o piano europeu, com três quartos de cauda, conforme solicitara, Kilaim ficou bastante satisfeito. Ele era exigente, mas o senhor Arruda Paiva valia tudo o que ele havia pagado. Até mais. Abriu a tampa do instrumento, olhou para as teclas perfeitas, ligeiramente amareladas, já que o instrumento não era novo, depois ergueu o tampo da cauda. Apoiou-o no suporte e se inclinou para dentro a fim de inspecionar as cordas e a caixa de ressonância. Premiu algumas teclas, ainda em pé, observando o resultado dentro do instrumento. O ouvido captava as diferentes nuanças de som. Depois, sentado, ajustou a altura do banco e verificou os pedais.
Ele inspirou fundo e só então correu os dedos sobre as teclas, de alto a baixo, várias vezes. Ali, sozinho, sentiu aflorarem com força total as saudades das teclas e de música erudita. Era como retornar a si mesmo, estar de fato em casa. E dali Kilaim viajou para um lugar onde mais ninguém poderia ir. Completamente só. Completamente ele mesmo.
Quanto a Claire, estava na suíte master tomando um banho de chuveiro, incentivada pelos comentários de Kilaim sobre a lingerie. Deixaria para estrear a hidromassagem depois, com ele. Correu de volta para o closet, semicoberta com a toalha, e escolheu a lingerie que iria usar sob o pegnoir de seda japonês, encontrado junto a vários baby-dolls. Queria fazer uma surpresa para Kilaim e agradecer devidamente por todos aqueles presentes. Porém, assim que saiu do quarto, escutou o som maravilhoso do piano vindo do primeiro andar.
Mas não era um som qualquer. Claire sentia-se arrebatada e estava perplexa. Desceu com passos leves e rápidos as escadas e foi chegando, devagarzinho, à porta da saleta. Era a primeira vez que via Kilaim sentado ao piano, e não havia palavras para descrevê-lo. Que virtuosismo inegável e inacreditável! O que era aquilo que brotava de dentro dele? Não era normal. O que era aquilo que vinha e se espalhava por meio das suas mãos, de seu corpo, com tanta perfeição? Mostrava uma faceta completamente diferente de tudo o que ela já tinha visto em relação a ele.
Incapaz de interrompê-lo, Claire se esgueirou devagar para uma das poltronas, não querendo ser notada.
Kilaim tocava de olhos fechados, e uma transformação se via em seu semblante, na postura de seu corpo, na forma como se posicionava diante do instrumento. E tocava sem nenhuma partitura.
“Ele é mesmo um grande artista. Como eu poderia imaginar a que ponto isso tinha significado para ele?”.
Depois de uma meia hora, sem aviso, Kilaim ergueu as mãos do teclado, interrompendo de súbito uma linda cadenza de acordes.
— Caraca, mano... Como estou fora de forma! — reclamou ele para si mesmo no instante em que Claire rompia em palmas entusiasmadas às suas costas.
Kilaim até tomou um susto.
— Você estava aí, Claire? — Ele observou o pegnoir azul, curto, adivinhando as formas embaixo dele. — Caramba, você está linda!
Totalmente esquecida de fazer a surpresa da lingerie, ela nem prestou atenção ao comentário.
— Kim, que coisa mais linda! O que é que você estava tocando agora? Não pare, continue, s’il vous plaît. — Ela se aproximou, sentando numa cadeira ao lado do piano, e disse:
— Toque, toque...
Ele voltou as mãos sobre as teclas e terminou a peça.
— Você é um verdadeiro artista. — Olhava-o com muita admiração. — O que é que estava tocando agora?
— Uma sonata de Schubert. Mas não está muito boa, agora, preciso estudar um pouco mais. Essa sonata foi considerada a última sonata dele importante para piano. Foi escrita com mais outras duas nos últimos meses de sua vida. Hoje, essas obras são consideradas uma trilogia, muito maduras e de grande expressividade emocional.
— Você é que tem uma profunda expressividade, algo que não tinha visto em você ainda. Parabéns. Realmente o piano é o seu instrumento, sem sombra de dúvida. Que orgulho de você, Kim!
Kilaim não costumava ouvir aquilo com frequência, nem dito com tanta singeleza e carinho.
— Combien de compliments... — ele murmurou, sem jeito.
Para disfarçar suas emoções, tocou uma peça curta e de agradável melodia, extraída das Kinderszenen, de Schumann.
— E o que foi isso que você tocou? — Claire indagou tão logo a peça terminava.
— É Schumann. Especialmente para você.
— Lindo! Toque mais alguma coisa.
Kilaim colocou as mãos de volta sobre o teclado. Mesmo sendo tão grande, ele tinha traços esguios, e suas mãos eram lindas; fortes, mas com belo formato.
Começou tocando uma melodia simples, que foi, aos poucos, num crescendo impressionante, misturado a momentos de virtuosismo, e que envolveu a moça de forma quase magnética. Então, de novo a linha melódica inicial. Linda. Envolvente. A insistência no tema principal ia e vinha, às vezes como um Rondò, às vezes mergulhando em fantásticas variações a três, quatro vozes, alternando-se na mão esquerda e na direita, o que lembrava um pouco o Das Wohltemperierte Klavier, de Bach. Uma música estranha, diferente.
Claire era leiga, mas conseguiu perceber claramente que a genialidade de Kilaim era unique, e ele só poderia ser comparado aos grandes mestres da música erudita. Tinha uma facilidade impressionante nas cadenzas mais vigorosas, no conjunto de acordes em que seus dedos pareciam quase desaparecer. O modo como respirava, a mudança profunda que lhe proporcionava a música, tudo aquilo transmitia uma esplêndida emoção.
* * *
Animada e sorridente, Claire queria retribuir de algum modo a alegria que tivera em vê-lo tocar.
— Você tocou para mim, me deu um monte de presentes, e agora eu preciso fazer algo por você também!
Kilaim logo imaginou que tipo de recompensa ela iria oferecer-lhe depois daquele concerto particular, mas Claire estava em clima de festa. Queria alimentar muito bem o seu gênio da música, e imediatamente.
— Vamos comemorar esse seu talento maravilhoso, Kim! Vamos abrir um vinho e vou cozinhar alguma coisa.
— Tem certeza de que quer cozinhar agora? — perguntou ele, olhando de novo para o formato do corpo dela debaixo daquele tecido soltinho.
Ela entendeu o olhar dele e não se fez de rogada. Deixou-o beijá-la e deslizar as mãos pelo seu corpo, mas logo foi falando:
— Vamos deixar o melhor para o final. Nada como esperar pelo final, quando temos um ótimo caminho para percorrer, n’est-ce pas? A noite está só começando...
A garota foi indo em direção à cozinha, mas não sem antes pegar Kilaim pela mão e levá-lo com ela. Sentado numa das cadeiras da mesa, Kilaim olhava para Claire. Sem desviar a vista.
Claire, com seu avental roxo, comprado na Tok Stok, posto sobre o pegnoir japonês, tirando da geladeira uma posta grande de salmão fresco e jogando temperos numa vasilha, enquanto as mangas do pegnoir azul, às vezes, escorregavam pelos seus ombros. Claire colocando arroz integral na panela e lavando vegetais com aquele pegnoir que deixava ver uma calcinha cor-de-rosa minúscula por baixo, de vez em quando, e equilibrando pratos. Claire conversando sem parar, experimentando a comida com a mão, fazendo o jantar com aquele pegnoir, mostrando seu bronzeado e rindo como uma menina.
E ele olhava. Ela era o seu caleidoscópio: feita para se olhar. Sempre com as mesmas pedrinhas coloridas que faziam parte de sua natureza, mas que mostravam sempre um jeito infinito de ser. Era linda de qualquer jeito. Amorosa, sempre gentil, bem-humorada. E, principalmente, corajosa. A aparência frágil acabava se mostrando a mais distante da realidade.
E era sua mulher.
Kilaim não conseguiria mais viver sem ela. Por isso, enquanto aquele salmão assava, ele precisou não apenas ver a lingerie ali mesmo, na cozinha, e o corpo que a usava. Mas também retirá-la, dessa vez, com muito cuidado e paixão ao mesmo tempo.
* * *
Em Lyon, entretanto, aquela noite não trazia nenhum encanto, bom humor e muito menos alegria. Antes, era palco de bastante irritação e desejo do Mal.
A tolerância estava definitivamente encerrada, porque as notícias eram das piores. O fato de Kilaim estar de volta a Alphaville, perfeitamente bem, e ao lado daquela “Pollyanna Von Trapp” esbanjando saúde era mais que inadmissível. Na verdade, uma verdadeira afronta à Organização e às entidades!
Decepcionante fora o efeito do cavalo de troia entregue à moça, que, de longe, não tinha surtido o efeito esperado. A pérola negra, da qual Claire se esquecera completamente enquanto estava na Amazônia, do modo exato como deveria ser, já tinha sido encontrada. O objeto que estivera no fundo da nécessaire durante toda a viagem, agora, tinha sido lançada ao vaso sanitário e já não podia facilitar qualquer ação demoníaca.
Aliás, todas as investidas haviam sido neutralizadas; Leviathan não pudera fazer nada, nem mesmo Dagom. Era realmente muito estranho, e o fato é que não tinham saído da estaca zero.
Em sua biblioteca, ainda acordado, Zor tamborilava ritmicamente com a caneta sobre o tampo da mesa, pensativo. A madrugada aguardava as Trevas, e o próprio Abadom viera ter com ele a mando do Príncipe, pouco antes, pondo-o a par das notícias. A direção estava clara: tudo dependeria da próxima resposta de Kilaim. Ele teria a chance de escolher, pela última vez. E última queria dizer última.
Zor aguardava o horário cravado. Caso o posicionamento do gigante não fosse favorável, tudo já estava preparado para dar andamento aos planos determinados pelo grande Príncipe.
O fuso horário dava ao sumo sacerdote várias horas de espera.
Mas ele não tinha pressa.
O que deveria ser feito já estava feito.
16
Ultimatum
Sentados lado a lado na mesa da cozinha, o casal apreciava o salmão de Claire. Queriam comemorar a primeira noite em casa. Era bom estar ali! O jantar tinha ficado ótimo, muito saboroso. O arroz estava bem encorpado por ter sido preparado com outros cereais, e os vegetais, cozidos no vapor da panela elétrica, estavam com cor linda, e foram regados com azeite.
— Está uma delícia — Kilaim elogiou. — Mesmo!
— Merci — Claire respondeu de modo simples.
— O que você pôs aqui?
— Ué, e você não viu?
— Na verdade, não.
Parte do modo de ela cozinhar era pegar uma receita básica e reinventá-la de acordo com a própria criatividade, misturando sabores.
— Ervas, bien sûr, alecrim, endro e tomilho, um pouco de manjericão e, na minha receita, algumas folhinhas de hortelã. Depois uma pitada de alho, shoyo, limão e uma porção extra de alcaparras. Parce que você gosta, e elas derretem no forno com a manteiga e o azeite de oliva.
— Mas tem algo mais. O que é?
— Um toque indiano. Adoro os sabores da Índia. Coloquei um pouco de curry e garam masala, que é usado há séculos na Índia e se espalhou por muitos outros países da Ásia.
Kilaim ficou surpreso ao saber que a mistura do garam masala levava coentro, gengibre, cominho, canela, cravo, cardamomo, noz-moscada, macis, louro e pimenta-do-reino.
— É apenas para realçar o sabor do prato. Não ponho em grande quantidade.
— Congratulations — ele disse com sinceridade. — Nunca tive uma namorada para cozinhar para mim.
— Você? E pourquoi? Elas não gostavam de culinária?
Ele riu.
— Nada disso. Não tive namoradas.
— Ok. Que história. “Nunca namorou.” Acreditei.
Kilaim deu de ombros.
— Namorar não namorei mesmo. É a verdade.
— Alors, com quem você ficava? — perguntou ela sem pensar, um pouco surpresa.
— Gente da Organização.
Isso era óbvio para ela. Ficou em silêncio, esperando maiores explicações.
— Nada de mais, Claire. — Ele não queria falar a respeito, pois não havia o que falar. — Eu não gostava de nenhuma particularmente.
— Nenhuma? — Ela achava aquilo impossível.
— Claire, que assunto para a nossa primeira noite...
— Diga só o nome de uma. Só uma.
— Mas o que isso importa? Que ciumenta.
— Não é ciúme. Só diga o nome de uma.
Depois de um curto espaço de silêncio, Kilaim resmungou, enquanto punha mais um pedaço do salmão na boca:
— ... i... thra.
— Quoi? — Claire achou graça.
— Mithra. Eu gostava dessa.
— Hum. Nome diferente.
— Pois é.
— Como ela era?
Kilaim começou a falar só para irritá-la:
— Era inglesa.
— Não me parece um nome muito inglês.
— Ruiva. Parecida com a minha mãe. — Enfiou um maço inteiro de brócolis para dentro. — E tinha uma irmã gêmea bem jeitosa também. Lili.
Claire arregalou os olhos dessa vez, sem esperar por algo assim.
— Você ficou com as duas irmãs?
Kilaim fez que sim, estufando o peito.
— E de qual delas gostava mais? — Não havia o que mais perguntar.
— Depende da ocasião. Embora gêmeas, tinham personalidades bem diferentes.
Como Claire agora parecia chocada e, mesmo se esforçando, também enciumada, ele riu.
— Você teria ciúme de uma demônia?
Claire viu que Kilaim não estava fazendo graça.
— Demônia?
— Oui, nada de mais. Os demônios e as demônias podem se materializar; principalmente em rituais. Sucubus. Incubus. Já ouviu esses termos?
— Non.
— Demônios em forma feminina e masculina. Mithra e Lilith são demônias. Agora, allez. Mangiare! — Ele ria. — Caraca. Será que joguei uma barata no cálice do sumo sacerdote?
* * *
Madrugada.
Kilaim acordou aparentemente sem motivo. Fazia certo tempo que ele não era assolado por suas intermináveis insônias, o que estava a lhe fazer muito bem. Contudo, viu-se subitamente desperto, e bem desperto. Olhou o rádio relógio sobre o criado-mudo.
Três da manhã.
Horário interessante. Uma sensação de dejá vù tomou conta dele devagar, e, embora quisesse continuar dormindo, não conseguiu. Finalmente jogou o lençol para o lado e se levantou após constatar o sono profundo de Claire. A claridade que adentrava o quarto, suave, vinha das janelas, e ele não precisou de outra fonte de luz para caminhar até a porta da suíte.
Descalço, foi até o térreo e entrou na cozinha, com intenção de beber um copo d’água. Estava a pensar se deveria visitar o porão secreto, pois talvez houvesse algo que as entidades quisessem lhe dizer naquele horário. Foi então que escutou. O som do celular deixado no seu novo escritório.
Kilaim foi apressado até lá, pisando nos tapetes caros, e segurou o aparelho. Chegava um torpedo de Zor.
“Seu tempo terminou. Aguardamos você no próximo voo.”
Uma imediata sensação de mal-estar seguida de indignação tomou conta dele. Encostou a porta do escritório e discou o número de Zor. Quando ouviu o som de alguém atendendo, foi direto ao assunto:
— Como assim, meu tempo acabou? — falou Kilaim sem nenhum cumprimento, fazendo-se de desentendido.
— Oui. É isso mesmo — respondeu Zor. — Você sabe exatamente do que estou falando. Aliás, Kill, é a segunda e última vez que estamos lhe dizendo isso. Você tem 24 horas para estar aqui. Não vou ter de novo essa conversa, já lhe disse: você é uma criatura das cavernas. Um morcego. E o morcego não vive ao ar livre, voando no céu azul; em algum momento ele tem sempre que voltar pra casa. O recreio acabou; é hora de aula!
Zor não estava para brincadeira. Mas Kilaim só queria ganhar tempo.
— Zor. Let’s talk to each other. Seja razoável. Uma boa conversa pode esclarecer muita coisa, veja só...
— Esse seu delírio foi longe demais, Kill. Já chega — o sumo sacerdote continuou, sem pausa e sem espaço para admoestações. — Você já brincou de ser passarinho, já cantou na árvore, já viu a luz do sol. Já teve mais chances do que qualquer outro. Trate de voltar para a caverna agora. Seu lugar é aqui. Não quero ter que tomar providências drásticas.
— Oke, mas e se eu não voltar? Zor, eu a amo...
— Deixe de sentimentalismos, Kill, logo você! Pare com essas bobagens amorosas. Não se cansou ainda dessa menina tola?
Kilaim inspirou fundo.
— Dê-me um pouco mais de tempo — pediu. — Ela ainda pode mudar de ideia.
— Mudar de ideia. Sei. Essa merde toda que você colocou na cabeça de arrastá-la para cá. Isso não vai acontecer.
— Pourquoi? Ela tem o Selo? — indagou Kilaim incontinênti, agora petrificado.
— Nós é que não a queremos.
— Mas algum demônio viu o Selo?
Zor ignorou a pergunta pela segunda vez. E, num tom de gelar o sangue nas veias, repetiu o que escrevera no torpedo:
— Seu tempo acabou. Você está andando na beira do precipício, a um fio de cabelo de cair.
— Zor, não quero me indispor com você, nem com ninguém. Mas não posso voltar agora. Se você interceder a meu favor, os demônios me darão mais tempo.
— Foi o próprio Príncipe que determinou isso. E também sua sentença, caso não nos obedeça. Não pague para ver.
— Mas, Zor...
— Kill, não consigo entender o que ocorre com você! Nem parece que foi gerado pelo Grande Príncipe. Por sinal, falando em gerar... Sabia que as suas parceiras na Saturnália não engravidaram?
Kilaim ficou um pouco perplexo. E sem saber o que dizer, especialmente porque não o interessava em nada aquela informação.
— É mesmo?
— Oui, oui, é mesmo. É só isso que tem a dizer? Eu não o reconheço mais!
— Zor, pelo visto não vou conseguir conversar com você. Que culpa eu tenho? Eu fiz o que deveria, se não engravidaram, o problema é delas! Mas que droga! Estou lhe dizendo, Zor, não me espere aí. Não vou voltar agora.
Furioso, e percebendo que não havia espaço para diálogo, Kilaim desligou. Ficou com o celular na mão, pensando e repensando. Por falta de opção, resolveu, mais uma vez, tratar a situação com desdém. Iria ignorar aquele aviso e continuar com sua vida como tinha feito até então.
“Até parece que vai tomar ‘providências drásticas’ contra mim. Que providências drásticas seriam essas?”.
* * *
Zor fizera sua parte e tinha a resposta. Pegou o telefone fixo que estava sobre a mesa e ligou para Orion primeiro.
— Ele está irredutível — foi dizendo.
— Merde!
— Na próxima madrugada o relógio de tempo começa a correr.
* * *
Kilaim estava totalmente insone. Então foi escarafunchar na geladeira à procura do que comer. Encontrou um Tupperware com algumas esfirras, esquentou-as dentro do micro-ondas e decidiu ligar a televisão. O resto da noite passou, e ele nem sentiu. Quando eram mais ou menos oito e meia, escutou os passos de Claire vindo pelo corredor.
— Bonjour, amore...
Ela foi se aninhando no colo dele e passou os braços por seu pescoço, ainda sonolenta. Kilaim beijou seus cabelos algumas vezes, distraído, e continuou assistindo ao noticiário. Claire ficou quieta, aproveitando o calor do corpo dele e o seu cheiro, enquanto pensava no que iria fazer durante o dia. A casa estava totalmente organizada, completa e limpa, mas ela tinha que ver os detalhes com calma e, quem sabe, arrumar alguma coisa a seu modo.
Acabou entretida com as imagens do noticiário, pois só se falava no conclave que desenrolava desde a véspera, após a renúncia do Papa Bento XVI.
Claire ainda estava chocada.
— Puxa, nunca se espera que um Papa renuncie e, ainda assim, tão repentinamente.
— Agora os cardeais vão escolher outro. Há mais de seis séculos não acontecia uma renúncia. Essas coisas não acontecem por acaso. Isso é poder.
— E que você quer dizer com isso?
— Nada. Apenas que essas coisas não acontecem por acaso. O poder da bruxaria pode influenciar pessoas para a esquerda ou para a direita e ser bastante convincente; não apenas causa danos ou mata a distância. A demonstração de poder faz com que as pessoas escutem qualquer coisa que venha de você.
E era isso que ele esperava, ardentemente, que acontecesse com ela.
— Se o poder é bem usado — Kilaim continuou —, no momento certo, as pessoas acabam vendo você como um semideus e se tornam abertas à sua influência. Forjar certas alianças é muito importante.
— Mas foi isso que aconteceu com o Papa?
— Não estou afirmando nada, parce que não importa se a Organização influencia esse ou aquele. O que tiver que acontecer vai acontecer. Apenas quero te ensinar a pensar, a se questionar. A ver os sinais e discernir entre os falsos e os verdadeiros. Os religiosos têm a tendência de achar que todo o conhecimento disponível está contido apenas num lugar: em sua “Bíblia Sagrada”, no “Alcorão”, na Cabbala, ou por meio de costumes e tradições. Deus disse para que se examinassem todas as coisas, e daí retivessem o que é bom.
Claire, de repente, lembrou-se de um assunto que ficara pendente.
— E aquela história do Quinto Elemento? Você acabou nunca me contando, afinal.
Kilaim já não sabia bem se era melhor falar, ou não, sobre o assunto naquele momento. Então, fingiu que não ouviu.
— Estava vendo, agora há pouco, as notícias sobre as premiações do Oscar. Jennifer Lawrence ganhou, sabia?
Claire havia assistido a O lado bom da vida pela segunda vez no iPad de Kilaim.
— Oh, é mesmo? Ela foi ótima no papel! Foi por causa desse filme que insisti em te ensinar a dançar. Que pena que perdemos a cerimônia ao vivo, terei que acessar depois pela internet. Aquela senhora do filme Amor, Emmanuelle Riva, estava concorrendo também ao Oscar de melhor atriz.
— Não sei o que você viu naquele filme. Ele acabou ganhando na categoria Filme Estrangeiro. Só que, na vida real, aquele vovô teria internado a velhinha num asilo logo no começo, não havendo, portanto, enredo algum para o filme.
Claire não conteve um sorriso.
— Como você é mau!
— Sou mesmo. E falando em maldade: Jennifer Lawrence caiu na escada do palco quando foi receber sua estatueta!
— Fala sério! — exclamou Claire, dessa vez compungida. — Que situação chata para quem vai receber um prêmio dessa importância...
— Nem se preocupe, ela é atriz. Não ficou vermelha e se saiu muito bem logo em seguida, dizendo que todos a estavam aplaudindo de pé parce que havia caído. E aproveitou para fazer um bom sinal obsceno para os fotógrafos que tinham caçoado da queda. — Achando que Claire estava totalmente esquecida da primeira pergunta, ele convidou: — Alors, vamos tomar café?
— Já que sabe do final do filme Amor, o que pensa dele?
— Inverossímil.
— Dieu fez o mesmo por nossa causa.
— Tem razão. Ele fez o que o vovozinho deveria ter feito, nos internou numa clínica psiquiátrica, que é o nosso mundo, aliás... Boa percepção!
— Non, Kim, você entendeu tudo errado. Ele matou. Dieu matou. N’est-ce pas? Matou por Amor. Matou a Si mesmo por amor a nós, por compaixão...
— Mas que divagação, Claire... — Agora Kilaim estava perplexo.
— Não é divagação. É a verdade.
— Acho que Ele teria amado mais se não deixasse o seu “amado” Homem cair direto na latrina. Não é mérito mergulhar na bosta também, depois disso.
Claire não queria discutir. Então, perguntou de novo:
— Me conta sobre o Quinto Elemento? Lembro que você estava falando do citoplasma.
— Não é citoplasma, Claire! — Ele deu uma risadinha. — É ectoplasma. Seria “algo” produzido pelo ser humano que pode ser liberado em determinadas condições, produzindo fenômenos diversos, como acreditam os que se dizem médiuns. Vago.
— Oui?
— Por outro lado, a Ciência já comprova a existência de um tipo de energia produzida pelo ser humano, mas que ainda não é muito bem compreendida. Vou te dizer logo o que é, para simplificar: energia vital. Todo ser vivo possui; é a energia da vida. Hoje a Medicina sabe explicar, por exemplo, como o corpo produz energia térmica ou energia cinética, como se comporta a cascata de reações que levam à produção de ATP, como se propaga o potencial de ação nervoso, que é pura energia elétrica. Tudo isso o homem entende, dentre muitos outros conhecimentos que a Ciência detém. No entanto, não conseguimos explicar exatamente como funciona a “energia da vida”, como ela é produzida ou como é liberada.
— Ora, a vida é resultado de tudo isso que você disse — comentou a moça, achando que ele quisesse sua opinião. — Cada sistema no corpo humano tem seu modo particular de funcionamento. Quando tudo está funcionando, você está vivo. Não existe uma energia específica para a vida.
— Será? — Kilaim fez uma pausa, olhando-a sério, como era de seu feitio quando explicava alguma coisa. — Vamos pelo caminho inverso: em que momento começa a morte? Às vezes uma pessoa está viva mediante o funcionamento de diversos aparelhos que lhe dão suporte: um respirador, bombas de infusão, cateteres, sondas, drogas. Embora o coração esteja batendo e o cérebro ainda tenha algum tipo de atividade, posso te dizer: algumas vezes, essa pessoa não está mais lá. Se tudo aquilo for desligado, a morte é inevitável. Mas será que ela já não estava morta antes, mesmo em meio ao funcionamento dos sistemas biológicos?
— Se o cérebro ainda tem atividade, a pessoa está viva.
— Qual é a definição de “estar vivo”? Há pessoas que sofrem traumas físicos tão grandes que nunca mais acordam, ficando em estado vegetativo por toda a vida. Como pode garantir que aquela pessoa ainda está lá, naquele corpo? Na verdade, é somente um corpo, sem mais nada de humano nele. Parce que sua energia vital se foi. E quando a energia vital se esvai, o espírito também. Temos um amontoado de células trabalhando e, mesmo assim, já não há vida; aquela pessoa está morta. Esse é um dos grandes mistérios da Medicina e da Ciência: a verdadeira divisa entre a Vida e a Morte.
Claire ficou mordendo de leve os lábios, refletindo.
— Por outro lado, numa parada cardiorrespiratória, por alguns momentos tudo se desliga. N’est-ce pas? A pessoa está morta e, sem as manobras de “ressuscitação”, continuará morta. Aliás, se o objetivo é ressuscitar alguém, é parce que esse alguém morreu. Alors, por meio de eletrochoques, injeções de adrenalina e outras drogas, massagem cardíaca, respiração artificial, pode ocorrer o “religamento”. E a pessoa “volta” à vida. As manobras de ressuscitação podem levar bastante tempo: meia hora, 40 minutos, até mais. E a energia vital? Durante esse período todo de ausência, ela fica no corpo ou sai dele? Já ouviu falar nas histórias de alguém que tenha passado por um episódio de “quase morte”? Coisas como se enxergar do alto, ser capaz de observar os médicos debruçados sobre seu próprio corpo; ou mesmo atravessar um túnel?
— É, já ouvi. Mas não sei se acredito nisso.
— Bom, não é questão de crer ou não. O impasse existe parce que o ser humano ainda não entendeu direito o limiar. Não sabemos.
— Isso é o Quinto Elemento, alors? Energia vital? É o que você quer dizer?
— Oui. Você entendeu bem. Quanto a Lucipher, a sua própria Bíblia já diz que ele era o querubim da Guarda ungido, um guerreiro que guardava a Glória de Deus. Também o filho mais formoso, o mais inteligente, o único que podia andar sobre as pedras afogueadas do Monte Santo de Deus. Lucipher era o “selo da medida” ou o “sinete da perfeição”, em outras traduções.
— O sinete era um anel de selar — falou Claire, talvez imaginando que Kilaim não soubesse. Mas, naturalmente, não era esse o caso, pois se tratava de Lucipher, afinal de contas!
— Significava um poder conferido, por Deus, a um dos príncipes mais importantes para atuar ou falar em nome de Deus. Está correto?
— Julgo que sim...
— Oke. Apesar de uma função não necessariamente estar ligada a poder hierárquico, o fato é que Lucipher demonstrou maior poder hierárquico do que qualquer outro Anjo, pois, no momento certo, ousou enfrentar a Deus. Havia muitos com vontade de fazer a mesma coisa, mas foi Lucipher quem encabeçou a Rebelião. Os querubins são, dentre os Anjos, aqueles com maior potencial para se tornarem guerreiros. Embora ao redor de Deus houvesse muitos Anjos com função sacerdotal, Lucipher era, pelo seu conjunto de atributos, mais poderoso.
— Existem sacerdotes angelicais? — Antes que se desse conta, Claire já tinha perguntado.
— Tudo Deus criou de forma semelhante em todas as esferas. Muitos dos Anjos da Sala do Trono são serafins com função sacerdotal. Esses têm as 12 pedras, como os sacerdotes humanos também as receberam.
— Como você sabe?
Kilaim deu levemente de ombros.
— Ora. Os demônios já estiveram lá, né? Por isso, Lucipher recebeu nove pedras, e não 12. Parce que sua função não era sacerdotal, era guerreira.
— Mas, alors... Isso deve significar, oui, que o número 9 tem uma característica originalmente divina! — exclamou Claire. — Nunca isso me passou pela cabeça parce que, na Bíblia... Isto é, vemos o número 12, o 7, o 3...
— Voilà! Você aprendeu algo que não veio das Escrituras. Vê? O conhecimento é fragmentado. E já que gostou, vou te contar um segredo. Para os patriarcas judeus, segundo a Cabbala, o valor de uma palavra da Torá é definido como a soma dos valores de todas as letras que a compõem. Quando o valor de uma palavra equivale ao de uma palavra diferente, entende-se que elas, necessariamente, têm uma ligação simbólica. Analisando essas conexões por meio de métodos elaborados, as Escrituras são interpretadas e explicadas. Na visão dos cabalistas, Deus criou o Universo usando as 22 letras do alfabeto hebraico: é o que se diz no Sefer Yitizirah, ou Livro da Criação, uma das obras fundamentais da Cabbala. — Kilaim lembrou-se dos ensinamentos sobre a Adamic Language, mas optou, a custo, não entrar no tema. — Vistas dessa maneira, as letras são muito mais do que simples rabiscos no papel: são representações visuais de 22 “energias primárias” que, combinadas, originaram o mundo. Pelo menos, em conceito, a ideia é correta.
— Mas Cabbala é uma coisa meio esotérica, que tem a ver com cartas de tarô, astrologia, numerologia, coisas do tipo.
— Engano seu. A Cabbala é dos mais antigos ensinamentos que existem, e não tem só a ver com números. É uma sabedoria que investiga a natureza divina. Ela contém as chaves, que permaneceram ocultas durante um longo tempo, para alguns dos segredos do Universo e para os mistérios do coração e da alma humana. São vários os textos e os ensinamentos da Cabbala que foram, inclusive, utilizados por Aleister Crowley.
— Quem é esse?
— Um ocultista muito importante que fez parte da Organização no início do século passado. Ele influenciou inúmeros artistas, escritores, cineastas e músicos, e ficou conhecido pelos seus livros de Magia Cerimonial, nem tudo de conhecimento público, é claro, e pelo uso da Cabbala em vários de seus escritos; talvez o mais ilustrativo seja o Líber 777 e The Book of Law: “Faze o que tu queres há de ser o todo da Lei [...]”.
Claire arregalava os olhos procurando não perder nada. Kilaim notou que, mais uma vez, sua natureza detalhista o levava a navegar em águas longínquas. E voltou ao curso principal.
— Well, em se tratando de números, vamos ao que interessa. Foi na Cabbala que a Numerologia buscou a maior parte de seus ensinamentos. Nas Escrituras Sagradas dos judeus, encontram-se 72 nomes para o Criador, formados pela combinação de três letras, cada uma expressando um atributo ou qualidade da natureza divina: 7 + 2= 9.
— Mas de onde isso saiu?
— A origem dos nomes estaria no capítulo 14 do Livro do Êxodo quando se menciona a passagem dos judeus pelo Mar Vermelho. Os três versículos que contam o episódio, 19, 20 e 21, têm 72 letras cada. Para obter o primeiro nome de Deus, tomamos a primeira letra do versículo 19, a última do verso 20 e a primeira do verso 21. Consegue-se a segunda com a segunda letra do verso 19, a antepenúltima do 20 e a segunda do 21, e assim sucessivamente. Agora vou te mostrar uns dois ou três detalhes em relação ao número 9. Em Genesis 9:9, sugestivamente, Deus faz seu pacto de vida com Noé. Em Genesis 17:1, Deus começa a falar com Abrão, aos seus 99 anos, e fará novo pacto de que ele e sua descendência povoariam a Terra. “Enchei a terra, multiplicai-vos”. Lembra que esse era o desejo inicial de Deus? E uma gestação leva quanto tempo? Nove meses. Os frutos do espírito descritos em Gálatas? Nove atributos. Indo além, esse número está presente na circunferência, um símbolo de perfeição muito presente em toda a Criação: a soma dos dígitos de 360 graus dá nove; a metade da circunferência, 180 graus, também dá soma nove; um quarto, 90 graus, um oitavo, 45 graus. Em suma, o número 9 é considerado o número da criação de Deus.
— É mesmo... — Claire estava bem surpresa.
— Veja: qual é a hora exata em que se encerra o Velho Testamento e se inicia o Novo? — Mais uma vez ele olhava para Claire sugestivamente e deu uma ajuda: — Lembrando que alguém só é herdeiro de um “testamento” quando o dono da herança morre.
— Hum... O Novo Testamento começa, alors... Depois que Jesus morre?
— Oui. Ele diz: “Está consumado”. E em que hora Jesus morreu?
— Na hora nona...
— Vê como essas correlações estão presentes na Bíblia? Tome agora Apocalipse 13:18. Multiplicando um número pelo outro, o resultado é 234. Invertendo os dígitos, 432. A soma de 234 e 432 dá 666. Agora, adivinhe o que está escrito no versículo 13:18? O número da besta! Qualquer número, se invertido, e diminuído o menor do maior, o produto da equação resulta em nove, sempre.
— Que coisa mais incrível. Significa que Dieu fez assim!
— Oui. Mas Ele também ofereceu o nove a Lucipher ao lhe dar as nove pedras; e Lucipher simplesmente apropria-se do que lhe é dado, fazendo disso uma marca própria. Se notar, ao longo das Escrituras, diversas Alianças são firmadas entre Deus e Seu Povo. No Messias, estabelece-se a oitava Aliança; depois de passar pela Cruz, Jesus ressuscitou e, por fim, comissionou seus apóstolos: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a guardar tudo que vos tenho dito. E eis que Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”. Em resumo, a oitava Aliança foi estendida a todas as Nações, d’accord?
— Bien sûr!
— Entrementes, Lucipher apresentou ao homem a nona aliança, mais perfeita do que a oitava.
— E pourquoi Lucipher acha que a sua aliança é mais perfeita que a Aliança que Jesus fez por intermédio do Seu corpo e do Seu sangue?
— It’s very simple. Todas as alianças de Deus com o Homem foram sempre infrutíferas. Não vê? Você não percebe que uma se sucedeu a outra parce que elas sempre deram em nada? Deus estabelece a primeira e aí: merde. Estabelece a segunda e merde. Terceira, merd...
— Je sais. Entendi. — Ela ergueu uma mão.
— Não entendeu nada. Estou vendo pela sua cara! O que eu quero dizer é que elas não trouxeram resultado prático, Claire. Nem para os judeus nem para os cristãos. Isso termina por invalidar a Aliança que Jesus estabeleceu, e o Cristianismo se torna uma farsa. Você sabe disso! As pessoas não conseguem, simplesmente não conseguem, ser cristãs de verdade. Por isso a Cruz nada mais é do que uma grande incompetência! — falou ele, impensadamente, de súbito.
— Mon Dieu, Kim! — exclamou Claire perplexa.
— Pardon. Não quis me exaltar. — Ele sacudiu a cabeça como quem se recrimina. E ponderou o tom de voz: — Só quero enfatizar que a nona aliança se torna não somente a primeira, mas a única, pois se traduz em abundantes resultados. Faz com que os escolhidos desfrutem de fato da vida na Terra. Deus nos expulsa do Paraíso, mas a nona aliança é a chave para levar-nos de volta.
— Que absurdo.
Kilaim continuou, impulsivo:
— Nove também é uma síntese do Mal. Não cita a sua Bíblia que aqueles que têm entendimento que calculem o número da Besta, pois é número de homem?
— Sim, 666. Você já me contou isso. Sei que dá nove. Seis mais seis mais seis...
— Historicamente — Kilaim mal ouviu —, o número sete representa o sagrado, o perfeito e o poderoso. Desde a China antiga, passando por Pitágoras até os judeus. Sete é o número da Perfeição Divina, pois, no sétimo dia, Deus descansou de todas as suas Obras. Os judeus perguntam: “Até quantas vezes devemos perdoar alguém? Até sete vezes?”. Essa pergunta deriva do entendimento de que o sete era expressão da perfeição. São sete as notas musicais, são sete as cores do arco-íris. Os sete dias da semana também marcam profundamente nossos ritmos de vida. O sete é uma união de três e quatro, sendo o número três associado à Trindade, ao Divino ao Céu, e o número quatro associado aos quatro elementos da Terra. Da. Enfin, o 666 é uma negação do sete. O anticristo diz “6”, e a Besta diz “6” e o falso profeta diz “6”. Nunca sete. E se Jesus estabeleceu a oitava aliança, Lucipher diz: “Não 8, mas 9”. Pois bem. Lucipher era especial. Isso você já entendeu perfeitamente.
— Ça va, Kim, mas o que isso teria a ver com o Quinto Elemento?
— Lucipher deu ao homem provar do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Porém, como querubim ungido da Guarda, ele também tinha algum conhecimento sobre a Árvore da Vida.
— “Algum”. Agora você disse certo. Pois o conhecimento da Árvore da Vida, o conhecimento completo, somente o Autor da Vida pode ter.
— “Algum” significa “Bastante” — tornou Kilaim irreverente. — Mas o Homem não teve tempo de conseguir acesso a essas informações parce que Deus o expulsou do Éden e “colocou querubins ao oriente do Jardim, e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da Árvore da Vida”.
— Viu? — Foi a vez de Claire ser irreverente.
— Quoi?
— Dieu é detentor desse poder.
— O que estou dizendo é que, por esse motivo, o ser humano não entende nada sobre a energia vital. Esse conhecimento nunca chegou até ele. Mas Lucipher sabe. Ele pode divisar a Vida e a Morte, como Deus. E ensinou aos seus filhos alguma coisa sobre isso, embora não adiantasse tentar ensinar a totalidade desse assunto.
— Talvez pourquoi ele não conheça a totalidade do assunto — volveu Claire, espetando Kilaim só para fazer graça.
— Ele não contou ao Homem, não por lhe faltar conhecimento, mas em função de o Homem não ter a capacidade de entender; não está nos seus genes. É como tentar compreender o Infinito. A Eternidade. Entende? São conceitos longínquos e sobre os quais não conseguimos fazer muita ideia. É diferente com o Bem e o Mal. O Homem entende esses conceitos parce que todos comeram do fruto da Árvore do Conhecimento. Por isso, o ser humano consegue até mesmo superar a maldade dos demônios.
Claire olhou com espanto, mas viu que ele falava a sério.
— Nem tudo é “obra do Diabo”, Claire. A essência da maldade humana não tem precedentes no Universo, parce que ele comeu do fruto, e o fruto se multiplicou dentro dele dando outros frutos ainda piores. Avaliando a História da Humanidade, você tem como estabelecer um limite para a maldade? Um limite para o que alguém possa fazer contra um semelhante? E fica uma questão interessante: se o Homem comeu da Árvore do Bem e do Mal, pourquoi apenas o Mal se multiplicou, e não o Bem?
— Parce que comer do fruto antecipadamente contaminou a essência humana, que era, originalmente, boa. O ser humano se tornou um escravo do pecado.
— Muito poético, mas a verdade é que o Homem se identifica com o Mal. Quando alguém tem o poder de escolha, geralmente opta pelo caminho “errado”.
Ela suspirou.
— Je sais. Eu reconheço. Mas também tenho certeza de uma coisa, Kim, de que chegaria o momento certo de o Homem experimentar do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Afinal, ela estava ali no Jardim. Um dia, o Homem teria maturidade para entender as imperfeições da existência, mas não naquele momento. No Jardim ele era puro, e essa inocência tinha que ter sido respeitada.
— “Imperfeições da existência”. Ótimo você lembrar. Nenhuma outra espécie sobre esta Terra, além da humana, acha que somente ela tem o direito à vida.
Kilaim não queria discutir o Bem e o Mal. Nem Claire. Os dois já sabiam que isso não levaria a nada.
— O fruto da Árvore da Vida permaneceu escondido, e seus mistérios não chegaram ao Homem. Mas ela pode ensinar os segredos da Morte. Eu, por exemplo, sou especializado em venenos. Não existe essa especialização no mundo, mas os feiticeiros podem conhecer muito bem todo esse aparato.
Claire ficou olhando para ele. Venenos...?
— Entende agora o motivo de meu pai ser comparado à energia vital? Falei sobre os outros príncipes, sobre os elementos e sobre como cada elemento atende às principais necessidades energéticas de cada um deles. Seguindo a mesma linha e raciocínio, significa que a principal fonte de energia do Quinto Elemento é o próprio quinto elemento. Ou seja: energia vital.
— Mas como? — Claire estava admirada com aquela conclusão que, apesar de bizarra, era lógica.
— Tem a ver com a essência dele, que é diferente da dos demais. É como se os outros demônios fossem “vegetarianos”; mas Lucipher, o Dragão, é “carnívoro”.
— Está bem. Entendi o seu conceito.
— Com a morte, com o desabamento do corpo físico, a energia vital é liberada completamente. Por isso digo que os demônios sabem perfeitamente se alguém está vivo ou não.
— Ok, já entendi. — Mas havia a última pergunta a ser feita. — Alors, Lucipher precisa de energia vital... E ele a usa de que maneira...? Quer dizer, como ele a consegue?
Kilaim ficou esperando que Claire chegasse à conclusão por ela mesma.
— Se a totalidade da energia vital só é liberada no momento da morte... — Claire continuou desconfiada. Mas se interrompeu e ficou olhando para o namorado, esperando que ele terminasse a frase.
— É isso. Lucipher se alimenta da morte. A morte é vida para ele. — Foi tudo o que ele disse.
Claire tentava ligar essa informação a outra: os sacrifícios humanos. Mesmo estando um pouco confusa, não perguntou nada. Quanto a Kilaim, omitia propositalmente tudo o que ele próprio já fizera em função dessa máxima.
Eram fatos que deveriam permanecer na Sombra e sempre nelas. Jamais viriam à Luz.
* * *
Aquele foi precisamente o momento em que o noticiário terminou, e Kilaim, erguendo-se do sofá, foi dizendo o que fariam a seguir.
— Precisamos de dois carros, Claire — anunciou ele. — Não vamos andar de carro de aluguel a vida toda. Vá se vestir. Vamos tomar um café da manhã na padaria e depois iremos à concessionária.
Claire ficou surpresa, mais uma vez, ao ver a facilidade e rapidez com que Kilaim resolvia o que julgava ser um problema. Dois carros!
— Mas, mon amour, eu nem sei dirigir!
— É claro que vai aprender a dirigir, está na hora, n´est-ce pas? Já vai completar 21 anos.
Então a garota ficou empolgada com a novidade.
— Legal!
— Vamos fazer sua matrícula na autoescola — continuou Kilaim. — E também no curso de inglês, onde poderá conhecer pessoas novas. Não é bom que não tenha amigas. Quanto ao português, encontrarei uma professora particular que venha aqui. Pensei em telefonar a uma agência de empregados, mas acho que podemos ir pessoalmente. Fica perto da concessionária que escolhi.
— Nossa, você age como se já tivesse nascido aqui. — Ela dava pulinhos. — Isso me facilita tanto a vida! — brincou.
— Pois então, allez! Eu também vou me trocar.
No seu enorme closet, Claire estava com dificuldade em escolher que roupa colocar e se demorou um pouco até optar por um vestido verde-água leve e charmoso, que fazia um lindo contraste com sua pele bronzeada e era a cara do verão. Era preciso aproveitar o finalzinho do verão, ainda que em São Paulo o outono fosse ameno, cheio de dias frescos e ensolarados. Claire combinou o vestido com uma sandália anabela em tom nude e uma bolsinha vermelha de alça. Para completar, foi atrás de um acessório. Abriu sua caixa de joias, pois já sabia que havia também algumas bijouteries finas separadas em outros compartimentos, e achou que iriam cair melhor na parte da manhã. Havia uma pequena etiqueta que descrevia cada peça.
Já tinha andado bem à vontade durante dois meses, só entrando e saindo de piscinas, ou da praia. Agora era hora de ficar um pouco mais arrumada. Optou por brincos pequenos de prata com zircônio, que combinavam com uma pulseira delicada. Pegou os perfumes, sem saber qual escolher, e depois de espirrar no ar um pouco de dois ou três frascos, escolheu Daisy, de Marc Jacobs, um aroma suave e floral que ela amou. Mais que depressa, jogou um gloss e uma máscara para cílios dentro da bolsa, pensando em aplicá-los no trajeto até a padaria, além de uma caixinha de lenços de papel.
— Oh! Que gracinha! — fez ela, surpresa, ao dar com um espelhinho de abrir adornado com pedrinhas, perto dos perfumes. — Vou levá-lo.
E o enfiou na bolsa, descendo em seguida, correndo, pois sabia que estava demorando. Kilaim já deveria estar impaciente. Contudo, a visão jovial de Claire e a gritante diferença que fazia uma boa roupa deixaram-no plenamente satisfeito.
— Nossa, mas como você está linda! — Ele puxou pela mão uma Claire que se desmanchava em sorrisos. — Vamos comer que estou faminto.
— Kim, precisamos mandar umas flores para o senhor Arruda Paiva e sua esposa — Claire foi dizendo enquanto era arrastada porta afora. — Ele fez um trabalho incrível!
— Faremos isso.
* * *
17
Sacrifice
Na França, na região de Chenonceau, perto do Cher, a madrugada aguardava. Nas entranhas do porão secreto do sumo sacerdote Zor, um grupo preparava o Cálice do Horror, do qual ninguém escapa. Ele seria produzido ali, naquela noite. E não falharia!
Era quase hora. As engrenagens invisíveis do ritual estavam em andamento, a mecânica de homens e demônios se somava para um fim comum. Fora, o vento lúgubre acompanhava a friagem. Dentro, o fogo de 18 velas dançava suavemente. Um metro e meio cada, dispostas seis a seis, em três castiçais: 666.
Dessa vez, o pentagrama não era convencional. Fora riscado no chão, seguindo estreitos parâmetros métricos, com pedra-pomes — uma rocha vulcânica —, e não tinha o Círculo de Salomão ao redor. Um espelho grande, com moldura de prata, estava postado de pé, na ponta de baixo do pentagrama, e havia cinco pequenos recipientes de prata, cheios de água, também colocados nas pontas. A prata canalizaria a energia do ritual; e a água armazenaria essa energia. Ao redor dos recipientes, as maldições estavam escritas em enochian. Ninguém poderia impedi-las. Pois aquela era a noite do Cálice do Horror, preparado pelas Trevas e trazido à existência.
A feitura da poção de consagração começou no exato minuto previsto. O cordão umbilical de Kilaim, que sempre estivera guardado, como preconizado, teve uma pequena parte descongelada.
O caldeirão pequeno de cobre aquecia sobre a pira, no centro do pentagrama. Zor entrou no pentagrama com reverência, trazendo o fluido do cordão, que depositou no recipiente; junto, sangue de cordeiro, exatamente como Deus estipulara aos hebreus: macho novo, sem defeito. Somente um pouco desse sangue. Um símbolo. O sangue principal viria de outra fonte.
O rosto de Zor estava muito sério, iluminado pela claridade das velas. Ao redor dele, quatro homens e quatro mulheres estavam postados ao redor do pentagrama, do lado de fora. Orion. Anthon Klevtsky. Maya. Pierre Lefréve. Davenport. Savannah. Anette Moreau. Maude.
Os bruxos e sacerdotes entoavam os cânticos que antecediam as invocações, e somariam sua própria energia à energia de Zor, o único que poderia presidir e realizar a cerimônia, pelo menos naquele grupo menor.
Zor esmagou as uvas com as mãos; uvas tardias, colhidas em noites de lua cheia. Em meio aos cânticos, ele continuou: raspas de crânio de vítima decapitada. Tudo aquilo vinha da farmácia secreta da Organização.
Diversas ervas. Incluindo a mandrágora.
Por último, veneno de víbora. Uma gota.
Veneno de escorpião.
Uma gota.
* * *
À noite, depois do jantar, Claire havia perguntado se poderia ficar com Kilaim na saleta de música enquanto ele tocava piano. Tendo sido bem-vinda, ela se acomodara na poltrona de couro, de onde tinha boa visão do teclado pelo lado direito. E, num interesse infinito, compenetrada, apenas olhava e ouvia.
Ele se aqueceu com uma longa série de escalas e arpejos completos, em todas as tonalidades, depois disso já nem percebia a presença dela, abstraído por completo, tocando de olhos fechados como costumava fazer. E assim foi por cerca de uma hora e meia. Lá pelas tantas, ele tocava novamente aquela mesma música que Claire achara tão estranha na noite anterior.
Quando Kilaim parou, esquecido da namorada, ainda sentado na banqueta, se esticou para remexer em algumas partituras que estavam sobre o piano, mais uma das incumbências bem cumpridas do senhor Arruda Paiva, depois que o seu jovem cliente lhe enviara um e-mail com as especificações das peças que queria.
Claire saiu da cadeira de couro e foi se achegando para perto dele, inclinou um pouquinho o corpo para frente, a fim de abraçá-lo, passando os braços pelo seu pescoço.
— Que música era essa, Kim? É muito linda... Mas também me entristece.
— É satânica — ele falou sem rodeios, puxando Claire para se sentar em seu colo. — Claro que com um toque pessoal.
— Bien sûr. Eu deveria ter imaginado.
Kilaim acabou achando graça da expressão do rosto dela e desatou a rir.
— O que você pensava? Músicas de filme de terror tocadas num órgão de tubos?
— Hãã... Je ne sais pas.
— Acha que os satanistas não apreciam as boas coisas da vida?
— Mas essa música...
— Composta por mim. Mas a estrutura é satânica. Os tipos de armações melódicas, as mudanças de tonalidades e...
— Mas, espere! A música foi criada por Dieu. Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si não podem ser satânicos.
— Você não entende de música, por isso fica perdida — ele falou com carinho. — Não precisa ficar quebrando sua linda cabecinha.
— Mas...
— Lucipher conhece música. Os demônios conhecem música. Simplesmente fazem pequenas alterações. Você não disse que a música era linda, mas a entristecia?
— Oui.
— É isso. A música tem o poder de despertar emoções. Alegria, tristeza, introspecção, desejo sexual, euforia. Basta saber como construí-la.
— Mas isso não é satânico. Uma música pode ser religiosa e ser triste. E você vai escutar o ritmo da lambada e querer sair dançando. É simples.
— Não é disso que estou falando. Algo que Lucipher aprendeu a fazer com perfeição é estar em um lugar e não denunciar sua presença a ninguém. Esse é o cerne do Ocultismo, o poder da Sombra. Quem está na Sombra, vê tanto a Sombra quanto a Luz. Mas quem está na Luz só consegue ver a Luz. Quer ver uma coisa?
Ele se ergueu e pegou seu poderoso iPod touch que estava sobre a estante. Selecionou uma música e pôs para tocar.
— Conhece?
— Oui. Nunca fui muito fã dessa cantora, esqueci o nome dela, mas concordo que o seu estilo é diferente. Bonito. Particularmente essa música — ela ouviu um pouco mais — é bem bonita.
— Vou te mostrar o que está na Sombra. Sua mente consciente não percebe, mas, no seu inconsciente, vai fazer eco. Escute um pouco mais.
Os dois ficaram em silêncio. Então Kilaim explicou.
— Primeiro, ela não está cantando sozinha. As vozes de fundo, sutis e melodiosas, são de entidades femininas.
— Ah, oui. E em que estúdio as demônias poderiam “aparecer para cantar”?
— Em um dos nossos estúdios — ele respondeu, de passagem, sem dar importância à pergunta. — E elas não precisam “aparecer” para cantar. Mas ouça: percebe o refrão feito por vozes masculinas? Bonito, n’est-ce pas? Mas sinta o ritmo: é o som produzido durante o ato sexual... Ou a respiração entrecortada de quem está na mesa de sacrifício, muito perto da morte?
Claire não ousou responder e apenas fitava as teclas brancas, refletindo no que ele dizia, escutando.
— Imagine agora uma mulher linda, jovem, com rosto de anjo. Ela passou boa parte da noite num ritual, cheio de pessoas da Organização. A música é tão linda quanto ela, mas, de repente, vem a transmutação. E na mesa ritual, sobre o altar, está sua filha. A bela angelical mata com a força dos demônios, a frieza das entidades. Ela retira o coração, recolhe o sangue. É o ingrediente final dentro de um caldeirão que vem sendo preparado durante toda a madrugada; uma receita complicada, milenar — Kilaim falava devagar, lembrando. — São exatamente três da manhã. Tudo tem que acontecer dentro de uma janela perfeita de tempo, é como o funcionamento de uma engrenagem. Os comandos de voz se somam à própria energia das entidades e do ritual. — Era quase como se ele estivesse lá de novo. — A mulher bebe o sangue de sua própria filha em nome do poder de encantar.
Só de imaginar a cena, Claire sentiu um calafrio. O calafrio dela pareceu trazer Kilaim de volta à tona também. Na intenção única de encontrar caminho ao coração de Claire, e uma forma de fazer reverberar sua doutrina, ele sabia que tinha falado demais. E se calou. Desligou o iPod.
— Pourquoi está me dizendo isso? — Claire indagou um pouco incomodada.
— Quis apenas te explicar como a música pode ser composta. — Ele ficou grato por Claire não ter perguntado de onde ele tirara a cena. Era melhor seguir por outro caminho. — Desculpe, é que uma coisa leva a outra.
— Mas, pourquoi, mon Dieu, essa mulher teria que entregar sua própria filha...? O que muda? Quer dizer, uma coisa dessas é... é...
— É o preço. Traduz-se em muito poder. Ou você acha que entidades vêm doar sua voz apenas pela bela cor dos olhos de alguém?
Claire inspirou fundo. Parecia um preço alto demais. Era inaceitável.
— Sabe, quando o sacrifício humano de Jesus foi entregue, um Portal inigualável se abriu à Sala do Trono... — continuou Kilaim.
— Lá vem você com isso. Oui, eu me lembro da sua explicação sobre o Santo dos Santos ser um Portal, as dimensões paralelas e...
— Jesus era puro. — Kilaim não parou. – Durante a celebração da Páscoa, Ele deu o pão aos discípulos, dizendo “Comei dele todos, esse é o Meu corpo”; e depois fez o mesmo com o vinho, “Bebei dele todos; porque isto é o Meu sangue; o sangue da nova Aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados”. Se você conseguir olhar além, entenderá que a morte do Filho gerou uma quantidade imensa de energia. Capaz de abrir um Portal de comunicação com Deus que jamais existira antes, e que se estenderia a todos que O buscassem em Verdade. Um acesso direto a Ele, sem intermediário algum. Algo realmente ímpar. O Livro de Hebreus afirma que “por meio do sangue de Jesus é possível, ao que crê, adentrar o Santo dos Santos”. Isso é muita coisa, se levar em conta que o acesso ao Santo dos Santos acontecia apenas uma vez ao ano, para o sumo sacerdote, e depois que ele oferecesse sacrifício por si. Mas, depois do sacrifício humano do Filho, as coisas mudam. Por isso o Véu do templo se rasgou de alto a baixo. E por isso o Satanismo procura as crianças... As virgens...
— De que você está falando? De sacrifícios humanos?!
— Creio que isso já está mais que claro para você, Claire. Não há motivo para eu não mencionar o fato. E já te expliquei sobre a energia vital. Assim sendo, existe uma tentativa de recriar esse estado de pureza no ato sacrificial; oferecer algo próximo à perfeição. Quanto mais pura uma pessoa, maior a energia vital que ela libera. É como o fluxo de uma corrente elétrica num circuito: quanto mais pontos de resistência no circuito, mais a corrente se dissipa, se perde. Quer dizer, quanto mais puro alguém é, menos “resistências” ao fluxo da energia vital. Entende?
— Pensei que vocês utilizavam o próprio sangue para uma aliança assim. Não o sangue de alguém... Um filho. É isso, alors? Começo a entender em que se resumem os ritos: sangue, energia, Portais... E pourquoi tudo isso? Para uma vingança pessoal de Lucipher contra Dieu?
— A Queda do Homem foi o início da vingança. Mas, non. Nem tudo é vingança. Os sacrifícios existem não por Lucipher ser “mau”, mas para que haja uma ligação indelével dos filhos com o pai alternativo e com os demônios. Parce que todos nós fomos rejeitados pelo Pai de “Amor”. Alors, a opção mais lógica era uma parceria.
Claire ia falar alguma coisa, mas não achava as palavras.
— O sangue sela nossa aliança com os demônios, do mesmo jeito que sua aliança com Deus é selada pelo corpo e sangue de Cristo. Assim como os apóstolos simbolicamente beberam o sangue de Cristo, durante o ritual satânico o sangue sacrificial é bebido, misturado a outras poções muito específicas e bastante complexas.
— Kim, não compare coisas que não têm comparação. O sacrifício de Cristo foi algo sublime, um ato de completo Amor. E não uma carnifici...
— Non, Claire. Pardon, mas não é o Amor que está em jogo aqui. O sacrifício de sangue abriu um novo Portal dimensional, pois essa é uma característica do sangue. Se houvesse outra maneira, não poderia Deus ter optado por uma alternativa que não implicasse na morte impiedosa do Filho, sob tortura? Mas não havia outro caminho. Sem derramamento de sangue, não pode haver comunicação entre as dimensões; sem derramamento de sangue, não haveria comunicação entre Deus e os homens. Isso começou com os ritos levíticos. E os satanistas apenas fazem uso da mesma equação.
— Está bem, Kim. Use a nomenclatura que quiser. Não é importante. Mas você nunca vai poder tirar dessa equação o Amor. Não importa no que acredita: foi por Amor que Jesus veio, que Ele morreu. E por Amor, temos perdão. Redenção. Os ritos levíticos tinham a intenção de apontar para a Graça vindoura, apontavam para Jesus, o Cordeiro que poderia retirar o pecado do mundo.
— Que modo mais macabro de “apontar a Graça”, don’t you think? Ele não poderia “apontar” sem matar? Ele não é Deus, não faz como quer?
— Dieu nunca deixou de amar os animais. Se o sangue de algum deles fosse derramado e não apresentado como oferta ao Senhor, a tal pessoa seria imputada a culpa do sangue e seria eliminada do Povo. Dieu sempre se importou. Destruir a Natureza, como se faz hoje, sem critério e sem misericórdia, ou maltratar os animais enfurecem a Deus. É um grave erro do qual muitos terão que prestar contas. E Ele nunca deixou de amar as pessoas. É o pecado que Dieu repudia.
— O pecado e o homem são uma coisa só.
— Pourquoi, Kim, você não consegue aceitar a Graça? E o Perdão que resulta dela? A Redenção? — E dessa vez ela olhou para o jovem gigante com uma genuína surpresa. — Realmente não compreendo, Kim, como alguém tão inteligente como você e que conhece as Escrituras da maneira como conhece possa chegar a essas conclusões.
— Pois bem. — Ele nem deu bola para o comentário. — Os Portais precisavam ser abertos, todos eles, até o tempo do Fim. Isso exigiu, e ainda exige, muita energia vital. Se canalizada da maneira correta, a energia vital é muito poderosa, podendo romper as barreiras entre as dimensões de forma temporária ou permanente. Jesus não fala da Porta Estreita e da Porta Larga? É uma alegoria, eu sei, mas serve para ilustrar. Um Portal grande, “largo”, não é simbologia. Significa que muitos demônios podem passar ao mesmo tempo, como se fosse o estouro de uma manada de búfalos, difícil de ser contido pelos Anjos. Só que Portais grandes precisam de grande derramamento de sangue. Muitas vidas. Muita energia vital, em conformidade com o tempo certo e o modo certo. Em função da dificuldade de abrir certos Portais foram necessárias estratégias ímpares. Estratégias que somente agora a Organização tem como realizar.
Claire olhava com muita atenção para ele.
— Foi necessário um grande esforço coletivo para acessar algumas passagens especiais que deveriam estar, impreterivelmente, abertas a partir de um determinado momento. A quantidade necessária de sangue, de energia vital, era impossível de ser conseguida pelas vias normais.
— Como assim?
— Era necessária uma liberação conjunta de uma carga energética imensa. Quando ocorrem grandes catástrofes, muita energia é liberada. Algo como, quem sabe, um atentado importante ou um terremoto, um tsunâmi que mate muita gente ao mesmo tempo. Lembra o terremoto da Indonésia que você disse que eu havia me esquecido de mencionar quando contei das ondas eletromagnéticas? Ali, o objetivo era outro: abrir Portais gigantescos, espetaculares, para o Final dos Tempos, liberando muitos demônios. E quem pode nos culpar? Culpem a Deus, que escreveu o Apocalipse e que entregou a Terra a satanás. Claro que isso tem que ser muito bem calculado: dia, mês, hora. É algo que nunca existiu antes. Mesmo porque existem zonas territoriais muito bem guardadas pelos Anjos; são áreas estratégicas, e a muralha precisa ser rompida. — Ele pigarreou. — Well, isso não importa.
— Non. Fale. O que você quer dizer com zonas estratégicas?
— O anticristo tem que vir de uma nação importante, poderosa, que facilite a ele dar as cartas. Para montar essa plataforma de lançamento, as fortalezas espirituais de alguns lugares tinham que ser quebradas.
— Kim, você fala nessa história de anticristo como se fosse a primeira e última coisa com que se preocupar na vida.
Kilaim deu levemente de ombros, mas havia nele uma ilusão de sombra, e seu semblante era como névoa.
— Deus se intitula Pai, mas não age como um pai. Ele abandona Seus filhos, Ele os entrega à tortura. E Deus precisa beber do mesmo cálice de sofrimento, sentir as mesmas dores que impôs aos que diz amar. Como eu disse, a parceria pelo sangue é indelével, para a vida toda. O Diabo não faz média. Não faz mesuras. Não diz que ama incondicionalmente. Ele ensina que da parceria resulta força e poder, e não te vira as costas quando precisa dele. Isso é o que importa. Ele dá ao Homem o que ele quer, e em troca recebe fidelidade absoluta. — Uma pausa. — Por sinal, falando em fidelidade, os segredos deveriam ser guardados sob pena de morte. Você sabe.
— Sob pena de morte? — indagou Claire. — Mas você tem me contado tudo.
Ele não respondeu de imediato.
— Estou arriscando. Para que nosso relacionamento possa ir adiante, você precisa saber de algumas coisas. Era o que você queria, n’est-ce pas? Saber. A não ser que não queira mais.
— Mas eu quero — ela respondeu resoluta.
— Alors, estou atendendo ao seu pedido. E explicando que o sangue, vindo de animais ou de seres humanos, é uma coisa só: precisamos de sangue para acessar o Reino Espiritual. A morte é necessária. Sangue é a moeda espiritual.
— O mover de Dieu e a Magia Negra são coisas bem diferentes. Sua insistência nisso é um absurdo.
— Sangue é sempre sangue. E os ritos, mascarados de “rito levítico” ou “rito satânico”, são sempre ritos de sangue. Lembra-se de quando falei daquela enorme cadeia de energias que se concentravam em Quéops, em Stonehenge? A energia vital, sem dúvida, era um elemento dos mais importantes nessa cadeia.
— Você não me disse isso naquela época.
— Não pareceu necessário.
— A agora é?
Ele demorou na resposta. Por fim, não deu nenhuma.
— O único motivo para tudo isso é parce que o Diabo se alegra com essas coisas horríveis. Ele veio para roubar, matar e destruir. E você passou por uma lavagem cerebral, como pode não ver?
— Satanás é muito mais do que ladrão, assassino e destruidor. Deus mandou Seu povo matar milhares de inocentes, indo contra inúmeras cidades. Deus roubou a vida e a juventude de muitos dos Seus servos, negando-lhes uma existência digna, apenas para que trabalhassem sem descanso. O que sei é que Deus, o Misericordioso, o Justo, entregou os apóstolos a mortes horríveis; entregou a Igreja Primitiva aos leões; deixou que a Inquisição e as Cruzadas usassem o Seu Nome para acabar com a vida de milhares de pessoas. Isso não é matar, roubar e destruir, igualmente? Vocês, cristãos, não veem a desumanidade de Deus. Ele diz que vai separar o joio do trigo, mas não foi o que Ele fez, matando crianças ao fio da espada. A Natureza de Deus é assim: ambígua. Já é hora de você enxergar. E quem realmente me amou foi o inferno.
Não havia o que mais dizer. Claire baixou a cabeça, os braços que se apoiavam no pescoço dele caíram no colo dela. Isso magoou o gigante profundamente.
— Confiei em você, Claire — disse Kilaim em tom vazio. — Para dizer o mínimo.
Ela ficou quieta, imóvel. Era verdade. Falar em tudo aquilo, fosse como fosse, era um sinal muito grande de confiança. Não cabia a ela julgar.
— Alors... Quer dizer que já viu sacrifícios humanos, Kim? — perguntou Claire, quebrando o silêncio, de maneira delicada.
— Oui, Claire. Eu vi. Sei que já entendeu isso.
Aparentemente, não passava ainda pela mente dela que ele pudesse ser o autor de qualquer sacrifício, mas apenas o espectador. E Kilaim não corrigiu a interpretação. Para afastá-la de uma conclusão lógica, rapidamente optou por mencionar os Portais de novo.
— Creio que você conhece a passagem do Livro de Jó, quando Satanás vai até a presença do Senhor, acompanhado pelos filhos de Deus. E Deus lhe inquire: “Donde vens?”; ao que Satanás responde: “De rodear a Terra e passear por ela”. Passear. Significava que estava livre.
Ela ficou pensando, quieta. Não queria ouvir mais nada sobre aquilo.
— Quer comer alguma coisa? — indagou o rapaz com certo remorso.
— Mas não faz muito tempo que jantamos.
— Uma sobremesa, que tal? Compramos sorvete de chocomenta.
Era absurdo. A forma como ele falava em rituais medonhos e depois em sorvete. Mas Claire concordou.
— Acho que isso, oui, é uma boa pedida agora.
Os dois foram para a cozinha, e Kilaim fez questão de pegar o sorvete, ele mesmo, e servir. Tinham um aparelho de som na cozinha, menor que o da sala de estar, e ele apertou o play, deixando uma coletânea de Laura Fygi tocar baixinho. Claire estava introspectiva, de caso com ela mesma.
— Este sorvete é bom. Gostei dele! — comentou Kilaim na intenção de quebrar aquele clima. Os dois estavam sentados na mesa da cozinha, e uma garrafa grande de Coca-Cola Zero fazia companhia ao lado. Agora estava garoando forte, e o som da chuva aos poucos amainou o incômodo do coração de Claire. Ela expulsou da mente os assuntos que haviam conversado na saleta de música. Não adiantava pensar naquilo, e sim na vida que tinham pela frente. Afinal, tudo aquilo ficara para trás. Ficara na França e numa outra existência.
— Adorei o sorvete também — Claire respondeu.
— Será que ainda dá tempo de pedir uma pizza? — Kilaim ergueu os olhos para o relógio de parede.
— Não exagere.
— Ça va. Você sabia que em São Paulo há cerca de seis mil pizzarias e se vendem quase um milhão e meio delas diariamente? — Ele se preparava para uma segunda taça bem cheia.
* * *
Em Lyon, o cordeiro estava preparado e logo seria imolado.
Os cânticos e as invocações no porão secreto de Zor continuavam segundo a preconização do rito. O estado de ânimo de todos se unificava agora e já não se tratava somente de uma indignação. Tinha se transformado em algo muito maior, em pura ira, sendo questão de honra absoluta.
Então Abadom, o destruidor, de repente estava lá. Tinha sido invocado para o Cálice do Horror.
— Cicale quaa.
Seu cheiro e sua presença forte impregnavam o ar; a ressonância de seu poder parecia quase poder vergar o que estava à volta, como um arco pronto para disparar a flecha.
O pergaminho especial estava pronto, colocado no centro do pentagrama, e Zor aguardava. Abadom caminhou e também entrou no pentagrama. Homem e demônio ficaram frente a frente dentro do símbolo mágico, olho no olho, numa magnética conexão. Zor apresentava-se em total entrega, rendido à entidade, de guarda completamente baixa. Mais do que um humano confiar no demônio, o demônio é que confiava no humano. Poucos podem usufruir de tal familiaridade, tal expressão de intimidade mútua.
Pentagrama aberto, sem a proteção do Círculo de Salomão. O trânsito dos demônios se torna livre, bem como a totalidade das suas forças. Em caso de qualquer deslize ou erro cometido pelo sumo sacerdote, seria fulminado imediatamente, porque não havia proteção.
Abadom escreveu no pergaminho, usando para tanto o unguento preparado por Zor no pequeno caldeirão de cobre. Claire Cécille Champoudry. O nome completo da inimiga de Lucipher foi escrito pelo destruidor.
O fluido do cordão umbilical daquele que ela pensava amar estava ali, na mistura. Até quando o amaria?
Pouco tempo. Bem pouco agora.
Depois de grafado o nome, o pergaminho foi imerso no caldeirão. Tudo estava pronto. Era hora de coletar o elemento principal. A bateria geradora da energia que faz tudo funcionar e sem a qual a Magia não flui.
* * *
A presença física de Abadom tinha deixado o ambiente muito gelado.
Porém, estavam perto do clímax. O gerador de energia vital tinha chegado. Estava lá.
Era uma adolescente, 13 anos, saída da zona rural da Finlândia, e acabara de ter sua primeira menstruação. Pela cultura judaica, era já uma mulher. A transição orgânica e psíquica produzia uma energia diferente. Muito útil.
Naquela tarde de nevasca tardia, voltando da escola, a menina aceitara carona do Lobo. Era bom escapar do frio mais cedo, e aquele homem fora realmente simpático, gentil e educado. Estava por ali durante alguns dias, visitando a mãe, acompanhado de sua esposa, grávida de sete meses. Contou que conhecia o pai da menina e a velha tia que morava com eles, citando-os pelos nomes.
“Morei aqui toda minha vida até ir estudar em Helsinque. Sua tia Anna fazia a melhor runebergin tortut da região! Ela ainda é tão boa para fazer doces? Durante a escola secundária, eu e seu pai fomos muito amigos, o grande e velho Dario. Ele lhe contou que seu apelido na escola era Obelix? Isso porque nós tínhamos...”
Boa conversa e música agradável no aparelho de MP3. Por fim, uma caneca de chá retirada da garrafa térmica para esquentar. A garota loura, de olhos azuis e pele translúcida, entabulou sua última conversa na terra dos seus pais.
Quando acordou do seu sono artificial, ela estava no centro do pentagrama, deitada no chão, nua, os cabelos espalhados ao redor da cabeça. Qual era o nome dela? Para aquelas pessoas não importava. Sem origem, mas com destino certo: ela era apenas o cordeiro. A geradora de energia negra que iria acumular-se dentro dos recipientes de prata, na água da morte.
O Cálice do Horror: medo, pânico. Pavor. Terror.
Zor, com olhos frios e fixos, falou à garota que ela iria morrer. Amarrada como estava, a visão da adolescente vinha através do espelho postado em pé na ponta do pentagrama. Por meio dele, a menina conseguia ver parte do ambiente, mas, principalmente, a si mesma. Sentiu medo... Muito medo.
Então, Zor lhe disse tudo o que iriam fazer com ela, em detalhes, gerando lágrimas e gritos. Sudorese fria molhava a parte de baixo do seu corpo. Tremores involuntários chacoalhavam-na.
Pânico.
Mas a consciência tinha que ser preservada. Desespero, medo e pânico podiam causar uma síncope. Se ela desmaiasse, o rito ficaria inválido. A finlandesa tinha que ficar consciente até o final absoluto.
Por isso, Zor se aproximou dela e aplicou uma injeção de efedrina na veia. Aquela estimulação do sistema nervoso central evitaria a perda de consciência. Imediatamente, sua pressão arterial se elevou e os batimentos cardíacos também. Em dose errada, mataria. Impensável acontecer antes da hora. A sensação da injeção e as alterações perceptíveis aumentaram sua agonia. Gritava mais alto e se contorcia, machucando-se.
Foi quando a menina viu Abadom pelo espelho. Urros, a plenos pulmões. Aquele homem tinha dito o que aquele ser monstruoso faria com ela. Olhou, suplicante, mas os espectadores continuavam impassíveis. E aquele demônio a violentou, com muita força. E só havia dor. Muita dor. Aguda e inenarrável.
Os olhos dela se viravam, buscando socorro onde não havia. Não era ela! Aquilo estava acontecendo com outra garota, não ela. Nunca, nunca com ela! A boca formigava, e ela sentia que iria sufocar. Uma náusea pavorosa fez com que vomitasse sobre o rosto e o pescoço, o que escorreu para os cabelos. Não sentia suas pernas agora, pois o demônio tinha forçado demais seus músculos e articulações. Estava sangrando. Sentia o sangue escorrendo pelas coxas.
Quando aquele ato indescritível terminou, pelo espelho, ela se viu. Viu o sangue manchando seu corpo. Viu os olhos de algumas pessoas. O olhar negro, de maldade singular.
Pavor...! Ela mais gemia que chorava, sons vindos do âmago.
— Você vai morrer. Vai para o inferno, sofrer eternamente, muito mais do que agora. Porque Deus não te ama. — O tom de voz de Zor ficou mais alto, sombrio. — Porque Deus não existe. Ninguém vem para te ajudar.
Zor a agarrou pelos cabelos, gerando uivos pavorosos. Mas ainda não tinham chegado ao ápice. Segurando-a firme, ele olhou nos olhos claros da menina, olhou profundamente, e bem de perto... A hora era agora.
— Olhe bem para o seu rosto nesse espelho — ele disse, apertando tão forte os cabelos da menina que ela gritou de novo, agudamente. — Olhe para os seus olhos. Talvez, te daremos uma chance de viver...
Ele pegou uma espada semelhante a uma takana. A garota não soube de onde viera aquilo, mas não teve muito tempo. O golpe foi violento, preciso, de uma vez só. E a cabeça cortada ficou nas mãos de Zor enquanto o corpo desabava no chão.
Esse era o ápice do Terror!
A finlandesa loura viu o sangue jorrar, uma fonte vermelha no pescoço, espirrando longe. Uma fonte no restante de seu corpo, caído sem vida. O cérebro, oxigenado, permitiu que ela ainda fosse capaz de ver e entender. Entender que estava decapitada.
— Você morreu! — gritaram todos, a plenos pulmões, porque a vítima ainda podia ouvi-los.
A menina queria gritar, gritar a plenos pulmões; mas não havia ar para passar por suas cordas vocais. Sua boca se escancara, em vão, sem nenhum som.
Terror...!!
Era o fim para a adolescente que nunca mais seria encontrada. Apenas mais uma de tantas vítimas que desaparecem todos os dias no mundo. Seu corpo, destruído, agora jazia ali, como algo que não merece atenção.
A energia produzida por seu suplício tem um destino.
Os recipientes de prata são retirados das pontas do pentagrama, e a água é recolhida numa garrafa de vidro. O mesmo unguento que Abadom usara para escrever o nome de Claire no pergaminho foi passado sobre o vidro, consagrando-o. Depois de lavado, o vidro parece simples e comum, mas o Mundo Espiritual percebe a verdade por detrás daquele simples recipiente de água.
O efeito mortífero do Cálice do Horror duraria até nove dias.
— A carga que captamos foi bem alta — comentou Zor, com o recipiente nas mãos. — Quanto antes ela beber, melhor.
* * *
O tempo passou, escorrendo, viscoso e frio, dentro da ampulheta.
Claire estava olhando, escondida por detrás da cortina de tecido espesso, vinho-escuro. Aquela adolescente negra estava soluçando já fazia horas, mas agora seu choro se tornava gritos sofridos, cheios de angústia, enquanto ela se contorcia. Cada grito parecia congelar ainda mais o ambiente, já turvo pelo manto das hostes da Maldade.
Claire não podia vê-los, mas seu coração também estava enregelado pela sua presença. Havia uma reverberação que ia e vinha, como ecos; non, era um latejar que ia e vinha, como choques elétricos na cabeça, e havia sons de asas poderosas, de guinchos e de movimentação invisível.
A agonia da adolescente foi ignorada.
Estava deitada numa mesa de mármore com canaletas em derredor. Sua nudez estava toda exposta, braços e pernas amarrados. Horrorizada, Claire entendeu o que iria acontecer. De algum lugar vinha o som tonitruante, cadenciado; mas ela não sabia dizer o que era, a não ser quando seu próprio coração entrou no mesmo compasso do da menina. Forte. Rápido.
Mais rápido.
De repente, como se seu espírito pousasse sobre ela, a agonia da menina era a de Claire.
O ar não entrava no peito, a sensação era de pura agonia. Claire olhou desvairada para os lados e viu um homem loiro. Com profundos olhos azul-piscina. Havia mais um, do outro lado: mais velho, moreno, de cavanhaque grisalho e olhos baços.
Ao olhar de novo, os olhos de ambos não eram mais humanos.
Alguém se aproximou e olhou na sua direção. Tinha a cabeça coberta por um manto negro, e os olhos eram escuros como piche, as pupilas estavam dilatadas. O rosto dele parecia algo animalesco, e aquela visão se impregnou em sua mente como uma talhadeira ferindo o gelo.
Sentiu o fio da lâmina que abriu seu abdome de um lado a outro e pôde sentir um grito inimaginável. Sua mente se tornou numa escuridão áspera, cheia de cacos de vidro em brasa.
Algo entrou em seu peito, com uma violência e velocidade incomparáveis, e saiu em segundos. Seu peito desabou em seguida.
O coração, coberto de sangue, pulsava vigorosamente na mão de seu assassino.
Estranhamente, nesse momento, Claire conseguiu erguer a cabeça. Não estava morta. Olhou para seu tórax, aberto por baixo, e viu um mar de sangue que escorria e esguichava de uma abertura medonha. O homem dos olhos de piche continuou segurando seu coração quando se virou de costas para ela e ofereceu seu trunfo aos quatro pontos cardeais: os grandes príncipes do Inferno.
Depois, erguendo-o ao alto, acima da cabeça, fez seu tributo ao próprio Lucipher.
Ela viu a quantidade profusa de sangue que escorria pelas mãos e antebraços do homem, desnudos agora pelo tecido que escorregara, e que foi recolhido em uma taça de ouro. Havia mãos que adicionaram outros líquidos ao sangue, imediatamente; e o algoz bebeu primeiro.
Claire continuava viva. Havia apenas uma névoa branca na cabeça, talvez porque o sangue... estivesse, aos poucos... deixando de irrigar seu cérebro. A dor era surda, quase uma mortalha deixada sobre o corpo.
Mas estava fria.
O homem que tinha a cabeça coberta pelo manto se virou novamente, e ela entendeu, quando viu seus olhos, que era uma celebração. Outra parte do seu sangue foi adicionada a uma mistura espessa e oleosa, de cheiro levemente adocicado.
Um verniz.
Sono. Queria fechar os olhos para poder dormir.
Mas, então, num último raio de entendimento, viu que o homem passou uma pequena quantidade da mistura sobre o tampo de um piano. E sobre as teclas. E também por dentro. Fez o mesmo com um violino, colocando sangue no tampo, nas cravelhas...
Ela entendeu: agora, eram instrumentos do diabo.
Para produzir um som diferente, mesmo que não fosse perceptível aos ouvidos humanos. Seriam acordes diretos na alma, atravessando uma fronteira que ia muito além do mundo físico.
Foi só nessa hora que ela reconheceu as mãos de Kilaim, brancas demais em meio ao sangue. Era ele o dono dos olhos negros como piche. O que tinha arrancado seu coração e bebido seu sangue.
Um grito na garganta, cheio de agonia. Ela queria, violentamente, expelir o grito grudado na garganta, mas ele estava pesado como um bolo de areia molhada.
* * *
Claire abriu os olhos sem enxergar nada à volta, exceto a escuridão e, no meio dela, a crueza do pesadelo, queimando. Suas vísceras estariam espalhadas fora do corpo, junto ao coração? A sensação agonizante persistia, mas o grito silencioso morreu na garganta sem vir à luz. Claire percebeu que fora um sonho. Pela segunda vez... Um sacrifício...
Lembrou-se do pesadelo em Manaus. A sensação era parecida e, como aquele, esse sonho não era comum. Ela vivenciara a verdade que Kilaim lhe omitira.
O gigante acordou com a movimentação dela, virando ora para um lado, ora para o outro, sem conseguir se acomodar.
— Ça va? — indagou, erguendo de leve a cabeça.
— Não sei... Ah! Je ne sais pas.
Ele acendeu a luz da mesinha de cabeceira, preocupado, e olhou para ela.
— Que aconteceu? — Via no semblante de Claire um ar de desespero, então passou o braço por debaixo de sua cabeça e a abraçou, trazendo-a para si.
Temendo que algum demônio pudesse ter se aproximado dela, sondou a situação.
— Você teve um pesadelo?
Claire assentiu, sem palavras.
— E o que mais? Sentiu alguma coisa, qualquer coisa perto de você?
— Não foi isso...
— Alors, o que foi?
Ela ficou em silêncio, e o silêncio gritava agudamente nos ouvidos de Kilaim.
— Sangue de sacrifícios humanos, n’est-ce pas? — balbuciou ela, referindo-se à conversa da noite anterior.
— Você acabou sonhando com isso? Que droga, acho que você ficou muito impressionada, como quando assistimos a um filme, e?
— E quanto a você? — Claire disparou. Mas mantinha-se encolhida.
“MERDE.”
Ela tinha pensado naquilo.
— Isso não tem importância agora.
— Pourquoi?
— É passado.
Mas os dois sabiam que era um passado com todo o poder de influenciar o presente.
— Eu vi você, Kim — ela falou com voz meio sumida. — Eu... simplesmente vi. Sei que foi verdade. Vi de quem veio o sangue que foi passado no seu piano. O piano de Lyon. Foi bem esquisito, mas também num violino... Não entendi.
Kilaim não esboçava reação. Esperava para descobrir o que ela realmente vira e o que estava sentindo, pois Claire não usava tom de acusação.
— Você tem um violino? — indagou ela sem pausa.
— Oui.
— Você também toca violino?
— Não tão bem quanto piano, mas toco; de vez em quando. — Ele arfou, puxando muito ar para dentro dos pulmões. Não havia motivos para deixar de admitir a verdade. — Por sinal, mandei um e-mail para o meu Nonno, pedindo que o envie para mim. Deve chegar nesta semana ainda ou na próxima. — Suspirou. — Preferia ter poupado você disso tudo. O que aconteceu era necessário para dominar o poder do sangue e da escuridão.
— Eu... não fazia ideia. Acho que quando falou dos sacrifícios, embora eu pudesse intuir que você tinha participado... não imaginei... isto é, talvez a informação tenha caído num limbo da minha inconsciência. Mas, agora... entendi perfeitamente. — E, num ímpeto, perguntou: — De onde veio aquela menina?
— Africana. Dessas que ninguém vai dar falta ou se preocupar. Poderia ser uma indiana, uma chinesa. Era apenas para treinamento.
— Como assim, Kilaim?
— Treinamento. Não se pode oferecer aos demônios algo imperfeito. A vítima tem que ser perfeita, e o ritual completo deve ser perfeito também. Isso pressupõe um treinamento prático anterior. Não é assim que os médicos fazem? Apesar de todo o conhecimento teórico, do estudo profundo de anatomia, eles dissecam cadáveres, operam animais. Ninguém se torna um cirurgião no primeiro dia.
Claire sentia-se sem forças, e ainda havia um pouco da opressão do pesadelo.
— Se era apenas treinamento, alors, depois você entregou a verdadeira vítima?
— Oui.
Perceber como os adoradores do Diabo se preparavam requintadamente para tirar a vida humana — e que Kilaim fizera parte disso, alimentando-se dessa mesa — ainda era uma informação amarga, difícil de digerir. Claire não teve forças para dizer nada, apenas perguntou:
— Agora que está distante de tudo isso, não consegue começar a ver diferente?
Ele ia dizer que não, mas teria sido demais naquele momento. Então, ficou quieto. Os dois ficaram quietos, na leve luz do abat-jour. Não havia nenhum ruído, tudo era silêncio. Claire sentia, sob a cabeça, o peito de Kilaim subindo e descendo no compasso da respiração.
— A verdade, Kim, é que conheço você — ela falou sem animosidade, sem julgamento. — E sei que tem bom coração. Isso eu sei.
Kilaim sentiu uma onda emocional inundando o peito e, para não deixar cair nenhuma lágrima impertinente, mudou o rumo da conversa, engolindo o caroço da garganta.
— Quer água? — indagou ele.
— Quero.
Ele se ergueu e pegou uma garrafa de água na mesinha de cabeceira. Encheu um copo para ela e outro para si.
— Eu espero tanto, Kim, que você consiga experimentar Dieu! — falou ela de repente.
— Não sei, Claire. Pois foi por intermédio da Sombra que encontrei a luz. Se ela é, ou não, a verdadeira Luz, não faz diferença. A questão é que é luz.
— E não te faz diferença se está sendo enganado?
— O que é o engano? — Ele bebeu a água de uma vez. — Eu diria que levar uma vida miserável, cumprindo regras absurdas pelo medo de ser castigado, fazendo penitências e implorando a Deus que cuide, que dê saúde, que providencie sustento, isso é engano. Que pai age assim? Que pai permite que o filho implore por pão e água? O pai simplesmente dá o que o filho necessita. Lucipher é assim. Ele conhece a necessidade dos filhos e lhes dá o melhor. O melhor de tudo.
— Ah, oui. Os “favores” a troco de sangue.
Ela não se intimidou. Kilaim sempre ficava surpreso pela garra com que ela defendia seus ideais cristãos.
— É uma escolha. Ninguém obriga ninguém.
O semblante dela estava entristecido.
— Alors, pourquoi você veio para cá?
— Não participo mais de rituais. Estar aqui não significava que eu iria virar cristão.
* * *
Nenhum dos dois conseguiu dormir direito. Foram cochilos entrecortados, silenciosos.
Kilaim ficou a passar e repassar a conversa que tinham tido, vezes sem conta, e relativizava suas consequências. Mas a verdade é que, por fim, uma onda de puro desespero invadiu-o, primeiro devagar, depois como um furacão.
Primeiro fato: não podia ficar sem Claire. Percebia, mais forte do que nunca, como ela tinha se tornado importante para ele, como a amava! Por isso, o único resultado possível seria Claire digerir as informações e continuar a amá-lo a despeito de tudo que soubera.
“Mas, e se ela estiver em dúvida por saber que fui capaz de matar? Talvez esteja chocada demais para dar continuidade a um relacionamento comigo.”
E ele ficava a imaginar se ela soubesse de tudo...
Segundo fato: a fé de Claire era muito forte, genuína. Impressionante. Exatamente por esse motivo, será que ela se sujeitaria a ficar com alguém como ele? Ou, justamente por isso, poderia perdoá-lo? Ela não falava o tempo todo em perdão e Amor?
Quanto a Claire, as imagens do pesadelo ainda estavam vívidas, e também as sensações. Kilaim fizera aquilo. Ela se virou abruptamente para um lado. Mas foi por nunca ter tido oportunidade de conhecer outro caminho, por ter sido enganado, ludibriado por aquela doutrina macabra. Virou-se, como um trambolhão, para o outro lado. O problema é que, mesmo agora, ele não demonstrava nenhum arrependimento — mais uma virada na cama —, o que só a fazia notar melhor quão incrustada estava, na mente dele, a doutrina satânica.
Virou de um lado, de outro, vezes sem conta. De repente, os primeiros sinais da claridade de um novo dia entraram devagar no quarto. Kilaim levantou-se primeiro e olhou pelas frestas da janela.
O sol erguia-se de sua nascente, poderoso, refulgindo luz dourada.
* * *
18
Libération
Dois dias depois, no final da tarde, Kilaim se preparava para tomar banho na suíte master. Claire zanzava por ali, dando palpite, pegando as roupas do namorado no closet dele, combinando cores e texturas para mostrar que estava aprendendo sobre moda. Deixou-as, cuidadosamente, sobre a cama e então correu para acertar a temperatura da hidromassagem, como se Kilaim fosse um bebê.
— Você vai dar uma boa mãe — ele brincou, olhando-a atarefada.
Claire virou o rosto na direção de Kilaim, surpresa. Não imaginava tal coisa sendo dita por ele, assim, do nada.
— Quem sabe, não é mesmo...? — respondeu ela um pouco tímida. — Mas, antes de ser mãe, quero cuidar bastante de você.
Enquanto ela jogava espuma de banho na água, com duas bolotas cor de turquesa de sais de banho artesanais, da Lush, Kilaim foi se despindo. Ao olhar-se no espelho, porém, reparou que precisava cortar um pouco o cabelo.
— Nossa, que horrível que está o meu cabelo!
Sem mais palavras, desceu correndo para a cozinha, trouxe uma tesoura comum, usada para abrir embalagens e disse que resolveria o problema “num instante”, tosando, ele mesmo, as pontas. Felizmente Claire, com olhos que arregalados, conseguiu evitar tal desastre com um sonoro “Mon Dieu!”.
— Você não pode fazer isso, Kim! — Ela foi pegando a tesoura das mãos dele imediatamente. — Seu cabelo é tão lindo! Você só precisa hidratá-lo no salão... E aí fazer o corte com um profissional.
— Não vou a nenhum salão para hidratar cabelo. — Ele desatou a rir. — Que bichice!
— Tá bem. Hidratamos em casa mesmo. Depois de tanto tempo tomando sol e entrando na água com cloro, na água salgada, em todo tipo de água, é isso que temos que fazer. Depois, você apenas vai ao salão para cortar.
— Não precisa, Claire. Meu cabelo é liso. Basta cortar as pontas e vai ficar ótimo.
— Definitivamente, você não fará isso. Non, non! De jeito nenhum. Olha só: marco hora pra você no Studio W do Shopping Iguatemi, aqui pertinho.
— Claire, detesto essas frescuras.
— Bem, é um “mal” necessário.
— Ansin tá sé breá!
— Quoi?! Essa eu ainda não tinha ouvido.
— Se fosse irlandesa, entenderia. Mas, oke, tudo bem. Posso cortar no salão, se isso a deixa contente.
Ela deu pulinhos. E ele entrou na água, molhando os cabelos cor de ônix. Claire, vindo para a borda da banheira, começou a lavá-los com xampu, sem nem perguntar nada. Com vigor, primeiro, para limpá-los bem, depois com suavidade.
— Vou passar agora a minha máscara de hidratação no seu cabelo. Enquanto fica aí relaxando na banheira, deixe o produto agir, e só enxague no final. Mas enxágue muito bem, ouviu?
Ela correu para a prateleira, pegou a máscara de hidratação da Kérastase e começou a passar o creme em todo o comprimento das mechas, as quais ia separando, dando ênfase para as pontas. Aproveitou para fazer massagem no couro cabeludo e no pescoço.
Aquilo era tão bom que Kilaim ia afundando na água quente, os olhos pesados, se fechando. Seus braços flutuavam ao lado do corpo e a musculatura ia cedendo.
— Estou quase dormindo — ele falou dado momento. — Essa sua massagem é muito boa. Nunca ninguém fez isso em mim... Não assim.
“Com amor”, era o que ele queria dizer.
— Alors, aproveite, amour.
Quando terminou, ela colocou uma touca plástica na cabeça dele para que o próprio calor do couro cabeludo ajudasse o hidratante a penetrar nos fios. Sem mais palavras, Claire ia se levantando de mansinho, deixando-o quieto consigo mesmo. Mas Kilaim abriu os olhos.
— Você não vem aqui ficar comigo? — Deu seu sorrisinho, puxando-a pela perna. — Daqui a pouco, eu é que te faço uma massagem que você nunca mais vai esquecer.
Bem que ela se sentiu tentada. Mas resolveu deixar para um momento em que não tivesse tantas coisas a fazer.
— A cozinha está uma verdadeira bagunça lá embaixo. Vou adorar ficar com você na nossa banheira, e quero a massagem, mas podemos fazer isso depois? E, alors, gastaremos toda a água da casa, só ficando aí, infinitamente.
Ele fechou os olhos de novo. A ideia era boa. Estava se sentindo tão cansado de repente; provavelmente por causa da massagem e da água quente.
— Ça va — concordou.
Ela se abaixou e beijou a boca dele.
— Não vá se afogar... — Claire disse depois, sorrindo. Era uma hidro grande que quase comportava um homem grande como ele, desde que ficasse na diagonal. Era bastante confortável.
* * *
Claire desceu e ficou sozinha na cozinha, cantarolando, pondo louça na máquina de lavar e terminando de reorganizar alguns armários e prateleiras, com todo o esmero. O senhor Arruda Paiva tinha feito um trabalho excelente, mas ela queria deixar tudo a seu modo.
O cabelo, mesmo preso com uma presilha lilás pequena, sua cor predileta, teimava em cair no rosto. E seus skinny jeans estavam meio molhados por causa da ajuda no banho de Kilaim, bem como a blusa de alcinha. Mas ela não ligou, arremessou longe as sapatilhas e ficou descalça, sentindo os ladrilhos do chão da cozinha sob os pés, lisos e limpos.
Quando a campainha tocou, a garota foi correndo para a porta sem se importar com a roupa úmida e a falta de sapatos, imaginando que talvez fosse um funcionário do condomínio com algum recado.
Mas era apenas um representante de água mineral. Ele estava parado na rua, defronte ao jardim.
— Boa tarde! — cumprimentou o jovem homem, sorrindo.
— Boa tarde — respondeu Claire.
— Posso tomar um minuto do seu tempo, senhora? Estamos oferecendo ao seu condomínio, como cortesia, amostras grátis de nossa nova água mineral.
Claire foi se aproximando da calçada. Entendeu que era uma água nova, de graça.
— Qual é o nome da água? Esforçou para compor a frase, ainda com forte sotaque.
— Ainda não foi batizada — disse o homem. — Por esse motivo estamos entregando também este formulário. É um controle de qualidade. Queremos que as pessoas provem o nosso produto, respondam ao questionário e o enviem de volta para nós. Veja, o formulário só tem que ser dobrado ao meio e fechado. Já está selado, basta pôr no correio. Também estamos pedindo sugestões sobre o nome da nova água.
Claire ficou feliz por entender a maior parte do que o representante dizia. E perguntou:
— O que a sua água tem de diferente?
— Se a senhora der uma olhada no rótulo de uma garrafa de água mineral, pode vir a ficar muito surpresa. E não no bom sentido. A quantidade de sódio, e a sua variação entre as diversas marcas, é um tanto quanto assustadora. Nossa empresa realizou uma pesquisa com dez tipos diferentes de marcas de água mineral, e constatamos que a quantidade de sal pode variar em até 3.000%.
Claire ficou boquiaberta com o número. O representante deu uma risada amigável e explicou:
— Noto que a senhora é estrangeira; mas o brasileiro já consome sal demais na comida, então, para que adicioná-lo mais ainda na dieta por causa da água? A senhora gostaria de participar da pesquisa?
— Mais oui, é claro!
O homem entregou-lhe o formulário com o selo da ANVISA, acrescentando:
— A nova água mineral já foi aprovada pela Vigilância Sanitária. Além de um baixo teor de sódio, uma água de qualidade deve se manter com pH entre 7 e 10, isto é, neutras a alcalinas. Mas existem águas ácidas, com pH menores do que 7.
Claire se esforçava para acompanhar e, às vezes, fazia perguntas.
— Como escolher um bom produto, alors? — perguntou.
— Quanto menos sódio, cloreto, bário, nitratos, zinco, melhor, pois a qualidade da água é determinada pela quantidade e pela qualidade dos minerais que ela contém. O ideal é sempre analisar os elementos de cada água. E o pH deve estar entre 7 e 10. — Ele fez uma pausa, retirando a água de dentro de sua bolsa térmica. — Elas já estão geladas, prontas para uma degustação imediata. Temos certeza de que irá apreciar muito a novidade, senhora; esperamos lançar o produto ainda neste semestre. Vou deixar-lhe duas amostras.
O homem entregou a Claire duas garrafas de vidro azulado, com rótulo simples e o selo da ANVISA.
— Obrrigada. Ainda não tem logotipo, n’est-ce pas?
— As campanhas de marketing irão começar depois de terminada a pesquisa. Queremos também levar em conta as sugestões das pessoas sobre o nome fantasia da marca. — Ele olhou para Claire e sorriu de novo. — Quem sabe o nome que você sugerir possa vir a ser o escolhido, não é mesmo?
— Serria legal — ela respondeu orgulhosa em se comunicar um pouco sem a ajuda de Kilaim.
— Tenha um bom dia! — falou o funcionário da água mineral.
— Igualmente!
Quando Claire pegou as duas garrafas geladinhas, sentiu uma sede quase compulsiva, uma vontade muito grande de experimentar aquela dádiva da Natureza. Água era a melhor coisa que existia, e ela sempre tomava bastante.
Entrou na cozinha e se serviu de um copo enorme. O líquido escorreu pela garganta; delicioso. De fato, aquela água parecia ter certo sabor diferente. E ela tomou as duas, uma após a outra.
* * *
Kilaim saiu do banho, revigorado, sentindo-se estranhamente feliz por estar dividindo a própria casa com a garota dos sonhos, e desceu de mansinho para surpreendê-la.
Claire estava de costas para a porta, em pé sobre uma cadeira, arrumando um armário no alto. Ele foi se aproximando e, postado atrás dela, passou os braços ao redor de seu corpo, tirando-a de cima da cadeira com facilidade.
— Claire, você é tão leve!
Colocou-a no chão e foi aí que percebeu. Aquela energia, perfeitamente conhecida, não estava ali. Seu sorriso morrera, como um filhote de passarinho que cai do ninho e destroça o corpinho frágil; o rosto foi assumindo um ar de pânico. Ele sabia o que era. Claire havia tomado o Cálice do Horror...
— Claire, o que você fez?! — Por mais que não quisesse alarmá-la, era impossível.
Ele se adiantou, olhando as garrafas de vidro azul-escuro sobre a mesa. Tomou-as nas mãos, cheirou-as. Mas nem era preciso uma análise minuciosa. A energia ainda estava ali, forte.
— Você tomou mesmo? Você tomou essa água?
— Acabei de ganhar de um fornecedor... — ela respondeu espantada. — Desculpe, não guardei para você, estava com muita sede.
Kilaim sentia-se mergulhando em franco desespero. De fato, Zor não estava brincando. E, para isso, ele não tinha antídoto.
— Eles conseguiram... — murmurou, deixando-se cair numa das cadeiras da mesa da cozinha.
Apoiou a cabeça entre as mãos, sem saber o que fazer. Seguiu-se um momento de silêncio constrangedor. Claire não ousava fazer qualquer pergunta.
— Mas o que eu fiz pra receber isso deles?! Foi um golpe muito baixo! — falou Kilaim, erguendo-se de supetão. — Como foi que conseguiram? E pourquoi eu não estava aqui pra te proteger? E agora?! Por todas as chamas do inferno... E agora?
— Kim, calma! — Claire exclamou, por fim, assustada. — O que está acontecendo?
Kilaim jogou as garrafas no lixo. E andava de um lado para o outro, passando as mãos pelo rosto, pelo cabelo. E falava sozinho:
— Como pude deixar isso acontecer?! Estou sendo castigado, parce que Deus nunca esquece. Eu escovei os dentes com água benta!
— Você fez mesmo isso? — Se o namorado não estivesse tão alterado, ela teria dado risada.
— Fiz. Ele jamais vai esquecer tudo o que já fiz de mau na vida. Oh! — Kilaim se deu conta de que não era hora de ironias. E sentenciou: — É um castigo de Deus por eu estar profanando você, por eu estar com você, estar acabando com sua vida, te arrastando para o inferno comigo. Foi Deus que me impediu de ficar mais atento! Foi Ele! Mas, agora, o que será de você? Será que Deus não pensa nisso?!
— Kim, fale comigo! Olha, se acalme, sente-se aqui e vamos conversar. — Ela não sabia o que dizer. Mas de uma coisa tinha certeza: — Não foi Dieu. Isso não tem nada a ver com Ele.
— Tem, DA, tem, sim! Ele deveria cuidar melhor de você quando eu não estou por perto! Afinal, Ele é o Onisciente. Ah, como posso me acalmar? O objetivo disso é afastá-la de mim, e pelo pior caminho. Você vai viver o inferno na Terra, parce que isso que bebeu vai causar um dano cerebral irreversível — ele despejou. — Você vai sentir pânico, um medo pavoroso. Vai começar a ter medo de mim, medo das pessoas. Medo do dia, medo da noite, medo de ficar em casa, medo de sair de casa, medo de tudo! Vai ser uma fobia irreversível e incontrolável. Não vai mais conseguir sair na rua. O medo se torna pavor. O pavor se torna loucura. Ouvirá vozes, verá vultos. Até que seja muito tarde...
— E o que podemos fazer?
Ele balançou a cabeça seguidas vezes.
— Não sei. Não existe antiveneno para isso, não será como na Amazônia, Claire. Você vai terminar internada numa clínica psiquiátrica e não vai mais sair de lá. Nunca mais! Nunca mais vou te ver; você vai simplesmente deixar de existir, mesmo estando viva. Essa é a morte em vida. Maldita água!
— Kim...
Kilaim nem escutou. Estava em franco frenesi; naquele momento, parecia que quem havia bebido a água era ele.
— Oh, Claire, perdoe-me! — Ele a abraçou, lutando contra as lágrimas. — Eu deveria estar perto, pois saberia...
— Kim, talvez você esteja enganado. Era apenas um representante comercial; estava oferecendo o produto em todo o condomínio.
— Claire, conheço isso muito bem. Está amaldiçoado, e não é uma Magia qualquer; eles torturaram alguém, mataram alguém para conseguir, agora, destruir você.
— Mas mon amour, a pessoa que veio aqui era bem comum. Acho que pode ser um engano... — Ela estava ficando um pouco temerosa, não tanto por beber a água, mas pela reação inacreditável do namorado.
Kilaim sempre fora muito centrado, racional. Na maior parte das vezes, sabia o que fazer e o que dizer. Vê-lo daquele jeito era muito assustador.
— Não é engano, Claire. Quem dera fosse. Aliás, quem foi a tal “pessoa comum” que entregou essa água? Falaram com você?
— Oui. Foi um moço bem simpático até, e me explicou várias coisas sobre as propriedades da água mineral.
Kilaim nem conseguia escutar direito. Estava realmente perdido.
— Esse tal homem estava com o furgão da empresa? Tinha algum logotipo no veículo?
— Non, era uma pick-up preta, com vidros filmados.
Ele a apertou de novo, forte, como se disso dependesse sua própria vida.
— Ah, Claire. Você acha mesmo que uma empresa ia dar na mão de um simples entregador uma pick-up? Aposto o que você quiser que o vizinho não recebeu a água, não recebeu cortesia alguma.
Ela sentia o rosto espremido de encontro ao peito dele.
— Kim, você está me assustando.
— Você confia em mim, meu bem? — E mais para si do que para ela: — Embora não devesse... Não devesse mesmo...
— É claro que confio, Kim. Confio plenamente.
— Alors, não sei como te dizer isso, mas essa noite você não pode dormir. Não pode dormir de jeito nenhum, Claire, está me ouvindo? O estrago vai ser permanente.
Ele não parava de enfatizar aquele ponto.
— E eu preciso de tempo para pensar... — Kilaim inspirou fundo, e respirar causava dor. Seu tórax doía, sua cabeça doía, seu estômago doía. Mas, especialmente, seu coração doía. Apertava Claire ainda mais forte nos braços, inconformado consigo mesmo. — Quem sabe não consigo encontrar uma solução? Tem que haver uma saída.
Embora nem de longe imaginasse qual poderia ser essa saída.
— Se dormir, nunca mais vai acordar — repetiu. — Está me entendendo? Parce que, quando acordar, não será a mesma. Nessa noite você não pode dormir, amore. Não pode.
— Pourquoi?
— O efeito do encantamento é ativado pelo sono. A melatonina é um hormônio produzido pela glândula pineal e pela retina, somente à noite, no escuro. Duas enzimas, cuja concentração no organismo também são afetadas pelo ritmo claro/escuro, convertem a serotonina em melatonina. Mas o que importa é que, em suma, a energia dessa água vai reagir com sua energia vital, em presença de melatonina, e você vai acordar lesionada.
Kilaim pôs a mão sob o queixo dela, erguendo sua cabeça. Olhou dentro de seus olhos.
— Preciso de tempo pra pensar. Eu vou te ajudar. Você só tem que fazer isto: não durma, não durma.
Ela estava tensa, mas tentou amenizar a situação com uma brincadeira:
— Você acha que vou dormir e Freddy Krueger vem me pegar?
— É bem pior do que isso — ele respondeu com voz grave, sem achar a mínima graça. — Alguém morreu por você.
— Eu sei, Kim, Jesus morreu por mim.
Kilaim soltou uma risada parecida com um engasgo.
— Claire, não importa. Só não durma esta noite. Tem que haver uma saída. Ah, pourquoi você foi beber essa maldita água?
— Nem percebi que estava com tanta sede.
Kilaim deixou-se desabar de novo na cadeira da cozinha defronte aos pratos e copos que Claire estivera arrumando. Enterrou a cabeça nas mãos, o cérebro trabalhando. Não adiantaria nem tentar falar com Zor. Se eles tinham dado a Claire o Cálice do Horror era porque não havia nenhuma chance de diálogo. E se o ritual de Magia Negra tinha acontecido, era com anuência de Lucipher. Estava sozinho. Em breve, estaria mais sozinho do que nunca, pois não teria mais sua companheira.
— O que você quis dizer com “alguém morreu por mim”? — balbuciou Claire, não querendo perguntar, mas tendo que fazê-lo.
— Alguém teve que sofrer muito para o Cálice do Horror ser preparado. Essa carga energética não se consegue assim, tão facilmente. É diferente de um ritual comum.
— Qual é a diferença?
— Imagine essa situação: você diz a alguém que irá morrer. Mas não só isso. Você descreve exatamente tudo o que o espera e como irá matá-lo. Isso produz um verdadeiro terror. E só é assim parce que o ser humano é um ser pensante. Você não pode modificar a essência do medo em um animal usando apenas a palavra, pois ele não tem essa consciência, ele não entende. Portanto, seu sofrimento durante a morte é linear; a não ser, claro, que se use de tortura. Em certas catástrofes, é possível produzir esse mesmo efeito se a iminência da morte perdurar um pouco. Se houver alguns minutos. As pessoas sabem que vão morrer, e isso gera o medo da morte, o pânico, o desespero. Ainda mais se for coletivo. Veja os astecas, por exemplo, uma civilização que, a princípio, foi considerada inferior pelos espanhóis, terminou por se mostrar grandiosa. As maiores cidades espanholas não tinham mais do que cem mil pessoas, nessa época, mas os astecas possuíam cidades com até um milhão de habitantes. O explorador Cortés tentou transmitir o fascínio que lhe causava o Novo Mundo e, claro, a repulsa frente aos rituais de sacrifícios que chocaram os estrangeiros cristãos. A religião asteca, muito intrincada na sociedade, considerava o sacrifício humano como oferenda máxima aos deuses. No centro da cidade, estendia-se um vasto conjunto cerimonial organizado em torno do templo. Ali, dez milhares de pessoas, incluindo sacerdotes e sacerdotisas, cantores, dançarinos, nobres e oficiais de todo o tipo se reuniam para cantos, danças e sacrifícios humanos. Muitas vezes, os soldados capturados em guerra eram usados nos rituais. Mas estes, treinados para lidar com a morte, não se deixavam levar pelo pavor. Era bem diferente se se tratassem de mulheres ou crianças, mais suscetíveis ao medo. Deitados sobre uma pedra, os membros da vítima eram segurados por quatro sacerdotes. Um quinto usava uma faca de obsidiana e abria o peito da vítima. O coração arrancado era mostrado à multidão, e o corpo imediatamente lançado pelas escadarias do templo. Muitas vezes, o principal objetivo das batalhas não era matar ou conquistar, mas aprisionar o maior número possível de pessoas para depois serem entregues aos deuses. Essa era uma guerra muito diferente da europeia, e pessoas como Cortés não entendiam tal prática, nem a religiosidade asteca. Essa foi uma das justificativas para a conquista espanhola. Montezuma era o senhor da cidade de Tenochtitlán e foi contra essa cidade que Cortés lançou sua força. Além disso...
Pensativa, Claire já não estava mais escutando. Kilaim falava sem parar numa tentativa de acalmar-se, e não importava se ela ouvia ou não.
— Kim... — a moça falou depois, perdida. — Você está me contando tanta coisa... E o tal voto de silêncio?
— Claire, a esta altura, garanto que não vai fazer diferença alguma.
— Mas todo ritual envolve tortura? — Ela voltava ao ponto. Estava angustiada com aquela revelação. — Pensei que...
— Non. Nem todo ritual envolve tortura. Aliás, é a minoria. Mas, se vai acontecer, então tem que ser muito bem feito. Se você vai torturar alguém, faça ao máximo. Eletrodos podem ser conectados sobre o peito da vítima, e o som dos batimentos cardíacos, amplificados por caixas de som, evidenciam o galopar cada vez mais rápido do coração. Isso faz com que a pessoa que irá realizar o sacrifício tenha certeza absoluta do momento exato, do momento de maior terror. E a vítima também ouve. A mesa de sacrifício pode ser diferente também: braços e pernas podem ser contidos por pessoas, e não por cordas, porque isso produz ainda mais tensão emocional.
Claire sentiu um arrepio passando pelo meio do peito.
— Nessa situação, a quantidade e a qualidade da energia liberada são diferentes. Isso resulta num potencial maior. A pessoa libera adrenalina, aumenta a temperatura corporal... Hã... Dentre outros efeitos que, pela sua cara, acho melhor nem descrever.
— Eu...
— Jesus sentiu esse pavor antes da morte, recorda-se? Por saber o que iria acontecer com Ele. E o desespero, o pavor, a agonia foram tantos que chegou a transpirar sangue. Se Jesus tivesse X de energia e morresse em profundo estado de terror, o que não aconteceu, é fato — ele acrescentou rapidamente —, liberaria 10X, 50X de energia! Mas Ele entrou, depois, num estado de serenidade... O que é incrível, devo admitir, parce que não é assim que a maioria das pessoas morre. Mas, enfin, o medo é uma preciosa fonte de energia. Nesse sentido, o medo é fonte de vida, de enriquecimento.
Os dois se entreolharam. Claire estava assustada.
— Mas quem foi? Quem eles mataram?
— Uma vítima.
— Eu sei, mas como eles escolhem uma vítima?
— Pessoas que a Sociedade não dá falta. Às vezes prostitutas, indigentes, pessoas sozinhas. Num segundo caso, crianças, por causa da sua pureza.
— Mas como...?
— Elas podem ser sequestradas e desaparecer; ou serem “adotadas” por estrangeiros. Podem nascer e serem levadas da maternidade, e a mãe achará que seu filho nasceu morto. Recebe um caixão lacrado. É simples quando se tem pessoas que colaboram em todos os setores. Em terceiro, as vítimas podem ser pessoas da própria família. Deus diz: “Se você amar mais a seu pai ou sua mãe, não é digno de Mim”; Lucipher diz o mesmo. Sacrificando um membro da própria família, o satanista prova sua lealdade aos demônios e à Organização. Isso remete a muito poder. Aqueles que crescem em poder são os que conseguem entregar os do seu sangue.
Ela olhou para ele demoradamente.
— Não me pergunte, Claire.
Ela soube, então. Kilaim havia entregado alguém do próprio sangue. Ficou quieta. Em seu coração, já ultrapassara o ponto sem retorno e, agora, não tinha mais volta. Estava ali, e ali iria ficar. Saber de tudo era um luxo que ela preferia abraçar.
— Mas quem eles pegaram para sacrificar por minha causa...? — Aquilo a perturbava muito, de modo que insistia.
— Como vou saber? Alguém que pegaram por aí, só que... — ele interrompeu-se a tempo.
Porém, pelo visto, não a tempo o suficiente.
— Quoi?!
Kilaim queria poder recolher as palavras, mas não havia jeito. Mortificou-se ao dizer:
— Provavelmente potencializaram os resultados usando uma adolescente virgem.
Claire cobriu o rosto com as mãos imediatamente e soluçou.
— Claire, não fique com medo! — Kilaim voou na direção dela. — Calma... Vai ficar tudo bem, daremos um jeito!
— Oh, Kim, não é isso! Mataram uma menina, fizeram coisas horríveis com ela, e tudo... tudo para que eu bebesse essa água! — E lágrimas escorriam por suas faces. — Oh, mon Dieu! Pourquoi Tu permitiste tal coisa?
Terminar a arrumação da cozinha tornou-se impensável depois daquilo, quanto mais preparar jantares complicados. Depois de chorar e soluçar, inconformada, Claire acabou se acalmando nos braços de Kilaim. Ele nunca a tinha visto daquele jeito, mas, no fim, até achou bom.
“Já está na hora de ela questionar um pouco as atitudes de Deus.”
Mais tarde, eles apenas pediram um filet mignon grelhado com fritas da padaria, mesmo sem fome. Assistiram ao Jornal Nacional na televisão da sala de estar com a comida apoiada na mesinha de centro. Kilaim preferiu nem sequer entrar no quarto e ver o programa lá. Claire não deveria nem pensar em se deitar.
Naquela noite, Claire não conseguia prestar atenção ao capítulo de Salve Jorge, nem mesmo agora, quando a protagonista Morena havia conseguido escapar da boate com a ajuda de amigos turcos e fora acolhida. Morena corria pelos campos de cabelos revoltos e viu pela primeira vez a dança dos dervixes rodopiantes. Mas Claire não viu. Kilaim não parava de andar, de subir, de descer, de sentar-se e levantar-se. Mas não foi tocar piano, seu refúgio principal; isso era preocupante.
Depois da novela, Claire já estava cansada. A tristeza se acumulara em seu coração como o gelo nas janelas na pior noite de inverno. Uma menina...
— Tô com sono, Kim — ela murmurou, olhando na direção dele.
O rapaz estava plugado na Rede, pesquisando alguma coisa que pudesse fazer para inibir a produção de melatonina. A luz fazia a pineal produzir menos hormônio, mas só isso não era suficiente. Talvez houvesse uma droga que pudesse usar, já que drogas para aumentar a melatonina existiam em alguns países. Com seus conhecimentos bioquímicos, imaginava como criar algum tipo de fórmula que pudesse neutralizar a ação deletéria sobre o organismo de Claire.
Mas não tinha nem tempo nem material à mão.
— Kim, acho que vou dormir só um pouco. Se eu der só um cochilo, talvez...
Kilaim resolveu abrir o jogo de verdade, pois ela não entendia a gravidade do problema. Mas o fez com poucas palavras.
— Você tomou o Cálice do Horror. A água tinha uma carga negativa muito grande, e o dano não será só no seu corpo, mas também na alma e no espírito. É um veneno. Você entende isso? Você bebeu um veneno muito potente para o qual não tenho antídoto.
— Como a maçã da Branca de Neve? — Ela sorriu por um ínfimo instante.
— Pior. Muito pior. Dormindo, vai ativar o veneno. O feitiço se fecha, não há como quebrá-lo. Estou sendo o mais sincero possível, minha querida, se você dormir, acabou. Tente ficar acordada, quem sabe me dá uma luz e descubro algum modo de, pelo menos, retardar isso...
— Uma luz... — Claire repetiu pensativa. E, como quem tem uma ideia, ela saiu do sofá e se aproximou dele. Parecia animada pela primeira vez desde a tarde. — Kim, sabe aquela vez em que Jesus disse aos seus discípulos que, mesmo se tomassem alguma coisa mortífera, não lhes faria dano algum?
— Lá vem você de novo. Eles nem precisaram tomar veneno para que sofressem todo tipo de mal.
Claire falou baixinho, alheia à resposta azeda de Kilaim.
— Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas Eu vou despertá-lo... — Claire não sabia bem se era ela quem falava ou se alguém estaria a lhe falar.
* * *
No Mundo Paralelo, uma luz fortíssima, capaz de cegar e destruir instantaneamente, aproximou-se da casa. Era um serafim. Um dos guerreiros da Sala do Trono, enviado pelo Altíssimo. O capitão Mikhael o aguardava, tendo a seu lado Sol e Arkheell. O restante da Guarda estava a postos. Seriam nove agora.
O Anjo tinha cabelos brancos, compridos e lisos, adornados com uma tiara de ouro, e olhos muito claros, acinzentados, penetrantes. Usava anéis de ouro em todos os dedos e uma corrente feita de cristal maleável, muito brilhante. Suas asas eram azuladas. E possuía duas espadas, uma longa, outra, curta, mas nenhuma delas estava em suas mãos.
Sua luz era suficiente.
Os demônios se afastaram imediatamente, mas sabiam que a presença de Logus não faria mais diferença. Ela já tinha bebido a sua morte.
“Ele está atrasado”, foi o ruído que correu entre eles.
* * *
— O que você disse, Claire? — Kilaim resmungou.
— Kim, Dieu pôde reverter a morte. Pourquoi não poderia reverter um feitiço de morte?
— Esse não é um feitiço de morte física. Você vai ser sepultada viva. Olhe à sua volta e veja quantos zumbis estão por aí, só esperando ser enterrados, quantas pessoas vivendo um dia após o outro, apenas aguardando o beijo da Morte que lhes trará libertação deste pesadelo na Terra. Mas não é isso que estão reservando a você. Você não ficará livre. A morte em vida é a pior das mortes. Por isso, Claire, esqueça qualquer absurdo cristão neste momento.
Mas a garota não pretendia demover-se facilmente. De repente, em vez de só tentar passar o tempo, havia uma fé parecida com a que sentira no dia do acidente com o barco.
— Kim, vamos fazer uma coisa. Você disse para eu confiar em você. — Ela foi se sentando em seu colo, encostando a cabeça na curvatura do seu pescoço. — Mas acho que sei o que fazer. Confia em mim. Me deixa te conduzir para algo que, tenho certeza, vai dar certo. Uma aventura.
— Aventura? — Ele gostava da proximidade, do cheiro dela, mesmo naquela situação calamitosa. — Bom, se você prefere assim... — Achou forças para uma risadinha. — É uma boa maneira de nos mantermos acordados.
Ela se aninhou mais, igualmente apreciando o contato e a intimidade de viverem, juntos, aquele momento.
— Uma aventura, oui. Fantástica e maravilhosa. Nas crises, os casais sempre crescem.
— Desde que vençam a crise, Claire, e...
— Confie em mim... — Enfiou os dedos entre os fios macios e sedosos dos cabelos dele, depois da hidratação.
— Tá bem. — Ele passou os braços pela cintura dela. — Diga.
— Vamos fazer uma vigília.
Kilaim sentiu como se um choque elétrico atravessasse seu cérebro, o que o fez dar um grito involuntário de indignação, que simplesmente saiu de seu interior. Um grito que ajuntava todo o medo, a ira, a impotência e o desejo, tudo numa única nota.
— QUOI?!
O corpo dele deu um tranco repentino, o que fez a cabeça de Claire pipocar.
— Mas o que foi, Kim?
— Vigília? Você só pode estar louca! Por todas as labaredas...!
— Numa vigília a gente fica acordada, não é esse o objetivo? Vamos passar por esta crise juntos e crescer com isso.
— Claire, respeito a sua ideia — ele se esforçou muito em ser mais cordato —, mas preciso continuar pesquisando. Sinto muito.
— Mas você tinha concordado em fazer o que eu dissesse...
— Só que eu não sabia que era... — Ele deu um tapa na própria testa. — Deveria ter imaginado o teor das suas ideias. E, afinal, o que se faz numa vigília? — Kilaim tinha consciência de estar sendo grosso, um contraste gritante com a meiguice dela. Ele se levantou da cadeira, deixando Claire escorregar do seu colo para o assento.
— Kim! Você mesmo disse que não há saída!
— Se você tivesse um pingo de bom senso, se não fosse tão boa e tão crédula no meu amor imperfeito e no Amor de Deus! Se não ficasse acreditando que Ele “me trouxe” para você e que eu era a “pessoa certa”, você jamais teria vindo comigo. Olha só no que deu!
Ela se ergueu também e ficou parada diante dele, olhos fixos no seu rosto.
— Quanta besteira você fez, Claire...! Quanta...!
Claire segurou as mãos de Kilaim, que teimavam em gesticular, desgovernadas. Ela se lembrou de quando eles estavam vindo para o Brasil, quando Kilaim lhe contara sobre o banimento de Lucipher e, sem querer, esmagara a taça de vinho, cortando sua mão.
Ela só queria que ele se acalmasse, mas a força do gigante quase a empurrou para o chão.
— Mas que... desculpe-me, Claire. — Kilaim a ajudou a se equilibrar.
— Kim, está tudo bem. S’il vous plaît, só me escute — ela falava com firmeza dessa vez.
— Claire, simplesmente desgracei a sua vida.
— Você é mon amour. Ponto-final. Pare de falar tanta besteira! — Ela deu bronca nele, falando com toda a seriedade. E foi tanta, que Kilaim até emudeceu por alguns instantes e se deixou abraçar, pousando a testa sobre o ombro pequeno dela.
— Você não me desgraçou. Nunca mais diga isso! — Claire falou. Era a primeira vez que ficava irada de verdade com o namorado.
Aquela reação indignada da moça pareceu funcionar. Era tão estranha que, para Kilaim, foi como tomar outro choque elétrico, que contrabalanceou o primeiro.
— Vamos fazer a vigília? — Claire indagou, agora com mais brandura. — Que opção nós temos?
— Tenho que pesquisar. É possível que...
Ela olhou fundo nos olhos dele.
— Nenhuma — Kilaim admitiu num suspiro, mas não se deu por vencido. — Só que uma vigília também não é solução. Parce que, se eu bem me lembro, na última vigília narrada nas Escrituras os discípulos DORMIRAM! — Kilaim deu outro urro, sem conseguir conter-se. — Parce que vigília é um porre, um tédio!
Dessa vez, Claire acabou balançando a cabeça e sorriu. Sua raiva durava pouco.
— Podemos tentar fazer diferente... Caraca, mano! Que coisa que você tem com o Cristianismo, mon Dieu! Há coisas que nunca vou conseguir entender em você. Acho que só o tempo...
— Se o chacal e o beija-flor se apaixonaram, é parce que são burros. Não entenderam que, cedo ou tarde, tudo iria dar errado.
Mas Claire estava estranhamente confiante. Subiu, foi até o quarto master e pegou na gavetinha da cômoda um pen drive que trouxera da França, com músicas de louvor. Ela ignorou a ojeriza do rapaz com aquilo e plugou o objeto no aparelho de som da sala. Depois, foi para a cozinha, colocou água na chaleira e tirou da despensa um pacote de biscoitos de canela.
— Ué, vamos tomar café e comer na vigília? — Kilaim falou, observando, pois tinha ido atrás dela na cozinha. — Vocês não fazem jejum?
— Kim, o que seu pai faz quando você o visita?
— Bom, se eu tivesse um pai — ele resmungou —, acho que, quando eu chegasse, ele prepararia uma mesa.
— É isso. É assim que o Pai Celestial faz para receber um filho. Foi assim que o filho pródigo foi recebido. E nós, nesta noite, vamos receber uma visita.
Kilaim não estava muito crédulo quanto a isso, mas sentia-se um pouco mais calmo. Pelo menos, Claire não iria dormir tão já. Aliás, ela falava com uma confiança que realmente o intrigava. Se fosse outra mulher, depois de saber que estava debaixo de uma maldição tão funesta, naquele momento estaria ensandecida. Para dizer o mínimo.
Pelo menos Claire não fazia escândalo. Nunca fez. Tinha muita coragem.
Ele se sentou à mesa e ficou quieto enquanto a namorada tirava um prato decorado do armário e passava a colocar biscoito por biscoito, formando círculos. Como Claire era esquisita, às vezes, quando se tratava de ter fé. Esquisitíssima!
“Well, nisso somos parecidos. Eu sou estranho, e ela é estranha.”
A chaleira começou a apitar. Claire deu um beijo na testa de Kilaim.
— Kim, vai lavar o rosto, suas mãos. Vai se sentir melhor. Esta noite vai ser maravilhosa, acredite.
Ele estava perplexo e obedeceu sem questionar, como um bom menino. Ao olhar-se no espelho, com as gotas de água escorrendo pela face, continuava pensando:
“Ou essa menina é doida varrida, parce que esse comportamento não é normal ou é algum tipo de negação muito profunda e tudo vai terminar realmente mal”, ele puxou com força a toalha do gancho e enxugou o rosto.
“Ou, alors, tem realmente alguma coisa que ainda não entendi. Essa calma não faz sentido. No barco, ela foi pega de surpresa, não teve tempo de raciocinar, agiu por instinto, por impulso. Mas agora é diferente. Ela já teve bastante tempo para refletir em tudo que eu disse...”.
Quando Kilaim voltou para a sala, havia, na mesinha de centro, uma garrafa térmica com o café, o prato de biscoitos, outro prato com damascos secos e somente um abat-jour aceso, perto deles. O louvor estava tocando, baixinho. Claire tinha colocado almofadas no chão, ao redor da mesinha, e sua Bíblia estava aberta ao lado dos pratos.
Não fosse por aquela musiquinha chata, o ambiente estaria bem agradável. Mesmo assim, ele voltou a ficar tenso. Tudo aquilo era muito diferente, e ele ainda não tinha certeza de que queria participar. Acomodou-se no chão sobre as almofadas, de um lado da mesinha. Claire ficou ao lado dele e estendeu a Bíblia aberta em sua direção.
— Você já fez isso antes? — Kilaim desconversou. — Uma vigília?
— Já conversei com Dieu de madrugada, muitas vezes. “Vigília” é só um nome... — Empurrou a Bíblia um pouco mais para perto dele.
— Eu não vou ler.
— Pourquoi?
— Não quero.
— Kim, estamos numa vigília.
— Nem começou e já está muito chato.
— Que coração duro, Kim. Não consigo imaginar como é que Deus vai entrar aí. — Olhava-o nos olhos. — Mas Ele vai encontrar um meio, disso eu sei.
— Não vou ler — o jovem repetiu arredio. — Já conheço esse Salmo, e é uma besteira.
— Ça va. Deixa que eu leio.
Não era hora de se concentrar na teimosia de seu namorado, mas de se concentrar em Dieu. Pois Ele viria. Então, Claire puxou a Bíblia de volta e leu devagar:
— “Elevo os meus olhos para os montes; de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra. Não deixará vacilar o teu pé; aquele que te guarda não dormitará. Eis que não dormitará nem dormirá o Guarda de Israel. O Senhor é quem te guarda; o Senhor é a tua sombra à tua mão direita. De dia o sol não te ferirá, nem a lua de noite. O Senhor te guardará de todo o mal; ele guardará a tua vida. O Senhor guardará a tua saída e a tua entrada, desde agora e para sempre.”
Enquanto ela lia aquelas linhas, Kilaim começou a comer compulsivamente os biscoitos e encheu uma caneca grande de café, a qual tomava sem parar.
Claire se abstraiu do “croc, croc, croc” e começou a cantar baixinho, acompanhando a música, a orar. Kilaim só observava intrigado.
“Cachu, contanto que ela não durma, tá valendo. Quando se cansar disso e me liberar, volto para a internet.”
Mas, lá pelas tantas, a curiosidade sarcástica dava lugar a certo respeito. E passou a ouvi-la com mais atenção.
— Não sei o que está acontecendo, Pai. Mas peço que Seus anjos me guardem. Eu não posso dormir... Mas o Senhor nunca dorme, e seu poder é maior do que qualquer outro.
De tempos em tempos, Claire abria a Bíblia e lia outra passagem. Quando o fez pela terceira vez, escolheu o texto do endemoninhado gadareno. E novamente falou baixinho:
— Todas as entidades se submetem ao Rei dos Reis; nada acontece sem que Ele permita.
Ela se voltou para Kilaim:
— Vamos cantar, Kim? Vou pegar o violão.
Eles haviam estado na Casa Manon no dia anterior, na Avenida Ibirapuera, em São Paulo, comprando algumas partituras que Kilaim desejava, e ela garantiu que sabia tocar um pouco de violão. Por isso, compraram um. Ele ainda não a ouvira tocar, só sabia que tinha arrumado na internet alguns louvores brasileiros para ajudar a treinar o idioma.
Claire subiu e desceu com o instrumento, toda sorridente. Sentou-se e começou a cantar Poderoso Deus, uma música que Kilaim literalmente detestou, embora procurasse se controlar e ficar calmo.
— “Ao que está assentado no Trono, e ao Cordeiro, seja o louvor.
Seja a honra, seja a glória, seja o domínio pelos séculos dos séculos...”.
Quando chegou o refrão, aquele choque elétrico de novo fez o corpo do rapaz pular, e o café pulou junto, saindo da caneca e caindo na mesinha.
— “Poderoso Deus...!
Poderoso Deus... Poderoso Deus...!
Minh’alma anseia por Ti!”
— Non, non, non, isso está horrível, minha nossa. Was für ein Unsinn! Como Deus pode ouvir uma coisa dessas?! Com mil trovões! Um amiguinho nosso cantaria essa música bem melhor.
Claire fez cara de quem não entendeu.
— Amiguinho nosso?
— Um satanista, Claire, um satanista. Profanar essas musiquinhas e deixar nossa marca é sempre uma alegria. Isso está muito chato, monótono. Desse jeito você vai acabar dormindo.
Ele pegou o violão das mãos dela. Afinou adequadamente. Dedilhou. De mau humor.
— Vai, allez: você canta e eu toco — disse Kilaim. — Não tem uma mais animadinha, não?
— Mas você sabe tocar violão? Que incrível!
— Para esse tipo de musiquinha não tem muito segredo.
— Leão de Judá! É outra que aprendi em português — respondeu Claire animada.
— Leão de Judá? Hum. Canta aí pra eu ver como é.
— Tá!
— “Ouve-se o júbilo de todos os povos,
Os reis se dobraram ao Senhor.
Ouve-se o brado de vitória
O dia do Senhor chegou.
Ouve-se em todos os povos
Que o novo Rei surgiu.
Impérios reconhecem
Que sua destra reinará
Leão de Judá!
Leão de Judá!
Leão de Judá prevaleceu!
E os povos verão
E virão a Sião aprender sua lei.
Pois a sua justiça governará.
Leão de Judá
Leão de Judá
Leão de Judá prevaleceu!”.
Até que Claire tinha a voz boa. Kilaim transformou a música, incrementou-a, fez uma segunda voz e transformou aquilo numa festa, só para ela ficar contente. “Contente” significava acordada.
— “Leão de Judá”!
Quando Kilaim terminou o último acorde, viu que Claire estava chorando.
— Claire, pourquoi está chorando? — perguntou preocupado. Na melhor das hipóteses, quem sabe ela estaria emocionada com sua inacreditável performance ao violão?
— Nada; a música ficou muito linda. É que o nosso louvor... — Ela engoliu, tentando conter as lágrimas, mas não conseguiu. E chorou abertamente. — Nossos pedidos chegaram lá...
— Lá, aonde?
— Na Sala do Trono. E Ele nos ouviu. Nenhum mal vai me acontecer.
Ela se jogou contra ele, abraçando-o. Kilaim ficou alisando as costas dela. Estava aflito. Aquilo parecia uma loucura. Ou melhor: era uma loucura. Umas leituras, umas rezas... Umas musiquinhas... E isso punha fim ao Cálice do Horror?
“Raios! Até parece...”.
— Como é que você sabe? — perguntou ele, por fim, ressabiado.
— Kim, você não sente?
— Não. Sentir quoi?
— Os Anjos estão aqui. São vários. E tem um Anjo que é especial... — De novo ela sentiu a emoção subir pelo peito. E repetiu: — Nenhum mal vai acontecer.
— Não estou sentindo nada, Claire, sérieu. E sou muito bom em perceber essas coisas.
— Talvez você perceba bem os demônios, mas não o que vem de Dieu. Ainda. — Ela se afastou um pouco para enxugar as lágrimas. Seu coração transbordava.
— Claire, tem certeza? Não pode ser assim tão simples, um feitiço dess...
— Pode ficar tranquilo agora, Kim. Olha! — Ela folheou sua Bíblia ainda mais uma vez, procurando outra passagem. — “Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados Ele o dá enquanto dormem.” — Ela olhou para Kilaim de novo. — Ele nos dará o livramento hoje. Enquanto dormimos. Já podemos dormir!
— Nein, Claire, toma um café. Você nem tomou. — Kilaim pegou a garrafa térmica. — Cachu, tomei tudo. Já faço outro. Allez, vá comendo um biscoito, olha, sobraram dois.
— Não quero nada. — Ela apenas sorria. — Estou muito cansada.
Mesmo assim, ela ergueu a voz, num murmúrio, enquanto pegava a manta que estava em cima do sofá e a puxava para si. Kilaim conseguiu escutar o que dizia:
— Meu Pai, tenha misericórdia da vida daquela menina, receba-a em Teu Reino. S’il vous plaît, console sua família de um modo especial...
Claire se ajeitou ali mesmo, no chão, apoiando a cabeça nas almofadas.
— Deite-se aqui também.
Kilaim se acomodou, passando o braço ao redor dela. Claire puxou a cabeça da almofada para o peito dele quase sem perceber. E dormiu.
O rapaz ficou escutando a respiração dela e avaliando o que acontecera. Não sabia bem o que pensar. Percebeu logo como estava cansado também. Um cansaço estranho, uma mistura de emoções agudas e músculos retesados que, pouco a pouco, relaxaram.
E ele dormiu.
* * *
Mais tarde, Kilaim acordou. É que um raio de sol estava entrando pela janela semiaberta da sala e batia direto no seu rosto. Ele puxou a manta para cima, perto dos olhos, e estava quase dormindo de novo quando o iPhone acendeu.
Kilaim ergueu a cabeça. O aparelho não tinha tocado; mas ele viu a hora: cinco da manhã. Bocejou e voltou a dormir.
Não percebeu que o dia ainda não estava claro realmente, e que não era a luz do sol na janela.
Uma luz que não existia no Mundo dos homens.
* * *
Às nove horas, Kilaim se sentiu desperto e bem descansado. Só então caiu em si.
“Tinha uma luz que vinha pela janela. Mas ainda não tinha amanhecido...”.
Chamou Claire de imediato, chacoalhando o ombro dela, tentando não ser bruto demais. Tinha que ver como ela estava.
— Claire? Claire?!
— Bonjour, Kim... — Ela se espreguiçou que nem gata, esticando todo o corpo. — Nossa, dormimos aqui a noite toda. Mais parece que desmaiamos, hã?
— Claire, você está bem?
— Estou ótima, mon amour. E você, dormiu bem?
— Dormi, dormi, mas não é isso que estou dizendo... Você está mesmo bem?
Então ela se lembrou.
— Eu estou bem. — Sentou-se no chão, avaliando-se. Não havia nada de errado, e ela ficou olhando para ele e sorrindo, toda feliz. — Estou mesmo. Está tudo bem!
Kilaim ficou estupefato. Estreitou-a nos braços, amassando-a.
— Você não está sentindo nenhum... medo? Nada de diferente? Sua visão está normal? Nenhum vulto, nada...?
— Você não tá vendo, Kim? Continuo a mesma!
— Tive muito medo de te perder... — Ele a apertava mais, num misto de alívio e euforia.
— Ai, você está me esmagando.
Ele afrouxou um pouco o aperto.
— Nesta hora, já era para eu estar mal? — Claire indagou, erguendo o rosto para ele.
— Oui. Já acordaria com sintomas psicóticos e só iria piorar. Nenhum tratamento funcionaria, nada de nada.
— Dieu nos ouviu.
Ele não respondeu. Não havia o que responder. Então deu um sorriso aberto:
— Isso merece uma comemoração. Vamos comemorar bastante!
Kilaim segurou Claire nos braços, levantou-a do chão e subiu a escada até o quarto do casal. Colocou-a sobre cama e, então, contrário ao que sempre fazia, voltou e fechou a porta.
Disse, baixinho, mas radiante:
— E se há mais alguém por aqui, trate de ficar do lado de fora.
* * *
DIÁRIO DE CLAIRE
Fiquei sabendo de coisas terríveis. Tanto por meio dos sonhos — melhor dizendo, pesadelos — quanto pelo que o Kim me contou. Sei que o Pai dispõe as situações na vida de forma a trazer crescimento. Tudo tem um propósito, tudo colabora para o bem daqueles que amam a Dieu e que são chamados segundo o Seu propósito; e eu O amo! Mais que minha vida, mais que tudo.
A viagem, tudo o que conversamos, tudo o que ele me mostrou do seu poder — que ainda existe — e, especialmente, os últimos acontecimentos... Acho que entendi melhor o que ele viveu. Terminar de desenterrar tudo isso é tão importante que Dieu tem optado por um caminho contundente. Sonhar ao invés de esperar que ele me conte. Sofrer esses ataques, um após o outro. Talvez seja para apressar as coisas, je ne sais pas. Para me fazer saber onde estamos pisando.
Pourquoi? Eu não sei.
Igualmente, não sei o que devo fazer a respeito. Creio que Dieu dirá se há algo a fazer, trará a direção como trouxe a tantos outros antes de mim. Pode ser também que não haja nada a ser feito, exceto esperar e orar por ele. Sei que discussões longas são infrutíferas.
Por outro lado, para haver perdão, tem que haver arrependimento primeiro. Quando Kim menciona o Satanismo, na maior parte das vezes o faz como quem dá uma aula, explicando doutrinas e formas de pensamento, justificando os rituais, citando nomes de entidades como quem fala de presidentes e reis. E escapa habilmente de se inserir no contexto e falar de maneira pessoal.
Muitos meandros já percorremos, mas tenho certeza de que não é tudo. Ainda. Quero poder conhecer o cerne de suas emoções e os verdadeiros sentimentos sobre tudo o que aconteceu em sua vida. Quero partilhar isso, mesmo sendo uma história terrível.
Se isso muda meus sentimentos por Kilaim ou traz qualquer sensação de arrependimento?
Non!!
De modo algum.
Meu coração grita por ele, e eu continuo amando-o.
Claire Cécille
* * *
19
Vallée
Zor conversava com Orion pelo celular. Seu tom de voz soava baixo, demonstrando uma irritação controlada.
— Não sei o que essa menina tem — ele disse rancoroso. — A verdade é que estamos com um problemão, mas que merde!
— Pelo que estou sabendo, as entidades deram ordens para mudar a estratégia.
— Exato. Vamos redirecionar os feitiços e atingi-la por outro ângulo. — E perguntou: — Já leu Sun Tzu?
— A Arte da Guerra? Non.
— Gosto muito desse livro e estava a folheá-lo esta noite. Escute isso — a voz estava menos grave, mas ainda irritada —: “Em batalha, use geralmente operações ‘diretas’ para fazer o inimigo engajar-se na luta, e as operações ‘indiretas’ para conquistar a vitória. Não há mais que cinco notas fundamentais, mas, combinadas, produzem mais sons do que é possível ouvir; não há mais que cinco cores primárias, mas, combinadas, produzem mais sombras e matizes do que é possível ver; não há mais que cinco sabores, mas, combinados, produzem mais gostos do que é possível saborear. Da mesma forma, para ganhar vantagem estratégica na batalha, não há mais que as operações ‘diretas’ e ‘indiretas’, mas suas combinações são ilimitadas, dando origem a uma infindável série de manobras. Essas forças interagem, um método sempre conduz ao outro. Assemelham-se, na prática, a uma cadeia de operações interligadas, como anéis múltiplos, ou como a roda em movimento, que não se sabe onde começa e onde termina”.
— Isso nós sabemos fazer com maestria, n’est-ce pas? É o Anel de Fogo. — Orion não era de muitas palavras.
— Oui. Mas alguma coisa está errada. Nosso amigo Sun Tzu também diz: “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece, mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas”.
— Nós conhecemos perfeitamente nossa força e nosso poder — resmungou o outro. — Também conhecemos a fragilidade dos cristãos.
— Vrai. A questão é que a Pollyanna tem alguma coisa que ainda não sabemos o que é.
Houve um momento de silêncio.
— Seria selada...? — aventou Orion discretamente.
Duas ou três ruidosas inspirações se fizeram ouvir.
— As entidades não conseguem ver nada — volveu Zor, por fim. — Claro que aqueles Anjos dificultam muito uma boa avaliação. Especialmente agora, com aquele serafim brilhante esvoaçando por lá.
— A questão é: Deus daria essa guarda a qualquer um?
Zor deu uma rosnada do outro lado da linha. Deveras.
— Não temos certeza sobre o Selo, mas não vamos esperar para saber. O próximo ataque trará resultados, pois vamos atingi-la indiretamente. Se ela não cai por si só, faremos com que caia por levar um encontrão bem dado, vindo de onde menos espera. Está tudo preparado. Vamos lançar nosso míssil onde não há nenhum Guardião da Luz para se colocar na frente.
— Já é bem tempo!
* * *
Em Lyon, naquele mesmo dia, na hora do lanche de Anne-Sophie, madame Darci achou a criança letárgica e inapetente.
— Allez, mon amour... Você não quer comer? — indagou a mãe de Camille para a neta, irmã caçula de Kilaim. — Olhe os morangos que você gosta.
Anne-Sophie choramingava, indisposta, e acabou vomitando no chão da cozinha mesmo sem ter comido. Madame Darci pegou rapidamente um pano de prato para limpar a criança.
— De manhã você estava tão bem, brincando... O que você tem? — perguntou ela de novo, preocupada.
O bebê de 1 ano e 9 meses não sabia explicar.
— Doendo... Minha cabeça...
— E a barriguinha dói também?
— Non...
Sem explicação, mais vômito. Anne-Sophie começou a chorar abertamente, com a roupa e a boca sujas. Madame Darci, em vão, tentava acalmá-la enquanto a levava ao banheiro, abrindo o chuveiro. Ao retirar as roupas da menina, de repente sentia-a febril. O rosto estava vermelho e muito quente, bem como seu corpo, que apresentava pequenas lesões vermelhas como se fossem picadas de mosquito.
Era muito estranho. Seria uma reação alérgica?
Madame Darci deu um banho morno em Anne-Sophie, conversando com ela e procurando fazê-la se sentir melhor. Todo o tempo a criança reclamava da dor de cabeça, entre lágrimas. Tendo lhe posto uma roupa limpa, madame Darci deixou-a no berço e correu até a cozinha para pegar um antitérmico.
— Vai servir também como analgésico para a dor de cabeça. Mas será que ela vai conseguir tomar o remédio com todo esse vômito? — indagava-se madame Darci, falando sozinha. — Que coisa mais repentina. Agora há pouco estava tudo tão bem...
Voltou ao quarto do bebê segurando na mão uma canequinha com água e uma colher com as gotas de antitérmico.
Num segundo, tudo foi parar no chão, e a senhora correu até o berço, em pânico, gritando o nome da neta.
A convulsão tomava o corpo da menina em espasmos; sua cabeça estava jogada para trás e a saliva escorria pelo canto de sua boca.
* * *
Final da tarde em São Paulo.
Quando o iPhone de Kilaim tocou e ele viu o número do Nonno, imaginou que talvez fosse mais uma cobrança para sua volta ao trabalho.
Ele atendeu e já foi dizendo:
— Nonno, não vou voltar agora, será que já não sabe disso? Aliás, quero te falar: andei pensando e não vou assumir a Logos. Não tenho essa vocação. Estou feliz aqui.
A voz de signore Arthuro veio pelo telefone, embargada.
— Kilaim, me escute.
O tom era tão estranho e sofrido, tão fora de propósito, que Kilaim se ergueu de imediato da cadeira onde estava sentado, no seu escritório, diante do computador. Em estado de alerta, deu-se conta de que em Lyon já era madrugada, hora pouco provável para uma ligação.
— Cachu... o que foi?
— É a sua irmã, mon fils. A pupa está internada.
Houve a sensação de algo batendo em sua cabeça de imediato. O coração começou a acelerar, pulando na garganta. Incapaz de ficar sentado, Kilaim caminhou em direção à porta do escritório.
— Como assim? Pourquoi?
— Uma suspeita de meningite.
Algo na voz de signore Arthuro não convencia.
— Suspeita? — Kilaim não estava disposto a ser ludibriado.
— Non — signore Arthuro esmoreceu, com um suspiro doído. — Não é só uma suspeita. Ela está com meningite. Aguardamos os resultados de exame para confirmar o tipo, mas, pelo que parece, é do pior tipo. Ela está com o corpo cheio de manchas, Dio mio, o que significa que há grande quantidade de bactérias circulando pelo sangue. Isso pode terminar numa infecção generalizada, uma septicemia que, pelo que entendi, leva à queda brusca da pressão arterial e pode causar o choque. Uma situação clínica muito grave. O tratamento com antibiótico já está em andamento, mas tudo pode acontecer nas próximas 24 a 48 horas. Estamos aguardando a avaliação do neuropediatra, parce que ela estava meio estranha, sonolenta... E teve convulsões...
— Qual é o estado dela agora?
— Não está bem. Não está. Pode morrer... Pode ficar com sequelas neurológicas irreversíveis... Oh, mon Dieu. Aconteceu tudo tão rápido. Acabou de subir para a UTI.
Kilaim nunca vira o Nonno naquele estado. Ele, que sempre fora esteio da família em todas as dificuldades, parecia desmoronando.
— Você e ela são tudo o que nos restou de Camille e do meu neto Ethan. Venha para cá, s’il vous plaît, Kilaim. Pode ser a última vez que você veja sua irmã.
— Nonno, não se preocupe — ele disse com convicção. — Ela vai ficar bem. Verei o que posso fazer.
Kilaim desligou o telefone e ligou imediatamente para Zor. Sabia muito bem o que estava acontecendo. Ouviu o som de atender do outro lado.
— Zor, o que foi que vocês fizeram? Estão loucos?!
— Seu tempo acabou. Você já está ciente disso faz tempo. Te aguardamos no próximo voo — falou Zor sem um pingo de emoção na voz. — Não pague pra ver. A corda sempre arrebenta no lado mais fraco. E não preciso te dizer qual é o lado fraco da história.
E o sumo sacerdote cortou a ligação na cara de Kilaim, que ficou muito irado. E bastante temeroso. Claire o escutou ao telefone e entrou no escritório, com olhos interrogativos.
— O que foi? — perguntou, pois tinha notado o tom de voz dele, e agora o semblante cheio de nervosismo.
— Nada.
Mas a tensão era palpável no ar.
* * *
Noite.
Kilaim tocava piano havia quase três horas, ininterruptamente, sem pausa para o jantar ou para qualquer outra coisa. Claire estava preocupada, pois era óbvio que alguma coisa estava acontecendo.
Sem disposição para comer sozinha, depois de um banho, ela apenas se deixou ficar na frente da televisão. Assistiu à novela e depois, procurando se distrair, mudava de canal a toda hora. Deixou no Jornal da Globo, por fim, e olhava, sem muita curiosidade, para a fumaça branca saindo da chaminé da Capela Sistina, que estava sendo mostrada em todos os noticiários. Escutou o mais velho dos cardeais anunciando “Habemus Papam!” na fria e chuvosa Praça de São Pedro. Fora eleito o primeiro Papa latino-americano, o argentino Jorge Mario Bergoglio, o 266º Papa, antigo jesuíta que assumiu o nome de Francisco.
Embora Claire quisesse se abstrair, era impossível ignorar a carga emocional impregnada nas notas que ecoavam da saleta de música e que a incomodavam: músicas pesadas, dissonantes, com acordes e arpejos vigorosos; e agora, a indelével tristeza das melodias desconhecidas, tão pungentes e belas que a garota começou a chorar. A inquietação alojada no meio do peito continuava forte, opressiva.
Alguma coisa séria estava acontecendo.
Começou a orar baixinho em meio às lágrimas. Pedia proteção, e que Deus visitasse o seu amado.
— A dor dele é minha dor, meu Pai... E a nossa dor é a Tua. Cuida de nós e nos visita com a tua Paz. Usa-me como um instrumento para ajudar o Kim. O que devo fazer?
Ficou quieta, e uma infinita tristeza tomava conta do seu coração. Uma tristeza desproporcional, como se a própria tristeza de Deus a invadisse. Continuou orando, suplicante. Como sempre fazia, pediu pelo auxílio dos Anjos, pela presença deles, guerreiros vigilantes. Ela acreditava na Palavra de Deus de forma literal:
“A seus Anjos dará ordens a teu respeito, para que te guardem.”
A fé de Claire era simples e forte. A despeito de toda a relativização feita por Kilaim, ela percebia que nada tinha mudado. Para ela, bastava a Palavra. Se Dieu disse, era porque assim era. Se Ele prometeu, era porque assim se cumpriria.
— Pai, o Kim precisa de Ti. Não sei qual é o problema, mas Você sabe, parce que Você sabe de todas as coisas. Acredito no Teu Amor, no Amor de Seu único Filho que morreu na Cruz para que a Vida nos fosse dada. — Ela deu uma fungada, enxugando as lágrimas. — Kim precisa desta Vida! E sei que Você irá dispor as circunstâncias de maneira que ele seja levado a fazer uma escolha entre as Trevas e a Luz. Sem crise, não há motivo para escolher. É difícil, mas necessário. Toma toda essa situação nas Tuas Mãos.
* * *
Quando amanheceu, em Lyon instalava-se um pesadelo de terríveis proporções e que estava apenas começando.
— Ela não está aqui!
O chefe da UTI Pediátrica foi chamado às pressas ao Hôpital pelo médico plantonista.
— A enfermagem alertou-me sobre o ocorrido às cinco da manhã; eu tinha acabado de me deitar um pouco. Não falei com a família ainda — disse o plantonista perplexo. — Que providências devemos tomar? Isso é inconcebível! A segurança já foi acionada, é claro, mas creio que é melhor monsieur docteur vir imediatamente, pois temos um problema imenso nas mãos.
Madame Darci e Alannah haviam passado a noite sentadas num sofá no corredor, já que Anne-Sophie estava internada na unidade de terapia intensiva e no isolamento. A senhora idosa dormira um pouco, a cabeça apoiada numa blusa colocada sobre o encosto do banco, mas Alannah ficou acordada a maior parte do tempo.
Não havia muita movimentação por ali, e o corredor ficou à meia-luz depois da uma hora da manhã. Alannah tinha se postado num local onde podia iluminar razoavelmente seu livro e ficou lendo durante a madrugada. De vez em quando se erguia para esticar as costas e diminuir um pouco aquela dorzinha no cóccix. Não havia o que fazer a não ser aguardar e rezar para que o organismo da menina reagisse.
Que suplício.
Eram seis e meia da manhã quando receberam a notícia mais absurda de todas: o bebê tinha simplesmente desaparecido. Faltou pouco para madame Darci ter um colapso nervoso e, amparada pela nora, conseguiu tomar um calmante.
O chefe da UTI, que já estava no Hôpital havia algum tempo e fora inteirado dos acontecimentos, veio dar satisfações às duas mulheres sobre o desaparecimento da criança. Estava bastante aturdido.
— A segurança já está verificando as câmeras. Isso nunca aconteceu aqui, é absurdo. Não sabemos o que pensar.
No telefone, aos prantos, madame Darci falava com signore Arthuro.
— Não sei como isso é possível! Não entendo o que significa, e não sei se posso suportar.
Alannah estava arrasada, mas se esforçava em amparar a sogra. Aquela família parecia estar se dissolvendo aos poucos, e pelos piores caminhos. Primeiro, o desaparecimento de Ethan, há um ano e meio; depois, a morte de Camille, há poucos meses. Então, Kilaim jogara tudo para o alto e se fora para o Brasil, e agora...
Agora seria um golpe duro demais. Parecia uma maldição.
— Venha para cá, Nonno! — gritava madame Darci. — S’il vous plaît, avise meu marido. Não tenho forças para mais nada.
Alannah telefonou para Marc, seu marido, filho de madame Darci, e também chorava pelo telefone ao explicar o que ocorria.
— Mon amour, não diga nada às meninas ainda... — ela pediu, referindo-se às filhas adolescentes. — Nem à madame Lyla, a pobrezinha é capaz de morrer desta vez.
A grand-mère tinha definhado muito após a morte de Camille, já que as duas eram bastante ligadas. Precisavam poupá-la ao máximo.
— Venha para cá, Marc. Não demore. Não sabemos o que fazer.
Depois de telefonar ao marido, Alannah buscava mais alguma coisa para fazer, qualquer coisa. Então resolveu avisar Pietro, que fora um grande amigo de Camille. Afinal, era a filha dela. E os dois estavam mais próximos depois de passarem juntos a terrível noite da morte de Camille. Era como se a vida um do outro, agora, fosse um substituto para a ausência dela.
— Fique um pouco conosco — Alannah pediu. — Nem que seja só para fazer companhia.
* * *
A manhã em São Paulo estava fresca e encontrou Kilaim insone, zanzando pela casa. O último telefonema do Nonno tinha sido uma hora atrás, para contar do desaparecimento da menina. Kilaim custava a acreditar em que ponto as coisas estavam chegando.
— Ela sumiu mesmo — dissera o patriarca, numa incalculável tristeza. — Ninguém sabe, ninguém viu. As câmeras não mostram nada, simplesmente estavam desligadas. A última coisa de que temos registro é a internação dela e os primeiros cuidados. Depois disso... Mais nada. Parte dos exames saiu. Acharam bactérias no exame direto do líquido da coluna, então é uma meningite bacteriana. A cultura desse líquido sai em dois dias. Mas, pela evolução do quadro, o médico nos disse que, provavelmente, é meninco... meningo... menongocócica.
— Meningocócica — disse Kilaim, as costas travadas na mesma posição.
— Mas o que é pior: ela tinha já sinais de uma infecção generalizada no sangue, o que pode avariar outros órgãos. Sem tratamento... fica difícil ter esperança. Já acionamos a polícia, mas não sei que caminho poderia seguir. Estamos completamente no escuro.
Signore Arthuro tomou fôlego e pediu, de novo:
— Kilaim, venha para Lyon! Você é inteligente, vai conseguir nos ajudar a pensar. Talvez possa ver o que não estamos vendo, parce que você sempre foi assim, desde pequeno. Sempre com uma maneira diferente de enxergar tudo, com um senso aguçado, uma intuição...
Kilaim não soube o que dizer ao Nonno. Estava sem chão.
— Verei o que posso fazer.
Depois dessas últimas notícias, Kilaim voltou a ligar para Zor.
— Zor! Falei com meu Nonno e...
O sumo sacerdote nem o deixou continuar.
— Oui, ela está aqui conosco. Isso você já sabe. E sabe também qual será o seu destino — volveu Zor sem rodeios, friamente.
Kilaim sabia. Não seria somente a morte, mas a morte por sacrifício. Se estivesse diante de Zor em pessoa, talvez desse um chute no protocolo e um bom murro no meio da cara dele.
— Vocês não podem fazer isso! — Kilaim estava descontrolado. — Ela é um bebê!
— Quantos inocentes você mesmo já não matou? Não seja sentimental, Kill. Ela é só mais uma.
— Só que essa “mais uma” é minha irmã! O pacto oferece proteção aos familiares.
— Ah, oui. O “pacto” que você jogou pela janela, seria esse?
— Minha irmã não tem nada a ver com isso.
— Alors, volte para cá, como já lhe dissemos.
Um silêncio duro como pedra, uma eletricidade palpável.
— Volte para cá e nós a devolvemos — retorquiu Zor. — Intacta.
Novo silêncio. Mais pesado ainda.
— Mas e a Claire? — fez Kilaim, dessa vez num gemido involuntário.
— Você vai ter que escolher.
— Como assim, perdeu a noção de tudo? Você sabe que não posso escolher.
— Tudo o que estou autorizado a lhe dizer é o seguinte: ou você volta e preserva sua irmã; ou fica aí e ela morre.
Era uma adaga enfiada no coração dele. Uma faca de dois gumes.
— Mas e a Claire? Vocês estão exagerando, was zum teufel! Merde! Será possível que usei a faca cerimonial para cortar churrasco? Toquei gaita na cerimônia do Sabbath? Sambei em cima do livro dos Grimories?!
— Kilaim, já chega. Você não vai me comover.
— Não fiz nada tão grave! Você pode conversar com meu pai e interceder a meu favor. Coloque-se no meu lugar!
— E pourquoi eu faria isso? Já chega dessa Von Trapp, Kill! — A voz de Zor alterou-se também. — Isso é um grande erro, ela não é para você. Se você escolher a Claire, sua irmã morre, e não diga que não foi insistentemente avisado. Mas, se voltar, Anne-Sophie viverá. E mataremos a Claire. É uma via de mão única. Ou uma ou outra. Você vai ter que escolher.
— Se eu voltar, vocês não podem simplesmente deixar a Claire em paz? Ela nunca mais vai saber de mim, se eu não quiser.
— Ela tem que morrer. Você iria acabar se “esquecendo” dessa sua promessa e nos criando mais problemas. A Claire é um problema que queremos ver morto e enterrado. Além do mais, você já falou demais sobre nós. E sabe o preço disso. Dê-se por feliz de não ser morto também.
— Pois bem. Matem-me, alors.
— Se continuar por esse caminho, é o que vai acontecer. Temos sido muito pacientes.
Kilaim queria ganhar tempo, por isso estendia a conversa, tentando encontrar uma brecha, uma maneira de mudar a situação.
— Das duas maneiras, saio perdendo. Por que eu faria uma escolha, alors, se não há como vencer?
— Você já perdeu a partir do momento em que saiu daqui e se rebelou contra nós. Toda ação gera uma reação. E já está na hora de perceber que não pode ter tudo. A vida nos impõe escolhas, e você precisa fazer as suas. Seja homem. Você não é mais um menino. Cresceu e precisa entender isso e se comportar à altura.
O tom dele não admitia contrapropostas.
— Às vezes, você precisa perder para ganhar — Zor continuou. — Você não queria poder? Não queria ser vitorioso? Não queria ter o cetro de autoridade?
— Mas não dessa maneira. Já entreguei muita coisa, e você bem sabe disso.
— Você é filho da Sombra, Kill?
Kilaim ficou quieto.
— Nós estamos te dando a opção de escolher a perda. Há duas opções, já te foram apresentadas. E, justamente para que você veja e entenda que está sendo privilegiado nisso, damos-lhe sete dias.
— Vocês estão cuidando bem dela? — Kilaim perguntou com aflição. — E a meningite?
Zor ignorou as perguntas.
— Ela estará sendo preparada para o ritual.
Isso queria dizer que ela entraria num jejum especial.
* * *
Claire dormira pouco, em meio a sonhos de preocupação. Agora, frente a frente na cozinha, eles se olhavam e pensavam em que dizer um ao outro. Kilaim estava decidido a não contar nada a Claire, a despeito de suas muitas perguntas durante o café da manhã, mal tocado.
— Um peso dividido fica mais leve, Kim.
Kilaim, abatido, fechou os olhos e afastou o prato, deixando de lado o pãozinho e os frios.
— Desculpe-me, Claire, não posso te dizer nada ainda.
— Alors, está mesmo acontecendo alguma coisa séria, n’est-ce pas, mon amour?
O som da voz de Claire, gentil e preocupada, fez com que Kilaim lutasse contra as lágrimas. Sem conseguir dizer nada, apenas fez um gesto afirmativo com a cabeça. A moça ficou muito aflita e, levantando-se de seu lugar, abraçou-o com força. Ele a abraçou de volta e os dois ficaram calados.
— Se compartilhar o problema comigo, talvez eu possa te ajudar — ela insistiu. — O que está acontecendo? É alguma coisa com você? Está tudo bem com sua família?
— Não posso falar ainda.
— Mas, pourquoi?
— Claire, não me questione mais. Preciso pensar — Kilaim respondeu em tom firme.
— Ça va — ela respondeu a contragosto. A sensação de impotência a rasgava por dentro. — Mas estarei orando por você e também por sua família. Gostaria que soubesse disso. É meu modo de ajudar, por enquanto.
* * *
Os dias que se seguiram foram tensos.
A Lune de Miel havia passado, e com ela a alegria e a descontração. Kilaim experimentara uma vida desconhecida para ele, mas, agora, o bem-estar que Claire produzia havia deixado um vazio escuro.
Todas as idiossincrasias do jovem retornaram com força redobrada. Como uma sombra, angustiado, Kilaim comia pouco e quase não dormia, passando horas ao piano ou diante de telas em branco que, no dia seguinte, apareciam cobertas por pinturas que expressavam em cores fortes o lado sombrio de sua alma. Paisagens estranhas de um mundo desconhecido, árido. Sem vida.
Claire não acreditava no que seus olhos viam. A genialidade exposta, e a sensação de desespero que conseguia absorver de cada pintura.
— De onde tira a inspiração para essas paisagens? — perguntou ela certa manhã, quando conseguiu convencê-lo a sair da sala de música, onde também estava o material de pintura.
Kilaim passou por cima do lençol que fora estendido sobre o chão. O piano, arrastado até se encostar contra uma das paredes, junto às poltronas, estava a salvo do perigo das tintas. Uma bagunça. E Claire entendia que aquela confusão toda era o reflexo do interior de seu namorado, naquele momento.
Ela se aproximou da nova pintura antes que os dois saíssem da saleta. Tons de marrom, vermelho, preto, e uma luz alaranjada que não trazia conforto.
— Como você cria isso? — voltou-se ela para Kilaim.
— Eu sonho.
Seu tom de voz, o aspecto de seu rosto, suas roupas em desalinho, todo o conjunto fez com que Claire sentisse um arrepio. Aproximou-se e o abraçou, esperando que seu abraço pudesse transmitir uma parte do conforto que ele não conseguia encontrar. Porém, ao sentir as mãos dele e o seu pescoço cobertos por um suor gelado, os cabelos que teimavam em grudar no couro cabeludo, resultado do mesmo suor febril, ela se preocupou. Muito. Passou a mão sobre a testa de Kilaim, e seus olhos procuravam o interior dos olhos dele.
— Mon amour, o que você tem? Pourquoi está assim?
Kilaim afundou o rosto sobre o ombro esquerdo dela, percebendo a exaustão do seu corpo só naquele instante. Estreitou-a nos braços, mas o alívio não chegava. Pelo contrário. Preso, dentro de sua garganta, estava o gemido que não podia dar.
Claire ficou ali e deixou-o apoiar a cabeça contra seu pescoço.
— Quer tomar um banho? — perguntou. E foi tomando a decisão por ele: — Vou deixar a banheira enchendo enquanto você come.
Como não houve resposta, Claire foi pegando a mão de Kilaim e puxando-o para o corredor.
— Venha comer. Depois disso, vai tomar banho e descansar um pouco.
— Não quero deitar.
— Não precisa dormir. Só parar, ficar quieto, assistir a algo na televisão... Pensar em outra coisa que não seja música e pintura. Sei que essas coisas te trazem alívio, fazem parte de você. Mas é melhor que pare um pouco, só por ora.
— Ça va — ele acabou concordando.
— Alors, venha.
Ele se sentou à mesa da cozinha, e ela subiu correndo para a suíte do casal. Regulou a temperatura da água na hidro depois voltou correndo para baixo. Colocou à mesa umas frutas, pão, manteiga, queijo branco, leite, café, suco...
— Chega, Claire. Não estou com fome.
Ela fechou a geladeira e, sentada diante de Kilaim, observava-o. Sua tez estava cada vez mais pálida, como leite, como se estivesse doente. Ao redor dos olhos, fundas olheiras escuras. Os dedos tamborilavam sobre a mesa, de repente, como se ainda estivesse ao piano, quase um tique nervoso. Claire estava perdida, sem conseguir imaginar o que poderia estar a deixá-lo naquele estado.
Naquela manhã, bem cedinho, antes de a moça se levantar, Kilaim havia dado mais um telefonema para signore Arthuro. Nada de Anne-Sophie. A família estava desmoronada.
— Kim... s’il vou s plaît... — murmurou Claire, quando ele afastou o prato e a xícara, depois de comer muito pouco. — O que posso fazer para ajudá-lo?
Kilaim estendeu a mão sobre a mesa e apertou a dela, mas não esboçou qualquer sorriso.
— Claire, acredite em mim. Você não pode fazer nada além do que já está fazendo.
— Mas, Kim, eu nem sei o que está te afligindo tanto. — Claire não desejava trazer mais peso sobre ele com excesso de perguntas. Mas foi difícil manter-se na mesma postura de espera que vinha tendo nos últimos dias.
Kilaim percebeu, talvez pela primeira vez, como era duro para Claire ficar no escuro daquele jeito. Afagou o rosto dela com delicadeza por alguns instantes, mas logo a mão desabou sobre a mesa, para sair, em seguida, pululando num arpejo imaginário.
— Você tem sido corajosa, baby... Perdoe-me.
— Perdoá-lo pourquoi, Kim? — Claire segurou a mão que ele tinha corrido pelo tampo da mesa e levou-a para perto do rosto, beijando-a. Estava tão fria!
— Kim...
Havia tanta infelicidade no semblante dele que Claire finalmente se desesperou. Mesmo contra sua vontade, algumas lágrimas escorreram por sua face.
— Claire, não chore! Não chore, parce que isso eu não vou suportar.
Ela fez o possível para enxugar as lágrimas.
— Estou muito preocupada com você. Você está doente?
— Non. — Ele sorriu dessa vez. — Não há nada de errado comigo.
— Mas eu sei que o problema está relacionado àquela seita, n’est-ce pas?
Kilaim suspirou.
— Oui. Mas você não pode fazer nada.
— Eles querem te matar?
Kilaim sorriu de leve outra vez.
— Non, ma fleur. Não por ora.
— O que pode ser tão terrível, alors?
— Claire, vou ter que tomar uma decisão dentro de dois dias. Até lá, não me pergunte.
— Dois dias?
— Oui.
Ela assentiu com a cabeça.
— Ça va. Eu espero. Enquanto isso, você sabe... Tenho orado por você.
Kilaim não deu atenção ao comentário, mal o ouviu, julgando-o completamente irrelevante.
— Vou subir e tomar meu banho. Quer ficar lá conversando comigo?
Claire abriu um sorriso triste. Acompanhou-o, de mãos dadas, disposta a só falar de coisas amenas.
Dois dias...
* * *
Kilaim não descera à Sala Secreta nem uma vez desde que chegara em casa. A princípio, não tivera vontade. Agora, contudo, achava que seria inútil ir até lá.
Mesmo assim, não seria de seu feitio se não tentasse tudo, até o último minuto. Então, naquela madrugada, abriu a passagem atrás da lareira, numa tentativa desesperada de...?
De quê?
Ele nem sabia o que iria dizer caso alguma das entidades aparecesse, ou fazer, para conseguir mais tempo ou revogar aquela sentença. A proposta que Zor lhe dera era injusta! Como fazer a própria “escolha de Sofia”? Impossível.
“Perder para ganhar.”
Não havia como ganhar!
Invocou Lucipher em voz baixa, mas com firmeza, o rosto iluminado apenas pelas chamas das velas. Ele não as tinha acendido ainda e reconhecia seu erro, pois fora guiado até aquela casa. Recebera a casa e o porão secreto, como filho muito amado. Lucipher era seu pai e seu amigo, o elo entre eles sempre tinha sido muito forte. Não mudaria tão de repente...
Mas não houve resposta. Somente silêncio. Sentiu a presença dele, mas não conseguiu enxergá-lo, muito menos escutar sua voz.
— Eu sei que está aí, my Lord. — Uma pausa. — Pourquoi tu não me respondes?
Tentou entabular uma conversa mais algumas vezes, em vão. Lucipher estava lá, mas não lhe dirigiu a palavra, o que, afinal, encheu-o de indignação.
— Vocês não podem fazer isso comigo! Toda minha vida, permaneci junto ao senhor do Fogo e lhe fui fiel. Não compreende meu sentimento?
Silêncio.
Kilaim subiu outra vez e ficou na varanda até o dia nascer: o rosto, como uma máscara; e os pensamentos, vazios.
* * *
Na noite seguinte, sexto dia, sem aviso, o iPhone que estava no bolso traseiro dos jeans do gigante tocou alto, vibrando. O aparelho não saía de perto dele desde o desaparecimento de Anne-Sophie. Era Zor.
Kilaim atendeu, e esperou.
— Só para lembrá-lo: seu prazo acaba amanhã de manhã, às seis horas. — Veio a voz pelo aparelho.
E mais nada.
“Tanto investimento nesta casa... Para não ter um pingo de sossego. Estou com muita raiva de todos eles.”
Depois do telefonema, finalmente Kilaim se levantou de onde estava, no seu escritório, e abriu a porta. Era preciso fazer o que tinha que fazer, então foi na direção da cozinha, onde Claire terminava a janta, cantarolando.
Ela escutara o toque do celular e esperava que Kilaim viesse conversar, conforme prometido, pois os dois últimos dias já estavam para terminar. Não esperava, contudo, que o faria naquele momento e sem preâmbulos.
— Tenho que falar com você, Claire.
Ele estava ali, parado na porta, tão alto e bonito mesmo naquela penosa situação, que a garota teve que sorrir. Foi em sua direção enxugando as mãos num paninho de prato.
— Ah, que bom que você está aí, Kim! Precisamos mesmo conversar.
Se por um lado estivera aflita, agora ficava feliz em dar o passo necessário para deixar o relacionamento como antes, quando dividiam tudo.
— Você tem que desabafar — ela continuou, puxando Kilaim pela mão. — Aí, essa angústia toda vai melhorar.
Kilaim notou que Claire havia estado mais animada desde a véspera, e atribuía isso ao fato de que eles iriam, finalmente, conversar. Se ela imaginasse...
Os dois se sentaram lado a lado na mesa, olhos nos olhos, a transparência do olhar azul-claro dela observando a profunda escuridão dos dele.
— Estou contente de ter conseguido esperar o seu tempo. Aprendi isso na vida, sabe? — tagarelou Claire. — Que cada árvore dá o seu fruto a seu tempo, que todas as coisas têm o seu tempo determinado debaixo do Céu... Como se fala em Salmos, em Eclesiastes...
— Claire... — Kilaim segurou as mãos dela entre as dele. — Não vou falar sobre a Bíblia agora.
— Ça va, Kim, eu sei. Só estou dizendo que tudo acontece no momento certo, e isso é muito claro para mim. Agora mais do que nunca! — Ela fez uma pausa significativa, e havia um brilho diferente no seu rosto. — Mas, me diga... O que você tem para me falar? Parce que depois também tenho algo para te contar que vai te deixar muito feliz!
— Oui? — Ele ficou quieto. Surpreso. O que poderia ser?
Claire sorriu e, libertando uma das mãos, empurrou o ombro dele num gesto de carinho. Mas segurava o riso, parecendo totalmente esquecida da seriedade do assunto a ser tratado.
— Fala você primeiro! — pediu ela. — Afinal, estou esperando há dias.
— O que tenho para dizer, Claire, ao contrário, talvez não te deixe tão feliz. — Kilaim sentiu a voz ficando pesada.
Claire sentiu que seu coração começava a bater mais forte e pousou as mãos sobre a mesa, esperando. Como o rapaz não disse nada, só a olhava, parecendo aturdido, Claire resolveu:
— Ah, vou contar a minha notícia antes, pois vai trazer alegria para o seu coração! Você vai ver que nenhum problema é grande demais. — E, sem esperar pela resposta, falou: — Eu estou grávida, Kim, vamos ter um bebê! Você vai ser pai!
Ele olhava-a, o rosto paralisado.
— Quoi? — Kilaim chacoalhou a cabeça como quem tem dificuldade para entender. Olhava para as faces afogueadas da namorada, o sorriso estampado, a expectativa para ver o que ele diria.
— Estou esperando um bebê — ela repetiu.
Foi quando o incômodo na garganta de Kilaim, preso há dias como um ouriço-do-mar agarrado aos corais, veio para fora num turbilhão. Ouviu um gemido de dor, sem perceber que vinha dele. E lágrimas copiosas brotaram de seus olhos.
Incapaz de ficar ali, ele arrastou a cadeira num enorme ruído e deu meia-volta, saiu da cozinha pela porta dos fundos. Caminhou cambaleante pelo jardim, em desespero, até apoiar-se no tronco de uma das árvores. E chorou profundamente.
Perplexa, Claire esperou, no mesmo lugar. Mas, depois, preocupada, foi atrás dele.
— Kim, ce qui se passe? Que foi? Eu não sabia que você iria se emocionar tanto... — Envolveu a cintura dele com os braços. — Mon Dieu, diga alguma coisa.
Kilaim inspirou fundo. Não parecia que o ar queria entrar em seus pulmões, mas ignorou o fato, puxando-a para sentar-se num dos bancos de jardim.
— Claire, venha aqui.
Mais uma vez, olhos nos olhos; os dela expectantes, os dele amargurados.
— Eu te amo, baby... E saber que há uma semente minha aí, dentro de você, é algo que não tenho palavras para descrever. É muito estranho saber que vou ser pai.
— Estranho?
— Eu — Kilaim pigarreou, procurando as palavras. Não havia como amenizar — saí. Fugi deles. Você sabe que fugi. Mas, agora, algo terrível aconteceu. Eles estão com a minha irmã.
Claire levou um tempo para absorver a informação.
— Como assim, Kim? — O rosto foi sendo envolvido por uma consternação.
— Eles sequestraram minha irmã. E irão matá-la. Num ritual.
— Imagina, Kim...! Um ritual?
— Claire, me escute. Eles estão com ela e vão matar minha irmã. Ela sumiu. Estava doente, bem doente, foi por encantamento que lançaram essa doença nela. Como aconteceu com você. Você também ficou doente.
— Mas não é possível que a matem. Afinal, você fazia parte da seita.
— Ninguém fez contato procurando receber resgate. Meu Nonno é muito rico, não é um sequestro comum. Além do mais, já me avisaram. — Isso encerrava a discussão.
Claire encarava Kilaim com olhos surpresos, sem saber o que dizer.
— Pourquoi não me contou antes?
— Eu achava que poderia encontrar uma solução, um modo de fazer com que voltassem atrás. Mas... Não foi possível.
— E alors? O que devemos fazer?
— Na verdade, eu é que tenho de tomar uma decisão e... E escolher. Pensei muito nisso, esses dias todos. E eu tinha pensado... Antes... Em poupar a vida da minha irmã — ele falava controladamente, mas seu coração estava em meio a uma confusão sem precedentes. — Ela é só um bebê. E você, Claire, o destino já tinha encerrado a sua história. Além disso, não sou a pessoa certa para você. Ao meu lado, só encontrará sofrimento e tristeza. Destruição. O chacal se apaixonou pelo beija-flor...
— ... Mas onde eles poderiam viver? Eu me lembro.
Kilaim não sabia como dizer aquilo.
— Você entende, mon amour? — Ele tentava explicar. — Você está viva por causa da morte da minha mãe. Houve uma perda para que você vivesse. E, agora, vou ter que sofrer outra perda para que haja vida.
Claire já havia compreendido. Os olhos dele se encheram de lágrimas mais uma vez. E Kilaim se repetia:
— Já causei muito mal à minha família. Muito mal. Você não faz ideia. Por isso não posso deixar que eles matem o bebê. Não podem matá-la. Por outro lado, se escolho a vida da minha irmã, você... — ele não conseguia dizer, em voz alta, que ela seria a vítima. — Você fica desprotegida, parce que... Entende? Mas, agora, há outro bebê a caminho.
Claire passou a mão sobre o rosto dele, enxugando suas lágrimas. Mesmo sem que Kilaim dissesse, ela sabia que morreria. Tinha que haver uma perda. Então, se não fosse a criança, seria ela. E o seu bebê.
— Kim, eu sei, te entendo. É uma decisão terrível. — Claire inclinou-se em sua direção e ajeitava o cabelo dele atrás da orelha, gentilmente. — Você teve uma semana pavorosa, amour. Mas, olha, vou te dizer uma coisa: você não precisa escolher. Não precisa decidir.
— Não há como não decidir.
— Vamos deixar que Dieu faça a escolha. Pois Ele é o Justo Juiz.
Ela falou com uma confiança que sentia apenas em parte. Precisava ser forte.
— Justiça. — Kilaim soltou o ar ruidosamente dos pulmões. Não sentia raiva, apenas cansaço. — Não existe justiça. Você vive num mundo de fantasia, Claire. O mundo de verdade é injusto, é cruel, as pessoas morrem, sofrem e...
— Mas tudo tem um propósito, Kim. Para Dieu não existem acasos, coincidências e sorte. Ou destino, como você mencionou. Não assim. Existe propósito. — E repetiu: — Propósito. Se está acontecendo, é porque há um propósito.
Kilaim ficou em silêncio. Estava exaurido.
— Fica tranquilo — reiterou Claire, esforçando-se para ser otimista. — Vamos entregar essa situação para Ele. Você não precisa carregar todo o peso sozinho, já deveria ter me contado.
Um riso leve sacudiu o corpo dele. Um riso de tristeza.
— Você não está com medo?
— Oui. Um pouco — ela respondeu sem rodeios. — Mas o medo não é privilégio meu. Muitos dos heróis da fé também tiveram medo.
— Não sei o que fazer.
— Mas eu sei.
A noite estava clara à luz da lua. E a brisa soprava de vez em quando, carregada de perfume de dama-da-noite. Quando Claire se ergueu do banco, decidida, Kilaim apenas olhou para ela, inundado por infinita melancolia.
— Eu espero que você saiba o que está fazendo — disse. — Meu prazo é até amanhã de manhã. Seis horas da manhã.
* * *
Claire entrou no quarto do casal, fechou a porta sem fazer ruído, acendeu um único abat-jour e atirou-se de joelhos aos pés da cama. Uma postura que muitas vezes assumira em situações cruciais de sua vida. Aquilo era entre ela e Deus; não se tratava da vontade de Kilaim, muito menos da vontade do Diabo, mas da vontade de Deus.
Era mais um momento solitário com o Criador. Ele estava ali, à sua espera, Claire sabia. Pai e filha. Era Dele que ela precisava, mas não sabia como começar. Apenas fechou os olhos, na penumbra do recinto, e deitou a cabeça de lado sobre o tecido macio do lençol.
Precisava se aquietar. Inspirando fundo, repetidas vezes, foi sentindo os batimentos cardíacos que pulsavam nos ouvidos darem lugar a um ritmo mais calmo.
A realidade se fazia grotesca, deveras. Porém, era imperativo conseguir olhar para tudo aquilo com olhos espirituais. Virou a cabeça para o outro lado e começou a escutar os acordes do piano. Mais uma daquelas tristes melodias que Kilaim dizia fazer sair de seus sonhos, como as paisagens. Mas depois, não eram apenas sonhos...
Claire começou a chorar e pediu o impossível.
— Papa, Você pode todas as coisas. Então te peço pelo livramento. O meu e o da irmã bebê do Kim. O Senhor disse que “se alguém permanecesse na Videira, e se as Palavras de Jesus permanecessem nele, pediria o que quisesse, e lhe seria feito”. Está na Tua Palavra. E esse é o desejo do meu coração.
Ela ficou quieta depois daquele início. Pensava em como deveria continuar, que tipo de oração deveria fazer a fim de produzir o resultado certo.
“Pois esse é o resultado certo... O livramento.”
Exceto pelo piano ao fundo, tudo era silêncio no quarto. Claire apoiou os braços abertos sobre o colchão. As lágrimas começaram a escorrer de maneira profusa.
— Oh, Papa... Pourquoi agora? Pourquoi? Justo quando Você me dá a alegria da gravidez? Como Kilaim poderia escolher? E eu não tenho como interferir na decisão dele. Preciso tanto de Sua ajuda...
Novamente silêncio, quebrado por um nariz que fungava, pingando. Ela esperava por alguma direção, algum sinal. Uma certeza. Porque se levasse o namorado a não fazer nada, a não decidir nada, a criança poderia acabar morrendo. Como eles iriam viver com isso depois? Isso afetaria toda a família de Kilaim e a eles também.
Totalmente alheia à movimentação do Reino Espiritual ao seu redor, ela sentia-se muito só e continuou chorando. Era um sentimento humano mais que natural. Ao seu lado, dentro do quarto, havia dois seres angelicais, altos como colunas, paramentados com armaduras e braceletes de ouro. Sol e Arkheel olhavam para ela com atenção e cuidado.
Os demais, junto ao capitão e ao serafim Logus, estavam posicionados na sacada do quarto e no telhado. Uma guarda escolhida dentre os melhores guerreiros do Reino de Deus.
Aquele momento íntimo da filha do Deus Vivo não deveria ser visto ou ouvido por nenhuma entidade do Mal. Havia demônios aglomerados em derredor, aos enxames, ansiosos em saber que decisão o gigante tomaria. Mas era impossível aproximarem-se demais. A luz de Logus, o guardião da Graça, era intensa. Além disso, queimava. E o capitão, com ou sem a luz de seu companheiro, jamais vacilava, vigiava o tempo todo com olhos aguçados. Havia muito alvoroço por parte dos opositores.
Claire, contudo, não lhes percebia a presença e buscou um lenço de papel na gavetinha de sua mesa de cabeceira.
“Será que ela fará a coisa certa?”, aventou o arqueiro, de repente, um pouco aflito.
Ele estendia suas asas lado a lado com seu amigo e companheiro e olhou-o nos olhos.
Juntos, eles haviam enfrentado infinitas batalhas ao longo da História da Humanidade e acompanharam muitos dos santos, na pobreza e na riqueza, na justiça e na injustiça, na alegria da vida e na morte.
Raphaell não tirava os olhos azul-claros da moça.
“Confio que conseguirá”, respondeu. “Está em sua essência. Se sente nervosa e perdida agora, mas vai conseguir descobrir a passagem.”
O Anjo moreno era o guardião mais antigo de Claire, forte como um cavalo árabe e belo como um pássaro, um príncipe celestial. Observara os movimentos dela, suas escolhas na vida, seu caráter. Dessa perspectiva lhe vinha o sentimento de confiança que experimentava naquele instante. Confiava nela. Confiava que faria a escolha certa: a que traria o livramento.
Os demais Anjos olhavam a cena com expectativa. Apenas o Pai conhecia o resultado.
Então, Sol se inclinou para a garota, que pegava o terceiro lencinho de papel. Estendeu a mão que brilhava e tocou muito de leve em sua nuca. Um ínfimo movimento.
Claire amassou o lencinho ao lado dos outros e, devagar, abriu a gaveta novamente. Ali estava a sua Bíblia, que guardava sempre no criado-mudo. Pegou-a, ainda fungando, e a folheou. O ruído suave das páginas finas e rabiscadas lembrou-a também de quantas vezes tinha lido e relido várias passagens.
Seus olhos correram por alguns salmos de que gostava, pelas promessas que havia neles. Mas, por fim, Claire acabou por deter-se na pavorosa madrugada que Jesus vivenciou sua última noite no Getsêmani.
“Pai, se queres, passa de mim esse cálice, contudo não se faça a minha vontade, e sim a Tua.”
Assim o Mestre pediu, corajosamente. Ele sabia que o Pai poderia livrá-lo; entretanto, essa não era a soberana vontade de Deus. O cálice deveria ser bebido. E ali, em meio a intensa agonia, quando seu corpo deixava cair na terra suor como gotas de sangue e o pavor da morte o assolava, Ele orou, toda a madrugada, intensamente, a ponto de um Anjo vir confortá-Lo.
Claire leu de novo. Depois, de novo. Tudo aquilo Jesus fez por Amor. Amor ao Pai. Amor ao Mundo que O rejeitou. Ali estava o Cordeiro que tiraria o Pecado do Mundo: disposto a ser obediente até o fim.
Claire voltou a encostar a cabeça sobre a cama. Dessa vez, a Bíblia ficou debaixo da cabeça. Aos poucos, a angústia ia abandonando seu coração e ia sendo substituída por fé. Esse era o único caminho. Como Jesus, que, embora fosse Deus, era também totalmente humano e sujeito às dores e temores do homem. Na sua morte, Ele foi apenas isso: humano. Mas, ao se entregar, venceu a Morte.
O Anjo Raphaell ajudara sua irmã a se lembrar, mas não podia interferir no seu livre-arbítrio, nem influenciá-lo. Todos ficaram esperando. Ela estava quieta.
Agora conseguia sondar o fundo do seu coração, avaliando o âmago. Na hora da provação é que se separa o joio do trigo; no meio da tribulação percebe-se a fé verdadeira, que só é alcançada na prática.
— Eu amo Você, Papa... Viver e não Te deixar satisfeito não me satisfaz.
“Cristo é o meu sol,
Tudo que eu tenho em mim,
A razão de viver,
A Luz do meu caminhar.
Nem mesmo a dor e a morte
podem nos separar,
Pois o amor que encontrei,
Nada pode apagar.
Louvado seja o Senhor,
O Deus de todo Poder!”.
Ela se lembrou da canção antiga, de letra e melodia simples. Tinha tanto significado que ali começou, de fato, a sua prece. Pegou o violão que estava encostado num canto e dedilhou — não muito bem —, para cantar de novo.
Aquilo expressava o seu coração?
“Oui.”
Então, como não se curvar à Vontade Dele? Seu coração se enterneceu. Ela curvou a cabeça, apoiando-a sobre o violão. Não havia mais lágrimas de desespero, e sim a certeza de que seu amor e confiança O traziam para perto.
“Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Eu sou a Luz do Mundo; quem me segue não andará nas Trevas; pelo contrário, terá a Luz da Vida.”
Trevas. Luz.
Se morresse, veria a Luz face a face. Se vivesse, viveria pela Luz.
Não havia nada que pudesse separá-la desse Amor ou mudar tal realidade. Portanto, nada de mal poderia lhe acontecer, independente do desfecho.
— Se esse for o meu tempo, Pai, que assim seja. Eu aceito de coração. O Senhor já me presenteou com uma Vida além da vida, com a qual eu nem poderia sonhar. Faça-se a Tua Vontade. Eu quero descansar nos Teus braços.
Ficou ali, apenas respirando, e havia alívio por ter feito a sua entrega.
No Reino Espiritual, foi como abrir uma porta. Os grandes, para Deus, muitas vezes estão entre os pequenos. Claire tinha sido aprovada no mais difícil dos testes. O do Amor.
Sol sorriu calorosamente e orgulhoso. Os demais se entreolharam, igualmente satisfeitos, e seus corpos reverberaram em cores, brilhando, e era como se aquela luz tivesse vida própria ao refulgir mil vezes por toda a armadura nos braceletes de ouro adornados.
Claire, no entanto, ainda não estava pronta para aquela visão magnificente. Por isso, Sol se abaixou ao lado dela, abraçando-a, cobrindo-a com suas asas, como num casulo de proteção.
Esperava ser notado, como às vezes acontecia, mas ela puxou mais um lencinho e levou ao nariz. O aroma perfumado, já conhecido, passou despercebido.
Foi quando ela começou a perceber a presença do seu amigo. A energia dele pairava ao seu redor, como uma corrente elétrica muito suave que vibrava, um murmúrio de águas.
Sem quase se mexer, como se qualquer movimento pudesse dissipar aquilo, Claire ficou quieta, sentada no chão, deixando aquela sensação de paz preenchê-la. A Paz que excede todo entendimento.
“Era uma promessa, não era?”.
“Que você me acompanharia...”.
Embora não pudesse ver o Guardião, sabia que ele estava bem perto. Além da sensação conhecida, havia algo mais, porém. Como se, dessa vez, o Anjo lhe transmitisse seu amor, sua força e seu poder não somente por ser uma das filhas de Deus na Terra. Mas por ser ela mesma.
“Mon ami... Que bom que veio.”
Aprofundou-se naquela sensação de ser querida, no afeto tão particular que ele lhe transmitia. Sol aproximou o rosto do dela, e a cadência do seu coração era compartilhada; bem como toda dor e inquietação, agora amortecidas.
Os outros Anjos, em perfeito silêncio, esperavam como brilhantes estrelas enfileiradas, prontos.
“Sua oração será respondida”, disse Sol.
E era quase como se ela pudesse escutar.
“Será coisa da minha cabeça?”, Claire se questionou.
Mas não era.
Aos poucos, a energia de Sol se dissipou, deixando uma sensação de calor, quietude e conforto.
* * *
1
Chasseur
Madrugada em Lyon. Eram quase duas horas.
O alemão-sueco Marcus Reuter, inspetor da Interpol, tamborilava sobre a mesa com tampo de madeira e cobertura de vidro, na sede do Serviço de Inteligência. Desde a tarde examinava alguns documentos importantes, e havia perdido a noção da hora. Nem mesmo tinha jantado. Aquele era o tipo de trabalho que impede alguém de ter uma família, pelo menos uma que seja plenamente feliz, mas, afinal, o que era essa história de felicidade? Reuter estava no seu ambiente. Nascera para aquilo.
Ele esticou as costas doloridas e levantou-se para buscar um café. Ali, no final do corredor, havia uma máquina automática, um verdadeiro luxo, bem ao lado de outra com chocolates, refrigerantes e salgadinhos. Enquanto o líquido escuro caía no copinho descartável soltando fumaça, ele se antevia saboreando-o. Um pequeno agrado na madrugada. Merecidamente. Pegou um chocolate snickers para acompanhar.
Voltando para sua sala, Reuter olhou para o casaco e o chapéu, pensando em ir embora logo mais. Aproximou-se da janela, e uma garoa fina caía do lado de fora. Os termômetros haviam marcado 2ºC naquela noite, um frio meio fora de época.
De repente, um estalo.
“Que será do Caso Mastrangello?”.
O inspetor se viu compelido a examinar as evidências mais uma vez. Ele nem sabia direito por que o fazia com tanta frequência. A verdade é que o Caso Mastrangello nunca lhe saíra da cabeça. Fora seu último trabalho de campo antes de assumir o posto na Inteligência: um completo fiasco, no seu entender. Odiava ser ludibriado daquela forma. Não havia sido por se conformar com o fracasso que chegara aonde chegara.
Reuter mantivera uma escuta não autorizada no telefone de monsieur Arthuro — o fixo na residência, o fixo na Logos e também o celular — e no fixo da casa onde moraram Ethan e sua esposa Camille.
Volta e meia, ele reavaliava o que tinha. Soubera da morte de Camille Mastrangello, e do filho que partira abruptamente para o Brasil.
“Alguma coisa nunca encaixou nesse caso.”
Era puro feeling.
Como odiava não completar o quebra-cabeça.
Naquela semana, tinha acompanhado de longe o drama vivido com a outra filha do casal. Desaparecida. Misteriosamente. Também. O inspetor sabia que estavam todos perdidos, sem evidência nas câmeras.
Alheio à luz dourada que brilhava na janela, suave, Reuter sentou-se e pegou o bloco de anotações.
“Não é sequestro. Ninguém pediu resgate de novo.”
Agora era uma ideia fixa. Tomava seu café, mas até se esqueceu de abrir o chocolate.
“Alguém pegou essa menina com uma intenção. Isso está servindo a algum outro propósito.”
Lembrou-se claramente das chamadas de Kilaim durante a semana, para monsieur Arthuro, procurando saber da irmã.
“Ele estava bem estranho ao telefone. E por que ainda não veio para cá?”.
Reuter passava a mão sobre a barba.
“Não é sequestro. As coisas nunca se encaixam nessa família.”
Ele se levantou de súbito, decidido. Apanhou o casaco pendurado no cabide e o chapéu. Num repentino drama de consciência, virou-se e desceu para o estacionamento.
Atrás do carro dele, Raphaell e Arkheell iam acompanhando, farfalhando suas asas, o olhar sério, atento a qualquer rumor do Reino Espiritual. Era muito importante que aquele carro passasse despercebido, assim como o inspetor.
Eles se incumbiriam disso.
* * *
Reuter sabia em qual Hôpital estivera internada a menina e entrou facilmente pelo pronto-socorro. Nenhum segurança, nenhuma pergunta por parte do pessoal que trabalhava na madrugada, talvez por estarem ocupados com uma gritaria infernal: o sujeito, bêbado, não queria se submeter à sutura de vários ferimentos.
Ou talvez fosse apenas sorte.
O inspetor andou pelo corredor sem pressa, segurando o chapéu às costas como se fosse acompanhante de um paciente fantasma, e pôde ver como tentavam manter quieta também uma mulher, seguramente drogada ou psicótica. Parou diante da porta de um elevador, mantendo-se de costas para a câmera no canto da parede.
O elevador estava vazio. Ele pressionou a tecla que o levaria à UTI Pediátrica e à Semi-Intensiva Pediátrica, pois já ligara do meio do caminho pedindo informação sobre o andar. Reuter já sabia, pelas escutas, que Anne-Sophie ficara no leito da Semi-Intensiva em função da necessidade de isolamento, mas receberia cuidados semelhantes aos da UTI. Era estranho que ficasse sem supervisão, mesmo por pouco tempo.
Quando desceu no saguão da Pediatria, tudo era silêncio. De um lado, Reuter viu a placa que sinalizava a entrada da Enfermaria Pediátrica. Não era ali. Foi para o lado oposto do saguão, abriu a porta sem fazer barulho, e olhou primeiro. O corredor estava parcialmente apagado, mas Reuter podia ver à frente, por trás de uma parede de vidro, os seis leitos da UTI. Apenas dois estavam ocupados. O ruído abafado de respiradores se fazia ouvir, e ele via o luminoso de vários aparelhos que estavam ligados. Mesmo assim, parecia bem tranquilo. Não viu médico algum.
Passou de mansinho, pois nos sofás do corredor havia uma mulher cochilando: provavelmente uma mãe que não conseguira ir para casa. Ele escutou o som de risadas vindo do posto de enfermagem, não muito altas, na extremidade do corredor. Estavam preparando um café, pelo que ele pôde depreender.
Como uma sombra, o inspetor Reuter esgueirou-se para a outra extremidade do corredor, onde havia uma porta basculante. Ao passar por ela, viu que estava no lugar certo. Era a Semi-Intensiva. Havia uma pequena antessala; e dois quartos, com dois leitos cada. Na verdade, ele não tinha ideia do que viera fazer ali, mas uma necessidade urgente de procurar alguma coisa, qualquer coisa, apoderava-se dele. Talvez devesse isso à memória do casal que ele não conseguira ajudar, embora, depois de tantos anos na polícia, aquele sentimento de empatia lhe fugisse um pouco.
O feeling batia no seu pescoço, pulsando.
Nunca se esquecera da mulher, Camille Marie. Poucas vezes vira uma vida tão devastada pela perda de um cônjuge. Era só uma questão de tempo. Reuter esperava pela morte dela, mas nunca imaginara o acesso de loucura que a levara ao óbito, justo quando estava praticamente estabilizada depois da internação.
Que lhe teria acontecido? Qual teria sido o start daquele pesadelo?
Algumas semanas mais tarde, o estranho filho, Kilaim, volatilizara-se num país de terceiro mundo. Escolha improvável. O que o motivara? Uma viagem com a namorada era aceitável, mas gastar uma fortuna para montar moradia permanente fugia um pouco da rotina.
Agora: a filha mais nova.
O leito que Anne-Sophie ocupara era o do canto esquerdo, no quarto da direita. Ali ela tinha ficado sozinha. Naquele quarto havia agora um menino dormindo e sua mãe, que dormia ao lado, com a cabeça apoiada no encosto da poltrona.
“Será que olharam bem esse quarto? Não terá ficado nenhuma pista?”.
Entrou devagar. Sacando do bolso uma pequena lanterna, ele começou a inspeção por baixo da cama, olhando volta e meia para a mulher que dormia.
Um dos guerreiros angelicais entrou com o inspetor e deixou cair da mão um objeto. Na hora em que o facho de luz incidiu debaixo da mesinha que ficava ao lado da cama, algo brilhou.
Reuter sorriu.
* * *
Antes da primeira hora da manhã, o inspetor da Interpol já tinha localizado a pessoa que procurava. Ela não trabalhava na Pediatria e estava de licença havia sete dias, em função de uma cólica renal.
“A criança também desapareceu há sete dias. Aposto tudo como essa pessoa não tem cólica renal. Está só saindo de cena, deixando a coisa esfriar.”
Ele não queria lidar com os incompetentes da polícia local, por isso mexeu os próprios pauzinhos. Como não enxergaram aquela pista?
No carro, já a caminho do próximo destino, fez uma ligação. Antes que o aparelho tocasse pela terceira vez, alguém atendeu do outro lado.
— Luc? Que demora em atender o celular! — rugiu o inspetor irritado.
— Merde, você olhou as horas, Reuter?
— Tenho algo muito importante em mãos, mas explico depois. Agora preciso de sua ajuda. Você precisa deter uma pessoa para mim, não consigo estar em dois lugares ao mesmo tempo.
O policial Luc Chevalier era novo, 25 anos. Mas Reuter reconhecia o potencial quando via um. Era importante manter bons contatos com o pessoal de campo.
— Me passe os dados — respondeu Luc já desperto.
— Vamos ter que passar por cima de uma gentinha inábil — explicou Reuter irônico.
— Não precisa se explicar. Adoro isso!
— É um médico do Hôpital Louis Pradel, serviço de Nefrologia. Anote o endereço da casa.
Luc rabiscou o endereço no bloco de notas.
— Eu o detenho alegando o quê?
— Ele deu um atestado médico para uma pessoa, afastando-a para tratamento de cólica renal. Estou indo fazer uma gentil visitinha a essa pessoa “adoentada” agora mesmo. Mas você precisa cuidar do médico sem demora, quero pegar essa gente pulando da cama e em silêncio. Leve-o para averiguações.
— No que ele está envolvido, posso saber?
— Depois conversamos. Arrume uma viatura e leve-o para o seu distrito.
— De novo a tal família? — sondou Luc Chevalier, que admirava a persistência carnívora do inspetor. Era uma verdadeira obsessão.
— Mas acho que desta vez vou conseguir alguma coisa. Conto com você.
E desligou, acelerando o carro.
* * *
Bernadette Césanne, que estava na casa dos 30 e era solteira, levantou-se da cama com o ruído irritante da campainha, que tocava pela quarta vez, longamente. Olhou pela vitre da janela da sala.
Em meio à névoa da manhã — afinal, tinha chovido muito na véspera —, ela vislumbrou o homem de estatura mediana, rosto anguloso, vestindo um capote que ia até os joelhos e chapéu cinza-escuro. Não gostou do que viu.
Entretanto, não havia recebido nenhuma informação avisando-a de qualquer problema. Estava coberta. Abriu uma fresta na porta, puxando o robe para fechar o pescoço. Estava muito frio. O que quereria o sujeito?
— Bonjour, monsieur. Está ainda um pouco cedo, n’est-ce pas?
Reuter mostrou sua insígnia policial.
— Madame Césanne? Gostaria de fazer-lhe algumas perguntas.
— E posso saber o motivo? — perguntou a mulher com certa rudeza.
Reuter sacou do bolso o objeto que encontrara no quarto, levantando-o perto do nariz dela.
— Isto lhe pertence?
O crachá esverdeado tinha o seu nome. Bernadette Césanne sentiu um calafrio percorrendo o corpo e era mais do que apenas o vento gelado. Por um instante, não soube o que responder.
* * *
Quarenta minutos depois do telefonema de Reuter, a viatura do policial Luc Chevalier parou defronte à catraca do residencial fechado.
— Polícia — anunciou o homem que dirigia a viatura, parceiro de Luc.
A catraca foi aberta sem demora.
Os dois se dirigiram para a Allée des roses, 63.
O médico estava realmente em casa, já desperto, na mesa do desjejum em companhia da esposa. Tinha uns 40 e poucos anos, mas já exibia uma calvície significativa.
O sonido da campainha foi completamente inesperado para o casal.
* * *
Um mal-estar tomava conta de Bernadette.
Logo, foi substituído por uma sensação enregelante e viscosa. Sabia que as entidades que a acompanhavam tinham se afastado, e isso só aconteceria por um motivo. Tinha alguma coisa ali, acompanhando o policial, algo desconhecido, que os obrigara a ficar longe.
Sem saber o que fazer, sentindo-se completamente desprotegida, a mulher pegou o crachá nas mãos trêmulas.
— Não... sei se é meu. Onde foi encontrado?
— Você sabe muito bem. No quarto da menina — falou Marcus Reuter, apoiando a mão no batente da porta e se inclinando na direção dela. — Agora, tente ser colaborativa, pois vai ser melhor para você. Onde ela está?
Bernadette estava em pânico. Mas o medo de falar no assunto — e ser punida depois pela Organização — não conseguiu sobrepujar o medo que sentia de Reuter, ali parado na soleira de sua porta. Pois a coisa estava com ele, parecia. Afastou-se, dando dois passos para trás.
Reuter percebeu.
— A criança estava doente. Ainda está viva?
— Oui, monsieur — ela respondeu num fio de voz. — Ela está bem, mas vão matá-la. Só fiz o que me mandaram fazer, a culpa não é minha. — E acrescentou mais que depressa: — Não sei o motivo de terem levado a menina.
Estava claro que mentia.
— Vamos decidir depois de quem é a culpa. Um colega meu, a esta altura, já está em vias de trancar aquele médico. Seu cúmplice.
— Oh, mais non, monsieur! — grunhiu a mulher, encolhida. O que ela mais queria eram os guardiões de volta. — Ele não está envolvido. O ultrassom que levei à consulta, mostrando o cálculo, não era meu. Ele... Apenas me afastou e deu o tratamento em função da dor. Pediu exames para o retorno.
Reuter olhou para ela fixamente. Estava bem acuada, enrolada em seu pegnoir. Dessa vez, não parecia estar mentindo.
— Se faltar com a verdade será pior para você — ameaçou mais uma vez.
O fundamental, agora, era chegar até a menina.
— Diga-me onde é o cativeiro. Vamos logo com isso!
* * *
Anne-Sophie estava numa casa de campo, a cerca de 50 minutos da cidade, sob os cuidados de uma senhora. Embora ele não soubesse, a menina estava sendo submetida a um jejum especial que a prepararia para a cerimônia.
O inspetor olhava para a mulher, surpreso. Era uma grand-mère acima de qualquer suspeita. Foi como pegar um rato na ratoeira, e não resistiu à prisão. Algemada, ela se recusou a falar qualquer coisa e permaneceu de cabeça baixa, assustadiça.
Reuter entrou no quarto que a mulher indicara e viu a criança, que estava dormindo. Parecia bem. Sem nenhum sinal da doença nem de qualquer violência aparente.
“Vou encaminhá-la para o exame de corpo de delito no Núcleo de Perícias Médico-Legais”, ele refletiu. “Dependendo do resultado, o laudo final será encaminhado ao promotor público, que usará as informações no processo. Meu Deus, essa criança estava mesmo doente?”.
Reuter olhou na direção da grand-mère, que estava calada e petrificada. Depois, ele se abaixou para olhar Anne-Sophie de perto. Seu ressonar era tranquilo.
Tranquilo e profundo até demais.
* * *
No final da manhã, Reuter conversava com o médico legista. A menina acabara de ser liberada e, aparentemente, tudo estava bem. Anne-Sophie estava hidratada e recebera apenas um sedativo, em dose adequada para o peso. Não havia qualquer sinal da meningite. Muito estranho, já que não recebera tratamento com antibióticos.
Reuter estava realmente animado. Tinha sido um desfecho mais que satisfatório até o momento!
Era hora de dar um telefonema para Arthuro Mastrangello avisando das notícias e pedindo que viesse buscar sua bisneta na delegacia. O Nonno, que atendeu a ligação de mau humor, começou a gritar de alegria, falando mais em italiano que francês, completamente eufórico.
— Dio mio, como foi isso? Pela primeira vez, nesse último ano e meio, uma notícia boa!
— Conversaremos aqui, monsieur — respondeu Reuter um pouco comovido.
Imediatamente, signore Arthuro pediu a seu chauffeur que preparasse o carro. Do caminho, a família foi avisada. Madame Darci, chorando, começou logo a preparar um monte de comida, enquanto monsieur Claude corria para arrumar alguns presentes para dar à neta. Os outros membros da família começaram a chegar à casa do casal, cheios de lágrimas nos olhos, para a comemoração.
* * *
Quando Kilaim recebeu o telefonema, eram cinco e meia da manhã no Brasil.
Estivera insone, quase em desespero, pois as horas escoavam rápidas. Claire, estranhamente — pois, afinal, como ela poderia realmente saber? — dissera-lhe que não se preocupasse. Ela tinha umas atitudes bem esquisitas nesse tipo de circunstância. Porém, Kilaim era obrigado a admitir que alguma coisa acontecia quando a namorada falava assim.
Mas, tudo poderia dar errado. Até quando daria certo?
“Dieu irá intervir, mon amour. Apenas descanse”, dissera Claire depois de descer do quarto.
“Como pode ter certeza, Claire?”, ele estava irritado e perplexo.
“Eu apenas sei, Kim... tudo vai ficar bem.”
Quando o celular tocou tão cedo, quebrando repentinamente o silêncio, Kilaim deu um pulo na poltrona pensando que fosse uma chamada de Zor. Atendeu tão afoitamente que o iPhone escapou de suas mãos e pulou longe. Ele correu para pegá-lo. Era o número do Nonno, e um caroço medonho se formou em sua garganta.
Que quereria ele àquela hora?
— Oui?!
— Figlio, figlio, un miraculo!
Kilaim recebeu as notícias embasbacado.
— Ela está bem, Nonno? Ela está mesmo bem? — perguntava sem parar, como se sonhasse. — Como ela está?
— Lembra-se do inspetor Reuter, da Interpol? Ele a encontrou, nem sei direito como ainda. Lembra-se dele? Acompanhou a investigação do caso de seu pai. Oh, Santo Dio della mia vita, Anne já foi examinada e está bem, está saudável! E com apetite! Com saudades. Esperei ter essa certeza antes de ligar para você.
— Mas como ele conseguiu? — indagava Kilaim perplexo. — Como? Como isso foi possível? Onde ela estava?
Signore Arthuro contou o que sabia.
— Reuter prendeu três pessoas. Quando tivermos o relatório do interrogatório, telefono de novo, figlio mio. Fique em paz! Grazie a Dio! Grazie!
Kilaim subiu correndo as escadas e entrou abruptamente no quarto do casal. Claire estava sentada na cama.
— Acho que escutei o celular.
Ele correu para abraçá-la.
— Claire, ela foi encontrada... — murmurou enquanto a apertava com muita força.
Claire jogou os braços em torno do pescoço dele e chorou. Uma grande sensação de alívio e alegria a invadiu.
— Você fez a escolha certa, Kim: confiar!
* * *
Os três detidos estavam em celas separadas. Nem um sabia do outro, mas cada uma das mulheres intuía que a outra deveria estar ali também. O médico acionara seu advogado e foi o primeiro a ser interrogado, por precaução. Para aplacar os ânimos exaltados, foi-lhe dito que participaria de uma investigação de rotina em função de um sequestro no Hôpital.
Logo estava claro que não tinha culpa e foi liberado em seguida. Pediram-lhe desculpas, e o homem entendeu que colaborara com o cumprimento da Lei.
Restavam as duas mulheres.
— Elas vão confessar — rosnou Reuter, na sala, com Luc e o delegado do distrito, que agora não tinha como ser afastado. — Nem que seja a última coisa que eu faça na vida. Será que isso poderia lançar alguma luz no rastro do desaparecimento de Ethan Mastrangello?
* * *
A burocracia levou seu tempo. Reuter não podia ter se enfiado no caso, e a fogueira de vaidades precisava ser controlada. Por causa disso, o primeiro interrogatório ficou marcado para a noite.
O inspetor saiu para tomar um café e comer alguma coisa pouco antes do horário, ali nos arredores. A noite seria longa.
* * *
Zor recebeu a notícia no final do dia por meio das entidades. Muito surpreso, não entendeu de imediato o que estava acontecendo. O rosto dele ficou lívido de raiva. Naquilo estaria o dedo daquela “Von Trapp” de merde!
— Mas será possível? Isso não pode estar acontecendo!
Ele subia pelas paredes, dando voltas pelo escritório.
— Posso saber como foi que vocês permitiram isso? Que incompetência! — Dessa vez a pergunta era para os demônios.
“O tempo urge, sumo sacerdote. O interrogatório será em meia hora.”
Aquela resposta era uma evasiva, disso Zor tinha certeza. Mas eles tinham razão.
— Vão. Vão logo resolver esse assunto. Acabem com elas antes que seja tarde.
* * *
A noite já tinha caído. O vento soprava forte.
Uma densa e pesada cortina caiu sobre o distrito policial como um eclipse.
Frio.
A dor foi aguda, dilacerante. A tal ponto que a grand-mère não podia fazer qualquer movimento, nem mesmo gritar. Sentia o coração disparado. Um aperto de angústia da Morte.
Na outra cela, a mulher mais nova estava em pânico. Transpirava copiosamente e sua visão estava embaçada. Começou a sentir uma intensa falta de ar, vomitando em seguida. A dor abdominal dilacerava. Seus músculos pareciam se mexer sozinhos, como se tremessem.
Frio.
Trevas.
Sabia que iria morrer e gritou a plenos pulmões, fora de si. Mas quando alguém apareceu, não conseguia articular coisa com coisa. Eles a seguraram, querendo saber o que acontecia, mas em poucos minutos a confusão mental tomou conta dela, e tinha dificuldade para se movimentar.
Antes que algum responsável pela saúde conseguisse chegar, ela convulsionou várias vezes e foi a óbito com parada cardiorrespiratória.
Tudo não levou mais que 15 minutos.
* * *
O celular de Reuter tocou quando ele dava partida no carro, saindo do pequeno restaurante onde tinha comido. Era Luc Chevalier.
— Adivinhe — a voz do policial soava grave.
— Quoi?
— Estão mortas. As duas.
— Como assim, mortas?!
— Aparentemente, a mais velha sofreu um infarto fulminante. A outra apresentou sinais graves de envenenamento. Talvez por organofosforados. E já passou desta para melhor.
— Veneno para ratos?
— A necropsia vai dizer — volveu Luc.
— Que bosta, agora não poderei interrogá-las!
— Agora, eu é que me pergunto: franchement, Reuter... Que explicação tem para isso?
Reuter não respondeu. Estava claro que algo muito maior do que ele tinha interferido na situação.
Com que propósito?
Isso, talvez, ele nunca viesse a saber. O segredo morreria com aquela família.
* * *
No Brasil, a primeira coisa que Kilaim e Claire fizeram foi ir até a padaria comprar várias guloseimas para fazer um café da manhã especial em casa, o que incluía tortinhas de banana, peito de peru, queijo cottage, manteiga sem sal, iogurtes, granola e laranjas-pera para um suco feito na hora. O cardápio se completava com uma caixa grande de morangos, uma bandeja de uvas verdes Thompson e uma melancia, que Claire adorava.
Em casa, o clima era de festa. Os dois foram juntos para a cozinha e, enquanto Claire fazia café e punha a mesa, Kilaim espremeu as laranjas para o suco e abriu a melancia.
O desjejum foi feito em meio a grande falatório. Kilaim queria entender o que ela tinha feito, mas Claire contou que apenas tinha orado. Era estranho. O jovem tinha dificuldade de compreender aquilo.
Por fim, quando Claire já se preparava para lavar a louça, ele disse que precisava sair para abastecer o carro de aluguel. O veículo novo deveria chegar em 40 dias úteis, já com a blindagem: uma caminhonete Nissan Frontier 2.5, 4X4, automática, vermelho metálico com bancos de couro e todos os acessórios possíveis. Adquiriram também um Nissan March, igualmente blindado, que era pequeno e serviria para Claire usar quando precisasse.
— Já venho, d´accord? — falou Kilaim.
— D’accord.
Kilaim tirou o Civic preto da garagem e saiu. Na verdade, ele queria apenas ficar sozinho por uma hora. Precisava pensar. Precisava alinhar as ideias.
Precisava entender.
Rodou sem rumo, devagar. A sensação de euforia foi, aos poucos, substituída por um sentimento sem nome, algo que ele conseguia definir, mal e mal, como uma perplexidade estarrecedora, misturada com respeito.
Imaginava a rosto de Zor explodindo de raiva, vermelho, como pimentão, invocando os principados. Pedindo explicações. Imaginava o sacerdote Bourgundy com seus olhos azul-piscina esbugalhados e a boca seca, imaginando se seria responsabilizado por alguma coisa. Não conseguiu conter um leve sorriso. E quanto a Anthon Klevtsky, o rastreador que não deixava escapar uma vítima e caminhava rumo ao sacerdócio rapidamente? Como lidaria com as ideias depois de saber o que ocorrera? É claro que ficaria sabendo.
Coisas assim, Kilaim imaginava, haveriam de ser mantidas em sigilo absoluto. Afinal, comprometia muita coisa.
“Compromete, oui? Como as entidades vão explicar isso? Nem eu sei o que aconteceu... Nem Claire sabe dizer, só sabe que Deus fez isso.”
Kilaim dirigia quase sem enxergar, por inércia, bombardeado por indagações.
“Como os guardiões encarregados de tomar conta da minha irmã não perceberam nada? Lucipher deve estar muito insatisfeito.”
Kilaim nunca havia visto uma falha. Sempre tudo corria de maneira perfeita, e dentro de um cronograma minucioso, como uma engrenagem. Nada acontecera, jamais, que corroborasse a ideia de que o sistema da Organização pudesse estar sujeito a qualquer erro de percurso. Era inimaginável que essas engrenagens espirituais pudessem falhar.
E, se de um lado estava completamente satisfeito, por outro tinha também que lidar com algo que não esperava.
“Que terá ocorrido?”.
O passeio introspectivo acabou por deixá-lo em frente ao Shopping Iguatemi de Alphaville. Acabou entrando e caminhou a esmo, vivenciando aquela situação completamente nova e inesperada. No final das contas, era boa.
Entrou na Caléche, uma perfumaria que ficava no terceiro andar, e se viu procurando alguma coisa para Claire. Embora a equipe do senhor Arruda Paiva tivesse providenciado vários perfumes, nenhum fora escolhido por ele. A gratidão enchia o coração dele. Claire tinha sido o pivô de tudo aquilo, embora ele não pudesse compreender como o fizera.
Comprou um perfume que lhe agradava muito. Ange ou Démon, de Givenchy. Sensual, enigmático, provocativo. Perfeito para a noite. Ele aspirou, sentindo o aroma. Lírio, jasmim... E então, o démon surgia em cena, com notas de orquídea, um toque de ilangue-ilangue, cedro...
Carregou o frasco embrulhado para presente, comprou no caminho um bouquet de rosas vermelhas. Chegando em casa, surpreendeu Claire, que estava terminando de arrumar primorosamente as almofadas sobre o sofá.
— Combien de roses, mon Dieu! São muito lindas...
Ela, primeiro, cheirou as flores, olhando-o com seus olhos azul-claros por detrás delas, cheios de calor. Depois, abriu o perfume.
— Que frasco bonito! Kim, você precisa parar de me dar presentes. Logo, não haverá mais com o que me presentear.
Abriu o frasco e experimentou a fragrância.
— Duas gotinhas... — ela brincou. — Foi o que Marilyn Monroe respondeu quando o jornalista lhe perguntou o que usava para ir para a cama: “Duas gotinhas de Chanel nº 5”. — Claire sorriu. — Mon Ange... Esse eu vou usar para você.
Ele estendeu a mão, e ela aceitou. Ele fez com que ela girasse e a abraçou, de costas, puxando-a para si. Ela encostou a cabeça sobre o peito dele, e ele contornou o corpo dela com as mãos, deixando-as pousadas sobre a sua barriga enquanto dava um beijo em seu pescoço.
Mas aí, ele parou e ficou muito quieto. Seu rosto assumiu um ar expectante, atônito.
— Kim? — Claire indagou, erguendo o rosto para trás. — O que foi?
Ele não respondeu, abaixou-se e encostou o ouvido contra o abdome dela.
Não podia ouvir nada, afinal era muito cedo. Não podia sentir nada se mexer. Não podia perceber nenhuma protuberância.
Contudo...
Estava ali. Uma força. Palpável pelos sentidos que vão além dos sentidos. Desconhecida.
Era algo que ele nunca experimentara; uma energia que nem sabia que existia, que não era como a de Claire e também não era como a dele. Não podia precisar se era do Bem, se do Mal. Se pura, se contaminada.
Apenas uma força desconhecida.
Uma incógnita.
Totalmente presente.
— Que foi? — perguntou Claire, puxando o rosto dele para cima.
Kilaim não soube o que dizer, porque as palavras adequadas lhe faltavam.
— Eu não sei... Só sei que está aqui. Posso sentir.
— O bebê...?
— Non. A energia dele. É... É muito diferente.
Ela sorriu calorosamente, passando os braços em volta do pescoço dele.
— Significa que ele vai viver. E se ele vai, eu também vou.
— Ué, e você não sabia se ia viver? — perguntou ele estupefato.
— Podia ser que Dieu me quisesse com Ele. Mas, agora, sei que Ele me quer aqui.
* * *
O dia passou de forma leve. Ficaram na piscina, almoçaram uma refeição leve com muita salada e frutas em casa. O calor tirava a fome.
Finalzinho da tarde, Kilaim estava sentado ao piano fazia apenas 40 minutos. Foi quando seu iPhone tocou no bolso da calça. Ele sacou o aparelho e olhou o visor. Sabia que, cedo ou tarde, Zor faria contato.
— Cachu! Pelo visto vocês não vão mesmo esquecer que eu existo — ele disse em tom zombeteiro.
— Receio que essa seja a última das hipóteses — rosnou Zor do outro lado, como um lobo prestes a atacar, raivoso.
— Calma, Zor. Respire fundo. E me diga, como os demônios se atrapalharam tanto? Que aconteceu?
— Um acidente de percurso que não vai mais se repetir, pode apostar.
— Mas o que eles te disseram?
Zor bufou. Não sabia por que ainda dava explicações.
— Disseram que nem tudo está no controle deles. Que Deus, às vezes, queiramos ou não, intervém. Ora, isso nós também sabemos! Essa conversa deles não explica nada, não explica o motivo da Pollyanna ter sido atendida! Parce que foi ela, claro!
— Pollyanna...?
— Espero que você já tenha jogado bastante o “jogo do contente”, pois isso vai acabar — foi tudo o que Zor respondeu. E, novamente, irritadíssimo: — Aquele maldito policial encontrou uma prova que não existia. Aliás, o máximo que aquele alemão vai conseguir agora será o laudo da necropsia daquelas infelizes. Nunca mais vai achar uma pista que seja!
Kilaim não respondeu.
— Por sinal, chegamos a uma decisão — volveu o sumo sacerdote, azedo. — Lucipher disse que avisasse você, já que quer medir forças. Uma última consideração por você ter sido filho dele. Se dependesse de mim...
— Zor, tente entender. Estou feliz aqui. Meu pai sempre disse que somos livres para viver a vida sem as restrições ridículas impostas por Deus, que coloca o desejo no Homem e, em seguida, a proibição. Eu estou neste mundo para dar vazão aos meus desejos. Para ser feliz. Não deixei de ser filho dele, do mesmo modo que ele não deixou de ser filho de Deus.
— Não distorça as coisas, espertinho. Você vai se afastar dessa mulher quer queira, quer não! — Fez uma pausa breve. — Como eu ia dizendo, chegamos a uma decisão.
Kilaim esperou em silêncio.
— A sua vida vai ter que acabar — Zor falou peremptoriamente.
Kilaim continuou em silêncio, embora seu coração começasse a acelerar.
— Nós estamos indo para aí. E vamos acabar com a sua vida, a vida dela e a vida do feto. Pois sabemos que ela está grávida. Isso, oui, foi uma verdadeira traição, Kill. Você perdeu a cabeça, cuspiu no prato que comeu.
— Você acha mesmo que meu pai iria permitir isso?
— Pois pague para ver. Acha que ele está contente? Há outros, você sabe disso. Não é insubstituível. Aos traidores, determinamos a sentença que cabe aos traidores. Esse é o recado e está dado.
— Merde, Zor, escute...
Fim do telefonema. Zor desligou sem maiores delongas, batendo o telefone. Era algo pessoal agora. Ele queria estar presente quando dessem cabo de Kilaim.
Quanto ao jovem, guardou o celular de volta no bolso e ficou pensando. Sabia que a coisa estava ficando feia. Conhecia a estratégia: fazendo com que ele acreditasse que seria morto, o atrairiam de volta. Era a primeira vez que ameaçavam sua vida diretamente.
Mas qual o limite dessa guerra? O limite da razão e da insanidade? Se a Organização agisse com a razão, o pouparia ou o mataria? E, num acesso de insanidade, Lucipher o deixaria ir, livre... Ou pediria sua cabeça?
No fundo, Kilaim pressentia que Zor não estava brincando nem fazendo jogo. Melhor: jogava com a mais pura verdade.
“Eles vão vir para cá e matar todos nós.”
Era uma certeza.
Mais que depressa, desceu ao porão secreto, invocando aos brados a presença de Lucipher.
Como não obteve resposta, tentou o primeiro príncipe, Belzebu. Mas ele continuava olhando para a chama das velas e sabia que estava completamente sozinho. Nenhum dos demônios estava ali, ninguém lhe respondia. Tentou uma última vez, quase implorativamente, chamando Leviathan.
E nada houve, exceto o mais completo silêncio.
Não havia alternativa senão subir outra vez e tentar encontrar uma solução que fosse realmente bem rápida. No escritório, diante da lareira fechada, sentou-se em sua escrivaninha Ora Ito e sacou o celular do bolso. Ligou para signore Arthuro.
— Pronto! — Veio a voz do Nonno, alta e forte, saudável.
— Ça va? Sou eu.
— Figlio mio!
— Como está Anne-Sophie?
— Ah, Kilaim, la Dio mercé, está tudo bem. Estamos em casa, ela já comeu e está brincando com as bonecas. Nem sinal de meningite, nenhuma mudança de comportamento. Parece até que nada aconteceu. É um miracolo!
— Great! Eu e Claire ficamos muito felizes, mas, caraca! Vocês tomem muito cuidado daqui para frente...
— Todos estão aqui, só falta você. Venha para a França, nem que seja só para visita, traga sua namorada para conhecermos.
— Merci, Nonno, quem sabe. De visita, pode ser, uma hora dessas. Mas a verdade é que não vou mais voltar para a França em definitivo. Minha vida não está mais aí.
— Ma perché não volta, figlio? E a Logos? Não vou viver eternamente, preciso de alguém para tomar conta dos negócios.
— Não sou seu único herdeiro, Nonno.
— Mas você é o mais capaz para isso.
— Nonno, eu te disse isso antes.
— E eu esperava que mudasse de ideia. É muito cedo para tomar essa decisão. Fique por aí o tempo que quiser, mas não precisa decidir já se volta ou não.
— Tenho meus motivos. Não te peço que entenda, apenas que apoie minha decisão. Sobre a Logos, realmente sinto muito, mas não tenho interesse em assumir a empresa.
Signore Arthuro deu um longo e ruidoso suspiro. Kilaim não era alguém que ele pudesse controlar ou manipular. O que estava feito estava feito.
— E o que você quer de mim neste momento? — indagou o Nonno, por fim, intuindo que Kilaim queria lhe pedir alguma coisa.
— Realmente preciso de toda a minha parte da herança.
— Kilaim, já lhe mandei uma grande soma.
— Preciso mesmo do restante, Nonno. Eu preciso.
O jovem tentava manter o tom de voz sob controle, mas tinha muito que resolver e pouquíssimo tempo. Talvez signore Arthuro tenha percebido o senso de urgência que Kilaim pretendia deixar passar despercebido e perguntou, sem rodeios:
— Para que você precisa do dinheiro com tanta urgência? — O patriarca estava desconfiado.
— Bom, não é que seja exatamente “urgente”...
— Kilaim, fale uma língua que eu entenda. Caso contrário, não posso ajudá-lo.
— Nonno. Meu pai morreu. Minha Mamy morreu. Não vou suceder o signore na Logos. Esses são os fatos. Não quero ser ofensivo, mas preciso que entenda que vou seguir o meu caminho. S’il vous plaît, pague-me o valor da herança que me diz respeito, mande-me a documentação e eu assino. Os herdeiros são seus outros filhos, minha irmã e meus primos. Eu já não entrarei mais nesse processo. Preciso do dinheiro e rápido. Mas não posso dizer o motivo.
— Não seria alguma coisa ilegal, non è, figlio? — a voz do Nonno estava estranha.
— Non. De forma alguma. Mas... É urgente.
— Então, é urgente.
— Da — Kilaim admitiu. — Bastante. Não queria preocup...
— Va bene. Vou ajudar vocês — concordou signore Arthuro, com a firmeza que fez dele um grande homem. — Mas nem pense em contar com a herança por inteiro, Kilaim! É muito dinheiro, mais do que você supõe, e eu estaria agindo sem um mísero pingo de responsabilidade se permitisse a você acabar com toda a sua parte. Há várias propriedades, há outros investimentos que até você desconhece. Não se prepara uma herança assim, do dia para a noite. Mando mais um pouco de dinheiro, pode ficar despreocupado quanto a isso, mas o resto fica aqui. Para sua própria segurança, e do seu futuro.
Pela mente de Kilaim relampejou o pensamento de que, talvez, não houvesse um futuro guardado para ele.
— Às vezes, quando somos jovens, agimos por impulso e sem pesar as consequências — continuou signore Arthuro. — Na ausência de seus pais, eu sou responsável por você, lembra-se? Entende isso, figlio mio?
— Va bene — Kilaim achou justa a argumentação do Nonno. — Sei que vai perder tempo com advogados e contadores. Mas pode me enviar alguma coisa ainda hoje? Depois é só ir deduzindo do valor total.
— Ok. Vou transferir o que puder imediatamente.
— Grazie tante, Nonno. Nunca vou esquecer isso — falou Kilaim com uma sinceridade pungente que até comoveu o velho. — Só mais uma coisa.
— Va bene.
— Quanto à grife de Mamy, sei que está no piloto automático. Gostaria de relançá-la por aqui, colocando um estilista promissor à frente e deixando Claire administrar o negócio. Seria bom para ela. O signore poderia providenciar a venda da boutique e o envio de todo o estoque, se é que ainda há algum? Gostaria de ter essas peças aqui comigo.
— Vou encarregar alguém disso e farei o que me pede, figlio mio. — E com um tom de saudades na voz, ele acrescentou: — Mantenha contato, hã?
— Grazi tante, Nonno. Manterei contato. Cuidem-se todos vocês.
— Se você não vem pra cá, não se assuste se eu aparecer por aí, hã? — brincou ele.
Kilaim engoliu em seco.
— Claro... — a voz do rapaz estava um pouco embargada.
Kilaim parecia diferente. Aquilo tinha um quê de despedida e intrigou signore Arthuro. Ele suspirou, mas nada podia fazer. Não podia arrastar Kilaim de volta com um cabresto.
Ao desligar o celular, o jovem gigante ainda se sentia fora do chão, e a boca grudava, sem saliva, mesmo com a promessa do envio de dinheiro. Saiu da sala de música em busca de um copo de água emergencial na cozinha.
* * *
2
Inspiration
Claire ouvia os Tribalistas, um trio brasileiro que tinha um único álbum lançado no Brasil, mas que recebera cinco indicações para o Grammy Latino, tendo ganhado um.
Na verdade, o grupo permaneceu junto por pouco mais de uma semana e, apesar de não terem planejado gravar um disco, já que cada um tinha sua própria carreira musical, ainda assim o resultado foi bom.
Claire gostava do som produzido, da harmonização, da melodia e das letras de modo geral. Arriscava cantar um pouco, num português mal falado, e acompanhava com um ou outro passo de dança que nada tinha a ver com o gingado das brasileiras.
A moça estava tão feliz cantando e dançando, tirando ingredientes da geladeira e da despensa, que Kilaim estacou na porta da cozinha, observando-a, enternecido, e com o coração na mão.
Como iria explicar o que estava acontecendo? Sentiu algo bem próximo do que poderia ser definido como desespero. Foi quando Claire o viu ali, parado na porta.
— Mon ange! Vou fazer um jantarzinho caprichado para nós mais tarde, mas vai ser surpresa, por isso você não pode ficar por aqui. Estou encantada com esse livro de culinária brasileira que o senhor Arruda Paiva deixou por aqui. É de um chef muito conceituado, Alex Atala, proprietário do D.O.M. Precisamos ir lá um dia! É o sexto melhor restaurante do mundo segundo a revista britânica Restaurant Magazine. Estou encantada! As receitas parecem maravilhosas. Pesquisei um pouco sobre esse chef. Acredita que ele serviu 500 porções de galinhada aqui em São Paulo, lá no Minhocão, na Virada Cultural do ano passado? Tudo ia começar à meia-noite para aqueles que tivessem conseguido senhas com antecedência. Só que o número de interessados era muito maior e houve tumulto no local, com vaias e empurra-empurra. No fim, quem conseguiu chegar perto da barraca acabou levando a galinhada mesmo sem senha. Ele ficou feliz de, pelo menos, ter sido o primeiro que ousou levar culinária de qualidade para a população. É uma pena que o público não tenha se comportado à altura. Os brasileiros são simpáticos e alegres, mas falta-lhes um pouco de refinamento.
Kilaim não conseguiu absorver metade do que ela dizia, mas a palavra “galinhada” saltou do meio das outras, o que só fazia com que ele se imaginasse esquartejado, ao lado de Claire e do bebê, igualmente cortados em pedaços.
— Veja que livro legal! — Ela se aproximou do rapaz com o volume nas mãos e folheou algumas páginas. — Vi aqui um risoto de alcachofra que parece magnifique como prato principal. Temos também essa salada, que leva tomates-cereja, gomos de mexerica e cebola roxa; e olhe que interessante, o miniarroz lançado por Alex Atala deve ser primeiro cozido e depois tostado em uma frigideira para que fique bem crocante. Quanto antes quero experimentar fazer a moqueca baiana, mas não hoje, parce que não tenho aqui todos os ingredientes. Precisamos de badejo, camarões grandes, leite de coco, azeite de dendê... O que será azeite de dendê? — Claire falava pelos cotovelos, com grande animação. — Achei também uma receita de salada de frutas que leva raspas de limão e de casca de laranja, várias frutas tropicais e, para acompanhá-la, um creme gelado de limão feito com leite condensado, iogurte natural e... Oh! Mas o que estou dizendo? É para ser surpresa!
De repente ela percebeu o semblante escuro de Kilaim.
— Mon ange... Que aconteceu?
Largou o livro sobre a mesa, ao lado das panelas e ingredientes, e correu para ele. Passou a mão sobre sua fronte, que estava gelada.
— Mon Dieu, Kim!
— Claire.
Ele não sabia o que dizer. Tinha sido precipitado entrar na cozinha daquela maneira, deixando Claire inferir que algo estava muito errado. Ele queria preservá-la. Então, esquecido da água, fez menção de dar meia-volta.
— Acho que vou tocar um pouco mais de piano.
Ela segurou-o pelos ombros.
— Espere. Que aconteceu com você? — E subitamente temerosa: — Alguma coisa com sua irmã?
Kilaim suspirou.
— Mais non. Immer noch gut!
— Quoi?
— Está tudo bem em Lyon. Até nos convidaram para fazer uma visita, querem conhecer você.
— Que bom!
— Alors... Vou tocar um pouco mais agora.
— Você estava tão animado ainda há pouco.
— C’est vrai. E estou. Mas, agora, vou tocar.
Ele saiu dali, sentindo a vista turva por um instante. A boca grudava. Seria medo?
— Preciso de um copo de água. — E voltou para a cozinha.
Pegou a garrafa de água mineral que estava sobre a pia e, antes que Claire conseguisse alcançar um copo, ele bebeu um litro e meio de Bonafont direto da garrafa.
Observando-o, Claire tomou a decisão que julgava mais acertada.
— Ange, vou deixar para fazer esse jantar outra hora. Vamos dar uma volta. Agora.
— Non, Claire. Preciso tocar piano e pensar. E tem que ser agora.
— Eu sei que a música te acalma, Kim, é uma coisa boa. — Ela aproximou-se dele, envolvendo sua cintura com os braços. — Mas, não agora.
O tom era carinhoso, mas Claire não parecia muito disposta a receber objeções.
— Claire, você não entende, realmente preciso ir para o piano.
Ela já tinha entendido a relação de Kilaim com a música. Sorriu.
— Venha, vamos dar uma volta. Vamos “espairecer a cabeça”, como dizem por aqui.
— Caraca, mano. Você está querendo me obrigar.
Claire tentou continuar sorrindo, mas estava ficando meio aflita. Que teria acontecido agora?! Não queria vê-lo afundado em si mesmo de novo. E falou sinceramente:
— Kim, acabamos de viver uma experiência maravilhosa juntos, com a resolução inesperada do sequestro da sua irmã. Percebe que há maneiras diferentes de tentar resolver as coisas que não seja se isolando do mundo? Ou de mim? Eu estou aqui! Você não está mais caminhando sozinho. — Olhava para ele, tentando adivinhar o que ocorria, mas ele não deu pista alguma. Então, Claire perguntou: — Há alguma coisa que você possa fazer, neste exato minuto, para resolver a situação, seja ela qual for?
— O que tinha para ser feito eu já fiz...
— Voilà!
— Mas agora tenho que pensar no próximo passo. Por isso vou tocar piano e...
— Kim, você está repetindo isso como um mantra. Não se enterre sozinho na sala de música, s’il vous plaît. Não vou deixar isso acontecer. Vamos sair juntos, a noite está bonita. Quem sabe, espairecendo a cabeça, você consiga pensar melhor depois. Ou, talvez, queira me contar logo o que está acontecendo.
Kilaim ainda não parecia convencido. Porém, aos poucos, o abraço dela e o seu calor devolviam a ele um pouco de quietude e um ritmo mais tranquilo ao coração.
— Sabe? Estou aprendendo a amar este país, e amo estar aqui com você! Tem sido maravilhoso, mas mal conhecemos a cidade mais populosa do Continente Americano e de todo o hemisfério Sul, essa nossa querida São Paulo. Sabia que a Região Metropolitana de São Paulo conta com quase 20 milhões de habitantes e é a quarta maior aglomeração urbana do mundo?
Kilaim teve que sorrir.
— Está ficando viciada em informações, como eu?
— Tenho um bom professor... — Ela queria apenas distraí-lo, fazê-lo pensar em outra coisa e sair de casa. — “Não posso ficar nem mais um minuto com você; sinto muito amor, mas não pode ser. Moro em Jaçanã. Se eu perder esse trem, que sai agora às onze horas, só amanhã de manhã” — ela cantarolou o trecho da marchinha, puxando Kilaim pelos braços para um sambinha um-dois-três, um-dois-três.
— Que música é essa? — perguntou ele, achando graça na persistência dela em demovê-lo do piano, e acompanhou o passinho, colocando todos os rococós que aprendera.
— Trem das Onze, de Adoniran Barbosa. Um compositor nascido no início do século XX, filho de imigrantes italianos. Durante muito tempo essa foi uma canção-símbolo de São Paulo. Jaçanã é um bairro da cidade. — E continuou a cantarolar: — “E além disso, mulher, tem outra coisa. Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar. Sou filho único, tenho minha casa pra olhar, eu não posso ficar, não posso ficar...”.
Claire tinha uma voz bonita de contralto, afinadinha, gostosa de ouvir.
— O grupo Demônios da Garoa, que cantou muitas músicas de Adoniran Barbosa, como essa, entrou no Guiness Book do Brasil como o grupo brasileiro mais antigo em atividade. Eles começaram a cantar em 1940 e ainda se apresentam, já na terceira geração de integrantes.
— Interessante...
Os dois se olharam, com uma cumplicidade diferente. Claire a notava, e Kilaim também.
— Deixe-me ficar com você — pediu ela de novo, deixando para lá o sambinha.
— Estamos juntos.
— Non. — Ela balançou a cabeça. — Deixe-me ficar de verdade com você, Kim.
Ele entendeu.
— Ça va, baby. Eu agradeço por tudo.
— Shhh, não agradeça. Isso é a vida a dois, n’est-ce pas? Cuidamos um do outro, daqueles a quem amamos. Vamos aproveitar juntos este mundo novo e dividir nossas preocupações.
— Você não tem preocupações.
— Como não? Você é minha preocupação — ela brincou.
Kilaim esboçou um sorriso triste.
— Que situação a sua, hã?
— Vamos ao shopping? — insistiu ela.
— Não quero comprar nada.
— Não precisamos comprar por obrigação. Mas eu ganhei um guarda-roupa novinho e você mal tem o que vestir. Se virmos algo interessante numa vitrine, pode ser que se anime e queira experimentar uma calça, uma bermuda, algumas camisas...
— Claire, você não está entendendo.
— Eu entendi, Kim. Você é que não entende os que estão do nosso lado.
— Quem está do nosso lado, Claire?
— Dieu. Os Anjos. Você não viu como salvaram sua irmã?
— E Paulo? E Pedro? Deus e os Anjos também não estavam ao lado deles? Isso os livrou das perseguições, da morte? O poder de Lucipher também é muito grande, Claire. O poder da Organização.
— Oui. Já sei disso.
— Magia Negra. Lembra?
— Kim...
— Até quando esse seu Deus vai nos livrar? — perguntou Kilaim, impetuoso. — Ele agiu algumas vezes, mas isso vai até quando?
Ele se sentou numa das cadeiras da mesa, que puxou ruidosamente.
— Isso não durará eternamente, Claire — sentenciou.
— Kim...
— Gute frage. Vou te dizer, mais uma vez. A diferença prioritária entre os que vão pelo Caminho da Mão Esquerda e os de qualquer outro seguimento religioso é a seguinte, resumida numa frase: “Seja feita a minha vontade”, em oposição às demais religiões, que dizem de um modo ou de outro: “Tua Vontade seja feita”, isto é, a vontade de Deus. — Ele olhava para Claire sério. — Para que a minha vontade fosse feita tive que dominar certas forças, galgar certos patamares e adquirir poderes. Você já sabe disso. E, mesmo que não concorde ou não compreenda, a verdade é que, para ser completo, o Homem precisa dar vazão ao seu lado “negro”. São justamente esses sentimentos que o mobilizam em direção aos desafios da vida. É preciso vivenciar a raiva, a frustração e a vingança. Isso te completa, mas é claro que existe o lado sacrificial. É preciso abrir mão de algumas coisas para obter a coroa. Para ter o que ninguém tem, faça o que ninguém faz. E eu fiz. Fiz o que os outros não fazem, e agora isso cobra seu preço. Eu agradeço muito pela sua disposição em me ajudar, Claire, mas...
— E o que você sugere? Que eu faça as malas e deixe você, por medo do que vai acontecer?
— Eu não te culparia.
Ela meneou a cabeça várias vezes seguidas.
— Eu não vou fazer isso, te abandonar.
Kilaim deu um longo suspiro.
— Você não achou lindo o livramento que Ele trouxe?
— Na verdade, eles não são o Mal de maneira absoluta... — continuou Kilaim, aparentemente sem ter ouvido. — É como Yin e Yang. A existência do Satanismo e o uso de suas forças é algo fundamental para o equilíbrio do mundo.
Um segundo, e a ideia maluca de que seria possível arrastar Claire para a Organização passou pela cabeça dele — mais uma vez. Embora Zor houvesse dito que eles nunca iriam querê-la, certamente era um exagero. Se Claire estivesse disposta, Lucipher a aceitaria. O sumo sacerdote dissera pelo telefone não entender o motivo por que Claire fora atendida em suas orações. Não mencionou nada sobre ela ter o Selo, o que significava que as entidades nada viram. Então, sempre há um modo. Todo ser humano tem seu preço.
Bastava encontrar a porta.
— Eu queria que você entendesse que o Satanismo é um caminho como qualquer outro — Kilaim falou, olhando-a nos olhos. — Com a diferença, porém, de que você realmente verá o que é fazer parte de um grupo unido, e não dessa podridão em que se tornou a Igreja.
— Você olha para a Igreja e vê Dieu por meio de um sistema contaminado. E passa a odiá-Lo. Mas eu olho e apenas vejo Dieu. Vejo a Pessoa Dele pela Luz da Palavra, e jamais poderia deixar de servi-Lo — ela respondeu, intuindo o propósito do comentário. — É um caminho sem volta também para mim.
Kilaim fechou o semblante.
— Caminho sem volta? Non. Você não sabe o que isso significa. Caminho sem volta? Vou te dizer: é da Organização que ninguém sai, cachu, você não percebe? Esse é que é um caminho sem volta. Isso quer dizer que, ou eu volto, ou eu morro. E, pior ainda, outros podem morrer por minha causa. Pessoas que eu amo.
— Dieu ama você, Kim. Para Ele, não há impossíveis nem caminhos sem retorno.
— Não me fale nessa besteira de “Dieu me ama”! — Ele empurrou a mesa com as mãos, afastando-a do seu lugar.
Claire tomou um susto, mas não se mexeu.
— Há pessoas que Ele não aceita e não ama coisa nenhuma — reclamou o jovem. — Há o pecado sem perdão, está lembrada? Quem pecar contra o Espírito Santo não terá perdão. Você não acha que já atingi, de longe, esse patamar?
— Já conversamos o bastante, Kim. — Claire foi empurrando a mesa de volta para o lugar. — Agora, vamos sair um pouco.
A garota sabia que o namorado não iria falar o que o estava incomodando, naquele momento.
— Ça va, Claire — ele se deu por vencido. — Oke.
— Vamos conhecer o Shopping Villa-Lobos, alors? Não é tão longe, é grande, tem muitas lojas boas e também um OutBack — falou Claire, sabendo como Kilaim dava valor à boa comida, e foi hábil em deixar para trás a conversa. Mas reteve os conceitos.
Kilaim foi saindo da cozinha meio forçado, mas intimamente surpreso em ver como Claire o conhecia cada vez melhor, e como sabia lidar com as situações bem melhor que ele, tinha que admitir. Outra garota faria um drama por causa de uma mesa deslizando pela cozinha. Aquilo o confortou. Era uma grande companheira.
E como ela nunca pedira para ir, especificamente, a algum lugar, não podia deixar de concordar. Foi pegar a chave do carro depois de passar pelo banheiro. Sem uma boa soma em dinheiro ele não podia fazer nada, e um voo da França para o Brasil também era demorado. Sabia que tinha algum tempo ainda. Talvez um dia ou dois. Claire tinha razão e sair poderia ajudar a aclarar as ideias. De madrugada, com certeza iria pensar melhor e estabelecer uma contraestratégia.
— Alors, vamos indo.
— Espere só eu me trocar, Kim. Vou ser bem rápida.
Claire subiu correndo, enfiou a primeira calça que viu pela frente e uma blusinha. Passou no banheiro, escovou os dentes, borrifou um perfuminho e voilà.
* * *
Era sexta-feira, começo da noite. Eles saíram do Residencial Nove e rumaram na direção da Alameda Rio Negro, onde haviam ficado hospedados no flat logo que chegaram ao país. Era um dos principais acessos para a Rodovia Castello Branco, que os levaria para São Paulo.
Descendo a alameda, viam todos os prédios empresariais iluminados e o Shopping Iguatemi fazendo vista, igualmente, com suas luzes. Pelas calçadas, muita gente caminhava, a maioria se aglomerando em pontos de ônibus lotados, para entrar em veículos igualmente lotados. O transporte público na maior parte do país beirava o caos, mas ali em Alphaville não era tão ruim se comparado a muitas outras regiões, incluindo a capital paulista. Mesmo assim, havia bastante congestionamento e o fluxo do trânsito era lento, por isso Claire aproveitava para admirar tudo com atenção e embevecimento. Observava o rosto das pessoas, como se vestiam, como conversavam.
Da Alameda Rio Negro pegaram o pequeno anel que dava entrada para a rodovia. Naquele trecho sempre se podia sentir o aroma delicioso de café recém-moído.
— De onde virá esse cheiro, Kim? Espalha pelo ar, e é tão bom!
— Tem uma fábrica por aqui, é do Café Pelé.
Claire adorava ir até São Paulo. Lá tudo fervilhava de gente, de empreendimentos, de ir e vir; muito mais que em Lyon! E era incrível fazer parte daquilo, estar no meio de tudo e de todos.
A Rodovia Castello Branco estava congestionada na saída de Alphaville, como era usual, especialmente em noite de sexta. Aquela era uma das melhores autoestradas do país graças à iniciativa privada, e dava acesso a várias outras rodovias. Era um luxo poder usar a Castello, mesmo com seus congestionamentos, pois é desconfortável, caro e arriscado trafegar por boa parte das rodovias brasileiras — exceção concedida à malha rodoviária de São Paulo, por onde passam as dez melhores estradas do país.
O casal foi escutando música e o tempo passou rápido. Claire levou o CD dos Tribalistas e arranhava a letra de sua música preferida, que já traduzira. Em sotaque forte, ela pousou a mão sobre a coxa de Kilaim e começou a cantar para ele.
— Essa música é para você, mon Ange.
“Eu gosto de você,
E gosto de ficar com você.
Meu riso é tão feliz contigo
O meu melhor amigo
É o meu amor...”.
Pouco mais à frente havia saída para a Marginal Pinheiros, um conjunto de importantes avenidas que margeiam o Rio Pinheiros, em São Paulo, formando a segunda via expressa mais importante da cidade, ao lado da Marginal Tietê.
Da saída de Alphaville até a Marginal Pinheiros se rodava pouco mais de sete quilômetros, mas era obrigatório passar por um pedágio quase na boca de entrada da cidade (coisas do Brasil). Havia um mar de carros, além de caminhões que furavam a proibição de conduzir seus veículos àquela hora pela rodovia e pela Marginal. Um extenso colar de contas iluminadas.
Kilaim queria poder estar tão despreocupado quanto sua namorada naquele momento, porque também gostava de ir à capital.
— Je t’aime, Kim... — ela falou de repente, e já não sorria, mas uma lágrima escorreu pela sua bochecha. — Vamos permanecer juntos.
Ele esticou a mão e apertou a mão dela por alguns segundos. Ela não estava tão despreocupada assim.
“Quisera eu ter a resposta certa.”
A verdade é que parecia que o tempo se esgotava.
* * *
No Villa-Lobos, tiveram dificuldade para encontrar vaga no claro e amplo estacionamento.
— Entendo melhor agora por que dizem que os shoppings são a praia do paulistano — comentou Claire.
Depois de rodar um pouco, conseguiram uma vaga boa e atravessaram as ruas do estacionamento rumo às escadas rolantes. Abraçados, coordenaram as passadas — direita-direita, esquerda-esquerda — e Claire manteve a mão enfiada no bolso de trás da calça dele.
— Está com fome? Quer comer primeiro ou dar uma volta? — perguntou ele.
— Você é que sabe.
— Vamos dar uma volta.
Ela olhava para todos os lados, pensando que direção tomar primeiro, e acabou entrando numa papelaria chamativa ao lado das escadas rolantes, e que tinha vários artigos diferentes. Ficou um tempo escolhendo canetinhas, lápis decorados, cartões para mandar a Kilaim, ímãs de geladeira e papel de carta vendido por peso. Claire ainda era o tipo de pessoa que escrevia cartas à mão e colava adesivos nelas. E os ímãs tinham formato de forminhas de muffin, cada um dizendo: “Muitos Beijos, Muito Amor, Muito Riso, Muita Paz”.
Kilaim ficou do lado de fora, esperando por ela, pensativo. Sentou-se num banco e via as pessoas passando, descontraídas, aparentemente se divertindo. Era muito injusto que estivesse sob tal ameaça da Organização, sendo furtado de sua Lune de Miel! Que contrassenso, que espécie de liberdade era aquela da qual ele se via privado assim?
Claire saiu da papelaria segurando sua sacolinha e mostrando um ar satisfeito.
— Cada coisinha linda!
Kilaim passou o braço sobre os ombros dela e continuaram andando, olhando vitrines.
A despeito do passeio, das informações visuais e do contato com outras pessoas, Claire sentia a turvação nos sentimentos dele, o que também a afetava. Sua esperança era que o rapaz confiasse nela mais depressa dessa vez. Seria insuportável passar dias inteiros vendo-o esquivar-se e ficar trancado na sala de música, sentado ao piano ou diante de uma tela, insone, inapetente e naquele mutismo horroroso.
Acabaram chegando à Livraria Cultura. Kilaim olhou os stands principais, conferindo os títulos e se havia alguma coisa que lhe agradasse. Claire ia com ele, pensando em quando seria capaz de ler um livro em português e, mais ainda, se conseguiria conversar fluentemente.
Suas aulas de português estavam marcadas para começar na segunda-feira. Estudaria cinco vezes por semana, em casa, e estava bastante ansiosa. Gostava do povo brasileiro. Era alegre, extrovertido e muito dado com os estrangeiros, quase como se os considerassem melhores do que os da sua própria terra. Bem diferentes dos franceses. Ela queria poder ir à academia, às aulas de inglês ou ao supermercado sem receio de não conseguir se virar por causa do idioma.
Enquanto ele examinava os romances, Claire acabou indo para a bancada dos volumes de culinária. Ficou folheando, vendo as fotos dos pratos, e acabou se decidindo pelo último lançamento do britânico Jamie Oliver, um livro de receitas rápidas e avessas ao fast-food: 15 minutos e pronto.
Também escolheu Chef Em Casa, de Ana Maria Braga, famosa apresentadora brasileira, conhecida pelo programa de culinária e variedades ao lado de seu mais fiel companheiro, o Louro José, um fantoche manipulado por um ator, que fala e contracena com ela.
Entretida como estava, por alguns momentos, Claire esqueceu-se de Kilaim, que, a essa altura, estava na sessão de música escolhendo CDs. Decidiu-se por duas coletâneas de Perlman, e não teve tempo de levar mais nada porque subitamente foi invadido por uma sensação muito incômoda: estava sendo observado. A sensação era forte e aguda, quase como levar um choque. Olhou por cima do ombro, sorrateiro, e nada; havia apenas pessoas remexendo nas coisas, como ele, e lhe retribuíam os olhares aparentemente de forma impessoal.
Seguro de que era observado por algo, ou alguém, contornou as prateleiras, olhando atrás delas. Havia duas mulheres escolhendo caixas de presente que, claramente, admiraram o seu rosto e porte, sorrindo. Ele não perdeu mais que alguns segundos olhando para elas e desviou a atenção para as mesinhas do Café, ao lado da sessão de livros infantis. Homens, moças, crianças. Nada.
Nada?
Então ergueu devagar os olhos para a escada, e, no piso superior, um casal estava debruçado sobre o corrimão. Os dois olharam fixamente na sua direção. O coração de Kilaim bateu forte, mas logo os desconhecidos desviaram a vista. Para dizer a verdade, ele já não tinha certeza de coisa alguma. Seriam apenas coincidências ou realmente havia algo de errado ali?
Olhou de novo em derredor, avaliando rápido todas as pessoas, uma após outra, e todos olhavam de volta para ele. De repente, parecia-lhe que qualquer ser humano ali poderia ser um enviado da Organização. Uma ideia completamente absurda, mas que o incomodou muito. Sentia o coração batendo cada vez mais forte, pulsando insistente no pescoço.
Começou a procurar onde estavam as câmeras de segurança, e tinha a estranha impressão de que todas estavam focalizadas nele. Por um instante, pensou estar perdendo o juízo. Foi tomado por algo desconhecido, nunca experimentado antes, sem definição plena. A mesma secura na boca, um suor frio na palma das mãos, no pescoço, aquele peso no estômago que mais parecia náusea e a respiração mais pesada. Como se lhe faltasse ar.
Era medo, ele percebeu, num átimo. Puro, completo e pavoroso.
Até aquele momento de sua existência, Kilaim nunca tinha se defrontado com o medo. Mas agora parecia estar mergulhando nele, caindo, como num abismo. Temia por Claire e pela criança, mas não podia descartar que, se ele próprio fosse pego, sua morte seria, sem dúvida, exemplar.
Caminhou a passos largos até Claire, puxando-a pelo braço.
— Vamos logo pagar por essas coisas. Estou me sentindo muito mal aqui.
Seu rosto estava lívido como uma folha de papel.
— Pourquoi? O que houve?
— Je ne sais pas. Não sei. Parece que estou sendo observado e que alguma coisa vai acontecer. Estou com uma sensação muito ruim. Vamos logo.
Dirigiram-se ao caixa e pagaram pelas compras, saindo em seguida. Kilaim segurava a mão de Claire com muita força e olhava para o rosto das pessoas, procurando saber de onde vinha o perigo. Olhava para todos os lados: perto da Livraria Cultura tinha um stand Faber Castel, em frente uma Kipling, e... uma outra loja...
Foi então que Kilaim viu. Um casal estava olhando a vitrine daquela loja com uma criança de uns 7 anos.
Kilaim estacou, perplexo, e Claire olhou para ele assustada.
— Caraca, mano... De onde eu conheço aquele homem? Eu o conheço. Ah, já sei. De novo?
Claire seguiu os olhos de Kilaim.
— Eu sei quem ele é; quer dizer, vi fotos dele. Ele conseguiu. Realmente conseguiu. Hoje usa outro nome.
— Mas ele conseguiu o quê?
Kilaim viu o casal que saiu andando de mãos dadas e o menino, muito bonito, caminhava ao lado dos pais segurando uma sacola laranja da PB Kids. O homem tinha uns 45 anos; bonito, bem-conservado, vestido de maneira despojada com jeans, camiseta e tênis. A esposa era um pouco mais nova e alta, trajando vestido cor-de-rosa e esbanjando um tom de vermelho em seus cabelos. Parecia uma família unida e que se dava bem, pelo modo como andavam próximos e conversando uns com os outros. Vinham na direção da livraria.
— Ele conseguiu sair... — murmurou Kilaim, esquecido de tudo mais, inclusive de que Claire estava escutando. — E ficou vivo. Isso nunca aconteceu. Esse cara é uma verdadeira lenda lá dentro.
— Na Organização? — Claire olhava para o casal sem entender o motivo exato de tanto choque por parte do namorado.
— Oui, oui — respondeu Kilaim sem desviar a atenção do homem. — Lembra-se do livro que vimos no Shopping Alphaville no dia em que chegamos aqui no Brasil? Lembra?
— Non.
— Filho do Fogo. Ele foi mesmo da Organização, ele era de lá. Estava destinado a um alto patamar. Não cheguei a conhecê-lo pessoalmente por causa da diferença de idade, mas com certeza ele, hoje, faria parte do meu grupo... Quer dizer, do grupo em que eu estava engajado. Parce que há várias frentes de ataque, e... Enfin. “Daniel Mastral” é o nome que usa agora. Esse cara é missionário, acredita? Ele e a esposa, Isabela, publicaram uma dúzia de livros, incluindo uma série que conta toda a passagem dele pelo Satanismo e, depois, pela Igreja.
Parados no meio do corredor, Claire e Kilaim olhavam para o casal e a criança que vinham caminhando na direção deles.
— Preciso falar com ele. Eu preciso, Claire. — E havia um senso de urgência na voz dele.
— Mas, Kim, eles estão passeando em família. É desagradável que os incomodemos.
— Mas não posso perder essa oportunidade. Allez. Vamos lá. Venha, venha.
E puxou Claire pelo braço, indo direto e reto na direção de Daniel e Isabela Mastral, quase correndo. Parou na frente do casal causando um leve sobressalto nos dois, dada a impetuosidade usada e seu tamanho avantajado.
— Com licença — disse Kilaim olhando para o homem.
Daniel e Isabela já imaginavam o que seria. Alguém que tinha lido os livros ou participado de um seminário com o missionário ou assistido a alguma das pregações pela internet ou “vivido uma história parecida”, e precisava falar alguma coisa, ou apenas agradecer. Mas, por algum motivo, antes mesmo que o jovem abrisse a boca de novo, Daniel viu que estava diante de algo totalmente diferente.
Sabia que aquele jovem era um satanista. Apenas sabia, daquele jeito que Deus costumava lhe mostrar, trazendo conhecimento espiritual sobre as mais diversas pessoas e situações.
— Posso falar com você? — indagou Kilaim. — Prometo que não vou atrapalhar, serei breve.
Daniel e Isabela se entreolharam; Isabela teria preferido se afastar, deixá-los a sós por uns instantes e continuar andando, mas pelo olhar do marido ela entendeu que era importante. O menino se adiantou, estendendo a mão com simpatia e dizendo seu nome, como sempre fazia com as pessoas, em todo lugar.
— Oi, eu sou o Théo.
— Muito prazer, Théo — respondeu Claire, que entendeu o cumprimento e apertou a mãozinha do garoto.
— Vamos nos sentar ali nos sofás defronte à livraria — disse Daniel Mastral.
Acomodaram-se todos. Théo abriu sua sacola laranja e começou a desembrulhar um brinquedo, calmamente.
— Sei que vocês estão tendo um momento em família — desculpou-se Kilaim. — Só quero te fazer uma pergunta.
— Pois não. Diga.
— Como você conseguiu?
Daniel sabia o que ele queria dizer. E respondeu aquilo que Deus lhe pediu que dissesse.
— Descobri a Força que dá poder aos fracos.
Kilaim sentiu um nó formando na garganta. A máxima que norteara sua vida até então, e que estava escrita no Livro de Leviathan, foi parodiada de modo ímpar.
“Poder à força; morte aos fracos.” “A Força que dá poder aos fracos...”.
Como ele sabia?
— Kilaim — continuou Daniel. — Esse é o seu nome, não é?
Claire ouviu e olhou muito surpresa para Daniel. Kilaim só assentiu. Como ele sabia?
— A sua vida foi planejada por Deus, embora não consiga ver isso ainda. Quando se é gerado para desempenhar um propósito dentro da Organização, temos a sensação de que fomos criados pelo Diabo, e não por Deus. Que somos apenas aberrações que Deus rejeitará para sempre. Eu me senti assim; mas a verdade é que não é assim. Os demônios têm como gerar filhos, em relações ritualísticas com mulheres, você bem sabe, mas o espírito humano é concedido por Deus. E hoje Deus quer que entenda que você também faz parte do sonho Dele.
Kilaim sentiu os olhos marejando, e novamente assentiu em silêncio, embora não compreendesse.
— Você nunca teve medo? — indagou o gigante.
— No começo, sim. Muitas coisas estranhas aconteceram e fomos perseguidos. Ameaçavam-nos por telefone, nossos animais morreram, perdemos empregos, o dinheiro sumiu do banco. Todo o dinheiro. Tivemos medo. Mas não permanecemos nele. Essa é a chave: trocar o medo pela fé. Foi um exercício diário.
Kilaim se esforçava, mas não entendia direito o que Daniel estava dizendo. Aquilo era o tipo de coisa que Claire diria, mas o que Claire dizia era quase sempre sem sentido. Entretanto, Daniel lhe causava admiração. Respeito.
— Mas o que você quer dizer? — insistiu Kilaim, como se dessa resposta pudesse tirar a chave que lhe faltava. — Na prática, o que você fez?
— Tomei a decisão. Fiz minha escolha. De me entregar e confiar em Deus. De nos alicerçarmos nas promessas da Palavra. Nas promessas de livramento, de vitória sobre os inimigos. Não tem outro caminho. Pela fé, acreditamos que o Amor que Deus diz ter é verdadeiro, e que Ele é quem diz ser: o Todo-Poderoso — Daniel falava com calma, mas com convicção. E relembrou: — E Ele tem sido Fiel. Esse estreito caminho, árduo, nos levou a conhecê-Lo, e quem O conhece deixa de ter medo. E temos caminhado juntos. — Ele olhou para Isabela.
Claire não conseguia acompanhar a conversa, mas aproximou-se timidamente de Isabela. Num português tosco, misturado com um pouco de inglês, ela tentou fazer-se entender sem pedir a ajuda de Kilaim.
— Nunca se arrrepender de ter casado com ele?
Isabela sorriu.
— Não. Nunca. Por mais que tenha sido difícil, e ainda seja, muitas vezes. Mas se você buscar a Deus de todo coração, e se permitir ser guiada por Ele, vai atravessar o vale da sombra da morte. Confiar plenamente Nele é a única chance de salvação.
Daniel pousou a mão sobre o ombro enorme de Kilaim:
— Você tem pouco tempo para tomar uma decisão sólida em relação à sua vida. Traduza para a moça, por favor. Ela precisa escutar. A decisão que muda tudo — o missionário olhava nos olhos do gigante — precisa ser tomada. Se você ficar em cima do muro, se fizer isso, eles vão passar por cima de vocês dois como um trator. Não duvide disso. Seja um gigante, mas de coragem, e reflita com o coração. Porque a mulher que Deus te deu já tem te falado muito. E você precisa escolher, pois não se pode servir a dois senhores. Não pode haver dois capitães no mesmo barco.
Kilaim ficou em silêncio, estupefato, confuso.
— Mas eles querem nos matar.
— Deus pode fazer infinitamente mais do que você imagina.
Sem saber o que dizer, o rapaz encarava o missionário pensando em tudo quanto já ouvira a respeito dele. Sem dúvida, Kilaim percebia a mudança inequívoca. Não se tratava de fingimento, pelo contrário, era algo palpável. E que não podia ser explicado pela razão. Afinal, ele sabia de tudo...
— É muito bom ser pai — comentou Daniel, olhando de Kilaim para Claire, e detendo-se um pouco nela.
Kilaim entendeu que ele sabia da gravidez.
— Eu vou ser pai também... — disse.
— Ter uma família é a melhor coisa da vida. Cuide bem dela. E não se esqueça: tome a decisão certa.
— Não sei como poderei ser a favor do Cristianismo, se é isso que quer dizer.
— Sim, é isso. Mas não estou falando de religião. E você sabe.
Em seguida, Daniel olhou de novo para Claire, que estava quieta, olhando.
— Seja obediente a Deus. Em tudo. Ele tem orgulho de você. Mantenha-se atenta em oração, e não se esqueça de que a obediência e a fé devem ser os alicerces da sua vida.
Kilaim traduziu rapidamente.
— Não sei direito o que fazer... — a garota admitiu.
— Você já está fazendo. Está ao lado dele, como auxiliadora. Tem sido o instrumento de Deus para apontar o caminho como uma tocha de luz na escuridão.
— E se eu não souber o que fazer?
— Você vai saber — disse Daniel. — Do mesmo jeito como soube lidar com a situação do sequestro.
Como ele sabia do sequestro?! Kilaim estava mais do que perplexo. Se não eram os demônios falando tudo isso a ele, então... Então só poderia ser...
— As coisas podem ficar assustadoras de verdade — ponderou Daniel com seriedade. — Muita coisa depende de você, Kilaim. Por isso, esqueça o que aprendeu, esqueça o que ouviu. Esvazie sua xícara e provará de um novo chá. E eu te garanto, vai ser possível. Junto a Ele. — Fez uma pausa muito pequena. E concluiu: — Isso é o que Deus tem para te dizer hoje.
O casal de escritores se preparou para levantar; apertaram as mãos do casal mais jovem e iam se afastando, quando Daniel se voltou para Claire. Deu um sorriso.
— Seu guardião a ama muito. Há outros com ele, muito poderosos. — Passou o braço sobre os ombros de sua esposa. — Fique com Deus; Ele queria que você soubesse disso.
* * *
Quando foram jantar no OutBack, o restaurante australiano, um novo sentimento inundava o coração de Kilaim. Uma onda cálida de suave quietude. Mais de um modo que, mais uma vez, ele desconhecia.
O poder da esperança.
Mas ele tinha que entender exatamente o que Daniel Mastral havia dito.
“Eu não quero ser um missionário nem viver de Bíblia embaixo do braço. Deve haver um meio-termo aceitável. Deus não pode me obrigar a isso.”
* * *
Naquela noite, ao piano, Kilaim sentia que o pior havia passado. O dinheiro mandado por signore Arthuro estava na conta, uma considerável soma. Mas Kilaim decidiu que iria esperar um pouco.
Não tocou nada estridente, dissonante ou de grandes arroubos estruturais. Apenas melodias suaves e leves, alguns Nocturnes de Chopin e outra peças que afagavam sua alma.
* * *
3
Minas Gerais
Madrugada no Brasil, três horas. O sono leve de Kilaim foi quebrado pelo ruído do celular recebendo um torpedo. Mais ninguém seria capaz de acordar com um ruído tão ínfimo, mas ele se viu desperto em segundos.
Saiu da cama e desceu para o andar de baixo. Já sabia de que se tratava.
“Não pense que você é igual a ele. O preço pago foi alto. Você não tem proteção alguma contra nós. A sentença permanece. Iremos até vocês, e não restará pedra sobre pedra.”
A angústia percorreu o corpo dele de novo e se alojou na boca do estômago, transformando-se logo em dor. Tomar um antiespasmódico foi como beber água pura. Não fez efeito algum. Kilaim raramente adoecia, mas, quando acontecia, os remédios convencionais raramente surtiam efeito adequado.
O restante da noite ele passou em claro, na internet, pesquisando uma rota de fuga e estabelecendo os meios para pô-la em prática. Como sair, andar por aí, sem deixar rastros?
Kilaim era o tipo de pessoa que chamava atenção em todo lugar que ia, por causa do porte, da aparência e, mesmo quando falava português, ficava evidente que não era brasileiro; especialmente lado a lado com a namorada, que só falava francês. Os dois chamavam muita atenção. E, como os brasileiros gostavam dos estrangeiros, estavam sempre prestando atenção, observando, puxando conversa, fazendo perguntas, querendo agradar.
Eles só estariam seguros convivendo com o menor número possível de pessoas.
O estado de Minas Gerais parecia ideal. Clima agradável, já que Claire estava extasiada com a aventura tropical, boa comida e gente pacata. Se fosse apenas por ele, teria escolhido uma cidadezinha no Sul, pois talvez ali, onde havia muitos descendentes de alemães, eslavos e italianos fosse mais fácil passar despercebido. E o clima era mais temperado. Contudo, achou que Claire aceitaria mais facilmente a mudança se fossem para o estado de Minas.
Pesquisando as cidades menores, Kilaim estava disposto a ir para Serra da Saudade, a menor cidade do Brasil, com 825 habitantes, e que se localizava justamente em Minas Gerais. Mas depois achou que em uma cidade tão pequena, onde todos se conhecem, a chegada do casal despertaria mais furor e atrairia mais olhares do que no centro do Rio de Janeiro. O novo refúgio tinha que ser em local pequeno, mas não tão pequeno.
Procurou um pouco mais e acabou topando com uma cidade localizada na Serra do Espinhaço, na Zona Metalúrgica do estado de Minas Gerais, e que o interessou. O tamanho da cidade parecia bom, mas Kilaim também achou graça na sua história. Era São Sebastião do Rio Preto.
O povoado se formara no início do século XIX, poucos anos antes de proclamada a Independência, perto de um pequeno cemitério construído na extremidade de uma fazenda. Com o passar do tempo, foram sendo edificadas casas nas imediações e, então, surgiu uma pequena, mas sólida, cidadezinha. Em 1870, quase no final do Período Imperial, durante o reinado de Dom Pedro II, passou a ser chamada de Cemitério; mais tarde, de Cemitério de São Sebastião ou São Sebastião do Cemitério.
A cidade cresceu um pouco mais durante o período da República Velha. Nessa época, São Paulo, produtor de café, e Minas Gerais, produtora de leite, eram os dois estados mais populosos e desenvolvidos. A oligarquia agrária paulista se reunia no Partido Republicano Paulista, e a mineira, no Partido Republicano Mineiro. Os dois partidos se aliavam para fazer prevalecer seu interesse, que era ocupar a presidência da República. Essa estratégia ficou conhecida como “política do café com leite”: ora o PRP escolhia seu candidato, e era apoiado por Minas Gerais, ora o contrário. Por isso, a maioria dos presidentes da República Velha representou os interesses dos cafeicultores paulistas e dos fazendeiros mineiros.
Kilaim olhou imagens pelo YouTube e foi se convencendo cada vez mais de que poderia ser um ponto adequado para eles. Menos de dois mil habitantes. Rodeada por pequenos picos ondulados, serras verdes e vales. Bem bucólico. As ruazinhas eram estreitas e pavimentadas com paralelepípedos, havia muitas construções antigas, e praça central com igreja matriz. Viu uma imagem de uma vaca deitada na rua, escapada do pasto logo ali. Na beira do Rio Peixe, cristalino, pares de alpargatas na margem denunciavam as crianças que nadavam. Não havia hotel convencional cadastrado, somente algumas pousadas que atraíam turistas interessados nas belezas naturais, mas em pequena quantidade quando comparada a outros locais.
Isso era bom. Não chamariam tanta atenção. Principalmente porque a ideia de Kilaim era adquirir uma chácara, ou um sítio, nas imediações de São Sebastião. Afinal, não poderiam viver no meio do nada. Era importante poder contar com o suporte da cidade. E seria fácil justificar sua estadia como férias prolongadas, para que Claire desfrutasse de ar puro e aproveitasse a natureza durante a gravidez.
Contente de estar avançando, o jovem deu uma olhada nas oportunidades imobiliárias e, de cara, conseguiu encontrar uma chácara à venda. Ou, talvez, tenha sido pura sorte já que, num lugar desses, onde boa parte da população estava envolvida em negócios agropecuários, dificilmente se mudava de vida.
Sorte ou não, Kilaim viu as poucas fotos e, nas primeiras horas da manhã, entrou em contato com o proprietário e ofereceu um pouco mais do que ele pedia. Não pagou logo o dobro porque isso poderia gerar comentários indesejáveis. Resultado: a chácara foi vendida na hora.
Kilaim e o proprietário combinaram encontro para o mesmo dia, em São Sebastião. Kilaim disse que tomaria o primeiro voo disponível e faria pagamento in cash. Depois, nos dias subsequentes, cuidariam com mais calma da documentação. O dono da chácara era um senhor simplório, que jamais o prejudicaria no negócio. E, de tão feliz, o homem não parava mais de falar. Foi preciso que Kilaim o interrompesse, dizendo ter que cuidar das passagens.
— O senhor vem sozinho, senhor...?
— Daniel. — Ele nem sabia por que dera aquele nome. Mas gostou da escolha. — Vou com minha esposa.
Kilaim tinha certeza de que aquilo era o mais acertado a fazer. Se se cercasse de muita segurança, chamaria mais atenção para si. Quanto mais blindagem, pior. Naquele lugar perdido e isento de qualquer muralha, num campo aberto, passariam despercebidos.
Pelo menos, era o que ele esperava. Não podia ficar ali esperando que os executores chegassem.
* * *
Antes de Claire acordar e descer, lá pelas nove da manhã, Kilaim já tinha preparado o carro com as principais coisas que teriam de levar, inclusive louças, talheres, panelas, roupas de cama e banho. Por ora, fariam a viagem de cerca de oito horas com o carro que já tinham em mãos. Nada de aeroportos. Ele ainda não tivera tempo de providenciar documentos falsos para ambos.
Mais tarde, resolveria o que fazer para buscar os carros novos na concessionária da Nissan. Talvez ele viesse sozinho para São Paulo. Deixaria o carro de Claire na casa de Alphaville e iria de volta para a chácara com o Frontier. Ou talvez, não. Talvez ficassem usando um carro de aluguel em Minas. Veria isso depois.
Com o coração apertado, Kilaim preparou-se para dar a notícia para Claire. Escutou-a descendo e entrando na cozinha, onde se preparava para pôr a mesa para o desjejum. Ele se aproximou e optou pela ausência de rodeios.
— Mon amour, nós vamos ter que sair daqui.
— Ah, você quer dar um passeio logo cedo? Aonde iremos? Que tal conhecer o Parque Ibirapuera?
O coração dele ficou mais apertado ainda, e ele a puxou para si, abraçando-a com força.
— Non. Vamos ter que sair daqui. De nossa casa.
Ela ergueu o rosto para ele, surpresa.
— Mas... Pourquoi, Kim? Acabamos de nos estabelecer aqui.
Ele continuou a prendê-la num forte abraço.
— Se a minha irmã está viva é parce que outra pessoa vai morrer. Eles não vão deixar barato — Kilaim não fez mais segredos. — Pior ainda: todos nós morreremos. A única estratégia é ganhar tempo, por isso temos que sumir daqui.
— Kim, ontem mesmo nós tivemos uma chance ímpar de conversar com Daniel e Isabela...
— Eu não sou como ele, Claire. Daniel Mastral pagou um alto preço para estar vivo. Os dois pagaram. Eles são cristãos verdadeiros e você não faz ideia da Guarda Angelical que está com eles. Mas eu sei. Eles sobreviveram aos maiores e mais terríveis ataques do Inferno, algo nunca visto. Quanto a mim... Que proteção eu tenho, Claire? A minha proteção vinha dos demônios, e se eles estão se posicionando contra mim, très bien, isso é um problema. Eles estão a caminho, em pessoa. Estão vindo. Recebi um torpedo de madrugada.
Ela se desvencilhou dele.
— Deixe-me ver.
— Já apaguei.
Claire se sentou numa das cadeiras da mesa da cozinha, o rosto inconformado.
— Você acha mesmo que alguém viria da França para nos matar, Kim? Você está supervalorizando a situação. Isso é coisa de filme. Ce n’est pas possible...
— Claire, eles nem teriam que vir pessoalmente. Alguém da Organização aqui mesmo, no Brasil, pode fazer o trabalho — ele explicou. Depois, fez um parêntesis desagradável: — Matariam você e o nosso filho; e quanto a mim, tenho certeza de que me matariam na França. Não iriam abrir mão desse gosto. Enfin... Pesquise a história e verá, surpresa, que muitos morreram em circunstâncias estranhas e suspeitas. Políticos, atores, artistas, princesas...
Ele ficou quieto. Claire também ficou quieta por alguns segundos, mas depois continuou:
— Kim, numa coisa você está certo. O casal Mastral deve mesmo ter Anjos poderosos com eles. Algo que foi fruto de uma conquista, de uma entrega de vida. Mas, mesmo assim... Você acha que Dieu permitiria que nós fôssemos mortos agora? Ele não acabou de salvar a sua irmã? Não permitiu que eu engravidasse? E para quê? Para ser assassinada?
— Je sais. Sobre a minha irmã, não compreendo como isso aconteceu. Ele ouviu o seu pedido, mas será que o fará de novo? Esse é sempre o meu grande questionamento, Claire, parce que Deus às vezes simplesmente não intervém. E, sinceramente, não vou ficar aqui esperando, ainda mais com você grávida. Tenho que tomar as providências que julgo cabíveis e não ficar aqui, esperando que Deus, ou algum Anjo, faça alguma coisa. Por sinal — Kilaim se lembrou —, o Daniel falou alguma coisa sobre um guardião seu, que te ama. Ama? Quem é esse tal?
Claire sorriu.
— Não sei o nome dele. Mas me pediu que o chamasse de Sol. Eles amam de outra forma. Não é isso que sua cabeça dura está pensando. Amam de forma pura, verdadeira e poderosa.
— Hum. “Sol”. Modesto ele, hã? E sempre está por aqui?
— Não sei se o tempo todo, mas vem sempre que preciso. E, às vezes, percebo a presença dele. Tem um perfume que...
— Alors, temos um Anjo fungando em seu cangote, é isso?
— Ah, Kim, menos! Chega de ciúme. Não confunda os Anjos com os demônios. Isso já é demais né?
— Ça va. — Ele chacoalhou a cabeça. — Vamos ao que interessa e deixemos esse anjo pra lá.
Sentou-se defronte a Claire, tomou-lhe as mãos nas suas.
— Perdoe-me, chérie, mas realmente temos que sair daqui. Arrume suas coisas; temos um tempo ainda. Mas, antes do meio-dia, sairemos daqui. Não quero estar vulnerável à seta que voa ao meio-dia. Vou procurar dificultar as coisas. Se quiser, ore. Espero que nós consigamos sair daqui como saímos da França, sem problemas.
— E para onde vamos? — indagou ela com certa aflição.
— Um lugar escondido. Pequeno. Onde não vamos chamar muita atenção. Um sitiozinho no interior de Minas Gerais. Mas olhe — ele apertou as mãos dela de novo —, não será de todo ruim. Pelo contrário. O clima é bom, bastante verde. Boa comida. Muito sossego. Você vai poder aprender a fazer coisas diferentes na cozinha.
— Ça va — ela respondeu, então, de pronto.
O coração dele doeu de remorso, como que agredido por uma espora, espetando de repente. O que tinha feito? Arrastara Claire para aquele buraco, aquele abismo que terminava em morte! Como imaginara que poderia ser diferente? A concordância dela, sem lágrimas ou reclamações, calou fundo na alma de Kilaim.
— Oh, mon amour. — Ele não sabia o que dizer. — Pardon...
— Shhh. Não fale isso. — Apertou a mão dele de volta. — Eu estou com você. Aonde você for, irei também.
Ergueram-se e se abraçaram longamente. Claire tomou as rédeas da situação, falando com convicção:
— Vamos comer alguma coisa. Precisamos de energia, especialmente você, que vai dirigir. Suponho que vamos de carro, n’est-ce pas? Para não deixar nossos nomes e destino no aeroporto.
Kilaim ficou surpreso com as constatações dela. E assentiu.
— Iremos de carro.
— Alors, farei ovos Benedict, que você gosta, com suco de laranja, e o pãozinho francês bem brasileiro, com manteiga! Isso! Vou cortar algumas frutas também. Você está sem comer desde madrugada, deve estar com fome. Depois arrumo minhas coisas. Não vou levar muita coisa.
Kilaim não sentia fome alguma, mas concordou. De repente, sentiu uma falta imensa dos croissants recheados com chocolate e amêndoas que costumava comer em Lyon, e se perguntou se deveria, afinal, ter saído de sua terra natal.
* * *
Claire procurara manter bom ânimo durante o café da manhã.
Mas agora, sentada sobre a cama do casal e abraçando os joelhos, ela sentia-se muito vulnerável. Não havia muito mais o que fazer, exceto falar com o Pai. Esperava ouvir alguma coisa, qualquer que fosse.
— Mon Dieu, nos proteja do Mal. — A voz era quase inaudível, só um sussurro. — Livra-nos do Mal. Sair daqui é mesmo a coisa certa a ser feita?
Claire pegou sua Bíblia e folheava os Salmos, a esmo. Orou um pouco mais. Frases soltas de desabafo, de entrega. Esperou. Mas não ouvia nada. Não sentia nada. Nem mesmo a presença de Sol.
— Como não estou Te ouvindo, Papa, entrego essa situação em Suas Mãos parce que eu sei que Você está me ouvindo. Vou crer que aquilo que o Kim decidiu é a coisa certa a fazer neste momento. Se fôssemos morrer agora, pourquoi encontrar o casal Mastral ontem? De qualquer forma, está tudo decidido. Oh, mon Dieu, dê a ele uma experiência Contigo para que possa tomar de coração a decisão certa, como nos foi dito ontem! Não há nada que eu possa fazer ou dizer. Só peço: que ele Te veja, Senhor... Pois o tempo está ficando curto.
Era hora de ser forte, e não de chorar.
— Que possamos sair de São Paulo sem que os demônios interfiram. Precisamos ficar escondidos, Papa. Assim como o Senhor escondeu Jesus em Nazaré, e também depois, até que estivesse pronto para o ministério público. Assim como o Senhor escondeu Moisés, em plena terra do Egito, e também José, esconda-nos também. Parce que Vous êtes forts!
* * *
No andar de baixo, Kilaim guardava alguns livros numa mala, preocupado e carrancudo. Seu violino já estava na caixa. Na falta de poder levar o piano, seria bom ter um instrumento portátil. Ficar sem música seria insuportável, ainda mais num lugar como aquele.
Foi quando o celular tocou. Aquela droga de guerra de nervos estava saturando! Os da Organização eram peritos nisso. Desestabilizando as emoções, ficava mais fácil desestabilizar o resto, e também potencializar a ação das entidades. Ele conhecia muito bem a teoria, mas nunca imaginara que um dia pudesse estar do outro lado da mesa.
— O que é agora, Zor?! — resmungou ele, sem nenhuma polidez.
— Estou ligando para dar o recado pessoalmente, mais uma vez. Você pode ter ganhado uma batalha, mas a Guerra, quem vai vencer somos nós. Vamos acabar com você, com a sua irmã, com ela e com esse filho que espera. — Uma pausa. E então, peremptoriamente: — Essa criança não vai nascer.
Agora, Anne-Sophie fazia parte da ameaça mais uma vez. É. Eles não estavam brincando; aquilo era para valer. Kilaim ficou sem palavras durante alguns segundos. Processando.
— Há algo que eu possa fazer para mudar isso? — perguntou, por fim.
— Non. Você já não pode fazer mais nada. Já que nos voltou as costas, nós também não precisamos mais de você.
A ligação foi cortada em seguida.
Kilaim largou tudo o que fazia e foi ao porão secreto mais uma vez, quase correndo, descendo os degraus de dois em dois no meio da escuridão. Tinha que conseguir falar com Lucipher. Tinha que insistir.
Mas a chama que deveria arder continuamente e que ele deixara acesa da última vez estava apagada. À vista disso, Kilaim se apressou em acendê-la novamente, bastante inquieto. E invocou Lucipher, seu pai, à busca não mais de uma direção, mas de um socorro.
Contudo, o silêncio era absoluto.
— Grande príncipe das Trevas, dê-me a honra de sua presença. O que devo fazer? Eles vão matar a Claire, o meu filho, a minha irmã. My Lord permitirá isso?
Palavras mágicas. Gestos rituais. Comandos de voz.
Nada.
Kilaim fechou os olhos por alguns instantes, perdido.
— My Lord, nunca foi minha intenção te virar as costas, nem trair tua confiança. Sempre te amei. Mas amo a Claire também. Mesmo assim, não me tornei um cristão, não me abaixei diante desse Deus que te maltratou e desprezou. Permaneci fiel a meu pai. Irias tu me desprezar agora?
Nenhuma resposta.
Quando abriu os olhos, o fogo novamente estava apagado, e aquele silêncio soava como uma ameaça horrenda.
O silêncio é espreita; o silêncio apenas esconde o leão que está pronto a dar o bote, sedento de carne e sangue.
* * *
No segundo andar, Claire também escutava o silêncio com a cabeça apoiada no topo dos joelhos. Porém, para ela, o silêncio era apenas... um momento de silêncio. Um momento de aguardo, um tempo de aquietar-se. E não a iminência de uma sentença.
“Vou esperar em Ti, pela fé. Como quando Josué pediu ao Povo que se calasse, durante os seis dias de cerco à cidade de Jericó. E só puderam gritar e atacar no sétimo dia e, alors, as muralhas da cidade ruíram. E era tempo de conquista...”.
Deus nem sempre livra o ser humano do deserto. Ao contrário, Ele usa o deserto para transformá-lo. Sabendo disso, apesar de tudo, ela conseguiu manter seu coração em paz. Deus daria a Kilaim a chance de acreditar Nele! Esse dia estava cada vez mais próximo. Nada de mal aconteceria antes que ele tivesse uma experiência inequívoca com o Amor do Pai.
Por causa disso, Claire não aceitou com resignação a fuga, mas com alegria. Pois, talvez, na quietude de uma pequena chácara, Kilaim vivesse algo novo e escutasse a voz de Deus.
— Papa, confunda nossos inimigos até o dia em que ele tenha uma experiência Contigo. Como a do apóstolo Paulo, que, depois de ver Jesus, ficou cego durante um período. Quando Paulo tinha a visão dos olhos, não enxergava a Ti; mas, durante a cegueira, os seus olhos espirituais se abriram e ele nunca mais foi o mesmo.
* * *
Em Lyon, naquela noite, o inspetor Marcus Reuter pretendia sair da Interpol mais cedo. Sua colega de campo, Roxanna Dashwood, estava na cidade e o convidara para beber alguma coisa. O bom de estar com ela era nunca ser cobrado; Roxanna se divertia sem a necessidade de preliminares desgastantes ou telefonemas no dia seguinte. Ou na semana seguinte. Isso fazia aquele relacionamento funcionar. Cada um na sua área.
Reuter pegou as chaves e ia fechar sua sala quando o telefone fixo tocou. Era Luc Chevalier.
— Oi, Reuter. Adivinhe.
— Resolveu se tornar hetero? Parabéns! — brincou o inspetor.
— Ainda não. Só não conte a ninguém, certo? — O outro deu uma risadinha.
— Fale logo.
— Você não vai acreditar, mas acho que peguei o fio da meada por acaso. Tenho algo a lhe dizer sobre a tal família que você não esquece, os Mastrangello.
— Sim, o que tem? Saiu o laudo?
— Não é isso. Veja só como o mundo é pequeno: recebemos uma queixa nesses dias de uma garota que trabalha na boate Moonlight, em Paris. Só que não prestou queixa lá. Estava com medo. Quando veio visitar a família aqui em Lyon, resolveu passar na delegacia. Segundo ela, uma das meninas desapareceu sem deixar rastros.
— E?
— A dona da Moonlight, uma tal Anette Moreau, justificou a súbita ausência de Nathalie Giraud como uma crise de consciência. Disse que a moça chorou muito, não suportava mais ficar longe da família, ter ido a Paris tinha sido um erro, coisas assim. Mas a denunciante garantiu que isso não era possível; as duas eram muito amigas e Nathalie jamais iria embora sem se despedir. Além do mais, ela garantiu que Nathalie estava bem adaptada e não pensava em voltar atrás.
— A Moonlight é aquela casa de prostituição chique? Ela era dançarina lá... Hummm...
— O fato é que a denunciante tentou fazer contato, telefonar para a outra e nada. Enfin, ela insistiu tanto aqui conosco que alguma coisa estava errada, alors, pelo sim, pelo não, nós colhemos seu depoimento em detalhes. A última vez que Nathalie foi vista, estava na boate, trabalhando normalmente, e se sentara à mesa com dois homens. Fizemos o retrato falado deles. Acho que pode te interessar.
— Por quê?
— Dá uma olhada e depois me diga o que acha. Estou te enviando os desenhos.
* * *
Cinco minutos depois, Reuter estava em franco estado de excitação.
— Não pode ser!
Um dos homens era o neto de Arthuro Mastrangello, da Logos! O filho de Ethan Mastrangello, Kilaim. Não tinha como não reconhecê-lo. Que sorte aquele rapaz ser tão sui generis! De novo, ele estava, de alguma forma, perto de alguém que desapareceu. Muito estranho.
Reuter pegou o telefone e ligou para Luc imediatamente.
— Sacripanta, quem é o outro homem?
— Segundo me disse a garota, é um cliente regular da boate. Aparece uma vez por mês, uma vez a cada 45 dias. O nome dele é Anthon Klevtsky. Mas, adivinhe de novo: não existe nenhum Anthon Klevtsky.
— Documentos falsos?
— Provavelmente.
— E Kilaim costuma ir lá sempre?
— Non. Ela nunca o tinha visto antes, nem viu depois.
— Mais bizarro ainda. Porque, então, podemos depreender que Kilaim esteve lá no exato dia em que Nathalie, supostamente, desapareceu.
— Pois é.
— E vocês interrogaram a dona da boate, as outras meninas? — perguntou Reuter acalorado.
— Anette Moreau conhecia o cliente pelo mesmo nome e confirmou a versão da denunciante sobre a frequência dele na casa. Só acrescentou que o tal “Anthon” tinha sotaque, provavelmente da Europa Oriental. Mais nada. As outras garotas não tinham muito a acrescentar sobre o cliente, embora todas o conhecessem. Tratava-se de um homem fino, bonito, inteligente, um cavalheiro etc. Quanto a Nathalie, uma das mais novas na Moonlight, era tranquila, não usava drogas e, aparentemente, não tinha tendência à depressão ou coisa que o valha. Resumindo: uma pessoa comum, sem nada que chamasse atenção. A maioria admitiu ter acreditado na versão “saudosista” que justificou sua saída de Paris.
— Mas que merde! Se não encontrarmos esse tal Anthon, terei que ir atrás de Kilaim. Não vou deixar isso barato. Será que ele poderia estar envolvido no desaparecimento do próprio pai?
— Calma, mon ami. Uma coisa de cada vez. É claro que, sobre o retrato falado, fiquei na miúda. Apenas a menina que deu queixa sabia dele, e lhe deixei meu telefone. Sabe como é, caso visse qualquer um dos dois sujeitos lá, de novo... E: adivinhe mais uma vez!
— Fala sério. O sujeito está lá?!
— Acabou de chegar. Atribua ao destino, à sorte ou a puro acaso. Solicitei uma viatura em Paris para ficar de campana. Vamos indo?
— De Train à Grande Vitesse é mais rápido que de helicóptero — ponderou Reuter, olhando no relógio. Eram sete e meia da noite.
— D’accord. Encontro você na estação. Com sorte conseguimos pegar o TGV das oito horas.
Reuter saiu apressado e não se lembrou de avisar a Dashwood.
* * *
O inspetor Marcus Reuter e seu amigo Luc Chevalier entraram na Moonlight contendo a expectativa. A garota os esperava e tinha dado jeito de conseguir uma mesa com a ajuda do Host, que era seu amigo. Achara melhor não dizer nada para madame Moreau. Com ar de quem está apenas trabalhando, ela os levou até lá, mas não se sentou. Tinha medo de ser vista em sua companhia.
— Monsieur Klevtsky está ali — foi tudo o que ela disse, de modo quase inaudível, apontando discretamente com os olhos enquanto entregava os cardápios.
Os dois policiais pediram água e gim-tônica. Acomodados, conversavam e se puseram a observar um pouco primeiro. Anthon Klevtsky estava sozinho e bebia uísque.
Havia muitos seres da Sombra no recinto. Contudo, o mais poderoso deles tinha vindo com Anthon e estava postado atrás de sua cadeira. Era Nosferathus. O demônio alto, magro, com aparência cadavérica. Logo notou o interesse dos policiais em seu protegido e reconheceu-os prontamente. Sabia que o mais alto era o inspetor metido a esperto que desbaratara o sequestro da irmã de Kilaim. O outro tinha sido seu colaborador. O que estariam fazendo ali?
Seus olhos se acenderam como chamas vermelhas, de pura ira. Um bafo gelado saiu de suas narinas, e ele chegou mais perto de Anthon.
“Temos visitas”, disse a entidade. “À sua esquerda, os dois policiais idiotas que acham que vão descobrir alguma coisa aqui, hoje.”
O Lobo virou o rosto e logo deu de cara com Reuter, que o olhava. Reconheceu-o, embora o policial não soubesse disso. Os olhos de ambos se cruzaram, deixando sair faíscas.
— Faço o que com esse infeliz? Acabo com a raça dele? — indagou Anthon, entredentes, sentindo a mesma ira de Nosferathus. — Acho que já está na hora de ele passar desta para melhor.
— Não será necessário. Só mostre os dentes. Se ele não recuar, nos incumbiremos de fazer o serviço.
— O que ele quer aqui?
— Procure descobrir. Estou ao seu lado... Vamos espalhar o medo em suas veias.
Anthon se levantou e caminhou até a mesa dos policiais. Puxou uma cadeira e se sentou. Uma atitude completamente inesperada.
— Pois não, senhores? A que devo a honra?
Reuter não perdeu a compostura.
— Mr. Klevtsky. É um prazer. Sou Reuter, da Interpol.
— Eu sei quem você é.
— Conhece Kilaim Mastrangello? — perguntou o investigador.
— Sim, eu o conheço muito bem. E daí?
— Daí que vocês estiveram juntos acompanhados de uma garota chamada Nathalie Giraud, no fim do ano passado, e...
— Exato. E que surpresa! Ela não está mais aqui.
Reuter colocou os cotovelos sobre a mesa.
— Poderia me dizer onde ela está?
— No inferno.
Luc Chevalier até estremeceu. Aquele sujeito parecia um lunático, mas seus olhos diziam que estava de posse de suas faculdades mentais, perfeitamente.
— Ela está morta? — Reuter não se deixou intimidar.
— Sim. Mais alguma pergunta?
— Quem a matou? Você?
— Não tive a honra. Mas garanto-lhe que ela está bem morta. E o mesmo vai acontecer com você, caro policial, se não parar de bisbilhotar onde não foi chamado. O último que morreu, morreu de olhos abertos. Adoraria fazer o mesmo com você. — O Lobo se encostou ao espaldar de sua cadeira, um sorriso brincando no rosto.
— Está me ameaçando? — volveu Reuter com outro sorriso. — Quer ir daqui para a delegacia?
— Antes de eu chegar nessa sua delegacia de bosta você terá um infarto fulminante, que acha? Vai morrer em minutos, como aquelas duas que não conseguiu interrogar.
Reuter arregalou os olhos, mas disfarçou bem a surpresa. Como ele sabia do sequestro de Anne-Sophie? Tudo aquilo estava interligado, Kilaim, a irmã, Ethan Mastrangello... Camille Mastrangello? Mas a pessoa de Nathalie não se encaixava na equação.
— O que Kilaim tem a ver com tudo isso? — A mente de Reuter trabalhava.
— Já ouviu falar em Sociedades Secretas, Reuter? Pois é. O nome já diz tudo: são secretas. Você teve um pouco de sorte, mas é bem persistente. Até merece saber o que aconteceu, por isso vou lhe contar. Só que depois você vai nos deixar em paz, como um bom menino. — Ele se virou para Luc Chevalier e o encarou no fundo dos olhos. — O mesmo vale para você, baby boy. Ao menor deslize, acabou. Um único pio e acabou.
O olhar de Anthon parecia poder congelar o sangue de um mortal.
— Ethan Mastrangello morreu num ritual de Magia Negra. Kilaim o matou. Camille Mastrangello descobriu a verdade, e nós a exterminamos. A garota prostituta também foi morta pelo nosso aliado, Kilaim; não a procure mais. Ela era somente uma vítima, como tantas outras. Estamos conversados, senhores? Satisfeitos?
Reuter ia fazer mais perguntas, mas começou a sentir um frio muito grande, uma turvação na vista, um peso sobre os ombros. Passou a mão pelos olhos, mas não melhorou.
— Não queira trazer os mortos de volta à vida, inspetor. E, se tem apreço pela sua, pare de bancar o herói! — ameaçou o Lobo. — Você jamais vai conseguir provar nada, simplesmente porque não há provas. Se insistir, acabamos com você. Com a sua carreira, com o seu dinheiro, com a sua saúde. Vai terminar internado num hospício, deblaterando com a parede sobre Satã, rituais e assassinatos. Só mais um, no meio de muitos pacientes que nunca serão ouvidos, que estão presos para sempre em seu delírio. Fui claro?
Luc estava perplexo e até puxou um pouco sua cadeira, afastando-se de Anthon Klevtsky. Aquele homem lhe dava arrepios. Queria sair dali o mais depressa possível. Olhou para Reuter e achou-o esquisito, meio fora da realidade. Ficou assustado. E se tivesse mesmo um infarto?
— Reuter. Vamos.
Reuter parecia ter tomado um litro de uísque e estava gelado. Luc pegou o amigo pelo braço, puxando-o para cima, sem alarido. O inspetor obedeceu, sem nenhuma palavra. Luc se perguntava se ele entendia o que estava acontecendo.
O policial mais novo olhou uma última vez na direção de Klevtsky. Pareceu-lhe vislumbrar uma sombra gigantesca perto daquele homem, algo monstruoso. Não queria ficar ali nem mais um minuto.
— Nós nunca viemos aqui — ele disse baixo. — Nunca nos vimos. Não sabemos de nada.
Na rua, ele deixou Reuter dentro de um táxi e ligou imediatamente para os policiais que estavam na viatura, fazendo campana.
— Alarme falso. Boa noite pra vocês.
* * *
DIÁRIO DE CLAIRE
Já se passou um bom tempo desde que escrevi pela última vez, mas hoje tive que vir aqui anotar algumas coisas. Senti o bebê se mexer pela primeira vez! Foi tão estranho e incrível ao mesmo tempo! Parecia uma cosquinha bem no “pé da barriga”, e fiquei imaginando se estava mesmo acontecendo. Mas, depois, conforme os dias foram passando, comecei a perceber que eram mesmo os movimentos dele ou dela.
Tenho feito o pré-natal numa boa clínica em Belo Horizonte, capital do estado, já que aqui em São Sebastião as coisas são mais difíceis e morosas. Uma vez ao mês vamos até lá para a consulta. Também temos um cardiologista, para consultas e exames periódicos. Meu coração vai muito bem!
O Kim não recebeu mais ameaças da Organização desde que chegamos, o que nos deixa mais tranquilos. Ele não fala nada, mas sei que fica encafifado; não entende como tudo que lhe disseram ficou, aparentemente, em suspenso. Mesmo assim, liga com certa constância para o seu Nonno a fim de ter notícias de Anne-Sophie. Faz uma ligação rápida, de telefone público. É mais difícil de rastrear. Está tudo bem com a família dele.
Aliás, o Nonno do Kim ia lhe enviar uma moto que foi de Camille, e também umas roupas que ela desenhou. Agora não será possível, pois não podemos fornecer nenhum endereço, mas, num futuro próximo, quem sabe? Ele quer reabrir a grife de sua mãe aqui no Brasil e deixar que eu cuide da loja! Adorei a ideia, será incrível, mas tem que ser em São Paulo, alors, por ora, não dá.
Liguei para minha tante apenas uma vez, para saber dela. Está ótima e entende que eu não me comunique muito. Não falei que já voltamos da Bahia e que estamos no interior de Minas; o Kim acha que é melhor e mais seguro para ela.
Creio com firmeza que Dieu tem nos guardado poderosamente, e tenho orado bastante. Aqui parece que as orações soam diferente. Às vezes nem percebo que estou falando com Dieu, parce que faço isso o dia todo. Olho os montes verdes, o lago cristalino que fica perto de nossa casa e as florzinhas campestres que crescem por toda parte... Parece que estou mais perto do Criador! Nunca tive a experiência de morar no campo, e está sendo muito bom.
O ex-dono da chácara, o senhor Adriano Pires, deixou aqui uma vaca, algumas galinhas, um galo e um casal de patos. Kilaim disse que precisaríamos escolher entre ter as galinhas, ou ter o galo, senão logo acabaríamos donos de uma granja. Ele acabou se decidindo pelo mais fácil, que foi ficar com o galo (embora eu quisesse também as galinhas). Elas foram doadas pelo antigo dono a um amigo que tem uma criação maior.
Portanto, nos tornamos os felizes proprietários de uma vaca, um galo e dois patos. Os patos ficam na beira do lago, mas estão sempre aqui no terraço de casa ou andando pelo gramado. Depois somem de novo, reaparecem, somem. Fiquei surpresa em ver como eles são ativos! Andam grandes distâncias, o dia todo, nadam, e até de noite se ouve o barulhinho deles. Kilaim os chama Bonnie e Clyde, porque são muito parceiros. E batizei nosso galo de Pompom, já que é todo branco; ele tem umas pernas fortes e crista vermelha. Canta logo cedinho, nos acorda todas as manhãs, é muito gostoso. Naturalmente, se antes havia qualquer perigo, é claro que nenhum deles irá para a panela agora. O Kim também não estava querendo ficar com a vaca, mas insisti. Ela é linda! Já tinha o nome de Afrodite e deixamos assim.
Chamamos o veterinário e recebemos todas as instruções necessárias sobre alimentação e cuidados de higiene, demos as vacinas e os vermífugos. Adoro dar comida para eles, bem cedinho! Já ordenhar a Afrodite ficou sendo trabalho de Kilaim, que está se saindo um ótimo fazendeiro.
O tempo está muito agradável, por sinal. Fresco de manhã e ao cair da tarde, quente durante o dia, mas não demais. Adoramos nos sentar na varanda, no balanço de madeira, e assistir ao entardecer. A passarinhada faz um alvoroço enorme por aqui, especialmente os bem-te-vis. Mas há também sabiás, pardais e chupins. Colocamos bebedouros de água com açúcar para os beija-flores, na varanda, e eles ficam por aqui o tempo todo!
A casa é simples, fácil de cuidar e antiga. A maior parte tem piso de madeira, desses que rangem sob os pés, já meio esbranquiçado, de tanto ser limpo. Temos apenas dois banheiros. O menor, pegado à sala, é para visitas — que são poucas — e o outro, grande, tem uma banheira branca da época colonial, daquelas com pezinho, parecidas com as vitorianas europeias.
A cozinha é enorme e a parte mais importante da casa. Lá o piso é de lajotas de pedra, amarronzadas, e temos forno convencional, claro, mas também um forno à lenha que temos aprendido a usar. Herdamos com a casa uma mesa de madeira maciça, cheia de ranhuras, que tento manter bem limpas, bem como alguns outros móveis. Nada ostensivo. Tudo simples, mas forte. O tipo de coisas que já duraram décadas e vão durar ainda outras décadas, como o guarda-roupa do quarto de casal que, segundo o senhor Adriano, foi feito pelo seu avô, e a cadeira de balanço da sala.
Como a pintura da casa estava muito manchada, uma das primeiras providências do Kim foi mandar refazê-la. O senhor Adriano nos indicou um pintor e eu escolhi a cor. Amarela. Toda amarela, com a moldura das janelas e a cerquinha da varanda em preto. Ficou muito linda, parece até outra!
O senhor Adriano tem sido muito gentil e solícito em tudo. Indicou-nos também alguns empregados. Contratamos uma mulher para cuidar da casa e do quintal, e que também lava e passa roupa: Valdete Silva. E um caseiro — João das Luzes Pereira —, que faz manutenção em tudo de que precisamos, ajuda na limpeza externa e, agora que Kim já se cansou, também ordenha a Afrodite. O leite, damos para eles, ficando apenas com um pouco para nosso uso.
A mãe da Valdete, dona Candinha, antes de se aposentar e voltar para São Sebastião, trabalhou como auxiliar de cozinha em mais de um restaurante, lá em Belo Horizonte. Ainda hoje faz uma comida que vale ouro e ensinou muitos dos seus segredos para as filhas. Agora, é a Valdete que tem me ensinado esses segredos.
Aprendi a fazer um feijão tropeiro incrível! Sua origem data do final do século XVII, quando as vendas do açúcar produzido nos engenhos do Nordeste — a principal fonte econômica do Brasil — começaram a despencar. Os holandeses dominaram o mercado europeu com o açúcar produzido nas ilhas da América Central, mais barato. Foi preciso que Portugal buscasse outras fontes de riqueza, então começou a exploração do ouro pelos bandeirantes (Kim me contou a história deles logo que chegamos ao Brasil).
Encontraram minas de ouro aqui em Minas Gerais, em Goiás e no Mato Grosso. Durante essas viagens, as tropas preparavam seu almoço com os poucos ingredientes que levavam: feijão, linguiça, torresmo e farinha de mandioca. O tempero era basicamente o sal, a cebola e o alho. E foi dessa maneira que nasceu o feijão tropeiro. Nunca imaginei que um prato de feijão pudesse ser tão saboroso.
Claro que disso a Valdete não sabia; alors, ela me ensinou a fazer o feijão, e eu lhe contei as histórias. Regularmente cozinhamos juntas, e aprendi como dar sabor a vários outros pratos regionais. A cozinha mineira tem uma forte associação com a família: o uso do fogão à lenha, as preparações sem pressa, o aroma de comida que se espalha por toda a casa, as várias gerações reunidas, avós, pais, filhos, netos... Isso vem desde a época das grandes fazendas.
É impressionante a quantidade de pratos que se podem conseguir com ingredientes tão simples, como tubérculos, hortaliças, porcos e galinhas. Para comer bem não é preciso fazer comida complicada. E a cozinha mineira tem muito dessa simplicidade, por isso é uma das mais apreciadas do Brasil.
Também não faltam doces, todos caseiros. Adoro as compotas, particularmente a de mamão verde. É feita deixando o mamão de molho na cal virgem por duas horas. É isso mesmo, na cal. Depois temos que lavar o mamão muito bem e deixar cozinhar na panela de pressão. Leva açúcar, cravo, canela, anis estrelado, mon Dieu, é uma delícia! Outro doce que gosto muito é o de abóbora com coco; e também os figos em calda. Já Kilaim adora os brigadeiros, os beijinhos, os quindins, o doce de leite.
Um café à tarde não pode faltar, sempre acompanhado por um bolinho de fubá com sementes de erva-doce ou de laranja. Ou pão de ló coberto com açúcar de confeiteiro e um “tiquim” de canela. Cai muito bem. Mas não é só isso. E o pão de queijo feito em casa? E pudim de leite condensado? E o famoso queijo minas? Aprendi a fazer o queijo, e usando o leite da Afrodite! E hoje estou fazendo um pão doce de maçã com creme de ovos.
Como se pode ver, só tenho pensado em comida. Não sei se são os ares de Minas ou a gravidez, ou ambos. Estou ganhando peso um pouco rápido, mas sei que quando estiver amamentando tudo isso vai embora. Não estou preocupada.
A mulher do Brasil é muito vaidosa. Até demais! Na verdade, considero um exagero. Estão sempre aflitas com o peso, com a forma do corpo, com o peito, com o bumbum, com a coxa, com a malhação. E fazem plásticas! Eu não me preocupo tanto assim. Ainda bem.
Passeamos de vez em quando na cidade e escutamos a igreja matriz tocar a música e as badaladas das seis horas. Também visitamos as cachoeiras. Mas sempre há muito o que fazer por aqui mesmo, em nossa pequena propriedade. Kilaim quis plantar uma horta quando comentei que os temperos frescos estragavam-se muito rápido na geladeira, e deu duro, sozinho, arando e preparando um espaço de terra a alguns metros da cozinha. Depois se divertiu adubando, plantando e regando com afinco diariamente. Só pensava nisso, fiquei até espantada, e agora muita coisa já está brotando.
Temos um pomar bem variado e, como ficava alagado quando chovia, por causa das alamedas de terra, mandamos colocar grama em tudo. Cada árvore ficou num círculo de terra batida, e a grama pegou bem. Da porteira até a casa tem muitas árvores ao redor da estradinha, e para evitar o lamaçal ali também foi necessário colocar pedregulhos brancos, e ficou lindo.
Em volta da casa plantamos jardins, pois não havia nenhum. A escada da varanda terminava direto numa calçadinha de cimento que dá a volta na casa, e daí era só terra em volta. Agora cercamos a casa toda com gramados, fizemos um paisagismo agradável com plantas e flores bonitas. Quanto à calçadinha feia de cimento, resolvemos colocar lajotas de ardósia para dar um acabamento melhor. Kim e nosso caseiro, João das Luzes, que entende um pouco de serviço de pedreiro, assentaram as pedras. Essas coisas valorizam o lugar. Aos poucos, temos arrumado tudo.
Eu pensava ser a pessoa mais feliz do mundo quando estava na Amazônia, mas vejo que não chegou perto da felicidade que sinto agora. Não só pelo bebê, mas pela nossa propriedade, a qual estamos adorando embelezar. É diferente quando fazemos nós mesmos, e estamos pondo a mão na massa.
Mas me sinto feliz principalmente pelo fato de Kilaim estar mais tranquilo. Entramos numa etapa nova do relacionamento, sem dúvida. O sexo é menos explosivo — acho que ele se preocupa com meu “status” de grávida —, mas muito mais profundo. Morno e gostoso. Adoro estar com ele, e temos descoberto sensações novas, que acompanham sentimentos também novos. Acho que é assim que deve ser, n’est-ce pas? Um crescimento contínuo. Um descobrimento a cada dia, a cada mês. A cada ano. Embora ainda não faça um ano que estamos juntos.
Raramente falamos na Organização, Dieu Merci. Acho melhor assim. Parece que estamos esperando para ver o que acontece. A única coisa que ele disse é que, cedo ou tarde, teremos de enfrentar o Grupo. Que eles virão.
Basta a cada dia o seu mal. Eu estou contente nesse “Pause”.
Claire Cécille (feliz)!
* * *
4
Cachette
Era uma tarde modorrenta, e Kilaim limpava o suor da testa uma vez após outra. Mas não se preocupava com isso, pelo contrário. Estava gostando dos trabalhos braçais ao ar livre mais do que imaginava, em parte porque liberava um pouco de endorfina. Porém, também ajudava a diminuir a tensão e fazia passar o tempo. Para alguém que nunca fora fã de atividade física, aquela era uma maneira diferente de se exercitar.
Kilaim estava às voltas com uma antiga charrete que o senhor Adriano deixara na chácara, e que ele achava que poderia reformar. Um engano. Havia problemas sérios na estrutura, teria que conseguir um marceneiro. Ou desistir e comprar uma nova. Olhando para as ferramentas e os pedaços da charrete desmontados, estava quase ficando com a opção mais fácil. Pensaria melhor no dia seguinte.
Deixou as ferramentas no pequeno celeiro onde abrigavam os animais e foi na direção da casa, louco para entrar no banho. À medida que as semanas passavam, a sensação aflitiva de angústia amornava, e ele podia dizer que estava se sentindo muito bem.
No começo foi difícil, porque quase tudo havia sido deixado para trás, todos os itens de conforto. Lamentava por ter que sair às pressas da casa que tanto quisera arrumar e deixar com cara de lar. Haviam ficado tão pouco!
Claire tinha uma capacidade maior de adaptação, e ficava satisfeita mais rápido. Quanto a ele, sentia falta das mordomias, da banheira de hidromassagem dupla, do seu escritório luxuoso, do home theater com cadeira de massagem; mas especialmente do piano. O violino ajudava, mas não era a mesma coisa. Ainda por cima, ali não tinham internet. Isso o deixou realmente horrorizado. Mas depois se acostumou.
A primeira noite foi estranha. Aquela cama não era a deles, e o colchão — um pouco afundado no meio — não era o colchão deles. Quanto antes compraria um novo. O quarto era grande, de paredes brancas, teto de madeira. Mas o acabamento era tosco. Percebiam-se as imperfeições claramente.
“Bem, é uma casa de campo... O que eu esperava?”.
Era novidade viver naquele ambiente bucólico, mas, ao acordar cedinho na manhã seguinte, viu o sol que entrava direto pelas janelas da sala, batendo nas paredes, dourado. A cozinha também ficava iluminada, convidativa. Aquilo deu um ar de acolhimento. Ele abriu a porta e olhou a paisagem. A chácara era ladeada por montes verdes, e o sol nascia de trás de um deles, bem diante da casa. Sua luz, batendo no lago, deixava-o igualmente dourado, brilhante. Era bonito. Até o ar tinha um cheiro diferente. Cheiro de terra, de mato, de orvalho.
Logo, Kilaim percebeu que havia muita coisa para arrumar e caiu de cabeça naquilo. As mudanças na chácara começaram a aparecer rapidamente, e ele apreciava o resultado, orgulhoso. Seu primeiro empreendimento foi a reforma do celeiro para abrigar melhor os animais que, agora, eram de estimação. Afrodite tinha uma baia maior e mais bem vedada contra o frio. Pompom ganhou um poleiro enorme, e um nicho aconchegante para dormir. Todo o celeiro foi pintado de branco.
Na beira do lago, Kilaim e João das Luzes construíram uma casinha de madeira para Bonnie e Clyde, e instalaram um comedouro coberto ao lado. Claire quis que a casinha dos patos fosse pintada de vermelho e azul-marinho: como casinha de cachorro. O lago também precisava de mais cuidados nas margens. O mato não podia ficar alto, pois poderia abrigar cobras. E o acesso deveria ser fácil, sem perigo de Claire escorregar e rolar pelo barranco.
A limpeza das margens foi um projeto grande, trabalhoso. Depois de darem cabo do matagal, dessa vez com a ajuda de um jardineiro, Kilaim e João das Luzes se empenharam no paisagismo com plantas de pequeno porte. Além disso, construíram uma ponte pequenina numa das enseadas. Mais do que passar por cima dela, a ponte era para deixar o lugar charmoso. Por fim, para coroar o trabalho no lago, o casal escolheu dois belos bancos de jardim.
Depois disso, Kilaim mandou pintar a porteira e a cerca que percorria o perímetro da chácara. A cerca recebeu reparo em alguns pontos. Enquanto isso, ele dedicou-se a um projeto de tubulação que trazia água do lago para a horta e o jardim.
Haviam notado que regar uma área tão grande com a água da casa às vezes causava problemas. O rapaz não precisava de consultoria com engenheiros, pois aprendia com facilidade a teoria e, na prática, bastavam um ou dois ajudantes. Todos por ali entendiam de algum trabalho braçal. E João das Luzes se via, mais uma vez, participando de empreendimentos que dificilmente aconteceriam na casa de outro patrão.
A intenção de deixar a propriedade sem nenhum espaço malcuidado, com grama bem aparada, muitas flores e tudo novo, estava dando certo. E Claire se dedicava a arrumar a casa por dentro. Adquiriram alguns móveis rústicos e baratos. Nem se comparava ao preço de São Paulo. Claire sabia alguma coisa de costura e conseguiu fazer umas cortinas floridas para a sala e azuis para o quarto. Conseguiram a máquina de costura a preço de banana numa venda de garagem.
Aos poucos, ela foi fazendo almofadas e comprou tecido para o assento das cadeiras de madeira que faziam conjunto com a mesa. Antes de trocá-lo, Claire pediu que Kilaim lixasse a velha mesa de madeira e as cadeiras.
— Vamos comprar um conjunto novo — dissera Kilaim. Mas ela não concordou.
— Não vai combinar. Vou reformá-la, mas, para isso, a madeira tem que estar lixada. Depois é só pintar.
— Tem certeza de que sabe o que está fazendo?
— Claro! Assisti em Property Brothers.
— Comprarei uma lixadeira elétrica, se é que isso existe.
A verdade é que o casal estava tão animado com a casa de campo que a tratava como menina dos olhos.
Kilaim estava gostando dali. De verdade. Do silêncio profundo à noite, permeado pelo cricrilar de muitos grilos. Da presença dos animais, e sua harmoniosa convivência. Do gosto de doce de leite nas torradas recém-saídas do forno. Do céu estrelado, límpido, que ele ficava olhando longamente, deitado na rede. E da barriga de Claire, cada vez mais redonda.
Quando entrou o mês de junho, começaram a sentir um pouco de frio, e as noites eram aquecidas pelo fogão à lenha, na cozinha, e pelo aquecedor elétrico que compraram para pôr no quarto.
Muitas vezes, Claire ficava com ele observando a noite, contando as estrelas, enrolada numa manta, tomando café com leite e comendo pão caseiro com manteiga. Com lã branca, fazia sapatinhos de tricô. As conversas intermináveis ficariam, para sempre, guardadas no coração dele. Kilaim percebeu que aquele era o melhor momento de sua existência. Foi na simplicidade daquela casa e daquela vida que encontrou o que mais podia se assemelhar a paz.
Certos momentos, olhando o céu, ele se lembrava da proximidade das luas de sangue, e do seu significado. Seriam quatro. Em homenagem aos quatro grandes príncipes. Mas, por algum motivo, as coisas que ele esperava com tanta ansiedade antes já não pareciam ter tanta importância. Eram apenas um sopro na sua consciência.
Às vezes, ele ia para a cozinha ajudar a companheira. As aulas práticas com dona Valdete — das quais Claire entendia um pouco pelo idioma e bastante pelo olhar, pelo aroma e pelo sabor — tinham se espaçado, em virtude dos preparativos finais do casamento de sua filha mais nova, para o qual Kilaim e Claire estavam convidados. Ele tentou de tudo para escapar. Jamais se imaginaria indo ao casamento da filha de uma empregada, mas Claire fez questão. E ainda levaram um excelente presente de casamento. Uma retribuição pelo muito que ela ensinara.
A festa, na casa de dona Candinha — que era a maior —, foi simples, mas farta. (Nem tão ruim assim, Kilaim admitiu para si mesmo depois.) Exceção seja feita ao padre da igreja matriz, que, já inteirado da presença do jovem casal francês há algum tempo, insistia para que fossem visitar a paróquia. Kilaim não pôde dar as respostas que desejava e foi mesmo obrigado a ouvi-lo, pois não podia causar um rebuliço logo ali.
Claire conversava com os familiares de Valdete e olhava de longe para o namorado, parado diante do padre Silvio, que falava, falava, falava. E deu umas risadinhas com ela mesma. Depois, aproximando-se dos dois, garantiu que iriam à missa. O jovem lhe lançou alguns olhares atravessados, mas a promessa já estava dada.
Na ausência de dona Valdete, os dois usavam os livros de receita e cozinhavam juntos, à moda mineira: sem pressa. E dali saíam tortas, pães, bolos e jantares.
O casal acabou descobrindo um lago grande, muito maior do que o pequeno lago da chácara, onde se podia passear de bote. Não tinham o bote, mas viram um senhor mais velho e dois rapazes se divertindo com o deles, usando os remos, embora a pequena embarcação tivesse motor.
— Olha, Kim, que legal! — exclamou Claire, apontando. — Um barco a remo.
— Além dos remos, tem um motor: olha ali atrás.
— Que pitoresco.
— Você gostou?
— É muito legal.
Claire não supunha que Kilaim teria uma brilhante ideia.
— De quem é o barco? — indagou o rapaz, quando os três tripulantes vinham se aproximando da margem.
— Na verdade, é meu — respondeu o senhor.
— Quanto vale um desses?
Os três foram chegando perto e, por fim, um dos rapazes desceu, entrando na água que ia até os joelhos e puxando o bote por uma corda.
— Olha, sô — respondeu o senhor num pesado sotaque mineiro, apeando em terra firme —, esse aqui foi feito pelo meu irmão, que trabalha com madeira. Como só paguei pelo material...
— Não tem ideia do valor?
— Deve valer uns cinco mil. A madeira é muito boa, essa aqui é forte mesmo, e o barco está em perfeito estado. Usamos para pescar. — E mostrou a caixa grande de isopor onde os peixes tinham sido colocados.
— Quer me vender?
— Os peixe?
— Não. O barco.
— Nó, mas aí como é que a gente vai pescar? Você pode encomendar outro trem desses com o meu irmão.
— Trem? — indagou Claire, que estava começando a pescar as palavras com mais facilidade.
O senhor deu risada.
— O trem é o barco, moça.
— Pago dez mil — falou Kilaim.
No dia seguinte ele remava, levando a amada pelo lago, toda feliz debaixo de sua sombrinha vermelha de bolinhas brancas. Claire tinha um xodó por sombrinhas, e como o sol poderia manchar a pele na gravidez, ela se protegia bastante. Naquele primeiro passeio de bote, fizeram piquenique à moda antiga, com toalha no chão.
Eles também se divertiam andando pelos bosques, catando orquídeas e samambaias, visitavam as cachoeiras, faziam compras na cidade. Ora era um xale de linha grossa, todo trabalhado, colorido, para colocar no encosto do sofá; ou um porco de cerâmica em tamanho natural para enfeitar a varanda. Doutra feita, um conjunto de xícaras de chá feitas à mão. E uma machadinha que encantou Kilaim — agora, ele rachava lenha para o fogão, em vez de comprá-la.
Havia as tardes em que saíam para passear de charrete. Kilaim se decidira por comprar uma charrete e um cavalo para saírem pelas estradinhas, já que consertar a antiga não funcionou. O cavalo se chamava Lucas, tinha 2 anos e era muito dócil. Não estava tão bem cuidado como deveria, e um pouco abaixo do peso, segundo o veterinário. O casal comprou as rações balanceadas, deram as vacinas e apresentaram o animal ao seu novo lar.
Claire ficou apaixonada pelo cavalo. E se deram bem a tal ponto que Lucas chegava a se deitar para receber carinhos da garota e relinchava quando ela se aproximava.
— Que pena não poder andar nele... — ela dizia com olhos compridos.
— Depois que o bebê nascer, vai poder aproveitar à vontade. Não vou nem comprar uma sela agora, nem montar nele — prometeu Kilaim. — Faremos isso juntos, mais tarde.
Quando eles iam a Belo Horizonte para as consultas do pré-natal, aproveitavam para visitar lojas de artigos para bebê. E Claire começou a montar o enxoval. Um dia, ao ouvir a namorada conversando com a vendedora, Kilaim achou graça no modo de Claire falar e abriu um sorriso grande.
“Uai, sô!”.
Ele vinha estudando português com ela, todos os dias, mas Claire estava ficando com o sotaque arrastado dos mineiros, aquele jeito de não terminar direito as palavras, emendar tudo e “uai” para cá e para lá. Ele a abraçou por trás, beijando seu pescoço: “Minha mineirinha”.
Certa manhã, ele notou que Claire tinha colado na porta da geladeira uma das imagens do ultrassom. Kilaim olhou para as mãozinhas do seu filho que estava por nascer e sorriu de alegria. Será que um dia já sentira aquele tipo de alegria?
Por certo que não.
Uma vez, não muito depois disso, de manhã bem cedinho, Kilaim havia deixado os animais saírem do estábulo para começar o dia. Afrodite e Lucas pastavam no gramado, em plena paz, e Pompom subiu na cerca para continuar sua cantoria, empoleirado. Kilaim viu os patos na beira do lago, de um lado para outro com seu andar engraçado. A friagem fazia com que uma fina camada de névoa pairasse sobre a água. Mesmo assim, o dia seria radiante, de céu muito azul. Estava tão lindo que Kilaim caminhou atrás de Bonnie e Clyde até a beira do lago para observar a névoa.
Quando chegou, porém, a brisa afastou de leve a fina e esvoaçante camada. Os raios de sol, saindo detrás dos montes, bateram em cheio na água, que refulgiu. Por um breve momento o jovem fechou os olhos, ofuscado, mas logo os abriu, e observou a luz cintilante.
O lago parecia um espelho dourado. De repente, ele se viu nesse espelho. E parecia que havia luz em toda a sua volta, e não apenas no lago. Olhou em derredor. Que estranho! As águas estavam tão claras naquela manhã...
Ele não falou nada para Claire, mas guardou na memória a imagem de seu rosto rodeado de luz. Era uma imagem que nunca vira antes. Significaria alguma coisa...?
A despeito de tudo, às vezes, Kilaim estranhava a ausência dos demônios. Deu-se conta de que talvez aquele fosse o primeiro momento de sua vida em que eles não estavam por perto. Uma saudade batia de vez em quando, mas apenas de Lucipher. Ele tinha sido um bom pai.
Claire falava de Deus, de vez em quando. Mas daquele jeito “sem pregar” que Kilaim já conhecia, apenas porque era seu modo de ser, e não se podia extirpar aquela devoção. Por isso ele escutava com menos irritação. Por amor a ela. Por respeito à sua condição de gestante.
“Está vendo, Kim?”, ela dizia, olhando para o céu e segurando sua caneca de cerâmica cheia de chocolate quente. “Foi Dieu que fez tudo isso. Fez as nossas flores, o nosso lago, até as pedrinhas que colocamos no chão, cada fruta do pomar.”
Um dia, Claire falou das borboletas. E ele não esqueceu:
“Olha, Kim, quantas borboletas. Sabia que nós somos assim também? Borboletas de Dieu. Por ora, você está preso nesse corpo, como a lagarta. Num casulo. Mas um dia você vai voar. Pelos campos. Dieu vai te dar asas, e não vai mais haver limitações, nada que te restrinja. Já imaginou? Voar longe, sem nada que te impeça?”.
Isso Lucipher não podia fazer. Ele dava asas em outro sentido, mas não no sentido literal que Claire estava falando. Borboletas voando no Céu de Deus. Por um instante, ele até desejou aquilo.
Ou então:
“Você não pode ver, é como tentar enxergar todas as estrelas a olho nu. Mas, tenha certeza: os Anjos estão aqui ao nosso redor, em número muito maior do que essas estrelas que estamos vendo.”
Kilaim sabia que não tinha ninguém ao lado dele, mas continuava ouvindo. Era bem verdade que não havia nem sinal dos demônios, como se houvessem perdido o rastro de vez. Estranhíssimo! Ele olhava de soslaio para Claire, admirando a convicção tranquila com que falava. Uma convicção ainda maior que a de antes. Ela os teria visto? Ou Deus dissera isso a ela? Ou, talvez, era somente o estado de “gravidez” que a tornara mais semântica.
Ele não perguntava. No íntimo, porém, ficava um pouco estremecido diante daquela realidade. Achava interessante ouvi-la falar da proteção, pois os demônios eram anjos caídos, então, em essência, Anjos e demônios tinham sido semelhantes. E demônios eram ótimos guardiões. Isso ele pôde constatar várias vezes.
Certa noite, mais ou menos um mês depois de terem chegado à chácara, Kilaim estava tocando violino na cozinha, onde achava a acústica melhor, e Claire se acomodara no sofá da sala, lendo um livro. Já era madrugada, quando ela sentiu no ar o aroma perfumado. Tão de mansinho que nem percebeu no começo.
Na noite seguinte, o perfume estava mais insistente. Na outra noite também. Claire achou, então, que aquilo não era apenas para fazer-se notar e levantou do sofá. Olhou pela janela. Será que queria lhe mostrar algo?
Viu o clarão da lua refletido na água do lago, como um espelho. Então, outro clarão foi surgindo em derredor, como se uma cortina fosse retirada lentamente diante dos seus olhos e se abrisse. Ela prendeu a respiração. Era como se o simples movimento do ar pudesse fazer desaparecer a visão.
“Uma aurora boreal”, ela pensou, embora nunca tivesse visto a aurora boreal. Distinguia os contornos dos Anjos. Eles estavam ali por toda parte, perto da casa e ao redor da propriedade. Via a luz deles ali perto, na varanda, e também ao fundo, atrás do lago, formando um anel de proteção. Eram muitos. Incontáveis.
A visão durou alguns segundos. As lágrimas escorreram pelo rosto dela e, desde esse dia, não teve mais medo. A ideia de que atiradores pudessem chegar ali no meio da noite e acabar com tudo caiu num lugar de esquecimento, sem forma, sem força.
* * *
Era segunda-feira. Já entravam na segunda metade do mês de junho, e Kilaim saiu para ir até a cidade comprar alguns suprimentos logo cedo.
Claire acomodara-se tarde, entretida com mais um livro, e fizera-lhe companhia enquanto tocava violino. Porém, diferente dele, precisava de mais horas de sono. Ao chamá-la cedinho e perguntar se queria ir junto, Kilaim recebeu como resposta alguns resmungos; ela apenas se acomodou melhor no quentinho da cama.
Ele sorriu e saiu do quarto fechando a porta com cuidado. Depois de comer um pacote inteiro de biscoitos e tomar duas xícaras de café, procurou, insistentemente, por amendoins ou salgadinhos, e não encontrou. Os refrigerantes estavam acabando, assim como os chocolates. Embora estivesse procurando não exagerar nessas guloseimas, não pretendia ficar sem. Como Claire já havia feito a lista de compras na véspera, ele resolveu sair e aproveitar a manhã linda de sol cálido e céu muito azul.
Estava de bom humor. Pegou as chaves do carro alugado num gesto rápido e abriu a porta da frente, saindo para a varanda e descendo as escadas em dois pulos. Os veículos que comprara já foram entregues em sua residência em Alphaville. Iria buscá-los em outra ocasião. Deu a partida, ligou o som e percorreu a alameda de pedrinhas que dava na pequena porteira. A propriedade deles logo seria a mais bonita da região.
“Pena que o clima não seja propício para uma vinícola”, pensava Kilaim. “Mas talvez possamos plantar outra coisa.”
Ele pegou a estrada e, em meia hora, estava entrando em São Sebastião. Estacionou na frente do mercado, desceu e acionou as travas do carro, mesmo sem haver necessidade. No interior, percorrendo os corredores, acabou pegando mais algumas coisas que nem estavam na lista, mas que ele julgava necessário. E acomodou tudo em pilhas dentro do carrinho.
As pessoas eram as mesmas de sempre. Era cumprimentado por um e outro, e mesmo quem não o conhecia olhava em sua direção e dava um sorriso, um aceno, bem à moda brasileira. Mas, de repente, Kilaim viu um homem que não conhecia e que lhe chamou atenção. Devia ter cerca de 30 anos, pele clara, cabelo escuro e óculos de sol. Os óculos pareciam caros, e as vestes dele também. Cruzaram-se várias vezes no mercado pequeno e, mesmo sem tirar os óculos, parecia que o sujeito o observava.
“Coisa da minha cabeça”, refletiu Kilaim. Mas ficou de olho.
Ao passar pelo caixa, o tal homem estava ali de novo. Bem no caixa ao lado, ainda com os óculos na cara. Ninguém andava de óculos de sol dentro do mercado, especialmente ali. E, no carrinho dele, só meia dúzia de coisas.
“Pourquoi ele perdeu tanto tempo aqui se não está comprando quase nada?”. Observou desconfiado.
Enquanto passava as compras, respondendo por monossílabos ao blá-blá-blá da moça do caixa, Kilaim viu, de rabo de olho, que o homem finalmente tirava os óculos, devagar. Então não havia mais dúvidas: o outro olhou fixo em sua direção. Cansado daquele joguinho, dessa vez Kilaim olhou de volta, igualmente fixo. Por alguns instantes, eles se sustentaram. E Kilaim definitivamente não gostou do olhar do outro.
“Mais alguns instantes, e eu pego ele lá fora. Vou tirar isso a limpo”, pensou Kilaim, colocando o último galão de água mineral em seu carrinho.
Mas, então, o desconhecido desviou a vista como quem não quer nada; pegou o celular e ligou para alguém. Kilaim pensou em correr imediatamente até lá e arrancar da mão dele aquele celular, por via das dúvidas. Mas não houve tempo.
“Ele está diante de mim”, foi a leitura labial que Kilaim conseguiu fazer, embora o outro virasse meio de lado, procurando disfarçar.
Um imediato mal-estar se alojou em seu coração. Seria possível? Aquele sujeito estaria realmente se referindo à sua pessoa? Ou era ele, Kilaim, que estava vendo coisas?
Pagou as compras em dinheiro e saiu empurrando o carrinho cheio. Precisava de mais evidências. Enquanto colocava tudo no porta-malas, deu uma olhadela pelas costas. Viu o tal homem logo atrás, saindo do mercado e caminhando até sua pick-up branca. Kilaim entrou logo no carro e deu a partida.
“Vamos ver o que acontece. Não pretendo mudar minha vida inteira por causa de um alarme falso.”
Olhando pelo retrovisor, percebeu que o desconhecido também dera partida; e fazia o mesmo trajeto. Ainda poderia ser uma coincidência. Era o que ele mais desejava e, na estrada, experimentou acelerar bastante. Mas o outro acelerou também.
Depois de alguns quilômetros a toda, finalmente Kilaim se irritou de verdade. O que aquele imbecil pensava que estava fazendo, perseguindo-o daquela forma? Ainda por cima era burro! Depois de dar tanta bandeira, achava mesmo que iria segui-lo até em casa?? Furioso, deu seta e diminuiu a velocidade. Foi imbicando o carro para a direita e estacionou no acostamento, decidido.
— Vou ver agora mesmo de que se trata isso — falou para si mesmo. E ficou olhando pelo retrovisor.
A pick-up branca também foi diminuindo, dando seta e, por fim, parou. A uns trinta metros do carro de Kilaim. O homem teve a desfaçatez de descer, abrir o capô e começar a olhar o motor. Mais furioso ainda com aquela ceninha fingida, Kilaim abriu a porta num empurrão.
— Acho que ele pensa que sou débil mental ou cego! — vociferou.
Andou a passos largos na direção do outro carro, como um bólido, raciocinando:
“Ele não sabia que iria me encontrar. Foi apenas um acaso. A Organização inteira com certeza viu a minha foto, e a de Claire, desde que perderam o nosso paradeiro. Esse sujeito só está bancando o valentão, nem deve estar armado.”
A cada passo, Kilaim sentia uma ira crescente invadindo seu peito, penetrando cada molécula do corpo. O ar entrava vigorosamente em seus pulmões, e ele nem percebeu, mas seus punhos já estavam cerrados. Quando estava a dois passos, o outro se virou, tirando aqueles óculos ridículos do nariz.
Como um touro que avança sem medir consequências, e sem palavra alguma, Kilaim ergueu a mão esquerda, pegou o homem pelo pescoço e o empurrou para trás violentamente. A força foi tão grande que a coluna do sujeito envergou e sua cabeça bateu na parte de baixo do capô. Ele quase foi parar em cima do motor do carro, deixando voar longe os óculos escuros. Imediatamente, suas mãos, juntas, se grudaram na mão esquerda de Kilaim, numa vã tentativa de libertar-se. De sua boca saíam ruídos de sufocamento.
— Por que é que você está me seguindo, cretino? — Kilaim falou entredentes, encostando a boca perto do ouvido do desconhecido.
O homem não conseguia responder, completamente apavorado, a coloração rubra no rosto se tornando arroxeada. Kilaim era muito forte. Percebeu que iria matá-lo sem ter a resposta que queria. Afrouxou ligeiramente o aperto. “Ligeiramente” não era muito para o desconhecido, que continuou lutando em desespero, as mãos arranhando os braços de Kilaim, suas pernas tentando se debater de encontro ao corpo dele.
— Responda — ordenou Kilaim, a voz soando como metal.
Era como um rato apanhado pela ratoeira. Mesmo assim, não havia resposta.
— Ou você me conta o que está acontecendo ou vou te mandar para o inferno! — Dessa vez, a cólera saltava dos olhos de Kilaim. Aquilo não era um blefe.
O outro sentiu a urina escorrendo pelas pernas, quente e aflitiva.
— Não posso falar — arquejou.
Novo aperto.
— Ou fala ou vai direto dançar com o diabo agora!
— Eu não... posso...
— Meu pai vai te recepcionar com honras: boa dança pra você.
Uma ira descomunal apoderou-se do gigante e saltava das suas órbitas. Aquele maldito idiota tinha estragado tudo! Kilaim apertou-lhe o pescoço novamente, com força pétrea, usando agora as duas mãos. Olhava bem fundo em seus olhos esbugalhados. A cor do semblante do homem foi se tornando purpúrea, seus olhos estavam muito abertos e as pernas já se movimentavam menos.
Kilaim só se arrependia de não ter acabado com aquela testemunha antes de o alerta ser dado pelo telefone. Só por causa disso, agora, iria matá-lo. Ele merecia! Bastariam mais alguns segundos e estaria liquidado para sempre.
Em meio àquela fúria cega, era como se suas mãos tivessem vontade própria, apertando e apertando.
* * *
Claire abriu os olhos, espreguiçou-se longamente enquanto olhava para os raios de sol que se filtravam pelas frestas da veneziana.
“Oh, mon Dieu, que dia lindo está lá fora! Merci! Que teus Anjos cuidem do nosso caminhar nesse dia. Me protegendo, protegendo Kilaim.”
Ela rolou para fora da cama e foi abrir a janela.
* * *
5
Désert
“Está morto!”.
Mesmo quando os olhos injetados de sangue pareciam vazios e o corpo, amolecido, não oferecia mais resistência, Kilaim continuou em seu aperto infinito, com a respiração acelerada.
Por fim, deixou que o homem tombasse pesadamente no chão. Seus membros pareciam de marionete, soltos e desconjuntados, e as mãos também estavam cianóticas. A cabeça escorregou e ficou caída por baixo do para-choque. Uma saliva com laivos de sangue escorria pelo canto da boca.
Kilaim estava grato por aquela ser uma via sem movimento. Caso contrário, poderia ser visto. De qualquer maneira, se assim fosse, diria que estava passando, viu o homem caído e descera para ajudar.
Ajoelhou-se, procurando a pulsação da artéria carótida, no pescoço.
“Hum... Só desmaiou. O imbecil ainda está vivo.”
O dilema se instalou, e ele nem sabia o motivo.
“Devo terminar o serviço?”.
Tomou posição para quebrar o pescoço da vítima de um só golpe, mas alguma coisa, lá no fundo de sua mente, o fez parar no meio do caminho. O braço direito estava em volta do pescoço da vítima e, por um instante, a mão esquerda que lhe causaria a morte titubeou.
Ele ouvia a voz de Claire, que falava das borboletas.
“Sabia que nós somos borboletas de Dieu?”.
A voz de Claire vinha em sua mente, tão clara, que parecia estar falando com ele ali, naquela hora. Por algum motivo desconhecido, aquilo calou fundo.
“Cachu, se eu matar esse cara... O que eu poderia fazer sem nenhum problema, parce que ele merece!...”. Deu um suspiro, ainda envolvendo o pescoço do homem com o braço. “Nunca vou sair do casulo.”
Divagações das mais diversas percorreram sua mente em milésimos de segundos. E, por mais que quisesse dar cabo daquele desconhecido, não o fez. Fosse como fosse, o sujeito já tinha disparado o alarme. Ninguém sabia o endereço, mas levaria pouco tempo para descobrirem, uma vez que já conheciam a região onde eles estavam.
O homem continuava respirando mesmo caído naquela posição, a areia do acostamento grudada em seu rosto e cabelos; decerto não tardaria a acordar. Kilaim deu meia-volta e correu para seu próprio carro, saindo dali com velocidade. No caminho, imediatamente se recriminou.
— Merde! Pourquoi não o matei? — Passou a mão pelos cabelos soltos, com irritação, os pensamentos rodando num turbilhão. — Eu o teria matado sem pestanejar. Fui treinado para isso!
Ligou o som no último volume e acelerou mais. E gritava:
— Pourquoi não o matei? Posso fazer isso sem remorso algum, e aquele cara não merecia mais estar no mundo dos vivos. Pourquoi? Merde, merde!
E chegou à conclusão — estranha, é verdade — de que alguma coisa o impedira.
— O que está acontecendo comigo?! What’s the matter?
A garganta dele se fechou como se fosse a da vítima, e ele lutou contra o choro. Em parte, pela sua ineficiência em pôr fim àquele intrometido que dera o alerta, mas principalmente porque teriam que deixar a chácara imediatamente.
Kilaim cantou o pneu ao fazer a curva na direção da porteira azul. As pedras voaram de um lado para o outro enquanto ele acelerava até estacionar perto da varanda novamente. Subiu os degraus correndo e abriu a porta que nem um furacão. Viu que Claire já estava acordada, na cozinha, cantarolando pedaços de músicas de Chico Buarque.
Ao irromper porta adentro, com o semblante transtornado, viu o sorriso morrer no rosto de Claire. Ela correu para ele:
— Ce qui s’est passé? — indagou muito assustada.
— O pior. Já sabem que estamos aqui.
— Como assim? — Ela sentiu um arrepio na espinha.
— Um homem me reconheceu. Ele telefonou, deu o aviso. É questão de pouco tempo. Allez!
— Quoi?
O bule com café jazia esquecido sobre a pia, e o cheiro de pão quente esvoaçava, agourento. Uma marca de tudo o que eles teriam que deixar para trás.
— Allez, Claire. Não podemos mais ficar aqui. Tenho certeza do que estou falando.
Ela percebeu que a coisa era para valer. Perturbada, perguntou:
— E o homem?
— Não o matei por pouco, nem sei o motivo. Deveria tê-lo matado. — Ele olhou para Claire. — Acho que você pode se agradecer por isso. Ele te deve a vida e não sabe.
Foi o único consolo para ela naquelas circunstâncias.
* * *
A viagem de volta para São Paulo foi feita a maior parte em silêncio. Kilaim jazia afundado num mutismo difícil de quebrar, dirigindo em velocidade constante, e Claire estava triste, incapaz de conversar muito; então ela apenas encostou a cabeça no apoio do banco e olhou para fora. A manhã estava linda e seu coração, nublado. Não conseguiria dormir. Pensava na chácara, especialmente nos animais.
Quando já estavam na estrada, Kilaim ligou para João das Luzes e pediu-lhe que continuasse cuidando do local. Disse que haviam saído cedo para uma consulta em Belo Horizonte, pois Claire não se sentia bem, e provavelmente iriam ficar na casa de São Paulo depois disso, por segurança.
“Depois eu me comunico de novo e, se for preciso, arrumo uma desculpa melhor”, pensou ele.
Kilaim também pediu que um dos filhos do caseiro, aquele que costumava ajudar o pai em várias pequenas tarefas e ainda era solteiro, dormisse na propriedade e ajudasse na manutenção.
— Mandarei um bom dinheiro todo mês para ele, desde que seja responsável, e também para você. Quero-os lá todos os dias, hã, a responsabilidade é sua! Terão um bom salário na nossa ausência. Combine com a Valdete de fazer uma boa faxina a cada 15 dias. Mandarei o salário dela também. Cuide bem dos animais, oke?
— Nó, pode deixar, seu Daniel, pode deixar que está em boas mãos. Manda lembranças para a dona Clara! Não há de ser nada, com a graça de Deus, e logo vocês vão ter um filho firme e forte correndo por aí.
Kilaim agradeceu e desligou. Era melhor que acreditassem na ausência deles por motivo de força maior.
Volta e meia uma lágrima escondida escorria pelo rosto de Claire. Ela não queria fazer um escândalo, mas o coração reclamava, especialmente porque não poderiam voltar à casa em Alphaville. Kilaim anunciara que, dessa vez, alugariam um flat na região da Avenida Paulista até saberem o que fazer.
A verdade é que a nova fuga caiu como um raio sobre a cabeça deles.
* * *
Alugar o flat não foi tão difícil. A época do ano facilitava.
Quando entraram no prédio, Claire olhou em derredor, avaliando o elegante e espaçoso lobby, com móveis de cores sóbrias e estilo clean. Não estava empolgada. Sentia-se exausta, e ficou sentada num sofá cor de café, esperando, enquanto Kilaim resolvia os pormenores no balcão. Por certo que o cansaço não era apenas em função da gravidez, porque até ali vivera seus dias de maternidade em perfeito estado. Naquele momento de abatimento, entretanto, seus pés estavam inchados e a cabeça estourava de dor. Tudo o que desejava era tomar um banho e se deitar um pouco.
Quando subiram e entraram no apartamento, Claire olhou em volta, desanimada. Era bonito, mas impessoal. Nem de longe se podia comparar com a própria casa.
Ao contrário dela, Kilaim estava elétrico. Nem bem pôs os pés no apartamento, que ficava no 14º andar, de frente para a Avenida Paulista, pegou o celular e discou para o Nonno. Temia muito pela irmã, a única sobrevivente da sua família. Se não o matassem, ou a Claire, talvez se contentassem, por ora, em tirar a vida dela.
— Ça va, Nonno? — Ele procurou dar um tom descontraído na voz. — Como estão todos?
— Ah, figlio mio! Quem é vivo sempre aparece. Ainda agorinha mesmo eu falava de você. Estamos todos bem, porca miséria, mas com saudades. E muito curiosos em relação a essa sua noiva! Pelo visto, o relacionamento está mesmo sério. Sinceramente, Kilaim, eu pensava que isso não fosse durar. — Ele deu uma risada estrondosa. — Vocês estão bem?
— Oui. Claro. E Anne-Sophie?
— Crescendo como bambu. Se você demorar demais para vir nem vai reconhecê-la.
— Alors, ela está bem mesmo? — insistiu ele.
— Ah, só uma febrinha, faz dois dias, que não está cedendo. O pediatra receitou um antitérmico e vai reavaliar se não houver melhora. Não encontrou nada que justificasse um antibiótico. Deve ser somente uma virose.
Signore Arthuro não demonstrou preocupação.
— É coisa de criança — continuou, percebendo o silêncio de Kilaim. — Bem diferente da outra vez. Não se preocupe, bambino, ela está bem. Já, já, melhora.
Kilaim se esforçou para dar uma risadinha convincente.
— Avise-me sobre a saúde dela, oke? Pode ligar a qualquer hora. E cuidado com a garota, ouviu, Nonno? — Kilaim falou com seriedade. — Diga para nunca desgrudarem o olho dela. Capisce?
— Não se preocupe, figlio. Gato escaldado tem medo de água fria.
Mais meia dúzia de amenidades, e Kilaim desligou. Inspirou fundo. Não gostou de saber da história da febre. Poderia ser uma virose, mas também poderia não ser.
Ele se aproximou da janela e viu os arranha-céus da avenida mais famosa de São Paulo, onde circulavam um milhão de pessoas por dia e cem mil veículos. Roía as unhas — sinal de muita preocupação — e avaliava os dados. Entretanto, por mais que pensasse e repensasse, o que já fizera na viagem, não havia o que fazer, exceto esperar. Mais uma vez.
Resolveu dar uma olhada pelo apartamento. Era bom. Por ora, iria atender à necessidade deles. Pegou um copo de água e acabou voltando para a janela, observando com curiosidade. Entardecia, e as luzes da cidade começavam a aparecer. Um fluxo confuso de veículos particulares e ônibus em fila indiana, um movimento caótico de pessoas apressadas. Alphaville era brinquedo de criança perto da Paulista.
Ele ficou observando, com os cotovelos apoiados no batente da janela. Aos poucos, a adrenalina daquele dia ia diminuindo. Pelo menos tinham saído de lá e estavam instalados em outro lugar. Com sorte, perderiam o rastro deles mais uma vez.
“A Paulista é um lugar incrível. Faria jus ao primeiro mundo.”
Pena que o patrimônio histórico que um dia estivera ali tinha se conservado tão pouco. Originalmente, no final do século XIX, a Paulista fora construída para abrigar os opulentos palacetes dos barões do café, dos grandes comerciantes e dos chefes das indústrias relacionadas ao café. Na verdade, a luxuosa avenida de quase três quilômetros só veio a existir em função do precioso grão. Era larga, arborizada, com belo canteiro central ao estilo das avenidas europeias; o cenário perfeito para o passeio dos bondes, das carruagens, dos cavaleiros e dos pedestres.
A área exclusivamente residencial começou a se verticalizar, na segunda metade do século XX, com a construção de hospitais, escolas, órgãos de imprensa e televisão, cinemas e teatros, prédios residenciais e empresariais. Em seguida, vieram os estabelecimentos comerciais e, mais tarde, com o plano de alargamento da avenida, começou o problema: muitos casarões foram demolidos para dar espaço aos edifícios. E o pior: a maior parte deles foi destruída pelos próprios proprietários, pois estavam todos para serem tombados pelo seu valor histórico. Se as casas fossem tombadas não se poderia vendê-las ou utilizá-las para qualquer outra coisa. Mas os terrenos valiam muito naquela região.
De onde Kilaim estava, podia avistar a Casa das Rosas, uma das poucas mansões que não tinha desaparecido. Ele meneou a cabeça. Os brasileiros não souberam dar valor à sua história. Na Europa provavelmente o local teria permanecido como centro histórico, nem que fosse em parte. Os conjuntos comerciais e de serviços, as galerias e lojas, os centros culturais, os muitos bancos, as multinacionais, os edifícios de alta tecnologia, as sofisticadas estações metroviárias e até mesmo o Museu de Arte de São Paulo, o MASP, poderiam coexistir com parte das antigas construções. Elas jamais deveriam ter sido reduzidas a quase nada.
Mesmo assim, a modernidade e a personalidade do centro financeiro de São Paulo agradavam aos brasileiros, e a adorada avenida ficou conhecida, nos anos 1990, como a “Wall Street brasileira”. Quanto à solitária Casa das Rosas, era agora um espaço dedicado a manifestações culturais, tendo como pano de fundo a brisa do século retrasado, que não retornaria mais.
A atenção de Kilaim foi desviada, finalmente, pelo aroma perfumado de banho, e só então percebeu que Claire se postara a seu lado na janela.
— Claire, não vi você.
Ela sorriu. Sentia-se melhor depois do banho. Abraçou-o pela cintura e olhou um pouco pela janela, mas sem muito interesse. Fez meia-volta e esticou o corpo sobre a cama, pensando que precisava de um Tylenol para a dor de cabeça. Kilaim veio até ela, sentando-se ao seu lado.
— Você está com um ar abatido — ele comentou com preocupação. — Vou pedir alguma coisa para comermos. Recebi vários panfletos de restaurantes e lanchonetes que têm serviço delivery.
— Preciso de um Tylenol.
— Ça va. Vou comprar pra você. — Mas aí ele notou os pés dela. — Nossa, estão inchados.
— Acho que foi tempo demais sentada. Está tudo bem. Com toda certeza, amanhã, com o sol brilhando, vou estar nova em folha.
Kilaim engoliu em seco.
— Sind Sie sicher... — ele começou.
— Kim — ela interrompeu com um sorriso cansado. — Em francês.
— Ah, pardon, ma fleur. Eu quis dizer se você tem certeza de que não é... Nenhum sintoma cardíaco... Esse edema... Quem sabe?
Ela riu.
— Non. Esteja em paz. Conheço os sintomas de uma insuficiência cardíaca muito bem. — Claire segurou firme a mão dele. — É só coisa de grávida mesmo.
— Mesmo assim, você tem que comer alguma coisa saudável. Salada de frutas? Peixe com salada?
— Não tenho fome.
— Vou pedir de qualquer jeito.
Ela estava de olhos fixos nele.
— E seu Nonno? Sua irmã? Estão todos bem?
Kilaim suspirou.
— Parece que sim. Anne-Sophie está com uma virose, e vou monitorar isso de perto. Se ela piorar, não sei o que fazer.
— Você se lembra de que Jesus curou a sogra de Pedro de uma febre? Se estiverem fazendo alguma coisa contra a sua irmã, Kim, ainda assim o poder de Dieu é maior.
Kilaim titubeou por alguns instantes, mas depois, num repente, assentiu.
— Ça va, Claire. Alors... Você pode orar?
Mesmo a contragosto, ele tinha que admitir que havia algum poder na oração. Ele só não sabia quantificá-lo, nem se seria suficiente todas as vezes. Aliás, por quanto tempo poderia mostrar-se eficaz? Essa era a sua mais pesada dúvida. Os que serviram o Cristo mais de perto foram os mais perseguidos e os que tiveram a vida e morte mais dolorosas.
Por que Claire seria uma exceção? A probabilidade de Deus atender sempre às orações dela era praticamente nula, levando em conta esses dados. Ninguém, em sã consciência, poderia acreditar na bondade de Deus se conhecesse a História.
Mas era com o que se podia contar naquele momento. Apegou-se ao êxito anterior que ele mesmo presenciara, e não aos meandros da História.
— Tenho percebido que algo acontece quando você ora, Claire — ele continuou. — E pode ajudar a minha irmã. Não serei eu a me colocar contra.
A moça sentiu uma alegria cheia de calor enchendo a alma, como uma fonte que jorrava. Pela primeira vez, uma atitude diferente. Será que finalmente ele se permitiria? Estaria chegando o tempo em que teria uma experiência real com o Pai, tão forte a ponto de mudar sua vida, e que o capacitaria a fazer uma escolha?
Ela teve medo de dizer qualquer coisa e estragar aquele momento. Uma emoção forte palpitava quando, ao segurar as mãos dele, fechou os olhos por um momento. O quarto continuava sendo invadido pelo som da Avenida Paulista, mas no coração de Claire pairava apenas o silêncio. Silêncio para escutar Deus falar.
Então ela pediu por proteção. De forma simples, sem rococós. Pediu por eles, por Anne-Sophie e pelos familiares de ambos.
— Amém — disse quando terminou.
Kilaim não fez eco. Aquilo era entre ela e Deus. Ele não poderia fazer parte; talvez, qualquer murmúrio seu pudesse mesmo atrapalhar o destino daquela oração, porque suas mãos estavam cobertas de sangue.
* * *
Havia uma farmácia logo ao lado do flat, e ele desceu para comprar o analgésico. Claire pedira algumas coisas, como sabonetes, xampu, condicionador, escova de dente, creme dental e outros itens de higiene pessoal. Além de uma touca de banho. Na pressa da saída, ela pegara apenas o enxoval do bebê, algumas roupas e um tênis.
Quando o jantar chegou, Kilaim praticamente não tocou no alimento, mas Claire, esquecida de sua inapetência, comeu por duas. Depois disso, tentava assistir à nova novela da Globo, Amor à vida, pois literalmente adorava o ator Mateus Solano na pele do malvado e impagável Félix, que estava passando de vilão a quase santo. Já a irmã, personagem de Paolla Oliveira, de tresloucada, virou médica e responsabilíssima. Claire estava gostando muito da trama, cheia de personagens incríveis criados por Antonio Fagundes, Tatá Werneck, Vanessa Giácomo, Thiago Fragoso, Elizabeth Savalla, dentre outros.
Ela já entendia perfeitamente o motivo da paixão dos brasileiros pelas telenovelas, mas estava sentindo o peso daquele dia caindo sobre os ossos. Kilaim, sentado ao seu lado, nem prestava atenção à novela, imerso em seus próprios pensamentos.
Por fim, ele disse:
— Vou descer. Fazer uma sauna, ficar na piscina. Preciso muito esfriar a cabeça.
— Tem certeza?
— Impossível eu dormir agora. E a televisão não está me entretendo. Também não quero usar o iPad. Só ficar quieto. — Ele suspirou.
Claire sentia certo receio por ele ficar sozinho num local ainda desconhecido. Depois da pressa com que deixaram a chácara, a inquietação ainda latejava dentro dela. Surda, mas presente.
— Você vai ficar bem? — indagou ela.
— Bien sûr! — Kilaim riu. — Eu sei me defender, se é o que está pensando.
Acariciou o rosto dela. Claire segurou firme a mão de Kilaim, mas concordou.
— Ça va, procure relaxar.
— Você também. Durma, descanse.
Uma troca de beijos, e ele saiu do aposento, fechando a porta atrás de si.
* * *
A sauna estava vazia, e Kilaim ficou muito feliz com aquilo. Era úmida, sua preferida, e o aroma de eucalipto se dissolvia no ar com o vapor. Os bancos eram espaçosos, e ele se deitou no mais alto, com a toalha enrolada na cintura.
Não fosse tanta preocupação, tudo estaria perfeito. Não poderia viver fugindo de um lugar para outro, arrastando Claire como parte da bagagem. E quando o bebê nascesse? Ir de um canto para outro ficaria inviável. Ele se agitava, ora sentado, ora deitado, ora cruzando uma perna sobre a outra.
Quando o calor ficou insuportável, refrescou-se na ducha fria que ficava ao lado dos bancos. Deixou a toalha de lado e experimentou o choque térmico. Delicioso. A água escorria por todo seu corpo, e ele apoiou as mãos contra a parede. Não conseguia pensar. Era um completo vazio de ideias. O que fazer?
Uma coisa, porém, era certa: eles não poderiam fugir para sempre. Como gostaria de falar com Lucipher! Ali mesmo, quem sabe? Mas o silêncio do mundo dos espíritos continuava implacável.
Aquele silêncio de mau agouro.
* * *
Pelo resto da noite, Kilaim dormiu e acordou várias vezes. Tinha sempre o mesmo pesadelo horroroso. Claire amarrada numa mesa de sacrifício, a barriga enorme, o rosto em lágrimas e um semblante coberto de desespero.
Durante algumas horas, pingara em suas veias o soro que continha a droga indutora das contrações uterinas. O parto foi longo, doloroso. Ele viu quando o bebê nasceu, direto nas mãos de um homem que estava sempre de costas, vestindo o manto negro. Era um menino de cabelos escuros, como os de Kilaim, que chorava alto e forte. Então o homem se virou, e ele viu o rosto de Zor; mas era um rosto cadavérico, com olhos muito fundos, avermelhados, que diziam: “Você está tendo o que merece”.
Ele matou o bebê primeiro, e um grito estridente de dor escapou da pequena garganta para silenciar em alguns segundos. Segundos intermináveis. Depois, foi a vez de Claire. Ele viu o coração de Camille ser arrancado do peito de sua amada e urrou com todas as suas forças. O uivo de um animal caçado e torturado.
Kilaim acordava banhado em suor. Apenas para dormir de novo e sonhar de novo.
De manhã, estava em frangalhos. Algo lhe dizia, no íntimo, que aquele era o destino que os aguardava. Não queria falar com Claire sobre o sonho, embora ela percebesse perfeitamente o seu estado.
— Como está sua irmã hoje, Kim? — Ela quis saber, procurando não fazer outros comentários. E se sentou ao lado dele no sofá.
— Liguei cedo para meu Nonno. Ele disse que está tudo bem. A febre cedeu, está comendo. Normal.
Claire ficou muito feliz. Ele tentou sorrir, mas não conseguiu. Por fim, ela indagou:
— O que foi, chéri?
— Não me pergunte nada agora, Claire. Preciso pensar. Preciso encontrar uma saída.
— Deus é nossa saída, Kim — ela arriscou. — Você ainda precisa de outras provas?
— Non, Claire. Ele não é a única saída.
— Para essa situação?
— Da. Ele não é a única solução.
6
Intervalle
Aquela ideia louca que espetava sua mente de vez em quando, e que ele já havia tentado articular antes, tomou corpo. Era um vislumbre do que poderia ser. Tão forte que o gigante a puxou pela mão, arrastando-a; e os dois se sentaram no sofá.
— Claire, deixe eu lhe explicar uma coisa. De um jeito diferente. Tenho certeza de que você vai entender. Luister naar me... — Ele se corrigiu rápido: — Écoutez-moi.
Ela olhava para ele com seus olhos claros, esperando.
— O Homem, assim como os animais, nasceu para ser livre. Não há outro jeito de se sentir pleno, pois a liberdade é uma necessidade das mais básicas. Veja que a punição principal para atos ilícitos, na nossa sociedade, é o encarceramento. Prisão. N’est-ce pas? Privação da liberdade.
— Oui.
— Existe uma base teológica, você a conhece muito bem, que faz parte das maiores expressões religiosas do mundo. Aquela que coloca Deus como Criador de todas as coisas e, portanto, faz Dele um ser soberano que está no controle de todas as coisas. Essa é uma chave hermenêutica: uma maneira de interpretar os textos sagrados. Em tese, ela é irrefutável. O Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo se encaixam nessa categoria. As doutrinas orientais, como o Budismo, também têm como fundamento religioso essa mesma aura de conformismo.
— Alors, crer que Deus é soberano, que Ele criou todas as coisas e que detém poder sobre tudo é apenas conformismo?
— Espere eu terminar. Depois você fala. Ao contrário das outras doutrinas, o Budismo não acredita num deus. As verdades nas quais se baseia vieram ao longo da História por meio de Buddhas ou “iluminados”. Os méritos e deméritos de alguém em existências passadas determinam sua condição no presente. As sucessivas reencarnações são um modo de purificação. Sidharta Gautama, o quarto Buddha, diz que “a ignorância produz o desejo, o desejo não satisfeito é a causa do renascimento e o renascimento é a causa do sofrimento. Para se desembaraçar do sofrimento, portanto, é necessário libertar-se do renascimento, para se libertar do renascimento há que extinguir o desejo, e para extinguir o desejo há que destruir a ignorância”. E como fazer isso? Negando a si mesmo; destruindo o desejo. O indivíduo perfeito, pelo estado de meditação, alcança o estado superior de paz. O nirvana.
— Ah, oui. O indivíduo perfeito morre e deixa de existir parce que não precisa mais reencarnar. — Ela fez um ar de “que bobagem”. — Se fosse assim, o mundo estaria ficando melhor, e não pior. O espiritismo kardecista também fala das reencarnações como modo de se aprimorar. Mas o mundo nunca melhora.
— Não estou discutindo a veracidade das doutrinas. Só estou falando que essa é uma crença aceita por milhares de adeptos em torno do mundo.
— Aonde você quer chegar?
— Esse conformismo com o presente abarca o mundo como um todo. Todas as linhas espirituais e religiosas, por mais diferentes que sejam, acabam por chegar a esse mesmo denominador comum: que as dores do ser humano se justificam por algum prêmio no porvir. Uma recompensa no pós-vida.
— Mas não é conformis...
— Quanto pior o sofrimento ou a provação — ele interrompeu — maior a recompensa depois. Com isso você concorda?
— Pode ser.
— Concorda ou não concorda?
— O que eu quero dizer é que a vida, o mundo, traz sofrimento. Esse é um fato. O que a Religião faz é apontar um caminho, mostrar que esse sofrimento não será eterno.
— Alors, a Religião sempre aponta para o futuro. — Kilaim usava aqueles antigos argumentos que o Príncipe lhe explanara, tantos anos antes, na clareira perto de sua casa. — Dentro desse modelo, fica fácil entender, por exemplo, os autoflagelos que são comuns em muitas linhas: esse sofrimento irá garantir recompensas futuras. Sabia que o próprio João Paulo II era adepto da autoflagelação? E que a Opus Dei é uma poderosa organização católica que incentiva a prática diária do uso do cilício? Seus estatutos receberam aprovação do próprio Vaticano. E por aí vai. Na Índia, os hinduístas cumprem ritual de autopunição. Existe até um festival para isso, e tal sacrifício tem a intenção de acalmar Shiva, deus hindu da destruição. Muçulmanos xiitas se autoflagelam na Ashura, data sagrada para vertente do Islã, que relembra a morte do Imã Hussein, neto do profeta Mohamed. Açoitam-se com instrumentos cortantes, inclusive os meninos, e literalmente se cobrem de sangue. Por causa de uma recompensa futura, um muçulmano palestino se torna um homem-bomba. Nas Filipinas, de maioria católica, a Semana Santa é marcada por fanatismos: martírios, autoflagelamentos. Até crucificam-se uns aos outros como ato de fé, e para purificar a alma.
— Mas Dieu nunca incentivou qualquer tipo de agressão contra o corpo.
— Mas Ele incentiva o negar-se a si mesmo e segui-Lo, tomando sua cruz diariamente; Ele incentiva o cristão a aceitar o sofrimento parce que o discípulo não é maior que o Mestre e, no mundo, passará por aflições; e parce que, assim, acumula galardão nos Céus. Daí pra frente os exageros humanos, por causa dessa linha doutrinária, se sobrepõem uns aos outros, chegando a esse ponto. Essa é a chave hermenêutica que embasa toda a crença em Deus, seja no Monoteísmo ou no Politeísmo. Essas linhas sempre irão propor a autopunição, o sacrifício e a privação a fim de alcançar uma recompensa futura.
Kilaim fez uma pausa, pigarreando um pouco, tenso. Tinha que colocar sua explanação com sabedoria, não podia só atacar Deus pura e simplesmente. Claire não era idiota.
— O Satanismo moderno, ao contrário, propõe uma nova chave hermenêutica, diametralmente oposta. O Satanismo encoraja seus seguidores a serem indulgentes com seus desejos naturais. Somente assim você poderá ser uma pessoa completamente satisfeita, sem frustrações que possam ser prejudiciais a si e aos outros à sua volta. Por essa razão, a descrição mais simplificada do credo satânico é: “Indulgência, em vez de abstinência”.
— O que quer dizer?
— Que em vez de você se conformar com o seu estado, você pode mudá-lo — ele anunciou com entusiasmo.
Claire estava sem expressão.
— Eu explico — interveio o jovem. — Quero dizer que, em vez de você se conformar em ser um bloco de gelo, pode ter a luz, enfin, e saber que pode ser... — Um instante de suspense. — Água!
— Água?
— Da, Claire! Quero dizer que é possível buscar outras formas para sua existência. Não mais dentro desse modelo preestabelecido, voltando agora ao Cristianismo, que Deus impingiu. Um modelo enregelado.
Claire escutava, mas agora estava um pouco tensa. Aonde ele queria chegar?
— O Satanismo propôs a nova chave hermenêutica, aquela que te liberta: Deus é, sim, o Criador. Contudo, Ele não sabe de todas as coisas e não detém o controle sobre todas as coisas. Basta olhar à sua volta. Ele deu origem à Vida, mas, no desenrolar do processo, perdeu o controle sobre a Criação. É como você, gerando um filho. — Ele sorriu. — A criança nasce, e você a ensina o caminho que deve seguir. Mas, então, ela cresce. Torna-se independente. E daí por diante você não pode mais controlar esse filho. Uma vez crescido, o controle se perde; sendo assim, é impossível prever todos os seus atos. Com Deus é a mesma coisa.
“Não fale mal de Deus, Kilaim”, ele dizia para si mesmo. E tentava manter a voz calma.
— Se Deus realmente soubesse o que iria acontecer... A queda do Homem... Fome, guerra, peste, mortandade. A própria expansão do Mal: Ele criou Lucipher. Quer dizer, foi Deus quem criou o Mal. Se soubesse da Grande Rebelião e de todas as suas consequências teria feito tudo do mesmo jeito? Fez o Homem sabendo que iria se afastar Dele? E o que dizer do sistema religioso, uma instituição falida e podre, um fim em si mesmo?
— Você já falou nisso. A responsabilidade sobre a Igreja é do Homem. Se ela está falida, a culpa não é de Dieu.
— Alors, a que conclusão chegamos diante disso? Que todo sistema religioso está fadado a morrer, parce que o Homem não nasceu para ficar preso a essas leis. Dogmas, sacramentos, karmas, castas, reencarnações, atingir o nirvana e tudo o mais.
— Oke. Aonde você quer chegar?
— C’est simple! A proposta da Organização é: “não...” — “Não confie em Deus, confie em si mesmo”, ele ia dizendo, mas se conteve. E cortou a primeira parte. — Confie em si mesmo. Ter confiança não é nenhum pecado, d’accord? Isso faz despertar dentro de você aquela força, aquela energia primitiva que Deus tirou do ser humano. “Abençoados são os autodesafiadores, pois seus dias serão longos na Terra; amaldiçoados são os que buscam uma vida rica após o túmulo, pois eles perecerão entre a abundância.”
— De onde saiu isso? — indagou ela incontinênti.
— Deixe-me terminar. Lembra-se de Adão? Da inteligência fantástica que possuía? Hoje usamos tão pouco do nosso percentual de potencialidade cerebral. E pourquoi? Parce que isso lhe foi tirado. E a pequena parte que restou sofre o impacto do monte de “não”. Não pode, não deve, não faça, não olhe, não pegue, não deseje.
Apesar de se esforçar para falar de maneira branda, era difícil para Kilaim.
— Esse monte de “não” coíbe. Uma pessoa que só escuta “não” desde a infância vai acabar introvertida, insegura, incapaz de acreditar em si mesma. Foi isso que Deus fez com o Homem. Tirou-lhe a confiança, transformando-o num ser extremamente dependente Dele. Para tudo. Só que essa dependência gerou no ser humano uma grande frustração; gerou um Homem de cativeiro, e não mais um ser livre. O Satanismo propõe abrir novamente essas janelas da mente do Homem, fazendo com que ele venha a usufruir de 100% de seu potencial individual. Que ele venha novamente a ser preenchido com sua intelectualidade, suas capacidades natas, e passe a acreditar no próprio potencial sem ficar na dependência de que Deus faça algo por ele. Que ele seja livre para escrever sua própria história e estabelecer a própria rota. E quem melhor para entender o Homem do que o próprio Lucipher? — Kilaim não conseguia mais falar como quem resume um filme, sem a emoção que o enredo prevê. — Se Deus fosse mesmo tão bom, generoso e amoroso, e tudo o mais, blá-blá-blá, como você diz, ninguém iria se amotinar contra Ele!
Claire estremeceu. Sentiu uma pontada de temor, mesmo se esforçando para não senti-la.
— Alguém está num navio — o gigante continuou, o tom de voz um pouco mais alto —, e o capitão do navio é bom, justo, estende a mão para sua tripulação. Se ali dentro houver um rebelde, ele dificilmente irá encontrar quem o siga. Pois o grupo gosta do capitão, ama o capitão. No entanto, se o grupo do navio for maltratado por ele, tratado com desdém, com hipocrisia, o que acha que vai acontecer?
Kilaim sentia, agora, o suor escorrendo pelas costas. Tinha plena consciência de que não estava agindo sabiamente, mas não conseguia se controlar. Claire tinha que entender que ele falava a verdade!
Contudo, Claire apenas estava quieta, com olhos grandes, acompanhando a conversa sem esboçar reação.
— O Homem não conhece Deus, nunca ouviu Deus claramente, nunca olhou Seu Rosto de perto. Mas os Anjos, oui! E, mesmo assim, usam de seu livre-arbítrio para, voluntariamente, se afastar Dele. Isso quer dizer muita coisa, Claire. Você me entende? — Ele se levantou num impulso. — Vou facilitar para você: Deus é falho. E os homens não conseguem segui-Lo. É uma tarefa hercúlea, maçante e dolorosa. Para quê?
— Eu entendo você. — Ela se levantou também, devagar, e estendeu a mão para tocar o rosto dele.
— “Abençoados são os fortes, pois eles possuirão a terra; e amaldiçoados os fracos, pois eles herdarão o jugo”! — Kilaim se esquivou. — Alors, você concorda comigo?
O olhar dela era de surpresa.
E houve silêncio.
— Non. — Veio a resposta, por fim.
— Alors, você não entendeu nada, Claire! Rien de rien! Ouviu? Estou eu aqui falando e falando, e você não concorda comigo! — Era um grito de indignação. Ele se virou de costas, furioso, e bateu na parede com força.
Claire tomou um susto, mas não se afastou.
— Satanás está dando uma oportunidade ao Homem; está dizendo: “Eu acredito em você!”. As outras linhas doutrinárias dizem: “Acredite em Deus, pois sem Ele, você é nada”; porém, Lucipher diz o contrário: “Eu acredito em você”. Meu pai não espera que você creia nele; é ele quem acredita em você e no seu potencial humano. E, aos filhos que escolheu, estende a mão na intenção de abrir as janelas da mente, para dar-lhes não o sofrimento em vida, mas uma vida plena aqui na Terra.
— Kim, eu tive outra experiência de vida. Isso não quer dizer que eu esteja contra você; ou que não o ame — ela explicou com tristeza. — Pourquoi você está insistindo nesse assunto?
Ele segurou a mão dela com tanta força que Claire, instintivamente, dessa vez, tentou se afastar. Kilaim percebeu incontinênti o que fazia e recuou um pouco, soltando-a. Tentou se acalmar. O tom de voz saiu mais controlado:
— Não é o Homem que vai até Lucipher, parce que jamais poderia encontrá-lo. É Lucipher quem faz o convite aos escolhidos. Se você aceitar esse convite e estiver disposta a atravessar a fronteira, poderá usufruir de algo bom, aqui, nesse mundo, agora. Tudo aquilo que vai conquistar com seu potencial, sua inteligência, sua determinação. E por meio da unidade do Grupo. O Grupo tem como propósito estar na Terra para desfrutar da Terra. Vamos passear e nos divertir. Comer nos melhores restaurantes, vestir as melhores roupas, usufruir das melhores viagens. Deixemos de lado essa história de sofrimento. De herança a posteriori. — Ele fez uma pausa, passando a mão pesadamente pelos cabelos. — Claro que, para isso, há um preço. Preço que você já conhece.
— Sangue.
— Mais que isso, Claire: aliança.
— Kim...
— Claro que o maior dever é manter os segredos guardados. Já que o segredo do sucesso deve ser dado a quem busca o sucesso e acredita nele; não é para pessoas sem merecimento. O sangue é a moeda; e os rituais são o meio. Isso é aliança. O poder é dado aos fortes. Aos filhos do Fogo. A consequência disso é uma vida plena. Abundante não apenas no sentido metafórico, mas literal. Tenho lhe contado esses segredos, Claire, mas você não dá o menor valor. Existem consequências funestas para quem defrauda os segredos da Organização, e eu estou pagando esse preço por você. Apenas me dê uma chance...
— Kim... Escute. Olha só, você está muito nervoso.
— Eu estou nervoso parce que você não entende! — gritou ele alto, quase um rugido.
Claire se sentia estremecer de novo.
— A sua Bíblia diz que Lucipher é o pai da mentira, mas, na verdade, se olhar com cuidado, vai ver que quem está mentindo é Deus. Eu já lhe falei! Ele faz muitas afirmações, mas não tem a capacidade de fundamentá-las ou cumpri-las. Ele diz: Eu sou fiel. Mas onde está essa fidelidade? Ele diz: Eu sou bom — Kilaim gritou novamente. — Mas onde, onde está essa porcaria de bondade de Deus? Ele diz: Eu sei de todas as coisas. Mas como que Ele pode saber de todas as coisas? Se soubesse! Ele fez o próprio Diabo. Você acredita em um monte de absurdos, Claire! Ao observarmos a Natureza de Deus, vemos que é contrária a tudo o que Ele afirma ser, é contrária a tudo o que Ele faz. Se você não vive o que prega, então o que você prega é uma mentira! Alors, se existe um pai da mentira, o pai da mentira é o Criador de todas as coisas. E Lucipher apenas revela essa verdade aos filhos do Fogo, a verdade nua e cura, como ela é, doa a quem doer.
Uma chama queimava dentro dele, pulsante como um gêiser. Até suas mãos queimavam, seu rosto. Por fim, deixou-se cair no sofá outra vez, colocou a cabeça entre as mãos. Claire estava perplexa, mas o temor acabou sendo substituído por uma pontada de compaixão. Mordeu o lábio superior e, por fim, se sentou ao lado dele, encostando o ombro contra o seu corpo.
— Kim...
Ele não respondeu.
— Kim.
Ele respirava profundamente.
— Aonde você quer chegar, Kim? — insistiu Claire, puxando uma das mãos dele, preocupada.
— Claire, desculpe-me, eu sei que estou sendo um troglodita. Mas venha comigo! — pediu o jovem com urgência na voz. — S’il vous plaît, venha...
— Como assim, Kim?
— Para a Organização — ele interrompeu. — Allez! Venha! Vamos andar sobre as pedras afogueadas!
Um momento, e os olhos dos dois se cruzaram.
— Você sabe que isso eu nunca vou poder fazer. — Foi a resposta.
Kilaim soltou a respiração ruidosamente. Sentia-se cansado. É claro que ela nunca aceitaria o convite. Embora ele não conseguisse compreender exatamente o porquê.
— Eu já te falei tanto. Te contei tanto! Pourquoi tanta resistência? Você vai ver, Claire, o que é um Grupo unido de verdade, o que é ser um pelo outro. Não essa besteira que a Igreja prega, mas não vive! Verá o que é poder de verdade; e que os demônios são capazes de amar. Você será incrivelmente bem tratada parce que está comigo. Vai ser como uma primeira-dama, e... Enfin! Claire. Venha. Se dê essa chance. Seja água! Você é inteligente, é bonita, e eu te amo. — Tomou as mãos dela nas suas. — Por isso sei que Lucipher te estenderá a mão! O convite dele não é para todos. Aproveite sua chance.
— Kim. Não vamos falar nisso. Se eu aceitasse tal coisa, estaria lançando minha alma ao Inferno.
— Ah, agora eu te peguei! É isso que você pensa de mim. Que eu sou um condenado, pronto para ser lançado no lago de fogo e enxofre!
— Non. — O olhar de Claire ficou muito sério dessa vez. Como nunca Kilaim tinha visto. — Eu não disse isso. Mas a sua situação e a minha são totalmente diferentes. Não estou condenando você ao Inferno, apenas compreendo que a sua vivência te conduziu por esse caminho. Você admira tanto os demônios, a visão que eles têm de Dieu e o que fizeram ao virar-lhe as costas. Mas se esquece de que você também nunca viu a Dieu. Apenas confia no que as entidades rebeldes sempre te disseram. E se esquece de que a maior parte dos Anjos não se rebelou. A maior parte ficou ao lado de Dieu. Quanto a mim, Kim... Eu conheci Dieu, aprendi a amá-Lo. Não tenho motivo algum para me rebelar, para virar-Lhe as costas. Eu não poderia fazer isso.
— Mas, Claire...
— Kim, me ouça um pouco. Eu te ouvi, agora me ouça. Você diz que Dieu não é fiel, nem bom, nem amoroso, nem nada, mas ele salvou sua irmã. Salvou a mim. Você não teve que escolher, Ele te poupou disso. Deu-nos semanas e semanas de tranquilidade na chácara, com a proteção dos Anjos. Está nos dando um filho. Fez com que você encontrasse o Daniel Mastral e ouvisse da boca dele o que deve fazer. Alors, faça! Você nunca andou com Dieu. A vida não lhe deu esse presente, mas eu estou esperando que você se dê essa chance. O mesmo convite que você me fez, eu faço a você. Venha comigo...
Kilaim tentou escolher palavras que não fossem agressivas, mas não encontrou. Então ficou quieto.
— Pourquoi você me pediu para orar ontem? — indagou ela, simplesmente.
— Parce que a sua oração pode beneficiar aqueles que amo, incluindo você.
— Mas ela pode te beneficiar também. Deixe que eu...
Ele largou as mãos dela de imediato, num gesto impulsivo.
— Jamais. Deus é mau. Eu não O quero.
— Mas você sabe que o tempo está se esgotando...
— Esgotando, esgotando! Uma hora Lucipher vai ter que me ouvir.
— Pourquoi? Ele não te ouve?
— No momento, non... — ele admitiu.
Claire chacoalhou a cabeça.
— Você age de uma maneira estranha... — disse.
— Eu?! Já se olhou no espelho? — criticou Kilaim.
— Você reclama da forma como Dieu age e se enraivece por saber que Lucipher foi banido do Céu. Mas o que é que Lucipher está fazendo com você? Você não era filho dele? Mas bastou querer seguir o seu próprio caminho, fazer as coisas ao seu modo, e o que acontece? Está sendo banido, da mesma maneira.
Kilaim não esperava por aquele argumento. Aquilo mexeu com ele, mas não iria admitir. Não naquele momento de descontrole.
— Lucipher não é diferente de Dieu; ele também está pronto para te “jogar no lixo” — continuou Claire, optando por aquela abordagem contundente. — Mas Dieu não vai te perseguir e matar.
— Ele persegue e mata, sim. Só o faz de maneira menos visível.
Claire abaixou a cabeça, inconformada. E com um peso no coração.
* * *
Durante alguns dias, o casal ficou no flat, expectante. O mal-estar pela saída apressada de São Sebastião do Rio Preto aos poucos ia se desvanecendo. Se eles estavam novamente escondidos, o tempo ia dizer. Pelo menos, Kilaim não recebeu nenhuma outra ameaça.
A conversa acalorada ficou em suspenso. Ninguém retomou o assunto, e agiam como se não tivesse acontecido. Era melhor dar tempo ao tempo, mais uma vez.
“Até quando?” Agora era a vez de Claire se perguntar.
Por fim, resolveram sair, e andaram pela Avenida Paulista, no meio dos outros. Conheceram o Shopping Paulista, muito diferente do Iguatemi de Alphaville, e exploraram os recantos ao redor. Foram dar uma volta na Rua Oscar Freire, uma das mais badaladas de São Paulo, cheia de lojas de grife. Foi lá que puderam apreciar o famoso Santo Grão, uma famosa Cafeteria.
Kilaim experimentou o Blend Santo Grão, descrito no cardápio como “um café encorpado e intenso, de aroma complexo, aftertaste licoroso, acidez e amargor baixo e uma doçura intensa”. Era bom, mesmo que ele não conseguisse distinguir aquelas nuanças todas. Já Claire adorou o Iced Caramel, um requintado sorvete de creme misturado com café, calda de caramelo, farofa de amêndoas caramelizadas e chantilly. Tão bom que, depois da primeira taça, ela pediu outra.
Enquanto tomava, lia a maneira como o Santo Grão descrevia o café, tão poética que copiou os dizeres para transcrever em seu diário.
“Café vem de uma flor. Essa flor tem cheiro de jasmim.
O grão pode ser colhido de uma cereja madura. Essa cereja pode ter sabor de maçã, damasco, frutas vermelhas ou cítricas.
Essa cereja pode ser cheia de açúcares naturais. Doce.
E quando torrados, esses açúcares podem originar sabores, aromas
e texturas de caramelo, doce de leite, rapadura, especiarias e chocolate branco e escuro.
Transferidos à xícara, podem surpreender os sentidos.
Cafés Especiais.
Pessoas Especiais.”
Curioso com a diversidade de cafés gelados, Kilaim partiu para o Irish Coffee, mistura de café, creme de leite e uísque, adoçado com açúcar mascavo e acompanhado de chantilly, que ele passou no nariz de Claire.
Depois da experiência, quiseram conhecer o barista do Santo Grão, que foi muito atencioso em mostrar o preparo de alguns tipos de cafés. A profissão de barista era uma velha tradição italiana. Além de um conhecimento completo sobre o preparo da bebida, eles também são versados nas origens e história do café, no seu cultivo e nos diferentes tipos de grãos.
— Nossa! — falou Claire em seu português carregado de sotaque. — Alors, você é como um sommelier do café!
O jovem artesão deu um sorriso.
— Mais ou menos isso — ele confirmou.
— Com a diferença de que vocês podem criar receitas novas e originais — completou Claire.
— Essa é a parte de que mais gosto. Não haveria valia alguma em cultivarmos o melhor café e o torrarmos perfeitamente se não houvesse quem o preparasse com a mesma perfeição. O melhor barista é o que usa de sua arte para extrair do café todo seu potencial. Para tornar-se um mestre é preciso muita disciplina e, sem dúvida, paixão pelo café.
* * *
Aos poucos, a vida voltava à normalidade. Depois de esgotarem os passeios pelos arredores da Avenida Paulista, começaram a visitar outros locais da capital. O importante — se fato, ou boato, não sabiam exatamente — era nem chegar perto de Alphaville.
O casal alugou bicicletas no Parque Ibirapuera, mais um dos ícones de São Paulo. A área original do parque era ocupada por uma aldeia indígena, muito alagadiça; daí o seu nome, Ibirapuera, que em tupi-guarani significa “árvore podre”. No entanto, no começo do século XX, um funcionário da prefeitura começou a plantar uma grande quantidade de árvores, na intenção de drenar o charco. Foi assim que começou o parque, que, em sua gigantesca área, conta com museus, auditórios, monumentos, um ginásio de esportes, um enorme lago com fonte e um prédio — Pavilhão Ciccillo Matarazzo —, considerado um ícone cosmopolita da arquitetura moderna. É nele que ocorria a Bienal Internacional de São Paulo, atualmente sediada no Parque de Exposições do Anhembi. Nenhum outro edifício está mais vinculado à trajetória da arte moderna e contemporânea no Brasil.
Noutro dia, eles visitaram a Liberdade, bairro típico de imigrantes orientais, onde descendentes de japoneses, chineses e coreanos se acomodaram por toda parte. Ali ficavam as melhores escolas de artes marciais da cidade, e havia até um templo budista — o Templo Busshinji —, reduto de tranquilidade e matriz da Escola Soto Zen na América do Sul: um espaço dedicado à tradição do zen-budismo.
O casal aproveitou para olhar o comércio e tirar fotos debaixo das lanternas japonesas que decoravam algumas ruas. As lojinhas de bugigangas importadas deixaram Claire maluca. No fim de semana, podia-se aproveitar a fervilhante feira de rua, onde as barraquinhas vendiam artesanatos e pratos típicos de todos os tipos: chop suey, doce de feijão (bonito de olhar, mas de gosto horrível!), guioza, rolinho primavera e muito mais.
Olhando a comida, Kilaim preferiu arrastar Claire para um restaurante por ali, e bem depressa. Havia alguns com farto buffet self-service de comida japonesa. Na verdade, São Paulo tinha muitos restaurantes orientais, especialmente japoneses, que foram entrando de mansinho e conquistando o paladar dos brasileiros apesar de seus peixes crus. E os restaurantes de comida vendida a quilo também eram muito comuns, quase que um em cada esquina. Claire os adorava, justamente pela possibilidade de um prato muito variado e na quantidade que ela queria.
Embora Kilaim resistisse com todas as forças, apelando para a gravidez e os cuidados com a saúde, por insistência de Claire eles acabaram indo conhecer a Ladeira Porto Geral e a Rua 25 de Março, o maior ponto de comércio popular a céu aberto da América Latina. Kilaim sabia o que iria enfrentar e decidiu que iriam de metrô. Não era fácil estacionar por lá a não ser, quem sabe, se fosse em estacionamentos pagos. Mas Claire adorou a ideia do metrô.
Assim que eles saíram da Estação São Bento, caíram direto em um mar de gente na Ladeira Porto Geral. Literalmente. Mal se conseguia andar, e as pessoas que caminhavam pela rua ainda tinham que esbarrar nas centenas de barracas de camelôs. Volta e meia a polícia aparecia por ali para confiscar essas mercadorias, e o remédio era escapar rapidinho. Claire ficou impressionada com a quantidade de pessoas — 400 mil por dia!
O local, rodeado por prédios e mais prédios, onde também funcionavam galerias de comércio, tinha sido leito do Rio Tamanduateí, onde, até o fim do século XIX, funcionara o Porto Geral, daí o nome da conhecida Ladeira. Esse porto servia de escoadouro para as mercadorias que vinham do Porto de Santos. Já a Rua 25 de Março, pegada à Ladeira, teve seu nome escolhido por conta de uma homenagem à promulgação da primeira Constituição Brasileira, em 25 de março de 1824.
Durante o ano, vendia-se literalmente de tudo por ali, a preços mais que convidativos, atraindo gente de todos os cantos do país e de fora dele. Mas em épocas como Carnaval, Páscoa, Halloween e Natal, boa parte das lojas comercializava somente os artigos relacionados às festas.
“Um verdadeiro desbunde”, comentou Claire.
A 25 de Março também era conhecida como “Rua dos Árabes”. Os mestres na arte da venda também participavam daquele comércio inigualável. Foi numa lojinha árabe que Claire se espremeu e comprou, depois de muito escolher, um lenço de quadril vermelho, com moedas e paetês em prata. Estava decidida a aprender a Dança do Ventre assim que fosse possível. Não que pretendesse imitar Camille, mas... Ela lhe servira de inspiração.
Dali, eles caminharam até o Mercado Municipal, que ficava entre a 25 e a Estação São Bento do Metrô, e era considerado um dos principais pontos turísticos e dos mais belos cartões-postais da cidade. Embora Kilaim discordasse, dado o excesso de gente e as filas enormes para comer qualquer coisa, fosse nas barracas ou nos restaurantes.
Contudo, uma vez lá, ele teve que admitir que o Mercadão era ímpar. Um enorme prédio de mais de 22 mil metros quadrados, em estilo neoclássico, com vitrais. Muito mais interessante e completo do que qualquer mercado que eles tivessem visto no Norte e no Nordeste, um ponto de parada obrigatório para os donos de restaurantes e para quem vinha dos quatro cantos do país e do mundo. Aos sábados, o local podia chegar a receber 25 mil visitantes.
Kilaim e Claire se perderam em meio aos stands, quase 300, que exalavam nuvens de aromas e exibiam cores e sabores que só uma cidade do porte de São Paulo poderia proporcionar. Eram infinidades de frutas empilhadas e vegetais, vinhos e queijos, peixes e frutos do mar, temperos e condimentos, frutas secas de todos os tipos, uma imensa variedade de castanhas, embutidos, aves, carnes — bovina, suína, de jacaré, de ema, de paca, capivara, javali — e chocolates.
Sem a preocupação de saber onde estava, o casal andou pelas ruas do Mercadão, admirando a grande variedade de produtos e encontrando até algumas especiarias que, segundo os vendedores, só se conseguia por lá. Já achando o local bem pitoresco, Kilaim parou num stand de vinhos e pôs-se a conversar com o dono até escolher dois exemplares. Já Claire, que realmente não se importava em estar no meio de tanta gente, sorria quando os comerciantes gritavam “Moça! Moça!” e lhe estendiam pedaços de fruta na ponta de uma faca.
— Isso pode estar sujo, Claire — alertava Kilaim, mas não em português. — Eu canso de lhe dizer isso. Se eu fosse você...
Ela agradecia com seu sotaque ao dono da banca.
— ‘Brigada!
Ao notarem que era estrangeira, empolgavam-se ainda mais, cortando as frutas mais variadas e já as colocando em embalagens e pesando-as sem haver nem consentimento. A conta era também um “desbunde”.
— Eles estão vendendo ouro em pó, ou frutas, afinal de contas? — perguntou Kilaim, pegando a sacola.
A explicação: muitas frutas eram raras, importadas. Um quilo de granadilla, um maracujá doce, saía por 99 reais. As frutas cítricas eram um capítulo à parte: tangerinas e laranjas vindas de todos os continentes, de cores variadas. Um dos feirantes contou que até Jamie Oliver fizera compras lá.
— É mesmo?! — interessou-se Claire.
— Veio de óculos, chapéu, mas foi reconhecido — garantiu o dono da barraca.
No mezzanino, a vista de todo o Mercadão atraía os visitantes. Em especial os famintos, já que ali ficavam os melhores restaurantes. Segundo a revista Veja São Paulo, que Kilaim lia toda semana, o melhor pastel de bacalhau da cidade era do Hocca Bar, recheado com 200 gramas do peixe, e bem barato.
Já na parte de baixo, eles saíram em busca do aclamadíssimo sanduíche de mortadela no pão francês. Por ali, conseguir uma cadeira era pura sorte, o que eles não tiveram. Então, começaram a comer em pé mesmo, encostados nas paredes e com a lata de guaraná apoiada em balcão alheio. Não demorou muito e um senhor amistoso cedeu seu lugar para Claire, com um sorriso, avaliando sua barriga e perguntando:
— E para quando é o herdeiro? Já tem nome?
Ela sorria e tentava se explicar, enquanto Kilaim fazia cara de poucos amigos.
— Não ligue — Claire falava para o namorado em francês, entre uma frase e outra com o senhor. — É o jeito dos brasileiros.
No final do dia, os dois estavam cansados, especialmente Claire, mas felizes. Voltaram de táxi, cheios de sacolas e pacotes que Kilaim corajosamente havia carregado.
Mas as visitas a mercados pareciam não acabar nunca, pois Claire os adorava, e dizia que, com um bebê pequeno, aqueles passeios se tornariam inviáveis. Kilaim sabia que ela tinha razão, então não lhe negou o prazer daqueles mercados enquanto era possível. Não podiam ficar sem conhecer o CEAGESP, a maior empresa de abastecimento de São Paulo, o maior entreposto da América Latina e o terceiro maior do mundo. Por dia, circulavam ali de 20 a 50 mil pessoas entre vendedores, compradores e turistas. Era uma verdadeira cidade dentro da metrópole, instalada em 700 mil metros quadrados.
Nos “varejões”, que aconteciam num pavilhão aberto gigante, encontrava-se de tudo. Incluindo o lanche, que não podia faltar: sanduíches generosos de linguiça ou pastéis acompanhados de caldo de cana. Feira de paulistano sem pastel e caldo de cana não é realmente uma feira. E o “varejão” era uma feira gigante!
Kilaim olhava Claire comendo pastel de palmito e sorria.
A nuvem negra tinha mesmo passado.
* * *
À noite, pediram um jantar leve, com salada e filé de pescada, depois degustaram várias das frutas frescas que compraram. Ainda mais tarde, assistiam ao noticiário. Ouviam as notícias sobre a alta estratosférica do tomate brasileiro, o que levou a apresentadora do Mais Você a protestar, usando um colar de tomates frescos no seu programa e entrevistando uma convidada que, igualmente, exibia uma pulseira com tomates. Claire achou graça, bem-humorada, e Kilaim abriu uma das garrafas de vinho para acompanhar as frutas secas e castanhas, as quais estava louco para provar.
Enquanto se falava na crise financeira da Europa, Claire atacou os suculentos damascos turcos, os figos, as tâmaras, as casquinhas secas de laranja, os abacaxis caramelizados, as amêndoas doces, as castanhas-do-pará e os amendoins gigantes com vontade. Kilaim ria de todo aquele apetite e punha os petiscos na boca dela alegremente.
Claire já ganhara oito quilos e meio desde o início da gravidez, e estava linda, com bochechas coradas e lindas curvas.
Como se não bastassem os protestos por causa dos tomates, os ativistas do Greenpeace — dentre eles, uma bióloga brasileira — estavam presos na Rússia. Claire ficou quieta, ouvindo a notícia, esquecida das guloseimas. Era a favor do Greenpeace, que protestara contra a exploração de petróleo no Ártico; mas, pelo visto, os presos não seriam soltos tão cedo. O noticiário mostrou as imagens de outros ativistas do movimento fazendo mais um protesto, dessa vez num barco que passava irritantemente ao lado do Kremlin para pedir a libertação dos 28 membros da organização e de dois jornalistas.
E não ficou só naquilo. O governo da Holanda acabou recorrendo ao Tribunal Internacional para o Direito Marítimo a fim de que mandasse a Rússia liberar as pessoas, já que o navio Arctic Sunrise tinha bandeira holandesa, e os presos poderiam pegar até 15 anos de cadeia. A Comunidade Internacional também se manifestou de várias maneiras, o que incluía a chanceler alemã e o primeiro-ministro britânico. Até a cantora Madonna pediu a soltura das vítimas, depois que Paul McCartney enviou uma carta ao presidente russo, na qual afirmava esperar que os ativistas “pudessem passar o Natal em casa”.
— Tá vendo? — exclamou Claire. — O presidente russo precisa rever os seus conceitos.
A essa altura, Kilaim deu uma risadinha, colocando as mãos atrás da nuca, divertido.
— Ele deve estar espumando de raiva.
Claire notou a ironia.
— Uns precisam ser os “bonzinhos” da história e outros têm que ser os “maus”. Não é assim que tudo funciona? Só que nem sempre os bonzinhos estão mesmo cheios de boas intenções em relação à Humanidade; e os considerados maus, às vezes, podem surpreender com grandes atitudes. Mesmo que ocultas. Aliás, falando nisso, você não viu o presidente Putin cantando no The Voice russo?
Ele falou aquilo por saber que Claire literalmente amava o The Voice norte-americano e não perdia um episódio, torcendo por seus candidatos favoritos.
— Sérieu. — Ela até ergueu as mãos.
— Na verdade, ele cantou num jantar beneficente, e até tentou tocar piano. Mas alguém recuperou o vídeo e fez uma montagem, como se fosse uma aparição surpresa no The Voice. Viu? Ele não é tão mau.
— Não sei, não. Isso está até me lembrando daquelas meninas que protestaram na catedral russa e foram presas. Um grupo chamado Pussy... Pussy alguma coisa, eu acho. Você se lembra, Kim?
— Lembro muito bem.
— É verdade que elas foram um pouco abusadas.
Kilaim acabou rindo de novo.
— Muuuito abusadas. Foram absurdamente desrespeitosas, levando em conta os costumes. Mereceram!
— Mas daí a terem que passar por todo um julgamento e serem condenadas...
— Se pensar que o jornalista iraquiano que arremessou os sapatos no presidente Bush, e quase acertou, ficou preso por nove meses... Elas até que saíram no lucro, parce que, depois, o jornalista admitiu ter sido torturado. Alors, levando em conta as proporções... — ele brincou. — Imagine só a situação. Uma adorável coletiva de imprensa com presidente norte-americano, junto ao premier iraquiano, em Bagdá. De repente, alguém grita: “Este é o beijo de despedida, seu cachorro!”. E sapatos são arremessados. “Isto é pelas viúvas, órfãos e aqueles que foram mortos no Iraque.” Aos gritos e se debatendo, o agressor é arrastado dali pelos agentes de segurança iraquianos e os homens do serviço secreto dos Estados Unidos.
— Nesse caso, concordo com o jornalista, já que nunca foram achadas as tais armas químicas. Não foi esse o motivo principal da invasão?
— Inicialmente, oui. Supostamente, o governo iraquiano teria estoques que, segundo Bush, representavam risco aos Estados Unidos. A questão é que os delegados da ONU chegaram à conclusão de que não havia nenhum tipo de arma de destruição em massa no Iraque. Contudo, contrariando a declaração do Conselho de Segurança da ONU, o presidente Bush formou uma coalizão militar se unindo a outros chefes de estado, escolhidos a dedo. Em pouco tempo, os Estados Unidos derrubaram o governo de Saddam Hussein, que foi preso e, depois, enforcado pela justiça iraquiana em função dos crimes que cometeu contra xiitas e pela tortura e deportação de pessoas. Enfin, apesar de não haver nada no Iraque, o governo norte-americano já havia conseguido a liberação de fundos para investimento em armas no valor de 370 bilhões de dólares, desde a época em que Bush criou a Lei Antiterrorismo, logo após o 11 de setembro. Ele foi bastante criticado por conta das bases dessa Lei. Mas, mesmo assim, ele fez. Como eu disse, alguns são os “bons” e outros são os “maus”. Mas quem são, na verdade, um e outro? Onde se escondem os lobos, e quais são as ovelhas? Se você pensar que o mais amado de todos será o anticristo...
Claire ficou olhando para ele; mas Kilaim não disse mais nada sobre aquilo.
* * *
Durante as duas semanas seguintes, Kilaim insistiu em passeios mais “sofisticados”, o que queria dizer: rodar pela maioria dos shoppings localizados em bairros de classe média alta. Foi um festival de andanças, o que ajudou Claire a achar peças que faltavam para o enxoval do bebê, premiados com visitas a restaurantes caros em seguida.
O primeiro foi o D.O.M., do chef brasileiro Alex Atala, que Claire tanto admirava. Fora escolhido pela Restaurant Magazine como o melhor restaurante brasileiro, o segundo da América Latina, e o sexto no planeta. Depois foi a vez do Fasano, que tinha sido eleito o melhor da capital paulista naquele mês. O lugar era espetacular, com clima de filme Hollywoodiano dos anos 1950. Quase se podia esperar que Frank Sinatra estivesse na mesa ao lado, acompanhado por Marilyn Monroe. Mas, olhando melhor, eles puderam ver Antônio Fagundes acompanhado de mais dois atores “globais”.
Por fim, uma churrascaria. Era impensável estar em São Paulo e não ir a uma churrascaria! Como aquele seria o primeiro churrasco de ambos, escolheram a Fogo de Chão, premiada várias vezes. Aquela foi, sem dúvida, a refeição que Kilaim mais apreciou desde o começo da estada. A qualidade das carnes impressionava, e os garçons excepcionalmente atenciosos também. Era um desfile de espetos com partes nobres, como o shoulder steak (corte inventado na casa, do dianteiro do boi), a suculenta fraldinha, a deliciosa picanha no alho, o filet mignon, o carré de cordeiro, a coxa de frango bem temperada. O buffet de saladas era outro “desbunde” e ia bem além de boas saladas. Já os acompanhamentos servidos na mesa, como polenta crocante e banana à milanesa, eram deliciosos. Tudo à vontade!
O casal já tinha percebido que estar em São Paulo é que era o verdadeiro “desbunde”! Em vários sentidos.
* * *
Naquela noite, voltando para o flat bem mais tarde, parte da Avenida Paulista estava irreconhecível. Parecia um campo de guerra. O trânsito, por sorte, já havia sido liberado, de modo que puderam chegar em casa sem maiores problemas. Todavia, a polícia ainda rondava o lugar, a cavalo, e havia restos de fogo no meio da pista que ia para o centro da cidade.
— Mon Dieu... O que foi que aconteceu por aqui? — indagou-se Claire um tanto assustada.
— Talvez noticiem alguma coisa no Jornal da Globo — respondeu Kilaim também achando esquisito.
O Jornal falava de uma manifestação pública organizada pelo Movimento Passe Livre (MPL), com apenas 40 integrantes, mas que provocou uma dose de confusão bem inversamente proporcional ao seu tamanho. Os protestos exigiam a redução da passagem de ônibus, que fora aumentada em 20 centavos, pouco mais de 9 centavos de dólar. Os manifestantes tinham saído do Vale do Anhangabaú, no centro da cidade, e seguido por vias importantes até chegar à Paulista.
Nesse momento já eram milhares de pessoas que invadiram a avenida assustando a todos de forma inesperada, já que o povo brasileiro não tem histórico de grandes manifestações de massa, a não ser para o futebol e para o Carnaval.
Para surpresa geral, os protestos continuaram diariamente. Da janela do flat, Kilaim e Claire podiam ver a situação caótica do trânsito interrompido e milhares de pessoas derramando-se como uma onda viva sobre a Paulista, com gritos e toques de vuvuzelas. O exercício da cidadania, como foram chamados os protestos, causou bastante confusão não somente ali, mas em vários outros pontos importantes da cidade, o que incluía a Marginal Pinheiros. Eram congestionamentos terríveis, na já tão congestionada cidade. E não faltaram confrontos com a polícia porque, todos os dias, uma minoria de vândalos e anarquistas se aproveitava do caráter pacífico das manifestações e da dificuldade das autoridades em interferir. Ninguém sabia como agir, já que o direito de protestar é uma prerrogativa da democracia.
Na Paulista, os resultados da “democracia” e da “cidadania” se somavam: prédios pichados, agências bancárias destruídas, estabelecimentos comerciais saqueados e lixo queimado num fogaréu no meio da avenida. Uma bomba caseira foi jogada na Estação Brigadeiro do Metrô, ali mesmo, quase ao lado do flat. Claire tomou um susto medonho e saiu correndo do banho, meio enrolada na toalha e deixando pingar água pelo chão. A avenida virou campo de guerra. Diante disso, a Polícia Militar a cavalo e a Tropa de Choque tinham que aparecer.
A adesão à onda de protestos foi muito grande. Os membros do MPL não interromperam as manifestações, e ameaçavam a prefeitura de realizar uma por dia até que o preço das passagens fosse revisto.
O que começou em São Paulo, e depois no Rio de Janeiro, mobilizando milhões de pessoas a vários pontos estratégicos das cidades, espalhou-se pelo país. O casal francês ouviu o Brado Retumbante ecoando de Norte a Sul, o que surpreendia os próprios brasileiros. A Edição Histórica da revista Veja, de finais de junho, dizia: “Podem-se passar décadas sem que nada mude, mas uma semana pode concentrar décadas de mudança”. A frase era de Lenin, o pai de todas as revoluções, a força motriz da revolução russa.
Não que se pudessem comparar as intenções, ou os resultados, mas o que acontecia nas ruas do Brasil era o início da maior manifestação das últimas décadas, deixando bem aquém o impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992. Nesse ano, a população veio às ruas, vestida de preto, com as caras pintadas e cartazes dizendo “Fora”, para contrariar o pedido de apoio feito pelo presidente, que queria todos de verde e amarelo. A única manifestação a que se poderia comparar a atual havia sido a das Diretas Já, em 1984, um dos maiores movimentos sociais do país, após 20 anos de ditadura e de silêncio forçado.
No meio da semana, Claire e Kilaim acompanhavam pela televisão, boquiabertos, a transmissão ao vivo dos protestos em Brasília. A presidenta Dilma Rousseff ficou por quase duas horas presa no Palácio do Planalto, sem conseguir deixar o local pela porta da frente por causa da multidão que gritava do lado de fora contra uma série de fatores negativos atribuídos aos políticos. Cinquenta mil manifestantes desceram a Esplanada dos Ministérios rumo à Praça dos Três Poderes, enquanto alguns tentavam entrar à força no Congresso Nacional e foram impedidos por um cordão de militares. Mas o Palácio do Itamaraty foi depredado por um grupo de anarquistas. Nessa noite, um milhão de pessoas em uma centena de cidades brasileiras estava nas ruas.
Em cadeia nacional de rádio e televisão, a presidenta disse: “Eu estou ouvindo vocês”. Reconheceu que o fenômeno de massa que o país vivia era inteiramente novo e não se ofendeu, como esquerdista, em ver o povo tão insatisfeito. A verdade é que ela seria alvo de muita insatisfação ainda, especialmente ao explodir o escândalo de corrupção bilionária envolvendo a Petrobras.
A invasão da Assembleia Legislativa no Rio de Janeiro resultou em móveis e vitrais franceses originais destruídos, com um prejuízo estimado em 2 milhões de reais. A confusão se dava, agora, em função da votação de uma emenda constitucional que impediria o Ministério Público de realizar investigações criminais. Patrocinada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), isso só daria mais impunidade aos maus políticos. Os cartazes e a gritaria das ruas fizeram com que a votação da emenda, que tinha grande chance de ser aprovada, fosse suspensa. Ninguém mais ousou falar no assunto no Congresso Nacional.
Quanto às prefeituras, que a princípio tinham se colocado de maneira irredutível em relação ao aumento das tarifas de ônibus, voltaram atrás e negociaram preços mais baratos em 13 capitais e em dezenas de outras cidades. Por conta disso, o MPL retirou-se das manifestações, considerando que haviam tido uma vitória.
Mesmo assim, restava saber “quem” iria pagar por isso. Lendo a revista Veja semanalmente, Kilaim ficou inteirado sobre os dados não muito promissores: em São Paulo o prefeito já estimava em 175 milhões de reais o gasto adicional só até o fim do ano com o congelamento das passagens de ônibus. E o congelamento dos bilhetes de metrô e trem representaria mais uma perda anual de 210 milhões de reais. No Rio de Janeiro, a queda da tarifa de ônibus criaria um rombo de até 500 milhões de reais no orçamento da prefeitura.
O ano que ficaria conhecido como o “Ano do Grito” contagiou o povo brasileiro. Ao longo dos meses, muitos outros protestos se somariam aos primeiros: eram clamores contra a Saúde Pública — completamente decadente —, melhorias na Educação — que na rede pública beirava o ridículo, enquanto o ensino privado continuava caríssimo — e contra a corrupção. O tópico mais controverso, contudo, foi econômico. O país do futebol, prestes a sediar a Copa do Mundo de 2014, estava indignado — para não dizer furioso — com as verbas estratosféricas que haviam sido liberadas pelo Governo Federal para construção e reformas de estádios, além de melhorias na infraestrutura das cidades-sede. Verbas semelhantes dificilmente seriam direcionadas aos principais setores da sociedade.
E apesar de ter sido anunciado que a verba para a Copa viria da inciativa privada, a verdade é que a maior parte veio do Estado e dos municípios, ou seja, era dinheiro público. E os brasileiros pediam, ironicamente, “hospitais padrão FIFA”, numa percepção rara de que o dinheiro público estivesse sendo consumido de mais, para mostrar resultados de menos.
— Olha só essa, Claire, uma faixa de rua no Ceará. — Kilaim apontava para uma foto da revista. — “Já temos estádios para a Copa, agora só falta um país em volta deles.”
— É o mínimo a se dizer quando alguém tem que esperar até dois anos para agendar uma consulta pelo Sistema Único de Saúde — ela respondeu.
Os médicos acabaram entrando na onda de protestos, em prol da Saúde. Os professores também decretaram greve. Até os índios protestaram contra a ocupação de suas terras, e os caminhoneiros contra o preço do combustível, dentre outras petições. A tal ponto que já ninguém aguentava falar no assunto e ver passeatas. O excesso de movimentação acabara caindo em outro extremo, saturando a todos, com paralisações em todo canto, mas sem nenhum resultado.
O assunto ficou esgotado. Especialmente depois que se começou a falar tanto no “ex-analista” (ou ex-espião?) da National Security Agency dos Estados Unidos, Edward Snowden, e suas declarações bombásticas sobre a espionagem norte-americana. Até a presidenta Dilma Rousseff teve seus e-mails e telefonemas violados, bem como seu círculo de colaboradores, além dos computadores da Petrobras. Indignada, a presidenta cancelou sua visita oficial aos Estados Unidos.
Até o final daquele ano, Snowden pediria asilo político a diversos países, incluindo o Brasil. Por fim, o homem de 30 anos se exilou na Rússia. Kilaim até achou graça. Justo onde!
* * *
Como era perigoso andar pelos lugares onde havia protestos, o casal zanzava por outros pontos, e mais cedo, antes do horário previsto para início das manifestações.
Naquela sexta-feira, eles haviam combinado de conhecer a famosa Feira de Flores, que funcionava na CEAGESP. Para isso, tiveram que sair do flat antes do nascer do sol, já que o horário da feira era das cinco da manhã até dez e meia.
Ali eles viram um espetáculo completamente sui generis: fileiras de caminhões encostavam de ré no pavilhão, abriam suas caçambas e despejavam plantas e flores em abundância, formando um corredor multicolorido. Carrinhos de madeira enormes circulavam no meio da multidão, puxados por moleques que gritavam, oferecendo seus serviços, enquanto o sol se levantava de sua nascente.
Tinham que tomar certo cuidado para não serem atropelados.
— Nó, esse lugar é inacreditável! — exclamou Claire, olhando para todos os lados. — Quanta gente!
Kilaim tinha que concordar. Nunca vira nada semelhante.
— Que pena não podermos levar algumas plantas para casa... — murmurou Claire, certa altura, fascinada pela quantidade e variedade de flora apresentada ali.
— Eu também gostaria — respondeu Kilaim, um pouco chateado, lembrando-se de como fora divertido arrumar o jardim da chácara, e todo o resto do paisagismo.
— Não adianta comprarmos as mudas agora se não temos como plantá-las.
Kilaim ficou pensativo.
— Talvez possamos ir até em casa por alguns dias — ele comentou mais tarde. — Você gostaria? Dois ou três dias em Alphaville não farão mal, estou convencido disso.
— Você acha mesmo? — Claire olhava com expectativa.
— Só não podemos ficar muito tempo. Mas um pouquinho... Aliás, estou com muita saudade do meu piano, franchement! E poderíamos pegar o carro novo.
Kilaim havia conseguido, depois de muito conversar com gerentes e superiores, que o Frontier vermelho fosse entregue na casa de Alphaville e deixado na garagem. O March de Claire ainda estava na concessionária.
— Podemos pegar o seu carro e levar para lá. Você gostaria?
— Claro!
Então eles compraram tudo que tinham vontade, desde as mudas de um matinho verde-pálido para enfeitar o pé das árvores no quintal até algumas mudas maiores de dama-da-noite e jasmim estrelinha, muito perfumadas, além de meia dúzia de samambaias de metro e dois pés de bananeiras ainda bebês. Chegar cedo tinha feito toda a diferença na hora de escolher os melhores espécimes.
No final de tudo, Kilaim contratou um carreto ali mesmo, na feira. E escolheu um maço de rosas vermelhas para Claire, enquanto ela estava parada na barraca do pastel, escolhendo entre os muitos sabores. Ele sorriu animado.
Antes de irem embora, comeram o “pastel especial” que vinha com farto recheio de carne, presunto, queijo, ovo e azeitona. Uma refeição. O caldo de cana gelado, tirado na hora, era um verdadeiro néctar. Escolheram acompanhá-lo com limão. Tomaram um litro.
Saíram da feira lá pelas nove e meia da manhã e estavam realmente contentes por poderem ir para casa.
* * *
Eram seis horas da tarde na França quando Zor contatou o sacerdote Orion com ar de satisfação.
— Tenho novidades. Abadom esteve aqui há pouco e, voilà, eles estão em casa.
— Ah! Mas que ótimo!
— Estão correndo o risco, ao que parece. Mas, ali, o território é nosso, e definitivamente os demônios não pretendem falhar mais uma vez. E será logo. Hoje ainda. Vão atacar com todas as forças, pois o grande príncipe deu carta branca.
— Até que enfim — resmungou Orion contrariado. — Quer dizer que vamos acabar de vez com ele? Essa história já se estendeu demais.
— D’accord. Para mim, esse garoto mimado bem que podia ir para o Inferno. Mas o Príncipe Lucipher ainda espera que, depois desta noite, ele acabe voltando por si mesmo.
— Mais uma chance para Kill? — Orion quase gritou. Ele sempre era muito comedido. — Isso já está me tirando do sério.
— Ele conhece o garoto mais do que nós, essa é a verdade. E não quer abrir mão de sua cria tão cedo.
— Cedo? Mas já faz meses, e ele não arreda. — Os olhos azul-piscina pareciam flamejar.
— Mas hoje vai ser diferente. De verdade! Não se esqueça: aquela casa foi consagrada, e Kill não fez nada para “desconsagrá-la”. A Pollyanna desconhece esse fato, e aquilo que está exatamente debaixo de seus pés.
— O porão secreto... — Orion deu uma risadinha.
— E não é só isso. A tal “decisão” que Kill deveria tomar, entregando-se a Deus, ou coisa que o valha, não foi tomada. Por isso, agora é o nosso tempo. Essas legalidades vão engessar um pouco aqueles Anjinhos brilhantes! Os demônios vão poder se aproximar. E atacarão aquela moça com uma fúria inimaginável; aquela infeliz vai ficar totalmente apavorada. Se não por ela, ao menos pelo filho. E quando isso acontecer, a Von Trapp estará indefesa. O Cálice do Horror foi anulado, mas hoje ela experimentará algo que jamais imaginou na vida.
— É só por causa do suporte que tem dado ao Kill que ele ainda não cedeu — grunhiu Orion mais uma vez.
— Mas, se conseguirmos matá-la, ele também vai ceder. Ou se, no mínimo, ela abandoná-lo, também serve. Já chega dessa Pollyanna metida a heroína. Ela vai sair do nosso caminho, de um jeito ou de outro. Estão todos babando, comemorando a idiotice de Kill ter voltado para lá. Amanhã, tudo estará resolvido. Essa menina está brincando de casinha, mas não o conhece, não sabe quem ele é. Não tem ideia do Fogo com que mexeu.
Orion deu uma risada.
— Eu é que não queria estar na pele dela.
— Nem na dele. Será poupado, mas vai ter que vir de rabo entre as pernas, e será punido por sua estupidez. — Zor estava alterado, mas antevendo a vitória. — Quanto a nós, iremos para lá no meu jatinho. Só por via das dúvidas.
— A que horas nos encontramos?
— Daqui a uma hora, no hangar. Faça contato com o Lobo.
* * *
DIÁRIO DE CLAIRE
Estou muito feliz hoje! De manhã fomos ao CEASA, e Kilaim disse que poderíamos ficar dois ou três dias em casa. E aqui estamos! Trouxemos várias plantas. Agora o Kim está lá embaixo, tocando piano, e eu deixei o camarão marinando um pouco para o jantar especial de hoje. Tenho saudade da chácara, a vida ali era muito gostosa. Mas nem tinha percebido o quanto sentia falta daqui. Vou levar algumas roupas e sapatos para o flat. Tenho o closet mais completo do mundo, mas nem estou usando.
Quem sabe poderemos ficar mais tempo aqui... Vamos ver.
O que realmente me preocupa é o fato de Kim não se decidir em relação ao Cristianismo. Carrega muito rancor no coração. Na chácara, ele ainda me deixava falar um pouco, mas, desde que voltamos para São Paulo, não consigo dizer nada que faça sentido para ele. Tenho pedido tanto a Dieu que lhe traga uma experiência forte e pessoal... Pois não adianta ficar insistindo no assunto. Tenho muita esperança de que algo aconteça. Logo.
Na próxima segunda-feira, tenho consulta com a obstetra. É a primeira a que vou aqui em São Paulo. Vamos ao Hospital Israelita Albert Einstein, uma referência aqui na capital.
Oh, o telefone está tocando. Deve ser da portaria, anunciando minha entrega.
Tenho que ir.
Claire Cécille
* * *
7
Démon
À noite, Kilaim se sentou diante de Claire na mesa primorosamente arrumada, com direito a dois castiçais, cada um com uma vela. As rosas vermelhas tinham sido arrumadas num bonito vaso, e o cheiro de risoto de camarão invadia o ar. No aparelho de som, uma coletânea de Música Popular Brasileira: Gal Costa, Milton Nascimento, Chico Buarque e Caetano Veloso.
O fato de estarem em casa trazia uma emoção diferente. Os dois falavam sobre mil coisas, planos para o futuro, como seria o quarto do bebê (ainda não sabiam se era menino ou menina) e onde passariam o Natal.
Na hora da sobremesa, enquanto o jovem servia generosamente um pedaço de bolo para cada um deles, Claire punha a cafeteria para funcionar. A noite estava sendo muito agradável.
Depois do café, Kilaim serviu um cálice de licor para dividirem. Claire dava uma bicadinha, só de vez em quando. Embora ele tivesse ficado descontraído durante todo o jantar, olhava agora para a mesa desarrumada, para sua bonita namorada e para a casa que tinham montado. Uma sensação de inquietação tomou conta dele.
Sentia a presença dos demônios. Muitos, muitos. Estaria apenas desacostumado à energia deles, ou realmente se reuniam ali para fazer alguma coisa...? Quanto tempo demoraria a receber mais um telefonema?
A julgar pelos demônios, havia a possibilidade de que fosse mesmo naquela noite. A animação de antes caiu num poço de angústia, como uma pedra, e afundou.
Kilaim largou o cálice do licor sobre a mesa.
— Claire... Será que eu fiz a coisa certa? — disse de repente. — Quer dizer, acabei arrastando você comigo. E agora ainda tem o nosso filho, que também está em perigo.
— Kim, nós nos amamos... — Ela chegou perto dele, abraçou-o e puxou seu pescoço para baixo, a fim de beijá-lo.
Ele retribuiu o beijo, mas não por muito tempo. E continuou:
— Tenho minhas dúvidas, às vezes, de que deveria ter ido atrás de você. — Ele enfiou a cabeça no meio das mãos. — Parce que cada um tem seu destino na vida, e eu deveria ter aceitado o meu e ficado onde estava. Estou querendo mudar o que não tem mudança. Lutar contra o destino. Me desculpe por estar fazendo você passar por isso.
— Você não acredita que Dieu possa escrever um novo destino para você?
Kilaim ficou meio irritado. Talvez ele preferisse que Claire gritasse e jogasse na cara dele o quanto era insensível. Queria que ela se rebelasse, que dissesse que iria embora; tudo menos aquela conformação pacífica que terminaria em causar-lhe a destruição e, quem sabe, até a morte.
— Deus até pode escrever destinos, mas eu não sou uma pessoa boa — ele respondeu sério. — Sendo assim, fica impraticável mudar o que já está escrito.
— Não fale assim de você mesmo, Kim. Você é um homem bom. Tudo pode ser diferente.
Mas Kilaim se manteve na defensiva e insistiu no assunto.
— Você não conhece a maldade, Claire. Nem mesmo quando a vê diante dos seus olhos.
— Tudo que sei é que você é bom. Tem sido bom para mim e...
Ela esticou o braço para segurar na mão dele, mas Kilaim não deixou. A presença dos demônios era muito forte. Leviathan estava ali, bem ao lado dele. Se tocasse em Claire, o que poderia acontecer?
— Eu tenho sido “bom” com você? Tirei-a da segurança do seu lar num pós-operatório de risco, fiz você vir para o outro lado do mundo, e agora temos que ficar fugindo de um lado para o outro. Que bondade, n’est-ce pas? Com tanta bondade assim, o mundo não precisa mais da maldade.
— Você fez o que fez por amor. E aceitei isso. Se é culpado, eu também sou. Entretanto, como condenar o amor? E a bondade? Experimentei tudo isso com você.
Kilaim se ergueu da cadeira, arrastando-a com muito barulho. Sua voz ficou mais alta. Ele andava pela sala ao falar:
— Você simplesmente não acredita em mim! Não acreditou em uma só palavra de tudo que te contei sobre a Organização. Pois bem, Claire, vou te dizer uma coisa velha de modo totalmente novo: eu sou mau. Até agora você não viu isso, mas posso lhe mostrar. O seu problema, sabe qual é, Claire? Você vê tudo de modo poético. Só que a vida não é essa poesia toda! Todo ser humano carrega dentro de si o DNA do Mal. Até você, sabia disso? Você também é má; essa semente não foi despertada; mas está aí. Está em todo ser humano. Mas eu tenho mais que apenas uma semente do Mal. Sou filho do Mal! Isso nunca vai mudar. Você não está enxergando o que está diante dos seus olhos, e não acredita em mim quando falo. Se tivesse um pingo de inteligência, sumiria daqui o quanto antes.
— Você não é mau, você é bom. Pare de dizer isso! — Ela se ergueu e foi atrás dele.
Aquela insistência incomodava Kilaim. Pourquoi ela tinha que ser tão teimosa?!
— Claire. — A voz de Kilaim parecia diferente. Muito dura. Gelada. — Você... Está me fazendo... Trair todos aqueles que me amavam, e que cuidavam de mim. E todos os que também amei! — E aí ele mudou o tom do discurso drasticamente. Olhou na direção dela com olhos que Claire não conhecia. — Na verdade, o que eu estou fazendo aqui? Por Lucipher, o que eu estava pensando?
Ele andou em círculos, esbravejando.
— Te dei a chance e você recusou.
— Kim, me escute. Você está aqui parce que se cansou de servir a Lucipher e aos demônios. E isso só prova que existe bondade dentro de você.
— Você não me conhece, Claire... Não sabe quem eu sou... — A voz dele continuava gelada como a neve, escura como o abismo. — Não fale do que você não sabe...
Claire começou a ficar com medo do rumo que a conversa tinha tomado. Olhou para ele e ficou presa naqueles olhos, no magnetismo deles; os olhos negros de Kilaim estavam muito negros. Como se aquilo fosse possível. Não era normal, non, realmente não era.
Muito negros, como poços sem fundo.
Kilaim estava calado, imóvel, olhando fixo para ela. As velas acesas sobre a mesa, expectadoras do jantar romântico, fizeram brilhar sua luz naqueles olhos. Olhos negros de fogo. Ela não parou para pensar que as velas estavam longe demais para produzir tal efeito. Apenas olhava os olhos, sempre os olhos. As pupilas estavam dilatadas, estranhíssimas.
De repente, o rosto dele também foi ficando diferente, mas de forma sutil. Por alguns instantes, era ele; depois, já não era mais.
— Kim... — A voz dela soou trêmula, e ela deu um passo atrás, apoiando a mão sobre a cadeira.
— Você vai ver como eu sou “bom”... Claire.
Era a voz dele? Era, é claro... Não, não era. Estava com um timbre diferente. Grave. E falava o seu nome de um jeito estranho. Por detrás da chama acesa, Claire viu todo aquele Mal do qual Kilaim falava. Estava visível, escancarado, e ela sentiu muito medo.
— Kim? — chamou de novo. Mas deu a volta por trás da cadeira.
Um sorriso se moldou nos lábios dele. Sorriso que Claire não conhecia. Transmitia algo... Mas o que era? Subitamente, num gesto de violência, Kilaim bateu com tanta força num dos castiçais que estavam sobre a mesa, que ele foi atirado longe. A vela pulou e caiu de encontro à cortina da sala.
Claire deu um grito, apavorada, e o fogo subiu de imediato, forte como uma explosão. Uma vela não poderia causar tal estrago, tão depressa. As chamas cresceram, e Kilaim avançou em sua direção.
— Vou te mostrar como eu sou “bom”... “Pollyanna” — repetiu ele, baixo, mas em fúria.
A mão esquerda segurou o pescoço dela. Claire viu no que Kilaim poderia se transformar.
O pavor tomou conta dela, enquanto o ar lhe faltava e a fumaça inundava o aposento. Segurou as mãos dele em vão, tentando gritar. O sorriso continuava no rosto de Kilaim, e ela entendeu o que o sorriso significava. Era regozijo. Mas os olhos não mentiam.
Ele iria matá-la.
* * *
Claire acordou, de repente, e se sentou na cama sentindo a angústia apertando seu peito. O coração batia apressadamente. Pesadelo! Completamente pavoroso. Olhou para o lado, muito assustada, e Kilaim estava dormindo.
Tinha sido um pesadelo...
Ela se lembrou: o jantar tinha sido ótimo e terminara bem. Aquela discussão não acontecera. Ela fora se deitar mais cedo porque o dia também começara cedo, na Feira de Flores. Olhou o luminoso do relógio: cinco para as duas da manhã.
Ficou imóvel, tentando apenas controlar a respiração desassossegada. Em vão. A angústia não cedia. Fazia tempo que não tinha aqueles pesadelos. Eram tão reais! O que isso queria dizer? Deus a avisava de que tudo poderia acabar assim? Que Kilaim jamais teria um encontro com o Pai? Porque aquele não era um sonho comum, tinha absoluta certeza. Os olhos pousaram fixos sobre o jovem envolto pela penumbra.
“Ange ou démon?”, pipocou na mente dela.
Seria possível...?
“Oh, mon Dieu, mon Dieu...”.
Seria possível mesmo que ele pudesse fazer algo assim com ela, seria um aviso de Dieu...? Correria perigo ao lado de Kilaim? Ela não sabia. Naquele momento, realmente não sabia. Sentia a transpiração incômoda, e não conseguiu ficar na cama. Ergueu-se cuidadosamente e desceu até a cozinha.
* * *
O capitão Mikhael não estava gostando do enxame de demônios, cada vez maior, cercando a casa, a rua, o Residencial Nove, como uma nuvem espessa.
Mas ele pouco podia fazer, além de comandar os oito companheiros num cerco ao redor de Claire. Por quanto tempo poderiam preservá-la? Apenas os oito estavam com ela. A Guarda Angelical que estivera presente na chácara era apenas para a chácara. Ali era a torre forte, o esconderijo do Altíssimo. Deus havia mostrado.
“Eles nunca deveriam ter saído dali. Nunca deveriam ter voltado para São Paulo, menos ainda para a casa de Alphaville”, falou, consternado, o Arqueiro.
“Infelizmente, Claire não conseguiu escutar a direção certa”, respondeu Raphaell com tristeza.
Ao deparar-se com a pressa avassaladora de Kilaim, naquela última manhã em São Sebastião, ela apenas fez o que ele pedia: arrumou suas coisas e foi. Mas tinha sido um erro.
“Nossa irmã deveria ter orado antes, aquietado um pouco seu coração, buscado a face do Pai. E então ela teria escutado!”, volveu o Arqueiro.
A chácara — apelidada pelos Anjos de “Refúgio Azul” — era o local onde Kilaim ouviria a Voz de Deus no momento certo. Mas, saindo de lá, eles também saíam da proteção perfeita. Só os oito puderam permanecer. As legiões que guardavam a chácara não estavam mais presentes. E agora, desde que o casal havia entrado no Residencial, o guardião da Graça, Logus, também tivera que se afastar.
“Não existe outro modo de aprender”, falou, por fim, o capitão. “Não podemos intervir.”
A Zharakrustha de Mikhael estava aberta, com as duas lâminas de luz; e seu rosto estava sério. Seu nome também significava “Força e Poder”. Mas, naquelas circunstâncias...
Todos viram a moça descer as escadas, assustada, e sabiam que ela tinha sonhado. Arkheell se aproximou dela, depois de um sinal de anuência do capitão. Ele podia captar seus pensamentos. Era muito bom nisso. E confirmou o que todos já intuíam.
Um pesadelo de morte.
Mas era só o começo.
“Temos que fazer alguma coisa”, inquietou-se Raphaell, voltando o rosto para o capitão. “Alguma coisa deve estar a nosso alcance, mesmo que não seja uma intervenção direta.”
Mikhael não respondeu.
“Capitão...?”.
Todos tinham nas mãos suas espadas. Havia pouco tempo.
“Há algo que podemos fazer. Sim. O Altíssimo nos dá Sua permissão”, respondeu Mikhael, por fim, olhando de volta para Raphaell.
* * *
A respiração de Claire ainda não se normalizara, nem o coração, que pulava no peito. Ela pegou um copo grande de água e o bebeu inteiro, de uma vez, parada no meio da cozinha. Depois, sentou-se diante da mesa, devagar. Pousou o copo. Colocou a cabeça apoiada entre as mãos.
“Será que eu nunca deveria ter vindo com ele para o Brasil? Foi uma decisão precipitada de minha parte, talvez, e Dieu nunca esteve satisfeito com isso...”.
Não. Impossível. Deus salvara a irmã de Kilaim; Sol estivera com ela e havia dito que cuidasse dele, de seu amado; havia os outros Anjos também. Ela os tinha visto! Quando tudo isso teria se convertido em um erro?
Montes de dúvidas lhe assaltaram como agulhas perfurando seu cérebro, inclementes. Estava muito assustada e aflita. O pesadelo tinha sido real demais, e a lembrança dos olhos de Kilaim não iria se apagar tão cedo. Sentiu o bebê se mexer dentro dela. Ficou ainda mais apavorada. Não era apenas a sua vida que poderia estar correndo perigo, mas a de seu filho. Claire se perguntou se não deveria simplesmente pegar seu passaporte e ir embora.
Começou a chorar. O tempo estava se esgotando, esse era o outro lado da questão. Kilaim precisava tomar uma atitude, redefinir suas crenças. Sem isso, como poderiam sobreviver? Ela se pôs a orar por proteção e, agora mais que nunca, por uma direção clara.
O tempo passou, e ela continuava ali na mesa, o rosto, agora, afundado sobre os braços. Sabia que ele a amava; não tinha dúvidas disso. Mas o sonho lhe mostrara que Kilaim podia perder o controle de si mesmo durante um acesso de fúria. Mais que isso até. O que vira tinha sido mais que perder o controle; parecia que alguma coisa o dominara.
Era tão diferente quando estavam na chácara e ficavam olhando as estrelas, conversando sobre tudo. Sentiu saudade de lá. E se pedisse para voltarem?
De repente, ele estava ali, ao seu lado, e tocou-lhe o ombro. Claire deu um pulo de susto, olhando-o com olhos cheios de medo.
— O que foi, Claire?
Era a voz que ela conhecia. Não aquela coisa medonha do sonho. Kilaim percebeu o medo e a olhava com preocupação. Arrastou uma cadeira para perto rapidamente.
— O que aconteceu, mon amour? — Ele a abraçou, puxando-a para si. — Pourquoi está aqui, desse jeito? Não está com frio?
Claire não ia contar. Não ia mesmo.
— Eu não sei. Acho que tive um pesadelo, fiquei com medo... De eles virem atrás de nós — inventou.
Kilaim continuou a abraçá-la, acariciando seus cabelos, mas não sabia bem o que responder. Afinal, a ameaça era verdadeira. A despeito do silêncio dele, o calor do abraço a confortou. Era o homem que ela amava. Então, Claire resolveu arriscar.
— Kim, você sabe que Dieu salvou a sua irmã, n’est-ce pas?
Disso ele não poderia duvidar.
— Oui.
— Pourquoi você simplesmente não entrega sua vida a Ele? Dê a Dieu a chance de te mostrar que Ele é Alguém diferente daquilo que você pensa. Eu estou com medo, Kim. Lembra-se do casal Mastral? O Daniel só sobreviveu parce que renunciou à vida com os demônios e abraçou a fé. Dieu te mostrou, Kim. Por meio da vida da sua irmã, Ele te mostrou o Poder Dele, a Misericórdia e o Amor. Dieu mostrou isso no dia do acidente com o barco...
— Claire, entendo o que está dizendo. Mas se eu fizesse o que você está me pedindo, estaria sendo completamente falso. Estaria me entregando à toa, parce que o meu coração não deseja fazer isso.
Ela olhou para ele com muita tristeza.
— Nosso tempo está se esgotando.
Os dois ficaram em silêncio. Então Kilaim se levantou, perguntando:
— Quer tomar un thé?
— Non. Merci.
Subitamente, uma ideia perpassou pela mente de Claire, surgindo do meio da névoa e brilhando como uma conta de ouro.
O que ele teria feito de tão grave e que não lhe contara? Tinha que haver alguma coisa mais, escondida. A transformação que ela tinha visto ocorrer em sonho, toda aquela cólera, e todo o amor transmutado em ódio num segundo, tinha que ter uma raiz. Uma raiz muito profunda e forte.
Ela já sabia de muita coisa, é verdade, inclusive que ele havia oferecido sangue humano. Mas, haveria alguma outra coisa...? Sentindo um arrepio correr pela espinha, ela pensou em como perguntar. Não havia jeito certo.
— Kim... Tem alguma coisa que você queira me contar? — Ela ergueu a vista para ele, avaliando-o.
E ele não gostou da avaliação, talvez por pressentir que ela desconfiasse de algo. Mas do quê? A ideia de Claire sabendo de mais alguma coisa sobre ele, algo que ele não quisesse revelar, não lhe agradava.
— Você já sabe demais, Claire.
* * *
Depois de voltarem para o quarto, Claire demorou a dormir. Encolhida na cama, ela ficou à mercê da pergunta que latejava: pourquoi aquele sonho? Seria só extravasamento emocional, fruto daquelas fugas, ou um aviso de Dieu? E pourquoi agora, naquela noite?
Algumas lágrimas escorreram pelo seu rosto, molhando o travesseiro. Sentia-se perdida.
Por fim, o cansaço da madrugada acabou por ser mais forte.
* * *
Ela sentiu.
Claro que sentiu.
O colchão afundou. Alguém se sentou ao lado dela.
Claire abriu os olhos pesados de sono e viu o contorno da silhueta de um homem. Parecia um homem. Não era tão brilhante.
“Tem uma coisa que eu quero lhe mostrar”, ele disse.
Teria dito com palavras audíveis, ou era só um eco na sua mente?
De repente, Claire estava bem acordada. Se teria sido um sonho, outra vez, ela não sabia, dada a sensação inquietante de realidade. A silhueta desaparecera, contudo, parecia haver... certa luminosidade. Ela estreitou os olhos. Tão tênue. Como um vapor de luz dourada. Um suspiro.
Ela se levantou da cama mais uma vez. A suave florescência saiu do quarto e desceu as escadas na frente dela. Claire percebeu o conhecido aroma de perfume, e simplesmente foi atrás. Não foi preciso acender as luzes da casa, e logo estava ali.
Na porta fechada do escritório de Kilaim.
“Você precisa ver uma coisa”, parecia que Sol lhe dizia. Havia uma certa urgência.
Ela abriu a porta em silêncio, olhou para dentro. Num sopro, a luz descansou sob o espaldar da lareira. Claire sabia que havia alguma coisa ali. Tinha certeza. Caminhou até lá, estendeu a mão para frente, e sabia... adivinhava... um mecanismo oculto.
A parte de trás da lareira começou a se abrir, quase sem ruído, para o seu mais completo assombro. Ela deu um passo para trás, boquiaberta, ao perceber um lance de escadas que mergulhava na escuridão.
Ela olhou e teve muito medo. Quase tanto medo quanto no sonho em que Kilaim a sufocava. Suas pernas bambearam, e ela teve que se apoiar na lareira por alguns segundos. O que era aquilo, pelos Céus?!
“Você precisa ver.”
Então ela começou a descer os degraus, pé ante pé, apoiando a mão contra uma das paredes. Já não havia sinal da luz dourada que a guiara desde o quarto; ao contrário, podia perceber uma luz mortiça que vinha do fundo.
Aonde iria parar aquela escadaria? Sua respiração acelerada era o único ruído audível. Então, uma pequena curva para a esquerda, e seus pés descalços pisaram num tapete grosso. E ela viu. O amplo recinto iluminado por velas enormes. Era um pesadelo...
Só que, dessa vez, ela sabia que não estava dormindo.
A respiração acelerou ainda mais, e uma vertigem fez com que cambaleasse. Apoiou-se na parede de novo. Seus olhos corriam de um lado a outro. Cadeiras gigantescas. Desenhos. Pentagrama.
Uma mão pousou sobre o seu ombro, pesada. Claire tomou um susto pavoroso e se virou, dando um grito.
Era Kilaim.
* * *
Leviathan deu um urro de comando. Todos os seus aliados partiram para o ataque. Nuvens de demônios indo de encontro aos Anjos.
Poucos Anjos. Mas muito poderosos.
Apenas Leviathan não entrou na peleja. Não ainda. Era importante acompanhar o desenrolar das coisas no porão.
Em milésimos de segundos, outros guerreiros angelicais vieram em auxílio do grupo dos oito. O pedido de Raphaell fora atendido, e agora Claire sabia onde seus pés estavam pisando, e não era terra santa. Mas, por causa disso, o grupo precisava de reforços.
Uma chance de mudar a história lhe era dada. Talvez, conseguisse saber o que fazer. Porque, agora, era uma questão de vida ou morte.
* * *
— Kim...? — disse ela, então, num murmúrio.
— Claire. Você descobriu.
Já não fazia sentido ocultar qualquer coisa. A garota sentiu vontade de sair correndo, dada a apavorante realidade de tudo o que a cercava. Mas se lembrou de que fora Sol que a trouxera. E ficou parada onde estava.
— O que é tudo isto? — perguntou, sentindo o corpo tremer por dentro.
Kilaim deu alguns passos na direção dela, mas percebeu o medo, quando Claire involuntariamente se encolheu. Então parou.
— Não é dito que o espírito da iniquidade já está sobre o mundo? — perguntou o gigante sem preâmbulos. — O espírito do anticristo?
— Você sempre fala em anticristo. Pourquoi essa ideia fixa? — Claire estava tensa. — Estou perguntando... O que é isto...?
— O espírito da iniquidade já estava sobre o mundo desde a Queda do Homem. A partir de então, “todo ser humano foi concebido em iniquidade” e tem o Mal dentro de si. Se o espírito da iniquidade não estivesse no mundo, Cristo não teria sido crucificado. — Kilaim não mudou o tom de voz. — Entretanto, naquele momento, na morte de Cristo, ainda não se tratava da encarnação do anticristo. O espírito do anticristo veio primeiro; para preparar as pessoas. Mas a sua encarnação, a pessoa dele, viva, entre nós, estava reservada para o Final dos Tempos, como prevê o Apocalipse.
— Do que está falando, pour l’amour de Dieu?
Claire sacudia a cabeça, lutando para compreender.
— Cristo “se fez carne” para “habitar entre nós”. O anticristo também encarnará e habitará entre nós. Vai se apresentar e se mostrar ao mundo. Não é assim que está escrito na sua Bíblia: o Dia de Cristo, a sua segunda vinda, não acontecerá “sem que antes venha a apostasia e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição”? “O qual se opõe e se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou se adora”. Não é isso? “Porque já o mistério da iniquidade opera; somente há um que agora o retém até que do meio seja tirado; e então será revelado o iníquo”. Quem o poderia deter, Claire? Deter o iníquo? Quem precisava “ser tirado”?
— A Igreja — ela balbuciou.
— A Igreja. Falou bem. A única que poderia ser o entrave. Mas o espírito do anticristo agiu ao longo dos séculos como um vírus, enfraquecendo o Corpo de Cristo. Não vê? As pessoas estão enfadadas do Cristianismo, cheias de todos os escândalos e mentiras encenadas no palco da Igreja. Até Deus deseja vomitá-la! O anticristo virá, e será a resposta que o mundo aguarda, parce que o seu espírito já preparou essa terra. Já arou, já regou. Agora o iníquo apenas lançará as sementes e colherá os frutos. E o mundo o aceitará parce que almeja profundamente por algo, ou alguém, completamente oposto à Igreja e a tudo o que representa.
Claire sentia calafrios percorrendo seu corpo. A penumbra mortiça, a visão de Kilaim ali parado, de pé, envolto nas sombras, seu rosto parcamente iluminado naquele ambiente aterrador.
A sombra de ambos se refletia na parede, fantasmagórica, e quando ele fez um gesto com a mão, Claire viu como a sombra dele era muito grande se comparada à dela. Tão grande que chamava atenção. Ela olhou com mais cuidado, olhos arregalados. Deveria ser impressão. E desviou os olhos.
— “Quando a figueira começar a brotar, todos sabem que está próximo o Verão. Da mesma forma, quando virem acontecer essas coisas, estará próximo o Reino de Deus” — Kilaim pulou para outro texto, e ela lutava para conseguir compreender o que ele dizia.
— “Estará próximo o Reino de Deus”: “O Dia de Cristo”. Estou te falando alguma novidade?
— O Final dos Tempos — ela murmurou. — Oui, esse texto fala sobre o Final dos Tempos. Não é uma novidade.
— Alors, você já sabe, já discutimos muitas vezes. Antes que venha o Reino, o Apocalipse tem que acontecer. — Kilaim ensaiou alguns passos na direção dela outra vez. — Um dos marcadores de Tempo para isso é a figueira, que, como você deve saber, é símbolo de Israel.
Claire fez que sim com a cabeça.
— Haveria muitos sinais de que o Fim estava chegando; e eu, melhor do que ninguém, posso garantir-lhe: está de fato chegando. Tempos de escuridão. Guerras e rumores de guerras. Nação contra nação, reino contra reino; grandes terremotos, epidemias e fome em vários lugares. O século XX foi palco de duas grandes guerras e infinitos conflitos. Os terremotos matam cada vez mais pessoas. E haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; e na Terra, a angústia das nações, em perplexidade pelo bramido do mar e das ondas.
— Aonde você quer chegar?
— Todos os fatos apresentados no sermão profético de Cristo têm um ponto de partida, algo que desencadeia o último relógio de Deus: o florescimento de Israel. A Figueira. A geração que presenciasse esse fato, o florescimento, presenciaria também o cumprimento de todas essas coisas. Se olharmos para a Figueira, quando foi que Israel “floresceu”?
— Quando voltou a se tornar uma nação. Em maio de 1948 — respondeu Claire ainda sentindo os calafrios. Quanto antes deixasse Kilaim falar, antes teria as respostas que queria.
— Portanto, mais de 18 séculos depois da destruição de Jerusalém, em 70 d.C., quando os romanos romperam a muralha da cidade. Era o mês de Tisha B’Av daquele ano, dia nove do mês. — Kilaim olhava para Claire. — O segundo templo foi destruído nessa época, e mais de um milhão de judeus morreram. Foram novamente exilados de sua terra natal, e assim começou a diáspora, que dura até os dias de hoje. Mas, mesmo sofrendo perseguição em todos os lugares, os judeus mantiveram-se como uma nação étnica identificável. Interessante, parce que todos os povos que foram expulsos de suas terras e passaram mais de 400 anos sem uma pátria acabaram por se extinguir.
— Conforme previsto por Jeremias e Ezequiel. — Claire inspirou fundo.
— Desde 1948, os judeus voltam para lá, para a pátria que passou a existir. Mas aquela terra árida, sem rios importantes, rodeada por desertos, começou a brotar. A região desértica, com exceção de algumas áreas pantanosas, era improdutiva. Eles drenaram os pântanos de águas salobras e cultivaram a terra, fizeram um trabalho de reflorestamento e, com o aumento das áreas florestadas, vieram chuvas. Após todos esses séculos, o deserto floresce, o deserto exporta técnicas de irrigação para o Egito, exporta flores para a Holanda e frutas para diversos países da Europa.
— Pourquoi você fica falando de coisas que não interessam? Só quero que me diga o que estou vendo aqui...
— Isso aqui é apenas uma parte de tudo o que já conversamos. Por outro lado, como você vai perceber, não é nada que ainda não saiba.
— S’il vous plaît, Kim... Não me dê outra aula. Não agora.
— Claire, apenas me escute um pouco. Não é uma aula; é só uma recapitulação. Você vai entender logo, prometo. Lembra que já conversamos sobre a paz no Oriente Médio? A paz em Israel. Tudo isso faz parte do florescimento da Figueira. Mas “Quando os homens disserem: ‘Paz e segurança’, então repentinamente lhes sobrevirá a destruição, como as dores à mulher grávida. E não escaparão”.
Kilaim começou a caminhar entre os tronos de forma calma, tocando neles aqui e ali.
— Eu já sei disso, Kim, agora, allez...
— Você sabia, Claire, que o presidente Barack Obama ganhou o Nobel da Paz em 2009, durante seu primeiro mandato, pela insistência em prol do desarmamento nuclear e por fortalecer o trabalho pela paz mundial e cooperação entre os povos? Sem esquecer que os Estados Unidos estavam em guerra naquele momento contra o Afeganistão e o Iraque. Um ano antes, ele ofereceu “amizade inquebrantável” a Israel, dizendo saber que ainda há muito a fazer para assegurar uma paz duradoura às crianças daquela nação. Discursando na comemoração dos 60 anos do Estado de Israel, Obama diz: “Para aqueles que querem destruir o mundo: nós vamos destruir-vos. Para os que querem paz e segurança: nós apoiamo-vos. E para aqueles que se interrogam sobre se a luz de liderança da América continua viva: esta noite provamos, mais uma vez, que a força da nossa nação não vem do nosso poder militar ou da escala da nossa riqueza, mas do enorme poder dos nossos ideais: democracia, liberdade, oportunidade e esperança.”
— Você quer dizer que o Obama é o anticristo? — exclamou ela perplexa.
Mesmo em meio àquela situação bizarra, Kilaim achou graça.
— Non, Claire. Ele não é o anticristo. Estou querendo dizer que ele foi um colaborador da paz. Assim como muitos outros. O ex-vice-presidente dos Estados Unidos e atual ativista ambiental, Al Gore Jr., ganhou o Nobel da Paz em 2007. Até o Papa Francisco, que você tanto admirou na Jornada Mundial da Juventude, aqui no Brasil, tem sido um colaborador da paz. Tem que ser assim. E o anticristo vai oferecer paz também. Mas não apenas oferecer. Ele irá promovê-la.
Kilaim riu de novo, inacreditavelmente confortável naquele ambiente. Claire achou que a risada de Kilaim soava estranha ali. Seria impressão? Ela só queria sair, subir as escadas de volta para o mundo externo, para o mundo real. Porque aquilo, francamente, não poderia ser real. Era um filme de terror.
Olhou em derredor de novo, assustada, e não conseguia se aquietar. Viu de novo a sombra enorme de Kilaim, na parede, e dessa vez pareceu-lhe haver uma sombra a mais. Perto dele.
Claire ficou olhando fixo e não escutava direito o que ele dizia. Estava certa. Havia mais uma sombra ali, muito grande. Ficou petrificada. Literalmente grudada no chão.
— Kim... Tem alguma coisa aqui.
— Não há nada aqui que você desconheça estando comigo há meses. Só não tinha visto com os próprios olhos. O que vê é um reflexo de tudo o que lhe contei.
— Vamos subir?
Ele ignorou aquilo. Na verdade, nem ouviu.
— Meu pai percebeu que Israel seria o “relógio de Deus” a partir do momento em que Deus falou com Abraão. Prometeu-lhe uma descendência numerosíssima, e dela viria alguém que pisaria a cabeça da Serpente. “Alguém.” Mas, quem? Alors, Lucipher passou a observar a História. Abraão teve só um filho. Mas Jacó teve muitos. Qual era o certo, aquele para quem a linhagem profética seria passada? José foi o primeiro homem a manifestar um dom sobrenatural. Mas Deus estaria prestigiando justo o filho caçula? Era estranho. Por via das dúvidas, Lucipher ataca José com todas as forças. Foi quando descobriu a existência dos selados. Na verdade, foi a primeira vez que viu realmente um deles e entendeu sua importância. Um elo importante da corrente.
— Que corrente?
— A corrente que traria o Descendente. O que pisaria a cabeça da Serpente. Meu pai percebeu que Deus usaria alguns elos inquebrantáveis para fazer isso acontecer. Lucipher já tinha visto algo diferente em Enoque, mas Enoque foi levado, e ficou a incógnita. Ele percebera também alguma “coisa” em Noé, no próprio Abraão, em Isaque. Mas não conseguia prever como funcionava a janela de tempo que trazia esses selados ao mundo. Foi difícil descobrir. Era uma soma de fatores, incluindo astrologias e alinhamentos planetários. Muito complexo. Porém, quando Moisés nasceu, Lucipher acertou a data do seu nascimento; por isso aconteceu o infanticídio no Egito: ele sabia que um selado tinha nascido no meio do povo de Israel. Também acertou a chave de tempo do nascimento de Jesus. Mais um infanticídio. Os pais de Jesus o levaram ao Egito e se esconderam; depois foram para Nazaré.
— Kim, vamos subir? Depois você me conta...
— Espere, Claire. Você já vai entender. Confie em mim.
— Como posso confiar...
— Eu não podia te contar tudo isso antes. Mas te contei tudo o que podia. Agora você está aqui. Espere um pouco, e vou te falar toda a verdade.
— Que verdade?! — indagou ela cheia de arrepios que subiam de novo pela coluna.
— Como eu disse, Lucipher teve certeza de que havia algo diferente em alguns filhos de Deus ao deparar-se com José. Não era mais apenas uma “impressão”. Era fato. Em determinado momento, ele pôde perceber que havia um brilho forte, uma luz que emanava no Mundo Espiritual, algo que não estava presente nos outros. Era inacreditável. Quando José não morreu nem se rebelou contra Deus, ficou mais ainda claro que ele era diferente. Por uma razão inexplicável, não abandonou a fé. Perdeu a liberdade, o lar, sua identidade pessoal, mas continuou fiel. As entidades não entendiam isso; e não foi possível impedir que ele caísse nas graças do faraó e trouxesse os israelitas para o Egito, salvando-os da extinção. Como se tornaram numerosos, a solução foi escravizar aquele povo a fim de impedi-los de ser a nação eleita. E assim aconteceu. Contudo, Deus havia dito que seu povo seria peregrino em terra alheia, mas seriam libertados e sairiam dali com grandes riquezas. Lucipher conhecia a promessa. Mas, quem iria libertá-los? A surpresa: Moisés. Outro selado. Ele fugiu, mas voltou. Os judeus de fato saem do Egito, e a realidade da Terra Prometida chega. Mas o povo não permanece fiel a Deus, sempre a se inclinar perante outros deuses. A nação se divide e é destruída. Passam por cativeiros. Dizimar Israel seria impedir Messias de aparecer.
— Mas Cristo veio.
— Oui, Ele veio. Restava invalidar suas ações. Destruir o propósito. E foi o que aconteceu com os cristãos, com a Igreja. A Cruz se invalida no Cristianismo. E quem entra em cena? O anticristo.
Claire se esforçava em acompanhar. Mas, volta e meia, enxergava aquela sombra perto de Kilaim e tremia.
— Só que o relógio de Deus não parou de correr com a vinda de Jesus. Os ponteiros continuam rodando, parce que seu foco não é o Cristo, mas Israel. É isso que muitos não entendem, e por isso não veem o tempo passando. Segundo um antigo Midrash...
— Midrash?
— Ensinamentos morais da Torá, numa busca por seu verdadeiro significado. São textos paralelos escritos por sábios judeus, por meio de um código secreto, que vão além de todas as palavras e letras contidas na Torá. Os ensinamentos morais dos Midrashim ficaram disfarçados como histórias, enigmas, parábolas e ditos enigmáticos. São ininteligíveis aos leigos. Apenas um círculo limitado de estudantes da Torá poderia decifrá-los, com a ajuda dos mestres. Estes, por sua vez, revelariam a seus discípulos que o texto literal dos Midrashim é apenas um invólucro exterior que camufla sua verdadeira alma e essência.
— Mas para que isso? Eles já não têm a Torá?
— A tradição oral judaica afirma que Deus teria revelado a Moisés não somente as leis de seu povo, contidas na Torá, mas uma série de conhecimentos complementares que deveriam ser passados de pai para filho. A Torá Oral corria o risco de ser esquecida, por isso os sábios encarregaram-se da sua compilação em uma obra de muitos volumes. Foi uma tarefa gigantesca, realizada ao longo de gerações pelos mais brilhantes eruditos de Torá, mais de 4 mil deles. Sendo assim, segundo os Midrashim, os sábios da época entendiam a importância de Israel no contexto universal. Ou seja: Israel seria o centro da Terra na perspectiva Messiânica. Do mesmo modo que o centro de Israel seria Jerusalém. O centro de Jerusalém seria o Templo; o centro do Templo seria o Aron Hakodesh, a Arca da Aliança, e o centro da Arca seria a Torá.
Claire estava quieta.
— Você entende pourquoi te digo tudo isso? — Kilaim apenas ia adiante. Não programara aquilo, mas, já que ela tinha descoberto o porão secreto, nada melhor do que mostrar-lhe que tudo aquilo já tinha sido programado por Deus.
— Para ser sincera? Non.
— Você entende que somos a geração que viu o florescimento de Israel?
Ela sentia a boca seca. Olhou para a sombra projetada na parede. Estava parada. Mas a de Kilaim se movia.
— Para Deus, uma geração tem 70 anos — continuou o gigante. — Se tomarmos por base o ano de 1948, data da criação da nação de Israel, o cumprimento dos 70 anos está por volta de 2017, 2018. Não parece incrível para você?
Claire abanou a cabeça, sem condições de raciocinar. Cravou os olhos no rosto dele, mas não sem antes observar a escadaria por onde tinha vindo. Kilaim leu seus pensamentos.
— Sei que está com medo. Mas, se eu quisesse realmente lhe fazer mal, Claire, não haveria saída — ele falou. — Não precisa ter medo de mim. Afinal, vim para cá parce que amo você.
— Tem uma sombra perto de você...
— Você já o conhece.
— É... Ele?
— Da. O dragão marinho esteve presente em todos os lugares que estivemos. Pourquoi aqui seria diferente?
— Ele não esteve na chácara... — sussurrou Claire.
— Ele não lhe fará mal. Só me escute. Esqueça um pouco as coisas ao seu redor.
Ele se referia a Leviathan. O que Kilaim não sabia, porém, é que Leviathan estava apenas esperando... Para pôr fim a tudo.
* * *
8
Antéchrist
“Esquecer as coisas ao redor?”. Claire ficou indignada e quase não percebeu os calafrios abalroando seu corpo.
— Você não me contou a verdade, Kim. Olhe para este lugar sinistro... Bem aqui, na nossa casa! Significa que a escolha foi feita de propósito, a escolha desta casa?
— Non. Eu nem sabia que ela existia. Mas fomos trazidos aqui, Lucipher me mostrou o porão. E você também gostou do lugar.
— Alors, você nunca teve intenção de se afastar dos demônios... — ela constatou com tristeza.
— Tive. Eu tive. Mas essa casa foi um presente do meu pai. Eu teria um lugar onde pudesse falar com ele... Mas isso não significava servi-lo como fazia antes.
Kilaim notava, agora, como isso soava estranho.
— Há muitos segredos; e eu gostaria de poder contá-los todos a você. — Ele deu um suspiro. E repetiu: — Ah, Claire... Como eu quero poder dividir as coisas com você. Já é hora, e você merece saber de tudo. Não sei como chegou até aqui embaixo, mas não importa...
Deu os últimos passos que o separavam de Claire. Passou a mão esquerda por trás do seu pescoço, puxou o corpo dela para perto, beijando-a tão forte que quase doeu.
Claire não se moveu para escapar dos braços dele.
— Você deveria ter me contado... — disse, depois, inconformada.
Então Kilaim a soltou e falou sem pausas:
— Você já sabe que entreguei sangue humano. Na verdade, entreguei nove crianças às entidades; crianças com idades de 1 a 9 anos, para abertura dos chakras. Isso foi feito depois do meu Rito de Iniciação, quando matei meu próprio pai.
— Você... Matou...?
— Meu pai biológico. Você entendeu, e não foi agora que eu tinha oferecido meu próprio sangue, n’est-ce pas? — Ele deu de ombros. — Era uma excelente oferenda. Eu era apaixonado pela minha mãe.
— Eu sei, eu sei.
— Non, eu realmente a desejava. Como homem. E foi por isso que escolhi entregar a vida do meu pai no altar de sacrifício. Por ciúme. Por vingança. Por não suportar saber que ela o amava mais do que a mim. Só que Camille descobriu, por um imperdoável desvio de rota, o que eu fiz. E eles a mataram.
— Kim... — Claire passou a mão pela testa, que agora começava a minar um suor frio e incômodo. Sabia que tinha que dizer alguma coisa. Procurou as palavras. — Eu sinto muito. Todas essas perdas. Sinto muito por você ter sido ensinado a cultuar os demônios, por ter sido obrigado...
— Nein, lieber. Não fui obrigado. Em momento algum. No último Natal, pouco antes de buscar você, matei mais uma pessoa. Uma mulher. Como oferenda para confirmar a aceitação do meu destino. — Ele olhou fundo na direção dela. — O meu destino foi traçado pelas Trevas. Depois do nono sacrifício, pude abrir o lacre colocado por Deus, aquilo que impede o ser humano de usar todo seu potencial. Comecei a conhecer o poder latente de minha própria alma. Lembra quando mencionei a Árvore da Vida? Um dos segredos é que a Árvore da Vida também ensina os segredos da Morte. Não é por acaso que me especializei em métodos de execução. Sabia disso? E em venenos; isso você já sabe.
— Venenos. Eu me lembro. Mas métodos de execução?
— São coisas de que gosto e em que me aprimorei. Outra coisa: lembra quando Jesus secou a figueira sem frutos? Você sabe que posso fazer a mesma coisa. Plantas, animais. Até pessoas. Você se lembra do Juca? Eu podia tê-lo matado. Isso vem do entendimento e da manipulação dos fluxos de energia dos campos eletromagnéticos, os mesmos que os demônios usam para se alimentar. Posso tirar essa energia da terra! Mas, para isso, eu precisava dos chakras abertos.
Ela olhava para ele, e ele para ela.
— Mas eu conheço você, Kim — Claire disse, quebrando o silêncio. Passou a mão pelas têmporas, pelo pescoço, inundados de suor. — Sei que seu coração é bom, independentemente do que tenha feito.
Foi então que percebeu estar falando como no sonho, o que deixara Kilaim furioso. Ela mordeu o lábio superior e se encolheu, instintivamente. Estava muito aflita.
— O que você quer me dizer, Kim? Diga de uma vez, s’il vous plaît...
— Eu sou o que sou, Claire — falou, sem alteração da voz. — Olhe à sua volta. Esta sala, tudo o que vê aqui é o reflexo do Final dos Tempos. É o meu reflexo: essa é minha verdadeira identidade. Você a contempla de fato pela primeira vez, mas, desde que nos conhecemos, e durante todo esse tempo em que estivemos juntos, este sou eu. Sabe qual é minha idade cronológica? Menos de 15 anos. Sabia disso? Meu desenvolvimento é acelerado e, inclusive, meu envelhecimento será mais rápido do que o normal. Parce que meu DNA foi alterado de tal maneira que não existe recuperação. Mas não significa que isso é ruim, de forma absoluta. Olhe em volta. É apenas outra forma de culto, outra forma de vida.
— Kim... — Claire estava estatelada no meio do recinto e olhou em volta pela enésima vez.
De repente, aquela calma aparente com que Kilaim falava estremeceu. Ele podia perceber a perplexidade estampada nos olhos de Claire, e isso o cortava por dentro.
— Eu a amo e não quero perder você. Mas é assim que as coisas são. Deus jamais poderia me amar, parce que Ele não me fez; a despeito do que uns e outros tenham dito. Eu sou fruto do próprio Diabo, Claire. Fui gerado sem o consentimento de Deus. E nunca vou poder deixar de ser o que sou. Deus se alegrou com os gigantes, fruto da relação entre os demônios e as mulheres humanas? Os nephilins? Non, Deus não se alegrou. Pelo contrário, Ele destruiu a Terra depois disso.
Kilaim sentia uma grande pressão na alma. Agora era tudo ou nada, e ele se lembrou de uma conversa semelhante. Com Camille, poucos meses atrás. E tudo tinha terminado em tragédia. Dessa vez, não poderia ser assim.
— Claire, você precisa me escutar. Eles não vão deixar você viver depois de tudo o que lhe contei e tudo o que você viu aqui.
Claire deu levemente de ombros, mas não era de desdém.
— Eles me matarão se assim for o propósito de Dieu...
— Olha, serei sincero: depois que conheci você, conheci também uma Força que não sei definir. Reconheço isso e estive pensando, me avaliando. Se fosse hoje... Talvez eu não tivesse escolhido o meu próprio pai. Foi sofrimento demais para minha mãe. Talvez eu não entregasse as crianças...
Era verdade. Mas uma verdade que não mudaria nada. Já tinha acontecido.
— Alors... Você se arrepende disso? — Uma luz de esperança brilhou no rosto dela. — Sempre temos saída quando há arrependimento.
— Claire, espere. Os sacrifícios aconteceram, é passado. Se dependesse de mim, nunca mais sacrificaria alguém. Mas há algo ainda. — Kilaim fez uma leve pausa, constrangido. — Eu não disse tudo. E o que vou dizer não pode ser mudado; isso nunca vai ser passado. Mas quero que você saiba.
Kilaim sentia a energia de Leviathan. Sua força. Seu poder. Os demônios estavam ali, centenas, milhares de acompanhantes, que se aglomeravam ao redor. Estavam todos ali e era como deveria ser. Foi como estar em casa.
Entretanto — e Kilaim olhou de volta para Claire, um tanto penalizado —, se assim acontecia, é porque os Anjos não estavam mais lá; e se não estavam, então Claire estava indefesa. E se estava indefesa, é porque Deus a abandonara, como de costume.
Ele sempre soubera que isso iria acontecer!
“Sem a presença dos Anjos, talvez ela agora me entenda. Talvez perceba que não há saída. Talvez entenda, finalmente, que Deus é mau e nunca será um bom Pai para ela.”
Por outro lado, se Claire o rejeitasse agora, seria morta.
— Se Deus soubesse que isso iria acontecer, teria deixado você vir comigo, Claire?
— Kim, não me fale de Dieu. Não agora. Apenas me responda: você se arrepende do que fez?
— Eu preciso te contar sobre a encarnação do anticristo.
Ele voltou-se de costas para ela e, mais uma vez, caminhou entre os nove tronos até ficar postado diante do maior. Claire olhava volta e meia para a sombra dele, projetada ora numa, ora noutra parede. Continuava a ver duas sombras, e aquela que não era a dele continuava se mostrando muito grande. Mesmo assim, ela ficou quieta para ouvir. Não podia mais ver o Sol, mas ele a trouxera. Deveria estar ali.
— O anticristo encarnado vai ativar a centelha que já foi propagada pelo espírito da iniquidade, que preparou as gerações e promoveu esse ciclo de fracassos que a Igreja viveu, e vive até hoje, causando sofrimentos indizíveis tanto nos cristãos quanto em não cristãos. Esse homem foi gerado por Lucipher e separado desde a infância. Seu cordão umbilical foi consagrado no altar desde seu nascimento, mostrando que a ligação dele com as Trevas jamais se romperá. Ele terá uma aliança permanente com o Oculto e com a Organização. Significa que ele servirá a ela. Esse homem precisa ter um conjunto de características genéticas que vão produzir uma estrutura biológica incomum, capaz de suportar a canalização do próprio Lucipher. Lembra quando eu te disse que os seres espirituais podem retirar energia vital do ser humano, mesmo sem querer? A canalização completa de Lucipher mataria um ser humano comum. Só alguém que tenha o DNA de Lucipher poderia incorporar Lucipher. Por isso, o anticristo vem da linhagem dos nephilins.
— Pourquoi está me dizendo tudo isso? — gemeu Claire receosa.
— Assim como Deus escolheu Maria para gerar Jesus, o diabo escolhe suas mulheres para gerar alguns filhos. Os filhos de Eva, os filhos do pecado, são as serpentes que portam os mais poderosos venenos e destroem o Corpo de Cristo, a Igreja e os santos. Do mesmo modo como Jesus podia realizar sinais e milagres, por causa do DNA de Deus, os filhos de Lucipher, aqueles que carregam o DNA dele, também podem operar sinais e maravilhas e agir em seu nome, seja em poder, em palavras, em sabedoria. O anticristo é o filho da perdição. A primeira traição veio de Satanás. A segunda foi Judas. O anticristo é a terceira. Ele é o “terceiro beijo”.
Claire ainda não tinha compreendido. Ou, se tinha, recusava-se a processar a informação. Então, Kilaim continuou.
— Satanás poderá entrar no anticristo da mesma maneira que entrou em Judas. Judas não mudou a voz, não usou grupos musculares faciais estranhos, não demonstrou uma força exacerbada. Judas simplesmente foi até os fariseus e vendeu Jesus por 30 moedas de prata. Não foi assim? Alors, hoje, da mesma forma, é preciso um corpo para que Lucipher se manifeste de forma completa. Não num espaço de curta permanência, como foi no caso de Judas, mas por um período prolongado. Para isso, faz-se necessário um vaso preparado para tal. Reforçado nas paredes para suportar a energia do Grande Príncipe, que é um querubim de alta patente.
O olhar de Claire começou a ganhar contornos de iluminação. E, novamente, de medo.
— Aquele que for capaz de canalizar Lucipher dessa maneira fará maravilhas sobre a Terra. — Kilaim olhava para as pinturas na parede. — Hoje em dia, com a transmissão via satélite, com a internet, é possível a alguém ser onipresente, falando em cadeia mundial, sem sair do lugar: “A imagem da besta falava”. Claro que Lucipher não admite margem de erro alguma. Se ele tivesse apenas um anticristo, apenas um gigante geneticamente modificado, poderia estar sujeito a que seu plano fracassasse. Pois há muitas variantes, e mesmo nos grupos pequenos há chance de falhas. Jesus treinou 12; mas, ao pé da Cruz, apenas um de seus apóstolos ficou com Ele. Dentre os 12, um também o traiu. Mas Jesus sabia que não podia treinar muitos. Lucipher também sabe. Não adianta treinar 300 homens parce que aí o ensinamento se dilui e os mistérios são revelados. Por isso, Lucipher tem nove.
— Nove, quoi? — Ela fechou os olhos.
— Como eu disse, quem puder canalizar Lucipher fará maravilhas sobre a Terra. Há nove deles.
Silêncio.
— Quer dizer que você... Você seria o...
— O lugar será daquele que estiver mais preparado. Os outros darão suporte próximo. Todos estão recebendo o mesmo treinamento, mas há coisas que não se podem ensinar. São inerentes a cada um dos escolhidos. A escolha final virá no momento certo. — Ele sorriu levemente. — Isso você não sabia, n’est-ce pas? Que, dos nove, será escolhido um. E esse será aquele que a Sua Bíblia descreve.
Os dois se olharam fixo, novamente, por um instante que parecia durar eternamente.
Não havia muito mais o que dizer.
— Mas vocês serão punidos. Kim, você não vê? O próprio anticristo! “O Senhor o desfará pelo assopro da sua boca, e o aniquilará pelo esplendor da sua vinda.” Você não tem medo? Quando começar o Apocalipse, vocês, da Organização, também vão ser destruídos pelos cataclismos, as pestes, todas as... — Ela não encontrava palavras, aflitíssima. — O planeta não vai sobreviver... E os da Organização vão sofrer do mesmo modo que os demais.
— Non.
— Non? Mas... Quoi? Você perdeu o juízo? Quantas vezes falamos sobre iss...
— Há cidades de refúgio.
— Hã?!
— Abrigos subterrâneos impenetráveis. Estão praticamente prontos, e o mundo não sabe de sua localização ou existência. Aliás, o mundo não sabe que é controlado por uma Sociedade Secreta! Se dois países estão em guerra, mas o povo de um deles a desconhece, é mais fácil vencê-lo. Assim é o caso aqui. O mundo não sabe quem o ataca.
— Kim, nunca te perguntei isso, mas... Qual é o nome?
— De quê?
— Da Organização. Você sempre diz... “Organização”... Mas...
— Não importa. É a Sociedade Secreta. Não das que se ouvem por aí e se expõem, alardeando sua intimidade. Um grande general não age assim, e Lucipher é o melhor dos generais. Mas, você está certa. Sobre a superfície da Terra, pouco restará. Mas nós sobreviveremos e, quando tudo acabar, a repopulação do mundo será feita pelos descendentes escolhidos do meu pai. Uma nova Era. Uma nova Raça. Sem a intromissão de Deus ou de pessoas indesejáveis. É a “Solução Final”. Já lhe disse isso uma vez.
Claire sentia o suor escorrendo pelo meio das costas, e suas mãos estavam geladas.
— Deus providenciou uma Arca quando intentou destruir o mundo e a Raça Humana pelo Dilúvio — acrescentou Kilaim. — Mas Ele salvou apenas uma família. As cidades de refúgio do meu pai têm espaço para milhares de pessoas: a melhor parte dos filhos do Fogo. “Satanás” não é infinitamente mais generoso que o seu Deus? O “Fim” não é um fim para nós. É um novo começo.
Claire não respondeu.
— Claire. Se você ainda me quiser em sua vida, vai ter que vir comigo. Mais uma vez. Sem restrições. Pense se é isso que você quer. Essa é a questão que tem que responder, dentro do seu coração, para si mesma. Você me quer na sua vida?
Aquilo soava egoísta. Mas ele não se deu conta.
* * *
A atmosfera no porão secreto, de repente, estava tão densa que se poderia cortar o ar com uma faca. Era medonha. Claire sentia-se como se estivesse cercada por uma nuvem negra. Estava grudada no chão e não encontrava palavras.
Kilaim olhou na direção do trono de Leviathan e viu, depois de tantos meses de cegueira espiritual, o vulto do demônio. Ele sorria. Tudo estava de volta. O seu cheiro e a sua energia inundavam o recinto. Kilaim olhou rápido para Claire, porque a presença de Leviathan era tão palpável que parecia impossível que ela não o visse, ou o percebesse de alguma forma.
Ela estava pálida, Kilaim notou pela primeira vez.
— Eu não estou aqui para te julgar, Kim, nem para apontar o dedo... — começou ela, meio perdida. — Nunca ninguém te ensinou a Verdade; nunca ninguém te ensinou a amar. Mas a questão, Kim, é... Que Dieu continua te amando.
— Você insiste nisso, n’est-ce pas? — Ele deu um longo suspiro. E a aspereza tomou conta de sua voz. — Você não entendeu que meu destino foi traçado antes do meu nascimento? Que sou um dos anticristos?
— Mas há nove. Lucipher não precisa de você.
— Resta saber se eu não preciso dele!
— Você conhece a história de Davi — a garota falou a primeira coisa que lhe veio à mente. — Davi desejou a mulher do próximo, planejou um assassinato... Foi sórdido... — Claire começou a sentir uma forte dor de cabeça, mas precisava falar. — E Dieu perdoou Davi. Parce que ele se arrependeu.
Ela perscrutava qualquer sinal daquela crise de fúria que vira em seus sonhos. Não havia fúria, tampouco cordialidade. Então, continuou:
— Salomão, que tantas vezes mencionamos em nossas conversas, se afastou de Dieu, se inclinou aos demônios e os adorou. Do mesmo jeito que você adora hoje. Mas Salomão se arrependeu...
— Salomão não era filho do Mal. Ele não estava adorando o próprio pai, como eu.
— Só que Dieu te perdoa, Kim. Não foi isso que o Filho de Dieu disse a respeito de Seus próprios algozes: “Pai, perdoa-os, parce que eles não sabem o que fazem”? Você fez tudo isso sem saber o que estava fazendo.
— Claire... — Kilaim sacudiu a cabeça. — Não seja simplista. Eu sabia muito bem o que estava fazendo, já te disse.
— Os habitantes de Nínive — ela insistia. — Dieu deixou de matá-los parce que se arrependeram, parce que “não sabiam distinguir a mão direita da esquerda”... Jesus perdoou Pedro, depois de tê-Lo negado covardemente... Kim, não estou sendo simplista! O Caminho nunca te foi apontado. Você viveu no erro até agora. Como poderia ser condenado sem ter a chance de escolher o que é certo? Tudo isso aqui, todo esse aparato — ela ergueu as mãos —, é um grande erro. Você pode até ter uma alteração de DNA, Kim, mas o dom da vida foi Dieu quem te deu. Não duvide disso... — Claire estava exausta; a cabeça começou a latejar. — O Diabo não pode dar a vida... Ele apenas a imita. Ele manobra as circunstâncias a fim de criar essa vida paralela que você experimentou, mas a Vida verdadeira ele não pode dar.
Claire começou a sentir o coração pulsar com a cabeça, e batia no peito como um tambor. Uma vertigem abalroou-a, e seu corpo cambaleou. O ambiente todo rodou, mas ela conseguiu permanecer em pé. E foi adiante. Quem mais poderia falar a ele senão ela?
A pressão de perceber que o tempo findava era muito forte.
— O que sente no seu coração? Perguntei se você — Claire inspirou fundo, puxando o ar para os pulmões, sôfrega — se arrepende do que fez...
Kilaim ficou em silêncio. Por fim, repetiu o que dissera antes:
— Já disse que não mataria o meu pai e as crianças. Só que não posso voltar atrás; não posso mudar o passado. O que está feito está feito. As vidas que ceifei estão no Inferno parce que foram aos demônios que elas foram entregues. Meu pai biológico está no Inferno por minha causa. Até mesmo Camille — os olhos de Kilaim marejaram de repente, contra sua vontade — deve estar no inferno.
— Olha, Kim, quanto a isso...
— Você não crê tanto na sua Bíblia? — interrompeu ele. — Não percebe que, quando ela fala do anticristo está falando de mim? Não vê que é o presente que não pode ser mudado?!
— Para Dieu, tudo tem jeito. Você se arrepende?! — A cabeça parecia explodir.
Claire continuava insistindo, mas não tinha resposta. Ela podia perceber o manto espesso de pura maldade pairando acima deles. As chamas das velas ergueram-se altas, pululantes, como se explodissem. Claire tomou um susto horrível mais uma vez, e seu coração começou a bater ainda mais forte, a respiração ficou entrecortada. Um aviso.
Ela se lembrou do incêndio no pesadelo. Se pegasse fogo em tudo, ali embaixo, não haveria chance alguma de saída. Aquela conversa sobre arrependimento não era do agrado de quem os observava.
Nesse momento, surpreso, Kilaim pareceu ver uma luz azulada. Perto de Claire. Melhor: em Claire. Olhou de novo. Boquiaberto. Estaria mesmo vendo?!
— Claire... — Ele se aproximou dela, a mão estendida, como que querendo tocar os fachos azulados que se desprendiam de seu corpo. Não havia dúvida.
Sem entender o que ele queria, Claire ergueu sua mão na direção dele. A mão dela desprendia a mesma luminosidade. Kilaim não ousou tocá-la.
— Que foi? — perguntou a moça estupefata.
Por um instante a luz ficou mais forte, brilhou na escuridão. E sumiu.
Kilaim ainda ficou olhando fixo, procurando. Ele tinha visto o Selo! Claire era uma selada de Deus. Ele ergueu os olhos, sorrateiros, para Leviathan. O demônio também teria visto...? Kilaim não sabia. Abaixou a cabeça, entre perplexo e furioso.
Aquilo só significava uma coisa: eles eram, de fato, incompatíveis.
— Deixa que Cristo entre em seu coração... — murmurou Claire, alheia ao que ele via, mas notando que algo chamara muito sua atenção. — Se abrir seu coração para Ele, tudo pode tomar um novo rumo. Não era isso que você queria? Novos rumos?
Mas foi como bater em uma parede de pedra.
— Eu não quero saber de Cristo! — Kilaim rebateu com agressividade. — Estou arrependido de algumas coisas, mas pare de me falar de Cristo. Isso não é para mim.
Claire sentiu um misto de agonia e dor, e foi quando aquela estranha e densa nuvem, escura como a Morte, desceu sobre ambos. Ela pensou ver. O corpo, os chifres, os olhos. Do Dragão Marinho.
Depois, mais nada além da escuridão.
* * *
“Claire!”.
Um grito não ouvido. Vindo de onde os sentidos humanos não poderiam captar.
Porque eles não estavam destruídos.
* * *
Quando acordou, Claire estava deitada no sofá da sala. Sozinha.
O coração parecia querer sair pela boca. Rufava em batidas poderosas, mas não muito cadenciadas, que ressoavam como se quisessem perfurar sua cabeça.
Ela levou as mãos ao peito, com um semblante de desconforto, e piscou, tentando erguer-se. Foi quando ouviu os estilhaços de vidro quebrando na cozinha. Ouvia a voz de Kilaim, mas não conseguia entender o que ele dizia. E aí se encolheu de novo.
O coração batia. Na cabeça, no pescoço. Na garganta. Uma dor pesada começou a apertar no meio do peito. Bem no meio. Opressiva. Depois a dor se espalhou até o ombro esquerdo.
“Ele vai me matar”.
Ele: Leviathan. Sabia que estava ali. Onde estavam Sol e os outros Anjos?
Claire não conseguia pensar. A dor ficou paralisante. E, por causa dela, Claire não conseguiu gritar, nem mesmo se mexer. O suor frio empapava seu corpo. Sentia como se o ar não entrasse nos pulmões, como se se afogasse.
“Vou morrer. Oh, mon Dieu, vou morrer aqui.”
Mesmo de olhos fechados, ela viu a tênue luz dourada que a guiara de madrugada. Na mesma hora, uma sensação de ser tirada da água. E o peso no peito diminuiu.
“O peso... Tiraram o peso.”
E, do coração, amainou a impressão escura da Morte. Os membros dela relaxaram, e a percussão gelada do coração começou a diminuir. O ombro já não doía e, aos poucos, a compressão no meio do esterno cedeu. Agora era tão morno... Era como água morna... tirando o frio de seu corpo.
Kilaim voltava para a sala correndo, aos tropeções, com um copo de água na mão.
— Claire! — Ele se abaixou ao lado dela. — Claire! Oh, Claire!
Diferente do outro, esse era um grito que se podia ouvir. Mas, também diferente de quem dera o primeiro grito, Kilaim não teria podido fazer nada. Apenas assistiria Claire morrer, ali na sua frente.
Ele entendeu isso claramente e a espremia num abraço forte, o rosto contorcido de aflição. O copo de água, colocado de qualquer jeito sobre a mesinha, caiu, deixando espalhar seu conteúdo sobre o tapete.
— Pensei que você não suportaria! Ele atacou tão de repente...
— Quoi?
— Você desmaiou. A presença de Leviathan! Foi tão forte...! Mas eles não pretendiam matá-la, eu sei que não...
A quem ele queria enganar?
— Tive que trazer você para cima. Afinal, pourquoi ficamos conversando lá embaixo?! Desculpe-me, Claire, eu não pensei, não sei o que me deu, não entendo! Parecia que você estava com muita dor, e eu senti seu pulso, estava disparado. Tive tanto medo, Claire, de ficar sem você! Como você está agora?
Ele deitou a cabeça sobre o peito dela, ao mesmo tempo em que tateava o pulso na artéria carótida.
— Está normal...
— Sinto-me melhor. Estou melhor.
* * *
Durante a madrugada, eles esperaram. Não parecia seguro saírem. Kilaim se lembrava do acidente de carro com Camille, na madrugada em que ela morrera. Não sabia que decisão tomar, e Claire parecia fraca.
Fez un thé para ela, mas volta e meia o coração da garota disparava novamente, numa arritmia assustadora. E, embora não houvesse dor, como no início, o desconforto era importante.
— Vamos para o hospital agora mesmo, Claire — decidiu Kilaim, por fim, a contragosto.
Mas, em seguida, a arritmia se normalizava.
Ele tinha medo de levá-la. Um hospital não era lugar seguro. Seria fácil separarem os dois, e ela ficaria à mercê dos assassinos. Bastaria um telefonema.
— O que está sentindo? — perguntou ele.
— Eu não sei.
Claire estava encolhida no sofá, coberta com uma manta. Kilaim sentou-se perto, colocando os pés dela sobre seu colo. Estava muito preocupado com seu estado, mas queria deixar a opção de dar entrada num pronto-socorro como último recurso. Camille chegara viva ao hospital, mas eles tinham acabado com ela.
Claire orava baixinho, de vez em vez. Escutava o coração que galopava, depois voltava ao normal. Sem dor.
De repente, uma ideia ficou fixa em sua mente.
— Vamos embora daqui, Kim. Não podemos ficar nesta casa.
— Como assim?
— Eles sabem que estamos aqui.
— Claire, não sei se adianta...
— Eu não quero ficar aqui — ela pediu. — Não agora, sabendo do que há debaixo de nossos pés... Vamos sair daqui.
Claire conseguia entender que a casa tinha sido consagrada aos demônios previamente; o lugar não era propício para a atuação dos Anjos. Se Kilaim tivesse optado por se render a Deus, poderia ser diferente, mas ele não fizera isso.
— Vamos ficar num território neutro — ela disse. — Este é um chão que pertence aos demônios. Não é seguro.
Kilaim achou que ela tinha razão. Eles tinham tentado matá-la! Não o dissera em voz alta, para não preocupar Claire ainda mais. Só que isso ele não podia aceitar!
— Está bem, talvez tenha razão. Vamos para o flat. Você precisa ficar melhor.
Eles saíram para o jardim, onde a temperatura estava bem fria. Claire sentiu o corpo todo arrepiando, e Kilaim ajudou-a a se sentar no banco de passageiros, rapidamente. Ele correu de volta, fechou a porta da frente, depois entrou também no veículo. Deu a partida. As mãos de Claire estavam muito frias, e mais uma vez o coração dava pulos no peito. Tão forte, que ela deu um gemido, baixinho.
— Allez, Kim, allez...
Ele ajustou a temperatura interna e deu ré.
— Calma, mon amour. Estamos indo.
Saindo de Alphaville, vendo as ruas desertas, Claire respirou de alívio.
A viagem foi feita em silêncio.
* * *
9
Mort
Chegando ao flat, o dia estava amanhecendo. Claire desabou na cama sentindo como se não restasse um só pingo de força em seu corpo. Em alguns minutos, estava dormindo. Kilaim ficou zanzando pelo apartamento, inquieto, e ia até a porta do quarto toda hora, para observá-la e ver se estava respirando. Media suavemente sua pulsação. Estava normal.
A noite tinha sido muito tensa, e ele não sabia o que deveriam fazer a seguir. Claire realmente não tinha passado bem, e fora muito assustador. Kilaim temia por ela e pelo bebê. Não arriscou invocar nenhum demônio. Não telefonou para Zor.
Estava realmente sozinho, sabia disso.
“Claire tem o Selo... E eu sou o anticristo... Está tudo acabado, de um jeito ou de outro. Insistir só trará mais caos.”
A manhã passou lenta e monótona. O gigante não arriscou deixar Claire sozinha e ficou sentado numa poltrona, pensativo, enquanto ela dormia. Tentou relaxar e cochilar um pouco, mas não conseguiu. Também não tinha fome alguma.
No final da tarde, a garota acordou. Estava mais disposta, embora triste. Kilaim, sentindo-se culpado, queria animá-la um pouco. Sugeriu que tomasse um banho e depois que fossem jantar no Shopping Paulista, ali perto. Fez o possível para que Claire não percebesse sua própria tristeza e decepção.
— Vamos para o shopping, passeamos um pouco, podemos até ir ao cinema se você quiser. Depois, um jantarzinho. O que acha?
Na verdade, ele estava pensando em como prepará-la para o rompimento. Não podiam continuar juntos, ele iria arrastá-la para a morte. Se Claire morresse, a perda de Camille também teria sido em vão. O coração de sua amada — as duas — pararia de bater.
Contudo, Kilaim não sabia se era seguro apenas deixar a namorada ir e voltar para Lyon. Teria que ficar ao lado dela até ter certeza de que nada de mal lhe aconteceria.
Claire aceitou o convite para dar uma volta e foi se arrumar. Durante o banho, deixou a água com pressão cair forte e quente sobre as costas, o pescoço e a cabeça. A tensão e a dor tinham sido tão intensas que ela percebia como a musculatura toda se ressentira. Sentou-se no banquinho que eles tinham colocado ali e ficou aproveitando o conforto da água até perceber que os músculos estavam menos doloridos. Ela se lavou devagar e sentiu-se bem melhor, quase contente.
“Apesar de tudo, agora sei exatamente o que Kilaim viveu. Sei quem ele é, finalmente. Acho que aconteceu no tempo certo. Mon Dieu... Se tivesse visto aquele lugar pavoroso antes, talvez fosse pior. Ah, Papa, s’il vous plaît! Dá ao Kim uma experiência forte Contigo... Eu tenho te pedido tanto! Ele ainda não a teve, meu Pai! E não posso fazer nada, só Tu. Vou esperar ainda. O Senhor teria me trazido até o Brasil para que terminasse assim...? Só vou dar tudo como perdido depois disso. Depois de ele ter uma experiência real, forte, algo que não possa negar ou relativizar.”
Ela ficou quieta, e sentia o bebê se mexer. Deu um leve sorriso.
“Mas se, depois dessa experiência, ele recusar o convite de novo... Eu não vou poder ficar.”
* * *
O passeio no shopping foi de fato especial.
Kilaim, carinhoso ao extremo, queria compensar Claire pela noite anterior de qualquer jeito. Abraçava-a, acolhia-a, acariciava seu rosto e seus cabelos, falava com brandura. O esforço não foi em vão, e, aos poucos, as lembranças angustiantes foram ficando mais e mais esmaecidas em meio às luzes, vitrines e o fluir das pessoas.
Assistiram a um filme brasileiro, O Palhaço. Uma história simples, mas tocante, sensível. Passearam, olharam vitrines e, por fim, eles eram de novo o casal que se amava e confiava um no outro. Havia um quê de normalidade bem agradável, depois de tudo o que acontecera. Não falaram sobre o porão, sobre o anticristo, sobre nada daquilo.
Kilaim buscou dentro de si as motivações que o tinham trazido ao Brasil e fixou-se nelas, mesmo que restasse pouco tempo. Claire relembrou-se de por que viera com Kilaim, de seu profundo amor por ele. Não se sentia traída ou enganada. Fora necessário esperar que as coisas acontecessem, e se tinha sido daquela maneira, era porque Deus dispusera as circunstâncias assim. O Anjo do Senhor lhe guiara os passos, então tinha sido o tempo perfeito.
Lá pelas dez e meia, eles entraram no restaurante. Diante da refeição, que não era uma comida de primeiríssima, embora uma das melhores do Shopping Paulista, eles relaxaram. Kilaim entendia cada vez melhor que a mágica do relacionamento não está ligada ao dinheiro ou às posses. Entendia que eles podiam ser felizes em qualquer lugar. Pena que estivessem perto do fim...
Ele sacudiu a cabeça e não pensou mais naquilo. Estava feliz, e isso era por ver sua namorada sorrindo de novo quando pegava em sua mão, por retribuir seu amor, encarando-o com olhos transparentes.
O restaurante foi ficando mais vazio e o shopping também. Quando saíram, quase não havia ninguém pelos corredores, e as lojas já estavam fechadas. Kilaim abraçou Claire enfiando a mão no bolso do casaco dela, puxando-a pela cintura, para perto. Gostava da sensação de pequenez e fragilidade. Naquele momento, porém, a barriguinha já proeminente encostou um pouco contra o corpo dele. Kilaim sentiu uma onda de calor e ternura que o invadia suavemente. A gravidez passava da metade. Entre outubro e novembro seria pai.
— Quem poderia imaginar uma coisa assim? — disse ele, com um leve nó na garganta. — Que seríamos pais tão cedo?
Ela o abraçou de volta, forte, com os dois braços. Desceram pela escada rolante, e Claire ainda fazia hora, parando na frente de uma ou outra loja fechada, olhando a vitrine.
Foi então que o elevador parou no andar onde estavam. De dentro saíram dois homens. Aparentemente, eles estavam indo embora também, mas por que não descer direto para o estacionamento, já que as lojas estavam fechadas?
Kilaim olhou para eles e sentiu sua nuca se arrepiando.
Talvez fosse impressão.
Provavelmente iriam ao banheiro antes.
Mas Kilaim percebia o mal-estar, uma sensação já conhecida, embora indistinta. Uma sensação de alerta. Segurou a mão de Claire e arrastou-a para a escada rolante, imediatamente. Ergueu os olhos por cima do ombro, e os dois olhavam de volta. Ele puxou Claire e começou a descer com as próprias pernas, para irem mais rápido. Ela sentiu logo a urgência.
— Allez, allez... — murmurou Kilaim. — Não olhe para eles.
Ela obedeceu sem pensar.
— Depressa!
Por essa Kilaim não esperava. O que eles pretendiam? Um atentado?
Para seu desespero, os dois sujeitos apertaram o passo atrás deles, mas não tanto a ponto de ficar evidente nas câmeras de segurança. Talvez houvesse tempo de saírem antes. Os dois voaram pela última escada rolante e saíram correndo pela porta do estacionamento. Já a distância, ele acionou as travas elétricas do veículo.
— Depressa, Claire!
Ao invés de entrar no carro, Kilaim empurrou a moça para trás de uma coluna do estacionamento apertado. Aquele shopping era mais antigo, com vagas estreitas e curvas bem fechadas nas rampas de saída para a rua. Os homens haviam desaparecido. Em poucos segundos, Kilaim pesou suas chances. Claire não podia entrar no carro.
— Fique aqui. Se abaixe e se esconda. Não venha comigo!
— Como assim? Você vai me deixar aqui?
— Oui. Você fica.
Por alguns milésimos de segundos, o olhar aflito e relutante de Claire se demorou no dele.
— Kim, não posso...
— Fica aqui, tudo vai terminar bem — mentiu.
Era improvável que terminasse bem. Entretanto, isso não importava, desde que Claire se salvasse. Longe dele, ela poderia contar com a proteção dos Anjos. Era o que ele ardentemente esperava. Puxou-a para si, abraçou-a muito forte, beijou sua testa. Tirou do bolso interno da jaqueta um embrulho e colocou nas mãos dela.
— Aqui tem dinheiro vivo e o seu passaporte. Vá para o aeroporto, Claire. Saia daqui, pegue o primeiro voo. Embarque para qualquer lugar, o mais rápido possível. Quando eu despistar essa gente, encontro você.
— Kim, não vou te deixar sozinho, não adianta...
Kilaim beijou Claire mais uma vez e entrou no carro.
— Não vá sozinho! Deixe-me ir com você! — Ela ainda disse, fazendo menção de se aproximar da porta do passageiro.
Ele travou as portas, impedindo sua entrada. Mais uma vez olhou para ela, para os olhos nublados de desespero. Quanto a Claire, tinha a sensação clara de que era a última vez que olhava para Kilaim, e aquilo era insuportável.
— Vou com você — ela falou mais uma vez, batendo no vidro.
Ele desceu o vidro apenas um pouquinho.
— Eu não pude lhe dar muita coisa, Claire. Só sofrimento e dor. Deixe-me fazer algo justo agora.
— Do que está falando? Você me deu tudo...
— Quando eu sair, virão atrás de mim. S’il vous plaît... Eles vão pensar que você está comigo. Claire, me escute. Vá para o aeroporto. Saia daqui. Qualquer lugar serve, desde que saia o mais rápido possível do Brasil. Entraremos em contato depois.
— Vou com você. Não vou embora sozinha.
— Chega de mortes. Não estaria arriscando somente a sua vida, mas a do nosso filho.
Aquilo foi como um tapa que gerou um ato reflexo. Sem saber como, Claire se afastou do carro, com um soluço, atônita. Ela assistiu Kilaim acelerar o Frontier. Os vidros escuros tiraram sua visão, e ela simplesmente perdeu o contato com ele.
Seu mundo desmoronou. Ela se abaixou perto da coluna, segurando o embrulho numa das mãos e, soluçando, esperou até que fosse seguro sair dali.
* * *
Kilaim sentia um grande peso no coração, um peso esmagador. Claire tinha que viver. Não importava que ele não vivesse. Ela tinha que viver. Kilaim percebeu que nunca, ninguém, ser humano algum, lhe dera o que Claire havia dado. Um amor tão incondicional.
“Maldita curva fechada!”.
Ele bateu a ponta esquerda do carro na parede. Deu ré. Engatou a primeira e subiu a rampa íngreme o mais rápido que pôde. Queria sair dali o quanto antes para que os assassinos se afastassem dela. Por dentro, seu coração estava estraçalhado. Uma sensação de quem despenca. Talvez não a visse de novo. Por outro lado, a adrenalina jorrava em seu sangue.
Saiu do shopping virando à direita no sentido obrigatório. Dois carros que estavam parados no meio-fio saíram atrás dele. Talvez estivessem à espera. Talvez os homens dentro do shopping fossem apenas informantes. Quantos estariam atrás deles? Teria ficado alguém lá dentro?
Era provável que não, já que ninguém os seguira até o estacionamento e não suspeitavam que Claire não estivesse com ele. Era o tempo que ela precisava para ir até o aeroporto. Embarcaria, conforme o combinado. Fugiria. Sem ele. Sobreviveria. Ficaria livre!
Seria difícil encontrarem o rastro dela, pelo menos por um bom tempo. E, longe dele, com a ajuda do seu Deus, tudo o que vivera não passaria de um pesadelo longínquo.
A cidade, livre àquela hora da noite, deu espaço para a perseguição. Ele tinha intenção de escapar pela Avenida 23 de Maio, onde poderia acelerar mais, entretanto, o semáforo que cortava a Paulista não colaborou. Kilaim não conseguiu atravessar. Inspirou fundo e optou pelo caminho óbvio que era virar à direita novamente e entrar direto na Avenida Paulista.
Os pneus do carro guincharam com a força da velocidade na curva. Entrando na Avenida, acelerou e não pensou em mais nada, exceto fugir. Olhou para frente e pisou fundo, aproveitando a sincronia dos faróis. Ele os estava levando para longe de Claire. Cada vez mais longe. Dela e do bebê.
Os dois carros o cercavam, um de cada lado. Se pudesse despistá-los talvez houvesse uma chance para ele. Mas, como os despistaria?
Passou a estação Brigadeiro do Metrô. Passou o flat. Passou o MASP...
Claire estava bem. Sim. Ela estava.
Quase foi abalroado pelos veículos que vinham subindo pela Rua Augusta e cruzavam a Paulista no sentido centro. Kilaim virou o volante com força para a direita e acelerou. Um dos carros dos perseguidores bateu numa minivan, mas o outro passou o cruzamento colado em Kilaim.
“Merde”, ele pensou.
Em poucos segundos entrou no túnel que desembocava na Avenida Rebouças, a toda velocidade. Sentia o volante estremecendo nas mãos e lutou para manter o controle do carro. Conseguiria descer a Rebouças e cair na Marginal Pinheiros? Se assim fosse, talvez houvesse uma chance de escapar!
Pelo visto, os perseguidores pensaram a mesma coisa, porque, de repente, o jovem escutou um estampido alto e sentiu o impacto na lataria traseira do veículo. Encolheu-se por puro instinto, apesar de estar num carro blindado. Estavam atirando. Olhou pelo retrovisor e conseguiu ver alguém na janela do passageiro com a arma na mão.
Para sua surpresa, mesmo naquelas circunstâncias, reconheceu o Lobo. Ele era exímio atirador! Se o pegassem, perceberiam que Claire não estava com ele, e isso era o que Kilaim mais temia. Ela precisava de tempo para escapar.
Nova rajada de balas, e mais uma vez ele se encolheu, mas sem tirar o pé do acelerador. Entrou na Avenida Rebouças com muita velocidade. Como a via era íngreme na descida, o carro ganhou ainda mais força.
De novo. Saraivada de balas. Dessa vez, o vidro traseiro foi alvejado. O carro blindado segurou o impacto. Estavam bem atrás dele.
“Claire precisa conseguir escapar...”.
Era um frenético pensamento. Mas aí Kilaim sentiu o solavanco do carro quando o Lobo atingiu o primeiro pneu.
— Dieu! Cuide de Claire! Cuide do meu filho.
Não foi uma oração, apenas um grito. Verdadeiro. O pneu do carro não era blindado. Ele se desgovernou e rodopiou, terminando por capotar duas vezes com violência. Kilaim sentiu um violento impacto na cabeça e, então, mais nada.
A batida dentro de um blindado é dura como uma parede.
* * *
O carro dos perseguidores, numa guinchada de pneus, estacionou ao lado. Eles desceram rapidamente e Zor já tinha na mão a Magnum .50.
— Espere! — Orion segurou-o pelo braço. — Não se afobe.
Um grupo de pessoas no ponto de ônibus se aproximou correndo do veículo capotado.
— Meu Deus, um acidente! — gritou com voz estridente um jovem vestido com blusão preto de moletom.
— É melhor acionar a emergência! Não mexam nas vítimas — disse outro, mais velho e mais calmo.
— É apenas um homem. Está desacordado — comentou um terceiro olhando para dentro do Frontier. Tentou abrir a porta, mas não conseguiu. — Parece que é blindado. Como tirar o cara daí?
Zor e Orion se entreolharam demonstrando surpresa e irritação, mas que não foi notada pelos transeuntes. A Von Trapp não estava com ele.
— Vamos logo dar um jeito nisso — grunhiu Zor baixo. E, aproximando-se da janela do veículo, olhava para Kilaim enquanto telefonava para um dos ocupantes do carro que fora abalroado na altura da Rua Augusta.
— Alô? — Veio uma voz alta pelo aparelho.
— Claire não está com ele. Voltem para o shopping, procurem saber se ela saiu de lá de táxi. Façam alguma coisa. Eu a quero.
Depois, ele, Orion e o Lobo ficaram esperando pela ambulância. Da mesma forma, o grupo de curiosos.
* * *
O corpo de bombeiros utilizou um equipamento para abrir a carroceria. Não demorou. Apesar de querer Kilaim vivo, para acabar com ele usando as próprias mãos, Zor admitia que seria ótimo ele sangrar até a morte dentro daquele carro.
Assim que o gigante foi colocado na ambulância do Hospital das Clínicas (HC), o maior da América Latina, a poucos minutos dali, Zor telefonou para Zuleika, médica, integrante da Organização, filha do Fogo no Brasil.
— Preciso de um favor seu — ele falou, depois de explicar, em poucas palavras, o que estava acontecendo. A médica já estava de sobreaviso, para o caso de haver necessidade. — Você tem alguém de confiança no HC, agora?
— Eu mesma estou de plantão aqui na obstetrícia.
— Uma ambulância do resgate saiu daqui com ele. Precisamos dar fim nesse infeliz.
— Oh, que ótimo. Tenho uma colega enfermeira que posso acionar. Onde ele está?
— Sofreu um acidente agora. Em poucos minutos vai dar entrada no pronto-socorro cirúrgico do HC. Tem como você estar presente no atendimento dele?
— Vou incumbir minha amiga enfermeira. Parece que todas as mulheres resolveram dar à luz hoje, é impossível me ausentar.
— É a lua — ele brincou, satisfeito, antevendo o triunfo.
— Mas não se preocupe. Não tem o que dar errado. Hoje você terá a sua vitória.
— Não falhe!
— Fique tranquilo.
Zor desligou o telefone com um sorriso incontido.
— Kilaim caiu em nossas mãos e logo ficaremos livres desse imbecil. O Grande Príncipe me deu carta branca.
* * *
Quando a ambulância entrou no enorme pátio do estacionamento defronte ao conjunto do pronto-socorro, um dos médicos residentes estava à espera. O HC era um importante hospital-escola da Universidade de São Paulo.
O médico do resgate e o residente, com o motorista da ambulância, se incumbiram do paciente enorme que tinha os pés para fora da maca e estava, agora, levemente consciente.
— O traumatismo craniano foi importante, mas ele está estável. Pressão boa, respirando bem. Falou conosco brevemente durante o atendimento — disse o médico do resgate.
Kilaim ouvia parte da conversa entre os médicos. Sentia sua cabeça explodindo de dor e muita dificuldade para se mexer. Era uma escuridão permeada por curtos momentos de lucidez, quando a preocupação em relação a Claire o torturava.
A maca foi empurrada para dentro do prédio pelo residente, com certa rapidez, passando primeiro pela porta do pronto-socorro da clínica médica, que tinha o seu hall entupido de macas e pessoal do hospital trabalhando. Seguiram pelo longo corredor sem janelas, passando entre muitas outras macas dispostas em fila indiana, onde os pacientes estavam ou em observação ou esperando vagas nas enfermarias. Tinha também gente de pé aguardando atendimento ali mesmo, no corredor, e se encolheram para dar passagem para a maca, olhando curiosos para o homem enorme desacordado.
— Com licença, com licença... — pedia o residente com voz firme, ao passar.
Ele seguiu adiante e imbicou a maca para a esquerda, tentando não bater em nada, especialmente nas pernas do paciente. Por fim, desapareceu no saguão do pronto-socorro cirúrgico, um espaço meio caótico onde já havia três outras macas no fundo e duas em cada boxe, separadas por biombos. O único espaço que os alunos internos e médicos residentes tinham para se acomodar era um sofá vermelho gasto que, naquela hora, estava desocupado, visto que todos estavam em pé, trabalhando sem parar.
Ficava muito fácil alguém entrar ali e não ser questionado. A equipe de enfermagem e a equipe médica se misturavam, revezando-se por meio de plantões dia e noite, o que significava equipes variáveis a cada turno. Por ser um hospital-escola, o HC mantinha um constante fluxo de alunos e residentes, e todos estavam acostumados ao frenesi do atendimento e à superlotação. Por esse motivo, não se questionava a presença de uma enfermeira a mais por ali.
Ela chegou logo, parecendo atarefada, com uma caixa de coleta de sangue na mão. Uma vista de olhos em derredor, um cumprimento sorridente para um ou outro colega, a retirada do soro glicosado de um dos pacientes dos boxes, que já tinha acabado, e ela ficou de olho no grupo que rodeava Kilaim.
“É ele”, refletiu a moça. “Tem mesmo o tamanho de um gigante. Quanto desperdício, um homem desses!”.
— Senhor! — Alguém chamou Kilaim e comprimiu com força o seu esterno com o nó dos dedos.
O jovem gemeu com o desconforto e abriu os olhos rapidamente. Mas então a dor desapareceu e Kilaim mergulhou de novo na escuridão, sem escutar a pergunta que veio depois.
— Senhor, qual é o seu nome?
Nova compressão sobre o esterno. Kilaim abria os olhos volta e meia, mas não conseguiu responder muita coisa. Percebia vagamente que suas vestes eram cortadas enquanto lhe prestaram o primeiro atendimento. A enfermeira da Organização permaneceu com uma prancheta na mão, anotando coisas a esmo. Viu quando o residente tirou as luvas das mãos e orientou a interna que o ajudava:
— Ele está estável hemodinamicamente e respira bem. Não parece estar sangrando por dentro porque a pressão está boa. Mas está meio afundado neurologicamente. O que acha que devemos fazer?
— Precisamos avaliar melhor esse trauma de crânio — respondeu a aluna.
— Isso. Dá uma ligada e chame a radiografia. Conforme for, o paciente desce para a tomografia depois. Enquanto isso, vou pegar o material pra passarmos a sonda vesical nele. Já passou alguma?
— Uma vez.
— Ok. Liga lá, depois volte aqui.
— Tá.
A enfermeira anônima sabia que não podia parecer à toa. Apoiou a prancheta e aproveitou para atender ao toque do telefone do pronto-socorro cirúrgico, que ficava bem defronte ao saguão onde estava Kilaim.
— PSC — disse.
— Oi, é da tomo. Podiam mandar alguém buscar a dona Margarida? Ela está esperando.
A enfermeira anônima respondeu logo:
— Estamos descendo.
Desligou o aparelho e, em seguida, chegou perto da auxiliar de enfermagem jovem e bonita que estivera presente no atendimento de Kilaim. Ela cobria o jovem com um cobertor marrom tomando cuidado para não retirar os eletrodos do monitor cardíaco, e empurrou a maca para mais perto da parede. Depois, verificou se o soro continuava pingando na veia, devagar, a fim de manter o acesso garantido. Por fim, passou a recolher o restante das roupas que tinha ficado por ali.
A enfermeira anônima se aproximou da outra, olhou para o crachá espetado no bolso do avental dela e disse:
— Oi, Silvia. Acabaram de ligar da tomografia e pediram que você descesse para pegar a dona Margarida.
— Ah, vou descer logo, assim que terminar aqui.
— Quer que eu termine?
— Está bem. Já nos conhecemos? — Silvia sorriu.
— Sou da neuro.
— Ah!
O pronto-socorro da neurologia ficava ao lado, tão próximo do PSC que suas macas praticamente se misturavam.
— Ok, obrigada — disse Silvia antes de sair dali.
Então, aquela mulher da Organização se viu cara a cara com Kilaim. Tinha pouco tempo antes que a radiografia chegasse, ou o residente com o material para a sondagem.
Apoiou sua caixa de frascos de sangue e tirou do bolso uma das suas seringas. Seus olhos brilharam.
* * *
Kilaim ouvia as vozes do pronto-socorro, às vezes. Percebia a luminosidade branca e as mãos que o tocavam. Depois, tudo desaparecia. Então, lutando, ele pensava em Claire. Ao lado dele, imunes aos olhos humanos, uma nuvem espessa de demônios observava com atenção.
— Você fez a escolha errada — disse a enfermeira, bem baixinho, ao se aproximar. — Escolheu o lado dos perdedores.
Kilaim ouviu a voz desconhecida e se agitou. Quase imediatamente sentiu seu coração batendo muito forte. Forte demais.
Depois veio o frio. Queria, acima de tudo, se mexer, mas não encontrava forças. Tudo à sua volta era vazio, sem forma e pesado.
* * *
O monitor cardíaco de Kilaim começou a apitar logo depois que a enfermeira esgueirou-se para o lado dos boxes. Parada ao lado de um paciente inconsciente e com a prancheta na mão, ela ficou observando de soslaio, enquanto fingia verificar o equipo de soro, ajustando a velocidade das gotas.
A interna de plantão, que já ligara para a radiografia, ouviu o apito e foi rápido para perto de Kilaim. Tomou-lhe o pulso e anunciou para o colega ao lado, que suturava um ferimento corto-contuso na cabeça de uma mulher:
— Acabou de parar. Pode avisar o residente?
A enfermeira se postou novamente ao telefone grudado na parede bem diante do saguão e falava com ninguém. Viu quando a interna pegou o ambu e ajustou-o na boca e nariz do paciente, começando a ventilar manualmente. Dois residentes se aproximaram com o interno, que voltou à sutura, e começaram a massagem cardíaca.
— Por que será que o cara parou? — indagou aquele que atendera Kilaim. — Estava estável.
A enfermeira ficou apreciando a cena. Eles não iam conseguir fazê-lo voltar da parada cardíaca. Não depois da injeção concentrada de cloreto de potássio que ela tinha infundido em seu cateter venoso.
* * *
10
Jérusalem
Um túnel. Mas não era mais o túnel da Rebouças, ele tinha certeza. Onde estava? Não se lembrava. Parecia muito, muito escuro, e era como se seu corpo flutuasse na água...
Kilaim ficou parado, experimentando a sensação de boiar, parado no tempo e no espaço, seus membros leves como pluma. De repente, uma luminosidade suave começou a ganhar forma, vinda do meio daquela escuridão. A luz se revolvia em ondas, em curvas sinuosas, chegando perto e envolvendo o seu corpo, que se moveu levemente. Ele fez menção de estender a mão para tocar as dobras daquela luz, que parecia líquida; ela brilhava por dentro com infinitas nuanças de dourado.
Então, num movimento frouxo, sentiu-se desprender como uma bolha de sabão soprada para fora do canudo. A dor incômoda e latejante em sua cabeça não o incomodava mais. Não parecia haver dor alguma agora.
Por que não estava doendo?
Flutuava devagar, indo para frente, e a luz tornou-se mais brilhante, a ponto de ser preciso fechar os olhos. Teve a sensação de um rosto próximo ao dele, de mãos muito fortes e algo como... asas enormes.
A sensação de uma voz. Tão real. Mas, ainda assim, apenas uma sensação. Seus sentidos o confundiam em vez de trazer-lhe elucidação. Não pareciam mais capazes de traduzir a realidade. Sentiu uma ponta de medo e se agitou. A luz pareceu dançar ao seu redor, sensível ao movimento de suas mãos e seu corpo.
“Está tudo bem...”.
No fundo de sua mente, Kilaim escutou a voz de Claire, rindo, e falando com seu constante entusiasmo sobre os Anjos de Deus, e que, inclusive, eles vêm buscar os que adormecem no Senhor...
O medo foi ficando abafado e desapareceu.
De repente, não mais flutuava. Seu corpo estava deitado sobre uma superfície firme, e os ouvidos captavam um som que reverberava como música. Mas não era música. Ouviu nitidamente o farfalhar do vento batendo na copa das árvores, e era como se elas cantassem; dali vinha o som que reverberava.
Queria abrir os olhos, mas a intensidade da luz o cegava. Ele colocou uma das mãos à frente, tentando encobrir parte da luz. Aos poucos, parecia estar se acostumando. Abria e fechava os olhos, percebendo tons de rosa e azul... laranja... Era uma luz colorida!
Tentou erguer o corpo, apoiando-se nos cotovelos. Alguém riu.
Um riso agradável. Uma voz de homem.
Novamente, Kilaim protegeu os olhos com as mãos. Havia alguém ali perto, ao seu lado. Alguém conhecido. Ele sabia que era alguém conhecido.
Sentiu as mãos daquele homem tocando as suas, ajudando-o a se sentar. Finalmente, os olhos de ambos se encontraram.
Kilaim ficou olhando muito absorto, primeiro para a beleza excruciante do rosto próximo ao dele. As sobrancelhas eram tão perfeitas, poderosas, e os olhos, de uma cor que ele não conhecia, como violeta. O nariz era afilado, reto, forte. Um sorriso intenso iluminava o rosto como uma candeia.
Perplexo, Kilaim ficou olhando para o homem e piscando, olhando e piscando, pois certamente o conhecia, mas não estava se lembrando. Cobriu de novo os olhos com as mãos. Abriu-os em seguida. O cabelo do visitante esvoaçou para um lado, sobre o rosto, e de novo aquele vento reverberou nas árvores. Escutou a risada dele, mais animada que da primeira vez, e em seguida a voz forte que disse seu nome.
— Kilaim... como estou feliz em ver você!
Kilaim sentiu que era puxado para cima e ficou em pé. A luz do ambiente ondulou com o seu movimento, perolada, brilhante como nunca havia visto. Foi como sentir uma vertigem, mas sem a sensação de desconforto. Como era possível haver tanta luz? Lutou para não fechar os olhos de novo, pois já não se fazia necessário. Estava se acostumando.
Para profunda surpresa de Kilaim, o homem à sua frente o puxou para si e, de repente, o conjunto da voz balbuciando seu nome com carinho, a risada e o olhar formaram um conjunto que ele entendeu.
— Pai...? — falou com brusquidão.
Ethan estava diferente, mas era ele. Kilaim sentiu uma onda de culpa e inquietação, e deixou-se cair perto dos pés de seu pai. As lágrimas brotaram de seus olhos. Mas Ethan sorria e o abraçou, ajoelhando-se a seu lado. O toque de seus braços era aconchegante. Kilaim não entendia o porquê daquele calor que sentia vindo do contato com o pai. Havia uma revolução dentro do seu peito quando abraçou Ethan de volta.
— Pai, me perdoe pelo que fiz... Como você pode estar... Você está vivo?!
— Sim, estou vivo. Claro. Para sempre.
— Perdão por minha maldade! — falou Kilaim, mais alto. — Como você pode não ter rancor de mim?
Ele sorriu. O sorriso de felicidade mais perfeito.
— Aqui essas coisas não existem.
Kilaim olhou de volta para ele e constatava a realidade de suas palavras por entre as lágrimas.
— Olhe! — disse Ethan estendendo a mão, mostrando o lugar onde estavam.
Só então Kilaim se deu conta dos plátanos gigantescos, ou algo como plátanos, de uma robustez e altura inimagináveis, do chão completamente coberto, inundado por miosótis azuis, um campo imenso em sua vastidão. O interesse de Kilaim demorou-se nos miosótis. Esticou as mãos para tocá-los, tentando entender aquela intensidade de cor, tão profunda e brilhante. Não parecia real. Mas o toque lhe disse que eram.
Percebeu, então, a maciez do solo onde seus pés nus pisavam, a terra e a folhagem formando um tapete grosso, sinuoso. Era um lugar lindíssimo. Kilaim olhou para o outro lado, dando de cara com um caminho estreito que margeava um lago, de água incrivelmente azul. O caminho todo era forrado por delicadas pedrinhas azuis, espalhadas como cascalho...
“Eu já vi isso...”.
De fato. Aquele caminho, em algum ponto, iria dar naquele lugar onde não tinha porta, e que os querubins guardavam.
Kilaim ergueu a vista do chão e olhou para cima, tentava compreender a cor da luz à volta. Dourada. Rosada. Azulada. Passava pela folhagem dos plátanos e brilhava com intensidade ainda maior do que a luz ao meio-dia. Mas era um pôr do sol. Kilaim não conseguia entender direito. Foi só nesse momento que se deu conta do aroma que se desprendia das flores, das folhas, da terra. Penetrante. Fresco. Um verdadeiro manto de perfume. Inspirou bem fundo. O influxo rápido pareceu causar uma pequena vertigem. Mas era bom!
O vento soprou como música, de novo, mas sem ser música. Os cabelos de Ethan revolveram sobre os ombros, mais uma vez, enquanto ele olhava para Kilaim com alegria.
— Senti sua falta. Nunca pensei que sentiria, mas senti — Kilaim disse a Ethan, envergonhado.
Recebeu um sorriso de volta. Viu que não era preciso dizer mais nada; para Ethan, não tinha importância agora. Então, Kilaim olhou ressabiado em volta, dessa vez à procura de alguém. Queria muito vê-la, e sabia que só poderia estar ali. Ao lado de Ethan. Será que viria a seu encontro, depois de tudo o que lhe fizera?
Quase instantaneamente, uma mão pousou em seu ombro, leve e delicada. Ele sabia de quem era aquela mão só pelo toque. Camille surgiu — de onde? —, e ele mergulhou no abraço dela, rompendo, agora, em choro convulsivo.
— Mamy!... Você está aqui...
Camille tinha longos cabelos de fogo, muito revoltos, e um rosto de luz. Parecia uma menina. Só que era diferente fisicamente de Ethan, de alguma maneira, mas ele não sabia dizer exatamente o que era. Por um motivo desconhecido, Kilaim também já sabia que, ali, eles não eram mais seus pais. Eram seus irmãos. E ele não sentia por Camille aquele amor de desejo que o afligira na Terra; era outro tipo de amor. Mais intenso, mais puro, mais verdadeiro.
— Você ainda me ama? — perguntou, olhando nos olhos de Camille.
E ele estava falando do amor desconhecido, que, por meio da morte, vinha a existir.
— Aqui não existe rancor ou mágoa.
— Mas, então... então aqui é...
Ethan e Camille assentiram com a cabeça, sem palavras. Kilaim sentiu um nó na garganta. Olhou outra vez em derredor, custando a acreditar, e viu que vários animais se aproximavam deles. Kilaim sorriu, pasmo pelo fato de que conseguia saber que os animais também estavam sorrindo. Estavam felizes.
Uma revoada de pássaros desviou sua atenção. Eles pousavam nas árvores e tinham cores vívidas e penetrantes, incomparáveis. Olhando melhor, notou também animais silvestres que ele não conhecia. Mas a grande surpresa foi avistar um leão deitado a poucos passos de distância. Sua atenção desviou-se completamente para ele durante alguns instantes.
— Olha! — exclamou ele, apontando. — Mas ele já estava aí?
— Chegou agora há pouco. Eles gostam de vir dar as boas-vindas.
Kilaim ficou maravilhado com a força indescritível do leão, o seu tamanho, a pelagem lustrosa, a juba magnífica. Ao ver-se observado, o animal se espreguiçou como um gato, e Kilaim percebeu, atrás dele, uma pequena ovelha branquinha, observando também.
— Oh! — Foi seu ruído de espanto. — Eles estão juntos!
Kilaim continuava apontando para o leão e a ovelha, perplexo.
— Aqui não existem predadores — respondeu Ethan. — Todos vivem juntos, e em paz.
Kilaim olhava de um lado para o outro sem parar, agora que a luz não incomodava mais seus olhos.
— Venha ver. Aqui — chamou Camille.
Eles andaram pelo caminho de pedrinhas azuis por alguns metros, até onde havia um lugar entre as árvores que dava para ver a vista ao longe. Por entre os troncos poderosos dos plátanos, Kilaim viu uma região ainda mais bela, imensa, dessa vez coberta por flores cor-de-rosa e que terminava às margens de um rio de águas douradas, águas que brilhavam ao sol, refulgindo de luz em todas as direções, como arco-íris. Como se fosse uma joia!
Kilaim ficou boquiaberto. Era tanta beleza que sentiu os olhos marejando de novo. A distância, o céu estava azul — com muitos tons de azul —, violeta e cor-de-rosa. Mas não era como na Terra. Na Terra as cores pareciam embaçadas, uma aquarela diluída com muita água. Ali as cores eram... verdadeiras. Que pôr do sol!
Ele continuou olhando, e bandos imensos de pássaros voavam em meio a grande barulho. Uma manada de animais grandes estava perto da margem do rio, e Kilaim pôde perceber que todos olhavam em sua direção, a distância. Naquele momento, ele entendeu que a Criação na Terra era como um espelho da Vida ali, só que um espelho com imagens deformadas. A Criação geme e suporta angústias, esperando sua Redenção. Estava claro agora. E ele ficou calado por alguns momentos.
— Depois do rio está a Jerusalém Celestial. Só que você ainda não pode vê-la.
— Mas ela está lá! — completou Ethan com sua risada clara, apontando com o braço. — Sempre esteve. Ela não foi criada por causa do Homem, sempre foi a Cidade de Deus e dos Anjos.
A manga frouxa de sua roupa deixava ver a musculatura perfeitamente definida. Foi então que Kilaim se lembrou e ergueu a própria mão diante dos olhos. Estava diferente! A pele era lisa e perfeita. Estupefato, atropelado pela lembrança do acidente, viu que ela não estava mais suja de sangue.
Olhou de novo para o rio. Kilaim queria ir até lá. Queria muito ver as águas de perto e olhar seu rosto no espelho delas. Olhou na direção de Camille e Ethan para comunicar o seu desejo, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, percebeu a presença de mais alguém junto a eles.
Surpreso, Kilaim olhou para o homem que, aparentemente, tinha vindo pelo outro lado do caminho. A surpresa deu lugar à curiosidade e expectativa. Parecia saber quem era aquele que viera, e não saber ao mesmo tempo.
Era um homem de incrível e rara beleza. Mais alto que ele, com cabelos tão claros que eram quase brancos e olhos azuis que derramavam fogo e amor. Vestia uma túnica de linho fino e seus pés estavam descalços. Um cinto dourado estava a sua cintura. Abriu um sorriso ao parar diante do gigante. E então, Kilaim teve certeza. Sabia quem era.
Sua presença era forte como o carvalho, mas havia também algo de suave, de terno. Seu rosto brilhava, e os olhos captavam toda a complexidade de Kilaim sem necessidade de explicação.
Uma onda profunda de amor e pesar invadiu Kilaim, que, imediatamente, sentiu-se desabar aos pés Daquele que havia criado tudo o que há. Não tinha coragem de erguer a vista e seu corpo tremia.
— Kilaim... por que me persegues? — A voz Dele tinha o timbre do trovão, embora afetuosa. Uma mão foi estendida diante dos seus olhos, e Kilaim pôde ver a marca dos cravos.
— Eu... nasci para ser assim... Não fui criado por Você, mas pelo Teu inimigo.
— Pois Eu te digo que foste criado por Mim.
Kilaim sentiu a emoção subir do peito como um gêiser, impossível de ser controlada. E chorou muito. Não conseguia parar de chorar.
— Mas como posso ser Seu filho? Você não vê o meu nome? Eu sou Kilaim. Mistura de raças. Nephilim. Filho do diabo.
— Isso é passado — o Homem falou, com simpatia.
Kilaim continuava abaixado e sentiu quando Ethan e Camille se aproximaram para ampará-lo. Não queria olhar para cima, ver de novo aqueles olhos de amor, ver o brilho que emanava do rosto Dele. Dos olhos...
O Homem olhava Kilaim, profundamente. E acrescentou:
— Aquele a quem você chama de pai poderá retornar a este lugar.
Kilaim ergueu os olhos, surpreso. Entendeu que estavam falando de Lucipher.
— Se ele se arrepender de tudo o que fez. Um dia, se quiser, poderá voltar ao Meu Reino. Eu sei que os que se afastaram de Meu amor almejam poder estar de novo em Casa, na Jerusalém Celestial, a Cidade de Deus e dos Anjos. Mas somente depois de açoitar a Terra; essa é a Chave. Só depois de ajudar o Homem a voltar para Mim, de reparar o erro de tê-lo feito se afastar. Esse é o preço, e você sabe disso. Sabe que os anjos caídos são a minha Mão Esquerda.
Estendeu a mão para Kilaim. Uma mão forte e poderosa.
— Quantas pedras ele recebeu?
— Nove...
— Sárdio, topázio e diamante; berilo, ônix e jaspe; safira, carbúnculo e esmeralda. Mas a ele, o Querubim da guarda, eu dei uma turquesa em vez de um berilo, porque essa pedra é um dos símbolos do Meu Reino. Para que Lucipher sempre se lembre do lugar de onde veio. Não importa para onde ele foi; desde que nunca se esqueça de suas origens. E, assim, depois que o guardião da Minha Lei houver cumprido sua tarefa de Me auxiliar no resgate da Humanidade, então a Porta estará novamente aberta para ele, se assim o desejar. Porque nunca deixei de amá-lo. Ele e os seus seguidores sacudirão a Terra. Essa é a chave — Ele repetiu. — E os homens se arrependerão, no final. O Meu amor é muito maior do que sua razão, filho meu.
— Por que eu estou aqui? — balbuciou Kilaim. Sentia-se fraco. — Eu não deveria estar aqui.
— A quem tem sede, darei de graça da fonte da Água da Vida. Você está aqui porque acreditou. Você sabe que acreditou, mesmo sem ter verbalizado. Eu vi a sua pequena fé, como um grão de mostarda, quando pediu que eu cuidasse de Claire e do seu filho. E você se dispôs ao maior sacrifício de todos: morrer por aqueles a quem ama. Como Eu fiz, um dia. Sendo assim, aqui o teu nome não é mais Kilaim.
Kilaim não parecia entender.
— Não é mais...?
— Kim... Seu nome mudou — falou Camille com ternura, a mão pousando em seu braço. — Agora você se chama Ikarim.
— Mas o que quer dizer Ikarim?
— “Princípio de Fé” — ela explicou. E, com um sorriso enigmático, completou: — Nós nos veremos em breve.
Kilaim ia perguntar o porquê desse “em breve”, já que ele estava ali mesmo; mas sentiu sua mente ligeiramente enevoada, talvez ainda por causa da presença do Criador, e não conseguiu encontrar as palavras certas para se expressar.
Olhou para ela, só que seus olhos pareciam turvos. Ele tentou passar a mão sobre eles, mas foi muito difícil erguer o braço completamente. Sua cabeça pendeu devagarzinho para trás, como um sussurro, um suspiro. Kilaim lutou para erguer a cabeça e sustentá-la, mas não conseguiu. Então ele cedeu, e era como deitar depois de um dia cansativo.
“Mas eu já estou aqui, agora...”, ele continuou pensando, sem conseguir levar sua reflexão adiante.
— Volta para tua amada e cuida dela.
Seu corpo foi envolvido por uma sensação de tranquilidade, e pequenos choques formigavam e percorriam-no como energia líquida, como um mergulho em águas mornas...
Apenas a mão de Camille permaneceu em seu braço, forte e presente.
— Viva por mim. — Ele ouviu Jesus dizer, de longe.
A voz de trovão vibrou e sumiu no ar, e uma nuvem toldou sua visão. Foi quando sentiu que sua cabeça doía e havia muito peso; já não flutuava. Seu corpo estava espesso e frio, a língua parecia não querer formar as palavras. Lutou para conseguir enxergar.
Kilaim tinha a sensação de que havia pessoas ao redor dele, e mexiam em seu corpo com rapidez e precisão. Finalmente ele os viu: eram seres angelicais que brilhavam suavemente enquanto trabalhavam.
O cordão de prata...
Ele entendeu, então. E se lembrou do verso do Alcorão, não sabia por quê.
“Onde estiver, a morte encontrará você. Mesmo que esteja em torres sólidas e altas.”
E depois, do texto de Eclesiastes, escrito por Salomão.
“Lembra-te também do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais venhas a dizer: Não tenho neles contentamento; Antes que se escureçam o sol, e a luz, e a lua, e as estrelas, e tornem a vir as nuvens depois da chuva...
“Antes que se rompa o cordão de prata, e se quebre o copo de ouro, e se despedace o cântaro junto à fonte, e se quebre a roda junto ao poço, e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu.”
* * *
Kilaim conseguiu se mexer. A mão de Camille continuava lá, em seu braço, pousada com muita firmeza. Ele abriu os olhos e chamou:
— Mamy...?
— Mon amour... — Ouviu-a murmurar.
Mas não era Camille. Era Claire. Kilaim abriu os olhos inchados. Sentia agora toda a dor e incômodo do acidente.
— Claire?... Claire? Você está aqui?
— Estou aqui.
Um aperto na garganta fê-lo perceber que estava de novo ali. Estava no leito do HC. Mesmo assim, ainda parecia que o cheiro das flores e das plantas estava em suas narinas. Os olhos de Claire estavam marejados, e ela se aproximou para beijá-lo de leve, muitas vezes.
— Nem sei como eles me deixaram entrar pra ver você, não permitem acompanhantes aqui — ela murmurava no ouvido dele. — Deus disse que eu deveria vir para cá, ao invés de seguir para o aeroporto. Estive orando por você todo esse tempo! Ah, eu tive tanto medo, tanto medo de que você partisse. Mas Deus ouviu minhas orações e me atendeu! Sol pediu que eu orasse, parce que havia um forte ataque dos nossos inimigos. Um veneno foi lançado em sua corrente sanguínea, mas seu DNA te faz forte contra ele. O restante foi fruto da intervenção dos nossos amigos angelicais e da Mão de Dieu.
Kilaim não conseguiu processar tudo o que ela dizia. O médico bateu no ombro de Claire.
— Você já viu que ele está bem — ele disse, com voz que não admitia discussão. — Não pode mais ficar aqui. Ele ficará em observação esta noite por causa do traumatismo crânio-encefálico e pela parada cardíaca. Será avaliado pelo neurologista, fará os exames de imagem e os exames cardiológicos. Se tudo estiver bem, conversamos amanhã.
Claire não entendeu tudo que o médico disse, mas assentiu com a cabeça. Depois, beijou Kilaim mais uma vez, apertando forte a sua mão.
— Você nasceu de novo. Eu sei.
O jovem sentia a boca seca e muito cansaço. Mas encontrou forças suficientes para balbuciar:
— Eu amo você. Amo muito você, Claire. Obrigado. Sabe... Eu... Eu O vi.
Claire explodiu num soluço.
— Dieu me ouviu e te deu uma experiência, não foi?
— Eu O vi — repetiu Kilaim, aparentemente sem escutar o comentário. — E vi o caminho de pedras azuis... Eles estavam lá...
Claire não perguntou quem eram “eles”; mas haveria uma vida inteira para conversar. Um futuro.
— Agora vai ser diferente, Kim.
— Daqui pra frente viverei por Ele. Eu entendi, agora... — Kilaim continuava falando; só queria falar. — Como Lucipher. Lucipher acho que também entendeu. Embora ninguém acreditaria nisso, se eu contasse.
Foi a vez de Claire não compreender nada, mas não fazia diferença. O principal tinha acontecido, e ela não tinha motivo para pedir mais nada naquele momento. Seu coração se enchia de gratidão.
Kilaim inspirou fundo e se mexeu, procurando uma posição mais confortável. O barulho do pronto-socorro, as luzes e o vai e vem de pessoas não impediram que ele olhasse fundo nos olhos de sua namorada, como tantas vezes fizera antes; e ela olhou de volta. Havia algo novo em Kilaim; nos olhos, nas palavras.
— Alors... O chacal e o beija-flor terão como ficar juntos. Case-se comigo, Claire. Fique comigo para sempre — ele murmurou.
— Oui. — Ela encostou-se à maca, abaixando a cabeça, outra vez. Encostou o rosto no rosto dele. — Para sempre.
Kilaim percebia as emoções borbulhando no coração. Por algum motivo, o médico teve um minuto a mais de paciência e deu meia-volta, deixando o casal ali no canto por um pouco mais. O rapaz esticou a mão para fora da maca com certa dificuldade e tocou a barriga de Claire com a mão espalmada. O calor da mão dele fez Claire sentir de novo a explosão de um soluço incontido.
— Vou viver pelo nosso filho também. Por você. Você já sabe como vamos chamá-lo, Claire?
— Será um menino?
— Será, eu sei. Como vamos chamá-lo?
— Não sei, meu querido... Como você gostaria?
O gigante fez esforço para erguer a cabeça. Havia força e determinação em seus olhos, a despeito do peso dos ossos.
— Ikarim. O nome dele será Ikarim...!
Claire sorriu e encostou a cabeça sobre o peito dele, comovida. Era madrugada agora; ela olhou para as outras macas que estavam postadas no saguão do pronto-socorro cirúrgico, duas pessoas em respiradores barulhentos e uma falando sozinha, com a cabeça cheia de bandagens. Mais uma vez, ela sentiu o coração enchendo-se de gratidão.
Ficou escutando o coração de Kilaim e repassando na mente a trajetória deles, até ver o médico colocar a cabeça no vão da porta e lhe lançar um olhar firme.
Claire pensou em comer um cachorro-quente na barraquinha em frente ao HC, e esperaria o dia clarear. Ergueu a cabeça e procurou o rosto de Kilaim.
Ele estava dormindo...
Uma lágrima desceu pela face dela.
Era o primeiro dia de uma nova contagem de tempo.
Daniel e Isabela Mastral
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