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ÁGUIAS BRANCAS SOBRE A SÉRVIA / Lawrence Durrell
ÁGUIAS BRANCAS SOBRE A SÉRVIA / Lawrence Durrell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ÁGUIAS BRANCAS SOBRE A SÉRVIA

 

                     O Dom das Línguas

Embora Methuen se hospedasse habitualmente no seu Clube sempre que se encontrava em Londres era raro verem-no no bar ou nas lúgubres salas de fumo. Essa tarde de Junho era uma espécie de excepção - e ele surpreendeu-se a si próprio quando deu consigo a passar pela escadaria de mármore ao lado do cubículo do porteiro e a empurrar os batentes de mola da porta que abria para a sala de estar reservada aos sócios. Ia à procura de companhia congenial. disse para consigo, e acrescentou em surdina. "E não me estou a sentir muito exigente." Quatro meses nas selvas da Malásia tinham-no deixado faminto da sua própria língua e ficou radiante - sim. radiante - ao avistar o velho Archdale, o rei dos maçadores, num canto da sala. "Você esteve fora uma data de tempo", disse Archdale fitando-o nebulosamente através do seu monóculo de aro de ouro. e Methuen reanimou-se com a familiar saudação: "Seja bem-vindo de volta à fogueira do acampamento, meu velho."

 

A fogueira do acampamento estava de facto a arder mal e Methuen chamou a atenção para esse facto, ao mesmo tempo que encomendava uma bebida ao criado, antes de se afundar na poltrona voltada para Archdale. Tagarelaram ociosamente durante alguns minutos, e Archdale estava realmente a exceder-se para retribuir o sentimento de gratidão que lhe causava a companhia de Methuen repetindo-lhe uma das suas mais extensas histórias, quando o último subitamente sentiu que estava a ser observado. Voltou-se a tempo de ver a imagem de Dombey deslizar no espelho do vestíbulo. "Diabo", disse, "espero que o Dombey não ande à minha procura." Archdale soltou uma risadinha satisfeita. "Bem. à minha e que ele não anda."

 

Methuen bebeu uma grande parte do conteúdo do seu copo e disse à guisa de explicação: "É que eu acabo precisamente de deixá-lo. Entreguei o meu relatório e foi-me dada uma licença ilimitada depois desse negócio do Extremo Oriente. "

 

Voltou a olhar nervosamente por cima do ombro e viu os batentes abrirem-se para deixar passar o corpanzil pesado de Dombey que lembrava uma ruína com o seu perfil de urso-formigueiro e a sua velha gravata Etoniana no fio.

 

Parou do lado de dentro da porta. "Sou eu quem ele quer -, disse Methuen tristemente: mas para confirmar agitou as mãos interrogativamente e apontou para si próprio. Dombey fez lentamente que sim com a cabeça, sorrindo: arrastou os pés para o outro canto da sala onde pousou numa cadeira, como uma grande ave de rapina, e pousou as suas grandes mãos sobre o tampo da mesa de mogno, com o gesto de um homem que acaba de fechar uma pasta de cartão. Os seus olhos semicerrados davam-lhe a aparência de estar perpetuamente a dormitar: um inocente sorriso de mocho brincava nas suas feições.. "Raios o partam", disse Methuen vingativamente, acabando a bebida. "É melhor ir saber o que ele quer." Archdale soltou outra risadinha fátua. "Vocês levam uma vida impossível no vosso serviço. Graças a Deus nunca fui escolhido para essas aventuras de capa e espada. Simples atirador. Agrada-me mais."

 

Nesse momento isso também teria agradado mais a Methuen.

 

A Malásia tinha-o deixado pelos cabelos e ansiava por duas semanas a pescar num rio que conhecia na Irlanda. Dombey pairava sobre esses projectos como uma sombra. "Como diabo". disse Archdale de mau humor (porque detestava perder a única companhia susceptível de lhe aparecer nessa tarde), "como diabo você foi cair nesse maldito serviço secreto do Dombey. hem?> Methuen respondeu numa voz carregada de íntimos arrependimentos: "No meu caso foi um dom para as línguas." "Estou a ver." Levantou-se e acabou a bebida: "Eles descobriram que eu sabia falar línguas." Archdale instalou-se mais firmemente na poltrona e disse: "Parlez vou françé? Graças a Deus nunca soube línguas Methuen tossiu e preparou-se para o que desse e viesse. "Bem. meu velho", despediu-se com genuíno pesar "até à vista." Archdalê fez um gestozinho triste e o monóculo caiu-lhe. "Talvez não seja nada", disse esperançosamente. "Volte depois e eu acabo a minha história. Você há-de achar-lhe graça.- "Obrigado. Se puder." Methuen dirigiu-se para o outro lado da sala. onde se encontrava a mesa de Dombey. com os cuidados de um homem que atravessa um campo de minas. "Ah!", fez Dombey sonolentamente, "andava à sua procura."

 

"Acabo de sair do seu gabinete, lembra-se?", disse Methuen acidamente. Dombey acenou que sim cautelosamente, consoladoramente. "Eu não estava preparado para falar nessa altura", disse. "Sinceras desculpas." Methuen acendeu um cigarro e disse: "Estou de licença neste momento. Não se lembra de mo ter dito?" Dombey fez um gesto apaziguador no ar como um mágico afagando um gato. "Sim", concordou. "Claro que está." Depois conservou-se calado por um bom minuto e estudou as suas mãos enormes.

 

Havia qualquer coisa de claramente oriental na maneira particular de Dombey abordar questões de serviço; torneava infindavelmente o assunto que o preocupava antes de entrar na questão. Começava, por assim dizer, no ponto mais distante daquilo que tencionava dizer e encaminhava-se com rodeios para o ponto de impacte que estava sempre encerrado na frase: "Só quero que você vá deitar uma olhadela." Isto dizia-o ele no tom untuoso de um paxá apaziguando um credor. Começava, por exemplo, por dizer: "Faz alguma ideia de qual seja a temperatura média no Verão na Terra de Baffin?". ou então. "Quanto tempo levaria um ciclista a ir de Roma a Genebra?"

 

No caso concreto de que nos estamos a ocupar Dombey ficou longamente a olhar para Methuen com um ar de reflexiva sobriedade antes de dizer: "Quanto tempo levaria uma pessoa a pé de Belgrado a Salónica?"

 

Methuen estava familiarizado com este tipo de abordagem. Apesar do alto posto de Dombey na unidade conhecida por um reduzido número de altos-oficiais como a OEQ ou "Operações Especiais secção Q", era vários anos mais novo que Methuen: e era abundantemente claro que uma pessoa não podia ter uma carreira tão meteórica como a de Dombey a não ser que tivesse miolos para apoiá-la. A abordagem lenta e tortuosa não era a de um homem de compreensão lenta: era antes a abordagem de um homem cujo trabalho essencial consiste em resolver quebra-cabeças complicados formados por peças separadas em que estas são feitas de intrigas, disparates e lapsos humanos: de perigos e alarmes que assediam a estabilidade da política ou dos desígnios britânicos.

 

- De Belgrado a Salónica? - disse Methuen. - Depende de como uma pessoa caminha. Eu pessoalmente não o faria, e se é isso que você está a planear para mim...

 

Dombey começou a ronronar.

 

- Espere - disse. - Meu caro amigo, não me empurre. Espere um segundo.

 

- Conheço as suas manhas - tornou Methuen severamente, e em geral não me importo. Mas. francamente. Dombey. esta última missão foi terrivelmente fatigante. Preciso de descansar.

 

- Prometo-lhe - disse Dombey solenemente - que só quero o seu conselho. Não lhe será exigido que faça nada. Claro que eu gostava que você fosse, não o nego. Mas de momento só quero o seu conselho, percebe? Talvez o passeio lhe interesse! Como é que qualquer de nós o pode saber? - Suspirou e recostou-se na cadeira.

 

- Porque não Danny e o professor?

 

- Não - disse Dombey. e meneou a cabeça decisivamente.

- Por mais agradável que fosse mandá-los juntos isto não é território para o círculo de três anéis concêntricos que vocês formam.   É um trabalho solitário, e tanto quanto posso prever, extremamente difícil. Claro que não quero que você o considere como uma missão sua. Mandarei outro qualquer. Mas o seu conselho seria precioso.

 

A vida. pensou Methuen para consigo, estava a tornar-se enfadonha nas OEQ. As suas últimas três missões (exceptuada a da Malásia de onde acabava precisamente de voltar) tinham sido animadas pelos dois amigos que ele mencionara. Era sem dúvida melhor estar acompanhado do que sozinho quando se tratava de aventuras de alto calibre, e os três homens estranhamente associados tinham partilhado um certo número de excitantes experiências em várias partes dos Balcãs. Mas isto era um trabalho solitário... Bem. os trabalhos solitários tinham de ser feitos por alguém. Por detrás da irritação que sentia (porque percebia claramente que Dombey estava a iscar o anzol para ele), sentia também os lentos estímulos da curiosidade. Gostaria pelo menos de saber o que estava a recusar. "De que se trata?", perguntou finalmente, e Dombey levantou-se abruptamente como um pescador lançando o arpão. Acendeu um cigarro e esticou os braços compridos. Methuen ergueu os olhos e continuou a olhar para ele calmamente. "Dê-me apenas uma ideia geral", disse, "e depois já posso sair daqui e ir a qualquer teatro."

 

Dombey soprou o fósforo e conservou-se de pé. Exalando demoradamente o fumo pelas narinas. "Não posso explicar-me claramente a não ser em frente de um mapa", disse. "Você está livre agora?" Devia ter visto a lenta irritação nos olhos de Methuen. porque lhe travou o braço e disse: "Vamos até à 'Oficina dos Segredos'. Deixei lá tudo preparado." Methuen levantou-se e suspirou. "Com uma condição", disse. "Não parto seja lá para onde for antes da próxima sexta-feira." Dombey fez um amplo gesto de aceitação com os dois braços. "Mas com certeza. Mas com certeza", disse quase lamentosamente.

 

Os dois homens saíram lentamente para a penumbra cinzenta de Londres, de braço dado. como servos encadeados, e atravessaram o Mall na direcção de Charing Cross Road. falando disto e daquilo; começava a anoitecer quando alcançaram o largo sem nome onde. à sombra dos Seven Diais, vivia e tinha a sua sede a Unidade de Operações Especiais. Um amanuense de serviço estava sentado diante de uma mesa de tampo de baeta verde a separar correspondência. Agora a escuridão já era completa e Methuen. erguendo por um momento o olhar para o céu nocturno azul-pólvora teve uma breve visão dos amachucados anjos que ornamentavam o telhado do edifício, empoleirados ali nas trevas como doze antigas figuras de proa. No prédio tinha estado outrora instalada uma companhia de seguros vitoriana e as ocasionais esculturas que decoravam as suas cornijas maciças, e agora sujas, eram eloquentes momentos dos critérios artísticos da década de 1890. Era um estranho e insípido casarão, cheio de corredores frios e de elevadores avariados.

 

- Muito bem. sir - disse o amanuense de serviço, abrindo a cancela de madeira e deixando-os passar para o vestíbulo às escuras onde eles esperaram um momento enquanto o homem procurava às apalpadelas no seu cofre as chaves com uma etiqueta do gabinete de Dombey. O elevador, como de costume, não funcionava. Seguiram ao longo de um comprido corredor, acendendo as luzes à medida que iam andando, e depois subiram em silêncio os dois andares até ao gabinete de Dombey. Vagamente, das tenebrosas profundas subterrâneas, onde estava instalada a secção de rádio, chegavam os ruídos da estática num receptor, crepitando no escuro com a monótona regularidade de uma unha sobre a superfície de um tambor. Por uma porta entreaberta no primeiro patamar filtrou-se uma mancha de luz fluorescente que passou de púrpura para verde e depois desapareceu. Dombey procurou às apalpadelas o buraco da fechadura da porta que abriu com um empurrão.

 

Penetraram os dois na tépida escuridão alcatifada do quarto e Methuen parou de súbito para dar ao seu chefe tempo de encontrar o interruptor do candeeiro da secretária. Que bem conhecia ele essa sala: fora o ponto de partida de tantas aventuras. Reconstitui-a mentalmente em todos os seus pormenores, que a lâmpada da secretária verde-clara iria confirmar: estantes, o pequeno bar de mogno, as pilhas de pastas para mapas, a cama de campanha e o ditafone. com os seus rolos de cera empilhados como munições, na prateleira ao lado da secretária. Dombey carregou no interruptor e ao fazê-lo proferiu a palavra plena de sentido: "Jugoslávia." Methuen resmungou e procurou um cigarro às apalpadelas antes de se estender numa poltrona. "Eu sei", disse Dombey apaziguadoramente. "Eu sei."

 

Despiu o sobretudo e atravessou a sala dirigindo-se para a parede onde se encontrava a espessa pilha de mapas, cada um na sua resistente bolsa de celofane, e todos presos à parede por um braço de bronze que permitia que as séries pudessem ser folheadas como as páginas de um livro. Com os seus grandes dedos brancos Dombey folheou o seu caminho através da Áustria. Istria. Eslovénia e encaminhou-se para sul na direcção da Sérvia. "Você conhece a situação política. Methuen". disse ele. "portanto não vou perder tempo a descrever-lhe a ditadura comunista de Tito. Você estava em Bari. não estava, quando a guerra acabou?" Methuen confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Nunca mais voltou lá depois disso?

 

- Não desde cinquenta e três ou pouco mais ou menos.

 

- Como está o seu sérvio?

 

- Dantes era bastante bom. - Tinha começado a observar a mão direita de Dombey como se olha para a mão de um hipnotizador. No fundo da sua mente começava a emergir uma vaga imagem de altas montanhas avermelhadas, coroadas de faias, vibrando com os ecos das águas geladas que correm para sul e para ocidente. O dedo de Dombey tinha começado a procurar vagamente, irresolutamente. por entre as montanhas da Sérvia meridional. Finalmente assentou num burgo do velho sanjaque' de Novi Pazaar. Methuen sorriu e endireitou-se na cadeira. Era como se um médico tivesse carregado num ponto doloroso. "Nestas imediações", disse Dombey. e Methuen sentiu a região palpitar na sua memória como um membro doente.

 

- Há vinte anos ou mais - disse em voz alta - passei dois anos seguidos a pescar por essas cordilheiras.

 

1 Divisão administrativa turca. (N. do T.)

 

- Está a passar-se qualquer coisa aqui. nestas montanhas. Dombey fez uma pausa significativa e acendeu um cigarro.

 

- Quais são as instruções?

 

- Não há nada tão claro como isso.

 

- E onde é que eu entro?

 

- Ainda não sei.

 

O ruído do tráfego de Londres murmurava do outro lado da janela, imitando na imaginação de Methuen o marulhar dos ribeiros onde outrora pescara trutas. "Explique", disse pacientemente, e Dombey começou a explicar.

 

- Você sabe que os monárquicos não cessam de trabalhar para iniciar uma revolução contra Tito. O seu quartel-general é em Paris e têm conseguido infiltrar gente na Jugoslávia. Isso é fácil de compreender. Mas recentemente. Methuen. têm estado a mandar pequenos grupos de homens fortemente armados. Claro que não têm a mínima possibilidade contra a organização da OZNA de Tito. que os caça como se" fossem coelhos. Nos últimos meses houve uma dúzia de julgamentos de espiões conforme a Imprensa jugoslava noticiou muito abertamente, e todos relacionados com bandos de homens armados que alegadamente vagueiam por estas montanhas relativamente bem equipados.

 

- Excedentes de guerra comprados em França?

 

- Sim.

 

- Mas isso é muito normal para os Balcãs.

 

- Todavia, porquê sempre nesta área? É fácil isolar esta cordilheira. Se eu ou você quiséssemos importunar Tito há uma centena de outros lugares mais prometedores para enviar agentes. Por que perder tantos homens e tanto material precisamente neste lugar? Nós não sabemos.

 

- E que pensa a nossa gente de lá?

 

- Está completamente abafada. Os movimentos das embaixadas estrangeiras são limitados a uma área de vinte quilómetros em torno de Belgrado e de Zagreb. Todas as pessoas são seguidas de noite e de dia. É de todo impossível para um estrangeiro ir visitar esta área e ver com os seus próprios olhos.

 

- Talvez queiram fazer ir pelos ares o caminho-de-ferro.

 

- Haveria alguma vantagem nisso?

 

- Nenhuma que me ocorra.

 

Dombey retirou um punhado de alfinetes com bandeirinhas de uma bandeja que se encontrava em cima da sua secretária e começou a espetá-los em vários pontos do mapa. "Sete pontos diferentes na mesma área", disse por fim. endireitando-se e pondo a cabeça de lado. "Agora há outra coisa. Tem havido naturalmente muita actividade policial nesta área. mas nenhuns movimentos militares de monta, portanto obviamente os jugoslavos não consideram estas incursões como uma ameaça para a estabilidade do regime. Contudo, eles próprios estão tão confundidos como nós estamos. ••

 

- Como e que você sabe isso?

 

- Dois refugiados que trabalharam para a OZNA passaram-se recentemente para Trieste.

 

- Você está a sugerir - disse Methuen - que eu vá vaguear para esta área e me faça matar como agente do rei Pedro?

 

- Não - disse Dombey. - Quero apenas o seu parecer.

 

- Podia ir até Belgrado? Talvez lá se consiga ouvir uma coisa aqui. outra ali. que permita fazer uma ideia do que sé passa.

 

- Isso agradava-lhe?

 

- Se houvesse uma possibilidade de ir pescar nesses ribeiros das montanhas agradava-me muitíssimo - respondeu Methuen francamente - mas instalar-me em Belgrado e embaraçar a embaixada...

 

- Ah! sim - disse Dombey tristemente. - A embaixada. Em geral as OEQ faziam questão de operar independentemente das missões do Foreign Office no estrangeiro, para não as comprometer. -- Isto é uma excepção - disse Dombey pesarosamente.

 

- Lamento muito. :E Sir John também lamenta. Você devia ver os telegramas dele. Ele opõe-se terminantemente à sua ida. E para ser franco, prefiro trabalhar independentemente. Você podia ir como um homem de negócios, mas os vistos demoram um tempo infinito a ser concedidos. Estou ansioso por pôr isto a funcionar sem demora. Particularmente depois deste último acidente. Deixou toda a gente preocupada. - Calou-se.

 

- Ah! - fez Methuen. - Estamos finalmente a chegar ao ponto que interessa. Que foi. de facto, que aconteceu?

 

- O Peter Anson morreu.

 

- Ah! - disse Methuen sobriamente.

 

- Você nunca o viu. Era adido militar em Belgrado e um pescador à linha entusiástico. Encontrou maneira de passar os fins-de-semana nessas montanhas e a semana passada não voltou de uma excursão. Ontem a OZNA notificou a embaixada de que tinha encontrado o cadáver nas montanhas perto de Novi Pazaar. Alvejado a tiro na cabeça. Por um desses bandos realistas vagabundos.

 

- Mas que estupidez a dele - disse Methuen com irritação - ir meter o nariz numa área como essa armado com uma cana de pesca. Suponho que foi para lá ao volante do seu carro, seguido durante todo o caminho?

 

- Não. Ele não era tão estúpido como isso. Você sabe, todas as semanas eles deixam que um carro vá levar a mala para o consulado em Skoplje. A estrada atravessa essa área e há um lugar no vale onde o carro da OZNA fica bastante para trás. O Peter costumava apear-se ali. passar o domingo nas montanhas a pescar, é apanhar o carro quando ele voltava na madrugada de segunda-feira. Só que desta vez não voltou.

 

Houve um prolongado silêncio. Dombey tornou a sentar-se atrás da secretária e começou a fazer desenhos com um lápis no mata-borrão verde. "Você já vê", disse ele suavemente, "porque motivo não há quaisquer instruções. Tudo isso pode não merecer que lhe prestemos a mínima atenção. O Peter estava evidentemente a tentar entrar em contacto com um desses bandos realistas para descobrir o que eles andam a tramar. É muitíssimo provável que os comunistas estejam a falar verdade. É possível que ele tenha estabelecido contactos, só para acabar por ser abatido por eles. Bem sabe. os Realistas odeiam-nos quase tanto como os comunistas. Consideram que pusemos os comunistas no poder e consideram-nos responsáveis pela morte de Mihaelovic'."

 

- Eu sei - disse Methuen fatigadamente.

 

- Você quer ir até Belgrado? Não para as montanhas, por favor. Limite-se a passar lá uma ou duas semanas e veja o que consegue apanhar. Não me preocuparei se você não descobrir nada. Toda essa zona está abafada.

 

- E como irei?

 

- O Ministério da Guerra vai mandar um contabilista civil inspeccionar a missão que eles têm lá. O visto já foi concedido. Você podia ir como o senhor Judson. se desejar, e passar lá uma semana ou duas.

 

- Muito bem - disse Methuen sem qualquer mostra de entusiasmo. - É uma tarefa ingrata. Odiado pelos vermelhos e pelos negros, indesejável para a embaixada...

 

- Acima de tudo. não brinque com a morte - disse Dombey apertando o nariz. - Não corra riscos.

 

- O que é que pensa o embaixador?

 

' Oficial jugoslavo nomeado ministro da Guerra pelo governo real instalado em Londres e que. em vez de combater os ocupantes alemães, se empenhou exclusivamente a sabotar a acção dos guerrilheiros comandados por Tito. Foi fuzilado por traição em 1964. (N do T.)

 

- Está lívido de raiva. Mas desta vez o Secretário de Estado é a nosso favor e assim ele nada pode fazer para impedir-nos.

 

- Quando parto?

 

- Quando pode partir?

 

- Quero uma semana. Preciso de pedir ao Boris que me elucide sobre o território.

 

- As pessoas agora já não consultam os arquivos - disse Dombey lamentosamente. - Vão sempre avistar-se com o Boris.

 

- A verdade é que ele devia pertencer ao seu serviço.

 

- Se houvesse alguma justiça neste mundo ele devia ocupar o meu lugar - disse Dombey. - Mas prefere fabricar cabeleiras.

 

- Ele é bastante mais sensato do que qualquer de nós.

 

- Sim - admitiu Dombey tristemente. - Sim.

 

- Estou a ficar velho - disse Methuen de súbito, pondo-se de pé. - Não imagino por que motivo, tendo-me reformado em tempos, não fui acabar os meus dias no sul da França ou noutro qualquer lugar agradável. Por que hei-de continuar a fazer isto?

 

- Você morreria de tédio.

 

- Suponho que sim.

 

- E a propósito, se não lhe agrada esta missão basta-lhe recusá-la e eu nomeio outra pessoa qualquer.

 

- Quem? - perguntou Methuen não sem um perdoável desdém. - Haverá porventura alguém que conheça tão bem como eu essa zona da Sérvia?

 

- Não vamos começar agora a ser gabarolas - disse Dombey, e tirou da algibeira um maço de provas tipográficas cobertas de emendas e borrões que espalhou diante dele com uma satisfação maldosa. - Pelo menos se me reformar terei um interesse absorvente para ocupar o espírito. - Era o orgulhoso autor de uma monografia intitulada Aberrações da "Lysanara Coridon".

 

- Borboletas - disse Methuen desdenhosamente. Quando voltar trago-lhe umas borboletas que o vão deixar de olhos em bico. Você devia vê-las naquelas montanhas, pousando aos milhões nas margens dos rios.

 

- Lembre-se - disse Dombey severamente. - Nada de montanhas. Nada de rios. Você não vai desatar a fazer turismo por lá ou terei de haver-me com o Foreign Office.

 

- O Foreign Office!

 

Para surpresa sua Methuen deu consigo a sentir-se de repente rejuvenescido e cheio de vida. Reconhecia a sensação familiar de animação que se apoderava dele sempre que se apresentava uma nova aventura.

 

- Diabos me levem se não vou procurar imediatamente o Bons - disse, e já se encaminhava num passo rápido para Covent Garden quando se compenetrou da arte com que Dombey o havia feito morder a isca; neste momento estava provavelmente sentado no seu gabinete, sorrindo, apertando e soltando as suas grandes mãos. Methuen sentiu a ideia da Jugoslávia deslizar na sua mente como uma mosca artificial de pescar trutas, traçando o seu bordado de pequenas ondulações na superfície das águas. Ele tinha saído a prumo da água para mordê-la. "Claro que vou levar a minha cana de pesca", murmurou enquanto continuava o seu caminho. "Seja lá o que for que o Dombey disser."

 

Boris, o Fabricante de Cabeleiras

 

A pequena loja de Boris Pasquin estava fechada quando Methuen lá chegou. Mas como havia uma luz nas traseiras da casa, Methuen bateu com força na caixa do correio e chamou "Boris" pela abertura. O pequeno fabricante de cabeleiras teatrais muito raramente saía e era bastante provável que estivesse na grande oficina desarrumada das traseiras, profundamente ocupado a polir uma pedra preciosa ou a fazer uma paciência.

 

Na froixa claridade as prateleiras atulhadas da loja guardavam os seus misteriosos tesouros - o bastante para deliciar o coração de uma pega ou de uma criança, porque Boris associava o seu negócio das cabeleiras com o de comerciante, negociando em tudo desde pedras preciosas a baralhos de cartas. Methuen gostava de dizer que havia dois eixos do Império, um oficial e outro não-oficial. O oficial era evidentemente Piccadilly; o não-oficial era a pequena loja de Boris Pasquin em Covent Garden. Isto era algo mais que um arroubo de fantasia porque o âmbito dos interesses de Boris estendia-se a praticamente todos os países da Commonwealth.

 

Embora ele possuísse essa espécie de talento que engendra milionários preferia negociar em pequenas colecções de objectos raros que lhe proporcionavam maior prazer do que lucro. Prateleiras de porcelanas; leques japoneses; trabalhos bizantinos em metal vindo dos mercados de Salónica e Atenas; estatuetas contrabandeadas das "escavações" do Egipto; cartas de jogar pintadas à mão, de Esmirna; páginas de manuscritos iluminados dos mosteiros do Levante; corais maravilhosos do Mar Vermelho; ervas secas da China; peões de xadrez esculpidos em madeira e marfim por prisioneiros birmaneses. Os que visitavam a sua pequena loja eram legião, embora entre eles nunca se encontrassem titulares ou pessoas importantes. Lascarins dos transatlânticos traziam-lhe pedras preciosas e esculturas apanhadas nos portos do Oriente; professores e coleccionadores com problemas financeiros negociavam moedas antigas contra jóias ou manuscritos. Mas jamais visitante escapou a partilhar com ele uma xícara de café na oficina das traseiras, e essas conversas de negócios permitiam-lhe colher uma massa de informações diversas sobre países estrangeiros que era do máximo interesse para o pequeno bando de entusiastas de Dombey nas OEQ.

 

Bons era um judeu da Galícia que tinha emigrado para Londres nos primeiros anos da década de 1920 e se estabelecera rapidamente no negócio de fabricante de cabeleiras; mas o âmbito dos seus interesses era demasiado vasto para ficar confinado e Boris não tardou a expandir o seu negócio numa centena de direcções heterodoxas. No passado ele tinha também realizado algumas missões difíceis e perigosas para a organização a que Methuen pertencia, embora nunca tivesse recebido qualquer pagamento por elas. Ele explicava gravemente que a segurança da cidadania britânica era uma dádiva que lhe fora concedida gratuitamente e cujo valor nunca poderia retribuir. Levar dinheiro pelos seus serviços à Coroa era mais do que ele podia conceber. "O que eu faço, faço-o porque me orgulho de ser aceite na família britânica", costumava ele dizer, com a mão sobre o coração.

 

Tinham sido muitas as tentativas de aliciá-lo para as OEQ, mas ele dava demasiado valor à sua independência para se tornar membro efectivo de uma organização que exigia uma disposição total do seu tempo. Continuou, todavia, a ser um aliado não-oficial da irmandade, a sua utilidade aumentando com o decorrer dos anos; ele tinha-se tornado quase uma instituição e não havia praticamente agente que empreendesse uma missão num país pouco conhecido sem primeiro pedir informações a Boris. Methuen não constituía excepção à regra.

 

- Boris - tornou a chamar, e encostando o ouvido à aba da caixa do correio sentiu-se aliviado ao ouvir o familiar passo arrastado do fabricante de cabeleiras atravessar o pavimento escuro para accionar o comutador. A luz acendeu-se e Boris estava ali a olhar para ele através do vidro como um pequeno pinguim com as penas sujas. A sua barba negra não vira pente e ele atarantava-se com o pince-nez constantemente pendente em torno da cintura no extremo de um cordel. Por fim conseguiu focar Methuen e sorriu. "Methuen!", exclamou. "Prazer em vê-lo de volta", puxando os ferrolhos emperrados da porta e repetindo: "Prazer em vê-lo de volta." Trancou cuidadosamente a porta atrás do visitante e seguiu adiante para as traseiras da loja. A grande oficina estava vivamente iluminada e cheia do cheiro do café que fervia a fogo brando numa cafeteira sobre o fogão de gás.

 

Methuen olhou em volta com divertido interesse. "O que é que você tem aqui?", disse. Bons remexeu num guarda-louças à procura de uma chávena e de um pires. Uma grande cabeleira prateada assentava num pedestal de madeira obviamente semi-acabada; ao lado dela. oferecendo um contraste grotesco, viam-se duas cabeças humanas mumificadas em garrafas. "Peruanas", disse Boris. "Chegaram ontem. Uma é tudo o que resta de Atahualpa. o índio que desencadeou a revolução há anos, lembra-se?" "Meu Deus", disse Methuen. "um destes dias vai aparecer-lhe alguém com a minha cabeça numa garrafa. E você nem pestanejará."

 

Boris pareceu chocado. "Eu ficaria transtornado se visse o meu amigo numa garrafa", disse ele severamente. Às vezes tinha uma certa dificuldade em apreciar o senso de humor inglês. "Vou vender estas duas ao Museu Britânico", acrescentou irrelevantemente. "Mas meu caro. meu querido amigo", continuou numa explosão de entusiasmo "espere até o Dombey ver o que tenho para ele." Retirou de uma prateleira duas grandes caixas de lindas borboletas, espetadas com alfinetes em rolhas e classificadas. "São tão lindas!"

 

Tagarelaram durante algum tempo até estar concluído o ritual de servir café e sentaram-se frente a frente, cada um do seu lado do banco de trabalho. Depois, brincando ociosamente com o lapidário que se encontrava junto dele. Methuen revelou os seus planos. Boris colou a mão a um dos lados da cabeça e pôs-se a mover a cara de um lado para o outro, repetindo "Sim! sim", muito pensativamente. "É muitíssimo difícil", disse ele. "Tenho boas informações de um contrabandista de dinheiro. Os campos estão em ruínas. As pessoas passam privações. E você quer ir percorrer a Sérvia como um turista, com uma cana de pesca."

 

Methuen sentiu-se ligeiramente ofendido com aquela descrição da sua pessoa. "Não exactamente como um turista", objectou. "O que quero saber é como poderia viver por pouco tempo, digamos uma semana, nesse território que conheço como as costas da minha mão."

 

- Deve parecer um sérvio.

 

- E que devo usar?

 

- Já lhe digo.

 

Como de costume a informação de Boris foi copiosa e exacta. Numa série de traços brilhantes e exactos fez o retrato de um camponês sérvio: calças de lã bambas entaladas no cano de umas pesadas botas de coiro; barrete de peles engordurado; capa de lã. Methuen por seu lado escreveu a lista do material que tencionava transportar: uma garrafa de calor, uma pistola e munições, um sólido fogareiro de petróleo, fósforos, uma cana de pesca. ("Ele é louco", disse Boris para o tecto. "Uma cana de pesca, era só o que faltava!") Mas não pôde deixar de sorrir. "Vou arranjar-lhe", disse ele, "um casaco de lã grossa a três quartos e metê-lo na pele de um caçador furtivo. Aqui uma bandoleira para a pistola"; deu uma palmada na sua clavícula esquerda. "Você vai chocalhar um bocado, como os cavaleiros de Drury Lane."

 

Mas ele já estava a entrar no espírito da coisa. O dinheiro, por exemplo, de pouco servia. O governo tinha desvalorizado de tal modo o papel-moeda que seria mais aconselhável levar algumas agulhas e uns carros de linhas. Com esses artigos poderia adquirir comestíveis aos camponeses. Se conseguisse pescar sem ser apanhado poderia alimentar-se principalmente de trutas; mas devia ter cuidado com as patrulhas da polícia. Tão-pouco poderia contar com os camponeses para ajudá-lo, reduzidos como estavam a um estado de servil sujeição pela política de colectivização e pelo medo da polícia. Enjeitariam imediatamente um desconhecido que pretendesse viver no seu meio. "É precisamente isso", disse Methuen. "Há apenas umas escassas aldeias disseminadas nessa área. Fica completamente isolada, Boris, são tudo montanhas. Uma vez vivi ali durante um mês numa caverna sem ver uma só alma."

 

Boris meneou a cabeça dubitativamente. "É uma coisa muitíssimo difícil", disse. Mesmo assim pôs-se de alma e coração ao serviço de Methuen, examinando cuidadosamente e em pormenor todos os aspectos do problema. A conversa prolongou-se pela noite dentro e quando Methuen por fim deu as boas noites e se afastou pelas ruas escuras a caminho do seu clube sentia como se acabasse de voltar de uma semana passada nas montanhas da Jugoslávia. Deitado na cama às escuras ouvia o marulhar das torrentes, ainda empastadas pela neve da Primavera; viu a súbita e rápida cintilação da truta nos canais e nas fendas escuras do rio Studenitsa. E fragmento após fragmento reconstituiu os pormenores desses dois Verões perdidos que passou uma vez com um amigo sérvio, trepando a vertiginosa escarpa perto da Pedra de Janko, ou nadando nos poços de água negra nas margens do rio pedregoso.

 

Ulteriores Preparativos

 

Foi num desses poços da montanha que ele descobriu a Madre das trutas, um enorme e insolente bicho, passeando lentamente por entre os bancos como um bedel numa igreja: ele duvidava que a sua linha fina o apanhasse, mas como os bancos não ofereciam impedimentos sob a forma de rochas ou caniços pensou que lhe fosse possível cansar o peixe negaceando-o com a linha até ele se cansar da brincadeira. A sua mosca pousou sobre a superfície negra e envernizada da água como um beijo, e languidamente a grande truta foi ao encontro dela... Methuen acordou com o barulho do despertador em cima da mesa de cabeceira. Bocejou e sentou-se. Eram dez horas e o céu cinzento prenunciava um dia de chuva miudinha que tornava a ideia da Jugoslávia uma perspectiva ainda mais convidativa. Barbeou-se lentamente enquanto esperava pelo pequeno-almoço. ainda mentalmente a cansar o grande peixe, deixando-o correr para o extremo do poço até sentir a linha de nylon esticada, prestes a quebrar-se... Mas havia uma infinidade de trabalho e planificação que se estendi-a entre ele e aquele plácido ribeiro de trutas nas montanhas.

 

Com dificuldade obrigou a mente a voltar-se para as tarefas que tinha de executar. Primeiro telefonou a Dombey e disse: "Aceito."

 

Dombey simulou surpresa. "Eu não pensava que você aceitasse". disse ele. e riu quando Methuen lhe respondeu com um palavrão.

 

Você partirá -, acrescentou ele. assumindo um sotaque gutural. como um amanuense de serviço, "no próximo dia dezassete pelo Expresso do Oriente. A secção de transportes terá os seus papéis prontos esta tarde. Já informei Belgrado da sua ida. Você devia ver as mensagens que recebi nestes últimos dias a respeito do projecto."

 

- Gostava de vê-las - disse Methuen sombriamente.

 

De facto assim fez. passando a manhã calmamente com o ficheiro classificador da Jugoslávia, estudando os telegramas e as informações elaboradas pelos especialistas na Chancelaria da Embaixada de Belgrado. Procurou Sir John Monmouth na lista do Foreign Office e ficou desapontado ao não encontrar ali nada além da mera relação dos cargos que desempenhara; sentiu-se, porém, um pouco mais animado ao consultar o Who's Who que mencionava a pesca entre os mais absorventes passatempos do embaixador.

 

Passou a tarde a fazer compras nos armazéns da manutenção militar, preenchendo a pequena requisição verde que lhe havia sido dada. e debitando as suas aquisições ao Departamento de Encomendas Especiais do Foreign Office. Presenteou-se com um novo saco-cama. feito de um fino acolchoado estofado de sumaúma, e com uma reserva de linhas de pesca que pôs na mesma conta de despesas. Começava a sentir-se absurdamente alegre. Esse sentimento, sabia-o, iria desaparecendo gradualmente à medida que se aproximasse do teatro de operações. Nessa noite deu-se ao luxo de jantar no Scott's e de uma ida ao teatro, e quando chegou ao seu clube surpreendeu-se ao dar consigo acordado depois da meia-noite. a ler. Levantava-se normalmente cedo. Mas em breve estes prazeres civilizados estariam fora do seu alcance e ele queria gozá-los plenamente.

 

Na manhã seguinte atravessou a pé as ruas humedecidas pela chuva fininha. aspirando os cheiros de Londres, dirigindo-se para o lado do rio. No armeiro em Milbank apresentou a sua ordem de serviço e foi-lhe permitido experimentar pistolas de todos os calibres e formatos. Henslowe. o encarregado, observava-o benevolentemente, mostrando-lhe as suas mercadorias com um orgulho absurdo. "O senhor nunca me devolveu aquela Luger que levou emprestada, coronel Methuen". disse ele num tom de censura. "Tenho de responder por ela ao Ministério da Guerra." Methuen desculpou-se. "Está algures no fundo de um pântano". explicou, e recebeu imediatamente um complicado impresso para preencher com uma descrição de maneira como a arma fora perdida. "Basta pôr P. em S. (perdida em serviço)", disse Henslowe pesarosamente. "Agora diz que quer uma com silenciador."

 

- Pequena - pediu Methuen. - Que se possa guardar na algibeira.

 

- Há uma nova .3,8 - disse Henslowe relutantemente, mas com o ar de um capelista encontrando o número adequado de colarinho e punho para um homem de medidas pouco comuns.

- Mas pelo amor de Deus devolva-a! Percebe - acrescentou ainda se encontra na lista experimental. É uma arma excelente, muito fácil de manejar. - Ele pronunciava "arema". Encontrou a pistola em questão e estendeu-a ao visitante, segurando-a pelo cano. Era pequena, mas de um aspecto muito feio. - Não é tão equilibrada quanto seria de desejar, sir. Mas é uma arma excelente.

 

Experimentaram-na no pátio, num pequeno alvo.

 

- Serve-me perfeitamente - disse Methuen. - Quase não se ouve o tiro.

 

- É como um homem constipado a soltar um grande espirro, sir.

 

- Mande-ma - disse Methuen e Henslowe inclinou a cabeça tristemente com o ar de um homem feliz por servir, mas que se sente em perigo de perder um objecto muito querido.

 

- Não a vai deixar perdida num pântano, pois não, sir? Methuen prometeu solenemente que não. - Faz pena quando hoje é tão difícil arranjar coisas boas.

 

- Eu sei.

 

De caminho para a "Oficina" não resistiu a ir lançar um derradeiro olhar à Tate Gallery com a sua seara de telas rumorejantes banhadas na fria luz cinzenta do céu londrino.

 

Dombey estava no seu gabinete a ditar de um molho de papéis para o bocal do seu ditafone. "Entre", disse ele, desligando o gravador, quando Methuen meteu a cabeça pela greta da porta. "Entre e conte-me as novidades."

 

- Está tudo em ordem. Venho apresentar-lhe um ultimato: se for à Jugoslávia não desisto de ir pescar nas montanhas. Se quer que eu não saia de Belgrado, então a viagem fica sem efeito e pode mandar outro qualquer.

 

Um sorriso malicioso espalhou-se pelo semblante de Dombey.

 

- Meu caro amigo - disse ele - eu nunca me meteria no caminho de um pescador de trutas. Nunca.

 

- Tudo bem, desde que isso fique entendido.

 

- Você é um agente livre. Se acha que quer investigar o lugar onde o Peter encontrou a morte... quem sou eu para lhe dizer que não?

 

Methuen atravessou a passos largos o corredor e entrando na sala do correio providenciou para que o embrulho com as suas coisas fosse entregue na secção da mala diplomática do Foreign Office. Ser-lhe-iam enviadas sob sigilo enquanto ele viajaria com a identidade do inocente Judson. contabilista do exército. Isso deu-lhe uma ideia. Telefonou a Dombey. "Esse tal Judson...", principiou. "Caluda", ordenou Dombey. "Pelo telefone não. Venha ao meu gabinete." Methuen voltou para encontrar o seu chefe a olhar indignadamente para a minuta escrita com a arredondada caligrafia feminina do Primeiro-Secretário. "Nos últimos sete dias", leu alto, "pusemos sob escuta todas as conversas telefónicas do edifício das OEQ. Em cada cem conversas dez diziam respeito a assuntos confidenciais. Isto tem de acabar." Suspirou. "É perfeitamente intolerável. Voltámos à Idade Média. Nós temos de usar o telefone para alguma coisa... que estava você a perguntar?"

 

- Judson - disse Methuen. - Parece-se com quê?

 

- Com um desastre. Adenóides. Sinais. Pés chatos. Prisão de ventre. Constipações. Camisolas interiores e ceroulas. Óculos de aros de tartaruga.

 

- Está bem. Está bem.

 

- A secção de passaportes dá-lhe todas as informações de que precisar a respeito de Judson. O passaporte foi preenchido de forma a adaptar-se a si.

 

Tinham feito mais do que isso; tinham-no presenteado com um cartão de racionamento jugoslavo. um cartão de identidade, e um maço de vales que. salvo qualquer imprevisto, lhe permitiam comprar em Belgrado tecido para duas camisas. Fora um trabalho rápido. Methuen meteu-se num gabinete vazio e fez uma chamada interurbana para Ravenswood, para a pequena pensão campestre onde passava todas as suas férias. Septimus respondeu quase imediatamente com o seu vozeirão acolhedor. "Claro, coronel Mpthuen; claro que temos quarto. Mas é pena ser só por uni"'' noite... não pode ficar mais tempo?"

 

- Quem me dera poder - disse Methuen.

 

- Paciência - disse Septimus. - Vou providenciar para que tenha um jantar decente. A que horas chega?

 

- Por volta das sete e meia.

 

- Eu mando-lhe a tipóia.

 

- Não se preocupe. Meto a pé pelos campos.

 

Septimus gemeu; ninguém com mais de cento e dez quilos pode ouvir falar de andar "a pé".

 

- Quem não se metia nisso era eu - resmungou.

 

Nessa noite Methuen apeou-se na pequena estação de Ravenswood e dirigiu-se a pé através dos campos húmidos para The Parsorís Nose, já preocupado com os problemas da sua missão. Septimus e a sua roliça esposa deram-lhe as boas-vindas com grandes manifestações de estima e ele descobriu que lhe haviam reservado o melhor quarto.

 

Passou uma hora agradável jogando dardos no botequim com os seus amigos da aldeia antes de se sentar diante de um desses jantares que tinham tornado Septimus famoso. Depois leu um bocado antes de ir deitar-se, cheio de despreocupada satisfação. O livro era Walden. de que ele nunca se cansava; uma pequena edição em papel bíblia que sempre levava consigo quando andava por esses sertões e do qual havia extraído um complicado código particular para se manter em contacto com Dombey. De facto tinha começado por escolher o livro como um livro de cifra, para acabar por sé deixar empolgar por ele depois de muitas e repetidas leituras em lugares solitários.

 

Nessa noite ficou durante muito tempo deitado no escuro, escutando o silêncio profundo do campo inglês e concentrando-se para a nova missão que. não o ignorava, ia exigir o máximo das suas capacidades. Algures um rouxinol cantou, com mágica nitidez indolente. O aroma da madressilva chegava pelas janelas abertas, e ele ouvia o brando murmúrio da chuva nas folhas do lado de fora do peitoril.

 

Ah! a familiar boa vida da Inglaterra! Por que havia ele de ser tão louco que fosse trocá-la pelas possibilidades de um túmulo anónimo num pântano asiático ou numa montanha da Bósnia?

 

Por um momento fugaz pensou em telefonar a Dombey para lhe dizer: "Mudei de ideias. Vou reformar-me de uma vez para sempre. Ficarei aqui mesmo em Ravenswood até morrer." O desejo de fazê-lo era tão grande que até se levantou sobre um cotovelo no escuro e estendeu a mão para o telefone ao lado da cama; mas sabia bem no fundo de si mesmo que nunca faria essa chamada. Tinha de ir cumprir a sua nova missão. Mas para mitigar a ideia de telefonar levantou-se da cama e ligou para Bons. A voz do fabricante de cabeleiras soou remota e crepitante, semi-submersa por um zumbido de conversas. "Tenho aqui uns amigos", explicou. "Mas o seu traje de fantasia é entregue esta manhã. Espero que lhe sirva. Shogom, meu querido amigo."

 

- Shogom - disse Methuen e a palavra ("Vá com Deus") levou-o de novo para aqueles baluartes de remotas montanhas onde a águia dourada fazia o seu ninho e onde os rios rápidos e profundos corriam entre margens arborizadas na sua caminhada para o mar. Sorrindo, adormeceu.

 

Principia a Viagem

 

Londres sob ã luz cinzenta do amanhecer parecia incrivelmente adorável. Através da janela do seu táxi ronceiro Methuen deixava o olhar pousar breve e amorosamente sobre os lugares familiares cinzelados na neblina cinzenta da madrugada e sentiu uma vez mais o apelo nostálgico da Inglaterra que o afligia sempre que estava prestes a deixá-la. Ao atravessar St. James's Park gritou: "Pare por um momento -, e durante alguns minutos passeou sobre a relva verde ao lado da rua. Havia muito orvalho, mesmo para os princípios de Junho, e enquanto Methuen olhava em seu redor as badaladas imperiosas do Big Ben soaram vindas dos confins enevoados do rio.

 

Quando chegou à estação de Victoria descobriu que ainda dispunha de algum tempo e engoliu uma hedionda chávena de chá no bufete enquanto lia um matutino. Uma notícia despertou-lhe por um momento a atenção no meio da confusão dos títulos. EXILADOS JUGOSLAVOS COMPRAM SUBMARINO. Era uma notícia que não chegava a encher quatro linhas dizendo que os Realistas exilados em Paris tinham concluído as negociações para comprar um submarino à Argentina. Parecia não haver nada de particularmente importante nesse facto. Um submarino de pouco serviria a um governo exilado que não tinha exército nem marinha. Estariam eles a imaginar levianamente mandá-lo para o Mediterrâneo com o fim de interceptar a navegação jugoslava no Adriático?

 

Ficou extremamente sensibilizado ao descobrir Dombey à espera dele junto da barreira, parecendo-se mais do que nunca com um mocho e envolvido num enorme sobretudo impreciso. "Queria despedir-me de si", disse. "Grande amabilidade sua. Dombey". disse Methuen. "Sei quanto lhe deve ter custado levantar-se tão cedo." E estava a ser sincero.

 

Encontrou o seu lugar reservado e depois passearam durante algum tempo na plataforma, de braço dado. "Os seus trajes de fantasia estão na mala diplomática", disse Dombey. "Eu só queria saber até que ponto você se parecia com um guarda-livros. De facto não está mal." Methuen vestira um despretensioso fato de passeio com um sobretudo escuro: a pasta, o guarda-chuva. o.embrulho de papel pardo cheio de sanduíches proclamavam um habitante da City de Londres. Tinha aparado ligeiramente o bigode e pusera uns óculos de aros de tartaruga que lhe davam um aspecto tímido e urbano. Uma caneta e uma lapiseira adornavam o bolso do colete de onde sobressaía o triângulo impecável de um lenço.

 

- Para que diabo querem eles um submarino? - perguntou Methuen.

 

- Sei lá - disse Dombey com a resignação de um homem para quem a mentalidade balcânica é um livro fechado. - É um velho submarino americano, completamente desarmado, e duas vezes condenado. Duvido que alguém seja capaz de fazê-lo navegar. Encontra-se há muito tempo num estaleiro francês para reparação.

 

Soou um apito e Methuen saltou para bordo. "Cuidado consigo", disse Dombey e Methuen respondeu-lhe que não se preocupasse. A plataforma começou a deslizar para trás com os seus cartazes coloridos, como se estivesse em curso uma gigantesca mudança de cenários. Mergulharam na manhã enevoada dirigindo-se para o Canal cinzento. Methuen sentiu-se mais animado quando o comboio aumentou o andamento e o monótono martelar das rodas se aproximou e confundiu num rumor prolongado de velocidade.

 

Paris ao fim da tarde estava cheia de sol. embora quase nem houvesse tempo para lhe lançar uma olhadela. O estouvado táxi francês que levava o senhor Judson. atravessou velozmente a capital a caminho da estação onde o Expresso do Oriente esperava pelos seus passageiros. A luz do sol no rio e a animação das multidões que passeavam ao longo das suas margens despertou muitas antigas memórias, ^avia pessoas com quem ele gostaria de comunicar, mas como nenhuma delas fosse amiga do senhor Judson, absteve-se de lhes telefonar. O senhor Judson era demasiado tímido para arriscar mais do que um contacto superficial com esta capital da diversão e da boa comida - e de tanto vício. Encontrou o seu wagon-lit, cuidou da sua bagagem e dispôs-se em taciturno silêncio para comer o pão com manteiga que trouxera consigo. Mais tarde, cheio de temeridade, comprou uma garrafa de água de Vichy, contando o troco com um ar desconfiado, e repelindo a garrafa de vinho tinto que o homem tentava impingir-lhe.

 

No vagão-restaurante ele pôde nessa noite avaliar os seus companheiros de viagem. Havia duas famílias italianas que só fariam uma parte da viagem, alguns homens de negócios inclassificáveis, e três jugoslavos carrancudos obviamente de regresso de qualquer missão comercial na Europa capitalista. Falavam constantemente com animação, mas em tons moderados, e todos os seus pedidos eram feitos pelo único membro do grupo que falava um pouco de francês. Os sobretudos que vestiam eram baratos e de um modelo ordinário, as botas que calçavam era deselegantes, mas pareciam muito orgulhosos dos relógios baratos que traziam nos pulsos. O senhor Judson jantava em frente deles e embora não conseguisse perceber o assunto de que estavam a falar apanhou o suficiente para concluir que eram todos camponeses que haviam ascendido a cargos oficiais sob o novo regime. Dois pelo menos eram sérvios, ao passo que o que falava francês era ou croata ou esloveno.

 

Na fronteira italiana chovia a cântaros e na altura em que o comboio chegou a Veneza a chuva tornara-se numa tempestade que parecia destinada a nunca mais acabar. Um forte vento sul fustigava as lagoas baixas levantando à superfície uma espuma amarelo-

- acastanhada e as nuvens pairavam baixo sobre a cidade. Aqui houve uma longa demora. O comboio largou os seus passageiros e os criados corteses e inteligentes do vagão-cama fizeram as suas malas e despediram-se. Foram substituídos por dois gabirus de barba rija, que cheiravam fortemente a aguardente de ameixas e vestiam uniformes castanhos amarrotados. Nenhum deles falava qualquer língua a não ser a sua, e os poucos passageiros que restavam ficaram reduzidos a exprimir o que desejavam por gestos. Um pequeno fragmento de conversa deu ao senhor Judson uma valiosa indicação de como uma pessoa se devia conduzir na Jugoslávia. Um dos jugoslavos a bordo do comboio disse no decurso de uma longa e ininteligível conversa: "Percebi logo que ele não era Titoísta porque disse Shogom em vez de Zdravo." Isto deixou Judson por um instante confuso até se lembrar que a primeira saudação contém o nome de Deus, um conceito rejeitado pela doutrina marxista.

 

Escurecia quando o comboio entrou lentamente em Trieste e, depois de uma breve pausa, voltou costas ao mar para subir as falésias que os separavam dessa Jugoslávia que Methuen conhecera outrora tão bem mas que o senhor Judson nunca vira. Na fronteira uma horda de funcionários subiu para bordo superintendida por dois jovens envergando capotes de cabedal e calçando botas altas, mas vestidos à paisana. O senhor Judson interessou-se por este primeiro vislumbre dos temidos agentes da OZNA que dominavam o país com um punho apenas ligeiramente menos brutal do que o da NKVD russa. Eram obviamente seleccionados mais pelos dotes físicos do que pela inteligência. Percorriam o corredor empunhando os passaportes e comparando desajeitadamente as fotografias apostas nesses documentos com os originais. Acharam que a parecença do senhor Judson era aceitável e devolveram-lhe o passaporte depois de terem a precaução de espreitar debaixo dos assentos da carruagem-cama. Os outros funcionários tratavam-nos com grande deferência e a sua maneira emproada de andar era a dos membros de uma casta dominante. O visto diplomático poupou o senhor Judson à humilhação de lhe revistarem a bagagem, embora não houvesse nela nada de comprometedor.

 

Quase vazio, o comboio passou a última barreira e penetrou hesitantemente nas trevas que cobriam a Jugoslávia. Methuen olhava esforçadamente pela janela a fim de tentar descobrir locais de que se lembrava mas a escuridão não o deixava ver; uma ou duas vezes surpreendeu um vislumbre de montanha de conto de fadas orlada de faias, erguendo-se para o céu, e talvez salpicada de casas como as dos contos de Hans Andersen, com grandes beirais salientes. Uma ou duas vezes a escuridão diminuiu diante dos seus olhos e mostrou-lhe a brancura veloz de uma torrente de montanha, o choque regular da água erguendo-se acima até do estrondear das rodas. Mas a terra jazia quase constantemente envolta em trevas excepto quando um clarão iluminava uma serração na margem de um rio ou uma central eléctrica.

 

Em Lunbliana a estação fervilhava de seres humanos e quase antes do comboio parar uma multidão irada de camponeses invadiu-o, gritando incoerentemente e arrastando atrás de si embrulhos informes de todas as dimensões.

 

Não havia qualquer tentativa de manter a ordem e tão grande era a turba que mesmo os corredores do comboio se encheram quase a rebentar com criaturas que transbordavam para as carruagens-cama de onde eram repelidas com palavrões pelos criados. Methuen recordava-se nitidamente do camponês esloveno de antes da guerra com a sua imaculada roupa branca e ficou chocado com a multidão andrajosa e suja que tinha assaltado o comboio. Por toda a parte o informe barrete de pano que era o distintivo de uma nova servidão. As mulheres pareciam lívidas e macilentas enquanto se debatiam com os seus cestos, e as vozes esganiçadas com que questionavam e discutiam tinham uma nota de fadiga e histeria. Isto era um novo e surpreendente fenómeno: a transformação de uma multidão jugoslava num bando de párias. Só os funcionários pareciam seguros e bem alimentados, cada um com o seu par de botas altas e a sua pasta preta. A revolução alcandorara-os a uma posição de segurança acima dos outros seres humanos.

 

O caminho para as instalações sanitárias estava agora completamente bloqueado e Methuen foi dar um passeio até ao fundo do corredor, reservado a estrangeiros privilegiados, para observar o enxame de passageiros na carruagem seguinte. Logo que o comboio se pôs em andamento eles pareceram descontrair-se em posturas de sonolenta fadiga, uns inclinados, outros de pé. Quando Methuen avançava no corredor um camponês de grandes bigodes emergiu da retrete e cumprimentou-o. Era um homem idoso com um vasto colete sujo e um barrete de peles comido pelas traças. Estava obviamente bastante bêbedo e trazia na mão direita, com muito cuidado, uma garrafa cujo odor forte denunciava o seu conteúdo: aguardente de ameixa. A sua cara grande e risonha era a de um sérvio. "Ah", disse ele, "um estrangeiro."

 

- Eh! - fez o senhor Judson. olhando-o com atenção.

 

- Bem podes olhar para nós - disse o sérvio, descrevendo um arco com a mão livre. - Bem podes ver o que estão a fazer ao nosso país. Vamos, anda comigo. - Isto era demasiado bom para se perder: continuando a sorrir como se não compreendesse, o senhor Judson deixou que o braço pesado do outro o impelisse para o corredor. Manifestamente o velho lavrador tinha o seu lugar na primeira carruagem reservado para ele. Sentou-se de modo inseguro depois de se amparar profusamente aos braços e aos ombros dos que bloqueavam a porta. - Este aqui é um estrangeiro - anunciou para os circunstantes em geral. Olhadelas inquietas de soslaio partindo de todos os cantos da carruagem acolheram aquelas palavras.

 

- Tenho de ir andando - disse o senhor Judson, que parecia demasiado tímido para se soltar das mão do corpulento lavrador.

 

- Ele está a ver aquilo em que transformaram o nosso país dizia o velho sentindo que tinha feito uma descoberta relevante e não querendo largar a presa. - O nosso país - acrescentou, tomando uma golada da garrafa.

 

- Deixe-o ir - disse uma rapariga com um ar tímido. - Não o mace. ele é um estrangeiro e não compreende.

 

O velho fez outro grandiloquente floreio com o braço. "Ele há-de compreender um dia", disse. "Quando as águias brancas voltarem. Agora estão longe, longe." Ergueu os dedos para o tecto e enviezou os olhos para cima como a tentar distinguir qualquer objecto no céu deserto. "Mas um dia hão-de vir." Este pequeno esforço produziu um extraordinário efeito de alarme na carruagem. Três pessoas, incluindo um polícia, que voltava obviamente de licença, fingiram imediatamente estar a dormir e puseram-se a ressonar. Um jovem soldado e duas mulheres levantaram-se precipitadamente e deixaram a carruagem, depois de trocarem olhares assustados. Um homem à paisana que tinha estado a ler um jornal, baixou-o. "Longe, longe", repetiu o bêbedo.

 

Um jovem miliciano alto que viajava de pé no corredor enfiou a cabeça na carruagem e gritou: "Acabe com esse disparate ou pômo-lo fora do comboio." Libertou Judson do braço do lavrador e afastou-se para deixá-lo passar, dizendo: "Faça o favor", com grande delicadeza. Relutantemente o senhor Judson deixou o conhecimento que acabava de fazer e regressou ao seu compartimento. Decidiu procurar um livro na sua maleta e descobriu que tinha sido desajeitadamente revistada, sem dúvida na sua ausência. Mandou que lhe fizessem a cama e instalou-se para ler. Fosse lá o que fosse que viesse a acontecer, reflectiu, ninguém podia negar que ia ser uma viagem interessantíssima.

 

Quando chegaram a Zagreb já passava da meia-noite e uma vez mais Methuen pôs-se a observar com olhos sonolentos uma plataforma apinhada de sérvios andrajosos. Enormes cartazes destacavam-se na estação mal iluminada com as suas invocações ao deus do progresso marxista. Havia também por toda a parte palavras de ordem escritas em ofuscantes maiúsculas nas paredes e abundantes retratos de Tito flanqueado por Lenine e Estaline. ou por membros do seu próprio gabinete restrito, o Politburo. O contraste entre as promessas contidas nesses flamejantes cartazes e a dura realidade da vida parecia fantástico ao sonolento viajante que espreitava pela janela. Era como se estivesse a entrar noutro país. tão pouco estas cenas correspondiam às suas memórias de uma terra folgazã, desorganizada, mas essencialmente feliz. É verdade que dantes as estações e os comboios estavam sempre à cunha; é verdade que dantes as pessoas tinham medo de falar à vontade diante da polícia; mas o que havia mudado era não tanto a situação como a natureza humana. Aquelas criaturas andrajosas pareciam ter perdido todo amor-próprio na luta para sobreviver. Tinham-se submergido na enchente de uma massa anónima, despersonalizada, incaracterística. Havia naquilo qualquer coisa de assustador. E por toda a parte, caminhando com autoridade e arrogância, via os agentes da casta dirigente: os milicianos fardados de azul ou os omnipresentes cavalheiros de capote de cabedal cuja missão era deixar o campo livre para o partido comunista.

 

Adormeceu por fim e nos seus sonhos via as grandes planícies desenrolarem-se como mapas de cada lado do comboio, atravessadas por uma densa rede de rios rápidos. O comboio adquiriu velocidade e continuou a sua marcha trepidante para Belgrado, emitindo de vez em quando um apito sonolento, ou arremessando para o ar um punhado de escórias de carvão incandescentes que pegavam fogo às ervas secas que debruavam a linha. O monótono cântico embalador das rodas apoderou-se dele e Methuen só acordou quando ouviu o rugido do comboio ao passar pela última ponte que transpõe o rio Sava e conduz directamente ao coração da capital.

 

Esperava-o na estação um ajudante de guarda-livros, um jovem respeitável cheio de sinais que obviamente não tinha a menor ideia de que a identidade do senhor Judson, a quem esperava, estava a ser usada como uma máscara. Methuen considerou mais prudente não o esclarecer. Transportou a sua bagagem para o carro e, instalando-se confortavelmente ao lado do rapaz, partiu aos solavancos para a embaixada.

 

- O major Cárter vai instalá-lo em casa dele, sir - disse o jovem, não sem um toque de inveja. - Melhor que os hotéis de cá.

 

- Constou-me - disse Methuen - que perderam o vosso adido militar.

 

O rapaz baixou a cabeça e a voz.

 

- Foi um grande choque, sir. Acabamos de enviar o corpo para Londres. Um grande choque. E sabe, sir, dizem que não foi apenas um tiro; ele parecia que tinha sido moído. Todo cheio de equimoses.

 

Methuen não falou por um momento, ocupado a ver perpassar através das janelas do carro as ruas que a guerra deixara cheias de buracos.

 

- Pode ter dado uma queda - sugeriu por fim. - Ele costumava ir pescar trutas para as montanhas, não é verdade?

 

O jovem assumiu um ar malicioso e sabedor.

 

- Se quer a minha opinião - disse - não era propriamente à pesca de trutas que ele andava. Seja como for - prosseguiu, apertando os lábios - não temos nada com isso. Não faz parte do nosso trabalho e não devemos meter-nos na vida dos outros.

 

Methuen concordou gravemente e deixou o assunto ficar por ali.

 

O carro continuou a dirigir-se para a zona residencial arborizada da cidade e depois de atravessar um certo número de ruas mal pavimentadas e cobertas de folhas parou em frente de uma vivenda em cuja varanda estava sentado a tomar o pequeno-almoço um homem novo de cabelos claros.

 

- É o major - disse o companheiro de Methuen quando o outro se levantou da mesa e se encaminhou para a entrada.

 

- Sou o Judson - disse Methuen. apertando a mão que o outro lhe estendia.

 

- Eu sei - disse Cárter com uma piscadela de olho e atravessou à frente o jardim na direcção da varanda onde tinha sido servido o pequeno-almoço para dois.

 

- Recebemos uma série de mensagens a respeito da sua vinda para inspeccionar a escrita. Quer começar pelo pequeno-almoço ou prefere tomar primeiro um banho?

 

Methuen optou por tomar primeiro um banho e fazer a barba. Enquanto ele tirava as coisas da maleta Cárter entrou no quarto do hóspede e sentou-se numa cadeira.

 

- Podemos falar livremente aqui? - perguntou Methuen. O major acenou que sim com a cabeça.

 

- Os criados estão no outro lado da casa. Há na sala um microfone para onde eu às vezes grito umas obscenidades, mas este quarto não está sob escuta.

 

- Presumo - disse Methuen barbeando-se - que me espera uma recepção gélida. Li todos os telegramas do embaixador.

 

- Sim. Ele era inteiramente contra a sua vinda. Receoso de criar mais complicações. E francamente eu próprio pergunto a mim mesmo qual a vantagem a não ser naturalmente... Mas você será louco se tentar explorar o território onde o Peter penetrou. Está provavelmente cheio de polícias. Eu quis ir mas não me autorizaram.

 

- Olhe - tornou Methuen - as OEQ pensaram que eu podia servir visto que conheço aquele trecho das montanhas como as minhas mãos: e falo o sérvio bastante bem.

 

- O Peter também falava.

 

- Eu sei.

 

- Terão eles descoberto que ele se servia da carreira de serviço para Skoplje como meio de transporte?

 

- Não sei. Há um local na estrada onde o carro da polícia fica para trás por causa da poeira. Às vezes cerca de quatrocentos metros. Tempo mais do que suficiente para afrouxar e deixar uma pessoa apear-se. Para falar verdade o Peter tinha o costume de apear-se dos carros de serviço nas suas carreiras consulares. Explorou a zona em redor de Nish (também lá temos um consulado) da mesma maneira.

 

- Ele teve muita sorte em não ser apanhado...

 

- Era arriscado, sem dúvida; mas bem vê que estávamos a tentar descobrir alguma coisa sobre as actividades clandestinas dos Realistas. Suponho que leu os sumários pormenorizados de todas as prisões e as listas do equipamento que eles dizem ter apreendido.

 

- Que poderá estar por detrás disso?

 

- Venha agora tomar o pequeno-almoço. Falaremos disso quando você tiver conseguido convencer o embaixador.

 

- Se e quando - concordou Methuen.

 

Dirigiram-se para a varanda soalheira onde os esperava o pequeno-almoço.

 

As Dúvidas do Embaixador

 

- O embaixador duvida muito... duvida muito que a sua vinda possa ser de alguma utilidade para a Missão - disse o imponente primeiro-secretário. juntando as pontas dos dedos e fazendo beicinho. - Seja como for deseja avistar-se consigo. Contudo, sinto meu dever avisá-lo de que ele tem muitas dúvidas.

 

- Sim. sim - disse Methuen brandamente. - Compreendo. O primeiro-secretário premiu uma campainha e ergueu o telefone que tinha à secretária.

 

- Marriot. sir - anunciou. O auscultador crepitou estridentemente. - Gostaria de levar o senhor Judson à sua presença.

 

Atravessaram em silêncio a grande Chancelaria alcatifada onde os jovens secretários se debruçavam sobre o seu trabalho em silêncio, depois atravessaram um átrio sombrio que conduzia ao elevador. Enquanto subiam lentamente, o primeiro-secretário pôs-se a assobiar uma toada em surdina. Seguiu à frente, para mostrar o caminho, por uma série de bem iluminados corredores forrados com cenas de caça e entrou num magnífico salão onde o embaixador esperava numa atitude de profundo desânimo diante de um rumorejante fogo de lenha.

 

- O coronel Methuen. sir - disse o secretário, retirando-se e fechando a porta nas costas do coronel.

 

- Aproxime-se - disse o embaixador.

 

- Bom dia - disse Methuen.

 

Houve um silêncio longo e gelado. Sir John era um homem alto e bem apessoado, de sessenta e poucos anos, e com uma bonita cabeleira de prata que trazia muito curta. Vestia sobrecasaca preta e calças de riscas com uma gola de modelo antiquado. Esteve a contemplar Methuen por um momento em silêncio, com um ar distraído, antes de lhe pedir que se sentasse e de lhe oferecer um cigarro que ele próprio acendeu.

 

- Coronel Methuen - disse calmamente - conheço o trabalho da vossa gente e admiro-o muito. - Era um elogio inesperado mas nem por isso menos agradável para um soldado.

- Presumo que tenha visto os meus telegramas - continuou o embaixador na mesma voz calma e Methuen teve de admitir que tinha.

 

- Não posso ignorar, sir - disse ele - e compreendo perfeitamente a delicadeza e a dificuldade da sua missão aqui; e espero sinceramente não lhe causar quaisquer problemas.

 

Sir John sentou-se e suspirou, e Methuen pôde ver a cara do embaixador adquirir subitamente um ar fatigado e envelhecido.

 

- O Peter Anson foi uma grande perda para nós - disse o velho juntando as palmas das mãos. - Não posso esconder esse facto. Ele era não só encantador e inteligente. Era um oficial de primeira ordem. Mas não lhe competia exceder a sua missão indo explorar ilegalmente o interior do país. O simples facto de um homem adido a uma missão diplomática proceder assim faz recair o descrédito sobre nós. Torna o nosso trabalho infinitamente mais difícil, arruina a confiança em nós. Deve compreender isso.

 

- Compreendo, sir - disse Methuen.

 

- Espero que não agrave o nosso fardo fazendo a mesma coisa. Pode pensar que é um ponto de vista egoísta. Bem sabe que o nosso trabalho se baseia na confiança. Não se faz num dia mas ao longo dos anos. Um incidente desta espécie pode destruir a confiança que levámos um ano ou mais a construir. Agora Dombey parece pensar...

 

- Para dizer a verdade, sir - atalhou Methuen - Dombey ordenou-me que ficasse aqui em Belgrado. A ideia de seguir os passos de Anson para tentar descobrir como ele encontrou a morte foi inteiramente minha. Conheço bem a zona. E para ser inteiramente franco, além de tudo o mais. eu gostaria de ir pescar num rio que conheci há muitos anos.

 

- Pescar? - O embaixador arrebitou as orelhas. - Meu caro, como diabo pode você esperar...?

 

- Tencionava tornar-me indígena durante cerca de uma semana e explorar as montanhas onde o Anson foi pescar. Há por ali três ou quatro riozinhos a transbordar de trutas. Sei que a coisa parece idiota.

 

Um brilho novo e intencional iluminou os olhos cansados do embaixador ao ouvir aquilo.

 

- Pescar - disse ele, em voz baixa, e Methuen viu um sorriso começar a despontar nos seus olhos. - Você tenciona seriamente ir pescar? - Deu com a sua mão branca uma palmada no mata-borrão pousado em cima da secretária e os seus olhos piscaram.

 

- Afinal de contas, sir, tanto quanto presumo o Anson conseguiu alguns fins-de-semana clandestinos. A coisa não deve ser impossível. As redondezas das montanhas costumavam ser completamente desertas. A situação não se pode ter alterado excessivamente.

 

- Devo confessar - disse sir John, e uma nota de inveja insinuou-se na voz - que viver aqui e não poder pescar é de dar com um homem em louco. Esta limitação às nossas deslocações é humilhante. Eu próprio pesco, não sei se sabe.

 

- Esplêndido. Nesse caso a minha ideia talvez não lhe pareça completamente louca. Bem vê - continuou Methuen numa expansão de confiança - creio que podia passar facilmente por sérvio num apuro, e de facto não me sentiria mais deslocado nesta área do que o senhor se sentiria na sua terra natal na Inglaterra. A coisa foi toda ela cuidadosamente ponderada (refiro-me à missão e não à pescaria, sir), e não é de modo algum tão temerária quanto parece.

 

- Claro - disse sir John, e esteve um momento a reflectir profundamente. Depois levantou-se abruptamente e dirigiu-se para o grande mapa de parede suspenso atrás da sua secretária. - Onde tenciona precisamente dirigir-se se eu lhe der autorização para ir? - Sorrindo, Methuen seguiu-o e com um dedo acastanhado apontou para a cordilheira de montanhas em questão. - Exactamente - disse o embaixador num tom triunfante. - Era onde eu iria também. Esses afluentes aí em cima por exemplo. Eles...

 

- Os rios formam grandes lagos aqui...

 

- Que equipamento usa você?

 

O leitor deve ser poupado aos pormenores de uma conversa que durou hora e meia entre dois entusiastas da pesca à linha. Sir John era celibatário e pescar era para ele quase uma religião. Fosse como fosse Methuen descobriu que o Who's Who cometera um erro ao descrever a sua paixão pelo desporto como um "passatempo". Era bastante mais do que isso. Juntos exploraram quase todos os lagos e rios da Jugoslávia, atravessando e tornando a atravessar o grande mapa para discorrerem, ora sobre os méritos da grande truta do rio Vrba. ora sobre as dificuldades de pescar em alguns rios da Eslovénia. O embaixador ouvia com o maior empenho e prazer a exposição de Methuen sobre as possibilidades de pesca no país.

 

- Um dia ainda hei-de tirar proveito de tudo isso - disse sir John. - Você diz que a Olive Dun' não é grande coisa para atrair as trutas? Pois eu julgava que nos lugares mais lamacentos, nos fins da Primavera, quando a neve funde...

 

- Não é o que a minha experiência me ensinou - disse Methuen que deixara de sentir-se nervoso na presença daquela augusta personagem e estava encantado por ter encontrado um camarada pescador. O embaixador abriu um compartimento da sua secretária, fechado à chave, e tirou de lá um livro de moscas cuja beleza e inventiva deixou Methuen invejoso. Algumas delas fizera-as o próprio sir John que saboreou o entusiástico elogio de Methuen com o prazer de um colegial. A conversação voltou-se agora para casos concretos e Methuen contou a sua história da truta de sete quilos que tinha perdido depois de uma longa batalha num afluente do Spey. O embaixador rematou com uma experiência pessoal. Discutiram-se tipos de canas de pesca. O embaixador tocou para que trouxessem café e enquanto o tomavam ampliaram o campo para cobrir quase completamente tudo o que se referia à pesca desportiva.

 

- Meu Deus - exclamou sir John - como lamento essas estúpidas limitações aos nossos movimentos. Methuen, se eu o deixar ir nessa viagem tem de prometer-me ser prudente. Não quero dar às autoridades novo pretexto para protestarem junto do governo de Sua Majestade. E mais: a coisa é toda ela tão temerária que eu não devia realmente aprová-la.

 

- Bem. a decisão é sua, sir - disse Methuen.

 

O embaixador pôs-se a percorrer a sala de um lado para o outro com as mãos atrás das costas.

 

- Não é realmente - disse ele, e havia um toque de tristeza na sua voz. - O secretário dos Estrangeiros desrespeitou as minhas prerrogativas. Não posso esconder-lhe que a decisão que ele tomou é extremamente humilhante. Nós, os embaixadores, somos autoridades supremas nos nossos territórios. Mas suponho que estavam em causa considerações especiais. A sua segurança pessoal é da competência dos Serviços Secretos, naturalmente. Mas eu gostaria que você me desse a sua palavra como oficial e pescador - sorriu ligeiramente -

 

1 Marca comercial de uma mosca artificial de pesca. (N. do T.)

 

que terá em mente as minhas preocupações e que não nos causará qualquer problema na frente diplomática.

 

- Claro que darei - disse Methuen.

 

S ir John premiu uma campainha e pediu um número telefónico.

 

- Cárter - disse - faça o favor de vir falar comigo. Acrescentou como um aparte: - Meu caro coronel, começo a invejá-lo - mas a lembrança dos perigos e dos riscos da viagem devia ter-lhe atravessado a mente porque meneou a cabeça e franziu os sobrolhos. Bateram à porta e Cárter entrou.

 

- Ah. Cárter. Receio que o coronel Methuen me tenha aliciado para o seu esquema. Parece bastante mais razoável do que parecia à primeira vista. Mudei de opinião. Ele vai seguir a pista de Anson. Quer fazer o favor de lhe fornecer os pormenores e de providenciar para que não se cometam quaisquer erros?

 

- Com certeza, sir - disse Cárter com um certo assombro óbvio. - Assim farei.

 

- Não sei como agradecer-lhe, sir - disse Methuen - e creia que tentarei não lhe causar qualquer problema.

 

Sir John deu-lhe uma mãozada calorosa.

 

- Quando você voltar - disse - temos de passar um serão juntos. Sinto-me muito só, você sabe. Não tenho no meu pessoal ninguém que pesque. E a propósito, se lhe interessar... seria para mim uma grande honra, coronel... - e com um gesto quase tímido colocou o seu querido livro de moscas nas mãos de Methuen.

 

Lá fora no corredor Methuen não resistiu a soltar uma risadinha gutural diante da expressão de pasmo de Cárter.

 

- Está realmente decidido? - perguntou o jovem militar.

- Como diabo deu a volta a Sua Excelência? Ele estava de pedra e cal contra a viagem quando Dombey lhe sugeriu essa possibilidade.

 

Methuen suspirou e, quando entraram no elevador, disse:

 

- Ele é pescador.

 

- Estou a perceber - riu-se Cárter. Depois continuou num tom mais sério: - O senhor sabe muito bem que se trata de uma empresa arriscada. Não me parece que seja prudente ir, sir. E espero que não esteja a proceder de ânimo leve.

 

- Porque levo comigo uma cana de pesca? - perguntou Methuen sorrindo para Cárter.

 

Estava a folhear com os dedos o livro de moscas, seleccionando mentalmente as que poderiam servir os seus fins.

 

- Espero que não esteja a proceder de ânimo leve - repetiu Cárter, como alarmado por aqueles sinais de abstracção.

 

- Não - disse Methuen pensativamente. - Não tem de preocupar-se com isso. Eu não costumo tornar ainda mais perigosa, procedendo de ânimo leve. uma ocupação que as seguradoras não cobrem. O escritório de Cárter era uma sala comprida e agradável com uma certa nudez austera, devida talvez às mesas de ripas não envernizadas que cobriam uma das paredes. Em cima delas estavam desdobradas as páginas de um mapa do país dividido em secções. Em cima do mapa uma grelha de celulóide e uma lupa. Cárter pigarreou e sentou-se depois de ir buscar uma cadeira para o seu visitante.

 

- Presumo que sabe tanto como eu. sir - disse. - O Peter saiu de cá escondido no carro com um colchão portátil enrolado, uma cana de pesca e um par de latas de Spam'. Estava com todas as roupas vestidas quando o trouxeram; a cabeça atravessada por uma bala disparada à queima-roupa. Mas estava também muito ferido, provavelmente em consequência de uma queda. Oh! Uma ou duas peças que levava não reapareceram: binóculo, uma bússola. É certo que qualquer pessoa que tivesse encontrado o cadáver poderia tê-las tirado. Mas o curioso é que o único livro que ele levava consigo ainda se encontrava na algibeira do casaco. Aqui o tem. - Tirou da secretária um pequeno volume de canções folclóricas servias e passou-o a Methuen. - Ele comprou-o em segunda mão. Como verá pelos nomes na página de guarda foi usado por diversos colegiais que são muito provavelmente os responsáveis pelos comentários marginais.

 

Methuen voltou o livrinho entre as mãos.

 

- Continue - disse.

 

- Coisa esquisita - disse Cárter. - Provavelmente não tem qualquer relação com o caso. mas encontrei uma passagem que poderia ter sido sublinhada por Peter. Deixe-me mostrar-lha. Mas não conseguiu encontrá-la imediatamente. - É a respeito de umas águias brancas. Agora há outra coisa que é intrigante. O Peter contou-me que tinha feito alguns progressos, e que tinha descoberto uma organização Realista clandestina que se intitulava Sociedade das Águias Brancas. Sabe naturalmente que a águia branca e o antigo emblema Realista sérvio. Mas não queria contar-me nem escrever nada até ter tudo esclarecido.

 

- Águias brancas - disse Methuen pensativamente. - Posso ficar com este livro por um momento? Suponho que não tem qualquer indicação de onde ele dormia? Ele mencionou alguma caverna? Há uma rede de cavernas ao.longo das gargantas do rio Studenitsa que dão um excelente esconderijo.

 

' Marca comercial de carnes de conserva. (N. do T.)

 

- Não. Fiquei com a impressão de que ele dormia numa floresta. Havia agulhas de pinheiro espetadas nas roupas. A carteira com dinheiro e algumas moscas também se encontrava nas roupas dele quando o trouxeram.

 

- Alguma coisa que lhe despertasse a atenção?

 

- Absolutamente nada. Penso que, para variar, as autoridades estão a dizer a verdade. Penso que o encontraram. Quanto a quem o matou... vão lá adivinhá-lo. Ele estava desarmado.

 

Methuen folheou as páginas do livrinho que tinha nas mãos e ficou por um momento de olhos fitos no tapete, perdido em pensamentos.

 

- Quando chega a próxima mala? - perguntou por fim.

 

- Esta tarde.

 

- E quando é a próxima viagem para entrega do correio nesta área?

 

- Depois de amanhã. É melhor avistar-se com Porson; é o encarregado da mala e é geralmente ele quem conduz o carro que vai entregá-la. Vou telefonar para a chancelaria.

 

Porson era um secretário alto, magro e extremamente jovem, cujo cabelo desgrenhado sugeria que tinha passado toda a manhã a atacar pessoalmente altas questões de Estado. De facto, como sexto secretário, passara uma hora a tentar encontrar um placement para o jantar que o seu embaixador oferecia. Fora uma tarefa ingrata e fatigante, e ele chegara finalmente ao limite da resistência. Tinha estado a tentar acomodar doze casais em redor da mesa da sala de jantar da embaixada de maneira a atribuir a cada pessoa o lugar mais apropriado à sua categoria. Era um problema muito maçador: mas depois, reflectiu, ser o secretário de posição menos elevada entre seis significava inevitavelmente que tinha de ocupar-se das trivialidades domésticas. Havia, contudo, uma grande compensação para o seu posto subalterno. Era-lhe permitido levar de carro todas as semanas o correio para Skoplje - uma viagem que lhe proporcionava virtualmente três dias de folga por semana. Embora fosse dado a queixar-se das provações do seu lugar, nada o teria convencido a renunciar ao único verdadeiro privilégio que dele resultava. Apesar do ar de acanhamento com que saudou Methuen, este decidiu que havia um bem-vindo toque de irreverência no rapaz que o tornaria num companheiro divertido.

 

- Li umas coisas a seu respeito, sir - disse ele.

 

- Methuen - disse Methuen.

 

- Coronel Methuen - corrigiu Porson, entalando o monóculo e olhando inocentemente à sua volta. - Pelos telegramas pensei que o embaixador nunca concordaria com a sua missão.

 

- Eu sei. Mas agora concorda.

 

- E o senhor quer fazer exactamente o que o Anson fez? Porson suspirou. - Bem, desejo-lhe sorte.

 

Methuen sorriu e agradeceu-lhe.

 

- Uns dias nas montanhas poderão pôr-nos ao corrente de certas coisas - disse ele. - Quando é que você parte?

 

Porson explicou cuidadosamente:

 

- Partimos daqui todas as quartas-feiras e chegamos ao vale de Ibar por volta das quatro horas. Há uma mó branca ao lado da estrada que é o ponto de encontro. Há uma vala profunda para onde terá de atirar-se. Pelo menos era o que o Anson fazia. Fazemos a viagem de volta na noite de sábado, chegando ao mesmo ponto de encontro no domingo de manhã ao romper do dia. Em regra estamos de regresso aqui cerca das dez horas.

 

- Isso é excelente - disse Methuen - mas o tempo é bastante curto. Só me deixa a quinta-feira e a sexta-feira completas para investigar. Eu gostava de ficar uma semana inteira se possível e dar por lá umas voltas.

 

- Bem - disse Porson - desça na quarta-feira e volte no sábado da semana seguinte.

 

Methuen acenou com a cabeça concordando.

 

- Isso seria perfeito. Entretanto, naturalmente, se eu tiver problemas e necessitar de sair de lá você passará pelo ponto de encontro duas vezes, não é verdade? À volta e novamente à ida. Há alguma maneira de lhe fazer chegar uma mensagem, por exemplo, mesmo que eu não queira voltar?

 

- Sim - disse Porson. - Nunca usámos esse método, mas o Anson tinha pensado nele. A cerca de cinquenta metros da mó há uma enorme faia que cobre a estrada. Se alguém deixasse lá suspensa qualquer coisa nós poderíamos facilmente recolhê-la quando passássemos. Pelo menos era o que Anson pensava.

 

- Esplêndido - disse Methuen - desde que eu sinta que estou sempre em contacto consigo. Bem vê, supondo que eu descubro qualquer coisa importante, mas que torna necessário internar-me nas montanhas, podia informá-lo. Por outro lado se eu precisasse de qualquer coisa você podia atirar-ma para dentro da tal vala.

 

Discutiram em pormenor as várias possibilidades do plano.

 

- Parece-me que o senhor tenciona passar lá semanas - disse Porson. coçando o queixo. - Espero que alguém lhe tivesse dito como é perigoso viajar a corta-mato nessa região. O Anson, sabe, não era nada temerário. Era um tipo extremamente prudente. Methuen esmagou a ponta do cigarro.

 

- Eu vou ser duplamente prudente - disse. - E seja como for, uma vez apanhado, Anson não se podia fazer passar por sérvio. Eu posso, e isso talvez ajude alguma coisa. Claro, tudo isto é apenas especulação.

 

- Bem - disse Porson - confesso que admiro a sua coragem. Não creio que eu fosse capaz de fazê-lo com todo esse admirável sangue-frio. Já comunicou a Dombey que a viagem foi autorizada?

 

- Não. Talvez fosse melhor fazê-lo.

 

Porson conduziu Methuen à chancelaria onde o coronel Methuen rascunhou um telegrama informando Dombey das suas intenções.

 

- Penso - disse ele - que devíamos enviar isto como se estivéssemos de partida. Para o caso de Dombey ficar de repente com medo e me impedir de partir.

 

- Como desejar - disse Porson. - Como desejar, meu caro coronel engolidor de espadas.

 

Entretanto tinham sido tomadas algumas medidas para ajudar Methuen a criar a personagem do senhor Judson, para benefício dos outros habitantes da casa. Deram-lhe um pequeno gabinete exclusivo com uma secretária e um mata-borrão imaculado, e os livros de contabilidade do gabinete do adido militar estavam empilhados diante dele. Methuen folheou as páginas cheias de números com alguma perplexidade antes de pô-las de parte. O santuário nem por isso deixava de ser útil porque lhe permitia estudar uma vez mais a massa de documentação que se tinha acumulado em redor dos julgamentos de espiões. Releu as reportagens jornalísticas dos julgamentos, tomando cuidadosamente notas de tudo o que pudesse ter relevância para a sua missão e seguindo cada fase do inquérito no excelente mapa que Cárter pôs à sua disposição. Era certamente difícil imaginar por que haveria uma persistente infiltração de agentes armados precisamente nesta área; para começar, qualquer actividade aqui podia facilmente ser contida pela polícia e pelo exército. Enquanto o ermo desfiladeiro de montanhas oferecia boas possibilidades de ocultação seria um projecto sem qualquer hipótese de êxito tentar iniciar aqui uma revolução contra Tito. Não só o único caminho-de-ferro que atravessava esta área era difícil de cortar, visto que corria através de uma série de túneis de rocha rasgados alto na face abrupta da garganta, como os potenciais sabotadores teriam de atravessar o largo e extremamente rápido rio Ibar para alcançá-lo. Mesmo que fosse possível formar e manter um forte bando de guerrilheiros nas montanhas por detrás da Garganta de Studenitsa isso pouco interessaria, visto não haver nessa área alvos dignos da sua atenção. As cidades eram escassas e de pouca importância estratégica. Quanto mais ponderava no caso tanto mais confuso se tornava o problema.

 

Voltou-se para a pequena antologia de canções folclóricas servias que Anson levara consigo e percorreu-a cuidadosamente. Havia uma passagem sublinhada que parecia ser aquela de que Cárter tinha andado à procura.

 

Na sua extremidade o rei irá

 

À madre dos rios,

 

Onde as fontes se encontram

 

E as águias brancas voam em famílias,

 

Para encontrar aqui o seu património

 

Enterrado no chão.

 

Isto parecia oferecer pouca contribuição para o raciocínio; Anson tinha-o sublinhado provavelmente mais pela sua beleza do que por qualquer significado oculto. Mesmo assim decorou a sextilha antes de pôr o livro de parte. Na sala da cifra forjou um longo relatório para Dombey explicando as suas intenções e dando um breve sumário dos mais recentes acontecimentos (desde a sua partida de Londres outro grupo de bandidos armados tinha sido capturado operando na mesma área). Depois foi dar um passeio pelas velhas ruas daquela capital que ele outrora tão bem conhecera.

 

Novas Perplexidades

 

Cárter levou-o a almoçar nesse dia e depois foram passear de automóvel ao longo dos meandros do rio Sava com as suas melancólicas alamedas de salgueiros gigantes, falando ocasionalmente do projecto em que estavam empenhados. Porson acompanhava-os e animou a tarde com as suas irreverências e as suas descrições das atribuições dos secretários. À hora do chá chegou a mala e Methuen reclamou a grande caixa de cartão que continha o seu traje de fantasia. Boris prendera-lhe uma nota onde dizia: "Aqui vai a sua capa de invisibilidade. Espero que não chocalhe." Levou-a para a privacidade da vivenda de Cárter e depois de se fechar à chave no seu quarto experimentou o disfarce. "Caramba", disse Cárter pairando entre a admiração e a gargalhada enquanto acompanhava as fases progressivas da transformação do senhor Judson. "Que lhe parece?", perguntou Methuen com um certo constrangimento. Voltou as costas ao espelho e encarou o seu companheiro. Cobria-lhe a cabeça um barrete de peles roído pela traça e de inquestionável origem servia. Calçava umas botas de montar gaspeadas com o tradicional pregueado em forma de concertina nos tornozelos. Uma camisa e um colete sujos e um cachené de lã combinavam-se com uns calções difíceis de descrever que lembravam vagamente umas calças de equitação justas à perna desde o joelho até ao tornozelo. "Mas isto", disse ele, abrindo a aba do casaco, "isto é a obra-prima." Boris tinha utilizado um velho casaco azul de marinheiro feito de um tecido grosseiro de lã com pêlo espesso. Dentro tinha fixado duas grandes bolsas de caçador furtivo e uma bandoleira para a pistola. Juntamente com os bolsos interiores e exteriores seria possível carregar todo o seu pouco equipamento às costas. "Chocalhar provavelmente vou", disse Methuen para consigo, "mas isto ajudar-me-á a mudar de casa rapidamente se for necessário."

 

- É realmente muito bom - disse Cárter com inveja.

- Simplesmente você não pode sair daqui com esse aspecto tão bucólico. Terá de mudar de roupas no carro. Espaço não lhe faltará para isso.

 

- Assim se fará - disse Methuen, recomeçando a vestir o seu patenteado uniforme preto de contabilista que se preza. A caixa de cartão foi cuidadosamente guardada à chave no cofre de Cárter aguardando a viagem, e o senhor Judson voltou à embaixada para se haver com as contas. De facto passou uma exaustiva hora com Porson recapitulando em pormenor toda a viagem, e muito particularmente a parte que mais lhe importava. Agradava-lhe que houvesse uma pequena pausa antes dele iniciar a próxima e mais arriscada parte da aventura. Gostava de se meter aos poucos no papel que lhe competia desempenhar e deixar que todas as informações disponíveis se ajustassem para formar um padrão na sua mente.

 

Tendo-se preparado tão bem quanto razoavelmente podia para os riscos da viagem pediu a Cárter que o levasse a jantar e se possível à ópera. Queria desligar-se completamente do objecto da sua preocupação: deixá-lo ferver a fogo lento no subconsciente enquanto ele ficava livre para ser, embora por pouco tempo, um homem normal, gozando as coisas triviais da vida. Mas a mente é uma coisa caprichosa. Uma vez lançada numa certa via de raciocínio não é difícil desviá-la com distracções mais ligeiras; além disso a própria mente, quando ocupada com um problema, é muitas vezes como um perdigueiro lançado no rasto da caça. Sem qualquer esforço consciente leva uma pessoa sempre para diante no caminho da investigação, recolhendo provas.

 

De que outra forma se pode explicar o facto de Methuen, tendo descoberto que dispunha de uma hora até ao encerramento da embaixada, se dirigir para o registo central e pedir o arquivo dos relatórios escritos nos últimos meses? Estava simplesmente a distrair-se e a reunir algum material relativo aos bastidores políticos. Mas enquanto ia lendo ociosamente os relatórios, a sua atenção foi atraída por um que descrevia a natureza e conteúdo das emissões da rádio de Belgrado. Depois de fazer o sumário dos vários tipos de programa o relatório referia-se à "aparentemente infindável série de poemas nacionais que eram sucessivamente lidos todas as noites, depois do noticiário das oito horas, pela famosa actriz Sofia Maric". Nos arcanos da sua mente algo lhe disse que havia uma pista a ser descoberta por detrás desta simples observação e foi com um agradável sentimento de expectativa que se voltou para os arquivos dos serviços de escuta da BBC - essa prodigiosa organização que regista quase todos os programas de rádio do mundo. Não foi difícil encontrar as emissões em questão. Os títulos dos poemas lidos estavam correctamente relacionados e Methuen viu. com alguma emoção, que o pequeno poema, parte do qual já foi citado, fora o primeiro a ser radiodifundido. e tinha sido repetido duas vezes na primeira semana.

 

Levou este fragmento de informação a Cárter que não se excitou com ela. "É muito provavelmente uma simples coincidência. Afinal de contas, todos os colegiais recebem uma substancial dieta dessas malditas canções e poemas folclóricos. Sabe. eu ouvia essas recitações: o meu professor de sérvio quer que eu as ouça para aperfeiçoar a minha pronúncia. De facto eu estudo pelo mesmo livro que Sofia Maric utiliza: lembro-me de reparar que ela utiliza a Antologia Nacional porque indica o número de cada poema no início e no final da transmissão."

 

- Pode mostrar-me o seu exemplar?

 

Cárter foi amavelmente desencantá-lo no meio de uma pilha de papeis e Methuen retirou-se uma vez mais para o registo central e reabriu os arquivos. As emissões tinham começado uns três meses antes - de facto aproximadamente na altura em que tinham começado a ser publicadas as notícias das primeiras detenções de bandidos Realistas. Se ao menos fosse possível descobrir uma ínfima conexão entre as duas coisas... Methuen suspirou profundamente e meneou a cabeça enquanto continuava a ler as romanças vivamente coloridas dos tempos feudais. Era uma tarefa ingrata percorrer os meandros daqueles labirintos de imagística sérvia! Como poderia haver qualquer espécie de mensagem embutida no meio daquilo? Contudo notou uma coisa com interesse. Vários dos poemas haviam sido lidos duas vezes pela actriz. "Suponhamos", disse para consigo, "que há qualquer mensagem a ser transmitida. O facto de um poema ser repetido pode chamar a atenção para ele. O ouvinte saberia que um poema lido duas vezes continha uma mensagem."

 

Isto estava tudo muito bem: mas os poemas em si próprios ofereciam muito pouco apoio para esta teoria. Methuen estava a arrumar as pastas nos ficheiros quando Cárter e Porson desceram com as suas pastas de mão vermelhas e o encontraram ali à espera.

 

- São horas de fechar - disse Porson. - Acabou-se por hoje a canga. Eu e o Cárter vamos levá-lo a jantar fora, meu velho. Poderá escolher os pratos, naturalmente.

 

- Teve alguma sorte? - disse Cárter.

 

- Nenhuma.

 

- Paciência. Eu já calculava que não encontraria nada por esse lado.

 

- Seja como for levo o seu livro para casa, se não se importa, para reler os .poemas que foram recitados duas vezes.

 

Mas não esteve despreocupado durante o jantar; a sua mente puxava pelo problema como se o levasse à trela. Uma estranha espécie de sexto sentido dizia-lhe que havia qualquer mensagem naquele emaranhado de palavras, desde que uma pessoa conseguisse encontrar a chave.

 

Jantaram num dos três restaurantes abertos para estrangeiros: porque quase todos os restaurantes de Belgrado tinham sido convertidos em cantinas para servir refeições aos trabalhadores. Em torno deles, na sala discretamente iluminada do Majestic Hotel, viam-se membros do partido e da milícia, nédios e bem barbeados, ao lado dos intelectuais, artistas e escritores que haviam aderido. Por sobre tudo aquilo pairava um ar de tédio irremediável e inepto. Porson lançou uma ou duas piadas desesperadas, que não despertaram qualquer eco no ar estagnado da sala. Depois até ele se calou.

 

- Espero - disse Methuen - que não esteja a deprimi-los. A verdade é que esses malditos poemas épicos e essas canções folclóricas não me saem da cabeça. Sinto que há neles qualquer coisa de muito óbvio que não consigo encontrar.

 

- Rasto falso - disse Cárter sorrindo e meneando a cabeça.

- Aposto consigo cinco libras.

 

- O meu problema - disse Porson - é gastronómico. Esta omeleta sabe como os bigodes de Estaline.

 

Saíram juntos para a praça principal da cidade e Methuen aspirou o curioso cheiro bafíento que o público jugoslavo parecia levar para toda a parte: óleo de girassol azedo e kaimak rançoso. Penalizava-o ver como toda a gente lhe parecia maltrapilha e assustada. Tinha ouvido falar de terror policial, mas esta era a primeira vez que se lhe deparava qualquer coisa que impregnava o próprio ar da cidade. Também o silêncio era extraordinário; ninguém cantava ou falava em voz alta. não havia nem gritos nem assobios. Só o soturno bater dos tacões nos pavimentos quebrados e cicatrizados do centro da cidade. Os lampiões dissemiados esculpiam grandes charcos de sombra negra debaixo das árvores. A porta da ópera uma multidão agitava-se à espera de poder comprar bilhetes reservados que não tivessem sido levantados. Abriram caminho para os estrangeiros olhando para eles com um ar deprimido de dissimulada inveja. Ao mesmo tempo duas grandes limusinas reluzentes pararam à entrada e os motoristas correram a abrir as portas para um pequeno grupo de notabilidades do partido. Ao mesmo tempo eclodiu uma salva de palmas que ecoou na rua vazia como uma rajada de tiros de metralhadora.

 

A representação do Fidélio foi precedida de uma prelecção sobre a sua relevância dialéctica por um jovem de cabelo ondulado que falava com um acentuado sotaque provinciano. Ele estava muito nervoso e lia o discurso de um texto dactilografado. Consistia numa dissertação sobre os valores estéticos do marxismo e sobre o significado da arte para o povo. O auditório esperava num contristado silêncio que aquilo acabasse e Methuen. olhando do camarote posto à disposição da embaixada para as filas de caras fatigadas, voltou a sentir saudades dos sérvios galhofeiros, bonacheirões e indolentes que outrora conhecera. Havia um certo número de funcionários elegantemente vestidos nas cadeiras de orquestra, mas o que mais impressionava era a falta de elegância das mulheres. As suas roupas pareciam os remanescentes improvisados à pressa de um saldo; não traziam pintura e eram raras as que tinham os cabelos ondulados. Na sua maioria usavam o cabelo todo puxado para trás e preso com um gancho de osso.

 

- Aí os tem - disse Porson. - Aproveite para ver como são.

 

- É o que estou a fazer - tomou Methuen sombriamente. O jovem no palco chegou ao fim do seu discurso e desapareceu

 

nos bastidores; as luzes começaram a baixar. Nesse instante uma centelha de reconhecimento tremeluziu num par de olhos negros e Methuen aprumou-se na cadeira. Estava ali uma cara que ele conhecia. Por um momento não conseguiu lembrar-se de onde havia encontrado Vida - tudo o que conseguia recordar era o seu nome. E depois, enquanto prendia os olhos dela com os dele e correspondia ao seu olhar de reconhecimento, lembrou-se. Em Bari. no fim da guerra. Vida tinha servido no seu estado-maior como intérprete. O pai dela fora um distinto diplomata Realista e morrera no estrangeiro. Vida fora criada em França e durante a guerra prestara serviço nas forças da França Livre. Tinha sido emprestada a Methuen e ele ficara extremamente preocupado ao ouvir dizer que a rapariga voltara para a Jugoslávia depois da libertação. Sim, ali estava ela, em tamanho natural, sentada com um vago sorriso de reconhecimento a uns três metros dele.

 

Voltou-se e sussurrou para Porson: "Creio que vi uma pessoa conhecida. Você empresta-me a sua gabardina e o seu barrete no primeiro intervalo? Talvez tenha uma oportunidade de falar com ela." Porson pareceu um tanto sobressaltado, mas concordou pressurosamente. Não resistiu, contudo, a acrescentar: "Pelo amor de Deus tenha cuidado. Ela pode estar a trabalhar para a OZNA, não se esqueça." Mas Methuen já havia pensado nisso. Contudo, por aquilo que sabia da Vida dos outros tempos, a jovem Realista servia de cabelos negros e semblante grave, tinha a certeza de uma coisa: ela não o denunciaria.

 

Parecia estar sozinha visto que não falava com ninguém, e de vez em quando, mesmo na meia-luz aveludada, Methuen sentia os olhos da rapariga pousados nele. Quando as luzes se acenderam para o intervalo ele olhou-a fixamente e depois levantou-se; na penumbra do fundo do camarote conseguiu a custo introduzir-se na gabardina de Porson e quando saiu para o corredor cobriu a cabeça com o velho barrete cinzento que parecia ser a defesa favorita do sexto secretário contra a chuva. Não era ineficaz como disfarce porque a gabardina estava velha e coçada e escondia o seu impecável fato preto. Certamente que não dava nas vistas no meio da multidão mal vestida que já enchia ofoyer com o fumo irritante dos seus cigarros. Atravessou o pavimento de mármore arrastando ligeiramente os pés e postou-se contra uma coluna a estudar os anúncios das próximas produções. Ele ainda não sabia se Vida viria, e sobressaltou-se quando sentiu a mão dela tocar-lhe o braço e a ouviu dizer em voz baixa: "Zdravo, camarada." Ele saudou-a sem se voltar e puseram-se ambos a examinar atentamente os cartazes. Nas costas deles encontrava-se um pequeno grupo de estudantes que debatia qualquer coisa toleravelmente alto; a conversa era possível embora ele percebesse pelo tom de voz de Vida até que ponto ela estava amedrontada.

 

- Preciso da tua ajuda - disse Methuen falando em voz baixa num tom premente. Que tens feito desde a última vez que nos vimos?

 

- Tudo - respondeu ela. - Agora trabalho para eles, para a OZNA. A minha família está num campo de concentração. - Ele lançou-lhe uma olhadela de soslaio e tornou a ver aquele altivo rosto moreno com o seu nariz e a sua boca bem recortados. A boa-fé de certas pessoas espelha-se nos olhos e. olhando para os dela, Methuen percebeu que Vida não havia mudado. "Minha querida", perguntou ele. "não os podes deixar?" Vida fez que não com a cabeça. "Mas também estou a trabalhar para nós", acrescentou ela num sussurro apaixonado. "Temos de tentar derrubar este sistema injusto. Methuen, será que eles sabem na Inglaterra?" Um oficial de constituição atlética aproximou-se e postou-se ao lado de Methuen para estudar os cartazes, obrigando os dois a desviarem-se para um lado.

 

- Não - sussurrou Methuen.

 

- Os nossos admiravam e amavam a Inglaterra. Não podem acreditar que a Inglaterra esteja a ajudar os comunistas.

 

Os olhos dela cintilaram e as suas mãos cerraram-se. Por um momento Methuen receou que ela fosse romper numa violenta diatribe contra o regime. Pegou-lhe na mão e apertou-a.

 

- As Águias Brancas? - disse ele e estas palavras produziram uma extraordinária mudança no rosto da rapariga.

 

- Sabes alguma coisa a nosso respeito?

 

- Um pouco.

 

- Podes ajudar-nos na Inglaterra? Por favor conta a todos os que prezam a liberdade e a decência. Por favor ajuda a nossa causa. - Era a antiga Vida apaixonada animando-se por detrás da máscara de uma mulher prematuramente envelhecida.

 

- Fala-me de vocês - disse Methuen. f- Não vos conhecemos o bastante. Vocês desconfiam de nós.

 

- Eu sei. E com razão! Não foram vocês que puseram no poder este nosso amigo? - Fez um gesto com a cabeça na direcção de um retrato de Tito na parede do foyer. Uma campainha tocou fanhosamente e as pessoas começaram a esmagar as pontas dos cigarros antes de principiarem a regressar lentamente à plateia.

 

- Tenho de ir - disse ela. - Tenho de ir.

 

- Espera - pediu ele. - Preciso de falar contigo. Podemos encontrar-nos?

 

Os olhos de Vida toldaram-se de medo e ela hesitou.

 

- Por favor - insistiu ele - eu posso ajudar-te.

 

Ela esteve a pensar por um momento, presa de emoções contraditórias. Por fim o seu rostozinho altivo endureceu.

 

- Amanhã na galeria de pintura no Kalemigdan. o forte turco - disse ela. - Às doze. Nada de despedidas, por favor.

 

Vida deslizou discretamente através das portas e desapareceu. Methuen voltou para o camarote, presa das emoções contraditórias do triunfo e da incerteza. Se ela estava a trabalhar para a OZNA podia informar a organização da sua presença e causar-lhe complicações. Por outro lado, se era realmente a Vida que tinha trabalhado durante dois anos para ele. podia estar razoavelmente seguro de que a rapariga não o denunciaria - especialmente se fosse de facto membro das Águias Brancas! Tê-la encontrado poderia revelar-se um genuíno golpe de sorte.

 

Ao longo de todo o resto do espectáculo ele esteve impaciente e incapaz de se concentrar na música, que prosseguia o seu curso monótono na penumbra como um rio pouco profundo, mas ruidoso. Muito antes da última cena ele sentiu que já lhe bastava e, tendo pedido licença aos seus anfitriões, levantou-se para sair; tão-pouco Porson e Cárter lamentavam perder o resto do espectáculo porque estavam ansiosos por saber se o seu rendez-vous havia sido bem sucedido ou não. Regressaram a pé pelas ruas mal iluminadas até ao hotel, onde o carro de Parson estava estacionado, enquanto Methuen lhes descrevia o encontro com Vida e os seus planos para o dia seguinte.

 

- Devo dizer que foi um golpe de sorte - observou Cárter

- se o senhor tem a certeza de que ela não o vai denunciar.

 

- Seja como for se eu partir depois de amanhã a minha presença em Belgrado não chegará a ser notada. A OZNA terá de me encontrar o rasto antes de me mandar seguir. A propósito, costumam seguir-nos aqui?

 

- Naturalmente - rosnou Porson.

 

- Não dentro do teatro.

 

- Não. Mas havia um homem de casaco de cabedal à nossa espera do lado de fora.

 

- Estou a perder os meus dotes de observação - disse Methuen.

 

- Os carros só são seguidos se atravessarem os postos de controlo nas três estradas que saem de Belgrado, quando não acompanhados por um carro da OZNA.

 

- Terei de apear-me sem ser visto, algures na cidade - disse Methuen - para o meu encontro de amanhã.

 

Voltaram ao apartamento de Porson onde discutiram de novo o problema diante de uma bebida antes de cada qual seguir o seu caminho para a cama.

 

- Penso que os augúrios são favoráveis - disse o esgalgado sexto secretário com uma solenidade e decisão muito realçadas pelo whisky que bebera. - Porreiro. Vamos todos provavelmente figurar na lista das honrarias do fim de ano. O Marriot será preterido e eu promovido a conselheiro. E você o que é que escolheria, Methuen?

 

- A minha pensão de reforma e um pequeno apartamento em Londres - disse Methuen. que tinha a tendência para tomar as coisas à letra. - Mas - acrescentou num tom pouco convincente - também gostaria de poder voltar a viver estes últimos dez anos.

 

- Ah! - esclamou Porson apontando um dedo descarnado.

 

- Você é um devoto do trabalho. Não é capaz de deixar de trabalhar. Precisa de continuar. Acabará com úlceras e com o grau de cavaleiro.

 

- Não sei - disse Methuen. - Isso também não me desagradaria. - De súbito sentiu uma imensa lassitude ao pensar naqueles montes lá longe, no coração da Sérvia, com o seu segredo; ouviu o eco dos rios ao abrirem caminho através das gargantas, arremessando espuma para o ar. Como aquilo era lindo! E contudo, a morte súbita podia espreitar a cada canto. - Mas agora quero ir para a cama - disse, embora sentisse relutância em abandonar a confortável poltrona.

 

Nessa noite Cárter ficou surpreendido e um tanto comovido ao dar com ele ajoelhado ao lado da cama a rezar, vestido no seu velho pijama de lã grosseira com riscas castanhas.

 

- Eu vim só ver se precisava de alguma coisa - disse, a desculpar-se.

 

- Sim - disse Methuen. - Estava a rezar as minhas orações. Sempre o fiz desde criança. Nunca durmo bem quando o não faço.

 

- Orações! - pensou Cárter, metendo-se na cama e apagando a luz. - Sim. ele há-de precisar realmente delas no lugar para onde vai.

 

A Galeria de Pintura

 

O dia amanheceu bonito e o senhor Judson permitiu-se o regalo de um banho matinal no rio antes do pequeno-almoço, indo no carro de Cárter a um local fora dos limites da cidade. Cárter ficou na cama produzindo resmungos incoerentes e recusou participar naquela aventura. E deve reconhecer-se que não se mostrou muito envergonhado quando Judson reapareceu à mesa do pequeno-almoço para partir a casca do ovo com um ar de triunfante virtude.

 

- Não estou tão em baixo de forma como pensava - declarou ao seu anfitrião. - Nadei cerca de uma milha com uma corrente bastante forte.

 

- Depois dos quarenta, meu caro - disse Cárter, meneando a cabeça - uma pessoa tem de ter cautela. Ou lixa-se. Levantar cedo é bom para os jovens.

 

- Quando fez quarenta? - perguntou o senhor Judson.

 

- Há dois dias - respondeu Cárter.

 

Seguiram de carro para a embaixada muito bem humorados e o senhor Judson voltou a fechar-se com os livros de contabilidade que ele manuseou exactamente como se fossem palimpsestos raros e ligeiramente repugnantes. De certo modo a ideia do encontro com Vida tinha afastado a sua preocupação com as canções folclóricas servias; ela podia dar-lhes a chave para decifrá-los e poupá-lo a ulteriores cogitações. Assobiava em surdina enquanto ia copiando aquelas que haviam sido repetidas. Até o embaixador, ao que parecia, estava de bom humor. Havia um pequeno bilhete na sua secretária que ele abriu com alguma surpresa, maravilhado com o fino bordado da caligrafia no sobrescrito. "Meu caro coronel", leu, "nada me agradaria tanto como tê-lo à minha mesa apesar do que penso da sua missão aqui. Seja como for, como está cá mascarado de contabilista, sinto que seria má política chamar sobre si as atenções convidando-o para jantar. Creio que não tomará por grosseria a minha discrição".

 

- Muito decente da parte dele - pensou Methuen - dadas as circunstâncias.

 

Mostrou a carta a Porson que soltou uma risadinha zombeteira.

 

- Talvez ele tenha descoberto que você pesca. .

 

- A propósito: este rendez-vous...

 

- Sim?

 

- Pode emprestar-me o seu impermeável e o barrete?

 

- Leve-os meu caro caçador de espiões - disse Porson com uma expressão resignada. - Estão no corredor.

 

- E você larga-me em qualquer canto excêntrico da cidade para que depois não seja seguido?

 

- Com uma condição.

 

- Qual?

 

- Se ela for bonita apresenta-ma.

 

- Ah - disse Methuen. - Lá bonita ela é, mas não me parece que seja possível apresentar-lha.

 

- Uma espia bonita foi uma coisa que sempre desejei.

 

A cara gorda e trombuda de Marriot apareceu à entrada da porta da chancelaria.

 

- Ah - murmurou com inefável condescendência. - Ah, Methuen, tudo bem, espero?

 

- Sim - respondeu Methuen gravemente.

 

- Muito me apraz. Claro que deve sentir-se um pouco embaraçado com a atitude intransigente de SEXA para com o seu trabalho, mas sabe como as coisas são em diplomacia. - Sorriu tão amavelmente quanto lhe era possível e esfregou as mãos. - Temos de ser extraprudentes, extraprudentes.

 

A mudança na sua atitude era bastante acentuada e Methuen voltou-se para Porson quando a porta se fechou.

 

- Parece haver hoje uma ligeira diferença de atitude. - disse.

- Os indígenas mostram-se menos hostis.

 

- Começam a habituar-se à sua presença. Espere para ver quando tiver borrado a pintura e for trazido para cá numa padiola.

 

- Deus não permita - disse Methuen com um ligeiro toque de superstição.

 

- Venha daí - disse Porson. - São horas de irmos andando. Subiram para o velho carro de corridas que Porson guiava com grande perícia e atravessaram velozmente a cidade. Apesar do facto de não haver qualquer indicação de serem seguidos, Porson não quis correr riscos e durante vinte minutos andaram às voltas pela cidade, passando e voltando a passar pelos mesmos lugares até que num ermo de ruelas na zona a montante da ponte sobre o Sava. Methuen pediu para se apear. Nessa altura já tinha vestido o impermeável e posto o barrete de Porson.

 

Desceu uma rua e atravessou para o Knez Mihaelova, parando de vez em quando para olhar a montra de uma loja. O parque, por comparação com as ruas estreitas e as montras vazias das lojas, parecia singularmente convidativo e ele atravessou as alamedas asfaltadas na direcção da pequena galeria de pintura num passo ligeiro e elástico. Aqui e ali, naturalmente, avistava um miliciano de azul e não raramente um "homem de cabedal" (como Porson designava os da polícia secreta1, mas Methuen tinha a certeza de que eles não lhe prestavam qualquer atenção, e só esperava que Vida tivesse conseguido chegar ao local do encontro sem dificuldade. Comprou um bilhete para a exposição que comemorava a luta dos guerrilheiros do partido e entrou na galeria misturado com a multidão. O seu coração deu um pequeno salto porque a avistou imediatamente, parada no canto oposto da galeria a examinar um quadro. Abriu o seu catálogo e foi-se aproximando lentamente dela. examinando gravemente cada quadro por sua vez com um olhar judicioso. Não tardou muito que se encontrassem ambos parados diante de uma representação particularmente vistosa da quarta ofensiva e Vida sussurrou: "Sobe para a torre do forte. Irei ter contigo."

 

Com o mesmo ar de concentração, e sem mostrar pressa, ele fez o que lhe havia sido indicado: encaminhou-se para a saída da galeria e. voltando à esquerda, atravessou o espaço pavimentado, de cascalho que conduzia aos degraus de acesso à velha torre. O carreiro levou-o através de uma espécie de revelim e de um portão ao bastião central; aqui Methuen subiu a escada lentamente, parando de vez em quando para contemplar a magnífica vista que

 

1 De uma ingenuidade lamentável visto que de "secreto" nada tinham, sendo facilmente identificáveis. Muito diferentes, portanto, dos agentes seus homólogos da M 16 inglesa que trajando à paisana, se confundem com os seus concidadãos. (N. do T".)

 

mudava de sala para sala. Alguns casais passeavam ao sol no terraço, e um grupo de crianças brincavam num dos pátios, mas de uma forma geral o forte parecia mais ou menos deserto. Methuen meteu-se num canto das ameias a olhar para a confluência dos dois rios que seguiam o seu curso a redemoinhar em redor da falda do Kalemidjan. O Danúbio e o Sava juntam-se numa única corrente a jusante da ponte do Sava e continuam o seu curso rápido, barrentos e castanhos, na direcção do flanco ocidental da cidade.

 

Vida foi juntar-se-lhe ali pouco depois e passando-lhe um braço por cima dos ombros ficou ao lado dele enquanto Methuen tinha os olhos postos na suave planície púrpura que se prolongava na direcção da Hungria.

 

- Não é lindo? - disse ela.

 

Quem os visse pensaria que eram marido e mulher ali parados a descansar e pela primeira vez ele viu um sorriso de contentamento sem sombras no rosto da rapariga. A velha Vida estava a ressurgir.

 

- Por que trabalhas tu para eles? - perguntou por fim, depois de responder a algumas perguntas que ela lhe havia feito.

 

- Ah - disse ela - a única alternativa que me restava era tornar-me amante de alguém. Tiraram-me o cartão de racionamento porque recusei. Uma pessoa tem de comer. Mas felizmente, felizmente... descobriram que eu podia ser útil. Baixou a voz muitas vezes para um murmúrio: - Eles têm medo de nós, Methuen. Sabem que estamos a ganhar força. Sabem que está toda a gente do nosso lado e que o país se sublevaria amanhã se lhe fosse dado ouvir a voz de um chefe.

 

- Fala-me nas emissões de rádio - disse Methuen, disparando um tiro às escuras, e ficou encantado ao ver no olhar surpreendido da rapariga a confirmação de que havia acertado.

 

- Ah! Também sabes disso - disse ela.

 

- Um pouco. Sofia Maric deve ser também uma Águia Branca.

 

- Como é que vocês descobrem coisas que nem mesmo a OZNA sabe?

 

- Como é que as mensagens são transmitidas?

 

- Algumas são repetidas.

 

- Isso eu sei.

 

- A mensagem começa na décima linha.

 

Methuen sentiu vontade de bater em si próprio, furioso por aquilo não lhe haver ocorrido. Ele devia de facto ter pensado em qualquer coisa tão simples como isso. Com um súbito impulso tirou da algibeira a pequena antologia de canções folclóricas que Anson tinha levado consigo na viagem. Procurou á passagem assinalada a lápis e ficou encantado ao descobrir que começava na décima linha do poema.

 

- Que e isso? - perguntou Vida. - Alguma coisa não está bem?

 

- Sou um burro - disse Methuen. - Eu devia ter compreendido.

 

- Eu não devia contar-te isto - disse ela, apertando-lhe o braço através da manga do impermeável. - Jurei segredo. As Águias matar-me-iam. Já te contei que agora odeiam a Inglaterra quase tanto como odeiam Tito. Eu compreendo-vos. mas elas não compreendem. Ajuda-nos. Methuen.

 

- Como? - disse ele sem saber o que fazer. - Mas como?

 

- Neste mesmo instante o nosso movimento precisa de auxílio - disse Vida voltando os seus magníficos olhos negros para o companheiro. - Precisamos de ter acesso às mais altas instâncias na Inglaterra. Ser-te-á possível chegar ao primeiro-ministro com uma mensagem?

 

- Duvido.

 

- Também e importante para a Inglaterra. Algo de muito grande está a acontecer nas montanhas do sul da Sérvia. Temos nas nossas mãos os meios para derrubar o regime de Tito. Com certeza a Inglaterra há-de estar interessada nisso? Lembro-me de que quando trabalhava para ti. tu tinhas sempre que querias acesso ao gabinete do secretário de Estado Os nossos são uns selvagens, não confiam na Inglaterra. Pensam que se vocês soubessem o que descobrimos ajudariam Tito a sufocar o movimento. Oh, Methuen, estás a perceber?

 

- O que foi que vocês descobriram?

 

Os olhos de Vida marejaram-se de lágrimas e ela meneou a cabeça.

 

- Não te posso contar sem estar autorizada. Não devo. Não ouso.

 

Ouviram-se passos pesados nos degraus da torre e ela retirou o braço dos ombros de Methuen. Uma grande família, rodeada de crianças, emergiu no terraço com muitos arquejos e sopros e pôs-se a admirar a vista com considerável dispêndio de pragas e grunhidos. O pai apontava gravemente as vistas aos filhos: "Ali é Smederavo - ou devia ser se vocês pudessem vê-lo" e "Ali fica Zemun - só que está escondido pelo fumo..." Methuen sentia a rapariga tremer e lançando-lhe uma olhadela de soslaio viu que ela chorava silenciosamente. Vida acabou por dominar-se e assoou-se. A família servia foi saindo e o silêncio voltou a reinar.

 

- Parto amanhã - disse ele.

 

- Para Londres?

 

- Sim.

 

- Gostava muito de ir contigo. Mas sinto que devo ficar cá a ver como é que tudo isto acaba. Embora tenha sido criada no estrangeiro aqui sinto-me terrivelmente servia - e apertou a mão contra o coração com um velho gesto patético que comoveu Methuen. - Tu dantes também amavas o nosso país, Methuen. Viste aquilo que eles lhe estão a fazer?

 

Seguiu-se um silêncio durante o qual eles ficaram a olhar para a majestosa vastidão dos dois rios.

 

- Methuen - disse ela por fim - decidi uma coisa. Temos uma reunião secreta esta noite e pedirei autorização para te contar o que estamos a fazer. Uma simples frase bastará para que compreendas. Acredita em mim, não se trata de nenhuma insignificância. Mas só farei o pedido se me prometeres ires pessoalmente falar com o secretário dos Estrangeiros para lhe dizeres que a Inglaterra tem de nos ajudar. Prometes que irás? Prometes?

 

- Prometo de todo o meu coração - disse Methuen usando a adorável expressão servia com uma emoção que o surpreendeu - que tentarei. Isso prometo-te.

 

- Esta noite - disse ela, pegando-lhe na mão e beijando-a - depois da meia-noite podes telefonar para este número que te estou a dar. Pergunta por Sofia Maric. Pergunta se eu estou e se eu tiver autorização da minha gente dir-te-ei uma frase que contém todo o sentido. Então compreenderás.

 

Vida tirou do bolso uma pequena polvilheira e retocou a tez, dizendo enquanto o fazia: "Agora tenho de ir. Não sou capaz de exprimir o prazer que senti em ver-te; foi como uma visita à boa velha Inglaterra, Methuen. Eu sei que tu não nos esquecerás. Mas preciso de pedir autorização à minha gente".

 

Ela voltou-se e desapareceu antes de Methuen conseguir libertar-se das suas emoções e enfrentar as insuficiências da linguagem para exprimir até que ponto estava comovido. Voltando a atravessar os relvados e dirigindo-se para a embaixada ia repetindo incessantemente para consigo, enquanto atravessava as ruas estreitas da cidade baixa: "Que diabo poderá ser?"

 

Tão-pouco foi de grande ajuda Porson, que ouviu a história de olhos arregalados.

 

- Aposto que é urânio - disse depois de muitas conjecturas absurdas. Mas que utilidade teria isso?

 

- Urânio? - disse Methuen com resignação. - De que serviria isso para Vida e para a sua gente?

 

Porson fez um vago gesto circular com o braço

 

- Oh. não sei - disse ele. - Agora toda a gente parece querer urânio.

 

- Rapaz - disse Methuen severamente - não me faça perder tempo com conjecturas disparatadas. Deixe-me trabalhar um bocado nas mensagens. Se vamos partir amanhã já não temos muito tempo. E além disso Vida poderá entregar-nos o segredo esta noite.

 

Recolheu-se uma vez mais à pequena caverna do senhor Judson e afastando impacientemente os livros de contabilidade tirou de uma gaveta papel e lápis. Ele já tinha marcado os poemas repetidos que. segundo Vida. eram portadores da mensagem, e foi obra de um momento dispô-los por ordem cronológica e sublinhar cada décimo verso. Além do fragmento já citado, Methuen reuniu as seguintes citações:

 

Ó rei assediado por inúmeras sombras Não deves partir como os mortos A não ser que o teu património vá contigo, E esse pertence-nos.

 

A pedra-de-toque secreta do rei Descobrimo-la nós, mas muitos São os murmúrios e graves os perigos Só a rapidez poderá ajudá-lo.

 

A ajuda ao rei será trazida

 

Por amigos quadrúpedes.

 

Caravanas para transportar as suas insígnias

 

E transformar a sua humilhação em vitória.

 

No mês da pega

 

Ele deve partir numa sebe de mosquetes

 

Procurando o mar

 

Onde encontrará ajuda à sua espera.

 

Dactilografou estes fragmentos em várias cópias, entregando uma a Porson e outra a Cárter para que eles pudessem estudá-los independentemente. Porson tornou-se tremendamente solene e pôs-se a olhar fixamente para eles através do monóculo. "Meu caro amigo", disse desanimadamente, "nunca fui muito bom em charadas. Mas esta massa de disparates eslavos altamente metafóricos deixa-me simplesmente às aranhas."

 

- Tentem - pediu Methuen. - Pensem nisso um pouco. Jantemos juntos e vejamos se conseguimos extrair daí qualquer sentido.

 

O seu entusiasmo tinha dado lugar ao desânimo porque lhe havia ocorrido subitamente que podiam estar a tentar decifrar um código previamente combinado - que o significado podia não se encontrar nos versos propriamente ditos. Cada verso podia corresponder a uma mensagem de antemão convencionada; nesse caso nem todo o pensamento deste mundo seria capaz de decifrar aquelas expressões oraculares. Apesar disso alguma coisa era evidente - as alusões ao "património" do rei, à "pedra-de-toque", etc., pareciam ter qualquer relação com a revelação de Vida sobre uma certa coisa que as Águias Brancas tinham descoberto: alguma coisa de que talvez tinham andado à procura.

 

Ao jantar nessa noite nem ele nem os seus colegas tinham conseguido decifrar o enigma. Porson sugeriu que "amigos quadrúpedes" podia significar "cavalos", mas esta foi a sua única contribuição para a discussão. Cárter declarou com franqueza que não percebia nada e acrescentou desanimadoramente:

 

- Mas é sempre isso que me acontece quando me metem uma poesia debaixo do nariz. Desde os meus tempos da escola.

 

Não havia nada a fazer a não ser esperar o telefonema que poderia oferecer-lhes a chave do mistério.

 

- Lamento ter-me tornado num maçador - disse Methuen

- mas estes problemas são tremendamente excitantes e prendem uma pessoa. Devo confessar, porém, que exceptuando o "mês da pega" que é Junho, não consigo adiantar mais nada.

 

Parecia mais prudente deixar a coisa em suspenso por algum tempo visto que Cárter estava a mostrar uma certa disposição para bocejar e impacientar-se. Depois de jantar jogaram uma ou duas partidas de rummy1 e ouviram o noticiário. Cárter possuía uma excelente colecção de discos clássicos e tocou-os até serem horas de telefonar. Decidiram fazê-lo de uma cabina telefónica exterior visto serem menores as possibilidades do telefone estar sob escuta. Porson conhecia um posto junto da paragem do eléctrico no fim da rua. e por consequência os três dirigiram-se para lá num passo de passeio. Quando atravessaram o jardim e passaram o portão, Methuen viu um vulto mexer-se no escuro do outro lado da rua.

 

1 Jogo de cartas. (N. do T.)

 

- Ah sim - disse Cárter seguindo-lhe o olhar - todos nós temos homens-de-cabedal a vigiar-nos. Acabamos por habituar-nos a eles.

 

Desceram a rua mal empedrada no meio das árvores; só uma em cada três lâmpadas estava acesa e havia grandes trechos da rua completamente às escuras.

 

- Não seria difícil livrarmo-nos dele - disse Methuen.

 

- Para quê? - tomou Cárter encolhendo os ombros. - Dou sempre um passeio depois do jantar e ele já se habituou à ideia.

 

Contornaram a linha de vivendas às escuras e desceram a ladeira. A paragem do eléctrico estava bem iluminada, embora a essa hora da noite houvesse poucos passageiros à espera. Uma comprida fila de carroças puxadas por cavalos passava ruidosamente pela estrada principal que se alongava entre eles e o rio. Algures nos parques dos depósitos de mercadorias uma máquina apitou duas vezes e depois calou-se. Levantou-se um pouco de vento lançando pequenas espirais de poeira a redemoinhar pelo pavimento empedrado da rua e agitando a densa folhagem das árvores. Eles iam avançando de sombra para sombra, e de sombra para sombra o homem de casaco de cabedal ia-os seguindo.

 

- Aí está ela - disse Porson. e depois de lançar um olhar dissimulado ao relógio Methuen separou-se dos outros e dirigiu-se rapidamente para a cabina telefónica.

 

A lâmpada estava partida e havia um cheiro enjoativo a óleo de girassol. Ele teve de procurar com os dedos e marcar os números cuidadosamente. A excitação apoderou-se de Methuen ao ouvir no escuro os ruídos secos de uma ligação a ser estabelecida e o lento trim-trim distante indicativo de que uma campainha estava a tocar algures.

 

Os segundos alongavam-se eternamente no silêncio. Talvez ele tivesse marcado o número errado? Talvez o tivesse decorado mal. Mil e uma possibilidades acudiram-lhe à mente, contudo ignorou-as calmamente e continuou a empunhar o auscultador com mossas à espera de que a campainha se calasse e uma voz respondesse. A sua imobilidade comunicou-se aos outros dois que tinham ficado fora da cabina, a fumar calmamente. O homem do casaco de cabedal retirara discretamente para um poço de sombra e foi engolido por ela.

 

Houve um ligeiro estalido e depois uma voz falou: "Está?"

 

- Minha senhora, por favor - pediu Methuen roucamente - posso falar com Sofia Maric?

 

Houve um momento de hesitação como se a pessoa no outro extremo da linha estivesse a reunir forças. Depois disse: "E a própria que fala."

 

- Nesse caso, pode ter a bondade de me deixar falar com a Vida. se ela aí estiver?

 

A resposta veio como uma bofetada.

 

- A Vida morreu.

 

Houve o ligeiro estalido seco do telefone a ser pousado

 

- como uma haste de aipo a quebrar-se - e Methuen foi deixado com o auscultador preto no meio dos dedos trémulos. Mil suposições inundaram-lhe a mente enquanto ali esteve. Depois voltou a ligar o número uma e mais vezes ouvindo o fatigado ronrom de uma campainha a tocar ao longe. "A Vida morreu." As palavras continuavam a ecoar no seu cérebro numa repetição monótona. "Não pode ser", dizia ele para consigo, furiosamente. A campainha continuava a tocar.

 

Depois por fim ouviu-se um estalido e um homem atendeu com uma voz pastosa de sono.

 

- Alo - disse Methuen. - Por favor, desejo falar com Sofia Maric. É urgente.

 

A voz do outro lado adquiriu um registo mais profundo quando respondeu: "Não há ninguém aqui com esse nome. Enganou-se no número."

 

Methuen dirigiu-se lentamente para a rua. sentindo-se atordoado e entorpecido. Juntou-se aos dois companheiros no seu lento regresso a casa. e a todas as perguntas que eles sussurravam ansiosamente limitava-se a repetir numa voz sucumbida: "Eles dizem que a Vida morreu."

 

Voltaram a casa em silêncio e afundaram-se nas poltronas forradas de cretone da sala em atitudes de prostração. Cárter preparou para todos um whisky-soda com uma solicitude que mostrava ele não ignorar que Methuen recebera um profundo choque.

 

- E contudo não e possível - acabou por desabafar Porson.

 

- Quem iria matá-la? E porquê?

 

- Vocês já estão a ver a natureza daquilo com que estamos a lidar. Há obviamente qualquer coisa de grande na forja e a ideia de que ela pudesse comunicá-la ao governo britânico alarmou as Águias Brancas. Portanto eles... - Teve dificuldade em pronunciar as palavras: - Assassinaram-na. Ou sequestraram-na. Só Deus sabe.

 

- Por outro lado - disse Cárter - a OZNA podia tê-la desmascarado. Eles são morbidamente desconfiados dos seus próprios funcionários. Vigiam-se todos uns aos outros. Ela pode ter-se denunciado.

 

- Sim - disse Methuen. - Sim. - Uma fúria selvagem começava a erguer-se dentro dele. - Pobre Vida.

 

Era uma sorte haver ainda tanta coisa a preparar para a sua viagem do dia seguinte. Isso distrairia a sua mente do assunto.

 

Levantou-se e dirigiu-se ao quarto onde fez com as suas roupas e equipamentos um embrulho e entregou-o a Porson que era quem iria a conduzir o carro. Depois sentou-se e redigiu um longo relatório para Dombey. expondo os novos elementos que se lhe haviam deparado e pedindo-lhe que mandasse averiguar o que se passava a partir de Londres o mais depressa possível. Cárter encontrava-se ainda na sala de estar quando ele voltou.

 

- Posso contar consigo - perguntou Methuen - para mandar esta comunicação a Dombey sobre o que se passou esta noite? É um relatório actualizado, menciono nele o "telefonema"

 

Cárter fez que sim com a cabeça.

 

- E Cárter...

 

- Sim?

 

- Se perder contacto comigo por amor de Deus prometa-me não levantar nenhum alarido junto do governo até haverem decorrido dez dias completos sem qualquer mensagem minha. Se eu encontrar qualquer coisa que valha a pena isso pode exigir tempo e se a OZNA se pusesse de repente à minha procura podia estragar tudo.

 

Cárter hesitou.

 

- Muito bem - disse por fim - embora não vá ser fácil moderar SEXA. Ele é muitíssimo impaciente.

 

- Você deve tentar. Estou decidido a ir até ao fundo deste negócio nem que seja preciso arranjar um visto de permanência e passar aqui o resto da minha vida.

 

- Esteja descansado, meu velho - disse Cárter afavelmente. Estava a lembrar-se de Anson: do corpo que ele tinha ajudado a transportar de pés para a frente através da porta da Chancelaria: um corpo enrodilhado num velho cobertor do exército. O amigo passara uma noite em cima da mesa carregada de mapas da repartição antes da agência funerária local tomar conta dele. E depois toda aquela complicação para arranjar um carpinteiro que lhe fizesse um caixão. - Vá para a cama e descanse um pouco - disse por fim. levantando-se e passando o braço pelo ombro de Methuen.

- Espera-o amanhã um dia muito difícil.

 

Fechou o relatório de Methuen no pequeno cofre de parede e apagou a luz. Do peitoril da janela retirou o vaso de flores onde a previdente OZNA havia colocado um microfone pouco maior que uma abelha. Estava obturado.

 

- Mandamos-lhe uma mensagem antes de recolhermos à cama? perguntou Cárter, mas Methuen não estava com disposição para brincadeiras.

 

- Se fosse a si eu desligava isso - disse.

 

- Ah. mas nesse caso eles colocariam outro noutro sítio. Pelo menos sei onde ele está - disse Cárter, afagando o vaso amorosamente.

 

Methuen resmungou umas boas-noites. Enquanto se despia dizia para consigo: "Vida morreu." Contudo de certo modo não podia acreditá-lo; mas quem podia duvidar que isso fosse verdade?

 

Adormeceu.

 

A Viagem para a Montanha

 

Ainda fazia escuro quando o pequeno despertador verde ao lado da cama começou a ronronar discretamente e despertou Methuen de um sono que tinha sido relativamente calmo e sem sonhos. Sentando-se na cama ao despontar do dia sentiu-se como um nadador preparando-se para mergulhar numa lagoa. Em breve teria de mergulhar nas águas desconhecidas da aventura. Para onde o arrastariam ele não sabia; mas a acção era um alívio para o excesso de meditação. Ela fazia entrar em cena um lado diferente do seu carácter, a parte onde a experiência e a vontade se substituíam à dúvida e à conjectura; onde o pirata se substituía à pessoa comparativamente tímida e respeitadora da lei que ele era.

 

Cárter entrou-lhe no quarto com uma chávena de chá e encontrou-o a barbear-se com metódica atenção, assobiando docemente em surdina enquanto o fazia. O jovem major notou uma nova frugalidade, uma nova agilidade nos seus movimentos quando ele se encaminhou para a janela e abriu as cortinas para as trevas que não tardariam a dissipar-se.

 

- A que horas amanhece?

 

Em Junho a luz chega relativamente cedo e enquanto atravessavam o relvado encharcado de orvalho do jardim as primeiras faixas amarelas começavam a tocar o céu oriental. Cárter pôs a funcionar o motor do carro com um estrépito que acordou a sentinela na guarita improvisada no fundo da rua. Aliviou o pedal da embraiagem e começaram a descer cuidadosamente aos esses a rua esburacada na direcção do Sava; atravessaram as linhas dos eléctricos e. voltando para a direita, aceleraram ao longo da alameda que os conduziu à embaixada. O ar da manhã estava deliciosamente húmido e fresco com o orvalho do rio que fluía a perder de vista no meio das árvores à sua esquerda, abrindo caminho na fértil lama aluvial da planície servia.

 

Não havia carros na estrada mas eles encontraram uma longa procissão de sonolentas carroças trazendo para os mercados da capital as suas cargas, uma grande parte das quais era constituída por espigas de milho destinadas a fazer pão. Os condutores vinham empoleirados nas boleias como mochos adormecidos, aconchegando as roupas contra a friagem da manhã; em muitos carros mulheres e crianças dormiam amontoadas. Cárter conduzia habilmente mas em silêncio, pelo que Methuen lhe estava grato pois isso permitia-lhe juntar e ordenar os seus recursos interiores para a aventura que o aguardava.

 

No primeiro plano dos seus pensamentos surgia a figura de Vida - aqueles olhos negros suplicantes que imploravam silenciosamente a sua crença numa causa que toda a gente considerava morta. Pensando naqueles olhos ingénuos e cândidos e naquela preciosa personalidade comunicativa, Methuen quase esqueceu quão miserável era a causa que ele defendia; talvez não fosse pior do que aquilo que existia presentemente - mas não se revelaria um desapontamento tão grande caso alguma vez chegasse a triunfar? A isso ele não se sentia capaz de responder. Tudo o que podia dizer era que o presente era injusto, cruel e dedicado à morte.

 

Porson e Cárter chegaram simultaneamente à embaixada e percorreram juntos o caminho de carros antes de deixarem as suas viaturas no parque de estacionamento. Depois os três dirigiram-se para a entrada lateral e premiram o botão de bronze da campainha. Um sonolento guarda-nocturno espreitou por um postigo de latão e tendo-os reconhecido deixou-os entrar; encontrava-se em mangas de camisa e tinha estado a dormir na poltrona do vestíbulo.

 

- E agora mãos à obra - disse Porson. - Hubbard, importa-se de nos fazer café e trazê-lo ao meu gabinete?

 

- Com certeza, sir.

 

Porson ajustou o monóculo e sentou-se numa poltrona de cabedal, cruzando as pernas descarnadas e juntando as pontas dos dedos.

 

- Ouça-me com atenção - disse, com o ar de um advogado famoso resumindo um caso para um júri suburbano - o carro de serviço que usamos encontra-se na garagem atrás da embaixada. Há uma entrada pelas traseiras que lhe vou mostrar. Você deita-se atrás e esconde-se. Pouco depois aparecerei na entrada da frente, assobiando despreocupadamente e conduzo o carro para a entrada da Chancelaria para recolher Blair, o amanuense que vem connosco. Depois pomo-nos a caminho. No último controlo depois do Avala afrouxamos e exibimos a nossa licença para viajar; haverá uma rápida contagem de cabeças (mantenha a sua escondida) e depois fazem-nos sinal para seguir. Uns cem metros adiante um grande Buick negro cheio até às bordas de tartamudeantes polícias analfabetos sairá de trás de uma moita e começará a seguir-nos. Você então poderá emergir e mudar de roupa à vontade, transformando-se na criatura que desejar, antes de se precipitar no brejo conforme está previsto.

 

- Onde está o meu equipamento?

 

- Já está no carro.

 

- A minha cana de pesca?

 

- Sim. Sim - disse Porson de mau humor e erguendo os olhos para o céu moveu por um momento os lábios numa prece muda; depois, como se estivesse a dirigir-se ao seu Criador, disse:

- Senhor! A única coisa que lhe importa é a cana de pesca. Que terão feito as OEQ para merecerem semelhantes egoístas com ideias fixas?

 

Havia ainda algum tempo disponível enquanto Blair e os amanuenses reuniam a mala para o consulado de Skoplje. Tomaram o café constantemente bombardeados pelas observações chocarreiras de Porson que parecia um nadinha delirante - talvez devido à hora matutina a que tivera de levantar-se.

 

- Bem - disse ele por fim.

 

- Estou pronto - disse Methuen. e havia ritmo no seu passo quando seguia o escanzelado secretário pelo corredor que levava à Residência e pelos degraus que desciam para a cave: aqui derivaram para a esquerda e atravessaram a grande e bonita sala de bilhar e sala de baile combinadas até chegarem à cozinha. Num canto uma pequena porta verde abria directamente para a garagem.

 

- Aí está - disse Porson.

 

O enorme Mercedes esperava-os como um velho navio ilustre ancorado na escuridão. Methuen lançou-lhe um rápido olhar avaliador. Velho era sem dúvida, mas o motor potente e os fortes amortecedores tornavam-no o mais apropriado possível para percorrer o tipo de estradas que se encontravam na Servia e na Macedónia.

 

Libertou-se do casaco, do colete e dos sapatos e entregando-os a Porson entrou para as traseiras e deitou-se no chão. Cobrindo-o com um cobertor de lã grossa Porson disse: "E agora bico calado." A porta verde fechou-se com um estrondo e Methuen ficou às escuras respirando o cheiro de verniz e gasolina que impregnava o ar. Mas não teve de esperar muito porque, pouco depois, ouviu passos aproximarem-se no carreiro asfaltado e as portas da frente da garagem abrirem-se ruidosamente para trás nos seus sulcos. Assobiando (embora ele não pudesse ver até que ponto despreocupadamente). Porson entrou no carro e pôs o motor a funcionar. O seu profundo murmúrio abafou tudo o mais. O carro deslizou suavemente para o carreiro e foi parar à entrada da Chancelaria onde Blair esperava com o saco branco do correio, ao lado.

 

- Toca a embarcar! - gritou Porson. e não tardou que navegassem a todo o pano pelas ruas da capital, derrapando nas linhas dos eléctricos e aos solavancos nos buracos da estrada. Porson conduzia com uma velocidade extravagante, acompanhada de muitos palavrões e pragas quando roçava as traseiras dos autocarros ou grupos de pessoas eram atirados para fora do caminho pelo som da antiquada buzina com que o carro estava equipado.

 

- Não toque em nada. ou então é que eles nos apanham advertiu nervosamente Blair. um natural do norte de Inglaterra, de pele branca e sardenta.

 

- Pff! Eu tocar nalguma coisa? Tenho uma licença imaculada. Blair. Não receie.

 

Eles corriam ao longo das estradas sinuosas que se dirigem para sul através das aprazíveis pastagens ondulantes e dos bosques onde o vulto escuro do monte Avala se ergue na planície sem acidentes. O velho Mercedes entrou no seu ritmo normal e o potente motor de seis cilindros fixou-se num suave e contínuo ronronar que indicava força. A manhã agora aproximava-se depressa e Methuen gostaria de poder ver a paisagem recordada dos seus tempos de estudante desdobrar-se uma vez mais de um lado e do outro. Fazia calor debaixo do cobertor. Atravessaram velozmente um certo número de aldeias adormecidas e subiram pela falda do monte coroado de abetos antes de Porson dizer, por cima do ombro: "Agora vamos à contagem de cabeças. Methuen. e estamos safos."

 

Um miliciano vestido de azul apareceu na estrada ostentando na mão um sinal de madeira branco. Porson afrouxou para lhe dar tempo que ele visse a chapa de matrícula do corpo diplomático, enquanto Blair se debruçava da janela apresentando os documentos.

 

O miliciano acenou que sim com a cabeça e recuou. Tinham passado. O Mercedes voltou a acelerar e começou a contornar a base do monte onde a estrada desce abruptamente para a planície.

 

- Agora aí vem a escolta - disse Porson. e quando passavam velozmente por um desvio um comprido Buick lustroso meteu-se na estrada e começou a segui-los.

 

- Por que será que vêm sempre quatro tipos no carro? perguntou Blair. - Não consigo entender.

 

- Não pode ser só pelo passeio - resmungou Porson. E voltando de novo a cabeça para trás. acrescentou: - Methuen. já pode levantar-se.

 

Methuen apressou-se a abandonar o seu lugar no chão e afundou-se com um suspiro nas almofadas do assento traseiro. A parte de trás do carro estava fechada e os vidros laterais subidos, tornando impossível para o automóvel que os seguia ver o interior do Mercedes. Ainda lhes faltavam algumas horas para alcançarem o vale do Ibar e Methuen começou metodicamente a pôr em ordem o seu equipamento e a vestir-se. Tinham partido muito mais cedo que de costume de modo a que ele dispusesse de tanta luz do dia quanto possível depois de ter dado o salto para o desconhecido.

 

Enquanto enfiava as pesadas botas de montar ia olhando para a paisagem do amanhecer, o grande campo ondulante que se estendia para o sul na direcção das montanhas escuras que por enquanto eram apenas simples borrões cor de malva contra o horizonte. Era-lhes possível uma elevada média horária na excelente estrada macadamizada que numa série de curvas e de voltas graciosas se dirige para Topola. erguendo-se como uma andorinha através dos cortes, subindo e baixando no meio de colinas intensamente cultivadas. De ambos os lados vinhedos estendiam-se a perder de vista e Methuen não resistiu a fazer a Porson uma breve prelecção sobre os vinhos sérvios que outrora estudara com afeiçoada aplicação. Estavam a atravessar uma zona famosa da região vinícola.

 

- Fora do nosso alcance, infelizmente - disse Porson - ou nesta altura eu já teria reunido material suficiente para uma monografia. O que nos aparece na cidade é artigo de qualidade inferior.

 

O Buick negro não os perdia de vista, mantendo-se sempre a cerca de trezentos metros. Methuen espreitou-os através da janela com a cortina corrida.

 

- Eles estão tremendamente perto - disse um tanto alarmado. Os lábios de Porson encresparam-se num sorriso de homem experimentado naquelas andanças.

 

- Espere até começar a poeira - respondeu. - Eles vão ter de engolir o nosso pó ao longo de todo o caminho para a Macedónia. Você devia vê-los quando chegarmos a Skoplje: até parece que trazem todos cabeleiras empoadas e bigodes postiços. Não se preocupe. Methuen. Teremos tempo de sobra.

 

Methuen fumava e reflectia enquanto o grande automóvel comia rapidamente caminho. Tinha enrolado a cana de pesca e a parte mais volumosa do seu equipamento no colchão portátil. Nas várias algibeiras e suspensões do seu magnífico casaco tinha colocado a pistola e a bússola, um pouco de combustível sólido, uma garrafa de calor de meio quartilho, e o seu dilecto Walden.

 

- Caramba - disse Porson - qualquer pessoa pensaria que você vai demorar-se meses.

 

- Vou - disse Methuen sombriamente.

 

O sol agora já estava bastante quente e Porson disse com satisfação:

 

- Vai haver uma data de poeira. É uma coisa boa! Escalaram aos solavancos as ladeiras empedradas de Mladenovac de onde saíram a sibilar penetrando novamente no campo descoberto. O Buick seguia-os sempre à mesma distância. Blair distribuiu uns biscoitos e uma excelente garrafa de vinho que partilharam. Ficaram mais animados mas, por detrás dos gracejos de Porson, Methuen notava uma reserva que não se manifestara até aí. Por sua parte, embora olhasse para a paisagem fagueira com um prazer familiar recapturado na memória, sentia as asas negras do perigo a abrirem-se por cima deles - e no meio de tudo isso o pensamento da morte de Vida erguia-se para atormentá-lo, deixando dentro dele um ressentimento e uma determinação a arder a fogo lento.

 

- Você não se esqueça de telefonar para Belgrado - disse

- e de lançar na vala conforme combinado quaisquer mensagens que haja para mim.

 

- No meu regresso - confirmou Porson acenando com a cabeça. - Partimos à meia-noite e estaremos consigo um pouco antes do amanhecer.

 

A meio caminho entre Mladenovac e Kralevo a estrada começou a deteriorar-se aparecendo manchas de pedras rebaixadas no meio do asfalto e depois, enquanto descreviam uma curva arborizada. Porson disse:

 

- Agora repare.

 

O asfalto cessou abruptamente e o carro mergulhou no arruinado caminho vicinal coberto de pó e de pedras soltas. Em tomo deles levantou-se uma nuvem que polvilhou os ramos mais baixos das árvores.

 

- Olhe para trás - disse Porson com um prazer maldoso. Methuen fê-lo. Estavam a levantar uma cortina de fumo de poeira de um amarelo bilioso - de um volume impenetrável.

 

- Jesus! - exclamou ele. genuinamente compadecido dos polícias que viajavam no Buick que os seguia.

 

- Daqui em diante eles ficam cerca de um quarto de milha para trás - disse Porson radiante. - Às vezes reduzimos também o andamento para os chatear.

 

Depois de atravessarem Kralevo numa nuvem de pó, o som do motor do carro mudou quando se dirigiram através da planície para a cordilheira que agora começava a erguer-se diante deles a sul; o rio corria à esquerda, destacando-se na planície com o seu brilho verde e amarelo. A estrada e o rio convergiam lentamente para a vaga garganta indistinta que assinalava a entrada do vale do Ibar.

 

- Já falta muito pouco - disse Porson numa voz que denunciava uma mal controlada excitação.

 

Methuen puxou calmamente uma fumaça ao cigarro antes de atirá-lo pela janela.

 

À entrada da sombria garganta, onde as montanhas se erguem para a direita e para a esquerda, a estrada, o caminho-de-ferro e o rio. depois de um aparentemente infindável namoro, apertam-se subitamente e passam lado a lado através da estreita passagem de rocha. Aqui o Ibar torna-se rápido, castanho e barrento; álamos e salgueiros gigantescos, com as raízes fincadas nas margens xistosas como articulações, sombreavam toda a extensão da estrada. O ar torna-se denso com o cheiro de água, porque vários rios mais pequenos abriam caminho através da montanha indo desaguar no Ibar e as paredes rochosas em desagregação, que flanqueiam a garganta, estão cheias de nascentes de água fresca. O vale, a despeito de toda a sua sombra, está cheio do chilrear da passarada que se mistura com o trovejar das águas do Ibar rugindo na direcção de Rashka.

 

O caminho-de-ferro parecia um brinquedo. Tinha sido rasgado no flanco da montanha e a via passava através de uma série de túneis de rocha todos eles rigorosamente guardados por piquetes. Methuen via as figuras diminuídas dos guardas passeando ao longo do parapeito de pedra, parando a fim de observarem lá do alto o carro à medida que ele ia passando. Cada secção de túnel tinha a sua patrulha especial e os soldados apanhavam sol nos balcões, fumando ociosamente ou atirando pedras para as águas rápidas do Ibar lá em baixo.

 

- E como é que me livro deles? - perguntou Methuen.

 

- A parte onde você vai saltar está completamente oculta pela vegetação - apressou-se Porson a responder. - Eles não o podem ver. - Só quando subir o monte é que terá de ocultar-se. Olhe. um comboio!

 

Ouviram uma série de apitos abafados e um pesado trovejar através do rio. Os guardas despertaram e tomaram posição. O volume do trovejar aumentou e finalmente um comboio que se parecia absurdamente com um brinquedo emergiu do túnel de rocha com um penacho de fumo cinzento - como se tivesse sido disparado da boca de uma arma. Rodou lentamente ao longo do parapeito, arrastando uma comprida bandeira de poeira fuliginosa e fumo. e com um silvo catarroso voltou a mergulhar na rocha, as suas rodas produzindo um forte ruído ribombante como uma bola de bilhar rolando num pavimento de pedra. Sessenta metros adiante, antes da cauda do comboio ter aparecido no primeiro parapeito, a máquina voltou a emergir com outra tossidela.

 

- Entra e sai da rocha - disse Porson - como uma agulha no pano.

 

- Um trabalho difícil, rasgar aquele caminho-de-ferro - disse Methuen com moderado interesse profissional; o rio era demasiado forte para qualquer nadador.

 

- Está bem guardado - disse Porson - embora uma boa explosão no túnel...

 

Continuaram para a frente por entre o tremeluzir dos ramos das árvores da margem que se debruçavam sobre a estrada. Por detrás deles a nuvem de poeira disparava pela estrada fora reduzindo a visibilidade a zero. Verdelhões amarelos e pegas folgavam nas árvores, e aqui e ali as severas paredes de rocha que lhes ficavam à direita recuavam e abriam-se em montes de cumes arredondados, as vertentes íngremes cobertas de bétulas e faias, mostrando às vezes pequenas leiras cultivadas. Uma fortaleza franca em ruínas dominava uma eminência e Methuen surpreendeu a cintilação do sol em qualquer coisa que podia ter sido o cano de uma arma no bastião oriental. Trazia na mochila um pequeno binóculo de longo alcance mas não teve tempo de apontá-lo àquele alvo tentador.

 

- Há uma companhia de soldados lá em cima no forte - disse Porson. - Fornecem os piquetes para o caminho-de-ferro. Duas metralhadoras. Nada de mais pesado.

 

Ia reduzindo gradualmente a velocidade e o grande carro rodava sem esforço pela bela estrada ribeirinha, entrando e saindo das sombras projectadas pelas árvores. Descreveram uma curva e o forte foi engolido; aqui as árvores cresciam muito juntas, os castanheiros e os eucaliptos erguendo as suas copas poeirentas para o céu.

 

- Estamos a chegar - disse Porson.

 

Depois da curva seguinte havia uma mó branca ao lado da cabana arruinada de um guarda-linha que era o seu ponto de referência.

 

- Tudo preparado - disse Methuen calmamente e agarrou no saco-cama portátil ao mesmo tempo que baixava a maciça janela do carro.

 

- Está a vê-la?

 

A mó emergiu das sombras cor de malva da parede de rocha e veio na direcção deles como um dedo que aponta.

 

- É agora. Felicidades! - gritou Porson.

 

Methuen deu um impulso e atirou com o saco enrolado para a vala; depois abrindo a porta mergulhou atrás dele para o matagal profundo, escorregando e rebolando até ao fundo enquanto o grande Mercedes acelerava e o cobria com uma nuvem de poeira acre. Porson deu uma buzinadela que ecoou como o grito selvagem de uma ave solitária no meio das rochas.

 

O Pescador Solitário

 

Methuen imobilizou-se contra a margem íngreme, a face colada à erva húmida por um tempo que lhe pareceu nunca mais acabar. O ruído do Mercedes esmoreceu gradualmente e foi substituído pelo rugir do Ibar no seu leito pedregoso. A nuvem de poeira foi-se rarefazendo aos poucos e começou a assentar, enquanto de uma árvore vizinha chegavam as notas nítidas aflautadas de um pássaro a cantar. Methuen sentia o coração bater com força contra a erva húmida e fria. O carro da polícia nunca mais passaria? Ficou atentamente à escuta esperando ouvir o som do motor; o pesado casaco de lã grossa causava-lhe calor. Um grilo cantava ao seu lado na erva. Por fim, depois do que lhe pareceu um século, ouviu o silvo do motor do Buick a aumentar gradualmente. "Não parecem nada preocupados", disse Methuen para consigo. O carro descreveu a curva e ele ouviu o rádio que tocava uma valsa vienense. Depois foi engolido uma vez mais pela parede impenetrável de poeira branca e aproveitando-se disso pôs-se de pé, agarrou no seu fardo e galopou para a protecção das árvores.

 

A uns cem metros do ponto onde saltara abria-se uma estreita garganta formando ângulo recto com a garganta principal do rio e ali o rápido e pouco profundo Studenitsa rolava e caía de uma série de plataformas de rocha, cobertas de musgo escorregadio, para se juntar com o rio maior. O ar estava cheio de espuma, e as árvores pendiam da arriba alcantilada em todos os ângulos. A cobertura aqui era abundante e boa e, evitando o caminho de mulas, Methuen dirigiu-se deliberadamente para montante pela margem do rio, escorregando e patinando na superfície mole do terriço, abrindo caminho através dos densos maciços de fetos na direcção do cume, uns oitocentos metros acima.

 

A subida era dura mas no ar transparente do vale ensopado de espuma Methuen sentiu-se animado. De vez em quando parava para descansar, olhando da pequena clareira de vegetação para onde a estrada corria abaixo dele como uma cicatriz branca ao lado do rio negro. Em dado ponto emergiu num contraforte que dominava o caminho de mulas e viu um grupo de camponeses conduzindo para o vale dois carros de bois carregados de madeira. Tanto quanto se lembrava, havia apenas dois pequenos lugarejos ao longo do rio Studenitsa, e a única actividade humana exceptuado o cultivo da terra centrava-se numa serração que flanqueava o mosteiro no cume. Ali havia acampado uma vez ao lado das águas calmas do rio e passara a maior parte do Verão a pescar com um amigo sérvio. Ao fim do dia subiam à serração para beber aguardente de ameixa com os frades e trocar histórias de pesca com a comunidade. Também ali tinham experimentado as diferentes maneiras de cozinhar a truta, e Methuen recordava claramente o sabor do peixe cozido no creme da nata avinagrada chamada kaimak que serve de manteiga aos camponeses.

 

Mas estas recordações não o faziam afrouxar a vigilância e ele avançava protegido pela sombra das faias, mantendo o rio à vista mas nunca se arriscando nas zonas descobertas. Em meia hora tinha chegado ao cume e ali o rio alargava-se com o vale, enquanto os montes se abriam em planaltos profundamente recortados atravessados por deliciosos caminhos que rodeavam as luxuriantes leiras de milho e os campos de feno sarapintados que se abriam para o sol da tarde.

 

Aqui as florestas de carvalhos cornam até à beira da água e Methuen podia caminhar sobre a erva abundantemente tachonada de flores. O mundo parecia vazio de seres humanos. Para leste um rebanho de ovelhas pastava sem o pastor que estava sem dúvida a pescar no rio umbroso abaixo da serração. Aqui foi dar também com pomares cheios de ameixoeiras e sebes a transbordar de amoras tão grandes que a despeito de si próprio ele se debruçou para colher algumas. Ao longe, para a esquerda, oculto por uma lomba da colina, ficava o convento, e vindo dessa direcção chegava-lhe aos ouvidos o queixume de uma serra; mas evitou-o e iniciou a subida do vale, guiado pelas suas memórias de um Verão que tinha julgado esquecido. Ele próprio sentia-se admirado pelo rigor da sua memória, pois naquele vale encantado nada parecia ter mudado. O rio continuava a correr no silêncio com um doce marulhar de água revolvendo seixos - um fundo cristalino de som contra o qual os cantos das aves se erguiam vivos e pungentes no ar húmido. As sebes estavam apinhadas de uma variedade de flores, e os seus olhos perspicazes detectaram a presença de velhos amigos, bocas-de-lobo amarelas, linho azul-celeste. Aqui os montes afastavam-se numa série de verdejantes ondulações até onde, suavemente desenhadas contra o céu, se erguiam as montanhas altaneiras da Sérvia central, lilases. verdes e vermelhas; e em toda esta terra adorável não havia sinais de vida, nem recuas de mulas levantando poeira, nem homens armados emboscados entre as árvores. Não era capaz de imaginar como fora que Anson tinha encontrado problemas ali, o caminho era tão fácil, os pontos de visibilidade tão abundantes, a cobertura tão boa.

 

O sol estava ainda suficientemente quente e Methuen ainda continuava a suar profusamente em consequência da subida íngreme; por isso banhou a face no rio gelado e concedeu a si próprio um descanso de cinco minutos numa mata enquanto examinava os montes em volta com o binóculo. Havia pouca coisa que lhe interessasse. Contra um horizonte remoto avistou bois a lavrar, e a leste descobriu uma choça rústica de empenas pontiagudas, mas quanto ao mais o mundo parecia recém-nascido, despovoado. Mas aqui e ali havia grandes extensões de campos de milho e cevada que implicavam a presença de cultivadores, e nas pastagens que lhe ficavam a norte ouvia-se o tilintar dos chocalhos das ovelhas. Lá muito ao alto no céu sem nuvens de Junho uma águia pairava. Ligeiras rajadas de vento sopravam fungos e bocadinhos de palha através do rio.

 

Numa curva arborizada do rio Methuen surpreendeu um frade solitário a pescar debaixo de uma árvore e foi obrigado a subir a colina pelo lado de trás a fim de não passar por ele. Mas nem mesmo aquele homem comunicava qualquer impressão de vida à paisagem onde estava sentado tão imóvel, as costas contra uma árvore, a cana entalada entre os joelhos. Talvez estivesse a dormir. Methuen ficou a observá-lo durante algum tempo detrás de umas espigas de milho à espera de vê-lo apanhar um peixe, mas em vão. O rio corria tão suavemente debaixo da sua linha como a erva sobre a qual ele se sentava. De vez em quando uma noz caía da árvore para a água. "Pescar em seco", disse para consigo próprio, "essa é a verdadeira sabedoria" e perscrutou as águas arrepiadas para ver o que era que atraía os peixes à superfície: mas isso era satisfazer a sua curiosidade de uma forma extremamente arriscada e não tardou a dominar-se.

 

O seu objectivo era uma série de cavernas consideravelmente grandes na margem oposta onde o rio penetrava numa ravina de terras vermelhas e amarelas. Ali tinha-se abrigado em tempos da chuva e ali esperava encontrar agora um quartel-general já pronto onde pudesse depositar o seu equipamento antes de se lançar numa exploração metódica da serrania. Assim sendo, abandonou as árvores e atravessou o rio num vau. indo dar a um estreito carreiro coberto de ervas por onde foi subindo gradualmente até ao matagal espesso que estrangulava a entrada do desfiladeiro.

 

Não havia, tanto quanto podia ver. outros pescadores nas redondezas e isso era surpreendente por se tratar do ponto onde o Studenitsa se tornava realmente piscoso. Duas grandes forquilhas de pedra limitavam a água e aí. numa grande extensão, o rio parecia abafado por um sólido chão de ramos que tinham vindo a boiar desde as montanhas lá no alto. e que fora coberto por um denso tapete de musgo verde. Ali havia também dois enormes penedos contra os quais a água formava poços negros à direita e à esquerda da sua corrente. Espreitando do alto para os fundos recessos desses poços Methuen avistou as grandes imagens vagas dos peixes vagueando indolentemente no meio das sombras. Mas ele não devia permitir-se semelhantes distracções, não cessava de dizer para si próprio, enquanto seguia o carreiro ao longo das margens alcantiladas da ravina; a dada altura, numa volta no caminho, tornou-se visível o canto do pomar onde o frade tinha estado a pescar. Methuen lançou uma olhadela para trás e viu o vulto ainda ali sentado, imóvel.

 

Voltou-se e estava prestes a dirigir-se para o carreiro quando qualquer coisa na imobilidade daquela figura distante o impressionou, qualquer quietude anormal na postura que não se alterara nem um milímetro nesta última hora. Dominado por um súbito impulso. Methuen atirou com a mochila para trás de uma moita e arrepiou caminho, descendo a encosta tão depressa quanto o permitiam as suas pesadas botas, sentindo o mato rasteiro pegar-se-lhe aos tornozelos de ambos os lados. Emergiu uma vez mais atrás do outeiro e uma vez mais se aproximou silenciosamente do pescador imóvel.

 

Ao abrigo de uma moita de densos arbustos atirou uma pesada pedra para o rio ao lado do pescador, desaparecendo de vista mal o fez. A pedra bateu ruidosamente na água sobressaltando o peixe, mas a figura do pescador solitário não se moveu. Vendo isto, Methuen armou o cão da pistola que trazia em bandoleira ao ombro e desceu a correr a encosta até à margem. Surgiu ao lado do homem e ajoelhou para fitar o rosto morto com um horror lentamente crescente que se comunicava agora a toda aquela paisagem onde os dois homens se encontravam, o vivo e o morto.

 

Havia um rasto de sangue na boca e pelos buracos no hábito rasgado Methuen pôde ver a causa da morte - as feridas ocasionadas por balas. Ele tinha sido alvejado frontalmente da outra margem onde os pinhais descem até ao rio oferecendo densa protecção a quem se quisesse ocultar. Talvez a vítima estivesse adormecida, porque o cadáver jazia encostado à árvore; fosse como fosse a morte súbita que o alcançou não perturbou a serenidade contemplativa da sua postura. A cana estava apoiada contra uma pedra e a vara de salgueiro ficara-lhe entalada debaixo das pernas ao sentar-se. Em torno do pescoço pendia um letreiro onde alguém escrevera numa caligrafia tosca: "Traidor". Ele tinha praticamente sido pregado com balas contra aquela árvore como o corpo de um gaio é pregado contra a porta de um celeiro para servir de exemplo. O aviso presumia que quem por ali porventura passasse não ignoraria a quem ele havia traído, e quem lhe fizera pagar o preço supremo pela sua traição.

 

Methuen era como um homem que acorda subitamente de um sonho; toda aquela paisagem montanhosa, até então encantadora, encheu-se subitamente de sombras e presságios. Estendeu a mão, hesitantemente, para tocar o ombro do cadáver - como uma pessoa estenderia a mão para tocar num fantasma, para ver se era realmente de carne e osso: e com grande horror seu a figura desabou. O chapéu preto cónico rodou para a água e foi arrebatado tão rapidamente como a cana de pesca feita de uma vara de salgueiro. O morto era um velho, com bastante mais de sessenta anos. Tinha um aspecto horrível jazendo ali ao sol na sua sotaina esfarrapada.

 

Methuen, depois de fazer uma sondagem, atravessou o rio passando por um banco de seixos e uma vez na outra margem tentou calcular a posição de onde o assassino fizera fogo. A relva era suficientemente espessa para pegadas, mas mais acima o lado pedregoso da arriba não conservava quaisquer marcas de pés. Contudo, não era de pegadas que ele andava à procura. Pôs-se a procurar perseverantemente como um cão de caça. subindo a rastejar a falésia íngreme, agarrando-se aos arbustos e içando-se com o apoio dos galhos das árvores. De vez em quando parava para se orientar pela árvore fatal que o enfrentava do outro lado do rio, e decorrido um quarto de hora julgou-se aproximadamente na posição de tiro de onde o velho frade havia sido alvejado. Andou às voltas por entre os arbustos e por fim encontrou o que procurava - uma pilha de invólucros de cartuchos ejectados - caídos junto de uma faia. Revolvendo-os entre os dedos reconheceu pertencerem ao tipo usado para alimentar as pistolas-metralhadoras.

 

Meteu-os na algibeira e depois de um derradeiro olhar para a árvore fatídica com o corpo estatelado debaixo dela, voltou para o mato e recomeçou a dirigir-se para a ravina, cheio de apreensões. Nem se distraiu com especulações a respeito de pescarias naqueles poços tentadores, porque de repente os bosques à sua volta pareciam ter-se povoado de um exército de olhos invisíveis que vigiavam todos os seUs movimentos. Ele suportou com serenidade este breve ataque de nervos; tinha-o sentido muitas vezes no início de uma operação perigosa. Mas de certo modo estava grato pelo incidente do pescador morto porque viera arrancá-lo ao sentimento de falsa segurança em que se deixara embalar pela paisagem.

 

Recuperou a mochila e seguiu o caminho sinuoso sobranceiro ao rio ao longo de algumas centenas de metros até alcançar um esporão sombreado por uma enorme nogueira que projectava uma sombra negra sobre a falésia; algures nessa sombra encontrava-se a entrada de uma caverna e Methuen estugou o passo para alcançá-la. A entrada fazia ângulo com a parede principal da falésia, admiravelmente camuflada pelos arbustos e pela sombra da árvore.

 

Encantado por verificar que a memória ainda era boa, estava prestes a penetrar na caverna, empunhando a pistola para o caso dela já estar ocupada por um homem ou por um animal, quando um silvo agudo o fez recuar. Uma enorme víbora amarela, achatada no meio dos seus anéis poeirentos, barrava a entrada. Methuen parou, visando-a através da mira do seu revólver, relutando em iniciar com um disparo a ocupação do seu novo quartel-general. A víbora tornou a silvar e a língua bifurcada tremeluziu na minúscula cabeça malévola. Methuen esteve um bem contado minuto a reflectir. Com as suas grossas botas pouco tinha a temer do réptil e pelo que se lembrava da caverna sabia que havia uma alta plataforma de pedra que podia servir de cama. Se lhe fosse permitido viver e deixar viver: ou antes, se a víbora fosse capaz de viver e deixar viver...

 

- Vamos, minha linda - disse ele aduladoramente - tem calma - e passou lentamente diante do réptil entrando na caverna. A víbora tornou a silvar, mas não se moveu, talvez porque estivesse com sono, ou talvez por se ter empanturrado de efémeras.

 

Uma vez lá dentro Methuen acendeu a lanterna e confirmou as suas recordações daquele remoto fim-de-semana em que se haviam abrigado ali de uma tempestade. Ali estava a larga plataforma de pedra, idealmente apropriada para servir de cama; e no extremo oposto lá estava a longa falha na rocha constituindo uma chaminé natural que permitia acender uma fogueira. - Até agora tudo bem

- disse ele.

 

Lançou mãos à obra para pôr a casa em ordem com a metódica destreza que só a prática confere, ignorando a cobra que continuava a apanhar sol na boca da caverna. Primeiro abriu a mochila e depois, pegando numa navalha de mola, cortou uns ramos de verdura para servirem de enxerga. O transporte dos ramos alarmou muito a cobra, mas ela já começava a dar sinais de se ter habituado a Methuen e ele ignorava-a, convencido de que se ela picasse nunca atravessaria o grosso cabedal das suas botas. Feita a cama para essa noite, a seguir juntou um pouco de lenha numa clareira próxima onde umas árvores haviam sido derrubadas, deixando uma camada de lascas e casca admiráveis para o fim em vista. Uma vez concluídos estes preparativos básicos da instalação doméstica, Methuen voltou para a cobra e derramou algumas gotas de chá da sua garrafa de calor como uma oferta de paz, mas foi obviamente um gesto que não despertou compreensão no réptil porque este se desenroscou afastando-se e silvando furiosamente - contudo, pensou Methuen. mais de pena do que de cólera.

 

- Muito bem. muito bem - disse ele, e deixou a víbora em paz.

 

A noite começava agora a cobrir rapidamente as montanhas e tendo-se despojado de todo o seu equipamento excepto a pistola e o binóculo. Methuen ficou mais à-vontade. Da sombra da entrada da caverna explorou todo o terreno com grande cuidado, esquadrinhando metodicamente os contornos cor de malva dos montes. Não havia sinal de movimento, salvo onde o vento agitava as copas das árvores na crista vizinha. Methuen sentou-se calmamente numa pedra a embeber-se naquele sossego, interrompido apenas pelo apito distante de um comboio passando no flanco da parede de rocha por cima do rio Ibar, ou pelo ondular das espigas nos campos a seus pés. O marulhar do Studenitsa era silenciado pelos poços forrados de musgo onde ele redemoinhava, e Methuen viu o peixe vir languidamente à superfície atraído pelas moscas que salpicavam a água.

 

Ultrapassava tudo o que uma pessoa podia suportar, esse espectáculo da vinda do peixe à superfície quando anoitecia e, apressando-se a regressar à caverna, Methuen desencantou a sua cana de pesca e começou a descer a vertente, aliviando a consciência com uma mentira: "Eu sei que é demasiado perigoso pescar esta noite, mas seria uma boa ideia montar a minha cana de pesca e escondê-la num lugar conveniente junto do rio, pronta para qualquer emergência". A consciência não acreditou; e, efectivamente, quando chegou ao poço mais próximo descobriu um lugar tão bem abrigado das vistas de todos os lados que não resistiu a fazer o que descreveu a si próprio como "um ou dois lançamentos para praticar".

 

Numa questão de momentos tinha uma luzidia truta a arquejar e a debater-se na agonia em cima da relva onde se tinha sentado, e Methuen estava precisamente a metê-la no bolso do seu casacão de lã quando uma restolhada no mato, mesmo atrás dele, mas um pouco mais acima, o sobressaltou. Ocultou a cana de pesca e escondeu-se atrás dos arbustos, empunhando a pistola e esperando pelos acontecimentos. Mas não se produziram nenhuns e passado um quarto de hora ele aliviou as cãibras dos joelhos rastejando rápida e silenciosamente para a grande nogueira, sentindo ao longo do caminho a truta a contorcer-se no bolso.

 

A cobra recolhera à cama e o feixe amarelo da lanterna não revelou nada de anormal na caverna. Descarregou a truta e voltou à entrada com o binóculo, decidido a lançar uma derradeira olhadela pelas imediações antes que a escuridão, a adensar-se rapidamente, tornasse impossível a visibilidade. Morcegos tinham começado a voltear contra o céu, e do norte chegou o pio plangente de uma coruja. Methuen sentou-se embebendo-se no silêncio e cheio daquela deliciosa calma que só conhece o campista que sabe que tem comida, combustível e abrigo para a noite próxima.

 

Agora chegavam daqui e dali os rumores nocturnos dos animais que se preparavam para dormir. Um grande lobo cinzento desceu à margem para beber e, tendo levantado o focinho para farejar o ar, olhou uma ou duas vezes na direcção de Methuen com manifesta ansiedade antes de voltar a desaparecer no meio da espessura dos arbustos. Uma ratazana d'água chapinhou e um lagarto retardado escapuliu-se velozmente por entre as rochas.

 

Methuen descobriu subitamente que estava cansado e, bocejando, voltou à caverna, fechando a entrada com um biombo de ramos. A câmara principal onde ele ia dormir formava um ângulo recto com a entrada, portanto não tinha a recear que a luz da sua fogueira pudesse ser vista; ao passo que por aquilo que se lembrava da chaminé na rocha, o fumo, que emergia trinta metros mais acima na encosta do monte, onde as correntes de ar eram mais fortes, dispersava-se no ponto de saída.

 

Methuen tinha trazido um pequeno jogo de escudelas que incluía também uma grelha onde preparou a truta depois de deixar a fogueira ficar reduzida a um monte de fofos tições cinzentos; untou-a com um pouco de banha raspada de uma lata de carne de conserva e apimentou-a ligeiramente com uns cominhos que descobrira perto de uma choça no seu caminho através da montanha. Soube-lhe deliciosamente e comeu-a com os dedos, limpando-os ao casaco; depois de comer, tomou um gole do seu frasco de whisky antes de se instalar finalmente para passar a noite no pedestal de pedra. Eram apenas seis e meia e ainda não escurecera completamente, mas como ele tinha trabalho para fazer no dia seguinte pensou que uma boa noite de sono era o melhor seguro contra a fadiga. Apesar de se ter gabado de estar em perfeita forma a escalada da montanha deixara-o muito fatigado e Methuen teve ó cuidado de abrir uma pequena caixa de talco e de despejá-lo liberalmente nas peúgas. Uma longa experiência ensinara-lhe que um calcanhar com bolhas poderia ser perigosíssimo para ele, e tomou a precaução de massajar os pés depois de os libertar das botas que Boris encomendara para ele. Era um velho truque de caminhante herdado da Primeira Guerra Mundial, quando os que tinham a pouca sorte de contrair "pé-de-trincheira" ' eram punidos por esse facto.

 

O fofo colchão de fetos sobre o qual ele abrira o seu saco-cama era confortável e cheirava bem, embora Methuen já soubesse que tinha de ser mudado todos os dois dias ou então enchia-se de pulgas

- de onde elas vinham fora coisa que ele nunca conseguira descobrir. Instalou-se para dormir depois de colocar a lanterna e a pistola ao alcance da mão. As paredes maciças da caverna apagavam todos os sons do mundo exterior e naquele silêncio Methuen sentiu a sua mente a aclarar-se lentamente quando voltou a pensar nos incidentes dos-últimos dias tão perturbadoramente cheios de promessas de soluções que o destino não deixara concretizar.

 

O pensamento doloroso da morte de Vida voltou a afligi-lo; e depois - aquelas estranhas mensagens oraculares que eram transmitidas pela rádio em dias alternados para os pequenos grupos de emigre Realistas em Paris e Londres - que significavam elas? Tinha trazido uma cópia tirada a papel químico das mensagens e

 

' Ulcerações nos pés em consequência de longas marchas. (N. do T.)

 

pensando nelas sentiu-se tentado a acender a única vela que trazia na mochila e a lê-las uma vez mais antes de adormecer; mas desistiu e deixou-se levar no dorso da corrente do rio pouco profundo da memória para o sono que esperava por ele como um poço escuro.

 

Os ponteiros do relógio de pulso mostraram-lhe que faltava um quarto para as quatro quando acordou, e Methuen sentou-se com um sobressalto. Uma espécie de instinto semi-irracional parecia dizer-lhe que tinha sido despertado pelo ruído de passos. Agarrou na pistola, confortado pela frialdade da coronha, e esperou. Nada. O profundo silêncio enchia todos os cantos da caverna, salvo onde um mosquito solitário zumbia no escuro. Estava prestes a voltar a deitar-se de costas quando o ouviu - o desajeitado arrastar de botas na margem abaixo da caverna. Era como se alguém tivesse escorregado e caído. Methuen esperava agora com todos os músculos tensos; mas não se seguiu mais nada. portanto, depois de uma pausa, enfiou as botas e. empunhando a lanterna, dirigiu-se lentamente para a entrada onde espreitou através do biombo de ramos para um fragmento do céu nocturno ainda cheio de estrelas que se iam apagando.

 

Não se avistava nada e depois de novo silêncio prolongado Methuen afastou os ramos tão silenciosamente quanto lhe foi possível e arrastou-se para a pedra onde a grande nogueira projectava o seu círculo de sombra. A encosta da colina dormia ainda inocentemente debaixo do céu de um tom muito diluído de alfazema. Olhou ansiosamente em volta, mas não conseguiu encontrar nada que lhe pudesse dar uma indicação sobre a natureza do seu visitante - se tal ele era. Algures no alto do monte um galo cantou e dos lados do mosteiro vieram respostas enrouquecidas ao seu clarim. Um vago ribombar distante anunciava um comboio. Mas em toda a sua volta a vegetação rasteira da floresta e o rio conservavam-se completamente silenciosos.

 

Methuen estremeceu com um súbito arrepio matinal e refez os seus passos para a caverna onde acendeu a fogueira e pôs um pouco de água a ferver, consolado com o calor dos raminhos a arder. O ruído proviera provavelmente de algum lobo vagueando à procura de caça. pensou, recordando o incidente da noite passada; fosse como fosse precisava de ter cautela. E os seus pensamentos voltaram-se involuntariamente para o cadáver do frade jazendo perto do rio atrás da outra lomba do monte. Seria uma infelicidade se o assassínio do velho atraísse qualquer, atenção indesejável para esta zona e comprometesse o seu quartel-general. "Suponho que seria mais seguro mudar-me", pensou Methuen em voz alta, contudo, sabia que não lhe agradaria nada abandonar tão esplêndido esconderijo.

 

Ocupou-se a arrumar a sua improvisada casa, enterrando os sobejos do jantar na terra mole da entrada e limpando os utensílios que sujara na véspera. Quando acabou este trabalho tinha a água a ferver e fez uma chávena de chá, indo bebê-la lá fora, parado a ver os tons pálidos da luz do amanhecer que começavam a elevar-se a leste. O dia iria ser ocupado a patrulhar a linha de caminho-de-ferro a norte e sul do vale, e com isto em mente partiu no seu traje de fantasia muito antes do sol nascer, atravessando o rio no ponto mais próximo, e dirigindo-se rapidamente para a depressão coberta pela floresta que ficava em frente dele. Desta vez contornou o convento e ficou por um momento a olhar para a velha serração ao lado do café onde outrora se sentava e jogava xadrez com os outros frequentadores. Parecia que nada tinha mudado. Havia uma luz acesa numa das janelas da taverna e Methuen imaginou um grupo de madeireiros bebendo as suas aguardentes de ameixa antes de iniciarem o dia de trabalho.

 

Levou uma hora a alcançar o ponto onde o vale principal interceptava o vale formado pelo Studenitsa e aí parou para comer umas ameixas e umas amoras que encontrou num pomar abandonado e para lavar a cara num poço. Depois internou-se na densa floresta que coroava o cume, mantendo o vale à sua esquerda e parando de vez em quando para varrer o rio e o caminho-de-ferro com o seu binóculo. Não havia nenhum sinal de movimento anormal exceptuados dois camiões cheios de polícias fardados de azul reforçados por alguns homens-de-cabedal. Dirigiam-se para norte a certa velocidade e Methuen imaginou que o seu destino fosse qualquer granja colectiva onde tivessem eclodido distúrbios e onde eles restabeleceriam rapidamente a ordem com os seus bastões e algemas.

 

O ar nesta montanha era leve e puro e embora ele caminhasse depressa sentia-se cheio de energia; de facto, precisava de esforçar-se para não cantar enquanto andava. Examinou a fortaleza que tinha avistado na véspera e calculou que não estivesse aquartelada ali mais de uma companhia de soldados; contudo, os túneis do caminho-de-ferro, que passava uns trezentos metros abaixo do ninho de águias, estavam todos muito bem guardados e Methuen tinha a maior cautela em não se expor, não fosse ser visto da outra ravina por alguém que utilizasse um binóculo tão potente como o dele.

 

Mas quanto mais avançava tanto mais surpreendentemente pacífica se tornava a paisagem. Aqui e ali havia homens a cavar, e de certa vez avistou uma recua de mulas descendo a montanha, mas de uma forma geral não havia nada que indicasse a presença de alarmes ou perigos. Uma vez encontrou uma velha a apanhar lenha e deu-lhe os bons dias. baixando-se apenas para perguntar se ela tinha algum leite para vender; mas o gesto da mulher - erguendo ambas as mãos ao céu - disse-lhe mais eloquentemente que quaisquer palavras até que ponto estavam necessitados os camponeses que viviam naquelas bandas. Methuen perguntou-lhe algumas coisas que. embora úteis para ele, poderiam ser perguntadas por qualquer viandante; e contou à velha camponesa que se dirigia para Rashka onde ia visitar a família.

 

- Por que não vai pela estrada? - perguntou ela. - É mais fácil.

 

Methuen piscou-lhe significativamente o olho e respondeu:

 

- Mãe. a estrada está cheia de carros oficiais e muito poeirenta.

 

Por volta do meio-dia ele tinha percorrido várias milhas sem ver nada que despertasse o seu interesse e deitou-se para um descanso num campo de milho. Tinha conseguido localizar o ponto onde saltara do carro na véspera e também a árvore que pairava sobre a estrada, e da qual teria de atirar o seu relatório a Porson - a não ser que resolvesse esperar junto da pedra do moinho e apanhar uma boleia para Belgrado. Calculou que o ponto de encontro ficava exactamente a uma hora de caminho da caverna que escolhera para seu esconderijo.

 

Iniciou o regresso à caverna ia a tarde no fim, mas desta vez apanhou algumas maçarocas para o jantar e quase encheu uma das suas grandes algibeiras de caçador furtivo com amêndoas e pêras-anãs roubadas. Encorajado pela tranquilidade reinante abandonou várias vezes o caminho coberto para meter por um prometedor atalho através dos campos perfumados, e foi quando estava a atravessar o rio por uma pequena ponte de madeira que encontrou um homem levando uma mula carregada de alforges. Methuen desviou-se para deixá-lo passar e saudou-o rudemente, respondendo o homem num tom taciturno. Era um bruto enorme e feio, vestindo umas roupas gordurosas e remendadas e polainas de lona. Cobria-lhe a cabeça um chapéu de palha roto. Tendo atravessado o rio voltou-se para encarar Methuen e disse:

 

- Quem é você? Você não é dos nossos!

 

Methuen repetiu a sua história só que em vez de mencionar Rashka, que ficava na direcção de onde ele agora vinha, referiu outra aldeia mais para o alto da montanha. Estreitaram-se os olhos do homem que relanceou uma olhadela furtiva à sua volta.

 

- Você está sozinho? - perguntou, e pareceu tranquilizado quando Methuen respondeu que estava. - Tenho tabaco para vender - acrescentou, numa lamúria insinuante.

 

- Bom?

 

- Do melhor.

 

- Não tenho dinheiro.

 

- Que é que você tem?

 

- Uma agulha e linha.

 

Os olhos do homem alargaram-se e um sorriso cobriu-lhe a face.

 

- Uma agulha! - repetiu e a surpresa fê-lo rir.

 

- Da América - disse Methuen, seguindo à risca as instruções que recebera de Bons. - Recebo uma carta de agulhas todos os meses.

 

O homem descarregou o burro, tirou de um alforge um grande rolo contendo alguns quilos de tabaco de contrabando e meteu-o nas mãos de Methuen dizendo:

 

- Em toda a nossa aldeia só temos uma agulha que é passada de casa em casa.

 

Este incidente pareceu amolecê-lo e ele mostrava-se disposto a parar e a tagarelar, mas Methuen estava ansioso por seguir viagem.

 

- Tenha cuidado lá em cima! - gritou o homem quando se separaram. Depois piscou o olho e lançou a Methuen um medonho olhar de través. - São más reses!

 

"Será possível", perguntou Methuen para consigo, "que ele me tome por uma Águia Branca?"

 

Atalhou por um pomar e desceu a vertente atrás do convento; ao todo percorrera cerca de sete milhas ao longo dos quatro lados de um rectângulo. O cadáver do velho frade jazia junto do rio e por um momento Methuen sentiu um rebate de consciência: devia, supunha ele, cavar-lhe uma sepultura. Mas não lhe sobrava tempo nem energia e qualquer desvio do seu plano central poderia revelar-se fatal. Meteu-se na caverna, onde a cobra continuava de sentinela e, descalçando as botas, acendeu uma vela e começou a redigir o seu breve relatório para Dombey.

 

Passos na Noite

 

A sua excursão dera-lhe muito mais confiança e nessa noite permitiu-se a si próprio passar uma hora de arrebatamento a pescar antes de regressar à caverna. As trutas mostravam pouco interesse pela Pale Olive Dun, mas quando se tratava de uma Winged Standard vinham logo à superfície, e quando apanhados pelo anzol mostravam pouca disposição para lutar; assim em meia hora ele tinha capturado peixe suficiente para dar de jantar a oito pessoas. Tentou duas das moscas que o embaixador tinha pelas suas próprias mãos prendido no anzol, mas sem êxito digno de nota, e Methuen abandonou-as pesarosamente por serem possivelmente demasiado coloridas para o fim a que se destinavam.

 

A cobra dava também os primeiros sinais de domesticação, porque já não soltava o seu silvo quando ele aparecia à entrada da caverna, o que lhe permitia andar de um lado para o outro com mais confiança, embora não ousasse descalçar as botas a não ser que se encontrasse fora do alcance do réptil na cama de pedra que escolhera. O seu jantar dessa noite foi mais substancial, com truta grelhada, duas maçarocas e uma sobremesa de nozes e amoras: e Methuen comeu-o ao lado de uma fogueira rugidora que enchia a caverna de um clarão rosado e dissipava as humidades vespertinas que subiam do rio.

 

Não lhe levou muito tempo escrever uma breve descrição da exploração desse dia, e acrescentar que tencionava ficar – não dizia por quanto tempo. A este relatório juntou uma nota para transmissão a Dombey dizendo que estava bem e que a pesca era excelente. A seguir, pondo de parte estas tarefas enfadonhas, limpou a pistola, e depois de pôr em ordem o seu equipamento deu-se ao luxo de meia hora de Walden, deliciando-se com a corredia prosa oracular que nunca o cansava e que parecia conter uma mensagem que o tantalizava sem nunca o satisfazer:

 

"O tempo nada mais é que a corrente onde vou pescar. Bebo da sua água, mas enquanto bebo vejo o leito de areia e descubro como é pouco profundo. A sua ténue corrente desliza, mas nunca sai dali."

 

Methuen não saberia explicar por que motivo frases como esta o obcecavam, contudo, faziam-no, carreando meios tons que o induziam a repeti-las para si próprio em surdina. E era particularmente quando se encontrava num lugar como este, longe das moradas dos homens, que ele encontrava nesse livrinho uma profundidade e uma ressonância que o fazia sentir-se solidário com o americano sozinho na sua cabana de troncos, vendo as folhas cair no poço de Walden.

 

Soprou a vela e meteu-se no saco-cama, repetindo outra dessas frases oraculares como um talismã. "Imposturas e enganos são tomados por profundas verdades, ao passo que a realidade é fabulosa!" Methuen murmurou a palavra "fabulosa" duas vezes e cogitando no que queria dizer o seu autor deslizou suavemente para um sono profundo.

 

Uma vez mais foi acordado nessa noite pelo que lhe pareceu o som de passos furtivos perto da caverna. A fogueira estava reduzida a uma camada fofa de cinza, e o seu relógio marcava um quarto para as três. Desta vez, porém, decidiu ser mais ambicioso, e gatinhando rápida e silenciosamente para fora da caverna deixou-se escorregar pela encosta até à beira da água e esperou ali meio minuto antes de vadear a corrente e subir de gatas o outeiro em frente. Daqui podia examinar a entrada da caverna e a encosta do monte em volta dela com o seu potente binóculo nocturno, mas a visibilidade era fraca e a despeito da longa vigília não conseguiu ver nada capaz de explicar o ruído. Voltou para a cama e passou o resto da noite ansiosamente dormitando e acordando em sobressalto ao menor som.

 

O dia amanheceu enevoado e com um vestígio de humidade que pressagiava um temporal de chuva, e Methuen ocupou-se a examinar a zona a norte da caverna com a mesma minúcia metódica que consagrara na véspera ao caminho-de-ferro. O campo por estas redondezas enredava-se numa cadeia de ondulantes colinas coroadas por grandes florestas de bétulas e ali ele' não encontrou vivalma. O vento chocalhava e rugia nestas terras altas, enchendo o ermo melancólico com o som da folhagem sacudida e dos ramos a ranger. Em certa ocasião avistou da encosta de uma colina vizinha uma fila de cinco homens montados em cavalos com altas selas rígidas. Iam armados e através do binóculo Methuen pôde ver os seus capotes cinzentos de soldados e até distinguir a estrela vermelha que todos traziam no barrete. Esteve a ver a coluna deslocar-se lentamente até desaparecer ao longo dos flancos orientais da montanha em frente. Os seus movimentos sugeriam os de uma patrulha de rotina sem qualquer fim preciso em vista e Methuen reparou que o comandante da força que seguia em frente nem sequer levava a espingarda em posição de poder servir-se dela prontamente, trazendo-a em bandoleira às costas. Os soldados não pareciam temer qualquer emboscada naquelas montanhas ermas.

 

O cenário agora tornava-se mais belo que nunca, embora profundamente solitário, salvo aqui e ali um bonito esquilo preto saltando de ramo em ramo, ou um enorme abutre castanho flutuando no firmamento azul. As encostas íngremes por onde ele seguia estavam agora cobertas por terra florestal mais variada na sua composição. A faia predominava, é certo, mas os seus olhos descobriam agora por toda a parte carvalhos e espinheiros, freixos glaucos, e os maciços de bétulas abrindo-se como repuxos que se agrupavam ao longo da linha do horizonte como se a convidá-lo a penetrar mais profundamente naquelas azinhagas relvadas. A ligeira cerração começou a levantar sob o estímulo do vento das planícies quando ele alcançou a parte mais alta daquele planalto verde de onde lhe era possível dominar um imenso panorama uma linha ininterrupta de montanhas de contornos azuis que se prolongavam na direcção da Macedónia com o gatafunho prateado de um rio aqui e ali para quebrar a monotonia do conjunto. Methuen estudou cuidadosa e pacientemente aquela paisagem, esquadrinhando-a com o binóculo, embora sem descobrir nada mais excitante que algumas nuvens de pó num troço de estrada e uma recua de mulas contornando o que parecia ser uma pedreira abandonada.

 

Passou ali algumas horas repousando no fetal docemente perfumado antes de voltar para o seu esconderijo. Era intrigante que este planalto não oferecesse qualquer sinal de vida para além daquela patrulha isolada. Trazia consigo um lenço de seda estampado com um mapa operacional da área e assinalava os seus pontos de referência o melhor que podia, marcando a seda ao de leve com um lápis. Calculou que nesses dois dias tinha explorado uma área de aproximadamente cinco milhas quadradas sem encontrar nada de suspeito. Seria possível que todas as informações de Dombey fossem falsas? Era natural que tropas se deslocassem pelos vales onde as comunicações por estrada proporcionavam mais rapidez; mas bandidos de qualquer espécie operariam com certeza nos montes que ofereciam uma tão boa cobertura. Por que não encontrava qualquer sinal deles?

 

Chegou cerca das três horas ao último contraforte antes do convento e preparava-se para regressar à caverna por uma série de abrigos agora familiares para ele quando lhe ocorreu ir ver se o corpo do frade ainda jazia onde o deixara: visto isso escalou a encosta que lhe ficava em frente, subindo o leito seco de um ribeiro, e emergiu no maciço de arbustos por detrás da árvore contra a qual o infortunado pescador estivera sentado. Os seus nervos tiveram um sobressalto de surpresa quando não viu sinal do corpo do frade debaixo da árvore. Depois de olhar cuidadosamente em redor saiu do seu esconderijo e desceu a correr a margem dirigindo-se para o rio. O corpo tinha desaparecido e embora ele procurasse cuidadosamente na relva não conseguiu encontrar qualquer vestígio de pegadas. Talvez a gente da aldeia tivesse vindo e levado o velho - mas nesse caso onde estavam as suas pegadas? Estava prestes a desistir da busca e regressar ao rio quando avistou um ponto negro na água. uns quinhentos metros a jusante. Susteve a respiração e apontou apressadamente o binóculo para o local. O corpo do frade jazia entalado entre duas pedras num lugar pouco profundo do rio. balanceando-se e estremecendo grotescamente ao sabor da corrente rápida. Alguém o tinha atirado para lá - mas quem?

 

Quando Methuen voltou à caverna era um homem perturbado; obviamente andava por aquele vale alguém mais hábil que ele a ocultar-se; o sentimento de perigo voltou, e com ele uma impressão de impotência, porque ali estava ele. afinal de contas, a operar sozinho num território que. embora não lhe oferecesse nada de substancial para ver ou fazer, estava mesmo assim eriçado de perigos. Perguntava para consigo se a sua presença já fora detectada por essa criatura invisível que partilhava com ele aquele vale ermo; talvez a caverna já estivesse marcada? Talvez... Mas esta noite, pelo menos, tinha de deixar a caverna e de se deitar à beira da estrada para não perder o encontro com Porson ao alvorecer. Apressou-se a redigir a segunda parte do seu relatório destinado a Dombey e ao anoitecer já estava pronto para a viagem de regresso à estrada.

 

Preparou um rol de compras completo das suas necessidades que incluía um certo número de petiscos enlatados e até pão, e juntou-o ao pacote, pedindo que essas coisas lhe fossem atiradas na quarta-feira seguinte. Depois, porque estava excitado com a perspectiva de passar a noite junto da estrada, e porque o seu nervosismo exigia uma forma qualquer de desafogo, deslizou para o rio e foi buscar a sua cana de pesca, verificando com preocupação que tinha alguns sinais de ferrugem nas junções. Fosse como fosse subiu com ela uns cinquenta metros para montante até onde um salgueiro pendia sobre um poço musgoso e aí fez o gosto àquele seu pulso ágil e nervoso quase capaz de escrever as suas iniciais à superfície da água com uma mosca.

 

A noite estava fria e o céu clareara. O peixe mostrava-se indulgente e vinha ao seu anzol de uma maneira fácil, e não tardou que ele tivesse meia dúzia de grandes trutas na margem, arquejando debaixo do seu casacão de lã. Methuen envolveu-as em musgo e folhas e amarrou o improvisado embrulho com um bocado de cordel que tinha encontrado na mochila. Elas iriam ser, calculava ele. um irritante presente para o embaixador, se ao menos ele conseguisse fazê-las chegar sem acidente às mãos de Porson.

 

A noite começara a cerrar-se antes dele acabar de arrumar e esconder os seus bens na caverna. Partiu atravessando o monte para a garganta do Ibar, tomando uma nova direcção ao longo da crista arborizada do monte por cima da caverna, muito atento desta vez, visto que a visibilidade era tão fraca e uma emboscada tão fácil de armar. Mas os seus receios pareciam deslocados porque alcançou sem acidente o ponto onde o Studenitsa cai abruptamente sobre a alta garganta do Ibar. Meia hora a escorregar e a patinar entre as árvores pelos trilhos musgosos levaram-no a um ponto que dominava a estrada sem ter tido nunca necessidade de caminhar a descoberto.

 

Deixou-se ficar ali durante algum tempo a observar as patrulhas que se moviam ao longo dos entalhes na rocha por onde passava a via férrea em frente. Acima do rugido do rio, Methuen ouvia o ruído de vozes e de vez em quando uma ponta de cigarro brilhava nas trevas que se adensavam. Seguiu o seu caminho por entre as árvores novas e os arbustos, mantendo a estrada abaixo dele até chegar à pedra de moinho branca. Uma centena de jardas para além da mó ficava a árvore a que ele tinha de trepar, ao lado de uma exuberante nascente de água da montanha. Encontrou ali uma depressão coberta de erva e deitou-se para dormitar até ao amanhecer.

 

Devia estar mais cansado do que pensava, porque adormeceu profundamente, embalado pelo som deliciosamente cristalino da água a esparrinhar na pedra, e passava da meia-noite quando foi acordado por um enxame de mosquitos que lhe zumbiam em torno dos ouvidos e pareciam capazes de trespassar-lhe a camisa com os seus ferrões. Enrolou-se no casaco grosso e tentou dormir, mas não conseguia proteger o pescoço e as orelhas e passado pouco tempo desistiu. Que havia de fazer? Apetecia-lhe muito fumar, mas não ousava; e sentia-se alarmado por ter estado tanto tempo a dormir. Se caísse no sono podia não dar pela aproximação do carro. Espreguiçando-se, decidiu subir imediatamente para a árvore. Por que havia de esperar? Pelo menos naquele poleiro precário estaria demasiado alerta para adormecer.

 

Metendo o embrulho do peixe dentro da túnica, e abotoando-a por cima do bojo, atravessou a estrada e içou-se para a árvore, trepando ao longo dos ramos mais baixos até se instalar empoleirado sobre a estrada, mas mesmo assim oculto pela densa folhagem. Mal acabara de fazê-lo quando ouviu o ruído de um carro e avistou a mancha amarela dos máximos aproximando-se do sul, baixando-se e levantando-se rapidamente e desaparecendo por entre as curvas da estrada.

 

- Não pode ser o Porson - disse para consigo, mas o pulso começou a bater-lhe mais acelerado com a excitação.

 

O Ponto de Encontro

 

A branca luz difusa aproximava-se menos rapidamente do que ele havia previsto, tremeluzindo ao longo das escuras paredes da escarpa, às vezes desaparecendo completamente para só reaparecer uma vez mais ao dobrar de uma curva como um verme luminoso. Instalou-se no recesso mais profundo da folhagem da árvore, tendo contudo o cuidado de deixar debaixo dele um espaço vazio por onde pudesse atirar o seu embrulho para o caso de se tratar do carro de Porson. Agora ouvia o motor mais claramente e concluiu pela nota roufenha do som que não era um automóvel, mas um camião que se aproximava - provavelmente carregando lenha para o norte. Porém, quando descreveu a última curva, pareceu arremessar os feixes dos seus faróis quase directamente para a árvore onde ele estava empoleirado, recortando cada folha na sua incandescência branca de luz, e de tal modo que Methuen se sentiu de súbito completamente despido e posto a descoberto. Os seus olhos, acostumados agora ao escuro, levaram algum tempo a habituar-se ao clarão ofuscante; e conservou-se tão imóvel quanto possível, não fosse qualquer movimento da folhagem denunciá-lo.

 

Mas de uma coisa estava profundamente grato - da sua súbita mudança de posição: porque as luzes penetraram directamente na mata onde estivera deitado antes. Teria sido obrigado a bater em retirada para a espessura do bosque e isso não lhe seria possível fazê-lo sem ser visto. Estava precisamente a congratular-se pela sua sorte quando o camião parou, os máximos ainda acesos, ao lado da nascente exuberante e com um estrondo o taipal da rectaguarda se abriu para despejar - não um carregamento de lenha, infelizmente! - mas um pelotão de polícias de uniformes azuis que saltaram para a estrada com pragas enfastiadas. Por um segundo. Methuen pensou que havia sido descoberto e correu atarantadamente o fecho de segurança do revólver, mas tranquilizou-se quando os homens se dirigiram à nascente para beber e lavar a cara; os faróis foram apagados e a noite encheu-se subitamente de pontinhos de luz vermelha dos cigarros. Methuen notou a presença de um pequeno grupo de homens-de-cabedal que vinham obviamente a comandar a força, e que agora passeavam na estrada, conversando uns com os outros. Depois de um alto de dez minutos este pequeno grupo voltou ao camião e gritou as suas ordens numa voz dura. Acenderam-se de novo os faróis e Methuen viu dois dos homens-de-cabedal desdobrando um mapa diante da luz. Ouviu um deles dizer: "Ao amanhecer estaremos em posição de passar esta zona a pente fino. É aqui que ele deve estar... algures dentro desta área", e um arrepio desceu-lhe a espinha pois pareceu-lhe que deviam forçosamente estar a falar dele. "Temos tempo", disse um. e dada outra ordem as luzes do camião voltaram a apagar-se.

 

A Polícia instalou-se na berma da estrada em pequenos grupos, uns para se estenderem ao comprido e dormitar, outros para falar e discutir em voz baixa. Foram chamados à fala do caminho aberto na escarpa sobranceira ao rio e um dos homens-de-cabedal adiantou-se para responder à intimação. "Patrulha de polícia!", gritou e. saltando para dentro do camião, acendeu e apagou as luzes meia dúzia de vezes - obviamente um sinal previamente combinado.

 

Methuen estava agora extremamente ansioso, porque se Porson chegasse neste momento seria completamente impossível comunicar com ele: além disso, se esta patrulha devesse permanecer ali até ao amanhecer ele ficaria encurralado na árvore durante todo o dia seguinte. O seu sentimento de vulnerabilidade era aumentado pelo facto de ter notado que os polícias vinham fortemente armados com pistolas-metralhadoras e granadas. Não era grande consolação pensar que a sua presença em força neste local indicava sem dúvida que se passava qualquer coisa nas montanhas - nessas montanhas que lhe haviam parecido tão ermas de qualquer forma de vida. Desejou não se ter sobrecarregado com o pesado embrulho do peixe e amaldiçoou-se em surdina pela sua estupidez.

 

Passou-se uma hora e a patrulha continuava a não dar sinais de partida: os ponteiros do relógio de Methuen marcavam três horas e meia. Os primeiros laivos aguados de luz tinham começado a despontar no céu oriental. Uns faróis começaram a pestanejar na estrada a sul e ele cerrou os dentes - esperando que não fosse o carro de Porson. Desta vez. porém, era um camião cheio de madeira que não parou.

 

À luz dos máximos. Methuen surpreendeu o pequeno grupo de funcionários de casacos de cabedal, sentados à parte do corpo principal, discutindo qualquer coisa em voz baixa. Depois, quando o ruído do camião foi silenciando como um trovão a afastar-se ao longo dos túneis na rocha. Methuen ouviu para seu grande alívio uma voz gritar: "Atenção! Todos para o camião!", e a noite acordou com o bater de botas sobre pedra. O motor foi posto a funcionar e. depois de embarcado todo o pessoal, alguém gritou uma ordem seca. Methuen sorriu de alívio ao ouvir o guincho de mudança a entrar e ao ver o tapete de luz dos máximos mover-se debaixo dele e deixar a árvore de novo mergulhada na abençoada escuridão. O camião começou a descer a estrada aos solavancos e ele pôde estender os membros dormentes ao comprido dos ramos.

 

O silêncio voltou a instalar-se na estrada e Methuen deu consigo a morrer de sede. Não ousou, contudo, descer do seu poleiro para ir colar a cara à água borbulhante da nascente. O seu murmúrio tantalizava-o. e com esforço obrigou-se a ignorar a sede e a concentrar-se na paisagem que se ia gradualmente iluminando diante dele: os picos da garganta da montanha começavam a recortar-se cada vez mais nitidamente contra o céu a clarear. Era como uma gravura a água-forte passando pelas suas várias fases. "Meu Deus", disse Methuen para consigo, "faz com que esse animal do Porson não venha quando já houver demasiada luz."

 

O encontro estava marcado para as quatro horas, e enquanto Methuen via os ponteiros do seu relógio aproximarem-se das quatro e um quarto foi acometido uma vez mais pelo receio de que o contacto não se concretizasse. Talvez Porson tivesse tido um acidente: o mais simples contratempo podia atrasá-lo uma hora. Talvez.... mas as suas especulações foram bruscamente interrompidas pelo zumbido de um carro que se aproximava rapidamente do sul. Na pálida luz alfazema da alvorada os faróis pareciam descorados e lívidos, e Methuen podia ver a ligeira nuvem de poeira que se levantava por detrás deles. Rangia agora os dentes numa agonia de apreensão, preparando-se para um desapontamento, repetindo constantemente para consigo: "Aposto que não é o Porson. Não pode ser o Porson."

 

Mas o seu coração deu um grande salto quando avistou um segundo esguicho de poeira dobrar a curva mais afastada da garganta, cerca de um quarto de milha atrás do primeiro. Os segundos iam passando e os faróis continuavam no seu jogo fantástico, brincando às escondidas ao longo da estrada escura. Depois, com um rugido, o velho Mercedes emergiu da última trincheira cortada na rocha e avançou na direcção da nascente. Vinham com a capota aberta e Porson e Blair estavam cobertos até às orelhas nos seus fantasmagóricos capuzes de lã que os protegiam contra o frio da madrugada e lhes dava o ar de uns aviadores alucinados tentando levantar voo. Porson olhava com um sorriso exultante para os ramos da árvore, embora fosse evidente que não podia ver Methuen no meio das folhas; Blair parecia pálido e excitado. Methuen dominou um desejo de lhes gritar e quando o carro deslizou debaixo dele deixou cair o seu fardo que foi aterrar com um baque surdo nas traseiras. A poeira levantou-se cobrindo as folhas à sua volta. A buzina tocou duas vezes, e ele mal acabava de ver um embrulho atirado para a erva alta ao lado da mó quando o segundo automóvel apareceu. Vinha cheio de detectives sonolentos cobertos com os seus chapéus de feltro, estendidos a dormitar nas mais diversas posições, como uma ninhada de gatos, enquanto o rádio ia arranhando uma qualquer música cigana transmitida de Belgrado.

 

Methuen deixou-se ficar no meio da poeira sufocante durante mais um minuto e meio bem contado, ouvindo o zumbido dos automóveis decrescer e preparou-se para o passo seguinte. Estava um tanto alarmado pela cãibra dolorosa que o acometera - porque era um shikari experimentado e tinha passado muitas noites silenciosamente empoleirado numa mechaan, à espera do tigre, sem sentir nenhuma fadiga especial. "Deve ser da velhice", disse tristemente e, olhando em redor cautelosamente, começou a sair aos poucos do seu esconderijo.

 

O dia principiava agora a clarear rapidamente e foi com alívio que encontrou o embrulho deixado pelo carro e voltou a internar-se no meio das árvores, subindo com passo certo e infatigável os tapetes de musgo ao lado das cataratas e poços do Studenitsa, refrescado pela espuma que a cada passo a brisa lhe soprava contra a face.

 

Encontrou um pequeno recanto no cume e fez um breve alto para descansar e que lhe proporcionou a oportunidade de examinar o conteúdo do embrulho que Porson lhe deixara. Viu com prazer que já continha alguns dos artigos que ele pedira no seu rol de compras. Encontrou no embrulho pão fresco e azeitonas; duas ou três latas de carne de conserva; e - mas isto era pura adivinhação - um pouco de sabão que ele se havia esquecido de trazer. Havia ainda um capuz de lã e um novo fornecimento de combustível sólido. A princípio não havia sinal de qualquer mensagem escrita, mas depois de uma busca ansiosa, Mettiuen encontrou uma folha de papel fino coberta de algarismos e reconheceu com um arrebatamento de prazer a cifra previamente planeada para o Walden. Poderia levar-lhe algum tempo a descodificar e Methuen dirigiu-se para a última encosta depois de comer um pouco de pão e algumas das azeitonas do embrulho de papel pardo.

 

Estava tudo silencioso enquanto ele subia pela margem do rio, vadeando agilmente a corrente nos pontos conhecidos e dirigindo-se furtivamente para a entrada da caverna sem se descobrir. Tinha colocado alguns raminhos à entrada de tal modo que qualquer visitante ocasional teria de deslocá-los e viu com alívio que ninguém visitara o seu esconderijo enquanto estivera ausente. A cobra ainda não aparecera e ele acendeu a fogueira contra a friagem do amanhecer e para preparar uma bebida quente. Depois sentou-se com o seu livro de notas, um lápis e o Walden para decifrar a mensagem que Porson lhe deixara. Levou-lhe algum tempo para estabelecer o texto claramente e enquanto ele ia surgindo debaixo da sua mão não conseguiu resistir a um ocasional assobio de surpresa. Havia alguns factos novos de surpreendente interesse.

 

"Falei com Don em Belgrado usando cifra telefónica", começa vá a mensagem (Don era Cárter), "e tenho as seguintes informações que a Oficina lhe envia. Submarino deixou estaleiro e localizado no Adriático. Suicídio actriz Sofia Maric anunciado pela rádio na manhã da nossa partida devido "excesso de trabalho". Nenhumas notícias de Vida. Militares anunciam actividades sinistras na sua área. Três regimentos de tropas e alguma polícia convergem para aí a partir de Serajevo, Uzice e Rashka, respectivamente, obviamente para cercar cordilheira. Embaixador ansipso acha preferível você saltar na quarta-feira para carro destinado a Skoplje em vez de esperar pelo nosso regresso. Don assinala que aquilo que até agora tem sido actividade policial se está a tornar numa operação militar incluindo uma unidade de morteiros e seis secções de metralhadoras. Espera você não seja responsável pelo aumento da actividade. Don telegrafa que nenhum progresso feito nas mensagens da rádio excepto que o Professor pede que você tenha em mente que na saga original o património do rei era um tesouro de pedras preciosas."

 

Pedras preciosas! Metralhadoras! Sofia Maric! Por um instante o cérebro de Methuen andou num rodopio. Que concluir de toda aquela actividade .num território onde não se avistava vivalma? As cotovias estavam a levantar voo dos prados orvalhados quando ele saiu da caverna para reflectir em tudo aquilo. A paisagem dormia como se acabasse de ser pintada pela mão de um mestre. Methuen bocejou enquanto tomava um pouco de cacau quente e relia devagar todo o texto decifrado. Dispunha ainda de dois dias antes do próximo encontro. Como havia de preenchê-los? "É realmente incrível que eu não tenha descoberto absolutamente nada" disse para consigo desanimadamente. "Deve haver algures qualquer coisa que justifique toda esta actividade." Mas onde?

 

Recolheu à caverna e dormiu um pouco. Ao meio-dia, depois de comer qualquer coisa, partiu e dirigiu-se para ocidente ao longo da serrania andando até ao cair da noite sem resultado. O sossego da paisagem não era uma ilusão porque a vida selvagem dizia-lhe a mesma coisa. Não era de modo algum perturbada pelo homem. No seu desânimo até alvejou uma lebre com a pistola, arrependendo-se logo. pois não tinha receptáculo apropriado para guisar um animal com uns ossos comparativamente tão grandes. Fosse como fosse pendurou a lebre morta à cintura dentro de uma bolsa e levou-a consigo para a caverna.

 

Nessa noite dormiu livre de alarmes e ao acordar descobriu que uma tempestade se instalara sobre o vale. O céu escuro estava coberto de nuvens e os relâmpagos brincavam no meio dos pinheiros: também o rio se tornara branco como uma cicatriz e estava cheio de troncos à deriva que eram levados a rodopiar pela corrente. Passou uma hora deliciosa a pescar à chuva antes de voltar ensopado para a caverna, agora tão quente e seca como um armário de parede arejado. Arrumou ali a sua pesca, as trutas de um rosa prateado em cima de musgo, e contando-as decidiu que tinha o suficiente para esse dia no caso de ficar ali fechado por força do mau tempo. "Estou realmente a correr o perigo de comer demasiado", pensou, lembrando-se da lebre que tinha pendurado para a noite junto da chaminé.

 

A chuva bateu e o trovão ribombou ao longo de toda a manhã e Methuen sentiu-se contente por encontrar aquela desculpa para não sair e pensar nos seus planos. O desânimo dava lugar agora à resignação. Afinal de contas fizera o melhor que podia. Se não havia nada que relatar a culpa não era sua. Não se podia esperar que ele se desviasse do seu caminho para procurar complicações. Dombey teria de ficar satisfeito... Mas. e aqui praguejou em surdina, que andavam os soldados a fazer, convergindo sobre esta área vindos de tantas direcções? Caramba, ele não podia acreditar que tivessem saído dos seus quartéis para procurá-lo. Como poderia Dombey. jamais, ajustar o seu relatório com o da movimentação militar?

 

Recolheu à cama cedo nessa noite e na manhã seguinte partiu de novo. dirigindo-se para norte: trepou a alta crista de montanhas entre os dois vales e passou algumas horas com o binóculo a esquadrinhar montes e outeiros buscando em vão sinais de movimento. No dia seguinte refez a mesma jornada só que desta vez dirigindo-se para sul. vagamente na direcção de Rashka. Encontrou alguns lenhadores. mas mais nada; um grupo de assentadores de carris trabalhava intermitentemente na via férrea; dois pescadores estavam sentados imóveis nas margens distantes do Ibar. Isso era tudo. Isso era absolutamente tudo.

 

A quarta-feira (o dia do encontro) amanheceu sem nuvens e a consciência ordenou-lhe que repetisse os longos estirões dos últimos dois dias. Mas ele ainda não decidira como havia de responder à solicitação do embaixador. Devia ficar ou devia voltar? Essa era a questão. Se ia ficar até sábado bem podia tirar um dia de folga para se dedicar à paixão. "Ficarei", decidiu, depois de um longo debate interior. "Caramba, tenho de ficar." Uma vez tomada a decisão voltou a sentir-se animado. Escreveu um relatório bastante minucioso para Dombey e depois desceu até ao rio dirigindo-se para o pequeno canto abrigado onde pescava à noite. Enquanto se instalava repetiu em voz alta as últimas palavras do seu relatório, meneando tristemente a cabeça: "Posso garantir que reina uma calma completa numa área de um raio de cinco milhas em redor deste ponto."

 

Estava um tempo de sol radioso e o ar cheio de aromas estivais: encostou-se tranquilamente contra um arbusto, escondido dos homens e dos peixes, e começou a desenhar as suas garatujas na água. movendo-se de vez em quando para explorar uma nova zona de território aquático.

 

Enquanto explorava a superfície polida do rio. Methuen caiu naquele estado de espírito contemplativo, nascido da profunda meditação - mas não meditação consciente - que os pescadores à linha e possivelmente também os jogadores de xadrez, consideram a maior recompensa dos seus esforços. O sol brilhava luminosamente no céu e no arvoredo em volta ouvia-se o coro da passarada. Num canto de um poço Methuen Voltou a descobrir uma certa truta que havia jurado apanhar e estava a usar todos os meios ao seu dispor para tentar atraí-la à mosca quando viu uma coisa que o fez mergulhar para se ocultar

Ele tinha visto na água o reflexo de um homem a dez metros do local onde se encontrava - e mais. era o reflexo de um homem que trazia uma pistola-metralhadora ao ombro numa atitude de prontidão. Na mesma fracção de segundo em que a imagem relampejou diante dos seus olhos, Methuen reconheceu que o reflexo apontava na sua direcção, embora não para ele. Colou-se o mais possível ao chão, introduzindo a sua preciosa cana de pesca tão profundamente quanto lhe foi possível no matagal e tirou a pistola da bandoleira. O seu mergulho para se esconder deixara-o completamente coberto e Methuen estava agora convencido de que não podia ser visto, mas a verdade é que também não conseguia ver o outro homem. Lembrava-se agora de ter reparado que o homem envergava a túnica cinzenta dos soldados e o boné achatado com a estrela vermelha.

 

O silêncio era total e depois de um momento de pausa encaminhou-se sem ruído para a árvore que ocultava a entrada da caverna. A árvore era como uma grande sobrancelha à sombra da qual ele podia acocorar-se sem ser observado e observar a encosta escalvada que lhe ficava em frente.

 

O silêncio, tão ominoso agora com os seus perigos ocultos, possuía-o como uma droga. Methuen escutava-o, peneirando-o à procura de sons conhecidos como a canção dos pássaros ou o ruído da água; como o restolhar das folhas à passagem do vento e o coaxar das rãs; peneirando-o à procura de outras indicações, por ligeiras que fossem, de presenças humanas. A imagem reflectida na água não permitia qualquer equívoco. E ele estava a pensar na possibilidade da sua caverna já ter sido descoberta quando uma rajada de pistola-metralhadora o fez pôr-se de pé.

 

A folhagem dançou e sacudiu-se na vertente em frente quando a salva de balas atingiu os ramos de um arbusto; e ao mesmo tempo um vulto descobriu-se e desatou a correr descrevendo desajeitados ziguezagues na outra margem do rio. "Caramba", disse Methuen. O atirador alterou o seu ângulo de tiro e uma chuva saltitante de balas quebrou a superfície polida do rio correndo atrás do homem em fuga. Foi então que Methuen teve uma sensação de irrealidade como num sonho, porque o fugitivo vestia exactamente como ele até ao mínimo pormenor desde o barrete de peles comido pela traça até às pesadas botas de aldeão. Era como se um qualquer absurdo travesti dele próprio estivesse a ser perseguido por aquela saraivada de balas por cima do relvado verde da outra banda do rio.

 

Um apito soou por cima do monte. O homem das botas grossas cambaleou e precipitou-se na direcção das árvores com as balas a choverem no chão junto dos seus calcanhares. "Escapou", disse Methuen ao vê-lo aproximar-se das árvores; mas no preciso momento em que alcançava a orla do bosque o homem cambaleou e despenhou-se dentro de um silvado, perdendo-se de vista. "Foi atingido." Methuen experimentou uma sensação de identificação com ele. Voltou a ocultar-se ao ouvir o som de pés que corriam, e um soldado atravessou ruidosamente o mato rasteiro por debaixo da caverna, erguendo a pistola-metralhadora acima da cabeça quando se meteu no rio em perseguição do fugitivo.

 

Nesse momento dois outros soldados surgiram a correr na borda do penhasco e convergiram todos para o lugar onde o homem das botas tombara. "São só três", disse Methuen. "Devo alvejá-los?", mas dominou um impulso tão disparatado porque a distância era agora demasiado grande para a sua arma. Em vez disso apontou o binóculo para o local e esperou numa expectativa ansiosa. Os três soldados eram uns rapagões desajeitados e mostravam pouca aptidão para seguir o rasto do homem que pretendiam caçar; não parecia haver qualquer oficial no meio deles. Caminhavam fleumaticamente pelo meio do matagal, fazendo uma barulheira prodigiosa e disparando de vez em quando uma rápida rajada para lugares onde suspeitavam que o fugitivo estivesse escondido.

 

Enquanto eles avançavam descendo a encosta numa linha irregular, Methuen teve um sobressalto de surpresa pois acabava de ver outra coisa; uma cabeça aparecera na extremidade mais distante da mata que os soldados estavam a explorar - a cabeça do homem de barrete de peles. O homem lançou uma rápida olhadela em volta, como uma cobra, e começou a arrastar-se de gatas para longe daqueles implacáveis vultos cinzentos; em poucos momentos pusera uma leira de milho entre ele e os seus perseguidores e levantou-se. Mas Methuen via perfeitamente que o homem tinha sido atingido porque se deslocava aos bordos e vacilava, apertando o flanco, os pés continuamente a cederem sob o seu peso. Alcançou o fundo do pequeno vale na falda da encosta arborizada e começava a dirigir-se para o rio quando as forças lhe faltaram e caiu de borco na relva, respirando em roucos arquejos sufocados.

 

Num abrir e fechar de olhos Methuen saíra do seu abrigo e descera a encosta. Atravessou o rio e encontrou-se ao lado do homem caído, numa questão de momentos. Agarrou-lhe no ombro e voltou-lhe a cara para cima e viu imediatamente que ele tinha sido gravemente ferido; uma face inchada e contorcida olhava para ele cheio de medo e de raiva.

 

- Venha - disse Methuen. - Vou ajudá-lo a salvar-se. Consegue andar?

 

Mas o homem não conseguia andar - na verdade quase nem sequer conseguia falar. A dor começava a vidrar-lhe os olhos. Era de constituição pesada, mas Methuen agarrou-o com um jeito especial muito seu e com vasto dispêndio de esforço levou-o através do rio e pela vertente acima. "Depressa!", sussurrava incessantemente o homem. "Depressa!", mas Methuen não carecia de ser incitado. Transpirava de apreensão não fossem os soldados aparecer antes dele alcançar a entrada da caverna.

 

Concluiu contudo a viagem sem novidade e carregou o seu fardo para a caverna onde o deitou no leito de fetos. O homem gemia de vez em quando. Fora atingido no estômago e Methuen tinha experiência suficiente para reconhecer uma ferida mortal quando via alguma. O homem não viveria muito. Mesmo assim empenhou-se em proporcionar-lhe todo o conforto possível e depois de um gole do seu frasco o ferido recuperou um pouco de cor e foi capaz de falar num murmúrio rouco.

 

- Irmão - disse - há dias que eu estava a tentar estabelecer o contacto, mas tu não deste o sinal. Eu queria ter a certeza de que eras tu.

 

Methuen olhou fixamente para ele sem dizer nada; mas o homem continuou lentamente, falando, ao que parecia, tanto para si próprio como para o seu salvador.

 

- Esperei pelo sinal. Agora que estou a morrer vou transmitir-te imediatamente a mensagem. Ouve.

 

Methuen lavou-lhe a cara com água morna e disse num tom destinado a tranquilizar o moribundo:

 

- Estou a ouvir. Estou a ouvir.

 

- Mulas. Arranjei as mulas. Todas. Virão pelas montanhas e tu vais esperá-las na velha muralha raiana no cume de Rtanj. Depois tens de levá-las ao Pedro Negro na Pedra de Janko. Diz-lhe que as carregue sem demora e parta para a costa. - A sua voz arrastou-se num resmoneio e Methuen pegou num lápis e anotou os nomes dos lugares, desmesuradamente excitado por ter descoberto algo de concreto. - Sem demora - repetiu o homem. - Não pode haver qualquer demora. A polícia desconfia. Sessenta homens armados das Águias irão juntar-se a Pedro Negro amanhã ao fim da tarde e terão de marchar toda a noite sem qualquer paragem. Voltou a gemer e fechou os olhos.

 

Methuen debatia-se com os momentosos significados que se poderiam ocultar por detrás desta mensagem quando ouviu vozes do lado de fora da caverna. Num instante chegou à entrada a tempo de ver os três soldados que acabavam de descer a colina e se preparavam para vadear o rio. "Ele deve ter subido prá'li>-, dizia um deles num grosso vozeirão de bêbado. Atravessaram ruidosamente as alpondras e começaram a trepar a encosta que levava à entrada da caverna. Methuen, empunhando a pistola, recuou para onde a sombra era mais profunda.

 

- Não fale - murmurou para o ferido. - Eles aproximam-se. Os soldados avançavam subindo a colina em ordem dispersa, discutindo em voz alta. e quando alcançaram o pequeno monte de terra por debaixo da árvore um deles disse:

 

- Não lá em cima. com certeza.

 

- Parece haver ali uma caverna - observou o segundo dos três. o que falava mais grosso. - Aposto que se escondeu lá dentro.

 

Parecia ser o fim de tudo. A única consolação de Methuen era que podia matar todos três sem lhes dar tempo de "regar" (na pitoresca expressão militar) a caverna onde ele se ocultava. Esperou sombriamente, ouvindo o som das suas pesadas botas triturando o solo e escorregando lá fora. Depois houve um suspiro e uma voz disse: "É uma caverna, sim senhor."

 

Foi nesse instante que a cobra salvou a situação. Deslizou para a pequena superfície iluminada pelo sol à entrada e assumiu a sua habitual postura, esperando sem dúvida caçar algum lagarto que rastejasse confiantemente por ali para ir apanhar sol na parede da pedra vizinha. Methuen ouviu-a silvar furiosamente: e o raspar de botas lá fora, acompanhado por um sobressalto, informou-o de que o grupo tinha recuado.

 

- Olha! - disse um soldado. - a cobra. Outro desatou a rir.

 

- Bem - disse - ele não pode estar a viver com um bicho destes. Mato-a?

 

Houve uma longa ^pausa durante a qual a cobra voltou a soltar o seu silvo. Um dos soldados tossiu e disse:

 

- Há provavelmente outra lá dentro. Não dispares.

 

Eles estavam parados irresolutamente num círculo e, espreitando para fora, Methuen compreendeu que podia abater os três sem dificuldade. Contudo, esperou. Um deles tirou o boné e coçou a cabeça. Depois disse com convicção:

 

- As cobras dão azar. Eu não vou lá dentro. Vocês vão? Os outros dois riram rudemente e Methuen ouviu o estalido seco dos fechos de segurança das armas a serem corridos.

 

- Eu não - disse o que tinha a voz mais grossa. Depois deu meia volta, acrescentando: - Vamos, acabamos por perdê-lo de vez se não nos despacharmos.

 

No alívio que se seguiu à tensão. Methuen ouviu as batidas iguais do seu coração acima do ruído das botas pesadas em retirada. Soltou um suspiro e tornou a guardar a pistola, voltando de novo para junto do ferido. Havia um ou dois pontos vitais a ser esclarecidos. Mas o homem caíra num estado de coma de que não era possível arrancá-lo e Methuen aproveitou a oportunidade para escrever um breve relato do que acabava de acontecer. "Proponho-me>>. acrescentou, "ir ao encontro da recua de mulas e conduzi-las para a Pedra de Janko - que é uma espécie de obelisco levantado há muito tempo para assinalar a fronteira entre a Sérvia e a Bósnia. Fica no planalto mais afastado, uns seis mil pés acima do nível do mar. um trecho ermo de montanha que estudei com o binóculo, mas que não escalei. Tentarei não faltar ao encontro do próximo domingo. Nessa altura já saberei tudo o que se passa."

 

Animava-se agora com a perspectiva de ter algo de concreto para fazer e voltou a atenção para o ferido, tentando ligar a ferida aberta do ventre, de onde um bocado de intestino queria sair. com tiras cortadas da sua camisa. Fez também um pouco de sopa e tentou meter alguma por entre os dentes cerrados do homem. Em vão. Estava tentado a experimentar suturar a ferida com a agulha e a linha que tinha consigo e fora a ponto de lavar a área do ferimento com acriflavina quando a respiração do homem se modificou abruptamente transformando-se num estertor acompanhado de pavorosos soluços. Só a sua extraordinária força física o mantivera tanto tempo vivo. Mas agora a cor fugia-lhe da face e os dentes começaram a ranger como se ele estivesse com frio.

 

Methuen sacudiu-o e tentou arrancá-lo do seu estado de coma. Era essencial saber não só quem ele era mas também o santo-e-senha que lhe daria acesso ao quartel-general das Águias Brancas. Mas parecia ser em vão. Ele abriu uma vez os olhos e murmurou: "Mãe... e o Marko. mãe", e essa seria a única indicação essencial que o moribundo havia de deixar a Methuen; quanto ao mais o pavoroso estertor continuava. "Ele está a morrer", disse Methuen. e cruzando as mãos cobertas de sangue coagulado sobre o peito do fugitivo repetiu em voz alta as únicas orações servias de que conseguia lembrar-se, a sua voz soando tremula e frágil na ressonância da caverna. Passado um quarto de hora a respiração tornou-se mais fraca e o homem morreu quase sem um murmúrio. "Portanto o teu nome é Marko". disse Methuen, ainda atormentado pelas peças que faltavam no seu quebra-cabeças. "Marko". repetiu furiosamente, juntando as suas coisas. "Marko".

 

A tarde ia agora a meio e ele teria de despachar-se se não quisesse perder o encontro. Escondeu as suas coisas o melhor que pôde e partiu da caverna a toda a velocidade, correndo aos ziguezagues e passando de mata para mata. atento aos soldados. Por sorte eles haviam desaparecido tão subitamente como tinham aparecido e Methuen alcançou a garganta sem avistar vivalma. Desceu as vertentes cobertas de musgo numa correria louca e chegou à estrada com cinco minutos adiante de si. Uma vez mais deu graças à sua sorte por não haver ninguém por ali e o encontro consumou-se sem dificuldade. Antes da poeira dos carros ter assentado ele já se encontrava na vala apertando o embrulho branco que fora lançado do automóvel. Desta vez era um papel que se limitava a dizer: "Nenhuma novidade a comunicar. Presumo que voltará, portanto isto é desnecessário."

 

- Presumes uma ova! - disse Methuen olhando para a estrada na direcção que o carro de Porson tomara. - Hei-de levar isto até ao fim. E foi com um entusiasmo selvagem que saiu do vale subindo na direcção do sol que obliquava sobre o planalto. Tinha decidido não correr o risco de ser capturado, se voltasse à caverna, portanto trouxera consigo tudo o que era necessário para a longa viagem até ao planalto central. Descansou trinta minutos pelo seu relógio e comeu um pouco de pão e a carne fria da lebre que cozinhara. Depois, tendo bebido abundantemente, pôs-se a caminho, deixando para trás a caverna e dirigindo-se para ocidente através do vale enviesado, apontado à nascente do Studenitsa.

 

Caminhava agora num passo mais lento como convinha à jornada que empreendera, e enquanto andava ia revolvendo na mente as várias peças do quebra-cabeças. tentando encaixá-las todas num desenho compreensível. O quadro sem dúvida tornara-se de certo modo mais claro. Era óbvio que as Águias Brancas haviam descoberto nas montanhas algo de excepcional importância - um tesouro qualquer que permitiria aos Realistas restaurarem a monarquia. Por conseguinte tinham concentrado em torno dele tantos homens quantos lhes fora possível juntar. A coisa devia ser transportada para ocidente por cima das áridas montanhas calcárias ate à costa onde provavelmente... "Naturalmente", disse ele em voz alta. Seria levado para fora do país de submarino. "O património do rei?", reflectia. "Pedras preciosas? Urânio?" Methuen foi ficando cada vez mais zangado consigo próprio por não ser capaz de encontrar a resposta para o enigma. Enquanto caminhava ia mastigando pão.

 

Depois havia a questão da morte de Anson: era evidente que Anson estava também prestes a resolver o mistério quando a morte o surpreendeu, embora como e de que maneira, fosse impossível dizer. Certamente a entrega do corpo pelas autoridades comunistas sugeria que elas não eram responsáveis pela morte. Se Anson tivesse de qualquer modo tropeçado com o quartel-general das Águias Brancas era muito possível que o tivessem silenciado vendo nele apenas um espião estrangeiro.

 

Contudo no fundo da sua mente havia um sentimento irritante de que já conhecia a natureza do tesouro do rei. que já tinha ouvido ou lido algures, qualquer coisa que lhe daria a resposta. De que se trata? "É também claro", acrescentou em voz alta. "que os homens-de-cabedal também descobriram qualquer coisa. Vai travar-se em volta disso uma batalha renhidíssima."

 

Atravessou a primeira lomba do monte para além do convento e não pôde deixar de deter-se para admirar o relvado docemente ondulado da montanha através do qual o seu caminho seguia por um dédalo de carreiros, através de plantações de abetos e pomares de amoreiras. O cheiro fresco do feno era delicioso e a meia distância ele avistou as vertentes mais altas escuras e empenachadas com faias. Era bastante difícil imaginar que uma vez transposta a crista ele se encontraria longe de povoados e moradias humanas. A paisagem tinha o ar premeditado de um grande parque artificial e uma pessoa quase esperava ver as empenas de qualquer mansão vitoriana espreitar através do biombo de folhas verdes a cada canto.

 

O sol baixava e O seu calor ainda inebriava o ar sem vento e deste lado dos montes as flores e as folhas iam-se tornando cada vez mais luxuriantes enquanto os bosques estavam cheios de chapins, carriças e melros. As matas estavam atapetadas de flores, salvas de perfume adocicado, gerânios e uma grande variedade de fetos. E aqui e além manchas de um escarlate vivo mostravam-lhe onde cresciam morangos silvestres, e naquelas matas verdejantes os pinheiros e as bétulas cresciam de tal modo que Methuen calculou estar a caminhar no meio de maciços de árvores com uma altura aproximada de trinta metros. Não podia deixar de contrastar toda esta paz e beleza com a sombria empresa em que estava empenhado, e que podia conduzi-lo a uma morte súbita.

 

Atravessou as vertentes ocidentais da cordilheira e iniciou uma subida íngreme através de um pinhal - os pinheiros com compridos braços enrugados e barbas hirsutas de líquenes, como patriarcas, despertando na sua mente memórias da Lapónia. Depois, de novo. nas encostas soalheiras do outro lado. os pinheiros deram lugar às bétulas - acolhedoras alamedas de arcos com manchas de sol abrindo em clareiras onde esvoaçavam borboletas brancas e amarelo-turvo. Pensou em Dombey e sorriu torvamente. A inveja que Dombey sentiria se pudesse vê-lo: Dombey fumando incessantemente no seu tristonho gabinete por cima do tráfego de Londres.

 

O carreiro por onde ele seguia recomeçava agora a subir rapidamente e seguia uma longa curva que parecia assinalar o início de uma bacia hidrográfica. Do outro lado prolongava-se a espinha dorsal da cordilheira, cor de pele de elefante na luz do entardecer. Era o Rtanj. e algures na neblina dourada para além dele ficava a Pedra de Janko. Tinha ouvido falar dela na sua anterior viagem mas nunca a vira: na verdade só os pastores com os seus rebanhos se aventuravam algumas vezes a subir ao tecto das montanhas, e não havia caminhos que tentassem um viajante.

 

Descansou um pouco no meio das árvores, satisfeito com o seu andamento, porque calculava alcançar o cume de Rtanj bastante antes da meia-noite. que presumia dever ser a hora do encontro para a recua de mulas. Fosse como fosse mesmo que se atrasasse eles deviam esperar por Marko. disse Methuen para consigo; e visto que Marko morrera... Examinou toda a cordilheira com o binóculo mas não viu nada de interesse. Um rebanho de carneiros pastava nas faldas da montanha mas ele não conseguia ver sinal do pastor, se porventura tinham pastor.

 

O sol rolou por detrás de uma crista e de súbito a perspectiva escureceu e avermelhou-se. Methuen pôs-se de novo a caminho, sentindo-se como se fosse o último homem sobre a terra, caminhando numa paisagem de sonho para um destino que poderia nunca alcançar. Sentia-se contudo encorajado pela sua boa disposição e pelo facto de quase não se sentir cansado com a longa viagem que tinha feito nesse dia. O seu corpo começava a acostumar-se ao ritmo das coisas, reflectiu Methuen com alívio e satisfação.

 

A noite fechou-se quando ele alcançou a orla da grande pastagem descoberta que assinalava o início de Rtanj. e ali encontrou toda a espinha dorsal da montanha profundamente atapetada com uma espécie de urze cinzento-malva de grande densidade. Era tão espessa como um colchão e embora Methuen se sentisse encantado com a sua beleza contrariava-o o ter de afrouxar o passo, porque o caminhar se tornara muito mais difícil. Mas. apesar disso, calculava que alcançaria a crista da montanha com tempo de sobra.

 

Uma ou duas vezes na luz fantasmagórica pareceu-lhe avistar vultos movendo-se à sua esquerda, e deu-se ao trabalho de ir investigar: esperando encontrar a recua de mulas. Mas de todas as vezes estava enganado. Um pequeno crescente de lua-nova apareceu para lhe fazer companhia mas dava pouca luz. A noite estava calma embora a própria falta de vento parecesse criar ali em cima um grande vazio impetuoso que zombava dos ouvidos, fazendo-os imaginar que ouviam o som de vozes distantes, ou de quedas de água. ou de vozes de pássaros que havia muito tinham recolhido aos seus ninhos.

 

De vez em quando ele dava com grandes pedras lisas, restos da antiga muralha, que outrora havia separado dois reinos, e tocando as suas superfícies macias com as mãos não podia deixar de pensar que havia nelas qualquer coisa de assustador. Pareciam relíquias de uma qualquer cidade ciclópica esquecida. Fizeram-no lembrar-se de Stonehenge. A parede seguia a crista montanha acima até alcançar o obelisco final que fora chamado a Pedra de Janko - só Deus sabia porquê. Mas era para ele um marco útil e Methuen sentia-se feliz por lhe ser possível orientar-se por esses grandes blocos quebrados que pairavam sobre ele no meio da escuridão.

 

Passava bastante das onze quando ele atingiu a crista de Rtanj e ficou a olhar em sua volta para a difusa cadeia de montanhas que o rodeava. Adiante, numa elevação ainda mais alta. ficava o segundo pico onde se erguia a Pedra de Janko. e ali Methuen divisou um foco intermitente de luz. como o de uma fogueira. "Bem", murmurou, "o resto é com as mulas". E sentando-se em cima de um marco de pedra caído arriou o equipamento e preparou-se para comer um bem merecido jantar. Só então descobriu que estava esfomeado e fez grande devastação na pequena provisão de comida que preparara; pior ainda, não tinha trazido água. visto ter contado operar na região dos rios. e nestas altitudes ermas não havia ribeiros nem nascentes. Esperava que os muleteiros. quem quer que eles fossem, trouxessem água e o deixassem matar a sede.

 

A meia-noite chegou e passou. Methuen subia de vez em quando para cima da pedra e varria a escuridão com o binóculo de facto um admirável binóculo nocturno que pertencera durante a guerra ao comandante de um submarino. Mas na escuridão não encontrava nenhum sinal da recua de mulas. Estava também preocupado com a espessura da erva: porque até o tropear de uma recua de mulas seria completamente abafado por um tapete tão espesso, e poderia passar ali perto durante noite sem ele dar fé.

 

A pedra estava fria e o orvalho abundante trespassava-lhe o casaco de lã. O ponteiro do seu relógio apontava para a uma e meia quando ele ouviu - não sem incredulidade, porque podia tratar-se de uma partida do vento - o ranger de cilhas e o resfolego de um animal qualquer - cavalo ou mula talvez - no escuro. Partiu imediatamente na direcção do som. caminhando depressa e dobrado de modo a não poder ser visto recortado contra o céu.

 

A uns cem metros do lugar onde estivera à espera havia uma profunda depressão no solo e aí ouviu a mastigação de mulas e as vozes abafadas de homens. Não sabia em que termos chamá-los por isso estendeu-se no chão e tossiu alto. Fez-se imediatamente silêncio e depois de uma ligeira pausa uma voz profunda disse: "Ho!", arrastando o som de uma maneira solene e impressionante.

 

- Ho! - fez Methuen. arrastando a palavra durante um bem medido segundo e deixando a sua voz ir baixando de tom da mesma maneira impressionante. Deixou-se ficar estendido no chão e esperou.

 

- Marko? - perguntou passado pouco tempo uma voz rouca ali muito perto dele. - Onde estás tu?

 

- Marko morreu - disse Methuen depois de lamber os lábios secos. - Ele mandou-me para guiar a recua. - Ouviu-se o som súbito do puxar de culatras na sombra seguido de silêncio. - Os soldados encontraram-no perto do vale do Studenitsa. Abateram-no a tiro.

 

Um segundo vulto devia por esta altura ter-se aproximado dele no escuro porque outra voz perguntou rudemente:

 

- Tens luz?

 

- Sim.

 

- Ilumina a tua cara para que te possamos ver.

 

A sua lanterna estava muito fraca mas deu luz suficiente; continuava deitado e na luz amarelada viu que os seus interlocutores tinham estado ali parados a falar para as trevas por cima da sua cabeça. Agora ajoelharam e estiveram a olhá-lo longa e cuidadosamente.

 

- Quem és tu? - perguntou o da voz grossa.

 

Methuen pôs-se de joelhos e deu o seu pseudónimo, acrescentando que tinha sido enviado pelo quartel-general com uma mensagem para Pedro Negro; no caminho encontrara Marko por acaso, testemunhara a sua morte, e estava de caminho para entregar ambas as mensagens às Águias Brancas. Ele era um jugoslavo que havia emigrado para Paris quinze anos antes, acrescentou, e tinha sido infiltrado recentemente para ajudar na luta.

 

Os homens afastaram-se e falaram em voz baixa um com o outro, enquanto Methuen apagava a lanterna e esperava; tomou a precaução de se deslocar uma dúzia de passos para a direita no escuro. Pouco depois as vozes voltaram a aproximar-se e um deles disse:

 

- Muito bem. Temos de ir andando.

 

Methuen pôs-se de pé e foi juntar-se aos muleteiros. Descobriu encantado que um certo número deles tinha trazido garrafas de água e de outras bebidas mais fortes - aguardente de ameixas, a ubíqua rakia da Sérvia - a que alguns tresandavam fortemente. Pareciam ser ao todo uns doze muleteiros e davam a impressão de constituir um grupo bastante disciplinado apesar do cheiro de shlivovitz que um certo número deles trazia pegado ao corpo, porque quase não tagarelavam uns com os outros.

 

As mulas formaram numa comprida fila dispersa e o homem que parecia comandar o grupo veio juntar-se a Methuen. Era um corpulento madeireiro sérvio que mais tarde Methuen veio a saber ser irmão do defunto Marko.

 

- Agora és tu que nos vais conduzir - disse o homem com simplicidade. - Serás os nossos olhos.

 

Enquanto houve luz Methuen tivera a precaução de tomar o rumo para a Pedra de Janko com a ajuda da sua pequena bússola e de Capella que se destacava nítida e alta a noroeste. Era de presumir que O terreno, como aquele que já haviam atravessado, não ofereceria dificuldades, sendo como era coberto de erva e macio. Fosse como fosse era sempre de arrepiar os nervos ser responsável pela condução de uma recua de mulas e doze homens, quando é a primeira vez que fazemos o percurso; quando não estamos certos da recepção que nos irá acolher à chegada; além disso quando não temos a menor ideia de qual seja o santo-e-senha... Assim Methuen divagava consigo próprio ao trepar para a desconfortável sela de madeira da mula da frente e ao mandar avançar a coluna com um grande gesto de confiança. A maior parte dos homens caminhava ao lado dos seus animais e depois de meia hora de tortura Methuen concluiu que eles é que tinham razão e imitou-os.

 

O comandante do grupo aproximou-se dele e pôs-se a caminhar ao seu lado, falando amigavelmente no escuro enquanto iam subindo aos tropeções na direcção das nuvens. Ele vivia para além de Rashka na cordilheira que corre para leste na direcção de Nish.

 

- Uma terra difícil para uma pessoa se esconder - disse ele. - Muitos dos nossos juntaram-se aos comunistas. - (Cuspia expressivamente para o escuro sempre que pronunciava o nome.)

 

Methuen decidiu puxar por ele e ficou encantado pela facilidade com que aquele camponês, tendo-lhe concedido a sua confiança, não sentia agora qualquer necessidade de ter tento na língua.

 

- Pensa - perguntou Methuen - que as mulas serão suficientes para transportar aquilo?

 

- Se for carvão, ou madeira, ou chá. não lhe posso responder - disse o camponês encolhendo os ombros. - Mas se for ouro quem poderá dizer? É muito? É pouco? É em pó?

 

Methuen parou de súbito e soltou um rosnido de pura surpresa seguido de uma série de espasmos de cólera furiosa contra a sua própria miopia. Porque ele tinha sabido sempre a resposta para o problema. Só a estupidez cega o mantivera tanto tempo às escuras. Porque agora, à simples menção da palavra "ouro", lembrou-se do misterioso desaparecimento das reservas de ouro do Banco Nacional da Jugoslávia no início da guerra com a Alemanha.

 

Quando as tropas de Hitler penetraram na Sérvia vindas do norte tinha sido feita uma qualquer tentativa para colocar as reservas de ouro em segurança fora do país. Mas as que pertenciam ao maior banco da Sérvia tinham sido levadas para o sul da Sérvia e - tanto quanto se sabia - haviam-se perdido. Seja como for. durante a guerra, tanto os Chetnik como os Partisans procuraram febrilmente o tesouro que ambos supunham enterrado algures nas montanhas da Sérvia. Os alemães, e mais tarde os soviéticos. tinham ambos mostrado considerável interesse pelo assunto; mas sem qualquer resultado. Depois da libertação o governo tentou localizar o grupo que fora encarregado de levar o ouro para o sul a bordo de um camião. Mas parecia que os seus membros haviam sido abatidos pelos Partisans durante a guerra. Nem uma só alma conhecia o paradeiro desta grande soma de... Methuen assobiou em surdina. "Deve ser essa a chave do enigma", disse para consigo triunfantemente. "Pelo menos é a única chave que abre todas as portas."

 

Ainda abalado pela sua própria estupidez recapitulou todas as fases da sua investigação e examinou-o em face de uma única hipótese: se os Águias Brancas tivessem localizado o tesouro o que seria mais provável que fizessem? A resposta seguia-se muito naturalmente: tentariam guardá-lo, tentariam informar os exilados a seu respeito, tentariam fazê-lo sair a bordo de um submarino... Os versos enigmáticos que haviam sido radiodifundidos voltavam à sua mente à luz deste novo conhecimento e agora não tinha dificuldade em decifrar qual a mensagem que se ocultava por detrás das palavras.

 

Mas como corolário à primeira pergunta uma pessoa teria de formular outra: nomeadamente, o que fariam os comunistas se soubessem da descoberta do tesouro? A resposta era breve e radical: cercariam o local, liquidariam os Realistas e apoderar-se-iam dele.

 

- E fácil de ver também", dizia Methuen para consigo, sonolentamente, "que o seu volume torna-o importante. Creio lembrar-me dos jornais terem falado de quinze ou vinte milhões. Os Realistas teriam dinheiro suficiente para basear o seu movimento em qualquer coisa mais sólida que meras simpatias políticas. Com dinheiro podem comprar-se armas e agentes..." Compreendia agora a importância que Vida atribuía à descoberta; e compreendendo isso sentiu uma vez mais quão perigosa era a sua posição, porque pessoas que arriscavam tanto não se deteriam diante de nada como o demonstrava a própria morte de Vida. Presumivelmente ela havia sido considerada uma pessoa perigosa, porventura uma traidora...

 

"Suponho", concluiu Methuen. "que devia regressar imediatamente a Belgrado." Voltou-se para olhar por um momento os vultos escuros das mulas que vinham atrás dele coladas à encosta da montanha. "Missão cumprida. Muitíssimo obrigado." Imitou a voz de Dombey felicitando-o por ter esclarecido o mistério e sorriu. "Um bom agente afastava-se agora", reconheceu, "mas não tenho transporte que me leve de volta."

 

Estava metido até aos olhos na aventura.

 

Na Pedra de Janko

 

Continuaram a caminhar até cerca das quatro horas, ao longo da espinha da cordilheira. Depois Methuen ordenou um alto de meia hora porque por essa altura estava muito cansado e também porque se sentia um tanto preocupado com a natureza da recepção que os aguardava na Pedra de Janko. No escuro, sem saber qual o santo-e-senha. podiam facilmente ser tomados por tropas comunistas e emboscados. Considerou mais prudente chegar ao romper da manhã quando lhes fosse possível ver e ser vistos. Além disso, não tinha uma ideia clara a respeito do quartel-general dos Águias Brancas; eles não podiam manter um grupo naquela posição descoberta - um planalto aberto ao reconhecimento aéreo. Devia haver algures uma enorme depressão na crista do monte mais alto - ou talvez uma pedreira abandonada.

 

O ar da madrugada era gelado, mas ele dormiu com bastante conforto no seu grosso casaco de lã, enquanto as mulas iam comendo erva em redor da sua cabeça. Meia hora de bom sono faz uma grande diferença e ele tinha-se treinado para dormir onde quer que fosse, a qualquer hora. Acordou a tempo de ver a primeira luz leitosa da alvorada começar a cobrir a cordilheira mais distante, e olhando para trás para o caminho que haviam percorrido sentiu um moderado orgulho pelo rigor da sua navegação nocturna. A cerca de uma milha lá para a frente erguia-se o último pico da cordilheira, ainda amortalhado numa densa névoa rosada. Estavam quase a atingir o fim da viagem.

 

O seu prolongado assobio surdo acordou os muleteiros e a comprida linha desgarrada voltou a formar-se atrás dele. Partiram agora num passo mais vivo. animados sem dúvida pela ideia de terem à espera deles um acampamento confortável com fogueiras e comida quente.

 

- Conhece o santo-e-senha naturalmente - disse o velho camponês, puxando a sua mula para o lado de Methuen a fim de lhe oferecer um bocado de tabaco de mascar.

 

- É isso que me está a preocupar - disse Methuen - Tinham-me dado a palavra "Asas"; mas Marko quando estava a morrer disse que eles tinham mudado o santo-e-senha outra vez.

 

O homem olhou-o consternado.

 

- Ai! - disse, com uma expressão desalentada.- Não irão disparar contra nós?

 

- Não. se virem as mulas.

 

- Os comunistas usam mulas.

 

- Paciência. Vamos lá ver.

 

O terreno tinha-se aplanado agora e tornara-se muito mais irregular e juncado de pedregulhos com manchas de terreno rugoso emergindo no meio do tapete de erva. como manchas de calvície numa cabeça humana. A vista dali era indescritivelmente bela. com os picos das montanhas espalhando-se em todas as direcções, suavemente coloridos pela luz do sol prestes a nascer e que rosava as bolsas de neblina.

 

- Não tardaremos a chegar lá - disse Methuen. a cavalgada penetrou na orla enevoada do cume. De leste, como uma premonição, chegou um zumbido de aviões.

 

A visibilidade reduziu-se agora a uma dúzia de passos e Methuen parava a cada dois minutos soltando um grito muito arrastado: "Ho!", antes de continuar a avançar. Exceptuado isso caminhavam num silêncio cortado apenas pelo ranger das cilhas e das selas de madeira.

 

Decorrido um quarto de hora ouviram um apito agudo repetido três vezes e de trás de uma rocha vulcânica saliente chegou a ordem lançada num latido rouco: "Alto!" Methuen mandou parar a recua e avançou alguns passos até que a repetição do grito e o estalido das culatras a ser armadas o advertiu que qualquer novo movimento podia custar caro. Visto isso imobilizou-se e viu um pequeno bando de rufiões com um aspecto singularmente asselvajado materializarem-se em torno dele na neblina como espectros. Traziam todos casacos brancos de pele de carneiro e chapéus antiquados. Alguns estavam descalços. Mas não pôde deixar de notar que estavam muito bem armados com pistolas-metralhadoras eficazes e evidentemente bem municiadas.

 

A princípio não disseram nada e puseram-se a rondar em torno de Methuen e do pequeno grupo de muleteiros como mastins selvagens, farejando-os desconfiadamente. Levaram talvez uns vinte segundos a concluir a sua inspecção da recua de mulas e depois um deles, um selvagem barbudo, adiantou-se e pediu o santo-e-senha.

 

- Não sei - respondeu Methuen. - Venho do quartel-general e Marko morreu antes de me poder informar. Leva-me junto de Pedro Negro, ele compreenderá.

 

Para sua surpresa esta resposta pareceu satisfazê-los porque deram meia volta, e com uma série de latidos e uivos agudos

- semelhantes aos que os pastores soltam nos montes para guiar os seus rebanhos - começaram a caminhar adiante no meio da neblina dirigindo-se para o cume. "Até aqui tudo bem", pensou Methuen ao entregar-se nas mãos daquelas criaturas bravias, "pelo menos vou encontrar-me com o Pedro Negro."

 

Um quarto de hora mais tarde a montanha aplanou-se e a neblina dissipou-se; e na verdade era como Methuen tinha imaginado - uma grande pedreira com uma rede de minas abandonadas. Cerca de cinquenta homens acampavam em barracas encostadas às paredes íngremes, camufladas com uma certa arte e adequadamente drenadas. O campo estava ainda adormecido e a chegada deles provocou uma agitação geral de caras pálidas e barbas naquelas barracas sombreadas. "As mulas", disse um deles, e as palavras foram repetidas em vozes rudes por todo o acampamento até se erguerem num rugido. "As mulas. Graças a Deus já temos as mulas."

 

Os seus guias haviam dispersado na entrada de um túnel e pouco depois um deles saiu a correr na direcção de Methuen, cheio daquela presunção que uma missão especial confere, e com grande surpresa do último apontou-lhe uma pistola, empurrando-o brutalmente para o túnel. Methuen soltou uma exclamação de protesto e disse: "Irmão, que significa isso?" Mas a única resposta que obteve foi um cenho franzido e um movimento com a pistola mandando-o seguir em frente. Com as mãos em cima da cabeça avançou cerca de cinquenta metros no interior do túnel. Disseram-lhe então que parasse, enquanto o seu guia batia com o cano da pistola numa porta embutida na parede.

 

- Entre - disse uma voz extraordinariamente suave e melodiosa, e Methuen penetrou num quarto escuro, que lembrava uma igreja, iluminado por uma dúzia de velas, com alguns ícones a descascar a tinta na parede do fundo.

 

- Pedro Negro - disse Methuen. - Fui-te enviado pelo quartel-general.

 

O jovem que estava de pé atrás da mesa era imensamente alto e largo. O corte abrupto da parte de trás da cabeça, a guedelha negra despenteada e a barba preta proclamavam-no um sérvio. Tinha olhos escuros cruéis incrustados muito perto um do outro e mãos enormes com que estava a tentar quebrar uma noz. Vestia uma túnica russa muito suja e calças que enfiavam nos canos de umas botas russas muito sujas também. Tinha dentes estragados. Ao lado dele. junto de uma vela que punha um reflexo rosado na sua velha face malevolente, estava sentado um velho envergando um uniforme muito remendado. Decorava o queixo ossudo uma franja de barba prateada, enquanto a cabeça estava toscamente rapada de modo a deixar uma comprida madeixa de cabelo emaranhado pendente na coroa. Este estilo albanês de corte de cabelo era novo para Methuen que presumiu que ele devia ser um Arnaut do Kosmet.

 

- Então não tens o santo-e-senha - disse o velho numa voz quebrada, com um ar de insinuação. - Como e que isso se explica?

 

O jovem quebrou a noz e começou a comê-la lentamente. Enquanto mastigava levantou os olhos e deixou-os pousar na cara de Methuen. Foi um momento muito difícil. Methuen repetiu a sua história; tinha sido infiltrado recentemente para ajudar os Águias Brancas. O quartel-general enviara-o com uma mensagem para Pedro Negro. De caminho encontrara Marko e assistira à sua morte. O santo-e-senha que lhe haviam dado era "Asas" mas parece que já estava ultrapassado. Disse tudo isto numa voz lenta e com tanta circunspecção quanto lhe foi possível, de olhos voltados para o cano da pistola do seu guarda, de tal modo dominado pela curiosidade que se postou em frente de Methuen a fitá-lo como um labrego.

 

Eles não pareciam estar ou deixar de estar convencidos. O velho fitava os lábios de Methuen enquanto este falava e por fim disse:

 

- Tu não és um sérvio.

 

Methuen não teve dificuldade em dar uma explicação:

 

- Minha mãe era servia, meu pai esloveno - disse. - Passei muitos anos no estrangeiro.

 

Estava obcecado por um único medo: o de que pudesse haver ligação pela rádio entre este acampamento e a organização urbana que ele imaginava localizada numa cidade como Usizce, próxima das montanhas. Até agora, porém, não tinha visto qualquer sinal de semelhante coisa: e os homens que o interrogavam também não tomavam apontamentos.

 

- Descreve como foi que vieste - disse o homem alto limpando as unhas com um canivete.

 

Ora Methuen era um homem previdente e já tinha dado voltas à cabeça tentando imaginar de que maneira os agentes podiam entrar e sair da zona das montanhas. Só era capaz de imaginar um caminho e passou a descrevê-lo:

 

- Comprei em Usizce um bilhete normal para Rashka; saltei num dos túneis durante a noite, evitei o guarda e atravessei o rio Ibar. - Depois susteve a respiração para ver se o que imaginara estava certo.

 

O homem alto tossiu por detrás da mão e disse num tom mais brando:

 

- Bem vês que temos de ser cautelosos.

 

Era a primeira vez que a temperatura baixava e Methuen tirou partido desse facto.

 

- Não me importa se vocês acreditam em mim - disse com seriedade - mas pelo amor de Deus acreditem nas notícias que trago. Os comunistas estão a cercar esta cordilheira. - Deu um passo para a mesa e desenrolou um mapa que lhe despertara a atenção. - Aqui - disse. - Vejam. Não há tempo a perder. Devem carregar o tesouro esta noite e partir amanhã muito cedo.

 

Tinha-lhes capturado o interesse e eles ouviam-no em silêncio.

 

- Com que então - disse por fim o velho que seguia o movimento rápido dos dedos de Methuen ao longo da espinha da cordilheira. Com que então descobriram finalmente aquilo que estamos a fazer.

 

O jovem alto começou a andar rapidamente de um lado para o outro com os lábios apertados; depois, num súbito acesso de cólera, parou e atirou para cima da mesa o punhal que tinha na mão.

 

- É tudo por culpa deles - gritou impulsivamente. - Disse-lhes que não infiltrassem demasiados homens nesta área. Disse-lhes que isso iria chamar as atenções sobre nós. Eu disse-lhes.

 

O velho deu um estalo com os dentes e acenou com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Não importa - disse. - Ainda havemos de consegui-lo. Por cima das montanhas e através do Karst1 até à costa.

 

1 Planalto calcário nas proximidades de Trieste. (N. do T.)

 

Methuen pediu licença para fumar e acendeu um cigarro.

 

- Estou com fome - disse - e vocês não querem a minha opinião. Mas digo-vos que a não ser que atravessemos o cordão seremos cercados e perderemos o tesouro.

 

Pedro Negro soltou uma gargalhada cruel.

 

- Isso pelo menos não - disse ele, - porque seguiremos por um caminho sobranceiro ao Lago Negro, que é insondável, e se não conseguirmos fazê-lo sair pelo menos Tito não ficará com ele. Isso eu juro. - Fez um gesto largo no ar e acrescentou: - Isso pelo menos eu juro.

 

- Estou com fome - repetiu Methuen com lassidão. Com um gesto impaciente Pedro Negro aproximou-se dele e disse:

 

- Ainda não estou convencido da tua história.

 

- Pergunte ao quartel-general - retorquiu Methuen com um encolher de ombros. - Mas se perder um tempo precioso talvez descubra..'.

 

A sua voz foi-se apagando porque um novo som se repercutia na caverna - o som de aviões. Estavam próximos agora e o ruído dos seus motores sussurrava e rugia no meio dos montes. No acampamento do lado de fora do túnel produziu-se uma agitação. Ordens crepitaram. Pés bateram nos corredores de pedra. Pedro Negro abriu a porta e gritou:

 

- Branko!

 

Um zarolho de aspecto selvagem irrompeu pelo quarto levando um dedo à madeixa que lhe caía para a testa e afagando o punho do revólver que trazia no cinturão.

 

- Traz comida a este homem - ordenou Pedro Negro. - Depressa. - Voltou a sentar-se à mesa. - Preciso de tempo - disse.

- Preciso de tempo para reflectir.

 

Houve uma pancada na porta e um homem vestindo uma túnica militar manchada entrou e fez a continência.

 

- Cinco aviões, senhor. Não viram nada. Pedro Negro fez um gesto de desespero.

 

- Como podiam eles não ter visto - disse. - Sai - acrescentou para o mensageiro. - Sai. - E num tom de fatigada resignação: - Camponeses ignorantes, o que é que eles sabem?

 

Uma mesa fora posta a um canto e disseram a Methuen que se sentasse lá à espera da comida, uma ordem a que obedeceu com alacridade. O alívio nervoso de não ter cometido quaisquer erros graves aumentara-lhe a fome e a fadiga, e pousando os braços dobrados sobre a mesa inclinou a cabeça para a frente e caiu num sono só interrompido pela chegada de uma tigela de sopa onde nadavam bocados de carne e fragmentos de pão. O zumbido das vozes na outra extremidade do túnel tinha sofrido uma subtil transformação e agora que estava de novo desperto compreendeu com um sobressalto que Pedro Negro e o velho já não falavam um com o outro em sérvio. Falavam búlgaro, obviamente com a ideia de que a sua conversa não poderia ser entendida pelo visitante. Methuen sorriu torvamente para consigo e ouviu Pedro Negro dizer: "Não, você aceita sempre as coisas pelo seu valor facial. Por que havia o quartel-general de enviá-lo separadamente, se vão mandar-nos esta noite aqueles homens das montanhas? E a história da morte de Marko... é outra coisa que me faz duvidar..." O velho fez "Ach!" várias vezes num tom de desaprovação. "Pedro Negro vê espiões por toda a parte", disse.

 

Pedro soprou um rolo de fumo pelo nariz.

 

- E o inglês? - disse.

 

- Seja como for ele era demasiado óbvio.

 

- Talvez este seja também um agente.

 

- Então não corras riscos. Dá-lhe o mesmo tratamento.

 

O velho ergueu a mão direita e fez no ar um gracioso esboço de alguém a disparar uma pistola; foi um pequeno gesto gracioso que Methuen observou pelo canto do olho enquanto estava debruçado sobre a sopa. Percebeu com um arrepio de horror que eles se estavam a referir à morte de Anson.

 

- Pelo menos - disse o velho - Branko fará o trabalho de uma forma limpa e eficaz... como com o frade. - Soltou uma risadinha rinchada e dirigiu-se à janela, uma falsa janela que não atravessava a rocha. Nesse vão, porém, havia um ícone que o velho ia estudando com amorosa atenção enquanto falava suavemente, insinuantemente. - A decisão é tua, Pedro Negro. Se estás preocupado com ele mete-lhe uma bala e acabou-se. Mas penso que a informação que ele prestou é certa. Ouviste os aviões.

 

Pedro suspirou e voltou a falar em sérvio.

 

- Muito bem, barbar - disse. - Mas estarei em guarda - e dirigindo-se para o canto da caverna onde Methuen ainda estava sentado a comer bateu-lhe no ombro e disse: - Aceitamos a tua história.

 

- Agradeço-te.

 

- Agradece-lhe a ele - tornou Pedro Negro secamente, e, inclinando-se para diante, as suas mãos percorreram rapidamente o casaco de Methuen. Com um gesto brusco tirou a pistola do coldre e ergueu-a para a examinar.

 

- É um novo modelo americano - disse Methuen continuando a comer a sopa. - Comprámos algumas em Paris.

 

- Isto é um silenciador - disse Pedro Negro.

 

- Sim.

 

- Guardo-a para mim. Podes ficar com a minha.

 

- Está bem.

 

Levantou-se e olhou para Pedro Negro, sorrindo afavelmente, mas por dentro furioso por perder aquele tesouro.

 

- Agora - disse - chegou naturalmente a altura de planear a nossa partida esta noite.

 

- Primeiro vais dormir.

 

- Onde?

 

Pedro Negro gritou de novo a chamar o facinoroso Branko.

 

- Leva este homem e deixa-o dormir até ao meio-dia, disse. - Vigia-o. Volta com ele para aqui.

 

Depois debruçou-se sobre a grande mesa pejada de mapas, assobiando em surdina uma canção.

 

Pedro Negro tem Dúvidas

 

Methuen dormiu umas boas seis horas seguidas e o sol ia alto quando acordou na sua cama de palha ao fundo de um comprido túnel. Quando se sentou a bocejar sentiu duas fortes mãos empolgarem-lhe os ombros e no momento seguinte tinha os pulsos firmemente amarrados atrás das costas. Voltou-se para fitar a cara barbuda do seu carcereiro Branko.

 

- Que vem a ser isto?

 

O velho apertou os nós e experimentou-os com um grunhido antes de responder com lacónica brusquidão:

 

- Ordens.

 

- Mas Pedro Negro disse...

 

- Mudou de ideias. Até ser possível confirmar quem tu és. Methuen praguejou em voz alta e voltou a deitar-se para trás.

 

O velho pôs-se de cócoras e cortou uma maçã em quatro pedaços com a sua navalha. Começou a comê-la ruidosamente.

 

- Vocês não vão ganhar nada com isso - disse Methuen.

- Absolutamente nada. Posso falar com Pedro Negro?

 

- Está muito ocupado - disse Branko, fazendo que não com a cabeça.

 

Methuen sentia os tormentos de um desespero que começava gradualmente a surgir; nunca devia, compreendia-o agora, ter vindo até aqui. Devia ter-se contentado com a informação que adquirira. Agora todos os seus planos poderiam gorar-se a não ser que ganhasse a confiança de Pedro Negro.

 

Pediu água para beber e foi atendido; e depois de alguma reflexão pôs-se de pé e caminhou na direcção da boca do túnel. Branko seguiu-o passo a passo. As depressões cobertas de erva em torno do grande obelisco de pedra fervilhavam de homens empenhados nas várias actividades de um acampamento. Devia haver uma nascente abundante algures ali perto porque uma longa fila de homens estava a dar de beber aos animais; outros estavam a levantar abrigos e a acender fogueiras. Imediatamente em frente abria-se outro túnel profundo, obviamente a entrada para qualquer velha mina abandonada, e ali Methuen viu o clarão de luz amarela de lâmpadas de carboneto. Duas sentinelas guardavam a entrada com pistolas-metralhadoras. Sombras agitavam-se e vacilavam no interior da boca da caverna e Methuen descortinou o vulto gigantesco de Pedro Negro.

 

- Ele está ali - disse. - Preciso de falar-lhe.

 

O seu carcereiro tentou detê-lo mas Methuen afastou-o com o ombro e dirigiu-se para a entrada da caverna onde as sentinelas lhe barraram o passo.

 

- Pedro Negro! Preciso de falar contigo.

 

O chefe dos Águias Brancas estava sentado numa arca de madeira, absorto numa conversa com dois homens com cara de bandidos.

 

- Que se passa? - disse impacientemente, e avistando Methuen. - Ah! és tu. Entra.

 

Methuen encolheu-se para passar diante das bocas das pistolas-metralhadoras e dirigiu-se para o círculo de luz vacilante.

 

- Por que estou preso? - perguntou.

 

- Não estás - respondeu Pedro rudemente - mas quero estar certo a teu respeito. Está muita coisa em jogo.

 

Acenou vagamente com a mão para o túnel interior e Methuen viu pela primeira vez as compridas pilhas de grades de madeira que presumiu conterem as barras de ouro.

 

- Isso é que é o tesouro? - disse e Pedro Negro levantou-se, debatendo-se entre o seu desejo de manter segredo e um manifesto orgulho.

 

- Sim - respondeu, seguindo a direcção do olhar de Methuen e soltando um suspiro.

 

- Lingotes de ouro são pesados.

 

- Eu sei. Mas há também outras coisas. Vem cá ver. - Pedro Negro pegou-lhe delicadamente pelo ombro e conduziu-o mais para o interior da caverna.

 

Esta antes parecia uma adega. Pendentes de uma longa série de prateleiras Methuen viu o que a princípio tomou por câmaras de ar mas que. observando mais de perto, verificou serem bandoleiras de borracha para moedas, todas feitas para transportar quinhentas moedas de ouro.

 

- Estou a ver. Cada homem levará o seu carregamento. Sendo assim não podem deslocar-se depressa.

 

Uma ruga sulcou a testa de Pedro Negro.

 

- É esse o problema. E vê aqui.

 

Empilhados a um canto (como peças de fazenda empilhadas ao fundo de uma alfaiataria). Methuen viu o que a princípio lhe pareceu ser uma série de tiras de tecidos cobertos de cequins que fulgiam como escamas de peixe na luz amarela.

 

- Que diabo vem a ser isto?

 

Grandes pilhas de moedas de ouro tinham sido reunidas em tiras, unidas por finos grampos de ouro. Cada peça media cerca de um pé quadrado e no centro de cada uma havia um buraco.

 

- Não percebo - disse Methuen.

 

Pedro soltou uma risada áspera e pegando numa dessas folhas rutilantes enfiou nela a cabeça através do buraco central. Era uma espécie de cota de malha, só que feita de moedas.

 

- Cada homem vestirá também uma destas camisas de ouro: e olhe. há outras para pôr em cima das mulas, como mantas.

 

Methuen assobiou baixinho.

 

- Mas o peso - disse. - Com este peso não podem avançar muito num dia de marcha.

 

Pedro Negro esteve a olhá-lo por um momento sem falar.

 

- Tu verás - disse confiantemente. - Tu verás. Produziu-se lá fora uma agitação e ouviu-se o som de vozes. Pedro Negro pôs-se à escuta e depois disse:

 

- São os batedores que voltam. Foram verificar a tua história a respeito das tropas. Vem.

 

Saíram da caverna e imediatamente um grupo de camponeses barbudos precipitou-se através da erva para Pedro Negro e começaram a pairar ininteligivelmente. acenando com os braços e agitando armas de todas as espécies. Por um momento foram inundados com perguntas e gritos e até o próprio Pedro Negro pouco percebia do que os homens tinham para dizer. Era inútil ordenar silêncio, portanto com admirável presença de espírito ele acendeu um cigarro e sentou-se no chão: imediatamente foi rodeado pelos batedores que se acocoraram em torno dele como em volta de uma fogueira, e se calaram.

 

- Agora - disse Pedro Negro, e uma pessoa sentia a autoridade por detrás da sua voz profunda e melodiosa - fala cada um por sua vez para que possamos ver o verdadeiro quadro dos acontecimentos. Tu. Bozó: que tens para dizer?

 

Um por um ouviu-os a todos até ao fim. puxando pensativamente fumaças do seu cigarro, sem denunciar preocupação ou impaciência. Depois voltou-se para Methuen, sentado perto dele, ainda desconfortavelmente peado e disse:

 

- Tens razão. Temos de partir esta noite. - Mandou embora os batedores e continuou por um momento sentado mergulhado em profundas reflexões.

 

Levantou-se por fim e dirigiu-se para onde um fragmento despedaçado da velha muralha formava um admirável estrado natural e subindo lá para cima. com as costas para a escarpa, levou um apito aos lábios e soprou três apitadelas estrídulas. O acampamento animou-se imediatamente como acontece com um formigueiro quando alguém lhe deixa cair qualquer coisa em cima. De todos os quadrantes acudiram homens para se juntarem diante dele, e Pedro Negro esperou por eles sem qualquer mostra de impaciência. Methuen não podia deixar de admirar a sua calma e segurança perfeitas. Quando todo o bando se encontrou reunido silenciosamente diante dele. Pedro Negro esteve a olhá-los durante meio minuto antes de começar a falar. Era obviamente um orador nato e conhecedor do efeito que comunicava com as suas palavras.

 

Começou por elogiar o heroísmo dos homens ao enfrentarem os perigos de uma vida de guerrilha num território tão difícil como a Jugoslávia: recordou-lhes que a viagem que estavam prestes a empreender era sob muitos aspectos a mais perigosa e fatigante que alguma vez tinham feito.

 

- O tesouro é pesado, bem o sabemos. A nossa marcha será lenta. E devo preveni-los de que pode ser interrompida, porque os comunistas estão a abordar esta montanha de três lados, na esperança de nos interceptar. De uma coisa devem lembrar-se. Em regra são as guerrilhas que podem mover-se depressa, e que viajam aligeiradas, enquanto o equipamento pesado embaraça os movimentos das forças regulares. Mas neste caso seremos nós os lentos, os que transportam a carga pesada. Seremos como formigas carregadas com espigas de milho demasiado grandes para elas. Portanto vamos precisar de disciplina. Portanto vamos precisar de astúcia no lugar da velocidade.

 

Foi saudado por um murmúrio rouco e esperou que se restabelecesse o silêncio antes de continuar.

 

- Muitos de vocês conhecem o itinerário que me proponho seguir; à testa de cada coluna seguirá um guia que conhece bem o país. Penso que evitaremos o cordão facilmente se não nos faltar coragem. E sábado, ao amanhecer, alcançaremos um caminho de montanha que ninguém conhece e que passa sobranceiro ao Lago Negro. Depois para Durmitor e pelo Karst.

 

Ao ouvirem isto cuspiram todos de satisfação e Pedro Negro continuou numa girândola de som:

 

- Não perderemos o tesouro do rei, isso pelo menos é certo. Antes morrer, antes mergulharmos com ele no Lago Negro, ligados num abraço mortal com os inimigos que arruinaram o nosso país.

 

Os homens soltaram um viva estridente e alguns gritaram "Bem falado!", e brandiram as suas armas.

 

Um sorriso sinistro bailou por um momento em torno da boca de Pedro Negro. Depois reassumiu uma expressão séria e prosseguiu:

 

- Uma coisa dificulta a nossa empresa: refiro-me à aviação. Alguns de vocês viram esta manhã aqueles aeroplanos à nossa procura. Se nos descobrissem podiam atacar-nos do ar e quem lhes poderia escapar? Por isso peco-vos uma coisa: quando os aviões se aproximarem não comecem a correr em todas as direcções para se esconderem. Que cada homem fique perfeitamente imóvel no lugar onde se encontra. Que fique tão firme como a Pedra de Janko. porque os aviões não conseguem ver a imobilidade nos homens, mas apenas o movimento. É tão importante compreender isto que tomei uma medida extraordinária. Três guardas têm ordem para se colocarem numa posição central se ouvirmos aviões a aproximarem-se e para abater imediatamente aquele que seja visto a mover-se. Ora eu não quero que se faça mal a ninguém. Mas quem quer que se mexa põe em risco a vida de todos nós e será abatido. Concordam comigo?

 

Um grito cadenciado e selvagem ergueu-se em coro daquele bando de rufiões: "Bem falado, Pedro! Bem falado, irmão Peterkin!"

 

Pedro Negro esperou de novo que se fizesse silêncio e depois num tom seco e diferente, acrescentou:

 

- É tudo o que tenho para dizer. Têm uma hora para comer e descansar, depois devem começar a carregar. Todos vocês sabem o que cada homem tem de transportar e o que cada mula tem de carregar. Esta noite virá juntar-se a nós um grupo dos nossos homens vindos das montanhas por cima de Sarajevo. Partimos quando escurecer.

 

"Quando escurecer!", repetiu ao descer da plataforma e. abrindo caminho com os ombros por entre o ajuntamento, foi ter onde Methuen se encontrava sentado na relva. As cordas começavam a ferir-lhe os antebraços e morria por fumar um cigarro. Pedro Negro parou um momento a olhá-lo de cima para baixo com um sorriso.

 

- Está muito apertado - disse ele por fim - e vê-se mesmo que é obra de Banko. Vamos lá! - Desatou as cordas ajudado pela ordenança e disse: - Vamos amarrar-te as mãos à frente. Assim pelo menos poderás fumar se quiseres.

 

- E vou marchar de mãos amarradas? - perguntou Methuen com irritação.

 

- Sim.

 

- Sou capaz de usar uma arma muito melhor do que esses seus rufiões. Vocês poderão precisar de mim.

 

- Se precisarmos soltamos-te.

 

Methuen pôs-se de pé e suspirou. Pedro pegou-lhe no braço e disse-lhe num tom ligeiro:

 

- Não leves isso demasiado a peito. É uma precaução natural. Supondo que eras um agente... e posso dizer-te que já tivemos um visitante dessa espécie. Podias fugir e ir informar os comunistas que estão no vale. da nossa posição e da força de que dispomos.

 

- Será que eles não a conhecem?

 

Pedro Negro começou a encaminhar-se lentamente para o seu quartel-general, pegando familiarmente no braço de Methuen enquanto o levava consigo.

 

- Não me parece que saibam ainda. Mas não podemos ter a certeza. Estamos sem contacto com Usizce há vários dias, suponho que por causa de todo este aumento de actividade. Penso que os comunistas suspeitam de que se prepara alguma coisa de grande; mas por enquanto não sabem o que é. Pensam que estamos a tentar iniciar uma revolução na Sérvia. Ach! Estou cansado.

 

Entraram no quarto que lhe servia de quartel-general operacional e ele deixou-se cair de novo junto da mesa. O velho dormia a um canto num divã com um ar esfarrapado. Pedro Negro tirou a rolha de uma garrafa de aguardente de ameixa e pousou dois copos sobre a mesa.

 

- Senta-se - disse ele - e bebe e falemos de tudo menos deste nosso projecto. Encontro-me aqui há seis meses a viver como um bode. Posso dizer que é bastante fatigante.

 

Durante a conversa revelou-se que Pedro Negro não era desprovido de uma certa cultura. Estudara engenharia em Belgrado e Viena e aquando da eclosão da guerra com a Alemanha estava encarregado de um projecto de construção civil na Bósnia. A mulher e o filho morreram no princípio da guerra e ele foi juntar-se ao malfadado bando Realista do general Mihaelovic, os Chetnik. que depois da guerra os Aliados deixaram entregues à sua sorte. Com o desaparecimento da organização Chetnik e a execução de Mihaelovic, Pedro Negro passara à clandestinidade e trabalhara como sapateiro.

 

Depois os emigres em Londres tinham começado a tentar reconstituir o movimento Realista com os remendos que restavam. Pedro Negro foi chamado e informado de uma descoberta na Sérvia meridional que voltou a inflamar-lhe o coração. Aí estava uma oportunidade para servir de novo a causa dos Realistas. Falava com tocante simplicidade dos perigos corridos e das dificuldades superadas para infiltrar um bando bem armado numa determinada área montanhosa. Muitos dos seus cúmplices haviam sido capturados; tinham-se cometido erros.

 

- O erro mais grave foi a pressa - disse ele. - Demasiados homens, demasiadas armas em demasiado pouco tempo. Eu queria outros seis meses para fazer as coisas gradualmente sem despertar suspeitas. Mas eles queriam que eu me apressasse. Sempre a pressa. Agora estamos em perigo, como sabes. É possível que tenhamos de abrir caminho para a costa de armas na mão.

 

- Isso seria impossível - disse Methuen. - Com todo o exército atrás de si?

 

- Talvez. Mas tu não conheces o caminho que tencionamos seguir. Nenhum exército têm campo de manobra para nos enfrentar seja lá onde for. porque nos deslocamos exclusivamente na crista das montanhas; a única descida que faremos será esta noite, para o primeiro vale. No resto do caminho dois batalhões seriam o máximo com que poderiam tentar deter-nos. Pelo que nos diz respeito o exército pode andar por aí a passear de um lado para o outro nas estradas que isso não nos faz qualquer mossa.

 

- E na costa?

 

- Tu és um pessimista - disse Pedro Negro impacientemente.

- Vês todas as dificuldades; mas na costa, meu amigo, temos um ponto de encontro tão perfeito que... bem, não te direi mais nada. Só te posso dizer que não se encontra um soldado num raio de doze milhas a partir do nosso ponto de embarque.

 

Tudo isto, que à primeira vista parecia inteiramente fantástico, era de facto plausível - ou pelo menos Methuen assim pensava recordando a grande cadeia de rudes montanhas alcantiladas correndo para ocidente sobre o mapa como uma multidão de aranhas; os ermos planaltos de calcário branco conhecidos pelo Karst que se sucediam à cadeia de montes sobre que se encontravam agora, densamente arborizados e profundamente cobertos de glaciares.

 

- Bebe - disse Pedro Negro. - Deixa as preocupações para mim.

 

O velho ressonou no seu canto e resmungou qualquer coisa para consigo. Methuen fumava em silêncio enquanto Pedro Negro se voltava para os seus papéis, incinerando-os cuidadosamente numa caixa de biscoitos vazia e misturando as cinzas com um atiçador antes de chamar uma ordenança para ir deitá-las fora.

 

- Esta tua pistola é uma jóia - disse ele. levantando-a da mesa. - Deixo-te ficar com o binóculo por especial favor.

 

- Quererá fazer-me o favor de dizer isso a Branko? - pediu Methuen sorrindo. - Porque ele tirou-mo.

 

Branko foi chamado e intimado a restituir a sua presa, o que fez com tosca relutância, rosnando em surdina como um mastim. Pedro Negro observava-o em silêncio e depois deu-lhe secamente ordem para que se retirasse.

 

- Estás a ver? - disse, voltando-se para Methuen - sou um homem justo e honesto.

 

- E a minha pistola? - perguntou Methuen.

 

- Isso é diferente. Quero-a. - Soltou uma gargalhada áspera e deu uma palmada consoladora nas costas de Methuen. - Não se preocupe. Havemos de ver. Quem viver mais tempo ficará com ela.

 

Parecia uma solução bastante justa, embora Methuen já estivesse ocupado com planos de fuga. Na verdade começava a pensar que cometera um erro crasso ao vir para o quartel-general dos Águias Brancas. Devia ter regressado a Belgrado com o conhecimento adquirido em vez de arriscar o pescoço numa aventura tão perigosa. Mas quando partiu para a Pedra de Janko não tinha compreendido que se poderia encontrar na situação de prisioneiro virtual marchando para a costa com uma coluna de homens armados, de alvo involuntário das atenções de todo o exército de Tito. O sangue gelou-se-lhe quando pensou na cara do embaixador. A sua única esperança era fugir e poder estar presente no encontro com Porson na madrugada de domingo; mas como as coisas se apresentavam não ia ser fácil. Um passo em falso e despertaria as suspeitas dos seus captores. Isso poderia levá-lo a partilhar o destino de Anson. E depois, por outro lado, era absolutamente vital que Dombey e o Foreign Office fossem informados do destino do tesouro. Seriam de esperar as mais diversas repercussões se o movimento Realista no estrangeiro se encontrasse de súbito na posse de vultuosos fundos.

 

Talvez fosse imperioso alterar a política para ir ao encontro desta nova contingência. E se os Águias Brancas não conseguissem passar com a sua preciosa carga? Se ele próprio perecesse ninguém ficaria a saber nada. Só mais cedo ou mais tarde o desaparecimento do senhor Judson teria de ser explicado. "Meu Deus", disse Methuen desanimadamente para consigo, "que grande sarilho eu fui arranjar."

 

Almoçaram ao sol numa mesa posta do lado de fora da caverna porque Pedro Negro, preocupado, queria vigiar o carregamento da sua recua de mulas. Comeram fatias de toucinho de porco muito condimentadas e acompanhadas com um bom vinho caseiro. A pouca conversa que havia era cortada por interrupções. Ordenanças chegavam e partiam com informações trazidas pelos batedores: os guias juntavam-se em volta para ouvir instruções pormenorizadas sobre o roteiro que tinham dificuldade em seguir no mapa - não estando habituados a esses requintes civilizados dos mapas e das bússolas. Entretanto, o carregamento prosseguia normalmente e Methuen não podia deixar de admirar a excelente disciplina que observava no acampamento: no que respeitava a ordem e método este esfarrapado bando de guerrilheiros não envergonharia um exército regular.

 

À medida que a luz da tarde ia obliquando. Methuen observava uma assombrosa metamorfose dos homens e das mulas em cavaleiros rutilantemente couraçados e das suas montadas ajaezadas. As cotas de ouro fulgiam à luz do sol. As mulas a princípio espantaram-se quando lhes foram postas as grandes mantas de moedas de ouro. mas os seus condutores acalmaram-nas e acostumaram-nas gradualmente à nova sensação. Os alforges eram carregados e sobre as grandes selas de madeira colocavam-se as arcas que continham o tesouro. Pedro Negro ocupava-se incansavelmente com os pormenores, indo de grupo em grupo, exortando, estimulando e gracejando. Era óbvio que os homens o adoravam e que o seguiriam fosse para onde fosse. Era um admirável soldado instintivo, pensou Methuen com uma pontinha de inveja e admiração. Era assombroso observar todo o bando resplandecendo nas suas cotas de malha de ouro. conduzindo os seus animais reluzentes. Em certa ocasião houve um alarme quando se ouviu o som de aviões; mas o som afastou-se para leste do acampamento sem que tivesse sido avistado qualquer aparelho no céu.

 

Quando começava a escurecer pequenos núcleos de homens armados começaram a chegar ao acampamento vindos de todos os quadrantes. Cada nova chegada era assinalada por gritos agudos e assobios, e dois ou três dos homens foram acolhidos por Pedro Negro como velhos amigos.

 

Methuen tinha-se empedernido para a chegada da escolta, porque sem dúvida no meio desse bando haveria alguém capaz de detectar a falsidade da sua história; alguém vindo do quartel-general que o desmascararia... A sua ansiedade cresceu quando Pedro Negro avançou ao encontro de alguns desses recém-chegados. para saudá-los com afectuoso carinho, beijando-os nas faces e abraçando-os com rústico entusiasmo.

 

Methuen atravessou lentamente a depressão relvada e subiu o outro lado de onde podia ver apenas a parte superior da Pedra de Janko. Um círculo de sentinelas estavam estendidas na erva voltadas para dentro na direcção da depressão onde se situava o acampamento. A ninguém era permitido ir além de um certo raio, a fim de que a sua figura não se destacasse no horizonte, e por consequência todo o panorama bravio de picos e montanhas não era visível. Methuen gostaria de subir até alcançar o obelisco, mas foi impedido de fazê-lo. Branko vinha constantemente atrás dele.

 

Fugir estava fora de questão. E se descobrissem que ele era um agente a sua execução podia seguir-se imediatamente. Methuen preparou-se para o ordálio de um interrogatório que, sentia-o, não devia tardar. A fim de acalmar o espírito examinou minuciosamente uma velha mina, admirando os ricos e variados veios de rocha que as pás de homens esquecidos tinham posto a descoberto; quartzo cor de neve, abundantes fragmentos de minério de ferro cobertos pelo brilho das escamas de mica, serpentina verde-clara e jaspe sarapintado. Baixou-se para apanhar um belo bocado de calcedónia, uma rede de cristais reluzentes, que estendeu ao seu carcereiro, dizendo:

 

- Olhe para a riqueza desta terra.

 

Branko rosnou dubitativamente, enquanto fazia girar o espécime entre os dedos.

 

- E veja, aqui há ouro - acrescentou Methuen, apanhando um bocado de pirites de ferro com o seu enganador brilho amarelo.

 

- Ouro? - fez Branko. interessado.

 

- Sim. tome lá.

 

Estas brincadeiras foram interrompidas por um guarda que os procurava e disse secamente:

 

- Pedro Negro quer falar consigo imediatamente na caverna. Methuen respirou fundo e preparou-se. "É agora", pensou começando a descer lentamente para a depressão que começava agora a encher-se de guerreiros dourados e de mulas ricamente ajaezadas, tudo aquilo a resplandecer sob os últimos raios moribundos do poente.

 

A caverna estava agora completamente vazia e a um canto ardia uma enorme fogueira para onde o velho lançava vários artigos de equipamento e uns papéis que retirava de uma pasta. Pedro Negro encontrava-se sentado à mesa com um ar preocupado e indicou a Methuen a cadeira em frente dele.

 

- Bem - disse Methuen.

 

- Eu esperava que alguns desses homens tivessem podido confirmar a sua história.

 

- E eu também.

 

- Não podem. Eles estiveram em contacto com o quartel-general, mas há um ou dois dias que não; e o campo de operações deles tem sido em torno de Sarajevo.

 

- Oh raios! - exclamou Methuen com uma grande sensação de alívio que disfarçou erguendo os punhos amarrados para inspecção. - Preciso realmente de continuar com isto? Afinal de contas o acampamento está rodeado de sentinelas. Uma pessoa nem sequer pode subir à Pedra de Janko para ver o panorama... e muito menos fugir, supondo que eu o pretendia fazer.

 

Pedro Negro acenou vigorosamente a confirmar tudo o que o outro dizia e depois voltou a abanar a cabeça.

 

- Não podemos correr riscos - disse falando num tom vagaroso de obstinada determinação.

 

O quarto tinha começado a encher-se de guerrilheiros e era óbvio que ele não tinha mais tempo para perder com Methuen.

 

- Vá e prepare-se - disse. - Marchamos, daqui a pouco. Methuen saiu para a noite estrelada com um passo ligeiro.

 

Sentia um alívio indescritível. O seu hirsuto carcereiro conduzia-o agora para a caverna que continha o tesouro, e depois de lhe desamarrar as mãos passou-lhe uma cota de moedas por cima da cabeça. O peso era realmente espantoso - não seria muito inferior ao de uma armadura medieval completa. A isto foi acrescentada uma dupla bandoleira de moedas que lhe assentou sobre as ancas.

 

- Meu Deus - disse Methuen - uma pessoa não pode carregar isto e as munições ao mesmo tempo.

 

- Não lhe vamos confiar nenhumas -- tornou Branko com uma risada gutural. - Quanto a nós somos fortes.

 

- Havemos de ver isso - disse Methuen.

 

Os últimos que haviam chegado estavam a ser carregados com as suas bandoleiras e ele reparou que as munições haviam sido reduzidas a um mínimo. Aquilo não depunha a favor de qualquer combate que tivessem de travar no seu caminho para a costa; e comida? Methuen tinha visto um rebanho de carneiros no meio das mulas e presumiu que os guerrilheiros levariam com eles algumas cabeças que abateriam onde acampassem.

 

- Esta viagem não vai ser brincadeira nenhuma - observou Methuen ponderadamente.

 

- Venha daí, homem - foi a resposta de Branko. - Os nossos antepassados fizeram o mesmo e mais ainda.

 

- Sim - disse Methuen assumindo uma expressão apropriadamente envergonhada. - Tem toda a razão.

 

Fora da caverna na noite cheia de estrelas as recuas de mulas tinham formado e o acampamento fervilhava de agitação. Depois de carregar Methuen, Branko aproveitou a oportunidade para lhe atar ao braço esquerdo um comprido bocado de corda. Isto permitiria ao carcereiro caminhar atrás do seu preso durante a noite e ao mesmo tempo tê-lo firmemente preso por meio da corda. Não lhe iam dar uma oportunidade de aproveitar a escuridão para se escapulir.

 

Então a voz melodiosa de Pedro Negro ergueu-se no meio das trevas e fez-se logo um grande silêncio.

 

- Homens! - disse o orador invisível. - Está tudo preparado e estamos prestes a partir. Devo lembrar-lhes que ninguém fala nem ninguém fuma até eu dizer. Esta noite e a de amanhã vão ser perigosas. Rezem pelos vossos entes queridos e pelo rei em cujo nome cumpriremos esta missão ou pereceremos.

 

Branko conduziu Methuen através do relvado às escuras para se juntarem ao pequeno grupo que rodeava Pedro Negro como uma espécie de guarda de corpo.

 

- Marcharemos com eles em frente - disse ele num sussurro áspero e voltaram-se para ocidente, começando a subir lenta e laboriosamente, sob o peso das suas cotas de malha, as ladeiras que conduziam à Pedra de Janko.

 

Havia uma Lua Nova semi-oculta pelas nuvens e, olhando para trás quando alcançou o grande obelisco, Methuen viu a serpente negra da recua de mulas subindo sinuosamente atrás deles naquela montanha sem vento. Nas trevas em volta deles avistavam as grandes aglomerações de picos e ravinas que envolviam a Pedra de Janko. O orvalho abundante da montanha humedecia a erva. Pedro Negro ia na vanguarda com um grupo de homens a escoltá-lo; depois vinham Methuen e o seu carcereiro, seguidos de perto pelo arrieiro da primeira recua de mulas.

 

O caminho descia na direcção de uma bacia hidrográfica e o peso não era tão regular como Methuen desejaria enquanto ia seguindo aos tropeções com Branko a puxar pela corda. Caminhavam em completo silêncio exceptuando uma ocasional palavra rouca de comando ou uma confabulação murmurada sobre a direcção a seguir entre os membros do pequeno grupo que abria a marcha. A maior parte da descida fez-se em terreno aberto e para eles foi uma sorte a lua estar encoberta por nuvens, porque por uma ou duas vezes ouviram o rumor de um avião lá em cima - e o reflexo do luar nas moedas podia ter sido visível. Depois de terem descido para a sombreada bacia hidrográfica a visibilidade tornou-se limitada e na treva impenetrável houve um ou dois acidentes uma cilha partida e um homem que caiu por um barranco íngreme e quase ficou sem sentidos em consequência da pancada que levou da coronha da espingarda que transportava. Mas de uma forma geral a cadência da marcha era regular e o comportamento disciplinado dos homens excelente. Methuen acompanhava-os o melhor que podia, feliz por se encontrar de novo em movimento, mas com o cérebro inundado de planos e esperanças semiformulados. mas que ele não sabia como concretizar.

 

Atravessaram um bosque tenebroso e transpuseram algumas dunas de vertentes suaves cobertas de erva que lembravam a cordilheira que acabavam de deixar. Vindo da esquerda ouviam no escuro o marulhar de água correndo num leito de pedra. Em dada altura a coluna fez uma pequena paragem enquanto os exploradores se adiantavam para investigar um ruído suspeito. Depois de muito murmurar continuaram a marcha voltando bruscamente para a esquerda e atravessando uma corrente rápida num vau pouco profundo. Methuen começava a ficar rapidamente exausto tanto pelo peso que carregava como pelo intenso mal-estar causado pelos pulsos amarrados. Fartou-se de perguntar a Branko num sussurro se poderia falar com Pedro Negro, mas toda a resposta que obtinha era um grunhido de recusa.

 

Por fim. furioso, sentou-se e recusou-se a continuar a andar a não ser que falasse com o chefe. Branko praguejou e blasfemou e puxou vigorosamente pela corda, mas tudo isso em vão.

 

- Não saio daqui - disse Methuen em voz baixa - até falar com ele.

 

A coluna de mulas parara indecisa. Branko rosnou ameaças e puxou pela pistola que meteu significativamente debaixo do nariz de Methuen. Mas este limitou-se a dizer:

 

- Pois bem. mate-me. Daqui é que eu não saio. Enquanto a discussão continuava numa troca de murmúrios sibilinos. Pedro Negro e o seu grupo retrocederam apressadamente para saber o que se passava.

 

- Que vem a ser isto? - perguntou ele furioso.

 

- Ele não quer avançar - disse Branko.

 

- Pedro Negro - disse Methuen - não poderei continuar a marchar contigo a não ser que tenha as mãos livres. Estou já meio morto. Ou vocês me dão a possibilidade de caminhar livremente ou podem matar-me aqui mesmo.

 

Desta vez estava extremamente irritado e alagado em suor. Pedro Negro hesitou por um longo momento, depois, sem uma palavra, puxou por uma navalha e soltou-o.

 

- Mas tem cuidado - sussurrou, e voltando-se para Branko acrescentou: - Segura bem a corda.

 

Foi um prodigioso alívio e Methuen descobriu agora que podia acompanhar o grupo da vanguarda com comparativa facilidade. Os seus componentes pareciam ser todos montanheses experimentados e em quase todas as fases da jornada davam prova dos seus talentos, deslizando para a esquerda e para a direita da estrada em breves reconhecimentos, servindo-se dos acidentes de terreno para se ocultarem como caçadores natos. Uma pequena patrulha de quatro homens tinha sido despachada para marchar a cerca de uma milha adiante do destacamento e cada um deles, alternadamente. esperava para estabelecer contacto antes de seguir de novo para a frente: o seu lugar era sempre tomado por outro. Desta maneira tinham um sistema de estafetas que lhes traziam informações sobre o território que estavam a atravessar. Estes homens eram os únicos que não transportavam cotas ou bandoleiras de moedas.

 

Passava da meia-noite quando chegou a ordem para fazer alto e foi concedida aos homens meia hora de muito merecido repouso numa ravina sombreada que formava um excelente esconderijo. A lua desaparecera havia muito e agora o céu. coberto de estrelas, tinha um brilho mais suave. Pedro Negro veio sentar-se por um momento junto de Methuen enxugando o suor que lhe corria pela cara.

 

- Como vai isso? -r- perguntou.

 

A boa disposição de Methuen voltara com o acréscimo de liberdade. Ocupara bem o tempo, tornando-se carteirista e furtando a Branko a bússola que este lhe confiscara. Isso permitia-lhe conhecer a direcção geral da coluna e notou com satisfação que seguiam um itinerário mais ou menos paralelo (embora naturalmente distanciado) à estrada nacional por onde o carro de Porson havia de passar na sua viagem de Skoplje para Belgrado.

 

Ainda tinha esperança de conseguir tugir e chegar à estrada a tempo do próximo encontro. Mas por agora estava a observar com prazer a extraordinária perícia destes montanheses que conduziam as suas parelhas de mulas através de território inimigo. De vez em quando passavam por grupos de cabanas de palha como as que os pastores constróem nos planaltos para serem usadas no Verão e num deles Methuen avistou uma fogueira e as vagas silhuetas dos homens sentados em torno dela. No ar transparente da noite ouviu também o trotar monótono da música de instrumentos de corda. A coluna parou numa ravina ao lado de um poço e enquanto um explorador se aproximava a rastejar do grupo de cabanas as mulas eram levadas a beber e lavadas com o menor ruído possível. Pouco depois ouviram-se vozes abafadas no escuro e voltaram a partir num passo arrastado e lento de sonâmbulos.

 

A partir desse ponto o caminho que eles seguiam começou a subir num declive muito íngreme e a marcha tornou-se muito mais difícil. O carreiro macio transformou-se duramente em quartzo debaixo das ferraduras das mulas e passado pouco tempo desapareceu completamente, deixando-os na vertente arborizada de uma montanha. Subiram a custo através de uma selva de fetos e sabugueirinhos. escorregando e derrapando, e içando-se onde quer que lhes era possível com a ajuda de arbustos salientes. O avanço foi bastante retardado, e foi com certo alívio que por fim alcançaram os faiais no topo da montanha onde o movimento se tornou mais livre e o piso voltou a ser suave.

 

Através das alamedas de grandes árvores colhiam de vez em quando um vislumbre panorâmico das montanhas que se estendiam de ambos os lados, mas não avistaram qualquer sinal de habitação humana ao longo de todo o caminho. A madrugada começava a dar sinais de estar prestes a romper por detrás do pano de fundo de picos quando alcançaram o último pico da cordilheira, e aqui pararam numa floresta de abetos, maravilhosamente atapetada de urzes já acastanhadas pelo sol do Verão. Foi dada ordem para acampar e logo que acabaram de amarrar as mulas os homens deitaram-se e adormeceram imediatamente. Methuen libertou-se das bandoleiras e da cota de moedas e imitou-os, mergulhando quase instantaneamente num sono profundo e sem sonhos.

 

Acordou com Pedro Negro a sacudi-lo pelo ombro e a dizer: "Acorda. Cobre-te." Toda a gente recebeu ordem para se abrigar à sombra das árvores e foram tomadas minuciosas precauções para que nenhum dos animais se extraviasse para além dos limites do bosque. Com o clarear do dia Methuen compreendeu porque motivo estavam acampados na crista de um monte que dominava uma das principais estradas que se dirigiam para a Sérvia. Neste canto do quadro havia também uma grande actividade: automóveis e camiões frequentes rodavam na luz da alvorada lançando para o ar penachos de poeira. Ouviram também alguns estampidos desligados para leste que poderiam ter sido produzidos por disparos de armas de fogo, mas de uma forma geral a paisagem que os rodeava parecia tão pacífica como um paraíso.

 

Passaram ali todo esse dia. comendo aquilo a que conseguiam deitar a mão; os que tinham a felicidade de trazer algum pão com eles partilhavam-no e o abastecimento de água era rigorosamente racionado. Pedro Negro e o seu pequeno bando de atiradores especiais estavam dispostos na orla do bosque vigiando cuidadosamente a estrada à procura de qualquer sinal de movimentação militar. Methuen por seu lado passou o dia dormitando. As constantes marchas e contramarchas das últimas quarenta e oito horas começavam a deixá-lo exausto. Além disso um prego que saía da sola da bota esquerda tinha estado a afligi-lo. Aproveitou o mais que pôde aquela prolongada paragem para massajar os pés e descansar tanto quanto lhe era possível. Apesar da relativa liberdade de movimentos de que gozava, a corda atada ao seu braço tinha começado a irritá-lo, principalmente porque significava estar amarrado a Branko e Branko cheirava muito mal. Jurou que nessa noite desataria a sua extremidade da corda e amarraria o seu guarda a um escravo mais apropriado - uma mula.

 

Nesse dia foram visitados duas vezes por aviões e da segunda vez um aparelho de reconhecimento sobrevoou o monte durante algum tempo antes de se afastar para leste. A disciplina era perfeita e ninguém se mexeu; na verdade a camuflagem era magnífica e uma pessoa podia jazer à-vontade no meio dos fetos sem receio de ser vista. Todavia, estas visitas deixaram toda a gente no qui vive e Methuen pôde detectar um acréscimo de tensão nervosa entre os homens quando o crepúsculo começou a cair. Uma vez mais. antes de se porem a caminho, Pedro Negro fez um breve discurso lembrando-lhes o juramento que tinham feito de levar o tesouro ao seu destino e Methuen não pôde deixar de reflectir que aquelas palavras traíam a única fraqueza do soldado balcânico - a falta de memória. É necessário lembrar-lhe todos os dias aquilo por que está a combater e exortá-lo a cumprir o seu dever.

 

Partiram no lusco-fusco cinzento e depois de atravessarem várias cordilheiras pouco profundas alcançaram de súbito a falda de uma montanha que dominava toda a paisagem com as suas denticuladas vertentes brancas. O chão mudara de novo e o barulho das ferraduras das mulas nas pedras soltas parecia tremendo no meio do silêncio. Ao longe, para ocidente, avistaram as fogueiras de um acampamento - mas se eram tropas ou pastores não o podiam dizer. Uma refrescante chuva miudinha caiu durante uma hora, depois levantou-se o vento e limpou o céu. A Lua Nova começou a espreitá-los e foi-lhes então possível ver os precipícios calcários da montanha que iam escalar cintilando na luz difusa. Tinham começado num árido espaldão de quartzo a que os alpinistas chamariam um talude: milhares de pés abaixo avistavam as copas ondulantes dos bosques de castanheiros e de vinha brava.

 

Quando pararam Pedro Negro veio procurar Methuen. muito excitado.

 

- Estás a ver? - disse. - Não avistámos vivalma e logo que alcançarmos o cume há um estreito carreiro de pedra por cima do Lago Negro que nos levará até à próxima montanha. É impossível armarem-nos uma emboscada ali. Será como saltar de uma árvore para outra, hem? De um cume de montanha para outro enquanto as tropas percorrem os vales de cá para lá. - Estava tremendamente excitado. Mas Methuen não se sentia de modo algum satisfeito com aquilo; achava de mau agouro que até então não tivessem encontrado qualquer vestígio de oposição inimiga.

 

Além disso, outra e mais grave questão começava a atormentá-lo. Não podia adiar por muito mais tempo a sua tentativa de evasão se quisesse chegar à estrada a tempo de estabelecer contacto com Porson. Era já uma longa caminhada, tanto quanto lhe era dado avaliar, e uma fuga durante o dia seria virtualmente impossível. Já tinha experimentado e descobrira que era bastante fácil desatar a corda que lhe amarrava o braço e prendê-la a uma mula sem que Branko desse por isso. Mas como e quando poderia safar-se da coluna e desaparecer? Esperaria, pensou, pela madrugada, quando os homens estivessem cansados.

 

Continuaram a arrastar-se montanha acima durante várias horas até alcançarem uma larga ravina no cume e aí, numa curva do carreiro, um involuntário grito rouco escapou-se das gargantas dos homens ao avistarem lá em baixo a reluzente superfície do Lago Negro. Sabiam que depois de o terem rodeado a parte pior da sua viagem estaria passada.

 

Descansaram meia hora e tornaram a formar antes de penetrarem no barranco que os levaria por um caminho estreito ao longo das margens do lago. O carreiro era de uma largura razoável permitindo que as mulas avançassem aos pares durante a maior parte do caminho: só em certos pontos mais estreitos isso se tornava perigoso. A vista dali era indescritivelmente bela, porque eles contemplavam a superfície luzidia do Lago Negro do alto de uma autêntica penha de águias.

 

Methuen fazia votos para que de manhã tivessem acabado de percorrer aquele carreiro estreito e emergissem em terreno mais aberto porque as suas possibilidades de fuga eram nulas nas presentes condições. Duas mulas caminhavam à frente deles e outras duas atrás e não deixavam espaço para uma pessoa se esgueirar. A única via de fuga seria uma pessoa mergulhar no Lago Negro e isso nem lhe passava pela cabeça.

 

Apesar disso amarrou Branko a uma das mulas sem que o velho desse por isso e esperou que chegasse a sua oportunidade. Numa das paragens nessa escadaria de pedra. Pedro Negro veio atrás ver se tudo corria bem.

 

- Sinto-me tão feliz - disse ele. - Agora tenho a certeza de que conseguiremos passar. Eles deixaram-nos escapar.

 

Quem teria podido prever a natureza da emboscada para que se dirigiam?

 

A Emboscada

 

Sempre que anos mais tarde Methuen se recordava daquela emboscada estremecia ao lembrar-se da forma súbita como ela se havia produzido. A longa marcha tornara-os confiantes, fazendo-os crer que estavam livres do perigo de ser capturados pelo inimigo, e o moral era elevado visto saberem que o carreiro os levaria à crista de uma remota montanha perto de Durmitor - afastada de estradas e de rios. Os homens cobravam ânimo ouvindo os seus passos sobre as pedras no meio de um silêncio pontuado apenas pelo ranger de cilhas, pelo resfolegar ocasional de uma mula ou pelo vago tinido de uma arma tocando numa cota de moedas. Abaixo deles dormitava o lago.

 

A madrugada começava já a romper e Methuen fervia de impaciência para fazer a sua tentativa de evasão. Os homens marchavam num silêncio exausto e tanto quanto ele podia ajuizar Branko vinha a dormir em pé. Fosse como fosse não tinha dado fé de que a ponta da corda que segurava estava atada à sela de uma mula.

 

O carreiro alargava-se agora num desfiladeiro rochoso que dava um certo espaço de manobra e a pressão de trás aumentou quando a secção de mulas que seguia na vanguarda parou - talvez para apertar uma cilha solta. Ouviu-se imediatamente um matraquear rápido e crepitante vindo de cima do cabeço rochoso - como o som de um pau a passar por cima de travessas de ferro. Foi tudo.

 

E no silêncio que se seguiu um bando de gansos levantou voo do lago e começou a descrever nervosamente círculos lá em baixo, a cerca de trezentos metros. Um homem tossiu alto e ouviu-se o som de pés a correr. Depois foi de novo o matraquear sinistro, que desta vez se transformou num bramido, o seu eco vindo de três ou quatro quadrantes diferentes. Um grupo de homens chegou a correr, dobrados, pelos corredores rochosos, e entre eles Methuen reconheceu Pedro Negro agitando uma pistola-metralhadora. A sua face estava crispada de raiva. Gritou uma ordem rápida e os reforços avançaram, deixando as mulas apenas com os seus guardas: juntaram-se em torno dele enquanto ele gritava e depois precipitaram-se para a saída do desfiladeiro perdendo-se de vista. Agora ouvia-se fogo rápido vindo da entrada e estilhas esbranquiçadas de rocha começaram a soltar-se e a voar pelo ar. Era como se uma dúzia de brocas pneumáticas tivessem começado a concorrer umas com as outras.

 

Methuen saltou para a frente e agarrou Pedro pelo braço. "Que aconteceu?", perguntou, e Pedro Negro subitamente rompeu em lágrimas de raiva enquanto respondia: "Eles cortaram-nos a passagem. Temos de abrir caminho à força." O penhasco de rocha impedia qualquer estimativa séria da situação e Methuen gritou: "Subamos o penhasco e vejamos o que se passa." Pedro Negro já estava a dar ordens para alinhar as mulas sob a protecção do penhasco. Um grupo de guerrilheiros passou a correr por eles dirigindo-se para o lugar de onde vinham os tiros, gritando roucamente. "Venha", disse Methuen louco de impaciência e agarrando no braço de Pedro Negro puxou-o na direcção do penhasco.

 

Embora o comandante dos guerrilheiros estivesse carregado com uma pesada arma automática trepava como um cabrito e Methuen tinha grande dificuldade em acompanhá-lo. Subiram até ao mais alto esporão e meteram-se cautelosamente entre dois grandes penedos de onde podiam olhar de cima para a crista do monte. Methuen soltou um gemido porque era evidente que dentro de outros cinco minutos o carreiro tê-los-ia levado para terreno descoberto, em direcção a um promontório arborizado. E foi aí que ele viu. esforçando os olhos através do binóculo, a longa e ominosa linha cinzenta da infantaria acocorada.

 

- Metralhadoras - disse ele sombriamente - e valha-nos Deus! - Houve um ligeiro estrondo e um penacho de fumo que viajou languidamente no ar enquanto para a esquerda da posição que ocupavam, na crista rochosa do monte vizinho, veio um áspero repuxo de pedra e cascalho que zumbiu em torno dos ouvidos deles como uma nuvem de mosquitos. - Morteiros! disse Methuen.

 

- Morteiros! - respondeu Pedro Negro. - Temos de abrir caminho de armas na mão. Caramba! Começa a clarear. Temos de dar ordem para um avanço geral.

 

Foram juntar-se aos guerrilheiros na saliência de rocha lá em baixo. Havia uma considerável confusão de homens que retiravam e outros que se dirigiam para a frente. Vários deles estavam feridos.

 

Methuen precipitou-se pelo carreiro dirigindo-se para o desfiladeiro a fim de ver como se estavam a passar as coisas no local onde se combatia. Ao entrar na garganta o ar sibilou e zumbiu em torno dele e Methuen deixou-se cair de borco e começou a rastejar. O carreiro desembocava na crista de um monte e ali ele viu os homens e os animais feridos debatendo-se numa grande confusão. A guarda-avançada respondia ao fogo da tropa por cima desta barreira, mas era perfeitamente claro haver poucas possibilidades de escapar da estreita entrada onde o barulho do tiroteio era simplesmente ensurdecedor. Alguns dos guerrilheiros tinham escalado os lados da garganta para ocupar posições de fogo e o barulho das suas pistolas-metralhadoras era como o ruído de pica-paus gigantescos em acção. Fragmentos de pedra voavam por todos os lados.

 

Enquanto ali jazia, colado contra o flanco do penhasco. Methuen ouviu o dissonante rugido das reservas que se aproximavam. Os homens cobriram-no como uma vaga e irromperam da passagem na direcção da crista onde as tropas estavam entrincheiradas. Uma fumarada que cegava cobriu tudo e o volume do ruído duplicou. Era impossível ver. mas Methuen podia imaginar a linha de vultos que atacavam descendo a vertente na direcção das metralhadoras, gritando e disparando enquanto corriam. "Não gostava de fazer parte desse destacamento". não cessava ele de repetir para consigo enquanto os segundos se iam escoando.

 

Um ferido voltou para trás emergindo do fumo a rastejar e a gritar qualquer coisa que ele não conseguia ouvir acima do estrondear do tiroteio. Methuen arrastou-o para o abrigo mais próximo e deitou-o ao lado do carreiro. Depois correu para o anfiteatro central onde se encontrava a maior parte das mulas. Aqui reinava a confusão. Os feridos jaziam por toda a parte gemendo e praguejando e a reduzida turma de arrieiros dividia-se entre os esforços que fazia para acalmar os animais e as vãs tentativas para socorrer os que tinham ficado feridos. Uma onda de fumo amarelo enchia a entrada da caverna através da qual de vez em quando um vulto se precipitava ou entrava a cambalear, mas era impossível saber como estava a decorrer a batalha. Eram como os camaradas de mineiros soterrados esperando na entrada do poço depois de uma pesada queda de pedras, pensou Methuen sombriamente: e no meio da confusão geral desfez-se da sua cota de moedas e das duas bandoleiras sem ninguém dar por isso. na esperança de retirar pelo carreiro e fugir.

 

Mas começara já a descer o carreiro quando uma nova salva de disparos vindos da direcção oposta lhe fez o pulso bater mais acelerado. Haveria também tropas por detrás deles, além das que tinham pela frente? De novo se ouviu o tropel desordenado de homens que corriam para salvar a vida e paravam de vez em quando para disparar curtas rajadas irritadas com as suas pistolas-metralhadoras antes de recomeçarem a fuga. "Estamos cercados", disse Methuen. e sentou-se cheio de desespero numa mochila. O pânico estava prestes a instalar-se quando de súbito uma figura majestosa surgiu materializando-se no meio do fumo que bloqueava a primeira entrada. Ergueu-se um brado porque era Pedro Negro. Ele caminhava lentamente - com a lentidão premeditada de um bêbado que sabe que está embriagado e se sente ansioso por parecer sóbrio. Caminhava com tremenda circunspecção, segurando o ombro com a mão. Tinha a cara lívida e os olhos esgazeados. Methuen saltou para a frente com um grito de "Pedro Negro!", mas a figura continuou a avançar com o mesmo passo lento, não dando sinal de ter ouvido.

 

Pedro Negro dirigiu-se para o grupo de arrieiros como um sonâmbulo. Tirou o apito do bolso e levou-o lentamente aos lábios fazendo soar uma espécie de uivo estrídulo que se repetiu uma. duas. três vezes. Um grito rouco ergueu-se porque este era o sinal previamente combinado de que a batalha estava perdida.

 

- Destruam o tesouro! - bradou ele numa voz que enfraquecia e que se perdeu no meio do crepitar dos disparos.

 

Methuen foi empurrado para o lado pela pressão das mulas que eram levadas para a beira do caminho e precipitadas a gritar no espaço. Não se tratava de modo algum de uma operação fácil e os pobres animais já semi-enlouquecidos pelo estridor da batalha, ficavam apavorados ao verem o imenso abismo diante deles e lutavam loucamente para fugir, resfolegando e gritando. Alguns tinham de ser abatidos a tiro e outros à paulada e Methuen sentiu um nó na garganta ao vê-los mergulhando no espaço.

 

Pedro Negro caíra de joelhos e Methuen agarrou no jovem gigante e arrastou-o para longe da mêíée. Era evidente que ele estava a morrer. Os seus olhos começavam a vidrar-se rapidamente e a respiração tornara-se arquejante.

 

- Pedro Negro - murmurou Methuen enquanto metia um casaco enrolado debaixo da cabeça do ferido - a luta está realmente acabada? - Mas daqueles olhos negros não veio nem a sombra de uma resposta.

 

O fogo tornara-se agora menos nutrido e mais espasmódico, embora soasse mais perto, e não havia a menor dúvida que se aproximava de dois lados opostos. Os arrieiros trabalhavam como possessos, atirando as suas bandoleiras e cotas para o Lago Negro e empurrando para a morte as mulas que gritavam e resistiam antes de serem precipitadas no abismo soltando gritos lancinantes. Mas mesmo no meio da confusão Methuen não podia deixar de notar a maneira metódica como eles trabalhavam. Cada mula era levada para a borda; as patas dianteiras eram postas à beira do precipício e ao mesmo tempo que um homem as segurava outro homem cortava com uma faca a cilha e as cordas que prendiam o tesouro. Depois o animal era empurrado e. se mostrava relutância, davam-lhe pauladas.

 

Por seu lado Methuen debatia-se numa espécie de desorientada indecisão. Que poderia ele fazer se o inimigo estava à frente e atrás deles? Como sempre em momentos como este quando parecia não haver saída para um dilema ele tinha a prudência de não entrar em pânico, de não desatar a fugir - mas de esperar pelos acontecimentos. Só eles poderiam mostrar-lhe uma saída, se alguma houvesse. Assim sendo ocupou-se a instalar Pedro Negro tão confortavelmente quanto possível. Retirou a sua querida pistola do coldre de cabedal que Pedro trazia sobre a anca, e voltou a encher um dos carregadores. De um embrulho de comida abandonado no chão tirou um bocado de pão e um pouco de queijo. Depois começou a descer o caminho na direcção de onde vinham quando o ataque começou. Tinha percorrido talvez uns vinte metros de caminho, passando por entre corpos de homens e de mulas, cunhetes de munições e selas abandonadas, quando alcançou um ponto onde o caminho fazia uma volta brusca e ali pôde ver a nuvem de fumo indicadora de que a rectaguarda ainda estava a combater. Methuen parou indeciso porque era claro que nunca encontraria maneira de conseguir passar através dos seus homens e depois através das linhas dos soldados comunistas.

 

Foi então que a sua sorte mudou bruscamente para melhor. Uma mula morta jazia entalada entre duas pedras mesmo à beira do precipício com o cadáver do arrieiro jazendo atravessado por cima dela. O homem fora abatido quando tentava empurrar a mula para o abismo. Saindo da alta sela de madeira. Methuen viu um comprido rolo de corda que se desenrolara e pendia a balouçar sobre a borda, e de repente ocorreu-lhe uma ideia. Seria possível encontrar uma maneira de escapar da situação difícil em que agora se encontrava arriando-se alguns metros pela falésia?

 

Um segundo mais tarde encontrava-se estendido ao lado da mula. de olhos fitos no precipício, procurando intensamente quaisquer vestígios de um carreiro, ou de uma falha na rocha susceptível de lhe fornecer um apoio. Não conseguiu evitar um grito de alegria ao avistar, uns doze metros abaixo do ponto onde se encontrava, outro carreiro insculpido na vertente da falésia. É verdade que era estreito - uma mera prateleira de pedra sobre o abismo. Mas Methuen nesta altura já se sentia desesperado e preparado para seguir a sua sorte onde quer que ela o conduzisse.

 

Experimentou a corda depois de lhe dar mais uma ou duas voltas em torno da sela de madeira e depois, para torná-la ainda mais segura, enrolou-a numa saliência de rocha lisa. A corda aguentou-o bem: e com um último olhar à sua volta começou a descer cautelosamente para o abismo com uma oração nos lábios, não ousando olhar para as profundezas do Lago Negro lá em baixo.

 

Na sua mocidade fora um alpinista prometedor e esta experiência foi-lhe útil agora, porque alcançou a saliência da rocha num instante e viu com alívio que ela continuava ao longo do flanco da montanha, embora aqui e ali obstruída por um arbusto saliente ou por uma falha. Lá em cima ele ouvia ainda o medonho clamor da batalha e de vez em quando uma chuva de pedregulhos ou o vulto que lembrava um espantalho de um homem ou de uma mula caía lentamente diante dele e produzia um pesado chape surdo no lago lá em baixo. Era estranho ver quão lentamente os objectos pareciam cair quando alcançavam o nível da saliência onde ele se encontrava, dando voltas sobre si mesmos como se tentassem desdobrar-se no espaço à medida que iam caindo para as águas negras que os esperavam lá ao fundo. Também o ruído da luta parecia mudar para um certo número de variantes diferentes do mesmo som; uma serie de armas soava como pica-paus. outra dura e seca como chicotadas, enquanto por cima de Methuen onde a rectaguarda continuava a combater, o tiroteio soava como uma serie de estalos e silvos surdos - como os de um atiçador ao rubro atirado para dentro de água.

 

Methuen estava encharcado em suor e tremendo de fadiga dos pés à cabeça, mas mesmo assim partiu num passo rápido dirigindo-se para a extremidade oriental do maciço. Umas vezes tinha de deslocar-se com as costas coladas contra a rocha, tão estreito se tornava o carreiro; outras era forçado a escalar a parede nos lugares onde o carreiro terminava abruptamente. Numa ocasião teve de arriscar-se a transpor uma fenda pendurado num arbusto.

 

Em meia hora Methuen tinha deixado os sons da luta bem para trás dele e o carreiro findou na vertente de um monte feito de afloramentos irregulares onde era de novo possível trepar, o que lhe permitiu subir na direcção do cume da montanha ao longo de uma estreita chaminé. Quando alcançou o cume o sol já nascera e a bruma subia das veigas da planície como nuvens de vapor.

 

Methuen tinha emergido na crista da montanha e pôde ver, com um tremor de alívio que o cenário da emboscada ficava bastante para ocidente da sua actual posição. Enquanto, acocorado numa cavidade rochosa, comia pão e queijo com um apetite devorador, ia varrendo o horizonte com o seu precioso binóculo. O combate continuava ainda no meio dos penhascos do cume da montanha e ele via tropas de infantaria tomando posição no meio dos bosques de bétulas que coroavam o desfiladeiro do outro lado.

 

No vale lá em baixo viu uma longa coluna de tropas a cavalo desdobrando-se pela bacia hidrográfica que eles tinham atravessado na véspera. Toda a operação fora uma obra-prima de concepção e tinha apanhado os Águias Brancas no ponto mais vulnerável de todo o percurso - o último desfiladeiro que os podia levar até Durmitor e à segurança. Havia um pequeno avião de reconhecimento no céu pairando sobre a cena da batalha. Enquanto Methuen observava e ponderava, o coração deu-lhe um pulo porque ele acabava de ouvir ali perto o som de ferraduras de cavalos; pelo íngreme caminho da montanha que lhe fora ocultado por uma ondulação de rocha subia uma cavalgada de soldados com os seus familiares uniformes cinzentos e os barretes ostentando a estrela vermelha. Methuen deitou-se colado à pedra e susteve a respiração.

 

A cavalaria passou tropeando pelos caminhos irregulares dirigindo-se para a zona de combate - as armas prontas para disparar. Methuen soltou um suspiro de alívio quando ouviu o som das ferraduras dos cavalos a afastar-se por entre os desfiladeiros pedregosos e apressou-se a meter pelo caminho que o conduziria de volta à bacia hidrográfica e à região onde - quão distante no espaço e no tempo ela parecia - ficava a caverna.

 

O medo dava sempre a uma pessoa reservas de força inesperadas, tinha ele descoberto no passado, e agora o facto de haver escapado por pouco servia-lhe de estímulo para prosseguir. Na crista da montanha a cobertura não era boa, dado que o caminho por onde tão laboriosamente tinham marchado estava claramente marcado. Methuen forçou-se a adoptar um passo regular para não se cansar com demasiada facilidade, e todas as horas fazia um descanso de três minutos durante os quais verificava o seu curso com a bússola que tinha recuperado de Branko. Uma sede terrível parecia ser o seu único problema e nas imediações não parecia haver qualquer nascente ou ribeiros; investigou várias ravinas onde esperava encontrar cursos de água, mas sem qualquer sorte.

 

Longe para leste conseguia ver os grandes maciços rodeados de névoa da cordilheira coroada pela Pedra de Janko e dirigiu-se para lá, orientando-se constantemente para poder atravessar as faldas e evitar ter de escalar outra vez a cordilheira central. Desta maneira esperava regressar ao vale de onde partira na sua jornada para entrar em contacto com a recua de mulas.

 

O sol agora estava quente e Methuen sentiu-se tentado a abandonar o grosso casaco e o barrete para aligeirar a marcha, mas considerou mais prudente conservar esses artigos porque ainda não sabia onde iria pernoitar. À velocidade a que avançava calculava que poderia alcançar a caverna ao lusco-fusco - desde que não tivesse qualquer mau encontro. Tanto quanto podia ver o campo estava mais ou menos deserto. Teve um vislumbre de várias estradas ao longe e podia ver as nuvens de fumo deixadas pelo tráfego rodoviário, mas ficava demasiado longe para ver claramente.

 

Tanto quanto lhe era possível ajuizar, a concentração de tropas era na área que ele havia deixado para trás, mas não corria riscos; antes de atravessar qualquer extensão onde a cobertura era escassa estudava cuidadosamente o seu caminho. Uma vez foi obrigado a fazer um longo desvio dada a presença de alguns carneiros e de um grupo de pastores indolentemente sentados debaixo de uma cerejeira, tocando flautas de cana - um som singularmente pacífico e tranquilizador para ouvidos acostumados ao crepitar e ao ladrar das metralhadoras. Methuen escutava-os enquanto devorava os magros remanescentes do pão e do queijo que trouxera, sentado sob a protecção de uma floresta de abetos.

 

O seu desvio serviu também um fim útil porque o levou aonde havia água; Methuen encontrou-se enredado nos salvados de um incêndio florestal recente - um íngreme talude revestido de fetos e sabugueirinhos, com o solo coberto de estilhas aguçadas de pedra fracturada e carbonizada, onde teve de escalar altas barricadas de madeira fuliginosa para conseguir alcançar a orla da falésia; ali pôde ouvir o marulhar distante de um rio de Verão. Escorregou e resvalou pela encosta e ficou deliciado ao descobrir um poço pouco profundo, sobre um leito de seixos cheio a transbordar de água gelada onde mergulhou, com roupas e tudo, deliciando-se com a aspereza gelada da água e sentindo-se imediatamente restaurado.

 

Foi ali, enquanto estava a secar as roupas, que um grande cão-pastor extremamente feroz o viu da crista do talude precipitando-se sobre ele a ladrar. Methuen lançou mão à pistola e cobriu o bicho com ela. Encontrava-se em cima de uma alpondra no meio do ribeiro, e atirou um calhau ao animal como um aviso para que se mantivesse longe. Mas o cão desceu à margem e mostrava toda a intenção de atacá-lo. Abateu-o com grande relutância porque sabia como os cães deviam ser valiosos para os camponeses desta remota região. Mas não podia correr o risco de ser denunciado; e não fosse o dono do cão encontrar-se nas vizinhanças juntou as suas coisas e pôs-se a trepar a vertente oposta nas suas botas alagadas que chiavam. Passaram-se duas bem contadas horas antes das roupas lhe secarem no corpo e por essa altura o sol cozia. Apesar da sua fome e fadiga ele sentiu-se encorajado ao contemplar com o binóculo a distância que tinha percorrido - o longo espinhaço achatado da cordilheira a que se encostava a bacia hidrográfica pedregosa.

 

Por uma ou duas vezes avistou pequenas patrulhas de infantaria montadas em garranos mas estavam sempre bastante distanciadas, o que lhe permitiu passar por elas sem ser descoberto. Por uma ou duas vezes, também, encontrou uma comprida fila de camponeses que levavam para o vale as suas mulas carregadas de lenha e teve de ocultar-se no primeiro esconderijo que lhe apareceu. A maior parte do terreno nas redondezas estava coberto de bétulas e faias, e o solo densamente revestido de fetos e urzes tornava fácil a ocultação.

 

Por volta do meio-dia tinha atingido o segundo desfiladeiro de montanhas que eram coroadas pela Pedra de Janko e tirou meia hora de repouso. Os pés começavam a doer-lhe intoleravelmente e apesar de todas as precauções conseguira ficar com os dois calcanhares cheios de bolhas. A carne esfolada fazia-o sofrer. Mas agora ele encontrava-se no grande planalto inclinado com o seu tapete de erva espessa e fofa como cabelos duros escovados, e Methuen principiou a avançar descalço, transportando as botas penduradas em redor do pescoço. Isto aliviou-o um pouco e como o caminho era todo a descer fez uma boa média, o seu pulso acelerando-se sempre que encontrava um marco familiar apontando o caminho para o vale onde se encontrava a caverna que ele tinha começado a considerar quase como um lar.

 

A longa fadiga da jornada começou a fazer-se sentir e Methuen deu consigo a cair num agradável torpor enquanto caminhava; era como se estivesse desligado do seu corpo, permitindo-lhe continuar a dirigir-se para o horizonte como um autómato, deixando a mente suspensa naquela terra de pastagem onde não soprava o vento e onde os grilos cantavam e as borboletas refulgiam. Era esta. reconhecia ele. a espécie de estado de espírito em que uma pessoa se torna descuidada e distraída e ele fez o possível por se conservar atento e completamente acordado: mas em vão. A sua mente continuava a deambular por onde lhe apetecia.

 

Lembrou-se da Oficina dos Segredos - a coelheira de corredores onde num canto qualquer Dombey se encontrava sentado, esverdeado pela lâmpada da secretária como um mandarim iluminado por um holofote de cena, meditando sobre a sua colecção de borboletas; lembrou-se dos companheiros que geralmente o acompanhavam em missão como a actual - o professor com o seu ar distraído e Danny com as suas mãos enormes e cabelos louros. E pensando nisso tudo com nostalgia chamou a si próprio louco por ter deixado tudo isso para trás. por ter cedido a um impulso. "Se me safar desta" disse em voz alta "largo tudo", e depois riu alto. porque se recordou das muitas ocasiões em que. vencido pela tensão e pela fadiga, tinha feito a si próprio a mesma promessa idiota - uma promessa que nunca tinha conseguido cumprir.

 

Agora já tinha atravessado toda a cordilheira e o sol estava rapidamente a baixar. Entrara em terreno familiar, as suaves colinas baixas cujas ervas calcárias pressagiavam a passagem de uma dúzia de rios vindos da montanha e correndo para a garganta do Ibar. Sentia-se muito excitado pela consciência da missão cumprida e pela certeza de que chegaria a tempo para o encontro ao amanhecer. O caminho que ele seguia cingia as margens de um rio erguendo-se e baixando-se ao longo da curvatura da encosta como uma andorinha e Methuen percorria-o com um passo rápido e decidido, esperando que não estivesse demasiado escuro quando alcançasse a caverna para recuperar e voltar a montar a sua cana de pesca. O rio que corria por baixo dele abafava o som dos seus pés no carreiro pedregoso. Descansou alguns minutos na margem para beber e lavar a cara. e fez uma tentativa pouco convicta de calçar as botas, mas os pés estavam agora demasiado inchados e demasiado doridos. Era óbvio que teria de continuar descalço. Estava a meditar na sua pouca sorte quando um grito vindo de um ponto qualquer atrás dele lhe fez pular o coração. Pôs-se de pé e voltou uma cara aturdida para a falésia.

 

Um jovem soldado estava postado num esporão de rocha e cobria-o com uma carabina. Não parecia excessivamente ameaçador e um cigarro pendia-lhe de um canto da boca.

 

- Tu aí! - gritou-lhe ele acenando com a mão. - Vem cá para seres interrogado.

 

Methuen levou a mão à orelha como se não ouvisse muito bem e apontou para o rio.

 

- Que foi que você disse?

 

Estava a pensar rapidamente enquanto se afastava vagarosamente da margem. Se houvesse mais tropas na colina lá atrás estava liquidado. "Sorte malvada", exclamou involuntariamente enquanto obedecia.

 

Ser ou Não Ser

 

O soldado esperava com um ar de indiferença, de costas para o sol. fumando, numa postura que sugeria uma indecisão preguiçosa. Os olhos de Methuen fixaram-se no uniforme cinzento, nas polainas enlameadas e nas botas toscas; no barrete chato com a sua estrela baça: e finalmente na carabina de repetição de um modelo russo que ele apoiava na anca.

 

- Que se passa, camarada? - gritou Methuen num tom lamuriento.

 

O soldado agitou languidamente o cano da arma.

 

- Vem cá! - gritou num tom mais imperioso. Os seus olhos negros tinham uma expressão arrogante e estúpida.

 

Era evidente tratar-se de um camponês incorporado oriundo de qualquer aldeola remota rejubilando com a posse de uma arma.

 

- Já vou. camarada, já vou - respondeu Methuen com um aceno de cabeça, e começou a subir a encosta lenta e penosamente. Os seus olhos dardejavam de cá para lá tentando ver se havia outros soldados nas redondezas: mas tanto quanto lhe era possível ajuizar este encontrava-se completamente só. Que havia de fazer? Encontrava-se agora quase ao alcance de um tiro de pistola. O mais prudente talvez fosse mostrar-se submisso e aproximar-se de modo a ficar colocado debaixo do cano da carabina. Se o outro lhe pedisse os documentos de identidade, o que quase com toda a certeza faria, podia meter a mão dentro do casaco e puxar pela pistola enquanto com a outra mão agarrava no cano da carabina. Continuou a subir a encosta com exagerada lentidão.

 

Quando se encontrava a meio da subida viu uma expressão de resoluta selvajaria na cara do soldado. A boca do homem rebaixou-se num ricto selvagem ao mesmo tempo que. levando a carabina ao ombro disparou contra Methuen quase à queima-roupa. No mesmo instante em que este último sentiu o silvo quente da bala raspar a lapela do seu casaco saltou para o lado e em menos tempo do que se leva a contar estava agachado sob a protecção de uma rocha, praguejando fluentemente numa mistura de idiomas. Estava absolutamente furioso com aquela traição estúpida.

 

A terra começou a saltar e a chover em torno da rocha quando o soldado abriu fogo contra ele. e Methuen empunhando a pistola aninhou-se contra a parede lisa da rocha, sentindo ganas de matar. Começou a sentir pena do imprevidente jovem que estava a salpicar tão liberalmente de chumbo o terreno. "Não perdes pela demora, seu bruto", rosnou Methuen por entre os dentes cerrados, e na sua memória surgiu subitamente um retraio de Vida.

 

Seguiu-se um intervalo de silêncio enquanto o soldado mudava rapidamente o carregador da carabina. Ele tinha obviamente a convicção de que a sua presa estava desarmada. Aquando dos primeiros disparos Methuen tinha sentido uma dor aguda na barriga da perna e por um momento explorou aquela sensação de dor com preocupação porque não podia permitir-se ficar incapacitado nesta derradeira fase do jogo. Então, no meio do silêncio, estendeu cuidadosamente a perna e ficou aliviado ao descobrir que ela respondia bastante normalmente, embora lhe doesse muito.

 

Os tiros recomeçaram e Methuen atirou com o barrete de peles pela encosta abaixo como uma diversão antes de rastejar para a esquerda onde um maciço de arbustos proporcionava excelente cobertura. Aqui esteve por um momento a respirar fundo antes de subir obliquamente a encosta movendo-se muito devagar. O soldado continuava a fitar a rocha por detrás da qual Methuen desaparecera, sorrindo atentamente. Agora tinha arremessado o cigarro fora e tinha a coronha da carabina encostada ao ombro.

 

Methuen pô-lo lentamente na mira da sua pistola - apontando ao crânio rapado coberto pelo barrete azul - e carregou no gatilho. Ouviu-se uma .espécie de fungadela e o vulto cambaleou e desapareceu, sendo o seu desaparecimento seguido pelo ruído dissonante de um corpo rolando aos trancos de escantilhão. O soldado caíra pela vertente e fora a rebolar ate ao fundo. No silêncio que se seguiu o rumor do rio voltou a crescer e Methuen ouvia, por cima desse som. a sua respiração ofegante e os pássaros que cantavam nas árvores do outro lado do vale.

 

Esperou um longo momento antes de se precipitar através do vale. agora familiar, na direcção da caverna. O carreiro aqui era abrigado e Methuen só parava de correr de vez em quando para se pôr à escuta de quaisquer sons de perseguição. Mas o vale voltara à sua silenciosa beleza. Uma vez pensou ter ouvido cães ladrar na floresta, mas isso foi tudo. A perna doía-lhe agora muitíssimo mas ele não ousava parar para examinar a ferida, porque sabia por experiência que as feridas tendem para parecer piores do que realmente são se uma pessoa olha para elas. Que não podia tratar-se de nada de vital ele sabia-o porque, apesar da dor que o obrigava a coxear grotescamente, ainda conseguia servir-se da perna de uma forma razoavelmente normal.

 

O crepúsculo já principiara a cobri-lo quando ele alcançou a principal ramificação do Studenitsa e se pôs a seguir as suas curvas e meandros prateados através dos pomares de amoreiras e das vertentes do outro lado do mosteiro e da serração. Estava agora quase cego de fadiga e vadeou o rio com dificuldade, cambaleando ao sentir a sucção da água em volta dos tornozelos. Contudo teve suficiente presença de espírito para esperar um bom quarto de hora no outeiro vizinho da caverna, observando a entrada, antes de escalar a encosta que lhe dava acesso.

 

Era extraordinário o sentimento de afecto que sentia por aquele covil de raposa que o abrigara contra os seus inimigos; era quase como regressar a casa depois de uma perigosa viagem. Nada tinha mudado. A cobra não estava visível, mas de resto retirava-se sempre ao lusco-fusco. A barreira de arbustos que ele tinha colocado na entrada estava intacta. Methuen penetrou no bafiento recinto e palpou as arestas de pedra da soleira à procura dos fósforos que havia num lugar conveniente juntamente com o seu coto de vela. Acendeu-a e a quente luz rosada tremeluziu uma vez mais nas nervuras das paredes que bruxulearam como as folhas de guarda jaspeadas de um livre-mestre vitoriano.

 

O morto jazia ainda na sua rude cama de folhas. Methuen mal lhe lançou um olhar e ocupou-se a reunir as suas coisas. O saco-cama teria de ser sacrificado mas não estava disposto a perder as outras coisas. Encheu os bolsos com os seus bens mais importantes e enterrou os outros no chão de terra. Fazia demasiado escuro agora e a perna doía-lhe demasiado para lhe permitir procurar a sua querida cana de pesca. Também isso tinha de ser sacrificado, compreendeu ele com profundo pesar. Comeu uma refeição apressada e heterogénea andando de um lado para o outro. Não ousava sentar-se com receio de adormecer ou de ficar sem poder dobrar a perna o que o impediria de cobrir a última etapa da sua viagem para o vale do Ibar.

 

A noite cerrara-se quando ele coxeou para fora da caverna e com um derradeiro olhar em sua volta desceu a encosta para vadear o rio. Sentia-se satisfeito com isto porque aumentava as suas probabilidades de fuga se porventura se lhe deparassem novos problemas. Agora o caminho já lhe era familiar e não receava extraviar-se. A sua única preocupação era a perna ferida que começava a emperrar de uma maneira assustadora; mas calculou que ainda aguentaria uma hora de marcha. Uma boa golada de whisky havia de fazê-lo sentir-se muito melhor, embora compreendesse que o efeito do álcool lhe faria sentir sono e isso era uma coisa que Methuen queria evitar acima de tudo. Que seria dele se adormecesse e não comparecesse ao encontro quando Porson passasse durante a noite ou de madrugada?

 

Contudo não servia de nada afligir-se e continuou a avançar com determinação através dos prados húmidos. Avistou uma réstia de luz atrás de uma das janelas do convento e ouviu o ladrar distante de um cão. Do outro lado da serração ouviu vozes que cantavam na pequena taberna onde os camponeses bebiam o seu copo vespertino de aguardente de ameixas. Sorriu ao atravessar a crista pela última vez e penetrou nas escuras alamedas de pinheiro sentindo debaixo dos pés descalços a macieza do chão da encosta repleto de fetos.

 

Chegou à estrada depois de uma viagem cheia de quedas e escorregadelas, devidas à sua perna, e seguiu o seu caminho ao longo da berma setentrional sob a cobertura das árvores. Quando chegou a um ponto quase em frente do marco de pedra branca onde estava combinado que Porson pararia, meteu-se na vala e descobriu encantado que ainda continuava seca e cheia de fenos que lhe proporcionavam excelente cobertura. Devia ficar ali escondido até o carro vir por ele. e era característico que. tendo conseguido ser bem sucedido até aqui. começasse agora a preocupar-se com o encontro. A sua mente fatigada começou a pregar-lhe partidas, dizendo-lhe que hoje não era sábado mas sexta-feira. Enterrou a cara na erva profunda e. a despeito de si próprio, caiu numa modorra sobressaltada, embalada pelo rugido das águas no vale lá em baixo. Tinha tido a presença de espírito de enrolar o fiador de couro da pistola em torno do pulso e de soltar o fecho de segurança.

 

O tempo foi passando e a lua nasceu. Methuen foi acordado pelo apito de um comboio que passava a trovejar pelos entalhes na encosta em frente e se sumiu com uma sucessão de bufidos e guinchos estrídulos no coração da montanha. Parecia mais do que nunca um brinquedo com as suas pequenas carruagens iluminadas e a insignificante locomotiva. No silêncio que se seguiu foi-lhe possível ouvir as vozes dos soldados e dos assentadores de trilhos na linha de caminho-de-ferro vizinha.

 

Agora já não lhe era possível dobrar a perna e para aliviá-la tinha de se voltar de costas e jazer numa posição mais descontraída. Os mosquitos eram também um tormento e Methuen sentia a cara e o pescoço encherem-se de empolas nos lugares onde eles o picavam: mas tinha agora demasiado sono para se preocupar e voltando a deixar cair a cabeça na terra macia do talude caiu num sono profundo e perturbado onde as imagens dos dois últimos dias tremeluziam e relampejavam como na tela de um cinema: os olhos de Pedro Negro a vidrarem-se, os vultos dos homens de cotas de ouro caindo no espaço a rodopiar e a bracejar, as parelhas de mulas movendo-se numa fila sinuosa ao longo da montanha como uma serpente, o sorriso na cara do soldado que empunhava a carabina. Depois, viu-se a si próprio também, enfiando os dedos na algibeira de Branko. caminhando ao longo da orla da falésia, ou correndo dobrado em dois no meio dos fetos como uma lebre ferida. Toda essa louca confusão de acontecimentos parecia ter-se amalgamado na sua mente com aquelas outras cenas colhidas nos primeiros dias junto da caverna - o peixe erguendo-se para a mosca, a chuva descendo a sibilar das grandes montanhas escalvadas...

 

Era possível ele ter realmente perdido o encontro com Porson. tão profundamente dormia, se não fosse um afortunado acaso; porque era já madrugada quando foi subitamente arrancado da sua letargia pelo ribombo dos camiões quando um comboio dobrou a curva e passou pelo lugar onde ele estava deitado, os máximos amarelos iluminando a parede do penhasco e a estrada com a sua lívida radiância fantasmagórica.

 

Methuen contou sete camiões e pôde ver confusamente que vinham carregados de tropas e de homens-de-cabedal. Rumavam para sul e dirigiam-se certamente para o ponto da estrada de onde poderiam mais rapidamente subir até ao local onde se travara a batalha. Quando despertou completamente Methuen murmurou uma oração de graças, porque o dia estava a clarear rapidamente: e na sufocante coluna de poeira que se seguiu à passagem do comboio Methuen rolou sobre si próprio ficando de barriga para baixo e numa posição de vigilância junto da estrada, meio asfixiado pela poeira e pelos vapores da gasolina.

 

Não teve de esperar muito. A poeira assentou lentamente e a luz da madrugada começou a subir as vertentes da colina em frente, escavando grandes poços de sombra violeta nos flancos das montanhas. Ouviu, ténue e melodiosa no ar gélido da manhã, a buzina do Mercedes baixando pelo desfiladeiro, e não pôde reprimir um involuntário grito de prazer. "Um tipo fixe. o velho Porson". disse vezes sem conta, todos os seus músculos tensos de expectativa, enquanto esperava ver o carro aparecer na curva.

 

A uma distância de uns mil metros o próprio Porson vinha a praguejar fluentemente enquanto manobrava o velho carro pelas curvas da estrada. Sentia-se atordoado e abalado, tendo escapado por um quase nada de ser triturado pelo comboio de camiões um pouco mais atrás. Alem disso perdera tempo a remendar um furo e fora duas vezes detido por militares em postos de controlo e obrigado a exibir os seus documentos. Se Methuen ainda estivesse vivo e se tivesse conseguido alcançar o ponto de encontro ele (Porson) não estaria a chegar demasiado tarde? Haveria tropas nas imediações do marco de pedra? E se houvesse, que deveria fazer? Os dentes batiam-lhe de frio e de nervosismo enquanto ia reduzindo gradualmente a velocidade do carro e Blair vigiava a escolta pelas traseiras. Desta vez tinham deixado a capota do carro levantada e as cortinas laterais corridas.

 

Descreveram ruidosamente a última curva e penetraram debaixo das árvores quando de repente Porson soltou um grande latido de surpresa porque um espantalho com um aspecto muito maltratado e descalço mergulhou subitamente na estrada ao lado do marco de pedra branco, agitando os braços. Coxeava grotescamente e pareceu prestes a cair debaixo das rodas do carro. "Ele conseguiu", disse Blair. mas por um momento Porson não conseguiu acreditar tratar-se de Methuen. tão selvagem e maltrapilho lhe pareceu aquele vulto. Carregou no travão e o carro afrouxou. "Perfeito!", gritou Methuen numa voz esganiçada e agarrando no puxador da porta lançou-se com um grande esforço para dentro das traseiras do carro, onde Blair o cobriu imediatamente com uma manta.

 

- Meu Deus - disse Porson numa voz trémula, enquanto voltava a acelerar. - Methuen. você está bem?

 

Mas Methuen estava a comprimir a face contra o chão poeirento do carro e a pensar que nunca se sentira tão feliz na sua vida ao ouvir vozes inglesas. O seu alívio era tão grande que se sentia completamente privado da fala. Tentou uma ou duas vezes dizer qualquer coisa mas da sua boca apenas saiu um crocito surdo. Talvez fosse simplesmente fadiga ou da poeira que engolira. Mas tinha agora consciência de que estava quente, de que tinha realmente um febrão.

 

Ouviu Porson dizer: "Foi mesmo a tempo", e depois ouviu o trovejar de outro comboio de camiões. Os dois rapazes estavam demasiado ocupados e por um momento ou dois não lhe puderam prestar atenção. O carro acelerava pela estrada fora quando Porson voltou a cara pálida por cima do ombro e disse: "Blair. pelo amor de Deus. vê se ele está morto."

 

Methuen tentou uma vez mais falar mas tudo o que conseguia emitir era um crocito rouco. A cara lívida de Blair inclinou-se para ele e uma mão tocou-lhe na face. "Não. Não está morto. Está a sorrir-, disse Blair num tom académico, e Porson fez um movimento impaciente. "Por favor. Blair". pediu, "vai lá atrás e vê se ele está ferido."

 

Com um esforço heróico Methuen rolou sobre si próprio, ficando de costas, e crocitou: "Não estou morto. Porson. não estou morto-, e Blair. como um homem saindo de um transe, entrou imediatamente em acção. Deu a Methuen uma longa bebida chocalhada que retirou de uma garrafa-termo e passando por cima dele para o assento traseiro, examinou-o sumariamente à procura de feridas. "Estou bem", disse Methuen debilmente. feliz por estar a recuperar finalmente a voz. "Fui atingido numa perna, mas não me parece grave."

 

- Deus seja louvado! - disse Porson com um explosivo suspiro de alívio, e havia lágrimas nos seus olhos. - Tinhamo-lo dado realmente por perdido. Esta zona está cheia de tropas e parece encontrar-se em curso uma batalha qualquer.

 

Methuen voltou a beber e derramou um pouco de água por cima da cabeça. Era deliciosamente refrescante.

 

- Eu sei - disse ele. e mesmo in extremis não pôde impedir-se de sentir um tom de inocente orgulho a insinuar-se na sua voz.

- Eu sei. Estive metido nela.

 

O exame metódico de Blair tinha-lhe alcançado agora a perna e Methuen começou a protestar contra aqueles cuidados amadores com um vigor que mostrava ele estar longe de encontrar-se gravemente ferido.

 

- Deixe lá isso até regressarmos a casa - ordenou.

 

- Mas está a sangrar - disse Blair. olhando para ele gravemente. - Está a sangrar, coronel. Pode precisar de um torniquete.

 

Tentava em vão recordar-se de um diagrama que uma vez vira no Manual de Primeiros Socorros de Urgência dos escuteiros sobre a maneira de aplicar um torniquete. Pega-se num lápis e num bocado de corda... - Não conseguia lembrar-se exactamente. Methuen afastou-o e repetiu:

 

- Deixe lá isso para quando chegarmos à Embaixada, doutor. Andei com ela nesse estado uns bons cinquenta quilómetros, ela pode muito bem durar um pouco mais.

 

- Mas - disse Porson. saltitando no assento do condutor num arrebatamento de curiosidade - que foi que aconteceu lá em cima nas montanhas? Encontrou os Águias Brancas?

 

- Eles encontraram-me - disse Methuen - e pouco faltou para darem cabo de mim. Acreditem ou não. andei com eles por montes e vales tentando fazer chegar à costa o tesouro de Mihaelovic. Mas as forças regulares cercaram-nos.

 

- Palavra! - exclamou Porson solenemente. - você andou realmente com eles?

 

Blair estava a ministrar-lhe lenta e cuidadosamente pão com manteiga que trazia num saco de papel, e depois de uma longa golada de vinho Methuen sentiu-se suficientemente restabelecido para se soerguer sobre um cotovelo.

 

- O quebra-cabeças ajustou-se perfeitamente - disse ele

- logo que alcancei os Águias Brancas, que transportavam uma carga preciosa. Eles tinham desenterrado o tesouro, percebem? Fomos uns idiotas em não termos pensado nisso.

 

Porson soltou uma grande buzinadela para exprimir a sua surpresa.

 

- Claro - disse. - Há todo um dossier a respeito desse tesouro que eu li há poucos meses. Que idiotas que fomos. Mas. Methuen. será que eles vão conseguir fazê-lo sair?

 

Methuen sorriu tristemente - porque voltou a ver com os olhos da memória aqueles vultos que caíam às cambalhotas e a escoicear no abismo do Lago Negro.

 

- Rapaz - disse sobriamente - não há a mínima possibilidade disso. Fomos cair na mais bem concebida emboscada que jamais se viu. Forças regulares. Apanharam-nos num desfiladeiro.

 

Mas era inútil tentar uma conversa coerente porque Methuen estava ainda mais fatigado do que ele próprio sabia. A sua voz foi-se arrastando num resmoneio sonolento.

 

- Agora vou dormir uma soneca - disse e. deitando a cabeça no braço fechou os olhos, sentindo o grande automóvel a correr na direcção de Belgrado. - E perdi a minha cana de pesca acrescentou como se acabasse de lembrar-se disso.

 

- Ele perdeu a cana de pesca - disse Blair num tom de piedoso horror, erguendo os olhos para o céu cheio de sol.

 

- Perdeu a cana de pesca - repetiu Porson. meneando a cabeça.

 

Methuen começou a ressonar.

 

Pondo as Coisas em Ordem

 

O pessoal da Embaixada assistia às orações matinais na lúgubre sala de bilhar que servia também de sala de baile. Isto era um costume em que o embaixador insistia sob pena dos faltosos incorrerem no seu desagrado. O serviço era modesto e consistia apenas num hino e numa breve leitura de um excerto bíblico feito geralmente pelo chefe da chancelaria. Depois desta cerimónia o pessoal subia para o andar de cima e os criados iam desempenhar-se dos seus deveres na residência.

 

Era raro algum facto vir perturbar a monotonia deste breve serviço e na manhã em questão as coisas decorriam com a normalidade habitual quando os batentes da porta de carvalho ao fundo se abriram para mostrar as feições perturbadas do sexto secretário. Ele parecia portador de qualquer informação importante e, embora o embaixador lhe lançasse olhares ferozes de cenho franzido, ele continuou à porta fazendo sinais com o dedo a chamar vários membros do pessoal. Sir John sentiu-se particularmente irritado com este procedimento tanto mais que era ele quem estava a ler o excerto nessa manhã e numa voz que lhe parecia particularmente boa. O espectáculo dos membros da sua congregação a serem atraídos lá para fora um atrás do outro era extremamente aborrecido.

 

Primeiro foi Duncan. o médico da Embaixada, a sair na ponta dos pés. depois foi Cárter. Que diabo pensava o jovem Porson que estava a fazer? Com um dos olhos no texto o embaixador fixava o autor da interrupção com uma expressão tão sombria e descontente que em circunstâncias normais teria sido suficiente para o atirar precipitadamente para fora da sala. Estava a pensar aplicar mais tarde a Porson uma admoestação severa em tom paternal quando de súbito se lembrou de Methuen. Sem dúvida toda esta irritante interrupção dizia respeito a Methuen - ou não seria assim? Claro que era! Porson acabava de voltar da...

 

Sir John fez sinal ao seu chefe da chancelaria e cedeu-lhe a sua improvisada estante, recomendando-lhe num sussurro rouco que prosseguisse a leitura. Depois também saiu da sala e desceu o corredor que conduzia à garagem. Alcançou a entrada da cozinha a tempo de ver abrir-se a porta que dava para a garagem. Cárter e o medico vinham às arrecuas na direcção dele. segurando o que lhe parecia ser o cadáver de Methuen. enquanto Porson os seguia, segurando-lhe as pernas.

 

- Como está ele? - perguntou o embaixador, temendo por um momento que Methuen tivesse encontrado o mesmo fim de Anson. Ficou aliviado quando ouviu o cadáver gemer num tom muito vivo quando Porson lhe bateu com a perna ferida numa porta.

 

- Deus seja louvado! - exclamou o embaixador com genuíno fervor. E assumindo uma parcela da carga ajudou o trio a transportar Methuen por um lanço de degraus até à enfermaria imaculadamente branca onde o deitaram numa mesa e ele recuou a fim de dar espaço para o velho médico escocês.

 

- Exceptuando a perna - disse Methuen - sinto-me perfeitamente bem.

 

- Vou buscar a minha faca de trinchar - disse Duncan sombriamente - e já lhe trato da saúde.

 

- Meu caro amigo - disse o embaixador, pegando-lhe na mão e apertando-a com força. - Nem lhe sei dizer como nos sentimos felizes.

 

- Receio estar muitíssimo sujo. sir - disse Methuen que de súbito se tornara extremamente consciente das suas roupas manchadas de suor e do seu cabelo emaranhado. - Palpou, como a desculpar-se, o restolho que lhe crescia na cara e acrescentou: - Uma pessoa quando dorme fora de casa fica simplesmente imunda.

 

Duncan tinha voltado agora com uma enorme tesoura cirúrgica e despiram-lhe cuidadosamente as roupas enquanto ele jazia descontraído na mesa branca da cirurgia sentindo-se bastante satisfeito consigo próprio.

 

- Se me for concedida meia hora para me lavar, sir – disse ele - gostaria de lhe apresentar um relatório e talvez o Porson queira ter a bondade de rascunhar umas coisas para Vossa Excelência ver.

 

- Um banho quente com muito sabonete - disse Duncan que lhe estava a examinar a perna com um ar de desapontamento.

- Tem quatro buraquinhos nas pernas, coronel. Uns bocados de chumbo na barriga da perna. Alguns, parece-me, devem ser lá deixados mas há um pequenino que vou pescar quando tivermos acabado de limpá-lo.

 

Deixaram-no agora e enquanto Duncan lhe esfregava a perna dorida com álcool Methuen ouvia com voluptuoso prazer o ruído da água quente para um banho que corria do outro lado da porta. Pôs a palma da mão na testa.

 

- Estou com um pouco de febre - disse. Duncan meneou a cabeça circunspectamente.

 

- Demasiado tempo ao relento e fadiga. Vinte e quatro horas na cama. Quanto à perna... vou escavar um pouco portanto aguente firme.

 

Methuen voltou-se de borco e aguentou firme, agarrando-se às bordas da mesa enquanto o escocês sondava as feridas, resmungando ao mesmo tempo que o fazia. Isto revelou-se mais doloroso que tudo quanto Methuen experimentara até então e obrigou-o a cravar os dentes no travesseiro almofadado para não gritar.

 

- Pronto - disse por fim Duncan e ele ouviu o tinir de chumbo numa bacia. - Retirei dois bocados. Os outros podem ficar por enquanto. Não o vão incomodar. E a propósito, coronel, talvez lhe agrade saber que não eram chumbos, mas bocados de pedra. Será que foi salpicado por um bacamarte cheio de restos? Soltou uma risadinha satisfeita.

 

- Pedra? - disse Methuen.

 

- Sim. Fragmentos da Bósnia.

 

Deixou-se ficar no banho a derreter durante quase uma hora com Duncan. sentado ao lado dele no banco da casa de banho, a fumar e a fazer-lhe perguntas. Methuen sentia a fadiga a escorrer-lhe dos ossos enquanto ali jazia. Parecia demasiado bom para ser verdade. Depois Porson apareceu com as roupas tão recentemente deixadas pelo senhor Judson e um grosso maço de telegramas de Dombey.

 

- Correu tudo às mil maravilhas - anunciou Porson. - O senhor Judson passou um ou dois dias na cama com gripe e agora torceu um tornozelo. Quando acha que ele estará de novo em condições de andar?

 

- Isto aqui é um posto terrível para a prática da medicina disse Duncan com genuíno desapontamento. - Ele deve poder levantar-se depois de amanhã. Poderá precisar de muletas por um ou dois dias se os músculos estiverem rígidos. Mas infelizmente não é nada de grave.

 

- Infelizmente - disse Methuen indignado.

 

- Compadeça-se de mim - tornou Duncan. - Salvo uma ou outra bronquite ou constipação não tenho nada que fazer. Estava cheio de esperanças quando Porson o trouxe para cá. Pensei que iria ter de fazer algum trabalho digno desse nome.

 

- Estou quase a sentir vontade de apresentar desculpas disse Methuen.

 

- Oh. você não teve culpa - disse Duncan amavelmente.

- Você fez o que podia. Foi uma sorte não voltar com os pés para a frente como o pobre Anson.

 

- A propósito - interveio Porson - você hoje vai cá ficar instalado. No quarto reservado às altas personagens. Ordens do embaixador. Ele quer ter uma longa conversa consigo; e você provavelmente há-de querer ditar qualquer coisa.

 

- Sim - confirmou Methuen. - Ajudem-me a sair, sim? Methuen foi instalado mais ou menos luxuosamente no quarto habitualmente para visitantes importantes depois de Duncan lhe ter feito amadoristicamente a barba com a navalha do embaixador. O próprio sir John estava constantemente a entrar e a sair sem se demorar, obviamente ansiosíssimo por ouvir o que Methuen tinha para contar e por redigir os seus telegramas para o Foreign Office.

 

- Não quero apressá-lo se você se sentir cansado - disse por fim. - Durma. Podemos conversar esta noite. Colocarei um amanuense de serviço para enviar tudo o que for útil comunicar.

 

- Só preciso de meia hora para descansar e pôr em ordem as minhas ideias - pediu Methuen - e depois estarei em condições de ditar umas coisas. Talvez o Porson possa anotar aquilo que eu tenho para dizer.

 

Deixou-se jazer na cama de olhos fechados, gozando o colchão de penas da cama. e tentando compor um quadro coerente dos acontecimentos desses últimos dias; mas quando Porson entrou nas pontas dos pés no quarto encontrou o senhor Judson profundamente mergulhado num sono reparador.

 

Não o incomodaram e passava bastante da hora do chá quando Methuen acordou e tocou a chamar o mordomo. A porta abriu-se para deixar passar o próprio sir John. empurrando uma bandeja rolante carregada com um serviço de chá.

 

- Ah! - fez o embaixador. - Finalmente acordou.

 

- Sim - disse Methuen acanhadamente.

 

Enquanto tomavam uma chávena de chá foram falando e Methuen forneceu um breve e minucioso relato da sua aventura enquanto Porson sentado a um canto ia rabiscando rapidamente sinais cabalísticos num bloco de estenografia. Depois desapareceu e deixou os dois homens a conversar na penumbra.

 

- Daqui a pouco voltaremos a tomar notas - disse o embaixador. - E graças a Deus não somos obrigados a falar apenas de assuntos oficiais. Methuen...

 

- Sim. sir John...

 

O embaixador inclinou-se para a frente, com a chávena de chá a balançar precariamente sobre um joelho.

 

- Não imagine que se trata de uma frivolidade da minha parte - disse - mas tudo o que me contar a respeito da pesca poderá vir a ser útil. Mais tarde ou mais cedo é provável que eles revoguem a actual proibição de viagens ao interior do país e então talvez eu tenha uma oportunidade de experimentar a sorte no rio Dtudenista... ou lá como lhe chamam.

 

Methuen sorriu e pediu um mapa e os dois lançaram-se numa dessas deliciosas e intermináveis conversas que para os pescadores à linha são a melhor coisa que pode haver depois da pesca propriamente dita. Methuen sentia-se lisonjeado pela simplicidade e pela atenção do grande diplomata e atochando calmamente o cachimbo que trazia sempre consigo mas raramente usava, esmerou-se, marcando com traços os rios que conhecia e escrevinhando uma nota aqui ou ali sobre questões mais esotéricas como. por exemplo, a isca a usar e as condições climatéricas.

 

Sir John estava deliciadíssimo e quando Methuen lhe contou pesarosamente como tinha perdido a sua cana de pesca, a sua compreensão foi tão grande que se dirigiu imediatamente ao seu gabinete de onde trouxe a sua - uma esplêndida McBey de itaúba branca - obrigando o seu relutante hóspede a aceitá-la.

 

- Realmente não posso aceitar, sir - disse Methuen.

 

- Mas tem de aceitá-la. Insisto.

 

- Mas e demasiado - protestou Methuen debilmente.

- Nunca tive nada tão valioso como isto. Ia sentir-me, bem. quase demasiado envergonhado de pescar com ela.

 

- Não creia nisso - disse .v/r John.

 

- Não sei o que dizer.

 

- Disparate. Methuen sorriu.

 

- Foi pelo mais puro bambúrrio que não deixei lá ficar o seu livro de moscas. Eu tinha marcado as duas que me pareciam mais apropriadas...   embora não tivesse realmente tido tempo de experimentá-las da maneira que eu desejava...

 

Mas nesta altura Porson regressou com os apontamentos e uma nota para o embaixador. Sir John leu-a e disse:

 

- Acaba de chegar uma mensagem telegráfica da Agência a respeito do submarino que deveria levar o tesouro para a Dalmácia. Aparentemente a esquadra italiana surpreendeu-o a atravessar águas territoriais italianas e mandou-o seguir para Trieste. É uma perspectiva medíocre para os Águias Brancas.

 

Methuen suspirou.

 

- Foi sempre uma operação difícil e arriscada. Mas alguma coisa me diz que eles não alcançaram sequer o Kartz. quanto mais o ponto de encontro.

 

E de novo viu mentalmente aquelas figuras vacilantes, tombando a rolar lentamente sobre si mesmas para o abismo do grande lago e sentiu uma dor aguda ao recordar-se de Pedro Negro e do seu bando de rufiões cuja dedicação a uma causa perdida levara a sofrer morte súbita e ignominiosa nos confins da Sérvia.

 

Enquanto o embaixador com seca concisão ditava os seus telegramas a partir dos apontamentos. Methuen folheou o maço de telegramas de Dombey, muitos dos quais estavam já desactualizados pelos acontecimentos.

 

- O que teria acontecido - disse ele quando o embaixador acabou - se tivéssemos conseguido passar?

 

Sir John suspirou e meneou a cabeça.

 

- É sempre difícil prever, mas um movimento Realista bem estruturado poderia ter sido um factor sério para o presente regime.

 

- Mas isso teria sido um bem para nós? Esta gente odeia o Ocidente.

 

Sir John deu uma volta de cá para lá no quarto com as mãos atrás das costas.

 

- Não tenho a certeza - disse ele - não tenho a certeza. Têm chegado estranhos relatórios de várias missões a respeito de alegadas divergências entre Tito e Estaline. Às vezes tenho-me sentido quase levado a predizer uma qualquer espécie de ruptura. Claro, não posso ir tão longe como isso mas a situação actual parece repleta de factores desconhecidos. Temos de esperar e ver. Sabe. Methuen. neste momento os russos têm certamente grande influência aqui mas o país não se encontra por enquanto à mercê de Moscovo. É um aliado espontâneo da URSS. isso ninguém pode negar. Mas se acontecesse Tito ser derrubado era possível que viessem para cá tropas russas.

 

- Mas acha que é possível separar Tito dos russos?

 

- Não sei. Não sei. Não por nós possivelmente. Ele é sem dúvida um comunista. Mas talvez por factores que escapam ao seu controlo.

 

- Isso é muito interessante.

 

- É tudo tão especulativo que pensei não valer a pena falar-lhe disso.

 

Methuen recostou-se e lançou uma baforada de fumo para o tecto apainelado do quarto nobre ao mesmo tempo que meditava nas desconcertantes ramificações conjecturais sobre que se edificava a política. Quatro meses mais tarde havia de recordar esta conversa com um sobressalto quando as notícias das dissenções entre Tito e Estaline colheram o mundo de surpresa. Agora limitou-se a arquear um sobrolho expectante e a olhar na direcção de Sir John à espera de que ele continuasse. Sir John esfregou o queixo e olhou sombriamente para o fogo de lenha.

 

- A minha impressão é de que Tito sabe que errou e está longe de ser cego às injustiças do comunismo ortodoxo. Terá de liberalizar ou perder o apoio do povo; na verdade já o perdeu. Mas pode recuperá-lo. Quem sabe?

 

- E os Realistas?

 

- Outro ponto de interrogação. A propósito, há uma ou duas coisas de que eu queria falar. Escaparam-se-me da mente. Essa rapariga Vida.

 

- Sim? - fez Methuen com uma súbita crispação de todos os seus músculos.

 

- Entrou em contacto com Daric na cidade e mandou uma mensagem para dizer que ainda estava viva e bem viva. Ao que parece os Realistas, os Águias Brancas, ficaram tão alarmados quando ela lhes pediu licença para o meter a si no segredo que decidiram dizer-lhe que ela tinha morrido e. por assim dizer, bater-lhe com a porta na cara. Depois disso produziu-se uma nova situação interessante. Os seus actuais patrões na polícia secreta enviaram-na numa missão para Trieste. Parece manifesto que confiavam nela. embora já se soubesse de antemão que ela desertaria mal se apanhasse ali. Pedi ao Dombey para contactar com o agente consular em Trieste e para lhe arranjar um salvo-conduto.

 

Methuen ouviu esta narrativa sentado na cama. de boca aberta, o coração a bater-lhe tão depressa que se sentiu sufocado.

 

- Caramba - disse por fim - que alívio!

 

- Pensei que ficaria satisfeito.

 

- Satisfeito? - disse Methuen. - Mais do que satisfeito. Nessa noite jantou tranquilamente e quando Duncan veio visitá-

 

-lo ficou encantado ao descobrir que a sua temperatura tinha voltado à normalidade e que a perna lhe doía muito menos. O escocês olhou taciturnamente para o seu paciente e disse com tristeza:

 

- Você amanhã já se pode levantar e andar por aí. Talvez nem precise de muletas. Sou um homem sem sorte nenhuma.

 

Quando se preparava para dormir chegou um telegrama de Dombey. seco e breve como sempre, seguido de ordens para regressar, tão depressa se sentisse em condições.

 

- Suponho que estará ansioso por regressar a Inglaterra disse Porson. que tinha decifrado a mensagem. - Que meio de transporte prefere utilizar?

 

Methuen pensou no infindável comboio ronceiro que se arrastava através da Sérvia e da Croácia e disse:

 

- Para falar verdade penso que prefiro ir de avião.

 

- Quando?

 

- Depois de amanhã.

 

Porson suspirou e fechou com uma palmada a pasta onde arquivava as mensagens.

 

- Acaba aqui a primeira lição - disse. - Vou providenciar para que lhe reservem lugar num avião.

 

Methuen dormiu profundamente nessa noite e acordou com um dia deliciosamente soalheiro. Grilos cantavam na erva dos relvados da embaixada. Uma máquina de aparar relva zunia algures, invisível. Ele descobriu encantado que a perna, embora ainda lhe doesse, suportava perfeitamente o seu peso. Não seriam necessárias muletas. Pôs-se a percorrer o quarto de um lado para o outro a fim de confirmar esse facto.

 

Aterragem em Londres

 

Quando desceu do avião e começou a manquejar pela pista alcatroada avistou uma figura familiar - a figura anormalmente alta de Dan Purcell. encostado ao seu carro de corridas preto que era o orgulho da sua vida - e Methuen sorriu com prazer.

 

- Ah! - disse o jovem. - Finalmente chegou.

 

Para alguém que estivesse a olhar, o aperto de mão que trocaram poderia ter parecido negligente; contudo, só aqueles que executavam as missões delicadas e perigosas da Oficina dos Segredos sabiam o que uma pessoa sentia ao chegar à base sã e salva, e o aperto de mão de Dan foi eloquente.

 

- Danny - disse Methuen - é um prazer voltar a vê-lo.

 

- Eu trouxe o carro.

 

- Já vi.

 

Dan ajudou-o a arrumar a bagagem na mala do Manta antes de se colocar ao volante e de lançar a negra criatura na estrada como uma pantera em busca de caça.

 

- Sabe - disse ele - fiquei furioso com o Dombey por não me ter deixado ir consigo. Sempre que você vai para fora sem um guarda-costas acaba por apanhar um tiro.

 

- Se você tivesse ido - respondeu Methuen secamente - duvido que algum de nós tivesse voltado. Você teria querido enfrentar todo o exército jugoslavo. Meu rapaz. Dombey tinha razão. Era um trabalho redondo. - No calão da profissão perigosa a que ambos pertenciam as missões eram descritas como "redondas" ou "planas", sendo as primeiras sinónimo de "difíceis" e as segundas de "fáceis". - Tão infernalmente redondo que era praticamente todo ele uma circunferência. Só um solitário poderia desempenhar-se dela. A simples ideia de vê-lo a calcorrear os montes, deixando pegadas por toda a parte e a assoar o nariz às folhas das árvores, dá-me arrepios. E quanto ao Prof... apanhava um resfriado imediatamente.

 

Dan fez uma careta e não disse nada.

 

- Seja como for - disse Methuen - quando descobrimos do que se tratava vimos que não era tão importante como tínhamos imaginado.

 

- Isso é o que você pensa. O Dombey tem passado estes últimos dias a ir e a vir do Foreign Office com um ar de grande presunção. Você fê-lo passar um mau bocado. É muito raro ele roer as unhas e gritar com os secretários.

 

- Ele é que me fez passar um mau bocado - corrigiu Methuen. - E desta vez tenciono tirar umas férias muito prolongadas: talvez até permanentes.

 

Dan Purcell assobiou uma ária e executou uma manobra que os fez sair da "mão" para ultrapassar um autocarro da Green Line. O motorista exprimiu a sua irritação com um certo vigor e Methuen pensou como era bom voltar a ouvir aqueles palavrões londrinos.

 

- Onde está o Dombey? - perguntou. - Preciso de comunicar com ele.

 

- Está à espera de si no seu clube.

 

- Bem. é realmente uma grande amabilidade da parte dele.

 

- Ele é sempre tremendamente atencioso.

 

- Sim - disse Dan e depois soltou uma risadinha de esguelha.

 

- Para tudo dizer ele tem um trabalhinho para nós. Não pragueje assim. Methuen.

 

Methuen praguejou enérgica e longamente.

 

- É só para daqui a um mês mais ou menos - disse Dan apaziguador. - Tempo mais do que suficiente para você voltar a estar em forma. O Professor foi à Finlândia fazer uma conferência sobre qualquer coisa, já não recordo o quê.

 

- Bem. desta vez - disse Methuen com obstinada determinação - desta vez não vou. Já tive a minha conta.

 

- Claro que não vai - disse Dan no mesmo tom apaziguador.

 

- Eu e o Professor trataremos do assunto. Eu já lhe falei nisso. Para ser franco... - fez uma breve pausa e olhou de soslaio para Methuen - é um dos casos mais interessantes que nos têm aparecido.

 

- Essa cantiga - disse Methuen - já eu ouvi antes.

 

- Bem, depois veremos.

 

O resto da viagem não levou muito tempo. A conversa profissional com que a preencheram, se ouvida por entendidos, tê-los-ia marcado como membros do clube mais exclusivo do mundo. Foi principalmente a respeito dos seus colegas da Oficina dos Segredos. Um tinha ido para a China: outro regressara do Sião: outro ainda estava a acabar um curso de explosivos que o poderia tornar útil na Albânia. De todos os cantos do mundo a frágil rede da máquina de Dombey - a que ele próprio chamara uma vez "A minha gigantesca teia de aranha- - estremecia e vibrava com as suas mensagens. Na imensa sala da cave. com as suas luzes veladas, os funcionários trabalhavam vinte e quatro horas por dia desenrolando as suas tiras de telegramas, separando, dactilografando e agrafando...

 

Já escurecera quando chegaram ao centro de Londres e foram parar com uma guinada magistral à porta do clube de Methuen. Deixaram a bagagem ao cuidado do porteiro enquanto Methuen entrava a coxear para ir buscar o seu correio.

 

- Vamos lá ver se ele está aqui - disse Dan dirigindo-se para a sala de fumo. Ele estava.

 

Dombey estava sentado a uma mesa de canto, encolhido no seu sobretudo, fitando um copo de xerez. Tinha o mesmo aspecto de sempre, exausto, desgrenhado, como se tivesse passado a noite na borga.

 

- Ali está ele - disse Methuen.

 

Dombey levantou-se para um aperto de mão quase com um ar de constrangimento.

 

- Methuen - disse - um excelente trabalho. Espero que o seu ferimento não seja de gravidade.

 

Sentaram-se e Methuen descreveu-lhes como decorrera a sua missão - de uma forma um tanto mais real e viva que os telegramas frios e secos que iam acompanhando cada fase com perfeita objectividade.

 

- E a pescaria foi boa... a pouca que tive tempo de fazer não resistiu a acrescentar.

 

- Eu bem lhe tinha dito que você iria gostar - disse Dombey sem se dar por achado.

 

- Além disso - continuou Methuen - não resisti a apoderar-me de uma parte do tesouro. - Nos bolsos do seu casaco de lã tinha descoberto duas moedas. Uma fora já transferida para a corrente do relógio do embaixador. A outra agarrou-a agora e mostrou-a ao seu chefe.

 

- Ah! - fez Dombey - um Napoleão de ouro. Portanto, a sua história pelo menos não foi inventada. Às vezes suspeito que vocês rapazes acabam por adornar os vossos relatórios com um pouco de imaginação.

 

- Na passado, talvez - concordou Methuen equatitativamente. - Mas desta vez. não. E se quer mais provas posso apresentar alguns bocados de pedra autêntica alojados na barriga da perna. O Professor certificará que é um genuíno bocado da Sérvia.

 

- Bom - disse Dombey. - E agora quero levá-lo a jantar fora. Há uma jovem que está provavelmente à espera na mesa de canto que eu reservei, uma jovem...

 

- Vida! - disse Methuen encantado.

 

- Vida.

 

- O mundo é pequeno.

 

E então Dombey surpreendeu-o ao citar em sérvio. com um razoável sotaque, o antigo provérbio:

 

- O mundo é sempre demasiado pequeno para aquele que tem um coração grande.

 

                                                                                Lawrence Durrell  

 

                      

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