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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


AINDA RESTA UMA ESPERANÇA / J. M. Simmel
AINDA RESTA UMA ESPERANÇA / J. M. Simmel

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

AINDA RESTA UMA ESPERANÇA

 

Sexta-Feira Santa sempre foi um dia triste, mas naquele ano foi especialmente triste. Árvores e arbustos estavam em flor; o gramado cobria-se de relva nova e verde, o sol brilhava num céu sem nuvens, iluminando todas as casas e ruas da grande cidade. Mesmo assim, uma tristeza imensa se apoderou dos homens. Eles não viam as flores, nem os pardais nos galhos ainda negros e escuros das árvores do parque, os vestidos alegres das mulheres, as muitas lojas que expunham seus objetos preciosos. Os operários nas fábricas sentiam as mãos pesadas como chumbo; os funcionários dos escritórios das grandes repartições, no intervalo do almoço, deitavam o rosto pálido, desanimado, em cima dos braços cruzados e dormiam de cansaço; os camponeses, em suas terras, atravessavam com imensa amargura os campos arados.

Ninguém naquele ano conseguiu ser alegre de verdade. Até as crianças tinham a testa enrugada de preocupações e os cachorros, que sempre corriam felizes, se esgueiravam acabrunhados, mal ousando latir. Tudo estava tão triste! Quem fosse pensar no motivo chegava à conclusão de que os homens não ousavam mais ser alegres por medo. Medo do futuro e de tudo que ele lhes poderia trazer de violência, novas destruições, injustiças, dor e morte. Temiam não só os moradores da grande cidade de Viena, onde se passa a história que a seguir relataremos, mas também os de outras cidades do continente, de todos os continentes, de todo o mundo. Não havia ninguém que não estivesse com medo.

Todos os dias, a toda hora, uma avalancha de notícias inundava a cidade, provocando novos receios, despertando pavor no coração dos homens. Na Europa, cuja face ainda trazia as feridas recentes de uma guerra cruenta, soldados de muitas nações, que preferiam estar em casa, montavam guarda de fuzil na mão. Suspeitavam e desconfiavam uns dos outros, e seus comandantes, que tinham vindo para apaziguar um povo derrotado, falavam em guerra. Na Palestina, os árabes matavam diariamente um grande número de judeus e diariamente judeus assaltavam bairros árabes. Ambos invocavam o mundo como testemunhas de uma luta justa. Na Itália, os operários atiravam uns contra os outros, na Eslováquia e nos Bálcãs também. Na França, centenas de milhares estavam em greve. Na China, há anos, homens do mesmo sangue viviam se matando, e milhões passavam fome, implorando um punhado de arroz. Pelo mundo inteiro ressoava o trovejar de aviões de guerra e os passos de marcha de colunas fanatizadas.

Nos Estados Unidos, foi instituído o serviço militar obrigatório; nos laboratórios ocidentais, cientistas trabalhavam noite e dia nos piores de todos os meios de destruição, para alcançar os americanos que, neste setor, ocupavam a dianteira. No mundo inteiro partidos políticos se combatiam, prometendo a seus adeptos mundos e fundos, coisas em que eles mesmos não ousavam acreditar. Os homens estavam desnorteados e alguns começavam a compreender que havia chegado uma era em que tudo teria de se modificar; que se encontravam diante de uma imensa transformação que viria com o fim do segundo milênio da era cristã. Não havia mais para onde fugir; não havia como se proteger. A cada minuto, a cada respiração da humanidade, os acontecimentos se precipitavam. Sabia-se que muitas coisas iam acabar, previa-se e esperava-se que outras fossem surgir.

Podia-se ignorar tudo o que abalava os ânimos, por algum tempo, mas seria impossível manter-se alheio para sempre. A todos, justos e injustos, forças inconcebíveis, que os homens chamavam de "circunstâncias", acabavam obrigando a tomar partido, o que era uma desgraça enorme, pois a maioria dos homens havia muito tinha perdido essa capacidade quase por completo. Resistiam, se negavam, hesitavam e procuravam ganhar tempo para pensar, mas de nada adiantava. De vez em quando, um dos que por escolha ou decisão chefiavam seu povo se suicidava com um tiro na cabeça, se atirava da janela ou se refugiava no exílio, para ali escrever grossos livros que ninguém lia, fazer longos discursos que de nada adiantavam. Não havia a menor dúvida, os poderosos não encontravam mais saída, os que não detinham o poder acreditavam estar perdidos. Os fortes sentiam que estavam perdendo suas forças, os fracos perdiam a vida a cada dia.

Após anos de descontrolado uso de explosivos no mundo, a própria natureza começara a se rebelar; em pleno inverno fazia um calor estivai, as flores começavam a desabrochar; no fim da primavera, de repente, começava a nevar, e já era fim de maio quando violentos furacões passavam rugindo pelas ruínas consumidas pelo fogo de uma Europa destruída. Os homens usavam roupas velhas, moravam em porões e adegas, não tinham comida suficiente. Muitos dos que se achavam vítimas de uma injustiça, pensavam consigo: Que venha outra guerra! Nós nada temos a ganhar com ela, mas também nada temos a perder. Seria bom até assistir à ruína daqueles que foram nossos juizes.

O dinheiro que as pessoas recebiam em troca de seu trabalho valia pouco, seu poder aquisitivo era mínimo. Muitas empresas se viram obrigadas a dispensar os funcionários; e em meio a um mundo de destroços, cuja reconstrução poderia ter proporcionado trabalho a todos, surgiu uma nova multidão de desempregados. Como todos os outros, também eles tinham a impressão de que aquele estado de coisas não podia durar, que não adiantava começar nada de novo, criar família, pôr filhos no mundo, nem mesmo plantar uma hortinha. Como todos, muitas vezes eles se perguntavam qual o sentido desse estranho carnaval que se chamava de vida. Existia realmente uma força do bem capaz de dominar todo o caos? Não havia ninguém que encontrasse uma resposta consoladora para essas perguntas. Muitos procuravam manter a alegria em meio à tristeza geral; conseguiam-no à custa de mulheres, bebidas e um sem-número de superstições. No entanto, por maior que fosse a orgia, mais profunda a embriaguez, mais misteriosas as fórmulas mágicas; em todos e em tudo sentia-se o reflexo lívido e breve do ocaso, que se espalhava como macabra aurora boreal. Banhadas em sua luz, todas as coisas se tornavam irreais e ilusórias. Não havia mais sentimentos autênticos, nem sensações profundas; tudo era superficialidade, desespero, tédio e repugnância. Uma repugnância terrível! As grandes cidades morriam, e quando um carro atravessava veloz, buzinando pelas ruas destruídas, as criancinhas começavam a chorar. Em Nuremberg, uma cidade da Alemanha, um punhado de garotos brincava de "julgamento por crime de guerra", e um deles foi enforcado por descuido...

A Sexta-Feira Santa daquele ano foi um dia especialmente triste. O sol brilhava, o vento soprava leve, os bichinhos se aqueciam sobre as pedras quentes. O rosto das pessoas, no entanto, continuava fechado, taciturno. À tarde, no grande parque a oeste da cidade, crianças brincavam nos gramados e nos caminhos cobertos de cascalho. Seus gritos penetrantes soavam pelo límpido ar primaveril, chegando aos ouvidos de um homem que, sentado na grama no alto de uma colina e com o vale a seus pés, via três menininhas de mãos dadas, brincando de roda. Por muito tempo ficou atento à cantiga. O céu acima de sua cabeça estava claro, prateado. Nuvens pequeninas seguiam para oeste. O sol começara a se pôr. O rosto do homem estava calmo, ele respirava fundo; pensava na melhor maneira de morrer.

Era alto e muito magro. As maçãs do rosto apareciam salientes por cima das faces encovadas; de ambos os lados da boca, a magreza havia sulcado duas linhas verticais na pele escura. Os olhos eram de um cinza claro, fundos em suas órbitas; o cabelo castanho, aparado curto, parecia uma escova.

O homem se chamava Jakob Steiner, seu terno era velho e amarrotado, a sola de suas pesadas botinas estava furada, o colarinho da camisa, puído. Jakob Steiner dava a impressão de decadência às pessoas de posse que moravam nas bonitas mansões do bairro e que, passando, viam-no deitado na grama. Um deles, acompanhado por uma jovem, disse que o homem lhe lembrava um espantalho caído. Falou bem alto, e Jakob Steiner ouviu. A mulher atravessou o gramado e veio perguntar se ele estava sentindo alguma coisa. Olhando para suas calças esgarçadas, colocou, muda, uma nota de cinco xelins em sua mão e saiu andando na ponta dos pés, enquanto ele continuou deitado, imóvel. Parecia que ela não queria fazer barulho, mas era apenas vergonha.

Um pouco mais tarde Jakob Steiner sentou-se, contemplando a nota por algum tempo, como se estivesse segurando algum estranho documento com o qual não sabia o que fazer. Depois começou a remexer nos bolsos e foi tirando um toco de lápis, uma folha de papel, um molho de chaves, um lenço, um punhado de níqueis, uma carteira de dinheiro, uma garrafa de aguardente. A garrafa já não estava mais cheia. Steiner desarrolhou-a, encostou-a na boca e bebeu. Depois deu de ombros, passou a língua nos lábios e colocou a garrafa em pé a seu lado. Pegou a folha de papel, dividiu-a em três colunas, escrevendo no alto da primeira: "Perdidos". Logo abaixo anotou:

 

Minha mulher

Minha filha

Minha casa

Meu trabalho

 

Hesitou, bebeu mais um gole e acrescentou:

 

Minha esperança

 

Tinha começado a esfriar. As menininhas voltaram para casa de braços dados; as flores ao redor tinham-se fechado. Steiner passou para a segunda coluna, no alto da qual havia escrito "Ganhos". Embaixo escreveu:

 

Uma convicção

 

Hesitou mais uma vez, cobriu as letras cuidadosamente a lápis e pensou: Qual era afinal a convicção que ele ganhara? Que a única maneira de suportar a vida era deixá-la? Continuou a pensar. Pareceu-lhe que essa quintessência não era o resultado entre o ativo e o passivo de seu balancete. Por isso, riscou a palavra, substituindo-a pela frase:

 

A impressão de que o mundo se tornou horrível

 

Na terceira coluna escreveu como título "Previsões para o futuro", e abaixo:

 

Solidão

Fome Frio

Guerra

 

Jakob Steiner esticou as pernas, inclinou a cabeça um pouco para trás, fechou os olhos. Nessa posição contemplou o balancete de sua vida que estava na folha em cima de suas pernas. Depois de algum tempo, balançou a cabeça e disse bem alto para si mesmo:

— Sim, você tem razão.

Juntou os objetos espalhados em seu redor, cambaleando ao levantar. Depois de ter tomado mais um respeitável gole de sua garrafa, arrolhou-a e meteu-a no bolso esquerdo da calça. Pegou o capote ralo em cima do qual estivera deitado e jogou-o sobre o braço. Tremendo, com as pernas duras, caminhou até a trilha de cascalho, repetindo mais uma vez:

— Sim, você tem razão.

A cada palavra balançava a cabeça. Ele tinha razão... o mais acertado que podia fazer era acabar com a vida. Havia apenas algumas dificuldades técnicas a resolver para poder pôr em prática a sua resolução. Como é que se punha fim à vida? Podia meter uma bala na cabeça... se tivesse revólver. Ou tomar veneno, mas não tinha. Ou sentar na cozinha e abrir a torneira de gás, se ainda houvesse cozinha onde sentar... Claro que também era possível jogar-se na frente das rodas de um bonde ou de uma locomotiva, atirar-se da janela de um edifício, cortar os pulsos, mas todas essas técnicas de suicídio eram arriscadas. Se tivesse azar, ia escapar com a vida à qual estava querendo pôr fim, ficando então sujeito à implacável misericórdia alheia, pois as pessoas não conseguem deixar de ser caridosas e prestativas. A melhor coisa para um pobre-diabo como ele, pensou Steiner, era se enforcar. Em qualquer lugar, num canto por onde ninguém passasse, onde pudesse liquidar o assunto em paz, sem ser incomodado por ninguém.

A única coisa necessária para uma pessoa se enforcar era uma corda relativamente resistente. Steiner não tinha corda, mas tinha a certeza de que antes do anoitecer conseguiria encontrar uma. Talvez até pudesse arranjar emprestado... afinal, depois ainda seria perfeitamente usável. Talvez até lhe dessem um pedaço; uma corda de roupa, por exemplo. Podia também encontrar uma num jardim qualquer por onde passasse, com camisas penduradas para secar... Já ,meio tonto, Steiner não conseguiu mais se livrar dessa idéia: uma corda... uma árvore... em qualquer lugar; bem afastado da cidade... um pulo... um rápido e horrível arranco, e depois... a Paz!

Estava escurecendo: Steiner parou, levou a garrafa desarrolhada mais uma vez aos lábios e bebeu até os olhos começarem a lacrimejar. Encostou-se depois num tronco de árvore, procurando respirar. Uma velha, que passava se arrastando com uma bolsa de compras, olhou para ele e balançou a cabeça.

— Uma corda — disse Steiner, que percebera seu olhar, e enfiara a garrafa no bolso. A velha parou.

— O que foi?

Steiner deu um pequeno impulso para se desencostar do tronco e aproximou-se dela:

— Eu preciso de uma corda, vovó — disse ele, devagar, com muito cuidado, pois percebera que sua voz estava ficando pastosa.

— Você andou bebendo — disse a velha. Steiner apoiou-se de novo na árvore.

— Não se preocupe com isso, eu preciso de uma corda.

— Se estiver com fome... — começou ela, metendo a mão na sacola de feira.

— Comi muito bem.

— Não parece.

— O que pareço então?

— Parece infeliz — disse a velha. — As coisas vão mal?

— Vão — disse Steiner, e a velha balançou a cabeça.

— Para mim também. Meu filho não voltou da Rússia e meu marido morreu. A vida é dura.

— Por isso mesmo é que eu quero uma corda — disse Steiner, controlando um soluço. — Porque a vida é dura, sem alegria.

— Você quer...

— É, vovó — disse Steiner, e ela pegou sua mão.

— Não faça isso!

— Faço — retrucou Steiner —, tenho meus motivos.

Ela o fitou séria.

— Vai fazer isso só porque as coisas vão mal...

— Por que acha que as coisas vão mal?

— Você está com cara de quem não tem dinheiro — disse ela baixinho.

— Tenho exatamente o que preciso. Há pouco uma senhora muito bonita me deu cinco xelins.

— Se é por causa da guerra... — disse ela com voz de quem está querendo adivinhar uma charada.

— Por causa dela também — retrucou Steiner —, e por muitas outras coisas. É difícil explicar. Estou farto de tudo, e quero uma corda. Prometo ter cuidado com ela, para que ainda possa ser usada depois...

A velha meneou a cabeça.

— Imagine só, toda vez que eu olhar para a corda vou me lembrar de que você se enforcou com ela.

— Acabará esquecendo. A gente esquece tudo depois de algum tempo. Prometo não estragar a corda.

— Eu nem sei se tenho — disse a velha.

— Podíamos dar uma olhada.

— Além disso, é pecado por fim à vida.

— Não é não — disse Steiner encostando a garrafa na boca.

— Está escrito na Sagrada Escritura que é.

— Ora, vamos primeiro até sua casa ver se achamos a corda, depois continuamos a conversar sobre a Sagrada Escritura.

Apoiou-se levemente no braço da velha, e os dois foram andando em direção oeste. A velha andava em passos firmes e decididos, dava a impressão de ser ainda muito forte para sua idade. Passaram por um longo muro de cemitério e entraram num estreito caminho, num campo que ia dar numa horta. O capim por onde passavam estava coberto de gotas de orvalho; os sapatos de Steiner ficaram molhados. O céu a oeste tornara-se de um verde azulado; a leste se viam as primeiras estrelas e a fina fatia de uma lua crescente. Steiner tropeçou numa pedra e praguejou baixinho.

— É nisso que dá não ter luz.

— É nisso que dá quando se bebe.

— Não esquente a cabeça — disse Steiner. — Esta noite nada do que eu faça tem importância. É minha última noite e quero fazer o que me dá prazer; no momento, beber me dá prazer.

— Mas eu tenho de esquentar a cabeça — disse ela —, pois acho que no estado em que você se encontra, nem vai conseguir se enforcar direito. Vai acabar caindo da árvore e quebrando a perna, ou vai dar de cara com um policial, ou então vai acontecer qualquer coisa para impedi-lo de se suicidar. E depois, como vou conseguir minha corda de volta?

— Eu não estou bêbado demais para me enforcar.

— Já está bêbado demais para conseguir andar direito — disse ela. — Enforcar-se não é tão fácil assim. Meu marido tentou uma vez, mas não conseguiu; só conseguiu foi arrumar uma semana no hospital e eu tive de trabalhar mais ainda. Só piorou tudo. Não quero passar por isso mais uma vez. Não é nada agradável rever alguém que já devia estar morto há muito tempo.

— Mas a senhora podia me ajudar, vovó.

— Não vou ajudar, não. É pecado pôr fim à vida. Além disso — continuou a velha —, ainda é cedo demais. Tem muita gente na rua, e vão atrapalhá-lo na certa. De jeito nenhum você deve pensar em se enforcar antes da meia-noite. E o que vai fazer até lá?

— Beber — respondeu Steiner, batendo em cima da garrafa. — Ainda tem um bocado aqui dentro.

— Você está me deixando com raiva — disse ela. — Acha que vou levá-lo à minha casa para se embebedar, depois sujar tudo, acabar dormindo e acordar amanhã cedo para encontrar tudo na mesma?

— Então por que está me levando?

— Para lhe dar de comer.

— Mas eu não estou com fome!

— Está sim — insistiu ela. — Essa idéia maluca só lhe ocorreu por estar com fome e bêbado... Gente de estômago cheio não pensa nessas coisas.

— Eu já estou com essa idéia há dias.

— Então é porque há dias vem comendo pouco. Hoje vou preparar uma comida decente para você.

— Não — disse Steiner, parando. — Não quero. A senhora também é pobre, não quero tirar do pouco que tem. Deixe-me em paz! Também não quero sua corda de graça, quero comprar.

— Mas você não tem dinheiro!

— Tenho cinco xelins que uma senhora bonita me deu porque me achou com cara de espantalho.

— Eu não quero seu dinheiro! Além disso, só lhe dou a corda se for comigo comer alguma coisa. Esta é a minha condição.

— Eu não vou conseguir engolir nada — disse Steiner, obstinado.

— Quem sabe? De qualquer modo tem de vir comigo, pois ainda é cedo demais. — Parou, abriu o portão de uma cerca baixa de madeira que contornava uma pequena horta, no meio da qual se erguia um casebre de madeira.

— É aqui que a senhora mora?

— Sim. Entre.

— Não quero.

— Entre — disse ela devagar, puxando-o para dentro. Ela era muito forte. Steiner quase perdeu o equilíbrio e foi cambaleando atrás dela. Ela abriu o portão com o pé e atravessou o jardim com ele.

— A senhora tem um bocado de força para sua idade — disse ele.

— Sou pedreira de profissão — disse ela orgulhosa. — Trabalho numa obra. Isso faz a gente ficar forte. Você também devia trabalhar. Se trabalhasse não teria chegado a este ponto.

— Trabalhei — disse ele enquanto ela destrancava a porta. — Era marceneiro, trabalhava o dia inteiro.

— Quando?

— Antes da guerra — respondeu ele. — Ainda me lembro muito bem.

— E depois?

— Depois não fiz mais nada. Ao menos nada que prestasse. Antes da guerra fiz cadeiras e mesas, até algumas camas. Fiz muita esquadria de janela, muita mesmo. Na guerra só matei gente; mais nada. Nem conhecia as pessoas que matava. Talvez até houvesse carpinteiros entre eles. E bem provável, pois existem muitos no mundo. Matei carpinteiros que nem conhecia. Não foi nada divertido. Divertido era fazer camas e mesas; matar gente não era, não. Poderia ter trabalhado esses anos todos, mas a única coisa que fiz foi matar, e com isso desaprendi a trabalhar. Acho que nem entendo mais de carpintaria.

— Já tentou alguma vez?

— Não — disse ele. — Faz poucas semanas que voltei a Viena. Bem que poderia ter ficado na Rússia, pois minha mulher e minha filha estão mortas, e minha casa foi destruída.

Tinham entrado no barraco que consistia de dois cômodos. A velha esvaziou o saco de compras, atiçou o fogo que ardia num velho fogão.

— Sente-se — disse ela.

Steiner obedeceu automaticamente, colocando as mãos pesadas em cima da mesa, olhando distraído a velha preparar o jantar.

— Gostava muito da minha mulher — disse Jakob Steiner. — Da minha filhinha também. Tinha só quatro anos. Este ano iria para a escola.

— Morreram como? — perguntou a velha, cortando fatias de pão.

— Uma bomba — respondeu ele. — Ao menos foi o que me contaram. Estavam numa adega, ficaram soterradas.

Dizem que morreram na hora. Não sei. Talvez até tenham vivido algum tempo.

— E a sua casa foi destruída também?

— Foi — disse ele. — Completamente. Não sobrou nada. Deve ter sido uma bomba bem grande.

— Onde tem dormido nestes últimos dias?

— Por aí. Em depósitos, nos albergues que abrigam os soldados que voltam da guerra, em bancos de parques, debaixo de pontes. Há muitos lugares.

— Eu pergunto porque amanhã também não vou ter mais onde dormir. Tenho que me mudar daqui. É sempre bom saber o que fazem as pessoas que estão na mesma situação que a gente.

Jakob Steiner começou a sentir que o calor da sala o estava deixando atordoado. A voz da velha, de repente, pareceu-lhe soar de muito longe. Apoiou a cabeça nas mãos e bocejou.

— A senhora tem de sair daqui?

Ela respondeu, balançando a cabeça, mexendo com energia a panela em cima do fogo.

— Eu também perdi minha casa. Os donos voltam amanhã. Não vai ter mais lugar para mim.

— E para onde vai?

— Ainda não sei... Prefere feijão com ou sem cebola?

— Com cebola — disse ele —, se for torrada antes. Mas essa gente... eles não podem botá-la para fora assim, sem mais nem menos!

— Foi a condição. Prometi sair quando voltassem. Eles me fizeram um favor, me deixaram morar aqui um ano inteiro. Eu tenho até que agradecer. Sabe de uma coisa — disse ela pensativa, virando-se com a colher na mão —, esta casinha é bem agradável; tenho pena de deixá-la. Nem sabe quanto sempre desejei poder viver numa casinha assim, sozinha, quando ficasse velha. Vou sentir falta da casa, do jardim... Não sei se me entende.

— Entendo, sim — disse Jakob Steiner desesperado, tomando um longo gole de sua garrafa. — Entendo muito bem. Eu também, nestes últimos anos, tenho sentido falta de tanta coisa!

— De quê?

— Da minha mulher; da minha filhinha. Da oficina de carpintaria onde trabalhava. Gostaria tanto de voltar a fazer caixilhos de janela! Não daquelas antigas, com dobradiça, mas dessas modernas, grandes, que sobem e descem. Sempre quis fazer uma casa de bonecas bem grande para minha filhinha; ela sempre quis ter uma. Agora já não precisa mais... Está morta. É uma pena! Gostaria de ter feito a casa de bonecas...

— Meu marido também morreu — disse a velha, colocando a panela fumegante na mesa —, e meu garoto está na Rússia; nem sei se ainda está vivo.

— A vida não é lá muito divertida — disse Jakob Steiner. — Tenho certeza de que me entende quando digo que não gosto dela, que prefiro morrer.

— Claro que entendo — disse ela —, mas já pensou no que vai acontecer depois?

— Depois quando?

— Quando morrer. Tem certeza de que então vai se sentir bem?

— Acho que sim.

— Não sei, não. Por que, afinal, a gente iria se sentir melhor depois da morte?

— E por que não?

A velha deu de ombros.

— Sabe de uma coisa, eu também não me sinto lá muito bem. Talvez não tão mal quanto você. E você quer se enforcar porque acredita que depois da morte tudo vai ser melhor! Eu também já pensei em me enforcar, mas não tenho coragem. Tenho medo! Não de me enforcar; meu grande medo é que os mortos não sejam mais felizes do que os vivos. Talvez se sintam bem mais infelizes. Afinal, qual a razão para sermos recompensados por um pecado? Sabe me dizer?

— Já que vive citando a Bíblia — retrucou Steiner —, por que então não acredita no céu e na justiça eterna?

— Porque não consigo imaginá-los — respondeu ela. — Porque depois de tudo por que passei aqui na terra nunca consegui imaginar um céu em lugar nenhum. Um dia vou ter que morrer mesmo, e aí eu vou ver como as coisas são de fato; mas não gostaria de ver antes da hora. Acho que não existe desgraça capaz de me levar ao suicídio. — A velha colocou os pratos na mesa e sentou-se. — Tem sopa de feijão com pão — disse ela. — Gosta de sopa de feijão?

— Muito.

Ela encheu o prato e lhe estendeu uma colher.

— Agora trate de comer para ficar com uma cara decente de novo. Não dá nem para olhar para você!

Jakob Steiner colocou a garrafa na mesa.

— Não tenho nada para lhe oferecer a não ser um pouco de aguardente; gostaria muito de dividir.

— Não bebo aguardente de gente que está pensando em se enforcar — declarou ela, soprando a sopa na colher.

— É uma aguardente muito boa — disse Steiner, humilde; — deram-me lá no albergue junto com um pacote de pão de mel. O pão estava horrível, mas a aguardente até que é boa.

— Não, obrigada — disse ela.

Começaram a comer. Steiner sentia o líquido quente lhe aquecer o estômago e experimentou de repente um certo prazer no gosto forte do feijão. Logo, no entanto, se lembrou novamente de seu plano.

— É muita amabilidade sua ter me dado o que comer — disse ele —, mas depois gostaria de ir ver se a gente encontra a corda.

— Ainda tenho muito que fazer — respondeu ela. — Tenho de arrumar minhas coisas. Bem que podia me ajudar.

Ele a olhou repreensivo.

— A senhora sabe muito bem o que eu quero fazer.

— Está bem — disse ela. — Nem quero que mude de idéia. Vou arrumar a corda, contanto que me deixe um papel que explique que só a emprestei para se enforcar com ela, mas que continua a ser propriedade minha.

Jakob Steiner, que limpava o prato com um pedaço de pão, aquiesceu satisfeito.

— Isso mesmo! A senhora é uma pessoa muito sensata e uma boa cozinheira.

— Quer mais alguma coisa?

— Não, obrigado.

Ela se levantou e foi para o quarto do lado.

— Vou apanhar papel e caneta.

— E a corda — disse Steiner.

— E a corda — repetiu ela. Levou alguns minutos para voltar. Já tinha idade, e tinha visto e ouvido muita coisa na vida. Conhecera gente muito feliz e gente muito infeliz; gente desesperada e cheia de esperança, valentes e covardes, e também gente que estava decidida a se suicidar. Jakob Steiner não era o primeiro. Sorriu, procurando alguma coisa na gaveta. Suicidar-se! Meu Deus, ela podia ser mãe daquele rapaz! Que sabia ele deste mundo tão estranho que conseguia ser ao mesmo tempo tão belo e tão horrível, tão cruel e tão bom, tão infame e tão maravilhoso? O que sabia ele da vida? E da morte? Nada, absolutamente nada. E queria uma corda para se enforcar, pois esta lhe parecia a solução mais simples...

A velha meneou a cabeça. Essa mocidade, pensou ela; não sabem mais viver, mas também não conseguem morrer. Bem, ia ver o que podia fazer. Achou o que estava procurando e voltou para a sala. Enquanto Jakob Steiner escrevia sua declaração, ela apanhou um copo e encheu-o de aguardente para ele. Jakob assinou o papel, e ela jogou disfarçadamente um pó branco dentro do copo, e esperou que dissolvesse por completo.

Tomara que seja suficiente, pensou consigo. Tomara que faça efeito; já está guardado há tanto tempo! Ele vai ter que dormir lá no divã; amanhã cedo vamos ver o que posso fazer. O principal é que ele passe a noite aqui. Ele está falando muito em se enforcar. Gente que fala não se enforca.

— Como é o seu nome? — perguntou Steiner lá da mesa. — Preciso saber para poder escrever aqui.

— Meu sobrenome é Huber, mas todos me chamam de dona Magdalena.

— Preciso do nome todo.

— Como quiser — retrucou ela. — Tome mais um copo.

— Obrigado — disse Steiner, fazendo o que ela tinha sugerido. — Eu lhe agradeço por cuidar tão bem de mim. Ouça só o que escrevi: Eu, Jakob Steiner, atesto que a corda em que fui encontrado enforcado é de propriedade de Magdalena Huber, e peço que a ela seja restituída, pois teve a gentileza de me emprestar. Está bem assim?

— Está — disse ela. — Agora tome mais um gole para ficar quentinho, e depois vamos procurar a corda.

— Sabe onde está?

— Não; temos que procurar — respondeu ela, esperando que não a encontrassem logo. Estava bem escondida.

— Não sei por quê — comentou Steiner, que tinha acabado de esvaziar o copo —, mas esta aguardente está com um gosto estranho!

— É? — perguntou ela muito espantada. — Deve ser por causa do feijão.

— Talvez — concordou Steiner. — Vamos procurar a corda.

A corda estava onde dona Magdalena a jogara ao sair do quarto: no chão, atrás do armário. Dona Magdalena sabia disso; Steiner não. Por isso foi muito fácil despistá-lo, arrumando ao mesmo tempo parte de seus pertences para a mudança no dia seguinte. Ele a ajudava na esperança de que entre os vestidos velhos, sapatos e utensílios de casa fosse aparecer o que procurava. Meia hora depois, Steiner sentou-se à mesa, bocejando.

— Cansado? — perguntou dona Magdalena, inocente, ajoelhada sobre uma velha mala que não conseguia fechar.

— Sim — disse ele. — Sempre fico cansado depois da comida. É horrível.

— Se quiser, pode dormir uma horinha; eu o acordo. Depois da meia-noite tudo estará mais sossegado.

— Não — murmurou ele, com a cabeça caindo em cima da mesa. — Não quero dormir; quero ir embora. Veja se arranja logo essa maldita corda, não tenho muito tempo, não quero esperar mais... Estou com pressa... com muita pressa... — Jakob Steiner suspirou triste, cobriu a cabeça com os braços e não se mexeu mais. Dona Magdalena levantou, foi à sala improvisar uma cama. Voltou para junto de Steiner, pegou-o por baixo dos braços, ergueu-o e carregou-o como uma criança até a cama. Ela era pedreira de profissão e muito forte. Jakob Steiner bem que tivera razão em ficar admirado, só que agora dormia tão profundamente que não percebeu nem sequer o estranho modo de ser transportado. Só quando a velha o deitou na cama e o cobriu, ele se mexeu.

— Corda — murmurou ele —, pode deixar, eu devolvo...

— Está certo, meu filho — disse ela. — Amanhã as coisas serão diferentes.

Ajoelhou-se, tirou a corda de baixo do armário, levando-a para o quarto. Por precaução, pensou ela. Teria sido melhor se a tivesse deixado onde estava. Mesmo os muito vivos cometem erros; os muito fortes também, especialmente no momento em que acham que estão sendo muito fortes e muitos vivos. Assim o mundo segue seu curso, regulando-se a si mesmo. Se assim não fosse, o que seria de nós?

 

 

Jakob Steiner acordou porque estava deitado em cima de uma tesoura que o machucou. Se dona Magdalena tivesse visto a tesoura e a removido dali, ele nunca iria acordar. O fato de ela não a ter notado é uma prova da existência do que um filósofo alemão chama de "astúcia do bom senso". É preciso ter muito cuidado, quando se pretende interferir nos acontecimentos traçados pelo destino. Dona Magdalena tinha essa intenção, mas não teve cuidado bastante. Confiava demais na sua própria força e poder, por isso seu plano fracassou. Não se deve confiar demais nas próprias forças, nem na força alheia. É sempre melhor confiar na fraqueza e nos erros de si e dos outros.

Seria exagero dizer que a tesoura fez com que Jakob Steiner acordasse. Nada disso. A tesoura apenas fez com que ele tivesse consciência de ter estado desacordado. A dor só lhe excitou o cérebro, e assim ele voltou ao estado consciente. Quando recomeçamos a pensar, é porque não estamos mais dormindo, evidentemente.

Ora bolas, pensou Steiner, piscando em meio à escuridão, onde é que estou? Será que ainda estou vivo? Ou isto já é o "além"? Pigarreou, constatou que estava com um gosto ruim na boca; sentou-se. Ainda devo estar neste mundo, decidiu, pois, por mais estranho que fosse, para ele, no "além" não se sente gosto ruim. Procurou por fósforos e lembrou-se de onde estava. O feijão no estômago se manifestou. Steiner riscou um palito e foi de meias até o quarto onde dona Magdalena roncava alto, deitada numa imensa cama de ferro, debaixo de um edredom vermelho. Hesitando, inclinou-se por cima dela; queimou a ponta dos dedos e deixou cair o fósforo.

— Sua velha bruxa! — disse ele, riscando outro fósforo. — Por acaso pensou que eu passaria a noite aqui? — Dona Magdalena não respondeu. Dormia e roncava; ao expirar, chegava a assobiar. Era uma velha muito forte. Steiner achou um toco de vela, acendeu-o, e andou meio atordoado pelo quarto. De repente notou que o pé esquerdo de dona Magdalena estava aparecendo debaixo da coberta. Levantou a ponta para cobri-lo... e balançou a cabeça, espantado.

— Sua velha bruxa — repetiu carinhosamente, tirando a corda de estender roupa que dona Magdalena levara consigo para a cama, acreditando agir com muita esperteza. Era uma corda boa, bem comprida. Steiner pendurou-a no pescoço, e, à luz trêmula do toco de vela, foi até a mesa, onde encontrou a garrafa de aguardente, ainda cheia até mais da metade. Arrolhou-a cuidadosamente e, com estranha falta de lógica, meteu-a no bolso da calça, sem lhe ocorrer que alguém que estava decidido a se enforcar não mais precisaria de aguardente.

A porta pela qual quis sair estava trancada. Jakob deu de ombros; encaminhou-se na ponta dos pés até uma das duas janelas, abriu-a e saltou para o jardim escuro. O céu agora estava coberto de nuvens; o silêncio era grande. De vez em quando ouvia ao longe o barulho de um carro ou bonde; um cachorro latiu. Steiner teve a impressão de estar fazendo muito barulho, embora continuasse a andar na ponta dos pés, e só de vez em quando parasse à procura de uma árvore adequada. Pulou uma cerca baixa, entrou no jardim vizinho, e então passou para o seguinte. A essa altura seus olhos já se haviam acostumado à escuridão, e ele percebeu a certa distância uma velha e enorme castanheira, que se destacava contra o céu noturno. A árvore ficava isolada no campo, bem distante de qualquer habitação. Steiner, que, preocupado com os detalhes técnicos do problema, acabara esquecendo o lado pessoal, dirigiu-se satisfeito para a árvore. Estava de muito bom humor. Tudo era bem mais simples do que imaginara.

A árvore cheirava tão bem! Apertou o nariz contra a casca, enlaçou-lhe o tronco. Lembrou-se então que poderia muito bem tomar outro gole, e pegou a garrafa. Finalmente, depois de tê-la guardado de novo, desenrolou a corda do pescoço e tentou jogar uma das pontas por cima de um dos galhos. Com ineficiente regularidade, no entanto, errava.

Steiner praguejou baixinho. Depois enrolou novamente a corda no pescoço e tentou subir pelo tronco. Chegou a um galho grosso e comprido, sobre o qual se acocorou. Balançou-se algumas vezes para se convencer de sua resistência, e já começava a prender a corda quando se lembrou de que era preciso fazer um nó corrediço para a cabeça. Depois de alguns minutos, interrompeu o trabalho, e pôs-se a fitar os arbustos que ficavam a alguma distância. De repente teve a sensação, a certeza, aliás, de que não mais estava só. Atrás do arbusto havia alguém escondido... um homem. Steiner via-o mexer-se de vez em quando. Prendeu a respiração. O homem tirou o chapéu para cocar a cabeça. As mãos de Steiner, sobre as quais se apoiava, começaram a tremer com cãibra, e ele se viu obrigado a sentar rápido no galho para não despencar. Nesse momento, teve vontade de espirrar. A coceira no nariz vinha-lhe em ondas, uma após a outra; depois da terceira, não mais conseguiu se controlar e espirrou tão alto que lhe pareceu que o tímpano ia estourar. Em meio ao silêncio que se seguiu àquela explosão, ouviu-se uma voz atrás do arbusto dizer polidamente:

— Saúde!

— Psiu! — fez Steiner furioso.

— Psiu! — repetiu o estranho. Ergueu-se, e veio se aproximando na ponta dos pés.

Steiner viu que ele estava de chapéu e trazia um saco. Chegou bem perto, olhou curioso para a copa da árvore e tirou o chapéu, deixando aparecer uma enorme calva.

— Boa noite — murmurou. — Sou Aram Mamoulian. O que está fazendo aí em cima?

— Vá embora — respondeu Steiner, murmurando nervoso.

— Ora, por quê? — Mamoulian colocou novamente o chapéu, puxando animado a ponta da corda que pendia do alto.

— Largue a corda! — disse Steiner em voz baixa, irritado. — Suma-se daqui, pelo amor de Deus!

— O que está querendo fazer?

— Enforcar-me.

— Santo Deus! — disse Mamoulian abalado. — Logo agora que eu ia lhe pedir para me ajudar a furtar ovos.

— A furtar o quê?

— Ovos — respondeu Mamoulian. — Aquelas coisas brancas e redondas que galinha põe, sabe o que é? Aqui pertinho tem um galinheiro, mas está cercado de arame farpado e preciso de alguém que segure os fios para eu poder passar sem rasgar minhas calças. — E acrescentou como para dar explicações: — São as únicas que tenho.

— Ora, vá pro diabo! — disse Steiner, amarrando a corda.

— Vou depois. Primeiro tenho de apanhar os ovos.

— Para que precisa de ovos?

— Para a Páscoa! Uma garotinha vem me visitar, e eu gostaria de lhe dar uns ovos de presente. Gosto dela.

— Ora, então por que não compra os ovos?

— Infelizmente não posso — disse o sr. Mamoulian, triste. — Não tenho dinheiro. A não ser que — acrescentou pensativo — o senhor tenha bom coração e me empreste a quantia necessária. Prometo pagar assim que receber um dinheiro que me é devido.

— Posso lhe dar cinco xelins — Steiner meteu a mão no bolso e jogou a nota.

— Ora, fique com isto — sussurrou Mamoulian. — Já pensou? Essa quantia mal dá para comprar um ovo!

— Sim — concordou Steiner lá do alto da castanheira. — Mas infelizmente é o que tenho.

— Acredito — respondeu Mamoulian. — Se tivesse mais, não estaria pensando em suicídio.

— Estaria, sim — disse Jakob Steiner. — Dinheiro não vem ao caso.

O sr. Mamoulian ficou pensando e depois disse:

— Ouça uma coisa: o senhor não pode me ajudar financeiramente, mas poderia fazê-lo de outra maneira. Enforque-se meia hora mais tarde e dê um pulo lá comigo para segurar o arame, para eu não rasgar minhas calças.

— Não me interesso por suas calças!

— Muito bem. Pense então nos olhos tristes da garotinha que no domingo procurará ovos em vão.

— A garota também não me interessa!

— Ora, mas isto não é gentil de sua parte. Não existe nada mais triste no mundo do que uma criança infeliz. Vê-la me parte o coração! A aflição da humanidade inteira parece estar estampada em seus olhos. — O sr. Mamoulian meteu a mão no bolso, tirou um lenço e assoou o nariz sentimentalmente. — Vivemos num mundo muito triste. Se não conseguirmos proporcionar um ao outro alguma alegria, não sei o que será de nós!

— Concordo perfeitamente com o senhor — respondeu Jakob Steiner, que começava a sentir frio. — Foi por isso mesmo que resolvi acabar com tudo. Por favor, vá embora, acabarei me resfriando se continuar sentado aqui por muito tempo.

Mamoulian riu como se alguém estivesse lhe fazendo cócegas.

— Resfriar! Imagine só, chegar lá no céu resfriado! Jakob Steiner puxou irritado a corda.

— Deixe-me em paz! Afinal todo mundo pode cometer um lapso, não é? O senhor, com seus ridículos ovos de Páscoa, devia ter vergonha! Se não tivesse vindo me incomodar, eu já estaria morto.

— Se eu não o tivesse incomodado, o galho em cima do qual está sentado certamente já teria quebrado. Ou então o senhor teria refletido um pouco mais, e teria descido daí. Morto é que o senhor não estaria nunca!

— Não? — disse Steiner, sarcástico. — E por que não?

— Porque a morte não o teria levado. O senhor não vai morrer ainda. É cedo demais.

— Ora, deixe de bobagem — riu Steiner. — Morro quando me der na cabeça.

— Aí é que o senhor se engana — disse o pequenino -, armênio. — Cada um de nós tem sua hora exata. Cada um tem seu dia, nisso não existe arbitrariedade. Meu Deus, o que seria de nós, se cada um pudesse morrer na hora que resolvesse?

— E como o senhor pode saber que ainda não chegou a minha hora?

— Pelo cheiro — respondeu Mamoulian com delicadeza.

— Hein?

— Pelo cheiro — repetiu ele. — O senhor não tem o cheiro de morte, peculiar a todos os que estão para morrer. Vamos, desça logo para podermos conversar direito.

— Nem penso nisso.

— Muito bem, então eu subo — disse o sr. Mamoulian, pegando a ponta da corda e subindo devagar —, embora não seja nada agradável para um homem da minha idade. Não gosto de subir em árvores, principalmente à noite. Ufa! — fez ele, atingindo a forquilha onde Jakob Steiner estava sentado. Passando com muito cuidado uma perna por cima do galho, sentou-se. — Não é lá muito confortável — comentou, empurrando o chapéu de copa dura para trás —, mas é romântico.

— Que história de cheiro de morte é essa?

Mamoulian inclinou-se para a frente e passou seu enorme nariz curvo pelo casaco de Jakob Steiner. Depois cheirou-lhe as calças, as mãos e por fim o rosto.

— Não — disse ele, decidido. — Não tem nem sombra de cheiro de morte. O senhor vai viver e por muito tempo ainda, meu amigo. O melhor seria irmos logo roubar os ovos. Não podemos perder nem mais um minuto.

Jakob Steiner contemplou-o longamente. Mamoulian fitava-o tranqüilo, com os pequenos olhos negros afundados na gordura das faces, e que no escuro pareciam brilhar como os de um gato. Seu rosto era uma enorme e pálida lua cheia.

— O senhor é meio maluco, não é? — perguntou Steiner calmamente.

— Não, senhor — respondeu o armênio. — Não sou maluco, não. Acontece que na minha terra tem gente que , possui o dom de reconhecer o cheiro peculiar que cerca os que estão predestinados à morte. Eu sou um deles. Desde muito moço sei identificar as pessoas que estão para morrer. Aliás, é um dom de família. Meu irmão também o possui. Lembro-me de um caso em Baku... Estávamos para fechar negócio com um rico negociante de tapetes. Depois de trocadas as primeiras palavras, meu irmão me chamou de lado e perguntou:

" 'Você também está sentindo?'

" 'Estou sim, Mourad. Nitidamente.'

" 'Já estou até começando a passar mal. Acho que não agüento mais nem cinco minutos ao lado dele'.

"Evidentemente não fechamos negócio; e foi bom, pois na mesma noite o negociante morreu envenenado. Eu me lembro também de uma vez em que meu irmão se recusou a ir ao cinema com um certo Bodnarovic, um investigador, pois achava que não ia conseguir agüentar o seu cheiro de morte. Nunca me enganei! É um dom muito especial."

— E eu, não tenho cheiro de morte?

— Não — respondeu Mamoulian, escorregando inquieto de um lado para outro no galho. — Cheiro de falta de banho o senhor tem, de aguardente e de sopa de feijão. Não tomou sopa de feijão? Está vendo? Por isso tem esse cheiro; mas de morte, nunca.

Jakob Steiner colocou a mão no ombro de Mamoulian, afastando-o, decidido.

— Agora basta! — disse ele. — Trate de sumir ou eu acabo jogando-o lá embaixo. Eu vou me enforcar!

— Mas não vai morrer! — exclamou Mamoulian. — Meu faro nunca me engana.

— Enganou-o hoje pela primeira vez. Ande, desça logo! Mamoulian agarrou-se ao galho.

— O que é isso? Espere um instante; um instante só! — pegou a ponta da corda e escorregou até o chão. — O galho vai quebrar — disse ele, ainda esperançoso.

— Ridículo — retrucou Steiner. — O galho em que nós dois estávamos sentados vai se quebrar só com o meu peso!

— Quem sabe a corda arrebenta — continuou Mamoulian. — Com corda de estender roupa, nunca se sabe.

— Vamos acabar com essa conversa idiota! Será que o senhor poderia ter um mínimo de tato e se afastar um pouco? É desagradável para mim saber que o senhor vai ficar olhando eu me enforcar.

— O senhor quer dizer: tentando se enforcar.

— Seja como for. É desagradável.

— Ora — Mamoulian sorriu —, já que se trata apenas de uma tentativa cujo resultado eu conheço, acho que por formalidade basta eu me virar. — Virou-se, mas levantou logo a mão como para avisar que tinha esquecido algo.

— Tem qualquer coisa quebrável dentro dos bolsos?

— Tenho — respondeu Steiner. — Uma garrafa de aguardente. Eu lhe dou de presente. — E jogou-a nos braços de Mamoulian.

— Seria uma pena esbanjar uma aguardente tão boa! Depois vamos tomá-la juntos.

— Para mim não existe depois.

— Está certo; muito bem, meu amigo. — Virou-se de costas para a árvore, segurando a garrafa nos braços como se fosse um bebê. Seu aspecto era assaz estranho, com aquele terno amarrotado e o chapéu de copa dura. Jakob Steiner, que acabara de passar o nó em volta do pescoço, pensou que não era uma imagem das mais agradáveis para se levar para o além, mas não havia remédio. Mamoulian continuava de pé junto à castanheira sem se mover. Esperava...

— Cuidado para não se machucar ao cair! — advertiu ele.

Jakob Steiner proferiu um xingamento obsceno, respirou bem fundo mais uma vez e saltou. No mesmo instante sentiu o nó corrediço lhe cortar o pescoço e gritou:

— Ai!

O som no entanto foi logo sufocado quando, com um violento arranco, a corda lhe fechou a garganta. Os olhos saltaram-lhe das órbitas, foi tomado de uma terrível sensação de náusea, seus membros se contorceram. Enquanto uma pesada nuvem negra descia sobre o seu consciente, e enormes rodas de fogo dançavam diante de seus olhos cegos, como último ruído, antes de um desfalecimento misericordioso, soou-lhe nos ouvidos um estouro como se o mundo estivesse acabando. Naquele instante certificou-se: o galho partira! Logo, a noite se fechou em torno dele. Quando voltou a si novamente, estava estirado na grama com a cabeça no colo do sr. Mamoulian.

Com muito cuidado ele lhe fazia engolir devagar um pouco de aguardente. Sorriu discretamente. Jakob Steiner soltou um gemido e virou-se para o lado. De seu pescoço escorria um fio de sangue.

— E agora — disse Mamoulian com voz de redentor —, vamos roubar ovos.

 

A casa onde Mamoulian morava já tinha sido uma residência de muito conforto, com uma escadaria suntuosa, um saguão todo revestido de madeira e uma lareira imensa, grandes portas de cristal, cômodos elegantemente decorados, banheiros azulejados e um belo pomar. Pelas janelas de uma espaçosa varanda, entrava o sol da tarde. Na casa do sr. Mamoulian vivia-se bem, com todo o conforto. Ele dava recepções, festas imensas, organizava bailes e chás, e, em muitas noites, as lâmpadas dos candelabros de cristal ficavam acesas até depois de clarear o dia. O sr. Mamoulian tinha muito dinheiro e, por isso, também muitos amigos. Nunca soube administrar toda aquela dinheirama; dava, esbanjava da maneira mais absurda, e achava até divertido. Sentia-se feliz por poder proporcionar felicidade aos outros.

Não lhe importava que o enganassem, que tentassem passá-lo para trás; ele tinha mais dinheiro do que conseguia gastar. O que fazer com ele a não ser dar? O fato é que o sr. Mamoulian tinha muitos conhecidos; a maioria era composta por falsos amigos, mas isso, na época, ninguém sabia.

O sr. Mamoulian era prestativo. Não sabia dizer não.

Gostava de se divertir; apreciava companhia de mulheres bonitas, ficava feliz ouvindo os outros rirem. Eram risadas preciosas, ou melhor, custosas, que soavam à noite das janelas abertas, penetrando no silêncio do jardim. Quem se importava? O sr. Mamoulian certamente não. Há anos procurava aquilo que os homens chamavam de felicidade. Procurava com grande afinco. Só bem mais tarde, na maior solidão, em meio a um grande silêncio, reconheceu que na realidade a única coisa que tinha encontrado era o prazer.

As pessoas medianas, as normais, que não se destacam, geralmente têm uma vida mais fácil do que as privilegiadas. As extraordinariamente belas, feias, ricas, poderosas ou inteligentes, encontram mais dificuldade. A própria vida as tem em mira, está sempre querendo lhes fazer mal. A vida as fere, como feriu o sr. Mamoulian.

Tirou-lhe, primeiro, a bela residência onde sempre ecoavam risadas. Duas bombas caíram em cima da casa, e com incrível rapidez transformaram-na num imenso monte fumegante de escombros. Em seguida, tirou-lhe a fortuna. Depois, os parentes e todos os amigos. Todos sem exceção; não sobrou nem a pequenina dançarina morena que vivia afirmando amá-lo acima de tudo. Por fim a vida tentou tirar do liberal, alegre e simpático Mamoulian sua fé no próximo. Já isto não foi tão fácil, pois havia três coisas que ninguém lhe conseguia tirar: a coragem, a esperança e o bom humor.

Mamoulian tinha um coração imenso, e muito forte também. Depois que os amigos o abandonaram, começou a ler livros grossos e sérios. Quando sua casa ficou reduzida a ruínas, mudou-se para o porão espaçoso e quentinho. Por ficar pobre da noite para o dia, saiu à procura de trabalho. Na noite em que começa a nossa história, Mamoulian encontrara Jakob Steiner; foi uma sorte imensa para ambos, embora a essa altura ainda não o soubessem.

Que coincidência o sr. Mamoulian ter saído para roubar ovos no momento em que Jakob Steiner decidira se enforcar! Era uma circunstância muito significativa, como tudo, aliás, que acontece na vida tem um significado profundo, um sentido especial que dá valor à nossa existência. Só podem realmente dizer que vivem as pessoas que não se importam muito com as circunstâncias em si, mas que procuram o sentido profundo e misterioso oculto atrás delas, ontem, hoje, amanhã e sempre.

Jakob Steiner estava muito cansado quando cerca de meia hora após sua malograda tentativa de suicídio, sentado ao lado do sr. Mamoulian em seu singular porão-moradia, pintava ovos cozidos com tocos de lápis. Sentia-se tão cansado que, convencido do absurdo de qualquer nova tentativa de suicídio, já estava quase conformado com a idéia de continuar a viver. Que fazer? Não conseguia nem juntar forças suficientes para subir novamente na castanheira!

Na mesa, diante dos dois homens, havia copos e a garrafa de aguardente. O sr. Mamoulian pintava flores vermelhas nos ovos, todas com uma pinta amarela no centro. Jakob Steiner acrescentava as folhas e os cabos. Tinham distribuído o serviço da maneira mais prática. Depois do terceiro ovo, trocaram de lápis e Mamoulian passou a pintar os cabos e folhas, enquanto Jakob Steiner se ocupava com as flores. Toda vez em que um ovo ficava pronto, Mamoulian dizia:

— Bem, então viva! — E tomava um gole. Jakob Steiner o acompanhava. Dessa maneira foram se tornando íntimos. Era uma hora da madrugada.

Enquanto pintava os ovos, Mamoulian o aconselhava amavelmente, e Steiner olhava meio perdido à sua volta. O porão onde estavam sentados era alto e espaçoso. Junto ao teto havia diversas janelas estreitas que davam para o jardim, mas que não podiam ser alcançadas do chão. Para abri-las, usava-se um sistema de alavancas. Do lado ficavam dois cômodos compridos e estreitos, através dos quais se chegava a uma entrada de onde subia uma escadaria para o hall destruído. Dessa entrada abria-se uma porta para a cozinha e outra para o banheiro. Jakob Steiner contemplava uma grande montanha de livros, empilhada desordenadamente no chão. Depois seu olhar foi seguindo ao longo da parede, passou por um precioso armário estilo Maria Teresa, danificado em diversos lugares, por macias e confortáveis poltronas de couro, uma elegante escrivaninha entulhada de papéis, diante da qual estava uma cadeira de balanço, uma enorme cama coberta com um tapete e uma porção de malas num canto escuro. Ao longo do teto viam-se os canos de água e de gás. Em alguns deles Mamoulian havia pendurado umas peças de roupa para secar; à luz de uma lâmpada de mesa, elas projetavam sombras fantásticas na parede.

— Foi uma boa idéia cozinhar os ovos antes de pintá-los — disse Mamoulian —, senão a cor sairia com a água.

— Sim — concordou Steiner —, foi por isso mesmo que os cozinhei.

— O senhor é um sujeito simpático — declarou Mamoulian. Já estavam pintando o décimo terceiro ovo.

— O senhor também.

— Simpático e maluco. Para onde pretende ir agora?

— Ainda não sei.

— Muito bem, então fique aqui comigo.

— Que idéia! De que vamos viver?

O sr. Mamoulian tirou um enorme lenço vermelho e assoou o nariz demoradamente.

— Do que vivemos até hoje?

— Vamos morrer de fome! — exclamou Steiner, exageradamente assustado.

— Não somos apenas nós — respondeu Mamoulian. — Muita gente no mundo se pergunta hoje o que vai comer amanhã. Tornou-se a pergunta mais importante de nossos dias.

— A mais importante é se ainda vamos estar vivos amanhã.

— Sim — concordou Mamoulian —, e o mais interessante é que provavelmente estaremos. — Levantou-se, foi até a escrivaninha, onde ficou remexendo a papelada por algum tempo, e voltou com um papel na mão.

— Gostaria de ler para o senhor o que escrevi hoje a respeito disso; mas primeiro vamos tomar um gole — disse ele, cambaleando um pouco. — Ou quem sabe até dois — acrescentou, sentando-se novamente. Tomaram dois goles.

— Então viva! — disse Mamoulian.

— Viva! — brindou também Steiner. — Gostaria de pintar girassóis. Restam apenas mais três ovos.

— Pois então pinte girassóis e ouça. — O sr. Mamoulian segurou o papel bem perto do nariz. — Em nossos dias o homem consegue dar a volta ao mundo, afastar a morte para bem longe, determinar o peso das estrelas, extrair óleos das entranhas da terra, fazer uma galinha por trezentos e sessenta e cinco ovos por ano, amestrar cães, ensinando-lhes a fumar cachimbo, bem como aos leões a jogar bola — leu ele. — Mostre ao homem, no entanto, cinco pães e dois peixes para vender, cinco adultos que passam fome e duas crianças sem dinheiro, e ele irá logo convocar conferencias, criar comitês e subcomitês, fazer eleições e exclamar em tom de lamento: Meu Deus, esta crise nos deixa inteiramente atados! Empreende uma série de inutilidades para depois se ausentar, deixando os rinço adultos e as duas mancas a passar fome; os cinco pães e os dois peixes permanecem intactos.

Mamoulian pigarreou, botou o papel de lado e ergueu o copo.

— Nós, porém — continuou ele, assim que conseguiu falar novamente —, vamos viver destes cinco pães e dos dois peixes, e continuar a existir no mundo daqueles a quem a fome não fez perder o juízo. Continuaremos a viver do pão secreto que nasce da força dos braços.

— Muito bonito — disse Jakob Steiner. — Mas o que vamos comer?

— Meu jovem amigo — retrucou Mamoulian, olhando com pesar através do vidro verde da garrafa de aguardente ainda cheia até quase um quarto —, muita coisa em sua vida teria sido diferente se tivesse se preocupado um pouco menos com o problema de encher a barriga. O senhor devia e ainda chegará a compreender que é necessário uma paciência infinita para suportar a vida e ser feliz.

— Eu não sou paciente! — exclamou Steiner, pintando girassóis no décimo quarto ovo.

— Mas terá de aprender a ser, meu jovem amigo a quem a morte desprezou — disse Mamoulian, colocando os treze ovos pintados num cestinho.

— É fácil falar — disse Steiner, rindo. — O senhor não está passando por tão mau pedaço quanto eu.

— Minha situação também não é muito melhor.

— O senhor tem um teto a lhe cobrir a cabeça.

— Em primeiro lugar — disse Mamoulian com indulgência —, isto não é um teto, mas um assoalho, pois estamos sentados num porão. Em segundo lugar, este assoalho, debaixo do qual estamos sentados, de hoje em diante poderá ser igualmente seu, com tudo o que aí está, embora não seja coisa que valha a pena mencionar.

— Está certo — disse Steiner, sombrio —, mas e o resto?

— Que resto? O senhor acha por acaso que sou um monarca disfarçado? Ou um fascinante sedutor de mulheres? Afinal, o que é que o senhor pensa? — exclamou Mamoulian, irritado, levantando desafiadoramente seu queixo barbado.

— Acho o senhor bem-humorado demais para ter tido grandes desgostos — volveu Steiner baixinho, meio assustado.

— Meu jovem amigo com cheiro de feijão — disse Mamoulian, que já não estava muito sóbrio —, meu jovem amigo a quem a morte não quis, ouça uma coisa: O senhor perdeu sua casa; eu também. O senhor perdeu a profissão; eu também. Sua filhinha morreu; eu nunca tive filha. O senhor não tem dinheiro; eu também não. Sua esposa morreu; eu nunca tive esposa, mas a pessoa a quem amava não morreu; eu é que morri para ela, meu jovem amigo com cheiro de sopa de feijão, e isso também não é lá coisa das mais agradáveis.

— Mas a esperança — disse Steiner, rodando seu copo —, a esperança o senhor não perdeu.

— Nem o senhor tampouco.

— Eu, sim.

— O senhor não perdeu a esperança — retrucou Mamoulian —, mas a coragem, o que é uma grande diferença. Ninguém perde a esperança enquanto está vivo. O senhor também não. Ora, logo o senhor! Afinal, por que quis se suicidar?

— Porque acho que no além a vida deve ser melhor.

— Porque tinha a esperança de que fosse melhor; assim como agora, lá no fundo do coração, o senhor já está esperando que nos próximos tempos muita coisa venha a melhorar. E vai mesmo!

— Poderia saber como? — indagou Steiner. — Com toda a crise de desemprego, falta de dinheiro, com a situação política, com tudo, enfim!

— Já eu, muito pelo contrário — declarou Mamoulian, orgulhoso e meio de pileque, erguendo-se e caminhando majestoso até a mesa, onde pegou uma grossa pilha de folhas escritas. Eu, pelo contrário, trabalho, meu amigo; faço um serviço útil e recebo dinheiro em troca. — Pigarreou e acrescentou um pouco mais baixo: — Isto é, vou receber ainda.

— Que tipo de trabalho?

— Traduzo o livro de um conterrâneo — explicou Mamoulian. — É um livro grosso, de muitas páginas, que deverá ser publicado em alemão. Vai ser útil a muita gente; até ao senhor.

— Que tipo de livro é?

— Chama-se A comédia humana — disse Mamoulian, circunspecto. — São reflexões longas e sérias sobre o estranho ser da criação, sobre o homem. Há pouco li um trecho para o senhor.

— E quem lhe paga pela tradução?

— Ora, o autor, é claro.

— Claro — disse Steiner. — E quando?

— Assim que voltar de viagem.

— De que viagem?

— De uma viagem pelo mundo — disse ele rapidamente, impedido por um momento de continuar, devido a um repentino arroto. — Europa, Ásia, África, o senhor sabe; América, Austrália...

— Foi ele quem lhe deu o original?

— Lógico — disse Mamoulian, cujos olhos empapuçados tinham começado a ficar vidrados. — É um velho amigo meu, um homem muito rico que pretende editar o livro por conta própria.

— Ele já lhe deu algum dinheiro?

— Ainda não.

— E mesmo assim o senhor já traduziu isso tudo?

— Já. Dá-me prazer — disse Mamoulian. — Além disso, não se preocupe, meu amigo vai pagar; é um homem honesto. Conto todos os dias com sua volta. Então teremos dinheiro de sobra, vamos poder comprar tudo o que desejarmos. — Ele perdeu-se em pensamentos. — Eu gostaria de um pacote de fumo para cachimbo. Conheço um bar na cidade onde se compra mais barato. Na volta pego um bonde. E o senhor, quer alguma coisa?

— Mas nós ainda nem temos o dinheiro!

— Sim — fez Mamoulian, desiludido, fitando o copo meio vazio. — Mas vamos recebê-lo, não demora muito. Meu amigo voltará de viagem, e então estaremos ricos. — Colocou um dedo em cima do nariz. — Seria bom se conseguíssemos o dinheiro ainda este sábado, pois assim eu podia comprar um par de sapatos e chocolate para a garotinha. Ela está precisando urgentemente de sapatos. Os dela estão rasgados, e a mãe não está em condições de comprar novos. Está passando por dificuldades, por isso seria bom se eu recebesse algum dinheiro ainda hoje. Amanhã é Páscoa, e as lojas estarão fechadas. Se o dinheiro só vier amanhã, já não me adianta mais. Aos domingos eu não posso comprar sapatos, e já imaginou os olhos tristes da garotinha se ela não ganhar o chocolate nem os sapatos com que já está contando?

— Pare de falar em olhos tristes — disse Steiner, irritado.

— Cada um de nós tem seu ponto fraco — disse Mamoulian. — O meu são olhos tristes. O que posso fazer? Gosto de ver gente com olhar alegre! E por isso vou aproveitar o sábado para arranjar dinheiro. Ainda não sei bem como, mas vou conseguir. O mais simples seria, evidentemente, se meu amigo armênio viesse a Viena hoje...

— Mamoulian começou de súbito a falar mais depressa, como se quisesse evitar que Steiner o interrompesse. Sua voz tinha o tom de quem estava se desculpando; sorriu sem jeito, gesticulando com as mãos. — Quem sabe — continuou, apressado —, quem sabe se ele não vem hoje? Já estou esperando por ele há uma porção de dias...

Ao ouvir a voz de Steiner, no entanto, calou-se e ficou olhando para o copo, mudo.

— Há quanto tempo já está esperando por seu amigo?

— perguntou Steiner.

Mamoulian ergueu lentamente o copo e esvaziou-o também lentamente. Em seguida, sentou-se bem devagar e respondeu pausadamente:

— Três anos.

Durante algum tempo ambos ficaram calados.

Lá fora, no jardim, assoviava o vento da noite, e um gato arrepiado espiou interessado pela janela baixa. As camisas lavadas, penduradas nos canos de gás, balançaram numa lufada de vento; a sombra na parede se movimentou.

— Não é uma vergonha... — disse enfim Mamoulian, muito baixo, com a voz totalmente mudada —... não é uma vergonha, um ser humano passar tamanho aperto na vida a ponto de não ter dinheiro nem para comprar chocolate e um par de sapatos para o próprio filho? Deixemos o chocolate. Mas sapatos! Isso não devia existir! — Mamoulian falava, tentando se afastar do tema do amigo atrasado que o havia incumbido da tradução, mas não conseguiu.

— Julgo uma grande tolice de sua parte — disse Steiner sem a menor piedade — ficar alimentando esperanças em relação a uma pessoa que obviamente nem pensa em lhe pagar. Julgo não só um disparate, mas uma leviandade imperdoável. O melhor seria esquecer seu amigo, e parar com a tradução.

— Nem penso nisso!

— E por que não?

— Porque acredito no meu amigo, e gosto de fazer a tradução. Ao menos assim a minha vida tem algum sentido. Que faria eu se não encontrasse algum sentido para minha vida? Pensaria em me suicidar, exatamente como o senhor. E eu não quero me suicidar.

— E por que não? — perguntou Steiner. — Afinal, o mundo lhe agrada tanto?

— Agrada — respondeu Mamoulian. — Agrada mais do que outra coisa qualquer que eu não sei o que é. Gosto deste mundo que não merece ser acariciado pelo sol, nem açoitado pelo vento; amo-o de todo o coração que não pretendo deixá-lo antes de chegada a minha hora. Não quero entrar em desespero, por isso tenho de trabalhar.

— E com o que vai pagar os sapatos da sua amiguinha?

— Ainda não sei — respondeu Mamoulian, enredado em diversas idéias, numa série de imagens que o levavam do estranho porão em que morava para a claridade e a amplidão infinita do mundo, onde ele teria gostado tanto de ser feliz! — Em breve deve ocorrer qualquer coisa. Passei esta semana imaginando um jeito de arrumar dinheiro; tentei diversas coisas, mas nada deu certo. Pedi dinheiro a velhos amigos... nada. Ainda não é sábado à noite, por isso ainda tenho esperança de a garotinha não precisar ficar de olhos tristes no domingo... Ainda tem aguardente na garrafa?

— Não — respondeu Steiner, que ouvira tudo pensativo. — Está vazia.

— Então vamos dormir — sugeriu Mamoulian. — Só tenho uma cama, mas é bem larga; dá perfeitamente para dois. Também só tenho um cobertor, que aliás é um tapete, mas é quentinho e macio.

Tiraram parte da roupa, apagaram a luz e se meteram na cama, que realmente era muito espaçosa.

— Boa noite — disse Jakob Steiner.

— Boa noite, meu jovem amigo que não cheira a morte — retrucou Mamoulian. — Durma bem.

Jakob Steiner dormiu mal. Volta e meia acordava sobressaltado por confusos pesadelos. Mal conseguia respirar e, banhado em suor, olhava ao redor do quarto quase totalmente escuro, até que o vulto ao seu lado lhe trazia à memória tudo o que acontecera nas últimas doze horas. Deitava-se novamente, fechava os olhos e ficava ouvindo a respiração pesada de Mamoulian, que dormia abraçado ao travesseiro, como criança. Mamoulian não roncava, falava alto e claro durante o sono. Jakob Steiner entendia cada palavra.

— Um par de sapatos para crianças — dizia Aram Mamoulian, o homem feliz, de coração imenso. — Tamanho 33; de preferência couro marrom. Se o senhor pudesse me emprestar algum dinheiro, prometo devolver... — uma pequena pausa —... assim que receber um dinheiro que me é devido...

Jakob Steiner suspirou tristemente, virando-se para o outro lado. Lá fora, diante da janela estreita, ainda estava o gato magro. Imóvel. Seus olhos verdes brilhavam no escuro.


 

— É muito importante dar a impressão de grande seriedade quando se pretende alguma coisa sem importância — disse Mamoulian. Estava em pé no meio da cozinha de sua estranha moradia, em mangas de camisa, sapatos e meias, um chapéu de copa dura, esforçando-se por marcar dois vincos retos numa calça preta amarrotada. Ao seu lado, sentado em cima de uma banqueta, Jakob Steiner escovava os sapatos de Mamoulian.

— Emprestar dinheiro é coisa sem importância — continuou ele —, por isso, até certo ponto, é um paradoxo as pessoas emprestarem dinheiro de acordo com a apresentação do pedinte. Afinal, como pode alguém que não tem dinheiro ter boa apresentação? Eu, pelo contrário, quando tinha dinheiro, fazia questão de ajudar aqueles cuja apresentação me causava dó, sempre desconfiando de todos os que me apareciam para pedir dinheiro impecavelmente vestidos, de aspecto muito cuidado.

— Pare de mexer com os pés! — exclamou Steiner debaixo da tábua de passar. — Como posso engraxar seus sapatos se não pára quieto com os pés?

— E como quer que eu pare quieto com os pés e passe a calça? — perguntou Mamoulian, levantando a calça e contemplando-a com olhar crítico. Exalou um suspiro desiludido. — Não — disse, tentando caprichar mais —, assim não dá! — Tenho que ter uma calça com vinco decente. Os homens são seres estranhos. O instinto deles não funciona direito. Mas não adianta. Hoje o instinto errado de meus amigos pode ser decisivo para o nosso bem-estar e para o êxito da festa de Páscoa amanhã.

— Odeio festas — disse Steiner; — custam dinheiro e são sempre uma desilusão. Além disso, no dia seguinte, quando chega a hora de ir trabalhar, a gente está com sono. Domingo é a mesma coisa.

— Mas só a possibilidade de poder presentear... — observou Mamoulian.

— Não gosto de ganhar presentes — retrucou Steiner.

— Toda minha vida tive uma grande má vontade em relação a presentes. Graças a Deus ganhei bem poucos. Gostaria que continuasse a ser assim. Quando não se ganha presentes não se precisa agradecer.

— Mas existe ainda a possibilidade de presentear — insistiu Mamoulian. — Eu, em toda a minha vida, também recebi poucos presentes, mas sempre tive um prazer enorme em dar. Aliás, acho que não há nada que me dê mais prazer.

— Respirou fundo, depois deixou cair as mãos, desanimado.

— Não adianta! Esta droga de calça ultrapassa minha capacidade. O senhor acaso sabe passar?

— Eu não — disse Steiner, levantando-se. — Como está a calça?

Jakob Steiner virou a cabeça, desconcertado, e deu de ombros.

— Ora, não se acanhe — disse Mamoulian —, não tenha receio de me ofender. Como está esta maldita calça?

— Antes estava melhor — retrucou Steiner com muito cuidado.

Mamoulian aquiesceu, como se tivesse confirmado uma suspeita, deu uma lambida no indicador, encostou o dedo no ferro e se queimou.

— Quente ele está! — exclamou, perplexo. — Eu não entendo...

— Deve ser porque a calça não é muito nova.

— Deve ser porque somos homens. Homem não foi feito para passar calça. Existem atividades tipicamente masculinas, e outras femininas. Passar a ferro é uma atividade tipicamente feminina, diga o senhor o que quiser. É uma lástima que no momento eu não tenha um dinheirinho para pagar um elemento feminino para este tipo de coisa. Precisava de uma mulher aqui, ao menos de vez em quando.

—i Talvez se possa encontrar alguma que não queira dinheiro.

— Acho isso muito pouco provável. A grande maioria delas quer dinheiro, de um jeito ou de outro. Elas dependem muito mais do dinheiro do que nós, homens; entende-se, aliás.

— Não se esqueça de que existe o amor!

— Ora, o amor — disse Mamoulian com desprezo. — Que expressão antediluviana, meu jovem amigo! — Tirou o chapéu para cocar a cabeça, o que fazia com muita freqüência, e colocou-o novamente. — Se o senhor não tiver dinheiro é melhor não se meter com mulher. É uma regra muito simples. O que vai uma mulher querer do senhor se não tiver dinheiro? E o senhor, o que vai fazer com a mulher?

— Conversar com ela.

— É — fez Mamoulian —, conversar por quanto tempo?

— O senhor deve ter tido más experiências para se tornar tão amargo.

— Até certo ponto talvez, o que não me impede no entanto de afirmar que aqui nesta casa falta uma mulher. Ao menos no momento. — E continuou: — Acho que seria preciso molhar a calça um pouco. Com água da chuva; para que fique mais macia. Por favor, pegue uma panela, vá até a frente da casa recolher água do tonel.

Jakob Steiner foi. O sol brilhava lá fora no jardim; os pássaros cantavam. O céu tinha um azul radioso, soprava um vento quente. Com a panela na mão, andando com muito cuidado por entre tijolos espalhados e entulhos de muro, Jakob Steiner foi até a rua; encontrou o tonel e encheu a panela com água. Olhando para a rua por entre arbustos despidos, viu a certa distância, destacando-se como silhueta contra o céu claro, uma figura atarracada que se aproximava empurrando um carro de duas rodas, carregado até a borda.

Jakob Steiner mal podia acreditar no que -ouvia. O vulto cantava. Cantava desafinado e bem alto uma rude canção que falava de um veleiro nos mares do *sul, a bordo do qual havia irrompido uma das doenças mais contagiosas, a peste. Steiner depôs seu vasilhame, e foi para o meio da rua. Debaixo da copa das árvores da alameda, aprumada, a passos firmes, vinha se aproximando dona Magdalena Huber, pedreira de profissão. Algumas crianças a acompanhavam aos pulos.

"Estávamos ao largo de Madagascar",

 

cantava com voz alta e roufenha dona Magdalena, a viúva recém-despejada, sem teto, com o filho desaparecido na Rússia, puxando o burro-sem-rabo,

 

"Tínhamos a peste a bordo,

Nos caldeirões a água apodrecia.

E diariamente um era lançado ao mar!

Adeus minha morena, adeus..."

 

Agitado, Steiner acenou com ambos os braços, e saiu correndo ao seu encontro.

— Olá! — gritou Steiner, descendo a colina aos saltos. — Dona Magdalena!

Alcançou-a, parou bem junto dela e disse quase sem fôlego: — Eu ainda tenho sua corda — e acrescentando superfluamente: — Acabei não me enforcando.

— Estou vendo — retrucou ela, mal-humorada. — E por que não?

— O galho quebrou — explicou Steiner. — Não tenho culpa. Parecia bem resistente, julguei que podia confiar nele. Não é minha culpa eu ainda estar vivo. A morte não me quer.

— Ah, é! — disse dona Magdalena, e sua voz era puro sarcasmo.

— Eu não tenho o cheiro da morte — acrescentou Steiner, à guisa de explicação.

Dona Magdalena balançou a cabeça.

— É isso! — disse ela para si mesma. — Só confusão é o que vocês, moços, arrumam na vida! Fazem aquela gritaria, aquela barulheira, para nada! — E virando-se para Steiner: — Afinal, estou até satisfeita por você ainda estar vivo. Não que eu estivesse preocupada. Sabia que não ia morrer. Mas, de qualquer maneira, poderia ter acontecido qualquer coisa... Onde está minha corda? Vou precisar dela, agora que estou de mudança.

— Para onde vai? — perguntou Jakob Steiner.

— Ainda não sei. Por enquanto estou na rua. Pegou o carro e começou a empurrá-lo, tornando a cantar:

 

"Adeus, minha morena, adeus."

 

De repente, Jakob Steiner emitiu um ruído meio sem nexo, pegou-a pelos ombros, fazendo-a parar.

— Ora essa! — reclamou dona Magdalena, pedreira de profissão.

— Espere! — Jakob Steiner arquejava, entusiasmado. — Tive uma idéia, uma idéia formidável, se ela der certo... meu Deus, que maravilha!...

— Será que o senhor não poderia ser um pouco mais claro?

— Diga-me uma coisa, a senhora sabe passar uma calça?

Dona Magdalena indignou-se.

— Ora, tudo tem seu limite! O senhor comeu na minha casa, dormiu lá, e ainda roubou minha corda. Muito bem; mas se acredita que eu vou passar sua calça para que o senhor possa se apresentar decentemente, quando ainda ontem queria se enforcar...

— As calças não são minhas — disse Jakob Steiner, impaciente. — São de um senhor...

— E eu vou passar as calças de um estranho?

— Não é estranho, é um amigo meu, um armênio.

— Jakob Steiner! — exclamou dona Magdalena. — Em toda minha vida nunca passei as calças de um armênio!

— Nunca é tarde demais para começar.

— Não — retrucou ela, decidida. — Hoje não.

— E se eu lhe pedir?

— Se o senhor tiver um pouco de senso, não me pedirá uma coisa dessas. O senhor sabe que me encontro numa situação muito aflitiva, e que tenho outras coisas na cabeça além das calças de seu amigo armênio.

— As calças de meu amigo armênio — respondeu Jakob Steiner — talvez possam lhe arrumar um novo lar, se é que está interessada em obter um.

— Como?

— Meu amigo procura uma mulher para lhe prestar um serviço de vez em quando, sem que ele tenha de pagar todas as vezes. — Steiner pegou o carro e saiu na frente, decidido. Dona Magdalena seguiu-o, perplexa.

— Mas...

— Não tem mas — disse Steiner, com os cabelos ainda desgrenhados. — A senhora vai passar nossas calças e cozinhar para nós, e vamos viver os três num porão, se o sr. Mamoulian concordar — acrescentou humildemente. Chegaram às ruínas, e Steiner puxou o carro para cima da calçada.

— Quem é? — perguntou dona Magdalena, apontando para uma figura que, saída das ruínas, vinha ao encontro deles. Estava descalço e usava um velho robe estampado, que segurava fechado sobre a barriga.

— Ora bolas! — exclamou Mamoulian batendo os dentes. — Onde foi que o senhor se enfiou? — Viu dona Magdalena e fechou os olhos assustado. — Veja só! — disse depois, abrindo um olho com muito cuidado. — Quem é? Alguma visita amável ou será que estamos devendo dinheiro à senhora? É bem provável. Eu me sinto muito constrangido, minha senhora, mas as circunstâncias me obrigam a lhe pedir uma prorrogação para minha dívida. Prometo lhe pagar assim que receber um dinheiro que me é devido...

— Eu não quero dinheiro — enfatizou dona Magdalena, abrindo os braços; — eu vim para...

— Sim? — Mamoulian fechou mais o robe.

— Mamoulian — disse Jakob Steiner —, esta é a senhora que vai passar as suas calças. Ê uma senhora extraordinária; não quer nada em troca. Garanto também que vai acabar com sua opinião pessimista em relação às mulheres. É a mulher...

— Está bem, está bem! — disse Mamoulian, impaciente. — E o que é que ela quer?

— Ouça! — exclamou dona Magdalena. — Eu não quero nada, é bom que o senhor saiba! Só estou aqui por engano. Porque este sujeito maluco, que ainda está com a minha corda de roupa...

— Ah! — fez Mamoulian — então é a senhora...

— Sim, sou eu. E só estou aqui porque este Jakob Steiner me arrastou até aqui. Eu já estou indo, pois não o conheço, e não vejo razão para me deixar ofender pelo senhor...

— Mas eu não tive a intenção de... — Steiner torcia as mãos em desespero... — Dona Magdalena Huber, este é o sr. Mamoulian. Sr. Mamoulian, dona Magdalena...

— Muito prazer — disse a pedreira de profissão.

— Bom dia, sra. Huber — respondeu Mamoulian, sorrindo um pouco.

— Eu pensei... — gaguejou Jakob Steiner. — Bem, foi só porque o senhor disse que precisávamos de uma mulher para passar suas calças... esta manhã dona Magdalena teve de deixar a casa onde morava e não tem para onde ir...

— Meu Deus! — Mamoulian levantou os olhos. — Então tenho de lhe pedir desculpas.

— Esqueça! — retrucou a mulher. — Agora vou andando.

— Nada disso — respondeu Mamoulian. — Faço quêstão que a senhora entre e tome café conosco. Temos pão preto com chá; infelizmente é só isso, mas gostaria muito que a senhora ficasse.

— Já tomei café.

— Então gostaria de convidá-la para ficar aqui, morando conosco neste porão, e ficaria muito grato se a senhora tivesse um tempinho para passar minhas calças. — Ele se inclinou. Dona Magdalena o observou, atenta. Depois olhou para Jakob Steiner. Finalmente olhou para seu primitivo burro-sem-rabo e suspirou.

— Seja o que Deus quiser! — exclamou ela. — Eu lhe agradeço.

Jakob Steiner riu satisfeito e puxou o carro para dentro do jardim.

— Eu só gostaria de saber do que vamos viver! — exclamou ele.

— Eu ainda posso trabalhar — declarou dona Magdalena. — E vocês dois também podem.

— Isso mesmo! — concordou Mamoulian, alegre novamente. — Muito pão brota da força dos braços.

— E agora me dê suas calças — disse dona Magdalena. Eram dez horas da manhã, quando Mamoulian saiu de casa. O sol brilhava, e numa esquina um realejo tocava uma ária sentimental de uma não menos sentimental ópera italiana. Mamoulian estava muito bem disposto. Assoviava ao andar, e fazia tilintar alegremente as moedas no bolso esquerdo da calça de vincos impecáveis. Possuía naquela manhã um total de trinta e um groschen, que tilintavam alegres como só trinta e um níqueis conseguem tilintar.

O sr. Mamoulian ia a pé. Há meses só andava a pé, fosse para onde fosse, mesmo quando tinha mais dinheiro no bolso. Usar o bonde se tornara para ele um grande acontecimento, um luxo pecaminoso até, e ele andava a pé com a mesma naturalidade com que antes dirigia seu automóvel. Tenho muita tendência a criar barriga, dizia ele consigo, e de qualquer maneira, movimento faz falta.

Mamoulian seguiu assoviando pelo décimo nono distrito da cidade de Viena e, em sua alacridade, apanhou uma violeta que florescia num jardim à beira da rua, prendendo-a na lapela.

Descreveu um grande círculo em volta de uma garotinha que, murmurando, seguia aos pulos pela rua; tirou o chapéu diante da jovem e bonita mãe.

Gostaria de saber, pensou ele ao se aproximar do centro da cidade, se estou dando a impressão de pessoa séria. Acho que sim. A calça ao menos agora está impecável, e a camisa limpa também. Pareço até gente de dinheiro, pensou ele, contemplando-se numa vitrina; só espero que meu amigo esteja em casa e não me deixe esperar muito. Quando me deixam esperar, desanimo com grande facilidade, e é sabido que ninguém dá dinheiro a quem tem cara de desanimado.

Mamoulian chegou à rua do bonde; na sombra, uma velhinha pedia esmolas de mãos postas.

— Por favor, cavalheiro — implorava ela —, por favor... cavalheiro... — Usava um lenço amarrado na cabeça esquelética e tinha os olhos injetados de sangue. Mamoulian parou, tirou os níqueis do bolso e deu-lhe trinta groschen. Ficou com a última moeda, pois acreditava que ela ia lhe trazer sorte. Piá muito andava com ela no bolso.

— Muito obrigada — disse a velhinha. — Que Deus o abençoe...

— Ora — disse Mamoulian, continuando e tentando fazer tilintar seu único níquel. Não conseguiu. Desistiu; deu de ombros, dizendo a um cachorro que o contemplava, curioso, de um monte de lixo: — É isso!

Depois atravessou os trilhos do bonde e entrou numa casa feia onde morava um senhor de nome Adametz, que devia grandes favores a Mamoulian. O próprio Adametz, dentista, abriu a porta, cumprimentou-o com entusiasmo e, alegando que a sala de espera estava cheia de clientes, puxou-o para dentro de um pequeno cômodo, onde perguntou por sua saúde, por diversos conhecidos, pela casa, e finalmente pelo motivo que o trazia ali. Mamoulian não tinha grande prática em pedir dinheiro emprestado, era novato no ramo, e ficou muito sem jeito. Todo vermelho, girando sem graça o chapéu de um lado para outro, disse finalmente:

— O senhor precisa entender... se o senhor tivesse filhos, sr. Adametz... eu sei muito bem que não tem, mas de qualquer maneira... amanhã é Páscoa, o senhor entende, para muitas crianças é um dia muito triste... quero dizer... não é só o fato de ficarem sem presentes, mas principalmente a desilusão de uma promessa não cumprida...

A essa altura Adametz foi ficando desconfiado; com um pressentimento nada agradável pediu a Mamoulian para ser mais claro.

— Mais claro, sim... — disse este. — Bem, eu me sinto muito pouco à vontade em vir incomodá-lo com este assunto, mas já o conheço há tanto tempo que pensei que... eu queria lhe pedir...

— Pedir o quê? — perguntou Adametz, pensando nos clientes que esperavam por ele.

— Quinhentos xelins.

— Santo Deus! — disse Adametz baixinho.

— Emprestados — acrescentou depressa Mamoulian —, por pouco tempo. Tenho uma quantia considerável para receber e assim que... não, um instante por favor, sr. Adametz! Deixe-me acabar de falar... preciso do dinheiro para poder dar um presente a uma garotinha; não é para mim, afinal o que o senhor está pensando, sr. Adametz? E é por pouco tempo apenas... — Respirou fundo, desviou o olhar e ficou contemplando o chapéu. Mamoulian estava envergonhado. É isso, pensou; é a vida! Agora deixei o coitado numa situação embaraçosa. Que coisa horrível! Mamoulian sentia-se como se fosse um criminoso. Também Adametz, que devia um grande favor a Mamoulian, sentia a mesma coisa. Chegou até a dizer:

— Eu me sinto como se fosse um criminoso — disse ele com voz profunda, tremendo de emoção. — Meu querido Mamoulian, é horrível, mas por esta luz divina, eu não posso! Não posso mesmo! Minha mulher está doente, os impostos do ano passado ainda não foram pagos, tive de comprar um motor de broca novo, tudo está tão caro... o senhor mesmo sabe. Gostaria imensamente de ajudá-lo; é verdade, mas infelizmente... — Adametz revirou os olhos, balançou pesaroso a cabeça; cheirava a anti-séptico.

— É — fez Mamoulian, tendo a impressão de já não estar mais ali, de que tudo o que ele dizia não tinha a menor importância, que estava falando para uma sala vazia. — Bem, então sinto muito tê-lo incomodado...

— Incomodado! — exclamou Adametz, eufórico. — Mas quem disse isso, meu querido? Quem sabe numa outra vez... Numa outra vez, sim, mas logo agora, o senhor entende, não é...

— Entendo — disse Mamoulian, dirigindo-se para a porta —, entendo, sim... — Apertaram-se as mãos. Uma porta se abriu. Uma porta se fechou. Adametz voltou para junto de seus clientes. Mamoulian desceu as escadas em direção à saída. Chegando à rua parou e, após tirar um lápis e um caderninho do bolso, riscou o primeiro nome de uma lista relativamente longa. O nome era Adametz. Depois continuou sério e pensativo em direção leste para a Waehrìnger Strasse. O grande relógio em frente à Ópera do Povo marcava dez e um quarto.

Por questão de ritmo procuramos aqui imitar em termos literários o método tão usado no cinema. Acelerar o tempo através da superposição de cenas e entrecortes.

Um relógio enorme diante do prédio do Banco de Crédito marca dez horas e trinta e seis minutos quando Mamoulian sai novamente de uma porta, riscando o segundo nome da lista. Ri baixinho. Dando de ombros, dirige-se para o norte, em direção ao cais. Superposição; novo quadro: a Schwedenplatz. Um relógio marca quinze para as onze. Mamoulian, em pé no meio da ponte que atravessa o canal do Danúbio, risca mais um nome. Um cachorrinho olha para ele. Mamoulian dá de ombros, mas já não ri.

O tempo esquentara bastante; pequenas gotas de suor escorrem pela testa pálida de Mamoulian quando ele dá meia-volta, atravessa a Taborstrasse e entra no segundo distrito.

Com o sol a pino, Mamoulian, que neste meio-tempo tinha ido procurar um negociante de tapetes perto do Praterstern, volta à Kaerntnerstrasse. Entra num antiquário, onde permanece algum tempo, e sai de novo.

São exatamente doze horas e treze minutos pelo relógio da esquina. Seu rosto tem uma expressão cansada, desiludida. Vai andando devagar até o enorme hidrante junto à Ópera do Estado em ruínas, apóia-se num bloco de cimento armado, tira o caderninho do bolso. O movimento é o mesmo. Mais uma vez Mamoulian risca um nome. É o quinto. Mamoulian está com aspecto de velho, perdido em meio a todos aqueles enormes carros de luxo e pessoas alegres que passam apressadas. Seus sapatos estão cobertos de poeira, a gravata torta. Passa a língua nos lábios, e percebe que está com sede. Na mão fechada que tira do bolso, vê, ao abri-la, o níquel sujo, molhado de suor, que ainda lhe resta. Contempla-o longamente. Depois atravessa a rua e pede a uma vendedora de flores na esquina um pouco d'água do regador com o qual molha as plantas. Ela consente. São doze horas e quinze minutos. Aram Mamoulian está em pé na Kaerntnerstrasse, muito movimentada a esta hora; encostando o bico do regador esmaltado na boca, bebe de olhos fechados. Um pouco de água lhe escorre pelo terno. Duas mocinhas dão risada ao passar. Mamoulian agradece à vendedora, consulta o caderninho e continua apressado em direção à Seilerstaette.

O dr. Rebhuhn, residente em Seilerstaette, 21, é o primeiro a humilhar Mamoulian, que viera lhe pedir quinhentos xelins para comprar presentes de Páscoa. Deixou-o esperar longamente. Finalmente mandou-o entrar. Depois, ao saber do que se tratava, disse:

— Meu prezado senhor, estou profundamente surpreso. Era a última coisa que eu podia esperar do senhor. Se me permite, nós apenas nos conhecemos comercialmente. Está certo, fui seu advogado. Mas vir pedir dinheiro a mim? Sr. Mamoulian, desculpe-me por lhe dizer que seu pedido é inteiramente fora de ética. Não costumo dar ajuda financeira a ex-clientes. O senhor me desculpe! — e saiu da sala.

Claro que Mamoulian desculpa. O dr. Rebhuhn é advogado, não é um ser humano. Não tem tempo para isso. A clientela é numerosa demais. Mamoulian sorri ao riscar o nome. É um sorriso desesperado. O dr. Rebhuhn, residente em Seilerstaette, 21, fez Mamoulian perder grande parte da autoconfiança de que carecia tanto naquele dia. Precisava mais do que uma calça bem passada podia lhe dar. Muito mais.

 

Treze horas e trinta e cinco minutos.

Nosso filme continua.

Encontramos o sr. Mamoulian numa residência luxuosamente decorada, conversando com uma senhora de idade. Ela conhece Mamoulian de inúmeras recepções e reuniões sociais. Está inconsolável por se encontrar na miséria também e não poder ajudar Mamoulian. Serve-lhe uma xícara de chá com pedaços de pão de mel azedo, procurando animar Mamoulian, e promete dar de presente à menina uma de suas almofadas de seda. Pesaroso e resignado, Mamoulian come o pão de mel duro e toma duas xícaras de chá com sacarina. Ao despedir-se, beija a mão da baronesa arruinada. Diante da casa onde pára a fim de riscar mais um nome da lista, prende por um instante a grande almofada entre os joelhos, para ter as mãos livres.

O tempo urge.

A cabeça de Mamoulian dói, suas pernas tremem. Faz muito calor. Esse dinheiro, pensa Mamoulian muito aflito e com certa amargura, esse maldito dinheiro! Quanto eu não dei, sem refletir, quantas vezes não ajudei os outros, e quem me ajuda? Quem me ajuda a fazer a felicidade de uma garotinha? Ninguém. Mas eu tenho de conseguir o dinheiro, tenho de qualquer maneira.

Aram Mamoulian, amado e respeitado por tantas pessoas nesta estranha cidade, eu, Aram, filho de Zareh Mamoulian, dono do maior depósito de tapetes do Oriente Próximo, cuja mãe possuía os mais belos olhos de Tíflis, eu, Aram Mamoulian, preciso e hei de conseguir o dinheiro para uma menininha inocente de nome Ruth, que vem me ver amanhã em companhia de sua mãe, que confia cegamente em mim.

Lá se fora a despreocupação da manhã, o entusiasmo anterior à sua peregrinação, a alegria das primeiras horas. O tempo corre, implacável. São três horas. Às cinco, o comércio fecha. Só mais duas horas; duas horas apenas...

Duas horas, dizia Mamoulian para si mesmo, os lábios secos. Deus sabe que para mim não faço questão de nada; mas por favor, meu Deus, fazei com que eu consiga o dinheiro!

Mamoulian pára diante da casa na Hegelstrasse, 4, faz uma curta oração ao Senhor dos cristãos, no qual ele se acostumara a acreditar desde sua época de aluno de uma escola armênio-católica para meninos.

Meu Deus, reza Mamoulian, o homem feliz, generoso, de tão grande coração, enquanto uma lagrima de esgotamento lhe corre pelas faces gorduchas, ajudai-me um pouco! Quero fazer a felicidade de uma criança, mas sou pobre demais para isso. Fazei com que eu encontre alguém que me apóie em minhas intenções, e eu prometo tentar viver dentro de Vossos preceitos. Mas fazei com que eu encontre essa pessoa ainda antes das cinco, porque depois será tarde demais!

Mamoulian se benze e entra pelo corredor da casa número 4, arrastando-se cansado pelo corrimão até o terceiro andar. Diante de uma porta com a placa Dr. Paul Weichinger, conselheiro de Estado, pára e toca a campainha. Encosta-se na parede e espera. Uma empregada abre a porta. Mamoulian tira o chapéu, inclina-se como se estivesse diante de uma rainha.

— Desejo falar com o dr. Weichinger, o conselheiro de Estado — diz ele, tremendo de nervosismo.

— O dr. Weichinger está viajando — responde a empregada; e, lançando um olhar ao estranho visitante, pergunta: — O senhor não está se sentindo bem?

Mamoulian, que cambaleara um pouco, já se recompôs:

— Não é nada — diz ele, baixinho. — Muito obrigado. — Sai andando devagar, desce as escadas segurando-se no corrimão. Na rua, como em transe, estende o braço ao ver passar um táxi. O carro freia; o motorista estica a cabeça para fora.

— Desculpe-me — diz Mamoulian, esgotado —, eu me enganei. Não posso pegar táxi. Não tenho dinheiro.

 

Quinze horas e quarenta e cinco minutos.

As árvores na Ringstrasse começam a projetar sombras alongadas. Vai refrescando. Sentado num banco diante do clube elegante, Mamoulian risca devagar o último nome da lista. Lá dentro, onde os pares dançam bem-vestidos, ouve-se música romântica. Mamoulian se recosta e fecha os olhos, sente-se tomado de súbita tonteira, e tudo começa a girar em seu redor. Projetados em suas pálpebras fechadas, vê os vultos passarem em louco redemoinho, enquanto em seus ouvidos soam numerosas vozes.

Eu mesmo tenho despesas altas, diz Adametz em seu jaleco branco. Sinto muito... É uma vergonha, diz o sr. Rebhuhn, apontando a caneta para Mamoulian. O senhor quer uma esmola... eu mesma já não tenho nada, sussurra a senhora de idade, no salão, com o papel de parede desbotado... O conselheiro está... São quinze para as quatro. Não vou conseguir quinhentos xelins nunca. Ruth ficará triste, e a mãe também. Mamoulian levanta a cabeça, olha para o vazio, e diz com imensa amargura.

— Esse dinheiro! — Soa até como um xingamento obsceno.

Apóia a cabeça nos braços e chora convulsivamente.

Uma jovem vestida de maneira a chamar atenção, sentada no terraço do clube com um companheiro bem mais velho, toma um cafezinho, enquanto olha entediada para a fumaça de seu cigarro, se esforçando para não bocejar. O senhor a seu lado fala animado sobre os segredos do mercado de câmbio negro. Procura explicar a sua amiga Yvonne, uma jovem dançarina, a diferença entre os meios normais de pagamento nos Estados Unidos e aqueles que usam os soldados americanos na Europa; um tema que lhe é inteiramente indiferente. Sonhadora, olha para alguns senhores bem-vestidos e mais jovens, e suspira sem motivo nenhum. De repente, seu olhar se aguça, ela se inclina para a frente. Pondo a mão sobre o braço do companheiro que continua sua preleção, ela se levanta.

— O que foi? — pergunta surpreso o sr. Ludwig Goldmark.

— Volto já.

— Aonde vai?

— Até o parque — responde ela já a caminho; — acabo de ver um conhecido. — Goldmark olha para ela meio irritado, balança a cabeça e esvazia a xícara.

Seguida pelos olhares de admiração de um pequeno grupo de cavalheiros que jogavam bridge no terraço, Yvonne desce rapidamente os degraus que vão dar no jardim, até chegar a um banco onde um vulto de aspecto meio doentio está sentado com a cabeça entre as mãos. Pára, passando a mão pela calva do homem, e, com o olhar vagando pelo gramado e pelos lagos com peixes dourados do parque, diz com voz emocionada:

— Boa tarde, Mamoulian!

Ele levanta tristemente a cabeça e se assusta deveras ao reconhecer Yvonne.

— Você? — pergunta ele.

— Sim — responde ela, — Sou eu mesma. Por acaso lhe é desagradável encontrar-me?

Mamoulian coca a cabeça, pensativo.

— Não — conclui ele finalmente, enxugando uma lágrima que lhe ficara suspensa na face. — Sua companhia nunca me foi desagradável. Mas o que quer você de mim? Receio que esteja perdendo seu tempo. Você sabe muito bem que sempre estive pronto a lhe ajudar, mas no momento...

— Mamoulian — diz Yvonne com um sorriso que pretendia ser maternal. — Não quero dinheiro seu!

— Não? — retruca Mamoulian, pensando nos olhos tristes da garotinha. — O que quer então?

— Só queria cumprimentá-lo. Parece-lhe tão absurdo assim? Afinal somos velhos amigos, não é?

— Sim — responde Mamoulian.

— Houve um tempo em que fomos até apaixonados.

— Sim — diz Mamoulian.

— Foi tão bonito, lembra?

— Sim — repete Mamoulian pela terceira vez, sem levantar a cabeça.

Yvonne instala-se ao seu lado, ajeita o vestido e pergunta:

— Você não está bem?

— Estou, sim.

— Mas você chorou.

— Estou meio cansado — retruca Mamoulian — e esta poeira... ela faz chorar. Não é choro de verdade, é apenas uma manifestação de cansaço... tenho que procurar um médico.

— Antes você nunca chorava.

— Chorava sim — insiste Mamoulian, obstinado. — Às escondidas. Você nunca percebeu.

— Mamoulian — diz Yvonne, acenando para o sr. Goldmark, que impaciente lhe faz sinais do terraço —, durante todo o tempo em que nos conhecemos, você chorou uma única vez, e foi no dia em que eu o abandonei.

— Bem — observa Mamoulian —, afinal não foi acontecimento dos mais agradáveis.

— Sou uma mulher que não consegue se prender a ninguém — explica Yvonne.

— Não vamos voltar a este assunto — diz Mamoulian, tranqüilo. — Ninguém a levou a mal por ter-me abandonado quando eu não tinha mais dinheiro... você não tinha outra saída. Espero que esteja bem.

— Estou — diz ela. — Vou indo... Ele está sentado lá em cima. — Ela aponta com o queixo em direção ao sr. Goldmark, que se inclina. Mamoulian inclina-se também.

— Mas você era mais carinhoso — diz Yvonne, apertando-lhe a mão.

— Obrigado — Mamoulian sorri. Ela fica olhando pensativa para ele.

— Você está precisando de dinheiro — diz ela tão baixinho como se nem os peixinhos dourados pudessem ouvi-la.

— Estou — concorda Mamoulian. — A princípio pensei que fosse uma importância pequena, mas agora sei que é muito dinheiro.

— Quanto? — pergunta Yvonne, e seus olhos começam a brilhar de maneira estranha.

— Quinhentos xelins.

— Meu Deus! e por que você não veio logo me procurar, seu bobo? — Começou a remexer furiosamente na bolsa.

— Você quer me emprestar dinheiro? — pergunta Mamoulian.

— Claro — retruca ela. — Naquela época você me emprestou muito mais!

— Mas... — diz Mamoulian muito confuso — não é possível! Não posso aceitar dinheiro seu...

— E por que não?

— Eu... eu... nunca aceitei...

— Aceitou o quê?

— Nunca aceitei dinheiro de uma mulher!

— Ora, deixe de ser ridículo — diz Yvonne, tentando meter algumas notas na mão fechada de Mamoulian. — Pegue logo esse dinheiro! Não posso ficar sentada aqui toda a vida! Ludwig já está ficando impaciente.

— Mas você tem que entender...

— Não entendo nada! Pegue esse dinheiro, senão eu faço um escândalo medonho.

— Mas eu não quero!

— Quer que eu faça um escândalo? Você ainda se lembra dos que eu costumava fazer?

— Se lembro! — diz Mamoulian, com o suor lhe brotando na testa.

— Quer que eu faça um?

— Não, por favor!

— Então aceite o dinheiro.

— Mas não sei quando vou poder devolver.

— Mamoulian! — exclama Yvonne, mostrando os bonitos dentes brancos. — Mais uma palavra e eu lhe abro o crânio com a minha bolsa, seu teimoso!

Mamoulian engole em seco. Tudo gira dentro de sua cabeça. São quatro e meia, pensa ele, ainda posso conseguir. Posso conseguir se eu...

— Como é? — pergunta Yvonne, levantando a bolsa.

— Está bem — diz Mamoulian. — Muito obrigado, Yvonne. Você me ajudou um bocado.

— Nem mais uma palavra! — Ela se ergue. — Veja se dá notícias. Você sabe, meu nome está na lista telefônica. Até logo. — Beija rapidamente a testa de Mamoulian.

— Até logo — repete ele, acompanhando-a perplexo com o olhar, até que ela voltasse para junto do sr. Ludwig Goldmark. No terraço Yvonne se volta mais uma vez e acena. Também o sr. Goldmark o cumprimenta formalmente. A orquestra toca um tango. Um rapaz se aproxima da mesa de Yvonne e convida-a para dançar.

Mamoulian sai devagar do parque. Atravessa a Ringstrasse ainda a passos lentos. Ao passar pelas transversais da Kaerntnerstrasse, vai andando cada vez mais depressa. Ao chegar ao destino, já está correndo. Entra na enorme loja quase sem fôlego.

Uma vendedora aproxima-se dele.

— O que o senhor deseja? — pergunta ela, fitando-o curiosa.

— Sapatos — responde Mamoulian, enxugando a testa.

— Sapatos para uma garotinha, os melhores que a senhora tiver. E uma bola. Um livro ilustrado... e... meu Deus — acrescenta, gesticulando violentamente com os braços —, me arrume uma cadeira! Tenho de sentar.

 

O senhor que naquela noite, por volta das dezenove horas, pegou um bonde da linha 39 junto à Bolsa, mal conseguia se mexer, com tantos embrulhos. Suava em bicas, mas sorria, e seu rosto tinha uma expressão de enlevo. Mamoulian estava feliz! Conseguira o que tinha em mente. Levava para a garotinha um par de sapatos de couro marrom, cuidadosamente embrulhado, uma bola colorida, um livro ilustrado, uma almofada de seda e uma caixa de doces. Comprara um maço de cigarros para Jakob Steiner e um avental novo para dona Magdalena. Para a mãe de Ruth conseguira um grande lenço estampado, com aves coloridas, barcos a vela, havaianas e pequenas ilhas com imensas palmeiras. Os quinhentos xelins de Yvonne foram bem empregados, pensou ele, mesmo que não tenha dado para meu pacote de fumo de cachimbo. Não importa. Os quinhentos xelins não poderiam ter sido mais bem empregados. Mamoulian se congratula. Cansado mas feliz, olha pela janela, respirando fundo. Amanhã é dia de Páscoa. Que bom!

Chegando em casa, encontrou um jantar preparado por dona Magdalena e os cômodos arrumados. Jakob Steiner serrava lenha no jardim. Mamoulian guardou os embrulhos e sorriu.

— Que foi que houve? — perguntou dona Magdalena Huber, pedreira de profissão. — O senhor está tão alegre... Tirou a sorte grande?

— Nada — respondeu Mamoulian; — só estou feliz — e abraçando-a, de repente, deu-lhe um beijo e disse: — Feliz Páscoa, dona Magdalena!


O quarto capítulo

 

onde se festeja a alegre festa da Páscoa e se conta como Mamoulian ainda acabou arrumando fumo para seu cachimbo, e o que a pequenina Ruth disse ao receber seus presentes; onde Jakob Steiner, usando uma flor na tapeia, passeia com a mãe de Ruth pelo jardim de Mamoulian; da conversa que eles tiveram e de dona Magdalena fumando charuto; da grande decisão tomada por Jakob Steiner, que faz a nossa história avançar um bom pedaço.

 

A pequena Ruth e sua mãe tinham anunciado sua chegada para o meio-dia, mas já às oito horas Mamoulian começou a esconder os ovos. Espalhou-os irregularmente debaixo de arbustos e sebes do jardim, cobrindo-os com capim e folhas secas. Anotava cada esconderijo em seu caderninho, pois era de se esperar que a pequenina Ruth não seria capaz de achar todos os ovos.

Esconder quinze ovos e uma boa quantidade de chocolate não era tarefa muito fácil, mas constituía um grande divertimento para Mamoulian, que usava uma camisa alvíssima passada por dona Magdalena e calças escuras. Com o cachimbo vazio preso entre os dentes, andava pelo jardim enquanto assoviava a Marselhesa.

— Pare de assoviar essa canção horrível! — exclamou Jakob Steiner, sentado sob uma cerejeira em flor, procurando coser com uma agulha enorme a sola do pé esquerdo de seu sapato.

— Não é uma canção horrível; é muito bonita, gosto dela — retrucou Mamoulian, decidido. — A melodia tem o efeito inebriante do vinho e dá coragem aos homens.

— Essa canção — retrucou Steiner — nos trouxe o período da chamada liberdade, igualdade e fraternidade, que custou a vida a muitos inocentes. Detesto revoluções. Elas embrutecem, despertam nossos maus instintos.

— Mas eu gosto de revoluções — disse Mamoulian. — Só espero que a grande revolução decisiva para a qual estamos nos encaminhando ocorra ainda enquanto eu estiver vivo.

— Aí o senhor vai andar pelas ruas com a massa, gritando, empunhando bandeiras?

— Claro que vou. Vou amarrar um lenço colorido no pescoço, dar a mão a estranhos, chamando-os de "irmãos", lutar com eles pela justiça e pela liberdade!

— Que liberdade?

— A liberdade de palavra e de crença — retrucou Mamoulian, segurando o cestinho de ovos. — Para acabarmos com a fome e o medo.

— Eu ficarei em casa chorando — disse Jakob Steiner —, pois o mundo não vai melhorar com isso; também vocês esmagarão a justiça com os pés, e os esfomeados continuarão a passar fome, e os que vivem assustados permanecerão com medo. Ao diabo com essa sua revolução! — e continuou a coser a sola do sapato. — Não acredito mais em toda essa mentira. Bandeiras coloridas, grande palavreado, berreiro, suor, bater de botas... tolice, hum!

Mamoulian ia continuar a assoviar ostensivamente seu hino mas, lembrando-se da paz daquele domingo, mudou de idéia e passou a assoviar uma canção popular.

Na cozinha, dona Magdalena preparava o almoço. Consistia numa rica e forte sopa de legumes, batata assada com alface e uma grande quantidade de bem temperada carne de cavalo que dona Magdalena pegara de uns práticos vidros de conserva do exército americano. Para sobremesa havia cuca de farofa com passas, canela e bastante açúcar. Dona Magdalena usara todo o ordenado da semana para adquirir os ingredientes necessários, com exceção de uma pequena importância que gastara em charutos dos mais baratos para se presentear pela Páscoa. Charutos eram a única fraqueza dessa velha de temperamento tão forte e obstinado.

Enquanto cortava cebolas para o ensopado de carne de cavalo que assava na frigideira, ficou pensando nos insondáveis caminhos de Deus. Ainda ontem tivera de deixar a casa sem saber onde deitar a cabeça à noite; e, na mesma noite, dormira ao lado de Mamoulian na cama larga, enquanto Jakob Steiner se instalara na espreguiçadeira.

Uma força secreta, que não abandona nunca os pobres, por mais desesperadora que pareça a sua situação, está sempre ajudando-os, pensou ela. Gozam da proteção especial do Deus Todo-Poderoso, que se lembra de todos eles, nunca esquecendo ninguém. Foi até o cômodo ao lado e ficou contemplando satisfeita a mesa posta para o almoço, rodeada de cinco cadeiras diferentes. Em cima de uma toalha branca de propriedade sua (Mamoulian não tinha mais toalha branca), estavam dispostos pratos e talheres para cinco pessoas. Apenas dois pratos eram iguais. Também as colheres, garfos e facas pertenciam a faqueiros diferentes. Em compensação, diante de cada lugar havia um ramo de cerejeira florido, e no centro da mesa, um grande vidro de conserva com flores: margaridas, violetas e um gladíolo cor-de-rosa. Satisfeita, dona Magdalena colocou as mãos na cintura. As hóspedes já podiam chegar!

 

Chegaram por volta de uma hora.

Ruth, a garotinha, apareceu primeiro. Usava um vestidinho de um vermelho vivo, com bordado colorido, meias verdes e sapatos muito velhos. Com muito esforço a mãe lhe enrolara os cabelos em cachos. Na mão, segurava um pequeno embrulho amarrado. Cumprimentou Mamoulian como a um velho conhecido, puxando-o para si e beijando-lhe a face. Depois, sem o menor espanto, apertou a mão de dona Magdalena, fez uma mesura e dirigiu-se a Jakob Steiner. Este teve um gesto completamente contrário a seu caráter: não deu a menor atenção à mão estendida, deixando a garotinha muito sem graça. Na verdade não reparara naquela mãozinha, pois seus olhos estavam presos na mãe que se aproximara.

Josephine Werner deixou Jakob Steiner encantado assim que a viu, despertando ao mesmo tempo uma profunda aversão em dona Magdalena, pedreira de profissão.

Steiner ficou fascinado com seu encanto e beleza, enquanto dona Magdalena sentia repugnância por aquele penteado exagerado e certos detalhes propositalmente chamativos de sua roupa. Jakob Steiner lhe admirava a juventude, a tonalidade das cores com que pintara o rosto, o sorriso. Dona Magdalena sentia aversão pela feminilidade ostensiva, com seu olhar calculista. Para Jakob Steiner ela era uma rainha; para dona Magdalena, pelo diagnóstico feito após um único olhar atento, uma meretriz. Para o bem da verdade, devo confessar que o segundo diagnóstico era o verdadeiro.

Josephine Werner ganhava seu pão diário da maneira secular que talvez represente o primeiro trabalho da mulher; vivia do e para o amor, e tinha muito pouca ilusão. Era uma meretriz com uma filhinha. Amava a filha, embora muitas vezes ela lhe fosse um empecilho, vindo ao mundo contra qualquer previsão. Apesar disso gostava dela e, em sua falta de lógica, estragava-a com mimos, fazendo-lhe todas as vontades, pois a existência da menina era a única justificativa para sua vida um tanto sem sentido. O pai de Ruth fora soldado, ia e vinha como era próprio dos soldados, e no curto tempo em que se conheceram, Josephine o amou de acordo com o que ela conseguia conceber por amor. Amou-o de todo o coração, sendo fiel a ele. Cozinhava, costurava e lavava sua roupa, estava sempre pronta para ele. À noite, o esperava à porta do quartel, ao lado de muitas outras mulheres. Fez isso muitas noites, mas numa delas esperou em vão. Seu amante, segundo-sargento pouco brilhante, porém muito ambicioso, voltara para a guerra sem grandes despedidas. Era um sujeito simplório, que na verdade nunca tivera consciência de que era amado. Aceitava os agrados que lhe eram oferecidos, retribuía-os ocasionalmente, e de resto não se preocupava muito com Josephine. Ela deixava de ter qualquer significado em comparação aos difíceis problemas do regulamento das tropas, da perspectiva de uma promoção próxima, dos acontecimentos no quartel. O pai de Ruth era ambicioso demais para ter bom senso. Graças a essa ambição, em poucas semanas chegara a primeiro-sargento lá no front; e graças a ela também perdeu a vida certa noite, sem grande alarido. Já estava mortinho quando os amigos o encontraram, na manhã seguinte, com uma bala no corpo, numa cratera aberta por uma bomba.

Josephine, que na época já sabia que estava grávida, nunca foi informada de sua morte. Ela no entanto sentia, pelo instinto que os homens primitivos e os animais têm em comum, que ele não estava mais vivo. Desesperada, depois de ter usado os mais diversos métodos para impedir o nascimento da criança, deu à luz a pequenina Ruth numa casa de saúde fora da cidade. Era um bebê tão miúdo e fraco que quase morreu em seguida. Desistiram até de salvá-la, cuidando tão pouco dela quanto da mãe, inteiramente esgotada. A pequenina Ruth no entanto não morreu. Diziam os médicos que ela possuía um coração de resistência fora do comum que a manteve viva. Com o passar dos meses, foi até ficando bonitinha. Tinha os olhos sentimentais e aparvalhados do pai, e o encanto do rosto fino da mãe. Ria e chorava, brincava na terra e caçava borboletas exatamente como qualquer outra criança cujo pai ainda estivesse vivo e cuja mãe ficasse sentada numa confortável sala, lendo romances interessantes, indo à igreja aos domingos. A pequenina Ruth em nada se distinguia de qualquer criança normal da redondeza. Vestia-se como as outras, falava como elas e brincava com todas. A mãe, com a indolência que lhe era característica e uma pose um tanto tragicômica, continuava a seguir sua profissão que, como já dissemos, talvez seja a mais antiga profissão feminina.

Sua aparência física a favorecia muito, ela ainda conseguia obter um máximo de lucro com um mínimo de desgaste, embora soubesse que isso não duraria para sempre. Depois de um rápido encontro, insatisfatório para ambas as partes, Mamoulian se afeiçoara estranhamente à filhinha de Josephine, acabando também por se aproximar mais da mãe. Visitava-as com certa freqüência, e também elas o visitavam, acabando por surgir uma relação muito cordial entre o cliente decepcionado, a desgostosa Josephine e a inquieta Ruth. Josephine olhava para Mamoulian, um quarto de século mais velho do que ela, desapaixonadamente, com a plácida confiança já não mais egoísta, a confiança da mulher casada há muitos anos. Não modificava nenhum de seus hábitos por amor a ele, e também ele nunca o exigira. Cada um vivia a sua vida, e apenas a pequenina Ruth era o elo que os ligava, embora por parte de Mamoulian houvesse uma amizade que vinha do fundo de sua alma, não uma obrigação imposta.

Mamoulian sabia que Ruth trazia dentro de si um potencial de hereditariedade de uma linha feminina semelhante à da mãe, e que em conseqüência teria uma vida fácil sob certos aspectos, difícil sob outros. Preocupava-se muito com o futuro da menina, pois estava convencido de que ela acabaria levando o mesmo tipo de vida da mãe, a não ser que alguém exercesse desde cedo uma influência constante e persistente em direção oposta. Em certos momentos, especialmente à noite, quando, sozinho, não conseguia dormir e ficava pensando nos muitos problemas difíceis e insolúveis, sentia-se estranhamente ligado àquela família incompleta, responsável por seu bem-estar, sua salvação espiritual. Logo procurava se convencer de que não tinha a menor obrigação para com mãe e filha, que ele havia seguido um impulso, um capricho momentâneo ao convidá-las para visitá-lo, e que talvez manter uma amizade assim fosse coisa absurda, coisa que só se encontra em livros.

No escuro silêncio da noite, uma outra voz se manifestava em seu íntimo: claro que é isso mesmo, Mamoulian. Ela é bonita, mas é uma criatura tola, sem nenhum valor, e se a garota ficar como ela... que importa? Muitas garotinhas, lindas e encantadoras, segundo as grandes leis, vão desenvolvendo as características pouco recomendáveis dos pais e acabam se tornando como eles. Mas, Mamoulian, você encontrou muita gente no mundo a quem fez mais bem do que a essas duas estranhas criaturas, que como por milagre continuam vivas e alegres, e só foi compensado com ingratidão! Estas, ao menos, tanto mãe quanto filha, nunca o desiludiram. Josephine Werner possui sem dúvida muitas qualidades condenáveis; uma, no entanto, ela não tem: a de mentir. Nunca, Mamoulian, essa mulher que é desprezada por todas as outras mentiu para você. A verdade nem sempre era lisonjeira, e se você entrasse em contato mais íntimo com ela, é bem possível que acontecesse a mesma coisa que aconteceu com as outras. Por outro lado, mulheres que você mal conhecia, que não tinham a menor razão de fazê-lo, não mentiram para você?

Mamoulian reconhecia que Josephine era vítima das circunstâncias. Tinha pena dela. Quando ela por vezes dizia "ninguém tem culpa de ter nascido assim", Mamoulian muitas vezes quis retrucar, mas nunca o fez. Talvez, refletindo, chegasse à conclusão de que embora ela lhe fosse superior em dotes físicos, ele era sem dúvida mais inteligente, e por isso podia ajudá-la em muitos setores em que a beleza não contava. Toda pessoa tem seu ponto fraco. O de Mamoulian era a necessidade de ter alguém para quem viver, com quem se preocupar, a quem presentear. Alguém a quem pudesse dar prazer, fazer feliz. Quando encontrava essa pessoa ficava cego e surdo para tudo o mais que o cercava, fechava-se para objeções, conselhos e advertências, portando-se como louco. Não se importava com o que os outros diziam, se falavam dele, como o tratavam. Toda sua ação se dirigia apenas à pessoa a quem dedicara seu coração, a quem queria ver feliz. Os caminhos que seguia nem sempre eram muito retos, os métodos que usava nem sempre dos mais elegantes. Chegava a ser frio e intransigente, brutal e sem tato, irresponsável e inescrupuloso quando cismava de fazer a felicidade de alguém, e sua própria condição de vida era em parte conseqüência deste seu modus operandi.

Entende-se perfeitamente que por isso, ao lado das poucas pessoas que o estimavam, conhecia muitas outras que se afastavam dele, considerando-o uma pessoa imoral, depravada, indigna de confiança, de caráter pouco recomendável. Saber fazer a felicidade alheia, porém raras vezes a própria, esta era a sua tragédia. Aproveitando-se dela havia sempre quem o quisesse explorar. Mamoulian possuía um sexto sentido para sentir exatamente quando desejavam fazê-lo. Em sua ânsia de filantropia, porém, e perfeitamente condizente com o quadro de sua personalidade, ele não desistia. Na maioria das vezes as pessoas presenteadas, saciadas por favores, ficavam irritadas com ele e o abandonavam.

Josephine Werner & sua filha Ruth mais de uma vez tiveram a oportunidade de explorá-lo. Nunca o fizeram. Mamoulian ficava emocionado. Realmente, pensava ele, as pessoas mais decentes, muitas vezes, são encontradas onde menos se espera, e ele podia se dar por muito feliz, possuindo em sua pobreza dois seres que acreditavam e confiavam nele. Resumindo, pois, pode-se dizer que Mamoulian mantinha de pé esta relação com a incompleta família Werner por pura questão de auto-respeito.

Mamoulian percebeu logo que Josephine causara grande impressão em Jakob Steiner, ao passo que desagradara profundamente a dona Magdalena. Se ele não tomasse cuidado, o êxito da festa de Páscoa poderia ser duvidoso; passou portanto o braço pelo ombro de Josephine e disse com o sorriso mais amável:

— Este aqui, minha querida, é Jakob Steiner; mora comigo desde ontem, assim como dona Magdalena, que preparou um almoço delicioso para nós.

— Boa tarde — cumprimentou Steiner, fazendo uma mesura desajeitada, sem tirar os olhos de Josephine.

— Ora — disse ela —, por que me olha assim? Por acaso lhe agrado?

— Agrada — admitiu Steiner.

— O senhor a mim também — retrucou a mãe de Ruth sem hesitar, enquanto seus olhos se fixaram por um instante nos sapatos rasgados. — É um prazer saber que agora mora em casa de Mamoulian, e se... — Josephine notou que Mamoulian meneava devagar a cabeça, e deixou a frase por terminar.

Virou-se com um sorriso inocente para a pedreira de profissão, dizendo:

— E esta é dona Magdalena; Ah! Ah!

— A seu dispor — respondeu a velha. — Ah! Ah!

— Josephine é uma velha amiga minha — explicou depressa Mamoulian, interpondo-se entre as duas mulheres como se receasse que elas, que se olhavam com aquele sorriso agridoce, pudessem chegar às vias de fato. Mamoulian tinha medo de mulheres com esse tipo de sorriso. — É uma velha e boa amiga — enfatizou ele. — Tenho certeza de que vai gostar dela quando a conhecer melhor, dona Magdalena. É uma criatura amável — acrescentou ainda. — Exatamente como a senhora.

Houve uma pequena pausa. Steiner olhava embevecido para Josephine. Aproximou-se um pouco mais, e só então percebeu a pequenina Ruth, e lhe apertou energicamente a mão.

— Eu acho... — começou Mamoulian, aborrecido com a interrupção.

— Eu acho — acabara também de dizer a pequenina Ruth naquele instante em voz bem alta — que aquela gorda não gostou de você, mãe!

— Eu também acho — repetiu Josephine no mesmo tom de voz — e por isso é melhor irmos embora. Dê o nosso presente ao tio Mamoulian e vamos embora depressa...

Nesse momento, no entanto, em que o desesperado Mamoulian achava que a festa que organizara com tanto sacrifício tinha chegado ao fim, aconteceram duas coisas. Dona Magdalena, pedreira de profissão, aproximou-se da menininha surpresa, e Steiner acercou-se de Josephine.

— Ora, que bobagem, meu benzinho — disse dona Magdalena, ajoelhando-se, gemendo diante de Ruth e tomando-a nos braços. — O que foi que você disse? Afinal que acha que eu sou? Ora, ora... por que eu não haveria de gostar da sua mãezinha? Acabei de conhecê-la! — e concluiu heroicamente: — Não sei nada sobre ela!

Ao mesmo tempo, Jakob Steiner, tomado de súbita falta de ar e com um tique que lhe fazia tremer a pálpebra direita, insistia com Josephine. Tomando-lhe a mão, fitou-a, pedindo:

— Por favor... por favor, não vá embora!

— Mas se não gostam de mim... — disse ela com afetação.

— Ora, todo mundo gosta! Eu... — continuou ele com esforço — até gosto muito... Nunca vi ninguém tão bonita... e ficaria muito triste se você fosse embora!

— Eu também — disse Mamoulian.

— Se você for embora, eu também vou!

— Para onde?

— Para onde você for — respondeu Steiner. — Não importa.

— Venha comigo — disse dona Magdalena à pequenina Ruth. — Venha comigo até a cozinha, quero lhe dar um pedaço de bolo com uma porção de açúcar em cima, assim vai se convencer de que eu gosto de você.

— Você gostar de mim ou não pouco importa — protestou Ruth, olhando de testa franzida para a pedreira de profissão. — O que importa é minha mãe. Muitas mulheres não gostam dela só porque ela é bonita. Não quero seu bolo porque você não gosta da minha mãe.

— Quem disse que eu não gosto dela?

— Estou tão satisfeito por termos nos encontrado — disse Jakob Steiner.

— Juro que não tenho nada contra a sua mãezinha — disse dona Magdalena.

— Você quer cair morta se for mentira?

— Quero — disse dona Magdalena com o rosto pálido. (Agora é que vamos ver, pensou ela.)

— Você ouviu, mãe?

— Ouvi. Mas às vezes Papai do Céu não escuta... Afinal o que a senhora tem contra mim, dona Magdalena?

Esta se levantou devagar. Olhou demoradamente para Josephine e disse em seguida:

— É só porque... a senhora sabe... tudo estaria bem se... se tirasse esse batom. Por favor, tire o batom e vamos ser amigas.

— Se é só isso... — respondeu Josephine, passando duas vezes a mão com força na boca. — Apesar de não entender muito bem o motivo...

— Meu marido — explicou dona Magdalena, tornando-se de repente muito amável —, Josef, a senhora sabe, que Deus o tenha em paz, Josef conheceu uma mulher que também era tão bonita como a senhora... muito mais bonita do que eu... e... por causa dela eu fui muito infeliz. Usava um batom igualzinho ao seu!

— Ora — disse Josephine, aliviada.

— É, são essas as desvantagens... — começou Mamoulian, para ser interrompido mais uma vez.

— Seu marido enganou você com essa mulher? — perguntou curiosa a pequenina Ruth.

— Mãe Santíssima! — exclamou dona Magdalena, acrescentando depressa: — Vamos lá para a cozinha comer cuca? Agora você aceita, não é? — E saiu puxando a menina atrás de si.

— Aceito. Agora posso comer seu bolo. — As pessoas da sala ainda ouviram a menina dizer: — Mas mesmo assim, gostaria de saber se seu marido enganou você com essa mulher...

— É uma criança muito precoce — disse Mamoulian, fazendo uma careta. — Quantos anos tem?

— Vai fazer sete em setembro — respondeu Josephine. — Mamoulian, eu detesto ter que perguntar, mas você conseguiu arrumar o par de sapatos para ela?

Mamoulian sentiu o coração bater mais forte. Agora sim, pensou ele, o dia vai ficar bonito; o seu dia de Páscoa!

— Eu não prometi?

Ela o abraçou com lágrimas nos olhos. — Mamoulian, meu querido gordo!

— Você está chorando! — constatou ele, emocionado.

— É de felicidade. — E virando-se para Jakob Steiner, que estava de pé, ao lado, com um ar embaraçado: — A minha filha estava precisando com urgência de um par de sapatos.

Steiner inclinou-se, mudo, desejando que tivesse sido ele quem comprara os sapatos.

— Mamoulian é um bom sujeito. A gente pode confiar nele. Gosto dele.

— Bobagem — disse Mamoulian. — Você está me confundindo.

— Que nada — disse ela com um sorriso misterioso. — Não estou confundindo não. Eu amo você de verdade, você é que não sabe.

— Eu tenho uma certa aversão a essa palavra — disse Mamoulian, alisando-lhe os cabelos pretos que brilhavam ao sol —, mas já que você é uma velha amiga, vou tentar vencer essa minha aversão e ficar feliz com a sua declaração.

— E vai conseguir?

— Vou conseguir, sim — disse ele; — e se você me abraçasse um pouco mais, conseguiria mais ainda.

— Assim? — perguntou ela, apertando-o contra si.

— Mais ou menos... Steiner, olhe para o outro lado!

— Eu amo você — disse Josephine.

— E por quê? — perguntou Mamoulian, arrependendo-se logo de ter feito a pergunta.

— Porque preciso de você — retrucou Josephine com a maior sinceridade e simplicidade. — Sempre gostamos das pessoas de quem precisamos.

— Ainda tem um pouco de batom no canto esquerdo da boca — disse Mamoulian. — Limpe-o e depois desçamos para almoçar.

Jakob Steiner ficou olhando para ela.

— É tão bonita! — disse perdido. — Meu Deus, que coisa bonita! — Esticando-se no gramado, voltou os olhos para o céu, e com a cabeça no meio do capim alto, sentiu o sangue latejar em suas têmporas.

Depois do almoço, quando todos estavam saciados, sentados ao sol, em paz, Mamoulian entregou os presentes. Trouxe-os dentro de uma caixa de papelão que colocou no gramado, e foi tirando-os um a um. Primeiro os da pequenina Ruth. Com ar muito solene, Mamoulian desembrulhou as maravilhosas botas de couro marrom claro e, enquanto os adultos as admiravam, a garotinha juntou as mãos e balançou a cabeça, preocupada.

— Meu Deus! — exclamou ela, revirando os olhos — que extravagância a sua, tio Mamoulian!

— Ora, por favor — retrucou ele —, não vamos começar a discutir isto.

— Mas você gastou muito dinheiro! — insistiu a menina. — Sabe Deus o que você fez para consegui-lo. Nos dias de hoje... — seus olhos tomaram uma expressão preocupada —... todos nós sabemos que você também não anda nadando em dinheiro...

— Que é isso, Ruth! — Mamoulian sentou-se no gramado a seu lado. — Você então não ficou nem um pouquinho contente com os sapatos?

— Fiquei sim, e muito. Mas são tão alinhados que fico imaginando o dinheirão que você gastou. Como é que vai conseguir pagar?

— Ora, não se preocupe com isso — disse ele. — Calce logo estas botas para a gente ver se são do tamanho certo.

— Está bem — disse Ruth já um pouco mais contente, começando a abrir as sandálias rasgadas. — Tem um buraco na minha meia. Não olhe, por favor. Hoje à noite a mamãe vai cerzir. — Calçou as botas, apoiando-se contra Mamoulian que, ajoelhado diante dela, amarrava os cordões. — Cabe certinho! Acho que nunca tive uma bota tão alinhada, tio Mamoulian.

— Também acho — concordou ele. — Dê uns passos por aí, para ver se você se ajeita com elas.

— Mãe! — Ruth saiu correndo para junto de Josephine. — Olhe que botas alinhadas! São macias, parece que estou descalça. É quem tinha como um forno. E veja só que cor bonita! Sabe, mãe, não vou mais tirá-las dos pés. Posso dormir com elas? — Ruth correu para dona Magdalena, que emocionada acompanhara a cena. — Veja que sapato bonito! — disse, levantando a perna. Depois continuou a correr. — Você já viu o sapato bonito que o tio Mamoulian me deu? — perguntou a Jakob Steiner, que estava sentado no gramado, ao lado de sua mãe.

— Sim — disse ele. — São os sapatos mais bonitos que já vi!

— É mesmo?

— Juro que são.

— Ó mãe, o que vão dizer as outras crianças quando me virem com estes sapatos? — Uma sombra perpassou-lhe o rosto. — São meus de verdade?

— Claro — disse Mamoulian orgulhoso. — De quem você queria que fossem?

— Eu não vou ter de devolver?

— Claro que não; são seus. Mas espere, ainda tem mais — disse Mamoulian instalado diante de sua caixa. — Ainda tenho mais presentes para você. — E foi tirando a boneca, a bola, a caixa de doces, e colocou tudo na grama diante de Ruth. Josephine tinha levantado, e olhava assustada para Mamoulian.

— Você ficou maluco! Quem foi que você assaltou?

— Então, Ruthinha — perguntou Mamoulian como se tivessem acabado de lhe fazer um elogio. — Ficou satisfeita? Está feliz?

— Estou — disse com os olhos brilhando, sem tocar nos presentes. — Será que eu morri?

— Bobagem — disse Mamoulian, logo preocupado —, por que você acha que morreu?

— Porque é assim que imagino o Paraíso, do qual nos contam histórias no jardim de infância. Quem sabe se eu não morri, e você é Papai do Céu?

— Papai do Céu, não — disse Josephine com os olhos cheios de lágrimas —, mas um verdadeiro anjo!

— Ora, o que é isso? — retrucou Mamoulian; e virando-se para Ruth: — Você não quer dar uma olhada na caixa de doces?

Ruth botou as mãos nas costas e meneou a cabeça.

— Prefiro não olhar.

— Mas por quê?

— Tenho medo de os presentes sumirem. Isso já me aconteceu uma vez. Eu estava dormindo, sonhando com um par de sapatos, e quando fui estender a mão, os sapatos sumiram e eu acordei. Você se lembra, mãe, da choradeira que fiz?

— Lembro, sim. Mas hoje você não precisa ter medo, Ruth. Agora você não está sonhando. Os presentes estão aí.

— Bem — disse ela se aproximando da caixa na ponta dos pés. — Bem, então... Olhe, mãe! Olhe só, são salsichas de marzipã!

— Não é salsicha de marzipã, não — disse Mamoulian; — é sabão de barba.

Ruth riu como se alguém estivesse lhe fazendo cócegas.

— Que nada!

— É sim!

Ruth arrancou o celofane e deu uma dentada numa delas.

— Como é? — perguntou Mamoulian. — Tem gosto de quê?

— De marzi... — disse ela, e engasgou-se. A mãe bateu-lhe nas costas; ela cuspiu uns pedacinhos de massa, ficou toda vermelha, tossiu convulsivamente e, seguindo o conselho de Jakob Steiner, levantou os braços bem para cima. — Marzi... — insistiu com valentia, ainda sem poder falar direito por causa do soluço —... É marzipã, sim! Vocês têm que provar.

Todos tiveram de dar uma mordida na salsicha, enquanto Ruth examinava o conteúdo da caixa.

— Tem bala, chocolate, hortelã, pirulito, chicletes... Revirou os olhos, olhando maravilhada para Mamoulian.

— Você é o melhor tio do mundo! — Depois, tomada de grande inquietação, começou a pular de uma perna para outra.

— Que é isso? — perguntou Mamoulian. — Você tem que ir ao banheiro?

— Não — disse ela carinhosamente. — Tenho de lhe dar um beijo.

Puxando-o para si, apertou seus lábios molhados e açucarados contra os de Mamoulian.

— Eu gosto de você! Gosto mesmo! Você é o melhor tio do mundo! Se eu tivesse a idade da mamãe, casava com você... Mas você gastou tanto dinheiro, é até uma vergonha ser tão esbanjador! Já estão até começando a falar.

— E olhe que o principal ainda vem... — disse Mamoulian.

— O que é que ainda vem?

— Os ovos. Você ainda tem que procurar ovos!

Ruth ficou olhando para ele, duvidando. Depois balançou a cabeça.

— Não, tanta surpresa de uma vez só não pode ser! Tenho certeza de que morri. E você também. E a tia. Nós todos morremos e estamos no Paraíso.

— Bobagem — disse Mamoulian; — não morremos nada. Estamos no meu jardim festejando a Páscoa. O que tem isso de mais? Todo mundo afinal tem o direito de ser feliz de vez em quando. Hoje somos nós. E vamos ser muitas vezes ainda.

— Mamoulian — disse Josephine, passando-lhe o braço pelo ombro —, esta é a festa de Páscoa mais bonita de toda a minha vida!

— Que bom que você está satisfeita, querida. — Ajoelhou-se e colocou novamente a mão na caixa. — Mas não pense que é só você que vai ganhar presentes, Ruth. O coelhinho trouxe alguma coisa para os outros também. Para Jakob Steiner, por exemplo, ele trouxe um maço de cigarros...

— Santo Deus! — exclamou este, surpreso. — E é Lucky Strike, a minha marca preferida! Muito obrigado.

— Feliz Páscoa! — disse Mamoulian, apertando-lhe primeiro a mão e depois entregando os cigarros. — Se você tentar se suicidar mais uma vez enquanto estiver na minha casa, eu lhe dou uma surra.

Josephine arregalou os olhos.

— Você tentou... Jakob Steiner aquiesceu.

— Mas por quê?

— Não sei. Era tudo tão triste...

— E hoje? Ele sorriu.

— Hoje estou feliz.

— Por causa dos cigarros?

— Por causa dos cigarros e porque você está aqui. Acho que estaria sempre feliz com você a meu lado.

— Você está feliz porque é Páscoa — disse Ruth. Mamoulian tirou o avental da caixa.

— E isto aqui é um presente para dona Magdalena! Espero que sirva — disse enquanto ela amarrava o avental. — Ora se serve! Tenho um olho muito especial para cintura de mulher. Sabia exatamente que tamanho deveria ter um avental para dona Magdalena, embora nunca tenha comprado um em toda a minha vida... Gostou da renda?

Dona Magdalena tinha lágrimas nos olhos, e procurava enxugá-las com as costas da mão vermelha e ressecada.

— Ora, na minha idade, ainda passar por uma coisa destas... desculpem, eu não costumo chorar... é uma bobagem, mas eu não agüento... — Dona Magdalena começou a soluçar alto.

— Que é isso? — disse Mamoulian surpreso, não esperando por tal reação; e procurava enxugar-lhe as lágrimas com um lenço. — Para que chorar? A senhora, uma pessoa tão sensata... e eu pensando que fosse lhe dar um prazer...

— Estou muito contente... Só que a alegria é tão grande... que tenho de chorar... Estou chorando de alegria; meu Deus, estou me portando tão horrivelmente...

Dona Magdalena pegou de repente a mão de Mamoulian e, antes que ele pudesse evitar, beijou-a.

— Dona Magdalena! — exclamou ele zangado, retirando a mão. — Ora essa, que idéia! A senhora não deve beijar minha mão nunca! E se não rir agorinha, tiro-lhe o avental! — Dona Magdalena estremeceu, procurando se controlar.

— Não tire não, por favor! Também não choro mais! Veja, já estou rindo! — Com um esforço enorme, as faces ainda molhadas, mostrou os dentes certinhos e brancos de sua dentadura postiça. — Há, há! Veja só como estou feliz!

— Tão feliz como eu? — perguntou Ruth, levantando uma perna com a bota.

— Tão feliz como você.

— Mas não tanto quanto eu — disse Josephine, baixinho, apertando o braço de Mamoulian.

— Agora me lembro — disse este. — Já me esquecia; tenho ainda um presente para você, minha querida. — E Mamoulian tirou a echarpe de seda estampada, com os barcos à vela, as palmeiras e as aves. Ninguém disse nada. A echarpe brilhou ao sol, quando Mamoulian a colocou nos ombros de Josephine. Por um minuto o silêncio foi total.

— Você parece até... — começou a pequena Ruth.

— Uma rainha — completou Jakob Steiner.

— Uma rainha feliz — disse Mamoulian.

— E você — retrucou ela, beijando-o na boca diante de todo mundo —, você parece um rei.

— Um rei empobrecido — observou Mamoulian, sorrindo. — Infelizmente.

— Um rei infinitamente rico, que conseguiu fazer a felicidade de quatro pessoas.

— Cinco — corrigiu Mamoulian ainda sorrindo. — Você está se esquecendo de mim. Eu fiz a minha felicidade também.

— Mamoulian — disse de súbito Josephine, com voz macia, encostando os lábios no seu ouvido para que só ele pudesse ouvir o que ela dizia. — Muito obrigada!

— Ora, pare com isso — retrucou Mamoulian. Contemplando atentamente seus sapatos, a pequenina

Ruth passeava pelo gramado. Apertada contra si, segurava a almofada de seda da baronesa empobrecida. Parou junto da castanheira.

— Se eu não morri — disse ela para o ar, como se estivesse falando com a árvore —, então é porque estou viva. Mas quem poderia imaginar que a vida fosse tão bonita? Eu não garanto. A gente tem cada surpresa!

Jakob Steiner aproximou-se de dona Magdalena que, absorta, contemplava seu avental novo, e ofereceu-lhe um cigarro.

— Obrigada.

— São bons. São americanos!

— Obrigada — disse ela energicamente, remexendo nos bolsos misteriosos.

— Fogo eu aceito. Vou fumar meu charuto. Isso tudo foi demais para mim. Acho que estou ficando velha. Que diabo de cena mais emocionante, puxa!

 

 

As duas mulheres ficaram olhando Jakob Steiner e Mamoulian, que procuravam os ovos junto com Ruth. Dona Magdalena fumava um charuto fino e preto, de cheiro horrível, cujas folhas em volta soltavam-se por todos os lados. Parecia estar com uma raiz estorricada na boca.

Lá de longe vinham as gargalhadas da menina.

Josephine, sentada em silêncio ao lado de dona Magdalena, em cima de um banco pintado de branco, ao lado de uma cratera aberta por uma bomba, dentro da qual floresciam algumas violetas, olhava para os dois homens, sentindo de repente uma saudade imensa de uma coisa que ela não sabia definir. Respirou fundo. O ar quente lhe dava uma sensação agradável na pele; arregaçou a saia para que as pernas sentissem o sol.

— Um homem como o sr. Mamoulian não é fácil encontrar — disse dona Magdalena, expelindo uma escura nuvem de fumaça entre os dentes postiços. É uma grande alma.

Sem dizer uma única palavra, aceitou-me em sua casa, quando Jakob Steiner me trouxe aqui. Meu Deus, nem sei para onde teria ido se não fosse ele!

— E Jakob Steiner — perguntou Josephine, sonhadora, de olhos fechados —, é verdade que ele quis se enforcar?

— Sim, é verdade. Ele já tinha até uma corda, uma árvore e tudo. Mas o sr. Mamoulian conseguiu convencê-lo a mudar de opinião, ou então ele desistiu porque o galho quebrou. Já conhece o sr. Mamoulian há muito tempo?

— Ele foi muito rico — disse Josephine, sonolenta —, mas naquela época eu não o conhecia. Quando o conheci não era mais tão rico assim, estava infeliz, embriagado e por isso se dirigiu a mim. Foi um engano, sabe. Eu o levei para minha casa, pois estava com medo de que a polícia o prendesse; já era tarde da noite.

— Um cavalheiro tão fino, embriagado! — exclamou dona Magdalena. — Não consigo nem imaginar.

— Ele estava muito infeliz — disse Josephine. — A gente afinal tem de levar isso em conta. Todos os amigos o haviam abandonado, até a mulher a quem ele amava. Deve ter sido horrível, por isso ele se embriagou. Não porque achasse divertido, mas por estar infeliz. Isso é muito diferente, pode acreditar. Eu sei o que estou dizendo, dona Magdalena.

— Tenho certeza disso... Afinal cada um entende de seu ofício. Eu sei fazer um bom reboque, a senhora entende de homens. Não está zangada comigo por eu ter sido tão rude?

— Que nada!

— Um pouquinho ainda está, eu sei, mas não tem importância. È bem feito para mim. Acabará esquecendo e vamos ser boas amigas... E o que aconteceu com ele depois?

Josephine se espreguiçou ao sol, o vestido subiu mais ainda.

— Eu o levei para casa. Estava embriagado demais para me dar qualquer prazer, e eu nem sabia se ele ainda tinha dinheiro no bolso.

— Por que não olhou? — indagou dona Magdalena, assustando deveras a outra com a pergunta.

— Não sei dizer — respondeu Josephine com toda a calma. — Nem me ocorreu, embora fosse o mais simples. Fiquei com pena dele. Ele me disse: Meu Deus, eu só quero é dormir.

— Foi assim, é? — disse dona Magdalena, passando a língua em volta do toco de charuto.

— Tirei a roupa dele e deitei-o na cama. Depois deitei-me ao seu lado. No sono ele me chamava de Yvonne; estava muito agitado, dormiu mal. Ao acordar de manhã, tentei amá-lo, mas parecia muito triste. Desisti e ficamos apenas conversando. Foi uma conversa muito estranha.

— Sobre o quê?

— Sobre o amor. Principalmente sobre o amor. Também falamos em pobreza e solidão. Em vida eterna. A gente diz uma porção de bobagens quando bebe demais.

— Coitado! — disse dona Magdalena. — Ele deve ter passado por maus pedaços depois de perder todo o dinheiro e os amigos. Jakob Steiner me contou que ele já teve muito dinheiro na vida; muitos amigos também.

— Sim. Mas eram todos falsos amigos, nenhum deles lhe permaneceu fiel. Foi o que ele me contou naquela manhã. Depois perguntou meu nome. Eu disse, e ele quis saber se tinha estado muito bêbado. Respondi que sim. Perguntou então se eu o havia encontrado e levado para casa, e por quê. Respondi: para que uma mulher do meu tipo leva um homem para casa? Ora, replicou ele, mas eu estava bêbado demais. Mesmo assim me deu prazer, respondi. Não acredito, retrucou ele. Depois, olhando para mim, perguntou: Ou será que você teve pena de mim? Pensei até que ele fosse se exaltar, como muitos quando estão tristes, mas apenas se deitou de novo e fechou os olhos. Então eu arrisquei e disse: Fiquei com pena de você, sim; não queria que a polícia nos pegasse. Já apanhou seu dinheiro? perguntou ele depois; e quando eu disse que não, me mandou pegar no paletó, pois achava que ainda devia ter algum. Respondi que não queria dinheiro, pois não o merecera, não fizera nada, e que ele tinha contado que não estava bem de vida. Ele insistiu. Eu neguei. Insistiu mais ainda. Saiu da cama, pegou tudo que tinha no bolso e enfiou as notas na minha mão. Deviam ser no mínimo uns quinhentos xelins. O tempo todo dizia: Tome, isto é seu porque você teve pena de mim e me trouxe para cá, apesar de eu não lhe ter dado nada antes. Mas eu juro, dona Magdalena, não aceitei um níquel, apenas fiz um café bem forte e escovei-lhe o terno. Depois mandei-o para casa com Ruth.

"No dia seguinte voltou trazendo flores, vinho, comida, meias, um vestidinho para Ruth, um colar com uma pedra azul que eu ainda uso até hoje. Veja. — Josephine abriu a blusa branca e mostrou à curiosa dona Magdalena uma pedra azul presa numa correntinha de prata que pendia entre seus pequenos seios rijos. — Ele me deu de presente; cuidava de nós quando estávamos em aperto, sem nunca exigir nada em troca... embora eu não tivesse me negado, pois é uma pessoa decente.

— Ah, isso é — concordou dona Magdalena.

— É a única pessoa, aliás, em quem posso confiar — disse Josephine, escorregando do banco para o gramado, onde cruzou os braços atrás da cabeça e ficou olhando para o céu. — Éo único que nunca me desamparou. Ruth gosta muito dele. — Ela bocejou. — Que dia lindo! Gostaria '

que não acabasse nunca. Estou com tanto sono, não tenho de pensar em nada, é Páscoa, e a minha bonequinha ganhou um par de sapatos resistentes.

Ambas ficaram caladas e pensativas, até a pequenina Ruth voltar com Mamoulian, Jakob Steiner e os ovos de Páscoa encontrados. «

— Mãe! — chamou ela encantada, colocando o cesti-nho com os ovos coloridos em cima do gramado. — O tio Mamoulian disse que foi ele mesmo quem pôs os ovos.

Você acredita? ,

— Não consigo imaginar muito bem como — disse Josephine, levantando-se meio tonta por causa do sol.

— Mas é verdade — assegurou Mamoulian. — Passei a noite inteira pondo ovos; de manhã cedo estava tão cansado que tive que parar.

— E onde estavam todos estes ovos? j

— Na minha barriga — disse Mamoulian, imperturbável. — É um dom todo especial... uma vez por ano.

— E os ovos já estavam coloridos quando você os... — Ela ficou meio confusa. — Quero dizer, já estavam coloridos quando você os pôs?

— Sim, imagine só — continuou Mamoulian com muita inocência —, já estavam pintados e prontinhos, até cozidos, porque antes eu havia tomado um banho bem quente.

Ruth ficou pensativa.

— E você consegue isso todos os anos, na Páscoa?

— Consigo. Parece até milagre, não acha?

— E no Natal, o que é que você consegue?

— Isto ainda vamos ver. Por enquanto eu só estou satisfeito de ter conseguido me livrar dos ovos.

Josephine levantara e tinha ido dar uma volta no jardim. Agora estava de volta. Ruth ostentava um ar muito solene.

— Prezado sr. Mamoulian — disse Josephine —, também para o senhor há um ovo escondido no jardim, esperando para ser achado.

— Para mim? — Mamoulian ergueu as espessas sobrancelhas brancas.

— Tem sim! — exclamou a pequenina Ruth. — É um ovo muito especial! — Nós vamos ajudar a procurar!

Mamoulian colocou as mãos nas costas e começou a correr pelo jardim. Quando se aproximou do tonel d'água, Ruth gritou:

— Está frio!

Mamoulian deu meia-volta e tomou a direção da cerejeira.

— Frio! — gritou ela novamente. — Gelado! Mamoulian relinchou como um cavalo, deu uma volta

de noventa graus, e saiu rápido ao longo da cerca em direção oeste.

— Está esquentando — comentou a menina enquanto ele continuava a andar. — Está esquentando cada vez mais...

— Muito bem — disse Mamoulian.

— Esfriou — registrou friamente o termômetro de seis anos. — Gelado! Gelado!...

Mamoulian parou e deu uma passada grande em direção sul.

— Frio — disse Ruth.

Decidido, Mamoulian deu um passo para oeste. — Esquentando! — murmurou Ruth, agitada. Mamoulian apertou os olhos.

— Já sei... — disse ele, encaminhando-se decidido para um regador enferrujado que estava ao lado de uma roseira seca.

— Está pegando fogo! — gritou Ruth. Mamoulian abaixou-se e tirou do regador um pacote de fumo americano para cachimbo, com um bilhete branco colado em cima. No mesmo lia-se, em grandes letras maiúsculas:

 

PARA O TIO MAMOULIAN

COM CARINHO

RUTH E JOSEPHINE

 

— Meu Deus! — exclamou Mamoulian enquanto todos olhavam para ele, ansiosos.

— Meu Deus, vocês não deviam ter feito isso! Não deviam mesmo! Eu já pedi tantas vezes para não me darem presentes, Josephine...

— Mas, tio Mamoulian — disse Ruth —, você estava precisando!

— Isso mesmo — disse também Josephine. — Você estava precisando. Gostou?

— Ora, se gostei! Será que macaco gosta de ganhar banana? Ou os céus um pecador arrependido? Que pergunta! — Mamoulian remexeu nos bolsos, encontrou o cachimbo e sentou-se no gramado ao lado da roseira seca. Todos ficaram olhando ele encher o cachimbo e, quando o acendeu, chegaram quase a prender a respiração. Mamoulian fechou os olhos, soprou uma nuvem de fumaça pelo nariz e disse, sonhador: — Sim, isso é que é gostoso...

Depois, levantou-se de repente e, beijando a mão de Josephine, disse:

— Vocês são uns amores!

— Querido Mamoulian — disse Ruth, imitando seu tom de voz —, não vamos ficar sentimentais. Acho que é melhor a gente ir brincar com a minha bola nova.

Todos concordaram.

Jogaram queimada. Mamoulian era muito sem jeito, sempre deixando cair as bolas que eram jogadas para ele. Já dona Magdalena, que se concentrara no jogo, como aliás em tudo o que fazia, era muito difícil ser "queimada". Com a maior calma e segurança pegava qualquer bola com suas mãos musculosas.

Caçavam Mamoulian pelo gramado como se fosse um pequeno elefante. Ele resfolegava, arquejava, tropeçava em suas próprias pernas; toda vez era atingido e tinha de tentar acertar os outros com a grande bola de borracha. Jakob Steiner não prestava a menor atenção ao jogo. Em pé num canto, de vez em quando pegava uma bola que lhe era atirada. Estava quase sempre olhando Josephine correr pela grama, às gargalhadas, dando encontrões em Mamoulian e tentando escapar de uma bolada de Ruth. Quando, por fim, mal podendo respirar, terminaram o jogo, e dona Magdalena deu a idéia de descerem ao porão para tomar café, Steiner reteve Josephine.

— Vão andando — disse ele para os outros —, nós já vamos. — Ofereceu-lhe o braço, e seguiram pelo caminho de cascalho que margeava o imenso gramado.

— Vai voltar muitas vezes?

— Se me convidarem... Jakob Steiner sorriu.

— Foi um dia muito bonito; deu até para a gente ficar alegre, não acha?

Ela concordou e, olhando-o com simpatia, disse:

— E eu estou muito alegre. Você não?

Steiner ficou olhando para suas mãos enormes, procurando as palavras.

— Quando olho para você sinto uma coisa tão estranha... Não posso dizer que seja alegria... é uma sensação muito especial, uma inquietude, uma insatisfação, saudades de...

— De quê?

— Não sei. De alguma coisa, não sei o quê. Eu acho que é porque você é muito bonita.

— É quase tudo pintura.

— Eu sei; estou vendo. Mas acho que mesmo tirando a pintura, ainda continuaria a ser bonita. Seu olhar é tão agradável...

— O seu também — retrucou Josephine; e, parando, arrancou uma margarida, prendendo-a em sua lapela. — Só que você tem uma expressão tão triste! Será que seus olhos não conseguem exprimir alegria?

— Obrigado pela flor. Acho que conseguiriam, sim. É só me lembrar de vez em quando.

— Ora, que bobagem! Se a gente tem que lembrar às pessoas de serem alegres, então é porque elas não são... Qual é seu primeiro nome?

— Jakob — disse ele, surpreso.

— Você não se importa que eu o chame de "você" e de Jakob?

— Ora, claro que não, Josephine.

Ele passou o braço por sua cintura e continuaram andando.

— Você já passou por muita coisa na vida, não é, Jakob?

— Sim — disse ele. — Perdi minha esposa e minha filhinha. Tinha a metade da idade de Ruth.

— Na guerra? Ele assentiu.

— Ruth não tem mais pai, não é?

— Não — continuou ela. — Há muito tempo. Não sentimos falta dele. Teria olhado muito pouco por ela.

— Mas deve ser muito bom — disse Steiner, pensativo

— viver com uma pessoa a quem se ama, ter uma filhinha e ser feliz como são as pessoas que a gente vê na rua e das quais falam os livros.

— É muito difícil viver assim — retrucou ela. — Muitas pessoas tentam, poucas porém conseguem. Hoje eu sou muito desconfiada, chego até a achar que é melhor viver sozinha. Principalmente quando se ama alguém. Viver junto só transforma as pessoas em inimigos.

— Nem todas.

— A maioria. Eu já vivi com muitas. Nunca deu certo. — Talvez não as tenha amado.

— Amei sim. Duas. E com essas foi pior ainda, pois eram ciumentas, cegas e mais difíceis de aturar ainda do que as que me eram indiferentes. Eu ainda acho que a coisa mais acertada é viver sozinha. Com um filho, quando possível. Filhos são bons companheiros. Enquanto são pequenos. Já tenho até medo de quando Ruth ficar maior.

Passaram pela cerejeira em flor, e Josephine olhou para os galhos.

— A gente deveria viver como a árvore — disse ela.

— Renascer toda primavera, florescer, ter folhas e frutos, e depois viver em paz para si, amadurecer os frutos no verão, ficar cansada no outono e morrer no inverno para despertar novamente na primavera seguinte. Gostaria de levar uma vida simples, como os animais ou as flores; você não, Jakob?

— Não poderíamos tentar juntos?

— Meu caro, se isso fosse tão fácil! — exclamou ela, continuando a andar. — Uma vida simples só podem levar aqueles que dispõem de bastante dinheiro para ser independentes. A vida dos pobres não é simples. É até muito complicada. Quanto mais pobre a pessoa, mais complicada a sua vida. Vida simples... isso é coisa para quem tem dinheiro no bolso, pode acreditar!

— O dinheiro não é tudo na vida — observou Steiner, pensativo.

— É tudo sim. Quando você não o tem, é que percebe a sua importância. Nada é tão importante na vida como o dinheiro, podem dizer o que quiserem. O que é uma consciência limpa ou um grande amor sem dinheiro? Nada, posso lhe garantir! A consciência limpa fica suja; o grande amor vai por água abaixo.

— Você então acredita que só podemos ser felizes quando tivermos dinheiro?

— Acredito, sim. Soa muito mal, mas é a verdade. Por que iria eu mentir para você? Eu mal o conheço, você está sendo gentil comigo. A felicidade depende exclusivamente do dinheiro, e por isso é muito arriscado ligarmo-nos a outra pessoa. Sozinha é sempre mais fácil dar um jeito. Sim — continuou ela, alisando já por hábito a mão de Jakob Steiner —, se eu soubesse que podia contar com a segurança... aí seria outra coisa. Toda a minha vida sempre sonhei em me sentir segura. A segurança vale mais do que a felicidade. Quando eu era criança, minha mãe me colocou num internato; passei de uma escola a outra, de uma cidade a outra, sempre entre gente estranha, desde que me lembro. Passei toda a minha vida no meio de estranhos, sempre cercada de insegurança. Não tenho nada com que possa contar ao certo; nada. Por isso é que sonho tanto com a segurança. Se alguém me oferecesse isso, eu viveria com ele, tentaria fazê-lo feliz. Eu mesma já estaria feliz, pois a felicidade para mim é segurança. Nada mais.

— Segurança contra o quê?

— Contra as coisas mais simples: o frio, a fome, a sede, a miséria. Quero me sentir protegida contra elas. Então sim, teria tempo para pensar no amor. Infelizmente, comigo a coisa é invertida.

Jakob Steiner pôs-se a refletir.

— Quer dizer então que para ficar comigo... só estou dando um exemplo... eu teria de ter um emprego, um pouco de dinheiro...

—... E um teto sobre a cabeça. Uma casinha onde pudéssemos morar, e assim manter a cabeça fria, e não ficar só falando nos nossos problemas...

— Sem tudo isso não daria?

— Tenho certeza de que não, Jakob. Já pensei nisso. Gostaria de viver a seu lado. Por que não? Você é mais simpático do que muitos outros; mas eu já lhe disse que sonho com a segurança, e esta você não pode me dar.

— Agora não.

— Agora não; e mais cedo ou mais tarde eu o largaria. Não gostaria de fazer tal coisa. Se você quiser me visitar, se quiser me amar... isso é outra coisa. Todas as pessoas precisam disso de vez em quando... pode vir me procurar.

— Mas eu gostaria de ficar com você para sempre.

— Mais tarde. Mais tarde talvez, Jakob. Quando ambos tivermos encontrado um pouco mais de segurança.

— E quando vai ser? — perguntou ele com amargura. — Sou um pobre-diabo.

— Quem sabe? Milagres ainda acontecem para aqueles que acreditam neles. — Ela deteve-se. — Talvez esta roseira ressecada ainda brote mais uma vez...

— Então você viria viver comigo?

— Na mesma hora.

— Mesmo sem segurança?

— Mesmo sem ela.

— Logo se vê — disse Steiner com um suspiro — que você não acredita em milagres.

— Mas gostaria de acreditar — murmurou ela, aninhando-se contra ele e beijando-o. Ele apertou-a nos braços. — Meu Jakob — murmurou ela —, arranje-me um pouco de segurança e irei viver com você, eu e minha pequenina Ruth; eu o farei feliz!

Jakob Steiner passou a noite calado. Não tomou parte no jogo de prendas que fizeram na cozinha. Mamoulian e dona Magdalena se divertiam muito. Contavam piadas picantes um para o outro e davam ruidosas gargalhadas. A pequenina Ruth saíra mais uma vez para o jardim a fim de cortar uns ramos da cerejeira em flor que ela queria levar para casa. Finalmente, também esse dia terminou. Carregadas, mãe e filha deixaram as estranhas ruínas da casa de Mamoulian. Jakob Steiner acompanhou-as até a rua.

— Até logo, tio Jakob — disse a pequenina Ruth, encostando-se sonolenta na mãe.

— Adeus, Jakob — disse esta, beijando-o rapidamente no rosto. — Você não vai se esquecer de mim?

— Não — murmurou ele com o coração apertado. — Você volta?

— Claro que volto.

Jakob Steiner ficou olhando até as duas figuras desaparecerem na escuridão. Acenaram ainda uma vez. Depois, a leve neblina da primavera as envolveu. Steiner voltou para o porão. Mamoulian estava deitado na espreguiçadeira, de cachimbo na boca. Descansava os pés em cima da mesa. Ao seu lado dona Magdalena fumava um charuto. Ambos gargalhavam por causa de uma anedota que Mamoulian acabara de contar, quando Jakob Steiner entrou, sentando-se também.

— Como é? O que aconteceu com você? — perguntou Mamoulian quando parou de rir. — Está resfriado?

— Mamoulian — respondeu Steiner —, nós vamos reconstruir a sua casa.


 

Se este fosse um romance comum, teríamos colocado como cabeçalho a frase: A declaração de Jakob Steiner teve o efeito de uma bomba! Os prezados leitores no entanto já devem ter notado que este livro nada tem de comum, e por isso ninguém pode se espantar com o fato de a declaração de Jakob Steiner não ter surtido o efeito de uma bomba. Aliás, por falar em bomba, esta seria no caso completamente fora de propósito e inteiramente inadequada.

Dona Magdalena parecia nem ter tomado conhecimento da observação de Jakob Steiner. Continuou rindo da piada contada pouco antes de Steiner entrar. Mamoulian mudou ligeiramente a posição das pernas, tirou o cachimbo da boca, bateu-o cuidadosamente, e disse, sonhador:

— Que bom, vamos reconstruir a minha casa! — Depois cruzou os braços atrás da cabeça e sorriu.

— Qualquer pessoa de bom senso compreende — disse Steiner animado, aproximando-se mais — que não se pode ficar vivendo durante anos numa ruína como esta.

— E por que não? — perguntou Mamoulian.

— Porque é uma situação indigna! Como criaturas sensatas temos a obrigação de nos ocupar, de ajudar a pôr ordem neste caos.

— Eu nego sumariamente tal obrigação — disse Mamoulian presunçosamente. — Não tenho obrigação alguma, e acima de tudo me recuso a ter qualquer coisa em comum com aqueles que estão a fim de ordenar o caos.

— E por quê? — perguntou Steiner, irritado.

— Porque graças a Deus esse tipo de obrigação não existe — afirmou Mamoulian decidido. — Porque só o fato de formulá-la é ridículo e completamente sem sentido. Ordem no caos! Um beco sem saída para o progresso da humanidade! Vamos reconstruir o mundo para podermos destruí-lo amanhã novamente! Ora, pare com isso, sr. Jakob Steiner! O senhor está sendo ridículo!

— Ainda hoje de manhã o senhor não pensava assim. Hoje mesmo falava em tomar parte na grande revolução que vai nos transformar a todos em homens felizes.

— Isso é outra coisa. Uma revolução não é um fenômeno que constrói. Uma revolução não obriga a nada. Nunca uma revolução transformou uma ruína em casa decente. Sempre foi o contrário. Através da revolução a humanidade só consegue um pouco mais de espaço para continuar a viver. Além do mais, o senhor não possui o menor senso de humor, senão teria notado que as minhas declarações tinham um colorido levemente irônico. Ou por acaso o senhor consegue imaginar-me de pé em cima de uma barricada, de bandeira na mão, todo envolto em fumaça de pólvora?

Jakob Steiner sentou-se, balançando a cabeça.

— Seu jeito de falar não me agrada, sr. Mamoulian. O senhor é um indeciso, não sabe o que quer. Como pode desejar que as coisas melhorem, se as pessoas só fazem pilhérias de tudo?

— Mas a vida é uma pilhéria — afirmou Mamoulian.

— A vida é a coisa mais engraçada deste mundo, com exceção do amor, que é mais engraçado ainda.

— Mas toda pessoa afinal tem de possuir um ponto de vista. Todo mundo tem de saber qual é a sua posição.

— Ora — fez Mamoulian, ocupado com seu cachimbo.

— E o senhor por acaso sabe qual é a sua?

— Sei. Graças a Deus, sei.

— Quero saber — disse Mamoulian muito triste —, pois eu não sei.

— Mamoulian! — exclamou Jakob Steiner, suplicando. — Será que pretende realmente ficar enfiado neste buraco, até que o teto lhe caia sobre a cabeça, sem mexer um dedo sequer?

— Claro — disse Mamoulian, soprando o cachimbo entupido. — E por que não? Quanto tempo vai demorar até que venha uma nova guerra? Um ano? Dois? Talvez cinco? E então...

— Não haverá outra guerra.

— Sim, não haverá — disse Mamoulian. — O senhor parece uma criança ou o apóstolo da humanidade... imagine, afirmar que não haverá mais guerra!

— Espero já ter morrido quando vier outra — disse dona Magdalena, pela primeira vez entrando na conversa.

— Tenho muito medo.

— Todos têm medo — disse Steiner. — Por isso é que não haverá mais guerra.

— Medo todos têm — concordou Mamoulian — e é exatamente por esse motivo que haverá outra guerra. Sempre haverá guerra enquanto os homens tiverem medo. O medo é, no fundo, a verdadeira causa da guerra. O medo, não o heroísmo!

— Vamos deixar a guerra de lado e discutir a melhor maneira de reconstruir rapidamente a sua casa.

— Mas eu não quero reconstruir a minha casa!

— Não quer? — exclamou Steiner, dando um soco na mesa. — O que quer então? Continuar sentado aqui neste porão esperando pelo fim, dar de ombros e não fazer nada?

— Em primeiro lugar — retrucou Mamoulian de testa franzida —, não gostei do soco que deu na mesa, Jakob...

— Desculpe-me.

— Em segundo lugar, o senhor está dando uma demonstração muito grande de vitalidade, para quem ainda ontem queria se enforcar. Em terceiro, quem disse que eu não pretendo fazer nada?

— E o que vai fazer?

— Vou acabar de traduzir meu livro — declarou Mamoulian, falando devagar, balançando a cabeça a cada palavra. — Depois, eu pretendo escrever o meu livro, e para isso preciso de muita paz e concentração, pois quero que seja um livro de grande sabedoria.

— Livros! — exclamou Jakob Steiner, rindo de raiva.

— Como se eles ainda valessem de alguma coisa! O tempo dos livros acabou, Mamoulian, eles não nos ajudam mais!

— O que é que nos ajuda então?

— Apenas nós mesmos. Apenas nós é que podemos nos ajudar. Se não quisermos que nosso mundo desmorone, devemos fazer dele novamente um mundo bonito através do nosso trabalho. Não tem o menor sentido escrever um livro de grande sabedoria dentro de uma ruína. O livro não há de transformar a ruína em casa. Só o trabalho é que pode nos ajudar.

Mamoulian levantou e começou a andar de um lado para outro.

— Em primeiro lugar, acalme-se e fume mais um de seus cigarros da Páscoa; depois continuaremos a conversa sobre a nossa ruína, como amigos. Apesar de eu não ter um ponto de vista formado, estou sempre disposto a ouvir a opinião dos outros. — Pigarreou, parou ao lado da escrivaninha onde, distraído, espalhou uma pilha de papéis para depois juntá-la novamente.

— Claro — disse dona Magdalena como se estivesse falando consigo mesma —, claro que não tem sentido reconstruir a casa toda como ela era antes. Nunca conseguiremos material suficiente para dois andares e uma cobertura...

— Dona Magdalena — disse Mamoulian surpreso —, a senhora também está com idéia de reconstruir a minha ruína?

— Claro — afirmou ela —, afinal temos de pôr ordem nisto aqui. Não podemos ficar vivendo num chiqueiro destes para sempre.

— Chiqueiro! — exclamou Mamoulian ofendido. — Este porão não é um chiqueiro! Ele tem sua atmosfera, tem suas particularidades, tem calor... é aconchegante. É o meu porão! Sempre me senti muito bem aqui, e de repente me aparecem vocês dois para dizer que eu me sinto bem dentro de um chiqueiro!

— Não era isso o que eu queria dizer — disse Jakob Steiner. — Eu só pensei que o senhor ficaria satisfeito com a idéia de reconstruirmos sua casa tal qual era antes. Ou talvez semelhante. Senão nem teria falado nisso. Afinal, que direito tenho eu de falar desta casa? Ela não me pertence, e nem tampouco pertence a dona Magdalena.

Houve um longo silêncio.

Dona Magdalena ficou olhando para Steiner, Steiner para Mamoulian, Mamoulian para um pedaço de papel em que estava escrito:

 

PARA O TIO MAMOULIAN

COM CARINHO

RUTH E JOSEPHINE

 

Finalmente Mamoulian virou-se e disse baixinho:

— Afinal, como é que vocês imaginam tudo isso? Contem... estou curioso.

Steiner meneou a cabeça.

— Você é um sujeito esquisito, Mamoulian. Bem que gostaria de entendê-lo.

— Sim — disse Mamoulian —, eu também gostaria.

Dona Magdalena aproximou-se da mesa. Trazia ainda na boca o horrível toco preto de charuto.

— Preste bem atenção — disse ela. — Eu não entendo nada de política, revoluções ou coisas deste gênero. Mas de construção eu entendo um bocado. Por isso, assim que vim para cá dei uma boa olhada nesta ruína, e posso dizer que é uma ruína excelente...

— Fico muito satisfeito em saber — disse Mamoulian.

—... as paredes que ainda estão de pé são resistentes; a madeira está em perfeito estado; lá fora tem muito ferro espalhado que pode ser aproveitado. Na verdade há material suficiente para construir uma casa de um andar só, isso eu já vi. Ao menos para as paredes, há. Para boa parte do forro e do telhado também. Claro que não dá para uma casa inteira.

— Ora — volveu Mamoulian —, mas com a sua prática...

— Sempre dá-se um jeito — disse Jakob Steiner, otimista. — Aos poucos conseguiremos juntar tudo o que precisamos.

— Juntar! Mas nós não temos dinheiro! — Mamoulian riu-se.

— Quem sabe o autor do seu livro volta?

— Sim — disse Mamoulian, preso na armadilha de sua própria esperança. — Mas quando? Com o meu amigo armênio nós não podemos contar.

— A maior parte das coisas que precisamos na vida — asseverou dona Magdalena com o maior descaramento — podem ser roubadas.

— Mas, dona Ma... — começou Mamoulian, calando-se imediatamente, pois se lembrara das duas dúzias de ovos de Páscoa.

— Ou então conseguiremos de graça. O senhor nem imagina quanto barrote, viga e tijolo eu posso conseguir! É uma sorte eu ser pedreira.

— E eu, marceneiro — acrescentou Jakob Steiner.

— E eu, ter uma ruína — completou Mamoulian; e todos riram.

Mamoulian continuou a andar de um lado para o outro. Toda vez tinha de se abaixar para passar sob a toalha pendurada no teto.

— A senhora então conseguiria construir uma casa dessas, dona Magdalena?

— Ora, se consigo! Quantas vezes já ajudei a construir!

— E quanto tempo leva?

Dona Magdalena fechou um olho, e ficou pensando.

— Somos só três. Não é grande coisa. Nem vamos poder trabalhar o dia inteiro. Mas até o verão ela pode estar pronta.

— Muito bem — disse Mamoulian; e depois, dando de ombros, acrescentou: — Nem é tanto assim!

— Não podemos é perder tempo — manifestou-se Jakob Steiner, que tinha recuperado o bom humor. — Quando começamos?

— Por mim, pode ser até amanhã!

— Por mim, não — retrucou Mamoulian. — Amanhã é segunda-feira de Páscoa, ainda é feriado. Não quero incomodar os outros.

— Bem, então na terça — disse Steiner, que não tinha o menor senso de humor. — Mas logo cedinho.

— Claro — concordou Mamoulian. — Logo cedinho.

— O dinheiro que precisamos para viver, nós dois ganhamos — afirmou dona Magdalena, dirigindo-se a Mamoulian. — Eu e o senhor. Eu continuo a trabalhar na obra até o meio-dia, e o senhor continua a escrever artigos para os jornais como vem fazendo.

— Certo — disse Mamoulian meio desanimado. — Só que escrever para o jornal não é tão fácil assim, dona Magdalena. Às vezes, eles aceitam os artigos, às vezes, não. É questão de sorte, sabe? Não é um emprego fixo...

— Bem, então só de vez em quando vamos poder contar com o seu dinheiro. Também não precisamos de grande coisa. Temos de comprar comida...

— E charutos — disse Mamoulian.

— E fumo de cachimbo — acrescentou Jakob Steiner.

— E cigarros — retrucou Mamoulian, preocupado em retribuir a gentileza.

— Ora, poderíamos economizar o fumo de cachimbo. O senhor pode muito bem usar o fumo das guimbas de cigarro e charuto. Ou não dá?

— Dá, sim — respondeu Mamoulian. — Embora não seja a mesma coisa. Principalmente quando se trata de seus charutos...

— Mas há um detalhe — disse Steiner, magnânimo. — Vocês se esqueceram de mim! Por acaso acham que eu também não posso ganhar dinheiro?

— O que pretende fazer?

— Vou vender chocolates, suspensórios e cigarros. Tenho um amigo que faz ponto no final da linha de bonde e vende esse tipo de coisa. Ganha até muito bem. Já me convidou para trabalhar com ele.

— Ora! — exclamou Mamoulian — desse jeito, de tanto ganhar dinheiro, não vamos nem ter tempo para trabalhar.

Cocou a cabeça e concluiu que o plano que eles três estavam imaginando era o mais louco de sua vida. Queriam reconstruir uma casa sem possuir um níquel sequer, sem ter a menor esperança de vir a possuir algum! Os três juntos viveriam de uma quantia normalmente necessária para o sustento de um só e ainda sobraria dinheiro para cigarros e charutos! Santo Deus, aquilo não era uma loucura? Não estaria ele sonhando? Tirando o cachimbo da boca, apertou-o contra a barriga. Doeu.

— Ai! — fez ele. Não estava sonhando então. Resolveu, pois, não pensar muito naquele plano louco para não acabar enlouquecendo também.

Dona Magdalena e Jakob Steiner continuavam a discutir animados. Já estavam organizando um horário que possibilitasse aos três ganhar dinheiro de maneira que ao menos dois sempre pudessem trabalhar juntos na reconstrução da casa.

— Que lhe parece? — perguntou dona Magdalena, pedreira de profissão, cheia de si. — Não é um bom plano? O senhor assim terá tempo de escrever aquele seu livro idiota. Vai ficar melhor do que estava?

— Vai — concordou Mamoulian. — Vai, sim! Eu me sinto como se tivesse nascido de novo. Que faria eu sem vocês?

— Ainda é muito cedo para agradecer — disse Jakob Steiner muito prosaico. — Primeiro temos de ver como a coisa vai funcionar.

— Hum — fez Mamoulian.

— O senhor tem dúvida?

— Eu não.

— Por que então fez "hum"?

— É um mau hábito meu.

— O senhor tem dúvida, sim.

— Pois não tenho.

— Verdade?

— Ora, é verdade, sim!

— Estranho — disse dona Magdalena Huber. — Porque eu tenho muitas...

 

 

— E as ferramentas? — perguntou Jakob Steiner, meia hora depois. — O senhor por acaso tem serra, martelo, plaina, cola, prego e tudo o mais?

— Temos de dar uma olhada — respondeu Mamoulian. — É bem capaz de eu ter qualquer coisa em casa. Nunca liguei para isso.

— De qualquer maneira — observou dona Magdalena —, eu vou ter uma conversa com o sr. Lobgesang. Afinal, também vamos precisar de enxadas, grampos de ferro, uma tina para massa e uma porção de coisas que eu tenho certeza que o senhor não possui.

— Quem é este sr. Lobgesang?

— É o chefe da firma. Uma pessoa formidável. Garanto que o senhor vai simpatizar com ele. Vou procurá-lo logo na terça-feira, para ver em que ele pode nos ajudar.

— Não é um pedido meio estranho?

— O sr. Lobgesang é uma pessoa estranha. Já vieram a ele com propostas mais loucas ainda, e ele mesmo já fez muita coisa maluca.

Mamoulian alisou carinhosamente o fornilho do velho cachimbo.

— Além disso — observou ele —, ninguém ainda se lembrou, mas vamos ter de procurar os órgãos oficiais, encher um monte de formulários, arrumar estampilhas e comunicar a uns vinte funcionários, no mínimo, o fato de que pretendemos construir uma casa.

— Ora, mas somos nós que vamos construir a casa, o fato só interessa a nós e a mais ninguém!

— Aí é que o senhor se engana, sr. Jakob Steiner — disse Mamoulian. — Ao Estado sempre interessa. À comunidade também. O que o senhor está pensando? Afinal, vamos precisar de autorização para conseguir cimento, madeira, vidro, além de um monte de licenças. Vivemos numa época altamente civilizada, em que tudo tem de ser devidamente registrado e anotado, arquivado pelas autoridades municipais e serviços de fiscalização até que detone a próxima bomba, transformando toda essa papelada num monte de entulho.

— Lá na obra nunca ouvi ninguém falar em licença — objetou dona Magdalena. — Falam em massa, tijolo, salário baixo e guerra, no calor do verão, no frio do inverno... nisso sim; mas nunca ouvi nada de formulários, nem estampilhas.

— É porque no seu trabalho a senhora ocupa apenas uma posição subalterna de um órgão executivo. Aqui, no entanto, a situação muda. A senhora passa a ser a construtora, o empresário, uma personalidade importante, com ares de capitalista, mesmo que não tenha um tostão no bolso. Isso não interessa em absoluto! A senhora se tornou uma pessoa autônoma, que segue os planos traçados por si mesma, que pretende alguma coisa, que tem algo em mira, e com isso se tornou uma personagem de grande interesse para as autoridades, e terá de ser controlada de qualquer maneira. Entende a diferença? Enquanto apenas fazia a sua massa, ninguém se interessava pela senhora, mas desde o momento em que passou a ser a empreendedora...

— O quê?

— Como?

— Passei a ser o quê?

— A empreendedora — repetiu Mamoulian.

— Ah! — fez dona Magdalena; e acrescentou: — Não entendo.

— A senhora passou a ser alguém que cria alguma coisa, que resolveu modificar uma situação. A senhora começou uma coisa capaz de pôr outras em movimento... e com isso, de repente, passa a ser olhada com desconfiança pelas autoridades, pois, para elas, pessoas criativas são pessoas sinistras. Portanto, garanto que não vai ser fácil, quando eles começarem a tentar nos desanimar de todas as maneiras a fim de que desistamos da reconstrução da casa.

— Não acredito.

— Está bem — disse Mamoulian. — Veremos.

— O melhor então seria o senhor tratar dessa parte. O senhor já sabe o que nos espera, e portanto dificilmente vai ficar desiludido — sugeriu dona Magdalena.

— Certo — concordou Mamoulian. — Agora vou dormir porque amanhã é outro dia. Além disso, estou muito cansado.

— Muito bem — disse dona Magdalena —, então na terça-feira começaremos.

Levantou-se, preparou uma confortável cama para Jakob Steiner na espreguiçadeira e depois foi se arrumar para dormir na larga cama de Mamoulian.

— Eu ainda vou dar uma volta no jardim — disse este de cachimbo na boca.

— Boa noite — disseram os outros dois. Mamoulian subiu a escada escura e chegou ao jardim.

Diante de sua janela estava novamente o gato arrepiado. Seus olhos verdes brilhavam no escuro.

— Psiu, psiu, psiu! — chamou Mamoulian satisfeito. O gato aproximou-se, esfregando-se de mansinho nas pernas de Mamoulian.

— Que existe gente maluca — disse ele para o magro gato — eu já sabia há muito tempo. Mas tão maluca assim, é novidade para mim...

O gato ronronou. Mamoulian encostou-se no muro rachado da casa e ficou olhando para o céu escuro, onde brilhavam estrelas.

— Mas o meu livro, ainda hei de escrever — disse ele baixinho na escuridão. — De noite, quando eles estiverem dormindo... — Um sorriso misterioso perpassou-lhe os lábios grossos.


 

Tobias Lobgesang era, quando jovem, o orgulho do pessoal do matadouro St. Marx. Todos o conheciam com o seu avental branco, o sorriso modesto, consciente de sua força de touro. Quando, com meio boi nas costas, atravessava a passos curtos e seguros o pátio, todos o seguiam com olhar de admiração.

Tobias tinha uma força extraordinária e, como a maioria das pessoas desse tipo, era também de uma bondade fora do comum. Com chuva ou sol, tinha sempre uma brincadeira para todos, e era de uma resistência inesgotável. Quando ficou noivo da moça da caixa, todos que souberam da notícia ficaram agradavelmente surpresos. Para o casamento, os colegas do matadouro organizaram uma suntuosa festa, da qual participaram também as esposas, mães, irmãs e noivas dos colegas. A festa durou até a manhã seguinte. Lobgesang ficou profundamente comovido. Pelas três da madrugada, em meio à brincadeira, levantou-se o dono do restaurante, que pesava uns cento e dez quilos, cantando versos desafiadores.

À medida que a hora ia avançando, a noiva, que naquele dia se tornara sra. Lobgesang, tomou-se de um estranho nervosismo. Era o primeiro sintoma de um processo que, evoluindo, foi aos poucos acabando com a serenidade, a alegria e o relacionamento jovial do sr. Lobgesang. Sua esposa, cujo nome de solteira era srta. Kugler, era do mesmo nível social do marido, porém com uma diferença: enquanto ele se sentia satisfeito, ela vivia se queixando, ansiando ardentemente por outro tipo de vida.

Na função de caixa, tinha-lhe sido possível manter durante as oito horas do seu dia de trabalho um ar de altivez e de distância, até de fria arrogância, aprovada mesmo por seus superiores, tendo em vista as inúmeras ameaças a que se encontram expostos aqueles que manuseiam grandes importâncias em dinheiro. Todavia, o tom de voz pouco amável e quase ofensivo com que tratava seus semelhantes acabou levando o forte Tobias ao desespero. Ali estava alguém que não se deixava impressionar (ao menos aparentemente) pela força e brutalidade, que era totalmente indiferente ao fato de ele conseguir envergar uma barra de ferro, e que olhava com um sorriso de desprezo suas demonstrações de força, como a de carregar meio boi nas costas. Na verdade, a srta. Kugler, que acabou se tornando sra. Lobgesang, ficava igualmente impressionada com o físico de atleta, os belos músculos e a infinita bondade de Tobias, só que não o demonstrava. Não era de bom tom mostrar abertamente seus sentimentos, fossem eles quais fossem, julgava ela.

Duas vezes por semana ela ia ao cine-teatro local, para ter durante noventa minutos o mesmo sonho ambicioso de sempre, em milhares de novas variações. Também ela queria comer com talheres de prata, ficar com cavalheiros elegantes, junto a magníficos aparadores, naquela conversa espirituosa de salão, circulando por escadarias de mármore em magníficos vestidos, atravessar ruas em carros de luxo, e se apresentar nos camarotes da Ópera do Estado, sorrindo discretamente, ao lado de um companheiro vestido com requinte.

O fato de se casar exatamente com o sr. Lobgesang, cujos planos para o futuro seguiam uma direção diametralmente oposta, deve-se à estranha falta de lógica da srta. Kugler ou à estranha falta de lógica das mulheres em geral. Casara-se com Tobias justamente pelo fato de ele não ter nenhuma intenção de se ligar ao grande mundo por ela sonhado. Se tivesse encontrado um diplomata, seus sonhos estariam realizados, e por conseguinte terminados. Casando-se com Tobias Lobgesang, no entanto, via-os aumentar, condensar-se, e em breve tomariam conta de toda a sua capacidade de raciocinar, que não era das maiores. Com Lobgesang podia viver e ser infeliz, e ela gostava de ser infeliz, contanto que não chegasse a grandes extremos.

Não chegou a grandes extremos. Desde os treze anos a sra. Lobgesang tinha sido infeliz e sentia-se bem com isso. Dava-lhe até um certo prazer, e por esse motivo cometia o erro de julgar por si os seus semelhantes, achando ser obrigação sua mostrar claramente ao marido a indignidade do ambiente em que ele vivia.

Na noite do casamento, durante a festa, aos poucos foram lhe causando uma repugnância profunda o cheiro de cerveja, a fumaça dos charutos, os vestidos baratos das mulheres, os elogios vulgares dos homens, as explosões banais de alegria, as intimidades deselegantes. Acabou se sentindo tão esplendidamente infeliz como há muito não acontecia.

Enquanto um quarteto de cordas executava sentimentais músicas vienenses, e na pista de dança rodopiavam casais suarentos, Lobgesang, com a gravata toda torta, tomara a liberdade de beliscar sua jovem esposa no traseiro, e esta, sempre perdida em devaneios, sempre alheia à realidade e às suas tentações, via diante de seus olhos a figura visionária do homem de seus sonhos vagando pelos luxuosos salões de Wimberg, impecavelmente vestido, com uma flor na lapela, um sorriso de sofredor nos lábios, cabelos pretos brilhantes...

— Minha senhora — dizia ele com voz sonora, levantando ironicamente uma sobrancelha —, como pode se perder numa sociedade dessas? Permite que a acompanhe até sua casa? — continuava ele, inclinando-se de cilindro na mão! — Ele lhe oferecia o braço, e ela, agradecida, fitava seus olhos cansados, e juntos iam, ou melhor, flutuavam por entre a multidão suarenta dos menos bem-nascidos, em direção à entrada por cima da qual se lia: "Viva os noivos!"

O espanto e a surpresa foram, pois, gerais, principalmente para o bom e musculoso marido, Tobias Lobgesang, quando, em meio à festa, a jovem sra. Lobgesang, nascida Kugler, de repente irrompeu em choro convulsivo. No momento exato em que o corpo etéreo da jovem esposa, levada pelo braço do mensageiro celeste, atravessava o cheiro de cerveja e a fumaça de charutos à procura de um mundo melhor, o marido desajeitado derramou um copo de ponche em cima de seu vestido de noiva.

Um pequeno acidente, apenas, que nem era digno de atenção. Não era, retrucamos nós, se ignorarmos as complexas circunstâncias que ocorriam no momento do incidente. Se a sra. Lobgesang não tivesse a capacidade de ser infeliz com tanta intensidade, ela teria dado uma gostosa gargalhada e, com um beijo na boca do marido, lhe teria assegurado que aquilo não era nada.

No entanto, nós sabemos que a coisa haveria de se desenrolar de maneira totalmente diversa.

Ela deu um grito agudo, lágrimas lhe saltaram dos olhos de um azul celeste, e um soluço convulsivo sacudiu seu corpo rechonchudo. Não houve jeito de acalmá-la. Desiludido e encabulado, o marido levou-a para uma sala ao lado onde, estendida num divã, ela acabou adormecendo... Tobias voltou para junto dos amigos, desculpou-se gaguejando e, para mudar de assunto, para entrar num campo em que ele se sentia à vontade, ergueu no alto o dono do restaurante, como já mencionamos antes, cantando versos obscenos. Em seguida, tomou a maior bebedeira. Não conseguiu, porém, ser feliz. De repente, percebeu que a mulher lhe era um enigma. Essa foi a noite de núpcias do sr. Lobgesang.

Muitas vezes, nos anos seguintes, ele ainda iria se lembrar dela.

 

Quando veio a guerra, Tobias Lobgesang tornou-se soldado e foi promovido a cabo. Ao terminar a guerra ainda era cabo, mas já não era mais o mesmo. Era outro Lobgesang; vivo, ladino e escaldado, que voltava da prisão americana no verão de 1945 num carro cinza da antiga Wehrmacht alemã, todo sujo, a barba por fazer, e que entrava na pequena cidade de Ischl.

Já não tinha mais ilusões. Conhecera as pessoas e o mundo. Sabia que não valia a pena confiar em ninguém a não ser em si mesmo. Vendo que uma quantidade enorme de refugiados andava em romaria constante pelo país, instalou para eles um serviço de transporte. A princípio só levava passageiros com a respectiva bagagem a uma distância que nunca ia além de duzentos quilômetros, sempre com pagamento adiantado. Dois meses depois de sua chegada em Ischl, trocou o carro por um caminhão de duas toneladas e meia e passou a transportar volumes maiores a distâncias maiores. No fim do quarto mês escreveu um cartão à mulher, pedindo que viesse para Ischl. No Natal do mesmo ano, o sr. Lobgesang já possuía dois caminhões e um carro de passeio. No verão de 1946, já havia juntado além disso cento e vinte mil xelins.

Foi então para Viena. Logo depois de sua chegada, procurou uma tia afastada que recebera do marido morto na guerra a concessão, o depósito, as salas de escritório e os papéis de uma firma construtora.

Tinha ela oitenta e dois anos, era meio cega e meio surda e estava começando a ficar senil. Em troca de uma renda mensal, Lobgesang comprou as instalações que para ela não tinham o menor valor, passou tudo para o seu nome e fundou a Firma Construtora Tobias Lobgesang. No fim de 1946 já trabalhava com quinze operários e três funcionários de escritório. No início de 1947 fez o primeiro serviço para o município. Na época da Páscoa, já era um homem de posses com a perspectiva de se tornar ainda mais rico.

A sra. Lobgesang, nascida Kugler, acompanhara essa ascensão com grande interesse e satisfação. De repente começou a agir. Reformou a casa toda. Comprou quadros e tapetes novos, renovou o guarda-roupa e, sobretudo, fez novas amizades. Entre elas havia estrangeiros, jornalistas, altos funcionários. Dava, além disso, preferência às pessoas com algum título, pois achava isso de grande requinte. O casal Lobgesang passou a ser o preferido pela sociedade vienense em ascensão, devido à excelente comida, à bebida de classe e ao fato de um dos anfitriões, ao menos, não ser cheio de si. O sr. Lobgesang se apresentava aos inúmeros novos amigos da esposa exatamente como era: mal-humorado e em mangas de camisa. Ele não era feliz. Estava, aliás, bem longe de sê-lo. Amava no entanto a esposa e não conseguia reagir contra o insuportável estilo de vida ao qual ela o condenara. Os músculos de Tobias Lobgesang eram rijos como ferro, mas, seu coração, manteiga derretida. Sob certos aspectos era o primitivo oposto de Mamoulian, a quem ele não conhecia, e que também não o conhecia, mas com uma diferença: Mamoulian se sentia feliz na época de seu esplendor. Lobgesang não. Tinha saudades dos colegas do matadouro, e nas poucas horas de folga que seus negócios lhe permitiam, ia visitá-los clandestinamente nos bares dos subúrbios da cidade, onde pagava algumas rodadas e falava com nostalgia dos bons dias de St. Marx. Quando, depois, voltava confuso e pensativo para casa, com vontade de ir dormir, a mulher já estava à sua espera, insistindo para que trocasse rapidamente de roupa, arrastando-o para horríveis peças de teatro que o aborreciam; para concertos piores ainda, onde ele se sentia perdido como uma criança; para recepções onde, em meio a divindades masculinas e femininas, ele se comportava exatamente como no matadouro; a elegantes restaurantes, onde lhe cabia a honra de poder pagar pelo que consumia uma dúzia de pessoas encantadoras, as quais sussurravam entre si que ele, o pobre coitado, era realmente um proletário incorrigível.

Tobias Lobgesang desprezava as novas relações da mulher, e estas o desprezavam. Para elas, todavia, o fato não trazia nenhum prejuízo financeiro; para Tobias, sim. Na sua simplicidade, seu íntimo se revoltava contra o fato de gastar dinheiro com gente que não lhe agradava, que fazia e falava de coisas das quais ele não tinha a menor compreensão. Lobgesang conservara uma veia de grande filantropia e, como Mamoulian, ansiava em proporcionar alegria aos outros. Só que não encontrava a pessoa certa. Vivia rodeado de larvas e lêmures a quem ele, na verdade, dava um nome bem diferente, e com isso foi ficando dia a dia mais triste. Conseqüentemente o escritório vazio, junto ao depósito de material da firma, acabou sendo para ele o lugar mais agradável para ficar. Mandou vir um divã e, por vezes, passava noites sozinho com o vigia, no tosco barraco de madeira, enquanto lá fora o vapor subia dos depósitos de cal, os trens passavam trovejando e a esposa deslumbrada era o centro de brilhantes reuniões sociais em sua luxuosa e moderníssima residência.

Era essa a situação em que se encontrava o ex-açougueiro, forte e feliz, a quem seis anos de uma sinistra guerra haviam levado a conhecer a humanidade e lhe abriram os olhos, a quem todo o dinheiro não conseguia tornar feliz porque entre ele e a mulher se erguia, como fina nesga de lua, a sombra etérea de um desconhecido que na noite de núpcias se inclinara sobre a esposa, murmurando: Minha senhora, como pode perder-se numa sociedade dessas?

 

— Sente-se, dona Magdalena — disse Lobgesang para a pedreira de profissão, depois de um firme aperto de mão. — A senhora fuma?

Dona Magdalena tirou um charuto da caixa de madeira que Lobgesang lhe ofereceu.

— O senhor é sempre tão amável — disse ela, mordendo a ponta do charuto e cuspindo-a no cesto de papel — que eu pensei que a melhor coisa seria vir procurá-lo diretamente. Vou direto ao chefe, pensei comigo, falo com ele. O máximo que poderá fazer é pôr-me para fora.

— Dona Magdalena — disse Lobgesang, acendendo um fósforo —, nunca expulsei um funcionário meu do escritório. De que se trata?

Dona Magdalena ficou chupando o charuto, soprou uma grossa nuvem de fumaça, recostou-se na cadeira desconfortável, cruzou os braços curtos por cima da barriga redonda e disse:

— Eu quero construir uma casa.

— Muito bem — disse Lobgesang. — Sozinha?

— Sozinha não. Com mais duas pessoas. Um velho e um moço. O velho é o dono da casa, o moço teve a idéia.

— Espere um instante — disse Lobgesang, assoando o nariz num lenço vermelho que a mulher detestava. — O velho é o dono da casa. Como? A senhora não disse que quer construir uma casa?

— A ruína é dele; o que ele tem é uma ruína. A quem vai pertencer a casa depois, nisso eu ainda não pensei.

— Agora sim — disse Lobgesang, apoiando nas mãos a pesada cabeça de camponês. — Gostaria que a senhora me contasse a coisa com mais detalhes, dona Magdalena.

Dona Magdalena contou. Contou detalhadamente, fez uma descrição fiel da situação, não escondeu nada. Nada de importante, ao menos. Passada meia hora, Tobias Lobgesang conhecia a situação do sr. Mamoulian como a palma de sua mão. Roia pensativo a unha do polegar, e ouvia interessado o que ela contava.

— Sim — arrematou dona Magdalena, respeitando a frase da introdução. — Aí está. Eu então pensei que a melhor atitude era eu vir procurar diretamente o chefe; o máximo que... bem, o senhor já sabe. É por isso que estou aqui!

Chupava nervosamente o charuto, olhando esperançosa para Tobias Lobgesang. Este levantou, olhou através das janelas sujas do barraco para o depósito de material e os homens que estavam carregando um caminhão com sacos de cimento.

Dona Magdalena acompanhou seu olhar, esperando ansiosa por uma reação. Não se sentia muito à vontade. Quem sabe, pensou, ele é muito melindroso e vai se irritar tanto com a minha proposta que ainda acabará me despedindo? O que faço eu então? Meu Deus, pensou ela, sentindo o suor frio escorrer-lhe pelas costas, o que faço? Deitou um olhar nervoso nas unhas largas, sempre sujas de terra. Depois fitou novamente Lobgesang, que continuava de pé junto à janela, olhando para o depósito.

— E vocês moram os três naquele porão? — perguntou ele com voz mudada.

— Sim, senhor. Depois de reconstruir a casa, continuaremos a viver juntos também. Estamos felizes só em pensar nisso. Faz muito tempo que não moro numa casa decente. Acho que vai ser uma experiência muito interessante para mim.

Tobias Lobgesang pensou em sua residência de luxo, na mulher com todas as suas exigências, e sentiu-se de repente muito só no mundo. Que sentido tinha a sua vida?

— E este sr. Mamoulian — perguntou ele, triste e desconfiado —, é realmente um ser humano? Eu quero dizer, uma pessoa humana mesmo? Ou é apenas membro dessa malta nojenta que fala grosso, usa roupa alinhada, sabe como se comportar em sociedade, mas nunca trabalhou na vida?

— Mamoulian — retrucou dona Magdalena — é uma pessoa muito humana. Já foi muito rico. Hoje é muito pobre, mas continua sendo sensível, pode acreditar em mim, sr. Lobgesang. Eu mesma o vi presentear uma garotinha na Páscoa, e hei de me lembrar disso para o resto da vida, mesmo que chegue a cem anos!

— E ele é muito culto? — perguntou Lobgesang, preocupado em achar algum defeito.

— Está traduzindo um livro e depois pretende escrever um. É muito culto, sim — disse ela —, porém ao mesmo tempo é tão simples quanto eu, o senhor ou Jakob Steiner. Também sabe trabalhar; é como se fosse nosso irmão — acrescentou ela um pouco envergonhada. — Às vezes penso que as pessoas que trabalham... pessoas como eu, o senhor e nós todos estão tão ligadas como se fossem irmãs, como uma grande família... Desculpe, sr. Lobgesang.

— Pode continuar, dona Magdalena — disse ele, aproximando-se. — A senhora tem toda a razão. Nós somos todos ligados, ou ao menos deveríamos ser. O que a senhora ia dizer?

— Nada, não — respondeu ela. — Era só isso. Não sei falar direito, mas o que eu quero dizer é que, como afinal todos devemos ser unidos, como o senhor é como se fosse nosso irmão nesta grande família de gente que trabalha, por isso eu pensei que talvez... talvez o senhor pudesse nos emprestar uma tina para fazer massa, ou arrumar alguns sacos de cimento, umas centenas de tijolos, um pouco de madeira ou cal.

— Dona Magdalena! — disse Lobgesang muito alto, aproximando-se dela, fazendo com que se encolhesse assustada na poltrona, sorrindo encabulada. — A senhora está brincando?

— Não, senhor — respondeu ela corajosamente. — Sinto muito que tenha ficado zangado. Não era minha intenção. Eu não me incomodo absolutamente em usar parte do meu salário para pagar o material; não queremos nada de graça, só que no momento não temos dinheiro, somos pobres demais para comprar tudo de uma vez... — Calou-se, pois notou que o sr. Lobgesang olhava fixo para ela, e de repente tomou-se de pânico.

Quem sabe ele está maluco? Pensou ela. Quem sabe vai puxar uma faca e me matar? Santo Deus, por que fui contar tudo a ele? Veja só como olha para mim!... Tobias Lobgesang, todavia, nem estava olhando para ela. Olhava através dela. Através dela e da parede do barraco, para uma paisagem irreal coberta de neblina, onde vislumbrava a silhueta de uma casa cujas paredes iam subindo lentamente, construídas pelas mãos de três pessoas que se sentiriam completamente deslocadas em sua casa, na residência da sra. Lobgesang, nascida Kugler, mas em relação aos quais se sentia atraído de maneira misteriosa, com força irresistível, pois estava convencido de que em companhia delas poderia ser feliz. Em louco redemoinho, as roupas suntuosas das damas e cavalheiros que freqüentavam a sua casa passaram por Tobias Lobgesang; rodopiavam, inclinavam-se, riam, protestavam, acenavam e dançavam. Era dele que riam! Riam e zombavam dele! Não iria admitir que rissem dele! Não tinham esse direito! Na verdade não tinham direito algum de rir! Por que afinal apareciam, se o achavam ridículo? Por que não o deixavam em paz? Por quê? '

— Por quê? — gritou de repente Tobias Lobgesang com voz de trovão, pespegando um soco na mesa diante de dona Magdalena, fazendo-a pular de susto, e provocando um estremecimento nas janelas.

É agora, pensou a pedreira de profissão, é agora que ele puxa a faca! É agora que ele me mata! Meu Deus, é chegado o meu fim... Em pânico, ela se levantou e, com a audácia do instinto de preservação, passou os dois braços musculosos em torno do enfurecido, apertando-o com força. Em desespero começou a gritar por socorro. Não adiantava nada, pois já era hora do almoço, e todos os operários e funcionários tinham saído.

— Socorro! — gritava dona Magdalena Huber, sacudindo o algemado Lobgesang violentamente. — Socorro!

— Idiota! — gritava Lobgesang, chefe da Firma Construtora Tobias Lobgesang, levantando os dois braços; e com o rosto vermelho, os olhos esbugalhados, procurava se livrar dos braços da velha. — Seus fracotes! Suas toupeiras, seus vermes! Boa tarde, doutor! Meus cumprimentos, excelência! Pobres idiotas, crianças estúpidas, caras de meia-tigela!

Tentou respirar fundo. Aproveitando a ocasião, dona Magdalena redobrou seus gritos de socorro, sendo no entanto logo interrompida.

— Odeio vocês! Vocês não prestam para nada! Seus elefantes com cabeças de pulga, fingidos de duas caras, nojentos reviradores de lixo, seus idiotas falidos...

Mais uma vez Lobgesang calou-se... e mais uma vez Dona Magdalena gritou por socorro, mas o outro logo continuou:

— Odeio todos vocês! Não quero mais ver as suas caras, não quero mais, não quero... — e de repente caiu como um saco vazio, perguntando confuso: — Que idéia é essa de ficar me segurando e gritando por socorro, dona Magdalena? — Ela ficou olhando para ele trêmula, de lábios cerrados, sem dizer uma palavra, sem se mexer um milímetro sequer.

— Vamos, droga, responda! Por que está me segurando? Por que está gritando por socorro?

— Porque estou com medo — respondeu ela. — Porque de repente o senhor começou a gritar tanto que fiquei apavorada, pensei que fosse me matar.

— Foi mesmo? Eu gritei? — perguntou Tobias Lobgesang. — Bem, dá para gritar mesmo. Não queria assustá-la. Largue-me, já estou calmo novamente. Não vou lhe fazer nada.

— Se eu tivesse certeza... — disse dona Magdalena, cerrando os dentes.

— Largue-me!

— De jeito nenhum! — retrucou a pedreira de profissão. — Para o senhor me meter uma faca nas costas?

— Faca nas costas? — repetiu Lobgesang, começando a ficar furioso novamente. — Se não me largar agora mesmo, não mexo um dedo por aquela porcaria de casa, garanto!

Dona Magdalena piscou, incrédula.

— Será que ouvi bem? Que foi que o senhor disse? Que não ia o quê?

— Disse que não ia mexer um dedo, isso mesmo — repetiu Lobgesang. — Ora, vá para o inferno, dona Magdalena, mas largue-me!

— Calma — disse ela. — Calma, muita calma. Quer dizer então que se eu o largar o senhor vai mexer um dedo?

— Um dedo? As duas mãos, os dedos dos pés, todos!

— Mas por que gritou desse jeito?

— Porque eu... — começou Lobgesang —... porque a senhora... porque nós todos... ora, esqueça, a senhora não iria entender mesmo.

Dona Magdalena largou-o e deu alguns passos para trás.

— Também, não importa — disse ela. — Afinal, se lhe deu vontade, por que não haveria de gritar? Enquanto não meter uma faca em minhas costas, não importa. O que importa é que colabore conosco. Vai ajudar mesmo?

— Com uma condição.

— Muito bem. Isso eu já imaginava. Não devia ter soltado o senhor. Qual é a condição?

— Na verdade, são duas.

— Ora, diga logo!

— Em primeiro lugar — disse Tobias Lobgesang, pensando com grande amargura em sua mulher —, vocês teriam de me deixar ajudar. Em segundo, têm de me deixar dormir de vez em quando naquele porão — disse ele baixinho. — Não gosto mais da minha casa. Como é, pode ser?

— Santa Maria! — exclamou dona Magdalena, dando um violento tapa no ombro do perplexo Lobgesang. — Ele pergunta se pode! Isso já é demais! Quando quer ir lá para casa, chefe?

 

O amigo de Jakob Steiner que o havia convidado para vender meias de náilon, chocolate e cigarros estrangeiros, na estação da Nussdorfer Strasse, tinha vinte e seis anos. Era muito alto e magro; chamava-se Olbrich. Tinha mulher, uma pequena casa em Waechring, não tinha profissão, porém, muitos problemas. Além do mais era perneta. A outra perna ficara num hospital de frente de batalha perto de Smolensk. Era ela a razão de seus problemas e desemprego. Antes da guerra trabalhara de carteiro, e agora não tinha mais condição para o serviço. Recebia uma pequena renda que não dava para viver, e tinha uma perna mecânica que não lhe permitia andar. Resolveu então continuar a pular numa perna só, usando muleta, e vender um pouco mais caro as coisas que ainda não podiam ser adquiridas livremente.

Olbrich conhecera Steiner na época de soldado, e por isso lhe tinha feito a proposta de trabalharem juntos. Na terça-feira depois da Páscoa, por volta das duas da tarde, ambos entraram no Café Elite, um bar perto do parque conhecido por Reduto dos Turcos. O local era visado pela polícia, suas cadeiras de veludo eram imundas e o dono, uma pessoa de muito boa aparência, chamava-se Anton.

Anton tratava os diversos agentes de polícia, que vinham a seu bar a serviço quase todas as noites, por "você", e para um observador imparcial ele parecia o protótipo do vienense bem-humorado. Era uma pessoa fina, extremamente cautelosa. Todo mundo sabia que ele abastecia o mercado negro num raio de alguns quilômetros em torno do bar, mas ninguém conseguia provar nada. Pelo menos ninguém que pudesse lhe causar algum prejuízo. O sr. Anton estava sempre sorrindo. A vida era para ele uma instituição muitíssimo interessante, cheia de distrações. Gostava de viver. Achava que as pessoas em geral eram idiotas e, aproveitando-se financeiramente dessa sua profunda convicção, conseguira juntar desde o fim da guerra uma razoável fortuna, que aplicara com a maior segurança. De estatura mediana, sempre impecavelmente vestido, o olhar penetrante, lábios finos e desbotados, uma respeitável calva que lhe tomava quase toda a cabeça, um pincenê de ouro, preso por uma fita preta, mãos alvas e muito bem tratadas, gostava de contemplar seu reino encostado no balcão do bar, com o peito estufado, a cabeça jogada para trás. Este era o sr. Anton, dono do Café Elite. Apertou cordialmente a mão de Jakob Steiner, quando Olbrich o apresentou.

— É novo no ramo — disse ele. — Nunca fez esse tipo de trabalho?

— Não.

— Então tenho de lhe explicar em poucas palavras as condições exigidas pelo cavalheiro para quem faço o favor de distribuir a mercadoria.

— Não é preciso — disse Olbrich. — Já expliquei tudo. O senhor lhe adianta quinhentos xelins de mercadorias, e toda noite ele vem prestar contas. Ele já sabe qual o preço mínimo, e será imediatamente informado de qualquer oscilação de câmbio.

— Muito bem. — O sr. Anton cruzou as mãos por cima da barriga onde pendia o pincenê de ouro. — O senhor não acha que é um sistema muito sensato?

— O que me surpreende — disse Steiner — é o senhor me confiar uma quantia tão grande em mercadoria. Afinal eu poderia me mandar. Não que eu vá fazê-lo. Mas poderia.

— É questão de confiança recíproca — disse o sr. Anton. — A confiança é a base de qualquer transação comerciai. Eu confio no senhor, o senhor confia em mim. Muito bem. Ótimo. É só o senhor me deixar sua carteira de identidade e passar aqui à noite. — O sr. Anton sorriu, lembrando-se mais uma vez da grande estupidez dos homens. — Está combinado então — disse com olhar de moça. — De que precisam os senhores para hoje?

— O mesmo de sempre. — Olbrich colocou uma pasta em cima da mesa. O sr. Anton pegou-a juntamente com a pequena mochila que Steiner lhe estendera, desculpou-se por um instante, sumiu, para voltar logo depois.

— Pronto — disse ele, quando apareceu bem mais carregado, emergindo do corredor escuro que, pelo cheiro, ia dar na cozinha. — Eu lhe dei trinta tabletes grandes de chocolate, vinte e cinco maços de cigarros americanos, dez pares de suspensórios e cinco pares de meia. Pode conferir.

— Não é preciso — disse Olbrich; o sr. Anton aquiesceu.

— Os preços são os mesmos de ontem. — Depois, colocando amavelmente a mão alva e bem-cuidada no ombro de Steiner, lembrou: — O senhor não ia deixar comigo os documentos?

— É mesmo — disse Steiner, metendo envergonhado a mão no bolso. — Tinha esquecido completamente.

Sorridente, o sr. Anton recebeu os papéis, fez um movimento indulgente com a cabeça e voltou para o balcão, onde estufou o peito, jogou a cabeça para trás e ficou meditando sobre a grande estupidez dos homens.

— Não somos os únicos que vendemos cigarros na Nussdorfer Strasse — disse Olbrich, atravessando a faixa da Billrothstrasse. — Outros fazem ponto lá, vou apresentá-los a você.

— Espero que não façam nenhuma objeção.

— Veremos — disse Olbrich um pouco nervoso como sempre. — Não são maus sujeitos, mas a cidade está toda dividida, todo mundo tem medo da concorrência.

Chegaram à estação, e Olbrich entregou a pasta e a mochila à moça que tomava conta do toalete.

— É para não ficarmos com mercadoria demais, se a polícia estiver nos controlando, entende? Você pode passar aqui a qualquer hora para apanhar mais mercadoria. Pegue os cigarros e três tabletes de chocolate.

Saíram.

— Fique parado aqui perto da subida — disse Olbrich, apontando um lugar para Steiner. — Eu vou ficar lá na saída.

— Muito bem — disse Steiner, encostando-se na parede; seguindo o outro com os olhos, viu-o passar pela porta de vidro, pulando num pé só, encostar-se lá fora nas colunas imensas que sustentavam o portal, e pegar um maço de cigarros na mão.

Olbrich apoiava o toco da perna na forquilha da muleta sobre a qual apoiara o cotovelo. Levemente inclinado para a frente, parecia alguém que ia tirar um cigarro do maço, e que estava lá em pé, abandonado pela vida. Steiner viu os lábios de Olbrich se moverem quando alguém passava. Automaticamente, imitou-o. — Americanos — dizia Jakob Steiner com olhar taciturno, a mão no maço, com voz baixa, desanimado: — Chesterfield, Lucky Strike, Camel, americanos... Chocolates...

Lá em cima um trem entrou trovejando na estação. Algumas pessoas desceram apressadas as escadas. Jakob Steiner se encolheu mais no canto escuro e emudeceu por completo. Apenas a mão oferecia um maço de cigarros americanos. Ficou assim imóvel, esperando que a avalancha de apressados passasse por ele, se dispersasse e voltasse a calma. Ficou muito surpreso de já ter antes conseguido vender seu primeiro maço de cigarros e um tablete de chocolate. Sua autoconfiança ia aumentando. Olbrich virou-se para ele; Steiner acenou. Depois apertou bem os olhos, tentando evocar a imagem de Josephine e da pequenina Ruth. Levou tempo até conseguir. Finalmente viu a pequenina Ruth sorrindo. Continuou imóvel. De vez em quando dizia: — Cigarros... Chocolate... — Meia hora depois ocorreu o incidente.

Steiner levantou os olhos, achando que um novo freguês tinha se aproximado, mas logo reconheceu seu engano. Os dois sujeitos que olhavam de cara feia não eram fregueses. Absolutamente. Eram concorrentes, Steiner logo percebeu. Também não era difícil; ambos eram pernetas.

— O que você faz? — perguntou o primeiro.

— Vendo cigarros — respondeu Steiner com mais coragem do que sentia. — Não estão vendo?

— Estamos, sim — retrucou o segundo. — Você ouviu, Emil, ele ainda pergunta se não estamos vendo.

O primeiro balançou a cabeça.

— Esse é um dos espertos.

— Sim — disse o outro, que usava boné. — É por esse tipo que estávamos esperando.

— Vá andando! — disse o outro, levantando o queixo.

— Foi um amigo que me mandou ficar aqui — retrucou Steiner, irritado. — Afinal a estação não pertence a vocês.

— Chegamos primeiro.

— E daí? Isso por acaso basta?

— Ouça, seu espertalhão — disse o do boné —, nós temos outro motivo ainda, e bem melhor: só temos uma perna. Você tem duas. Por que não vai trabalhar em obra?

— Porque eu... — começou Steiner, mas calou-se. — Ora — disse ele exaltado —, que diabo têm vocês a ver com isso?

— Olhe aqui, seu espertalhão — disse o segundo perneta, batendo-lhe com a muleta contra a canela —, não seja malcriado! Com a gente não! Nós já acabamos com outro tipo de gente naquela porcaria de guerra que nos aleijou, entendeu? Uma meia dúzia igual a você, a gente liquida brincando; com uma mão só!

— Eu também estive na guerra — respondeu Steiner, irritado. — Vocês por acaso acham que são heróis, só porque...

Para seu grande alívio, ouviu nesse momento uma voz calma e grossa que disse:

— O que houve, colegas? — Era Olbrich. Os dois o cumprimentaram mal-humorados.

— Tem um novo aqui — disse o do boné.

— Eu sei. Fui eu quem o trouxe.

— Sem falar com a gente?

— Sempre tem lugar para mais um.

— Aqui não — disse o segundo perneta. — Aqui para três já é difícil. Todos nós temos mulher em casa. Puxa, não esperava uma coisa dessas de você, Olbrich.

— Não esperava o quê? — perguntou Olbrich, irritado. — Steiner esteve na Rússia como você e eu. Ele está passando pelo mesmo aperto que nós. Ou vocês acham que ele está em pé aí para se divertir?

— Que fique em pé em outro lugar.

— Em outro lugar — repetiu Olbrich, fazendo força para não perder a paciência — vai ser mais difícil ainda do que aqui. Aqui ele ao menos conhece a mim. Em qualquer outro lugar não conhece ninguém.

— Ora bolas! — disse o do boné. — O que eu não entendo é por que diabo ele tem de vender cigarros. Ele não pode arranjar emprego? Não tem duas pernas? Responda, Olbrich!

— Ele não consegue arrumar outro trabalho porque só tem meio dia livre. Depois faz outra coisa.

— Qual é a sua profissão, espertalhão?

— Marceneiro — respondeu Steiner mal-humorado.

— E por que então não trabalha como marceneiro?

— Deixe de perguntas idiotas, Emil — disse Olbrich furioso. — Por que você não é fiscal?

— Ora, porque não encontro emprego de fiscal.

— E por que você acha que Steiner não trabalha de marceneiro?

— Ah! — fez Emil; tirou o boné e cuspiu no chão de ladrilho amarelo. — Mas ele tem duas pernas!

— E eu tenho culpa? — gritou Steiner, já sem paciência. — Vocês acham que tenho que pedir desculpas a vocês por isso, seus idiotas? Ou vocês acham que o mundo é de vocês só porque têm uma perna a menos? E daí, seus heróis, eu por acaso não sofri nada nessa porcaria de guerra? Vocês não acham que é melhor perder a perna do que perder a mulher?

— Eu teria preferido perder a mulher — respondeu Emil.

— Não gritem — disse Olbrich. — O pessoal já está começando a olhar. — Afinal, o que está acontecendo com vocês? Se não quiserem que Steiner fique aqui, eu saio e dou meu lugar a ele. Mas na primeira assembléia vou apresentar queixa de vocês, isto eu garanto!

Houve uma pausa. Finalmente o do boné se manifestou:

— Então está bem. Ele fica, mas só perto da escada. A saída lá atrás é nossa.

— Como vocês quiserem — disse Olbrich. — E eu sugiro que ele também entre naquele nosso sistema de divisão de lucros.

— Mas aí cada um só vai ganhar um quarto — disse queixoso o segundo perneta.

— Em compensação o lucro também é de um quarto a mais, imbecil! — E Olbrich virou-se para sair.

— Ainda tem uma coisa — disse Emil. — Afinal o que você faz de manhã, Steiner?

— Estou fazendo uma casa — disse ele orgulhoso.

— Sozinho?

— Não, com uma velha e um outro sujeito.

— Para quem?

— Para quem, como?

— Quem é o dono?

— Nós somos os donos. Estamos fazendo a casa para nós. De uma ruína. Por isso é que estou aqui. Afinal precisamos de dinheiro para viver. Exatamente como vocês.

Emil olhou vacilante para Olbrich.

— Que história é essa que seu amigo está contando aí?

— É verdade, sim — disse Olbrich com muita calma. — Não há problema não. Pode acreditar em mim. Estivemos juntos em Poltava, não é, Jakob?

— Sim — disse este baixinho.

— E o Jakob me carregou dois quilômetros quando me acertaram. Se não fosse ele, eu teria morrido.

— Ora — disse Steiner.

— Teria, sim — insistiu Olbrich. — E é por isso que vai ficar em pé aqui e ninguém vai se meter com ele. Eu quebro a cara de quem tentar.

— Está certo — disse o do boné com mais amabilidade. — Ninguém vai tentar, Karl. Afinal, a gente não sabia quem ele era. Por que não avisou? Claro que pode ficar, não é, Pepi?

— Por mim... — respondeu ele. — Mas tem uma coisa: vocês vão ver só se um quarto não é menos que um terço. Mesmo ganhando mais. — E ele saiu capengando, passou pelo mictório público em direção à entrada, para oferecer sua mercadoria.

 

O acerto final que os senhores Olbrich, Steiner, Emil e Pepi fizeram naquela noite no Café Elite provou que a capacidade da estação na Nussdorfer Strasse não estava absolutamente saturada com quatro vendedores, e trouxe para um deles ao menos uma surpresa: o discutido quarto foi maior do que o terço da véspera. A cada um coube dezessete xelins e trinta e sete groschen.

Enquanto Steiner atravessava um parque destruído seguindo em direção oeste com a mochila novamente vazia, decidiu que o dinheiro, o primeiro ganho desde o fim da guerra, devia ter uma finalidade romântica. Sabia por outro lado que dona Magdalena contava receber também dele uma contribuição para a caixa de despesas. Em meio ao dilema, sem saber se satisfazia a um capricho ou cumpria sua obrigação, sentiu de repente qualquer coisa dura dentro da mochila. Era um tablete de chocolate que devia ter passado despercebido ao sr. Anton na hora de acertar as contas.

Teria passado despercebido mesmo? Franziu a testa. Será que o sr. Anton era o tipo de pessoa a quem as coisas passavam despercebidas? Ou será que ele o deixara lá de propósito para fazer uma surpresa a Steiner... ou então, o que era mais provável, não estaria ele querendo pôr à prova a sua honestidade?

Jakob Steiner passou a mão pelos cabelos úmidos da neblina do parque, deu meia-volta decidido e voltou para o Café Elite.

— O senhor esqueceu um tablete de chocolate na minha mochila — disse ele para o sorridente sr. Anton.

Este sujeito nunca vai enriquecer na vida, pensou o dono do bar, mas é até comovedor constatar que ainda existe gente honesta.

— Nunca esqueço nada — respondeu ele, mas não estava dizendo a verdade. — O chocolate é seu; deixei-o lá dentro de propósito. É para dar de presente a alguma criança. Conhece alguma?

— Se conheço! — exclamou Steiner imediatamente, saindo apressado.

O sr. Anton se recostou no balcão e, sorrindo misteriosamente, pôs-se a refletir. Seu rosto revelava uma expressão de profunda concentração e grande satisfação. Estava pensando se não era possível vender um anel de ouro de catorze quilates que estava em seu poder, como sendo de dezoito...

Steiner já tinha chegado à estação.

— Espere um instante — disse ele para a vendedora de flores que já fechava seu quiosque. — A senhora não me conhece? Vendo cigarros lá na esquina.

— Eu sei — respondeu ela. — O que é?

— Queria umas flores.

— Não tenho mais nada.

— Nada?

— Infelizmente não.

— Mas lá no balde tem qualquer coisa... — disse Steiner.

— Ah, aquilo, são as primeiras rosas do ano.

— De que cor?

— Vermelhas — respondeu a vendedora — mas isto não é coisa para nós. Cada uma custa dez xelins; é um luxo a que gente como nós não pode se dar.

Jakob Steiner fechou os olhos.

— Dê-me uma — disse ele, e sua voz lhe soava como vinda de longe.

— Mas são dez xelins...

— Não importa. Quero uma rosa com um pouco de verde.

— Mas o senhor.. — começou a vendedora.

— Eu o quê? — Steiner sentiu seu olhar de compaixão. — A senhora acha que eu não tenho com o que pagar? Espere... — e colocou dez moedas de um xelim na mão da vendedora. — Pronto, e agora a rosa.

Hesitando, a mulher ajeitou o que ele pediu.

— Que absurdo! — disse ela. — Esbanjar o dinheiro desse jeito. Quanta comida não podia comprar com dez xelins? Só de pão quanto não daria!

— Existem momentos na vida — respondeu Steiner — em que uma rosa é mais importante do que um pedaço de pão.

— Tome! — e a vendedora sensibilizada devolveu-lhe duas moedas. — Para o senhor são só oito xelins. Os dois eram meu lucro.

— Sabe de uma coisa? — disse Steiner igualmente emocionado com a sua própria generosidade e a da vendedora. — Fique com um xelim que eu fico com o outro.

— Muito bem — concordou a vendedora. Depois apertaram-se as mãos.

 

Josephine Werner morava na Himmelphortstrasse; Mamoulian lhe havia dado o endereço completo. Da Nussdorfer Strasse até lá, atravessando a cidade, foi um pulo para Steiner naquela noite. Seguia a pé, correndo grande parte do caminho, ansioso por entregar os presentes. Que dia!, pensou ele, passando apressado pelas ruas ao entardecer, que dia! Que dia maravilhoso, meu Deus!

Jakob Steiner começou a assoviar. De súbito parou, quando percebeu assustado que estava assoviando a canção pela qual repreendera amargamente o sr. Mamoulian havia dois dias. Assoviava a Marselhesa.

O prédio em que Josephine morava era velho e escuro. Uma estreita escada em caracol subia para os apartamentos enfileirados um juntinho do outro nos longos corredores. Steiner procurou o número e bateu. Lá dentro, através da porta de vidro da entrada, ouviu a voz de Josephine. Um pouco de claridade entrava pelas cortinas das pequenas vidraças, e olhando através de uma cozinha feia, por uma porta entreaberta, viu Josephine sentada numa cama onde estava a pequenina Ruth.

— Então eles viram que se tratava duma princesa de verdade — contava Josephine —, pois só ela era capaz de sentir um caroço de ervilha através de vinte colchões e vinte edredons. O príncipe pediu-a em casamento, e a ervilha foi levada para o museu, onde pode ser vista até hoje, se ninguém a tiver tirado de lá.

Josephine abaixou o livro e inclinou-se por cima da filhinha.

— Que bonita história! — disse esta. — Eu não queria interromper você, mãe, mas tem alguém batendo na porta.

Josephine levantou-se, perguntando:

— Quem é?

— Sou eu, Jakob Steiner — foi a resposta, e ela abriu.

— Aconteceu alguma coisa?

Josephine usava um robe azul com dragões dourados. Seu cabelo estava preso num coque, e Steiner achou-a muito bonita.

— Não aconteceu nada — disse ele com voz rouca. — Posso entrar? Vim trazer uma coisa para vocês.

— Tio Jakob! — chamou a pequenina Ruth. — Venha cá!

Steiner foi cumprimentá-la. Depois entregou-lhe cerimoniosamente o tablete de chocolate.

— Com os melhores votos — disse ele. — Espero que goste, minha querida. — Depois, virando-se para Josephine: — E isto — continuou ele desembrulhando a rosa. — Isto é para você. — Estendeu-lhe a flor.

— Puxa! — exclamou a pequenina Ruth. — Mãe! Uma rosa! Que linda, não acha mãe?... Que foi? Por que você não diz nada?

— Porque... — respondeu Josephine, enxugando cuidadosamente uma lágrima para não estragar a pintura dos olhos — porque fiquei tão contente! Porque há muito tempo não ganhava uma rosa vermelha...

— Eu também há muito tempo não dava uma rosa vermelha de presente — disse Steiner sorrindo. Ela pegou-lhe a mão e encostou-a na face. Depois levou-o para o quarto ao lado e fechou a porta.

— Se você quiser — disse ela quase hesitando, com o encabulamento de uma menina de quinze anos —, pode ficar aqui, Steiner.

— Quero sim — respondeu ele.

Voltaram para junto de Ruth que, sentada na cama, olhava curiosa para os dois.

— Vocês têm algum segredo?

— Um segredinho só — disse a mãe com um sorriso significativo.

— Tio Jakob, você lê uma história para mim?

— Se você prometer dormir bem depressa...

— Esperem por mim — disse Josephine que de repente parecia muito jovem e feliz. — Só vou colocar a rosa na água e já venho.

Steiner esperou que ela voltasse. Depois, sentado na cama de Ruth, começou a ler:

— Vocês todos sabem que na China o imperador é chinês, e todos que vivem em volta dele também... — Quando acabou, a pequenina Ruth já dormia profundamente; apenas Josephine ouvia.

— Gostei — disse ela. — Você leu como um pai para a sua filhinha. Nunca imaginei... Onde é que você aprendeu?

— Eu já fiz isso muitas vezes — disse ele. — Sabe, eu já tive uma filha...

Ambos ficaram calados por muito tempo, pensando no passado que havia sido tão bonito e tão horrível, sentindo uma tristeza estranha, quase consoladora, envolvê-los ao se lembrarem de fatos e pessoas já tão distantes, perdidos na areia do tempo...

Às onze horas Josephine se levantou, pegou Steiner pela mão, e levou-o com cuidado para o quarto ao lado onde começou a despir-se com naturalidade.

— Venha — disse ela para Steiner, que parará perto da porta. — Venha logo; estou com frio...

Naquele mesmo momento, nas fábricas de armamento do leste e oeste, máquinas gigantescas funcionavam sem parar, e pesados carros blindados saíam dos galpões de montagem.

Naquele mesmo momento, dona Magdalena, pedreira de profissão, dormia na cama de Mamoulian; sonhava que seu filho estava de volta e, mergulhada num sono profundo, chorava de alegria.

Naquele mesmo momento, telefonistas completavam uma ligação transoceânica entre Nova York e as Bermudas.

Naquele mesmo momento, Tobias Lobgesang, no bar A Rainha, tomava com a maior amargura sua oitava dose de conhaque em companhia de gente seleta.

Naquele mesmo momento, na província Ten-Shau no norte da China, morria uma jovem mãe de fome e esgotamento. Deitada na grama diante de seu casebre, olhava para o céu cor-de-rosa que começava a clarear em honra a mais um dia.

E naquele mesmo momento, Mamoulian, sábio e solitário, estava instalado diante de uma mesa velha e entulhada, de cachimbo na boca, com uma pilha de papel na sua frente e um lápis que acabara de apontar. Com ele escreveu seu nome na primeira folha, e embaixo: A comédia humana. Depois ficou sentado, imóvel, ouvindo a respiração profunda e compassada de dona Magdalena Huber, que sonhava com o filho que ainda não retornara.


 

— Não — disse o sr. Lobgesang enquanto descarregava com muito cuidado tijolos vermelhos novinhos de uma carroça de burro, entregando-os a Mamoulian, que os arrumava com a mesma precisão numa pilha cada vez maior, ao lado de duas outras já bem grandes —, não costumo guiar, mas hoje não havia ninguém livre, por isso eu mesmo vim.

Eram três horas da tarde, e o sol já estava bem quente nessa primeira semana de maio, dez dias depois da Páscoa. Mamoulian, que usava um pano enrolado na cabeça por causa da quantidade de poeira, suava e passava a mão no rosto, acenando para dona Magdalena, que se equilibrava no antigo segundo andar da casa entre paredes rachadas, fazendo descer os entulhos por uma calha de madeira engenhosamente construída. Sete dias de trabalho já haviam rendido bastante. Pelos cálculos de Lobgesang, se o tempo continuasse firme, em cinco semanas poderiam começar a subir as paredes.

Os alicerces da casa estavam perfeitos, o porão e parte do andar térreo, intactos, e era quase certo que parte do assoalho e do teto de um andar pelo menos poderia ser aproveitada. Logo que tiravam o entulho de dentro da casa, iam arrumando ordenadamente o material que ainda podia ser usado. Já havia uma boa pilha de vigas, madeiras, ferros, telhas e tábuas no gramado atrás da casa. O entulho era passado primeiro por uma malha grossa, depois por uma fina, para separar a parte mais rarefeita dos pedaços de concreto e restos de parede.

Ao mesmo tempo em que arrumavam o material usado, abasteciam-se de material novo para a reconstrução da casa, garantindo-se com o que Tobias Lobgesang podia prescindir ou ceder. Também o carregamento de tijolos fazia parte do estranho acordo que dona Magdalena na época fizera com o proprietário da firma construtora. Tobias Lobgesang visitava regularmente os moradores da Gregor-Mendel-Strasse, 136. Vinha quase sempre no início da tarde e ficava até o anoitecer. Trabalhava como louco, saindo sempre sujo, o cabelo emaranhado, com o horrível macacão em que costumava vir. Parecia, no entanto, que ele fazia questão dessa nova ocupação para a qual tirava horas de trabalho do escritório, pois enquanto andava no meio de entulho e escombros, soltando vigas, empilhando tijolos, enchendo carros de lixo com a pá, cantava alto e alegremente.

Sua mulher ficava horrorizada com o estado em que agora vinha às vezes para casa, quando não estava disposto a voltar à firma e mudar de roupa. Não conseguia porém descobrir por onde o marido andava. Lobgesang guardava segredo com muito ciúme, sabia calar-se, nunca mencionava os novos amigos.

— Ai! — disse ele na tarde da qual estamos falando, por ter prensado o polegar entre duas pedras. — Como é, está gostando desta nova vida?

— Muito — respondeu Mamoulian com toda a sinceridade.

— Mas para o senhor deve ter sido uma adaptação bem difícil. — Lobgesang interessava-se pelo assunto, pois afinal era o seu setor em especial. — O senhor antigamente fazia coisa bem diferente de remover entulho e empilhar tijolos, não é?

Mamoulian alisou carinhosamente a superfície reta e lisa do tijolo, contemplou-o demoradamente antes de juntá-lo aos demais e disse:

— Eu acho a vida muito interessante.

— E agradável? — Quis saber Lobgesang de cima do carro de onde ia justamente tirar outra fila de tijolos.

— Agradável e interessante.

— Nunca pensei — disse Lobgesang sem parar de se abaixar e levantar para jogar os tijolos para Mamoulian — que pessoas como o senhor gostassem realmente de trabalhar.

Mamoulian riu bem-humorado.

— O senhor não deve esquecer que existem diversos tipos de trabalho. Trabalho com mãos e pés, mas também trabalho com a cabeça. Não se esqueça disso. Muito trabalho importante já foi feito com a cabeça, sr. Lobgesang. Nem todo mundo que anda sempre de unha limpinha é malandro, o senhor sabia? Como também nem todos que usam macacões são trabalhadores.

— A maioria é.

— A maioria dos que trabalham com a cabeça também tem de ser para poder sobreviver, sr. Lobgesang.

— Não sei, não — disse este, hesitando. — Pelo que tenho visto...

— O senhor passou por experiências amargas, mas pode ter certeza: tanto lá quanto cá existe gente trabalhadora e gente preguiçosa. São os preguiçosos de ambos os lados que atrapalham.

— Os do meu lado no entanto fazem um trabalho mais importante — declarou Lobgesang obstinado. — Se eles não existissem, não haveria tijolos, nem vigas, nem casas, nem ruas; não haveria luz elétrica, nem automóvel... — e Lobgesang perdeu-se em exageros, chegando a afirmar: — Não existiria absolutamente nada se não fôssemos nós, sr. Mamoulian! — E, todo excitado, começou a tirar nova fila de tijolos.

— Se não fossem os que trabalham com a cabeça — disse Mamoulian seriamente —, não haveria desenhos pelos quais fazer os tijolos, vigas e automóveis; não haveria as leis da física que possibilitam a existência da luz, casas e ruas. As pessoas que trabalham com os braços sempre precisam daqueles que trabalham com a cabeça. Sempre. Toda vez em que não ocorre essa harmonia, surgem guerras e revoluções, greves e violências. Quando, no entanto, trabalham em consonância, resolvendo juntos seus problemas, o resultado é sempre aquilo que se chama de progresso da humanidade.

— Sim — retrucou Lobgesang, usando seu último trunfo. — Mas qual dos dois o senhor acha que apareceu primeiro, o trabalhador braçal ou o intelectual?

— Lobgesang — disse Mamoulian amavelmente, sem parar de empilhar os tijolos —, o que você acha que apareceu primeiro, a galinha ou o ovo?

— A galinha — respondeu Lobgesang, despreocupado e alegre. — Que pergunta idiota!

— Foi mesmo? E de onde veio a galinha? Do ovo, não é, sr. Lobgesang?

— Ué! — fez este muito surpreso. — Então foi o ovo.

— E de onde veio o ovo? Deve ter sido posto por uma galinha? De um ovo, não é? E este por sua vez...

— Pare com isso — disse Lobgesang — senão acabo ficando tonto e ainda despenco daqui de cima. Que coisa horrível! Afinal qual é a resposta?

— A resposta é a mesma que se poderia dar à relação entre o operário braçal e o intelectual — disse Mamoulian —, só que o senhor não pode tomar o que eu digo ao pé da letra, mas em sentido figurado. Para mim, a galinha e o ovo apareceram ao mesmo tempo, simbolicamente, vamos dizer, como uma concepção, entende? Assim como o primeiro homem que se lembrou de manejar alguma coisa pensadamente, isto é, que faz a união de braço e intelecto, foi por assim dizer o homem perfeito que mais tarde se dividiu em dois componentes, exatamente como o símbolo ovo-galinha passou a ovo e galinha, não deixando no entanto de ter uma ligação — disse Mamoulian, esticando-se, pois já estava com as costas doendo. — Por enquanto, um ainda não prescinde do outro. Se as galinhas de repente se recusassem a botar ovos, adeus ovos! — Eles simplesmente deixariam de existir. E algum tempo depois... preste bem atenção nisto, Lobgesang... também não haveria mais galinhas! Entende agora o que quis dizer quando afirmei que os dois estão intimamente relacionados? Por sua própria ação as galinhas acabariam prejudicando a si mesmas, provocando forçosamente a sua própria extinção. Com o ovo dá-se exatamente o mesmo. Também ele estaria fadado à destruição se de repente resolvesse não gerar mais galinhas. Então...

— Em breve também não haveria mais ovos — concluiu Lobgesang muito impressionado.

— Exatamente! — exclamou Mamoulian animando-se. — E o senhor vê, a mesma coisa acontece com os homens. Também nós precisamos uns dos outros; um não existe sem o outro. Se vocês se recusassem a executar os planos dos homens-cérebro, se vocês de repente declarassem que aquilo tudo é bobagem, tudo o que vem dos intelectuais, em primeiro lugar seus oponentes ficariam inteiramente perdidos, pois teriam de realizar sozinhos muita coisa a que não estão habituados e que não sabem fazer. Muito breve, no entanto, vocês passariam pelo mesmo aperto, os trens iriam parar, a luz elétrica, apagar, as casas, desmoronar em cima de vocês, as ruas ficariam tortuosas como se estivessem bêbadas.

— Já sei aonde quer chegar — disse Lobgesang, descendo do carro. — O senhor quer dizer que eu sou tão importante, tão interessante e que tenho o mesmo valor que o senhor.

— Isso mesmo — respondeu Mamoulian. — E tal constatação é uma honra não só para mim, sr. Lobgesang, eu ser tão importante para o nosso bem-estar comum e para a continuação deste mundo, como todos os outros Lobgesang que existem. E é uma grande honra para o senhor, ser tão importante para a felicidade de todos e para o nosso futuro como os representantes daqueles seres entre os quais eu muito humildemente me incluo, semelhantes apenas basicamente aos pensadores, poetas, escultores, matemáticos e todos aqueles que trabalham, embora seu trabalho não seja tão patente...

— O senhor falou muito bem — declarou Lobgesang, cuspindo do alto do carro vazio para a rua —, mas nem por isso a sociedade em que vive minha mulher deixa de me dar nojo, com toda a importância que ela possa ter para a continuidade do mundo e a chamada bem-aventurança; o senhor não vai conseguir me convencer do contrário nunca!

 

Na terceira semana, Tobias Lobgesang trouxe uma roldana e diversas carretilhas para soltar o emaranhado de vigas, ferros torcidos e pedaços de teto, que estavam caídos na entrada, pesando ameaçadores sobre o teto do porão. Nestes dias todos trabalharam juntos, deixando de lado os outros compromissos.

Os colegas de Jakob Steiner surpreenderam-no muito, declarando que ele podia perfeitamente deixar de trabalhar uma semana, pois seu lucro de um quarto ficaria garantido de qualquer maneira. Olbrich propôs então que todos passassem a trabalhar num turno de três semanas, tirando alternadamente uma semana de folga para poderem cuidar de outros afazeres.

— Nós deveríamos tentar aos poucos organizar nosso trabalho em bases sociais viáveis — disse ele com seu jeito nervoso. — Se nos mantivermos unidos, vocês verão que é muito mais fácil trabalhar em quatro do que sozinhos.

Os outros concordaram, e assim Jakob Steiner foi o primeiro a "entrar de licença". Em seguida seria a vez de Emil, depois Olbrich e finalmente Pepi.

O trabalho com a roldana foi o mais pesado que haviam feito até então, sendo ainda dificultado pelo mau tempo. Chovia havia três dias e três noites, e embora eles todos usassem roupa velha para o trabalho, estragaram os sapatos, ficaram molhados até a alma e indescritivelmente sujos.

Não podiam esperar que terminasse o período de chuva, pois a pressão exercida pela madeira, pedra e ferros, especialmente depois de estar tudo molhado, ameaçava fazer o porão desmoronar. Tinham de continuar a trabalhar, não adiantava "chiar" conforme dizia dona Magdalena, que mantinha o fogão de lenha aceso o dia inteiro para que todos pudessem se esquentar, distribuindo enormes quantidades de um líquido que dizia ser chá, mas que continha uma quantidade respeitável de rum.

Ainda por azar, uma tarde Mamoulian escorregou numa prancha molhada que havia sido colocada como passagem entre duas paredes parcialmente destruídas do segundo andar, caindo de uma altura de três metros sobre um monte de entulho no qual felizmente não havia madeira nem ferros espetados escapou com diversos arranhões e uma contusão, tendo, no entanto, que ser transportado na carroça de Tobias Lobgesang para um hospital a fim de enfaixar a perna.

Colocaram uma confortável cadeira em cima da prancha da carroça de burro, e, embrulhado em diversos cobertores, Mamoulian foi instalado debaixo de um guarda-chuva, fumando seu cachimbo. Ao seu lado estava dona Magdalena para evitar que caísse novamente; o próprio Tobias Lobgesang, dono da firma construtora, dirigia a carroça. O transporte do ferido despertou certa curiosidade nas tranqüilas ruelas de Doebling, mas o veículo acabou chegando a seu destino, ao Rudolfinerhaus, onde Mamoulian recebeu os devidos cuidados médicos e a recomendação para ficar alguns dias na cama.

Mamoulian obedeceu. Nos três dias seguintes trabalhou quase sem parar no terceiro capítulo de seu livro, olhando por vezes, após um abalo mais violento, meio assustado para o teto mais baixo, para certificar-se de que a rachadura que passava por cima de sua cabeça não estava aumentando.

O teto. resistiu. Mamoulian sorriu enlevado, pegou o lápis com mais firmeza e continuou a escrever. Na manhã do quarto dia já apareceu novamente lá em cima. Ainda capengando, cuspiu nas mãos e juntamente com os outros começou os preparativos para descer pela corda um gigantesco travessão prensado de modo pouco propício.

Josephine Werner veio visitá-los duas vezes. Sentada na cozinha, ficava cerzindo as meias de todos os membros daquela estranha família. Nas de Jakob Steiner bordou as iniciais com lã vermelha.

Quando o tempo instável chegou ao fim e o sol saiu novamente, o grande saguão da casa de Mamoulian estava praticamente livre.

 

Na quarta semana, em que voltaram ao esquema anterior de trabalho, dona Magdalena, Mamoulian e Jakob Steiner, cada um por si, começaram a pensar no aspecto da nova casa. Quando depois foram discutir o assunto juntos, verificaram que eram quase da mesma opinião. A casa nova devia ter dois andares; o térreo e mais um. Já havia instalação de gás no porão, era só prolongar os canos; o marcador de gás funcionava, o relógio de luz também. O banheiro no porão era perfeitamente utilizável, e por enquanto não pensavam em fazer outro. Já o antigo saguão, com a larga escadaria de madeira cuja parte central tinha desmoronado, devia ser reconstruído, bem como a galeria que cercava o saguão no andar superior.

Dos quatro quartos ainda existiam dois, embora sem teto. Os outros dois tinham sido destruídos. Aí, na parte norte, é que o serviço era pior. Não só os tetos tinham de ser refeitos, mas todas as paredes externas reerguidas; das internas não sobrara nada.

Depois de muita discussão, ficou decidido que naquele ano eles ajeitariam o térreo e os dois quartos ainda existentes do segundo andar, com uma cobertura provisória que resistisse ao tempo, e impediriam, por meio de escoras e revestimento parcial, que o lado nordeste atingido pelas bombas desmoronasse ou que houvesse infiltração. No ano seguinte enfrentariam então a pior parte da obra.

Se os cálculos de Tobias Lobgesang estivessem certos, o que era bem provável, tendo em vista a sua prática, a casa estaria novamente habitável por volta do Natal, provisoriamente, com instalação elétrica também provisória, paredes em tijolo, sem emboço, chão simples, e parcialmente sem janelas. Haveria seis cômodos, embora fosse de se prever que estaria tudo ainda muito vazio, sem o menor conforto. Mas seria habitável. Poderiam até instalar um aquecimento a lenha, conduzindo a chaminé pela janela fechada com tábuas. Haveriam de comer, dormir e ler ali dentro como em qualquer quarto normal. Chegava-se até lá por uma escada segura, portas sólidas, tal qual numa casa resistente e normal... e tudo isso estava previsto para o Natal, se os cálculos de Tobias Lobgesang estivessem certos, o que era bem provável.

No jardim da frente, na rua e atrás da casa, quantidades respeitáveis de material esperavam pelo momento de serem usadas, e Tobias Lobgesang aparecia sempre com novos carregamentos de tijolos, tábuas, vigas e esteios. Nos fundos da casa, Jakob Steiner havia instalado uma pequena carpintaria provisória para onde levava todas as portas, janelas e esquadrias que eram ainda recuperáveis, para consertá-las quando chegasse a hora. De alguma maneira misteriosa seu número de martelos, alicates, limas e demais ferramentas ia se multiplicando, e quando certo dia apareceu com uma máquina de furar praticamente nova, Mamoulian declarou de maneira pouco lisonjeira ter as suas suspeitas. Steiner respondeu com um sorriso amável.

— Roubado — disse ele com toda a calma, alisando carinhosamente a superfície da útil ferramenta. — Isto lá é palavra para ser pronunciada pelo senhor, Mamoulian? Não se esqueça por favor das duas dúzias de ovos de Páscoa que furtamos juntos... e, além disso, talvez o senhor não saiba que até certos santos, como o padroeiro dos sapateiros, por exemplo, podem ser acusados de tal transgressão.

— Eu quero que você entenda — disse Mamoulian — que não estou de modo algum repreendendo você por sua ação. Apenas me chamou a atenção como fato sintomático. Assim como também, às vezes, me lembro de que nós, os inferiores e humilhados, os depravados e difamados, estamos prestes a fazer uma coisa que na verdade há muito tempo se espera dos eleitos e poderosos, dos puros e fortes, isto é, realizar trabalho construtivo.

— Também aí pode-se responder com uma citação da Bíblia — disse Steiner. — Nos últimos tempos venho lendo a Bíblia com interesse cada vez maior, e no Evangelho de São Mateus encontrei uma passagem que me parece muito significativa.

— Qual é ela?

— Diz assim: "Ide, pois, para as encruzilhadas dos caminhos e convidai a quantos encontrardes..." O senhor então não trouxe o que encontrou na encruzilhada, ou melhor, em cima da macieira? Não trouxe para cá o que encontrou numa casa de má fama? Não trouxe dona Magdalena, uma operária que estava ao desabrigo? E o senhor mesmo, a quem nós encontramos, sr. Mamoulian, não era uma existência naufragada que há muito entregara os pontos?

Mamoulian cocou a cabeça.

— Ora, vá para o inferno! — disse ele. — Você realmente tem um jeito de dizer a verdade...

— Eu, ir para o inferno? — repetiu Steiner, inclinando-se por cima do trabalho. — Nós todos vamos para lá qualquer dia. Mas por enquanto quero construir uma bonita casinha para nós.

Todos sabem que sempre acontece algo de ruim quando vem muita coisa boa de uma só vez. É assim que se regula o curso da vida. Mamoulian conhecia muito bem essa curva senoidal das mais regulares. Sabia que de nada adiantava chorar demais a tristeza, pois alegria vinha logo depois.  Sabia que era tolice alegrar-se demais com a sorte, agarrar- se a ela, porque também ela não seria duradoura. Ciente dos caprichos da vida, Mamoulian se esforçava por permanecer numa posição intermediária, pairando entre esses dois extremos. Mesmo assim, parecia estar condenado a ser mais feliz do que a média das pessoas, porém mais infeliz também. A vida fez Mamoulian pagar por essa sua descoberta, assim como pagam todos aqueles que ameaçam desvendar suas artimanhas.

A construção da casa, ou melhor, os preparativos para reconstruí-la decorriam tão sem problemas, que no íntimo Mamoulian tinha seus receios. Um dia aconteceu o que ele temia.

Jakob Steiner estava no jardim removendo com a pá um monte de entulho, quando o estranho apareceu, o cumprimentou amavelmente e deteve-se interessado. Um quarto de hora se passou. Jakob Steiner removia entulho. Nos galhos empoeirados das árvores, pássaros faziam sua algazarra. Steiner trabalhava prestando atenção na roseira seca, pois depositava grandes esperanças nela; não queria atingi-la.

Finalmente o estranho se manifestou. Estava mal vestido, era baixo, de rosto sulcado, a pele encardida. Usava pincenê e carregava uma pasta.

— O que o amigo está fazendo?

— O senhor não está vendo? — respondeu Steiner sem grande amabilidade, pois o estranho lhe era antipático. — Estamos reconstruindo a casa.

— Ah! — fez ele. — E de quem é esta bonita casa?

— Do sr. Mamoulian.

— Mamoulian — repetiu o estranho, como quem quer fixar o nome pára não esquecê-lo. — Ele é construtor?

— Não — respondeu Steiner, tirando uma velha meia de seda do entulho. — Não é; negocia com tapetes.

— E o senhor?

— Eu sou carpinteiro.

— E aquela mulher lá trás... — o estranho procurava as palavras — aquela lá... que está lavando os pés?

— Aquela é dona Magdalena. Prensou um dedo do pé entre as vigas e no momento não pode trabalhar. Ela é pedreira.

— Muito bem — disse o estranho todo satisfeito, como se lhe tivessem dado uma informação especialmente agradável. — É pedreira, hem?

— Sim, é.

— Mais gente especializada... — continuou o estranho, deixando cada palavra derreter na boca como se fosse chocolate. — Gente especializada não existe, nem projeto. Interessante.

— Gente especializada como? — Steiner parou de trabalhar e ficou olhando para o estranho com muita atenção. Não gostou do que viu. — Somos gente pobre, senhor, tudo o que queremos tem de ser feito por nós mesmos.

— Muito bem — disse o estranho com ar aprovador. — Muito louvável. Só que num caso destes é praxe chamar um construtor, um arquiteto, um técnico, enfim, alguém que se responsabilize pela observação das leis fundamentais de construção.

— Em tempos normais — redargüiu Jakob Steiner —, em circunstâncias normais, condições normais, sim. Mas estes tempos por acaso são normais? Não. As circunstâncias também não, e muito menos as condições em que estamos construindo. O senhor não entende? Somos pobres; não temos ninguém no mundo a não ser nós mesmos. Temos nossas próprias leis. Só podemos contar conosco. Mas posso lhe garantir que até agora tudo tem dado certo. Fica mais barato também.

— Isto — disse o estranho retirando-se devagar — me soa muito esquisito... para não dizer suspeito.

— Escute aqui! — volveu Steiner zangado. — Afinal, que ridícula figura é o senhor?

Mas o estranho já havia atravessado outro monte de entulho e estava fora do seu campo de visão.

— Ei! — gritou Steiner, correndo para a rua. Não havia mais sinal do estranho, era como se a terra o tivesse engolido...

Durante os três dias que se seguiram a este incidente, nada aconteceu. No quarto dia, após semanas de ausência, o carteiro apareceu diante da casa da Gregor-Mendel-Strasse, número 136, e entregou um papel endereçado ao sr. Aram Mamoulian. Juntos leram a correspondência. Dizia:

 

"O senhor está intimado a comparecer ao escritório do Departamento de Fiscalização de Obras da 19.a Região Administrativa, Viena 19.a, na Gatterburggasse, número 12, sala 2, no dia 25 do corrente, entre nove e dez horas, a fim de prestar esclarecimento.

O não-comparecimento acarretará a aplicação das sanções legais cabíveis".

 

— Pronto — disse Mamoulian depois de acabar de ler. — Chegou a hora.

— Hora de quê? — perguntou dona Magdalena muito espantada, com o dedo no nariz.

— Vamos ser expulsos do Paraíso. — Mamoulian estava todo sujo; há horas ajudava na remoção do entulho. — As autoridades começaram a se preocupar conosco.

— E o que o senhor vai fazer?

Mamoulian deu de ombros.

— O que costuma fazer uma pessoa sensata diante de uma maioria de idiotas? A gente pensa e se conforma sorrindo. O que eu vou fazer? Vou até lá, evidentemente.

Mamoulian foi.

Na manhã de 25 daquele mês, às nove horas e catorze minutos, estava sentado num banco diante da sala 22, na Gatterburggasse, número 12 (Fiscalização de Obras). O banco ficava num corredor comprido, escuro e fétido. Mamoulian estava só. Esperou. Esperou muito tempo. Depois chamaram seu nome, pediram-lhe para entregar a citação e fizeram-lhe um sinal para sentar novamente e esperar. Ninguém ali parecia ter pressa, só Mamoulian. Sentado no banco incômodo, no escuro e malcheiroso corredor, não parava de pensar em Steiner e em dona Magdalena, que estavam trabalhando sozinhos, e que lhe haviam recomendado voltar depressa para aproveitar o bom tempo.

Mamoulian era uma pessoa calma e controlada. Faltavam quinze para as onze quando ele começou a ficar nervoso. Às onze e quarenta e cinco chegou a sua vez. Levantou-se, entrou na sala 22 e, para grande surpresa do único funcionário sentado diante de uma mesa, inclinado sobre uma folha de papel, Mamoulian disse:

— Já esperei demais!

— Quem é o senhor afinal?

— Sou Aram Mamoulian — respondeu ele. — Pediram-me para estar aqui às nove horas. São quinze para o meio-dia, e eu gostaria de ir para casa. Espero que o senhor me entenda — acrescentou em tom conciliador. Mamoulian não gostava de altercação.

— Soletre seu nome.

Mamoulian soletrou. O funcionário da sala 22 procurou-o.

— Ah! — fez ele. — Mamoulian, já sei... sente-se, sr. Mamoulian. É um caso muito sério, hum, hum! Uma história muito complicada, ai, ai, ai!

E balançou tristemente a cabeça como se tivesse acontecido uma grande desgraça.

— Que história complicada? — perguntou Mamoulian.

O outro continuou a limpar os óculos e disse com voz velada:

— O senhor está cometendo um ato ilegal, sr. Mamoulian.

— Por quê?

— O senhor está construindo sem licença.

— Sem o quê?

— Sem licença — disse o funcionário da sala 22, pesaroso diante de tamanha audácia. — O senhor simplesmente resolve reconstruir sua casa, toma dois operários inteiramente desqualificados e, ao que me consta, mete-se até a ajudar... Recebemos uma denúncia contra o senhor.

— De quem?

— Isso não vem ao caso. Um de nossos funcionários andou tomando informações.

A essa altura Mamoulian não pôde deixar de dizer que ele realmente invejava os fiscais de obra e todas as suas preocupações... — uma observação que lhe valeu uma repreensão.

— Nossas preocupações! — disse muito zangado o senhor da sala 22. — E se não nos preocupássemos com o senhor? O que aconteceria? O senhor continuaria a obra e um belo dia o telhado lhe cairia na cabeça.

— A cabeça seria minha — disse Mamoulian. — Afinal os fiscais de obra também não se interessaram em absoluto quando o telhado caiu na minha cabeça da primeira vez. E posso lhe garantir que foi bem mais desagradável.

— Houve uma denúncia contra o senhor — insistiu o funcionário da sala 22.

— O senhor já disse uma vez.

— Uma denúncia.

— Já ouvi — retrucou Mamoulian.

— E o que o senhor me diz?

— O que quer o senhor que eu diga? — E Mamoulian se exaltou. — Acha por acaso que vou me borrar de medo de sua denúncia?

— Sr. Mamoulian, isso não é modo de falar com uma autoridade.

— Tem razão — disse ele arrependido. — Eu nunca acerto a maneira de falar. Mas, prezado senhor, o que quer que eu faça? Falando sério, o senhor acha mesmo que eu devia me justificar pelo fato de numa época como a nossa tentar reparar a minha casa?

— O senhor tem de se justificar, se o faz através de métodos ilegais.

— De que métodos ilegais o senhor fala? — muito nervoso, Mamoulian cocava a cabeça com ambas as mãos.

— O senhor empregou leigos, ao invés de gente especializada. Por quê?

— Pergunta idiota — disse Mamoulian, logo se desculpando. — Porque não tenho dinheiro, é evidente.

— E essas pessoas por acaso trabalham de graça?

— Claro que trabalham.

— Então são malucas.

— Malucas, não — disse Mamoulian. (Meu Deus, dai-me força e resistência!) — Elas não têm onde morar, prezado senhor. Depois de reconstruirmos a casa, terão onde morar. Por isso estão ajudando, entende agora?

— Entendo. Mas de qualquer maneira seu procedimento é ilegal, e somos obrigados a proibir seu trabalho.

— Os senhores são obrigados a quê? — Mamoulian levantou-se de um salto.

— Sente-se! Temos de proibir seu trabalho. Não podemos admitir que seres humanos sofram a conseqüência de seus atos levianos e irresponsáveis.

— Ora — retrucou Mamoulian —, e o senhor por acaso acha que os que estão sem casa, dormindo na rua, não sofrem?

— Existem asilos.

— São horríveis — objetou Mamoulian.

— E onde o senhor estava morando antes?

— No porão da minha casa.

— É grande?

— Bastante.

— Então por que não continua a morar lá?

— De maneira nenhuma — declarou Mamoulian, decidido.

— E por que não?

— Porque não quero mais — respondeu Mamoulian espantado consigo mesmo. — Porque estou farto daquele buraco nojento, por onde no inverno corre a água da neve que derrete. Porque sinto falta de ordem, sol, de coisas bonitas, e porque afinal não é normal as pessoas viverem num porão... Por isso, prezado senhor, estamos reconstruindo a minha casa!

— E nós teremos de proibi-lo — insistiu o respeitável senhor.

— Ridículo! — Mamoulian deu uma gargalhada. — De que jeito? Por acaso colocarão um guarda lá na frente da ruína? Irão me prender? Ou o quê?

— Sr. Mamoulian — disse com seriedade o funcionário. — Temos um método bem mais eficiente. Não vamos impedir seu trabalho. Uma comissão por nós nomeada irá examinar a estabilidade da obra, antes de darmos permissão para que more nela; o que acontecerá então o senhor pode imaginar.

— Acontecerá o quê?

— Vamos impedir que o senhor more na casa. Temos poderes legais para isso!

— Realmente! — declarou Mamoulian. — Isso é muito importante! Viva os poderes legais! Viva os adoráveis poderzinhos!

— Sr. Mamoulian, o senhor já está se esquecendo de novo! Além disso, no caso, as autoridades lhe negarão qualquer ajuda para prosseguir com o seu plano. O senhor não receberá um único tijolo, nem cimento, madeira, vidro, nada, de nossa parte...

— Eu nem contava com isso...

— Não conseguirá nem mesmo cartão de autorização para retirar essas mercadorias.

— Pois bem — levantou-se Mamoulian. — Eu lhe agradeço a manhã instrutiva. Tenho muito prazer em ser instruído — disse ele. — Embora desta vez tenha realmente demorado um pouco demais.

Com essas palavras Mamoulian saiu da sala 22 (Fiscalização de Obras). Desceu as escadas xingando alto mas, assim que chegou à rua, deu de ombros e riu-se.

Ao chegar em casa, já estava quase de bom humor. Jakob Steiner, muito pelo contrário: com os lábios cerrados, os olhos faiscando, ouviu o relato de Mamoulian meneando de vez em quando a cabeça. Estavam sentados ao ar livre, Steiner em cima de um monte de entulho, Magdalena num balde emborcado e Mamoulian sobre a tina de massa.

— E aí está — encerrou Mamoulian seu relatório; — é esse o parecer das autoridades, e para o qual, na verdade, nós não daremos a menor bola.

Jakob Steiner encheu a mão de areia e deixou-a escorrer entre os dedos, enchendo-a novamente.

— Quando acabarmos, eles lacrarão nossas portas e nos colocarão na rua, pois, morando na casa, podemos estar colocando nossas vidas em perigo. Afinal quem se importa agora se estamos correndo perigo de vida ou não? Eu, por exemplo, na Páscoa, estava realmente em perigo de vida, não é? Quem se importou? Ninguém! E dona Magdalena, que teve de sair daquela casinha e acabaria ficando na rua... por acaso ela não estava em perigo de vida também? Quem se importou? Quem afinal se importa com os pobres? — perguntou Steiner em tom patético.

— Ninguém — declarou Mamoulian. — Graças a Deus ninguém. Imagine só como seria horrível se estivéssemos expostos à caridade de algumas criaturas subalternas?

— De repente, quando conseguimos qualquer coisa, as autoridades se importam conosco! Por que não nos deixam em paz?

— Porque acham que é a obrigação deles tornar a nossa vida segura e feliz. Não é possível que cada um faça o que quiser. Meu Deus, imagine só se todo mundo resolvesse construir sua casa? Seria horrível! Num país onde se trabalha...

— Lá vem o senhor com zombaria, sr. Mamoulian! — disse dona Magdalena instalada no balde, e cuspiu no chão.

— O que a senhora quer que eu faça?

— E não vamos conseguir nenhuma ajuda?

— Foi o que me disse o homem lá da sala 22. Nenhum auxílio, nenhuma ajuda. Nem cartão para fornecimento de tijolos, vidro, cimento ou qualquer outro material de que precisarmos.

— Que Deus nos abençoe — disse dona Magdalena com ar piedoso.

— Que Deus abençoe o funcionário da sala 22 — acrescentou Mamoulian.

— É uma sorte termos Lobgesang — declarou Steiner. — No momento estamos precisando de cimento com a maior urgência. Esse tipo de material só se arruma com cartão. Mas Lobgesang consegue para nós sem cartão. E de graça.

— É sorte mesmo — concordou Mamoulian.

Mas nesse caso, em especial, não era. Pois sucedeu que no último mês Lobgesang havia entregado cimento demais sem cartão a diversos amigos, ficando, portanto, em dificuldade para atender pedidos feitos oficialmente.

A muito custo conseguiu ajeitar sua contabilidade tão confusa, ficando inteiramente impossibilitado de ajudar os amigos.

— Não é má vontade — disse ele. — Vocês têm de acreditar! No momento não posso! Mais um ou dois meses... aí sim. Mas agora não dá...

Um ou dois meses!

E eles haveriam de esperar esse tempo todo? De maneira alguma. Enquanto isso o resto das paredes ruiria, a madeira apodreceria e o trabalho todo estaria perdido... Não; esperar eles não podiam!

Mamoulian fez mais uma vez a árdua caminhada procurando as autoridades. Falou com funcionários altos e baixos... em vão. Por fim desistiu; passava a maior parte do dia pensando em seu livro. Sentado ao sol, olhava distraído para a sua ruína agora limpa e ajeitada, para o monte de tijolos vermelhos em frente. Entre os dentes segurava o cachimbo apagado. Dona Magdalena trabalhava furiosamente na firma de Tobias Lobgesang e, chegando em casa, ocupava-se cerzindo meias, cozinhando e lavando, e realizando outras atividades domésticas. Nunca mencionava os planos que de repente haviam chegado ao fim, mas sem dúvida vivia pensando neles, sem poder esquecê-los. Tinha uma natureza forte e obstinada. Engolia calada a sua amargura.

Também Jakob Steiner andava calado; corria de um lado a outro como uma ave de rapina excitada, vez por outra reclamando, xingando baixinho. Com furiosa energia fazia seus negócios na estação da Nussdorfer Strasse, na vaga esperança de conseguir por meios ilegais ao menos parte do cimento necessário. Iludia-se. O preço era alto demais.

Assim passou-se uma semana e metade de outra. O destino seguia seu caminho. Ninguém desconfiava ainda, mas o próprio Jakob Steiner, impelido para uma situação que clamava forçosamente por uma solução, foi quem começou a preparar o caminho.

Pensou. Refletiu. Toda situação, por pior que fosse, tinha uma saída. Esta também haveria de ter. E teve. No final da segunda semana, encontrou-a.

Agora o destino se lhe assomava por trás qual sombra gigantesca, elevando-se para o céu como um mau espírito pronto a vibrar o seu golpe.


 

— Eu ia, pois, descendo a Hartaeckerstrasse — disse Steiner durante uma conversa naquele sábado que encerrava a segunda semana de ociosidade —, como faço sempre todas as tardes, porque gosto de ver os vinhedos nas encostas do sul, ao entardecer, com as montanhas por trás. Eu ia descendo a Hartaeckerstrasse...

— Você já disse uma vez! — declarou Mamoulian. Conversavam no porão, e também dona Magdalena se encontrava presente. Mamoulian estava refestelado com os pés em cima do encosto da poltrona, junto à sua mesa, com um lápis enfiado atrás da orelha. Diante dele via-se uma montanha de livros e papéis. Steiner o incomodara no meio do trabalho, e Mamoulian estava aborrecido.

— Eu ia, pois, descendo a Hartaeckerstrasse — tentou Steiner pela terceira vez, esfregando os pés no chão, antegozando o sucesso que iria causar. — É lá onde tem aquela passarela estreita por cima do leito da estrada de ferro, sabe, onde desemboca o túnel grande que passa por baixo do parque conhecido por Reduto dos Turcos... sabe onde, sr. Mamoulian?

— Ora, droga, claro que sei — retrucou ele. — É um canto muito sujo, cheio de lixo. Será que também o aprecia tanto quanto as colinas cobertas de vinhedos e a cadeia de montanhas?

— Ele me dá uma grande tristeza — disse Steiner a quem a ironia não atingia em absoluto. — É por isso que sempre vou lá, pois aquela entrada escura do túnel com os trilhos cobertos de capim dá uma tristeza tão calma, tão agradável... Só que hoje nem cheguei a ficar triste, pois tive uma grande surpresa. — Steiner ficou calado por um momento. Depois continuou: — Vocês com toda a certeza já notaram o vagão que fica parado no fim dos trilhos...

— Claro que sim — disse dona Magdalena. — Já estava lá quando me mudei. Pensei até em morar nele.

— Não poderia.

— Por que não?

— Porque ele está cheio — disse Steiner. — Ao menos parte dele.

— Cheio? — exclamou dona Magdalena muito surpresa. — O que há lá dentro? Diga logo, Jakob!

Até Mamoulian se mexeu em sua poltrona funda e disse irritado:

— Como é? Diga logo!

— Um instante! — Steiner não via por que abreviar a sua exposição melodramática.

— Como dizia, eu estava em pé em cima do viaduto olhando para baixo, quando vi, pela porta de correr do vagão...

— Steiner — disse Mamoulian com uma calma ameaçadora —, se você ainda vai contar tudo o que sentiu antes de descer até aquele maldito vagão para ver o que havia dentro, eu lhe torço o pescoço!

— Ora, mas afinal eu posso...

— O senhor não pode nada — disse dona Magdalena, levantando-se ameaçadora.

— O que havia lá dentro?

— À primeira vista parecia... — começou Steiner.

— O que havia lá dentro? — perguntou Mamoulian, erguendo-se também, e acentuando cada palavra. Aproximaram-se de Steiner, que olhou para eles muito triste e depois, jogando as mãos para o alto, disse:

— Sacos! Uma dúzia de sacos mais ou menos.

— Idiota! — exclamaram dona Magdalena e Mamoulian ao mesmo tempo. — O que havia nos sacos? — perguntaram ainda simultaneamente, calando-se logo, para que afinal um pudesse continuar a falar sozinho.

— Ah! — fez Steiner. — Isto lhes interessa, não é? Mamoulian levantou o braço como se quisesse dar-lhe uma bofetada mas, refletindo, pegou o chapéu para sair.

— Ora, eu não vou ficar aqui me aborrecendo.

— O que vai fazer?

— Vou dar uma olhada naquele vagão.

— Fique aí! — Steiner saiu correndo atrás dele. — Eu vi primeiro. Deixe-me ao menos contar...

— Pela última vez — disse Mamoulian. — O que havia dentro dos sacos?

Jakob Steiner engoliu em seco, passou as costas da mão na boca e disse baixinho:

— Cimento!

Um silêncio solene seguiu-se a essa palavra. Finalmente dona Magdalena se manifestou.

— Tem certeza?

— Certeza? — Steiner riu histérico. — Vi os sacos com meus próprios olhos! Vi o que estava escrito em cima...

— E o que estava escrito?

— Cimento Portland — retrucou Steiner. — Cimento Portland I-A, cem quilos por saco. Afinal eu conheço os sacos. Meu Deus, eu não haveria de contar histórias para vocês! Eu estou dizendo: lá embaixo, junto do túnel, há doze sacos do mais fino cimento, dentro de um vagão aberto, que há dias está parado num final de trilhos...

Mais uma vez os três ficaram absortos, pensando. Por fim Mamoulian perguntou:

— Será que essa descoberta não lhe despertou nenhuma idéia, dona Magdalena?

— Claro que despertou.

— E em você, Jakob?

— Idéia? — disse este. — Se eu tivesse um carro...

— Neste caso, meu velho — disse Mamoulian, tirando os pés do encosto da poltrona e suspirando —, esta noite vamos até aquele túnel que sempre faz você se sentir tão triste, Jakob, para fazer uma visita e roubar os doze sacos...

— Pô-los em segurança — corrigiu Jakob Steiner.

— Pô-los em segurança — concordou Mamoulian. — E agora me deixem trabalhar mais uma hora. Ainda é cedo.

Foi por isso que naquela noite, a uma hora muito tardia, talvez uma e quinze da madrugada, Mamoulian e Jakob Steiner estavam ocupados empurrando o burro-sem-rabo de dona Magdalena, enquanto desciam a íngreme rampa que dava acesso à estrada de ferro na boca do túnel. Mamoulian empurrava e Steiner freava. Estava muito escuro e silencioso. Apenas alguns vaga-lumes atravessavam as hortas da redondeza. O suor brotava em grossas gotas da testa de Mamoulian quando afinal conseguiram empurrar o carro até a vala junto ao leito.

— Vamos levantá-lo por cima do arame — disse Steiner. — Cuidado para não cair!

Mamoulian cocou a cabeça.

— Antes de levantar este maldito carro — disse ele, passando com muito cuidado por cima dos fios esticados —, nós deveríamos pensar na volta. Vai ser um pouco difícil levantar o carro depois, com doze sacos de cimento.

— Mas nós não vamos levantar. Vamos seguir os trilhos até chegar perto da rua onde a rampa é mais baixa. Lá de qualquer maneira vamos ter de carregar os sacos um a um.

— Santo Deus! — exclamou Mamoulian baixinho. — Todos os doze?

— Claro.

— O senhor tem consciência perfeita de que nós estamos praticando uma ação criminosa?

— Tenho — respondeu Steiner. — E daí?

— Seria um pouco desagradável se a polícia nos pegasse.

— Mamoulian — disse Steiner, dirigindo-se decidido para o vagão de carga. — O senhor está com preguiça de carregar os sacos, nada mais, por isso vem com essa conversa. Que vergonha!

— Muito bem — respondeu Mamoulian tristemente, seguindo Steiner —, mas você verá que carregar um saco desses não é brincadeira. — Tropeçou por cima de um dormente, disse qualquer coisa que não se pode imprimir, agitou os braços furiosamente.

— Silêncio! — disse Steiner, entrando no vagão. Riscou um fósforo e virou-se triunfante:

— Viu? O que foi que eu disse?

— O que foi que você disse? — perguntou Mamoulian, inocente.

— Eu disse que nós iríamos encontrar uma dúzia de sacos de cimento. Não se lembra?

— Claro. — Sem grande entusiasmo, Mamoulian subiu também no vagão e contemplou seu conteúdo à luz de um segundo fósforo.

— O que o senhor está vendo?

— Sacos — respondeu Mamoulian. — E sacos bem grandes, infelizmente.

— Pense na nossa casa. O senhor tem de ser forte.

— Estou com frio — respondeu Mamoulian covardemente. — Além do mais estou pensando na polícia. De qual quer maneira é um espetáculo fascinante, embora não deixe de ser crime.

— Até alguns santos — disse Steiner, arrastando o primeiro saco pelo chão de madeira sujo do vagão até a entrada —, como o padroeiro dos sapateiros, arcaram com o crime de furto para ajudar aos outros. Vá descendo para que eu possa colocar-lhe o saco nas costas.

— Eu sou um homem velho — queixou-se Mamoulian, fazendo o que Steiner pedira. — Minhas costas não agüentam um saco pesado desses. Não estou acostumado a carregar peso. Ufa! — resmungou ele, quando Steiner colocou-lhe o saco nos ombros. — Espero que a polícia chegue antes de termos carregado um monte deles, ou de eu ter distendido um músculo...

Inclinou-se para a frente e foi cambaleando pelos trilhos até o carro. Steiner seguiu-o com os olhos até ser engolido pela escuridão. De repente ouviu um baque surdo.

— O saco caiu? — perguntou ele.

— Depende do ponto de vista — respondeu Mamoulian no escuro.

— Depende por quê?

— Na verdade fui eu — disse a voz de Mamoulian.

— Tropecei e caí sentado; minhas costas estão doendo. Caí de mau jeito. Em cima dos trilhos. Se não fosse o peso desse miserável saco, eu não teria caído sentado... Por isso é que depende inteiramente do ponto de vista. Seria bom você vir me ajudar.

Steiner saltou do vagão, e juntos colocaram o saco em cima da carreta de dona Magdalena.

— Seria melhor — disse Mamoulian com muita esperteza — que você carregasse os outros onze sacos, e eu os colocasse nas suas costas. Você é mais moço. Tem as costas mais largas. Afinal não fica bem obrigar um velho como eu a trabalhar, Jakob!

— Pelo amor de Deus! — respondeu este, nervoso.

— Cale a boca e venha comigo.

Foi muito difícil fazer o burro-sem-rabo sair do lugar depois de carregado, mas, finalmente, puxado pelos dois homens, o carrinho deslocou-se, rangendo, pelo leito da estrada de ferro em direção ao viaduto.

— Que vida! — lamentou-se Mamoulian, todo coberto de poeira branca.

— Por quê, não gosta dela?

— Gosto.

Jakob Steiner soltou um grunhido.

— Ainda bem, porque agora vamos ter de carregar os sacos lá para cima até a rua.

Foi mais fácil dizer do que fazer. Tentaram carregar os fardos juntos, mas a rampa era muito inclinada; perderam o equilíbrio e, na metade do caminho, quase rolaram encosta abaixo. Afinal pararam ofegantes.

— Assim não vai! — disse Steiner.

Mamoulian não se manifestou; ficou olhando tristonho para o céu encoberto, pensando na polícia.

— Temos de arrumar uma corda e puxar os sacos. Steiner escorregou até a estrada e foi apanhar a corda

de dona Magdalena, amarrando em seguida uma ponta da corda em volta do saco.

— E pensar que você queria se enforcar com esta corda... — disse Mamoulian, repreensivo. — Imagine só, como teríamos conseguido transportar os sacos?

— Acho que o senhor está esquecendo que muito provavelmente eu não estaria transportando sacos se tivesse me enforcado.

— É mesmo — disse Mamoulian muito espantado. — Exatamente. Você é um sujeito muito esperto, Steiner.

— Pegue a corda e ajude a puxar — disse este. Puxaram. Devagar, foram arrastando o saco para cima.

— Um, dois, três e já! — disse Jakob Steiner.

— Um, dois, três e já! — disse também Mamoulian. Puxaram com toda a força.

— Um, dois, três e já! — disseram juntos. O saco passou sobre a borda da rampa e ficou caído na estrada.

— Pronto — disse Steiner. — Mais onze vezes e terminamos. — Desceu novamente. Depois de um instante voltou com a ponta da corda e recomeçou a puxar. — Um, dois, três e já! — dizia ele.

— Um, dois, três e já — dizia Mamoulian.

Eram duas e meia da madrugada quando uma carreta carregada até em cima, puxada por dois homens esgotados, atravessou a silenciosa Gregor-Mendel-Strasse parando diante do número 136. Os dois homens murmuraram qualquer coisa entre si e começaram a descarregá-la, levando os sacos para dentro de casa, onde uma velha gorda os recebeu com um lampião de querosene aceso, levando-os em seguida para o porão.

— Por aqui! — disse dona Magdalena, iluminando o caminho. — Temos de esconder os sacos, caso venham procurá-los... — continuou, para Mamoulian, que arquejava um pouco. — O senhor já trabalhou bastante, deixe que agora eu pego. Segure o lampião.

Junto com Steiner, dona Magdalena carregou os sacos restantes para dentro de casa. Quando terminaram, guardaram o carro, trancaram as portas, e contemplaram orgulhosos o produto do saque que estava diante deles, iluminado pela luz do lampião.

— Sim, senhor! — disse dona Magdalena. — Quanto cimento! Quantos sacos vocês trouxeram?

— Doze — respondeu Steiner.

— Eu contei onze — disse dona Magdalena.

— Tolice, eram doze.

— Agora são onze.

Houve uma pausa na qual Steiner e Mamoulian contaram até onze, cada um para si.

— Estranho — disse Mamoulian perplexo. — Eu podia jurar...

— Eu também — declarou Steiner. — O que fazer? Afinal onze já é bastante.

Sentaram-se.

— Que aventura! Nunca passei por uma coisa dessas em toda a minha vida. Os sacos quase nos liquidaram, hem, Jakob?

— É mesmo. Não pensei que fôssemos conseguir trazê-los até em cima.

— Foi um trabalhão!

— Sem a corda não teria sido possível.

— Você é um bocado forte, Jakob!

— E o senhor também... para a sua idade!

— Antigamente — disse Mamoulian lisonjeado — eu era tão forte que dobrava um atiçador ao meio como se fosse um pedaço de arame. Vocês deviam ter-me visto naquela época! Meu Deus, eu era um dos rapazes mais fortes de Tíflis. Depois comecei a engordar, e hoje não presto para quase nada. Só de vez em quando — acrescentou ele —, como hoje... mas fiquei cansado. Seria absurdo querer negar.

Nenhum dos dois percebeu que dona Magdalena, ao contemplar os sacos, de repente ficara com um olhar muito apreensivo, balançando a cabeça. Um dos sacos tinha um pequeno rasgo, e um filete de cimento escorria para o chão, formando um montinho. Dona Magdalena observava o montinho. Contemplou-o longamente, sem prestar atenção às bravatas que Mamoulian contava.

De súbito ela levantou-se, foi até o monte, abaixou-se e fez uma coisa muito estranha: meteu dois dedos no monte e lambeu-os. Uma surpresa imensa se estampou em seu rosto. Boquiaberta, de olhos arregalados, meneava a cabeça, confusa.

Foi assim que Mamoulian a viu quando virou-se de repente.

— Que foi?

Dona Magdalena engoliu em seco. Finalmente seus lábios conseguiram formar algumas palavras.

— Açúcar! — disse ela com voz rouca. — Santa Maria, tem açúcar dentro dos sacos!

— Que bobagem! — respondeu Mamoulian alegremente. — É cimento, dona Magdalena. A senhora sabe tão bem quanto eu.

— Açúcar refinado — insistiu ela, perplexa. Ao menos neste aqui é! — disse ela, apontando o dedo curto e grosso para o saco rasgado.

— Dona Magdalena — disse Mamoulian com a maior amabilidade —, como pode a senhora afirmar uma coisa dessas? Não vê que em todos os sacos está escrito nitidamente: Cimento Portland! Que é isso, dona Magdalena, não entendo como foi chegar a uma idéia absurda como essa!... Mamoulian reparou em Jakob Steiner, que, mudo, acabara também de provar um pouco do montinho. — O que me diz, Jakob? Não é ridículo querer afirmar que tem açúcar no saco?

— Tem açúcar, sim — declarou Steiner, e Mamoulian deu uma gostosa gargalhada.

— É? — exclamou ele. — Você também acha engraçado, não é? Tem açú... O que foi que você disse?

— Tem açúcar, sim.

Com um grito rouco Mamoulian se atirou sobre o montinho e provou.

— Santo Deus! — disse ele abaladíssimo, sentando-se no chão.

— Eu disse! — declarou Steiner com olhos esbugalhados.

— Eu disse primeiro! — exclamou dona Magdalena; e apanhou uma colher de sopa e começou a dar de comer aos dois homens.

— Deixe de tolices! — Mamoulian estava nervoso. — Tenho de saber o que há dentro dos outros sacos. — Pegou uma faca e furou-os um após outro para provar-lhes o conteúdo. Depois de ter provado o último, fechou os olhos, segurando-se no cano de aquecimento.

— Tem açúcar em todos eles — declarou com voz sumida.

— E quanto pesa cada um?

— Cem quilos.

— Quer dizer então que roubamos mil e cem quilos de açúcar refinado — constatou Jakob Steiner prosaicamente. — Um feito bastante respeitável!

— O que vamos fazer agora? — perguntou Mamoulian, desesperado.

— Se ao menos tivéssemos um pouco de margarina — disse dona Magdalena —, dava para fazer cuca.

Mamoulian levantou-se de chofre.

Sentia uma necessidade urgente de respirar um pouco de ar puro. Deu a volta com muito cuidado pelos sacos de açúcar com a inscrição enganadora.

— O que foi?

— Nada — disse ele. — Só estou meio enjoado.

Lá fora no jardim, dois gatos magros atravessaram correndo a escuridão. Mamoulian deu um suspiro, cruzou os braços para trás e foi andando devagar até a rua, perdido em pensamentos.

Tinha de acontecer, pensou ele. E logo com a gente. Algum contrabandista safado deve ter escondido o açúcar no túnel. Talvez até tenham sido presos depois. Ou negócios urgentes os obrigaram a sair do país. Ou aconteceu qualquer coisa que os impediu de despachar o açúcar...

Mamoulian parou diante de uma cerca torta, assoou o nariz e pensou: os sacos de cimento foram usados como disfarce para que ninguém desconfiasse que tinha açúcar dentro. No momento existe muito pouco açúcar na Europa; ele pode ser vendido a preço muito alto. Realmente ninguém ia desconfiar que era açúcar. Nem eu. Infelizmente...

Mamoulian fechou um olho, depois o outro, alternada-mente. Perdido em pensamentos como estava, tinha percebido uma coisa branca na rua que brilhava no escuro. Olhou mais de perto. Seu coração desatou a bater. Abriu rápido o portão e saiu correndo. Deu uns dez passos e parou; murmurou uma série de palavras que no conjunto formavam um complicado e colorido xingamento armênio. No meio da rua corria uma trilha branca. Começava no portão de sua casa e seguia em linha ligeiramente ondulada pelo escuro adentro. Tinha um centímetro de largura. Mamoulian ajoelhou-se, foi engatinhando pela rua e descobriu que ela era formada por uma substância granulada, muito fina. Com o coração na boca, meteu um dedo curto e grosso na massa, e alguns grãozinhos ficaram colados nele. Provou. Depois sentou-se no meio da rua, esticando as pernas curtas e grossas.

— Deus, misericordioso! — murmurou ele baixinho.

 

Com a ajuda de dona Magdalena e Jakob Steiner, que ele havia chamado às pressas depois de conseguir se controlar, Mamoulian tentou apagar o rasto branco e doce. Todos três usavam vassouras, uma pá de lixo e a mão. Tratava-se de fazer desaparecer cem quilos de açúcar numa distância de um quilômetro... eram os cem quilos do décimo segundo saco que eles tinham dado por falta, e cujo invólucro vazio e amassado acabaram encontrando também.

O calçamento da rua era feito de pedras irregulares, bastante afastadas umas das outras. Quando o açúcar caía entre eles, era quase impossível tirá-lo.

Mamoulian, dona Magdalena e Jakob Steiner trabalharam, limparam até o suor lhes correr pela testa. O trabalho não rendia. O céu já estava clareando um pouco a leste, quando ocorreu a Mamoulian pela primeira vez que eles não iriam dar conta. Felizmente guardou a idéia para si, mas rezava:

— Meu Deus, ajudai ao menos para que ninguém passe por aqui e nos veja!

Deus não ouviu sua prece.

Foi Jakob Steiner quem viu o guarda subindo a rua devagar e distraído. Pegou Mamoulian pelo braço, apontando mudo com o dedo. Também dona Magdalena levantou os olhos. Mudos, olharam um para o outro. Depois viraram-se e correram depressa de volta para a ruína. Pararam atrás de uma saliência do muro e, ofegantes, ficaram observando a rua silenciosa. Os passos ressoantes do policial se aproximavam. Ele surgiu dentre as árvores. Parou. Tinha notado o açúcar. Nervoso, Mamoulian deu um soco nas costas de Steiner.

— Ora! — disse este.

— Psiu! — fez Mamoulian.

O policial ajoelhou-se. Provou o açúcar. Seu rosto, que se podia ver perfeitamente à luz de uma lâmpada, ganhou uma expressão de perplexidade. Remexeu nos bolsos e, para o horror de Mamoulian, tirou um caderninho e um lápis. Depois aconteceu exatamente o que tinha de acontecer. Pensativo, o policial foi seguindo até o fim da trilha que, embora meio apagada, ainda estava perfeitamente reconhecível. Terminava diante da casa número 136. Na verdade nem aí terminava. Continuava pelo jardim adentro, até onde houve açúcar para escorrer. Terminava a cinco metros dos pés de Mamoulian. O policial tirou uma lanterna do bolso, iluminou o portão, achou a placa com o número, anotou o endereço.

Enquanto trabalhava, assoviava uma valsa, o Danúbio azul. Assoviava muito mal. Depois foi embora. Mamoulian tinha tomado coragem e fora se esgueirando atrás dele até a cerca. O policial se perdeu na escuridão, talvez para verificar onde era a outra ponta da trilha branca.

Aram Mamoulian suspirou fundo.

Voltou para junto de Jakob e de dona Magdalena.

— Pode ir dormir de novo — disse para ela.

— Agora estamos perdidos — declarou Jakob Steiner.

— Perdidos como? — perguntou dona Magdalena, sem esperar receber resposta à sua pergunta. Também ninguém respondeu. Todos os três se entreolhavam, mudos.

— Quanto tempo um policial leva para fazer a ronda? — quis saber Mamoulian.

— Duas horas, acho eu.

— E logo que volta, faz o relatório?

— Hum.

— Sim.

Mamoulian ficou pensando.

— Você sabe — disse depois, virando-se para Steiner —, só existe uma saída para nós.

Steiner concordou.

— Qual? — perguntou dona Magdalena, cocando o nariz.

— Ir à polícia nos denunciar.

— Por quê?

— Porque do contrário a polícia virá nos procurar.

— Isso ela fará de qualquer maneira.

— Sim — disse Mamoulian tristemente —, mas se nós mesmos nos apresentarmos, conseguiremos uma atenuante.

— Isso mesmo — disse Steiner.

— Alegando o quê?

— Como?

Dona Magdalena, que estava encostada no muro da casa, torcia as mãos.

— Eu queria saber se... se vocês vão contar a verdade à polícia.

— Claro — respondeu Mamoulian.

— Claro que não — objetou Steiner.

— O quê? — fez Mamoulian muito espantado.

— Nunca se diz a verdade à polícia — declarou Steiner. — A não ser um maluco. O que nós vamos dizer é isto: Sim, senhor, roubamos o açúcar! Pensávamos que era cimento. Precisávamos de cimento para a nossa casa. Agora não vamos poder continuar a nossa obra só porque uns cretinos irresponsáveis se aproveitavam para ganhar dinheiro à custa da miséria deste mundo. Nosso roubo foi em vão... — Jakob sacudiu a mão em punho como se estivesse diante do juiz e continuou, agitado: — Mas nós não vamos ficar aqui quietos, olhando. Já que não podemos continuar a trabalhar, ao menos a polícia tomará conhecimento deste crime sem par, cometido contra os que passam fome. Mesmo que com isso venhamos a prejudicar nós mesmos! — Jakob olhou em volta.

— Como é? — perguntou ele. — O que acham?

— Está ótimo — concordou Mamoulian.

— Eu vou junto — declarou Steiner. Assim fizeram.

No meio da manhã, lá pelas nove horas, foram se apresentar na delegacia de Gatterburggasse, onde contaram a aventura a um funcionário atento, confessando francamente seu roubo.

O delegado a quem contaram a história chamava-se Seidel; era um tipo impassível, que nem por um instante percebeu o lado cômico da coisa, mas ouviu friamente o relato de Mamoulian.

— Quer dizer então que o senhor roubou açúcar — disse no fim.

— Roubamos cimento — retrucou Steiner.

— Meu senhor! — advertiu Seidel. — Não acabaram de contar que tem açúcar nos sacos?

— Tem — começou Steiner a explicar —, mas quando nós roubamos...

— Senhor delegado — disse Mamoulian —, meu amigo está querendo explicar que roubamos o açúcar porque pensávamos que fosse cimento. Se soubéssemos que era açúcar nem teríamos tocado nele.

— E por que não?

— Porque não precisamos de açúcar. Perplexo, Steiner deu uma soprada.

— Não vão precisar de mil e duzentos quilos de açúcar? Os senhores querem me dizer que não saberiam o que fazer com mil e duzentos quilos de açúcar?

— Isso mesmo — respondeu Mamoulian. — O senhor saberia?

— Meu senhor! — advertiu Seidel mais uma vez. — Teria vendido, ora.

— Santo Deus! — Espantado, Mamoulian cocou a cabeça como sempre. — Jakob, eu acho que nós fomos uns grandes idiotas.

— Eu também acho — concordou Seidel sem a menor compaixão. — Até agora não consigo entender por que vieram até aqui para se entregar.

— Na verdade não viemos nos entregar, viemos chamar a atenção da polícia para um incidente dos mais escandalosos.

— E os senhores não acham escandaloso roubar doze sacos de açúcar?

— Nós não roubamos açúcar, roubamos cimento!

— Os senhores roubaram açúcar!

— Senhor delegado — disse Mamoulian com toda a calma —, nós tínhamos a intenção de roubar cimento. Pensávamos que estivéssemos roubando cimento, o senhor não entende?

— Os senhores praticaram um roubo — disse Seidel com ênfase, acentuando a última palavra. — Isso é um escândalo ou não?

— É um escândalo termos roubado açúcar. Só que pegamos sem querer. Na verdade queríamos roubar cimento...

— E isso — gritou o delegado de repente irritado — por acaso não seria escandaloso?

— Não — respondeu Mamoulian.

— E por que não?

— Porque precisamos de cimento para nossa obra. Tentamos consegui-lo legalmente de todas as maneiras. Não foi possível. Então decidimos roubar. Os sacos já estavam onde nós os encontramos há semanas, não estavam sendo de utilidade para ninguém. Nós os teríamos aproveitado para continuar a construir a nossa casa — declarou Mamoulian; e só de pensar no fato, emocionado, assoou o nariz com um lenço enorme. — Teríamos dado um destino útil ao cimento. Não teríamos enriquecido à custa dele.

— Sr. Mamoulian — declarou o delegado —, me parece que a guerra perturbou suas noções mais elementares.

— Quais, por exemplo?

— A de propriedade alheia, por exemplo — declarou o delegado. — O cimento, mesmo que fosse cimento, não lhe pertencia! E o senhor o teria apanhado assim, sem mais nem menos?

— Está certo — disse Mamoulian —, não quero afirmar que nós agimos corretamente diante da lei, mas insisto que agimos de acordo com nossos instintos, pois apesar de não termos um direito prescrito por lei, um direito de cidadão, tínhamos o direito moral de roubar aquele cimento, direito que não se encontra escrito. Concordo que tenha sido uma transgressão, como o senhor afirma. Muito bem! Mas nós estamos chamando a atenção do senhor para uma transgressão muito mais grave: nesta época de escassez e de fome, deixar mil e duzentos quilos de açúcar jogados num vagão para a qualquer momento se descartar deles de maneira completamente ilegal... O senhor sabe muito bem disso, senhor delegado.

— Sr. Mamoulian, o senhor está confundindo as coisas.

— Eu não estou confundindo nada! Se nesta cidade, neste mundo, as coisas se passassem de maneira normal, nós agora teríamos nosso cimento, e o senhor não teria a menor idéia do fato. O que me deixa indignado é que não se pode confiar em mais nada! Tudo é mentira, tapeação, a palavra dada não vale nada, a promessa também não. Escrever cimento num saco quando ele contém açúcar! Fico indignado com tal coisa! Por esse motivo vim procurá-lo. Para chamar sua atenção para uma circunstância que a meu ver a merece. Nós não queremos nada do senhor. Os onze sacos de açúcar já devem ter sido apanhados lá em casa. Somos uns pobres-diabos! A reconstrução de nossa casa voltou hoje a ser tão impossível quanto era antes. Para nós nada mudou. Mas eu gostaria que ao menos se fizesse justiça, já que para nós tudo continua exatamente como antes. A justiça, senhor delegado, é só o que eu e Jakob Steiner estamos querendo! Querendo que estes mil e cem quilos de açúcar sejam distribuídos e que sejam punidos aqueles que os mantiveram escondidos com o propósito de enriquecer. Gostaríamos também que o senhor levasse em conta as nossas razões por ocasião do roubo, e que reconhecesse que viemos aqui de livre e espontânea vontade, quando na verdade não tínhamos nada que nos obrigasse a isso.

Seidel levantou-se e ficou de pé diante da mesa.

— Por favor, pare de falar um instante! O senhor fala como se eu tivesse que me defender! O senhor diz que não se pode mais confiar em nada e em ninguém. E eu, por acaso, posso confiar no senhor?

— Pode, senhor delegado, pode mesmo! Eu lhe disse a pura verdade; vim aqui em companhia de meu amigo sem nenhuma falsidade, para lhe dar todo nosso apoio nesta difícil tarefa.

— Mas os senhores roubaram os doze sacos de açúcar!

— Açúcar não, cimento — disse Steiner. — Pensávamos...

— Cale a boca! — gritou Seidel. — Eu acabo ficando maluco, seu chato! Os senhores roubaram açúcar! Isto é um fato. O que os senhores achavam estar roubando, não vem ao caso perante a lei. O fato é que roubaram...

— Mas nós viemos aqui confessar! Seidel riu.

— E eu sei lá por quê? Vai ver que ficaram com medo; ou então vieram aqui querendo me subornar...

— E isso é possível?

— Que atrevimento!

— Foi apenas uma pergunta — disse Mamoulian baixinho. — Quem sabe o senhor gostaria de ficar com a metade do açúcar e em troca nos arrumaria uns cartões para cota de cimento, para...

— O senhor enlouqueceu? — gritou Seidel. — O que o senhor está pensando? Eu vou denunciá-lo por roubo premeditado, e o senhor ousa tentar me subornar...

— Só queria saber — disse Mamoulian muito constrangido.

— Afinal o que o senhor está querendo?

—Eu? — disse Mamoulian. — Só queria poder continuar a reconstruir a minha casa, mas acho que estou tomando o caminho errado.

— Completamente errado — concordou Seidel, balançando a cabeça a cada palavra. — Espere um instante; volto já. — Foi até a sala ao lado falar com outro funcionário. Ao reaparecer, tinha o rosto muito sério.

— O senhor ainda continua a afirmar que pegou os sacos intencionalmente, pensando que fossem de cimento?

— Sim, senhor — respondeu Mamoulian, e de repente acordando, acrescentou: — Jakob Steiner não tem nada a ver com isso. Não sabia de nada, e também não...

— Mas isso não é verdade! — exclamou Steiner perplexo. — Eu sabia muito bem. Afinal aqueles malditos sacos, fui eu quem...

— Senhor delegado — implorava Mamoulian —, não acredite nele, ele só está querendo me ajudar. Muito obrigado, Jakob — disse ele, virando-se para Steiner —, mas não tem o menor sentido. Lembre-se de que...

— Por favor, manifeste-se apenas quando eu lhe perguntar alguma coisa — disse Seidel devagar — ou serei obrigado a mandá-lo para outra sala, sr. Steiner. O caso me parece estranho demais para ser tratado com leviandade. Não acredito numa única palavra do que vocês estão dizendo. Nunca ouvi uma coisa dessas, e me recuso a acreditar que alguém possa ser tão maluco quanto vocês dois estão querendo parecer.

— Senhor delegado — disse Mamoulian —, nós apenas lhe contamos a verdade. Agora vejo que foi um erro de nossa parte. Deveríamos ter mentido. Teríamos sido mais convincentes para o senhor. Ninguém acredita na verdade e i tampouco gosta de ouvi-la. Nunca deveríamos ter dito a verdade.

— Nem deveríamos ter vindo aqui — acrescentou Steiner. — O que o senhor vai fazer agora?

— Depende. Se o sr. Mamoulian continuar a insistir que só ele é responsável pelo roubo...

— Insisto sim — respondeu Mamoulian, levantando dois dedos dramaticamente. — Se o senhor quiser posso até fazer um pequeno juramento, não me importo...

— Mas por quê... ? — indagou Steiner muito triste.

— Quieto! — disse Mamoulian. — Daqui a pouco você vai ver por quê.

— O senhor insiste?

— Com a graça de Deus — declarou Mamoulian.

— Então ficará detido por vinte e quatro horas, sob suspeita grave de estar envolvido num contrabando de dimensões desconhecidas, e de ter além disso roubado mil e duzentos quilos de açúcar de um vagão aberto.

— O senhor não pode fazer isso!

— O senhor por acaso vai me dizer o que eu posso ou não posso fazer? — perguntou Seidel altivamente. — Qualquer pessoa pode ser detida pela polícia por vinte e quatro horas, mesmo sem motivo. Decorrido esse tempo deverá ser formulada uma acusação formal para que ela continue presa. Estou certo de que muito antes disso seremos capazes de formular esta acusação, sr. Mamoulian...

Jakob Steiner ergueu-se ameaçador.

— O senhor não vai fazer isso, senhor delegado! Mamoulian é meu amigo, não admito que ele seja preso.

— O senhor não admite? — disse Seidel. — Afinal, quem é o senhor para admitir?

— Sou um ser humano — disse Jakob Steiner. — Igual a milhões de outros. Sou um deles apenas, com juízo bastante para poder distinguir o justo do injusto. O que o senhor está querendo fazer é injusto.

— Cale a boca, pelo amor de Deus, Jakob — pediu Mamoulian. — Não percebeu ainda que um de nós tem de continuar em liberdade para poder ajudar o outro, seu idiota?

— Mas é uma injustiça! — gritou Steiner, e começou novamente a se agitar. — Eu não admito! — berrou ele, avançando de cabeça baixa para o delegado, que depressa apertou a campainha. — Eu estive na guerra, vi coisas muito piores e tive de ficar calado, pois do contrário teria perdido a cabeça. Mas agora a guerra acabou. Sou um homem livre, e gostaria de ver alguém tentar prender meu amigo Mamoulian...

Dois policiais entraram e, a um sinal de Seidel, pegaram Steiner pelo ombro.

— Muito bem! — gritou ele. — Eu vou mas volto, isso eu lhe garanto, senhor delegado! E não volto sozinho! Vou trazer todos os meus amigos; volto com gente que não manda nada, que pode ser posta para fora por dois policiais, mas volto! E trarei muitos! Mais do que os policiais aqui dentro, e eles vão exigir que o sr. Mamoulian seja solto. Se não o soltarem, vão botar esta casa abaixo, vão transformar os móveis em lenha, quebrar os vidros, fazer tamanho escândalo que... — A voz de Steiner foi diminuindo à medida que ele ia sendo arrastado pelo corredor. Finalmente emudeceu; fez-se silêncio novamente.

— E agora — disse Seidel para Mamoulian — o senhor vai me seguir ou quer que eu toque a campainha mais uma vez?

— Eu vou — disse Mamoulian, levantando. Ao passar por Seidel soltou uma risada.

Prenderam Mamoulian numa pequena cela do andar térreo, atrás da guarita. A janela de grade dava para um pátio sujo, meio escuro. O ar estava empesteado com cheiro de privada e amônia. Sentado num estrado de madeira duro, Mamoulian olhava para os desenhos pornográficos nas paredes, para a mesinha, a banqueta, e o jarro com água pendurado numa longa corrente. Depois levantou-se, chegou perto da janela, apanhou uma Bíblia ensebada e rasgada numa estreita estante de livros, onde havia também uma revista e um guia para criadores de pequenos animais.

Sentou-se novamente e abriu a velha Bíblia. Seu olhar bateu num trecho do livro de Jó:

 

"Agora dentro de mim se derrama a alma; os dias de aflição se apoderaram de mim. A noite me verruma os ossos e os desloca, e não descansa o mal que me rói. Pela grande violência de meu mal está desfigurada a minha veste, mal que me cinge como a gola da minha túnica. Deus, vós me lançastes na lama e eu me tornei semelhante ao pó e à cinza..."

Mamoulian abaixou a Bíblia. Estava muito triste.

 

Lobgesang prepara uma surpresa para os amigos.

Quando Tobias Lobgesang era criança, recebia todo ano, no aniversário, uma maravilhosa torta com uma fileira de velas acesas que revelavam sua idade. Naquele dia ficava mais tempo na cama; depois ia sorrateiramente até o quarto ao lado onde estavam seus presentes, e tentava ainda mais um cochilo na esperança de sonhar com aqueles presentes, e experimentar aquela sensação gostosa de felicidade, meio ilusão, meio verdade.

Foi ficando mais velho, e muitas vezes ainda se recordava do fascínio daqueles dias. Mais tarde, quando se prendeu pelos laços sagrados do matrimônio, passou a sentir saudades deles. A cada ano vivido ao lado de sua empreendedora esposa, nascida Kugler, o aniversário ficava mais triste. Naquele ano Tobias Lobgesang fazia trinta e dois anos e sua tristeza era imensa. Tinha decidido não comentar o aniversário com ninguém, esperando assim que a data passasse despercebida. Enganara-se. Já na véspera, à tarde, a esposa lhe dera os parabéns, entregando-lhe de presente um barbeador elétrico, duas gravatas de seda, um pesado cinzeiro de mau gosto, declarando ao marido perplexo sua intenção de começar a festejar o acontecimento naquela mesma noite, em companhia de alguns amigos.

Tobias Lobgesang lhe pediu para desistir de qualquer tipo de reunião, ou para ao menos excluí-lo. Em vão. Na noite do mesmo dia em que Mamoulian e Jakob Steiner roubaram os doze sacos de açúcar, reuniu-se um grupo íntimo de doze pessoas na residência supermoderna de Tobias Lobgesang para um pequeno jantar informal, em que todos se embriagaram da maneira mais informal.

Todos sabem como é. Haviam sido convidados seis casais que Tobias Lobgesang mal conhecia e que imediatamente trataram a ele e a esposa por "você". Os convidados se divertiram por todos os cômodos da casa, e o aniversariante, que depois da meia-noite se recolhera ao banheiro para dar uma dormida dentro da banheira, foi então descoberto por alguns amigos brincalhões e embriagados. Meteram-no debaixo do chuveiro, e conseguiram que ele voltasse a participar da reunião. Àquela altura haviam decidido beber apenas conhaque. Conversavam animadamente sobre o provável desenrolar de uma terceira guerra, usando palavras muito seletas. Achavam que ela iria estourar muito em breve, sem a menor dúvida, e discutiam seriamente os problemas que semelhante catástrofe acarretaria.

Tobias Lobgesang ouvia com grande amargura a conversa que lhe chegava aos ouvidos como através de grossa neblina. Ninguém percebeu seu estado de espírito, pois ninguém se preocupava com ele. Como sempre, nessas ocasiões, ele era uma pessoa inteiramente secundária que os outros toleravam, mas a quem não davam a menor atenção.

Tobias Lobgesang tomou um pileque imenso. A pequena reunião não terminou nem pela manhã, pois ele estava bêbado demais para trabalhar. Dormiram uma horinha, lavaram o sono dos olhos, tomaram café e depois resolveram que não podiam deixar de tomar um gole à saúde do aniversariante. Pediram a Tobias para sair em companhia de uma loura, muito loura e muito engraçada, a fim de buscar mais conhaque. Bastante bêbado ainda e com a fraqueza de quem não agüenta passar uma noite em claro bebendo, Tobias caminhava ao ar puro da manhã de verão pelas ruas claras, iluminadas pelo sol, em direção a uma loja de iguarias. Ao seu lado a loura não parava de falar. Contava histórias que Tobias não conseguia entender.

— Sim — dizia ele automaticamente, seguindo em frente com os olhos lacrimejantes, o estômago embrulhado, a cabeça estourando. — Sim, sim...

Meu Deus, pensava ele, eu quero morrer! Hoje é meu aniversário! Se eu pudesse ao menos dormir... mas já sei que não vou conseguir. Vou comprar mais conhaque, e vamos continuar a beber até a noite, e depois iremos a qualquer lugar continuar a beber até o dia clarear...

Ao se aproximarem de uma encruzilhada onde diversos táxis estavam estacionados à sombra das castanheiras, Tobias Lobgesang tomou uma decisão. A loura ao seu lado estava muito preocupada consigo mesma para perceber qualquer coisa, do contrário talvez tivesse impedido que Lobgesang saísse aos saltos, atravessasse a rua e abrisse rapidamente a porta de um táxi, jogando-se dentro dele e murmurando um endereço para o motorista alarmado. No mesmo instante o carro arrancou.

— Tobias! — gritou a loura desesperada, jogando os braços para o alto. — Tobias! — continuou ela a gritar, correndo alguns passos atrás do táxi. — Volte! — E ela irrompeu em lágrimas sem o menor motivo. — Tobias, por que você me abandonou?

Tobias não voltou. Encolheu-se no banco do táxi que seguia rápido em direção oeste, e pouco depois a cabeça lhe caiu sobre o peito e ele adormeceu. Quando acordou, o carro estava parado diante da ruína da casa na Gregor-Mendel-Strasse.

— Chegamos, senhor conde — disse o motorista.

— Não sou nenhum conde — respondeu Tobias, estendendo-lhe o dinheiro. — Sou construtor e antes fui açougueiro. Aliás foi a época mais feliz da minha vida.

Deu um soluço alto e saltou. Ao tentar abrir o portão, notou para sua surpresa que ele estava trancado. Nunca lhe acontecera uma coisa dessas!

— Mamoulian! — gritou ele. — Dona Magdalena! — Nada. Não deve ter ninguém em casa, pensou ele muito bêbado. Acho que vou esperar. Mal se equilibrando, passou por um pedaço de cerca de arame caída, e foi cambaleando pelo jardim destruído, sentindo de repente que estava com muito sono. Estava com frio também. Procurou um canto onde batesse sol.

— Aniversário — murmurou ele, andando de ombros caídos, com passos de homem do mar. — Meu aniversário...

— Sentou-se ao lado da roseira ressecada; encolheu-se todo, cobriu a cabeça com as mãos e suspirou tristemente. O calor do sol era gostoso.

— Vv... vergonha — disse ainda. Depois adormeceu.

 

Assim que Jakob Steiner voltou da Gatterburggasse, dona Magdalena saiu com ele. Foram andando juntos. Estavam com pressa e quase não falavam. Só de vez em quando a pedreira de profissão cuspia no chão com desprezo e xingava. Chegando à Nussdorferstrasse, seus caminhos se separaram.

— Combinado, então. Ao meio-dia na Gatterburggasse — disse ela. — Aqueles sujeitos vão ver só!

Com essas palavras atravessou a faixa e se apressou para chegar à casa de Josephine.

Jakob Steiner encontrou Olbrich na estação. Estava mal-humorado.

— O tempo vai mudar — dizia ele nervoso; — meu toco de perna dói. O que houve?

— Prenderam Mamoulian — disse Steiner.

Olbrich apenas balançou a cabeça. Naquele dia lhe pareceu muito natural que as pessoas se mostrassem do lado mais torpe.

— Por quê? Steiner contou.

— Pela burrice de vocês — declarou Olbrich — todos os dois deviam ter sido presos.

— Ora, mas queríamos fazer qualquer coisa em favor da justiça!

Olbrich riu.

— Que justiça? A nossa ou da polícia? Idiotas! Só por isso já mereciam ser presos. Não existe justiça, não existe nada que preste...

— A não ser aquela que a gente mesmo faz — acrescentou Steiner rápido. — E nós tentamos...

— Fazer justiça — disse Olbrich, esfregando seu toco de perna dolorido. — Eu por acaso estaria aqui em pé nesta maldita estação, exposto à corrente de ar, se houvesse justiça? Teria havido uma guerra, e aqueles canalhas poderiam estar preparando outra, se houvesse justiça? Ora, deixe-me em paz, seu idiota! Prefiro continuar a vender chocolate a conversar com você sobre justiça. Você só me deixa irritado.

— Você então não vai ajudar?

— Ajudar como? — Olbrich levantou os olhos. — Isso é outra coisa. Claro que ajudo. Só fico revoltado em ver que' você e seu amigo Mamoulian pensam em querer melhorar de alguma maneira este mundo desgraçado. Vai ver — disse ele objetivamente — que também só estou de mau humor por causa da minha perna.

— A questão é: como vamos conseguir tirar Mamoulian de lá? — disse Steiner. — Eu pensei que se todos nós aparecêssemos lá, talvez pudéssemos forçar a polícia a soltá-lo.

— Forçar não podemos — disse Olbrich. — Se fizermos confusão seremos todos trancafiados como desordeiros. De qualquer maneira eles já vivem de olho na gente. Uma pequena manifestação, no entanto, dentro da maior disciplina, não pode provocar mal nenhum. Onde é que você disse que o negociante de tapetes está preso?

— Na Gatterburggasse.

— Gatterburggasse... — Olbrich ficou pensando. — Conheci um sujeito que mandava lá dentro, mas não sei se ele ainda trabalha em Doebling. Seria muita sorte. De qualquer maneira poderia pedir a ele para dar um pulo até a Gatterburggasse, caso não esteja mais lá... Conheci-o na guerra — disse depois de ter pensado um pouco. — Acho que uma pequena manifestação não tem mal algum; afinal esse pessoal tem de se lembrar que ainda existimos! Um monte de pernetas, sabe, isso impressiona!

— Mas como conseguiremos entrar logo em contato com essa gente?

— Vou dar uma palavra com os outros dois — disse Olbrich, e ambos foram para o outro lado da estação, onde os colegas Emil e Pepi faziam ponto.

— O mais simples — disse Emil depois de se inteirar do caso — é um de nós ir na motocicleta com o sujeito que traz os jornais da tarde. Ele deve estar chegando; atravessa a cidade toda.

— Você o conhece?

— É amigo meu.

— Ora, então por que não lhe pede para falar com as pessoas?

— É melhor ainda — disse Emil. — Assim economizamos tempo e dinheiro. Vamos esperar um pouco.

Não tiveram de esperar muito. Logo apareceu um homenzinho de bombacha e blusão de couro que parou a motocicleta em frente à estação e jogou uma pilha enorme de jornais para o jornaleiro.

— Um momento, Walter — disse Emil enquanto o homem já montava novamente na motocicleta. Todos se acercaram dele.

— O que é? — perguntou ele. — Estou com pressa. Os jornais estão saindo com quinze minutos de atraso. O chefe ainda acaba tendo um ataque.

— Para onde você vai?

— Volto para a cidade.

— Ótimo — disse Emil. — Tome aí um maço de Marvel e faça-me um favor. Diga ao pessoal no Schollentor, Kaerntnertor, Stephanplatz, Kohlmarkt e Resselplatz, que estejam sem falta ao meio-dia na Gatterburggasse, número 12. Não esquece?

— Gatterburggasse, número 12 — repetiu Walter. — Pode deixar.

— Diga que eu mandei pedir. É muito importante. Quanto mais gente for, melhor.

— Okay! — disse Walter, girando o acelerador de um lado para outro. — O que vai haver lá?

— Temos de falar com a polícia — disse Emil com ar importante.

 

— Eu vou me empetecar toda. O chefio de polícia vai ficar boquiaberto — dizia Josephine naquela mesma hora para dona Magdalena que, sentada num banquinho, a olhava arrumar-se. — Vou ficar tão sedutora que farei dele gato e sapato — disse ela, escolhendo suas melhores meias. — Vou fazer com que ele peça desculpas pelo fato de os funcionários terem prendido Mamoulian, isso eu prometo, dona Magdalena. Homens de classes bem diferentes, em ocasiões diversas, já vieram me pedir desculpas quando resolvia lhes virar a cabeça. Sou uma mulher muito atraente, isso eu posso lhe garantir sem estar contando vantagem. Afinal é meu meio de ganhar a vida. Acho que vou colocar um vestido bem decotado.

Josephine preparou o assalto ao chefe de polícia de Doebling com a cautela de um hábil general.

— Se eu soubesse disso antes, teria ido ao cabeleireiro. Assim a gente perde as melhores chances. Opa! — fez ela, fechando a cinta que prendia as meias. — Vocês vão ver como vou deixar aquele sujeito maluco! Há muito que venho sonhando em deixar um fulano desses, de medalhas no peito e uniforme verde-oliva e dourado, se babando todo para depois dispensá-lo quando ele começar a botar as manguinhas de fora. Quer me ajudar a entrar no vestido?

Dona Magdalena subiu numa banqueta, segurando no alto um vestido transparente de seda que Josephine vestiu.

— Trancar o pobre Mamoulian — disse ela, com uma porção de grampos na boca, penteando o cabelo para cima diante do espelho —, isso eles sabem fazer. Grande heroísmo! O pobre Mamoulian, que na vida só faz o bem; ajuda todo mundo. Mas eles vão se arrepender; pode deixar comigo. É uma pena eu não ter ido ao cabeleireiro. O efeito teria sido muito mais provocante.

— Assim como está já é bastante provocante.

— Espere só até eu me pintar!

Josephine andava nervosamente de um lado para outro.

— As meias estão certas? As costuras retas?

— Estão — disse dona Magdalena. Josephine, toda afogueada, exalou um suspiro.

— Não é fácil ser uma mulher bonita.

— Acredito — disse dona Magdalena —, mas deve ser bem agradável.

Josephine pintou os lábios com o batom mais vermelho que encontrou.

— Assim — disse ela se contemplando com olhar crítico. — Agora os olhos. — E continuou a pintar com mestria e fervor seu bonito rosto.

Por volta de meio-dia e meia ambas saíram da casa na Himmelpfortgasse. Muitos homens se viraram para ela quando, orgulhosa, com andar afetado, requebrando-se toda, foi seguindo pela rua.

— Ouça — disse dona Magdalena —, sou apenas uma mulher grosseira, uma pobre pedreira, e a senhora com certeza deve ter vergonha de andar comigo. Vá na frente que eu sigo atrás.

— Ora, dona Magdalena — disse Josephine, dando-lhe o braço ostensivamente —, se a senhora fizer mais um comentário igual a esse, eu tiro toda a minha roupa, e me sento nuazinha aqui no meio da rua, e a senhora que arranje um jeito de tirar Mamoulian da cadeia. Envergonhar-se... ridículo! — E as duas mulheres entraram na Kaerntnerstrasse, dobraram à esquerda e seguiram em direção à Ópera.

— Meio-dia e meia — continuou ela, lançando um olhar para o grande relógio no cruzamento. — Vamos chegar atrasadas... — Ela parou e fez sinal. Os freios de um carro guincharam. Um táxi parou. O motorista cumprimentou.

— Pelo amor de Deus! — exclamou dona Magdalena, dando um pulo de susto.

— Entre! — disse Josephine. — Ande, depressa! — e foi empurrando a velha para dentro do carro.

— Quem vai pagar?

— Eu — disse Josephine com voz sufocada.

— Mas...

— Deixe — disse o anjo, fechando a porta do carro. — Recebi ontem.

Dona Magdalena respirou com dificuldade.

— Para onde? — perguntou o motorista.

— Para a delegacia de Doebling — disse Josephine com ares de importância. — Na Gatterburggasse.

Ela se recostou no fundo do carro, olhando entediada pela janela, como faziam as importantes senhoras que ela às vezes via nos filmes.

 

Desde o início, o guarda Zeilinger desconfiou daquela história, mas não dispunha de meios legais para interferir. Sentia muito não dispor deles pois era o tipo de homem que gostava de interferir.

Diante do grande portão de entrada da delegacia, um policial montava guarda dia e noite. Revezavam-se de duas em duas horas. Zeilinger substituiu seu companheiro a partir do meio-dia.

Às treze horas apareceram três sujeitos, que ficaram parados diante do portão da delegacia. Todos os três eram pernetas. Zeilinger não conseguiu conversar com eles; desistiu. Quando mais tarde apareceram outros cinco, ele começou a estranhar. Às treze horas e vinte minutos já se haviam juntado cerca de vinte e cinco homens, e Zeilinger achou que era hora de interferir.

Ajeitou o cinturão, deu uma expressão séria ao rosto esfomeado e disse para um deles, que esperava encostado no muro ao seu lado:

— Não pode ficar em pé aí.

— Posso sim; muito obrigado. Zeilinger ficou furioso.

— O senhor não me entendeu. É proibido bloquear a entrada da delegacia.

— E quem está bloqueando?

— O senhor.

— Eu? Estou apenas encostado no muro.

— Junto com os outros, o senhor está bloqueando a calçada — disse Zeilinger com muito cuidado.

— Então por que não fala com os outros? Zeilinger ia responder, quando uma nova leva de sete

pernetas se aproximou capengando.

— Amigos — disse o que estivera falando com Zeilinger —, é proibido ficar parado na frente da delegacia; vamos para o outro lado.

Apoiados nas muletas, o grupo todo atravessou a rua. Ninguém se dignou a lançar nem um olhar sequer a Zeilinger. Às treze e trinta, quase cinqüenta homens estavam reunidos na Gatterburggasse. Num grupo de três recém-chegados, Zeilinger notou assustado que qualquer coisa não estava em ordem. Um indivíduo destoava dos outros. Tinha qualquer coisa diferente. Zeilinger ficou olhando-o com insistência, e de repente percebeu: o homem tinha duas pernas!

Os outros pareciam estar esperando por ele, pois o rodearam e ficaram ouvindo atentos umas poucas frases que ele lhes disse. Alguns balançaram a cabeça concordando, e quando ele terminou, todos olharam como sob comando para o portão e para o guarda Zeilinger, cujo coração, em sentido figurado, caiu aos pés. Enquanto ainda pensava em chamar reforços, o grupo liderado pelo homem de duas pernas se colocou em movimento. Cambaleando e capengando vieram em direção a ele. Com grande presença de espírito, ia justamente fechar a segunda metade do pesado portão de carvalho, quando sentiu uma mão no seu ombro e virou-se rapidamente.

— Seu guarda — disse Olbrich, apoiado na muleta —, queremos falar com o sr. Haller.

— Sim — retrucou Zeilinger, apertado contra o portão ainda aberto —, ele trabalha aqui.

— Muito bem — disse Jakob Steiner, passando por ele com o primeiro grupo. — Então estamos com sorte.

A multidão de pernetas encheu o estreito corredor.

— Esperem aí! Um instante! Os senhores não podem entrar assim todos juntos... — protestou Zeilinger, hesitando em segurar alguns pelo braço, soltando-os novamente e pulando desesperado de um lado para o outro. — Não podem! Esperem lá fora! Os senhores têm de fazer fila!...

— Pois não, paizinho — disse um perneta gigante, alisando-lhe carinhosamente o rosto.

— Que descaramento! — gritou Zeilinger, abrindo caminho e apitando com toda a força. Alguns pedestres pararam curiosos. No interior da delegacia, pesadas botas soaram pelos corredores. Alguns policiais apareceram no meio da escada, barrando o caminho dos intrusos.

— Parem! — gritou Zeilinger, a quem não se podia ver em meio à confusão geral, apenas ouvir. — Parem! Colegas, por favor, ponham essa gente na rua!

— Zeilinger! — gritou um oficial mais graduado, que atraído pelo barulho aparecera na escada.

— Às ordens! — gritou Zeilinger.

— Que significa isso?

— Estes homens... — começou o invisível Zeilinger furioso e aos brados.

— Nós viemos falar com o sr. Haller — disse Olbrich com toda a calma, bem perto do oficial.

— Vocês todos?

— Sim.

— Quem são os senhores?

— Eu me chamo Olbrich, e estes são meus amigos. Queremos falar com o sr. Haller. Por favor, deixem-nos passar. É muito incômodo ficarmos parados de muletas no meio da escada.

A situação era desagradável para o oficial. Olhou pelo corredor. Viu rostos sérios e serenos.

— Pois não, sr. Olbrich — disse ele com bons modos. — O senhor só precisa entender que não podemos nos deixar assaltar assim...

— Assaltar? Quer dizer então que é proibido entrar aqui para resolver qualquer coisa?

— Os senhores não obedeceram às instruções do guarda Zeilinger.

— Instruções de quem? Ah, é o senhor — Olbrich meneou a cabeça. — E o senhor nos deu qualquer instrução?

— Eu lhes pedi para entrarem um a um, como pessoas normais.

— Mas nós não somos pessoas normais! — exclamou alguém. — Temos uma perna só e não estamos dispostos a ficar parados aqui em fila! Além disso viemos todos tratar do mesmo assunto.

— De que assunto?

— Assunto pessoal.

— Os senhores não querem me dizer o que é?

— Não!

— Nesse caso — disse o oficial com mais frieza — sinto muito, mas não posso deixá-los subir todos... O que há agora? — perguntou irritado, querendo saber o motivo de nova agitação que foi se propagando rapidamente pelo corredor. 0 grupo se abriu. No meio deles, cumprimentando galantemente, veio caminhando uma jovem muito pintada em companhia de uma senhora gorda, já de idade. A moça usava um vestido muito provocante, estava pintada de maneira igualmente provocante e exibia um sorriso muito sedutor. De repente fez-se um silêncio solene. Josephine foi subindo a escada.

— O que a senhora deseja? — disse o oficial, cumprimentando-a com tom de ironia. Josephine viu Jakob e sorriu para ele.

— Gostaria de falar com o sr. Haller — disse com altivez. Ouvira o nome lá no corredor, e imediatamente percebeu que era ele a pessoa a quem eles queriam apelar.

— O sr. Haller está recebendo um monte de visitas

— disse o oficial. — Qual é o assunto?

— Particular e confidencial — disse Josephine; Olbrich sorriu nervosamente.

— Ora, seja razoável — disse ele —, deixe-nos subir!

— Os senhores então estão juntos?

— Estamos — declarou Josephine, como se aquele fosse o momento de confraternização entre os representantes das classes extremas. — Estamos juntos, sim.

O oficial riu, olhou para o grupo que esperava e deu de ombros.

— Ouçam uma coisa. Eu não quero ser desmancha-prazeres. Quero ajudar, mas os senhores também têm de colaborar. Lá embaixo no pátio há bancos. Desçam e esperem um instante. Já que todos vieram tratar do mesmo assunto

— disse ele, virando-se para Josephine, Olbrich e Jakob Steiner —, os senhores falarão com o sr. Haller enquanto isso.

— Muito bem — concordou Olbrich. — Esperem por nós, amigos. Voltamos daqui a pouco.

Sem mais, o grupo de aleijados deu meia-volta e saiu capengando pela segunda passagem em direção ao pátio. Dona Magdalena seguiu por último.

— Eu gostaria de saber o que os senhores querem do sr. Haller — disse Zeilinger com curiosidade, segurando o cotovelo de Josephine.

— Viemos soltar um prisioneiro — respondeu ela, lançando-lhe um olhar significativo com os olhos semicerrados.

 

— Foi por isso que viemos procurá-lo, Haller — disse Olbrich, encerrando seu discurso com um olhar implorador para o homem baixinho que o ouvira atento. Estavam todos os três na sala do delegado. O sol da tarde entrava pela janela aberta.

— Sei que você é uma pessoa justa e decente — continuou Olbrich com seu jeito apressado e nervoso. — Eu o conheço. Não acredito que vá nos decepcionar.

O rosto de Haller era magro, tinha olhos grandes, a boca cheia de dentes de ouro. Quando sorria dava a impressão de ser uma pessoa de posses. Cruzou as mãos sob o queixo, tossiu e disse:

— Você tem de entender que não posso comprometer um funcionário meu, Olbrich.

— Ninguém está pedindo isso — disse Jakob Steiner.

— Mamoulian é um sujeito decente. Ele não vai fugir. Se ele promete ficar à disposição das autoridades, você pode confiar nele. Eu respondo por ele; se ele fugir, pode me prender.

— Mas você não tem nada a ver com essa história toda!

— Eu? Nada a ver? Eu roubei aquele maldito açúcar junto com ele, Haller.

— Mas você não declarou...

— Nós mentimos, um de nós afinal tinha de ficar em liberdade para poder ajudar o outro.

— Mamoulian se prontificou até a jurar que...

— Certo.

— E então?

— Teria sido perjúrio — respondeu Steiner sem o menor constrangimento.

— Entendo — disse Haller, e ficou olhando para Josephine que se instalara de pernas cruzadas no meio da sala.

— Solte-o se ele prometer não fugir — pediu Olbrich.

— Isso não é tão simples — Haller sorriu para Josephine e ameaçou-a com o dedo quando ela retribuiu o sorriso.

— Temos de observar a lei; ela exige a apresentação de uma caução.

— O que é caução? — perguntou Josephine com voz argêntea e um magistral olhar de inocência.

— Alguém tem de se prontificar a depositar uma quantia para o detento; se ele fugir perde o direito à restituição.

— É uma quantia muito alta, sr. Haller? — perguntou Josephine, mostrando generosamente suas bonitas pernas.

— Depende do caso.

— E no nosso caso?

— Sei lá — respondeu Haller benevolente. — Quinhentos xelins; acho que bastariam.

A essa frase seguiu-se um silêncio profundo. Depois Olbrich disse:

— Deixe de piada, Haller, quem de nós você acha que dispõe de quinhentos xelins?

— Não sei — respondeu ele. — Afinal, por que esse Mamoulian não pode ficar aqui até amanhã? Também não é uma coisa tão horrível assim! Muita gente decente já foi presa por engano.

— Ouça — disse Olbrich —, só conheço Mamoulian de nome. Sei que é uma pessoa muito especial. Ele e Jakob Steiner achavam que estariam fazendo um favor à polícia com a denúncia. Estavam pensando em servir à justiça. A intenção deles era das mais honestas. E chega o seu pessoal e prende Mamoulian. Isso é uma atitude indigna, muito infeliz, se você pensar nas poucas pessoas honestas e decentes que ainda existem no mundo. Sabe o que vai acontecer se o soltarem só amanhã? (Soltar vocês têm de soltar. Quanto a isso não há a menor dúvida.) Ele vai ficar amargurado e desiludido. Nunca mais vai querer saber de honestidade. Vai perder suas boas qualidades só por culpa de um engano de um funcionário seu, Haller. Não seria uma pena? Será que temos de pisotear, matar de propósito todas as boas qualidades que ainda existem nos homens? Responda-me, Haller: você acha que temos?

— Olbrich — disse Haller —, você com todo o seu espírito humanitário, mas que não está na minha posição, o que teria feito no caso?

— Eu? —Olbrich se animou com o assunto. — Eu? Puxa, Haller, nunca teria vindo procurar vocês! Eu conheço vocês! Eu teria passado o açúcar adiante e levado uma boa vida às custas do lucro.

— Realmente — disse Haller com toda a sinceridade —, eu teria feito o mesmo. — Suspirou. — Essa gente maluca é um problema!

Josephine se concentrara, pensando.

— Sr. Haller — disse ela —, a princípio vim aqui com intenções completamente diferentes, mas agora...

— Com que intenções, minha filha?

— Eu estava a fim de seduzi-lo — respondeu ela com franqueza. — Acontece que eu imaginava o senhor completamente diferente; muito mais feio, mais velho e menos simpático.

— A senhora sentiria mais prazer se seduzisse um velho feio e antipático?

— Fazia questão que fosse como o senhor acabou de dizer.

— Veja só!

— E posso lhe garantir, não teria sido nada divertido para ele.

— Bem, então...

— Teria sido igual a Colombo e as maçãs.

— Hum — disse Haller delicadamente.

— Ela está se referindo a Tântalo — afirmou Steiner.

— O senhor sabe muito bem o que eu quero dizer — disse Josephine. — Como eu ia dizendo, meu propósito era seduzi-lo. Mas agora meu plano é outro. Vou arranjar os quinhentos xelins.

— A senhora tem tanto dinheiro assim?

— Vou fazer uma coleção.

— Uma coleta — emendou Steiner.

— Não me interrompa, meu bem — disse ela irritada. — É verdade que a gente recebe o dinheiro de volta se o processo for arquivado?

— Sim.

— E o senhor acredita que ele seja arquivado?

— Acredito que sim — disse Haller, sorrindo novamente. Josephine ergueu-se de um salto, e todos os presentes puderam ver com que facilidade ela sabia se proteger contra o calor do verão. Foi correndo para a janela aberta, e acenou para o pátio ensolarado.

— Ei, amigos! — chamou ela. — Nós temos de depositar uma caução para Mamoulian. Só então vão soltá-los. Temos de depositar quinhentos xelins até que o processo seja arquivado. O chefão disse que o arquivamento é garantido. Acontece que não temos quinhentos xelins. Vocês todos querem colaborar para conseguirmos soltar Mamoulian? Podemos fazer uma lista com os nomes e as importâncias, e, por ela, mais tarde devolveremos o dinheiro. Eu dou cinqüenta xelins, mas, infelizmente, eu não tenho tudo.

— Eu dou quinze! — gritou alguém.

— Eu, dez! — ouvia-se outra voz.

Em seguida várias vozes gritaram juntas. Josephine levantou a mão.

— Esperem! — disse ela. — Devagar! Jakob Steiner vai descer com o chapéu, e todo aquele que oferecer qualquer coisa dá o nome; eu anoto. — Remexeu na bolsa. — Pronto — disse ela —, aqui estão os cinqüenta xelins! — Ergueu a nota para que todos pudessem vê-la, colocando-a depois dentro do chapéu de Steiner. Quem der mais de vinte xelins, ganha um beijo — prometeu ela.

A coleta começou. Josephine foi escrevendo nome após nome, e no chapéu de Steiner foram se juntando notas e moedas. Dois ganharam um beijo de Josephine. Olbrich estava em pé ao lado de Haller; de vez em quando fungava nervosamente. A contagem acusou débito de cinqüenta e cinco xelins. O rosto de Josephine mostrou sua desilusão.

— Cinqüenta e cinco xelins! — exclamou ela. — Ninguém tem mais nada? Será que ninguém tem mais? Pensem no pobre Mamoulian que vai ficar trancado naquele buraco se vocês não ajudarem!

Muitos deram mais uma olhada... Não adiantou. As reservas estavam esgotadas. De repente Haller disse:

— Eu participo da coleta — e colocou algumas notas no peitoril da janela.

Os homens no pátio aplaudiram. Os olhos de Josephine brilharam. Haller acrescentou rapidamente:

— Mas prefiro desistir da recompensa relativa aos vinte xelins. Sou um homem casado. — Depois apertou a mão de todos, recebeu o dinheiro e saiu para resolver as formalidades necessárias para soltar Mamoulian. Olbrich ficou parado próximo à janela aberta, ao lado de Josephine e Steiner; juntos contemplaram a recepção triunfal dada ao ex-negociante de tapetes quando ele apareceu lá embaixo. Mamoulian ria e chorava. Acenou com a mão e disse:

— Muito obrigado, meus amigos! Eu lhes agradeço imensamente por terem vindo! — Ele dizia sempre a mesma coisa. Agradecia. E os pernetas o rodearam, riam e lhe batiam nas costas. Dona Magdalena alisou-lhe a mão.

— Estes são dos nossos — disse Steiner ao descerem, com seu eterno tique nervoso. — Haller faz parte deles, o guarda lá embaixo e a vendedora de flores da estação também. Nosso pessoal tem bom coração e uma grande alma. Riem, choram e trabalham. Cantam e são pobres. São calados, rezam de vez em quando, pedindo para as coisas melhorarem. Mas os poderosos de todos os países sabem que um dia as rezas vão acabar; e aí estará tudo perdido para eles...

Quando a família Mamoulian chegou em casa, encontraram Tobias Lobgesang dormindo debaixo da roseira. Jakob Steiner ajoelhou-se ao lado do dono da firma construtora, sacudiu-o, chamando-o pelo nome.

— Que é? — disse ele, abrindo os olhos. — Droga, o que foi agora? Será que vocês não podem me deixar dormir em paz? Será que eu não tenho sossego em parte alguma?

— Lobgesang reconheceu Mamoulian, e seu rosto se iluminou. — Ora, é o senhor! Vocês vão rir. Estou trazendo dez sacos de cimento para vocês!

— Santo Deus! — disse Mamoulian, sentando-se na grama onde Lobgesang, com uma expressão desvairada nos olhos, pegou-o de repente pela lapela, puxando-o para junto de si.

— Mas tem uma condição — disse ele murmurando, cheirando horrivelmente a aguardente; — têm de deixar eu morar com vocês. Não agüento mais a minha casa! Não dá! Vou ficar aqui até estourar a terceira guerra!

— Ora — disse Mamoulian dando de ombros —, e por que não? Esses poucos meses...


 

— Não vai haver outra guerra — disse Mamoulian com seriedade.

— Que notícia boa! — exclamou Jakob Steiner. — Ainda há pouco você pensava de maneira bem diferente.

— Andei refletindo.

— E por que não vai haver outra guerra?

— Porque não pode haver. — Mamoulian contemplou com pesar seu cachimbo vazio, e depois o enfiou no bolso.

— Não pode haver mais guerra porque a guerra morreu. Na hora em que nasceu a paz, no dia 6 de agosto de 1945, sobreveio também o inesperado fim da guerra. A guerra em geral foi mortalmente atingida nesse dia. A vítima mais importante da bomba atômica, meu querido Jakob, não foram os trezentos mil japoneses, a vítima mais importante foi a guerra.

— Não entendo — disse dona Magdalena.

— Eu também não — disse Lobgesang, meneando tristemente a imensa cabeça —, mas talvez seja assim por eu estar bêbado demais.

— A guerra na sua forma militar — disse Mamoulian

— morreu naquele dia. Isso não quer dizer que eu ache que não vá mais haver conflitos, que os fortes desistiram de atormentar os fracos e que estes não estejam mais ansiosos por se aliarem contra os fortes. Não quer dizer que as classes sociais a partir de agora se mesclem e que os micróbios façam a paz com os glóbulos brancos. O que eu acredito é que os soldados, de agora em diante, vão poder se dedicar a esportes, pois a guerra, na acepção milenar da palavra, deixou de existir.

— Sempre haverá guerra — declarou Lobgesang.

— Certo — concordou Mamoulian —, mas não guerra "de verdade", guerra heróica, com manobras, grandes generais e poderosas unidades. Com Hiroshima acabou a época do militarismo. Os cientistas venceram os generais. Nos laboratórios não há lugar para bravura, grandes figuras, palavras pomposas, tradições gloriosas. As tropas mais bem equipadas, os comandantes mais valentes que resolvessem investir contra a bomba atômica, retornariam em poucos minutos sob a forma de leve bruma.

— Mas o senhor não acha que o destronamento da guerra, se pudermos chamá-lo assim, poderá provocar uma imensa desilusão e incerteza? — objetou Jakob Steiner. — Não acredita que os homens irão sofrer se, de repente, lhes tirarem a alegria do uniforme, o uso de belas frases, a brincadeira de soldado? Que manifestações, que divertimentos haverão de substituir as grandes paradas, que concepção moral existirá no lugar da de pátria, honra, bandeira imaculada, virtudes nacionais, hinos patrióticos e todos esses absurdos?

— Esse é um dos problemas psicológicos de nossa época — respondeu Mamoulian. — Mas é também um fato incontestável que a paz no mundo se vê ameaçada unicamente pela existência de uma aparelhagem militar pronta a ser posta em funcionamento e da qual dispõem todos os países do mundo. Minha grande esperança é a sensação desagradável que a meu ver há tempos constrange os especialistas no setor: com o fim da suserania das nações e a desistência parcial à sua soberania irrestrita, seria dado o primeiro passo para uma verdadeira paz.

— E o senhor acha que os homens que hoje detêm o poder vão se declarar dispostos a essa desistência parcial? — perguntou Lobgesang com voz muito enrolada.

— Ouça — disse Mamoulian, tirando um jornal do bolso —, este é o Figaro de 20 de abril; como estão vendo, um jornal bem velho. Guardei-o por causa de um artigo que na verdade deveria ser distribuído como volante. Foi escrito por um dos maiores críticos militares da atualidade, o general J. F. C. Fuller. Vou ler um trecho para vocês.

Mamoulian pegou seus óculos de aro escuro, sentou-se e começou a ler:

 

"Estratégia, comando, bravura, disciplina, o abastecimento regular de tropas, a boa organização e as qualidades físicas de nada mais valem diante da acentuada superioridade de armamento. Usando algarismos, poderíamos dizer que o fator 'armamento' decide noventa e nove por cento da vitória, enquanto todos os outros fatores entraram no cômputo com um por cento apenas.

A concepção armamentista atual se tornará absurda. Numa guerra 'atômica' o número de combatentes fica reduzido a um mínimo estritamente necessário. E ficará menor ainda à medida que os mísseis forem aperfeiçoados. O soldado então passará a ser apenas o espectador horrorizado de uma guerra travada por modernos robôs. Por outro lado, a paz caberá àquele que tiver o maior número de bombas à disposição.

Que papel poderão representar os tanques, a artilharia e a infantaria, as praças-fortes, as ferrovias estratégicas, as academias militares, as escolas de oficiais, os generais e almirantes numa dessas guerras de laboratório? Nenhum. Não pensem por favor que estou exagerando.

Ninguém saberá o que se passa lá no alto. Ninguém saberá quem está em luta, contra quem (ou por quê). A guerra se processará numa espécie de exaltação bélica até o momento em que o último laboratório for pelos ares. Se por acaso houver sobreviventes, sem dúvida terá que haver uma conferência para se decidir quem é o vencido e quem é o vencedor."

 

— Isso — disse Mamoulian — foi escrito há quatro meses, e você pode estar certo, Jakob, que não fui só eu quem leu o artigo. Muitos homens, muitos daqueles de quem depende a situação o leram também. Evidentemente eles não deixam perceber isso para não se exporem diante dos outros, e continuam a gritar tão alto quanto antes. Mas leram estas linhas e tiraram suas conclusões assim como eu. Refletiram sobre o artigo, bem como sobre o que foi dito numa entrevista dada por um grande cientista de nome Oppenheimer, chefe do Serviço de Pesquisa Atômica de Los Alamos, a uma comissão do Senado americano. "É possível", perguntou a comissão, "que um único ataque de bomba atômica às zonas populosas dos Estados Unidos possa provocar a morte de quarenta milhões de pessoas?" "Receio que sim", respondeu Oppenheimer.

— Você já imaginou como será uma guerra dessas? No momento em que partirem as primeiras tropas para ocupar qualquer base ou posição inimiga, um terço da população civil já estará morta! No trajeto, o segundo terço há de sofrer o mesmo destino. Já imaginou o moral dessas tropas? Sabem perfeitamente que não lhes resta nenhuma esperança de reforço da pátria já destruída. Vão reconhecer que, em termos humanos, essa guerra, que nem mais guerra é, não tem o menor sentido. No máximo disputarão a posse de uma ruína com um adversário, mas tal posse já é mortal em si, pois continuará radioativa por muito tempo. Pode acreditar, Steiner, não é mais possível haver guerras, pois os homens que até hoje as provocaram sempre tiveram motivos pessoais. Um dos motivos mais fortes, no entanto, é a questão da sobrevivência. Este desaparece. Os que sobreviverem a essa nova guerra terão uma vantagem meramente médica e nem tão invejável assim sobre os mortos: sua morte sobrevirá após meses de enfermidade e sofrimento. Para ser mais claro, farei uso de um paradoxo: a próxima guerra, na qual eu não acredito mais, será tão horrível que ela não virá. E não virá por ser tão horrível. Não acontecerá, pois seria um ponto final na história do mundo, e esse ponto não entra decididamente nos planos daqueles a quem devemos até hoje nossa miséria, nossas guerras, nossas catástrofes. Não haverá outra guerra, não porque os poderosos do mundo sejam menos infames, ou porque os generais sejam menos inteligentes, ou os donos das fábricas de armamentos menos espertos, mas simplesmente porque eles não são idiotas a ponto de deixá-la vir.

— São idiotas, sim — retrucou Jakob Steiner —, e já o provaram uma porção de vezes. Os militares nunca tiveram um mínimo de bom senso; e os políticos, assim que assumem o poder, perdem o pouco que lhes resta. Suas teorias são muito bonitas, sr. Mamoulian, mas só poderão existir dentro do quadro de um mundo racional, um mundo normal, de pessoas normais. Acontece porém que as pessoas que decidem sobre o nosso destino não são normais. São monstros inteiramente desumanizados, que já não conseguem mais pensar na humanidade, e por isso não estão também em condições de avaliar o alcance ou as conseqüências de seus atos.

— Mas — objetou Lobgesang pensativo, ainda sentado ao lado da roseira ressecada, limpando o nariz e contemplando seu smoking manchado —, por outro lado, somos nós, os homens normais, que fazemos a guerra; que partimos para os campos de batalha por causa de uns poucos que não conhecemos e nos deixamos matar. Mas nós não queremos nos deixar matar! Nós estamos fartos de guerra! Eu sei até que ponto estamos saturados! Não conheço ninguém que a queira... e como vão os generais e políticos travar uma guerra se nós não entrarmos no jogo?

— Você não ouviu bem — retrucou Steiner. — Na nova guerra os generais não vão representar mais nenhum papel, nem os soldados vão ter a menor importância. Tudo será tão rápido que eles não terão nem tempo de abrir a boca para protestar por estarem sendo mortos! Os cientistas, e não os generais, farão a próxima guerra.

— Isso nos leva a outro ponto — disse Mamoulian. — Os cientistas não vão fazer guerra nenhuma. Foram eles que aperfeiçoaram a bomba atômica. Ninguém melhor do que eles sabe que não existe proteção contra ela. Ninguém melhor do que eles sabe que a destruição do mundo será então questão de poucas horas. E não se esqueça, cientistas são pessoas de mente sã, neles podemos confiar.

— Não se pode confiar em ninguém — disse Jakob Steiner. — Os cientistas serão subornados e ficarão do lado daqueles que pagarem melhor.

— Não ficarão — retrucou Mamoulian. — Eles sabem perfeitamente que não terão mais chance de gastar o dinheiro.

— Então vão descobrir uma proteção contra a bomba atômica... para eles e mais alguns privilegiados.

— Não existe proteção — disse Mamoulian. — E mesmo que existisse, se o número de habitantes do mundo hoje fosse repentinamente dizimado em noventa e nove centésimos, o último centésimo não teria condições de sobreviver, pois todos precisamos uns dos outros nas coisas pequenas e nas grandes, tanto na vida pessoal como na vida das nações. Ninguém morre voluntariamente sem ter um bom motivo para isso. Pode me citar um motivo plausível para os fabricantes de armamento bélico de repente decidirem se suicidar?

— Eles não vão morrer! — disse Steiner. — Eles viverão eternamente.

— Não nessa nova guerra — objetou Mamoulian. — Ela será também o fim da indústria de armas, pois as armas passariam a ser supérfluas. Ninguém mais iria precisar de canhões, tanques, aviões ou fuzis. E você acha que eles estão pensando em arruinar seus próprios negócios?

— O que vão fazer então? Não vão poder continuar a fabricar eternamente sem terem onde colocar seus produtos.

— Os fabricantes de armas — disse Mamoulian com entusiasmo — vão reconhecer esse fato; irão pensar. Acabarão transformando sua produção em mercadorias para a paz.

— Não vão reconhecer nada; vão conseguir que acabem com a bomba atômica e que as guerras voltem a ser feitas à maneira tradicional!

— Mas aí está a armadilha em que ficarão presos! — disse Mamoulian. — Como podem eles acabar com a bomba atômica? E na hora que descobrirem como, por onde vão começar? Como vai ser possível pôr em prática essa supressão? Não vai ser! A bomba continuará a existir sem que façam uso dela.

— Então ela continuará a ser uma eterna ameaça à paz!

— A bomba, não! — exclamou Mamoulian, erguendo-se de um salto. — A bomba em si é inteiramente inofensiva, ela é apenas um objeto! O que é e sempre foi horrível é o homem! Se ele deixar a bomba em paz, ela sozinha nada fará. Ficará quietinha e com o tempo haverá de aceitar missões pacíficas. Não precisamos vigiar a bomba. Precisamos vigiar os homens!

— Então — declarou Jakob Steiner —, se tudo se resume no homem, vamos continuar a ter guerras. Os homens são ruins!

— Os homens são bons — discordou Mamoulian.

— O senhor acredita? — perguntou Lobgesang.

— Acredito. Os homens são bons. Ultimamente venho pensando muito no assunto, andei observando e concluí que os homens estão se tornando decentes. A você, Jakob, dona Magdalena deu comida e alojamento para passar a noite; a mim, alguém emprestou dinheiro quando eu necessitava, e hoje vocês todos foram me tirar da cadeia. Acho que, de uma forma muito misteriosa, cada vez com maior clareza e com mais freqüência o bem está vencendo o mal, e eu estou firmemente decidido a acreditar que depende exclusivamente de nós vivermos em paz e sermos felizes.

— Para você que é otimista, Mamoulian, talvez — disse Jakob Steiner.

— Você também é — retrucou este. — Ainda há poucos meses estava à beira do suicídio, e agora está apaixonado, ganha dinheiro e anda cortando às escondidas os galhos velhos da roseira ressecada. Você acha que eu não vi? — perguntou ele, vendo que Steiner ficara todo vermelho.

— Bobagem — disse este sem graça. — A troco de que eu iria podar a roseira velha?

— Porque você é muito otimista — respondeu Mamoulian —, acredita que um dia ela há de reflorescer. Você é muito mais otimista do que eu. Eu só sei que não vai mais haver guerra, e que aos poucos, a muito custo, nosso mundo vai melhorar novamente. Você, no entanto, sonha tanto e de modo tão otimista com uma vida feliz, um futuro promissor, que não consegue dormir com medo de outra guerra. Ora, não venha me contar histórias — continuou ele quando Jakob Steiner fez alguns ruídos em protesto. — Sou um homem velho, já vivi muito. Você ainda é moço, Jakob, e anseia por ser feliz. Você será, mesmo que a velha roseira não floresça mais — abaixou a cabeça e acrescentou baixinho: — embora eu ficasse muito feliz se isso acontecesse...

Nesse momento dona Magdalena, que tinha saído no início da discussão, surgiu do porão e veio para o jardim, enxugando as mãos no avental.

— Como é? — perguntou ela bem-humorada. — Vocês ainda estão discutindo se vai haver guerra ou não?

— Não — declarou Tobias Lobgesang, esticando os membros duros —, já chegamos a uma conclusão: não haverá mais guerra!

— Muito bem — disse dona Magdalena. — Mas tem bolinho de batata com salada de tomate lá embaixo.

 

De acordo com a lei normal dos acontecimentos, as ocorrências excitantes na casa de Mamoulian naquele dia não tinham mais fim. Já eram dez e meia da noite quando Mamoulian, sentado e escrevendo na sua mesa entulhada, foi incomodado pela buzina de um carro que parará na rua, em frente às janelas do porão. Os três membros da estranha família já estavam dormindo. Mamoulian vestiu um velho e sujo roupão, foi ziguezagueando com cuidado pelo quarto e subiu. Jakob Steiner roncava na espreguiçadeira. Dona Magdalena e Tobias Lobgesang estavam deitados atravessados na cama de Mamoulian, deixando assim espaço para uma terceira pessoa, ou seja, para ele mesmo; o gato magro de olhos verdes, que costumava ficar sentado no escuro diante das janelas, tinha entrado nessa noite e estava deitado enrolado numa poltrona ao lado da porta.

Mamoulian virou-se mais uma vez a fim de contemplar aquele quadro idílico, depois subiu com todo o cuidado, tateando pelo jardim escuro, praguejando ao bater com os dedos do pé contra o tonel d'água. Abriu o portão. À luz dos faróis de um carro cujo motor roncava inquieto, viu uma senhora em roupa de festa.

— A senhora deve ter-se enganado, o número desta casa é 136 — disse ele polidamente.

Olhou para o rosto simples e agradável. Por cima das bochechas gordas apareciam dois olhos claros e despreocupados, que no momento, porém, estavam com uma expressão algo desconcertada. Mamoulian, que tinha um olho bom para essas coisas, notou que o vestido era de uma das melhores casas da cidade, mas que ela o usava com muito pouca elegância, sentindo-se pouco à vontade, fato que procurava compensar com um ar de acentuada displicência.

— Sei disso — disse Toni Lobgesang, nascida Kugler. — É o 136 mesmo. O senhor não é o sr. Mamoulian?

— Sou.

— Imaginei...

— Desculpe-me, mas...

— Meu nome é Toni Lobgesang — disse ela através da grade do portão. — Desde hoje cedo estou à procura do meu marido; ele desapareceu. No depósito da firma me informaram que ele talvez se encontrasse aqui, por isso vim me certificar.

A fala um tanto pedante de Toni Lobgesang, no momento da excitação, não deixava porém de revelar a sua origem. Mamoulian baixou a cabeça, abriu devagar o portão do jardim, pigarreou longamente e assoou o nariz. Fazia isso tudo para ganhar tempo. Precisava de tempo para pensar.

— E então? — perguntou a moça.

— Então o quê? — respondeu Mamoulian com ar de inocência.

— Responda-me!

— A senhora não me perguntou nada, minha senhora.

— Meu marido está aí? Mamoulian sorriu amavelmente.

— A senhora deve compreender que estou meio confuso com a sua visita a esta hora tardia. Não estou mais habituado a receber visitas de senhoras depois do anoitecer. Como a senhora está vendo... — ele apontou para a ruína atrás da qual surgia uma estreita fatia de lua —... minha casa no momento não permite que eu leve uma vida social normal, por isso assim que escurece eu...

— Sr. Mamoulian — insistiu Toni Lobgesang —, eu estou lhe perguntando: meu marido está aí?

— Minha senhora — respondeu Mamoulian —, deve entender que é muito desagradável para mim ficar aqui diante da senhora de roupão e chinelos.

— Sr. Mamoulian, o senhor deve entender que é muito desagradável para mim ficar aqui diante do senhor de roupa de festa e sem meu marido. Muito mais desagradável do que para o senhor — acrescentou ela. — Muito mais — repetiu ainda, prendendo um soluço, fato que levou Mamoulian a concluir que também ela devia ter tomado uma boa quantidade de álcool, embora talvez algumas horas antes. Seu efeito porém ainda não tinha passado.

— Não seria... não seria talvez melhor colocar o carro em cima da calçada e desligar o motor?

Ela virou-se automaticamente e deu alguns passos. Mamoulian adiantou-se precipitado.

— Com licença, por favor — disse ele —, mas eu... — Foi entrando no carro, fechou a porta, ligou o motor, engrenou uma primeira, tirou o pé da embreagem, acelerou e subiu com todo o cuidado na calçada; estacionou entre duas castanheiras, desligou o motor e apagou os faróis altos. Depois abriu novamente a porta, inclinou-se para fora e perguntou: — Por que não sentamos um pouco para conversar?

— Não poderíamos entrar?

— Não — disse Mamoulian, depois de pensar um pouco. — Iríamos perturbar o descanso de meus amigos. Eles tiveram um dia de trabalho árduo e não gostaria de acordá-los.

— Dia árduo, como? — perguntou Toni, sentando-se ao lado dele e fechando novamente a porta.

— Eles foram me tirar da cadeia — disse Mamoulian orgulhoso. — Ora! — exclamou ele, notando a sua expressão. — Claro que isso é coisa que não lhe interessa, bem posso imaginar.

— Sr. Mamoulian — disse Toni que, em caso de necessidade, sabia ser muito enérgica. — Pela última vez, antes que eu vá chamar a polícia, meu marido está aí dentro deste barraco ou não?

— A polícia? — Mamoulian estava indignado. — A senhora não pode chamar a polícia! Eles me soltaram mediante uma caução! Eu voltaria para a cadeia na mesma hora!

— Exatamente. Então, ele está aí ou não?

— Está — confessou Mamoulian, baixando a cabeça. Toni Lobgesang virou-se subitamente, ameaçando saltar do carro.

— Para onde vai?

— Vou vê-lo.

— Ele está dormindo.

— Vou acordá-lo.

— E depois?

— Levá-lo para casa.

— Ele não vai com a senhora.

— Não vai, por quê?

— Não quer mais viver em casa — respondeu Mamoulian com muito cuidado. — Quer ficar aqui comigo.

— Ouça — disse Toni, encarando-o atentamente —, no decorrer do dia eu andei tomando uma quantidade bem razoável de conhaque, mas já estou completamente sóbria. E o senhor, quanto bebeu?

— Ora — tornou Mamoulian com tristeza —, eu, quanto conhaque tomei? Que pergunta! Nem sei mais qual é o gosto de conhaque!

— Deixe-me sentir. Mamoulian deu uma soprada.

— Estranho, cheirando a álcool o senhor não está — disse ela. — Mas como pode então dizer tamanha tolice?

— Eu não estou dizendo tolices — retrucou ele com seriedade. — A senhora corre realmente o risco de perder seu marido e em muito pouco tempo.

— Mas meu marido me ama! — exclamou ela muito assustada e incrédula.

Mamoulian olhou através do pára-brisa brilhante para a rua deserta; ligou o limpador um instante. De repente sentiu-se muito velho.

— Sim, ele ainda a ama; mas o amor não é a única força responsável pelo sucesso ou fracasso de um casamento. Existem muitas outras.

— O amor é a mais forte de todas — afirmou Toni Lobgesang, nascida Kugler, meio envergonhada com essa frase estranha.

— Existem outras forças muito poderosas — continuou Mamoulian. — O hábito é uma delas, a gratidão também e até a indolência. A senhora tem um bom marido. Ele é uma pessoa simples. Não é justo que a senhora, às vezes, se envergonhe dele.

— De onde tirou tal idéia?

— Sim, a senhora, às vezes, tem vergonha dele; de seus maus modos à mesa, a voz muito alta, as mãos vermelhas, a ignorância. Um casamento, sra. Lobgesang, é um conjunto muito frágil e delicado que pode ser danificado com muita facilidade. Todo casamento bem-sucedido é, na maioria das vezes, a tentativa constante de uma parte se adaptar à pessoa e à personalidade da outra.

— Eu sempre fui boa esposa para Tobias.

— E o que a senhora pensa. Será que nunca lhe ocorreu que ele possa não se sentir bem naquela residência luxuosa; que esteja farto de seus amigos; que preferiria sentar à mesa em mangas de camisa e beber uma cervejinha aos sábados à noite com os amigos dele, e que de vez em quando também gostaria de ficar sozinho com a senhora?

— Nós estamos sozinhos tantas vezes, à noite, de manhã...

— Não — retrucou Mamoulian —, não me refiro só a ficar sozinho para dormir ou comer, mas também para conversar. Conversar sobre as coisas que lhe interessam, que significam alguma coisa para ele. A senhora tem feito isso?

— Mas o que lhe interessa? Ele nunca me disse!

— Nunca teve coragem. Tobias é um homem muito tímido.

— Ridículo! O senhor já viu os músculos que ele tem?

— Mesmo assim, ele é tímido. Muitos homens de grande força física são especialmente tímidos, sra. Lobgesang, enquanto os baixinhos e magricelas são geralmente atrevidos. Seu marido tem o direito à vida dele, exatamente como a senhora, eu ou qualquer ser humano. Esse direito ninguém lhe pode tirar. Muitas pessoas estão constantemente tentando nos privar de nossa própria vida; temos que defendê-la a toda hora, pois ela está sempre ameaçada. As pessoas que nos amam e aquelas a quem amamos não deveriam constituir uma ameaça; elas deveriam participar da nossa vida, para que um se torne parte da vida do outro. A senhora é uma parte da vida de seu marido?

— Espero que sim.

— A senhora é. Mas ele não se tornou parte da sua vida, pois a senhora se cercou de uma porção de gente estranha, de um mundo totalmente estranho, e ele começou a se afastar da senhora, a quem ama. Por esse motivo veio para cá e está dormindo lá embaixo no meu porão. Por isso, também, a senhora, que está aqui sentada comigo agora, está ameaçada de perdê-lo.

Mamoulian calou-se, e ambos ficaram olhando para a rua que serpenteava por entre as árvores para se perder no escuro. Depois Toni perguntou:

— Foi ele quem lhe contou tudo isso?

— Não.

— Como sabe então?

— Sei de muita coisa que não me contam — respondeu Mamoulian. — Às vezes não consigo explicar, mas sei que é assim. A senhora acredita no que estou lhe dizendo?

— Acredito — disse ela. Ligou a luz interna do carro e começou a empoar o rosto com movimentos nervosos. — Acredito no senhor, sim, embora nem saiba por quê. Acha que Tobias ficaria a meu lado se eu mudasse?

— Claro que sim.

— Mas será que eu vou conseguir mudar?

— Se eu não me engano a senhora já mudou uma vez. A senhora negou sua origem, penetrou num outro mundo. Não lhe deve ser difícil, pois, por amor a seu marido, voltar a ser o que era antes: a mulher que ele amava, sua companheira de infância.

— O senhor é uma pessoa estranha — disse ela, contemplando-o pensativa. — Primeiro, me deixou furiosa. Agora estou até simpatizando com o senhor.

— Sra. Lobgesang — disse Mamoulian —, quando eu não a conhecia, mas apenas a seu marido, a imagem que fazia da senhora não era das melhores. Agora também estou simpatizando com a senhora...

— Eu lhe agradeço imensamente por tudo o que me disse. Agradeço especialmente por me ter dito hoje.

— Hoje, por quê?

— Porque hoje é aniversário dele.

— Meu Deus! — exclamou Mamoulian, saltando do carro. — Mas então está na hora de ele ir para casa com a senhora!

Mamoulian levou Toni Lobgesang através do jardim e juntos desceram a escada para o porão.

— Psiu — fez ele. — Silêncio! Meus amigos estão dormindo.

Toni olhou meio perdida ao redor daquele cômodo desarrumado e depois descobriu o marido.

— Mãe Santíssima! — murmurou ela. — Olhe lá! Ele está dormindo com outra mulher!

— Ela já é velha, e além disso ele já está indo embora.

— Mas já imaginou se eu não tivesse vindo...

— Mesmo assim — disse ele ingenuamente, como se estivesse divulgando uma boa nova —, não haveria razão para a senhora se incomodar. Eu deitaria no meio, se tivesse lugar.

Toni Lobgesang inclinou-se por cima do marido e acariciou-o.

— Tobias, venha para casa! — disse-lhe ao ouvido. Ele suspirou fundo e virou-se na cama, mal-humorado.

— Tobias! — repetiu ela.

Ele virou-se novamente e olhou para ela.

— Você? — perguntou incrédulo.

— Sim, sou eu. Andei procurando por você e vim encontrá-lo aqui. Falei com o sr. Mamoulian; eu sei de tudo, Tobias. Você não era feliz ao meu lado. Agora tudo vai mudar.

— Mas... — disse ele confuso, sacudindo a cabeça quadrada —... como pode mudar? Você faz questão daquela vida estranha, e eu não quero atrapalhá-la!

— Eu não faço questão dela, Tobias — murmurou ela, enquanto dona Magdalena resmungava qualquer coisa.

— Não faço questão de nada. Só de você. Faço muita questão de você. Foi por isso que vim. Não quer tentar mais uma vez?

Tobias Lobgesang refletiu um instante. Depois jogou a coberta para o lado, e sentou-se na beirada da cama para calçar os sapatos.

— Amanhã ainda tenho de trazer o cimento para vocês

— disse ele para Mamoulian.

— Sua mulher lhe fez uma pergunta — disse este delicadamente.

— Eu ouvi — respondeu Lobgesang. — A uma pergunta dessas é impossível a gente dar uma resposta. Se eu quero tentar mais uma vez? Puxa, eu amo esta mulher!

— Está certo — disse Mamoulian —, mas fale baixo, senão ainda acaba acordando dona Magdalena.

Acompanhou o casal até o carro, e então se despediu.

Durante toda a viagem de volta, Tobias não disse uma palavra. Sua mulher dirigia também calada. Ao chegarem, Tobias mudou de roupa mais uma vez e caiu pesadamente na cama. Meio atordoado, ele apagou a luz. Depois de alguns instantes ouviu a mulher entrar no quarto. Ela andava com cuidado e em silêncio.

Tobias sentiu-a quando ela deitou ao seu lado e o abraçou. Sentiu seu hálito morno no rosto e o corpo quente encostado ao seu.

— Parabéns pelo aniversário, querido — disse a sra. Lobgesang, nascida Kugler.

Cinco dias depois apareceu um oficial de justiça em casa de Mamoulian, que estava justamente acabando o último capítulo de sua tradução. Vinha lhe comunicar que seu processo tinha sido arquivado e que os onze sacos de açúcar seriam confiscados. Além disso trazia de volta os quinhentos xelins que os amigos de Mamoulian haviam depositado para ele. Mamoulian entregou a importância a Jakob Steiner, e este passou-a para Olbrich que havia guardado a lista dos contribuintes e conhecia a todos de nome. Os cinqüenta xelins ofertados por Josephine, ele foi entregar pessoalmente.

— Seria ótimo se ainda conseguíssemos algum dinheiro antes de começar o frio — disse Mamoulian certa vez, conversando sobre a casa nova, cujas paredes subiam a olhos vistos, graças ao cimento de Lobgesang. — Seria ótimo, pois tenho perfeita consciência de que não temos condições para fazer certos trabalhos importantes sozinhos. Não sabemos, por exemplo, fazer uma instalação de água, nem de gás, e provavelmente também não conseguiremos fazer a laje; a luz também tem seus problemas. Além disso, precisamos de vidro e de uma madeira lisa e bonita para a escadaria, e assim por diante. Antes do Natal ainda vamos precisar de muito dinheiro se quisermos completar nossa tarefa e tornar o primeiro andar habitável.

Era fim de agosto. Na oficina improvisada de Jakob Steiner, viam-se caixilhos prontos, portas consertadas, vigas e tábuas para o assoalho, bancos e mesa; mal dava para as pessoas se mexerem. O tempo continuava quente e por isso Steiner trabalhava ao ar livre, usando o galpão quase exclusivamente como depósito. Andava pela ruína por entre as paredes novas, media e calculava, e afirmava já estar com a planta da casa toda na cabeça. Os velhos travessões, as vigas em T do segundo andar já haviam sido substituídas pelas que ainda eram aproveitáveis; com três dias de trabalho pesado e a ajuda das roldanas e carretilhas de Lobgesang, tinham sido colocadas na posição certa, montadas e fixadas. As quatro paredes externas já estavam com a altura definitiva em três lados, as paredes internas deveriam ser levantadas nos meses de setembro a dezembro. As primeiras grandes dificuldades surgiram na construção da laje entre o térreo e o primeiro andar. Era imprescindível chamar gente experiente, comprar diversos materiais que, em virtude de suas qualidades específicas, não poderiam ser reaproveitados nem roubados.

Mamoulian é quem foi tratar com a firma construtora que mantinha estreitas relações comerciais com a de Lobgesang e que, portanto, também concordou em adiar o pagamento até o fim do ano, uma declaração da qual Mamoulian tomou conhecimento com um misto de triunfo e aflição. Para se acalmar, contou a dona Magdalena que nesses dias trabalhava com esforço sobre-humano a história de Henrique VIII e do bobo da corte que seria enforcado por ter o monarca descoberto as relações dele com a sua sexta esposa:

" 'Piedade, senhor!', implorou ele, 'deixe-me viver só mais um ano, e eu ensino Rocinante, vosso cavalo predileto, a falar!'

" 'Ah, ah, ah!', riu o pançudo com sua coroa. 'Ensinar um cavalo a falar! Que coisa mais ridícula! Bem, vou lhe fazer a vontade. Mas preste bem atenção: um ano! Se dentro desse prazo Rocinante não estiver falando, você está perdido!'

"'Que desgraçai', lamentou a rainha diante do bobo da corte, seu amante, quando se encontraram novamente às escondidas.

"'Doce coração!', respondeu ele. 'Console-se. Ainda nos resta tempo. Pense só em tudo o que pode acontecer no espaço de um ano! O rei pode morrer, eu posso morrer, você pode morrer. Rocinante pode morrer! Ou então Rocinante pode aprender a falar!' "

— Isso é verdade, dona Magdalena, e tem até uma moral — disse Mamoulian para a velha que, de pé diante do fogão, improvisava um jantar nos quinze minutos de folga, enquanto Jakob Steiner com alguns operários especializados trabalhavam na laje.

— Sim — volveu ela, raspando às pressas uma dúzia de cenouras —, eu entendo. O senhor pode morrer, a firma pode ir à falência, nossa casa pode desmoronar, uma guerra pode estourar...

— Ou então eu posso conseguir o dinheiro — disse Mamoulian.

— Ora! — exclamou dona Magdalena — vai começar de novo com essa história de seu amigo armênio! Nem gosto de ouvir falar nela. O senhor foi tapeado, fez todo esse trabalho em vão. É uma vergonha o senhor ainda não ter se convencido disso.

— Um dia — respondeu Mamoulian de pé diante dela, olhando para o vazio —, um dia ele há de vir, me abraçar e dizer: "Perdoe-me, irmão, por ter deixado você esperar tanto tempo!" Sim, dona Magdalena, assim mesmo é que vai ser. E não pode demorar. Daqui a alguns dias acabo a tradução. A senhora sabe, possuo um instinto todo especial para o que é sorte. É até difícil acreditar, não acha? Mas assim é. Hoje eu sei que a felicidade virá bater à minha porta. E virá muito breve, trazendo alegria para nós todos. Também a senhora, dona Magdalena, este ano ainda terá uma grande alegria. — Enquanto falava, mudava a roupa, pois tinha acabado de voltar da cidade onde fora entregar seus artigos em diversos jornais, e agora ia ajudar os outros na laje.

— Eu já sou velha — disse a pedreira de profissão. — Não preciso de dinheiro. Aliás não preciso de mais nada. Só desejo que meu filho volte. Então poderei morrer em paz.

— A senhora não vai morrer quando seu filho voltar. E ele vai voltar, basta a senhora ter fé. Assim como meu amigo armênio há de voltar porque eu desejo isso demais. Quando éramos bem pequeninos, dona Magdalena, nós tínhamos fé! Sabíamos voar! Pode rir mas era isso mesmo. Todas as crianças pequenas sabem voar e saem voando por aí à noite, quando os adultos estão dormindo... Saem pelas janelas, voando por cima das casas da grande cidade, para o Tuerkenschanzpark, se moram em Viena, e lá naquele parque brincam, como Peter Pan, com elfos, ninfas e duendes. De manhã cedo, antes do nascer do sol elas voltam. Todas sabem voar... até o dia em que começam a duvidar dessa sua capacidade; até o dia em que surge a menor dúvida que seja. Aí, acabou-se!

— De vez em quando o senhor conta cada bobagem, sr. Mamoulian! — disse dona Magdalena, colocando a panela com as cenouras no fogo.

— É verdade — retrucou Mamoulian, enfiando-se num macacão velho e incrivelmente sujo, para ajudar Steiner, que já esperava por ele.

— Falou com ela? — perguntou este enquanto Mamoulian, ofuscado pelo sol de fim de verão, piscava lá em cima, tentando olhar para os três operários que andavam pelos andaimes, prendendo com arame e compridos ferros as vigas que ainda estavam soltas.

— Não posso pensar em tudo o que temos de pagar — murmurou Mamoulian perdido em pensamentos —, do contrário fico tonto antes de subir lá em cima!

— Mamoulian, eu lhe perguntei se falou com ela.

— Com quem?

— Com Josephine — respondeu Steiner impaciente.

— Eu não lhe pedi para visitar Josephine e entregar-lhe a minha carta?

— Pediu, sim — disse Mamoulian sem tirar os olhos dos três operários que se destacavam como sombras escuras contra um céu muito azul. — Embora eu não tivesse entendido bem por que você mesmo não foi até lá visitá-la, como costuma fazer.

— Dessa vez tratava-se de um assunto muito importante e eu não fazia questão de estar presente na hora.

— Você perguntou na carta se ela queria casar com você?

— Sim — respondeu Steiner surpreso e sem graça. — Ela disse algo?

Mamoulian aquiesceu.

— Esquisito...

— Não se esqueça de que eu e Josephine somos velhos amigos. Ela me contou e pediu conselho.

— E o que foi que você aconselhou? — Nervoso, Jakob Steiner mordia as unhas.

— Eu a desaconselhei — disse Mamoulian amavelmente, balançando ligeiramente a cabeça.

— Você! — Steiner deixou cair o martelo que mantinha preso debaixo do braço e, pegando Mamoulian pelos ombros, começou a sacudi-lo. — Você ficou maluco? Como ousa meter-se em meus assuntos particulares?

— Seus assuntos particulares! — retrucou Mamoulian repreensivo, tentando se soltar. — Afinal, é também um assunto particular de Josephine, se me permite lembrar-lhe, meu amigo! Ora, solte-me, eu não consigo nem respirar!

Jakob Steiner contemplou o outro meio ofegante.

— Por que fez isso comigo?

— Porque gosto de você! — respondeu Mamoulian.

— Porque gosto da Josephine e porque gosto da pequenina Ruth que daqui a algumas semanas vai para a escola. Josephine me perguntou: O que você me aconselha, Mamoulian? E eu respondi: acho que ainda é cedo, Josephine. Ela concordou.

— Não é cedo, não — disse Steiner com amargura.

— Vamos ficando mais velhos a cada dia que passa, o inverno está chegando, vai fazer frio, a neve vai cair, e além disso eu já não agüento mais a solidão.

— Mas você não está só! Pode ir visitá-la quando quiser!

— Fazer visitas é uma coisa horrível. Ir lá e saber que a gente tem de voltar, que não pode ficar! No fim fica-se sem saber direito onde é o lugar da gente. Quer saber de uma coisa? Um amor assim à distância é horrível! Se a gente tiver azar, ele morre no meio da viagem.

— Mas afinal — retrucou Mamoulian —, como é que você imaginou que seria? Nós não fizemos um plano, não queríamos reconstruir a nossa casa? A idéia foi sua! A princípio nem gostei dela, mas agora eu também quero acabar a obra. Se você casar, vai tudo por água abaixo. Terá tanta coisa em que pensar, que não vai ter mais tempo de trabalhar aqui. Além disso não tem dinheiro, nem tem onde morar, pois antes da primavera isto aqui não estará pronto. Depois, também não tem emprego...

— Vou arrumar um — retrucou Steiner obstinado. — Falei com Lobgesang e ele me prometeu. Prometeu com toda a certeza me empregar como carpinteiro logo no início do ano. Aí vou ganhar dinheiro suficiente para poder sustentar a mim, a Josephine e à pequenina Ruth.

— Mas então; você mesmo está dizendo: ano que vem! Eu não disse a Josephine para não se casar com você, disse apenas que no momento ainda era cedo, veja se compreende, seu idiota! Tudo na vida tem sua hora, isso já está escrito num livro muito velho e muito interessante, Jakob, tudo o que se pretende debaixo destes céus tem seu momento exato. Nascer, morrer, plantar, lamentar-se e dançar, espalhar pedras e catá-las, perder e achar, guardar e jogar tora, calar e falar, a briga e a paz, o amor e o ódio. Tudo tem seu tempo.,

— Mas eu não tenho tempo.

— Tolice. Tem de ter. Tem de aprender a ser paciente. A ser paciente e não se precipitar, entende? Quem se precipita dá com os burros n'água. Não importa se em sua precipitação ele saltou e acertou o pulo ou não, ele acaba liquidado. E você quer pular, quer dar um salto bem grande sem estar preparado para isso? Não tem sentido colocar a pessoa a quem se ama numa situação tão angustiante que, de tanta preocupação, não lhe resta tempo para pensar no amor. Era exatamente isso que você ia fazer. As preocupações seriam grandes demais para vocês poderem ser felizes por muito tempo. Josephine teria largado você, porque ela é uma mulher que procura a segurança acima de tudo. Ora, Jakob, eu conheço você, deixe de ser cabeça-dura, a mulher não vai fugir. Espere um pouco mais, ouça o meu conselho; foi o que eu disse a ela também. Na primavera, quando você estiver trabalhando e ganhando seu dinheiro, vocês se casam e eu serei o padrinho. Não vale a pena arriscar demais — continuou ele subindo pelo andaime —, nossa situação já é bem difícil mesmo sem o seu casamento...

Enquanto puxava uma viga para cima juntamente com os trabalhadores barbados, pensou no ano que estava para entrar, e pelo qual Jakob Steiner ansiava tanto, e que para ele traria algumas contas polpudas a saldar. Jakob Steiner ficou olhando para Mamoulian, e aos poucos a amargura foi cedendo lugar a uma certa tristeza. Ao se lembrar da primavera seguinte, a tristeza foi cedendo lugar ao bom senso.

Por fim Steiner disse:

— É isso. — Cuspiu nas mãos e foi subindo atrás de Mamoulian para o segundo andar.

 

A inacreditável carta chegou em 29 de agosto com o correio da manhã. Veio dentro de um elegante e comprido envelope, e tinha sido expedida em Viena. Em cima do envelope estava datilografado o nome de Mamoulian e seu endereço, e no canto superior esquerdo lia-se em letras pequenas:

 

REUBEN TSCHIPOURIAN

 

Apenas este nome, mais nada.

Quando Jakob Steiner entregou a carta a Mamoulian, este de repente ficou lívido e começou a cambalear. Steiner teve a impressão de que ia desmaiar. Depois o rosto de Mamoulian ficou todo vermelho, ele jogou os braços para o alto, murmurou qualquer coisa sem nexo, e caiu sentado no chão.

— Meu coração! — disse ele. — Não sou mais garoto.

— Levante-se e pegue a carta — disse Jakob Steiner. — Está endereçada a você.

— Não consigo levantar, Jakob — disse Mamoulian, mexendo as pernas em vão. — Leia para mim.

Jakob Steiner abriu o envelope, tirou uma folha de papel de carta de primeira qualidade cuidadosamente dobrado e leu:

 

"Querido Aram, sinto imensamente tê-lo feito esperar tanto tempo. Meus negócios me obrigaram a dar a volta ao mundo e por isso não consegui regressar mais cedo. Peço mil vezes perdão. Não creio que você tenha traduzido meu livro. Se por acaso o tiver feito, não sei como agradecer-lhe. Eu o espero ansiosamente. Venha me ver. Meu endereço é Stubenring, número 10, segundo andar, primeira região administrativa da cidade de Viena, Áustria. Um abraço do amigo, Reuben Tschipourian".

— Jakob — disse Mamoulian sem nenhuma expressão na voz —, sabe o que isso significa?

— "P. S.:" — continuou este. — "Por favor, traga o meu original. Não importa se foi traduzido ou não."

— Sabe o que isso significa? — perguntou Mamoulian mais uma vez, ainda sentado no chão.

— Não — disse Steiner.

— Significa que meu cliente voltou — declarou Mamoulian com voz trêmula —, que ele retornou depois de três anos, e que agora vamos receber dinheiro pelo meu trabalho, que não vamos mais precisar nos preocupar, que vamos poder comprar roupa para dona Magdalena, para você, para Josephine e para mim, que vamos poder pagar as nossas dívidas, encomendar vidro para as janelas e... Eu tenho de me vestir, fazer a barba e ir à cidade. Onde está a minha calça escura? Onde está dona Magdalena?

— Na obra, onde é que poderia estar? — disse Steiner, começando também a ficar nervoso.

— Pois trate de mandar chamá-la imediatamente — declarou Mamoulian, remexendo todas as gavetas à procura de uma camisa limpa e uma gravata. — Ela tem de passar minhas calças. Meu Deus, nada está no lugar! Não se acha nada! Sabe em que obra ela está?

— Na Billrothstrasse. Não é longe daqui...

— Então dê um pulo até lá. Diga a ela para vir depressa! Diga para não demorar! Não posso deixar meu amigo esperar... Steiner! — gritou ele quando Jakob já ia subindo as escadas. — Quanto dinheiro ainda temos?

— Quarenta xelins — respondeu ele —, mas não compramos a comida da semana, e o homem do gás ainda não veio.

— Homem do gás! — exclamou Mamoulian. — Você não entende que isso tudo não é mais problema para nós? Temos dinheiro, muito dinheiro! Hoje à tarde estaremos ricos! Pegue os quarenta xelins!

— Estão com dona Magdalena. É ela quem guarda o dinheiro.

— Então pegue uma garrafa e vá apanhar um litro de vinho.

Jakob Steiner virou-se, foi rápido à cozinha apanhar uma garrafa.

— Traga daquele vinho velho, de seis xelins o quarto de litro! — gritou Mamoulian, correndo atrás dele de cuecas até o portão da rua. — Veja se não traz aquela porcaria aguada da última vez!

Jakob Steiner já não ouvia mais. Descia a ladeira aos saltos para ir buscar dona Magdalena. Mamoulian andava de um lado para o outro no seu porão, falando sozinho, esperando que a água para fazer a barba esquentasse.

— Assim é a vida, meu amigo — disse ele. — Eu sabia que tinha razão em continuar meu trabalho. Nunca se deve perder a esperança. Se perdermos a esperança, estará tudo perdido. Milagre só acontece a quem tem fé. É só a gente não se espantar demais. E eu por acaso estou espantado? Em absoluto. Eu sei como é a vida. Também já tenho idade bastante para saber... saber ao menos um pouco. A gente não deve sofrer demais por nada, também não deve se alegrar demais; só assim poderemos ser felizes no mundo.

Enfiou um dedo na água, queimou-se e disse:

— Parece que eu já estou me alegrando demais. Tenho de tomar cuidado, senão daqui a pouco dou com os burros n'água. — O rosto de Mamoulian assumiu uma expressão bem séria, lembrou-se de seu coração fraco, do casamento de Jakob Steiner, de seus problemas, de uma porção de coisas complicadas e pouco agradáveis, só para não se entusiasmar demais. Mesmo assim cortou-se três vezes ao fazer a barba, e estava ainda esperando que seu queixo parasse de sangrar quando dona Magdalena desceu a escada, pisando com força, com uma garrafa cheia na mão. Colocou-a na mesa com um estalo e deu um beijo em Mamoulian.

— Cuidado! — exclamou este assustado. — Vai ficar toda suja de sangue!

— Bobagem — disse ela, que cheirava estranhamente a curral. — Que importa? Há muito venho querendo lhe dar um beijo, Mamoulian. Afinal chegou a hora. Aliás — disse ela, abraçando-o mais uma vez —, posso lhe dar logo outro antecipado; quem sabe quando vamos receber dinheiro de novo?

— E agora — disse Mamoulian quando conseguiu respirar — apanhe depressa três copos. Tenho de tomar um trago. — Esvaziaram a garrafa num instante.

Dona Magdalena limpou a boca e, batendo nas costas de Mamoulian, disse:

— Agora é que o senhor vai ver que passadeira eu sou! Nunca em toda a sua vida vestiu uma calça tão bem vincada! — Desapareceu na cozinha com a referida peça de roupa, e começou a assoviar.

— Quanto dinheiro acha que vai receber? — perguntou Jakob Steiner, sempre mantendo a calma.

— Não sei. De qualquer maneira deve ser uma bolada maior do que temos visto juntos há muito tempo — disse Mamoulian. — Quer dar um presente a Josephine?

— Gostaria, mas...

— Então dê! Quer dar um presente à pequenina Ruth também?

— Quero, mas...

— Então dê! E será que não vai querer dar nada a dona Magdalena? Era só o que faltava. Já imaginou o que faríamos sem ela?

— Mamoulian — disse Jakob Steiner —, ainda temos uma porção de contas a pagar, se quisermos continuar a construção de nossa casa. Não deveríamos esbanjar o dinheiro dessa maneira!

— Não tenha medo. — Mamoulian fez um gesto magnânimo. — Vamos ter dinheiro de sobra para dar presentes e pagar as contas. Espero, ao menos — concluiu um pouco mais prosaico. — Veja se não me deixa maluco! É melhor me dizer se meu queixo ainda está sangrando.

— Não está, não.

— Então está bem. Meus cabelos não estão compridos demais?

— Não, estão bem.

— Estou dando a impressão de homem sério?

— Tão sério quanto é possível dar alguém que está de cuecas.

— Muito bem — disse Mamoulian sentado muito ereto numa cadeira de espaldar. — Dê um bonito nó na minha gravata, Steiner, mas veja se não suja minha camisa...

Levaram Mamoulian até a condução. Usava uma flor na lapela, uma bengala na mão e o chapéu empurrado para trás. Dona Magdalena o contemplou admirada.

— Que elegância! — disse ela. — Sim, senhor, é um perfeito cavalheiro! A uma pessoa assim, eu emprestaria até os meus últimos dois xelins!

— Não se empresta dois xelins a um cavalheiro, dona Magdalena. Só mais de duzentos!

— É a calça — dizia Jakob Steiner.

— É a pose — achava dona Magdalena.

— É a calça — insistia Jakob Steiner.

— É a pose e o rosto nobre — afirmava dona Magdalena.

— Ora, vamos parar com isso — disse Mamoulian. — É o vinho e a perspectiva de em breve ter novamente muito dinheiro no bolso.

Antes de ele pegar a condução, dona Magdalena ainda lhe deu um terceiro beijo. Mamoulian abraçou-a como se fosse embora por um mês, depois entrou depressa no ônibus que já estava de partida. Ficou olhando para trás até o carro entrar na curva. Os dois acenavam. Mamoulian riu sem o menor motivo, e sentou-se, impaciente por que o ônibus chegasse ao fim da linha. Enquanto não chegava, recitava um poema patriótico armênio para controlar sua ansiedade. Era um poema bastante comprido, com vinte e cinco estrofes. Mamoulian já não se lembrava mais de todas.

Saltou do carro em movimento, atravessou a rua correndo, e chegou sem fôlego ao segundo andar do Edifício Stubenring, número 10. Passou pela empregada de touca branca que lhe abriu a porta, entrou na enorme sala de móveis antigos e portas muito altas, brancas e douradas, com reluzentes lustres de cristal no teto. Na segunda sala em que entrou, em frente às grandes janelas que davam para o centro da cidade, estava sentado diante de uma mesa um senhor alto e magro, de cabelos e olhos negros. Era Reuben Tschipourian. Vendo Mamoulian entrar, levantou-se e foi abraçá-lo. Depois beijou-o nas faces e disse exatamente o que Mamoulian tinha profetizado a dona Magdalena:

— Perdão, irmão, por ter deixado você esperar tanto! — Só que falou em armênio, o que soava muito mais comovedor.

Emocionados, ficaram se olhando por algum tempo; depois Mamoulian entregou um pacote bastante volumoso que quase deixara cair ao se cumprimentarem.

— Aqui está o livro — disse ele com voz sufocada.

— Está traduzido?

Mamoulian apenas fez sinal com a cabeça, olhando para umas rodelas de luz do sol que dançavam pelo tapete.

— Aram — disse Tschipourian —, você é o meu melhor amigo. Você é um verdadeiro irmão! É um grande sujeito! — E conduziu-o de volta para a mesa onde lhe ofereceu um lugar, abriu uma gaveta, tirando dois copos e uma garrafa com um líquido âmbar que colocou em cima da mesa. No rótulo da garrafa Mamoulian distinguiu três estrelas e suspirou satisfeito.

— A vida é engraçada — disse ele, baixando agradecido a cabeça ao lhe ser oferecido um charuto envolto em papel celofane. — Como tem passado?

— Bem, irmão — disse Tschipourian —, se pensarmos um pouco. Passei sete meses na prisão de Azerbaidjan, por ter sido tomado por um agente da Standard-Oil-Company enviado para incendiar os campos petrolíferos e dar um golpe de Estado; fui vice-presidente de uma companhia de aviões supersônicos em Nova York, vendi tapetes de Esmirna em Buenos Aires. Andei pelo mundo inteiro, irmão, mas não pude voltar mais cedo a Viena para acertar minha dívida com você.

— Não havia pressa — murmurou Mamoulian, chupando heroicamente seu charuto.

— Mas agora estou aqui — continuou ele, tirando um papel da gaveta e entregando-o. — Antes de continuarmos nossa conversa tenho de lhe entregar este papel, pois estou com a consciência muito pesada.

O papel era um cheque do banco austríaco em nome de Mamoulian. Um cheque no valor de cinqüenta mil xelins.

— Mas eu... — começou Mamoulian, lembrando-se imediatamente do seu coração.

— Não foi o que combinamos? — perguntou o outro imediatamente. — Se você precisar mais, estou à sua inteira disposição. Seu aspecto não é dos melhores. Sei que andou passando dificuldades.

— Ora, ora — começou Mamoulian, calando-se ao sentir que não conseguia prosseguir. — Tenho de beber qualquer coisa — disse ele, sorvendo um trago. — Mas... — recomeçou ele —, os tempos mudaram, o dinheiro hoje vale mais do que há três anos. Não posso aceitar esta quantia toda, não estaria sendo honesto para com você.

— Irmão — disse Tschipourian —, você vai aceitar essa quantia sim, do contrário eu lhe meto um punhal nas costas, por mais que goste de você, pois seria uma ofensa mortal.

— Eu não sei o que fazer com uma quantia tão grande — disse Mamoulian. — Já me acostumei a viver sem dinheiro, e receio não conseguir mais viver com ele.

— Cinqüenta mil xelins não duram eternamente. Vamos trabalhar juntos já no início do ano. Pretendo abrir uma filial do negócio do meu pai aqui em Viena, e você vai dirigi-la.

— Pare com isso — disse Mamoulian pegando mais uma vez o copo. — Por favor, pare!

— Mas não estou lhe trazendo boas notícias?

— Notícias boas demais, irmão — respondeu Mamoulian. — Em breve virá uma desgraça. Conheço a vida.

— Apenas se você não aceitar o cheque — disse Tschipourian. — Afinal, o que você está fazendo?

— Estou construindo uma casa — disse Mamoulian absorto.

— Como? — perguntou o outro interessado. — Pensei que você estivesse mal de vida!

— Estou construindo sozinho, quero dizer, com ajuda de alguns amigos. Nós mesmos somos os construtores, entende? Eu virei operário de obra.

— Pobre amigo! — exclamou Tschipourian. — Que coisa horrível!

— Horrível nada — retrucou Mamoulian. — É maravilhoso! Aprendi a conhecer os homens e a vida de um lado bem diferente e muito bonito. Conheci muita coisa que nunca teria visto se tivesse continuado a ser rico, e sou muito feliz.

— Bem — declarou Tschipourian —, graças a Deus eu agora estou aqui, e você não precisará mais trabalhar. Vamos contratar uma firma para acabar sua obra, e você dá uma boa descansada para então começar a trabalhar comigo no início do ano.

Nesse instante Mamoulian viu o que seria sua vida a partir daquele momento, e sabia que estava escolhendo o caminho certo.

— Não, irmão — disse ele. — Não vamos contratar firma nenhuma; eu mesmo vou acabar a minha casa, com as minhas próprias mãos e as de meus amigos, que vão continuar morando comigo quando ela estiver pronta. Para o ano, aí sim, terei muito prazer em trabalhar com você. Até lá os cinqüenta mil xelins são suficientes, mas a casa eu mesmo tenho de terminar. Aconteceu tanta coisa, há muitos sonhos ligados a ela, que você desconhece, e talvez, por isso, não me entenda. Mas eu sei que aquela ruína que pretendemos transformar numa casa decente se transformou para nós numa espécie de banco da boa esperança, da moralidade, honestidade e boa vontade, por isso me apeguei tanto a ela. Você entende, Reuben?

— Claro — disse ele —, entendo. Você sempre foi meio maluco, seu irmão já dizia quando ainda estávamos na escola. Você é um sonhador. Dizem que são os sonhadores que movem o nosso mundo. Construa sua casa, eu posso esperar! Tem escrito alguma coisa?

— Estou escrevendo um livro — retrucou Mamoulian. — Chama-se A comédia humana; já acabei o quinto capítulo. Também o livro tem de ficar pronto ainda este inverno; só depois poderei trabalhar com você. Como vê, tenho muito que fazer, Reuben.

— Todos temos muito que fazer — declarou Tschipourian. — Será que você tem tempo para almoçar comigo? Será que posso escolher um terno novo para você? Esse aí já está horrível!

— Pode — disse Mamoulian baixinho. Depois a sala começou a ficar turva a seus olhos, uma densa neblina cercou-o de todos os lados, um bramido imenso encheu-lhe os ouvidos e ele teve a impressão de estar caindo num vazio que aumentava cada vez mais, caindo dentro de um nada leitoso e sem fim.

Naquela sala suntuosa do segundo andar do Edifício Stubenring, número 10, Aram Mamoulian desmaiou pela primeira vez na vida.


 

Quem se lembra da displicência e do esbanjamento em que Mamoulian passou os últimos anos, se espantaria ao ver a alegria infantil com que agora começava a pagar as suas contas. Ia pessoalmente procurar os credores, como a srta. Yvonne e a firma construtora Tobias Lobgesang, entregava-lhes o dinheiro e pedia recibo. Os dois dias em que liquidou suas contas foram dias de festa para ele, nos quais se viu de muito bom humor. No fim do segundo dia, jogou fora todas as contas e recibos que encontrou nos bolsos do alinhado terno novo, contou o dinheiro e chegou à conclusão de que ainda podia comprar um pacote de fumo americano para seu cachimbo. Na manhã do terceiro dia foi à cidade com Jakob Steiner e dona Magdalena procurar Josephine e a pequenina Ruth. Juntos foram fazer compras. Compraram vestidos, sapatos, meias, camisas, um casaco de inverno para dona Magdalena, uma pasta de escola para a pequenina Ruth. Em seguida os membros da família de Mamoulian mudaram de roupa no apartamento de Josephine e guardaram seus velhos trapos numa grande mala.

Para não cair em tentação, ainda na mesma tarde, Mamoulian foi a um banco e abriu uma conta. Na manhã do quarto dia já estava novamente trepado no andaime da casa, pintando as vigas de ferro com uma tinta vermelho-viva para protegê-las contra a ferrugem. À tarde Tschipourian veio visitá-los, foi apresentado a Jakob Steiner e a dona Magdalena, sorriu com delicadeza, olhou tudo detalhadamente e ficou muito surpreso. Não disse nenhuma palavra que pudesse magoar, mas depois de sair ficou pensando longamente no estranho e misterioso ser que é o homem.

Naquele dia Jakob Steiner colocou a primeira porta no segundo andar da ruína, e dona Magdalena contemplou-a como a um grande milagre. Abria e fechava-a com todo o cuidado, deu uma soprada na maçaneta de metal e por fim reclamou que a porta não tinha chave nem fechadura.

— Nossas janelas também ainda não têm caixilho — disse Jakob Steiner ofendido — nem as paredes estão pintadas, mas uma porta que abre e fecha sem engastalhar nem cair, isso nós já temos. Eu me orgulho dela, dona Magdalena, e vou fazer todas as outras, com exceção da porta de entrada, também sem fechadura, pois na casa em que vamos morar não deve haver segredos. A senhora também não acha?

— A despensa eu acho que deveria ter fechadura — disse dona Magdalena depois de refletir algum tempo. — Vocês dois são muito comilões!

Os eletricistas vieram e colocaram a fiação ao longo das paredes de tijolo que em breve seriam cobertas de emboços, e caiadas provisoriamente.

Como medida de precaução contra as primeiras chuvas da nova estação do ano, e para proteger contra o tempo o primeiro andar tão penosamente reconstruído, Jakob Steiner improvisou um telhado de duas águas que cobria a parte aberta do segundo andar e as paredes cruas. Pegou algumas vigas e,' junto com alguns operários, cobriu-as com um papelão especial betuminado, com tábuas e folha de zinco, para que a chuva e a neve não pudessem afetar a parte já reconstruída da casa. Da mesma maneira, cobriram a quarta parede externa da casa. Colocaram vidros nas janelas do bali e de dois quartos. A enorme varanda por enquanto ainda continuava aberta. O piso do novo andar era de tábuas aparelhadas e tratadas, que Jakob Steiner pregara uma ao lado da outra. Tinham alcançado a meta prevista por Lobgesang: em meados de setembro os cômodos do primeiro andar estavam habitáveis, embora ainda sem grande conforto. Agora começavam os preparativos para o inverno. Construíram uma lareira provisória para poderem aquecer ao menos um dos quartos; era pequena mas se prestava para isso. No galpão Jakob Steiner serrava e rachava quantidades enormes de lenha. Usando as mesas e cadeiras primitivas de Steiner e mais alguns outros móveis apanhados do porão, arrumaram os dois cômodos novos.

Josephine trouxe alguns lençóis. A sra. Lobgesang, nascida Kugler, colaborou com uma cama de metal e colchão; o sr. Haller, delegado de Doebling, ofertou outra cama, simples e de ferro, igual às que usavam na polícia. Assim cada membro da casa tinha agora sua própria cama e até seu quarto. Mamoulian preferiu passar o inverno no porão, declarando que só se mudaria para cima na primavera. Em todos os cômodos havia luz elétrica.

Josephine trouxe toalhas coloridas, alguma louça, cortinas e um pequeno tapete para colocar diante da cama. Mamoulian foi à cidade comprar reproduções de dois quadros famosos de pintores dos Países Baixos. Fizeram grande figura na parede caiada.

Em 15 de setembro, a pequenina Ruth foi à escola pela primeira vez.

Jakob Steiner tinha pedido para acompanhá-la, e assim a família incompleta nem parecia mais incompleta; era como se ele fosse o chefe da casa. A pequenina Ruth usava um vestidinho novo, as botas de Mamoulian e a pasta novinha que brilhava ao sol. De um lado dava a mão a Josephine, do outro a Jakob Steiner, que achou tudo aquilo muito comovedor e por isso dizia muitas bobagens, fazendo a menina dobrar-se de rir.

Quando chegaram à escola, encontraram muitas crianças com seus respectivos pais, e Ruth logo fez sua independência, vendo-se em breve rodeada de outras meninas. Pareciam velhas conhecidas. Havia crianças de níveis sociais bem diferentes, que vinham para cursar a primeira série. Filhos de gente pobre e de gente rica; podia-se reconhecê-los logo à primeira vista. Filhos de leiteiros e serralheiros, de diretores de firmas e médicos; filhos de alfaiates e cobradores de gás, de advogados e altos funcionários do Estado. Enquanto as crianças pouco se importavam se os novos amiguinhos usavam casacos de pele ou meias cerzidas, e logo fizeram amizades, mostrando uns aos outros bolas de gude, pedras coloridas e velhas passagens de bonde, os adultos, de pé, quedavam-se constrangidos, sem conseguir dizer ao menos três palavrinhas amáveis. De vez em quando um descobria com quem conversar, mas era infalivelmente a senhora de um conselheiro de Estado com a mulher de um médico, ou então a mulher de um cobrador de gás com a do serralheiro. Conversavam sobre o verão passado na estação de águas de Ischl, ou sobre a distribuição de alimentos suecos às crianças; sobre aulas de piano ou sapatos eternamente furados cujo conserto era cada vez mais caro.

As crianças decidem suas futuras amizades pela simpatia, e os pais, pelo pai e mãe de cada uma. Ao bater o sinal, mães e filhos subiram para o primeiro andar da escola. Os pais ficaram embaixo, andando nervosos de um lado a outro, fumando sem parar. Um jovem professor de rosto simpático e com duas rugas engraçadas que desciam das aletas do nariz até o canto da boca, recebeu os novatos conduzindo-os para uma sala de aula muito clara, onde indicou um lugar a cada criança. Em seguida, tirou uma longa lista do bolso e leu todos os nomes. Cada criança respondia "presente". As mães, que estavam de pé no corredor, olhando para dentro da sala, respondiam também quando chamadas. Só que falavam baixo, e o professor nem as ouvia.

Depois de lido o último nome, o professor entregou a lista a uma moça que acabara de entrar, dizendo:

— Esta, meus queridos filhos, é a professora de vocês. Sejam bons e obedientes, pois ela é sua amiga e vai lhes contar muitas histórias bonitas.

A jovem professora aquiesceu, dizendo:

— Hoje é nosso primeiro dia de aula. Vamos aproveitar para nos conhecermos.

Dizendo isso, sentou-se no primeiro banco, chamou uma das crianças pelo nome e começou a conversar com ela, enquanto todas as outras ouviam atentas.

Entrementes, o professor tinha saído, fechando a porta devagarinho.

Dirigindo-se às mães ali reunidas, disse:

— E agora, minhas senhoras, queiram me seguir, por favor. — Levou as mães surpresas, através de um corredor, para outra sala de aula vazia e, convidando-as a tomarem assento, disse: — Por favor, sentem-se. — Isso para muitas não era tão fácil, pois os bancos eram muito baixos e estreitos, e muitas mães eram altas e gordas. Finalmente todas acabaram instaladas e, em meio à confusão, por terem procurado um lugar às pressas, acabaram se misturando. A esposa do médico estava sentada ao lado da mulher do leiteiro. A esposa do conselheiro de Estado ao lado da mulher do serralheiro. Nem se deram conta disso, pois estavam muito nervosas.

— Queridas mães — disse o jovem professor de cara engraçada —, seus filhos vieram hoje para nossa escola, e nós assumimos a incumbência de ensiná-los a ler, escrever, calcular, desenhar e cantar. Assumimos, no entanto, também outra tarefa, isto é, transformá-los em criaturas alegres, corajosas e íntegras. Seus filhos, isso nós sabemos tão bem quanto vocês, vêm de famílias de níveis bem diferentes. Alguns estão bem de vida, outros não.

A essa altura uma mãe bem gorda da última fila teve uma ligeira crise de falta de ar, que só passou depois que ela sentou-se na carteira e levantou os braços.

— Os filhos que vocês nos confiam — continuou o jovem professor — já são hoje tão distintos quanto à personalidade como vocês que aqui estão. Só que eles são muito mais jovens e, por isso, aprendem com mais facilidade. Em pouco tempo vão se conhecer melhor e muitos ficarão amigos. Vamos festejar juntos o Natal e a Páscoa; vamos cantar as mesmas canções, ler os mesmos livros, vamos passear no mato, colher framboesas, aprender a dar cambalhotas para trás e fazer bonecos de neve quando começar a nevar. Seus filhos ficarão juntos quatro anos. É muito tempo, especialmente na vida de uma criança. Eles não vão ligar para o fato de os pais serem pobres ou ricos, feios ou bonitos... a não ser que para vocês isso faça grande diferença. Por isso, lembrem-se de uma coisa: nem sempre é por mérito próprio que as pessoas têm muito dinheiro, e não é vergonha alguma ser pobre. Também não é sinal de mau caráter ser rico, nem tampouco, por não possuir dinheiro, pode-se concluir que uma pessoa seja boa.

"Lembrem-se de que seus filhos serão os adultos de amanhã. Quando mais tarde os advogados, diretores de banco, funcionários do Estado e médicos famosos disserem: 'aqueles operários foram nossos colegas de infância', então poderemos ter a esperança de estarmos nos encaminhando para um mundo melhor. Esse é o nosso propósito. Não é uma tarefa fácil. É mesmo muito difícil. Até hoje ninguém conseguiu levá-la a cabo, mas nem por isso ela é irrealizável. Contanto que vocês nos ajudem. Vocês estariam dispostas?"

Nesse momento muitas mães balançaram a cabeça afirmativamente e algumas começaram a esfregar os pés de alegria. Josephine, que estava sentada bem atrás, enxugou uma lágrima com muito cuidado para não estragar a pintura.

— Então, por ora, nada mais tenho a lhes dizer — arrematou o professor. — A primeira aula chegou ao fim. Eu lhes agradeço por terem vindo. Podem ir.

As mães ali reunidas, porém, não foram embora. Ficaram sentadas nos banquinhos verdes conversando animadas. A mulher do cobrador de gás com a esposa do especialista em raios X. A esposa do desembargador com a mulher do quitandeiro. Lembravam com saudades do tempo de escola.

 

Depois veio o outono.

A princípio quase não deu para perceber; notava-se apenas que as folhas estavam ficando coloridas, que o ar da manhã era mais penetrante, o sol mais ameno e fraco, e às vezes, à tarde ou especialmente à noitinha, sentia-se um cheiro estranho de folha murcha, principalmente nas ruelas entre as casas da cidade. Nos campos faziam queimadas; nos vinhedos os homens andavam de cestos nas costas, colhendo as uvas maduras. Os dias iam ficando mais curtos, as noites, mais longas; nos prados, longos fios prateados eram levados pelo vento. Era o que os portugueses chamavam de "verão de São Martinho".

O outono trouxe uma série de crises.

As grandes empresas despediam seus empregados, os políticos procuravam chegar a um acordo através de inúmeras conferências, mas não o conseguiam; cada vez mais as pessoas falavam de uma nova guerra. Até mesmo Mamoulian, que acreditava tão firmemente na paz, começava a ficar pensativo quando lia os jornais; muitas vezes meneava a cabeça e, à noite, quando não conseguia dormir, ficava imaginando uma saída para aquele caos em que o mundo inteiro parecia ter mergulhado. Lia muitos livros como A vida e as idéias de Tristan Shandy, A anatomia da paz. Sempre que encontrava um tempinho continuava a escrever sua Comédia humana. O trabalho, no entanto, lhe era penoso, só prosseguia a muito custo. Nos últimos tempos muitas dúvidas o atormentavam, embora pelas circunstâncias ele devesse até sentir-se bastante satisfeito. Muitas, Mamoulian ficava pensando como seria lamentável se aquele mundo de paz, ao qual ele e todos os outros homens (conforme ele estava convencido) já vinham aos poucos se acostumando, fosse cruel e repentinamente destruído pela volúpia de matar, pela cega violência, pela injustiça armada.

Conversou com seu amigo Tschipourian, que achava o fim do mundo um fato consumado e todos os esforços de se opor a ele pura insensatez. Mamoulian não conseguia convencer seu amigo da tristeza que seria para o mundo e os homens, e nem Tschipourian conseguia fazer com que Mamoulian acreditasse que o melhor seria abandonar qualquer esperança.

— Nunca devemos perder a esperança — dizia ele para si mesmo. — Os acontecimentos deste ano afinal me mostraram que não há razão para perder a esperança. Agora só é preciso manter a calma, ser paciente. Meu Deus, ensinai-me a ter paciência! Sou tão impaciente...

Mamoulian andava pela casa semi-acabada, onde todo dia concluíam mais um detalhe; atravessou o jardim cujo gramado abandonado tinha sido revolvido e preparado para a próxima primavera, foi até o galpão onde Jakob Steiner estava trabalhando, voltou até a roseira ressecada junto à velha castanheira.

— Sim — disse ele —, vou tentar manter a calma. Afinal só espero pela paz! Jakob espera até que a velha roseira refloresça. Todos nós no fundo ansiamos por coisas impossíveis. Mas serão realmente impossíveis? — perguntou Mamoulian a um pardalzinho que tremia de frio e estava encolhido no gramado. Voltou depois para o porão a fim de continuar o seu livro.

No outono muitas pessoas adoeceram.

Os médicos davam de ombros quando eram chamados; balançavam a cabeça. Prescreviam pós e comprimidos; faziam-no sem otimismo, pois sabiam que contra a fraqueza geral, contra a enfermidade latente, a perda de forças de todo um continente, eles pouco podiam fazer, pois era a reação natural que finalmente surgira em conseqüência dos acontecimentos e das circunstâncias de muitos anos. Entre os que foram atingidos pelo esgotamento, estava também dona Magdalena.

Continuava a ir à obra todos os dias, preparava massa, carregava tijolos, cuidava da casa de Mamoulian. No fim de outubro teve um forte resfriado do qual não conseguiu se restabelecer. Durante uma semana andou com os olhos lacrimejando, o nariz vermelho, a cabeça e o corpo doídos, a voz completamente rouca, negando-se a ir para a cama. Durante toda a vida jamais ficara de cama, dizia ela, e agora, pouco antes do fim, não haveria de começar com essa história. Afinal tudo não passava de um maldito resfriado, e em três dias no máximo estaria boa. Não ficou.

Também não melhorou depois de mais três dias, nem de sete. No oitavo dia, dona Magdalena, pedreira de profissão, desmaiou de repente sem emitir um som, quando de pé, junto ao fogão, preparava o jantar. Assim que voltou a si, sentou-se muito espantada, passou as costas da mão na boca e reparou que o nariz sangrava profusamente. Ao tentar levantar-se para ir até a bica, perdeu novamente os sentidos e dessa vez ficou desacordada por muito tempo.

Continuava deitada imóvel no chão, quando Jakob Steiner entrou meia hora mais tarde vindo do galpão. Com a ajuda de Mamoulian, levaram-na para o quarto e a colocaram na cama. Mamoulian correu depressa a chamar um médico. Ao regressar, dona Magdalena já tinha voltado a si.

O médico a examinou e fez o que fazia a maioria dos médicos naquele outono: deu de ombros.

— É sério?

— Sim — disse ele. — Muito sério. Esta senhora está totalmente esgotada, seu corpo está cansado... está muito perto da morte, apesar de dar a impressão de pessoa tão forte.

— Mas ela não pode morrer! — exclamou Mamoulian.

— Está esperando pelo filho!

— Onde está ele?

— Acreditamos que ainda esteja na Rússia. Ninguém sabe ao certo.

— Sim, meu senhor, vivemos num mundo muito triste

— disse o médico, vestindo as luvas.

— O que podemos fazer para ela melhorar? — perguntou Mamoulian. — Acha que devemos interná-la?

— Os hospitais estão superlotados — declarou o médico. — Não tem o menor sentido. O senhor não entende? Esta senhora está doente como todos nós estamos. Só que ela já é mais velha, seu corpo está mais fraco, e por isso os sintomas se manifestam com mais violência. Aqui estão duas receitas. Dêem-lhe os remédios que eu prescrevi.

— Mas o senhor acha que ela vai morrer?

— Meu senhor — respondeu o médico —, isso é uma questão mais de estado psíquico do que físico. Depende de ela querer continuar a viver ou não. Este tipo de doença, tão freqüente no outono, é um tipo muito especial. A princípio inofensivo e fortuito, é, em muitos casos, apenas um pretexto, uma entrega silenciosa às garras da morte, um abandono diante do qual o médico é impotente. Depende exclusivamente do paciente, se a sua alma, se ele mesmo ainda anseia por continuar a viver depois de todos esses horrores, depois de todas as amarguras destes anos cheios de morte, ou se resignadamente decidiu pôr um fim a este triste jogo.

— Mas dona Magdalena sempre foi uma criatura cheia de vida, alegre!

— Mesmo assim deve ter tido grandes desgostos. É só pensar no filho.

— Raramente fala nele.

— Existem pessoas que guardam seus problemas, que os carregam consigo em silêncio. Do ponto de vista médico, as que fazem grande alarido são mais felizes. — O médico pegou a maleta. — Tenho de ir-me — disse ele. — Não creio que no momento haja qualquer motivo para se preocuparem. É perfeitamente possível que ela se restabeleça em pouco tempo. Também pode ser que tudo acabe em breve. Só o tempo pode dizer.

Nos dias que se seguiram, Mamoulian fez tudo o que pôde por dona Magdalena. Preparava-lhe uma comida simples e forte, fazia compras, arrumava a casa, mantinha o fogo sempre aceso e, à tarde, lia o jornal para ela.

Ela ficava muito agradecida, mas estava bem fraca. Passava a maior parte do tempo dormindo sem se mexer, na sua bonita cama de metal, com as trancas soltas de seu cabelo grisalho espalhadas no travesseiro de fronha branca, respirando de maneira quase imperceptível. Suas mãos enormes e vermelhas, de unhas lascadas, repousavam quietas, escovadas e limpas em cima da coberta. Muitas vezes, Mamoulian levantava os olhos do jornal que lia e via que ela já estava novamente dormindo. Ficava sentado horas a seu lado, pensando na sua própria mãe que falecera havia muitos anos, nas mães, em geral, e que, talvez morrendo, dona Magdalena tivesse mais chance de encontrar o filho do que se continuasse viva.

Assim passou-se uma semana. Dona Magdalena tinha febre, depois, a temperatura baixa demais, para logo subir de novo. Falava muito baixo. Sentia-se muito fraca. Comia pouco, falava pouco; passava a maior parte do tempo em leves e calmos sonhos. À tarde do sétimo dia, por volta das cinco horas, quando já estava começando a escurecer, abriu de repente os olhos e chamou com voz bem clara:

— Sr. Mamoulian!

— Sim — disse este, que estava sentado na sua cama.

— Sr. Mamoulian, sonhei que meu filho tinha voltado.

— Foi mesmo, dona Magdalena? — disse ele, e um nó lhe apertou a garganta.

— Tive o mesmo sonho três vezes — continuou ela sem se mover. — Sei até quando ele vem, como e onde.

— E quando é? — perguntou Mamoulian, pegando automaticamente seu cachimbo.

— Ele vem com os que regressam agora de Marmaros Szigeth. Chega no dia 27 de outubro, de trem. Vem com um grupo de presos iugoslavos. São cerca de quinhentos.

Mamoulian se sentia pouco à vontade. Pensou que dona Magdalena talvez estivesse delirando e colocou-lhe a mão na testa. Estava fria.

— Quando é o dia 27?

— Amanhã — disse Mamoulian. — Como é que a senhora sabe que chega uma tropa no dia 27?

— Foi o senhor mesmo quem leu para mim!

— Tenho certeza de que não fui eu — respondeu Mamoulian com convicção.

— Leu sim. Ontem. Não se lembra? Chega amanhã, à tarde. Vou à estação.

— Pelo amor de Deus! — declarou Mamoulian horrorizado. — A senhora não pode, a senhora está doente!

— Não estou doente não, sr. Mamoulian! Estava doente de saudades do meu filho, mas agora sei que ele vai chegar e já estou boa! — Ela se ergueu e Mamoulian custou a fazê-la deitar de novo.

— Amanhã vou à estação!

— Está certo — concordou Mamoulian para não deixá-la nervosa. — Amanhã a senhora vai.

— O senhor pode vir também. Não quer conhecer meu filho?

— Lógico — respondeu ele, sentindo-se infeliz. — Claro que quero! Por favor, dona Magdalena, acalme-se!

— Eu, acalmar? — perguntou a pedreira de profissão, magoada. — E quem está nervosa? Eu, por acaso?

— Não, absolutamente.

— Claro que não — declarou dona Magdalena. — Quer que eu lhe conte meu sonho?

— Quero — disse Mamoulian, olhando pelo quarto imenso, onde as sombras tinham começado a descer.

— Meu sonho foi exatamente como a realidade. Sonhei que tinha lhe contado o meu sonho de que meu filho estava para voltar. O senhor entende, eu sonhei...

— Entendo — disse depressa Mamoulian. — A senhora sonhou, já sei...

— Eu lhe contei que iria à estação. Primeiro o senhor não quis me deixar ir, acabou concordando, com a condição de que tomássemos um táxi porque eu estava muito fraca para tomar o bonde.

— O táxi é realmente a única possibilidade — disse ele.

—... e assim fomos até a estação. Já havia muita gente lá esperando. O trem estava atrasado, ficamos sentados no táxi... Junto da entrada da fábrica de fumo Trafik, e...

— Na entrada da estação não existe fábrica de fumo!

— Como sabe?

— Ora, dona Magdalena, conheço a estação como a palma da minha mão.

— Quando esteve lá pela última vez?

— Há três meses, talvez... mas posso lhe garantir que lá não existe fábrica de fumo.

— Há três meses não havia.

— Ora, dona Magdalena, quer discutir comigo?

— Eu não! Para quê? Amanhã quando formos lá, veremos se existe ou não.

Mamoulian enxugou o suor da testa.

— Está certo. O que aconteceu depois?

— Lá pelas quinze para as cinco — disse dona Magdalena, olhando fixamente para o teto — ouvimos o trem chegar, e uma banda de música tocou o Danúbio azul. Corremos juntos para dentro da estação até a plataforma; o senhor então foi barrado por um guarda, mas eu consegui entrar, e quando estava lá dentro vi um trem comprido chegando. Atravessei correndo os trilhos, continuei a correr e quando já estava quase junto à locomotiva, um único soldado saltou do vagão e na mesma hora eu percebi: aquele era o meu filho. Pauli!, gritei eu; ele deixou cair a mochila e veio correndo. Encontramo-nos ao lado de um sinal. Era o meu filho, sim. Este foi o meu sonho, sr. Mamoulian — declarou dona Magdalena simplesmente, sem nenhuma excitação. — Amanhã à tarde, às quinze para as cinco, lá na estação, vai ser assim mesmo.

— Dona Magdalena — disse ele —, eu lhe pedi tanto para se acalmar!

— Ora bolas, quem é que está nervosa? O senhor está muito mais do que eu!

— E não tenho de ficar, ouvindo essa história?

— Que história?

— Seu... seu sonho — disse Mamoulian, acabrunhado.

— Espere até amanhã à tardinha e verá.

— Dona Magdalena, o que está acontecendo com a senhora? Eu também já tive sonhos... sonhei que ganharia o primeiro prêmio da loteria.

— E ganhou?

— Claro que não.

— Ora! — disse dona Magdalena com ar de superioridade. — Quantas vezes sonhou isso?

— Uma vez.

— Também... — disse ela. — Mas lembre-se, eu sonhei a mesma coisa três vezes! Três vezes num dia só! Sempre o mesmo sonho. Isso é bem diferente.

— A senhora já deve ter tido esse tipo de sonho muitas vezes.

— Igual a esse nunca! Ainda por cima, três vezes a mesma coisa!

Mamoulian cocou a cabeça.

— Não está muito contente com o seu sonho não é, dona Magdalena?

— Por que não? Não foi o senhor mesmo quem disse que este ano eu ainda teria uma grande felicidade, bastaria que acreditasse nela?

— Eu não estava querendo dizer isso.

— Não estava, é? O senhor esta com medo, sr. Mamoulian.

— Estou, sim. Com medo pela sua saúde.

— Mas eu não tenho nada!

— Dona Magdalena, vamos deixar que o médico decida, está bem? — E, dizendo isso, levantou-se, saiu do quarto, desceu para o porão onde sentou-se à sua mesa, apoiou a cabeça nas mãos e ficou olhando para o manuscrito de seu livro.

Falou com Jakob Steiner, contou-lhe o que dona Magdalena lhe havia dito.

— Você entende isso?

— Não — disse Steiner.

— E se ela morrer, meu Deus?

— Já deu uma cheirada nela, Mamoulian?

— Todos os dias — disse Mamoulian triste —, quando ela dormia ficava cheirando muito tempo, muito conscientemente, mas posso lhe garantir que ela não tem o menor cheiro de morte.

— Nenhum?

— Quero que Deus me castigue, mas não senti nem um tiquinho assim! — e mostrou com os dedos.

O médico que veio à noite deu de ombros.

— É — disse ele. — É estranho, mas às vezes o desejo é tão grande, que provoca sonhos desse tipo. Provoca coisas ainda piores, sr. Mamoulian. O senhor ficaria surpreso... a gravidez por histeria é apenas um dos exemplos...

— Não me interesso por gravidez histérica — disse Mamoulian irritado. — O que acha o senhor, como médico, da idéia de tomar um táxi amanhã e ir à estação esperar o trem dos que regressam?

— Sim — volveu ele —, é um caso muito complicado. Se o senhor não for, ela vai ficar tão nervosa que é bem provável que seu estado de saúde piore. Todavia, se o senhor for e ela sofrer uma desilusão, o perigo será muito maior ainda. Por outro lado, também, acontece tanta coisa neste mundo...

— Doutor! — exclamou Mamoulian furioso. — Eu quero saber o que o senhor me aconselha!

— Sim — disse o médico mais uma vez. — É um caso muito complicado...

Mamoulian abriu de súbito a porta e entregou o chapéu ao médico.

— Agradecemos a sua valiosa ajuda, doutor. Passe bem.

Steiner passou aquela noite com Josephine. Mamoulian ficou sozinho quebrando a cabeça, pensando como deveria agir. Na manhã seguinte fez questão de não encontrar dona Magdalena, na esperança de que ela fosse passar aquelas ominosas horas dormindo. Infelizmente teve uma desilusão. Às três horas a porta do seu quarto se abriu e dona Magdalena entrou completamente vestida.

— Venha — disse ela amavelmente. — Já fui até o telefone da esquina chamar um táxi. Em alguns minutos ele estará aqui.

— Dona Magdalena... — disse Mamoulian com voz sufocada, levantando-se, e empurrando-a para a porta.

— Eu disse em alguns minutos — repetiu ela, afastando-o com a mão. — Também não temos tanta pressa assim! Coloque primeiro uma gravata, ou pretende ir sem ela?


 

— Pare junto da entrada da fábrica de fumo Trafik — disse dona Magdalena para o motorista, quando o carro chegou ao largo Suedtiroler.

— Pois não — disse este, fazendo um sinal com a cabeça.

Mamoulian inclinou-se para a frente, olhando com esforço através do pára-brisa. Distinguiu uma pequena casa de madeira com um letreiro inequívoco que parecia estar ali há dois dias apenas. Passou a mão pela testa e olhou para dona Magdalena de soslaio. Depois teve uma idéia. Tentaria interferir no desenrolar do estranho sonho de dona Magdalena. De acordo com a declaração dela, eles ficariam esperando no táxi até a chegada do trem.

— Ouça — disse ele —, poderíamos muito bem ficar sentados num banco ou no bar ali em frente, em vez de pagar a taxa adicional de espera de uma hora. O que acha, dona Magdalena?

— Por mim... — disse ela sem desconfiar de nada e preparando-se para saltar.

— Por favor, fique sentada, minha senhora — declarou o motorista, virando-se. — Não custa nada. Eu ficaria aqui de qualquer maneira para esperar o trem. Quem sabe a senhora volta comigo para a cidade?

— Está vendo? — disse dona Magdalena rindo. — Vamos ficar sentados aqui no táxi junto à fábrica Trafik, exatamente como no sonho!

— Sim — concordou Mamoulian —, exatamente como no sonho.

Resignado, encheu o cachimbo e pensou que não seria fácil consolar dona Magdalena, caso o filho não regressasse.

A pedreira de profissão esperou pacientemente uma hora inteira. Falava pouco, e também Mamoulian estava calado. O motorista lia seu jornal. Muita gente foi se reunindo diante da estação, principalmente mulheres e crianças. Por volta de quatro e meia apareceu um carro com policiais que fecharam a entrada da estação, deixando apenas uma passagem estreita.

— E a senhora pretende chegar à plataforma? — perguntou Mamoulian, balançando duvidosamente a cabeça. — Já imaginou quantos policiais terá de derrubar antes?

Dona Magdalena abriu a boca para dar uma resposta à altura a Mamoulian, quando um apito, que soava como um grito penetrante de um animal mortalmente ferido, ecoou por cima dos telhados das casas vizinhas. A resposta ficou por ser dada. Antes que Mamoulian pudesse evitar, dona Magdalena tinha aberto a porta do carro, saltara, e, de cabeça inclinada, o capote esvoaçando, arremessava-se contra a fila de inocentes policiais que estavam de costas para ela.

A porta bateu. Desesperado, Mamoulian forçou a maçaneta que havia emperrado, xingou alto, quebrou a unha do polegar e quase caiu no chão quando a porta de repente se abriu. Cambaleou, aprumou-se e começou também a correr.

— Dona Magdalena! — gritava ele, acenando com o cachimbo. — Pare! A senhora está doente! A senhora não pode correr! Cuidado, o coração...

Mamoulian tropeçou nos trilhos do bonde, ia caindo, e só a muito custo se equilibrou.

— Droga! — exclamou ele, continuando a correr. — Que situação! Dona Magdalena!

Dona Magdalena já não ouvia mais. Naquele instante chegou ao cordão feito pelos policiais. Algumas pessoas ao redor ainda gritaram avisando, mas já era tarde demais. Sempre com a cabeça baixa, dona Magdalena furou o cordão dos policiais, jogou dois para o lado, e já passara correndo pela entrada da sala de espera, quando os dois voltaram a si. Mais uma vez o apito soou longo e plangente.

Dona Magdalena chegou à roleta que separava a sala de espera da plataforma. Deu um violento soco no estômago do funcionário que lhe barrava o caminho, e com um grito alto continuou em frente. Seu chapéu preto e fora de moda tinha escorregado para a frente na hora do choque com os dois policiais e quase lhe cobria os olhos. Escorregou no piso de ladrilho da plataforma, passou derrapando em louco ziguezague por um vendedor de água, uma banca de jornal e vários carregadores. Tomou fôlego, ergueu o chapéu e percebeu que estava correndo na direção errada. Lá na frente, bem distante ainda da entrada do hall envidraçado, em meio a uma confusão de sinais e desvios, vinha surgindo uma locomotiva fumaçando, que arrastava um longo comboio. Dona Magdalena deu meia-volta, ágil como um gato escapou das mãos dos dois policiais que também já tinham alcançado a plataforma e procuravam cortar-lhe o caminho. Continuou correndo pela estreita trilha asfaltada ao longo da plataforma 2, em direção sul, ao encontro da locomotiva bufante. Um grito penetrante elevou-se para a cúpula de vidro. Não era o apito do trem dessa vez. Era dona Magdalena, a pedreira de profissão. Rápida como um raio, como uma bola imensa, continuou pelos trilhos afora.

Mamoulian tinha conseguido passar por uma brecha no cordão de isolamento antes que este se fechasse de novo. Seus sapatos, porém, tinham biqueira de metal, e ele escorregava no piso ladrilhado. O funcionário que levara o soco de dona Magdalena, e que já se recuperara, segurou-o pela gola quando ele ia passar pela roleta.

— Parem! — gritou Mamoulian com voz estridente.

— Parem aquela mulher! Ela vai se meter debaixo do trem... Meu Deus! Peguem-na!

— Ah, sim! — disse o funcionário furioso, sacudindo Mamoulian como vara verde. — O senhor é mais um! Pode deixar que vai ver o que o espera!

— Largue-me! — berrou Mamoulian. — Então não está vendo que quero pegar aquela mulher?...

— Por isso mesmo — respondeu o outro, segurando-o longe de si. — Será que vai me dar um soco também?

— A mulher está doente — esbravejou Mamoulian.

— Ela vai se meter debaixo das rodas... largue-me!

— Largar coisa nenhuma! — respondeu o policial, chamando dois colegas. Mamoulian protestou. Não adiantou. Finalmente, escoltado por dois agentes de segurança foi levado para a saída.

— Pronto — disse um deles furioso. — Agora veja se fica aqui ou lhe quebro a cara!

Uma banda de música começou a tocar Danúbio azul.

Mamoulian tossiu e deu de ombros.

O trem entrou na estação. Das janelas dos vagões espiavam muitas cabeças. O mulherio foi chegando para a frente. Dona Magdalena já estava lá longe, o vento lhe soprava violentamente no rosto, e o sol, que surgira de trás de umas nuvens escuras, a ofuscava. O trem parou; as portas se abriram, vozes de homens gritavam em grande tumulto. Dona Magdalena parou. Seu pequeno chapéu preto tinha escorregado para trás; seu aspecto era extremamente ridículo, de pé ao lado do trem, descabelada, afogueada, a roupa toda desarranjada. Olhava fixamente para a frente.

É agora... pensou ela... agora, meu Deus...

A porta do penúltimo vagão abriu-se um pouco, prendeu, e foi aberta com violência. Um homem alto e magro, de mochila na mão, desceu devagar os degraus de madeira.

— Pauli! — gritou dona Magdalena.

— Mãe! — gritou o soldado, largando a mochila. Vieram correndo um para o outro.

Os olhos de dona Magdalena turvaram-se, teve a impressão de ter ficado cega. O rosto do filho, quando olhou para ele depois de um longo abraço, lhe pareceu durante muito tempo apenas uma enorme superfície cinzenta na qual não conseguia distinguir detalhes.

— Meu filho — disse ela, e as mãos lhe alisavam as costas — meu filho... você voltou... eu sabia, meu Deus, sabia...

E depois, como se estivesse voltando a si de uma longa inconsciência, o mundo clareou de novo a seus olhos, o barulho da estação chegou a seus ouvidos. Viu o rosto jovem, magro e cinzento do filho, as pequenas nuvens em redor do sol, as árvores, os trilhos, o céu, o trem imenso que chegara finalmente.

— Está faltando o sinal luminoso — disse ela com voz sumida.

— O que foi? — Ele olhava intrigado para ela.

— Não tem o sinal — disse ela como se tivesse acordado de um sono profundo. — No sonho, filho, eu estava abraçando você junto ao sinal.

 

— Pensando bem — disse Mamoulian alguns dias mais tarde, em conversa com seu amigo Tschipourian —, neste ano estranho que agora chega ao fim, eu aprendi que existe apenas um pecado no mundo: perder a esperança! Encontrei uma passagem no Evangelho de São Mateus que diz: "Ide, pois, para as encruzilhadas dos caminhos e convidai a quantos encontrardes". Eu fui até a encruzilhada e convidei a quem encontrei... Não me arrependi. Hoje sou um homem feliz, Reuben, olho confiante para o futuro, não receio o que o novo ano nos há de trazer. Na minha estranha família todos estão felizes, cada um encontrou seu lugar, ou quase, ao menos, como num conto de fadas, não acha? Tobias Lobgesang voltou para junto de sua mulher e, pelo que me consta, ela realmente mudou. Dona Magdalena ficou boa novamente; tem o filho para sustentá-la e cuidar dela. Jakob Steiner reencontrou a alegria de viver; ano que vem vai começar a trabalhar como carpinteiro e ganhar o bastante para sustentar Josephine, a quem ama, a pequenina Ruth e a si mesmo. Josephine vai morar com ele, e serão felizes. E eu... eu encontrei você e estou quase acabando meu livro. Eu mesmo já estava completamente derrotado quando, há muitos meses, passei por uma cerca para roubar ovos para uma menininha e encontrei um maluco sentado numa castanheira querendo se enforcar. Comecei a trabalhar e hoje voltei a ser uma pessoa que sente respeito por si mesma. Este ano me ensinou algo de muito importante, meu amigo.

— O quê? — perguntou Tschipourian, esvaziando com cuidado seu copo de vinho.

— Na vida — declarou Mamoulian com seriedade —, nesta coisa sublime e ridícula, horrível e gostosa que nós, homens, chamamos de vida, não é a vida em si que interessa, mais a maneira Como a levamos. O que importa é reconhecer que devemos amar as pessoas se quisermos entendê-las. Só o amor tem sentido, todo ódio é insensato. Todos os seres do cosmo são nossos irmãos, precisamos deste mundo como ele precisa de nós; temos de nos reconciliar com ele, com o vento e o mar, com o envelhecimento, a felicidade e a solidão. Com todas as coisas em que acreditamos e diante das quais por vezes nos desesperamos; com o bem e o mal... com anjos e tubarões.

"Se os odiarmos, odiaremos Deus, em cuja Criação todos ocupam seu lugar. Se os odiarmos, o ódio por uma determinada coisa não teria o menor sentido, pois teríamos de odiar o mundo em si, os anjos e os tubarões, pois ambos foram criados pela mesma mão.

— Alguém antes de você já disse isso.

— Todas as coisas que dizemos já foram ditas uma vez — retrucou Mamoulian —, mas sempre têm valor só para aqueles que reconhecem a sua verdade!

— Vamos tomar mais um copo — disse Tschipourian. — A que vamos brindar?

— Brindaremos à coragem de viver — disse Mamoulian, sorrindo ao fechar os olhos para beber.

Paul Huber era mecânico eletricista e, duas semanas depois de sua volta, assumiu seu antigo cargo numa grande firma. Era um homem calado e magro que quase não falava da vida nos últimos anos, e a quem Mamoulian não conseguia entender direito. Embora não mencionasse a guerra com todos os seus horrores, era óbvio que ainda não se conformara com eles. Parecia estar com pressa de recomeçar a trabalhar para esquecer. Morava no quarto com a mãe. Mamoulian tinha-lhe comprado um terno e um macacão para o trabalho. Conhecera Jakob Steiner, Josephine, Tobias Lobgesang e a mulher, e era considerado por todos, com a maior naturalidade, um novo membro desta família já tão crescida. Um dia, quando Tschipourian apareceu de visita, chamou-o de lado e começou a conversar. Passeavam lado a lado pelo jardim deserto. Tschipourian sentia frio.

— O que queria de mim, Huber?

— É... — começou este — o senhor vê... nós dois, eu e o senhor... somos como que estranhos à construção desta casa, em tudo aliás que diz respeito a Mamoulian e à sua família.

— Chegamos muito tarde para tomar parte do princípio — disse Tschipourian —, mas nem por isso eu me sinto um estranho.

— Eu me sinto... — disse Huber — um pouco. Principalmente porque não consigo entender. O senhor compreende? Não consigo!

— Isso acontece com todos nós. Quando eu voltar para a Armênia...

— Não é isso! — Paul Huber meneou a cabeça. — Não consigo entender as pessoas. Principalmente não consigo entender o sr. Mamoulian. Gosto dele, pode ter certeza, mas eu o tenho observado, conversei sobre ele com Jakob Steiner e agora me pergunto: Afinal que tipo de homem é esse Mamoulian?

— Ele é... — começou Tschipourian, mas Paul Huber o interrompeu.

— Por exemplo, Jakob me contou que na Páscoa ele ainda estava convencido de que haveria nova guerra, e já no verão apresentava razões claras e convincentes para o fato de não haver mais guerra. Jakob me disse também que certa vez ele afirmou que ansiava pela grande revolução, que iria empunhar bandeiras, subir em barricadas, e ontem mesmo ele me disse que a nossa única salvação era a sabedoria, a calma e uma grande paciência. Às vezes, ele está satisfeito, é alegre e logo depois fica abatido, deprimido. Toda vez que eu acho que estou começando a entendê-lo, ele se transforma exatamente no oposto, toma certas atitudes, diz coisas que levam todas as minhas teorias por água abaixo.

— Sr. Huber — disse Tschipourian —, eu e o senhor andamos muito por este mundo nos últimos anos, conhecemos muitos países, muita gente. Tanto eu como o senhor ficamos imaginando uma solução para que os homens possam viver em paz.

— Sim — respondeu Huber —, nesse ponto o senhor tem razão.

— Elaboramos uma série de teorias, a sós e com os outros, e, convictos, voltamos para casa apenas para constatar que todas estas complicadas teorias de nada nos servem. E sabe por que não?

— Pode dizer.

— Porque esquecemos a parte principal, a mais imprevisível nesses planos: o coração dos homens se modificou desde que saímos deste país. Também eu andei analisando Mamoulian e a sua instabilidade, sua mudança de opinião e de humor, seu estranho sorriso. Hoje sei que, se quisermos viver em paz, precisaremos ter sua tolerância, seu humor, sua bondade, seu bom senso. Tais qualidades terão de se tornar comuns a todos nós, se quisermos que a situação melhore. Hoje também sei quem é Mamoulian, o portador de todas essas virtudes...

— Então me diga, por favor — pediu Paul Huber.

— O senhor talvez não me entenda.

— Prometo me esforçar.

— Ou então me tachará de maluco.

— Garanto que não! Mas diga, por favor: quem é o sr. Mamoulian?

Tschipourian olhou para o céu escuro. Olhou para a terra escura. E disse baixinho:

— Ele é a paz de Deus.

 

Lá fora nevava quando Paul Huber disse certa noite:

— Gostaria muito de festejar de novo o Natal, festejar mesmo, vocês sabem, com árvore, maçã assada, nozes, velas e presentes.

— Eu também — concordou dona Magdalena.

— E eu — disse Jakob Steiner. — Poderíamos convidar Josephine e a pequenina Ruth.

— E o casal Lobgesang.

— A eles também — disse Steiner. — O que acha, Mamoulian?

Este, que estava sentado à sua mesa escrevendo, recostou-se, cruzou as mãos sobre a gorda barriga e disse:

— Acho uma grande idéia. Mas eu faço uma proposta melhor ainda.

— Qual seria? — perguntou Jakob Steiner.

— Convidar a todos que nos ajudaram na difícil tarefa da reconstrução da casa, e festejar o Natal com todos eles. O que acham?

— Formidável — disse dona Magdalena emocionada, e como estava justamente servindo o jantar, colocou umas batatas especialmente grandes no prato de Mamoulian.

— Mas vocês acham que aqueles que têm família — objetou Paul Huber — virão passar a noite de Natal com a gente?

— É verdade — declarou Mamoulian. — Então temos de dar duas festas: uma na noite de Natal, para todos aqueles que são sós como nós éramos antes de nos encontrarmos. E uma segunda festa para todos no dia seguinte.

— Espere — disse Steiner. — O senhor não tem papel e lápis à mão? Vamos fazer uma lista dos convidados.

— Muito bem — disse Mamoulian, lambendo a ponta do lápis. — Em primeiro lugar teríamos, portanto, o casal Lobgesang. Eles virão na noite de Natal, o que vocês acham? De qualquer maneira vou colocá-los na lista dos que estão sós. Depois viriam Josephine com a pequena Ruth...

— Olbrich e a mulher — sugeriu Steiner.

— Mas ele tem família, só vai poder vir no dia seguinte.

— E Pepi e Emil do boné.

— São casados?

— Emil, não.

— Muito bem — disse Mamoulian, escrevendo o nome de Emil na lista dos solitários e colocando Pepi na outra.

— O delegado Haller.

— Tem mulher — murmurou Mamoulian. — Vem no dia seguinte.

— De onde vocês conhecem o delegado? — perguntou Paul Huber, espantado.

— Estive preso por pouco tempo — disse Mamoulian simplesmente. — Quem mais?

— A vendedora de flores que me vendeu uma vez uma rosa vermelha — disse Jakob Steiner. — Ela não tem ninguém.

— A vendedora de flores — disse Mamoulian, escrevendo. — Qual é o nome dela?

— Não sei. Vou perguntar.

— Faz bem, Jakob — disse Mamoulian. — Será que não esquecemos ninguém?

— O sr. Anton!

— Quem é esse?

— O dono do Bar Elite — disse Steiner. — Certa vez ele me deu uma barra de chocolate, e é sozinho também.

— Bem, se ele lhe deu um chocolate e não tem ninguém, é claro que temos de convidá-lo — disse Mamoulian, colocando o nome do sr. Anton na primeira lista. — Mais alguém?

— Seu amigo Tschipourian.

— Isso mesmo. Ele traz o conhaque.

— Agora acho que temos todo mundo — disse Jakob Steiner. Houve uma pequena pausa em que todos pensavam concentrados.

— Ainda esquecemos alguém — disse baixinho Mamoulian por fim. — Vocês não a conhecem; houve uma ocasião em que ela me ajudou muito. Vive sempre cercada de gente, dançando e bebendo, mas continua muito só. — Abaixou a cabeça e escreveu, como último da lista, o nome da solitária Yvonne.

— E o que vamos comer? — perguntou dona Magdalena.

— Peixe — respondeu Steiner.

— Ganso assado — sugeriu Paul Huber.

— Afinal o que vai ser?

— Peixe e ganso assado — respondeu Mamoulian. — E teremos ainda salada, batata assada, sopa, entradas, bolo e chocolate...

— E laranja — manifestou-se Jakob Steiner.

— E bombons para a pequenina Ruth — declarou Mamoulian.

— E uma árvore de verdade com velas-surpresa e bolas coloridas.

— E um sino que toca na hora de se entrar na sala.

— Meu Deus, que beleza vai ser! — exclamou dona Magdalena, juntando as mãos, perplexa. — Vai ser tão bonito quanto...

— Quanto um conto de fadas — completou Mamoulian baixinho. — Levantou-se, foi até a estreita janela e ficou observando os flocos de neve que caíam silenciosamente na terra. Sem parar.


 

Nevava havia dias.

O ar estava quente; não corria vento. A neve caía em grandes flocos, dia após dia, hora após hora, com a mesma regularidade inesgotável, cobrindo os telhados da cidade numa calma profunda. Cada vez mais os telhados nela se afundavam. No dia 24 de dezembro começou a escurecer cedo, por volta das quatro da tarde. Muita gente carregada de misteriosos embrulhos atravessava as ruas. As lojas fechavam mais cedo que de costume. Um aroma muito especial, que a ninguém podia escapar, pairava no ar: era o cheiro de Natal.

A pequenina Ruth dormia na cama de dona Magdalena, enquanto os adultos andavam pela casa, na ponta dos pés, arrumando presentes, enfeitando a pequena árvore que Jakob Steiner havia apanhado no mato. Dona Magdalena estava na cozinha, fritando e assando furiosamente. Gotas de suor escorriam-lhe pela testa devido ao grande esforço.

Josephine usava um vestido azul com cinto dourado; enrolara o cabelo e pintara as unhas de vermelho em honra ao dia. Mamoulian usava um terno novo. Todos estavam com espírito muito festivo. Os hóspedes haviam sido convidados para as seis horas. Mamoulian aproveitava os últimos momentos para dizer algumas palavras comovedoras.

— Daqui a uma hora, meus queridos — dizia ele —, nossos amigos estarão aqui, e festejaremos o Natal juntos. Antes, porém, quero ainda agradecer a vocês todos o ano maravilhoso que passamos juntos. Quero agradecer por terem começado a reconstruir esta casa comigo, e também por terem ficado a meu lado nos meses de aperto, por terem-me tirado da cadeia, e principalmente por terem conseguido me dar novas esperanças e ânimo. Eu lhes agradeço por tudo isso!

Mamoulian aproximou-se de dona Magdalena, dizendo:

— Obrigado! — e deu-lhe um beijo.

Depois beijou Jakob Steiner e Josephine, e por fim Paul Huber, que se inclinou duramente, pensando nas palavras do sr. Tschipourian. Em seguida, Mamoulian saiu depressa da sala.

Josephine pegou Steiner pela mão e juntos foram para o jardim coberto de neve, onde pararam, olhando para as janelas escuras dos dois quartos novos.

— Lá em cima dorme a minha filha.

— Nossa filha — disse Steiner, abraçando-a. — Josephine, Mamoulian acha que não pode existir força maior no mundo do que a esperança. Eu conheço uma.

— Eu também — respondeu ela, beijando-o com cuidado.

— Como é, ainda não quer vir morar comigo?

Ela encostou a cabeça no rosto de Steiner e ficou calada.

— Josephine — disse Jakob Steiner com insistência —, eu a amo, gostaria tanto de ficar com você para sempre! Eu lhe peço, venha viver comigo e seremos felizes.

Ela continuava calada.

— Josephine — disse Steiner novamente, apertando-a contra si —, por que você não responde? Por que você não diz que vem? Por quê...

De repente ele sentiu um dedo frio nos seus lábios e ouviu a voz de Josephine dizendo um pouco ofegante:

— Psiu! Quieto, amor.

— O que foi? — perguntou ele.

Ela apenas balançou a cabeça, e de súbito ele notou que chorava. Jakob Steiner virou a cabeça na direção em que ela estava olhando. Prendeu a respiração e uma alegria imensa o invadiu.

Olhou para a velha roseira ressecada e meio enterrada na neve, ao lado da castanheira despida. Estava coberta de rosas vermelhas.

 

                                                                                            J. M. Simmel

 

 

                      

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