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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALARME / Heinz G. Konsalik
ALARME / Heinz G. Konsalik

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ALARME

 

Encontravam-se no mar há noventa e três dias, dos quais oitenta e um dias e oitenta e uma noites debaixo de água, encerrados num caixão de aço que, munido de uma multidão de instrumentos electrónicos, era movido por um reactor nuclear e estava equipado com armas atómicas e torpedos. Polido, imensamente longo, este monstro mais evocava uma gigantesca serpente do que um submarino. O almirante Lewis Adam afirmava, não sem orgulho, ter-se apaixonado duas vezes na vida: por sua mulher, Mabel, e por este gigante de aço.

Noventa e três dias no mar, oitenta e um dias debaixo de água. Com o som do mar a bater nos flancos do submarino, o ronco das máquinas, o zumbido da ventilação. Com esta obsessão permanente: continuará tudo bem, e se alguma coisa falhasse, se uma peça avariasse? E se um computador destrambelhasse, se um cérebro electrónico “disparatasse”,?Seria aquele monstro realmente uma maravilha da técnica, o mais perfeito submarino que alguma vez andara no mar? Ou acabaria como uma cobaia na qual se decide praticar uma vivissecção a fim de que os peritos possam constatar a evolução da doença inoculada?

Oitenta e um dias debaixo de água. Sem sol, sem vento, sem ar fresco. Não ver o céu, não sentir as suaves brisas do Verão. Estar privado de qualquer contacto com o mundo cá fora. Estar confinado a um universo feito de escadas de aço, de imensos corredores, de uma multidão de cabos, de instrumentos com ponteiros oscilantes, tendo por todo o lado botões de controlo, sinais luminosos: um mundo artificial mergulhado numa luz artificial. Nas cabinas três beliches sobrepostos, armários engastados em que a parte de dentro das portas estava coberta por retratos de raparigas atraentes, única lembrança do que existia por lá ao cimo da terra: um ser que se chama mulher, um ser todo suavidade e ternura, aquela ternura que se sente à flor da pele mas que também se nota interiormente com uma alegria maravilhosa, uma indizível emoção.

Uma mulher. Sabe o que é uma mulher? Faz ao menos uma ideia? O cabelo de uma mulher? Os lábios, os braços que o enlaçam amorosamente, o calor do seu corpo, a suavidade das suas carícias, aquele amor que lhe traz o benfazejo esquecimento? Lembra-se? Resta-lhe uma lembrança... ao cabo de oitenta e um dias?

No dia do embarque estavam todos reunidos em uniforme de gala. Trezentos homens que não podiam deixar de lançar olhares furtivos ao submarino. Chegou o almirante Adam, seguido pelo seu comandante. Era a primeira vez que viam o Velho: alto, magro, olhos cinzento-esverdeados de olhar duro, lábios finos.

O tenente Bernie Cornell fez a chamada. Todos, sem excepção, gostavam de Bernie, todos aqueles tripulantes da Marinha vindos dos quatro cantos do mundo, seleccionados entre todos os homens que faziam parte das tripulações dos submarinos navegando por mares distantes, e convocados à base para serem instruídos quanto ao que os esperava: o submarino mais gigantesco, mais moderno, mais aperfeiçoado, e também o mais caro, que alguma vez fizera rota pelas profundidades oceânicas.

- Comandante, tem diante dos olhos a elite da Marinha dos Estados Unidos - tinha declarado o almirante Adam sem baixar a voz de modo a que os trezentos homens pudessem registar aquele elogio com legítimo orgulho. – Com marinheiros desta têmpera tudo é possível. Conhecem o seu navio. Posteriormente transmitir-lhe-emos mais instruções. Boa sorte, comandante!

Um aperto de mão, um olhar à tripulação, depois o almirante fez meia volta e afastou-se. Era a sua maneira de ser. “As palavras são como água no uísqui. Quanto menos melhor”, declarara ele um dia.

Os trezentos homens esperavam, imóveis. Todos os olhos estavam postos no Velho. Conheciam-lhe o nome: Jack Nicholson. Seco, duro, tirânico. Provavelmente o comandante mais intratável que tripulação alguma da Marinha dos Estados Unidos conheceu no curso dos últimos cinquenta anos. Quando vemos rir este género de pessoas é caso para se gritar que foi milagre e nos apressarmos a enviar uma comunicação ao Vaticano. Mas pouca importância tinha, os homens não estavam inquietos. Haviam passado pela escola mais rude como marinheiro algum conhecera, estavam habituados a uma disciplina rigorosa, inflexível, de modo que aqueles trezentos homens pensavam unanimemente que em caso algum a vida a bordo podia ser pior do que as provas passadas no decorrer do período de instrução.

- Hello, boys! - lançou o comandante com voz sonora.

E todos os homens da tripulação num belo coro:

- Hello, Sir!

- Chamo-me Nicholson. Evidentemente, todos nós temos nome e somos indivíduos diferentes uns dos outros, mas assim que embarcarmos não seremos mais do que um. Partimos e dentro de um ano não estaremos de regresso. Um ano que passaremos quase inteiramente em mergulho. Não é por acaso que o nosso barco se chama Poseidon, como o deus do mar. Até a sua filha, Afrodite, foi no mar que a gerou.

Os homens soltaram uma gargalhada atroadora, embora Nicholson se mantivesse perfeitamente impassível. Cara de pau assim, só ele! Viagem danada em perspectiva! Um ano à volta do mundo. Aquele novo submarino, tinha explicado um instrutor, possuía uma autonomia de cinco anos. Tratava-se do navio americano mais revolucionário. Logo, ultra-secreto! Ou uma pessoa se calava ou, à menor indiscrição, seria condenada ao silêncio eterno. Qualquer traição faria pender uma ameaça sobre a paz mundial.

- Nenhum de vocês ignora as características do navio a bordo do qual vamos embarcar - disse Nicholson. – Não temos o direito de conhecer a menor falha. Em caso de avaria, se se der uma paragem que não saibamos reparar nós próprios e se nos for impossível pedir socorro a um navio da Marinha, teremos de nos considerar em estado de guerra e...

Nicholson fez uma interrupção. Na sua frente, os trezentos membros da tripulação pareciam petrificados. Os homens tinham compreendido: e... uns oitenta milhões de

dólares seriam para sempre engolidos pelo fundo do mar enquanto trezentos homens seriam riscados do planeta. Ninguém podia sequer suspeitar da existência do submersível. Um fantasma capaz de descer a quinhentos pés para deslizar pelas profundezas oceânicas.

O comandante Nicholson deixou de encarar os seus homens para lançar um olhar ao navio.

- Primeira missão: a travessia do Pólo Norte. Só viremos à superfície ao largo do Alasca. Tenente, mande embarcar a tripulação!

- Aye, aye, Sir!

Depois de ter feito continência, Bernie Cornell postou-se diante dos homens.

- Descansar!

Os homens foram então procurar a sua bagagem e puseram-na ao ombro.

O engenheiro-chefe McLaren foi o primeiro a entrar a bordo, seguido pelo primeiro-navegador Frank Collins e pelo maquinista-chefe Dustin Hollyday. Depois, com o tenente Henry Curtis à cabeça, todos os homens subiram a passarela, um a um, e embarcaram a bordo do Poseidon I.

- Falavam vocês de um barco velho! - exclamou o segundo-mestre Jimmy Poner. - Uma estatura de touro, pernas como traves, a força de um bulldozer. Tem linha, é harmonioso, tem raça. Eu pensaria estar a ver a minha Susi!

Bill Slingman respondeu com um gracejo provocador. Impunha-se a todos e a tudo podia permitir-se. Ninguém podia fazer frente a um Bill Slingman. Media bem dois metros - um monte de músculos. Não havia marinheiro que não conhecesse a sua reputação de campeão de boxe de pesos-pesados. Um negro soberbo. Pouco importava aliás a cor da pele, ali ninguém se preocupava com isso. Todos os homens estavam unidos por uma mesma camaradagem. Além disso, quando Bill Slingman vestia a sua farda de gala, como acontecia nesse dia, não era possível deixar de o olhar, subjugado, pois possuía mais condecorações que muitos oficiais.

- Vietname - explicava ele laconicamente quando surpreendia os olhares dos seus camaradas. - Mas, silêncio, não quero ouvir falar mais nisso.

Enquanto os homens embarcavam, o doutor Blandy tinha ficado no cais perto do comandante. Um cigarro pendia-lhe da comissura dos lábios porque conservara as mãos enfiadas nos bolsos do casaco do uniforme. Conhecia todos os membros da tripulação por os ter submetido a um cuidadoso exame e ficara até muito surpreendido por ainda existirem neste triste mundo homens com tão perfeita saúde.

- Em que pensa, doutor? - perguntou bruscamente Nicholson.

- Em que quer que eu pense, comandante?

- Trate-me por Jack. Não tarda que sejamos os melhores amigos do mundo. E pare de me olhar com esse ar inquieto... Não estou doente.

- Eu sei. Era capaz de roer as unhas afirmando que se prepara para saborear espargos.

Blandy por um instante observou o embarque dos marinheiros.

- Olhe para eles: máquinas bem lubrificadas, uma solidez a toda a prova. Sem dúvida alguma, Jack, tem a melhor tripulação do mundo.

- Está informado da nossa missão, doutor?

- Evidentemente. O nosso dever é garantir a paz mundial! É belo, grande, generoso! Diria até angélico. Mas quando se sabe que há a bordo armas atómicas suficientes para fazer explodir todo o planeta, corre-nos um arrepio pelas costas. Consigo não?

- Eu sou um soldado, doutor.

- É tudo o que lhe ocorre para me responder?

- Parece-me suficiente.

Nicholson viu o jovem aspirante Herbert Duff entrar na escotilha. Um gentil rapaz com cara de criança muito meiga. Como pudera ele resistir a uma escola tão dura que mesmo mastodontes como Jimmy Porter delas saíam terrivelmente magoados? Mistério. “Eu conheço-os a todos", pensou Nicholson. “Estudei as suas fichas, li os resultados dos testes psicológicos, conheço as suas qualidades e as suas secretas fraquezas.” Duff era um homem extremamente corajoso. Mas à noite escrevia a sua mãe: “Não posso mais, é o inferno! Acordo todos os dias com medo do dia seguinte.

Estou nas últimas...”,

E, no entanto, estava ali. Fazia parte da tripulação do Poseidon I.

- De momento - disse Nicholson -, não é a paz mundial que me atormenta. É nestes marinheiros que penso, nestes homens que embarcam por um ano. Acabam de deixar as mulheres, as noivas, e não voltarão a vê-las sem que se passe muito tempo. Mesmo os mais disciplinados continuam a ser homens, doutor.

Blandy soltou uma gargalhada.

- É nisso que pensa? Não está a brincar, Jack?

- É você principalmente que deveria pensar nisso! Você também não está livre de perigo! E não é bom para si ser sólido como uma rocha... Ao certo, quanto pesa?

- Segundo as últimas notícias, noventa e seis quilos.

- Pois bem, pode crer: passados dois meses estará como os outros, só sonhará com uma mulher, passados seis meses ver-se-á obrigado a entalar um travesseiro entre as pernas e, ao fim de um ano, será preciso deixar abertas todas as portas ou atravessará os tabiques à cabeçada...

- Jack! Eu sei que aprecia a ironia, mas não exageremos. Não será a primeira vez que vou passar doze meses no mar, e você também não!

- Um ano sem escala, doutor!

- Previ tudo: uma caixa inteira de comprimidos. Pensamos nas mulheres, torna-se uma obsessão? Upa, uma pílula! Talvez não seja remédio santo, mas ajuda...

- E passado um ano seremos todos uns perfeitos eunucos. Estou enganado? Se alguma vez chegarmos ao Alasca, espero levar até lá os meus homens em tão perfeitas condições como as da partida.

- Vamos lá, Jack... a paz no mundo exige alguns pequenos sacrifícios - sugeriu Blandy com voz neutra.

Nicholson encarou-o, agradavelmente surpreendido. Humor? “Tanto melhor”, pensou ele. “Melhor nos entenderemos os dois.”

- Com que se parece a vítima?

- Bem... o produto contém, evidentemente, estrogéneos...

- Não o incomodará muito empregar um vocabulário mais simples? Que quer dizer com isso?

- Muito simplesmente que as hormonas femininas tempéram um pouco os impulsos viris.

- De modo que passado um ano toda a gente andará de soutien, quanto ao aspirante Duff terá as suas primeiras regras.

- Sabe, Jack, com esse género de gracejos, também eu era capaz de me safar!

- Está bem, doutor!

O comandante Nicholson voltou de novo os olhos para o seu navio. Os marinheiros tinham desaparecido dentro do submarino. Apenas três oficiais esperavam na plataforma da torre e do seu posto observavam o Velho.

- Darei liberdade aos homens para decidirem se preferem ou não engolir as suas pílulas antimulher. No que me diz respeito, recuso-me. Logo, não as posso impor. Seria um atentado demasiado grave à liberdade individual.

- Em compensação, tem o direito de exigir que em determinadas circunstâncias toda a tripulação aceite deliberadamente a morte! Isso não é um atentado à liberdade?

- Dever militar!

- Perversão é o que devia dizer!

Blandy acendeu novo cigarro.

- Fiz o Vietname...

- Eu sei, doutor, analisei a sua ficha. É um tipo sólido, sempre pronto a investir como um touro. Chegou até a correr com pontapés no rabo um general que pretendia voltar a enviar feridos para a frente.

- Espero que consigo não venha a ter necessidade desse tipo de métodos.

- Se fosse esse o caso, preferia demitir-me. Mas eu sei proteger a minha retaguarda...

Trocaram um sorriso, conscientes ambos de selarem uma amizade. Ora a amizade é, sem dúvida alguma, indispensável a quem se prepara para mergulhar por baixo dos gelos eternos sem saber se voltará à superfície ao largo do Alasca. O ser solitário é bem a criatura mais dolorosa que se pode encontrar nesta terra.

- Vamos - decidiu Nicholson. - Passe primeiro, doutor. Eu serei o último a subir a bordo, serei o último a desembarcar. Como tem de ser...

Blandy aquiesceu, deitou fora o cigarro e esmagou a ponta. Depois, a silhueta maciça seguiu pelo tombadilho, subiu à ponte e escalou a escada da torre. Na plataforma, ocupou lugar ao lado de Bernie Cornell, que esperava as ordens do comandante, de apito na mão.

- Então? - perguntou ele em voz baixa. - Que género de tipo é ele?

- Digamos que... isto promete.

- Tenho de interpretar à minha maneira, é isso?

- Exactamente. Aí tem! Imagine que, para ele, isto deve ser ainda mais emocionante que uma noite de núpcias...

Uma longa apitadela soou, aguda, estridente. Imediatamente os homens interromperam as suas respectivas actividades e puseram-se em sentido.

O Velho sobe a bordo! A aventura começa. Dali em diante, esses homens, e só eles, eram depositários do maior segredo da América. Que cada um retenha o fôlego para melhor saborear esse instante único.

Do alto da torre o comandante Nicholson fez a continência. Perto dele estava o tenente Henry Curtis, homem de estatura média, de ar sempre desenvolto não obstante o uniforme. Sorria e o seu sorriso era de felicidade. Nicholson voltou-se para ele:

- Sente-se feliz, Curtis?

- Sinto, Sir. Se não me dominasse, daria gritos de alegria.

- Preferiria ouvi-lo cantar. Ouvi dizer que tinha algumas qualidades de tenor.

Curtis corou como um adolescente, enquanto o doutor Blandy o observava com um grande sorriso. Confundido, Bernie Cornell não sabia bem que atitude tomar. Tirou-o

daquela dificuldade o zumbido do interfone. O engenheiro-chefe McLaren chamava-o da casa das máquinas.

- O Velho decidiu-se finalmente a subir a bordo ou não?

- O Velho já cá está! - respondeu Cornell, sempre impassível. - Está tudo okay?

- Está tudo bem, Sir.

- Partida dentro de quanto tempo?

- Dentro do previsto, Sir. Daqui a meia hora todos os homens estarão no seu posto. Acabo de verificar todos os instrumentos de controlo. Nenhum problema.

Nicholson desligou o interfone. No molhe avistou o almirante. Para ele a largada do Poseidon I representava um momento histórico particularmente emocionante. Sentia-se responsável como um pai por aqueles trezentos homens cujas possibilidades de um dia voltarem a ver o seu país eram mais que incertas. Porque aqueles homens partiam para uma viagem de ensaio, e a experiência comportava múltiplas incógnitas. Formavam sem o saberem um comando de kamikazes. Apenas o comandante Nicholson conhecia a verdade.

Imóvel, o almirante Adam continuava com os olhos postos no submarino.

Um pai preparando-se para perder os seus trezentos filhos...

Havia para tal noventa e três dias.

Naquele momento, o Poseidon I navegava a uma profundidade de cento e cinquenta pés entre a Islândia e a Noruega, em direcção ao Pólo Norte.

Cada um tem a sua maneira, muito sua, de resolver os seus problemas. Questão de temperamento sem dúvida, mas antes de mais nada de autodisciplina.

Ao cabo de noventa e três dias todos a bordo sabiam o que custava a honra de pertencer à categoria dos melhores soldados do mundo. Também se sabia agora quem era o comandante Nicholson. Ele sabia levar os seus homens até ao limite do esgotamento, não lhes poupando exercício algum, submetendo-os cada dia às mais rudes provas, deles exigindo esforços pesados.

A alimentação era excelente, é certo. Para os seus tempos livres, os homens tinham a possibilidade de requisitar livros da biblioteca, dispunham de rádios e de magnetofones, organizavam torneios de xadrez, jogavam às cartas. No recinto dos oficiais encontrava-se até um bilhar americano. Numa palavra, cada um dispunha a bordo de todo o conforto desejável. Só faltava... o essencial.

- Não tenha ilusões, Jack - avisou o doutor Blandy -, por mais que os submeta a um treino intensivo ao ponto de os deixar de joelhos, logo que se deitem sonham com sexo e nada mais.

- É possível...

- Tem de deixar de lhes servir refeições tão pantagruélicas! Passo o tempo a distribuir-lhes pílulas e eles têm ementas de fazer empalidecer um exército de playboys. É a loucura doce!

- Não fui eu quem decidiu quanto às rações. Nisso nada posso fazer.

- Acho que esses senhores discutiram em redor de uma mesa redonda. E, bem entendido, entre esses respeitáveis teóricos nem um, alguma vez, viveu a bordo de um submarino.

Nicholson sorriu, facto suficientemente raro para que seja digno de ser mencionado.

- É assim o mundo, doutor. Todos nós somos dirigidos por teóricos, diletantes ou ignorantes chapados. Formigas, é o que somos.

- Parece-me mal escolhido o momento para nos lançarmos numa discussão filosófica. Os homens têm necessidade de um pouco de ar, Jack. Chame a base, peça autorização para vir à superfície.

- As ordens que tenho, doutor, são claras e precisas.

O comandante Nicholson afundou-se na sua poltrona como que a pôr termo a toda a discussão. O Poseidon I deslizava quase silenciosamente pelas profundezas marinhas. Graças a instalações técnicas revolucionárias, nem na Islândia nem na Noruega os radares podiam captar a sua imagem. Apenas sondagens ultra-sons - ainda que esta possibilidade fosse bastante aleatória - teriam permitido detectar a presença do submarino, mas não determinar a sua nacionalidade. Com frequência acontecia que os tentáculos electrónicos dos aparelhos para determinar a posição do Poseidon I captavam sinais de navios estranhos. O engenheiro-chefe Victor McLaren era um perito tão eminente que conseguia “de ouvido” distinguir se se tratava de um submarino americano, britânico ou soviético.

- Dentro de cinco dias mergulharemos por baixo dos gelos - anunciou fleumaticamente Nicholson. - Tranquilize-se, doutor. Tendo em conta as circunstâncias, o ambiente pode considerar-se bom. Eu sei que posso contar com os meus homens.

Mas os homens não tinham exactamente esta opinião.

Depressa haviam perdido todo o entusiasmo pelos festins que de início tinham aplaudido como números de strip-tease. Raros eram os que tomavam os comprimidos com hormonas que lhes distribuía o doutor Blandy. Mal via um, negligentemente posto ao lado do seu talher, Porter vociferava:

- Não imagina sequer que eu vá engolir estas porcarias! Passado um ano eu voltava à terra com mamas maiores que as da minha Susi! Prefiro o meu método!

O método em questão consistia muito simplesmente em borrifar com água gelada nos momentos críticos certa região do corpo demasiado rebelde à austeridade do celibato.

Bill Slingman, esse, refugiava-se no ginásio e batia num punching-ball (*) até se sentir aliviado. Paolo Belucci, italiano de coração terno, passava horas sentado ao órgão eléctrico, tocando melodias langorosas. Depois, olhar perdido como em transe, acabava por se ir deitar. Enfim, os processos empregados eram muito diversos e, por vezes, dos mais insólitos.

 

(*) Bola de couro para treino de pugilistas. (N. do A.)

 

Em todo caso, no Poseidon, trezentos homens estavam reunidos para o melhor e para o pior, e a tensão acumulada era tal que um nada bastava para provocar uma explosão desastrosa. O menor incidente trazia o risco, por assim dizer, de fazer saltar a tampa da marmita.

- Se quer saber a minha opinião - declarou o doutor Blandy encostando-se à porta da cabina -, dentro de pouco tempo uma faísca vai lançar fogo à pólvora. E será o inferno. Um autêntico caldeirão das bruxas. Pode crer, seria prudente contar isto ao almirante.

- Não vejo motivo. Noutros tempos os marinheiros passavam dois ou três anos no mar. Que eu saiba, aguentavam. Os tempos mudaram, comparados com eles somos talvez pequenos, mas não morremos por isso.

Nicholson, que estava atento ao computador, apoderou-se subitamente de uma ficha: as últimas previsões meteorológicas.

- De qualquer modo os homens não tardarão em ter outros cuidados na cabeça - anunciou ele. - Está prevista uma tempestade a leste da Islândia. E não é por isso que vou mudar de rumo... vamos ao seu encontro!

Vinda do comandante Nicholson tal decisão nada tinha de surpreendente. O doutor Blandy limitou-se a encolher os ombros. “Sempre pode espicaçá-los ao ponto de desabarem de fadiga”, pensou ele. “Há problemas contra os quais todos os remédios são impotentes. Esperemos. Também ele acabará por capitular.”

Efectivamente, atravessaram a tempestade. E o navio, um monstro de quatro mil toneladas, foi sacudido. Dir-se-ia que o mar brincava com ele como se fosse uma bola, um brinquedo que quisesse quebrar.

- Louco varrido, o Velho! - gemia Porter. – Perdido de todo, isto não pode ser.

Herbert Duff fazia-lhe eco:

- É verdade, endoideceu. Por que razão não mergulha mais fundo? A duzentos pés é como tomar banho em óleo. É um sádico ou quê?

Por três vezes o gerador se avariou, e foi na escuridão mais completa que o barco prosseguiu a sua travessia do inferno. Sempre que a luz voltava, graças à habilidade e ao engenho de McLaren, os homens tornavam a encontrar alguma esperança, mas longe de saudar o acontecimento com alívio, exprimiam a sua cólera com tanto ou mais vigor. De todas as vezes o doutor Blandy explodia:

- Está satisfeito? De facto pode estar contente consigo. Se isto continua não ficará um homem válido. Dir-se-ia que estamos já num hospital. Sangue por todo o lado. Olhe, até você está ferido na testa.

- Um simples arranhão... Não se lastime, doutor, até que enfim tem trabalho. Antes era o único a aborrecer-se. É caso para me agradecer, não acha?

- Conversa tem você muita, Jack, mas convencer-me é que não consegue!

O doutor Blandy afastou-se para deixar entrar Bernie Cornell, que, via-se, estava inteiramente em pânico.

- Sir - balbuciou ele -, é necessário mergulhar. Com urgência! Collins diz que...

- Quem comanda aqui? Collins ou eu? - ripostou Nicholson agarrando-se ao periscópio para não perder o equilíbrio.

- O senhor...

- Então acho inútil discutir.

- Bem Sir...

Cornell fez a continência e deixou o posto de comando vacilando. “Decididamente ele ainda é pior do que nós pensávamos”, disse para consigo. “Um monstro, incapaz do menor sentimento. E isto ainda vai no princípio, que acontecerá quando alcançarmos o Pólo Norte?”

A tempestade prolongou-se durante dois dias e duas noites. Por fim, ao terceiro dia, o vento amainou. Ao colocar o periscópio em posição alta, era possível avistar o céu leitoso fracamente iluminado por um sol tímido.

Blocos de gelo sobrenadavam, anunciando os primeiros icebergues.

A bordo os homens faziam bicha à porta da enfermaria.

Nalguns os ferimentos eram profundos e sangravam muito. Outros apresentavam contusões, entorses, luxações, por vezes nada mais que benignas equimoses. Cansado, o doutor Blandy não parava de resmungar e de largar muitas pragas. E fazendo isto punha pensos nas feridas, colocava talas, distribuía pomadas e calmantes.

Quatro horas depois subiu à torre. O comandante Nicholson autorizara Cornell a descansar um pouco e este fora para a sua cabina como um moribundo adiado.

- Quem o veja assim irá jurar que conservou uma alma de criança - ironizou Blandy. - Tem assim tanto prazer em contemplar o horizonte?

- Aproximamo-nos dos primeiros icebergues, doutor.

- Que feliz me sinto por saber isso. Pois eu anuncio-lhe que tem sessenta e nove feridos a bordo, comandante!

- Esses pelo menos já têm em que ocupar o espírito.

Nicholson inclinou-se para a ocular e efectuou nova observação ao horizonte. De súbito teve um sobressalto. Blandy, que o observava pensativamente, viu-o morder o lábio inferior. Como o silêncio se prolongasse, arriscou uma observação irónica:

- Que se passa? Inimigos à vista? Russos se calhar!

Nicholson afastou-se e apontou a ocular.

- Cedo-lhe o lugar, doutor. Dê uma vista de olhos. Se não estou a exagerar, temos pela frente sérios aborrecimentos.

De início o doutor Blandy não viu mais que vagas, depois acabou por distinguir um ponto cor de laranja que parecia dançar no mar. Não era um reflexo do sol, pois continuou no campo de visão mesmo quando uma nuvem veio obscurecer o céu.

Blandy voltou-se para o comandante Nicholson.

- Se é o que penso...

- Sem dúvida alguma. Trata-se pura e simplesmente de uma jangada salva-vidas.

Nicholson sentou-se, cansado.

- Um naufrágio. Nada de surpreendente com esta tempestade.

- Se bem entendo... tem pela frente um doloroso problema...

- É o menos que se pode dizer.

- Você é um marinheiro, Jack. E o primeiro dever de um marinheiro, o seu dever sacrossanto, é prestar socorro aos náufragos...

- Dispenso as suas lições de moral, doutor.

Nicholson juntou as mãos como se fosse rezar.

- Tenho ordens rigorosas - recomeçou ele após um instante de silêncio. - Proibição categórica de revelar a quem quer que seja a existência do Poseidon. Segredo absoluto. Em caso de infortúnio, uma única solução: o afundamento. Não tenho o direito de socorrer náufragos. Nem sequer tenho o direito de os ver!

- Mas viu-os. Tal como eu.

- Precisamente, somos só nós dois...

- Mas, Jack, não vê que eles estão condenados se não os socorremos? Talvez nem aguentem já muito tempo.

- Não tenho o direito de vir à superfície! Repito-lhe que o segredo tem de ser absoluto. Não posso ajudá-los, está fora de causa que um estranho possa vir a bordo.

- Tem um irmão, não tem?

- Cale-se, doutor.

Nicholson fechava os punhos.

- Pelo que sei, também ele está na Marinha. Imagine que o seu navio se afunda e que o deixa afogar-se quando avistou os seus pedidos de socorro...

- Não vi nada, doutor. Absolutamente nada!

- E tem a consciência tranquila?

- Alguém se preocupa com a minha consciência? Os meus problemas não interessam a ninguém.

- Interessam a si!

Blandy voltou ao periscópio e inclinou-se para a ocular. Como anteriormente, de início não viu mais que vagas, mas não tardou em localizar o ponto cor de laranja.

- Não há qualquer dúvida. Agora até se vê muito nitidamente. A nossa rota vai lá direita.

- Então dou ordem para mergulhar a duzentos pés... ou corrigir o rumo, tanto faz.

- Não vai fazer isso, Jack!

Blandy afastou-se e apontou a ocular.

- Até se distinguem as luzes do pedido de socorro. SOS! Sabe o que isto quer dizer, não sabe? Pedem socorro! Eu não sei até que ponto é duro, inflexível... mas seja como for, não pode ser insensível a este ponto. Ou toda a sua vida será roído pelo remorso. Será uma lembrança mais corrosiva que ácido. Vai pensar nisso todos os dias: “Conscientemente recusei auxílio a seres humanos, deixei-os morrer.” Mas, meu Deus, o tempo urge, ponha-se imediatamente em contacto com o almirante.

- Inútil. Já sei a resposta que me dará. Proibição formal de vir à superfície.

- Então vocês não passam de autómatos? Para mim pergunto o que gente como vocês têm lá dentro. Isso só vem confirmar o que já senti no Vietname: odeio os militares, odeio o Exército!

- Você também, doutor, veste uniforme. Não se esqueça.

- Porcaria, sim! Quer ver o que sou capaz de fazer?

Nicholson levantou-se e foi olhar pela ocular do periscópio. A imagem era cada vez mais nítida. Arremessada pelas vagas, a canoa pneumática parecia fazer ricochete e aproximava-se perigosamente dos blocos de gelo, ameaçada pelas suas arestas aceradas.

Nicholson baixou o periscópio. Depois carregou num dos botões do painel que tinha diante de si e accionou o interfone. Imediatamente estabeleceu ligação com McLaren, Collins, Cornell e Curtis.

- Preparem-se para vir à superfície! Não há perguntas?

- Não, Sir!... - responderam quatro vozes num belo coro.

Logo soaram campainhas por todo o navio. Os que dormiam acordaram num desassossego e levantaram-se num salto. Que se passava? Não estariam a sonhar? Teria o Velho perdido a cabeça por completo?

Vir à superfície? Para quê? Ver o Sol, o céu, o horizonte? Respirar ar fresco? Ver o mar, senti-lo, embriagar-se com os cheiros.

- Se o Velho estivesse aqui neste momento, eu abraçava-o, beijava-lhe os pés... o que ele quisesse! - berrou Jimmy Porter ao ouvir a campainha. - Esta esterqueira, esta porca tolice, eu perdoo-lhe tudo, passo uma esponja por cima, eu o bendigo! Estão a ouvir, rapazes? Vamos à superfície!

Já as bombas funcionavam. Todas as manobras, que punham a funcionar mecanismos electrónicos extremamente complexos, decorreram com uma aparente simplicidade, desconcertante para um profano. McLaren rejubilava: uma pura maravilha, uma verdadeira jóia da técnica moderna! Tão facilmente manobrável como um brinquedo teleguiado!

A torre emergiu. O submarino veio à superfície.

Nicholson e Blandy abriram a escotilha. O sol iluminou a plataforma tão de repente que o tenente Cornell, deslumbrado, teve de proteger os olhos.

Nicholson deu a todos os oficiais autorização para virem à ponte. Jogada pelas vagas, a jangada salva-vidas já não estava a mais de uns cinquenta metros do submarino.

Nicholson voltou-se para o doutor Blandy:

- Está contente comigo? - disse a meia voz.

- Ainda não, Jack. Os problemas ainda só estão no começo. Toda a questão está em saber se aceita receber os sobreviventes a bordo.

- Isso não pode estar em causa!

A resposta caiu como um cutelo. Blandy fechou os olhos, acabrunhado: “Maldito seja o dia em que assinei o meu alistamento.”

Os oficiais encontravam-se reunidos no tombadilho. Todos os olhos estavam postos na jangada salva-vidas. O sol parecia agora frio, o céu sombrio e ameaçador, o mar hostil. O mesmo pensamento animava todos os espíritos e não havia necessidade alguma de o exprimir. Naquele instante nenhum dos oficias invejava o comandante Nicholson, por nada deste mundo gostariam de se ver no seu lugar. Alguns lançavam-lhe olhares furtivos, mas nenhum dizia uma palavra.

De súbito, vinda de baixo, a voz de Collins:

- Estou a ver no radar um objecto redondo bastante bizarro. Muito perto. O que é?

- A minha consciência! - respondeu Nicholson. - Suba, Collins. Que pelo menos eu tenha cúmplices!

Deslizando na água com uma lentidão majestosa, o Poseidon alcançou a jangada salva-vidas.

- Parem as máquinas! - berrou Bernie Cornell. – Dez homens na ponte!

Na jangada pneumática era possível ler em letras negras o nome do barco que naufragara: A Bela Maria.

Blandy fitou Nicholson franzindo as sobrancelhas:

- Raio de nome...

O comandante absteve-se de qualquer comentário. Desceu à ponte onde dez homens foram ao seu encontro, Jimmy Porter à cabeça.

- Que as coisas fiquem bem claras - explicou o doutor Blandy aos oficiais que com ele tinham permanecido no alto da torre. - Fui eu quem persuadiu o comandante a agir assim. Estou, portanto, pronto a assumir todas as responsabilidades. Vamos, senhores.

Desceram à ponte. As responsabilidades. Ninguém mais a não ser Nicholson era responsável. Só ele era comandante a bordo, e Blandy disto tinha consciência, apesar das observações absurdas que acabava de proferir.

Com o auxílio de croques, quatro homens aproximaram a jangada e mantiveram-na contra o casco do submarino. Belucci desceu então à jangada salva-vidas e correu o fecho éclair da entrada.

Tendo lançado uma olhadela lá para dentro, soltou um grito dilacerante e caiu de costas.

O comandante assistira à queda de Belucci sem manifestar a menor emoção. Como o infeliz se agitava na água gelada, Bill Slingman atirou-lhe um cabo. O italiano agarrou-se a ele e trepou para bordo.

Belucci tremia de frio mas não parecia ter consciência disso. Tinha os olhos fixos na jangada como se de lá não pudesse arrancar o olhar.

- Mas, seu cretino, de que está à espera para mudar de roupa? - berrou o doutor Blandy. - Está com vontade de apanhar uma pneumonia? E pertence isto à elite! Vê náufragos e revira os olhos como uma rapariguinha!

- Eu vou lá - decidiu Nicholson. - Porter, faça girar a jangada de maneira a pôr-lhe a entrada voltada para a escada.

Com os croques, os marinheiros puseram a embarcação na posição desejada. O fecho éclair estava só ainda meio aberto. Uma lanterna vermelha a piscar lançava apelos desesperados.

“Venham em nosso auxílio! Socorro!”

Nicholson ajoelhou-se, inclinou-se para a frente e, agarrando-se ao tecto da jangada, acabou por correr o fecho éclair. Logo o doutor Blandy enfiou a cabeça por cima do ombro dele.

- Parece-me que o primeiro a quem isto respeita sou eu - observou ele quando o comandante lhe lançou um olhar furioso.

Estranha agitação reinava a bordo. Um sussurrar que em nada estava de acordo com a disciplina militar. Com efeito, sem esperar que o fôlego lhe voltasse, Belucci apressara-se a relatar o espectáculo de que acabava de ser testemunha.

Nicholson afastou as duas abas da abertura e olhou. É verdade que não caiu de costas como Belucci, mas, bruscamente, o seu rosto ficou rígido. Quanto ao doutor Blandy, que continuava a esticar o pescoço para ver por cima do ombro do comandante, compreendeu subitamente que todos os ensinamentos prodigalizados aos oficiais não passavam de pura e simples teoria.

O espectáculo que se oferecia dentro da jangada salva-vidas era o de corpos entrelaçados. Cinco corpos de mulheres. As suas roupas, jeans e pulôveres, estavam rígidas devido ao gelo. Ao ver os corpos assim aglutinados adivinhava-se o esforço desesperado que as náufragas deviam ter feito para não sucumbirem ao frio e ao esgotamento.

Na ponte, a efervescência atingira o cúmulo.

- Mulheres! - vociferava Porter. - Estão a ouvir, rapazes, Belucci diz que são mulheres!

- De que estão à espera para içar a jangada para bordo? - gritava Slingman.

O doutor Blandy acocorou-se ao lado de Nicholson.

- Não gostaria de lhe estar na pele, Jack. Aliás, creio que neste momento seria necessária uma boa dose de perversidade para o invejar. Mas se permite... é meu dever ir auscultá-las. - Depois de uma olhadela a Nicholson, acrescentou a meia voz como se tivesse lido os pensamentos do comandante: - Estou de acordo consigo, Jack... Seria muito melhor se estivessem mortas...

Um minuto depois - um minuto que pareceu eternizar-se -, Blandy enfiou a cabeça pela abertura, voltando-se em seguida para Nicholson:

- Desolado, Jack, mas elas ainda estão vivas...

- É realmente o que eu temia. Encontre uma solução, doutor. O que importa é que não entrem a bordo.

- Mas que solução? Não posso fazer milagres. É evidente que estas raparigas estão num estado de hipotermia extremamente crítico. Estão quase no limite das suas forças. Eu nem três horas lhes daria de vida.

Entregando-se a uma verdadeira acrobacia, Nicholson inclinou-se para a frente a fim de lançar mais uma olhadela para dentro da jangada salva-vidas. Agora que o doutor Blandy se tinha afastado, distinguiam-se claramente os corpos. Cinco mulheres! Todas de uma beleza à qual um homem que acabasse de passar oitenta e um dias nas profundezas marinhas não podia ficar indiferente.

- Suponhamos que as localizámos cinco horas mais tarde...

- Não, Sir! - cortou Blandy. - Isso seria um assassínio, e recuso-me a ser cúmplice. Estas infelizes precisam de cuidados e não há um segundo a perder.

- A bordo não! Nem pensar em embarcá-las!

- Como médico, é a mim que cabe tomar as medidas que se impõem e nisso sou eu o único juiz.

- Está a esquecer-se de que está no meu navio e que sou eu quem dá as ordens.

Voltara o silêncio e Nicholson à sua volta só viu caras fechadas, nalguns casos francamente hostis. Mesmo Collins lançava-lhe olhares venenosos.

- Não quero mais de cinco homens na ponte. Os outros voltem para os seus postos! Chamem o radiotelegrafista.

Houve um instante de hesitação. Depois, sempre a resmungar, Porter arrastou Belucci a escorrer água gelada. Os outros acompanharam-nos e desapareceram dentro do navio. Só os oficiais continuaram na ponte.

Assim que o operador chegou, Nicholson deu-lhe as suas ordens:

- Ponha-se em ligação com a base e peça para chamar o almirante Adam. Adam em pessoa, com outro não!

Nicholson meteu as mãos nos bolsos do uniforme como se de repente se tornassem para ele objectos incómodos de que não soubesse que fazer. Talvez simplesmente quisesse dissimular um tremor incoercível.

- Se não estiver no seu gabinete, procurem-no. Tenho tempo.

- Eu não - interveio Blandy.

O operador apressou-se a voltar ao posto das transmissões.

Nicholson fez sinal a Blandy.

- Volte para bordo, doutor!

- Era preciso que eu fosse o último dos malandros para abandonar doentes em estado tão desesperado.

Ainda não acabara de pronunciar aquela frase e já o doutor Blandy se arrependia por ter chegado àquela explosão de fúria. “Tenho realmente de admitir”, disse para consigo, “que neste momento também ele, Nicholson, se encontra numa situação desesperada.” Era impossível deixar entrar cinco raparigas a bordo de um submarino atómico americano cuja existência tinha de se manter ultra-secreta. Mas, na falta de socorro imediato, as náufragas iam morrer. Restavam-lhes apenas três horas de vida naquela carapaça de gelo que as suas roupas formavam. Verosimilmente era uma estimativa até muito optimista. No estado em que elas se encontravam, nem sequer já era possível avaliar as suas últimas capacidades de resistência.

- Se lhes déssemos cobertores, aparelhos de aquecimento com acumuladores e todos os medicamentos de que tenham necessidade, isso seria suficiente na sua opinião? -- sugeriu Nicholson.

- De maneira alguma.

- Porque não?

- Porque não se trata um ser humano como se conserta uma máquina!

- Então rebente com as meninges, doutor, e acorde a sua imaginação. Eu nada tenho de mais engenhoso a propor-lhe.

No tecto da jangada, a luz vermelha piscava, lançando apelos de socorro. Nicholson esforçava-se em vão para não lhes prestar atenção. “Raparigas que têm pouco mais de vinte anos”, pensava ele. “Talvez nem os tenham ainda. Se me tivesse casado cedo, poderia ser pai delas. Mas nunca me casei. Sempre vivi em comunhão com o mar, com a única preocupação de bem servir a minha pátria. Tudo isto por um ordenado anual de dezoito mil dólares. Uma vida aparentemente pouco atraente. Mas sempre me agradou e nunca me lamentei nem senti nostalgia.”

Nicholson foi arrancado às suas meditações pela voz do doutor Blandy:

- Se continua a ruminar, Jack, não tardará a entrar na grande família dos assassinos profissionais.

- Você não está disposto a esquecer essa frase, doutor, mas acredite, vai lamentá-la - respondeu placidamente Nicholson. - No entanto, deve ser possível reanimar aquelas raparigas e recuperá-las, sem que para isso tenhamos de as meter a bordo. Tudo o que podemos fazer é lançar apelos aos navios que naveguem nestas paragens. E o único risco que podemos correr.

- Venha verificar por si mesmo, Sir - retorquiu o doutor Blandy em tom fatigado. - Elas deixaram entrar dez centímetros de água antes de conseguirem fechar a jangada. Estavam já demasiado esgotadas para terem força de se livrarem da água. Compreende? Não há um minuto a perder ou estão condenadas. Tem de as meter a bordo, é in-dis-pen-sá-vel! Eu só as poderei salvar se as transportarem para a enfermaria. Falei claro?

O radiotelegrafista apareceu na ponte do comandante.

- Consegui ligação com a base, Sir! O almirante Adam está em linha.

- Já vou.

Nicholson afastou-se, perseguido pela voz enraivecida de Blandy:

- Diga ao almirante que a elite da Marinha dos Estados Unidos se prepara para matar mulheres em perigo!

Nicholson empertigou-se instintivamente e enfiou a cabeça nos ombros. Uma simples olhadela a Cornell e a Cunis bastou para o informar sobre o estado de espírito dos seus oficiais: apesar da sua aparente impassibilidade, Nicholson leu claramente uma surda ameaça nos seus olhos. Quanto a McLaren e Collins, baixaram a cabeça ante o olhar inquisidor do comandante. Menos rápido na dissimulação, o jovem aspirante Duff tinha uma expressão assustada.

“A nossa missão tem de se manter ultra-secreta”, repetia para si Nicholson. “Deram-me o comando de um fantasma. Ninguém pode nem sequer suspeitar da existência do submersível. Como aceitar então que cinco náufragas, cinco mulheres, comprometam uma missão de interesse mundial? Entre a teoria e a prática... sinistra ironia!”

Subiu ao alto da torre, entrou no posto de transmissão e colocou uns auscultadores. Chegou-lhe a voz do almirante, tão claramente como se se encontrasse a bordo e o tivesse chamado pelo telefone interno.

- Sir, tenho um problema - anunciou Nicholson.

Sem o notar soltou um suspiro. Estava aliviado por falar ao almirante pois, todos sabiam, Adam considerava-se como um pai para todos aqueles a quem chamava indistintamente “os seus rapazes.

- O reactor, Jack?

- Muito mais grave, Sir. Tenho uma pesadíssima decisão a tomar. Trata-se de meter a bordo cinco raparigas que...

- Perdeu a cabeça? De acordo com o último relatório navega entre a Islândia e a Noruega... Você seria realmente o último de quem esperaria esta crise de loucura furiosa.

- Esbarrámos com uma jangada salva-vidas, Sir. De um navio baptizado A Bela Maria. Estas cinco raparigas parecem ser as únicas sobreviventes. Se não as recolhermos a bordo, Blandy não lhes dá uma hora de vida.

“Estou a mentir”, considerou Nicholson. É talvez a primeira vez na minha vida que digo uma mentira consciente e deliberada. Disse uma hora... Mas até pode ser que seja verdade.”

O almirante, com voz seca, glacial:

- Você tem ordens: são claras e indiscutíveis.

- Sir, a situação é excepcional.

- Nada de estranhos a bordo!

- Para as cinco náufragas isso equivale a pronunciar uma sentença de morte.

- Peço-lhe, Jack, não dramatize - replicou Adam com uma entoação de comiseração altiva. - Vocês, de qualquer modo, não são os únicos a navegar por essas paragens. Deve haver por aí outros barcos, não acha?

- Mas antes que as encontrem, essas pobres raparigas ficarão transformadas em blocos de gelo. Pelo que diz Blandy...

- Eu conheço os médicos! Para eles só há duas categorias de pacientes: os doentes imaginários e os moribundos. Desta vez Blandy vai poder dar prova das suas capacidades, ainda que passe o tempo de seringa na mão a tratar das blenorragias! Comandante...

- Sir?

Nicholson empertigou-se. Se o almirante o tratava por “comandante”..

- Peço-lhe para cumprir o seu dever. Execute as ordens e mantenha-se firme. Estamos entendidos?

- Perfeitamente, Sir.

Nicholson tirou os auscultadores e cobriu o rosto com as mãos. Ficou sentado um longo momento nessa posição, até a voz de Duff o chamar à realidade.

- Sir - disse o jovem aspirante -, devia vir à ponte... se faz favor.

Nicholson aquiesceu. “Se faz favor...”, a voz suplicante de um rapazito triste. Voltou a pôr o boné e subiu à ponte de comando. Viu então o que se passava em baixo, no tombadilho: os seus oficiais, com a ajuda de Slingman, tinham içado a jangada para bordo. Já o doutor Blandy dava ordens para que trouxessem cinco macas.

Nicholson parou na ponte de comando. Os seus oficiais tinham, portanto, agido contra sua vontade, haviam colectivamente decidido transgredir as suas ordens. As raparigas estavam a bordo. Nicholson reflectiu calmamente: metê-los a ferros de imediato? Deixar que o tribunal da Marinha se pronunciasse sobre a questão, e daí despachá-los para o primeiro navio americano que se cruzasse com o submarino? Avisar o almirante Adam? Expor-lhe a situação: “Os meus oficiais desobedeceram às minhas ordens”? A resposta de Adam já a conhecia antecipadamente. Mas que fazer a bordo de um submarino atómico privado dos técnicos e dos oficiais mais importantes?

Já o doutor Blandy e Cornell tiravam a primeira náufraga da jangada salva-vidas: um rosto delicado, cabelo de um ruivo chamejante. Colocaram-na na ponte esperando pela chegada dos enfermeiros com macas. Depois apareceu uma segunda rapariga, trazida por Curtis e McLaren: longas pernas, comprido cabelo louro ao qual o afago do sol dava reflexos de ouro.

Duff, que tinha ficado atrás do comandante sem ousar manifestar a sua presença, tossiu discretamente.

- Que há, Herbert? - perguntou Nicholson sem se voltar.

- Nós votámos, Sir. A decisão foi tomada por unanimidade... Estamos prontos para assumir a responsabilidade de...

- Vocês? Pontapés no rabo, isso sim! Só há um responsável a bordo, sou eu!

- Estamos do seu lado, Sir.

- Estou bem arranjado. Idiota!

Nicholson desceu à ponte e aproximou-se lentamente do grupo. A quarta náufraga acabava de ser colocada no tombadilho: uma moreninha de silhueta frágil.

- Por onde raio andam eles que não me aparecem com as macas? - vociferou Blandy.

Viu então Nicholson e veio ao seu encontro. Os dois homens avançavam um para o outro como duelistas que se preparam para se baterem.

- Que diz o almirante? - perguntou Blandy.

- Desde quando faz perguntas tão estúpidas, doutor?

- Explicou-lhe tudo?

- Até mais do que a conta. Disse que elas não tinham mais de uma hora de vida.

- E ele não quis saber?

- Nada.

- Se um dia voltar a pôr os pés em Norfolk, visto-me à civil, queimo a farda em público, vou ver o almirante e cuspo-lhe na cara!

- Tem de o compreender, doutor!

Nicholson olhou as náufragas. McLaren e Cornell acabavam de deitar a quinta na ponte.

- Adam considera que durante toda a duração desta viagem estaremos em estado de guerra. De guerra latente, pelo menos. Viveu Pearl Harbor, estava em Okinawa. Para ele, ao lado de centenas de milhares de mortos, cinco infelizes raparigas são quantidade negligenciável. É terrível de dizer, eu sei.

- Pior do que isso, Jack: desumano!

- Tens razão... Mas nós ainda somos seres humanos?

- Certamente, Jack. Em todo o caso, pessoalmente, reivindico-o e sustento-o.

- Então fixa bem essa frase. Um dia, vais ter talvez necessidade de te lembrares dela.

O tratamento por tu instaurara-se entre eles muito naturalmente, como uma familiaridade necessária.

Os enfermeiros acabavam de chegar com macas. Curiosos, enfiavam as cabeças pelas escotilhas, impacientes por verem as raparigas. Se bem que a sua presença em nada fosse necessária e ninguém o tivesse chamado, Jimmy Porter, sempre vociferante, fingia ter uma actividade febril. O pequeno Belucci que, entretanto, secara e mudara de farda, voltou à ponte com uma pilha de mantas, aliás, inúteis, porque os enfermeiros já tinham tratado disso.

- É preciso despi-las de imediato - afirmou vigorosamente Porter. - Disso entendo eu. Sou nadador-salvador.

- Que está você a fazer na ponte? - ripostou Bernie Cornell. - Ninguém o chamou. Volte imediatamente para o seu posto!

Mas então foram Slingman e Tami Tamaroo que se intrometeram: chegaram à ponte com garrafas-termos cheias de chá a escaldar.

- Só me faltava isto - comentou o doutor Blandy em voz surda. - Se isto continua, Jack, vais ter trezentos homens na ponte como numa parada.

Nicholson encolheu os ombros.

- Vocês tomaram esta decisão por unanimidade. Se isto der num inferno, só contra vocês se poderão virar.

O transporte para a enfermaria demonstrou ser mais árduo do que o doutor Blandy imaginara. Dentro do navio os marinheiros apertavam-se nas coxias, querendo todos lançar uma olhadela às náufragas.

- Mulheres a bordo, rapazes! Não é brincadeira!

Todos tinham acorrido, tanto da casa das máquinas como das cozinhas. Engenheiros, simples marinheiros, toda a tripulação parecia ter invadido as coxias.

Mulheres. Cinco lindas mulheres a bordo de um submarino da Marinha dos Estados Unidos.

- Vai salvá-las, doutor? - perguntou um dos homens enquanto o doutor Blandy tentava abrir caminho naquela confusão.

- Primeiro é preciso que me deixem passar! Mas afastem-se, raios, ponham-se a andar! É uma questão de minutos!

Por fim, os enfermeiros chegaram à enfermaria, e todo o cortejo lhes foi atrás. Mas o doutor Blandy conseguiu fechar a porta atrás de si e correr o ferrolho. Os homens ficaram pelas coxias como se quisessem estar nos camarotes de primeira para assistirem à continuação dos acontecimentos.

No posto de navegação, o comandante Nicholson voltou-se para Bernie, fulminando-o com o olhar.

- Ordem a todos os homens para se prepararem para mergulhar!

- Agora, Sir?

- Desde quando na Marinha se responde a uma ordem com uma pergunta?

- Sir...

- Mergulhamos!

- Muito bem, Sir.

Cornell fez a continência, mas o seu olhar traduzia claramente o seu espanto e a sua confusão perante uma obstinação tão incompreensível.

Uma campainha soou por todos os compartimentos do submersível. Logo McLaren chamou da casa das máquinas:

- A jangada salva-vidas continua na ponte!

- Em que é que as suas funções de engenheiro o obrigam a entrar por este género de considerações, McLaren?

- Perdão, Sir.

Vexado, McLaren desligou secamente.

Em tempo recorde todos os marinheiros voltaram aos seus postos. As coxias não tardaram a ficar desertas. Estava restabelecida a ordem.

De pé, na frente das alavancas de comando, os quartéis-mestres esperavam. Na casa das máquinas estavam atentos aos sinais electrónicos.

Perto de Nicholson o telefone zumbiu. Olhou pensativamente para o aparelho como se hesitasse em atender, depois levantou o auscultador. A chamada vinha do doutor Blandy, que perguntou:

- Não poderíamos esperar um pouco antes de efectuar o mergulho?

- Eu comando um submarino não um avião - respondeu secamente Nicholson. - Que eu saiba, um submarino é feito para andar debaixo de água.

- Não me digas! Decididamente todos os dias aprendemos -. O doutor Blandy aclarou a voz e apressou-se a acrescentar: - Despi as raparigas. Se as visses nas camas delas! Peço-te para acreditar que o espectáculo nada tem de soturno.

- És médico, lembro-te isso, e que, se estás aqui, é unicamente a esse título.

- Elas ainda estão em coma. Se visses os enfermeiros: os olhos saltam-lhes das órbitas. Fiz como tu, preguei-lhes um sermão: “Não se esqueçam que vocês são enfermeiros e nada mais!” Cheguei mesmo a ameaçar que os capava. Preparam-se para friccionar as raparigas com toalhas de esponja. Ainda não há nada como uma boa massagem. Talvez seja um método tão velho como o mundo mas nada ainda se encontrou de melhor.

- Para que me contas isso tudo?

- Pensava que tivesses vontade de dar uma olhadela.

- Cinco raparigas nuas, qualquer delas mais bela que a outra?

- Se desceres, eu tapo-as. Suponho que quando acordarem vão ter histórias apaixonantes para contar. Não te cabe a prioridade no que tenham a dizer?

- Okay. Eu vou aí.

Em todos os compartimentos se continuava a esperar pela ordem de mergulhar. Em vão. Sem aguentar mais, Dustin Hollyday acabou por chamar Jimmy Porter.

- O Velho perdeu a cabeça. Dá ordem para nos prepararmos para mergulhar e nada se passa. Que significa isto?

- Segundo parece, as raparigas estão safas. Erni telefonou-me em segredo da enfermaria. Estão nuas em pêlo, na cama. Criaturas de sonho! De ficares parvo! Erni está excitadíssimo, não pode mais. Disse que durante os seus estudos para enfermeiro passou-lhe uma enfiada pelas mãos, mas nunca bonecas tão giras!

- Achas que vão ficar a bordo?

- Estás a brincar? Eu aposto seja o que for em como o Velho as vai desembarcar.

- Não pode.

- O comandante Nicholson pode tudo!

- Mas de que estamos nós à espera para mergulhar?

- Faz-lhe tu a pergunta! Vá, experimenta!

Porter desligou raivosamente. Diante dos seus olhos surgiu a imagem de uma mulher de seios duros, com pernas compridas, coxas finas, umas ancas musculosas e arredondadas.

Na enfermaria os esforços dos massagistas tinham dado os seus frutos. As náufragas começavam a voltar à vida. A pele estava vermelha pelo efeito das fricções vigorosas, o ritmo cardíaco começava a ser regular, a temperatura tinha subido, oscilando agora pelos trinta e seis graus e meio. Todavia, estavam ainda inconscientes.

O doutor Blandy dispensou os enfermeiros e sentou-se no meio da sala. Ouviu então três pancadas ritmadas, enquanto uma luz vermelha se acendia por cima da porta. Um zumbido no interfone.

- Jack?

- Sou eu.

Blandy abriu. Nicholson parou à entrada como se temesse cometer uma imprudência.

- Paradisíaco, não é? - comentou Blandy. – Duas louras, duas morenas e uma ruiva maravilhosa. Anjos! Não era preciso muito para me tomarem por São Pedro -. Como Nicholson não respondesse, acrescentou: - De que estás à espera para dar ordem de mergulhar?

- Queria simplesmente que os homens voltassem aos seus postos. Não havia outra maneira de restabelecer a ordem.

- Não seria mau talvez explicar isso a McLaren. Se bem o conheço deve estar à espreita do sinal, com uma alavanca em cada mão. Tem com que ficar raivoso.

- Quando é que elas vão voltar a si? - perguntou Nicholson baixando a voz.

- Já não deverá tardar. O pulso está normal. Quanto ao cérebro, não posso jurar. Esperemos que as suas faculdades mentais estejam indemnes... Olha-me só para estas maravilhas!

Como se quisesse partilhar o seu entusiasmo com Nicholson, Blandy levantou um lençol, descobrindo um corpo bronzeado de pele acetinada.

Blandy voltou a deixar cair o lençol.

- Todas igualmente belas. Mas se visses a ruivazinha, ficavas louco, tinhas arrepios por todo o corpo...

Nicholson deixou-se cair numa cadeira.

- Vou desembarcá-las durante a noite. Daqui até lá tens tempo para as pôr de pé.

Blandy sacudiu a cabeça.

- Só tu podes dizer coisas dessas! Primeiro tenho de as auscultar para...

- E eu tenho de fazer um relatório ao almirante!

- Okay, Jack...

- Não esqueças que este navio representa milhões de dólares.

- Eu sei...

- Desembarcarão na Noruega, a norte de Narvique. Teremos, evidentemente, problemas com a vigilância dos radares. Vai ser preciso que em Washington dêem um apertão às meninges...

- Achas?

O doutor Blandy debruçou-se sobre uma das raparigas que esboçara um fraco movimento.

- Olha para elas. Cinco raparigas maravilhosas! Imaginas que a Casa Branca vai desencadear o toque de combate por tão pouco? Ninguém mexeria um dedo!

Nicholson soltou um suspiro de cansaço.

- Sou obrigado a avisar o general de que as raparigas estão a bordo, prometendo-lhe, bem entendido, desembarcá-las. E só o posso fazer na proximidade da costa e aí não poderemos escapar aos controlos dos radares... Enfim, pouco a pouco, o caso vai acabar fatalmente em Washington.

Nicholson abanou a cabeça, procurando uma aprovação que não veio.

- Eu sabia onde esta história nos iria levar...

Com um gesto teatral, Blandy indicou as cinco camas.

- Mas tu querias mesmo deixá-las morrer?

- Há situações em que é preferível impor silêncio à consciência. Se não se fizer, corre-se para o suicídio. Acho que este é um desses casos.

Bruscamente, Nicholson levantou-se.

- Vou dar-te três dias, okay? Vamos fazer rumo à Noruega e escolheremos um fiorde isolado, o que talvez nos conceda uma oportunidade de escapar aos radares.

- Três dias... é muito apertado, mas tentarei. Em todo caso, este ataque de generosidade vai-me direito ao coração.

Nicholson carregou num dos botões do interfone, estabelecendo ligação directa com o posto de navegação. Logo chegou a voz ansiosa de Bernie Cornell:

- Sir, andávamos à sua procura. Que se passa?

- Mande homens para recuperar a jangada salva-vidas. Depois mergulharemos a cento e cinquenta pés.

- Aye, aye, Sir.

- Mais perguntas?

- Não, Sir.

Nicholson cortou a comunicação.

- Mente - disse ele voltando-se para o doutor Blandy.

- Começa a reinar a bordo uma atmosfera irrespirável. Sinto-o. Basta a presença das raparigas para os pôr febris a todos. E é o menos que se pode dizer.

Calou-se de súbito. Três raparigas acabavam de levantar a cabeça e olhavam em volta com o mais profundo espanto. Não compreendiam, evidentemente, onde se encontravam. As paredes, os lençóis, tudo naquela sala era de uma brancura imaculada. Uma após outra, sem forças, deixaram-se cair no travesseiro. A que tinha um longo cabelo louro deitou-se de lado e pôs-se a chorar em silêncio. A ruiva, essa

afastou bruscamente o lençol oferecendo de repente o maravilhoso espectáculo da sua nudez.

O comandante Nicholson nem estremeceu. Só o seu olhar passeava de uma cama para outra, para finalmente se deter no rosto de uma das náufragas ainda inconsciente. Era uma loura de cabelo curto e, com toda a evidência, menos sofisticada que as suas companheiras. Parecia ser alta. Por baixo do lençol adivinhavam-se pernas compridas e curvas graciosas. Blandy sorriu.

- Tenho a impressão de que a ruivazinha não é bem o teu género. Mas espera. Vais ver quando a desportista do grupo acordar! Está cheia de músculos aquela mulherzinha. Dura, apetitosa como pão quente!

- Chega, doutor! Guarda os comentários para ti. Uma vez que voltam a si, começa por lhes explicar onde se encontram...

Blandy fez uma careta:

- Como romance...

Aproximou-se da primeira cama. Ao ver a cara do médico inclinada para ela, a rapariga deu um pequeno grito.

- Está bem, miss - brincou Blandy. - Eu sei que nada tenho de um Apolo, mas que quer, nem sempre se pode escolher o nosso salvador.

- Meu Deus... onde estou? Vivo... Estou viva... realmente?

Blandy voltou-se para Nicholson:

- Estás a ouvir? Pronúncia tipicamente americana, não é possível enganarmo-nos. Sinto que vamos ter direito a uma história apaixonante.

O zumbido dos motores chegava em surdina. O submarino preparava-se para mergulhar.

A ocupante da quinta cama, uma morena de estatura média, ergueu-se e sentou-se tendo o cuidado de pudicamente segurar o lençol. Pelo efeito da iluminação a néon a pele acobreada quase parecia lustrosa.

- Em que barco estamos nós? - perguntou. Depois, como se recuperasse bruscamente a memória: - Agradeço-lhes! Obrigada de todo  coração! Já tínhamos perdido por completo a esperança -. Mordeu o lábio inferior, reprimiu um soluço, sacudiu depois a cabeça e com um gesto cansado levantou os compridos cabelos. - Todas nós sobrevivemos?

- De momento, sim - respondeu o doutor Blandy.

A estas palavras, ela voltou vivamente a cabeça e inspeccionou as outras camas. Os seus olhos pretos exprimiam o pânico e, ao mesmo tempo, uma súbita energia.

- Como, de momento? Mas... em primeiro lugar, quem são vocês?

Nicholson, que continuava sem se mexer, tentou em vão esboçar um sorriso quando o olhar da rapariga se deteve nele.

- Vamos explicar-lhe tudo - começou Blandy. – Nós somos fantasmas...

- Mas... não estamos no mar...?

- Não é bem assim - interveio Nicholson. – De momento devemos navegar a uma profundidade de cerca de oitenta pés, mas não tardará que desçamos até aos cento e cinquenta -. Depois, inclinou-se ligeiramente: - Apresento-me... Comandante Nicholson da Marinha dos Estados Unidos. E este aqui é o nosso médico-chefe, o doutor Blandy.

- Nunca poderei acreditar que Deus não existe...

Era a ocupante da segunda cama que proferira esta frase: a jovem de ar desportivo, na qual demoradamente se detivera o olhar de Nicholson, acabava de despertar, pelo menos na plena posse das suas faculdades. Também ela se sentou na cama, levantando os joelhos e encobrindo os seios com o lençol. Nas outras camas as raparigas começaram a agitar-se mas continuaram prudentemente deitadas. Ao descobrir que estava toda nua, a ruivazinha rolou sobre o ventre. Vã precaução. O espectáculo não deixou por isso de ser dos mais encantadores.

O doutor Blandy aproximou-se da cama, levantou o lençol caído no chão e tapou-a.

- Obrigada, doutor - disse ela numa voz suave e bastante surpreendente, pois não se harmonizava com o seu físico.

De novo o olhar de Nicholson passeou de uma para outra cama, demorando-se desta vez na segunda.

- Vou dar ordem para que lhes sirvam uma refeição abundante com chá quente - anunciou ele.

- Mas que barulho esquisito é este?

- Estamos num submarino, miss. E pelo que parece preparamo-nos para mergulhar.

- Um submarino! Não está a brincar? Se Daddy sabe...

Nicholson e Blandy trocaram um olhar furtivo. Não tinham considerado este pequeno pormenor. O gosto das mulheres pela tagarelice, a sua volubilidade, tanta que são incapazes de guardar um segredo. Impossível. Têm de falar. O segredo transtorna-as, queima-as, sufoca-as.

Nicholson sorriu com amargura. “Aí está”, disse para consigo, “pensámos em tudo, salvo justamente nisto, neste aborrecido traço de carácter. Perdemos, portanto, o hábito das mulheres? Já chegámos a este ponto? Mesmo que uma só nos traísse, não tardaria que o mundo inteiro soubesse a notícia: os Americanos possuem um submarino atómico de concepção revolucionária. A partir de então todos os planos estarão destruídos, a nossa missão tornar-se-á absurda por ser vã... O segredo da Marinha dos Estados Unidos depende agora da atitude de cinco garotas. Suprema zombaria...

- É apenas ao doutor Blandy que devem a vossa presença a bordo - explicou secamente Nicholson. - Por mim tinha-me oposto a isso.

- Deixaria que nos afogássemos? - perguntou tranquilamente a desportista.

- Tendo em conta a importância da minha missão, sim.

- Homem encantador! - exclamou a morena que ocupava a quinta cama, e afastou de si o lençol sem já se preocupar com a sua nudez.

- Não tenham qualquer ilusão - prosseguiu Nicholson sem se perturbar. - Prefiro preveni-las imediatamente: é inútil exibir os vossos encantos, será pura perda de tempo. Evitem, portanto, esse comportamento. Estamos entendidos?

- Perfeitamente.

Apenas a loura alta e de aspecto desportivo respondeu. As outras conservaram-se num silêncio hostil, como se polissem já as suas armas tendo em vista um combate inevitável.

Nicholson veio até ao meio da sala e postou-se em frente das camas.

- Agora escuto-as. Espero as vossas explicações...

Considerando oportuno amenizar o ambiente, Blandy sugeriu em tom afável:

- Se começássemos pelas apresentações?

- Eu chamo-me Joan Hankow - declarou a morena que ocupava a quinta cama. - Sou de Boston.

- Somos todas de Boston - precisou a loura desportista. - Esta é Lill Petersen, estes magníficos cabelos ruivos pertencem a Evelyn Darring, a seu lado, Dorette Palandré.

Eu chamo-me Monika Herrmann. Fizemos uma viagem pela Europa e chegámos à Islândia com a intenção de fretar um barco e fazer rumo à Gronelândia. Dorette recusava-se a aceitar que os Esquimós esfregassem o nariz para se beijarem.

- Sir - comentou o doutor Blandy -, começo a temer que sejamos obrigados a converter esta enfermaria em hospital de alienadas.

- Tem champanhe a bordo, comandante? – perguntou Joan Hankow de modo algum perturbada.

Nicholson, em contrapartida, pareceu desorientado por esta pergunta inesperada.

- Não sei... - disse ele. - Acho que sim...

- De que marca?

- Uma infame zurrapa pomposamente baptizada Viva a França! - precisou Blandy.

- Não é possível! - exclamou Joan Hankow indicando a moreninha chamada Dorette. - É o pai dela que é o importador. E reparem nestas lâmpadas fluorescentes. Vêm das fábricas de meu pai.

- Não digam mais nada! - zombou Blandy. – Com tais bocados de ouro, vamos afundar-nos a pique. Nada te quero esconder, Jack. Reconheço que não estavas errado: o inferno está próximo!

Um zumbido no interfone, depois a voz de Cornell:

- Atingimos os cento e cinquenta pés, Sir.

- Okay - disse Nicholson. - Rumo a Narvique.

- Aye, aye, Sir...

Foi cortada a comunicação. Lill Petersen não tirara os olhos do interfone.

- Linda voz, simpática... Quem era?

- Simpática? Realmente? - explodiu Nicholson. – Pois bem, acreditem que daqui em diante já nada lhes parecerá “simpático”! Nada, estão a ouvir? Eu cuidarei disso.

Naquele mesmo instante, Jimmy Porter confiava a Dustin Hollyday:

- Se não conseguir comer pelo menos uma, dou licença para que mos cortem!

 

No posto de navegação, onde igualmente chegavam as mensagens dos sonares e de outros instrumentos de detecção submarina, Cornell acabava de transmitir as ordens do comandante a Collins que o fitou com uma expressão consternada.

- Narvique? - repetiu ele incrédulo. - Tem de se fazer rumo a Narvique?

- Exacto.

- Juro-te, o Velho está completamente baralhado! Mas que imagina ele? Que vai escapar aos radares? Seremos logo detectados! E eu não darei muito pela nossa pele.

Bernie Cornell encolheu os ombros. Ganhara o hábito de executar sem discussão as ordens do comandante. No curso daqueles noventa e três dias tinham-se dado tantos acontecimentos a bordo que já ninguém tinha dúvidas: Nicholson ou era um génio ou um estúpido chapado que haviam escolhido para comandar aquela missão justamente pela sua deficiência mental.

- Interroga-o tu - disse Cornell em tom desiludido. - Ele está na enfermaria.

- Dizes cada uma...

Collins inclinou-se para a carta, estudou-a um instante e logo compreendeu a razão por que o comandante decidira fazer rumo em direcção à costa norueguesa. Reflectiu, hesitou, depois ligou à casa das máquinas e deu ordem para parar os motores. Quase de imediato o submarino deslocou-se praticamente sem ruído. Só de quando em quando se ouviam ligeiros rangidos nas divisórias de aço. A cento e cinquenta pés a pressão que se exerce é já considerável. Mas quando se atingem quinhentos pês a situação passa a ser francamente crítica. Certa vez, Nicholson tinha mesmo ordenado mergulhar a quinhentos e sessenta pés. Todos a bordo preferiam esquecer aqueles momentos de pânico...

- Diabo, Frank és tu quem perde a cabeça! - exclamou Cornell. - Com que direito deste tu ordem para parar as máquinas?

Collins levantou-se, pôs o capacete, abotoou o casaco da farda e afivelou o cinturão munido de um detector de radiações como traziam todos os elementos da tripulação.

- Aprendi - explicou ele - que se devia sopesar as ordens e reflectir nas suas implicações antes de as executar. Ora acontece que as decisões do comandante não só me parecem absurdas como perigosas. Vou, portanto, dizer-lhe o que penso.

- Espero o resultado com impaciência.

Cornell sabia perfeitamente qual ia ser a reacção do comandante e não tinha ilusão alguma quanto ao resultado do passo de Collins. No entanto, teve um sobressalto quando ouviu a voz de Nicholson no altifalante:

- Que se passa, Collins? Por que razão mandou parar as máquinas?

- Eu vou aí imediatamente, Sir.

- Não o chamei. Exijo apenas uma explicação.

- Gostaria de ter uma conversa consigo, Sir.

- Eu não. Apresente-se no refeitório dos oficiais dentro de meia hora.

Apagou-se o sinal vermelho indicando que a comunicação fora interrompida. Collins abanou a cabeça e, afastando Cornell que se encontrava no seu caminho, deixou o posto de navegação. Na coxia esbarrou com McLaren que vinha da casa das máquinas.

- Apanhaste uma pancada na cabeça ou quê? Dás ordens para parar... Eu pensei que isso vinha do Velho... Vê se te tratas, amigo!

- Deixa-me passar. São vocês que estão inconscientes! Vocês nem sabem o que pode acontecer nas próximas vinte e quatro horas. É absolutamente necessário que eu discuta isso com Nicholson.

- Discutir? Com o Velho! Palavra de honra, o teu caso é ainda mais grave do que eu pensava.

- Não te inquietes com a minha saúde...

Sem se demorar mais com vãs querelas, Collins continuou o seu caminho com passo resoluto. Cruzou-se com Belucci e Tamaroo que o encararam com um espanto incrédulo.

- Que se passa, chief  - interrogou prudentemente Belucci. - Por que parámos?

- A cerca de três milhas a bombordo foi localizado um cargueiro italiano com carregamento de macarrão e esparguete. E resolvemos oferecer-te essa alegria. É uma delicadeza, não é?

Belucci contentou-se em responder com uma careta trocista. Afastou-se para deixar passar Collins e continuou o seu caminho na companhia de Tamaroo.

Este continuava a sentir saudades do seu país e, quando acreditava que ninguém o via, não resistia ao prazer de executar danças havaianas ao som de gravações em bandas magnéticas que sempre trazia nas suas viagens.

- Não te cheira a nada? - perguntou Belucci logo que Collins desapareceu.

- Cheira... - respondeu Tamaroo sonhadoramente. - Cheira-me a perfume de mulheres...

- Não tomes os teus desejos por realidades. De qualquer maneira, com certeza não vai tardar que as desembarquem.

- Preferias isso, tu?

Belucci não respondeu. Não pôde deixar de evocar o espectáculo que lhe fora oferecido quando lançara uma olhadela para dentro da jangada salva-vidas e sentira arrepios.

- Loucura! - murmurou ele.

Tamaroo aquiesceu sem compreender:

- Absolutamente. De tudo isto só podemos esperar aborrecimentos.

O comandante Nicholson recompusera-se e reencontrava agora toda a sua calma. No entanto, evitava olhar para as jovens, fitando obstinadamente um ponto, ora na parede, ora no soalho.

- Calculo que tenha já decidido quanto à nossa sorte. -- disse Monika Herrmann, a loura de ar desportivo.

Parecia ser ela a única a raciocinar com o mesmo realismo de Nicholson. Uma boa vantagem para ela... As outras estavam sentadas, ajoelhadas ou acocoradas nas camas, mais ou menos nuas, parecendo avaliar os dois homens como conhecedoras e sem manifestarem o menor pudor. De súbito, a ruiva Evelyn Darring saltou da cama e passeou por toda a sala fingindo procurar qualquer coisa, para finalmente parar em frente do doutor Blandy.

- Era capaz de suportar um bom uísqui!

Blandy sorriu com todos os seus dentes.

- Também eu! É isto que prova a vitalidade das mulheres que não cessa de me espantar. Encontrámo-las meio mortas e umas horas depois são capazes de nos enterrarem!

- Não há nada como a presença de um homem para nos restituir o vigor! - afirmou Dorette Palandré batendo as pernas como se nadasse.

Estava um calor sufocante, porque o médico ordenara que se elevasse a temperatura até aos vinte e quatro graus.

- Fazemos rumo para a Noruega - declarou Nicholson. - Vai ser lá que desembarcam.

- De si isso não me espanta - zombou Joan Hankow soltando os longos cabelos que lhe cobriam as costas. – Mas cautela, meu pai mantém as melhores relações com a Casa Branca. Corre o risco de passar por sérios aborrecimentos.

Blandy soltou uma gargalhada.

- Isso já aconteceu e pior não me parece que possa ser. Considerem que actualmente se encontram a bordo de um submarino que não existe. Uma espécie de navio fantasma, se quiserem... Estou a fazer-me entender?

- Não te canses, Paul, é inútil - interveio Nicholson.

O seu olhar cruzou-se então com o de Monika Herrmann. Tendo-se cuidadosamente enrolado no lençol, levantou-se e declarou:

- Toma-nos por umas mulherzinhas, tolas e limitadas, não é, comandante?

- Poupe-me a ter de lhe responder, miss.

- O cúmulo! - indignou-se Lill Petersen. - Mas desiluda-se, não vai livrar-se de nós assim tão facilmente!

Também ela estava toda nua, e o doutor Blandy afagou com olhar apreciador aquela pele acetinada da loura. Contudo, compreendia agora quanto Nicholson tivera razão desde o princípio. Mas como abandonar náufragas condenadas a uma morte certa? “De qualquer maneira”, disse para consigo, “encontraremos uma solução. Para já temos de saber se é absolutamente indispensável correr um enorme perigo ao aproximarmo-nos da costa...”

Bateram à porta. Nicholson virou a cabeça.

- Eu não chamei ninguém! Exijo que todos os homens fiquem no seu posto!

- Tenho de lhe falar, Sir! - disse Collins.

- Repito-lhe que o verei dentro de meia hora no refeitório dos oficiais.

- Sir!

- É uma ordem, Collins!

- Talvez fosse melhor falares com ele - sugeriu Blandy. - Não esqueças que enquanto estivermos a bordo constituímos como que uma grande família da qual és o chefe responsável. A imagem é tua, lembra-te da cerimónia antes da largada. O problema que actualmente se coloca abarca-nos a todos...

- De quem é a culpa? A quem devemos nós estas dificuldades, Paul?

- É minha. Já sei. Mas agi em nome da solidariedade, da fraternidade humana!

- É igualmente em nome da solidariedade que quero livrar-me delas! Nunca admitirei que cinco infelizes garotas possam comprometer a nossa missão!

- Um infinito obrigada, Sir! - interveio Monika Herrmann.

Nicholson absteve-se de responder e saiu bruscamente da enfermaria. Na sala de espera encontrou-se, cara a cara, com Collins que lhe fez a continência muito cerimoniosamente. Sentados em bancos, os enfermeiros esperavam a continuação dos acontecimentos, curiosos por assistir a um espectáculo que prometia ser sensacional. Para grande decepção deles, a cena não se passou de modo algum como previam.

- Venha comigo, Collins - disse Nicholson simplesmente.

Do mesmo modo fingiu não prestar atenção alguma a Cornell e a Curtis que com eles se cruzaram na coxia, como se fosse por acaso. Depois, uma vez a sós com Collins no posto de comando, fechou a porta atrás de si..

- Não tenho o hábito de entrar em discussões com os meus subordinados - disse ele. - No entanto, Collins, estou disposto a ouvir as suas explicações.

E com estas palavras sentou-se, sem, no entanto, oferecer uma cadeira a Collins. Atitude eloquente, nunca o outro deixaria de a entender.

- Sir - disse ele em tom hesitante -, deu-me ordem para fazer rumo à Noruega.

- O que é muitíssimo claro, segundo me parece.

- Sem dúvida alguma, Sir. Só que não podemos escapar aos radares.

- Eu sei.

- Vários submarinos soviéticos operam precisamente naquela zona.

- Não o ignoro. Navegaremos o mais fundo possível e tentaremos enganá-los. Faremos rumo ás ilhas Vesteralen e desembarcaremos as náufragas de noite na ilha de Andõy. Vamos dar-lhes um emissor de rádio e todo o equipamento necessário para se aguentarem uns dias, enquanto não as encontrarem e as socorrerem.

- E se somos detectados? Como é que poderemos responder às perguntas que nos fizerem, perseguir-nos-ão e não teremos possibilidade alguma de nos safarmos. É muito arriscado, Sir...

- Escute agora e talvez venha a sentir-se com um humor mais temerário...

Nicholson carregou num botão e imediatamente ficou em contacto com o posto de transmissões.

- Estabeleça ligação com a base. O almirante, com toda a urgência. Eu espero.

- Aye, aye, Sir.

Um instante depois uma campainha em surdina fez-se ouvir. O comandante atendeu e ligou o microfone. Também desta vez a comunicação foi tão clara como se o almirante Adam se encontrasse na sala ao lado.

- Aqui Norfolk AI.

- Aqui o comandante Nicholson. Sir, tenho de lhe participar...

- Essa introdução faz-me pressagiar aborrecidas notícias, comandante - cortou o almirante. - Que se passou com as náufragas?

- Estão a bordo, Sir.

Silêncio ameaçador.

- Salvámos-lhes as vidas - acrescentou Nicholson. - Eu não podia agir de outra maneira.

- E agora, que conduta tem intenção de adoptar? Por que me chama? Eu penso ter esclarecido claramente qual era a minha posição: nada de mulheres a bordo! Calculo que, neste momento, já tenha compreendido as consequências da sua atitude.

- Perfeitamente, Sir! Desejo apenas apresentar um recurso: seria possível anunciar que um submarino vai vir à superfície amanhã à noite nas cercanias da ilha de Andõy?

- Excluído!

Collins empalideceu e não pôde reter um assobio de raiva. Nicholson fez-lhe sinal para manter o seu sangue-frio e observar o silêncio mais rigoroso a fim de não trair a sua presença. Ele, sabendo que nada ganharia em espicaçar o almirante, continuou numa placidez desconcertante.

- Sir - explicou ele -, eu não posso ter estas raparigas a bordo durante toda a viagem.

- Isso é evidente. Mas o problema é seu, é você quem tem de encontrar uma solução razoável.

- Seja como for não posso lançá-las borda fora! Sou um oficial da Marinha, não um assassino!

- Prestará contas dessa frase em tribunal militar, comandante! O seu único dever é respeitar os planos e os horários, deve ser esse o seu único cuidado! Bem entendido, sem essas raparigas. Estou a ser claro?

- Está, Sir.

Nicholson levantou os olhos para Collins que mordia nervosamente o lábio inferior.

- Dou-lhe mais dez horas para se livrar desse fardo. Lembro-lhe que lhe resta sempre uma possibilidade: lançar essas raparigas ao mar na sua jangada salva-vidas. Eu darei então instruções para que elas sejam socorridas por um navio britânico ou norueguês. Como se têm portado elas?

- Tão bem quanto possível, tendo em conta a situação, Sir.

- Que Blandy se apresse e mostre o que sabe fazer. Dez horas, não mais. Passado este prazo, espero o seu relatório. Terminado!

- Entendido, Sir.

Nicholson soltou um longo suspiro, recostou-se e desabotoou os dois primeiros botões do casaco.

- Então, Collins? Mais protestos? Esta demonstração não lhe pareceu suficientemente clara? Agora só tem de espalhar a notícia. Anuncie que vamos atirar as raparigas ao mar. Com a jangada salva-vidas, bem entendido, mas quem nos garante que o almirante Adam cumpre a sua palavra?

- Poderá ser, comandante? Ninguém é assim tão desumano.

- Ele, não. Conheço-o o suficiente para ter a certeza disso. Mas não é o único a estar em causa. Ora, para alguns, a vida de cinco garotas, que sabem mais do que deviam, provavelmente não terá grande peso na balança.

- Mas que sabem elas? Nada!

- Conhecem a existência deste submarino e isso já é demasiado.

Nicholson inclinou-se para a carta. Então, Collins considerou que devia precisar:

- Eu não posso garantir que escapemos aos radares, Sir.

- Quem fala de garantias? No entanto, tem de se fazer a tentativa, custe o que custar!

- É correr um grande risco!

Nicholson enfureceu-se:

- Então, fale que eu ouço! Encontre outra solução!

- Seria mais prudente ficar com as náufragas a bordo. Eu não vejo em que possam elas ser obstáculo ao cumprimento da nossa missão.

Nicholson deu na mesa um murro enraivecido. - Isso está fora de questão!

No navio, o ambiente estava tenso, carregado de electricidade. Sentia-se que bastava uma faísca para lançar fogo à pólvora e provocar a temida explosão.

Belucci foi à enfermaria com o pretexto de sofrer de caimbras de estômago. O enfermeiro-chefe, no entanto, que não se caracterizava particularmente pela sua candura, não caiu em armadilha tão grosseira, e Belucci voltou a ver-se cá fora antes de ter tido tempo de protestar. Neste preciso momento chegava Bill Slingman, com um dedo envolvido num lenço manchado de sangue.

- Esquece - aconselhou Belucci -, eles não caem com esse género de marosca. E tenho a impressão de que as moças estão fechadas a sete chaves. Melhor protegidas que num cofre-forte! Só deixam aproximar-se os oficiais. Evidentemente! Eles é que têm tudo! Sempre a mesma história!

Existem frases mais profundas que slogans subversivos. Mesmo lançadas com inocência e desenvoltura, infalivelmente atingem o seu objectivo. São flechas envenenadas. Tal como estas simples palavras: “Os oficiais é que apanham tudo!”

Belucci, o pequeno Belucci, de olhos em brasa, exprimira-se com toda a ingenuidade. Estava bem longe de imaginar a repercussão que as suas palavras iam ter por todos os compartimentos do submersível. Não sabia que acabava de desencadear uma reacção em cadeia. Não tardou em se ouvir por toda a parte o mesmo protesto: “Os oficiais, sempre os oficiais!” Os marinheiros estão ali para labutar, são eles a fazer o trabalho sujo. E durante esse tempo os oficiais gozam à tripa-forra, empanturram-se!

No posto de manobra dos foguetões, Jimmy Porter, punhos cerrados, pavoneava-se no meio dos seus amigos reunidos à sua volta.

Dustin Hollyday trazia notícias frescas que obtinha de McLaren:

- Collins recusou prosseguir a rota. O Velho tem a intenção de se livrar das raparigas. Livrar-se delas estupidamente como de uma coisa a atravancar...

- Nada mais simples!

Porter bateu com os punhos maciços.

- Num barco toda a gente é solidária, dependemos todos uns dos outros. Logo, bastavam vinte ou trinta deserções para quebrar a cadeia...

- Isso é de quem não tem juízo - protestou Slingman.

- Tu não estás a ver que eles seriam capazes de te lixar? E estariam no seu direito.

- Se nos pusermos de acordo, se formos solidários...

- Estaremos bem arranjados! - objectou Tamaroo sem perder a fleuma habitual. - Cinco infelizes garotas para trezentos homens, já viram o que é!

- Ele tem razão - aprovou Belucci. - Não são putas e nós não estamos num bordel ambulante.

- Isso não impede que não virem a cara aos oficiais! - clamou Porter.

Belucci levantou as mãos em sinal de protesto.

- Eu não disse isso! Constatei apenas que nem sequer podemos aproximar-nos.

- Esperemos, rapazes - concluiu Jim Porter, e soltou uma gargalhada ameaçadora.

Nenhum dos outros lhe fez eco. Com toda a evidência o humor pendia mais para a melancolia. Em perspectiva, ainda mais de duzentos e vinte dias de viagem. Duzentos e vinte dias fechados num caixão de aço de que ninguém devia sequer suspeitar a existência.

O Poseidon I navegava agora a duzentos pés e fazia rumo para norte de acordo com o plano inicial.

- Afinal, acabou por se render às razões de Collins? - constatou o doutor Blandy quando foi ao encontro de Nicholson instalado na torre, com a evidente intenção de se isolar.

O comandante, à sua chegada, nem sequer voltou a cabeça.

- Voltamos a tratar-nos por você, Paul?

- Perdão... Eu julgava-te mais obstinado, Jack.

- Collins convenceu-me. Admitir a verdade, que eu saiba, não é uma fraqueza.

- Tens, portanto, a intenção de manter as raparigas a bordo? Mesmo agora que não tardaremos a mergulhar por baixo dos gelos?

- Como se não o soubesse desde o momento em que tomaste a decisão de as meter a bordo! Eu estava disposto a...

- Eu sei, Jack, eu sei. Sou o responsável por todos estes aborrecimentos. Mas também sei que nunca tu as deixarias afogarem-se. Só havia uma solução e tinha realmente de ser admitida. Reconheço que nos preparamos para momentos penosos. O futuro não é sorridente, concedo. Infernal mesmo.

Blandy sentou-se ao lado de Nicholson, que parecia ter-se refugiado num mutismo obstinado.

- Se visses a ruivazinha a fazer-me uma cena de sedução! Eu já não sabia como sair dali. Ameacei-a de lhe ministrar um anestésico. Em compensação, a loura alta parecia ter a cabeça bem assente nos ombros. É a única do grupo que tem cinco réis de juízo.

Nicholson continuou em silêncio, mas sentiu um arrepio ao mesmo tempo agradável e alarmante a percorrer-lhe a nuca. Chama-se Monika Herrmann, pensou ele. Provavelmente de origem alemã. Que faz ela neste círculo, com aquelas raparigas que só pensam em correr mundo para experimentar homens de todas as nacionalidades? O lugar dela não é neste grupo. Aliás, foi a única a esconder a sua nudez. Não é por acaso...

- Que explicações contas tu dar ao almirante? - inquiriu Blandy, desejoso acima de tudo de quebrar o silêncio.

- Missão cumprida. Atirei as raparigas ao mar na sua jangada salva-vidas.

-„ª Estás a arriscar a tua carreira, Jack. Mas calculo que estejas perfeitamente consciente disso... Por outras palavras...as raparigas vão fazer toda a viagem na nossa companhia?

- Vão.

- Com trezentos rapazes desenfreados sempre a rondarem à volta delas?

- Para isso conto contigo. Quero que me dês a tua palavra em como essas raparigas em caso algum sairão da enfermaria!

Blandy deu um pulo na cadeira.

- Durante oito meses? É impossível, inconcebível!

- Desenrasca-te como quiseres, mas considera-as como prisioneiras.

- Mesmo na prisão teriam vida menos dura.

- Desenrasca-te - repetiu Nicholson. - E lembra-te do que disseste: Nós somos fantasmas. A lista dos membros da tripulação não existe em parte alguma e isto não é mais que um exemplo. Consequentemente, também elas podem ser consideradas como fantasmas. E acabou-se!

- Como oficiais poderíamos pelo menos tratá-las como nossas hóspedes.

Nicholson sacudiu lentamente a cabeça.

- Não. Aqui o essencial é a camaradagem, a confiança mútua, a solidariedade. Isto é válido para todos os escalões.

- Eu diria que estou a ouvir o almirante! Jack, raios, és um homem, não és um autómato!

Nicholson levantou-se, as costas um pouco curvadas como se estivesse a proteger-se instintivamente de uma corrente de ar gelado.

- Nada de pior, nada de mais perigoso que uma mulher sozinha no meio de um grupo de homens. Cúmulo da felicidade: caem-nos cinco nos braços.

Blandy sorriu, malicioso.

- Essa é a cantiga do solteirão empedernido.

- Talvez. Mas tu, tu farias bem em não esquecer que deixaste uma mulher e três filhos.

Com estas palavras, Nicholson retirou-se e foi para o posto central de comando. Tendo chamado, sucessivamente, os seus principais oficiais e tendo-se assegurado de que reinava a ordem, viu as horas.

Lá em cima, àquela hora, começava a cair a noite. Aqui os criados, de casaco branco, preparavam-se para pôr a mesa no refeitório dos oficiais, colocando em frente do guardanapo de cada conviva uma ementa impressa de fresco. Um hotel de luxo não ofereceria mais conforto. Na verdade, por que razão não criar hotéis submarinos? Seria muitíssimo chique.

Creme de legumes - Frango no churrasco com acompanhamento de batatas e couves-de-bruxelas – Gratinado de batatas - Leite-creme... Assim se compunha a ementa.

- Bernie, assuma o comando - disse Nicholson a Cornell. - E apresente as minhas desculpas aos outros oficiais.

- Não vai jantar, Sir?

- Não. Boa noite.

- Boa noite, Sir.

Cornell acompanhou com os olhos o comandante sem poder impedir-se de admirar o seu garbo. Depois, premiu todos os botões do interfone e anunciou aos responsáveis dos diversos postos que o comandante lhe delegara os seus poderes.

- Não vai aparecer no jantar? - inquiriu imediatamente Collins.

- Não!

- Não me espanta nada. Tem uma carga nos ombros... Finalmente, passamos ao largo da Noruega?

- Passamos.

- Então, as raparigas ficam?

- Ficam!

- Louvado seja Deus!

- O que eu pergunto para mim é se está realmente bom.

- Pois na minha opinião é que nos saiu a sorte grande! Até já, Bernie!

Durante a noite, Nicholson foi acordado por Blandy que o abanou tão vigorosamente que por duas vezes bateu com a cabeça no tabique.

- És doido - resmungou Nicholson.

- Desculpa, mas tens o sono pesado. Até pensei que tinhas entrado em hibernação. Levanta-te e vem comigo. Depressa!

Nicholson saltou. Escutou com atenção... Os motores ronronavam suavemente, nenhum som alarmante... Interrogou Blandy com o olhar.

- Para dizer a verdade... Enfim, pensei que mais valia prevenir-te, pois de qualquer maneira virias a saber... Aí vai... As raparigas escaparam da enfermaria.

- O quê?

Nicholson deitou a mão ao casaco e vestiu-se num abrir e fechar de olhos, fuzilando Blandy com o olhar.

- Eu pensava que tinhas assumido a responsabilidade.

- Eu sei, Jack, eu sei. Mas também tenho de dormir de vez em quando. De qualquer modo, não posso deitar-me atravessado na porta e ficar de guarda como um cão. Tinha pedido a um enfermeiro, White, que ficasse de sentinela na sala de espera... Anda, prefiro que sejas tu mesmo a ver. Para já não te posso dizer mais nada.

Um instante depois entravam na antecâmara da enfermaria onde White armara uma cama.

O enfermeiro estava estendido no chão, pés e mãos atados, completamente amarrado e bem amordaçado. Fixou no comandante os olhos assustados, pôs-se a gemer esforçando-se convulsivamente por se libertar dos laços. Trabalho perdido.

Nicholson inclinou-se e arrancou-lhe a mordaça.

- Indecência - praguejou White em voz rouca.

- Quem foi?

- Ai se eu soubesse, Sir...

Blandy, inclinando-se por sua vez para o enfermeiro, libertou-lhe os artelhos e os  pulsos. Então, White levantou-se e sentou-se na cama, esgotado pelos seus baldados esforços.

- Eu estava deitado e preparava-me para ler um romance policial - explicou ele. - Não sei quem me deu pancada tão grande na cabeça: um buraco negro. O que é estranho é que não vi entrar ninguém. Para mim pergunto se não teria sido uma das raparigas que me bateu.

- A porta da enfermaria estava fechada – retorquiu Blandy. - Eu próprio verifiquei... Diga-me a verdade, White... você entrou por esta ou por aquela razão... não foi?

- Foi.

- Porquê?

- Telefone... Miss Hankow chamou-me dizendo que não se sentia bem. Então, eu levei-lhe um calmante.

- E ao sair esqueceu-se de fechar a porta à chave?

- É... é muito possível... E acordei atado como um salpicão.

- Bravo! Se essas raparigas sabem navegar, também devem saber dar nós.

Nicholson lançou ao enfermeiro um olhar carregado de desprezo.

- Anda! - disse ele a Blandy.

- Onde?

- Adivinha!

Afastando-se com passo resoluto, Nicholson entrou no refeitório dos oficiais, levantou o telefone e carregou no botão onde se lia CENTRAL.

- Aqui fala o comandante. Qual é o oficial de serviço neste momento?

- O aspirante Herbert Duff - respondeu uma voz juvenil.

- Onde está Cornell?

- Substituí-o, Sir.

- Porque não o tenente Curtis?

- Ele pediu-me para fazer o turno no lugar dele, Sir.

- Obrigado.

Nicholson desligou. Com um gesto quase paternal, Blandy pôs-lhe a mão no braço.

- Devias ir deitar-te, Jack - disse em tom cheio de solicitude. - De momento não há muito que se possa fazer.

- Eu quero saber exactamente com o que posso contar. Quero saber do que os meus oficiais são capazes. A elite da Marinha dos Estados Unidos! Todos escolhidos a dedo! Não posso contentar-me com suspeitas, tenho de ter certezas!

- Não te metas nisso, Jack - insistiu Blandy.

Mas Nicholson repeliu o médico e afastou-se. Parou em frente da porta de Bernie Cornell e pôs a mão na maçaneta. Com um empurrão brusco, abriu. O camarote estava iluminado apenas com a fraca luz de um candeeiro de mesa-de-cabeceira. No entanto, a cena não oferecia equívoco algum. Muito aconchegada a Bernie, Joan Hankow- dormia com um sorriso feliz. Parecia ser evidente que, esgotados pelos seus jogos amorosos, os dois parceiros tinham ao mesmo tempo mergulhado no sono.

Cornell, instintivamente, deve ter sentido o olhar de Nicholson, porque abriu os olhos e logo voltou a cabeça para o comandante. Ao mesmo tempo libertou prudentemente a mão direita enfiada pelos compridos cabelos escuros de Joan.

- Apresente-se amanhã de manhã às oito horas. E que essa rapariga volte imediatamente para a enfermaria.

- Aye, aye, Sir... - balbuciou Cornell, cuja cor passara a ser carmesim.

Nicholson saiu batendo com a porta. Só na coxia esfregou os olhos sentindo uma estranha e dolorosa sensação de queimadura. O doutor Blandy foi ao seu encontro.

- Anda daí. Isto não te chega?

- Não tenho o hábito de deixar as coisas a meio.

A porta seguinte também não estava fechada. Curtis, esse, não dormia. Preparava-se para fumar um cigarro quando a porta se abriu com violência. Lill Petersen estava sentada perto dele, nua, cabelo emaranhado, comendo um chocolate. De modo algum pareceu incomodada, dirigiu mesmo um sorriso a Nicholson.

Em contrapartida, Curtis levantou-se num pulo e, não sabendo bem que atitude tomar, maquinalmente fez a continência. Por ser ridículo, o espectáculo não era por certo do gosto de Nicholson.

- Sir, eu...

- Você vai apresentar-se às oito horas! A rapariga, fora! Vá, em frente!

- Aye, aye, Sir!

Curtis ficou petrificado, enquanto a sua companheira cacarejava e lambia voluptuosamente os dedos enlambuzados de chocolate. Nicholson lançou-lhe um olhar tão eloquente que, não podendo deixar de lhe entender o sentido, cessou imediatamente de rir.

- Eu não sou uma puta, comandante.

- E este navio não é um bordel!

Com estas palavras Nicholson saiu batendo com a porta. Blandy tentou retê-lo, porém, ele soltou-se com violência.

- Eu sei o que pensas, Paul. No entanto, não posso ter em conta esse género de argumento. Mesmo que eles não se tivessem aproximado de uma mulher durante dois ou três anos, eu exigiria dos meus oficiais uma conduta exemplar.

Exemplar... repetiu Nicholson para si. Será que eu próprio acredito nisso? É fácil deliciarmo-nos com belas palavras! Mas quando penso no que sinto só ao lembrar-me daquela rapariga, Monika Herrmann... Por que razão o dissimulo? Foi a pensar nela que adormeci, e é ela, mais ninguém, que eu neste mesmo momento procuro, receando vê-la envolvida pelos braços de outro... Mas que farei se, ao abrir uma porta, a vir estendida numa tarimba? Dar o exemplo !

Nicholson continuou a sua ronda, lançando um olhar a cada cabina e fechando a porta antes que os homens tivessem tempo de reagir. Só McLaren não acordou.

Collins! A porta de Collins estava fechada, o que pelo regulamento era formalmente proibido. Nicholson sacudiu a maçaneta e depois tamborilou no batente.

- Quem está aí? - perguntou Collins ao cabo de um momento.

- O comandante.

- Mas eu não estou de serviço, Sir.

- Abra, Collins! Não sabe que é proibido fechar-se?

Não houve resposta.

- Abra imediatamente, senão arrombo a porta.

- Ela está lá, pensou Nicholson. Com Frank Collins.ƒÞƒÞ

- Abra, Collins, é uma ordem! - gritou ele.

Collins obedeceu. Como único vestuário tinha uns calções de banho. O bafo tresandava a uísqui. Como um louco furioso, Nicholson empurrou-o e precipitou-se para o interior do camarote. Dorette Palandré estava deitada em pose lânguida, um copo de uísqui apertado entre os joelhos.

- Devia frequentar aulas de cortesia, comandante -- disse ela indolentemente. - No entanto, eu tinha-lhe explicado aquilo de que precisava: de sabão, de um bâton e de um homem. Frank é um rapaz encantador...

Nicholson voltou-se para Collins que esperava, encostado ao tabique, muito confuso.

- Não pude fazer nada, Sir - tentou ele explicar. – De repente encontrei-a na minha cama. Eu não sou de pau...

- Relatório amanhã de manhã pelas oito horas! A rapariga fora... e depressa!

Collins nem teve tempo de responder. O comandante já tinha saído batendo a porta com força. Onde está ela ?, repetiu Nicholson para consigo. Onde está ela? Com quem? Só restava um camarote no compartimento reservado aos oficiais. Ora faltavam ainda duas raparigas: a ruiva Evelyn Darring e ela... ela!

Pensou nas cabinas dos marinheiros com tarimbas sobrepostas. Ela, passando de um para outro...

Sentindo um mal-estar... teve de se apoiar à divisória. Logo o doutor Blandy se aproximou.

- Que há, Jack?

Nicholson abanou a cabeça, extenuado.

- Nada. Este choque foi muito penoso para mim. Acho que facilmente o compreendes. Vindo dos meus oficiais...

- Deixando a frase em suspenso, levantou a cabeça e, em tom resoluto: - Vamos lá abaixo, ao posto da tripulação.

A mesma cena se passou. Uma olhadela aos camarotes, justamente o tempo de inspeccionar os beliches, depois a porta fechava-se antes de os homens terem tempo de compreender o que se passava. Foi assim de porta em porta. Para Nicholson, um verdadeiro calvário...

Por fim, na casa das turbinas, onde de resto muito raramente se tinha oportunidade de entrar, descobriram Belucci deitado numa manta estendida no soalho e tendo estreitamente enlaçada uma rapariga de cabeleira chamejante: Evelyn Darring. Nicholson aproximou-se de Belucci e deu-lhe um pontapé nas costelas. O jovem siciliano abriu os olhos e, ao reconhecer o comandante, quis levantar-se. Mas aquilo ficou por uma tentativa infeliz: a sua companheira mais apertou o seu abraço.

- Perdão, Sir...

- Relatório amanhã de manhã às oito horas! E essa rapariga que volte imediatamente para o sítio de onde veio.

- Aye, aye, Sir!

Maquinalmente e não obstante a sua posição, Belucci fez a continência. Nicholson apressou-se a sair, divertido apesar de tudo com aquele espectáculo incongruente.

Onde está Monika? Com quem? Teria conseguido escapar à nossa inspecção? Então? Tenho de recomeçar tudo de novo?

- Segunda torre! - anunciou ele.

Blandy estacou.

- Não há mais onde procurar, já visitámos tudo.

- Eu ainda sei contar até cinco. Falta uma.

- A desportista do grupo? Não te disse? Foi a única que ficou, com muito juízo, deitadinha na sua cama.

Ainda desta vez Nicholson teve a impressão de ter recebido um choque, mas um choque benfazejo. Teve dificuldade em não ceder à vertigem, em calar a sua alegria. O casaco pareceu-lhe subitamente muito apertado. Ganhava vida.

- Ela está na enfermaria? - perguntou ele em voz alterada.

- Está. Desculpa, julgava ter-te dito.

- Quero ser eu mesmo a constatá-lo!

Voltaram à enfermaria em grandes passadas, depois atravessaram a sala de espera sem sequer lançarem um olhar a White aterrorizado.

- Nunca bate antes de entrar? - perguntou ela.

Nicholson fechou os punhos. Poderia beijá-la, cair-lhe aos pés para lhe agradecer...Porque não foi à caça como as outras?

Se se exprimia com grosseria era para não trair os seus  verdadeiros sentimentos, toda a ternura que sentia.

- Acha-me capaz disso, comandante? - disse ela deixando cair o livro aos pés da cama.

- Que eu saiba, são suas amigas... faz parte do grupo.

- Foi pena ter deixado cair o livro... pois tinha-lho atirado à cara.

Espreguiçou-se indolentemente diante dos olhos de Nicholson que não pôde deixar de imaginar o seu corpo nu debaixo do lençol.

Dar o exemplo, Jack! Não tens o direito de ceder, tens   de redobrar de severidade para contigo mesmo. Tens de   considerar esta rapariga como um ser assexuado!:

- Está ao corrente das atitudes das suas encantadoras   amigas? Está consciente das consequências da sua conduta?

- Eu sei. Mas não consegui aguentá-las. Mal cai a noite, são como gatas...

- Você não?

- Como pode verificar, vou deitar-me na companhia de Hemingway. Será proibido?

Nicholson lançou uma olhadela ao livro. Depois, mudando bruscamente de tom pediu:

- Quer ajudar-me, Monika?

- De que maneira, comandante? - perguntou ela visivelmente surpreendida e ao mesmo tempo interessada pelo rumo que tomava a conversa.

- A indisciplina que actualmente reina pode levar-nos ao desastre. Tente fazer com que as suas amigas compreendam isto.

- Elas riam-se disso à gargalhada. A única coisa que as interessa é a possibilidade de novas experiências sexuais.

Quanto ao resto não se sentem abrangidas e posso garantir-lhe que todas as suas histórias de navio fantasma, não as impressionam absolutamente nada. Submarino atómico, ultra-secreto ou não, isso deixa-as soberanamente indiferentes. Mas trezentos homens, aí sim é que está o problema! Porque elas têm intenção de o aproveitar bem.

- Então isto vai tornar-se um inferno. Serei obrigado a desembarcá-las.

Blandy abanou a cabeça.

- Demasiado tarde, Jack. Nesse caso, verias uma verdadeira liga levantar-se contra ti.

- Estou desolada, comandante - disse Monika Herrmann. - Sinceramente.

Nicholson inclinou-se para apanhar o livro e entregou-o a Monika. Então, por um instante, os seus olhares cruzaram-se, sentiram-se muito próximos um do outro, como se tivesse passado uma corrente.

- Oito meses a bordo, imagina o que isto representa? -- disse Nicholson em tom indiferente.

- Talvez possa ser muito divertido - respondeu ela esforçando-se por sorrir.

- Não estou assim tão certo

Com estas palavras, Nicholson retirou-se. Oito meses junto dela submetido à tortura da hipocrisia. Salvar a face? Dar o exemplo?

O que é um exemplo?

Um triste palhaço, tratando-se do comandante Jack Nicholson...

No dia seguinte, pelas oito horas, Cornell, Curtis e Collins estavam reunidos no gabinete do comandante. Só faltava Belucci. Contudo, ele já não estava nos braços da sua companheira da noite, uma vez que, segundo dizia o doutor Blandy, todas as raparigas tinham voltado à enfermaria.

Silenciosos, incomodados por certo, mas visivelmente dispostos a desencadear as hostilidades, os oficiais esperavam de pé diante da secretária. Nicholson, por várias vezes, olhou para o relógio. Por fim, pelas oito e vinte, ordenou que fossem à procura de Belucci e o intimassem a apresentar-se imediatamente. Eram oito e meia quando o tenente Surakki apareceu, assustado, lívido. Engoliu saliva com dificuldade, tendo um nó na garganta. Quando conseguiu falar, foi para anunciar:

- Encontrámos Belucci, Sir. No armazém dois. Com uma faca cravada entre as omoplatas.

Nicholson não manifestou a menor emoção. Simplesmente, o rosto, mais impenetrável do que era habitual, pareceu petrificar-se. Em contrapartida, os oficiais acusaram ostensivamente o choque. Esquecido das conveniências, Surakki enxugou com as costas da mão a testa a escorrer suor.

Blandy foi o primeiro a romper o silêncio.

- A tripulação estará já ao corrente deste... acidente?

- Não sei. Um, pelo menos, está ao corrente, é o assassino...

- Elementar, meu caro! - ironizou Blandy.

Encarando um a um cada oficial, abanou pensativamente a cabeça e declarou:

- De futuro aconselho-os a nunca mais se deitarem sem uma arma ao alcance da mão. E mesmo que estejam em galante companhia, tenham o cuidado de conservarem sempre uma mão livre. Esta precaução pode salvar-lhes a vida. No ponto em que estamos...

- Sir - começou Cornell, com voz queixosa -, eu...

- Silêncio! - ordenou Nicholson levantando a mão. - Não vos peço explicações. Fiquem com as vossas mentiras. Mas digo-lhes que o problema não está resolvido,

que dele voltaremos a falar. Quem vigia a enfermaria, doutor?

- Bill Slingman, Sir!

- Não podia ter feito escolha mais judiciosa.

- Espero as suas sugestões, Sir.

Nicholson não respondeu. Pousando uma chave em cima da secretária, o tenente Surakki explicou:

- Pensei que era melhor fechar, Sir...

O doutor Blandy inclinou-se, apoderou-se da chave e negligentemente fê-la saltar na palma da mão. Reflectiu um instante. Depois, dirigindo-se a Nicholson:

- Acho que o melhor é ir lá eu sozinho. Para evitar atrair a atenção. - Em seguida voltou-se para Surakki: - Apesar de tudo talvez não esteja morto...

- Com uma faca espetada entre as omoplatas?

- Eu já vou ver.

Logo que o médico saiu da sala, Nicholson viu as horas. Mais tarde tomaria nota da hora no livro de bordo. Belucci fora encontrado assassinado por volta das oito e trinta... Nicholson estremeceu quando a porta se abriu e Blandy voltou a entrar, a escorrer suor, sem fôlego e o rosto congestionado. Colocou em cima da secretária a chave do armazém.

- Redondamente morto. Bom trabalho, se me é permitido falar assim. Trabalho de entendido, acertou em cheio no coração... Aparentemente está tudo calmo, os homens estão nos seus postos. Tentemos proceder como se nada tivesse acontecido...

Nicholson encolheu os ombros. Para que servia dissimular? Fora cometido um crime e o assassino devia saber que não tinha a menor oportunidade de escapar. Não passaria pelas malhas da rede.

- Vamos embora.  - Nicholson levantou-se, mas antes de sair, ligou para a casa das máquinas: - McLaren!

- Sim, Sir.

- Pare as máquinas!

- Mas por que razão, Sir? - perguntou McLaren.

- Uma faca barra-nos o caminho.

- Uma quê, Sir?

- Mais tarde...

Nicholson, Blandy e Surakki atravessaram o navio e alcançaram o armazém dois, enquanto os outros oficiais eram convidados a esperar no gabinete do comandante. Com toda a evidência a notícia do drama começara já a espalhar-se. Em toda a parte reinava um silêncio opressivo.

Surakki teve de se recompor várias vezes antes de abrir a porta do armazém, tanto a mão lhe tremia. Por fim, conseguiu meter a chave na fechadura. A porta abriu-se sem barulho. Acendeu a luz... As lâmpadas fluorescentes davam uma iluminação implacável. Aquele espaço, cujas divisórias estavam revestidas de prateleiras, encerrava também armários metálicos. Era ali que eram armazenadas todas as peças sobressalentes de que se podia ter necessidade para efectuar uma reparação. O comandante lançou um olhar à sua volta. Desde a cerimónia de inspecção em Norfolk, era a primeira vez que entrava no armazém. A vigilância e administração estavam confiadas ao quartel-mestre Wilcox, um homem seguro, pacífico, antigo combatente do Vietname, pai de dois filhos, coleccionador de selos nos momentos de lazer. Nicholson tinha proibido que o acordassem.

No entanto, encontraram-no sentado na cama, praguejando e vociferando.

- Uma porcaria assim... Cadela de vida...

Sentado na frente dele, Jimmy Porter fazia-lhe eco sem deixar de beber a sua quinta Coca-Cola:

- Não se poderia fazer isto noutro lado, pergunto-te eu?

O comandante fechou a porta e continuou a sua inspecção. Em vão. Nada viu.

- Onde está ele, tenente?

- Ali.

Surakki indicou um local entre as secções sete e oito. Depois, numa voz sem entoação:

- Estava ali, Sir! Posso jurar. Vi-o como o estou a ver,  de barriga para baixo, a faca espetada entre as omoplatas.

- É sem dúvida possível?

- Com esta luz, Sir!

Blandy aproximou-se do lugar designado, ajoelhou e  apalpou o soalho com a palma da mão.

- Efectivamente - constatou ele.

- Talvez ainda esteja quente - escarneceu Nicholson.

- Não, frio e húmido. Alguém deve ter lavado as manchas de sangue com uma esponja húmida -. Sem sair da sua posição levantou os olhos para Nicholson: - Haveria matéria suficiente para encher uma crónica: Desaparecimento de um cadáver a bordo de um submarino!

- Loucura! Nada pode desaparecer, e com mais forte   razão um cadáver. Não se pode esconder absolutamente nada, e nada pode escapar a uma busca atenta. Basta inspeccionar tudo, até nos recantos mais escondidos, centímetro quadrado a centímetro quadrado. Um homem não pode desaparecer como por encanto. Aqui está com certeza o erro  do culpado.

Saíram do armazém e viram chegar McLaren que exclamou: - Essas mulherzinhas! Fazem um banzé. Isto já não é uma enfermaria, é um hospital de malucos!

Blandy teve um sorriso amargo.

- Eu sei. Foi por isso que as coloquei sob a vigilância de Bill Slingman. Ele intimidaria um exército de orangotangos.

McLaren teve uma breve hesitação antes de fazer a pergunta que o atormentava:

- É verdade?

- O quê? - perguntou Nicholson.

- O que aconteceu a Belucci.

- Quem lhe disse?

- Toda a gente fala nisso, Sir.

Nicholson não respondeu. Quando se afastou, McLaren reteve o doutor Blandy pelo braço.

- Dir-se-ia que há ranger de dentes, não é?

- Espanta-se? Depois de um crime a bordo de um submarino atómico!

- Não é razão para fazer com que toda a gente sofra as consequências. Sem contar que há pelo menos uma consolação: a escolha entre trezentos suspeitos. Temos a possibilidade de passar uns bons momentos! Um criminalista esfregaria as mãos de contente. Que pechincha!

- Não se alegre antes de tempo. Eu aposto que todos esses rapazes ao serem interrogados vão fazer de surdos-mudos.

- O cadáver desapareceu, o assassino está entre nós, toda a gente a bordo está informada e durante esse tempo os meus oficiais transformam este navio num bordel. É esta a situação - concluiu Nicholson.

Naquele momento estava novamente no seu gabinete. Cornell, Collins e Curtis esperavam de pé na frente dele, imóveis e direitos como espetos.

Surakki fora ter com Duff ao posto de transmissões a fim de render o jovem aspirante, que ali estava há dez horas, em luta contra o sono e engolindo muitos cafés.

- Eu poderia considerar a conduta dos meus oficiais como um acto de amotinação - comentou Nicholson friamente. - Existem regulamentos muito rigorosos a este respeito. Só que no caso presente não os posso aplicar. Não posso prendê-los, nem desembarcá-los no próximo porto, nem interromper a viagem e entregá-los em Norfolk. Tudo isto é impossível por esta simples e excelente razão, a de sermos considerados como não existentes. Não tenho, portanto, outra opção. Só me resta esperar que os meus oficiais saibam manter alguma dignidade e tenham a coragem de restabelecer a ordem... De imediato o nosso dever impõe-nos reencontrar Belucci. Curtis, prepare uma patrulha de investigação e faça uma busca por todo o navio até aos recantos mais recônditos. Você, Cornell, encarrego-o de organizar os interrogatórios. Quero que todos os homens compareçam perante mim, uns após outros...

- Aye, aye, Sir...

Cornell fez a continência e saiu do gabinete, visivelmente aliviado por ter escapado à tempestade e de se safar com tão pouco. Curtis seguiu-o, evidentemente na mesma disposição de espírito. Collins ficou, portanto, sozinho com o comandante e o doutor Blandy.

Nicholson consultou a carta exposta aos seus olhos.

- Os interrogatórios vão durar uns dias. Não continuaremos a viagem antes de terem terminado. No entanto, serei obrigado a transmitir um relatório diário à base indicando a nossa posição. Por consequência encarrego-o de me comunicar de hora a hora as posições que, como é lógico, deveriam ser as nossas se normalmente tivéssemos prosseguido viagem. E quero também preveni-lo de que o menor erro lhe custará caro.

- Não haverá erros, Sir.

- Calculará igualmente com McLaren que potência será preciso desenvolver para recuperar o tempo perdido, por outras palavras, para alcançar o mais depressa possível a posição que normalmente deveria ser a nossa no final destes interrogatórios. Suponho que será preciso contar com cerca de três dias.

- Isso levanta um problema, Sir.

- Não duvido, mas considere que lhe dou assim oportunidade para se reabilitar. Só pode contar consigo, depois não venha lamentar-se. Obrigado.

Collins fez a continência e saiu. Blandy esperou que ele fechasse a porta, depois tirou uma garrafa de conhaque de um armário e serviu um copo a Nicholson.

- Como é que sabes que a tinha escondido aqui? - surpreendeu-se o comandante.

- Simples intuição. De repente disse para comigo: Se ele tem álcool, é aqui que deve ter posto a garrafa."

- Tens muitas vezes intuições desse género?

- Sim, com muita frequência. Por exemplo, tenho a clara intuição de que não acabámos de nos aborrecer, mas que isto não vai ser nada comparado com o que nos espera no fim da viagem, quando tivermos de prestar contas ao papá Adam. Estaremos todos na mesma encrenca, todos sem excepção!

- Chamas a isso uma intuição? Para mim, é um facto consumado.

- Intuição número dois: estás apaixonado como um estudante pela muito encantadora Monika. Se não te aguentasses, eu não pagaria muito pela sua virtude.

- Tu és ignóbil, Paul.

- Sou franco e nada mais. Bastava ver o teu alívio quando soubeste que ela tinha ficado com muito juizinho na enfermaria. Nesse estado isso já não se chama um suspiro mas uma corrente de ar!

- Não sejas estúpido.

- E tu, não venhas com histórias. Estás como os outros, sobreexcitado. Só que tu puseste o freio e continuas com ele apertado. Se não fosses o comandante e não estivéssemos no mar...

- Só que estamos no mar! A bordo do submarino atómico mais moderno e mais perigoso que alguma vez se construiu! Um erro, voluntário ou não, pode ter consequências catastróficas, desencadear mesmo uma Terceira Guerra Mundial. É, portanto, tanto mais inadmissível que a nossa sobrevivência dependa de cinco mulherzinhas ninfomaníacas... enfim, quatro. Compreendes. Portanto, Paul, é   preciso fazer tudo para preservar a nossa segurança. Temos   de sair disto sãos e salvos!

- E se o pânico se apodera da tripulação depois do que aconteceu a Belucci? Porque... infelizmente... eu temo que isto seja apenas o começo...

- Só restará uma solução: o afundamento.

O submarino estava imobilizado. Mas, segundo os relatórios que Collins transmitia à base de Norfolk, directamente ao almirante Adam, o submersível teria agora ultrapassado a Islândia e, em breve, atingiria os gelos.

A patrulha constituída por Curtis fazia busca ao navio há quatro horas sem ainda ter encontrado o cadáver de Belucci. Fazer desaparecer  um homem num caixão de aço como o Poseidon I entrava no domínio do prodígio. No entanto, o assassino parecia ter encontrado maneira de o conseguir. Bem se tinham explorado todos os esconderijos possíveis e imaginários. Mas nada. Só se tinha deitado a mão a garrafas de uísqui e de gim embarcadas clandestinamente.

- Só vejo uma solução - explicou Curtis. - Para o fazer desaparecer mais facilmente, o assassino cortou o cadáver aos pedaços. A partir de então nada de mais simples que deitá-los para as sanitas... à superfície. Mas nós estamos em mergulho. Por consequência, se utilizou esse método, o cadáver tem de estar nas cubas das sanitas. Para verificar isso seria preciso esvaziá-las e também seria preciso vir à superfície...Entretanto, dera-se um arranjo ao refeitório dos oficiais    que fazia agora as vezes de tribunal. Tinha-se tapado uma comprida mesa com a bandeira americana e nela se sentaram o comandante Nicholson, os oficiais de Marinha de  primeira classe Cornell e Hynes, os tenentes Surakki e Presslow. Os marinheiros apresentavam-se uns após outros. Para completar o quadro tivera-se o cuidado de pôr uma Bíblia no meio da mesa, e cada um tinha de prestar juramento.

Os marinheiros eram pouco loquazes e em nada contribuíam para o inquérito. É certo que todos eles conheciam Belucci... como não conhecer o jovem siciliano sempre pronto para entoar canções do seu país, um país que, aliás, nunca conhecera, pois seu avô emigrara para os Estados Unidos e toda a família o seguira. Belucci sabia criar um ambiente caloroso à sua volta e o seu desaparecimento deixava com certeza um grande vazio. Quem tinha anunciado a sua morte? Ninguém... a notícia correra como um rastilho de pólvora, sem que se soubesse de onde vinha. De boca em boca muito simplesmente. Ninguém estava em condições de afirmar: Foi Fulano o primeiro a contar.,ƒÞ

Foi no infeliz Tami Tamaroo que Nicholson despejou a bílis.

- Você prestou juramento sobre a Bíblia! Você jurou perante Deus dizer a verdade! O que sabe? Fale!

- Mas... eu nada tenho a dizer, Sir.

- Você é como os outros, pelo menos sabe a razão por que Belucci foi assassinado!

- Não, Sir.

Nicholson fitou Tamaroo, fixamente. Toda a gente a bordo sabia a razão por que Belucci fora morto com uma facada. Era o único entre os marinheiros que conseguira, como os oficiais, passar a noite com uma rapariga, na ocorrência a ruiva, a flamejante Evelyn Darring. Com que habilidade o conseguira? Mistério... Ninguém sabia. Salvo o assassino. Porque talvez Belucci tivesse sido mais rápido do que um rival que se julgasse com direitos sobre aquela mulher! Nesse caso, o autor do crime não se encontrava diante da mesa. Não. Ou estava ali sentado à mesa ou estava num dos postos-chave do navio, pois fazia parte dos oficiais!

- Não tem realmente nenhuma ideia, Tamaroo? - insistiu Nicholson com voz suavizada.- Nunca ouviu falar de uma... discussão a propósito de raparigas?

- Entre nós não, Sir. Aliás, não vejo a razão por que  brigaríamos. Compreendemos logo que estariam, atrevo-me a dizê-lo, reservadas para os oficiais.

- Obrigado. Pode ir...

Tami Tamaroo fez a continência, rodou nos tacões e apressou-se a sair do refeitório dos oficiais. Um silêncio pesado estabeleceu-se. Já não ousando fitarem-se, os oficiais tinham os olhos obstinadamente fixos na parede. Então, Nicholson, em voz alta, declarou:

- Ele tem razão. Quanto a oficiais, estou a lidar com um grupo de porcos.

- Sir!

Hynes saltou da cadeira. Uma profunda cicatriz barrava-lhe o rosto. De resto arvorava com orgulho esta recordação do Vietname do Norte.

- Que me seja permitido em nome de todos os oficiais...

- Sente-se, Hynes! - trovejou Nicholson.- Eu não tenho ilusões: se não estivesse de serviço teria feito como os outros !

- Vai prestar contas dessa frase em tribunal, comandante! Assim que regressarmos à base, o meu primeiro passo será...

- Se um dia voltarmos a Norfolk, Hynes! Como pode você ser tão estúpido! Este navio já não é um submarino da Marinha dos Estados Unidos, mas um inferno! Cornell...

- Você, que passou a noite com miss Hankow, está de acordo em largar essas raparigas na sua jangada salva-vidas?

- Não, Sir!

- Era de esperar!

Nicholson levantou-se e, em tom resignado:

- Nesse caso, continuemos a matar-nos uns aos outros. Realmente, todos vocês, tal como são, merecem-na. Empurrou a cadeira com tal força que ela tombou. Depois pegou no boné e saiu.

- Eu prossigo os interrogatórios - disse Bernie Cornell. - A presença das raparigas a bordo levanta certamente um problema mas discutiremos isso mais tarde. O que nos deve preocupar de imediato é que se esconde um assassino entre nós e que todos temos interesse em desmascarar o mais cedo possível se não quisermos ser a próxima vítima.

- Lamento aquele que ousar lançar os seus olhos para essa Evelyn Darring! - observou Hynes.

Por seu lado o doutor Blandy teve muito que fazer. Na sala da enfermaria onde elas estavam fechadas, as raparigas, obstinadas, batiam na porta, destruíam o mobiliário e ameaçavam que iam pôr tudo a ferro e fogo. O gigante negro Bill Slingman estava de guarda em frente da porta blindada, revólver no cinturão.

- Já vi mulherzinhas histéricas - disse ele acabrunhado. - No tempo em que era pugilista, havia sempre umas cenas danadas à volta do ringue. Mas se elas continuam a insultar-me e a tratar-me por preto imundo, sinto que acabarei por me enervar.

Os enfermeiros, esses, recusavam-se pura e simplesmente a entrar no gineceu; o chefe, que a tal se arriscara, tinha sido assaltado pela matilha e viu-se despojado das calças num abrir e fechar de olhos.

- Deixe-as sair, doutor! - aconselhou Blides. – Assim que os marinheiros fiquem bem saciados, elas voltarão aos eixos. Não há como Jimmy Porter...

- Cala a boca, safado! - respondeu severamente Blandy. - E abre!

- Eu aviso-o: aquelas cadelas vão-se atirar a si!

- Abre!

O enfermeiro-chefe obedeceu, enquanto Bill Slingman já empunhava o seu revólver. No mesmo instante, um objecto chocou contra o tabique no meio de gritos e risos agudos.

Blandy empurrou a porta. Teve de passar por cima de uma mesinha-de-cabeceira. Como Slingman tentasse dar uma olhadela, apanhou com a porta na cara e bateu em retirada praguejando.

- Elas estão nuas! - disse ele aos enfermeiros. - Palavra! Não tive tempo de ver grande coisa mas ainda apanhei um desses pares de mamas, que nem vos digo nada!

Na sala vizinha o silêncio voltara bruscamente. Blandy observou com serenidade o espectáculo. Apenas Monika Herrmann ficara muito sensatamente sentada na sua cama, a única aliás que ainda estava intacta. As outras tinham devastado as suas, desaparafusado as maçanetas, para delas se servirem como de projécteis, rasgaram os colchões... As mesinhas-de-cabeceira, apesar de metálicas, tinham sido espezinhadas, torcidas. Joan, Lill, Evelyn e Dorette agitavam-se no meio deste caos, suadas, faces em fogo. Contrariamente às afirmações de Bill Slingman, apenas Dorette estava nua.

As outras vestiam jeans e um camiseiro.

- Ora aqui está realmente a lógica feminina – constatou Blandy com uma evidente entoação de desprezo. – Onde vão dormir agora? Se imaginam que lhes vou substituir as camas estão redondamente enganadas. Enfim, podem deitar-se no chão, o problema não é meu.

- Vá, mostra lá como és! Pobre pateta!

Blandy voltou-se para Lill Petersen, autora destas amáveis propostas.

- Obrigado. Constato com prazer que o encanto e a graça são qualidades femininas bem partilhadas.

- Escutem lá este doutorzeco parvalhão! - disse Dorette Palandré. - Quando voltarmos e contarmos isto à família, é que vocês vão ver como elas mordem. Você e esse picha fria do comandante! Vocês fazem-me rir com essas fardas de Carnaval!

- Foi no colégio que aprendeu a exprimir-se com tanta delicadeza e requinte? - perguntou Blandy sem perder a sua natural fleuma. - O ensino da língua sem dúvida evoluiu muito. Graças a si vou enriquecer o meu vocabulário. Com estas palavras deu um formidável pontapé numa das mesinhas-de-cabeceira que viu na sua frente. O móvel voou pela sala e foi bater no tabique oposto. Involuntariamente as raparigas estremeceram.

- Espero que esta demonstração lhes baste. Quero que saibam que as paredes que as rodeiam são tabiques metálicos estanques e em aço reforçado. Portanto, podem continuar com o vosso rebuliço noite e dia... é pura perda de tempo.

Aliás, façam o que fizerem, nunca conseguirão arrombar a porta... E Bill Slingman está de guarda.

- Preto imundo! - praguejou Joan Hankow. – Ele brutalizou-me! Aquele maníaco! Nem sabe o que lhe vai suceder. Os meus irmãos hão-de matá-lo. Vão disparar contra ele como se fosse um coelho.

- Aquele preto, como lhe chama, é um dos mais valorosos soldados da Marinha dos Estados Unidos. Tem no seu activo uns sete ferimentos e sempre respondeu à chamada quando se tratou de proteger a paz no mundo. É graças a homens como ele que prostitutazitas da sua espécie podem tranquilamente percorrer o mundo à custa do papá e largar palavrões como putas de baixo estofo.

- Não se canse, doutor - interveio Monika Herrmann. - Elas não entendem.

- Por que está aquela a meter-se? - vociferou Evelyn Darring. - Primeiro, pergunto que vieste tu fazer connosco! Pode parecer incrível, doutor, mas não dormiu com um

único homem desde o começo da viagem. E não foi por faltarem parceiros. Machos soberbos, como tu, doutor, ombros largos, musculosos, maravilhas!

- O seu último amante, Paolo Belucci, não sobreviveu - anunciou Blandy em tom grave e pausado. – Foi assassinado. Vim aqui só para lho comunicar. E agora pode continuar com o barulho. Alivia!

Esta declaração teve pelo menos o efeito de restabelecer imediatamente o silêncio. Antes de fechar a porta, Blandy apenas ouviu Evelyn Darring soltar um grito, como se só então tivesse compreendido o significado das suas palavras.

O enfermeiro-chefe Blides apressou-se a fechá-la à chave atrás dele.

- Quem vai trazer-lhes as refeições, doutor? - inquietou-se ele. - Aqui já ninguém quer arriscar-se... Eu também não tenho vontade de me ver em fanicos.

- Tranquilize-se, Blides. É minha opinião que elas estão fora de combate por um bom bocado. A noite será calma...

Nicholson estava sozinho quando Blandy entrou no seu gabinete. Graças ao interfone acompanhava os interrogatórios conduzidos por Cornell no refeitório dos oficiais. Carregando numa tecla, Blandy cortou a ligação.

- Mentem todos - disse Nicholson a meia voz. - Todos, sem excepção! Os melhores homens da Marinha dos Estados Unidos.

- Não quererão talvez regular as contas entre eles?

- Achas?

- É possível.

Blandy sentou-se.

- Encontraram Belucci?

- Nem o menor vestígio. Curtis está desesperado. Agora a questão é esvaziar as cubas das sanitas...

- Acreditas que Belucci...

- Pode ter sido cortado aos pedaços, sim...

- Mas vejamos, Jack, é absurdo, o assassino não teria tido tempo. Não se passaram mais de vinte minutos entre o momento em que se descobriu o cadáver e a nossa chegada ao armazém. O criminoso aproveitou-os para fazer desaparecer o corpo e lavar o chão. De resto, esta precaução parece-me bastante reveladora... Acaba-se de se cometer um crime, mas mesmo assim continua-se a ser um perfeito marinheiro consciente dos seus deveres. Fica-se chocado pelas manchas de sangue, a sujidade é anormal, inadmissível, então lava-se.

- Eu acho que o culpado quis foi apagar os vestígios.

- Para quê? Reflecte, Jack! O cadáver já tinha sido descoberto!... Abandoná-lo então num charco de sangue ou limpar, vinha dar exactamente ao mesmo. Não... o rapaz que deu a facada foi tão bem industriado durante anos que o automatismo levou a melhor: era mais forte que ele. Lavou. E isto não é uma reacção de oficial... É o reflexo de um homem que tem o hábito de limpar todos os dias, que se descompõe ou descompõe os outros se alguma coisa não está limpa. Penso que não sou o primeiro a fazer este raciocínio e que a ideia está já a seguir o seu caminho... Não ficaria surpreendido se os homens começassem a espiarem-se uns aos outros, atentos aos maníacos da limpeza. O assassino cometeu um erro que o perderá. Ele sabe que fatalmente acabará por se trair.

- Não estou assim tão certo. Em todo o caso não conto muito com isso.

Nicholson recostou-se e, durante um momento, ficou silencioso, de olhos postos no tecto. Depois, em tom resoluto, declarou:

- Acabarei por descobrir a verdade. Encontrarei a brecha. Nada deixarei ao acaso.

- Que brecha? Será que tens uma ideia?

- Tenho... Na ocorrência trata-se do aspirante Herbert Duff.

- Ele não deixou a Central!

- Depois de os meus oficiais se terem retirado para os seus camarotes em galante companhia. Mas antes? Ele diz ter dormido até Curtis o vir acordar pedindo-lhe para trocar o seu turno com ele. Achas esta versão plausível? Eu não. Estou convencido de que Duff sabe muito mais do que nos quer dizer. Aqui tens em minha opinião o elo mais fraco da corrente. E conto fazer com que ceda.

- Quando?

- Já. Mandei que o acordassem. Deve estar a vestir-se. Nicholson levantou-se, pegou na garrafa de conhaque que continuava em cima da secretária e foi arrumá-la no seu esconderijo.

- Temos a bordo cinco raparigas e um assassino. Isto basta para que nos caiam as máscaras de civilizados. É com isso que eu conto e tenho a firme intenção de ir até ao fim... senão estamos todos condenados.

O jovem aspirante Herbert Duff - de uma sensibilidade exacerbada, que tinha um diário, que não parava de escrever a sua mãe, para por fim rasgar as cartas quando não aliviava o coração e falava do seu sofrimento - não imaginava o que o esperava quando se apresentou a Nicholson, com os olhos ainda inchados de sono.

O comandante estava em ligação com o almirante, de modo que Duff foi testemunha do final daquele diálogo.

- Está tudo em ordem, Sir - declarou Nicholson. – As raparigas foram desembarcadas de acordo com as suas ordens. Não, Sir, não sabem nada. Também não desconfiam de nada. Para elas o Poseidon é um submarino da NATO. Absolutamente banal. Agradeço-lhe, Sir. Terminada a comunicação com o almirante, Nicholson levantou os olhos para Duff e, durante um longo momento, olhou-o sem nada dizer. Blandy, nervoso, coçava o nariz, o que habitualmente era nele sinal de vivo interesse.

- Compreendeu o sentido desta conversa, Herbert? - perguntou subitamente Nicholson.

- Não, Sir - apressou-se Duff a afirmar.

- Você é bem-educado, mas mente.

Nicholson apontou-lhe uma cadeira. Surpreendido por ser convidado a sentar-se, Duff hesitou primeiro e depois obedeceu. Nicholson, em contrapartida, levantou-se e passou para o outro lado da secretária, para se postar na frente do jovem aspirante.

- Duff - disse ele em voz suave e insinuante -, que sabe de Belucci?

Imediatamente Duff se empertigou.

- Nada, Sir. Enfim nada mais que os outros.

- No que se passou ontem à noite e esta manhã, nada notou de particular?

- Nada, Sir...

- Está a mentir! - afirmou Nicholson sentindo no seu interlocutor uma certa hesitação e uma muito clara inquietação. Inclinou-se para Duff e, implacável, declarou:

- Conheço a sua mãe, Herbert. Sei que é viúva e mora numa pequena casa na Pensilvânia. Seu pai morreu na Alemanha, durante a guerra, sucumbiu aos ferimentos...

Duff pôs-se a tremer.

- Sir, por que...

- A sua mãe fez economias durante toda a vida, sacrificou-se para lhe pagar os estudos. Montou uma lavandaria e matou-se a trabalhar para que nada lhe faltasse. É graças a ela e aos seus esforços que você está aqui, neste momento.

- Peço-lhe, Sir...

- Vai ouvir-me até ao fim, Herbert! Você é o orgulho de sua mãe, representa toda a sua vida. Aos olhos dela é um herói, ela só o vê a si. Tudo o que é o deve ao seu paciente afecto, à sua infinita dedicação...

- Sir, suplico-lhe...

Blandy desviou os olhos, incapaz de permanecer indiferente a este jogo cruel.

- E em que se tornou o seu filho querido? – vociferou Nicholson. - Um trapo. Um esfregão! Um insulto à dedicação materna!

- Sir!

Duff desmoronou-se como sob o efeito de um abalo demasiado doloroso.

- Que se passou com Belucci? - gritou Nicholson.

- Esta manhã... eles jogaram aos dados... – balbuciou Duff, de olhos fechados e lábios trémulos.

- Quem?

- Belucci e mais dez. Belucci pavoneava-se. Estava muito orgulhoso por ter passado a noite com a ruiva. Eles... eles...

- Estou a ouvi-lo!

- Ela tinha prometido voltar na noite seguinte. Então eles jogaram-na aos dados.

- A rapariga era a aposta da partida, é isso?

- Sim, Sir. Mas era sempre Belucci a ganhar. Então, os outros acabaram por perceber que os dados estavam viciados.

- E daí a vingança...

- É o que eu receio, Sir...

Novamente Duff ruiu. Nicholson agarrou-o pelos ombros, obrigando-o a endireitar-se.

- E durante esse tempo que fazia você? Participou no jogo

- Não, Sir. Eu...

- Lamento a sua mãe...

- Eu fiquei fora do jogo, Sir! Eu servia apenas de árbitro, se assim se pode dizer.

- Isso passou-se a que horas?

- Esta manhã pelas oito horas...

- Meia hora depois encontravam Belucci assassinado...Quem entrava no jogo?

Duff citou dez nomes... de Jimmy Porter a Dustin Hollyday. Depois, no limite da resistência, rebentou em soluços. A partir de então, Blandy considerou prudente intervir e protestou energicamente:

- Chega, Jack! Já ultrapassaste os limites e, como médico, oponho-me à continuação deste interrogatório! Venha, Herbert, eu acompanho-o.

Blandy ajudou Duff a levantar-se e saiu amparando-o pelos ombros.

Nicholson não se sentiu particularmente orgulhoso com o resultado do seu interrogatório. De modo algum satisfeito, embora o círculo dos suspeitos se reduzisse agora a dez nomes. Os melhores marinheiros do Poseidon: Porter, Hollyday, Smith, Duncan, Losinski... Homens a quem nada metia medo.

A campainha do interfone zumbiu enquanto se acendia uma luz vermelha. Nicholson carregou no botão.

- Daqui fala o comandante - disse em voz dura.

- Tenente Curtis, Sir.

- Que há, Henry?

- Continuamos sem encontrar o corpo de Belucci. Procurámos por toda a parte, Sir. Nos cantos mais recônditos...

- Abandone a busca, Curtis. O culpado saberá muito bem informar-nos.

- O... culpado...?

- Terminado.

Nicholson interrompeu a comunicação. Blandy voltava justamente naquele instante.

- Podes gabar-te de ter posto Duff num belo estado -- disse ele. - Está aniquilado.

- Pelo menos não foi impunemente.

- Pensas ter obtido informações assim tão preciosas?

- Restam só dez suspeitos.

- Dez suspeitos mas uma faca só!

- Eu os farei falar. Todos, uns atrás dos outros. Fizeram mal em me subestimarem!

Nicholson ligou para o refeitório dos oficiais. Foi Bernie Cornell quem respondeu. Continuava a interrogar a tripulação.

- Suspenda a audiência! - disse Nicholson. - A não ser que tenha uma pista!

- Não, Sir.

- Não a encontrará. Que cada um volte imediatamente ao seu posto!

- E agora? - interrogou Blandy, quando Nicholson desligou. - O processo dos dez?

- Não! Iam pregar-me as maiores patranhas. Prefiro vê-los uns após outros.

- E por quem tencionas começar?

- Pelo mais cabeçudo de todos... Porter. Eu sei que não chegarei a nada mas pelo menos vai espalhar-se o rumor de que o Velho está na pista.

- Seja... Em todo o caso não vejo que nos impeça de prosseguir a viagem.

- Efectivamente. Vamos continuar a nossa rota para o Pólo Norte.

- E as raparigas?

- Assunto teu. Quero que me garantas que não sairão mais da enfermaria!

Jimmy Porter ficou sinceramente estupefacto quando Nicholson entrou na casa dos foguetões e se sentou na frente dele do outro lado da mesa de ferro. Tudo ia bem, assegurou Porter, nada de especial a assinalar. Esperava efectivamente que o comandante manifestasse o desejo de controlar certos pontos precisos. Neste domínio estava perfeitamente seguro de si porque o seu trabalho era irrepreensível: sem a menor falta, sem a menor omissão. Tudo era mantido com o maior cuidado e uma limpeza indiscutível.

Nicholson meteu a mão no bolso e, de repente, arremessou três dados para a mesa.

- Ouvi dizer que era um jogador de grande classe, Porter. Sente-se. Proponho fixar o ponto num dólar. Se quer verificar os dados... São regulares. Vá, dou-lhe a minha palavra que não estão viciados, mas não faça cerimónia, pode verificar.

- Como quiser, Sir.

Porter vacilou, mas depois decidiu-se a pegar nos dados e agitá-los na mão.

Num navio de guerra, particularmente a bordo de um submarino, passam-se momentos que parecem de tal modo vazios que involuntariamente perguntamos se a vida vale a pena ser vivida. Para quê? Nesses instantes tudo parece indiferente, esquecemos os fracassos, os receios, as esperanças, os sonhos. Desejos, projectos? Desvanecidos. Voltamos a encontrar-nos nus e desamparados como no primeiro dia.

Tal seria, por exemplo, o caso se o comandante desse subitamente ordem para lançar os foguetões: Armamento das cabeças nucleares! Atenção... lançamento!, Bastaria introduzir as chaves, baixar, em seguida, a alavanca vermelha...

Foi quase o que sentiu Jimmy Porter quando o comandante Nicholson lançou os dados para a mesa e lhe ordenou que verificasse a sua regularidade. Então, Porter obedeceu de má vontade e sopesou-os.

- Assim não, Jimmy - protestou Nicholson. – Tem de os esfregar, sabe muito bem disso.

Porter esfregou os dados com o polegar e deixou-os cair um após outro. Todos indicavam um número diferente.

- Vamos lá - disse Nicholson. - Por um dólar...

Atirou uma moeda para a mesa. Porter fez o mesmo.

O comandante meteu os dados no copo, agitou-o e lançou-os.

- Catorze! É a sua vez, Jimmy!

Porter sacudiu também os dados no copo... Só conseguiu um nove.

Então, Nicholson pegou no copo e levantou-se.

- Poderíamos continuar a jogar e talvez você acabasse por ganhar. Os dados são caprichosos. Não é fácil influenciá-los. A não ser que estejam viciados. Um truque tão velho como o mundo. É assim que, por vezes, por mais que um homem teime, não há nada a fazer, é sempre o adversário a ganhar. Mesmo consigo, Porter! Bom dia...

Como que movido por uma mola, Porter levantou-se e fez a continência. Mas teve todas as cautelas para não responder. Aliás, não havia necessidade alguma de o fazer.

A testa coberta de suor era sinal bem eloquente. Assim que Nicholson saiu, acendeu febrilmente um cigarro. As mãos estavam agitadas por um tremor incontrolável. Pôs-se a praguejar em voz alta.

O segundo nome na lista de Nicholson era o de Duncan, um homem ponderado, que ainda não tinha trinta anos, antigo combatente do Vietname e pai de quatro filhos. Era louro, de estatura média, aspecto de intelectual. Sentado à sua bancada, controlava a circulação do fluido no reactor.

Quando o comandante entrou, teve um sobressalto. Nicholson fez-lhe sinal para que se deixasse estar sentado, depois, mudando de opinião, pediu-lhe que viesse instalar-se na sua frente a uma mesa pequena metálica de abas, na qual pousou o copo e os dados.

- Estou com vontade de jogar uma partida consigo, Duncan. Um dólar o ponto. Acabo de ganhar ao Porter. Com dados honestos, atenção! Que me diz? Está de acordo com um dólar?

- Não, Sir - respondeu Duncan que continuou de pé em frente da mesa.

- Não traz dinheiro consigo? Eu empresto, se quiser.

- Nunca jogo a dinheiro, Sir.

- Mas jogar uma rapariga já não o incomoda. Principalmente uma ruiva, hem? Deve fazer muita raiva perder com um batoteiro. Nestes casos, certamente, tem-se muita dificuldade em conservar o sangue-frio. Belucci apanhou o que merecia...

- Sir, eu...

Nicholson levantou-se.

- Não lhe peço explicações, Duncan - disse ele recuperando o copo. - Não viremos à superfície antes de dois meses, pelo menos. Dois meses, Duncan! Navegaremos por

baixo do gelo e teremos de nos entregar a exercícios extremamente perigosos. Ora aqui, a bordo do meu navio, sim, digo bem, do MEU navio, um homem foi assassinado e dez dos seus velhos camaradas conhecem a identidade do culpado. Dez dos melhores marinheiros americanos! E homens desta têmpera são capazes de perder completamente a cabeça por causa de uma levianazinha!

- Sir, eu...

- Sem comentários! Bom dia, Duncan!

Mal o comandante saiu, Duncan pôs-se a esmurrar o tabique berrando:

- Quem foi o filho de um porco capaz de nos denunciar? Canalha imundo!

Nicholson prosseguiu, imperturbável, a sua digressão.

Dustin Hollyday era o último nome da lista. Se bem que tivesse precisamente trinta e dois anos, Hollyday tinha já cabelo grisalho. A testa estava marcada por uma longa cicatriz, lembrança da guerra do Vietname.

- Estou já ao corrente, Sir - disse ele quando Nicholson entrou na cabina. - É inútil propor-me uma partida de dados, sei onde quer chegar. Sabe, a bordo, o telefone árabe funciona melhor que o mais perfeito sonar. É verdade, Sir, Belucci fez batota. Eu próprio não consegui evitar partir-lhe a... perdão, Sir, quero dizer... dei-lhe um murro... Mas daí a assassiná-lo às facadas! Não, Sir, não teria chegado aí, isso lhe garanto eu. É verdade que estas mulherzinhas nos põem malucos. Mas a camaradagem acima de tudo...

- É você que o diz, Hollyday. Bela prova de camaradagem, com efeito...

- É ignóbil, Sir, francamente não compreendo. Mas se alguma vez puser a mão no rapaz que...

- Ele está entre nós, é um dos seus bons e simpáticos camaradas, Hollyday. Agradeço-lhe.

- De quê, Sir?

- De ter sido o único a confessar-me espontaneamente ter participado nessa partida de dados. Um de vocês matou Belucci. Portanto, são dez os suspeitos.

- Eu sei, Sir. E procuro!

- Acredito em si, Dustin. Assim só restam nove suspeitos.

- Juro-lhe que lhe darei o que merece!

- É indispensável que haja ainda um crime a bordo, Hollyday? O culpado não pode fugir... temos muito tempo. Mas logo que atravessarmos o Pólo Norte... se um dia voltarmos à superfície, aí eu avisarei. Que se diga, então!

Blandy esperava no gabinete do comandante fumando uma cigarrilha.

- Então, Jack, descobriste o assassino? – perguntou ele quando Nicholson entrou.

- Descobri.

- Quem...?

- De imediato o nome pouco importa.

- Curiosa concepção da justiça...

- Sem dúvida... Mas a bordo de um submarino nada pode passar-se de modo inteiramente normal.

- Não peço que digas. Há momentos em que nos julgamos num hospital de loucos. O desgraçado Herbert Duff está num estado lastimoso. Virado do avesso. Não pára de chorar como um garoto. Dei-lhe uma injecção, a ver se acalmava, mas sem grande resultado.

- E as raparigas?

- Pior! Tenho a impressão que Slingman não tardará a quebrar. A pequena Dorette prometeu pagar-lhe em espécie se lhe abrir a porta esta noite.

- Substitui-o imediatamente.

- Quem o vai substituir? É o único em que ainda se pode ter confiança.

- Obrigado.

- Enfim... de qualquer modo não és tu quem vai ficar de guarda!

- Vou.

- Mas isto é mesmo loucura! O comandante de um submarino atómico passando a noite diante da porta da enfermaria onde estão fechadas cinco garotas ninfomaníacas! Isto vai para além de quanto se possa imaginar!

- Diz antes que a realidade ultrapassa a ficção. Tu próprio não sabes tudo, não conheces todas as armas que transportamos.

Blandy deu sinal de se sentir ligeiramente vexado.

- Ah não? - disse ele. - Queres que recite a lista: torpedos, mísseis, foguetões de cabeça nuclear...

- Não sabes tudo! - repetiu Nicholson. - Existe a bordo uma câmara secreta, a câmara X 1. Só McLaren e eu estamos ao corrente. Esta sala não figura nos planos. Encerra um foguetão de cabeça nuclear com uma potência quarenta vezes superior à bomba de Hiroxima. Quarenta vezes! Tens consciência do que isso significa? Lançamos esse foguetão, Paul, e todo o planeta vai pelos ares.

- Nós passeamos debaixo de água com um engenho desses? E apoquentamo-nos com os nossos problemazinhos quotidianos? E para nós perguntamos a quem vai oferecer-se a morena, a loura ou a ruiva? Nunca tive medo... Mas francamente começo mesmo a não me sentir bem. Se estás a dizer a verdade, então deixa os homens distraírem-se como bem entendam, deixa essas garotas acumularem recordações de alcova, fecha os olhos aos pequenos rasgões na disciplina... mas conduz o navio a bom porto! Quando penso... se tivesse sabido antes...

- Em que é que isso alteraria as coisas?

- Nunca eu teria entrado a bordo! Teria adoecido...

- Tu? Tu tens uma saúde de ferro!

- Garanto-te que faria tudo para meter no corpo todos os micróbios da terra! Tudo era melhor que pôr os pés neste navio do inferno! Jack, suplico-te: fecha os olhos. Deixa essas danadas fêmeas fugirem alegremente e contenta-te em pensar só nesse engenho do diabo!

- Eu só penso nisso!

Nicholson viu as horas. Em certas circunstâncias, mesmo debaixo de água, o tempo passava muito depressa. Estavam já a servir o jantar.

- Está decidido, fico de guarda! - repetiu Nicholson.

- Isso não! Se algum valente imbecil tem de se sacrificar, serei eu.

- Amanhã, se quiseres. Hoje é a minha vez. De resto, fui eu quem primeiro teve a ideia.

Nicholson soltou uma gargalhada quase infantil, porém, este acesso de alegria foi breve. Logo voltou à sua gravidade assim que o radiotelegrafista anunciou pelo interfone:

- A base, Sir. O almirante Adam no dois.

- Sem dúvida... para a oração da noite - troçou Blandy.

Nicholson atendeu. A ligação com Norfolk era, como habitualmente, perfeita. Nem o menor estalido, nenhum ruído de fundo.

- Comandante Nicholson, Sir

- Segue tudo bem a bordo?

- Não pode ser melhor, Sir.

- Mas para si pessoalmente, Jack, sem aborrecimentos?

- Que interpretação está a dar, Sir?

Nicholson, que muito bem tinha entendido, pusera-se em guarda. Blandy, por seu lado, ergueu os olhos para o alto e suspirou.

- Que eu saiba, abandonou as damas na sua jangada salva-vidas e transmitiu uma mensagem ao Arsena?

- Efectivamente, Sir.

- É que o Arsena não recebeu mensagem alguma.

- Ora aí está o que para mim é uma surpresa. O radiotelegrafista, no entanto, compreendeu a mensagem, repetiu-a palavra por palavra.

- Registou tudo isso no diário de bordo?

- Com certeza. Tal como fizemos registo da mensagem.

- As náufragas ainda não foram encontradas, Jack!

- Maldita coisa...

- Bem o pode dizer... Tanto mais que temos agora informações sobre essas raparigas. Todas filhas da grande burguesia americana, com papás grandes industriais e políticos influentes. Isto promete um escândalo retumbante que pode muito bem encontrar eco na Casa Branca.

- Porquê?

- É você que coloca essa questão, Jack?

- Pessoalmente, Sir, não fiz mais do que obedecer às suas ordens.

- Tranquilize-se, não o ignoro. Era indispensável agir assim. Mas vá lá explicar isso aos pais! Será mais prudente mantermo-nos na versão, aliás mais verosímil: pereceram no naufrágio e nunca entraram a bordo, nunca!

- Compreendo, Sir - respondeu Nicholson com um sorriso trocista. - Mas só poderemos manter essa versão enquanto estivermos no mar. Que se passará quando voltarmos à base? Não é possível obrigar trezentos homens a mentir. Sempre haverá um mais tagarela do que os outros e mesmo que caia em confidências com a mulher, já chega...

- Ainda temos tempo para reflectir nesse problema. De momento, o essencial é que se tenha livrado das raparigas.

Ao apagar a sua cigarrilha, o doutor Blandy teve subitamente um ataque de tosse.

- Quem está perto de si, Jack - logo se inquietou o almirante. - Quem testemunhou esta conversa?

- O doutor Blandy, Sir. Não tenha receio algum.

- Passe-mo.

Nicholson entregou o auscultador ao médico.

- Aqui, Blandy!

- Estou contente por o ouvir, doutor.

- Intercedi para que as raparigas ficassem a bordo. Em vão, é verdade. Mas pelo menos tenho a consciência tranquila.

- Se alguma vez a sua consciência o afligir, não hesite em lhe impor silêncio. Aconteça o que acontecer, tomo tudo à minha responsabilidade. Basta-lhe esta promessa para o satisfazer?

- Perfeitamente, Sir.

- Muito bem. E agora, doutor, volte a passar-me o Jack.

- Aqui o comandante! - anunciou Nicholson retomando o auscultador.

- Quando alcançará o Pólo Norte, Jack?

- Dentro de três dias, se tudo correr segundo os planos.

- Boa sorte, Jack. Provavelmente vai ter necessidade dela... Terminado.

- Terminado, Sir!

Nicholson fitou Blandy:

- Paul, tu és mais comediante que uma puta a representar às donzelas assustadas!

Naquela noite, como na anterior, Nicholson não compareceu ao jantar no refeitório dos oficiais, acentuando assim a sua reprovação. Os oficiais entenderam-no, de modo que a refeição decorreu quase em silêncio. Em troca, do lado da tripulação, as discussões eram animadas. Só se falava do assassínio de Belucci e das raparigas. Os oficiais passariam ainda a noite com uma mulher? Faziam-se apostas. Continuava a pergunta: como é que Belucci se arranjara para atrair os favores da ruivazinha? Este triunfo suscitava em todo o caso a estima e a admiração gerais. Só que o preço a pagar era excessivamente elevado. A morte por uma noite de amor... o prato da balança estava singularmente desequilibrado.

O comandante Nicholson apareceu na sala de espera da enfermaria imprevistamente. Blandy, pelo que lhe tocava, fizera domicílio no gabinete do comandante, onde tinha a intenção de se servir da cama para passar a noite.

O enfermeiro-chefe estava deitado com bolas de algodão nos ouvidos. Sorriu de modo tolo quando o comandante entrou e Slingman lhe fez a continência. Atrás da porta a balbúrdia recomeçara.

- Tu vais ouvir-me, preto bruto e imundo - dizia Dorette. - Se abrires a porta terás direito a isso. Três vezes, se quiseres. A oportunidade da tua vida! Abre lá, tarado!

- Se isto continua, vou endoidecer - gemeu Slingman. - Peça a alguém para me render, Sir. Nenhum tem nervos tão sólidos que possa aguentar isto muito tempo.

- Deixe a sua arma e vá-se embora, Bill. Tem com certeza necessidade de repouso. Fico eu a substituí-lo.

- O senhor! - exclamou Slingman atordoado. Depois acrescentou: - Veio o tenente Curtis. Queria, dizia ele, falar com Lill Petersen. Quase tive de o ameaçar, Sir... Enfim, obedeci às ordens.

- Perfeito, Bill. Eu sabia que podia contar consigo. Não esquecerei.

- Obrigado, Sir.

Slingman fez a continência e apressou-se a fugir da enfermaria. Atrás da porta, ignorando a sua partida, Dorette continuava a insultá-lo.

- É inútil cansar-se, miss - disse Nicholson. - É o comandante quem está a falar. Fui eu quem veio render o seu anterior guarda. Grite tanto quanto quiser, mas previno-a de que não servirá de nada.

- Impotente! Eunuco! Felizmente que há aqui homens que são bem viris.

- Paciência", disse Nicholson para si mesmo. Sentou-se na segunda cama. Quem seria o segundo visitante? Curtis tentara já a sua sorte. Seria Cornell? Ou Collins? Quem se atreveria a aproximar-se de Evelyn depois do que acontecera a Belucci? Dez homens tinham-na jogado aos dados...qual deles se mostraria mais impaciente? É evidente que Slingman não deixaria de anunciar que fora rendido.

Nicholson fitou o enfermeiro-chefe. Blides olhava o comandante como se visse um fantasma. Desconfiava de alguma coisa? Estaria ao corrente de um facto preciso? Esperaria um acontecimento especial?

O submarino fendia o oceano. A toda a força das máquinas para recuperar o tempo perdido. Estava ligado o piloto automático, sonares e radares funcionavam sem interrupção.

Atrás da porta da enfermaria voltara o silêncio. Mas de súbito bateram à porta. Nicholson não reagiu. Contentou-se em estar de ouvido atento, olhos semicerrados.

- Poderia conceder-me um instante, Sir? - disse uma voz atrás da porta.

Uma voz já familiar a Nicholson, uma voz que o perseguia sem tréguas, uma voz sempre presente apesar dos seus esforços para lhe ser surdo. A sua voz...

- Que quer? - respondeu ele bruscamente.

- Falar-lhe, apenas.

- Recuso-me a abrir essa porta. Seria pior que abrir uma jaula de feras.

- As outras não sairão, Sir.

- Nada mo pode garantir. De resto... quer o admita quer não, faz parte desse clube de ninfomaníacas.

- Fico muito lisonjeada, obrigada. Eu que queria ajudá-lo...

- Ajudar-me!

- Aos olhos das minhas amigas, passo por uma imbecil.

- É verdade! - Nicholson reconheceu a voz de Joan Hankow. - Ela quer convencer-nos a ser puras e mártires durante semanas.

Bruscamente, por mais estúpida que fosse aquela reacção, Nicholson teve piedade de Monika Herrmann. Imaginou-a a tentar levar ao bom caminho aquelas excitadas e

colhendo apenas insultos e graçolas.

- Vão deitar-se!

- Nem o senhor! - interveio Lill Petersen. – Acha que consegue aguentar-se?

- Sem dúvida alguma.

- Quanto tempo, Sir?

- Três meses.

Esta resposta foi acolhida com risos histéricos. Depois voltou o silêncio. Para quê discutir com um imbecil... e para mais impotente?

O comandante Nicholson esperava, há cerca de uma hora, quando a porta se abriu lentamente. Uma silhueta se insinuou. Nicholson não a pôde identificar de imediato, devido à fraca iluminação, que era diminuída durante a noite para poupar as baterias. O homem que acabava de entrar era, nem mais em menos... McLaren, o último de quem Nicholson suspeitaria.

- Você também, Victor? - disse a meia voz.

- Não é pelas raparigas que venho, Sir.

- Então, porquê?

- Sabia que o encontraria aqui. Toda a gente está ao corrente. Tenho de lhe falar.

- Em plena noite?

- Pouco interessa a hora. O caso é bastante grave.

- Apaixonante. Você tem arte para captar a atenção do auditório. Estou a ouvi-lo...

- Belucci teve a ruivazinha.

- Evelyn Darring, é verdade. Já ninguém o pode ignorar.

- Eu acho que a altura é má para gracejar, Sir. Tem consciência da hostilidade de todos os oficiais em relação a si?

- Perfeitamente.

- Pela banda da tripulação, o ambiente também não é brilhante.

- Calculo. Se os meus oficiais se tornaram verdadeiros obcecados, não vejo razão para que fosse diferente com os marinheiros. E você, Victor...

- Estou do seu lado. Desde há pouco, é verdade.

- Se bem entendo, vem em nome de toda a tripulação apresentar-me um ultimato?

- Em nome dos oficiais, Sir!

- Ora aí está o que muito se parece com uma amotinação.

- Não, Sir, nós pedimos-lhe simplesmente que aceite a discussão.

- Uma trégua nas tolices, peço-lhe. Toda a tripulação me é hostil. Porquê? Por me obstinar em fechar estas putazinhas histéricas. Nunca coisa assim se deu num navio da Marinha dos Estados Unidos!

Nicholson empunhou a arma deixada por Slingman.

- Aqui tem a minha resposta, McLaren. Estou disposto a disparar, sem escrúpulo algum, sobre o primeiro que se aproximar daquela porta. Eu sei que a violência gera violência, mas se for preciso abrir fogo não hesitarei. Quer ser o primeiro da lista?

- Eu vim unicamente com a intenção de negociar, Sir.

- Negociar? Mas não há mesmo discussão possível. Diga a Cornell, Curtis, Collins e a quantos o enviaram que o comandante está no seu posto e não cederá.

- Não vai ficar de guarda durante meses, Sir!

- É com isso que contam? Sabem realmente o que os espera quando regressarmos à base?

- Já não somos garotos, Sir!

- Quem os ouvisse não acreditaria. Você, um homem casado, pai de três filhos!

McLaren encolheu imperceptivelmente os ombros.

- Não pode manter as raparigas fechadas durante toda a viagem.

- Primeira novidade.

Nicholson sabia que nada tinha a temer de McLaren. Desconfiava que os outros o tinham manipulado, não ousando eles próprios travar discussão com o comandante. McLaren podia... Conhecia Nicholson há nove anos.

- Imagine que eu aceitava que as raparigas se encontrassem com os oficiais. Que aconteceria? Logo os marinheiros se voltariam contra eles.

- Saberemos impor a nossa autoridade, Sir.

- Cada vez melhor. Prefiro lançar essa declaração na conta da inconsciência... Quero que fique a saber, McLaren, que estou disposto a eliminar estas raparigas uma a uma se esse for o preço para manter a disciplina.

- Não, Sir... eu não posso acreditar nisso... - balbuciou McLaren, assustado. - Não está a falar a sério.

- O mais sério que me é possível!

- Mas matá-lo-iam, Sir, e Cornell assumiria o comando do barco.

Nicholson sorriu.

- Como vê estou a tremer de medo! Mas vocês é que deviam tremer! Porque sem mim nunca mais voltarão a ver a luz do dia. Sem mim nunca mais pousarão os pés em terra firme. Todos vocês sabem que este navio é especial. Vocês não sabem a razão, vocês ignoram em que consiste a sua particularidade. Não hesite em dizê-lo aos outros, Victor. Quer acreditem quer não, pouco importa. Em todo o caso não tardarão em descobrir a verdade.

McLaren hesitou, depois, lentamente, rodou nos calcanhares e saiu.

Naquela noite, como no teatro, os actores, uns após outros, entraram em cena.

O seguinte foi Jimmy Porter.

- Vejam, vejam - disse Nicholson. - Vejo que se respeita a hierarquia: os oficiais primeiro, os segundos-mestres em seguida. Quem vem a seguir, Porter? Um marinheiro?

- Eu falo em nome de todos, Sir, com excepção naturalmente dos oficiais. Porque é deles que se trata.

De repente Porter pôs-se a gritar. Em tal caso, em qualquer outro lado que não fosse um submarino de aço, a sua voz tonitruante teria feito estremecer as paredes.

- Como sempre os oficiais são privilegiados! Eles têm o direito de dormir com as raparigas. Nós não. Porquê? No entanto, somos solidários, somos camaradas no melhor e no pior. O senhor mesmo o disse, Sir.

Nicholson fitava Porter, quase interessado.

- De facto, são essas justamente as minhas palavras.

- Então, por que motivo o direito de dormir com mulheres está exclusivamente reservado aos oficiais? - vociferou Porter, que por efeito da cólera ficava escarlate.

- Uma nódoa e nada mais. Isso não voltará a acontecer.

- Quer dizer que as raparigas vão ficar aferrolhadas?

- Aferrolhadas como diz. Exactamente como os foguetões.

- Os foguetões ainda os podemos desaferrolhar...

- Para o maior bem-estar de toda uma parte de humanidade, sem dúvida?

- Desgraçadamente, Sir, começamos a perder o sentido de humor.

- Que quer ao certo?

Nicholson levantou-se e bruscamente apoiou o cano da arma ao peito de Porter, que o fitou com uma mistura de espanto e de terror.

- Você queria que eu distribuísse as raparigas como uma mercadoria qualquer? Um maço de cigarros a um, uma pasta dentífrica a outro, uma hora na companhia de Lill Petersen a Jimmy Porter. E a seguir... poder-se-ia mesmo elaborar uma lista de espera.

De repente, também Nicholson se pôs a gritar e, empurrando Porter para a porta, disse-lhe:

- Você julga que está num bordel ou quê? Eu nem sei por que estou a perder o meu tempo a discutir consigo em vez de o abater como a um animal feroz. Estaria no meu direito. Qualquer tribunal me absolveria!

- Tenho uma proposta a fazer-lhe, Sir... Peça opinião às raparigas. Elas que escolham se querem os marinheiros se os oficiais.

- Você está completamente doido! Doido varrido! Desapareça daqui! E depressa!

- Às suas ordens, Sir. Mas ainda tenho uma coisa a dizer-lhe: se alguma vez viermos   saber que um oficial passou a noite com uma rapariga, nós ocupamos a enfermaria. Será um motim, de acordo, mas ninguém ficará a rir-se. Nós também somos homens tal como os oficiais!

Com estas palavras, Porter saiu dignamente. Mas antes de se afastar, voltou-se:

- Mais uma coisa, Sir - disse ele, mas desta vez em tom sereno -, passámos tudo a pente fino. Os nossos camaradas, principalmente os que participaram na partida de dados, vomitaram as tripas. Agora, temos a certeza: o assassino não está entre nós.

- Que significa isso, Porter? - perguntou Nicholson numa voz cansada, se bem que conhecesse antecipadamente a resposta, as palavras tão temidas.

- É entre os oficiais que tem de procurar o culpado, Sir.

Três horas da manhã... O enfermeiro-chefe Blides ressonava. Nicholson foi abrir a porta da enfermaria.

- Venha - sussurrou ele no escuro.

Tinha a certeza de que Monika não dormia. Na verdade ela apareceu, não em camisa de noite ou completamente nua, como o teriam feito as suas companheiras, mas correctamente vestida e bem penteada. Estava encantadora. Não obstante a sua frieza emanava de toda a sua pessoa um irresistível charme.

- Sente-se - disse Nicholson apontando a cama na qual pousara a arma.

Ela aquiesceu, sentou-se e levantou os olhos para ele que continuava de pé, mãos atrás das costas para dissimular o seu nervosismo.

- Fica de pé?

- Prefiro não correr o risco de me sentar perto de si, e ainda por cima numa cama.

- É pena, porque detesto ser obrigada a torcer o pescoço.

- Então seria indelicadeza recusar - disse ele com um sorriso que não conseguia dissimular o seu embaraço.

Dizendo isto, ocupou o lugar junto dela. Contra sua vontade o olhar ficou-lhe preso aos seios firmes, quase arrogantes. Agitou-se então, sem saber que posição tomar.

Acabou por cruzar as mãos em volta do joelho. Em certas situações as mãos tornam-se tão importunas, é tão difícil controlá-las...

- Por que não dormia? - perguntou ele ao ver que ela não se decidia a romper o silêncio.

- Porque sabia que iria abrir - respondeu ela com toda a simplicidade.

Aquela franqueza desconcertou-o ao ponto de ficar uns segundos sem saber o que dizer. Ficaram então um perto do outro sem trocarem uma palavra, não ousando fitarem-se, fingindo observar Blides que continuava a ressonar.

- Dizia há pouco que poderia ajudar-me - atacou por fim Nicholson. - Foi unicamente por isso que abri.

- Não duvido.

- Pois bem... de que maneira pensa vir em meu auxílio?

- Teve oportunidade de verificar que as minhas doces e encantadoras amigas só pensam em sexo! Isso representa toda a sua vida. Ora, se bem compreendi, o submarino não virá à superfície antes de três meses, e teremos de passar um mês inteiro debaixo do Pólo Norte a fim de ali realizar certas experiências.

- Como é que sabe isso? Quem lhe deu essas informações?

- Os seus oficiais, em cima do travesseiro, escorregam nas confidências.

- Era de calcular - resmungou Nicholson.

Uma lufada de perfume chegou até ele. Devia usar um sabonete de rosas. Novamente o seu olhar passou pelos seios, deteve-se depois nas longas pernas finas e musculadas. Ainda desta vez teve de fazer um esforço para se concentrar sobre o problema que estava e devia continuar no centro das suas preocupações.

- Que propõe? - perguntou ele abruptamente.

- Desembarque-nos.

- Tarde de mais, agora é impossível.

- Porquê?

- Toda a gente a bordo se oporia a isso. Se quisesse provocar uma amotinação era o que faria. Tão certo como dois e dois serem quatro!

- Mas se formos nós a pedir? Eu talvez conseguisse convencer as minhas amigas. Já discutimos durante horas. Trezentos homens para quatro mulheres, a relação era muito desequilibrada. Elas próprias concordaram. Por que razão hesitar? Volte a lançar-nos ao mar na nossa jangada salva-vidas com víveres suficientes para aguentar uns dias. Acabarão por nos encontrar.

- Nem pensar! Oficialmente foram dadas como desaparecidas.

- Mas como?

- Declarei ao almirantado que as tinha desembarcado. Mas como nenhum navio as encontrou nem sequer localizou foram consideradas como desaparecidas.

- Mas isso é completamente absurdo. E quando reaparecermos ao fim de três meses?

- Temos tempo para pensar nisso.

- Mas por que fez isso?

- Para salvar o meu submarino! E você, por que queria ajudar-me?

- Pela mesma razão.

- Agradeço-lhe, Monika - disse ele com voz suave -, é uma mulher maravilhosa.

De súbito, enlaçou-a e ela não tentou resistir ao beijo. Sentiu então os seios contra si, a suavidade da sua pele, o seu calor.

- Não digas que me amas - disse ela quando se separaram. - Eu própria não estou certa de te amar. Mas sei que alguma coisa se passa entre nós... Esperamos...?

- Sim, esperamos...

Nicholson não pôde reprimir um suspiro.

- Ainda temos muito tempo.

Acabava Nicholson de fechar a porta atrás de Monika e já voltava à sua cama, quando ouviu som de pessoas na coxia. Logo saltou e veio cá fora. Na penumbra reconheceu Cornell, que efectivamente se dirigiu para a enfermaria.

- Sir! - exclamou Cornell parando na frente de Nicholson. - Venha imediatamente. Duff... Herbert Duff...Está morto, Sir! Sufocaram-no com uma almofada!

À primeira vista, o camarote não parecia ter sido teatro de um combate violento. Herbert Duff, aquele rapaz hipersensível, que fazia poemas em segredo e escrevia a sua mãe cartas que nunca enviava por nelas falar do seu medo, da sua angústia, da sua solidão, da sua pena em não se ter feito jardineiro, ele que tanto amava as flores, que, no entanto, se aguentava unicamente para não decepcionar a mãe, pois que o seu mais querido desejo era que o filho viesse a ser oficial... Herbert Duff, de quem todos gostavam como um filho, estava estendido de costas, de olhos vítreos e boca muito aberta.

Nicholson inclinou-se e tocou no corpo com as pontas dos dedos. Estava ainda quente.

- O assassino deve ter estado aqui mesmo antes de si. - disse Nicholson a Bernie Cornell que continuava atrás dele, já nem se atrevendo a fazer um movimento.

- Mas não vi ninguém - balbuciou Cornell. - Absolutamente ninguém, tenho a certeza.

- O que o leva a dizer que Duff foi sufocado com uma almofada?

- Porque o encontrei com a almofada por cima da cabeça... Fui eu que a tirei... está ali...

Nicholson pegou na almofada e voltou-a. Estava rasgada. Duff devia ter-se debatido instintivamente antes de morrer.

Nicholson pousou a almofada em cima da mesa, com precaução, como se manipulasse um cristal frágil. E recordou as últimas palavras de Porter: É entre os oficiais que tem de procurar o culpado, Sir."

- Que veio fazer ao camarote de Duff a esta hora da noite? - perguntou Nicholson evitando dar uma entoação de desconfiança.

- Vinha da Central, Sir. Ao regressar à minha cabina, vi que a porta de Duff estava aberta. Pensei que talvez tivesse tido uma indigestão ou uma indisposição desse género. Fiz-lhe a pergunta e como não respondesse entrei. A luz estava acesa. Então vi-o... aí...

- A luz estava acesa?

- Exactamente como agora, Sir, não toquei em nada.

- Por outras palavras, o assassino estava perfeitamente seguro do que fazia. que diz, Cornell?

- E horrível. Monstruoso. E porquê Duff? Porquê?

Nicholson levantou o auscultador do telefone, com que cada cabina estava munida, e chamou todos os oficiais uns após outros, começando pelo doutor Blandy.

- Vem ter comigo imediatamente à cabina de Duff. Não te esqueças do estetoscópio, mesmo que nada haja já para ouvir...

- Mas que história é essa? - exclamou Blandy. - E que queres tu fazer com um estetoscópio? Tens um motor a tossir ou quê?

- Estou no camarote de Duff - repetiu Nicholson e desligou.

Assim convocou todos os oficiais. Depois pegou numa toalha, tapou o rosto de Duff e sentou-se na cama. Bernie Cornell, esse, estava encostado à parede, lutando contra a náusea. Estava consternado com o sangue-frio de Nicholson. Nem uma palavra mais alta que outra, nenhuma emoção à vista. Melhor: sentava-se na cama, ao lado do cadáver.

O primeiro oficial a apresentar-se na cabina foi McLaren. E foi seguido quase imediatamente por Collins, Curtis, Hamshore Black, Williams.

- Meu Deus, mas que aconteceu a Duff? - balbuciou

McLaren que parecia paralisado e não podia tirar os olhos da toalha que cobria o rosto de Duff.

Os outros oficiais faziam círculo em volta da cama num silêncio tenso.

Blandy foi o último a chegar.

- Mas não se entendeu ainda neste navio de merda que eu estou cá como médico e que não tenho razão alguma para participar em exercícios nocturnos!

Os oficiais afastaram-se para o deixarem passar. Viu então o comandante e pareceu reparar na toalha a encobrir a cara de Duff.

- Não!

- Sim...

Nicholson tirou a toalha.

- Ainda está quente, Paul.

- E vocês ainda para aí estão todos de braços caídos! - gritou Blandy. - Vocês tiveram mais que tempo para rezar. Mas, raios, de que estão à espera? Para que julgam vocês que servem os aparelhos de reanimação? Mexam-se, cambada de brutos!

Blandy correu ao telefone para avisar os enfermeiros, mas Nicholson reteve-o com um punho vigoroso.

- Ele está morto, Paul. Sufocaram-no com uma almofada.

- Com a almofada? - repetiu Blandy. - A única coisa que possuía... Nunca se separava dela. Levava-a em todas as viagens, para toda a parte... ríamos muito disso... Era um presente da mãe... uma lembrança de sua casa...

A voz de Blandy esmoreceu, enquanto, sem poder dominar mais os nervos, o tenente Black explodia em soluços.

Nicholson observou em silêncio os oficiais reunidos à volta da cama, que fitavam a cara de Duff com uma expressão de confusão e de incredulidade.

Como se cedesse a um brusco impulso, Blandy afastou o cobertor, encostou o estetoscópio ao peito de Duff, fechou os olhos e escutou. Era um gesto absurdo, mas rotineiro.

Um deles é o assassino", pensou Nicholson. Mesmo que eu tenha repugnância em aceitar as declarações de Porter, a simples lógica impõe esta conclusão. O culpado encontra-se neste mesmo instante na sala, olhando o cadáver com o mesmo horror dos seus camaradas. Está ali e sente-se suficientemente em segurança para ter ousado cometer o seu crime em plena luz. Os meus oficiais! A elite da Marinha dos Estados Unidos! Um deles é culpado de dois crimes monstruosos, matou por uma mulher, por ciúme, por vingança.

Uma reacção que vai além do entendimento humano...

Blandy reergueu-se.

- Sou de opinião que o almirante deve ser avisado. disse ele em voz surda. - Penso que seria mesmo necessário voltar imediatamente à base. Dadas as circunstâncias, o almirante saberá mostrar-se compreensivo.

- Duvido muito - replicou placidamente Nicholson. Tapou de novo com a toalha o rosto do defunto.

- Na origem deste segundo crime: ainda e sempre estas malditas prostitutazinhas! Ora o almirante ignora que elas continuam a bordo. De resto, senhores, todos estão ao corrente do conteúdo das diversas mensagens que foram transmitidas. E queriam agora que eu avisasse a base de que não cessamos de mentir, que os meus oficiais e todos os homens da tripulação perderam por completo a cabeça!

Nicholson calou-se, espreitando a reacção dos oficiais.

Perdoa-me, Monika, pensou ele. Perdoa-me por te misturar neste drama sórdido, por falar de ti nestes termos...

- Mais tarde ou mais cedo será preciso confessar a verdade - objectou Blandy. - Em todo o caso insisto em precisar: não esperem de mim que escreva qualquer coisa como enfarte na certidão de óbito. Gostaria que ninguém tivesse ilusões quanto a este ponto... É evidente que seria a solução mais simples. Duas mortes naturais... no curso de uma tão longa viagem, seria perfeitamente concebível. Mas como médico recuso-me em absoluto a assinar uma mentira. Era ir contra a minha consciência.

- Efectivamente, seria uma solução mesmo genial. - considerou Collins. - Tenho a certeza de que os homens manteriam segredo. Pense nisso, toda a gente ficaria contente.

Blandy levantou-se com um salto.

- Toda a gente? Começo a acreditar que aqui há realmente um bando de patifes!

- Quem tomou a decisão de embarcar as raparigas? - interveio por sua vez o tenente Curtis. - Quem, perguntou-lhe?

- Não podia imaginar que estava a lidar com trezentos tarados sexuais! - gritou Blandy.

- No entanto, eu tinha-te prevenido, Paul...

Nicholson levantou-se.

- Entre nós vive um assassino culpado de um duplo crime. Não se pode ter a certeza que depois da morte de Duff consigamos descobrir a sua identidade. Porque Duff conhecia-a, pelo menos tinha suspeitas precisas. Foi por essa razão que morreu. Com Duff vivo o assassino não estava em segurança. Porque Duff teria sido incapaz de se calar, não teria suportado durante muito tempo tal peso na consciência, teria acabado por confessar tudo. O assassino impediu-o. Está pois agora perfeitamente em segurança. Esquece apenas uma coisa, é que navega a bordo de um submarino cujo comandante se chama Jack Nicholson. Não se passará um dia, nem uma hora, em que não seja perseguido. E tenho a certeza de que acabarei por desmascará-lo.

Tenho a impressão, senhores, de que ainda me conhecem mal. Mas, creiam-me, vão aprender depressa a conhecer-me. Os meus agradecimentos, senhores.

Os oficiais fizeram a continência e apressaram-se a sair do camarote. Apenas o doutor Blandy ficou e sentou-se numa cadeira gemendo.

- Uma verdadeira declaração de guerra - comentou ele.

- Com efeito - confirmou sem hesitação Nicholson -. E, apontando o cadáver: - Tenho a certeza de que conhecia o assassino de Belucci e que não tardaria em mo confessar. Ele tinha acabado por me contar a história do jogo de dados... não era senão o começo. Reconheço que me sinto em parte responsável pela sua morte.

- Só faltava que te pusesses com complexos de culpa! Diz-me, Jack... tens suspeitas precisas?

- Como?

Nicholson pensou nos rostos dos seus oficiais. Neles só lera medo e ansiedade. Tinha de procurar o assassino entre eles?

- Deste prova de uma tal certeza ao afirmar que descobrirás o culpado.

- Dei, porque acabará por se trair, disso estou eu certo.

- Agora que Duff morreu? Pelo contrário, já não tem razão alguma para ter medo.

- Pensas então que Duff sabia mais do que aquilo que ontem me permitiu pensar...

- É o que parece - respondeu Blandy prudentemente. - Senão não havia razão alguma para o matarem... Diz-me, como pensas tu sair deste atoleiro?

- Não tenho possibilidade alguma de me livrar dele.

É evidente que disso estou perfeitamente consciente.

- Que queres tu dizer?

- Que é a minha última viagem, a minha última missão. Uma vez em Norfolk serei julgado em tribunal militar e a minha carreira ficará por ali. Vou pura e simplesmente para o meio da rua. Poderei bater seja a que porta for, que será sempre a mesma resposta: Não, senhor Nicholson.

- Poderemos cerrar fileiras. Porque não serás o único a ter desgostos. Eu vou ver-me exactamente na mesma enrascada. Ora... sempre poderei abrir um consultório, e se quiseres cá me arranjarei para te empregar como delegado de propaganda médica. E que todos se vão lixar!

- Aliciante - comentou Nicholson sem dissimular um certo cepticismo e uma evidente falta de entusiasmo.

- Muito! - prosseguiu Blandy. - De resto, se dependesse de mim, já teríamos dado meia volta.

- Isso nem sequer está em causa.

- No entanto, seria o mais sensato.

- Vou cumprir a minha missão. É talvez a minha única possibilidade de escapar à prisão.

- Não há forma de discutir contigo!

Blandy levantou-se e lançou uma olhadela à cama.

- Que pensas fazer com ele?

- Que queres que eu faça?

- Tens a intenção de o conservar e de o levar para Norfolk, ou quê? Evidentemente sempre se pode metê-lo no frigorífico...

- É por aí que logo se reconhece a linguagem dos médicos.

- Mais vale ver as coisas de frente. Pergunto-te o que pensas fazer de Duff, só isso e mais nada. Talvez fosse possível evacuá-lo pela represa de mergulho?

Nicholson bateu na testa.

- Louvado seja Deus! E dizer que não tinha pensado nisso! Contudo, é evidente!

- O que é que é evidente?

- Foi por essa via que fizeram desaparecer o cadáver de Belucci.

- Impossível. Forçosamente o teriam visto. Seria preciso descer o corpo até ao último andar!

- Não é de excluir essa hipótese.

- Estás a brincar. A abertura de uma represa não pode passar despercebida. Em todo caso, McLaren fatalmente teria notado qualquer coisa de anormal nos painéis de controlo. Não, o desaparecimento de Belucci continua a ser um enigma.

- Não pode haver enigma a bordo de um submarino!

- O que não impede que nos encontremos com dois cadáveres nos braços. Dito isto, o problema continua na mesma. Que fazemos com ele?

- Quero que tenha uma sepultura digna de um marinheiro. A cerimónia será celebrada amanhã de manhã.

- O que significa: ir à superfície.

- Sim.

Nicholson levantou-se. Teve de se apoiar à parede e fechou os olhos.

- Vai descansar - disse Blandy. - Não te preocupes com mais nada, eu encarrego-me de vigiar a enfermaria. Tens absoluta necessidade de dormir umas horas.

No dia seguinte de manhã, pelas dez horas, o Poseidon I vinha à superfície na bacia da Gronelândia. Por toda a parte blocos de gelo e os primeiros icebergues. A leste de Siptzberg, na frente deles, por baixo dos gelos eternos, o oceano Glacial Árctico. O campo de operações durante as próximas semanas: travessia do Pólo Norte em mergulho e depois o regresso à base nos Estados Unidos, pela baía de Baffin. Uma travessia do inferno.

Nicholson, que parecia ter recuperado plenamente depois de umas horas de sono, encontrava-se na torre com Curtis e Cornell.

- Preparado para ir à superfície? - perguntou pelo interfone.

- Aye, aye, Sir - respondeu o tenente Amare.

Um instante depois, o Poseidon I iniciava a subida. Pouco a pouco, fendendo as águas, a torre apareceu à superfície do oceano. Curtis abriu a escotilha e empurrou a placa de aço. Penetrou então o ar na torre, glacial, cortante, não obstante a maravilhosa luz do Sol.

Nicholson levantou a gola do casaco de couro forrado com pêlo de carneiro e trepou à ponte, seguido por Cornell e Curtis. Todos, como que movidos por algum reflexo vital, inspiraram profundamente.

- Que bom - apreciou Cornell. - Tem-se realmente a impressão de limpar os pulmões.

Nicholson contemplou a paisagem. O mar estava liso, de uma calma insólita.

- Até o oceano está de luto - observou ele.

Para os oficiais, aquela frase era como uma chamada à ordem: Não esqueçam a razão por que viemos à superfície!

- Está tudo pronto, Bernie?

- Sim, Sir.

- Então mande subir o comando.

- Aye, aye, Sir.

Cornell desceu para avisar os homens: eram doze em uniforme de gala. À frente, o tenente Black. Entre eles os melhores amigos de Duff: Jimmy Porter, Dustin Hollyday, Bill Slingman, Tami Tamaroo, os outros dois aspirantes da tripulação. Estavam reunidos em volta da maca sobre a qual repousava o corpo de Duff envolto num lençol, e ao qual estavam presos pesos.

- Não deveria ser envolvido numa bandeira? - sugerira o doutor Blandy meia hora antes.

Nicholson opusera-se a isso energicamente e, como os seus oficiais o fitassem com espanto e sem compreenderem por que opunha uma recusa categórica àquela suprema honra, tinha explicado:

- Não podemos eliminar a hipótese de os pesos se soltarem e de o corpo vir à superfície. A partir daí o estandarte americano seria revelador e não temos o direito de correr esse risco.

- O comando à ponte! - ordenou Cornell aos homens que esperavam.

Porter, Slingman, Hollyday e Tamaroo ergueram a maca.

No interior do navio os homens estavam nos seus postos em farda de gala e aguardavam. Os oficiais, esses, encontravam-se reunidos na ponte de comando.

O comando avançou pela ponte. Quatro homens à frente, quatro levando a maca, quatro fechando a marcha. Nicholson desceu com solene lentidão. Diante da maca, fez a continência.

- Herbert, nestas circunstâncias, afirmar-te que nunca te esqueceremos pouco sentido teria. Em contrapartida, afirmo-te que velarei para que isto não seja esquecido, para que o teu assassino compareça perante o seu juiz. É a única promessa que posso fazer-te. Falar aqui de honra militar, de solidariedade, de fraternidade, seria absurdo. A bordo do Poseidon a fraternidade já não existe. Embarcaste num navio que devia ser o orgulho da América. O Poseidon não é mais que um cilindro de aço abrigando trezentos dementes. Tu tinhas compreendido isso e foi o que provocou a tua morte. Deus seja contigo, Herbert Duff...

Nicholson ergueu a cabeça.

- Oremos...

- Não é possível! - exclamou Blandy que viera à ponte logo a seguir aos oficiais, que, a estas palavras se voltaram para ele com surpresa.

- Mas é verdade! Ele reza! Apesar de não acreditar em Deus!

A voz de Nicholson ressoava:

- Pai nosso que estás nos céus...

O frio tornava-se doloroso. Ao sol, os blocos de gelo ganhavam reflexos azulados. Terminada a oração, um silêncio absoluto reinou a bordo, até ao momento de se elevar a voz de Nicholson:

- Eu sei, Herbert, o ódio que tinhas ao mar. No entanto, vai ser a tua eterna morada.

A um sinal do comandante, Porter, Slingman, Hollyday e Tamaroo levantaram a maca. Um instante depois o corpo era engolido pelo oceano. Então, Cornell carregou num botão e, no posto onde McLaren esperava, acendeu-se uma luz vermelha. Pouco depois uma campainha soava por todo o navio. Em cada um dos compartimentos os homens levantaram-se e fizeram a saudação militar.

Naquele momento também o assassino estava de pé, prestando uma última homenagem à sua vítima.

- Pronto a mergulhar? - perguntou Nicholson.

Tem uma cara horrível, disse Blandy para consigo.

Devastada! Vamos viver semanas que provavelmente não esqueceremos tão cedo."

- Pronto, Sir! - respondeu Curtis.

- Abandonar a ponte! Todos os homens para os seus postos! Ninguém nas coxias! - ordenou Nicholson.

- Sir... ? - arriscou timidamente Bernie Cornell.

- Desapareça!

- Aye, aye, Sir...

Nicholson esperou um instante, depois voltou à ponte, onde só o doutor Blandy fora autorizado a ficar. Parecia transido de frio e dava palmadas vigorosas para se aquecer um pouco.

- Se julgas que me fazes um favor - rabujou ele -, desengana-te. A estes graus, já não se chama a isto ar fresco. Enfim... sabes que me fizeste uma dupla surpresa? Quando recitaste uma oração...

- Sim?

- Nunca te julgaria capaz disso.

- Um comandante deve ser capaz de tudo.

Nicholson verificou que já não se encontrava ninguém na torre e que a coxia principal estava deserta. Ao voltar encontrou Blandy ao lado do periscópio.

- Está mais quente aqui...

- Vai buscar as raparigas, Paul.

Blandy pareceu ficar assombrado.

- Ouvi mal?

- Vai buscar as raparigas e leva-as à ponte. Que respirem um pouco, que vejam o Sol...

- Jack! - exclamou Blandy com um sorriso radiante.

- Fora de brincadeiras, tu és mesmo maluco! Elas vão ficar eternamente reconhecidas, de certeza!

- Assim espero!

De súbito, Blandy que se preparava para ir levar a boa notícia à enfermaria, parou e voltou atrás.

- Há aí segunda intenção, não há?

- Porquê? Elas também têm o direito de lavar um pouco os pulmões, não têm?

Nicholson seguiu o médico com os olhos até desaparecer atrás de uma porta estanque. Depois, subiu à ponte de comando. No mar, os blocos de gelo cintilavam como diamantes. Oferecendo o rosto ao sol, Nicholson fechou os olhos. Qual seria a melhor solução?, perguntava a si mesmo. Aceitar a proposta de Blandy e transformar-se num delegado de propaganda médica ou pura e simplesmente meter uma bala na cabeça? Faltei aos meus deveres. No entanto, executarei até ao fim a missão que me foi confiada. E depois? Não quero ter ilusões, a minha vida já não terá sentido pois nunca eu vivi que não fosse para servir a Marinha dos Estados Unidos.

Escutando sons de passos, perfilou-se e esperou. Foi Dorette quem primeiro apareceu. Tal como as suas companheiras e obedecendo ao doutor Blandy, vinha envolvida numa manta. Joan e Lill seguiram-na, depois Evelyn, por fim, Monika e Blandy. Uma vez na plataforma, aconchegaram-se friorentamente nos cobertores e contemplaram a paisagem com tal fascínio que não notaram a presença do comandante atrás delas.

- Fabuloso! - apreciou Joan com entusiasmo. - Decididamente creio que nunca lamentarei este cruzeiro.

- Aproveite-o bem - disse Nicholson. - Porque este cruzeiro, como lhe chama, já custou duas vidas humanas.

Todas se voltaram. Evelyn foi a primeira a dominar o abalo.

- Devíamos ter desconfiado - disse ela em tom azedo.

- Tinha evidentemente de estar aí para estragar tudo.

Nicholson aproximou-se do grupo.

- Eu pretendia apenas mostrar-lhes a última morada do aspirante Herbert Duff - disse ele, enquanto o seu olhar se detinha involuntariamente em Monika.

- Então é verdade... Mais um morto...

- Sim. Há apenas um instante o corpo do jovem Herbert Duff foi lançado ao mar, com lastro bastante pesado para que nunca mais volte à superfície...

- Qual a razão desta representação, Sir? - cortou Joan.

- Não fomos nós que o assassinámos.

- Sem dúvida. Mas sabem por que razão ele foi morto. Se lhes permiti que viessem até aqui não foi apenas para que pudessem respirar um pouco de ar fresco, mas também para lhes dar oportunidade de reflectir no vosso comportamento e na conduta que conviria adoptar no futuro.

- Você fechou-nos como animais ferozes! Que mais quer? - gritou Lill. - Pelo que conheço de si, continuaremos enclausuradas até ao regresso. Durante meses! Você é um louco, um maníaco perigoso!

- Aqui, minhas senhoras, tenho todos os direitos - retorquiu Nicholson. Depois, vendo as horas. - Concedo-lhes mais cinco minutos para aproveitarem o sol. Após o

qual mergulharemos e só voltaremos à superfície depois da travessia do Pólo Norte.

- E se nos opusermos a isso? - sugeriu bruscamente Joan.

- Como?

- Bem, por exemplo, recusarmo-nos a abandonar a ponte... Hem, que diz? Se nos recusarmos a voltar a esse chiqueiro que tem o descaramento de baptizar como enfermaria? Se não nos mexermos daqui, muito simplesmente? É claro como o dia, não poderá mergulhar, Super-Homem!

- Não? E quem me impediria? - respondeu Nicholson com uma fleuma soberana.

- Deixaria que nos afogássemos?

- Se for obrigado a isso, sem dúvida. Pelo que parece ainda não compreenderam que a meus olhos nada tem importância senão o meu submarino e a minha missão.

Ao pronunciar estas palavras, Nicholson não pôde deixar de voltar a cabeça para Monika que correspondeu ao seu olhar com um sinal de conivência.

- Darei ordem de mergulhar - prosseguiu Nicholson. - Dois mortos ou sete, já não tem importância alguma.

Ela sabe que nunca o farei, pensou ele. Ela compreendeu que tento simplesmente fazer bluff, pois não tenho outra solução.  Olhou o relógio.

- Os cinco minutos passaram. Desçam!

- De maneira nenhuma! - afirmou Lill Petersen desafiando o comandante com o olhar. - Quanto a mim, daqui não me mexo. Não se incomode, mergulhe! Um dia o mundo inteiro saberá que um submarino da Marinha dos Estados Unidos era comandado por um assassino!

- Se não descem por vossa livre vontade, muito bem, recorremos à força.

- Seria tão bom! Tenho curiosidade em saber qual é o homem que ousará levar-me nos braços... - replicou Dorette com um sorriso vencedor.

E Evelyn às gargalhadas e a reforçar:

- Muito bem, comandante, de que está à espera? Chame-os seus homens. Os mais atléticos de preferência! Nós vamos esperá-los a pé firme!

Até Monika participou na hilaridade geral.

- Como quiserem - disse Nicholson voltando-lhes as costas. - Venha, doutor.

Blandy hesitou, olhou as raparigas que se apertavam umas contra as outras para terem um pouco menos de frio e, finalmente, foi atrás de Nicholson praguejando. Uma vez dentro do navio, reteve o comandante agarrando-lhe a manga do casaco de couro.

- Jack! - disse ele em voz rouca. - Tens realmente intenção de mergulhar?

- Evidentemente. Parece-me que não poderia falar mais claramente.

- Não, tu não irás até ao fim.

- Não vais tardar em saber. Dentro de três minutos exactamente. Fechaste a escotilha?

- Não. Eu...

- Queres largar-me? Uma vez que não o fizeste, eu próprio fecharei. Depois, dou sinal.

Longe de ceder à imposição de Nicholson, Blandy com mais força o agarrou.

- Tu serias capaz de deixar que se afogassem. Farias isso? E Monika?

- Monika o quê?

- Ela... aquela com quem sonhas, a que é a tua obsessão, embora não o ouses confessar porque és o comandante!

Nicholson repeliu o médico violentamente.

- Estás a delirar, Paul. Decididamente a demência é contagiosa!

- És tu quem está louco. Não te deixarei cometer um crime tão monstruoso!

Nicholson não respondeu. De súbito atacou-o. O murro atingiu Blandy na boca do estômago. Foi seguido por um segundo soco, mais violento, no queixo. O médico cambaleou. Então Nicholson empurrou-o brutalmente, depois subiu ao cimo da torre e deixou cair a tampa da escotilha.

Fora, na ponte, as raparigas viram rodar os ferrolhos.

Foi naquele momento que compreenderam o que ia acontecer. Logo Joan se pôs a gritar e, agarrando-se a Monika, afirmou:

- Ele vai mergulhar! É isso mesmo que faz. Vai afogar-nos. Socorro! Socorro!

- Não irá até ao fim - afirmou Lill com uma calma surpreendente. - Está a fazer bluff, mais nada. Pensem em vez de piarem. Ninguém cometeria crime tão monstruoso! Nem um comandante da Marinha dos Estados Unidos...

- E se o submarino começa a mergulhar? Depois será tarde de mais.

- Vai ser tudo muito rápido - assegurou Monika. – Basta o contacto com a água gelada... O efeito será fulminante. Sim... tudo se passará muito mais depressa do que vocês pensam.

Então, Evelyn pôs-se a gritar:

- Mas eu não quero morrer! - Precipitou-se para a escotilha, ajoelhou-se e começou a martelar com os punhos a placa de aço. - Abra! Abra! Eu farei tudo o que quiser!

Mas abra!

Dorette, essa, parecia paralisada e chorava baixinho. Imitando a sua companheira, Joan, por sua vez, correu para a escotilha e juntou os seus gritos aos de Evelyn.

- Abra!

- Nunca ele fará tal coisa - repetiu Lill. - Nunca. Ainda que fosse apenas por ti, Monika.

- Que queres dizer com isso?

- Eu ouvi-o chamar-te na outra noite. Vocês imaginavam que estávamos todas a dormir. Mas não, eu não dormia. Tu ficaste muito tempo com ele... o tempo suficiente em todo caso...

- Ficámos na sala de espera e falámos. Ele explicou-me a sua situação. É por esta razão que sei que não hesitará em mergulhar. Estou desolada, Lïll. Mas estás ainda com doces ilusões, agarras-te a uma esperança inteiramente quimérica.

As duas mulheres encararam-se, medindo-se com o olhar.

Depois, Lill, tal como as outras, pôs-se a tremer.

- Nenhum ser humano seria capaz de semelhante monstruosidade - balbuciou ela. - Nenhum...

- Abra! - gritavam Evelyn e Joan martelando na escotilha. - Abra!

Uma trepidação percorreu o submarino. Instantaneamente, as raparigas pararam de gritar... no silêncio que de imediato voltou pareceu-lhes ouvir uma campainha no interior do navio. Vagas apareceram à superfície da água, espuma se formou. Os motores trabalhavam.

- Aí está! Vamos mergulhar! - disse Lill em voz surda.

Ao lado dela, Dorette caiu de joelhos e começou a rezar. Evelyn e Joan voltaram a gritar. Os seus gritos eram agora tão agudos e a tal ponto insuportáveis que Monika instintivamente tapou os ouvidos.

Irá realmente até ao fim, pensou ela. Eu não te imaginaria capaz de tal crueldade, Jack. Amo-te, apesar de tudo. Compreendo-te, certamente. Este navio é mais importante do que tu e eu. Faz isso depressa, Jack. Depressa. Não esperarei para ser engolida. Não. Atirar-me-ei da ponte de cabeça para baixo, esmagar-me-ei. Não quero ver a morte a chegar lentamente, serei eu a ir ao seu encontro.

Virou a cabeça para o Sol e fechou os olhos. Os últimos segundos. Apesar de tudo, como era belo o mundo!

 

No posto de comando, o doutor Blandy estava abatido num tamborete, olhar vazio, a sangrar do nariz. Sentia confusamente a trepidação e o murmúrio das máquinas. A lâmpada vermelha por cima da instalação do interfone piscava, indicando que alguém procurava entrar em comunicação com Nicholson, que, no entanto, o ignorou.

Encostado â divisória, o comandante estava atento ao relógio electrónico. Podemos deixá-las fora uns dez minutos, disse para consigo. Não correm o risco de morrer de

frio em tão pouco tempo. Quanto ao resto o doutor cuidará delas. O essencial é que a experiência lhes seja proveitosa, que compreendam finalmente a gravidade da situação.

- Tão cedo não esqueço o que fizeste! – afirmou Blandy em voz rouca quando começou a recuperar o fôlego. - É realmente a mais infame patifaria que alguma vez

conheci!

A lâmpada vermelha piscava obstinadamente. Decidindo-se a responder, Nicholson carregou numa das teclas do interfone. Imediatamente se fez ouvir a voz de McLaren:

- Sir, que se passa? Deu o sinal de alarme. De que estamos à espera para mergulhar?

- Dentro de um instante darei ordem. Mais um minuto de paciência, Victor. Terminado.

- Terminado, Sir...

Nicholson voltou-se para Blandy que, prudentemente, dava massagens ao estômago com um esgar de dor.

- Podes ir buscar as raparigas. Passaram os dez minutos... e são dez minutos de que hão-de lembrar-se toda a vida.

Blandy fez uma careta de repugnância.

- Não passas de um sádico. Um ignóbil perverso! Na realidade, nunca tiveste intenção de mergulhar.

- Efectivamente, é ideia que nem sequer me passou pela cabeça. Por quem me tomas? Não sou um assassino. Quis apenas dar-lhes uma lição e espero que venha a dar os seus frutos.

Blandy levantou-se lentamente, como se o fizesse com precaução. Era mais alto que Nicholson uma cabeça e, a julgar pelo arcaboiço, devia ter bem o dobro do seu peso.

Mas não era altura para tirar partido desta superioridade:

Nicholson estava atento, de punhos fechados.

- Um abalo destes! Era caso para atirar fosse lá quem fosse para o hospital de doidos! Uma vez que também és capaz de beatices, reza para que aquelas raparigas tenham nervos sólidos! Senão, juro-te que o pagarás caro!

Blandy saiu atirando com a porta atrás de si e escalou a escada que dava acesso à escotilha superior. Lá fora, sobre a plataforma, os gritos tinham-se calado. Esgotadas, transidas, as raparigas estavam deitadas ou acocoradas, totalmente inertes. Não reagiram ao verem aparecer o médico, mas fixaram nele um olhar vazio de expressão.

Sem hesitar, Blandy aproximou-se primeiro de Evelyn, carregou-a às costas e desceu com o seu fardo. Ao passar em frente da porta do comandante, atirou um violento pontapé à porta.

- Vem ajudar-me ao menos! Elas já estão transformadas em cubos de gelo. Podíamos arrancar-lhes o nariz ou as orelhas como se nada fosse. Sádico!

Nicholson esperou que o médico tivesse desaparecido para, por sua vez, subir ao alto da torre. Tal como as suas companheiras, Monika estava prostrada e coberta de gelo.

- Anda - disse ele.

Levantou-a e, tal como fizera Blandy, carregou-a às costas. Preparava-se para descer a escada quando Joan lhe agarrou o artelho, esforçando-se por o reter com toda a energia do desespero.

- Eu volto - garantiu Nicholson libertando-se.

A caminho da enfermaria cruzou-se com Blandy.

- De modo algum se aproxime do aquecimento - ordenou ele a Monika que conseguia caminhar, amparada por Nicholson.

- Eu sei - murmurou ela. - Vou enrolar-me em cobertores.

Cinco minutos depois todas as raparigas tinham voltado à enfermaria e estavam prostradas nas camas, os corpos a tremer debaixo das mantas. Na sala ao lado o enfermeiro-chefe Blides fazia chá. Estava muito decidido a não arriscar o menor comentário depois de Blandy ter respondido às suas tímidas perguntas com uma explosão de cólera:

- Vai fechar a boca, ouviu? Não viu nada, não se passou nada, entendido? A menor indiscrição, não é difícil, corto-lhe a goela. O seu interesse é tê-la fechada!

Blides estava habituado às reacções de Blandy e tinha o hábito de não se impressionar. Tudo o que sabia era que se dera um acontecimento insólito que devia manter-se secreto. Contentou-se em executar as ordens do médico sem procurar saber mais, mas sem por isso esconder a sua reprovação. Aquelas raparigas podiam ser ninfomaníacas histéricas em último grau, mas mesmo assim não mereciam o tratamento de choque a que visivelmente tinham sido submetidas.

- Olha que escaparam por pouco - resmungou Blandy.

De mãos trémulas, as infelizes tiveram dificuldade em levar à boca as chávenas cheias de chá a escaldar.

- Eu sei... - admitiu Nicholson.

Encolhendo os ombros, saiu da enfermaria e foi para o seu gabinete, seguido por Blandy... manifestamente decidido a regularizar as contas e a espremer o abcesso.

- Dadas as circunstâncias, posso exigir que sejas destituído e que Bernie Cornell assuma o comando! És realmente o pior lixo que conheci na Marinha.

- Talvez - respondeu placidamente Nicholson instalando-se diante da bancada de comando. - Mas neste caso não vejo aquilo que esperas. Se têm a intenção de organizar um motim, não façam cerimónia. Anunciarei ao almirante que Cornell assumiu o comando, retirar-me-ei para o meu camarote e esperarei. A roupa suja será lavada à volta, em Norfolk. Pessoalmente, não fiz mais que o meu dever.

- É muito fácil entrincheirarmo-nos atrás do dever, isso permite desculpar tudo. Não te livrarás com fórmulas vazias. Vou depor contra ti, farei tudo para que pagues por isto!

- À tua vontade. Quanto a mim, afirmo que agi unicamente em nome da paz mundial. O Poseidon não é um bordel, está armado com mísseis ULMS, mais claramente, com mísseis submarinos de longo alcance. Tens uma noção do que isto significa?

- O quê...?

- São mísseis com comando electrónico guiados por satélites. Dispositivos de interferência e de logro permitem-lhes furar os sistemas de defesa mais aperfeiçoados. Têm um alcance de tiro imenso, ao ponto de poderem mesmo atingir a União Soviética. Ora eles medem seis metros de comprimento por um diâmetro que não ultrapassa os cinquenta centímetros. O tiro pode ser corrigido durante o percurso, e daí uma precisão inigualável.

- O Poseidon está equipado com armas tão terríveis?

- Está. São armas que nada as pode deter, elas escapariam aos radares inimigos.

- Aterrorizador...

- Velhaco imbecil, compreendes agora que responsabilidade eu trago às costas?

Nicholson pôs um dedo por cima da tecla de mergulho.

- E agora desaparece! Vai organizar o motim e não faças cerimónia.

Carregou no botão. A ordem foi imediatamente repercutida por todos os postos-chave do navio. Uns segundos depois o submarino afundava-se nas águas.

Blandy sacudiu-se tal como um cão molhado.

- Se soubesse não era eu quem punha os pés nesta galera... Quem está ao corrente?

- Unicamente os homens que directamente a isso estão ligados. Dez ao todo. E prefeririam ficar em carne muito bem picada a divulgar a mais pequena ponta de informação.

Nicholson carregou no botão do interfone comandando a ligação simultânea com os principais oficiais de serviço.

- Todos os oficiais ao seu posto! - ordenou. – Quem está de serviço na Central?

- Eu, Sir - respondeu Bernie Cornell.

- Sir, mantemos a mesma rota? - perguntou Collins.

- Sem alteração.

Nicholson cortou a ligação.

- Quando se pensa que por baixo da calote de gelo existe uma profundidade de cinco mil e duzentos metros – disse ele em tom indiferente. - Provavelmente uma das regiões do mundo que praticamente não permite nenhuma esperança de regresso a quem tenha a desgraça de por ali se aventurar...

Blandy compreendeu a alusão. Preferindo não responder, contentou-se em soltar um vago resmungo e voltou à enfermaria.

Uma hora depois o próprio Nicholson vinha saber notícias. Como anteriormente, um homem armado estava de guarda à porta, desta vez o quartel-mestre Flaggy, pai de quatro filhos e um dos raros a não ter perdido a cabeça e que se esforçara por incitar os outros à calma e à razão.

- O que há de novo, Flaggy? - perguntou Nicholson.

Flaggy sorriu com todos os dentes.

- Nada, Sir. Só o doutor é que tem muito que fazer.

Duas das raparigas tiveram uma crise de nervos. Não se cansam de soluçar.

- Vão recompor-se.

Blides continuava a fazer chá, mas desta vez com uma garrafa de rum ao alcance da mão.

- Ordem do doutor, Sir - explicou ele ao ver o olhar crítico de Nicholson. - Um pouco de álcool as ajudará a esquecer os momentos penosos: nada de melhor para expulsar as más lembranças. O doutor deu-lhes tranquilizantes, mas aparentemente fazem tanto efeito como uma aspirina. Talvez o rum seja mais eficaz. Em todo caso, como diz o doutor, não custa nada experimentar.

Nicholson aquiesceu e entrou. As raparigas estavam deitadas, enroladas em cobertores. Na realidade, duas delas, Joan e Evelyn, soluçavam convulsivamente, soltavam gemidos e tremiam ao ponto de a cama vibrar. Blandy, sentado perto de Evelyn, segurava-lhe a mão e, à maneira de um psiquiatra, falava-lhe com voz ao mesmo tempo implorante e monótona. Voltou-se bruscamente ao ouvir a porta bater

atrás de si.

- Podes gabar-te de ter feito um bom trabalho! – disse ele ao ver Nicholson. - É um traumatismo de que talvez fiquem marcadas por toda a vida. Francamente, começas a meter-me medo.

- Depois da cura de álcool que lhes prescreveste, isso desaparecerá.

Nicholson foi sentar-se na cama de Monika. Ela olhou-o sem uma palavra, com a mesma expressão incrédula que tivera uns instantes antes quando ele viera buscá-la à plataforma.

- Tens o direito de exigir uma explicação... - começou ele.

Primeiro, ela calou-se, depois, em voz surda, como se lhe causasse um penoso esforço, disse:

- Não compreendo por que não deste ordem para mergulhar.

- Julgaste-me capaz disso?

- Julguei.

- Monika...

- Tentei compreender, aceitar, creio mesmo que consegui. Mas agora já não entendo.

- Monika, eu amo-te - disse ele muito baixo para que Blandy não o pudesse ouvir.

Aliás, não podia recear ser ouvido. Os gritos e soluços de Evelyn e Joan abafavam todos os outros sons. Quanto a Lill e a Dorette, dormiam profundamente, esgotadas pelo choque que acabavam de sofrer.

- Monika... menti por tua causa, foi por ti que transmiti falsos relatórios, modifiquei a rota. De regresso, serei julgado e condenado. Não serão provas bastantes?

- Mas que vai acontecer? Há-de chegar o momento em que não conseguirás aguentar a tripulação. Não será culpa deles, certamente não são eles que é preciso acusar. Eles são bons tipos, tipos formidáveis mesmo, capazes de te acompanharem sem pestanejar, até nesta travessia do inferno. Agora elas, conheço-as. Elas praticam a caça ao homem como um desporto. Tudo o que as interessa é pôr os homens completamente loucos. Elas consideram o amor como um jogo no qual não podem perder. Se julgas que as curaste, desengana-te. Daqui a uns dias terão esquecido tudo. E recomeçarão a ridicularizar-te. O mesmo carrossel... Eu conheço-as. Na Tailândia assisti a episódios loucos. São obcecadas, completamente obcecadas. Já te preveni: elas são incapazes de reflectir e não serás tu que as obrigarás a pôr a funcionar a sua massa cinzenta.

Sem responder, Nicholson afagou os cabelos de Monika, depois o rosto, a nuca. Como lhe tocasse nos seios, ela repeliu a mão.

- Não, isso não. Ou então, também tu correrás o risco de perder a cabeça.

- Se somos obrigados a separar-nos... antes, gostaria de sentir que me amas. Esta noite...

- Não, Jack, não é possível. Isso tornaria a situação ainda mais difícil.

De repente bateram à porta. Nicholson retirou rapidamente a mão e levantou-se. Blides trazia mais chá. Logo o cheiro a rum se espalhou por todo aquele espaço.

- Muito bem, Blides - disse Blandy. - Eis o que vai dar a estas encantadoras jovens a chicotada salutar. Acho que isso também não me fará mal. E tu, Jack, não queres?

- Não posso recusar.

Blandy levantou-se e tirou o recipiente das mãos de Blides, que lhe lançou um olhar quezilento, furioso por se sentir excluído. Mas absteve-se prudentemente de qualquer recriminação e saiu. À maneira de consolação, bebeu uma grande golada de rum pelo gargalo, enquanto na outra sala Blandy começava a servir o chá aromático.

- Pelo menos não tive tempo de me aborrecer! Primeiro, meti as cinco debaixo do duche... Repara que o espectáculo nada tinha de deprimente. Criaturas de sonho, digo-to eu. De futuro, se tiverem precisão de alguém para lhes enxugar as costas, não serei o último a oferecer os meus serviços. Blandy está sempre pronto! Enfim, isto merece realmente uma boa golada de rum!

Pousou duas chávenas na mesinha-de-cabeceira ao lado de Monika e voltou para junto de Evelyn, seminua na sua cama. Ajudou-a a levantar-se, amparou-lhe a cabeça e fez com que bebesse. Ela obedeceu como uma criança, engolindo o líquido aos golinhos. Se bem que só o visse de costas, Nicholson sentiu a que ponto Blandy exultava.

Também ele", pensou com espanto. Também ele! Até ele não estava defendido, até ele, Blandy, corria o perigo de sucumbir!"

Olhou Monika que bebia tranquilamente o líquido ardente. Compreendeu então a omnipotência da mulher. A mulher tinha o poder de abrir ao homem um novo universo, de o arrastar para outros céus, de lhe encantar anos da sua vida. Sem que nada nem ninguém a tal se pudesse opor...

De súbito, Nicholson passou à sala contígua onde surpreendeu Blides preparando-se para beber pelo gargalo.

Mas tinha outras preocupações na cabeça. E precipitou-se para o interfone, carregou em todos os botões e esperou até ter a certeza de que todos os oficiais estavam a ouvir.

- Reunião de oficiais dentro de meia hora! Collins!

- Aqui, comandante.

- Mudança de rota. Faça rumo para a costa gronelandesa.

- Bem, Sir... Mas isso implica que...

- Eu sei! Repito: mudança de rota.

- Aye, aye, Sir.

Quando Nicholson se voltou, Blandy estava atrás dele, sem fôlego e a cara a brilhar de suor.

- Que significa isso, Jack?

- Vais sabê-lo dentro de meia hora. Não tenho intenção de repetir.

Quando Nicholson entrou no refeitório dos oficiais uma meia hora depois, todos eles o esperavam de pé em frente da mesa. Saudou-os com um aceno de cabeça. O ambiente estava tenso, sentia-se à flor da pele.

Nicholson lançou uma carta para a mesa e desenrolou-a. Depois, sentou-se, sem no entanto convidar os oficiais a fazer o mesmo.

- Senhores, após madura reflexão cheguei à conclusão de que só existe uma possibilidade de salvação tanto para nós como para as mulheres recolhidas a bordo. Afirma-se como indispensável e urgente sanear a atmosfera que reina actualmente. É imperativo restabelecer a ordem o mais depressa possível. Os acontecimentos recentes constituem uma prova mais que suficiente do perigo mortal a que nos exporíamos se não tomarmos medidas enérgicas. Cornell...

- Sir?

- Sei que alimenta o projecto de um dia tomar o comando deste submarino. Não se pode negar que é um excelente oficial, mas posso garantir-lhe que no estado actual esta "passagem de poderes" teria inevitavelmente consequências catastróficas. Atrevo-me a esperar que disto esteja consciente. Lembro-lhe que sou o único a bordo a estar exactamente informado da natureza das armas secretas com que o Poseidon está equipado.

Nicholson elevou a voz e, encarando sucessivamente cada um dos seus oficiais, declarou:

- Não aceitarei em caso algum que pela sua inconsciência alguns energúmenos possam ameaçar a paz mundial. Estou a ser bastante claro?

- Perfeitamente, Sir - respondeu Bernie Cornell em nome dos oficiais, e, mau grado seu, corou ligeiramente.

Então, Nicholson indicou um ponto na carta:

- Uma estação-radar da NATO está localizada na costa da Gronelândia. Aqui, exactamente. É aí que decidi desembarcar as náufragas. Será para elas a melhor garantia de segurança. Penso que todos vão aderir a esta proposta.

- Que eu saiba temos de manter segredo absoluto, mesmo em relação à NATO - objectou McLaren. – Se viermos à superfície nesta região, seremos forçosamente detectados.

- O que evitaremos se nos mantivermos em mergulho. Exacto?

- A responsabilidade é toda sua, Sir!

- Efectivamente assim é.

Nicholson inclinou-se para a carta.

- Collins, peço-lhe...

Collins inclinou-se por sua vez.

- É aqui que está situada a estação VÉNUS XI. Curioso nome neste ponto retirado do globo onde os homens são obrigados a viver como eremitas.

- Pelo menos não ficarão descontentes por verem desembarcar mulheres! - comentou Curtis. - A minha opinião é que os rapazes da VÉNUS XI vão andar distraídos durante algum tempo.

Esta tentativa de gracejo não encontrou eco algum. Collins estudou atentamente a carta, depois abanou a cabeça.

- Impossível, Sir. A estação está instalada na zona glacial. Não há acesso até ela. De resto, mesmo no Verão, a VÉNUS XI é abastecida por via aérea.

- Então fazemos rumo mais a sul.

- Seja, mas o problema é o mesmo.

- Não, estas jovens poderão ter acesso à estação por outros meios. Faça os cálculos necessários, Collins, e traga-me os resultados o mais depressa que puder. Viremos à superfície logo que encontrarmos águas livres.

- Não será fácil.

- Mas possível é.

Nicholson enrolou a carta e levantou-se.

- A bordo tudo é possível, é coisa que parece estar demonstrada e todos agora o deverão saber - acrescentou em tom ameaçador.

Naquela noite, pelas três horas, Nicholson entrou na sala de espera da enfermaria. Tendo usado e abusado do rum, Blides ressonava. O homem encarregado de ficar de guarda à porta também adormecera na sua cadeira. O barulho provocado por Nicholson quando abriu a porta não o acordou.

O comandante deslizou no escuro e aproximou-se silencioso da cama de Monika. Não obstante as suas precauções, tropeçou e esbarrou na cabeceira da cama. Com o barulho, Monika acordou em sobressalto.

- Sou eu, Jack - murmurou ele.

Aproximou-se às apalpadelas, sentou-se junto dela e quis envolvê-la nos braços.

- És louco! - murmurou ela.

Mas apesar da sua fraca resistência, ele apertou-a contra si e beijou-a.

- Eu pensava que o comandante tinha sempre de dar o exemplo!

- Mas de quando em quando tem o direito de ser um homem como os outros. Peço-te, Monika...

- Não é possível, Jack. Sabes tão bem como eu.

- Porquê...?

- Porque dedicaste a tua vida à Marinha. Uma mulher só vem atrapalhar-te.

- Sabes muito bem que esta viagem é a última. No regresso já não serei senão Jack Nicholson. Blandy até se ofereceu para me arranjar trabalho... talvez como inspector

médico.

Beijou-a de novo e afagou-lhe os ombros.

- Aceitarias viver com um delegado de propaganda médica?

- Aceitaria fosse o que fosse, Jack. Mas nunca eles te deixarão sair tão facilmente. Sabes demasiado. Não... por favor...

- Já não temos muito tempo, Monika. Neste momento fazemos rumo à costa gronelandesa. É lá que vão desembarcar. Alcançarão uma estação-radar da NATO onde ficarão em segurança. Estaremos quase um ano sem nos vermos. Peço-te um favor: vai para Norfolk e espera por mim. Se vires um marinheiro sair da base a pontapés num sítio que eu cá sei, serei eu. Resta-nos muito pouco tempo, Monika. Dentro de algumas horas serei de novo comandante..,Monika...

- Tenho medo - murmurou ela em voz que mal se ouvia.

- Medo do amor?

- Medo de te amar como nunca amarei outro homem na minha vida. Então ficarei a bordo, perto de ti, e ninguém conseguirá impedir-me... nem mesmo tu!

- É muito tarde, mesmo muito tarde. Mais três, quatro, talvez cinco dias. Mais não. Mas para quê pensar nisso? Para quê atormentarmo-nos em vez de vivermos plenamente os poucos momentos que nos restam? Só a nós pertencem... Só a nós, Monika...

Afagou-a demoradamente, ternamente, até sentir o corpo dela a descontrair-se. Então ela correspondeu às suas carícias, procurou os seus beijos, e amaram-se, sem pressa, sem uma palavra, com uma infinita doçura.

Uma hora depois, Nicholson saía da enfermaria nas pontas dos pés. Blides ressonava cada vez mais. A sentinela também continuava sem acordar. Nicholson parou e acabou de abotoar a camisa.

De súbito ouviu uma voz rouca atrás dele:

- Foi bom?

Voltou-se. Blandy contemplava-o ironicamente a fumar um cigarro. A porta do seu quarto estava aberta.

- Paul, tenho de te explicar...

Nicholson entrou no quarto de Blandy e teve o cuidado de fechar a porta atrás de si.

- Deixa, não contes nada! Não vejo razão por que um comandante não tenha os mesmos problemas de um simples marinheiro. Pior que a nostalgia, hem? Palavra de honra, que te entendo, Monika é um torrãozinho. Eu aproveitaria bem a noite. Além disso, vocês fazem na verdade um par ideal: aquela pequena tem os nervos tão sólidos como tu. Na cama, evidentemente, não sei...

- Tu não compreendes, Paul. Amo-a. Qual a razão desse sorriso idiota? Amo-a verdadeiramente. E se queres saber tudo, tenho a intenção de casar com ela. Diga-se entre parênteses, reflecti na tua oferta: aceito-a.

- Estou a sonhar! Tu, casado? Que mos cortem se alguma vez uma mulher conseguir enfiar-te a aliança no dedo!

Blandy abriu uma gaveta e de lá retirou uma garrafa de conhaque.

- Continuas a pensar em desembarcá-las na costa da Gronelândia? A futura senhora Nicholson vai aprender a construir um iglu? Ou resolveste, por fim, conservar aquelas damas a bordo?

- Não mudei de opinião.

Nicholson apoderou-se da garrafa, tirou-lhe a rolha e levou-a à boca. Estendeu-a a Blandy depois de ter bebido um grande gole.

- Já nada me fará alterar os planos!

- Então o vosso idílio, ah como é comovente, mal começou já vai ter termo?

- Não, é apenas o começo. Monika esperará por mim em Norfolk.

- Então imaginas que os rapazes da VÉNUS XI vão deixar fugir presa tão miraculosa?

- Tenho confiança nela - afirmou Nicholson com uma expressão de rapazinho apaixonado. Agora, vês, tenho uma finalidade na vida.

- Sim, a travessia do Pólo Norte.

- Não é uma finalidade. Não faço mais que executar ordens. Mas, à volta, uma vez cumprida a minha missão, começarei verdadeiramente a viver.

Mais uma vez Nicholson pegou na garrafa, mas antes de beber, acrescentou:

- Até agora nunca tinha compreendido quanto uma mulher pode representar para um homem.

- Nem o que uma mulher pode fazer de um homem! rosnou Blandy.

O choque tivera um efeito salutar nas raparigas que tinham serenado e se comportavam com mais civismo. Só Nicholson era agora acolhido com olhares cheios de ódio e, quando ele entrava na enfermaria, Joan, com a habitual elegância, escarrava-lhe para os pés para melhor exprimir o seu desprezo.

Com Monika, Nicholson contentava-se em trocar olhares furtivos, se bem que Blandy, generosamente, propusesse pôr o seu quarto à disposição dos apaixonados. E precisar, muito paternalmente:

- Lá estariam mais em segurança. Sem contar que a cama é resistente. Sólido aquilo, meu caro senhor! Repara que nem range quando eu me atiro para cima dela com todo o meu peso! Aguentaria bem com um par de namorados em plena acção.

- Eu pensava que o assunto estivesse encerrado - respondeu Nicholson dignamente.

- Já? Isso é para rir? Não te ponhas com tantas esquisitices, Jack. Sou teu amigo, podes ter confiança em mim e...

- Chega! Fazes favor? Tenho outras preocupações na cabeça.

- Pensaste no que tens de dizer ao almirante?

- É problema meu.

- As minhas desculpas, monsenhor.

Enfim, pelo quinto dia, Collins anunciou que o Poseidon já só se encontrava a cento e vinte milhas da estação VÉNUS XI. A sorte permitia sorrir: tinha-se atingido uma zona livre, um buraco, dizia Collins, onde era possível vir à superfície. Misterioso capricho da natureza...

- A tripulação está ao corrente? - perguntou Nicholson.

- Ainda não, Sir.

- Então, nem uma palavra antes de virmos à superfície.

Que Cornell organize um comando que acompanhe as raparigas e fique com eles até termos notícias precisas da VÉNUS XI. Até os voluntários só podem ser informados quanto à sua missão no último momento.

- Aye, aye, Sir.

De novo sozinho com Blandy, Nicholson soltou um fundo suspiro.

- E acabou-se, Paul, daqui a duas horas estará tudo dito. Temos uma sorte insolente.

- Há um deus para os apaixonados! - troçou Blandy.

- Espero que vás ter direito a despedidas comoventes. A propósito, a minha oferta continua válida...

- Julgo ter-te dito já que o assunto estava encerrado. Em vez de troçar farias melhor em ir anunciar a notícia às tuas protegidas.

- Elas já estão a par de tudo. É inútil acrescentar que te arrastaram pela lama. No entanto, aceitaram de bom grado: jurei-lhes que VÉNUS XI era local de machos soberbos e generosos.

- Vais acompanhá-las? - inquiriu Nicholson de súbito.

Blandy teve um sobressalto.

- Onde? - perguntou com uma falsa ingenuidade desconcertante.

- Onde queres que seja? À estação, evidentemente!

- Não vejo o que iria lá fazer. Não falando do horror que sempre tive pela neve!

- Acho que seria mais prudente ficares com elas até a VÉNUS XI ter enviado trenós, por outras palavras, até sabermos que estão em segurança. Isso pode levar três ou quatro dias.

Blandy encolheu os ombros, querendo dizer que, de qualquer modo, entre a neve e o caixão de aço a escolha lhe era indiferente.

- Também vens? - perguntou ele.

- É questão que nem se coloca. Um comandante fica a bordo!

Blandy soltou um suspiro e, fingindo indignação:

- O que eu pergunto é como uma mulher se pode apaixonar por ti. Lamento-a em todo caso. A hora da despedida definitiva talvez tenha soado e tudo o que tens para dizer é: Um comandante fica a bordo! Um computador não seria menos romântico. Mas deixemos... Iremos à superfície dentro de quanto tempo?

- Pouco... - respondeu evasivamente Nicholson.

Cinco horas depois, o Poseidon atingiu o buraco, localizado por Collins. Pararam as máquinas. Então, Bernie Cornell anunciou ter recrutado quinze voluntários.

- Prepare todo o equipamento necessário para quatro dias - disse Nicholson. - Baseie-se no plano L I.

- Aye, aye, Sir.

O plano L I fora estabelecido na previsão de uma eventual avaria no decorrer da travessia do pólo e nada faltava ao equipamento de sobrevivência necessário em tal caso. Havia a bordo tendas, colchões de penas, aparelhos de aquecimento, baterias portáteis, caixas de ferramentas, trenós em peças separadas, emissores-receptores, casacos de pele, botas, álcool... Uma enfermaria estava até prevista para trezentos homens. O barco pneumático equipado com um potente motor fora de borda estava pronto para ser lançado à água. Entre os quinze voluntários encontravam-se Bill Slingman e Tami Tamaroo. Os homens esperavam na coxia, tudo ignorando ainda da sua missão.

Na enfermaria, o doutor Blandy acabava de preparar as raparigas para a prova que as esperava. Felizmente estavam muito mais calmas do que ele esperava. Dorette foi a única a preocupar-se com o perigo.

- Para vós, minhas senhoras, que sois gulosas de aventuras - disse Blandy -, este entreacto só poderá ser gratificante. Vamos passar quatro dias no gelo... em tendas

perfeitamente aquecidas, tranquilizem-se. Em seguida, virão buscar-vos e podereis voltar a partir para terras mais acolhedoras. O comandante Nicholson estará atento para que a operação se desenrole sem incidentes. Quanto a mim, acompanho-as e estarei junto de vós até que estejam em segurança.

Ao pronunciar estas últimas palavras, não pôde impedir-se de lançar um olhar furtivo à ruiva e flamejante Evelyn.

Mas talvez não fosse mais que uma ilusão devida a um simples acaso...

O sinal soou em todos os compartimentos do submarino: o Poseidon preparava-se para emergir.

Na casa dos foguetões, Porter, que estava a começar um jogo de póquer com Hollyday e Laroche, arremessou as cartas para cima da mesa.

- Não é brincadeira? Emergimos? Então não há gelo aqui?

Holliday juntou as cartas.

- Se ouvires um grande estouro por cima da cabeça, compreenderás.

- Estamos ou não estamos por baixo da calote glacial?

- Pergunta ao comandante! - replicou Laroche. - Talvez o Pólo Norte tenha buracos como um queijo gruyère. Nunca se sabe.

- Acaba lá com essas parvoíces!

Porter pôs-se à escuta. Não havia dúvida...

- Estamos a subir! Mas, louvado seja Deus, onde estamos nós?

Houve um estalido no interfone, depois fez-se ouvir a voz do comandante, seca, cortante como habitualmente:

- Que todos os homens de serviço se mantenham nos seus postos! Os outros para as suas cabinas!

- Decididamente o Velho está completamente passado! - resmungou Porter.

Chamou a casa dos torpedos. Ninguém o pôde informar. Na casa das máquinas, um aspirante respondeu-lhe:

- Trate dos seus foguetões, Porter. E não se meta no que não lhe diz respeito!

Porter desligou com um gesto enraivecido.

As raparigas estavam já na torre e esperavam. Tal como Blandy, Cornell, Heindricks e os quinze marinheiros voluntários. Sabiam agora em que consistia a missão. Bill Slingman, cuja constituição atlética era ainda mais impressionante com a capa e as botas de pele, inclinou-se para Tamaroo e cochichou:

- Se Jimmy soubesse disto faria um escândalo dos infernos. Fora de brincadeira, quando ele souber que as raparigas já não estão a bordo...

- É a melhor solução - respondeu o pequeno havaiano. - Certamente a melhor que o comandante podia ter.

Uns instantes depois, Nicholson abria a escotilha da torre e subia à plataforma, onde Blandy o encontrou.

- Teria preferido Miami - disse ele num tom patético. - Enfim... se este saudável passeio não for além de quatro dias...

Na ponte, os quinze homens do comando preparavam o barco pneumático. Depois apressaram-se em colocar-lhe o motor. Em seguida procederam ao seu lançamento à água e começaram de imediato a carregar o material. Vinte minutos depois o tenente Heindricks veio anunciar que tudo estava pronto.

Em silêncio, Joan Hankow, Lill Petersen, Evelyn Darring e Dorette Palandré passaram pela frente de Nicholson e desceram à ponte. Apenas Monika parou e o olhou.

- Esperarei por ti - disse a meia voz. -Todo o tempo que for preciso...

Nicholson aquiesceu. Mas quando ela lhe voltou as costas e desceu a escada, por um instante sentiu a irreprimível necessidade de a chamar, de a reter na torre. Então, desviou os olhos e absorveu-se na contemplação da paisagem.

Blandy bateu-lhe no ombro.

- Eu cuidarei delas, prometo. E de qualquer maneira os rapazes da VÉNUS XI não tardarão.

Um instante depois o barco pneumático afastava-se em direcção à costa. Nicholson saudou. Mas ninguém lhe respondeu.

No posto de transmissões, quando o operador se preparava para entrar em contacto com a estação VÉNUS XI, um zumbido se fez ouvir. Depois a voz do almirante Adam:

- P I, peço PI... PI responda!

- Aqui P I, Sir - disse Nicholson numa voz fatigada.

Quando anunciou a posição do Poseidon foi uma torrente de injúrias.

- Tivemos umas avarias - explicou. - Estamos a repará-las.

- Diz... X 19/Y norte?

- Sim, Sir.

Um silêncio e depois uma fúria:

- Mas, Jack, que um raio o parta, está doido?

- Ainda não, Sir.

- Eu acho que já está! Três submarinos soviéticos foram referenciados ontem de manhã na zona onde você se encontra! Desapareça de imediato! Urgentemente, entende. Pode ou não?

- Posso, Sir. Só que...

- Nada de objecções! Imediatamente, repito!

Nicholson aquiesceu em silêncio e cortou a ligação. Não tardou que em todos os compartimentos do submarino as luzes vermelhas piscassem.

Fora, no barco pneumático, uma das raparigas voltou-se e soltou um grito. O cimo da torre desaparecia já. Formou-se espuma à superfície da água... e foi tudo.

O submarino afundou-se quase sem ruído. Depois, o murmúrio dos motores e as trepidações contínuas deram lugar a uma imobilidade e a um silêncio quase absolutos. Pararam as máquinas.

Na Central, Nicholson esperava os resultados das sondagens dos sonares. Mas Collins continuava sem se manifestar. Não aguentando mais, Nicholson chamou-o.

- Que se passa, Collins? Qual a razão desse silêncio?

- Nada a assinalar, Sir. Em todo caso nada de alarmante.

- Perfeito.

- Pôde alcançar a estação, Sir?

- Não.

Estão perdidos, pensou Nicholson. Nada podem fazer, senão esperar, indefinidamente... Não têm a possibilidade de entrar em ligação com a estação pelos seus próprios meios pois não conhecem o comprimento de onda do emissor-radar. Não ficará qualquer sobrevivente. Quem imaginaria que poderiam encontrar-se homens em perigo nesta região do globo?,

- O almirante não me deu tempo suficiente para chamar a VÉNUS XI - explicou. - Três submarinos soviéticos rondam por estas paragens.

- Então os outros estão condenados, Sir.

- Para quê dramatizar já, Collins! - replicou Nicholson, fingindo, sem grande convicção, um optimismo de comando. - Dentro de dois dias emergimos para dar o alarme a VÉNUS XI. Dois dias a mais ou a menos, que interessa isso? Têm todo o equipamento necessário.

- E se o buraco é efémero?

- Se! Se! Não se faz história com ses! Eu obedeço às ordens do almirante e acabou-se!

- Que, bem entendido, ignora tudo.

- Bravo, Collins, compreende depressa.

Nicholson inclinou-se para a carta. Segundo as informações da base, os submarinos russos não se encontravam a ais de cem milhas! Se tinham por missão vigiar a costa

gronelandesa, era muito possível que descobrissem também a existência do buraco e tentassem emergir.

Se... sempre o se! Desapareça de imediato! Mas não seria isso atrair o perigo? Por outro lado esperar ali era expor-se ao risco de ver aparecer bruscamente os submarinos.

A catástrofe seria então inevitável.

- Ficamos aqui, Collins - decidiu Nicholson.

Depois chamou McLaren à casa das máquinas.

- De momento não nos mexemos. Mas esteja atento para que, em caso de necessidade, possamos partir o mais rápida e silenciosamente possível. Que tudo esteja pronto!

- Entendido, Sir - respondeu McLaren com o seu sangue-frio habitual. - Em caso de alerta, fugiremos como um fantasma.

Começou o jogo do gato e o rato. Dali em diante, as horas iam passar intermináveis. Horas que contam por anos. Horas durante as quais se aprende a acreditar no milagre.

Pela noite, a campainha do telefone zumbiu por fim na Central.

- Uma sombra a estibordo, Sir, comprida e maciça. inda muito imprecisa. Desloca-se lentamente, paralelamente a nós.

- São eles. Aplicação do plano Y. E silêncio absoluto!

Plano Y... em linguagem clara: afundamento. A única possibilidade de guardar o segredo.

- Ele mentiu-nos! - gritou Joan.

Estava sentada ao lado do doutor Blandy em cima de uma caixa cheia de conservas e, no seu desespero, martelava-o ferozmente no peito.

- O malandro! Aquele esterco ignóbil! Vai deixar-nos rebentar para aqui. Como cães, é o que nós somos!

Explodiu em soluços e, toda ela a tremer, refugiou-se nos braços de Blandy.

O motor tinha parado e Bill Slingman esforçava-se por pô-lo a trabalhar. Blandy com os olhos procurou Cornell.

- Francamente, Bernie, que pensa disto?

- Não sei, doutor. Não compreendo.

- Eu não julgo Nicholson capaz deste género de traição. Nunca! Seria demasiado monstruoso!

- Mas ele é um monstro! - gritou Lill. - É até pior que um monstro!

O motor tossiu mas recusou-se a arrancar. Afogado!

Bill Slingman achou ser seu dever examiná-lo. O barco era a tal ponto sacudido pelas ondas que na frente deles a costa parecia oscilar. Uma região rochosa que tinha sofrido a erosão das tempestades durante milhões de anos e inteiramente coberta de gelo. Uma região desolada, hostil. No cimo da falésia, no planalto, as tempestades devastadoras estavam desencadeadas.

- Peguem nos remos!

Seis homens puseram-se a remar.

Blandy afastou suavemente Joan e foi ter com Cornell na ré do barco. Bill Slingman agitava-se resmungando e praguejando. As velas estavam completamente engorduradas.

Ao passar na frente de Monika, Blandy deteve-se.

- E você, Monika, que pensa disto? - perguntou a meia voz.

Quando levantou os olhos para ele, não lhe leu ansiedade alguma no olhar.

- Teve de obedecer a razões imperativas, doutor - disse ela tranquilamente.

- Tem confiança nele, não é verdade?

- Uma confiança inabalável. Você não?

Blandy não soube que responder. Sob o efeito do choque, reagira espontaneamente como Lill Petersen e Joan Hankow. Mas, apesar de tudo, não conseguia acreditar que para salvar o Poseidon Nicholson pudesse deliberadamente sacrificar vidas humanas, e com mais forte razão companheiros tão fiéis como Cornell e ele próprio, Blandy.

- Não tardaremos em saber com o que temos de contar - respondeu, evasivo.

Os homens remavam vigorosamente ao ritmo imposto pelo tenente Heindricks. Cornell, esse, ajudava Slingman a limpar as velas.

- Viu? - perguntou Blandy apontando a costa com um aceno de cabeça. - Onde quer acostar? Já praticou alpinismo?

- Encontraremos um local propício.

Cornell limpou as mãos ao trapo que Slingman metera debaixo do braço.

- O que eu pergunto é se há interesse em trepar aquele planalto. Por pequena que seja uma tempestade é suficiente para nos varrer dali.

- Mas se ficamos em baixo não temos possibilidade alguma de entrar em contacto com os rapazes da VÉNUS XI. Nunca nos localizarão.

- Proponho que se envie ao cimo um comando de seis homens com uma tenda e um emissor. Evidentemente o problema é que não conhecemos a frequência... Mas sempre podemos lançar um SOS de duas em duas horas e em todos os comprimentos de onda possíveis. Alguém acabará por nos ouvir.

- Tudo depende de quem!

Slingman substituiu as velas, depois puxou pelo cabo de arranque. O motor trabalhou. Então a cara de Slingman iluminou-se com um sorriso quase infantil.

O comandante Nicholson procurara Collins no posto dos radares. Com toda a evidência os russos não tomavam precaução alguma para evitar o ruído. Uma franca alegria parecia reinar entre eles a bordo. Delírio, comparado ao silêncio de morte em que escavam mergulhados todos os compartimentos do Poseidon. Aliás, por que razão se mostrariam eles prudentes? Naquela região desértica, achando que não eram observados, tinham a impressão de estar sós, totalmente isolados do resto do mundo.

- Um único navio - constatou Nicholson. - A sua negligência deixa-me siderado. Aposto como nem ligaram o sonar.

- Vêm na nossa direcção - precisou Collins.

- Se emergem, a situação vai tornar-se eminentemente crítica. E é de facto o que eles vão fazer.

Nicholson aspirava demoradas fumaças no cigarro e soprava nervosamente o fumo.

- No lugar deles, em todo caso, era o que eu faria. Este buraco", como lhe chama Collins, é um verdadeiro milagre da natureza. O reflexo espontâneo é aproveitá-lo. Oxalá Cornell seja prudente. Lá em cima é noite agora. Imagine a situação: os russos a virem à superfície e a avistarem uma luz na costa. Ou se prefere: os russos saem com todos os projectores acesos e Cornell imagina que somos nós. Evidentemente que está longe de desconfiar da presença de submarinos soviéticos nestas paragens. Lança então sinais...Que se passa consigo, Collins?

- Sir... Mais ou menos dentro de vinte minutos os russos deveriam encontrar-se exactamente na linha dos nossos lança-torpedos.

- Você está louco, Collins!

Nicholson apagou raivosamente a ponta do cigarro.

- No entanto, seria uma solução preferível ao afundamento. Não teriam tempo de...

- Cale-se! É uma hipótese absurda. Tanto mais que são três a rondar por estas paragens, não se esqueça.

- Mas só um nos ameaça directamente.

- É evidente que tem de estar em contacto permanente com os outros. Reflicta em vez de tremer! Meta bem na cabeça que a sua vida não vale mais que a de milhões  de homens. Porque uma falsa manobra traria o risco de desencadear uma nova guerra mundial, e uma guerra atómica desta vez! Com que aniquilar todo o planeta!

- Eu... eu não fiz mais que emitir uma hipótese, Sir.

Collins voltou ao seu trabalho. Os ecrãs do radar tal como as sonares indicavam a lenta progressão do submarino soviético. Os cálculos de Collins confirmavam-se.

Nicholson transmitiu uma mensagem geral:

- Apelo a todos. Exijo um silêncio absoluto. Que os homens de serviço evitem todo o movimento supérfluo, que os outros vão para as suas cabinas e não saiam da cama. Que toda a actividade cesse imediatamente nas cozinhas. Os ventiladores no mínimo. Proibição de fumar. Terminado!

O sonar acústico deixava ouvir como que um piar incessante. Um ruído insólito no silêncio geral. Nicholson inquietou-se:

- Não há perigo de ouvirem? - perguntou ele em voz baixa.

Collins abanou a cabeça.

- Não, Sir. O russos encontram-se agora a quatrocentos metros a bombordo. Tenho a impressão de que neste momento devem estar a dormir.

- Você que é crente, Frank, reze para que tenham o sono pesado. A mim, lá em cima não me escutam...

O barco pneumático tinha alcançado a costa... ou antes, aquilo a que Cornell chamou costa num exagerado optimismo. Junto da falésia gretada e escarpada encontrava-se uma espécie de barreira formada por blocos de gelo sobrepostos e medindo cerca de trinta metros de largura por uma altura de três metros. Segundo Cornell, a falésia, essa devia atingir aproximadamente vinte metros.

Slingman desligou o motor. Tamaroo e mais três marinheiros postaram-se à proa com amarras munidas de fateixas.

- Eu sabia que partíamos com destino ao Pólo Norte. -- disse Blandy a Monika, sentada com as suas companheiras a meio da embarcação tremendo de frio não obstante as peles espessas. - Mas nunca se previu no meu contrato que eu seria obrigado a brincar aos Amundsen. Bernie, tem a certeza de não confundir a Gronelândia com a Califórnia?

- Creia em mim, doutor, no Alasca já passei por muito! Atenção! Pronto para a atracação!

Os blocos de gelo sobrepostos formavam uma espécie de escada. Os marinheiros lançaram as amarras. As fateixas de aço enterraram-se no gelo. A atracação efectuou-se sem dificuldade.

O tenente Heindricks saltou e deslizou até ao bloco mais próximo. Os marinheiros puxaram as amarras de maneira a que a embarcação se aproximasse da barreira. Cornell fitou Blandy rindo e esboçando uma reverência:

- Se Vossa Senhoria quer dar-se ao incómodo...

E seguiu Heindricks, escalando os blocos de gelo até ao cimo da barreira.

- Não era possível desejar melhor! - anunciou ele.

- Existem até verdadeiras cavernas cavadas no rochedos. O acesso ao planalto não deverá levantar nenhum problema.

Blandy concordou e encolheu os ombros.

- Consegue estar alegre! Que mundo! Enfim, uma vez que é preciso lá ir... Minhas senhoras, quando quiserem. Reservámos o melhor hotel.

Já os marinheiros começavam a descarregar. Só Joan se recusou a levantar-se.

- Não se aguenta no balanço, Miss Hankow? - perguntou Blandy.

- Quero voltar para lá!

- À sua vontade. De que está à espera? Mergulhe! Com um pouco de sorte e se tiver fôlego, poderia conseguir.

- Como cidadã americana tenho direitos e entendo que devem ser respeitados!

- Tem toda a razão. Preencha, portanto, um formulário em três cópias e poderá apresentar queixa assim que encontre um representante da Casa Branca. Daqui até lá poderá brincar com cubos de gelo.

- Acha que é altura para gracejos... Que vai ser de nós?

- Enviados da estação virão procurar-nos dentro de três ou quatro dias e aí terá o tempo todo para saciar os seus mais loucos sonhos eróticos. Garanto-lhe até o inédito. Enfim, uma oportunidade magnífica.

- Tem a certeza?

- Com os rapazes da estação? Serão piores que drogados com fome de produto, aposto a camisa!

- Não é isso que eu pergunto. Tem a certeza de que virão à nossa procura? Eu estou convencida de que a porcaria do seu comandante nos pregou outra rasteira.

- Está a esquecer que não é a única. Quinze marinheiros e três oficiais a acompanham. Acha que o comandante abandonaria os seus homens e os deixaria rebentar como cães?

- Acredito, sim. Até estou absolutamente convencida disso!

- Não seja tão obstinada, Joan. Vamos poder abrigar-nos nas cavernas e esperar no quente que nos venham procurar. Pense antes nas delícias que a esperam. Homens

com cio!

- Todos vocês são realmente os piores pulhas que alguma vez encontrei! - concluiu Joan que aceitou por fim levantar-se. - Chego a ter alturas em que lamento que nos tenham salvo.

- Sem sorte, hem? Ainda nem há duas horas teria conhecido a bem-aventurança eterna. Ficará para a próxima...

Blandy, cortesmente, ajudou Joan a subir para a barreira de gelo. Monika e Lill tinham já alcançado Cornell.

Por seu lado, Evelyn e Dorette metralhavam Bill Slingman com perguntas às quais ele era - via-se - incapaz de responder.

- Joan, já pensou ao menos que por pouco não morreu?

- Provavelmente. E foi o senhor quem nos salvou a vida, doutor... só o senhor.

De súbito, ela sorriu, roçou-se por ele num gesto de gata gulosa.

- Sabe, o que eu mais desejaria era manifestar-lhe o meu reconhecimento. Por que razão se mostra sempre tão pouco cooperante?

- Por uma razão muito simples: não é o meu tipo. E se quer saber tudo, vou fazer-lhe uma confidência: tenho um fraco pelas ruivas.

- Evelyn!

- Não falemos mais nisso! - concluiu Blandy abanando energicamente a cabeça como que a defender-se de um pensamento inoportuno e obsessivo.

Era a primeira vez que confessava publicamente ter um fraquinho por Evelyn!

- Atenção, Joan, nem uma palavra, ou faço-a passar a noite de rabo à vela em cima do gelo. Isto é tão verdade como chamar-me Blandy!

Nada menos que três horas foi o tempo necessário para descarregar completamente o barco e transportar o material para as cavernas onde Bernie Cornell e o tenente Heindricks tinham decidido estabelecer domicílio. Graças àqueles abrigos naturais - o mais importante tinha dois metros de altura por cerca de quatro de profundidade - era possível sobreviver uns dias sem muita dificuldade. Cobertores pendurados à entrada permitiam reter um pouco do calor dos aparelhos de aquecimento.

Os homens encarregados de escalar a falésia iam ter de enfrentar uma prova mais rude. Tinham de acampar no planalto e tentar alcançar a VÉNUS XI por meio do emissor de ondas curtas de que dispunham, enviando SOS em todas as frequências possíveis.

Monika estava já instalada no maior dos abrigos, o que ficara estabelecido reservar às raparigas, quando Blandy e Joan terminaram, por fim, a escalada depois de muitas escorregadelas e derrapagens. Um comando de sete homens dirigido pelo tenente Heindricks empreendera sem mais demora a escalada da falésia.

Bill Slingman ajudava a preparar os abrigos. Armazenara já as caixas de provisões contendo latas de conservas, salsichas secas, pão, manteiga, chocolate, chá, marmelada, pastas de frutos. Marinheiros enchiam os colchões pneumáticos.

Um abrigo mais pequeno estava reservado ao doutor Blandy. Tal como para Cornell e para os marinheiros.

- Ficaremos instalados como príncipes – afirmou Blandy. - Daqui a uma ou duas semanas, esta expedição surgir-nos-á como um sonho mau. E depois temos aqui muito luxo. Lembro-me que no Vietname...

- Risca lá isso do Vietname! - cortou Lill. – Andam sempre com essa palavra na boca. São todos iguais. Quase se acredita que têm saudades desses bons velhos tempos. Já é vício!

E, nesta altura, sentou-se no seu colchão e pôs-se a chorar.

Umas horas depois, duas tendas estavam montadas no planalto. Nos abrigos a temperatura era mais que suportável, quase suave. Tamaroo estava muito orgulhoso com o sucesso obtido pelo prato cozinhado segundo os seus cuidados, muito condimentado e que copiosamente tinha sido regado a álcool. Quem visse as raparigas poderia pensar que eram manequins vindos para posar na Gronelândia. Tinham-se penteado umas às outras e estavam cuidadosamente maquilhadas. Esta iniciativa por certo não se destinava a apaziguar os espíritos...

Bill Slingman e Tami Tamaroo tinham escolhido morada numa funda anfractuosidade ao lado do abrigo destinado a Cornell. Fumavam em silêncio. Um pequeno candeeiro a gás dava uma fraca claridade. Graças ao calor ambiente, os homens tinham podido tirar o pulôver e contentavam-se apenas com uma manta. Slingman só por si era um autêntico calorífero e todo o seu corpo soltava um cheiro adocicado de transpiração. Levantou as pernas, depois novamente se esticou sem parar com os seus surdos resmungos. Não aguentando mais, Tamaroo deu-lhe uma cotovelada nas costelas.

- Merda! Vais estar quieto ou não?

Mais Slingman se agitou.

- Não posso. Não consigo tirar uma ideia da cachimónia.

- Que ideia?

- Há bocado, quando tivemos de escalar a barreira, fui obrigado a carregar com Dorette ainda um bom pedaço porque ela não parava de escorregar. De repente, fui eu quem perdeu o equilíbrio. Ao derrapar fui bater com as costas no gelo. Mas apertei-a com tanta força que a aguentei. Se soubesses! Tinha a mão direita no peito dela e a esquerda entre as coxas. Não fiz de propósito. Palavra! Calhou!

Quando consegui restabelecer o equilíbrio, ela sorriu-me. Aquele sorriso... foi de dar arrepios. Eu, como um parvo, pedi-lhe desculpa. Perdão, miss." E ela: Adoro as escorregadelas!" Voltei a pô-la no chão. Mas depois fiquei cheio de comichão nas mãos -. Juntando o gesto à palavra, tirou as mãos debaixo do cobertor e levantou-as com os dedos afastados. - Tornou-se uma obsessão, Tami, não paro de pensar nisso. Digo-te: já não consigo arrancar aquilo do crânio. Tenho a impressão de que ainda a sinto, de que continua lá, nos meus braços, contra mim. A mão direita no peito, a esquerda entre as coxas. E nem imaginas a maneira como me sorriu.

- Mete-te na cama e dorme!

- Dormir! Não vês que me mexo que nem um demónio?

- Pega num espelho e olha para ti!

- Eu sei que sou um preto! - replicou Slingman atirando um pontapé enraivecido contra a parede rochosa.

- Mas isso não me impede de ser o soldado mais condecorado a bordo! Quando tocava a atacar, já ninguém me tratava por preto! Pois agora o primeiro que se atreva a dizer que não mereço beijar Dorette apanha um murro no focinho!

- Só tens que lho dizer. Aqui ninguém virá incomodar-te. Mas lembra-te de Belucci e de Duff. No teu lugar, eu preferia salpicar-me com água fria. É menos perigoso...

Durante a noite, bruscamente, o doutor Blandy sentou-se na cama. Não compreendeu de imediato o que motivara o seu acordar em sobressalto. Um ruído, uma corrente de ar? Sentado no colchão, perscrutava no escuro. Conseguiu distinguir o cobertor esticado à entrada do abrigo. À esquerda, a chama do fogão a gás oscilava, fraca, no entanto, para iluminar em volta. Sem barulho, às apalpadelas, Blandy procurou o revólver. Sem esse objecto, tinha a sensação nítida de não estar sozinho.

Um ligeiro ruído na escuridão... Compreendeu que não se tinha enganado e sentiu como que picadas na nuca, nele o habitual sinal de medo, ou, mais exactamente, de tensão.

Todos os seus músculos estavam contraídos. Estendeu devagar a mão para o fogão para lhe aumentar a chama.

Novo ruído. De súbito, sentiu um corpo perto de si, enquanto dois braços o enlaçavam. Instintivamente tentou libertar-se.

- Que brincadeira é esta? Quem é você?

- Joan disse-me que tinha um fraco pelas ruivas...sussurrou uma voz familiar. - Quem diria? O nosso doutor... Ora vejam isto...- Evelyn!

Ela estava nua por baixo da pele.

- És louca - disse ele, com dificuldade em respirar.

Aninhou-se contra ele. As suas carícias electrizavam-no. Durante um instante reteve-lhe as mãos prisioneiras.

- Putazinha descarada - murmurou ele ternamente.

- Seria preciso atar-te ao rochedo.

Depois caiu sobre ela com todo o seu peso.

- És um homem maravilhoso - murmurou ela ofegante quando se separaram.

Não tiveram tempo para continuar nos seus folguedos. Subitamente, um homem entrou no abrigo. Blandy não chegou a protestar porque reconheceu a voz de Cornell:

- Doutor! Venha depressa! Tem de ver aquilo!

Blandy pôs a mão na boca de Evelyn para que ela compreendesse que tinha de se calar.

- Vou já, Bernie - disse ele. - Vou vestir-me. Espere por mim lá fora. É só um minuto.

- Vista o seu capote. Eu sei que Evelyn está consigo.

- Escute, Bernie... Tenho de lhe explicar...

- Não vale a pena, doutor. Foi Joan que me disse quando veio ter comigo. Slingman, esse, raptou a Dorette. Levou-a debaixo do braço como o King-Kong. Lill passa a noite com Yenkins. Enfim, só a Monika está a dormir sozinha como uma senhora. Venha, doutor!

- Mas que se passa? Aborrecimentos, complicações?

Sem responder, Cornell afastou o cobertor e saiu. Blandy vestiu à pressa o capote de pele e foi ter com ele.

- Fui acordado pelo walkie-talkie há dez minutos. -- explicou Cornell. - Acabava de adormecer. Um repouso bem merecido...

- Com Joan, compreendo...

- Deixemos isso... Heindricks estava a chamar lá do cimo... Muito excitado. Pôs-se a berrar no aparelho: Lá estão eles! Emergiram! O que faço? Dou sinal?, Saio, olho...

por pouco não caio de costas. Ordenei imediatamente que apagassem todas as luzes. Lá no alto, preparam-se para levantar uma muralha de neve diante das tendas. Espero que a camuflagem chegue... Doutor... olhe!

Blandy agarrou com mão trémula os binóculos que Cornell lhe entregava.

- Onde?

- A nordeste. Uns quarenta metros à esquerda do icebergue.

Blandy seguiu estas indicações. De súbito, teve um sobressalto.

- Nicholson! Está a ver como podemos confiar nele?

- Sim... Heindricks também se enganou.

Cornell apossou-se novamente dos binóculos.

- Não, doutor! - disse no final da sua observação. -- Não é o Poseidon.

- Está enganado, Bernie, isso não é possível.

- Infelizmente não estou. É um submarino soviético. Volte a olhar. Observe bem a torre e a vela...

Blandy voltou a pegar nos binóculos... e teve de se render à evidência.

- Aí está o que explica tudo - disse ele em voz surda. - Meu Deus! Não gostaria de estar no lugar de Nicholson.

O mais urgente era transportar todo o material para o cimo da falésia, e fazer desaparecer todos os vestígios do acampamento antes do nascer do dia. Depois era preciso trepar até ao planalto a fim de escapar ao campo de observação dos soviéticos. Segundo parecia, estes não alimentavam a menor suspeita. De resto, quem teria a ideia de que um submarino americano desembarcasse oficiais, marinheiros e cinco raparigas naquela região desolada do globo? O submersível repousava à superfície das águas, com todas as luzes acesas. Dentro do navio, os homens deviam estar a jogar xadrez para passar o tempo.

- Também gostaria de estar assim descontraído e despreocupado - suspirou Cornell, tapando a cabeça com o capuz de pele.

- Eu pergunto é o que eles fariam se dessem pela presença do Poseidon.

- Se quer a minha opinião, doutor, acho melhor não fazer a pergunta. Francamente, nem me atrevo a pensar nisso. De momento interrogo-me quanto ao que vai ser de nós e é isso que me inquieta.

- Vamos esperar muito delicadamente que os nossos encantadores camaradas soviéticos desapareçam no fundo do mar.

- E se desembarcam?

- Com que motivo?

- Por curiosidade! Muito simplesmente. A curiosidade no homem é um impulso vital quase tão importante como o sexo! Se não fosse a curiosidade o nosso cérebro paralisaria pouco a pouco...

- Doutor, será boa altura para se atirar a essas profundas considerações? Se os russos desembarcam...

- Somos náufragos e acabou-se.

- Está a brincar? Dois oficiais americanos acompanhados por um médico-chefe, quinze marinheiros e cinco raparigas...

- Justamente! Vão ficar sem fôlego.

Blandy soltou uma gargalhada.

- Para não falar que vão morder-se de inveja ao saberem que na Marinha americana há o hábito de embarcar lindas raparigas, digamos que na qualidade de massagistas. Eu no lugar deles ficava verde de raiva. Há mesmo o risco de desencadear um motim. Um novo Potemkine, sei lá... Pode falar-se até de um slogan revolucionário: Queremos mulheres a bordo!

- Não há maneira de se discutir a sério consigo!

Cornell, friorentamente, apertou o peito com os braços.

O frio penetrante atravessava a pele ainda que espessa. Blandy, em contrapartida, não parecia estar afectado. Nem chegara a abotoar o capote. Cornell notou-o com estupefacção.

Evelyn insuflara-lhe assim fogo tão grande nas veias? Joan já era uma braseira. O bastante para deixar um homem em boas condições físicas sem fôlego e tão cansado como ao cabo de três horas de exercícios num centro de treino da Marinha... Mas ao lado dela aquela Evelyn Darring devia ser um autêntico vulcão.

Cornell não pôde deixar de evocar os abraços fogosos da sua companheira. Libertando-se com muita pena destes pensamentos voluptuosos, declarou:

- Proponho reunir imediatamente todo o material, escalar depois a falésia para estabelecer o nosso acampamento no planalto. Do mar não poderão avistar-nos. Que pensa disto, doutor?

- Aqui, é você quem comanda - respondeu Blandy encolhendo os ombros. - Dito isto, com certeza está mais calor nos abrigos.

- Tudo depende da companhia... com essas técnicas de jogo das pernas na horizontal, evidentemente...

- Evidentemente! Você entrevistou as outras?

- Para quê? Como muito a propósito o constata Joan, não há já nenhuma dificuldade. Nenhuma complicação! Trezentos, decididamente era demasiado... mas como tem Evelyn e não está disposto a largá-la...

- Certamente que não! Tal como você e Joan!

- Exacto. Logo, restam Dorette e Lill. De acordo com Joan parece que os homens estabeleceram acordo entre eles. Hoje é a vez de Slingman e Yenkins, amanhã Tamaroo e Flashing revezam-nos, depois de amanhã outros dois... Pelo que se vê tudo se passa o melhor possível no melhor dos mundos. L'entente cordiale!

- É o máximo! Um bordel de luxo nos confins da Gronelândia! Um ponto alto da civilização! Blandy soltou uma gargalhada tonitruante, logo interrompida por uma violenta cotovelada de Cornell.

- Perdão - disse Blandy em voz baixa -, esquecia-me dos nossos camaradas russos. Supondo que ligaram os sonares, o que não está provado.

- Quanto a mim, o contrário é que me surpreenderia.

- Em todo o caso é verdadeiramente fascinante constatar que mesmo com trinta ou quarenta graus negativos nada parece impedir um homem de se refugiar entre umas acolhedoras coxas femininas. Com que sonha ele, qual é para ele a imagem mais sedutora, mais estimulante: um pequeno triângulo de pêlos, um tosão sedoso! Tive já oportunidade de o constatar no Vietname. Nos hospitais militares as salas estavam atulhadas. Os feridos bem podiam sangrar, sofrer, ser amputados... não importa, bastava passar uma enfermeira para que todos aqueles pobres diabos se pusessem a berrar. Principalmente, recordo-me, quando viam Claudia, uma pequena que usava saias tão curtas que não podia inclinar-se sem mostrar o cu. Que espectáculo! Um cuzinho rechonchudo, arredondado, de desesperar!

- E você, doutor? Nesse momento, só tinha isso na cabeça, não era? - observou Cornell refugiando-se no abrigo de Blandy para escapar ao frio mortal.

No fundo do abrigo, debaixo dos cobertores, distinguia-se o corpo de Evelyn deitado numa pose lânguida. Apesar da luz parcimoniosa dispensada pelo candeeiro de gás os cabelos ruivos tinham reflexos flamejantes.

- Aquela diabinha paralisou-lhe por completo as meninges - constatou Cornell.

- Creio ter suportado a prova dignamente – ironizou Blandy.

Dentro do abrigo reinava um calor delicado, enquanto um perfume animal flutuava no ar. Blandy desembaraçou-se do capote que negligentemente deixou cair aos pés sem se preocupar com a sua nudez. Era entroncado, maciço. Uma estatura imponente. Mas todo em músculos, sem um átomo de gordura. Cornell avaliou-o numa olhadela e não pôde deixar de lhe invejar a morfologia.

- Preparamos as bagagens?

- Tem de ser...

- Sinto que lá em cima, se estas damas quiserem realmente aquecer-nos, vai-lhes ser preciso o pleno emprego.

Evelyn levantou-se. Quando o cobertor escorregou, na luz ambiente, os seios arrogantes ganharam reflexos acobreados.

- Que se passa, amor?

- Temos de nos mudar!

Blandy apalpou à procura da sua roupa de baixo e quando enfiou as cuecas pareceu, como todos os homens, um pouco ridículo.

- Oh, não! - protestou indolentemente Evelyn com uma careta infantil.

- Oh, sim! Veste-te! Não vamos para longe: só para o andar de cima.

- Amor... estávamos tão bem aqui...

- Ora vejam! Essa é nova! Tu que não paravas de te lamentar, de rabujar!

- Agora é diferente, foste tão adorável comigo...

- Já acabaram de arrulhar? - interveio Cornell. – Se continuam é para os russos que vão interpretar o dueto final!

- Bernie - retorquiu Blandy vestindo docilmente a camisa -, permita-me dizer-lhe que decididamente não passa de um abominável pulha.

- Que história é essa de russos? - perguntou Evelyn atirando o cobertor para os pés.

Cornell, cujos olhos tinham tido tempo de se habituar à penumbra, pôde constatar que ela era realmente uma ruiva autêntica. Capaz de deixar nas lonas qualquer valente, mesmo tão vigoroso como Blandy, reconheceu ele não sem uma ponta de inveja. Nunca ele fizera amor com uma ruiva.

E, no entanto, aquelas mulheres tinham fama de ser temperamentais. Explosivas! Decididamente fora Blandy quem ganhara a sorte grande.

- Um submarino soviético veio à superfície perto do gelo, miss. O que explica o desaparecimento do Poseidon. Se não queremos que os russos nos apanhem somos obrigados a retirar com toda a urgência lá para cima, para o planalto. Está claro?

- De maneira nenhuma!

Evelyn levantou-se e tratou de reunir a sua roupa. Sem se esquecer, no entanto, de rebolar habilmente o traseiro.

- Eu não vejo razão alguma para fugir, pelo contrário. Vamos enfim ser salvas! Basta que nos levem para bordo e esses pelo menos talvez não se divirtam a brincar aos fantasmas...

- Tente explicar-lhe, doutor. Eu não tenho tempo a perder. Até conseguirmos pôr todo o material lá em cima...

Cornell lançou um último olhar a Evelyn que se aproximara de Blandy e lhe cobria de beijos os ombros e o pescoço. O médico exprimiu a sua satisfação com roncos de prazer, mas sem por isso deixar de se vestir. Assim que saiu, Cornell curvou-se para se defender do frio que cortava, e correu para os outros abrigos. Foi encontrar Bill Slingman e Dorette estreitamente enlaçados e mergulhados num sono pesado. Slingman ressonava, enquanto Dorette soltava como que fracas miadelas.

- De pé! - gritou Cornell. E acrescentou, quando Slingman se levantava em sobressalto e se esforçava por se libertar do abraço da companheira: - Caluda! Temos os russos como vizinhos de patamar.

- Bordel de merda! - praguejou Slingman. - É a guerra ou quê?

- É, salvo se formos capazes de conservar o nosso sangue-frio. Arrumar bagagens. É preciso pôr todo o material lá em cima.

- Dentro de dez minutos estarei pronto, Sir.

Cornell continuou na sua volta, sabendo por experiência que Slingman sempre respeitava os seus compromissos. Era sem dúvida alguma o soldado mais valoroso e mais seguro que Cornell alguma vez encontrara.

Yenkins, que passara a noite com Lill, encontrava-se em plena acção quando Cornell entrou no abrigo. Imediatamente se afastou da sua companheira e puxou o cobertor, reacção instintiva de pudor.

- Com certeza não vai fazer um relatório ao comandante - suspirou ele.

- De pé, Yenkins! Os russos estão à porta. Vamos levantar o acampamento.

E Yenkins, no mesmo tom acabrunhado de Slingman:

- Oh, merda!

Não foi necessário mais de meia hora para que todos aqueles que se tinham estabelecido nas cavernas arrumassem o material e estivessem prontos para a escalada da falésia.

Heindricks, que se encontrava em cima num posto de observação mais favorável, informava Cornell por walkie-talkie.

- A plataforma da torre está deserta, a escotilha fechada. Pensa que o Poseidon continua nestas paragens?

- É muito provável.

- Mas se os russos gostam deste sítio e resolvem tirar umas férias?

- Não brinque às aves agoirentas, Heindricks, não é boa altura.

Sem deixar de falar, Cornell agarrara Joan pela cintura e apertava-a contra si. Ela tiritava. Levantara-se nortada, glacial, ao ponto de o frio se tornar doloroso.

- Como está isso aí em cima?

- Não está idílico. Francamente desagradável mesmo!

O vento atira a neve para o planalto.

Heindricks calou-se. Cornell ouviu-o vagamente fazer uma pergunta que continuou para ele ininteligível. Depois a sua voz ouviu-se de novo no walkie-talkie.

- Okay, Bernie. O único problema é que só dispomos de quatro escadas de corda que não medem mais que quatro metros.

- Então mais valia atá-las umas às outras.

- Okay, eu aviso quando estiver pronto.

Hendricks chamou uns dez minutos depois.

- Pronto! Atiramos a escada. Aviso-te que o vento está cada vez mais forte. Se visses, é cá uma tempestade de neve! O que eu pergunto é de onde vem a neve. Eu pensava que só havia gelo...

- Escreve ao New York Times, talvez possa informar-te. Montaram as tendas?

- Já estão. Está tudo pronto para receber essas damas.

- Terminado!

Yenkins, ajudado por quatro marinheiros, transportava as caixas e os sacos para o local onde devia pender a escada. Lill Petersen esforçava-se por lhe ser útil e arrastava penosamente as caixas de cartão cheias de latas de conservas. Por seu lado, Joan esvaziava o abrigo de Cornell. Condoído, Tami Tamaroo deu-lhe uma ajuda. Também Dorette estava activa obedecendo às directivas de Slingman.

- E a sua chamejante ruiva, Blandy, onde se meteu? -- perguntou Cornell.

- Está a fazer a maquilhagem. Não é maravilhoso? Naufragar e ter o cuidado de salvar o estojo da maquilhagem.

- Pergunto para mim mesmo se realmente teve sorte com o que lhe saiu, doutor. Em vez de retocar a fachada bem poderia vir ajudar, como toda a gente!

- Não seja grosseiro! Julgava-o mais cortês, Bernie. Bem sabe que existem duas espécies de mulheres: umas pintam-se antes de irem trabalhar, outras só se lavam depois. Pois bem, eu prefiro as primeiras. De resto, aí tem... valia mesmo a pena resmungar!

Evelyn aproximou-se saracoteando-se, com uma caixinha de cartão ao ombro, e visivelmente atenta ao efeito causado.

- Vê como faz por ser útil?

- Não se pode dizer que se estafe.

Cornell encolheu os ombros e soltou um suspiro de resignação. Os marinheiros acabavam de descer a escada que foi bater várias vezes no rochedo coberto de gelo. Com toda a evidência, os russos continuavam sem ligar os seus aparelhos de escuta ultra-sensíveis. Decididamente davam prova de uma despreocupação desconcertante. Naquelas circunstâncias, uma verdadeira bênção.

- Passe primeiro, doutor - disse Cornell apontando a escada.

Blandy levantou os olhos para o cimo da falésia.

- Eu porquê?

- Porque se estiver lá em cima, poderá intervir rapidamente se alguém se ferir. Não se inquiete, as raparigas serão a seguir.

- Okay, okay. Mas mande-me a Evelyn.

- Prometido.

Blandy começou a subida carregado com um saco de marinheiro, e trepou sem esforço aparente. Uma vez mais Cornell não pôde deixar de, secretamente, lhe invejar a musculatura.

Quando chegou a meio, Blandy teve consciência da violência do vento que varria o planalto. A nortada glacial  chicoteou-o. Evelyn teria força para lhe resistir? Era impossível avisá-la do perigo, seria preciso gritar muito alto e não se podia correr tal risco.

Continuou a trepar e não tardou em atingir a beira da falésia. Ali, três marinheiros içaram-no para o planalto. A tempestade estava aqui no auge, devastadora, varrendo uma neve poeirenta que formava como que um nevoeiro espesso.

- Chega bem, doutor - disse Heindricks. – Um conselho: como se safa um homem para mijar com este frio?

- Como verdadeiro cientista, só lhe responderei depois de ter tentado a experiência!

Blandy desembaraçou-se do saco que um marinheiro levou imediatamente para uma das tendas. Evelyn não tardou em aparecer, sem fôlego. Mal tinha chegado ao planalto e já Blandy a levantava do chão apertando-a ternamente contra si. Tudo aquilo perante o olhar deslumbrado de Heindricks.

- Estávamos nós aqui a rachar de frio e vocês lá em baixo a aquecerem-se em galante companhia! Isso não é bonito, doutor!

- Não chore, Lill e Dorette não vão tardar. Dito isto, se insistir em ter uma receita, vou sugerir-lhe uma excelente: quando a cãibra no braço se tornar demasiado dolorosa, ponha-se de frente para o vento. O resultado é garantido pela Faculdade!

- O seu diploma de clínico adquiriu-o como brinde nalguma rifa?

Umas atrás das outras as raparigas chegavam ao planalto, encolhiam-se para oferecerem o mínimo de superfície ao vento glacial. Os marinheiros imediatamente as levaram para a segunda tenda, onde estava aceso um fogão. O calor compensava a exiguidade. Em frente da entrada tinham  construído uma espécie de muralha por meio de blocos de gelo. Visto do submarino, aquele amontoado devia parecer natural.

Sem pedir a opinião das suas companheiras, Evelyn instalou-se muito perto do fogão, depois examinou o lugar com uma careta de desdém.

- Não há lugar para um homem aqui, estamos já apertadas como sardinhas em lata!

- Alegra-te por ainda estares viva - replicou Monika. - E se sairmos disto sãs e salvas, podes fazer-te freira. Em sinal de gratidão, ao menos uma vez na vida.

- O nosso anjinho moralista! Faz-te tu freira!

Evelyn estendeu para o fogão as mãos de unhas meticulosamente pintadas.

- Os homens da VÉNUS XI devem vir já a caminho.

- Esperemos que sim.

- Foi Paul quem me disse.

- Eu - respondeu Joan - tudo o que sei é que Bernie, é um tipo espantoso. É possível que eu fique com ele.

- Serias capaz de casar com ele? Mas tu és tonta!

- Acho que estou apaixonada por ele.

- Um oficial da Marinha! Francamente, não andas a regular bem. Consegues ver-te à espera dele ao canto da lareira? Monika, entendo. Uma vez por mês chega-lhe perfeitamente. Mas nenhuma mulher normal pode suportar esse género de vida. Para as outras, sim.

- Não podias calar a boca de vez em quando? - interveio Monika com uma voz que silvava pressagiando tempestade. - Contigo, decididamente, o amor parece-se cada

vez mais com canibalismo.

Lá fora, os homens tinham começado a puxar o material. Slingman, Yenkins e quatro marinheiros recrutados entre os mais robustos agitavam-se como formigas, subindo e descendo, infatigavelmente. Longe de serenar, o vento parecia redobrar de violência. A neve prejudicava a visibilidade. Era difícil respirar. No planalto, lutando contra a tempestade, seis homens esforçavam-se por montar uma terceira tenda, esta bastante espaçosa para abrigar todo o restante comando. Yenkins e Slingman desceram para trazerem o barco pneumático e o motor. Depois, inspeccionaram muito atentamente o gelo e os abrigos, certificando-se de que não tinham deixado vestígio algum da sua passagem.

- Okay! - anunciou, por fim, Slingman pelo walkie-talkie, quando todos os outros haviam já alcançado o cimo da falésia.

A operação tinha durado mais de três horas e Bernie não pôde reter um suspiro de alívio. De pé, atrás da muralha de gelo, observava o submarino soviético. Um acontecimento qualquer acabava provavelmente de se dar porque a animação voltara de súbito. A escotilha da torre abriu-se e, uns atrás de outros, seis homens vieram à plataforma. Slingman estava ainda a subir a escada. Dez metros mais antes de alcançar a beira da falésia.

- Acabaram mesmo por acordar - murmurou Cornell a Heindricks. - Que lhes teria atraído a atenção?

- O motor, quando bateu na falésia...

- Meu Deus! E Slingman que ainda está na escada...

Três potentes projectores acenderam-se no submarino.

Começaram por explorar o mar, lançando uma luz violenta que nada deixava na sombra. Slingman teve imediatamente consciência do perigo. Continuou a trepar com uma agilidade espantosa. Mais sete metros. O cabo dos trabalhos...

- Se os russos levantam por pouco que seja a porcaria dos projectores, está tudo lixado! - murmurou Heindricks.

- Slingman pode aparecer como um trapezista que se prepara para fazer um número de circo.

- Reze as suas orações se isso lhe agrada, mas feche a boca - resmungou Cornell.

Os projectores continuavam a explorar o mar, dando aos blocos de gelo reflexos azulados.

- Que simpáticos em nos oferecerem um festival de som e luz, os nossos camaradas russos. Infelizmente para eles chegaram um pouco tarde.

- Slingman ainda está na escada!

- Mentira! Oh, merda. A que altura?

- Não faço a mínima ideia.

- De que está ele à espera, meu Deus! Um negro! Devia trepar como um macaco! Vou ver...

- Não se mexa!

- Vejam os russos um ou dois, o resultado é o mesmo. E depois vocês tomam-nos realmente por estúpidos. Se descobrirem a escada, nunca eles pensarão que Slingman seja o único por estas paragens.

Subitamente, os três projectores apagaram-se. Mas logo voltaram a acender-se, mais altos desta vez, explorando agora a costa.

- Mais um pouco e a expedição acabará aqui...

Naquele instante, Slingman apareceu na beira da falésia. Mal pôs os pés no planalto logo se atirou de barriga para baixo sobre o gelo e começou a puxar a escada. Heindricks acorreu para lhe dar ajuda. Os projectores subiam pouco a pouco. Iluminavam já a falésia. Não seria mais que uma questão de segundos... No instante preciso em que a luz violenta dos projectores atingia o alto do rochedo, Slingman e Heindricks acabavam de puxar a escada e rastejavam já para as tendas. Só se levantaram quando ao abrigo da muralha de gelo.

- Você merecia a mais bela medalha da sua carreira, Bill - murmurou Cornell. - É pena que já esteja tão carregado de ferro-velho. Cuidado!

No mesmo instante, todos se baixaram. Os projectores exploravam agora o planalto, nada deixando na sombra. Imobilizaram-se um instante na trincheira de gelo, depois

desviaram-se e iluminaram novamente a falésia, demorando-se nas mais profundas anfractuosidades.

Blandy foi o primeiro a levantar-se.

- E acabou-se, está consumado o truque! Mas não tenham ilusões, na realidade, os russos foram simplesmente subjugados pela nossa forte personalidade!

Ao ouvirem estas palavras, todos esconderam a cara nos capuzes de pele e puseram-se a rir, com um riso nervoso, libertador.

- Não passa do primeiro alerta - disse Cornell quando viu todos reunidos na tenda mais espaçosa. – Enquanto não nos largarem, será preciso estar de atalaia. E principalmente nada de barulho, nada de fogo...

- Essa tem graça! - ironizou Blandy. - Fazia-se fogo com quê? Trouxe o seu cavaco de lenha, trouxe?

- Alguns poderiam ter a ideia de queimar as caixas.

- Toma-nos por um bando de idiotas ou quê? De qualquer modo temos gás suficiente... e depois, dentro de uns quatro dias, os rapazes da VÉNUS XI estarão por aí.

- Justamente! Se chegam com trenós a motor, os russos virão à festa.

- Esperemos que daqui até lá eles se mudem. Enquanto se espera, gela-se. Com um vento assim os ursos têm de tocar castanholas.

O comandante Nicholson estava bem longe de se preocupar com a triste sorte dos ursos-brancos. O Poseidon estava imobilizado no fundo do oceano, de máquinas paradas.

Tudo estava pronto para o afundamento. A cabeça nuclear do foguetão previsto para este efeito estava armada, a alavanca de destruição destravada. Ao mais pequeno alerta o Poseidon explodiria.

Os homens só se deslocavam em peúgas, e só em caso de absoluta necessidade. Na sua maioria estavam deitados nos beliches. Liam, evitavam falar, apenas trocavam raras frases sussurradas.

No seu gabinete, Nicholson completava o diário de bordo. A sua narrativa estava inteiramente de acordo com a verdade. Se um dia regressasse da travessia do Pólo Norte, aquele diário custar-lhe-ia a carreira. De modo algum tentou explicar-se invocando circunstâncias atenuantes, mas estabeleceu um processo preciso e objectivo, enumerando todos os factos que pesavam contra ele. No entanto, era culpado? Culpado por ter agido com humanidade? O amor era um crime? O facto de ter o posto de comandante colocava um indivíduo para além do comum dos mortais?

Tantas questões ao fim e ao cabo estéreis. Um homem a quem fora confiado o comando de um submarino americano ultra-secreto deixava de ser um indivíduo como os outros. O almirante nesta questão não permitia qualquer dúvida.

- Jack - dissera ele -, tem a certeza de ter os ombros suficientemente sólidos para se encarregar de tal missão? Tem consciência de entrar agora num universo onde os valores habitualmente reconhecidos já não serão considerados?

E Jack Nicholson respondera com dignidade:

- Sim, Sir, sinto-me com força. A Marinha é a minha única família, a minha única razão de viver. Não o ignora.

- Não esperava outra atitude da sua parte, Jack.

Naquela altura, o almirante comportara-se realmente como um pai. Abraçando Nicholson acrescentara num tom ao mesmo tempo comovido e solene:

- É o único a quem eu podia conceder toda a minha confiança.

Quanto tempo decorrera depois? Não chegou a um ano. Naquela altura ultimavam-se os preparativos da viagem, procedia-se à afinação dos instrumentos electrónicos, os processos dos membros da tripulação seleccionados chegavam à base... Quantos acontecimentos se tinham dado depois!

Nicholson apaixonara-se por duas vezes: primeiro pelo seu navio, a seguir por Monika. Esta segunda paixão rapidamente levara a melhor em relação à outra, lançara no seu passado uma luz nova. O que em tempos parecera essencial a Nicholson surgia-lhe agora como um absurdo. No entanto, sempre estivera convencido de que nunca encontraria o grande amor, pensava mesmo ser incapaz de amar. A Marinha, os navios que lhe eram confiados, representavam os seus únicos pólos de atracção. É certo que aqui e ali lhe acontecia ter uma aventura, mas que não se prolongava para além de uma noite. Também ele sentia por vezes necessidade de se descontrair. Mas nunca lhe passara pela cabeça que pudesse um dia encontrar uma mulher como Monika, que ganhasse sobre ele tal domínio que a sua imagem fosse uma obsessão a persegui-lo noite e dia, que continuasse a sentir na ponta dos dedos a suavidade do seu cabelo sedoso, a receber o seu bafo tépido à flor da pele, a fremir à recordação dos seus beijos. Isso seria ele incapaz de

expor em termos claros no relatório que se preparava para redigir esforçando-se por se manter escrupulosamente fiel à realidade. A realidade?

Nicholson pousou a cabeça. A única realidade tangível, pensou ele, é estarmos todos condenados dentro de pouco tempo. Todos nós neste caixão de aço, tal como os outros lá em cima, isolados no gelo. Devem imaginar que pudemos alcançar a estação VÉNUS XI e vão esperar indefinidamente até não terem mais gás, mais nenhum meio de subsistência. Com o pânico correm o risco de se matarem uns aos outros, de praticarem talvez o canibalismo para tentarem desesperadamente sobreviver. Em vão. Tudo está perdido, estamos irremediavelmente condenados. Aí tens a realidade, Jack Nicholson.

Nicholson foi ao posto dos radares, de peúgas, como todos os homens a bordo. O tenente Surakki observava a oscilação dos ponteiros, o piscar dos pontos luminosos num ecrã. Ao ver Nicholson tirou os auscultadores.

- Os nossos camaradas russos estão a ficar nervosos. -- murmurou ele. - Fazem um chinfrim dos diabos. Podíamos jurar que se imaginam sozinhos no mundo.

- Ponha-se no lugar deles! Tem a impressão de que tenham podido observar um movimento anormal em terra?

- Pelo que parece, não, ainda não - respondeu Surakki encolhendo os ombros, cansado.

Nicholson abanou a cabeça.

- Mas pensa que isso já não vai tardar, não é? Também eu o receio. E o que é mais terrível é não podermos prestar-lhes socorro algum.

- Sir... que vai ser deles? Talvez fosse melhor que se deixassem apanhar pelos russos. Sem dúvida, é a última oportunidade que têm de salvar a pele. Se não for assim como poderão safar-se?

- Reflicta, Surakki. Imagine que de repente os russos encontram pela frente quinze marinheiros americanos, dois oficiais, um médico-chefe e ainda por cima cinco raparigas, para mais americanas. Todo este grupinho na Gronelândia a mil léguas de qualquer civilização. Pensa que os russos não serão capazes de somar dois e dois?

- Mas não estamos em guerra, Sir!

- Abertamente, não. Mas bastaria que os russos sacudissem um pouco as raparigas para que elas dissessem tudo o que sabem. Contarão tudo o que viram. Tudo. Largarão tudo, tão certo como eu me chamar Nicholson. Os métodos de tortura fizeram progressos. Ninguém viu, ninguém conhece, mas a eficácia é garantida. Acredite, os russos não estarão com delicadezas. Os nossos homens serão classificados imediatamente como espiões.

- Imagina a repercussão, Sir?

- Sim, uma bela merda! Imagina que a Casa Branca se vai mexer por causa de cinco garotas e dezoito velhacos? Não, negará tudo em bloco, tratará de fazer crer numa operação de propaganda, incluindo a condenação dos pretensos espiões... Em resumo, rigorosamente, não teremos possibilidade alguma de nos safarmos.

De repente, Surakki, que continuava atento aos instrumentos, empalideceu.

- Que se passa?

- Os motores já trabalham... aproximam-se da costa...muito devagar...

- Por outras palavras, viram provavelmente os nossos camaradas.

Nicholson encostou-se ao tabique. O coração batia-lhe muito acelerado. Matarão Monika! Será corajosa, sem dúvida, porém tanto mais eles se encarniçarão em vencer a sua resistência. Quando se cai nas mãos dos Russos acaba-se sempre por falar. Quando se tem amor à vida, confessa-se...tudo o que eles quiserem....

Na casa dos foguetões, Jimmy Porter não parava de levantar os olhos para o tecto onde se encontrava o altifalante. Quem visse a expressão do seu rosto não podia enganar-se quanto ao seu estado de espírito naquele momento. Ora quando Jimmy Porter se encontrava sob pressão um pequeno nada bastava para que a sua fúria explodisse. Um simples murmúrio do comandante no altifalante...Sentado a uma pequena mesa, acabava de jogar uma partida de cartas com os seus habituais parceiros de jogo: Duncan, Losinski e Hammett, participantes todos eles no famoso jogo de dados que tivera por aposta uma noite na companhia da ruiva e encantadora Evelyn. Hammett baralhou as cartas. Também ele figurara na categoria dos suspeitos. Absurdo. Não era mais culpado que os seus camaradas pela morte de Duff e de Belucci. Baterem-se por uma mulher, sim, mas daí a cometer um assassínio... Não, enquanto vivessem a bordo, sentiam-se unidos por uma cumplicidade fraternal. Uma camaradagem, uma solidariedade inabaláveis. Belueci? Com certeza, tinham-lhe partido a cara. Normal. Estava a pedi-lo. Mas matá-lo? Só por ter tentado fazer batota com dados viciados? Aberrante. Pelo que se via o comandante apercebera-se disso pois deixara de os espicaçar. Depois da morte de Duff eles próprios tinham feito a sua investigação. Única conclusão evidente: o culpado era necessariamente alguém em quem Duff tinha plena e inteira confiança.

- Há algo que me escapa - disse Porter em voz alta.

- Temos os russos por cima da cabeça e somos obrigados a fazer de mortos, de acordo. Mas os rapazes que desembarcaram, e as mulheres, que vai ser deles?

- Preocupa-te com os teus foguetões e não te inquietes com eles - respondeu serenamente Hammett ao distribuir as cartas.

Era preciso lidar com as cartas como se fossem de cristal, pô-las na mesa com precaução. Rude prova para os nervos.

Jimmy Porter continuou a fixar o altifalante sem levantar as cartas. Duncan empurrou Losinski com o cotovelo: Está passado! Se continua assim, acaba mal. Enfim, tinham-se livrado das mulheres e estavam, finalmente, em paz. Só que ele não podia mais. Mesmo a água fria perdera toda a eficácia...

- Então, Jimmy, jogas ou não? - murmurou Losinski, que começou a arrumar as suas cartas. - Sinto que lhes vou dar uma destas tareias...

- Tenho de falar ao comandante - decidiu Porter de repente. - Sempre nos disseram que era preciso reflectir antes de executar as ordens, não foi?

- Meu velho, tenho a impressão de que perdeste por completo a cabeça.

- Vocês é que são estúpidos. Eu não sei o que se está a tramar, mas sinto que vamos direitos ao massacre.

- Se as putas de Saigão pudessem sequestrar-te... Reflecte, meu Deus! Não é culpa do comandante se de repente os russos nos caírem em cima!

- Não, mas eu quero saber o que ele pensa fazer.

Porter levantou-se perante o olhar incrédulo dos seus companheiros de jogo. Ele vai realmente procurar o Velho! Nicholson vai despachá-lo, talvez até o mande prender,

ele sabe, e mesmo assim vai. Não é possível, ele tem um parafuso a menos!

- Senta-te e joga - disse Duncan como se falasse com uma criança caprichosa. - Amanhã talvez os russos se tenham posto a andar e tudo estará bem. Senta-te. Jimmy, não faças de idiota.

- Eu volto já.

Nicholson decidiu-se, por fim, a quebrar o silêncio.

- Reflecte bem antes de abrires a boca, Jimmy. Lembra-te: tu, tal como os teus camaradas já não existem. O vosso nome não figura em nenhuma lista, os vossos processos desapareceram. Onde? Só uma pessoa sabe. Se não regressarmos, nunca ninguém o saberá. Terminado, Jimmy Porter, apagado, varrido!

- É uma ameaça, Sir?

- Tentava simplesmente refrescar-te a memória. Agora fala. Que se passa?

- Estou inquieto, Sir.

- Que deveria eu dizer?

- O comando em terra... e as raparigas... têm uma possibilidade de sobreviver?

- Enquanto há vida, há esperança.

- Mas quanto tempo aguentarão eles?

- Mais tempo do que nós, Jimmy. Eles pelo menos respiram ao ar livre.

Porter mordeu nervosamente o lábio inferior. Antes nunca o comandante teria consentido na discussão. A situação deve ser ainda pior do que eu imagino, senão há muito que me teria posto fora.

Porter entrou nas pontas dos pés e fez a continência.

- Desculpe-me, Sir - sussurrou ele -, mas não podia ter uma conversa consigo. E Nicholson respondeu sem deixar a sua habitual fleuma:

- Feche a porta, Jimmy. Devagar! - Não. Era demasiado tarde.

Porter empurrou a porta com precaução. Depois, aproximou-se e parou na frente de Nicholson que o encarou sem uma palavra, impassível. Porter, pescoço entre os ombros como se se preparasse para investir contra um inimigo, contentava-se também ele em fixar o comandante, em desafiá-lo com o olhar. Travava-se o duelo.

- Efectivamente.

- Então, vão morrer!

- Espero que consigam safar-se. Evidentemente será preciso que recorram à sua criatividade. Em todo caso já não podemos ajudá-los.

- Porquê, Sir?

- Evite fazer perguntas tão estúpidas, Jimmy.

Nicholson encarou Jimmy com olhar crítico. A cor passara para o carmesim, nas têmporas via-se pulsar as veias.

- Estamos literalmente cercados pelos russos - explicou ele. - É possível que fiquemos assim paralisados durante uma ou duas semanas. Seja como for, nada podemos tentar. Estamos bloqueados e condenados ao silêncio.

- Eles vão morrer todos, Sir? É um crime! Não permitirei...

- Ninguém lhe pede a sua opinião!

O rosto de Porter congestionava-se num grau inquietante, os lábios fremiram. Vai ter um ataque de apoplexia, pensou Nicholson. Será preciso que o agarre a tempo, que

não faça barulho ao cair!

- Assim que os russos partirem - articulou penosamente Porter -, exijo que venhamos à superfície e que os nossos camaradas regressem a bordo com as raparigas...pois é demasiado tarde para ir ao encontro da VÉNUS XI.

- Exiges! - respondeu Nicholson em tom amargo. - Pois bem, também poderias exigir que o Papa escolhesse domicílio num harém!

- Voltaremos a falar quando os russos partirem, Sir.

Porter voltou a pôr-se nas pontas dos pés e fez a continência. Espectáculo incongruente mas que na altura não podia prestar-se ao sorriso.

- Exijo, sim, Sir, exijo que as raparigas voltem a bordo, senão garanto-lhe que o inferno é uma suave punição ao lado daquilo que lhe preparo aqui.

Com estas palavras, saiu e fechou suavemente a porta atrás de si. Durante um instante Nicholson reflectiu, mãos cruzadas, como se quisesse rezar. Depois pegou no microfone e tossiu para chamar a atenção.

- Aqui fala o comandante - murmurou ele. - Em nome da Marinha dos Estados Unidos declaro o quartel-mestre Jim Porter despromovido para a posição de marinheiro, por insubordinação. Tenente Prescott, queira arrancar-lhe as divisas. Terminado.

Desligou o microfone. Estamos de facto a chegar ao fundo do abismo, pensou. É possível ter diferentes visões do fim do mundo. Mas não se podia imaginar como o viam agora os homens refugiados nas tendas naquela região desolada da Gronelândia: sob a forma de uma tempestade infernal e devastadora. O vento soprava sem tréguas. Assim, durante quatro dias e quatro noites. Um rugido diabólico. As tendas estavam agora cobertas de gelo. Impossível vir cá fora. Nem sequer se podia lançar um olhar. Invadido pela ansiedade, Bernie Cornell quis certificar-se de que a mais pequena das tendas, que abrigava as mulheres, não fora arrancada. Conseguiu com grande dificuldade correr uns centímetros o fecho éclair da entrada, mas assim que tentou deitar a cabeça de fora a tempestade atingiu-o com tal violência que recuou cambaleando e teve de ficar junto do doutor Blandy.

- Tive a impressão de que me arrancavam a cabeça. -- balbuciou. - Isto já não é uma tempestade, doutor, é o inferno!

- Ainda é capaz de formar frases coerentes, se bem que estúpidas. É bom sinal.

Como a neve penetrasse já no interior da tenda, Blandy foi correr o fecho éclair. Este simples gesto bastou para que ficasse com as mãos paralisadas pelo frio e para as aquecer teve de as esfregar demorada e vigorosamente.

Contemplou pensativamente o fogão a gás que lhes salvava a vida.

- Onde estão as garrafas de recarga?

- Fora, na reserva.

- Mau! Na minha opinião dentro de algumas horas esta garrafa estará vazia. Por outras palavras, vai ser preciso sair. Olhou sucessivamente cada um dos seus companheiros.

Bill Slingman sorriu com todos os dentes. Os outros estavam estendidos no colchão pneumático, enrolados em cobertores e mastigando pastas de frutos.

- Que aqueles que têm vontade de aprender a voar de borla levantem a mão. Lá fora não há forma de alguém se aguentar de pé.

- As raparigas estão sozinhas - lembrou Cornell.

- Que vão elas fazer se o fogão se apagar? É preciso que alguém vá ver.

- Vou eu! - decidiu Bill Slingman. - Eu... eu resistirei.

- E quando estiveres perto das raparigas, poderás aquecer-te. Estás a tomar-nos por imbecis. Não, não, meu velho, nem falar nisso é bom! O momento parece-me mal escolhido para organizar uma festa galante.

- Doutor - disse Slingman com um sorriso embaraçado. - Juro-lhe que só estava a pensar na segurança delas.

- Bem, eu considero que prioritariamente isso diz respeito ao médico. - Tendo avaliado o negro com o olhar, acrescentou: - Devemos ter sensivelmente o mesmo peso. Por isso resistirei tão bem como tu.

Pondo termo a todas as tergiversações, vestiu o capote de pele, enfiou na cabeça o gorro e enrolou dois lenços em volta da boca e do nariz. Depois pôs os óculos de sol e atou as luvas em volta dos pulsos.

- Boa sorte, doutor - disse Heindricks. - No seu lugar antes tentaria rastejar para apresentar ao vento a mínima superfície possível.

- É exactamente essa a minha intenção.

Blandy aproximou-se da entrada.

- Atenção, pequenos! O vento vai entrar. Bernie, assim que eu estiver lá fora corra o fecho éclair. E principalmente não se inquiete comigo.

Logo que abriu o fecho, a tempestade rugiu dentro da tenda trazendo um turbilhão de neve. Então, Blandy precipitou-se para fora e imediatamente se atirou de barriga para baixo. Demasiado tarde. Batido pelo vento, caiu de costas. E não estava longe de pesar cem quilos!

Lutando contra a tempestade, conseguiu avançar de gatas e progrediu penosamente. O vento feria-o como os punhos de um gigante.

As outras tendas tinham resistido. Cobertas de gelo lembravam mais os iglus dos Esquimós.

Blandy ia avançando. De vez em quando era obrigado a estender-se de barriga para baixo para não ser arrebatado.

Não ceder! Resistir! Progredir fosse como fosse. Se parasse, uns segundos que fossem, corria o risco de ser transformado numa estátua de gelo.

Quando alcançou a mais pequena das tendas, bateu com o punho e isso provocou o soltar de lâminas de gelo. Dentro não havia reacção. Evidentemente, pensou Blandy, elas devem imaginar que é o vento. Gritar não serviria de nada, não ouviriam. Deitou-se de costas e atirou violentos pontapés, sempre ao mesmo sítio. Aí tinham de reagir! Não era possível ser tão estúpido que se pensasse que o vento batesse tão regularmente e num ponto bem determinado. As raparigas, Deus seja louvado, iam mexer-se, sim.

O fecho éclair entreabriu-se. Com dificuldade mas o suficiente para que Blandy reconhecesse os olhos de Monika e uma madeixa dos seus cabelos louros.

- Abra! - gritou. - Depressa!

Pôde enfim deslizar para dentro da tenda e apressou-se em correr o fecho.

Em comparação com o exterior reinava aqui um calor sufocante. A chama de fogão a gás vacilava. As raparigas estavam deitadas no colchão e agasalhadas em cobertores.

Como sempre, Evelyn estava pintada e os cabelos ruivos caíam nos ombros em caracóis graciosos.

Blandy tirou o gorro e desabotoou o capote.

- Vai tudo bem?

- Até agora, sim - respondeu Monika que, via-se, fazia as funções de chefe. - Como conseguiu chegar aqui?

- Viajei numa nuvem. Uma nuvem de perfume, bem entendido. A propósito... - espirrou ruidosamente. – Eu não quero magoá-las, mas pelo cheiro penso estar num

bordel.

- É o meu perfume! - disse Evelyn espreguiçando-se indolentemente debaixo dos cobertores.

Blandy desviou os olhos e resmungou:

- Não tem mais nada na cabeça?

- Que julga? - retorquiu Lill Petersen. - Somos feitas como toda a gente. Sem o perfume de Evelyn o fedor seria já sufocante.

- Temos só um balde de plástico - explicou Monika.

- E não temos maneira de o despejar.

- Se isto continua, serão esvaziadas antes dele...

- Foi para dizer graças de tão mau gosto que veio? - perguntou Dorette em tom azedo. - Faria melhor se nos explicasse como pensa tirar-nos deste inferno!

- Faça a pergunta a Nosso Senhor que pôs a soprar esta danada tempestade.

Blandy bateu na garrafa de gás. Já soava claramente a oco.

- Se não fosse este vento de arrancar os cornos a todos os touros do inferno já estaríamos no quente, ao colo desses valentes tipos da VÉNUS XI. Tanto pior, temos de aceitar o mal com paciência. Mas mesmo assim não é razão para começar a fazer o testamento. Eis, minhas senhoras, o que tinha para lhes dizer. E por hoje é tudo!

A arte da mentira!, pensou Blandy. Eu poderia dar lições a um dentista. Se elas soubessem do que eu suspeito na realidade! Terei de falar já com Cornell e Heindricks. Se continuamos aqui sem nada tentar, não tardaremos a ficar transformados em icebergues.

- O maior problema é o gás - continuou ele.

- Mas trouxemos garrafas suficientes, não trouxemos? -- perguntou Monika.

- Sim, mas como chegar lá? Neste momento devem estar enterradas no gelo. Não se sabe bem onde. É certo que não passamos de um grupo de sinistros estúpidos, mas quem podia prever esta diabólica tempestade? Oh, não é material o que nos falta... ou antes, que nos faltava, porque tudo desapareceu. Vai ser preciso cavar, desenterrar. Quando poderemos começar, é aí que está o problema. Agora nem sequer temos maneira de nos aguentarmos de pé.

- Conclusão - respondeu tranquilamente Monika -, não tardaremos a morrer de frio. Encantadora perspectiva.

Dorette bocejou, cruzou as mãos por baixo da cabeça e, em voz lânguida, declarou:

- Eu tenho confiança no Bill, tenho a certeza de que encontrará uma solução para nos salvar.

- Ele não consegue parar o vento. Enfim... acabaremos por arranjar maneira de chegar ao material. A nossa situação não é brilhante. Temos gás para um dia, para mais certamente que não.

- Sabe, acho que a nossa garrafa já estaria vazia se não a fechássemos várias vezes ao dia. Durante esse tempo, para nos aquecermos, fazemos ginástica.

- Belos homens bem musculados prestar-nos-iam o mesmo serviço e seria mais agradável para toda a gente. -- precisou Lill a rir. - Você deve ser um amante maravilhoso, doutor. Basta ouvir a maneira como Evelyn fala de si! Sabe que há quatro dias que não pára de pensar em si?

- Não podes calar-te! - protestou Evelyn com um olhar apaixonado para Blandy.

- Perfeito - disse este com uma voz um tanto rouca.

- Constato com prazer que estas senhoras se portam maravilhosamente. Mas indico-lhes, apenas por acaso, que para remediar... digamos, certos incómodos, ainda nada há de melhor que uma boa corrente de ar fresco!

- Um amor! - disse Dorette em tom sarcástico imitando a voz de Evelyn.

Blandy levantou-se e abafou-se até às orelhas.

- Não se inquietem com o gás. Trazemos-lhes uma garrafa sobressalente. Encontraremos uma solução...

Evelyn sentou-se.

- Não ficas? Temos tanto medo... sozinhas nesta tenda... Monika nem se atreveu a dizer-te...

- O vento acabará por serenar.

Blandy teve de fazer um esforço para voltar as costas.

A prostitutazita agarrou-me bem, pensou ele. Eu sabia, percebi isso logo que a vi. Aquele choque, quando soube que tinha passado a noite com Belucci.

- Acreditem na minha experiência - disse ele. - Habituamo-nos a tudo! Encantadoras pequenas, até amanhã!

Monika correu o fecho éclair. Ele lançou-se para a tempestade e deixou-se cair de barriga para baixo.

- Estas moças portam-se que é uma maravilha! - anunciou Blandy ao regressar.

Mal se enfiou na tenda, logo todos se precipitaram para ele. Um despiu-lhe o capote, outro tirou-lhe o gorro, as luvas. E metralhavam-no com perguntas. Cornell levou a solicitude ao ponto de lhe esfregar a cara com uma toalha-esponja, enquanto Heindricks lhe dava vigorosas palmadas por todo o corpo a fim de activar a circulação do sangue.

- Elas fazem ginástica, para se manterem em forma. -- explicou Blandy. - À primeira vista não desconfiam daquilo que as espera. Como sempre, Monika é a única a dar

provas de um pouco mais de realismo. Mas conhecendo as outras, cala-se.

- Tentaremos o impossível para recuperar as garrafas de gás - afirmou Cornell. - Para já o essencial é que as tendas resistam. A situação não pode ser pior, mas sempre é uma consolação.

Blandy olhou-o, pensativo, depois desviou prudentemente os olhos e serviu-se de uísqui que bebeu de um gole.

O seu gosto lendário pelo uísqui valera-lhe a alcunha de Dr. Brandy. Gracejo que não apreciava, como já o testemunhara a cara tumefacta do seu autor. Deixou-se cair pesadamente numa caixa.

- Rapazes, vamos reflectir um pouco! O comandante desembarca-nos prometendo avisar a VÉNUS XI e com a certeza de que os rapazes da estação não tardarão em vir-nos procurar. Só que ainda não tínhamos alcançado a costa e já o Poseidon mergulhava, por ter Nicholson um submarino russo por cima da cabeça. Grosso modo, é esta a situação. Agora, se fazem favor, dêem algum trabalho às vossas meninges.

Cornell e Heindricks já não o abandonavam com os olhos. Os outros sorriam, embaraçados. Esses ainda não tinham compreendido.

- É impossível - protestou Cornell após um longo momento de silêncio. - Não, doutor, o comandante teve tempo.

- Certamente que não!

Blandy encarou os outros. Via-se que continuavam sem entender.

- Estou absolutamente convencido: Nicholson não teve tempo de entrar em contacto com a VÉNUS XI. Toda a gente ignora a nossa existência e ninguém virá à nossa procura.

- Oh, merda! - gemeu Bill Slingman.

- Poderíamos tentar alcançar a estação com o nosso emissor.

- E os russos ouvem tudo! Não, Bernie, nem sequer temos essa possibilidade.

- Nesse caso - sugeriu Heindricks -, levantaremos o acampamento logo que a tempestade acalmar e tentaremos encontrar a estação pelos nossos próprios meios.

- A pé? E as raparigas no barco pneumático puxado pelos marinheiros?

- Por que não? Não vejo outra solução. Se ficamos sem nada tentar, esperaremos indefinidamente e acabaremos por morrer. Não se sabe... amanhã talvez os russos tenham partido e o Poseidon poderá subir.

- Não se pode contar muito com isso.

Blandy serviu nova dose de uísqui e despejou o copo de uma golada.

- Nicholson já terá tido muita sorte se conseguiu escapar ao sonar dos russos. É melhor rendermo-nos à evidência: estamos reduzidos apenas aos nossos recursos. Não podemos contar com auxílio algum de fora. Tremam, carcaças, daqui em diante ninguém tem o direito de os censurar.

- O que eu pergunto é se a melhor solução não seria... rendermo-nos aos russos - sugeriu timidamente Yenkins.

- Em todo caso, seria o mais simples e pelo menos as raparigas estariam em segurança. Desembarcavam-nos no próximo porto...

- Permita-me que lhe diga, Yenkins, por momentos deu-me realmente a impressão de estar a lidar com um pobre de espírito. Se quer que os nossos bravos camaradas

russos o transformem em carne picada é consigo. Eu não vou nisso. E depois, o que conta mais: a segurança das raparigas ou a do Poseidon? Em minha opinião o problema não se coloca assim. Lembrem-se do que conhecemos no Vietname...

- Merda para o Vietname! - exclamou Slingman.

- De acordo, Bill, de acordo. O que eu queria dizer é que lá estávamos dispostos a morrer por nada! Neste momento estamos numa situação diferente: o que está em jogo é imenso e estamos todos envolvidos. Evidentemente, não vamos ficar aqui à espera da morte de braços cruzados. Mas é melhor não ter ilusões: praticamente não temos possibilidade alguma de sairmos disto. E agora são vocês a jogar: de momento o essencial é conseguir recuperar o material!

No sexto dia a tempestade amainou. No sétimo dia o céu voltara a ser azul e límpido.

Acocorados atrás da trincheira de gelo, Blandy, Cornell e Heindricks observavam o submarino soviético. Não se tinha mexido.

- Palavra de honra - ironizou Blandy -, estão a gozar férias na Gronelândia. Como vilegiatura, não se faz melhor. Idílico. Será preciso vender a ideia às agências de viagens. Entretanto, se o Poseidon continua no fundo e os rapazes ainda não enlouqueceram, escrevo ao Papa para lhe falar deste milagre.

Apesar de tudo, o humor geral pendia para o optimismo. Um comando de nove homens tentara uma expedição vitoriosa para encontrar o material. Conseguiram recuperar as garrafas de gás e caixas de víveres.

Naquele dia, debaixo de um céu sereno, o doutor Blandy preparava-se para tentar uma experiência decisiva. Prendeu duas tampas de caixas às botas de pele e deixou-se deslizar no gelo. Tendo percorrido vários metros voltou-se e soltou uma gargalhada.

- Certamente não arrebatarei o campeonato do mundo de patinagem artística, mas isto funciona! Em todo o caso não devemos esquecer as críticas ao almirante. Poderiam fornecer-nos esquis. Uma lacuna imperdoável!

- Diga antes que este saudável passeio não estava previsto no programa - lembrou Cornell. - Depois, baixando a voz: - Acredita realmente que ainda voltará a ver o almirante, doutor?

- Agora, acredito! Reparem neste tempo! Se o céu continuar assim azul, tenho a certeza de que alcançaremos a VÉNUS XI. Não estou a brincar, isto é a Primavera!

- A temperatura é exactamente de trinta e quatro graus negativos, doutor.

- Também estava a pensar que começava a morrer de calor! - Atou mais solidamente as tampas às botas. – De que está à espera, Bernie? Um pequeno esforço: sacrifique mais seis caixas. Tenho a intenção de levar comigo três homens. Uma pequena volta para visitar a região. Adoro fazer turismo.

- Que conta descobrir?

- Uma auto-estrada para Nova Iorque.

- Então abra bem os olhos! - respondeu Cornell a sorrir. - Bom... trago-lhe os esquis.

Meia hora depois Blandy, Slingman, Yenkins e o segundo-mestre Puckray afastavam-se a patinar. Dirigiram-se para norte onde se fixara a estação VÉNUS XI. Prevendo que pudesse servir, Yenkins levara o emissor-receptor na esperança de captar se não uma mensagem pelo menos um fragmento de mensagem proveniente da VÉNUS XI.

- Seria preciso mais um milagre! - retorquira Blandy. - Decididamente o Papa arrisca-se a ficar sobrecarregado.

Blandy e os seus três companheiros tinham posto óculos de sol indispensáveis para se protegerem da luz deslumbrante. Ao cabo de duas horas de marcha, decidiram fazer uma paragem. De súbito, Yenkins agarrou Blandy pela manga e sacudiu-o.

- Doutor... está a ouvir?

- O quê?

- Latidos! Escute...

- Está louco, Yenkins. Julga que é a Joana d'Arc!

No entanto, Blandy escutou... sem nada ouvir que não  fosse um zumbido na cabeça. Pensou que há muito deveria ter reduzido o seu consumo de álcool e de cigarros. No que toca ao álcool fui eu que envelheci. Já não sou mais que ' uma velha carcaça. Eu que em tempos teria passado o dia de esquis, começo agora a ficar de língua de fora ao fim de duas horas.

- Não ouço nada - disse. - E tu, Bill? Os negros têm  fama de ter bom ouvido, sempre ouvi dizer.

Slingman levantou o gorro para libertar as orelhas. Mas já Puckray confirmava:

- Não há dúvida, são mesmo latidos.

O rosto de Slingman iluminou-se com um grande sorriso.

- Cães! Com certeza uma matilha de cães! Yenkins tem razão, há cães por estas bandas!

- E quem diz cães, diz homens! - exclamou Puckray.

- Estamos salvos, doutor!

- Não ouço nada - reconheceu Blandy com amargura e para si jurou secretamente adoptar um regime mais saudável: menos tabaco e menos álcool.

De súbito, também ele ouviu um som distante, insólito no silêncio circundante.

- Doutor...

- Bico calado!

- Cães! - repetiu Yenkins. - Não há dúvida, doutor, são cães. Além... olhe!

Avistaram, semelhantes a brinquedos à distância, três trenós precedidos por uma matilha de cães, que perseguiam três ursos-brancos. Já cercados pelos cães que os atacavam sem darem tréguas, os ursos tentavam desesperadamente fugir.

Nos trenós distinguiam-se vagamente duas silhuetas... duas bolas de pêlo.

- Esquimós! - exclamou Yenkins. - Podem gabar-se de ter uma sorte danada. Agora será realmente o diabo se não conseguirmos chegar à VENUS XI.

- Veja, doutor, o milagre! - exagerou Slingman. - A Gronelândia é o país das maravilhas. É o que eu digo, o meu nome é Alice.

- Sempre gostei de cães - afirmou Puckray.

- Está bem, vamos, filhos.

O doutor foi o primeiro a lançar-se. Puckray fechou o cortejo. Devia redobrar de prudência porque era ele quem levava agora o emissor.

- Iupi! - gritou Slingman. - Vamos parar mesmo em frente dos ursos.

- Ursos-brancos! - gritou Yenkins. - Se vêem chegar um preto, têm uma crise cardíaca. Fulminados!

- Pobre diabo!

Slingman acelerou o andamento para se pôr a par com Blandy.

- Um pouco mais à esquerda, doutor.

Blandy arfava. Sempre aquele zumbido nos ouvidos. pusera o lenço a tapar a boca e transpirava. O suor corria-lhe para os olhos e formava gotas de gelo nas faces, dando uma cara de palhaço triste.

- Cuidado! - gritou Yenkins atrás deles. - Os ursos!

Não viram mais que dois ursos-brancos, maciços. Os cães davam-lhes caça sem descanso. A matilha passou na frente deles em rápida corrida. Os ursos apenas tinham virado a cabeça, não concedendo mais que um olhar furtivo àqueles novos inimigos. Continuaram numa corrida desesperada, em saltos sucessivos curtos e sacudidos. Em vão fugiam da morte.

Já distante, atrás, o terceiro urso estava caído de costas, imóvel, com um arpão cravado na caixa torácica. A pelagem branca estava já embebida em sangue, e, por baixo dele,  o gelo estava colorido de vermelho. Blandy aproximou-se, sem fôlego. Por um instante teve a tentação de se apoiar a  Slingman, mas o seu orgulho levou a melhor. Quando alguém se chamava Blandy, não tinha o direito de enfraquecer, em todas as circunstâncias tinha de se manter de cabeça erguida.

Aproximou-se do animal. Slingman, prudente, reteve-o pelo capote.

- Cautela, doutor! Muitas vezes os ursos fingem que estão mortos.

- Com um arpão no peito! Este dará um magnífico  tapete!

Debruçou-se sobre o animal. No mesmo instante a fera saltou. Blandy tinha pressentido aquele último sobressalto, mas não foi suficientemente rápido. O urso esticou primeiro as patas e feriu. Fulgurante! Como enormes tenazes de aço! Blandy soltou um grito. Agarrou o arpão com ambas as mãos para repelir o animal que, após o seu último sobressalto, tombou no gelo. Blandy caiu de cara contra a terra. Então, Slingman e Yenkins precipitaram-se, quiseram levantá-lo... Sangue!

- Doutor! - gritou Slingman. - Doutor! Diga qualquer coisa! Doutor!

Blandy fechou os olhos. Sentia claramente a hemorragia e compreendeu que não tardaria em ficar num charco de sangue.

- O peito! - conseguiu ele articular. - E nas costas... Dispam-me o capote... tentem limpar as feridas...Não pôde dizer mais. Faltava-lhe a voz. Estava paralisado pela dor. Desmaiou nos braços de Slingman.

Os trenós aproximavam-se. Yenkins e Puckray puseram-se a gritar com todas as suas forças agitando os braços. Os esquimós deviam tê-los visto pois continuavam a dirigir-se para eles.

Slingman apertava o médico nos braços como se fosse uma criança.

- Está a perder o sangue todo... Que é que se pode fazer? Diga qualquer coisa...

Blandy não era homem para desistir por causa de uma  ferida, por mais funda, por mais atrozmente dolorosa que fosse. Possuía uma resistência excepcional. Voltou a si antes ainda da chegada dos trenós junto do grupo. O sofrimento era horrível. No entanto, à custa de um esforço sobre-humano, conseguiu erguer-se e ajoelhou.

- Dispam-me o capote! - suplicou. - O capote e tudo o que trago vestido...

- Não é possível, doutor. Está muito frio.

Yenkins e Puckray continuaram a agitar os braços pedindo socorro.

- Cretinos! Se não obedecem as feridas vão infectar-se.

Em vão Blandy tentou levantar-se. Quando quis apoiar as mãos no gelo teve a impressão de ter o tórax dilacerado.

- Se os pêlos se colam às feridas... Mas, meu Deus, cambada de estúpidos, pois se lhes estou a dizer para me despirem...

Os latidos dos cães abafaram-lhe a voz. Os trenós pararam com um rangido. Faziam círculo em volta dos quatro homens e do urso. Os esquimós encararam sucessivamente cada um dos membros do grupo. Por baixo das peles mal se distinguiam as caras chatas e amareladas com olhos apertados. Esperavam, desconfiados, circunspectos. Estavam no seu território.

Puckray aproximou-se de um dos trenós e estendeu o braço para Slingman e Blandy.

- Socorro! Ferido. O urso. Levem-nos. Depressa.

Os esquimós não reagiram. Observavam Blandy com desconfiança.

- Eles não compreendem nada! - gritou Puckray. – No entanto, bem vêem o que se passa...Um homem a sangrar... Um dos esquimós apeou-se do trenó, aproximou-se lentamente de Blandy e inclinou-se para ele. Depois examinou o urso e descobriu entre as garras farrapos provenientes do casaco de Blandy. Então voltou-se para os trenós e gritou uma ordem. Imediatamente os outros se entregaram à tarefa de preparar um trenó. Tiraram tudo o que lá se encontrava e apenas conservaram as peles.

- Enfim! - exclamou Yenkins enxugando os olhos cheios de lágrimas. - Acabaram por compreender.

Os esquimós explicaram por sinais que Slingman devia largar o ferido. Eles próprios o levantaram e conseguiram pô-lo de pé.

- Eu posso andar! - afirmou Blandy. - Estes danados bichos fazem umas meiguices um tanto bruscas...

Deu uns passos a vacilar e teve de se apoiar aos ombros dos esquimós. Chegado ao seu objectivo desmoronou-se. Slingman ajudou os esquimós a deitá-lo no trenó e atiraram-lhe para cima cobertores de peles.

- Dispam-me! - balbuciou Blandy. - Obedeçam, brutos!

Os esquimós voltaram-se para os estrangeiros, interrogando-os com o olhar. Yenkins compreendeu: queriam saber para onde conduzir o ferido.

- Além - explicou ele apontando para sul. - O nosso acampamento.

Esboçou com as mãos a forma de uma tenda e depois levantou três dedos.

Os esquimós concordaram sorrindo. Três tendas. Apontaram os trenós e encaminharam-se para a sua atrelagem.

- Subam! - gritou Puckray.

Tirou as tampas presas às botas, que faziam as vezes de esquis.

- É melhor não as deitar fora, ainda podemos precisar delas.

Instalaram-se ao lado dos esquimós. Uns gritos agudos e os trenós puxados por cães puseram-se em movimento. Não tardou que deslizassem a uma velocidade surpreendente. Os cães latiam e ladravam, estimulados pelos gritos repetidos dos seus condutores.

- São os russos que vão ficar contentes! - gritou Puckray a Yenkins.

Yenkins fez um magnífico manguito.

- Estou-me nas tintas! O essencial é tratar o doutor. Lá teremos à mão tudo o que é preciso.

- Sabes dar uma injecção?

- Em caso de necessidade depressa se aprende.

Ajustaram os lenços à volta da cara e encolheram-se nos capotes. Chegaram ao acampamento uma hora depois. Tinham-nos visto chegar e todos, incluindo as raparigas, esperavam diante das tendas.

- Desta vez, se os russos não ouvirem nem virem nada, é porque são surdos e cegos - disse Heindricks. – Julgam ser coisa unicamente dos esquimós. Os trenós, se os virem, vão até tranquilizá-los. Somos todos uns felizardos, palavra de honra. Sorte como esta!

Cornell encolheu os ombros.

- Salvos! - gritou ele às raparigas que batiam com os pés de alegria diante da tenda, beijavam-se, riam e abraçavam-se. - Mas não há motivo para fazerem tamanha algazarra!

Os trenós aproximavam-se a grande velocidade. De dorso curvado, os marinheiros correram ao seu encontro fazendo grandes sinais como a dizer: Não se aproximem da costa!

Tami Tamaroo abandonou o seu posto de observação abrigado pela trincheira de gelo artificial e chamou Cornelll:

- Sir! Os russos ouviram. Estão na plataforma. Muitos.

Observam a costa com binóculos.

- Então, seria melhor que um dos trenós aparecesse. Isso os tranquilizaria.

Mas já Evelyn se precipitava para o trenó em que vinha deitado Blandy.

- Pare! - gritou Cornell. - Agarre-a!

Um marinheiro lançou-se, conseguiu alcançá-la e meteu-lhe uma rasteira. Ela caiu. Dois homens pregaram-na ao solo enquanto ela se debatia de maneira selvagem. Por fim, os trenós pararam. Os cães ladravam furiosos. Deitaram-se no gelo, depois esperaram, tremendo, com a boca cheia de espuma.

Cornell, Heindricks e cinco homens aproximaram-se. Yenkins correu ao seu encontro.

- O doutor está ferido! Um urso. Tem de ser tratado com urgência!

Levantaram Blandy, transportaram-no para a tenda maior e pousaram-no com precaução num colchão pneumático.

Enquanto Cornell e Slingman começavam a despi-lo, lá fora, três homens levavam Evelyn para a tenda reservada às mulheres. Ela debatia-se como uma louca, soltava gritos histéricos. Não havia maneira de a serenar. Contudo, não era possível mobilizar três homens só para a reter.

- Sorry, miss!

Sem mais hesitações, um dos marinheiros deu-lhe um murro no queixo que a enviou directamente para o país dos sonhos.

- Que malandro! Grande bruto! - guinchou Lill.

- Tenho pena, miss, mas se conhecia método mais eficaz, devia ter falado antes.

Blandy estava agora seminu. As feridas tinham um aspecto horrível. Um golpe fundo cortava o peito e nas costas o animal conseguira arrancar todo um bocado de carne.

Como Blandy temia, pêlos de animal tinham penetrado e estavam incrustados na carne viva.

Cornell ajoelhou-se junto do médico que tinham deitado  de lado, a fim de poderem examinar mais facilmente as duas feridas.

- O estojo do doutor, depressa! E água quente! Vai ser  preciso começar por lavar toda esta porcaria.

- Achas que consegues? - inquietou-se Heindricks.

Cornell resmungou uma resposta ininteligível. Dois homens correram à procura de água. Então, os esquimós entraram na tenda, dirigiram um sorriso cordial aos oficiais e debruçaram-se sobre Blandy. Tendo examinado os ferimentos, lançaram-se numa discussão animada e retiraram-se em seguida.

Slingman trouxe o estojo de Blandy. Cornell considerou demoradamente os instrumentos antes de se decidir por uma longa e fina pinça.

- Suponho que é preciso começar por aí...

Indeciso, ajoelhou-se perto de Blandy e murmurou-lhe ao ouvido:

- Doutor, está a ouvir-me? Doutor, tenho pena, mas precisamos dos seus conselhos. Diga-nos o que se tem de fazer, seguiremos as suas indicações.

Blandy entreabriu os olhos. Tinha ouvido e compreendi  do perfeitamente, estava, porém, incapaz de responder. Não obstante os seus esforços desesperados, as palavras não conseguiam transpor os lábios.

Sem perder mais tempo, Cornell pegou na pinça e começou a extrair os pêlos que traziam o risco de provocar uma infecção. Blandy gemia, batia as pernas, todo o corpo se torcia, lutava contra a dor.

- Seria preciso anestesiá-lo - sugeriu Heindricks com voz fraca.

- Procura na maleta, tem de lá estar morfina.

Como Blandy abrisse os olhos, Cornell de novo lhe falou ao ouvido.

- É realmente morfina que é preciso, doutor?

- Cretinos! - murmurou Blandy.

Foi a única palavra que conseguiu articular. Lá fora, os latidos dos cães redobraram. Os esquimós tinham-nos desatrelado e atirado um saco cheio de carne fresca que engoliram num abrir e fechar os olhos.

Sentindo nas costas uma corrente de ar gelado, Cornell virou a cabeça. Monika acabava de entrar e já despia o casaco.

- Eu gostaria de os ajudar - disse ela simplesmente.

Cornell abanou a cabeça.

- Não, miss Herrmann, não é espectáculo que se recomende aos corações sensíveis. Volte para a sua tenda e cuide antes da sua companheira. Se conseguir fazer com que lhe passe a crise de histeria, será já um sucesso.

- Joan está a tratar disso. Aproveita para aprender boxe!

- Aqui está a morfina, Bernie - anunciou Heindricks.

- Mas apenas em ampolas. Sabes dar injecções?

- Dêem-me licença - cortou Monika.

Ajoelhando-se ao lado de Cornell, abriu uma embalagem contendo uma seringa.

Cornell olhou-a desconcertado.

- Sabe dar uma injecção?

- Frequentei cursos de enfermagem - sorriu como que a desculpar-se e considerou que devia precisar: - Por mais filha do papá que se seja, temos realmente de fazer alguma coisa. Sempre me interessei pela medicina. Acho que não me esqueci de tudo.

- Então só desejo ceder-lhe o lugar.

Afastou-se e aproximou a bacia de água quente. Sem sinal de hesitação, escolheu no estojo tesouras, vários escalpelos e algumas pinças. Depois partiu a ampola de morfina e encheu a seringa.

- Evidentemente - constatou ela sem emoção aparente.- Seria melhor um verdadeiro anestésico.

- A morfina pelo menos acalma a dor.

- Mas não com a mesma eficácia. Quando fizer incisão na chaga...

- Quando...o quê?

- Vou tentar operá-lo. É indispensável para limpar a ferida em profundidade.

- Bernie, meu velho - murmurou Heindricks -, não temos mais que lhe tirar o chapéu. Ao lado dela não passamos de uns nabos. Monika, prometo-lhe nunca mais pronunciar uma palavra desagradável a seu respeito.

Monika, assistida por Cornell, trabalhou durante mais de uma hora para desinfectar as feridas. Duas vezes os esquimós entraram na tenda e durante uns instantes observaram a cena abanando a cabeça. À terceira vez, quando Monika acabava de concluir os pensos e Blandy dormia sob o efeito da morfina, eles trouxeram um recipiente de argila que pousaram junto do ferido. Depois, apontaram, ora para o recipiente ora para o doente, fazendo o gesto de pôr pomada.

Cornell enfiou o indicador no pote e tirou-o de lá todo besuntado numa pomada viscosa e nauseabunda.

- Que fedor! Isto parece uma mistura de ovos podres e de manteiga rançosa. Acredita na eficácia de tal porcaria?

- Sabe-se lá!

Por sua vez, Monika cheirou a pomada com repugnância.

- A verdade... é que estas receitas ancestrais são, por  vezes, mais eficazes do que os compostos químicos mais modernos.

Voltou-se para os esquimós e concordou sorrindo. Eles corresponderam então ao seu sorriso e saíram da tenda. Cornell estendeu suavemente um cobertor por cima de Blandy.

- Neste ponto, recapitulemos - disse ele acendendo um cigarro com mão trémula. - Dispomos agora de três trenós. É já um progresso. Se o tempo continuar bom, poderemos chegar à VÉNUS XI em quatro dias. É de opinião que o doutor possa ser transportado?

- Amanhã se verá.

Monika foi buscar um banco de armar e sentou-se à cabeceira de Blandy.

- De qualquer maneira - acrescentou ela -, não vejo o que os possa reter.

- Não vou abandonar o doutor! Isso nunca! O que pergunto é como foi capaz de ter uma ideia dessas.

- Mas eu ficarei junto dele!

- É absurdo.

- De maneira nenhuma. Enquanto vocês seguem para a estação, eu poderei ficar aqui com... digamos, quatro homens, unicamente voluntá rios. Vocês virão buscar-nos mais tarde. No total, a expedição não deveria prolongar-se para além de oito dias. Aguentaremos bem até lá.

Cornell abanou a cabeça obstinadamente.

- Não. Impossível. Eu preferiria a solução inversa. Heindricks acompanha-a à estação e eu fico com o doutor e alguns homens.

- E que fará? Vai passar o dia sentado à cabeceira a fitá-lo com olhar aflito. Por exemplo: que fará se a febre subir? Vai pôr-lhe cubos de gelo na testa?

- Deixa-me todas as instruções necessárias e eu desenrascar-me-ei. Só terá de preparar todos os medicamentos de que terei necessidade e vai ensinar-me a dar injecções. Praticarei. Não serei capaz de tratar dele durante oito dias?

- Bernie, você sabe perfeitamente que isso é um absurdo.

- Okay! Nesse caso, fica toda a gente.

- Não quer reflectir com calma em vez de se enervar inutilmente? Não se trata de nos abandonar, pois de qualquer maneira virá buscar-nos!

- Quem lho garante? Se vier uma nova tempestade, por exemplo? Escute... voltaremos a falar amanhã. Pelo menos saberemos se o doutor pode ser transportado.

Cornell saiu e foi procurar Heindricks no seu posto de observação.

- Repara... Seria preciso que os russos fossem incrivelmente manhosos para suspeitarem da presença de americanos nestas paragens.

De pé, à beira da falésia, os esquimós observavam o curioso monstro de aço imobilizado à superfície da água. Viva animação reinava a bordo do submarino. os oficiais juntavam-se na plataforma da torre, assestando os binóculos nos esquimós que lhes faziam sinais de simpatia a que eles respondiam agitando bandeiras.

- Encantador! - apreciou Heindricks. - Decididamente os esquimós têm um coração de ouro. E familiares que só visto!

Era bem evidente que os russos estavam convencidos de serem os únicos e de estarem defendidos de toda a curiosidade estrangeira. Aos seus olhos os esquimós não contavam.

- O doutor? - interrogou Heindricks.

- Saberemos mais amanhã. Talvez seja preciso seguir em dois grupos.

Na realidade Cornell já sabia: deixar o doutor na tenda ou levá-lo num trenó bem aquecido com peles, provavelmente não modificaria grande coisa ao seu estado. Por isso, a decisão estava já tomada.

O silêncio absoluto, a proibição de se movimentar de outro modo que não fosse nas pontas dos pés e exclusivamente , em caso de necessidade, o facto de ficar todo o dia molengão , numa cadeira ou espojado num beliche forçado à inactividade... tudo isso era bastante para exasperar os nervos mais sólidos.

O tenente Surakki acabava de fazer a ronda pelos diferentes postos.

- Reina um ambiente lamentável, Sir - declarou.

- E não é apenas por causa da presença dos russos.

- Que outra razão? - perguntou Nicholson que estava deitado no seu beliche preparando-se para ler um romance de Hemingway.

- As raparigas, Sir.

- Estão em segurança. Neste momento, acredite em mim, Surakki, a sua sorte é certamente mais invejável do que a nossa.

- Não duvido, Sir. Mas a tripulação não acredita. Porter não pára de correr de um compartimento para outro. Incita os homens à revolta, dá-lhes volta à cabeça. Pretende que não teve tempo de entrar em contacto com a VÉNUS XI.

- É exacto - confirmou Nicholson secamente.

Durante um instante Surakki fitou-o confuso.

- Sir... Porter anda a espalhar a seu respeito rumores inquietantes.

- Bom proveito lhe faça.

Nicholson pousou o livro e levantou-se.

- Se é isso que ele quer, acabarei por prendê-lo. E por que não, a ferros, se teimar... Teria assim a satisfação de reatar uma velha tradição da Marinha.

Ergueu-se sem pressa. Ao olhá-lo, Surakki pensou subitamente que o comandante envelhecera. Ou talvez fosse ele que o via naquele instante com outros olhos. O rosto hirto, impassível, parecia talhado em granito.

- Onde se encontra Porter neste momento?

- Não sei. Segundo as últimas notícias estava com McLaren e tentava convencê-lo de que o senhor estava demente.

- Como reagiu McLaren?

- Ameaçou-o que se ele insistisse punha-o inválido até ao final dos seus dias. Collins nem sequer lhe respondeu. Pô-lo fora. Em contrapartida, Porter obtém mais êxito com os marinheiros. Escutam-no e são a maioria.

- Os berros são sempre aplaudidos! - constatou Nicholson com resignação.- O homem é um animal estúpido e limitado. Precisa de ser empurrado. Quem não eleva a voz não é ouvido. Gritem, berrem e, convencer-se  ganharão a sua confiança. Nunca notou isto, Surakki? O homem político que mais audiência encontra é o que menos poupa as cordas   vocais. Não basta expor racionalmente os argumentos, é preciso enfiá-los nos crânios à martelada. Sim... é assim -. Nicholson arranjou-se e pôs o boné.- Você, Surakki... que faria no meu lugar?

- Não sei, Sir, não sou eu quem comanda.

- Que idade tem? Vinte e quatro anos, julgo... não é?

- Exactamente, Sir.

- Com a sua idade, estava eu na Coreia...

Nicholson teve um sorriso amargo, fechou os olhos por um instante como se evocasse recordações distantes e encolheu imperceptivelmente os ombros.

- O que quer Porter?

- Explica a quem o quer ouvir que a melhor solução seria afundar o submarino soviético. Uma vez metido o navio no fundo, o caminho ficaria livre e os outros poderiam voltar a bordo. Sem testemunhas, sem que se visse nem ouvisse. o torpedeamento passaria por um acidente inexplicável... Não faço mais que relatar as afirmações de Porter, Sir.

- E aqueles imbecis acreditam. Papam tudo sem reflectir! A elite da Marinha, segundo parece! Sinistros cretinos, sim, capachos, estúpidos e perigosos!

Surakki afastou-se para deixar passar o comandante.

- Espero as suas ordens, Sir...

- Acompanhe-me ao posto dos radares. Depois vamos tratar de Jimmy Porter.

- Quer prendê-lo, Sir? Há o risco de destrambelhar e pôr-se a berrar até fazer explodir o sonar dos soviéticos.

- Aí está precisamente o que tenho de evitar.

- Mas como, Sir?

- Responder-lhe-ei mais tarde. Para nada lhe esconder, não sei ainda que linha de conduta vou adoptar.

Uma actividade febril reinava no posto dos radares que se tornara mais do que nunca de uma importância crucial. Como Hynes quisesse levantar-se à entrada do comandante, Nicholson fez-lhe sinal para que continuasse sentado.

- Onde estão os nossos camaradas?

- Perdoe-me a expressão, Sir, mas, neste momento, fazem um chinfrim dos diabos - respondeu Hynes.

Nicholson sentou-se ao lado dele e ficou um instante a observar os instrumentos e a decifrar as indicações do computador. Depois, sempre em voz baixa, perguntou:

- Porter veio?

- Acabou de passar.

Hynes levantou os olhos para Surakki que aquiesceu em silêncio.

- Porter está doido, Sir, já não podemos duvidar. Mas como dominá-lo sem desencadear um tumulto? Mesmo que conseguíssemos arrumá-lo com uma só pancada, não se poderia evitar o barulho. Seria, portanto, a melhor solução...

- Não é seguro.

Nicholson pegou no microfone e no quadro dos comandos carregou no botão correspondente à casa dos torpedos.

- Porter?

- Quem fala? - murmurou Porter em voz rouca.

Nicholson franziu as sobrancelhas surpreendido por ele ter respondido à primeira solicitação.

- Aqui fala o comandante.

- Jack, o maníaco perigoso?

- O próprio, Jimmy. Escute...

- Não tenho tempo a perder. És tu quem me vais escutar, Jack: ao entrar a bordo, sabíamos quem eras. A tua fama chegou primeiro. És conhecido como um duro de roer, couraçado, intratável. Dizia-se que se a missão era realmente tão importante e ultra-secreta, o homem indicado eras tu. Era preciso um tipo de pulso, de acordo. Até estávamos orgulhosos. Mas agora acabou! Tu queres deixar morrer cinco mulheres e dezasseis dos nossos camaradas unicamente por cobardia. Porque tens cagaço! Então, não contes mais connosco. A maioria está do meu lado.

Nicholson empurrou o boné para trás. O calor pareceu-lhe subitamente sufocante.

- Que maioria, Porter? - murmurou. - Eu garanto-lhe que se interrogar a tripulação, não terá um só amigo a bordo.

- Porque são todos uns fracotes! - ripostou Porter com voz sepulcral. - De acordo, admitamos que estou sozinho. Mas estás a esquecer-te dos foguetões, Jack. Estou fechado,  corri o ferrolho, ninguém pode entrar. Compreendes, Jack,  não estou sozinho: estou com os foguetões. Só tenho dois gestos a fazer.

- Impossível, Porter.

- Impossível? Um jogo de criança! As cabeças estão já armadas. Basta carregar com um dedo e entrarão nas rampas de lançamento. Lembra-te, Jack, somos pioneiros...

Hynes pousou a mão no microfone. Estava lívido, trémulo.

- Tem de se arranjar maneira de o obrigar a sair, Sir. Se conseguirmos puxá-lo cá para fora, ganharemos.

Nicholson levou de novo o microfone à boca. No altifalante distinguia-se claramente a respiração de Porter.

- Jimmy?

- Ouve-me, Jack. Vou fazer um ultimato.

- Temos de discutir calmamente. Venha ao meu gabinete.

- O velho truque! Um bocado gasto, não achas? Com certeza não imaginas que eu vá cair nessa armadilha? Mal eu pusesse o nariz cá fora era logo abatido.

- Terá toda a liberdade de movimentos, Porter. Dou-lhe a minha palavra de honra. Espero por si. Partirá tal como veio. Chega-lhe?

- Não. A tua palavra bem a sabes onde a meto. Vocês, os oficiais, são todos os mesmos. Nem um para desculpar os outros. A tua palavra de honra e que mais ainda? Já estou velho para me deixar apanhar com pantominices. Agora é a minha vez... estás pronto para ouvir o meu ultimato?

- Estou - respondeu Nicholson em tom quase cortês.

- Simples: nós afundamos os russos e os nossos camaradas voltam para bordo.

- Então melhor ainda: torpedeamos o submarino russo, de acordo, mas, em seguida, vimos à superfície e chamamos a VÉNUS XI ou, por outras palavras, aplicamos o plano inicial.

Hynes e Surakki fitaram Nicholson como se ele fosse um fantasma. O próprio Porter parecia confuso. Ao cabo de um longo momento de silêncio, balbuciou:

- De acordo com isso, Sir... É também uma solução aceitável.

- Não, Porter! - cortou Nicholson. - Eu queria simplesmente ter consciência do seu grau de aberração mental.

- Malandro. Cão raivoso! Escuta-me bem: estou-me cagando para a tua opinião. Dentro de duas horas, nem um minuto mais, puxarei a alavanca vermelha. Ninguém me impedirá.

- Ninguém, de facto.

- Não, porque ninguém pode entrar. Nem sequer têm a possibilidade de rebentar com o ferrolho por causa do barulho. Tenho-o na mão. Entendido?

- Inteiramente claro, Porter.

- Sou senhor do navio. Estou sozinho com os meus  torpedos. Tu e os teus oficiais farão o que eu disser. Quem comanda agora?

- Você, Porter.

- Dentro de duas horas, Jack.

- Okay!

Nicholson desligou o microfone e pousou-o com precaução em cima do quadro como se mexesse num objecto precioso e frágil. Todos os oficiais reunidos à sua volta o  encaravam com horror. Ele, Jack Nicholson, capitular perante um louco!

- Sir... estava a falar seriamente? - balbuciou Hvnes.

Nicholson esboçou um sorriso.

- Ele só cometeu um erro: conceder-nos um prazo de duas horas!

Com estas palavras levantou-se, saudou os oficiais e saiu.

Quando fechou a porta atrás de si e se viu na coxia, encostou-se à divisória, baixou a cabeça e escondeu o rosto nas mãos. Não só o doutor não era transportável, como durante a noite o seu estado se agravara. No entanto, Cornell preparou e cuidou da partida com uma minúcia muito militar.

Era evidente que três trenós não bastariam para levar todo o material desembarcado e que apenas as mulheres ali encontrariam lugar, tendo os homens de ir a pé. Mas oferecia-se uma possibilidade de alcançar a estação VÉNUS XI e não era permitido subestimá-la. A presença dos esquimós, que conheciam o seu território a fundo e estavam habituados aos caprichos do céu, era de grande conforto e uma garantia de êxito. Carregou-se, portanto, prioritariamente os víveres, as últimas garrafas de gás, as mantas e a tenda mais espaçosa.

- E tu, tu poderás levantar o acampamento amanhã? - inquietou-se Tami Tamaroo quando Cornell o veio substituir no posto de observação e lhe entregou os binóculos.

- Tudo depende do doutor. Se a febre baixar, sim.

Chegada a noite, Blandy saiu finalmente do estado de coma. Abriu os olhos e pareceu reconhecer Monika que lhe enxugava a testa coberta de suor. O corpo ardia. Nada conseguia combater a febre. Mesmo a penicilina não actuava, como se o organismo a recusasse.

Estavam sozinhos na tenda. Cornell preparava-se para expor às raparigas as decisões tomadas.

- Não muito cedo - replicou Lill Peterson com arrogância. - Nós os suportaremos mais oito dias uma vez que é preciso. Mas aviso-o de que mal chegue à estação transmitirei uma mensagem para Washington e, acredite em mim, vai ter de que se queixar. Quanto ao vosso comandante, se alertarmos as nossas famílias, não fará grande carreira na Marinha. Terá aquilo que merece.

Evelyn Darring fora autorizada a ficar à cabeceira de Blandy. Enquanto ele estava ainda inconsciente, lançara-se sobre ele cobrindo-o de beijos, murmurando-lhe palavras meigas e frases apaixonadas. Cornell teve de intervir para a obrigar a sair e a acalmar-se.

- Mas se lhe estou a dizer que o amo! - exclamou Evelyn, chorosa. - É verdade, amo-o realmente. Talvez tenha conhecido muitos homens... porém ele, sim, amo-o.

Foi preciso pôr-lhe a mão na boca para abafar a sua choradeira e a levar à força para a tenda reservada às mulheres.

Foi Slingman que se encarregou do transporte...

Blandy voltara pois a si. Não pôde reprimir um ricto de dor. Monika acabou de lhe enxugar a testa e esforçou-se por exibir um sorriso alegre, ao qual Blandy tentou corajosamente corresponder. Mas não conseguiu senão fazer uma careta pouco reconfortante.

- E aqui estou - articulou ele penosamente. – Mas não por muito tempo.

- Amanhã, isso estará muito melhor - disse Monika com um nó na garganta.

De novo o rosto de Blandy se crispou, se torceu numa careta que exprimia ao mesmo tempo a incredulidade e a dor.

- Nada de confusões, pequena, comigo não.

Deixou escapar um gemido, mas como Monika já empunhasse uma seringa, recusou com um gesto.

- Economize a morfina, pode ter uma necessidade mais imperativa. Dê-me antes de beber, tenho a garganta em fogo.

- Fiz chá.

- Chá? Oferecer-me chá, a mim! Nada de brincadeiras... procura um pouco, pequena, que hás-de encontrar uísqui.

- Não, doutor.

- Que tens tu contra o uísqui? Vai lá buscá-lo, pequena. No meu caso, não conheço melhor remédio.

Monika condescendeu. Foi buscar a garrafa e encheu meio copo. Depois ajudou-o a beber amparando-lhe a cabeça. Foi sacudido por um ataque de tosse e lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

- Sofrer a este ponto... não é permitido! – murmurou ele com voz rouca quase inaudível quando a crise passou.

- Eu que sempre tive medo do sofrimento... muitas vezes o caso entre os médicos... Quando lhes toca pela porta os heróis da bata branca passam a ser garotos que tremem na frente da doença. Torna a dar-me de beber, pequena.

- Não, doutor, já chega.

Mas apesar dos seus protestos, Monika cedeu e Blandy olhou-a com gratidão.

- Tenho uma confissão a fazer-te - sussurrou ele abruptamente. - Não quero rebentar com este peso na consciência. Dá-me a mão.

Ela obedeceu. A mão dele queimava. Fechou os dedos em volta do pulso como se a quisesse reter prisioneira.

- Evelyn esteve aqui há pouco - disse ela com voz pouco firme. - Ela ama-o realmente, doutor...

- Evelyn, sim...

Durante um instante Blandy esteve de olhos fechados. A dor era muito aguda.

- Monika... Você... você tenciona casar com Jack Nicholson?

- Sim... se algum dia ele voltar.

- Vai sair desta! É um oficial como eu raramente conheci nas fileiras da Marinha. Fica com ele, pequena, seja qual for a sorte que o espere no seu regresso.

- Prometo, doutor.

- Promete-me também que nunca Jack saberá o que vou dizer-te. Nem Jack... nem Evelyn. Gostaria que eles não ficassem com uma recordação muito má de mim... se

possível... tenho essa esperança.

Deixou escapar um gemido dilacerante, esperou até recuperar algum fôlego, e exigiu mais um copo de uísqui que bebeu até à última gota.

- Tenho de lhe dar uma injecção, doutor - disse Monika que, à beira das lágrimas, procurava um pretexto para se esquivar por um instante.

Blandy conservou-lhe a mão prisioneira.

- Não. Escuta primeiro o que tenho para te dizer. E promete-me guardar segredo...

- Prometo, doutor.

Blandy hesitou ainda um instante, mas sentiu que não tinha o direito de recuar, porque momento como aquele sem dúvida não voltaria a apresentar-se.

- Fui eu quem matou Belucci... Sim, fui eu.

- Cale-se, doutor! Vou dar-lhe uma injecção. Já não sabe o que diz, está a delirar...

- Não, minha pequena, não. Fui eu quem matou Belucci... por me ter levado Evelyn. Assim que a vi na jangada salva-vidas, decidi que seria minha. Sempre fui louco pelas ruivas. A primeira mulher que conheci era ruiva. Uma enfermeira, lembro-me. Então... não pude suportar que um reles como Belucci me tivesse passado à frente...

- Não acredito - balbuciou Monika. - Está a mentir.

- Cala-te, deixa-me terminar. Tive de andar depressa. Eu dispunha apenas de uns minutos. Efectivamente, atirei o corpo de Belucci para a fossa dos dejectos. Jack é esperto. Mas o cadáver era demasiado pesado, as bombas não o levaram. Blandy arquejou, o rosto contraiu-se convulsivamente.

Reclamou nova dose de uísqui.

- Deixa-me a garrafa ao alcance da mão. Eu próprio me servirei. Não acabei... - gemeu, fez uma careta, depois, passada a crise, retomou com voz fraca e queixosa: - Belucci...sim... Tive de andar depressa, deixei-me surpreender por uma testemunha. Justamente no momento em que descia a escada da fossa. De imediato compreendi que para mim seria o fim. Pobre rapaz, quando Jack o interrogou, tive pena. Compreendi que não resistiria a uma segunda lavagem ao cérebro.

De punhos apertados contra a boca, Monika mordia os lábios até eles fazerem sangue. Estava lívida. A garganta apertada tinha dificuldade em engolir a saliva. Sentiu uma náusea.

- É falso - murmurou ela. - Está a mentir, não pode ter feito isso.

Blandy pegou na garrafa, levou-a à boca com a mão trémula e, tendo saboreado uma longa golada, guardou-a apertada contra si.

- Sim, fiz. Sufoquei Duff com a almofada, a sua famosa almofada. Fiz, Monika. Era preciso. Não tinha alternativa. Livre de Duff, já nada tinha a temer... Não pude evitar... As ruivas põem-me doido.

Antes de Monika ter tempo de fazer um gesto, rolou sobre o dorso, soltou um grito dilacerante mas ainda teve força para levantar a garrafa. Quando ficou vazia, arremessou-a por cima da cabeça.

- Agora, deixa-me pequena. Vou rebentar... tenho o que mereci. Mas principalmente não esqueças... que nunca Jack saiba... É tudo, vai-te embora... Vá, corre!

Monika levantou-se como que contra vontade. Mas uma vez lá fora, ao frio fustigante, foi como voltasse a si e precipitou-se para a tenda.

Blandy estava de joelhos, de seringa na mão. Acabava de , injectar o líquido nas veias.

Monika correu para ele, tentou arrancar-lhe a seringa, porém, era demasiado tarde, o êmbolo tinha chegado ao fim.

- Não tem o direito, doutor! Não tem o direito de deixar pesar a suspeita sobre trezentos homens!

- É verdade, pequena. Não passo de um ignóbil egoísta. Faz o que quiseres... testemunharás se entenderes. Quando estiver morto que importância tem isso...

Conseguiu estender-se novamente no colchão, cruzou as  mãos e fechou os olhos.

- Já não sofro - sussurrou. - Vês, pequena, é o fim. Meu Deus, o que eu amei a vida!

Duas horas se passaram antes de o coração abandonar toda a resistência. Pouco a pouco, a respiração abrandou, todo o corpo foi paralisando lentamente. O rosto exangue descontraiu-se... O rosto de um estranho.

Monika levantou o cobertor e tirou o espesso capote de pele. Ao sair, esbarrou com Cornell.

- Está a dormir?

- Está. Para sempre.

Durante grande parte da noite trabalharam febrilmente. Primeiro foi preciso tratar de Evelyn que teve uma crise ao saber da morte de Blandy. Acabaram de desmontar as tendas e carregaram os trenós. Slingman, Yenkins e Puckray construíram um jazigo pois a presença do submarino russo impossibilitava dar a Blandy uma sepultura digna de um oficial da Marinha. Colocaram, portanto, o seu corpo envolto na bandeira americana no jazigo edificado por meio de blocos de gelo. Cornell e Heindricks fecharam o jazigo, enquanto os homens alinhados como em parada faziam a continência. Os esquimós que tinham ficado atrás observaram a cena com um grande sorriso. Os brancos tinham decididamente costumes bizarros. Qual a razão de tantas momices? Não era a morte um fenómeno natural?

Observou-se um minuto de silêncio, depois Cornell ordenou:

- Aos trenós! As raparigas no trenó um e no dois, os fogões no terceiro! Isso marcha com as tábuas?

Yenkins deslizou à maneira de demonstração.

- Uma maravilha, Sir! Em todo o caso já é um alívio.

Então, Tami Tamaroo apareceu muito excitado:

- Eles partiram! - gritou lançando-se numa dança desenfreada. - Partiram! Os russos mergulharam! Há um quarto de hora ainda ali estavam.

Todos correram para a beira da falésia. Nada havia no lugar onde estivera o submarino soviético. Apenas blocos de gelo à deriva.

De comum acordo todos os homens se reuniram então em volta do túmulo de Blandy e entoaram o hino nacional, oferecendo assim uma última homenagem àquele que todos amavam e respeitavam, sem desconfiarem que a paixão fizera dele um assassino.

Novamente os homens se recolheram em silêncio. Depois, a uma ordem de Cornell, todos voltaram às suas tarefas.

Evelyn, que tinham transportado para o primeiro trenó, dormia profundamente. Tiveram de a obrigar a tomar calmantes. Monika estava instalada perto dela, abafada nas peles espessas dos esquimós. Lill, Joan e Dorette tinham ocupado lugar no trenó seguinte entre sacos e caixas cheias de latas de conservas. impacientes, os cães latiam e pulavam no seu lugar. Yenkins dera-lhes a compreender por sinais em que direcção deviam seguir. Teve a ideia de desenhar um radar no gelo. Contrariamente a quanto podiam esperar, os esquimós aquiesceram com entusiasmo e deram cotoveladas uns aos outros rindo.

- Conhecem a VÉNUS XI - gritou Yenkins triunfante. - Meus filhos, estamos salvos!

- Toda a gente pronta? - lançou então Cornell.

Todos os homens correram a ocupar o lugar que lhes fora indicado. Como um director de corrida, Cornell levantou o braço e baixou-o vivamente.

- Partida! Daqui a oito dias estaremos deitados numa cama fofa.

Jimmy Porter prolongava o seu ultimato. Decorridas as duas horas, pôs-se a andar pela casa como um leão na jaula,  lançando olhares incessantes ao altifalante. A escorrer suor, tinha regularmente de enxugar as mãos nas calças, o que  mais lhe aumentava o nervosismo. As rampas de lançamento estavam carregadas, as cabeças nucleares armadas, o aparelho de direcção de tiro ligado...restava baixar a alavanca vermelha. Instantaneamente, uma gigantesca nuvem atómica subiria à superfície das águas...Porter cerrou os punhos.

- Diz qualquer coisa, Jack! De que estás à espera, comandante? O prazo passou. Vamos rebentar todos! Carrego na alavanca e o Poseidon explodirá, tal como os russos, não será poupado. Quando bastaria torpedear os nossos camaradas soviéticos e trazer depois as raparigas... muito simplesmente, Jack, meu Deus, vais decidir-te...

Nicholson estava sentado à secretária quando entrou uma delegação constituída por Surakki, Hynes, Fairbanks e McLaren. Este fechou a porta com precaução.

Primeiro Nicholson encarou-os demoradamente sem dizer uma palavra, depois decidiu-se, enfim, a quebrar o silêncio que se tornara opressivo.

- Querem conhecer a minha decisão, presumo... Pois bem, continuo sem a tomar. Parece ser evidente que ninguém poderá convencer Porter e nada o impedirá de destruir o Poseidon.

- Tenho uma proposta a apresentar-lhe, Sir - anunciou McLaren em voz surda. - Bastaria ganhar mais uma hora. É possível?

- Tentarei em todo caso. Mas por que razão uma hora. Nunca conseguirá aproximar-se de Porter.

- A ideia é boa - garantiu Hynes.

- Evidentemente - explicou McLaren -, estamos a jogar tudo por tudo. Mas temos uma possibilidade de ganhar.

- No ponto em que estamos, tentemos o que tentarmos, não arriscamos nada. Já perdemos. Qual é a sua intenção, Victor?

McLaren aproximou-se da divisória onde estava suspensa uma planta do submarino, na qual só tinham sido omitidos um certo número de compartimentos secretos de que só Nicholson e Collins tinham conhecimento. McLaren indicou, partindo de uma pequena sala, um conjunto de canalizações que se iam ramificando em diversas direcções.

Nicholson carregou as sobrancelhas.

- O sistema de ventilação - comentou McLaren. - Canalizações alimentam todas as salas com oxigénio, enquanto outras retiram o ar viciado, que passa através dos filtros e é redistribuído após regeneração. A circulação é, portanto, permanente.

- Obrigado, eu sei. Mas qual é a relação com Jimmy Porter? - interrogou Nicholson, fatigado.

- Um sistema de válvulas permite regularizar a circulação do ar em cada sala... logo, bloqueá-la também. Por outras palavras, podemos muito bem impedir a entrada de oxigénio no posto dos torpedos!

Nicholson olhou McLaren sem uma palavra, depois, como se saísse de uma intensa meditação:

- Perfeitamente, Victor. Tem absoluta razão...

- Melhor, Sir: para acelerar o processo podemos bloquear a entrada de ar fresco tanto como a saída de ar viciado. Evidentemente que se Porter o notar será talvez demasiado tarde... talvez, digo bem.

- Por outras palavras, quer asfixiá-lo.

- Aturdi-lo simplesmente, Sir. Nessa altura, poderemos forçar a porta com suavidade. O único risco é Porter pressentir a armadilha mais cedo do que o previsto e baixar a

alavanca. Que pensa disto?

Nicholson contentou-se em sorrir e ligou o sistema de telefones internos. Carregou no botão TI. Logo a voz de Porter, sufocada, rouca, se fez ouvir no altifalante.

- Que estás tu a tramar, Jack. Já se passaram as duas horas! Está tudo pronto... Será que tiveste outra ideia?

- Exacto, Jimmy. Ouça bem, tudo o que peço é que me conceda mais uma hora.

- Nada de jogo sujo, Jack!

- Pelo contrário. Vamos emergir e tentar negociar com os russos. Eu sou como você, Porter, tenho apego à vida.

E depois, mesmo que os russos vejam o Poseidon, não será por isso que descobrirão o seu armamento.

- A canção é completamente diferente, hem, Jack? Mas depois de emergir?

- As raparigas voltarão a bordo, mergulharemos e cumpriremos a nossa missão. Mas, agora... deixo que imagine o que nos espera em Norfolk.

- Ainda lá não estamos, Jack.

- Eu sei, Jimmy, eu sei. Mas temos ainda uma possibilidade. Questão de solidariedade... Repito-lhe, decidi adoptar a solução razoável, quer dizer, emergir.

Nicholson levantou os olhos para McLaren que aquiesceu em silêncio, lívido.

- Jimmy... mais uma hora... De acordo?

- Se me dás a tua palavra de honra, Jack... a tua palavra de oficial...

- A minha palavra, Jimmy.

- Então, okay!

Quando Nicholson desligou, os oficiais não puderam reprimir um suspiro de alívio e todos enxugaram a testa. McLaren teve necessidade de se sentar.

- A bordo, quem mais está ao corrente, Victor?

- Ninguém, Sir. Só nós.

- Então, vamos a isso!

Na casa dos torpedos, Porter sorria. Um sorriso de beatitude, de iluminado. Tinha vencido, triunfava. Mostrara ao comandante o que lá tinha dentro: um Jimmy Porter educado na escola da Coreia e do Vietname. Jack Nicholson nada tinha de um super-homem, ele próprio era obrigado a reconhecê-lo. Como os outros, tremia ao ver a morte a aproximar-se. Estamos todos no mesmo barco, comandante. Nós queremos viver. Queremos mulheres, lindas bonequinhas, engraçadinhas e meigas, autênticas mulheres que gostem de fazer amor. Mais uma hora, senhores! Bebeu pelo gargalo metade de uma garrafa de água mineral, enxugou a boca com as costas da mão e contemplou os seus torpedos como um amante o corpo da mulher desejada. Norfolk? Sim, o bom do velho Adam ia ferver de fúria. Pior que um vulcão em fusão. Estavam todos no buraco! O comandante era o primeiro que ia passar uns danados quartos de hora! Mas podia contar com a solidariedade da sua tripulação. Os homens o apoiariam, eles...

Porter suava copiosamente. O calor tornava-se opressivo. Despiu a camisa, livrou-se da camisola interior. A sua caixa torácica erguia-se aos sacões, tinha dificuldade em respirar.

Que tenho eu para estar assim a beber tanta água? disse Porter para si mesmo. Quanto mais se bebe, mais se transpira, isto só serve para afogar o estômago. Levantou os olhos para a grelha de ventilação, de onde vinha um ligeiro zumbido, tranquilizante. Foi encostar-se à divisória e, durante um longo momento, manteve os olhos fixos na alavanca de destruição. Vermelho, cor de sangue. Deixou-se deslizar pela parede, sentou  -se e levantou os joelhos. A alavanca vermelha não estava a mais de quatro metros...

De súbito, Porter foi dilacerado por um ataque de tosse. Sentiu uma pressão ao nível do peito, como se os pulmões se enchessem até rebentarem. Sufocava. Nas têmporas, as veias davam-se por vencidas, lutava contra a vertigem. Conseguiu levantar-se, deu uns passos vacilando e cambaleou. A boca escancarada procurava desesperadamente uma lufada de ar. Arquejava. A cabeça estava apanhada por um torno, o crânio ia rebentar. Então, Porter compreendeu o que se passava. Quis gritar mas não conseguiu emitir mais que um fraco gorgolejar. O zumbido dos filtros de ventilação aumentava, como se aspirassem gulosamente o que restava de oxigénio.

- Estercos! Ignóbeis malandros - gemeu Porter. – Vão rebentar comigo...

Tentou dar um passo. As pernas negaram-se, desmoronou-se. Rolou então sobre o ventre, conseguiu levantar-se o bastante para se apoiar nas mãos e nos joelhos e caminhar de gatas, lentamente.

A alavanca vermelha... ainda a três metros... só a três metros...

Porter não distinguia mais que um ponto vermelho por entre o nevoeiro que lhe dançava na frente dos olhos. Já só faltam dois metros, Jimmy, tens de lá chegar, Levantas-te e em dois saltos estás lá. Tu podes, Jimmy, tu ainda tens força. Mostra-lhes do que és capaz! A sua palavra de honra... Imundície! Todos uns infames patifes... Só merecem rebentar!

Incapaz de se levantar, Porter continuou a rastejar, inundado de suor, boca muito aberta e olhos fora das órbitas.

Caiu. Ar, só um pouco de ar...

Oh, os patifes, os patifes... A alavanca vermelha, meu Deus!

Estendeu o braço, afastou os dedos. Impossível. No entanto, não lhe faltavam mais que cinquenta centímetros.

À custa de um esforço colossal, Porter saltou... sem ganhar um centímetro. Tentou levantar-se, mas desabou. A testa bateu-lhe no pavimento.

Sempre aquele danado zumbido... agora como um ronco ensurdecedor...

No posto de condicionamento de ar, Surakki desligou o altifalante.

McLaren encarou Nicholson: Tem a sua conta, Sir. Envio um pouco de ar fresco?

- Muito pouco! Vamos lá!

Quando McLaren se juntou ao grupo dos oficiais diante da câmara TI, Hynes e Fairbanks preparavam-se para abrir a porta. Nicholson esperava, pronto para saltar.

- Cuidado, Sir, já não há ar - observou McLaren.

- Pouco importa... É só o tempo de ir buscar Porter.

Nicholson não se deixou deter. Logo na entrada, a atmosfera era tão pesada, tão espessa, que teve a impressão de atravessar uma parede. Porter estava caído com os braços para a frente a menos de cinquenta centímetros da alavanca de destruição. Corria-lhe sangue da boca e do nariz. Os olhos estavam fixos e vítreos. Nicholson voltou à coxia e inspirou profundamente. Então, Surakki, Hynes, Fairbanks e, por último, McLaren lançaram uma olhadela para dentro da sala, após a qual, ao mesmo tempo, todos passaram a mão pelo rosto como se aquele gesto fosse do regulamento.

- Por pouco não conseguiu - disse Nicholson com voz ofegante. - Estava a menos de cinquenta centímetros... terminado...

Fechou os olhos e teve de se apoiar à divisória, ele próprio surpreendido por não desmaiar. Porque mesmo um comandante tem o direito de ter nervos.

Para Porter, os socorros chegavam muito tarde. McLaren entrou na dependência, virou-o, deitado de costas, e voltou para anunciar:

- Hemorragia cerebral -. Baixando os olhos, murmurou à flor dos lábios: - Eu não tinha intenção de o matar, Sir...

- Eu sei... - Nicholson voltou-se, mas antes de se afastar, acrescentou: - Desejaria ficar só... Que não me incomodem, peço-lhes.

Os oficiais fizeram-lhe a continência. Nicholson olhou-os como se só então ganhasse consciência da sua presença, depois abanou lentamente a cabeça e afastou-se com passo pesado.

Durante a noite, o tenente Hynes teve de sacudir Nicholson várias vezes antes de conseguir acordá-lo. Dormia com um sono de pedra. Parecia ter acabado de passar horas encantadoras com a mais esplêndida criatura do mundo.

Hynes exultava.

- Perdoe-me, Sir - disse ele -, mas o que tenho para lhe anunciar vale a pena ser ouvido. Custa a crer! Os russos desapareceram! Ganhou, Sir!

- Tem de se acreditar que a sorte estava do nosso lado...

Nicholson levantou-se e vestiu à pressa umas calças e uma camisa. Quando entrou no posto dos radares, caras radiosas voltaram-se para ele. Os homens juntaram as mãos.

- Felicitações, Sir!

- Não brinquem, meus filhos - disse ele com voz que traduzia a sua emoção -, as coisas podiam ter corrido muito mal -. Depois, como se voltasse à realidade e retomando o tom de comando que lhe era habitual: - Onde estão os russos?

- Afastam-se a toda a velocidade, Sir. Mergulharam a noventa pés. Tenho a impressão de que devem ter recebido uma mensagem chamando-os com urgência. Em todo o caso, fazem um alarido! Imaginam-se realmente sós. Acontecimento notável: Nicholson foi incapaz de conter o riso. Poderia gritar de alegria. A vida ganhava subitamente o valor de uma oferta.

- Esperamos até amanhã - disse ele. - Surakki, que estejamos prontos para ir à superfície às nove horas. Daqui até lá esperemos que os russos se tenham afastado bastante.

- Aye, aye, Sir! - respondeu Surakki com um sorriso radiante - Sir...

- Sim...?

- Tenho uma mensagem a transmitir-lhe por parte da tripulação. Os homens mandam dizer que consigo estão dispostos a atravessar o inferno. No dia seguinte de manhã, pelas nove horas, o Poseidon veio à superfície, lentamente, como se do mar surgisse uma ilha desconhecida. Nicholson foi o primeiro a vir à ponte do comando e inspirou o ar glacial com delícia. Afastou os braços para melhor encher os pulmões. Depois, levantou os binóculos e observou a costa, enquanto Surakki e Hynes vinham procurá-lo.

- Se ainda lá estivessem - sugeriu Surakki - far-nos-iam sinal. De qualquer modo ver-nos-iam!

- Talvez por causa dos russos tenham sido obrigados a retirar mais para o interior.

O radiotelegrafista tentou entrar em ligação com o comando. Sem resultado.

- Conclusão - disse Nicholson -, eles puseram-se a caminho da estação. Eu sabia que Cornell não esperaria. Aliás, Blandy também não.

Monika... Monika, estou tão feliz. Em breve nos voltaremos a ver. Tornaremos a partir para uma vida nova. Encontrarei trabalho, prometo-te. Ganharei o dinheiro suficiente para que tu e os nossos filhos não tenham falta de nada. Porque teremos filhos. Sim... pelo menos dois, louros como tu.

Nicholson teve de se sacudir para voltar à realidade.

- Estabeleça ligação com a VÉNUS XI – ordenou ele - e transmita-me a comunicação na ponte.

Um instante depois, uma voz próxima, muito nítida, fazia-se ouvir. Segundo parecia, aquele que estava em linha sentia-se atordoado por receber uma mensagem, perdida como se encontrava a estação nas neves eternas da Gronelândia.

- O seu número de código...?

- Nada de perguntas, pequeno - respondeu Nicholson em tom divertido. - Pouco importa quem, onde, como, porquê. A uns quilómetros da VENUS XI encontram-se quinze marinheiros, dois oficiais, um médico e cinco lindas raparigas. Vão a caminho da estação. Presumo que devam percorrer a costa na direcção sul. Saltem para os vossos trenós e corram ao seu encontro.

- Quem é você...?

- Eles explicarão quando estiverem no quente entre vocês. Cautela com as raparigas. Patas para baixo, são piores que tigres.

- Que quer isso dizer? É brincadeira ou quê?

- Corram, bando de brutos! - gritou Nicholson. - Daqui em diante são vocês os únicos responsáveis. Entendido?

- ... como poderei eu entrar em contacto consigo quando encontrarmos o grupo?

- Nem pense nisso. Transmita-lhes apenas os meus desejos de felicidade. Eles compreenderão. Diga-lhes que nos sentimos maravilhosamente bem. Entendido?

- Entendido...

- Terminado.

- Terminado.

Uns instantes depois, um comando subia a ponte. Os homens, em farda de gala, traziam uma maca na qual repousava o corpo de Porter. A cerimónia decorreu com dignidade.

Porter, antigo combatente da Coreia e do Vietname, amplamente merecera aquela última homenagem.

Os homens voltaram aos seus postos. Após um último olhar à costa, Nicholson voltou a entrar no submarino.

- Vamos passar trinta dias em mergulho - disse ele enquanto o Poseidon descia lentamente para os fundos submarinos.

Erguendo os olhos para os oficiais reunidos na sua frente, acrescentou no tom de alguém anunciando uma simples banalidade.

- Tenciono aproveitar para prosseguir o meu inquérito. Prometi a Duff descobrir o seu assassino e respeitarei o meu juramento.

Não foram trinta dias que eles estiveram submersos, mas exactamente noventa e três. As ordens transmitidas pelo almirante perturbaram todos os planos. Oficiais e marinheiros iam atingir os limites das possibilidades humanas.

Tiveram assim de efectuar uma operação de sobrevivência mesmo a meio do oceano Glacial Árctico. Em condições normais este tipo de exercício corria sem grandes dificuldades. Mas aqui os homens tiveram de o fazer doze vezes antes de cavarem um buraco na calote polar que os retinha prisioneiros no mar como num túmulo. O tenente Surakki foi o primeiro a chegar à luz do dia. Não obstante a temperatura ambiente, ele transpirava no seu fato de mergulho aquecido por acumuladores de pilhas

- Passámos, Sir - anunciou ele pelo emissor. - Dá-nos a impressão de estar numa mesa imensa. Tudo é liso,  uniformemente branco, de uma monotonia de fazer chorar. Para mim pergunto o que realmente ganharão os sábios em arrastar por aqui as polainas.

- Por que razão os alpinistas subiram ao cume do Himalaia? - replicou Nicholson.

- Tão estúpido, Sir...

- Tire fotografias ao buraco e volte para bordo!

- Aye, aye, Sir.

Mais sete homens treparam para a calote polar. Reuniram-se perto do buraco cavado pelas minas e fitaram a objectiva com um grande sorriso. Nem todos os dias se tinha oportunidade de posar para tais fotografias. Quem antes deles alguma vez pusera os pés na calote glacial? O acontecimento seria de marcar com uma cruz branca nos anais do mundo.

O comandante Nicholson anunciou à base o êxito da operação. O almirante estava ausente. Mas quatro horas depois, quando todos os homens estavam novamente a bordo e se aqueciam bebendo chá a ferver, Nicholson ouviu a voz familiar do Papá Lewis.

- Excelente, comandante - disse ele em tom um tanto seco.

- Preparamo-nos para fazer um relatório, Sir.

Nicholson fechou os olhos. Estava sozinho no seu gabinete, ninguém podia vê-lo nem ouvi-lo. Por que não me fala das raparigas, pensou ele. Por que finge ele ignorar tudo da sua existência? Elas já devem estar de regresso aos Estados Unidos. Está ao corrente de tudo, sem dúvida alguma. Então qual a razão deste jogo do gato e do rato? Que tenha invocado todos os pretextos para prolongar a nossa missão, evidentemente que isso já eu esperava...

- Estaremos em Norfolk a dezanove, Sir.

Uma nova ordem que mais uma vez ia alterar todos os planos? Não. Pelo que parecia, Adam considerava a punição suficiente. O restante resolver-se-ia na base.

- Bem. Continuará em mergulho até estar à vista do Bunker. Só virá à superfície uma vez entrado na doca V. Esperá-lo-ei às três horas e quinze precisas.

- Bern, Sir. Outras instruções?

- Não. Execução do plano L. É tudo.

Nicholson manteve-se à escuta, mas também o almirante parecia esperar. Deveria, portanto, dizer alguma coisa. Pelo menos anunciar que Cornell e os outros tinham chegado bem. Nem uma palavra a mais, aquilo bastaria. Saberia então que Monika estava a salvo. Sabe que a amo, almirante. Porque se mostra tão intratável? Ela deve ter-lhe falado...

- Que mais, Nicholson?

- Nada, Sir. Aplicação do plano L...

À noite, depois de jantar, enquanto Surakki, Fairbanks e Hynes jogavam às cartas na messe dos oficiais, Collins e McLaren entraram no gabinete de Nicholson.

- Suponho que queiram saber o que declarou esse caro e velho almirante? - perguntou Nicholson quando Collins e McLaren se sentaram. Não obstante a proibição geral, eles tinham trazido uma garrafa de uísqui. Melhor: um excelente bourbon.

- A nossa conversa foi de uma sobriedade exemplar  completou Nicholson. - Não fez rigorosamente alusão alguma. Nem uma palavra!

- E o senhor não lhe fez a pergunta?

McLaren desarrolhou a garrafa enquanto Nicholson ia buscar três copos ao armário.

- Para dizer a verdade - explicou ele -, eu estou mais aliviado por não termos abordado a questão. Claro que estou inquieto pelo doutor, Bernie... e os outros, as raparigas principalmente.

Nicholson estendeu o seu copo a McLaren que o encheu e logo o esvaziou de um trago.

- As contas serão feitas quando chegarmos. Aí, garanto-lhes que me apresentarão a factura, e vai ser pesada! Tudo dependerá da maneira como se queira considerar-nos: ou como autómatos militares, ou como seres humanos dotados de sensibilidade.

- Ora aí está uma linguagem bem nova na sua boca - comentou Collins com um sorriso. - Sabe como se fala de si na Marinha?

- Como um duro de roer, de pulso de ferro, seco como uma cacetada.

- Pouco mais ou menos isso.

Nicholson de novo estendeu o seu copo a McLaren, que desta vez o encheu até à borda.

- Em todo caso - garantiu ele -, pode contar connosco. Mesmo assim somos trezentos! Já conta para fazer pender o prato da balança.

- Não diga tolices, Victor - retorquiu Nicholson com sorriso amargo. - Quase parece que não conhece a Marinha... Sou eu quem vai pagar. No entanto, agradeço-lhes...

A 19, pela manhã, às três horas precisas, o Poseidon entrava na doca V da base de Norfolk. O navio por dentro fora lavado nos mais pequenos recantos, tudo fora polido, areado e brilhava de asseio. Os homens tinham vestido a sua farda de gala e esperavam a ordem de emergir. Os meses intermináveis passados debaixo de água, o esgotamento, a tensão nervosa, a ameaça de amotinação, os assassínios - ainda inexplicados -, a angústia da morte muito próxima quando aparecera o submarino soviético... agora todos estes acontecimentos pareciam pertencer já a um passado distante, como se as últimas horas da viagem, as mais penosas, tivessem varrido tudo o resto.

Finalmente, voltar a casa! A terra firme! Comer, beber, amar, dormir! Sim, adormecer com a certeza de acordar vendo o Sol, as árvores, as flores, a erva, ouvir o canto dos pássaros e mesmo... mesmo o barulho familiar das viaturas.

Agora pouco importava que chovesse ou brilhasse o sol, pouco importava desde que se tivesse o céu por cima da cabeça.

- Pronto a vir à superfície!

A campainha ressoou por todos os compartimentos.

As breves ordens dadas pelos oficiais subalternos em resposta às do comandante foram transmitidas pelos altifalantes.

- Pronto, Sir.

Sentado em frente da ocular do periscópio, Nicholson não avistou luz alguma em volta do Bunker V. Distinguiu apenas algumas luzes vacilantes mais ao longe no interior.

Já a torre surgia à superfície, poderosa, maciça. Com uma lentidão majestosa, o Poseidon emergiu, como um monstro de uma beleza angustiante.

Nicholson abriu a escotilha e saiu para a plataforma, seguido por Hynes e Surakki. Fairbanks acabava de dirigir a manobra, guiado daqui e dali pelas instruções que Nicholson lhe transmitia. O Poseidon atingiu lentamente o cais a que devia atracar.

- Toda a gente à ponte! - ordenou Nicholson.

Os marinheiros saíram, um por um, em uniforme branco, enquanto dois homens içavam as bandeiras. Nicholson reteve o fôlego, resistindo dificilmente à vontade de lançar um grito libertador.

O almirante Lewis Adam esperava sozinho no cais. Mas a cerca de dez passos atrás dele, todos ali estavam em formatura, também eles vestidos com o uniforme de gala. E quando o almirante levantou a mão para fazer a continência, todos com um só movimento o imitaram.

Bernie Cornell... Heindricks... Slingman... Tamaroo...Yenkins... Puckray... Smith... Williams... estavam todos ali e, com lágrimas nos olhos, saudavam o seu navio.

- Sir... - disse Surakki atrás de Nicholson. - Sir, aqui está um instante que nunca eu esquecerei.

- Cale-se - murmurou Nicholson. - Você não gostaria que o seu comandante se desfizesse em lágrimas como um garoto.

As máquinas pararam. Lentamente, pelas ordens de Hynes, o Poseidon veio colocar-se ao longo do cais. Quatro marinheiros saídos da penumbra receberam as amarras atiradas pelos homens do submarino.

O almirante avançou. Então, um primeiro-mestre fez soar um demorado toque de apito.

Nicholson desceu da torre e veio ao encontro do almirante. O meu último relatório, pensou ele. O almirante parou na ponte e fixou Nicholson com um olhar inexpressivo. Missão cumprida, pensou Nicholson. Baixou então o braço e esperou.

- Agradeço-lhe, comandante - disse o almirante, com voz suficientemente forte para que pudesse ser ouvido mesmo no cais.

Onde estará Blandy, perguntava-se Nicholson. Porque não está ele com os outros?

O almirante estendeu-lhe a mão e, depois de ter tido uma ligeira hesitação, Nicholson correspondeu ao gesto. Foi um aperto de mão firme e amistoso.

- À primeira vista tudo corre bem - sussurrou Surakki a Hynes.

- Espera um pouco

O almirante continuou, em tom mais solene:

- O senhor e os seus homens acabam de cumprir uma missão perigosa e por ela os felicito. A Marinha está orgulhosa do Poseidon I. Meus senhores, agradeço-lhes. Saudou mais uma vez a tripulação, depois, voltando-se, murmurou para Nicholson:

- Acompanhe-me, Jack. Temos um certo número de questões a discutir.

- Compreendo, Sir.

Nicholson seguiu o almirante. No momento em que pisou terra, pensou que abandonava definitivamente o seu navio, que nunca mais no futuro desembarcaria de um barco.

Dali em diante deixava de ser comandante, mas Jack Nicholson, um desempregado entre muitos outros.

Atrás dele soou o apito. Quando passou na frente deles, todos os tripulantes dirigiram uma piscadela de olho ao seu comandante. Slingman, esse, o homem talhado em granito, chorava.

Nicholson apressou-se a desviar a cabeça. Não se voltou nem sequer para ver uma vez mais o seu navio. Nem um Jack Nicholson teria coragem para tal.

A conversa particular prolongou-se para além de duas horas. Em momento algum, o almirante, decidido a usar da maior indulgência em relação a Nicholson, se afastou dos modos paternais que lhe eram habituais.

Sentado diante da secretária, Nicholson parecia petrificado.

- Paul... Paul Blandy! Não consigo acreditar, Sir. Se não o soubesse da sua boca...

- Teremos a confirmação dentro de umas horas quando se proceder ao esvaziamento. Mas, de qualquer maneira, porque iria Blandy mentir no momento da morte? Para proteger alguém? Penso que não. Por outro lado, miss Herrmann não tem razão alguma para o acusar se não tivesse a certeza.

- Como... como está ela, Sir

Adam acendeu um cigarro e contemplou sonhadoramente a primeira nuvem de fumo.

- Muito bem! As outras também, aliás. Deram prova de uma resistência surpreendente. Os homens da VÉNUS XI alcançaram-nos ao cabo de duas horas e todo este grupinho, voou no primeiro avião - Adam aclarou a voz e prosseguiu: - Tive todas as dificuldades deste mundo para convencer os seus felizes papás de que você não podia ter agido de outro modo...

De novo o almirante tossiu, mais ruidosamente desta vez.

Chegou o grande momento, pensou Nicholson. Cá vamos nós.

- É claro que estas repetidas infracções ao regulamento devem ser lançadas na sua conta.

- Tenho consciência disso, Sir. Sou o único a responder por isso.

- Não esperava outra coisa da sua parte, comandante. Presentemente todas as informações que pude recolher me vêm do testemunho destas jovens bem como dos nossos sãos e salvos da Gronelândia. Permanecem igualmente os relatórios mentirosos que me transmitiu. Antes de o ouvir, desejo proceder ao interrogatório de todos os seus homens. Teremos, portanto, novo encontro.

- Certamente, Sir.

Nicholson levantou-se.

- De imediato... posso permitir-me perguntar-lhe quais são as suas intenções a meu respeito?

- Tendo em conta o carácter excepcional das presentes circunstâncias vi-me constrangido a adoptar certas medidas de segurança. Na sala contígua, sim, Nicholson, atrás daquela porta, estão à sua espera. Suponho que não se poderá evitar retê-lo como prisioneiro.

Nicholson aquiesceu.

- Compreendo, Sir. Agradeço-lhe ter-me reservado este tratamento de favor. Sinto-me feliz por ter servido a Marinha.

- Nós sabemos, Jack.

O almirante apontou a porta.

- E agora saia. Voltaremos a falar de tudo isso mais uma vez.

Nicholson rodou nos calcanhares, fez uma profunda inspiração e saiu do gabinete. Antes de fechar a porta ainda ouviu o almirante extrair um copo do distribuidor automático de Coca-Cola.

Nicholson nunca conhecera a prisão e imaginava mal o desenrolar dos acontecimentos. Um oficial ler-lhe-ia um mandato de prisão, ou pedir-lhe-ia simplesmente que tivesse a boa vontade de o acompanhar?

Nicholson fechou a porta atrás de si e voltou-se lentamente. A sala exígua tinha por únicos móveis um grupo de poltronas e uma mesa baixa. Estava violentamente iluminada em comparação com o gabinete do almirante. Por baixo do candeeiro, Nicholson viu brilhar cabelos louros. Então, durante um instante, todo o seu universo vacilou, a sua visão ficou turva, um nevoeiro formou-se diante dos olhos.

- Monika

- Jack!

Ela correu para ele, lançou-se-lhe ao pescoço, beijou-o, aninhou-se nos seus braços. Ele, porém, estava incapaz de corresponder aos seus impulsos de ternura. Como era aquilo possível? Estaria a enlouquecer? No entanto, eram os seus lábios que sentia no rosto, a suavidade da sua pele que sentia nas mãos.

- Monika - repetia. - Monika...

Beijou-a, por fim, e muito tempo ficaram enlaçados, saboreando os seus lábios como se cada um dos beijos fosse o último.

- Ele disse-te? - perguntou ela quando afrouxou um pouco o abraço.

- Quem?

Ela deu uma gargalhada e agarrou-lhe o rosto entre as mãos.

- O almirante, evidentemente. És prisioneiro, Jack! Por toda a vida! Não penses que algum dia te restitua a liberdade. Tanto pior para ti, que tinhas de voltar a salvar-me na outra ponta do mundo. Agora é que tens o que mereces...

- Receio... que sejas obrigada a esperar por mim muito tempo... A prova ainda está longe de ter terminado.

- O almirante é de opinião que dois olhos azuis deveriam ajudar a recompor-te e a esquecer os maus dias.

Novamente ela se aninhou nele e lhe pôs os braços em volta dos ombros. Ele roçou a cara pelos cabelos sedosos e embriagou-se com o seu perfume.

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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