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De todos os livros de Balzac, talvez seja Alberto Savarus (em francês: Albert Savarus) aquele a respeito do qual a impressão do leitor diverge mais da do autor. Com efeito, para o leitor esta novela é principalmente a história de Rosália de Watteville e não, como o título o faz crer, de Alberto Savarus. Essa mocinha pálida, que, enquanto borda pantufas para o pai, sentada à lareira, maquina planos insensatos e intrigas destinadas a destruir vidas inteiras, com o seu apego fatal a uma ideia fixa, sua imaginação hipertrofiada, sua espantosa atividade espiritual, sua incrível hipocrisia, pertence à família diabólica da prima Bete, talvez a maior heroína balzaquiana.
O que surpreende o leitor, a par da atitude geralmente impassível de Balzac em relação às suas criaturas, é ver o grande “historiador de costumes” antipatizar com a srta. de Watteville. A antipatia chega ao ponto de o romancista recorrer a um verdadeiro deus ex machina, um acidente puramente fortuito, para, no fim do livro, infligir-lhe um castigo horrível à maneira do que se vê nos romancezinhos para moças.
A aversão de Balzac não pode ser atribuída a intuito moralizador, pois ele, no sombrio pessimismo que lhe inspirava o espetáculo da sociedade, nunca se importava com premiar a virtude e punir o crime. Pelo contrário, as suas personagens mais cínicas, mais imorais, atingem de ordinário as situações sociais mais altas, gozando consideração e felicidade. Se dessa vez se afastou da sua esplêndida impassibilidade, foi por ter sido Rosália a causadora da desgraça de Alberto Savarus, personagem esta que, sem dúvida, goza da simpatia do autor.
Na verdade, as atitudes de Alberto justificam pouco tal sentimento. Como Rosália, ele também age movido por um grande amor; entretanto, as ações a que essa paixão o leva não são absolutamente mais louváveis que aquelas a que a moça se deixa arrastar por igual motivo. Rosália viola o segredo da correspondência e chega a tornar-se falsária; mas será que Alberto não se mete em toda espécie de desprezíveis maquinações eleitorais? Ambos alegam o seu amor, mas Balzac condena a moça e absolve o homem, querendo que com ele deploremos a ruína deste e aprovemos o castigo daquela.
Bem examinados esses dois amores, teremos de reconhecer, porém, que o de Rosália é mais nobre, por ser mais quimérico e desinteressado. Ela visa a um só fim: conquistar o objeto de sua paixão, e por esse fim arrisca tudo, até a sua salvação eterna. Quanto a Alberto, o amor da mulher querida o torna apenas ambicioso; mas será isso um sacrifício, principalmente numa pessoa que já tem pendor para a ambição? É verdade que ele espera pacientemente a felicidade durante anos—mas não o faz com a esperança de um prêmio extraordinário e, além disso, não está convencido da fidelidade com que a amante o aguardava? A paixão de Rosália, pelo contrário, é uma loucura desesperada, não partilhada, e que a corrói.
Alberto poderá fazer jus à nossa simpatia por ser um indivíduo excepcional, um gênio? Balzac o afirma, mas, contrariamente a seu hábito, não o prova, isto é, não nos mostra Alberto agindo como o faria um grande homem. A novela publicada por ele, e que Balzac se dá ao trabalho de reproduzir na íntegra, revela-nos apenas que ele é um escritor medíocre. Ouvimos dizer que é um advogado notável, mas verificamos que é um péssimo psicólogo, o que nos faz duvidar da veracidade dessa afirmação. Em Rosália, sim, é que encontramos uma verdadeira grandeza e que admiramos o espantoso desabrochar de todas as faculdades sob a ação do amor.
A parcialidade do ficcionista não se justifica, pois—mas explica-se perfeitamente se soubermos que se trata de uma obra autobiográfica e que em Alberto Savarus Balzac se retratou a si mesmo. Basta ler o retrato físico de Alberto, que, no decorrer da novela, aparece com todos os traços, idealizados, do romancista, vestindo-lhe até o famoso robe de chambre. Alberto é “como Balzac queria que a posteridade o visse” (Paul Bourget). Além disso, repare-se na ternura do romancista para com essa personagem, os pormenores comuns de suas biografias (três anos de vida perdidos em Paris numa empresa infeliz, por causa de dois sócios; prosperidade repentina dessa empresa depois da saída de Balzac-Savarus etc.), sua orientação política e suas ambições idênticas, sua extraordinária energia, sua falta de sorte.
Também o amor do herói à princesa Francesca Argaiolo, que aguarda apenas a morte do marido velho para unir-se a Alberto, com quem mantém correspondência amorosa durante dez anos, foi moldado exatamente na paixão de Balzac por Evelyne Hanska; até o cenário onde os amantes fictícios se encontram pela primeira vez é o mesmo em que Balzac conheceu a sua “Estrangeira”. O escritor pôs toda a sua vida até a idade de quarenta e três anos na sua novela. Podemos mesmo dizer que, com antevisão profética, pôs nela até a própria morte, ao atribuir a Alberto estas frases trágicas: “Alcançar o alvo expirando como o corredor antigo! Ver a fortuna e a morte chegarem juntas aos umbrais de nossa porta! Obtermos aquela que amamos no momento em que o amor se extingue! Não termos mais a faculdade de gozar, quando se conquistou o direito de viver feliz!”.
Pois foi exatamente esse, bem o sabemos, o fim que a sorte reservou a Balzac.
No tocante à identidade de Balzac com Alberto Savarus convém salientar mais uma circunstância curiosa. Na novela atribuída pelo escritor a seu herói, aparecem personagens balzaquianas, figuras de A comédia humana (como a viscondessa de Beauséant, Gastão de Nueil, Schinner). Essa confusão entre a ficção de primeiro plano com a de segundo pode ter sido voluntária ou provir de um descuido de escritor; seja como for, constitui mais uma prova, e das mais convincentes, da identificação do romancista com a sua personagem.
Alberto Savarus, além de se dirigir ao vasto público de Balzac, visa especialmente à condessa Hanska, sua longínqua e ciumenta namorada. Ao descrever o amor absoluto de Alberto, um desses alter egos ou “fantasmas do espelho” de que fala Pierre Abrahan, Balzac pretende reforçar os protestos de fidelidade tantas vezes repetidos nas Cartas à Estrangeira. “As cartas a mme. Hanska são mentiras do primeiro grau”, escreve ainda Abrahan em Créatures chez Balzac; “o romance de Alberto Savarus, uma mentira do segundo grau, às quais se acrescenta aqui a curiosa novela escrita pelo próprio Savarus, outra, do terceiro grau.”
A invasão da realidade não foi favorável à obra, pois os elementos autobiográficos lhe quebram o equilíbrio e a serenidade. Aliás, Balzac, para impedir a identificação da bem-amada de Alberto com Evelyne Hanska, procura torná-la irreconhecível sob uma série de disfarces—miss Inglesa, sra. Lamporani, princesa Colonna, princesa Francesca, Argaiolo -, o que traz ao enredo uma complicação prejudicial.
Se o valor de uma obra consistisse na sua perfeita correspondência com o que o autor nela pretendia realizar, Alberto Savarus seria um livro falhado, pois ninguém subscreveria a interpretação que o próprio Balzac dá de sua narrativa numa das Cartas à Estrangeira, em 27 de abril de 1842. “Quero mostrar como, dando à vida social um objetivo demasiado alto, e cansado o coração e a inteligência, se chega a não mais querer o que foi, em começo, o objetivo de toda uma vida.” Também não podemos concordar com ele quando declara (em carta de 14 de outubro do mesmo ano) que o livro encerra “uma grande lição para o homem, sem nenhuma para a mulher”.
Mas Alberto Savarus—de que a sra. Hanska não gostou, talvez justamente por tê-lo lido depois dessas desorientadoras explicações preliminares de Balzac—salva-se pelo lado não autobiográfico. A pintura, em que Balzac excelia sempre, do ambiente provinciano, o retrato da devota baronesa de Watteville e de seu pobre marido e, sobretudo, a figura magistral de Rosália resgatam tudo. Esta última personagem, de uma vitalidade extraordinária, impôs-se ao autor malgrado seu e transtornou-lhe todo o plano. Quisera Balzac comover os leitores pela narrativa do heroico e paciente amor de Savarus-Balzac e enternecê-los com a descrição do pitoresco cenário onde este encontrou e amou a Francesca-Evelyne; mas sobreveio a srta. de Watteville, criatura puramente imaginária e, com a calma violenta de sua paixão insensata, relegou tudo isso ao segundo plano.
O caso daria uma ótima novela de Pirandello.
A comparação da primeira edição dessa obra com as ulteriores revela-nos que Rosália de Watteville se chamava primeiro Filomena. Segundo a primeira variante, a devota sra. de Watteville impunha esse nome à filha nascida em 1817 “por ter-se tornado então o culto dessa santa uma verdadeira loucura na Itália e uma bandeira para a ordem dos jesuítas”. Tendo vários leitores feito observar a Balzac que o culto de Santa Filomena não começou na Itália senão após a revolução de 1830, o escritor, ansioso da exatidão de sua “história dos costumes” até nos pormenores mais insignificantes, apressou-se em mudar o nome da personagem para Rosália, eliminando assim o anacronismo.
I - A SRA. DE WATTEVILLE
Um dos poucos salões frequentados pelo arcebispo de Besançon, durante a Restauração, e o que ele mais apreciava foi o da baronesa de Watteville.
Algumas palavras sobre essa dama, talvez a mais considerável personagem feminina de Besançon.
O sr. de Watteville, sobrinho-neto do famoso Watteville (O famoso Watteville ou, mais exatamente, Jean de Watteville (1613-1712): curiosa figura de aventureiro, espadachim e prelado, que, depois de ter sido general turco e oficial espanhol, chegou a ser abade de Baume e vendeu o Franco-Condado a Luís XV.), o mais feliz e o mais ilustre dos matadores e renegados, cujas aventuras extraordinárias são por demais históricas para ser narradas aqui, era tão manso quanto o seu tio-avô era truculento. Após ter vivido no Condado (O Condado (Franche-Comté de Bourgogne), antiga província do leste da França, no decorrer de sua acidentada história, teve vários donos. Nos séculos XVI e XVII passou mais de cem anos sob domínio espanhol, até que em 1678 o tratado de Nimega o atribuiu definitivamente à França.) como um bicho-de-conta na fenda de um forro de madeira, desposara a herdeira da célebre família de Rupt. A sra. de Rupt juntou vinte mil francos de renda em propriedades rurais aos dez mil francos de renda em bens imobiliários do barão de Watteville. O escudo do gentil-homem suíço (os Watteville são da Suíça) foi gravado no centro do velho escudo dos Rupt. Esse casamento, combinado desde 1802, realizou-se em 1815, após a segunda Restauração. Três anos depois do nascimento de uma filha, todos os ascendentes da sra. de Watteville haviam falecido e suas heranças tinham sido liquidadas. Venderam então a casa do sr. de Watteville, para se instalarem na rua da Prefeitura, no belo palacete de Rupt, cujo vasto jardim se estende para a rue du Perron. A sra. de Watteville, jovem devota, tornou-se mais devota ainda após o seu casamento. É uma das rainhas da santa confraria que dá à alta sociedade de Besançon um ar sombrio e maneiras de uma reserva afetada, em harmonia com o caráter da cidade.
II - O BARÃO
O sr. barão de Watteville, homem seco, magro e sem espírito, parecia gasto, sem que se pudesse saber por quê, pois gozava de uma ignorância crassa; como, porém, sua mulher era de um louro ardente e de uma natureza seca que se tornara proverbial (ainda hoje se diz: aguda como a sra. de Watteville), alguns trocistas da magistratura asseguravam que o barão se gastara contra aquela rocha. Rupt vem evidentemente de rupes (Rupes: palavra latina que significa “rocha”.). Os sábios observadores da natureza social não deixarão de notar que Rosália foi o único fruto da união dos Watteville com os Rupt.
O sr. de Watteville passava a vida numa rica oficina de torneiro, ele torneava! Como complemento a essa existência, dera-se à fantasia das coleções. Para os médicos filósofos, dados ao estudo da loucura, essa tendência para colecionar é um dos primeiros graus da alienação mental, quando se exerce sobre as pequenas coisas. O barão de Watteville acumulava conchas, insetos e fragmentos geológicos do território de Besançon. Alguns contraditores, sobretudo mulheres, diziam do sr. de Watteville:
— Ele tem uma bela alma! Viu, desde o começo do casamento, que não levaria a melhor com a mulher, e por isso se atirou a uma ocupação mecânica e à boa mesa.
III - A HISTÓRIA COMEÇA
O palacete de Rupt não deixava de ter certo esplendor digno do de Luís XIV, e se ressentia da nobreza das duas famílias, confundidas em 1815. Brilhava ali um velho luxo que não se atinha à moda. Os lustres de cristal, talhados em forma de folhas, as lâmpadas, os damascos, os tapetes, os móveis dourados, tudo estava em harmonia com as velhas librés e com os velhos servidores. Embora servida numa escura baixela de prata da família, em torno de um centro de mesa de espelho, ornado de porcelana de Saxe, a comida era deliciosa. Os vinhos, escolhidos pelo sr. de Watteville, que, para ocupar sua vida e pôr diversidade nela, se fizera seu próprio despenseiro, gozavam de uma espécie de celebridade departamental. A fortuna da sra. de Watteville era considerável, porquanto a do marido, que consistia das terras de Rouxey, valendo cerca de dez mil francos de renda, não teve aumento por herança. É inútil observar que a ligação muito íntima da sra. de Watteville com o arcebispo instalara como senhores, em sua casa, os três ou quatro prelados notáveis ou de espírito do arcebispado que não odiavam a mesa.
Num jantar de aparato, dado não sei por que boda no começo do mês de setembro de 1834, no momento em que as mulheres estavam colocadas em círculo, diante da lareira do salão, e os homens em grupos, pelas janelas, fez-se uma aclamação à vista do senhor abade de Grancey, que foi anunciado.
— E então! E o processo?—gritaram-lhe.
— Ganho!—respondeu o vigário-geral.—A sentença da corte, da qual nada esperávamos, sabem por quê...
Isso era uma alusão à composição da corte real de 1830. Quase todos os legitimistas se tinham demitido.
— A sentença acaba de nos dar ganho de causa, em toda a linha, e reforma o julgamento de primeira instância.
— Todos os acreditavam perdidos.
— E nós o estaríamos se não fosse eu. Disse ao nosso advogado que fosse a Paris e pude, no momento da batalha, tomar um outro advogado, um homem extraordinário, a quem devemos o ganho do processo...
— Em Besançon?—exclamou ingenuamente o sr. de Watteville.
— Em Besançon—respondeu o abade de Grancey.
— Ah!, sim, Savaron—disse um belo rapaz, que estava sentado perto da baronesa e tinha o nome de Soulas.
— Ele levou cinco ou seis noites, devorou toda a papelada, os autos, teve comigo sete ou oito conferências de várias horas—continuou o sr. de Grancey, que aparecia no palacete de Rupt pela primeira vez depois de vinte dias de ausência.—Enfim, o sr. Savaron acaba de derrotar completamente o célebre advogado que os nossos adversários tinham ido buscar em Paris. No dizer dos conselheiros, o rapaz foi maravilhoso. Assim, pois, o capítulo é duas vezes vencedor: venceu em direito e, depois, em política, venceu o liberalismo, na pessoa do defensor da nossa municipalidade. “Nossos adversários”, disse o nosso advogado, “não devem esperar encontrar, por toda parte, complacência para arruinar os arcebispados...” O presidente foi obrigado a impor silêncio. Todos os besançonenses aplaudiram. De modo que a propriedade dos edifícios do antigo convento fica sendo do capítulo da catedral de Besançon. De resto, o sr. Savaron convidou o colega de Paris para jantar, ao saírem do Palácio da Justiça. Ao aceitar, o último disse: “Ao vencedor as palmas!” e felicitou-o, sem rancor, pelo seu triunfo.
— De onde desencavou o senhor esse advogado?—perguntou a sra. de Watteville.—Nunca ouvi pronunciar tal nome.
— Mas a senhora pode ver-lhe as janelas daqui—respondeu o vigário-geral.—O sr. Savaron mora na rue du Perron; o jardim da casa dele limita com o seu.
— Ele não é do Condado—disse o sr. de Watteville.
— Ele tampouco é de qualquer lugar, que não se sabe de onde é—disse a sra. de Chavoncourt.
— Mas quem é ele?—perguntou a sra. de Watteville, tomando o braço do sr. de Soulas para se dirigir à sala de jantar.—Se é estranho ao lugar, por que acaso veio estabelecer-se em Besançon? É uma ideia bem singular para um advogado.
— Bem singular!—repetiu o jovem Amadeu de Soulas, cuja biografia se torna necessária para a compreensão desta história.
IV - LEÃO DE PROVÍNCIA
Em todos os tempos, a França e a Inglaterra têm feito uma troca de futilidades, tanto mais seguida porque escapa à tirania das alfândegas. A moda que em Paris chamamos inglesa é em Londres chamada francesa, e reciprocamente. A inimizade dos dois povos cessa em dois pontos: na questão das palavras e na do vestuário.
God Save the King, o hino nacional da Inglaterra, é uma música feita por Lulli para os coros de Esther ou de Athalie (Lulli: Jean-Baptiste Lulli (1633-1687), ilustre músico e compositor de origem italiana, diretor da Academia Real de Música de Paris.—Esther e Athalie: tragédias religiosas de Racine.). As anquinhas, trazidas por uma inglesa para Paris, foram inventadas em Londres, conhece-se o motivo, por uma francesa, a famosa duquesa de Portsmouth (A famosa duquesa de Portsmouth: Louise-Renéc de Penancoët de Kéroal (1649-1734), favorita de Carlos II, da Inglaterra.); começaram por provocar tal zombaria que a primeira inglesa que assim apareceu nas Tulherias escapou de ser esmagada pela multidão, mas as anquinhas foram adotadas. Essa moda tiranizou as mulheres da Europa durante meio século. Na paz de 1815, gracejou-se durante um ano da cintura baixa das inglesas. Paris em peso foi ver Pothier e Brunet em Les Anglaises pour rire (Pothier, ou, melhor, Charles Potier (1775-1837), e Brunet (1766-1851): atores cômicos. Les Anglaises pour rire, vaudeville de Servin e Dumersan.); mas, em 1816 e 17, a cintura das francesas, que em 1814 lhes cortava os seios, desceu gradativamente até lhes delinear as cadeiras. Nestes dez anos, a Inglaterra nos fez dois pequenos presentes linguísticos. Ao incroyable, ao merveilleux, ao élégant, esses três herdeiros dos petits-maîtres, cuja etimologia é bastante indecente, sucederam o dândi e depois o leão. O leão não engendrou a leoa. A lionne é devida à famosa canção de Alfred de Musset: Avez-vous vu, dans Barcelone... C’est ma maîtresse et ma lionne (Avez-vous vu, dans Barcelone: primeiro verso de L’Andalouse, de Musset. Eis toda a primeira estrofe:
Avez-vous vu, dans Barcelone,
Une Andalouse au sein bruni?
Pâle comme un beau soir d’automne?
C’est ma maîtresse, ma lionne!
La marquesa d’Amaegui.
Em português: “Vistes, em Barcelona/ uma andaluza de colo moreno/ pálida como uma bela tarde de outono?/ É a minha amante, a minha leoa/ a marquesa do Amaegui”.): houve fusão, ou, se quiserem, confusão entre os dois termos e as duas ideias dominantes. Quando uma tolice diverte Paris, que devora tantas obras-primas quantas tolices, é difícil que a província dela se prive. Por isso, logo que o leão passeou por Paris a sua juba, a sua barba e os seus bigodes, os seus coletes e o seu monóculo, sustentado sem o auxílio das mãos, pela contração da face e da arcada superciliar, as capitais de alguns departamentos viram subleões que protestaram, pela elegância das presilhas das calças, contra a incúria de seus compatriotas.
Besançon gozava, pois, em 1834, de um leão, na pessoa do sr. Amadeu Silvano Jacques de Soulas, que se escrevia Souleyas no tempo da ocupação espanhola. Amadeu de Soulas é talvez o único que, em Besançon, descenda de uma família espanhola. A Espanha mandava gente fazer seus negócios no condado, mas poucos espanhóis se fixaram ali. Os Soulas ficaram, por causa de sua aliança com o cardeal Granvelle. O jovem sr. de Soulas falava sempre em se retirar de Besançon, cidade triste, devota, pouco literária, cidade de guerra e de guarnição, cujos costumes e modo de ser, cuja fisionomia, valem a pena ser descritos. Essa opinião permitia-lhe alojar-se como homem incerto do seu futuro, em três quartos muito pouco mobiliados, no fim da rue Nueve, no local em que esta se encontra com a rua da Prefeitura.
V - BABYLAS, O TIGRE
O jovem sr. de Soulas não podia dispensar-se de ter um pequeno tigre. Este, filho de um seu granjeiro, era um criadinho de catorze anos, atarracado, de nome Babylas. O leão vestira muito bem o seu pequeno tigre: sobrecasaca curta de pano cinzento-aço, apertada com uma cinta de couro envernizado, calções de pelúcia azul-escura, colete encarnado, botas de verniz com canhões revirados, chapéu redondo com fita preta, botões amarelos com as armas dos Soulas. Amadeu dava ao rapaz luvas de algodão branco, roupa lavada e trinta e seis francos por mês, com obrigação de ele comer por conta própria, coisa que se afigurava monstruosa às costureirinhas de Besançon: quatrocentos e vinte francos a um rapaz de quinze anos, sem contar os presentes! Os presentes consistiam na venda dos trajos reformados, numa gorjeta quando Soulas trocava um dos seus cavalos e na venda do estrume.
VI - PREÇO MÉDIO DO LEÃO E DO TIGRE
Os dois cavalos, mantidos com uma sórdida economia, custavam um pelo outro oitocentos francos por ano. A conta dos fornecimentos, em Paris, de perfumarias, gravatas, joias, potes de verniz, trajos, ia a mil e duzentos francos. Se a isso se somar groom ou tigre, cavalos, gastos extraordinários e aluguel de seiscentos francos, chega-se a um total de três mil francos. Ora, o pai do jovem sr. de Soulas não lhe deixara mais do que quatro mil francos de renda, produto de algumas chácaras bastante minguadas que exigiam despesas de manutenção, o que impunha uma lamentável incerteza nas rendas. Restavam apenas menos de três francos por dia ao leão para a sua vida, seu bolso e o jogo. Por esse motivo, com frequência, ele jantava fora e almoçava com frugalidade notável. Quando era preciso absolutamente jantar à sua custa, mandava buscar pelo garoto dois pratos numa casa de pasto, sem que isso ultrapassasse vinte e cinco sous. O jovem sr. de Soulas passava por dissipador, por homem que fazia loucuras, quando realmente o infeliz, para juntar as pontas do seu orçamento anual, recorria a uma astúcia, a um talento, que teriam feito a glória de uma boa dona de casa. Ignorava-se, ainda, em Besançon sobretudo, quanto impressionam uma capital seis francos de verniz espalhado nas botas ou nos sapatos, luvas amarelas de cinquenta sous, limpas no mais profundo segredo para fazê-las servir três vezes, gravatas de dez francos que duram três meses, quatro coletes de vinte e cinco francos e calças que recobrem as botinas! Como poderia ser de outra forma, quando vemos, em Paris, mulheres concederem uma atenção particular a tolos que vão à casa delas e levam a melhor sobre os homens mais notáveis, por causa dessas frívolas vantagens que se podem obter por quinze luíses, inclusive o encrespamento e uma camisa de pano da Holanda?
VII - LEVE ESBOÇO
Se esse desventurado rapaz lhes parece ter-se tornado leão com pouca despesa, saibam que Amadeu de Soulas fora três vezes à Suíça, de carro e em pequenas jornadas; duas vezes a Paris e uma vez de Paris à Inglaterra. Era tido na conta de viajante instruído, e podia dizer: Na Inglaterra, onde estive etc. As matronas diziam-lhe: O senhor, que esteve na Inglaterra etc. Fora até à Lombardia, tinha costeado os lagos da Itália. Lia as obras novas. Enfim, enquanto limpava as luvas, o garoto Babylas respondia aos visitantes: “O senhor está trabalhando”. Por isso tentaram desvalorizar o jovem Amadeu de Soulas por meio da expressão: “É um homem muito avançado”. Amadeu possuía o talento de declamar, com a gravidade peculiar dos filhos de Besançon, os lugares-comuns da moda, o que lhe dava o mérito de ser um dos homens mais esclarecidos da nobreza. Usava no corpo as joias da moda e na cabeça os pensamentos controlados pela imprensa.
Em 1834, Amadeu era um rapaz de vinte e cinco anos, de estatura mediana, moreno, de tórax violentamente pronunciado, de ombros pelo mesmo padrão, coxas um pouco redondas, o pé já gordo, mãos brancas e rechonchudas, barba em coleira, bigodes que rivalizavam com os da guarnição, um rosto graúdo, bonachão e avermelhado, nariz achatado, olhos castanhos e sem expressão; aliás, nada de espanhol. Caminhava a largos passos para uma obesidade fatal às suas pretensões. Tinha as unhas muito cuidadas, a barba bem aparada, e os menores detalhes do seu vestuário, trazia-os com uma correção inglesa. Por isso Amadeu de Soulas era considerado o mais belo homem de Besançon. Um cabeleireiro que o vinha pentear a hora fixa (outro luxo de sessenta francos por ano) apontava-o como árbitro soberano em matéria de modas e de elegância. Amadeu dormia até tarde, fazia a toilette e saía a cavalo cerca do meio-dia, a fim de ir a uma das suas herdades exercitar-se no tiro a pistola. Dava a essa ocupação a mesma importância que Lord Byron lhe deu nos seus últimos dias. Depois, às três horas, regressava, admirado, no seu cavalo, pelas costureirinhas e pelas pessoas que estavam às janelas. Após pretensos trabalhos que, parecia, o ocupavam até às quatro horas, vestia-se para ir jantar fora, passava os serões nos salões da aristocracia de Besançon jogando whist e ia deitar-se às onze horas. Nenhuma existência podia ser mais transparente, mais regular, nem mais irrepreensível, porquanto ia com exatidão à missa nos domingos e dias santos.
VIII - UMA PALAVRA SOBRE BESANÇON
Para que possam compreender como era exorbitante essa vida, é necessário explicar Besançon em poucas palavras. Nenhuma cidade oferece resistência mais surda e muda ao progresso. Em Besançon, os administradores, os funcionários, os militares, enfim, todos aqueles que o governo, que Paris para lá manda, a fim de ocuparem um posto qualquer, são designados em blocos sob a denominação expressiva de a colônia. A colônia é o terreno neutro, o único onde, como na igreja, se podem encontrar as sociedades nobre e burguesa da cidade. Sobre esse terreno, a propósito de uma palavra, de um olhar ou de um gesto, se iniciam ódios de casa para casa, entre mulheres burguesas e nobres, que duram até a morte, e cavam mais fundo ainda os fossos intransponíveis que separam as duas sociedades. Excetuando os Clermont-Mont-Saint-Jean, os Beauffremont, os de Scey, os Gramont e alguns outros, que só residem nas terras do Condado, a nobreza de Besançon não remonta a mais de dois séculos, à época da conquista por Luís XIV. Esse mundo é essencialmente parlamentar, e de uma arrogância, de uma rispidez, de uma gravidade, de uma positividade, de uma soberba, que a nada se pode comparar, nem mesmo à corte de Viena, pois os de Besançon deixariam, sob esse ponto de vista, muito longe os salões vienenses. De Victor Hugo, de Nodier, de Fourier (O poeta e romancista Victor Hugo (1802-1885), o contista Charles Nodier (1780-1844) e o economista e filósofo Charles Fourier (1772-1837), inventor do falanstério, eram três celebridades da época.), as glórias da cidade, não se fala, ninguém lhes dá atenção. Os casamentos entre nobres são combinados desde o berço, pois que tanto as coisas menores como as mais graves são ali definidas. Jamais um estrangeiro, um intruso, se imiscuiu nessas casas; e para nelas serem recebidos coronéis ou oficiais titulados, pertencentes às melhores famílias da França, quando os havia na guarnição, foram precisos esforços de diplomacia que o príncipe de Taleyrand se teria sentido felicíssimo de conhecer, para empregá-los num congresso.
Em 1834, Amadeu era o único que usava presilhas nas calças em Besançon. Isso já lhes pode explicar o leonismo do jovem sr. de Soulas. Enfim, uma pequena anedota os fará compreender bem Besançon.
Algum tempo antes do dia em que começa esta história, a prefeitura teve necessidade de fazer vir de Paris um redator para o seu jornal, a fim de se defender contra a pequena Gazette que a grande Gazette (La Gazette de France: jornal parisiense, órgão da oposição legitimista.) tinha posto em Besançon e contra Le Patriote, que a República ali fazia agitar-se vivamente. Paris mandou um rapaz, ignorante do Condado, que estreou com um premier-Besançon (Premier-Besançon: editorial de um jornal de Besançon, expressão forjada por imitação de premier-Paris.) da escola do Charivari (Charivari: jornal humorístico fundado em 1832.). O chefe do partido moderado, um homem da prefeitura, mandou chamar o jornalista e disse-lhe: “Saiba, senhor, que somos graves, mais do que graves, enfadonhos; não queremos que nos divirtam e estamos furiosos por ter rido. Seja tão duro de ser digerido quanto as mais grossas amplificações da Revue des Deux-Mondes (Revue des Deux-Mondes: revista literária e política, de caráter conservador e grave, fundada em 1829, e que existe ainda hoje com as mesmas características.), e conseguirá apenas beirar o tom da gente de Besançon”. O redator entendeu a lição e falou o patuá filosófico mais difícil de compreender. Obteve o maior sucesso.
IX - POR QUE LEÃO?
Se o jovem senhor de Soulas não desmereceu na estima dos salões de Besançon, foi isso por pura vaidade da parte destes; a aristocracia sentia-se prazerosa em ter o ar de se modernizar e de poder oferecer, aos nobres parisienses que viajavam pelo Condado, um rapaz que mais ou menos se lhes assemelhava. Todo aquele trabalho oculto, toda aquela poeira atirada aos olhos, aquela loucura aparente, aquela ponderação latente tinham uma finalidade, sem o que o leão besançonês não seria da localidade. Amadeu queria chegar a um casamento vantajoso, provando um dia que as suas granjas não estavam hipotecadas e que havia feito economias. Queria chamar a atenção da cidade, queria ser o seu mais belo homem, o mais elegante, para obter, primeiro, a simpatia e, depois, a mão da srta. Rosália de Watteville: ah!
Em 1830, quando o jovem sr. de Soulas começou o seu ofício de dândi, Rosália tinha catorze anos. Em 1834, a srta. de Watteville alcançava, pois, a idade em que as pessoas moças são facilmente impressionadas por todas as singularidades que recomendavam Amadeu à atenção da cidade. Há muitos leões que se fazem leões por cálculo e por especulação. Os Watteville, possuidores, fazia doze anos, de cinquenta mil francos de renda, não gastavam mais de vinte e quatro mil por ano, embora recebendo, nas segundas e sextas-feiras, a alta sociedade de Besançon. Nas segundas era um jantar; nas sextas, recepção à noite. Assim, pois, a que quantia teriam chegado, em doze anos, aqueles vinte e seis mil francos economizados anualmente e empregados com a discrição que caracteriza essas velhas famílias? Acreditava-se geralmente que, julgando-se suficientemente rica em terras, a sra. de Watteville colocara a três por cento, em 1830, as suas economias. O dote de Rosália devia então constar de cerca de quarenta mil francos de renda. Fazia, pois, cinco anos que o leão vinha trabalhando como uma toupeira para se alojar na extremidade superior da estima da severa baronesa, ao mesmo tempo em que se colocava de modo a lisonjear o amor-próprio da srta. de Watteville. A baronesa conhecia o segredo das invenções com que Amadeu conseguia sustentar sua posição em Besançon e por isso o estimava muito. Soulas abrigara-se sob a asa da baronesa, quando esta contava trinta anos, tendo tido então a audácia de admirá-la e fazer dela o seu ídolo; chegara a poder contar-lhe, somente ele no mundo, as anedotas picantes, que quase todas as devotas gostam de ouvir, autorizadas que estão, por suas grandes virtudes, a contemplar os abismos, sem neles se precipitarem, e as ciladas do demônio sem se deixarem prender por elas. Compreendem o motivo pelo qual aquele leão não se permitia o menor deslize? Punha a sua vida às claras, vivia, por assim dizer, na rua, a fim de poder representar o papel de amante sacrificado, aos olhos da baronesa, e de lhe regalar o espírito com os pecados que ela vedava à sua carne. Um homem que possui o privilégio de derramar coisas licenciosas ao ouvido de uma devota é para esta um homem encantador. Se aquele leão exemplar conhecesse melhor o coração humano, teria podido, sem perigo, permitir-se alguns amores com as costureirinhas de Besançon, que o consideravam um rei; talvez que seus assuntos assim tivessem progredido junto à severa e puritana baronesa. Com Rosália, aquele Catão parecia perdulário; professava a vida elegante, mostrava-lhe em perspectiva o brilhante papel de uma mulher da moda em Paris, para onde ele iria como deputado. Essas sábias manobras foram coroadas de inteiro êxito. Em 1834, as matronas das quarenta famílias nobres que compunham a alta sociedade besançonesa citavam o jovem sr. Amadeu de Soulas como o mais encantador rapaz de Besançon; ninguém ousava disputar o terreiro ao galo do palacete de Rupt; e toda Besançon considerava-o o futuro esposo de Rosália de Watteville. Houvera mesmo, a propósito desse assunto, troca de algumas frases entre a baronesa e Amadeu, às quais a pretensa nulidade do barão dava alguma certeza.
X - ROSÁLIA
A srta. de Watteville, a quem sua fortuna, que um dia seria enorme, emprestava então proporções consideráveis, educada no recinto do palacete de Rupt, de onde sua mãe raramente saía, de tanto que queria ao seu querido arcebispo, fora fortemente oprimida por uma educação exclusivamente religiosa e pelo despotismo da sua mãe, que a segurava severamente com princípios. Rosália não sabia absolutamente nada. Será saber alguma cousa ter estudado geografia em Guthrie (Guthrie: William Guthrie, geógrafo escocês (1708-1770), autor de uma Gramática geográfica, traduzida para vários idiomas.), história sagrada, história antiga, história da França e as quatro operações, tudo passado pelo crivo de um velho jesuíta? Desenho, dança e música foram proibidos por serem mais próprios para corromper do que para embelezar a vida. A baronesa ensinou à filha todos os pontos possíveis da tapeçaria e os pequenos trabalhos femininos: costura, bordado e renda. Aos dezessete anos Rosália só havia lido as Cartas edificantes (Cartas edificantes: Lettres édifiantes, do padre Montmignon.) e obras sobre a ciência heráldica. Nunca um jornal lhe maculara os olhos. Ouvia missa todas as manhãs, na catedral, aonde a mãe a levava, voltava para almoçar, trabalhava após um pequeno passeio pelo jardim, e recebia as visitas, sentada junto à baronesa, até a hora do jantar; depois, salvo nas segundas e sextas, acompanhava a sra. de Watteville nos saraus, sem poder falar mais do que o consentiam as ordens maternas.
Aos dezoito anos, a srta. de Watteville era uma jovem débil, esguia, plana, loura, branca e insignificante em extremo. Seus olhos, de um azul pálido, tornavam-se mais belos com o movimento das pálpebras, que, quando baixas, lhe sombreavam as faces. Algumas sardas prejudicavam a pureza de sua fronte, aliás benfeita. Seu rosto assemelhava-se perfeitamente ao das santas de Alberto Dürer e dos pintores anteriores a Perugino (Albrecht Dürer (1471-1528): grande pintor e gravador alemão, autor de notáveis retratos.—Perugino: nome de artista de Pietro Vannucci (1446-1524), pintor italiano, autor de famosas madonas, mestre de Rafael.): a mesma forma gorda, embora fina, a mesma delicadeza entristecida pelo êxtase, a mesma ingenuidade severa. Tudo nela, até sua atitude, lembrava essas virgens cuja beleza não reaparece no seu brilho místico senão aos olhos de um conhecedor atento. Tinha belas mãos, porém vermelhas, e o mais lindo pé, um pé de castelã. Habitualmente usava vestido de simples algodão; mas aos domingos e dias santos sua mãe permitia-lhe seda. Seus vestidos, feitos em Besançon, tornavam-na quase que feia, ao passo que a sua mãe procurava adquirir graça, beleza e elegância com as modas de Paris, de onde tirava os melhores detalhes de sua toilette, graças aos cuidados do jovem sr. de Soulas. Rosália jamais usara meias de seda, nem borzeguins, e sim meias de algodão e sapatos de couro. Nos dias de gala punha um vestido de musselina, sem chapéu, e calçava sapatos de couro bronzeado. Essa educação e a sua atitude modesta ocultavam um caráter de ferro. Os fisiologistas e os profundos observadores da natureza humana vos dirão, talvez com grande espanto vosso, que, nas famílias, os temperamentos, os caracteres, o espírito, o gênio reaparecem com grandes intervalos, absolutamente como o que se denomina de doenças hereditárias. Assim, por exemplo, o talento, da mesma forma que a gota, salta algumas vezes por sobre duas gerações. Temos desse fenômeno um exemplo ilustre em George Sand, em quem revivem a força, a potência e o conceito do marechal de Saxe (O marechal de Saxe: conde Maurice de Saxe (1696-1750), general francês, um dos grandes capitães do século XVIII.), de quem ela é neta natural. O caráter decidido, a audácia romanesca do famoso Watteville haviam reaparecido na alma de sua sobrinha-neta, agravados ainda pela tenacidade e pelo orgulho do sangue dos Rupt. Essas qualidades, porém, ou esses defeitos, se quiserem, estavam tão profundamente ocultos naquela alma de moça, na aparência apática e débil, como as lavas ferventes o estão sob uma montanha, antes de esta se transformar em vulcão. A sra. de Watteville era a única, talvez, que suspeitava o legado dos dois sangues. Mostrava-se tão severa com a sua Rosália que um dia respondeu ao arcebispo que a repreendia por tratá-la tão duramente:—Deixe-me guiá-la, monsenhor, eu a conheço! Ela tem mais de um Belzebu no corpo!
XI - ENTRE MÃE E FILHA
A baronesa observava tanto mais a filha por crer nisso empenhada a sua honra de mãe, e também porque nada mais tinha a fazer. Clotilde de Rupt, então com trinta e cinco anos e quase viúva de um esposo que torneava oveiros em toda espécie de madeira, que se encarniçava em fazer rodas de seis raios, com pau-ferro, que fabricava caixas de rapé para os seus amigos, Clotilde coqueteava, sem maldade, com Amadeu de Soulas. Quando o rapaz estava em sua casa, ela mandava a filha embora e a chamava, alternativamente, e procurava surpreender naquela alma jovem manifestações de ciúme, a fim de ter a oportunidade de domá-las. Imitava a polícia nas suas relações com os republicanos, mas, por mais que fizesse, Rosália não se entregava a nenhuma espécie de motim. A seca devota recriminava então à filha a sua perfeita insensibilidade. Rosália conhecia suficientemente a mãe para saber que, se achasse simpático o jovem sr. de Soulas, atrairia sobre si alguma desabrida repreensão. Por isso, a todas as provocações da mãe, respondia com essas frases tão impropriamente denominadas jesuíticas, pois os jesuítas eram fortes, e aquelas reticências eram os cavalos de frisa (Cavalos de frisa: obras de defesa formadas de cavaletes de ferro munidos de pontas.) por trás dos quais se abrigava a fraqueza. A mãe tratava então a filha de dissimulada. Se, por desgraça, se mostrava nela uma fagulha do verdadeiro caráter dos Watteville e dos de Rupt, a mãe armava-se com o respeito que os filhos devem aos pais, para forçar Rosália à obediência passiva. Essa luta secreta realizava-se no mais secreto recinto da vida doméstica, a portas fechadas. O vigário-geral, esse estimado abade de Grancey, amigo do defunto arcebispo, por mais informado que fosse, na sua qualidade de grande penitenciário da diocese, não podia adivinhar se aquela luta tinha revolvido qualquer ódio entre mãe e filha, nem se a mãe estava antecipadamente enciumada, ou se a corte que Amadeu fazia à filha, na pessoa da mãe, ultrapassara os limites. Na sua qualidade de amigo da casa, não confessava nem a mãe nem a filha. Rosália, um pouco demasiado sovada, moralmente falando, por causa de Amadeu, não o podia sofrer, para empregar um termo de linguagem familiar. Por isso, quando ele lhe dirigia a palavra, procurando sondar-lhe o coração, ela o recebia com bastante frieza. Essa repugnância, somente visível para os olhos da mãe, era contínuo motivo de admoestações.
— Rosália, não vejo por que motivo você mostra tanta frieza para com Amadeu. Será por ele ser amigo da casa e por que nos agrada, a seu pai e a mim?
— Ora, mamãe—respondeu um dia a pobre menina -, se eu o acolhesse bem, não seria mais recriminada ainda?
— Que significa isso?—exclamou a sra. de Watteville.—Que quer dizer com essas palavras? Que, talvez, sua mãe é injusta, na sua opinião, e que o seria em qualquer caso? Que nunca mais semelhante resposta lhe saia da boca, para a sua mãe... etc.
Essa disputa durou três horas e três quartos, segundo anotou Rosália. A mãe empalideceu de cólera e mandou a filha para o quarto, onde Rosália estudou o sentido daquela cena, sem nada conseguir achar, tal a sua inocência! Assim, pois, o jovem de Soulas, que toda a cidade de Besançon julgava bem perto do alvo para o qual tendia, com gravatas enfunadas e a golpes de potes de verniz, alvo que lhe fazia gastar tanta pomada para entesar os bigodes, tantos coletes bonitos, ferraduras e espartilhos—pois usava um, de couro, o espartilho dos leões -; Amadeu estava mais longe desse alvo do que qualquer outro, embora tivesse por si o digno e nobre abade de Grancey. Rosália, de resto, não sabia ainda, no momento em que começa esta história, que o jovem conde Amadeu de Soulas lhe fora destinado.
XII - CIRCUNSTÂNCIAS MISTERIOSAS
— Senhora—disse o sr. de Soulas, dirigindo-se à baronesa, enquanto esperava que a sopa, um pouco quente demais, esfriasse, e afetando tornar sua narrativa quase romancesca -, uma bela manhã a diligência lançou no Hotel Nacional um parisiense que, depois de ter procurado um apartamento, decidiu-se pelo primeiro andar da casa da srta. Galard, na rue du Perron. Em seguida o estrangeiro foi direito à prefeitura, fazer uma declaração de domicílio real e político. Finalmente fez-se inscrever no quadro dos advogados perante a corte, apresentando títulos em regra, e deixou em casa de todos os seus novos colegas, dos representantes do ministério público, dos conselheiros da corte e de todos os membros do tribunal, um cartão no qual se lia: Alberto Savaron.
— O nome Savaron é célebre—disse a srta. de Watteville, que era de primeira força em ciência heráldica.—Os Savaron de Savarus são uma das mais velhas, mais nobres e mais ricas famílias da Bélgica.
— Ele é francês e trovador—continuou Amadeu de Soulas.—Se ele quiser usar as armas dos Savaron de Savarus, terá de lhes pôr uma barra. Não há mais no Brabante senão uma srta. Savarus, rica herdeira casadoira.
— A barra é na verdade sinal de bastardia; mas o bastardo de um conde de Savarus é nobre—replicou Rosália.
— Basta, senhorita!—disse a baronesa.
— A senhora quis que ela conhecesse os brasões—observou o sr. de Watteville—e ela os sabe bem.
— Por favor, continue, sr. de Soulas.
— Compreendem que, numa cidade onde tudo é classificado, definido, conhecido, arrumado, cifrado e numerado, como em Besançon, Alberto Savaron foi bem recebido, e sem dificuldade, pelos nossos advogados. Cada qual se contentou em dizer: aqui está um pobre-diabo que não conhece o seu Besançon. Quem diabo o pôde ter aconselhado a vir para cá? Que pretende ele fazer? Mandar seu cartão à casa dos magistrados, em vez de ir em pessoa!... Que erro! Por isso, três dias depois, acabou-se o Savaron! Tomou como servente o antigo criado de quarto do falecido senhor Galard, Jerônimo, que sabe cozinhar um pouco. Foi tanto mais fácil esquecer Alberto Savaron por não o ter ninguém mais visto ou encontrado.
— Ele então não vai à missa?—disse a sra. de Chavoncourt.
— Ele vai aos domingos, na São Pedro, mas à primeira missa, a das oito. Levanta-se todas as noites entre uma e duas horas da madrugada, trabalha até as oito, almoça, e depois continua a trabalhar. Passeia no jardim, dá-lhe cinquenta a sessenta voltas; entra, janta, e deita-se entre seis e sete horas.
— Como sabe tudo isso?—perguntou a sra. de Chavoncourt ao sr. de Soulas.
— Primeiro, senhora, porque moro na rue Neuve, esquina da rue du Perron; de minha casa vejo a dessa misteriosa personagem; e depois, porque há mútuos protocolos entre o meu tigre e Jerônimo.
— O senhor então conversa com Babylas?
— Que quer a senhora que eu faça nos meus passeios?
— E então! Como tomou o senhor um estrangeiro para seu advogado?—disse a baronesa, restituindo assim a palavra ao vigário-geral.
— O primeiro presidente fez a esse advogado a pilhéria de nomeá-lo defensor ex-ofício, na audiência de um camponês mais ou menos imbecil, acusado de fraude. O sr. Savaron fez absolver aquele pobre-diabo, provando a sua inocência e demonstrando ter ele sido instrumento dos verdadeiros culpados. Não somente o seu sistema triunfou como implicou a prisão de duas testemunhas que, tendo sido reconhecidas culpadas, foram condenadas. As defesas que ele fez impressionaram a corte e os jurados. Um deles, um negociante, confiou no dia seguinte ao sr. Savaron um processo delicado, que este ganhou. Na situação em que estávamos, devido à impossibilidade de o sr. Berryer (Berryer: Nicolas Berryer (1757-1841) e seu filho Antoine (1790-1868). Eram ambos famosos advogados. Aqui se trata, evidentemente, do segundo, que era também o melhor orador do partido legitimista.) vir a Besançon, o sr. de Garcenault aconselhou-nos que confiássemos a esse sr. Alberto Savaron, predizendo-nos o triunfo. Assim que o vi e ouvi, tive fé nele, e não andei errado.
— Tem ele alguma coisa de extraordinário?—perguntou a sra. de Chavoncourt.
— Certamente, senhora—respondeu o vigário-geral.
— Pois bem, explique-nos isso—disse a sra. de Watteville.
XIII - UM RETRATO FEITO COM MÃO DE ABADE
— Na primeira vez em que o vi—disse o abade de Grancey -, ele me recebeu na primeira peça depois da antecâmara (o antigo salão do velho Galard que mandou pintar numa imitação de carvalho antigo, e que eu achei completamente forrada de livros de direito, dispostos em estantes igualmente pintadas com imitação de madeira antiga. A pintura e os livros são todos de luxo, pois o mobiliário consiste de uma mesa de trabalho de madeira antiga esculpida, seis velhas poltronas estofadas, nas janelas cortinas de cor carmelita, bordadas de verde, e um tapete verde no soalho. A estufa da antecâmara aquece também a biblioteca). Ao esperá-lo ali, não imaginava o meu advogado sob as feições de um moço. Aquele quadro singular estava verdadeiramente em harmonia com a personalidade, porquanto o sr. Savaron apareceu de robe de chambre de merinó preto, com um cordão encarnado, chinelos encarnados, um colete de flanela encarnado e uma boina encarnada.
— A libré do diabo!—exclamou a sra. de Watteville.
— Sim—disse o padre -, mas uma cabeça soberba; cabelos negros, já entremeados de alguns fios brancos, cabelos como os de são Pedro e de são Paulo dos nossos quadros, com caracóis bastos e luzidios, cabelos duros como crinas, um pescoço branco e redondo como o de uma mulher, uma fronte magnífica dividida pelo sulco poderoso que os grandes projetos, os grandes pensamentos, as fortes meditações imprimem na fronte dos grandes homens; uma tez azeitonada, manchada de nódoas vermelhas, um nariz reto, olhos de fogo; depois, as faces cavas, assinaladas com duas longas rugas reveladoras de sofrimentos, uma boca de sorriso sardônico e um pequeno queixo fino e demasiado curto; pés de galinha nas têmporas, os olhos fundos, rolando por sob as arcadas superciliares, como dois globos ardentes; mas, apesar de todos esses indícios de paixões violentas, um ar calmo, profundamente resignado, voz de uma doçura penetrante e que me surpreendeu, no palácio, por sua facilidade, a verdadeira voz do orador, ora pura e ardilosa, ora insinuante, e trovejante quando preciso, amoldando-se mais tarde ao sarcasmo e tornando-se então incisiva. O sr. Alberto Savaron é de estatura mediana, nem gordo, nem magro. Finalmente, tem mãos de prelado. Na segunda vez em que fui à casa dele, recebeu-me no seu quarto, que é contíguo àquela biblioteca, e sorriu ante a minha admiração, quando lá vi uma triste cômoda, um mau tapete, uma cama de colegial e nas janelas cortinas de algodão. Ele ia saindo do seu gabinete, onde ninguém penetra, disse-me Jerônimo que lá não põe os pés e se contentou em bater à porta. O sr. Savaron fechou aquela porta, à chave, diante de mim. Na terceira vez, ele estava almoçando na biblioteca, do modo mais frugal; mas dessa vez, como tinha passado a noite a examinar os nossos documentos, e eu estava com o nosso procurador, devendo ficar muito tempo juntos, e como o querido sr. Girardet é verboso, pude permitir-me estudar aquele forasteiro. Evidentemente, não é homem comum. Há mais de um segredo por trás daquela máscara, ao mesmo tempo terrível e meiga, paciente e impaciente, cheia e cavada. Achei-o ligeiramente encurvado, como todos os homens que têm um pesado fardo a carregar.
— Por que esse homem tão eloquente deixou Paris? Com que propósito veio ele a Besançon? Não lhe teriam dito que os estranhos à terra têm poucas probabilidades de triunfar? Os besançonenses dele se servirão, mas não o deixarão servir-se deles. Por que, se veio, fez tão pouco reclame que foi preciso a fantasia do primeiro presidente para pô-lo em evidência?—disse a bela sra. de Chavoncourt.
— Depois de ter bem estudado aquela bela cabeça—continuou o abade de Grancey, que olhou com finura para a sua interruptora, dando a entender que estava escondendo algo—e sobretudo depois de o ter ouvido replicar esta manhã a uma das águias do foro de Paris, penso que esse homem, que deve ter trinta e cinco anos, fará mais tarde grande sensação...
— Por que nos ocuparmos dele? Vosso processo está ganho, os senhores lhe pagaram—disse a sra. de Watteville, ao observar a filha, que, desde que o vigário-geral começara a falar, estava como que suspensa de seus lábios.
A conversação tomou outro rumo e não se tratou mais de Alberto Savaron.
XIV - A FAÍSCA SOBRE A PÓLVORA
O retrato esboçado pelo mais capaz dos vigários-gerais da diocese teve tanto mais os atrativos de um romance para Rosália porque nele havia um romance. Pela primeira vez na vida, ela encontrava esse extraordinário, esse maravilhoso que todas as imaginações acariciam e ante o qual se lança a curiosidade, tão viva na idade de Rosália. Que ser ideal esse Alberto, sombrio, sofredor, eloquente, trabalhador, comparado pela srta. de Watteville àquele gordo conde bochechudo, a rebentar de saúde, dizedor de futilidades, a falar de elegância diante do esplendor dos antigos condes de Rupt! Amadeu nada mais lhe trazia do que disputas e repreensões; ela, de resto, conhecia-o demasiado, e aquele Alberto Savaron oferecia muitos enigmas para decifrar.
— Alberto Savaron de Savarus—repetia ela para si mesma.
Depois, vê-lo, entrevê-lo... Foi esse o desejo da rapariga, que até então não os tivera. Ela repassava, no coração, na imaginação, na cabeça, as menores frases ditas pelo abade de Grancey, porque todas as palavras a tinham tocado.
— Uma bela fronte!—dizia ela consigo mesma, olhando a fronte de cada um dos homens sentados à mesa.—Não vejo uma única que seja bonita... A do sr. de Soulas é demasiado abaulada, a do sr. Grancey é bela, mas ele tem setenta anos; não se sabe mais onde termina a fronte.
— Que tem, Rosália? Você não come...
— Não tenho fome, mamãe—disse ela.—Mãos de prelado...—continuou para consigo mesma—Não me lembro mais das do nosso belo arcebispo, que, entretanto, me crismou.
Enfim, no meio das idas e vindas que fazia no labirinto do seu devaneio, lembrou-se de uma janela iluminada, a brilhar através das árvores dos dois jardins contíguos, e que entrevira da sua cama, quando por acaso despertara durante a noite: “Era então a luz dele”, pensou. “Eu o poderei ver! Eu o verei.”
— Sr. de Grancey, já está decidido tudo quanto ao processo do capítulo?—disse à queima-roupa Rosália ao vigário-geral, durante um momento de silêncio.
A sra. de Watteville trocou rapidamente um olhar com o vigário-geral.
— E que lhe importa isso, querida filha?—disse ela a Rosália, pondo uma fingida meiguice na frase, o que tornou a filha circunspecta para o resto de seus dias.
— Podem levar-nos à corte de cassação, mas nossos adversários pensarão duas vezes antes de fazê-lo—respondeu o padre.—Nunca pensei que Rosália pudesse pensar, durante todo um jantar, num processo—insistiu a sra. de Watteville.
— Eu tampouco—disse Rosália com um arzinho sonhador que fez todos rirem.—Mas o sr. de Grancey preocupava-se tanto com o processo que eu me interessei. É completamente inocente!
Levantaram-se da mesa e o grupo voltou para o salão. Durante o serão, Rosália esteve atenta para ver se falariam ainda de Alberto Savaron; mas, afora as felicitações que cada recém-chegado dirigia ao abade pelo ganho do processo, e em que ninguém misturou o elogio do advogado, não se falou mais nele. A srta. de Watteville esperou a noite com impaciência. Ela resolvera levantar-se entre duas e três horas da madrugada, para ver as janelas do gabinete de Alberto. Quando chegou a hora, quase sentiu prazer em contemplar o clarão que as velas do advogado projetavam através das árvores quase despojadas de folhas. Com o auxílio da vista excelente que as moças possuem e que a curiosidade parece ampliar, ela viu Alberto escrevendo, julgou distinguir a cor do mobiliário, que lhe pareceu vermelha. A chaminé erguia por cima do telhado uma espessa coluna de fumaça.
— Quando todos dormem, ele vela... como Deus!—disse ela.
XV - O QUE O DIABO PODE FAZER DE ESTRAGOS EM QUINZE DIAS NUMA MOÇA DE DEZOITO ANOS
A educação das moças comporta problemas tão graves, pois que o futuro de uma nação está nas mães, que há muito a Universidade de França se atribuiu o encargo de não pensar nisso. Aqui está um desses problemas: deve-se esclarecer as moças? Deve-se comprimir-lhes o espírito? Já se deixa ver que o sistema religioso é compressor. Se elas forem esclarecidas, tornar-se-ão demônios antes da idade; se forem impedidas de pensar, chegam à súbita explosão tão bem descrita por Molière na personagem de Agnés (Agnès: pupila ingênua de Arnoldo, personagem de Escola de mulheres, de Molière; homem de certa idade que tenta enganá-la mas acaba ludibriado por ela antes do casamento.), e fica esse espírito oprimido, tão novo, tão perspicaz, rápido e consequente como selvagem, à mercê de um acontecimento; crise fatal provocada, na srta. de Watteville, pelo imprudente esboço que se permitiu, à mesa, um dos mais prudentes membros do prudente capítulo de Besançon.
No dia seguinte, pela manhã, a srta. de Watteville, ao vestir-se, olhou fatalmente Alberto Savaron, passeando no jardim contíguo ao do palacete de Rupt.
— Que teria sido de mim—pensou—se ele tivesse ido residir em outra parte? Aqui, pelo menos, posso vê-lo. Em que estará pensando ele?
Depois de ter visto, mas a distância, aquele homem extraordinário, o único cuja fisionomia contrastava vigorosamente com a massa dos semblantes besançonenses até então vistos, Rosália saltou logo para a ideia de penetrar no seu interior, de saber os motivos de tantos mistérios, de ouvir aquela voz eloquente, de receber um olhar daqueles belos olhos. Queria tudo isso, mas como obtê-lo?
Durante todo o dia, ela bordou com essa atenção obtusa de moça que, como Agnès, parece não pensar em nada e que tão bem medita sobre todas as coisas que os seus ardis parecem infalíveis. Dessa profunda meditação, resultou para Rosália o desejo de confessar-se. No dia seguinte, de manhã, depois da missa, teve uma pequena conferência, na São Pedro, com o padre Giroud, e tão bem o enredou que a confissão ficou marcada para domingo de manhã, às sete e meia, antes da missa das oito. Perpetrou uma dúzia de mentiras para poder estar na igreja, uma única vez, à hora em que o advogado ia ouvir missa. Finalmente, apoderou-se dela uma ternura excessiva pelo pai, foi vê-lo na sua oficina, e pediu-lhe mil informações sobre a arte de tornear, até chegou a lhe aconselhar que torneasse peças grandes, colunas. Depois de ter lançado o pai nas colunas torcidas, uma das dificuldades da arte de torneiro, ela o aconselhou a se aproveitar de um grande montão de pedras, que se achava no meio do jardim, para mandar fazer uma gruta, sobre a qual ele colocaria um pequeno templo, à feição de um belvedere, e onde as suas colunas torcidas seriam utilizadas e brilhariam aos olhos de toda a sociedade.
No meio da alegria que aquela empresa causava àquele pobre homem desocupado, Rosália disse-lhe, beijando-o:
— E principalmente não digas nada a mamãe sobre quem te deu essa ideia, pois ela ralharia comigo.
— Podes ficar tranquila—respondeu o sr. de Watteville, que, tanto como a filha, gemia sob a pressão da terrível descendente dos de Rupt.
Assim é que Rosália teve a certeza de ver em breve construir um observatório encantador, de onde mergulharia a vista no gabinete do advogado. E dizer que há homens pelos quais as moças fazem semelhantes obras-primas de diplomacia e que, na maioria das vezes, como era o caso de Alberto Savaron, nada sabem a respeito.
XVI - A PRIMEIRA ENTREVISTA
O domingo, tão impacientemente esperado, chegou afinal, e a toilette de Rosália foi feita com uma meticulosidade que fez sorrir Marieta, a criada de quarto da sra. e da srta. de Watteville.
— É esta a primeira vez que vejo a senhorita tão faceira—disse Marieta.
— Você me faz pensar—disse Rosália, dirigindo a Marieta um olhar que pôs papoulas nas faces da criada de quarto—que há dias em que você o é mais particularmente do que em outros.
Ao deixar a escada exterior, ao atravessar o pátio, ao sair à porta, ao caminhar na rua, o coração de Rosália pulsou como quando pressentimos um grande acontecimento. Até então ela ignorava o que era ir pelas ruas; um momento julgou que a mãe leria seus projetos em sua fronte e que lhe proibiria ir confessar-se; sentiu um sangue novo nos pés, erguia-os como se caminhasse sobre brasas! Naturalmente, marcara encontro com o confessor para as oito e um quarto, dizendo à mãe que seria às oito, a fim de esperar um quarto de hora mais ou menos, junto a Alberto. Chegou à igreja antes da missa e, depois de ter feito uma curta prece, foi ver, somente por flanar, se o padre Giroud estava no confessionário; por isso achou-se colocada de modo a olhar Alberto no momento em que este entrou na igreja.
Seria preciso que um homem fosse atrozmente feio para não ser achado bonito, na disposição de espírito em que a curiosidade punha a srta. de Watteville. Ora, Alberto Savaron, já de si muito notável, causou tanto mais impressão em Rosália visto que a sua aparência, o seu andar, a sua atitude, tudo, até mesmo o seu vestuário, tinha esse não sei quê somente explicável pela palavra mistério! Ele entrou. A igreja, até então sombria, pareceu a Rosália como que iluminada. A jovem ficou encantada com aquele caminhar lento e solene das pessoas que carregam um mundo sobre os ombros, e cujo olhar profundo, cujos gestos concorrem para exprimir um pensamento, ou devastador ou dominador. Rosália compreendeu, então, em toda a sua latitude, as palavras do vigário-geral. Sim, aqueles olhos de um amarelo castanho, estriado de filetes de ouro, velavam um ardor que se traía por súbitos lampejos. Rosália, com uma imprudência que Marieta notou, colocou-se na passagem do advogado, de modo a trocar um olhar com ele; e esse olhar buscado transformou-lhe o sangue, pois o seu sangue fremiu e ferveu como se houvesse duplicado o seu calor. Logo que Alberto se sentou, a srta. de Watteville positivamente escolheu seu lugar, de modo a poder vê-lo perfeitamente durante todo o tempo que lhe deixasse o padre Giroud. Quando Marieta disse:—Aí vem o sr. Giroud—pareceu a Rosália que aquele tempo não durara mais do que poucos minutos. Quando saiu do confessionário, a missa tinha terminado e Alberto deixara a paróquia.
“O vigário-geral tem razão” pensou ela, “ele sofre! Por que essa águia, pois ele tem olhos de águia, veio abater-se em Besançon? Oh!, quero saber tudo, mas como?”
Sob o fogo desse novo desejo, Rosália puxou os pontos de sua tapeçaria com admirável exatidão e velou suas meditações sob um arzinho cândido que imitava a ingenuidade a ponto de iludir a própria sra. de Watteville.
XVII - ROSÁLIA TORNA-SE UMA MULHER SUPERIOR
Depois do domingo em que a srta. de Watteville recebera aquele olhar, ou, se quiserem, aquele batismo de fogo, magnífica expressão de Napoleão, que pode servir para o amor, ela apressou fogosamente o assunto do belvedere.
— Mamãe—disse ela, assim que houve duas colunas torneadas -, meu pai meteu-se na cabeça uma ideia singular; ele torneia colunas para um belvedere que projeta erguer, servindo-se daquela porção de pedras que há no meio do jardim; a senhora aprova isso? Eu, por mim, acho que...
— Aprovo tudo o que o teu pai faz—replicou com secura a sra. de Watteville -, e é dever das mulheres se submeterem aos maridos, mesmo quando não lhes aprovam as ideias... Por que me hei de opor a uma coisa indiferente em si mesma, uma vez que divirta o sr. de Watteville?
— Mas é que dali nós veremos a casa do sr. de Soulas, e o sr. de Soulas nos verá quando ali estivermos. Talvez falassem...
— Você tem a pretensão de guiar seus pais e de saber mais do que eles a respeito da vida e das conveniências?
— Calo-me, mamãe. Ademais, papai disse que a gruta formará uma sala em que se terá ar fresco e onde se irá tomar café.
— Seu pai teve aí uma ideia excelente—respondeu a sra. de Watteville, que quis ver as colunas.
Ela deu sua aprovação ao projeto do barão de Watteville, indicando para a ereção do monumento um lugar no fundo do jardim, e de onde não se era visto da casa do sr. de Soulas, mas de onde se via admiravelmente o interior da casa do sr. Alberto Savaron. Chamaram um empreiteiro que se encarregou de construir uma gruta ao alto da qual se chegaria por uma pequena senda de três pés de largura, e em cujos pedregulhos se plantariam pervincas, íris, viburno, heras, madressilvas e vinhas virgens. A baronesa inventou de mandar forrar o interior da gruta com madeira rústica, o que estava então na moda para as jardineiras, de colocar no fundo do espelho um divã com tampa e uma mesa de marchetaria, com casca de madeira. O sr. de Soulas propôs fazer o chão de asfalto. Rosália imaginou suspender um lustre de madeira rústica na abóbada.
— Os Watteville estão fazendo uma coisa encantadora no seu jardim—diziam em Besançon.
— Eles são ricos, podem perfeitamente gastar mil escudos com uma fantasia.
— Mil escudos!—exclamou a sra. de Chavoncourt.
— Sim, mil escudos—exclamou o jovem sr. de Soulas.—Mandaram vir um homem de Paris para “rusticizar” o interior, mas vai ficar muito bonito. O sr. de Watteville está fazendo o lustre; começou a esculpir em madeira...
— Dizem que Berquet vai escavar uma adega—disse um padre.
— Não—replicou o jovem de Soulas -, ele vai firmar o quiosque sobre o maciço de formigão, para que não haja umidade.
— O senhor sabe as menores coisas que se fazem naquela casa—disse com azedume a sra. de Chavoncourt, olhando para uma das suas filhas já em condições de casar havia um ano.
A srta. de Watteville, que sentia um frêmito de orgulho ao pensar no sucesso do seu belvedere, reconheceu em si uma eminente superioridade sobre tudo o que a cercava. Ninguém imaginava que uma raparigota, a quem julgavam sem espírito, simplória, tinha querido, simplesmente, ver de perto o gabinete do advogado Savaron.
XVIII - DUELO DE SAVARON COM A CIDADE DE BESANÇON
A brilhante defesa de Alberto Savaron a favor do capítulo da catedral foi tanto mais prontamente esquecida por haver despertado a inveja dos outros advogados. De resto, fiel à sua reclusão, Savaron não se mostrou em parte alguma. Sem propagandistas e não procurando ninguém, aumentou as probabilidades de ser esquecido que, numa cidade como Besançon, abundam para os estranhos. Não obstante, pleiteou três vezes, no tribunal do comércio, em três processos espinhosos que tiveram de ir perante a corte. Teve, assim, como clientes, quatro dos mais fortes negociantes da cidade, que nele reconheceram tanto bom senso e tanto disso que a província chama uma boa judiciária que lhe confiaram seu contencioso. No dia em que a casa de Watteville inaugurou seu belvedere, Savaron erguia também o seu monumento. Graças às surdas relações que adquirira no alto comércio de Besançon, fundou uma revista quinzenal, chamada La Revue de l’Est, por meio de quarenta ações de quinhentos francos cada uma, colocadas entre os seus dez primeiros clientes, aos quais fez sentir a necessidade de auxiliar os destinos de Besançon, cidade na qual se devia fixar o trânsito entre Milhouse e Lyon, ponto capital entre Milhouse e Lyon, ponto capital entre o Reno e o Ródano.
Para rivalizar com Strasbourg, não precisava Besançon ser tanto um centro de luzes como um ponto comercial? Só numa revista podiam ser tratadas as altas questões relativas aos interesses do Leste. Que glória a de arrancar a Strasbourg e a Dijon a sua influência literária, esclarecer o Leste da França e lutar contra a centralização parisiense! Essas considerações, descobertas por Alberto, foram repetidas pelos dez negociantes, que se atribuíram a autoria delas.
O advogado Savaron não cometeu o erro de exibir seu nome, deixou a direção financeira ao seu primeiro cliente, sr. Boucher, aliado, pela mulher, a um dos mais fortes editores de grandes obras eclesiásticas, mas reservou-se a redação, com uma cota nos benefícios, na qualidade de fundador. O comércio fez um apelo a Dôle, a Dijon, a Salins, a Neuchâtel, no Jura, a Bourg, Nantua, Lons-le-Saulnier. Solicitou-lhes o concurso das luzes e dos esforços de todos os homens estudiosos das três províncias do Bugey, da Bresse e do Condado. Graças às relações comerciais e de confraternidade, obtiveram-se cento e cinquenta assinaturas, dado o baixo preço; a revista custava oito francos por trimestre. Para não ferir o amor-próprio provinciano com a recusa de artigos, o advogado teve a ideia atilada de fazer com que a direção literária da revista fosse solicitada pelo filho mais velho do sr. Boucher, rapaz de vinte e dois anos, muito ávido de glória, para quem as ciladas e os aborrecimentos da coisa literária eram inteiramente desconhecidos. Alberto conservou secretamente a alta direção e fez de Alfredo Boucher um representante seu. Alfredo ia, pela manhã, conferenciar com ele no jardim, sobre o material do número de estreia. É inútil dizer que este trazia uma Meditação de Alfredo Boucher, que teve a aprovação de Savaron. Nas suas palestras com Alfredo, Alberto deixava entrever grandes ideias, assuntos de artigos, de que se aproveitava o jovem Boucher. Assim, o filho do negociante acreditava estar explorando aquele grande homem! Alberto era um homem de gênio, um profundo político para Alfredo. Os negociantes, encantados com o sucesso da revista, não precisaram entrar senão com três décimos do valor das ações. Mais duzentas assinaturas e a revista daria cinco por cento de dividendo aos seus acionistas, não sendo paga a redação. Aquela redação era impagável.
No terceiro número, a revista obtivera permuta com todos os jornais da França, que Alberto leu, então, em casa.
XIX - A PRIMEIRA NOVELA DA REVISTA
Esse terceiro número continha uma novela assinada A. S. e atribuída ao famoso advogado. Apesar da pouca atenção que a alta sociedade de Besançon concedia àquela publicação, acusada de liberalismo, veio à baila, em casa da sra. de Chavoncourt, pelo meio do inverno, a primeira novela desabrochada no condado.
— Meu pai—disse Rosália -, estão publicando uma revista em Besançon; bem que podias tomar uma assinatura e guardá-la nos teus aposentos, pois mamãe não deixaria que eu lesse; mas tu a emprestarias à tua filha, não?
Solícito em obedecer à sua querida Rosália, que nos últimos cinco meses tantas provas lhe dava de ternura filial, o sr. de Watteville foi em pessoa tomar uma assinatura de um ano da Revue de l’Est e emprestou à filha os quatro números publicados. Durante a noite, Rosália pôde devorar aquela novela, a primeira que leu em sua vida; mas só fazia dois meses que vivia! Assim, não se deve julgar, segundo os dados comuns, o efeito que aquela obra lhe teria produzido. Sem nada prejulgar do maior ou menor mérito daquela composição da autoria de um parisiense, que trazia para a província a maneira, o brilho, se quiserem, da nova escola literária, não podia, entretanto, deixar de ser uma obra-prima para uma jovem criatura que entregava a sua inteligência virgem, o seu coração puro a uma primeira obra desse gênero. De resto, pelo que ouvira dizer, Rosália, por intuição, formara uma ideia que realçava singularmente o valor daquela novela. Esperava encontrar ali os sentimentos e, talvez, alguma coisa da vida de Alberto. Desde as primeiras páginas, essa opinião adquiriu tamanha consistência que, após ter terminado aquele fragmento, teve a certeza de que não se enganara. Eis, pois, essa confidência, na qual, segundo as críticas do salão Chavoncourt, Alberto teria imitado alguns escritores modernos, que, por falta de espírito inventivo, contam as suas próprias alegrias, as suas próprias dores ou os acontecimentos misteriosos da sua existência.
XX - O AMBICIOSO POR AMOR
NOVELA
1. OS DOIS AMIGOS
Em 1823, dois rapazes, que se haviam imposto, como itinerário de viagem, percorrer a Suíça, partiram de Lucerna por uma bela manhã de julho, num barco conduzido por três remadores. Iam a Fluelen, com o propósito de se deterem no lago dos Quatro-Cantões e em todos os lugares célebres. As paisagens que, de Lucerna a Fluelen, cercam as águas apresentam todas as combinações que a mais exigente imaginação possa pedir às montanhas e aos rios, aos lagos e aos rochedos, aos regatos e às folhagens, às árvores e às torrentes. Ora são austeras solidões e graciosos promontórios, ora campinas ridentes e faceiras, florestas colocadas como um penacho sobre o granito talhado a pique, baías solitárias e frescas que se abrem, vales cujos tesouros se mostram como que embelezados pela distância dos sonhos.
Ao passar pelo encantador burgo de Gersau, um dos dois amigos olhou demoradamente uma casa de madeira que parecia construída fazia pouco, cercada de um tapume, assentada num promontório e quase banhada pelas águas. Quando o barco passou por diante dela, uma cabeça de mulher ergueu-se do fundo de um quarto que havia no último andar da casa para apreciar o efeito do barco sobre o lago. Um dos dois rapazes recebeu o olhar lançado muito indiferentemente pela desconhecida.
— Paremos aqui—disse ele ao amigo -, queríamos fazer de Lucerna o nosso quartel-general para visitar a Suíça; não levarás a mal, Leopoldo, que eu mude de opinião e que fique por aqui, guardando as capas. Farás, portanto, tudo o que quiseres; para mim, a viagem está terminada. Marujos, virem de bordo e levem-nos àquela aldeia, onde vamos almoçar. Irei a Lucerna buscar todas as nossas bagagens e, antes de partir daqui, ficarás sabendo em que casa me alojarei, para me encontrares na volta.
— Aqui ou em Lucerna—disse Leopoldo—dá no mesmo, não há diferença para que eu te impeça de obedecer a um capricho.
Esses dois rapazes eram amigos, na verdadeira acepção do termo. Eram da mesma idade, tinham estudado no mesmo colégio e, depois de terminado o curso de direito, empregavam as férias na clássica viagem à Suíça. Por vontade paterna, Leopoldo já estava comprometido para um cartório em Paris. Seu espírito reto, sua mansidão, a calma dos seus sentimentos e de sua inteligência garantiam sua docilidade. Leopoldo via-se notário em Paris: sua vida, tinha-a diante de si como uma dessas grandes estradas que atravessam uma planície da França, via-a em toda a sua extensão, com uma resignação cheia de filosofia.
O caráter do seu companheiro, a quem chamaremos Rodolfo, oferecia com o seu um contraste cujo antagonismo tivera como consequência ainda mais estreitar os laços que os uniam. Rodolfo era filho natural de um grão-senhor que fora surpreendido por morte prematura sem ter podido tomar providências para assegurar meios de existência a uma mulher ternamente amada e a Rodolfo. Assim, desamparada por um golpe do destino, a mãe de Rodolfo recorrera a um meio heroico. Vendeu tudo o que recebera da munificência do pai de seu filho, obteve a quantia de cento e poucos mil francos, colocou-a em seu nome, como renda vitalícia, a um juro considerável, conseguindo dessa forma uma anuidade de cerca de quinze mil francos, e tomou a resolução de tudo consagrar à educação do filho, a fim de dotá-lo com as vantagens pessoais mais adequadas para fazer fortuna, e de lhe reservar, à força de economia, um capital para a época de sua maioridade. Era uma ousadia, era contar com a própria vida; mas sem essa ousadia, teria sido impossível àquela boa mãe viver, educar convenientemente o filho, sua única esperança, seu futuro e única fonte de seus gozos. Filho de uma das mais encantadoras parisienses e de um homem notável da aristocracia do Brabante, fruto de uma paixão igual e compartilhada, Rodolfo foi atormentado por uma excessiva sensibilidade. Desde a infância, manifestara em tudo o maior ardor. Nele, o desejo tornou-se uma força superior e o móvel de todo o seu ser, o estimulante da imaginação, a razão do seus atos. Apesar dos esforços de uma mãe espirituosa, que se assustou assim que se apercebeu de semelhante predisposição, Rodolfo desejava como um poeta imagina, como um sábio calcula, como um pintor debuxa, como um músico formula melodias. Terno como a mãe, ele se lançava com violência inaudita, e pelo pensamento, para a coisa almejada, devorava o tempo. Ao sonhar as realizações de seus projetos, sempre suprimia os meios de execução.—Quando o meu Rodolfo tiver filhos—dizia a mãe -, ele os quererá grandes sem tardança.—Esse belo ardor, convenientemente dirigido, serviu a Rodolfo para fazer brilhantes estudos, para tornar-se o que os ingleses chamam um perfeito gentil-homem. Sua mãe tinha então orgulho dele, embora sempre temendo alguma catástrofe, se algum dia uma paixão se apoderasse daquele coração tão terno e tão sensível, tão violento e tão bom. Por isso aquela mulher prudente incentivara a amizade que ligava Leopoldo a Rodolfo e Rodolfo a Leopoldo, ao ver, no frio e dedicado notário, um tutor, um confidente, que poderia, até certo ponto, substituí-la junto a Rodolfo, se por desgraça ela viesse a faltar-lhe. Bela ainda aos quarenta e três anos, a mãe de Rodolfo inspirava a Leopoldo a mais viva paixão. Essa circunstância tornava os dois rapazes mais íntimos ainda.
2. MISS LOVELACE
Leopoldo, que conhecia Rodolfo perfeitamente, não se surpreendeu ao vê-lo, devido a um olhar dirigido para o alto de uma casa, deter-se numa aldeia e renunciar à projetada excursão ao S. Gotardo. Enquanto lhes preparavam o almoço na Taberna do Cisne, os dois amigos deram a volta na aldeia e chegaram às vizinhanças da encantadora casa nova onde, enquanto flanava e conversava com os moradores, Rodolfo descobriu uma casa de pequenos-burgueses dispostos a aceitá-lo como pensionista, segundo o costume geral na Suíça. Ofereceram-lhe um quarto com vista para o lago, para as montanhas, e de onde se descortinava o magnífico panorama de uma dessas curvas que recomendam o lago dos Quatro-Cantões à admiração dos turistas. A casa estava separada, por uma praça e um pequeno porto, da casa nova onde Rodolfo vislumbrara a sua bela desconhecida.
Por cem francos mensais, Rodolfo não teve mais de pensar em nenhuma das coisas necessárias à vida. Mas, em consideração aos gastos que o casal Stopfer se propunha fazer, pediram pagamento adiantado de três meses. Mal se encosta num suíço, surge o usurário. Depois do almoço, Rodolfo instalou-se imediatamente, depositando no quarto todos os petrechos que trouxera para a sua excursão ao S. Gotardo, e viu Leopoldo partir, o qual, por espírito de ordem, ia realizar a excursão por sua conta e também pela de Rodolfo. Quando este, sentado numa rocha sobranceira à margem, não mais viu o barco de Leopoldo, examinou, mas de soslaio, a casa nova, na esperança de entrever a desconhecida. Infelizmente, voltou sem que a casa houvesse dado sinais de vida. Ao jantar que os Stopfer, antigos tanoeiros de Neuchâtel, lhe ofereceram, ele os interrogou sobre os arredores e acabou por saber tudo o que queria da desconhecida, graças à tagarelice de seus hospedeiros, que, sem que insistisse, esvaziaram o saco dos diz que diz que.
A desconhecida chamava-se Fanny Lovelace (Lovelace: nome do sedutor em Clarisse Harlowe, famoso romance de Richardson.). Esse nome, que se pronuncia Loveless, pertence a velhas famílias inglesas; mas Richardson fez dele uma criação cuja celebridade prejudica a todas as outras. Miss Lovelace viera estabelecer-se no lago por causa da saúde do pai, a quem os médicos haviam recomendado os ares do cantão de Lucerna. Esses dois ingleses, chegados sem outro criado além de uma menina de catorze anos, muito dedicada a miss Fanny, uma pequena muda que servia a moça com muita inteligência, tinham-se arranjado no inverno anterior, com o sr. e a sra. Bergman, antigos jardineiros de sua excelência o conde Borromeu na Isola Bella e na Isola Madre, no lago Maior. Esses suíços, com uma fortuna de cerca de mil escudos de renda, alugavam o andar superior de sua casa aos Lovelace, à razão de duzentos francos anuais, por três anos. O velho Lovelace, ancião nonagenário muito alquebrado, demasiado pobre para se permitir certas despesas, raramente saía; a filha trabalhava para sustentá-lo, traduzindo livros ingleses e, segundo diziam, escrevendo livros ela própria. Por isso os Lovelace não se animavam nem a alugar barcos para passeios no lago, nem cavalos, nem guias para visitar os arredores. Tal despojamento despertava a compaixão dos suíços, tanto mais que eles perdiam uma oportunidade de ganho. A cozinheira fornecia comida aos três ingleses, à razão de cem francos por mês. Mas acreditavam todos, em Gersau, que os antigos jardineiros, apesar das suas pretensões à burguesia, se ocultavam sob o nome da cozinheira, para empalmar os benefícios daquele negócio. Os Bergman haviam feito admiráveis jardins e uma estufa magnífica em torno da sua habitação. As flores, as frutas, as raridades botânicas daquela propriedade determinaram a jovem miss a escolhê-la na sua passagem por Gersau. Davam dezenove anos a miss Fanny, que, como última filha do ancião, devia ser muito mimada por este. Fazia apenas dois meses que ela conseguira alugar um piano, o qual viera de Lucerna, parecendo ser louca por música.
— Gosta de flores e de música—pensou Rodolfo—e é solteira? Que felicidade!
No dia seguinte, Rodolfo mandou pedir licença para visitar as estufas e os jardins, que começavam a gozar de certa popularidade. Essa permissão não foi concedida de imediato. Aqueles jardineiros, coisa estranha!, pediram para ver o passaporte de Rodolfo, o qual, sem tardar, o mandou. O passaporte só lhe foi restituído no dia seguinte, trazido pela cozinheira, que o fez sabedor do prazer que teriam seus patrões em lhe mostrar o estabelecimento. Rodolfo não foi à casa dos Bergman sem certo sobressalto que as pessoas de emoções vivas são as únicas a conhecer, e que desdobram, num momento, tantas paixões quantas certos homens despendem durante toda a vida. Trajado com requinte, para agradar aos antigos jardineiros das ilhas Borromeu, pois via neles os guardiões do seu tesouro, percorreu os jardins, olhando, de quando em quando, a casa, mas com prudência; os dois velhos proprietários testemunhavam-lhe uma desconfiança bastante visível.
3. A FALSA MUDA
Sua atenção, porém, foi pouco depois atraída pela pequena inglesa muda, na qual sua sagacidade, embora jovem ainda, o fez reconhecer uma filha da África ou pelo menos uma siciliana. Essa pequena tinha a tonalidade dourada de um charuto de Havana, olhos de fogo, pálpebras armênias, de cílios de um comprimento antibritânico, cabelos mais do que negros e, sob aquela pele quase azeitonada, nervos de uma força singular, de uma vivacidade febril. Ela dirigia a Rodolfo olhares inquisitores, de um descaramento incrível, e seguia os seus menores movimentos.
— A quem pertence esta pequena moura?—perguntou à respeitável sra. Bergman.
— Aos ingleses—respondeu o sr. Bergman.
— Em todo caso, não nasceu na Inglaterra!
— Talvez a trouxessem da Índia—respondeu a sra. Bergman.
— Disseram-me que a jovem miss Lovelace gosta de música; eu ficaria encantado se, durante esta estada no lago, a que me condena uma prescrição médica, quisesse essa moça permitir-me tocar música com ela...
— Eles não recebem e não querem ver ninguém—disse o velho jardineiro.
Rodolfo mordeu os lábios e partiu sem ter sido convidado a entrar em casa nem ter sido levado à parte do jardim que ficava entre a fachada e a beira do promontório. Desse lado, a casa tinha, acima do primeiro andar, uma galeria de madeira coberta pelo telhado, cujo beiral era excessivo, como o das coberturas dos chalés, e que dava volta aos quatro lados da construção, à moda suíça. Rodolfo elogiara muito aquela elegante disposição e gabara a vista daquela galeria, mas tudo embalde. Depois de ter saudado os Bergman, viu-se com cara de tolo, como todo homem de espírito e de imaginação, decepcionado pelo insucesso de um plano em cuja eficácia acreditara.
À tarde, passeou, naturalmente, de barco no lago, em torno daquele promontório; foi até Brünnen e Schwitz e voltou ao cair da noite. De longe, viu a janela aberta e fortemente iluminada, pôde ouvir o som do piano e a tonalidade de uma voz deliciosa. Fez então parar a embarcação, a fim de se entregar ao encantamento de ouvir uma ária italiana divinamente cantada. Quando terminou o canto, Rodolfo abordou, despediu o barco e os dois barqueiros. Correndo o risco de molhar os pés, foi sentar-se sob o banco de granito, corroído pelas águas coroadas por uma forte sebe de acácias espinhosas, e ao longo da qual se estendia, no jardim dos Bergman, uma aleia de tílias novas. Ao cabo de uma hora, ouviu falarem e caminharem acima da sua cabeça, mas as palavras que lhe chegavam aos ouvidos eram todas italianas e pronunciadas por vozes moças de mulher. Aproveitou o momento em que as duas interlocutoras estavam numa das extremidades para deslizar, sem ruído, para a outra. Após uma meia hora de esforços, alcançou o fim da aleia e pôde, sem ser visto nem ouvido, tomar uma posição de onde veria as duas mulheres sem ser visto por elas, quando viessem para seu lado. Qual não foi o espanto de Rodolfo ao reconhecer a pequena muda numa das duas mulheres; falava italiano com miss Lovelace. Eram então onze horas da noite. Havia tão grande calma sobre o lago e em torno da habitação que as duas mulheres deviam julgar-se em segurança; em todo o Gersau somente os olhos delas podiam estar ainda abertos. Rodolfo deduziu que o mutismo da pequena devia ser uma astúcia necessária. Pela maneira como falavam o italiano, adivinhou que era a língua materna das duas mulheres e concluiu que a qualidade de ingleses devia esconder um estratagema.
4. OS REFUGIADOS
— São italianos refugiados—disse com os seus botões -, proscritos que devem sem dúvida temer a polícia austríaca ou a da Sardenha (Devem sem dúvida temer a polícia austríaca ou a da Sardenha. Na época dessa história a Itália ainda não estava unificada; a Lombardia e o Vêneto pertenciam à Áustria, enquanto o Piemonte, a Sardenha e a Savoia formavam um reino independente, núcleo do futuro Estado italiano.). A moça espera a noite para poder passear e falar com plena segurança.
Imediatamente deitou-se ao comprido da cerca e rastejou como uma serpente, para achar uma passagem entre duas raízes de acácia.
Arriscando dilacerar a roupa ou ferir as costas, atravessou a sebe quando a pretensa miss Fanny e sua pretensa muda chegaram à outra extremidade da aleia; depois, quando chegaram a vinte passos dele sem o ter visto, pois se achava na sombra da sebe fortemente batida pelo luar, ergueu-se bruscamente.
— Nada de mais—disse em francês à italiana -, não sou um espião. Sois refugiadas, adivinhei-o. Sou um francês que um único de vossos olhares imobilizou em Gersau.
Mas, vencido pela dor que lhe causou o instrumento de aço que lhe rasgou o flanco, caiu por terra.
— Nel lago con pietra (Nel lago con pietra: palavras italianas que significam “ao lago com uma pedra”.) - disse a terrível muda.
— Ah! Gina!—exclamou a italiana.
— Ela falhou—disse Rodolfo, retirando da ferida um estilete que tinha esbarrado numa falsa costela -, um pouco mais alto, e teria atingido o coração. Fiz mal, Francesca—disse ele recordando o nome que a pequena Gina várias vezes pronunciara -, não quero mal à pequena, por isso não a repreenda; a felicidade de falar-lhe vale bem um golpe de estilete, somente lhe peço que me mostre o caminho, é preciso que eu volte para a casa dos Stopfer. Pode ficar descansada, nada direi.
Francesca, refeita do espanto, ajudou Rodolfo a levantar-se e disse algumas palavras a Gina, cujos olhos se encheram de lágrimas. As duas mulheres obrigaram Rodolfo a sentar-se num banco, a tirar o casaco, o colete, a gravata. Gina abriu a camisa e chupou com força o ferimento. Francesca, que os havia deixado, voltou com uma boa tira de tafetá inglês e aplicou-a sobre a ferida.
— O senhor poderá ir assim até à sua casa—disse ela.
Cada uma das duas segurou um braço de Rodolfo e ele foi levado a uma pequena porteira, cuja chave se encontrava no bolso do avental de Francesca.
— Gina fala francês?—perguntou Rodolfo a Francesca.
— Não. Mas não se agite—disse Francesca com um arzinho impaciente.
— Deixe-me vê-la—pediu Rodolfo com enternecimento -, porque talvez tenha de passar muito tempo sem poder vir.
Apoiou-se num dos marcos da pequena porta e contemplou a bela italiana, que se deixou admirar um momento, durante o mais belo silêncio e a mais bela noite que jamais iluminara aquele lago, o rei dos lagos suíços. Francesca era bem italiana clássica, e tal como a imaginação quer, faz ou sonha, se quiserem, as italianas. O que de início impressionou Rodolfo foram a elegância e a graça do porte cujo vigor se traía, não obstante a aparência débil, de tão flexível era ela. Uma palidez de âmbar espalhada pelo rosto acusava um interesse súbito, mas que não dissipava a voluptuosidade de dois olhos úmidos, de um negro aveludado. Duas mãos, as mais belas que jamais um escultor grego tenha unido ao braço polido de uma estátua, seguravam o braço de Rodolfo, e sua alvura contrastava com o preto do trajo. O imprudente francês pôde apenas entrever a forma oval, um pouco alongada, do rosto, cuja boca entristecida, entreaberta, deixava ver dentes brilhantes, entre dois polpudos lábios, frescos e vermelhos. A beleza das linhas daquele rosto garantia a Francesca a duração daquele esplendor; mas o que mais impressionou Rodolfo foi a adorável naturalidade, a franqueza italiana daquela mulher, que se entregava inteiramente à compaixão.
Francesca disse uma palavra a Gina, a qual deu o braço a Rodolfo até a casa Stopfer e fugiu como uma andorinha, depois de puxar o cordão da sineta.
5. FRANCESCA CASADA
Esses patriotas não andam com conversas!—dizia consigo Rodolfo, ao sentir as dores, quando se viu sozinho na cama.—Nel lago! Gina era bem capaz de me atirar nele, com uma pedra ao pescoço!
Quando amanheceu, mandou chamar em Lucerna o melhor cirurgião, e, vindo este, recomendou-lhe o mais absoluto segredo, dando-lhe a entender que assim exigia a honra. Leopoldo voltou da sua excursão no dia em que o amigo abandonava o leito. Rodolfo inventou uma história e encarregou-o de ir a Lucerna buscar a bagagem e as cartas. Leopoldo voltou com a mais funesta e mais terrível notícia: a mãe de Rodolfo morrera. Enquanto os dois amigos iam de Basileia a Lucerna, a fatal carta, escrita pelo pai de Leopoldo, lá chegara no dia da partida dos dois para Fluelen. Apesar das precauções de Leopoldo, Rodolfo foi acometido de uma febre nervosa. Logo que o futuro notário viu o amigo fora de perigo, partiu para a França, munido de uma procuração. Rodolfo pôde assim permanecer em Gersau, único lugar no mundo em que a sua dor podia acalmar-se. A situação do jovem francês, seu desespero e as circunstâncias que tornavam aquela perda mais terrível para ele do que para qualquer outro foram conhecidas e lhe atraíram a compaixão e o interesse de todo Gersau. Todas as manhãs, a falsa muda vinha ver o francês, a fim de levar notícias para a sua patroa.
Quando Rodolfo pôde sair, foi à casa dos Bergman agradecer a Fanny Lovelace e a seu pai o interesse que tinham demonstrado por sua dor e sua doença. Pela primeira vez, desde que se instalaram em casa dos Bergman, o velho italiano deixou um estranho penetrar no seu apartamento, no qual Rodolfo foi recebido com cordialidade devido às suas desgraças e à sua qualidade de francês, que excluía toda e qualquer desconfiança. Francesca revelou-se tão bela à luz, durante o primeiro serão, que fez com que um raio de claridade penetrasse naquele coração abatido. Os seus sorrisos lançaram as rosas da esperança sobre aquele luto. Cantou não árias alegres, mas melodias graves e sublimes, apropriadas ao estado de coração de Rodolfo, que notou essa atenção enternecedora. Cerca das oito horas, o ancião deixou os dois jovens a sós, sem nenhuma aparência de temor, e recolheu-se para os seus aposentos. Quando Francesca cansou de cantar, levou Rodolfo para a galeria exterior, de onde se descortinava o sublime espetáculo do lago, e lhe fez sinal que sentasse a seu lado, num banco rústico.
— Haverá indiscrição em perguntar-lhe a idade, cara Francesca?
— Dezenove anos—respondeu ela -, mas já feitos.
— Se alguma coisa neste mundo pudesse atenuar a minha dor—disse ele -, seria a esperança de obter de seu pai a sua mão, seja qual for a sua situação de fortuna; bela como é, parece-me mais rica do que o seria a filha de um príncipe. Por isso tremo ao fazer-lhe a confissão dos sentimentos que me inspirou; mas são profundos e eternos.
— Zitto (Zitto: interjeição italiana; quer dizer “caluda!”)!—disse Francesca, pondo-lhe um dedo nos lábios.—Não siga adiante; não sou livre, estou casada há três anos.
Durante alguns instantes, reinou entre ambos profundo silêncio. Quando a italiana, assustada com a atitude de Rodolfo, se aproximou dele, encontrou-o completamente desmaiado.
— Povero (Povero: palavra italiana; em português: “coitado!”)!—disse consigo.—E eu, que o achava frio!
Foi buscar sais e reanimou Rodolfo, fazendo com que os respirasse.
6. SANTAS PROMESSAS
— Casada!—disse Rodolfo, olhando Francesca. Suas lágrimas correram então abundantemente.
— Criança—disse ela -, há esperanças. Meu marido tem...
— Oitenta anos?—disse Rodolfo.
— Não—respondeu ela, sorrindo -, sessenta e cinco. Ele arranjou uma máscara de ancião para despistar a polícia.
— Querida—disse Rodolfo -, mais algumas emoções como esta, e eu morro... Somente depois de vinte anos de intimidade poderá conhecer a força e a potência do meu coração, de que natureza são as suas aspirações à felicidade. Esta planta—disse ele, mostrando um jasmim-da-virgínia que envolvia a balaustrada—não se ergue com mais vivacidade para expandir-se aos raios do sol do que eu me prendi, há um mês, aos seus encantos. Amo-a com um amor único. Esse amor será o princípio secreto de minha vida, e por ele morrerei, talvez!
— Oh! Franceses! Franceses!—disse ela, comentando a sua exclamação com um trejeito de incredulidade.
— Não é preciso esperá-la, recebê-la das mãos do tempo?—disse ele com gravidade.—Mas, fique sabendo: se é sincera nas palavras que acabam de lhe escapar, eu a esperarei fielmente, sem permitir que nenhum outro sentimento medre em meu coração.
Ela olhou-o sorrateiramente.
— Nada—disse ele -, nem mesmo uma fantasia. Tenho de fazer fortuna, necessita de uma que seja esplêndida, a natureza criou-a princesa...
Ao ouvir tais palavras, Francesca não pôde conter um leve sorriso, que deu ao seu semblante a mais sedutora expressão, qualquer coisa de sutil como o que o grande Leonardo tão bem pintou na Gioconda. Esse sorriso impôs a Rodolfo uma pausa.
— ... Sim—continuou ele -, deve sofrer com a penúria a que o exílio a reduziu. Ah!, se me quer fazer mais feliz do que qualquer outro homem e santificar meu amor, trata-me como amigo. Não devo ser eu também seu amigo? Minha pobre mãe deixou-me sessenta mil francos de economia, fique com a metade.
Francesca olhou-o fixamente. Aquele olhar penetrante foi até o fundo da alma de Rodolfo.
— De nada precisamos, meus trabalhos bastam para o nosso luxo—respondeu ela com voz grave.
— Posso eu permitir que uma Francesca trabalhe!—exclamou ele.—Voltará um dia para a sua terra e então tornará a encontrar lá o que deixou...—A jovem italiana fitou novamente Rodolfo—...e me restituirá o que se dignou aceitar por empréstimo—acrescentou ele, com um olhar cheio de delicadeza.
— Deixemos esse assunto—disse ela, com incomparável nobreza de gestos, de olhar e de atitude.—Faça uma fortuna brilhante, seja um dos homens notáveis de seu país, assim o quero. A ilustração é uma ponte suspensa que pode servir para franquear um abismo. Seja ambicioso, é preciso. Julgo-o com elevadas e poderosas faculdades; sirva-se delas, porém, antes para a felicidade dos homens do que para me merecer; tanto maior será a meus olhos.
Nessa palestra, que durou duas horas, Rodolfo descobriu em Francesca o entusiasmo das ideias liberais e esse culto da liberdade que fizera a tríplice revolução de Nápoles, do Piemonte e da Espanha (A tríplice revolução de Nápoles, do Piemonte e da Espanha: A revolução de Espanha (março de 1820) obrigou o rei Fernando VII a restabelecer a Constituição de 1812; a de Nápoles (julho de 1820) forçou Fernando I a aceitar essa mesma Constituição; a de Piemonte (março de 1821) causou a abdicação de Vítor Emanuel I.).
7. OUTROS ENIGMAS
Ao sair, foi conduzido até a porta por Gina, a falsa muda. Às onze horas ninguém perambulava naquela aldeia, nenhuma indiscrição era de temer; Rodolfo atraiu Gina para um canto e perguntou-lhe em mau italiano:—Quem são seus patrões, minha filha? Diz-me e eu te darei esta moeda de ouro bem novinha.
— O patrão—respondeu a menina, aceitando a moeda—é o famoso livreiro Lamporani, de Milão, um dos chefes da revolução e o conspirador que a Áustria mais deseja encerrar em Spielberg.
“A mulher de um livreiro!... Pois tanto melhor”, pensou ele. “Estamos no mesmo nível.”—De que família é ela?—indagou em voz alta.—Pois tem o ar de uma rainha.
— Todas as italianas são assim—respondeu altivamente Gina.—O nome do pai dela é Colonna.
Encorajado pela humilde condição de Francesca, Rodolfo mandou acrescentar uma tenda ao seu barco e almofada na popa. Feita essa transformação, o apaixonado foi propor a Francesca um passeio no lago. A italiana aceitou, sem dúvida para representar seu papel de jovem miss aos olhos da gente da aldeia, mas levou Gina. Os menores atos de Francesca Colonna traíam uma educação superior e a mais alta categoria social. Pelo modo como se sentava a italiana na extremidade do banco, Rodolfo como que se sentiu separado dela, e ante aquela expressão de verdadeira altivez de fidalga, sua premeditada familiaridade caiu por terra. Por um olhar, Francesca se fez princesa, com todos os privilégios de que teria gozado na Idade Média. Parecia ter adivinhado os pensamentos secretos daquele vassalo que tivera a audácia de se constituir seu protetor. Quer no mobiliário do salão em que Francesca o recebera, quer na sua toilette e nas pequenas coisas de que se servia, Rodolfo vislumbrara os indícios de uma natureza elevada e de uma grande fortuna. Todas essas observações lhe voltaram simultaneamente à memória e ficou meditabundo, após ter sido, por assim dizer, contido pela dignidade de Francesca. Gina, a confidente menina, também parecia ter uma máscara zombeteira ao olhar para Rodolfo de baixo ou de soslaio. Esse visível desacordo entre a condição da italiana e as suas maneiras foi um novo enigma para Rodolfo, o qual suspeitou algum novo ardil, semelhante à mudez de Gina.
— Aonde quer ir, signora Lamporani?—perguntou ele.
— Para o lado de Lucerna—respondeu ela em francês.
— Bem!—pensou Rodolfo—ela não se admirou ao me ouvir dizer-lhe o nome, a ardilosa sem dúvida previu minha pergunta a Gina!
8. O PASSEIO SOBRE O LAGO
— Que tem contra mim?—disse, ao vir finalmente sentar-se perto dela e pedindo-lhe, por um gesto, a mão, que Francesca retirou.—Está fria e cerimoniosa; em estilo de conversação, diria brusca.
— É verdade—replicou ela, sorrindo.—Fiz mal. Não está direito. É burguês. Em francês o senhor diria: não é artista. É melhor explicar do que conservar contra um amigo pensamentos hostis ou frios, e o senhor já me provou a sua amizade. É possível que tivesse ido demasiado longe com o senhor. Deve ter-me tomado por uma mulher muito vulgar...
Rodolfo multiplicou sinais de negação.
— Sim—disse aquela mulher de livreiro, sem levar em conta a pantomima, que aliás via perfeitamente.—Percebi isso e, naturalmente, reconsiderei. Pois bem! Terminarei tudo com algumas palavras de uma verdade profunda. Saiba-o bem, Rodolfo, sinto em mim força suficiente para asfixiar um sentimento que não estivesse em harmonia com as ideias ou a presciência que tenho do verdadeiro amor. Posso amar como sabemos amar na Itália; mas conheço os meus deveres! Nenhuma embriaguez pode fazer com que os esqueça. Casada, sem meu consentimento, a esse pobre ancião, poderei usar da liberdade que tão generosamente ele me concede; mas três anos de matrimônio equivalem a uma aceitação da lei conjugal. Por isso, nem a mais violenta paixão me faria emitir, mesmo involuntariamente, o desejo de me ver livre. Emílio conhece o meu caráter. Sabe que, salvo o meu coração, que me pertence e que posso dar, não permitiria que me pegassem na mão. Eis o motivo pelo qual acabo de a recusar ao senhor. Quero ser amada, esperada com fidelidade, nobreza, ardor, sem poder conceder senão uma ternura infinita, cuja expressão não ultrapassará o recinto do coração, terreno permitido. Bem compreendidas essas coisas... Oh!—disse ela com um gesto de mocinha -, volto a ser coquette, risonha, louca, como uma criança que não conhece o perigo da familiaridade.
Essa declaração tão nítida, tão franca, foi feita num tom, num acento, e acompanhada de tais olhares que lhe deram a maior profundeza de verdade.
— Uma princesa Colonna não se teria expressado melhor—disse Rodolfo, sorrindo.
— É isso—replicou ela, com ar de altivez—uma censura à humildade do meu nascimento? Precisa o seu amor de um brasão? Em Milão, os mais belos nomes: Sforza, Canova, Visconti, Trivulzio, Ursini estão escritos por sobre portas de lojas; há Archintos boticários; mas creia que, apesar de minha condição de lojista, tenho sentimentos de duquesa.
— Uma censura? Não, senhora; quis fazer um elogio.
— Com uma comparação?...—disse ela, com finura.
— Ah! Saiba-o—disse ele -, a fim de não me atormentar mais, que se minhas palavras expõem mal meus sentimentos, o meu amor, esse, é absoluto; e comporta uma obediência e um respeito infinitos.
Ela inclinou a cabeça como uma mulher satisfeita e disse:
— Aceita então o tratado?
— Sim—disse ele.—Compreendo que, numa poderosa e rica organização de mulher, não se poderia perder a faculdade de amar, e que, por delicadeza, a senhora quer restringir. Ah! Francesca, uma ternura partilhada, na minha idade, e com uma mulher tão sublime, tão regiamente bela como a senhora é, cumula todos os meus desejos. Amá-la como quer ser amada, não é isso para um moço preservar-se de todas as más loucuras? Não é isso utilizar as forças numa nobre paixão, da qual mais tarde se pode ter orgulho, e que não deixa senão belas recordações?... Se soubesse com que cores, com que poesia acaba de revestir a cadeia de Pilatos, o Righi, e essa magnífica bacia...
— Quero sabê-lo—disse ela, com essa ingenuidade italiana sempre acompanhada de um pouco de esperteza.
— Pois bem! Esta hora irradiará sobre toda a minha vida, como um diadema na fronte de uma rainha.
Como única resposta, Francesca pousou a mão sobre a de Rodolfo.
— Oh! Querida, para sempre querida, diga, nunca amou?
— Nunca!
— E permite-me amá-la nobremente, tudo esperando do céu?
Ela inclinou suavemente a cabeça. Duas grossas lágrimas correram pelas faces de Rodolfo.
— Mas que é isso! Que tem?—disse ela, abandonando o seu papel de imperatriz.
— Não tenho mais minha mãe para dizer-lhe o quanto sou feliz; ela se foi embora deste mundo sem ver o que lhe suavizaria a agonia...
— Que é?—perguntou ela.
— A sua ternura substituída por outra ternura igual.
— Povero mio (Povero mio: “meu coitadinho”.)!—exclamou a italiana, enternecida.—É, creia-me—disse ela, depois de uma pausa -, uma coisa dulcíssima e um imenso elemento de fidelidade para uma mulher, saber-se tudo na Terra para aquele a quem ama, vê-lo sozinho, sem família, sem nada no coração a não ser seu amor, enfim, tê-lo seu, inteiramente.
Quando dois amantes se compreendem assim, o coração experimenta uma deliciosa quietude, uma tranquilidade sublime. A certeza é a base que os sentimentos humanos desejam, pois ela nunca falta ao sentimento religioso; o homem tem certeza de ser recompensado sobejamente por Deus. O amor não se julga em segurança senão por essa similitude com o amor divino. Por isso é necessário tê-los plenamente sentido para compreender as volúpias desse momento, sempre único na vida; ele, infelizmente, não volta mais, como não voltam as emoções da mocidade. Crer numa mulher, fazer dela a religião humana, o princípio da vida, a luz secreta dos mínimos pensamentos!... Não é isso um segundo nascimento? Um rapaz mescla ao seu amor um pouco do que sente pela mãe. Rodolfo e Francesca mantiveram-se durante algum tempo no mais profundo silêncio, respondendo-se por olhares amigos e cheios de pensamentos. Compreendiam-se em meio a um dos mais belos espetáculos da natureza, cuja magnificência, explicada pela de seus corações, os auxiliava a gravar na memória as mais fugitivas impressões daquela hora única. Não houve a menor aparência de coquetismo no procedimento de Francesca. Tudo neste era nobre, vasto e sem pensamento oculto. Essa grandeza impressionou vivamente Rodolfo, o qual reconhecia naquilo a diferença que distingue a italiana da francesa. As águas, a terra, o céu, a mulher, tudo foi, pois, grandioso e suave, mesmo o amor de ambos, naquele quadro, vasto em seu conjunto, rico nos seus detalhes, e onde a aspereza dos cimos nevados, seus rígidos perfis nitidamente recortados sobre o azul, lembravam a Rodolfo as condições nas quais se devia enquadrar a sua felicidade: uma terra rica cercada de neve.
9. UMA PRIMEIRA SUSPEITA
Aquela doce embriaguez da alma tinha de ser perturbada. Vinha um barco de Lucerna; Gina, que já fazia algum tempo o estava olhando com atenção, fez um gesto de alegria, permanecendo fiel ao seu papel de muda. O barco aproximava-se e, quando por fim Francesca pôde distinguir os rostos, exclamou, ao ver o semblante de um rapaz.
— Tito!
Ergueu-se e ficou de pé, correndo embora o risco de afogar-se.
— Tito! Tito!—bradou, agitando o lenço. Tito deu ordens aos seus barqueiros para deterem o barco; e as duas embarcações vogaram lado a lado. A italiana e Tito falaram com tamanha vivacidade, num dialeto tão pouco conhecido por um homem que mal sabia o italiano dos livros e nunca fora à Itália, que Rodolfo nada pôde entender, nem perceber, daquela conversação. A beleza de Tito, a familiaridade de Francesca, o ar de alegria de Gina, tudo o mortificava. De resto, não há namorado que não fique descontente ao se ver deixar, seja lá por quem for. Tito atirou vivamente um pequeno saco de couro para Gina, com certeza cheio de ouro, e um maço de cartas para Francesca, que se pôs a lê-las, fazendo um gesto de adeus a Tito.
— Voltem imediatamente para Gersau—disse ela aos barqueiros.—Não quero deixar meu pobre Emílio padecer nem dez minutos a mais.
— Que foi que lhe aconteceu?—perguntou Rodolfo, quando viu que a italiana acabara de ler a última carta.
— La libertà (La libertà: “a liberdade”.) - disse ela, com entusiasmo de artista.
— E denaro (E denaro: “e dinheiro”.)!—respondeu, como um eco, Gina, que finalmente podia falar.
— Sim—esclareceu Francesca -, acabou-se a miséria! Faz onze meses que eu trabalho e já estava começando a me aborrecer. Não sou decididamente uma mulher literária.
— Quem é esse Tito?—perguntou Rodolfo.
— O secretário de Estado no departamento das finanças da pobre loja de Colonna, ou por outras palavras, o filho do nosso ragionato (Ragionato: “guarda-livros”.). Pobre rapaz! Não pôde vir, nem pelo S. Gotardo, nem pelo monte Cenis, nem pelo Simplon; veio por mar, por Marselha, teve de atravessar a França. Enfim daqui a três semanas estaremos em Genebra e lá viveremos confortavelmente. Vamos, Rodolfo—disse ela ao ver a tristeza que se desenhava no rosto do parisiense -, o lago de Genebra não valerá o lago dos Quatro-Cantões?...
— Permita-me que manifeste minhas saudades por essa deliciosa casa Bergman—disse Rodolfo, mostrando o promontório.
— Virá jantar conosco para multiplicar suas recordações, povero mio—disse ela.—Hoje é dia de festa, não corremos mais perigo. Diz-me minha mãe que dentro de um ano, talvez, seremos anistiados. Oh!, la cara patria (Oh!, la cara patria...: “Oh!, a querida pátria...”)...
Essas três palavras fizeram Gina chorar.
— Mais um inverno e eu morreria aqui—disse ela.
— Pobre cabrazinha da Sicília!—disse Francesca, passando a mão pela cabeça de Gina com um gesto e uma afeição que fizeram Rodolfo desejar ser acariciado assim, embora sem amor.
O barco abordava. Rodolfo saltou sobre a areia e estendeu a mão para a italiana, levando-a até a porta da casa Bergman, e foi vestir-se para voltar o mais breve possível.
10. OUTRA MUDANÇA
Ao encontrar o livreiro e sua esposa sentados na galeria exterior, Rodolfo dificilmente reprimiu um gesto de surpresa ante a prodigiosa transformação que a feliz notícia trouxera ao nonagenário. Via um homem de cerca de sessenta anos, perfeitamente conservado, um italiano seco, reto como um i, com os cabelos ainda pretos, embora raros, e deixando ver um crânio branco, olhos vivos, dentadura completa e alva, um semblante de César, e, numa boca diplomática, um sorriso meio sardônico, o sorriso quase falso sob o qual o homem de boa sociedade esconde seus verdadeiros sentimentos.
— Eis o meu marido na sua forma natural—disse gravemente Francesca.
— E completamente uma outra pessoa—respondeu Rodolfo, confuso.
— Completamente—disse o livreiro.—Representei comédias e sei perfeitamente caracterizar-me. Ah! Eu representava em Paris no tempo do Império, com Bourrienne, a sra. Murat, a sra. de Abrantes (Bourrienne, a sra. Murat, a sra. de Abrantes: personagens da corte de Napoleão; Bourrienne, condiscípulo e secretário do imperador, depois ministro de Luís XVIII; a sra. Murat, em solteira Carolina Bonaparte, irmã de Napoleão; a sra. de Abrantes, esposa do general Junot, que ocupou a cidade de Abrantes em Portugal; depois de viúva, amiga de Balzac, que a ajudou a escrever as suas memórias.) e tutti quanti (Tutti quanti: “quantos eram”.). Tudo o que nos demos o trabalho de aprender na mocidade, mesmo as coisas fúteis, nos servem. Se minha mulher não tivesse recebido essa educação viril, um contrassenso na Itália, teria sido preciso, para viver aqui, que eu me fizesse lenhador. Povera Francesca, quem diria que eu ainda havia de ser sustentado por ela!
Ao ouvir aquele digno livreiro, tão desembaraçado, tão afável e tão verde, Rodolfo acreditou em um logro e permaneceu no silêncio observador do homem ludibriado.
— Che avete, signor? - perguntou-lhe ingenuamente Francesca.—Entristece-o a nossa felicidade?
— O seu marido é um moço—disse-lhe ele ao ouvido.
Ela soltou uma gargalhada tão franca, tão comunicativa, que Rodolfo ficou mais confuso ainda.
— Ele tem somente sessenta e cinco anos para oferecer-lhe—disse ela -; mas asseguro-lhe que é ainda alguma coisa de... tranquilizador.
— Não me agrada vê-la gracejar com um amor tão santo como esse, cujas condições foram estabelecidas pela senhora.
— Zitto!—disse ela, batendo com o pé olhando para ver se o marido os estava ouvindo.—Não perturbe nunca a tranquilidade desse querido homem, cândido como uma criança e do qual faço o que quero. Se soubesse com que nobreza ele arriscou a vida e a fortuna por ser eu liberal! Pois ele não partilha das minhas opiniões políticas. Não é isso amor, senhor francês? São todos assim na família dele. O irmão mais moço de Emílio foi traído pela mulher a quem amava com um rapaz encantador. Ele atravessou o coração com uma espada e dez minutos antes disse ao criado de quarto:—Eu poderia matar meu rival, mas isso causaria demasiado pesar à diva.
Esse misto de nobreza e zombaria, de grandeza e de infantilidade, fazia de Francesca, naquele momento, a criatura mais atraente do mundo. O jantar tanto como o serão foi impregnado de uma alegria que a libertação dos dois refugiados justificava, mas que contristou Rodolfo.
11. SEMPRE ENIGMAS
— Será ela frívola?—pensava ele, ao voltar para a casa Stopfer.—Ela acompanhou-me em meu luto, e eu não partilho da sua alegria.
Ele censurou-se e justificou aquela mulher que era como uma menina e moça.
— Ela não tem nenhuma hipocrisia e se entrega às suas impressões—pensou -, e eu a quisera como uma parisiense.
No outro dia e nos seguintes, durante vinte dias enfim, Rodolfo passou todo o tempo na casa Bergman, observando Francesca, embora sem o propósito de fazê-lo. A admiração em certas almas não existe sem uma espécie de penetração. O jovem francês achou em Francesca a moça imprudente, a verdadeira natureza da mulher ainda rebelde, debatendo-se por vezes contra o seu amor e deixando-se levar em outros momentos, complacentemente. O ancião portava-se bem com ela, como um pai com a filha, e Francesca testemunhava-lhe uma gratidão profundamente sentida, que nela revelava instintivas nobrezas. Aquela situação e aquela mulher apresentavam a Rodolfo um enigma impenetrável, mas cuja decifração o prendia cada vez mais.
Os últimos dias foram cheios de festas secretas, entremeadas de melancolia, de revoltas, de querelas, mais encantadoras do que as horas em que Rodolfo e Francesca se entendiam. Enfim, ele estava cada vez mais seduzido pela ingenuidade daquela ternura sem espírito, semelhante em tudo a si mesma, daquela ternura ciumenta de um nada... já.
— Gosta bastante do luxo!—disse ele uma tarde a Francesca, que manifestava o desejo de deixar Gersau, onde muita coisa lhe faltava.
— Eu!—disse ela -, gosto do luxo como gosto das artes, como gosto de um quadro de Rafael, de um belo cavalo, de um dia bonito ou da baía de Nápoles. Emílio—disse ela -, eu me queixei alguma vez aqui durante nossos dias de miséria?
— Você não teria sido você mesma—disse gravemente o velho livreiro.
— E, afinal de contas, não é natural que um burguês ambicione a grandeza?—replicou ela, dirigindo um olhar malicioso a Rodolfo e a Emílio.—Meus pés—disse ela, adiantando dois pezinhos encantadores—teriam sido feitos para as fadigas? Minhas mãos...—estendeu uma mão a Rodolfo.—Estas mãos foram feitas para trabalhar? Deixe-nos—disse ao marido -, quero falar-lhe.
O ancião recolheu-se ao salão com sublime bonomia; estava seguro da esposa.
— Não quero—disse ela a Rodolfo—que nos siga a Genebra. Genebra é uma cidade de tagarelices. Embora eu esteja bem acima das tolices mundanas, não quero ser caluniada, não por mim, mas por ele. Depositei meu orgulho em ser a glória desse ancião, que afinal é o meu único protetor. Nós vamos partir, fique por aqui mais alguns dias. Quando for a Genebra, procure primeiro meu marido, deixe que ele o apresente a mim. Ocultemos nossa inalterável e profunda afeição aos olhos do mundo. Eu amo ao senhor, e bem o sabe, mas eis de que maneira o provarei: o senhor não surpreenderá no meu procedimento seja o que for que possa despertar ciúme.
Ela o atraiu para um canto da galeria, segurou-lhe a cabeça, beijou-o na fronte e fugiu, deixando-o estupefato.
No dia seguinte, Rodolfo soube que os hóspedes da casa Bergman tinham partido pela madrugada. Desde esse momento, Gersau pareceu-lhe insuportável e ele dirigiu-se para Vevey pelo caminho mais longo, viajando mais depressa do que devia: atraído, porém, pelas águas do lago onde o esperava a bela italiana, chegou nos últimos dias do mês de outubro a Genebra.
12. A PRINCESA GANDOLPHINI
Para evitar os inconvenientes da cidade, hospedou-se numa casa situada nas Eaux-Vives, fora das muralhas. Uma vez instalado, seu primeiro cuidado foi perguntar ao hospedeiro, antigo ourives, se recentemente não tinham vindo fixar-se na cidade alguns refugiados milaneses.
— Que eu saiba, não—respondeu-lhe o homem.—O príncipe e a princesa Colonna, de Roma, arrendaram por três anos a casa de campo do sr. Jeanrenaud, uma das mais belas do lago. Está situada entre a vila Diodati e a casa de campo do sr. Lafin-de-Dieu, que foi alugada pela viscondessa de Beauséant (A viscondessa de Beauséant é personagem de A comédia humana. Seu amor por Gastão de Nueil é contado em A mulher abandonada.). O príncipe Colonna veio para ali por causa da filha e do genro, o príncipe Gandolphini, um napolitano, ou, se quiser, um siciliano, antigo partidário do rei Murat, e vítima da última revolução (O rei Murat: o general Joachim Murat (1767-1815), cunhado de Napoleão. Foi nomeado rei em 1808 e permaneceu no trono até a queda do imperador; fuzilado em 1815, quando quis reconquistar o seu reino.). São essas as últimas pessoas chegadas a Genebra, e não são milaneses. Foram precisos grandes empenhos e a proteção que o papa concede à família Colonna para que obtivessem, das potências estrangeiras e do rei de Nápoles, licença para o príncipe e a princesa Gandolphini residirem aqui. Genebra nada quer fazer que desagrade à Santa Aliança, a quem deve sua independência. Nosso papel não é de hostilizar as cortes estrangeiras. Por aqui há muitos estrangeiros, russos e ingleses.
— E até mesmo genebrinos.
— Sim, senhor. Nosso lago é tão bonito! Lord Byron aqui residiu faz mais ou menos sete anos, na vila Diodati que agora todos vão visitar, como Coppet (Coppet: aldeia suíça à margem do lago de Genebra, tornada ilustre pela estada de mme. de Staël.) e como Ferney (Ferney: aldeia do departamento do Ain, na França, onde Voltaire permaneceu muito tempo, o que a tornou célebre.).
— Não poderia saber se vieram, há uma semana, um livreiro de Milão e sua esposa, um senhor chamado Lamporani, um dos chefes da última revolução?
— Posso sabê-lo, indo ao Círculo dos estrangeiros—disse o antigo ourives.
O primeiro passeio de Rodolfo teve naturalmente por objeto a vila Diodati, residência de Lord Byron, à qual a morte recente do grande poeta dera ainda mais atrativos; não é a morte a sagração do gênio? O caminho que das Eaux-Vives costeia o lago de Genebra é, como todas as estradas da Suíça, bastante estreito, mas em certos lugares, pela disposição do terreno montanhoso, resta, quando muito, espaço suficiente para o cruzamento de dois carros. A poucos passos da casa Jeanrenaud, junto à qual chegara sem o saber, Rodolfo ouviu por trás de si o ruído de um carro e, achando-se numa espécie de garganta, trepou numa aresta de rocha, para deixar a passagem livre. Naturalmente, olhou o carro chegar, uma caleça elegante atrelada com dois cavalos ingleses. Teve um deslumbramento ao ver, no fundo da caleça, Francesca divinamente vestida, ao lado de uma velha dama, rígida como um camafeu. Um lacaio, resplandecente de dourados, mantinha-se de pé por trás de Francesca, que reconheceu Rodolfo e sorriu ao encontrá-lo erguido como uma estátua sobre um pedestal. O carro, que o apaixonado rapaz acompanhou com os olhos enquanto subia a encosta, deu uma volta para entrar pela porta de uma casa de campo, para onde ele correu.
— Quem mora aqui?—perguntou ao jardineiro.
— O príncipe e a princesa Colonna, além do príncipe e da princesa Gandolphini.
— Não foram elas que entraram?
— Sim, senhor.
Num momento caiu o véu dos olhos de Rodolfo. Viu claro no passado.
13. ANSIEDADE DE NAMORADO
— Contanto que seja o seu último logro...—disse a si mesmo o amante fulminado.
Tremia por ter sido joguete de um capricho, pois ouvira dizer o que é um capriccio para uma italiana. Mas que crime aos olhos de uma mulher, o ter tomado por uma burguesa, uma princesa! Ter confundido a filha de uma das mais ilustres famílias da Idade Média com a mulher de um livreiro! O sentimento dos seus erros redobrou em Rodolfo o desejo de saber se seria menosprezado, repelido. Perguntou pelo príncipe Gandolphini, mandando-lhe o seu cartão de visita, e foi logo recebido pelo falso Lamporani, que veio ao seu encontro e o acolheu com a mais perfeita gentileza, com a afabilidade napolitana, e o levou a passear ao longo de um terraço de onde se descortinava Genebra, o Jura e suas colinas cobertas de vilas e depois as margens do lago, numa grande extensão.
— Como vê, minha mulher é fiel aos lagos—disse ele, depois de ter detalhado a paisagem ao seu hóspede.—Temos esta noite uma espécie de concerto—acrescentou, ao voltar para a magnífica casa de Jeanrenaud -, e espero que nos dê o prazer, à princesa e a mim, da sua companhia. Dois meses de miséria suportados juntos equivalem a anos de amizade.
Embora devorado de curiosidade, Rodolfo não se atreveu a pedir para ver a princesa, voltou lentamente para as Eaux-Vives, preocupado com o serão. Em algumas horas, o seu amor, por imenso que já fosse, se achava engrandecido com a sua ansiedade e a espera dos acontecimentos. Compreendia agora a necessidade de se tornar ilustre para se achar, socialmente falando, à altura do seu ídolo. A seus olhos, Francesca tornava-se bem grande, pela naturalidade despretensiosa e pela simplicidade de seu procedimento em Gersau. O ar naturalmente altivo da princesa Colonna fazia tremer Rodolfo, que, de resto, ia ter como inimigos o pai e a mãe de Francesca, ou pelo menos assim acreditava; e o mistério que a princesa Gandolphini tanto lhe recomendara afigurou-se-lhe então uma admirável prova de ternura. Ao não querer comprometer o futuro, não manifestava ela bem seu amor a Rodolfo?
Finalmente soaram nove horas. Rodolfo pôde tomar o carro e dizer com emoção fácil de compreender:
— À casa Jeanrenaud, do príncipe Gandolphini!
Entrou, finalmente, no salão cheio de estrangeiros da mais alta distinção e onde ficou forçosamente num grupo perto da porta, pois naquele momento cantavam um dueto de Rossini.
Pôde afinal ver Francesca, mas sem ser visto por ela. A princesa estava de pé, a dois passos do piano. Seus admiráveis cabelos, tão abundantes e tão compridos, estavam retidos por um círculo de ouro. Seu rosto, iluminado pelas velas, brilhava com a alvura peculiar às italianas, e que só alcança todo o seu efeito às luzes. Trazia um vestido de baile, deixando admirar as espáduas fascinantes, um talhe de moça e braços de estátua antiga. Sua beleza sublime ali estava sem rivalidade possível, embora houvesse inglesas e russas encantadoras, as mais lindas mulheres de Genebra e outras italianas, entre as quais brilhavam a princesa de Varese e a famosa cantora Tinti (A Tinti: famosa cantatriz inventada por Balzac que também aparece em Massimilla Doni (nome de solteira da princesa de Varese).), que estava cantando naquele momento.
14. UM RECONHECIMENTO
Rodolfo, apoiado no alizar da porta, olhou a princesa, dardejando sobre ela o olhar fixo, persistente, atraente e carregado de toda a vontade humana concentrada nesse sentimento chamado desejo, mas que assume então o caráter de uma ordem violenta. Teria a chama daquele olhar atingido Francesca? Esperava esta ver Rodolfo a qualquer momento? Ao cabo de alguns minutos, ela esgueirou um olhar para a porta, como que atraída por aquela corrente de amor, e seus olhos, sem hesitar, mergulharam nos de Rodolfo. Um leve frêmito agitou aquele magnífico semblante e aquele lindo corpo; a vibração da alma reagia! Francesca corou. Rodolfo teve como que toda uma vida naquela rápida troca, só comparável a um relâmpago. Mas a que comparar sua felicidade?... Era amado!
A sublime princesa mantinha, no seio da sociedade, na bela casa Jeanrenaud, a palavra dada pela nobre exilada, pela caprichosa da casa Bergman. A embriaguez de semelhante momento escraviza para sempre! Um fino sorriso, elegante e ardiloso, cândido e triunfante, agitou os lábios da princesa Gandolphini, a qual, num momento em que não se julgou observada, olhou para Rodolfo com o ar de lhe pedir perdão por tê-lo iludido quanto à sua situação. Terminada a ária, Rodolfo pôde chegar até o príncipe, que graciosamente o conduziu ante sua esposa. Rodolfo trocou com a princesa Colonna, com o príncipe e Francesca os cumprimentos de uma apresentação oficial. Terminada essa cerimônia, a princesa Gandolphini teve de cantar a sua parte no famoso quarteto de Mi manca la voce (Mi manca la voce: “Falta-me a voz”.), que foi executado por ela, pela Tinti, por Genovese (Genovese: célebre tenor, personagem imaginária. Amante da Tinti, figura a seu lado em Massimila Doni.), o famoso tenor, e por um célebre príncipe italiano, então no exílio, e cuja voz, se ele não fosse príncipe, o teria tornado um príncipe da arte.
— Sente-se ali—disse Francesca a Rodolfo, mostrando-lhe sua própria cadeira.—Oimè (Oimè: “ai de mim”.), creio que há engano de nome; sou, faz um momento, a princesa Gandolphini.
Isso foi dito com uma graça, uma sedução, uma ingenuidade, que recordaram, naquela confissão oculta sob um gracejo, os dias felizes de Gersau. Rodolfo experimentou a deliciosa sensação de ouvir a voz de uma mulher adorada ao se achar tão perto dela, que tinha uma de suas faces quase roçada pelo tecido do vestido e pela gaze da écharpe. Mas quando, em semelhante momento, é o Mi manca la voce que se está cantando e esse quateto é executado pelas mais belas vozes da Itália, torna-se fácil compreender como os olhos de Rodolfo se umedeceram de lágrimas.
15. UMA REFLEXÃO MAIS OU MENOS AGRADÁVEL AO LEITOR
Em amor, como em tudo, talvez, há certos fatos, mínimos em si mesmos, mas resultando de mil pequenas circunstâncias anteriores, cujo alcance se torna imenso porque, resumindo o passado, se prendem ao futuro. Sentiu-se mil vezes o valor da criatura amada, mas um nada, o contato perfeito das almas unidas num passeio, por uma palavra, por uma prova de amor inesperada, leva o sentimento ao seu mais alto grau. Enfim, para traduzir esse fato moral por uma imagem que, desde os começos do mundo, teve o mais incontestável sucesso, há, numa longa cadeia, pontos de ligação necessários, em que a coesão é mais profunda do que nas suas grinaldas de anéis. Aquele entendimento entre Rodolfo e Francesca, durante aquele sarau, à face do mundo, foi um desses pontos supremos que ligam o futuro ao passado, que cravam no coração as uniões reais. É possível que fosse desses cravos esparsos que Bossuet (Bossuet: Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704). Bispo de Condom e, depois, de Meaux, famoso orador sagrado. O trecho, incluído em sua meditação Da brevidade da vida, ao qual Balzac faz alusão aqui, é o seguinte: “A minha carreira é, no máximo, de oitenta anos, e desses oitenta anos quantos haverá que contam... O tempo em que tive alguma satisfação, alguma honra? Mas como, na minha vida, esse tempo é escasso! Dir-se-ia uns pregos espalhados numa parede comprida a determinados intervalos. Parecem ocupar muito espaço; juntai-os, porém, não darão para encher a mão”.) falou, comparando a eles a raridade dos momentos felizes de nossa existência, ele que tão vivamente e tão secretamente sentiu o amor.
Após o prazer de admirarmos nós mesmos a mulher amada, vem o de a ver admirada por todos; Rodolfo teve então os dois ao mesmo tempo. O amor é um tesouro de recordações, e conquanto o de Rodolfo já estivesse cheio, ele acrescentou-lhe as mais preciosas pérolas: sorrisos que lhe foram dirigidos sorrateiramente, só para ele, olhares furtivos, inflexões de canto que Francesca descobriu para ele, mas que fizeram a Tinti empalidecer de inveja, de tal forma foram aplaudidas. Por isso, todo o seu poder do desejo, essa forma especial de sua alma, projetou-se sobre a bela romana, que se tornou inalteravelmente o princípio e o fim de todos os seus pensamentos e ações. Rodolfo amou como todas as mulheres podem sonhar ser amadas, com uma força, uma constância, uma coesão que faziam de Francesca a própria substância do seu coração; ele a sentiu mesclada ao seu sangue como um sangue mais puro, à sua alma como uma alma mais perfeita; ela ia ser sob os menores esforços de sua vida como as areias douradas do Mediterrâneo sob as ondas. Enfim, a menor aspiração de Rodolfo foi uma ativa esperança.
16. O QUE TORNAVA A PRINCESA UMA MULHER ADORÁVEL
Ao cabo de alguns dias, Francesca reconheceu aquele imenso amor; era, porém, tão natural, tão bem partilhado, que não lhe causou admiração; era digna dele.
— Que há de surpreendente—dizia ela a Rodolfo, ao passearem pelo terraço do jardim, depois de ter vislumbrado um desses impulsos de fatuidade tão natural aos franceses, na expressão de seus sentimentos -, que há de maravilhoso no fato de amar uma mulher jovem e bela, suficientemente artista para poder ganhar a sua vida como a Tinti, e que pode dar satisfações de vaidades? Qual o grosseirão que não se tornaria um Amadis (Amadis: herói de um famoso romance de cavalaria, do espanhol Montalvo, derivado de um antigo original português; o nome de Amadis passou a designar um amante constante e respeitoso.)? Entre nós não se trata disso. O que é preciso é amar com constância, com persistência e de longe, durante anos, sem outro prazer além do de nos sentirmos amados.
— Pobre de mim!—disse Rodolfo—não acha minha fidelidade desprovida de qualquer mérito, ao me ver ocupado pelos trabalhos de uma ambição devoradora? Julga que eu queria vê-la um dia trocar o belo nome de princesa Gandolphini pelo de um homem que nada fosse? Quero tornar-me um dos homens mais notáveis do meu país, ser rico, ser grande e que possa ter tanto orgulho de meu nome como do seu de Colonna.
— Ser-me-ia penoso não lhe ver tais sentimentos no coração—respondeu ela com um sorriso encantador.—Mas não se consuma demasiado nos trabalhos da ambição, conserve-se moço... Dizem que a política faz envelhecer prematuramente.
O que há de mais raro na mulher é uma certa jovialidade que não altera a ternura. Esse misto de um sentimento profundo e de loucura da juventude acrescentou, naquele momento, adoráveis atrativos aos de Francesca. Ali estava a chave de seu caráter; ela ria e se enternecia, exaltava-se e retornava à fina zombaria, com uma naturalidade, um desembaraço que faziam dela a sedutora e deliciosa personalidade cuja reputação, aliás, já se estendera fora da Itália. Ocultava sob as graças da mulher uma instrução profunda, devida à existência excessivamente monótona e quase monacal que vivera no velho castelo de Colonna. Aquela rica herdeira fora a princípio destinada ao claustro, por ser o quarto rebento do príncipe e da princesa Colonna; a morte, porém, dos dois irmãos e da irmã mais velha tirou-a subitamente de seu retiro para torná-la um dos mais belos partidos dos Estados romanos. Tendo sua irmã mais velha sido prometida ao príncipe de Gandolphini, um dos mais ricos proprietários da Sicília, Francesca lhe foi dada, a fim de em nada se modificarem os negócios de família. Os Colonna e os Gandolphini sempre se haviam ligado pelo matrimônio. Dos nove aos dezesseis anos, Francesca, dirigida por um monsignore da família, lera toda a biblioteca dos Colonna, para ocupar sua ardente imaginação estudando as ciências, as artes e as letras. Mas adquiriu no estudo esse gosto pela independência e pelas ideias liberais que a lançaram, bem como ao marido, na Revolução. Rodolfo ignorava ainda que, sem contar cinco línguas vivas, Francesca sabia grego, latim e hebraico. Aquela encantadora criatura compreendera admiravelmente que uma das primeiras condições da instrução de uma mulher é ficar profundamente oculta.
17. UMA TEMPESTADE NUM DIA BONITO
Rodolfo permaneceu todo o inverno em Genebra. Esse inverno passou rápido como um dia. Ao chegar a primavera, não obstante os deliciosos prazeres da companhia de uma mulher de espírito, prodigiosamente instruída, jovem e alegre, aquele apaixonado experimentou cruéis sofrimentos, aliás suportados com valor, mas que, por vezes, transpareceram na sua fisionomia, apontaram nas suas maneiras, nas suas palavras, talvez por não julgá-los compartilhados. Às vezes se irritava ao admirar a calma de Francesca, que, semelhante às inglesas, parecia empenhar seu amor-próprio em nada exprimir no semblante, cuja serenidade desafiava o amor; ele a quisera agitada, acusava-a de nada sentir, crendo no preconceito que atribui às italianas uma mobilidade febril.
— Sou romana!—respondeu-lhe um dia com gravidade Francesca, que levara a sério alguns gracejos feitos por Rodolfo a esse respeito.
Houve no tom dessa resposta uma profundeza que lhe deu a aparência de uma ironia selvagem e fez Rodolfo palpitar. O mês de maio ostentava os tesouros de sua jovem e verdejante fertilidade, o sol tinha momentos de força como em pleno verão. Os dois amantes estavam então apoiados na balaustrada de pedra que, numa parte do terraço onde o terreno está a pique sobre o lago, sobranceia a muralha de uma escada pela qual se desce para embarcar. Da cidade vizinha, onde se vê um cais pouco mais ou menos igual, partiu, como um cisne, uma iole, com o seu pavilhão de flâmulas, sua tenda com toldo carmesim, sob o qual uma encantadora mulher estava indolentemente reclinada sobre almofadas vermelhas, toucada de flores naturais, conduzida por um rapaz trajado à marinheira e que remava com tanto mais elegância por fazê-lo sob os olhares daquela dama.
— São felizes!—disse Rodolfo com áspero acento.—Clara de Bourgogne, a última da única dinastia que poderia rivalizar com a casa de França...
— Oh!... Ela descende de um ramo bastardo, e isso mesmo pelas mulheres...
— Seja como for, é viscondessa de Beauséant e não...
— Hesitou... Não é? Em enterrar-se com o sr. Gastão de Nueil—disse a filha dos Colonna.—Ela não é mais do que francesa, e eu sou italiana, meu caro senhor.
Francesca retirou-se da balaustrada, lá deixando Rodolfo, e foi até o extremo do terraço, de onde se abarca uma imensa extensão do lago. Ao vê-la caminhar lentamente, Rodolfo teve uma suspeita de haver ferido aquela alma, ao mesmo tempo cândida e tão sábia, tão altiva e tão humilde. Teve frio; seguiu Francesca, que lhe fez sinal de a deixar só; ele, porém, não obedeceu ao aviso e surpreendeu-a enxugando as lágrimas. Pranto numa natureza tão forte!
— Francesca—disse ele, tomando-lhe a mão -, há um único pesar em teu coração?
Ela se conservou calada, desprendeu a mão que segurava o lenço bordado, para enxugar outra vez os olhos.
— Perdão—pediu ele.
E, num ímpeto, alcançou os olhos para secar as lágrimas com beijos.
Francesca não se apercebeu daquele movimento apaixonado, de tão emocionada que estava. Rodolfo, crendo um consentimento, afoitou-se; enlaçou Francesca, apertou-a contra o coração e beijou-a; ela, porém, desprendeu-se com um magnífico movimento de pudor ofendido e, a dois passos de distância, fitando-o sem cólera, mas com resolução, disse-lhe:
— Parta esta tarde; não nos tornaremos a ver senão em Nápoles.
Apesar da sua severidade, aquela ordem foi cumprida religiosamente, porque Francesca o queria.
18. CONCLUSÃO
De volta a Paris, Rodolfo encontrou em casa o retrato da princesa Gandolphini, por Schinner (Schinner, personagem de A comédia humana, a cujo amor e casamento assistimos em A bolsa.), como este os sabe fazer. Esse pintor passara por Genebra ao ir para a Itália. Como se havia recusado peremptoriamente a fazer o retrato de várias mulheres, Rodolfo não acreditava que o príncipe, extraordinariamente desejoso de possuir o retrato da esposa, tivesse podido vencer a repugnância do célebre pintor; mas Francesca sem dúvida o seduzira e obtivera dele, o que chegava a ser prodigioso, um retrato original para Rodolfo e uma cópia para Emílio. Era o que lhe contava uma encantadora e deliciosa carta, na qual o pensamento se compensava das restrições impostas pela religião das conveniências. O enamorado respondeu. Assim começou, para não mais terminar, uma correspondência entre Rodolfo e Francesca, único prazer que se permitiam.
Rodolfo, dominado por uma ambição que o seu amor legitimava, pôs imediatamente mãos à obra. Quis primeiro a fortuna e arriscou-se numa empresa, na qual empregou todas as suas forças, bem como todo o seu capital; teve, porém, de lutar, com a inexperiência da mocidade, contra uma duplicidade que triunfou sobre ele. Perderam-se assim três anos numa vasta empresa, três anos de esforços e de coragem.
O ministério Villèle (O ministério ultrarrealista do conde de Villèle durou de 1822 a 1828.) sucumbia também quando Rodolfo fracassou. Logo depois o intrépido apaixonado resolveu pedir à política o que a indústria lhe recusara; mas, antes de se atirar nas tormentas dessa carreira, foi, bastante ferido, dolorido, fazer curar suas feridas e buscar coragem em Nápoles, aonde o príncipe e a princesa Gandolphini haviam sido chamados e reintegrados nos seus bens, por ocasião da elevação do rei ao trono. No meio de sua luta, foi aquilo um repouso cheio de doçuras; passou três meses na vila Gandolphini, embalado pela esperança.
Recomeçou então o edifício de sua fortuna. Seus talentos já haviam sido distinguidos, iam enfim realizar os anseios de sua ambição, um lugar eminente lhe tinha sido prometido, em recompensa à sua dedicação e aos serviços prestados, quando rebentou a tormenta de julho de 1830.
Ela e Deus, tais são as testemunhas dos mais corajosos esforços, das mais audaciosas tentativas de um rapaz dotado de qualidades, mas para quem, até então, faltara o auxílio da deusa dos tolos, a sorte! E aquele infatigável atleta, amparado pelo amor, recomeçou novos combates, iluminado por um olhar sempre amigo, por um coração fiel! Namorados! Orai por ele!
XXI - O CONTRAGOLPE
Ao terminar essa narrativa, a srta. de Watteville estava com as faces em fogo e com febre nas veias; chorava, mas de raiva. Aquela novela, inspirada na literatura então em moda, era a primeira leitura daquele gênero que Rosália havia podido devorar. O amor ali estava pintado, se não por mão de mestre, pelo menos por um homem que sabia narrar suas próprias impressões; ora, por inábil que fosse a verdade, devia impressionar uma alma virgem ainda. Ali estava o segredo das agitações terríveis, da febre e das lágrimas de Rosália: tinha ciúme de Francesca Colonna. Não tinha dúvida quanto à sinceridade daquela poesia; Alberto se comprazerá em narrar o início de sua paixão, ocultando sem dúvida os nomes e, talvez, também lugares. Rosália estava tomada por uma curiosidade infernal. Que mulher não teria, como ela, querido saber o verdadeiro nome de sua rival, pois ela amava! Ao ler aquelas páginas contagiosas para ela, dissera consigo esta frase solene: Eu amo! Ela amava Alberto e sentia no coração um mordente desejo de disputá-lo, de o arrancar àquela rival desconhecida. Lembrou-se de que não sabia música e de que não era bela.
— Jamais ele me amará—disse.
Essas palavras redobraram seu desejo de saber se não se enganava, se realmente Alberto amava uma princesa italiana, e se era amado por ela. Durante essa noite fatal, o espírito de rápida decisão que caracterizava o famoso Watteville desenvolveu-se inteiramente na sua herdeira. Engendrou alguns desses planos estranhos, em torno dos quais flutua, de resto, a imaginação de quase todas as moças, quando, no meio da solidão em que algumas mães imprudentes as retêm, elas são excitadas por um acontecimento capital, que o sistema de compressão a que estão submetidas não pôde nem prever nem impedir. Pensava em descer por uma escada, pelo quiosque, ao jardim da casa em que residia Alberto, aproveitar-se do sono do advogado para ver pela janela o interior do seu gabinete. Pensava em escrever-lhe, pensava em romper os laços da sociedade besançonense, introduzindo Alberto no salão do palacete de Rupt. Essa empresa, que ao próprio abade de Grancey se lhe afigurara a obra-prima do impossível, foi coisa de um pensamento.
— Ah!—disse com seus botões.—Meu pai tem controvérsias a respeito de suas terras de Rouxey, eu irei! Se não houver processo, eu farei nascer um e ele virá a nosso salão!—exclamou, saltando do leito para a janela, a fim de ver a luz prestigiosa que iluminava as noites de Alberto. Soava uma hora da madrugada; ele ainda dormia.
— Vou vê-lo quando se levantar; talvez chegue à janela!
Naquele momento, a srta. de Watteville foi testemunha de um acontecimento que devia colocar em suas mãos o meio de vir a conhecer os segredos de Alberto.
XXII - UTILIDADE DOS QUIOSQUES
Ao clarão da lua, entreviu dois braços estendidos para fora do quiosque e que auxiliaram Jerônimo, o criado de Alberto, a saltar a crista do muro e a entrar no quiosque. Na cúmplice do criado, Rosália reconheceu logo Marieta, a sua camareira.
— Marieta e Jerônimo—comentou ela.—Marieta, uma rapariga tão feia! Com certeza, um tem vergonha do outro.
Se Marieta era horrivelmente feia e tinha trinta e seis anos de idade, recebera por herança vários lotes de terra. Desde os dezessete anos a serviço da sra. de Watteville, que muito a apreciava por causa de sua devoção, de sua probidade e de sua antiguidade na casa, ela economizara, sem dúvida, e colocara seus ordenados e seus proveitos. Ora, à razão de, mais ou menos, dez luíses por ano, devia possuir, somando os juros dos juros e suas heranças, cerca de quinze mil francos. Aos olhos de Jerônimo quinze mil francos modificavam as leis da óptica; achava que Marieta tinha uma bonita cintura, não mais via as picadas e as cicatrizes que uma terrível varíola deixara naquele rosto chato e seco; para ele a boca retorcida era reta, e desde que, ao tomá-lo a seu serviço, o advogado Savaron o aproximara do palacete de Rupt, fez o assédio em regra à devota camareira, tão rígida, tão hipocritamente virtuosa quanto a sua patroa, e que, como todas as solteironas feias, se mostrava mais exigente que as mulheres bonitas. Se agora a cena noturna do quiosque fica explicada para as pessoas clarividentes, era-o muito pouco para Rosália, que, entretanto, ganhou com ela o mais perigoso de todos os conhecimentos, o que o mau exemplo dá. Uma mãe educa severamente a filha, cobre-a com as suas asas durante dezessete anos, e, numa hora, uma criada destrói essa longa e penosa obra, algumas vezes com uma palavra, muitas vezes com um gesto! Rosália tornou a deitar-se, não sem antes pensar em todo o partido que ia poder tirar de sua descoberta. No dia seguinte pela manhã, ao ir à missa em companhia de Marieta (a baronesa estava indisposta), Rosália tomou o braço de sua camareira, o que surpreendeu estranhamente a besançonesa.
— Marieta—perguntou ela.—Jerônimo possui a confiança do patrão?
— Não sei, senhorita.
— Não se faça de inocente comigo—retrucou secamente a srta. de Watteville.—Você esta noite se deixou beijar por ele, no quiosque. Não me admiro mais de você ter aprovado tanto minha mãe, a propósito dos embelezamentos que ela projetava ali.
Rosália sentiu o tremor que se apoderou de Marieta através de seu braço.
- Não lhe quero mal por isso—continuou Rosália -, tranquilize-se, não direi uma palavra que seja à minha mãe, e você poderá ver Jerônimo quantas vezes quiser.
— Mas, senhorita—respondeu Marieta -, é coisa séria o meu assunto, pois ele não tem outra intenção senão casar comigo.
— Mas, então, por que vocês marcam encontros à noite?
Marieta, aterrada, não soube responder.
— Ouça, Marieta, eu também amo! Amo em segredo, e sozinha. Sou, afinal, filha única de meu pai e de minha mãe; assim, pois, você tem mais a lucrar comigo do que seja com quem for no mundo...
— Certamente, senhorita, a senhora pode contar conosco para a vida e para a morte—exclamou Marieta, feliz com aquele desenlace imprevisto.
— Primeiro que tudo, silêncio por silêncio—disse Rosália.—Não quero desposar o sr. de Soulas; mas quero, e de modo absoluto, certa coisa; minha proteção só lhe será dada a esse preço.
— Qual?—perguntou Marieta.
— Quero ver as cartas que o sr. Savaron manda Jerônimo botar no correio.
— Para fazer o quê?—disse Marieta, assustada.
— Oh! Nada mais do que para ler, e você mesma poderá pô-las depois no correio. Isso apenas provocará um pequeno atraso e mais nada.
Naquele instante, a srta. de Watteville e Marieta entraram na igreja e cada uma delas fez suas reflexões, em vez de ler o missal.
“Meu Deus! quanto pecado não haverá nisso tudo?”, pensou Marieta.
Rosália, cuja alma, cabeça e coração estavam transtornados com a leitura da novela, viu nesta finalmente uma história escrita para a sua rival. À força de refletir, como as crianças, na mesma coisa, acabou por pensar que a Revue de l’Est devia ser enviada à bem-amada de Alberto.
— Oh!—disse ela, de joelhos, com a cabeça mergulhada nas mãos, na atitude de uma pessoa abismada na oração.—Oh! Como levar meu pai a consultar a lista das pessoas a quem é mandada a revista?
Depois do almoço, deu uma volta pelo jardim, com o pai, amimando-o, e trouxe-o até o quiosque.
— Acreditas, paizinho querido, que a nossa revista vá para o estrangeiro?
— Ela apenas está começando...
— Pois aposto que vai.
— Não é possível.
— Vai ver se sabes, e aponta os nomes dos assinantes no estrangeiro.
Duas horas depois, o sr. de Watteville disse à filha:
— Quem tem razão sou eu, não há ainda um único assinante nos países estrangeiros. Espera-se vir a ter em Neuchâtel, em Berna, em Genebra. Entretanto, mandam um exemplar para a Itália, mas gratuitamente, para uma dama milanesa, dirigida à sua casa de campo no lago Maior, em Belgirate.
— Qual o nome dela?—perguntou vivamente Rosália.
— A duquesa de Argaiolo.
— Conhece-a, meu pai?
— Já ouvi falar nela. Nasceu princesa de Soderini, é uma florentina, muito grande dama, e tão rica como o marido, o qual possui uma das mais belas fortunas da Lombardia. A vida deles no lago Maior é uma das curiosidades da Itália.
Dois dias depois, Marieta entregou a seguinte carta à srta. de Watteville.
XXIII - CARTA DE ALBERTO SAVARON A LEOPOLDO HANNEQUIN
Pois bem, é verdade, meu caro amigo, estou em Besançon, enquanto me julgavas em viagem. Nada quis dizer-te até o momento em que o triunfo começasse, e a aurora começa a despontar. Sim, querido Leopoldo, depois de tantas empresas abortadas, nas quais despendi o melhor do meu sangue, em que malbaratei tantos esforços, empreguei tanta coragem, quis fazer como tu; seguir por um caminho trilhado, a estrada real, o mais longo dos caminhos, o mais seguro. Que salto te vejo dar na tua poltrona de notário! Mas não creias que haja alguma mudança na minha vida interior, em cujo segredo só tu estás no mundo, e, isso mesmo, sob as reservas que ela exigiu. Nada te dizia, meu amigo, mas me aborrecia horrivelmente em Paris. O desenlace da primeira empresa, na qual pus todas as minhas esperanças, e que naufragou devido à perversidade dos meus dois sócios, mancomunados para enganar-me, para despojar-me, a mim, a cuja atividade se devia tudo, fez-me renunciar à conquista da fortuna pecuniária depois de assim ter perdido três anos da minha vida, dos quais um em demandas. É bem possível que me tivesse saído pior do processo se não tivesse sido constrangido, aos vinte anos, a estudar direito. Quis tornar-me um homem político, unicamente para ser um dia incluído numa ordenança sobre o pariato, com título de conde Alberto Savaron de Savarus e fazer reviver em França um belo nome que se vai extinguir na Bélgica, embora eu não seja nem legítimo nem legitimado.
— Ah! Eu tinha certeza, ele é nobre!—exclamou Rosália deixando a carta cair.
Sabes os estudos conscienciosos que eu fiz, que jornalista obscuro, mas dedicado, mas útil, e que admirável secretário eu fui para o homem de Estado, que aliás me foi fiel em 1829. Mergulhado novamente no nada pela Revolução de Julho, no momento em que meu nome começava a brilhar, no momento em que, referendário, eu ia finalmente entrar, como uma engrenagem necessária na máquina política, cometi a falta de permanecer fiel aos vencidos, de lutar por eles, sem eles. Ah! Por que não tinha eu mais do que trinta e três anos, e como não te pedi que me tornasses elegível? Ocultei-te todos os meus devotamentos e perigos. Que queres, eu tinha fé! Não estaríamos de acordo. Há dez meses, quando me vias tão alegre, tão contente, escrevendo meus artigos políticos, eu andava desesperado: via-me aos trinta e sete anos com dois mil francos por toda fortuna, sem a menor celebridade, tendo acabado de naufragar numa nobre empresa, a de um jornal cotidiano que só se dirigia a uma necessidade do futuro em vez de se dirigir às paixões do momento. Já não sabia que resolução tomar. E eu sentia minhas forças. Ia sombrio e ferido aos lugares solitários daquela Paris que me havia escapado, pensando nas minhas ambições frustradas, mas sem as abandonar. Oh! Que expressões de raiva não escrevi então a ela, essa segunda consciência, esse outro eu! Às vezes eu dizia comigo: “Por que tracei um programa tão vasto para a minha existência? Por que querer tanto? Por que não esperar a felicidade, dedicando-me a qualquer ocupação quase mecânica?”.
Lancei então os olhos sobre um modesto posto onde eu pudesse viver. Ia ter a direção de um jornal, sob um gerente que não sabia grande coisa, um argentário ambicioso, quando se apoderou de mim o terror.
— Quererá ela para marido um amante que desceu tão baixo?—perguntei a mim mesmo.
Essa reflexão restituiu-me os meus vinte e dois anos! Oh!, meu caro Leopoldo, como a alma se gasta nessas perplexidades! Que não deverão sofrer as águias engaioladas, os leões enjaulados?... Sofrem tudo o que Napoleão sofreu, não em Santa Helena, mas no cais das Tulherias, a 10 de agosto, quando via Luís XVI defendendo-se tão mal, ele, que podia dominar a sedição como o fez mais tarde, no mesmo local, em vindemiário ( A 10 de agosto de 1792 irrompeu em Paris, por motivo da despedida dos ministros girondinos, uma insurreição que originou o aprisionamento de Luís XVI e o fim da monarquia. Como o fez mais tarde em vindemiário: alusão aos dias 10 a 13 de vindemiário de 1795, quando o general Bonaparte venceu, dentro de Paris, os insurretos contra a Convenção.)! Pois bem! Minha vida foi esse sofrimento de um dia, estendido em quatro anos. Quantos discursos na Câmara não pronunciei eu pelas alamedas desertas do Bois de Boulogne? Essas improvisações inúteis afiaram, pelo menos, a minha língua e acostumaram o meu espírito a formular seus pensamentos em palavras. Durante esses tormentos secretos, tu te casavas, acabavas de pagar teu cargo e te tornavas adjunto do maire da tua circunscrição, depois de ter ganhado a cruz, ao ser ferido em Saint-Merry (Saint-Merry: alusão à insurreição republicana da rua do Claustro Saint-Merry, de Paris, por ocasião das exéquias do general Lamarque (5 e 6 de junho de 1832).).
Escuta! Quando eu era pequeno e atormentava os besouros, havia nesses pobres insetos um movimento que me deixava quase que com febre. Era quando eu os via fazer esforços reiterados para alçar o voo, sem, entretanto, voar, embora tivessem conseguido erguer as asas. Nós dizíamos: Eles contam! Era isso uma simpatia ou uma visão do meu futuro? Oh!, abrir as asas e não poder voar! Eis o que me aconteceu desde aquela linda empresa da qual me enojaram, mas que enriqueceu, agora, quatro famílias.
Enfim, faz sete meses, resolvi criar nome no foro de Paris, ao ver os vácuos que nele deixam as promoções de tantos advogados a postos eminentes. Ao lembrar-me, porém, das rivalidades que observara no seio da imprensa, e como é difícil triunfar, seja no que for em Paris, essa arena onde tantos campeões aprazam reencontros, tomei uma resolução cruel para mim, de um efeito certo e talvez mais rápido do que qualquer outro. Nas nossas palestras, tu me havias explicado bem a constituição social de Besançon, a impossibilidade, para um estranho à terra, de triunfar, de lá causar a menor sensação, de lá casar, de penetrar na sociedade, de ter êxito, fosse lá no que fosse. Foi aí que eu quis fincar minha flâmula, pensando, justamente, evitar assim a concorrência, e ver-me sozinho para disputar a deputação. Os besançonenses não querem ver o estrangeiro, o estrangeiro não os verá! Eles recusam admiti-lo nos seus salões, pois ele jamais lá porá os pés! Não aparecerá em parte alguma, nem mesmo nas ruas! Mas há uma classe que faz os deputados, e é a classe comercial. Vou especializar-me em assuntos comerciais, que já conheço, ganharei processos, conciliarei divergências, tornar-me-ei o mais forte advogado de Besançon. Mais tarde fundarei uma revista, na qual defenderei os interesses da terra, onde os farei nascer, viver ou renascer. Quando tiver conquistado, um a um, suficientes sufrágios, meu nome sairá da urna. Desdenharão durante muito tempo o advogado desconhecido, mas haverá uma circunstância que o porá em foco, uma defesa gratuita, uma questão da qual os outros advogados não se queiram encarregar. Se posso falar uma vez, tenho certeza do êxito. Pois bem! meu caro Leopoldo, fiz encaixotar a minha biblioteca em onze caixas, comprei os livros de direito que me podiam ser úteis e pus tudo, bem como a minha mobília, em viagem para Besançon. Muni-me dos meus diplomas, reuni mil escudos e fui dizer-te adeus. A diligência lançou-me em Besançon, onde, no prazo de três dias, escolhi um pequeno apartamento que dá para um jardim, arranjei suntuosamente o gabinete misterioso onde passo minhas noites e meus dias, e onde brilha o retrato do meu ídolo, daquela a quem votei a minha vida, que a enche, que é o princípio dos meus esforços, o segredo da minha coragem, a causa do meu talento. Depois de chegarem os livros e os móveis, tomei um criado inteligente e fiquei cinco meses como uma marmota no inverno. De resto, haviam-me inscrito no quadro dos advogados.
Finalmente, nomearam-me ex officio para defender um infeliz no tribunal, sem dúvida para me ouvirem falar ao menos uma vez! Um dos mais influentes negociantes de Besançon fazia parte do júri e tinha um caso espinhoso; fiz tudo, nessa causa, por aquele homem e obtive o mais completo êxito do mundo. Meu primeiro cliente era inocente, fiz prenderem dramaticamente os verdadeiros culpados, que estavam no rol das testemunhas. Enfim, a corte compartilhou da admiração do seu público. Soube poupar o amor-próprio do juiz de instrução, mostrando a quase impossibilidade de descobrir uma trama tão bem urdida. Consegui então a clientela do meu abastado negociante e ganhei seu processo. O capítulo da catedral escolheu-me para advogado num imenso processo com a prefeitura, que durava já quatro anos; ganhei. Com três processos, tornei-me o maior advogado do condado. Mas sepultei a minha vida no mais profundo mistério e ocultei assim minhas pretensões. Contraí hábitos que me dispensam de aceitar todo e qualquer convite. Não se me pode consultar senão das seis às oito da manhã, deito-me depois do jantar e trabalho durante a noite. O vigário-geral, homem de espírito e muito influente, que me encarregou do caso do capítulo, já perdido em primeira instância, falou-me naturalmente de remuneração.—Senhor—respondi-lhe -, ganharei sua causa, mas não quero honorários, quero mais... (sobressalto do abade), saiba que perco enormemente colocando-me como adversário da prefeitura; vim para aqui a fim de ser deputado, não me quero ocupar senão de questões comerciais, porque os comerciantes fazem os deputados, e desconfiarão de mim se advogo para padres, pois os senhores para eles são os padres. Se me encarrego de sua causa é porque, em 1828, eu era secretário particular de tal ministro (novo gesto de espanto do meu abade), referendário sob o nome de Alberto Savarus (outro gesto). Permaneci fiel aos princípios monárquicos; mas, como os senhores não têm maioria em Besançon, é preciso que eu consiga votos na burguesia. Portanto, os honorários que lhe peço são os votos que o senhor puder fazer descarregar em mim, no momento oportuno, secretamente. Guardemos segredo um para com o outro, e eu pleitearei gratuitamente todas as causas de todos os padres da diocese. Nem uma palavra dos meus antecedentes e sejamos reciprocamente fiéis.—Quando ele veio agradecer-me, entregou-me uma nota de quinhentos francos, dizendo-me ao ouvido:—Os votos continuam firmes.—Em cinco conferências que mantivemos, creio ter feito um amigo desse vigário-geral. Agora, sobrecarregado de causas, não aceito senão as dos negociantes, alegando que as questões comerciais são a minha especialidade. Essa tática me concilia a gente do comércio e permite procurar as pessoas influentes. Assim, tudo vai bem. Daqui a alguns meses terei achado aqui em Besançon uma casa para comprar, que me possa dar o censo. Conto contigo para me emprestar o capital necessário para essa aquisição. Se eu morresse ou fracassasse, as perdas não seriam de vulto a merecer considerações entre nós. Os juros te serão pagos com os aluguéis e, de resto, terei o cuidado de esperar uma boa oportunidade, a fim de que nada percas nessa hipoteca necessária.
Ah!, meu caro Leopoldo, jamais jogador que tenha no bolso os restos de sua fortuna, e jogando-a no clube dos estrangeiros, numa última noite da qual sairá rico ou arruinado, sentiu nos ouvidos o zumbido eterno, nas mãos o suor nervoso, na cabeça a agitação febril, no corpo os tremores internos, que eu sinto todos os dias ao jogar minha última cartada no jogo da ambição. Ai de mim! Caro e único amigo, já lá vão quase dez anos que eu luto.
Esse combate com os homens e as coisas, no qual incessantemente empreguei minhas forças e minhas energias, em que tanto gastei as molas do desejo, esgotou-me, por assim dizer, interiormente. Com as aparências da força e da saúde, sinto-me liquidado. Cada dia que passa leva um fragmento de minha vida íntima. A cada novo esforço, sinto que não o poderia repetir. Não tenho mais força e poder senão para a felicidade e, se esta não vier colocar sua coroa de rosas sobre a minha fronte, o eu que sou não mais existirá, tornar-me-ei uma coisa destruída, nada mais desejarei do mundo, não quererei mais ser coisa alguma. Tu o sabes, o poder e a glória, essa imensa riqueza moral que eu busco, é secundária; é para mim o meio da felicidade, o pedestal do meu ídolo.
Alcançar o alvo, expirando como o corredor antigo! Ver a fortuna e a morte chegarem juntas aos umbrais de nossa porta! Obtermos aquela que amamos no momento em que o amor se extingue! Não termos mais a faculdade de gozar, quando se conquistou o direito de viver feliz!... Oh! De quantos homens não dói esse o destino!
Há certamente um momento em que Tântalo (Tântalo: personagem mitológico que, para experimentar a divindade dos deuses que o vieram visitar, mandou servir-lhes os membros de seu próprio filho. Júpiter castigou-o precipitando-o no Tártaro e condenando-o a viver eternamente no meio de um rio cuja água lhe escapa sempre aos lábios, debaixo de árvores que levantam os ramos cada vez que lhes quer colher os frutos.) para, cruza os braços e desafia o inferno, renunciando ao seu ofício de eterno logrado. Estarei nessa situação, se alguma coisa fizer malograr meu plano, se depois de me ter curvado na poeira da província, de me ter arrastado, como um tigre faminto, em torno desses negociantes, desses leitores, para conseguir seus votos, se depois de rabulejar causas áridas, de ter dado o meu tempo, um tempo que eu poderia passar no lago Maior, vendo as águas que ela vê, prostrando-me sob seus olhares, ouvindo-a, eu não galgar a tribuna para aí conquistar a auréola que deve dar-me um nome para suceder ao de Argaiolo. Mais ainda, Leopoldo, sinto em certos dias langores vaporosos: do fundo de minha alma se erguem repulsos mortais, sobretudo quando, em longos devaneios, mergulho antecipadamente nas galerias do amor feliz! Não terá o desejo em nós senão uma certa dose de força, e não poderá ele perecer sob uma excessiva efusão de sua substância? Afinal de contas, neste momento, minha vida é bela, iluminada pela fé, pelo trabalho e pelo amor. Adeus, meu amigo. Beijo teus filhinhos e apresentarás meus respeitos à tua excelente esposa.
Teu Alberto
XXIV - OUTRA CARTA
Rosália leu duas vezes essa carta, cujo sentido geral se lhe gravou no coração. Penetrou subitamente na vida anterior de Alberto, pois a sua inteligência explicou-lhe os detalhes e a fez percorrer toda a extensão daquela. Confrontando essa confidência com a novela publicada na revista, compreendeu tudo de Alberto. Naturalmente exagerou as proporções já tão grandes daquela bela alma, daquela vontade poderosa; e seu amor por Alberto tornou-se então uma paixão cuja violência se acresceu de toda a pujança de sua juventude, dos aborrecimentos de sua solidão e da energia secreta de seu caráter. Amar, numa moça, já é um efeito da lei natural, mas, quando a sua necessidade de afeição deriva para um homem extraordinário, junta-se-lhe o entusiasmo que transborda nos corações jovens. Assim, a srta. de Watteville chegou em poucos dias a uma fase mórbida e muito perigosa da exaltação amorosa. A baronesa estava muito contente com a filha, a qual, sob o império de suas profundas preocupações, não lhe resistia mais, parecia aplicada aos seus múltiplos trabalhos de mulher e realizava o seu belo ideal de filha submissa.
O advogado pleiteava agora duas ou três vezes por semana. Conquanto sobrecarregado de causas, ele atendia ao Palácio da Justiça, ao contencioso do comércio, à revista, e permanecia num mistério profundo, compreendendo que, quanto mais surda e oculta fosse a sua influência, tanto mais real seria. Mas não se descuidava de nenhum meio de sucesso, estudando a lista dos eleitores besançonenses e perquirindo seus interesses, o caráter deles, suas diversas amizades, suas antipatias. Um cardeal que quisesse ser papa ter-se-ia jamais dado tanto trabalho?
Uma noite, Marieta, ao vir vestir Rosália para um sarau, trouxe-lhe, não sem gemer por aquele abuso de confiança, uma carta cujo endereço fez fremir, empalidecer e corar a srta. de Watteville.
À senhora duquesa de Argaiolo
(em solteira princesa Soderini)
Em Belgirate
Lago Maior
Itália
A seus olhos, esse endereço brilhou como deve ter brilhado o Mane, Tecel, Fares aos olhos de Baltazar (Mane, Tecel, Fares: “contado, pesado, dividido”. Palavras proféticas que, segundo a Bíblia (Livro de Daniel), mão invisível inscreveu na parede da sala em que Baltazar, filho e herdeiro do último rei de Babilônia, se entregava à sua última orgia.). Depois de ter escondido a carta, Rosália desceu para ir com a mãe à casa da sra. de Chavoncourt e, todo o tempo que durou aquele eterno sarau, ela foi assaltada de remorso e de escrúpulos. Já sentira vergonha por ter violado o segredo da carta de Alberto a Leopoldo. Muitas vezes a si mesma ela se perguntara se, conhecendo aquele crime, infame por ser forçosamente impune, o nobre Alberto a estimaria. Sua consciência respondia-lhe com energia: Não! Expiara sua falta, impondo-se penitências; jejuava, mortificava-se, permanecendo de joelhos, com os braços em cruz e rezando durante algumas horas. Obrigava Marieta a esses atos de arrependimento, porquanto o mais verdadeiro ascetismo se mesclava à sua paixão, tornando-a tanto mais perigosa.
— Lerei ou não lerei essa carta?—pensava, ao ouvir as meninas de Chavoncourt. Uma tinha dezesseis anos e a outra dezessete e meio. Rosália considerava suas duas amigas como meninotas, porque elas não amavam em segredo. Se eu a leio—pensava após ter flutuado durante uma hora entre o não e o sim—será certamente a última. Já que eu tanto fiz, que soube o que ele escrevia ao amigo, por que não hei de saber o que ele diz a ela? Se é um crime horrível, não é também uma prova de amor? Ó Alberto, não sou eu tua esposa?
XXV - COMO ELE A AMA
Depois de deitada, Rosália abriu aquela carta, datada dia a dia, de modo a oferecer à duquesa uma imagem fiel da vida e dos sentimentos de Alberto.
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Minha alma querida, tudo vai bem. Às conquistas que fiz, acabo de acrescentar uma preciosa. Prestei um serviço a uma das personagens mais influentes nas eleições. Como os críticos que fazem as reputações, sem nunca poder fazer a própria, ele faz os deputados, sem jamais poder sê-lo. O bom do homem quis testemunhar-me sua gratidão com pouca despesa, quase sem desatar os cordões da bolsa, dizendo-me:—Quer ir para a Câmara? Posso fazê-lo eleger deputado.—Se eu me resolvesse a entrar na carreira política—respondi-lhe muito hipocritamente -, o seria para dedicar-me ao condado, que adoro e onde sou apreciado.—Pois bem! Nós o decidiremos a isso e, por seu intermédio, teremos influência na Câmara, pois o senhor ali há de brilhar.
Assim, pois, meu anjo amado, digas o que disseres, minha persistência será coroada. Dentro de pouco falarei do alto da tribuna francesa, ao meu país, à Europa. Meu nome chegará aos teus ouvidos, pelas cem vozes da imprensa francesa.
Sim, como me disseste, eu cheguei velho a Besançon e Besançon envelheceu-me mais; como, porém, Sixto Quinto (Como Sixto Quinto: segundo a lenda, Sixto V (papa de 1585 a 1590) foi eleito sucessor de Gregório XIII justamente porque os cardeais o acreditavam moribundo, visto que caminhava curvado, apoiado a uma muleta. Mal acabada a votação, o novo pontífice se reergueu num movimento imprevisto, sacudiu a muleta e com voz possante entoou o Te Deum.), rejuvenescerei no dia seguinte à minha eleição. Entrarei na minha verdadeira vida, na minha esfera. Não estaremos então na mesma linha? O conde Savaron de Savarus, embaixador não sei onde, poderá certamente desposar uma princesa de Soderini, viúva do duque de Argaiolo! O triunfo rejuvenesce os homens conservados por lutas incessantes. Ó minha vida!, com que alegria saltei da minha biblioteca para o meu gabinete, em frente ao teu querido retrato, ao qual contei esses progressos antes de te escrever! Sim, os meus votos, os do vigário-geral, os das pessoas a quem terei prestado serviços e os desse cliente asseguram-me desde já a eleição.
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Entramos no décimo segundo ano, depois do belo serão no qual, com um olhar, a bela duquesa ratificou a promessa da proscrita Francesca. Ah!, querida, tens trinta e dois anos e eu trinta e cinco; o querido duque tem setenta e sete, isto é, só tem dez anos mais do que nós dois juntos e continua a gozar saúde! Cumprimenta-o da minha parte. Tenho quase tanta paciência quanto amor; preciso, de resto, de mais alguns anos para erguer minha posição à altura do teu nome. Como vês, estou alegre, hoje rio; eis o efeito de uma esperança. Tristeza ou alegria, tudo me vem de ti. A esperança de triunfar faz-me voltar sempre o dia seguinte àquele em que te vi pela primeira vez, em que minha vida se uniu à tua como a terra à luz! Qual pianto (Qual pianto: “que choro”.) estes onze anos, pois estamos a vinte e seis de dezembro, aniversário da minha chegada à tua vila do lago de Constança. Faz onze anos que eu gemo e que tu irradias como uma estrela colocada demasiado alto para que um homem a possa alcançar.
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Não, querida, não vás a Milão, fica em Belgirate. Milão apavora-me. Não gosto desse horrível hábito milanês de conversar todas as noites no Scala, com uma dúzia de pessoas entre as quais é difícil que se não diga algum galanteio. Para mim, a solidão é como esse fragmento de âmbar em cujo interior um inseto vive ternamente na sua imutável beleza. A alma e o coração de uma mulher conservam-se assim puros e na forma da sua juventude. Terás saudade daqueles Tedeschi (Tedeschi: “os alemães”, isto é, os austríacos que então dominavam a Lombardia.).
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Não se acabará afinal a tua estátua? Quisera ter-te em mármore, em pintura, em miniatura, de todos os modos, para iludir a minha impaciência. Continuo esperando a vista de Belgirate e a da galeria. São as únicas que me faltam. Estou de tal forma ocupado que hoje nada mais posso dizer-te além de um nada, mas esse nada é tudo. Não foi de um nada que Deus criou o mundo? Esse nada é uma frase, a frase de Deus: Eu te amo!
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Ah! Recebi teu diário! Obrigado por tua exatidão! Sentiste então muito prazer em ver os detalhes de nosso primeiro encontro assim descrito? Ai de mim! Embora velando-os, tinha um medo enorme de te ofender. Não tínhamos novelas, e uma revista sem novela é uma bela sem cabelos. Pouco achador por natureza, e desesperado, lancei mão da única poesia que existe em minha alma, a única aventura que havia nas minhas recordações, dei-lhe o tom com que podia ser dita e não cessei de pensar em ti enquanto escrevia a única produção literária que sairá do meu coração, não posso dizer de minha pena. Não te fez rir a transformação do bravio Sormano em Gina?
Perguntas-me como vai minha saúde. Mas muito melhor do que em Paris. Embora eu trabalhe enormemente, a tranquilidade do ambiente tem influência sobre a alma. O que fatiga e envelhece, querido anjo, são essas angústias da vaidade ludibriada, essas perpétuas irritações da vida parisiense, essas lutas de ambições rivais. A calma é balsâmica. Se soubesses o prazer que me causou tua carta, aquela extensa carta na qual tão bem me contas os menores incidentes de tua vida! Não, vocês, mulheres, jamais compreenderão quanto esses pequenos nadas interessam a um amante verdadeiro. A amostra do teu novo vestido causou-me uma enorme satisfação! Saber como te vestes não pode ser uma coisa indiferente, não é?, como tampouco o é se enrugas a fronte, se nossos autores te distraem, se os cantos de Canalis (Canalis: o poeta Melquior de Canalis, nosso conhecido, amigo da duquesa de Chaulieu (Memórias de duas jovens esposas), pretendente à mão de Modesta Mignon (Modesta Mignon) e, mais tarde, marido da rica srta. Moreau (Uma estreia na vida).) te exaltam. Leio os livros que tu lês. Até mesmo teu passeio no lago me enterneceu. Tua carta é bela, suave como tua alma! Ó flor divina e continuamente adorada! Poderia lá eu ter vivido sem essas queridas cartas que, faz onze anos, me sustentaram no meu caminho difícil, como um clarão, como um perfume, como um canto regular, como um alimento divino, como tudo o que consola e encanta a vida?! Não falhes! Se soubesses da minha angústia na véspera do dia em que as recebo e como me faz sofrer um atraso de vinte e quatro horas! Estará ela doente? Será ele? Fico entre o inferno e o paraíso, quase enlouqueço! Ó mia cara diva! Cultiva sempre a música, exercita tua voz, estuda. Fico encantado com essa conformidade de trabalho e de horário, que faz com que, separados embora pelos Alpes, vivamos exatamente da mesma maneira. Esse pensamento me fascina e me dá coragem. Quando advoguei pela primeira vez, ainda não te disse isso, imaginei que me estivesses ouvindo, e senti repentinamente em mim esse surto de inspiração que eleva o poeta acima da humanidade. Se eu for à Câmara, quero que venhas a Paris para assistir à minha estreia.
30 à noite
Meu Deus!, Como eu te amo. Pobre de mim! Pus demasiadas coisas no meu amor e nas minhas esperanças. Um acaso que fizesse esse barco demasiado carregado soçobrar, levar-me-ia a vida! Faz três anos que não te vejo, e, à ideia de ir a Belgirate, meu coração bate com tanta força que sou obrigado a deter-me... Ver-te, ouvir essa voz infantil e acariciadora!, beijar com os olhos essa tez de marfim, tão brilhante às luzes, e sob a qual se adivinha teu nobre pensamento!, admirar teus dedos brincando com as teclas, receber toda a tua alma num olhar, e teu coração no acento de um Oimè! ou de um Alberto! passearmos diante das laranjeiras floridas, vivermos alguns meses mergulhados naquela sublime paisagem... É isso a vida! Oh!, que tolice correr atrás de poder, de um nome, da fortuna! Mas tudo está em Belgirate; lá está a poesia, lá está a glória! Eu deveria ter-me feito teu intendente, ou, como esse querido tirano que não se pode odiar me propôs, viver aí como cavaleiro servente, coisa que nossa ardente paixão não nos permitiu aceitar. Adeus, meu anjo, tu me perdoarás minhas próximas tristezas, por essa alegria caída como um raio de luz, do archote da esperança, que até agora me parecia um fogo-fátuo.
— Como ele a ama!—exclamou Rosália, deixando cair a carta, que lhe pareceu pesada em suas mãos.—Escrever assim, após onze anos!
XXVI - UM BELO MOVIMENTO
— Marieta—disse a srta. de Watteville à criada de quarto, no dia seguinte de manhã -, vá pôr esta carta no correio; diga a Jerônimo que sei tudo o que queria saber e que ele sirva fielmente ao sr. Alberto. Nós nos confessaremos desses pecados, sem dizer a quem pertenciam às cartas, nem para onde iam. Fiz mal; sou eu a única culpada.
— A senhorita chorou—disse Marieta.
— Sim, não quero que minha mãe perceba; traz-me água fria.
Por entre as tormentas de sua paixão, Rosália ouvia muitas vezes a voz da consciência. Tocada por aquela admirável fidelidade de dois corações, acabava de rezar suas preces e a si mesma dissera que nada mais tinha a fazer senão resignar-se e respeitar a felicidade de dois seres dignos um do outro, submissos à sua sorte, tudo esperando de Deus, sem se permitirem atos ou desejos criminosos. Sentiu-se melhor, experimentou certa satisfação íntima depois de ter tomado essa resolução, inspirada pela retidão natural dos verdes anos. Encorajou-a uma reflexão de moça; ia imolar-se por ele!
— Ela não sabe amar—pensou.—Ah!, se fosse eu, tudo sacrificaria a um homem que me amasse assim... Ser amada!... Quando, e por quem o serei eu? Esse pequeno sr. de Soulas ama somente a minha fortuna; se eu fosse pobre, ele nem sequer me daria atenção.
— Rosália, minha filha, em que pensas? Estás indo além do risco—disse a baronesa à filha, a qual estava bordando umas pantufas para o barão.
XXVII - AS ÁGUAS DO ARCIER
Rosália passou todo o inverno de 1834 a 1835 em tumultuosos movimentos secretos; mas, na primavera, em abril, época na qual completou dezenove anos, dizia consigo às vezes que seria interessante levar a melhor sobre uma duquesa de Argaiolo. No silêncio e na solidão, a perspectiva dessa luta reavivara sua paixão e seus maus pensamentos. Desenvolvia antecipadamente sua temeridade romanesca, arquitetando planos sobre planos. Embora tais caracteres sejam excepcionais, existem, infelizmente, demasiadas Rosálias, e esta história contém uma lição que lhes deve servir de exemplo. Durante aquele inverno, Alberto de Savarus fizera surdamente um progresso imenso em Besançon. Certo do seu triunfo, esperava com impaciência a dissolução da Câmara. Conquistara, entre os homens do justo meio, um dos potentados de Besançon, rico empreiteiro que dispunha de grande influência.
Os romanos por toda parte empregaram esforços enormes, gastaram quantias imensas para ter água excelente, à discrição, em todas as cidades de seu império. Em Besançon bebiam água do Arcier, montanha situada a grande distância. Besançon é uma cidade construída no interior de uma ferradura formada pelo Doubs. Assim, pois, restabelecer o aqueduto dos romanos, para beber a água que aqueles bebiam, numa cidade banhada pelo Doubs, é uma dessas tolices que só se firmam numa província onde reina a mais exemplar gravidade. Se essa fantasia se aninhasse no coração dos besançonenses, deveria obrigar a grandes despesas e essas despesas iam aproveitar ao homem influente. Alberto Savaron de Savarus decidiu que o Doubs só servia para correr sob pontes suspensas, e que a única água potável era a do Arcier. Apareceram artigos na Revue de l’Est que nada mais foram do que a expressão das ideias do comércio besançonês. Tanto os nobres como os burgueses, os moderados como os legitimistas, o governo como a oposição, finalmente, todos ficaram de acordo para beber a água dos romanos e gozar de uma ponte suspensa. A questão das águas do Arcier passou para a ordem do dia, em Besançon. Nessa cidade, do mesmo modo que para as estradas de ferro de Versalhes, como para abusos subsistentes, houve interesses ocultos que deram àquela ideia uma potente vitalidade. De resto, as pessoas razoáveis, em pequeno número, que se opunham ao projeto foram classificadas de palermas.
Só se ocupavam dos dois projetos do advogado Savaron. Após dezoito meses de trabalhos subterrâneos, esse ambicioso conseguira, pois, na mais imóvel cidade da França e a mais refratária aos estranhos, agitá-la profundamente e fazer ali, segundo uma expressão vulgar, a chuva e o bom tempo, exercer uma influência positiva sem nunca ter saído de casa. Resolvera o problema singular de ser poderoso sem popularidade. Durante aquele inverno ganhou sete processos para os eclesiásticos de Besançon. Por isso, às vezes, respirava a ideia de seu futuro triunfo. Esse imenso desejo, que o fazia pôr em cena tantos interesses, inventar tantos recursos, absorvia as últimas forças de sua alma desmedidamente tensa. Gabavam seu desinteresse, aceitava sem observações os honorários dos clientes. Esse desinteresse, porém, era usura moral, esperava um prêmio mais considerável para si do que todo o ouro do mundo. Comprara, aparentemente para auxiliar um comerciante apertado nos negócios, no mês de outubro de 1824, e com o dinheiro de Leopoldo Hannequin, uma casa que lhe dava o censo de elegibilidade. Esse emprego vantajoso de capital não pareceu procurado nem desejado.
— O senhor é realmente um homem notável—disse a Savarus o abade de Grancey, que, naturalmente, observava e adivinhava o advogado. O vigário-geral viera apresentar-lhe um cônego que solicitava os conselhos do causídico.—O senhor—disse-lhe ele—é um padre que errou o caminho.
Esse dito impressionou Savarus.
XXVIII - OS ROUXEY
Por sua vez, Rosália decidira, na sua forte imaginação de débil moça, trazer o sr. de Savarus ao salão e introduzi-lo na sociedade do palacete de Rupt. Limitava ainda seus desejos a ver Alberto e a ouvi-lo. Por assim dizer, transigira, e as transigências, na maioria das vezes, são apenas tréguas.
Os Rouxey, terras patrimoniais dos Watteville, valiam dez mil francos de renda, líquidos; em outras mãos, porém, renderiam muito mais. O desleixo do barão, cuja esposa deveria ter, e teve, quarenta mil francos de rendimento, deixava os Rouxey sob a gerência de uma espécie de mestre Jacques (Mestre Jacques: personagem de O avarento, de Molière; tipo do factótum.), velho criado da casa de Watteville, chamado Modinier. Não obstante, quando o barão e a baronesa sentiam desejos de ir para o campo, iam aos Rouxey, cuja situação é muito pitoresca. O castelo, o parque, tudo, de resto, fora criado pelo famoso Watteville, cuja velhice ativa se apaixonou por aquele magnífico lugar.
Entre dois pequenos morros, dois picos cujos cimos são nus, e que se denominam o pequeno e o grande Rouxey, no meio de uma garganta por onde as águas desses montes, terminados pelo Dente de Vilard, tombam e se vão reunir às deliciosas fontes do Doubs, Watteville imaginou construir uma enorme barragem, deixando dois escoadouros para o excesso das águas. Para cima de sua barragem, obteve um lago encantador; e para aval, duas cascatas que, juntando-se a poucos passos da sua queda, alimentavam um delicioso ribeiro com o qual ele regava o seco e inculto vale que a torrente dos Rouxey outrora devastara. Aquele lago, aquele vale, aqueles dois montes, tudo ele encerrou com uma cerca, e aí construiu uma casa de campo sobre a barragem, à qual deu três arpentos de largura, mandando levar para ela todas as terras que foi preciso tirar para escavar o leito do rio e os canais de irrigação. Quando o barão obteve o lago acima da barragem, era proprietário dos dois Rouxey, mas não do vale que ficava acima, e que ele inundava daquele modo, pelo qual se transitava por qualquer tempo, e que termina numa ferradura, ao pé do Dente de Vilard. Mas aquele velho selvagem causava tão grande terror que, enquanto viveu, não houve nenhuma reclamação por parte dos habitantes dos Riceys, pequena aldeia situada no contraforte do dente de Vilard. Quando o barão morreu, reunira as encostas dos dois Rouxey, ao pé do Dente de Vilard, por uma forte muralha, a fim de não inundar os dois vales que desembocavam na garganta dos Rouxey, à direita e à esquerda do pico de Vilard. Morreu, tendo conquistado assim o Dente de Vilard. Seus herdeiros fizeram-se protetores da aldeia dos Riceys e mantiveram assim a usurpação. O velho assassino, o velho renegado, o velho abade de Watteville terminara sua carreira plantando árvores, construindo uma estrada soberba, na encosta de um dos Rouxey, que ia ter à estrada real. Desse parque, dessa habitação, dependiam domínios muito mal cultivados, chalés nas duas montanhas e matos não explorados. Aquilo era selvagem e solitário, sob a guarda da natureza, entregue aos azares da vegetação, mas abundante em acidentes sublimes. Podem agora imaginar os Rouxey.
É completamente inútil sobrecarregar esta história narrando os esforços prodigiosos e os ardis verdadeiramente geniais com os quais Rosália chegou a seus fins, sem os deixar perceber. É bastante dizer que, ao deixar Besançon em maio de 1835, numa velha berlinda atrelada com dois bons e gordos cavalos alugados, ela obedecia às ordens da mãe, acompanhando o pai aos Rouxey.
XXIX - UM PROCESSO DE TRUZ
O amor explica tudo às moças. Quando, ao levantar-se, no dia seguinte ao da sua chegada aos Rouxey, a srta. de Watteville avistou da janela do seu quarto o belo lençol de água sobre o qual se erguiam vapores exalados como fumaça, e que se introduziam por entre os pinheiros e os larícios, arrastando-se ao comprido dos dois picos, para alcançar-lhes os cimos, deixou escapar um grito de admiração.
— Eles se amaram em frente aos lagos! Ela está num lago! Decididamente um lago é cheio de amor.
Um lago alimentado pelas neves tem cores de opala e uma transparência que faz dele um vasto diamante; mas, quando está apertado, como o dos Rouxey, entre dois blocos de granito, recobertos de pinheiros, quando reina ali um silêncio de savana ou de estepe, arranca de todos o grito que Rosália acabava de lançar.
— Deve-se isto—disse-lhe o pai—ao famoso Watteville.
— Por Deus—disse a moça -, ele quis fazer-se perdoar suas faltas. Entremos no barco e vamos até a extremidade—disse ela -, ficaremos com apetite para o almoço.
O barão chamou dois moços jardineiros que sabiam remar e levou consigo seu ministro Modinier. O lago tinha seis arpentos de largura, por vezes dez ou doze, e quatrocentos de comprimento. Rosália não tardou em chegar ao fundo, que termina pelo Dente de Vilard, a Jungfrau (Jungfrau (a “Virgem” ): o cume mais alto dos Alpes bernenses.) daquela pequena Suíça.
— Chegamos, senhor barão—disse Modinier, fazendo sinal aos dois jardineiros para amarrarem o barco.—Não quer ver?
— Ver o quê?—perguntou Rosália.
— Oh! Nada—disse o barão.—Mas tu és uma rapariga discreta, temos segredos entre os dois, posso dizer-te o que me trabalha o espírito: desde 1830 despontaram dificuldades entre mim e a comuna de Riceys, justamente por causa do Dente de Vilard, e eu queria apaziguá-los sem que tua mãe soubesse, porque ela é inflexível e seria capaz de fazer incêndios, sobretudo ao saber que o maire dos Riceys, um republicano, foi quem inventou essa contestação para cortejar a sua gente.
Rosália teve a coragem de disfarçar sua alegria, a fim de melhor agir sobre o pai.
— Que contestação?—perguntou.
— Senhorita, a gente dos Riceys—disse Modinier—tem há muito direito de pastagens e lenhagem no seu lado do Dente de Vilard. Ora, o sr. Chantonnit, o maire, desde 1830 acha que todo o dente pertence a sua comuna e sustenta que há cento e tantos anos se passava pelas nossas terras... A senhora compreende que então não estaríamos mais na nossa casa. Depois, esse selvagem chegará a dizer o que dizem os anciãos dos Riceys, que o terreno do lago foi tomado pelo abade de Watteville. É a morte dos Rouxey, ora!
— Infelizmente, minha filha, entre nós, é a verdade—disse ingenuamente o sr. de Watteville. Esta terra é uma usurpação consagrada pelo tempo. Por isso, a fim de não ser nunca atormentado, eu queria propor definir amistosamente meus limites deste lado do Dente de Vilard, e aí levantarei um muro.
— Se o senhor ceder perante a República, ela o devorará. Compete ao senhor ameaçar os Riceys.
— Era o que eu dizia ontem à noite ao senhor barão—respondeu Modinier.—Mas, para abundar nesse sentido, eu lhe propunha que viesse ver se não havia deste lado do Dente, ou do outro, numa altura qualquer, vestígios de tapume.
De havia cem anos, de um lado e de outro, exploravam o Dente de Vilard, essa espécie de muro de divisão entre a comuna dos Riceys e os Rouxey, que não rendia grande coisa, sem ir aos extremos. O objeto do litígio, que passava coberto de neve seis meses por ano, era de natureza a esfriar a questão. Assim foi preciso o ardor insuflado pela revolução de 1830 aos defensores do povo, para fazer ressurgir esse assunto com o qual o sr. Chantonnit, maire dos Riceys, queria dramatizar sua existência na tranquila fronteira da Suíça e imortalizar sua administração. Chantonnit, como o seu nome indica, era natural de Neuchâtel.
XXX - PRÉ-AVISO DE ROSÁLIA
— Meu querido pai—disse Rosália ao voltar para o barco -, eu aprovo Modinier. Se o senhor quer obter direito de meeiro sobre o Dente de Vilard, é necessário agir com vigor e conseguir uma sentença que o ponha a abrigo das empresas desse Chantonnit. Por que lhe teria receio? Tome para seu advogado o famoso Savaron, tome-o já, para que Chantonnit não o encarregue dos interesses da comuna. O homem que ganhou a causa do capítulo contra a prefeitura ganhará certamente a dos Watteville contra os Riceys! De resto—prosseguiu ela -, os Rouxey um dia me pertencerão (o mais tarde possível, assim o espero); pois bem!, não me deixe processos. Gosto desta terra, e aqui residirei com frequência; eu a aumentarei tanto quanto possa. Sobre suas margens—disse, apontando as bases dos rios Rouxey—eu desenharei canteiros e farei encantadores jardins ingleses... Vamos a Besançon e não voltemos aqui senão com o abade de Grancey, o sr. Savaron e minha mãe, se ela quiser. É então que o senhor poderá tomar uma resolução, mas, em seu lugar, eu já a teria tomado. O senhor chama-se Watteville e tem medo de uma luta! Se o senhor perder o processo... Pois bem, não lhe farei nenhuma recriminação.
— Oh! Se tomas a coisa assim—disse o barão -, concordo contigo e chamarei o advogado.
— De resto, um processo é muito divertido. Põe um interesse na vida, a gente vai, vem e se agita. Não vai o senhor ter de dar mil passos até chegar aos juízes?... Não vimos o abade de Grancey durante mais de vinte dias, de tão ocupado que andava!
— Mas tratava-se de toda a existência do capítulo—disse o sr. de Watteville.—Ademais, o amor-próprio, a consciência do arcebispo, tudo o que faz os padres viverem estava comprometido! Esse Savaron não sabe o que fez pelo capítulo. Salvou-o!
— Ouça-me—disse-lhe ela ao ouvido—se quer ter o sr. Savaron do seu lado, terá ganho de causa, não é? Pois bem! Deixe-me dar-lhe um conselho: o senhor só pode conseguir o sr. Savaron para a sua causa por meio do sr. de Grancey. Se me quiser acreditar, falemos juntos a esse querido abade, sem que minha mãe tome parte na conferência, pois sei de um meio que o decidirá a nos trazer o advogado Savaron.
— Vai ser muito difícil não falar com tua mãe.
— O abade de Grancey se encarregará disso, mais tarde; mas decida-se a prometer seu voto ao advogado Savaron, nas próximas eleições, e o senhor verá.
— Ir às eleições! Prestar juramento (Para votar nas eleições, era preciso prestamento de fidelidade a Luís Filipe, o que causava problemas de consciência aos partidários da Restauração.)—exclamou o barão.
— Ora!—disse ela.
— E que dirá tua mãe?
— Talvez ela lhe dê ordem de ir—respondeu Rosália, que sabia, pela carta de Alberto a Leopoldo, dos compromissos do vigário-geral.
XXXI - ARGUTO CONTRA ARGUTO
Quatro dias depois o abade de Grancey introduzia-se sorrateiramente, de manhã muito cedo, em casa de Alberto de Savarus, depois de o ter prevenido, na véspera, de sua visita. O velho padre vinha conquistar o grande advogado para a casa de Watteville, determinação que revelava o tato e a finura que Rosália subterraneamente empregara.
— Em que posso servi-lo, senhor vigário-geral?—disse Savarus.
O abade, que desembuchou o assunto com admirável bonomia, foi ouvido com frieza por Alberto.
— Senhor abade—respondeu ele -, é-me impossível encarregar-me dos interesses da casa dos Watteville, e o senhor vai compreender os motivos. Meu papel aqui consiste em conservar a mais estrita neutralidade. Não quero adotar cores e devo permanecer um enigma até a véspera de minha eleição. Ora, advogar para os Watteville não seria nada em Paris, mas aqui... Aqui, onde tudo se comenta, eu seria para todos o homem de vosso Faubourg Saint-Germain.
— Ora! Julga o senhor—disse o abade—que poderá ficar desconhecido, quando, no dia das eleições, os candidatos se atacarem? Nesse dia saberão que o senhor se chama Savaron de Savarus, que o senhor foi referendário e que é um homem da Restauração!
— No dia das eleições—disse Savarus—eu serei tudo o que for preciso que eu seja. Pretendo falar nas reuniões preparatórias.
— Se o sr. de Watteville e seu partido o apoiarem, o senhor terá cem votos compactos e um pouco mais seguros do que aqueles com que conta. É sempre possível semear a divisão entre os interesses; não se separam as convicções.
— Com os diabos!—replicou Savarus.—Eu o estimo e muito posso fazer pelo senhor, meu reverendo! Há talvez acomodações com o diabo. Seja qual for o processo do sr. de Watteville, pode-se, encarregando Girardet, e guiando-o, fazer a causa arrastar-se até depois das eleições. Só me encarregarei de pleitear depois da minha eleição.
— Faça uma coisa—disse o abade -, vá ao palacete de Rupt; existe lá uma jovem de dezenove anos que terá um dia cem mil libras de renda, e o senhor aparentará lhe estar fazendo a corte.
— Ah! Aquela moça que vejo frequentemente naquele quiosque...
— Sim, a srta. Rosália—replicou o abade de Grancey.—O senhor é ambicioso. Se agradasse a Rosália, o senhor seria tudo o que um ambicioso deseja ser, quem sabe?, talvez ministro. Sempre se é ministro quando, a uma fortuna de cem mil libras de renda, se juntam suas admiráveis capacidades.
— Senhor abade—disse vivamente Alberto -, tivesse embora a srta. de Watteville três vezes mais fortuna e me adorasse, ser-me-ia impossível desposá-la, mesmo assim...
— É casado?—perguntou de Grancey.
— Não na igreja nem na mairie, mas moralmente—disse Savarus.
— É pior quando se toma assim um caso desses—respondeu o abade.—Tudo o que não está feito, pode-se desfazer. Não baseie sua fortuna e seus planos na vontade de uma mulher, do mesmo modo que um homem prudente não deve contar com os sapatos de um morto para se pôr a caminho.
— Deixemos de lado a srta. de Watteville—disse gravemente Alberto—e tratemos de nossos assuntos. Em atenção ao senhor, a quem estimo e respeito, advogarei a causa do sr. de Watteville, mas depois das eleições. Até então, o seu assunto será dirigido por Girardet, de acordo com a minha orientação. É tudo o que posso fazer.
— Há, entretanto, detalhes que não podem ser decididos senão depois de uma inspeção do local—disse o vigário-geral.
— Girardet irá—respondeu Savarus.—Não me posso permitir, numa cidade que conheço perfeitamente, dar certos passos de natureza a comprometer interesses imensos, que a minha eleição oculta.
O abade de Grancey deixou Savarus, dirigindo-lhe um olhar esperto, com o qual parecia rir-se da política compacta do jovem atleta, embora admirando sua resolução.
XXXII - FUROR DE MOÇA
— Ah! Eu terei metido meu pai num processo! Ah! Eu terei feito tudo para te introduzir aqui!—disse Rosália com seus botões, do alto do quiosque, olhando o advogado no seu gabinete, no dia seguinte ao da conferência entre Alberto e de Grancey, cujo resultado lhe fora comunicado pelo pai -; eu terei cometido pecados mortais e tu não virás aos salões do palacete de Rupt, e eu não ouvirei tua voz tão rica? Apresentas condições para o teu concurso, quando os Watteville e os Rupt o solicitam?... Pois bem! Deus o sabe, eu me contentava com essas pequeninas felicidades: ver-te, ouvir-te, ir aos Rouxey contigo, para que os consagrasses com a tua presença. Não pedia mais... Agora, porém, serei tua mulher!... Sim, sim, contempla seus retratos, examina seus salões, seu quarto, as quatro faces da sua vila, as perspectivas dos seus jardins. Esperas a sua estátua! Eu a tornarei de mármore para ti, ela própria!... Essa mulher, aliás, não ama. As artes, as ciências, as letras, o canto, a música tomaram-lhe a metade de seus sentimentos e de sua inteligência. De resto, é velha, tem mais de trinta anos e o meu Alberto seria infeliz!
— Que tens tu, para ficares aí, Rosália?—perguntou-lhe a mãe, vindo perturbar as reflexões da filha.—O sr. de Soulas está no salão e ele notava a tua atitude, que, certamente, revela mais pensamentos do que os que se deve ter na sua idade.
— O sr. de Soulas é inimigo do pensamento?—perguntou.
— Então estavas pensando?—disse a sra. de Watteville.
— Estava, mamãe.
— Pois bem! Não, você não estava pensando. Estava, sim, olhando as janelas desse advogado, com uma preocupação que não é conveniente, nem decente, e que o sr. de Soulas, menos do que qualquer outro, devia notar.
— E por quê?—indagou Rosália.
— Mas—disse a baronesa -, é tempo de você conhecer as minhas intenções. Amadeu acha-a do seu agrado, e você não será infeliz como condessa de Soulas.
Pálida como um lírio, Rosália nada retrucou à mãe, de tal forma a violência de seus sentimentos contrariados a devia tornar estupefata... Em presença, porém, daquele homem, a quem odiava profundamente, fazia um momento, achou não sei que sorriso que as dançarinas acham para o público. Pôde finalmente rir, teve forças para disfarçar seu furor, o qual se acalmou, porque resolveu empregar para seus projetos aquele tolo e gorducho rapaz.
— Sr. Amadeu—disse-lhe ela, durante um momento em que a baronesa estava adiante deles no jardim, deixando-os ostensiva e propositalmente a sós -, o senhor ignorava que o sr. Alberto Savaron de Savarus era legitimista?
— Legitimista?
— Antes de 1830, ele era referendário no Conselho de Estado, adido à presidência do conselho de ministros, bem-visto pelo delfim e pela delfina. O senhor teria andado bem não falando mal dele; mas andaria melhor ainda se fosse este ano às eleições e votasse nele, impedindo assim esse pobre sr. de Chavoncourt de representar a cidade de Besançon.
— Que súbito interesse toma a senhora por esse Savaron?
— O sr. Alberto de Savarus, filho natural do conde de Savarus (oh! guarde-me segredo dessa indiscrição), se for eleito deputado será nosso advogado na questão dos Rouxey. Os Rouxey, disse-me meu pai, serão propriedade minha, quero morar lá; é um lugar encantador! Eu ficaria desesperada se visse destruída aquela magnífica criação do grande Watteville.
— Com os demônios!—monologou Amadeu ao sair do palacete de Rupt.—Essa menina não é tola.
XXXIII - OS CHAVONCOURT
O sr. de Chavoncourt era um monarquista que pertencia aos famosos 221 (Os famosos 221: Trata-se dos 221 deputados que, em resposta ao discurso do trono de Carlos X, assinaram o memorial de 2 de março de 1830, o qual motivou a dissolução das Câmaras e a publicação das famosas Ordenanças, causa da Revolução de Julho e da queda de Carlos X.). Por isso, no dia seguinte à Revolução de Julho, pregou a salutar doutrina da prestação do juramento e da luta contra a ordem de coisas, a exemplo dos tories contra os whigs (Tories: partidários da autoridade na Inglaterra, em oposição aos whigs, partidários da liberdade.) da Inglaterra. Essa doutrina não foi aceita pelos legitimistas, que, na derrota, tiveram o espírito de se dividir de opiniões e de confiar na força da inércia e na Providência. Em choque com a desconfiança do seu partido, o sr. de Chavoncourt afigurou-se, às pessoas do justo meio, a mais excelente escolha; preferiram o triunfo de suas opiniões moderadas à ovação de um republicano que reunia os votos dos exaltados e dos patriotas. O sr. de Chavoncourt, homem estimado em Besançon, representava uma velha família parlamentar; sua fortuna, de cerca de quinze mil francos de renda, não ofuscava ninguém, tanto mais que ele tinha um filho e três filhas. Quinze mil francos de renda nada são com semelhantes encargos. Ora, quando, em tais circunstâncias, um chefe de família permanece incorruptível, é difícil que os eleitores não o estimem. Estes se apaixonam pelo belo ideal da virtude parlamentar, tanto quanto uma plateia pela exposição de sentimentos generosos que muito pouco cultiva. A sra. de Chavoncourt, nessa época com quarenta anos, era uma das belas mulheres de Besançon. Durante as sessões, vivia modestamente num dos seus domínios, a fim de compensar, com as suas economias, as despesas que o sr. de Chavoncourt fazia em Paris. No inverno, ela recebia, honrosamente, um dia por semana, às terças-feiras, mas desempenhando bem o seu ofício de dona de casa. O jovem Chavoncourt, com vinte e dois anos de idade, e um outro gentil-homem, chamado senhor de Vauchelles, não mais rico do que Amadeu e, ademais, seu companheiro de colégio, eram extraordinariamente ligados. Passeavam juntos em Granvelles e juntos faziam algumas pequenas caçadas; eram tão conhecidos por inseparáveis que os convidaram ao mesmo tempo; Rosália, igualmente ligada com as pequenas de Chavoncourt, sabia que os três jovens não tinham segredos uns com os outros. Pensou que, se o sr. de Soulas cometesse uma indiscrição, seria com seus dois amigos íntimos. Ora, o sr. de Vauchelles já tinha plano feito para seu casamento, como Amadeu tinha o dele; queria desposar Vitória, a mais velha das pequenas de Chavoncourt, à qual uma velha tia devia garantir uma propriedade de sete mil francos de renda e cem mil francos no contrato. Vitória era afilhada e predileta dessa tia. Evidentemente, então, os jovens Chavoncourt e Vauchelles avisariam o sr. de Chavoncourt do perigo que as pretensões de Alberto o fariam correr. Isso, porém, não satisfez Rosália: escreveu com a mão esquerda ao prefeito do departamento uma carta anônima assinada um amigo de Luís Filipe, na qual o prevenia da candidatura, mantida secreta, do sr. Alberto de Savarus, fazendo-o compreender o perigoso concurso que um orador monarquista prestaria a Berryer e desvendando-lhe a profundeza da conduta mantida havia dois anos pelo advogado em Besançon. O prefeito era um homem hábil, inimigo pessoal do partido realista e devotado por convicção ao governo de Julho, enfim, um desses homens que fazem com que se diga, na rue de Grenelle, no Ministério do Interior:
— Temos um bom prefeito em Besançon.
Esse prefeito leu a carta e, de acordo com a recomendação, queimou-a.
Rosália queria fazer com que Alberto perdesse a eleição, para conservá-lo mais cinco anos em Besançon.
XXXIV - PREPARATIVOS
As eleições foram então uma luta entre os partidos e, para triunfar, o ministério escolheu o terreno, escolhendo o momento da luta. Assim é que o pleito só devia ferir-se dali a três meses. Quando um homem espera toda a sua vida uma eleição, o tempo que decorre entre a ordem de convocação dos colégios eleitorais e o dia fixado para o ato é um tempo durante o qual a vida rotineira fica suspensa. Por isso Rosália compreendeu quanta latitude lhe deixavam durante esses três meses as preocupações de Alberto. Obteve de Marieta, a quem, como o confessou mais tarde, prometeu tomar a seu serviço, bem como a Jerônimo, que lhe entregasse as cartas que Alberto enviaria para a Itália e as que de lá receberia. E, enquanto maquinava seus planos, essa espantosa rapariga fazia pantufas para o pai, com o ar mais ingênuo do mundo. Redobrou mesmo de candura e de inocência, ao compreender o quanto lhe poderiam servir seus ares de inocência e candura.
— Minha filha se está tornando encantadora—dizia a baronesa de Watteville.
Dois meses antes das eleições, houve uma reunião em casa do sr. Boucher pai, composta do empreiteiro que contava com os trabalhos da ponte das águas do Arcier, do sogro do sr. Boucher, do sr. Granet, o homem influente a quem Savarus prestara um serviço e que o devia propor como candidato, do advogado Girardet, do impressor da Revue de l’Est e do presidente do tribunal do comércio. Enfim, a essa reunião concorreram vinte e sete dessas pessoas chamadas na província os mandachuvas. Cada uma delas representava em média seis votos; mas, ao se recensearem, foram elevadas a dez votos, porque sempre se começa por exagerar a própria influência. Entre essas vinte e sete pessoas, uma pertencia ao prefeito, algum espião que esperava secretamente um favor do ministério, para os seus ou para si próprio. Na primeira reunião concordaram em escolher o advogado Savaron para candidato, com um entusiasmo que ninguém esperaria em Besançon. Esperando, em casa, que Alfredo Boucher o viesse buscar, Alberto conversava com o abade de Grancey, que se interessava por aquela imensa ambição. Alberto reconhecera a enorme capacidade política do padre, e este, comovido com os pedidos daquele moço, consentira gostosamente em lhe servir de guia e de conselheiro nessa luta suprema. O capítulo não gostava do sr. de Chavoncourt, pois o cunhado da mulher deste, presidente do tribunal, o fizera perder o famoso processo na primeira instância.
— Você está sendo traído, meu querido filho—dizia o fino e respeitável abade, com essa voz suave e calma que os velhos padres adquirem.
— Traído!...—exclamou o apaixonado, ferido em pleno coração.—E por quem?
— Não sei—replicou o padre.—A prefeitura está a par dos seus planos e viu seu jogo. Neste momento, não lhe posso dar nenhum conselho. Semelhantes assuntos demandam estudos. Quanto a hoje, nessa reunião, antecipe-se aos golpes que lhe vão atirar. Diga toda a sua vida anterior, e assim poderá atenuar o efeito que tal descoberta produzirá em Besançon.
— Oh! Esperava por isso—disse Savarus com voz alterada.
— Não quis aproveitar-se do meu conselho, teve oportunidade de apresentar-se no palacete de Rupt, não sabe o que teria lucrado...
— O quê?
— A unanimidade dos monarquistas, um acordo momentâneo para apresentar-se às eleições... Enfim, mais de cem votos. Juntando a esses o que entre nós denominamos os votos eclesiásticos, não estaria ainda eleito, mas seria senhor da eleição no desempate. Nesse caso parlamenta-se, consegue-se...
Ao entrar, Alfredo Boucher, que cheio de entusiasmo comunicou a resolução da reunião preparatória, encontrou o vigário-geral e o advogado frios, calmos e graves.
— Adeus, senhor abade—disse Alberto -; falaremos do seu assunto, mais a fundo, depois das eleições.
E o advogado tomou o braço de Alfredo, depois de ter apertado significativamente a mão do sr. de Grancey. O padre olhou o ambicioso, cujo rosto teve então esse ar sublime que os generais devem ter ao ouvir o primeiro tiro de canhão da batalha, e ergueu os olhos para o céu, dizendo:—Que magnífico padre ele daria!
XXXV - ALBERTO À OBRA
A eloquência não está no foro. Raramente o advogado aí patenteia as forças reais da alma e, se assim não fosse, pereceria ao cabo de poucos anos. A eloquência, hoje, raramente se encontra no púlpito; mas está presente em certas sessões da Câmara dos Deputados, onde o ambicioso joga tudo por tudo, onde, picado de mil flechas, explode em dado momento. Isso, porém, é justo em certos seres privilegiados, no quarto de hora fatal em que as pretensões se vão esboroar ou vencer e em que são obrigados a falar. Por isso, nessa reunião, Alberto Savarus, sentindo a necessidade de conseguir adeptos, aplicou todas as faculdades de sua alma e os recursos de seu espírito. Entrou bem no salão, sem acanhamento nem arrogância, sem fraqueza, sem temores, gravemente, e viu-se sem surpresa entre trinta e poucas pessoas. Já a notícia da reunião e das suas decisões havia trazido alguns carneiros dóceis ao ruído da sineta. Antes de ouvir o sr. Boucher, que queria fazer seu speech a propósito da resolução do comitê Boucher, Alberto pediu silêncio fazendo um sinal e apertando a mão do sr. Boucher, como que para preveni-lo de um perigo subitamente surgido.
— Meu jovem amigo Alfredo Boucher acaba de comunicar-me a honra que me é feita. Antes, porém, que essa decisão se torne definitiva—disse o advogado -, julgo dever explicar-vos quem é o vosso candidato, a fim de vos deixar livres ainda de vossas palavras, se minhas declarações perturbarem vossa consciência.
Esse exórdio teve por efeito fazer reinar um profundo silêncio. Alguns homens acharam esse gesto muito nobre.
Alberto explicou sua vida anterior, dizendo seu nome verdadeiro, suas obras sob a Restauração, fazendo-se um novo homem desde sua chegada a Besançon e assumindo compromissos com o futuro. Esse improviso, disseram, manteve ofegante o auditório. Aqueles homens, de interesses tão diversos, foram subjugados pela admirável eloquência que saía aos borbotões do coração e da alma daquele ambicioso. A admiração impediu qualquer reflexão. Não compreenderam senão uma única coisa, a coisa que Alberto queria meter naquelas cabeças.
Não era preferível, para uma cidade, ter um desses homens destinados a governar a sociedade inteira, a ter uma máquina de votar? Um homem de Estado traz consigo um poder completo, o deputado medíocre, mas incorruptível, nada mais é além de uma consciência. Que glória para a Provença ter adivinhado Mirabeau, ter mandado, depois de 1830, o único homem de Estado que a Revolução de Julho produziu (O único homem de Estado que a Revolução de Julho produziu: Balzac está se referindo provavelmente a Adolph Thiers (1797-1877), historiador e político que, antes da data da publicação de Alberto Savarus, já exerceu duas vezes o cargo de primeiro-ministro e mais tarde, em 1871, seria eleito presidente da República. Parece que Balzac se inspirou nele para criar a sua personagem Eugênio Rastignac (ver O pai Goriot).)!
Submetidos à pressão daquela eloquência, todos os ouvintes a julgaram de força a se tornar um magnífico instrumento político no seu representante. Todos viram, em Alberto Savaron de Savarus, o ministro. Por ter adivinhado os cálculos secretos de seus ouvintes, o hábil candidato os fez compreender que eles, antes dos demais, adquiriam o direito de se servirem de sua influência.
Essa profissão de fé, essa declaração de ambicioso, a exposição de sua vida e de seu caráter, tudo isso foi, no dizer do único homem capaz de julgar Savarus e que depois se tornou uma das capacidades de Besançon, uma obra-prima de habilidade, de sentimento, de ardor, de interesse e de sedução. Aquele turbilhão envolveu os eleitores. Jamais homem algum obteve semelhante triunfo. Infelizmente, porém, a palavra, espécie de arma de pouco alcance, não tem senão um efeito imediato. A reflexão mata a palavra, quando a palavra não triunfa sobre a reflexão. Se tivessem votado, certamente que o nome de Alberto teria saído da urna! Naquele instante, seria vencedor. Era-lhe, porém, preciso vencer assim, todos os dias, durante dois meses. Alberto saiu palpitante. Aplaudido pelos besançonenses, obtivera o grande resultado de destruir antecipadamente as más referências a que dariam margem seus antecedentes. O comércio de Besançon fez do advogado Savaron de Savarus seu candidato. O entusiasmo de Alfredo Boucher, contagioso no começo, devia com o tempo tornar-se desastrado.
O prefeito, apavorado com aquele triunfo, pôs-se a contar o número de votos ministeriais, e conseguiu uma entrevista secreta com o sr. de Chavoncourt, a fim de se coligarem num interesse comum. Cada dia que passava, e sem que Alberto pudesse saber como, os votos do comitê Boucher diminuíam. Um mês antes das eleições, Alberto se via com apenas sessenta votos. Nada resistia ao lento trabalho da prefeitura. Três ou quatro homens hábeis diziam aos clientes de Savarus: “O deputado advogará e ganhará os vossos processos? Dar-vos-á conselhos? Fará ele os vossos tratados? As vossas transações? Os senhores o terão como escravo mais cinco anos se, em vez de o mandarem à Câmara, lhe derem somente a esperança de ir ao cabo desse tempo”. Esse cálculo foi tanto mais nocivo para Savarus, por já ter sido feito por algumas mulheres de negociantes. Os interessados no assunto da ponte e no das águas do Arcier não resistiram a uma conferência com um esperto ministerial, que lhes demonstrou que a proteção para eles estava na prefeitura e não num ambicioso. Cada dia trazia uma defecção para Alberto, embora todos os dias houvesse uma batalha dirigida por ele, mas ferida pelos seus lugares-tenentes, uma batalha de palavras, de discursos, de negociações. Ele não se atrevia a ir à casa do vigário-geral, e o vigário-geral não aparecia. Alberto levantava-se e deitava-se com febre e o cérebro a arder.
XXXVI - A REUNIÃO PREPARATÓRIA
Chegou finalmente o dia da primeira luta, o que se denomina reunião preparatória, na qual se contam os votos, os candidatos avaliam suas probabilidades e onde as pessoas hábeis podem prever sua queda ou seu êxito. É uma cena de hustings (Hustings: na Inglaterra, lugar onde funciona o colégio eleitoral.) honesta, sem populacho, mas terrível: as emoções, se não têm expressão física como na Inglaterra, nem por isso são menos profundas. Os ingleses fazem as coisas a socos; em França, elas se fazem a golpes de palavras. Nossos vizinhos têm uma batalha; os franceses jogam a sorte com frias combinações elaboradas calmamente. Esse ato político realiza-se ao inverso do caráter das duas nações. O partido radical teve seu candidato; o sr. de Chavoncourt apresentou-se; depois veio Alberto, que foi acusado pelos radicais e pelo comitê Chavoncourt de ser um homem da direita sem transação, um outro Berryer; o ministério tinha seu candidato, um homem sacrificado que servia para acumular os votos ministeriais puros. A votação, assim dividida, não chegava a nenhum resultado. O candidato republicano teve vinte votos. O ministério reuniu cinquenta, Alberto conseguiu setenta, o sr. de Chavoncourt obteve sessenta e sete. Mas a pérfida prefeitura fizera votar em Alberto trinta dos seus mais fiéis secretários a fim de enganar o seu antagonista. Os votos do sr. de Chavoncourt, somados aos oitenta votos efetivos da prefeitura, tornavam-nos senhores da eleição, por pouco que o prefeito soubesse captar alguns votos do partido radical. Faltavam cento e sessenta votos, os do sr. de Grancey e os votos legitimistas. Uma reunião preparatória está para as eleições como um ensaio geral para a representação no teatro, isto é, o que há de mais enganador no mundo. Alberto Savarus voltou para casa mantendo uma boa atitude, mas agonizando. Ele tivera o espírito, o gênio ou a felicidade de conquistar naqueles quinze últimos dias dois homens devotados, o sogro de Girardet e um velho negociante muito esperto, a cuja casa o sr. de Grancey o fizera ir. Esses dois homens de bem, tornados seus espiões, pareciam ser os mais ardorosos inimigos de Savarus nos campos opostos. No fim da sessão preparatória, eles informaram Savarus, por intermédio do sr. Boucher, que trinta votos desconhecidos faziam contra ele, no seu partido, o ofício que ambos faziam por sua conta entre os outros. Um criminoso que marcha para o suplício não sofre o que sofreu Alberto ao voltar para casa, da sala onde se resolvera sua sorte. O apaixonado, desesperado, não quis ser acompanhado por ninguém. Vagueou sozinho pelas ruas, entre onze e meia-noite. À uma da manhã, Alberto, que havia três dias não conseguia dormir, estava sentado na sua biblioteca, numa poltrona à Voltaire, com a palidez de quem vai expirar, as mãos pendentes, numa atitude de abandono digna de Madalena. Por entre seus longos cílios bailavam lágrimas, dessas lágrimas que molham os olhos, mas não escorrem pelas faces; o pensamento bebe-as, o fogo da alma devora-as!
Sozinho, podia chorar. Entreviu então, no quiosque, uma forma branca que lhe lembrou Francesca.
— E já vão três meses que não recebo carta dela! Que lhe terá acontecido? Passei dois meses sem escrever-lhe, mas preveni-a. Estará doente? Ó meu amor! Ó minha vida! Saberás jamais o que tenho sofrido? Que organização fatal esta minha! Terei um aneurisma?—a si mesmo perguntou, ao sentir o coração bater tão violentamente que as pulsações repercutiam no silêncio, como se leves grãos de areia caíssem sobre um bombo.
Naquele instante três pancadas diretas ressoaram na porta de Alberto. Ele foi prontamente abrir e quase desmaiou de alegria ao ver o vigário-geral com ar festivo, ar de triunfo.
XXXVII - UM PADRE É UM AMIGO CERTO
Pegou o abade de Grancey, sem lhe dizer palavra, manteve-o nos braços, apertou-o, deixando a cabeça reclinar-se no ombro do ancião. E voltou a ser criança, chorou como havia chorado quando soube que Francesca Soderini era casada. Não deixou ver sua fraqueza senão àquele padre, em cujo semblante brilhava um clarão de esperança. O padre fora sublime, e tão esperto quanto sublime.
— Perdão, querido abade, mas o senhor chegou num desses momentos supremos em que o homem desaparece, pois não julgue que eu seja um ambicioso vulgar.
— Sei, sei—disse o abade -, você escreveu O ambicioso por amor! Pois saiba, meu filho, foi um desespero de apaixonado que me fez padre em 1786, aos vinte e dois anos. Em 1788 eu era cura. Conheço a vida. Já recusei três bispados, quero morrer em Besançon.
— Venha vê-la, quer?—exclamou Savarus, pegando uma vela e conduzindo o abade ao gabinete magnífico onde estava o retrato da duquesa de Argaiolo, que ele iluminou.
— É uma dessas mulheres feitas para reinar!—disse o vigário, compreendendo o grau de afeição que lhe demonstrava Alberto com aquela muda confidência.—Mas há muita altivez nessa fronte; é implacável, jamais perdoaria uma injúria! É um arcanjo Miguel, o anjo das execuções, o anjo inflexível... Tudo ou nada! é o lema desses caracteres angelicais. Há um não sei quê de divinamente selvagem nessa cabeça...
— O senhor adivinhou-a perfeitamente bem—exclamou Savarus.—Mas, querido abade, faz já doze anos que ela reina sobre a minha vida e não tenho um pensamento a censurar-me...
— Ah!, se tivesse feito o mesmo quanto a Deus!—disse ingenuamente o abade.—Falemos dos seus negócios. Vão dez dias que trabalho para o senhor. Se é um verdadeiro político seguirá meus conselhos desta vez. Não chegaria ao ponto a que chegou se tivesse ido, quando lhe falei, ao palacete de Rupt; mas irá amanhã, eu o apresentarei à noite. A terra dos Rouxey está ameaçada, é preciso pleitear em dois dias. A eleição não se realizará antes de três dias. Ter-se-á a precaução de não terminar a constituição da mesa no primeiro dia; teremos vários escrutínios, e o senhor chegará a um empate...
— Como?
— Ganhando o processo dos Rouxey, o senhor terá oitenta votos legitimistas, acrescente-os aos trinta de que disponho, alcançaremos cento e dez. Ora, como lhe sobrarão vinte do comitê Boucher, terá ao todo cento e trinta.
— Mas—disse Alberto—são precisos mais setenta e cinco...
— Sim—disse o padre -, porque o resto é do ministério. Mas, meu filho, você tem seus duzentos votos e a prefeitura não tem mais do que cento e oitenta.
— Eu tenho duzentos votos?—disse Alberto, que ficou tolhido de espanto, depois de se ter posto de pé, como se movido por uma mola.
— O senhor terá os votos do sr. de Chavoncourt.
— E como?—disse Alberto.
— O senhor desposará a srta. Sidônia de Chavoncourt.
— Nunca!
— O senhor desposará a srta. Sidônia de Chavoncourt—repetiu friamente o padre.
— Mas veja! Ela é implacável—disse Alberto apontando para a francesa.
— O senhor desposará a srta. de Chavoncourt—repetiu friamente o padre pela terceira vez.
Dessa vez Alberto compreendeu. O vigário-geral não queria imiscuir-se no plano que sorria finalmente àquele político desesperado. Uma palavra mais comprometeria a dignidade, a honestidade do padre.
— O senhor encontrará amanhã, no palacete de Rupt, a sra. de Chavoncourt e sua segunda filha; o senhor lhe agradecerá o que ela deve fazer pelo senhor, dir-lhe-á que sua gratidão não tem limites, que lhe pertencem o corpo e a alma, pois não é seu futuro, daqui por diante, o da família? O senhor é desinteressado, tem tamanha confiança em si mesmo que considera a sua eleição para deputado como um dote suficiente. Terá um combate com a sra. de Chavoncourt, ela exigirá sua palavra. Esse serão, meu filho, é todo o seu futuro. Mas, saiba-o, eu nada tenho a ver com isso. Eu sou responsável apenas pelos votos legitimistas; conquistei-lhe a sra. de Watteville, e é toda a aristocracia de Besançon. Amadeu de Soulas e Vauchelles, que votarão no senhor, arrastarão a mocidade; a sra. de Watteville lhe dará os velhos. Quanto aos meus votos, esses são infalíveis.
— Mas quem virou a sra. de Chavoncourt?—perguntou Savarus.
— Não me faça pergunta—respondeu o abade.—O sr. de Chavoncourt, que tem três filhas para casar, é incapaz de aumentar sua fortuna. Se Vauchelles desposa a primogênita sem dote, por causa da velha tia que financia o contrato, que fazer das outras duas? Sidônia tem dezesseis anos, e o senhor tem tesouros na sua ambição. Alguém disse à sra. de Chavoncourt que era preferível casar a filha a mandar o marido gastar dinheiro em Paris. Esse alguém dirige a sra. de Chavoncourt, e a sra. de Chavoncourt dirige o marido.
— Basta, querido abade! Compreendo. Uma vez eleito deputado, tenho de fazer a fortuna de alguém, e fazendo-a esplêndida resgato minhas palavras. Tem o senhor em mim um filho, um homem que lhe deverá sua felicidade. Meu Deus!, que fiz eu para merecer uma amizade tão verdadeira?
— O senhor fez o capítulo triunfar—disse, sorrindo, o vigário-geral.—Agora guarde um segredo tumular sobre tudo isso. Nós nada somos, nada fazemos. Se soubessem que nos imiscuímos em eleições, seríamos comidos crus pelos puritanos da esquerda, que fazem muito pior, e seríamos censurados por alguns dos nossos, que querem tudo. A sra. de Chavoncourt não suspeita a minha participação em tudo isso. Não me fiei senão na sra. de Watteville, em quem podemos confiar como em nós próprios.
— Eu lhe trarei a duquesa, para que o senhor nos abençoe!—exclamou o ambicioso.
Depois de ter reconduzido o padre, Alberto deitou-se nos cueiros do poder.
XXXVIII - INEXPLICÁVEL
Às nove horas da noite do dia seguinte, como todos podem imaginar, os salões da sra. de Watteville regurgitavam da aristocracia besançonense extraordinariamente convocada. Discutia-se a exceção de comparecer às eleições para dar prazer à filha dos Rupt. Sabia-se que ia ser apresentado o antigo referendário, o secretário de um dos mais fiéis ministros do ramo primogênito. A sra. de Chavoncourt viera com a sua segunda filha, Sidônia, vestida divinamente bem. Ao passo que a mais velha, segura do seu pretendente, não recorrera a nenhum artifício de toilette. Essas pequeninas coisas são observadas na província. O abade de Grancey mostrava sua bela cabeça fina, de grupo em grupo, ouvindo, tendo o ar de quem não se metia em nada, mas dizendo essas frases incisivas que resumem as questões e as dirigem.
— Se o ramo primogênito voltasse—dizia ele a um antigo estadista septuagenário -, que políticos encontraria? Sozinho na sua cadeira, Berryer não sabe o que fazer; se tivesse sessenta votos, ele entravaria o governo em muitas oportunidades e derrubaria ministérios! Vão eleger o duque de Fitz-James (O duque de Fitz-James: personagem real, chefe do partido monarquista, que em certo momento apoiava a candidatura, aliás malograda, de Balzac à deputação.) em Toulouse. O senhor fará o sr. de Watteville ganhar seu processo. Se votar no sr. Savarus, os republicanos votarão no senhor, de preferência, a votarem com o justo meio! etc. etc.
Às nove horas, Alberto ainda não chegara. A sra. de Watteville considerou esse atraso uma impertinência.
— Querida baronesa—disse a sra. de Chavoncourt -, não façamos assuntos tão sérios dependerem de uma ninharia. Alguma bota envernizada que custa a secar... uma consulta... retêm talvez o sr. Savarus.
Rosália olhou de esguelha para a sra. de Chavoncourt.
— Ela se mostra muito boa para o sr. de Savarus—disse ela em voz baixa para a mãe.
— Mas—replicou a baronesa, sorrindo—trata-se de um casamento entre Sidônia e o sr. de Savarus.
A srta. de Watteville foi bruscamente para uma janela que dava para o jardim. Às dez horas Alberto de Savarus ainda não aparecera. A tormenta que rugia explodiu. Alguns nobres puseram-se a jogar, achando a coisa intolerável. O abade de Grancey, que não sabia o que pensar, foi à janela onde Rosália se escondera e disse em voz alta, de tanto que estava estupefato:—Deve ter morrido!—O vigário-geral foi ao jardim acompanhado pelo sr. de Watteville e da filha deste, e os três subiram ao quiosque. Tudo em casa de Alberto estava fechado, não se via nenhuma luz.
— Jerônimo—gritou Rosália, ao ver o criado no pátio. O abade de Grancey olhou-a espantado.—Onde está seu patrão?—disse ela ao criado, que chegara junto ao muro.
— Partiu na diligência, senhorita.
— Ele está ou perdido ou feliz—exclamou o abade de Grancey.
A alegria do triunfo não foi tão bem disfarçada no semblante de Rosália que o vigário-geral não a percebesse, fingindo, porém, nada ter visto.
“Que parte poderá ter essa rapariga nisso tudo?”, indagou consigo.
Voltaram os três ao salão, onde o sr. de Watteville participou a estranha, a singular, a surpreendente nova, da partida do advogado Alberto Savaron de Savarus, na diligência, sem que se soubessem os motivos desse desaparecimento. Às onze e meia, só restavam quinze pessoas, entre as quais a sra. de Chavoncourt e o abade de Godenars, um outro vigário-geral, homem de cerca de quarenta anos que queria ser bispo, as duas srtas. de Chavoncourt e o sr. de Vauchelles, o abade de Grancey, Rosália, Amadeu de Soulas e um antigo magistrado demissionário, uma das mais influentes personagens da alta sociedade de Besançon, que fazia questão da eleição de Alberto de Savarus. O abade de Grancey pôs-se ao lado da baronesa, de modo a olhar Rosália, cujo rosto, habitualmente pálido, apresentava então uma coloração febril.
— Que poderá ter acontecido ao sr. de Savarus?—disse a srta. de Chavoncourt.
Naquele momento, um criado de libré trouxe, numa bandeja de prata, uma carta para o sr. de Grancey.
— Leia—disse a baronesa.
O vigário-geral leu a carta e viu Rosália ficar branca como a sua gola de renda.
“Ela reconheceu a letra”, disse ele consigo, depois de ter dirigido à moça um olhar por cima dos óculos. Dobrou a carta, friamente, guardou-a no bolso, sem dizer palavra. Em três minutos, recebeu de Rosália três olhares que lhe bastaram para compreender tudo. “Ela ama Alberto de Savarus”, pensou o vigário-geral. Ergueu-se, saudou a todos, deu alguns passos em direção à porta e, no segundo salão, foi alcançado por Rosália, que lhe disse:—Senhor de Grancey, é de Alberto!
— Como pode conhecer tão bem a letra dele para a distinguir de tão longe?
A moça, caída nas teias de sua impaciência e de sua cólera, disse uma frase que o vigário achou sublime.
— Porque o amo! Que há?—disse, após uma pausa.
— Ele renuncia à sua eleição—respondeu o vigário.
— Peço segredo como para uma confissão—disse ela, antes de voltar ao salão.—Se não há eleição, não haverá mais casamento com Sidônia!
XXXIX - ALBERTO SAVARUS RAPTADO
No dia seguinte de manhã, ao ir à missa, a srta. de Watteville soube por Marieta uma parte das circunstâncias que haviam motivado o desaparecimento de Alberto, no mais crítico momento de sua vida.
— Senhorita, ontem pela manhã chegou ao Hotel Nacional, vindo de Paris, um velho senhor, que tinha a sua carruagem, uma bonita carruagem com quatro cavalos, um batedor na frente e um criado. Enfim, Jerônimo, que viu o carro ao partir, acha que não pode deixar de ser um príncipe ou um lord.
— A carruagem tinha uma coroa fechada?—perguntou Rosália.
— Não sei—disse Marieta.—Ao soar duas horas, ele chegou em casa do sr. Savarus, mandando apresentar-lhe seu cartão de visita, e ao vê-lo, o senhor, disse Jerônimo, ficou pálido como um lençol e mandou que o fizessem entrar. Como ele próprio fechou a porta a chave, foi impossível saber o que disseram aquele velho senhor e o advogado; mas ficaram juntos mais ou menos uma hora, depois do que o velho senhor, acompanhado do advogado, fez subir o seu criado. Jerônimo viu aquele criado sair com um grande embrulho de quatro pés de comprimento, que parecia uma enorme tela de lona. O velho senhor levava na mão um maço de papéis. O advogado, mais pálido do que se estivesse para morrer, ele que é tão altivo, tão digno, estava num estado de dar lástima... Mas tratava o velho senhor tão respeitosamente como o teria feito com o rei. Jerônimo e o sr. Alberto Savaron acompanharam o ancião até o carro, que já estava atrelado com os quatro cavalos. O batedor partiu ao bater três horas. O senhor foi direto à prefeitura e de lá à casa do sr. Gentillet, que lhe vendeu a velha caleça de viagem da falecida sra. de Saint-Vier; depois encomendou cavalos na posta para as seis horas. Voltou para casa a fim de fazer seus embrulhos; escreveu, sem dúvida, vários bilhetes; enfim, pôs seus negócios em ordem com o sr. Girardet, que veio e ficou até as sete horas. Jerônimo levou um bilhete à casa do sr. Boucher, onde o patrão estava sendo esperado para jantar. Então, às sete e meia, o advogado partiu, deixando três meses de ordenado a Jerônimo e dizendo-lhe que procurasse colocação. Deixou as chaves com o sr. Girardet, a quem levou a casa, e onde, disse Jerônimo, tomou uma sopa, pois o sr. Girardet ainda não tinha jantado às sete e meia! Quando o sr. Savaron subiu no carro, estava como morto. Jerônimo, que naturalmente cumprimentou o patrão, ouviu-o dizer ao cocheiro: Estrada de Genebra.
— Jerônimo não perguntou o nome do estrangeiro no Hotel Nacional?
— Como o velho senhor estava apenas de passagem, não lhe perguntaram o nome. O criado, sem dúvida por ordem, parecia não saber francês.
— E a carta que o vigário Grancey recebeu tão tarde?—disse Rosália.
— Era sem dúvida o sr. Girardet que estava encarregado de entregá-la; mas Jerônimo disse que esse pobre sr. Girardet, que estima o advogado Savaron, estava tão impressionado como este. O que veio com mistério, com mistério se vai—disse a srta. Galard.
Rosália, depois dessa narrativa, ficou com ar pensativo e absorto, que se tornou visível para todos. É inútil falar no barulho que causou em Besançon o desaparecimento do advogado Savaron. Soube-se que o prefeito, solicitamente, e com a melhor boa vontade do mundo, se prontificara a expedir imediatamente um passaporte para o estrangeiro, porque assim se via desembaraçado do seu único adversário. No dia seguinte, o sr. de Chavoncourt foi eleito sem dificuldade por uma maioria de cento e quarenta votos.
— João se foi, como veio (João se foi, como veio: primeiro verso do epitáfio de La Fontaine: Jean s’en alla, comme il était venu.)—disse um eleitor ao ter conhecimento da fuga de Alberto Savaron.
Esse acontecimento reforçou os preconceitos existentes em Besançon contra os “estrangeiros” e que dois anos antes tinham sido corroborados, a propósito da questão do jornal republicano. Dez dias depois, ninguém mais falava em Alberto Savarus. Somente três pessoas: o advogado Girardet, o vigário-geral e Rosália tinham ficado gravemente afetados com aquele desaparecimento. Girardet sabia que o estrangeiro de cabelos brancos era o príncipe de Soderini, pois vira o cartão de visita, e o disse ao vigário-geral, mas Rosália, muito mais informada do que eles, estava a par, fazia três meses, da notícia da morte do duque de Argaiolo.
XL - MUITOS ACONTECIMENTOS
Em abril de 1836, ninguém tivera notícias nem ouvira falar do sr. Alberto de Savarus. Jerônimo e Marieta iam casar-se, mas a baronesa disse confidencialmente à sua camareira que esperasse o casamento da filha, e que as duas bodas se realizariam na mesma ocasião.
— Já é tempo de casar Rosália—disse um dia a baronesa ao sr. de Watteville -, ela tem dezenove anos, e desde alguns meses vem mudando que dá medo.
— Não sei o que ela tem—disse o barão.
— Quando os pais não sabem o que as filhas têm, as mães o adivinham—disse a baronesa -; é preciso casá-la.
— Pois estou de acordo—disse o barão—e, no que me diz respeito, dou-lhe os Rouxey, agora que o tribunal estabeleceu o acordo entre nós e a comuna dos Riceys, fixando meus limites a trezentos metros, a partir da base do Dente de Vilard. Estão cavando um fosso para recolher todas as águas e canalizá-las para o lago. A comuna não apelou; o julgamento, portanto, é definitivo.
— O senhor ainda não percebeu que esse julgamento me custa trinta mil francos, dados a Chantonnit. Esse campônio não queria outra coisa, vendeu-nos a paz. Se der os Rouxey, não lhe sobrará mais nada—disse a baronesa.
— Não preciso de grande coisa—disse o barão -, eu me estou indo.
— Come que nem um ogro.
— Justamente; por mais que coma, sinto as pernas cada vez mais fracas.
— É de tanto tornear.
— Não sei—disse o barão.
— Casaremos Rosália com o sr. de Soulas; se lhes der os Rouxey, reserve-se o usufruto; eu lhes darei quinze mil francos de renda no Grande-Livro (Grande-Livro: lista de todos os credores do Estado.). Nossos filhos ficarão aqui, não vejo que isso os faça muito infelizes.
— Não, eu lhes darei os Rouxey em plena posse. Rosália gosta dos Rouxey.
— O senhor é singular com sua filha! Não me pergunta a mim se gosto dos Rouxey?
Rosália, chamada imediatamente, soube que desposaria o sr. de Soulas nos primeiros dias do mês de maio.
— Agradeço-lhe, minha mãe, e ao senhor, meu pai, por terem pensado na minha instalação na vida, mas não quero casar, sinto-me muito feliz de estar com ambos...
— Frases!—disse a baronesa.—Não ama o conde de Soulas, eis tudo.
— Se quer saber a verdade, nunca me casarei com o sr. de Soulas.
— Oh! O nunca de uma menina de dezenove anos!—disse a baronesa sorrindo com amargura.
— O nunca da srta. de Watteville—disse Rosália, acentuando as palavras.—Meu pai, quero crer, não tem a intenção de casar-me sem o meu consentimento, não?
— Oh! Francamente, não—disse o pobre homem, olhando a filha com ternura.
— Pois bem!—replicou a baronesa com secura, contendo um furor de devota surpreendida, ao ver-se afrontada de improviso—encarregue-se, sr. de Watteville, de estabelecer o senhor mesmo sua filha! Pense bem, senhorita: se não fizer um casamento do meu agrado, nada receberá de mim para o seu estabelecimento.
A querela assim iniciada entre a sra. de Watteville e o barão, que apoiava a filha, foi tão longe que Rosália e o pai foram obrigados a passar primavera e verão nos Rouxey; a moradia no palacete de Rupt se lhes tornara insuportável. Soube-se então em Besançon que a srta. de Watteville recusara decididamente o conde de Soulas. Depois de casarem, Jerônimo e Marieta tinham ido para os Rouxey, a fim de um dia substituírem Modinier.
O barão reparou, restaurou a Chartreuse ao gosto da filha. Ao ter conhecimento de que aquela restauração custava cerca de sessenta mil francos, que Rosália e o pai tinham mandado construir uma estufa para plantas, a baronesa percebeu um grão de malícia na filha. O barão comprou alguns terrenos encravados no seu e uma pequena propriedade no valor de trinta mil francos. Disseram à sra. de Watteville que, longe dela, Rosália se mostrava uma rapariga de truz, estudava os meios de valorizar os Rouxey, adquirira uma amazona e montava a cavalo; o pai, a quem ela fazia feliz, que não se queixava mais da saúde, que estava engordando, acompanhava-a nas suas excursões. Nas vésperas do onomástico da baronesa, que se chamava Clotilde-Luísa, o vigário-geral foi então aos Rouxey, com certeza mandado pela sra. de Watteville e pelo sr. de Soulas, a fim de negociar a reconciliação entre mãe e filha.
— Aquela pequena Rosália tem cabeça—diziam em Besançon.
Depois de nobremente ter pagado os noventa mil francos gastos nos Rouxey, a baronesa mandou entregar ao marido mais ou menos mil francos por mês, para viver lá; não queria que a culpassem. Pai e filha prazerosamente concordaram em voltar a Besançon a 15 de agosto, para lá ficar até o fim do mês.
Quando o vigário-geral, depois do jantar, chamou a srta. de Watteville à parte, para entabular o assunto do casamento, fazendo-lhe compreender que não mais devia contar com Alberto, de quem, havia um ano, não se tivera nenhuma notícia, um gesto de Rosália deteve-o de súbito. Aquela estranha rapariga pegou o sr. de Grancey pelo braço e levou-o até um banco, embaixo de um bosquete de rododendros, de onde se avistava o lago.
— Ouça, querido abade: ao senhor a quem tanto quero como a meu pai, porque o senhor gosta do meu Alberto, devo afinal confessar-lhe: cometi crimes para ser mulher dele, e ele tem de ser meu marido... Veja, leia!
Entregou-lhe um número de um jornal que tinha no bolso de seu avental, mostrando-lhe a seguinte notícia, datada de Florença, 25 de maio:
O casamento do sr. duque de Rhétoré (O duque de Rhétoré: filho primogênito do duque de Chaulieu e irmão de Luísa de Chaulieu; já apareceu em Memórias de duas jovens esposas.), filho primogênito do duque de Chaulieu, antigo embaixador, com a sra. duquesa de Argaiolo, em solteira princesa Soderini, celebrou-se em grande pompa. Numerosas festas, dadas por ocasião desse casamento, animam neste momento a cidade de Florença. A fortuna da sra. de Argaiolo é uma das maiores da Itália, pois o falecido duque a instituíra sua herdeira universal.
— A mulher que ele amava está casada—disse ela -, eu os separei.
— Você! Como?—exclamou o abade.
Rosália ia responder quando um grande grito soltado por dois jardineiros, e precedido do ruído de um corpo caindo na água, interrompeu-a. Ela levantou-se e correu gritando:
— Oh! Meu pai!...
Não via mais o barão.
Ao tentar apanhar um fragmento de granito no qual julgara ver a impressão de uma concha, fato que teria invalidado algum sistema de geologia, o sr. de Watteville avançara por sobre o talude, perdera o equilíbrio e caíra no lago, cuja maior profundidade se achava justamente junto ao aterro. Os jardineiros tiveram um trabalho insano para fazer o barão agarrar uma vara, remexendo um lugar onde a água fervia; trouxeram-no por fim, coberto de lodo, no qual ele se aprofundara e onde cada vez mais se enterrava ao debater-se. O sr. de Watteville jantara copiosamente, já começara a digestão, que assim foi interrompida. Depois de despido, limpo, deitado na cama, ficou num estado tão visivelmente perigoso que dois criados montaram a cavalo, um para ir a Besançon, e outro para ir buscar no lugar mais perto possível um médico e um cirurgião. Quando a sra. de Watteville chegou, dali a oito horas depois do acontecimento, em companhia dos primeiros cirurgiões e médicos de Besançon, encontrou o sr. de Watteville em estado desesperador, não obstante os cuidados inteligentes do médico dos Rouxey. O medo determinara uma infiltração serosa no cérebro e a digestão interrompida acabava de matar o pobre barão.
Essa morte, que não se teria dado, dizia a sra. de Watteville, se seu marido tivesse ficado em Besançon, foi por ela atribuída à resistência da filha, a quem tomou aversão, entregando-se a uma dor e a pesares evidentemente exagerados. Chamava o barão de seu querido cordeiro! O último dos Watteville foi enterrado numa ilhota do lago dos Rouxey, onde a baronesa mandou erigir um pequeno monumento gótico, em mármore branco, semelhante ao que se diz de Heloísa, no Père-Lachaise (O Père-Lachaise: famoso cemitério de Paris. Ainda hoje, nele se vê o monumento dito de Abelardo e Heloísa, célebres amantes da Idade Média.).
XLI - OS CRIMES DE ROSÁLIA
Um mês depois desse acontecimento, a baronesa e a filha viviam no palacete de Rupt num silêncio selvagem. Rosália, dominada por uma dor séria, que não se expandia no exterior, a si mesma se acusava da morte do pai e suspeitava de outra desgraça, ainda maior a seus olhos, e bem certamente sua, pois nem o advogado Girardet nem o abade de Grancey obtinham esclarecimentos sobre o destino de Alberto. Esse silêncio era apavorante. Num paroxismo de arrependimento, ela sentiu necessidade de revelar ao vigário-geral as terríveis intrigas com as quais separara Francesca de Alberto. Foi uma coisa simples e formidável. A srta. de Watteville suprimira as cartas de Alberto para a duquesa, e a carta pela qual Francesca comunicava ao amante a doença do marido, prevenindo-o de que não lhe poderia responder durante o tempo em que se consagrasse, como era seu dever, ao moribundo. Assim, durante as preocupações de Alberto, relativas às eleições, a duquesa não lhe escrevera senão duas cartas, uma em que lhe noticiava o estado do duque de Argaiolo, e a outra na qual lhe dizia estar viúva, duas nobres e sublimes cartas, que Rosália guardou. Depois de ter trabalhado durante várias noites, ela conseguira imitar perfeitamente a letra de Alberto. Às verdadeiras cartas daquele amante fiel, ela substituíra três cartas, cujos rascunhos mostrados ao velho padre o fizeram estremecer, de tal forma ali se mostrava o gênio do mal em toda a sua perfeição. Rosália, empunhando a pena em lugar de Alberto, preparava naquelas cartas a duquesa para a mudança do francês falsamente infiel, e, por ocasião da morte do duque de Argaiolo, a essa notícia respondeu com a do próximo casamento de Alberto com a srta. de Watteville. As duas cartas deviam cruzar-se. O espírito infernal com que foram escritas surpreendeu de tal forma o vigário-geral que ele as releu. À última, Francesca, ferida no coração por uma rapariga que queria matar o amor na sua rival, respondeu com estas simples palavras: Está livre, adeus.
— Os crimes puramente morais e que não dão margem à ação da justiça humana são os mais infames e mais odiosos—disse severamente o abade de Grancey.—Deus os pune muitas vezes aqui mesmo; reside aí o motivo das espantosas desgraças que nos parecem inexplicáveis. De todos os crimes secretos sepultados nos mistérios da vida privada, um dos mais desonrosos é o de violar o envelope de uma carta ou de lê-la sub- -repticiamente. Toda e qualquer pessoa, seja ela quem for, levada por uma razão qualquer, que se permite esse ato, põe uma mácula inapagável na sua probidade. Não sente o que há de comovedor, de divino, na história daquele jovem pajem, falsamente acusado, que leva uma carta, na qual vai a ordem para matá-lo, que se põe a caminho sem um mau pensamento, que a Providência toma então sob sua proteção e a quem salva, milagrosamente, dizemos. Sabe em que consiste o milagre? As virtudes têm uma auréola tão poderosa como a da criança inocente. Digo-lhe estas coisas sem querer admoestá-la—disse o velho padre a Rosália com profunda tristeza.—Ai de mim! Não sou aqui o grande penitenciário, a senhora não está ajoelhada aos pés de Deus, sou um amigo aterrorizado pela apreensão dos seus castigos. Que foi feito desse pobre Alberto? Não se teria ele matado? Sob sua calma aparente, ele ocultava uma violência inaudita. Compreendo que o velho príncipe Soderini, pai da sra. duquesa de Argaiolo, tenha vindo reclamar as cartas e os retratos da filha. Foi esse o raio caído sobre a cabeça de Alberto, o qual sem dúvida terá tentado ir justificar-se... Mas como explicar que em catorze meses ele não tenha dado notícias suas?
— Oh! Se eu o desposo, ele será feliz...
— Feliz?... Ele não a ama. De resto, a fortuna que lhe levaria não seria tão grande assim. Sua mãe lhe tem a mais profunda aversão, pois você lhe deu uma resposta selvagem que a feriu e que a você arruinará. Quando ontem ela lhe disse que a obediência era o único meio de reparar suas faltas e lhe lembrou a necessidade de casar, falando-lhe em Amadeu:—Se gosta tanto dele, minha mãe, despose-o!—É verdade ou não que lhe atirou essa frase no rosto?
— Sim—disse Rosália.
— Pois bem! Conheço a baronesa—continuou o sr. de Grancey -; daqui a alguns meses ela será condessa de Soulas! Certamente terá filhos, dará quarenta mil francos de renda ao sr. de Soulas; além disso, ela concederá vantagens e reduzirá sua parte nos seus bens imóveis, tanto quanto puder. Você ficará pobre durante toda a vida dela, e ela tem apenas trinta e oito anos! Você terá como único bem as terras dos Rouxey e os minguados direitos que lhe deixará a liquidação da herança de seu pai, se é que sua mãe consente em abrir mão de seus direitos sobre os Rouxey! No que diz respeito aos interesses materiais, você já arrumou bem mal a sua vida em relação aos sentimentos, julgo-a transtornada. Em vez de ter ido à sua mãe...
Rosália fez com a cabeça um movimento selvagem.
— ... à sua mãe e à religião—continuou o vigário-geral—que a teriam, ao primeiro movimento de seu coração, esclarecido, aconselhado, guiado, você quis dirigir-se sozinha, ignorando a vida, e ouvindo somente a paixão!
Essas palavras tão ponderadas apavoraram a srta. de Watteville.
— E que devo eu fazer?—perguntou, passado um instante.
— Para reparar suas faltas, seria preciso conhecer-lhes a extensão—respondeu o padre.
— Pois bem! Vou escrever ao único homem que possa ter informações a respeito do destino de Alberto, ao sr. Leopoldo Hannequin, notário em Paris e seu amigo de infância.
— Não escreva mais senão para homenagear a verdade—disse o vigário-geral.—Confie-me as cartas verdadeiras e as falsas, faça-me sua confissão bem detalhada, como ao seu diretor espiritual, pedindo-me os meios de expiar suas faltas e confiando em mim. Eu verei... Pois, antes de tudo, restitua àquele infeliz a sua inocência, perante o ser de quem ele fez o seu Deus na terra. Mesmo depois de ter perdido a felicidade, Alberto deve ter sua justificação.
Rosália prometeu ao abade de Grancey obedecer-lhe, esperando que os passos que ele desse trariam talvez como resultado devolver-lhe Alberto.
XLII - ALGUMAS LUZES
Pouco tempo depois da confidência da srta. de Watteville, um amanuense do cartório do sr. Leopoldo Hannequin veio a Besançon munido de uma procuração geral de Alberto e se apresentou em primeiro lugar em casa do sr. Girardet, para pedir-lhe que vendesse a casa pertencente ao sr. Savaron. O advogado encarregou-se desse negócio por amizade ao colega. O amanuense vendeu o mobiliário e, com o produto, pôde pagar o que Alberto devia a Girardet, que, por ocasião da inexplicável partida, lhe emprestara cinco mil francos, encarregando-o, aliás, das suas cobranças. Quando Girardet perguntou que fora feito daquele nobre e belo lutador pelo qual se interessara, o amanuense disse que somente seu patrão o sabia e que o notário se mostrava muito aflito com o conteúdo da última carta escrita por Alberto Savarus.
Ao ter essa notícia, o vigário-geral escreveu a Leopoldo. Eis a resposta do digno notário:
Ao senhor Abade De Grancey
Vigário-geral da diocese de Besançon
Paris
Infelizmente, senhor, não está ao alcance de ninguém restituir Alberto à vida social; ele renunciou a ela. Está como noviço na Grande-Chartreuse, perto de Grenoble. O senhor sabe, melhor do que eu, que acabo de ter conhecimento disso, que tudo morre nos umbrais daquele claustro. Prevendo a minha visita, Alberto interpôs o geral entre meus esforços e ele. Conheço bastante aquele nobre coração para saber que ele foi vítima de uma trama odiosa e para nós invisível; tudo, porém, está consumado. A sra. duquesa de Argaiolo, hoje duquesa de Rhétoré, parece-me ter levado bem longe a crueldade. Em Belgirate, onde ela não se achava mais, quando Alberto para lá correu, deixara ordens para fazê-lo crer que residia em Londres. De Londres, Alberto foi procurar sua amada em Nápoles e de Nápoles foi a Roma, onde ela acabava de se tornar noiva do duque de Rhétoré. Alberto pôde finalmente encontrar a sra. de Argaiolo em Florença, mas já na igreja, no instante em que se realizava o casamento. Nosso pobre amigo desmaiou na nave e nunca pôde, nem mesmo se achando em perigo de morte, obter uma explicação com aquela mulher, que devia ter não sei quê no coração. Alberto viajou durante sete meses à procura de uma criatura selvagem que se divertia escapando-lhe; ele não sabia nem onde nem como alcançá-la. Vi nosso pobre amigo na sua passagem por Paris, e se o tivesse visto como eu, o senhor compreenderia que não se lhe devia dizer uma palavra a respeito da duquesa, a menos de querer provocar uma crise na qual sua razão perigaria. Se ele conhecesse seu crime, poderia achar meios de justificar-se, mas falsamente acusado de se ter casado! Que fazer? Alberto está morto, e bem morto para o mundo. Quis o repouso, esperemos que o profundo silêncio e a oração em que se lançou farão sua felicidade sob uma outra forma. Se o conheceu, senhor, muito o deverá lamentar e lamentar também seus amigos. Aceite etc. etc.
Assim que recebeu essa carta, o bom vigário-geral escreveu ao geral dos cartuxos, e eis qual foi a resposta de Alberto Savarus:
O irmão Alberto ao senhor De Grancey
Vigário-geral da diocese de Besançon
Reconheci, querido e bem-amado vigário-geral, sua terna alma e seu coração ainda jovem, em tudo o que me acaba de comunicar o reverendo padre geral da nossa ordem. O senhor adivinhou o único anseio que ainda restava no mais afastado recanto de meu coração, relativamente às coisas do mundo: levar aquela que tanto me maltratou a fazer justiça aos meus sentimentos! Mas ao deixar-me a liberdade de fazer uso de seu oferecimento, o padre geral quis saber se minha vocação era firme; teve a insigne bondade de dizer-me seu pensamento ao me ver decidido a permanecer em silêncio absoluto, relativamente a esse assunto. Se eu tivesse cedido à tentação de reabilitar o homem do mundo, o religioso seria repelido deste convento. A graça com certeza agiu; mas, embora breve, a luta não deixou de ser por isso menos viva nem menos cruel. Não é dizer-lhe com isso que eu não poderia voltar ao mundo? Por isso o perdão que me pede para o autor de tantos males é completo e sem um vestígio de despeito.
Pedirei a Deus que perdoe essa moça, como eu a perdoo, assim como lhe rogarei que conceda uma vida feliz à sra. de Rhétoré. Que seja a morte ou a mão pertinaz de uma moça empenhada em se fazer amar, ou um desses golpes atribuídos ao acaso, não devemos sempre obedecer a Deus? A desgraça cria, em certas almas, um vasto deserto, onde a voz de Deus repercute. Demasiado tarde conheci as relações entre esta vida e a que nos espera; em mim tudo está gasto. Eu não teria podido servir nas fileiras da Igreja militante e atiro os restos de uma vida quase extinta aos pés do santuário. É esta a última vez que escreverei. Ninguém mais, a não ser o senhor, que me queira e a quem eu tanto queria, era capaz de fazer-me infringir a lei do esquecimento que me impus, ao entrar na metrópole de São Bruno, mas o senhor sempre será particularmente mencionado nas preces do
Irmão Alberto
Novembro de 1836
“Talvez tudo esteja pelo melhor”, disse o abade de Grancey com os seus botões.
Quando comunicou essa carta a Rosália, que, num gesto piedoso, beijou o trecho que continha o seu perdão, ele lhe disse:
— Pois bem! Agora que ele está perdido para você, não quer reconciliar-se com sua mãe, desposando o conde de Soulas?
— Seria preciso que Alberto mo ordenasse—disse ela.
— Bem vê que é impossível consultá-lo. O padre geral não o permitiria.
— E se eu o fosse ver?
— Não se veem os cartuxos. De resto, nenhuma mulher, exceto a rainha de França, pode entrar na Chartreuse—disse o abade.—Assim é que nada a impede mais de desposar o jovem sr. de Soulas.
— Não quero fazer a infelicidade de minha mãe—respondeu Rosália.
— Satanás!—exclamou o vigário-geral.
No fim daquele inverno, o excelente vigário de Grancey morreu. Desapareceu de entre a sra. de Watteville e a filha aquele amigo que se interpunha entre os seus caracteres de aço. Realizou-se a previsão do vigário-geral. Em agosto de 1837, a sra. de Watteville desposou o sr. de Soulas, em Paris, para onde foi a conselho de Rosália, que se mostrou boa e encantadora com a mãe. A sra. de Watteville acreditou na amizade da filha, a qual, porém, queria ver Paris unicamente para se dar ao prazer de uma vingança atroz; pensava somente em Savarus, martirizando a sua rival.
Tinham emancipado a srta. de Watteville, que, aliás em breve, completaria vinte e um anos. A mãe, para liquidar suas contas com ela, transmitira-lhe seus direitos dos Rouxey, e a filha dera quitação à mãe quanto à herança do barão de Watteville. Rosália influenciara a mãe para que desposasse o conde de Soulas e o dotasse.
— Tenhamos cada uma a nossa liberdade—dissera-lhe.
A sra. de Soulas, inquieta com as intenções da filha, ficou, entretanto, comovida com aquela nobreza de sentimentos e presenteou-a com seis mil francos de renda no Grande-Livro, por desencargo de consciência. Como a sra. condessa de Soulas tinha quarenta e oito mil francos de renda em propriedades rurais, e era incapaz de aliená-las com o fim de diminuir a parte de Rosália, a srta. de Watteville continuava a ser um bom partido, de um milhão e oitocentos mil francos; os Rouxey podiam produzir, com as aquisições do barão e alguns melhoramentos, vinte mil francos de renda, além das vantagens da habitação, suas rendas e reservas. Por isso Rosália e a mãe, que logo se puseram ao tom de Paris, foram facilmente introduzidas na alta sociedade. A chave de ouro, estas palavras: um milhão e oitocentos mil francos!... bordados na blusa da srta. de Watteville, serviram muito mais à condessa de Soulas do que suas pretensões oriundas do nome de Rupt, seus orgulhos deslocados e mesmo seus parentescos buscados um pouco longe.
XLIII - ROSÁLIA PERMANECE UMA MOÇA EXTRAORDINÁRIA
Em fevereiro de 1838, Rosália, a quem muitos rapazes faziam uma corte assídua, realizou o projeto que a trouxe a Paris. Queria encontrar a duquesa de Rhétoré, ver essa mulher maravilhosa e mergulhá-la em remorsos eternos. Por isso Rosália redobrou de requintes e de um coquetismo entontecedor, a fim de se apresentar em pé de igualdade com a duquesa. O primeiro encontro teve lugar no baile anual dado pelos pensionistas desde 1839 da antiga lista civil. Um rapaz, instigado por Rosália, disse à duquesa, mostrando-lha:
— Ali está uma moça das mais notáveis, uma vontade de ferro! Ela fez com que se arrojasse num claustro, na Grande Chartreuse, um homem de grande valor, Alberto Savarus, cuja existência foi por ela despedaçada. É a srta. de Watteville, a famosa herdeira de Besançon...
A duquesa empalideceu; Rosália trocou vivamente com ela um desses olhares que, de mulher para mulher, são mais mortais do que um tiro de pistola num duelo. Francesca Soderini, que suspeitou ser Alberto inocente, saiu logo do baile, afastando-se bruscamente de seu interlocutor, o qual era incapaz de adivinhar o terrível ferimento que acabava de fazer à bela duquesa de Rhétoré.
“Se quiser saber mais sobre Alberto, vá ao baile da Ópera, na terça-feira próxima, levando na mão um malmequer.”
Esse bilhete anônimo, mandado por Rosália à duquesa, levou a infeliz italiana ao baile, onde a srta. de Watteville lhe pôs na mão as cartas de Alberto, a escrita pelo vigário-geral, a de Leopoldo Hannequin, bem como a resposta do notário, e mesmo aquela em que ela, Rosália, fizera sua confissão ao sr. de Grancey.
“Não quero ser a única a sofrer, pois fomos tão cruéis uma como a outra”, disse ela a sua rival.
Depois de saborear a estupefação que se desenhou no belo rosto da duquesa, Rosália fugiu, não reapareceu mais nos salões e voltou com a mãe para Besançon.
A srta. de Watteville, que vive sozinha nas suas terras de Rouxey, cavalgando, caçando, recusando dois ou três casamentos por ano, indo quatro ou cinco vezes por ano a Besançon, ocupada em valorizar suas propriedades, é tida por uma pessoa muito original. É uma das celebridades do Leste.
A sra. de Soulas tem dois filhos, um menino e uma menina; rejuvenesceu, mas o jovem sr. de Soulas envelheceu consideravelmente.
— Minha fortuna custa-me caro—dizia ele ao jovem Chavoncourt.—Para bem conhecer uma devota, é preciso infelizmente casar com ela.
A srta. de Watteville procede como uma rapariga verdadeiramente extraordinária. Dizem dela:—É lunática!
Vai todos os anos ver as muralhas da Grande-Chartreuse. Quererá talvez imitar seu tio-avô, saltando o muro daquele convento para ir buscar o marido, como Watteville saltou o muro do seu mosteiro para recuperar a liberdade.
Em 1841, ela saiu de Besançon com a intenção, diziam, de casar-se; mas não se sabe ainda a verdadeira causa dessa viagem, da qual voltou num estado que a impediu de jamais aparecer em sociedade. Por um desses acasos, a que fizera alusão o velho vigário-geral, o sr. de Grancey, ela se achava no Loire, no vapor cuja caldeira explodiu. A srta. de Watteville foi tão cruelmente maltratada que perdeu o braço direito e a perna esquerda; seu rosto apresenta horríveis cicatrizes que a privaram de sua beleza; sua saúde, sujeita a terríveis perturbações, deixa-lhe poucos dias sem sofrimentos. Enfim, ela, hoje, não sai mais da Chartreuse dos Rouxey, onde leva uma vida inteiramente devotada às práticas religiosas.
Paris, maio de 1842
Honoré de Balzac
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