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A maior parte da região que se estendia além da cidade apresentava-se coberta de verde e de florestas. Mais adiante, onde começavam os trabalhos de mineração, residiam a desolação e o pó, em meio a uma paisagem composta de máquinas gigantescas que, à semelhança de aves de rapina enfurecidas, bicavam as rochas pardacentas, superpostas em camadas. Pequenas partículas de entulho misturavam-se no ar, formando nuvens sombrias, envolvendo as silhuetas dos homens que trabalhavam incessantemente, e elevavam-se acima do conjunto de edifícios de zinco, galgando os primeiros contrafortes das colinas e pousando finalmente sobre as esteiras rolantes, os vagões e as pilhas cinzentas de minério.
Ao chegar ao portão principal da mina, Kim desceu da velha camionete, que servia de táxi, desapertou o cinto da calça e suspirou por um banho de chuveiro frio.
O guarda de plantão na guarita era africano. Ele a fitara sem se mover quando ela descera do carro, e naquele momento continuava a olhá-la com curiosidade enquanto Kim se dirigia à janela aberta.
— Estou procurando Christopher Adams — disse Kim, pronunciando bem as palavras. — Por favor, sabe me dizer onde posso encontrá-lo?
O homem sacudiu vagarosamente a cabeça, estendeu a mão e alcançou o telefone. Falou brevemente; sua voz ressoava abafada dentro da divisão de vidro, ouviu por alguns momentos e então colocou o aparelho no gancho.
— O patrão vem vindo — comunicou. — Disse que é para a senhora esperar aqui.
Na verdade não havia outra alternativa, imaginou Kim. E pelo menos o vigia de plantão poderia lhe dizer o que ela queria saber sem maiores delongas. Sem sombra de dúvida algo deveria ter acontecido a Chris, a questão era saber o quê. Tentou manter à distância aquele medo tão seu conhecido. Claro que ele ainda estava vivo. Se tivesse ocorrido algum acidente, as autoridades lhe teriam comunicado. Não, qualquer que fosse a explicação para sua falta de comunicação durante os dois últimos meses, tinha de ser de uma outra natureza. Chris jamais teria agido daquela forma sem um motivo, aliás um bom motivo. Não era de seu feitio simplesmente interromper todo e qualquer contato por ter mudado de idéia a respeito de querer casar-se com ela. Ele teria escrito e dito a verdade nua e crua.
Um carro aproximava-se velozmente estrada abaixo, vindo do grupo mais próximo de edificações de zinco. Freou bruscamente ao lado da barreira e um homem desceu. Era alto e de aspecto vigoroso e as mangas dobradas da camisa revelavam braços musculosos. Puxou para trás a aba do chapéu empoeirado enquanto a contemplava da cabeça aos pés, sem transpor a pequena distância que os separava.
— Meu nome é Dave Nelson — disse. — Quem é você?
— Kimberley Freeman. — Seu queixo tremeu um pouco, ao ouvir o tom que ele empregava. — Sou noiva de Chris Adams. Posso vê-lo?
Houve uma pausa breve, e o traço voluntarioso dos lábios do homem pareceu ficar ainda mais rígido. — Ele não se encontra aqui — disse. — Há cinco semanas que ele não está mais aqui. Se eu fosse você, faria imediatamente a viagem de volta.
— Não está aqui? Então onde é que ele está? Você deve saber! Sua sobrancelha arqueou-se ironicamente.
— E por que deveria?
— Porque ele trabalhou aqui — ela explodiu. — Aconteceu alguma coisa com ele, não é mesmo? É por isso que você não quer falar comigo. Muito bem, não saio daqui enquanto não me contar!
— É melhor você entrar — disse bruscamente, sem maiores amabilidades.
Kim fez o que ele dizia, tremendo de angústia e de uma raiva que procurava controlar. Algo muito estranho se passava naquele lugar. Todos os seus sentidos lhe diziam isto. E aquele homem tinha a audácia de imaginar que ela se contentaria com algo que não fosse a verdade!
Olhou-a atravessar a barreira e caminhar em sua direção. Era jovem e esguia; seus cabelos castanho-avermelhados emolduravam um rosto mais interessante do que propriamente bonito. As maçãs do rosto eram proeminentes, e acima delas um belo par de olhos verdes.
— Vamos até o escritório — ele disse em tom enérgico, abrindo a porta do carro.
As molas arrearam enquanto ele se sentava a seu lado. Kim permaneceu em silêncio enquanto ele esterçava o carro e subia novamente pela estrada. Tomou nítida consciência daquelas mãos queimadas de sol que seguravam o volante. Aquele Dave Nelson era um tipo de homem que ela jamais encontrara antes e de resto dispensava tal tipo de conhecimento. Da mesma forma não lhe impressionavam seus trinta e poucos anos, segundo ele aparentava, e nem seu ar duro, cínico e provavelmente desprovido de qualquer compaixão, a julgar por sua aparência. Um homem que tinha feito de tudo, visto tudo e não se deixara impressionar por nada. Um homem em quem ela não depositaria a menor confiança, fossem quais fossem as circunstâncias.
Ele parou o carro diante de uma construção que se diferenciava das outras unicamente por uma porta pintada em um tom de vermelho muito vivo. Kim entrou atrás dele em uma sala muito simples e superabafada, onde se encontravam duas mesas de ferro, fichários, algumas cadeiras e em um canto uma cama de campanha sobre a qual se estendia um cobertor cinza e surrado.
— Queira sentar-se — convidou bruscamente. Apoiou-se com todo seu peso sobre a mesa mais próxima e tirou um maço de cigarros do bolso traseiro. — Quer fumar?
Kim fez que não, sem a mais leve menção de ocupar a cadeira que ele lhe indicara. Tinha um pressentimento de que ele a fazia esperar de propósito, enquanto acendia um cigarro.
— Você vai me contar tudo a respeito de Chris. — disse incisivamente, colocando as mãos nos bolsos da calça para disfarçar seu temor. — Por que foi que ele deixou o emprego?
— Porque eu o chutei para fora daqui — foi a resposta grosseira.
— Ele agora está morando em Freetown, se é que você ainda está interessada.
— E por que não deveria estar interessada? — indagou. — Ele pode ter tido alguma divergência com você, mas isto não faz dele uma pessoa má a meus olhos. — Fez um esforço para controlar a voz, que se alterara ligeiramente ao pronunciar as últimas palavras.
— Se não for pedir demais, pode me dar seu endereço atual? Dave Nelson desviou o olhar de seu rosto para a extremidade do cigarro sem mudar de expressão.
— Não quer saber por que foi que eu o despedi?
— Perguntarei a ele quando vê-lo — respondeu. — Por favor, quer me dar o endereço?
— Como você quiser. — Endireitou-se, foi até a mesa, abriu a gaveta, tirou um livro de anotações e rasgou uma folha. — Aqui está.
Ela pegou o papel, espiou os rabiscos e olhou para ele. — Ele deixou isto aqui com você?
— Não que ele quisesse. Eu me dei ao trabalho de descobrir por mim mesmo.
— Por quê?
— Isto é problema meu. Você veio de muito longe?
— Da Inglaterra — respondeu, e notou que sua expressão passava por uma brusca alteração.
— Mas que pessoa obstinada! É uma distância e tanto para vir atrás de um homem, não acha?
Seus olhos verdes dardejaram.
— Não quando o homem em questão é aquele com quem vou me casar. Não sei o que aconteceu aqui e não quero saber sua versão, senhor Dave. Mas o que sei com certeza é que Chris deve ter tido um bom motivo para não responder a minhas cartas. — Fez uma pausa, enquanto lhe ocorria um pensamento. — Isto, na suposição de que elas lhe eram entregues.
— Obstinação e fé — murmurou. — Que moça admirável! Espero que você ainda ache que ele valha a pena, quando o encontrar.
— Abriu novamente a gaveta e retirou um maço de cartas amarradas com um elástico. — Devem ser suas.
Ela as arrebatou de suas mãos, examinou-as nervosamente e encarou-o, agressiva. — Não foram abertas. Obviamente Chris nem chegou a vê-las!
— Viu, sim. — A resposta foi imediata. — Ele não se deu ao trabalho de abri-las.
Isto cortou todo seu ímpeto. Ela o fitou inibida, procurando uma resposta adequada. Você está mentindo. — conseguiu dizer finalmente.
— Estou mesmo?
— Tem que estar. Chris nunca agiria desta maneira! — Ela cerrou os punhos e as unhas penetravam fundo na palma das mãos. — Você está tentando me dizer que eu não conheço meu próprio noivo?
— Talvez você conhecesse o homem que a deixou na Inglaterra — ele retrucou. — Isto se passou há mais de dezoito meses. Os trópicos mudam muito um homem.
— O que está querendo insinuar?
— Quantos anos você tem?
— Vinte e três. — A resposta foi dada com muito custo. — E não vejo o que...
— Você tem idade suficiente para que eu não esteja precisando pôr todos os pingos nos is. O que eu quero dizer é que aqui alguns impulsos básicos adquirem uma urgência maior do que de costume.
— Agora sei que você está mentindo — respondeu impulsivamente. — Chris não está... ele jamais...
— Jamais pensaria em ter outra mulher com você esperando por ele na Inglaterra... é isto que você está tentando me dizer? — havia crueldade no traçado de seus lábios. — Ou você é de uma autoconfiança excessiva ou então é incrivelmente ingênua! — Sua cabeça recuou enquanto a mão de Kim descreveu um arco destinado a golpeá-lo no rosto. Agarrou-lhe o pulso e ela perdeu o equilíbrio.
— Jamais faça isto, a menos que você se sinta capaz de aceitar o troco — disse ele, com grosseria. — Você não está mais na Inglaterra.
— Tire as mãos de mim! — Afastou-se bruscamente dele, com olhar enfurecido e o rosto rubro de cólera. — Você evidentemente julga os outros a partir de suas próprias tendências, senhor Dave, mas não conseguirá fazer com que eu acredite no que acaba de me contar a respeito de Chris!
— Você precisa de provas concretas? Muito bem, dirija-se a esse endereço e achará o que procura. — O tom da voz era enérgico. — Encare os fatos, meu bem. Você viajou milhares de quilômetros à procura de seu homem. E acontece que ele está vivendo com outra mulher lá em Freetown e não pretende desistir dela. Esqueça-o, pois se trata de um canalha e volte para casa. Você não vai ter muita dificuldade em encontrar quem o substitua.
— Ele está com sua mulher? — indagou, maldosa. — Foi por isto que o despediu?
Os olhos cinzentos tornaram-se subitamente perigosos. — Se isso tivesse acontecido eu teria feito muito mais do que despedi-lo — disse suavemente. — Então, está começando a mudar de idéia, não é?
— Não! — Ela mordeu os lábios, sentindo sua ironia. — Nem vou acreditar, até que Chris me diga pessoalmente a verdade.
— Então você sabe para onde se dirigir. — Levantou-se subitamente. — Vamos, irei acompanhá-la até o portão.
— Não se incomode. Irei a pé.
— Você é que pensa! — Alcançou a porta antes dela, interpondo-se no caminho. — Lá fora há homens que não põem os olhos em alguém como você, só Deus sabe há quanto tempo. E pretendo que eles permaneçam assim. Já me dá suficiente trabalho manter toda uma equipe sem lhes lembrar o que eles estão perdendo, enfiados aqui. Você pode subir ou então posso fazer com que você suba. Como você preferir.
— Você é bem o tipo durão, não é mesmo? — disse Kim com sarcasmo. — É muito fácil notar que você está privado da companhia de gente civilizada há muito tempo, senhor Dave!
— Tem razão. — Disse isto sem a menor ênfase. — O que, aliás, me torna muito menos gentil do que quando você chegou aqui. Tente me provocar um pouco mais e verá que minha gentileza pode diminuir ainda mais. Vai ou não subir neste carro?
Kim passou diante dele sem dizer mais uma palavra e acomodou-se, sentando-se muito ereta enquanto eles se dirigiam para o portão principal. Nesse momento sua mente estava completamente confusa. Talvez isto fosse uma bênção. Ela ainda não queria começar a pensar, pelo menos enquanto não estivesse longe daquele homem e daquele lugar. E quanto mais longe, melhor!
Logo em seguida fixou o olhar, horrorizada, ao notar o espaço vazio onde o táxi estivera até alguns momentos. Saltou do carro e olhou desesperada para a estrada que contornava a montanha, como se sua vontade fosse suficiente para fazer com que o automóvel voltasse.
— Eu disse a ele que me esperasse! — gritou.
Dave Nelson estava falando com o guarda na guarita. Caminhou em direção a ela, levantando os ombros largos.
— Ao que tudo indica, você não lhe falou com suficiente energia. Ele foi embora pouco depois que você entrou. Você o pagou antes de sair da cidade?
— Sim. Ele insistiu. — Kim apoiou-se na cerca, inteiramente perdida, sem saber o que fazer ou dizer. — Acho que vou ter que pedir uma carona em algum de seus caminhões — conseguiu dizer finalmente. Forçou-se a encará-lo. — Sinto muito se isto vai contra o regulamento.
— Não vai, não. — Ele parecia desprovido de qualquer espécie de emoção em relação a suas dificuldades. — Acontece que até amanhã nenhum de nossos caminhões vai para a cidade.
— Oh, só faltava esta! — O rancor ressurgia, voltando automaticamente como um mecanismo de defesa. — Se você pensa que vou passar a noite nesta... neste fim de mundo, está redondamente enganado!
— Você não tem muita escolha — ele retrucou. — A menos que queira passar a noite lá fora, à beira da estrada. E não fique pensando que estou pulando de alegria com essa perspectiva.
— Ah, vocês, homens. — O tom com que falava era impregnado de raiva. — Como é que pretende me abrigar até amanhã, senhor Nelson?
— Posso dar um jeito de escondê-la debaixo de minha cama.
— A zombaria transparecia em seu rosto, enquanto ela se ruborizava. — Já não se mostra tão confiante como antes, não é mesmo? Não se preocupe, não tenho más intenções a seu respeito. Prefiro que minhas mulheres conheçam os fatos da vida. — Ignorou sua expressão agressiva e dirigiu o olhar para o carro. — Vai ter que dormir no clube. É o único lugar onde se pode encontrar uma cama decente. Apenas tente se lembrar de que nossos trabalhadores jamais freqüentaram a escola e portanto tem um comportamento um tanto especial, ouviu? Não estou dizendo que você é capaz de correr riscos sérios, mas basta um movimento a mais nos quadris e você terá de enfrentar uma situação que seria melhor evitar.
— Eu não balanço os quadris! — ela exclamou furiosa e sentindo-se imediatamente uma tola, ao notar o sorriso nos lábios dele. Voltou para o carro agitada, mas consciente de que um silêncio desdenhoso poderia ser muito eficaz.
Desta vez ele tomou a estrada à esquerda da guarita, contornando um pequeno morro e descendo por entre o arvoredo até uma clareira em meio à qual se elevavam diversas edificações de tijolo aparente. O clube era a maior delas e se estendia ao longo do conjunto. Havia vários homens descansando nas espreguiçadeiras distribuídas pelo gramado em frente ao clube. A maior parte, notou Kim imediatamente, tinha copos nas mãos. Surpreendidos, fizeram uma pausa na conversa, enquanto ela descia desajeitadamente do carro. Ouviu-se então um assovio provocativo, que a fez ruborizar-se novamente, contra sua vontade.
— Cale o bico — disse Dave rispidamente ao homem que tinha assoviado, enquanto contornava o carro e se colocava ao lado dela. — Sabe por onde anda o Luke?
— Está lá dentro. — O homem sequer por um minuto tirou os olhos de cima de Kim. — Que tal me apresentar a visita?
— Mais tarde. — Dave tomou Kim pelo braço e conduziu-a pelo gramado em direção à porta, ignorando os olhares dos demais. A porta abriu-se para o que parecia ser uma área de recreação, com uma mesa de bilhar que ocupava quase a metade da sala. Um jogador solitário concentrou-se com todo cuidado em seu taco, sem se dar ao trabalho de olhar os recém-chegados, colocou a bola preta na caçapa com uma certa habilidade e endireitou-se, com uma exclamação de alegria.
Dave jogou o chapéu em cima da cadeira e passou as mãos pelos cabelos finos e escuros. Estava ficando grisalho.
Tem aí um quarto sobrando para a moça, Luke? Ela vai passar a noite aqui.
Que garota corajosa! — Havia humor em seus traços rígidos como granito. — Mas é uma surpresa agradável — acrescentou, desta vez dirigindo-se diretamente a Kim. — Eu, se fosse você, faria um seguro de vida.
Eu pensei, mas não tive tempo — ela retrucou, sorrindo sem querer para aquele homem que parecia inesperadamente amável, após passar uma hora na companhia de Dave. — Sinto muito se estou causando algum transtorno.
Nem pense nisto. Você é tão bem-vinda quanto as flores na primavera. — Pousou o taco, contornou a mesa, indo em direção a eles. — Mostre-se civilizado, homem, ou é segredo?
Luke Drummond, Kimberley Freeman — apresentou-os Dave, imperturbável. — É só isto o que você precisa saber. E em relação ao quarto...
Está bem, entendi tudo. — Levantou a mão, em um gesto de resignação. — Você é esperto como o diabo, Dave.
Vim aqui — disse Kim com firmeza — para ver meu noivo, Chris Adams. — Com uma sensação de desamparo ela notou a rápida mudança da expressão no rosto de Luke, reconhecendo no olhar que ele dirigiu a Dave a morte de suas últimas esperanças de que este último tivesse mentido a respeito de Chris.
Sim, está bem, vamos providenciar o quarto — disse Luke, após uma pausa breve e embaraçosa. Voltou-se para um corredor que levava para os fundos do prédio. — É por aqui.
Satisfeita? — perguntou Dave, baixinho, no momento em que ela se preparava para segui-lo. Kim ficou tensa e parou, erguendo a cabeça em um desafio, olhando bem em frente.
Não é tão fácil assim — disse. — Não basta que você diga.
— Luke lhe contaria a mesma história, se você lhe perguntasse.
— Não duvido — retrucou. — Não duvido que eles contariam a mesma história se eu me incomodasse em perguntar. — Ela fez de modo com que ele a encarasse, controlando-se para que seu tremor não a traísse. — Duvido que qualquer um destes homens tenha a coragem de contrariá-lo. Afinal, é o emprego que eles estão arriscando!
Os músculos de seu rosto retesaram-se enquanto ele cerrou os dentes. Durante um longo e intenso momento ele a contemplou fixamente antes de lhe dizer em tom brusco: — Deixe que eu lhe diga uma coisa. Coragem é o que não lhe falta. É uma pena que você não consiga juntar a ela um pouco de bom senso. Vou lhe dizer algo mais uma vez e, depois, não torno a repetir. Não vá embora pensando que o fato de você ser mulher lhe dá qualquer espécie de imunidade, no que me diz respeito. Eu quebraria a cara de um homem se ele me dissesse o que você disse, mas há outras maneiras de lidar com uma mulher, e você não apreciaria nenhuma delas. Kim mordeu o lábio inferior, deu-lhe as costas e foi atrás de Luke, encontrando-o no meio do corredor, diante da porta de um quarto pequeno, mas mobiliado com surpreendente conforto.
— Este quarto é para os raros executivos que vêm aqui — informou-a, parado ao lado da porta, enquanto ela verificava minuciosamente se o colchão era macio. — Receio que não seja exatamente o que se poderia chamar de primeira classe.
— Para mim está muito bom — assegurou Kim. — Vou passar somente uma noite aqui. Há muito tempo que trabalha aqui na mina, senhor Luke?
— Há uns dois anos. Mais um ano e então terei uma licença prolongada. Seis meses na Inglaterra, e depois voltarei por mais uma temporada.
— Não acha este clima um tanto insuportável?
— Acho. A maior parte do tempo é uma droga. Mas o dinheiro compensa.
Kim hesitou. — É casado?
— Nem pense nisto! Ainda não encontrei uma mulher em quem tivesse suficiente confiança para deixá-la sentada por três anos, esperando seu homem voltar para casa.
— Talvez nunca tivesse encontrado a mulher certa — ela replicou suavemente. — Existem algumas assim.
— Não quis ofendê-la. — De novo ele parecia estar pouco à vontade. — Vou mandar alguém para lhe arrumar a cama. Se vier até a sala de bilhar por volta das cinco providenciarei comida, a menos que não esteja sentindo fome.
Ela sacudiu a cabeça, vendo-o se afastar e decidiu que não podia deixar as coisas naquele ponto. Tinha de saber mais. — Luke. — O nome lhe escapou naturalmente, sem que ela pensasse. — O que você sabe a respeito de Chris?
— Pergunte a Dave. Ele sabe de todos os detalhes.
— É a você que estou perguntando — ficara pálida, porém mostrava-se decidida a prosseguir. — Preciso que alguém me confirme tudo antes de acreditar no que ele tiver a me dizer.
— Por que é que ele iria mentir? Ele não tem motivo algum para isto. Tanto quanto eu saiba, mais de uma vez ele tentou dar conselhos a Chris, antes que as coisas chegassem ao ponto a que chegaram.
— O que foi que aconteceu? — perguntou Kim em voz baixa. — Por favor, diga-me o que aconteceu, Luke.
Sua hesitação era evidente. Ele não queria falar a respeito do assunto, mas ela o tinha colocado em uma posição tal que ele dificilmente poderia se esquivar. — Não há muito o que dizer — admitiu por fim, com alguma relutância. — Houve uma briga entre Chris e um outro homem por causa da mulher com quem ele se envolvera, e o sujeito foi parar no hospital com duas costelas quebradas.
— Mas ele não perdeu o emprego?
— Não.
— Você acha que ele tinha razão para brigar?
Sentiu que ele voltava a ficar intimidado. — Claro, eu diria que ele tinha toda razão, sabendo como é que as coisas estavam com Mai.
— Mai? — Sentiu subitamente uma tensão enorme na garganta. Percebeu que ele a encarava e que seus olhos se enchiam de compreensão.
— Você não sabia que Chris fugiu com uma das nativas da aldeia? Pensei que Dave tivesse lhe contado.
— Não, ele não mencionou isso — Kim tentou racionalizar suas emoções. Então, a mulher era africana. Mas o que quer que ela fosse, fazia alguma diferença? Chris a tinha escolhido, preferindo-a à noiva que estava à sua espera na Inglaterra, tinha ido embora com ela, sem se arrepender aparentemente, partira para viverem juntos em uma cidade estranha, em um país estranho. Não, não tão estranho para ele, claro. Há quase dois anos que ele estava lá. A dor começava a se fazer sentir, penetrando em todos os recantos de seu corpo. Como podia ter mudado a tal ponto o homem que ela acreditara conhecer tão bem? Como é que ele fora capaz de lhe fazer isso, deixando-a imaginar toda espécie de coisas terríveis, enquanto o silêncio ultrapassava os dias e as semanas?
Não ouviu a porta que se fechava sem o menor ruído, permanecendo sentada e recordando a época em que tinha conhecido Chris. Ele tinha vinte e cinco anos e ela vinte, quando se conheceram, e se sentiram atraídos um pelo outro ao descobrirem que estavam sozinhos no mundo. O amor havia nascido devagarzinho entre eles; não era aquele fogo abrasador de que falavam os romances, mas mesmo assim era real e verdadeiro. Pelo menos ela tinha acreditado que sim. Kim podia lembrar o dia em que Chris tinha lhe falado a respeito daquele emprego em Serra Leoa, o entusiasmo com que ele enumerava todas as vantagens que lhe permitiriam ganhar dinheiro tendo em vista o futuro de ambos, mesmo que isto significasse adiar o casamento por três anos. Ê verdade que eles tinham até mesmo chegado a pensar em se casar antes que ele fosse para a África, porém acabaram concordando que era melhor esperar.
Ou fora ela que havia feito a proposta? De repente Kim se achou em meio às maiores dúvidas. Não fora o próprio Chris que levantara todas as objeções quanto a se separarem por tanto tempo?
O tempo havia se escoado tão lentamente... Chris escrevia pontualmente, mas isto não bastara. Haviam se passado seis meses desde que ela sugerira timidamente uma viagem para Serra Leoa. à procura de um emprego em Freetown, de maneira que pudessem casar logo, em vez de esperar o término do contrato de Chris. Sua resposta tinha sido rápida e incisiva. Era difícil adaptar-se ao clima, a menos que alguém fosse obrigado a fazê-lo, e ela se sentiria muito pior vivendo sozinha em Freetown, enquanto ele estava metido nas minas a algumas centenas de quilômetros, no meio das montanhas. Observou que já estavam quase na metade dos três anos e o tempo que restava passaria depressa. Por maiores desejos que tivesse de vê-la novamente, sentia que sua sugestão dificilmente iria ao encontro dos interesses de ambos.
Foi depois disto que as cartas dele começaram a mudar um pouco, a perder algo de sua antiga expansividade e a se tornar um tanto evasivas. Kim sentiu que algo não andava bem, apesar dele ter negado enfaticamente, quando ela lhe perguntou sobre isso. E então sobreviera a pausa prolongada, a súbita ausência de cartas, os cuidados e as preocupações. Kim se controlara durante sete semanas antes de ceder ao impulso que a trouxera da Inglaterra à África em busca de uma explicação. Para finalmente encontrar... aquilo.
Tentou reagir. A verdade tinha de ser encarada. A dúvida estava em saber que atitude ela iria tomar. De uma coisa tinha certeza: era preciso ver Chris, ouvi-lo dizer de uma vez por todas que não gostava mais dela. Até lá recusava-se a acreditar no fato. Os trópicos faziam muitas coisas a um homem, dissera Dave. Até aí ela estava disposta a compreender. Mas nunca se perdoaria se simplesmente deixasse as coisas naquele ponto.
Havia uma bacia em um dos cantos do quarto. Kim fez dela o melhor uso possível, naquelas circunstâncias. Arrumou-se o melhor possível e sentiu-se pronta para enfrentar o mundo novamente, apesar de a perspectiva de voltar a se encontrar com Dave ser mais do que suficiente para fazê-la decidir-se a permanecer no quarto.
Ficou aliviada ao ver Luke entre os homens reunidos na sala de bilhar e ainda muito mais por notar que Dave não fazia parte do grupo. Luke fez apresentações rápidas e sucintas, sem dar qualquer explicação sobre sua presença na mina. Na verdade, ninguém parecia especialmente interessado nisso.
Kim descobriu que eram de nacionalidades variadas, porém a maior parte era inglesa. Os africanos mais velhos podiam freqüentar o clube, as relações eram aparentemente amistosas, apesar de Chris ter dito em suas cartas que as coisas não eram sempre muito fáceis entre as raças.
Até às cinco e meia Dave não dera o ar de sua graça. Seu nome nem sequer fora mencionado. Kim sentou-se na companhia de Luke e de mais dois homens em uma das mesas do refeitório e comeu uma refeição insípida. Para sua surpresa, o café estava excelente. Terminado o jantar, Luke convidou-a para tomar um drinque no bar, onde ela se tornou novamente o centro das atenções. Kim não se incomodava com a irreverência bem-humorada daqueles homens. Eles eram rudes e em certos aspectos um tanto grosseiros, porém suas intenções eram boas. Alguns não viam seus países havia anos e declararam que não regressariam em hipótese alguma, preferindo ganhar a vida em empregos como aquele. Outros se referiam saudosamente a seus lares e à família e falavam de climas consideravelmente mais benéficos para a saúde. Era como se a presença de Kim houvesse aberto uma porta para estes últimos e liberado as saudades de casa que eles, até então, haviam conseguido dominar.
Ela não teve certeza de como foi que a briga começou. Um dos alemães estava na mesa ao lado falando sobre determinada região do Reno que ambos haviam visitado, quando um dos compatriotas de Kim subitamente chegou até ele, bateu em seu ombro e deu-lhe um murro no queixo, no momento em que ele se voltava para encará-lo. Logo em seguida ambos rolavam no chão, esmurrando-se mutuamente, enquanto os demais punham-se de pé e os incentivavam, encorajando e aconselhando aquele que parecia estar levando a pior.
Na confusão geral, as ordens de Luke mal foram ouvidas e totalmente ignoradas. Foi necessária a presença súbita de Dave para que aquela barulheira diminuísse, e mesmo assim ele teve de dar cotoveladas a torto e a direito até chegar aos dois brigões, agarrá-los pelo colarinho e obrigá-los a ficar de pé.
— Que foi que aconteceu? — perguntou Dave. — E por que logo aqui? Lá fora há espaço suficiente, se vocês quiserem se matar, mas não admito bagunça no clube!
O inglês lhe respondeu, porém Kim não conseguiu entender o que ele dizia com sua voz rouca, apesar da gesticulação, que obviamente dizia respeito a ela, ser mais do que eloqüente. Dave dirigiu-lhe um olhar severo, falou baixo com os dois homens em um tom carregado de significação e fez um gesto com a cabeça, em direção à porta.
— Daqui a quinze minutos é o novo turno de trabalho. Enfiem a cabeça debaixo do chuveiro e acalmem-se. Se houver mais alguma perturbação eu desconto um mês do salário de vocês dois.
Ambos saíram um tanto intimidados, seguidos por vários outros que acharam a retirada uma boa idéia. Dave caminhou em direção a Kim, ainda sentada à mesa ao lado do bar.
— Tinha que acabar acontecendo, não é mesmo? — disse Dave.
— Não fiz nada — ela replicou, com uma ponta de agressividade.
— Você, em meio a todos esses homens, estava dando atenção a um deles. Eu a tinha prevenido em relação a isto.
— Você não me disse nada quanto a simplesmente conversar com eles — ela retrucou, recusando-se a se deixar intimidar. — É minha culpa se alguém usa de pretexto para agredir alguém de quem ele não gosta?
— Aqueles dois — respondeu — costumam ser excelentes amigos. É sempre a mesma coisa. Basta que apareça uma mulher e sempre acaba saindo encrenca! A culpa foi minha. Eu devia tê-la deixado em algum lugar fora da vista deles, até que fosse embora.
— Devo esconder o rosto em um saco até o fim da noite?
— Não — disse Dave. — O mal já está feito. Acho melhor ficar em minha companhia de agora em diante.
— Está na hora de eu ir trabalhar — comunicou Luke. — Como está o tempo lá fora?
— Ao que parece, está se armando uma tempestade lá para as bandas do poente, antes de anoitecer — Dave não parecia preocupado. Naquela parte do mundo eles deviam estar acostumados a trabalhar sob a chuva, pensou Kim, recordando as aulas de geografia dos tempos da escola. Não era, como apontara Chris, um clima especialmente favorável para se viver e trabalhar. A depressão voltou a apoderar-se dela e fez um esforço consciente para não pensar no dia de amanhã, enquanto não chegasse a hora. Não importa o quanto ela se preocupasse com o problema, nada poderia ser feito fora do momento apropriado.
— Mais um drinque? — perguntou Dave, após a partida de Luke. Olhou no copo dela. — O que estava tomando?
— Gim com limão — ela respondeu prontamente.
— Mais uma semana neste lugar e você acabará esquecendo o limão. Vai tomar um drinque comigo ou será que não mereço?
— Você ainda tem dúvidas? — Ela ergueu as sobrancelhas, um pouco surpreendida com sua audácia em enfrentar um homem daqueles, mas sem conseguir esquecer aquele instante de bom humor da parte dele. — Claro que vou tomar um drinque em sua companhia, senhor Dave.
— O que sua família achou de você vir sozinha até este fim de mundo? — perguntou Dave, enquanto solicitava as bebidas.
— Meus pais já morreram — ela respondeu. — Dependo só de mim desde a idade de dezoito anos.
— Isso sem contar com Chris.
— Chris e eu estivemos juntos durante um ano. Prefiro não falar neste assunto, se você não se importa.
— Claro que não me importo. Pensei que você gostaria de desabafar.
— Mas não com você — respondeu bruscamente, mas se arrependendo no mesmo instante. Ele parecia estar se esforçando para agir como um ser normal naquela noite. Por que ela não poderia adaptar-se à situação e deixar de lado seus sentimentos em relação a ele? — Quero dizer — acrescentou — que você está envolvido demais no assunto para ser objetivo e não acho que seja justo para Chris eu dar ouvidos ao que seja contra ele, antes de ouvi-lo.
— Justo? — Ele deu uma risada breve. — Você não acha que isto é levar a tolerância um pouco longe demais?
— Você mesmo disse que aqui acontecem coisas com as pessoas, que jamais sucederiam em outro país. Chris pode ter tido...
— Pode ter tido, não — ele interrompeu bruscamente. — Teve. Está certo, um homem pode procurar de vez em quando uma mulher que satisfaça suas necessidades, mas ele não precisa se juntar com uma delas, como Chris fez.
— Que outra escolha você lhe proporcionou? — ela perguntou. — Foi você quem o expulsou daqui.
— Somente depois que ele se recusou a desistir da mulher. Só resta esperar que o marido e os irmãos dela jamais descubram onde eles estão.
Kim cerrou os olhos por um momento. As coisas estavam piorando.
— Não quero falar neste assunto — disse.
— Na realidade você não quer é enfrentá-lo. Você ainda está se agarrando na esperança de que a história toda esteja mal contada, não é mesmo? — O tom de sua voz era frio e premeditado. — Pois eu lhe garanto que não está, e você não vai conseguir nada indo até lá amanhã, a não ser se machucar ainda mais. Por que você simplesmente não aceita a situação e volta para casa?
— Cale-se! — O tom de sua voz era baixo e irado. — Você não tem nada a ver com isso.
— Gostaria de pensar do mesmo modo. Você alguma vez pensou em escrever à administração da mina pedindo informações sobre seu noivo, ou costuma ceder sempre a seus impulsos?
Ele tinha uma percepção muito nítida dela, porém Kim recusou-se a lhe dar a satisfação de saber que atingira o alvo. Ela era impulsiva e sempre tinha sido. Se dependesse dela teria casado com Chris poucos dias depois que o conhecera, porque havia sentido que ele era um homem com quem ela podia ser feliz. Chris se mostrara infinitamente mais cauteloso, testando seu relacionamento, descobrindo interesses mútuos, passando muito tempo a seu lado, antes de tomar qualquer iniciativa que o levasse a um envolvimento mais profundo. Era por isso que ela achava tão difícil admitir este novo Chris que mandara tudo às favas em nome do... Em nome do quê? Do amor? Do desejo? Era isto que ela teria que descobrir.
— O que o leva a pensar que me contentei em aceitar o que li em uma carta? Se você me contasse esta mesma história, ainda assim eu teria vindo.
— Você quer enfiar na cabeça que não se trata apenas de uma história? — disse ele, entre dentes. — Meu Deus, eu conheço cada mulher...
— Tenho certeza que conhece — ela o interrompeu afoita. — Mas nem por isso você entende quais são as razões que levam uma mulher a agir.
— Não? — ele replicou suavemente, em um tom carregado de intenções. — Muito bem, amanhã veremos quem estava com a razão.
Kim fitou-o por um longo momento, atraída pela força de seu olhar. — Amanhã?
— Eu a conduzirei até Freetown e irei com você procurar seu cavaleiro andante. Se há uma coisa de que eu gosto é comprovar minhas teorias.
— Não quero que você esteja a meu lado quando encontrar Chris e, para falar a verdade, em nenhuma outra ocasião.
— Que pena. — Levantou-se da cadeira. — Vou mandar servir o café da manhã em seu quarto às seis e meia, e partiremos às sete. Quer acabar de tomar seu drinque agora ou prefere levá-lo?
Ela mostrou-se cautelosa. — Para onde?
— Para a cama. — Ele sorriu zombeteiramente ao notar a mudança de expressão em seus olhos. — Não para a minha, para a sua.
Tenho de sair novamente, e não vou deixar você sozinha aqui para provocar mais um incidente como aquele.
— Não são ainda nem oito horas — ela observou.
— Pois é, não são nem oito horas. Leve algumas revistas para ler no quarto ou, se preferir, fique sentada, olhando as horas passarem. Em qualquer hipótese, sozinha você aqui não fica. Certo?
Sobravam a Kim muito poucas alternativas, e ela não queria passar pela humilhação de ser tirada de lá à força. Fazia apenas algumas horas que ela conhecia Dave e não queria conhecê-lo muito mais do que isto, porém aprendera que ele não era do tipo que dispensaria a menor consideração à sua sensibilidade, se ela se interpusesse em seu caminho. Deixou o copo onde estava e levantou-se, consciente da atenção que ambos despertavam enquanto saíam da sala. Se pudesse ler o pensamento deles, descobriria que na manhã seguinte sua reputação estaria em frangalhos.
Dave deixou-a diante da porta do quarto que lhe tinha sido designado, pois aparentemente não. confiava que ela fosse para lá de livre e espontânea vontade. Com algum esforço, Kim refreou seu desejo de perguntar satiricamente se ele gostaria de trancá-la no aposento. Ele seria mais do que capaz de aceitar a sugestão. Uma vez dentro, andou inquieta em direção à janela. Não havia muito o que ver, é claro, a não ser o brilho das lâmpadas que iluminavam o local e a sombra escura das árvores ao longe, em direção ao desfiladeiro. O ruído surdo das máquinas pulsava na noite, e bastaria um pouco de imaginação para transformá-lo no som de tambores ecoando na floresta. O lar, a rotina diária de ir ao escritório, as noites compridas e solitárias, tudo isto parecia estar a milhares de quilômetros. Aqui estava a África, quente, úmida e perigosamente imprevisível quanto a seus efeitos sobre as emoções humanas. Nunca devia ter vindo para cá, pensou. Dave tinha razão quanto a isto. No mais profundo de si mesma já começava a sentir-se diferente, e não era uma diferença que lhe agradasse.
A chuva antecipada veio como uma vingança pouco depois da meia-noite, soando como uma rajada de metralhadora contra o teto de zinco. Kim estava alagada de suor, incapaz de dormir. Nenhum outro som interferia no ruído interminável da chuva. Sozinha no quarto pequeno, ela sentiu-se isolada e vulnerável, apesar da porta estar fechada, impedindo possíveis intrusos. Finalmente, exausta, mergulhou em um sono agitado que se prolongou até o raiar do dia.
Conforme lhe fora prometido, o café da manhã foi servido às seis e meia. Por volta das sete, quando se preparava para deixar o quarto, o sol sugava a umidade da terra através da névoa quente e a temperatura já se elevava para os trinta e cinco graus. Consciente do aspecto amarrotado da blusa e da calça após um dia de uso, Kim dirigiu-se ao encontro de Dave no refeitório, retribuindo sua breve saudação com um gesto distante.
A caminhonete estava lá fora como antes, só que desta vez não havia espectadores, no momento em que ela se acomodou. Dave não falou enquanto esquentava o motor e guiava estrada afora em direção ao portão principal.
Parou por alguns minutos no portão e foi trocar algumas palavras com o guarda, deixando-a no carro. Voltou logo em seguida; atravessaram o portão e desceram montanha abaixo, em direção à estrada que serpenteava pelo desfiladeiro. Kim estremeceu involuntariamente no momento em que o estrondo de uma explosão encheu os ares, porém Dave nem sequer se dignou a olhar.
— Estamos usando novamente a dinamite — foi a explicação que ele ofereceu. — É a maneira mais fácil de chegar ao minério. — Olhou-a rapidamente e seu rosto era inescrutável. — Não mudou de idéia?
— Claro que não. — Ela o disse evidenciando uma convicção maior do que sentia. Agora que a hora se aproximava, começava a pensar que teria sido preferível pedir-lhe que simplesmente a deixasse no hotel, dando-lhe a impressão de que voltaria para casa na primeira oportunidade. Tinha um pressentimento de que ele insistiria em esperar até que ela tivesse se avistado com Chris, mesmo que fosse para lhe dizer que a prevenira, e isto significava que ela provavelmente teria de admitir tudo o mais. Procurou reagir interiormente. Nem sequer chegara a ver Chris e não ouvira a sua versão dos fatos. Até então ela não faria planos.
A viagem até Freetown tomou muito menos tempo do que a ida em um táxi velho. Abandonaram as terras áridas do planalto e agora percorriam os renques de palmeiras do vale. De vez em quando cruzavam por aldeias abrigadas à sombra das árvores. As casas, de teto de duas-águas e janelas de treliça, enfileiravam-se uma após outra. E em todos os lugares via-se a vegetação luxuriante, que avançava como uma maré verde, esperando o momento de cobrir tudo que estivesse em seu caminho. Mais adiante surgiu a curva majestosa da baía e o mar de telhados que se abrigavam ao pé da montanha, estendendo-se em direção ao sul da península.
A cidade era brilhante e colorida; o tráfego era intenso nas ruas e a umidade era tremenda. Dave parou o carro em uma rua estreita que dava no porto, e na qual os andares superiores das casas de concreto e zinco quase se tocavam.
— É isto aí, até que o dinheiro acabe — disse ele, com uma ponta de cinismo. — E neste lado do mundo isto não custa muito para acontecer. — Ele debruçou-se e abriu a porta. — Vou acompanhá-la até lá. Caso contrário você não vai conseguir.
Kim levantou-se e suas pernas começaram a tremer subitamente; ela quase chegou a desejar ter aceito seu conselho e deixar as coisas como estavam. Um bando de crianças negras que brincavam na poeira da rua olharam para eles com indisfarçada curiosidade enquanto se dirigiam para uma das casas. Kim sorriu para eles, sentindo-se um tanto insegura, e foi recompensada com risadas que exibiam dentes alvíssimos. Dave abriu a porta da casa sem se incomodar em bater e conduziu-a por um corredor estreito, tomado por um aroma estranho e penetrante.
Sem nenhum aviso uma mulher jovem apareceu no fundo do corredor e lá ficou a olhá-los, com as mãos nas cadeiras bem modeladas. Tinha mais ou menos vinte e cinco anos de idade, os ossos da maçã eram salientes e os olhos rasgados, típicos da beleza negra. Jóias douradas luziam em suas orelhas e nos pulsos e um cinto igualmente dourado cingia-lhe a cintura apertada, ressaltando as cores vivas da roupa.
— Por que volta aqui de novo? — perguntou em inglês. Seus olhos dardejaram, ao encontrar os de Dave e em seguida admirou com certa insolência a figura esguia de Kim. — E por que traz esta mulher?
— Onde é que ele está? — ele disse, ignorando ambas as perguntas.
— Aqui não está. Vão embora! — Sua voz tinha se alterado e todo o corpo enrijecera. — Você vem aqui para atrapalhar Chris. Sempre que você vem aqui tem atrapalhação para Chris!
— Pois a atrapalhação de verdade ainda nem começou. — Dave deu um passo adiante. — Onde é que ele está? Lá em cima?
— Você não pode subir lá! — Colocou-se diante dele, impedindo o acesso à escada. — Ele não quer ver você!
— Eu também não tenho razões para querer vê-lo — foi a resposta imperturbável. — Mas esta senhora quer. Você vai trazê-lo aqui para baixo, ou sou eu quem devo ir?
— Mai? — A voz vinha do andar superior. — Mai, o que é? Quem está aí?
Dave levantou a voz. — Sou eu. Dave Nelson. Sua noiva está aqui embaixo comigo. Você desce ou quer que eu a leve aí para cima?
Houve uma longa pausa. Kim permaneceu imóvel, apoiada contra a parede pardacenta, odiando Dave pela maneira como ele tinha anunciado sua presença, odiando com todas as suas forças aquela história sórdida. Ouviu-se um barulho no topo da escada e aos poucos um homem fez-se visível, abaixando a cabeça para evitar as vigas baixas. A última vez que ela vira Chris ele usava um terno muito bem cortado e seu cabelo estava cuidadosamente penteado. À primeira vista o homem que estava diante dela agora correspondia muito pouco à sua recordação. Usava uma calça amarrotada, que dava a impressão de que ele tinha dormido com ela, e a camisa estava desabotoada até a cintura. O cabelo claro estava comprido e mal cuidado, fazendo com que seu rosto parecesse mais magro, enquanto aqueles olhos azuis, que ela sempre achara tão francos, desviavam-se dos dela, depois de fitá-los com surpresa, como coelhos que se refugiam na toca.
— Alô, Chris — ela conseguiu dizer. — Eu... sinto vir incomodá-lo desse jeito.
Dave proferiu uma exclamação de contrariedade e disse bruscamente. — Vou esperar no carro.
Houve outra pausa enquanto ele se retirava e então Chris moveu-se desajeitadamente, indicando uma porta do lado oposto ao que ela se encontrava. — Acho melhor você entrar lá.
— Não! — Desta vez foi Mai quem se moveu, plantando-se diante da porta, com uma expressão de contrariedade no rosto. — Ela não entra lá. Diga a ela pra ir embora, Chris. Você diz, está ouvindo?
— Está tudo bem, Mai. — Sua voz era envolvente. — Está tudo bem. Olhou para Kim e levantou os ombros. — Por que você veio? Eu disse a você que não viesse.
— Isso foi há seis meses — ela relembrou, em voz baixa. — Por que você acha que eu vim? Por que você não teve a coragem de me escrever e me contar a respeito... disso? — Sua voz tremeu um pouco. — Por que, Chris?
— Porque sou um covarde, quando acontece uma coisa dessas, suponho. Esperei que você fosse suficientemente sensata para compreender que eu havia desistido, assim que parei de escrever. Eu jamais esperaria que você aparecesse por aqui.
— Obviamente. Não podemos ir conversar em algum lugar, somente nós dois? Você me deve uma explicação.
Ele hesitou, deparou com o olhar de Mai e sacudiu lentamente a cabeça. — Não vai adiantar nada. Não pretendo voltar. Sinto muito que as coisas tivessem de terminar deste jeito, mas é assim mesmo. Tudo o que eu quero está aqui.
Kim desviou o olhar ao notar a expressão de triunfo no rosto arrogante de Mai, sentindo-se vitoriosa. — E quanto ao futuro? O que é que você vai fazer quando não tiver mais sustento?
— Eu me preocuparei com isto no tempo devido. Ganhei um bom dinheiro nestes dois últimos anos. — Havia uma crueldade inconsciente em suas palavras, ou seriam tão inconscientes assim? Kim ficou a imaginar, confusa. Talvez ela tivesse se enganado em relação a Chris o tempo todo. Talvez ele tivesse sido sempre um egoísta, só que ela não tinha se permitido reconhecer o fato. Fosse o que fosse, agora pouco importava. Não havia muito sentido em prolongar o encontro.
— Está certo — disse Kim. — Irei embora, se é isto que você quer.
— Acho melhor. Você não precisa se preocupar comigo.
— Não — ela concordou, desanimada —, acho que não. Não mais. Adeus, Chris.
Deixou-os no corredor e saiu rapidamente para a rua, à luz do sol. Sentia uma dor aguda no peito e sua garganta estava seca e dolorida. Ele não indagou como ela havia chegado lá, e não mostrara o menor interesse em saber se tinha ou não condições de voltar. Perante ele, Kim tinha feito o possível para não deixar transparecer o que estava sentindo. As coisas haviam chegado àquele ponto: tudo acabado, para sempre. Ela agora estava sozinha.
Dave olhou-a atravessar a rua, caminhando em sua direção, e sentando-se no banco do automóvel que ocupara até há alguns instantes. Seu rosto estava impassível. — É agora, para onde vamos?
— Para meu hotel, suponho. Será que deram meu quarto para alguém, depois de ter passado a noite fora?
— É possível. Temos de verificar. Há outros hotéis. — Ligou a chave do carro e antes de partirem perguntou: — Você veio de avião ou de navio?
— Avião. — Ela olhou adiante sem pestanejar, antecipando a próxima pergunta com os nervos à flor da pele.
— Há um vôo para a Inglaterra amanhã — disse Dave. — Se você tem um mínimo de juízo embarcará nele. — O silêncio de Kim chamou sua atenção, e a expressão de seu rosto alterou-se. — Você reservou a passagem de volta, não é mesmo?
— Eu tinha dinheiro somente para a passagem de vinda. A viagem para cá é um tanto cara.
— Não me diga. — Buzinou para um cachorro que atravessava a rua, desviou-se e voltou a olhá-la. — Desculpe a pergunta, mas quais são seus planos imediatos para o futuro?
— Não sei — ela confessou — Ainda não consegui pensar nisto.
— Você quer dizer que fez uma viagem para o desconhecido com o objetivo de encontrar seu homem ou então perecer? Como eu disse antes, você é uma mulher e tanto, Kimberley Freeman!
— Sou sim, com toda certeza! — Ela pretendeu que as palavras soassem irreverentes e jocosas, mas sua voz subitamente falhou e sentiu que as lágrimas lhe afloravam aos olhos, como reação ao que experimentava. Dave lançou-lhe um rápido olhar, entrou em uma viela espremida entre dois prédios e estacionou o carro diante de um muro que fechava a passagem.
— Muito bem — disse Dave. — Acalme-se.
De repente Kim se deu conta de que estava apoiada contra seu peito e que seus braços sólidos a rodeavam. Então descarregou toda a tensão acumulada durante as últimas semanas, explodindo em soluços que acabaram por deixá-la exausta. Mesmo quando recuperou calma suficiente para saber o que estava fazendo e com quem, não quis se mexer. O braço em volta de seus ombros era como uma barricada contra o mundo, uma armadura de metal que a protegia de uma dor maior. Queria permanecer como estava, segura e a salvo.
— Desculpe — disse Kim baixinho. — Eu não sei o que aconteceu comigo.
— Não sabe? — indagou ele, secamente. — Bem, deixando este assunto de lado por um momento, vamos tentar pôr as coisas em ordem. Quanto dinheiro você tem?
— Por volta de vinte libras.
Ele proferiu uma pequena exclamação. — Isto não a levará muito longe.
— Posso conseguir um emprego — ela disse, defendendo-se.
— Fazendo o quê?
— Não sei. Um trabalho como secretária, acho.
— Até parece que você tinha planejado tudo. Você acha que é assim tão fácil?
— Provavelmente não. De qualquer modo você não precisa mais se preocupar comigo. Por favor, queira me deixar no hotel.
Ele não se moveu imediatamente, apenas ficou ali sentado, olhando-a com aquele ar calculista que ela já havia notado antes. — Tem certeza de que é isto mesmo que você quer?
— É um lugar tão bom quanto qualquer outro. — O amor-próprio ajudava-a a manter o tom da voz inalterado. — Preciso ter um ponto de referência enquanto estiver procurando emprego.
— É mesmo?
Era impossível saber o que ele estava pensando, enquanto guiava o carro para fora da viela. Kim ficou a imaginar por que ele tinha feito aquela pergunta aparentemente tão supérflua. Havia muito pouca coisa a ser feita, senão voltar para o hotel, apesar de que o dinheiro dava para mantê-la somente por alguns dias. Se durante aquele período ela não conseguisse encontrar algum emprego... Procurou afastar aquele pensamento com toda firmeza... Era uma ponte que iria de atravessar quando chegasse o momento.
A primeira ponte a ser atravessada veio muito antes do que ela imaginara. O gerente do hotel mostrou-se polido, porém irredutível. Como ela não tinha voltado na noite anterior, presumiram que ela não precisava mais do quarto e o tinham dado a outra pessoa, havia uma hora. A bagagem seria retida, até que ela pagasse a conta relativa às duas noites em que o quarto tinha sido reservado em seu nome.
— Pague — disse Dave laconicamente — e vamos embora daqui.
— Ele estava apoiado no balcão da recepção, ao lado de Kim, aparentemente sem se dar conta do papel que o gerente do hotel obviamente lhe atribuíra na vida da garota. Kim não questionou sequer um minuto a conveniência de sair de lá o mais rapidamente possível, sobretudo quando viu o tamanho da conta por apenas dois. dias de estada. Mais uma semana lá e ela estaria à beira da falência.
— E agora? — perguntou Dave, quando saíram. — Outro hotel?
— Imagino que sim. — Acrescentou com alguma relutância: — Você conhece algum outro, menos caro do que este?
— Claro — disse ele. — Mas em nenhum dos que conheço eu me arriscaria a deixar uma mulher sozinha.
— Não me restam muitas alternativas — ela respondeu, preocupada. — Tenho que aceitar o que me aparecer.
— Mas não aquilo em que estou pensando. — Encarou-a, mordiscando o lábio inferior. — Acho que estamos precisando tomar um drinque antes de prosseguirmos no assunto.
— Não quero beber, obrigada. Se você não me indicar um lugar conveniente para ficar terei de procurar eu mesma. — Pegou a mala com ar de desafio. — Até logo, senhor Dave. De qualquer modo, obrigada por me trazer à cidade.
— Um momento. — Ele avançou e tomou a mala de suas mãos. — Muito bem, entre no carro.
Kim obedeceu sem discutir. Uma coisa era ser orgulhosa, mas naquele momento ela precisava de sua ajuda. Iria se sentir terrivelmente só, quando ele a deixasse, admitiu, tremendo. Deixando de lado seus. aspectos negativos, havia algo em sua presença que inspirava um sentimento de segurança. Enquanto ele estivesse por perto nada de mal poderia lhe acontecer.
— Em que parte da cidade fica o hotel em que você está pensando? — ela indagou após alguns momentos, supondo que ele se localizaria nos subúrbios, como era provável, em se tratando de um lugar mais barato. Nesse caso ela teria de economizar, vindo a pé todos os dias até o centro, a fim de começar a procurar emprego.
— Que hotel? — foi a resposta. — Eu disse a você que íamos tomar um drinque.
— E eu lhe disse que não queria beber! Pare o carro e deixe-me saltar. Pode deixar que eu encontrarei um lugar!
— Para início de conversa, você nem saberia onde procurar. De qualquer modo, tenho uma proposta a lhe fazer.
— Proposta? Quer dizer que você sabe de um emprego para mim?
— Talvez. — Lançou-lhe um breve olhar. — Você se sai bem com cifras?
— Até que sim. Fiz um curso de contabilidade.
— Muito bem. — Parou diante de um bar um pouco afastado da rua.
— Daqui de onde estamos podemos ficar de olho na sua mala — comentou, escolhendo a mesa mais próxima da entrada. — Aqui neste lugar o que não falta é ladrão. — Dave pediu as bebidas ao garçom. — Precisamos de alguém no departamento de pessoal — disse, como se não tivesse havido a menor pausa entre este comentário e o anterior.
— Lá na mina, quer dizer?
— E onde mais? — Apressou-se em acrescentar: — Devo entrar de férias dentro de umas cinco semanas. O emprego duraria até então e o salário é bom.
As coisas começaram a ficar claras. — Oh, percebo — disse ela.
— Quer dizer que como empregada da companhia provavelmente poderia comprar a passagem de volta com desconto?
— É possível. Mesmo tendo isto em mente duvido que você consiga em tão pouco tempo ganhar o suficiente para adquirir uma passagem para a Inglaterra. O emprego é só para ajudá-la, para que você tenha o que fazer enquanto estiver presa aqui. Se fizer a viagem de volta comigo a passagem será grátis.
Kim franziu o cenho. — Não percebo qual a diferença que isto faria.
— Faz, sim, se você estiver usando o meu sobrenome, Nelson. — Seus lábios se afastaram ironicamente ao perceber a expressão de espanto que surgiu em seu rosto. — É uma medida temporária, naturalmente. Assim que chegarmos na Inglaterra tomaremos uma providência. O principal é que a coisa, sendo legal, poupará muito trabalho.
A cabeça de Kim girava. Casar com um homem a quem ela conhecia há menos de vinte e quatro horas? Era simplesmente fantástico! E, no entanto, de seu próprio ponto de vista a proposta dele fazia um certo sentido. Na qualidade de esposa de Dave Nelson, ela não teria de enfrentar a menor dificuldade com as autoridades e a situação significaria uma dupla segurança, no que dizia respeito a seu emprego na mina. E a coisa toda não era como um casamento de verdade. Ele simplesmente estava lhe oferecendo a oportunidade de sair de uma situação a que fora levada por sua própria impetuosidade, pois de certo modo se sentia responsável por ela. Isto lhe servia para mostrar até que ponto era possível julgar alguém mal, a partir de uma primeira impressão.
— Eu... eu não sei o que dizer — conseguiu responder finalmente.
— Você consegue pensar em uma solução melhor? — disse Dave.
— Não — ela teve de reconhecer. — Não, não consigo. Assim eu poderia voltar para casa com algum dinheiro no bolso e em tempo razoavelmente curto. — Fez uma pausa, encontrou seu olhar e baixou rapidamente os olhos, fitando o tampo da mesa. — Não consigo entender por que você vai tão longe para me tirar de uma situação difícil. Afinal de contas, somos totalmente estranhos um para o outro.
— Ambos somos ingleses — disse ele, irônico. — Isto significa alguma coisa. Digamos que não posso deixar uma patrícia em apuros. Então, está de acordo?
— Como você mesmo disse, não há outra solução. Pelo menos não consigo pensar em nada melhor. — Ela hesitou, pois mal podia acreditar que ele estivesse sendo sincero. — Quando foi que você teve a idéia... quero dizer, há quanto tempo...
— Se fosse hoje, por exemplo? — ele respondeu, tranqüilo.
— Hoje?
— Claro. — Ele parecia estar se divertindo. — Isto a incomoda?
— Não. Não, claro que não. — Kim não tinha certeza absoluta de que estivesse dizendo a verdade. Hoje! Tudo tinha sido tão rápido! Rápido demais. Não lhe dava tempo para pensar. E, no entanto, não seria esta a melhor solução, pensando bem? As próprias circunstâncias não aconselhavam ir levando as coisas adiante? De que. adiantava esperar? Nem por isso sua situação se modificaria. Além do mais, era reconfortante saber que tudo poderia se resolver daquela forma, ter alguém em quem confiar. Os mineiros podiam ser duros na aparência, mas certamente possuíam qualidades inestimáveis.
Os drinques foram servidos. Kim levantou o copo impulsivamente e sorriu para o homem sentado diante dela. — Ao dia de hoje — brindou. — Jamais cometerei o erro de julgar alguém tão precipitadamente.
Depois disso, tudo pareceu acontecer em meio a uma atmosfera de sonho. Saindo do bar, Dave voltou novamente para a cidade dirigindo-se para um grande edifício de aparência oficial, situada em uma das ruas mais movimentadas. Deixou-a sozinha por alguns minutos no amplo hall de espera e ao voltar encontrou-a sentada na mesma posição. Sua mente estava tão ausente quanto sua expressão. Em seguida, encontraram-se em uma sala pequena com algumas outras pessoas, em meio a muita conversa e ao barulho do carimbos que se apoiavam sobre documentos. Kim repetiu o que Dave lhe ordenara dizer, sem compreender o sentido exato das palavras, retribuiu um sorriso de despedida ao funcionário que os atendera e encontrou-se novamente na rua, indo em direção ao carro, ao lado de Dave.
— Vamos almoçar —, disse ele displicentemente. — Em seguida voltamos. Já está ficando tarde e quando chegarmos será noite.
Levou-a até um pequeno restaurante situado em uma travessa, onde, a comida era bem temperada e abundante, o vinho levemente ácido, porém muito agradável. Não parecia haver muita coisa a ser dita. Kim desejou ter o tempo e a oportunidade de tomar um banho e trocar de roupa, mas não parecia passar pela cabeça de Dave que tais assuntos tivessem importância para ela naquele momento. Nem o calor, nem a umidade pareciam afetá-lo muito. Ele enfrentava a situação e a encarava como parte do seu trabalho. A estação chuvosa deveria começar por aqueles dias, pensou Kim. A tempestade da noite anterior tinha sido apenas um prelúdio, um aviso. Ela imaginou como seria nas montanhas, quando as tempestades de verdade começassem a cair.
Novamente no carro, sentou-se, sentindo-se desligada da realidade. Não havia se passado quatro horas desde que eles chegaram à cidade como dois estranhos, e no entanto agora o homem sentado a seu lado era seu marido. Lançou um olhar para aquele perfil duro e bem delineado, baixou os olhos para as mãos que seguravam a direção com firmeza e sentiu um pânico momentâneo. Tratava-se apenas de um arranjo conveniente e de mais nada. Não havia nada a temer, não havia por que se preocupar. Dave dera a entender claramente desde o início que ela não era seu tipo.
A noite mal dormida, os acontecimentos da manhã, o calor e o vinho que havia bebido ao almoço, tudo isto começou a fazer efeito ao mesmo tempo. Mal tinham se afastado alguns quilômetros da cidade e as pálpebras de Kim começaram a cerrar-se. Até mesmo o barulho que fazia o carro ao deslizar pela superfície áspera da estrada não era suficiente para mantê-la acordada. Quando finalmente conseguiu abrir os olhos já era quase noite, e sentiu uma dor incômoda no pescoço, no ponto em que sua cabeça se apoiara desajeitadamente de encontro à porta. Sentou-se ereta, massageando o lugar dolorido, deparou com o olhar de Dave e sentiu um tremor percorrendo seu corpo, no mesmo momento em que lhe voltava a memória.
— Onde estamos? — perguntou.
— A alguns quilômetros da mina. Você dormiu de fato.
Não podia pensar em mais nada para dizer. Estavam a apenas alguns quilômetros da mina e a distância diminuía cada vez mais. Tentou imaginar a cara de Luke quando entrassem no clube e as reações que despertariam nos outros homens. As coisas aconteciam depressa nos trópicos, mas não tão depressa assim. Imaginou quantos ficariam a par do que acontecera ou se Dave encararia o assunto como coisa dele e de mais ninguém. Claro que ninguém alimentaria grandes dúvidas quando soubessem que ocupavam quartos separados. Supunha que Dave dormia no clube. Até aquele momento não pensara no assunto. Mas eles todos não poderiam dormir lá, não é mesmo?
— Eu ouvi você falar de chuveiros ontem à noite — perguntou Kim, alguns quilômetros adiante. — Neste momento sinto que não há nada que eu deseje tanto.
— Quer dizer que Luke não lhe mostrou o lugar? Que relaxado! — Lançou-lhe rapidamente um olhar, enquanto sua silhueta se recortava contra a tarde que caía. — Como é que você se arranjou?
— Fiz o que pude, usei a bacia. Você mora no clube?
— Não — disse ele. — Os engenheiros mais graduados têm casa à sua disposição. Estão situadas em uma clareira, do outro lado do clube; é quase uma aldeia. Há vários banheiros nos fundos. É um tanto primitivo, mas resolve o problema. No entanto, acho melhor você usar o banheiro do clube hoje à noite.
Uma casa que era só dele. Kim não tinha certeza de como se sentia em relação a isto. Naquele exato momento não tinha certeza de como se sentia em relação ao que quer que fosse. O dia tinha transcorrido em meio a uma sensação indeterminada, como um sonho que começa a dissipar-se no momento em que se desperta. Os portões da mina assomavam ao longe, desenhados contra o crepúsculo graças às luzes dispostas em arco. O guarda fez sinal para que entrassem e Dave tomou a estrada estreita que levava ao clube. As luzes do farol incidiram sobre os tufos de samambaias gigantes que se espalhavam por entre as árvores. Então pararam diante do edifício todo pintado de branco e Dave retirou sua mala do banco de trás.
O silêncio pairou na sala do clube, no momento em que entraram. Todos os olhares se pousaram sobre eles e a curiosidade estampou-se em cada rosto. Dave não lhes prestou atenção e atravessou a sala tendo Kim a seu lado, em direção ao corredor. Assim que saíram a conversa reiniciou e houve uma súbita explosão de gargalhadas. Com o rosto pegando fogo, Kim esperou até que Dave parasse diante de uma porta à direita antes de dizer, insegura: — O que é que você vai contar a eles?
Voltou-se e a encarou, com a mão na maçaneta da porta. — A verdade, é evidente. Que mais poderia dizer? — Não esperou pela resposta, mas girou a maçaneta e escancarou a porta. — Tranque e ninguém a incomodará. Vou providenciar comida.
Kim recebeu a mala de suas mãos e entrou na sala comprida, na qual uma das paredes era tomada por cubículos com chuveiros. Fechou a porta e girou a chave, como ele tinha determinado, em seguida colocou a mala em cima do banco que ocupava o outro lado da sala e, abrindo-a, escolheu um vestido estampado.
Quinze minutos mais tarde, sentindo-se refrescada e desperta, saiu do banheiro e dirigiu-se para a sala de jantar. O ruído dos talheres cessou de repente, assim que ela entrou. Kim endereçou um vago sorriso para todos os presentes e manteve os olhos fixos em Dave, enquanto atravessava a sala em direção à mesa onde ele estava sentado, consciente do modo como ele a olhava.
— Veio mais cedo do que eu esperava — comentou, enquanto ela se sentava na cadeira em frente. — Pedi gim com limão para você. Está bem?
— Gostaria que eles parassem de olhar — murmurou, pouco à vontade. — Eu me sinto como se fosse um monstro.
— Uma mulher como você é uma raridade por estas bandas. A última mulher que apareceu por aqui era uma psicóloga alemã, um tanto avantajada, e dificilmente ela teria condições de elevar a temperatura de quem quer que fosse. Tente ignorá-los. Eles não irão embora, mas se tornarão parte do cenário.
— Eles todos sabem? — perguntou.
— Sabem o quê?
— Que nós... — Ela mordeu o lábio inferior, percebendo um brilho irônico em seu olhar. — Você sabe a que me refiro.
— Em breve ficarão sabendo. Não é necessário que eu me levante e faça uma comunicação formal.
— Kim esperou até o garçom colocar a sopa diante deles e afastar-se. Então perguntou, insegura: — Será que eles vão acreditar? Afinal de contas, eu nem sequer estou usando anel.
— E se estivesse, isto provaria alguma coisa? — Estudou-a por um momento. — Você tem alguma objeção quanto ao fato de não usar nenhum?
— Bem — disse ela, defendendo-se — é o costume, não é mesmo?
— Não tinha pensado no assunto — ele reconheceu. — Vou ver o que posso fazer. — Fez um gesto, apontando para seu prato. — Você não vai comer? Eu sei que não é o Hotel Ritz, mas não deixa de ter seus méritos.
— Nunca pus os pés no Ritz, portanto não tenho nenhuma referência para comparar. O restaurante na esquina, perto de casa, estava mais ao alcance de minha bolsa. Você conhece bem Londres?
— Nasci lá — respondeu ele, desinteressado.
— É mesmo? — Olhou para ele na expectativa, mas, como Dave não se dispusesse a fazer maiores comentários, indagou com alguma hesitação: — A sua família ainda mora lá?
— Não tenho mais família, a menos que leve em conta uma tia que mora no interior. Nem imagino que ela se dê ao trabalho de levar em conta que existo. Como parece que estamos no momento das perguntas e respostas, o que aconteceu com sua família?
— Meu pai morreu quando eu era pequena, e minha mãe há alguns anos. Eu era filha única. Parece que há um ramo da família em algum lugar de Westmoreland, mas não cheguei a conhecê-lo. Tínhamos uma pequena propriedade em Kent, mas teve de ser vendida após a morte de papai. Mamãe voltou para seu emprego na cidade e eu fui para o jardim da infância. Desculpe, estou falando demais. Nada disso deve lhe interessar muito.
— É que eu não acredito em olhar para trás, só isto. O que passou, passou, o que ainda vai acontecer é que importa. — Com um brilho irônico no olhar levantou o copo. — Felicidades.
Já passava das oito quando terminaram o jantar. Quando Dave lhe perguntou se ela gostaria de tomar mais um drinque no bar Kim recusou, não sentindo a menor vontade de encarar novamente aqueles homens, enquanto o assunto não fosse ventilado e entendido por todos.
Sua mala estava onde ela a havia deixado, no banheiro. Dave levantou-a facilmente com uma só mão e dirigiu-se para o carro, saudando os homens que cruzou no caminho, mas sem acrescentar maiores comentários. Assim que chegaram junto ao carro, Kim sentiu-se insegura em relação a suas preferências, caso lhe tivesse sido dado o direito de escolha: se a surpresa que sem dúvida se seguiria a qualquer tipo de comunicado ou se a aceitação um tanto óbvia de seu status na vida de Dave. Subiu apressadamente no carro, desejosa de se afastar do clube e de seus membros, desejosa de estar novamente a sós.
Como Dave dissera, as casas ocupadas pelos engenheiros mais graduados espalhavam-se através de uma grande clareira logo após a curva da estrada. Ao todo eram cinco casas pequenas, de tijolo aparente, com uma varanda estreita que se estendia por três lados. Isto Kim conseguiu perceber antes que Dave desligasse os faróis e voltasse para o carro a fim de pegar sua mala e guiá-la até os três degraus de madeira da segunda casa. A luz de uma lamparina brilhava sobre a mesa colocada no meio de uma pequena sala de estar muito comum, mobiliada com algumas peças muito simples e com duas estantes cheias de livros.
— O lar de um inglês é seu castelo — disse ele, ironicamente. — Venha, vou lhe mostrar o resto da casa. Não há muito o que se ver. Outra porta no fundo da sala dava para um corredor, ao longo do qual viam-se mais três portas. Dave abriu a que estava à sua frente e indicou a ela que entrasse em um quarto, o qual continha duas camas de solteiro, um guarda-roupa e uma cômoda.
— Disse a eles que colocassem mais uma cama enquanto jantávamos. Ficou um pouco apertado, mas não será por muito tempo.
Kim permaneceu imóvel, com os olhos pregados no espaço estreito entre as camas e seu coração subitamente disparou. — Você... você pretende dormir aqui? — conseguiu dizer finalmente.
— Naturalmente — disse ele com simplicidade. — Onde mais eu iria dormir? Há somente um quarto.
Ela o encarou e em seu olhar havia espanto e constrangimento. — Mas você... não pode!
— Não posso? — Ele fitou-a com cinismo. — Isto são modos de uma mulher dirigir-se ao marido?
— As coisas não se passam assim. Você sabe que não! — Tentou dominar o pânico que nascia dentro dela. — Você casou comigo somente para impedir que os demais homens tivessem idéias a meu respeito enquanto estivesse aqui.
— É mesmo. Estava certo. — Seu rosto manteve-se inalterado.
— Vamos, você não nasceu ontem. Você pensa realmente que eu concordaria com suas condições? Ofereci-me para casar com você a fim de tirá-la de uma dificuldade, mas não me lembro de ter dito que desistiria das recompensas.
— Você me enganou! — Naquele momento suas palavras não soavam ridículas. Seu rosto empalidecera. — Você me fez acreditar que apenas estava me oferecendo uma solução temporária, e sua atitude foi deliberada.
— É verdade. A oferta continua temporária. Cinco semanas aqui, depois voltaremos para a Inglaterra e imediatamente nos separaremos.
— Sua voz era implacável. — Mas é bom você não ter ilusões a respeito: enquanto durar não haverá regras.
— Se você puser as mãos em mim, eu... eu o mato!
— Isto tornaria nossas relações ainda mais interessantes. Tenho de ir até a mina durante mais ou menos uma hora. Como você parece estar tão decidida a preservar seus ideais de adolescente, terei cuidado de bater à porta antes de entrar. — Fez um gesto irônico de despedida. — Até logo mais.
Kim permaneceu onde estava, olhando estarrecida a porta que fechara. Sentia-se quase que paralisada, física e emocionalmente. A partir de agora, o que iria acontecer? Como é que pudera se envolver com o homem que acabara de deixá-la, um homem em quem ela não podia perceber um lampejo sequer das qualidades que lhe atribuíra naquela manhã? Casara-se com um estranho, e, mais do que isto, com um estranho que a atemorizava. Ele estava falando absolutamente a sério, disto ela tinha certeza. Assim que voltasse esperaria que ela se submetesse a ele, sem levar em conta seus sentimentos, sem levar em conta o que quer que fosse, a não ser o fato de que ela legalmente era sua esposa.
Um tremor percorreu-a toda, à medida que passava o torpor. Ela não conseguiria suportar aquela situação. Não admitiria suportá-la! Pelo menos no que dependesse dela! Se ele a desejava assim tão simplesmente teria de lutar. Com a maior determinação apagou da memória a dureza e a força de seus ombros e braços, a certeza de que lutar contra um homem daqueles seria o mesmo que tentar deter um trator. Foi até a porta, girou a chave e pôs-se a estudar o quarto. A cômoda parecia ser suficientemente pesada. Se ela conseguisse arrastá-la até a porta já seria suficiente, pelo menos por aquela noite. Ela se recusava a levar em conta o que aconteceria depois disso, pelo menos naquele momento.
Estava sentada na cama, ainda completamente vestida, quando ouviu Dave, que regressava à casa. Ouviu o barulho da porta da entrada que se fechava e seus passos ressoando na sala de estar. Fascinada, Kim olhou a maçaneta da porta que baixava e ouviu o ruído do fecho ao ser forçado. A pausa que se seguiu pareceu durar um século. Quase começara a acreditar que ele partira quando a pancada seca produzida por um pontapé logo abaixo do fecho da porta deixou-a sem saber o que fazer. Com o coração aos pulos, sentou-se sem esboçar um movimento sequer, enquanto a porta cedeu, ao som da madeira que se estilhaçava, e a cômoda era arrastada de lado. Dave surgiu na entrada; sua respiração estava um tanto ofegante e o semblante tenso.
— Você não aprende suficientemente rápido. Você não vai escapar desta situação, moça dos olhos verdes, portanto acho melhor desistir de tentar. Já é tempo de começar a agir como uma adulta.
— Para que você possa agir como um animal? — Lançou-lhe as palavras no rosto e o receio que tinha dele foi momentaneamente substituído por uma fúria incontrolável. — Se o que você queria era uma mulher na cama poderia ter conseguido sem casar com ela primeiro! — Refugiou-se instintivamente em um dos cantos da cama poucos segundos antes que ele a tocasse. — Se você puser o dedo em mim, gritarei com tanta força que me ouvirão em Freetown!
— Vou fazer muito mais do que simplesmente pôr o dedo em você — disse ele suavemente, com toda convicção. — E pode gritar à vontade, se é que isto lhe traz algum alívio. O que é que espera, um pelotão de socorro à sua porta? Você fez um acordo e vai cumpri-lo até o fim!
Deu um salto e agarrou-lhe o pulso com tanta rapidez que ela não teve chance de se defender. O desespero lhe dava forças e lutou contra ele, golpeando-o no rosto com o punho, sem mesmo notar a dor que isto lhe provocava. Vendo que isto não adiantava de nada, baixou rapidamente a cabeça e enterrou os dentes no punho dele, sentindo uma exaltação selvagem ao ouvir seu grito de dor.
Imediatamente, ela se viu de costas na cama e ele por cima dela; seus olhos lampejavam, sorria impiedosamente e suas mãos a pressionavam contra o travesseiro. De repente seus ombros largos se interpuseram entre a luz e ela e seus lábios procuraram os dela com tamanha avidez que sentiu o mundo rodopiar à sua volta.
O som estridente de uma sirena trouxe um súbito alívio. Ainda meio tonta, Kim viu, Dave levantar-se e sentiu que as mãos dele abandonavam seu corpo. Levantara a cabeça e toda sua postura mudara.
— Sinal de alarme — disse, pondo-se imediatamente de pé e atravessando rapidamente o quarto. Ela ficou sem se mover, como ele a deixara, enquanto a porta se fechava à sua passagem.
O barulho de um motor despertou Kim da sonolência que se apoderara dela por volta das três da madrugada, fazendo-a sentar-se ereta na cama, assustada. A madrugada começava a raiar e a claridade começava a filtrar-se através das persianas parcialmente abertas, invadindo o quarto. Ela obrigou-se a permanecer sentada enquanto os passos se aproximavam da varanda e a porta era aberta.
Dave parecia cansado e sujo; a camisa estava toda desabotoada e rasgada. Havia uma poeira cinza em seus cabelos e ela também se assentara no seu rosto vincado, fazendo-o dez anos mais velho. Ficou parado por um momento encarando-a, com um ligeiro sorriso no canto da boca.
— Não precisava ficar acordada à minha espera — disse ele. —-Bastava que um de nós perdesse uma noite de sono.
— Foi um acidente? O tom com que falava era baixo, porém firme.
— Um deslizamento de terra. Foi devido à chuva. Três homens ficaram presos, porém conseguimos retirá-los. — Entrou no quarto, massageando o pescoço. — Estou precisando é de um chuveiro.
— Sem água quente?
— Frio mesmo serve, no momento. Posso tomar mais outro banho assim que levantar.
— Você vai para a cama? Deste jeito?
Ele fez uma pausa, voltou-se e encarou-a. — Para a cama, não. Aliás, nem cheguei até ela, se é que você se lembra. Não seria má idéia se você fosse se deitar. Estou me sentindo de uma tal maneira que você não precisa se preocupar comigo. Pegarei em um sono ferrado durante muitas horas.
Desta vez sua voz tremia ligeiramente. — Não podemos... você simplesmente não pode ignorar o que aconteceu na noite passada. Está certo, interpretei mal suas intenções. Foi ingênuo da minha parte, talvez, mas parece que este é o meu jeito de ser. Nestas circunstâncias seria melhor que esquecêssemos o que combinamos e que eu voltasse para Freetown. Eu farei o possível para voltar sozinha para a Inglaterra.
— Em primeiro lugar, nada aconteceu na noite passada. Não houve chance. E nossa combinação permanece. Eu disse que levaria você de volta para a Inglaterra e o farei.
— Mas a que preço!
— Você estava preparada para me usar; por que é que eu não deveria esperar uma compensação?
— Eu não estava usando você — ela protestou. — Pelo menos não da maneira como você coloca. Foi você quem se ofereceu.
— Claro que sim. E sou eu também quem está ditando as regras. Você poderia se poupar de um bocado de aborrecimentos se aceitasse as coisas como elas são.
— E você também, suponho — ela respondeu, sarcástica.
— Não especialmente. — Observou com ironia o súbito rubor que subia a seu rosto. — Cinco semanas passam depressa. Na verdade, passam até depressa demais. Posso querer ficar com você um pouco mais.
— Você vai ficar comigo o tempo que for necessário para eu encontrar uma maneira de escapar deste lugar! E acharei um jeito, nem que seja preciso ir a pé! Você não estará a meu lado o tempo todo.
— Não — ele concordou —, não estarei. Mas lembre-se de que as chuvas estão para chegar e você vai ter muita sorte se conseguir agüentar sozinha por mais de vinte e quatro horas. Acontece também que tenho pelo menos cinqüenta homens peritos em rastejar os traços de quem quer que seja, e se eu tivesse mesmo que ir atrás de você... — Suspendeu a frase com um gesto súbito de cansaço. — Vou tomar um banho. Faça o que quiser, mas não me acorde antes das dez, a menos que surja alguma coisa urgente.
Passou-se muito tempo até que Kim resolveu levantar-se de onde estava. Ergueu-se lentamente e foi espiar através da persiana, pondo-se a contemplar a terra nua e avermelhada da clareira. As árvores lá fora não se moviam, envolvidas pela névoa úmida e quente que logo daria lugar ao sol que se levantava. Estavam em um lugar bem abrigado e todos os ruídos eram amortecidos pela barreira protetora da montanha. Estavam a centenas de quilômetros da civilização, mas eles poderiam se multiplicar por milhares. Mesmo que conseguisse roubar um carro jamais conseguiria atravessar o portão principal.
Seu rosto adquiriu uma expressão enérgica. Uma coisa era certa: não daria a Dave a oportunidade de acabar o que havia iniciado na noite passada. Estava disposta a correr todos os riscos em Freetown, mesmo que para chegar até lá tivesse de viajar escondida em um dos caminhões da mina. Chris deveria ajudá-la, pensou desesperadamente. Se ele pelo menos lhe emprestasse o dinheiro para comprar uma passagem de volta... Prometeria enviá-lo de volta no momento em que chegasse, mesmo que tivesse de se pôr de joelhos diante do gerente do banco para consegui-lo. E quanto ao seu casamento, quem poderia afirmar que ele era legal, até mesmo na Inglaterra? E mesmo que fosse... bom, isto era algo para se encarar. O preço da impetuosidade, disse a si mesma, com pesar. Talvez isto lhe ensinasse a ser mais precavida antes de se jogar nas coisas.
Um barulho no corredor a fez voltar o rosto abruptamente. Tornou a relaxar, preparada para dar as boas-vindas a qualquer pessoa que não fosse Dave. Um jovem africano estava parado na entrada do quarto. Ele parou assim que a viu, pareceu perturbado por um breve momento e em seguida mostrou os dentes, sorrindo amplamente.
— A senhorita gostaria de tomar café agora? — disse o rapaz.
— Ainda não. Você é do clube?
— Meu nome é Patrick — disse. — Trabalho aqui para o chefe Nelson.
— Muito bem, Patrick — disse, esforçando-se por parecer natural. — Vou querer café com torradas dentro de uma meia hora. Há... há alguém no banheiro?
Ele pareceu se perturbar um pouco. — Ainda não tem água quente, dona.
— Não faz mal. Fria mesmo serve.
Ao se dirigir até a porta notou que sua mala ainda estava no quarto onde Dave a deixara na noite passada — e ele estava lá agora. Ela fez uma pausa, sentiu que os olhos de Patrick se pousavam sobre ela e forçou-se a prosseguir. Seu coração batia rápido; girou silenciosamente a maçaneta e abriu a porta o suficiente para ver a cabeça pousada no travesseiro, na primeira cama. O rosto estava voltado para o outro lado e a respiração era calma e profunda. Mal ousando respirar, entrou no quarto e cerrou a porta, dando-lhe as costas enquanto estudava aquela figura na cama. Estava deitado de bruços, coberto até a cintura; as costas nuas e bronzeadas se destacavam contra o linho alvo. Um dos braços descansava à beira do colchão e a mão repousava espalmada. Mesmo dormindo seu corpo rijo e musculoso mostrava um poder tremendo.
Sua mala estava no outro lado do quarto, sob a janela. Ainda segurando a respiração, Kim afastou-se da porta e atravessou o quarto; deteve a mão que se estendia ao notar que Dave movera-se subitamente, ficando de costas com um suspiro abafado. Somente quando se certificou de que ele ainda dormia completou o gesto, pegando a mala e voltando à porta.
A despeito da necessidade de sair do quarto com toda pressa, descobriu que seus olhos eram inexoravelmente atraídos para o rosto no travesseiro, pousando primeiro no seu cabelo negro e fino, na sua fronte vincada e demorando-se por uns segundos na boca, de traços enérgicos. Na noite passada aqueles braços a tinham cingido, aquela boca a tinha beijado, e ela soubera que não havia como escapar dele, uma vez que a solicitara. Se a sirene não tivesse soado, ela não teria conseguido se defender contra sua força e sua determinação; não havia como fugir disto. Somente a necessidade de salvar homens em perigo a tinha livrado de ser possuída como uma das escravas que a região fornecera outrora em quantidade, e ela dificilmente poderia esperar se ver livre novamente. Precisava fugir ainda hoje, pensou preocupada. De um modo ou de outro, tinha de ser hoje!
O banheiro era um pequeno cercado de bambu ao lado da varanda dos fundos, com o teto forrado de palha e um sistema de cordas e roldanas que proporcionava um banho surpreendentemente agradável, quando a água se despencava de um reservatório. Enxugar-se não foi problema, mas vestir-se em um espaço tão estreito não foi fácil. Saiu, sentindo-se limpa e refrescada em sua calça de linho creme e blusa da mesma cor; dobrou cuidadosamente o vestido e enfiou-o na mala. Era bom que o guardasse com carinho, pensou. Não tinha certeza de quando voltaria a precisar usá-lo.
O banho frio tinha-lhe ajudado a recuperar o equilíbrio. O que estava feito estava feito; não fazia o menor sentido ficar pensando no assunto. O que ela tinha de fazer agora era concentrar-se inteiramente no modo de escapar. Não seria nada fácil, reconheceu. Chris dissera uma vez que o trem ia somente até Pepel, às margens do rio Serra Leoa, a alguns quilômetros acima de Freetown. De qualquer maneira, pelo que pudera observar, havia muito pouca chance de achar um lugar para se esconder dentro dele, em sua viagem pelo planalto abaixo. Sobrava a estrada e até aquele momento ela não tinha a menor idéia do tipo de transporte que era usado — se é que era — ou com que freqüência. Talvez tivesse maiores chances com os veículos que vinham de fora. Era possível que de vez em quando viessem entregar carne fresca e legumes. De vez em quando — mas talvez nem hoje ou nem mesmo amanhã. Assim sendo, ela prometeu a si mesma resolutamente que subornaria alguém para tirá-la daquele lugar. Se chegasse naquela situação à casa de Chris talvez ele estivesse mais preparado para ajudá-la. Quanto ao resto, até mesmo Mai poderia aceitá-la. Tudo o que Kim sentira por Chris, como homem, morrera ontem, naquele corredor espremido.
A mesa já estava posta quando Kim dirigiu-se para a sala de estar. Patrick serviu suco de frutas gelado e torradas saídas do forno naquele minuto; em seguida foi até a cozinha buscar mais café. Em resposta a suas indagações, contou que morava na aldeia do outro lado da montanha e trabalhava na mina desde criança. Todos os homens da aldeia trabalhavam na mina, aceitando o fato como inevitável, à semelhança do que faziam os mineiros do Norte da Inglaterra, pois não havia qualquer outra espécie de trabalho na região. O próprio Patrick parecia muito contente com o fato. Tinha mulher e filhos, e com o que ganhava conseguia mantê-los. Kim pô-se a imaginar o que constituía o conforto para uma mente africana, mas não quis intrometer-se. Gostaria também de ter perguntado como ele adquirira aquele nome irlandês, porém suspeitou que a resposta seria um tanto óbvia. Sua pele era bem mais clara do que a da maior parte dos africanos que ela vira no local, até então.
Tentando não se mostrar muito interessada na resposta, perguntou-lhe displicentemente de onde vinham os mantimentos para a mina, obtendo como resposta que eram entregues em pequena quantidade e em prazos dilatados, sendo que a última entrega se dera à véspera de sua chegada. A correspondência e as encomendas de pequeno porte eram trazidas semanalmente de helicóptero, o qual, aliás, devia chegar naquele dia. Kim ficou alerta ao ouvir isto. Viajar clandestinamente em um helicóptero poderia ser difícil, mas havia uma chance de persuadir o piloto a dar-lhe carona. Isto resolveria metade de seus problemas. Iria até a cidade, em uma viagem rápida, e veria Chris, antes que Dave pudesse ir a seu alcance.
Acabava de tomar sua segunda xícara de café quando Luke subiu os degraus da varanda. Parou diante da porta aberta e seus olhos percorreram rapidamente o aposento, antes de pousar-se sobre Kim.
— Alô — disse. — Dave não está?
— Está dormindo — respondeu. — Disse que não quer ser acordado antes das dez. É urgente, Luke?
— Não vai adiantar nada acordá-lo agora. Acabo de saber que um dos rapazes que ele retirou do deslizamento de terra morreu há meia hora. Lesões internas, disse o médico. Não havia nada que ele pudesse fazer.
— Sinto muito. — Kim sentiu-se entristecida. — Deixou família?
— Sim. Não vamos deixá-los desamparados. Ele era um de nossos melhores motoristas. Dave vai ficar muito aborrecido.
— Por perder um motorista?
Luke contemplou-a por alguns momentos antes de responder. — É um pouco mais do que isto. Sobrou algum café?
— Esfriou demais — ela respondeu prontamente. — Vou pedir a Patrick que faça mais.
— Eu lhe direi. — Foi até a porta dos fundos e soltou um berro portentoso em direção à cozinha. — Pat, café! — Voltando-se, surpreendeu a expressão de Kim e riu levemente. — Não se preocupe, é preciso muito mais do que isto para despertá-lo. Nesta profissão acostumamo-nos a não despertar, com o que quer que seja, salvo o alarme da sirene. Ouvi dizer que você vai trabalhar no escritório.
— Sim, estou pensando nisto — ela respondeu cautelosamente. Tomou mais um gole de café, pousou a xícara e levantou os olhos.
— Por que não diz de uma vez, Luke? — perguntou, com um tom de insegurança na voz.
— Dizer o quê?
— O que você está pensando.
— Não tenho muita coisa a dizer. O fato deste envolvimento, diz respeito a você e a Dave. Você podia ter agido pior. Ele cuidará de você.
Ela tinha feito a cama e agora teria de deitar-se nela — e com isto o assunto estaria liquidado, pensou com ironia. De qualquer modo, era mais do que evidente que Luke não estaria disposto a envolver-se a ponto de ajudá-la a partir. E ela não poderia censurá-lo. Ninguém que tivesse um mínimo de sensatez se indisporia com Dave.
Patrick trouxe café fresco e mais uma xícara, cumprimentando Luke com alegria. Kim serviu-o, adicionou açúcar a seu gosto e esperou que ele tivesse bebido a metade antes de perguntar cautelosamente:
— Você não acha que devia descansar, depois de ficar de pé a noite inteira? Você deve ter passado por momentos difíceis.
— Foi Dave quem se encarregou de tudo. Se a máquina de terraplenagem tivesse sido arrastada um pouco mais quando a terra deslizou, hoje de manhã teríamos quatro mortos, em vez de um. Ele conseguiu escorá-la por intermédio de alavancas e lá ficou sustentando o peso até que nós os desenterramos. Ele mesmo conseguiu sair bem em cima da hora. Mais um minuto e... — Deixou a frase em Suspenso. — Levou mais de uma hora até o doutor Selby dar alguma notícia. Depois daquilo eu já não agüentava mais. Acho que Dave vai se sentir da mesma forma quando ele souber.
— Souber do quê? — perguntou Dave, parado na porta da sala. Ficou lá postado, encarando-os, embrulhado em um velho roupão e com um par de sandálias muito gastas nos pés. O cabelo estava todo despenteado, o rosto escurecera, devido à barba de muitas horas, mas o olhar era penetrante. — Souber do quê? — repetiu.
Luke contou-lhe em duas palavras o que se passara. Kim não conseguiu notar nele nenhuma reação visível ao que lhe fora dito.
— Pois é — disse ele. — O café está quente? Ele próprio encheu uma xícara, sem esperar por respostas, bebeu e ficou parado, olhando o rosto de Kim. — A vida não vale muito por estas paragens disse com uma certa dureza. — Você acabará se acostumando.
— Se depender de mim, não — respondeu enfaticamente.
Luke apressou-se em dizer: — Desculpe por tê-lo acordado, Dave. Imaginei que você estivesse em um sono profundo.
— Acordei já faz algum tempo — replicou Dave. — Não sei porque não consegui dormir novamente. Talvez uma premonição.
Luke levantou-se sem a menor pressa dizendo: — Já vou indo. Vejo vocês mais tarde.
— É isso aí. — Dave apoiou os cotovelos sobre a mesa enquanto Luke saía e segurou a xícara entre as mãos, dizendo casualmente: — Você parece que esteve batendo um grande papo com Luke.
— Com ele eu sei a quantas ando — replicou. — Luke é uma pessoa sincera.
— De acordo com você eu não tenho usado de muitos rodeios — disse ele, em tom seco. — Não ponha a culpa em mim por ter passado a vida inteira protegida entre quatro paredes. A espécie de gentileza que você espera desapareceu com a corte do rei Artur!
— A única coisa que espero é um comportamento civilizado — respondeu incisivamente. — Você nem sequer se incomoda de vestir-se antes de se sentar à mesa.
— Também não fiz a barba, como você deve ter notado. Você alguma vez já foi beijada por um homem de barba crescida?
Ela lançou-lhe um olhar de intenso desprezo e arrastou a cadeira para trás. — Acho que você entende por que eu prefiro a varanda.
— Kim. — Seu tom de voz era suave, porém havia algo nele que a fez hesitar, por menos que ela pretendesse. — Volte aqui.
— Eu disse que ia lá para fora.
Kim não ousou pensar o que teria acontecido em seguida, se Patrick não tivesse escolhido aquele momento exato para entrar na sala trazendo bacon com ovos. Quando ela se voltou, Dave estava se sentando novamente, mas o brilho de seus olhos revelava claramente suas intenções. O fato de ele não estar disposto a fazer uma cena em frente do africano era algo a que ela devia se agarrar, apesar de não poder esperar que Patrick estivesse por perto o tempo todo. Aproveitou a oportunidade para refugiar-se na varanda, afundando-se aliviada em uma das cadeiras, com o sentimento de que aquilo não passava de uma trégua temporária.
As outras casas pareciam estar desertas. Mesmo ali, à sombra do teto de palha que cobria a varanda, a atmosfera era opressiva, provocando uma letargia instantânea. Kim podia sentir o suor que molhava a blusa ao redor da cintura, e sentiu-se aliviada, pois a erupção cutânea de que fora acometida quando chegara não fizera maiores progressos. Ela imaginou que, com o passar do tempo, uma pessoa aprenderia a entrar em um ritmo mais suave durante o dia, conservando a energia ao invés de expandi-la. Só que ela não ficaria lá o tempo suficiente para aprender como viver confortavelmente nos trópicos. Para ela a amostra fora mais do que suficiente.
Estava sentada na mesma posição quando, mais ou menos uma hora mais tarde, Dave veio a seu encontro. Estava vestido mais ou menos do mesmo jeito de quando ela o vira pela primeira vez, só que desta vez trazia o chapéu nas mãos. Seu rosto estava bem barbeado.
— Vou acompanhá-la até o escritório e mostrar-lhe suas tarefas — disse bem à vontade. — É melhor você pegar um chapéu.
Kim fez o possível para dominar-se. De nada adiantava dizer tudo o que pretendia. Seria chover no molhado. Em todo caso, para ela era vantajoso acompanhá-lo, pois assim poderia garantir com mais certeza sua volta. A este respeito sua proposta não poderia ter vindo em melhor hora. Levantou-se sem falar e foi até o quarto buscar um boné na mala. Imaginou que não era o tipo da coisa que alguém normalmente esperaria ver nos trópicos, mas era o que ela possuía. Colocou-o desafiadoramente na cabeça enquanto voltava para a varanda, onde Dave estava à sua espera. Passando por ele, sentiu que sua mão fazia um gesto e puxava a aba do boné para diante.
— Use assim, de modo que seus olhos fiquem protegidos — disse. — O pescoço fica protegido pelo cabelo.
O escritório era do lado oposto ao que Dave a havia levado no primeiro dia. Dentro fazia um calor sufocante. Os quatro funcionários africanos olharam-nos curiosamente enquanto Dave mostrava-lhe os livros e as fichas, mexendo nas pilhas de envelopes coloridos e notas fiscais. A parte principal de sua tarefa consistiria em calcular o dinheiro devido a cada trabalhador, a partir de anotações das horas de trabalho, e confeccionar recibos de pagamento a serem colados em cada envelope. Tudo o que os africanos tinham a fazer era checar seus cálculos. Era muita responsabilidade, e só de olhar a amostra das anotações das horas de trabalho que Dave lhe mostrou compreendeu que sua tarefa não era das mais simples, pois teria de lidar com abonos, horas extras e pagamentos por empreitada.
— As horas extras são pagas uma semana depois de vencidas — explicou Dave. — As horas regulares de trabalho são pagas às sextas-feiras e os envelopes devem estar prontos às cinco da tarde. Você tem pela frente três ou quatro dias para fazer todos os cálculos. Acha que vai dar conta?
— Você alguma vez pensou em solicitar um computador à companhia? — perguntou ela ironicamente.
— Enquanto Loxley Gunter esteve aqui nunca foi preciso. Ele é de uma precisão matemática.
— Imagino que tenha ido embora.
— Está de licença. Tratamento médico.
— Percebo. — Kim virou as páginas do livro de contabilidade e seu olhar percorreu as colunas de cifras. — O que teria acontecido se eu não estivesse disponível?
— A companhia seria forçada a nomear um novo funcionário. Acho que vai dar certo e provavelmente agüentaremos até que ele obtenha permissão para voltar ao trabalho. Os nigerianos são uma raça forte. Ele vai ficar bom.
Kim não quis perguntar qual era a doença do funcionário e Dave não parecia estar disposto a dar qualquer informação. Abandonar a mina naquele momento seria privar Loxley da oportunidade de manter o emprego. Mas ela não podia ficar. Se ficasse, teria de aceitar as condições de Dave, e isto ela se recusava a fazer. Por maior que fosse a solidariedade que sentia em relação ao nigeriano ausente, naquela situação tinha de pensar nela em primeiro lugar.
Um homem a quem ela reconheceu estar no clube na noite anterior apareceu na porta. Seu olhar demorou-se sobre ela, antes de pousar sobre Dave. — Estão precisando de você lá em cima — disse. — Encrenca.
— Já vou indo. — Dave deu a volta na mesa e pegou o chapéu. — Fique e dê uma olhada nesta papelada — disse para Kim. — Se for lá fora não se aproxime dos tanques de lavagem e não tente voltar para casa. Estarei de volta assim que puder.
Para Kim a última declaração encerrava mais uma ameaça do que uma promessa. Assentiu sem responder, fingindo estar absorta no livro de contabilidade, enquanto ele saía. Levantando a cabeça muito imperceptivelmente, viu-o subindo o morro e deu um suspiro de alívio quando o carro finalmente sumiu, após virar no canto do prédio. Quando se voltou, os quatro funcionários a encaravam com indisfarçada curiosidade. Sorriu para eles desajeitadamente, tentou encontrar algo para lhes dizer e não conseguiu pensar em nada de muito adequado. Praguejou interiormente, amaldiçoando o homem que a deixara naquela situação.
— Eu... — principiou hesitante, parando em seguida, pois todos os olhares se desviaram para a janela, como se se tratasse de um sinal combinado. Seguindo a direção em que olhavam, Kim viu a fuselagem colorida de um helicóptero que se aproximava. As árvores vergavam-se ao vento provocado pelas hélices e o barulho do motor fundia-se com o ruído das atividades rotineiras da mina. Começou a pousar, passando por cima dos telhados de zinco e dirigindo-se para a estrada esburacada. A única indicação de seus traços eram as nuvens de poeira que dançavam no ar.
Os africanos fizeram comentários excitados em sua língua. Obviamente a visita semanal do helicóptero era um acontecimento em suas vidas. Esquecida por alguns momentos, Kim dirigiu-se até a porta e saiu, aliviada por se afastar daquela estufa. Lá fora a diferença era pouca. O sol era uma fornalha que lhe queimava a cabeça e parecia penetrar no seu cérebro. A nuvem de poeira começava a assentar por detrás do escritório de Dave. Atravessou a estrada com toda cautela, pulando os sulcos deixados por algum veículo pesado após a chuva, e passou por entre os prédios. O helicóptero lá estava, pousado em um terreno plano, perto do portão principal. O piloto conversava com dois homens, a alguma distância. Seu cabelo era muito louro e brilhava ao sol. Kim sentiu um aperto na garganta e cerrou os olhos, não permitindo que as lembranças voltassem. Aquele não era o momento de pensar em Chris. Aquele não era o momento de pensar no que quer que fosse, a não ser escapar da prisão que ela mesma forjara.
Teve de voltar até a estrada, a fim de poder aproximar-se do helicóptero. Andou o mais rápido que podia, abrigando-se sob a sombra exígua dos prédios e ignorando as poucas pessoas que estavam por perto. O piloto tirava um saco do interior do aparelho, enquanto ela passava pelo último prédio e vinha em sua direção. Ele a viu aproximar-se no momento em que entregava o saco a um dos homens, e uma expressão de surpresa total estampou-se em seu rosto.
— Não acredito! — exclamou. — Você é de verdade ou o que estou vendo é uma miragem?
Kim sorriu e notou seu sotaque americano, bem como seus traços, que denotavam franqueza e expansividade. — Meu nome é Kimberley Freeman — disse sem hesitar. — E sou feita de carne e osso.
— Mas que alívio. — Sorriu e encostou-se na fuselagem do helicóptero, abrigando-se à sombra da hélice. — Jerry Brice. Não me diga que agora eles têm mulheres trabalhando aqui!
— Está certo — ela respondeu bem-humorada. — Contemplou-o durante alguns momentos. — Eu achava que o dinheiro, e muito dinheiro, era a única coisa que trazia os homens para este lado do mundo.
— Inicialmente é. Se você consegue, muito bem, mas... — Fez uma pausa e deu de ombros. — Há alguma coisa nos trópicos que prende você. Estou aqui há quatro anos e até agora nem penso em voltar para casa. Acho que depois de tanto tempo eu iria sentir uma falta danada daqui. Faz tempo que você está aqui?
— Estou apenas de visita — respondeu ela rapidamente. — E, por falar nisto, gostaria de saber se você por acaso poderia me dar uma carona até Freetown, quando for embora. Pela estrada leva tanto tempo...
— Claro. Por que não? — Ele se mostrava extremamente simpático. — Mas só se você estiver pronta para partir imediatamente. Eu tenho hora certa para chegar.
Kim tomou uma resolução imediata. Se voltasse para apanhar suas coisas perderia a oportunidade, e se Chris se dispusesse a ajudá-la, a coisa seria para valer. — Sim, estou pronta.
— Muita bem, suba. — Escancarou a porta e subiu em primeiro lugar, estendendo a mão para ajudá-la. — É isso aí. Agora puxe a porta pela maçaneta que ela desliza e fecha automaticamente. — Seus olhos se fixaram em um ponto adiante e com um gesto súbito deteve o movimento. — Espere um momento. Dave Nelson vem vindo. Nestas últimas viagens eu não o tenho visto.
Kim voltou-se rapidamente e viu aquela figura de ombros largos que avançava rapidamente através da estrada poeirenta, e por um momento experimentou uma sensação de pânico total. Era tarde demais. Ele já estava muito próximo. Sua tentativa de fuga tinha falhado mesmo antes de ter começado. Permaneceu onde estava, desanimada pela derrota, esperando, até que o homem com que havia se casado alcançasse o aparelho.
Era difícil decifrar a expressão de seu rosto, quando ele se aproximou. Kim encarou seus olhos cinzentos e não conseguiu saber se o brilho que se notava neles era causado pela raiva ou por ele estar se divertindo. A segunda hipótese parecia pouco provável. Principalmente pelo fato de o orgulho dele estar à prova, como parecia estar acontecendo agora. Não podia haver qualquer engano em relação às intenções dela, não havia como contornar o fato de ela ter tentado usar Jerry Brice em sua tentativa de afastar-se dele. Nem mesmo Dave conseguiria manter as aparências em uma situação semelhante.
— Desça — disse bruscamente, e em seguida dirigiu-se a Jerry. — Sinto muito privá-lo de sua passageira. Minha mulher vai ficar.
A expressão do rapaz alterou-se bruscamente. — Sua mulher? — Desconcertado, pousou o olhar sobre Kim. — Você disse que seu nome era Freeman.
— Eu sei — ela respondeu, desviando o olhar. — Sinto muito. Dave pôs as mãos em sua cintura enquanto ela se voltava para alcançar o degrau e a segurou; o calor que se desprendia dele a abrasava. — Até a próxima viagem — disse a Jerry, em um tom que não deixava margem a qualquer dúvida.
Jerry não precisou de mais nenhuma deixa. Com a mais total confusão estampada no rosto, fechou a porta, esperou que ambos saíssem da frente do helicóptero e ligou o motor. Os cabelos de Kim esvoaçaram pelo seu rosto, no momento em que as hélices começaram a girar. De olhos semicerrados, viu o helicóptero começar a subir, notou que Jerry olhava para ambos enquanto o aparelho pairava no ar por alguns segundos; afastou-se em seguida, em direção ao desfiladeiro. Foi somente então que Dave afrouxou as mãos, mas sem soltá-la.
— Tente fazer isto mais uma vez — ele disse baixinho, ao seu ouvido — e vou lhe dar motivos suficientes para fugir!
Lá fora, à luz do dia, ela sentia-se segura, na medida em que era possível experimentar tal sentimento na companhia daquele homem. De qualquer modo, suficientemente segura para dizer as palavras amargas que vieram a seus lábios. — Motivos eu já tenho. Você não pode me obrigar a ficar aqui.
— Não? — Desta vez ele demonstrou estar se divertindo muito. — E para onde é que você acha que vai se eu a deixasse partir agora?
— Não sei — ela mentiu. — E não me importo. Contanto que seja para bem longe de você!
— Mentirosa. — Ele a tomou pelos ombros e a girou, obrigando-a a enfrentá-lo. — Você ia procurar Adams novamente, esperando que ele fosse suficientemente decente para ajudá-la. Quando é que você vai compreender que ele não quer mais saber de você? Se depender dele você até pode fazer a vida, para ganhar dinheiro.
— Será que isto é tão diferente assim daquilo que você me oferece? — retrucou ela, e sentiu que todos os nervos de seu corpo se retesavam em sinal de aviso, enquanto os olhos dele se estreitavam.
— Lembre-se de que eu me casei com você — disse ele suavemente. — Foi tudo legal, segundo as regras. O costume aqui determina que a mulher deve obedecer ao marido em todas as circunstâncias ou então sofrer as conseqüências. Não tenho nada contra brigar com você em particular, moça dos olhos verdes, mas vou lhe dar uma lição se você insistir novamente em me expor ao ridículo diante de todos. Soltou-a, com um riso zombeteiro. — Vamos comer no clube. Disse a Pat que ele podia ter a tarde livre.
— Não estou com fome — disse ela com um fio de voz. — Prefiro voltar para casa.
Ele deu de ombros. — Como quiser.
Passados dez minutos, ele a deixou diante da casa e Kim foi imediatamente para dentro, sem querer vê-lo manobrar o carro e afastar-se novamente. Patrick já tinha ido embora. Kim não se importou. A penumbra da sala de estar era um bálsamo, após a claridade lá fora. Jogou o boné em cima de uma cadeira e sentou-se, folheando sem ver duas ou três revistas antigas. Não havia nada naquele lugar que a interessasse. Lá era a casa de um homem, um mundo masculino. Não havia lugar para ela.
Sentindo necessidade de algo com que ocupar seus pensamentos, foi até a cozinha esquentar água para o café; procurou durante alguns instantes e encontrou o pó em uma lata para biscoitos, num dos armários. Descobriu que este estava cheio de formigas. Alguma providência precisava ser tomada. A primeira coisa que ela iria mandar Patrick fazer na manhã seguinte era matá-las com inseticida e limpar todas as latas de mantimento. Se ela tinha mesmo que ficar naquele lugar, não estava disposta a correr riscos, no que dizia respeito à sua saúde.
Mas teria mesmo que ficar? Sentiu um aperto na garganta. Que outra escolha lhe restava?
Aquela tarde quente e abafada escoava-se lentamente. Kim sentiu-se aliviada por passar a maior parte dela deitada em uma das camas com o mínimo de roupa. Pôs-se a imaginar o que Patrick havia de pensar ao notar o fecho arrebentado, se é que ele tinha pensado alguma coisa. Provavelmente aceitava tudo o que sucedia na casa de um homem branco como se fosse a coisa mais natural do mundo, assim como tinha aceitado a presença dela naquela manhã sem sequer piscar um olho. Ela, de certa forma, imaginava que compensaria cultivar a mesma atitude enquanto durasse sua permanência lá. Não havia como escapar de Dave. Ele a tinha cercado de todas as maneiras. E nesta noite nada o impediria de reclamar os direitos que ela mesma lhe dera. Ela podia lutar contra ele, mas por quanto tempo? E, afinal de contas, de que adiantava se incomodar, quando sabia que iria perder? Haveria mais dignidade em uma falta total de correspondência de sua parte. Mais dignidade, e menos satisfação para um homem do seu feitio. Se ele descobrisse que ela não se importava em contrapor qualquer tipo de resistência, poderia até mesmo chegar a perder o interesse.
Tomou mais um banho de chuveiro às seis, e pôs um vestido azul, de tecido muito fino. Quando entrou na sala de estar, Patrick estava pondo na bandeja copos limpos juntamente com duas garrafas. Pela primeira vez na vida, Kim sentiu-se mais do que disposta a aceitar o drinque que ele se ofereceu para preparar. Aceitou gim com limão e sentou-se com o copo na mão diante da porta, a fim de aproveitar a brisa suave que soprava desde que a noite tivera caído. Esta já era a terceira noite que ela passava ali, e no entanto parecia ter se escoado um século desde a manhã em que ela tinha saído de Freetown para vir até a mina à procura de Chris. Era estranho como a recordação de seu antigo noivo não lhe despertava qualquer espécie de sentimento. Ele estava lá, e ela se sentia pronta a usá-lo, se tivesse oportunidade, mas somente porque já não sentia mais nada por ele.
Estava na metade do drinque quando o carro desceu o morro e brecou diante da casa. Permaneceu onde estava, enquanto Dave subiu os degraus; neste momento levou o copo aos lábios com toda a firmeza.
— Você não custou muito a adquirir o hábito — foi o comentário irônico. Deixou-se afundar em uma cadeira, tirou uma bota, em seguida a outra e espreguiçou-se com ar de alívio. — Não quer me preparar um?
Kim levantou-se sem dizer uma palavra e foi em direção à cristaleira. — O que é que você toma?
— Uísque, puro. — Parecia um tanto surpreso. Kim serviu uma quantidade generosa e entregou-a para ele, antes de voltar a sentar-se. Podia sentir que ele a olhava enquanto bebia, e tomou cuidado para manter uma expressão de afabilidade e despreocupação. Nada do que ele pudesse dizer ou fazer poderia abalar seu controle recentemente adquirido. Disso ela fazia questão. De agora em diante, ela seria a esposa mais dócil que um homem jamais tivera, e ficaria observando até que ponto ele apreciava isto. Se ela o conhecia bem, ele se sentiria mortalmente aborrecido dentro de vinte e quatro horas. Os Dave Nelsons do mundo sempre recusavam aquilo que chegava até eles com muita facilidade.
O silêncio pairava no ar, interrompido unicamente pelo ruído dos grilos e pelo assovio alegre e desafinado de Patrick, que lhes preparava o jantar. Quando finalmente Kim deu uma olhadela para os lados de Dave, ele agitava o uísque que sobrara no copo com um sorriso enigmático nos lábios. Ele levantou a cabeça e pegou-a de surpresa. Ergueu o copo em sua direção, esvaziou o conteúdo e levantou-se.
— Preciso me fazer um pouco mais apresentável. Não beba muito se não estiver acostumada. Isto aí pode produzir um efeito inesperado.
Jantaram às oito; a comida era abundante, mas sem muita inspiração: carne enlatada, servida com cheiro-verde e outros condimentos, feijão, igualmente de lata, arroz sem tempero e como sobremesa um pudim que nadava em um caldo amarelo, absolutamente insípido. Dave comeu o que lhe era servido sem fazer o menor comentário; portanto, a má qualidade da refeição não era nada de extraordinário.
Kim resolveu trocar algumas palavras com Patrick na manhã seguinte. Até mesmo uma comida daquele tipo poderia ser menos indigesta do que aquela que lhes fora servida.
Foi Dave quem sugeriu tomassem o café na varanda. A noite estava escura e a brisa transformara-se em vento. Ao longe ouvia-se o barulho de trovão. Naquela noite havia luzes acesas em uma das casas, e o som de risadas e vozes masculinas atravessava a clareira.
— Estão jogando cartas — disse Dave, despreocupado. Seus pés apoiavam-se na balaustrada da varanda e ele se afundara confortavelmente na cadeira. — É na casa de Carl Gerhardt. É o melhor jogador de pôquer que já vi.
— Você costuma ir lá? — perguntou Kim.
— Com bastante freqüência. Ajuda a passar o tempo.
— Então não se prenda por mim.
Havia ironia em seu sorriso. — Como, deixar você sozinha? Eles vão achar que eu enlouqueci. Entre eles não existe um que não desse um ano de salário para estar na minha pele. Você é suficientemente atraente para chamar a atenção onde quer que vá, mas aqui você é uma sensação. Você irá fazer parte de mais sonhos do que poderia imaginar!
— Pare com isso. — Falava em tom baixo. — Não quero saber como é que afeto os homens aqui. Não estou interessada.
— Nem tanto. Você não seria normal se não se divertisse com a coisa, especialmente sabendo que está protegida contra qualquer tipo mais afoito que poderia decidir que os sonhos não lhe bastavam.
— Afoito ou depravado? — retrucou ela. — E eu não sou nem uma coisa, nem outra, não é?
Ele riu. — Não existe nada de depravado em um homem que deseja a mulher com quem se casou.
— Sim, quando não existe nada além disso. A rigor você não é melhor do que qualquer outro homem que força uma mulher a... submeter-se a suas exigências!
— A palavra que você está querendo empregar é estupro — disse ele displicentemente. — E não forcei você a fazer o que quer que fosse: pelo menos ainda não. E também não espero que isto seja necessário. Pobre do homem que não consegue excitar uma mulher.
Kim apertou as mãos pousadas no colo e seu pulso acelerou-se loucamente. — Mesmo quando a mulher encara o homem com desprezo?
— Principalmente nessas circunstâncias. O ódio é uma emoção positiva, garota dos olhos verdes. Pode tornar uma relação tão excitante quanto a sua contrapartida.
— Como é que você pode saber?
— Oh, eu já me apaixonei uma vez. — O tom da voz dele era sardônico. — Fiquei em nítida desvantagem e aprendi uma lição de que jamais esquecerei. Só existe um lugar para a mulher na vida de um homem: a cama.
Estava muito escuro para poder notar os traços dele claramente, mas sua postura, apesar de não ter se alterado, tornara-se mais tensa. Kim disse suavemente: — Ela deve tê-lo feito sofrer muito.
— Ela me fez um favor. E, em relação a isso, eu posso até me sentir grato. Nada dura; portanto, é bom aproveitar enquanto existe.
— E isto me inclui, suponho.
— Inclui, sim.
Sem alterar o tom, Kim disse: — Mas comigo você cometeu um pequeno engano. Você coloca nosso relacionamento em um plano diferente dos demais. Mas suponha que eu também decida me aproveitar. Suponha que eu me recuse a levar adiante seus planos, quando regressarmos à Inglaterra. Você teria então de se ver a braços com uma esposa, e eu teria todo o direito de exigir que você me sustentasse.
A pausa que se seguiu foi demorada. — Você está me ameaçando? — perguntou ele finalmente, em um tom inesperadamente tranqüilo.
— Não. — As palmas das mãos estavam molhadas de suor, mas ela decidiu ir até o fim. — Apenas estou fazendo você notar que as vantagens não estão todas do seu lado. Aqui estou completamente indefesa. Reconheço isto. Eu me meti nesta encrenca e agora tenho de sair dela. Mas não vá esperar que eu simplesmente desapareça de sua vida quando você quiser, sem alguma forma de compensação.
Ele não esboçou nenhum gesto. — E qual é o preço que você cobra por seus... favores?
"E se aquele envolvimento estivesse indo muito mais longe do que pretendia?", indagou-se Kim, defendendo-se. Por nada deste mundo permaneceria ligada a Dave, a partir do momento em que tivesse a oportunidade de livrar-se dele, mas não havia a menor razão para deixá-lo pensar que seria assim tão fácil. — Um preço muito alto — respondeu.
— Muito bem. — Dave levantou-se e veio para o lado dela. O clarão de um relâmpago revelou o sorriso irônico que brincava em seus lábios. O trovão ribombou novamente enquanto ele se inclinava e a erguia em seus braços, sentindo o quanto seu coração batia. — Pois então vamos ver se você merece.
Kim não abriu os olhos quando Dave levantou-se da outra cama, assim que começou a clarear. Por nada deste mundo ela teria conseguido enfrentar seu sorriso irônico a uma hora daquelas. Permaneceu sem se mexer, com o rosto enterrado no travesseiro, ouvindo-o andar pelo quarto.
Somente quando a porta finalmente fechou-se às suas costas é que ela movimentou-se lentamente, deitando-se de costas, fitando o teto caiado de branco. Seu pensamento voltava sem cessar para as últimas horas. Não tinha havido sequer um elemento de ternura nos momentos que passara nos braços de Dave, nenhuma gentileza no modo apaixonado como ele a possuíra. Ela, entretanto, não podia deixar de ignorar sua reação que desabrochava, o despertar de uma necessidade que ela teve de lutar para superar. A vergonha apossou-se dela. Não era melhor do que ele, na verdade, era até pior, pois ele não fingia ser melhor do que era. As emoções que ele havia despertado nela na noite anterior nada tinham a ver com o amor. Em relação a isto, era impossível ela se iludir. Dave Nelson não era o homem a quem ela poderia amar um dia. E agora menos do que nunca.
Levantou-se às sete, incapaz de suportar a tortura da inatividade por mais tempo. Seus olhos, refletidos no espelho acima da cômoda, pareciam pisados. Contemplou sua figura esguia com um olhar desapaixonado, concentrou-se na boca e cerrou o maxilar. Não adiantava mais se enganar. Tinha acontecido, e nada poderia alterar o fato. Imaginou que devia ficar agradecida por ele ter consentido em lhe dar seu nome, antes de tudo o mais. Sabendo o que agora ela sabia, duvidava que alguém tivesse erguido a mão para ajudá-la, mesmo que Dave tivesse se apoderado dela à força. Aqueles homens viviam segundo seu próprio código de regras. Isto servia apenas para provar que, afastados das restrições de uma comunidade maior por um certo período de tempo, os homens sempre retornam ao estado selvagem. Dave simplesmente não passava de líder da tribo, ele era o touro que tinha mais força. Pensou com ironia que não seria absolutamente despropositado se ele tivesse fincado o pé sobre ela e berrado seu triunfo a plenos pulmões, na noite anterior.
E o que havia sucedido na noite anterior certamente voltaria a acontecer, a menos que ela conseguisse escapar de lá. O problema consistia em saber qual dos dois males era o pior — Dave, ou a possibilidade muito real de se ver encalhada em Freetown sem qualquer espécie de ajuda. Supondo que Dave se recusasse peremptoriamente a lhe emprestar dinheiro, o que aconteceria? Ela não tinha como forçá-lo a fazer o que ele não queria, e de modo algum era o homem que conhecera um dia. Colocando a questão nestes termos, talvez fosse mesmo melhor ficar e enfrentar o mal pela raiz. Pelo menos agindo assim ela tinha certeza de regressar à Inglaterra e ao lar.
Não fazia muito sentido deixar a mala arrumada por mais tempo. No guarda-roupa havia muito espaço para colocar suas coisas, apesar dos dois ternos de tecido leve, das várias calças e camisas que já estavam lá. Kim ficou intrigada, pensando por que um homem precisaria de tanta roupa trabalhando em uma mina, até se dar conta de que elas certamente eram usadas nos fins de semana na cidade, bem como durante as férias anuais concedidas pela companhia. Lembrou-se de que Chris raramente mencionava como passava seus momentos de lazer. Em suas cartas, só se preocupava em falar do trabalho, do clima e, nos primeiros tempos, do quanto sentia falta dela.
Isto a levou a formular um outro pensamento. O que aconteceria com os tais fins de semana, agora que Dave tinha uma esposa pendurada ao pescoço? Ele os esqueceria enquanto ela permanecesse em sua companhia, ou teria a condescendência de levá-la até a cidade em sua companhia? Uma coisa parecia certa: ele não parecia estar disposto a deixá-la sozinha por muito tempo. Tinha deixado suficientemente claro que não confiava nela e muito menos em seus colegas, e Dave não era o tipo do homem que se arriscava a se deixar passar para trás.
Vestiu um roupão azul de algodão, amarrando-o firme na cintura antes de dirigir-se ao banheiro. Naquela manhã a água estava suficientemente quente para ser agradável. Patrick evidentemente a tinha ouvido levantar e preparava-lhe o café da manhã com todo o esmero. Ela podia ouvi-lo assoviando na cozinha, e lembrou-se de que justamente aquele setor de seu lar temporário iria passar por uma faxina. Não havia a menor dúvida de que Patrick ficaria um tanto ressabiado por ela interferir, mas simplesmente não podia ignorar o estado em que se encontravam aqueles armários por mais cinco semanas.
Ela abordou o assunto imediatamente após o café e foi polidamente informada de que as formigas expulsavam os demais insetos das latas de mantimento.
— Água quente e inseticida também — replicou energicamente. — Você limpa as prateleiras enquanto eu areio as panelas. Assim tudo estará em ordem antes do almoço.
Patrick parecia indeciso. — O patrão não gosta, dona — murmurou.
— O patrão não vai ficar sabendo, a menos que você conte — Isto era quase um convite para conspirar contra a autoridade de Dave, pensou, mas agora era tarde demais para voltar atrás. — Não vai levar muito tempo — repetiu com impaciência.
O estoque de enlatados pareceu estar em ordem depois de limpo com um pano úmido, apesar de Kim ter mandado jogar fora umas duas latas de carne em conserva, como medida de segurança. Quando chegou a vez dos demais mantimentos foi outro assunto. Os biscoitos estavam infestados de gorgulhos e a lata de farinha de trigo estava coberta por uma espécie de mofo esverdeado. Kim pensou na calda que Patrick derramara por cima do pudim na noite anterior e imaginou o mal que ela deveria ter feito. Não admirava que o gosto fosse tão estranho! O que restava da farinha de trigo iria direto para a lata de lixo.
Quando a limpeza acabou, Kim tinha colocado praticamente todos os mantimentos em um saco de papel que Patrick lhe dera e já o pusera diante da porta, pronto para ir para o lixo. Sentiu-se melhor ao ver as latas de mantimentos limpas, porém achou que ficaria ainda mais contente se aquilo que elas encerravam fosse igualmente limpo. Patrick informou-a que as compras para a casa deveriam ser retiradas do depósito situado atrás do clube e que a requisição deveria ser assinada pelo próprio Dave. Kim fez às pressas uma nova lista, antes que Dave voltasse para casa e deixou-a em cima da mesa de jantar. Voltou para a cozinha para inspecionar o trabalho de Pat e descobriu que ele ainda estava na metade das tarefas que lhe tinha designado. Aparentemente, para um africano, era tarefa impossível mover-se mais rapidamente do que o ondular de uma cobra. Ou a pessoa se colocava no mesmo ritmo das coisas ou ela mesma executava a tarefa. Kim optou pela última alternativa e despachou-o para limpar os quartos e a sala de estar, enquanto se punha a trabalhar.
O suor escorria ao menor movimento durante aquela parte do dia; ela já estava ensopada antes de começar sua tarefa, e o vapor que se desprendia do balde de água quente não contribuiu em nada para melhorar a situação. Os cabelos insistiam em cair-lhe sobre o rosto, apesar da faixa que os prendia, fazendo-a sentir um calor ainda maior. Ela ajeitou-os irritada, deixando uma mancha negra de um lado do rosto; em seguida agachou-se e tentou amarrá-los, para que deixassem de atrapalhá-la. Quando voltou a cabeça, Dave estava parado diante da porta, com uma expressão tensa no rosto.
— Que diabos você pensa que está fazendo? — perguntou. Kim encarou-o com ar de desafio, sem gostar de sua expressão, o tom com que falava e sua aparência em geral. — Algo que deveria ter sido feito há muito tempo atrás — respondeu finalmente. — Acho que este lugar não passou por uma limpeza mais profunda desde que foi construído!
— Pois então você deveria ter ordenado a Pat que o fizesse. — Ele parecia estar furioso. — Você acha que ele é pago para quê? — deu dois passos em direção a ela, sacudiu-a, seus dedos agarraram a blusa dela, afastando-a da pele. — Você está ensopada, sua idiota! Você não tem juízo?
— Pelo visto, não — Kim não se moveu, enquanto ele a segurava. — E não é um pouco tarde demais para se preocupar com o meu bem-estar?
— Estou preocupado com o bem-estar de todo mundo aqui, inclusive com o seu! Você sequer se acostumou com este clima maldito, e no entanto eu a encontro... — Ele interrompeu-se, cerrou os dentes e falou: — Não tente sequer fazer isso novamente, está me ouvindo? Você não é uma empregada!
"O que queriam dizer aquelas palavras?", pensou ela cinicamente. — Precisava fazer alguma coisa para passar o tempo — disse, no momento em que ele a soltava. — O outro emprego só começa no início da semana.
— É isso mesmo. Na segunda-feira pela manhã você terá diante de si todas as tarefas que quiser. Até lá você vai ter que se conformar.
— Irei trabalhar no escritório?
— Não, aqui em casa. Não quero que você fique por lá, a menos que eu esteja com você. — Esboçou um gesto de impaciência. — Vá se trocar. Vamos almoçar no clube. E não me diga que desta vez você não está com fome.
— Eu não ia dizer mesmo — ela respondeu sem a menor ênfase, saindo da cozinha.
Patrick foi despachado para preparar outro banho de chuveiro, enquanto ela se dirigia ao quarto, a fim de escolher a roupa que iria usar. A roupa suja que ela havia colocado na bacia ao lado da porta naquela manhã já não estava mais lá. Kim pôs de molho as calças de algodão e a blusa que acabara de despir, escolheu um vestido para o almoço e embrulhou-se no roupão azul, caminhando para o banheiro. Patrick não tinha se esquecido de providenciar uma toalha limpa. Estava dependurada em um gancho, ao lado do banheiro. Kim entrou e trancou a porta de bambu, tirou o roupão e pendurou-o na estreita abertura entre a porta e o teto, ao lado da toalha. Estava enrolando os cabelos e ia colocar uma touca quando Dave veio da cozinha até a varanda. Parou, apoiou-se à balaustrada e observou o mato rasteiro que começava a despontar entre a casa e a floresta.
— Podíamos usar um lança-chamas para impedir este matagal de crescer — observou bem à vontade. — Neste clima, cortar o mato adianta muito pouco, especialmente nesta época do ano. — Deu uma olhada para ela, vendo que não obtinha resposta, e um brilho divertido surgiu em seus olhos, que se demoraram sobre o rosto e os ombros nus de Kim. — Apresse-se. Eu disse a Luke que o encontraríamos dentro de meia hora.
Ele estava fazendo isso de propósito, ela pensou, pretendendo desconcertá-la. Pois bem, não lhe daria aquela satisfação. Acabou de ajeitar os cabelos e puxou a corda que fazia o balde de água entornar-se, tentando controlar-se enquanto o líquido frio se espalhava sobre ela. Quando terminou, alcançou a toalha e enxugou-se bem devagar, de modo que a transpiração não voltasse. Estava a ponto de dispensar a toalha e trocá-la pelo roupão quando algo que se mexia junto a seus pés chamou-lhe a atenção. Kim sentiu que seus lábios tremeram ao olhar, paralisada pelo terror, o escorpião preso na ponta da toalha. Não tinha a menor idéia de onde ele surgira. Naquele momento isto parecia não ter a menor importância. A questão era saber o que ela faria em seguida.
Quando recuperou a voz ela saiu trêmula e baixa. — Dave, há um escorpião aqui dentro.
— Bom, não discuta com ele — ele aconselhou, despreocupado. — Venha para fora.
— Não posso. Está... está na minha toalha.
Ele ficou preocupado.
— Onde?
— Perto do chão. Ele não se move.
Dave aproximou-se rapidamente. — Estenda o braço e abra a porta. Faça isto bem devagar. Eles se movem com a rapidez do raio.
Kim obedeceu sem a menor hesitação. Seus dedos acharam a tranca da porta por instinto, e ela não ousava tirar os olhos do inseto tão próximo a seu pé. Dave abriu a porta cuidadosamente, tentando evitar que algum jorro de luz penetrasse subitamente na cabine. Deu uma olhada no escorpião e agiu imediatamente, mandando-o pelos ares com um pontapé que deixou de atingir os dedos de Kim por alguns centímetros; em seguida, empurrou-a para fora.
Ela o abraçou sem o menor pudor e naquele momento esqueceu-se de tudo, menos do fato de que estivera a pique de se expor a uma morte horrível. Somente quando sentiu a camurça áspera contra a pele compreendeu o que estava fazendo. Com o rosto pegando fogo, amarrou a toalha em torno de si e afastou-se do homem que a acudira com tanta presteza, vendo ao mesmo tempo um sorriso surgir em seus lábios.
— Sua vida e seu pudor, ambos salvos — disse ele satiricamente.
— Não se preocupe, não vou tirar vantagem de sua gratidão. É melhor você colocar uma roupa enquanto me livro deste nosso amigo aqui.
Kim foi correndo para o quarto, resistindo ao ímpeto de bloquear a porta com uma cadeira colocada sob a maçaneta. Estava tremendo de novo, só que desta vez de desgosto com sua própria fraqueza. Odiava Dave Nelson com todas as suas forças, e no entanto há um momento atrás tinha se atirado em seus braços à procura de segurança, tinha se aferrado a ele como se não quisesse soltá-lo nunca mais. E tudo por causa de um incidente que ela mesma poderia ter contornado se não tivesse entrado em pânico. É claro que não tinha havido nenhum perigo real. Fora protegida pela toalha. Dave com certeza percebera isso instantaneamente, mas a oportunidade de caçoar dela era boa demais para ser desperdiçada.
O almoço no clube foi um suplício, mas ela conseguiu ir até o fim. Imaginou quanto tempo levaria para que sua presença fosse aceita como algo normal pelos homens que trabalhavam na companhia de mineração, pois eles paravam imediatamente de conversar no momento em que ela entrava na sala. Isto nem sequer se devia ao fato de eles estarem privados de mulher, pensou enquanto tomava café. Além do desfiladeiro havia uma cidade.
Luke passou a maior parte do almoço discutindo as novas medidas de segurança relativas aos efeitos das chuvas que se aproximavam. A tempestade que se armara na véspera finalmente não tinha caído; hoje, porém, o céu estava muito carregado e havia nuvens negras sobre as colinas verdejantes além da mina. Kim não ousou imaginar como seria quando as chuvas chegassem: uma umidade opressiva, o cheiro da vegetação podre, lama por toda parte. Precisaria de um par de botas e de uma capa de chuva, a menos que desejasse passar a maior parte do tempo confinada em casa.
Sentindo um pequeno choque, Kim compreendeu como deveria ter ido longe ao conformar-se com sua posição, na medida em que formulava planos desse tipo. Em poucos dias Dave tinha conseguido dobrar seu espírito combativo, e a tal ponto que ela estava começando a recuar e reconhecer o direito que ele tinha de a manter lá. "Mas ela se vingaria de tudo o que ele estava lhe fazendo", disse a si mesma, indignada. "Algum dia, de alguma forma, ela o faria pagar por cada minuto daquelas semanas que a forçara a passar em sua companhia!"
Um dos garçons veio até eles e disse a Dave que havia um chamado para ele na cabine telefônica. A sós com Luke, Kim disse, após uma pausa: — Será que você quer me ensinar a jogar bilhar, algum dia?
A surpresa deu lugar a um sorriso. — Sinuca — corrigiu. — Há uma diferença. Gostaria muito, contanto que...
— Contanto que Dave concorde — ela completou a frase, imperturbável. — Algum motivo em contrário?
Ele deu de ombros. — Talvez ele não goste da idéia de você vir ao clube sem ele. E nem eu posso garantir que não vai surgir mais uma encrenca por sua causa. Lembra-se do que aconteceu na primeira noite?
— Isto foi antes de eu me tornar a propriedade exclusiva de um homem — ela replicou suavemente. — Ninguém vai começar uma briga por causa da mulher de Dave Nelson, sobretudo se quiserem manter o emprego. Eu sei disto, você sabe disto e eles também sabem. Portanto, qual é o problema?
Luke fez um gesto com o polegar por cima do ombro, apontando a direção por onde Dave saíra. — Lá está o problema. Repare que eu não o estou criticando. Se eu tivesse uma mulher como você em um lugar como este, eu não teria confiança em deixá-la sozinha com o meu melhor amigo!
— Você não parece ter uma opinião muito lisonjeira a respeito do meu código de ética — ela disse.
Ele a contemplou com insegurança durante alguns momentos e em seguida sua fronte desanuviou-se. — Desculpe — murmurou, encabulado. — Eu quis dizer que não confiaria no amigo.
— Há muito tempo que você conhece Dave? — ela indagou.
— Nós nos conhecemos em Dacar, há alguns anos. Naquela época ele trabalhava em Zouerate, na Mauritânia, e eu perambulava de um emprego a outro. Regressei para a Inglaterra por algum tempo, não me acostumei mais e assinei um contrato com esta companhia. Dave já estava aqui quando cheguei, há uns dois anos.
Kim disse lentamente. — Você o aprecia um bocado, não é mesmo, Luke?
Passaram-se alguns momentos antes que ele respondesse à indagação. — Digamos que ele é alguém em quem eu posso confiar, quando estiver em apuros. Houve um tempo... — Fez uma pausa, balançou a cabeça, tirou um cigarro. — Deixe para lá. Ele não gostaria que eu lhe contasse a história.
Kim não fez pressão para que ele lhe contasse o resto. Havia algo nela que se recusava a ouvir. Luke tinha uma visão do homem com quem ela se casara, ela tinha uma outra e as coisas iriam permanecer desse jeito. Nada iria se interpor entre esses dois pontos de vista. Seu olhar passou por cima dos ombros de Luke e dirigiu-se para a porta aberta do restaurante e para o corredor onde Dave era visto falando ao telefone. Um dos pés dele se apoiava à travessa da cadeira ao lado do telefone e ele estava inclinado para frente, com o braço pousado sobre o joelho dobrado. Vistos de perfil, seus traços pareciam talhados em rocha sólida por um escultor mais interessado em planos e ângulos do que em apelos estéticos. Não era um belo rosto, mas certamente chamava atenção. Ele parecia ser o que era. Um homem de ferro, insubmisso e virtualmente indestrutível. Algumas mulheres achavam aquela combinação excitante e até mesmo irresistível, sem a menor dúvida, mas não era o seu caso. Tudo o que ela desejava era abrir uma brecha naquele seu lado insensível, era descobrir um modo de feri-lo, a tal ponto que ele carregaria as cicatrizes para o resto da vida.
Foi nesse momento que uma idéia começou a germinar. Outrora, há muito tempo atrás, uma mulher conseguira magoá-lo, por mais que ele tentasse diluir no cinismo a importância do fato. Supondo, apenas supondo que ela conseguisse fazer com que ele se apaixonasse por ela, isto não lhe forneceria a arma mais aguçada de todas? E por que não? É bem verdade que agora ele talvez fosse uma parada mais dura de se enfrentar, mas, no que dizia respeito à atração, ela já saía com uma certa vantagem e não tinha nada a perder. E que vingança seria! Quase valia a degradação que ele estava lhe impingindo.
Deu-se conta subitamente de que Dave tinha colocado o telefone no gancho e olhava em sua direção, com uma expressão estranha. Kim baixou rapidamente os olhos, imaginando se teria revelado seus pensamentos, naquele momento de abandono. Uma campanha como a que ela estava planejando encerrava um desafio muito real, pensou. Ele era por demais astuto para ser surpreendido por táticas tímidas. Ela não tinha certeza se seria capaz de se entregar a um papel contra o qual sua sensibilidade protestava.
— Vou até a cidade — anunciou, assim que se aproximou da mesa. — Quer ir comigo dar um passeio?
Kim encarou-o, sem saber se a pergunta era dirigida a ela ou a Luke. Sua expressão era enigmática e não denotava nada naqueles calmos olhos cinza. — Até que seria divertido. — ela condescendeu, após uma breve pausa.
Luke acompanhou-os até a porta da entrada, mirando o céu com ar de entendido. — Não vai demorar muito tempo para chover. — afirmou. — A estrada estava um verdadeiro rio na noite passada. Acha que vai conseguir voltar a tempo?
— Se não conseguirmos, voltaremos a nado — foi a resposta imperturbável. — Talvez fosse uma boa idéia mandar alguns homens abrir algumas canaletas ao lado da estrada antes da primeira chuva pesada. Algo me diz que elas virão mais cedo este ano.
Já no carro, Kim perguntou timidamente: — O que acontece na mina quando as chuvas começam a cair para valer? É impossível levar o trabalho adiante sob as tempestades, não?
— Depende da quantidade de chuva. Se mandássemos os homens parar cada vez que chove, teríamos de desistir e fechar a mina também durante a estação seca. É um tempo difícil, mas a gente consegue dar conta.
— Só que neste ano você não vai estar aqui para ver.
— Não.
Ela esperou um momento antes de formular a pergunta seguinte: — Você está planejando voltar?
— Para Pillai não, com toda a certeza. Três anos no mesmo lugar são mais do que suficientes. Luke me substituirá quando eu partir. Ele provavelmente ficará por mais uma temporada, a menos que surja algo que o faça mudar de idéia.
— O quê, por exemplo?
Ele lançou-lhe um rápido olhar. — Como é que eu posso saber? Ele ainda tem um ano de contrato para cumprir. Depois disto tudo pode acontecer. Aqui você aceita as coisas como elas vêm. — Ele mudou a marcha e acrescentou casualmente: — Ainda bem que vamos embora dentro de algumas semanas. Você jamais agüentaria passar uma estação inteira aqui.
O que ele provavelmente queria dizer, pensou, é que não agüentaria mais vê-la por perto, transcorrido aquele tempo. E era este o homem a quem ela queria fazer ajoelhar-se a seus pés em cinco curtas semanas! Com a maior determinação pôs de lado o derrotismo que ameaçava apoderar-se dela. No momento ele se mostrava interessado nela, não era mesmo? E ela nem sequer havia iniciado a campanha para atiçá-lo. Não quis também refletir sobre o fato de que não tinha a menor certeza de como haveria de iniciá-la. O instinto deveria desempenhar um papel de grande importância em um assunto daquela natureza.
Levaram vinte minutos para alcançar a cidade, através daquele verdadeiro atalho tortuoso. Dave contou-lhe que os trabalhadores desbastavam a floresta para chegar até a mina, porém as picadas que eles abriam não eram suficientemente largas para dar passagem a um automóvel. A cidade era maior do que Kim imaginara. As casas de alvenaria, cobertas com chapas onduladas, dispunham-se desordenadamente ao longo de ruas enlameadas, ornamentadas com palmeiras e árvores semelhantes a cedros. A casa diante da qual Dave parou o carro era uma das melhores. O teto de zinco estava livre da ferrugem que atacava as residências vizinhas.
— Não vou levar muito tempo — disse, deixando Kim enfrentar o olhar curioso dos moradores. Dentro do carro estava insuportável e a umidade pairava como um manto. Kim afastou-se do encosto do banco e sentiu que a blusa grudava em sua pele. Saiu do carro e apoiou-se a um muro, sentindo algum alívio ao ar livre. Uma nuvem aproximara-se do norte e cobrira todo o céu, espessa, escura, e ameaçadora. Ouvia-se novamente o trovão ecoando nas colinas, e desta vez mais perto, enquanto os relâmpagos riscavam o céu. Gostaria que Dave se apressasse. Não seria brincadeira enfrentar a tempestade como a que tinha certeza de que iria cair.
Dois meninos aproximaram-se do carro. Pareciam irmãos, um deles deveria ter dez anos, o outro doze. Puseram-se a encará-la com solene curiosidade. O mais novo usava um capacete branco de mineiro que lhe caía até a orelha e balançava perigosamente cada vez que ele movia a cabeça.
— Cigarro? — pediu o mais velho, esperançoso, encorajado pelo sorriso involuntário de Kim. — Me dá cigarro, dona?
— Sinto muito, não tenho. — Kim mostrou as mãos vazias, desejando ter algo mais apropriado para oferecer aos meninos, em compensação.
Dave saiu da casa, acompanhado até a porta por duas mulheres sorridentes que usavam vestidos europeus. — Dêem o fora, vocês dois — disse aos garotos, porém sem severidade, e jogou uma moeda para o mais velho antes de subir no carro.
— O que é que eles queriam? — perguntou a Kim, quando o carro se pôs novamente em movimento. Ela contou e ele sorriu.
— Aqueles dois gostam um bocado de tabaco. Desse jeito vão parar de crescer, se não tomarem cuidado.
— Você parece conhecê-los — murmurou.
— São filhos do meu capataz: é o homem que acabo de ver. Na noite passada quebrou a perna e ficou preocupado com a família. A Companhia toma conta desses casos, só que eles nunca acreditam, a menos que você os tranqüilize pelo menos umas doze vezes. O que você achou das mulheres dele?
Kim lançou-lhe um rápido olhar. — As duas?
— E por que não? Ele é muçulmano; pode se casar com quatro. — Estava voltando pelo caminho por onde tinham vindo. — Vou deixá-la em casa e voltarei para a mina, antes que a chuva despenque.
Ele calculou mal. Estavam na metade do caminho quando o barulho extremamente violento de um trovão anunciou uma súbita pancada de água. Kim jamais vira em toda sua vida uma chuva como aquela. Era uma muralha sólida de água que transformou a pequena estrada em um atoleiro em uma fração de segundos e tornou impossível guiar. Dave dirigiu o carro para uma pequena elevação ao lado da estrada e desligou o motor. — Vamos ter que esperar até melhorar um pouco — disse. — Caso contrário somos capazes de sair da terra firme e de nos atolarmos.
— Você chama a isto terra firme? — ela perguntou, tentando não parecer muito perturbada. — A água está correndo como um rio pela estrada!
— Enquanto estiver correndo, tudo bem. Ê quando ela pára que começam os problemas. — Tirou um cigarro do bolso, observou sua expressão enquanto o trovão ribombava novamente e acrescentou: — Parece pior do que é, na verdade. Por estas paragens tudo parece fora de proporção. Quer fumar?
Ela aceitou, contente por poder se concentrar em algo mais que não fosse a tempestade. Dave primeiro acendeu o cigarro dela e em seguida o seu, sacudiu o fósforo e atirou-o pela janela aberta. Por alguns momentos ficaram em silêncio, sublinhado unicamente pela chuva ininterrupta.
— Como é que você consegue agüentar isto durante seis meses? — Kim explodiu finalmente, incapaz de suportar ficar sentada lá por mais tempo, esperando.
— O primeiro ano é o pior — ele replicou. — Depois disso você aceita qualquer coisa que o clima queira lhe infligir. Alguns homens conseguem tirar férias durante as chuvas e vão para o norte.
— Mas você não — ela arriscou.
Ele deu de ombros. — Quando você está de férias, um lugar é tão bom quanto outro qualquer. Passei a maior parte do tempo em Freetown.
— Suponho que você vai lá com muita freqüência.
— Nos fins de semana. — Acrescentou jocosamente: — Comporte-se e até pode ser que eu a leve comigo. Você não teve muitas oportunidades de conhecer a cidade nas duas vezes em que esteve lá.
— Não. — Kim obrigou-se a adotar o mesmo tom ligeiro. — Devo dizer que ficaria muito desapontada por ter que voltar para casa e contar que o único lugar de Serra Leoa que eu vi de verdade foi um acampamento de mineiros nas montanhas.
— E quanto a seus amigos de Londres? — ele perguntou inesperadamente. — Você os colocou a par de seus planos?
— Os seus planos, você quer dizer. — Ela não conseguiu evitar o comentário intencional.
— Acaba dando no mesmo. Seus amigos sabem?
— Tenho apenas uma amiga, com quem dividia um apartamento.
— Dividia?
— Naturalmente tive de dizer a ela que encontrasse outra pessoa quando vim para a África. Não teria possibilidades de pagar minha parte do aluguel enquanto estivesse fora. De qualquer forma não tinha certeza de quanto tempo estaria fora.
A expressão de Dave refletia curiosidade. — Você não consegue nunca parar para refletir antes de agir?
— Não muito freqüentemente — ela admitiu pesarosa, dizendo logo em seguida em tom firme: — Apesar de sentir que conseguirei, no futuro.
— Vamos! — Ele sorria novamente. — Não é tão ruim assim. Eu tive a impressão nítida de que você poderia começar a gostar de nossa combinação.
Kim sentiu o sangue subir-lhe ao rosto. — Existe uma diferença enorme entre o gozo e o sofrimento — retrucou. — Penso que aprendi alguma coisa a seu respeito: você é totalmente desprovido de qualquer espécie de senso de humanidade, portanto é uma perda óbvia de tempo oferecer qualquer resistência. Nossa combinação, como você a denomina, é algo que devo tolerar para poder voltar para casa. Não gosto dela, mas há muito pouca coisa — não levando em conta um assassinato — que eu possa fazer.
Surgiu um brilho em seus olhos cinzas enquanto ele a estudava. — Você é uma mentirosa. — ele disse, em tom quase normal. — Basicamente você me deseja tanto quanto eu a desejo, só que isto se choca com seu código imaturo de ética. Não existe uma mulher tão imatura que consiga acreditar na tolice que você me disse na noite passada. Você apenas estava tentando munir-se de uma defesa contra suas próprias inclinações.
— Isto não é verdade! — Ela disse entre dentes. — Você talvez se considere irresistível para todas as mulheres, mas posso lhe garantir que, quanto a mim você simplesmente é um meio para um fim. Se você quer saber, causa-me arrepios ser tocada por você!
— Eu bem que notei. — Havia ironia no tom com que ele falava. — Muito bem, guarde para você sua própria versão. Você não gosta de nada que diga respeito ao nosso relacionamento e sobretudo a mim. — Inclinou-se para ela, tirou o cigarro que ela mal tocara, jogou-o pela janela juntamente com o seu e puxou-a para si, caçoando de sua resistência involuntária. — Vamos, lute. Gosto de sentir um pouco de espírito em minhas mulheres!
Kim fechou os olhos, enquanto a cabeça dele se inclinava em direção a ela, preparando-se para se defender contra o contato dos lábios dele com os seus. Vendo que nada acontecia, abriu os olhos rapidamente e encontrou os dele a alguns centímetros dos seus, carregados de um brilho irônico. A mão dele moveu-se, apoiou-se em seu coração e registrou a pulsação que se acelerava, moveu-se novamente até tocar a base do pescoço e acariciá-la com uma ternura inacreditável, deixando retesados todos os nervos do seu corpo. Estremeceu no momento em que os lábios dele encontraram o canto de sua boca, lutando para controlar suas emoções traiçoeiras, odiando-se, quase tanto quanto o odiava, por não ter a força de vontade necessária para suprimir a sensação que seu toque lhe provocava. Três dias, pensou revoltada, e ele já conseguira reduzi-la àquele estado de humilhação. Que espécie de pessoa ela era, quando os princípios de uma vida inteira podiam se alicerçar em algo tão frágil?
Mas uma reação positiva era necessária aos planos que tinha feito para ele, foi o pensamento que lhe ocorreu naquele instante. Como ela esperaria executar o tipo de vingança que escolhera, a menos que usasse todo tipo de armas à sua disposição? Para atingir o interior daquele homem primeiro teria de satisfazer suas emoções mais primárias. Este era um fato inelutável. Foi por esta razão unicamente que ela se permitiu relaxar um pouco a tensão que se apoderara de seu corpo, deixando-o atraí-la para seus braços, descerrando os lábios a seu beijo e oferecendo em troca alguma retribuição. O fim justifica os meios, pensou enfaticamente. O fim sempre justifica os meios!
No entanto não conseguia enfrentar de todo os seus olhos, quando ele finalmente a soltou. Poderia haver alguma justificativa para seu relativo abandono nos últimos minutos, mas agora que eles haviam passado, ela se orgulhava muito pouco de si mesma e de suas motivações. Se fosse honesta consigo mesma, teria de admitir que desejara corresponder a ele. Dave não subestimara seu poder sobre ela ao se declarar capaz de excitá-la no momento que quisesse. Ele a conhecia melhor do que ela mesma.
— Foi melhor do que eu esperava — ele disse suavemente.
— Foi melhor do que você merece — ela retrucou, dominando seu langor por um esforço supremo de vontade. Levantou a cabeça e o queixo apontou para a frente. — Muito bem, você provou do que é capaz. Deve estar se sentindo muito orgulhoso de si mesmo.
— Não de todo. Estou mais intrigado do que qualquer outra coisa. — Havia um tom estranho na voz dele. — Você tem suficiente força de vontade para controlar-se, no entanto você cedeu propositalmente agora há pouco. Por quê?
— Ela disse em voz baixa. — Você sabe por quê.
— Porque você não pôde dominar-se? — Estudou-a e seus lábios moveram-se imperceptivelmente. — Acho que não. Penso que você tinha outros motivos.
— Tais como? — Apesar de todo o esforço que fazia por manter a voz calma, ela tremia.
— A esperança de que, ao se tornar agradável, digamos, para mim, você poderia encontrar uma brecha por onde penetrar. Você não é lá muito perita em esconder seus pensamentos, meu bem. Compreendi que você estava maquinando algo no momento em que a surpreendi lançando aquele olhar calculista, quando telefonava na hora do almoço. Muito bem, continue treinando. Com um pouco mais de prática é capaz de você aprender até mesmo a se envolver!
Kim olhou para ele, derrotada, consciente de que ele estivera brincando com ela como um gato brincaria com um rato. Não adiantava de nada pedir, mas ela fez mais uma tentativa de atingir seus instintos mais nobres. — Dave, — disse, tremendo — deixe-me ir embora. Eu não significo nada para você.
— Engana-se novamente. Você significa muito — com o polegar acariciou a ponta do queixo. — Você é uma mulher muito desejável e acontece que você é minha esposa. Enquanto estas duas circunstâncias persistirem você vai ficar aqui comigo. — Inclinou-se e ligou o motor. — A chuva está passando um pouco. Acho melhor voltarmos para a mina.
Kim não disse sequer uma palavra na volta. A clareira estava toda sulcada por pequenos rios enlameados, formados pelos pneus dos automóveis. Dave parou o carro o mais próximo possível dos degraus e saiu antes que Kim pudesse mover-se, levantando-a em seus braços a fim de evitar que ela pisasse naquele lamaçal e levando-a até a varanda. A chuva talvez tivesse diminuído de força, mas mesmo assim sua camisa ficou toda molhada. Ele a pôs no chão e entrou na casa antes dela.
Ela preparava um drinque quando ele voltou do quarto abotoando uma camisa seca.
— Não é um pouco cedo demais para isso? — disse.
— Acha? — Voltou-se com o copo na mão e havia um brilho muito pouco natural em seu olhar. — Talvez eu esteja precisando. Não há do que se admirar.
Veio até ela carregado de intenções e tirou-lhe o copo das mãos. — Você se acalmará sem precisar recorrer a isso. Já tenho suficientes problemas com você sem precisar acrescentar o álcool a eles.
— Problemas? Comigo? — Deu uma breve risada. — Você deveria decidir-se, Dave. Há poucos momentos você parecia convencido de que me tinha sob total controle.
Houve uma pausa e uma ligeira mudança de expressão antes que ele dissesse bruscamente. — Não estamos falando das mesmas coisas. Você vai pôr este negócio de lado até hoje à noite ou vou ter que trancar?
Ela levantou a mão, em um gesto de aceitação. — Não beberei. Quer que eu ponha de volta na garrafa?
— Não, já que se serviu, eu mesmo beberei. — O sorriso irônico estava de volta. — Estou acostumado e você não. A diferença está aí.
— Se quiser, na garrafa tem mais — ela retrucou, mas sem muita convicção. — Você vai sair de novo?
— Sim. Ficou feliz?
— Felicíssima. — Passou por ele sem dizer mais uma palavra, foi para o quarto e fechou a porta.
0 carro saiu após cinco minutos. Deitada de bruços, Kim examinou as ondulações da colcha e calculou que tinha cerca de trinta e cinco dias pela frente antes que a Inglaterra e o lar se tornassem mais do que um sonho. Mais trinta e cinco dias e um número igual de noites. E quando ela voltasse para Londres, o que aconteceria? Estava desempregada, não tinha onde morar e só lhe restavam vinte libras. Mas preferia morrer a aceitar dinheiro de Dave. Isto seria a degradação final.
Caiu mais uma tempestade durante o fim de semana e nos três dias que se seguiram a região foi envolvida por uma nuvem escura e densa, que aprisionava o calor e a umidade, provocando uma opressão desvitalizadora. Apesar de qualquer esforço implicar num desgaste imenso, a mina continuava funcionando rotineiramente, parando somente durante três horas durante todo o período. Os homens praguejavam contra aquele clima maldito, mas nenhum deles parecia se sentir muito afetado pelas mudanças climáticas.
Kim tinha começado a pôr ordem nas folhas de pagamento na segunda-feira, trabalhando três horas pela manhã e mais três no final da tarde. Com a ajuda de uma máquina de calcular um tanto antiquada que Dave lhe trouxera do escritório, achou o trabalho menos difícil do que havia imaginado. Quando chegou a hora do almoço, na quarta-feira, havia terminado sua tarefa. As pilhas de envelopes já estavam etiquetadas e classificadas, prontas para serem enviadas para a seção do pessoal, onde os funcionários as preencheriam. Ela espreguiçou-se, e afastou a cadeira da mesa, colocada em um dos cantos da sala de estar, onde estivera trabalhando. Tinha tempo suficiente para começar a escrituração dos livros de contabilidade somente na manhã seguinte, o que lhe proporcionava uma tarde livre de qualquer preocupação, se ela assim o desejasse.
O torpor lá fora quase só encontrava paralelo na atmosfera abafada que reinava dentro de casa. Não tinha a menor idéia de onde Dave se encontrava naquele momento. E nem se importava especialmente, disse a si mesma. Nos dois últimos dias ela se afastava da casa até o pôr-do-sol, retornando para fazer um lanche rápido e descansar durante mais ou menos uma hora, até o jantar. Sua vida com Dave já tinha adquirido um certo padrão, pensou. Um padrão que ela aceitava porque não lhe restava nenhuma outra escolha, mas contra o qual seu espírito ainda se rebelava. Para Dave não passava de uma amenidade, uma companhia com quem ele poderia passar agradavelmente as horas que se seguiam a um dia de trabalho e o próximo. Por nada deste mundo Kim teria admitido conscientemente que as horas do dia, quando ele não estava em sua companhia, pareciam se alongar ao infinito, e muito menos que o despertar da vitalidade nela coincidia com o momento em que seu carro voltava, mal se iniciavam aquelas noites ligeiramente mais frescas.
Patrick serviu o almoço ligeiro que ela tinha pedido, composto de salada e carne fria, e perguntou se iria querer chá às quatro e meia, como de costume. Em um impulso, Kim disse-lhe que folgasse para o resto do dia. À noite jantariam no clube e, se Dave não gostasse, pior para ele. Já era mais do que tempo de mudar a rotina.
Passou a tarde preguiçosamente lendo um romance policial escolhido entre os livros empilhados na estante da sala de estar, fazendo o possível para ignorar a intensa umidade. Ao longe, ouvia-se novamente o ribombar do trovão e pairava no ar o silêncio que pressagiava outra tempestade. Em uma ou duas semanas a violência dos elementos decresceria, mas a chuva continuaria caindo com regularidade crescente durante os meses de julho e agosto antes de começar a diminuir vagarosamente quando se aproximasse a estação seca. Para Kim não havia nada que lhe recomendasse aquela região. Era um lugar quente e úmido e ela mal podia esperar para sair de lá.
Foi somente quando ela se decidiu tomar um banho de chuveiro e trocar de roupa que se lembrou da água. Patrick costumava manter uma grande panela cheia de água aquecendo constantemente no fogão a lenha, e depois a colocava na caixa-d'água que servia ao chuveiro, a fim de preparar o banho. Devia ter ido embora depressa, depois de Kim lhe ter dado aquela folga inesperada, pois quando ela foi para a cozinha encontrou o fogão já frio e a panela quase vazia. Enchê-la não apresentava problema algum, esquentá-la, porém, era outro assunto. Kim já tinha visto Patrick acender o fogão algumas vezes, mas tinha somente uma vaga idéia de como proceder. Havia uma pilha de lenha colocada em um caixote, a um canto da cozinha, e algumas revistas velhas ao lado, que ela presumiu poderem ser usadas para atear o fogo. Amassou algumas folhas e colocou-as juntamente com a madeira no fogão, ateando fogo por meio de um palito de fósforo. O papel começou a queimar nas bordas, porém apagou logo. Acendeu mais um fósforo e desta vez segurou-o junto ao papel até que ele quase queimou-lhe os dedos. O fogo propagou-se com rapidez inesperada e Kim retirou rapidamente a mão enquanto as chamas ardiam. Ignorou a dor por um momento, enquanto olhava desalentada a chama extinguir-se sem ter feito mais do que tostar a extremidade de dois pedaços de lenha.
Foi somente quando virou a palma da mão que compreendeu o quanto tinha ficado queimada, e desta vez estava começando a doer para valer. Passou um pano em volta para impedir o contato com o ar e tentou se lembrar do que era bom para passar em queimaduras. Lembrou-se: bicarbonato, na falta de algo melhor, só que não conseguia se lembrar de ter visto alguma caixa quando limpara os armários.
Em algum lugar da casa deveria haver uma caixa de primeiros-socorros, pensou. Foi procurá-la na sala de estar, protegendo a palma ferida com a outra mão. Não ouviu o carro e levou um susto quando Dave apareceu no limiar da porta, acompanhado por mais uma trovoada.
— Vai cair uma chuva forte — observou; em seguida, seus olhos foram atraídos pela mão de Kim envolvida em um lenço limpo e o tom de sua voz alterou-se. — O que foi que aconteceu?
Kim contou. — Não foi nada sério — concluiu, tentando não demonstrar que estava sentindo dor. — Estava procurando a caixa de primeiros-socorros.
Dave aproximou-se e tomou-lhe a mão, desenrolando o lenço e esticando cuidadosamente a palma para olhar a queimadura. — Você precisa ser medicada — comentou. — É melhor levá-la até a enfermaria e mandar o doutor Selby dar uma olhada nisto.
— Oh, tenho certeza de que não é necessário. — Kim protestou.
— Realmente, Dave...
— Eu decido o que é necessário. É fácil contrair uma infecção neste clima. Só por curiosidade, por que é que você estava tentando acender o fogão?
— Dei folga para Patrick. Pensei que podíamos jantar no clube. — Enfrentou desafiadoramente seu olhar. — Alguma objeção?
Seu riso foi súbito e inesperado. — Nenhuma de que eu me lembre. Você não precisa se mostrar tão agressiva. Concordo inteiramente que você mereça sair de vez em quando, até mesmo neste fim de mundo. — Segurou-a pelo cotovelo e a fez andar em direção à porta. — Mas primeiro vamos tratar desta mão.
Entraram no carro e se dirigiam para o clube quando ele disse displicentemente: — O que você acha de passar o fim de semana na cidade?
Kim olhou para ele rapidamente. — Com você?
— Com quem mais haveria de ser?
Ela ficou em silêncio por um momento antes de dizer suavemente: — Você não tem receio de que eu tente fugir novamente?
— Não. Você não tem para onde ir, a menos que estivesse pensando novamente em Adams.
— De que adiantaria?
— Exatamente. Fico contente de ver que você finalmente se mostra sensata em relação àquele tipo. — Fez uma pausa breve e acrescentou: — Você ainda sente vontade de fugir de mim?
Há alguns dias atrás Kim não teria de pensar duas vezes para responder à pergunta. Agora ela se mostrava hesitante, antes de responder lentamente: — Como você acaba de dizer, não tenho para onde ir. Não precisa se preocupar em relação a isso, Dave. Eu cumprirei a minha parte na barganha que fizemos.
Os lábios dele ficaram um tanto tensos. — Sabe de uma coisa? Estou começando a ficar cansado desta sua atitude. Você embarcou nesta história de olhos bem abertos, portanto pare de fazer de mim o vilão da peça. Claro, eu queria você e talvez tenha manipulado as coisas em meu favor para tê-la; porém, agi legalmente e sem recorrer a falsas promessas.
Ela engoliu em seco. — Nem mesmo uma certidão de casamento dá necessariamente a um homem direitos totais sobre a mulher, pelo menos não na Inglaterra, com toda a certeza.
— Mas aqui não é a Inglaterra, como eu não me canso de recordar, não estou interessado na legalidade de um papel. Você veio aqui à procura de um homem e encontrou um. Não acho que estou me lisonjeando em excesso ao me julgar uma escolha melhor do que Adams, mesmo que essa escolha seja temporária. — Havia ironia no tom com que se expressava. — Você pode dizer a si mesma que deseja que estas semanas passem o mais rapidamente possível, mas garanto que você jamais as esquecerá!
— A modéstia não é exatamente o seu forte, não? — replicou sarcástica, tentando disfarçar suas reações àquela afirmação. — Elogiar a si próprio é algo que recomende quem quer que seja.
O sorriso dele era vagamente divertido. — A ingenuidade muito menos. Você acha que eu não sei a diferença entre uma rejeição autêntica e um controle proposital?
Kim olhou para fora da janela, consciente da proximidade dele e da força daquelas mãos queimadas de sol. Ele sabia muito a respeito de tudo, especialmente de mulheres. Quem fora mesmo que dissera que a familiaridade gera o desprezo?
O médico da mina era um homem taciturno, na casa dos cinqüenta, e a quem dirigira a palavra somente uma vez. Examinou a queimadura um tanto superficialmente, passou por cima dela uma pasta amarela e espessa que cheirava horrivelmente e enfaixou a mão com uma atadura de crepe.
— Não terá maiores problemas, contanto que mantenha a atadura seca — resmungou. — Remova na parte da manhã e deixe tomar um pouco de ar.
Por mais incômodo que fosse o remédio, a dor desapareceu. Kim pôs-se a refletir, quando voltavam para casa. Afinal de contas, estavam fazendo um escarcéu em relação a um ferimento sem maior importância. Do jeito que as coisas se apresentavam, seria realmente um problema lavar-se com uma das mãos enfaixada daquele jeito.
A tempestade que se anunciava despencou assim que eles chegaram em casa. A chuva caiu com uma rapidez assustadora, apesar de se ter feito anunciar. Dave acendeu o fogão e ofereceu-se para preparar alguns drinques enquanto esperavam a água esquentar. Ficou parado na porta, com um copo na mão, apreciando a chuva, mas sem surpreender-se com ela.
— Pelo menos serve para refrescar um pouco — comentou. Kim disse: — Não imaginei que o clima pudesse perturbá-lo.
— Acho que de nada adianta praguejar contra ele — respondeu, dando de ombros —, mas não creio que seja a melhor coisa que existe. A única coisa que se pode dizer em favor dele é que estamos em uma situação muito melhor do que aqueles pobres diabos no Mali, morrendo devido à seca. — Esvaziou o copo e voltou para a sala. Os envelopes de pagamento ainda estavam sobre a mesa, onde Kim os tinha deixado. Pôs-se a manusear as folhas de controle das horas de trabalho. — Em quanto tempo você acaba?
— Já acabei — ela disse. — Desde a hora do almoço. — Não conseguiu evitar acrescentar com uma ponta de malícia. — Por mim eu já as teria levado até a seção do pessoal se tivesse transporte à minha disposição... e, naturalmente, sua permissão para sair de casa.
Dave endireitou-se, olhando para ela com um ligeiro sorriso. — Você está querendo briga?
— Não quero brigar com quem quer que seja — ela retrucou prontamente. — O que estou tentando dizer é que gostaria de ter como sair de casa ocasionalmente durante o dia. Sei que você não quer me ver perambulando pela mina, mas eu me manteria afastada de tudo que pudesse trazer problemas.
— Não sabia que você dirige — comentou, após um momento.
— Chris ensinou-me, antes de embarcar para a África. — Procurou eliminar qualquer tom de emoção. — Eu nunca guiei uma Land-Rover antes, mas de tanto observá-lo na direção acho que conseguirei. Não pretendo sair para fora da mina. Não daria conta de atravessar o portão.
— Não — ele concordou secamente — não daria. Estudou-a pensativo. — A mão melhorou?
— Mais um dia ou dois e estarei boa. Foi uma queimadura superficial. — Estava tentando evitar lhe pedir. — Não é muito o que estou solicitando.
— Muito bem — ele disse. — Quando voltarmos de Freetown, veremos o que é possível fazer. Há um carro a mais e você poderia usá-lo. — Registrou a reação dela com um brilho de zombaria no olhar. — Acha que foi fácil demais ganhar a batalha?
Kim teve de sorrir. — Esperava uma oposição muito maior — admitiu. — Você não costuma ser tão acessível.
— Você nunca tentou me pedir algo, antes. — O tom de voz dele mudou abruptamente. — A água já deve estar quente. Você quer tomar banho primeiro?
Ela balançou a cabeça. — Hoje à noite vou ter de me contentar apenas em me lavar um pouco. Se não tomar cuidado, molho a atadura. Ficaria muito agradecida se você enchesse uma bacia com água quente e a deixasse na cozinha. Lá eu me ajeito.
O sorriso dele foi rápido e satírico. — Se precisar de ajuda é só chamar.
— Eu dou conta, obrigada.
— Você é quem sabe. — Pousou o copo vazio sobre a mesa e em seguida saiu da sala.
Kim ajeitou-se, com efeito, apesar das dificuldades. Novamente vestida, foi para o quarto a fim de acabar de se arrumar, na certeza de que Dave já estaria pronto. Parou surpreendida ao vê-lo deitado na cama com um cigarro entre os dedos, enquanto folheava um maço de papéis. Tinha trocado o jeans, mas ainda não vestira a camisa. Levantou os olhos assim que ela surgiu, erguendo a sobrancelha com um ar inquisitivo, ao notar que ela não entrava no quarto.
— Algo a incomoda?
— Eu... eu pensei que você já estava pronto — ela conseguiu responder.
— Pois estou... quase. Estamos com pressa?
— Nenhuma. É que... — hesitou — quero pentear o cabelo e passar batom.
O rosto dele assumiu uma expressão divertida. — Existe algum tabu que proíba a um homem espiar sua mulher se pintando?
— Eu acho que não. — Kim não tinha a menor certeza das razões que a levavam a se opor à presença dele enquanto dava os toques de beleza necessários a qualquer mulher quando ela se dispunha a sair de casa e, ao compreender que estava se portando de modo irracional, sentiu-se sumamente irritada. — Tenho direito a uma certa privacidade, mesmo em se tratando de você — acrescentou teimosamente.
Ele se divertiu ainda mais. — Pois então muito bem, peça para eu sair com carinho, que eu talvez até possa levar em consideração.
A cautela lutou brevemente com o enfado e perdeu. — Vá para o inferno!
— É a isto que você chama pedir com gentileza? — Sacudiu a cabeça, zombeteiro. — Você ainda tem muito que aprender a respeito de como tratar um homem, garota dos olhos verdes. Agora venha até aqui e peça direitinho.
Kim depreendeu do tom com que ele lhe falava que, se ela não fosse até onde ele estava, ele a obrigaria a fazê-lo. Pensou em desafiá-lo a qualquer preço, mas de que adiantava? Se fosse até ele, pelo menos manteria um certo espírito de iniciativa. Exteriormente calma, dirigiu-se até a cama e pegou a camisa limpa, estendendo-a para ele. — Você me faça o favor de pôr isto aqui e sair.
Para um homem de sua corpulência, ele se movia com a velocidade de um relâmpago, quando queria. Sem se mexer da posição reclinada em que se achava esticou a mão e puxou-a para a cama, a seu lado, debruçando-se sobre ela para esmagar o cigarro no cinzeiro, na mesa de cabeceira. Os olhos cinza procuraram os olhos verdes. — O que é mesmo que você estava dizendo?
— Você está amassando a camisa — ela disse.
— Pegarei outra. — Seu olhar percorreu o rosto dela, pousou sobre seu colo a voltou novamente para a boca. — Você está tremendo — ele disse. — Você está fazendo tudo o que pode para que eu não perceba, mas você me deseja tanto quanto eu a desejo. E por que não? Somos ambos providos das mesmas necessidades básicas.
— Mas com um código de valores diferente. — Ela tentou dizer estas palavras calmamente, cerrar sua mente ao apelo inegável que sua proximidade provocava nela. — Para você isto é tudo, não é mesmo, Dave? Algo totalmente físico. Você absolutamente não se importa com o que eu estou pensando ou sentindo.
Sua expressão era curiosa. — Você se importa com o que eu estou pensando ou sentindo neste momento?
— Não -— ela retrucou prontamente —, porque eu não ligo para você! E é disto que estou falando. Para um homem, qualquer mulher satisfaz, contanto que ele a ache razoavelmente atraente; mas para uma mulher tem de haver algo mais do que isto, tem de haver um sentimento maior, antes que ela possa corresponder inteiramente.
Aquela boca enérgica ficou tensa. — Como a espécie de sentimento que você tinha por Adams, por exemplo? É, ele devia ter alguma coisa realmente especial! — Observou a mão dela cerrar-se involuntariamente, como se fosse dar um murro e sorriu. — Faça isso e receberá um troco que não esperava!
Por um breve momento Kim sentiu-se tentada a correr o risco, pela simples satisfação de esmurrar aquela boca cruel, mas o impulso logo se dissipou. Por maior que fosse a satisfação obtida em golpeá-lo e1a seria suprimida pela humilhação que seu gesto certamente provocaria. Relaxou novamente no travesseiro e seus olhos o fuzilaram. — Deixe Chris fora disto!
— Por quê? — ele perguntou. — Porque você ainda se sente magoada ao pensar que ele está com Mai, ou porque seu orgulho não pode suportar o pensamento de ter se enganado a respeito dele desde o início?
Ela sentiu um nó na garganta. — Não quero falar a respeito dele.
— Muito bem, então vamos esquecê-lo e nos concentrarmos no aqui e agora. Você está disposta a continuar representando o papel de um iceberg ou começará a ser honesta consigo mesma?
— E faz alguma diferença?
— Para mim, muito pouca, mas, para você, bastante. Por mais que lute, você está presa a mim; então, por que não tira proveito? — Por alguns segundos sua voz tornou-se mais suave. — Esqueça esses seus princípios tão rígidos, garota dos olhos verdes. Eu cuidarei de você.
Seus sentidos cediam e uma sensação deliciosa a invadia, mas havia um lado seu que se agarrava desesperadamente à sensatez.
— Eu não vou desistir, não, Dave — ela disse com um fio de voz. — Qualquer coisa que você queira de mim você vai ter de tomá-la à força.
A impaciência tomou conta do olhar de Dave e endureceu novamente seus lábios. — Se é assim que você quer que seja...
E seria exatamente assim, disse Kim para si mesma, decidida, enquanto os lábios dele procuravam os dela. Por mais que custasse, ela jamais lhe daria a satisfação de saber o quanto ele a modificara, a partir do momento em que desposara a garota ingênua que ela tinha sido.
Chegaram a Freetown por volta das quatro horas da tarde, na sexta-feira, dirigindo-se imediatamente para o hotel onde Dave costumava se hospedar quando passava os fins de semana na cidade. Seu quarto era claro e limpo, porém simples, e o banheiro, um dos menores que Kim tinha visto. Dave pousou a mala sobre uma das camas e observou-a enquanto ela caminhava em direção à janela, com um sorriso no canto dos lábios.
— É alto demais para pular, ou então não é suficientemente alto, depende de como você encare.
Kim não tomou conhecimento dele, olhando em direção ao mar. Havia navios ancorados no porto. Talvez até mesmo um barco britânico. Não que seria de alguma utilidade para ela, se houvesse. Faltavam somente três semanas, pensou. Durante mais três semanas ela seria a sra. Dave Nelson e depois poderia voltar para casa e nunca mais o veria. Mas também nunca mais o esqueceria, disse-lhe uma pequena voz interior, o que a fez voltar-se abruptamente.
— A que horas é o jantar? — perguntou.
— À hora que você quiser — ele respondeu. — Está com fome?
— Não, foi só curiosidade. — Abriu a mala e tirou dela seus pertences, pendurando no guarda-roupa o vestido que trouxera para usar naquela noite, juntamente com a blusa de algodão leve que vestiria na manhã seguinte. Pôs seus objetos de toalete sobre a penteadeira, deu as costas à mala e hesitou. — Prefere você mesmo guardar suas coisas?
Ele deu de ombros. — Como quiser. Vou procurar um drinque. O bar fica à esquerda, assim que você desce a escada, caso queira ir me encontrar quando estiver pronta.
— Prefiro ficar aqui no quarto, obrigada — retrucou com frieza.
— Está bem. — Ele parecia indiferente. — Vejo você dentro de umas duas horas.
Quando ficou a sós, Kim acabou de desfazer as malas. A ausência de Dave deveria significar um alívio para ela; no entanto, sem ele, o quarto parecia nu e vazio. Ela quase se arrependeu por ter recusado o convite de juntar-se a ele no bar. Tinha sido um gesto fútil. Com tudo guardado no lugar, as duas horas que se seguiriam seriam longas demais. Kim pensou em dar uma volta pela cidade, nas proximidades do hotel, mas a idéia não a encantou. A umidade era ainda maior do que na mina, mas pelo menos o enorme ventilador que girava lentamente no teto do quarto tornava a temperatura suportável.
Estava olhando novamente pela janela quando ouviu baterem à porta. Foi abri-la e ficou encarando, por um momento que parecia não ter fim, o homem parado no corredor, até que finalmente conseguiu recuperar a voz.
— Chris!
— Alô, Kim. — O tom com que falava era baixo e tenso, e o olhar furtivo que lançou para o corredor sugeria nervosismo. — Posso entrar?
— Eu... — A voz ficou bloqueada na garganta. Tentou novamente: — O que é que você quer?
— Falar com você. — Havia sinais de desespero em seus olhos. — Por favor, Kim, estou com um problema. Um problema enorme!
Ela se afastou e deixou-o entrar no quarto, fechou a porta e permaneceu de costas para esta. — Como é que você soube que eu estava aqui?
— Vi você chegar com Dave Nelson. — Agora que estava no quarto, parecia sentir-se mais seguro, e o nervosismo deu lugar à curiosidade, enquanto a percorria com o olhar. — Esperei até que ele descesse e fosse ao bar, e então pedi ao recepcionista que me desse o número de seu quarto. Preciso falar com você. Dave Nelson é uma parada. Como foi que você conseguiu?
— Pode-se dizer que tive sorte — ela replicou. — O que foi que você quis dizer agora há pouco, Chris? O que é que está acontecendo?
Ele atravessou o quarto, deu uma espiada na rua, com um gesto brusco ajeitou a persiana e olhou para ela. Suas mãos afundaram os bolsos, num gesto que de alguma forma era defensivo.
— O marido de Mai está à minha procura, ele e o irmão dela.
— À sua procura?
— Para me baterem. Vieram em casa hoje de manhã e levaram Mai embora, na minha ausência; em seguida voltaram para me esperar. Eu teria caído na armadilha, se um dos garotos da rua não tivesse me prevenido.
Kim encarou-o, confusa. — O que posso fazer por você? — perguntou finalmente.
— Bem... — Ele hesitou. — Você tem dinheiro?
— Dinheiro? — Subitamente ela teve vontade de rir. — Chris, não faz tanto tempo assim que você me disse ter dinheiro suficiente para se manter sem precisar se preocupar.
— É o que eu pensava. — Mostrava-se contrafeito. — O que sobrou estava guardado em casa. Conheço Mai como a palma de minha mão: foi a primeira coisa em que ela pensou, antes de deixar que a levassem. Íamos fazer uma viagem e não deixei no banco um centavo sequer, pensando em nosso passeio. Eu nem mesmo posso voltar até lá para mudar de roupa enquanto o calor não diminuir, isto é, contanto que eles tenham me deixado alguma coisa. Tenho mais ou menos vinte libras comigo, e é tudo. — Olhou para ela com curiosidade. — O que foi que você disse?
Kim dominou-se. — Não tem importância. Sinto muito, mas eu também não tenho dinheiro. Sobretudo a quantia que você deseja.
— Mas você poderia conseguir. — Ele falou num tom suave e insinuante. — Uma mulher que consegue fazer Dave Nelson desposá-la pode conseguir com que um homem faça o que ela quiser... supondo que isto não seja apenas uma mentira que você contou na recepção do hotel para salvar as aparências...
— Não, não foi, para falar a verdade. — Kim admirou-se de como podia parecer tão calma quando sua mente estava mergulhada em um caos total. — Mas você se engana em relação a Dave. Ele não me daria dinheiro, de forma alguma. E se ele soubesse que você está aqui, provavelmente pouparia um trabalho para o marido de Mai. Eu... sinto muito, Chris...
— Mas você é a minha única esperança! — O desespero voltava-lhe aos olhos e à voz. Atravessou a distância que os separava, a passos largos, e segurou-a pelos ombros, olhando-a com ar suplicante. — Kim, você tem de me ajudar! Essa gente não hesitaria duas vezes em deixar uma pessoa mutilada para o resto da vida, por causa de um assunto desses. Sei que fui um tolo, mas tente compreender. Eu não consegui me controlar em relação a Mai, mas só Deus sabe o quanto eu tentei me manter afastado dela. Ela conseguiu me enredar de tal forma que eu já não podia mais pensar com clareza. Ela tinha de ser minha, Kim. Tinha!
— Não. — Ela tremia. — Não quero saber nada a respeito dela. Você a escolheu em meu lugar. Por que você espera que eu o ajude agora?
— Por tudo aquilo que fomos um para o outro, um dia. Porque você é você, e sei que você não vai ficar simplesmente de lado vendo o que me acontece.
Houve uma pausa prolongada antes de ela dizer contrafeita: — De quanto é que você precisa?
— O suficiente para tomar um navio e me sustentar por alguns dias, enquanto não aparece alguma coisa. Umas duzentas libras adiantariam. — Notou que a expressão dela mudava e acrescentou apressadamente: — Bem, umas cem libras, então. Não posso ir para lugar algum com menos disso.
— Talvez você tenha de ir. — Kim libertou-se de seus braços, consciente da necessidade de tirá-lo do quarto. Sem a menor idéia de como resolver o problema de lhe fornecer o dinheiro, acrescentou: — onde é que posso encontrar você?
— Vou ter de ficar por aqui mesmo. Não ouso ser visto novamente nas ruas. Tomei um quarto no fim do corredor para hoje à noite, mas terei de sair amanhã.
Kim achou que o elemento tempo não iria fazer muita diferença, principalmente nessa situação específica. Qualquer que fosse a história que ela inventasse, Dave não se satisfaria a ponto de lhe dar dinheiro. A única solução seria lhe dizer a verdade, e ela bem podia imaginar sua reação ao fato. Mas Chris tinha razão, ao declarar que ela não poderia deixá-lo em semelhante situação. Isto significava que ela tinha de encontrar um modo de persuadir Dave.
Com a garganta seca, ela assentiu: — Está bem. É melhor você sair agora.
— Obrigado. — Ele parecia estar sendo sincero. — Eu sabia que podia contar com você, Kim. — Com uma mão na maçaneta da porta, ele fez uma pausa e seus olhos percorreram o rosto dela. — Você deve me achar um cafajeste.
— Não. — Ela disse isto sem a menor entonação. — Vá embora, sim, antes que Dave suba e o encontre aqui. Duvido que ele teria a paciência de esperar explicações.
Ele saiu imediatamente, e ela permaneceu sem reação, contemplando a porta que se cerrara à sua passagem, antes de sentar-se lentamente em uma cadeira ao lado da cama. Havia uma única maneira de contornar o problema, e talvez nem desse certo. Mas ela estava disposta a tentar, porque não havia mais nada a fazer.
Já tinha posto o vestido azul quando Dave voltou. Saudou-o sem demonstrar a menor emoção, fingindo que lia uma revista, enquanto ele tomava banho e punha o terno de tropical. Era a primeira vez que ela o via usando algo mais formal do que camisa aberta ao peito, e teve de reconhecer que o terno fazia uma diferença. Desaparecera o homem rude com quem ela se habituara e em seu lugar estava um estranho muito bem vestido. As abotoaduras brilhavam no punho a camisa fina de cambraia e o corpo parecia mais esguio, no terno muito bem cortado. Até mesmo seus traços pareciam de certo modo menos angulosos. Somente os olhos cinza permaneciam os mesmos, sobretudo quando lhe lançaram um olhar zombeteiro, enquanto ela se levantava com relutância, depois que ele sugeriu que deveriam descer.
— Tente sorrir — ele aconselhou. — Não queremos que todo mundo saiba que não nos damos bem.
— Você está pouco se importando com o que eles pensam — ela replicou com voz abafada, e ele inclinou a cabeça.
— Não, talvez você tenha razão. Vamos indo?
A sala de jantar estava repleta, assim que entraram. Apesar dos ventiladores que giravam no teto, a atmosfera era quente e desagradável, e as moscas pousavam em todos os lugares.
— A comida é boa — Dave apressou-se em dizer, observando o rosto de Kim enquanto ela olhava o restaurante. — Na África a gente aprende a não levar muito em conta os ambientes. — Acendeu o cigarro dela e depois o seu em uma vela enfiada em uma garrafa vazia. Sentou-se e pôs-se a contemplá-la, à luz da chama bruxuleante. — Tirou uma boa soneca?
Kim sacudiu a cabeça. — Soneca?
— Suponho que é isto o que você estava fazendo enquanto eu tomava um drinque. — Seu olhar tornou-se um tanto aguçado. — Você não saiu?
— Não. Eu não saí. — Seus olhos percorreram novamente o restaurante, com uma certa aflição. — O serviço poderia ser mais rápido.
— Não há pressa — ele disse, e fez uma pausa. — Ou há?
Ela olhou-o rapidamente. — Por que deveria haver?
— Nunca responda a uma pergunta com outra. — ele aconselhou-a, num tom suave. — Sempre dá a impressão de que você poderia ter alguma coisa a esconder.
Possivelmente esta era a ocasião apropriada para ela lhe fazer o seu pedido, mas o lugar era inteiramente impróprio. Desviou novamente o olhar, sem perceber que seus dedos deslizavam nervosamente pelo pé do copo, até que ele estendeu a mão e o retirou. Ele então segurou-lhe ambas as mãos, voltando-as com a palma para baixo, apoiadas na toalha. Kim olhou-as, sentindo os rijos dedos dele pressionarem os seus, prontos para apertá-los.
— Você está escondendo alguma coisa Kim? — perguntou ele enfático.
A ocasião era mais do que apropriada, mas ela, no entanto, não conseguia se manifestar. Chris estava ali no hotel. Se Dave soubesse, era impossível prever o que ele poderia fazer, especialmente quando tivesse conhecimento de que o rapaz tinha estado com ela em seu próprio quarto. E entretanto, esconder o fato agora significava simplesmente acumular problemas que acabariam por estourar mais tarde.
— Preciso lhe pedir uma coisa — disse finalmente, com dificuldade. — Mas aqui não, Dave. Primeiro vamos jantar.
Pareceu-lhe que ele levou um século para responder, e seus olhos não se despregaram dos dela. — Muito bem, — concordou finalmente — então primeiro vamos comer.
Kim quase não sentiu o gosto da comida que lhe era servida; no entanto forçou-se a comê-la. Exteriormente Dave não demonstrou o menor sinal de impaciência pela lentidão com que ela jantava, mas ela sentiu uma certa tensão em seu rosto no momento em que seus lhos se cruzaram. Intuitivamente sentiu que ele sabia que seu comportamento tinha algo a ver com Chris, e que ele estava exercendo m enorme controle, ao não perguntar a verdade, naquele lugar e aquele momento. A culpa era toda dela, claro. Se ela conseguisse se controlar mais, ele não teria adivinhado que as coisas não iam bem, até que ela escolhesse o momento de lhe falar. Do modo como as coisas se colocavam, assim que eles saíssem do restaurante ele exigiria que ela lhe dissesse o que a preocupava, e sabe-se lá como é que ele iria encarar o assunto.
Verificou logo em seguida que se enganava no que dizia respeito às reações de Dave. Terminado o jantar, ele a levou para a rua, muito iluminada, e, antes de perceber o que estava acontecendo, viu-se no carro a seu lado, dirigindo-se para fora da cidade. Freetown possui uma enorme prisão dos dois lados da estrada principal. Para Kim, os muros eletrificados pareciam se estender por quilômetros, soturnos e expressivos. Sentiu-se aliviada quando finalmente eles ficaram para trás e o carro bordejou o mar, em meio à escuridão quente e úmida. Ela preferia enfrentar a enorme tensão de ter de ficar completamente a sós com Dave, a contemplar a aparência deprimente daqueles muros altos da prisão.
Chegaram a uma praia comprida e que tinha um campo de golfe ao lado. Dave parou o carro no gramado e desligou o motor, tirando da carteira o cigarro.
— Muito bem — disse. — Fale.
Este era o Dave que ela conhecia. Não contornava o assunto, ia direto a ele. Kim encolheu-se um pouco no banco e imaginou como começaria — ou, mais precisamente, por que ponto. — Como é que poderia aceitar a espécie de barganha que ela estava pensando propor?
— Chris está em dificuldades — disse finalmente.
— Eu bem imaginei. — Suas palavras foram ditas bruscamente. — Ele finalmente teve de enfrentar o destino, não é mesmo?
— Acho que é assim que você pode denominar o que lhe aconteceu. — Tremeu um pouco, a despeito do calor. — Será que eles realmente o machucariam, se o encontrassem?
— Se por "eles" você quer se referir ao esposo e ao irmão de Mai, eles com toda certeza providenciarão para que Chris não saia por aí roubando a mulher alheia — replicou secamente. — As pessoas daqui não adotam nossas maneiras civilizadas, quando se trata de assuntos desta natureza. Acreditam na lei do olho por olho.
— Mas ele não foi inteiramente culpado — ela protestou. — Mai partiu com ele.
— Isto é irrelevante. — Ele mudou de posição, voltando a cabeça de maneira que ela pudesse ver seu rosto. — Imagino que ele queira dinheiro.
Kim mordeu os lábios. — Sim.
— E obviamente ele espera que você o consiga para ele? E de mim?
— Sim — ela voltou a dizer.
A pausa que se seguiu foi enervante. — Que razões ele teria para pensar que eu estaria disposto a financiar a sua fuga?
— Razão alguma. Só que — ela procurou desesperadamente a maneira de colocar a questão — Só que somos casados, e ele pensou que...
— E ele pensou que, por ter dado tanta coisa a você, eu provavelmente não poderia lhe recusar nada. — Ele completou implacavelmente sua frase, enquanto a voz dela sumia. — Naturalmente, você não o esclareceu a respeito de nosso acordo, mas eu achava que, a estas alturas, você me conhecia melhor, a ponto de esperar que eu não concordasse. Seu ex-noivo merece tudo o que está lhe acontecendo e não levantarei um dedo para ajudá-lo.
Kim pousou as mãos no colo. — Eu... pagarei o que for preciso.
Ela sentiu, mais do que viu, a sobrancelha dele arquear-se. — Como?
O que se seguiu foi a coisa mais difícil que ela teve de dizer em toda sua vida: — Eu serei... aquilo que você queria.
Era difícil interpretar sua reação a partir da expressão de seu rosto, mas quando ele finalmente falou, seu tom era absolutamente seguro: — Você quer dizer que se venderia a troco da segurança de Adams.
— Se você prefere encarar as coisas desta maneira.
— E existe algum outro modo de encará-las? — Ele esmagou o que restava do cigarro com o polegar e o indicador e jogou-o fora com violência. — Supus que você tivesse orgulho suficiente para mandá-lo para o inferno, depois de tudo o que ele fez para você.
O que Chris lhe tinha feito não era nada, comparado com os métodos empregados por algumas pessoas, ela pensou, mas evitou expressar em voz alta este sentimento. — Eu não me importo com ele — ela disse. — Não da maneira como você imagina. Mas também não posso ficar de braços cruzados e ignorar o fato de que ele necessita de ajuda. Se houvesse algum outro modo de conseguir o para ele... — Ela fez uma pausa, sem encará-lo. — Pareceria pouco plausível, de sua parte, oferecer ajuda sem uma compensação.
— Não me passou pela cabeça que eu tivesse me oferecido para ajudar — respondeu, com uma inflexão cruel na voz. — O que é exatamente que vou ganhar em troca?
Kim suspirou prolongadamente. — Tenho certeza de que não preciso soletrar para você.
— Não — ele concordou, após um momento. — Acho que não precisa, não. — Ele estendeu subitamente a mão, segurando-lhe o queixo e fazendo com que o encarasse. Sua expressão era dura. — Só que vamos deixar um ponto muito bem esclarecido. Você não está fazendo nenhum sacrifício, Kim. O que você está me prometendo é unicamente o que você tem querido me dar desde a primeira vez que estivemos juntos. Entretanto, se convém a seus ideais dizer a si mesma que você está agindo para beneficiar Adams, vá em frente. Não me importo com o que você diga para si mesma, contanto que seja uma mulher de verdade, em vez de uma menina.
A partir do momento em que seus lábios rijos e exigentes pousaram sobre os dela, não houve mais como se justificar. Após reprimir suas emoções por tantos dias, o alívio que ela sentiu em abandonar-se foi sensacional e infinito. Seus braços ergueram-se espontaneamente e rodearam-lhe o pescoço, seus dedos mergulharam naqueles cabelos espessos. Sentiu que os braços dele a apertavam cada vez mais, sentiu que a musculatura rija de seu peito lhe cortava a respiração e que todo o desejo que ela havia negado por tanto tempo jorrava como uma fonte. Quando ele, de repente, a afastou de si, sem muita gentileza, foi como se ela tivesse recebido uma ducha de água fria no rosto. Com as pernas tremendo, ficou sentada no escuro, olhando para ele, sentindo a mudança em seu humor sem a compreender.
— Dave? — Ela pronunciou seu nome em um murmúrio, incerta, interrogativa. Somente então ele se moveu, afastou-se e ligou o motor do carro.
— Não se preocupe — disse bruscamente. — Adams receberá o dinheiro. Só que, depois disto, nunca mais quero ouvir o seu nome. Entendido?
Kim não respondeu. Não era preciso uma resposta. Não tinha certeza a respeito de suas expectativas durante aqueles poucos momentos emocionais, mas, fossem eles quais fossem, a atitude de Dave era mais do que suficiente para matá-las. Tinha sido feito um acordo, e isto era mais do que suficiente para ele. Ela também poderia dizer a si mesma que a coisa significava exatamente isto, só que, no fundo de si mesma, sabia que não era inteiramente verdade. Mas desejou, por tudo neste mundo, que fosse.
Dave insistiu em ver Chris sozinho na manhã seguinte, dirigindo-se a seu quarto assim que se vestiu. Passaram-se mais de duas horas antes que ele voltasse. Duas horas, durante as quais Kim sentou-se tensa perto da janela, olhando a rua na qual os dois homens desapareceram. Ela não perguntou nem se importou em saber onde Dave iria conseguir aquela quantia relativamente grande de dinheiro em um domingo pela manhã. Tudo que sabia foi que sentiu um alívio imenso ao ver aquela figura alta e forte caminhando de volta pela rua colorida.
Estava pondo na mala o vestido que havia usado na noite anterior quando ele entrou no quarto. Olhou para ele rapidamente e desviou o olhar, não se sentindo suficientemente segura para fazer a pergunta que pairava em seus lábios.
— Ele tomou um navio para Dacar — disse Dave brevemente. — Se tivermos sorte, é a última vez que o veremos. Você já tomou café?
Kim fez sinal que não. — Estava esperando por você.
— Muita gentileza da sua parte. Assim que acabarmos, vamos para a praia. Se levarmos comida conosco, poderemos passar o dia lá e voltar aqui para jantar antes de regressarmos. — Arqueou a sobrancelha ironicamente, ao notar a expressão que passou rapidamente pelo rosto dela: — Talvez a praia não lhe diga muita coisa, mas é a única que eu freqüentei nestes três últimos anos. Vamos comer.
O café foi um tanto tenso, e Dave não fez o menor esforço para aliviar aquela atmosfera pesada que pairava sobre eles, e que era algo quase tangível. Na rua, todos pareciam estar a caminho da igreja, alguns vestidos sobriamente de preto, com ar solene, e a maioria trajando cores vivas, alegres e sorridentes. Havia um certo langor no ar e sentia-se o ritmo sereno e vagaroso de todas as cidades tropicais. O capim brotava nas ruas principais, largas e arborizadas com acácias, e de vez em quando pequenos lagartos de um alaranjado muito vivo atravessavam-nas com a rapidez de uma flecha. Dos dois lados da rua havia pequenas canaletas de quase um metro de largura, que se transformavam em verdadeiros riachos quando chovia.
Dirigiram-se para a mesma praia que haviam visitado na noite anterior. Estava cheia de gente de todas as nacionalidades. Kim sacudiu a cabeça quando Dave sugeriu irem nadar, dizendo que entraria no mar mais tarde. Olhou-o enquanto ele se dirigia para a beira da água, notando rapidamente como as pessoas se voltavam ao vê-lo passar. Mesmo no meio de tanta gente, ele sobressaía, chamando a atenção das mulheres sem que fizesse nada para isso.
Parecia mais relaxado quando voltou; sentou-se na areia, ao lado dela, e alcançou um cigarro.
— Você devia ter entrado — disse. — Está uma delícia. — Lançou-lhe um olhar perscrutador. — Você sabe nadar?
Kim admitiu que sim, apesar de não fazê-lo muito bem, e pensou quão pouco os dois se conheciam. Eram casados, viviam como marido e mulher, e no entanto, para todos os efeitos, eram totalmente estranhos um ao outro. Ela pensou que assim seria melhor. Quando chegasse finalmente o tempo de se separarem, haveria muito pouco a esquecer — se é que ela o pudesse.
— Você não esqueceu a promessa de me dar o carro, quando voltarmos para a mina? — perguntou, após um momento.
— Não esqueci. — Seus olhos se cerraram e o tom com que falava era quase indulgente. — É bom que você pratique, porque vai ser de muita utilidade para mais tarde.
— Mais tarde?
— Quando acabar meu contrato. — Ele continuava de olhos fechados. — Decidi viajar um pouco, antes de regressar à Inglaterra. Talvez ir até o Sul e tomar um navio em Lagos.
Kim ficou parada, e a areia que ela fazia deslizar por entre os dedos acumulou-se na palma da mão em concha. — Você... pretende levar-me em sua companhia?
— Naturalmente. — Ele disse isto sem demasiada ênfase. — Que mais eu poderia fazer com você?
— Poderia me pôr em um barco e deixar que eu voltasse sozinha para a Inglaterra — disse.
— Você preferiria que fosse assim?
Seria mesmo isso o que ela preferiria? Por mais que tentasse, Kim não conseguiria encontrar uma resposta imediata. De um lado estavam a liberdade e o lar, e de outro, um prolongamento, talvez por algumas semanas, da associação com um homem que não sentia por ela nada além do desejo físico, que eventualmente se dissiparia.
— Será que tenho realmente uma escolha? — indagou, e notou um sorriso aflorar lentamente aos cantos da boca de Dave. — Não, não tem. A esta altura, não. Precisamos...
— Então é isto o que o tem mantido afastado, Dave. — A voz se fez ouvir por detrás deles. Kim voltou-se para olhar o homem esguio, de calção de banho, que assomava ao lado deles, e deparou-se com um par de olhos azuis que não disfarçavam a admiração que ele experimentava, o que a fez sentir-se um pouco como um peixe se agitando em um anzol. — Não posso acusá-lo por querer guardá-la só para você — aquele prosseguiu. - Mas agora que estou aqui, o mínimo que você pode fazer é nos apresentar.
Dave se sentara e sua expressão tornou-se enigmática. — Kim, quero lhe apresentar Ralph Tait — disse, acrescentando em seguida, absolutamente imperturbável: — Minha mulher.
— Só faltava essa — comentou. — Dave Nelson finalmente se amarrou! — Os olhos azuis detiveram-se sobre Kim mais uma vez, reafirmando uma primeira impressão. — Você vai ficar bastante impopular em certos lugares, isso eu garanto. Houve mais de uma mulher que tentou deitar as garras neste seu homem. Qual é o segredo?
— Deixe isso para lá, Ralph. — Dave falava com bastante calma, mas havia uma ponta de irritação em sua voz. — Você está sozinho?
— Não. — Ralph inclinou a cabeça em direção às árvores na beira da praia. — Os outros ficaram mais para trás. Eu ia dar um mergulho quando percebi vocês dois. — Seu tom alterou-se sutilmente. — Karen está conosco. Engraçado, ela falava justamente a seu respeito, na noite passada.
— É mesmo? — Seu comentário não deixava transparecer nada.
— Sim. Olhe — Ralph obviamente não conseguia perceber que não estava agradando —, vocês não podem ir embora sem ao menos dizer alô para todo mundo. Melhor ainda, por que é que vocês não almoçam conosco? Você sabe que Bea sempre costuma trazer muita comida. Dá para todo mundo.
— Na verdade, trouxemos a nossa — disse Kim, hesitantemente, vendo que Dave não dava uma resposta imediata.
— Melhor ainda. Tragam com vocês e a gente coloca com o resto.
— Ralph desviou o olhar dela para Dave, subitamente curioso. — Vamos, homem, a lua-de-mel não pode durar para sempre. Tenho certeza de que Kim gostaria de conhecer alguns de seus... amigos.
Dave pôs-se subitamente de pé, tirando a areia de seu calção molhado. Desviou o olhar de Kim. — Muito bem, diga a eles que iremos assim que arrumarmos nossas coisas.
Kim começou a ajuntar tudo o que tinha trazido, enquanto Ralph se afastava, consciente de uma certa tensão que se apoderara de Dave. — Quem é essa gente? — perguntou ela, assim que acabou de pôr tudo no lugar. — Quero dizer, como foi que você os conheceu?
— Ralph trabalha no comércio de madeira, é um executivo. Passei um ou dois fins de semana com ele e com a mulher. Há um outro casal que sempre sai com eles. — Moveu-se impacientemente. — Vamos.
O grupo os esperava à sombra de algumas palmeiras e em seus rostos estampavam-se emoções variadas, enquanto os recém-chegados se aproximavam. A atenção de Kim foi imediatamente atraída para a mulher mais jovem do grupo.
— Há quanto tempo não nos vemos... — ela disse para Dave.
— É mesmo. — A resposta foi imediata: — Muito tempo. Como é que vão indo as coisas?
— Tudo ótimo. — Seus olhos pousaram-se novamente sobre Kim, carregados de uma expressão estranha, quase divertida. — Não vai me apresentar à sua mulher?
— Não há a menor necessidade de formalidades, não acha? — Apoiando ligeiramente a mão em seu ombro, trouxe Kim para perto dele. — Esta é a Karen; aquela senhora com a cesta na mão é Bea; Ralph você já conhece. Faltam somente Anne e Norris. — A mão aumentou sua pressão, forçando-a a aproximar-se um pouco mais do grupo. — Fique aí com as mulheres. Elas não mordem.
Bea deu uma risada jovial, que contrastava estranhamente com seus cabelos tingidos de azul e sua figura muito bem posta. Tinha provavelmente quarenta e poucos anos e era prematuramente grisalha, mas, ainda assim, alguns anos mais nova que o marido. — Sabe, Dave, senti falta de você — ela disse. — Você é o único homem que consegue fazer com que um insulto soe como um cumprimento. — Lançou para Kim um olhar bondoso: — Você não sabe com quem está lidando!
— Talvez Kim ache fácil controlar a situação — comentou Karen suavemente. — Ela parece ser capaz. É mesmo? — Desta vez a pergunta foi dirigida diretamente a Kim e exigia algum tipo de resposta.
Olhando de soslaio, Kim percebeu Dave sentado ao lado de Norris, alguns passos de distância, e sentiu que sua resposta podia ser ouvida. — Estou aprendendo — disse.
— Como foi que vocês se conheceram? — perguntou Bea a Dave. - Pensei que você estivesse enterrado lá na mina, durante estas seis últimas semanas.
— Pois estive mesmo — ele respondeu casualmente. — Kim tem um emprego na companhia.
— Não sabia que estavam importando mulheres para trabalhar em mineração — disse Ralph com algum ceticismo. — Não deixa de ser um melhoramento. Seu contrato já está quase no fim, não é mesmo?
— Sim. — Dave não fez a menor tentativa de acrescentar algo mais ao comentário.
— E enquanto isso vocês estão morando lá na mina?
Bea obviamente encarava aquela situação como algo que ela jamais teria sonhado enfrentar. — Meu Deus, o que as mulheres não são capazes de fazer por amor!
Kim sentiu a ironia presente no olhar de Dave e controlou-se para não deixar o rubor lhe subir ao rosto. Se aquelas pessoas soubessem da verdade, provavelmente jamais acreditariam. E quem acreditaria? Nenhuma mulher que tivesse o mínimo de sensatez olharia Dave e imaginaria que ele pudesse ser diferente do homem que ela imaginara que ele fosse.
Dave divertiu-se durante a hora que se seguiu, o que, por outro lado, não aconteceu com Kim, apesar de fazer o possível para agir com naturalidade. Karen tinha se aproximado do lugar onde Dave se sentara, sob o pretexto de lhe servir alguma coisa, e permaneceu a seu lado, enquanto ele falava de pessoas e fatos dos quais Kim não tinha conhecimento. Era mais do que evidente que houvera alguma espécie de relacionamento entre os dois, no passado. Isso tudo não tinha nada a ver com ela, pensou Kim, enquanto tentava não se deixar envolver. No entanto, não conseguia evitar sua preocupação com o aparente descaso de Karen pelo fato de ter surgido uma esposa na vida de Dave, sobretudo quando era mais do que óbvio que ela ainda o considerava um homem atraente. Se as posições tivessem se invertido, ela duvidava de que pudesse manter a mesma calma e a mesma autoconfiança em face do que estava sucedendo.
Passava das três, quando alguém sugeriu um banho de mar. Kim foi a primeira a se pôr de pé, aliviada com o pretexto de poder se afastar por alguns momentos de uma situação que ia ficando cada vez mais difícil. Uma vez no mar, colocou uma pequena distância entre ela e os outros, nadando em direção ao recife que apontava à direita, na curva da baía, e com a intenção de ficar lá descansando por alguns minutos.
Era mais longe do que ela pensara. Antes de chegar à metade começou a sentir dor nos músculos da perna e seus braços começaram a pesar como chumbo. Flutuou alguns momentos a fim de recuperar o fôlego, tentando não entrar em pânico, ao perceber que não conseguia mais tomar pé, em um mar que poderia esconder todo tipo de terrores desconhecidos. O recife parecia tão distante como no momento em que ela começara a nadar, e no entanto a praia parecia igualmente afastada. Ela jamais conseguiria alcançar qualquer um dos dois pontos, pensou com desespero crescente. Nunca teria a força suficiente.
Alguém pôs-se a nadar em sua direção e ela sentiu a esperança renascer. Tentou dar algumas braçadas, forçando as pernas a corresponder à sua tentativa de coordenação, mas sem conseguir anular a distância que havia entre eles. Quando Dave finalmente a alcançou, ela obedeceu prontamente a suas instruções, deitando-se de costas, enquanto ele a segurava com toda firmeza, nadando com ela para o raso. Parecia ter se passado um século, antes que ela conseguisse esticar a perna e sentir novamente a areia sob seus pés. Até mesmo naquele momento, Dave não a soltou completamente, passando um braço em redor de sua cintura a fim de ajudá-la a furar as ondas e caminhar até a praia. Sua própria respiração estava acelerada, o peito arfava com decrescente rapidez, enquanto ele a contemplava.
— Mas, afinal de contas, o que é que você pretendia fazer lá? — ele perguntou, brusco. — Você mesma disse que não sabia nadar bem e de repente resolveu ir para o fundo! Você merece... — Deteve-se subitamente, ainda tenso, enquanto os demais vinham correndo para onde eles estavam.
— Que foi que aconteceu? perguntou Morris. — Cãibras?
— Eu... eu acho que me afastei demais, só isso — respondeu Kim, fazendo o possível para controlar o tremor que lhe percorria o corpo. — Estou perfeitamente bem agora.
— Você está pálida como uma defunta — comentou Bea, um tanto preocupada. Olhou para Dave. — Talvez fosse melhor você levá-la lá para casa e deixá-la descansar um pouco. Com estas coisas não se brinca.
— Não é necessário — protestou Kim. — Temos de voltar para a cidade e retirar nossas coisas do hotel.
— Isso pode ficar para mais tarde — disse Dave, decidido. — Bea tem razão. Você tomou um susto, e é melhor repousar. Temos tempo de sobra para regressar à cidade. — Tomou-a pelo cotovelo. — Vamos aceitar sua oferta, Bea.
— Tenho uma idéia — disse Bea. — Você poderia ir até o hotel retirar suas coisas, Dave, e ficar para jantar conosco. Afinal de contas, daqui onde estamos vocês podem pegar a estrada para a mina.
"Não" Era o que Kim queria dizer. "Não me deixe sozinha com ssta gente." Mas Dave já estava fazendo um sinal afirmativo com i cabeça.
— Boa idéia. É o que vamos fazer.
O grupo todo dirigiu-se para os automóveis. A sós com Dave, Kim disse em tom neutro: — Eu preferia voltar com você e jantar no hotel, conforme tínhamos planejado. Sinto-me perfeitamente bem.
O olhar dele perscrutou-lhe rapidamente o rosto. — Só vou acreditar quando a cor voltar a seu rosto. De qualquer modo, já aceitei o convite. Por que tanta relutância? Achei que você apreciaria outras companhias que não a minha.
Ela levantou ligeiramente a cabeça. — Eu não disse isso.
— Não. — Seu tom era seco. — Olhe, quer você goste ou não, vamos jantar com os Taits; portanto, veja se muda de cara. Não sei o que é que você tem contra eles, mas...
— Não é tanto em relação aos Taits — ela disse, sem parar para refletir em suas palavras. — É que... bem, Karen também vai estar lá, não é?
Dave apertou os olhos, quando o sol incidiu sobre eles. — O que ela tem a ver com isso?
Passou-se um momento antes que Kim respondesse: — Ela tornou bastante evidente que se sente atraída por você — disse finalmente.
— E daí? — Seus lábios se contraíram. — Você não está querendo me dizer que se sente enciumada?
— Não, não estou — respondeu ela com certa aspereza —, mas não aceito ser tratada como se não tivesse a menor importância, talvez algum dia ela se achasse com algum direito sobre você...
A tensão estampou-se no rosto de Dave. — Não deixe a imaginação tomar conta de você. Nenhuma mulher tem direitos sobre mim, incluindo você. Se Karen a trata da forma como você diz, a culpa é sua. O que é que você espera que eu faça?
— Nada. — Havia algo mais do que mero ressentimento na resposta que lhe aflorou aos lábios. — Aposto que você está se divertindo muito com esta situação. Da maneira como você leva as coisas, você pode se envolver com quantas mulheres quiser sem correr o menor perigo. Não admira que você queira prolongar nossa associação. É um arranjo conveniente para alguém como você!
— Eu acho melhor você ficar quieta — ele aconselhou em voz baixa. — Você já falou o suficiente.
Kim calou-se. Fazer o contrário seria tentar o diabo. Com os nervos à flor da pele, olhou teimosamente para a frente, fixando-se no carro que estavam seguindo, consciente da tensão com que Dave segurava o volante. Sentiu um aperto na garganta e opressão no peito. Dave tinha tido um romance com Karen; o tom com que reagira confirmava o fato. Mas, e daí? ela se perguntou. Que diferença faria? Dave jamais tinha tentado disfarçar seu desprezo pelo sexo feminino, considerando-o apenas útil a seus propósitos, e Karen, ao que tudo indicava, não merecia outra opinião. Fazia algum sentido ficar tão chocada com o que se passava? Dave não merecia que ela sofresse por ele. Simplesmente não merecia!
A casa dos Taits era nas colinas, a uns dez minutos da praia. Tratava-se de um bangalô quadrado, construído de pedra, com a varanda típica que o rodeava por três lados.
Dentro estava mais fresco, e a penumbra do quarto que foi designado a Kim foi por ela recebida como um alívio. Ela tinha posto a saída-de-praia por cima do maio molhado e enxugado o cabelo às pressas, sem dar a menor importância à sua aparência. Agora, ao contemplar-se no grande espelho embutido na porta do guarda-roupa, deu um sorriso contrafeito. Não gostou do que viu: os cabelos caíam em desordem pelos ombros e toda cor lhe fugira do rosto. Sua cabeça doía e não parava de latejar. Talvez Bea tivesse razão a respeito da reação que ela iria sentir, apesar de que, ao relembrar aqueles momentos, quando estava sozinha na água, tudo lhe parecia uma tolice. Não tinha corrido perigo algum. Tudo o que deveria ter feito era flutuar de costas até recuperar o fôlego suficiente para nadar de volta para a praia.
Estava abrindo o zíper da calça de linho quando a porta se abriu e Dave entrou, carregando em uma das mãos xícara e pires e na outra um vidro de comprimidos.
— Chá e um sedativo — disse. — Passa um pouco das quatro e meia. Sugiro que você tente dormir um pouco enquanto vou até a cidade.
— Não quero tomar nenhum remédio — replicou Kim teimosamente. — Deitarei, se você achar necessário, mas não há nada comigo que um banho de chuveiro não possa resolver.
— Você tomará o banho quando eu voltar com suas roupas — ele replicou. Colocou o chá na mesa-de-cabeceira e pôs na palma da mão dois comprimidos brancos, estendendo-os para ela. — Com eles você vai se acalmar. Parece-me que você está precisando.
Os olhos verdes defrontaram-se com os cinza e desviaram-se. Sem dizer mais nada, Kim tirou-lhe os comprimidos da mão e levou-os à boca, tomou um gole de chá quente e deitou-se, escondendo o rosto do olhar dele.
— Vejo você mais tarde — disse, e saiu, fechando a porta com todo cuidado.
A noite já caíra quando Kim acordou. Sentou-se, piscando, ao sentir o brilho da lâmpada de cabeceira que alguém acendera. O vestido azul estava cuidadosamente estendido nas costas de uma cadeira e na outra encontrava-se a mala aberta.
Seu relógio marcava sete horas. Ela afastou o cabelo dos olhos. A dor de cabeça tinha passado e ela sentia-se infinitamente melhor. Pelo menos achava-se capaz de enfrentar o resto daquele dia interminavelmente longo. Faltava apenas o jantar, e então seria hora de voltar para a mina. Naquele momento ela mal podia esperar para regressar.
Bea havia informado que o banheiro ficava quase ao lado do quarto. O banho restaurou-lhe novamente o equilíbrio. Ela teria gostado de lavar os cabelos, mas teve de se contentar com a aplicação de um pouco de água-de-colônia neles. De volta ao quarto, ela pôs o vestido e enfiou as sandálias brancas que combinavam com ele; maquilou-se ligeiramente e escovou os cabelos, amarrando-os em coque. À parte as olheiras, ela parecia estar bastante bem. Deu resolutamente as costas ao espelho e saiu do quarto a fim de juntar-se aos demais.
A primeira coisa que viu, ao entrar na sala mobiliada com todo conforto, foi Dave conversando de pé com Karen, ao lado de um grande vaso com uma tamareira. A linda morena pousara a mão em seu braço e falava em voz baixa, com um sorriso no rosto. Dave parecia tolerante e expansivo, como se subitamente estivesse achando a vida muito boa.
— Alô! — exclamou Bea, percebendo a insegurança de Kim, parada na entrada da sala. — Está se sentindo melhor?
Kim assentiu e forçou um sorriso. — Sim, obrigada. Eu devia estar cansada. Dormi demais.
— Sim, Dave disse que você ainda dormia, quando ele foi se trocar. Achou que seria melhor deixar você despertar naturalmente. Providenciamos para que vocês dois passem a noite aqui e viajem amanhã cedo para a mina. Não há nenhum motivo para que vocês recusem, não é mesmo? Vai lhes fazer bem passar a noite em uma cama civilizada. Entre e sente-se, querida. Ralph vai providenciar uma bebida.
— O que é que você toma? — perguntou-lhe o marido de Bea, atrás do bar de bambu num dos cantos da sala.
Dave a contemplava. Até mesmo de onde estava conseguia sentir seu olhar firme pousado sobre ela, mas recusava-se a olhar em sua direção. — Gim, por favor — disse com deliberação.
— Quer que misture alguma coisa?
— Somente gelo.
Ralph arqueou as sobrancelhas espessas e riu. — Isto é o que se chama uma mulher de verdade. Não enjeita um bom trago! — Trouxe o copo para ela, cheio pela metade do líquido incolor. — Mande ver.
Já arrependida por ter lançado um desafio tão infantil, Kim tomou cautelosamente um gole e teve de controlar-se para não deixar transparecer suas reações. Sem o gosto forte do limão para neutralizá-la, a bebida era horrível. Como seria possível tomar o resto sem se denunciar perante todos na sala?
Quase abençoou Norris por ele ter desviado a atenção de Ralph ao lhe fazer uma pergunta sobre seu emprego. Momentaneamente deixada de lado, pousou o copo sobre a mesa próxima à cadeira e recostou-se, fingindo estar bem à vontade, com um sorriso nos lábios, enquanto a conversação prosseguia à sua volta. Dave aproximou-se inesperadamente dela, sentando-se no braço da cadeira e apoiando o seu braço no encosto, por detrás de sua cabeça. Ela tinha consciência total da proximidade dele e sentiu um desejo súbito e desesperado de ficar ainda mais perto. De nada adiantava negar a atração que ele produzia sobre seus sentidos. Nenhuma mulher poderia esperar permanecer indiferente a um homem como Dave. Mesmo odiando-o como ela o odiava, ela... Fez uma pausa em seus pensamentos. Ódio? Seria isso mesmo que ela teria em mente? Seria ainda possível odiar o homem em cujos braços ela havia descoberto uma nova gama de emoções?
Karen estava sentada diretamente à sua frente. Ao cruzar com aqueles olhos castanhos e confiantes, Kim sentiu novamente a insegurança se apoderar dela. Agindo sem pensar, deixou lentamente a cabeça cair para trás, até descansar no braço de Dave, e voltou ligeiramente o rosto, esbarrando ligeiramente na manga de seu paletó. Com a mesma facilidade, a mão dele deslizou pelo encosto da cadeira e permaneceu lá. Havia uma possessividade em seu toque, e este fato, alguns dias atrás, teria despertado nela o mais vivo ressentimento. Ela estava se expondo a ser muito mal interpretada; no entanto, naquele momento, ela não se importava. Não se importava porque agora ela era a esposa de Dave, e já estava na hora de Karen compreender este fato.
Ou por uma coincidência, ou por um desígnio malicioso da parte de Bea, quando os convidados tomaram lugar à mesa, Dave achou-se sentado entre Kim e Karen. Com a atenção parcialmente solicitada pela amabilidade da anfitriã, Kim conseguiu ouvir trechos da conversa de ambos e foi forçada a reconhecer que Karen punha-se à vontade com Dave, de um modo como ela jamais conseguiria. Ela não tinha a menor possibilidade de jamais chegar a compreender uma mulher como Karen, pensou. Nada parecia desconcertá-la. De certa forma, ela invejava seu domínio sobre as emoções.
O café foi servido na sala de estar. Kim tomou o seu sentada em uma cadeira ao lado da porta e ficou contemplando a noite e ouvindo o barulho de dezenas de grilos. Abafadamente e a distância, ouvia-se o batucar dos tambores, sublinhando sutilmente a permanência da África e de seus povos.
Ralph encaminhou-se para seu lado, sentando-se no braço da cadeira, como Dave tinha feito antes. — Sabe de uma coisa? Você me deixa intrigado, Kim — ele disse suavemente. — Você é um feixe de contradições. Na aparência, você parece calma e equilibrada, mas subitamente você faz alguma coisa caprichosa, como, por exemplo, pedir uma bebida que você nem sequer aprecia. E agora há pouco, quando você olhou para mim, havia em seus olhos alguma coisa semelhante a chamas verdes, antes que você se tornasse neutra novamente O que acontece com você?
— Nada importante — replicou ela em tom superficial. — Sinto muito o que aconteceu com o gim. Foi tolice da minha parte. Talvez possa colocar um pouco de limão nele, depois de tomarmos o café?
— Não estou preocupado com o gim — ele disse. — Estou falando a seu respeito. O que eu gostaria realmente de saber, em primeiro lugar, é como você chegou até aqui.
— Dave já lhe contou — e recebeu em resposta uma risada zombeteira.
— Lembro-me muito bem do que Dave nos disse e acho que ele está mentindo descaradamente. Nenhuma companhia de mineração, neste lugar, empregaria uma mulher, especialmente alguém com sua aparência! Isso seria criar um problema com "P" maiúsculo!
— Mas sou empregada. Consto do registro deles. Sou eu quem prepara as folhas de pagamento.
Ralph contemplou-a atentamente, por um momento, antes de sorrir e sacudir a cabeça. — Agora, talvez. Como esposa de Dave Nelson, sua situação muda inteiramente. Mas o resto da história não cola. — Fez mais uma pausa. — Notei que você não usa aliança.
— Não. Nós... não tivemos a oportunidade de comprá-las. — Tudo aquilo não dizia respeito a ele, porém Kim não se incomodou. Ela o colocaria a par da verdade, mas até certo ponto. — Na realidade, vim para a África à procura de meu noivo e descobri que ele havia desposado uma outra mulher. Então me casei com Dave.
— Assim, de repente? — Havia uma certa admiração em seu olhar. — Você certamente não perdeu tempo em agir. Você é uma garota e tanto, Kim!
O coração dela disparou. — Não quer mais café?
— Ainda tem bastante. — Obviamente, Ralph não tinha a menor intenção de abandonar o interrogatório. — Você acha que vai conseguir prendê-lo?
Kim desviou ligeiramente o rosto. — Sou sua mulher.
— Isso não lhe dá muita proteção, neste país. O melhor que você tem a fazer é voltar com ele para a Inglaterra o mais cedo possível. Lá pelo menos você terá reconhecidos alguns direitos, se as coisas não derem certo.
Era assim tão óbvio para todo mundo que Dave não a amava? Com certeza ficara aparente para Ralph que seu relacionamento tinha um ar provisório.
— Eu nunca atravesso pontes antes de chegar até elas — disse Kim, com ar de desafio. — Será que sobrou café? Gostaria de tomar mais.
Karen estava sentada ao lado de Dave, no comprido sofá, e seus dedos pousavam ligeiramente sobre o joelho dele, quando ela enfatizava algum tópico da conversa. Ralph, sem dúvida, iria lhe reportar a história que Kim lhe contara, assim que tivesse a oportunidade. Não que isso modificasse a atitude de Karen. Esta já parecia admitir tacitamente que o casamento de Dave não apresentava qualquer tipo de problema que o tempo não pudesse resolver. Kim pôs-se a cogitar se ela sabia que Dave não tinha planos de voltar para Serra Leoa após sua viagem à Inglaterra.
Foi Dave quem interrompeu a reunião, sob pretexto de que deveriam viajar logo cedo. Já no quarto, ele tirou o paletó e pendurou-o; ao remover as abotoaduras disse casualmente: — Você e Ralph pareciam estar muito íntimos naquele canto, há alguns momentos. O que ele estava pretendendo?
— Queria apenas conversar — respondeu Kim.
— Sobre o quê?
Ela tirou a faixa do cabelo e sacudiu-o. — Sobre nós.
Ele a olhava refletida no espelho. — O que foi que você lhe contou?
— A verdade. — Ela disse isto com certa cautela. — Ralph não é bobo. Ele já adivinhou que existe algo de estranho em nosso casamento.
O sorriso de Dave foi tão súbito quanto inesperado. — Mas o que há de estranho nele?
O zíper do vestido encrencou. Kim puxou-o com toda força, ao mesmo tempo que dizia mordazmente: — Para você pode até parecer uma piada, mas eu não consigo achar a menor graça em que me olhem como se eu fosse... uma mulher sustentada por um homem!
— Mas a maior parte das esposas o são. É a vida. — Ele tinha caminhado para seu lado. — Pare de puxar desse jeito, você ainda vai acabar rasgando o vestido.
— Muito bem, você me compra um outro. — Sentiu que os dedos dele lhe tocavam a nuca e isto bastou para que nela despertassem as sensações que aquela proximidade sempre provocava. Com a respiração ofegante, disse: — Dave, o que você falou ainda há pouco, em relação a não voltar diretamente à Inglaterra quando seu contrato acabar...
— Você vem comigo. Eu disse isto também. — Seu tom era inequívoco. — Levarei você de volta para a Inglaterra quando eu achar que chegou o momento; portanto, se está pensando em sugerir algo diferente, não perca tempo.
Podia vê-lo refletido no espelho, atrás dela, alto, de ombros largos, os traços tensos e severos. Esposo. Amante. Ainda um enigma. — Não perca tempo em me pedir para deixá-la partir — ele dissera, e portanto, ela não o faria. De então em diante viveria o dia-a-dia como ele se apresentava, e aos diabos com o futuro! Agora ela era querida por alguém, acontecesse o que acontecesse, e somente isso teria importância.
A vida prosseguiu na mesma rotina, no acampamento de mineração, nas duas semanas que se seguiram. Eles trabalhavam, comiam, dormiam, despertavam e começavam tudo de novo. Para Kim, no entanto, ter o carro prometido abriu novas possibilidades. A primeira coisa que fez, depois que Dave lhe entregou a chave, foi dar uma volta pela mina, apesar de a chuva do dia anterior ter tornado seu passeio uma proposta arriscada.
Com a ajuda de algumas receitas que sabia de cor e um pouco de inventividade, conseguiu melhorar o padrão da comida de Patrick. Ele ficou bem feliz, ao vê-la praticamente se encarregar do jantar, enquanto perambulava pela cozinha, limitando-se a pôr a mesa. Estava completamente de acordo com o desejo dela de esconder perante o patrão a verdade sobre as atividades culinárias de Kim, mesmo que não entendesse as razões para tal. Deste modo, ele ganhava os créditos sem ter de realizar o trabalho.
Numa sexta-feira à noite, Kim sugeriu, com muita habilidade, que deveriam convidar Luke e mais dois engenheiros para jantarem com eles no dia seguinte.
— Assim eles mudariam um pouco daquela comida do clube — comentou. — Luke estava dizendo, outro dia, que estaria liquidado, se comesse mais um daqueles pudins de chocolate que servem sempre.
— Ele vive dizendo isso desde que chegou aqui. — Dave a estudou com curiosidade, enquanto ela se apoiava no balaústre da varanda. — Um convite desses parece algo civilizado demais para o nosso modo de viver, além do fato de que não conseguiremos equilibrar o número de convidados. Ou será que lhe agrada pensar que você será a única mulher no meio de quatro homens?
— Lá no clube isso aconteceu freqüentemente — ela relembrou, decidida a não se deixar provocar. — É não vejo nenhuma razão pela qual não possamos ser civilizados, só porque há falta de casais. Se você quer invocar algum motivo para convidá-los, pode dizer que o jantar é apenas uma preliminar para o jogo de pôquer. Já pensei em convidar Carl Gerhardt.
— Você parece pensar em tudo — ele disse, com uma rispidez pouco habitual. — Suponha que todos tenham planejado passar o fim de semana na cidade?
— Não planejaram, não. Eu já indaguei. — Tendo chegado a este ponto, Kim não desanimaria tão facilmente. — Então, está combinado?
— Faça como você quiser.
No que dizia respeito aos elogios à sua comida, Kim achou que o jantar foi um sucesso retumbante, mas era evidente que os quatro homens acharam a formalidade inabitual da ocasião um tanto embaraçosa.
Foi somente após os charutos e o licor que os três convidados começaram a dar sinais de relaxamento, e a sugestão de Dave, de jogar algumas partidas de pôquer, foi recebida com muito agrado. Dentro de alguns minutos estavam totalmente à vontade, com os paletós no encosto das cadeiras, as gravatas afrouxadas e as mangas da camisa dobradas. Esquecida de todos, Kim tentou ler um livro, aninhada em uma poltrona ao lado da porta, mas o murmúrio das vozes, o calor e a fumaça tornavam a concentração difícil, senão impossível. Achou que nenhum deles notou quando se levantou em silêncio e foi para fora tomar ar.
Caíra uma daquelas tempestades típicas no final da tarde. O terreno estava todo enlameado e sentia-se no ar o cheiro da vegetação molhada. Um vento persistente levantava o teto da varanda em um dos cantos, onde a palha havia se esgarçado. Se não o consertassem logo, a palha ia começar a se desprender. Kim imaginou que Dave se interessava muito pouco pelo que aconteceria com a casa, depois que se fosse. Caberia ao próximo morador providenciar os consertos.
Não fazia nem cinco minutos que estava lá quando ouviu o barulho de um automóvel que se aproximava. Tornou-se logo visível, com todos os faróis acesos e evitando as poças de água, até que se deteve diante dos degraus da entrada.
— Você tem visitas — disse o motorista, saltando na lama. Passou os braços ao redor da cintura da jovem que estivera sentada a seu lado, ajudando-a a subir os degraus da escada e soltando-a a contragosto. — Pronto, está entregue, senhorita.
Kim caminhou em sua direção, enquanto outra pessoa cobriu a distância entre o carro e a varanda; tratava-se de um homem jovem.
— Alô, Karen — ela disse, sem a menor inflexão na voz. — Isto é... uma grande surpresa.
— Não é mesmo? — Karen examinou, à luz do lampião, o estrago que a lama havia provocado em suas calças, antes de levantar a cabeça e enfrentar o olhar de Kim. Veio-lhe subitamente um sorriso aos lábios, com uma ponta de malícia. — Acho que a palavra "choque" seria mais adequada. Dave está lá dentro?
— Estou e não estou. — Ele tinha vindo até a porta, atraído pelas vozes. Como sempre era difícil imaginar o que ele estava pensando. Simplesmente ficou parado diante da porta, com a mão apoiada no umbral, olhando os recém-chegados com as sobrancelhas arqueadas, porém, sem nenhuma surpresa. — É uma hora estranha para se receber visitas.
— Já estaríamos aqui há horas, se não fosse a tempestade — precipitou-se em dizer o rapaz. — Saímos logo depois do almoço.
— A estrada está inundada, Dave — falou o motorista que os conduzira até lá, desviando o olhar de Karen. — Eu os achei na cabeceira da ponte. O carro deles está atolado.
— A culpa é de Austin, que guia muito bem. — Karen disse estas palavras ironicamente, e seu companheiro ruborizou-se. — Desistimos de prosseguir, e ele estava manobrando quando descobrimos que a estrada já não dava mais passagem.
— Caí num buraco e uma das rodas ficou atolada. — A explicação foi dita em tom de defesa. — Do jeito que chovia eu não podia enxergar nada.
— Pois vocês deviam ter ficado sentados no carro, esperando enquanto desse — foi o comentário indelicado de Dave. — É melhor vocês entrarem. — Seu olhar dirigiu-se a Kim. — Por favor, diga a Pat que vamos precisar de água quente.
— Não seria melhor que eles se lavassem no clube? — sugeriu Kim, hesitante. — É difícil usar o banheiro lá de fora quando não se está acostumado.
— Eles darão um jeito — replicou Dave tranqüilamente. — Você poderia providenciar uma muda de roupas para Karen. Encontrarei alguma coisa para nosso convidado.
Karen riu. — Ainda não os apresentei, não é? O nome dele é Moyes. Austin, quero lhe apresentar Dave Nelson, oh, e ela é a Kim.
Os três jogadores de pôquer puseram-se de pé assim que eles entraram. Com sete pessoas dentro, a sala parecia mais acanhada do que nunca, e não havia acomodação para todo mundo. Kim deu uma olhada em volta sem se preocupar em disfarçar o seu descaso, fitando em seguida Dave, ao mesmo tempo em que dava de ombros, sorridente.
— Parece que interrompemos uma festa.
Luke apressou-se em dizer: — Já vamos indo, Dave. Vou providenciar algumas camas. Depois você me procura lá no clube?
— Sim, e muito obrigado.
Todos se despediram e Dave acompanhou os três engenheiros até a escada, na entrada. Kim murmurou algo relativo à água quente e à roupa limpa e foi até a cozinha dizer a Patrick que de modo algum o serviço daquela noite tinha chegado ao fim. No quarto ela escolheu um par de calças recém-lavadas e uma blusa limpa e permaneceu durante alguns minutos com a roupa na mão, tentando pôr alguma ordem em suas emoções. O fato de Karen ter vindo à mina não queria dizer necessariamente que Dave havia sugerido a visita. Pelo contrário, ele obviamente não esperava vê-la diante da porta de sua casa. Mas isto não queria dizer que ele não tivesse ficado contente em vê-la. Ele se mostrara muito fechado nas últimas semanas, à semelhança de alguém com alguma coisa — ou uma pessoa — em mente. Talvez o fato de ter visto Karen no último fim de semana o fizera compreender o quanto ele tinha sido atraído por ela. Era muito característico dele fingir indiferença na presente circunstância. Por outro lado, se isto era verdade, ele dificilmente continuaria com seu plano de levá-la, Karen, em sua companhia, quando viajasse para o litoral, não é mesmo?
Desolada, teve de reconhecer que quando se tratava de Dave nada era seguro.
Karen aceitou a roupa com um ar de quem tinha de tirar o melhor partido de uma situação, por pior que ela fosse. Kim acompanhou-a até os fundos e mostrou-lhe como lidar com o chuveiro, antevendo sua reação.
— É um tanto precário — comentou —, mas funciona perfeitamente. Vou lhe buscar meu roupão, assim você poderá se vestir no quarto quando terminar.
— Eu me recuso a entrar neste lugar — replicou ela imediatamente. — Só Deus sabe os bichos que devem estar aí dentro!
Por um momento Kim hesitou em avisá-la a respeito dos escorpiões, mas decidiu que não o faria. Patrick recebera ordens de inspecionar cuidadosamente o banheiro antes de comunicar que estava pronto para ser ocupado. Foi buscar o roupão azul e depois levou a roupa suja de Karen para a cozinha.
— Já está na hora de você ir para casa, Patrick — disse com firmeza. — Encha novamente a caixa depois que a senhorita Karen terminar, que eu cuido do café e da comida.
Os visitantes já estavam de volta à sala de estar quando Kim entrou com a bandeja. Austin usava uma calça de Dave, que parecia se ajustar bem, pois ambos tinham a mesma altura, mas a camisa era um tanto folgada. Tinha traços finos e regulares, cabelos longos, nos quais o sol pusera reflexos alourados. Kim imaginou que ele tivesse uns vinte e sete anos e achou-o um tipo um tanto diferente dos homens que usualmente se encontravam naquele país.
— Então está decidido — disse Dave em tom conclusivo. — Austin e eu vamos dormir no clube, e vocês duas dividem a casa. Acho que levarão dois dias para pôr a estrada em ordem, portanto vocês vão ter que se acostumar com o desconforto enquanto esperam.
— Oh, não é tão mau assim — replicou Karen, tranqüilamente. — Vai ser uma experiência e tanto. Vamos ter assunto para falar quando voltarmos. Você já recebeu alguma visita na mina, Dave?
— Ninguém seria suficientemente insano a ponto de pensar nisto. — Ele sorria, mas com uma certa tensão na voz.
— Nós não tínhamos a intenção de ficar.
— Obviamente, senão teriam trazido alguma coisa com vocês. Já que vocês estão aqui por um tempo, vamos aproveitar o quanto pudermos. — Havia ironia no olhar que lançou para Kim. — Tenho certeza de que sua companhia será apreciada.
— Existe alguma maneira de avisarmos o que aconteceu? — perguntou Austin, preocupado. — Pode ser que organizem equipes que saiam à nossa procura, e isto não faz sentido.
— Já foi providenciado. — Dave foi incisivo. — Tome café e pare de pensar em problemas inexistentes.
Austin enrubeceu. — Desculpe. Isto apenas me passou pela cabeça. — Sentou-se ao lado de Kim no sofá e esboçou um sorriso. — Acho que estamos lhe dando muito trabalho.
— Muito pelo contrário — ela replicou prontamente. — As visitas de qualquer tipo são tão raras aqui. Você trabalha com Ralph Tait?
— Sou sobrinho de Bea, filho do irmão dela. Cheguei há uma semana atrás e vou passar aqui um mês de férias. Há muito tempo que ela vinha insistindo para que eu viesse, mas a oportunidade ainda não tinha surgido. — Acrescentou com franqueza: — Não tenho viajado muito, a não ser pela Inglaterra e França, apesar de viver prometendo a mim mesmo que um dia iria para mais longe.
— Pelo jeito você está cumprindo a promessa. Qual é sua impressão da África até agora?
— Bem, eu não gostaria de viver aqui permanentemente, mas não poderia deixar de vir. É um continente fascinante. São culturas tão diferentes. Mas eu não me envergonho de admitir que não é exatamente o que eu esperava. — Seu sorriso era envolvente. — Creio que no fundo eu ainda a via como uma selva inexplorada, povoada por tribos bárbaras.
— Austin é um romântico nato — disse Karen, mas sem malícia.
— Acho que ficou muito desapontado por não viajarmos até aqui a pé, acompanhados pelos nativos carregando nossas bagagens, e com revólveres na cintura. Eu vivo lhe dizendo que as zarabatanas e os rostos pintados caíram de moda.
— Você devia convencer algumas tribos do interior sobre isso. — Levantou-se. — Já está na hora de irmos. Vocês duas se ajeitam, não é mesmo?
Kim respondeu: — Claro. Vai dar tudo certo. — Desejava sentir-se tão segura quanto parecia.
— Então lhes desejo boa noite. Passe a tranca na porta assim que sairmos.
Ouviu-se o barulho do carro subindo o morro antes que uma delas falasse. Karen foi a primeira a romper o silêncio.
— Eu deveria me sentir culpada por expulsar Dave de sua própria cama.
— Mas não é o caso. As camas lá do clube são muito confortáveis. — Kim aproximou-se do sofá e debruçou-se sobre a bandeja. — Mais café?
— Ainda não acabei o meu, obrigada. — Karen voltou a sentar-se na cadeira, com um cigarro entre os dedos. — Você está vivendo em uma completa ilusão — disse em tom de conversa. — Dave pode ter concordado com a necessidade de tirar uma licença, por causa de você, mas não se ponha a imaginar que um simples papel vai ligar vocês dois para o resto da vida. Eu o conheço há anos. O suficiente para saber que nenhuma mulher poderá possuí-lo.
— Incluindo você? — perguntou Kim, sem alterar a voz.
Karen deu de ombros. — Eu jamais haveria de querer possuir um homem. É isto o que me dá certa vantagem sobre pessoas como você. Sou uma pessoa independente e nem um pouco interessada em me dedicar à vida doméstica, portanto, não se ponha a pensar que o que estou dizendo é apenas o resultado de uma frustração. Eu simplesmente a estou prevenindo, eis tudo. Com Dave nada dura. Ê assim que ele é.
— Você fez toda essa viagem só para me dizer isto?
— Não. — Por um momento um sorriso aflorou em seus lábios. — Tinha curiosidade de ver como eram as coisas por aqui. Apesar de que matei dois coelhos com uma só cajadada, pois proporcionei a Austin o gosto da aventura que ele procura com tanta ânsia. Ele leva uma vida um tanto tolhida.
Kim apressou-se em dizer: — Eu o achei bem simpático.
— Ah; é sim. Comparado com este seu marido, ele é um anjo. É isto que é estranho nas mulheres, não acha? Nós nos esquivamos de tipos como Austin, por mais que eles mereçam. Imagino que isto tenha algo a ver com o desafio. Afinal de contas, lidar com Austin é fácil para qualquer um, mas trazer um homem como Dave Nelson a seus pés... — Ela riu. — Mas que idéia, hein? Tenho de admitir que eu mesma me deixei envolver por ele até certo ponto.
— Mas agora você não está mais interessada?
— Eu não disse isto Dave pode ser um patife, sob alguns aspectos, mas ainda assim é o homem mais atraente que já conheci. Eu estaria mentindo se dissesse que não existe mais nenhuma atração entre nós, ou que com você fora do caminho as coisas não voltassem a reanimar-se por um momento. Sabe, seu esposo e eu temos algo único no relacionamento entre um homem e uma mulher, compreensão. Não importa quanto tempo você consiga ficar na companhia dele, jamais conseguirá compreender suas motivações mais profundas.
Havia uma dose de verdade grande demais nesta observação para que Kim sequer tentasse negá-la. A única coisa que ela desejava era que as pessoas parassem de apontar para ela o que ela já sabia. Levantou-se de repente e começou a levar os pratos e xícaras para a cozinha. — Vou arrumar sua cama — disse.
Austin chegou na manhã seguinte às nove e meia e já as encontrou de pé e arrumadas. Haviam tomado o café da manhã há uma hora atrás. Informou-as de que Dave tinha ido até o local onde ocorrera o deslizamento de terra. Não dissera quando estaria de volta.
— E como vamos passar o dia? — perguntou Karen. — Como é que você normalmente emprega o tempo, Kim, quando o homem da casa não está?
Kim ignorou a ironia. — Trabalho — disse calmamente. — Mas não nos fins de semana. Temos um outro carro. Poderíamos dar uma volta pela mina, se vocês quiserem. Domingo tudo pára.
— O que fazer, não é? Suponho que qualquer coisa é melhor do que ficar sentada em casa. Como é que é o clube, Austin?
— É bom. — Ele hesitava em se comprometer.
— Foi feito com o propósito de os funcionários se encontrarem durante os momentos de folga — disse Kim defensivamente. — Eles se contentam com pouco. Poderíamos almoçar lá, contanto que você não se incomode em ser encarada.
— Não tenho objeções em ser desejada à distância — foi a resposta petulante. — Espero que você dirija melhor do que Austin. Não gostaria nem um pouco de atolar novamente.
O passeio pela mina dificilmente poderia ser considerado um sucesso. Não havia algo que pudesse interessar especialmente a um leigo, e as estradas enlameadas dificultavam o acesso. A sugestão de Kim, de que eles desistissem e fossem para o clube tomar um refresco, foi aceita com a primeira demonstração de entusiasmo da parte de Karen, desde que começara o dia, apesar de Austin ter jurado que tinha gostado do passeio.
Habitualmente, aos domingos pela manhã, o clube era freqüentado pelos funcionários graduados que não tinham se decidido a passar o fim de semana na cidade. Naquele dia, entretanto, parecia deserto. Kim deixou o casal sentado no bar e foi averiguar o que estava acontecendo, encontrando finalmente um dos garçons na sala de jantar.
— Foram todos para a estrada — ele a informou. — Mais rochas desabaram.
— Então estão todos ocupados em desobstruir os caminhos que levam à civilização — comentou Karen, quando Kim voltou com as notícias. — Que tal se formos até lá e darmos uma olhada? Eu sinto em mim um interesse enorme pelo progresso.
Kim hesitou, sabendo muito bem que Dave não gostaria da idéia de ter meros espectadores à sua volta. No entanto, sentia uma necessidade crescente de ir até lá. Alguma coisa estava errada; sentia isso na pele, como se fosse a premonição de um desastre.
— Tem medo do que o seu marido possa dizer? — caçoou Karen. — Não se preocupe, eu assumo toda responsabilidade. Ele sabe como eu sou, uma vez que me decido a levar alguma coisa adiante. Se vocês quiserem, eu guio o carro até lá.
Kim decidiu-se. — Obrigada — disse brevemente —, mas eu mesma guio.
O portão principal estava escancarado quando chegaram até lá, apesar de, como sempre, haver um guarda de plantão na guarita. Kim atravessou o portão sem esperar a permissão e tomou a estrada que levava até o desfiladeiro com a sensação do desastre aumentando a cada minuto que se passava. Depararam-se com uma cena de completa desordem e confusão. Toda a parte superior da montanha tinha desabado e soterrado a estrada, bloqueando completamente qualquer espécie de tráfego. Nas proximidades do local, onde Kim havia parado o carro, um deslizamento recente havia empurrado uma das máquinas de terraplenagem a bordo do desfiladeiro, deixando-a quase completamente virada e na iminência de se despencar por um barranco íngreme e espatifar alguns andaimes de madeira a uns vinte metros abaixo. Nas proximidades havia outras máquinas de remover terra. porém ninguém para controlá-las. Todos os homens presentes pareciam mais preocupados em impedir a máquina de cair. Alguns estavam empenhados em providenciar equipamentos e cabos de aço para levantá-la, enquanto outros permaneciam em silêncio, olhando. Por mais que tentasse, Kim não conseguiu distinguir Dave no meio deles, apesar de localizar Luke que dirigia toda a operação.
Esquecendo seus companheiros, saiu do carro e correu em direção ao engenheiro, puxando-o pela manga da camisa. — Onde está Dave? — perguntou aflita, e adivinhou a resposta mesmo antes de ele a encarar com ar compungido.
— Está embaixo dela — disse, acenando para a máquina de terraplenagem. — Ele a guiava quando a terra deslizou e o colheu.
Kim mal podia respirar. — Ele morreu?
— Não, mas ficou preso lá. — Fez uma pausa, e depois decidiu-se a lhe contar toda a verdade. — Se a máquina se mover mais um pouquinho poderá esmagá-lo, e do jeito como ela está, isto pode acontecer a qualquer minuto.
Seu olhar desviou-se dele para a máquina, em seguida para o guindaste e voltou a pousar-se sobre Luke. — Você tem muitos homens à sua disposição — disse impetuosamente. — Eles não podem afastar a máquina e tirá-lo de lá sem esperar por isto?
— Não daria certo. Tem que ser levantada de cima. E a coisa precisa ser muito bem feita: vamos ter de passar uma corrente por baixo. Não podemos correr o risco de o gancho se desprender. — Desta vez a pausa que se seguiu encerrava deliberação. — O problema é saber como. Precisamos de alguém que passe a corrente por baixo da máquina e a enganche no lugar exato. Mas acontece que não temos um homem suficientemente pequeno que possa se enfiar lá sem fazer com que a máquina desabe em cima dos dois.
— Dave conseguiu entrar muito bem quando aqueles dois homens ficaram presos — ela comentou pressurosa, e notou um sorriso triste e deprimido em seu rosto.
— Só que aqui a situação é diferente. A única razão pela qual Dave ainda está vivo é porque a maior parte do peso está sendo suportada pela cabine do maquinista, pelo menos, até agora. Se ela cede, a máquina desaba, mas até agora há suficiente espaço para que um homem pequeno e magro passe por baixo, se ele tomar cuidado. Só que, como eu disse, não temos ninguém aqui que seja suficientemente pequeno ou magro. Acho que, em vez disto, vamos ter de passar um gancho na corrente.
E correr o risco de romper aquele precário equilíbrio. Ele não precisava dizer isso; a consciência do fato pairava no ar opressivo. Kim disse com firmeza: — Sou suficientemente pequena, Luke. Poderia passar a corrente lá por baixo.
— Você? — Ele a olhou com súbita esperança, mas em seguida sacudiu vagarosamente a cabeça. — Dave não permitiria. É perigoso demais.
— Dave não está em situação de dizer o que permite ou não — ela replicou, e sua resolução tornou-se mais firme. — E, a menos que alguém aja rapidamente, ele não terá mais condição de dizer o que quer que seja. Agora quem manda é você, Luke. Cabe a você; decidir o que é melhor.
O seu olhar era um modelo de indecisão. — Mas você já viu como é que a máquina está se equilibrando? Basta um movimento em falso, um só, e ela cai em cima de vocês dois.
— Eu tomarei cuidado. Diga apenas o que tenho de fazer. Luke deu algumas ordens enérgicas aos homens que trabalhavam com ele, depois foi para a frente da máquina, agachando-se bem próximo ao chão, pondo a cabeça perto do buraco por onde Kim teria de entrar. — Dave, vamos mandar... alguém até aí para passar uma corrente por baixo — disse em voz baixa, porém audível. — Vamos tirar você daí em um minuto.
Kim não conseguiu ouvir a resposta de Dave, mas Luke olhou para ela e balançou a cabeça. — Quando você entrar com a corda, precisa se certificar de que ela deslizará livremente no momento em que; puxarmos — disse. — Do jeito que Dave está lá embaixo você vai ter que entrar deste lado, levar a corda por cima dele até onde puder, em seguida entrará pelo outro lado e puxará a corda até o fim. Você acha que vai conseguir?
— Posso tentar. — Ela estava pálida, porém decidida. Ajoelhou-se na terra a seu lado, contente por usar calças que lhe permitiriam deslizar de bruços pelo buraco adentro com muito mais facilidade do que se estivesse usando um vestido. A extremidade da corda, na qual tinha sido dado um nó, de modo que ela pudesse pegá-la com mais segurança, estava em sua mão. — Se eu ficar entalada — disse ela em uma tentativa de mostrar-se bem-humorada — agarrem-me pelos pés e me puxem para fora!
— Kim? — A voz de Dave fez-se ouvir inesperadamente e com bastante força, vinda debaixo da máquina. — Afaste-se daqui, esta me ouvindo? Luke, tire-a daí!
Kim olhou preocupada para Dave antes de deitar-se de bruços e enfiar lenta e cuidadosamente a cabeça e os ombros no espaço estreito entre a máquina e o chão. Conseguiu distinguir a cabine através da qual teria de passar a corda e o corpo de Dave. Ele estava deitado de lado, e o braço esquerdo encontrava-se preso até o cotovelo na janela da cabine. Seu rosto mostrava as marcas de uma tensão que ela desconhecia, e a respiração parecia dificultosa. Passaram-se alguns segundos antes de ela compreender que o som persistente de algo que gotejava provinha do sangue que empapava a manga de sua camisa e caía assustadoramente em grandes gotas.
Havia muito pouco espaço para manobrar. Kim não ousava apoiar-se na máquina a fim de poder entrar mais, porém conseguiu avançar alguns centímetros apoiando os cotovelos no chão. A corda deslizava por entre seus joelhos e Luke a desdobrava cuidadosamente, à medida que ela avançava. Passaram-se cinco minutos intermináveis, até que ela alcançasse uma posição que lhe permitisse passar a corda por cima da cintura de Dave.
— Será que você consegue impedir, com a mão livre, que a corda se desenrole quando eu sair? — ela perguntou baixinho. Limpou o suor do rosto com o colarinho da blusa, mantendo as pernas imobilizadas no espaço confinado. Ouvia com uma prece silenciosa nos lábios o barulho surdo provocado por aquela estrutura de metal toda retorcida, e seu coração disparava. Tomara que agüente mais um pouco!
Dave deslizou o braço e agarrou com firmeza a extremidade da corda. Kim sentiu que seus dedos estavam frios. Mostrava-se extremamente pálido e a mandíbula contraída era o sinal da dor que sentia. — Você não devia estar aqui — murmurou. — Eu disse a você que se afastasse.
— Eu sei. — Kim pousou por alguns momentos sua mão sobre a dele e sentiu os dedos que apertavam. — Mais tarde você me pune por este ato de rebeldia. Daqui a pouco eu o vejo do outro lado.
Recuar foi ainda mais difícil do que entrar. Quando finalmente se viu ao ar livre, estava ensopada e exausta pelo esforço sob aquele calor tremendo, mas tinha de completar o resto da tarefa.
— Descanse um pouco — aconselhou Luke, preocupado com sua aparência. — Espere uns minutos antes de entrar novamente.
— Não há tempo a perder. — Levantou-se inquieta. — O cabo não vai agüentar por muito mais tempo, e do jeito como o braço de Dave está preso... — Ela não terminou a frase, hesitando em pôr em palavras o que inevitavelmente aconteceria se o peso da máquina de terraplenagem se abatesse sobre Dave. — Há mais unia coisa, Luke. Você acha que eu posso puxar a corrente quando eu estiver do outro lado? Ela poderá se enroscar facilmente na janela da cabine se não estiver alguém lá para guiá-la.
— É muito pesada — ele disse, hesitante. — E você vai ter de puxar deitada de bruços.
— Muito bem, então primeiro eu passo a corda, em seguida volto para cuidar da corrente enquanto vocês puxam daqui de fora. Uma vez que ela passe em volta da cabine tudo dará certo.
Depois disto os minutos pareciam atropelar-se um ao outro. Quando mais tarde pensou no assunto, Kim não conseguiu recordar os detalhes exatos de como entrou naquele vão exíguo para segurar a corrente, enquanto ela era enfiada por Luke e seus auxiliares, e nem como conseguiu guiá-la e colocá-la na posição correta, até finalmente voltar ao ar livre. A única coisa de que se lembrava com alguma clareza foi o tremor que se apoderou de suas pernas, enquanto Luke a ajudava a pôr-se de pé, e o espetáculo reconfortante da pesada cadeia sendo passada pelo gancho. Sobreveio então a tensão de olhar o guindaste ser acionado, o ranger do metal enquanto a frente da máquina levantava-se lentamente no ar, até que houvesse espaço suficiente para que dois homens socorressem Dave, tirando-o de sob a barra que o havia protegido com tanta segurança. Alguns segundos após se ouviu um ruído espantoso; e o guindaste não suportando o peso descomunal que levantava, arrebentou e precipitou-se com a máquina no desfiladeiro.
Dave ainda estava consciente quando o estenderam na maca. O médico da mina aplicou-lhe uma injeção de morfina antes de rasgar a camisa manchada de sangue até acima do cotovelo. Kim notou que seu rosto se tornava tenso no momento que viu os ferimentos, e lutou para não formular a pergunta que lhe veio involuntariamente aos lábios. Luke surpreendeu o olhar de Kim, e na expressão de seu rosto estava estampada sua preocupação. Ele já tinha visto antes ferimentos como aquele.
A morfina já tinha funcionado no momento em que eles se preparavam para colocar a maca na parte traseira de um dos carros. Aqueles olhos cinza pareciam perdidos, no momento em que Kim entrou no carro e sentou-se ao lado dele; havia uma vulnerabilidade naquela boca que fez com que Kim sentisse vontade de encostar seus lábios nos dele, não em um ímpeto de paixão, mas sim de solidariedade. Dave não era um tolo. Ele compreendia as implicações contidas no comentário evasivo do doutor Selby e nenhuma quantidade de morfina iria amortecer aquela espécie de temor. A mão que, não tinha sido atingida repousava na maca, a alguns centímetros da mão de Kim, a qual, sentada no banco estreito, não fez a menor tentativa de tocá-la. Algo dentro dela lhe dizia que naquele momento ele não queria ser tocado — nem por ela, nem por ninguém mais. Gente como ele lutava só contra o medo. Ela permaneceu sentada em silêncio, contemplando o rosto sujo de terra do homem a quem ela havia desposado, enquanto se deslocavam da mina até o hospital.
Ainda esperava por notícias quando Luke veio juntar-se a ela na pequena ante-sala, passado algum tempo. Aceitou agradecida o cigarro que ele lhe ofereceu, e enquanto fumava repousou a cabeça de encontro à parede, de olhos cerrados e preocupada. Dave iria superar aquilo tudo, com certeza. Ele tinha de superar. O trabalho era sua vida — o único tipo de vida que ele conhecia ou queria. Privado dele seria um homem pela metade.
— Você o ama, não é mesmo? — Luke estava comovido. — Eu achei que você tivesse casado com ele apenas por interesse.
— Não tenho certeza se amor é a palavra certa — disse. — Pelo menos não do modo como sempre o entendi. Como é possível amar alguém a quem você sequer conhece, Luke?
— Nunca pensei no assunto — ele admitiu. — Sou apenas um homem. São vocês, mulheres, que sempre ficam confusas em relação a isto. Para dizer a verdade, nunca entendi seu sexo. Vocês não podem ter um simples relacionamento; sempre tem de haver complicações.
Ela estava olhando para ele naquele momento, estudando seus traços marcados, como se nunca os tivesse visto antes. — Você acha que é isto que estou fazendo, complicando as coisas?
— Sim — ele disse de chofre. — Você acaba de arriscar sua vida por esse homem. Se isto não é amor, então não sei o que é. Se eu tivesse encontrado uma mulher capaz de fazer isto por mim. eu me sentiria muito seguro a respeito de seus sentimentos.
Ela disse em voz baixa: — Você acha que Dave terá certeza dos meus em relação a ele?
Ele hesitou. — Não necessariamente. Há talvez uma ou duas coisas que você precisa saber a respeito dele, antes que a coisa vá mais longe. São coisas que aprendi a respeito dele lendo nas entrelinhas. Ele nunca teve um lar ou uma família. Seus pais morreram em um desastre quando tinha uns dois anos, e passou toda a vida em uma série de internatos ou com famílias adotivas, até que tivesse idade suficiente para se defender sozinho. Eu me lembro de ele ter me contado uma vez que após ter vivido com duas famílias ele não ousava ficar gostando demais das pessoas com quem morava de medo de ser levado embora mais uma vez. Crescer desse jeito deve surtir algum efeito sobre um homem.
— Você está querendo dizer que Dave não é tão duro como parece?
— É por aí. Eu diria que ele tem de se sentir absolutamente seguro do afeto de uma mulher por ele, antes de dar um passo em sua direção. Principalmente agora que isto aconteceu.
— Você tem tanta certeza assim de que ele vai perder o braço?
— Digamos que não estou contando com nada melhor. E se ele perder de fato, aposto que a primeira coisa que vai fazer quando voltar a si é mandá-la embora. Somente você pode decidir se o que sente por ele é suficientemente forte para obrigá-la a ficar, mas acredite em mim, Kim, ele precisa de você. Ele se tornou um homem diferente nestas duas últimas semanas. Pela primeira vez na vida teve um lar para onde pudesse voltar após um dia de trabalho, uma mulher que compartilhasse esse lar com ele. Isto significou muito para ele, por mais que tentasse disfarçar. — Fez uma pausa, sem deixar de encará-la. — Você acha que poderá encarar o inferno em que ele é capaz de a colocar, antes que você o vença?
— Não tenho certeza — confessou ela, sentindo-se infeliz. — Luke, não tenho a menor certeza.
— Então é melhor você se decidir. E rápido. Mas cuidado para não cometer erros. Uma coisa de que ele não vai precisar é piedade.
Ela sabia que ele tinha razão. Isto era algo que tinha de resolver por si mesma. Ela amava Dave suficientemente para aceitar o confronto inevitável com seu orgulho e independência, se o pior acontecesse, ou seria melhor e mais justo para os dois se ela optasse pelo caminho fácil da retirada e consentisse na alternativa que Luke tinha tanta certeza lhe seria oferecida? O que ela sentia por Dave tinha, afinal de contas, algo a ver com o amor?
Não precisou de muito para conseguir a resposta. Tudo que ela tinha a fazer era relembrar o momento em que Luke lhe dissera que Dave estava preso debaixo da máquina de terraplenagem e as emoções que se tinham apoderado cegamente dela nos segundos que antecederam a notícia de que ele ainda estava vivo. Naquele momento não houve dúvidas ou hesitações de sua parte. Ela sentiu unicamente a necessidade de chegar até ele, de salvá-lo.
Mas nisto tudo havia muito mais do que suas emoções, pensou. Não importava o que Luke achasse dos sentimentos de Dave em relação a ela; isto não queria dizer que ele estivesse certo. E se de fato Dave lhe dissesse para ir embora, ela teria coragem de recusar, carregando com ela aquela dúvida?
Parecia ter se passado horas antes que o doutor Selby viesse finalmente ao lugar onde esperavam. Ele parecia cansado e tenso, e havia nele um estranho ar de reticência no momento em que olhou para Kim.
— Ele vai se recuperar — disse, rompendo o silêncio prenhe de expectativas. — Ele quebrou o braço e o machucou bastante, mas não é tão grave como eu inicialmente temi. Acordou e está pedindo para vê-la.
Dave estava reclinado sobre dois travesseiros no momento em que Kim entrou na enfermaria acanhada e que continha meia dúzia de camas. Seu rosto estava pálido, sob o queimado do sol, mas os olhos cinza se mostravam tão vivos como nunca. O braço esquerdo estava engessado do cotovelo para baixo e apoiado em uma espécie de tipóia.
— Fiquei contente ao saber das boas novas — ela disse. — O doutor Selby me comunicou que você queria me ver.
— Sim. — Falava em tom baixo, porém firme. — Eu ainda não lhe agradeci por ter salvado minha vida.
— De um modo ou de outro eles teriam tirado você de lá — ela respondeu, insegura. — Como é que está se sentindo?
— Sobreviverei — Ele a encarou atentamente. — Não preciso dizer-lhe que isto muda todos os planos, naturalmente. Ficarei aqui até meu contrato terminar, mas não há razão para você esperar mais tempo. Há um vôo amanhã à tarde. Luke arranjará um helicóptero que a conduzirá até o aeroporto, e eu lhe darei um cheque visado até que a gente acerte tudo. Não fique preocupada. Irão cuidar de você.
— Você está me indenizando? — Kim ficou espantada com seu próprio autocontrole.
— Se você quiser encarar as coisas desta maneira.
— Suponha que eu não queira ir embora?
Seus olhos se apertaram. — O que é que você está querendo? — Mais dinheiro?
— Como você mesmo não sabe o quanto está pensando em me oferecer, eu dificilmente poderia pedir mais — ela retrucou. — Você... prometeu viajar comigo para o Sul antes de regressarmos à Inglaterra.
Ele indicou o braço quebrado. — Deste jeito?
— Eu posso guiar.
O jeito como ele aspirou o ar foi ouvido com toda nitidez no silêncio do quarto. — Se você acha que preciso de uma mulher para cuidar de mim está redondamente enganada. No que me diz respeito está tudo acabado entre nós, garota dos olhos verdes, portanto quanto mais cedo você for embora, melhor. De qualquer maneira, iria terminar dentro de uma ou duas semanas.
— Eu... eu não quero ir embora, Dave. Desse jeito, não. Não podemos seguir o plano original e regressarmos juntos à Inglaterra?
Não havia o menor traço de abrandamento nos olhos cinza. — Não I— ele disse peremptoriamente —, não podemos. Acabo de lhe dizer que não a quero mais por aqui.
— Mas só porque você quebrou um braço? Isto não me parece...
— O braço é apenas uma parte da história. — Ele retesou a mandíbula e comprimiu os lábios. — Você não consegue enfiar na cabeça que eu já me cansei de tudo isto? Claro que eu disse que viajaríamos ao Sul. Isto foi antes de... — Fez uma pausa e prosseguiu com deliberação. — Antes de eu voltar a encontrar Karen. Assim que eu tirar o gesso qualquer plano que eu venha a fazer a incluirá. Agora você está suficientemente esclarecida?
Kim levantou o queixo e o orgulho lutava para esconder a dor que sentia. — Você não podia ter sido mais claro. Não se preocupe, Dave, eu não lhe trarei mais problemas. Não precisa sequer voltar a me ver. Espero que ambos achem o que estão procurando.
Deu as costas com toda a dignidade de que se sentia capaz e saiu da enfermaria. Estava tudo acabado. Dave não a queria. Luke se enganara.
— Kim? — Luke veio em sua direção no momento em que ela tropeçou no único degrau da escada que levava à sala onde ela o tinha deixado esperando. — O que foi? Que aconteceu?
— Onde está Karen? — ela perguntou, insegura.
— Sugeri que ambos voltassem para casa — ele respondeu, e surgiu um lampejo súbito de compreensão em seus olhos. — É isto que ele está fazendo, usando Karen como desculpa para obrigá-la a ir embora?
— Não é uma desculpa. É uma razão. É a Karen quem ele quer, não a mim. — Kim deu um sorriso contrafeito. — Você estava enganado, Luke. Dave não precisa de ninguém. Nunca precisará. Ele foi suficientemente claro a este respeito.
Luke permaneceu em silêncio por um longo momento e uma grande variedade de expressões passavam por seu rosto. Deu de ombros, desalentado. — Sinto muito — disse. — Eu seria capaz de jurar que o conhecia melhor. Vamos, eu a acompanharei até a casa.
Karen veio até a porta ao ouvir o carro, com Austin atrás.
— E então? — perguntou, no momento em que Kim subia os degraus, com Luke ao lado. — O que o médico disse?
— Ele vai ficar bom. Quebrou o braço, só isso. — Kim passou por ambos, percebendo a curiosidade no olhar de Karen. — Não há razão pela qual você não possa ir vê-lo, se quiser. Ele já voltou a si.
— Voltou? — Karen ainda não se sentia segura a respeito do que estava ouvindo. — Ele disse que queria me ver?
— Sim. — Havia muito controle na voz de Kim, enquanto acrescentou: — Viajo amanhã cedo. Vou embora para a Inglaterra. Deixe-me providenciar a comida. Afinal, nem chegamos a almoçar.
Luke seguiu-a até a cozinha, apoiando a mão contra o batente da porta de um modo que a deixou comovida. — Você vai mesmo embora? — ele perguntou. — Assim, sem mais essa?
— E que mais eu devo fazer? — Olhou para ele, abalada. — Ele não me deixou nenhuma outra escolha. Quer que eu me vá o mais cedo possível. Por falar nisso, é você quem deverá me acompanhar até o aeroporto amanhã, e sairemos daqui de helicóptero.
— Bem, talvez eu não esteja de acordo.
— Não vai adiantar nada. Se você se recusar a me levar ele simplesmente conseguirá com que alguém faça isto por ele. Prefiro ir com você.
Ele a olhou, desamparado. — Eu simplesmente não entendo. Se tivesse acontecido alguma coisa muito séria com o braço dele eu teria esperado por isto, mas não como as coisas estão.
— É muito simples — disse ela. — Dave está cansado de mim e quer romper. O acidente trouxe as coisas à tona um pouco mais cedo, eis tudo. Eu sabia desde o início que não era um arranjo permanente. Dave não está preparando nenhuma surpresa. Fui eu que mudei.
— O que é que você fará quando voltar?
— Não tenho certeza. Aceitarei sua oferta de dinheiro até conseguir encontrar um emprego, acho. Penso que não me resta outra escolha. Mas eu o pagarei até o último centavo — acrescentou com altivez.
Luke esboçou um gesto de exasperação. — Sabe de uma coisa? Você é tão orgulhosa quanto ele, e igualmente teimosa! Aposto que você nunca sequer tentou dizer-lhe como se sente em relação a ele.
— Tentar? — Kim o encarou, e seus olhos verdes brilhavam intensamente. — Luke, ele não quer nem saber! Há uma única coisa na qual ele está interessado, que é se livrar de mim o mais cedo possível. Ele me odeia por ter sido eu quem levou a corrente por debaixo daquela maldita máquina. Acho que ele preferiria morrer esmagado lá a dever o que quer que fosse a uma mulher.
— Então já é tempo de ele modificar suas idéias — foi a resposta brusca, e Luke endireitou o corpo. — Com braço quebrado e tudo, ele vai engolir algumas verdades!
— Não, por favor. — Ela pôs a mão em seu braço, procurando detê-lo. — Deixe isso para lá, ouviu? Por mim.
Fez-se uma pausa e ele sacudiu a cabeça, tenso. — Está certo, se isto significa tanto para você. É melhor eu ir tomar providências para que o helicóptero esteja aqui de manhã. E quanto aos outros dois? Acha que eles vão querer aproveitar e ir junto? Vai levar uns dois dias até que a estrada dê passagem novamente.
— Não tenho certeza. É melhor você lhes perguntar. — Deu-lhe novamente as costas, procurando um cinzeiro. — Fique e tome um café conosco.
Austin ficou contente com a oportunidade de regressar ao litoral, mostrando sem o menor disfarce que já se cansara de tanta aventura. Karen também demonstrou o desejo de gozar dos refinamentos da hospedagem dos Taits. Não achou necessário acrescentar que ela poderia voltar para a mina quando quisesse. A complacência de seu sorriso enfatizava o fato com suficiente clareza. Ficou de pé quando Luke se levantou para ir embora, depois que acabaram de comer, e pediu a Kim que lhe emprestasse o carro a fim de se dirigir até o hospital.
— Acho que devo dar uma olhada em nosso inválido antes de partirmos — disse em tom ligeiro. — Talvez amanhã de manhã não haja tempo. Talvez você não se incomode em me orientar pelo caminho certo, Luke?
— Claro — concordou Luke, enquanto Kim lhe entregava as chaves. — Vamos.
Austin manteve os olhos fixos no prato por alguns momentos, um tanto ruborizado, enquanto os outros se afastavam. Kim sentiu pena dele. Ele tinha sido jogado no meio de uma situação que nem sequer tinha condições de começar a compreender, e a culpa não era sua. Ela podia compreender seu desapontamento e sua incerteza sobre que atitude tomar. Decidiu que a única maneira de desanuviar o ambiente seria expor a situação com toda clareza.
— Sinto muito por você ter sido envolvido em toda esta história, Austin — disse calmamente. — Mas acho melhor você tomar conhecimento do que se passa dentro de uma perspectiva correta. De qualquer modo Dave e eu iríamos nos separar em breve. Nas atuais circunstâncias pareceu mais sensato rompermos agora.
— Você não precisa me explicar nada — ele disse, encarando-a finalmente. — Sei que não sou uma pessoa muito experiente, e não vou fingir que entendo o que se passou entre você e Dave. Mas o que eu percebo é que você está deixando Karen passar por cima de você. Ela me disse a caminho daqui que pretendia fazer com que Dave voltasse com ela, mesmo que fosse pelo prazer de tirá-lo de você. Ela na verdade não gosta dele. De verdade. Sinceramente, não acredito que ela seja capaz de querer alguma coisa ou alguém por mais tempo do que levou para consegui-lo. Ela é muito... egoísta.
Kim deu um sorriso pálido. — E você é uma boa pessoa, Austin. É capaz até de estar certo em relação a Karen, só que ela não foi a causa verdadeira de nossos problemas. A verdade é que simplesmente Dave e eu não combinamos. Seremos muito mais felizes separados. — Propositadamente mudou o tom de voz, tornando-o despreocupado. — E depois de tirar esta pedra do caminho, vamos esquecer o assunto e tomar mais café.
Estavam falando do tipo de vida que Austin levava na Inglaterra quando Karen voltou, depois de algum tempo. Ela de certo modo parecia diferente, pensou Kim, apesar de não poder detectar exatamente como. "Sim, Dave estava muito bem", informou a Kim. Disse isto de uma maneira distraída, como se seus pensamentos estivessem em outro lugar. Austin provavelmente tinha acertado em cheio ao delinear o caráter de Karen, refletiu. Agora que tinha vencido, Karen começava a perder o interesse na conquista. Ela achou que iria se sentir contente pelo fato de que Dave, provavelmente, iria se enredar nas próprias malhas, mas mas isso não aconteceu. Seu único consolo consistia em saber que quando era preciso lidar com as emoções em profundidade ele e Karen faziam um bom par. Nenhum deles se magoava seriamente. Naquele momento este fato chegava a provocar inveja.
Choveu durante a noite toda, amainando somente pela manhã. O céu permaneceu encoberto por uma hora ou mais, e o trovão ribombava à distância; de repente, como que por milagre clareou Quando chegou a hora de Luke vir buscá-los, a lama vermelha da clareira já estava endurecendo novamente, sob os raios de sol implacável. Kim não olhou para trás enquanto o carro subia o morro acima, distanciando-se da casa onde ela vivera durante quase um mês. Isto tudo pertencia a um momento de sua vida que ela ia expulsar de sua mente para sempre — se é que conseguiria. Estava voltando para casa.
O helicóptero já estava esperando por eles na pequena clareira ao lado do portão principal. O coração de Kim disparou quando ela reconheceu o piloto, e foi com certa dificuldade que manteve um sorriso enquanto se aproximavam do aparelho. Ele lançou-lhe um olhar de curiosidade ao ajudá-la a subir e sentar-se a seu lado, mas para grande alívio seu não fez o menor comentário sobre seu encontro anterior. Luke subiu após ela e correu a porta, ajeitando-se no banco traseiro enquanto o motor era ligado. De repente pairavam no ar, voando em direção ao desfiladeiro. O conjunto de edificações e as grandes extensões de terra escavada eram deixados rapidamente para trás, até dar lugar à floresta.
Já voavam havia alguns minutos, quando finalmente Jerry falou.
— Não esperava tê-la como passageira hoje — disse em voz baixa a Kim. — Está de volta, não é mesmo?
— Não — respondeu, consciente de que Karen estava ouvindo, sentada atrás deles. — Não, não estou voltando.
Ele a fitou, notando as olheiras sob seus olhos e a tensão ao redor da boca. — Você não me parece ser daqueles tipos que fogem quando um homem está na pior — ele disse inesperadamente. — Depois do que aconteceu a Dave eu acharia que você gostaria de ficar perto dele.
— Ele somente quebrou o braço — ela retrucou, defendendo-se.
— É mesmo? — Ele parecia surpreendido. — Não foi o que eu ouvi. Um dos rapazes com quem eu conversava há alguns momentos achava que o estado dele não era nada bom. Disse que o assistente do médico tinha lhe contado que ele poderia piorar de repente.
Kim sentou-se muito ereta e o coração disparou. — Ele deve ter entendido mal.
— Talvez. Ele, no entanto, parecia estar bastante seguro do que dizia.
O instinto levou Kim a voltar a cabeça até que seus olhos "se depararam com os de Karen. Esta sustentou o olhar sem pestanejar, mas sem conseguir disfarçar completamente a expressão que passou por seu rosto.
— Você sabia, não é mesmo? — disse Kim com toda calma. — Foi por isso que você estava tão estranha quando voltou para casa ontem à noite. Ele lhe contou a verdade.
— Não foi ele; foi o doutor Selby. — Havia indiferença no tom com que ela falava. — Se você quer mesmo saber a verdade, eu nem cheguei a ver Dave. Não fazia muito sentido. Não tenho a menor intenção de me prender a um inválido.
A crueldade de suas palavras mal se fez notar; foi o que estava por detrás delas que deixou Kim fora de si. — Dave jamais será um inválido — gritou. — Não importa o que acontecer, isto ele jamais será! — Voltou a concentrar-se em seus pensamentos, recusando-se a parar e examinar o que estava a ponto de fazer, sabendo unicamente que teria de fazê-lo. — Jerry, você quer me levar de volta? Por favor. É importante.
Ele manobrou mal ela tinha acabado de completar a frase, dando um giro amplo que os colocou novamente em direção à mina. — Isto vai atrapalhar minha próxima viagem — disse, sorrindo —, mas diabos que a carreguem! Direi que tive de fazer um conserto no motor!
Estavam de regresso à mina em alguns minutos, mas no entanto, para Kim, o percurso de volta pareceu levar um século. Ainda não era nada certo que Dave a queria, mas o próprio fato de que ele obviamente tinha dito ao doutor Selby para divulgar uma informação falsa a respeito de seus ferimentos exigia uma explicação. O seu orgulho talvez fosse o único motivo que ele necessitava para mandá-la embora. Dave era incapaz de encarar a possibilidade de tê-la a seu lado só por uma questão de piedade. E não seria menos difícil convencê-lo de que a piedade não tinha influído no fato de ela voltar. As barreiras que ele levantara duravam há muito tempo, para serem removidas de um dia para outro.
Luke desceu do helicóptero com ela, assim que pousaram, retirando sua mala. Kim despediu-se rapidamente dos dois passageiros e recebeu de Karen em resposta um breve levantar de ombros.
— Boa sorte — disse Austin com sinceridade. — Espero que tudo acabe dando certo.
Kim tocou sua mão e sorriu para o piloto. — Obrigada, Jerry.
— Não há de que — ele respondeu.
O helicóptero já havia decolado no momento em que chegaram até o carro. Kim abanou a mão e viu Austin responder. Logo perderam-se de vista e Luke ligou o motor, subindo pela estrada que levava ao hospital.
— Não vai ser nada fácil — ele disse em voz alta, expressando os pensamentos de Karen. — Ele vai gostar de ver você de volta, porém não admitirá.
— Eu não ligo — ela disse. — Ele pode dizer o que quiser. Desta vez eu fico.
Luke sorriu. — Isto é que é!
O doutor Selby estava na sala de tratamento tirando o conteúdo de sua valise. Olhou para Kim com alguma surpresa, quando ela surgiu na porta, e olhou para o relógio.
— Pensei que você tivesse ido embora — disse. — Não vieram buscá-la?
— Sim. — Kim decidiu que mais tarde haveria tempo para explicações. No momento a única coisa que ela desejava era esclarecer a situação. — É verdade que Dave corre perigo de perder o braço?
A expressão do médico alterou-se. — Quem lhe disse isso? — perguntou.
— Não importa quem foi. Só quero saber se é verdade.
Fez-se uma breve pausa, ele suspirou subitamente e assentiu. — Sim, é verdade; ou pelo menos existe a possibilidade. Mesmo na melhor das hipóteses, é duvidoso que ele consiga se servir apropriadamente do braço. Os nervos foram seccionados. Fiz o que pude, mas... — Deixou o resto no ar. — Não gostei de fazer o que fiz, mas é que ele não queria que você soubesse a verdade. Pessoalmente achava que ele estava errado em esconder o fato de você.
— O senhor contou para Karen, a jovem a quem conheceu na noite passada.
— Também instigado por Dave. Ele me pediu que a detivesse antes que ela pudesse entrar na enfermaria e lhe contasse exatamente o que estava se passando. Disse que era a maneira mais segura que conhecia de livrar-se dela.
— Percebo. — Kim tentou acalmar os nervos. As coisas ainda não tinham chegado ao fim. — Tudo bem, se eu for lá dentro vê-lo? — indagou.
— Como não? — o médico sacudiu a cabeça, preocupado. — Só que eu não arriscaria adivinhar como ele reagirá quando a vir. Duvido de que haja alguém que saiba como trabalha a mente de Dave Nelson!
Kim esperava que houvesse este alguém. O julgamento de Luke era a única coisa em que ela punha toda a sua fé.
Um dos africanos estava a ponto de entrar na enfermaria com uma jarra de café. Kim tirou-a de suas mãos, indicando-lhe que fizesse silêncio, enquanto abria a porta. Dave estava próximo à janela, dando as costas para a porta — Estava vestido e com o braço esquerdo apoiado na tipóia. Não se voltou quando ela entrou, simplesmente indicou com a cabeça a direção da mesa de cabeceira. — Pode deixar aí, sim?
Com o coração aos pulos, Kim aproximou-se e pousou a jarra sobre a mesa de cabeceira. Ao fazer este gesto sua cabeça e braços tornaram-se visíveis para Dave. Ele se voltou rapidamente e durante um momento bastante longo fez-se no quarto silêncio completo, enquanto ele a fitava. A expressão dos olhos cinza alterou-se tão rapidamente que Kim não teve certeza de ter notado alguma mudança. Então, de repente, as barreiras voltaram a levantar-se e foi impossível ler seus pensamentos.
— O helicóptero levantou vôo há vinte minutos — ele disse bruscamente. — Por que é que você não foi?
— Eu fui, sim. — Kim conseguiu não demonstrar o quanto estava tremendo. — Pedi a Jerry que me trouxesse de volta.
— Por quê? — A pergunta foi incisiva.
— Devido a algo que descobri. Algo que Karen confirmou para mim. — Fez uma pausa. — Dave, eu também tenho o direito de saber a verdade. O que você obrigou o doutor Selby a fazer foi injusto, tanto para ele quanto para mim.
A mandíbula dele retesou-se subitamente. — É uma questão de opinião. De qualquer modo, não faz a menor diferença, a não ser que você criou mais problemas ao voltar. Agora vamos ter de chamar novamente Jerry Brice.
— Hoje não dá. Ele está com o tempo todo tomado.
— E daí? A companhia tem outros aparelhos. — Apoiou-se pesadamente de encontro à moldura da janela. — Uma coisa é certa, aqui você não fica. Eu já lhe disse uma vez para ir embora.
— Você tem medo de não poder lidar comigo só com um braço? — ela perguntou com firmeza, e viu seus lábios se comprimirem.
— Claro — disse ele — é isso mesmo. Posso muito bem sentir pena de mim mesmo sem a sua contribuição.
— Oh, não se preocupe, não tenho a menor intenção de sentir pena de você. E por que sentiria? O doutor Selby disse que não é cem por cento certo que você vá sofrer efeitos negativos em relação ao braço e, mesmo que acontecesse o pior, você aprenderia a fazer com um só braço o que muitos homens só conseguiriam fazer com três! O problema com você, Dave Nelson, é que você sempre suspeita dos motivos dos outros. Já lhe passou pela cabeça que eu poderia querer ficar com você por uma razão bem diversa?
Seus lábios se comprimiram. — Tal como?
— Tal como o fato de que eu talvez esteja apaixonada por você — ela disse, comovida. — E não me olhe assim. Acontece que é verdade. Eu não queria amá-lo. Só que... acabou acontecendo.
— Você não conseguiu evitar? — Havia zombaria em sua voz, no sorriso duro que curvava seus lábios. — Você bem que tentou, garota dos olhos verdes, mas eu não sou tão bobo assim. Talvez você se sinta atraída, a despeito de si mesma, mas não confunda este tipo de sentimento com amor. Eu fui apenas o primeiro homem que fez com que você se desse conta de que é uma mulher.
— Você me fez compreender muitas coisas — ela respondeu rapidamente. — Eu vivia dizendo a mim mesma que o odiava, mas era porque eu tinha vergonha de admitir que gostava de você, mesmo porque você vivia me jogando este fato na cara. Gostar faz parte do amor, Dave. Pelo menos para uma mulher é assim... e para o tipo de mulher que eu sou.
Havia dureza nos olhos cinzentos que a estudavam. — Por que esperou até agora para me dizer isso? Por que não disse ontem, ou no dia anterior?
A frase que se seguiu foi dura de ser dita, mas ela o fez quase em seguida. — Porque eu não tinha certeza de seus sentimentos em relação a mim.
— E agora tem?
— Eu... acho que sim. — Esboçou um gesto tímido de apelo, estendendo as mãos para ele. — Dave, fui honesta com você ao preço de meu próprio orgulho. Você não pode pelo menos dar um passo em direção a mim?
Ele deu de ombros com uma frieza deliberada. — Desculpe. Eu não me sinto muito atraído pelos finais felizes.
Kim contemplou aqueles traços duros, que não se alteravam jamais, e sentiu-se tomada por uma onda de raiva que fez com que as palavras irrompessem de seus lábios sem maior reflexão. — Pois então você é um tolo! — lançou-lhe ao rosto. — E eu também, por esperar que seria capaz de passar por cima de suas barreiras! E sabe também o que você é, Dave? Você é um covarde! Você tem tanto pavor de permitir que alguém se aproxime de você, que prefere morrer a agir pelo menos uma vez como um ser humano! Bem, não tenho certeza de que quero um covarde para marido. Eu poderia ter pensado o pior de você quando nos encontramos pela primeira vez, mas nunca me passou pela cabeça que você não tinha coragem. Passe o resto de sua vida com medo de ser ferido, se quiser. Vou encontrar um homem que tenha disposição suficiente para correr alguns riscos!
Meio cega pelas lágrimas, dirigiu-se cambaleando para a porta, estendendo desajeitadamente a mão para encontrar a maçaneta. Não o tinha ouvido segui-la, mas subitamente sua mão apoiou-se em seu ombro, obrigando-a a dar a volta e fazendo com que se apoiasse contra o batente. Seu rosto estava pálido e seus olhos brilhavam.
— Sou capaz de matar você por dizer uma coisa dessas — falou entre dentes. — Sua atrevida... — A mão dele segurou a garganta de Kim selvagemente, machucando-a, enquanto levantava seu rosto. De repente seus lábios apoiaram-se nos dela, solicitando-os brutalmente, sem encontrar nenhuma resistência e clamando por possuí-los. Kim não esboçou a menor tentativa de se opor. Em vez disso correspondeu, retribuindo tudo que podia, até que finalmente a dureza de seus lábios começou a abrandar-se. Ele imprimiu a seu beijo mais ternura, a tensão de sua mão afrouxou e ele a atraiu para si. Ela aferrou-se a ele desesperadamente, com o rosto ainda banhado de lágrimas, sem pensar no que quer que fosse, a não ser naquele momento. Quando ele finalmente levantou a cabeça ela apoiou o rosto em seu peito, sentindo a batida forte de seu coração, o calor de seu hálito em seus cabelos.
— Eu o amo — ela disse. — Você tem de acreditar em mim, Dave. Eu o amo!
— Eu quero acreditar. — Pela primeira vez ela conseguiu detectar a incerteza em sua voz. — Não consigo dizer o quanto eu quero. Nestas últimas semanas, desde que você apareceu, eu me senti... eu me senti como alguém que tem um novo motivo para viver. Não vou fingir, dizendo que desde o começo tinha apenas boas intenções a seu respeito. Eu a desejava, e usei de todas as vantagens de que dispunha para ter você, porém nunca pensei no que poderia acontecer, depois que a levasse de volta para a Inglaterra.
— Você pensava que até lá já estaria farto de mim? — murmurou.
— Acho que sim, se é que eu realmente pensava no assunto. — O gesto da mão dele em seus cabelos era delicado, mas ainda assim havia nele uma certa dureza. — Você era diferente de todas as mulheres que eu conheci. Sua lealdade em relação a Chris, por exemplo, mesmo depois que você soube o que tinha acontecido. E o modo como você encarou a coisa, quando ele lhe mostrou do que era realmente capaz. Você não derramou uma lágrima enquanto não saiu da casa dele. Depois disso não parei de levar em conta nada que não fosse meus interesses. Sabia que não havia nenhuma outra maneira de chegar aonde queria, portanto vim com a idéia de lhe propor um casamento temporário, só que não levei em conta esta sua natureza tão confiante. — Fez uma pausa, afastou-a um pouco, e seus olhos percorriam seu rosto. — Você acreditava realmente que um homem poderia ser tão altruísta?
— Não sei. — Esboçou um leve sorriso. — Talvez eu quisesse me convencer. Talvez fosse apenas uma desculpa, como você mesmo disse.
— Disse uma porção de coisas que preferiria esquecer. — Seu sorriso era desajeitado. — Só Deus sabe como é que você pode ter acabado por sentir alguma coisa a meu respeito, depois do modo como a tratei, mas é que a sua indiferença foi como acenar uma bandeira vermelha para um touro. Naquela noite em que você se ofereceu a mim em troca da segurança de Chris eu podia ter matado os dois!
— Mas você sabia o que eu sentia de verdade quando você fez amor comigo — ela observou. — Você mesmo me disse que eu estava sendo teimosa.
— Claro que sim. Uma coisa era sentir que as barreiras estavam lá devido à sua determinação de não se entregar a mim, outra coisa era saber que elas tinham caído para pagar uma dívida. Foi então que fiquei sabendo que não seria capaz de me afastar de você quando chegasse o momento. Sugeri a viagem ao Sul esperando que em algum momento podíamos chegar a uma espécie de compreensão e começarmos tudo de novo.
Kim contemplou o braço machucado e disse suavemente: — Daí aconteceu o acidente e você imediatamente se viu como um encargo que mulher alguma assumiria. Oh, Dave, você devia estar cego por não ter compreendido o que estava me fazendo quando me disse para ir embora. — Fitou novamente os olhos cinza. — Agora você acredita, não é mesmo?
— Sim — disse ele. — Sim, acredito. Só que você vai ter muito trabalho para que eu continue me convencendo. Estou lhe avisando: vão ser necessários milhares de beijos como aquele que você me deu agora há pouco, e daí por diante... — Dirigiu o olhar para o braço e o sorriso apagou-se um pouco... — daí por diante vamos encarar os fatos como eles vierem. Três braços entre duas pessoas até que parece razoável.
— Quatro braços parecem ainda melhor —, ela retrucou prontamente. — A opinião do doutor Selby é uma só, e ele é o primeiro a reconhecer que não é infalível. Há cirurgiões na Inglaterra melhor qualificados para dar a decisão final, e mesmo então muita coisa vai depender provavelmente de sua própria força de vontade — e só Deus sabe que isto não lhe falta!
Dave a contemplava com expressão atenta, como se pretendesse imprimir cada traço de seu rosto na memória. — E se acontecer o pior?
— Então você terá de usar um braço mecânico —, ela respondeu. — E eu terei de me lembrar, para saber qual deles eu mordo!
Sua risada saiu livre, do fundo do coração, viril, sem a menor restrição. Passando o braço pela cintura de Kim, levantou-a do chão até a altura de sua boca, mantendo-a naquela posição sem o menor esforço. — Lembre-me um dia de lhe dizer que eu a amo, garota dos olhos verdes — disse. — Mas agora vamos nos concentrar apenas nisto!
Kay Thorpe
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