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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Além do Planeta Silencioso / C. S. Lewis
Além do Planeta Silencioso / C. S. Lewis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Além do Planeta Silencioso

 

Mal tinham acabado de cair as últimas gotas de chuva, o pedestre enfiou seu mapa no bolso, ajeitou sua mochila mais confortavelmente nos ombros cansados e saiu de debaixo do enorme castanheiro, sob o qual se abrigara, para o meio da estrada. Um crepúsculo de um amarelo intenso derramava-se, através de uma brecha nas nuvens, na direção do oeste, mas, bem em frente, sobre as montanhas, o céu estava cor de chumbo. Caíam gotas d’água de todas as árvores e a estrada brilhava como um rio. O pedestre não perdeu tempo admirando a paisagem, pondo-se logo a caminho, com o passo firme de um bom andarilho que concluiu precisar caminhar bem mais do que pretendia. E realmente era este o seu caso. Se tivesse olhado para trás, o que não fez, teria visto a torre do Much Nadderby, e ao vê-la talvez tivesse praguejado contra a falta de hospitalidade do pequeno hotel onde lhe tinham recusado uma cama, apesar de estar vazio. A direção do hotel tinha mudado desde a última excursão dele por aqueles lados. O simpático dono de antigamente havia sido substituído por alguém, a quem o porteiro se referira como “a dona”, e que provavelmente devia pertencer a escola ortodoxa dos donos de hotéis que consideram os hóspedes como uma amolação. O lugarejo mais próximo era Sterk, perto das montanhas e a umas seis milhas de distância. Segundo o mapa, havia uma estalagem em Sterk. O caminhante tinha experiência bastante para não ficar com grandes esperanças de encontrá-la realmente, mas não parecia ter mais nada nas redondezas.

Andava rapidamente e com um ar determinado, sem olhar muito a sua volta, como se estivesse tentando encurtar o caminho, concentrando-se em pensamentos interessantes. Era alto, mas tinha os ombros um pouco curvados: devia ter entre trinta e cinco e quarenta anos e se vestia com o descaso especial dos intelectuais em férias. Podia-se tomá-lo facilmente, a primeira vista, por um médico ou um professor, apesar de não ter o ar de homem-do-mundo do primeiro ou a indefinível leveza do segundo. Era, na verdade, um filólogo, membro de uma das escolas de Cambridge, e se chamava Ransom.

Quando saiu de Nadderby tinha a esperança de encontrar alguma fazenda hospitaleira onde pudesse se abrigar por uma noite, para não ter que andar até Sterk. Mas a região parecia ser quase totalmente desabitada, a terra era triste e só se viam plantações de couve e rabanete. Não atraia visitantes como as terras mais ricas de Nadderby e era separada, pelas montanhas, da área industria! além de Sterk. Quando a tarde caiu e cessou o barulho dos passarinhos, o silêncio se fez ainda maior do que de hábito nas regiões campestres da Inglaterra. O barulho de seus próprios pés batendo na estrada tornou-se irritante.

Já havia andado cerca de duas milhas quando avistou uma luz adiante. Estava perto das montanhas, era quase noite, e teve esperança de que a luz fosse de uma fazenda grande; mas, ao chegar perto, verificou que provinha de uma pequena casa de tijolo. Uma mulher precipitou-se de uma porta, quando se aproximou, e quase esbarrou com ele.

– Desculpe, disse – pensei que fosse o Harry.

Ransom perguntou se havia algum lugar mais próximo do que Sterk onde pudesse encontrar um leito.

– Não senhor, respondeu a mulher – não há nada mais próximo do que Sterk. Acredito que o senhor possa encontrar alojamento em Nadderby.

A mulher falava com uma voz humilde e preocupada, como se estivesse pensando em outra coisa. Ransom explicou que já havia tentado achar alguma coisa em Nadderby sem resultado.

– Então não sei de mais nada, replicou ela. – Não existe quase nenhuma casa antes de Sterk do tipo que o senhor procura. Só existe a “Casa Grande” onde o Harry trabalha e pensei que o senhor estivesse vindo de lá e por isto saí quando ouvi seus passos, pensando que fosse ele. Ele já devia ter chegado a esta hora.

– “Casa Grande”? disse Ransom. – O que é isto? Uma fazenda? Será que eles me hospedariam?

– Ah! Isto não, senhor. Depois que D. Alice morreu não tem mais ninguém lá, exceto o Professor e o moço de Londres. Eles não o hospedariam não senhor. Não têm mais empregados, só o Harry para tomar conta da fornalha e ele nem entra na casa.

– Como se chama este Professor? perguntou Ransom com uma leve esperança.

– Não sei não senhor, respondeu a mulher. O outro moço chama-se Sr. Devine, e o Harry diz que o outro é um Professor. O Harry não sabe quase nada, é um pouco bobo e é por isto que não gosto que chegue em casa tão tarde. Prometeram que o mandariam para casa todo dia às seis horas e ele trabalha bastante.

A monotonia da voz da mulher e o seu vocabulário limitado não demonstravam muita emoção, mas Ransom estava perto bastante para perceber que ela tremia e que estava quase chorando. Pensou que devia ir na casa daquele Professor misterioso pedir a ele que mandasse o rapaz de volta; uma fração de segundo depois ocorreu-lhe a idéia de que, uma vez dentro da casa, entre os seus moradores, seria razoável aceitarem o pedido de hospedagem por uma noite. Decidiu pôr em prática sua idéia e disse a mulher o que pretendia fazer.

– Eu agradeço muito, disse ela. – E se o senhor pudesse ter a bondade de levá-lo até o portão seria muito bom, porque ele tem tanto medo do Professor que só vem embora quando são eles mesmos que mandam.

Ransom acalmou a mulher e despediu-se depois de saber que a “Casa Grande” ficava distante uns cinco minutos, do lado esquerdo da estrada. Seus músculos se endureceram quando ficou parado e saiu andando com uma certa dificuldade.

Não havia nenhuma luz do lado esquerdo; só se viam os campos, planos, e uma massa escura que parecia um matagal. Levou mais de cinco minutos para chegar lá e só então viu que tinha se enganado. Estava separado da estrada por uma boa cerca e na cerca havia um portão branco. O que lhe parecera um matagal era uma fila de árvores bem plantadas, através das quais podia se ver o céu. Achou então que aquele era certamente o portão da “Casa Grande” e que atrás daquelas árvores havia uma casa e um jardim. Tentou abrir o portão mas viu que estava trancado. Ficou parado um instante, indeciso, desanimado pelo silêncio e pela escuridão reinante. Seu primeiro impulso, apesar de seu cansaço, foi continuar em direção a Sterk, mas não era possível, pois havia feito uma promessa a mulher. Sabia que podia procurar uma passagem na cerca e penetrar na propriedade mas não queria fazer isto. Faria um papel de idiota entrando a força na casa de um excêntrico aposentado, que mantém os portões trancados no campo, e dando como desculpa uma história tola, de uma mãe histérica em prantos, porque seu filho débil mental fora retido mais meia hora em seu trabalho! De qualquer maneira, porém, era claro que tinha que entrar e como não se pode passar por baixo de uma cerca com uma mochila nas costas, retirou-a dos ombros e a atirou para o lado de dentro do portão. Assim que o fez tevê a impressão de que só agora havia realmente tomado uma decisão final, pois era obrigado a passar a cerca nem que fosse só para recuperar sua mochila. Picou aborrecido com a mulher e consigo mesmo, mas deitasse no chão e começou a se arrastar.

A operação foi mais difícil do que calculava e levou alguns minutos para chegar do outro lado e pôr-se de pé, todo arranhado pelos espinhos e pedras. Foi até o portão, apanhou a mochila e então, pela primeira vez, virou-se para olhar bem a sua volta. Estava mais claro no caminho do que debaixo das árvores e podia ver com facilidade uma casa grande de pedra separada dele por um gramado mal cuidado. O caminho se dividia em dois, a parte da direita desviava-se e levava até a porta principal, e a da esquerda continuava em frente, indo ter provavelmente na parte de serviço. Notou que esta última parte do caminho estava cheia de sulcos profundos, agora cheios de água, como se por lá trafegassem caminhões pesados. A outra, que ele havia tomado para chegar na casa, estava coberta de musgo. Não se via nenhuma luz; algumas janelas tinham as venezianas fechadas, outras entreabertas, mas em nenhuma delas havia sinal de vida. A única prova de que estava ocupada era uma coluna de fumaça, que aparecia por trás da casa e cuja densidade dava a impressão de vir de uma chaminé de fábrica, ou, pelo menos, de uma lavanderia, e não de uma simples cozinha. Parecia muito difícil que um forasteiro fosse convidado a passar a noite na “Casa Grande”, e Ransom, que já tinha perdido muito tempo para chegar até lá, teria apesar disto feito meia-volta se não fosse pela infeliz promessa que àquela pobre mulher.

Subiu os três degraus que levavam até a varanda, ficou esperando. Passado algum tempo tocou outra vez e sentou-se num banco de madeira que havia num dos lados da varanda. Ficou sentado lá tanto tempo que, a despeito da noite estar quente e cheia de estrelas, o suor começou a secar em sua face e principiou a sentir um pouco de frio. Estava se sentindo muito cansado e talvez tenha sido este o motivo que o impediu de se levantar e tocar a campainha uma terceira vez. Além disto havia ainda a tranqüilidade do jardim, a beleza do céu de verão e, de vez em quando, o pio de uma coruja em algum lugar próximo, que servia para ressaltar o silêncio e a paz que reinavam no local. Já estava sendo invadido por uma certa moleza quando ouviu um barulho estranho, um ruído irregular que lembrava vagamente um jogo de futebol. Levantou-se. O barulho tornou-se mais claro, não havia dúvida que pessoas calçando botas estavam lutando ou tomando parte em algum jogo. Gritavam, ele não podia distinguir as palavras, embora os sons parecessem vir de homens zangados e sem fôlego. Ransom não queria de maneira nenhuma se meter numa aventura, mas já se dispunha a investigar o que estava ocorrendo,, quando ouviu um grito mais alto e ouviu as palavras – “Me soltem, me soltem” e, logo depois, – “Não quero entrar lá. Quero ir pra casa!”

Atirou a mochila no chão e correu pela escada abaixo, para a parte de trás da casa, tão depressa quanto a dormência e o cansaço que o haviam invadido lhe permitiram. Os sulcos e as poças do caminho enlameado o levaram ao que parecia ser um pátio, mas um pátio cercado por diversos alpendres. Teve uma visão rápida de uma chaminé alta, uma porta baixa cheia de brasas e uma forma redonda e enorme que lhe pareceu a cúpula de um pequeno observatório: depois, isto foi apagado de sua mente pelos vultos de três homens que lutavam tão perto que quase colidiu com eles. Desde o primeiro momento, Ransom não teve dúvidas de que o vulto central que os outros dois homens pareciam dominar, a despeito de seus esforços, era o Harry de que lhe falara a mulher. Gostaria de ter gritado numa voz impressionante – Que estão fazendo com este rapaz? mas as palavras que disse, numa voz muito pouco assustadora, foram – Ei! Que é isto?

Os três lutadores se separaram imediatamente, o rapaz choramingava.

– Com mil demônios, disse o homem mais alto e mais forte, quem é o senhor e o que está fazendo aqui? Sua voz tinha todas as qualidades impressionantes que lamentavelmente faltavam a Ransom.

– Estou fazendo uma excursão a pé, respondeu Ransom, bastante irritado. Não sei o que estão fazendo com este rapaz, mas...

– Devíamos ter um cachorro nesta casa, disse o homem mais forte ao seu companheiro, sem prestar a menor atenção a Ransom.

Este último começou novamente a falar.

– Olhem aqui, disse. Não sei o que estão fazendo com este rapaz mas é muito tarde e já deviam tê-lo mandado para casa há muito tempo. Não tenho a menor intenção de me meter nas suas vidas, mas...

– Quem é você? berrou o homem forte.

– Meu nome é Ransom, se é isto o que deseja saber. E...

– Não diga! falou o homem magro, o Ransom que freqüentou a escola de Wedenshaw?

– Estive na escola de Wedenshaw, respondeu Ransom.

– Tive a impressão de conhecê-lo assim que começou a falar, disse o homem magro. Eu sou o Devine, não se lembra de mim?

– Naturalmente que sim! respondeu Ransom apertando a mão do outro com a cordialidade um tanto forçada que é de praxe nestes encontros. Na realidade Devine era um dos que menos gostava no seu tempo de escola.

– Comovente, não acha? comentou Devine. Curioso nos encontrarmos aqui nas profundezas de Sterk e Nadderby. Devíamos sentir um nó na garganta e recordarmos nossos velhos tempos de escola. Você ainda não conhece Weston? Devine apontou para seu pesado companheiro. – O “célebre Weston”, continuou, – você sabe, o grande físico. Amigo íntimo de Einstein e Schrodinger. Weston, deixe que lhe apresente um antigo colega de escola, Ransom. Dr. Elwin Ransom. O “célebre Ransom”, e você sabe, o grande filólogo. Amigo íntimo de Jespersen e...

– Não sei de nada disto, respondeu Weston, que ainda segurava o infeliz Harry pelo colarinho. E se você acha que vou dizer que estou muito contente de conhecer esta pessoa que penetrou em meu jardim, vai ficar muito desiludido. Não me interessa a mínima o colégio em que possa ter estado ou as tolices em que gasta dinheiro que deveria ser empregado em pesquisas científicas. O que eu quero saber é o que está fazendo aqui e depois disto quero que desapareça.

– Não seja tolo, Weston, disse Devine num tom mais sério. – Seu aparecimento veio muito a propósito. Não ligue para os modos de Weston, Ransom. Um coração generoso se esconde atrás deste rude exterior. Você naturalmente vai entrar para tomar qualquer coisa conosco, não é?

– Você é muito gentil, respondeu Ransom. – Mas a respeito do rapaz...

– Meio louco, disse Devine em voz baixa, puxando Ransom para o lado. Trabalha como um mouro, mas de vez em quando tem estes acessos. Estávamos só tentando levá-lo para o banheiro para que se acalmasse um pouco e voltasse ao normal. Não podemos mandá-lo para casa neste estado, estávamos tentando dominá-lo só por bondade. Você pode conduzi-lo para casa daqui a pouco, se quiser, e depois volte para cá para passar a noite aqui em casa.

Ransom estava perplexo. Havia qualquer coisa de muito suspeito e estranho naquela cena, que lhe deu a impressão de ter descoberto alguma coisa criminosa, mas ao mesmo tempo tinha aquela profunda e irracional convicção, própria de sua época e de seu meio, de que este tipo de coisas nunca atravessam o caminho de pessoas comuns, exceto em romances, e muito menos ligadas a professores e velhos colegas de escola. E ainda mesmo que estivessem maltratando o rapaz, não podia tirá-lo de lá à força.

Enquanto estes pensamentos lhe passavam pela cabeça, Devine falava com Weston em voz baixa, mas não mais baixo do que o tom em que se espera que uma pessoa converse sobre as providências, que deverão ser tomadas para hospedar uma pessoa, em frente ao convidado. A conversa terminou com um grunhido de assentimento de Weston. Ransom, além dos outros problemas que já tinha, via-se agora enfrentando uma situação que o constrangia. Virou-se para dizer qualquer coisa, mas Weston falava com o rapaz.

– Você já deu bastante amolação por uma noite, Harry, dizia ele. Num país que tivesse um governo adequado sei muito bem o que eu faria com você. Cale esta boca e pare de choramingar. Se você não quiser ir ao banheiro se lavar não precisa.

– Não era o banheiro, soluçou o débil mental, – você sabe que não era. Não quero entrar naquela coisa nunca mais.

– Ele está se referindo ao laboratório, interrompeu Uma vez entrou lá e ficou trancado algumas horas por acidente. Desde então ficou apavorado. Voltou-se para o rapaz: – Olha aqui Harry, disse. Este senhor vai acompanhá-lo a sua casa logo que descansar um pouco. Se você entrar na sala de espera e ficar sentado quietinho, dou a você uma coisa de que você gosta muito.

Imitou o barulho de uma rolha saindo de uma garrafa. Ransom lembrou-se que desde os tempos de escola Devine já fazia aquele ruído. Ao ouvi-lo, Harry deu uma gargalhada de satisfação.

– Traga-o para dentro, disse Weston e foi andando na direção da casa. Ransom ficou meio hesitante, mas Devine garantiu-lhe que Weston teria o maior prazer em que ele fosse. A mentira era grande, mas Ransom estava com tanta vontade de beber qualquer coisa e descansar um pouco que pôs seus escrúpulos sociais de lado. Entrou na casa atrás de Devine e Harry sentou-se numa poltrona para esperar a volta do primeiro, que fora buscar uns refrigerantes.

 

A sala aonde o tinham conduzido era uma mistura de luxo e pobreza. As portinholas das janelas estavam fechadas e não havia cortinas nem tapetes e o chão estava cheio de caixotes, jornais e botas; nas paredes viam-se as manchas deixadas pelos quadros e móveis dos moradores anteriores. Por outro lado, as duas únicas poltronas eram da melhor qualidade e, na desordem que cobria as mesas, charutos, restos de ostras e garrafas vazias de champagne estavam misturados com latas de leite condensado, latas vazias de sardinhas, louça barata, pedaços de pão, xícaras com restos de chá e pontas de cigarros.

Os donos da casa estavam custando muito a voltar e Ransom começou a pensar em Devine. Sentia por ele a espécie de aversão que se sente por alguém a quem se admirou na adolescência por um curto período logo ultrapassado. Devine tinha aprendido alguns meses antes dos outros aquela espécie de humor que consiste numa paródia perpétua dos clichês sentimentais e idealísticos das pessoas mais velhas. Durante algumas semanas suas referências ao “nosso Segundo Lar”, “nossos Nobres Ideais”, “o Bem da Humanidade”, etc, tinham encantado e divertido a todos, inclusive Ransom. Mas já antes de terminarem o curso em Wedenhaw, Ransom achava Devine muito cacete e em Cambridge procurava evitá-lo, admirando-se, a distância, de que alguém tão vulgar pudesse fazer tanto sucesso. Depois veio o mistério de ter sido conferida a Devine a bolsa de estudos de Leicester e o mistério ainda maior de sua fortuna crescente. Há muito que saíra de Cambridge para ir morar em Londres e parecia ter posição na cidade. De vez em quando ouvia-se falar nele e em geral o informante terminava dizendo: “Um sujeito muito inteligente, o Devine, à sua maneira”, ou então observando: “Para mim é um mistério como aquele homem chegou aonde está”. Pelo que Ransom pôde observar durante a conversa que tiveram no pátio, seu antigo colega de escola havia mudado muito pouco.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo abrir de uma porta. Devine entrou sozinho carregando uma bandeja com uma garrafa de uísque e uns copos.

– Weston está procurando alguma coisa para se comer, disse, colocando a bandeja no chão, perto da poltrona de Ransom e começando a abrir a garrafa. Ransom, que já estava com muita sede, observou que seu hospedeiro era uma destas pessoas que param o que estão fazendo quando começam a falar. Devine começou a tirar o papel prateado que cobria o gargalo com a ponta do saca-rolhas, e aí parou para perguntar:

– Como é que você veio parar por estes lados?

– Estou fazendo uma excursão a pé, respondeu Ransom; a noite passada dormi em Stoke Underwood e pretendia passar esta em Nadderby, porém eles não quiseram me hospedar e por isto ia a caminho de Sterk.

– Puxa! exclamou Devine, ainda com o saca-rolhas na mão. Você ganha dinheiro para fazer isto ou é masoquismo puro?

– Para mim é um divertimento, naturalmente, respondeu Ransom, olhando fixo para a garrafa ainda fechada.

– A atração disto pode ser explicada aos não iniciados? perguntou Devine, lembrando-se do que começara a fazer o bastante para arrancar mais um pedacinho do papel prateado.

– Não sei bem; eu, por exemplo, gosto de andar simplesmente por andar.

– Puxa! Você deve ter adorado o exército então!

– Não, nada disto. É justamente o contrário do exército. Quando se está no exército não se fica sozinho nem um segundo e não se pode escolher para onde vai e nem mesmo em que lado da estrada se vai marchar. Numa excursão a pé fica-se completamente livre, pára-se ou anda-se conforme a vontade. Pelo menos durante este tempo não precisamos nos preocupar com ninguém e só temos que consultar nossos próprios desejos.

– Até que uma noite encontra-se um telegrama nos esperando no hotel, dizendo “Volte imediatamente”, respondeu Devine, retirando finalmente o papel prateado da garrafa.

– Só se fizermos a besteira de deixar uma lista dos hotéis onde pretendemos parar. A pior coisa que poderia me acontecer seria ouvir uma voz no rádio dizendo: “Pedimos ao Dr. Elwin Ransom, que acreditamos encontrar-se no momento andando pela região central do país”...

– Estou começando a compreender a idéia, disse Define, parando bem. no meio do ato de tirar a rolha. Isto não poderia ser feito se você estivesse ligado a negócios. Você tem uma sorte! Mas será que você pode mesmo simplesmente desaparecer assim, desta maneira? Você não tem mulher, nem filhos, nem pais idosos ou qualquer ligação deste gênero?

– Só tenho uma irmã casada que mora na Índia. E depois sou professor de universidade e um professor durante as férias não faz falta nenhuma como você deve se lembrar. A universidade não sabe onde ele está e nem se Interessa por isto.

Finalmente a rolha saiu da garrafa com um barulho de reanimar os corações.

– Diga quanto chega, disse Devine para Ransom que estendera seu copo. Mas deve haver qualquer coisa que você se esqueceu de mencionar. Será que ninguém sabe mesmo onde você está ou quando deve voltar e nem como entrar em contato com você?

Ransom estava sacudindo a cabeça para dizer que esta era mesmo a verdade, quando Devine, que tinha apanhado a garrafa de sifão, disse com irritação:

– Infelizmente está vazia. Você se incomoda de tomar o uísque com água? Vou buscá-la na cozinha. Quanto você quer?

– Encha o copo por favor, respondeu Ransom. Alguns minutos depois Devine voltou e entregou a Ransom o drinque tão longamente desejado. Este último observou, após beber meio copo com um ar de satisfação, que a originalidade de Devine em escolher aquele lugar para morar era tão grande quanto a sua em escolher aquele tipo de férias.

– Realmente, disse Devine. – Mas se você conhecesse Weston também chegaria a conclusão de que é mais simples ir para onde ele quer do que discutir o assunto. Ele é o que se poderia chamar um colega de forte personalidade.

– Colega? perguntou Ransom.

– De um certo modo. Devine olhou para a porta, puxou sua cadeira para perto de Ransom e continuou num tom mais confidencial. – Ele tem seus bons pontos. Cá entre nós, investi algum dinheiro em algumas das experiências que está fazendo. Tudo é feito com um fim nobre, naturalmente – a marcha do progresso, o bem da humanidade e assim por diante, mas tem também o lado industrial.

Enquanto Devine falava foi acontecendo uma coisa esquisita com Ransom. No começo teve a impressão de que as palavras de Devine não faziam sentido. Parecia que estava dizendo que era industrial por todos os lados mas que nunca achara uma experiência que lhe servisse em, Londres. Depois percebeu que Devine não era ininteligível mas sim inaudível, o que não era de se estranhar, pois estava tão distante – mais ou menos duas milhas, bem visível porém, assim como se o estivesse observando com o lado errado de um telescópio.

Naquela distância enorme, sentado na sua cadeirinha, parecia estar olhando fixamente para Ransom com uma expressão nova em sua face. O olhar começou a incomodar o visitante, que tentou mudar a posição de sua cadeira, mas percebeu que havia perdido o controle de seu corpo. Ele se sentia muito confortável, mas tinha a impressão de que suas pernas e braços estavam amarrados na cadeira e sua cabeça estava segura numa prensa, acolchoada, mas que a mantinha firme num lugar. Não tinha medo, apesar de saber que devia senti-lo e que breve o sentiria. E pouco a pouco o quarto foi desaparecendo de sua vista.

Ransom nunca teve certeza se o que se seguiu teve alguma coisa que ver com os acontecimentos transcritos em seu livro ou se foi simplesmente um sonho. Pareceu-lhe que juntamente com Weston e Devine estava num pequeno Jardim cercado por um muro. O jardim era claro e ensolarado mas acima do muro não se via nada senão a escuridão. Estavam tentando escalar o muro e Weston pediu que o suspendessem. Ransom insistia para que ele não pulasse por causa da escuridão que havia do outro lado, mas Weston estava decidido a fazê-lo e os três iniciaram a escalada. Ransom foi o último. Ficou sentado, a cavalo, no alto do muro, em cima de seu casaco por causa dos cacos de vidro. Os outros dois já tinham descido, dentro da escuridão, mas antes que ele os seguisse abriu-se uma porta – que nenhum deles tinha notado – para dentro do jardim e as pessoas mais estranhas, que já vira, entraram no jardim, trazendo Weston e Devine de volta. Deixaram-nos no jardim e voltaram para a escuridão trancando a porta ao sair. Ransom não conseguiu descer do muro, continuou sentado lá, não tinha medo, mas não se sentia bem porque sua perna direita, que estava do lado de fora, estava muito escura e a esquerda muito clara. – Minha perna vai cair se ficar muito mais escura, dissera. Depois olhou lá para baixo, na escuridão, e perguntou: – Quem são vocês? e as pessoas estranhas ainda deviam estar lá, porque todas responderam: – Hoo – Hoo – Hoo?, como se fossem corujas.

Depois começou a perceber que sua perna não estava escura mas, sim, fria e dormente, porque a outra estava sobre ela há muito tempo; percebeu também que estava sentado numa poltrona em um quarto iluminado. Escutou uma conversa perto dele e compreendeu que aquela conversa já estava se fazendo há algum tempo. Sua cabeça estava relativamente clara. Chegou a conclusão de que tinham lhe dado alguma droga ou estava hipnotizado, ou talvez as duas coisas. Sentiu que estava recuperando o controle de seu próprio corpo apesar de estar bastante fraco. Voltou toda sua atenção para a conversa sem tentar se mexer.

– Estou ficando farto disto, Weston, disse Devine, – especialmente porque é o meu dinheiro que estamos arriscando. Garanto a você que ele serve tão bem quanto o rapaz, e em alguns aspectos até melhor. Só que ele vai voltar a si a qualquer momento e temos que colocá-lo a bordo logo. Já devíamos ter feito isto uma hora atrás.

– O rapaz era o ideal, respondeu Weston de mau humor. Incapaz de ser útil para a humanidade, certamente iria transmitir idiotia. Ele era a espécie de rapaz que, numa comunidade civilizada, seria automaticamente entregue a um laboratório do governo para fins experimentais.

– Realmente, mas na Inglaterra ele é a espécie de rapaz por quem a Scotland Yard se interessaria, enquanto que deste aqui ninguém vai sentir falta durante alguns meses; e, quando sentirem, não saberão onde estava quando desapareceu. Veio sozinho, não deixou endereço, não tem família e além do mais meteu-se nisto por sua própria conta e risco.

– É, mas tenho que confessar que não estou gostando nada disto, afinal ele é humano. O rapaz era quase uma – uma preparação. Afinal ele é apenas um indivíduo, provavelmente um indivíduo inútil e nós também estamos arriscando nossas próprias vidas. A causa merece.

– Pelo amor de Deus, não comece aquela lenga lenga outra vez, não temos tempo para isto!

– Acho que ele daria seu consentimento se conseguíssemos fazer com que ele compreendesse, disse Weston.

– Pegue nos pés dele que eu pego na cabeça, disse Devine com impaciência.

– Acho que está voltando a si, observou Weston, – é melhor dar-lhe outra dose. Não podemos partir até que venha a luz do sol e será muito desagradável que ele fique se debatendo lá dentro durante umas três horas e tanto. É melhor que continue dormindo bastante tempo ainda.

– Tem razão. Tome conta dele enquanto vou lá em cima buscar mais uma dose.

Devine saiu da sala. Ransom viu através de suas pálpebras semi-cerradas que Weston estava de pé ao seu lado. Não sabia se conseguiria fazer com que seu corpo obedecesse a sua vontade, mas de qualquer maneira tinha que fazer uma tentativa de escapar. Assim que a porta se fechou, atirou-se com toda força contra as pernas de Weston. Este caiu para a frente sobre a cadeira e Ransom, afastando-o com um grande esforço, levantou-se e correu para a sala de entrada. Estava muito fraco e caiu, mas seu pavor era tão grande que, em alguns segundos, já tinha se levantado e achado a porta de saída, que procurava destrancar desesperadamente. A escuridão e o tremor de suas mãos estavam contra ele; antes que conseguisse abrir a porta ouviu o barulho de passos atrás dele. Foi agarrado pelos ombros e pelos joelhos. Dando pontapés, contorcendo-se e berrando com toda a energia, numa leve esperança de socorro, conseguiu prolongar a luta com uma violência de que não se julgava capaz. Durante um glorioso segundo a porta se abriu, sentiu o ar da noite em sua face, viu as estrelas no céu e até mesmo sua mochila na varanda. Depois, deram-lhe um forte golpe na cabeça e perdeu a consciência. A última coisa de que se lembrava era a pressão de mãos fortes puxando-o para dentro do corredor escuro e o som de uma porta se fechando.

 

Quando Ransom voltou a si, pareceu-lhe que estava numa cama, num quarto escuro. Estava com uma dor de cabeça muito forte e, além disto, sentia uma moleza geral, o que lhe fez perder a coragem de tentar se levantar para verificar exatamente onde se encontrava. Passou a mão na testa, verificou que suava bastante e achou que aquele quarto (se é que era um quarto) era quente. Tocou a parede do lado direito da cama e sentir que estava quentíssima. Passou sua mão para cima e para baixo do outro lado, onde estava vazio, e notou que o ar era mais fresco; aparentemente, o calor vinha da parede. Passou a mão no rosto e sentiu um machucado acima do olho direito. Lembrou-se então da luta que tivera com Weston e Devine e concluiu que o tinham trancado num quarto junto da fornalha que tinha do lado de fora. Ao mesmo tempo olhou para cima para ver de onde vinha a luz fraca que lhe permitira ver os movimentos de suas próprias mãos e reconheceu a luz do céu. Logo acima de sua cabeça havia uma vigia – um quadrado de céu cheio de estrelas. Teve a impressão de nunca ter visto uma noite tão estrelada. Milhares de estrelas brilhando com todo o fulgor contra um fundo escuríssimo atraíram sua atenção e fizeram com que se sentasse. Ao mesmo tempo sua dor de cabeça aumentou, o que lhe lembrou o fato de que lhe tinham dado uma droga. Estava formulando para si mesmo a teoria de que talvez a droga que lhe tinham dado tivesse algum efeito sobe a pupila, e isto explicaria o esplendor sobrenatural do céu, quando uma luz prateada, parecendo um nascer do sol em miniatura, apareceu num canto da vigia, atraindo novamente seus olhos para cima. Alguns minutos depois a circunferência da lua cheia estava entrando no seu campo de visão. Ransom ficou sentado, quieto, observando aquela lua tão grande, tão clara e tão brilhante como ele nunca tinha visto. “Parece uma bola de futebol do outro lado do vidro”, pensou, e, um segundo depois, “não, é maior do que uma bola”. Naquela altura já estava certo de que havia alguma coisa de sério com seus olhos, a lua não podia ser daquele tamanho que ele estava vendo.

A claridade daquela lua imensa – se é que era uma lua – tinha iluminado tudo a sua volta como se fosse de dia. O quarto em que estava era muito estranho. O chão era tão pequeno que a cama e uma mesa, que estavam ao lado, ocupavam toda sua largura; o teto parecia ter o dobro desta e as paredes alargavam-se para os lados à medida que subiam na direção do teto. Esta impressão confirmou a idéia de que sua vista estava temporária, ou permanentemente, defeituosa. Quanto ao resto, porém, estava se recuperando rapidamente, e sentia até uma, leveza extraordinária e uma animação muito agradável. O calor continuava intenso: tirou o casaco, ficando só de calça e camisa, antes de se levantar. Quando assim fez, sofreu um acidente que fez com que aumentassem suas apreensões a respeito dos efeitos da droga que tinham lhe dado. Apesar de não lhe parecer que tivesse feito nenhum esforço muscular extraordinário, saltou da cama com tal energia que bateu com a cabeça na janela, colocada em cima de sua cama, com tanta força que caiu no chão. Estava encostado na parede, – a parede que, de acordo sua observação anterior, parecia se alargar para cima, – mas isto não era verdade. Tocou-a e olhou para ela: não havia dúvida de que fazia um ângulo reto com o chão. Levantou-se outra vez, com todo cuidado, sentiu uma leveza fora do comum e teve dificuldade em manter os pés no chão.

Pela primeira vez, passou-lhe pela cabeça a idéia de que talvez estivesse morto e fosse uma alma. Começou a tremer mas controlou-se e abandonou esta possibilidade. Em vez disto examinou bem sua prisão. O resultado foi curioso, todas as paredes davam a impressão de alargar-se para cima fazendo o teto maior do que o chão, mas quando se ficava junto de cada uma delas via-se que era perfeitamente perpendicular e ainda mais quando se tocava com os dedos o ângulo formado por ela e pelo chão podia-se sentir que era reto. Verificou mais duas coisas curiosas. O quarto era todo forrado de metal, e tinha uma leve vibração contínua, uma vibração silenciosa e estranha, com uma qualidade humana e não mecânica. A vibração era silenciosa, porém se ouvia uma série de percussões musicais a intervalos irregulares, que pareciam vir do teto. Parecia que o quarto metálico em que se encontrava estava sendo bombardeado com projéteis sonoros.

Ransom estava amedrontado, não sentia porém aquele receio prosaico que um homem sente na guerra, mas um medo violento que mal se podia distinguir da excitação que o tinha invadido; estava como que parado na beira de um abismo emocional de onde a qualquer momento poderia cair no terror ou na alegria sem limites. Sabia agora que não estava numa casa mas sim em alguma coisa que se movia. Estava claro que não era um submarino, e a vibração sutil do metal não dava a impressão de que estivesse num veículo de rodas. Talvez num, navio, supôs, ou então alguma espécie de nave do espaço... mas sentia qualquer coisa de estranho que nenhuma destas suposições explicava. Intrigado, sentou-se na beira da cama e ficou olhando para aquela lua gigantesca.

Uma nave do espaço, alguma espécie de máquina voadora... mas porque a lua parecia tão grande? Era ainda maior do que imaginara a princípio. Lua nenhuma podia ser daquele tamanho; compreendeu então que sabia disto desde o começo mas que sufocara esta certeza por causa de seu pavor. Ao mesmo tempo veio-lhe um pensamento que fez com que sua respiração parasse – não podia haver lua cheia naquela noite. Lembrou-se distintamente que tinha vindo de Nadderby numa noite sem lua. Ainda que não tivesse reparado numa pequena lua crescente ela não poderia ter aumentado tanto em algumas horas. De maneira nenhuma poderia ter ficado daquele tamanho todo – aquele disco megalomaníaco, muito maior do que uma bola de futebol com que a tinha comparado a primeira vista, maior do que o arco de uma criança, enchendo quase todo o céu. E onde estava o “velho homem da lua”, aqueles contornos conhecidos que os homens observavam desde o começo dos séculos? Aquela coisa não era lua de maneira nenhuma, sentiu que seu cabelo estava ficando em pé.

Naquele momento o som de uma porta se abrindo fez com que voltasse a cabeça. Uma luz intensa clareou c ambiente, desaparecendo logo quando a porta se fechou após a entrada de um homem nu que Ransom reconheceu como sendo Weston. Ransom nem pensou em formular queixas ou protestos; não seria possível pensar nestas coisas diante daquela circunferência monstruosa que estava acima deles. A simples presença de um ser humano quebrou a tensão que o dominava desde que acordara. Quando tentou falar viu que estava soluçando.

– Weston! Weston! balbuciou. O que é aquilo? Não pode ser a lua porque é grande demais. Não pode, não é verdade?

– É, não pode, respondeu Weston. É a Terra.

 

As pernas de Ransom fraquejaram e ele deve ter caído na cama, mas só tomou consciência disto algum tempo depois. Naquele momento só tinha consciência de seu pavor. Não sabia nem mesmo o que receava, mas estava inteiramente possuído pelo medo. Não perdeu os sentidos apesar de desejá-lo ardentemente. Consideraria bendita qualquer mudança – a morte, o sono, ou o melhor de tudo: um acordar que provaria tudo não ter passado de um sonho. Mas infelizmente nada disto aconteceu. Ao contrário, o auto-controle do homem civilizado voltou, e pouco depois, estava falando com Weston numa voz ainda bastante trêmula.

– O que você disse é verdade? perguntou.

– Claro.

– Então onde estamos nós?

– A uma distância de mais ou menos oitenta e cinco mil milhas da Terra.

– Isto significa que estamos... no espaço. Ransom disse a palavra com dificuldade, como uma criança quando fala em fantasmas, ou um homem amedrontado do câncer.

Weston sacudiu a cabeça afirmativamente.

– Mas por quê? perguntou Ransom. E por quê cargas d’água vocês me raptaram? E de que maneira fizeram isto?

Weston não parecia muito disposto a responder-lhe, mas afinal sentou-se na cama ao lado de Ransom e disse o seguinte:

– Bem, acho que é melhor responder logo as suas perguntas para impedir que você fique nos atormentando com elas o tempo todo. A primeira delas deve se referir ao funcionamento da nave do espaço, mas não vale a pena querer saber isto. Você só poderia compreender se fosse um dos quatro ou cinco físicos de valor que vivem no momento; e se houvesse alguma possibilidade de você entender eu não lhe explicaria nada. Se você vai se alegrar em ouvir ou repetir palavras que não entende, – que é na realidade o que as pessoas leigas querem quando pedem uma explicação de um fato científico –, você pode dizer que a nave funciona pela exploração das propriedades menos observadas da radiação solar. Quanto ao motivo pelo qual nos encontramos aqui é que estamos a caminho de Malacandra...

– Você quer dizer que vamos para uma estrela chamada Malacandra?

– Acho que nem mesmo você ia supor que vamos sair do sistema solar. Malacandra é muito mais perto do que isto, devemos chegar lá nuns vinte e oito dias.

– Mas não existe um planeta chamado Malancandra, objetou Ransom.

– Eu o estou chamando pelo seu nome verdadeiro e não pelo nome que para ele inventaram os astronautas terrestres, respondeu Weston.

– Que bobagem é esta? perguntou Ransom. Como é que você descobriu seu verdadeiro nome?

– Foram seus habitantes que me contaram.

Ransom levou algum tempo para digerir esta declaração.

– Você está querendo me dizer que já esteve antes nesta estrela, planeta, ou lá o que seja?

– Claro.

– Bom, mas você espera que eu acredite mesmo nisto? disse Ransom. Afinal seria uma coisa extraordinária. Por que é que ninguém ouviu falar nesta proeza? Como foi que não apareceu em todos os jornais?

– Porque não somos inteiramente idiotas, resmungou Weston.

Depois de alguns minutos de silêncio Ransom retomou a conversa.

– E que planeta é em nossa nomenclatura? perguntou.

– De uma vez por todas, respondeu Weston, não vou lhe contar. Se você o descobrir quando chegarmos lá acho que não temos muito que recear dos seus conhecimentos científicos. Por enquanto não há motivo nenhum para você saber de tudo.

– Você disse que este lugar é habitado? perguntou Ransom.

Weston olhou para ele de uma maneira estranha e sacudiu a cabeça afirmativamente. A sensação desagradável que se produziu em Ransom acordou nele uma fúria que estava abafada pelas outras emoções que o tinham invadido.

– E que tenho eu com isto tudo? Vocês me atacaram, me adormeceram e aparentemente estão me levando preso nesta máquina infernal. Que mal fiz eu a vocês? Exijo que me dê uma explicação! disse Ransom irritado.

– Poderia responder as suas perguntas indagando porque você invadiu minha propriedade como um ladrão. Se não tivesse se metido na vida dos outros não estaria aqui. Sou obrigado a confessar que não respeitamos seus direitos mas acho que os fins desculpam os meios. Estamos realizando o que nunca foi feito antes, na história da humanidade, e talvez até mesmo na história do universo. Aprendemos a nos afastar daquela partícula de matéria onde nossa espécie teve início; o infinito e, conseqüentemente, quem sabe? a eternidade estão sendo conquistados pelo homem. Você não poderá ter uma mentalidade tão estreita a ponto de imaginar que os direitos ou a vida de um indivíduo ou de um milhão de indivíduos tenha a menor importância em comparação a esta maravilhosa conquista.

– Acontece que não concordo com você, disse Ransom, – nunca achei este tipo de raciocínio justificável nem mesmo a respeito da vivisseção. Mas você não respondeu minha pergunta. Para que vocês me trouxeram? Qual é a utilidade que tenho nesta máquina ou em Malacandra?

– Isto eu não sei, respondeu Weston. A idéia não foi nossa. Estamos apenas cumprindo ordens.

– Ordens de quem? Fez-se uma pausa.

– Bem, disse Weston afinal, não há vantagem nenhuma em continuarmos com este interrogatório. Você fica me fazendo perguntas que não posso responder, em alguns casos porque não sei as respostas e em outros porque você não entenderia as que eu desse. A viagem será muito mais agradável se você se resignar ao seu destino e parar de nos incomodar e aborrecer-se a si próprio. Seria mais fácil se sua filosofia de vida não fosse tão insuportavelmente estreita e individualista. Não pensei que ninguém fosse chamado a desempenhar o papel como o que lhe entregamos e não se sentisse honrado e inspirado; até mesmo um verme, se pudéssemos fazer com que compreendesse sua importância, estaria disposto a se sacrificar. O sacrifício de que fala é de tempo e liberdade e um pequeno risco, não vá me interpretar mal.

– Acontece que você está com as cartas todas na mão, disse Ransom, e tenho que me conformar com minha sorte. Considero sua filosofia de vida loucura completa. Suponho que toda esta história sobre o infinito e a eternidade signifique que você se considera justificado em fazer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, quando achar que deve, baseado na possibilidade que algumas criaturas descendentes do homem, como o conhecemos agora, possa se arrastar alguns séculos mais em alguma parte do universo.

– É exatamente isto, qualquer coisa, respondeu o cientista duramente, e a opinião das pessoas educadas, – é preciso dizer que não considero classicismo, história e outras bobagens no gênero como educação – está inteiramente a meu favor. Fiquei contente de você mencionar este ponto e aconselho-o a lembrar-se de minha resposta. Agora, se você me acompanhar até a sala vizinha poderemos tomar café. Cuidado quando se levantar, porque seu peso é quase inexistente em comparação ao que tinha na terra.

Ransom levantou-se e seu carcereiro abriu a porta. Logo o quarto foi banhado por uma luz ofuscante e dourada que imediatamente eclipsou a pálida luz terrestre que havia por trás dele.

– Já vou dar a você óculos escuros, disse Weston e foi entrando na sala de onde vinha a claridade. Ransom teve a impressão que Weston subia um morro na direção da porta e que logo depois de passar por ela desaparecia como se descesse uma rampa. Seguiu-o com toda cautela e pareceu-lhe que subia para a beira de um precipício; a sala contígua parecia ser construída de lado, de maneira que a parede mais afastada estava quase no mesmo plano do chão do quarto de onde saíra. Quando, porém, arriscou-se a entrar nela, descobriu que o chão continuava no mesmo nível e que as paredes repentinamente ficavam direitas e que o teto arredondado estava acima de sua cabeça. Olhando para trás verificou que o quarto que abandonara é que agora parecia virado, o seu teto no lugar de uma parede e uma de suas paredes no lugar do teto.

– Você logo se acostumará com isso, disse Weston, acompanhando seu olhar. A nave é esférica, e agora que estamos fora do campo de gravidade da terra, “em baixo” é na direção do centro do nosso pequenino mundo. Isto naturalmente foi previsto e ela foi construída de acordo. O miolo da nave é um globo oco, que serve para guardar nossas provisões, e a superfície deste globo é o chão sobre o qual andamos. As cabines são construídas em volta dele e suas paredes sustentam um outro globo que é para nós o teto. Como o centro é sempre a parte de baixo, o pedaço de chão onde se está pisando parece sempre reto ou horizontal e a parede onde nos encostamos parece vertical. Por outro lado, o globo que serve de chão é tão pequeno que se pode sempre ver além da beirada dele, além do que seria o horizonte se você fosse uma pulga, e então se vêem o chão e as paredes da cabine seguinte num plano diferente. Acontece a mesma coisa na Terra, naturalmente, mas não somos grandes bastante para percebê-lo.

Depois desta explicação começou a tomar as providências necessárias para assegurar o conforto de seu convidado ou prisioneiro, fazendo tudo daquela maneira precisa e pouco hospitaleira. Ransom, seguindo seus conselhos, tirou toda a roupa e pôs um cinto onde estavam pendurados enormes pesos destinados a reduzir, na medida do possível, a leveza de seu corpo e que dificultava seu equilíbrio. Colocou também óculos escuros e sentou-se em frente a Weston na pequena mesa posta para o café. Estava esfomeado e com sede: atacou com entusiasmo a refeição que consistia de biscoitos, manteiga, carne enlatada e café.

Executou todas estas ações mecanicamente. Tirar a roupa, comer e beber foram coisas que passaram quase despercebidas; a única coisa de que ele realmente se lembrou, mais tarde, daquela sua primeira refeição a bordo da nave do espaço, foi a intensidade do calor e da luz.

Os dois tinham uma força que teria sido intolerável na Terra, mas cada um deles tinha uma qualidade nova. A luz, que era mais pálida do que qualquer outra, de intensidade incomparável, como ele jamais vira, não era de um branco puro mas, sim, do ouro mais pálido que se possa imaginar, e projetava sombras muito definidas. O calor, inteiramente livre de umidade, parecia amassar e afagar a pele como um massagista gigante, produzindo uma dolência gostosa e dando ao mesmo tempo uma alegria intensa. Sua dor de cabeça passou completamente, sentia-se alerta, corajoso, magnânimo como raramente se sentia na Terra. Pouco a pouco procurou levantar os olhos para a luz do céu. A janela de vidro era quase toda coberta de portinholas de metal e o pequeno espaço livre era coberto por venezianas de um material escuro e pesado, mas assim mesmo era claro demais para que se pudesse olhar para ela.

– Sempre pensei que o espaço fosse escuro e frio, observou vagamente.

– Esqueceu-se do sol? disse Weston com desprezo. Ransom continuou a comer por algum tempo.

– Se é assim de manhã cedo..., começou a dizer e parou ao olhar para a expressão do rosto de Weston. Ficou cheio de espanto: não havia manhãs ali, nem tardes e nem noites, nada, exceto aquele meio-dia perpétuo que por séculos e séculos vinha enchendo aqueles milhões de milhas cúbicas. Olhou para Weston de novo, mas este último levantou a mão.

– Não fale, disse Weston. Já discutimos tudo que era necessário. Esta nave não contém oxigênio bastante para permitir qualquer esforço desnecessário, nem mesmo falar.

Um minuto depois o sábio se levantou, sem convidar o outro para o acompanhar, e saiu por uma das muitas portas que Ransom ainda não tinha visto se abrirem.

 

O tempo que Ransom passou na nave do espaço deveria ter sido de pavor e ansiedade para ele, pois estava separado por uma distância astronômica de todos os membros da raça humana, exceto dois de quem ele tinha excelentes razões para desconfiar. Além disto, dirigia-se para um destino desconhecido e tinha sido trazido com um fim que seus raptores se recusavam terminantemente a revelar. Devine e Weston se revezavam regularmente numa sala onde não permitiam que Ransom entrasse e onde supunha que estivessem os controles da máquina. Weston, quando não estava de plantão, permanecia em silêncio. Devine era mais loquaz e muitas vezes conversava e ria com o prisioneiro até Weston bater na parede para os lembrar de que não deviam desperdiçar oxigênio. Devine ia até certo ponto em suas confidencias e depois também se tornava misterioso. Achava graça no idealismo científico de Weston e dizia que pouco se importava com o futuro das espécies ou com o encontro de dois mundos.

– Não é só por isto que vamos a Malacandra, dizia piscando o olho.

Mas quando Ransom lhe perguntava qual era o outro motivo começava a brincar e a fazer ironias sobre as responsabilidades do Homem Civilizado e as Bênçãos do Progresso.

– Então é habitado? perguntava Ransom.

– Ah... há sempre o problema dos nativos nestas coisas, respondia Devine. A maior parte do tempo, porém, conversava sobre o que pretendia fazer quando voltasse a Terra, iates maravilhosos, mulheres fabulosas e uma casa imensa na Riviera eram o seu assunto preferido. – Não estou correndo estes riscos todos só por brincadeira.

As perguntas diretas de Ransom, sobre qual era o seu papel naquilo tudo, ficavam sem resposta. Somente uma vez, em resposta a uma pergunta deste tipo, numa ocasião em que Devine não estava muito sóbrio, admitira que eles estavam lhe “passando o abacaxi”.

– Mas estou certo, acrescentou ele, – de que você vai controlar perfeitamente a situação, de acordo com as velhas tradições de nossa escola.

Todos estes fatores eram suficientes para alarmar qualquer um, e o mais estranho era que Ransom não estava muito assustado. É difícil para uma pessoa se preocupar muito com o futuro quando está se sentindo tão bem, como ele, naquela ocasião. De um lado da nave havia o dia interminável e do outro a noite interminável; cada um deles era maravilhoso e Ransom ia de um para o outro encantado. Durante as noites, que ele criava atravessando uma porta, ficava deitado horas e horas contemplando o céu. Não se via mais a terra e as estrelas, em número fabuloso, reinavam perpetuamente sem luar nem nuvens para lhes disputar a majestade. Havia planetas de uma imponência indescritível e constelações soberbas; havia esmeraldas, rubis e safiras celestiais; na extremidade esquerda do quadro havia um cometa pequeno e longínquo; e entre tudo e atrás de tudo estava aquela massa negra e misteriosa que parecia muito mais palpável do que na Terra. As luzes piscavam e pareciam ficar mais brilhantes à medida que as admirava. Deitado nu em seu leito, qual segundo Danae, cada noite achava mais difícil descrer da astrologia antiga; ele quase chegava a sentir uma “doce influência” penetrando em seu corpo abandonado. O silêncio só era interrompido por pequenos ruídos irregulares. Sabia agora que eram causados por meteoritos, pequenas partículas que se chocavam continuamente com a esfera oca de aço; pensava que a qualquer momento poderiam ir ao encontro de algo muito grande, capaz de transformar a nave e seus passageiros em meteoritos. Não tinha, porém, receio e chegava até a achar que Weston havia tido razão em dizer que sua mentalidade era estreita, naquele primeiro momento de pânico. A aventura era acentuadamente importante e as circunstâncias que a envolviam, solenes demais para que se pudesse sentir qualquer outra emoção que não fosse um indefinível encanto. Mas os dias, isto é, as horas passadas no lado do sol de seu microcosmo, eram o melhor de tudo. Freqüentemente levantava-se, após umas poucas horas de sono, puxado por uma irresistível atração para a região da luz, e não cessava de se admirar com aquele sol de meio dia, que sempre esperava a qualquer hora que ele o fosse procurar. Lá, completamente imerso num banho de pura e etérea luz, Inteiramente esticado e com os olhos semi-cerrados naquela estranha máquina que os conduzia, tremendo levemente, através de onda após onda de tranqüilidade muito acima do alcance da noite, sentia seu corpo e sua mente diariamente friccionado, polido e tomado por uma nova vitalidade. Weston, numa de suas breves e relutantes respostas, disse que aquelas sensações tinham uma base científica e explicou que estavam recebendo diversos raios que nunca haviam penetrado na atmosfera terrestre.

Mas Ransom, a medida que o tempo foi passando, percebeu que havia outra razão, e esta mais espiritual, para aquela leveza e exultação de que estava sendo possuído. Estava se libertando de um pesadelo, criado na mente moderna pela mitologia que acompanha a esteira da ciência. Já havia lido sobre “O Espaço”, e no fundo de seu pensamento havia aquela idéia apavorante de um vácuo gelado e morto, que supostamente separava os mundos. Só agora, quando o nome “Espaço” lhe parecia uma blasfêmia contra este oceano empíreo de radiosidade em que se encontravam, é que percebera como esta noção o tinha influenciado. Não poderia chamá-lo de “morto” quando se sentia invadido por vida a cada momento. E como poderia ser de outra maneira se era desse oceano que tinham vindo os mundos e a vida? Não! o nome certo para aquela grandiosidade era aquele que fora dados pelos antigos: “os céus” – os gloriosos céus –

... privilegiados climas que pairam

Onde nunca se acaba o dia

Lá em cima nas vastas amplidões do céu

Recitou para si mesmo, com amor, estes versos de Milton.

Não passava, naturalmente, o tempo todo esticado. Explorou a nave (tanto quanto lhe permitiram) passando de sala para sala com aqueles movimentos lentos recomendados por Weston, para que não se esgotasse o suprimento de ar. Devido ao seu formato, a nave do espaço continha muito mais salas do que eram utilizadas; mas Ransom acreditava que seus condutores, ou pelo menos Devine, pretendiam enchê-las com alguma carga na viagem de volta. Tornou-se também, de maneira imperceptível, o camareiro e o cozinheiro de bordo, em parte porque achava natural auxiliar nos únicos trabalhos que lhe permitiam fazer, pois não consentiam que entrasse na sala de controles, e, em parte, para se antecipar a uma tendência que Weston tinha para fazê-lo de criado, gostasse ou não. Preferia trabalhar voluntariamente do que para obedecer ordens, e, além disto, considerava suas habilidades culinárias bem mais desenvolvidas que as dos companheiros.

Foi devido a estas atribuições que ouviu, a princípio involuntariamente e depois com grande alarme, uma conversa que ocorreu uns quinze dias (aproximadamente) depois do início da viagem. Ransom havia tirado a mesa depois de ter tomado um pouco de sol, conversado com Devine que era melhor companhia do que Weston, apesar de considerá-lo o mais odioso dos dois, e ido para a cama na hora habitual. Estava um pouco inquieto e, depois de revirar-se na cama por mais de uma hora, lembrou-se de que havia esquecido de deixar preparadas umas coisas que lhe facilitaria o trabalho de arrumar o café no dia seguiu. Levantou-se e foi para a despensa cuja porta abria para a sala de estar e ficava próxima da sala de controles. Estava descalço e sem roupa nenhuma.

A vigia da despensa dava para o lado escuro da nave, mas ele não acendeu a luz. Deixou a porta entreaberta, o suficiente, pois através da abertura penetravam raios imensos de luz solar. Fez seu trabalho com rapidez e com tamanha perfeição de gestos, adquirida com o hábito, que não fez nenhum ruído. Havia terminado e estava enxugando as mãos numa toalha pendurada atrás da porta, quando viu a porta da sala de controles se abrir e aparecer a silhueta de um homem; olhando bem, verificou que era Devine. Este não entrou na sala de estar e continuou parado e falando, aparentemente, para a sala de controles. Ransom ouvia perfeitamente o que Devine dizia, mas não conseguia distinguir as palavras de Weston.

– Acho que seria uma bobagem muito grande, disse Devine. Se tivéssemos certeza de encontrar os selvagens no lugar onde vamos descer, talvez fosse uma boa idéia.

Mas se tivermos que sair à procura deles? Neste caso, o único resultado de seu plano seria termos que carregar um homem adormecido e sua mochila em vez de termos um homem capaz de andar conosco e de nos auxiliar em nossos trabalhos.

Weston aparentemente falou qualquer coisa.

– Mas não é possível que ele descubra, respondeu Weston. A menos que alguém seja tolo o bastante para lhe contar. De qualquer modo, ainda que suspeitasse, você acha que um homem daqueles ia ter coragem de fugir num planeta estranho? Sem comida? Sem armas? Você vai ver só como vai ficar quietinho quando vir um “sorn”.

Mais uma vez Ransom ouviu indistintamente a voz de Weston.

– Como é que posso saber? disse Devine. Pode ser alguma espécie de chefe.

Ouviu um som breve que lhe pareceu uma pergunta, que foi respondida imediatamente por Devine.

– Isto explicaria porque o querem. Weston perguntou mais alguma coisa.

– Sacrifício humano, eu suponho. Pelo menos do ponto de vista deles não seria humano, você compreende o que quero dizer.

Weston falou bastante tempo e o que disse fez com que Devine desse uma risadinha.

– Muito bem, muito bem, disse. Está perfeitamente entendido que você está fazendo isto tudo levado pelos mais nobres motivos. Desde que eles lhe conduzam para as mesmas ações que os meus motivos, pode ter os que quiser.

Weston continuou falando e desta vez Devine pareceu interrompê-lo.

– Você não está perdendo a coragem, está? disse. Ficou quieto algum tempo como se estivesse ouvindo. Finalmente respondeu.

– Se você gosta tanto dos selvagens é melhor ficar com eles. Não se preocupe, quando chegar a hora de limpar o local nós guardaremos um ou dois para você se divertir fazendo todas as experiências que desejar, até casar com algum, se quiser... É, eu sei, é revoltante, estava só brincando. Boa noite.

Um minuto depois Devine fechou a porta da sala de controles, e foi para a sua própria cabine e Ransom ouviu-o trancar a porta; como era seu hábito invariável apesar de estranho. Sentiu que a tensão com que escutara aquela estranha conversa estava diminuindo. Descobriu que havia prendido a respiração e respirou profundamente. Depois saiu cuidadosamente para a sala.

Apesar de saber que seria mais prudente voltar o mais depressa possível para sua cama, permaneceu imóvel banhado por aquela luz gloriosa, que já lhe era tão familiar, observando-a com novos sentimentos. Iam sair destes céus, desta região agradável para “onde”? “Sorns”, sacrifício humano, monstros horríveis. O que era um “sorn”? O papel que lhe cabia estava agora bem claro. Alguém ou alguma coisa tinha mandado buscá-lo, não a ele, pessoalmente, mas alguém queria uma vítima, qualquer vítima, que viesse da Terra. Ele havia sido escolhido porque Devine tinha feito a escolha. Só agora, tarde demais, é que descobrira que Devine durante estes anos todos lhe retribuíra na mesma moeda o ódio que lhe tinha. Mas o que era um “sorn”?; “Quando ele os visse ficaria quietinho”. Sua cabeça, tal como muitas cabeças de sua geração, estava cheia de bichos-papões. Havia lido H. G. Wells e outros escritores. Para ele o universo era povoado de horrores que ultrapassavam os da antiga mitologia. Achava muito provável que os habitantes deste mundo estranho fossem terríveis criaturas que se assemelhassem a insetos, vermes ou crustáceos, possuíssem antenas, azas, tentáculos e que unissem uma inteligência super-humana a uma crueldade insaciável. Os “sorns” seriam... seriam... não tinha nem coragem de pensar como poderiam ser os “sorns”. E iam entregá-lo a eles, o que lhe parecia ainda mais horrível do que se fosse capturado por eles. Seria entregue, dado, oferecido. As monstruosidades mais pavorosas passavam por sua imaginação, mandíbulas enormes, olhos gigantescos, chifres, ferrões, etc. Mas a realidade certamente seria ainda muito pior, seria uma coisa diferente, extra-terrena, uma coisa nunca imaginada e que não se poderia mesmo imaginar. Naquele momento de desespero Ransom tomou a decisão. Estava disposto a enfrentar a morte mas não os “sorns”. Tinha que achar algum modo de fugir quando chegasse a Malacandra. Sofrer fome e mesmo ser perseguido pelos “sorns” seria melhor do que ser entregue a eles. Se a fuga fosse impossível só restaria o suicídio. Ransom era um homem piedoso e esperava ser perdoado se tivesse que recorrer a este gesto extremo. Considerava-se tão incapaz de tomar outra decisão como de produzir um novo membro em seu corpo. Sem hesitar um segundo voltou a dispensa e apoderou-se da faca mais afiada, disposto a nunca mais se separar dela.

Ficara tão exausto com todas aquelas idéias terríveis que, quando se deitou na cama, caiu imediatamente num sono pesado e sem sonhos.

 

Acordou bem descansado e até um pouco envergonhado do pavor que sentira na noite anterior. A situação em que se encontrava era na verdade muito séria, a ponto da possibilidade de voltar a Terra vivo estar quase fora de questão. Porém a morte poderia ser enfrentada e o medo racional da morte dominado. A única dificuldade verdadeira era o terror irracional, biológico, de monstros, e este ele controlou na medida do possível enquanto tomava seu banho depois da primeira refeição. Sentia que uma pessoa que navegava nos céus, como ele estava fazendo, não devia ter um pavor abjeto diante de nenhuma criatura. Pensou até que a faca podia atravessar não só a sua carne mas também a de outros. Aquele humor belicoso era muito raro em Ransom, como em tantos outros homens de sua época; ele antes subestimava do que superestimava a própria coragem. A distância entre os sonhos de sua meninice e sua experiência real na guerra tinha sido assustadora, e talvez posteriormente fosse exagerado no exame de suas qualidades pouco heróicas. Não estava muito certo de que aquelas tendências belicosas se mantivessem, mas tinha que esperar pelo melhor.

A medida que passavam as horas e ao despertar sucedia o adormecer, naquele dia eterno, sentiu que se processava uma mudança gradual. A temperatura estava caindo lentamente. Vestiram suas roupas novamente, mais tarde vestiram roupas de baixo de lã e algum tempo depois ligaram um aquecedor elétrico no meio da nave. E apesar do fenômeno ser de difícil compreensão teve certeza de que a luz se tornara menos avassaladora do que no princípio da viagem. A inteligência tinha esta certeza mas era difícil sentir que estava havendo uma diminuição de luz e impossível considerar o que estava acontecendo como um escurecimento porque, apesar do grau de radiação estar mudando, sua qualidade extraterrena permanecia exatamente a mesma desde o momento em que pela primeira vez a observara. Não era como a luz que vai desaparecendo da terra, misturada com a umidade crescente e as cores fantasmagóricas do ar. Ransom percebeu que se podia cortar sua intensidade ao meio e a metade restante permaneceria o que o tudo havia sido, simplesmente menos, mas não diferente. Podia se tornar a dividi-la e o restante continuaria o mesmo. Enquanto existisse seria ela própria até o ponto não imaginado onde sua última força era gasta. Tentou explicar o que queria dizer a Devine.

– Tal qual estes modernos sabões em pó! disse Devine sorrindo. – Puro sabão até a última bolha!

Pouco tempo depois o ritmo igual de sua vida na nave do espaço foi perturbado. Weston explicou que logo começariam a sentir a força de gravidade de Malacandra.

– Isto significa, disse, – que o centro da nossa nave não será mais “em baixo”. A parte de baixo será na direção de Malacandra, que do nosso ponto de vista será sob a sala de controles. Conseqüentemente, os chãos da maioria das cabines se transformarão em parede ou teto, e uma das paredes em chão. Vocês não vão gostar desta mudança.

O resultado deste aviso, com respeito a Ransom, foram horas de trabalho pesado em que trabalhava ombro a ombro ora com Devine, ora com Weston, o que não estivesse de serviço na sala de controle. Latas d’água, cilindros de oxigênio, armas, munições e latas de comida tinham que ser empilhados junto das paredes que se transformariam em chão e de lado para que ficassem em posição vertical quando isto acontecesse. Antes do trabalho ser terminado começaram a sentir as mais estranhas sensações. A princípio, Ransom supôs que fosse o cansaço do trabalho que estivesse tornando seus membros pesados, mas o descanso não aliviava os sintomas; explicaram-lhe que isto estava acontecendo porque a proximidade crescente do planeta que os tinha apanhado em seu campo magnético fazia com que seus corpos aumentassem de peso a cada minuto e o dobrassem cada vinte e quatro horas. Tinham a mesma sensação de uma mulher grávida aumentada a um ponto que era quase insuportável.

Ao mesmo tempo seu sentido de direção, que nunca havia sido muito preciso na nave do espaço, tornou-se muito confuso. De qualquer compartimento a bordo, tinha-se a impressão de que o chão do seguinte era em declive, mas quando se entrava nele sentia-se que era plano; agora, parecia em declive e sentia-se também o declive, pequeno é verdade. Dava-se uma pequena corrida quando se entrava num outro compartimento. Uma almofada jogada no chão da sala de estar era encontrada mais tarde um centímetro ou dois mais perto da parede. Todos eles ficaram tendo vômitos, dores de cabeça e palpitações. As condições pioravam de minuto a minuto. Em pouco tempo só conseguiam se arrastar de um compartimento para outro. O sentido de direção desapareceu completamente numa confusão impressionante. Havia partes da nave que estavam claramente em baixo no sentido de que seu chão estava por cima e somente uma mosca poderia andar nele, mas parecia a Ransom que nenhuma parte estava realmente com o lado certo para cima. Tinham sensações de altura intolerável e de quedas bruscas, nunca experimentadas nos céus. Já tinham, naturalmente, desistido de cozinhar e comiam biscoitos e qualquer coisa que pudessem arranjar; beber era também difícil, pois nunca se podia ter certeza de estar com a boca abaixo da garrafa e não ao lado. Weston andava mais taciturno do que nunca. Devine sempre agarrado com uma garrafa de bebida blasfemava sem cessar e amaldiçoava Weston por tê-los trazido até lá. Ransom sentia dores por toda parte, molhava seus lábios secos, tratava de seus machucados e rezava para que chegasse logo o fim.

Chegou uma hora em que um dos lados da esfera estava sem a menor dúvida “em baixo”. Camas e mesas fixas, agora ridículas e sem utilidade, pendiam do que se transformara em parede ou teto. As portas transformaram-se em alçapões que se abriam com dificuldade. Seus corpos pareciam ser de chumbo. Quando terminaram o trabalho, Devine tirou dos embrulhos as roupas que deveriam usar em Malacandra, e acocorou-se na parede mais afastada da sala, que agora era o chão, para observar o termômetro. Ransom reparou que as roupas incluíam roupas de baixo de lã, casacos de pele, gorros e luvas forrados de pele. Devine não respondeu as suas perguntas, estava inteiramente absorvido em estudar o termômetro e em gritar para Weston, que se encontrava na sala de controles

– Mais devagar, mais devagar, gritava sem parar. Mais devagar, seu idiota! Você está no ar em um minuto ou dois. Depois berrou enfurecido. – Larga isto! Deixe que eu tomo conta.

Weston nem respondia. Não era costume de Devine desperdiçar seus conselhos: Ransom concluiu que ele devia estar fora de si, de medo ou de excitação.

De repente parecia que as luzes do Universo tinham sido diminuídas. Era como se um demônio houvesse esfregado a face do céu com uma esponja suja e o esplendor em que tinham vivido durante tanto tempo empalideceu, transformando-se num cinza triste e deprimente.

De onde estavam sentados não era possível levantar as venezianas ou abrir as cortinas. Aquilo que tinha sido uma carruagem deslizando nos campos do céu, transformara-se numa caixa escura de aço, fracamente iluminada, que caía. Estava caindo do céu num outro mundo. Esta foi a impressão mais forte causada em Ransom em toda a sua aventura. Admirou-se de como pudera ter considerado os planetas, a Terra inclusive, como ilhas de vida e realidade boiando num vácuo mortal. Daquele momento em diante passou a considerar os planetas, que chamava de “terras” em seu pensamento, como simples buracos ou falhas no céu vivo, refugos excluídos e rejeitados de matéria pesada e ar obscuro, formados não por adição mas sim por subtração da claridade envolvente. Mas, pensou, além do sistema solar esta claridade acaba. Será aí o verdadeiro vácuo, a verdadeira morte? A menos... procurou coordenar suas idéias... a menos que a luz visível também fosse um buraco, uma falha, uma simples subtração de alguma outra coisa. Algo que esteja para o céu claro e inalterável assim como o céu está para as terras pesadas e escuras... As coisas nem sempre acontecem como se espera. No momento de sua chegada num mundo desconhecido, Ransom estava totalmente absorvido em especulações filosóficas.

 

– Tirando um cochilo? perguntou Devine. Você já está blasé a respeito de novos planetas?

– Você está vendo alguma coisa? interrompeu Weston.

– Não consigo abrir estas malditas venezianas, disse Devine. Acho melhor usarmos a saída de emergência.

Ransom despertou de seus pensamentos. Os dois sócios estavam trabalhando juntos na semi-escuridão. Sentia frio e seu corpo, apesar de muito mais leve do que na Terra, estava ainda muito pesado. A situação em que se encontrava fez voltar seu medo, porém, sentia ainda maior curiosidade. Talvez a morte estivesse a sua espera, mas num cadafalso e tanto! Já estava entrando ar fresco e luz de fora. Esticou sua cabeça tentando ver alguma coisa através dos ombros dos dois homens que trabalhavam. Um minuto depois tiraram o último parafuso. Olhou para fora.

Viu logo o chão, um círculo de rosa pálido quase branco, que não podia perceber se era vegetação baixa ou rocha granulada. A figura escura de Devine ocupou logo a abertura, e Ransom notou que segurava um revólver em sua mão. “Será para mim ou para os “sorns” ou talvez para ambos”? pensou.

– Vai você agora, disse Weston.

Ransom respirou forte e apalpou a faca que guardara junto ao cinto. Depois passou a cabeça e os ombros pelo buraco botando as duas mãos no solo de Malacandra.

A matéria rosa era macia e viu então, claramente, que era vegetação. Ransom olhou para cima e viu um céu azul pálido, o céu de uma bonita manhã de inverno na Terra, e mais além uma massa grande cor de rosa que supôs ser uma nuvem, e depois...

– Saia logo, disse Weston atrás dele.

Saiu inteiramente e pôs-se de pé. O ar estava frio, mas não demais, e sua garganta ardia um pouco. Olhou em volta e o seu desejo de apreender o mundo novo num olhar só não foi satisfeito. Não via nada senão cores – cores que se recusavam a se transformar em coisas. Além disto, ele ainda não conhecia nada muito bem e não se podem ver as coisas até que se tenha uma idéia de como são. Sua primeira impressão foi de um mundo claro e pálido – um mundo de aquarela saído duma caixa de tintas de uma criança. Momentos depois reconheceu a camada lisa de azul claro como sendo um lençol de água, ou de alguma coisa semelhante a água, que chegava quase a seus pés. Estavam na beira de um lago ou rio.

– Muito bem, disse Weston passando por ele.

Ransom se virou e viu com surpresa uma coisa perfeitamente reconhecível – uma cabana de feitio terrestre apesar de ser construída de materiais estranhos.

– Mas são humanos! disse com espanto. Eles constroem casas?

– Nós construímos, disse Devine, e tirando uma chave do bolso abriu um cadeado muito comum pendurado na porta. Com uma mistura de desapontamento e alívio, Ransom compreendeu que seus carcereiros estavam voltando a seu próprio acampamento. Fizeram o que era de se esperar. Entraram na cabana, abriram as janelas rústicas, admiraram-se de a terem deixado tão suja e saíram.

– É bom tratarmos logo das provisões, disse Weston. Ransom viu logo que ia ter pouco tempo livre para observação e nenhuma oportunidade de escapar. O trabalho monótono de transferir comida, roupas, armas e muitos outros embrulhos de coisas desconhecidas por ele, manteve-o muito ocupado, durante mais ou menos uma hora, e em estreito contato com seus raptores. Antes de mais nada aprendeu uma coisa: – que Malacandra era uma beleza, e pensou como era estranho nunca haver imaginado esta possibilidade... O mesmo desvio de imaginação que o levara a povoar o universo com monstros fazia com que só esperasse encontrar num planeta estranho rochas desoladas ou uma rede de máquinas apavorantes. Não conseguia descobrir porque tinha essas idéias, agora que procurava uma explicação para elas. Descobriu também que estavam cercados pela água azul por três lados pelo menos; não podia ver nada do quarto lado porque o horizonte estava bloqueado pela vasta bola de futebol, de aço, em que tinham vindo. A cabana estava construída na ponta de uma península ou no extremo de uma ilha. Chegou também, pouco a pouco, à conclusão de que a água não era simplesmente azul, conforme a luz, como a água na terra, mas sim realmente azul. Havia qualquer coisa, na maneira que se portava sob a brisa ligeira, que o intrigava, alguma coisa errada ou fora do comum nas ondas. Uma das coisas era que estavam grandes demais para aquele vento, mas o segredo não era só isto. Lembravam-lhe a água que vira subindo com o impacto das bombas de artilharia nos quadros de batalhas navais. De repente, percebeu que tinham a forma errada, eram altas demais para seu comprimento, estreitas demais na base e escarpadas demais nos lados. Lembrou-se de ter lido num desses poetas modernos qualquer coisa sobre um mar subindo em “muralhas escarpadas”.

– Pegue! gritou Devine. Ransom apanhou o pacote e o levou para Weston, que estava na porta da cabana.

Num dos lados a água se estendia numa grande região, de um quarto de milha talvez, calculou, mas naquele mundo estranho ainda não tinha adquirido bem o sentido de perspectiva. No outro lado era muito mais estreita, tinha uma largura de uns quinze pés talvez, e parecia estar correndo sobre um banco; fazia um ruído mais suave do que a água na Terra e, mais além, aonde a vegetação cor de rosa chegavam até a margem, havia espuma e umas bolhas que davam a idéia de efervescência. Fez um esforço para perceber o que havia na margem mais afastada, quando conseguia levantar os olhos do trabalho. Havia uma massa de alguma coisa púrpura, tão grande, que lhe pareceu uma montanha coberta de urzes; do outro lado, além da água, havia qualquer coisa do mesmo gênero. Lá, porém, ele podia ver que mais além havia umas formas verticais de um verde esbranquiçado, irregulares e recortadas demais para serem edifícios, mas estreitas e escarpadas demais para serem montanhas. Por trás destas formas e acima delas estava a massa cor de rosa que se assemelhava a uma nuvem. Talvez fosse realmente uma nuvem, mas parecia sólida demais e dava a impressão de não ter se movido do lugar onde a vira pela primeira vez. Parecia a parte de cima de uma couve-flor vermelha gigantesca, ou talvez uma bacia imensa cheia de espuma vermelha de sabão, e seu formato e colorido eram de uma beleza extraordinária.

Desistindo de entender exatamente o que era aquilo, voltou sua atenção para a margem mais próxima. A massa púrpura por um momento pareceu uma série de tubos de órgão, logo depois uma porção de rolos de fazenda: colocados em sentido vertical, e em seguida uma floresta de guardas-chuva gigantescos que estivessem se abrindo. Movia-se ligeiramente. De repente seus olhos conseguiram perceber que a massa púrpura era vegetação. Mais precisamente, eram vegetais, com cerca do dobro da altura dos olmos ingleses, mas aparentemente macios e frágeis. Os talos, não se podia chamá-los de troncos, eram redondos e lisos, e surpreendentemente finos, até uma altura de uns quarenta pés; depois disto, as enormes plantas se abriam, mas não tinham galhos, somente folhas, folhas imensas do tamanho de barcos salva-vidas mas quase transparentes. Aquela coisa toda correspondia à idéia que fazia de uma floresta submarina: as plantas tão grandes e ao mesmo tempo tão frágeis, pareciam precisar de água para sustentá-las e admirou-se de que pudessem ficar penduradas no ar. Mais abaixo, entre os talos, viu o crepúsculo de um roxo vivo, misturado com a luz do sol mais pálida, que formava o cenário interno da floresta.

– Está na hora do almoço, disse Devine repentinamente. Ransom endireitou as costas; apesar da leveza e da frescura do ar, sua testa estava úmida. Tinham trabalhado duramente e ele estava sem fôlego. Weston apareceu na porta da cabana e disse qualquer coisa a respeito de “terminarem antes”, mas a opinião de Devine prevaleceu. Abriram uma lata de carne e uma de biscoitos e sentaram-se nas diversas caixas que estavam espalhadas entre a nave do espaço e a cabana. Seguindo uma sugestão de Devine, e novamente contra a opinião de Weston, puseram um pouco de uísque nas canecas e o misturaram com água. Ransom observou que a água era tirada de suas próprias latas e não do lago azul.

Como acontece freqüentemente, ao se parar um trabalho físico, Ransom foi dominado pela excitação que o invadira na sua chegada. Pareciam-lhe impossível comer, porém, pensando na possibilidade de uma fuga, fez um esforço para consegui-lo e seu apetite foi voltando a medida que se alimentava. Comeu e bebeu tudo que encontrou, e o gosto desta primeira refeição ficou para sempre associado em sua mente àquela sensação estranha de estar cercado por uma paisagem incompreensível, de formas pontuadas de verde claro da altura de milhares de pés, lençóis de água mineral de um azul deslumbrante e nuvens de espuma vermelha. Ficou com receio que seus companheiros se admirassem de sua súbita glutonaria, mas estes estavam com a atenção voltada para outras coisas. Seus olhos não cessavam de perscrutar o horizonte, falavam distraidamente e estavam sempre olhando para trás. Ransom estava justamente acabando sua refeição, quando Devine mudou de expressão e colocou, em silêncio, a mão no ombro de Weston. Entreolharam-se os dois e imediatamente se levantaram. Ransom engoliu o resto do uísque e os acompanhou. Ficou no meio dos dois, que tinham os revólveres na mão. Foram empurrando-o para a margem onde a água era mais estreita, e olhavam e apontavam para o outro lado.

A princípio não viu claramente o que estavam apontando. Parecia que havia algumas plantas mais pálidas e mais finas, em que não havia reparado antes, entre as enormes plantas cor de púrpura. Mal olhou para elas pois estava olhando para o chão, obcecado com o pavor dos répteis e insetos que povoam a imaginação moderna. Quando viu aquelas novas formas brancas refletidas na água, quatro, cinco, não, exatamente seis, foi que olhou para cima para vê-las melhor. Havia realmente seis formas brancas, ali em frente deles. Eram delgadas e frágeis e tinham duas ou três vezes a altura de um homem. Teve a impressão de que eram figuras de homem, obra de algum artista selvagem; tinha visto coisas semelhantes em livros de arqueologia. Mas de que poderiam ser feitos e como ficariam em pé? Com pernas tão finas e alongadas, pareciam distorções dos bípedes humanos... tal como as imagens refletidas nos espelhos cômicos dos parques de diversões. Não eram certamente feitos de pedra ou metal pois pareciam ter se movido ligeiramente; de repente, com um choque que lhe fez gelar o sangue nas veias, percebeu que estavam vivos, estavam realmente se mexendo e que vinham em sua direção. Com um rápido olhar apavorado para as suas faces viu que eram finas, extraordinariamente longas, com narizes compridos e as bocas caídas dando a impressão de uma solenidade meio fantasmagórica. Aterrorizado, virou-se desesperadamente tentando fugir, mas Devine segurou-o com força.

– Me solte, gritou.

– Não seja tolo, respondeu Devine ameaçando com a pistola.

Quando estava lutando para, se desvencilhar, uma das “coisas” gritou algo através da água; sua voz poderosíssima parecia uma buzina e o som passou muito acima de suas cabeças.

– Eles querem que nós atravessemos o lago, disse Weston. Os dois homens tentavam arrastá-lo para a beira do lago. Firmou seus pés no chão, dobrou suas costas e resistia à maneira dos jumentos. Os outros dois entraram na água e o puxavam com força, mas ele continuava na terra, gritando desesperadamente. Repentinamente, um ruído mais alto e menos articulado veio do outro lado da margem. Weston gritou também, afrouxou a pressão no braço de Ransom e atirou, não para a outra margem, mas na direção do céu. Ao mesmo tempo Ransom viu porque o fizera.

Uma linha de espuma como o rastro de um torpedo aproximava-se deles a toda velocidade e no meio dela estava um animal grande e brilhante. Devine, praguejando, escorregou e caiu n’água. Ransom viu umas mandíbulas entre eles, e ouviu o barulho ensurdecedor do revólver de Weston a seu lado, repetidamente, e quase à mesma altura o clamor dos monstros, do outro lado, que pareciam estar entrando n’água também. Assim que se viu livre voltou para trás, passando pela nave do espaço e correndo tão depressa quanto podia para o desconhecido, que ainda não havia observado. Quando passou a esfera de metal, seus olhos depararam com uma louca confusão de azul, púrpura e vermelho. Não diminuiu a velocidade para fazer qualquer inspeção; entrou na água e descobriu com surpresa que esta era morna. Um minuto depois já estava em terra firme e foi subindo por uma escarpa continuando a correr através dos talos de uma outra floresta de plantas enormes.

 

Um mês de inatividade, uma refeição pesada e um mundo desconhecido não ajudam um homem a correr. Meia hora depois, Ransom já estava andando, e não mais correndo através da floresta, com uma dor do lado e com os ouvidos atentos a qualquer ruído. O barulho dos tiros de revólver e das vozes (que não tinham nada de humano) tinha sido seguido primeiro por tiros de espingardas e gritos a intervalos longos e depois por um profundo silêncio. Ao alcance de sua vista só havia os talos das enormes plantas e muito acima de sua cabeça a transparência múltipla de enormes folhas, que filtravam a luz solar, diminuindo sua intensidade. Sempre que podia, corria um pouco; o chão continuava macio, como se fosse de molas, coberto com a mesma vegetação que suas mãos haviam tocado primeiro em Malacandra. Uma ou duas vezes uma pequena criatura vermelha atravessou seu caminho, mas fora isto não parecia haver vida na floresta. Não havia razão para medo, só o fato de estar andando sozinho e sem provisões numa floresta de vegetação desconhecida que se estendia por milhas e milhas.

Ransom estava pensando nos “sorns”, pois certamente “sorns” eram aquelas criaturas a quem tinham tentado entregá-lo. Eram muito diferentes dos pavores que sua imaginação criara e por este motivo o tinham surpreendido além de assustado. Afastavam-se das fantasias de Wells, retornando a um complexo quase infantil de pavores. Gigantes, ogres, esqueletos eram as figuras chave deste tempo. Pareciam fantasmas imensos com aquelas suas faces extremamente longas. Ao mesmo tempo aquele terror que possuíra nos primeiros momentos o estava abandonando. Desistiu da idéia de suicídio e resolveu lutar até o fim. Rezou com fervor e apalpou sua faca.

O chão tornou-se mais acidentado e interrompeu seus pensamentos. Há algumas horas vinha subindo gradativamente, tendo a seu lado direito um terreno mais escarpado. A escalada foi-se tornando mais difícil, mas ele continuava indo para cima sem saber bem porque, talvez porque suas noções de geografia terrena lhe tivessem ensinado que no terreno mais baixo se encontrariam grandes espaços entre a floresta e a água, onde seria mais fácil os “sorns” o apanharem. Prosseguiu atravessando escarpas e barrancos que apesar de altos não eram muito difíceis de passar. Notou também que mesmo os montes de terra menores tinham um aspecto diferente dos de seu planeta; eram estreitos demais, pontudos demais no alto e pequenos demais na base. Lembrou-se que as ondas dos lagos azuis apresentavam este mesmo formato estranho. Olhando para as folhas cor de púrpura viu que este mesmo tema de perpendicularidade – esta mesma corrida para o céu – repetia-se nelas. Suas pontas não eram caídas e apesar de seu tamanho, o ar era suficiente para sustentá-las. E com os “sorns” acontecia a mesma coisa; estremeceu ao pensar neles, – eram também extremamente longos.

Sabia bastante ciência para perceber que devia estar num mundo mais leve do que a Terra, onde menos força era necessária e a natureza podia seguir seu impulso na direção do céu numa escala superterrestre. Isto fez com que ficasse imaginando onde poderia estar. Não conseguia se lembrar se Vênus era maior ou menor do que a Terra e tinha uma idéia de que devia ser mais quente do que Malacandra. Talvez estivesse em Marte, ou talvez até na Lua. A princípio afastou esta última hipótese, pois, neste caso, deveria ter visto a Terra no céu quando chegaram, depois se lembrou que havia uma face da Lua que estava sempre virada para o lado oposto da Terra. Era bem possível que estivesse vagando pela face mais afastada da Lua, e sem nenhum motivo razoável isto lhe deu um sentimento de desolação ainda maior.

Em muitos dos barrancos que havia cruzado havia riachos, rápidos e azuis, correndo para o terreno mais baixo que ficava a sua esquerda. Tal como o lago eles eram mornos, e o ar acima deles era morno também, de modo que quando descia e subia as encostas dos barrancos mudava continuamente de temperatura. Foi o contraste que sentiu numa destas vezes que primeiro chamou sua atenção para o fato de que a floresta estava se tornando mais fria e, ao olhar a sua volta, percebeu também que a luz estava diminuindo. Tinha se esquecido da noite, e não tinha maneira de adivinhar como ela seria em Malacandra. Quando estava parado, observando a escuridão crescente, uma rajada de vento bateu nos talos purpurinos fazendo com que balançassem, revelando mais uma vez o espantoso contraste entre seu tamanho e sua aparente flexibilidade e leveza. A fome e o cansaço, que tinham sido abafadas pelo pavor, atacaram-no subitamente. Estremeceu e fez um esforço para prosseguir. O vento aumentou, as enormes folhas dançavam em cima de sua cabeça, deixando aparecer pedaços de céu cada vez mais pálido, e por fim completamente escuro, com uma ou duas estrelas. A floresta não estava mais silenciosa. Seus olhos iam de um lado para o outro procurando ver se o inimigo se aproximava, mas só o que conseguia ver era a escuridão que o envolvia. Bendisse os riachos pelo seu calor.

Lembrou-se então de procurar proteção contra o frio crescente. Não adiantava nada continuar andando para frente, talvez estivesse até andando na direção do perigo em vez de estar fugindo dele. Tudo era perigo e não havia mais segurança em andar do que em descansar. Talvez junto de algum riacho estivesse quente bastante para que ele pudesse se deitar. Resolveu procurar um e andou tanto sem encontrar nenhum que pensou ter saído da região dos riachos. Estava quase decidido a voltar quando o solo começou a entrar em declive; escorregou e equilibrou-se novamente, percebendo que havia chegado a uma torrente. As árvores, – não podia deixar de considerá-las como “árvores” – não eram tão densas e a água parecia ter uma leve fosforescência, fazendo com que o lugar não ficasse tão escuro. Guiado por um vago instinto subiu um pouco mais, chegando até a uma catarata pequenina. Reparou vagamente que a água caia um pouco devagar demais para a inclinação, mas estava cansado e não se interessou em descobrir a razão disto. A água era aparentemente mais quente que a do lago, talvez estivesse mais próxima de sua fonte subterrânea de calor. O que ele realmente queria saber era se poderia bebê-la. Estava com muita sede mas o líquido parecia venenoso e muito diferente do que estava habituado a tomar. Com um esforço, decidiu-se a não beber, com a esperança de que o cansaço fosse tanto que a sede não o impedisse de dormir. Acomodou-se numa vala perto da catarata e bocejou.

O som de seu próprio bocejo, aquele velho som tantas vezes ouvido em quartos de criança, dormitórios de escolas e em tantos quartos de dormir, acordou nele uma onda de piedade por si mesmo. Dobrou seus joelhos e abraçou-se com eles, sentindo um amor físico, quase filial, por seu próprio corpo. Levou o relógio de pulso ao ouvido, viu que tinha parado e deu corda nele. Ficou pensando nos homens que estavam indo para a cama naquele distante planeta Terra, nos homens que estavam nos clubes, navios e hotéis, homens casados, e pequenas crianças que dormiam com governantes em seus quartos, em homens cheirando a cigarro, amontoados em hospedadas. A tendência a falar consigo mesmo tornou-se irreprimível... – “Nós tomaremos conta de você, Ransom... ficaremos juntos, meu caro”. Pensou que talvez alguma daquelas criaturas de mandíbulas ferozes morasse naquele riacho. – “Você tem razão, Ransom, respondeu a si mesmo. Este lugar não é muito seguro, não devemos passar a noite aqui, vamos descansar um pouco até você se sentir melhor e logo vamos andando. Mas não agora. Não neste momento”.

 

Foi a sede que fez com que acordasse. Havia dormido pesadamente e acordou banhado de luz; a seu lado estava a cascata, que os raios de sol faziam brilhar com reflexos que percorriam toda a escala do azul, que por sua vez iluminavam a parte de baixo das folhas da floresta. À medida que foi despertando, foi se lembrando da difícil situação em que se encontrava. Se não tivesse conseguido se desvencilhar e correr tanto, os “sorns” o teriam matado. Depois, lembrou-se com imenso alívio de que havia um homem vagando pela floresta, pobre coitado, gostaria de encontrá-lo. Chegaria junto dele e lhe diria: – “Como vai Ransom?” Aí parou intrigado. Não, era ele mesmo: ele era Ransom. Ou seria mesmo? Quem era o homem que ele tinha conduzido ao riacho morno e aconselhado a não beber daquela água? Certamente algum forasteiro que não conhecia a região tão bem quanto ele. Mas, de qualquer maneira, estava decidido a beber daquela água, – agora. Deitou-se na margem e mergulhou o rosto na corrente. Era muito boa de se beber, tinha um gosto acentuado de água mineral. Bebeu bastante e se sentiu muito melhor. Toda aquela história a respeito do outro Ransom era tolice. Estava bem consciente do perigo da loucura e se aplicou a fazer sua toalete com todo o entusiasmo. Não que a loucura tivesse muita importância. Talvez ele até já estivesse louco, e não em Malacandra, como pensava, mas sim numa cama, num hospício, em Londres. Tomara que isto fosse verdade. “Eu perguntarei a Ransom”, – que diabo! Já estava caindo outra vez no mesmo delírio. Levantou-se e saiu andando rapidamente.

Teve daqueles delírios freqüentemente, no decorrer da fuga. Aprendeu a assisti-los mentalmente, com tranqüilidade, deixando que passassem. Não adiantava se preocupar com eles; logo que passavam ele recuperava a sanidade mental. O problema mais importante era o da comida. Enterrou sua faca numa das “árvores”. O talo era macio como o de uma verdura e não duro como madeira. Cortou um pedacinho, e quando o fez, o imenso talo vibrou até a ponta; era como se ele estivesse sacudindo o mastro de um navio com uma só mão. Ao colocar o pedaço na boca não sentiu gosto de nada e começou a mastigá-lo. Continuou mastigando durante alguns minutos mas percebeu que era impossível engoli-lo e que só poderia ser usado como goma de mascar. Depois de algum tempo jogou aquele pedaço fora e, como a sensação tinha sido agradável, continuou cortando pedacinhos e mastigando-os.

Não era possível continuar fugindo, como na véspera, e resolveu sair a procura de alimento. A busca não podia ser precisa pois não sabia se em Malacandra havia comida para ele e se houvesse também não sabia como reconhecê-la. Durante a manhã levou um susto enorme, quando passava numa clareira e de repente percebeu uma enorme criatura amarela, depois duas e em seguida uma multidão delas vindo em sua direção. Antes que pudesse fugir, viu-se no meio de um rebanho de imensas criaturas peludas, que se pareciam mais com girafas do que com qualquer outra coisa de que pudesse se lembrar. Podiam, porém, se levantar nas patas de trás e dar alguns passos assim e além disto eram mais finas e muito mais altas que girafas. Viram-no e olharam para ele com seus grandes olhos líquidos, rosnando em “basso profundíssimo” mas sem nenhuma intenção hostil aparente. Estavam comendo as folhas do alto das plantas, com um apetite voraz. Em cinco minutos tinham mutilado a cabeça de centenas de árvores e aberto passagem para a entrada de mais raios solares na floresta. Quando já estavam fartas continuaram seu caminho.

Este episódio teve um efeito animador para Ransom; ficou sabendo que além dos “sorns” havia outras criaturas naquele planeta. Tinha visto uma espécie bem apresentável de animal, que provavelmente poderia ser domesticada pelo homem e de cuja comida certamente poderia compartilhar. Se ele conseguisse chegar ao topo das “árvores”! Estava olhando para cima, pensando como seria possível tentar realizar esta proeza, quando notou que a devastação das folhas causada pelos animais havia aberto um novo horizonte além do cimo das plantas. Avistou uma porção daquelas formas, de um branco esverdeado, que tinha visto do outro lado do lago quando chegou ao planeta.

Desta vez estavam muito mais próximas. Eram imensamente altas, forçando-o a jogar a cabeça para trás para poder ver a delas. De altura irregular, estavam agrupadas de maneira desordenada. Algumas terminavam em pontas que pareciam a Ransom tão agudas quanto agulhas, enquanto outras, após se estreitarem, alargavam-se outra vez formando uma espécie de plataformas que davam a impressão de poder cair a qualquer momento. Reparou que os lados eram mais ásperos e mais entremeados de fendas do que havia percebido a princípio, e entre duas delas viu um traço tortuoso de azul, que só poderia ser uma queda d’água. Foi isto que o convenceu de que, apesar de seu formato diferente, aquelas formas só podiam ser montanhas. Lá é que estava a afirmação total daquela propensão para o alto, que os animais, as plantas e o solo obedeciam em Malacandra – sim, naquela confusão de rochas, saltando em direção ao céu como jatos sólidos lançados de alguma fonte e pendurados no ar pela sua própria leveza, tão alongadas que, depois de as ter visto, todas as montanhas terrestres lhe davam a impressão de estar deitadas de lado. Sentiu uma alegria no coração.

Mas um segundo depois seu coração parou. Apareceu uma forma que se movimentava e que estava bem próxima dele. Reconheceu-a imediatamente quando passou entre duas plantas cujos topos haviam sido arrancados – aquela estatura gigantesca, aquela magreza cadavérica e aquele perfil comprido só podiam pertencer a um “sorn”. A cabeça era estreita e cônica e as mãos ou patas com que afastava as plantas, à medida que avançava, eram finas, ágeis, com qualquer coisa de aranha e quase transparentes. Teve logo a certeza de que estava procurando por ele. Reparou isto tudo numa fração de segundo. Aquela inesquecível imagem mal tinha chegado ao seu cérebro e ele já havia disparado para o interior da floresta.

Não tinha outro plano exceto colocar tantas milhas quanto fosse possível entre ele e o “sorn”. Rezou fervorosamente para que houvesse só um deles, ou talvez a floresta estivesse cheia e tivessem a inteligência de formar um círculo a sua volta. De qualquer maneira não havia nada a fazer senão continuar correndo, agarrado com a faca. O medo tinha se transformado todo em energia física. Emocionalmente estava calmo e alerta, e preparado para o último julgamento. Sua fuga o levou pela encosta abaixo a uma velocidade crescente; o declive se tornou tão forte que se o seu corpo estivesse sob a influência da gravidade terrestre teria sido obrigado a cair de quatro e ir rolando para baixo. Viu alguma coisa brilhante em sua frente e um minuto depois havia saído da floresta. Atingiu uma vastidão líquida, e os seus olhos descortinaram uma planície onde se encontravam um rio, um lago, uma ilha e um promontório, uma região igual aquela que vira logo ao chegar em Malacandra.

Não se ouvia ruído de perseguição. Ransom deitou-se e bebeu a água do rio, amaldiçoando um mundo onde parecia impossível achar água fria. Depois de satisfeita sua sede, permaneceu deitado recuperando o fôlego. Olhava para a água azul que parecia muito agitada. A uma distância de umas dez jardas de sua face estavam se formando círculos e saltavam bolhas sem cessar. De repente surgiu uma coisa redonda, brilhante e preta como uma bala de canhão. Olhou bem e viu que tinha olhos e uma boca. A coisa foi se movimentando em direção a praia. Ao chegar lá levantou-se nas patas de trás. Tinha uma altura de uns seis ou sete pés e, como tudo em Malacandra, era magra demais para sua altura. Coberta por uma camada de pêlo preto e grosso, brilhante como o de uma foca, suas pernas eram muito curtas, com pés membranosos, tinha um rabo mais ou menos como o de um peixe, membros superiores fortes com garras membranosas ou dedos, e no meio de sua barriga havia alguma coisa que Ransom calculou que fossem seus órgãos genitais. Era uma mistura de pingüim e foca; a magreza e a flexibilidade faziam com que parecesse também uma doninha gigantesca. Sua cabeça, grande e redonda, e os bigodes é que faziam lembrar uma foca, mas sua testa era mais alta do que a de uma foca e sua boca era menor.

Para um fugitivo chega sempre um ponto em que os seus atos de medo e precaução são puramente automáticos e não são mais sentidos por ele. Ransom se conservou perfeitamente imóvel, com o corpo enterrado o mais possível na vegetação, procurando passar despercebido. Não sentia quase nenhuma emoção. Pensou de uma maneira objetiva, que aquele, aparentemente, seria o fim da história – apanhado entre um “sorn” de um lado e um imenso animal preto do outro. Tinha, na verdade, uma vaga noção de que as mandíbulas e a boca do animal não eram do tipo que caracteriza a espécie carnívora, mas sabia também que seus conhecimentos de zoologia eram escassos demais para que pudesse ter certeza de qualquer coisa.

Aí aconteceu algo que transformou completamente seu estado de espírito. A criatura, que ainda estava se sacudindo na margem e que, obviamente, não o tinha visto, abriu sua boca e começou a emitir sons. Isto só não era nada de extraordinário, mas o seu imenso conhecimento lingüístico fez com que Ransom percebesse que aqueles sons eram articulados. A criatura estava falando, tinha uma língua. Se você não for um filólogo terá que acreditar na minha palavra – leitor –, de que as conseqüências emocionais da descoberta deste fato foram imensas para Ransom. Já tinha ele visto um mundo novo – mas uma língua nova, extraterrestre, inumana, era uma coisa fabulosa! Não havia pensado nesta possibilidade com relação aos “sorns”, e agora recebia aquilo como uma revelação maravilhosa. O amor à ciência é uma espécie de loucura. Na fração de segundo que levou para chegar à conclusão de que a criatura estava realmente falando, e apesar de ter consciência de estar arriscado a morrer a qualquer instante, Ransom, esquecendo o medo, já estava pensando no fascinante projeto de fazer uma gramática Malacandrista. Uma “Introdução à Língua de Malacandra” – “O Verbo Lunar”, “Pequeno Dicionário Marciano – Inglês”, todos estes títulos lhe vieram logo à cabeça. E as coisas que se poderiam descobrir com o estudo da língua de uma raça não humana? Talvez o princípio que rege todas as línguas possíveis fosse descoberto por ele. Sem sentir o que estava fazendo ergueu sua cabeça e apoiando-a num cotovelo ficou olhando para o animal, que se calou. A enorme cabeça redonda virou-se e olhou para ele. Não havia nem um pingo de vento. Durante alguns minutos, no mais completo silêncio, aqueles dois representantes de espécies tão diversas ficaram se encarando.

Ransom ajoelhou-se. A criatura saltou para trás, vigiando-o atentamente e depois imobilizou-se. Em seguida, a criatura deu um passo à frente; Ransom pôs-se de pé num salto e recuou mas não foi muito para trás, porque sua curiosidade era muito forte. Reuniu toda sua coragem e avançou com a mão estendida, mas a criatura interpretou mal seu gesto e recuou para dentro d’água. Ransom podia ver seus músculos retesados prontos para revidar qualquer ataque. A criatura não foi muito longe porque também devia estar curiosa. Nenhum deles deixava o outro se aproximar, mas tanto um como o outro tinham vontade de o fazer e cediam ao seu impulso. Era tolo, aterrorizante e insuportável, tudo ao mesmo tempo. Era como se estivessem fazendo a corte, como o encontro do primeiro homem e da primeira mulher no mundo. O mais estranho ainda era o encontro de duas espécies racionais tão diferentes.

A criatura, de repente, virou-se e começou a se afastar. Ransom foi tomado de um desapontamento tão forte que se assemelhava ao desespero.

– Volte, gritou em inglês. A criatura virou-se. Abriu os braços, falou outra vez em sua linguagem ininteligível e, em seguida, continuou se afastando. Andou umas vinte jardas e parou, abaixou-se e pegou qualquer coisa e voltou. Na sua mão (Ransom já estava chamando sua garra membranosa de mão) carregava uma coisa que parecia uma concha grande só que mais redonda. Mergulhou a concha no lago e encheu-a de água. Depois aproximou a concha de seu corpo e derramou qualquer coisa nela; Ransom pensou com nojo que estivesse urinando na concha. Depois, percebeu que as protuberâncias que havia na barriga da criatura não eram órgãos; ela usava uma espécie de cinto de onde pendiam diversas bolsas e era do conteúdo de uma destas que derramara algumas gotas n’água. Depois levou a concha aos seus lábios negros e bebeu, não jogando a cabeça para trás como um homem mas sim dobrando-a e sorvendo o líquido como um cavalo. Quando acabou, tornou a encher a concha e adicionou algumas gotas do mesmo receptáculo, uma espécie de cantil, que pendia de sua cintura. Segurando a concha com as duas mãos ofereceu-a a Ransom. A intenção era clara, mas, hesitando um pouco e quase encabulado, ele aceitou a concha. As pontas de seus dedos tocaram as garras membranosas da criatura e sentiu uma sensação misturada de atração e repulsão. Bebeu o que havia na concha e percebeu que o liquido adicionado à água era claramente alcoólico; foi a bebida mais gostosa que jamais tomara em toda sua vida.

– Muito obrigado, disse em inglês. Estou muito grato. A criatura bateu no próprio peito e emitiu um som.

Ransom a princípio não percebeu bem o que ele queria dizer. Depois percebeu que tentava lhe ensinar o seu nome, ou melhor o nome de sua espécie.

– “Hross”, dizia, “Hross”, e batia no peito.

– “Hross”, repetiu Ransom e apontou para ele; depois disse – Homem, apontando para seu próprio peito.

– Hme – hme – hme, imitou o “hross”. Pegou um punhado de terra do banco do lago.

– Handra, disse. Ransom repetiu a palavra, depois teve uma idéia.

– Malacandra? disse num tom interrogativo. O “hross” olhou para todos os lados e abriu os braços, num esforço de indicar toda a paisagem. Ransom ia indo muito bem. Handra era a terra, o elemento. Malacandra a “terra” ou planeta como todo. Logo ele descobriria o que queria dizer “Malac”. Reparou que o “h” desaparecia antes do “c” dando o primeiro passo na fonética da língua de Malacandra. O “hross” agora tentava lhe ensinar a palavra “handramit”. Reconheceu novamente a raiz “handra” (e notou que tinham sufixos e prefixos) mas não conseguia entender o significado da palavra, e ficou sem saber o que queria dizer “handramit”. Tomou então a iniciativa: abriu a boca, apontou para a mesma e por meio de pantomima reproduziu a ação de comer. A palavra equivalente para comida ou comer que lhe foi então dita continha consoantes impossíveis de serem reproduzidas pela boca humana. Ransom explicou então, ainda por meio de gestos, que seu interesse além de filológico era também prático. O “hross” compreendeu seus gestos e convidou-o a acompanhá-lo.

Levou-o até aonde tinha apanhado a concha e lá, para espanto de Ransom, achava-se ancorado uma espécie de bote. Quando viu o bote ficou mais convencido da racionalidade do “hross”. Deu até mais valor à criatura porque o bote era muito parecido com os da Terra, se não se levasse em conta a habitual altura e leveza das coisas em Malacandra. Só mais tarde é que perguntou a si mesmo, – “Mas afinal de que outra maneira poderia ser um bote?” O “Hross” apanhou um prato oval de um material forte mas ligeiramente flexível, encheu-o de tiras de uma substância esponjosa, cor de laranja, e o estendeu para Ransom. Este cortou um pedaço pequeno com sua faca e começou a comer, a princípio com hesitação e depois com sofreguidão. Tinha um gosto de vagem, só um pouco mais doce, mas para um homem morto de fome estava ótimo. Depois, quando sua fome foi satisfeita, a consciência da estranha situação em que se encontrava foi retornando. A companhia daquela enorme criatura, parecida com uma foca, sentada ao seu lado, estava se tornando apavorante. Até agora só havia dado demonstrações de amizade, mas era muito grande, muito preto e ele realmente não sabia nada a respeito dela.

Quais seriam as suas relações com os “sorns”? E seria ela tão racional como parecia?

Foi só depois de muitos dias que Ransom descobriu como controlar aquelas desconfianças súbitas, que apareciam quando o fato – de que o “hross” tinha a faculdade de raciocinar – fazia com que se pensasse nele como um homem. Aí, a idéia de um homem de sete pés de altura, coberto de pêlo negro era insuportável. Porém, quando, ao contrário, se considerava o “hross” como um animal com um pêlo brilhante, hálito suave e dentes brancos, e que além disto tudo ainda tinha, como no tempo do Paraíso e das fábulas, a faculdade de raciocinar e falar, a idéia era encantadora. Nada podia ser mais revoltante do que a primeira idéia e nada mais interessante do que a segunda. Era tudo uma questão de ponto de vista.

 

Quando Ransom terminou sua refeição e acabou de beber mais um pouco daquela água forte de Malacandra, seu hospedeiro levantou-se e entrou no bote. Entrou de cabeça como um animal, seu corpo sinuoso permitia que colocasse suas mãos no fundo do barco enquanto seus pés ainda estavam em terra. Completou a operação da entrada atirando a parte traseira de seu corpo para cima, a uma altura de cinco pés, com uma agilidade espantosa que seria impossível num animal de seu tamanho na Terra, e aterrissando no lugar certo dentro do barco.

Mal acabou de entrar no barco saiu outra vez e apontou para o mesmo. Ransom compreendeu que ele o estava convidando a seguir seu exemplo. A coisa que mais tinha vontade de saber infelizmente não podia perguntar ao seu novo companheiro. Seriam os “hrossa” (descobriu mais tarde que era este o plural de “hross”) a espécie superior em Malacandra e os “sorns”, apesar de seu aspecto parecido com o dos homens, uma espécie de gado semi-inteligente? intimamente torceu fervorosamente para que isto fosse verdade. Por outro lado, os “hrossa” poderiam ser os animais domésticos dos “sorns”, que neste caso seriam super-inteligentes. Sua imaginação estava treinada de maneira a associar inteligência super-humana com um aspecto monstruoso e uma crueldade extrema. Se entrasse no barco do “hross” talvez tivesse que se entregar aos “sorns” no fim da viagem. Mas talvez e aceitasse este convite conseguisse escapar daquelas florestas habitadas pelos “sorns”. Afinal, decidiu-se a acompanhar o “hross”; não poderia afastar-se dele; apesar de ficar chocado pelo seu aspecto animal, tinha imensa vontade de aprender sua linguagem e havia ainda a fascinação do desconhecido, a idéia de que a chave de uma prodigiosa aventura estava sendo presenteada a ele. Todos estes fatores fizeram com que entrasse no bote.

O bote não tinha bancos. Tinha uma proa muito alta, e uma parte muito pequena encostava na água; parecia-se com uma lancha a motor muito moderna. Estava amarrado por alguma coisa que a primeira vista parecia uma corda, mas o “hross”, em vez de desamarrá-la, simplesmente a partiu em duas. Depois agachou-se no fundo do barco e pegou um remo com uma pá tão grande que Ransom se admirou de que pudesse manejá-lo, mas depois lembrou-se de que o planeta em que estavam era muito leve. O “hross” remava com muita velocidade.

Durante os primeiros minutos passaram entre bancos cheios de árvores roxas, num estreito que devia ter umas cem jardas de largura. Depois, dobraram um promontório e saíram numa extensão de água muito mais larga – um lago muito grande, quase um mar. O “hross” afastou-se bastante da margem remando com muito cuidado e mudando de direção freqüentemente. A fulgurante extensão de azul alargava-se cada vez mais à volta deles e Ransom não agüentava olhar firme para ela. O calor da água era intenso; tirou seu gorro e seu casaco, o que surpreendeu o “hross”.

Levantou-se cuidadosamente e observou a paisagem de Malacandra. Diante dele estava o lago rebrilhante, ali, pontilhado de ilhas, mais adiante, sorrindo ao pálido céu azul; reparou que o sol estava quase sobre suas cabeças – ele se encontrava nos trópicos de Malacandra. Nas margens, o lago desaparecia entre agrupamentos de terra e água mais complicados, desaparecendo docemente na gigantesca vegetação púrpura. Esta terra pantanosa ou cadeia de arquipélagos era cercada dos dois lados por muralhas de pálidas montanhas esverdeadas, que dificilmente se podia chamar de montanhas tal era sua altura; eram, além disto, tão escarpadas e estreitas que davam uma impressão de falta de equilíbrio. A estibordo ficavam a uma distância de milha e meia aproximadamente e pareciam separadas d’água por uma estreita faixa de florestas; à esquerda ficavam bem mais distantes, a umas sete milhas talvez. Havia montanhas nas duas margens, tão longe quanto sua vista podia alcançar; na verdade, ele estava navegando no fundo inundado de um “canyon” majestoso de umas dez milhas de largura e de comprimento desconhecido. Por trás e por cima dos picos da montanha ele podia ver, em diversos lugares, massas encrespadas de uma substância de um côr-de-rosa forte que na véspera havia tomado por nuvens. Por trás das montanhas o solo não descia; elas eram na verdade o bastião compacto de extensos planaltos, em alguns lugares, mais altos do que elas, e que formavam o horizonte de Malacandra à esquerda e à direita. Somente bem em frente e bem atrás é que o planeta era cortado por aquela enorme garganta, que agora parecia ser apenas uma fenda no imenso planalto.

Ficou imaginando o que poderiam ser aquelas massas avermelhadas que pareciam nuvens. Perguntou por meio de sinais o que era aquilo, mas não foi compreendido. O “hross” entendeu que ele estava perguntando o que era a parte mais alta em geral e chamou-a de “harandra”. A parte baixa cheia de água, a garganta ou “canyon”, era chamada de “handramit”. Ransom percebeu que “handra” queria dizer terra, “harandra” terra alta, montanha, “handramit” terra baixa, vale. A importância especial desta distinção na geografia de Malacandra ele só aprendeu mais tarde.

Nesta altura, o “hross” atingiu o fim que procurara alcançar com sua navegação cuidadosa. Estavam a algumas milhas da terra quando o “hross” parou de remar de repente e ficou imóvel com o remo no ar; ao mesmo tempo, o bote estremeceu e precipitou-se para a frente como se fosse lançado por uma catapulta. Estavam certamente aproveitando alguma corrente. Em poucos segundos estavam navegando a uma velocidade de umas quinze milhas por hora, subindo e descendo nas ondas estranhas e perpendiculares com um movimento brusco muito diferente daquele que Ransom havia experimentado nas ocasiões em que pegara mar bravo na Terra. Tinha mais a impressão de estar montado num cavalo de trote do exército e a sensação era extremamente desagradável. Agarrou-se na amurada com a mão esquerda e com a direita enxugava o suor que lhe corria da testa – o calor que vinha da água era sufocante. Ficou pensando se a comida e a bebida de Malacandra seriam digeríveis por um estômago humano. Graças a Deus ele era um bom marinheiro! Pelo menos um marinheiro razoável. Isto é...

Debruçou-se rapidamente sobre a amurada. O calor que subia da água azul fazia com que se sentisse ainda pior; teve a impressão de ver enguias brincando no fundo, enguias longas e prateadas. Teve que se debruçar na amurada diversas vezes. No meio daquele terrível mal estar lembrou-se perfeitamente da vergonha que sentira uma vez, há muito tempo, quando ficara enjoado numa festa de crianças lá naquela estrela distante onde tinha nascido. Sentia aquela mesma vergonha agora. Esta não era certamente a maneira indicada para o primeiro representante da raça humana se apresentar diante de um membro de uma espécie diferente. Será que os “hrossa” também vomitavam? O “hross” saberia o que ele estava fazendo? A criatura o estava vigiando, mas sua cara não tinha expressão nenhuma; só muito tempo depois é que aprendeu a ler as expressões das fisionomias em Malacandra.

Enquanto isto acontecia a corrente parecia estar aumentando de velocidade. Seguiam agora um curso sinuoso, numa grande rapidez, passando por floresta atrás de floresta, sem nem enxergá-las direito. Ransom estava perdendo todo o interesse por Malacandra, a diferença entre a Terra e os outros planetas não tinha importância nenhuma diante da grande diferença entre a terra firme e a água. Ficou pensando desesperado se o “hross” vivia habitualmente na água. Talvez fossem passar a noite naquele barco detestável...

Seus sofrimentos, porém, não duraram muito. Sentiu que o balanço diminuía e que a velocidade ficara muito menor. Estavam numa espécie de canal estreito, bastante próximos da margem, tanto de um lado como de outro. O “hross” pulou para fora do bote, espirrando uma porção de água morna; Ransom saiu também para a água que lhe chegava aos pés, procurando manter-se firme. Para grande espanto seu, o “hross”, sem dar a impressão de esforço, tirou o barco do canal e colocou-o no alto da cabeça. Equilibrou-o com um braço e saiu andando ereto, como uma cariátide grega, em direção à margem. Foram andando ao longo do canal, se é que se podia chamar o movimento de pernas curtas e flexíveis do “hross”, de andar. Dentro de poucos minutos Ransom viu uma nova paisagem.

O canal em que estavam era um salto, o primeiro de uma série, pelos quais a água descia numa extensão de cerca de meia milha. O chão ia descendo e o “canyon” ou “handramit” continuava num nível muito mais baixo. Suas paredes porém não desciam com ele, e Ransom, da posição em que se encontrava agora, teve uma noção muito mais clara da topografia da região. Podia-se ver muito melhor os planetas da esquerda e da direita, alguns cobertos com aquelas massas vermelhas parecidas com nuvens, mas a maioria inteiramente planos, pálidos e áridos até onde a linha de seu horizonte se unia com a do céu. Os picos das montanhas, agora, apareciam somente como uma franja ou barra dos verdadeiros planaltos, cercando-os como os dentes de baixo cercam a língua. O contraste entre “harandra” e o “handramit” era marcante. O desfiladeiro se estendia diante dele como um fio de jóias vermelhas, azuis, amarelas e brancas onde a terra e a água se misturavam num quadro da maior beleza. Malacandra era menos parecida com a Terra do que supusera. O “handramit” não era um vale verdadeiro subindo e descendo com a cadeia de montanhas a que pertencia. Na realidade não pertencia a uma cadeia de montanhas, era apenas uma enorme fenda de profundidade variável, passando através do “harandra” alto e plano; ele estava começando a suspeitar que esta última era a verdadeira “superfície” do planeta – pelo menos seria esta a superfície que se apresentaria a um astrônomo terrestre. O “handramit” parecia não ter fim; estendia-se diante dele por umas cem milhas aproximadamente; calculava que houvessem percorrido umas trinta ou quarenta milhas desde a véspera.

Foram descendo ao lado dos saltos até que a água tivesse profundidade bastante para que o “hross” pudesse colocar seu bote novamente nela. Durante a caminhada, Ransom aprendeu as palavras para bote, salto, água, sol e carregar; interessou-se particularmente por este último, por ser o primeiro verbo que aprendeu. O “hross” fazia grandes esforços para chamar sua atenção para uma associação ou ligação que tentava explicar pela repetição de pares contrastantes de palavras tais como “hrossa-handramit” e “séroni-harandra”. Ransom compreendeu que o que estava tentando explicar era que os “hrossa” viviam em baixo no “handramit” e os “séroni” lá em cima no “harandra”. Mas quem seriam os “séroni”? Tinha a impressão de que os “harandra” eram desabitados. Talvez os “hrossa” tivessem uma mitologia, ele estava certo de que seu nível cultural era baixo, e os “séroni” fossem deuses ou demônios.

A viagem continuou e, durante algum tempo, Ransom ainda se sentiu enjoado, melhorando aos poucos. Muitas horas depois, chegou a conclusão de que “séroni” provavelmente era o plural de “sorn”.

O sol foi descendo à direita; descia mais rápido do que na Terra, ou pelo menos do que nas regiões da Terra que Ransom conhecia, e naquele céu sem nuvens o crepúsculo não tinha o menor esplendor. Havia, indefinível, uma diferença entre um e outro sol e enquanto procurava descobrir exatamente o que era, o “handramit” escureceu, ao passo que, do lado esquerdo, as terras altas do “harandra” ainda brilhavam com uma luz côr-de-rosa, tranqüilas como um outro mundo mais espiritual.

Pouco depois percebeu que estavam atracando, e, saindo do barco, foram caminhando em terra firme na direção da floresta púrpura. Sentia ainda o balanço do barco e tinha a impressão que a terra se movimentava sob seus pés. Isto, aliado ao cansaço e à luz crepuscular, fez com que esta jornada parecesse irreal. De repente, viu a luz forte de uma fogueira. As chamas iluminavam as imensas folhas e ele viu as estrelas lá no alto. Foi cercado por dezenas de “hrossa”; em multidão lhe pareceram menos humanos e mais animais do que quando vira seu guia solitário. Teve um pouco de medo, mas o que predominava era uma sensação de isolamento. Precisava ver homens, quaisquer que fossem, até mesmo Weston e Devine. Sentia-se exausto e aquelas cabeças peludas, com aquelas caras sem expressão, o deprimiam ainda mais. Aí reparou nos menorzinhos, que estavam mais perto dele, os filhotes dos “hrossa”, e animou-se outra vez. Eram umas criaturas alegres e engraçadinhas. Colocou a mão na cabeça preta de um deles e sorriu: o filhote afastou-se meio assustado.

Nunca conseguiu se lembrar bem daquela noite. Houve muita comedoria e bebidas, um vai e vem constante de formas negras, olhos estranhos que brilhavam na luz da fogueira e finalmente um sono reparador em algum lugar escuro e coberto.

 

Desde a hora em que voltara a si na nave do espaço Ransom ficara pensando na extraordinária aventura que estava lhe acontecendo, de viajar para um outro planeta, e na possibilidade que teria de voltar à Terra. O que não pensara era em viver num outro planeta. Cada manhã, ao acordar, ficava como que estupefato de não estar nem chegando, nem partindo, mas simplesmente vivendo em Malacandra: acordando, dormindo, comendo, nadando e até mesmo, com o correr do tempo, conversando. Depois de transcorridas três semanas, saiu uma tarde para dar uma volta e depois de um mês já tinha seus passeios favoritos, e suas comidas preferidas; estava começando a formar hábitos. Distinguia imediatamente um “hross” macho, da fêmea, e até mesmo as diferenças individuais já eram percebidas por ele com facilidade. Hyoi, que o tinha encontrado, era muito diferente do venerável Hrohra, que lhe ensinava sua língua, diariamente; e os filhotes eram inteiramente diferentes. Eram muito divertidos e quando se estava com eles podia-se esquecer totalmente a idéia da racionalidade dos “hrossa”. Eram pequenos demais para perturbá-los com o enigma da razão encontrada numa espécie não humana, consolavam-no de sua solidão com suas brincadeiras e era como se tivessem permitido que trouxesse uns cachorrinhos com ele da Terra. Os filhotes, por sua vez, se divertiam muito com aquele duende sem pêlos, que tinha aparecido no meio deles. E o grande sucesso com os pequenos fazia com que os grandes gostassem de Ransom.

As primeiras impressões que tinha tido da comunidade estavam mudando pouco a pouco. A princípio, classificou a cultura dos “hrossa” como equivalente a da idade da pedra. Os poucos instrumentos cortantes que possuíam eram feitos de pedra. Não pareciam entender nada de olaria. Tinham só algumas vasilhas grosseiras, que usavam para cozinhar. Todos eles usavam aquela concha na qual Hyoi lhe oferecera bebida pela primeira vez. O peixe que se encontrava naquela concha era seu único alimento animal. Havia muitas verduras e algumas delas deliciosas. Aquela vegetação de um branco rosado que cobria todo o “handramit” podia ser comida, de modo que, se tivesse morrido de fome antes que Hyoi o encontrasse, teria perecido no meio da abundância. Nenhum “hross”, porém, comeria aquela erva (honodraskrud) por gosto, apesar de recorrer a ela, numa viagem, se não houvesse nada de melhor. Suas habitações eram cabanas arredondadas, cobertas de folhas, e por causa do calor junto das paredes dos planaltos onde a água era mais quente. Dormiam no chão. Pareciam não conhecer nenhuma arte exceto uma espécie de poesia e música que era praticada toda noite por uma trupe de quatro “hrossa”. Um deles declamava meio cantando, longamente, enquanto os outros três, de vez em quando, o interrompiam com cantos. Ransom não conseguia descobrir se as interrupções eram interlúdios líricos ou se ocorria um diálogo dramático entre os três e o seu chefe. As vozes não eram desagradáveis mas o ritmo era estranho. A princípio, a ocupação da tribo ou da família lhe parecia misteriosa. As pessoas desapareciam durante diversos dias e depois reapareciam. Usavam os botes para pescar e para empreender jornadas cujo fim ele nunca descobriu. Finalmente, um dia, viu uma espécie de caravana de “hrossa” partir com um carregamento de verduras nas suas cabeças. Aparentemente havia uma espécie de comércio em Malacandra.

Descobriu sua agricultura na primeira semana. Mais ou menos meia milha do handramit era uma extensão de terras livres de florestas e cobertas por uma vegetação baixa na qual predominavam o amarelo, o azul e o alaranjado. Também havia plantas parecidas com alfaces, mais ou menos da altura de uma pequena árvore, sendo que algumas ficavam à beira d’água e era delicioso a gente se deitar, como numa rede, numa das folhas mais baixas, aquecidas pelo calor da água próxima. Em qualquer outro lugar fora de casa não fazia calor bastante para que se pudesse ficar parado muito tempo. A temperatura comum do handramit era a de uma manhã de inverno na Terra. Estas regiões produtoras de alimentos eram cultivadas comunalmente pelas aldeias vizinhas e havia uma perfeita divisão de trabalho. Os serviços de corte, secagem, armazenagem, transporte e adubação eram feitos com métodos e ele suspeitava que pelo menos alguns dos canais de água eram artificiais.

Mas sua opinião sobre a capacidade de compreensão dos “hrossa” mudou realmente quando já havia aprendido bastante de sua língua para procurar satisfazer a curiosidade que sentiam sobre sua pessoa. Começou a responder perguntas, dizendo que tinha vindo do céu. Hnohra imediatamente lhe perguntou de que planeta ou terra (handra). Ransom, que dera uma explicação infantil de propósito, para se adaptar à ignorância com que ele supunha dominar o auditório, ficou meio aborrecido de ouvir Hnohra a explicar que ele não podia viver no céu porque lá não havia ar; podia ter vindo através do céu mas tinha que viver numa handra. Não conseguiu lhes mostrar a Terra no céu. Demonstraram surpresa de que não a encontrasse e mostraram insistentemente a ele um planeta brilhante no lado ocidental, um pouco abaixo do lugar onde descia o sol. Picou espantado de ver que tinham escolhido um planeta em vez de uma estrela e que se mantinham firmes na sua escolha. Será que entendiam de astronomia? Infelizmente não conhecia ainda bastante a língua para fazer-lhes mais perguntas sobre seus conhecimentos. Perguntou-lhes então qual era o nome daquele brilhante planeta, e responderam-lhe que era Thulcandra – o mundo ou planeta silencioso.

– Por que o chamam de Thulc? indagou. Por que silencioso?

Mas ninguém sabia.

– Os “séroni” sabem, disse Hnohra. Este é o tipo de coisa que eles sabem.

Depois lhe perguntaram como tinha vindo, e ele fez uma tentativa de descrever a nave do espaço, e, mais uma vez:

– Os “séroni” sabem.

Tinha vindo sozinho? Não, tinha vindo com mais dois de sua espécie – homens maus (homens “tortos” era a expressão mais aproximada na língua dos “hrossa”) que haviam tentado matá-lo, mas tinha conseguido fugir deles. Os “hrossa” acharam aquela história muito complicada mas no final todos concordaram em que devia procurar Oyarsa. Oyarsa o protegeria. Ransom perguntou quem era Oyarsa; com muita dificuldade e paciência conseguiu descobrir que Oyarsa (1) morava em Meldilorn, (2) sabia tudo e governava todos, (3) sempre estivera lá e (4) não era nem um “hross” nem um “séroni”. Depois, Ransom, de acordo com suas próprias idéias, perguntou se Oyarsa tinha feito o mundo. Os “hrossa” negaram veementemente. Então as pessoas em Thulcandra não sabiam que Maleldil , o Moço, tinha feito o mundo e ainda o governava? Até uma criança sabia disto. Ransom perguntou aonde morava Maleldil .

– Com o Velho.

E quem era o Velho? Ransom não compreendeu a resposta e fez outra tentativa:

– Onde mora o Velho?

– Ele não precisa morar em lugar nenhum, respondeu Hnohra, e continuou a falar. Ransom não compreendia perfeitamente o que ele dizia mas entendeu bastante para ficar um pouco irritado. Desde que descobrira que os “hrossa” eram racionais se sentira perseguido por um escrúpulo de consciência sobre se não seria seu dever dar-lhes instrução religiosa, e agora eles os estavam tratando como se fosse um selvagem e lhe estivessem dando uma primeira noção de religião civilizada, uma espécie de catequização. Tornou-se evidente que Maleldil era um espírito desprovido de corpo e de paixões.

– Ele não é um “hnau”, disseram os “hrossa”.

– O que é um “hnau”? perguntou Ransom.

– Você é “hnau”. Eu sou “hnau”. Os “séroni” são “hnau”. Os “pfifltriggi” são “hnau”.

– “Pfifltriggi”? perguntou Ransom espantado.

– Moram há mais de dez dias de viagem na direção do oeste, disse Hnohra. O harandra desce, não num handramit, mas num lugar amplo, aberto, que se estende para todos os lados. Em cinco dias se vai do norte ao sul deste lugar, e, em dez, de leste a oeste. Lá, as florestas têm cores diferentes das daqui, são azuis e verdes. O lugar é muito profundo, vai até as raízes do mundo, e as melhores coisas que se pode tirar de dentro da terra ali se acham. É onde habitam os “pfifltriggi”. Eles adoram escavar a terra. O que tiram de dentro amolecem com o fogo e fazem objetos com aquela substância. São pessoas pequeninas, menores que você, com rostos compridos, são pálidos e estão sempre muito ocupados. Seus membros superiores são compridos. Nenhum “hnau” pode se comparar a eles na arte de fazer e modelar coisas, como nenhum pode cantar tão bem como nós. Você os verá.

Virou-se e disse qualquer coisa a um dos “hrossa” e este foi buscar uma pequena taça que passando de mão em mão chegou até Ransom. Examinou-a ao clarão da fogueira e teve a certeza de que era feita de ouro; compreendeu então o interesse de Devine em Malacandra.

– Tem muito disto por aqui?

Disseram-lhe que sim, que era encontrado na maioria dos rios mas que a maior quantidade e a melhor qualidade existiam na região dos “pfifltriggi” e que estes é que sabiam utilizá-lo. Chamavam-no de “Arbol hru” – sangue do sol. Olhou a taça novamente, e viu que estava coberta de delicados desenhos. Havia figuras representando os “hrossa”, outras, umas criaturas pequenas parecidas com sapos, e ainda os “sorns”. Apontou para estes últimos interrogativamente.

– “Séroni”, disseram os “hrossa” confirmando suas suspeitas. Moram lá em cima, próximo ao “harandra”, nas grandes cavernas.

As criaturas com corpos parecidos com sapos e cabeças de tapir eram os “pfifltriggi”. Ransom ficou então sabendo que em Malacandra havia três espécies distintas que tinham a faculdade de raciocínio, e que nenhuma delas havia exterminado as outras duas. Ficou muito interessado em saber qual seria a espécie governante.

– Qual dos “hnau” governa? perguntou.

– Oyarsa governa, responderam-lhe.

– Ele é um “hnau”?

Não sabiam bem o que responder a isto, achavam que os “séroni” provavelmente saberiam lhe explicar isto melhor. Talvez Oyarsa fosse “hnau”, mas um “hnau” muito diferente, não era mortal e não tinha filhos.

– Os “séroni” sabem mais que os “hrossa”? indagou Ransom.

Esta pergunta provocou um debate e não lhe deram uma resposta definida. Disseram-lhe que os “séroni” não sabiam como manejar um barco, não sabiam pescar, nadavam muito mal, não sabiam fazer poesia e mesmo quando os “hrossa” a faziam para eles só conseguiam entender as mais simples. Mas por outro lado sabiam muitas coisas a respeito das estrelas e compreendiam o significado das palavras mais obscuras de Oyarsa e sabiam ainda o que tinha acontecido em Malacandra há muito tempo atrás, há tanto tempo que ninguém mais se lembrava.

– Ah! A “intelligentsia”, pensou Ransom. Devem ser eles os verdadeiros governantes, mas disfarçadamente.

Tentou perguntar o que aconteceria se os “sorns” usassem sua sabedoria para forçar os “hrossa” a fazer coisas, mas seu pouco conhecimento da língua de Malacandra não permitia que fosse muito longe em suas indagações. A questão posta desta maneira não parecia tão importante como se tivesse podido perguntar se usavam seus recursos científicos para explorar seus vizinhos menos civilizados. De qualquer maneira estaria perdendo seu tempo, porque ao ser mencionada a incapacidade dos “sorns” de apreciar poesia a conversa havia se desviado para o terreno literário. Não conseguiu entender nada da animada discussão que se seguiu.

Naturalmente suas conversas com os “hrossa” não eram somente sobre Malacandra; tinha que lhes fornecer informações sobre a Terra. Isto era difícil tanto pela humilhante descoberta de que ignorava muitas coisas sobre seu próprio planeta, como ainda pelo fato de que desejava ocultar alguns fatos. Não queria lhes contar muito sobre as guerras e a industrialização humana. Lembrava-se de como o personagem Cavor, do livro de H. G. Wells, tinha encontrado seu fim na Lua. Além disto, sentia-se encabulado, ficava como que envergonhado quando lhe faziam muitas perguntas sobre os homens. Havia ainda o fato de que não queria que soubessem que o tinham levado lá para entregá-lo aos “sorns”, pois dia a dia ficava mais certo de que esses eram a espécie dominante. As informações que lhes deu alimentaram a imaginação dos “hrossa”. Todos começaram a fazer poemas sobre o estranho “handra” onde as plantas eram duras como pedra, a vegetação verde como rocha, as águas frias e salgadas e os “hmena”, como os chamavam, viviam no alto no “harandra”.

Ficaram ainda mais interessados na história que lhes contou de que havia fugido de um animal aquático, com imensas mandíbulas, lá mesmo no mundo deles, em seu próprio “handramit”. Concordaram todos em que só podia ter sido um “hnakra”. Ficaram animadíssimos pois há muito anos não se via um “hnakra” no vale. Os jovens apanharam suas armas, arpões primitivos com pontas de osso, e até as crianças começaram a brincar de caçar “hnakra”. Algumas das mães ficaram assustadas e não queriam que as crianças brincassem perto d’água. Hyoi saiu logo para preparar seu barco e Ransom o acompanhou. Queria se fazer útil e estava imaginando se saberia manejar as armas primitivas usadas pelos “hrossa”. Foram andando para o riacho onde Hyoi guardava o barco.

O caminho para lá passava pela floresta e era estreito, de maneira que Ransom ia andando atrás de Hyoi. Passaram por uma pequena “hross” bem criança e ele reparou que ela ia falando, mas não com eles; seus olhos estavam fixos num ponto a umas cinqüenta jardas.

– Com quem é que você está falando, Hrikki? perguntou Ransom.

– Com o “eldil”.

– Onde?

– Você não viu ele?

– Não vi nada.

– Ali, bem ali! disse ela. Ah! Ele foi embora, mas você não viu ele?

– Não vi ninguém.

– Hyoi! disse a criança, o “hme” não vê o “eldil”.

Mas Hyoi, que havia continuado a andar, não ouviu nada e foi continuando. Ransom concluiu que Hrikki certamente estava imaginando coisas como as crianças na Terra, e seguiu seu companheiro sem se preocupar mais com o incidente.

 

Trabalharam com afinco no barco de Hyoi até o meio dia e depois se esticaram na vegetação, próximo ao calor do riacho, onde almoçaram. Os preparativos de natureza guerreira que estavam fazendo no barco despertaram a curiosidade de Ransom. Ele não sabia a palavra equivalente a guerra mas conseguiu fazer com que Hyoi compreendesse o que queria saber. Os “séroni”, os “hrossa” e os “pfifltriggi” costumavam sair assim armados e atacar uns aos outros?

– Para que? perguntou Hyoi. Era difícil explicar.

– Se dois grupos quisessem a mesma coisa e nenhum cedesse, exemplificou Ransom, – será que algum deles tentaria tomá-la a força? Poderia talvez dizer: ou você nos dá isto ou nós lhe matamos?

– Que espécie de coisa?

– Bem, comida por exemplo.

– Se os outros “hnau” quisessem comida por que não haveríamos de dar? Nós o fazemos, habitualmente.

– Mas no caso de não haver suficiente para nós?

– Maleldil não vai parar o crescimento das plantas.

– Hyoi, se vocês tivessem muitos e muitos filhos, Maleldil alargaria o handramit e faria com que houvesse plantas suficientes para alimentar a todos?

– Os “Séroni” sabem estas coisas. Mas por que teríamos nós mais filhos?

Ransom achou esta pergunta difícil de responder. Finalmente perguntou:

– Entre os “hrossa” não é considerado um prazer engendrar filhos?

– Sim, é considerado um prazer muito grande. É o que nós chamamos de amor.

– Se uma coisa é um prazer, um “hme” gosta de repeti-lo. Pode querer ter este prazer mais vezes do que o número de filhos que poderiam ser alimentados..

Hyoi custou muito a entender o que Ransom tentava explicar.

– Você quer dizer, falou lentamente, – que ele pode não querer fazê-lo só durante um ou dois anos de sua vida, mas seguidamente?

– Sim, é isto mesmo.

– E por quê? Ele não ia querer almoçar durante o dia todo ou dormir depois de já ter dormido. Não compreendo isto.

– Mas todo dia come-se um almoço. E você disse que entre os “hrossa” este amor acontece só uma vez na vida.

– Mas ocupa toda a vida quando o “hross” é moço tem que procurar sua companheira e depois tem que lhe fazer a corte, em seguida tem os filhos, cria-os e mais tarde lembra-se de tudo isto. Medita sobre o que passou e escreve poemas e transforma-o em sabedoria.

– E ele se contenta de apenas se lembrar do prazer?

– Isto é o mesmo que dizer “eu me contento de apenas comer minha comida”.

– Não entendo.

– Um prazer só atinge sua plenitude quando ele é lembrado. Você está falando, Hme, como se o prazer fosse uma coisa e a lembrança outra. Mas não é assim, eles são a mesma coisa. Os “séroni” poderiam dizê-lo melhor do que eu o estou fazendo, mas não melhor do que se eu o dissesse num poema. O que você chama de recordar é a última fase do prazer, como o “crah” é a última parte de um poema. Quando você e eu nos encontramos, tudo se passou num instante, não foi nada. Agora, à medida que nós nos lembramos do encontro, ele vai se transformando em alguma coisa. Mas ainda sabemos muito pouco a respeito deste encontro. O que ele será quando eu recordá-lo ao me deitar para morrer, o que ele significa para mim todos estes dias até lá, isto, sim, é o verdadeiro encontro. O outro é só o começo dele. Você me disse que vocês têm poetas no seu mundo: eles não ensinam isto?

– Alguns deles talvez, respondeu Ransom. Mas mesmo num poema, por exemplo, um “hross” nunca tem vontade de ouvir uma estrofe maravilhosa outra vez?

Infelizmente a resposta de Hyoi não foi perfeitamente compreendida por Ransom. Usou dois verbos que significavam ambos, pelo que pôde compreender, desejar ou suspirar por alguma coisa, mas os “hrossa” faziam uma grande diferença entre os dois, chegava a ser até uma oposição. Parecia-lhe que Hyoi dizia que todos deviam desejá-lo (wondelone) mas que ninguém que fosse sensato poderia suspirar por isto (hlunteline).

– E na verdade o poema é um bom exemplo, continuou, pois a estrofe mais maravilhosa só se torna perfeita por causa das estrofes que se seguem a ela. Se voltássemos a ela veríamos que era menos maravilhosa do que pensávamos. Nós o mataríamos. Estou falando de um bom poema.

– Mas, e um mau poema?

– Não se ouve um mau poema, Hme.

– E o amor numa vida infeliz?

– Como poderia ser infeliz a vida de um “hnau”?

– Você quer dizer que não existem “hrossa” desajustados?

Hyoi refletiu. – Ouvi falar, disse finalmente – de alguma coisa que acho que é o que está querendo dizer. Dizem que às vezes um jovem desenvolve tendências estranhas, como aquele de que ouvi contar, que queria comer terra; talvez haja em algum lugar um “hross” que queira que seus anos de amor sejam prolongados. Nunca ouvi falar disto, mas pode ser que aconteça. Ouvi falar uma coisa ainda mais estranha. Há um poema sobre um “hross” que viveu há muito tempo, num outro handramit, que via tudo dobrado, via dois sóis no céu, duas cabeças num só corpo e por fim dizem que ficou num tal frenesi que queria duas companheiras. Não estou pedindo que você acredite, mas isto é o que dizem, que ele amou duas “hressni”.

Ransom refletiu sobre o que Hyoi lhe dissera; a menos que o tivessem enganado, os “hrossa’’ eram uma espécie naturalmente moderada e naturalmente monógama. E por que seria isto tão extraordinário? Sabia que alguns animais tinham épocas de procriação, e se a natureza podia realizar o milagre de exteriorizar o impulso sexual, por que não poderia ir um pouco mais longe e fixá-lo, não moralmente, mas instintivamente a um só objeto? Lembrou-se vagamente de ter ouvido falar em alguns animais terem estresse, das espécies inferiores, que eram naturalmente monógamos. De qualquer modo, entre os “hrossa”, claro que a procriação ilimitada de filhos e a promiscuidade eram tão raras quanto as mais horrendas perversões. Chegou finalmente a conclusão de que o grande mistério não eram os “hrossa” e sim sua própria espécie. Era algo surpreendente que os “hrossa” tivessem estes instintos, mas o mais estranho era que seus instintos se assemelhassem tanto aos ideais inatingidos da espécie humana, que os tinha tão diferente. Qual era a história do homem? Mas Hyoi começara a falar outra vez.

– Certamente, disse, Maleldil nos fez assim. Como poderia haver bastante para comer se cada casal tivesse vinte filhos? E como poderíamos suportar viver e ver o tempo passar se estivéssemos sempre desejando que um determinado dia ou um determinado ano voltassem, se não soubéssemos que cada dia de uma vida enche toda aquela vida com esperanças e recordações e que estas é que são aquele dia?

– É verdade, disse Ransom, más, de qualquer modo, Maleldil deixou que existissem os “hnakra”.

– Mas isto é muito diferente. Quero matar este “hnakra” como ele também quer me matar. Espero que meu barco seja o primeiro e eu o primeiro do meu barco com a minha lança quando ele surgir abrindo suas enormes mandíbulas. E se ele me matar, meu povo chorará minha morte, e meus irmãos desejarão matá-lo com mais veemência. Mas não desejarão que deixassem de existir “hnéraki”, como não o desejo eu. Como posso fazer com que você compreenda isto se não compreende os poetas? O “hnakra” é nosso inimigo mas é ao mesmo tempo nosso bem amado. Sentimos em nossos corações sua alegria quando ele olha para baixo, lá da montanha de água onde nasceu; saltamos com ele quando ele pula as cascatas, e quando chega o inverno e a fumaça do lago é mais alta que as nossas cabeças, nós o vemos com seus olhos e sabemos que é chegado o tempo dele sair percorrendo a região. Penduramos sua imagem em nossas casas e o símbolo de todos os “hrossa” é o “ hnakra”. É nele que vive o espírito do vale e nossos filhos brincam fingindo que são “hnéraki”, assim que podem patinar no lago.

– E aí ele os mata?

– Isto não acontece freqüentemente. Os “hrossa” seriam tolos se deixassem que ele se aproximasse tanto. Muito antes de chegar tão perto de nós o deveríamos ter caçado. Não “hme”, não são algumas mortes que ocorrem a sua volta que fazem o “hnau” infeliz. O que escurece o mundo é um “hnau” ruim. E ainda digo mais, acho que a floresta não seria tão bela, nem a água tão morna, nem o amor tão doce, se não existisse perigo nos lagos. Vou contar a você um dia de minha vida que me fez como sou, um dia que só existe uma vez, assim como o amor, ou servir a Oyarsa em Meldilorn. Era muito moço, um rapazola ainda, quando fui lá em cima do “handramit”, na terra onde as estrelas brilham ao meio-dia e até a água é fria. Subi uma grande cascata. Fiquei parado na praia da lagoa de Balki, o lugar mais maravilhoso de todos os mundos. As encostas são imensas e enormes imagens santas estão esculpidas nelas, uma obra prima dos tempos antigos. Lá fica a catarata chamada a Montanha de Água. Por ter ficado lá sozinho, Maleldil e eu, pois o próprio Oyarsa não me mandou nenhuma mensagem, é que meu coração ficou mais elevado e meu canto mais profundo para todo o resto de minha vida. Mas você acha que isto poderia ter acontecido se eu não soubesse que lá em Balki habitavam “hnéraki”? Lá eu bebi a vida, porque na lagoa estava a morte. Foi esta a melhor bebida, exceto uma.

– Qual? perguntou Ransom.

– A morte no dia em que eu a beber e for para Maleldil.

Pouco depois levantaram-se e recomeçaram o trabalho. O sol estava descendo quando voltaram pela floresta. Ransom se lembrou de perguntar uma coisa a Hyoi.

– Hyoi, disse ele, me lembrei agora de quando vi você pela primeira vez. Você estava falando e por isto percebi que você era um “hnau” e não uma fera. Com quem estava você falando?

– Com um “eldil”.

– O que é isto? Nunca vi um.

– Não existem “eldila” no seu mundo, “Hme”? Isto deve ser estranho.

– Quem são eles?

– São enviados de Oyarsa, suponho que sejam uma espécie de “hnau”.

– Quando passamos pela floresta, esta manhã, uma criança me disse que estava falando com um “eldil”, mas não vi nada.

– Seus olhos são diferentes dos nossos, “Hme”, e é difícil ver os “eldila”. Não são como nós, a luz passa através deles. Você tem que estar olhando para o lugar exato na hora certa e isto não acontece a menos que o “eldil” queira ser visto. Às vezes nós os confundimos com um raio de sol ou até mesmo uma brisa nas folhas, mas quando olhamos outra vez percebemos que era um “eldil” e que já fora embora. Mas não sei se seus olhos o podem ver; os “séroni” devem saber isto.

 

Na manhã seguinte, a aldeia toda já estava se movimentando antes que a luz do sol, já visível no “harandra”, tivesse penetrado na floresta. As fêmeas distribuíam a comida quente aos que se encontravam à sua volta; Hnorah dirigia o transporte das pilhas de lanças para os barcos. Hyoi, no meio de um grupo dos caçadores mais experimentados, falava rapidamente e usando termos técnicos, de modo que Ransom não podia compreender o que dizia. Chegavam grupos das aldeias vizinhas e as crianças gritando de animação corriam de um lado para o outro entre os mais velhos.

Viu que sua participação na caçada era certa, e seu lugar era no bote de Hyoi, com ele e Whin. Os dois “hrossa” se revezariam no remo enquanto Ransom e o “hross” que estivesse livre ficariam de atalaia prontos para atirar suas lanças. Já compreendia os “hrossa” muito bem para saber que estavam lhe fazendo a oferta mais nobre possível, e que tanto Hyoi como Whin tinham receio de estar presos ao remo na hora em que o “hankra” aparecesse. Há pouco tempo atrás, nada pareceria mais impossível a Ransom do que aceitar o lugar de honra e perigo num ataque a um monstro aquático desconhecido, que era capaz de matá-lo. Até mais recentemente, quando fugira dos “sorns” e ficara assustado, escondendo-se na floresta, não lhe pareceria possível fazer o que pretendia fazer naquele dia. Tinha plena consciência que suas intenções podiam se modificar à medida que fosse chegando a hora, mas ao mesmo tempo tinha certeza de que, de um modo ou de outro, cumpriria sua tarefa. Era necessário, e o que é necessário é sempre possível. Talvez houvesse alguma coisa no ar que agora respirava, ou no convívio com os “hrossa”, que o tinha modificado.

O lago estava começando a refletir os primeiros raios do sol e ele já se encontrava ajoelhado ao lado de Whin na proa do barco de Hyoi, com algumas lanças entre os joelhos e outra na mão direita, acompanhando com o corpo o movimento do barco. Havia pelo menos cem botes tomando parte na caçada e estavam divididos em três grupos. O grupo central, que era o menor, devia subir a corrente que Hyoi e Ransom tinham descido no dia de seu primeiro encontro. Os botes deste grupo eram maiores dos que os que havia visto até então e levavam oito remadores. O “hnakra” tinha por hábito boiar ao sabor da corrente sempre que possível e, quando encontrasse os botes, certamente sairia dela para as águas paradas da direita ou da esquerda. Tendo isto em vista, enquanto os botes maiores iam subindo lentamente contra a correnteza, os menores remavam para cima e para baixo, ao lado do grupo maior, prontos para atacar a presa assim que ela surgisse. Nesta luta, o número e a inteligência estavam a favor dos “hrossa”, enquanto que o “hnakra” tinha a velocidade e também a invisibilidade, pois podia nadar debaixo d’água, em seu auxílio. Era praticamente invulnerável, exceto quando sua enorme boca se abria. Se os dois caçadores do bote para onde se dirigisse errassem o alvo, estariam perdidos.

Nos grupos que ladeavam o centro havia duas coisas que um caçador valente poderia tentar. Poderia ficar bem para trás e perto dos barcos compridos onde fosse mais provável surgir o “hnakra”, ou poderia ir bem para a frente com a esperança de encontrar o monstro vindo a toda velocidade mas ignorante da caçada, e forçá-lo a sair da corrente por meio de uma bem dirigida lança. Desta maneira seria possível antecipar-se aos batedores e matar a fera, se este fosse o fim da história, sem o auxílio de ninguém. Este era o desejo de Hyoi e Whin e tão grande era a sua influência que Ransom quase chegava a desejá-lo. Os batedores mal haviam começado a subir o rio no meio de uma cortina de espuma, quando seu bote começou a ir na direção do norte com toda velocidade que Hyoi podia lhe dar, deixando para trás os botes um a um. A velocidade dava uma sensação deliciosa. Na manhã fria, o calor que vinha d’água era até agradável. Atrás deles, ecoavam nos cumes afastados das montanhas,: de ambos os lados do vale, as vozes sonoras de mais de duzentos “hrossa”, mais musicais que o grito dos galgos, mas parecidas com ele na qualidade e na significação. Alguma coisa de há muito adormecida no sangue de Ransom despertou. Não lhe parecia de todo impossível que fosse ele o destruidor do “hnakra”, que sua fama de “Hme hnakra punt” passasse para a posteridade naquele mundo que não conhecia nenhum outro homem. Mas ele já havia tido sonhos semelhantes em outras ocasiões e sabia como terminavam. Controlou sua imaginação e fixou seus olhos na corrente, que ladeavam sem entrar.

Durante muito tempo não aconteceu nada e ele resolveu então relaxar um pouco os músculos. Whin, com muito pouca vontade, foi substituir Hyoi, no remo, e este veio para a proa. Pouco depois da mudança, Hyoi disse baixinho, sem despregar os olhos da corrente:

– Um “eldil” está vindo em nossa direção, por cima d’água.

Ransom não via nada além da dança dos raios de sol brilhando n’água. Um instante depois, Hyoi falou novamente, mas não com ele.

– O que é, habitante do céu?

O que se passou depois foi a coisa mais estranha entre todas as que Ransom assistira em Malacandra até então. Ouviu uma voz, que parecia vir do ar, a mais ou menos uma jarda de sua cabeça, e que era quase uma oitava mais alta que a do “hross”, mais alta até que a sua própria. Percebeu que uma pequena diferença em seu ouvido faria com que não pudesse ouvir o “eldil” como já não o podia ver.

– É o Homem que está com vocês, Hyoi, disse a voz. Ele não devia estar aqui, devia estar indo ao encontro de Oyarsa. Homens maus, de sua própria raça, de Thulcandra, o estão seguindo; é preciso que ele vá a Oyarsa Se o encontrarem em qualquer outro lugar, algo de ruim acontecerá.

– Ele vos ouve, habitante do céu, disse Hyoi. Não tendes nem uma mensagem para minha esposa? Sabeis o que ela deseja ouvir.

– Tenho uma mensagem para Hleri, respondeu o “eldil”. Mas você não pode levá-la. Irei falar com ela agora. Tudo está bem. Só é preciso que o Homem vá ao encontro de Oyarsa.

Houve um momento de silêncio.

– Foi embora, disse Whin. E nós perdemos nossa colocação.

– É verdade, disse Hyoi com um suspiro. Precisamos deixar o “Hme” na praia e ensinar-lhe o caminho de Meldilorn.

Ransom não estava muito certo de sua coragem: uma parte de sua pessoa sentiu um grande alívio ao ver que iam abandonar a empresa. A outra parte, porém, insistia para que se agarrasse a sua recém-descoberta coragem, – seria agora ou nunca, com aqueles companheiros ou com mais ninguém –, que teria a oportunidade de realizar um ato de bravura digno de ser recordado, em lugar de, mais uma vez, ver seu sonho desfeito. Foi obedecendo a sua consciência que disse:

– Não, nada disto. Podemos fazê-lo depois da caçada. Primeiro temos que matar o “hnakra”.

– Quando um “eldil” fala... começou a dizer Hyoi, mas não continuou, pois de repente Whin deu um grito (há algumas semanas atrás Ransom o teria chamado de latido) e apontou. A pouca distância deles viram o rastro de espuma semelhante ao de um torpedo, e através da espuma viram o brilho metálico do corpo do monstro. Whin remava freneticamente. Hyoi atirou uma lança e errou o alvo. Quando sua primeira lança tocou a água já estava atirando a segunda. Daquela vez acertou, porque o “hnakra” saiu d’água feroz. Ransom viu suas mandíbulas se abrirem duas vezes, mostrando os dentes parecidos com os do tubarão. Ele mesmo atirou uma lança, apressadamente, e sem prática.

– Para trás! gritou Hyoi para Whin, que já estava tentando fazê-lo, botando toda sua força no remo. Depois tudo se tornou confuso. Ouviu Whin gritar “Praia”! Sentiu um choque que quase o atirou na boca do “hnakra” e foi parar na água. Era a ele que o monstro tentava apanhar. Atirou lança após lança, desesperadamente, e, de repente, viu Hyoi equilibrado no focinho da fera, inclinando-se para a frente e arremessando uma lança dali. Mal havia conseguido fazer isto quando foi atirado a umas dez jardas de distância. O “hnakra”, porém, havia sido mortalmente atingido. O líquido negro que saía dele aos borbotões escureceu a água e espalhou um cheiro insuportável.

Quando voltou a si das emoções por que passara, Ransom viu que seus companheiros estavam a seu lado, sãos e salvos, abraçando-o no auge da alegria. Não lhe pareceu nada estranho aproximar-se de um peito coberto de pêlo molhado. O hábito dos “hrossa”, que apesar de ser suave não era humano, não lhe causou nenhuma repugnância. Era um deles, conseguira dominar aquela repulsa que sentira a princípio e que eles, provavelmente por estarem acostumados a mais de uma espécie racional, nunca tinham experimentado. Eram todos “hnau”, a luta fora ombro a ombro contra o inimigo e o feitio de suas cabeças não tinha mais importância. E até mesmo ele, Ransom, não se tinha saído tão mal; sentia-se um homem novo.

Estavam num promontório descampado, para onde tinham se dirigido na confusão da luta. O que restava do barco e do corpo do monstro estavam misturados na água. Não se ouvia nenhum som dos outros caçadores; eles estavam cerca de meia milha na frente quando encontraram o “hnakra”. Os três se sentaram para recuperar o fôlego.

– E agora, disse Hyoi, nós somos “hnakrapunti”. Foi isto o que sempre desejei na vida.

Naquele instante, Ransom ouviu um ruído, muito familiar, mas que era a última coisa que esperava ouvir. Era um som terrestre, humano e civilizado, era o barulho de um tiro de rifle. Hyoi caiu a seus pés, lutando para se levantar, e todo ensangüentado. Ransom ajoelhou-se a seu lado. O corpo do “hross” era pesado demais para que pudesse virá-lo sozinho e foi ajudado por Whin.

– Você está me ouvindo, Hyoi? perguntou Ransom, aproximando-se da cabeça redonda de seu amigo. Hyoi, foi por minha causa que isto aconteceu. Foram os outros “hmena” que atiraram em você, os dois “hmena” maus que me trouxeram para Malacandra. Eles têm uma arma que mata de longe. Eu devia ter avisado a você, somos todos uma raça pervertida. Viemos para cá trazer o mal. Somos só meio “hnau”. Hyoi...

Parou de falar pois não sabia as palavras equivalentes a “perdão”, “vergonha” ou “arrependimento”. Não podia fazer mais nada a não ser olhar para a face destorcida de Hyoi, que parecia compreender o que ele queria dizer. Viu que Hyoi queria lhe dizer alguma coisa e chegou o ouvido a sua boca. Os olhos de Hyoi estavam fixos nos seus.

– “Hme”, “hme”, balbuciou, e finalmente “hme hnakrapunt”. Aí, todo seu corpo se contorceu violentamente e uma golfada de sangue saiu de sua boca. Os braços de Ransom não agüentaram a cabeça pesada do “hross” e, ao encostá-la no chão, a cara de Hyoi pareceu, ao homem da Terra, tão estranha e animal como no primeiro encontro. Os olhos vidrados e o corpo coberto de pêlo eram semelhantes ao de um animal morto encontrado numa floresta da Terra.

Ransom controlou um impulso infantil de esbravejar contra Weston e Davine. Levantou os olhos para Whin, que estava acocorado do outro lado do cadáver.

– Estou nas mãos de seu povo, Whin, disse. Poderão fazer o que quiserem comigo e se forem sábios me matarão e certamente matarão os outros dois.

– Não se mata ‘hnau”, respondeu Whin. Oyarsa é o único que pode fazê-lo. Mas onde estão os outros?

Ransom olhou em volta; o promontório era desprovido de árvores mas a umas duzentas jardas, onde ele se juntava ao continente, havia uma floresta espessa.

– Devem estar no mato, disse. Abaixe-se, aqui onde o terreno entra em declive, porque eles podem atirar novamente.

Foi um pouco difícil convencer Whin a fazer o que lhe dissera. Quando os dois estavam deitados com os pés quase dentro d’água, o “hross” falou novamente.

– Por que eles mataram Hyoi? perguntou.

– Eles não sabiam que ele era “hnau”, respondeu Ransom. Como já expliquei, no nosso mundo só existe uma espécie de “hnau”. Devem ter pensado que era um animal e neste caso podem tê-lo matado por divertimento, por medo ou (hesitou) – por que estavam com fome. Mas tenho que lhe confessar a verdade, Whin: eles matariam até mesmo um “hnau”, sabendo que era “hnau”, se sua morte lhes fosse útil. Houve uma pausa.

– Estou pensando, disse Ransom, que eles me viram. É a mim que estão procurando, talvez se eu fosse ao seu encontro ficassem satisfeitos e fossem embora. Mas porque não saem do mato para vir ver o que mataram?

– Nosso povo está chegando, disse Whin, virando a cabeça. Ransom olhou para trás e viu o lago cheio de barcos. Os batedores estariam junto deles em alguns segundos.

– Têm receio dos “hrossa”, disse Ransom. É por isto que não saem da mata. Irei ao encontro deles, Whin.

– Não, disse Whin. Penso que isto tudo aconteceu porque não obedecemos ao “eldil”. Ele disse que você devia ir ao encontro de Oyarsa; você já devia estar a caminho; é preciso agora que parta.

– Mas os outros dois “hmena” ficarão aqui e poderão fazer mais mal.

– Não farão nada aos “hrossa”. Você disse que têm medo de nós. É mais provável nós os apanharmos; não se preocupe, não nos verão nem nos ouvirão. Nós os levaremos a Oyarsa. Mas agora você precisa partir como ordenou o “eldil”.

– Seu povo vai pensar que fugi por não querer encará-los depois da morte de Hyoi.

– O que importa agora não é pensar e sim obedecer ao que o “eldil” disse. Preste atenção, que vou lhe ensinar o caminho.

O “hross” explicou-lhe que a uma distância de cinco dias de jornada na direção do sul ficava outro handramit e, depois de chegar lá, indo para cima na direção noroeste chegaria a Meldilorn, depois de três dias, e lá encontraria Oyarsa. Havia, porém, um caminho mais curto através da montanha, entre os dois desfiladeiros, que o levaria a Meldilorn no segundo dia. Tinha que entrar na floresta e ir até a encosta do “handramit”; quando chegasse lá, tinha que procurar um caminho que subia a montanha. No fim deste caminho encontraria a torre de Augray, que o ajudaria. Whin aconselhou Ransom a se utilizar da vegetação como alimento até chegar ao terreno árido. Disse-lhe ainda:

– Se os outros dois “hmena” apanharem você, eles não penetrarão na nossa região. De qualquer maneira é melhor que tentem apanhar você quando estiver a caminho para ver Oyarsa, pois ele não permitirá que os “hmena” maus o impeçam de chegar até lá.

Ransom não achava ser este o melhor plano, nem para ele nem para os “hrossa”, mas a tristeza que o invadira, desde que Hyoi fora atingido, impediu-o de discutir. Queria fazer o que lhe dissessem, não queria incomodar mais os “hrossa” e, acima de tudo, queria afastar-se. Não sabia quais eram os sentimentos de Whin e reprimiu um impulso de renovar seus protestos de indignação contra a ação de seus semelhantes. Lembrou-se de que Hyoi no seu último suspiro o tinha chamado de matador de “hnakra” e esta generosidade o consolou um pouco. Assim que compreendeu bem o caminho que devia seguir despediu-se de Whin e embrenhou-se sozinho na floresta.

 

Até alcançar a mata, Ransom não conseguiu pensar em mais nada a não ser na possibilidade de ser atingido por um tiro de Weston ou Devine. Lembrou-se porém que provavelmente deviam querer apanhá-lo vivo e isto, aliado ao fato de que estava sendo observado por um “hross”, auxiliou-o a caminhar com dignidade. Mesmo depois que entrou na floresta, ainda se sentia em perigo. As hastes longas e sem ramos só poderiam ocultá-lo se o inimigo estivesse muito afastado e no caso presente poderia estar muito perto. Sentiu um forte impulso de gritar por Weston e Devine, e raciocinou que isto seria o melhor a fazer, pois, desta maneira sairiam da região, para o levar até os “sorns”, deixando em paz os “hrossa”. Ransom, porém, conhecia um pouco de psicologia e já tinha ouvido falar no instinto irracional que o homem perseguido tem de se entregar; havia até mesmo sentido aquele impulso em sonhos. O que estava sentindo devia ser causado por seus nervos e, controlando-se, resolveu obedecer ao “eldil”. Tomou a firme decisão de que nada o desviaria de seu caminho para Meldilorn e que lá chegaria se isto fosse possível.

Tinha grandes dúvidas a respeito da segurança do caminho que devia percorrer para atingir seu destino. O “harandra” que teria que atravessar era habitado pelos “sorns” e ele na verdade estava se dirigindo, por sua própria vontade, para a armadilha de que tentava fugir desde a sua chegada a Malacandra. E ainda que conseguisse escapar dos “sorns” e chegar a Meldilorn, quem ou o que seria Oyarsa? Whin lhe tinha dito que Oyarsa não era escrupuloso, como os “hrossa”, a respeito de derramar o sangue de um “hnau”. Além disto, Oyarsa governava os “sorns” assim como os “hrossa” e os “pfifltriggi”; talvez fosse simplesmente o arqui-”sorn”. Naquela altura os velhos receios terrestres duma estranha e fria inteligência, super-humana na sua força e sub-humana na sua crueldade, que haviam desaparecido de sua mente quando estava entre os “hrossa”, voltaram querendo retomar seus antigos lugares. Ele, porém, manteve-se firme e continuou no seu caminho para Meldilorn. Não era possível que os “hrossa” obedecessem a uma criatura monstruosa ou malvada, e eles lhe tinham dito... ou será que não? Não se lembrava muito bem, mas parecia-lhe ter ouvido dizer que Oyarsa não era um “sorn”. Seria um Deus? Talvez fosse o ídolo a quem os “sorns” o queriam sacrificar. Mas os “hrossa”, apesar de terem dito muitas coisas estranhas a seu respeito, negaram claramente que fosse um Deus. Segundo eles só havia um Deus, Maleldil o Moço, e nem seria possível que Hyoi ou Hnohra adorassem um Deus sedento de sangue. A menos que os “hrossa” fossem dominados pelos “sorns”; superiores aos seus mestres nas qualidades admiradas pelos seres humanos, mas intelectualmente inferiores a eles, e dependendo deles. Seria um mundo estranho mas não inconcebível; na parte inferior, o heroísmo e a poesia, acima disto, a inteligência fria e científica, e, dominando tudo, alguma superstição obscura, que a fria inteligência, desamparada diante da vingança das profundezas emocionais que ignorara, não tinha forças para destruir. Uma espécie de feitiçaria... Aí, Ransom se controlou. Não podia mais raciocinar desta maneira, pois já havia visto coisas demais para poder pensar assim. Teria certamente considerado os “eldila” uma superstição se houvessem simplesmente sido descritos a ele, mas a voz de um deles entrara pelos próprios ouvidos. Oyarsa tinha que ser real, não havia outra possibilidade.

Já estava caminhando por mais de uma hora e era quase meio-dia. Continuou subindo o caminho que o levaria até a encosta da montanha na beira da floresta. Sentia-se muito bem, apesar de todos os problemas que passavam por sua cabeça. O silêncio da floresta o rodeava como no primeiro dia, mas todo o resto era diferente. Considerava aquele tempo como um pesadelo, e o desespero que sentira naquela ocasião, como uma doença. Agora que se decidira a cumprir o que considerava como seu dever, sentia medo ainda, mas, ao mesmo tempo, tinha confiança em si e no mundo e até uma certa satisfação. Era a mesma diferença que existe entre os sentimentos de um homem de terra no navio que se afunda e um cavaleiro num cavalo disparado: qualquer um dos dois pode morrer, mas o primeiro se sente incapaz de impedir a tragédia enquanto o outro é parte do que está acontecendo.

Mais ou menos uma hora depois de meio-dia, repentinamente, encontrou-se fora da floresta, sob o sol brilhante. Estava a umas vinte jardas das bases quase perpendiculares das montanhas, perto demais para que pudesse ver seus cumes. Havia uma espécie de vale entre duas delas mas que era impossível se atingir, pois na parte mais baixa subia inclinadíssimo e mais para cima parecia quase vertical. No alto, parecia pendurado como se fosse uma forte onda de pedra apanhada na hora de arrebentar, mas isto poderia ser uma impressão. Ficou imaginando o que seria que os “hrossa” chamavam de caminho.

Começou a se dirigir para o sul junto a encosta da montanha; a região era acidentada e tinha que avançar lentamente, com grande esforço. Depois de mais ou menos meia hora chegou a um riacho e resolveu fazer uma parada para descansar e comer qualquer coisa. Entrou na beira da floresta e apanhou punhados da vegetação rasteira que levou para a beira do riacho, onde se sentou e almoçou. Quando acabou, pôs o que tinha sobrado nos bolsos e continuou sua jornada.

Começou a ficar preocupado de não encontrar o caminho porque só poderia chegar ao topo da montanha de dia e o meio da tarde já vinha se aproximando. Mas seus receios foram dissipados pouco depois, pois viu uma senda a sua direita, estreita e íngreme. Perdeu a respiração ao ver aquela espécie de escada sem degraus, que subia e subia até um ponto em que lhe parecia apenas um fio na pálida superfície da rocha. Mas não podia perder tempo olhando para o caminho. Não sabia calcular muito bem a altura de montanhas, mas não tinha dúvidas de que o cume daquela ficava a uma distância mais que alpina de onde estava. Começou imediatamente a subir, pois tinha que chegar lá antes do pôr do sol.

Uma escalada igual aquela seria impossível na Terra: o primeiro quarto de hora levaria um homem do físico e da idade de Ransom a uma exaustão completa. A princípio ficou encantado com a facilidade de seus movimentos, mas aos poucos, mesmo nas favoráveis condições de Malacandra, seu peito começou a doer e seus joelhos a tremerem. Mas isto não era o pior; sentia também um zumbido infernal nos ouvidos e reparou que, apesar de todo seu esforço, não suava. O frio, que aumentava a cada passo, parecia destruir mais sua vitalidade do que o mais forte calor. Seus lábios ficaram rachados, seu hálito se transformava em fumaça, seus dedos ficaram duros. Estava penetrando num silencioso mundo ártico e já tinha passado de um inverno inglês para um frio lapão. Ficou assustado e resolveu descansar um pouco, naquele ponto, para recuperar as forças, pois se parasse a uns cem pés dali morreria enregelado. Acocorou-se, batendo no peito com as mãos. A paisagem era apavorante. O “handramit” onde tinha vivido tanto tempo era uma pequena mancha roxa afundada no meio da desolação plana do “harandra” que podia ver a sua direita, além dos picos das montanhas. Mas, muito antes de se sentir descansado, viu que se não continuasse a subir morreria ali mesmo.

A região se tornava cada vez mais estranha. Quando estava no meio dos “hrossa” tinha quase perdido aquela sensação de se encontrar num planeta estranho, mas agora, lá naquela altura, sentia-se novamente abatido por aquele mundo desconhecido. Não se sentia mais “no mundo”, nem mesmo “num mundo”, estava num planeta, numa estrela, um lugar desolado do universo, a milhões de milhas de distância do mundo dos homens. Não podia se lembrar do que sentira com relação a Hyoi, Whin, os “eldila” ou “Oyarsa”. Parecia fantástico que houvesse julgado ter que seguir os conselhos daqueles duendes, se é que não eram alucinações, o que encontrara no meio do espaço. Não tinha nada em comum com eles, era um homem. Mas por que Weston e Devine o tinham deixado sozinho daquela maneira?

Mas, o tempo todo, a decisão que tomara, quando ainda podia pensar, o impelia para subir o caminho. Muitas vezes ele se esqueceu aonde é que estava, para onde se dirigia e porquê. Seus movimentos eram mecânicos e, quando parava, o frio insuportável forçava-o a andar novamente. Reparou que o “handramit”, que agora era um pontinho na paisagem, estava coberto por uma espécie de névoa. Nunca havia visto neblina quando morara lá. Talvez de cima se visse o ar do “handramit” daquela maneira, era certamente um ar diferente daquele que o cercava agora. Havia qualquer coisa de errado com seus pulmões e seu coração que não poderia ter sido causado somente pela cansaço e pelo frio. E apesar de não haver neve, havia uma claridade incrível. A luz estava aumentando e ficando mais branca e o céu era de um azul muito mais escuro do que havia visto até então em Malacandra. Era até mais escuro que azul, sendo quase preto, e os picos escarpados que sobressaíam pareciam o que imaginava ser uma paisagem lunar. Havia algumas estrelas.

De repente, compreendeu o significado daqueles fenômenos. Havia muito pouco ar acima dele; estava quase no fim do ar. A atmosfera de Malacandra estava concentrada nos “handramits”; a verdadeira superfície do planeta era nua ou muito ligeiramente coberta. Se o cimo ficasse a mais de cem pés, estaria num lugar onde nenhum homem poderia respirar. Pensou que talvez os “hrossa” tivessem pulmões diferentes dos seus e tivessem mandado que seguisse um caminho que lhe traria a morte. Mas, ao pensar nisto, reparou que aqueles picos negros, rebrilhantes a luz do sol, estavam no mesmo nível que ele. Não estava mais subindo, o caminho adiante dele era plano, e a sua direita ficava uma pedra que subia lentamente até o verdadeiro “harandra”. Onde estava conseguia respirar com muita dificuldade mas o mais incômodo era o brilho intenso que o ofuscava. O sol estava descendo. Os “hrossa” haviam certamente previsto isto; não deviam poder viver, como ele também não podia, no “harandra”, de noite. Saiu tropeçando, para ver se achava a torre de Augray.

O tempo que levou vagando de um lado para o outro, vendo as sombras dos picos se encompridando na sua direção, lhe pareceu enorme. Finalmente, viu uma luz adiante. O contraste da luz fez com que notasse a intensidade da escuridão que o cercava. Quis correr, mas suas pernas,não lhe obedeceram; dirigiu-se para a luz, cambaleando, e com a impressão de que cada vez esta ficava mais longe. Quando já se estava desesperando, chegou ao que lhe pareceu a entrada de uma caverna. A luz que vinha lá de dentro não era firme e um calorzinho delicioso bateu no seu rosto. Era a luz de uma fogueira. Entrou na caverna e, ladeando o fogo, foi para o fundo, sem conseguir ver nada pois o brilho intenso o cegara momentaneamente. Quando conseguiu, por fim, distinguir alguma coisa, viu que estava numa espécie de sala, de rocha verde, muito alta. Havia duas coisas nela: uma dançando na parede e no teto, que era a sombra de um “sorn”; a outra coisa era um “sorn” propriamente dito.

 

– Entre, Pequenino, trovejou o “sorn”. Entre e deixe-me ver bem você.

Agora que estava face a face com o espectro que o apavorava desde que tinha posto os pés em Malacandra, Ransom sentiu uma surpreendente indiferença. Não sabia o que estava para acontecer, mas estava decidido a levar seu plano adiante, e, naquela hora, o calor e o ar mais respirável faziam com que se sentisse muito melhor. Foi bem para dentro e respondeu ao “sorn”. Sua própria voz soou como um falsete agudo.

– Os “hrossa” mandaram que eu viesse procurar Oyarsa, disse.

O “sorn” olhou bem para ele. – Você não é deste mundo, disse, de repente.

– Não, respondeu Ransom e sentou-se. Estava cansado demais para dar maiores explicações.

– Acho que você é de Thulcandra, Pequenino, disse o “sorn”.

– Por quê? perguntou Ransom.

– Você é pequeno e espesso e os animais de um mundo mais pesado devem ser feitos assim. Você não pode vir de Glundandra, pois é um planeta tão pesado que se algum animal pudesse viver lá teria que ser chato como uma placa e até mesmo você, Pequenino, se partiria se fosse a esse mundo. Não creio que seja de Perelandra porque lá é muito quente; se viesse de lá, não poderia sobreviver quando chegasse aqui. Portanto tenho que concluir que você vem de Thulcandra.

– O mundo de onde venho é chamado Terra por aqueles que moram lá, disse Ransom. E é muito mais quente que este; quando entrei na sua caverna estava quase morto de frio.

O “sorn” fez um movimento repentino com um dos seus longos membros superiores. Ransom ficou alerta (mas não recuou), pois a criatura talvez pretendesse agarrá-lo. Porém, suas intenções eram amáveis; apanhou uma coisa na parede, que estava ligada a um tubo flexível, e a entregou a ele.

– Respire dentro disto, disse. Os “hrossa” também não podem respirar direito nesta altura.

Ransom respirou fundo e logo se sentiu melhor. A falta de ar e a dor no peito foram aliviadas. O “sorn” e a caverna iluminada, que até então tinham um aspecto meio vago, tomaram uma forma mais definida.

– Oxigênio? perguntou, mas naturalmente a palavra não significava nada para o “sorn”. Você é Augray?

– Sim, respondeu o “sorn”. Como se chama você?

– O animal que sou é chamado Homem, e por isto os “hrossa” me chamam de “Hme”, mas meu nome é Ransom.

– Homem, Ren-soom, disse o “sorn”. Ransom viu que ele falava diferente dos “hrossa”.

Estava sentado no chão, com seus pés compridos junto a ele. Um homem na mesma posição descansaria o queixo nos joelhos, mas as pernas do “sorn” eram compridas demais para que pudesse fazer o mesmo. Seus joelhos iam muito além de seus ombros, de cada lado de sua cabeça, parecendo umas orelhas imensas, e a cabeça que ficava entre eles apoiava seu queixo no peito saliente. A criatura parecia ter um papo ou uma barba, mas naquela luz bruxoleante Ransom não podia distinguir muito bem o que era. O “sorn” era quase todo branco, ou creme, e parecia estar vestido até os tornozelos com um material macio que refletia a luz. Observando bem as pernas frágeis, que estavam mais próximas, viu que era uma cobertura natural; não era um pêlo mas sim uma espécie de penas. A criatura, quando vista de perto, era muito menos aterradora do que parecia, e até mesmo um pouco menor do que pensara. É verdade que o rosto era muito estranho, comprido demais, solene demais e quase sem cor, e era muito mais desagradavelmente parecido com uma face humana do que um rosto não humano deveria ser. Seus olhos, como os de todas as criaturas muito grandes, pareciam pequenos demais para seu rosto. O conjunto, porém, era mais grotesco que horrível. Começou a ter uma nova idéia dos “sorns”; antigamente, achava que pareciam gigantes ou fantasmas mas agora, vistos de perto, pareciam mais duendes.

– Você deve estar com fome, Pequenino, disse-lhe.

Ransom estava; então, o “sorn” levantou-se com movimentos semelhantes aos de uma aranha e começou a andar de um lado para o outro acompanhado por sua fina sombra fantasmagórica. Trouxe-lhe as verduras habituais de Malacandra, uma bebida e uma substância nova, lisa, que tinha o gosto e o cheiro de queijo. Ransom perguntou o que era.

O “sorn” começou uma longa explicação sobre o líquido produzido pela fêmea de um animal para a alimentação de seus filhos, e continuaria por aí até chegar ao processo de fabricação de queijo se Ransom não o interrompesse.

– Sim, sim, compreendo, disse. Fazemos o mesmo na Terra. Qual é o animal que produz isto?

– É um animal amarelo com um pescoço muito comprido. Alimenta-se da vegetação encontrada nas florestas dos “handramit”. Os mais moços de nossa raça, que ainda não podem fazer nada, levam os animais lá para baixo, de manhã, para pastarem, e ao cair da tarde os trazem de volta para as cavernas.

Por um segundo, Ransom achou a idéia de que os “sorns” eram pastores muito reconfortante. Depois, lembrou-se que o Ciclope do Homero também era pastor.

– Acho que já vi alguns de vocês neste trabalho, disse ele. Mas, e os “hrossa” deixam que destruam suas florestas?

– E por que não haviam de deixar?

– Vocês governam os “hrossa”?

– Oyarsa os governa.

– E quem governa vocês?

– Oyarsa.

– Mas vocês sabem mais coisas que os “hrossa”?

– Os “hrossa” não sabem nada senão fazer poesias, pescar e cultivar o solo.

– E Oyarsa é um “sorn”?

– Não, não, Pequenino. Já disse a você que ele governa todos os “nau” (era assim que pronunciava “hnau”) e tudo o mais em Malacandra.

– Não entendo este Oyarsa, disse Ransom. Diga-me mais alguma coisa sobre ele.

– Oyarsa não morre, disse o “sorn” – e nem procria. Ele pertence a uma espécie diferente e foi designado para governar Malacandra desde que este planeta foi feito. Seu corpo não é igual ao nosso nem ao seu. é difícil vê-lo e a luz o atravessa.

– Como o de um “eldil”?

– Sim, ele é o maior de todos os “eldila” que já vieram a um “handra”.

– O que são estes “eldila”?

– Não existem “eldila” no seu mundo, Pequenino?

– Se existem, não os conheço. Mas, o que são “eldila” e por que não posso vê-los? Não têm corpos?

– É claro que têm corpos. Existem muitos corpos que você não pode ver. Os olhos do animal podem ver algumas coisas e outras não. Você não conhece uma porção de espécies diferentes de corpos em Thulcandra?

Ransom tentou dar ao “sorn” uma idéia da terminologia terrestre de corpos sólidos, líquidos e gasosos. Ele ouviu tudo com muita atenção.

– Não é assim que você deve se exprimir, respondeu. – Corpo é movimento. Se estiver a uma velocidade, você cheira alguma coisa; se estiver a outra velocidade, você ouve um som, numa terceira você vê uma coisa, e, finalmente, numa quarta, você nem vê, nem ouve, nem cheira, nem sabe da existência do corpo. Mas preste bem atenção nisto, Pequenino, as duas extremidades se encontram.

– O que quer dizer com isto?

– Quando o movimento é rápido, aquilo que se mexe está quase em dois lugares ao mesmo tempo.

– É verdade.

– Mas se o movimento fosse ainda mais rápido, – é difícil explicar porque você não conhece muitas palavras –, mas você compreende que se fosse cada vez mais rápido, no fim, a coisa que se movia estaria em todos os lugares ao mesmo tempo, Pequenino.

– Acho que estou compreendendo o que quer dizer.

– Pois bem, é isto que está acima de todos os corpos, tão rápida que está parada, tão verdadeiramente corpo que deixou de ser corpo. Mas não falemos nisso. Vamos começar de onde estamos, Pequenino. A coisa mais rápida que seus sentidos percebem é a luz. Não vemos a luz verdadeiramente, vemos apenas as coisas mais lentas que são iluminadas por ela, de modo que para nós a luz está no limite, sendo a última coisa que vemos antes que as coisas se tornem rápidas demais para que as possamos ver. O corpo de um “eldil” é tão rápido quanto a luz; pode-se dizer que é feito de luz, mas não daquilo que é luz para o “eldil”. “Luz”, para ele, é um movimento mais rápido, que para nós não é nada, e o que nós chamamos luz é para ele uma coisa semelhante a água, uma coisa visível que pode tocar e na qual pode se banhar, até mesmo uma coisa escura quando não está iluminada nela mais rápida. E o que chamamos de coisas sólidas, carne e terra, lhe parecem mais etéreas e mais difíceis de ver que nossa luz, e mais parecidas com nuvens. Para nós o “eldil” é um corpo etéreo, meio irreal, que pode atravessar paredes e rochas, enquanto que para ele, elas são como nuvens e ele sendo sólido passa através delas com toda facilidade. E o que para ele é a luz verdadeira e enche o céu, de tal modo que ele mergulha nos raios de sol para se refrescar do calor dela, é para nós o nada negro do céu da noite. Estas coisas não são estranhas, Pequenino, apesar de não poderem ser percebidas por nós. Mas é estranho que os “eldila” nunca visitem Thulcandra.

– Não tenho certeza de que não visitem, disse Ransom. Ficou pensando que as histórias sobre pessoas brilhantes e etéreas que as vezes aparecem na Terra talvez tivessem outra explicação do que a que os antropólogos haviam achado até então. É verdade que o universo seria estranhamente modificado, mas o que tinha visto nesta sua viagem o preparara para tal.

– Por que Oyarsa mandou me chamar?

– Oyarsa não me disse, respondeu o “sorn”, mas ele certamente desejaria ver um estranho que viesse de outro “handra”.

– Não temos nenhum “Oyarsa” em meu mundo.

– Isto é mais uma prova que você vem de Thulcandra, o planeta silencioso.

– O que tem uma coisa com a outra? O “sorn” pareceu surpreendido.

– Se vocês tivessem um Oyarsa não seria muito provável que nunca falasse com o nosso.

– Falar? Mas como poderia fazê-lo se fica a uma distância de milhões de milhas?

– A distância não é problema para Oyarsa.

– Você quer dizer que ele recebe mensagens dos outros planetas, habitualmente.

– Bem, ele não poria a questão desta forma. Oyarsa não diria que habita Malacandra e que um outro Oyarsa mora em outro planeta. Para ele Malacandra é apenas um lugar no céu, e é no céu que ele e os outros moram. É claro que conversam...

Ransom não quis se deter muito naquele problema; estava ficando com sono e achou que talvez não estivesse compreendendo muito bem o que o “sorn” dizia.

– Estou precisando dormir, Augray, disse. Não sei nada destas coisas que você está falando e talvez eu nem venha do mundo que chama de Thulcandra.

– Já vamos dormir, disse o “sorn”. Antes, porém, quero mostrar Thulcandra a você.

Levantou-se, e Ransom o acompanhou ao fundo da caverna. Chegando lá, viu uma escada em caracol. Os degraus feitos para os “sorns” eram altíssimos; teve que subir usando as mãos e os joelhos. O “sorn”, que o precedia, segurava em suas mãos um pequeno objeto redondo, de onde vinha uma luz. A escada era muito grande, parecia que estava escalando o interior de uma montanha ôca. Finalmente, já sem fôlego, chegou a um compartimento escuro, mas aquecido, escavado na rocha, e ouviu o “sorn” dizer:

– Ela está bem acima do horizonte meridional.

Estava olhando através de uma espécie de janela pequena. Qualquer coisa que fosse, não deu a impressão a Ransom de funcionar como um telescópio terrestre, apesar de que, ao tentar explicar ao “sorn”, no dia seguinte, os princípios do telescópio, não conseguia bem distinguir qual era a diferença entre os dois. Ransom debruçou-se, apoiando os cotovelos no peitoril da janela, e olhou para fora. Viu a mais negra escuridão e no meio dela, pairando, um disco brilhante mais ou menos do tamanho de meia coroa e que parecia estar a distância de um braço. À maior parte de sua superfície era lisa, de um prateado brilhante; mais para baixo apareciam algumas formas e na extremidade uma espécie de tampa branca, igual as tampas polares que havia visto em fotografias astronômicas de Marte. Por um instante pensou que estivesse olhando para Marte mas depois percebeu que aquelas formas eram a parte norte da Europa e um pedaço da América do Norte. Estavam de cabeça para baixo, com o Pólo Norte na parte inferior, e isto lhe deu um choque. Não havia dúvida, porém, que estava vendo a Terra, talvez até a Inglaterra; mas o quadro tremia um pouco, seus olhos estavam ficando muito cansados, e, além do mais, não tinha certeza de tudo aquilo não ser um produto de sua imaginação. Ali, naquele pequeno disco se achavam – Londres, Atenas, Jerusalém. Lá todos tinham vivido e tudo tinha acontecido; e certamente ainda estaria uma mochila, – a sua – na varanda de uma casa vazia próxima a Sterk.

– É, disse ele, abatido, ao “sorn”, – aquele é o meu mundo.

Foi o momento mais deprimente de toda sua viagem.

 

Ransom acordou na manhã seguinte com uma vaga sensação de que um enorme peso tinha sido tirado de sua mente. Depois lembrou-se de que era hóspede de um “sorn” e de que a criatura de quem tinha fugido desde que chegara era tão gentil quanto os “hrossa”, apesar de não sentir por ela a mesma afeição que o ligara aos “hrossa”. Não havia mais nada para se temer em Malacandra, exceto Oyarsa... – “O último obstáculo”, pensou Ransom.

Augray lhe deu alimento e bebida.

– E agora, perguntou Ransom, como vou encontrar o caminho que me levará a Oyarsa?

– Eu carregarei você, disse o “sorn”, – você é muito pequenino para fazer a jornada sozinho e irei com muito prazer a Meldilorn. Os “hrossa” não deviam ter mandado você por este caminho. Parece que eles, quando olham para um animal, não sabem que espécie de pulmões ele tem e qual é a sua resistência. Isto é bem típico dos “hrossa”. Se você tivesse morrido no “harandra”, fariam um lindo poema sobre o “hme” valente, e como o céu escurecia, as estrelas brilhavam e o frio aumentava enquanto você seguira intrepidamente seu caminho; finalizariam com a cena de sua morte em que você faria um lindo discurso. .. e tudo isto pareceria tão natural a eles como se tivessem pensado um pouco e salvo sua vida mandando que você seguisse o caminho mais fácil.

– Eu gosto dos “hrossa”, disse Ransom um pouco abespinhado, e acho que a maneira como encaram a morte está certa.

– Eles têm razão de não receá-la, Ren-soom, mas não a consideram razoavelmente como parte da própria natureza de seus corpos e conseqüentemente evitável em ocasiões em que nunca saberiam como evitá-la. Isto aqui, por exemplo, já salvou a vida de muitos “hrossa”, mas um “hross” nunca poderia imaginá-lo.

Mostrou a Ransom um frasco com um tubo ligado a ele, e na outra extremidade do tubo uma espécie de concha; era evidentemente um aparelho de oxigênio.

– Respire isto sempre que precisar, Pequenino, disse, o “sorn” – e feche-o quando não for necessário.

Augray amarrou o aparelho nas costas de Ransom e lhe deu o tubo por cima de seus ombros. Ransom não pôde reprimir um calafrio quando sentiu o toque das mãos do “sorn” no seu corpo; tinham sete dedos, e eram só pele e osso como uma perna de passarinho e muito frias. Para disfarçar a desagradável sensação que sentira, perguntou onde era feito o aparelho, pois ainda não tinha visto nada que se parecesse remotamente com uma fábrica ou um laboratório.

– Nós o imaginamos, disse o “sorn”, e os “pfifltriggi” o executaram.

– Por que eles o fabricam? perguntou Ransom. Estava mais uma vez tentando descobrir o sistema político e econômico de vida em Malacandra.

– Eles gostam de fazer coisas, respondeu Augray. É verdade que o que preferem é fazer coisas que são só bonitas para se olhar mas que não têm utilidade nenhuma. Mas, às vezes, quando estão cansados disto, fazem coisas que nós imaginamos, desde que sejam de difícil execução. Não têm paciência de fazer coisas fáceis mesmo que sejam muito úteis. Mas, vamos iniciar nossa jornada; você irá sentado no meu ombro.

A proposta era inesperada e meio assustadora, mas vendo que o “sorn” já tinha se abaixado, Ransom sentiu-se na obrigação de subir para a superfície penugenta de seu ombro, e sentar junto à sua face comprida e pálida, passando seu braço pelo enorme pescoço e se ajeitando o melhor possível para aquela maneira precária de viajar. O gigante se levantou cuidadosamente e Ransom olhou para a paisagem de uma altura de uns dezoito pés.

– Vai tudo bem, Pequenino? perguntou.

– Muito bem, respondeu Ransom e começaram a jornada.

Seu andar era talvez seu aspecto menos humano. Levantava seus pés muito alto e os colocava no chão muito delicadamente; não era o movimento de nenhum animal terrestre. Para o passageiro, era muito confortável. Depois de uns minutos, esqueceu-se de que sua posição era estranha e começou a se lembrar de sua infância quando andara num elefante no circo e quando, menor ainda, seu pai o carregava nas costas. Aquela maneira de viajar era até bem divertida. Devia estar indo a uma velocidade de seis ou sete quilômetros por hora. O frio era intenso mas suportável e graças ao seu pequeno aparelho de oxigênio podia respirar muito bem.

A paisagem que via de seu posto de observação, alto e balouçante, era impressionante. Não se podia mais ver o “handramit”; de cada lado se estendia um mundo de rocha nua, ligeiramente esverdeada, entremeada de manchas de vermelho. O céu que era azul mais escuro onde se encontrava com a rocha, era quase preto no zênite, e olhando em qualquer direção onde a luz do céu não o cegasse, podia ver estrelas. Soube pelo “sorn” que tivera razão de imaginar que se encontravam no limite da zona onde a respiração era possível. Nas montanhas que cercam as fronteiras do “harandra” e na estreita depressão por onde caminhavam, o ar é de raridade igual ao do Himalaia; lá, um “hross” teria dificuldade de respirar e mais acima, no “harandra” propriamente dito, isto é, na superfície do planeta, não pode haver vida. Mesmo a claridade através da qual andavam era quase como a do céu – uma luz celestial muito pouco misturada com o véu atmosférico.

A sombra do “sorn”, com a sombra de Ransom no ombro, se movia na rocha irregular extraordinariamente delineada, como a sombra de uma árvore diante dos faróis de um carro, e a rocha além da sombra feria seus olhos. Tinha-se a impressão de poder tocar o horizonte remoto esticando o braço. Estava na fronteira daquele céu que tinha conhecido quando estava na nave do espaço e sentia no corpo os raios que os mundos envolvidos pelo ar não podem receber. Teve novamente aquela sensação de vida e poder oferecidos em abundância. Se houvesse ar suficiente nos seus pulmões teria dado uma gargalhada de alegria e satisfação. E agora, até a paisagem próxima estava se tornando uma beleza. Na beira do vale, como se tivessem transbordado do verdadeiro “harandra”, havia grandes massas cor de rosa parecidas com nuvens, que tinha visto tantas vezes de longe. Agora, de perto, pareciam duras como rocha, mas estufadas em cima e mais estreitas em baixo, como couve-flor gigantescas do tamanho de catedrais e de cor rosa pálido. Perguntou ao “sorn” o que eram.

– São as velhas florestas de Malacandra, disse Augray. Em outros tempos havia ar nos “harandra” e era quente lá. Até hoje, se você pudesse chegar lá em cima e viver, veria que está coberto com ossos de criaturas antigas; há tempos atrás era cheio de vida e barulho. Foi então que cresceram estas florestas e no meio delas vivia um povo que desapareceu do mundo. Não eram cobertos de pêlo, mas sim de penas como eu. Não nadavam n’água ou andavam na terra, deslizavam no ar, nos seus membros largos e chatos que os mantinham lá em cima. Dizem que eram ótimos cantores e que naqueles tempos as florestas vermelhas eram cheias de sua música. Agora essas florestas se transformaram em pedra e só os “eldila” podem andar nelas.

– Nós ainda temos destas criaturas no nosso mundo, disse Ransom. Nós os chamamos de pássaros. Onde estava Oyarsa quando tudo isto aconteceu no “harandra”?

– Onde ele está agora.

– E ele não o pôde evitar?

– Não sei, mas um mundo não é feito para sempre e muito menos uma espécie; Maleldil não deseja que isto aconteça.

À medida que iam avançando, as florestas petrificadas se multiplicavam e às vezes, durante meia hora, todo o horizonte daquela desolação parecia um jardim inglês na primavera. Passaram muitas cavernas aonde, segundo lhe disse Augray, moravam “sorns”. Às vezes, via um pico alto, todo perfurado com inúmeros buracos até o cume e ouvia sons inidentificáveis que vinham lá de dentro. O “sorn” lhe disse que “trabalhavam” lá dentro, mas não conseguiu fazê-lo compreender que espécie de “trabalho” estava sendo feito. Seu vocabulário era bem diferente do dos “sorns”. Não viu em lugar nenhum nada que se assemelhasse com uma cidade de “sorns”, que pareciam ser criaturas solitárias e anti-sociais. De vez em quando aparecia uma face longa e pálida na entrada de alguma caverna e trocava cumprimentos, cujo som era parecido com o de uma buzina, com os viajantes, mas a maior parte do tempo, a estrada de rocha deste povo calado estava vazia e silenciosa como o “harandra”.

Só uma vez, ao se aproximar a tarde, encontraram um grupo, de três “sorns”, que vinham na direção oposta. Ransom teve a impressão de que estava patinando e não andando. Vinham descendo uma pequena ladeira; a leveza do seu mundo e o perfeito equilíbrio de seus corpos permitiam que se inclinassem para frente em ângulo reto com o declive. A graça de seus movimentos, sua estatura altíssima, e o brilho suave do sol nas suas penas, modificaram os sentimentos de Ransom para com sua espécie. Quando os havia visto pela primeira vez, enquanto se debatia nas garras de Weston e Devine, os havia chamado de “Ôgros”; agora achava que “Titãs” ou “Anjos” eram palavras mais apropriadas para eles. Até mesmo suas faces lhe pareciam diferentes; ele as havia considerado espectrais quando eram apenas solenes, e sua reação humana diante daquela severidade de linhas e profundezas de expressão lhe parecia mais vulgar do que covarde. As imensas criaturas brancas passaram por Ransom e Augray com a leveza de navios enfunados.

Apesar do frio, que muitas vezes o obrigava a descer e andar um pouco a pé, não desejava parar. Augray, porém, tinha outros planos e decidira passar a noite na casa de um “sorn” mais idoso. Ransom viu logo que tinha sido levado lá para ser mostrado a um grande cientista. A caverna, ou dizendo melhor, o sistema de escavações, era imenso e tinha muitas divisões, com uma multidão de coisas espalhadas, que não conseguia compreender. Estava especialmente interessado numa coleção de rolos, que pareciam ser de peles e estavam cobertos de sinais, e que só podiam ser livros, mas ficou sabendo que havia muito poucos livros em Malacandra.

– É melhor guardar-se as coisas na memória.

Quando Ransom perguntou se segredos valiosos não poderiam ficar perdidos, assim, responderam-lhe que Oyarsa sempre se lembrava e que se julgasse necessário os traria a luz.

– Os “hrossa” tinham muitos livros de poesia, mas agora já têm menos. Dizem que escrever os livros destrói a poesia.

Seu anfitrião era servido por outros “sorns” que pareciam ser de algum modo subordinados a ele. A principio, Ransom pensou que fossem criados mas depois achou que eram discípulos ou assistentes.

A conversa não foi do tipo que poderia interessar a um leitor terrestre, pois os “sorns” tinham decidido que Ransom não iria perguntar nada mas sim responder as perguntas que eles lhe fizessem. O seu interrogatório foi muito diferente do que aquele que os “hrossa’’ lhe haviam feito. Os “hrossa” perguntavam o que lhes vinha a cabeça. Os “sorns” usaram um sistema que, começando da geologia da Terra, abrangia a sua geografia atual, e daí passava para a flora, fauna, história, línguas, política e arte. Quando viam que Ransom não lhes podia informar mais nada sobre um assunto, sendo que isto acontecia logo em quase todos, abandonavam e passavam imediatamente a outro. Freqüentemente extraiam dele, indiretamente, mais conhecimentos do que possuía conscientemente, valendo-se de sua base de cultura geral. Um comentário sobre árvores, quando Ransom estava tentando explicar a fabricação de papel, preenchia um vazio que suas respostas sumárias haviam deixado no campo da botânica; sua descrição da navegação terrestre podia lhes esclarecer algum ponto de mineralogia; e sua explicação sobre a locomotiva a vapor lhes fazia compreender melhor a água e o ar terrestre. Ransom tinha decidido dar respostas francas às suas perguntas, pois tinha chegado à conclusão de que proceder de outra forma não seria “hnau”. Ficaram espantadíssimos com o que lhes contou sobre guerra, escravidão e prostituição.

– Isto acontece porque eles não têm Oyarsa, disse um dos discípulos.

– É porque cada um deles quer ser um pequeno Oyarsa, disse Augray.

– Não é culpa deles, disse o velho “sorn”. É necessário que exista governo, mas como podem criaturas governarem a si próprias? Animais têm que ser governados por “hnau”, os “hnau” pelos “eldila” e os “eldila” por Maleldil. Estas criaturas não têm “eldila”. É a mesma coisa que tentar se erguer pelos seus próprios cabelos ou ver toda uma região quando estamos no mesmo nível que ela.

Houve duas coisas sobre a Terra que os impressionaram particularmente. Uma foi a enorme quantidade de energia que consumimos para levantar e transportar coisas. A outra foi o fato de só termos uma espécie de “hnau”. Achavam que esta última devia contribuir decididamente para um estreitamento de idéias.

– Suas idéias devem ficar a mercê de seu sangue, disse o velho “sorn”, pois não podem compará-las com idéias que não produzidas por um sangue diferente.

Foi uma conversa muito exaustiva e desagradável para Ransom. Quando finalmente foi se deitar, não ficou pensando na sua própria ignorância. Seu pensamento se voltou para as florestas antigas de Malacandra e a significação que teria crescer a tão pouca distância de uma terra colorida onde não se podia ir e que em outros tempos já havia sido habitada.

 

No dia seguinte, cedo, Ransom novamente tomou seu lugar no ombro de Augray. Durante mais de uma hora viajaram pela mesma região clara. Ao norte, o céu estava luminoso, com uma espécie enorme de nuvem de cor ocre, que corria a uma grande velocidade na direção do oeste, a umas dez milhas acima da região árida. Ransom, que ainda não tinha visto nenhuma nuvem em Malacandra, perguntou o que era aquilo. O “sorn” lhe disse que era uma nuvem de areia levantada pelos ventos dos terríveis desertos do norte. Freqüentemente havia nuvens daquele tipo, que às vezes eram carregadas até a uma altura de dezessete milhas para depois caírem em algum “handramit” na forma de uma tempestade de poeira. Ao ver aquela nuvem se movendo ameaçadoramente no céu vazio Ransom lembrou-se de que estava na parte de fora de Malacandra; não mais habitava um mundo mas andava na superfície de um planeta estranho. Finalmente, a nuvem pareceu cair e se desmanchar no horizonte, aparecendo no local um brilho forte que ficou visível até aquela região desaparecer de sua vista, quando dobraram uma curva.

Do outro lado, viu um aspecto inteiramente novo; diante dele estava uma região que a princípio lhe pareceu estranhamente com uma paisagem terrestre, uma paisagem cheia de altos e baixos cinzentos, semelhando ondas. Mais além, estavam os picos de rocha verde destacando-se contra o céu azul escuro. Pouco depois, viu que os altos e baixos eram a superfície irregular de uma camada de nevoeiro azul acinzentado que cobria o vale. Logo que descessem para o “handramit” esse nevoeiro desapareceria. Quando começaram a descida, já foi se atenuando e as diversas cores da região baixa foram aparecendo através dele. A descida foi ficando mais rápida e mais cheia de obstáculos. A luz do céu e a qualidade da luz sofreram uma pequena modificação. Momentos depois, chegaram na beira de um barranco, que na terra seria chamado de precipício. Ao ver que Augray pretendia descer por ali, Ransom recusou-se a permanecer em seu ombro. O “sorn” não compreendeu bem a razão de suas objeções mas abaixou-se para que pudesse desmontar e depois desceu calmamente. Ransom o acompanhou mais cautelosamente.

A beleza desse novo “handramit”, que se descortinou diante de seus olhos, tirou sua respiração. Era mais largo do que aquele onde tinha vivido e bem a sua frente havia um lago quase circular – uma safira de doze milhas na beira de uma floresta púrpura. No meio do lago aparecia uma ilha, que se elevava como um seio de mulher, de um vermelho claro e no alto havia um bosque de árvores nunca vistas por um homem. Seus troncos altíssimos eram finos e elegantes e no alto abriam em flores em vez de ser em ramos e folhas. As flores eram de um tom dourado e brilhante e de uma beleza indescritível e aquela massa imóvel parecia uma nuvem de verão. Ao aproximar-se delas viu que eram na realidade flores gigantescas e não árvores como julgara a princípio. Mesmo antes que seu guia lhe dissesse, sabia que haviam chegado a Meldilorn. Não sabia bem o que esperara encontrar; há muito abandonara aquelas idéias que tinha trazido da Terra de que fosse uma espécie de paraíso de engenheiros cheio de máquinas fabulosas. Mas, também não pensou que fosse ver algo de tão clássico, tão virginal como aquele bosque tão brilhante, no meio daquele vale colorido, elevando-se com graça inimitável dentro da luz de um sol de inverno. A cada passo que dava em direção do “handramit” sentia um calor delicioso. Olhou para cima, o céu estava ficando azul mais claro. Olhou para baixo e sentiu um leve aroma da suave fragrância das gigantescas flores. Profundidade, obscuridade, suavidade e perspectiva estavam de novo dominando a paisagem. O alto da rocha onde tinham começado a descida já estava muito longe e parecia incrível que tivessem realmente vindo de lá. Seus dedos do pé, que estavam há tanto tempo entorpecidos, moviam-se novamente dentro de suas botas. Levantou o seu gorro, descobrindo as orelhas, e imediatamente seus ouvidos se encheram do som de água caindo. E agora já estava andando naquela vegetação macia, em terreno plano, e acima de sua cabeça havia o teto da floresta. Haviam conquistado o “harandra” e estavam no limiar de Meldilorn.

Uma pequena caminhada as levou a uma espécie de avenida larga na floresta, a qual seguia reta como uma flecha entre os caules púrpura, até a beira do lago azul. Lá encontraram um gongo e um martelo pendurados numa pilastra de pedra. Estes objetos eram ricamente decorados e o gongo e o martelo eram feitos de um metal azul-esverdeado que Ransom não reconheceu. Augray tocou o gongo. Ransom estava tão encantado com toda aquela beleza que não conseguiu examinar tão detalhadamente quanto gostaria a ornamentação da pedra. Parte dos desenhos pareciam ser representativos de alguma coisa e a outra parte era puramente ornamental. O que lhe chamou mais a atenção foi o equilíbrio entre as superfícies cobertas e as vazias. Havia desenhos simples, de linhas semelhantes aos pré-históricos encontrados na Terra, alternados com quadrados de desenhos intrincados, parecidos com os das jóias célticas. E depois, quando se olhava de longe, estas áreas alternadas formavam desenhos maiores. Observou também que os arabescos grandes incluíam, nos detalhes, desenhos elaborados. Chegou à conclusão de que a série de desenhos, apesar de estilizada, contava uma história. Quando estava estudando mais detidamente aquele interessante trabalho, Augray o interrompeu apontando um barco que tinha saído da margem da ilha, e vinha em direção a eles.

Quando foi se aproximando, Ransom sentiu uma grande alegria de ver que era trazido por um “hross”. A criatura ancorou o barco na praia aonde estavam, examinou Ransom de alto a baixo, e depois olhou interrogativamente para Augray.

– Você tem toda razão de achar este “hnau” estranho, Hrinha, disse o “sorn”, pois você nunca viu nada de parecido. Seu nome é Ren-soom e ele veio de Thulcandra através do céu.

– É muito bem-vindo, respondeu o “hross” polidamente. Está indo ao encontro de Oyarsa?

– Sim, ele o mandou buscar.

– E a você também, Augray?

– Oyarsa não me chamou. Se você o levar em seu barco para a outra margem, voltarei para minha torre.

O “hross” fez sinal a Ransom para entrar no barco. Este tentou exprimir seu agradecimento ao “sorn” e, depois de um momento de dúvida, retirou seu relógio do pulso e ofereceu; era a única coisa que possuía, que parecia indicada para dar de presente ao “sorn”. Augray compreendeu logo sua intenção, examinou-o bem e devolveu-o com alguma relutância dizendo:

– Este presente deve ser dado a um “pfifltrigg”. Eu o acho muito bonito mas eles tirarão melhor partido deste objeto. Você certamente encontrará alguns deles aqui em Meldilorn; dê-o a eles. Mas, na Terra, é só olhando para isto que vocês sabem quanto tempo se passou do dia?

– Acho que existem alguns animais que conhecem outra maneira mas os nossos “hnau” já não a sabem mais.

Depois disto despediu-se do “sorn” e embarcou. Teve a impressão de estar quase voltando para casa quando se encontrou outra vez num barco, na companhia de um “hross”, sentindo o calor d’água e vendo um céu azul. Tirou seu gorro, recostou-se comodamente e crivou seu companheiro de perguntas. Ficou sabendo que não eram só os “hrossa” que serviam a Oyarsa, como tinha pensado ao ver o “hross” chegando no barco; todas as três espécies de “hnau” estavam a seu serviço, cada uma na sua especialidade. Foi informado também de que seu comportamento em Meldilorn deveria ser o que lhe agradasse, poderia ir onde quisesse e fazer o que tivesse vontade até que Oyarsa o mandasse chamar. Isto poderia levar uma hora ou até mesmo alguns dias. Encontraria choupanas na praia onde poderia dormir e onde lhe dariam comida. Em troca, relatou ao “hross” o que lhe parecia mais facilmente compreensível a respeito da Terra e de sua viagem até Malacandra. Avisou-o também de que, com ele, tinham vindo dois homens muito perigosos, que estavam a solta. Ao fazer isto, lembrou-se de que não o tinha explicado bem a Augray, mas sua aflição diminuiu ao refletir que Weston e Devine pareciam ter uma ligação qualquer com os “sorns” e que de qualquer maneira era pouco provável que tentassem fazer algum mal a criaturas tão imensas e tão parecidas com homens. Pelo menos por enquanto, pois Ransom não tinha a menor ilusão sobre as intenções ocultas de Devine. A única providência que poderia tomar seria contar tudo que sabia a Oyarsa. Enquanto se preocupava com isto o barco chegou à margem.

Ransom levantou-se, enquanto o “hross” atracava o barco, e olhou a sua volta. À esquerda do lugar onde tinham ancorado havia pequenas casas de pedra, as primeiras a ver em Malacandra. O “hross” lhe disse que lá encontraria abrigo e comida. O resto da ilha parecia desabitado. Na encosta que levava ao bosque havia umas pedras que formavam uma espécie de avenida larga de monolitos, imponente, vazia, e que desaparecia no alto da colina, por dentro das pálidas sombras das flores gigantescas. Tudo era solidão, mas quando olhou para cima, teve a impressão de ouvir, destacando-se no silêncio da manhã, um leve som prateado de agitação contínua, que mal parecia um som quando tentou distingui-lo, mas que não podia ser ignorado.

– A ilha está cheia de “eldila”, disse o hross em vos baixa.

Ransom desceu para a praia. Deu alguns passos hesitantes e, como se estivesse esperando algum obstáculo, parou; depois, continuou para frente, ainda da mesma forma.

Apesar da vegetação ser extraordinariamente macia e luxuriante e seus passos não fazerem nenhum barulho ao pisar nela, tinha vontade de andar na ponta dos pés. Todos os seus movimentos ficaram suaves e macios. A extensão de água em volta da ilha tornava o ar mais quente do que até agora conhecera em Malacandra; o clima era semelhante ao de um dia agradável de fins de setembro. A admiração e o espanto que o invadiam o impediram de se aproximar do alto da colina, onde estavam o bosque e a avenida de pedras verticais.

Parou de subir mais ou menos a meio-caminho do alto e começou a andar para a direita, mantendo-se a uma distância constante da praia. Disse para si mesmo que estava dando uma espiada na ilha mas tinha a sensação de que a ilha é que estava dando uma espiada nele. Esta sensação ainda aumentou com uma descoberta que fez, mais ou menos uma hora depois de estar vagando por ali, e que depois sempre lhe foi muito difícil descrever. Resumindo isto em termos abstratos, diria que a ilha estava sujeita a variações mínimas de sombra e luz, que não podiam ser explicadas por nenhuma mudança no céu. Se o ar não estivesse parado e a vegetação não fosse baixa demais, Ransom diria que uma leve brisa estava brincando com ela, produzindo alterações semelhantes às de um trigal na terra. Tal como os sons prateados que desapareciam quando procurava ouvi-los melhor, estes passos de luz também eram difíceis de serem observados. Quando olhava com mais atenção para alguns deles, ele se tornava invisível e aquela claridade momentânea parecia ter acabado de deixar o local onde seus olhos se fixavam. Não tinha a menor dúvida de que estava “vendo”, tão claramente quanto ele jamais veria, os “eldila”. A sensação que esta certeza lhe produziu era curiosa, não era de pavor como se estivesse cercado por fantasmas, e nem mesmo como se estivesse sendo espionado, era antes a impressão de que estava sendo observado por quem tinha o direito de fazê-lo. O que sentia era menos do que medo, era uma espécie de encabulação, tinha alguma coisa de submissão e era extremamente inquietante.

Sentia-se cansado e julgou que aquela terra favorecida seria quente bastante para descansar ao ar livre. Sentou-se, e a maciez da relva e o suave aroma que se espalhava por toda a ilha lhe fizeram lembrar as tardes de verão nos jardins da Inglaterra. Fechou seus olhos por um momento, depois os abriu novamente e ao olhar para baixo reparou que havia casas abaixo dele e que no lago um barco se aproximava. De repente reconheceu o local: estava justamente no ponto de partida e havia, portanto, dado a volta completa na ilha. Ficou um pouco desapontado com esta descoberta. Estava começando a sentir fome. Talvez não fosse uma boa idéia ir até lá em baixo pedir um pouco de comida; de qualquer maneira ajudaria a matar o tempo.

Mas não o fez. Quando se levantou e olhou para a casa maior, uma espécie de hospedaria, viu um movimento considerável de criaturas nas redondezas e um grupo grande de passageiros que descia da barca. No meio do lago viu alguns objetos que se moviam e que a princípio não identificou; depois, percebeu que eram “sorns” com água pela cintura, vadeando o lago para chegar a Meldilorn. Havia uns dez deles. Por qualquer motivo que desconhecia, a ilha estava recebendo um grande número de visitantes. Não tinha medo que lhe fizessem algum mal, se descesse e se misturasse com a multidão, mas estava um pouco receoso de fazê-lo. A situação em que se encontrava lhe fazia lembrar o seu primeiro dia na escola quando ficara meio afastado observando a chegada dos veteranos. Acabou desistindo de ir até lá em baixo. Cortou um pouco da vegetação e, depois de se alimentar, cochilou.

De tarde, quando a temperatura caiu um pouco, recomeçou a andar. Havia outros “hnau” andando pela ilha. Viu mais “sorns” que qualquer uma das outras espécies, mas isto porque eram mais visíveis devido à sua altura. Não se ouvia quase nenhum barulho. A sua relutância em se aproximar dos outros visitantes o levou a se dirigir para o alto da colina. Chegou até a beira do bosque e foi parar bem em frente da avenida monolítica. Tinha resolvido por qualquer razão que não ia entrar nela, mas começou a estudar a pedra mais próxima, que era ricamente esculpida nos quatro lados, e daí sua curiosidade o levou adiante estudando pedra por pedra.

Os desenhos eram muito interessantes. Ao lado de figuras representando “sorns”, “hrossa” e o que ele supunha ser “pfifltriggi” aparecia freqüentemente uma figura alta e ondulante cuja face era só sugerida e com azas. As azas eram perfeitamente reconhecíveis e isto o intrigou. Será que as tradições de arte em Malacandra remontavam àquela era geológica e biológica mais antiga, quando, segundo Augray lhe tinha dito, havia vida, inclusive uma espécie de pássaro, no “harandra”? Aquelas pedras pareciam dizer que “sim”. Havia desenhos representando as florestas vermelhas com pássaros voando entre elas e muitas outras criaturas que desconhecia. Numa outra pedra, muitas destas criaturas estavam representadas mortas no solo, e acima delas uma figura fantástica parecendo um “hnakra”, provavelmente simbolizando o frio, que lhas atirava dardos. As que estavam vivas cercavam a figura sinuosa e alada que supunha ser Oyarsa. Na pedra seguinte Oyarsa aparecia seguido de muitas criaturas, fazendo um sulco com um instrumento pontudo. Outro desenho mostrava os “pfifltriggi” alargando o sulco com ferramentas próprias para escavação. Dos dois lados os “sorns’’ empilhavam terra formando cumes, e apareciam “hrossa” que construíam canais de água. Ransom ficou pensando se aquilo seria uma história real de como havia sido feito o ‘handramit” ou se era pura imaginação.

Havia muitos desenhos que eram totalmente incompreensíveis para ele. Um, que o intrigou particularmente, mostrava na parte de baixo um segmento de círculo, sendo que acima e por trás dele apareciam três quartas partes de um disco dividido em anéis concêntricos. Achou que devia ser uma representação do sol aparecendo atrás de uma colina; a base era cheia de cenas de Malacandra, Oyarsa em Meldilorn, “sorns” na beira das montanhas e outras coisas que lhe eram ao mesmo tempo familiares e estranhas. Examinou o disco que parecia estar surgindo por trás do segmento, mas este não representava o sol. O sol estava lá no centro do disco, e a volta dele estavam os círculos concêntricos. No primeiro destes círculos, o menor portanto, havia uma pequena bola em cima da qual estava uma figura alada, parecida com Oyarsa, que segurava uma coisa parecida com uma trombeta. No circulo seguinte, um figura semelhante estava em cima de outra bola. Esta figura em vez de ter uma sugestão de rosto, tinha duas saliências, que Ransom depois de examinar bem decidiu que deviam ser seios de mulher. Naquela altura teve certeza de que estava vendo uma representação do sistema solar. A primeira bola era Mercúrio, a segunda Vênus, e o mais interessante era que também na sua mitologia Vênus fosse associada a uma figura feminina. O desenho não o teria interessado mais se uma curiosidade natural não o tivesse feito olhar para a próxima bola que deveria representar a Terra. Quando a viu, levou um choque. A bola estava lá, mas no lugar onde deveria estar a figura alada havia uma depressão que parecia ter sido feita para apagá-la. Mas então, antigamente... mas sua ignorância impediu que continuasse a fazer suposições. Olhou para o próximo círculo. Lá não havia bola, porém a parte inferior do círculo tocava a parte onde estavam as cenas de Malacandra, de maneira que este tocava o sistema solar naquele ponto e aparecia em perspectiva diante do espectador. Agora que tinha compreendido o significado do desenho, a perfeição deste o encantou. Respirou profundamente, dispondo-se a tentar penetrar nos mistérios que o cercavam. Então, Malacandra era Marte! A Terra... mas naquele ponto um som de marteladas, que estava ouvindo há algum tempo, sem que tivesse penetrado na sua consciência, tornou-se insistente demais para continuar a ser ignorado. Perto dele havia uma criatura trabalhando, e certamente não devia ser um “eldil”. Um pouco assustado, pois estava absorvido em seus pensamentos, virou-se. Não viu ninguém; então, gritou tolamente em sua própria língua:

– Quem está aí?

As marteladas pararam imediatamente e apareceu um rosto extraordinário de trás de uma das pedras.

Não tinha pêlos, nisto sendo igual aos homens e aos “sorns”. Sua cabeça era comprida, pontuda e amarelada. A testa era tão pequena que, se não fosse pelo tamanho da cabeça, estendida para trás, aquela criatura não poderia ser racional. Um instante depois a criatura deu um pulo e apareceu toda de uma vez. Ransom imaginou que só podia ser um “pfifltrigg” e ficou muito satisfeito de não ter deparado com um representante desta terceira raça logo que chegara a Malacandra. Parecia-se muito mais com um inseto ou um réptil do que as que havia visto até agora. Seu corpo era o de um sapo. A princípio Ransom pensou que estivesse apoiado, como os sapos, nas mãos. Depois percebeu que a parte dos seus membros superiores em que estava apoiado era mais parecido, de acordo com as idéias humanas, com um cotovelo. Era largo e claramente destinava-se a agüentar o seu peso quando andava. Partindo deles e a um ângulo de cerca de 45 graus estavam os antebraços, finos, mas fortes, e terminando em mãos com diversos dedos. Percebeu que aquela criatura tinha a grande vantagem de poder realizar qualquer trabalho manual, desde a escavação de minas até o recorte de camafeus, com muito mais facilidade, pois seus cotovelos ficavam bem apoiados permitindo que empregasse toda sua força no trabalho. Ele dava a impressão de um inseto por causa da velocidade de seus movimentos e porque parecia saltitar, podendo além disto virar sua cabeça quase a toda a volta. Quando se movia fazia um ruído seco parecido com o de um gafanhoto.

– Venho de um outro mundo, começou a dizer Ransom.

– Eu sei, eu sei, disse a criatura falando depressa e meio impacientemente. Venha aqui atrás da pedra; por aqui, por aqui. Ordens de Oyarsa. Muito ocupado. Tenho que começar logo. Fique parado aqui.

Ransom foi parar do outro lado do monolito e viu um trabalho que estava sendo feito. O chão estava repleto de lascas de pedra e o ar cheio de poeira.

– Muito bem, disse a criatura. Fique quieto. Não olhe para mim, olhe para aquele ponto.

Ransom não compreendeu logo o que a criatura queria dele, mas quando viu o “pfifltrigg” olhando para ele e para o trabalho que estava fazendo na pedra, como o artista olha para o modelo e para a obra que está realizando, viu o que estava acontecendo e quase deu uma gargalhada. Estava posando para um retrato! De onde estava via que o “pfifltrigg” cortava a pedra como se fosse queijo e a rapidez dos seus movimentos lhe causou a maior admiração; não podia ver o trabalho mas, em compensação, podia estudar bem a criatura. Viu que o barulho metálico e chocalhante que fazia ao se mexer era devido a um grande número de pequenos instrumentos que carregava pendurados na cintura. Às vezes, com uma exclamação de aborrecimento, largava uma das ferramentas com que estava trabalhando e pegava uma das outras; a maioria das que estavam em uso, ele guardava em sua boca. Viu também que esta criatura usava roupas como ele, feitas de um material brilhante, ricamente ornado mas, no momento, coberto de poeira. Em volta do pescoço usava uma echarpe de pele e seus olhos eram protegidos por óculos duplos escuros, que deviam servir para proteger seus olhos no trabalho. Tinha anéis e correntes de um metal brilhante, no pescoço, nos braços e nas mãos, que a Ransom não pareceu ser ouro. Enquanto trabalhava murmurava para si mesmo e quando estava muito animado, o que acontecia quase o tempo todo, a ponta de seu nariz ficava franzida como a dos coelhos. Finalmente, de um salto, aterrissou a umas dez jardas de seu trabalho e disse.

– Bem, bem. Não tão bom quanto eu queria. Farei melhor outra vez. Agora chega. Venha ver.

Ransom obedeceu. Viu uma representação dos planetas; desta vez não estavam dispostos de maneira a formar um mapa do sistema solar; em vez disto, avançavam em direção ao espectador numa fila e todos, menos um, presos a uma figura alada. Na base estava Malacandra e, para grande surpresa sua, uma representação bem aceitável da nave do espaço. Junto a ela estavam três figuras, tendo sido todas aparentemente copiadas de Ransom, Ele as achou repelentes, mesmo considerando-se que o modelo era muito estranho aos olhos de um habitante de Malacandra e que a arte deles era estilizada; ainda assim o “pfifltrigg” poderia ter tentado representar a figura humana um pouco melhor do que aqueles bonecos esquisitísimos cuja altura e largura eram iguais e que na altura do pescoço pareciam rebentar numa espécie de cogumelo.

Não querendo ser desagradável disse apenas:

– Suponho que seja assim que somos vistos pelos habitantes de Malacandra. Em meu próprio mundo não somos representados desta maneira.

– Não, respondeu o “pfifltrigg”, não pretendia fazê-los muito parecidas. Semelhança demasiada, e não o acreditarão, os que vão nascer depois. Continuou falando mais uma porção de coisas que Ransom tinha dificuldade de compreender. Enquanto falava, Ransom se deu conta de que aquelas figuras odiosas para o “pfifltrigg” eram a “idealização” da humanidade. Para mudar de assunto, Ransom perguntou uma coisa que já há algum tempo queria saber.

– Não compreendo, disse, como é que vocês, os “sorns” e os “hrossa” chegaram todos a falar a mesma língua, pois suas línguas, seus dentes e suas gargantas devem ser muito diferentes umas das outras.

– Você tem razão, respondeu a criatura. Houve um tempo em que cada grupo tinha sua língua e ainda a usamos em nosso próprio meio. Mas todos aprenderam a língua dos “hrossa”.

– Porque aconteceu isto? indagou Ransom, raciocinando ainda em termos da história terrestre – os “hrossa” já dominaram as outras duas espécies?

– Não compreendo. Eles são nossos grandes poetas e cantores. Têm mais palavras. Ninguém aprende a língua de meu povo, pois o que temos a dizer está em pedra, em sangue do sol e em leite das estrelas e todos podem vê-lo. Ninguém aprende a língua dos “sorns”, pois sua sabedoria pode ser transformada em quaisquer palavras e continuará sendo a mesma. Não se pode fazer isto com os cantos dos “hrossa”. Sua língua se espalha por toda Malacandra. Eu a falo com você porque é estrangeiro, como a falaria com um “sorn”. Em nossos lares, porém, temos nossa língua antiga. É fácil verificá-lo nos nomes. Os “sorns” tem nomes ressonantes como Augray, Arkal, Belmo, Falmay, etc. Já os nomes dos “hrossa” tem um som mais áspero como Hnoh, Hnihi, Hyoi, Hüthani.

– Então a melhor poesia é feita na língua mais áspera?

– Talvez, respondeu o “pfifltrigg”, assim como os melhores quadros são feitos nas pedras mais duras. Já o meu povo tem nomes como Kalakaperi, Parakataru e Tafalakeruf. Meu nome é Kanakaberaka.

Ransom lhe disse seu nome.

– Em nosso país, não é assim, disse Kanakaberaka. Não ficamos espremidos num “handramit” estreito. Lá estão as verdadeiras florestas, as sombras verdes, as minas profundas. A luz não é tão intensa como aqui, e também não é assim silencioso. Gostaria que você tivesse vindo ao nosso país. Não moramos em buracos como os “sorns” ou em choupanas como os “hrossa”. Poderia mostrar a você casas com cem pilastras, uma de sangue do sol, a seguinte de leite das estrelas e assim por diante... e nas paredes está representado todo o universo.

– Como é que vocês se governam? perguntou Ransom. Os que trabalham nas minas estão tão satisfeitos quanto aqueles que pintam os muros?

– Todos trabalham nas minas, é um trabalho em que todos têm que participar. Cada um tira o que precisa para seu trabalho. O que mais iria ele fazer?

– Isto não acontece na Terra.

– Então vocês devem fazer trabalhos errados. Como poderia um artesão saber trabalhar bem com o sangue do sol, se não penetrasse na fonte dele, e distinguisse uma espécie da outra, e morasse com ele dias e dias, longe da lua do céu, até que penetrasse em seu sangue e em seu coração, como se fosse pensamento ou comida?

– Lá o sangue de ouro fica a uma grande profundidade e aqueles que o tiram têm que passar a vida toda naquela tarefa.

– E eles gostam disto?

– Acho que não... não sei bem. Eles o fazem porque não terão alimento se pararem.

Kanakaberaka franziu o nariz.

– Mas então não há comida suficiente no seu planeta?

– Não sei, respondeu Ransom. Muitas vezes já quis obter uma resposta para essa pergunta, mas ninguém soube me dizer nada. Ninguém mantém o povo de vocês no trabalho, Kanakaberaka?

– Nossas fêmeas, disse o “pfifltrigg”, fazendo um ruído engraçado, que aparentemente era o equivalente de uma risada.

– Vocês dão mais consideração as suas fêmeas do que os outros “hnau” as deles?

– Muito mais. Nós somos os que dão mais consideração e os “sorns” são os que dão menos.

 

Kansom passou aquela noite na hospedaria, que era uma casa de verdade, construída pelos “pfifltriggi” e ricamente enfeitada.

A satisfação que teve, de estar numa habitação que se parecia com as da Terra, não foi tão grande quanto poderia ser, devido à presença de tantas criaturas de Malacandra sob o mesmo teto que ele. As três espécies estavam representadas e sentiam-se muito a vontade umas com as outras. Só discordavam a respeito da temperatura da casa, que os “sorns” achavam muito quente e os “pfifltriggi” muito fria. Aprendeu mais sobre o humor em Malacandra naquela única noite do que tinha conseguido perceber até então, pois as conversas em que tomaram parte haviam sido quase sempre muito sérias. Aparentemente o espírito cômico aparecia com mais animação quando as três espécies de “hnau” se encontravam. As piadas das três eram igualmente incompreensíveis para ele. Teve a impressão de que havia uma certa diferença nas graças que faziam: os “sorns” raramente passavam da ironia, os “hrossa” eram extravagantes e fantásticos e os “pfifltriggi” eram penetrantes. Mesmo quando Ransom entendia as palavras, não percebia qual era a graça, e como estava cansado, foi se deitar cedo.

Na madrugada seguinte, na hora em que nas fazendas da Terra se tira o leite das vacas, Ransom foi acordado A princípio não percebeu bem o que o despertara; o quarto onde dormia estava vazio e escuro. Resolveu dormir outra vez, mas ouviu uma voz junto dele dizer, – Oyarsa chama você. Sentou-se na cama e olhou a sua volta. Não havia ninguém, mas a voz repetiu, – Oyarsa chama você. Aos poucos despertou completamente e então compreendeu que devia haver um “eldil” no quarto. Não sentiu um medo consciente, mas enquanto se levantava obedientemente e vestia sua roupa, seu coração batia aceleradamente. Não estava muito preocupado com a criatura invisível que se achava em seu quarto mas sim com a entrevista a que ia comparecer. Tinha perdido aquele pavor inicial que sentia quando achava que ia encontrar um monstro ou um ídolo; o nervoso que o dominava agora era do mesmo tipo que sentia quando era estudante e tinha um exame. A coisa que mais desejava naquele instante era uma boa xícara de chá.

A hospedaria estava inteiramente vazia. Saiu e parou um instante para admirar a paisagem. A neblina azulada estava se afastando do lago e o céu estava clareando; faltavam poucos minutos para o nascer do sol. O ar ainda estava muito frio e a vegetação estava coberta de orvalho. Havia alguma coisa de estranho no ar, o silêncio era absoluto, não se ouvia mais as vozes dos “eldila” nem se via o jogo de luz e sombra que seus pés faziam ao passar. Sem que fosse preciso lhe dizer nada sabia que devia se dirigir ao bosque que ficava na parte mais alta da ilha. Ao se aproximar do caminho que o levaria até lá, viu que a avenida monolítica estava cheia de criaturas das três espécies encontradas em Malacandra. Formavam duas alas de um lado e de outro, algumas acocoradas, outras sentadas, cada uma na posição que mais convinha a sua anatomia. Quando chegou lá no alto, no meio da avenida onde estavam os blocos maiores, parou: nunca conseguiu se lembrar se o fizera espontaneamente ou se obedecera a algum “eldil”. Não se sentou porque a terra estava muito fria e molhada e além disto achava que não seria muito próprio. Ficou simplesmente parado, de pé. Todas as criaturas estavam olhando para ele e não se ouvia o menor ruído.

Aos poucos foi percebendo que o local estava repleto de “eldila”. As luzes, que na véspera estavam espalhadas por toda a ilha, concentravam-se agora num só local e estavam também paradas, o sol já havia surgido mas todos permaneciam silenciosos. Quando olhou para cima para ver os raios de sol batendo nos monolitos, viu que o ar estava cheio de uma luz diferente da do sol; aquele brilho que tinha diante de si, era a luz dos “eldila”. O céu, assim como a terra, estava cheio deles; os habitantes visíveis de Malacandra eram só uma pequena parte da multidão que o cercava. Quando chegasse a hora de defender sua causa, ele o faria diante de milhares ou milhões de criaturas que até então nunca tinham visto um homem, e a quem o homem não podia ver. Filas e filas de “eldila” estavam próximos a ele e outros tantos se encontravam no céu, acima de sua cabeça, esperando o início de seu julgamento. Molhou os lábios, que tinham ficado secos e ficou pensando se seria capaz de abrir a boca quando lhe mandassem falar. Depois, pensou que talvez aquela espera e aquele exame de que estava sendo alvo fossem o julgamento, quem sabe já estava lhes dizendo inconscientemente tudo o que queriam saber. Passado algum tempo, porém, houve um ruído de movimento. Todas as criaturas que estavam no bosque se levantaram e ficaram paradas, silenciosas e com as cabeças curvadas respeitosamente. Ransom viu, então, (se é que se pode chamar isto de ver) que Oyarsa vinha chegando entre as filas de pedras esculpidas. Em parte ele o sabia, pelos rostos das criaturas de Malacandra, a passagem de seu senhor e em parte porque ele viu, não podia negar que viu, o próprio Oyarsa. Nunca pôde explicar bem como foi aquilo. Havia um leve rastro de luz, não menos do que isto, uma diminuição mínima de sombra, passando pela superfície desigual da vegetação do solo; ou melhor, uma diferença no aspecto do chão, leve demais para poder ser descrita, caminhava lentamente em direção a ele. Tal como um silêncio se espalhando numa sala cheia de pessoas, uma brisa infinitesimal num dia quente, a lembrança passageira de algum som ou alguma fragrância há muito esquecidas, tudo que há de mais silencioso, de menor e de mais difícil de se perceber na natureza, passou Oyarsa entre seus súditos e foi se colocar a menos de dez jardas de Ransom, bem no centro de Meldilorn. Ransom teve a sensação de que havia um raio perto dele, seu coração e seu corpo pareciam ser feitos de água.

Oyarsa falou, sua voz era a menos parecida com a dos homens que Ransom ouvira até então, era uma voz suave e distante, uma voz exatamente como um dos “hrossa” dissera mais tarde, uma voz sem sangue. A luz é para os “eldila” o que o sangue é para nós. As palavras que disse não foram assustadoras.

– O que receia você, Ransom, de Thulcandra? perguntou.

– Tenho receio de vós, Oyarsa, porque sois tão diferente de mim e não vos posso ver.

– Estas razões não são bastante fortes, disse a voz. Você também é diferente de mim, e apesar de ver você, só lhe vejo muito vagamente. Não pense que somos totalmente diferentes. Somos ambos cópias de Maleldil. Não são estas as razões verdadeiras.

Ransom não disse nada.

– Você começou a ter medo de mim antes mesmo de por os pés no meu mundo. Desde que aqui chegou tem gasto todo seu tempo em fugir de mim. Meus servos viram o seu medo quando estava na nave do espaço. Viram que seus companheiros lhe tratavam mal, apesar de não poderem compreender suas palavras. Então mandei aquele “hnakra” para que pudesse escapar daqueles dois e vir até a mim por sua livre vontade. Porém você se escondeu entre os “hrossa” e apesar de terem lhe dito para vir a mim, você não veio. Depois disto mandei meu “eldil” buscá-lo e ainda assim você não veio. E por fim, seus próprios semelhantes perseguiram você, fazendo com que viesse; e o sangue de um “hnau” foi derramado.

– Não compreendo, Oyarsa. Quereis dizer que fostes vós que me mandastes buscar em Thulcandra?

– Sim. Os outros dois não lhe disseram isto? E então porque você veio com eles senão para obedecer ao meu chamado? Meus servos não podiam entender o que eles lhe diziam quando estavam no céu.

– Vossos servos... não entendo, disse Ransom.

– Faça as perguntas que desejar, disse a voz.

– Vós tendes servos no céu?

– E aonde mais os teria? Não há nenhum outro lugar.

– Mas vós estais em Malacandra, assim como eu.

– Mas Malacandra, como todos os mundos, flutua no céu. E eu não estou “aqui” do mesmo modo que você, Ransom de Thulcandra. Criaturas da sua espécie têm que cair do céu num mundo; para nós os mundos são lugares no céu. Não tente, porém, compreender isto agora. Basta que você saiba que eu e meus servos estamos até agora mesmo no céu. Eles estavam a sua volta na nave do espaço da mesma forma que lhe rodeiam aqui.

– Então vós tivestes conhecimento de nossa viagem mesmo antes de sairmos de Thulcandra?

– Não. Não sabemos o que se passa em Thulcandra. É o único mundo que está fora do céu e não recebemos mensagens de lá.

Ransom permaneceu silencioso, mas Oyarsa respondeu suas perguntas não formuladas.

– Não foi sempre assim. Houve um tempo em que conhecíamos o Oyarsa do seu mundo; ele era mais brilhante que eu e superior a mim. É uma história muito comprida e muito triste. Ele se corrompeu e assim permaneceu. Isto, antes que houvesse vida em seu mundo. Estes foram os Anos Maus de que ainda falamos nos céus, quando ele ainda não estava preso a Thulcandra, mas livre como nós. Pretendia levar o mal a todos os planetas que não fosse o seu. Com a mão esquerda abafou sua lua e com a direita trouxe a inerte gelada ao meu “harandra”, antes do tempo; se, pela, minha mão, Maleldil não tivesse aberto os “handramits’“ e deixado jorrar as fontes quentes, meu mundo teria sido despovoado. Mas ele não ficou solto por muito tempo. Houve uma luta feroz e nós o afastamos do céu e o amarramos no ar de seu próprio planeta como Maleldil nos ensinara. Certamente ele está lá até agora, e nunca mais soubemos nada de seu planeta; ficou silencioso. Nós achamos que Maleldil não o entregaria completamente ao domínio do Oyarsa do Mal; ouvimos dizer que Ele foi levado a fazer coisas terríveis em sua luta com o Oyarsa Torto. Não sabemos nada ao certo e você conhece mais isto do que nós; é uma coisa que desejaríamos saber.

Ransom levou algum tempo para falar de novo o Oyarsa respeitou seu silêncio. Quando colocou os pensamentos em ordem disse:

– Depois desta história, Oyarsa, posso vos dizer que nosso mundo é muito errado. Os dois que me trouxeram aqui não sabiam nada a vosso respeito; só sabiam que os “sorns” lhes tinham pedido que me trouxessem. Acho que pensaram que vós éreis um falso “eldila” nas regiões selvagens de nosso mundo; homens matam outros homens diante deles, pensam que os “eldila” bebem sangue. Pensaram que os “sorns” me quisessem para isto ou para alguma outra maldade. Me trouxeram a força e eu vim apavorado. Os contadores de histórias no nosso mundo fazem com que pensemos que se existe vida além de nossa própria atmosfera ela tem necessariamente que ser má.

– Compreendo, disse a voz. E isto explica muitas coisas que estava achando estranhas. Assim que sua nave saiu da atmosfera de vocês e entrou no céu, meus servos disseram que você parecia estar vindo contra a vontade e que os outros tinham segredos entre eles. Não pensei que uma criatura pudesse ser tão insensível a ponto de trazer um de seus semelhantes à força.

– Não sabiam para que desejáveis a minha presença, Oyarsa. Aliás, não o sei ainda.

– Direi a você. Há dois anos atrás, o que equivale a cerca de quatro anos dos seus, esta nave entrou no céu vindo de seu mundo. Acompanhamos sua viagem até aqui; havia “eldila” junto a ela quando passou por cima do “harandra”, e, quando finalmente aterrissou no “handramit”, mais da metade de meus servos estavam a sua volta, vendo os estranhos chegarem. Afastamos todos os animais do lugar e nenhum “hnau” tinha ainda conhecimento do fato. Depois que os estranhos tinham andado para cima e para baixo em Malacandra e construído uma cabana, achei que certamente já se dissipara seu receio de um mundo novo, e mandei que alguns “sorns” se mostrassem e lhes ensinassem nossa língua. Escolhi os “sorns’’ porque são os que têm o aspecto mais parecido com a gente de seu mundo. Os habitantes de Thulcandra tiveram medo dos “sorns” e custavam muito para aprender qualquer coisa. Os “sorns” os visitaram muitas vezes e lhes ensinaram alguma coisa. Disseram-me que os Thulcandrenses apanhavam sangue do sol em qualquer lugar que o encontravam. Quando o que me disseram não fez sentido nenhum para mim, disse aos “sorns” que os trouxessem até mim, não a força, mas sim cortesmente. Recusaram-se a vir. Mandei dizer então que viesse um só, mas nem mesmo um quis vir. Teria sido fácil aprisioná-los, mas apesar de vermos que eram pouco inteligentes, não percebemos que eram tão débeis, e além disto não queria exercer minha autoridade sobre criaturas que pertenciam a um outro mundo. Disse aos “sorns” que os tratassem como filhotes de feras e lhes dissessem que não poderiam mais apanhar sangue do sol até que um de sua raça viesse a mim. Quando lhes disseram isto, puseram o máximo possível do que já haviam apanhado na nave do espaço e partiram para seu próprio mundo. Naquela ocasião não compreendemos o que os tinha levado a proceder assim, mas agora está tudo claro. Pensaram que eu queria um de sua própria raça para comê-lo e foram buscá-lo para mim. Se tivessem andado umas poucas milhas para vir ao meu encontro eu os teria recebido com toda a cortesia; agora fizeram duas vezes uma viagem de milhões de milhas à toa, e de qualquer maneira terão que aparecer diante de mim. Você também, Ransom de Thulcandra, fez tanto esforço para evitar vir até aqui...

– É verdade, Oyarsa. Criaturas más são cheias de receios. Mas agora estou diante de vós e pronto para obedecer a vossa vontade.

– Há duas coisas que desejo perguntar a você. Primeiro, preciso saber porque vieram aqui; descobrir isto, é meu dever para com meu mundo. Em segundo lugar, quero saber alguma coisa sobre as lutas estranhas que estão sendo travadas entre Maleldil e o Oyarsa Mau, pois isto como já disse nos interessa a todos.

– Quanto à primeira pergunta, Oyarsa, vim aqui porque fui trazido à força. Dos outros dois, um não se interessa por mais nada a não ser sangue do sol, pois em nosso mundo pode trocá-lo por muito poder e muitos prazeres. O outro, porém, deseja mal a vosso povo. Acho que não hesitaria em destruir todo vosso povo a fim de preparar lugar para o nosso. E depois faria o mesmo com os outros mundos. Ele quer que nossa raça dure eternamente e tem esperança de ficar saltando de mundo em mundo, procurando sempre um sol novo quando o velho se extinguir ou qualquer coisa de parecido com isto.

– O cérebro dele é afetado?

– Não sei. Talvez não esteja explicando o que ele pretende, pois tem conhecimentos mais vastos que os meus.

– Pensará ele que poderia ir para os grandes mundos? Pensará, por acaso, que Maleldil quer que alguma raça viva eternamente?

– Mas ele não sabe que Maleldil existe. O que é certo, porém, Oyarsa, é que deseja mal ao vosso mundo. Não deveis permitir que mais ninguém de nossa raça venha aqui. Se a única forma de impedi-lo for matar a nós três, eu morrerei de bom grado.

– Se vocês pertencessem ao meu mundo, eu aos outros dois mataria já, Ransom, e a você mais tarde, porque eles são maus demais para que se tenha esperança de corrigi-los e você, quando ficar um pouco mais valente, estará pronto para ir ao encontro de Maleldil. A minha autoridade, porém, é sobre o meu próprio povo. É uma coisa terrível matar os “hnau” de outrem. Não será necessário chegar a este extremo.

– Eles são fortes, Oyarsa; podem atirar a morte a muitas milhas e soprar ventos mortíferos contra seus inimigos .

– O mais ínfimo de meus servos poderia tocar sua nave antes que ela atingisse Malacandra, enquanto estivesse no céu, e transformá-la num corpo de movimentos diferentes, o que seria equivalente ao desaparecimento, para vocês. Não deixe ninguém de sua raça vir ao meu mundo a menos que eu o mande chamar, pois as conseqüências seriam terríveis. Agora conte-me tudo sobre Thulcandra. Não sabemos nada do que se passou lá depois do dia em que o Oyarsa Mau caiu do céu na atmosfera de seu mundo, ferido depois de uma luta sem tréguas.

– Tenho medo dos espaços de tempo, Oyarsa... ou talvez eu não os entenda. Não dissestes que tudo isto aconteceu antes que houvesse vida em Thulcandra?

– Sim.

– E vós, Oyarsa? Já vivíeis... e aquele desenho na pedra que mostra o frio matando os habitantes do “harandra”? Aquilo representa um fato que aconteceu antes de meu mundo existir?

– Estou vendo que você é mesmo “hnau”, disse a voz. Não há dúvida de que uma pedra exposta ao ar naquela ocasião não seria pedra agora. Aquele desenho já começou a desaparecer e foi copiado mais vezes do que existem “eldila” a nossa volta. Mas foi copiado exatamente, de modo que você vê agora um desenho que estava terminado quando seu mundo ainda estava pela metade. Mas não pense muito sobre estas coisas. Meu povo tem por norma não falar muito sobre tamanhos ou números com vocês, ou mesmo com os “sorns”. Vocês não compreendem e ficam dando muito valor a coisas sem importância e passam por cima do que realmente interessa. É melhor que você me conte o que Maleldil fez em Thulcandra.

– Segundo nossas tradições, começou Ransom a dizer, quando, repentinamente, o silêncio da assembléia foi quebrado. Um grupo enorme, quase uma procissão vinha vindo da praia em direção ao bosque. Era formado quase que exclusivamente, pelo que podia ver, de “hrossa” e eles pareciam estar carregando qualquer coisa.

 

Ao se aproximar a procissão, Ransom viu que os “hrossa” que vinham na frente estavam carregando três fardos longos e estreitos. Cada fardo era transportado por quatro “hrossa” que o equilibravam em cima de suas cabeças. Depois deles, vinha um grupo em que todos estavam armados com arpões e pareciam estar escoltando duas criaturas que ele não conseguiu distinguir bem. A luz estava por trás deles quando passaram entre os dois monolitos mais afastados. Eram muito mais baixos que qualquer animal existente em Malacandra; percebeu que eram bípedes, apesar de seus membros inferiores serem tão grossos que não sabia se poderia chamá-los de pernas. Os corpos eram um pouco mais estreitos em cima do que em baixo de maneira que tinham um ligeiro formato de pêra; suas cabeças não eram redondas como as dos “hrossa” nem compridas como as dos “sorns”; eram quase quadradas. Seus pés pareciam muito pesados e estreitos e pisavam com violência desnecessária. Pouco a pouco suas faces foram ficando visíveis vendo-se a princípio massas de carne, de cor variada, emolduradas por uma substância escura... De repente, Ransom, com um grande choque, percebeu que eram homens. Os dois prisioneiros eram Weston e Devine e ele, por um instante privilegiado, havia observado a forma humana do ponto de vista dos habitantes de Malacandra.

Os “hrossa” que vinham na frente chegaram a algumas jardas de Oyarsa e depositaram seus fardos no chão.

Viu então que eram três “hrossa” mortos, em esquifes de um metal desconhecido; estavam deitados de costas e seus olhos, que não haviam sido fechados, olhavam impressionantemente para as copas douradas do alto do bosque. Um deles, certamente, devia ser Hyoi. Seu irmão Hyari adiantou-se, curvou-se diante de Oyarsa, e começou a falar.

A princípio, Ransom não ouviu o que ele estava dizendo porque sua atenção estava toda voltada para Weston e Devine. Estavam sem armas e os “hrossa” que os cercavam os vigiavam com toda atenção. Ambos, tal como Ransom, haviam deixado suas barbas crescerem desde que haviam chegado em Malacandra, e estavam pálidos e empoeirados. Weston estava com os braços cruzados e tinha uma expressão de ódio concentrado. Devine tinha as mãos nos bolsos e demonstrava uma irritação profunda. Era claro que os dois sabiam que tinham boas razões para ficarem assustados mas nenhum demonstrava medo. Não podiam ver Ransom, pois estavam cercados por guardas e além disto observavam atentamente o que estava acontecendo.

Ransom desviou sua atenção para as palavras do irmão de Hyoi.

– Não me queixo da morte destes dois, Oyarsa, porque quando nos aproximamos dos “hmena”, de noite, eles estavam apavorados. O que aconteceu pode-se comparar a uma caçada e estes dois foram mortos como poderiam ter sido por um “hnakra”. Hyoi, porém, foi atingido pela arma de um covarde quando não tinha feito nada para amedrontá-los. E agora ele jaz aqui, (não o digo por ele ser meu irmão mas sim porque é fato sabido em todo “handramit”) este guerreiro valente que era um “hnakrapunt” e um grande poeta. Sua morte foi uma perda muito grande para nós.

A voz de Oyarsa dirigiu-se pela primeira vez aos dois homens.

– Porque mataram vocês o meu “hnau”?

Weston e Devine olharam a sua volta procurando descobrir quem falara.

– Meu Deus! exclamou Devine em nossa língua nativa. Não me diga que têm um alto-falante.

– Ventriloquismo, respondeu Weston num murmúrio rouco. Muito comum entre selvagens. O feiticeiro da tribo finge que cai num transe e se utiliza do ventriloquismo para assustar os outros. O que temos a fazer é descobrir o feiticeiro e nos dirigirmos a ele; isto fará com que perceba que seu truque foi descoberto e perca a calma. Você está vendo algum destes monstros que esteja em transe? Puxa! Já o descobri.

Weston tinha realmente um poder de observação formidável; descobriu logo a única criatura que não estava de pé em atitude de reverência e atenção. Era um velho “hross”, acocorado e de olhos fechados, próximo a eles. Deu um passo na direção do velho, numa atitude desafiadora, e disse em voz bem alta (seu conhecimento da língua de Malacandra era muito pequeno):

– Por que tiraram nossos bang-bang? Nós muito zangados. Nós não assustados.

De acordo com a hipótese de Weston esta sua ação devia ter tido um resultado fulminante. Infelizmente, porém, ninguém mais tinha a sua opinião sobre os conhecimentos de ventriloquismo do velho “hross”. Ele era conhecido de todos, inclusive de Ransom, e não tinha chegado com a comitiva. Já estava naquele mesmo lugar desde o amanhecer. Não tinha certamente a menor intenção de desrespeitar Oyarsa, apenas tinha sido vencido por uma irresistível sonolência, o que costuma acontecer com “hnau” idosos de todas as espécies, e naquela altura estava tirando seu bom cochilo. Fez uma pequena careta quando Western deu aqueles gritos diante dele, mas seus olhos continuaram fechados.

A voz de Oyarsa falou outra vez.

– Por que você fala com ele? disse. Sou eu que estou lhe perguntando. Por que você matou o meu “hnau”?

– Solte-nos, depois nós falar, berrou Weston para o “hross” adormecido. Você pensa nós não força você fazer o que quer. Não pode. Grande chefe do céu nos mandou. Você não fazer que mandou, ele vem mata todos. Bang, bang!

– Não sei o que significa “bang”, disse a voz. Mas porquê mataram meu “hnau”?

– Diga que foi um acidente, murmurou Devine para Weston, em nossa língua.

– Já disse isto a você antes, respondeu Weston na mesma língua, – você não sabe lidar com nativos. Se você ceder um pouco que seja, querem logo matar você. A única coisa a fazer é intimidá-los.

– Está bem! Faça o que quiser então, resmungou Devine. Ele já estava perdendo a fé nos métodos de seu companheiro.

Weston pigarreou e novamente dirigiu-se ao velho “hross”.

– Nós matar ele mostrar nosso poder, gritou com todas as forças. Todo que não obedece eu manda, nós – bang! bang! – igual aquele. Se obedecer, damos coisas bonitas. Olha! Olha! Para grande vergonha de Ransom, Weston tirou do seu bolso um colar de contas coloridas, comprado certamente nas lojas americanas, e começou a sacudi-lo na cara dos guardas, virando-se lentamente, e dizendo – Bonito, bonito! Olha! Olha!

O resultado desta representação foi ainda mais extraordinário do que o próprio Weston calculara. Ouviu-se uma confusão ensurdecedora de sons. Os rinchos dos “hrossa”, os apitos dos “pfifltriggi” e os bramidos dos “sorns” quebraram o silêncio daquela solene assembléia e reboaram nas distantes montanhas. Até mesmo no ar ouviu-se um leve tilintar das vozes dos “eldila”. Enfim, todos os presentes não puderam deixar de rir, cada um a sua maneira, diante daquela cena tão ridícula.

– Vocês não assustar eu com urros, gritou Weston. Eu não ter medo vocês.

– É preciso que desculpe meu povo, disse a voz de Oyarsa e até mesmo nela se percebia uma ligeira modificação, não estão querendo assustar você, estão só rindo!

Mas Weston não conhecia o verbo “rir” na língua de Malacandra, aliás acho que não o compreendia bem em nenhuma língua. Olhou em volta com uma expressão intrigada. Ransom, morto de vergonha, quase rezou para que ele se satisfizesse com aquela experiência, mas Weston não era homem de se deixar vencer com tanta facilidade. Tinha plena confiança nas suas regras de lidar com povos primitivos; sabia que primeiro devia assustá-los e depois agradá-los. Deixou o ruído diminuir um pouco, olhando para todos sem se alterar. Logo depois, começou novamente a girar como um pião em câmara lenta, enxugando a testa com a mão esquerda, e agitando freneticamente o colar com a mão direita. A barulhada provocada por esta nova tentativa foi tão grande que não se podia ouvir o que Weston estava dizendo; mas Ransom tinha certeza de que só podia estar repetindo – Bonito! Bonito! De repente, a algazarra redobrou. Alguma vaga lembrança de como costumava divertir as crianças da família devia estar invadindo a cabeça de Weston. Estava pulando e sacudindo a cabeça de um lado para o outro, quase dançando, enquanto o suor escorria pela sua testa abaixo. Era bem capaz de estar dizendo: – Bilu, bilu, bilu!

Aquela brilhante performance do grande físico só chegou a um fim por ter ele sido obrigado a parar por completa exaustão física. Só alguns instantes depois de ter terminado a representação é que foi possível se restabelecer o silêncio na assembléia. Ransom então ouviu a voz de Devine dizendo em sua língua:

– Pelo amor de Deus, Weston, pare com esta palhaçada! Será que você não percebe que isto não dá resultado?

– É, parece que não, concordou Weston, acho que ainda são menos inteligentes do que supúnhamos. Quem sabe seria uma boa idéia fazer uma nova tentativa, ou talvez você queira fazê-lo desta vez?

– Ora bolas! disse Devine; virou as costas, sentou-se no chão e começou a fumar um cigarro.

– Eu o darei ao feiticeiro, disse Weston no momento de silêncio absoluto que se seguiu ao gesto de Devine. Antes que alguém o pudesse impedir, adiantou-se e quis colocar o colar no pescoço do velho “hross”. A cabeça do “hross”, porém, era larga demais para que isto pudesse ser feito, de forma que o colar ficou equilibrado na sua testa, um pouco caído por cima de um dos olhos. O “hross” sacudiu um pouco a cabeça como um cachorro perseguido por moscas, e continuou seu sono tranqüilamente.

A voz de Oyarsa dirigiu-se a Ransom.

– Seus semelhantes têm o cérebro afetado, Ransom de Thulcandra? perguntou. Ou estão com tanto medo que não podem responder minhas perguntas?

– Acho, Oyarsa, respondeu Ransom, que não acreditam na vossa presença aqui. Pensam que todos estes “hnau” são como crianças muito pequenas. O “hme” mais gordo está tentando assustá-los e depois agradá-los com presentes.

Ao ouvirem a voz de Ransom os dois prisioneiros se viraram imediatamente. Weston ia dizer qualquer coisa quando Ransom o interrompeu rapidamente dizendo cm sua própria língua:

– Olha aqui, Weston. Isto não é um truque. Existe uma criatura aqui bem no centro, onde você pode ver uma espécie de luz, ou de uma coisa qualquer, se olhar com atenção. Ele tem uma inteligência no mínimo igual a do homem, e parece que vive há um tempo enorme. Pare de tratá-lo como uma criança e responda às suas perguntas. Acho melhor você lhe dizer a verdade e não tentar enganá-lo.

– Estes selvagens parecem pelo menos ter inteligência bastante para enganar a você, resmungou Weston; mas em todo caso voltou-se para o “hross” adormecido – a vontade de despertar o suposto feiticeiro tinha-se transformado em verdadeira obsessão – e dirigiu-se a ele com um pouco mais de delicadeza.

– Desculpe matar ele, disse apontando para Hyoi. Não querer matar ele. “Sorns” disseram trazer homem, dar você. Nós voltar céu. Ele vir com nós (apontou para Ransom). Ele homem muito torto, fugir, não fazer o que “sorns” dizer. Nós correr atrás dele, apanhar ele para entregar aos “sorns”, nós querer obedecer “sorns”. Ele não deixa, foge, foge, foge. Nós correr atrás. Ver criatura enorme preta, ter medo matar nós, nós matar ele, bang! bang! Tudo culpa dele, homem torto. Ele não fugir, ser bom, nós não correr atrás, nós não matar criatura enorme preta, não é? Você ter homem torto, ele fazer mal, você prender ele, soltar nós. Ele medo vocês, nós não ter medo. Olha.

Neste momento a falação constante de Weston finalmente produziu o efeito há tanto desejado. O “hross” abriu os olhos e olhou para Weston meio espantado. Depois aos poucos percebeu a falta que havia cometido, levantou-se lentamente, curvou-se respeitosamente diante de Oyarsa e afastou-se com o colar ainda equilibrado no alto da cabeça. Weston, boquiaberto, acompanhou com o olhar a figura que se afastou até desaparecer de sua vista.

Oyarsa quebrou o silêncio.

– Já tivemos bastante divertimento, disse, e está na hora de ouvirmos as respostas verdadeiras às nossas perguntas. Há qualquer coisa de errado em sua cabeça, “hnau” de Thulcandra. Há sangue demais nela. Firikitekila está aqui?

– Sim, Oyarsa, respondeu um “pfifltrigg”.

– Vocês tem nas suas cisternas água que tenha sido esfriada?

– Sim, Oyarsa.

– Então leve este “hnau” gordo até lá e molhe sua cabeça em água fria. Muitas e muitas vezes. Depois traga-o de volta. Enquanto isto vou me ocupar com os meus “hrossa” mortos.

Weston não entendeu bem o que a voz dizia, estava muito ocupado procurando localizá-la, e ficou apavorado quando foi agarrado pelos braços fortes dos “hrossa”, que o levaram a força. Ransom queria dizer-lhe que se acalmasse mas Weston gritava tão alto que não poderia ouví-lo. Misturava sua própria língua com a de Malacandra e gritava coisas desconexas. A última coisa que Ransom ouviu foi: “Vocês me pagarão. Pouff! Bang! Ransom, pela amor de Deus! Ransom! Ransom!”

– E agora, disse Oyarsa, quando se fez silêncio novamente, vamos prestar honras aos meus “hnau” mortos.

A essas palavras, dez “hrossa” se colocaram à volta dos esquifes, e começaram a cantar.

Quando um homem trava conhecimento com uma arte nova, há um momento em que tudo que antes não fazia sentido, como que surge resplendente de seu mistério, e revela, num deslumbramento que a compreensão posterior mais perfeita quase nunca poderá igualar, uma pequena amostra das possibilidades maravilhosas nela contidas. Para Ransom aquele foi o momento em que isto aconteceu com relação a arte do canto em Malacanlra.

Pela primeira vez percebeu que seu ritmo era baseado num sangue diferente do nosso, num coração que bate mais depressa e num calor interno mais intenso. O seu conhecimento daquelas criaturas e seu amor a elas faziam com que começasse a ouvir os cantos da mesma forma que eles. Uma sensação de grandes massas se movimentando, de gigantes dançando, e eternas tristezas consoladas, de coisas que não sabia o que eram mas que ao mesmo tempo sempre havia conhecido despertou nele, assim que começou o canto, e curvou seu espírito como se as portas do céu tivessem se aberto diante dele.

– Deixem-no partir, cantavam. Deixem-no ir para lá, dissolver-se e não ser mais corpo. Deixem-no cair, soltem-no, deixem-no cair com delicadeza como um seixo escorrega da mão num lago parado. Deixem-no descer, afundar, desaparecer. Abaixo da superfície não há camadas, não há divisões na água que é uma só até o fundo. Mandem-no partir para lugares de onde não se volta mais. Deixem-no afundar; o “hnau” surgirá dele. Esta é a segunda vida, o outro começo. Abra as suas portas, ó mundo maravilhoso, sem peso e sem margem, você é o segundo e o melhor, este era o primeiro e era fraco. Uma vez os mundos eram quentes no seu interior e produziam vida, mas só as plantas pálidas, as plantas escuras. Vemos seus rebentos quando crescem hoje, fora da luz do sol, nos lugares tristes. Depois, o céu fez nascer outra espécie nos mundos: as florestas claras, as faces de flores. Primeiro foram os mais escuros, depois os mais claros. Primeiro foi o sangue do mundo, depois a geração do sol.

Isto foi o que Ransom conseguiu guardar e traduzir mais tarde. Quando o canto terminou, Oyarsa disse:

– Vamos espalhar os movimentos que formavam seus corpos. Maleldil também espalhará os mundos assim quando o primeiro e fraco estiver gasto.

Fez sinal a um dos “pfifltrigg”, que imediatamente se aproximou dos cadáveres. Os “hrossa”, sempre cantando, porém muito suavemente, afastaram-se. O “pfifltrigg” tocou cada um dos mortos com um pequeno objeto, que parecia ser feito de vidro ou cristal, e depois deu um daqueles saltos de rã para trás. Ransom fechou seus olhos, por causa da luz refulgente, e sentiu uma espécie de vento muito forte soprando em sua face por uma fração de segundo. Depois tudo voltou ao normal, e os três esquifes ficaram vazios.

– Puxa! Que mágica formidável!, disse Devine para Ransom. Solucionaria o problema dos assassinos no tocante ao desaparecimento dos corpos, não é?

Mas Ransom, que estava pensando em Hyoi, não lhe respondeu; e antes que pudesse dizer mais alguma coisa, viu que o infeliz Weston estava sendo trazido de volta por seus guardas.

 

O “hross” que chefiava a escolta era muito consciencioso e foi logo dando explicações.

– Espero que tenhamos agido bem, Oyarsa, disse. Mas não estou certo. Mergulhamos sua cabeça na água fria sete vezes, mas na sétima vez caiu uma coisa dela. Pensamos que fosse parte de sua cabeça mas depois vimos que era uma cobertura feita com a pele de alguma outra criatura. Aí, alguns disseram que já tínhamos cumprido vossa vontade mergulhando sua cabeça sete vezes, outros achavam que não. Resolvemos então mergulhá-la sete vezes mais. Esperamos que isto esteja bem. A criatura falou muito entre os mergulhos, principalmente entre os segundos sete, mas não entendemos nada.

– Agiram muito bem, Hnoo, disse Oyarsa. Afastem-se agora para que possa vê-lo pois vou falar com ele.

Os guardas se afastaram. O rosto geralmente pálido de Weston estava cor de tomate devido à água fria, e seu cabelo, que naturalmente não tinha sido cortado desde que chegara a Malacandra estava todo emplastrado na testa e a água ainda escorria por cima de seu rosto e de suas orelhas. Tinha a expressão – infelizmente desperdiçada naquela assembléia, pois seus componentes não conheciam muito bem as expressões faciais dos homens – de um homem valente sofrendo por uma grande causa, e ansioso de enfrentar o pior e até mesmo de provocá-lo. Para compreender melhor sua atitude de que naquela manhã já havia sofrido todos os horrores de estar sendo conduzido ao martírio para depois passar pelo anticlímax de ser compulsoriamente mergulhado na água quatorze vezes. Devine que conhecia bem Weston, gritou-lhe:

– Calma, Weston. Estes demônios podem dividir o átomo ou qualquer coisa parecida com isto. Tenha muito cuidado com o que disser a eles e pare de fazer tolices.

– Ah! disse Weston. Você também já se passou para o lado dos nativos?

– Fique quieto, disse a voz de Oyarsa. Você não me disse nada a seu respeito, então vou eu dizê-lo a você. No seu mundo, vocês atingiram uma grande sabedoria relativamente aos corpos e por isto você foi capaz de construir uma nave que atravessa o céu; mas, em todo o resto, você tem a mentalidade de um animal. Quando você veio pela primeira vez, mandei lhe chamar apenas com a idéia de lhe receber com a devida cortesia. A escuridão de sua cabeça lhe encheu de medo. Como você pensava que eu queria lhe fazer mal, atacou Ransom como uma fera ataca um animal de outra espécie. Você estava disposto a entregá-lo ao que julgava ser mal e que você próprio receava. Hoje, quando o viu, queria entregá-lo a mim, apesar de pensar que eu queria destruí-lo. Se é assim que você age com seus próprios semelhantes, não sei o que você pretende fazer ao meu povo. Já matou alguns e certamente veio aqui para matar a todos. Para você, o fato de uma criatura ser “hnau” não tem a menor significação. A princípio, pensei que para você o importante era que a criatura tivesse o corpo igual ao seu, mas Ransom é seu semelhante e no entanto você o mataria com a mesma facilidade com que eliminou um dos meus “hnau”, Não sabia que o Oyarsa Mau tinha pervertido tanto o seu mundo e até agora não o compreendo muito bem. Se você fosse meu “hnau”, eu o desencarnaria agora mesmo. Não pense tolices; pela minha mão Maleldil pode fazer coisas muito maiores do que isto, e posso desfazer você, mesmo nas fronteiras da atmosfera do seu mundo. Mas ainda não decidi fazê-lo. Agora é a sua vez de falar. Quero ver se existe alguma outra coisa em sua cabeça que não seja medo, morte e ambição.

– Estou vendo, disse Weston, virando-se para Ransom, que você escolheu o momento mais crítico da história da raça humana para traí-la. Se você matar nós, disse a seguir voltando-se para a direção da voz. Eu não medo. Outros vir, fazer aqui nosso mundo.

Mas Devine levantou-se de um salto e o interrompeu.

– Não, não, Oyarsa, gritou. Não ouvir ele. Ele homem muito tolo, tem delírios. Nós gente pequena, só querer sangue do sol bonito. Você dar bastante sangue do sol para nós, nós desaparecer no céu. Você não ver nós nunca mais. Está bem?

– Silêncio! disse Oyarsa.

Houve uma quase imperceptível mudança na luz, se é que podia ser chamada de luz, de onde vinha a voz, e Devine dobrou-se e caiu no chão. Quando tornou a se sentar estava branco e com a respiração ofegante.

– Continue, disse Oyarsa para Weston.

– Eu, não... não, começou Weston a dizer na língua de Malacandra e depois falou em sua própria língua: – Não sei dizer o que quero nesta maldita língua.

– Diga-o a Ransom e ele o traduzirá para nós, replicou Oyarsa.

Weston aceitou a proposta imediatamente. Achava que era chegada a hora de sua morte e estava decidido a dizer aquilo que, além da sua ciência, era a única coisa em que acreditava. Limpou a garganta, esboçou um gesto e começou.

– Devo parecer a vocês, um ladrão vulgar, mas carrego nos meus ombros o destino da raça humana. A vida tribal de seu povo, com suas armas da idade da pedra lascada, suas choupanas, seus barcos primitivos e sua estrutura social elementar, não tem nada que se possa comparar com a nossa civilização, nossa ciência, nossos exércitos, nossa arquitetura, nosso comércio, e nosso sistema de transportes que está rapidamente eliminando o espaço e o tempo. Nosso direito de tomar o lugar de vocês é o direito do superior sobre o inferior. A vida...

– Um momento, disse Ransom em sua língua. Isto é o máximo que posso guardar de uma vez. Depois voltando-se para Oyarsa começou a traduzir o melhor que pode. A tarefa era difícil e o resultado – que lhe pareceu pouco satisfatório – foi o seguinte:

– Entre nós, Oyarsa, existe uma qualidade de “hnau” que tira alimento e coisas diversas dos outros “hnau” quando eles estão distraídos. O que ele está dizendo é que não é um representante comum desta espécie. Diz que o que está fazendo agora fará com que aconteçam coisas muito diferentes aos nossos descendentes que ainda não nasceram. Diz que entre vós, os “hnau” de uma tribo vivem todos juntos, e os “hrossa” têm lanças iguais as que usávamos há muito tempo atrás, e suas choupanas são pequenas e redondas e seus barcos pequenos e leves, iguais aos que nós tínhamos há tempos, e que tendes um só governante. Diz que entre nós é muito diferente. Diz que sabemos muitas coisas. No nosso mundo quando uma criatura viva sente dor ou fica fraca nós às vezes conseguimos curá-la. Diz que temos muitas pessoas más e que nós as matamos ou trancamos em cabanas, e que temos pessoas para decidir as disputas entre os “hnau” condenados, sobre suas cabanas, suas companheiras e outras coisas. Diz que conhecemos muitas maneiras dos “hnau” de uma terra matarem os de outra e que existem alguns que são treinados para isto. Diz que fazemos casas muito grandes e fortes de pedras e outras coisas como os “pfifltriggi”. Diz ainda que trocamos muitas coisas uns com os outros e podemos carregar pesos imensos muito depressa numa distância grande. Por causa disto tudo ele diz que se nosso povo matasse todo vosso povo não estaria cometendo uma ação errada.

Assim que Ransom terminou, Weston continuou.

– A vida é maior que qualquer sistema de moralidade; suas exigências são absolutas. Não foi obedecendo a tabus tribais e máximas de livros escolares que ela prosseguiu na sua marcha inexorável da ameba ao homem e do homem à civilização.

– Ele diz, começou Ransom, que as pessoas vivas são mais importantes que o problema se uma ação é boa ou má – não, isto não pode estar certo – diz que é melhor estar vivo e ser errado do que estar morto – não – ele diz, ele diz – não sei dizer o que ele diz, em vossa língua, Oyarsa. O que está querendo dizer é que a única coisa importante é que existam muitas criaturas vivas. Diz que houve muitos outros animais antes dos primeiros homens e que os mais recentes são melhores do que os primeiros mas diz que estes animais não nasceram por causa do que os mais velhos ensinaram aos jovens sobre ações ruins e boas. E diz ainda que estes animais não tiveram piedade.

– Ela..., recomeçou Weston.

– Desculpe, interrompeu Ransom, mas esqueci quem é “ela”.

– A vida, é claro, respondeu Weston. Ela destruiu sem piedade todos os obstáculos e venceu todos os fracassos e hoje, em sua forma mais elevada – o homem civilizado –, representado por mim, avança para aquela etapa interplanetária que talvez a coloque para sempre fora do alcance da morte.

– Diz, resumiu Ransom, que estes animais aprenderam a fazer uma porção de coisas difíceis, menos os que não conseguiram, e estes últimos então morreram e os outros não tiveram piedade deles. E diz que agora o melhor animal é a espécie de homem que constrói as casas grandes, carrega os grandes pesos e faz todas as coisas que já expliquei; e ele é um destes e que se os outros soubessem o que ele estava fazendo ficariam muito satisfeitos. Diz que, se pudesse, mataria todo vosso povo e traria para Malacandra o nosso para que pudesse continuar a viver depois que tivesse acontecido alguma coisa de errado com nosso mundo. E se alguma coisa de errado acontecesse em Malacandra e eles pudessem matar o povo de outro planeta mudando-se para lá, e assim sucessivamente, não morreriam nunca.

– É direito seu, disse Weston, ou, se preferir, é a força da vida o fato de eu estar disposto e preparado a plantar, sem a menor hesitação, a bandeira do Homem no solo de Malacandra; marchando sempre avante, passo a passo, tomando o lugar, quando necessário, das formas inferiores de vida que encontrarmos, reivindicando planeta após planeta, sistema após sistema, até que a nossa descendência – em qualquer forma diferente e mentalidade ainda não calculada que tenha assumido – habite no universo onde quer que este seja habitável.

– Diz, traduziu Ransom, que, devido a isto, ele matar vosso povo e trazer o nosso para cá não seria uma ação perversa – ou pelo menos seria uma ação possível. Diz que não teria piedade. Diz novamente que talvez pudessem ir de um mundo para o outro e aonde quer que fossem, matariam todos os habitantes. Acho que agora está falando sobre mundos que giram em volta de outros sóis. Quer que as criaturas que nasçam de nós estejam em tantos lugares quanto possível. Diz que não sabe que espécie de criaturas serão.

– Posso morrer, disse Weston. Mas enquanto viver não permitirei, tendo esta chave em meu poder, que se fechem os portões do futuro de minha raça. Não é possível a imaginação conceber, além dos nossos conhecimentos atuais, o que virá no futuro; para mim, porém, é suficiente saber que existe um Além.

– Está dizendo, traduziu Ransom, que não parará de tentar realizar seus planos a não ser que o mateis. Diz ainda que apesar de não saber o que acontecerá com os nossos descendentes ele quer muito que isto aconteça.

Weston, que tinha terminado a sua preleção, procurou instintivamente uma cadeira onde pudesse se afundar. Era o que costumava fazer na Terra, quando começavam os aplausos. Como não encontrou nenhuma e não era homem de sentar-se no chão, feito Devine, cruzou os braços e olhou para a assembléia com uma certa dignidade.

– Foi bom ter ouvido o que você tinha a dizer, disse Oyarsa, pois apesar de sua mentalidade ser estreita, sua vontade é menos débil do que eu julgava. Você não faria isto tudo por você mesmo.

– Não, disse Weston, orgulhosamente, na língua de Malacandra. Eu morrer. Homem viver.

– Mas você sabe que estas criaturas teriam que ser muito diferentes de você para poder sobreviver em outros mundos?

– Sim, sim. Todas novas. Ninguém ainda saber. Estranhas! Grandes!

– Então não é a forma do corpo que interessa a você?

– Não. Sua forma não interessar.

– Então teríamos que concluir que você se interessa pela inteligência, mas isto não pode ser verdadeiro porque então você gostaria de todo “hnau” onde quer que o encontrasse.

– “Hnau” não interessar eu. Só interessar homem.

– Mas se você não se interessa pela inteligência do homem, que é igual a de todos os outros “hnau” – pois foi Maleldil que os criou a todos, nem pelo seu corpo, que se modificará, se você não se interessa por nenhum dos dois, o que significa o homem para você?

Isto teve que ser traduzido para Weston. Quando ele o compreendeu, respondeu.

– Eu interessar por homem, interessar por nossa raça, o que descende do homem. (Teve que perguntar a Ransom quais eram as palavras para raça e descender).

– Coisa estranha! disse Oyarsa. Você não ama nenhum representante de sua raça, teria deixado que eu matasse Ransom. Não se interessa pela inteligência de sua raça, nem pelo seu corpo. Qualquer criatura agradará você desde que descenda de sua própria espécie como ela é agora. Parece-me, que o que realmente lhe interessa não é a criatura completa mas a semente propriamente dita, pois é só o que resta.

– Diga-lhe, respondeu Weston quando lhe transmitiu isto, que não pretendo ser metafísico. Não vim aqui para discutir lógica. Se ele não consegue entender – como parece que você também não – uma coisa tão simples quanto a lealdade de um homem para com a humanidade, não há nada que eu possa fazer.

Mas Ransom não soube traduzir isto e a voz de Oyarsa continuou.

– Agora vejo como o senhor do mundo silencioso modificou você. Existem leis conhecidas por todos os ‘“hnau”, leis de piedade, justiça, vergonha etc., e uma destas é o amor aos seus semelhantes. Ele ensinou você a desobedecer a todas elas, exceto esta última, que não é uma das maiores. Ele deturpou-a de tal maneira que a transformou em loucura e tomou conta de seu cérebro onde governa tudo como se fosse um pequenino Oyarsa cego. Nada mais lhe resta senão obedecê-la; apesar disto, se lhe perguntarmos porque ela é uma lei, você não poderá dar uma razão diferente da que faz as outras serem leis; estas, no entanto, embora maiores que ela, são desobedecidas. Você sabe por que o Oyarsa Mau fez isto?

– Eu pensar não existir esta pessoa, – eu sábio, homem novo – não acreditar velhas bobagens.

– Eu lhe direi porque. Ele deixou que você continuasse a crer nesta única lei porque um “hnau” pervertido pode fazer mais mal do que um “hnau” aleijado. Ele só perverteu você, mas rebaixou este que está sentado no chão porque não lhe deixou mais nada a não ser ambição. Ele agora é apenas um animal que fala e no meu mundo não poderia fazer mais mal que um animal. Se estivesse sob minha guarda eu desfaria seu corpo pois o “hnau” dentro dele já está morto. Mas se você estivesse sob minha guarda tentaria curá-lo. Diga-me, por que você veio até aqui?

– Eu já contar. Fazer homem viver sempre.

– Mas vocês, – que são tão sábios, não sabem que Malacandra é mais antigo do que o mundo de vocês e está, portanto, mais próximo do fim? Uma grande parte de meu planeta já está morto. Meu povo só habita os “handramits”; já existiu mais calor e mais água e em breve existirá menos. Logo meu mundo chegará ao fim e entregarei meu povo de volta a Maleldil.

– Saber isto muito bem. Esta primeira tentativa. Logo seguir outro mundo.

– Mas você não sabe que todos os mundos vão morrer?

– Homem abandonar cada um antes seu fim, ir para outro, entende?

– E quando todos estiverem mortos?

Weston ficou em silêncio. Depois de algum tempo, Oyarsa falou novamente.

– Você não pergunta por que meu povo, cujo mundo é velho, não foi para o seu e apoderou-se dele há muito tempo?

– Ho! Ho!, disse Weston. Vocês não saber como fazer.

– Você está errado, disse Oyarsa. Há milhares de anos atrás, quando ainda não existia vida em seu mundo, a morte gelada estava invadindo meu “harandra”. Neste tempo eu estava muito preocupado, não tanto com a morte dos meus “hnau”, pois Maleldil não lhes deu vida muito longa, mas com os pensamentos que o senhor do seu mundo, que ainda não estava preso, botara em suas cabeças. O Oyarsa Mau teria feito com que eles fossem como vocês são agora, bastante sábios para perceber a aproximação do fim de sua espécie, mas não para suportá-lo. Conselheiros errados teriam logo surgido entre eles. Eram perfeitamente capazes de construir naves de espaço. Maleldil, porém, fez com que parassem, através de minha pessoa. Curei alguns, desencarnei outros...

– Agora ver resultado! interrompeu Weston. Vocês muito poucos agora presos “handramit”, logo morrer todos.

– Sim, disse Oyarsa, mas há uma coisa que abandonamos de vez no “harandra”: o medo. E com o medo, o assassinato e a rebelião. O mais fraco entre todo o meu povo não tem medo da morte. É o Espírito Mau de seu mundo que estraga suas vidas fazendo com que procurem fugir daquilo que no fim a todos alcançará. Se vocês fossem súditos de Maleldil teriam paz.

Weston se torcia no desespero provocado pela sua vontade de falar e a impossibilidade de fazê-lo devido à ignorância da língua.

– Besteiras! Besteiras derrotistas! gritou para Oyarsa em sua própria língua; depois esticando-se bem, disse na língua de Malacandra: Você diz que Maleldil deixar todos morrer. Outro, Espírito Mau, lutar, saltar, viver – não só conversar. Eu não gostar Maleldil. Gostar mais daquele e ficar seu lado.

– Mas você não percebe que ele nunca poderá..., começou a dizer Oyarsa; depois parou, como se estivesse se contendo. E continuou: Mas ainda preciso perguntar muitas coisas a respeito de seu mundo a Ransom e isto tomará meu tempo até a noite. Não matarei vocês, nem mesmo o que está sentado, porque não pertencem ao meu mundo. Amanhã partirão para seu mundo, na nave do espaço.

O terror se estampou na face de Devine; começou a falar rapidamente em sua língua.

– Pelo amor de Deus, Weston, faça com que ele compreenda que a Terra não está em posição agora, pois já estamos aqui há muitos meses. Diga-lhe que não conseguiremos chegar lá, que é melhor nos matar de uma vez.

– Quando tempo levará a viagem até Thulcandra? perguntou Oyarsa.

Weston, usando Ransom como intérprete, explicou que a viagem era quase impossível no momento, devido à posição em que se encontravam os dois planetas. A distância havia aumentado milhões de milhas. O ângulo de seu curso em relação aos raios solares seria totalmente diferente daquele em que se baseara. Ainda que por uma sorte incrível conseguissem chegar na Terra, era quase certo que sua provisão de oxigênio se esgotaria muito antes de a alcançarem.

– Diga a ele que nos mate logo, observou também Weston.

– Sei disto tudo, falou Oyarsa. E se vocês ficarem em meu mundo serei obrigado a matá-los; não suportarei a presença de criaturas tais em Malacandra. Sei que a possibilidade de alcançarem seu mundo é pequena; mas uma possibilidade pequena é melhor do que nenhuma. Escolham o que preferem entre hoje e a próxima lua. Enquanto isto, quero saber: qual é o tempo máximo que precisarão para fazer a viagem?

Depois de cálculos detalhados, Weston, numa voz abalada, disse que se não chegassem a Terra em noventa dias não chegariam lá nunca mais e além disto morreriam sufocados.

– Vocês terão noventa dias então, disse Oyarsa. Meus “sorns” e meus “pfifltriggi” darão a vocês ar (nós também conhecemos esta arte) e comida para noventa dias. E farão algo mais em sua nave. Não quero que volte ao céu depois de chegada a Thulcandra. Você não estava aqui quando desfiz os meus “hrossa” mortos, que vocês mataram, mas pergunte ao que ali está sentado e ele dirá a você o que sucedeu. Maleldil ensinou-me a fazer com que isto acontecesse depois de um determinado tempo. Antes que sua nave do espaço parta, meus “sorns” terão tomado providências para que no nonagésimo dia ela se desfaça, se transformando no que vocês chamam de “nada”. Se neste dia vocês ainda estiverem no céu a morte não será mais dolorosa por causa disto; mas não se demorem na nave depois que ela chegar a Thulcandra. Agora levem estes dois daqui, e vocês, meus filhos, podem retirar-se. Preciso, porém, falar com Ransom.

 

Ransom passou a tarde toda sozinho com Oyarsa respondendo as suas perguntas. Não tenho permissão para reproduzir esta conversa; só posso dizer que terminou com as seguintes palavras de Oyarsa:

– Você me mostrou maravilhas maiores do que se conhece em todo céu.

Depois disto conversaram sobre o futuro de Ransom. Foi-lhe dada inteira liberdade de permanecer em Malacandra ou tentar a viagem desesperada para a Terra. Depois de grandes indecisões, resolveu arriscar-se juntamente com Weston e Devine.

– O amor aos nossos semelhantes, disse Ransom, não é a maior das leis, mas vós, Oyarsa, haveis dito que é uma lei. Se não puder viver em Thulcandra é melhor que não viva de todo.

– Você fez a escolha acertada, disse Oyarsa. E eu lhe direi duas coisas. O meu povo tirará todas as armas estranhas da nave, mas darão uma a você. E os “eldila” do céu profundo estarão rodeando a sua nave, e muitas vezes dentro dela, até que vocês cheguem a Thulcandra. Não deixarão que os outros dois lhe matem.

Ransom não havia se lembrado de que seu assassinato poderia ser uma das primeiras coisas que ocorreriam a Weston e Devine para economizar comida e oxigênio. Ficou espantado com sua própria obtusidade, e agradeceu a Oyarsa as providências que tomara para protegê-lo. Aí, o grande “eldil” o despediu com as seguintes palavras:

– Você não é culpado de nenhum mal, Ransom de Thulcandra, exceto um pouco de medo. Por esta razão, a Jornada que vai empreender será seu sofrimento e talvez sua cura: porque você ou terá ficado maluco ou valente antes que ela chegue ao fim. Mas vou ainda lhe dar uma ordem: você terá que vigiar este Weston e este Devine em Thulcandra, se chegarem lá. Ainda poderão fazer muito mal no seu mundo e além dele. Pelo que você disse, vi que existem “eldila” que vão lá em sua atmosfera, nos domínios do Mau; seu mundo não está fechado como julgávamos aqui, nos nossos lados do céu. Vigie estes dois homens. Seja corajoso! Lute contra eles. E quando você precisar de auxílio alguns dos nossos lhe ajudarão. Maleldil fará com que você os veja. E é possível que ainda nos encontremos novamente, pois Maleldil deve ter tido alguma razão importante para fazer com que nos conhecêssemos e que eu aprendesse tanto sobre o seu mundo. Me parece que isto é o começo de mais idas e vindas entre um mundo e o outro – mas não da forma planejada por Weston. Tenho permissão de dizer isto a você. Há muito foi profetizado que o ano em que estamos – os anos celestes não são iguais aos seus – será um ano de grandes acontecimentos e mudanças e o cerco de Thulcandra pode estar chegando ao fim. Grandes coisas estão para acontecer. Se Maleldil permitir, não ficarei afastado delas. E agora, vá em paz.

 

No dia seguinte, os três seres humanos embarcaram para sua terrível viagem, na presença de multidões das três espécies de Malacandra. Weston estava pálido e abatido, tendo passado a noite em cálculos tão complicados que dariam para esgotar qualquer matemático ainda que sua vida não estivesse em jogo. Devine estava barulhento, atrevido e um pouco histérico. Sua impressão de Malacandra tinha sido totalmente mudada naquela última noite, ao descobrir que “os nativos” tinham uma bebida alcoólica e havia tentado até ensiná-los a fumar. Só os “pfifltriggi” tinham-se interessado por isto. Agora consolava-se de uma fortíssima dor de cabeça e da perspectiva de uma morte lenta atormentando Weston. Nenhum dos dois ficou muito satisfeito ao perceber que as armas tinham sido retiradas da nave mas, no resto, tudo estava exatamente como queriam. Mais ou menos a uma hora da tarde, Ransom lançou um último e longo olhar, que abrangeu as águas azuis, a floresta púrpura e os paredões verdes afastados do “handramit” tão conhecido, e penetrou na nave do espaço, seguindo seus companheiros. Antes que fechassem a portinhola, Weston avisou-os de que deveriam permanecer imóveis para economizar o máximo de ar. Não deviam fazer nenhum movimento desnecessário durante a viagem; seria proibido até falar.

– Só falarei numa emergência, disse ele.

– Ainda bem, pelo menos tenho isto para agradecer a Deus!, esta foi a última piada de Devine. Depois disto aferrolharam a portinhola.

Ransom foi imediatamente para a parte mais baixa da esfera, para o compartimento que agora estava quase completamente de cabeça para baixo com o rosto colado e deitou-se no que mais tarde se transformaria em vigia do mesmo. Verificou com surpresa que já haviam subido milhares de pés. O “handramit era agora uma linha purpurina, reta, cruzando a superfície rosa forte do “harandra”. Estavam em cima da junção dos dois “handramits”. Um deles era sem dúvida aquele em que tinha morado, o outro, aquele onde ficava Meldilorn.

A cada minuto apareciam mais “handramits”, linhas longas, retas, algumas paralelas, algumas entrecruzadas, outras formando triângulos. A paisagem se tornava cada vez mais geométrica. A região deserta entre as linhas púrpuras parecia perfeitamente plana. A cor rósea das florestas coloria a paisagem logo abaixo dele; ao norte e a leste estavam aparecendo agora os grandes desertos de areia, de que os “sorns” lhe tinham falado, como ilimitadas extensões de amarelo e ocre. A oeste começava a surgir uma imensa descoloração. Era uma faixa irregular de azul esverdeado. Concluiu que devia ser a floresta plana dos “pfifltriggi”, ou melhor, uma de suas florestas planas, pois agora estavam aparecendo diversas em todas as direções, algumas meros pontos nos cruzamentos dos “handramits”, outras de grande extensão. Percebeu então que seu conhecimento de Malacandra era restrito, local, paroquial. Era como se um “sorn” viajasse quarenta milhões de milhas para chegar na Terra e passasse sua estadia lá, entre Worthing e Brighton. Ficou pensando que teria muito pouco para dizer sobre esta viagem fantástica, se sobrevivesse a ela: havia aprendido um pouco da língua, visto algumas paisagens, – mas onde estavam as estatísticas, a história, o relatório extenso das condições extra-terrestres, que um participante de uma tal aventura devia poder apresentar? Aqueles “handramits”, por exemplo. Vistos da altura a que chegara a nave do espaço, na sua inconfundível geometria, desmanchavam sua primeira impressão de que eram vales naturais. Eram obras gigantescas de engenharia, sobre as quais não tinha ficado sabendo nada; obras realizadas, se tudo fosse verdade, antes da história humana começar... antes da história animal começar. Ou aquilo tudo era somente mitologia? Sabia que lhe pareceria mitologia quando voltasse a Terra (se algum dia chegasse lá), mas a presença de Oyarsa ainda estava muito viva em sua lembrança para que pudesse ter alguma dúvida séria. Ocorreu-lhe até que a distinção entre história e mitologia talvez não tivesse sentido fora da Terra...

Achou melhor deixar para pensar nesta possibilidade mais tarde, e tornou a observar a paisagem – que a cada momento se tornava menos uma paisagem e mais um diagrama. A leste, um pedaço descolorido maior e mais escuro do que os que havia visto até então, penetrava no ocre avermelhado de Malacandra – um pedaço de formato curioso, com braços, ou chifres, compridos, de cada lado, e uma espécie de baía entre os dois, igual ao lado côncavo de um crescente. Crescia cada vez mais; os braços escuros e imensos pareciam abraçar todo o planeta. De repente, viu um ponto brilhante no meio deste pedaço escuro, e então, percebeu que aquilo não era terra e sim o céu negro aparecendo por detrás do planeta. A curva suave era o contorno de seu disco. Pela primeira vez, desde que embarcara, sentiu medo. Lentamente, mas não lentamente demais para que não o pudesse perceber, os braços escuros se esticaram cada vez mais em volta da superfície iluminada até que, finalmente, se encontraram. Diante de seus olhos, estava o disco inteiro, emoldurado pela escuridão. Há muito que se ouvia as leves batidas dos meteoritos; a vigia através da qual olhava não estava mais perfeitamente em baixo dele. Seus membros, apesar de já estarem muito leves, estavam dormentes, e a fome se anunciou. Olhou para o relógio. Tinha ficado preso, fascinado, ao seu posto, durante quase oito horas.

Chegou com dificuldade ao lado da nave por onde era visível o sol, e recuou, cambaleando, quase cego pela intensidade da luz. Apanhou seus óculos escuros na cabina que lhe pertencera na primeira viagem e foi buscar um pouco de água e comida: Weston tinha racionado ambas. Abriu a porta da sala de controles e olhou para dentro. Os dois sócios, com a ansiedade estampada nas faces, estavam sentados diante de uma espécie de mesa de metal, coberta de instrumentos delicados vibrando suavemente, nos quais os materiais predominantes eram o cristal e os fios finos. Nenhum dos dois tomou conhecimento de sua presença.

Quando Ransom voltou para o lado escuro, o mundo que haviam deixado aparecia num céu cheio de estrelas e seu tamanho não era muito maior do que a lua terrestre. Suas cores ainda eram visíveis – um disco vermelho amarelado com manchas azul-esverdeadas e com pedaços brancos nos pólos. Viu as duas pequeninas luas de Malacandra – seus movimentos eram bem perceptíveis – e pensou que estavam entre as milhares de coisas, que não havia notado durante sua estada no planeta. Dormiu e acordou, e ainda viu o disco pendurado no céu. Estava menor do que a lua, agora. As cores haviam desaparecido, exceto um leve tom uniforme, vermelho, na sua luz; até mesmo esta não estava muitíssimo mais forte do que a das inúmeras estrelas que o cercavam. Cessara de ser Malacandra; era apenas Marte.

Ele caiu logo na velha rotina de dormir, apanhar sol, e, nos intervalos, tomava algumas notas para seu “Dicionário da Língua de Malacandra”. Sabia que havia muito pouca possibilidade de poder transmitir seus novos conhecimentos aos homens, e que a morte no espaço seria provavelmente o fim daquela aventura. Mas já se tornara impossível pensar no que o cercava como “espaço”. Teve alguns momentos de pavor; mas eram cada vez menores e mais depressa dissolvidos, numa sensação de admiração que fazia com que sua própria vida parecesse insignificante. Não conseguia acreditar que os três eram uma ilha de vida atravessando um abismo de morte. Sentia quase o oposto – que a vida estava esperando do lado de fora da pequena esfera de ferro onde se encontravam, pronta a penetrar nela a qualquer momento e que, se isto os matasse, seriam mortos por excesso de vitalidade. Torcia desesperadamente para que, se tivessem que perecer, perecessem devido a dissolução da nave do espaço e não por sufocação dentro dela. Achava em certos momentos que seria melhor ainda ser solto, libertado, dissolver-se naquele oceano de luz, do que regressar à Terra. Na viagem de ida, quando passara por aqueles céus, já sentira uma imensa alegria no coração; agora, que estava convencido de que o abismo estava repleto de vida, cheio de criaturas vivas, essa alegria era dez vezes maior.

Sua fé nas palavras de Oyarsa sobre a presença dos “eldila” a sua volta era cada vez mais forte. Não via nenhum deles; a intensidade da luz que rodeava a nave não permitia qualquer variação fugitiva que desse a perceber sua presença. Ele ouvia, porém, ou pensava ouvir, os mais variados sons, ou vibrações ligadas a sons, muito leves e misturados com a chuva tilintante de meteoritos, e muitas vezes tinha mesmo a sensação de presenças invisíveis dentro da nave do espaço. Isto, mais que qualquer outra coisa, fazia com que o fato de sair com vida desta aventura pouco lhe importasse. A sua pessoa e toda a sua raça pareciam insignificantes diante de um tal quadro, de plenitude incomensurável. Seu cérebro ficava tonto diante da idéia daquela população verdadeira do universo, da infinitude tridimensional de seu território, e da crônica, não registrada, de seu passado infinito; mas seu coração se tornava mais firme e seguro do que jamais havia sido.

Foi muito bom para ele que tivesse chegado a este estado de espírito antes que começasse a suportar os verdadeiros sofrimentos da viagem. Desde sua partida de Malacandra a temperatura havia subido sistematicamente; estava agora mais elevada do que estivera em qualquer ocasião durante a viagem de ida; e continuava a subir. A intensidade da luz também aumentava. Apesar de não tirar os óculos nem um minuto, conservava seus olhos fechados, abrindo-se somente durante os movimentos necessários, o mínimo de tempo possível. Sabia que se conseguisse chegar a Terra, sofreria da vista o resto da vida.

Mas isto não era nada diante da tortura do calor. Nenhum deles conseguia dormir nem um segundo, e, durante as vinte e quatro horas do dia, sofriam a agonia da sede, com as pupilas dilatadas e os lábios enegrecidos. Seria loucura aumentar suas rações mínimas de água: loucura até mesmo consumir ar para discutir o problema.

Viu bem o que estava acontecendo. Na sua última tentativa de sobrevivência, Weston estava se arriscando a penetrar dentro da órbita da Terra, passando mais próximo ao Sol do que o homem, ou talvez até a vida, jamais havia estado. Isto era inevitável; não se podia seguir uma Terra, que se afastava, acompanhando-a em seu próprio giro. Estavam certamente tentando atravessar por dentro da órbita da Terra para ir de encontro a ela... era uma tentativa desesperada! Mas este problema não ocupava muito sua atenção; era impossível pensar por muito tempo em qualquer outra coisa que não fosse sede. Pensava-se em água; depois, na sede; em seguida, pensava-se em pensar na sede; depois, pensava-se em água novamente. E a temperatura continuava a subir. As paredes da nave estavam escaldantes; não se podia nem tocar nelas. Era evidente que se aproximava uma crise. Dentro de algumas horas o calor ou os mataria ou tinha que diminuir.

Diminuiu. Chegou uma hora em que se deitaram, exaustos e tremendo, sentindo o que lhes parecia frio, mas que era muito mais quente que qualquer clima terrestre. Weston, até agora, tinha sido bem sucedido; havia arriscado a expor-se à temperatura mais alta a que, em teoria, o homem pode resistir, e eles haviam sobrevivido. Mas não eram os mesmos homens. Até então, Weston dormia muito pouco, mesmo quando Devine o substituía nos controles; sempre, depois de tentar descansar um pouco retornava aos seus mapas e aos seus infindáveis cálculos. Podia-se ver que estava lutando contra o desespero – mergulhando seu cérebro apavorado no mar dos números. Agora nem olhava mais para eles. Parecia descuidado até na sala de controles. Devine movimentava-se como um sonâmbulo. Ransom passava quase o tempo todo no lado escuro e durante horas e horas não pensava em nada. Apesar de haver passado o primeiro grande perigo, nenhum deles tinha muita esperança de que aquela viagem fosse bem sucedida. Havia cinqüenta dias que estavam naquela casca de aço sem falar e assim mesmo o ar já estava muito ruim.

Weston estava diferente, tanto que até solicitou a Ransom auxílio junto aos controles de navegação. Ensinou-lhe, principalmente por meio de sinais, mas com a ajuda de algumas palavras sussurradas, aquilo que precisava saber naquela etapa da viagem. Aparentemente estavam correndo para casa – mas com uma possibilidade muito pequena de alcançá-la a tempo – antes de uma espécie de “monção” cósmica. Algumas regras elementares capacitaram Ransom a manter a estrela, apontada por Weston, na posição correta no centro da vigia, mas ele sempre mantinha a mão esquerda ao lado da campainha que tocava na cabine de Weston.

Aquela estrela não era a Terra. Os dias – os “dias” puramente teóricos que tinham um significado tão grande para os viajantes – chegaram a cinqüenta e oito antes que Weston mudasse o rumo e uma outra luz ocupasse o centro. No sexagésimo dia podia se ver claramente que era um planeta. Seis dias depois, era como um planeta visto através de um possante binóculo. No septuagésimo dia não se parecia com coisa nenhuma que Ransom já tivesse visto – era um pequeno disco brilhante, grande demais para ser uma planeta e pequeno demais para ser a Lua. Agora que se ocupava da navegação, seu estado de espírito celestial havia se modificado. Uma sede animal de vida, misturada com uma vontade de sentir novamente o ar puro e os cheiros da terra e ainda uma saudade de grama, carne, cerveja, chá, e do som da voz humana, despertaram nele. A princípio, quando chegava seu plantão, tinha dificuldade em resistir à sonolência; agora, apesar do ar estar pior, uma excitação febril o mantinha vigilante. Freqüentemente, quando terminava seu período de vigília, estava com o braço direito duro e doído; durante horas havia ficado inconscientemente apertando-o de encontro ao quadro de controles como se daquela maneira pudesse aumentar a velocidade da nave do espaço.

Restavam aos viajantes apenas vinte dias. Dezenove, dezoito, e no disco terrestre, branco, agora um pouco maior do que um níquel, pareceu-lhe poder distinguir a Austrália e um pedaço da Ásia. Hora após hora, apesar das formas se moverem lentamente em volta do disco com a revolução diurna da Terra, o disco propriamente dito se recusava a aumentar. – Vamos! Ande! murmurava Ransom para a nave do espaço. Restavam só dez dias e estava como a Lua, mas tão brilhante que não se podia olhar firme para ela. O ar dentro da esfera estava péssimo, mas Ransom e Devine arriscaram um murmúrio quando se revezaram na sala de controles.

– Chegaremos lá, disseram. Ainda chegaremos lá.

No octagésimo dia, quando Ransom substituiu Devine, achou que havia qualquer coisa de errado com a Terra. Antes de seu plantão chegar ao fim, teve certeza disto. Não era mais um círculo, crescera um pouco num lado; tinha quase o formato de uma pêra. Quando Weston chegou para o substituir deu uma olhadela para a vigia, apertou freneticamente a campainha para chamar Devine, empurrou Ransom e ocupou o lugar do navegador. Seu rosto estava cor de cera. Ia fazer qualquer mudança nos controles, mas quando Devine entrou na sala olhou para este e sacudiu os ombros num gesto de desespero. Depois, cobriu o rosto com as mãos e deitou a cabeça no quadro de controles.

Ransom e Devine se entreolharam. Tiraram Weston do assento – chorava como uma criança – e Devine ocupou seu lugar. Agora, finalmente, Ransom compreendeu o mistério da mudança de formato da Terra. Viu claramente que estava sendo coberta por um outro disco que parecia tão grande quanto ela. Era a Lua – entre eles e a Terra, e duzentos e quarenta milhas mais próxima. Ransom não sabia ao certo o que isto poderia significar para a nave do espaço. Devine certamente sabia, e nunca lhe parecera tão admirável. Seu rosto estava tão pálido quanto o de Weston mas seus olhos estavam claros e extraordinariamente brilhantes. Estava agarrado aos controles e assobiava muito baixinho entre os dentes.

Só horas depois é que Ransom compreendeu o que se estava passando. O disco da Lua ficou maior do que o da Terra e muito lentamente os dois discos foram diminuindo de tamanho. A nave do espaço não estava mais se aproximando nem da Terra nem da Lua; estava mais afastada delas do que estivera há uma hora atrás, e este era o resultado da atividade febril de Devine nos controles. O que havia era que, além da Lua ter-se atravessado no seu caminho, impedindo que chegassem a Terra, era perigoso, por um motivo qualquer provavelmente relacionado com a gravidade, que se aproximassem demasiado dela e Devine estava se mantendo a distância, no espaço. Estando com o porto a vista, eram forçados a voltar ao mar alto. Olhou para o cronômetro. Estavam na manha do octagésimo oitavo dia. Tinham dois dias para chegar à Terra, e estavam se afastando dela.

– Suponho que isto seja o fim, não? murmurou.

– Parece, murmurou Devine sem desviar a atenção.

Weston pouco depois controlou-se o suficiente para voltar e ficar junto a Devine. Não havia nada que Ransom pudesse fazer. Tinha certeza agora que logo morreriam. Diante desta certeza desapareceu a agonia da dúvida. A morte, se chegasse agora, ou daqui a trinta anos, na Terra, exigia sua atenção. Um homem tem que fazer uns certos preparativos para recebê-la. Saiu da sala de controles e voltou para um dos compartimentos banhados pelo Sol, para a indiferença da luz intensa, o calor, o silêncio e as sombras bem definidas. Não havia nada mais afastado de suas intenções do que o sono. Deve ter sido a atmosfera rarefeita que lhe provocou sonolência. Dormiu.

Acordou na mais completa escuridão, no meio de um ruído alto e contínuo, que a princípio não conseguiu identificar. Lembrava-lhe alguma coisa – alguma coisa que parecia ter ouvido numa vida anterior. Era um ruído constante de batidas junto a sua cabeça. De repente, seu coração deu um salto.

– Meu Deus! soluçou. Oh! meu Deus! É chuva.

Estava na Terra. O ar estava pesado e gasto, mas a sensação de sufocamento que vinha sofrendo desapareceu. Viu que ainda estava no interior da nave do espaço. Os outros, no seu egoísmo característico, com medo da desintegração ameaçada, a tinham abandonado, assim que tocara a Terra, deixando Ransom entregue a sua própria sorte. Foi muito difícil encontrar a saída no escuro e sob o peso esmagador da gravidade terrestre. Mas, finalmente, conseguiu encontrar a portinhola. Assim que saiu inspirou profundamente o ar fresco da noite. Escorregou na lama, bendisse seu cheiro e afinal conseguiu equilibrar o peso de seu corpo, a que se havia desabituado, sobre os pés. Ficou parado, na noite escura como breu, debaixo de uma chuva torrencial. Absorveu-a com todos os poros de seu corpo; e com todas as forças de seu ser aspirou o cheiro do campo que o rodeava, – um pedaço de seu planeta ativo, onde crescia a grama, as vacas pastavam, e por onde ele andaria até chegar a uma cerca e a um portão.

Tinha caminhado cerca de meia hora, quando uma luz muito viva atrás dele e um vento forte e veloz o fizeram saber que a nave do espaço não mais existia. Aquilo lhe importou muito pouco. Tinha visto luzes fracas, luzes de homens, adiante. Conseguiu encontrar um atalho, depois uma estrada, depois uma rua. Uma porta iluminada estava aberta. Ouviu vozes lá dentro e elas falavam inglês, sua própria língua. Sentiu um cheiro familiar. Entrou, e sem se importar com o espanto que estava causando, foi até o bar.

– Uma garrafa de cerveja, por favor, disse Ransom.

 

Se minha única intenção fosse fazer literatura, a história terminaria neste ponto; mas, já é hora de contar ao leitor a razão verdadeira e prática pela qual este livro foi escrito. Ao mesmo tempo ficará sabendo como foi possível isto acontecer.

Dr. Ransom – nesta altura, já deve ter se tornado claro que este não é o seu verdadeiro nome – logo desistiu do seu plano de fazer um “dicionário da língua de Malacandra”, e até mesmo de contar sua história ao mundo. Esteve doente durante muitos meses, e, quando se recuperou, ficou em dúvida se aquilo de que se lembrava realmente acontecera. Poderia ter sido um delírio provocado pela doença, e a maioria de suas aventuras aparentes poderiam ser explicadas psicanaliticamente. Ele próprio não deu muita importância a esta possibilidade, pois de há muito tempo observara que muitas coisas verdadeiras, na fauna e na flora de nosso próprio mundo, também poderiam ser explicadas dessa forma, se partíssemos da suposição de que eram ilusões. Mas achou que se ele mesmo tinha um pouco de dúvida a respeito de sua história o resto do mundo não acreditaria nela de todo. Resolveu ficar calado, e o assunto teria terminado aí se não fosse uma estranha coincidência.

É neste ponto que entro na história. Já conhecia Dr. Ransom, ligeiramente, há muitos anos, e mantinha correspondência com ele sobre diversos assuntos literários e filológicos, apesar de nos encontrarmos muito raramente.

Foi, portanto, perfeitamente normal que, há alguns meses atrás, escrevesse uma carta da qual vou citar o parágrafo que nos interessa no momento. Era assim:

“Estou agora estudando os Platonistas do século XII e descobrindo que escreviam num latim muito difícil. Na obra de um deles, Bernardus Silvestris, há uma palavra sobre a qual gostaria de ter sua opinião – é a palavra Oyarses. Aparece na descrição de uma viagem através dos céus; e um Oyarses parece ser a “inteligência” ou espírito tutelar de uma esfera celeste, o que corresponde em nossa língua a um planeta. Falei com C. J. sobre isto e ele disse que deve ser Ousiarches, o que faria sentido. Não fiquei, porém, plenamente satisfeito com esta hipótese e gostaria de saber se já encontrou alguma palavra semelhante a Oyarses, ou se tem alguma idéia da língua a que possa pertencer”.

A resposta a esta carta foi um convite para passar um fim-de-semana com o Dr. Ransom. Contou-me a sua história e desde então eu e ele temos nos ocupado constantemente deste mistério. Uma série de fatos, que não tenho a intenção de publicar no momento, vieram ter as nossas mãos; fatos sobre platonistas medievais e também fatos sobre o Professor a quem dei o nome fictício de Weston. Um relatório sistemático destes acontecimentos poderia, naturalmente, ser apresentado ao mundo civilizado: isto, porém, resultaria, certamente, numa incredulidade universal e numa ação movida por “Weston”. Ao mesmo tempo, achamos os dois que não podíamos nos manter em silêncio. Dia a dia, mais se confirma nossa crença de que o oyarses de Marte estava certo quando disse que o atual “ano celestial” seria revolucionário, que o longo isolamento de nosso próprio planeta estava chegando ao fim e que grandes coisas estão para acontecer. Temos fundadas razões para acreditar que os platonistas medievais viveram no mesmo ano celestial que nós – ano que começou exatamente no século XII da nossa era – e que a ocorrência do nome Oyarsa (em sua forma latina oyarses) em Bernardus Silvestris não é um acidente. Temos também provas – que aumentam quase diariamente – que “Weston”, ou as forças por trás de “Weston”, terão uma atuação muito importante nos acontecimentos dos séculos, que se seguirão imediatamente ao nosso, e que, se não forem impedidos, terão conseqüências desastrosas. Não queremos dizer que seja provável a invasão de Marte – nosso grito não é apenas “Afastem-se de Malacandra”! Os perigos que devemos temer não são planetários mas cósmicos, ou pelo menos solares, e não são temporais mas eternos. Seria pouco prudente dizer mais que isto.

Foi Dr. Ransom quem primeiro viu ser o único caminho que nos restava a publicação, em forma de romance, daquilo a que não se prestaria atenção como fato. Pensou até – superestimando minhas qualidades literárias – que um livro deste tipo teria a vantagem de ser procurado por um público maior, e que, certamente, chegaria a um grande número de pessoas antes que a “Weston”. Quanto a minha objeção, de que se fosse aceito como ficção seria, pela mesma razão, considerado falso, replicou que haveria na narrativa indícios suficientes para dar a perceber a verdade aos poucos leitores – muito poucos mesmo – que no momento já estão preparados para se aprofundar mais no assunto.

– E estes, disse ele, descobrirão a você ou a mim com facilidade, da mesma maneira com que também logo identificarão Weston. De qualquer modo, continuou, – o que precisamos agora não é tanto que acreditem em nós mas que se familiarizem com certas idéias. Se em um por cento dos nossos leitores conseguirmos transformar a concepção de Espaço numa concepção de Céu já teremos um bom começo.

O que nenhum de nós dois previu, foi a rápida marcha dos acontecimentos, que faria nosso livro ficar antiquado antes mesmo de ser publicado. Estes acontecimentos fizeram com que ficasse sendo mais um prólogo para a nossa história do que a história propriamente dita. Mas temos que deixá-lo como está. Quanto às próximas etapas da aventura – bem, foi Aristóteles, muito antes de Kipling, quem nos ensinou a fórmula: “Isto já é uma outra história”.

 

P. S. – (Consistindo de trechos de uma carta escrita pelo original do “Dr. Ransom” ao autor.)

 

... acho que você tem razão, e com exceção de duas ou três modificações (marcadas em vermelho) o manuscrito terá que ficar como está. Não nego que estou desapontado, mas qualquer tentativa de contar uma história deste gênero desapontaria a pessoa que realmente esteve lá. Não estou me referindo a maneira impiedosa com que você cortou toda a parte filológica, apesar de que, como ficou, estarmos fazendo apenas uma caricatura da língua de Malacandra. Me refiro a algo mais difícil – algo que não seria possível você descrever. Como pode alguém explicar os cheiros diferentes de Malacandra?

Não há nada de que me lembre mais vividamente em meus sonhos... especialmente o cheiro da madrugada naquelas florestas cor de púrpura, sendo que mencionar “madrugada” e “floresta” já basta para encaminhar mal a descrição, pois faz com que se pense em terra, musgo, teias de aranha e o cheiro do nosso próprio planeta, quando aquilo a que estou me referindo é completamente diferente. Mais “aromático”... sim, mas não, porém, forte ou luxurioso ou exótico como a palavra sugere. Alguma coisa aromática, condimentada, mas ao mesmo tempo muito fria, muito suave, que faz cócegas no nariz – algo que tinha o mesmo efeito, no sentido do olfato, que notas altas, agudas, de violino, têm no ouvido. E misturado com isto, ouço sempre o som de seus cantores – uma música profunda, sem limites, vindo de enormes gargantas, mais profundas que Chaliapin, “um ruído quente, escuro”. Sinto saudades daquele vale em Malacandra quando penso nisto; mas Deus sabe que, quando escutava aquela música, tinha saudades da Terra.

Certamente você está com a razão, e se o assunto é tratado em forma de história, temos que resumir o tempo passado na aldeia, durante o qual “nada aconteceu”. Mas é com ressentimento que concordo com você. Aquelas semanas calmas, a vida de cada dia, entre os “hrossa”, são para mim a coisa mais importante que me aconteceu. Eu conheço os “hrossa”, Lewis; isto é o que você não pode colocar numa simples história. Por exemplo, como sempre levo comigo um termômetro num passeio (o que já impediu que muitos fossem estragados) sei que a temperatura normal de um “hross” é de 103° (Farenheit). Sei – apesar de não me lembrar de como fiquei sabendo – que vivem cerca de 80 anos marcianos, ou seja 160 anos terrestres; que se casam com mais ou menos 20 anos (= 40); que não derramam lágrimas, nem piscam; que ficam (como você diria) “altos”, mas não bêbados, nas noites de festa, que são freqüentes. Mas o que se pode fazer com estas informações esparsas? Eu simplesmente as tiro de uma lembrança viva, integral, que nunca poderá ser posta em palavra e de que ninguém neste mundo será capaz de construir a imagem certa, em sua mente, baseado nela. Por exemplo: será possível fazer com que você entenda como tenho certeza absoluta da razão porque os habitantes de Malacandra não têm bichos de estimação e em geral não têm os mesmos sentimentos que nós para com seus “animais inferiores”? Naturalmente isto é um tipo de coisa que eles próprios nunca poderiam me dizer. Vê-se porque isto acontece, observando as três espécies juntas. Cada uma delas é para as outras, ao mesmo tempo, o que o homem e o animal são para nós separadamente. Os representantes das três espécies podem falar um com o outro, podem cooperar, têm a mesma ética; nestes pontos, um “sorn” e um “hross” se encontram como dois homens. Mas ao mesmo tempo, cada um deles acha o outro engraçado, atraente. Não precisam de bichos de estimação.

Por falar nisto, aproveitando o assunto “espécies”, fiquei com muita pena de que as exigências da história fizessem com que a biologia de cada uma fosse tão simplificada. Se dei a você a impressão de que cada espécie era perfeitamente homogênea, expliquei-me mal. Tomemos os “hrossa” por exemplo: meus amigos eram “hrossa” negros, mas existem também “hrossa” prateados e em alguns dos “handramits” do oeste são encontrados “hrossa’’ que têm uma espécie de crista. Só os machos têm crista e sua altura média é de cerca de dez pés; são mais dançarinos que cantores e são os animais mais nobres, depois do homem, que jamais encontrei. Vi também um “hross” completamente branco, em Meldilorn, mas, como um tolo, não procurei descobrir se representava uma sub-espécie ou se era simplesmente um caso extraordinário, como os albinos, na Terra. Quanto aos “sorns”, sei que existe pelo menos um tipo diferente do que conheci – os “soroborn”, ou “sorns” vermelhos do deserto, que moram nas regiões arenosas do norte.

Concordo que é uma pena eu nunca ter visto um “pfifltrigg” em seu “habitat”. Sei o bastante sobre o assunto para “inventar” uma visita a eles, que poderia aparecer como um episódio na história, mas acho que não devemos introduzir no livro nada que seja mera ficção; do ponto de vista humano, não haveria nada de mal nisto, mas não gostaria de ter que explicá-lo a Oyarsa, e tenho uma forte suspeita (veja minha última carta) de que ainda o verei. Além disto, porque será que nossos “leitores” (você parece conhecê-los intimamente!), que não se interessam pela linguagem, haveriam de querer saber mais detalhes a respeito dos “pfifltriggi”? Mas se você quiser encaixar na história que são ovíparos e matriarcais e que, comparados com as outras espécies, têm uma vida curta, está muito bem. Acredito ter ficado bastante claro que as grandes depressões onde habitam são os antigos leitos dos oceanos de Malacandra. Não há dúvida de que são estas as regiões mais escuras que aparecem no disco de Marte, observando aqui da Terra. Por falar nisto – os “mapas” de Marte que consultei, desde que cheguei, são tão diferentes uns dos outros que desisti de encontrar o “handramit” onde vivi. Se você quiser experimentá-lo, o objetivo é um canal, de nordeste a sudoeste, que se cruza com um canal de norte a sul, a uma distância de menos de vinte milhas do equador. Mas os astrônomos divergem muito nas coisas que vêem.

Agora, quanto à sua pergunta mais irritante: “Quando Augray descreveu os “eldila” confundiu a idéia de um corpo mais sutil com a de um ente superior”? Não. A confusão é inteiramente sua. Ele disse duas coisas: que os “eldila” têm corpos que diferem dos animais planetários, e que são superiores em inteligência. Nem ele nem qualquer outro em Malacandra jamais confundiu uma coisa com a outra ou deduziu uma da outra. Aliás, tenho motivos para pensar que existem animais irracionais com o corpo do tipo “eldil” (lembra-se dos “animais etéreos” de Chaucer?).

Não estou muito certo se você faz bem em não dizer nada sobre o problema da fala dos “eldila”. Concordo em que estragaria a narrativa se abordasse o assunto durante a cena do julgamento em Meldilorn, mas, certamente muitos leitores terão bastante senso para perguntar como os “eldila”, que obviamente não respiram, podem falar. É verdade que teríamos de confessar a nossa ignorância, mas não acha que os leitores deveriam ser informados disto?... Mencionei a J. – o único cientista daqui que está a par de nosso trabalho – sua teoria de que talvez tenham instrumentos, ou mesmo órgãos, para manipular o ar em que vivem, e desta maneira produzir sons indiretamente, mas o nosso amigo achou a teoria meio fraca.

O que ele pensa, provavelmente, é que os “eldila” manipulam diretamente os ouvidos daqueles a quem estão “falando”. Isto parece muito difícil... mas temos que nos lembrar que não temos realmente idéia da forma ou tamanho de um “eldil”, nem mesmo de sua relação com o espaço (nosso espaço) em geral. Na verdade, temos que insistir em que não sabemos nada, praticamente, a seu respeito. Como você, não consigo deixar de tentar estabelecer sua relação com as coisas que aparecem na tradição terrestre – deuses, anjos, fadas. Não temos, porém, nenhum dado a este respeito. Quando tentei dar a Oyarsa uma idéia da nossa angeologia cristã, ele pareceu considerar nossos “anjos” diferentes dele de alguma forma. Mas, não sei se queria dizer que eram uma espécie diferente, ou se eram somente uma casta militar especial (já que nossa pobre terra parece ser uma espécie de Ypres Saliente no universo).

Por que é que você tem que deixar de fora o fato de que a veneziana enguiçou pouco antes de chegarmos a Malacandra? Sem contar isto, sua descrição dos sofrimentos causados pelo excesso de luz na viagem de volta causará a pergunta lógica: “Por que não fecharam as venezianas? Não acredito na sua teoria de que “os leitores não prestam atenção nestas coisas”. Estou certo de que eu prestaria.

Há duas cenas que gostaria que você tivesse podido colocar no livro; não tem importância porém – estão gravadas em mim. Ou uma ou outra está sempre diante de mim quando fecho os olhos.

Numa delas, vejo o céu de Malacandra pela manhã; azul pálido, tão pálido, que agora, que já tornei a me habituar ao céu da terra, penso nele como quase branco. Contra este fundo, os cimos mais próximos das plantas gigantescas – das “árvores”, como você as chama – parecem pretos, porém, mais para longe, na outra margem daquela deslumbrante água azul, as florestas mais afastadas são de um tom púrpura de aquarela. As sombras que me rodeiam no pálido chão da floresta são como sombras na neve. Há figuras andando na minha frente; formas esbeltas mas gigantescas, negras e luzidias como cartolas animadas; suas imensas cabeças redondas, pousadas nos seus corpos sinuosos lhes dão a aparência de tulipas negras. Vão cantando para a beira do lago. A música enche a floresta com sua vibração, apesar de ser tão suave que mal posso ouvi-la: é como a música remota de um órgão. Alguns deles tomam lugar em barcos, mas a maioria fica. Tudo é feito com lentidão; o que está acontecendo não é um embarque comum, mas uma cerimônia. É, na verdade, um funeral dos “hrossa”. Aqueles três já grisalhos, que os outros ajudaram a subir nos botes, estão indo a Meldilorn para morrer. Porque naquele mundo, com exceção de uns poucos que os “hnakra” apanham, ninguém morre antes de sua hora. Todos vivem o tempo de vida atribuído a sua espécie e a morte para eles é tão previsível como um nascimento para nós. A aldeia inteira sabia que aqueles três iam morrer nesse ano, nesse mês; era muito fácil imaginar que iam morrer até nessa semana. E agora, já estão a caminho para receber os últimos conselhos de Oyarsa, morrer e serem “descorporificados” por ele. Os cadáveres, como tal, existirão só por alguns minutos: não existem caixões em Malacandra, nem cemitérios, nem agências funerárias. O vale fica solene na sua partida, mas não há sinais de dor desesperada. Não duvidam de sua imortalidade, e amigos da mesma geração não serão separados. Sai-se do mundo como se chegou, com “os homens do seu ano”. A morte não é precedida pelo medo nem seguida pela putrefação. A outra cena é noturna. Vejo-me tomando banho no lago morno, com Hyoi. Ele ri-se do meu modo desajeitado de nadar; habituado num mundo mais pesado, é difícil para mim conseguir mergulhar meu corpo o bastante para poder avançar. Depois vejo o céu. É parecido com o nosso, só que o fundo é mais negro e as estrelas mais brilhantes; mas a oeste acontece algo que nenhuma analogia terrestre poderá fazer você idealizar em toda a sua extensão. Imagine a Via Láctea aumentada – a Via Láctea vista através do nosso maior telescópio, na noite mais clara. E depois imagine isto, não atravessado no Zênite, mas nascendo, como uma constelação, atrás dos cimos das montanhas – um colar deslumbrante de luzes brilhantes como planetas, erguendo-se até ocupar uma quinta parte do céu e, já agora, deixando uma faixa de escuridão entre ela e o horizonte, e tão brilhante que não se pode olhá-la por muito tempo, mas é só uma preparação . Alguma coisa mais está vindo. Há uma luz como o nascer da lua no “harandra”. Ahihra! exclama Hyoi, e outras vozes o repetem na escuridão que nos rodeia. E agora o verdadeiro rei da noite aparece, e vai seguindo seu caminho através daquela estranha via láctea ocidental, fazendo com que suas luzes pareçam fracas em comparação com a sua. Desvio meus olhos, pois o pequeno disco é muitíssimo mais brilhante que a lua nos dias de seu maior esplendor. O “handramit” inteiro fica banhado de luz; poderia contar os caules da floresta do outro lado do lago: vejo que minhas unhas estão quebradas e sujas. E agora percebo o que vi – Júpiter se erguendo além dos Asteróides, quarenta milhões de milhas mais próximo do que jamais esteve de olhos humanos. Mas os habitantes de Malacandra diriam “dentro dos Asteróides”, pois têm o estranho hábito, às vezes, de virar o sistema solar pelo avesso. Chamam os Asteróides de “os dançarinos diante do limiar dos Grandes Mundos”. Os Grandes Mundos são os planetas, que ficam, como nós, diríamos, “além” ou “fora” dos Asteróides. Glundandra (Júpiter) é o maior dos Grandes Mundos e tem um significado para os habitantes de Malacandra que não pude perceber bem. Ele é o “centro”, o “grande Meldilorn”, “o trono” e o “festim”. Sabem, é claro, que não é habitável, pelo menos por animais do tipo planetário; e, certamente, não têm nenhuma idéia paga de dar uma habitação fixa a Meleldil. Mas há alguém ou alguma coisa de grande importância ligado a Júpiter; como de costume “Os seroni sabem”. Mas nunca me contaram. Talvez o melhor comentário seja encontrado no autor que mencionei a você: “Pois como foi muito bem dito do grande Africanus, que nunca estava menos sozinho do que quando sozinho, assim, em nossa filosofia, não existem regiões desta estrutura universal que menos merecem o nome de solitárias do que aquelas que o vulgo considera mais solitárias, pois a retirada dos homens e dos animais significa a maior freqüência de criaturas superiores”.

Falarei mais sobre isto, quando você vier. Estou tentando ler todos os livros antigos, sobre o assunto, que consigo encontrar. Agora que “Weston” fechou a porta, o caminho para os planetas é através do passado; se houver mais viagens no espaço, estas terão que ser também viagens no tempo...!

 

                                                                                            C. S. Lewis

 

 

                      

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