Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALEM MUNDOS / Scott Westerfeld
ALEM MUNDOS / Scott Westerfeld

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O e-mail mais importante que Darcy Patel escreveu na vida tinha três parágrafos.
O primeiro era sobre ela mesma. Não citava os detalhes triviais, como o cabelo pintado de preto-azulado e o estreito anel de ouro na narina esquerda, e começava com o terrível segredo que seus pais nunca haviam lhe contado. Quando tinha 11 anos, a melhor amiga da mãe de Darcy tinha sido assassinada por um estranho. Essa descoberta, feita por acaso durante uma pesquisa à toa na internet, chocou Darcy e ao mesmo tempo a fez entender melhor algumas coisas sobre sua mãe. Também a inspirou a escrever.
O segundo parágrafo do e-mail era sobre o romance que Darcy terminara há pouco. Ela não mencionava, é claro, que todas as sessenta mil palavras de Além-mundos tinham sido escritas em trinta dias. A Agência Literária Underbridge dificilmente precisava saber disso. O parágrafo descrevia um ataque terrorista, uma garota que se faz morrer com a própria força de vontade e um garoto fascinante que ela conhece no além-mundo. Prometia fantasmas esquivos, traumas que assombram famílias e irmãs mais novas que são mais espertas do que parecem. Usando o presente do indicativo e frases curtas, Darcy criou o clima da cena, esboçou os personagens e suas motivações e deu um gostinho da conclusão. O segundo parágrafo era o melhor, disseram-lhe depois.
O terceiro era pura bajulação, porque Darcy queria muito que a Agência Literária Underbridge a aceitasse. Ela exaltou a amplitude do catálogo e teceu elogios ao brilhantismo dos clientes da agência, chegando ao ponto até de se comparar àqueles nomes ilustres. Darcy explicou como seu manuscrito era diferente dos outros romances sobrenaturais dos últimos anos (nenhum dos quais tinha um psicopompo védico gatinho como interesse romântico).
O e-mail não era a carta de apresentação mais perfeita do mundo, mas funcionou. Dezessete dias depois de clicar em “enviar”, Darcy assinou o contrato com a Underbridge, uma agência literária respeitada e próspera, e não muito tempo depois recebeu uma oferta de publicação para dois livros por uma quantidade assustadora de dinheiro.
Somente meia dúzia de desafios restava — formatura do ensino médio, uma decisão arriscada e a aprovação dos pais — antes que Darcy Patel pudesse fazer as malas e seguir para Nova York.

 

 


 

 


CAPÍTULO 2

Conheci o homem dos meus sonhos em um aeroporto, pouco antes da meia-noite alguns dias depois da virada do ano. Foi durante uma conexão em Dallas, e eu quase morri.

O que me salvou foram as mensagens que troquei com minha mãe.

Mando muitas mensagens para ela quando estou viajando — avisando quando chego ao aeroporto, quando o voo é anunciado, quando eles mandam os passageiros desligarem os celulares. Eu sei que parece algo que se faria com um namorado, não com a mãe, mas viajar sozinha já me deixava nervosa antes mesmo de eu ver fantasmas.

E, acredite, minha mãe quer saber o que estou fazendo. O tempo todo. Ela sempre foi meio superprotetora, mas ficou pior depois que meu pai fugiu para Nova York.

Então eu estava sozinha, atravessando o saguão praticamente vazio em busca de um lugar com sinal de celular melhor. Àquela hora da noite a maioria das lojas estava fechada e às escuras, e quando vi tinha caminhado sem perceber para outra parte do aeroporto, fechada por um portão de aço preso ao teto. Pela tela metálica dava para ver duas esteiras rolantes ligadas, mas vazias.

Não percebi quando o ataque começou. Meus olhos estavam focados no telefone, concentrados na guerra que o corretor automático travava com os meus erros de digitação. Minha mãe tinha perguntado sobre a nova namorada do papai, que eu acabara de conhecer durante a visita nas férias de inverno. Rachel era ótima, sempre bem-vestida, e calçava o mesmo número que eu, mas não dava para contar isso tudo para a minha mãe. Ela tem sapatos incríveis e eu posso pegar todos emprestados não seria um bom começo.

O novo apartamento do meu pai também era maravilhoso, no vigésimo andar, com janelas que ocupavam a parede inteira e tinham vista para o AstorPlace. O closet era do tamanho do meu quarto em casa, e cheio de gavetas que faziam um barulho de rodinhas de skate girando ao se abrir. Eu não gostaria de morar lá. Todos aqueles móveis cromados e de couro branco eram frios e nem um pouco aconchegantes. Mas minha mãe estava certa: meu pai tinha ganhado dinheiro para cacete desde que nos deixara. Agora ele era rico, vivia em um prédio com concierge e motorista particular, e tinha um cartão de crédito preto brilhante que fazia os assistentes de compras olharem duas vezes (chamar as pessoas que trabalham em lojas de “assistentes de compras” era algo que eu tinha aprendido com a Rachel).

Eu estava usando calça jeans e um casaco de moletom com capuz, como sempre fazia quando ia viajar de avião, mas minha mala estava cheia de roupas novinhas em folha que eu teria de esconder quando voltasse para a Califórnia. O dinheiro do papai deixava minha mãe puta por um bom motivo: ela o havia sustentado durante todo o tempo em que ele cursou a faculdade de direito, e depois ele deu no pé. Às vezes eu também ficava irritada por causa disso, mas aí meu pai me mandava alguma coisa cara e eu logo esquecia.

Isso soa bem fútil, né? Ser comprada com o dinheiro que deveria ser da minha mãe? Pode acreditar, eu sei. Quase morrer me fez perceber rapidinho como eu era fútil.

Minha mãe tinha acabado de me mandar uma mensagem:

Por favor, me diga que ela é mais velha que a anterior. E não uma libriana de novo!

O signo dela não entrou em puta.

Hum, quê?

PAUTA. Maldito corretor.

Minha mãe tinha basicamente se tornado imune aos meus erros de digitação. Na noite anterior, ela nem percebeu quando eu escrevi que meu pai e eu estávamos comendo massa de biscoito cu de sobremesa. Mas, quando se tratava da Rachel, nenhum errinho passava despercebido.

Rá! Bem que poderia não ser um erro!

Decidi ignorar isso, e respondi:

Ela mandou um oi, aliás.

Que gracinha.

Não sei se você está sendo irônica. Isso é uma MENSAGEM DE TEXTO, mãe.

Estou velha demais para ironia. Era sarcasmo.

Ouvi gritos atrás de mim, perto dos aparelhos de raios X. Dei meia-volta e fui para o meu portão de embarque, mas não tirei os olhos do telefone.

Acho que meu gavião está saindo.

OK. Te vejo em três horas, filhota! Saudades!

Saudades tb, comecei a digitar, mas nessa hora o mundo se partiu em mil pedacinhos afiados.

Eu nunca tinha ouvido uma arma automática na vida real. De alguma forma o som era alto demais para meus ouvidos registrarem, parecendo menos um barulho e mais como se o ar estivesse explodindo ao meu redor, um estrondo que senti nos ossos e nos meus olhos. Olhei para a frente e fiquei paralisada.

Os atiradores não pareciam humanos. Usavam máscaras de filmes de terror, e fumaça os envolvia enquanto giravam para mirar nas pessoas. No início todo mundo ficou paralisado de choque. Ninguém correu nem tentou se esconder atrás das cadeiras de plástico, e os terroristas não pareciam ter pressa alguma.

Só ouvi os gritos quando os terroristas pararam para recarregar.

Então todo mundo saiu correndo, algumas pessoas vieram na minha direção, outras foram para o outro lado. Um garoto da minha idade, usando uma camisa de futebol — Travis Brinkman, como o mundo descobriria depois —, atacou dois dos atiradores, envolvendo-os com os braços e girando com eles pelo chão escorregadio pelo sangue. Se houvessem só dois terroristas talvez ele tivesse vencido aquela briga e passado a vida como um herói, contando a história para os netos até que eles não aguentassem mais. Mas eram quatro atiradores no total, e os outros dois ainda tinham munição de sobra.

Na mesma hora em que Travis Brinkman caiu, as primeiras pessoas que corriam chegaram até mim. A fumaça as seguia, trazendo um cheiro de plástico queimando. Durante todo aquele tempo eu tinha ficado ali parada, mas o odor acre despertou meu pânico, e eu me virei e saí correndo com a multidão.

A tela do meu celular se acendeu, e fiquei olhando para ele estupidamente. Havia alguma coisa que eu deveria fazer com aquele objeto que brilhava e vibrava, mas eu tinha esquecido o quê. Ainda não sabia o que estava acontecendo, mas sabia que parar de correr seria a morte.

Mas então a morte se postou bem à minha frente — aquele portão de aço atravessando todo o corredor, indo do chão ao teto e de um lado ao outro. Atrás dele ficava a ala fechada do aeroporto, as esteiras ainda rolando. Os terroristas tinham esperado até a meia-noite, quando todos estariam presos no menor espaço possível.

Um homem alto vestindo uma jaqueta de couro de motoqueiro bateu no portão com o ombro, fazendo o metal ondular. Ele se ajoelhou e tentou levantar a parte inferior, erguendo-a alguns centímetros. Outras pessoas fizeram o mesmo.

Olhei para o celular. Uma mensagem da minha mãe:

Tente dormir no avião.

Bati na tela tentando fazer o teclado numérico aparecer. Em alguma parte do meu cérebro, percebi que nunca tinha ligado para a emergência antes. Enquanto tocava, eu me virei para olhar o tiroteio.

Várias pessoas estavam caídas no chão, deixando uma trilha. Os terroristas atiravam enquanto nós corríamos.

Um deles caminhava na minha direção, ainda a uns trinta metros de distância. Ele olhava para o chão, dando passos cuidadosos por entre os corpos caídos, como se não conseguisse ver direito pela máscara.

Ouvi uma vozinha vinda da minha mão, abafada pelos meus ouvidos doloridos.

— Qual a localização da sua emergência?

— Aeroporto.

— Já sabemos da situação. A equipe de segurança está a caminho e vai chegar em breve. Você está em um local em segurança?

Aquela moça estava tão calma. Toda vez que me lembro daquilo, choro ao pensar em como ela foi calma e corajosa. Acho que eu estaria gritando se fosse ela, sabendo o que estava acontecendo do outro lado da linha. Mas eu não gritei. Eu olhei para o atirador que lentamente vinha na nossa direção.

Ele estava atirando nas pessoas feridas, uma por uma, com uma pistola.

— Não, eu não estou em segurança.

— Você pode ir para um local em segurança?

Virei de volta para o portão. Uma dezena de pessoas estava fazendo força, tentando erguê-lo. O metal rangia e balançava, mas estava preso a algum tipo de cadeado. O portão não levantava mais do que alguns centímetros.

Procurei uma porta, um corredor, uma máquina de refrigerante atrás da qual pudesse me esconder. Mas as paredes se estendiam ao infinito, lisas e planas.

— Não, não posso. E ele está atirando em todo mundo. — Nós duas estávamos tão calmas, simplesmente conversando uma com a outra.

— Bem, querida, então talvez você devesse se fingir de morta.

— O quê?

O atirador ergueu os olhos dos feridos no chão, e consegui ver o brilho dos olhos deles pelos buracos na máscara. Ele estava olhando diretamente para mim.

— Se você não pode encontrar um lugar seguro — ela falou devagar —, talvez devesse se deitar e ficar imóvel.

Ele guardou a pistola no coldre e levantou o rifle de novo.

— Obrigada — falei, e me deixei cair no segundo em que a arma rugia fumaça.

Meus joelhos bateram no chão com uma explosão de dor, mas deixei todos os meus músculos relaxarem, caindo de cara como uma boneca de pano. Minha cabeça atingiu o ladrilho com tanta força que vi um clarão atrás dos olhos e senti uma quentura grudenta na testa.

Entreabri os olhos uma vez— havia sangue escorrendo pelas minhas pálpebras.

Apavorada, fiquei caída, enquanto a arma disparava sem parar, as balas cortando o ar acima de mim. Os gritos me davam vontade de me enrolar em posição fetal, mas me forcei a ficar parada. Tentei apertar meus pulmões até pararem de respirar.

Eu estou morta. Eu estou morta.

Um tremor correu pelo meu corpo, que lutava contra mim e exigia que eu respirasse fundo.

Eu não preciso respirar. Estou morta.

O tiroteio finalmente parou mais uma vez, mas sons piores preencheram o silêncio estridente. Uma mulher implorando por piedade, alguém tentando puxar o ar para pulmões estraçalhados. À distância, ouvi os estouros de pistolas.

Então, o pior som de todos: solas de borracha, guinchando nos ladrilhos úmidos, em passos lentos e deliberados. Lembrei-me dele atirando nos feridos, certificando-se de que ninguém escaparia daquele pesadelo.

Não olhe para mim. Estou morta.

Meu coração batia com força suficiente para fazer tremer o aeroporto inteiro. De alguma maneira, porém, consegui segurar a respiração.

O som dos tênis começou a sumir, dominado por um rugido suave na minha cabeça. Meus pulmões estavam parados, sem mais lutar, e me senti caindo suavemente do meu corpo, atravessando o chão e descendo para algum lugar escuro, silencioso e gelado.

Não importava se o mundo estava se desfazendo. Eu não podia respirar, me mover ou pensar, a não ser para lembrar a mim mesma...

Estou morta.

Com os olhos fechados, minha vista foi de vermelho para o preto, como se tinta se derramasse por minha mente. O frio me dominou, e a tontura passou para um leve balançar e depois uma sensação de imobilidade.

Pareceu que um longo tempo se passou sem que nada acontecesse.

Então, acordei em outro lugar.


CAPÍTULO 3

O envelope de papel pardo da Agência Literária Underbridge era da grossura de um pacote de boas-vindas da faculdade. Mas, em vez de formulários, panfletos e livretos, ele continha quatro cópias do mesmo documento — um contrato de publicação — e outro envelope, já endereçado e selado, para devolução das vias assinadas.

Darcy Patel ficara sabendo de tudo isso em um e-mail da semana anterior e lera o contrato em várias fases de minuta. Não havia mistério sobre o conteúdo do envelope, mas, ainda assim, abri-lo parecia muito importante. Darcy havia surrupiado o abridor de cartas de Princeton do pai para a ocasião.

— Chegou — falou ela, parada à porta da irmã. Nisha jogou o livro para o lado, pulou da cama e seguiu Darcy até o quarto dela.

As duas atravessaram o corredor em silêncio. Darcy não queria que o pai relesse o contrato e oferecesse mais conselhos jurídicos. (Em primeiro lugar, ele era engenheiro, não advogado. Em segundo, Darcy já tinha uma agente.) Mas Nisha precisava estar presente — tinha lido Além-mundos no último novembro, enquanto Darcy escrevia, às vezes em voz alta por cima do ombro da irmã.

— Fecha a porta. — Darcy sentou-se na escrivaninha. As mãos tremiam um pouco.

Nisha obedeceu e depois entrou na ponta dos pés.

— Que demora. Quando a Paradox disse que queria comprar o livro, três meses atrás?

— Minha agente disse que alguns contratos levam um ano.

— Já é a sétima vez hoje, e ainda nem é meio-dia!

De comum acordo, Darcy poderia usar as palavras “minha agente” não mais de dez vezes por dia na frente da irmã mais nova; qualquer excesso custaria um dólar por vez. Parecia generoso para ambas as partes envolvidas.

Darcy encarou o envelope, pesando o abridor de cartas na mão.

— OK. Vamos lá.

De início, a lâmina cortou o papel facilmente, mas na metade do caminho ficou presa em algo dentro do envelope, um grampo ou clipe, talvez. O abridor começou a engasgar, rasgando em vez de cortar.

E aí ficou preso.

— Merda. — Darcy fez um pouco mais de força.

O abridor de cartas se mexeu de novo, mas junto com ele saiu do envelope uma tirinha rasgada de papel branco.

— Que jeitosa, Patel — comentou Nisha, agora bem atrás da irmã.

Darcy tirou os contratos do envelope. A parte de cima da primeira página estava rasgada.

— Que ótimo. Minha agente vai achar que eu sou uma idiota.

— Oito — contou Nisha. — Por que eles precisam de tantas cópias, afinal?

— Acho que é para ficar mais oficial. — Darcy conferiu o que mais tinha dentro do envelope. Estava tudo inteiro. — Você acha que este ainda vale, agora que está rasgado?

— Destruído desse jeito? Sinceramente, Patel, acho que a sua carreira acabou.

Uma dor aguda surgiu entre as costelas de Darcy, como se o abridor de cartas tivesse perdido o rumo de novo.

— Nem brinca. E para de me chamar pelo meu sobrenome. Pelo nosso sobrenome. É esquisito.

— Affe — foi a resposta. Nisha inventava novos tiques verbais pelo menos uma vez por semana, o que às vezes era bem útil. A protagonista de Além-mundos tinha pegado emprestado vários dos xingamentos excêntricos de Nisha. — É só colar com durex.

Darcy suspirou e abriu a gaveta da escrivaninha. Alguns momentos depois, o contrato estava colado, mas, de alguma forma, agora parecia ainda mais idiota. Como o trabalho de artes de uma criança do quinto ano: MeUContRatOdEPubLicaÇão.

— Nem parece mais de verdade.

— Que desastre! — Nisha se jogou de costas na cama da irmã, quicando em espasmos moribundos e bagunçando as cobertas. As pessoas sempre falavam que Nisha parecia ter mais de 14 anos. Se elas soubessem a verdade...

— Nada disso parece de verdade — sussurrou Darcy, sem tirar os olhos do contrato rasgado.

Nisha sentou-se na cama.

— Você sabe por quê, Patel? Porque ainda não contou para eles.

— Eu vou contar. Semana que vem, depois da formatura. — Ou talvez depois, seja lá quando fosse o prazo final para o adiamento da inscrição na Oberlin.

— Não, agora. Assim que você deixar esses contratos no correio.

— Hoje? — Só de pensar na reação dos pais, Darcy sentia um suor frio escorrer pelas costas.

— Sim. Contar para eles vai fazer tudo parecer verdade. Até lá, você é só uma criancinha que sonha acordada em ser uma escritora famosa.

Darcy ficou olhando para a irmã.

— Você lembra que eu sou mais velha que você, né?

— Então é bom começar a agir como tal.

— Mas e se eles disserem não?

— Eles não podem. Você tem 18 anos. É, tipo, uma adulta.

Uma gargalhada irrompeu de Darcy, e Nisha também começou a rir. Pensar que os Patel reconheceriam a independência das filhas aos 18 anos — ou em qualquer idade — era hilário.

— Não se preocupe com eles — prometeu Nisha depois que elas se recuperaram do ataque de riso. — Eu tenho um plano.

— E qual é?

— Segredo. — Um sorriso travesso se abriu no rosto de Nisha, o que era tão tranquilizador quanto o contrato rasgado.

Não era só a reação dos pais que deixava Darcy nervosa. Havia algo de assustador no que ela havia planejado, algo absurdo, como se tivesse decidido se tornar uma astronauta ou uma estrela do rock.

— Você acha que eu estou doida por querer fazer isso?

Nisha deu de ombros.

— Se você quer ser escritora, é melhor fazer agora. Como você sempre diz, Além-mundos pode flopar e ninguém vai publicar nada seu nunca mais.

— Eu só disse isso uma vez. — Darcy suspirou. — Mas obrigada por me lembrar.

— De nada, Patel. Mas seguinte: esse é um contrato irrevogável. Até o seu livro ser um fracasso oficial, você é uma escritora de verdade! Então o que você prefere: gastar todo esse dinheiro sendo uma autora em Nova York ou como caloura na faculdade, cuspindo uma redação atrás da outra sobre um milhão de caras brancos mortos?

Darcy baixou os olhos para o contrato rasgado. Talvez isso tivesse acontecido por que ela queria tanto que desse certo. Talvez sua mão sempre fosse escorregar no último momento, destruindo o que Darcy mais desejava. De alguma forma, porém, o contrato era lindo, mesmo danificado. Bem na primeira página ele a definia, Darcy Patel, como “O autor”. Não dava para ser mais real do que isso.

— Eu prefiro ser escritora a ser caloura.

— Então você tem que avisar aos Patel ... depois que os contratos estiverem no correio.

Darcy olhou para o envelope de devolução e se perguntou se a Agência Literária Underbridge fornecia selos para todos os seus autores, ou só para os adolescentes. Mas pelo menos isso facilitava o trabalho de enviar os contratos, só uma caminhada até a esquina, o que demandava menos esforço do que contrariar Nisha. Se sua irmã mais nova tinha um plano, não haveria descanso sem obediência.

— Certo. Na hora do almoço.

Darcy pegou sua caneta favorita e assinou seu nome quatro vezes.

— Eu tenho que contar uma coisa para vocês — começou ela. — Mas não fiquem chateados.

As caras ao redor da mesa — inclusive a de Nisha — fizeram Darcy se perguntar se talvez ela devesse ter começado de outra forma. O pai delas tinha parado no meio de uma mordida, e Annika Patel a encarava com os olhos arregalados.

O almoço era a sobra do pedido da noite anterior — pimentões vermelhos fritos, grão-de-bico com tamarindo, tudo coberto de garam masala e servido direto dos potes de isopor. Não era uma cena auspiciosa para anúncios importantes.

— Seguinte: eu quero adiar a inscrição na faculdade por um ano.

— O quê? — perguntou a mãe dela. — Por que você faria isso?

— Porque eu tenho outras responsabilidades. — Essa frase tinha soado melhor na cabeça dela. — Preciso revisar o Além-mundos e escrever o segundo livro.

— Mas... — A mãe dela parou, e os Patel pais trocaram um olhar.

— Os livros não vão ocupar todo o seu tempo — completou o pai. — Você escreveu o primeiro em um mês, não foi? E isso não atrapalhou seus estudos.

— Eu quase morri! — exclamou Darcy. Às vezes, no novembro passado, ela sofria antes de voltar para casa por saber que duas mil palavras esperavam para serem escritas, sem falar no dever de casa, nas redações para inscrição na faculdade e sessões de estudo para os SATs. — Sem contar que eu não escrevi o livro em um mês. Escrevi um rascunho.

Os pais só ficaram olhando para ela.

— Não existe boa escrita, somente boa reescrita — citou ela, sem saber ao certo quem tinha falado isso primeiro. — Todo mundo diz que essa é a pior parte, transformar o rascunho em um livro de verdade. De acordo com o contrato, tenho até setembro para entregar o manuscrito final. São quatro meses inteiros, então eles devem achar que a revisão é bem importante.

— Sem dúvida é importante. Mas a faculdade começa em setembro — argumentou Annika Patel, cheia de sorrisos. — Então não há conflito, certo?

— Certo. — Darcy suspirou. — Só que, quando eu terminar o Além-mundos, tenho que começar a escrever o segundo livro, e depois revisar esse também! E a minha agente disse que eu já deveria estar me promovendo!

Nisha ergueu nove dedos, indicando silenciosamente a contagem de “minha agente”.

— Darcy — disse o pai dela. — Você sabe que a gente sempre apoiou sua criatividade. Mas a principal razão para escrever esse livro não era para falar sobre a experiência nas inscrições para a faculdade?

— Não! — reclamou Darcy. — De onde você tirou essa ideia?

Annika Patel juntou as mãos, como se rezasse por silêncio. Quando todos estavam prestando atenção, seu olhar de sofrimento se suavizou em um ligeiro sorriso.

— Você está fazendo isso porque está com medo de sair de casa? Eu sei que Ohio parece muito longe, mas você pode ligar para casa quando quiser.

— Ah — soltou Darcy, percebendo que não tinha dado a notícia completa. — Eu não vou ficar aqui. Vou me mudar para Nova York.

No silêncio que se seguiu, tudo o que Darcy ouvia era Nisha mastigando uma samosa. Ela desejou que a irmã pudesse ao menos tentar disfarçar o quanto ela estava se divertindo.

— Para Nova York? — por fim a mãe delas repetiu.

— Eu quero ser escritora, e é lá que está o mercado editorial.

Annika Patel soltou um suspiro longo e exasperado.

— Você nem deixou a gente ler esse livro, Darcy. E agora quer desistir da faculdade por esse... sonho.

— Não estou desistindo, mãe, só adiando por um ano. — Finalmente as palavras certas lhe ocorreram. — Um ano para estudar o mercado editorial. Para entender como tudo funciona! Imagina como isso ficaria bonito numa inscrição de faculdade. — Darcy abanou as mãos. — Quer dizer, só que não vou precisar me inscrever de novo, porque é só um adiamento.

Sua voz deu uma tremida culpada no final. De acordo com o manual do estudante da Oberlin, um adiamento só seria aceito em “circunstâncias excepcionais”, e a definição de “excepcional” ficava a cargo da faculdade. Eles podiam negar o pedido, o que a obrigaria a começar tudo de novo.

Mas ser contratada para escrever um livro era uma circunstância bem excepcional, não?

— Não sei, não, Darcy. — O pai dela balançou a cabeça. — Primeiro você não se inscreve em nenhuma universidade indiana, e agora...

— Eu nunca seria aceita numa boa faculdade na Índia! Nem o Sagan conseguiu, e ele é um gênio da matemática. — Darcy se virou para a mãe, que gostava de ler. — Vocês ficaram tão felizes quando meu livro foi contratado!

— É claro que ficamos. — Annika Patel balançou a cabeça. — Mesmo que você não tenha deixado a gente ler.

— É só até eu revisar.

— Isso é com você — respondeu a mãe. — Mas não espere que todos os livros que escrever te deem tanto dinheiro. Você precisa ser prática. Você nunca morou sozinha, nem pagou suas próprias contas, nem cozinhou sua própria comida...

Darcy não conseguia falar. Seus olhos ardiam e a garganta estava apertada. Nisha estava certa — agora que ela havia expressado seus sonhos em voz alta para os pais, eles tinham se tornado reais. Reais demais para perder.

Ao mesmo tempo, inúmeras outras coisas também tinham se tornado reais, todos os detalhes práticos de como se alimentar e onde morar. Darcy nunca tinha lavado a própria roupa.

Ela olhou desesperada para a irmã mais nova. Nisha baixou o garfo com um tlec quase inaudível.

— Eu estava pensando — começou ela quando todos se viraram para ouvir. — Em se tratando de dinheiro, talvez seja melhor se Darcy tirar o ano de folga.

Ninguém disse nada, e Nisha aproveitou o silêncio por um momento.

— Eu estava dando uma olhada nos formulários de assistência financeira da Oberlin. É claro que a pergunta principal que eles fazem é a renda dos pais, mas tem um campo em que eles perguntam sobre a renda do estudante. Aparentemente todo o dinheiro que a Darcy ganhar será deduzido de qualquer bolsa que for oferecida.

Ainda assim ninguém falou nada, e Nisha assentiu devagar, como se só agora ela estivesse entendendo tudo.

— Darcy vai ganhar mais de cem mil este ano, simplesmente por assinar aquele contrato. Então, se ela começar na faculdade agora, provavelmente não vai ganhar bolsa nenhuma.

— Ah — disse Darcy. O adiantamento que ela receberia pelos dois livros era mais ou menos o preço de quatro anos de faculdade. Quando ela estivesse saindo da faculdade, não teria nem um centavo de sobra.

— Bem, isso não parece nada justo — reclamou o pai. — Quer dizer, deve haver uma forma de editar o contrato e atrasar o pagamento...

— Tarde demais — interrompeu Darcy, impressionada com a astúcia da irmã. — Já assinei e mandei.

Seus pais trocaram olhares, comunicando-se de alguma misteriosa maneira que só pais conseguem fazer, o que significava que discutiriam o assunto quando estivessem à sós, mais tarde. O que significava que Nisha tinha conseguido uma brecha.

Era a hora de fechar negócio.

— Nova York fica bem mais perto que a Oberlin — comentou Darcy. — Vou estar a uma viagem de trem de distância, e a tia Lalana mora lá, e em Nova York tem uma comunidade gujarati muito maior do que em...

Annika Patel ergueu a mão, e Darcy engasgou com a palavra “Ohio”. Talvez tivesse sido melhor guardar alguns argumentos para depois, caso essa batalha fosse para o segundo round.

Mas algo grandioso já tinha acontecido naquela mesa. Darcy estava sentindo seu rumo na vida, que havia sido determinado de maneira tão fixa desde a infância, começar a se inclinar para uma nova trajetória. Ela havia mudado o arco da própria trajetória, simplesmente digitando alguns milhares de palavras todos os dias por um mês.

O sabor daquele poder, o poder das suas palavras, aumentou seu desejo.

Darcy não queria que essa interrupção durasse apenas um ano. Ela queria ver por quanto tempo conseguiria manter essa sensação, entontecer com as palavras de novo, como naquela semana gloriosa no final de novembro em que tudo tinha se encaixado. Darcy não queria aquela sensação só por um ano.

Ela queria para sempre.


CAPÍTULO 4

Quando meus olhos se abriram, tudo estava errado.

Minha cabeça doía de quando caí no chão. Toquei a testa e senti o sangue grudento. Estava tonta demais para ficar de pé, mas consegui me sentar.

Aos meus pés havia azulejos cinzentos como os do chão do aeroporto até onde a vista alcançava, mas todo o resto havia desaparecido. Eu parecia estar sentada no meio de uma nuvem cinzenta disforme. Só via sombras, traços de movimento na fumaça.

Bater com a cabeça tinha feito algo com meus sentidos. A luz que passava pela névoa era fria e pesada, tornando tudo sem cor e cinza. Um rugir ecoava em meus ouvidos, como chuva em um telhado de metal. O ar parecia metálico e pesado. Meu corpo estava dormente, como se a escuridão que eu atravessara tivesse me deixado gelada.

Onde diabos eu estava?

Uma forma escura surgiu na minha visão periférica, mas, quando virei a cabeça, ela sumiu de volta para a bruma.

— Olá? — tentei chamar, mas quase não consegui fazer a palavra sair. Então percebi por quê: não tinha respirado nenhuma vez desde que acordara. Meus pulmões estavam como o resto do meu corpo: cheios de tinta negra.

Inspirei, assustada, e senti meu corpo religar como um carro antigo, com tremores e solavancos. Aos poucos puxei fôlegos curtos e forçados. Fechei os olhos, me concentrando na minha respiração... em estar viva.

Quando abri os olhos de novo, havia uma garota na minha frente.

A garota tinha uns 13 anos e olhos grandes e curiosos que se fixaram nos meus. Ela usava uma saia longa até o chão, uma blusa sem mangas e uma echarpe sobre um dos ombros — tudo em tons de cinza. Seu rosto também era acinzentado, como se ela fosse um desenho a lápis que veio à vida.

Enchi o pulmão de ar com cuidado antes de falar.

— Onde estou?

Ela ergueu uma sobrancelha.

— Você está me vendo?

Não respondi. Naquela nuvem de confusão, ela era tudo o que eu conseguia ver.

— Você atravessou — continuou ela, se aproximando. Seus olhos se concentraram na minha testa. — Mas ainda está sangrando.

Ergui a mão até a testa.

— Eu bati a cabeça.

— Para parecer morta para eles. Esperta. — Ela falava com um sotaque que não reconheci de imediato. Embora entendesse suas palavras, o que ela dizia não fazia sentido. — Você é brilhosa. Você imaginou sua vinda para este lugar, não foi?

— Lugar? Onde estou?

Ela franziu o cenho.

— Talvez não seja tão esperta afinal de contas. Você está no além-mundo, minha querida.

Por um momento foi como estar caindo de novo, o chão sumindo sob os meus pés. O rugido distante ficou mais alto nos meus ouvidos.

— Você quer dizer que... eu estou morta?

Ela deu uma olhada na minha testa.

— Os mortos não sangram.

Pisquei sem saber o que dizer.

— É muito simples — disse ela cuidadosamente, como se estivesse explicando para uma criança. — Sua vontade trouxe você para este lugar. Meu irmão é como você.

Balancei a cabeça. Raiva borbulhava dentro de mim, junto com a certeza de que ela estava sendo críptica de propósito.

Mas, antes que eu pudesse dizer alguma coisa grosseira, um som horrível surgiu da neblina.

Squeak, squeak... Tênis nos ladrilhos.

Dei a volta, olhando para a nuvem cinzenta.

— É ele!

— Fique calma. — A menina deu um passo à frente e pegou minha mão. Os dedos dela eram gelados, e o frio me dominou, me tirando do pânico. — Ainda não está segura.

— Mas ele...

Squeak, squeak.

Virei para o som no momento que o homem surgiu da névoa — o atirador que tentara me atingir. Ele parecia ainda mais horrendo agora, com uma máscara de gás cobrindo o rosto. Vinha diretamente na nossa direção.

— Não! — implorei.

A menina pôs a mão no meu ombro.

— Não se mova.

Paralisada pela ordem, fiquei esperando que o terrorista erguesse a arma e atirasse. Mas ele passou direto por nós — através de nós, como se fôssemos fumaça e neblina.

Girei o corpo e observei o homem perder-se na nuvem. Atrás dele, redemoinhos de cinza giraram, abrindo uma coluna de ar. Vi cadeiras de plástico, telas de TV e corpos caídos no chão.

— Estamos no aeroporto — murmurei.

A garota franziu a testa.

— É claro que estamos.

— Mas por que...

Dentro das nuvens vagantes houve um brilho repentino, um cilindro de metal que estalou no chão vindo para perto de nós. Era do tamanho de uma lata de refrigerante e rolou até parar a alguns metros de distância, girando e apitando, soltando ainda mais fumaça no ar. Em segundos, a passagem de ar criada pelo atirador estava tomada de névoa novamente.

— Gás lacrimogêneo — murmurei. Aquilo não era o paraíso. Era um campo de batalha.

A equipe de segurança está a caminho, tinha dito a moça ao telefone. Finalmente percebi que o som ensurdecedor era uma troca de tiros, abafada pela distância ou por seja lá o que houvesse de errado com os meus sentidos.

— Não se preocupe — assegurou a menina. — Nada pode machucá-la aqui.

— O que é aqui? — perguntei, virando para ela. — Nada disso faz o menor sentido!

— Tente prestar atenção — pediu ela, já nervosa. — Você pensou tanto que estava morta que veio parar no além-mundo, e se voltar à realidade, vai levar um tiro. Então fique calma!

Fiquei encarando a menina, sem conseguir falar, pensar ou me mexer. Era informação demais.

Ela suspirou.

— Espere aqui. Vou chamar meu irmão.

Fiquei com medo de me mover depois que ela saiu.

A névoa — ou o gás lacrimogêneo, enfim — às vezes se dispersava e permitia que eu visse os corpos ao meu redor. Suas roupas e rostos estavam cinzentos, como o restante do mundo. A cor tinha sumido de tudo, a não ser por minhas mãos e o sangue vermelho que eu limpara dos olhos.

Seja lá onde isso fosse, não era o meu lugar. Eu estava viva demais.

Longos minutos de espera se passaram antes que outra forma surgisse da fumaça — um garoto da minha idade. Dava para ver a semelhança com a irmã, só que a pele não era cinzenta como a dela. Era da cor que eu fico depois de um longo verão na praia, e o cabelo dele era bem preto, caindo um pouco acima dos ombros. Ele usava uma camisa de seda que se movia como um líquido escuro por cima da pele.

Mesmo naquele momento terrível, eu não podia negar que ele era lindo. De alguma forma ele brilhava, como se a luz do sol estivesse atravessando a névoa só para atingi-lo. Era um daqueles garotos com queixo perfeito, que ficam lindos com a barba feita e um pouco mais bonitos com uma leve barba por fazer.

— Não fique com medo — falou ele.

Tentei responder, mas minha boca estava seca.

— Meu nome é Yamaraj — continuou. — Eu posso ajudar você.

Ele tinha o mesmo sotaque que a irmã — da Índia, pensei, com um toque britânico. As palavras eram enunciadas com cuidado, como alguém que aprendeu inglês em uma sala de aula.

— Meu nome é Lizzie — consegui falar.

Ele pareceu confuso por um segundo.

— Apelido de Elizabeth?

Fiquei olhando sem entender. Que coisa estranha de se perguntar.

Vi um flash pelo canto do olho — outro homem, correndo em zigue-zague e abaixado. Ele usava uma máscara de gás, um uniforme preto e um colete à prova de balas. Devia ser um dos mocinhos, mas naquele momento parecia um monstro.

Yamaraj tocou meu braço.

— Está quase acabando. Vou levar você para um lugar seguro.

— Por favor — pedi quando ele me virou para longe do ruído abafado dos tiros.

Mas foi aí que vi o que estava na nossa frente — o portão de metal que nos condenara. Uma dezena de corpos estava aos pés do portão, todos imóveis e silenciosos. Uma mulher protegia uma criança com o braço. Os dedos de um homem estavam ensanguentados por tentar mover o aço inabalável. Congelei.

— Foi aqui que eles pegaram a gente!

— Feche os olhos, Elizabeth. — A voz dele tinha uma calma intensidade que me forçou a obedecer, e Yamaraj me empurrou para a frente com gentileza. — Não se preocupe — repetia. — O mundo real não pode machucá-la se você ficar calma.

Eu não estava nem um pouco calma, mas meu pânico era como uma cobra venenosa em um zoológico, me observando do outro lado de um vidro. O toque de Yamaraj em meu braço era a única coisa que impedia o vidro de explodir em pedaços. A pele dele parecia queimar junto à minha.

A cada passo às cegas eu esperava sentir um corpo sob os meus pés, ou escorregar em uma poça de sangue, mas senti apenas um leve repuxar nas minhas roupas, como se estivéssemos passando por arbustos altos.

— Estamos em segurança agora — por fim Yamaraj avisou, e pude abrir os olhos de novo.

Estávamos em outra parte do aeroporto, onde fileiras de cadeiras de plástico davam para as portas fechadas dos portões de embarque. As televisões presas às paredes tinham as telas escuras. As esteiras rolantes vazias passavam por entre barreiras de vidro.

A luz aqui também era pesada e fria, e tudo ainda era muito cinza, exceto Yamaraj, brilhante e quente. Mas estávamos envoltos em uma nuvem de gás lacrimogêneo.

Virei para ver de onde tínhamos vindo. O portão estava longe, com os corpos caídos do outro lado.

— A gente atravessou aquilo? — perguntei.

— Não olhe para trás. É importante que você fique...

— Calma. Eu sei! — Nada me irrita mais do que alguém me mandando ficar calma, mas o fato de conseguir dar um fora nele significava que estava saindo do estado de choque.

Minha raiva desapareceu quando olhei para Yamaraj. Seu olhar era tão firme, e o brilho nos seus olhos castanhos tornava a luz fria à nossa volta mais acolhedora. Ele era a única coisa naquele mundo que não era cinza e gelada.

— Você ainda está sangrando.

Ele segurou a barra da camisa com as mãos e, com um movimento rápido, rasgou uma tira. Quando segurou o tecido na minha testa, senti o calor da sua mão através da seda.

Minha mente se acalmou um pouco. Os mortos não sangram. Eu não estava morta.

— Aquela menina que me achou, ela é sua irmã?

— Sim. O nome dela é Yami.

— Ela falou umas paradas bem estranhas.

Um sorriso tocou os lábios dele.

— Yami é um pouco complicada às vezes. Você deve ter algumas dúvidas.

Eu tinha centenas, mas todas se resumiam a uma só.

— O que está acontecendo?

Yamaraj olhou para algo além de mim.

— Uma guerra, talvez.

Franzi a testa. Aquele menino não era daqui.

— Hum, não, não é uma guerra. É algum tipo de atentado terrorista. Mas o que eu quis dizer foi... eu não estou morta, estou?

O olhar dele encontrou o meu.

— Você está viva, Lizzie. Só machucada e com medo.

— Mas todas aquelas pessoas, eles atiraram em todas elas.

Yamaraj assentiu.

— Você foi a única que escapou. Sinto muito.

Eu me afastei dele, tropeçando ao dar alguns passos para trás e afundando em uma das cadeiras de plástico.

— Você estava viajando com alguém? — perguntou ele baixinho.

Balancei a cabeça, pensando em como a minha melhor amiga Jamie quase tinha vindo para Nova York comigo. Ela poderia estar caída ali com todos os outros...

Yamaraj sentou-se no braço da cadeira ao lado da minha, apertando mais uma vez a tira de tecido na minha testa. Eu só continuava sã porque havia alguém cuidando de mim.

Segurei a mão dele.

— Você se lembra do que houve? — perguntou ele baixinho. — Como você atravessou?

— Nós tentamos fugir. — Minha voz tremeu, e precisei respirar fundo algumas vezes antes de continuar. — Mas o portão estava fechado, e um daqueles homens estava vindo em nossa direção, atirando em todo mundo. Eu liguei para a emergência, e a moça no telefone falou que eu deveria me fingir de morta.

— Ah. Você fingiu bem demais.

Fechei os olhos e depois os abri novamente — o mesmo aeroporto, as mesmas cadeiras de plástico e televisões desligadas. Mas tudo parecia errado, como quando o elevador do hotel abre a porta no andar errado e o carpete, a mobília e as plantas decorativas são ao mesmo tempo iguais, mas diferentes.

— Isso não é o aeroporto de verdade, é?

— Não exatamente. Aqui é por onde os mortos andam, abaixo da superfície das coisas. Você desejou vir para cá.

Lembrei que fiquei caída, me fingindo de morta, lembrei a sensação de cair pelo chão...

— Um homem andou através de mim e da sua irmã. Porque nós somos... fantasmas.

— Yami é um fantasma. Ela morreu muito tempo atrás. — Yamaraj baixou o pano e deu uma olhada na minha testa. — Mas você e eu somos outra coisa.

— O que você quer dizer?

— Nós somos... — Ele ficou me olhando por um momento, com uma expressão de saudade no rosto, e me senti fascinada de novo com sua beleza. Mas aí ele balançou a cabeça. — Você deveria esquecer que isso tudo aconteceu.

Não respondi, olhei para minhas mãos, para as marcas familiares nas palmas e nas pontas dos dedos. Minha pele brilhava como a de Yamaraj, mas ainda era eu mesma. Dava para sentir no jeito como minha língua tocava os dentes, e quando eu engolia sentia o gosto da minha própria boca. Todos os detalhes eram perfeitos, até a sensação dos meus pés dentro dos tênis. Ergui o olhar para os olhos castanhos dele.

— Mas isso é real.

— Parte de você sabe disso por enquanto. Mas quando estiver em segurança na sua casa, pode deixar tudo isso desaparecer, como um sonho — falou ele baixinho, com uma tristeza sábia, mas aos meus ouvidos parecia um desafio.

— Você está dizendo que vou ficar assustada demais para acreditar que isso aconteceu?

Yamaraj balançou a cabeça.

— Não tem nada a ver com coragem, Lizzie. O mundo precisa fazer sentido. Talvez você nem se lembre do ataque, quanto mais de mim e de Yami.

— Você acha que eu vou esquecer isso?

— Eu espero que sim.

Parte de mim queria concordar com aquele menino tão lindo, deixar tudo o que tinha visto se esconder em algum buraco negro da memória. Mas por um momento me lembrei de quanto meu pai abandonou nossa casa. Minha mãe mentiu para mim durante os primeiros meses, dizendo que ele apenas estava trabalhando em Nova York, que voltaria para casa em breve. E, quando ela finalmente me contou a verdade, fiquei mais irritada comigo mesma do que com os meus pais, porque deveria ter percebido a verdade sozinha.

Ignorar a verdade foi pior do que a mentira.

— Eu não sou muito boa em me enganar — falei.

— Acreditar não vai ser fácil também.

Algo que era quase uma risada escapou dos meus lábios.

— Você acha que alguma coisa vai ser fácil? Depois disso?

Aquele olhar de tristeza passou pelo rosto dele novamente, mas Yamaraj apenas balançou a cabeça.

— Espero que você esteja errada, Lizzie. Acreditar não só é difícil, mas também perigoso. Fazer o que você fez, atravessar os mundos, pode mudar sua vida de maneiras que você nem imagina.

— Mas o que isso sig... — comecei a perguntar, mas Yamaraj não estava olhando para mim, e sim para além do portão de metal. Eu me virei e vi uma coisa que fez aquela escuridão gelada dominar meu corpo de novo.

Atravessando a névoa vinham dezenas de pessoas — oitenta e sete, como os jornais ficaram repetindo depois —, os rostos cinzentos, as roupas rasgadas pelas balas. Elas se moviam em grupo, se aglomerando em volta de Yami, como se todos quisessem ficar perto dela. Ninguém se tocava, a não ser por uma garotinha que segurava as mãos dos pais. Ela ficou me observando, a expressão no rosto claramente se perguntando: Por que aquela menina não precisa partir?

Yami se ajoelhou e tocou o azulejo do chão, fazendo uma poça de escuridão começar a se espalhar a partir dela, como se um líquido negro e denso borbulhasse da sua mão. E então as pessoas começaram a afundar...

Um amargor tomou a minha boca.

— Isso não é justo.

— Feche os olhos — pediu Yamaraj.

Minha pulsação fazia o machucado na minha cabeça latejar, e o mundo começou a mudar ao meu redor, as cores brilhando através daquele cinza leve. O grupo de fantasmas desapareceu por um segundo, transparente, e através dele vi o brilho dos tiros. O terrível rugido tomou conta dos meus ouvidos.

Yamaraj apertou minha mão.

— Fique aqui comigo. Só mais um pouco.

Fechei os olhos, mas só por um momento, forçando os batimentos cardíacos a se acalmarem. Quando olhei de novo, o cinza havia se estabilizado, e o grupo de fantasmas era perfeitamente visível, com Yami no centro.

— Para onde ela está levando eles?

— Para um lugar seguro. — Ele apertou minha mão de novo. — Nosso trabalho é guiar os mortos. Está tudo bem.

— Não está nada bem! — Puxei a mão da dele e senti minha voz tremer. Uma lágrima escorreu o meu olho esquerdo. — Esses caras com as armas... Eles não tinham o direito de fazer isso!

De repente, a barreira que me separava do pânico sumiu, destroçada pela raiva. Senti o cheiro de sangue e pólvora, e um odor ácido que fez minha garganta arder. As cores reais do aeroporto estavam tingindo os cinzas à nossa volta.

— Tem algo acontecendo — tentei dizer, mas as palavras ficaram presas na garganta. O ar tinha começado a queimar meus olhos e minha pele. Conforme o além-mundo desaparecia, o gás lacrimogêneo começava a me afetar. Senti a pele da bochecha arder por onde aquela única lágrima tinha escorrido.

Yamaraj se levantou.

— Tenho que levar você de volta.

Ele segurou minhas mãos, e percebi que as dele não pareciam mais tão quentes e vivas. Senti um frio tomando conta de mim e percebi que ele não estava me levando de volta para o mundo real, e sim para aquele lugar escuro pelo qual eu havia passado quando me fingi de morta.

— Espera — tentei pedir.

— Não é seguro aqui, Lizzie.

Tentei protestar, mas meus pulmões pararam de funcionar novamente. Fechei os olhos contra a minha vontade e me senti cair, rodopiando de volta para o silêncio.

Estou morta de novo. Estou morta.

Senti vagamente Yamaraj me levantando da cadeira do aeroporto e me carregando pelo caminho de volta. Não vi nem ouvi nada, mas senti que ele estava cuidando de mim.

Por fim, muito tempo depois, ele sussurrou no meu ouvido:

— Acreditar é perigoso, Lizzie. Mas se você precisar, me chame. Eu vou encontrá-la.

Ele beijou meus lábios, e uma onda de calor tomou meu corpo. Não só calor, mas também energia, uma força que despertou todos os músculos no meu corpo. O frio dentro de mim se aguçou. Eletricidade correu pelos meus nervos e pela pele.

O calor me consumiu, alcançando meu coração e pulmões, seu poder me envolvendo e apertando com força. Abri os olhos de repente, mas só vi escuridão correndo por mim, até que algo afiado e incômodo emergiu do meu peito...

Respirei, tossindo e cuspindo, tremendo no chão duro e frio. Havia luzes piscando por todos os lados — o clarão metálico dos distintivos, o brilho opaco das proteções corporais.

Eu estava deitada na calçada do lado de fora do aeroporto. Uma fita amarela balançava ao vento, separando aquela área, um curral de corpos imóveis sob lençóis de plástico transparente. Luzes azuis e vermelhas pulsavam de todos os carros, fazendo com que as sombras girassem e os corpos parecessem agitados sob as cobertas.

Havia tanta cor no mundo, tudo era tão brilhante e vivo. O barulho dos rádios eletrificava o ar.

Percebi que as pessoas de repente estavam olhando para mim de boca aberta — dois paramédicos, um policial com a mão apoiada no coldre da arma e os olhos aterrorizados. Eu estava enrolada em um plástico cujas pontas voam no vento congelante, e só queria gritar pedindo que me soltassem. Mas tudo que pude fazer foi continuar respirando, tentando manter o fogo que Yamaraj reacendera dentro de mim.

Eu estava viva.


CAPÍTULO 5

Moxie Underbridge morava em um prédio alto e curvilíneo ao sul de Astor Place. A vizinhança era cheia de colunatas antigas e janelas arqueadas, mas o prédio de Moxie era novo em folha, embrulhado em vidros reflexivos sinuosos. O tabuleiro espelhado das janelas dividia o céu acima em mil cartas de baralho em azul e branco.

— Que chique — falou Nisha para Darcy.

— É bom que seja — retrucou a mãe delas. — Se aquela mulher vai largar minha filha aqui.

— Moxie não está me largando aqui. Ela está me emprestando o apartamento — murmurou Darcy tão discretamente que um táxi que passava carregou suas palavras para longe. Em duas semanas ela estaria se mudando para o próprio apartamento, que de jeito nenhum seria tão chique — nem tão seguro. Era melhor nem começar a fazer a mãe pensar nisso.

O hall de entrada era ainda mais impressionante, com um teto de mármore abobadado e um lustre com lâmpadas que tremeluziam como pequenos candelabros. Antes que Darcy abrisse a boca, o porteiro de uniforme falou:

— Você deve ser a senhorita Patel.

Moxie havia avisado à administração do prédio que Darcy estava vindo, claro, e quantas garotas indianas deviam entrar naquele prédio por dia? Ainda assim, era eficiente de uma forma quase intimidante.

— Sim, é ela mesma — respondeu sua mãe quando Darcy demorou demais para responder.

O porteiro assentiu.

— Fui avisado de que a senhorita já está com as chaves, é isso mesmo?

Darcy concordou, procurando no bolso externo da pasta do laptop. O recebimento das chaves de Moxie na semana anterior tinha reiniciado toda a discussão sobre o adiamento da faculdade com os pais dela, o que fez com que Darcy escondesse as chaves embaixo do colchão com medo de que a mãe fosse roubá-las.

— Vocês duas podem subir primeiro. — Annika Patel balançou a mão na direção dos elevadores. — Vou esperar aqui. Sabe-se lá quanto tempo seu pai vai levar para arrumar uma vaga!

Darcy não acreditou. Elas realmente iam subir sozinhas?

Nisha agarrou a mão da irmã e a puxou para a frente.

Assim que Darcy hesitou um pouco ao pegar as chaves, Nisha as arrancou da irmã e abriu rapidamente as duas trancas da porta de Moxie. Com um sorrisinho vitorioso, entrou no apartamento e tirou os sapatos. Darcy foi atrás, um pouco chateada por sua irmã mais nova ter sido a primeira a passar pelo batente da porta.

O hall de entrada tinha uns degraus que davam na sala de estar, onde a luz do sol atravessava cortinas serpenteantes nas janelas panorâmicas. Nisha segurou uma das pontas e fez correr a cortina, a vista do 19º andar derramando-se atrás dela.

— Cuidado com... — Darcy engoliu o resto do aviso. Ela ficaria no apartamento por duas semanas inteiras, mas Nisha voltaria para a Filadélfia com os pais em poucas horas. Seria injusto não deixar que ela aproveitasse. Era estranho pensar que naquela noite sua irmãzinha não estaria a alguns passos ou a um grito de distância.

Quando a sinuosa parede de vidro se abriu, a cidade pareceu abraçar as duas: jardins no topo dos prédios com árvores em miniatura plantadas em vasos, torres d’água parecendo discos voadores gordinhos, os pináculos dos arranha-céus à distância.

Nisha ficou de olhos arregalados em frente à janela.

— Jesus amado. Sua agente deve nadar na grana.

— Minha agente é foda — sussurrou Darcy, tirando os sapatos e apoiando a bolsa do laptop no sofá.

— E com essa são onze! — falou Nisha sem virar para ela. — Está me devendo um dólar, Patel.

Darcy sorriu.

— Valeu a pena.

— Por que sua agente precisa tirar férias? Com esse apartamento incrível aqui.

— A Riviera Francesa também deve ser OK. — Darcy tinha quase certeza disso, mas Nisha também tinha razão. Como Moxie aguentava sair de perto daquela vista?

— Riviera Francesa — repetiu Nisha bem devagar, como se aquelas palavras fossem novidade. — Agentes ganham mais do que autores, né?

— Hum, acho que depende.

— Bem, ela ganha 15% do seu dinheiro, certo?

— Certo. — Darcy suspirou. Ela já tinha discutido isso com o pai, que havia se oferecido para negociar o contrato ele mesmo por só 2% do adiantamento. Ele definitivamente não tinha entendido nada.

— E quantos clientes ela tem?

— Uns trinta, talvez? — Enquanto estava escrevendo sua carta de apresentação, Darcy tinha feito seu dever de casa e pesquisado todos eles. — Trinta e cinco?

— Caraca! — Nisha deu as costas para a vista com um olhar de triunfo. — Quinze por cento é quase um sétimo de cem por cento, e um sétimo de trinta e cinco é cinco. Então Moxie ganha mais ou menos cinco vezes mais do que a média dos autores dela.

— Talvez. — Darcy tinha quase certeza que Nisha estava esquecendo alguma coisa. — Mas acho que a maioria dos autores ganha, tipo, zero dólares na maior parte do tempo. Não que a gente devesse contar isso para os nossos pais.

— Minha boca é um túmulo. — Nisha sorriu. — Mas que escrever, que nada. Quando crescer quero ser agente.

Um grasnido veio de algum lugar do apartamento, e Nisha deu um pulo e caiu no grande sofá da sala.

— Que diabos...?

— Relaxa — falou Darcy, lembrando-se do e-mail de Max, o assistente pessoal de Moxie. — É só o Sodapop. É um papagaio.

— Sua agente tem um papagaio?

O som tinha vindo de uma porta aberta que levava a um quarto atulhado: uma cama enorme, dois cabideiros de mogno cheios de roupas e uma gaiola coberta do tamanho de uma bomba de posto de gasolina.

Normalmente era Max quem alimentava Sodapop quando Moxie estava viajando, mas isso seria trabalho de Darcy nas duas semanas seguintes. Ela chegou perto da gaiola e ouviu um barulho de penas lá dentro.

Darcy esticou a mão e puxou o pano que cobria a gaiola. Um pássaro de penas azul-forte, com faixas amarelas e vermelhas no rabo, olhou para ela com a cabeça inclinada.

— Oi! — cumprimentou Darcy.

— Quer biscoito? — perguntou Nisha da porta do quarto.

— Vamos tentar evitar os clichês. — Darcy ficou olhando para a ave. — Você fala?

— Pássaros não falam — disse o papagaio.

Nisha balançou a cabeça.

— Essa porra é loucura.

— Não ensine palavrões para o papagaio da minha agente.

— Dois dólares.

— Tanto faz. — Darcy girou para dar uma olhada no resto do quarto. Uma porta de correr entreaberta revelava uma grande banheira de granito preto, e outra porta permanecia fechada. Ela atravessou o quarto para abri-la e ver o que havia lá. — Ai, meu Deus.

— O que foi, Patel? — Nisha já estava a caminho da porta. — Achou um esconderijo de revistas pornô? Calabouço cheio de autores?

— Não. É um... — Darcy tentou entender o que havia naquele espaço. — Acho que é um closet.

Era do tamanho do quarto dos seus pais. Dois varões iam de parede a parede dos dois lados, curvados sob o peso de vestidos embrulhados em capas plásticas e blazers com papel de seda enchendo as mangas. Em frente à porta havia fileiras de gavetas com a frente de vidro, além de vários escaninhos cheios de sapatos na parte de baixo.

Darcy andou pelo closet, espiando pelas janelinhas de vidro das gavetas. Cada uma continha exatamente três camisas, dobradas à perfeição e com uma faixa de papelão enrolada por dentro para manter as golas em posição.

— Uau — veio a voz de Nisha da porta.

— Dá uma olhada nessas gavetas — falou Darcy, perto o bastante para embaçar o vidro. — Dá para ver o que tem dentro antes de abrir!

Ela segurou um puxador, e as camisas rolaram para fora com um som de rodinhas escondidas. Quando ela empurrou, a gaveta escorregou lentamente até fechar, parando por um momento antes de bater por completo, como se uma mão invisível guiasse seu caminho.

Darcy abriu e fechou a gaveta novamente. O som era gradual como o de engrenagens bem lubrificadas, como uma roda de bicicleta girando no ar, mas com menos cliques.

A parte mais sem graça do primeiro capítulo do livro dela era o apartamento superfabuloso do pai de Lizzie em Nova York. Darcy tinha construído o cenário a partir de imagens em catálogos e filmes, mas agora tinha um exemplo da vida real.

Como ela descreveria um closet como aquele em uma única frase?

— As revisões vão ser tão divertidas — murmurou.

— Mas onde você vai colocar as suas roupas? — perguntou Nisha. — Está parecendo bem cheio aqui.

— Não importa. Eu só trouxe camisetas.

— Mentira, Patel.

— Foi o que a mamãe fez quando veio para cá. Não trouxe nenhuma roupa da Índia, só jeans e camisetas, nem mesmo um único sari. Ela esperou até ver o que os americanos vestiam, para poder se encaixar bem.

Nisha revirou os olhos.

— Atenção: Nova York não é outro país. Além do mais, se você queria saber como as pessoas se vestem aqui, era só ligar a TV.

— Mas na TV só tem atores. Eu quero me vestir como as pessoas de verdade — argumentou Darcy, mas o que ela realmente queria dizer era escritores. Havia toneladas deles em Nova York. Até onde ela sabia, a população do Brooklyn tinha pelo menos dez por cento de escritores. Com tantos no mesmo lugar, com certeza eles tinham algo em comum, um jeito de se vestir, andar e olhar. E quando a agente dela (minha agente, repetiu para si mesma, porque pensamentos não contavam no acordo) a apresentasse para alguns deles, ela saberia como eles eram. Até lá, ela não ia andar por aí como uma garota qualquer da Filadélfia.

Então jeans e camisetas eram o que ela tinha para hoje, mesmo que seu plano tivesse deixado a mãe horrorizada.

— Então você vai ter que pagar aluguel, mobiliar um apartamento e comprar um guarda-roupa novo. Parece um ótimo plano financeiro, Patel.

— Sabe, eu estava pensando. — Darcy virou para a irmã. — Será que você poderia fazer um orçamento para mim? Quer dizer, você é tão boa com essas coisas.

— Puxa-saco — respondeu Nisha. — Vinte pratas.

Elas ouviram alguém bater à porta de entrada.

— Abre a porta pra eles. — Darcy pegou o telefone. — Quero fazer umas anotações sobre este closet.

— De jeito nenhum. — Nisha arrancou Darcy do cômodo e fechou a porta. — Se eles virem todas essas roupas, vão saber para onde seus quinze por cento foram. Aí o papai vai querer fazer todos os seus contratos daqui pra frente.

— Certamente. — Darcy foi obrigada a concordar.

* * *

Quando Nisha abriu a porta do apartamento, indicando as janelas da sala com ares de proprietária, Darcy ficou feliz ao ver a expressão perplexa no rosto dos pais.

— Minha agente mora no céu — murmurou ela, baixinho demais para lhe custar mais um dólar.

O pai dela carregava a mala de Darcy, e a mãe levava outra coisa — uma capa plástica de vestido.

Darcy deu um passo para a frente, parando no caminho da mãe.

— Espera. O que é isso?

— Achei que você ia precisar de alguma coisa além de camisetas. — As palavras saíram apressadas, parecendo ter sido ensaiadas muitas vezes.

Darcy gemeu, mas a mãe continuou a falar.

— Sério, Darcy. Eu nunca devia ter contado aquela história de vir da Índia sem nada para vestir. Não foi uma escolha minha. Nós simplesmente não tínhamos dinheiro para roupas de verdade. A primeira coisa que comprei aqui foi um vestido de festa. — Annika Patel ajeitou a capa plástica. — Achei que você gostaria de ter um parecido.

— Você achou que eu ia querer um vestido de festa de 1979?

Nisha soltou uma gargalhada, e até o pai das meninas abriu um risinho.

— Quieta, menina. — Annika abriu o zíper da capa e segurou o vestido pelo cabide. Era curto, clássico e preto. Era meio que perfeito.

Darcy ficou olhando, sem dar o braço a torcer.

— O que você acha? — perguntou a mãe, com os olhos brilhantes.

— Bem... Até que eu tenho uma festa hoje à noite.


CAPÍTULO 6

Os paramédicos me cobriram com um rolo prateado de mylar, como aqueles cobertores superleves que meu pai costumava levar quando acampávamos. Eles se ajoelharam para me proteger do vento, e alguém me deu uma garrafa térmica para aquecer minhas mãos.

Mas eu não parava de tremer. O frio havia se instalado dentro de mim.

Meus lábios estavam rachados e os músculos doídos. Não conseguia sentir meus pés. Quando tentei falar, tudo o que saiu foi um pigarro seco. Meus olhos estavam lacrimejando com a ardência do gás lacrimogêneo.

Por quanto tempo eu fiquei deitada, morta, naquele necrotério a céu aberto?

Um dos paramédicos gritava para o rádio preso ao ombro, outro prendia um aparelho de pressão no meu braço. Conforme a tira enchia, pensei que a pressão me faria explodir em pedacinhos. Eu me sentia feita de gelo.

Uma ambulância derrapou ao nosso lado e parou. As portas traseiras se abriram e uma maca bateu no asfalto, quicando nas rodas sujas, feitas de borracha branca.

— Você consegue se deitar de costas? — alguém perguntou.

Eu ainda estava em posição fetal, agarrada à garrafa térmica. Meus músculos não queriam se mexer.

— Quatro por quatro? — gritou a paramédica que estava tirando minha pressão. Ela balançou a cabeça, começando a inflar a tira de novo. — Preparar injeção de adrenalina.

Eu tentei dizer não. Começava a sentir o calor dentro de mim fazendo meu corpo voltar à vida.

Depois de contarem até três, os paramédicos me ergueram para a maca. O mundo girou por um momento, e de repente eu estava dentro da ambulância. Tinha gente demais, e o carro balançava conforme disparávamos para longe do aeroporto. Uma agulha brilhou nas luzes cegantes, comprida como uma estalactite.

— No coração — alguém falou.

Eles desenrolaram os cobertores de mylar, mãos seguraram meus pulsos ao lado do corpo. Tentei me enrolar em posição fetal de novo, para me proteger. Meu corpo estava cheio de calor agora, a vida me dominando de volta. Meus lábios ainda ardiam onde Yamaraj havia me beijado. Eu não precisava daquela agulha no meu peito.

Mas os médicos eram mais fortes e me forçaram a ficar de costas. Alguém abriu meu casaco, e uma tesoura gelada subiu pela minha barriga, cortando a camiseta. Vi um punho erguido sobre meu peito nu, segurando a agulha imensa como uma faca.

— Espera! — Alguém com luvas cirúrgicas cobriu meu peito com as mãos. — Ela está em nove!

— De quatro?

— Não encosta em mim — consegui dizer.

Os três paramédicos na ambulância ficaram em silêncio por um momento. Ouvi o suspiro do aparelho de pressão desinflando, e senti minha pulsação voltando a fluir pelo meu braço.

— Nove por seis — falou a mulher. — Você está me ouvindo?

Eu assenti e tentei falar de novo. Ela se abaixou e chegou mais perto para conseguir me ouvir.

— Que horas são? — soltei.

Ela se afastou, a testa franzida, mas deu uma olhada no relógio.

— Pouco mais de duas da manhã.

— Obrigada — falei e fechei os olhos.

Duas horas desde o início do ataque. Havia passado o quê, vinte minutos no além-mundo? O restante do tempo eu devia ter ficado deitada do lado de fora, naquele necrotério improvisado, congelando.

Mais do que tudo que eu tinha visto e ouvido, foi a volta à vida que me fez acreditar no além-mundo. Dava para sentir que eu tinha estado em outro lugar. O cheiro de um mundo distante continuava na minha pele. Ainda via o rosto de Yamaraj perfeitamente, e o gosto dele permanecia nos meus lábios.

No caminho para o hospital, um dos paramédicos não parava de pedir desculpas. Uma calma estranha havia tomado conta de mim, mas o homem parecia estar em choque.

— Por que você está pedindo desculpas? — finalmente pude perguntar. Minha boca estava tão seca.

— Fui eu quem fiz a declaração.

Fiquei olhando para ele sem entender.

— Eu não conseguia encontrar pulso. O ferimento na sua cabeça não parecia tão grave, mas você não respirava, suas pupilas não respondiam. Você estava tão fria! — A voz dele ficou entrecortada. — Você parecia nova demais para um ataque cardíaco, mas pensei que talvez você tivesse desmaiado de costas e o gás lacrimogêneo tivesse feito você vomitar e...

Finalmente entendi. Era ele quem havia me declarado morta.

— Onde você me encontrou?

Ele piscou, confuso.

— No aeroporto, com os outros mortos. Todo mundo achou que você estava morta.

— Tudo bem — falei baixinho. — Acho que vocês estavam certos.

Ele ficou me olhando com terror nos olhos. Talvez achasse que eu ia processá-lo, ou que alguém ia caçar seu diploma por causa disso.

Ou talvez ele acreditasse em mim.

* * *

No hospital havia fileiras de camas prontas, um batalhão de médicos e assistentes, todos à espera dos feridos. Mas, como todos logo perceberam, só havia um sobrevivente. Só eu, de todas aquelas pessoas.

Eu já estava conseguindo sentar quando por fim me levaram para uma sala de exames. A temperatura e pressão estavam normais, a pulsação estava estável, e o tom azul da hipotermia tinha desaparecido da minha pele.

Eu continuava sendo tomada por tremores, mas depois de dar seis pontos na minha testa, o médico determinou que eu não precisava de nada além de fluidos. Ele parecia mais confuso por como eu havia sido pouco afetada pelo gás lacrimogêneo. Nada além de uma inflamação no rosto, onde uma única lágrima de alguma forma queimara minha pele.

O paramédico que havia me declarado morta trouxe um copo de água quente com limão para mim. Depois houve um chamado de feridos chegando, e por alguns minutos fiquei sozinha. Era um acidente de carro, acho, nada a ver com o aeroporto, mas a equipe médica estava a toda por conta das notícias gritando no rádio. Os funcionários do hospital passavam às pressas na frente da minha porta.

Assoprei a água quente, com os olhos incomodados pela brancura asséptica do lugar. O mundo real era tão barulhento, sempre agitado e caótico. O lençol de papel da cama estalava. Um aparelho de plástico preto preso ao meu dedo transmitia meus sinais vitais para uma telinha, onde pulsavam em luzes coloridas.

Eu estava sendo tomada pela exaustão, mas ao mesmo tempo me sentia agitada demais para dormir. Além disso, naquela caminha estreita e com aquele lençol de papel escorregadio, provavelmente ia acabar caindo no chão.

Me perguntei se alguém havia ligado para a minha mãe e avisado que eu estava viva. Eles não tinham nem perguntado meu nome completo ainda.

Enfiei a mão no bolso, mas meu celular tinha sumido. É claro, eu tinha deixado cair. Suspirei e fechei o casaco por cima da camiseta cortada. Pelo menos ninguém havia me mandado colocar uma camisola de hospital. Talvez eles fossem simplesmente me deixar ir embora.

Eu não tinha carona, claro, nem muito dinheiro, e minha mala ainda estava no avião...

Minha mente se afastou de tudo que havia acontecido no aeroporto e me concentrou em como era irritante estar sem meu telefone.

— Terroristas filhos da puta — falei baixinho.

— Você não devia falar palavrão.

Ergui os olhos. Havia um garotinho na porta do quarto, com uns 10 anos. Ele usava uma capa de chuva de plástico vermelho, brilhante e molhada.

— Desculpa.

— Tudo bem. — Ele considerou meu pedido de desculpas uma permissão para entrar no quarto. — Eu também não devia dizer aos adultos o que não dizer. Mesmo quando eles falam palavrões. Você é adulta?

— Mais ou menos. Mas comparada a você, sou.

— Sei. — Ele assentiu. — Meu nome é Tom.

— O meu é Lizzie. — Minha cabeça parecia pesada de novo. Terroristas, o além-mundo, médicos, agora esse garotinho. Ninguém queria me deixar dormir.

A capa de chuva dele pingava no chão.

— Está chovendo?

— Não. Mas estava.

— Certo — falei, mas não era verdade, e o tempo estava frio demais para qualquer outra coisa que não neve. As pernas de Tom apareciam por debaixo da bainha da capa.

— Quando estava chovendo? — perguntei.

— Quando o carro me acertou — respondeu Tom.

Senti uma pontada do frio que o beijo de Yamaraj tinha expulsado de mim, como um dedo gelado correndo pela minha espinha. O hospital parecia congelado do lado de fora do meu quarto, como se o som tivesse sido sugado por alguma coisa sedenta por barulho, movimento e vida.

Fechei os olhos, mas logo os abri novamente. Tom ainda estava ali, me olhando engraçado.

— Você está bem, Lizzie?

— Não sei. Eu morri hoje, acho.

— Não se preocupe. Só dói no início. — Ele franziu a testa para mim. — Mas você é brilhante, como aquela moça boazinha que vem aqui.

— Que moça boazinha?

— A que não está morta. Ela é minha amiga.

— Ah. — Minha própria voz parecia distante, como se eu já tivesse caído no sono e aquela fosse a conversa de outra pessoa, entrando nos meus sonhos.

— Ela vem toda semana conversar comigo. — Tom tirou uma coisa molhada do bolso. — Quer chiclete?

— Não, obrigada. — Dava para ouvir meu coração batendo um pouco mais rápido, graças às máquinas ao lado da cama.

Eu era brilhante, como Yamaraj. E como essa mulher que visitava fantasmas.

— Olha, Tom. Eu tive uma noite muito esquisita. Estou meio cansada.

— Tudo bem. Estou indo agora então. Mas fique boa logo!

— Obrigada. Você também... acho.

Tom se virou e foi andando de volta para o corredor, e então se virou para acenar.

— Tchau, Lizzie.

— Tchau, Tom.

Deixei meus olhos se fecharem de novo, contando dez longas respirações até os bips que acompanhavam meus batimentos cardíacos voltarem ao normal.

Quando os abri, Tom havia sumido, e a confusão do hospital voltara. Pessoas em uniformes azuis e verdes passavam pelo corredor sem que ninguém olhasse para mim.

Tirei o aparelho de plástico do meu dedo, desci da cama e dei alguns passos até a porta. Me ajoelhei e coloquei a mão no lugar em que Tom estivera alguns momentos antes.

O chão do hospital estava frio e encerado, mas completamente seco.

— Querida, o que você está aprontando aí? — chamou uma voz no corredor.

Olhei para cima e vi que era um dos enfermeiros que tinha me trazido para o quarto. Ele se ajoelhou e segurou meu pulso com gentileza, sentindo minha pulsação.

— Você ficou tonta?

— Não — respondi. — Só vim checar um negócio.

— Aqui no chão? — Suas mãos grandes seguraram meus ombros. — O que você acha de voltar para a cama?

Eu me levantei sozinha, fazendo com ele abrisse um sorriso encorajador.

— Só achei que o chão estava molhado, alguém poderia escorregar.

Ele olhou para o ponto em que eu estava.

— Me parece normal. Por que você não deita um pouco, querida?

— Tudo bem. — Recostei na cama obedientemente, mas a mão do enfermeiro permaneceu no meu cotovelo.

— Vou chamar o Dr. Gavaskar agora. Você vai ficar aqui na cama?

— Acho que ninguém ligou para a minha mãe. Ela já deve ter visto as notícias, deve estar enlouquecendo!

— Acho que a companhia aérea e os agentes alfandegários estão contatando as famílias. Mas quantos anos você tem?

— Dezessete.

Os olhos dele se arregalaram um pouco.

— Vou arrumar um telefone para você. Espera um segundinho.

— Obrigada.

Ele sumiu no corredor, e fiquei sozinha com os bips do meu coração de novo. Decidi que não havia necessidade de contar a ele — ou a ninguém — sobre Tom. A decisão de não abrir o bico sobre fantasmas e além-mundos permaneceu firme naquela noite, mesmo depois das conversas com o Dr. Gavaskar, com uma mulher incrivelmente simpática da companhia aérea e dois agentes do FBI.

Minha mãe chegou quatro horas depois, e eu não precisei falar nada para ela. Ela só me abraçou enquanto eu chorava.


CAPÍTULO 7

Max, o assistente de Moxie Underbrigde, chegou para levar Darcy para a Noite de Drinques YA exatamente às 18h.

Darcy estava pronta desde as 17h, o que não era nada típico. Mas o vestidinho preto pedia maquiagem, que ela não usava o bastante para saber como aplicar. Em geral Darcy precisava recomeçar do zero depois da primeira tentativa, mas hoje as aventuras em frente ao espelho tinham corrido excepcionalmente bem. Então ela passou uma hora inquieta no sofá, com medo de encostar no próprio rosto.

Teria sido mais fácil usar sua calça jeans e a camiseta chique de seda preta, sem maquiagem, como ela havia planejado. Quando Max chegou, estava usando uma calça cáqui e um casaco do Thundercats.

— Eu estou produzida demais? — perguntou Darcy no elevador.

— Você está ótima! — Max deu uma olhada de cima a baixo nela. — Mas a Noite de Drinques não é exatamente uma festa. É só uma parada mensal do Oscar.

— E eu realmente fui convidada?

— Todo mundo que tem um livro YA publicado é convidado.

— Ah. — Darcy se perguntou se Além-mundos realmente podia ser considerado publicado. O livro só sairia em setembro, quase dois anos depois de ela tê-lo terminado. “Publicado” não significava que o livro estava nas livrarias? Ou valia se tivesse sido vendido para uma editora? E se alguém estivesse com o contrato assinado, mas não tivesse escrito uma palavra?

As portas do elevador se abriram e um momento depois eles estavam do lado de fora, Max à frente. O céu estava de um azul aguado e o sol, quase se pondo, deixando as ruas escuras. O calor do fim da tarde levantava uma nuvem de cheiro pesado das calçadas, como se a cidade tivesse passado por um dia cheio de trabalho e precisasse tomar um banho.

Darcy tentou memorizar as vitrines pelas quais passava para que soubesse como voltar para casa. Um café orgânico, um teatro pequeno, uma loja de conserto de bicicletas.

— Você já está on-line? — perguntou Max.

— Hum, eu tenho um Tumblr, mas não atualizo muito. Não sei bem o que dizer, na verdade.

Ele riu.

— Eu quis dizer se você já entrou na internet na casa da Moxie.

— Ah, desculpa. Não, ainda não.

— É Você_É_Uma_Escritora_de_Merda.

Darcy sentiu o estômago se revirar.

— Como?

— A rede da Moxie é Você_É_Uma_Escritora_de_Merda, com underscores. A senha é “QueridoGênio”, sem espaço. Você viu o recado em cima da mesa, né?

— Ah, sim, acho que sim. — Darcy respirou fundo algumas vezes até que o pânico se acalmasse em seu coração. Darcy tinha visto um bilhete manuscrito preso debaixo de um enfeite branco modernoso na escrivaninha de Moxie, mas ainda não tinha nem aberto o laptop. Depois da despedida chorosa da família, Darcy ficou sentada no quarto de Moxie olhando aquele closet fabuloso e discutindo com Sodapop se pássaros sabiam falar ou não.

Viver em Nova York parecia algo frágil, que seria destruído se Darcy se apressasse demais. Ela queria esperar até aquilo se tornar mais real para mandar fotos do apartamento por e-mail para os amigos. Colocar o vestidinho preto para aparecer na Noite dos Drinques parecia muito audaz, mas ela prometera a Moxie que iria.

Ela sentiu uma estranha pontada de inveja dos amigos Carla e Sagan, lá na Filadélfia, que tinham o verão inteiro para ler e relaxar na beira da piscina de Carla antes de ir para a faculdade. Darcy precisava achar um apartamento, desvendar uma cidade e revisar um livro nos próximos meses.

Sem erguer os olhos do celular, Max pulou por cima de uma bicicleta destruída ainda presa a uma placa de PROIBIDO ESTACIONAR.

— Você já recebeu a carta da sua editora?

— A Nan disse que vai mandar esta semana — respondeu Darcy, sentindo o estômago se revirar de novo. A carta da editora seria a lista oficial de todas as coisas erradas em Além-mundos. Parecia perverso que a editora fosse entrar em detalhes quando a própria Darcy tinha passado os últimos seis meses brigando com as falhas do livro. Pelo menos seria uma desculpa para procrastinar antes das revisões.

— E a última coisa que ela quer que eu te pergunte... — Mas ainda estava lendo algo no celular, aparentemente um e-mail de Moxie. — Como está indo Patel Nº 2?

Esse era o termo contratual para a continuação de Além-mundos, mas dito assim, em voz alta, parecia errado, como uma das manias de Nisha.

— Hum. — Um cachorrinho minúsculo, amarrado às grades em volta das mesas na calçada de um café, pulou e latiu para Darcy quando ela passou. — Acho que ainda estou fazendo um esboço?

— Ainda no esboço — repetiu Max sem emoção, digitando com uma mão só enquanto andavam.

Darcy se perguntou por que tinha acabado de mentir. Além-mundos tinha simplesmente jorrado de seus dedos, e ela não tinha a menor intenção de esboçar Patel Nº 2. Darcy tinha quase certeza de que nem sabia como fazer um esboço.

Talvez ela também não soubesse como escrever livros, e aquela maratona em novembro tivesse sido só uma exceção estatística. Se cem milhares de livros fossem escritos ao mesmo tempo, com certeza um deles seria bom por acidente, como trechos de Shakespeare escritos por um macaco. Mas aquele primata sortudo nunca mais escreveria outro soneto, mesmo se alguém o fizesse assinar um contrato de publicação.

Por que Moxie já estava perguntando sobre Patel Nº 2? Ela só precisava entregar o manuscrito dali a um ano. Será que os agentes gritam com você se perder o prazo? Ou são mais como os professores na escola de Darcy e Nisha, que olham com uma decepção silenciosa, porém profunda quando você não alcança seu potencial máximo?

Max parou, finalmente tirando os olhos do celular.

— Chegamos.

O Candy Ruthless parecia um pub irlandês esquisito, com o nome bizarro escrito em letras célticas verde-grama na vitrine. Havia entradas de serviço dos dois lados e um leve cheiro de peixaria no ar. A caminhada de dez minutos pela vizinhança tinha alterado o cenário de edifícios antigos e chiques para depósitos em funcionamento. Darcy não tinha ideia de como voltar para casa.

Max parou com a mão na porta do pub.

— Quantos anos você tem mesmo?

— Eu já estive em bares antes.

Max não deu bola para a resposta vaga. Afinal de contas, Darcy era uma autora publicada, e tinha uma carteira de motorista razoavelmente convincente da Pensilvânia dizendo que tinha 23 anos caso fosse necessário. De qualquer forma, ela acabou se sentindo muito agradecida à mãe pelo vestidinho preto. No espelho, ele fizera Darcy parecer muito adulta, e caia como uma luva.

— Certo — falou Max. — Eu só vou te apresentar ao Oscar e vou embora. Não tenho autorização para ficar aqui.

— Você é menor de idade?

— Eu tenho 26 anos. — Max abriu um sorriso condescendente. — Mas a Noite dos Drinques é só para autores, sem agentes, sem editores, nada. A não ser que eles também tenham publicado algum livro, claro.

— Ah. Entendi. — Darcy respirou fundo para se acalmar enquanto seguia Max até o bar.

Darcy esperava que a Noite dos Drinques lotasse o Candy Ruthless. Imaginava uma lista de espera numa prancheta na entrada, ou pelo menos um cômodo separado por cortinas de veludo vermelho-sangue. Mas naquele momento, às 18h10, a visão era uma única mesa de madeira antiga e manchada com três pessoas nela.

Max a levou até lá.

— Oscar, esta é Darcy Patel.

Oscar Lassiter se ergueu um pouco e estendeu a mão, abrindo um sorriso profissional de representante de turma.

— É um prazer finamente conhecer você!

Quando apertou a mão do autor, Darcy percebeu que as outras pessoas na mesa também eram conhecidas. Ela as tinha visto em vídeos, fotos no Twitter, capas de livros.

— Ah — falou ela para a pessoa menos famosa, um homem com óculos de aro grosso e vermelho e uma jaqueta de tweed. — Eu sigo você.

O homem sorriu ao ouvir isso, mas Darcy se sentiu idiota. Na última vez que ela tinha checado, duzentas mil pessoas seguiam Coleman Gayle. A maioria não tinha lido os livros da série O bardo e a espada, como ele sempre reclamava, e só o seguiam pelos comentários políticos maldosos e pelo seu profundo conhecimento de fantoches vintage de macaco.

— É um prazer, Darcy. Você conhece a Kiralee?

— Hum, claro. — Darcy se virou para falar com a mulher da mesa, mas ela desviou o olhar com vergonha. Dava para sentir o tremor em sua voz. — Quer dizer, nós não nos conhecemos. Mas eu amei Bunyip.

— Minha nossa, Coleman. Ela não sabe de nada! — gritou Kiralee. — Salve essa menina de si mesma!

Os outros riram, mas Darcy estava perplexa e ligeiramente assustada.

Oscar indicou uma cadeira para ela com delicadeza.

— A gente estava discutindo agora mesmo a teoria do Coleman sobre o jeito certo de se apresentar para autores famosos.

— Você checa no BookScan quanto os livros dele venderam no dia anterior — explicou Coleman Gayle. — E diz que o que vendeu menos exemplares é o seu favorito. Porque esse é o que ele vai achar que é o mais subestimado.

— Para mim fica fácil, já que todos os meus venderam pouco. — Kiralee virou o copo até sobrar apenas o gelo. — A não ser o maldito Bunyip, é claro.

— Dirawong é o meu favorito — falou Darcy, embora esse fosse o segundo favorito depois de Bunyip.

— Excelente escolha — comentou Coleman. — Considerando o nosso critério.

— Maldito BookScan! — reclamou Kiralee enquanto fazia um brinde com o copo vazio na direção de Darcy.

Darcy finalmente conseguiu olhar nos olhos da outra mulher. Com um casaco de capuz cinza e fones de ouvido brancos pendurados nos ombros, Kiralee Taylor estava vestida como se fosse correr, mas tinha a aura de uma rainha das fadas sombria, as feições astutas e o rosto emoldurado pelo cabelo preto cacheado com mechas grisalhas.

— Mas sinto dizer que não li seus livros, então não é como se eu pudesse ser muito criteriosa sobre quais dos meus você mais gosta.

— Ninguém leu meus livros. Livro.

— Darcy está estreando — explicou Oscar. — O livro sai pela Paradox ano que vem.

— Parabéns — congratulou Kiralee, e todos ergueram suas bebidas em um brinde.

O rosto de Darcy foi tomado pelo calor. Ela percebeu que Max tinha desaparecido sem nem dar tchau, mas ela tinha permissão para ficar. Ali, no meio daqueles escritores.

Ela se perguntou quanto tempo levaria até alguém perceber que ela era uma impostora e a enxotasse dali. Quando se sentou, parecia que o vestidinho preto não cabia mais — parecia grande demais, como se Darcy fosse uma menina brincando de se fantasiar com as roupas da mãe.

— Bem-vinda ao ano mais longo da sua vida — comentou Oscar. — Contratada, mas não impressa.

— É como se você tivesse beijado um garoto, mas ainda não tivesse dado para ele — completou Kiralee saudosamente.

— Como se você soubesse alguma coisa sobre isso. — Coleman se virou para Darcy. — Então, qual o nome do seu livro?

— Além-mundos.

Os três ficaram esperando que ela continuasse, mas uma paralisia já familiar tomou o corpo de Darcy. Ela sempre se sentia assim quando alguém perguntava sobre seu livro. E sabia por experiência própria que qualquer coisa que falasse agora soaria estranha, como ouvir uma gravação da própria voz. Como ela poderia resumir sessenta mil palavras em algumas poucas frases?

— É muito bom — Oscar finalmente se meteu. — Vou escrever uma quote.

— Então é um desses romances realistas chatérrimos? — perguntou Coleman. — Estão com tudo agora, não?

Oscar desdenhou.

— Eu tenho gostos mais variados que os seus. É um romance sobrenatural.

— Ainda tem gente escrevendo isso? — Kiralee perguntou enquanto tentava chamar um garçom. — Achei que os vampiros estavam mortos.

Coleman resmungou.

— Eles são extremamente difíceis de matar.

Todos fizeram seus pedidos — Manhattans para Coleman e Oscar, um gim-tônica para Kiralee, e Darcy pediu uma Guinness. Ela percebeu que ficara aliviada com a interrupção, que lhe deu algum tempo para organizar seus pensamentos.

Quando o garçom foi embora com os pedidos, ela começou a argumentar, sua voz só um pouco trêmula.

— Acho que romances sobrenaturais sempre vão existir. Dá para contar um milhão de histórias diferentes sobre o amor, especialmente quando se trata de amor com alguém diferente.

— Como um monstro, você quer dizer? — perguntou Coleman.

— Bem, é o que as pessoas pensam no início. Mas é, tipo, como A Bela e a fera. Quando ela descobre que o monstro é, na verdade... bacana.

Darcy engoliu em seco. Já tivera essa conversa com Carla mil vezes, e em nenhuma delas tinha usado a palavra “bacana”.

— Mas o amor de verdade não funciona ao contrário? — perguntou Kiralee. — Você começa achando que a pessoa é incrível e no fim da história descobre que ela é um monstro!

— Ou que você é — completou Oscar.

Darcy ficou olhando para a mesa marcada, pensando que tinha menos a dizer sobre o amor na vida real do que sobre o amor sobrenatural.

— Então qual é o interesse romântico em Além-mundos? — perguntou Coleman. — Não um vampiro, suponho.

— Talvez um lobisomem? — Kiralee estava sorrindo. — Ou um ninja, ou alguma coisa tipo um ninja-lobisomem?

Darcy balançou a cabeça, aliviada que Yamaraj não era um vampiro, lobisomem, ninja nem nada assim.

— Acho que ninguém fez isso ainda, não exatamente. Ele é...

— Espera! — Kiralee agarrou o braço dela. — Eu adoro adivinhar. Ele é um golem?

Darcy riu, novamente abismada que Kiralee Taylor estava sentada tão perto dela.

— Não. Golens são nojentos, com toda aquela lama.

— E um selkie? — sugeriu Coleman. — Ainda não tem nenhum selkie menino em livros YA.

— O que diabos é um selkie? — perguntou Oscar. Ele escrevia ficção realista: livros sobre superação, mães alcoólatras, nada de monstros. Moxie queria que ele escrevesse uma quote para Além-mundos para dar ao livro o que ela chamava de “um brilho literário”.

— É uma foca encantada por quem você se apaixona — explicou Darcy.

— É como se fosse uma foca, mas sexy.

Oscar ergueu uma sobrancelha.

— Não vejo o atrativo.

— De qualquer maneira — disse Darcy, querendo evitar que a conversa saísse muito dos trilhos —, meu galã não é um selkie.

— Um basilisco, então? — perguntou Coleman.

Darcy balançou a cabeça.

— Melhor evitar lagartos chifrudos como interesses românticos — comentou Kiralee. — E focar em algo mais fofinho. É um dropbear?

Por um momento Darcy ficou se perguntando se aquilo era um teste. Talvez se ela provasse seu conhecimento de feras míticas, eles abririam as cortinas de veludo escondidas e a levariam para a Noite de Drinques de verdade.

— Acho que dropbears são mais o seu território, não?

— De fato. — Kiralee sorriu, e Darcy percebeu que a observação a rendera uma estrelinha dourada. Ou talvez um adesivo de coala dourado. As bebidas chegaram e Kiralee pagou. — Um troll? Ninguém escreveu nada assim ainda.

— Já tem trolls demais na internet — comentou Coleman. — Talvez um garuda?

Darcy franziu a testa. Um garuda era metade águia, metade alguma outra coisa, mas o quê?

— Comportem-se, vocês dois — pediu Oscar.

Darcy olhou para ele, se perguntando o que exatamente ele quis dizer. Será que Kiralee e Coleman estava disfarçadamente sacaneando ela, ou todos os romances sobrenaturais? Mas os livros d’ O bardo e a espada eram cheios de romance. Talvez Oscar só estivesse de saco cheio do joguinho sobre animais míticos.

— O interesse romântico de Darcy é bem original — continuou ele. — É um tipo de... psicopompo. É a palavra certa?

— Mais ou menos — respondeu Darcy. — Mas nos Vedas, as escrituras hindus que usei como inspiração, Yamaraj é o deus da morte.

— Garotas emo amam deuses da morte. — Kiralee deu um longo gole na bebida. — Uma máquina de ganhar dinheiro!

— Como se fica com um deus da morte, hein? — perguntou Coleman. — Uma experiência de quase morte?

Darcy quase cuspiu o gole de cerveja. O flerte de Lizzie com a morte era o argumento de venda mais original do livro, a ideia que sozinha deu forças a Darcy para atravessar aquele mês de novembro, e Coleman tinha chegado à mesma conclusão sem nem precisar pensar muito.

— Hum, não exatamente. Mas... mais ou menos?

— Parece agradavelmente sombrio — comentou Coleman, assentindo.

— O primeiro capítulo é megassombrio — Oscar completou. — Tem um ataque terrorista horrível, e você acha que a protagonista vai morrer. Mas acaba que ela... — Ele abanou a mão. — Nada de spoilers. Vocês deveriam ler. Muito acima da média dos sobrenaturais.

— Obrigada — falou Darcy sorrindo, embora tenha ficado se perguntando o que Oscar Lassiter achava dos livros sobrenaturais em geral.


CAPÍTULO 8

Eu não tinha nada novo para contar ao FBI, e os médicos não encontraram nada de errado comigo que não pudesse ser resolvido com alguns pontos, então, dois dias depois do ataque, deixamos Dallas em um carro alugado.

Minha mãe sempre odiou viagens de carro, porque rodovias no interior a assustam. Mas ela estava preocupada que eu começasse a gritar caso visse o aeroporto de Dallas ou qualquer outro. O que minha mãe não tinha percebido é que eu estava anestesiada demais para algo tão dramático.

Não era só exaustão. Ainda havia um resquício de frio dentro de mim, uma lembrança da escuridão pela qual eu passara. Um presente do outro lado. Sempre que me lembrava do rosto dos outros passageiros, ou quando um barulho nos corredores do hospital era semelhante ao som de tiros distantes, eu fechava os olhos e me recolhia àquele lugar gelado, novamente em segurança.

Nós saímos do hospital às escondidas. Uma pessoa da equipe administrativa nos levou por corredores subterrâneos para uma saída de serviço até chegarmos a uma porta de metal enferrujada para um estacionamento para funcionários. Não havia repórteres esperando ali, diferentemente da entrada principal.

Os noticiários já tinham fotos minhas. Lizzie Scofield, “a única sobrevivente”, a garota que voltara à vida. Minha história era edificante, acho, o único ponto positivo em todo aquele horror. Mas eu não me sentia um grande símbolo de esperança. Os pontos na minha testa coçavam, barulhos repentinos me faziam pular, e eu estava usando as mesmas meias havia três dias.

Todo mundo ficava falando da minha sorte. Mas sorte mesmo não seria estar em um voo completamente diferente?

Eu não havia lido nenhum jornal, e as enfermeiras tinham gentilmente fechado a porta do quarto sempre que a TV ou o rádio estavam ligados por perto, mas as manchetes se infiltraram no meu cérebro mesmo assim. Todas as histórias sobre os outros passageiros, todas aquelas pessoas desconhecidas, apenas estranhos em um aeroporto. De repente os detalhes de suas vidas — para onde iam, os filhos que deixaram, seus planos interrompidos — viraram notícia. Travis Brinkman, o garoto que brigara com os terroristas, já tinha se tornado um herói, graças às câmeras de segurança.

O restante do mundo estava desesperado para saber mais sobre os mortos, mas eu ainda não me sentia pronta nem mesmo para ouvir seus nomes.

Ninguém parecia saber muito sobre os terroristas. Eles tinham ligações com um culto nas Rochosas, mas os líderes do tal culto negavam ter qualquer informação ou responsabilidade sobre o ataque. Os atiradores tinham sido mortos no confronto — sem bilhetes, manifestos ou pistas.

Mas o objetivo do terrorismo não era mandar algum tipo de mensagem?

Era como se eles simplesmente estivessem apaixonados pela morte.

Nós dirigimos a tarde inteira, comendo no carro, parando somente para encher o tanque e ir ao banheiro. Passamos por Abilene, Midland e Odessa, e aí as cidades se transformaram em uma terra árida e coberta de arbustos secos amarronzados pelo inverno. Torres de perfuração de petróleo giravam no horizonte, e rodamoinhos de poeira giravam no nosso caminho, carregando o lixo jogado na beira da estrada. A rodovia cortava afloramentos de rocha cinzenta que haviam sido dinamitados para abrir caminho. O céu azul e imenso se agigantava sobre nós.

Na maior parte do tempo ficamos em silêncio, e eu pensei em Yamaraj — nos seus olhos, em como ele se movia, em sua voz me dizendo que eu estava em segurança. Esses detalhes estavam gravados na minha memória, enquanto todo o restante era um terrível borrão. A única parte da noite que parecera real era aquela em que ninguém jamais acreditaria.

Quando minha mãe e eu falávamos, nossa conversa era como a paisagem — frágil e murcha. Ela perguntou sobre o novo apartamento do papai, o que eu tinha achado da Rachel e se tínhamos jantado em restaurantes chiques. Ela me perguntou sobre as aulas que eu teria em breve, e até fez um pequeno discurso sobre não deixar minhas notas caírem no último semestre do colégio.

Eu sabia que minha mãe estava tentando ser gentil, falando sobre coisas bobas em vez de terrorismo, mas conforme as horas se passavam, o fato de ela estar evitando a realidade começava a me enlouquecer. Como se estivesse tentando me fazer pensar que eu tinha imaginado o ataque. Toda vez que seu olhar recaía nos pontos na minha testa, ou na pequena cicatriz do gás lacrimogêneo na bochecha, uma expressão confusa tomava o rosto dela.

Mas nada daquela noite havia sido imaginado. Eu tinha ido a outro mundo. Yamaraj era real. Ainda sentia o gosto do seu beijo, e, quando eu tocava meus lábios, ainda podia sentir seu calor.

Sem contar que ele praticamente havia me desafiado a acreditar nele, o que era uma ótima maneira de conseguir que eu fizesse qualquer coisa.

Minha mãe continuava falando sobre nada, enquanto nos distanciávamos cada vez mais de Dallas, com as mãos firmes no volante. O mais perto que ela chegou de mencionar o ataque foi dizer que minha bagagem chegaria em San Diego pouco depois da gente.

— Eles disseram que levaria alguns dias.

Nenhuma menção a quem eram “eles”. O FBI? A companhia aérea? Ela falava como se minha mala simplesmente estivesse extraviada, e não sendo investigada como evidência do maior caso de segurança nacional da década. Nada demais.

— Não importa. Eu tenho bastante roupa em casa.

— É verdade. É muito melhor perder a mala na volta do que na ida!

Como se essa fosse a grande lição aprendida depois de sobreviver a um ataque terrorista.

— Eu só preciso de um telefone novo.

— Bem... Talvez a gente possa parar em algum lugar e comprar um para você. — Ela se inclinou para a frente e ficou avaliando as placas que passavam, como se alguma delas fosse nos encaminhar para uma loja da Apple bem ali, no meio do deserto texano.

Será que ela não entendia que eu precisava que as coisas fizessem sentido naquele momento? Eu precisava da minha mãe no mundo real comigo, não viajando na terra da fantasia.

A gente continuou dirigindo. Era fácil fazer longas pausas naquela paisagem, e se passou um bom tempo antes que eu falasse alguma coisa de novo.

— Estou me sentindo estranha sem ele. Aquele celular meio que salvou a minha vida.

As mãos dela apertaram o volante, e minha mãe deve ter tensionado os pés no acelerador, porque o carro tremeu sob nós.

— Como assim, Lizzie?

Respirei fundo, calmamente procurando naquele lugar gelado dentro de mim.

— Eu estava fugindo, todo mundo estava, e eu liguei para a emergência. A moça no telefone disse... — Minha voz falhou, não com qualquer emoção, mas como uma caneta ficando sem tinta. Eu já tinha contado essa história, percebi. Para Yamaraj.

Minha mãe ficou esperando, de olho na estrada à frente, os ombros tensos. Ouvi aquela voz calma no meu telefone: Você pode ir para um local em segurança?

— Ela falou para eu me fingir de morta — falei finalmente. — Foi por isso que eles não me mataram. Acharam que eu estava morta.

A voz da minha mãe estava embargada.

— Os médicos me contaram sobre aquele paramédico, o que achou que você...

— Ele pediu desculpas à beça por isso. — Dei de ombros sob o cinto de segurança. — Acho que acabei enganando ele também. Mas não foi nem ideia minha. Foi a moça da emergência que me disse o que fazer.

Bem, não exatamente. Ela não havia me dito para ir para o além-mundo com a força do pensamento, conhecer um garoto e voltar. E ela também não tinha falado nada sobre ver fantasmas.

Tom não apareceu de novo depois que fui para um quarto particular, então talvez eu o houvesse imaginado. Ou talvez ele só assombrasse a emergência.

Minha mãe soltou um gemido. Estava tentando dizer alguma coisa, mas não conseguia. A fragilidade da minha sobrevivência era real demais para ela.

Foi então que percebi uma estranha realidade: minha mãe estava mais assustada do que eu. E eu estar tão calma, em vez de chorando e tremendo, só tornava tudo mais difícil para ela.

Ela não sabia sobre o lugar frio que eu tinha dentro de mim, para onde eu podia escapar a qualquer momento. Ela não sabia que eu havia andado pelo além-mundo.

Eu ia ter que cuidar dela. Naquele momento, porém, o melhor que consegui dizer foi:

— É estranho ficar sem celular.

— Vamos comprar outro para você — retrucou ela com firmeza. — Exatamente igual ao outro, assim tudo vai parecer normal.

— Vou pedir para o papai pagar.

Os nós dos dedos dela ficaram brancos mais uma vez, e esperei por bastante tempo, olhando pela janela do carona as linhas pulsantes da rodovia.

Por fim ela falou:

— Seu pai pediu para falar que ele queria muito ter vindo.

Franzi o cenho, porque nem passara pela minha cabeça que meu pai iria até Dallas. Eu estava acostumada às suas fugas quando as coisas ficavam difíceis. Uma vez, quando eu tinha 12 anos, uma panela cheia de gordura tinha pegado fogo, as chamas chegando até o teto da cozinha. Ele apagara as chamas com uma toalha, totalmente heroico. Provavelmente tinha evitado que a casa inteira fosse tomada pelo fogo, mas no momento em que o incêndio ficou sob controle, ele pegou o carro e foi passar duas noites em um hotel, deixando minha mãe e eu com a responsabilidade de chamar os bombeiros, limpar tudo, arejar a casa.

Esse era o normal do meu pai.

— Foi bom ele não ter vindo.

Minha mãe abafou uma risada.

— Mesmo?

— É difícil lidar com ele quando está assustado. E você já cuidou dele o suficiente por uma vida inteira.

Ela virou o rosto e olhou para mim. Eu nunca tinha dito nada do tipo para ela, embora fosse totalmente verdade.

Quando seus olhos começaram a brilhar, eu apontei para a frente.

— Er, mãe? Estrada?

Ela voltou a atenção ao caminho.

— Ele ligou hoje de manhã, mas eu fui meio sem paciência e não o deixei falar com você, já que não ia vir para cá. Desculpa.

— Tudo bem. — Sorri. — Ele pode me ligar quando comprar um celular novo para mim.

Não sei até que horas dirigimos naquela noite. Caí no sono quando o sol estava se pondo, o céu vermelho acima de nossa cabeça.

Quando o carro parou estávamos em um hotel de beira de estrada, e acordei apenas o suficiente para cambalear até o quarto. Lembro que a cama tinha um cheiro errado — não ruim, só errado, porque não era a minha cama e eu queria muito estar em casa. E aí caí no sono novamente.

* * *

Ainda estava escuro quando meu cérebro despertou de uma só vez.

Havia uma energia correndo por minhas veias, não o pânico que eu sentia nos últimos dois dias cada vez que ouvia um ruído súbito, mas algo sombrio e acolhedor. Toquei meus lábios e os senti vibrando.

Sentei na cama e olhei ao redor, demorando um instante para me lembrar onde estava. A luz da máquina de gelo lá fora atravessava as cortinas grossas, deixando minha mãe à vista, adormecida na cama ao lado. A escuridão parecia próxima, como algo real me empurrando.

Eu tinha ido dormir com as roupas sujas, mas na cômoda havia as camisetas e roupas de baixo compradas na lojinha do hospital. Tomei um banho, o que não acordou minha mãe, e me vesti em silêncio. A loja do hospital não vendia meias, então calcei os tênis nos pés descalços, peguei o casaco e saí.

O céu estava estriado com nuvens espaçadas, tornando-se alaranjado conforme o nascer do sol se aproximava. Alguns cacos de vidro no chão do estacionamento do hotel brilhavam como geada no ar frio e parado. Cobri a cabeça com o capuz do casaco e cruzei os braços para me proteger do frio.

Uma placa de néon dizia WHITE SANDS MOTEL, e do outro lado da estrada as silhuetas das dunas se agigantavam. A gente havia conseguido chegar ao Novo México.

Meus pais e eu havíamos acampado em White Sands quando eu tinha uns 10 anos. Me perguntei se a mamãe sequer se lembrava que eu já tinha estado ali antes.

Sem carros à vista, atravessei com calma a rodovia vazia e parei insolentemente bem no meio da pista, fechei os olhos e ouvi. A energia quente que havia me acordado ainda corria pelos meus lábios. Quase conseguia ouvi-la no silêncio.

Quando abri os olhos, a paisagem parecia tão branca quanto uma folha de papel. O deserto de White Sands é como um desenho de criança, as corcovas idênticas das dunas sumindo a distância. Os desertos cobertos de matinhos da Califórnia sempre me pareceram sem propósito desde aquela viagem como o meu pai.

As dunas perto da estrada eram baixas, mas depois de meia hora caminhando já estavam altas o bastante para me fazer escalá-las de quatro, iniciando pequenas avalanches a cada passo.

Do topo, o deserto se espalhava à minha frente, como rugas em um vasto lençol branco. O céu estava claro, escondendo quase todas as estrelas, e o horizonte ao leste desabrochava com a aurora. Lá embaixo, nos vales das dunas, havia mesas de piquenique aferrolhadas a blocos de concreto, cercadas por postes de dez metros com bandeirinhas de plástico nas pontas.

Eu me lembrava daqueles postes, de quando fomos acampar. Eles serviam para ajudar os visitantes a acharem suas mesas. O deserto era tão monótono que era possível estar a 100 metros de sua mesa e seguir direto para o deserto, pensando que a mesa estava somente a uma duna de distância, ou talvez duas.

Fiquei me perguntando se havia algum fantasma ali, turistas que se perderam nas areias.

Foi então que senti aquela energia mais forte, a mesma que havia me acordado, as cócegas nos lábios e o calor nas minhas veias. E me lembrei de algo que Yamaraj havia falado... Acreditar é perigoso.

Mas eu não podia escolher no que acreditar. Não ia esquecer o que havia acontecido em Dallas. Vira em primeira mão o que tinha sido assunto de filósofos desde sempre: havia algo após a morte. Se era bom ou ruim, eu não sabia, mas naquele momento as questões metafísicas não pareciam tão importantes quanto uma simples pergunta:

Será que eu conseguiria fazer aquilo de novo?

Não só porque era algo incrível, visitar a terra dos mortos. Mas porque Yamaraj tinha me lançado um desafio, dizendo que, se eu chamasse, ele viria.

Será que eu acreditava nele o bastante para voltar a vê-lo? Será que acreditava no além-mundo?

Subi a duna mais alta e fiquei lá, esperando minha respiração se acalmar. Fechei os olhos, me concentrando no lugar gelado que agora vivia dentro de mim, meu suvenir do além.

Será que existia um feitiço que poderia me fazer atravessar? A primeira coisa a testar era o óbvio...

— Estou morta. — Um arrepio percorreu meu corpo quando professei essas palavras, mas quando abri os olhos nada havia mudado no deserto. Claro, eu não estava caída numa poça do meu próprio sangue, com balas zunindo sobre minha cabeça e pânico percorrendo o meu corpo. Sem contar que eu estava usando uma camiseta com o desenho de um ursinho de pelúcia segurando uma caixa de bombons. (É isso que as lojas de presente dos hospitais vendem.)

Fechei os olhos de novo, me permitindo relembrar os detalhes que tentara esquecer nos últimos dois dias — o terror completo de lutar pela minha vida, o ranger dos tênis no azulejo. E então, de repente, a fumaça da pólvora fez meu nariz arder, e senti um tremor na espinha. Meu coração acelerou, mas mantive a respiração lenta.

— Estou morta.

Conforme as palavras saíram, me imaginei afundando pela areia fresca sob meus pés, até a escuridão lá embaixo, atravessando tinta preta e fria. Parecia que tinha passado muito tempo quando reabri os olhos.

Mas nada havia mudado, a não ser pelo céu que agora estava um pouco mais iluminado.

Sentei na areia. Talvez fosse idiotice, tentar atravessar novamente para o além-mundo com a força do pensamento. Talvez nada menor do que um ataque terrorista de escala gigantesca funcionasse. Não foram palavras mágicas que me transportaram naquele dia, e sim uma passagem em um horário infeliz, a visão de pessoas morrendo e uma ligação para a emergência.

Com um leve arrepio, me lembrei da voz da moça no meu celular. Ela tinha sido tão calma, quase hipnotizante em meio a tanto caos. De certa forma, tinha sido aquele o momento em que eu comecei a deixar o mundo real para trás.

Pela terceira vez, fechei os olhos e esperei até que a calma tomasse conta de mim. Então falei as palavras gravadas na minha mente desde aquele dia...

— A equipe de segurança está a caminho.

Um tremor agitou a areia sob meus pés, mas não me assustei. Com calma, respirei a fumaça de pólvora, e deixei o rangido dos tênis no azulejo passar por mim. A cicatriz em formato de lágrima na minha bochecha começou a latejar. Eu sabia o que dizer a seguir:

— Você pode ir para um local em segurança?

As mudanças vieram rápido — o gosto metálico no ar, o silêncio do vento, o frio que de repente envolveu meu coração.

Quando abri os olhos, a cor tinha sido drenada do mundo. O céu parecia imenso, cinza como metal polido. Não havia sol, só um punhado de estrelas vermelhas, como olhos espiando a terra. Rios serpenteantes de óleo negro corriam por entre as dunas, o ar tremeluzindo com o calor. Um cheiro doce me arrebatou, mais açucarado que caramelo. Os rios escuros lá embaixo tremiam e ondulavam como se estivessem vivos, e minhas mãos e braços brilhavam.

— Yamaraj — sussurrei. Foi a primeira vez que falei o nome dele em voz alta, mas pareceu natural nos meus lábios, como uma palavra de um idioma aprendido há muito tempo e só parcialmente esquecido.

Senti um arrepio, e meu domínio sobre aquele lugar cinzento se enfraqueceu. No aeroporto, o pânico quase me fizera botar tudo a perder, mas agora era a ansiedade, uma corrente elétrica passando pela minha pele.

Fechei os olhos novamente, escondendo o imenso céu cinzento. Não sabia o que estava esperando, mas de repente senti outra mudança no ar. O cheiro de sangue e pólvora mudou para algo mais forte, como um campo de pimentas em chamas. Então uma onda de calor...

— Elizabeth — disse a voz dele, e o frio dentro de mim diminuiu um pouco.

Abri os olhos e vi Yamaraj parado na metade da subida da duna, uma figura escura contra a areia branca.

Não sabia o que dizer a princípio. “Olá” parecia ridículo, insuficiente.

— Funcionou, não é?— consegui falar. — Isso é real.

Ele me olhou com cuidado por um longo momento, até que um sorriso cruzou seus lábios.

— Muito real, Lizzie.

Ouvi-lo dizer meu apelido — meu nome de verdade — fez com que a lateral da minha visão pulsasse com cor novamente, como se o mundo iluminado pelo sol tentasse adentrar o mundo onde estávamos..

Yamaraj era tão lindo quanto eu me lembrava. Ainda brilhava, como se ainda estivesse sob a luz do sol inexistente. Ele escalou a duna e se ajoelhou a alguns passos de onde eu estava sentada.

— Estou impressionado. — Sua voz era suave e séria.

— Como assim?

Ele indicou com as mãos o deserto e o céu cinzento ao nosso redor.

— Você atravessou sozinha. Você me chamou, e em tão pouco tempo.

Dei de ombros, tentando não parecer abalada, mas minhas mãos estavam agarradas à areia fresca.

— Você disse que eu poderia fazer isso.

— Eu disse que seria melhor não acreditar, Lizzie. E mais seguro, também.

— Não é como se eu tivesse escolha. — Com Yamaraj tão perto de mim, o lugar gelado e tenso dentro de mim havia se suavizado, e as palavras saíam mais facilmente. — Tinha um fantasma no hospital, um garotinho. O que significa que posso ver espíritos agora. Você sabia que isso ia acontecer comigo?

— Eu sabia que poderia acontecer, mas... Como você sabia que era um menino?

Pisquei, confusa. A pergunta não fazia sentido.

— Hum, porque sim?

— Você conseguiu vê-lo tão claramente assim?

— Claro. Eu nem percebi que ele estava morto na hora. Ele só parecia... um garotinho. Ele disse que se chamava Tom.

Yamaraj ajeitou a postura, esticando a coluna como se de repente eu fosse perigosa.

— Qual o problema? — perguntei.

— Nunca é rápido desse jeito. Primeiro você deveria ver alguns flashes, ou ouvir sons estranhos. Você conversou com ele?

Eu estava tão orgulhosa por atravessar para o além-mundo, por chamar Yamaraj, mas agora me sentia como se tivesse feito algo errado. Tentei sorrir.

— Eu aprendo rápido. É o que minha professora de espanhol sempre diz.

— Estou falando sério, Lizzie.

— Eu sei. — Minha boca ficou seca, o gosto da raiva repentino e amargo. — Você acha que não entendi a parte séria de assistir à morte de oitenta e sete pessoas?

— Não — respondeu ele simplesmente, desviando o olhar para o deserto. — Mas estava torcendo para que você esquecesse. Se você não acreditar no que viveu, as mudanças somem, como cicatrizes.

Respirei fundo algumas vezes. Não estava com raiva de Yamaraj, e sim dos quatro homens que tinham transformado a minha realidade.

— Isso não vai acontecer. Se eu me deitar em posição fetal e fingir que nada disso é real, vou passar a vida com medo. Porque sempre vou saber a verdade.

— Entendi — disse Yamaraj, ainda me observando cuidadosamente. — Então você vai se tornar uma de nós, e logo.

Fiquei olhando para ele, minha pele me apertando, inquieta. O entorpecimento que eu vinha sentindo desde o ataque começava a desaparecer, como quando se bota as mãos muito geladas sob a água quente e o frio se transforma em coceira e choque.

— E o que seríamos nós? — Olhei para o brilho nas minhas mãos pálidas, uma versão menos forte da luz de Yamaraj.

— Há muitos termos. Guias de almas. Ceifadores. Psicopompos.

Ergui os olhos.

— Hum, você realmente disse “psicopompos”?

— Alguns nomes são mais graciosos que outros. Pessoalmente, não gosto de “ceifador”.

— Sinistro demais? — perguntei.

Quando ele sorriu, percebi que suas sobrancelhas eram arqueadas, marcadas naturalmente. Parecia que ele estava me provocando, apesar do assunto em pauta.

— Você pode chamar a si mesma do que quiser. O que importa é que, quando somos afetados pela morte, nos transformamos. Alguns de nós podem ver e andar entre os mortos. Alguns até vivem no submundo. Mas a maioria leva mais do que apenas alguns dias para ver fantasmas claramente.

Eu não sabia o que dizer. Tinha visto Tom apenas poucas horas após o ataque.

— A não ser que... — Ele parou. — Algo parecido com isso já aconteceu com você antes?

— Tá de brincadeira? Claro que não. Mas você disse guias. Então para onde sua irmã levou todas aquelas pessoas?

— Para nossa morada. — Yamaraj olhou para os rios de óleo negro que corriam entre as dunas lá embaixo. — Para o submundo, onde vão ficar seguras.

— Seguras contra o quê? Elas estão mortas.

Ele hesitou, depois respondeu em um sussurro:

— Existem predadores.

A última palavra gelou meu corpo. De repente tudo aquilo parecia imenso e paralisante, como se pela primeira vez eu percebesse que a morte era real, e mais assustadora e complicada do que jamais poderia imaginar.

Yamaraj se aproximou.

— Você vai ficar bem, Lizzie. Posso ajudá-la a compreender.

— Obrigada. — Estendi a mão para segurar a dele.

Com o choque do toque de nossos dedos, algo atravessou meu corpo, uma dor, um desejo. Meu coração perdeu o compasso, e de repente cores giraram no céu, estilhaçando o cinza. Por um momento voltei à realidade, sem rios de óleo negro e estrelas vermelhas, como fantasmas expulsos pela manhã.

Puxei minha mão de volta, e o mundo cinzento voltou de uma só vez.

— Talvez seja cedo demais. — Ele olhou para os próprios dedos, que tinham causado aquela tempestade dentro de mim. — É melhor eu ir embora.

Engoli em seco, tentando falar. Queria que ele ficasse e me contasse tudo, mas também me sentia indefesa perante tantas mudanças — como a cicatriz no meu rosto, eu também estava à flor da pele.

Por fim, tudo o que consegui fazer foi assentir, e um momento depois me vi sentada sozinha naquela imensa duna, respirando o ar puro, o sol nascente, rosado e claro, esquentando minha pele.

— Que merda — falei, olhando para minha mão. Um toque tinha sido o suficiente para me trazer de volta à realidade.

Toquei meus lábios e fiquei sentada ali por um tempo, me sentindo viva pela primeira vez em dois dias. Apenas um toque do frio do além-mundo permaneceu, como um pedaço de gelo na minha língua.

Minha mãe estava começando a acordar quando voltei para o quarto. Meu cabelo e tênis estavam cheios de areia, e as costas cobertas de suor debaixo do casaco. Mas o banho podia esperar.

— Café? — perguntei, assim que ela abriu os olhos.

— Você deve estar morrendo de fome. Quase não comeu nada ontem — falou, assentindo.

Ela se levantou e penteou o cabelo. Um minuto depois seguíamos em direção à lanchonete do hotel. Quando atravessávamos o estacionamento, um enorme caminhão parou em uma vaga. Eu podia sentir o tremor no asfalto e o calor do motor, como se houvesse um monstro bem ao nosso lado.

— Você parece meio distraída — comentou minha mãe.

— Não dormi direito. — Aí fiz as contas. — Quer dizer, dormi demais.

— Pobrezinha — murmurou ela, carinhosamente.

Entramos e avaliamos os cardápios de papel, e a minha mãe sorriu para o meu pedido imenso. Meu corpo estava acordando de verdade, pedindo comida, café e que o mundo fizesse sentido novamente.

Depois que a garçonete nos deixou, peguei a minha mãe observando os pontos na minha testa. Depois seus olhos repousaram no lugar em que aquela única lágrima chorada no além-mundo havia deixado uma queimadura de gás lacrimogêneo na bochecha esquerda.

Eu duvidada que ela soubesse a frequência com que fazia isso. Será que faria pelo resto da vida?

Por fim ela tirou os olhos de mim e se virou para observar a vista pela janela.

— É tão bonito aqui. A gente deveria ficar e ver alguns pontos turísticos.

— Hum, tipo as dunas?

— Bem, é difícil não vê-las. Mas tem uma cidade fantasma um pouco ao norte. Se chama Chloride, por causa de uma exploração mineradora muito tempo atrás. Eu vi um panfleto no quarto. Parece interessante.

Por um momento pensei no rosto de Tom, e um arrepio percorreu meu corpo.

— Nada de cidades fantasma, OK?

Ela tirou os olhos da janela e viu minha expressão, e então esticou o braço para segurar minha mão.

— É claro. — Sua voz mal passava de um sussurro, como se ela não quisesse que ninguém mais ouvisse. — Me desculpe por ter sugerido isso.

— Não, está tudo bem, mãe. É só que... — Aqueles terroristas tinham tentado me matar, mas eu havia passado para a terra dos mortos e agora conseguia ver fantasmas e aparentemente adquirira poderes perigosíssimos e tem esse menino, um menino que tocou a ponta dos meus dedos, e eles ainda formigavam.

Sem contar que eu precisava muito de roupas novas.

— Tudo bem. Vamos direto para casa.


CAPÍTULO 9

Uma hora mais tarde uns vinte autores haviam chegado. A Noite de Drinques YA já ocupava várias mesas, embora estivessem tomadas somente por bolsas e copos vazios: todos estavam de pé.

Oscar apresentou Darcy para os outros convidados como uma escritora cuja estreia era protagonizada por um deus da morte védico gostosão. Todo mundo sorriu ao ouvir aquilo, ou brincou que estava morrendo de vontade de ler. De alguma forma, reduzir seu livro àquelas poucas palavras fizera com que falar sobre ele fosse menos assustador. Darcy tinha a sensação de estar no controle, como saber o nome de Rumpelstiltskin.

Os outros autores também falaram dos próprios trabalhos e sobre os superpoderes dos seus agentes, a crueldade dos copidesques e as perfídias dos departamentos de marketing. Darcy estava imersa no mar do mercado editorial, e tudo que ela queria era se afogar.

Meu primeiro dia em Nova York, pensou, um pouco alta por causa da segunda Guinness.

— Você é Darcy Patel? — perguntou uma jovem com um vestido dos anos 1950 vermelho. — Você assinou contrato com a Paradox alguns meses atrás, certo?

Darcy sorriu.

— Sou eu. Além-mundos.

— Irmãs deb! — gritou a moça, apertando Darcy num abraço de quebrar costelas.

Quando ela largou, Darcy tropeçou para trás.

— Hum, desculpa?

— Também sou da classe de 2014! Nós somos irmãs deb!

— Entendi. — Darcy achou que “deb” significava “autor debutante”, mas não tinha certeza. — Prazer.

— Meu nome é Annie Barber. Idiota, né? Eu devia ter usado um pseudônimo. — Ela parecia assustada, como se Darcy fosse anular seu contrato de publicação bem ali.

— Eu sempre gostei de “Annie”.

— É, mas “Barber” parece... Barba. Mas pelo menos estou no início do alfabeto, então meu livro vai ficar na prateleira de cima. Já ouvi falar que o final é OK também, porque algumas pessoas sentam no chão e começam pelo final. São só as letras do meio que todo mundo ignora.

— Ah. — Darcy ficou se perguntando se seu sobrenome mediano tinha condenado seu livro ao esquecimento. — Qual é o nome do seu livro?

— Uma revoada de segredos. Parece chato?

— Não, eu adoro coletivos. Tipo uma revoada de corujas, né?

— Sim! — O rosto de Annie se abriu em um sorriso, e ela pegou o celular. — Vou postar isso no Twitter.

— Parabéns. Pelo contrato, não pelo tuíte.

— Estou tão feliz por ter encontrado você! A gente estava procurando por outras irmãs deb.

— A gente?

Em resposta, Annie carregou Darcy para o outro lado do bar, onde estavam três outras debutantes da classe de 2014. Elas eram tão animadas quanto Annie, a maioria havia se conhecido pessoalmente no evento. Elas trocavam e-mails havia meses, compartilhando conselhos, fofocas e regras editoriais rígidas, nenhuma das quais Darcy ouvira falar antes.

— Se você não entrar na lista na primeira semana, acabou! — era uma.

— Elogios na capa não funcionam mais! — dizia outra.

— Você precisa ter certeza de que as falas mais citáveis do seu livro nunca passem de 140 caracteres! — Esta parecia ser, na melhor das hipóteses, duvidosa.

— Seu site precisa ter pelo menos mil hits por dia antes de o seu livro sair! — era a mais assustadora.

O mais estranho é que as quatro pareciam estar admiradas por Darcy. Elas haviam lido sobre o contrato dela na Publisher’s Brunch e concluído o valor do adiantamento.

— Eles, tipo, estendem um tapete vermelho quando você vai visitar o escritório? — perguntou uma das irmãs deb. Seu nome era Ashley, e ela havia escrito uma distopia passada em Marte.

— Não exatamente — respondeu Darcy, rindo. Quando ela viera a Nova York em março para conhecer Nan e Moxie, todos os carpetes da Paradox eram cinza industrial.

— Você podia escrever uma recomendação para mim! — brincou outra, e Darcy ficou sem saber o que dizer. Ela se sentiu contente de que a Publisher’s Brunch não tinha mencionado a idade dela. Todas as irmãs deb tinham pelo menos 25 anos.

Mais uma vez, o vestidinho preto parecia grande demais, como se Darcy estivesse encolhendo dentro dele.

— Isso não é muito divertido? — perguntou Annie ao entregar a Darcy sua terceira cerveja.

— Com certeza — respondeu Darcy, olhando a bebida com cautela. — Mas vocês já sabem de tanta coisa. Eu ainda não entendi nada. Tipo, o que eu devo fazer para me promover?

— Tudo.

Conforme aquela palavra se revirava dentro dela, Darcy bebia com cuidado, buscando por Kiralee Taylor com o olhar. As provocações de Kiralee e Coleman tinham sido assustadoras, mas também tinham deixado Darcy sentindo uma alegria efervescente. O zelo das suas irmãs deb gerava apenas puro terror.

— Tudo? Tipo...

— Tipo, você pelo menos já tem um blog?

— Só um Tumblr. Mas eu nunca sei o que postar. Quer dizer, será que eu devo ficar falando de mim mesma?

— A gente podia entrevistar uma a outra! — exclamou Annie.

— OK. — Darcy tentou sorrir. — Primeira pergunta: você realmente acha que importa onde meu nome está no alfabeto?

— Tudo importa.

Lá estava aquela palavra de novo. Enquanto Darcy tomava outro gole para refletir, ela avistou Kiralee, que estava no canto com uma moça alta a quem Darcy ainda não tinha sido apresentada, as duas rindo como se nada importasse. Talvez elas deixassem Darcy ficar parada ao lado delas?

— Quantos anos você tem, aliás? — perguntou Annie.

Darcy hesitou, e o silêncio se estendeu o suficiente para que uma piada fosse inevitável.

— Minha agente e eu estamos mantendo isso em segredo — sussurrou ela.

Annie arregalou os olhos.

— Boa ideia! Você pode fazer um grande evento para revelar sua idade. Como uma revelação de capa, mas com números!

Darcy só conseguiu concordar com a cabeça. Já no fim da terceira cerveja, os pés dela pareciam desconectados do chão, como se a gravidade estivesse falhando. Ela sempre tivera vontade de beber Guinness, que continha algo chamado “isinglass”, o que parecia mágico a Darcy, mesmo que fosse algo feito com vesícula de peixe.

Ela percebeu que o almoço tinha sido há muitas horas, e que o jantar pertencia a um distante e incerto futuro.

— Com licença um segundo — disse Darcy, se afastando.

Kiralee estava em um canto do bar perto da jukebox, uma das antigas, quase do tamanho da gaiola de Sodapop, iluminada por luzes néon vermelhas e amarelas. Algum tipo de líquido pulsava dentro delas, como se a máquina fosse uma criatura viva. A amiga de Kiralee parecia somente alguns anos mais velha do que Darcy e usava uma camisa de botões impecavelmente branca sob um blazer preto de linho.

— A minha é só 250 por mês — dizia Kiralee. — E é muito segura.

— Eu quase poderia pagar isso — retrucou a moça mais jovem.

Darcy se aproximou, testando o clima da conversa. As duas não pareceram notá-la a princípio, mas ela precisava ter coragem. Como Nisha sempre dizia, ela era adulta agora.

Kiralee deu de ombros.

— Tudo é mais barato no Brooklyn.

— Eu sei — falou a amiga com um suspiro. — Não tem nada em Chinatown por menos de quatrocentos dólares por mês. — Ela deu uma olhada em Darcy e sorriu, o que pareceu um convite.

— Vocês estão falando daquelas casas com aluguel controlado? Todos os lugares que vi na internet custam pelo menos dois mil.

As duas encararam Darcy por um longo tempo, e então o rosto de Kiralee se abriu em um sorriso.

— A gente está falando de vagas de garagem, querida. Não apartamentos.

— Ah. Certo. — Darcy bebeu um gole da cerveja, esperando que o bar estivesse escuro demais para que elas percebessem seu rosto ficando vermelho. — Vagas de garagem.

Uma gargalhada sincera borbulhou da mulher mais jovem.

— É uma boa forma de economizar. É só morar num estacionamento!

Darcy acompanhou a risada se perguntando se deveria voltar para perto de Annie e das outras, onde era seu lugar.

Mas então Kiralee pôs a mão no ombro dela gentilmente.

— Vocês duas já se conheceram? Esta é Imogen Gray, mais uma do seu grupo de infinitas debutantes.

Imogen sorriu, esticando a mão.

— Darcy, certo? Sobrenatural hindu?

— Eu mesma. — As duas trocaram um aperto de mãos. — Parece que todo mundo aqui sabe quem eu sou.

— Ah. Acho que só concluí isso porque você parece...

Darcy demorou um segundo para entender o que ela dizia por conta da cerveja.

— Hindu?

— Hum, é. — Os olhos de Imogen tinham se arregalado um pouco.

Darcy sorriu, tentando tranquilizá-la. Todos os outros escritores que ela tinha conhecido naquela noite eram brancos, com a exceção de Johari Valentine, uma escritora de ficção científica de Saint Kitts.

— Não esquenta. O que eu quis dizer é que todo mundo já ouviu falar do Além-mundos.

— Deuses da morte são os novos selkies — falou Kiralee.

Imogen revirou os olhos.

— O que ela quis dizer é que é legal ver outras mitologias serem exploradas. Então, seu livro se passa na Índia?

— Não, a maior parte se passa em San Diego, onde a minha protagonista mora. E no submundo, é claro.

— É claro. — Kiralee fez um brinde em homenagem ao submundo. — Então aí vai uma pergunta capciosa: o seu deus védico da morte fala inglês? Ou essa menina de San Diego fala hindu? Ou sânscrito, suponho?

— Não, ela é branca. — Por um segundo as duas ficaram olhando para Darcy, como se isso demandasse maiores explicações, e ela acrescentou: — Acham esquisito?

Kiralee ergueu as palmas das mãos.

— De jeito nenhum.

— É só que eu queria usar um cara indiano como o galã, um cara que parecesse o Muzammil Ibrahim. — As duas fizeram expressões interrogativas de novo, e Darcy ficou envergonhada, se sentindo jovem demais. — Ele é um ator de Bollywood, um modelo, na verdade. É o par romântico que nunca encontrei nos romances sobrenaturais que eu li quando era mais nova, sabe? Mas não queria que a história fosse sobre o meu desejo por ele.

— Você queria que fosse o desejo de qualquer menina. — Kiralee sorria novamente. — Então escolheu uma menina branca da Califórnia.

Darcy de repente desejou não ter bebido tanto, mas ao mesmo tempo tomou mais um gole.

— Basicamente.

— Faz total sentido. — Kiralee girou o gelo no copo. — De um jeito problemático. Mas a vida é problemática, e por isso os livros também devem ser.

— Que profundo, Kiralee — brincou Imogen.

— Mas, sim, Yamaraj fala inglês — continuou Darcy, porque queria mostrar que tinha pensado naquilo. — Se chama Além-mundos, no plural, porque são muitos. E cada além-mundo tem um rajá ou rani no comando, uma pessoa viva que pode passar para o reino espiritual.

— Isso é dos... — Imogen franziu a testa para a bebida.

— Dos Vedas? Na verdade, não. É só uma coisa que eu inventei.

— É o que nós, escritores, fazemos. Inventamos coisas — falou Kiralee.

— Isso é verdade — concordou Darcy. No caos do novembro anterior, ela não chegara a manter um controle do que tinha inventado e do que tinha sido retirado das escrituras. — De qualquer maneira, o além-mundo de Yamaraj tem muitas pessoas da Índia que falam dialetos de todo o subcontinente: gujarati, bengali, hindu. O inglês é usado como uma língua comum lá embaixo, exatamente como na Índia real.

— Ah, o idioma do colonizador. — A expressão de Kiralee se iluminou. — Dá para fazer algumas coisas bem interessantes com isso.

— Pois é — concordou Darcy, embora suspeitasse de que não tinha feito nada do tipo. Ela tinha decidido que Yamaraj falaria inglês pela mais prática das razões, para que ele e Lizzie não precisassem comunicar seu amor eterno através de mímica. — O mais difícil é fazer ele parecer antiquado. Fica parecendo tão pouco sexy.

— Antiquado? — perguntou Imogen.

— Ele nasceu, tipo, três mil anos atrás.

— E pega uma adolescente? — Kiralee fez tsc, tsc, tsc. — Que coisa mais inédita!

Imogen riu.

— Exceto por todos os vampiros.

— Bem, ele ainda tem 17 anos na verdade. — Darcy bebericou a cerveja para organizar os pensamentos. — Porque o tempo passa de forma diferente no... Droga. É bizarro?

Kiralee balançou a mão, dispensando a preocupação de Darcy.

— Contanto que ele pareça ter 17 anos, ninguém vai ficar com nojinho. E quanto ao inglês, todo mundo fala inglês na TV, até a porcaria dos klingons. Por que não um deus da morte hindu?

— Você está falando besteira, Kiralee — interrompeu Imogen. — Os klingons falam klingon. Tem um instituto da língua e tudo. Eles estão traduzindo as peças de Shakespeare!

— Verdade, esqueci. Você pode obliterar as culturas que contaram as primeiras histórias, mas élfico e klingon precisam ser salvos a qualquer custo!

Imogen se virou para Darcy.

— Pode ignorá-la. Kiralee enche o saco de todo mundo com essas coisas. Mas é só porque ela mesma vive fazendo coisas problemáticas.

Kiralee deu de ombros.

— Como uma branquela que saqueia mitologias indígenas, já passei pela minha cota de confusão, toda ela muitíssimo merecida. Mas pelo menos propago minha sabedoria perturbando vocês, jovens.

— Você tem problemas com os seus livros? Mas eles são tão... inspiradores! — Depois de ler Dirawong, Darcy fizera o projeto final do sexto ano sobre o povo bundjalung. — Quer dizer, parece que você acredita em tudo o que escreve. Você é bem mais respeitosa do que eu sou com os Vedas.

Kiralee riu.

— Bem, eu nunca usei os deuses de ninguém para criar um galã YA.

Darcy a encarou.

— Não que eu tenha lido seu livro. — Kiralee ergueu as mãos em rendição.

Imogen revirou os olhos.

— É diferente quando se usa o próprio deus, Kiralee.

— Acho que sim — concordou Darcy, mas era uma boa questão. A única estátua de Ganesha na casa dela ficava no computador do pai e tinha pés magnéticos, e ela rejeitara o vegetarianismo da família quando completou 13 anos. — De qualquer maneira, Yamaraj não é um deus de verdade. Ele é o primeiro mortal a descobrir o além-mundo, o que dá a ele poderes especiais. É mais como se fosse um super-herói!

Darcy também estava roubando nessa. Nas antigas escrituras, Yamaraj era mortal, mas acabou se tornando uma divindade depois. Esse era o problema com os Vedas: não eram um livro e sim centenas de histórias, hinos e cânticos. Tinham de tudo — muitos deuses ou um só, céu, inferno ou reencarnação.

Mas em Além-mundos, Yamaraj era apenas um cara normal que descobria, meio que por acidente, que podia andar entre fantasmas. Não era isso que importava? Ou as palavras “deus védico da morte galã” tinham magicamente substituído o livro em si?

Imogen estava sorrindo.

— Ele só é um super-herói se tiver uma história de origem.

— Ele tem! Com raios e tudo!

— Aranha radioativa?

— Mais um burrico — explicou Darcy. — Isso não está nos Vedas, aliás. Eu ignorei muita coisa, como o hino em que a irmã do Yamaraj tenta passar a noite com ele.

— Isso é tão YA! — exclamou Imogen.

— Eu definitivamente não vou entrar nessa. — Darcy olhou para o fundo do copo, onde só havia espuma. — Vocês acham que eu vou ter problemas com isso?

Kiralee colocou seu drinque em cima da jukebox e apoiou o braço pesado nos ombros de Darcy.

— Não é como se você fosse uma branquela qualquer, saqueando a mitologia alheia.

— Essa é sua especialidade — completou Imogen.

— Olha quem fala! Também não faltam escândalos no seu livro.

Imogen deu um suspiro.

— No momento falta tudo no meu livro, inclusive enredo. Não consigo achar uma mancia decente para usar.

— O que é uma mancia? — perguntou Darcy, aliviada que a conversa finalmente se distanciava das ofensas religiosas. A conversa tinha levantado questões que seu cérebro embriagado não estava disposto a investigar.

— A estreia de Imogen é sobre uma adolescente que taca fogo nas coisas. Piromancia! E ela diz que eu sou má.

— É, eu só glamourizo queimar a merda toda. É bem melhor do que apropriação cultural. — Imogen se virou para Darcy. — Minha protagonista começa como piromaníaca, uma garota que brinca com fósforos. Mas ela desenvolve perigosos poderes de fogo, porque ela descobre ser de uma longa linhagem de piromantes.

— Eu conheci um menino que fazia isso na escola — comentou Darcy. — Nada de superpoderes, mas ele estava sempre colocando fogo em papel higiênico.

Imogen sorriu.

— Minha primeira namorada era piromaníaca também. Na minha trilogia, todos os sistemas de magia são baseados em distúrbios de controle de impulso.

— Entendi. — Darcy havia pensado que Imogen tinha a idade dela, talvez um pouco mais. Mas ela já estava pensando em trilogias, quando Darcy só tinha vislumbres de Patel Nº 2.

O pensamento a atingiu de novo: e se só houvesse um livro destinado a ser escrito freneticamente por ela?

— O primeiro se chama Piromante, óbvio — explicou Imogen. — Mas a editora odeia o título do livro dois.

— E eles têm razão! — gritou Kiralee. — Ailuromante!

— Mas que diabos isso quer dizer? — perguntou Darcy.

— Gatos. — Kiralee riu. — Poderes da louca dos gatos!

— Vai pegar mais bebidas para a gente. — Imogen tirou uma velha carteira de couro do bolso da calça e estendeu duas notas de vinte. Kiralee as pegou e foi para o bar, e Imogen se virou para Darcy. — Significa adivinhação com felinos. Como ler miúdos de galinha.

Darcy arregalou os olhos.

— Seu herói mata gatos?

— Eca, não. Ailuromancia tem a ver com ler a maneira como os gatos se mexem, o movimento do rabo. — Imogen fez uma curva graciosa com a mão no ar, como se estivesse acariciando um gato adormecido. — Meu protagonista consegue ouvir o ronronado de um gato e saber coisas, como quando você ouve palavras aleatórias nas ondas do mar.

Os olhos de Darcy seguiram o movimento da mão de Imogen. Seus dedos estavam cheios de anéis prateados, uma caveira com ossos cruzados decorava o mindinho.

— Que maneiro.

— A magia funciona, mas todo mundo na Paradox odeia o título. Eles querem chamar o livro de Gatomante.

— Esse consegue ser ainda pior que Ailuromante. — As três Guinness que Darcy já tinha tomado embaralharam a palavra toda. — Mas, olha, a gente é da mesma editora.

— Quem é seu editor?

— Nan Eliot.

— É a minha também!

Darcy franziu a testa.

— Mas o que gatos têm a ver com piromania? Animais de estimação não são uma doença.

— Está brincando? A mãe do personagem principal é uma completa louca dos gatos. Ele cresceu numa casa cheia de gatos e lixo. As roupas fedem a mijo de gato, e ninguém fala com ele na escola. O serviço social está de olho...

Darcy assentiu.

— E aí ele desenvolve os perigosos poderes?

— Precognição, além de várias coisas felinas, tipo equilíbrio, escalada, audição. Ele passa de ladrãozinho a um verdadeiro gatuno.

— Você sabia que gatos não têm papilas gustativas para doce?

— Sério? Legal. — Imogen pegou o celular e começou a digitar. — Eles também não têm jetlag, porque dormem demais.

— Faz sentido. No meu livro, eles conseguem ver fantasmas!

Imogen sorriu.

— Acho que não existem fantasmas no meu mundo. Mas talvez. Vou começar a revisão esta semana.

— Eu também. — Darcy sentiu um sorriso se abrir no rosto. Será que ela tinha acabado de afetar o futuro do livro de Imogen, só por estar ali e saber de uma informação inútil sobre gatos?

Talvez isso compensasse o fato de ela estar usando a religião dos pais para criar um galã YA. Darcy respirou fundo, deixando aquele pensamento se afastar.

— Mas tenho que inventar uma mancia para o livro três. — Imogen mexeu na tela algumas vezes, depois leu o que estava escrito no celular. — Tem centenas: austromancia, esferomancia, pefelomancia. A questão é que são todos poderes idiotas. Mas se não for complicado, perde a graça.

Darcy refletiu sobre o que ela disse. Para ela, complicado era basicamente difícil, não divertido. Se ela soubesse como seria complicado escrever sobre uma personagem traumatizada por um ataque terrorista, que tinha que absorver o horror do massacre por quatro capítulos lentos e deprimentes, teria escolhido uma forma mais pacífica de Lizzie atravessar para o além-mundo.

Todo mundo tinha amado aquele primeiro capítulo, mas ele deixara todos os capítulos seguintes bem mais complicados.

Kiralee voltou esmagando três bebidas nas mãos.

— Eu estava pensando lá no bar e acho que solucionei seu problema da mancia!

— Ah, ótimo. Mais um. — Imogen tirou dois dos copos das mãos de Kiralee e entregou a Guinness para Darcy. — Vamos lá.

— Por que seu terceiro livro não pode ser sobre um flatumante?

Ninguém falou por um segundo.

— Essa palavra significa o que eu acho que significa? — perguntou Darcy.

— Do latim flatus. — Os olhos de Kiralee estavam brilhando. — Você vai nadar em dinheiro!

— Então você está sugerindo — começou Imogen com cuidado — que o grand finale da minha trilogia de fantasia dark baseada em desordens de controle de impulsos seja sobre um personagem com peidos mágicos?

— Bem, não é que os peidos sejam inerentemente mágicos. Mas não seria possível controlar forças mágicas ao peidar? Afinal de contas, é necessária muita força de vontade. E uma certa pureza de espírito.

— Eu odeio você — falou Imogen.

Kiralee se virou para Darcy.

— Qual o melhor: Fiona, a Flatumante ou Freddie, o Flatumante?

Darcy, tentando não rir, não conseguiu responder.

— Acho que ambos são igualmente bons — retrucou Imogen. — No sentido em que os dois são péssimos.

— Mas, espera — conseguiu falar Darcy. — O que fazer com flatumancia? Quer dizer, além do óbvio?

— Bem, eu ainda não pensei no sistema de magia inteiro. — Kiralee balançou o copo em um gesto vago. — Mas os feitiços vão ter nomes bem evocativos: o Silencioso Mortal, a Freada Castanha, o Zéfiro Marrom, e é claro, o temido Mar de Lama!

Até Imogen já estava rindo.

— Parece que todos esses feitiços fazem exatamente a mesma coisa.

— Só porque eu não mencionei a Armadilha Ardida!

— Sua vaca plagiadora! — gritou Imogen. — Claramente a Armadilha Ardida é piromancia!

— Piro-flatumancia, sim — concordou Kiralee, mantendo seu ar de absoluta dignidade. — Mas não vamos ser pedantes.

— Não, não vamos — concordou Darcy, e as três fizeram um brinde e beberam.

A noite seguiu assim, uma mistura de conversas sérias, maluquices completas, marketing pessoal e com uma animação digna de festas do pijama. Parecia ter durado a noite toda, mas era antes das 22h quando Darcy olhou em volta e percebeu que a Noite dos Drinques YA estava acabando. O bar estava cheio, mas agora tinha sido tomado por não escritores aleatórios. Ela reconhecia apenas meia dúzia de rostos.

Seus novos amigos começavam a se reunir em um último grupo.

— Alguém está a fim de dividir um táxi para o Brooklyn? — perguntou Kiralee.

Alguém aceitou, uma escritora de romances góticos gays que morava no Mississipi e estava ficando na casa de amigos. O quarteto de irmãs deb tentava organizar um jantar numa pizzaria ali por perto, mas Darcy estava tonta demais depois das quatro cervejas (ou tinham sido cinco?) para ir a qualquer lugar que não sua casa.

— Você sabe voltar para o apartamento da Moxie? — perguntou Imogen.

Darcy foi pega de surpresa e disse a verdade:

— Não tenho ideia. Mas é em frente ao Astor Place, qualquer taxista vai saber onde é, certo?

— Fica a dez minutos daqui andando. Eu te levo.

— Desculpe pela minha falta de noção. — Darcy havia chegado ao ponto da embriaguez em que desculpas e promessas eram frequentes, mas Imogen apenas sorriu.

As duas se despediram longa e sentimentalmente de todos e saíram em direção à noite.

Os depósitos pareciam ter aumentado de tamanho após o pôr do sol, e as ruas pareciam vazias e dramáticas, como um cenário de filme depois do horário de filmagem. Darcy sentia o ar frio na pele, que parecia febril depois de horas de tagarelice literária. Imogen apontou para um edifício.

— Prédio fantasma.

Darcy ergueu os olhos e viu a descoloração na grande parede de tijolos à sua frente, a silhueta de um prédio destruído muitas décadas antes. Dava para ver o ângulo do telhado e a forma de uma chaminé se sobressaindo. Acima havia um outdoor fantasma — o anúncio apagado de uma oficina de carros, antigo o bastante para ter letras no início do número de telefone.

— Meu personagem principal vê fantasmas — comentou Darcy.

— É claro. Ele é um deus da morte.

— Não ele. O outro. Lizzie.

— Sério?

— Sério o quê?

— Sua protagonista se chama Lizzie... e você se chama Darcy? — Imogen começou a rir. — Bem Jane Austen, não?

Darcy parou de repente.

— Ah, merda.

— Você não tinha percebido?

— Não foi de propósito. Juro! A minha mãe é fã de Austen.

Ainda rindo, Imogen a fez voltar a andar.

— Ninguém vai notar. Bem, só quem já tiver lido Jane Austen, o que é todo mundo que lê.

Elas seguiram para Astor Place, Darcy ainda sendo rebocada.

Será que era tarde demais para mudar o nome de Lizzie? Um “substituir tudo” poderia fazer a troca em segundos, uma mudança silenciosa de zeros e uns. Apenas alguns amigos e editores saberiam. Mas para Darcy seria como ler um livro diferente, como se um metamorfo tivesse tomado o lugar de sua protagonista. Um impostor que talvez aparentasse e agisse como Lizzie, mas cuja semelhança só tornaria a apropriação ainda mais assustadora.

— Não posso mudar o nome dela. Não seria real.

— Você pode usar um pseudônimo. Mude o seu nome, não o dela.

Darcy pensou em Annie Barber e no azar alfabético de Patel.

— As pessoas fazem isso mesmo?

— Mais do que você imagina — respondeu Imogen, apertando a mão dela. — Mas se preocupe com isso amanhã.

Darcy assentiu. Tinha muitas coisas com que se preocupar no dia seguinte. Encontrar um apartamento, abrir uma conta bancária, descobrir como viver sozinha em Nova York.

Conforme elas andavam, Darcy começou a prestar atenção nas placas — precisava aprender a andar pela cidade. Mas era bom ter Imogen por perto.

— Como você conheceu a Kiralee?

— Ela escreveu um elogio de capa para Piromante logo depois que a Paradox comprou o livro. Aí, quando escrevi para agradecer, ela me convidou para almoçar. Já somos amigas faz um ano, acho, desde que saí da faculdade e vim para cá.

Darcy franziu a testa. Imogen podia ser uma estreante, mas era pelo menos cinco anos mais velha, com uma faculdade e um ano inteiro em Nova York na bagagem. Sem contar que já tinha escrito dois livros, não só um digitado por sorte em um mês de novembro.

— Quando Piromante vai sair?

— Setembro. — Imogen respirou fundo. — Finalmente.

— Que sorte. O meu só sai no segundo semestre do ano que vem.

— Ser escritor é muito estranho, né? É como contar uma piada e ter que esperar dois anos até alguém começar a rir.

Darcy assentiu. Nisha tinha enviado uma mensagem naquele dia, durante a viagem de volta para casa...

Só 462 dias até o lançamento!

Darcy suspeitava de que ia se cansar daquela piada bem antes da irmã.

Elas andaram em silêncio por um tempo, enquanto Imogen apontava silenciosamente para as sombras dos edifícios abandonados. Darcy começou a se perguntar se outras coisas também tinham fantasmas — não só cães e gatos, mas motos, máquinas de escrever e pátios de escola. Ou mesmo as carreiras de escritores que chegaram ao ápice cedo demais, ou nunca chegaram.

Darcy ainda segurava a mão de Imogen, e a apertou um pouco mais forte. Quando ergueu o olhar, viu que o céu estava tão tomado pelo brilho da cidade que não havia espaço para as estrelas.


CAPÍTULO 10

No fim, visitamos alguns pontos turísticos, e a viagem até San Diego levou aquele dia inteiro e grande parte do seguinte.

Minha mãe me deixou dirigir algumas vezes, mas só depois de uma longa conversa sobre como situações traumáticas podem afetar a capacidade de direção. Porque, aparentemente, é disso que pessoas recém-traumatizadas precisam: muitas conversas longas sobre os efeitos de traumas.

Para piorar, minha mãe usou nossa viagem de volta para desfrutar de suas próprias fobias de viagem. Ela comentou sobre a esquisitice gótica das lanchonetes de beira de estrada, como parecia que elas escondiam corpos nos freezers dos fundos. E sempre que um carro ficava por perto por mais de alguns quilômetros, ela pensava que estávamos sendo seguidas. Viajar com a mamãe foi tão divertido quanto parece.

É claro que ela sempre foi uma mãe nervosa. Quando eu era pequena, só podia brincar em nosso próprio quintal, nunca na casa das outras crianças. Ela comprou um celular para mim quando eu tinha 10 anos, o que foi legal no início, até eu descobrir que aquilo era praticamente um rastreador. E agora quatro terroristas tinham confirmado todos os seus piores pesadelos. Imaginei se agora ela jamais pararia de se preocupar comigo.

Mas, quando atravessamos a fronteira da Califórnia perto de Yuma, seu humor melhorou, e ela me fez brincar de um joguinho idiota de estrada: se víssemos palmeiras, eram cinco pontos; carros híbridos, dez; carros com pranchas de surfe no teto, vinte! Logo fiquei de saco cheio e fechei os olhos em protesto, caindo no sono até o som dos pneus sobre cascalho me avisar que por fim estávamos em casa.

Esfregando os olhos de sono, saí do carro e fui até a mala para pegar as bagagens, mas é claro que não havia nenhuma. Minha mãe tinha feito a bolsa com pressa, e eu só tinha uma sacola da butique do hospital cheia de roupas sujas.

— Estou tão cansada. A gente pode devolver o carro amanhã. — Minha mãe tirou a bolsa de viagem do banco traseiro e fechou a porta. — Você se importa de me seguir até a loja de aluguel de carros amanhã de manhã cedo?

— Cedo não é problema. — Eu estava acordando todo dia às seis. Talvez ainda estivesse no horário de Nova York, talvez o sono não pudesse competir com um ataque terrorista e uma viagem de carro de três dias.

Depois que entramos em casa houve um momento estranho de separação, quando minha mãe me apertou em um abraço demorado.

— Obrigada por ter vindo me pegar.

— Eu sempre irei. — Ela deu um passo para trás, ainda segurando meus ombros. — Estou tão feliz por você estar em casa.

— É, eu também.

Ficamos paradas mais uns segundos e então nos retiramos em silêncio para o luxo de nossos respectivos quartos.

Larguei as sacolas de plástico na cama e liguei o computador, mas quando vi uma barra de atualização baixando centenas de e-mails, desliguei de novo.

Meu rosto estava em todas as emissoras, não estava? De uma maneira triste e horrível, agora eu era famosa.

Sentei na cama e tentei imaginar como seria recontar o ataque para os meus amigos. Será que contar a história faria com que ela ficasse de alguma forma mais automática e desconectada, como quando eu quebrei o braço no sexto ano?

Era deprimente demais pensar naquilo. O que tinha acontecido em Dallas era mil vezes pior do que cair de um balanço, e era também mais pessoal. Eu visitara outro mundo e tinha voltado com pedaços de lá dentro de mim. Aquilo não ia desaparecer, não importava se Yamaraj tivesse dito que era o mais seguro a fazer. Ao mesmo tempo, porém, não era algo que eu queria compartilhar em voz alta tantas vezes a ponto de começar a decorar o que tinha acontecido em vez de me lembrar de verdade.

Levantei e fui até o closet, me perguntando o que vestir agora que era uma guia de almas, um psicopompo, uma ceifadora. Teoricamente, preto seria apropriado. Eu não tinha muitas roupas pretas, exceto algumas peças compradas há pouco tempo em Nova York. Mas minha mala ainda não tinha chegado.

O principal era evitar blusas com ursinhos compradas na lojinha do hospital. Tirei a que estava vestindo e a enfiei na cesta de lixo ao lado da cama, depois tomei um longo banho pós-viagem. A água de casa era mais quente do que todos os hotéis em que a gente tinha ficado, e ela aplacou um pouco o gelo dentro de mim. Mas ele nunca sumia completamente, mesmo naquela tarde em Tucson quando eu tinha parado sob o sol no asfalto quente e escuro, tentando me aquecer com o poder da mente. A única vez em que o senti o frio desaparecer completamente foi no deserto com Yamaraj.

Eu me perguntei se ele sabia o que seu toque causava em mim, fazendo meu coração bater com tanta força a ponto de me jogar de volta à realidade. Ou seria algo de que ele teria vergonha da próxima vez em que nos víssemos?

Havia tantas coisas que eu queria perguntar a ele, sobre o óleo negro, o submundo, e se ele se importava se as pessoas tinham sido boas ou más durante a vida. Mais acima de tudo, eu queria saber como Yamaraj tinha se tornado um de nós. Que coisa terrível tinha acontecido para ele ter sido enviado ao além-mundo pela primeira vez?

Seu rosto era tão sereno e perfeito, não parecia o de alguém que tinha passado por um trauma impensável. É claro que, ao me encarar no espelho do banheiro, eu esperava que meu rosto estivesse diferente, que mostrasse o que eu tinha passado. Mas as únicas mudanças eram as cicatrizes na minha bochecha e na testa, como se eu tivesse apenas caído de bicicleta.

Eu estava me secando no quarto quando ouvi um barulho atrás da porta.

— Oi, mãe? — chamei, enrolando a toalha em volta do corpo.

A porta não se abriu. Sequer se moveu. Mas de alguma forma ficou entreaberta por um segundo, como se um pedaço do mundo tivesse desaparecido, deixando ver o corredor além. Uma garotinha atravessou a passagem. Ela usava uma calça de veludo cotelê vermelho e uma camisa xadrez marrom por dentro da calça, e seu cabelo louro estava preso em duas tranças grossas por cima dos ombros.

Dei um passo para trás.

— Hum, oi?

Ela pareceu tímida e desconfiada por um momento, mas aí colocou as mãos nos quadris e ergueu o queixo.

— Eu sei que isso vai parecer um pouco estranho no começo, Lizzie. Mas a questão é que eu estou nesta casa há tanto tempo quanto você.

O nome dela era Mindy Petrovic, e ela era uma amiga de infância da minha mãe.

— A gente cresceu na mesma rua — começou Mindy. Estávamos as duas sentadas na minha cama, eu ainda enrolada na toalha úmida. — Sua mãe tinha um cachorrinho chamado Marty que corria pela vizinhança inteira e vinha atrás de mim quando eu andava de bicicleta. Eu fiquei amiga do Marty antes de conhecer a Anna. — O olhar de Mindy ficou distante por um momento. — E eu fui no veterinário com ela quando ele morreu, mais ou menos uma semana antes de mim.

Eu não sabia o que dizer. Nunca tinha ouvido falar de Marty ou Mindy, mas lembrava vagamente de ver fotos de um collie nos antigos álbuns da minha mãe.

— A minha mãe tinha quantos anos na época?

— Onze, que nem eu. — Ela sorriu. — Eu sou só dois meses mais velha que Anna, mas ela sempre estava uma série atrasada. Ela nasceu numa data ruim.

— Mas ela cresceu em Palo Alto.

— Dã. Eu também.

Franzi a testa.

— Mas isso fica a quilômetros de distância. E você está... aqui.

— Fantasmas conseguem andar, sabia? E temos outras maneiras de nos locomover. — Ela olhou para o cobertor e ficou puxando os fios do velho edredom que minha avó tinha costurado. — Mas sim, é meio tosco. Como naqueles filmes da Disney em que os bichinhos de estimação se perdem durante as férias e têm que voltar para casa. Fantasmas são muito leais, que nem cachorros. Mas cachorros não conseguem ver a gente, só gatos.

Balancei a cabeça. Mindy não conseguia seguir uma ordem lógica, como se nunca tivesse contado sua história em voz alta antes.

— Depois que eu morri, meus pais começaram a se odiar. Eles gritavam toda hora, e tudo por minha culpa, então me mudei para a casa da Anna, do outro lado da rua. O quarto dela sempre tinha sido meu lugar favorito no mundo, principalmente o closet. A gente sempre brincava de se esconder lá.

— E você está seguindo a minha mãe por aí faz... — fiz as contas —, trinta e cinco anos?

— Não sei exatamente. — Mindy ergueu os olhos do cobertor. — Mas eu me sinto mais real quando estou perto dela. Como se não estivesse sumindo. Ajuda ficar perto de quem se lembra de você, quem ainda pensa em você.

— Certo — falei, me perguntando por que a mamãe nunca tinha falado dela. Eu também estava curiosa para saber como Mindy tinha morrido, mas parecia falta de educação perguntar.

— Aí você nasceu! — Mindy completou, feliz. — Quando você chegou na minha idade, eu fingia que a gente era melhores amigas.

Minha reação deve ter ficado clara no meu rosto.

— Desculpa ser assustadora — continuou ela, olhando para baixo de novo. — Eu nunca morei no seu armário, só no dela.

— Certo. E isso não é nada assustador. — Eu era claustrofóbica demais para me esconder no armário quando era criança.

Mindy deu de ombros.

— É só que eu não tenho nenhum amigo que nem eu.

— Você quer dizer gente morta?

— É. Fantasmas são assustadores. E meio bizarros.

Ela parou por um momento, como alguém que diz que odeia o corte de cabelo novo e você deveria discordar. E era verdade, Mindy não me assustava. Por algum motivo não era estranho estar sentada ali, conversando com ela. Ela estivera presente durante toda a minha vida, então acabei me acostumando sem nem perceber. Mas tudo o que disse foi:

— Deve ser chato estar morto.

— Acho que sim. Mas agora que você consegue me ver, a gente pode ser amigas de verdade, né? — Ela olhou para mim com um sorriso tímido.

Eu não sabia como responder. Talvez minha mãe tivesse sido amiga dela, mas não era como se eu estivesse procurando uma melhor amiga invisível de 11 anos.

E então me dei conta de algo.

— Quando você entrou no quarto, sabia que eu ia conseguir ver você.

— Claro. — O olhar de Mindy ficou mais suave, como se estivesse olhando através de mim. — Quando você chegou, estava desse jeito brilhoso dos pompos. Foi por isso que eu me escondi na hora, porque pensei que agora você era um deles. — Ela sorriu. — Mas aí pensei que ainda era só você, Lizzie, e que você nunca faria nada de ruim comigo.

— Entendi. Mas por que você tem medo de... pompos?

— Às vezes eles aparecem procurando fantasmas. Para levar embora. Mas eu sempre me escondo.

— Eles levam os fantasmas para um lugar ruim?

— Acho que sim. — Mindy baixou os olhos para o cobertor de novo. — Uma vez eu encontrei um menino que tinha ido para o submundo, mas que tinha fugido porque não gostava de lá. Ele disse que era melhor ficar aqui em cima e desaparecer.

Eu estava me coçando de tantas perguntas. Havia suposto que Yamaraj tinha me contado a verdade, que ele e Yami estavam levando aquelas pessoas para um lugar seguro. Mas o que eu sabia de verdade? Tudo que eu tinha como prova era seu belo rosto.

— O que aconteceu com você, Lizzie? — perguntou Mindy, esticando a mão e a passando pelo meu braço. Embora quase não conseguisse sentir seu toque, minha pele se arrepiava sob seus dedos. — Como você ficou tão brilhante?

Ajeitei a toalha. O tecido ainda estava úmido, embora minha pele estivesse seca. Não estava com vontade de contar a Mindy sobre o aeroporto — não queria contar aquilo para ninguém —, tampouco queria mencionar Yamaraj. Ela podia acabar me dizendo para não confiar nele, e ele era a única coisa que eu tinha para me apoiar.

— É melhor eu me vestir. — Quando levantei e fui para a cômoda, percebi que Mindy não tinha desviado os olhos. — Hum, com licença?

Ela riu.

— Lizzie! Eu já vi você pelada, tipo, um zilhão de vezes. Desde que você era um bebezinho.

— É, maneiro, mas é meio diferente agora que eu estou vendo você.

— Pfft — foi só o que ela disse, mas se virou.

Eu me vesti rápido, com uma camiseta e uma calça cargo ambas cinza-escuro, o mais perto que eu tinha de roupas pretas. Já que minha viagem ao além-mundo tinha me transformado, eu podia pelo menos me vestir de acordo.

Será que agora a minha vida seria assim para sempre? Com fantasmas acompanhando cada um dos meus passos? Eu não vira nenhum na viagem para casa, ou pelo menos não reconhecera. Mas Mindy parecia bem normal, exceto por usar roupas fora de moda e pelo atravessar de portas. Talvez eu tivesse passado por centenas de espíritos e nem tivesse notado.

— Então, quantos fantasmas existem? Quer dizer, o mundo inteiro é assombrado?

Mindy deu de ombros.

— A maioria dos lugares não é muito. Aqui nos subúrbios eu estou praticamente sozinha, porque ninguém se lembra dos vizinhos. Mas cidades pequenas... — A voz dela ficou mais baixa. — Elas são cheias de sussurros.

Alguém bateu à porta, e eu levei um susto.

— É só a Anna — falou Mindy.

Tentei manter minha voz firme.

— Oi, mãe?

Ela abriu a porta, avaliando o quarto.

— Hum, você estava falando com alguém?

— Quem me dera. Não tenho telefone. — Tentei não olhar para Mindy. — Eu estava cantando alguma coisa.

Minha mãe olhou para o laptop, desligado. Além do telefone, era a única fonte de música no quarto.

— Alguma coisa da minha cabeça — expliquei, colocando o cabelo molhado atrás da orelha.

— Certo. — Ela parecia nervosa. — Pensei que a gente podia fazer macarrão hoje. Do zero, com tinta de lula. Limpei a bancada da cozinha para a gente poder fazer uma bagunça.

— Momento perfeito para fazer uma bagunça. Acabei de tomar banho.

Ela hesitou, então sorri novamente para mostrar que estava brincando, ainda sem olhar para Mindy. Depois do que eu tinha passado, não precisaria de muito para convencer minha mãe de que eu estava enlouquecendo.

— Ótimo! Vou começar o molho — falou, e fechou a porta.

— Hummm... Espaguete — comentou Mindy.

— Fantasmas comem?

— A gente sente cheiro.

— Ah, entendi. — Eu já estava sussurrando, convencida de que minha mãe estaria do lado de fora, com a orelha grudada à porta. — Mas você tem que ficar aqui enquanto a gente cozinha. Não estou acostumada com essa história de amigo invisível ainda, e não quero parecer doida na frente da mamãe.

Mindy fez bico, passando a mão pelo cobertor como se o amaciasse. Mas as rugas permaneceram. Devia ser frustrante, não poder interagir com objetos e pessoas, não poder se conectar.

— Você não está sendo legal. Agora que é um pompo, a gente deveria ser amigas.

— Mas a minha mãe vai querer conversar sobre coisas. Ela sempre fica toda profunda e expressiva quando a gente cozinha. Eu não vou conseguir me concentrar se você ficar por perto. Por favor?

— Eu fico sentadinha no canto, sem falar nada. Prometo!

Hesitei, me perguntando o quanto podia confiar nas promessas de Mindy. Ela podia ser dois meses mais velha que a minha mãe, mas ainda falava como uma menina de onze anos. Fiquei pensando se fantasmas crianças nunca cresciam.

— Se você me deixar ficar lá embaixo, vou te contar um segredo.

— Detalhes constrangedores sobre a infância da minha mãe? Não, obrigada.

Mindy balançou a cabeça.

— É um negócio importante de verdade. Uma coisa que você precisa saber.

— Tudo bem, então. — Mindy sabia mais sobre a vida após a morte do que eu e, considerando os avisos de Yamaraj sobre perigos e predadores, seria útil saber mais. — Qual é o seu grande segredo?

— Tem um cara observando a nossa casa. Ele está aqui há três dias.

Peguei o caminho pelo quintal, arrastando o latão de lixo reciclável atrás de mim. Minha mãe pareceu surpresa quando me ofereci para levar o lixo para fora, mas não reclamou.

Mindy ia na minha frente, verificando se o caminho estava livre, mas meus nervos pareciam à flor da pele. Eu não tinha motivo algum para acreditar em Mindy. Minha mãe nunca tinha falado sobre ela. E se não houvesse ninguém observando a casa, e aquilo fosse algum tipo de... armadilha de fantasma?

Mas o que mais eu poderia fazer? Fingir que Mindy não tinha falado nada?

— Ele não está na rua de trás — disse Mindy do outro lado do portão. — Ele normalmente estaciona na frente da casa dos Anderson.

— Quem são os Anderson?

— Você não conhece seus vizinhos muito bem, né?

Não respondi, abrindo o portão e estacionando a lixeira no lugar de sempre na rua de trás. Fantasmas tinham muito tempo livre nas mãos, imaginei, e espiar os vizinhos era provavelmente mais interessante do que olhar para as paredes do closet da minha mãe.

Depois de dar uma olhada rápida para a casa e me certificar de que a mamãe não estava olhando, segui para a rua, mantendo distância da minha guia fantasmagórica. Ali fora, sob o sol, Mindy parecia mais deslocada do que no meu quarto. Não era só a camisa xadrez antiquada e o cinto largo dos anos 1970. O jeito como a luz do fim da tarde brincava nela parecia inadequado.

Então me dei conta: ela não tinha sombra. Não só a principal, que deveria estar seguindo Mindy no chão ao seu lado, mas nenhuma das pequenas sombras nas dobras das roupas estava lá. A luz do sol não dava a Mindy a textura dos vivos.

Eu tinha encontrado uma forma de identificar fantasmas, pelo menos durante o dia.

Do fim da rua vimos o carro, um sedã preto com placa da Califórnia.

Um cara jovem, de cabelo escuro, estava no banco do motorista, com um tablet apoiado no volante. Ele estava lendo, mexendo na tela, mas aí seus olhos se voltaram para a minha casa. Depois de um longo momento, o cara voltou a atenção ao tablet.

— Mas que bosta — sussurrei. — Você não estava brincando.

— Eu não brinco sobre moços assustadores.

Fiquei parada, tentando fazer meu coração se acalmar.

— Você consegue ir até lá ver o que tem na tela?

Mindy olhou para o chão e chutou, sem efeito, uma folha seca.

— Eu tenho um pouco de medo dele. Vem comigo?

— Hum, eu não sou invisível, lembra?

— Mas você é um pompo. — Ela franziu a testa. — Não pode atravessar?

— Você quer dizer para o além-mundo?

Ela deu uma risadinha.

— É melhor chamar de “outro lado”, sua tonta. É como se diz quando você está andando aqui em cima, não lá no submundo.

— Está bem, o outro lado. — Eu me perguntei se conseguiria atravessar bem ali no beco, ou mesmo se queria fazer aquilo. Afinal, isso significaria lembrar o que tinha acontecido do aeroporto, repassar tudo na minha mente. — Talvez.

Mindy inclinou a cabeça, se perguntando se eu estava brincando. Quando minha expressão não mudou, ela esticou a mão.

Eu a segurei, meio hesitante, e senti sua mão na minha como cócegas distantes. Aquele lugar gelado dentro de mim respondeu ao toque de Mindy, crescendo como dedos frios em volta do meu coração. A terra pareceu sumir sob meus pés, como um elevador começando a descer.

Estava acontecendo novamente, bem no meu quintal.

Quase soltei a mão de Mindy, mas ela segurou com mais força — de repente seus dedinhos pareceram reais e sólidos. O frio dentro de mim pulsou e rugiu, atravessando meu corpo. Tomou minha mente e meus sentidos, fazendo tudo ficar cinzento e calmo.

O ar do além-mundo tinha seu gosto familiar, como se eu estivesse com um prego enferrujado sob a língua. As folhas caídas sob nossos pés estavam em silêncio.

— Hum. — Minha voz me pareceu distante. — Normalmente não é tão fácil.

— Talvez porque você é nova. — Mindy estava cinzenta, como o resto do mundo. — Mas o homem não pode mais ver você. É como se você fosse um fantasma.

Olhei em volta, respirando fundo. Era estranho ver minha rua sem graça e sem cor, como o aeroporto. Percebi que Mindy era o oposto de Yamaraj: o toque dela me trazia para aquele lugar cinza e morto, enquanto o dele me mandava de volta para o mundo dos vivos.

Dei alguns passos cautelosos. Meus pés pareciam dormentes, mas quando bati as solas nuas no asfalto, senti apenas um zunido distante nos pés.

Eu não tinha percebido nada disso na primeira vez em que tinha atravessado. Talvez estivesse em choque, ou talvez fosse diferente com Yamaraj por perto.

— Que estranho — falei.

— É uma porcaria estar morta — concordou Mindy. Aí ela viu minha expressão e se corrigiu. — Não que você esteja morta. Você só é um psicopompo.

— Acho que vou usar outra palavra. Uma que não seja tão... psico.

Ela deu de ombros.

— É assim que todo mundo chama.

Olhei para o sedã preto de novo. Meus primeiros passos trêmulos tinham me feito caminhar ligeiramente pela rua, mas o homem não tinha desviado o olhar para mim. É claro, os terroristas não tinham conseguido me enxergar no aeroporto. Um deles passara através de mim.

Mas o toque de Mindy tinha feito tudo parecer simples demais.

— Você tem certeza de que eu estou invisível?

Mindy assentiu.

— Ele parece brilhante? Não tem a menor chance de ele enxergar o outro lado.

Olhei para minha mão. O brilho não ficava tão radiante quanto na pele morena de Yamaraj, mas estava definitivamente lá. Minha sombra sumira completamente.

— OK, invisível — falei comigo mesma. — Maneiro.

Fui caminhando na direção do sedã preto. O olhar do homem continuou no tablet, mesmo quando parei bem em frente ao carro.

Finalmente ele levantou os olhos na minha direção, mas não percebeu nada, espiando a casa através de mim. Mindy se aproximou timidamente.

— Ele é assustador, né?

— Ele está vigiando a minha casa. O que você acha?

Fui para o lado do motorista e me abaixei, olhando diretamente para o cara. Era uma sensação quase íntima, ficar tão perto sem que ele me visse, como espiar alguém por um espelho falso. Conseguia ouvir sua respiração pela janela aberta, e dava para sentir o cheiro do café no porta-copos debaixo da janela. Ele era mais jovem do que eu tinha imaginado, talvez uns 25 anos. Usava um terno escuro com gravata, e óculos de armação grossa bem nerds.

— O que ele está fazendo naquele negocinho de computador? — perguntou Mindy.

— No tablet, você quer dizer?

Ela só deu de ombros, o que me fez pensar no quanto sua compreensão do mundo continuava presa nos anos 1970.

Eu me aproximei, colocando os lábios a centímetros da orelha do cara misterioso.

— Ei, babacão!

Seus cílios longos bateram uma vez, mais tirando isso ele não respondeu. Soltei uma risada nervosa, depois me inclinei mais para dentro do carro, tentando ler o que estava no tablet.

Na tela havia uma lista de e-mails. Meus olhos passaram rápido pelos assuntos. Nada estranho — um lembrete sobre uma festa, alguém pedindo um arquivo, e os spams de sempre. Ele abriu uma das mensagens, que se expandiu e ocupou toda a tela. Me inclinei para ler, quase apertando meu rosto no dele.

Talvez eu tenha encostado nele, ou talvez tenha sido só uma coincidência, mas naquele exato segundo ele decidiu coçar a orelha. As costas da mão dele atravessaram minha bochecha, gerando fagulhas e cócegas. Levei um susto e me afastei, com isso, acabei batendo a cabeça no teto do carro.

— Droga!

A raiva tomou conta de mim, e Mindy cambaleou para longe do carro.

— É melhor a gente correr!

— Correr? Do que você... — comecei a falar, mas já estava acontecendo: o mundo clareou ao meu redor, o filtro cinzento que cobria minha visão se desfazia. Senti o calor tomar meu corpo e caí de joelhos, tonta com o fluxo de luz e cor, inspirando um ar que de repente me parecia fresco e real.

— Vem, Lizzie! — gritou Mindy, já correndo para longe.

Um momento depois me vi sentada ao lado do carro do perseguidor, piscando para acostumar meus olhos com a luz forte e normal demais do sol, e ele estava me encarando com os olhos bem arregalados.


CAPÍTULO 11

Na manhã seguinte à Noite de Drinques YA, Darcy se sentou na cama e descobriu que estava de ressaca. Ainda usava o vestidinho preto, no qual permanecia o inescapável cheiro de cerveja. Seu primeiro instinto foi deitar de novo, mas de repente a cama parecia girar.

Os primeiros minutos de pé foram difíceis, mas assim que ela vestiu o roupão e se serviu de café, a situação de Darcy começou a se transformar de enjoada para introspectiva e pensativa. A agitação do mundo do lado de fora das grandes janelas de Moxie dava uma sensação de alento. Aviões desenhavam silhuetas suntuosas no céu, e um fluxo constante de carros e táxis subia a avenida em direção aos píncaros do Empire State e do Chrysler Building. Darcy observou as pessoas passando pela Astor Place com um distanciamento autoral, inventando histórias sobre elas para se divertir.

A geladeira do apartamento só tinha pilhas, mostarda e maquiagem, e a despensa continha coisas ainda mais estranhas, como trufas enlatadas e ovos de codorna em conserva. Mas enquanto se conectava ao wi-fi para procurar comida pela vizinhança, Darcy encontrou uma penca de cardápios na escrivaninha de Moxie. Os restaurantes entregavam café da manhã, almoço e jantar, o que era exatamente do que Darcy precisava.

Depois de pedir o café, ela teve uma intensa conversa com Sodapop sobre a capacidade falante das aves, depois se conectou a Você_É_Uma_Escritora_de_Merda. Na sua caixa havia e-mails de Carla, Sagan e Nisha, e ela respondeu a todos com histórias sobre seu encontro com Kiralee Taylor, Coleman Gayle e Oscar Lassiter ao vivo. Na verdade, ela não tinha simplesmente conhecido os escritores como também debatera com eles sobre superpoderes, nomes de livros e apropriação cultural. Darcy tentou expressar o quão intoxicante toda a experiência tinha sido, sem deixar tão clara a parte assustadora.

A mãe dela também tinha escrito um e-mail para se certificar que Darcy não tinha sido assaltada ou morta de um dia para o outro. Darcy agradeceu pelo vestido preto e conseguiu mencionar que tinha voltado para casa antes das 23h na noite anterior. Então respondeu à sua tia Lalana, que tinha escrito um e-mail de boas-vindas a Nova York, copiando sua mãe para que a família inteira soubesse que estava tudo bem.

Felizmente, a caixa de entrada não tinha nada da Paradox. Darcy se sentia frágil demais para a tão esperada carta da editora. Ela mal podia acreditar que a noite anterior tinha acontecido de verdade, que ninguém havia questionado seu direito de estar na cidade.

Dava uma sensação de segurança, ficar encolhida na torre de Moxie durante seu primeiro dia em Manhattan. Todas as pessoas que ela conhecera na Noite de Drinques de YA pareciam tão seguras de si, tão certas de que eram realmente escritores. Não cavar um buraco no chão na presença de tamanha confiança havia drenado toda a energia de Darcy. Ela precisava recarregar.

No dia seguinte ela fez uma excursão pela vizinhança do apartamento, decorou onde ficavam os cafés e os caixas eletrônicos mais próximos, comprou duas resmas de papel na papelaria e deixou o indispensável vestidinho preto na lavanderia. Sua confiança aumentava a cada transação, e Darcy se perguntou se deveria limitar a busca por apartamentos à vizinhança de Moxie, agora que já tinha conquistado a região.

Ou será que isso era covarde demais, como aquelas meninas grudentas que viram melhores amigas das pessoas que conheceram no primeiro dia de aula.

Afinal, Nova York tem dezenas de bairros cujos habitantes todos exaltam suas qualidades com lealdade quase tribal. Mas Darcy não sabia muita coisa além do que vira nos filmes e na televisão, e tinha apenas doze dias até Moxie voltar. Sua falta de noção lhe dava o mesmo tipo de sensação de vazio que um dever de casa não terminado. Quem sabe ela devia ter passado o último mês pesquisando bairros em vez de ir a festas de adultos.

Então, três dias depois da Noite de Drinques YA, ela decidiu pedir ajuda.

— Hum, será que você gostaria de procurar apartamentos comigo?

— Claro, pode ser. — Imogen pareceu interessada. — No que você está pensando?

— Hum, no East ou West Village. Talvez Tribeca, Chelsea ou Chinatown? — Esses eram bairros de que Darcy se lembrava de cabeça.

— Então... Manhattan. Você tem uma lista de lugares para ver?

Darcy tinha, impressa nas primeiras folhas das resmas de papel que um dia receberiam revisões e continuações. Ela e Imogen combinaram de se encontrar num lugar por perto e num horário entre o café e o almoço.

— Você tem que entender que os primeiros lugares vão ser um horror. — Imogen estava olhando para o celular, usando o mapa para guiá-las pelas ruas confusas do West Village. — Mas isso é só para te amaciar.

— Entendi. Então os corretores mostram os apartamentos horríveis primeiro para te fazer pagar mais.

— Não, não os corretores. É a cidade mesmo, querendo foder com a sua cabeça. — Imogen ergueu os olhos do celular, muito séria. Ela usava um vestido de verão cor de ferrugem por cima de uma calça jeans que obviamente tinha sido usada para pintar. Os respingos de tinta eram da mesma cor amarronzada do vestido, o que Darcy achou muito estiloso. — Você tem que provar para Nova York que quer mesmo morar aqui.

— Mas eu quero muito. — Darcy já tinha certeza de que não havia outro lugar no mundo, que se arrastaria por cacos de vidro para morar ali. — Será que a cidade não pode simplesmente saber disso?

— É um ritual. Aceita.

Darcy assentiu e respirou fundo para se acalmar (pelo que seria a primeira de muitas vezes naquele dia).

O primeiro apartamento era um porão com um piso gelado que cheirava a concreto úmido. A única luz do sol vinha de uma janelinha estreita e alta bem no fundo do cômodo, que mais parecia como tivesse faltado um pedaço entre a parede e o teto, e a falha tivesse sido fechada com um vidro.

— OK, esse lugar é bizarro. — Darcy tentava em vão ter um vislumbre do céu, esperando afastar a claustrofobia causada pelo apartamento. Era como espiar pela tampa entreaberta de um imenso caixão. — Qual o nome daquela janelinha?

— Em um abrigo antibombas — respondeu Imogen baixinho — seria a janela de observação.

— É uma galeria — ofereceu o corretor, que tinha perdido a confiança de Darcy ao tentar 14 chaves antes de encontrar a da porta de entrada. — Bem lúdico.

— Bastante. — Imogen estava encarando a banheira de pés franceses no meio da cozinha. — E é só esse cômodo?

— Sim — concordou o corretor. — Lofts de porão estão na moda.

— Lofts de porão — repetiu Darcy, trocando um sorriso com Imogen sobre a contradição em termos. Mas aí a claustrofobia a atacou de vez, e Darcy teve que sair.

O próximo apartamento era igualmente lúdico, embora o corretor tenha tido mais sorte ao manejar as chaves. O apartamento ficava no andar de cima de uma antiga edícula de empregados no quintal de uma casa geminada no West Village. O lugar tinha um cheiro melhor do que o loft de porão, e era abençoado com uma vista em 360º. Mas todas as janelas davam direto para as outras casas ao redor, a poucos metros de distância.

— Panóptico — comentou Imogen, encarando um gatinho laranja na janela dos vizinhos.

Darcy não conhecia a palavra, mas soava muito bem, e o significado era bem óbvio. Ela se perguntou se haveria alguma maneira de enfiar “panóptico” no Além-mundos, e se Imogen se lembraria daquele dia e suspeitaria de ter inspirado Darcy a usá-la.

Ao descerem as escadas, Darcy perguntou:

— E aí, será que a cidade já acabou de me testar? Posso ver os apartamentos bons agora?

Imogen balançou a cabeça.

— Depois de dois? Você não é muito inabalável.

— Eu sou inabalável. Eu sou um soldadinho de chumbo, porra. Mas a Moxie volta em 11 dias! — Darcy pegou a listagem. — Talvez a gente devesse pular para os mais caros.

Elas já estavam na rua, e o céu estava escuro. Todos os aplicativos de previsão do tempo de Darcy a avisaram que choveria naquele dia. Mas ela não tinha guarda-chuva, e o de Moxie era gigante, estampado com imagens vintage de homens pelados.

Imogen esticou a mão para ver se já estava chovendo.

— Esses dois lugares já eram bem carinhos, embora lúdicos. Qual o seu orçamento?

— Três mil por mês.

Imogen arregalou os olhos.

— Sério?

— Foi o que a minha irmã disse.

— Sua irmã vai morar com você?

— De jeito nenhum! Quer dizer, ela só tem 14 anos. — Aquela talvez tivesse sido uma boa hora para Darcy contar a Imogen sobre sua idade, mas ela não contou. — Nisha é o gênio matemático da família. Ela fez um orçamento para mim pelos próximos três anos, porque Além-mundos sai ano que vem, e a continuação, no ano seguinte. Então acho que no terceiro ano eu já vou saber se sou uma escritora de verdade ou não.

— Se você está vendendo, quer dizer?

Darcy assentiu, se perguntando se suas palavras tinham sido um passo em falso.

— É uma mania que peguei da Nisha. Ela fica falando que eu sou uma escritora de verdade agora, mas que talvez eu não seja uma para sempre.

— Você escreveu um livro. É real, sendo um sucesso ou não.

Darcy baixou os olhos para os chicletes pretos fossilizados na calçada.

— Mas não é só uma questão de vendas. É poder falar “minha agente” e poder ir à Noite de Drinques YA. Eu sei que é meio ridículo, mas essas coisas fazem tudo isso parecer mais real.

— Não se envergonhe. Dinheiro e status são muito reais.

— Não é que eu tenha que ser super-rica e famosa — continuou Darcy. — É só que... eu tenho a sensação de que alguém vai me pedir uma carteirinha. Tipo, uma carteirinha de escritor.

O céu soltou um trovão, e as duas pararam no meio da calçada. Quando as primeiras gotas começaram a cair, um homem passou por elas apressadamente, passeando com um lindo greyhound preto. A coleira de metal do cachorro bateu no joelho da calça jeans de Darcy por um segundo.

Imogen a puxou para debaixo de um toldo, e as duas ficaram encostadas na vitrine de uma loja que vendia charutos e cachimbos. O aroma doce e pesado do tabaco se misturou ao cheiro fresco da chuva.

— Eu entendo o que você quer dizer. Lembra quando a gente estava no colégio, quando você ia numa festa, e se não falasse com aquela pessoa de quem você gostava, nem valia a pena ir? Como se todas as outras pessoas nem fossem de verdade. O que é uma coisa bem horrível para se fazer com os outros, mas era como a gente se sentia, né?

Darcy sabia muito bem, mas só assentiu vagamente, como se aqueles dias fossem uma lembrança distante.

— Ou às vezes é com comida — continuou Imogen, com a chuva caindo mais forte. — Como às vezes a única comida que serve é um montão de batatas fritas, e você tem que sair no meio da noite para comprar senão acha que vai morrer. — Ela estava com os punhos cerrados agora. — Para mim, escrever é a única coisa que é sempre de verdade. Eu nunca me arrependi de um dia em que escrevi uma cena legal, não importava o que mais eu tivesse ferrado naquele dia. Isso é que é real de verdade.

Darcy havia parado de respirar de tanto que concordava. Ela queria poder voltar no tempo e roubar as palavras de Imogen, só para poder ouvi-las na própria voz.

— Eu sei — conseguiu falar. — Mas só aconteceu comigo uma vez...

Ela se referia ao mês de novembro anterior, quando aquele macaco aleatório tinha se instalado na sua cabeça e a ajudado a escrever Além-mundos.

— É a síndrome do segundo livro. — Imogen balançou a mão, se acalmando. — Eu também fiquei assim depois do Piromante. Porque minha primeira namorada era piromaníaca, então talvez essa fosse a única coisa sobre a qual eu soubesse escrever. Como se tivesse sido um acidente. Mas livros não acontecem por acidente.

Darcy assentiu. A certeza de Imogen era contagiante, e Darcy se sentia mais real só de estar ali ao lado dela, o estrondo da tempestade aumentava e a chuva limpava o ar ao redor.

— Então eu só tenho que escrever outro livro, e estarei curada.

— Por um tempo. Tem só um probleminha: eu me senti do mesmo jeito depois de Ailuromante. E Kiralee diz que todos os livros que já escreveu parecem um acidente. Todos nós vamos ter uma eterna síndrome do segundo livro.

— Tudo bem, acho — respondeu Darcy. As épocas ruins valeriam a pena, desde que houvesse outros novembros.

Imogen estava sorrindo.

— Então você consegue lidar com uma vida inteira de sofrimento, mas não aguenta mais alguns apartamentos lúdicos?

— Permaneço inabalável. — Darcy olhou para a lista, mas os endereços começaram a nadar diante dos seus olhos. — Onde você mora, aliás?

— Chinatown.

— É bom para escritores?

Imogen riu.

— Eu moro lá por causa da comida.

— Ah, entendi. Eu gosto de yakisoba.

Isso fez Imogen rir também, embora tivesse soado fraco aos ouvidos de Darcy.

— Se você está odiando tudo por aqui, a gente pode procurar alguma coisa lá perto de casa. Tem alguma coisa aí na lista?

— Algumas, acho. — Sem saber bem onde Chinatown começava e terminava, Darcy entregou a lista. — Não estou te impedindo de escrever uma cena boa, estou?

— Eu não escrevo durante o dia. Muito pouco romântico.

— Bem, se a gente tem o dia todo... — Darcy esperou que Imogen discordasse, que dissesse que só tinham mais uma ou duas horas, mas ela não falou nada. — Eu pago o almoço, e aí a gente continua procurando, pode ser?

— Ótimo. — Imogen devolveu a lista e puxou Darcy pela calçada, apesar da chuva. — Eu conheço um lugar que vende yakisoba.

O orçamento de Darcy — que na verdade era o orçamento de Nisha — funcionava assim:

Além-mundos e Patel nº 2 tinham sido comprados pela Paradox Publishing pela magnífica soma de 150 mil dólares cada. Desses trezentos mil dólares, quinze por cento (45 mil) pertenciam à Underbridge Literary Agency, e mais cem mil ao governo, dependendo de quanto Darcy deixasse Nisha trapacear os impostos.

Depois de um laptop novo e alguns móveis, sobravam mais ou menos cinquenta mil dólares por ano, por três anos.

A partir desse ponto até Darcy conseguia fazer as contas. Cinquenta mil divididos por 12 dava pouco mais de quatro mil dólares por mês, o que significava no máximo três mil de aluguel. E mil dividido por trinta dava 33 dólares por dia.

Nem ela nem Nisha sabiam se isso era suficiente para comer, se vestir e se divertir em Nova York, mas parecia razoável. E sempre se podia comer miojo.

Embora naquele exato momento o prato que Darcy e Imogen estavam comendo — ramen com couve-toscana, paleta de porco e redução de missô branco — já tivesse ultrapassado esse valor.

— Uau — dissera Imogen quando Darcy explicou seu orçamento. — Você é rica!

— Eu sei. Muita sorte, né? — No momento em que as palavras saíram da sua boca, Darcy percebeu que quando sua mãe usava aquela palavra (como Darcy tinha sido sortuda por publicar um livro) ela ficava inexplicavelmente irritada. Mas entre Imogen e ela, tudo bem usar sorte. — Eu sei que nem tudo que eu escrever vai dar tanto dinheiro.

— É, nunca se sabe. Os livros da Kiralee não foram muito bem desde Bunyip.

Darcy levantou os olhos do prato.

— Sério? Achei que o Coleman estivesse brincando naquele dia.

— Não estava. Ele diz que os livros dela só vendem uns dez mil exemplares cada.

— Que droga. — Darcy não sabia exatamente o que aquele número significava, mas parecia pouco em comparação ao seu adiantamento. — E é muito assustador. Se uma escritora como Kiralee não consegue vender bem, como eu vou vender? Tipo, todo mundo que eu conheço já leu todos os livros dela.

— As pessoas que você conhece leem livros. — Imogen deu de ombros. — Mas Bunyip fez sucesso com um público muito maior: as pessoas que não leem livros. Ou talvez leiam um livro por ano. Coleman diz que é aí que está o dinheiro no mercado editorial: nas pessoas que não leem.

— Uau. Isso explica muito sobre as listas de mais vendidos.

Darcy tinha passado cada minuto livre dos últimos quatro anos na biblioteca do colégio, cercada pelos Zelotes da Leitura, cujos membros, todos eles, tinham aplicativos nos blogs contando o tempo que faltava para a publicação do próximo volume de O bardo e a espada ou de A gangue secreta, e mandavam uns aos outros capas de livros YA com legendas bobas no Dia dos Namorados.

Mas pensando bem, esses eram mais ou menos vinte adolescentes em meio aos mil que frequentavam a escola: dois por cento. E se o restante do mundo também tivesse uma porcentagem tão triste de leitores?

— Agora estou me sentindo culpada.

— Devia mesmo. Cento e cinquenta vezes dois. Puta merda.

Darcy se perguntou quanto Imogen tinha recebido por Piromante, mas ela não havia oferecido a informação, então Darcy se sentia mal em perguntar.

— Bem, sem contar os impostos... e o pagamento da Moxie. E os vinte dólares que a Nisha me cobrou para fazer esse orçamento!

Imogen riu e piscou os olhos de um jeito lento e felino. Darcy se perguntou se isso sempre acontecia quando ela ria.

— Por falar em Kiralee... Ela quer ler o Além-mundos.

Darcy congelou.

— Mas... Ainda nem está editado.

— É, ela odeia ler os livros depois de editados. Não tem tanta coisa para reclamar. Se você me mandar o manuscrito, eu encaminho para ela. Talvez ela escreva um elogio de capa.

— Hum, claro. — Darcy se lembrou da mistura de animação e ansiedade quando falara sobre seu livro com Kiralee, e refletiu quão assustadora seria a opinião dela quando de fato tivesse lido o livro. — Então, ela estava falando sério naquele dia? Sabe, sobre se apropriar da cultura alheia para inventar um galã?

— Supersério. Mas tem mais a ver com Bunyip do que com você. É o livro mais popular dela, mas é o de que ela mais se arrepende.

Darcy franziu a testa.

— Como assim?

— Tipo, o livro pega a mitologia de uma cultura muito antiga e a usa como pano de fundo para a angústia de uma menina branca em relação ao seu primeiro beijo. Isso já é complicado o suficiente. Mas o pior é que todos os personagens aborígenes, que efetivamente são daquela cultura, não aparecem no final do livro.

Darcy pensou por um segundo.

— Nossa, nem notei.

— É. Porque o livro é sobre aquele primeiro beijo.

— Que é um excelente primeiro beijo. E o engraçado é que, se Kiralee não tivesse roubado aquele mito, eu nunca teria ouvido falar de bunyips.

— Esse é o poder de uma história. E com grandes poderes... — Imogen abriu os braços. — Kiralee não quer que você se sinta assim sobre Além-mundos daqui a quinze anos.

— Ou antes disso. — Darcy já estava com medo de quando sua mãe fosse ler o livro, e agora tinha mais oitocentos milhões de pessoas com quem se preocupar.

— Mas você é hindu. Não é a sua cultura?

— Eu imaginei Yamaraj como um astro de Bollywood, o que mostra o quanto eu sei sobre hinduísmo. Não sei se ele acabou ficando mais galã do que sério. Para um senhor da morte, quero dizer.

Imogen deu de ombros.

— Bem, você ainda pode revisar.

— Só existe boa reescrita — murmurou Darcy. Ela ainda não conseguia se lembrar de quem tinha dito isso.

A garçonete trouxe a conta, e Darcy fez um gesto para Imogen guardar a carteira velha e pagou a conta em dinheiro. Com a gorjeta, a conta deu mais do que o dobro do orçamento diário de Nisha, mas a comida era boa mesmo.

— Você quer ler o livro também? — perguntou ela quando as duas estavam saindo.

— Claro! Vou te mandar o Piromante. — Imogen pegou um punhado de caixinhas de fósforo com o logo do restaurante e as enfiou no bolso. — Pronta para mais apartamentos lúdicos?

— Claro — disse Darcy. — Obrigada por me trazer aqui.

— A melhor forma de conhecer uma cidade é comê-la.

* * *

— Eu sou um soldadinho de chumbo. Inabalável — declarou Darcy, cansada. Mas a palavra tinha perdido todo o significado. Talvez ela devesse usá-la em algum lugar do livro, só para se lembrar daquele dia interminável.

Elas estavam chegando ao sexto apartamento desde o almoço. Os dois primeiros ficavam no Meatpacking District, um em frente a uma garagem da FedEx, o que fazia com que Darcy conseguisse sentir o tremor dos caminhões quando encostava nas paredes, e outro numa rua que cheirava a carne. Os outros três eram cubos brancos sem personalidade em torres de vidro em volta da Union Square. Era o tipo de bairro que Annika Patel adoraria, mas Imogen avisou que nada escrito em um ambiente tão estéril teria qualquer sentimento.

Então elas seguiram para Chinatown sob a chuva que diminuía. Na porta de um prédio de esquina, encontraram um israelita chamado Lev, que tinha um sotaque russo e usava terno elegante. Ele as levou por uma grande escadaria que parecia de um templo maia. Sem se enrolar com as chaves, Lev abriu a porta do apartamento 4E.

Era o maior que Darcy vira até então, ocupando metade da planta do edifício. O pé-direito tinha pelo menos 3,5m, e duas paredes eram ocupadas por janelas que davam para a esquina lá embaixo. A luz pálida do sol estava vazando pelas nuvens e atravessava os vidros iluminando uma galáxia de pó suspenso no ar.

— Dá para andar de patins aqui — falou Imogen baixinho, impressionada.

— Era um estúdio de dança. — Lev indicou os espelhos que cobriam uma das paredes. — Mas você pode arrancar os espelhos.

Darcy observou o próprio reflexo; ela parecia minúscula naquele espaço imenso. Ao se aproximar de uma das janelas, percebeu que o vidro estava manchado pelo tempo, inchado na parte de baixo como um líquido viscoso. Os prédios do outro lado da rua estavam enfeitados pelas escadas de emergência brilhando com gotas de chuva. O chão rangeu quando Darcy andou pela sala, olhando a vista de Chinatown.

— Para onde vai aquele corredor? — perguntou Imogen. Ficava ao lado da porta do apartamento, no canto oposto às paredes das janelas.

— Tem dois camarins para os dançarinos. — Lev chamou as duas com o indicador. — E uma cozinha, não muito grande.

Os dois camarins também não eram grandes. Cada um tinha uma fileira de armários numa das paredes, e entre os dois quartos havia um banheiro com chuveiro.

Imogen ficou parada no corredor.

— Você pode fazer um de quarto, o outro de closet. Vai ser a única pessoa em Manhattan com um chuveiro no closet.

— Não — interrompeu Lev. — Eu já vi isso antes.

— Eu não trouxe tanta roupa assim — explicou Darcy, embora, é claro, pudesse pedir para os pais que levassem mais. E ela tinha planejado comprar roupas em Nova York, é claro, quando decidisse o que os escritores usavam. Ela havia esquecido de prestar atenção nisso na Noite de Drinques, embasbacada demais com todo o resto.

Lev mostrou a cozinha por último. Era o menor cômodo do apartamento, mas Darcy não se via cozinhando muito. Ela queria sair e comer na cidade até conhecê-la profundamente.

— O seu apartamento fica longe daqui? — perguntou a Imogen quando voltaram ao cômodo principal.

— Uns cinco minutos andando. A gente seria vizinha se você morasse aqui.

Darcy sorriu para ela, depois olhou para a lista impressa de apartamentos. Seu coração apertou um pouquinho quando percebeu que aquele era um dos anúncios sem preço indicado.

— Esse aluguel é legal? — Imogen perguntou a Lev. — Quer dizer, um estúdio de dança é uma empresa, não uma casa.

— Era um estúdio de dança ilegal — respondeu ele dando de ombros. — Agora é legal de novo.

Darcy não ligava. Só de poder morar em Nova York, naquele apartamento, tudo parecia irreal. Se era legal ou não ficava em segundo plano. Ela respirou fundo.

— Quanto?

Lev abriu um fichário de couro verde com a lombada toda rachada.

— Três mil e quinhentos. Tudo incluído.

— Droga. — Duas coisas ficaram claras para Darcy. A primeira era uma que ela sentia uma sensação terrível de atravessar o chão. A outra era a certeza de que ela poderia escrever ali. Que ela tinha que escrever ali.

— A gente pode ter um segundo a sós, Lev? — pediu Imogen baixinho. Ele assentiu, com um sorriso entendedor no rosto, e se afastou para a minúscula cozinha.

— Eu tenho que perguntar para minha irmã — comentou Darcy, já escrevendo uma mensagem: Orçamento com aluguel 3500/mês?

— Então você quer ficar com o apartamento?

— Eu preciso do apartamento. Nem sei por quê. — Darcy ficou olhando para a rua lá embaixo. Tinha o mesmo movimento da vista do apartamento de Moxie, mas as ruas eram mais cheias ali em Chinatown. E a apenas cinco andares do chão em vez de quinze, a sequência permanente de corpos era mais íntima, mais pessoal. Uma banquinha de peixeiro se banhava em um raio de sol, com o gelo branco e as escamas prateadas dos peixes brilhavam. — Olha o tamanho desse lugar. Eu teria que inventar histórias só para preenchê-lo.

Imogen sorriu.

— Onde você vai escrever?

— Minha mesa vai ficar aqui. — Darcy indicou o canto em que as duas paredes com janelas se encontravam. Ela colocaria a mesa na diagonal, virada para fora, de cara para a vista toda. O resto da sala ficaria vazio.

— Você vai poder pagar o aluguel e comer?

— Talvez. Ou talvez eu só escreva, e não coma. — Darcy percebeu que a mesa que ela estava imaginando era igual à da escola, quadrada e de madeira, com uma cadeira de plástico. Isso era o melhor que ela podia inventar? Que escritora mais furreca.

Seu telefone apitou com a resposta de Nisha:

3500/mês = 2anos, 8m #suadeusadamatemática

Ela soltou um grunhido e mostrou a mensagem para Imogen.

— Eu vou perder quatro meses!

— Hum, você também poderia arrumar um emprego, sabe?

Darcy quase começou a explicar que seus pais a obrigariam a ir para a faculdade se isso acontecesse, mas Imogen provavelmente pensava que Darcy já tinha se formado. Ela prometeu a si mesma que contaria quantos anos tinha muito em breve, mesmo que isso significasse se sentir muito jovem e, sinceramente, um pouco menos real.

Mas não agora, enquanto seu futuro estava sendo decidido.

O telefone apitou; Nisha de novo.

Plano alternativo: 3a inteiros mas só 17/dia para comer

HAHA GAROTA YAKISOBA #gordinha

Darcy suspirou. Nisha não sabia que yakisoba podia ser tão caro em Nova York. É claro, tinham pratos de ramen com couve-toscana, paleta de porco e redução de missô branco, e tinham yakisobas feitos em carrinhos de rua a três por um dólar. Darcy gostava desses também, contanto que ela pudesse colocar Tabasco, açafrão e um ovo mole. Ela conseguiria escrever com 17 dólares por dia, especialmente se fosse naquele apartamento maravilhoso.

— Vou ficar com ele — sussurrou, e Imogen sorriu e piscou daquele jeito tão felino, como se nunca tivesse duvidado da obstinação de Darcy.


CAPÍTULO 12

— O que você acha que está fazendo? — perguntou o homem no sedã preto.

Eu me afastei dele às pressas, atravessando a calçada e o jardim dos Anderson. Meu coração batia forte e o mundo parecia muito real.

— O que eu estou fazendo? — gritei. — É você quem está espionando a minha casa!

— A sua casa? — Ele deu uma olhada nos pontos na minha testa. — Você é Elizabeth Scofield, não é?

— Eu sou a pessoa que vai chamar a polícia a não ser que você se mande daqui rapidinho! —Enfiei a mão no bolso, que não tinha nenhum celular.

— Não há necessidade, Srta. Scofield. — Ele tirou uma carteira grande do blazer, e a abriu para mostrar um distintivo e a carteira de identidade. — Agente Elian Reyes, do FBI.

Fiquei olhando para a identidade e para o rosto dele. Com certeza era uma foto dele, com os óculos de nerd e tudo, e o distintivo parecia bem real. Uma águia de metal, com as asas abertas no topo, de um dourado brilhante sob o sol do mundo dos vivos.

O agente Reyes fechou a carteira e abriu a porta do carro, mas parou por um segundo, esperando que eu aprovasse sua saída.

Eu assenti, mas dei outro passo para trás.

— Sinto muito por tê-la alarmado, Srta. Scofield. — Ele guardou a carteira ao ficar de pé, depois se apoiou no capô, com os braços cruzados. — Não era minha intenção assustar ninguém.

— Então por que você está de olho na minha casa?

Ele parou por um momento, batucando com as pontas dos dedos no braço.

— Tenho autorização para contar o motivo de eu estar aqui, para evitar qualquer mal-entendido. É por causa de toda a atenção que você tem recebido desde o ataque.

— Sei. Mas não tem nenhum repórter aqui.

— Mas tinha, até ontem. Eles desistiram. Foi uma jogada inteligente a demora para voltar de Dallas.

— Hum, obrigada. — Fiquei me perguntando se a mamãe tinha pensado nisso.

— Mas não estou aqui para protegê-la de jornalistas. — Sua voz ficou um pouco mais tensa. — Meus superiores estão preocupados com o grupo que cometeu o ataque.

Tentei manter a respiração sob controle.

— Mas eles morreram.

— Os terroristas, sim, mas eles faziam parte de um culto maior. — Ele parou de novo, como se estivesse ponderando se deveria continuar.

— Por favor, me explique o que está acontecendo, agente Reyes.

— Você só tem 17 anos.

— Tenho idade suficiente para pegar um agente do FBI de surpresa, aparentemente.

Tudo que consegui com essa resposta foi um erguer de sobrancelha, e as palavras:

— Talvez seja melhor eu falar com a sua mãe.

— Prefiro que você não faça isso. Minha mãe é medrosa. Tipo, ela se assusta com carros na estrada.

— Ela deve dirigir de uma forma bem interessante.

— Você nem imagina. — Dei um passo para a frente. — Só me diga o que está acontecendo, agente Reyes. Eu já sobrevivi a metralhadoras esta semana. Acho que posso lidar com seja lá o que você vá me dizer.

Ele olhou de volta para a casa e suspirou.

— É justo. Os atiradores pertenciam a uma organização chamada Movimento pela Ressurreição, que tem uma mentalidade apocalíptica, dogmas isolacionistas e um líder carismático. Em outras palavras, todas as características de um culto destrutivo, ou como às vezes são chamados, cultos de morte.

— Merda. Mas todo mundo falou que aqueles quatro caras fizeram tudo sozinhos.

— É o que os líderes do culto dizem. Mas ainda estamos de olho no grupo como um todo. — Ele ergueu as mãos. — Não precisa ficar preocupada. É só que seu rosto esteve em evidência na imprensa.

— Como um símbolo de esperança — completei baixinho.

— Sim, Srta. Scofield. Um símbolo de vida, até.

— E eles são um culto de morte. — Soltei um suspiro. — Merda. Odeio cultos de morte.

— Eles também não me agradam muito. Mas, de novo, estamos sendo precavidos. — Ele se virou e olhou para a minha casa mais uma vez, como fizera a cada trinta segundos durante toda a nossa conversa, apesar de eu estar parada bem na frente dele. Mas é claro que minha mãe ainda estava lá dentro.

Saber que ele ainda estava fazendo seu trabalho mesmo enquanto conversava comigo, me acalmou um pouco.

— Obrigada.

— Era justo que você soubesse. — Ele assentiu com um movimento preciso da cabeça.

— Não, quis dizer obrigada por fazer isso. — Meu olhar baixou para os sapatos perfeitamente engraxados dele, e de repente pensei que preferia não estar descalça. — Por proteger a gente.

Minha mente voltou ao aeroporto. Os agentes de segurança, os caras de quem meu pai sempre reclama quando verificam as bagagens, tinham lutado com os atiradores, pistolas contra metralhadoras...

— Você está sendo muito gentil, Srta. Scofield. Mas fique tranquila. O Movimento ficará sob vigilância por tempo ilimitado. Não há motivos para ter medo.

— Não estou com medo. — Eu tinha poderes agora e podia andar do outro lado. Alguns dos meus melhores amigos eram fantasmas.

Não que Mindy estivesse à vista. Será que ela tinha desaparecido com o susto, ou só corrido para se esconder?

— É melhor eu voltar. Minha mãe está esperando. Obrigada por não falar nada para ela.

— A decisão é sua. — O agente Reyes pegou um cartão de visitas no bolso do blazer. — Mas se mudar de ideia, fico feliz de explicar tudo. — Com um sorrisinho, completou: — Com sorte de um jeito não assustador.

— Está bem. Talvez. — Li os dizeres no cartão. — Agente especial Elian Reyes? Você não falou que era um agente especial.

Ele deu de ombros e entrou no carro.

— Uma curiosidade sobre o FBI: todos nós somos agentes especiais.

O agente Reyes não parecia estar brincando, mas tive que rir. Isso me fez sentir meio boba, então acenei, depois me virei e fui andando para casa, tentando afastar o pensamento de que os óculos dele eram meio fofos.

Mindy não estava na rua de trás nem no quintal. Ela não seria de grande ajuda se eu tivesse problemas no além-mundo, concluí. Não que fosse justo culpá-la por fugir. Não importava em que ano ela tivesse nascido; Mindy ainda tinha 11 anos.

— Lizzie? — Minha mãe estava na porta dos fundos, secando as mãos num pano de prato. — Onde você estava?

— Oi, foi mal. — Dei uma olhada por cima do ombro. — Só estava dando uma olhada lá fora.

— Uma olhada?

Dei de ombros e passei por ela para a cozinha. Mindy também não estava lá.

No balcão havia um bolo de massa, preta por causa da tinta de lula. Dava para ver as impressões digitais da minha mãe e algumas partes que ainda precisavam ser misturadas melhor. Fui lavar as mãos na pia.

— Tudo bem? — perguntou minha mãe.

— Tudo. Só fui pegar um pouco de ar. — Se ela pedisse uma explicação melhor, eu sempre poderia entregar o cartão do agente especial Reyes e deixar que ele explicasse.

Mas ela apenas assentiu.

Nós dividimos a massa em duas e ficamos ali um tempinho, amassando até que ficasse com a consistência certa. Era bom ter algo para apertar, algo pungente, com cheiro de peixe e inegavelmente real.

Me perguntei para onde Mindy tinha ido. Será que estava se escondendo em casa? Ou em algum nível mais profundo da realidade, onde só ela podia ir? Algum lugar ainda mais distante do que o outro lado, onde eu não conseguiria encontrá-la?

Tanto ela quando Yamaraj tinham mencionado o “submundo”, onde quer que ficasse isso.

Percebi que minha mãe estava me olhando, como se esperasse ouvir mais sobre a minha caminhada lá fora.

Então mudei de assunto.

— Você já teve um cachorro?

Ela parou de misturar a massa.

— Quando eu era pequena, sim. Você quer um cachorro?

— Nove meses antes de ir para a faculdade? Isso seria meio estranho.

— Verdade, mas talvez você se sentisse mais segura com um cachorro em casa. — Ela deu uma olhada para a porta dos fundos aberta, como se pensasse que eu tinha ido lá fora verificar a presença de terroristas no quintal.

— Eu me sinto supersegura, mãe. Só estava pensando. Você não fala muito sobre a sua infância.

— Acho que não. — Ela parou de novo. — Por que você está falando disso?

— Por nada. — Isso não era verdade, mas também não dava para dizer que eu tinha conhecido o fantasma de sua melhor amiga, a quem ela nunca tinha mencionado. — Acho que o que quero saber é... você já passou por alguma coisa assim?

— Tipo um ataque terrorista? — Ela arregalou os olhos. — Nossa, filha. Você sabe que isso não acontece todo dia, né? Mais pessoas são atingidas por raios do que mortas por terroristas.

Ela pareceu tão frágil dizendo aquilo que sorri e segurei a mão dela.

— Raios? Que bom. Então já fechei a cota da vida inteira.

Nós misturamos as duas porções de massa e começamos a trabalhar juntas, lado a lado, as mãos ficando cinzentas. A tinta de lula leva alguns dias para sumir por completo da minha pele, o que sempre me fascinou.

Daquela vez foi ainda mais estranho ver minhas mãos perdendo a cor, como se o outro lado estivesse atravessando para a realidade. É claro que Yamaraj e eu parecíamos normais no além-mundo, enquanto todas as outras pessoas, vivas ou mortas, eram cinzentas.

Nós, psicopompos, éramos especiais.

Conforme trabalhávamos a massa, me dei conta de que o que eu tinha dito era verdade — eu não tinha medo do Movimento pela Ressurreição, ou seja lá como se chamavam. O que o agente especial Reymes tinha dito sobre seus “dogmas isolacionistas”? Isso provavelmente só significava que eles moravam no meio do mato com péssimos banheiros. Eram pessoas pequenas com ideias pequenas, e eu estava aprendendo a entrar em outra realidade completamente diferente. Melhor nem pensar neles.

No momento eu estava mais preocupada com Mindy. Me perguntei por que minha mãe nunca tinha falado nada sobre ela.

— Qual foi a pior coisa que já te aconteceu, mãe?

— A pior coisa? — Ela respirou fundo, limpou as mãos e abriu a gaveta de utensílios, procurando algo. — Acho que quando seu pai me disse que todos os nossos anos juntos tinham sido uma perda de tempo para ele.

— Ah, é. Claro, desculpa. — Parei de mexer na massa para lhe dar um abraço enfarinhado. — Mas eu quis dizer quando você era nova. Tipo, a coisa mais traumática que aconteceu com você.

Ela tirou um rolo para massa e girou o utensílio lentamente na palma da mão esquerda.

— Talvez esse não seja o melhor momento.

— Acho que esse é, sim, o melhor momento, mãe. Me ajuda a entender o que houve.

— Mas eu não quero te assustar.

Tive que me segurar para não rir dela. Não por maldade, mas porque era tão engraçado.

— Mãe, a coisa que podia me assustar esta semana já aconteceu. E eu sobrevivi, então, por favor, me conta.

Ela me olhou com atenção por um momento, como se eu houvesse me transformado em algo irreconhecível. Mas, assim como o agente Reyes, no fim ela contou.

— Foi quando eu tinha 11 anos.

Assenti para encorajá-la a continuar, e porque eu já sabia dessa parte.

— Minha melhor amiga — falou ela baixinho —, a menininha que morava do outro lado da rua. Ela foi sequestrada.

— Ah.

— Ela estava fazendo uma viagem de carro com os pais pelo país, eles estacionaram numa daquelas paradas na estrada... E ela desapareceu.

Fiquei olhando para ela, tentando acompanhar todas as revelações ao mesmo tempo. O medo que minha mãe tinha de estradas. Como ela sempre ficava nervosa ao me deixar brincar do lado de fora.

— E eles descobriram quem foi?

Minha mãe balançou a cabeça.

— Não, mas eles a encontraram semanas depois. Essa foi a parte mais assustadora.

— O que aconteceu?

— A Mindy tinha sido enterrada... no próprio quintal. Então seja lá quem foi sabia onde ela morava, talvez até conhecesse a família. Embora ela tivesse desaparecido a quilômetros de casa. Foi por isso que seus avós se mudaram para cá. Não conseguiam mais morar naquela rua.

Um tremor me atravessou, e senti o lugar frio dentro de mim tomando meu coração, como quando tinha segurado a mão de Mindy. O gosto de metal dominou minha língua, e por um momento pensei que fosse atravessar para o outro lado bem ali, na frente da minha mãe.

— Putz — falei, me abraçando com as mãos cheias de farinha.

— Ai, desculpa, Lizzie. — Os olhos da mamãe estavam arregalados. — Eu sou uma idiota.

— Não, não é. — Respirei fundo, puxando bem o ar do mundo dos vivos. — Você tinha que me contar. Nós duas passamos por coisas difíceis. Eu precisava que você me contasse.

— Filhota, você não precisava dessa história horrível. Não agora.

Ela estendeu a mão, quase tocando com a ponta dos dedos a cicatriz na minha bochecha.

— Tudo bem. Eu estou bem. — Me virei para lavar as mãos. — Só preciso de um segundo. Só isso.

Eu a abracei de novo, com tanta força que uma névoa branca de farinha encheu o ar ao nosso redor, e depois fui para o meu quarto.

— Só um segundo — falei, e fechei a porta atrás de mim.

Meu coração estava disparado, forçando vida para o lugar frio dentro de mim. Toquei meus lábios onde Yamaraj tinha me beijado no aeroporto, e senti seu calor. Eu não ia atravessar. Era só um terror passageiro por causa da história da minha mãe. A história de Mindy.

Olhei pelo quarto.

— Você está aqui? — sussurrei.

Sem resposta. De repente, percebi onde ela estava.

Saí de volta para a cozinha e abri um sorriso alegre para minha mãe.

— Acho que eu só precisava fazer xixi.

Passei por ela e atravessei o corredor para o outro lado da casa, parando no banheiro para lavar o rosto com água fria. Então continuei e entrei no quarto da mamãe.

Sua bolsa com as roupas da viagem estava na cama, ainda com roupas dentro. Estranho. Normalmente minha mãe desfazia as malas assim que chegava em casa. O quarto estava mais bagunçado do que o normal, com roupas largadas no chão e penduradas na cadeira da penteadeira.

E, ao lado da cama da minha mãe, estava uma foto emoldurada dela com meus avós, posando no gramado de um bangalô com varanda no norte da Califórnia. Ela parecia ter a idade de Mindy, com as mesmas marias-chiquinhas compridas. A foto era familiar, algo que minha mãe sempre manteve na penteadeira, mas eu nunca tinha dado bola.

Atravessei o quarto acarpetado e abri a porta do closet.

Estava escuro lá dentro, só dava para ver o brilho de sapatos engraxados e do plástico da lavanderia refletindo o sol que entrava pelas janelas do quarto.

Quando eu era pequena tinha medo de armários, mas agora conseguia ver o apelo de um lugar escondido e aconchegante para chamar de seu.

Me ajoelhei no carpete e falei baixinho:

— Não precisa ficar com medo. Sou só eu.

Nada.

— Eu falei com aquele moço, e ele não era assustador. Ele é um agente do FBI, um agente especial. Ele está aqui para ter certeza de que estamos em segurança.

Ainda nada.

— Então está tudo bem — sussurrei. — Mas eu entendo por que você está assustada. Minha mãe me contou o que houve quando vocês eram pequenas.

Ouvi um pequeno suspiro, e um momento depois ela falou:

— Eu disse que ela se lembrava de mim.

— Ela se lembra. Como se fosse ontem.

— Ela ainda fica triste?

— É claro que sim. — Não houve resposta, então acrescentei: — Mas não é sua culpa, Mindy.

— Não. É culpa do homem mau. Ele estragou tudo. Meus pais. Meus amigos. Eu. — Ela suspirou. — Max foi o único que escapou, porque ele já tinha morrido. Ele teve câncer de cachorro.

— Isso também é triste. — Engoli em seco. — Mas o homem mau não pode te machucar mais. Você sabe disso, né?

— Acho que sim — respondeu ela, e sua silhueta começou a surgir dentre as sombras. Ela passou através dos vestidos pendurados, que não se mexeram.

— Você quer vir ver a gente fazer o jantar?

Mindy olhou para mim com lágrimas nos olhos.

— Tem certeza? Não quero atrapalhar.

— Não tem problema. Só não esquece que a gente não pode conversar.

— Vou ficar quieta — concordou Mindy, esticando a mão.

Eu a segurei sem pensar, mas quando senti o frio e as cócegas na minha palma, percebi o que ela estava fazendo.

— Eu não posso atravessar agora. A minha mãe está esperando.

— Só um segundo? — pediu ela, e senti o gosto metálico na língua e o chão fugindo dos meus pés. A luz do sol que se derramava pelas janelas ficou fria e dura. — Por favor?

Assenti e segurei a mão dela com mais força. Em um segundo o mundo tinha perdido a cor.

— Obrigada — falou Mindy, me abraçando. Ela parecia tão pequena e fria, tremendo como uma criancinha recém-saída da piscina. Eu ainda estava ajoelhada, e ela apoiou a cabeça no meu ombro.

— Está tudo bem, Mindy — falei baixinho, e ela me abraçou mais forte. — O homem mau não pode mais te machucar.

Ela se afastou, ainda segurando minhas mãos, com os olhos arregalados e brilhantes.

— Mas e quando ele morrer, Lizzie?

— Quando ele morrer...

— Aí ele também vai ser um fantasma. E talvez ele ainda se lembre de mim. E se ele conseguir me achar, mesmo dentro do armário?

Balancei a cabeça. Meu coração estava disparado, e sem Mindy tão perto, o mundo começou a mudar de novo.

— Não vou deixar ele encostar em você. —O cinza estava sumindo do quarto.

— Promete?

— Prometo.

Ela sorriu, o que fez uma única lágrima correr pelo seu rosto. Estiquei a mão, ainda suficientemente do outro lado, e senti a lágrima por um momento, molhando a ponta dos meus dedos.

Limpei seu rosto, e nós estávamos em mundos diferentes mais uma vez.


CAPÍTULO 13

— E tem umas janelas incríveis — falou Darcy. — Dá para ver o topo de todos os prédios de Chinatown. É perfeito.

Tia Lalana sorriu.

— Parece um lugar bacana para se morar.

— Mal posso esperar para me mudar. — Quando Darcy deu uma mordida no hambúrguer, sentiu com culpa uma gota de caldo escorrer pelo pulso esquerdo. Havia feito o pedido sem pensar. — Hum, você se importa que eu esteja comendo carne vermelha?

Lalana soltou uma risada.

— Darcy, eu estava no jantar em que você anunciou que ia deixar de ser vegetariana. Você tinha o quê, uns 13 anos?

— Eu sei, mas ainda parece falta de educação. Especialmente porque estou te pedindo um megafavor.

Elas estavam em uma cafeteria em West Village, perto do apartamento de Lalana, que era pequeno, arrumado e elegante, como sua tia. Ela estava toda combinando, como sempre, com uma camisa de botão azul sob um casaco amarelo-vivo, com brincos de pendente um de cada cor.

— Não é com a sua dieta que estou preocupada, Darcy. É com o seu aluguel. — Lalana olhou para o contrato na mesa entre as duas. O número assustador estava bem na primeira página. — Não é um pouco caro demais?

— É mais do que eu queria gastar, mas é o lugar perfeito para escrever.

— Então é por isso que custa tanto. Boas vibrações para escritores. Claro.

— Minha amiga escritora, Imogen, estava comigo, e ela concorda. — Darcy imaginou Nisha revirando os olhos e inventando novas regras sobre dizer “minha amiga escritora”. — Se for um bom lugar para trabalhar, vai acabar se pagando.

— Bem, a editora está te pagando um monte de dinheiro, realmente. Não me leve a mal, Darcy, mas às vezes eu não consigo acreditar.

— Nem eu — concordou ela, dando de ombros. — Minha agente disse que foi aquele primeiro capítulo. Ela disse que os compradores das grandes cadeias só têm tempo de ler um capítulo. Então, se o livro tem um início matador e uma capa maneira, vai estar em todas as livrarias.

Lalana parecia em dúvida.

— Mas as pessoas que vão comprar, elas não vão ler todos os outros capítulos também? O resto também não deveria ser bom?

Darcy sentiu um frio na barriga, como sempre acontecia quando pensava em um estranho (ou milhares de estranhos) lendo seu livro. Mas abriu um sorriso mesmo assim.

— Você está dizendo que o meu livro é ruim?

Lalana riu.

— Como eu poderia saber? Você não nos deixa ler.

Darcy não respondeu. De sua família, só Nisha tinha lido Além-mundos, e ela havia jurado segredo.

Além do mais, Annika Patel nunca tinha contado às filhas sobre o assassinato de sua amiga de infância. Em troca, Darcy nunca contara a ela sobre ter descoberto a história. Em vez disso, direcionou todas as suas dúvidas para a escrita.

Mas ainda parecia estranho usar a tragédia da infância da sua mãe como recurso narrativo.

— Eu já disse, vocês todos vão poder ler quando for publicado oficialmente. É que eu só quero que vocês vejam o livro quando ele for de verdade, não uma história qualquer inventada, bem, por mim.

— Mal posso esperar, Darcy, e tenho certeza de que você escreverá muitos outros livros. — Lalana olhou para o contrato de novo. — Mas você não quer ficar com um pouco do adiantamento?

— O importante agora não é economizar. É fazer os meus livros ficarem o melhor possível.

Lalana por fim desistiu, rindo.

— Você é igualzinha à sua mãe. Tudo ou oito ou oitenta, sempre tão cheia de certezas.

Darcy não sabia bem se aquilo era um elogio. Lalana era a irmã glamourosa, que morava em Nova York, trabalhava com moda e namorava um cara gato atrás do outro. Para Darcy e Nisha, ela era a mais ambiciosa, a que sempre fazia o que queria.

E por isso era a escolha perfeita para aquele favor.

— Eu tenho algumas certezas. Eu tenho certeza de que quero escrever, morar em Nova York e nesse apartamento.

— Eu sei que sim. Mas certezas também são perigosas. Você promete que não vou ter problemas assinando esse contrato?

— Claro que não. A Paradox me deve cem mil pratas e o dinheiro vai cair a qualquer momento. É só que o proprietário não acreditou que uma garota de 18 anos fosse ter tanto dinheiro assim.

Sua tia deu uma risadinha.

— Olha só você, falando “cem mil pratas” que nem uma mafiosa.

— Foi mal. É como a Nisha sempre fala.

— Eu não estou preocupada com o dinheiro, Darcy. O que eu quis dizer é: eu vou ter problemas com os seus pais? Por que não são eles que estão assinando o contrato de aluguel?

— Não daria tempo de mandar o contrato para eles. Tem outras pessoas querendo o apartamento, tipo, para ontem. — Darcy deu outra mordida, o que abafou suas próximas palavras. — Mas sim, eles talvez se assustassem com o preço. Um pouco.

— Mais do que um pouco. — Lalana espetou um grão-de-bico delicadamente com o garfo. — E se eu assinar, Annika vai me culpar se você morrer de fome.

— A Nisha falou que vou ter dinheiro suficiente.

— Sério? — Lalana ergueu a sobrancelha. Quando se travava de matemática prática, a palavra de Nisha era ordem. Até o pai delas, engenheiro, pedia que a filha checasse o imposto de renda da família.

— Pelo orçamento dela, eu tenho 17 dólares por dia sem contar o aluguel. — Darcy olhou para o hambúrguer, que custaria no mínimo isso. — Acho que vou ter que comer menos carne. Isso é bom, né?

Lalana balançou a cabeça.

— Você precisa de outras coisas além de comida para cozinhar, Darcy. Você tem pratos? Panelas?

— Hum...

— Ou produtos de limpeza para casa? Um esfregão, uma vassoura ou luvas de borracha?

Darcy riu ao pensar em si mesma com luvas de borracha. Mas a verdade é que ela não tinha nada daquilo. Nem uma esponja ou frigideira.

— E cadeiras? Uma escrivaninha para escrever? Canetas e papel?

— Nisha separou um dinheiro para custos iniciais no orçamento. Tipo móveis e... vassouras.

A última palavra soou sem emoção. Uma vassoura parecia algo tão sem graça de se comprar. Darcy só tinha gastado dinheiro com coisas que realmente queria — roupas, comida, música, cerveja e livros. Mas nos últimos tempos tinha se dado conta da quantidade de coisas chatas que as pessoas tinham — cortinas, latas de lixo, sabão em pó, lâmpadas, extensões, cadernos, fronhas. Quando Darcy voltou ao apartamento 4E para pegar o contrato e dar uma última olhada, o lugar continha somente montinhos de poeira e um velho fio de telefone saindo de uma das paredes.

Era tão vazio, pronto para ser preenchido com histórias.

— Eu só preciso de uma mesa, uma cadeira e um laptop.

— E utensílios de cozinha. Você ama comida.

Darcy não pôde discordar. Lalana e ela tinham passado a manhã em Little Italy, onde as prateleiras das lojas brilhavam com utensílios de metal brilhante — máquinas de macarrão e cafeteiras e cortadores de pizza — que quase pareciam comestíveis. Em uma das lojas havia rodas de queijo empilhadas até o teto, cada uma do tamanho de pneus de carro. As de baixo pareciam mais brilhantes, e quando Darcy se ajoelhou para investigar, percebeu que o peso de todas as outras rodas de queijo estava pressionando as de baixo, extraindo uma pátina de óleo brilhante. A loja cheirava como o paraíso, como se todo aquele queijo estivesse se desfazendo no ar.

Mas as rodas custavam quinhentos dólares cada. Ou, como Darcy agora tinha que pensar, um mês de mesada.

— É claro que todo mundo precisa aprender a viver de acordo com um orçamento em algum momento da vida — Lalana discutia consigo mesma —, melhor que seja agora, antes que você vá para a faculdade.

Darcy assentiu, concordando, mas não deve ter conseguido disfarçar bem. Lalana olhou para ela.

— Darcy. Você vai para a faculdade quando terminar de escrever o segundo livro, não vai?

— Hum... Claro — respondeu ela. Se seus pais estivessem ali, até aquela pequena pausa teria sido fatal. — Mas ainda falta mais de um ano. Tudo depende de como a minha carreira vai estar.

Sua voz falseou um pouco na palavra “carreira”, que lhe parecia algo bobo de se dizer, como se fosse uma criança brincando de faz de conta. Darcy tinha vestido sua blusa de seda preta para a tia Lalana, mas os jeans estavam rasgando nos joelhos.

— Certo, então. —Lalana suspirou. — Suponho que seja meu dever familiar assinar seu contrato. Eu não gostaria que você ficasse em nenhum outro apartamento.

— Obrigada! — gritou Darcy, depois franziu a testa. — Espera... Por que exatamente?

Lalana tirou uma minúscula caneta prateada da bolsa.

— Com esse aluguel, você não vai conseguir ficar na cidade por muito tempo.

— Ah. — Era verdade; cada dólar gasto aproximava Darcy do dia em que teria que deixar Nova York e ir para a faculdade. Mas se tudo o que ela desejava era escrever pelo maior tempo possível, poderia ter ficado em casa ou morado numa caixa de papelão em qualquer lugar.

A ideia era escrever para sempre. E o apartamento 4E era tão essencial para a pessoa que Darcy queria se tornar quanto a própria cidade de Nova York.

A caneta da tia Lalana ficou pairando sobre o papel.

— Mas se eu assinar isso, você vai ter que me prometer duas coisas, Darcy.

— Claro. Qualquer coisa.

— Não se deixe distrair pela cidade. Se concentre em escrever.

— É claro. É só isso que eu quero!

— E não me esconda nada, mesmo se deixar de contar algumas coisas para os seus pais. Eu quero receber atualizações constantes, entendido?

— Vou te contar tudo — prometeu Darcy, embora tia Lalana já estivesse fazendo sua assinatura espaçosa e sinuosa no documento.

— Pronto. — A caneta bateu na mesa e Lalana ergueu o copo de chai gelado. — Você tem um apartamento agora. E é tudo minha culpa.

Darcy sentiu um sorriso crescendo no rosto, embora ao mesmo tempo o chão da cafeteria tenha parecido falhar sob seus pés. O apartamento 4E era real.

Agora nada poderia dar errado.

— Agora que temos um acordo — continuou Lalana. — Qual a primeira coisa que você não contou para os seus pais? Está de olho em algum garoto?

— Você disse sem distrações! E eu só me importo com os livros. — Darcy riu. — Mas tem uma coisa, acho. E você não pode mesmo contar para os meus pais.

Lalana não concordou, só esperou.

— Eu perdi o prazo de adiamento da inscrição para a Oberlin. Era no dia primeiro de junho.

— Você está de brincadeira, Darcy?

— Eu não me liguei, e era bem difícil de achar no site. — Darcy não explicou que ela só tinha procurado uma semana antes, o que já era tarde demais. — Mas tudo bem. Eu só preciso me inscrever de novo ano que vem.

— Não está nada bem.

Darcy ergueu as mãos.

— Eu posso usar as mesmas notas do SAT, e vou escrever um ensaio totalmente novo sobre escrever um romance em Nova York. Você realmente acha que eles não vão mais me aceitar?

Tia Lalana virou o rosto para a janela, depois lançou para Darcy um olhar de esguelha.

— Acho que qualquer faculdade aceitaria de bom grado uma escritora tão jovem. Mas seus pais não estão mais por perto para segurar sua mão, Darcy. Você precisa ser mais responsável.

— Pode deixar. Vou começar agora. — Darcy ergueu o próprio copo. — Obrigada por confiar em mim. Prometo que não vou fazer besteira de novo.

— Tenho certeza de que você vai nos surpreender. De um jeito ou de outro.

Quando seus copos se tocaram, Darcy se perguntou o que exatamente aquilo queria dizer.


CAPÍTULO 14

— Terrenos vazios são melhores para ver prédios fantasmas — explicou Mindy. — E à noite.

— Porque está escuro?

— Não. Porque tem menos viventes por perto.

Encolhi os ombros por causa do frio.

— É sério isso? Vocês chamam a gente de viventes? Parece “vidente”.

— Você tem alguma palavra melhor?

— Hum... Que tal pessoas?

— Fantasmas são pessoas também.

— Certo. Mas pessoas mortas têm uma palavra só para elas: fantasmas. Pessoas que estão vivas são só pessoas.

— Você está sendo preconceituosa.

— Me desculpa se estou viva.

Não era a primeira vez que eu fazia aquela piada, e a única resposta de Mindy era resmungar. Alguém fazendo jogging vinha na nossa direção, à mais ou menos meio quarteirão de distância, e Mindy sabia que eu não gostava de falar com ela a não ser que estivéssemos sozinhas.

O corredor passou bufando e fez um aceno de cabeça para mim. Já tinha passado da meia-noite, e estávamos a quase dois quilômetros da minha casa. Normalmente um estranho passando teria me feito tremer de medo, mas nada mais parecia normal.

Pelo contrário, era eu quem devia estar assustando os outros: vestida de preto, o capuz cobrindo a cabeça, as mãos enfiadas nos bolsos. Era a noite mais fria do inverno, e vapor saía da minha boca toda vez que eu falava com a minha amiga invisível.

— O que era esse lugar quando estava... vivo?

— Uma escola. Foi demolida logo depois de a gente se mudar para cá. Agora é um terreno baldio cheio de caminhões quebrados e ônibus escolares enferrujados. Como aquela caixa no armário da Anna, onde ela joga as coisas e esquece onde estão. — Mindy parou. — Mas muitos viventes devem se lembrar dessa escola.

Ela estava olhando para a cerca alta que se estendia até o fim do quarteirão. A tela de metal brilhava sob a luz dos postes, e uma barreira improvisada de tapumes estava apoiada na cerca pelo lado de dentro. Um espiral de arame farpado cintilava no alto.

— Está vendo? — perguntou Mindy.

— O quê? Aquele monte de arame farpado que eu vou ter que pular?

— Não, atrás disso. Atrás de tudo.

Apertei os olhos na escuridão, mas não conseguia ver nada além dos tetos amarelos enferrujados dos ônibus escolares.

— Desculpe. Não.

— Aqui.

Ela segurou minha mão, e a morte gotejou pelo meu braço. Eu tinha ficado boa em atravessar durante a semana, com ou sem o toque de Mindy. Mas sempre sentia um tremor relutante imediatamente antes de atravessar, como se estivesse prestes a mergulhar em água fria. Algo dentro de mim não queria fazer aquilo. Meu corpo sentia o cheiro da morte.

Mas eu precisava praticar meus novos poderes, o que significava superar toda essa história de “a morte é assustadora”.

Eu não tinha chamado Yamaraj mais uma vez. Não queria parecer uma menininha sem jeito, precisando da ajuda dele para me mostrar como as coisas funcionavam. Queria demonstrar que ele não precisava ter medo por mim, que eu pertencia ao seu mundo, mesmo se não soubesse como me chamar ainda. “Guia de almas” parecia muito frouxo. “Psicopompo”, muito psicopata. “Ceifadora”, muito sinistro. Ainda estava procurando algo melhor.

Quando atravessei, a luz da lua vacilou ao nosso redor, e aquele gosto metálico encheu o ar. O céu passou de um preto aveludado para um cinza sem graça, pontilhado de estrelas vermelhas. A mão de Mindy se tornou sólida na minha.

— Está vendo agora?

Assenti, ainda com a respiração acelerada. Erguendo-se atrás da cerca estava um telhado de terracota que marcava sua silhueta contra o céu cinzento. O prédio era bem menor do que a minha escola, a um quilômetro de distância. Partes do telhado estavam bem definidas e claras, mas outras tinham desaparecido, translúcidas, como camadas de tinta antiga se desfazendo.

Um prédio fantasma.

Mindy tinha explicado que muitas coisas tinham fantasmas, não só pessoas. Animais, máquinas, até mesmo coisas imensas como florestas derrubadas ou simples, como o aroma de um prato gostoso, podiam deixas traços para trás. O mundo era assombrado pelo passado.

— Vamos. — Eu atravessei a rua. Conforme nos aproximávamos, a cerca foi ficando mais pálida, quase transparente. Ela não exista antigamente, imaginei, então era só uma presença fantasmagórica ali no outro lado. Parei na frente da tela e estiquei a mão... Meus dedos atravessaram o metal e mergulharam na madeira atrás.

— Maneiro.

Era a primeira vez que eu usava o outro lado para atravessar algo sólido, pelo menos desde que Yamaraj tinha que levado através do portão de metal do aeroporto. Mindy passou correndo por mim como se não fosse nada, direto pela cerca para o terreno da escola. Os ônibus escolares e caminhões da prefeitura, estacionados tão perto uns dos outros que quase se tocavam, não ofereceram qualquer resistência.

Ao seguir, senti a cerca prendendo-se a mim, como arbustos espetando minhas roupas. Ao chegar do outro lado, porém, o pátio da escola ficou mais claro, e os veículos começaram a desaparecer.

Era como voltar no tempo. O estacionamento era minúsculo — acho que poucos alunos iam para a escola de carro naquela época — e não tinha linhas dividindo as vagas, só umas placas pintadas à mão indicando onde os professores tinham direito de estacionar. O playground fantasmagórico parecia perigoso, com o trepa-trepa de três metros de altura e o chão áspero cimentado. Mindy escalou o brinquedo e pendurou-se pelos joelhos na barra mais alta, olhando para mim de cabeça para baixo.

O prédio parecia mais uma mansão do que uma escola, com as telhas vermelhas, paredes texturizadas e uma grande varanda frontal. As janelas eram estranhas — retângulos vazios, poços de escuridão que não refletiam a luz dos postes.

— Tem algum fantasma aqui? — perguntei.

— Talvez — respondeu Mindy, balançando os braços e fazendo suas marias-chiquinhas girarem.

— Não é para isso que prédios fantasmas existem? Para os fantasmas morarem?

— Não seja idiota. — Ela esticou o braço, segurou a barra, soltou os joelhos e se deixou cair. — Fantasmas vivem em lugares bem comuns.

— Como o armário da minha mãe?

— Armários são legais. — Mindy observou a escola em silêncio por um segundo. — Mas muitos prédios fantasmas não são. Eu não entro neles.

— Você não precisa entrar comigo. — Respirei fundo devagar, sentindo o cheiro de ferrugem no ar. O prédio brilhava à minha frente, como se não tivesse certeza da própria existência. — Mas eu tenho que entender como esse negócio de outro lado funciona.

— Tudo bem. — Mindy segurou minha mão e me puxou para a frente. — Com você aqui eu não fico com medo. Só não me deixe lá dentro sozinha.

— Pode deixar, não vou fazer isso.

Conforme nos aproximávamos, a escola ia ficando mais real. Os degraus da frente pareceram bem sólidos sob os meus pés, e me ajoelhei para tocar o cimento pintado. Estava gelado, como uma pedra numa noite fria.

— É tão real.

Mindy parou, sem querer se aventurar à frente sem mim.

— Isso significa que todo mundo se lembra deste lugar. Talvez algo ruim tenha acontecido aqui.

— Ou quem sabe todo mundo adorava esta escola. — Ergui o pé e subi os degraus. — Uau. Como eu posso estar subindo? Quero dizer, os degraus não existem mais. Isso significa que estou levitando?

— Os degraus existem. Mas o outro lado é um lugar que os viventes não enxergam, a não ser que sejam pompos que nem você.

Suspirei.

— Todas as palavras dessa frase foram irritantes.

— Bem, talvez você esteja fazendo perguntas irritantes!

Mordi o lábio para não responder. Mindy estava aos poucos se tornando minha amiga, mesmo que fosse um pouco estranha. Estava me ajudando a aprender sobre o além-mundo, para que eu não parecesse uma idiota completa da próxima vez que encontrasse Yamaraj.

Mas eu ainda não tinha contado a Mindy sobre ele. Não tinha sentido assustá-la à toa.

— Desculpe — falei enquanto subia a escada. — Só estou nervosa. Nunca estive num prédio fantasma antes.

— Mas você é um pompo! Os fantasmas é que têm que ter medo de você.

Sorri para ela e ergui a cabeça, tentando fingir uma coragem psicopompal.

As portas da escola já estavam abertas, como se nos dessem as boas-vindas. Os corredores com armários nas paredes se estendiam até o infinito, vazios e escuros, com uma placa pintada à mão indicando o caminho para a secretaria. Não tinha pôsteres nas paredes, papéis soltos no chão, nem poeira no ar, como se esses detalhes passageiros tivessem sido destruídos pelo tempo. Mas o murmúrio das crianças permanecia no fundo da minha mente.

— Está ouvindo isso? — sussurrei.

Mindy assentiu, fechando os olhos.

— Não são fantasmas. Não de pessoas, pelo menos.

— Então são fantasmas de quê?

— Deste lugar. Dos sons.

Olhei para ela, de repente duvidando que “fantasmas” fosse a palavra certa.

— Lembranças. São lembranças, não são?

— Foi o que eu te falei! Enquanto as pessoas se lembram de alguma coisa, ela nunca desaparece por completo.

Estendi a mão para o armário mais próximo e toquei as aberturas de ventilação. O som da minha unha no metal pareceu real.

— Então estamos andando em lembranças?

— Acho que sim.

— Talvez isso não tenha nada a ver com fantasmas. E se os pompos conseguem, tipo, ler mentes? Nós vemos as lembranças das outras pessoas como se fossem lugares, coisas e...

Mindy olhou feio para mim.

— E pessoas? Você acha que sou só um fragmento da imaginação da sua mãe?

— Não sei. — Quando me ouvi dizendo aquilo, percebi como as palavras eram maldosas. Mindy não era uma lembrança, e sim uma pessoa cuja existência dependia de ser lembrada. Talvez houvesse uma diferença. — Só estava pensando alto. O fato é que eu não entendo nada disso, na verdade.

Enquanto estávamos paradas em um silêncio tenso, um som surgiu do corredor, uma voz infantil cantando...

— Apareça, apareça, de onde quer que esteja...

— Hum, OK. Isso é, tipo, o fantasma de uma música?

— Não. — Mindy esticou o braço e apertou minha mão. — Tem alguém lá embaixo, Lizzie.

— OK... — A canção foi repetida, distante e assustadora, e fagulhas de medo dispararam pelas minhas veias. — Alguém vai subir?

— Espero que não.

Ficamos ali, paralisadas por um segundo, e tentei acalmar minha respiração. Da última vez que eu tinha entrado em pânico do outro lado, acabei aparecendo no mundo normal bem na frente do agente especial Elian Reyes. Definitivamente não era algo que eu queria repetir no meio de um terreno baldio cercado de arame farpado, especialmente com uma música fantasmagórica saindo do chão.

A voz se interrompeu. Mindy e eu nos entreolhamos naquele silêncio assustador.

— OK — falei, dando um passo para trás. — Vamos tentar...

— Olha aquilo — sussurrou Mindy, olhando para o chão.

Uma escuridão estava se espalhando pelo corredor, como tinta derramada chegando até nós. O negrume total obscurecia os azulejos cinzentos do chão do outro lado. Como os rios de óleo que eu vira no deserto, aquilo se movia com propósito, quase como se estivesse vivo, e carregava o mesmo odor forte e doce.

A voz cantarolou de novo.

— Eu estou ouvindo vocês aí em cimaaaaa. Por que não descem para brincar?

— Acho que é melhor a gente sair daqui.

— Verdade. — Mindy se virou e saiu correndo.

— Me espera! — gritei, disparando atrás dela, saindo pela porta da escola e descendo as escadas com tudo. Corri pelo playground, com o coração galopando, bombeando sangue quente para minhas pernas e braços.

A vida estava me dominando, e o mundo começou a mudar. O playground começou a sumir, fazendo as estrelas brilharem pelas frestas no céu cinzento, como se um imenso tecido estivesse se esgarçando. Me perguntei se deveria parar e voltar minha atenção para o outro lado, ou tentar atravessar a cerca a tempo?

— Por favor, não vá embora! — cantou a voz atrás de mim, o que basicamente me fez decidir na hora.

Corri ainda mais rápido, alcancei Mindy e a ultrapassei, meus pés batendo com força no cimento.

A cerca à frente parecia mais sólida a cada segundo. Os ônibus escolares se agigantavam ao meu redor, e eu tive que me desviar de dois deles para passar, querendo evitar me solidificar bem no meio de um monte de metal e borracha.

A cerca estava bem diante de mim agora, então me joguei na direção dela, cobrindo o rosto com os braços. O aramado me puxou e arranhou quando passei, como uma teia de aranha, grudando e relutando em me deixar passar. Mas venci a tensão com um estalo, e de repente estava do outro lado, tropeçando no mundo dos vivos... e na rua.

Faróis brilharam enquanto eu tentava me frear, o guincho de um carro derrapando gritou nos meus ouvidos. Caí em posição fetal e o veículo passou raspando por mim, tão perto que senti o vento quente no motor. Mas o grito dos pneus se transformou em uma buzina distante conforme o carro passou e seguiu em frente.

Sentei no asfalto e olhei para os dois lados da rua. Não havia sinal de outros carros a não ser pelas luzes de freio vermelhas, seguindo cada vez mais rápido. Imagino que o motorista não tenha ficado muito interessado em investigar figuras de preto aparecendo do nada no meio da rua.

— Uou. — Mindy se aproximou de mim. — Essa foi por pouco.

Me levantei com cuidado, engolindo em seco ao ver as marcas de freada me circundando. Meu joelho direito latejava, e as palmas das mãos estavam em carne viva. A dor parecia muito real depois da insipidez do outro lado. Minhas mãos pulsavam a cada batida do coração, mas estar de volta ao mundo real era maravilhoso.

Fui mancando para o outro lado da rua.

— Você está bem?

— Ah, sim, ótima. Mas da próxima vez vamos tentar entrar num prédio fantasma sem cercas.

— Tudo bem. — Mindy olhou para o terreno com os olhos arregalados. — E quem sabe...

Assenti.

— Sem nada bizarro no subsolo.

— Eu não tenho ideia do que era aquilo! Desculpa.

— Entrar foi ideia minha. — Apertei meu joelho direito. A calça jeans tinha rasgado, mas não tinha sangue. — De qualquer maneira, obrigada por me mostrar como a coisa toda funciona.

Ela olhou para mim.

— Sério?

Assenti, ainda agitada com o susto. Atravessar a barreira entre a vida e a morte estava se tornando viciante.

Voltamos para a minha casa — para a nossa casa, como Mindy ficava me lembrando.

Quando demos a volta para entrar pela porta dos fundos, verificamos se o agente especial Reyes estava parado na frente da casa dos Anderson, mas não. O carro dele não tinha aparecido nos últimos dias, então supus que o chefe dele não estava mais preocupado comigo.

Eu tinha procurado o Movimento pela Ressurreição na internet, e parecia que eles tinham coisas mais importantes para se ocupar do que comigo. Depois do massacre de Dallas, várias acusações tinham sido feitas contra eles, desde armamento ilegal até evasão fiscal. A polícia federal estava fechando o cerco.

Eu não tinha problemas em não ser mais alvo de terroristas, mas meio que sentia falta de ter o FBI na porta de casa.

Quando entrei no quarto, tirei a calça jeans e, sentada na cama, coloquei um pouco de antisséptico nas mãos e no joelho. A ardência fez meu coração disparar de novo, mas eu estaria cheia de dores e manchas roxas no dia seguinte, sem a adrenalina de fantasmas assustadores e quase atropelamentos para me distrair.

Quando ergui os olhos, Mindy me observava atentamente.

— Nunca viu sangue antes?

— Eu não sinto mais dor. — Ela deu de ombros. — Tudo é meio sem graça agora. Na maior parte do tempo fico meio entediada e incomodada.

— Parece um dia na escola.

— É um saco. Nada nunca parece real.

— A não ser quando você fica com medo. — Senti um sorriso se abrir nos meus lábios. — Quer dizer, você correu muito mais rápido do que eu. E precisava ver a sua cara quando aquela voz começou a cantar!

— É claro que fiquei com medo. — Seus olhos se arregalaram.

— Desculpa. — Eu quase tinha esquecido como Mindy tinha sido assassinada. Mesmo estando a salvo da dor agora, suas últimas horas devem ter sido algo inimaginável. — Você sabe que não vou deixar nenhum homem mau te machucar, né?

— Eu sei. — Mas ela não pareceu convencida.

— Escuta, Mindy. Talvez ele já tenha morrido há muito tempo. Talvez já tenha desaparecido.

Ela desviou o olhar para a direção do quarto da minha mãe, com o armário em que ela sempre se escondia quando ficava com medo.

Não importava as promessas que eu fizesse, ela continuava certa de que o homem mau continuava vivo por aí, e que quando morresse vagaria pela terra procurando por ela.

Talvez fosse melhor mudar de assunto.

— Então, o que você acha que tinha no subsolo da escola?

Ela começou a seguir o desenho do edredom com o dedo, não parecendo mais confortável.

— Sei lá.

— Mas era o fantasma de alguma coisa, né?

Mindy só deu de ombros.

— Você deve ter alguma ideia. Tem mais alguma coisa por aí além de fantasmas? Quer dizer, e vampiros e lobisomens?

Ela soltou uma risada.

— Não seja boba. Isso é invenção!

— Tem certeza? Quer dizer, se fantasmas existem de verdade, por que não todas as outras criaturas mitológicas? Golens? Garudas? Selkies?

O sorriso de Mindy sumiu.

— Não sei o que são essas coisas, mas acho que nunca inventaram lendas para alguns monstros. Alguns lugares simplesmente são ruins.

— Está bem. Acho que você não tem que saber de tudo, afinal.

— Que bom, porque não sei mesmo.

Mindy era uma menininha de 11 anos, relembrei. Para ela, um monstro não era algo a ser analisado; era algo a ser temido.

Não que eu tivesse muita energia para analisar monstros. O que restava da minha adrenalina estava acabando, e as aulas começavam dali a dois dias. Era o começo do meu último semestre, e meu primeiro dia como um símbolo de esperança em público.

Eu tinha evitado meus amigos desde que chegara em casa, a não ser por um e-mail enviado para Jamie avisando que não estava pronta para ver ninguém. Meu pai ainda não tinha me dado um celular novo, apesar de ter prometido, então tinha sido fácil evitar as pessoas. Mas eu teria que enfrentar o mundo real muito em breve.

Guardei o antisséptico e me enfiei debaixo das cobertas.

— Boa noite — falei, desligando a luz da mesinha de cabeceira.

Mindy, como sempre, ficou sentada ao pé da cama. Fantasmas não dormem, o que provavelmente contribuía com o tédio que ela sentia. Era óbvio que Mindy ficava passeando pela vizinhança durante a noite. Ela sabia o nome de todos os vizinhos, e todos os seus segredos também.

— Durma bem, Lizzie — sussurrou ela.

— Obrigada por me levar na escola fantasma.

Ela riu, e ficamos em silêncio por um tempo, meu cérebro procurando o sono. Mas a dor dos machucados ia e vinha como uma fila de formigas, uma das mãos coçando primeiro, depois a outra.

O ardor do remédio foi passando devagar, e eu estava quase dormindo quando o aquele arranhar começou.

Era como unhas correndo por baixo das tábuas do piso, quase inaudível, inacreditável. Mas o som continuou, se recusando a sumir mesmo quando meu cérebro se esforçava para ignorá-lo.

Quando abri os olhos, Mindy estava em pé ao lado da cama, encarando o chão com os olhos arregalados.

Me ergui lentamente e com cuidado, mas minha pele já estava tomada pelo medo.

— Que droga é essa, Mindy?

— Acho que a gente foi seguida.

— Seguida pelo quê?

O som recomeçou, arranhando o caminho da porta do quarto até mim. Senti um nó no estômago quando passou por debaixo da cama.

Silêncio de novo. Mindy sussurrou:

— Está tudo conectado.

— Do que você está falando?

— Aquela coisa está aqui, Lizzie. O que estava cantando.

— Do que você...? — Quase ergui a voz em um grito, mas me forcei a calar a boca. Minha mãe tinha o sono pesado, mas não me arriscaria a acordá-la com um monstro na casa.

— Desculpa, Lizzie. — A voz de Mindy estava falhando. — Eu não sabia que aquilo ia nos seguir!

— Cadê esse troço? — sibilei. — A casa não tem porão!

Ela me olhou com irritação.

— Não está no porão. Está lá embaixo, no rio.

Fechei os olhos, tentando compreender as palavras de Mindy. Meu corpo estava totalmente ligado, mas meu cérebro ainda estava girando, recém-despertado.

— Apareça, apareça, onde quer que esteja! — cantou a voz debaixo do meu quarto.


CAPÍTULO 15

Os convites para a festa de open house de Darcy diziam 19h, mas às 19h30 ainda não tinha chegado ninguém.

— Bosta. — Darcy chutou o balde cheio de gelo e cervejas no canto da sala. Uma poça de água tinha se formado ao redor do balde, como um bichinho de estimação suado largado na beira da estrada.

Estava muito quente no salão, e só iria piorar conforme os convidados chegassem. Darcy abriu outra janela, deixando entrar o barulho do trânsito de Chinatown e uma brisa cansada que balançou a barra do seu vestido. Ela o havia comprado em uma loja de roupas vintage naquela manhã, e só depois de sair da loja é que percebeu o quão parecido ele era com o vestido que Imogen usara no dia em que tinham encontrado o apartamento 4E.

Pelo menos não era cor de ferrugem, e sim do azul-acinzentado de um céu nublado.

Darcy checou o celular. Imogen tinha prometido chegar às 18h para dar apoio moral, mas mandara uma mensagem uma hora antes avisando que se atrasaria. Além disso, Sagan e Carla tinham perdido o trem que pretendiam pegar da Filadélfia, e só chegariam depois das 21h. Sua tia Lalana estava numa viagem de negócios fora da cidade.

A questão inevitável estava surgindo na mente de Darcy: E se ninguém aparecesse? Fazer um open house numa cidade em que ela não conhecia quase ninguém tinha sido presunção pura. É claro que algumas pessoas viriam, só o suficiente para testemunhar sua humilhação.

O telefone apitou na mão de Darcy, que o ergueu cheia de curiosidade.

Ainda ninguém? #Loserfest

Só 438 dias até o lançamento!

— Valeu mesmo, Nisha — murmurou Darcy, decidida a nunca mais dividir suas inseguranças com a irmã.

Enquanto ela se preparava para mandar uma resposta igualmente maldosa, o interfone tocou.

Darcy correu para abrir a porta do prédio, sem nem perguntar quem era — era melhor ter penetras do que ninguém. Ela checou o cabelo no espelho, abriu a porta e enfiou a cabeça no corredor. Moxie Underbridge, seu assistente, Max, e uma jovem que Darcy reconheceu da Noite de Drinques YA, Johari Valentine, uma escritora de Saint Kitts, estavam subindo as escadas.

Um minuto depois os três estavam no apartamento, aceitando as boas-vindas de Darcy e indo direto para as grandes janelas da sala. Darcy sentiu o coração se encher de orgulho conforme eles elogiavam a vista. Era o melhor momento do dia, uma hora antes do pôr do sol, quando o céu estava pintado de rosa e as sombras, longas e bem-definidas.

Pela primeira vez naquele dia, Darcy sentiu que nem a festa nem o apartamento tinham sido erros terríveis.

— Esse lugar vai ser incrível no inverno. — Johari estava olhando para a rua lá embaixo. — O resto de nós na escuridão e você aqui em cima, pegando sol!

— Sério, Johari — falou Moxie. — A gente está no meio do verão. Você ainda está traumatizada?

Johari fingiu um tremor.

— Meu próximo livro se passa num planeta gelado. Escuro e frio, como o inverno em Nova York.

— Se chama Coração gelado — comentou Max. — “Quem guarda o segredo do fogo controla o mundo!”.

Johari balançou a cabeça.

— Olha só você, Max. Espalhando frases de impacto sobre um livro que não foi nem finalizado ainda. Quando eu finalmente terminar, é capaz de ser sobre pinguins.

— “Quem guarda o segredo dos pinguins controla o mundo”? — sugeriu Max. — Viu, funciona com qualquer coisa.

— Parece ótimo — comentou Darcy, mas aquela conversa sobre fogo fez com que ela se lembrasse de Imogen, e se perguntou de novo onde ela estava. Com uma olhada para o celular, viu que ainda não tinha notícias.

— Desculpe por chegarmos tão cedo, querida — disse Moxie. — Mas temos um jantar às 21h.

— Só fico feliz por ter alguém aqui! — Darcy guardou o celular, torcendo para que outras pessoas chegassem antes que eles tivessem que ir. Seria muita maldade do universo fazê-la sofrer dois pânicos pré-festa na mesma noite. — Vocês querem beber alguma coisa?

Eles queriam e, enquanto Darcy foi pegar os drinques, Johari e Max deram uma olhada nos quartos.

— Ótima ideia — gritou a autora —, fazer a festa antes de trazer os móveis! Assim ninguém vai quebrar nada se as coisas ficarem animadas.

Darcy não explicou que na verdade todos os seus móveis já estavam no apartamento. A nova escrivaninha foi posta no canto da sala, com refrigerantes, copos de plástico e duas travessas de guacamole. Nem era uma escrivaninha de verdade, só uma porta de madeira sem verniz apoiada em dois cavaletes. As provas de revisão iriam precisar de muito espaço, e portas eram mais baratas que mesas de verdade.

Darcy estava dormindo no futon antigo, que seu pai tinha trazido da Filadélfia no porta-malas do carro, junto com uma cadeira, roupas de cama e alguns livros indispensáveis, que agora estavam no segundo quarto em uma estante de tijolos. Ela havia pedido para Sagan e Carla trazerem sacos de dormir, mas tinha se esquecido de comprar travesseiros.

— E você não tem TV? — Max riu. — A marca de um verdadeiro escritor.

— Eu só me importo com as palavras — retrucou Darcy, embora ainda não tivesse escrito nem uma frase no apartamento 4E.

Ela mal tinha percebido a falta da televisão, considerando todas as outras coisas que não tinha. Sua tia Lalana tinha razão. Nada de extensões de tomada, aspirador de pó, guarda-chuva, nem um vaso caso alguém trouxesse flores hoje. Não tinha cortinas no boxe nem pratos de verdade, só duas tigelas e uma caneca, e uma única panela para fazer masala chai e miojo, que era tudo o que ela havia preparado até então. Havia um conjunto de temperos completo, com cardamomo, tamarindo e até açafrão, mas isso tinha sido um presente da sua tia.

Enquanto entregava os copos plásticos vermelhos, Darcy se perguntou o que mais ela não tinha. Só se lembrara de comprar um saca-rolhas naquela tarde, e os alto-falantes minúsculos ligados ao computador dificilmente fariam as pessoas dançarem.

— Obrigada, querida. — Moxie pegou a bebida e balançou o copo, pensativa. — Você sabia que Stanley David Anderson está na cidade?

— Sério? Para algum evento?

— A negócios. É com ele que vamos jantar. Você o segue no Twitter, imagino?

— E quem não segue Standerson? — perguntou Darcy. Era um dos seus nomes na internet. O outro é Sultão das Mídias Sociais. Standerson tinha um milhão de seguidores, e havia mais de dez canais no YouTube sobre seu canal no YouTube. — Mas você não é agente dele.

— Não atualmente. — Moxie esticou o indicador na frente dos lábios. — Mas ele está um pouco descontente com a Sadler Lit, e talvez esteja dando uma olhada na concorrência.

— Uau, que ótimo — comentou Darcy, embora estivesse sentindo uma pontada de inveja mesquinha. Ela não tinha sido convidada para o jantar com Moxie, Max, Johari e Standerson, e o seu open house não seria o evento mais glamouroso de Nova York naquela noite.

Mas aquele momento irracional passou quando o interfone tocou novamente. Darcy deu um pulo e correu para a porta.

Como se a tensão superficial da festa tivesse sido ultrapassada, os convidados começaram a chegar. Logo o salão já estava consideravelmente cheio. Darcy reconheceu uns dez escritores da Noite de Drinques YA (graças à lista de e-mails de Oscar Lassiter), e Nan Eliot tinha vindo da Paradox com sua assistente editorial, uma jovem chamada Rhea. Carla mandara uma mensagem avisando que ela e Sagan estavam chegando à Penn Station, mas ainda nenhuma notícia de Imogen.

Darcy estava dividida entre ficar preocupada e se sentir traída por ela ainda não ter chegado.

— Eu admiro sua simplicidade budista — brincou Johari. — Um cômodo para dormir, um cômodo para livros e roupas, um cômodo para comida, e o maior deles para escrever.

— Você vai manter ele assim? — perguntou Oscar. — Au naturel?

— Quer dizer vazio? — Darcy deu de ombros. — Acho que sim, mas não é uma escolha decorativa. É mais uma questão de dinheiro mesmo.

— Ah, sim. Eu também era escravo do aluguel antes de me mudar para Hoboken. Tinha uma vista incrível do Chrysler Building, mas tinha que ficar a pão e água pelo resto do mês.

— Chega de falar sobre você, Oscar. — Johari deu um tapinha no ombro do colega e perguntou a Darcy: — Como você está se adaptando a escrever no novo espaço?

— Ainda não tentei. — Nan ainda não tinha enviado seus comentários, o que a impedia de começar a revisar o livro. E só a ideia de começar Patel Número 2 sem orientação a deixava apavorada. — Será que devo me preocupar?

— As fadas da escrita podem ficar chateadas em uma casa nova — comentou Johari. — São como gatos. Mijaram nos travesseiros todas as noites por uma semana depois que me mudei para Nova York.

Oscar ergueu uma sobrancelha.

— Suas fadas da escrita mijaram nos travesseiros?

Johari o ignorou.

— Eu ficaria preocupada com os espelhos. Não conseguiria escrever nem uma palavra se tivesse que ficar olhando para a minha cara o dia inteiro.

Darcy se virou para a parede espelhada e observou o reflexo dos três. Oscar e Johari pareciam muito maiores que ela, fazendo Darcy parecer muito jovem no seu vestidinho azul.

— Eles sobraram de quando o apartamento era um estúdio de dança. Mas se eu tirar os espelhos vai ficar tudo branco.

— Como todos os apartamentos de Nova York — comentou Johari com tristeza.

— Não é? — concordou Darcy. Na Filadélfia, cada cômodo da casa dos seus pais tinha uma cor especial: amarelo-claro na cozinha, verde-bandeira na sala de jantar, roxo nas paredes do quarto de Nisha, sobra da sua fase gótica aos 12 anos. — Qual é a obsessão com branco nos apartamentos daqui?

— É a ideia de galeria — explicou Oscar. — Um fundo neutro para todos os artistas trabalhando.

— Pfft. Que tédio — respondeu Johari.

— Eu estava na loja de material de construção ontem — comentou Darcy. — E eles tinham uma seção inteira só de tintas brancas. Mas em vez de “branco”, cada tinta tinha um nome idiota como “Linho”, “Giz” ou “Arroz lavado”.

Oscar riu.

— Acho que a minha casa é “Pomba”.

— “Cercadinho” — admitiu Johari.

— Acho que vou ficar com os espelhos.

— Minha nossa! Estamos todos nos admirando? — Era Kiralee Taylor, que Darcy não tinha visto chegar. Outras pessoas estavam atendendo ao interfone agora, e até faziam tour do apartamento para os recém-chegados. Moxie preparava os drinques e Rhea juntava dinheiro para comprar mais cerveja e gelo. A festa tinha entrado no ritmo, seu próprio batimento cardíaco.

— Obrigada por ter vindo, Kiralee — agradeceu Darcy, dando dois beijinhos no rosto da autora como se fossem velhas amigas.

— Que apartamento lindo. E essa parede de espelhos, tão útil!

— Os dançarinos deixaram isso aí. Johari acha que ficar vendo meu reflexo vai me impedir de escrever.

— Seu rosto dificilmente vai te distrair tanto quanto a internet. Sem contar que você parece engenhosa o suficiente.

Darcy sorriu com o elogio, mas um tremor nervoso a atravessou. Imogen tinha enviado o arquivo de Além-mundos para Kiralee duas semanas antes. Tempo suficiente para que ela tivesse lido o livro.

Ela procurou alguma dica na expressão da autora, algum indício de que tivesse adorado ou odiado o livro, ou mesmo de que sequer tivesse começado. Será que o “engenhosa” era algum tipo de elogio disfarçado?

— Dito isso, eu mesma passei o dia todo preocupada com a minha cara. — Kiralee virou para os espelhos e ajeitou a gravata, amarrada com um nó Windsor duplo bem fofo. — Tive que tirar novas fotos hoje.

— Ah, odeio foto de autores — comentou Johari. — Não entendo o que a minha aparência tem a ver com a história!

— Verdade. — Kiralee verificou seu perfil no espelho. — Eu gostava da foto antiga, mas estava passando da data de validade. Bem, na verdade, eu que estou.

— Sem contar que você está encostando no seu rosto nessa foto — lembrou Oscar.

Kiralee deu um soco no ombro do amigo, e Darcy ficou com cara de quem não entendeu.

— Atenção, querida. — Johari abraçou Darcy. — Quando for tirar sua foto para a orelha, atenção para não encostar no seu rosto.

— Por que eu faria isso?

— É um mistério, mas muito comum. Você já deve ter visto esta. — Oscar fez uma pose taciturna, com o punho fechado sob o queixo. — Para o autor com um cérebro tão pesado que mal consegue segurar a cabeça em pé.

— Um amigo meu ficou preso a uma dessas por uma trilogia inteira. — Johari tocou as bochechas de forma pensativa. — Como se estivesse tendo ideias mirabolantes bem na frente do fotógrafo!

— Cruzes. — Darcy se virou para Kiralee.— Você fez isso?

— Não, escolhi a terrível massagem nas têmporas. Foi há muito tempo, e eu não tinha sábios para me salvar.

Darcy tentou se lembrar da foto na capa de Bunyip.

— Mas eu amava essa foto. Você parece tão inteligente nela.

— Eu pareço um médium de televisão.

Darcy deu uma olhada para Nan e Rhea do outro lado da sala.

— A Paradox não vai me fazer tirar fotos, vai? Quer dizer, muitos livros não têm foto do autor.

— Com uma coisinha bonitinha e novinha que nem você? — Johari balançou a cabeça. — Acho que é inevitável.

Darcy olhou para si mesma no espelho novamente, uma sensação de vulnerabilidade familiar a dominava. Não só suas palavras seriam replicadas milhares de vezes para todos avaliarem e julgarem, isso também aconteceria com o seu rosto.

Dava para ver por que seria tentador enfiar as mãos no meio da foto, só por um pouquinho de proteção.

Seu telefone tocou, e Darcy deu uma olhada na tela — Imogen.

— Um instante, gente. — Ela se virou e foi para um canto vazio, levando o telefone ao ouvido. — Onde diabos você se meteu, Gen?

— Estou no telhado.

— O quê? Por quê?

— Alguém abriu a porta para mim, e eu preciso falar com você a sós um segundo. Vem aqui.

— Mas, hum, a festa é minha... — começou Darcy, mas ao dar uma olhada em volta, vendo Johari levar Kiralee até as janelas para mostrar algo lá embaixo, Rhea e Moxie preparar os drinques, e Oscar fazer caretas no espelho com Max, percebeu que a festa não precisava de sua supervisão. Além disso, Darcy ainda precisava confessar algo antes que Imogen conhecesse seus amigos da escola. — Tudo bem. Já vou.

* * *

Darcy ainda não tinha subindo no telhado do prédio. Mas no sexto andar encontrou uma escada menor, escondida, que levava a uma porta de metal mantida aberta por um tijolo de concreto.

Quando ela saiu, o piche que cobria o telhado se amassou debaixo dos seus pés, como num pula-pula inflável. O dia estava quente, e o cheiro de piche se espalhava no ar.

— Gen?

— Aqui.

Imogen estava sentada na beirada do prédio, as pernas penduradas para fora. Darcy sentou-se ao lado dela e se inclinou para olhar a rua. Um tremor de vertigem correu pelo seu corpo, dos dedos dos pés aos das mãos.

— Cuidado para não cair — disse Imogen. — Gostei do vestido.

— Se eu decidir me jogar, troco de roupa primeiro. — As palavras saíram um pouco duras.

— Olha... Desculpa pelo atraso.

— É uma pena mesmo, Gen. — Darcy virou para ela. — Passei o dia inteiro me cagando de medo de ninguém aparecer. Meus amigos da Filadélfia se atrasaram, e você me deu o maior bolo!

— Foi babaca, eu sei. — Imogen balançou as pernas, olhando o horizonte. — Mas eu queria terminar o seu livro.

Darcy piscou, confusa.

— O quê?

— Eu fiquei enrolando para ler, porque gosto muito de você. Mas aí percebi que Oscar estaria aqui hoje e ia me perguntar o que achei, e você poderia estar parada bem do lado na hora. Então falei, foda-se, e comecei a ler três horas atrás. Mas, sim, meu timing foi péssimo. Eu teria começado antes se não estivesse com medo.

— Peraí. Por que você estava com medo?

Imogen esticou as mãos.

— Porque, e se fosse uma bosta? Seria muito estranho gostar tanto assim de você se fosse uma escritora de merda. Quer dizer, você ia querer que eu te contasse se eu achasse uma droga? Ou que simplesmente ficasse num silêncio educado para sempre? Porque essas seriam as suas escolhas. Eu não iria mentir.

Darcy respirou fundo devagar. O precipício no espaço à frente delas de repente se abriu, como se o prédio se inclinasse, tentando derrubá-la na rua lá embaixo.

— Você achou que eu não sabia escrever?

— Eu não tinha ideia. Você é incrível, mas muitas pessoas incríveis não sabem escrever nem para salvar a própria vida.

— E...?

— E faz as coisas ficarem esquisitas! Todo mundo sempre fala de escrever nas festas do Oscar, então sou educada e tudo, mas dentro de mim sempre tem uma vozinha falando, como quando você está num casamento e sabe que aquela parada está condenada ao fracasso, e fica tenso achando que, quando o padre perguntar se alguém tem algum motivo para impedir o casamento, você vá gritar: “Casamento fracassado!”

— Vou tentar de novo — falou Darcy cuidadosamente. — Você leu meu livro e...?

— Ah. — Imogen riu, segurando a mão de Darcy. — Bem, eu me atrasei, não é?

— Por quê...?

— Porque não consegui parar. Porque é bom pra cacete.

Darcy ainda estava se sentindo meio tonta.

— E você não diria isso agora se tivesse odiado?

— Não. — A voz de Imogen estava firme e sincera. — Se fosse uma porcaria, eu teria largado o livro e chegado aqui na hora. E nunca mais falaria disso.

— E eu nunca ficaria sabendo. — Um tremor atravessou o corpo de Darcy, alívio misturado com medo, como se a sombra de uma ave de rapina monstruosa tivesse passado sobre ela. — Sabe, Gen, você poderia ter começado dizendo que tinha gostado do livro.

— Não gostei. Amei. — Imogen apertou a mão dela. — Eu amei Além-mundos.

Darcy sentiu um sorriso surgindo em meio à sua expressão de irritação.

— Por que você quis falar isso aqui no telhado?

— Porque queria falar assim que chegasse.

— Sim, mas você poderia ter feito isso lá embaixo. Quer dizer, fique à vontade para tornar públicos seus pensamentos!

— Até a parte em que gosto de você?

Darcy piscou de novo, e falou:

— Peraí. O quê?

— Eu sei que esse é um jeito idiota de contar — falou Imogen, segurando as mãos de Darcy. — Mas tudo se misturou hoje, gostar do seu livro e de você. Então enquanto estava vindo para cá decidi contar as duas coisas.

O prédio estava se inclinando de novo.

— Você quer dizer... que gosta gosta de mim?

— É, muito. É claro que você pode só gostar de mim, e se for esse o caso não vou sair correndo e deixar de ser sua amiga. Mas saiba que estou a fim de você, e do seu livro também. — Imogen estava quase rindo, tropeçando nas próprias palavras. — Estou totalmente a fim de Além-mundos.

— Isso é bizarro. — Darcy sentia um rubor surgindo no rosto.

— Não é, não. Seu livro é inteligente e bonito. Quero ler as continuações.

Darcy riu.

— Sério?

— Você leva a sério todas as coisas certas. Tipo, a história da Mindy é triste para caramba, e você nunca tenta disfarçar isso. E o terror do primeiro capítulo nunca desaparece; Lizzie só aprende a usá-lo.

— É a história de origem dela — concordou Darcy baixinho.

— Exatamente. — Imogen segurou uma mecha de cabelo de Darcy entre os dedos, sem desviar o olhar dela. — E não tem só a ver com seus novos poderes, é sobre como as pessoas a veem de forma diferente. Tipo, quando todo mundo considera que a Lizzie ainda é só uma garota qualquer, ela fica, tipo, “Quando foi a última vez em que você sobreviveu a um ataque terrorista, cara?”. E todo mundo tem que respeitá-la.

Darcy não respondeu. Ninguém tinha falado nada do tipo sobre Além-mundos. Os primeiros e-mails da Underbridge Literary e da Paradox tinham muitos elogios, mas nada tão específico assim. Ser compreendida era ainda melhor do que ser elogiada, aparentemente. As palavras de Imogen fizeram sua pele formigar e seus lábios arderem.

— Eu gosto de livros em que a magia tem um preço. Quanto mais poderosa Lizzie fica, mais ela perde. — Imogen se aproximou. — Você tem caldo.

— Eu tenho o quê?

— Você não só escreve bem. Você conta histórias. — A voz dela era um sussurro. — Frases bonitas são legais, mas é o caldo que me faz virar as páginas.

Darcy fechou os olhos. Os lábios delas se encontraram, e ela respirou fundo o cheiro do piche aquecido pelo sol e do sol da pele de Imogen. Sentiu o tremor do trânsito lá embaixo, subindo pelo prédio e passando pela sua coluna, seus dedos, sua língua. Sua respiração ficou mais lenta para encontrar a dela, calma e profunda.

Imogen levou uma das mãos para a nuca de Darcy, entrelaçando os dedos no cabelo dela, mantendo-a perto mesmo depois que o beijo tinha acabado.

Darcy sussurrou, os lábios tocando os de Imogen quando falou:

— Uau. Você está mesmo a fim do meu livro.

— Fato.

Aquilo era incrível, mas Darcy queria mais.

— Nenhuma crítica?

— Bem, você sabe. É o manuscrito. E seu primeiro livro. E não me pergunte se você está se apropriando dos deuses do hinduísmo, porque eu não tenho ideia.

Darcy abriu os olhos.

— Certo. Mas o que você quis dizer com “meu primeiro livro”?

— Bem, talvez seja um pouco inocente, considerando que é um livro sobre morte.

— Inocente? — Darcy se afastou. — É o que você acha que eu sou?

— Boa pergunta. — Imogen chegou mais perto, analisando-a. —Até 10 segundos atrás, eu não tinha ideia se você gostava de mim ou não. Você é, tipo, muito esperta ou só... — Ela fechou os olhos devagar. — Você já tinha beijado uma garota antes?

— Eu nunca tinha beijado ninguém antes — retrucou Darcy com pressa, antes que ela tivesse tempo de amarelar e nunca mais falar nada. — Não de verdade.

Imogen ficou em silêncio por um tempo um pouco longo demais.

— Sério? — finalmente falou.

Darcy assentiu. Houvera um beijo de prática com Carla uma vez, numa festa do pijama, e uma tentativa de beijar de verdade um menino que era cocapitão dos Zelotes da Leitura. Mas nenhum dos dois beijos contava, e aquele, sim.

— Eu me saí bem?

— Melhor que bem.

— Se você tivesse odiado, estaria mentindo para mim?

— É a segunda vez que você me pergunta isso. — Um sorriso brincou nos lábios de Imogen. — Você não confia em mim?

Darcy nunca tinha visto ninguém falar das coisas que importavam com tanta paixão quanto Imogen. Ninguém conseguiria mentir com tanta convicção, certo?

— Eu confio em você.

— Que bom. — Os olhos de Imogen brilharam com o último raio cor-de-rosa do céu antes do anoitecer. Ela se aproximou, e as duas estavam se beijando de novo. No início as mãos de Darcy estavam fechadas em cima do piche quente do telhado, tentando se equilibrar. Depois ela esticou os braços, segurando os ombros de Imogen e sentindo os músculos se mexendo. Darcy puxou-a para perto, e as duas ficaram assim até que o celular de Darcy começou a tocar no bolso.

— Desculpa... — Ela se afastou, pegando o telefone. — Meus amigos da Filadélfia talvez tenham se perdido.

— Como eu falei, meu timing é péssimo.

Darcy leu a mensagem.

— Bosta, eles já chegaram! Alguém abriu o portão e eles estão lá embaixo me procurando!

Imogen levantou e esticou a mão.

— Vamos lá. O dever chama.

Darcy se levantou, desejando com uma pontada de culpa que Carla e Sagan tivessem perdido só mais um trem. Mas seria cruel deixá-los sozinhos num lugar tomado de escritores que eles idolatravam.

Depois de entrarem, Imogen chutou o tijolo de concreto, e a porta de metal bateu atrás delas. As duas desceram rapidamente, e um momento depois estavam na porta do 4E. Os sons de uma boa festa vazavam para o corredor.

Imogen segurou os ombros de Darcy.

— Tudo bem? Está parecendo meio confusa.

Darcy estava muito confusa e ao mesmo tempo muito bem, sentindo demais as duas coisas e seria impossível debater tudo aquilo ali no corredor. Em vez disso, ela ficou na ponta dos pés e as duas se beijaram de novo.

Depois ela se ajeitou e, ainda segurando a mão de Imogen, abriu a porta.


CAPÍTULO 16

Eu me vesti rápido, uma calça jeans e camiseta, então fui na ponta dos pés até a cozinha para pegar uma faca.

Não sabia se facas funcionavam com fantasmas, ou mesmo se a coisa no porão era um fantasma, mas qualquer arma era melhor do que ficar de mãos vazias. Peguei uma faca curta e estreita, com um cabo pesado de metal.

Mindy ainda estava de pé na minha cama, com medo de encostar no chão. Seus olhos se arregalaram quando ela viu a faca.

— A gente devia fugir, Lizzie.

— E se esconder no armário da minha mãe? — Eu escondi a faca no bolso de trás da calça. — Eu moro aqui, Mindy. Não tenho para onde fugir. E você não disse que os fantasmas deveriam ter medo de mim?

— Seja lá o que está lá embaixo não parece estar com muito medo, parece?

Como se em resposta, a voz sob nossos pés recomeçou, tão perto do piso que podia sussurrar.

— Venham brincar...

Com um calafrio, calcei os tênis que estavam ao lado da cama.

— Por favor, vamos fugir — implorou Mindy.

— Não. Eu vou chamar uma pessoa.

Ela ficou me olhando, espantada.

— Quem?

— Alguém que conheci quando comecei a ver fantasmas. Alguém que não te contei que conhecia.

— Quer dizer alguém morto?

Balancei a cabeça.

— Alguém que nem eu.

— Um pompo? — Mindy se virou e pulou para a minha escrivaninha, como uma criança brincando de amarelinha. Ela estava indo direto para a porta do quarto, em direção ao armário da minha mãe.

— Tudo bem, Mindy! Ele é legal.

Ela se virou para mim, equilibrada em cima da cômoda.

— Eles sempre falam que são legais. Depois levam você embora.

Balancei a cabeça.

— Ele me salvou.

Mindy me olhou como se eu fosse uma idiota, e por um segundo me perguntei por que confiava tanto em Yamaraj. E se ele levasse a Mindy embora?

Mas eu já tinha visto filmes de terror suficiente para saber que você não pode ir ver o que são barulhos assustadores no porão sozinha. Especialmente se sua casa não tem porão.

— Confie em mim. — Dei um passo para a frente e estiquei a mão. — Eu preciso atravessar para chamá-lo.

— De jeito nenhum! — Ela se afastou.

— Tudo bem. Eu faço sozinha. — Respirei fundo. — A equipe de segurança está a caminho...

A coisa lá embaixo ficou em silêncio, como se estivesse prestando atenção, e minha voz ganhou confiança no silêncio.

— Você pode ir para um local em segurança?

As palavras me fizeram tremer, trazendo um vento frio noturno para dentro do quarto. Minha respiração foi se acalmando. Era estranho falar os dois lados da conversa, mas dava para sentir o feitiço funcionando.

— Não, não posso. E ele está atirando em todo mundo.

O frio se tornou uma presença física, me pressionando por todos os lados.

— Bem, querida — falei baixinho —, então talvez você devesse se fingir de morta.

Quando a última palavra deixou meus lábios, me senti atravessando. Foi de uma vez só, as sombras adquirindo tons cinzentos, os números brilhantes no rádio-relógio ficando esmaecidos.

Mas desta vez o ar não tinha o cheiro metálico de sempre. Um odor açucarado, como eu tinha sentido no deserto, pesava no ambiente. Baixei os olhos e vi uma mancha negra se espalhando no meio do quarto.

Era como a tinta inundando a escola fantasma, ou os rios escuros que eu tinha visto no deserto — piscinas de nada. Começara como uma mancha de café derramado, mas se espalhava pelo chão bem diante dos meus olhos.

— Não deixa isso encostar em você — avisou Mindy.

Dei um passo para trás.

— Yamaraj, eu preciso de você.

Seu nome de repente pareceu a palavra “miragem”, e pareceu insano esperar que ele me ouvisse. Ele poderia estar a mil quilômetros de distância, ou a mil quilômetros de profundidade...

Mas ele tinha vindo na primeira vez em que chamei.

— Yamaraj, por favor venha até mim. — Quando repeti seu nome, senti um calor se espalhar pelos meus lábios.

A piscina de nada estava se aproximando dos meus pés. Dei mais um passo para trás, até perceber que estava encostada à parede.

— O que é isso, Mindy?

— É o rio — respondeu ela, com a voz esganiçada. — O que existe entre o lado de cima e o de baixo.

A cama estava perto o bastante para que eu conseguisse pular nela, mas a escuridão tinha chegado à ponta dos tênis, e de repente meus pés ficaram gelados. Os músculos das pernas pareciam fracos demais para pular.

Um segundo depois, meus pés estavam afundando no piso.

— Como eu me livro desse troço?

Mindy estava assustada demais para responder e ficou apenas observando com os olhos arregalados, morrendo de medo. Eu senti a escuridão subindo pelos meus joelhos, fria como lama no inverno. Me estiquei tentando agarrar a beirada da cama, mas estava longe demais.

O frio tomava conta do meu corpo conforme eu afundava, a cada centímetro mandando novas ondas de tremor por mim. O cheiro doce enchia meus pulmões, pesado demais para respirar.

Bem quando a tinta estava passando da minha cintura, a porta do meu quarto se abriu. Era minha mãe, vestindo uma camisola branca. Ela devia ter me ouvido falar com Mindy antes de atravessar para o outro lado.

— Lizzie? — chamou ela baixinho, apertando os olhos para a cama.

— Mãe! — gritei, mas é claro que ela não me ouviu. Eu estava do outro lado, escondida. De repente, ficar invisível não pareceu mais um superpoder tão legal.

A gosma preta passou dos meus ombros.

— Yamaraj, preciso de você — chamei pela última vez e senti seu calor inflamar meus lábios de novo.

Tentei gritar, esperando que o pânico me fizesse aparecer de volta na terra dos vivos. Mas a tinta gelada diminuía os batimentos do meu coração e tirava o ar dos pulmões. Ela cobriu minha boca, meus olhos, minhas orelhas, como noite líquida me dominando.

Um momento depois eu estava no rio.

Era frio e escuro lá embaixo.

O único som era um gemido baixo, um vento forte cortando um lugar imenso e vazio. O ar quase parecia sólido, bagunçando meu cabelo e minhas roupas e tentando me tirar do chão. Mas eu não estava me afogando, e pelo menos estava de pé em algo sólido; meus pés tinham encontrado apoio em alguma superfície na escuridão total.

Um brilho branco surgiu, não muito distante — o rosto de um homem.

Ele parecia mais velho do que sugeria sua voz, da idade do meu avô, muito branco e com cabelos brandos. Quando meus olhos se acostumaram à falta de luz, o restante dele entrou em foco. O homem vestia um casaco muito remendado, com bolsos fundos onde ele escondia as mãos. A barra do casaco balançava com o vento. Ele estava me observando.

— Você está viva.

— Não brinca.

A mão dele surgiu e coçou o queixo, dedos pálidos brilhando na escuridão. A pele dele era branca, mas não exatamente cinzenta. Tinha um brilho pegajoso, como o de uma estátua de mármore.

— O que diabos você estava fazendo debaixo do meu quarto? — Minha voz parecia muito fraca lutando com o vento constante.

— Eu senti o cheiro de uma garotinha. — O homem tinha um leve sotaque . — É sua?

— Minha?

Ele ergueu uma das sobrancelhas claras. Seus olhos eram sem cor, quase transparentes, como aqueles peixes sem cor que vivem em fossos no oceano, tão profundos que a luz não conseguia alcançar.

— Você não coleciona?

— Coleciono fantasmas?

— Deve ser nova, então. — O sorriso do homem surgiu gradualmente, como se fosse controlado por um dimer. Deixou o lugar ainda mais frio.

Então percebi que a pele dele brilhava levemente no escuro, como a minha.

— Você é como eu — falei. Não era nenhum monstro lendário. Era outro psicopompo.

— Quanta perspicácia. — Ele abriu um sorrisinho irônico. — Mas você realmente sabe o que nós somos?

— Sim. E eu não coleciono fantasmas.

— Eu poderia te ensinar — falou ele, dando um passo para a frente.

— Fica bem aí.

Ele sorriu de novo.

— Estou te assustando?

— Terroristas com metralhadoras me assustam. Você só está me irritando. Eu estava tentando dormir.

— Peço perdão. — O homem fez uma mesura. — Mas sono não é algo de que você precise mais.

— O que você quer dizer?

— Dormir é como um pedacinho da morte. E você já comeu um pedação, não é verdade? Já comeu todo o bolo que poderia querer.

— Você é péssimo com metáforas.

Os olhos do velho brilharam na escuridão.

— Talvez este não seja meu primeiro idioma, mas sou bom em muitas outras coisas, e sempre quis ter um aprendiz. Eu posso te mostrar todos os meus truques. E o preço será só aquela menininha.

Tive vontade de gritar com ele, mas a raiva que deveria estar sentindo sumiu. O frio havia dominado meus músculos, e o vento constante parecia ter levado minhas emoções embora.

Meus lábios, porém, estavam formigando, uma ponta de calor naquela escuridão.

— Não, obrigada.

O homem remexeu os dedos no fundo dos bolsos, que se abriram cada vez mais. De alguma forma eles pareciam mais escuros ainda do que o porão, infinitos e famintos.

— Não quer ver o que há nos meus bolsos?

Por fim senti uma pontada de medo, e meus músculos pulsaram de volta à vida. Estiquei a mão para o bolso de trás da calça e tirei a faca.

— De jeito nenhum.

Ele pareceu desapontado.

— Uma faca? Que absurdo. Não há necessidade de violência, querida. Eu não tenho interesse em ninguém tão vivo quanto você.

— Então deixe a gente em paz.

— Aquela fantasminha não é sua amiga. Sabe, eles não são pessoas de verdade.

Eu não queria saber, mas perguntei mesmo assim:

— Então são o quê?

— São fios perdidos de memória, histórias que contam a si mesmos. E se você souber como, é possível tecer as coisas mais lindas com esses fios. — Ele alisou os bolsos com as palmas das mãos. — Tem certeza de que não quer ver?

O horrível é que parte de mim queria. Parte de mim queria aprender todos os segredos do além-mundo, não importando quão terríveis fossem. Mas só ouvir aquele homem parecia uma traição a Mindy. Balancei a cabeça.

— Eu tenho muitos outros truques que posso te ensinar. Pode ficar tranquila.

— Como o quê?

Seu sorriso voltou. Ele sabia que eu estava curiosa.

— Como usar o hálito de um fantasma para se manter aquecida aqui no rio. Como fazer os irritantes sumirem. Como cortar as memórias mais deliciosas para você. Dá para sentir o gosto do melhor bolo de aniversário que a sua amiguinha lá em cima já teve. Ou a sensação de ouvir sua história favorita da hora de dormir, toda enroladinha nas cobertas.

— Você está falando sério? Esses são seus truques tranquilos?

— Estou falando tão sério quanto a morte. — Ele deu mais um passo na minha direção. — Você não sabe o que está perdendo, garota.

Apertei o cabo da faca. O metal brilhou na escuridão.

— Fique longe de mim.

— Estou te oferecendo maravilhas. — O velho ainda se aproximava. — Não me ofenda.

— Fique longe de mim! — Dei um passo para trás e algo frio e úmido tocou minhas costas, como folhas molhadas.

— O que é isso atrás de você? — perguntou o velho bem gentil.

Eu queria me virar, mas estava paralisada, os dedos apertados no cabo da faca. Um suspiro de sussurro brincou na minha nuca, como se o vento estivesse falando.

Mas aí algo mudou no ar, a escuridão pareceu se aquecer ao nosso redor. Meus lábios passaram a arder, e o que quer que estivesse atrás de mim de repente havia sumido.

Sorri e guardei a faca de volta no bolso da calça.

— É melhor você ir embora. Eu chamei alguém.

— Sua amiguinha? — O velho olhou para cima com avidez, alisando os bolsos com as mãos brancas.

— Velho demais para você.

O sorriso do homem sumiu.

— Qual o problema? Achei que você gostasse de merdas confusas.

— Você está ficando irritante, querida.

— Irritante? Como ser acordada no meio da noite? — Minha raiva estava borbulhando, vinda de onde o frio a havia prendido antes. — Como barulhos embaixo da cama? Como velhos perseguindo garotinhas?

Toda a falsa educação sumiu do seu rosto. A expressão dele estava fria como mármore.

— Você deveria ter respeito.

Eu só sorri e olhei para além dele. Uma onda de calor estava atravessando a escuridão, junto com um cheiro de algo defumado e forte. Do nada Yamaraj surgiu caminhando na nossa direção, fagulhas brincando ao redor dos seus pés, como alguém andando sobre brasas. Os pontos de luz se espalhavam com o vento.

Era uma visão magnífica, mas o velho não mostrou medo. Ele se voltou para mim por um momento, curioso.

— Você tem amigos interessantes. — Então enfiou as mãos nos bolsos e cuspiu no chão na frente dele. Com um passo à frente, ele pareceu cair por um buraco, desaparecendo como uma vela soprada.

Fiquei ali de pé, com a respiração acelerada.

Yamaraj ergueu a mão, que brilhava, quente e incandescente. A luz destruiu a escuridão do porão, confirmando que o velho tinha sumido. Finalmente vi onde estávamos: uma planície cinzenta que brilhava como terra úmida, se estendendo em todas as direções, infinita e vazia. Acima de nós, onde o chão do meu quarto deveria estar, um céu vazio pesava. Uma coluna de fumaça saía da mão brilhante de Yamaraj, se espalhando conforme subia, curvando-se em um arco pelo vento constante.

Ele olhou em volta com cuidado, depois baixou a mão. Nos vimos imersos novamente em uma escuridão cheia de formas que tremulavam e ardiam no meu campo de visão.

— Você está bem, Lizzie? — ouvi sua voz.

Eu assenti, mas no mesmo instante minhas mãos começaram a tremer. O outro psicopompo podia parecer um velho em um terno surrado, mas havia algo monstruoso à espreita sob sua pele pálida. Ainda dava para sentir o cheiro no ar parado ao nosso redor.

— O que ele queria? — perguntou Yamaraj. Não conseguia afastar as imagens queimadas nas minhas retinas, mas senti que ele estava aproximando.

— Ele não veio atrás de mim — expliquei. As palavras me acalmaram um pouco.

Yamaraj estava ao meu lado, aquecendo o ar ao nosso redor, o que só me fazia lembrar de como estava com frio um minuto antes.

— Ele só queria me mostrar uma coisa. Algo feito com fantasmas, acho.

— Mas você não olhou? — Yamaraj prendeu meu olhar. Seus olhos castanhos atravessavam a escuridão e destruíam meu medo.

— Não. Eu não olhei.

Seu olhar se tranquilizou.

— Que bom. Alguns de nós colecionam coisas, pedaços de vidas. Coisas impossíveis de esquecer.

Um tremor percorreu meu corpo, uma mistura de restos de raiva e medo. O frio permanecia comigo, inescapável. Parte minha queria abraçar Yamaraj e sentir seu calor, mas eu não queria parecer patética. Além disso, da última vez um simples toque dele tinha me mandado de volta à realidade.

Definitivamente não era assim que eu tinha imaginado que seria quando nos encontrássemos de novo. Eu queria impressionar Yamaraj com tudo que tinha descoberto sozinha, mas ali estava, com frio, assustada, e vestida que nem uma mendiga.

— Obrigada por vir.

— É claro. — Ele olhou em volta. — Mas como você chegou aqui?

— Você quer dizer... aqui no rio? Aquele velho me seguiu até em casa, acho, daquele prédio fantasma que nós estávamos explorando. Ele estava debaixo do chão do meu quarto, me enlouquecendo. Eu tive que enfrentá-lo.

— Você estava explorando. — Um meio sorriso, belo e surpreendente, brincou nos lábios dele. Yamaraj estava preocupado comigo, mas também impressionado.

Eu não conseguia tirar os olhos dele. Tinha imaginado Yamaraj mil vezes na última semana, e agora minhas lembranças estavam se encaixando aos detalhes mais corretos da realidade. A curva das suas sobrancelhas em forma de bumerangues. A linha firme do seu queixo e o jeito como seu cabelo escuro se enrolava atrás de uma das orelhas, mas tinha sido solto do outro lado pelo vento.

— Você disse nós?

— Sim. Minha amiga. É uma fantasma que mora comigo.

O sorriso dele sumiu.

— Sua amiga? Às vezes é difícil se livrar de fantasmas, Lizzie, depois de deixá-los entrar na sua vida.

— Ela já estava na minha vida. Ela era a melhor amiga da minha mãe há um tempão, e está perto de mim desde que eu nasci. Ela está me ensinando algumas coisas.

— Que coisas, Lizzie?

— Como ver prédios fantasmas. Como entrar neles. — Me lembrei da voz do velho cantando no corredor da escola e tremi. — O que era aquele homem? Um psicopompo como eu e você, né?

— Ele não é como eu e você. —Yamaraj me deu as costas, explorando a escuridão com o olhar. — Ele é algo vazio, sem coração.

— Ele disse que os mortos não são pessoas.

— Alguns de nós veem os mortos assim: como objetos, brinquedos. — Yamaraj suspirou. — Mas alguns também veem os vivos assim.

— Ótimo: psicopompos e psicopatas.

Ele não respondeu.

O calor que Yamaraj tinha trazido parecia estar diminuindo, e cruzei os braços para me proteger do frio. De repente, a realidade de tudo que eu tinha visto naquela noite me atingiu com toda a força.

Pelo menos agora eu sabia por que Mindy tinha tanto medo de psicopompos. O pós-vida tinha uma cadeia alimentar, e nós estávamos num patamar mais alto que os fantasmas.

— O velho queria me ensinar coisas.

— Existem coisas que você não quer saber.

Fixei o olhar em Yamaraj por um momento. O problema era que eu queria saber de tudo, das coisas boas e das ruins. Talvez ser a aprendiz do velho não fosse para mim, mas eu queria explorar cada pedaço daquele mundo novo.

— Então me ensine você.

— Você já está mudando tão depressa, Lizzie. Não quero apressar ainda mais as coisas.

Fiz um gesto para a escuridão.

— Porque isso seria pior do que andar aos tropeços por aqui, sem saber de nada?

Ali estava de novo, o olhar de saudade que eu vira em seu rosto no aeroporto. Por mais preocupado que estivesse comigo, Yamaraj queria manter essa conexão entre nós. Seus lábios se abriram, depois fecharam com força novamente.

Por fim ele disse:

— O que você quer saber?

Levei um momento para responder. Queria saber sobre fantasmas, sobre o homem no casaco remendado, sobre tudo que tinha visto. Queria saber como Yamaraj trouxera luz e fogo na escuridão, e por que seu toque me mandara daquele mundo cinza de volta para a realidade.

Mas como toda aquela vastidão vazia em volta, perguntei algo mais simples.

— Onde estamos?

— No rio Vaitarna. É a fronteira entre o mundo de cima e o mundo de baixo.

— Um rio, como o Estige.

— Tudo que é antigo tem muitos nomes. — Ele ergueu os olhos para o céu vazio. — O mundo está lá em cima, cheio de vivos e fantasmas vagantes. Abaixo de nós fica o submundo, onde residem os mortos. O rio é o óleo entre os dois.

Olhei em volta.

— Isso não parece um rio. Quer dizer, cadê a água?

— Nós estamos na água.

Como se para provar o que Yamaraj dizia, o vento aumentou, como uma corrente turbulenta passando por nós. O ar grudou a camisa de seda preta ao abdome dele, e por um momento pude ver cada músculo.

Tirei o cabelo dos olhos.

— Certo, próxima pergunta. De onde você é?

— De uma pequena vila à beira de um grande mar.

Revirei os olhos.

— Meio vago, considerando que você deveria estar me ensinando as coisas. Você é da Índia, certo?

— De certa forma, sim. Mas era antes de haver uma Índia.

Assenti devagar, pensando que com certeza a Índia estava por aí havia muito, muito tempo.

— Quantos anos você tem?

— Eu tinha 14 quando atravessei. — Seu sorriso deixou claro que ele estava se divertindo às custas das minhas perguntas.

— Você parece mais velho que isso. Talvez 17?

— Talvez.

De início ele não falou mais, e ficamos nos encarando por alguns momentos na escuridão. Mas eu gostava de olhar para ele, então ele desistiu antes de mim.

— Aqui é o além-mundo, Lizzie. Somos como fantasmas, e fantasmas não sentem cansaço ou fome. Também não envelhecem.

— Quer dizer que não vou mais envelhecer? — perguntei, encarando-o.

— Vai, no mundo dos vivos. — Ele olhou para o céu vazio. — Sempre que outros vivos puderem vê-la e tocá-la, você estará envelhecendo a cada segundo, como pessoas normais.

— Então você não deve sair daqui nunca.

Ele balançou a cabeça.

— Passei alguns anos no mundo real desde que atravessei pela primeira vez. Alguns dias aqui e ali, mas é só.

— Ah. — Meus olhos baixaram para a vastidão negra sob nossos pés. — Então você mora no submundo? É para lá que Yami estava levando todas aquelas pessoas.

Ele assentiu.

— Como é lá embaixo? — perguntei, pensando nos temores de Mindy. — É um lugar legal, ou ruim?

— É silencioso, na maior parte do tempo. Só as lembranças dos vivos despertam os mortos, e a maioria dos mortos já foi esquecida. Nós fazemos o que é possível.

— Nós?

— Existem muitos de nós, vivos que encontraram o submundo. Cada um tem seu próprio povo. Decoramos seus nomes, para que não desapareçam.

Assenti, lembrando o que Mindy dissera: que as lembranças da minha mãe evitavam que ela sumisse.

— Mas milhões de pessoas devem morrer todos os anos. Como vocês se lembram de todas?

— Não lembramos. A maioria vaga, perdida, até ser esquecida. Algumas são levadas por pessoas como o homem que você conheceu, que as usa. As que têm sorte nos encontram. — Yamaraj se esticou. — Tenho somente poucas milhares no meu povo, mas conheço cada uma.

— Poucos milhares, de milhões? Que deprimente.

— A morte pode ser deprimente. — Por um momento, ele pareceu mais velho.

— Já percebi. — Suspirei. — Tem algo que você possa me ensinar que não seja deprimente?

Yamaraj pensou por um momento, então um sorriso brincou no seu rosto.

— O que você acha disso: o rio não é só uma fronteira. Também é um meio de transporte.

Ele estendeu a mão, e fiquei olhando por um momento.

— A gente vai a algum lugar?

— Diga aonde você gostaria de ir.

— Sério? — Pisquei algumas vezes. — Tipo a torre Eiffel ou as grandes pirâmides?

— Depende. Você precisa de uma conexão com o lugar para onde está indo. Lembranças de estar lá, algum tipo de laço. Mas sim, o rio Vaitarna conecta o mundo inteiro.

Fiquei encarando-o, me perguntando com que lugares eu tinha uma conexão verdadeira. Tinha morado na mesma casa a vida inteira. Havia as escolas que eu frequentara no ensino fundamental e médio, claro, mas pensar em ir para outra escola vazia me arrepiava. Não dava para simplesmente aparecer na casa da minha amiga Jamie ou no apartamento do meu pai em Nova York.

Mas havia o restante da cidade. Eu sempre tivera um fraco pelo Chrysler Building desde criança, quando lera um livro sobre como o Empire State tinha roubado para ser o prédio mais alto do mundo. Eu tinha pedido ao meu pai para me levar lá durante a visita. Mas será que isso contava como um laço?

Eu queria aprender a fazer aquilo. Se pudesse viajar para qualquer lugar, ser um psicopompo talvez valesse ter fantasmas na minha vida.

Ao pensar em Mindy, de repente percebi aonde queria ir.

— E uma conexão de família, como a casa onde minha mãe cresceu? Ela nunca me levou lá, mas já vi fotos.

Yamaraj franziu a testa.

— De todo o mundo inteiro, é para lá que você quer ir?

Hesitei por um momento. Não queria mentir para ele, mas encontrar o homem mau de Mindy não parecia com o tipo de aventura de que Yamaraj participaria alegremente.

— Faz parte da história da minha família. Algo aconteceu com a minha mãe lá quando ela era crianças. Podemos ir?

— Se o lugar é importante para você, sim.

— Então me ensine como.

— Claro. Mas um aviso.

Suspirei.

— O que é agora?

— Se sentir algo atrás de você, não se vire.

— Hum, certo. — Me lembrei a coisa molhada e fria que encostara em mim logo antes de Yamaraj chegar. — O que vai estar atrás de mim?

Ele ergueu um das sobrancelhas.

— Achei que você não queria aprender mais coisas deprimentes.

— Acho que não. Então, o que faço?

Yamaraj esticou os braços e segurou minhas mãos, mas eu me afastei, com medo de que seu toque me mandasse de volta para o mundo real.

— Tudo bem — falou ele com gentileza. — Estamos no rio.

— E isso significa...?

— É fundo demais para o pânico levá-la de volta.

Encarei Yamaraj.

— Eu não entro em pânico. Acho que deixamos isso bem claro em Dallas.

— O que você diria que sente, então? — Yamaraj estava quase sorrindo.

Não falei que seu toque era elétrico. De que sentia fagulhas, calor e fogo. Nem mencionei que seu único beijo no aeroporto tinha permanecido nos meus lábios pelos últimos dez dias.

O que falei foi:

— Nervos.

— Desculpe. — Ele uniu as palmas e fez uma mesura, pedindo perdão. Então estendeu as mãos.

Eu as segurei, e quando nossos dedos se tocaram, uma corrente atravessou meu corpo. Fez meu coração pular fora do ritmo, mas não houve nenhuma explosão de cores repentina no céu, nenhuma pulsação do mundo real tentando atravessar.

Não estávamos no meu quarto. Estávamos no rio Vaitarna, a fronteira entre a vida e a morte. E as mãos de Yamaraj eram quentes e reais.

— Estou pronta.

Um sorriso relutante por fim se abriu em seu rosto.

— Então segure firme.


CAPÍTULO 17

A festa tinha aumentado. A grande sala estava mais cheia e também mais viva, ou talvez fosse o ardor nos lábios de Darcy que passava essa impressão.

Nas semanas desde que elas tinham se conhecido, Darcy nunca havia pensado em beijar Imogen. A atração não queimava dentro dela, não como as paixonites incandescentes que Carla tinha a cada três meses. Darcy ainda conseguia listar os caras do colégio que ela achava gatos, mas nenhum deles tinha feito seu coração bater mais forte. E, no início do último ano, quando Sagan havia perguntado, muito seriamente, se ela preferia meninas, Darcy não tinha conseguido responder.

Mas agora tinha certeza — pelo menos sobre Imogen, se não sobre meninos e meninas em geral —, e era ao mesmo tempo um alívio e uma revelação. A sensação era de que tinha pulado mil paixonites sem sentido e chegado a algo realmente significativo.

Ela também achava, agora que Imogen havia usado a palavra, que tinha mais caldo do que nunca. Darcy queria tirar as tigelas de biscoitos e guacamole da escrivaninha e começar o Patel Número 2 agora mesmo, com Imogen ao seu lado.

Mas assim que as duas entraram na sala, Kiralee surgiu e carregou Imogen para longe. Darcy sentiu uma dorzinha no coração ao largar a mão dela, mas não as seguiu para o canto onde Oscar era o centro das atenções. Precisava achar seus amigos.

Ela passou os olhos pela sala, reconhecendo mais pessoas da Noite de Drinques YA, duas assessoras de marketing que conhecera em uma reunião na Paradox, e então...

— Irmã deb! — Era Annie Barber, com mais três irmãs deb a tiracolo.

— Oi, gente.

— Turma de 2014! — falou Annie, e todas ergueram a mão.

— Isso! — Darcy deu um high-five em cada uma. — Olha, eu estou procurando...

— Este apartamento é tão incrível! — gritou Annie. — E em Manhattan.

— Você é, tipo, nossa ídola oficial agora — comentou Ashley, que tinha escrito uma distopia em Marte, pelo que Darcy se lembrava.

Foi difícil responder. Os lábios de Darcy ainda formigavam, o corpo ainda trêmulo do beijo de Imogen. Ela se sentia incrível, mas também estava tonta.

— Então, nós temos que confessar uma coisa. Todo mundo apostou na sua idade.

— Não é nada de...

— Sem spoilers! — interrompeu Annie. — Queremos esperar pela resposta, como todo mundo. Eu disse 17.

— Eu apostei 19 — falou Ashley. — Eu sei, provavelmente é demais.

— Não posso confirmar nem negar — brincou Darcy. Ela finalmente avistou Carla e Sagan sozinhos perto do guacamole, parecendo assustadíssimos, com os olhos arregalados. — Eu meio que tenho que resolver um negócio agora. Sem contar que uma única palavra poderia estragar tudo.

— É claro — concordou Annie, e as irmãs deb abriram caminho.

— Pessoal! — chamou Darcy conforme atravessava a sala.

— Finalmente! — Carla a apertou num abraço e as duas giraram uma vez.

— Desculpa. Eu estava lá no telhado. Rolou uma... situação. — Darcy tocou os lábios, e por um momento seu primeiro beijo de verdade pareceu imaginário.

— Fico feliz de termos chegado. — Carla correu o olhar pela sala. — Mas que apartamento glamouroso, hein, menina da cidade?

Sagan assentiu, com uma tortilha na mão.

— Festa chique com gente famosa.

— Famosa mesmo. — A voz de Carla se tornou um sussurro. — Quer dizer, aquela ali é a Kiralee Taylor?

— Aham.

— Ela nem olhou direito — comentou Sagan para a amiga. — Era de se pensar que a pessoa teria que checar uma afirmação dessas, que Kiralee Taylor está na sala da sua casa. Mas não, ela simplesmente deduziu que era verdade.

— É porque a Darcy é, tipo, famosa agora. E a sala dela vive cheia de outros famosos.

Darcy revirou os olhos.

— Ah, gente, pode parar. Vou apresentar vocês.

— Apresentar a gente? — repetiu Sagan, cuspindo a tortilha. — Mas eu não trouxe o meu Bunyip.

— Isto não é uma sessão de autógrafos, Sagan — brincou Carla. — Isto aqui é a casa da Darcy, que de alguma forma está cheia de autores famosos.

— É só o meu open house — comentou Darcy, embora de repente nada daquilo parecesse real para ela. Ela se virou para confirmar a própria existência na parede de espelhos.

— Mas e se eu der uma de fanboy? Por causa do Bunyip?

Darcy sorriu.

— Você deveria dar uma de fanboy por causa de Dirawong. A Kiralee meio que está de saco cheio do Bunyip, porque todo mundo adora tanto esse livro e porque...

Ela parou de falar, mas tentou se lembrar de perguntar a Sagan depois o que ele achava de usar os deuses hindus para um galã de YA.

— Entendi — concordou Carla. — Como John Christopher não aguentava mais Tripods.

Sagan assentiu.

— Ravel odiava o Bolero no fim da vida.

— Jimi Hendrix e “Purple Haze” — concordou Darcy, depois balançou a mão. — Esse jogo já está idiota. Vem, gente. Ela é ótima.

Darcy deu um passo na direção de Kiralee, mas seus amigos ficaram imóveis.

— O que foi?

— Acho que a gente precisa de um tempinho — explicou Carla, seu olhar passeando pelo chão. — A gente nem desfez as malas ainda.

Darcy viu os sacos de dormir enrolados escondidos debaixo da mesa junto com duas malas pequenas.

— É verdade, desculpa. Vocês acabaram de chegar, e eu estou arrastando vocês pela festa. Que fail.

— A gente devia ter chegado antes de a festa começar — falou Sagan. — O problema com o trem meio que foi minha culpa.

— Finalmente você admite! — exclamou Carla.

Darcy se ajoelhou para pegar os sacos de dormir.

— Vou colocar isso no quarto.

— A gente vai ficar aqui — falou Sagan. — Sua festa está me deixando nervoso, mas não quero perder nem um segundo.

— Sem problemas. — Darcy esticou as alças das malas e enfiou um saco de dormir embaixo de cada braço. Ela conseguiu passar pela confusão sem derrubar ninguém, e logo estava sozinha no quarto de hóspedes.

— Bosta, esqueci de comprar travesseiros — murmurou, deixando os sacos de dormir caírem no chão. Ela encostou as malas em um canto, se perguntando o quão famosa ela seria para Carla e Sagan quando vissem aquele quarto.

A estante improvisada parecia particularmente torta naquela noite. Darcy se ajoelhou para ajeitar os tijolos, mas em vez disso se pegou procurando a familiar lombada verde e dourada de Bunyip. Ali, na quarta capa, estava Kiralee, muito mais jovem e provavelmente com um pouco de Photoshop, nem de longe tão distinta quanto parecia agora. Pior — ela estava pensativa, com dois dedos tocando a testa, como um pôster de um telepata.

A porta se fechou atrás dela, e Darcy se virou.

Era Imogen, com uma cerveja nas mãos.

— Ei — falou Darcy, sua voz parecendo alta demais. A porta fechada abafava os sons da festa, e de repente ela estava ouvindo a própria respiração. — O que houve?

— Fiquei com saudades.

Darcy se levantou, os lábios formigando de novo.

— Eu também. É estranho?

— A ausência de antigos amigos é possível suportar com serenidade. Mas mesmo uma separação momentânea após um primeiro beijo é insuportável.

Darcy franziu a testa.

— Isso é uma citação?

— Oscar Wilde, adaptada. — Imogen sorriu ao ver o Bunyip nas mãos de Darcy. — Ouvi dizer que esse livro é bom.

— Meus amigos estão dizendo que é incrível.

Imogen se ajoelhou ao lado da estante, correndo o dedo pelas lombadas.

— Você só tem esse livro da Kiralee? Ela vai odiar isso.

— Eu tenho todos! E exemplares extras dos que tenho a primeira edição. Isso aqui é, tipo, um por cento da minha biblioteca. Meu pai ia trazer algumas coisas, então minha irmã mandou esses livros na frente.

Imogen ergueu os olhos para Darcy, desconfiada.

— Seu pai trouxe os livros?

— Eles ficam no meu quarto... em casa. — Darcy se ajoelhou ao lado de Imogen, sem olhar bem para ela. — Então, tinha uma coisa que eu queria te contar antes do início da festa. Mas aí você se atrasou. E eu ia te contar lá no telhado, mas aí a gente ficou se beijando, e esqueci.

Imogen assentiu e esperou. Darcy respirou fundo para se acalmar, sua mente mostrando todos os momentos anteriores que teriam sido muito melhores para ela revelar sua idade. Mas quanto mais confortável ela se sentia, mais escritora e nova-iorquina se sentia, menos urgente parecia a necessidade de contar.

Mas agora que elas tinham se beijado...

— A gente estudou junto, Carla e Sagan e eu.

— Você falou. Só não disse quando.

— Então. — A voz de Darcy tremeu. — A gente acabou de se formar no colégio.

— Tipo, um mês atrás?

— Basicamente.

Imogen assentiu devagar.

— Isso explica por que você nunca...

— Acho que sim. Embora muita gente namore no colégio, pelo que ouvi dizer. — Darcy se viu falando com a cadência calma de Sagan. — Desculpa, Gen.

— Por quê?

— Por não dizer que eu acabei de sair do colégio! Por não mencionar que eu ainda sou uma adolescente!

Imogen olhou para as próprias unhas.

— Acho que o assunto não surgiu.

— Acho que surgiu, algumas vezes. Você me perguntou no que eu tinha me formado, e eu mudei de assunto.

— É, eu meio que notei. Então você tem o quê, 18 anos?

Darcy concordou.

— Cara, isso é ridículo. — Imogen se levantou.

Darcy continuou ajoelhada ao lado da estante, o rosto pegando fogo. Ela não conseguiu erguer os olhos, então ficou observando a quarta capa de Bunyip. Uma jovem Kiralee Taylor a observou de volta, com uma expressão de profunda contemplação.

— Tipo, sério — continuou Imogen. — Você escreveu um livro tão bom assim aos 18 anos? Isso é tão... irritante!

— Eu tinha 17 quando terminei — explicou Darcy baixinho.

— Ah, vai se foder! Eu estava escrevendo fanfiction de Meu Brilhante Pônei quando tinha 17 anos! — Imogen se ajoelhou de novo, suspirando. — Na verdade, eu ainda escrevo. Só não em tempo integral. Então você está largando a faculdade para escrever, como se não fosse nada de mais?

— Meus pais não concordam. Eles estão se cagando de medo.

— Que engraçado. Meu pai ainda acha que meu diploma em Letras foi um desperdício de dinheiro.

— Você está com raiva de mim, né?

— Eu estou impressionada com você, na verdade. — Imogen se virou para encará-la. — Gastando seu adiantamento todo para morar aqui. Isso é muito louco. E corajoso, acho.

— Sério?

— Sério. Mas talvez você queira usar mais essa coragem toda.

Darcy balançou a cabeça.

— Para quê?

— Para confiar em mim, o que significa me contar as coisas. — Imogen esticou a mão e segurou o queixo de Darcy. Então a beijou. Foi com menos força do que nas primeiras duas vezes, mais suave e devagar, mas ainda sem deixar nenhuma dúvida.

Quando elas se separaram, Darcy perguntou:

— Então você não está com raiva?

— Eu sou cinco anos mais velha do que você. Talvez esteja um pouco... hesitante.

— Hesitante? Você acabou de me beijar de novo!

Imogen deu de ombros.

— É, eu meio que sou péssima em ser hesitante. Mas talvez a gente devesse ir devagar.

— Tudo bem ir devagar, acho. Mas você pode me perguntar o que quiser, agora mesmo. Qualquer pergunta, por mais vergonhosa que seja a resposta. Eu prometo que conto a verdade.

Imogen pensou por um momento.

— OK. Você gosta de mim de verdade, ou só está animada por nunca ter beijado ninguém antes?

— Eu gosto de você de verdade! — exclamou Darcy. — Você me deixa toda arrepiada quando fala sobre escrever.

Imogen ergueu uma sobrancelha.

— E quando me beija também — completou Darcy.

—Tudo bem, boa resposta. Tem alguma coisa que você queira me perguntar? Só para gente deixar tudo esclarecido.

Darcy balançou a cabeça, mas então pensou numa pergunta que estava na ponta da língua, embora não fosse exatamente relevante à conversa.

— Você sabe se a Kiralee já leu o livro?

Imogen olhou para o exemplar nas mãos de Darcy.

— Provavelmente, considerando que foi ela que escreveu.

Darcy enfiou Bunyip de volta no seu lugar na estante.

— Eu quis dizer o meu livro. Você sabe.

— Ah, isso. — Imogen abriu um sorriso irônico. — Ainda não. Ela queria que eu lesse primeiro. Sabe, caso fosse ruim.

— Sério? Você estava me aprovando para ela?

— Claro. Você não faz isso para os seus amigos?

Darcy franziu a testa. Entre os Zelotes da Leitura, Darcy tinha sido uma vanguardista incansável quando se tratava de livros, filmes e mangás. Ela estava na lista da biblioteca para receber exemplares não revisados para leitura, não se importava com spoilers na internet e até tinha se forçado a assistir à notoriamente péssima primeira temporada de Perigo louro para poder explicar a história para Carla, que ia pular direto para a segunda temporada.

Mas isso era diferente, por algum motivo.

— Vocês são ridículas.

Imogen riu.

— Será que a gente seria um pouco menos horrível se eu te contasse que acabei de falar com a Kiralee que você tem caldo e que ela deveria ler seu livro?

— Basicamente sim. — Ao levantar, Darcy se sentia tonta de alívio. Esconder sua idade tinha sido idiota, mas ela havia sido perdoada. Era o bastante ter cometido um erro bobo como esse, ela decidiu. — Eu prometo confiar em você, Gen, com tudo.

— Que bom. — Imogen abriu a porta. — Então acho que você deveria me apresentar aos seus amigos.

Sagan e Carla estavam congelados no mesmo lugar, Sagan devorava o guacamole enquanto Carla tirava fotos da festa discretamente com o celular.

— Suas coisas estão no quarto de hóspedes — falou Darcy. — E eu trouxe uma autora nada assustadora para vocês conhecerem.

— Ou seja, nada famosa — completou Imogen, estendendo a mão.

Enquanto eles se apresentavam, Darcy notou como Carla e Sagan pareciam jovens ao lado de Imogen — cheios de tiques e nervosismos, comparados à graça e à segurança dela. E Darcy sabia que tinha os mesmo pontos fracos dos amigos. Como ela havia conseguido fazer todo mundo em Nova York pensar que era adulta?

Certo. Porque ia publicar um livro. O que significava que sua maturidade desapareceria se nunca mais conseguisse tirar outro truque daqueles de sua manga.

— Estranho a gente não ter lido nada seu, Imogen — dizia Carla. — Mesmo se você não fosse famosa, a gente lê tudo.

— Meu primeiro livro só sai em setembro.

— A gente recebe bonecas, livros que ainda não saíram. A nossa bibliotecária tem, tipo, contatos.

— Entendi. — Imogen sorriu. — Se chama Piromante. Meu pseudônimo é Imogen Gray.

— Esse não é o seu nome verdadeiro? — perguntou Darcy, mas ela não respondeu.

— Acho que não recebemos esse — comentou Carla. — Então, um piromante deve ser, tipo, um incendiário, né?

— Basicamente. Minha protagonista gosta de brincar com fósforos. Até perceber que não precisa de fósforos.

— Eu com certeza colocaria algo assim na minha lista.

— Darcy já tem o arquivo. — Imogen pousou a mão no ombro de Darcy, fazendo um minúsculo arrepio percorrer seu corpo. — Ela pode mandar para vocês, se quiserem.

— Isso seria incrível — falou Carla. — A gente promete não mandar para todos os nossos amigos.

Imogen deu de ombros.

— Prefiro pirataria à obscuridade.

Sagan se virou para Darcy.

— Então você deve ler tudo muito antes, agora que é uma autora tão importante.

— Algumas coisas — comentou Darcy, embora naquele instante tenha lhe ocorrido que, na verdade, ela ainda não tinha lido Piromante. Não por temer que seria uma porcaria, mas porque sua vida nas últimas duas semanas tinha sido um furacão de fazer e desfazer malas, em meio a suplícios para que seus pais mandassem roupas de cama pelos correios.

Darcy corou um pouco. Mas tinha que ser corajosa, confiar na pessoa que acabara de beijar.

— Na verdade, eu ainda não comecei. Mas tenho certeza de que é incrível.

Mas, mesmo enquanto falava aquelas palavras, uma nova onda de ansiedade percorreu Darcy. E se Imogen, tão apaixonada e inteligente, a primeira pessoa que tinha feito seu coração bater mais rápido, não tivesse a porra do caldo?

— Quer dizer, a Kiralee escreveu um elogio de capa! — completou.

Enquanto Carla e Sagan se impressionavam com esse fato, Imogen apertou a mão de Darcy e se aproximou.

— Tomara que você goste — sussurrou. — As coisas podem ficar estranhas caso contrário.

Naquele momento Darcy decidiu que começaria a ler Piromante assim que acordasse na manhã seguinte, independente das outras mil coisas que precisava fazer. Corajosa ou não, ela precisava saber.

— Então, acabei de me dar conta — começou Sagan — que seu livro é sobre fogo, Imogen, e o da Darcy é sobre um lugar frio dentro da personagem. Curioso, não?

As duas se entreolharam por um momento, sem saber o que dizer.

Então Carla mudou de assunto.

— Você já recebeu aquela carta da sua editora? A que fala de todas as coisas que você precisa mudar?

Darcy balançou a cabeça.

— A Nan já falou que vai mandar, mas até agora nada. Você acha que eu deveria perguntar para ela, Gen?

— Na sua própria festa? É meio brega. Mas aposto que a Moxie faria isso.

— Está bem. — O bom dos agentes é que eles faziam 100% das partes não criativas da profissão de escritor por 15% do dinheiro. — Mas ela teve que ir embora mais cedo.

— Ir embora? Ela está bem ali, conversando com... — Imogen semicerrou os olhos. — Aquele ali é...

— É — comentou Sagan. — Sua festa acabou de ficar ainda mais ilustre, Darcy.

— Squee — completou Carla sussurrando.

Darcy se virou, se perguntando se Coleman Gayle tinha finalmente chegado. Mas não era Coleman que caminhava na sua direção. Era ninguém menos que o Sultão das Mídias Sociais, Stanley David Anderson.

— Olá — disse ele, estendendo a mão. — Pelo que entendi, você é a anfitriã deste encontro.

— Sim — foi tudo que Darcy conseguiu dizer em resposta. Ela apertou a mão dele e só depois se lembrou de falar: — Darcy Patel.

— Stanley Anderson.

— Eu sei — retrucou Darcy. — Quer dizer, estes são Imogen, Carla e Sagan.

— Carla e Sagan? — Standerson assentiu. — Isso é bastante curioso, embora vocês talvez sejam jovens demais para saber por quê.

— As chances são astronômicas — falou Sagan.

— Bilhões e bilhões para um. — Quando Standerson deu uma risadinha, sua expressão mal se alterou. — Espero que você não se importe de eu ter dado uma de penetra na sua festa, Darcy.

— É claro que não. Mas você não ia jantar com a Moxie?

— Ia. Mas tive um dos meus frequentes surtos de dispepsia.

— Ah — suspirou Darcy. — Que droga.

— O episódio “Frequentes surtos de dispepsia” é o meu favorito. Da primeira temporada, quer dizer — comentou Sagan.

— O meu também — concordou o autor. — Só queria ter uma câmera melhor na época. Isso é guacamole?

— É — afirmou Sagan. — Eu considero a consistência reconfortante.

— Concordo. — Standerson pegou uma tortilha do pote e encheu de abacate. Depois se virou para Imogen. — Acho que vamos fazer uma turnê juntos no segundo semestre.

— Verdade? — perguntou Darcy, se virando.

— A Paradox quer. — Imogen parecia um pouco surpresa. — Mas não é nada certo, então achei que...

— Seria divertido. — Standerson assentiu. — Eu falo com a Nan.

— Seria incrível — sussurrou Imogen, mas ele já estava pegando mais guacamole.

Era estranho ver Imogen sem palavras, mas não tanto quanto ver Sagan se dando tão bem com Standerson assim de cara. Os dois estavam num mundinho só deles agora, discutindo a capacidade dos diferentes tipos de tortilha de aguentar porções de guacamole.

— Isso está me assustando — comentou Carla, baixinho, enquanto elas os observavam. — Mas de alguma forma também faz todo o sentido.

— Né? — concordou Darcy.

— Gostei que você não foi nem um pouco desenvolta com o Standerson. Me tranquilizou um pouco.

— Valeu mesmo. — Darcy se virou para Imogen. — Desde quando você vai sair em turnê com ele?

— Da última vez que falaram disso, ele não tinha certeza se queria. Mas acho que, agora que me conheceu, a ideia parece mais real, sabe?

Carla riu.

— As coisas sempre acontecem nas festas da Darcy, desde o quinto ano. Términos, ficadas, brigas homéricas, mil coisas loucas. Mas o estranho é que nada nunca acontece com ela.

Imogen e Darcy se entreolharam, e Darcy sentiu um sorrisinho surgir no rosto. Seus lábios pareciam secos e quentes.

— Bem... Essa teoria já foi, né? — continuou Carla, com uma risadinha. Ela passou um braço por cima dos ombros de Darcy, apertando a amiga com força, e de repente começou a rir alto, fazendo a sala inteira olhar para elas.

— Hum, Carla — perguntou Darcy —, está tudo bem?

— Estou ótima. Mas esta festa está me enchendo de sentimentos.


CAPÍTULO 18

Parecia um rio, forte, rápido e brutal, nos levando com o simples e bruto poder da água veloz.

Estava rugindo ao meu redor desde que eu tinha afundado abaixo do meu quarto. O vento constante era na verdade uma corrente, e uma vez que deixei que me levasse, ela me carregou, repentina e completamente, como se alguém tivesse me dado uma pipa gigante. Apenas as mãos de Yamaraj me seguravam, passando a sensação de que seria possível parar de novo.

O rio estava cheio de coisas úmidas e geladas como as que eu tinha sentido antes. Elas sempre vinham por trás, suaves e sussurrantes, sem nunca formar palavras ao meu ouvido ou em minha nuca. Yamaraj disse que eram inofensivas, a não ser que você se virasse e olhasse para elas. Então aprendi a ignorar, mesmo que com um tremor. A viagem pareceu interminável, vertiginosa e selvagem, e mal consegui manter a imagem da antiga casa da mamãe em mente durante o caminho. Mas, ao paramos, o tempo mal parecia ter passado.

Nosso local de parada era outra imensidão escura, exatamente como a que havíamos deixado para trás.

Ergui os olhos para o céu vazio e negro.

— Como você consegue saber onde estamos?

— Nós estamos onde você queria estar, Lizzie. Se você tiver uma conexão real com este lugar. Se não... — Ele deu de ombros. — Poderíamos estar em qualquer lugar.

— Certo — falei, me perguntando se o Chrysler Building teria sido uma escolha mais segura.

Yamaraj se ajoelhou e espalmou a mão no chão. Um momento depois o óleo negro começou a borbulhar. Ele se espalhava rápido, e pulei para trás, tentando manter os tênis longe.

— O que você está fazendo?

— Não tem problema, Lizzie. — Ele me puxou para perto, meus pés se juntando aos dele no óleo negro.

— Sério? — Nós já estávamos afundando.

— É assim que acontece. Você entenderá melhor se mantiver os olhos abertos.

— Hum, OK. — Abracei Yamaraj com força conforme descíamos, sedenta pelo calor do seu corpo, e sem me importar por sentir os músculos tesos através da camisa de seda dele. O óleo negro não era muito mais frio que a corrente do rio, mas ainda assim senti arrepios pela minha coluna.

Consegui manter os olhos abertos, e conforme a escuridão alcançava minha linha de visão, passei a visualizar uma nova realidade ao nosso redor — casas, árvores e caixas de correio, uma simples rua de subúrbio.

Ergui os olhos, meio que esperando ver a superfície da água negra logo acima da minha cabeça, mas havia somente o céu estrelado, com a mesma meia-lua que tínhamos deixado para trás em San Diego. Na nossa frente havia uma casa igual à das antigas fotos da mamãe, exceto pelo fato de que em algum momento alguém havia instalado uma cerca branca na frente.

Estávamos em Palo Alto.

Respirei fundo, e o cheiro metálico do outro lado tomou meus pulmões.

— Isso não faz sentido. — Minha voz pareceu aguda aos meus ouvidos. — Eu afundei pelo chão do meu quarto para chegar ao rio, e afundamos de novo para sair dele?

— O além-mundo é assim. Para baixo sempre funciona.

— É claro. — Percebi que ainda estava me segurando em Yamaraj, e dei um passo para trás.

Ele sorriu.

— O rio não é tão deprimente quanto o restante, é?

— Não, é mais como uma montanha-russa. Só que você está vendado e tem coisas bizarras e úmidas encostando em você. — Me virei para a casa à nossa frente. — Mas pelo menos ele te leva a algum lugar.

A casinha era mais antiga do que as outras da rua, com uma grande varanda frontal. O outro lado a pintara de cinza, em vez do azul-céu visto na fotografia da mamãe, mas com certeza era o lugar certo.

Mas é claro que aquela casa antiga não era o verdadeiro motivo para eu querer ir até lá.

— Isso é incrível, Yamaraj. Mas é meio estranho também, finalmente ver este lugar. Você se importa se a gente andar por aí um pouquinho primeiro?

— Claro que não — respondeu ele, segurando minha mão de novo.

Eu me senti mal por fazê-lo pensar que aquele era um momento de muita emoção para mim, quando na verdade estava mais ocupada dando uma de detetive, tipo Nancy Drew. Mas engoli a culpa e levei-o para longe, feliz por estar segurando sua mão.

A antiga rua da minha mãe parecia bem normal, com gramados bem conservados e caixas de correio decoradas com conchas, algumas palmeiras balançando ao vento sob o luar. Não era o tipo de vizinhança que se esperaria abrigar um assassino de crianças. Por outro lado, talvez esse fosse o motivo de ele morar ali.

O que eu estava buscando devia estar por perto, embora eu não soubesse exatamente como reconhecer quando visse. Provavelmente o homem mau tinha morrido ou se mudado nos últimos 35 anos, mas talvez tivesse deixado algum sinal, aqui no outro lado.

Uma sombra correu debaixo de um carro bem na nossa frente, atravessando a rua a toda. Dei um pulo e um grito.

Mas era só um gato, listrado e esguio que parou repentinamente na outra calçada e ficou nos observando. Seus olhos brilhavam com um verde sobrenatural em contraste com o pano de fundo cinza do outro lado.

— Fala sério? O gato está olhando para a gente?

— Gatos conseguem ver tudo — explicou Yamaraj. Sua voz era suave, quase reverente. — Eles têm olhos nos dois mundos.

— Certo. Mindy tinha comentado algo sobre isso. — Meu coração estava disparado, e percebi que o mundo cinza não estava desaparecendo ao meu redor. — O susto não me mandou de volta. Devo estar aprendendo a ficar no outro lado.

Yamaraj balançou a cabeça.

— Você não pode atravessar de volta ao mundo real aqui, só onde estava no começo. O rio carrega somente seu espírito, não seu corpo.

— Então isso é tipo uma projeção astral? — Belisquei meu braço, cuja pele estava arrepiada, fria e muito real.

— Só por enquanto. Um dia você vai conseguir viajar fisicamente também.

— Então, se meu corpo não está aqui, onde está? No meu quarto, para minha mãe encontrá-lo e surtar?

— Não se preocupe. — Ele parou, pensativo por um segundo. — Isso pode soar estranho, mas seu corpo está no chão abaixo da sua casa. Seguro entre as rochas.

— Nem um pouco bizarro.

— O além-mundo não é reconfortante, Lizzie.

— É, você já disse isso. Mas ainda assim... Isso é bem incrível. — Tentei recuperar o fôlego, observando a paisagem cheia de morros ao nosso redor, tão diferente das planícies de San Diego. — Eu nem sabia o endereço, e mesmo assim viemos direto para cá.

— Nada mal para a sua primeira vez.

— Obrigada. — Percebi um movimento pelo canto do olho e girei para ver o que era. Mas era só o gatinho, nos seguindo a distância.

Yamaraj me observava, desconfiado.

— Você é engraçada, Lizzie. No aeroporto, estava tão calma que conseguiu se fingir de morta. E alguns minutos atrás estava enfrentando aquele velho sem nenhuma ajuda minha. Mas esse bairro comum está deixando você com os nervos à flor da pele.

— Acho que sim. — Não queria mentir para ele, então resolvi ser vaga. — Como eu disse, algo aconteceu com a minha mãe aqui, quando ela era pequena.

— Algo ruim?

Assenti.

— Ruim o suficiente para fazê-la nunca falar sobre isso. Ela só me contou depois do que aconteceu em Dallas.

— Nada de ruim vai acontecer agora — falou ele, segurando minha mão de novo.

Caminhamos em silêncio, observando as ruas vazias iluminadas pelo luar. Era legal, simplesmente estar com ele, e me deleitar no fato de que eu tinha trazido a gente até ali com meus poderes mágicos. Até agora não tinha visto nem sinal do homem mau, o que eu não achava tão ruim.

Yamaraj era educado demais para perguntar mais sobre a minha mãe, mas depois de um tempo falou:

— Todo psicopompo tem uma história assim.

— Assim como?

— Uma que é difícil de contar. Todos nós atravessamos do jeito mais difícil na primeira vez.

— Então, qual é a sua história? — perguntei baixinho. — Como você acabou se fingindo de morto?

Ele balançou a cabeça.

— Não havia guerras onde nasci, nem terroristas. Minha irmã e eu somos de uma pequena vila. Um lugar tranquilo.

— Parece legal.

— Era lindo, mas para nós sempre pareceu pequeno demais. Quando víamos velas surgindo no horizonte, corríamos até as docas para ter vislumbres de outros lugares. Os marinheiros eram como seres de outro mundo. Usavam tecidos tingidos de cores que jamais tínhamos visto e utilizavam facas de bronze que o ferreiro da nossa vila nem mesmo pensava em criar.

— Facas de bronze eram alta tecnologia. Entendi, então isso faz tempo.

Ele deu de ombros.

— É verdade. E nossa vila era atrasada mesmo para a época, suponho. Quando os marinheiros nos mostravam flores secas de outras terras e se diziam guerreiros caídos em uma grande guerra das fadas, minha irmã e eu acreditávamos neles.

— Que legal.

— Eles também sabiam falar outras línguas, e minha irmã lhes dava as conchas mais lindas por algumas palavras estrangeiras. Sua coleção de xingamentos era bastante extensa.

Senti um sorriso se formar no meu rosto.

— Parece o meu espanhol.

Ele sorriu de volta para mim, mas logo a expressão sumiu.

— Era um bom lugar para se crescer. Mas as pessoas não viviam muito tempo naquela época. Minha irmã morreu ainda mais jovem que a maioria.

— É, ela parece ter uns 14 anos, só. Espera, vocês eram...

Ele assentiu.

— Gêmeos. Ainda somos, mesmo que eu seja um pouco mais velho agora.

— Certo. Que estranho. — Yami estava para sempre presa à idade em que tinha morrido, mas não seu irmão. — É por isso que você fica no submundo? Para não deixar sua irmã para trás?

— Eu vivo lá para evitar que meu povo desapareça.

— E ela é um deles. Você é um bom irmão.

Ele não respondeu, e caminhamos um pouco mais. Eu sempre quis saber como seria ter um irmão ou irmã, especialmente gêmeo. Imaginava que inventaríamos nossa própria língua e daríamos apelidos secretos um ao outro.

É claro que eu tivera uma irmã invisível todo esse tempo. Mindy estivera lá desde o primeiro dia, me vendo crescer até alcançá-la aos 11 anos, depois ultrapassá-la. Senti um calafrio.

— Você está bem? — perguntou Yamaraj. Seus olhos castanhos brilhavam naquele mundo cinza. Nós dois ainda tínhamos cor, como se não pertencêssemos àquele véu da morte.

— Estou. Então, quando sua irmã morreu, foi aí que você ficou... assim?

Ele assentiu.

— Não podia deixá-la sozinha.

— Uau. Então essa história de laços entre gêmeos é real.

Yamaraj pensou por um segundo, então deu de ombros.

— É para nós.

— Como ela morreu? — sussurrei.

— Foi traída por um burro.

— Hum, quê?

— Um asno. Um animal que pertencia à minha família.

Eu ainda estava confusa, mas a próxima pergunta ficou presa na minha garganta. Depois de Yamaraj, mais adiante na rua, o gato se escondia nas sombras, os olhos verdes brilhando.

Mas ele não estava mais nos observando.

Estava olhando fixamente para outra casa, ainda mais antiga que a casa em que minha mãe tinha crescido. A construção era recuada na rua, com árvores mirradas e retorcidas no jardim. Em volta de cada tronco havia uma jardineira cheia de pedras.

Paradas no gramado estavam cinco menininhas, todas da idade de Mindy, com roupas que pareciam ultrapassadas — um macacão xadrez, camisas enfiadas dentro de calças jeans, short-saias. Todas observavam a casa.

— Ele ainda está aqui — murmurei.

Yamaraj se virou para acompanhar meu olhar.

— Quem, Lizzie?

— O homem mau. O homem que matou a Mindy.

Ele segurou meu braço.

— Foi por isso que você quis vir para cá?

— Ela precisa saber.

— Tenha cuidado — sussurrou Yamaraj. — Existem fantasmas que não podem ser salvos.

— Eu não quero salvá-los, só quero ajudar a Mindy. Ela morre de medo o tempo todo, mesmo depois de tantos anos. — Não conseguia tirar os olhos da coleção de garotinhas. Elas ficavam ali paradas, observando a casa, quietas e incomodadas, como se estivessem esperando uma peça começar. — Ela precisa saber se o homem que a matou ainda está vivo. Ou se está andando pelo outro lado, procurando por ela.

— Saia daí, Lizzie. — Yamaraj puxou meu braço, mas eu o afastei.

— Eu preciso saber se ele ainda está vivo.

— É melhor você não se aproximar dessa casa.

Quando abri a boca para perguntar a razão, uma das garotinhas se moveu. Sua cabeça girou lentamente, o resto do corpo completamente imóvel, até que seus olhos cinzentos parassem em nós. Ela era um pouco mais nova que Mindy, com um macacão e tênis. Seu olhar se demorou, a expressão neutra a não ser por um leve traço de curiosidade.

Yamaraj se virou para mim.

— Não olhe para elas.

— Mas elas são só... — Minhas palavras sumiram quando as outras meninas, em uníssono, giraram a cabeça para olhar para nós. Os cinco rostinhos cinzentos me observavam com interesse crescente. — Certo, talvez isso seja meio esquisito.

Yamaraj já estava de joelhos, a palma da mão no asfalto. Ele se ergueu quando o óleo borbulhante começou a se expandir sob nossos pés e me abraçou, seus músculos tensos.

— Você não quer que elas fiquem na sua memória — sussurrou ele quando começamos a afundar. — Concentre-se na sua casa.

Nossa segunda jornada pelo rio pareceu mais rápida, como normalmente são as viagens para casa. Foi fácil fixar a mente na imagem da minha casa, porque queria tanto estar lá. Mas, dessa vez, foi mais difícil ignorar as coisas úmidas e trêmulas que passavam por nós. Parte minha compreendera o que era aquilo — memórias perdidas, fragmentos de fantasmas que haviam desaparecido.

Fiquei de olhos fechados durante toda a viagem, com a cabeça apoiada no peito de Yamaraj, seu calor e solidez me protegendo dos olhares vagos das garotinhas de rosto cinzento.

Paramos em outra planície tempestuosa sob um céu vazio, mas de alguma forma consegui sentir minha casa logo acima. Ou talvez estivesse embaixo — o além-mundo tinha embaralhado meus conceitos de acima e abaixo

Mas, antes que eu voltasse ao meu quarto, Yamaraj segurou meus ombros.

— Você precisa desistir dessa ideia, Lizzie. Não volte lá.

— Eu tenho que ajudar a Mindy. É o que eu faria por uma pessoa viva.

— Mas aqueles fantasmas estão na sua mente agora.

— Com toda a certeza. — Tremi, pensando em suas expressões vazias. — Mas por que isso é tão ruim, além do potencial para pesadelos?

— Fantasmas vão onde puderem para se nutrir. Pense só. Mindy morreu naquela casa, não foi? A centenas de quilômetros daqui, mas ela vive com vocês.

— Certo. Porque minha mãe se lembra dela.

— Mais do que qualquer outra pessoa no mundo. Mais do que os próprios pais.

— Isso é meio deprimente. E bizarro.

Ele balançou a cabeça.

— Não é tão estranho quanto parece. Às vezes, quando crianças morrem, os pais só conseguem se apegar àquelas lembranças por um período. Quando se permitem esquecer, as crianças desaparecem, a não ser que outra pessoa as mantenha nos pensamentos.

Minha boca estava seca.

— Mas isso significa que aquelas garotinhas estão lá... porque o homem mau se lembra delas melhor do que qualquer outra pessoa?

— Ele se lembra dos últimos dias delas perfeitamente. Mas e se elas tivessem você para alimentá-las?

Imaginei as cinco meninas no meu jardim, esperando e esperando, e um arrepio me atravessou. Ainda via o rosto da primeira que se virou para me olhar — o macacão surrado e as presilhas brilhantes no cabelo curto.

— Como eu posso esquecer o que acabei de ver?

— Não pode, Lizzie. — As mãos de Yamaraj deixaram meus ombros, e ele suspirou. — Foi só um relance, não foi o suficiente para trazê-las para cá.

— Então você só estava tentando me assustar?

— Você deveria estar assustada. — Ele estava irritado agora, os olhos castanhos fixos nos meus. — Me prometa que nunca mais vai voltar àquela casa.

Dei as costas para ele. Não aguentava mais estar assustada, e Mindy era vítima do seu medo havia décadas. Eu não podia deixá-la no limbo agora que sabia onde o homem mau morava.

Escolhi minhas palavras cuidadosamente.

— Eu prometo que nunca mais vou ver aquelas garotinhas.

Yamaraj me encarou por um momento, mas finalmente assentiu.

— Obrigado.

Já sem raiva em sua voz, ele só parecia cansado. Provavelmente estava começando a pensar que eu dava muito trabalho, como alguém que está aprendendo a dirigir e não para de bater com o carro.

Pelo menos agora eu sabia que o homem mau ainda estava vivo. Mindy estava em segurança, por enquanto. Tínhamos que agradecer a Yamaraj por isso.

— Obrigada por vir me salvar.

A tempestade em seus olhos pareceu retroceder um pouco.

— Não tenho certeza de que você precisava ser salva.

— Talvez não. Mas foi divertido ver você colocando aquele cara para correr.

Um sorriso brincou nos cantos da boca dele.

— Eu estava me perguntando se você me chamaria. Minha irmã tinha certeza.

— Ah, é? O que Yami acha de mim?

— Ela acha que você pode se tornar uma distração.

— Eu espero que ela esteja certa.

Ele assentiu.

— Ela está sempre certa.

— Yamaraj... — Eu tremi um pouco, dizendo o nome dele em voz alta de novo.

— Me chame de Yama. “Raj” é só um título.

— Sério? O que significa?

— Príncipe, ou talvez lorde.

Ergui uma sobrancelha.

— Você quer dizer que eu estive chamando você de Lorde Yama esse tempo todo?

Ele lutou contra um sorriso.

— Você só falou meu nome uma ou duas vezes.

— É, mas estive pensando esse tempo todo! — reclamei, me sentindo uma boba. — De qualquer maneira, agora que eu realmente sei o seu nome, vai funcionar? Posso te chamar, e você vai vir?

Ele assentiu.

— O nome é importante, mas é como viajar para algum lugar. É preciso haver uma conexão.

— Você me ouviu hoje. Então já existe uma conexão.

— Sim. — Ele deu um passo na minha direção. — Mas poderia ser mais forte, por via das dúvidas.

— E como fazemos isso? — Meus olhos estavam se fechando.

— Assim.

Quando seus lábios encontraram os meus, algo ávido e elétrico percorreu meu corpo. Floresceu no meu peito, fazendo minha respiração perder o ritmo, destruindo o medo que aquela longa noite tinha deixado dentro de mim. O beijo ficou mais quente, mais feroz quando me joguei contra ele, querendo mais.

O vento do rio se tornou seco e dolorido na nossa pele, que se encheu de arrepios. Abri os olhos por um momento e vi faíscas girando entre nós, como quando Yama tinha aparecido para me salvar, o ar queimando sob seus pés.

— Foi você que fez isso? — murmurei.

— Nós dois.

Não falamos muito mais.

Uma hora depois eu o deixei e desci para o meu quarto, tão seguro, acolhedor e familiar. Minha pele ainda estava toda arrepiada. Meu corpo parecia mais leve. O lugar gelado dentro de mim quase tinha desaparecido, destruído pelo calor dos lábios de Yama.

Só havia um probleminha: minha mãe estava sentada bem na minha cama, olhando o telefone.

Depois de tudo que tinha acontecido naquela noite, eu tinha me esquecido de que ela entrara no meu quarto logo depois de eu mergulhar no rio. Não tinha me visto, é claro, e eu ainda estava no outro lado, mas não poderia continuar assim para sempre.

Com o corpo de Yama junto ao meu, eu tinha me sentido livre e poderosa. Agora, porém, era como se fosse uma criancinha prestes a ficar de castigo. Se eu saísse e entrasse de novo pela porta, fingindo ter saído para uma caminhada, como minha mãe responderia? Depois daquela semana, talvez ela pirasse. Ou pior — talvez começasse a me vigiar à noite.

Eu nem sabia por quanto tempo tinha sumido. E não podia deixá-la sentada ali por mais tempo, sem saber onde eu estava. Precisava pensar em uma explicação razoável para não estar na cama.

Mindy tinha sumido, provavelmente escondida no closet da minha mãe depois de me ver afundando pelo chão. O que me deu uma ideia...

Eu ainda não tinha muita experiência em atravessar paredes, mas havia deixado a porta do meu armário entreaberta depois de tirar a calça jeans. Me enfiei lá dentro e me ajeitei em cima de algumas roupas sujas no chão. Meu closet não era tão espaçoso quanto o da minha mãe, mas era grande o suficiente para eu me encolher ali e fingir estar dormindo.

Respirei fundo algumas vezes, fazendo meu coração acelerar, e logo estava perdendo o controle sobre a minha permanência no outro lado. A faixa de luz entrando pela fresta do armário mostrava as cores voltando ao meu mundo.

Quando atravessei, tirei a calça e o casaco silenciosamente, depois soltei um bocejo suave.

Depois de uma longa espera num silêncio nervoso, estava prestes a bocejar de novo quando ouvi a voz da minha mãe.

— Lizzie?

Empurrei a porta do armário, que abriu com um rangido lastimoso, mostrando o rosto surpreso da minha mãe.

— Ah, oi — falei, sonolenta. — O que você está fazendo aqui?

— Eu ouvi sua voz e vim ver o que estava acontecendo. E você não... — Ela balançou a cabeça. — Pelo amor de Deus, Lizzie. O que você está fazendo dentro do armário?

— Hum, dormindo. — Eu sentei, esfregando os olhos e me espreguiçando. — Tive um pesadelo horrível. Depois que acordei, só me senti segura aqui.

A tristeza no rosto dela fez com que eu me sentisse horrível. Mas um pesadelo de mentirinha era uma explicação melhor do que Fui assediada por um psicopompo do mal, depois fui visitar a casa de um antigo serial killer. Ah, e dei uns beijos também.

— Lizzie, sinto muito. Você quer conversar sobre o seu sonho?

Balancei a cabeça.

— Não foi nada de mais, nada de aeroportos ou terroristas. Foi só que... meus pés estavam afundando em uma geleca preta. Eu estava afundando.

— Parece horrível, filha.

— Desculpa por te acordar. — Eu engatinhei para fora do armário e fiquei de pé.

Minha mãe conseguiu abrir um sorriso e se levantou da cama para me dar um longo abraço. Quando nos separamos, ela olhou para o meu ninho feito às pressas no chão.

— Engraçado. Você costumava ter medo de armários quando era pequena. Mas a casa em que eu cresci tinha closets enormes. Eu fazia festas do pijama dentro deles, com a...

Esperei para ouvir mais, mas minha mãe ainda observava o chão. Ela se ajoelhou e pegou algo que brilhou em suas mãos. A faca de cozinha que eu tinha levado para o além-mundo. Devia ter caído do meu bolso quando tirei a calça.

Tentei sorrir.

— É. Eu estava meio assustada.

A expressão no rosto dela era tão triste.

— Desculpa, mãe. Eu sei que parece estranho.

Ela segurou a faca com cuidado nas mãos.

— Eu sei como é ter medo o tempo todo. Depois que minha amiga desapareceu, eu me senti assim por meses. Você é capaz de fazer qualquer coisa para se sentir em segurança.

Concordei, uma imagem daquelas garotinhas voltando à minha mente, e soube com certeza que, de alguma forma, minha mãe compreendia. Também tive certeza de que eu voltaria a Palo Alto para me certificar de que o homem mau jamais machucaria alguém outra vez.


CAPÍTULO 19

Sua parte favorita de começar incêndios sempre tinha sido os fósforos. Ela gostava do som que faziam, soldadinhos de madeira em sua caixa de papelão, e de como eles se abriam em flores incandescentes entre suas mãos. Ela adorava os sons trêmulos e rascantes que eles faziam ao lutar contra o vento. Até mesmo seus restos eram lindos — longilíneos, negros, reverentes —, depois de terem queimado completamente, até as pontas insensíveis de seus dedos.

Ariel Flint nunca ia para a escola sem eles.

Ela havia chegado cedo hoje, então seguiu para o covil dos fumantes, um canto escondido no campus formado por dois contêineres encostados à parede traseira do ginásio. As construções temporárias tinham sido salas de aula anos antes. Ainda era possível ver quadros-negros através das janelas empoeiradas. Agora eles serviam como depósito para o departamento de teatro, lotados de cenários e objetos de cena antigos, cabideiros lotados de fantasias destruídas pelas traças. Os contêineres estavam sempre fechados, mas ficavam apoiados em blocos de cimento, então era possível arrastar-se por baixo deles em caso de emergência.

A emergência daquela manhã já estava acontecendo quando Ariel chegou à parte de trás do ginásio. Peterson, o segurança contratado pela escola, estava ajoelhado no canto, espiando as sombras sob os contêineres. Ele gritava ameaças para algum aluno fujão, cuspindo de ódio com o rádio em uma mão.

Ariel deu meia-volta, baixando a cabeça. Mais ou menos uma vez por mês Peterson baixava no covil dos fumantes, levando todo mundo para a detenção e para “serviços comunitários”, o que significava servir gororoba na lanchonete. Apenas pensar em usar rede de cabelo por uma semana fez Ariel sair correndo, direto para as portas traseiras do ginásio.

Um momento depois ela entrava na quadra de basquete. As portas bateram às suas costas, enchendo o ginásio vazio com ecos — estrondos misturados aos rangidos de suas botas no piso de madeira de pinho. Ela parou por um segundo, respirando rápido e pensando em desculpas, mas Peterson não estava seguindo-a.

Ariel sorriu e deu um giro no centro da quadra, fingindo um arremesso para a cesta sob os aplausos da plateia. Captura evitada!

No ano anterior, ela havia escrito um trabalho sobre apostas para a matéria de psicologia, de um experimento com pombos engaiolados que conseguiam alimento ao puxar uma alavanca. Se a alavanca sempre desse uma bolinha de comida, os pombos só a puxavam quando estavam com fome. Se o dispositivo parasse de dispensar comida, os pombos logo desistiam. Mas quando a alavanca funcionava como uma máquina caça-níquel, às vezes não pagando nada, outras vezes dando grandes prêmios, os pombos ficavam viciados. Mesmo quando tinham comida suficiente, eles queriam ver o que ia acontecer na próxima rodada.

Pombos, como pessoas, adoravam apostar.

Enquanto escrevia esse trabalho, Ariel se deu conta de que ser pega no covil dos fumantes funcionava do mesmo jeito. Se Peterson aparecesse todo dia, as pessoas descobririam outro lugar para fumar ou desistiriam. E se ninguém tentasse apanhá-los, fumar não seria tão divertido. Mas Peterson aparecia apenas o suficiente para manter as coisas interessantes.

É claro que os fumantes de Reagan High eram viciados em nicotina, não em apostas, e ficariam muito felizes se fossem deixados em paz. Mas Ariel não era fumante. Ela estava ali para acender o cigarro dos outros, para ver a fumaça escapar de suas bocas, para deleitar-se nas chamas que brilhavam com cada tragada. Para ela, a possibilidade de ser pega fazia parte da emoção de incendiar coisas, pequenas e grandes.

— O que foi isso, Flint? — uma voz ecoou do outro lado da quadra.

Ariel se virou para as arquibancadas vazias e encontrou Erin Dale se aproximando, irritada.

— Hum — falou Ariel. — Acabei de fazer o arremesso da vitória.

A treinadora Dale parou alguns metros de distância, cruzando os braços. Estava usando seu uniforme de sempre, uma camiseta sem mangas justa e calças de moletom, o cabelo longo preso em um rabo de cavalo. No ombro direito, três garras vermelhas apareciam cinco centímetros acima da camiseta. Ninguém jamais tinha visto o resto da tatuagem, mas de alguma forma Ariel tinha certeza de que havia um dragão aconchegado entre os seios da treinadora.

— Fico feliz que esteja interessada em esportes, Srta. Flint. Mas você está usando Doc Martens no meu piso.

— Ah, é. — Ariel olhou em volta e viu uma espiral de pequenas marcas escuras em volta dos seus pés. — Uau. Desculpa.

A treinadora Dale observou Ariel com frieza. Na aula de educação física, ela só se esforçava para correr, pular e escalar — habilidades úteis em fugas —, e era inútil em qualquer coisa envolvendo bolas ou placares. Mas Ariel tinha uma antiga e ardente paixonite pela treinadora, e não estragaria de propósito a quadra de basquete.

Em uma demonstração de arrependimento, Ariel ergueu uma das botas culpadas do chão e se equilibrou num pé só, desamarrando os cadarços. Balançando só de leve, ela tirou o sapato e depois fez o mesmo com o outro pé.

— Bela coordenação e flexibilidade — comentou a treinadora Dale. — Bem que você poderia mostrar mais disso nas aulas.

Ariel não respondeu. O chão do ginásio estava gelado embaixo de suas meias, e ela se sentia pequena e penitente sob o olhar da treinadora.

Uma das portas traseiras se abriu. Era Peterson, com o rádio ainda na mão.

— Oi, treinadora — falou ele, com os olhos em Ariel. — Alguém entrou por aqui?

A expressão irritada da professora não mudou.

— Não que eu tenha visto. Viu alguém, Srta. Flint?

Ariel balançou a cabeça.

Peterson não parecia ter acreditado, mas cumprimentou a treinadora e fechou as portas, seguindo a busca do lado de fora.

Depois de outro momento de silêncio, a professora descruzou os braços.

— Não faz sentido eu dizer que fumar faz mal a seus pulmões e a sua energia. Mas você sabe que faz os lábios ficarem mais finos, não sabe?

— E os dentes ficarem amarelos, você fica inchada e com rugas em volta dos olhos — recitou Ariel. — É por isso que eu não fumo.

A treinadora estreitou os olhos e se aproximou até ficar cara a cara com Ariel. Ela tentou não ficar olhando para as garras vermelhas saindo de debaixo da camiseta.

A mulher respirou fundo.

— Estou sentindo cheiro de fumaça?

— Sim, mas não é de cigarro. Eu acendi uma fogueira de manhã... para me esquentar.

Dale ergueu uma sobrancelha, mas Ariel não estava mentindo: fumaça de cigarro não tinha o mesmo cheiro de uma fogueira de verdade nem de longe.

Ela tinha feito uma pequena fogueira. Ariel havia se permitido acender um fogo no caminho para a escola num barril de óleo já chamuscado atrás do supermercado. Alguém tinha deixado um punhado de tubos de papelão de um metro em uma caçamba de lixo, impossível de ignorar. Ela os arrumou em uma pirâmide apoiada na beirada do barril, e levou apenas alguns minutos para que a estrutura flamejante se desfizesse, cuspindo uma galáxia de fagulhas no ar.

— Como quiser, Flint. Venha comigo.

Ariel seguiu a professora até o vestiário feminino, segurando as botas.

O vestiário tinha o mesmo cheiro de sempre, suor velho e sabão barato. A treinadora Dale abriu a porta da Jaula, que era como todo mundo chamava sua sala, com as paredes de tela de metal. Puxou uma gaveta da escrivaninha, tirou uma borracha do tamanho de um isqueiro, rosa e nova, e a jogou para Ariel, que pegou com a mão livre.

— Isso deve resolver. Use cuspe se for preciso.

Ariel ficou olhando para a borracha por um momento, e a treinadora suspirou, se esticando por cima da mesa. Ela tirou as botas de Ariel, abriu a gaveta de arquivo e largou os sapatos lá dentro. Fechou a gaveta e trancou.

— Pode pegar de volta quando não tiver uma única marca na minha quadra.

— Tudo bem, mas... — O grito do primeiro sinal a interrompeu.

A treinadora Dale se afundou na cadeira, pegou uma prancheta e uma caneta e colocou os pés na mesa.

— Quinze minutos para o primeiro tempo. Melhor começar a apagar, Flint. É só lembrar de seguir os veios da madeira.

Ariel começou a reclamar de novo, mas sentiu o gosto da derrota antes mesmo que as palavras saíssem de sua boca. Suspirou, deu meia-volta e saiu da Jaula, passando pelo vestiário até a quadra. Seu coração não estava mais acelerado pela fuga de Peterson, nem com os restos de sua paixonite pela treinadora.

Que droga.

Ela se ajoelhou no meio da quadra e contou as marcas escuras até chegar a vinte. Esfregou a menor delas com a borracha, cuspindo no chão uma ou duas vezes até fazê-la desaparecer por completo.

Aí olhou para o grande relógio de ponteiros acima da porta. Doze minutos para a primeira aula, mais de 19 marcas para apagar. Ela duvidava muito que a treinadora Dale fosse dar permissão para que ela chegasse atrasada.

Esse era o problema de ser pega. Uma infração levava a outra até que você fosse incontestavelmente um mau elemento, impossível de salvar. Mas tudo o que Ariel podia fazer era continuar apagando as marquinhas pretas e ignorar como seus pés estavam gelados.

Ela mal tinha chegado na metade quando o sinal da primeira aula tocou. Um momento depois, várias meninas saíram do vestiário, já vestidas com o uniforme do hóquei.

A treinadora Dale saiu atrás, gritando:

— Quatro voltas, garotas! Nada de roubar nos cantos!

Ariel cometeu o erro de erguer o rosto, trocando olhares com as primeiras meninas do grupo. Suas expressões mudaram de uma confusão momentânea para uma mistura de diversão e pena.

Ela voltou os olhos para o chão, a borracha cor-de-rosa esfregando irremediavelmente as marcas pretas. Ariel era uma perita em manter a cabeça baixa, mas isso não significava muito quando estava bem no meio do ginásio, com uma matilha de garotas correndo em volta dela sem mais nada em que se concentrar. Seu rosto foi ficando tão quente quanto seus pés estavam frios.

— Quando quiser, Flint — gritou a treinadora da arquibancada. — Eu preciso da minha quadra de basquete.

— Desculpa — murmurou ela, só para dizer alguma coisa.

Ariel ouviu seu sobrenome ser repetido pelas corredoras, como um sussurro viajando pela quadra. Ela fechou a mente para o mundo exterior, se concentrando somente nas marcas pretas na sua frente...

Foi então que sentiu: a fricção queimando sob a língua rosa da borracha, o calor crescente em seus dedos. Sua percepção se expandiu, não para fora, para as risadinhas das garotas em volta, mas para os materiais do ginásio em si. Ela sentiu a madeira sob suas mãos e seus joelhos, sentiu o oxigênio aprisionado nos minúsculos espaços entre as fibras da madeira, as resinas e óleos que lhe davam cor. Depois, mais distante, a madeira seca das arquibancadas, os pôsteres presos nas paredes. Ela conseguia sentir o óxido de ferro na borracha meio desintegrada, e os filamentos incandescentes das lâmpadas no teto.

A escola estava cheia de substâncias inflamáveis, madeira e gesso, tecido e plástico, latas de tinta e pilhas de papel.

Tudo esperando uma única faísca...

* * *

Darcy ouviu um estrondo e tirou os olhos da tela.

Mas não eram Carla e Sagan no outro quarto, e sim um caminhão passando sobre um bueiro na rua. Darcy esticou os braços. O laptop estava esquentando suas coxas, e seus ombros estavam tensos da leitura.

Ela se permitiu relaxar, suspirando as palavras:

— Porra, ainda bem.

Piromante não era ruim, nem de longe. E, mais importante, ela sentia Imogen na dicção do livro, no ritmo da prosa, mesmo nas hesitações, nas peculiaridades das vírgulas e reticências.

Darcy sabia que devia se levantar, tomar um banho, se vestir e se preparar para um dia de museus com Carla e Sagan, de perguntas curiosas sobre Imogen, e de orçamento estourado por pelo menos uma semana.

Mas ela queria ler mais de Piromante. Não só porque as frases tinham o gosto de Imogen, mas porque a história a cativara.

Ela precisava virar aquelas páginas.

— Minha namorada tem caldo — sussurrou Darcy, e dobrou os joelhos para ler um pouco mais.

— Então, como ela é? — perguntou Carla do nada.

Os três estavam no Metropolitan Museum, numa galeria imensa construída em volta do Templo de Dendur, um antigo santuário de Osíris que havia sido trazido do Egito em partes e reconstruído em Nova York pedra a pedra. A parede norte da galeria era feita inteiramente de vidro, e a luz do fim da manhã banhava o arenito milenar. Sagan estava dentro do templo, lendo pichações de centenas de anos feitas por soldados. Carla ficara do lado de fora com Darcy, que achava o interior do templo claustrofóbico — milênios demais espremidos dentro de uma camarazinha.

— Você a conheceu ontem à noite. Ela é daquele jeito, na maior parte do tempo.

— Ela pareceu bem tranquila.

Darcy franziu a testa. Verdade, Imogen nunca parecia nervosa e tinha uma graciosidade que chamava a atenção de Darcy mesmo do outro lado da casa. Mas “tranquila” não parecia certo.

— Ela é bem intensa, na verdade. Você devia vê-la falando de livros e escrita.

Carla balançou as mãos no ar, depois juntou as palmas.

— É tão legal que vocês duas sejam escritoras. Mal posso esperar para ler o livro dela!

— É muito bom — sussurrou Darcy. — Eu comecei a ler hoje de manhã.

— Então vocês duas, tipo, escrevem juntas? Quer dizer, no mesmo lugar?

— Hum, não consegui escrever muita coisa desde que cheguei.

— Ah. — A expressão de Carla fez Darcy sentir uma pontada de culpa.

— Eu tenho tido tanta coisa para fazer — explicou. — Encontrar um apartamento, me mudar, comprar coisas novas.

— Novos amigos, novas namoradas, festas chiques. — Carla suspirou. — Saquei. Mas quando penso em você aqui, só consigo imaginá-la escrevendo furiosamente, o tempo todo. Por que mais você sairia da Filadélfia e nos roubaria nosso último verão juntos?

Carla estava sorrindo ao dizer aquilo, mas a culpa no estômago de Darcy só aumentou. A cada dia que se passava desde a mudança, ela pensava em seus amigos da escola cada vez menos.

Mas aquele fim de semana era a sua chance de consertar aquilo. Ela precisava contar todos os detalhes.

— Eu nem sabia que a Gen gostava de mim até ontem de noite!

Carla arregalou os olhos.

— Então foi por isso que você não estava em casa quando a gente chegou!

— A gente estava lá no telhado. Hum, se pegando, acho.

A amiga soltou um squee baixinho, que ecoou entre os passos e murmúrios que enchiam a galeria do templo.

— Uma cena de amor nos telhados de Nova York!

Darcy riu.

— Pois é, acho que sim.

— Vocês dançaram?

— Imogen e eu não somos muito musicais. Somos mais sobre palavras. E noodles.

— Noodles? Isso é alguma coisa nova que não conheço?

— São como o miojo que você já conhece, mas são mais caros. Gen adora comida. Ela diz que para conhecer uma cidade você precisa comê-la.

O sorriso de Carla aumentou um pouco.

— Ela fala isso sobre outras coisas além de cidades?

A pergunta paralisou Darcy por um segundo. Na verdade, ela teria ficado paralisada por muito mais tempo — minutos, horas — se Carla não tivesse caído na gargalhada.

— Desculpa! — soltou ela, sua risada ecoava nos mármores e vidros da galeria. — Mas alguns trocadilhos não podem ser desperdiçados.

Darcy percebeu que outros turistas estavam olhando sério para elas, e fez um sinal de silêncio para a amiga.

— Essa conversa parece promissora — disse Sagan por trás delas. — Suponho que seja sobre Imogen.

— É claro. — Darcy suspirou. — Junte-se a nós.

— Você não deveria estar falando sobre isso sem mim — disse ele para Carla. — Nós fizemos um acordo.

— Desculpa! Mas você não perdeu muita coisa ainda. Juro.

— Algum detalhe libidinoso?

Darcy soltou um grunhido. A voz de Sagan sempre era meio alta, mas ali, na quietude da galeria do templo, discutindo aquele assunto em particular, mais parecia uma sirene. Não ajudava que a pergunta fizera com que Carla voltasse a gargalhar.

Segurando os dois pelos braços, Darcy os levou à Ala Americana. Continuaram caminhando até chegarem à relativa privacidade da Sala Frank Lloyd Wright. A reconstruída sala de estar, com suas geometrias suntuosas e teto abobadado, ajudou a silenciar os barulhos que Carla estava fazendo.

Darcy se virou para os amigos.

— Será que vocês dois conseguiriam ser mais infantis?

— É você que está vermelha — comentou Sagan. — Ficar vermelha significa que existem detalhes libidinosos?

— Vocês transaram no telhado? — perguntou Carla.

— Que telhado? — Sagan se virou para ela. — Então eu perdi, sim, alguma coisa.

— Elas se pegaram pela primeira vez ontem à noite! — Carla estava batendo palmas. — No telhado!

— Sexo no telhado — disse Sagan. — Parece nome de drinque.

Darcy suspirou.

— Estava no meio da festa. A gente precisava de privacidade. Não tinha ninguém no telhado. Não rolou nada de cantoria ou dança. Não rolou nada de sexo no telhado. Pronto, fiz um resumo para você, Sagan.

— Quem tomou a iniciativa? — perguntou ele.

Carla soltou uma risada misturada com um ronco.

— Dã. O que você acha?

Darcy lançou um olhar irritado para a amiga, mas não pôde discutir.

— Você sabia que ela gostava de você? — perguntou Sagan.

— Você sabia que gostava dela? — perguntou Carla.

— Você sabia que gostava de garotas? — completou Sagan.

Darcy engoliu em seco. Ela não sabia de nada, na verdade. A noite anterior tinha simplesmente acontecido sem que nada tivesse sido iniciativa dela, ou ação dela, ou mesmo desejo dela. O que parecia bem patético, pensando bem. Mas também tinha sido mágico como um beijo no telhado — quase que vindo do nada — tinha transformado tudo.

— Vamos considerar seu silêncio como não, não e não — comentou Carla. — Pobre senhorita Darcy.

— Aliás, quantos anos tem a Imogen? — perguntou Sagan.

— Ela... — Darcy começou a responder, mas nenhum número específico lhe veio à mente. — Hum, ela se formou na faculdade ano passado, então 23?

Carla balançou a cabeça.

— Seja o que for, ela é totalmente adulta.

— E como essa disparidade te faz sentir? — questionou Sagan enfiando um microfone invisível na cara da amiga.

— Não importa — respondeu ela, empurrando a mão dele para longe. — Quando cheguei na cidade, não falei minha idade para ninguém. Na verdade, esse assunto nem tinha surgido até noite passada. Acho que ela simplesmente me aceitou como outra autora.

— A escrita conquista tudo! Que fofo.

— Talvez fofo demais — comentou Sagan. — Estou detectando uma ausência de detalhes libidinosos.

— A gente está indo devagar.

Carla deu dois tapinhas no ombro da amiga.

— Nós não esperávamos nada menos de você.

— Ei! Ir devagar foi ideia dela, não minha! — Darcy deu um passo para longe dos dois. — Vocês realmente acham que sou uma garotinha inocente?

Mesmo enquanto falava aquelas palavras, Darcy percebeu que sabia a resposta. Ela era muito pior que inocente — era idiota. E, para piorar as coisas, agora os dois estavam olhando para ela com expressões de adoração.

— Sabe o que não entendo? — começou Carla. — Como alguém tão ingênua como você conseguiu escrever um romance convincente?

— Na verdade — Sagan interrompeu —, até o início dos anos 1980 as heroínas dos romances eram sempre virgens. Escreva sobre o que você sabe. — Ele franziu a testa. — Embora não seja claro o que significa virgem quando se trata de duas garotas. A internet está dividida.

Carla olhou para ele assustada.

— Exatamente por que você procurou isso no Google?

— Foi no fórum do Meu Brilhante Pônei. Sabe como no episódio 41 fica subentendido que a Tensile-Toes tem uma namorada unicórnio? É claro, unicórnios só permitem que virgens toquem neles, então ou Tensile-Toes realmente é virgem, como nossa Darcy aqui, ou é só tecnicamente...

— Shh! — sibilou Darcy. Duas meninas em uniforme escolar pararam na entrada da Sala Frank Lloyd Wright, fazendo anotações, ela esperava que sobre a arquitetura.

As palavras de Carla foram baixas, mas intensas.

— Darcy, nós dois te amamos exatamente como você é. Sem contar que unicórnios evitando não virgens claramente não se aplica a outros equinos.

— Concordo — sussurrou Sagan. — Nos dois casos.

Darcy assentiu, tímida.

— Eu sei que Imogen gosta de mim, por enquanto. Mas e se eu estragar tudo? Tudo parece muito real, e perigoso. Como se eu estivesse tendo minhas primeiras aulas de direção numa Ferrari!

— Ferraris na verdade são bem seguras — comentou Sagan. — A alta taxa de mortalidade tem mais a ver com a alta percentagem de idiotas que compram carros da marca.

— Exatamente! Você vai ficar bem, contanto que vá devagar.

— Que bom que todo mundo concorda com isso — retrucou Darcy, tentando ser sarcástica, mas soando verdadeira até para os próprios ouvidos. Na noite anterior, na festa, ela havia se sentido tão madura e bem conectada, totalmente capaz de se mostrar na frente dos seus amigos da escola. Mas a verdade era que Carla e Sagan a conheciam melhor do que qualquer um em Nova York, e ela ainda era uma garotinha inocente aos olhos deles.

Darcy deu meia-volta e passou pelas garotas de uniforme, que sussurravam entre si no que parecia ser francês, bem provavelmente sobre a virgindade de Darcy. Ela seguiu em frente, passando pelas galerias de arte americana e subindo uma escadaria aleatória, com Carla e Sagan a seguindo silenciosamente.

Eles entraram numa ala do museu com tapetes cor de ferrugem e luzes indiretas, cheia de biombos pintados protegidos por painéis de vidro. O lugar estava quase vazio, e Darcy parou, não mais sentindo as meninas de uniforme atrás de si, com caderninhos em mãos.

— Às vezes me sinto como se só estivesse fingindo ser adulta.

Carla sorriu.

— Acho que é assim com todo mundo. Você finge por um tempo, e uma hora se torna real.

— É como fingir que está doente para faltar à escola — concordou Sagan. — Você sempre acaba com uma dor de barriga.

— Então estou ótima. Sou ótima fingindo. — Darcy se forçou a sorrir, se esforçando para afastar os sentimentos contraditórios. E daí se ela não tinha noção de nada sobre romance? E daí se ela era jovem? O que Imogen e ela tinham era real, e contanto que isso fosse verdade, todas as suas outras preocupações não significavam nada.

Bem, exceto pelas preocupações sobre reescrever um livro, começar o segundo e não gastar mais do que 17 dólares por dia.

— Ei, deem uma olhada nisso. — Sagan estava apontando para uma pintura gigantesca em um tecido. — Esse cara matou seu galã.

Darcy ficou olhando para a pintura. Era maior do que ela e mostrava um monstro de pele azul e três olhos, rodeado por um halo de chamas e usando um capacete de caveiras.

— Yamantaka, assassino de Yama — leu Sagan da plaquinha na parede. — O cara que matou a morte!

— Que maneiro — comentou Carla. — Você devia usar isso no segundo volume.

— Eu nunca nem ouvi falar dele. — Darcy empurrou Sagan para o lado e leu a placa. — Ah, é porque esse cara é budista. Eu já estou com problemas demais sem misturar coisas de outras religiões.

— Você está com problemas?

— Mais ou menos. — Darcy suspirou. Ela queria conversar mesmo com Sagan sobre isso, e não poderia ter pedido por cenário melhor. — Você sabe a minha primeira noite aqui? Quando eu conheci a Kiralee?

— Agora Darcy chama a Kiralee Taylor de Kiralee — comentou Sagan para Carla. — Ainda me deixa maluca.

— Você comeu guacamole com Standerson!

— Pessoal, me escutem — interrompeu Darcy. — Naquela noite, nos drinques, eles estavam perguntando sobre como eu usei um deus real para interesse romântico. E sobre todas as coisas que peguei emprestadas dos Vedas. Você achou isso ofensivo, Sagan? Tipo, você que é hindu?

Ele deu de ombros.

— Pareceu meio estranho no começo, mas depois concluí que não tinha problema, já que o hinduísmo não existe no seu universo.

Darcy não entendeu.

— O quê?

— Bem, sabe quando Lizzie está tentando achar uma palavra melhor do que “psicopompo” e joga no Google todos aqueles deuses da morte? No início não entendi por que ela nunca encontrou nada sobre o conceito de Yama.

— Porque isso seria bizarro — explicou ela. — Quer dizer, ela está ficando com ele. E ele não é um deus no meu mundo, é só uma pessoa.

— Exatamente. Então concluí que o paradoxo da Angelina Jolie se aplica a esse caso.

Darcy trocou olhares com Carla, que parecia igualmente confusa.

— O quê?

Sagan pigarreou.

— Sabe quando você está vendo um filme com a Angelina Jolie? E a personagem que ela interpreta é igualzinha à Angelina Jolie?

— Hum, claro. Porque ela é a Angelina Jolie.

— Não, naquele mundo ela é uma pessoa normal, não uma atriz de cinema. Mas os outros personagens nunca falam que ela é igualzinha à Angelina Jolie. Ninguém nunca para ela na rua e pede um autógrafo.

— Porque isso ia estragar o filme — completou Carla.

— Exatamente. Então quando você chama a Angelina Jolie para participar do seu filme, está criando um universo alternativo em que a atriz Angelina Jolie não existe. Porque de outra forma as pessoas notariam a semelhança o tempo todo. E é isso que eu chamo de o Paradoxo da Angelina Jolie.

— Sabe, Sagan — comentou Carla. — Você poderia ter usado qualquer ator ou atriz para esse paradoxo.

— Verdade. Mas, como o descobridor do paradoxo, escolhi a Angelina Jolie, porque é meu direito.

— Aceito sua nomenclatura — falou Darcy. — Mas o que isso tem a ver com meu livro?

— Bem, considerando que a Lizzie pesquisou deuses da morte e ainda assim jamais percebeu que o namorado é um deles para, tipo, oitocentos milhões de hindus, concluí que seu livro se passa em um universo em que o hinduísmo não existe. Não há outra explicação.

— Que merda. Você está certo. — Darcy despencou para trás, se largando em um banco de madeira escura no meio da sala.

— Caraca. — Carla riu e sentou ao lado dela, dando um soco no ombro da amiga. — Você acabou de apagar a sua própria religião. Isso é tipo voltar no tempo e matar Buda ou algo do tipo.

— Para de rir! — Darcy devolveu o soco. — Isso é sério!

— Você vai, tipo, ser excomungada?

— A questão não se aplica — explicou Sagan. — Não temos ninguém no comando para excomungar ninguém.

— Ainda assim não é nada legal! — gritou Darcy, olhando para o Yamantaka na parede e percebendo que ela e o monstro de pele azul tinham algo em comum: ambos haviam matado Yama, Lorde da Morte. — Quer dizer, você está de brincadeira com isso?

— Bem, o Paradoxo da Angelina Jolie não é amplamente aceito. É mais uma conjectura do que uma teoria.

— Sem contar que é muito bobo — comentou Carla.

— Mas agora vou ficar pensando nisso — disse Darcy, porque, por mais ridículo que o paradoxo de Sagan fosse, ela não podia negar que continha algo de verdade.

Sempre que ela começava a digitar uma história, Darcy sentia um universo alternativo começando a se formar dentro do seu computador. Algumas partes se cruzavam com o seu mundo de verdade, lugares como San Diego e Nova York, mas outras eram inventadas, como Lizzie Scofield ou o Movimento pela Ressurreição. Aquelas conexões com a realidade davam às histórias poder, e quando aquela realidade começava a se desfazer algo dentro de Darcy se partia também.

Ela ergueu os olhos para a pintura. Um personagem como Yama, alguém emprestado dos Vedas, já tinham muitas histórias no mundo real. E a cada dia que passava Darcy ficava mais incerta de que deveria estar usando isso.

— Você pode mudar o nome dele — sugeriu Carla. — Pode chamá-lo de Steve ou qualquer coisa assim.

Darcy se engasgou e tossiu, como se tivesse engolido um inseto.

— Steve?

— Tá, um nome indiano. Ela pode usar o seu, não pode, Sagan?

— Meu nome significa “Lorde Shiva”, então não exatamente. — Sagan fez uma pose de ator de Bollywood. — Mas estou disponível para interpretar Yamaraj no filme.

Darcy balançou a cabeça. Não podia mudar o nome de Yamaraj, assim como não podia mudar o nome de Lizzie ou de qualquer outro personagem. Era tarde demais para isso. Sem contar que raspar o chassi de um carro roubado não o tornava seu.

— Vocês estão matando meu cérebro.

— E eu ainda nem falei da parte paradoxal — continuou Sagan. — A única forma de não apagar Angelina Jolie é ela nunca aparecer em nenhum filme.

Carla arregalou os olhos.

— O que também apagaria Angelina Jolie.

Darcy soltou um gemido baixinho.

A amiga suspirou e fez um carinho gentil no seu ombro.

— Você realmente acha que um deus da morte de três mil anos se importa com o que você escreve sobre ele?

— Yamaraj é quem é — respondeu Darcy. — Isso é sobre mim.


CAPÍTULO 20

Jamie não parava de olhar para a minha cicatriz. Não para a da minha testa, em que os pontos já tinham quase desaparecido, mas o oval de pele avermelhada logo abaixo do meu olho esquerdo, marcando a forma de uma única lágrima.

— Posso encostar? — perguntou ela, já esticando a mão.

Eu me inclinei por cima da mesa de fórmica. Estávamos tomando café da manhã em um restaurante antes do nosso primeiro dia de volta à escola, uma comemoração para marcar o começo do nosso último semestre.

— Dói?

— Não. É quase como um peeling, um bem pequenininho. — Seu toque era como um sussurro na minha pele. — Foi o gás lacrimogêneo reagindo com a água. Uma dica de beleza para terroristas: se jogarem gás lacrimogêneo em você, não lave o rosto!

Eu tinha passado o dia inteiro treinando aquela piada na minha cabeça, tentando encontrar o humor em meio à tragédia. Mas Jamie continuou em silêncio, de olhos arregalados.

Limpei a garganta.

— Brincadeira. Eu não tenho dicas de beleza para terroristas.

— Mas é meio bonito, mesmo. — Jamie pegou o celular de cima da mesa. — Posso?

Me inclinei para a frente, e ela tirou uma foto a centímetros de distância.

Agora Jamie estava olhando para o celular em vez de para a minha cara.

— É como uma tatuagem de uma lágrima.

— É o que é. Eu chorei uma lágrima, que deixou uma marca.

— Uau, que profundo. Mas só uma lágrima? Que gás lacrimogêneo vagabundo.

Eu não expliquei como tinha evitado a maior parte do gás ao passar para uma realidade paralela, uma habitada por fantasmas, psicopompos e fragmentos de memórias balançando, frios, úmidos e famintos, no vento.

Só falei:

— Posso comer o resto do seu bagel?

Ela empurrou o prato para a frente, ainda hipnotizada pela tela do telefone.

Jamie foi a primeira pessoa para quem eu tinha ligado com meu telefone novo, que fora entregue no dia anterior por entrega expressa. (Isso era um comportamento típico do papai: esperar mais de uma semana para fazer alguma coisa e depois pagar mais caro para que aquilo fosse feito rapidamente. Quando mandei uma mensagem agradecendo, ele respondeu: Agradeça a Rachel. Ela ficou me enchendo. Também clássico do papai.)

Jamie havia anunciado que iria me dar uma carona para a escola uma hora antes, porque tínhamos muito a colocar em dia, então acabamos parando no Abby’s Dinner para o café.

Era bem mais divertido que ser levada para a escola pela minha mãe. Com Mindy, Yama e uma estranha nova realidade para explorar, eu ainda não tinha percebido como estava com saudades da minha melhor amiga.

— Eu acho bem legal que você não tenha aparecido na TV — dizia Jamie.

— Foi minha mãe que decidiu isso, acho. Eu nem pensei em dar entrevistas.

— Você queria ter dado?

— Não tive muito tempo, na verdade. — Eu tinha muitas habilidades novas a aprender, afinal. Além-mundos a conquistar. — Nem pratiquei meu espanhol durante as férias. Pela primeira vez minha mãe não me obrigou.

— Pobre Anna. Ela ainda deve estar tão nervosa.

— Basicamente. — Não ajudava que ela tivesse me encontrado dormindo no armário duas noites antes, usando uma faca como ursinho de pelúcia. — Ela anda sempre cansada. Como se nunca tivesse se recuperado.

— Foi estranho quando você e o seu pai se encontraram em Dallas?

— Ele não foi para lá.

Jamie ficou paralisada por um segundo, depois baixou o garfo com firmeza.

— Mas que merda?

Dei de ombros. O comportamento do meu pai sempre deixava as pessoas loucas, mas eu já estava acostumada.

— Ele não lida bem com coisas assim.

— E quem lida? Eu sei que ele é estranho, mas isso vai além de loucura. E depois de você escapar por um triz de... Bosta. Eu não ia falar isso em voz alta nunca. Desculpa.

— Ei, eu sei que quase morri. Tudo bem.

— Desculpa.

Dei de ombros de novo.

— Estamos todos assustados.

— E não só a gente. O tráfego aéreo diminuiu, tipo, oito por cento. E quando a polícia federal fez uma busca na casa daqueles atiradores, encontrou vários explosivos e coisas assustadoras. Como se eles estivessem planejando algo muito grande. Todo mundo está dizendo que o FBI vai invadir o complexo daquele culto logo, logo.

Ergui uma sobrancelha.

— Você está ligada nas notícias, hein?

— Obsessivamente! — gritou Jamie, alto o bastante para chamar a atenção de algumas pessoas. Ela baixou o olhar para a mesa e começou a remexer os talheres. — Não sei se isso é bizarro. É só que, quando você não respondeu aos e-mails, eu tinha que conseguir notícias de algum jeito.

— Eu sei. E é incrível que você não esteja brava comigo.

Jamie ainda olhava para os talheres, e dava para ver que ela estava sentindo tudo ao mesmo tempo: alívio por eu estar viva, raiva por eu ter demorado tanto a dar notícias, horror pelo mundo ser tão perigoso e sem sentido.

— É minha culpa que você não tenha tido chance de processar tudo. Foi egoísta da minha parte, me esconder assim.

— Não seja boba. Foi você que ficou aterrorizada — falou Jamie olhando para a omelete comida pela metade.

— Eu posso ser boba. E posso me esconder também. Mas escolhi deixar isso para lá agora. — Entreguei uma batata frita para ela. — Viu? Altruísmo.

Ela pegou a batata e a comeu solenemente.

— Você pode conversar comigo sobre o que aconteceu, Lizzie. Ou sobre qualquer coisa. Você sabe disso, não sabe?

— É claro.

Ela se esticou para pegar mais uma batata.

— Você acabou de fazer aquela coisa com a boca quando está mentindo. Por quê?

Afastei o olhar com um suspiro.

— Talvez seja porque acabei de mentir. Tem coisas que não posso falar com você. Mas é só porque não posso falar sobre elas com ninguém. Tá?

Foi então que percebi por que tinha demorado tanto para ligar para Jamie. Não tinha nada a ver com estar traumatizada por terroristas ou me esconder da minha nova e estranha fama. Era porque eu queria muito contar tudo a ela.

Ela era a minha melhor amiga e eu não podia dizer uma palavra sobre a coisa mais assustadora e maravilhosa que havia acontecido comigo. Não podia contar a ela sobre o que havia após a morte, ou sobre a fantasma que assombrava minha mãe, ou sobre as cinco garotinhas de Palo Alto. E, pior de tudo, não podia contar a ela sobre Yama.

Estar com ele havia mudado tudo. Eu tinha energias dentro de mim que jamais havia sentido, um brilho de psicopompo na minha pele e fogo em minhas mãos. Eu não dormia havia dois dias. O velho tinha razão — eu não precisava mais dormir.

Eu estava me transformando em outra coisa. Algo poderoso e perigoso.

— Você me odeia? — perguntei.

Jamie balançou a cabeça.

— Eu não disse que você tinha que me contar, só que você podia. Mas talvez você precise de outro tipo de ajuda.

— Tipo um psicólogo. — De repente eu estava irritada. Minha mãe também tinha sugerido que eu me consultasse com alguém, mas soava diferente vindo de uma amiga. — Eu estou bem, Jamie. De algumas maneiras, estou melhor do que bem. Melhor do que estava antes.

Vi um brilho de tristeza em seu rosto.

— Como você pode estar melhor?

— Bem, tem algumas coisas que não posso te contar, não é nada ruim. É mais como, hum, transformações positivas.

Jamie se aproximou, os olhos me interrogando. Levei a mão à boca inconscientemente. Era como se Jamie conseguisse ver o calor de Yama ainda ali.

— Puta merda, Lizzie. Você conheceu alguém.

Eu deveria ter negado, mas fiquei surpresa demais. Ficamos ali paradas, nos entreolhando, cada segundo de silêncio confirmando o que Jamie tinha acabado de dizer.

Ela balançou a cabeça.

— Bem que eu achei que você estava animadinha.

Algo no jeito que ela disse “animadinha” me fez cair na risada.

— Jamie... — comecei, mas não sabia como continuar. Ri de novo.

— Lizzie — retrucou ela. — Isso aconteceu em Nova York? Não, porque se não você já teria me contado. Então você conheceu alguém em Dallas?

Soltei um gemido baixinho, como se ela estivesse arrancando a verdade de mim. Mas o que senti de verdade foi alívio por finalmente contar a alguém, junto com um pânico alegre por tentar descobrir o que dizer.

— É. Conheci.

— Que romântico! — Os olhos da minha amiga estavam arregalados e brilhantes. — No hospital?

— Não.

— Então não é outro paciente. E você está sendo supermisteriosa sobre isso. Não contou nada disso para Anna, contou?

— Óbvio que não.

— Ahá! Então ele é mais velho que você. Ou você está sendo misteriosa porque ele não é ele? Você trocou de time, Lizzie? Você sabe que não me importo se for isso.

— Eu sei, mas ele é ele. E sim, é mais velho. — Parecia estranho colocar as coisas desse modo. Yama podia ter nascido muito tempo atrás, mas não tinha mudado tanto desde que deixara o mundo real. Se Mindy ainda tinha 11 anos, com certeza Yama era da minha idade. — Mais ou menos mais velho.

— Um paramédico gatinho?

— Não — respondi, sorrindo. Os chutes de Jamie jamais chegariam perto da verdade, claro, mas por alguma razão era bom que ela estivesse tentando. Parecia normal. — Foi só alguém que me ajudou. E nós temos... uma conexão.

— Que fofo, mas “só alguém que te ajudou”? Você é péssima com dicas.

— Quem disse que estou dando dicas?

Jamie se esticou por cima da mesa e me deu um soquinho.

— Eu disse! Mais dicas, já!

—Tá. — Mas o que eu poderia dizer e fazer o mínimo de sentido? — Ele sabe lidar com tragédias.

— Tipo um orientador psicológico?

Isso provavelmente era o mais perto que ela chegaria, então assenti.

— Que profundo. — Mas aí ela franziu a testa. — Mas isso não é meio antiético? Dar em cima de alguém que está traumatizado?

— Não é... — Resmunguei. — Ele não é um orientador psicológico de verdade, Jamie.

— Mas você disse que era.

— Não oficialmente nem nada. — A conversa estava ficando específica demais, então tentei ser vaga. — Ele é só alguém que me deu o que eu precisava para sobreviver a tudo isso. Quando mais nada fazia sentido, ele me salvou. Ele é a razão para eu não estar destruída neste exato momento.

Ela assentiu devagar.

— OK, estou gostando dele. Mas ele deve morar em Dallas, né? Você sabe que relacionamentos à longa distância são uma droga.

— Ele vem para cá às vezes. Ele viaja muito. A trabalho.

— Trabalho? Lizzie, o que ele faz?

Abri a boca, depois fechei de novo. Guia de almas? Psicopompo? Guardião dos mortos?

— É segredo — soltei. — O que ele faz é segredo.

Houve uma longa pausa enquanto Jamie refletia e eu me via presa numa saia-justa épica. Talvez tenha sido por isso que eu não tinha ligado para Jamie, porque ela sempre me fazia contar mais do que eu queria.

— Espera aí — falou ela um momento depois. — Ele é algum tipo de tira, não é?

— Hum, o quê?

— Óbvio. — Jamie começou a contar os pontos nos dedos. — Trabalho secreto. Viaja muito. Estava em um ataque terrorista. É bom em lidar com tragédias. Idade inapropriada.

— Não é tão inapropriado. Ele parece bem novo.

— Você está pegando um agente do governo! — gritou ela. — E você está se concentrando na idade que ele aparenta ter?

Olhei em volta, me perguntando se alguém no restaurante tinha conseguido ficar sem ouvir a gritaria de Jamie. Não reconheci ninguém, mas os amigos da minha mãe frequentavam o lugar. Sem contar que a minha cara estava bem presente nos noticiários.

— A gente devia parar de falar disso — sussurrei.

— Porque você não pode confirmar nem negar. — Jamie olhou para o celular. — Além disso, a gente tem que ir para escola. Vou pagar a conta.

Alguns minutos depois estávamos no carro, vendo a estrada passar em silêncio.

Era isso que eu ganhava por me abrir. Estava presa a uma mentira, e uma que era bem ridícula. Mas se eu negasse que meu namorado secreto era algum tipo de agente secreto, Jamie simplesmente voltaria a fazer perguntas. E não havia nada verdadeiro que eu pudesse contar a ela e que fizesse sentido.

Sem contar que, quanto de verdade eu tinha para contar? O que eu realmente sabia sobre Yama? Só sabia vagamente quantos anos ele tinha ou de onde vinha. Ele nem mesmo tinha conseguido terminar de contar como se tornara um psicopompo. Tinha a ver com um burro, era só do que me lembrava.

Eu não sabia as respostas para as perguntas que Jamie provavelmente queria fazer. Mas tinha que falar alguma coisa.

— Eu sei que tudo isso parece bizarro.

— É, parece mesmo. — Ela batucou no volante com os dedos. — Parte de mim quer acreditar que você só está simplesmente maluca. Tipo, você inventou um namorado agente secreto para se sentir mais segura.

— Por que você ia querer acreditar nisso?

— Porque aí não ia ter ninguém se aproveitando de você.

Fiquei olhando para ela, o café da manhã se revirando no estômago.

— Ele não é assim.

— Tenho certeza de que não parece ser assim, Lizzie. Porque em todos os filmes de ação a garota acaba com o cara que a salva, como se isso devesse ser o normal. Mas na vida real essa é uma maneira bem esquisita de se apaixonar, porque suas emoções estão todas confusas por quase ter sido morta a tiros. Isso não se chama síndrome de Estocolmo ou qualquer coisa assim?

— Hum, acho que isso é quando você se apaixona pelo terrorista, não pelo mocinho.

— Certo. Isso seria bem pior. Mas você não ficou com alguém só porque estava com medo, né? — Ela tirou os olhos da rua para me observar.

Balancei a cabeça.

— Não é isso, nem um pouco. Na verdade, ele não para de dizer que seria melhor se eu esquecesse o ataque, mesmo se isso significasse esquecê-lo também. Mas não dá. Nós estamos conectados, desde o primeiro momento em que o vi.

Seus olhos voltaram para a estrada.

— E com isso você quer dizer que ele é gato.

— É, é sim. — Por um momento, eu não sabia por onde começar, embora meu corpo estivesse louco para descrevê-lo em voz alta. — Olhos castanhos. Pele morena. Ele é alto, meio forte. — Eu ainda conseguia sentir a forma como seus músculos se moviam por baixo da seda.

— Meio forte? Quer dizer que ele malha?

— Não. É mais como alguém que cresceu numa fazenda. — Quando falei isso, tudo fez sentido. Com certeza havia muitos trabalhos braçais naquela época.

— Meio forte. Entendi.

De repente eu queria contar tudo a Jamie, ou pelo menos tudo que faria sentido para ela.

— Ele tem uma irmã gêmea que é muito importante para ele. Eles têm, tipo, uma ligação.

— Isso é estranho, mas legal. — Jamie suspirou. — Então vocês ficaram em Dallas? Tipo, enquanto você estava no hospital?

— Não. A gente ficou aqui, há dois dias. Foi a primeira vez que a gente... a primeira vez que alguma coisa aconteceu.

— Ele estava aqui, em San Diego? Espero que não te perseguindo.

— Não. Aconteceu de ele estar aqui. E fui eu que o chamei. Como eu disse, a gente tem uma conexão. Pode confiar em mim.

Ela se virou para me olhar, e levou um longo momento para voltar os olhos para a rua.

— Tudo bem. Eu confio em você, Lizzie. E fico feliz por você ter alguém ao seu lado. Só tome cuidado.

— Vou tomar. — É claro que isso era uma mentira. Tomar cuidado significaria seguir o conselho de Yama e esquecer as cinco garotinhas em Palo Alto. Mas eu não podia fazer isso. Mindy precisava saber com certeza que estava a salvo do homem mau. E eu precisava saber que isso era verdade não só para ela.

Estiquei a mão e segurei a de Jamie, querendo dizer algo que não fosse só metade verdade.

— Fico muito feliz que a gente tenha conversado sobre isso. Parece mais real para mim agora, só por te contar.

Ela abriu um sorriso, nossas mãos se afastando quando ela girou o volante para guiar o carro para o estacionamento dos alunos. Já estava lotado de grupos de amigos aglutinados, felizes por se reencontrarem ou deprimidos por estarem de volta à escola. Tudo parecia tão normal e mundano que fez meu coração se apertar um pouco.

Como se eu não pertencesse mais àquele lugar.

Era estranho. Quando estava no mundo cinzento, eu parecia deslocada, brilhante e cheia de cor. Mas aquele estacionamento escolar também parecia estranho, muito cheio de vida para um psicopompo como eu.

Que palavra horrível. Eu tinha começado a procurar na internet algo melhor para usar, mas havia encontrado somente os antiquados “guia de almas” e “ceifador”, assim como muitos deuses e deusas com nomes como Oya, Xolotl, Pinga e Muut, sem contar com dois da mitologia chinesa chamados Cabeça de boi e Cara de cavalo.

Por razões óbvias, eu ainda estava procurando.

Jamie atravessou com cuidado o mar de gente e parou numa vaga vazia. Na hora em que saí do carro, percebi que as pessoas me lançavam olhares furtivos de reconhecimento, alguns até pegavam os celulares. Mas pelo menos não havia câmeras de TV ou repórteres. As férias tinham durado o tempo exato para a minha fama de sobrevivente acabar.

Mas enquanto Jamie e eu caminhávamos para a entrada principal da escola, vi um sedã preto estacionado na rua, uma figura solitária ao volante observando os estudantes passarem.

— Peraí um instante — falei para Jamie, e atravessei a faixa de grama entre o estacionamento e a rua.

A janela do lado do motorista foi se abrindo enquanto eu me aproximava.

— Ei, agente especial.

— Bom te ver, Srta. Scofield. — Elian Reyes usava seu terno escuro e óculos de sol de sempre, mas a gravata de hoje era vermelho-vivo.

— É bom te ver também. Mas, hum...

— A que você deve a honra desta visita? — Seu sorriso brilhou por um momento no sol matinal. — Nada sério. Meu superior ficou preocupado com seu primeiro dia de aulas.

— Alguma coisa que eu deveria saber?

Ele balançou a cabeça.

— Nenhuma nova informação, Srta. Scofield. Simplesmente precaução em abundância.

— Legal da parte de vocês. Mas minha amiga viu alguma coisa sobre aquele culto de morte no jornal. Tipo, que o FBI vai invadir o quartel-general deles ou sei lá.

— Isso é só um boato, Srta. Scofield.

— Entendi. — Sorri. —Um que você não pode confirmar nem negar.

— Não posso dar informações confidenciais. Aqui no sul da Califórnia basicamente só lidamos com tráfico de drogas. Mas é sempre bom um pouco do glamour do terrorismo.

— Que bom que pude ajudar com isso. — Atrás de mim, o primeiro sinal tocou. Quando virei para olhar para trás, vi Jamie nos observando com os olhos arregalados. — Ah, bosta.

— Amiga sua?

— É. Agora ela provavelmente acha que... — Soltei um grunhido exasperado com a minha própria estupidez. — Ela provavelmente acha que você é meu novo namorado.

O agente Reyes abaixou os óculos, as sobrancelhas se franzindo.

— Seu novo namorado?

— Meu namorado secreto, que acabei de contar a ela que tenho. É uma longa história, muito vergonhosa.

— Concordo. Fique à vontade para corrigir este erro, Srta. Scofield.

— Pode deixar. — Minhas bochechas estavam começando a ficar vermelhas. — Hum, o sinal tocou. Eu tenho que ir para aula agora.

Ele assentiu.

— Me avise se vir algo estranho hoje.

— Já salvei seu número no meu celular. — Acenei e dei meia-volta.

Quando comecei a me encaminhar para o portão, percebi que Jamie não tinha sido a única a me ver conversando com o agente especial Reyes. Perfeito.

— Gatinho mesmo — disse Jamie quando a alcancei, um sorriso conhecedor brincando no rosto. — Mas você falou que não tinha praticado o espanhol durante as férias...

— Não! Quer dizer, talvez ele seja meio gato. Mas ele não é...

— Latino?

Resmunguei.

— Você entendeu tudo errado.

Ela passou o braço pelo meu e me levou para dentro.

— Certo. Ele é outro cara gato secreto em um carro que é totalmente do governo e que por acaso está te seguindo por aí.

— Sim! É exatamente isso.

— Aham, sei.

Um grupo do segundo ano estava nos observando com um pouco de atenção demais enquanto passávamos, e ouvi meu nome sendo sussurrado. Jamie os silenciou com um olhar bravo.

— Neófitos — murmurou.

Pensei em convencer Jamie de que o agente especial Reyes não tinha o status de namorado, mas para quê? Ela o vira com os próprios olhos, afinal, o que sempre ganharia de um psicopompo invisível. Pelo menos agora ela não achava que eu estava doida o bastante para inventar alguém.

— Obrigada, Jamie.

— Pelo quê?

— Por me escutar. Por confiar em mim.

Ela apertou meu braço.

— Só repito: tome cuidado.

Assenti, feliz em deixar Jamie nos guiar para a primeira aula: teatro.

Era estranho. Nossa conversa podia ter sido salpicada por meias-verdades e mal-entendidos, mas conversar com Jamie me ajudara a compreender melhor o que havia acontecido. Eu nunca tinha entendido por que Yama estava tão hesitante no início, dizendo que eu deveria esquecê-lo. Mas talvez fantasmas recentes se ligassem a ele o tempo todo, como patinhos se conectando à mãe. E ele tinha ficado preocupado de aquelas garotinhas ficarem conectadas a mim...

Mas não tinha sido isso o que acontecera conosco, certo?

Desde o primeiro momento em que eu o vira, Yama tinha sido tão bom, tão necessário. Não porque eu estava traumatizada, mas apesar das coisas horríveis que estavam acontecendo ao nosso redor. Desde o nosso primeiro beijo no aeroporto, ele havia se tornado parte de mim. Ainda conseguia sentir seus lábios nos meus, e ele havia me ouvido quando chamei seu nome.

Nossa conexão era real, e falar sobre isso com Jamie só a havia tornado mais verdadeira, não importava quantas vezes eu precisasse mentir.


CAPÍTULO 21

Apenas dez dias depois do seu primeiro beijo, Darcy Patel recebeu sua primeira carta editorial de verdade. Parecia correto que dividisse ambos com a mesma pessoa.

— Chegou! — gritou ela ao telefone.

— Peraí — veio a voz sonolenta de Imogen, depois o som de alguém escovando os dentes e cuspindo. — Você está falando da sua carta? Já não era sem tempo.

— Não é? O livro sai em 428 dias!

— Como você sabe disso?

— Nisha me mandou uma mensagem de manhã.

Imogen riu.

— Que útil. O que a Nan falou?

— Ainda não li. Preciso de você aqui! — Ao dizer isso, Darcy se sentiu patética, e um pouco chateada por ter que perguntar: — Você pode vir para cá?

— Acho que consigo te encaixar no meu horário — falou ela devagar, depois completou: — Me encaminha a carta. Te vejo em cinco minutos.

* * *

Quinze minutos depois, as duas estavam sentadas no telhado do prédio de Darcy, com celulares e muffins em mãos. Darcy ainda estava com a calça do pijama e uma camiseta, mas Imogen tinha vestido uma camisa branca passada e vários anéis, proclamando que cartas editoriais eram coisa séria. Ela também havia trazido dois cafés e dois muffins do café sino-italiano embaixo do prédio.

— Por enquanto tudo bem. — Darcy estava lendo o parágrafo inicial. — Ela ainda ama o primeiro capítulo.

— A Nan sempre começa com os elogios. — Imogen fez a tela correr com o dedão.

— Ei! São os meus elogios! Não passe direto por eles!

— Guarde os elogios para quando precisar deles. Sobremesa vem por último.

Darcy revirou os olhos.

— Diz a pessoa comendo um muffin de café da manhã. Aliás, por que a gente está aqui no telhado?

— Para não perdermos o objetivo de vista — respondeu Imogen, indicando o horizonte.

Darcy nem sequer perguntou o que aquilo queria dizer. Tinha olhos apenas para o e-mail. O próximo parágrafo era sobre os capítulos 2 e 3, quando Lizzie estava no palácio de Yamaraj no submundo depois do ataque no aeroporto.

A falta de elogios era gritante.

— Bosta. Ela odeia o livro.

— Não odeia, não.

— Ela está dizendo que é só narração.

— Bem, isso meio que é verdade. — Imogen amassou a embalagem vazia do muffin e largou ao lado do copo de café. — Mas eu gosto da história de origem do Yamaraj. Burricos vingativos são o máximo!

— Valeu — sussurrou Darcy.

A história do burro era uma das poucas coisas no livro que ela havia inventado sozinha. Não tinha nada a ver com o Yamaraj dos Vedas, ou com a amiga assassinada da sua mãe. Tinha vindo do nada, aparentemente, um conto de outra Era.

Mas Nan tinha razão. Por dois capítulos inteiros Yamaraj e Yami ficavam sentados no palácio explicando as regras do além-mundo para Lizzie, um bloco imenso de narração, exatamente como qualquer livro sobre escrita diz para não se fazer. Como Darcy não tinha notado isso antes?

Ela sentiu um tremor na mão, um reflexo de fugir ou lutar doendo no estômago. De repente ela odiava aqueles dois capítulos.

— Talvez se eles explicassem as coisas depois — falou lentamente, tentando não deixar o tremor transparecer na voz. — Aí a Lizzie precisa descobrir como o além-mundo funciona sozinha. E Yamaraj parece mais misterioso inicialmente.

Imogen assentiu.

— Misterioso é bom. Afinal, ele é um deus da morte.

— É. Sobre isso...

Ela levou um segundo para continuar. Darcy se perguntou exatamente quando tinha decidido pegar emprestado um personagem da sua religião. Talvez as histórias dos Vedas sempre tivessem estado na sua cabeça. Talvez tudo não fosse sequer consciente.

Mas em algum momento Yama tinha se fundido com todas as outras histórias na sua cabeça, misturando-se com atores de Bollywood, namorados de mangá, galãs de romances sobrenaturais e até mesmo os belos príncipes dos filmes da Disney...

— Merda. É isso.

— O quê?

— Yamaraj levar Lizzie para o palácio. É tosco. Caras com castelos são tão Disney.

— Ele é o rajá do além-mundo. Onde mais ele moraria, em um bangalô?

Mesmo em sua angústia, Darcy tentou se lembrar de que gostava da palavra “bangalô”, embora não soubesse muito bem o que significava.

— Tá, ele tem um palácio — admitiu ela. — Ele tem uma cidade inteira. Mas Lizzie não pode ficar de bobeira tomando chazinho. Não até bem mais tarde, quando tudo estiver dando errado e o submundo for assustador, estranho e perigoso. Yama tem que ser um deus da morte de verdade.

Imogen ergueu os olhos do seu celular.

— Isso tem a ver com o que a Kiralee disse?

— Não foi só ela. Meu amigo, Sagan, me assustou. — O paradoxo da Angelina Jolie parecia bobo demais para explicar para Imogen, mas Darcy precisava tentar. — Ao transformar Yamaraj em um personagem, é como se eu estivesse apagando ele das escrituras. Mas me livrar dele também o apagaria. Então só me resta torná-lo real. Eu devo isso a ele, no mínimo.

— Você deve isso a qualquer personagem — completou Gen.

— OK, claro. — O estranho era que, desde o primeiro dia daquele novembro, Darcy tinha imaginado o lindo palácio de Yamaraj no submundo. Mas ela nunca havia visitado a Índia, e sua visão era uma mistureba de filmes, desenhos e sites de hotéis caros. — Eu adoro essa cena no palácio. Mas é tosca, não é?

— Mate seus amados — falou Imogen, desenhando com a ponta do dedo uma linha pelo braço nu de Darcy. Isso a fez se arrepiar com uma sensação de alívio, como se fosse aquele amado perdido saindo do seu sistema.

Ela abriu o aplicativo de anotações do celular e digitou com um dedão: Explicação depois. Palácio mais assustador. Yama mais mistério. Sua mão ainda tremia um pouco, e ela estava um pouco sem fôlego, mas não era mais o reflexo de lutar ou fugir. Era o zumbido de ideias ardendo na sua cabeça, e por estar ali com Imogen no lugar em que deram seu primeiro beijo.

A Canal Street retumbava com autoridade lá embaixo, e a cidade parecia imensa e constante em volta de Darcy.

Ela manteve a voz firme.

— Foi uma boa ideia, vir trabalhar no telhado.

Imogen respondeu com um beijo suave na lateral do pescoço de Darcy. Ela cheirava a café e gengibre, e um toque de goma da sua camisa bem-passada.

O beijo causou outro arrepio em Darcy, fazendo sua barriga gelar com uma mistura de ansiedade e cafeína. Ela queria se virar e beijar Imogen bem nos lábios, mas havia um ímpeto em seus pensamentos, no seu corpo, que ela não podia desperdiçar.

— Então eu tenho que descobrir outro lugar para Yamaraj levar Lizzie. Aonde eles iriam, que não o submundo? Algum lugar sombrio e assustador.

Por um longo momento, nenhuma das duas falou nada. Darcy pensou em todos os cenários do livro — a escola fantasma, a ilha varrida pelo vento, as montanhas na Pérsia. Qual era a mais assustadora e gélida, que mais combinava com a primeira aparição de um deus da morte.

Foi Imogen quem quebrou o silêncio.

— Por que eles têm que ir para algum lugar?

— Você quer dizer... — A voz de Darcy sumiu. Todo mundo adorava a cena do aeroporto, então talvez ela não precisasse deixá-la para trás. — Mas tem um ataque terrorista acontecendo.

— Se você quer que seja assustador, é perfeito. E se Lizzie passou para o outro lado com a força do pensamento, está invisível e as balas não podem machucá-la.

Darcy fechou os olhos por um momento, imaginando a cena: Lizzie acordando com corpos sangrentos no chão ao seu redor, os terroristas atirando loucamente nos policiais. Ela entraria em pânico e voltaria imediatamente para o mundo real. E levaria um tiro.

A não ser, é claro, que Yamaraj estivesse lá para acalmá-la.

— É claro que Lizzie precisa entender que está em outro mundo — continuou Imogen. — Caso contrário não há transição de gênero.

Darcy abriu os olhos.

— Não há o quê?

— Sabe, o momento em que ela percebe que não está mais no Kansas, e o leitor também. Seu livro começa como um thriller de terrorismo, mas aí Lizzie consegue, com a força do pensamento, passar para outro gênero. Para mim, este foi o primeiro momento que notei a presença do caldo.

Darcy se sentiu relaxar um pouco, feliz por estar de volta à terra dos elogios.

— Me dê um segundo. — Fechando os olhos de novo, ela se deixou mergulhar no teatro experimental que era sua mente, o lugar em que ela imaginava as cenas. Viu o ataque no aeroporto de novo, com Lizzie bem ali, no meio de tudo, mas desta vez no cinzento outro lado.

À medida que o silêncio se prolongava, Imogen permaneceu quieta, muito além do tempo que Nisha e Carla aguentariam se segurar para dar conselhos. Gradualmente Darcy deixou as certezas do que ela já tinha escrito se transformarem em fumaça e névoa, até que seus olhos finalmente se abriram e ela disse:

— Gás lacrimogêneo!

Imogen manteve o olhar calmo e ficou em silêncio.

— Quando a polícia chega no aeroporto, começam a jogar bombas de gás lacrimogêneo. Então, quando a Lizzie acorda, está em uma nuvem.

— Então ela está tossindo? — Imogen perguntou com cuidado.

Darcy balançou a cabeça.

— O outro lado tem ar próprio. Então Lizzie acha que está no céu, até ver Yami a observando através da névoa.

— Irmãzinha assustadora no céu. Maneiro.

Darcy sorriu, seu olho da mente ainda na cena.

— Mas o que parece ser o céu é na verdade o inferno: corpos por todos os lados, escondidos pela fumaça.

— E, antes que ela os veja e se assuste, Yamaraj está lá para ajudar!

— E ele diz exatamente a coisa certa. — Darcy tomou um gole do café para se colocar de volta no mundo real, a mente girando com todas as possibilidades. Mas o que ela havia visualizado não era só uma correção, era um capítulo completamente novo. — Merda. Então a Nan aponta um problema em um parágrafo e eu tenho que escrever mais milhares de palavras para corrigir? Isso não é justo!

— Tudo é justo, no amor e na arte.

— E a carta tem mais cinco páginas!

Imogen começou a rir.

— Acho que é por isso que você ganhou aquela bolada.

* * *

Elas continuaram durante toda a tarde, por mais uma hora no telhado e depois na sala, sentadas à mesa com os laptops abertos. Felizmente, a maioria dos comentários de Nan não demandavam tanto trabalho quanto o primeiro. Alguns eram definitivamente triviais.

— Eu realmente uso a palavra “veias” demais? — perguntou Darcy.

— Meio que sim.

Ela fez uma cara séria.

— Então onde que a merda da adrenalina da Lizzie vai estar? Nos sovacos dela? E por que você fica concordando com a Nan?

— Ela é uma boa editora. — Imogen ergueu as mãos em rendição. — Mas o livro é seu. Você dá a palavra final.

— Eu perguntei isso para a Moxie uma vez, e ela disse que depende.

— Depende apenas da sua coragem. Se você discordar de algo grande, a Nan pode ameaçar não publicar seu livro. E acho que ela realmente pode não publicar. Mas lembre-se: ela não pode te obrigar a escrever um livro diferente.

— Isso é reconfortante. Acho.

— Não se preocupe. Ninguém vai cancelar seu contrato por causa de “veias”. — Imogen digitou alguma coisa no computador. — Vamos lá... localizar e substituir “veias” por “pinguins”. Olha só: 187 substituições.

— Eu usei “veias” 187 vezes? Você está falando sério?

Imogen começou a rir;

— É, acho que meu protagonista tinha raiva correndo pelas veias ontem também. Você está mexendo com a minha cabeça, garota!

— Foi mal. Eu sou péssima em escrever. — Darcy franziu a testa. — Hum, por que exatamente você substituiu por “pinguins”?

— Assim você não vai deixar passar nenhuma ocorrência quando estiver fazendo a releitura. — Imogen clicou duas vezes no trackpad, e o computador emitiu o som de e-mail enviado. — De nada.

Darcy se esticou e segurou a mão de Imogen, sentindo a quentura da pele dela e o metal gelado dos anéis.

— Obrigada. Não pelos pinguins, mas por ficar aqui. Sua presença compensa a humilhação que está correndo pelos meus pinguins por escrever tão mal.

— Só falta mais uma página. — Os olhos dela brilharam. — Será uma última gota de admiração. Ou um comentário editorial devastador final?

Darcy soltou um resmungo ao rolar para a última página do e-mail. Era um único parágrafo que ocupava meia página, assustadoramente denso.

— É bom que sejam elogios — comentou ela, e começou a rir.

Um momento depois Imogen se recostou na cadeira e suspirou.

— Faz sentido.

— Não venha me dizer que você concorda com ela!

— Não, eu odeio a ideia. — Ela batucou as unhas na mesa. — Mas eu estava pensando que isso poderia acontecer.

Darcy leu o parágrafo de novo. Era uma explicação longa e divagante, mais sobre vendas e continuações do que sobre a história. Mas havia uma firmeza, uma certeza nas convicções de Nan que fazia Darcy se sentir jovem, pequena e indefesa.

Sua editora queria um final feliz.

— Bosta. Eu achei que tinha arrasado nos últimos capítulos.

— Eu também. — Imogen estava com os olhos no próprio laptop.

— Então por que você estava esperando por isso?

— Finais felizes fazem sucesso. Você não vê filmes?

— Tá, mas são filmes — resmungou Darcy. — Livros estão acima dessas coisas!

— Nenhum negócio está acima do dinheiro.

— Mas eu nunca achei que eu teria que... Ei, espera aí. O final de Piromante é bem mais sombrio do que do Além-mundos. A Nan te pediu para mudar?

— Não. Ela adorou.

— Bosta! Ela está fazendo isso porque sou mais nova que você? E aí ela acha que pode mandar em mim?

— Duvido. — Imogen apontou para a tela. — Está vendo o que ela escreveu? “Nós temos expectativas muito altas para este livro, Darcy, mas não vamos conseguir alcançá-las se o departamento comercial não estiver 100% comprometido.”

— O que isso significa?

— Significa que eles te pagaram trezentos mil dólares e agora querem um final feliz.

As duas estavam deitadas juntas no futon de Darcy, Imogen a abraçava por trás.

Seus corpos se encaixavam perfeitamente assim, dois continentes afastados éons atrás, mas enfim reunidos. Embora sua cabeça ainda estivesse a mil por conta da carta editorial, Darcy sentia cada detalhe de Imogen atrás dela — os braços magros, a respiração como um fantasma pulsante. Ficar deitada assim era novo o bastante para ser uma distração sublime.

Mas era impossível abandonar o corpo quando sua mente zumbia com estratégias — argumentos contra as ordens de Nan, uma dezena de finais felizes possíveis, discursos trágicos caso seu livro fosse cancelado. E, abaixo do restante, os sussurros preocupados dizendo que era tudo culpa dela.

— É porque eu sou uma farsa, não é?

Imogen se mexeu, puxando Darcy para perto.

— O que você disse?

— Piromante é tenso desde o início. E Ariel só fica mais confusa e complicada conforme o livro avança, até o final.

— Então você leu?

— Sim! Desculpa! — gritou Darcy, percebendo que, em meio ao nervosismo daquela manhã, ela havia se esquecido de contar. — Terminei logo depois que Carla e Sagan foram embora. É incrível, sombrio e realista. E ninguém aparece do nada para salvar Ariel quando ela está com problemas. Especialmente não um lorde da morte bobão que mora num palácio.

Imogen deu uma risadinha.

— Você vai consertar o palácio.

— Mas é tarde demais. A Nan já imagina o livro com um final feliz, e o departamento comercial também. — Darcy se enrolou na quentura de Imogen. — Você pode ficar com o seu final complicado porque seus personagens são complicados, e você não pegou emprestado deuses da morte e fez eles serem bobos. Porque você é uma escritora de verdade.

— Sério, isso de novo?

— Você sabe do que eu estou falando. Ninguém espera que Piromante tenha um final de filme da Disney.

— Porque ninguém espera que ele venda um milhão de exemplares, não importa o final. O Comercial não se importa com piromaníacas pobres que têm tesão pela professora de educação física.

— Então eles são idiotas. Você vai vender milhões.

— Shh — sussurrou ela, puxando Darcy para mais perto.

— Mas é tão incrível.

— Obrigada, mas shh.

Elas ficaram em silêncio por um tempo, com Darcy se perguntando o que fazer em seguida. Ligar para a sua agente? Lutar até a morte? (A morte do seu contrato? Da sua carreira?) Ou ela deveria era começar a escrever um final feliz para Lizzie e Yamaraj?

— Será que a Nan não entende que meu livro é sobre morte?

O suspiro de Imogen foi um sopro quente na nuca de Darcy.

— Talvez seja por isso. Você começa com uma tragédia tão grande que ela quer que o livro termine bem.

— Isso é idiota.

— Qualquer final feliz é meio idiota. — Imogen baixou a gola da camiseta de Darcy e beijou o início de sua coluna, disparando um arrepio.

Darcy se remexeu nos braços dela até estarem cara a cara.

— Você acha que a gente vai ter um final feliz? Ou isso seria idiota?

— A gente, nós duas? — Imogen pensou sobre a pergunta, com um olhar cauteloso no rosto. — Acho que talvez seja cedo demais para pensar em finais.

— Eu não estava pensando em finais — falou Darcy, o que tinha sido completamente verdade até um momento antes. Mas, agora que havia começado, era difícil parar.

O que um “final feliz” significava na vida real, de qualquer maneira? Nas histórias você simplesmente dizia: “E eles viveram felizes para sempre” e pronto. Mas na vida real as pessoas tinham que continuar vivendo, dia após dia, ano após ano.

Quais as chances de ela passar a vida inteira com a primeira pessoa que havia beijado? Darcy girou para longe e puxou os joelhos para o peito, abraçando as pernas.

— Posição fetal, hein? Eu achei que isso poderia acontecer, então guardei uma notícia boa para você.

— Que bom que sou tão previsível. Que notícia?

— Quando Piromante sair, eu vou fazer uma turnê com o Standerson.

— É oficial? — Darcy desfez a bola em que estava e girou para olhar para Imogen de novo. — Ele vai fazer uma turnê com você?

— Bem, tecnicamente eu vou fazer uma turnê com ele. — O sorriso de Imogen só crescia conforme ela contava. — Não todas as vinte cidades, claro, mas vamos dividir o palco durante uma semana inteira.

— Que incrível! — Darcy se inclinou e as duas se beijaram de verdade pela primeira vez naquele dia. A pressão dos lábios de Imogen, as brincadeiras de sua língua, tudo aquilo afrouxou o nó que havia no estômago de Darcy. Ela se perguntou por que tinham esperado tanto tempo.

Quando se afastaram, Imogen ainda estava sorrindo.

— Não acredito! — Darcy balançou a cabeça. — Você escondeu isso de mim o dia todo!

— Como eu disse, achei que você fosse precisar. Sobremesa vem por último.

— Você sabe que “sobremesa vem por último” e “finais felizes são idiotas” se contradizem, não sabe?

Imogen deu de ombros.

— O primeiro é uma estratégia. O segundo é uma filosofia. Contradição zero.

— Que seja. — Darcy suspirou. — Mas você e Standerson! Tudo por causa da minha festa!

— Fico feliz por ter aparecido. Por essa e por outras razões.

Darcy riu disso, mas uma memória solta lhe cruzou a mente. Ela estava um pouco bêbada, e tanta coisa tinha acontecido naquela noite. Mas desde então, um momento da festa voltava a despontar na sua cabeça.

— Você disse algo estranho naquela noite.

— Que eu estava a fim do seu livro?

— Mais estranho que isso. Você disse que Imogen Gray era seu pseudônimo. Você estava brincando, certo?

Por fim o sorriso dela sumiu.

— Não. É verdade.

— Então não é o seu nome de verdade?

— Não é o nome com que nasci.

Darcy franziu o cenho.

— Mas é alguma coisa parecida, né? Tipo Imogen Grayson?

Ela balançou a cabeça.

— Não adianta tentar adivinhar. Eu não falo meu nome real para as pessoas.

Darcy sentou na cama.

— Mas por quê?

— Não é nada de mais.

— Então me diga!

Imogen soltou um resmungo baixo.

— Escuta, Darcy. Quando eu estava na faculdade escrevia várias coisas para um blog independente. Era basicamente um diário: tudo que eu estava pensando, fazendo... todo mundo que estava pegando. Depois que a Paradox comprou meu livro, eles perguntaram se eu queria usar um pseudônimo. Quando joguei meu nome no Google naquele dia, não gostei nem um pouco do que encontrei. Então decidi manter essas coisas separadas do meu livro.

— Certo, faz sentido. Mas separado de mim também?

— Por enquanto, sim.

Darcy ficou ali sentada, de olhos arregalados, até Imogen segurar sua mão.

— Aquela não é quem eu sou agora, só isso.

— Mas você não mudou a si mesma. Só mudou seu nome.

— Talvez no início. Mas é uma chance de recomeçar, sem ter que entrar no programa de proteção à testemunha ou sei lá o quê. Ter um pseudônimo me dá uma nova identidade: autora Imogen Gray. E agora essa identidade sou eu. Por que você está me olhando estranho?

— Sei lá. — Darcy baixou os olhos para o futon, mas logo teve que erguê-los de novo. Era como se Imogen tivesse declarado que era um alien, um metamorfo, ou simplesmente uma impostora. — Isso é tão estranho. Eu estou te chamando pelo nome errado esse tempo todo.

— É claro que não. Imogen Gray é o meu nome.

— Então você mudou oficialmente?

Imogen reclamou.

— Não, mas é o meu nome.

— Se eu prometer não procurar no Google, você me conta qual seu nome de verdade?

— Não. E ele não é mais de verdade do que Imogen Gray.

— Eu achei que você queria que eu confiasse em você!

— Você pode confiar em mim, mesmo se eu não te contar meu nome.

— Você não percebe o quanto isso é estranho, Imogen? Ou seja, lá qual é o seu nome de verdade!

— Escuta, Darcy. — Imogen soltou um suspiro longo e sem paciência. — Sabe quando você fica triste com a morte de um personagem?

Parecia uma pegadinha, então Darcy levou um segundo para dizer:

— Claro.

— É porque personagens são de verdade. Porque histórias são de verdade, mesmo quando são de ficção. O que significa que pseudônimos são de verdade também, porque livros transformam os autores em pessoas diferentes. Então Imogen Gray é de verdade. É quem eu sou. Certo?

— Ainda parece que você está escondendo alguma coisa.

— Não mais do que você.

—Eu? — Uma imensa risada saiu de Darcy. — Eu nem tinha beijado ninguém antes de você, Gen. Não tenho nada a esconder!

— Sério? Então por que você não contou a sua idade para ninguém quando chegou em Nova York? Por que não trouxe nenhuma das suas coisas? Na festa, Johari te perguntou por que o apartamento estava tão vazio, e você a deixou pensar que era porque você é algum tipo de escritora-eremita louca. Mas é porque você quer começar de novo.

Darcy teve que se afastar da intensidade de Imogen, e seus olhos recaíram na fileira perfeita e bem selecionada de livros nas parateleiras. Ali não havia lugar para livros que ela havia sido obrigada a ler para a escola, nem mangás que ela parara de ler no meio. Nas paredes do quarto não havia selfies antigas ou pôsteres de boybands, desvinculadas de destroços da infância. A cada manhã, quando entrava na sala, Darcy inspirava o ar de uma vida feita de suas próprias escolhas, sem sobras nem repasses de ninguém. Nada ali tinha sido ideia de outra pessoa.

O apartamento 4E era uma página em branco.

— Você queria se reescrever.

Darcy ficou olhando para as mãos de Imogen. Elas estavam tremendo, como sempre acontecia quando ela desatava a falar sobre livros e escrita. Era loucura brigar com ela naquele estado. Era como discutir sobre a religião de alguém.

— Tudo bem, já entendi. — Darcy respirou fundo. — Mas você vai me contar um dia?

— Claro. Mas neste exato momento eu preciso que você não saiba, porque você é parte do que está me fazendo.

— Fazendo você o quê?

— Só me fazendo. — O mais leve toque de rubor brincou no rosto de Imogen. — Eu só estou usando este nome há um ano. Ainda sou um trabalho em andamento. Você é parte disso agora. Talvez a maior parte disso.

— Está bem. — Darcy pegou um dos punhos fechados de Imogen e o massageou até que os dedos se abrissem. Aquela havia sido a primeira briga delas, ela concluiu, e agora que havia terminado, algo borbulhante havia restado dentro de Darcy. Alívio pelo fim da discussão, mas também uma fome que a passagem da turbulência havia criado. — Você também é parte do que está me fazendo, Gen.

— Espero que sim — respondeu Imogen, e puxou-a para perto para outro beijo, profundo, lento e ardente. Darcy sentiu algo se acendendo dentro dela, e pela primeira vez desejou que elas não estivessem indo devagar. Mas não queria arriscar outra discussão no mesmo dia, então guardou o pensamento para si mesma.


CAPÍTULO 22

— É só não pensar no muro — repetiu Mindy.

— Sabe, seria mais fácil se você parasse de falar nele.

Mindy fez uma careta.

— Como não falar dele? Você está tentando atravessá-lo.

— Pois é — falei. — E como posso não pensar no muro quando estou tentando atravessá-lo?

Mindy parecia genuinamente confusa, e mais uma vez fui lembrada de que ela só tinha 11 anos. Nunca havia controlado as sutilezas da compreensão humana. Embora, naquele momento, meu foco mental também não era nenhum motivo de orgulho.

Fiquei olhando para a parede coberta de grafite no canto do velho parquinho perto da minha casa. Eu tinha passado a última hora tentando atravessá-la como Mindy, que passava tranquilamente como se por uma porta aberta. Mas tinha apenas conseguido ganhar uma manha roxa no joelho e um mau humor.

— Talvez se você fechasse os olhos? — sugeriu Mindy.

— Já tentei. — Apontei para o meu joelho.

Ela não respondeu; só ficou sentada lá em cima do muro, habilmente conseguindo parecer ao mesmo tempo surpresa e convencida.

Agora que eu tinha passado a última hora tentando fazer aquilo, atravessar paredes não fazia sentido. Se você podia atravessar uma parede, por que não cairia pelo chão sob seus pés, passando pelo lençol freático, a crosta da Terra e por mais alguns milhares de quilômetros de magma até chegar ao centro do planeta?

Mas ali estava Mindy, sentada em cima do mesmo muro pelo qual tinha passado tão tranquilamente um momento antes. Ela parecia tomar decisões inconscientes sobre que objetos eram sólidos e quais não eram — e a palavra-chave ali é “inconsciente.” Cada vez que eu pensava naquilo, acabava dando de cara nas coisas.

E o problema era muito maior do que um machucado no joelho. No outro lado, eu era como um fantasma. Não podia mover as coisas do mundo real, o que significava nada de abrir portas. Atravessar paredes era necessário simplesmente para conseguir andar por aí.

Mesmo se Yama tivesse se oferecido para me ensinar como funcionava o além-mundo, eu queria dominar algumas habilidades sozinha. Sem contar que, se eu queria descobrir mais sobre o homem mau, precisava aprender a fazer isso, senão teria que ficar esperando ele abrir a porta para mim.

— Vamos lá, Lizzie. Você já fez isso. — Mindy estava balançando as pernas, entediada. — Você atravessou a cerca em volta daquela escola assustadora.

— Mas a escola era de antigamente, quando não tinha cerca.

— Então talvez você devesse pensar no passado.

— Tipo, é para eu imaginar dinossauros no parquinho?

— Não tanto tempo atrás, bobinha.

Mindy estava certa — tiranossauros não assombravam ninguém. Fantasmas emergiam das mentes dos vivos, então só coisas em memória viva poderiam existir no outro lado.

Me virei para o muro de novo. Estava coberto de grafite, na maior parte um grande mural sobre um monstro mordendo o próprio rabo, impressionante até nos tons de cinza do outro lado. O monstro não era exatamente um dinossauro, mas me deu uma ideia. Dei um passo à frente e coloquei a palma da mão na parede, tentando imaginar a superfície nova, intocada.

Por um longo momento, nada aconteceu. Mas debaixo da minha mão a textura dos tijolos pareceu mudar, a camada lisa de tinta látex substituída por algo mais áspero. Me afastei.

— Uau! — exclamei.

Pelo contorno da minha mão, vi uma camada mais antiga de pichações, gasta e indefinida pelo tempo. Enquanto eu olhava pelo buraco que tinha feito, o muro inteiro pareceu ferver e se agitar. O monstro desapareceu, substituído por outras imagens — uma pirâmide brilhante, uma cara risonha de palhaço, uma palavra gigantesca, ilegível com suas letras de um metro e meio —, cada uma delas se dissolvendo de cada vez, como se antigas camadas de tinta estivessem sendo descascadas. Em meio às imagens dançavam as assinaturas de centenas de artistas de rua, assinaturas rabiscadas uma em cima da outra, todas retrocedendo no tempo.

Por um breve instante a parede ficou lisa, o cimento ainda úmido e brilhante entre os tijolos. Aí por fim eles desapareceram, e consegui ver o terreno baldio gramado do outro lado.

— Funcionou mesmo — murmurei.

— Não olhe para mim — comentou Mindy.

De relance, ergui os olhos — e lá estava ela, flutuando no espaço. Por um segundo meu cérebro tentou reunir as realidades do passado e do presente, e os tijolos brilharam, quase voltando ao lugar em que estavam, uma miragem incerta da própria existência.

— Eu disse para não olhar para mim!

— Shh. — Tirei Mindy da cabeça e segui em frente.

Por um segundo a parede me empurrou de volta, como uma rajada de vento lutando contra um guarda-chuva, mas por fim eu estava do outro lado.

— Você conseguiu! — gritou Mindy.

Eu me virei para ela com um grito de triunfo nos lábios, mas uma loucura havia irrompido atrás de mim. O parquinho inteiro estava borbulhando em caos. A superfície colorida do chão se agitava, mudando de asfalto para areia, ervas daninhas surgindo por entre as frestas. Vi flashes fantasmagóricos de movimento, ouvi estouros de risadas e gritos de dor. A história do parquinho passou por mim como uma torrente, sons, cheiros e emoções. Ossos quebrados e humilhações de infância crepitavam no ar — tudo ao mesmo tempo, décadas aglutinadas.

Por um segundo senti algo similar à eletricidade de Yama vindo de dentro de mim, como uma pilha ardendo na minha língua, fagulhas dançando na minha pele. Meu coração pulou dentro do peito, e tive que respirar fundo e devagar para me manter no outro lado.

— Você tá bem, Lizzie? Está com uma cara estranha.

— Estou bem. — A visão já estava desaparecendo, o além-mundo voltando à quietude cinzenta usual. Mas as fagulhas ainda estavam lá, como glitter em minhas mãos.

Eu me perguntei se as coisas que tinha visto eram restos reais de uma história escondida. Será que nós, psicopompos, éramos como ladrões de túmulos psíquicos, exumando memórias e dando-lhes forma? Ou aquela visão tinha sido só uma alucinação?

Fazia uma semana que eu não dormia. O velho tinha razão; eu não precisava mais dormir. O sono era só um pedacinho da morte, e eu já tinha comido a minha parte. Mas os sonhos estavam se acumulando, não sonhados, às vezes transbordando para os meus dias. Antigos ciúmes e discussões se escondiam nos cantos e escadas da escola. Eu nunca sabia que barulhos vinham do mundo espiritual e quais eram fruto da minha imaginação.

Por um segundo pensei em ir para casa, deitar e fechar os olhos. Mas ainda estava vibrando com a minha visão, cheia de energia.

E conseguia atravessar paredes agora.

— A gente devia ir a algum lugar, Mindy.

Ela pulou do muro.

— Tipo onde?

— Algum lugar bem longe. Tipo o Chrysler Building!

— Mas aí a gente vai ter que pegar o rio. Me dá medo.

— Não precisa dar medo. Você sempre diz como está entediada. Ia ser tão legal!

Ela balançou a cabeça. Eu suspirei.

— O homem mau ainda está vivo, Mindy. Ele não é um fantasma. Não pode machucar você.

— E daí?

— E daí? Você ficou tão feliz quando te contei isso!

Mindy me deu as costas.

— Fiquei mesmo. Mas talvez fosse melhor se ele tivesse morrido há muito tempo. Porque aí ele já teria desaparecido. — Ela se virou para me olhar, seus olhos cinzentos brilhando. — Ele deve ser bem velho, não é? Viventes morrem o tempo todo.

— Ele também pode durar mais vinte anos.

— Quer dizer que ele talvez ainda esteja fazendo maldades? — perguntou ela baixinho.

Fiquei parada, por um momento sem saber como responder. Mindy tinha morrido 35 anos antes, então o homem mau tinha que ser pelo menos de meia-idade. Mas isso não significava que havia se aposentado de sua carreira como assassino.

— Olha, eu pensei em chamar a polícia. Mas o que eu poderia dizer a eles? Que vi os fantasmas das vítimas dele no jardim?

Mindy ficou olhando para o chão. Ela só tinha 11 anos, não sabia como funcionavam evidências ou causas prováveis. Ela só sabia que estava com medo.

— A polícia também não fez nada na época — falou ela.

— Tenho certeza de que eles tentaram.

Ela ergueu os olhos para mim, a tristeza de sempre aparente em sua expressão. Os ecos do que acontecera 35 anos antes estavam presos dentro dela, tão inescapáveis quanto a morte. A única maneira de Mindy superar seu medo era alguém acabar com o homem mau.

E eu podia atravessar paredes.

O rio Vaitarna estava selvagem e revolto naquela noite, cheio de coisas geladas e úmidas. Mas ele sabia exatamente onde me levar.

Quando meus pés encostaram no chão, baixei o olhar para a rua, querendo evitar ver aquelas cinco garotinhas de pé entre as árvores retorcidas. Mais importante, não queria que elas me vissem, se conectassem a mim. Eu já estava quebrando minha promessa a Yama de não voltar lá.

Aquela não era minha primeira vez usando o rio sem ele ao meu lado. Eu tinha praticado a semana inteira, passeios curtos até a escola em que estudava antes ou ao trabalho da minha mãe. Mas era estranho estar ali, um lugar que tinha me assustado tanto, sem ele.

Andei até a outra esquina e procurei a placa da rua: Hillier Lane. Meu telefone não funcionava no outro lado, mas tirei um pedaço de papel dobrado do bolso de trás. Eu não havia contado a Mindy aonde estava indo, mas ela estava de olho quando imprimi o mapa.

Com os olhos no papel, virei à esquerda, atravessei outro quarteirão e virei à esquerda de novo, mas as ruas não formavam retângulos certos, e os becos nem sempre tinham placas. Fiquei vagando por alguns minutos, meio perdida. Já passava da uma da manhã, e não havia ninguém nas ruas, nem carros...

Só um gato, os olhos verdes me observando do fim da rua.

— É você?

O gato piscou. Eu o vira uma semana antes, quando Yama e eu havíamos pegado o rio pela primeira vez para a antiga casa da minha mãe.

Ele me observou com um interesse vago enquanto eu chegava perto, depois se virou e correu para longe. Segui atrás, tentando manter uma velocidade próxima, mas sem o assustar.

O gato saiu da rua principal e entrou numa ruela, como a que tínhamos atrás de casa em San Diego, porém mais suja. Havia latas de lixo por todo o caminho e algumas cadeiras largadas. A grama dos quintais se espalhava pela rua, alta e sem controle.

O gato por fim se espremeu por uma fresta em uma cerca de madeira, e não pude segui-lo. Mas eu tinha que ficar por perto. Fui andando pelo beco, olhando os dois lados da rua até me deparar com uma casa que parecia familiar. Tinha o mesmo formato pequeno e pontiagudo do bangalô do homem mau, a mesma camada grossa de tapume. Não havia garotinhas fantasmagóricas no quintal, e fiquei feliz com isso.

Parada ali, deixei minha respiração se acalmar. Tinha aprendido naquele dia a atravessar objetos sólidos, então precisava permanecer concentrada. A última coisa que eu queria era ficar presa, em pânico, do lado errado das paredes do homem mau.

Quando passei pela cerca do quintal, os anéis de metal me prenderam por um segundo, me deixando passar então com pequenos estouros como pedras de gelo quebrando. As janelas do homem mau estavam às escuras, e quando subi os degraus que davam na porta dos fundos não ouvi nenhum som vindo lá de dentro.

Eu não tinha um plano, só uma vaga ideia de encontrar algo que contar à polícia. Mas também não tinha desculpas para não tentar. Aqui no outro lado eu era invisível, invulnerável a qualquer coisa que pessoas vivas fizessem.

Respirei fundo mais uma vez e passei pela porta, saindo do luar e entrando na escuridão da casa.

O silêncio lá dentro era total. O ar parecia pesado, o cheiro de ferrugem tão forte que podia sentir o gosto na língua. Caminhei com passos lentos, esticando as mãos no negrume. Foi então que percebi que as janelas eram cobertas de jornal.

— Isso não é nada bizarro — murmurei parada no mesmo lugar, forçando meus olhos a se ajustarem à falta de luz. Só de pensar em tropeçar em algo nas sombras, minha pele ficava toda arrepiada.

O outro lado tinha sua própria luz, cinzenta e suave. Uma área de serviço entrou em foco gradualmente, o tipo de lugar em que você tira os sapatos antes de andar pelo resto da casa. Prateleiras com latas de tinta e ferramentas de jardinagem, alguns sacos de terra empilhados num canto. Outra porta na minha frente. Depois de um suspiro para me acalmar, a atravessei sem problemas.

Ali na cozinha, o luar atravessava as janelas, fazendo o cômodo parecer alegre se comparado ao anterior. A pia estava limpa, uma fileira de copos de vidro brilhando no escorredor de louça. O piso frio parecia ter sido lavado recentemente.

Uma cozinha comum, até onde eu percebia. Exceto pelo freezer, que era grande demais.

Branco e brilhante, do tamanho de um caixão, ele ocupava uma parede inteira. O compressor estalou bem quando eu o observava, fazendo o chão tremer sob meus pés. Seria fácil colocar um adulto ali dentro, e mais ainda uma criança.

Mas meu corpo ainda estava em San Diego, então eu estava presa ali do outro lado, incapaz de abrir uma porta. Tudo que eu conseguia fazer era passar pelas coisas.

Me aproximei e toquei a casca de metal gelada do freezer. O motor tremia sob a minha mão. Fechei os olhos, deixando que eles se ajustassem à escuridão de novo, e contei até cem.

Com os olhos ainda fechados, me inclinei na direção da máquina que zumbia suavemente, me forçando a passar por metal sólido. Ar frio tocou meu nariz, depois se espalhou pelas bochechas e testa, como se eu estivesse enfiando minha cara na água.

A parte mais difícil foi abrir os olhos de novo, sem saber o que encontraria ali, a centímetros de mim. Quando finalmente fiz isso, vi algo na luz cinzenta do outro lado, disforme e sem cor...

Ervilhas. Ervilhas congeladas em um saco.

Também havia potes de sorvete, bifes congelados e várias bolsas térmicas de gel, do tipo que meu pai tinha usado depois de se machucar correndo alguns anos atrás.

O homem mau aparentemente tinha problemas no joelho.

Me ergui de novo e fiquei ali parada, tremendo, naquela cozinha imaculada. O freezer parecia sólido de novo, muito menos ameaçador.

E se aquela nem fosse a casa certa?

Ao lado da cozinha havia uma sala de estar dominada por uma TV imensa. O sofá era velho e com cara de mofado, mas muito arrumado, as almofadas cheias e novas. Nenhuma foto de família, nenhuma cadeira para visitas, só uma bandeja dobrável para comer na frente da TV.

Depois da sala havia um corredor. As tábuas do piso pareciam do tipo que range, mas no outro lado eu era tão leve quanto um fantasma. O corredor passava por um banheiro, um armário de roupas de cama com a porta entreaberta e duas portas fechadas, e por fim para a entrada do bangalô.

Pressionei a orelha contra as duas portas. Nenhum som.

Escolhi uma e atravessei para um escritório ocupado por uma grande escrivaninha de carvalho antiga. Uma fileira de canetas chiques a ocupava, perfeitamente alinhada às beiradas da mesa. A casa inteira era de uma arrumação obsessiva, nada como a câmara de horrores que eu havia imaginado. Nada de correntes e ganchos pendurados no teto, nem uma camada de mofo à vista.

A mesa tinha quatro gavetas, e as prateleiras nos fundos estavam cheias de pastas etiquetadas ordenadamente. Não pareciam conter provas dos assassinatos do homem mau, a não ser que “Impostos Estaduais” tivesse algum significado oculto. De qualquer maneira, eu não tinha como abri-las. Se quisesse fazer isso, teria que voltar ali em carne e osso.

Meu nervosismo estava se transformando em irritação. Que idiota eu tinha sido, achando que ele deixaria qualquer evidência dos seus crimes largada por aí. Aquele homem evitara acusações de assassinato por décadas.

A escrivaninha ficava de frente para as janelas da casa, e vi de relance as árvores retorcidas do jardim. Entre elas estavam as garotinhas fantasmas, me encarando. Meu olhar se desviou e prendi a respiração.

Foi então que vi, em cima da mesa — uma conta de telefone. Olhei para ela com atenção, memorizando o nome e o telefone do homem mau, tentando não pensar nas garotinhas lá fora.

Só havia mais uma porta para verificar. Voltei para o corredor e parei em frente a ela.

Tinha que ser o quarto dele. Dormindo lá dentro estava o homem que matou Mindy e mudou a vida da minha mãe, que era a razão para ela ter sentido tanto medo por cada minuto da minha infância.

Eu tinha voltado a ficar nervosa. Mas pelo menos eu podia finalmente responder à pergunta de Mindy sobre a idade dele, sobre o quão perto da morte ele estava. Fiz a porta se desvanecer e entrei.

Estava mais escuro ali, as cortinas pesadas fechadas. Uma cama grande ficava encaixada entre as janelas, ocupada por uma massa disforme sob lençóis cinzentos. Quando prestei atenção, pude ouvi-lo respirar.

Ele não parecia saudável. Um ronco se escondia dentro do peito, algo líquido agitando-se a cada expiração. Na mesa de cabeceira havia uma fileira de frascos de remédio, alinhados de forma tão organizada quanto o restante das coisas dele.

Me ajoelhei para ler os rótulos: Paradaxa, Marplan, os nomes dados a remédios.

Foi então que eu vi, a centímetros do meu rosto, sua mão esticada de debaixo do lençol, imóvel e pálida. Era manchada e enrugada. A mão de um homem muito velho ou muito doente.

Eu me perguntei o que aconteceria se ele morresse bem naquele momento, enquanto dormia. Será que eu veria seu espírito emergir no outro lado? Para onde eu o guiaria? Afinal, eu era uma ceifadora.

Dei as costas para a mão esticada e me levantei. O armário estava aberto, cheio de camisas penduradas e bem arrumadas, os sapatos alinhados em uma prateleira. Não havia mais nada para verificar naquele quarto. A não ser que ele mantivesse alguma coisa escondida embaixo da cama...

Respirei fundo, devagar e trêmula. A parte de baixo da minha cama sempre tinha sido o lugar mais assustador da casa para mim, mais claustrofóbico do que qualquer armário.

Mas era o último lugar que eu tinha para procurar por provas. Me ajoelhei, apoiando as mãos no chão, e baixei o rosto, tentando não imaginar alguma coisa me olhando de volta em meio às sombras.

No início não vi nada, só tábuas de madeira e sombras cinza-escuro. Nada de poeira, nada de lenços usados. Arrumado como todo o resto. Mas então um brilho em meio à escuridão denunciou algo de metal. O reflexo do luar era curvado como um sorriso.

Fiz força para lembrar que era invisível, invulnerável, que fantasmas tinham medo de mim. Me inclinei em um cotovelo e me estiquei em direção às sombras. Meus dedos tocaram uma superfície de metal, gelada e lisa. Me estiquei mais, até encontrar uma beirada afiada, e a segui até perceber um cilindro de madeira preso ao metal.

Quando percebi o que era o objeto, tirei a mão com pressa.

Uma pá. Ele dormia com uma pá embaixo da cama.

Fiquei ali por um longo momento, tentando lembrar exatamente o que tinha visto no jardim. Cinco garotas e cinco arvorezinhas retorcidas?

Eu me ergui até a beirada da janela e espiei por entre as cortinas. As cinco garotinhas estavam ali no jardim, ao lado de seis árvores. Os números não batiam.

E se a árvore extra fosse para Mindy? Ele a havia enterrado no próprio quintal, segundo a minha mãe. Mas por que ela era especial?

Fiquei olhando pela janela, tentando imaginar o jardim antes daquelas árvores, antes das novas casas construídas do outro lado da rua. E, como tinha acontecido no parquinho, o tempo começou a se agitar e retroceder. O resto da rua era um caos, uma agitação de movimento e construção, pessoas se mudando, mas o jardim do velho quase não havia mudado, a grama pulsando de acordo com as estações. Então de repente uma das árvores desapareceu, junto com seu fantasma, depois outra, e outra, a carreira mortal do velho se revertendo diante dos meus olhos.

Por fim, só uma árvore restara, a que ficava no meio do jardim. Não havia fantasma ao lado dela. As garotinhas haviam todas desaparecido.

Mindy tinha sido a primeira. Porque morava ali perto.

Olhei para o chão, esfregando os olhos, piscando para afastar a visão e tentando não ouvir o zumbido trêmulo da respiração do velho.

Quando abri os olhos e vi através da janela de novo, estava de volta ao presente. Mas as garotas haviam se movido um pouco, como se tivessem sentindo que estava mexendo no passado. A que usava macacão estava olhando diretamente para mim, a cabeça inclinada como a de um cachorrinho.

Eu pensei nos avisos de Yama e me afastei da janela. Ao fazer isso, meu ombro tocou aqueles dedos imóveis esticados para fora da cama. A mais leve das faíscas passou entre nós dois, como quando minha bochecha tocara o rosto do agente Reyes.

O assobio da respiração do velho falhou por um segundo, e um tremor correu pelos lençóis cinzentos. Congelei, observando-o, meu coração disparado no peito. Mesmo invisível, eu sentia como se qualquer movimento pudesse acordá-lo. Estava com medo até de respirar.

Talvez fossem as garotinhas lá fora atrapalhando o sono dele. Elas estavam ali por causa das suas lembranças, afinal. E se a conexão fosse de mão dupla?

Quase olhei de novo pela janela, para ver o que elas estavam fazendo. Mas e se elas tivessem se aproximado e estivessem espiando pelas cortinas todos os meus movimentos?

Recuei pelo chão, para longe da janela e da cama do homem mau. Fiquei de pé e caminhei até a porta, precisando sair daquela casa imediatamente.

Mas a porta parecia sólida. Estiquei a mão, fazendo força para que ela desaparecesse...

Meu dedo tocou a madeira. Senti a textura dos vãos sob a tinta antiga.

— Não — sussurrei. — Sai daqui, sua porta idiota.

Ela ainda estava ali. Meu pânico, que crescia lentamente, havia atingido um ponto crítico.

Me afastei da porta, tentando acalmar meus batimentos cardíacos acelerados. Se eu tentasse atravessá-la e falhasse de novo, poderia levar a noite toda para voltar a me concentrar. Então sentei no chão com as pernas cruzadas, tentando me distrair com todas as informações que havia conseguido naquela noite.

Eu tinha o nome e o telefone do homem mau. Mais importante, tinha descoberto a pá escondida embaixo da cama, e a escrivaninha do outro quarto, com sua vista perfeita para as arvorezinhas retorcidas, e as ferramentas de jardinagem nos fundos...

Talvez o homem mau não tivesse sido tão cuidadoso, afinal. Talvez houvesse evidências para contar sobre o caso ao meu amigo do FBI, algo enterrado bem no jardim. Sentada ali, respirando fundo, senti o cheiro de ferrugem da morte enchendo meus pulmões. Como eu não tinha percebido isso antes? Dava para sentir o cheiro do que ele havia feito.

Então percebi que o quarto estava completamente em silêncio. O homem mau não estava mais roncando.

Olhei para a cama.

Ele estava acordado, a cabeça erguida acima dos lençóis. Era quase careca, só um halo de cabelo branco brilhando na luz dos postes. Com uma das mãos ele afastou as cortinas e olhou para as árvores retorcidas lá fora.

Talvez ele não pudesse ver as garotinhas, mas e se conseguisse senti-las lá fora, olhando para ele, sobrevivendo às custas de suas memórias? Precisando dele.

E se aqueles momentos no meio da noite o fizessem feliz?

— Foda-se isso — falei. Isso era mais do que eu podia aguentar. Mais do que podia aceitar. Não só por Mindy: isso era uma questão minha agora.

Me levantei e saí, minha raiva atravessando a porta como um lenço de papel, as paredes e os móveis se desfazendo diante de mim. Cortei meu caminho por aquela casa como uma faca bem afiada e estava no quintal em menos de dez segundos.

No momento em que meus pés deixaram o terreno do homem mau, me deixei afundar pela terra, saindo do outro lado e mergulhando no rio Vaitarna. A corrente estava selvagem e furiosa, tão raivosa quanto eu. Fluía tão rápido que os fragmentos de memórias perdidas não passavam de salpicos gelados na minha pele.

Assim que eu descobrisse como, ia dar à polícia evidências suficientes para pegar o homem mau. E se isso não fosse possível, faria Yama me ajudar, quisesse ele ou não. E se isso não funcionasse, eu ia acabar com o homem mau eu mesma, e então fazer sua alma em pedaços.


CAPÍTULO 23

Darcy e Imogen consumiram a cidade.

Elas esperaram para comer macarrão depois de terminarem a cota de palavras do dia, porque um blog de comida alegava que noodles eram mais gostosos depois de meia-noite. (Era verdade.) Em um restaurante de comida sulista perto do apartamento de Imogen, elas se afundaram em ceviche marinado com limão e suco de toranja. Comparavam iguarias desconhecidas embrulhadas em folhas de lótus, e comiam o que houvesse dentro, sem dar para trás. Uma vez, elas esperaram uma hora por uns milk-shakes metidos a besta, porque o calor mormacento da noite pedia por eles.

Na maior parte dos dias, elas deixavam o orçamento de Nisha gloriosamente destroçado.

Quando Darcy estava se sentindo mais sensata, elas iam a galerias de arte. Imogen tinha trabalhado em uma no primeiro ano que passara em Nova York, e conhecia os artistas, as galerias e, melhor de tudo, as fofocas.

Mas era o escrever juntas que Darcy mais amava. Era mais difícil do que qualquer outra coisa que ela já tinha feito, enfrentar aquelas frases escritas quando ela ainda era uma estudante de colégio. Elas pareciam carregar tudo que ela não sabia na época, vergonhosas como antigas fotos dela no primário.

Ainda assim havia algo simples e tranquilo em escrever com Imogen — algo certo, como chegar em casa. Na maior parte do tempo ficavam na sala, cercadas por janelas com vista para os telhados recortados de Chinatown, mas também nos confins familiares do futon de Darcy, ou no quarto de Imogen, com suas colegas de quarto do outro lado das paredes finas. Não importava onde, na verdade. O que importava era a conexão, o espaço formado entre as duas, uma fatia do universo transformada em algo particular e inviolável.

Dividir o ato de escrever o transformava em algo novo, a diferença entre a realidade e um cartão-postal, entre fones de ouvido baratos e um show ao vivo com uma plateia lotada, entre um dia nublado e um eclipse total.

Imogen havia mudado tudo.

— Como é aquela coisa... — As palavras de Darcy começaram como um murmúrio, depois sumiram.

— Preciso de mais informações. — Imogen não ergueu os olhos da sua tela, os dedos ainda digitando.

— Quando os reféns se apaixonam. Pelos caras maus.

— Síndrome de alguma coisa. Algum lugar.

— Estocolmo! — gritou Darcy, tão triunfante quando um gato que cospe uma pena.

Revisões podem ser muito demoradas e filosóficas, às vezes uma única frase necessita de reflexões fundamentais sobre o que as histórias devem fazer. Em outros momentos é mais como completar uma cruzadinha, as letras certas na ordem certa, se encaixando.

— Isso. — Imogen ainda estava digitando. Ela nunca parecia parar, mesmo nos dias em que dizia só ter escrito meia dúzia de frases decentes. Cada pensamento fluía direto do cérebro para a tela, mesmo que fosse só para ser excluído um momento depois. A tecla de “delete” no teclado de Imogen estava desbotada, apagada no meio como as escadas de um monastério.

Darcy, por outro lado, preferia encarar a tela em vez de preenchê-la. Ela pensava nas frases primeiro, depois as murmurava e interpretava antes de se comprometer com palavras escritas. Suas mãos atuavam os gestos das conversas, suas expressões imitando as emoções dos personagens. Ela fechava os olhos quando o teatro em sua mente estava cheio de personagens e cenários, ou quando estava simplesmente procurando uma palavra em especial.

— O sol está nascendo — falou Imogen e fechou o laptop.

Darcy continuou digitando, querendo terminar o capítulo que apresentava a melhor amiga de Lizzie, Jamie. Nan havia pedido por mais cenas com ela, para dar à personagem principal mais a que se agarrar no mundo real. Mas o cérebro de Darcy estava cansado e seu olhar se perdeu na direção das janelas.

Lá embaixo na rua, entregadores descarregavam peixes frescos em caixas de isopor vindos de um caminhão barulhento, enquanto o nascer do sol despontava no céu. Fazendo jus à sua palavra, Imogen nunca escrevia enquanto o sol estava brilhando, o que havia colocado o relógio biológico de Darcy de ponta-cabeça. Ela ainda se impressionava muito com o espetáculo do nascer do sol, como a rapidez do toque de rosa no céu despertava as ruas de Chinatown para o trabalho.

Imogen estava fazendo chá. Aquilo era um ritual, três semanas escrevendo juntas, comendo juntas, tudo juntas. Darcy já deveria ter fechado seu laptop a essa altura, ou finalmente escrito um post para o seu árido e empoeirado Tumblr, mas outro ritual havia se estabelecido naqueles poucos minutos enquanto Imogen estava na cozinha.

Darcy abriu uma aba e digitou: mudou seu nome para Imogen Gray. A frase era tão simples e óbvia, mas ela nunca havia tentado.

Não havia resultados exatos, só algumas páginas sobre Piromante, a menos de dois meses do lançamento.

— Bosta — sussurrou Darcy, diminuindo sua decepção ao olhar as imagens que a busca havia encontrado. Algumas fotos diferentes apareceram, de uma sessão de leitura em Boston no ano anterior, quando Imogen estava com o cabelo mais comprido.

Quando a chaleira começou a cantar, Darcy fechou a janela e apagou o histórico. Ela nunca tinha prometido não procurar na internet pelo antigo nome de Imogen, mas ainda assim se sentia culpada.

Só era muito estranho não saber o nome da sua namorada.

Em alguns dias Darcy sentia como se não soubesse de nada: nem se era uma escritora de verdade, ou uma boa hindu, ou mesmo se ainda era virgem. Irritantemente, Sagan tinha razão: a internet tinha mais perguntas que respostas. Virgindade significava uma noite juntas, dedos, línguas, ou algo intangível? Ou “virgem” era uma palavra de uma língua morta, cujas categorias já não faziam mais sentido, como algum filósofo antigo, trazido de volta à vida, perguntado se elétrons são terra, água, ar ou fogo?

A hipótese de Darcy era mais simples: o mundo real funcionava de forma diferente das histórias. Em um livro você sempre sabia o momento em que algo Acontecia, em que alguém Mudava. Mas a vida real era cheia de transformações graduais, contínuas, fragmentadas. Era cheia de acidentes e indefiníveis, e de coisas que simplesmente aconteciam sozinhas. A única certeza era “É complicado”, independente se unicórnios toleravam o seu toque ou não.

Horas depois, no início da tarde, Darcy acordou.

Ainda era uma surpresa, às vezes, encontrar Imogen ao seu lado, e ela ficou observando a namorada, percebendo novos detalhes. Dois redemoinhos nos cabelos bagunçados se cruzavam, como espadas em um duelo. As marcas brancas deixadas pelos anéis, ficando cada vez mais pronunciadas conforme o verão bronzeava suas mãos. As sardas surgindo nos ombros de Imogen agora que estava quente o bastante para camisas sem manga.

Talvez fosse certeza o bastante, saber essas coisas.

Darcy pegou o celular e viu o e-mail.

— Ei, Gen — falou um segundo depois, empurrando e cutucando. — Kiralee quer jantar com a gente. Hoje!

A resposta foi grudenta de sono.

— Ia acontecer mais cedo ou mais tarde.

— O que você... — começou Darcy, mas então entendeu: — Ela leu meu livro.

Imogen rolou para o lado, alongando o pulso do mouse como fazia toda manhã.

— Ela te contou alguma coisa? — perguntou Darcy. — Ela gostou?

Tudo que ela conseguiu em resposta foi um dar de ombros e um bocejo, mesmo que outras mil perguntas estivessem brotando em sua mente. Quão brutais eram as críticas de Kiralee? Por que ela havia demorado quase um mês inteiro para ler Além-mundos? Será que ela sabia que Darcy já estava revisando o livro, que capítulos inteiros tinham sido substituídos? Era um bom sinal que elas tivessem sido convidadas para jantar?

Mas Darcy sabia que todas essas perguntas soavam desesperadas, então contentou-se a fazer só a mais importante:

— Você acha que ela vai começar com elogios?

Imogen resmungou e rolou para longe, colocando o travesseiro de Darcy em cima da cabeça.

Kiralee as havia convocado até o Brooklyn, para um restaurante chamado Torrada Artesanal. As paredes eram cobertas de pinturas de torradas, fotografias de torradas, e um mosaico gigantesco de Jesus feito de torradas de verdade. Os fósforos que Imogen tinha pegado na entrada tinham fotos de torradas neles.

Depois de alguns minutos lendo o menu, Darcy franziu a testa.

— Espera. Eles não servem torrada aqui?

— Cara — falou Imogen. — Esse é o menu do jantar, não do café da manhã.

Kiralee assentiu.

— Eles não são fanáticos. Onde você acha que estamos, em Williamsburg?

Darcy balançou a cabeça, porque não era nisso que ela estava pensando. Em grande parte ela só estava nervosa com o que Kiralee tinha achado do livro, e se perguntando se conseguiria comer qualquer coisa. Uma torrada parecia uma boa ideia.

Os garçons chegaram e transformaram a mesa em segundos — sousplats de cobre foram retirados, os talheres foram arrumados, os guardanapos desdobrados e pousados nos colos. Tudo parecia muito bem arrumado e eficiente, tão intimidante quanto esperar o começo das críticas.

Mas foi para Imogen que Kiralee fez a primeira pergunta.

— Como estão as revisões de Ailuromante?

— No clima de faxina geral. — O olhar dela passeou pelo restaurante, sem rumo e infeliz. — Já esvaziei todos os armários e está tudo no chão. Os tapetes estão pendurados, prontos para serem batidos. Em outras palavras, uma zona.

Kiralee deu tapinhas na mão dela.

— As coisas têm que piorar antes de melhorar. E esse título horrível?

— A Paradox voltou a querer o sufixo –mante para os três livros, mas eles odeiam tudo menos Gatomante. Que eu odeio.

— Tem felidomancia — comentou Darcy. — Que também significa gatos.

— Mas não é muito melhor, é? — retrucou Kiralee. — Tenho certeza de que você vai pensar em algo, querida. Só continue ponderando e a fada dos títulos virá um dia. Já começou o livro três?

Imogen deu de ombros.

— Nenhuma página ainda.

— Ideias? Conceitos? Sinais?

— Bem, eu pensei em uma coisa... fobomancia.

— Fobo, como em medo? — Kiralee se inclinou na cadeira e deu uma longa e silenciosa olhada no Jesus de torradas. Por fim ela sorriu. — Dá para fazer uma magia bacana com medo. E é fácil de se identificar. Todo mundo tem uma ou outra fobia.

Darcy assentiu, um pouco surpresa, um pouco confusa.

Imogen se inclinou para a frente, gesticulando loucamente enquanto falava.

— O início é bem simples. A protagonista começa com várias fobias horríveis: multidões, bonecas, aranhas, e espaços apertados. Então um dia ela fica presa em um armário e precisa enfrentar a claustrofobia de frente. Passar por isso é o que lhe dá a chave para derrotar as outras fobias, uma a uma. E conforme ela faz isso, vai ganhando seus poderes mágicos. No início ela só consegue ver as fobias dos outros, como auras ou alguma coisa assim.

— Mas logo ela consegue controlá-las. — Os olhos de Kiralee estavam brilhando. — Pode ser matador.

— Incrível mesmo — comentou Darcy. — E tão bem pensado.

As últimas palavras saíram mais afiadas do que ela havia planejado, e Imogen se virou com um olhar de desculpas.

— É. Já estou pensando nisso faz um tempo.

Darcy olhou para a mesa, surpresa com a dor aguda na boca do estômago. Primeiro ela havia passado a tarde toda nervosa com o jantar, e agora isso.

— É uma ótima ideia, Gen.

E era mesmo. Mas naquelas três semanas de escrita juntas, Darcy havia compartilhado cada decisão, cada preocupação, cada inspiração de Além-mundos com Gen, que por outro lado também havia dividido os detalhes da sua revisão. Mas Darcy não tinha ouvido uma palavra sobre fobomancia.

A opinião de Kiralee Taylor era mais importante do que a dela, é claro, porque Kiralee tinha escrito meia dúzia de livros praticamente perfeitos. Mas por que Imogen havia mantido a ideia em segredo até agora?

Darcy sentiu sua mão sendo apertada por baixo da mesa.

— Algumas coisas precisam ficar cozinhando aqui dentro por um tempo — sussurrou Imogen. — Eu nem percebo que ainda não falei com ninguém sobre elas até elas surgirem.

— Claro. — Darcy se esforçou para afastar o ciúme. Kiralee devia estar pensando que ela era ridícula. — Você deveria conversar com a minha irmã mais nova. A Nisha tem umas fobias excelentes.

— Como quais? — perguntou Kiralee animadamente.

— Ela tem medo de patins de gelo. Passas em biscoitos. Baterias de carro. Ela diz que não é certo baterias serem quadradas em vez de redondas, como pilhas.

— Uau — soltou Imogen, tirando o celular para anotar.

— Isso poderia ser o início de uma trilogia nova — Kiralee comentou. — Com fobias em vez de mancias.

— Não me tente. — Imogen ainda estava digitando, os anéis de metal brilhando.

— Nisha também tem medo de cachorros de roupinhas — continuou Darcy. — E meias. Não cachorros de meias, qualquer meia. — Ela sorriu, feliz por estar contribuindo para aquela ideia perfeita. Mesmo em meio ao ciúme, tinha algo de excitante, quase sensual, em ter ouvido aquilo direto dos lábios de Imogen.

Pelo menos as outras duas estavam fingindo que o chilique dela não tinha acontecido.

— Você poderia unir as duas trilogias com um livro chamado Mancifobia — falou Kiralee.

— Eu sei que você só está tentando me sacanear, mas isso na verdade não é horrível. — Imogen guardou o celular ergueu o copo d’água. — A Fobomancia!

Darcy seguiu o exemplo, mas Kiralee balançou a cabeça.

— Brindar com água dá azar, minhas queridas. Esperemos pelo vinho.

Quando elas obedientemente baixaram os copos, Imogen reclamou:

— Falando de fobias...

— Superstições são uma trilogia totalmente diferente, querida. — Kiralee abriu o menu. — Agora, vamos dividir os pratos? Eu peço, pode ser?

Depois que os garçons tinham retirado os aperitivos (bolinhos de risoto de percas com cebola roxa em conserva), Kiralee começou do nada:

— Fiquei intrigada pela Anna.

Darcy levou um minuto para perceber que a tão aguardada crítica de Além-mundos tinha começado, e sua voz tremeu um pouco ao perguntar:

— A mãe da Lizzie?

Kiralee assentiu.

— Adorei que ela não tenha contado a Lizzie sobre sua amiga de infância assassinada. Que ela tenha guardado um corpo no armário, literalmente.

— Não literalmente — reclamou Imogen. — A Mindy era um fantasma, não um corpo.

— Mas estava no armário, literalmente. E ela tinha um corpo, mesmo que fosse translúcido. — Kiralee se virou de novo para Darcy. — Mindy é uma ótima adição. Gostei que Lizzie não simplesmente descobre que existem fantasmas no mundo, e sim que existem fantasmas na casa dela. Ou melhor, na casa da mãe dela, o que é mais interessante. Muito boa ideia.

— Obrigada — disse Darcy, feliz por Kiralee ter começado com elogios. — Na verdade, foi daí que tive a ideia.

— Como assim?

— Da minha mãe. Quando ela era criança, a melhor amiga dela foi morta. Mas ela nunca me contou. — Darcy se lembrou das reflexões desvairadas do último mês de outubro, que agora parecia ter acontecido séculos atrás. — Descobri por acidente, jogando o sobrenome da minha mãe no Google aleatoriamente. O caso foi muito importante em Gujarat.

Kirelee girou a taça, observando o vinho de perto.

— E sua mãe explicou por que nunca te contou sobre a amiga?

— Eu nunca perguntei. Era estranho demais. Mas fiquei pensando em Rajani, a amiga. Será que minha mãe se lembrava dela? Porque, se ela estivesse assombrando a minha mãe, também estaria assombrando Nisha e eu. Isso me fez pensar em como seria um mundo com fantasmas, e o restante de Além-mundos surgiu a partir daí.

Darcy parou, percebendo que nunca tinha dito tudo isso em voz alta antes. Sempre tivera medo de perturbar a semente que dera início a tudo.

Com uma olhada para Imogen, falou:

— Desculpa por nunca ter te contado isso. Eu nunca contei para ninguém além da Nisha.

Imogen sorriu.

— Como eu disse, algumas ideias precisam ficar dentro da gente.

— O que a sua mãe achou depois de ler Além-mundos? — perguntou Kiralee.

— Meus pais ainda não leram. — Darcy olhou para as próprias mãos, entrelaçadas em cima da mesa como as de uma criancinha. — Pedi para eles esperarem até o livro estar publicado de verdade, com uma capa e tudo.

— Talvez seja melhor. Talvez você precise continuar assombrada até terminar sua história com esse universo.

Darcy ergueu os olhos para ela.

— Assombrada?

— O fato de sua mãe nunca ter te contado sobre a amiga é o que manteve o fantasma dela vivo. Quando você conversar sobre isso com a sua mãe, vai resolver essa questão entre vocês. Então não faça isso ainda: permaneça assombrada até ter terminado de escrever sobre Mindy.

Kiralee disse essas palavras com uma seriedade que fez correr um arrepio frio pelas costas de Darcy.

O que era estranho. Desde criança, Darcy nunca tinha acreditado em fantasmas ou monstros. Seu pai, um clássico engenheiro, sempre tinha sido muito claro sobre a diferença entre a realidade e a imaginação. O que Darcy gostava em fantasmas, vampiros e lobisomens eram as regras e tradições: pontos frios, água benta e balas de prata. Era simplesmente bobo pensar que poderiam existir.

— Eu não penso em Rajani assim. Eu nem sou supersticiosa. Faço brindes com água o tempo todo!

Kiralee sorriu.

— Não estou falando de superstição. Estou falando de personagens. Como eles morrem um pouco quando você chega à última página. Tente manter Mindy fora das mãos da sua mãe até terminar de escrever sobre ela. Você vendeu dois livros, certo?

Darcy assentiu, embora não tivesse começado o Patel Nº2, e não tivesse ideia de quando terminaria. O contrato dizia que tinha mais um ano para entregar a primeira versão do livro, o que parecia ao mesmo tempo pouco tempo e tempo demais. O contrato não previa um terceiro livro, mas muitas séries de fantasia eram como fantasmas, sacudindo correntes para sempre, sem jamais desaparecer.

— Não posso impedir minha mãe de ler Além-mundos depois que ele sair. Quer dizer, todas as amigas dela vão ler.

— Meu pai ainda não leu Piromante — comentou Imogen. — Ele não é muito de ler.

Darcy assentiu. Seu pai também era assim, preferia antigos manuais de aviação, mas livros eram a paixão de Annika Patel. Ela devorava romances literários premiados, best-sellers bobos, algumas séries de YA de quais Nisha e Darcy gostavam, e além de tudo ainda relia a cada dois anos a obra completa de Jane Austen. Conseguir que ela prometesse não ler Além-mundos antes da publicação tinha sido quase tão difícil quanto convencê-la a deixar que Darcy fosse para Nova York.

— Vai ser estranho quando ela ler — falou Darcy. — Mas seria ainda pior se não lesse.

— Toda publicação é assim — comentou Kiralee. — Ao mesmo tempo aterradora e necessária. Contanto que Rajani permaneça com você.

O arrepio veio de novo, ouvindo Kiralee dizer o nome da garotinha assassinada. Darcy nunca havia falado sobre aquilo em voz alta antes daquela noite. Rajani sempre tinha sido mais um conceito do que uma pessoa, mas agora sua presença pairava no ar da mesa, como alguém que tivesse partido e deixado uma cadeira vazia.

Um momento depois, porém, três garçons surgiram com os paratos principais, destruindo o feitiço e deixando apenas rastros para trás.

Kiralee continuou dissecando os capítulos iniciais do livro, apontando os mesmos problemas que Nan Eliot havia indicado. Com a ajuda de Imogen, Darcy explicou as mudanças que estava fazendo, e Kiralee pareceu aprovar.

Mas então ela falou:

— Quantos anos tem o seu agente Reyes? Agentes do FBI precisam ter pelo menos 23, pelo que parece.

— Ah, eu não sabia disso.

— O seu Google está quebrado? — brigou Kiralee. — O site deles tem um checklist para contratação. Você também precisa diferenciar melhor o velho do casaco remendado e o homem mau. Porque o homem mau é bem velho, e o velho é definitivamente mau.

— Mas um é um serial killer humano normal — retrucou Darcy. — E o outro tem poderes de psicopompo. Como alguém poderia se confundir?

— Serial killers são os deuses da morte do mundo moderno — explicou Kiralee. — É por isso que eles sempre têm superpoderes. Talvez você devesse dar um nome a um dos seus velhos maus.

— Eu tenho um nome para o homem do casaco remendado — falou Darcy. — Mas é meio óbvio, então não usei.

Kiralee ergueu a taça.

— Ninguém jamais morreu de fome por ser óbvio demais.

Imogen também ergueu sua taça, e Darcy fez brinde com elas. Sua ansiedade estava gradualmente se transformando em contentamento, um pouco alta como vinho tinto. Talvez Kiralee não fosse tão assustadora quanto fingia ser.

Então Darcy levantou a questão que mais temia:

— Estou trabalhando naquela história da religião, tentando fazer Yamaraj ficar mais sério. Menos Disney.

Kiralee não pareceu entender.

— Na noite de drinques. Você disse que eu estava usando o deus de alguém para criar um galã YA.

— Ah. Acho que a palavra chave aí é “drinques”. Desculpe por ter lhe atacado dessa forma. Às vezes acontece quando bebo um pouco. — Kiralee abriu um sorriso de desculpas. — Você não precisa da permissão de uma branquela para adaptar sua própria cultura.

— Mas e se não for minha? — Darcy ficou olhando o próprio prato. — Eu como carne. Não rezo. Parece estranho, apagar um deus e usá-lo como mortal.

— Talvez seja. — Kiralee considerou aquilo por um momento tocando a testa com os dois dedos, por um segundo parecendo sua antiga foto. — Mas falando como uma ateia, criada católica, que só consegue apoio nas histórias do povo Wemba-Wemba, como eu saberia?

Darcy suspirou.

— Então vou ter que descobrir sozinha.

— Escreva com o máximo de respeito que puder, então publique. Você descobre seus erros enviando seus livros para o mundo.

— Mas as pessoas podem gritar comigo!

— Sim, é um pouco como aprender francês. Quando abre a boca, se arrisca a parecer um idiota. Mas se não correr esse risco, nunca vai falar nada.

— É — comentou Imogen. — Mas gramática errada não ofende a religião de ninguém.

— Você já ouviu falar dos franceses? — perguntou Kiralee.

Darcy se recostou na cadeira, deixando as duas discutirem. Tinha sido bobeira, é claro, pedir absolvição de Kiralee. Ela encontraria suas respostas nas palavras que escrevesse, nas histórias que contasse, não através da permissão.

— O que mais Nan sugeriu? — perguntou Kiralee quando voltaram a comer. — Nada catastrófico, espero.

Darcy trocou um longo olhar com Imogen, e as duas ficaram em silêncio.

— Minha nossa. O que foi?

Quando Darcy ainda assim não respondeu, Imogen falou:

— Nan quer mudar o final. Menos trágico. Mais vendável.

— Ah. — Kiralee olhou para Darcy com uma cara de pena infinita. — Complicado.

— Nem me fale.

— Eu sempre vejo essas situações da seguinte maneira: você tem que encontrar um final em que acredite, e ao mesmo tempo agradar à editora. Não é uma crise moral, é uma questão de escrita. Tenho fé que você vá encontrar uma resposta.

— Obrigada. — Darcy tentou sorrir. — Mas Além-mundos não vai ficar uma droga com um final feliz? Com qualquer final feliz?

— Duvido muito. Devem existir dezenas de finais felizes perfeitos que você poderia escrever. E milhares de finais meio felizes, meio tristes. E pelo menos um milhão de finais que são gloriosamente trágicos. Infelizmente, você só pode escolher um.

Darcy olhou para Kiralee. Tinha esperado revolta, ou pelo menos indignação. Mas ela estava sorrindo, como se tudo aquilo fosse algum exercício de criação ou, pior, algum tipo de experiência de aprendizado.

Mas era o primeiro livro de Darcy, que por um ano inteiro seria o único livro com seu nome. E ele sempre tivera aquele final na cabeça dela.

— Pareço ter paralisado você, senhorita Patel.

— Não, é só que... — começou Darcy, depois se controlou respirando fundo. — Você não acha que o final é bom?

— É ótimo. Mas existem outros bons finais por aí, alguns não tão trágicos. Talvez você possa encontrar um.

— Mas você não acha que é irritante eu ter que mudar o final?

— Você acha irritante sua editora querer vender toneladas do seu livro?

Darcy abriu a boca, mas nada saiu. Agora sim estava paralisada.

— É incrível que eles queiram que Além-mundos venda — se meteu Imogen. — Mas não é nada incrível que as pessoas só gostem de finais felizes.

— Não é verdade. — O olhar de Kiralee não deixou Darcy. — Romeu e Julieta foi um bocado popular. Mas talvez matar Yamaraj limite o futuro da sua história.

Darcy ficou olhando para ela, examinando sua expressão. Isso era algum tipo de teste? Ela precisava se provar, não só por enfrentar a Paradox, mas Kiralee Taylor, autora de Bunyip, também?

— Mas sempre foi para Yamaraj morrer. Ele tem que morrer. Meu livro é sobre morte!

— E mortes são sempre trágicas?

— Quando tem terroristas envolvidos? Basicamente.

— Justo. Mas a arte pode misturar emoções assim como destilá-las.

Darcy olhou para Imogen, pedindo socorro.

— Peraí. Você não está dizendo que Darcy tem que fazer o final feliz, e sim que ela tem que fazer a editora feliz. Certo?

— Exatamente. — Kiralee estava olhando para o Jesus de torradas. — A história é sua, Darcy. O que significa que você pode mudar tudo nela, especialmente as partes que são mais preciosas para você.

— Mate seus amados — murmurou Imogen.

— Exatamente — concordou Kiralee. — Agora, vamos para a sobremesa, amadas?

— Ela foi mais legal do que imaginei — comentou Darcy quando ela e Imogen voltavam para Manhattan em um vagão quase vazio do metrô.

Imogen agigantava-se sobre ela, segurando-se na barra de metal horizontal e balançando com o movimento do trem.

— Você achou que ela seria má?

— Com certeza. Na primeira vez que ouviu falar do meu livro, ela começou a zoar romances sobrenaturais.

— Ela foi bem dura hoje. Você só está mais resistente.

— Estou?

Imogen riu.

— Imagina se ela tivesse lido o seu livro lá no início e dito na sua cara que metade do livro era só narração?

— Não metade, só aqueles dois capítulos. Mas sim, eu teria enlouquecido.

— Você teria morrido na hora, depois explodido em chamas. — Imogen chegou mais perto, encostando os joelhos nos dela. — Mas agora você é uma veterana casca-grossa. “Pode pular os elogios e mandar a real” é o seu lema.

— Engraçadinha. Você acha que ela me odeia e estava só sendo legal?

— Kiralee nunca é legal quando odeia alguém. — Imogen encarou a janela por cima da cabeça de Darcy. As paredes do túnel tinham luzes de emergência ligadas, que piscavam conforme o trem passava. — Talvez ela estivesse pensando na própria carreira, e se perguntando se mais alguns finais felizes teriam sido uma boa ideia.

— Verdade. Eu vivo esquecendo que ela não vende muito. Quer dizer, se ela não conseguiu, eu estou ferrada.

Darcy se perguntou o que Kiralee deve ter pensado, lendo no Publisher’s Brunch que uma adolescente qualquer estava ganhando tanto dinheiro. Uma zé-ninguém que tivera a pachorra de ir até o Brooklyn para pedir conselhos e indicações. E, no fim do jantar, Kiralee tinha até pago a conta!

— Ela nunca vai escrever um elogio de capa para mim, né?

— Kiralee não pensa desse jeito. Se ela gostar do que você está fazendo com a revisão, vai escrever um elogio.

— Sério? Mesmo eu sendo ridiculamente superestimada?

Imogen deu de ombros.

— Ela já viu meninas novas como nós irem e virem. A maioria das carreiras não dura tanto quanto a dela.

— Essa é a minha conversa preferida de todos os tempos.

— Ei, a noite foi ótima! — Imogen se jogou no assento ao lado e abraçou Darcy. — Kiralee Taylor gostou o suficiente do seu livro para conversar sobre ele, pessoalmente, em um jantar! Pode esfregar isso na cara da você de três meses atrás.

— Mas toda vez que eu perguntei a ela o que fazer, ela disse que isso dependia de mim.

— Então ela acha que você consegue se virar, que tristeza.

Darcy suspirou. Talvez aquilo fosse mesmo um elogio, ouvir que era capaz de descobrir as respostas sozinha. Mas parte de Darcy — talvez até a maior parte dela — queria que Kiralee simplesmente tivesse dito como consertar tudo.

— Você acha mesmo que o livro ainda faz sentido se Yamaraj não morrer?

— Se você fizer com que tenha sentido, claro. Veja o que acontece quando escrever. Talvez ele tenha que morrer de qualquer forma.

Darcy assentiu. Por enquanto, era suficiente. Ainda havia muitas horas de escuridão para escrever, e dois meses para desmontar Além-mundos e montar de novo. E, além do mais, ainda faltava um ano para entregar a primeira versão da continuação. O mercado editorial talvez se movesse devagar, mas de certa forma seu passo constante era reconfortante. Havia tempo para achar o final certo, feliz ou não.


CAPÍTULO 24

Algumas noites depois, liguei para o agente especial Reyes. Era meio tarde, mas ele não parecia com sono, só meio surpreso, quando perguntei:

— E se eu conhecesse alguém que cometeu um crime?

— Depende de que tipo. — Ele hesitou um segundo. — E do quanto você conhece a pessoa.

— Do quanto eu conheço a pessoa?

— Você vai entregar a sua melhor amiga menor de idade por beber? Talvez uma boa conversa resolva.

Eu ri.

— A Jamie não bebe, e estou falando de um estranho. E digamos que fosse um crime sério, como, tipo, assassinato. Como eu poderia fazer o FBI investigar isso?

— Ah. — Ele pareceu aliviado, agora certo de que se tratava de uma hipótese. — Você começaria com a polícia local. O FBI lida com crimes federais.

— Assassinato não é crime federal?

— Normalmente não. Talvez se a vítima for um oficial do governo federal.

— Certo. Mas nos filmes vocês estão sempre procurando serial killers.

— Estamos mesmo. — Achei ter ouvido um suspiro entre as palavras. — Do que estamos falando, exatamente?

Olhei para a minha cama, coberta com artigos impressos da minha pesquisa sobre o homem mau. Uma lista de garotinhas que tinham desaparecido durante viagens em família, pesquisa sobre os hábitos dos psicopatas, crimes não resolvidos em Palo Alto. Basicamente, um monte de nada.

Saber o nome do homem mau não tinha me ajudado muito. Ele não estava em nenhuma matéria da imprensa, e procurar na internet só havia me mostrado uma centena de outros homens com o mesmo nome, todos da idade ou no lugar errados. Era como se ele mal existisse, ou talvez seu pequeno bangalô não tivesse acesso à internet.

Tudo o que eu tinha na verdade era o nome e o número de telefone dele, e minha própria raiva, que parecia diminuir a cada dia. Então falei para o agente Reyes o mesmo que dissera à minha mãe:

— É para... um trabalho do colégio.

— Você está no último ano do ensino médio, srta. Scofield. Seus trabalhos não deveriam ser um pouco mais... específicos?

— Isso. Estou chegando na parte específica. — Tentei organizar meus pensamentos, mas havia mais de uma semana desde que eu tinha dormido pela última vez. Meu corpo parecia não querer mais dormir, mas minha mente precisava de sono. — Tipo, quantas vítimas é preciso ter para ser considerado um serial killer? Tem alguma regra do FBI sobre isso?

— Sempre existem regras, Srta. Scofield. São preciso três mortes, pelo menos uma em solo americano, para contar como assassinato em série.

— Três? Ótimo. Quer dizer... Isso é mais específico, certo?

— Um pouco. Você precisa saber de mais alguma coisa?

Hesitei. O agente Reyes nunca acreditaria em mim. Não sobre um quinteto de garotinhas enterradas no jardim de um senhor. Não havia sentido medir minhas palavras.

— Digamos que ninguém tenha realmente testemunhado esses assassinatos, mas eu soubesse onde os corpos estão enterrados. Que tipo de evidência eu precisaria dar à polícia para que eles mexessem no quintal de alguém?

Houve uma pausa, mas então ele falou com certeza.

— O tipo de evidências que convenceria um juiz a gastar dinheiro dos contribuintes para destruir propriedade privada. Evidências muito sólidas.

— Saquei. — Eu tinha quase certeza de que ele achava que eu era uma idiota agora, o que, por algum motivo, me compeliu a acrescentar: — Alguma novidade sobre o culto?

— Somente o que está nos jornais.

— Entendi. Eu não tenho acompanhado muito, na verdade. Vocês entraram no quartel-general deles, certo?

— Na noite passada, Srta. Scofield. Os bandidos estão cercados por duzentos agentes federais. Nada com que você tenha que se preocupar, claro, mas dadas as suas experiências recentes, você considerou mudar o tema do seu trabalho para algo menos... macabro?

Fiquei olhando para a bagunça na minha cama.

— Eu pensei nisso, mas já estou bem adiantada. Obrigada pela ajuda, agente Reyes.

— Quando quiser, Srta. Scofield.

Desliguei com um suspiro. Tinha conseguido soar louca antes mesmo de chegar às partes estranhas do meu não-tão-hipotético problema. Como o fato de que pelo menos alguns desses assassinatos tinham sido cometidos antes de eu nascer. E que o criminoso morava em uma cidade aonde eu nunca tinha ido, exceto por projeção astral. E que eu não sabia o nome da maioria das vítimas.

Nenhum juiz no mundo mandaria uma retroescavadeira para a casa do homem mau baseado nas minhas “provas”. Não era de se espantar que Yama simplesmente tivesse dado as costas àquelas garotinhas. Nós éramos psicopompos, não a polícia fantasma.

Mas ainda não estava pronta para desistir. Eu queria que a justiça fosse feita de alguma forma. Queria que o mundo fizesse sentido de novo, e teria que começar contando a Yama o que havia descoberto.

Era nossa viagem mais longa no Vaitarna, até agora, a mais estranha e mais variada. O rio estava agitado no início, com toques de lembranças perdidas como mil dedos gelados nos tocando na escuridão. Mas por fim ele se acalmou, e por muito tempo boiamos em uma corrente lenta como um mar sem vento.

Yama e eu chegamos a uma praia em formato de crescente, com areia branca e pedrinhas. O litoral se estendia em ambas as direções, curvando-se ao longe para formar uma grande lagoa circular. O rugido das ondas vinha de perto, mas a água à nossa frente batia lentamente na areia. Um vento quente brincava com o meu cabelo e balançava a seda da camisa de Yama.

— Onde estamos?

— Em uma ilha.

Olhei para ele.

— Pode ser mais específico?

— Em um atol, especificamente. — Ele sorriu, como se estivesse satisfeito por não me dar informações.

Ergui os olhos para o céu noturno. Não havia sinal da aurora, então não poderíamos estar muito longe da Califórnia. Mas as estrelas não pareciam iguais.

— Oceano Pacífico, certo?

Yama assentiu.

— É o mais distante de tudo que é possível chegar.

— É... bonito — falei, embora o atol não fosse exatamente um paraíso tropical. Não havia palmeiras nem grama, nem flores perto da praia, só árvores atrofiadas em um solo rochoso, as folhas largas tremendo no vento.

— Você se acostuma — comentou Yama, me puxando para longe da água e subindo para as rochas. Havia árvores marítimas encolhidas em todos os cantos, e lagartos compridos como dedos correndo sob os nossos pés. Foi uma subida de alguns minutos, mas quando chegamos ao topo o terreno acabou na nossa frente, direto para o mar lá embaixo. A ilha inteira era como um donut, com a lagoa calma no centro e o oceano do lado de fora.

Grandes ondas batiam ali, pesadas e escuras. Pareciam grandes o bastante para nos acertar e carregar o atol para o mar. Era um lugar realmente muito solitário.

— Está ouvindo? — perguntou Yama.

Prestei atenção. Mesmo no ar parado do outro lado, o rugido das ondas era alto o bastante para atravessar meus ossos. Só alguns gritos agudos das aves apareciam entre aquele barulho.

— O que deveria ouvir?

— O silêncio. Nenhuma voz.

Olhei para Yama. Seus olhos estavam fechados, e toda a preocupação havia deixado seu rosto. Estiquei a mão e toquei a sobrancelha de Yama, que sorriu e segurou minha mão.

— Só escuto as ondas e os pássaros — falei.

— Exatamente. — Ele abriu os olhos, mais feliz do que eu jamais o tinha visto. — Ninguém nunca morreu nesta ilha.

— Ah. — Olhei em volta, para o chão rochoso, o horizonte vazio. — Mas é só porque ninguém viveu aqui também, certo?

— Imagino que não. Mas o resultado é o mesmo: silêncio.

— Espera. Você quer dizer que consegue ouvir os mortos?

— Sempre. Em todos os lugares, menos aqui.

Me lembrei da visão no parquinho. A história do lugar passando em um flash, todos os traumas, alegrias e sofrimentos. Era assim que o mundo era para Yama o tempo todo? Meus poderes cresciam todos os dias, e ele era psicopompo há centenas de anos.

Senti o rugido do oceano em cada célula do meu corpo. Como seria viver com as vozes dos mortos constantes assim nos meus ouvidos.

— Lindo, não é? — perguntou ele.

Cheguei mais perto e o abracei, precisando do seu calor. O vento era mais forte ali no alto, fazendo a areia correr sob os nossos pés.

De pé ali, consegui ver a beleza desolada da ilha. Para mim, não tinha a ver com o silêncio dos mortos, e sim com estar ali com ele. Era como se estivéssemos em um planeta só nosso — um pouco lúgubre, mas nosso.

E havia algo belo no ar, algo que eu não conseguia definir.

Segurei a nuca de Yama e me aproximei para beijá-lo. O beijo me tirou o ar, e o céu cinzento pulsou com cor. Por um momento, aquele era o lugar mais lindo que eu já tinha visto.

Antes que nos afastássemos, ele me beijou na cicatriz com formato de lágrima. Um estalo de eletricidade permaneceu ali, pedindo mais.

— Como você achou este lugar? — perguntei, um pouco sem fôlego.

— Procurando, por mil anos.

— Demorou tanto para encontrar o silêncio?

— Eu não sabia o que estava procurando no início. Mas queria explorar o mundo, então aprendi a viajar pelo rio com o corpo, não só o espírito. — Sua voz ficou mais suave. — Aonde quer que eu fosse, havia histórias enterradas na terra, vozes nas pedras.

Minha mão procurou a dele e a apertou.

— Eu vou ouvi-las também, não vou?

— Espero que isso ainda leve muito tempo. — Ele fez um gesto abarcando o lugar. — Mas quando precisar fugir de tudo, esta ilha também é sua, Lizzie.

Observei o oceano cinzento e revolto, sem saber o que dizer. Ainda não queria aquele isolamento esplêndido se não fosse com Yama. Me assustava um pouco pensar que um dia aquela desolação poderia me parecer bela por si só.

Quanto tempo eu tinha? Pensei nas garotinhas no gramado do homem mau, e me perguntei se estava mais conectada a elas agora, mais presa à morte. Eu precisava contar que tinha ido lá novamente, e que suspeitava de onde as crianças tinham sido enterradas.

Mas não agora. Ele parecia tão feliz.

— Obrigada por me trazer aqui. Este é o seu lugar favorito, não é?

— De certa forma. Minha cidade no submundo é mais bela. Mas esta ilha é o único lugar em que posso ficar realmente à sós.

— Mas agora eu estou aqui também, então isso acabou.

Yama se virou para mim com um sorriso quase tímido.

— Posso ficar à sós com você.

— Acho que isso é bom?

— Mais do que posso dizer. — Ele me puxou para perto, e o céu se agitou em cores mais uma vez, minha respiração presa no peito e trêmula nos pulmões.

Quando nossos lábios se separaram, eu queria saber tudo sobre aquele lugar.

— Como você chegou aqui pela primeira vez? Num navio?

— Nas páginas de um livro. — Ele nos colocou em movimento mais uma vez, me guiando pelas rochas. — Um navio português descobriu a ilha quatro séculos atrás. Foi esquecida, depois descoberta de novo, até que naturalistas chegaram e pintaram o que viam.

— Então podemos nos conectar a lugares através dos livros? — perguntei, impressionada. É claro que eu tinha viajado até a antiga da casa da minha mãe por uma foto. De repente ser psicopompo não parecia tão ruim, se eu podia conhecer o mundo através de livros.

— Parcialmente. Mas eu também conheci um naturalista que tinha vindo para cá. Ele disse que só dois tipos de plantas crescem aqui. Consegue acreditar?

Meus olhos correram pelo triste cenário. Todas as árvores pareciam iguais.

— Não é tão difícil acreditar. Mas você ficou amigo de um vivente, quer dizer, de uma pessoa viva? Então você deixou o além-mundo.

— Valeu a pena. — Ele fechou os olhos de novo, respirando a maresia. — Só pelo ar.

Foi então que percebi algo que estava me incomodando.

— Aqui não tem cheiro de ferrugem. Aquele cheiro metálico que o outro lado normalmente tem. Sumiu.

Ele abriu os olhos.

— Aquilo é o cheiro da morte. Do sangue.

— Ah. — Um tremor me percorreu, e eu nos fiz parar para me encolher num abraço dele. Yama estava sempre tão quente, como se houvesse algo queimando dentro de si, mas mesmo assim os arrepios demoraram a sumir. — Meio que é uma droga ser...

Eu ainda odiava a palavra “psicopompo”, mas ainda não tinha outra melhor.

— Nem sempre. — Ele me apertou.

Me segurei com força a Yama, precisando da solidez de seus músculos, da eletricidade de sua pele. A areia sob os meus pés parecia escorregadia, o atol tão frágil em meio ao oceano infinito.

Meu professor de geografia sempre dizia que não havia ilhas, somente montanhas cujos topos superavam a superfície do oceano. Pensar nisso me deixou tonta por um momento, pensando no recife de coral debaixo de nós, e debaixo dele uma montanha que se estendia até as profundezas negras do Pacífico.

Tantas toneladas de coral e pedra só para manter aquele pedacinho de terra acima d’água. Me perguntei quantas vezes o mar havia coberto a ilha, apagando tudo.

— Como você não enlouqueceu, ouvindo vozes o tempo todo? Quer dizer, antes de encontrar este lugar? Demorou tanto.

Sua voz se suavizou, como se estivesse me contando um segredo.

— Procurar por mil anos vale a pena se no final você encontra o que necessita.

Engoli em seco, levando um momento para responder. As palavras pareceram sem jeito nos meus lábios, como digitar com martelos.

— Fico feliz que tenha encontrado.

Seus braços me puxaram mais para perto, e por um segundo o rugido do oceano silenciou nos meus ouvidos. Ou talvez estivesse dentro de mim, meu corpo inteiro vibrando com aquele som imenso.

Nos beijamos ali, o som do mar ardendo nos meus lábios, até que eu precisei ouvir sua voz de novo.

Me afastei e disse:

— Você nunca terminou a história sobre sua travessia. Você me contou sobre o lugar em que você e Yami cresceram. Disse que ela morreu jovem, porque foi traída por um burro. É sério?

— Foi o que pareceu na época. — Ele se virou, me levando pela espinha dorsal rochosa da ilha, o oceano de um lado e a lagoa do outro. — O irmão do meu pai tinha uma fazenda, a algumas horas de caminhada da nossa vila. Quando Yami e eu íamos brincar com nossos primos lá, levávamos um velho burrico. Minha irmã o montava quando se cansava, e ele sabia voltar para casa mesmo no escuro.

— O burro sabia voltar para casa. É claro. — Eu tinha quase esquecido as facas de bronze da infância de Yama, e agora esse GPS de burro. O passado distante parecia muito estranho.

— Uma vez ficamos tempo demais. Havia uma tempestade se aproximando, e meu tio pediu para que passássemos a noite lá, mas Yami não quis. Ela dizia que a casa dele cheirava a cebolas.

— Ela não mudou muito desde então, né?

— Na verdade, não — respondeu Yama com um suspiro. — Ela não me escutava. Saímos antes do por do sol, mas quando a chuva começou a cair o céu ficou escuro como a noite. Raios caíam em toda a nossa volta.

Olhei para o oceano, tentando imaginar como seria uma tempestade naquela ilha vazia e exposta ao vento.

— Parece assustador.

— E foi. Mas o burro nos levou pela escuridão. Ele não reclamou.

— Então como ele traiu vocês?

— Nós achamos que ele estava indo para casa por outro caminho, seguindo o mar em vez de cruzar as montanhas, tentando evitar os raios. Ele era um animal velho e sábio, e sempre confiamos nele. Mas então ele parou num lugar que não reconhecemos. Dava para ouvir as ondas batendo, e o chão esfarelava e machucava nossos pés. Eu senti algo cortando meu pé pelas alças da sandália e me ajoelhei para ver o que era.

Ele parou, e senti um arrepio pelo corpo todo.

— O chão estava coberto de ossos.

Fiquei olhando para ele.

— Nossa mãe. O que vivia ali?

— Absolutamente nada. — Conforme caminhávamos, Yama observava as pedras e conchas no cão. — Eram esqueletos de animais mortos. Quando um raio caiu, vimos pilhas de ossos quebrados espalhados ao nosso redor.

Balancei a cabeça, sem entender. Um pouco do terror do aeroporto estava me tomando de novo, seus tentáculos gelados tomando conta do meu corpo. Abracei Yama.

— Mas foi então que me lembrei de algo. Alguns anos antes, quando a parceira do burrico tinha ficado velha e doente demais para trabalhar, meu pai a havia levado ao topo daquela montanha perto do mar, e havia me pedido para ajudar.

— Ajudar com o quê?

Ele esticou as mãos.

— Ajudar a empurrá-la do penhasco.

— Uau. Que frieza.

— Essa era a tradição da nossa vila — respondeu ele com simplicidade. — Mas me pareceu horrível, e naquela noite, minha irmã e eu achamos que o animal estava se vingando. Hoje imagino que estava só visitando o último descanso de sua parceira, de seus ancestrais. Devia haver séculos de ossadas ali. Talvez estivesse só prestando homenagem à própria morte, e nós fôssemos simples passageiros na viagem. Mas ficamos aterrorizados.

— Nem brinca. Então o que houve?

— Vários raios caíram em volta de nós, trovões ribombando acima da nossa cabeça, e minha irmã se assustou e caiu do burro. Uma lasca de osso atravessou seu pulso. — A voz de Yama ficou mais baixa, quase inaudível sobre o som das ondas. — Ela estava sangrando. Eu apertei o ferimento, tentando impedir o sangue. Ela não se permitiu chorar, mas eu sabia que estava doendo. Morrer é doloroso, se você luta contra a morte.

— Pobre Yami. — Havia um tremor em minha voz.

— Ela morreu na alvorada, bem quando a tempestade começava a se afastar. Senti que ela estava ficando fria, e prometi que ficaria com ela, que a protegeria. Então, quando a vi deixando seu corpo, eu segui.

— E esteve tomando conta dela desde então.

Ele assentiu.

— Foi essa a minha promessa. Se eu esquecê-la, Yami desaparece.

Eu o fiz parar, e nos beijamos de novo. Desta vez havia sal nos nossos lábios.

— Você é um bom irmão.

— Ela me ajuda também.

— Com o seu povo, você quer dizer. — Por fim compreendi o peso daquilo tudo. Não só a irmã, mas milhares de fantasmas dependiam das memórias de Yama para não desaparecer. — Você está cuidando de todos eles.

— De todos que posso. Às vezes me pergunto quantos já perdi. É difícil contar às pessoas que esqueci.

A tristeza no rosto dele me fez querer discutir.

— Mas todas as memórias desaparecem, mais cedo ou mais tarde.

— Todo mundo morre também. Isso não torna assassinatos corretos.

Balancei a cabeça.

— Mas fantasmas já estão mortos. E aquele homem que me seguiu até em casa, ele disse que fantasmas são só histórias que contam a si mesmas.

— Assim como os vivos.

Fiquei olhando para o oceano, me perguntando se aquilo era verdade. Alguns de nós, viventes, éramos feitos de histórias que não contávamos. Eu tinha guardado segredo do que acontecera em Dallas, criando mentiras e meias-verdades para todos que eu amava. E minha mãe não tinha me contado sobre a morte de Mindy, mesmo tendo-a assombrado durante todos aqueles anos.

Por outro lado, talvez ela tenha feito isso, só que sem palavras. Seu medo de viagens de carro, sua necessidade de saber onde eu estava a cada cinco minutos. Ela estava me contando a história do desaparecimento de Mindy cada dia da vida dela.

— Certo, claro. Todos somos feitos de histórias. Mas você e eu, nós somos de carne e osso de uma maneira que os fantasmas não são.

— Isso não tem nada a ver com o que os fantasmas realmente são, Lizzie. Isso tem a ver com o que você e eu decidimos fazer de nós mesmo.

Olhei para ele.

— O que você quer dizer?

— Escolhemos se vamos respeitar os mortos ou usá-los. — Yama deu um passo para trás, e o vento frio passou entre nós. — Pense em como é fácil para aquele velho decidir que fantasmas não são pessoas. Seria mais fácil para você pensar o mesmo. Você não teria que se preocupar mais com Mindy, ou qualquer outro.

Baixei os olhos para o chão.

— Eu não sou assim.

— Não. Mas sempre será uma escolha. Você precisa decidir que vale a pena salvar fantasmas.

Voltei a observá-lo, me arriscando a cruzar a intensidade do olhar de Yama. Milhares de pessoas dependiam de ele pensar que eram reais, incluindo sua própria irmã gêmea. As necessidades deles pesavam em Yama, como a culpa por um crime que ainda nem havia cometido — o crime de esquecer, de seguir em frente.

— Certo. Fantasmas são reais. É por isso que eu quero ajudar a Mindy. É por isso que eu voltei àquela casa.

Yama parecia ter levado um soco.

— O homem que a matou ainda mora lá — expliquei. — Ele matou aquelas garotinhas. As árvores são como... troféus no jardim dele.

— Você não devia ter voltado lá, Lizzie.

— Mas eu tinha que fazer alguma coisa. Mindy fica assustada o tempo todo, com medo de ele vir procurá-la. Ela sente medo desde antes de eu nascer.

Ele assentiu, aceitando.

— Mas é por causa dela que você está mudando tão rápido.

Olhei para ele sem entender.

— O quê?

—Você teve a morte na sua casa desde que nasceu. Uma garota morta sempre esteve ali, nas memórias da sua mãe, no coração dela. É por isso que você nunca duvidou da existência do além-mundo. É por isso que você conseguiu ver fantasmas desde aquela primeira noite em Dallas. Você nasceu para isso, Lizzie.

Tirei as mãos das dele e dei dois passos para trás.

— Você está falando sério? Está dizendo que sou amaldiçoada.

— Não. Estou dizendo que o além-mundo é sua segunda natureza. O que significa que você precisa lutar contra isso, não procurar mais formas de se aprofundar nele. Você precisa ficar longe daquela casa e daquelas garotas mortas.

— Isso é loucura. Mindy não fez parte da minha vida. Minha mãe nem mesmo me contou sobre ela.

— Ela não precisou. Um fantasma esteve bem ali, na sua casa, querendo ser sua amiga, invejando você por todos os anos de vida que ela nunca teve. A história dela sempre esteve à sua volta. Está nos seus ossos.

Nem consegui falar.

— Você não deveria falar mais com ela — pediu Yama. — Finja que não a vê.

— Yama. — Balancei a cabeça. — A Mindy mora na minha casa. O que eu deveria fazer? Me mudar?

— O mais rápido possível, enquanto ela ainda é mais conectada à sua mãe do que a você. — Ele cruzou os braços. — E você deveria ficar longe de mim também.

— Por quê?

— Meu povo precisa de mim para protegê-los, para lembrar deles. Você me distrai. — Sua voz estava irregular. — E cada vez que nos tocamos, você fica com mais morte em suas mãos.

Tentei me aproximar dele, mas Yama se afastou.

— Isso é loucura! Minha vida era normal até duas semanas atrás!

— Na primeira vez que você pegou o rio, perguntei aonde queria ir. E, de todos os lugares do mundo, qual você escolheu?

Engoli em seco.

— A antiga casa da minha mãe.

— Por quê?

Eu não precisava responder. Yama já havia entendido tudo. Mesmo naquela primeira noite, eu estava curiosa para saber mais sobre a história de Mindy.

— Eu queria procurar pistas.

Seus olhos brilharam, a voz mais irritada a cada palavra.

— Podendo escolher qualquer lugar, você quis procurar a casa de um assassino. E eu pensando que, depois de ver aquelas meninas, você jamais pensaria em voltar. Quantas pessoas iriam àquela casa duas vezes, Lizzie?

— Eu precisava ir. Por causa de Mindy.

—Exatamente. Porque a morte dela está em você. Era parte de você antes mesmo do que aconteceu em Dallas.

Eu mal conseguia me manter de pé.

— Você acha que sou horrível.

— Não. Acho que você é maravilhosa. E por isso deveria estar lutando contra isso, não correndo atrás. — Ele abriu os braços, indicando toda aquela ilha árida. — Imagine se sentir mais segura aqui do que em qualquer outro lugar do mundo. É isso que você quer?

— Então foi por isso que você... — Minha vos falhou. — Você me trouxe aqui para me assustar?

Ele tentou dizer algo, mas não conseguiu. Então se virou para o oceano e tentou de novo.

— Eu trouxe você aqui porque nunca havia trazido mais ninguém aqui. E porque você é diferente de todas as outras pessoas. Mas você tem sua vida no mundo real, e não deveria desistir dela ainda. Não por esse tormento.

— Não estou desistindo de nada.

— Você terá que desistir, se ficar como eu. Pelo menos tente ir mais devagar, Lizzie.

Dei as costas pare ele. Havíamos parado em uma pequena baía que ligava a lagoa ao mar. A água saía com força, puxada pelas marés ou talvez só pelo tumulto do oceano por todos os lados. A baía fazia aquele lugar parecer ainda mais tênue, como se a ilha tivesse sido furada, esvaziando-se, perdendo a batalha para existir.

— Me prometa que não vai voltar lá.

Olhei para Yama. Isso não fazia sentido. Ele devia lutar contra o homem mau comigo.

— Então pelo seu povo vale a pena lutar, mas não por Mindy?

— Eu não tento vingar suas mortes. Não julgo os vivos.

— Isso não tem nada a ver com julgamento. Ele é o pior tipo de pessoa que poderia existir!

Yama ficou em silêncio. Seu olhar ainda estava perdido a distância, e me perguntei se ele estava pensando em todas as coisas que tinha visto por milhares de anos. Talvez, para ele, o homem mau fosse um ponto no infinito.

Mas, para mim, o homem mau era o medo nos olhos da minha mãe cada vez que eu saía de casa.

— Eu não vou parar. Eu vou resolver isso, por Mindy.

Ele balançou a cabeça.

— Foi um erro, ensiná-la a usar o rio tão cedo. Eu fui egoísta.

Senti a raiva se revirando em meu estômago, e soube em um momento que ia falar algo de que me arrependeria. Mas depois do que eu havia passado, ele não tinha o direto de me tratar como criança. Ninguém tinha.

Minha voz ficou fria.

— Obrigada por me mostrar este lugar, Yama, mas tenho que ir. Mindy fica com medo quando me afasto por muito tempo.

— Yami também não gosta. Ela acha que vou esquecê-los, todos eles, por sua causa.

Meus olhos arderam, e me perguntei se Yami sabia o que o irmão realmente pensava de mim. Que eu tinha sido estragada, amaldiçoada desde o momento em que nasci. Eu pensei que ele era quem melhor me entendia, mas tudo que ele via em mim era morte.

Mas, quando ele estendeu a mão, eu a segurei. Sua pele era quente, cheia de calor e eletricidade.

Eu o puxei para perto, descansei minha testa em seu ombro, e respirei seu cheiro. Não havia ferrugem em Yama, nenhum odor de sangue. Ele era tão vivo, o que transformava em mentira tudo o que dissera.

Ou talvez nem todos os psicopompos fossem manchados pela morte. Talvez fosse só eu.

— Eu tenho que ir — repeti.

Se Yama não fosse me ajudar, eu sabia de alguém que o faria.


CAPÍTULO 25

— E como está o seu orçamento? — perguntou a tia Lalana.

— Nada mal — respondeu Darcy. — Mais para... terrível.

Lalana se recostou na cadeira, parecendo satisfeita.

— Imagino que sejam todos os esfregões que você anda comprando.

Darcy revirou os olhos. Ela, na verdade, tinha comprado um esfregão. Mas ele tinha sido muito barato, e havia quebrado em uma semana. Substituí-lo era mais um item na longa lista de coisas que ela precisava fazer, mas não tinha dinheiro.

— Estou explorando a cidade. Para estimular minha criatividade.

— Isso é muito louvável. Mas “explorar” não é de graça?

— Tecnicamente, sim. — Darcy olhou para o thali na sua frente, pelo menos meia dúzia de tigelas com comidas diferentes arrumadas em uma bandeja de aço. Lalana a havia trazido para o mais antigo restaurante Gujarati da cidade. A comida era vegetariana, delicada e perfeita, e o infinito refil era grátis. — Mas não do jeito que nós fazemos, o que envolve muita pesquisa alimentar.

— Suponho que eu deveria ser dura com você — falou Lalana com um meio sorriso. — Mas estar certa é divertido demais. Quem somos nós?

— Hum, Imogen e eu.

— Você já a mencionou. É uma amiga escritora, certo?

Enquanto assentia, Darcy se ouviu dizendo:

— Ela é mais do que uma amiga.

Tia Lalana ficou parada, com o garfo a meio caminho da boca, esperando.

Darcy tinha notado que ultimamente havia parado de tomar decisões da maneira antiga: pensar primeiro, depois falar. Talvez fosse por conta dos dias passados escrevendo, que consistiam em nada além de decisões — quem morre? Quem vive? O que acontece depois? —, então quando Darcy voltava ao mundo real, estava de saco cheio de decidir. As coisas simplesmente saíam da sua boca.

E é claro, ela havia prometido manter sua tia informada.

— Ela é mais como uma namorada. — Darcy pigarreou. — Na verdade, ela é exatamente isso, minha namorada.

— Que interessante. — Lalana comeu uma garfada de lentilhas e mastigou, pensativa. — Você já contou...

— Ainda não. — Ela não tinha contado nem para Nisha, cujo celular era de muito fácil acesso para a mãe delas. Darcy não era a única intrometida da família.

— Mas vai contar?

— Claro. Mas cara a cara. — Isso lhe daria até o Dia de Ação de Graças, pelo menos.

— Você sabe que eles não vão ficar chateados, não é? Pelo menos não Annika. — Lalana deu de ombros, sempre meio incerta sobre o cunhado. — E a vovó P. talvez tenha... dificuldade.

Darcy piscou, confusa. Ela tinha esquecido completamente da sua avó e dos tios, sem contar os parentes da mãe lá na Índia. Apenas alguns primos já haviam visitado os Estados Unidos, mas notícias sobre Darcy e Nisha pareciam se espalhar pelo subcontinente como mercúrio caindo de um arranha-céu.

Mas isso ficava a mais de dez mil quilômetros de distância. O que importava estava ali.

— Não é que eu esteja preocupada com o que os meus pais vão pensar. — Isso era verdade, mas também era mais complicado do que isso, e Darcy levou um momento para prosseguir. — É só que, eu nunca fazia coisas inesperadas. E agora tudo que eu faço é surpreendê-los. Eles provavelmente pensam que estou só querendo ser rebelde. E não é verdade. O que Imogen e eu temos é de verdade.

Tia Lalana abriu um sorriso.

— Olha aquela certeza aí de novo.

Darcy não sabia o que dizer. Havia dias inteiros em que ela não tinha certeza de nada. Se era uma escritora de verdade. Se conseguiria encontrar o final certo para o livro. Como Imogen conseguia aguentar alguém tão curioso, imaturo e destruidor de orçamentos como ela.

Mas...

— Eu sei quem eu amo.

Lalana deixou escapar um suspiro sonhador.

— Essa é uma palavra tão importante, Darcy. E distrai tanto. Achei que você ia se concentrar em escrever.

— A gente escreve junto, o tempo todo. Imogen me ajuda a melhorar.

A tia deve ter ouvido a certeza em sua voz, porque só assentiu.

— E você não vai contar para os meus pais? Sério?

— Darcy, é você quem precisa fazer isso. — Lalana se esticou por cima da mesa e apertou a mão da sobrinha. — É uma grande parte do seu amadurecimento. Eu jamais roubaria isso de você.

— Obrigada. — Sua tia tinha boas intenções, mas aquilo fez Darcy se sentir muito jovem. — Eu vou encontrar a hora certa.

— Tenho certeza de que vai. Quando posso conhecê-la?

— Quando você quiser. Vai gostar dela.

— Tenho certeza de que vou. Mas, por enquanto, já que seus pais nem sabem disso, é meu dever de tia descobrir todos os detalhes. — Lalana se recostou na cadeira e entrelaçou os dedos. — Não deixe de me contar nada.

Darcy sentiu um sorriso aparecer no rosto. Havia muitos detalhes a compartilhar. O modo como Imogen gesticulava loucamente quando falava sobre escrever. Como ela colecionava fofocas escandalosas sobre artistas, mesmo os que estavam mortos fazia duzentos anos. Como ela nunca interrompia, não importando quanto tempo Darcy levasse para terminar a frase. Os anéis que usava em diferentes dias.

A conversa durou a tarde toda, e no final só havia uma coisa que Darcy não tinha contado, porque sua tia definitivamente não ia entender o fato de ela não saber o nome real da namorada.

Às vezes Imogen passava a noite fora sem Darcy.

Não que ela quisesse deixá-la para trás — era ideia de Darcy. Por mais que gostasse dos amigos de Gen, ela ficava preocupada que sua carteira de motorista falsa não aguentasse uma inspeção mais cuidadosa numa boate de verdade. E era estranho, ser sempre a mais nova. Ainda havia tanto que Darcy não sabia, nuances de política, gênero e linguagem que certo tipo de pessoa acaba aprendendo na faculdade e discutindo em bares. Darcy sempre achava estar um passo atrás. Sem contar que ela sempre queria falar sobre livros e escrever quando saía para beber, mas os amigos de Imogen vinham de todos os cantos da cidade, não só do mercado editorial, graças a empregos em galerias de arte e pequenos sites em que alguém havia trabalhado nos últimos 14 meses.

Além disso, o orçamento de Nisha era uma companhia constante, sentado no canto do bar como um fantasma barulhento, às vezes rindo de Darcy, às vezes gritando e balançando suas correntes.

Então, quando Imogen saía com os amigos, normalmente Darcy ficava em casa. Conforme suas vidas se entrelaçavam, muitas vezes ela se via sozinha não no apartamento 4E, mas na casa de Imogen, onde podia xeretar o quanto quisesse. Isso às vezes não era legal.

Aparentemente, Imogen colecionava fósforos.

Ela colecionava muitos objetos grátis e encontrados — folhetos de rotas de ônibus, amostras de tinta, fotos descartadas de Polaroid. Mas carteirinhas de fósforos promocionais eram sua principal obsessão. Darcy já vira Imogen pegando fósforos em restaurantes e cafeterias, e tinha ouvido Gen se lamentar por ser jovem demais para os gloriosos dias antes das leis anti-fumo, em que todo tipo de estabelecimento fazia carteirinhas de fósforos como brinde. Mas até se enfiar no armário da namorada, Darcy não tinha percebido a profundidade daquela compulsão.

Imogen mantinha a coleção em caixas de plástico transparente. Cada caixa estava cheia de fósforos, cuidadosamente organizados de modo que os logos das empresas e telefones pudessem ser lidos pelo lado de fora, o meio recheado de repetidos e genéricos. Havia uma pilha dessas caixas no armário, o suficiente para colocar fogo na cidade. Não que Imogen jamais acenderia os fósforos, assim como um colecionador de quadrinhos jamais cortaria as páginas de edições antigas.

Conforme observava as caixas de plástico, Darcy se perguntava a história por trás de uma carteira de fósforos ou outra. Quando Imogen tinha visitado um café em Brighton Beach? Por que havia visitado um lava-jato no Queens? Por que diabos uma academia de dança daria fósforos como brinde?

Então, enquanto fuxicava no armário uma noite no fim de agosto, ela encontrou algo ainda mais intrigante embaixo das caixas: um anuário de 2008.

Como qualquer anuário, aquele estava cheio de fotografias 3x4 da turma formanda, cada uma com um nome indicado. Darcy fez algumas contas rápidas — 2008 tinha sido o último ano de Imogen no colégio.

Darcy fechou o livro rapidamente, quase sem fôlego. Debaixo de uma daquelas fotos estaria o nome real de Imogen. Aquilo não era mais uma curiosidade inocente.

Por um momento, Darcy pensou que ia colocar o anuário de volta no lugar, debaixo das caixas de fósforos. Sentiu até uma onda de virtude a atingindo, a emoção de fazer a coisa certa. Mas aí ela abriu o livro de novo e começou a examinar as fotos dos alunos, desde a primeira página, cuidadosamente.

Na escola havia basicamente brancos, os garotos de camisa social para a última foto do ensino médio, as meninas usando um pouco de maquiagem demais. Nenhum deles parecia uma Imogen mais nova, nem mesmo pessoas que poderiam ser amigas ou colegas dela. Pareciam ser de um universo totalmente diferente do de Imogen Gray. E não havia assinaturas perto das fotos, nem piadinhas ou frases inspiradas rabiscadas nas margens pelos amigos.

Talvez aquele anuário fosse um objeto descartado, mantido por Imogen para pesquisa, como uma fonte de nomes de personagens ou cortes de cabelos horríveis do Meio-Oeste. Ou talvez estivesse ali para atormentar uma certa namorada intrometida.

Mas Darcy continuou lendo, prestando atenção aos nomes embaixo dos espaços em branco indicados com “Sem fotografia disponível.” Seria bem a cara de Imogen faltar no dia da foto.

E então, na última página de fotos, uma combinação conhecida de letras chamou a atenção de Darcy. Imogen.

Imogen White.

— Não acredito — sussurrou Darcy, olhando a foto.

A garota tinha um sorriso largo e olhos grandes, óculos pesados e cabelo preto. O rosto era redondo demais para ser o de Imogen, e o nariz, pequeno demais. Era coincidência, nada mais. Imogen não era um nome tão raro assim.

Mas White e Gray...

Darcy continuou procurando, passando pelas fotos dos alunos e pelos registros de clubes, esportes e atividades, procurando qualquer um que se parecesse com a sua Imogen. Certamente ninguém era solitário o suficiente para escapar das incansáveis câmeras da equipe do anuário.

Longos minutos depois ela achou a foto. Estava na sessão de Artes Cênicas, uma fotografia de um palco cheio, em que Imogen White e Imogen Gray estavam lado a lado usando vestidos antiquados. Ao lado da foto havia a única anotação manuscrita:

Desculpa, gata, mas você é péssima com sotaques

e fica idiota de vestido.

Te amo para sempre,

— Firecat

Darcy piscou, lembrando algo que Imogen havia falado na noite em que elas se conheceram. Minha primeira namorada era piromaníaca.

Foi como levar um soco, e de início Darcy nem mesmo entendeu por quê.

É claro que Imogen já tinha tido namoradas antes de Darcy. Aquela menina no colégio e mais inúmeras na faculdade, o suficiente para construir uma carreira como blogueira. Aquele fato nunca havia incomodado Darcy.

Mas aquilo era diferente. Imogen White era a piromante original, a centelha que dera origem a uma trilogia inteira, e quando Gen se recriara como escritora, foi o nome da Firecat que ela havia escolhido. O ciúme que ela sentia não tinha a ver com sexo ou amor, percebeu Darcy. Tinha a ver com escrita.

Ela deitou de novo na cama, exausta de repente.

Se estivesse em um livro de detetive, Darcy sabia, agora repassaria o anuário inteiro, anotando os nomes sem foto e procurando aquelas pessoas no Google uma a uma até encontrar a resposta.

Mas o antigo nome de Imogen não importava mais. Era o seu novo nome — seu nome de verdade, como ela sempre insistia — que dizia mais.

Darcy olhou de novo para a foto da namorada de Imogen, sua musa e xará.

Onde ela estava agora? Seu amor realmente era eterno? Todos aqueles fósforos eram para ela?

Darcy sabia que devia estar se perguntando outra coisa, tipo como havia se tornado tão ciumenta. O relacionamento delas não tinha nem dois meses, e ela já havia conseguido ficar com ciúmes de alguém que tinha saído com Imogen quando Darcy tinha 12 anos de idade.

Ela soltou um resmungo. Seu corpo doía, como se suas emoções estivessem diretamente ligadas aos músculos. Doía respirar, se mexer, pensar. Como tudo tinha ficado tão intenso?

Ela se levantou da cama de Imogen e tomou um banho, esperando que isso afastasse o ciúme. Mas a água parecia feita de agulhas ao mesmo tempo geladas e ferventes.

Pensar em ser publicada — pensar em todos no planeta lendo Além-mundos — sempre havia feito Darcy se sentir nua e exposta. Mas amar a fazia se sentir esfolada.

Imogen chegou em casa, desarrumada e bêbada, uma hora antes do nascer do sol.

— Você está acordada — falou, o sorriso iluminando a escuridão.

Darcy tinha passado a noite acordada, se revirando e sofrendo, e agora estava enrolada nos lençóis como um bebê sonhador. Ela havia guardado o anuário no armário horas antes, embaixo das cuidadosamente empilhadas caixas de fósforos.

— Não consegui dormir. Também não consegui escrever. Sou inútil sem você.

— Você é fofa. — A voz de Imogen estava sensualmente rouca, como sempre depois de horas de conversa gritada acima do volume da música. Seu cheiro era o do mundo lá fora, suor e fumaça, bebidas e dança. Ela sempre tinha o melhor cheiro.

— Você se divertiu, gata?

Imogen hesitou, num momento de desconfiança bêbada. Aquela palavra tinha escapado de Darcy, que jamais chamara ninguém de “gata” na vida. Tinha vindo do bilhete de Firecat, óbvio. Mas não estavam em um livro de detetive, onde uma única pista revelava tudo.

Imogen só assentiu e se jogou na cama, inclinando-se para um beijo que tinha gosto de café e chocolate. Depois de longas noites de bebedeira, ela e os amigos normalmente comiam sobremesa em um restaurante 24 horas antes de ir para casa.

Quando Imogen tirou a blusa, Darcy sabia que tinha que contar agora ou nunca mais falaria nada. Tinha que confiar que sua namorada entenderia.

— Hum, eu tenho uma confissão. Eu estava bisbilhotando hoje mais cedo.

O olhar de desconfiança de novo.

— Bisbilhotando quem?

— O que você acha?

O olhar de Imogen foi direto para o seu computador, que estava fechado em cima da mesa.

— Não me diga que você leu meu diário, Darcy.

— Não seja boba. Eu nunca faria isso! — Uma pausa. — Você tem um diário?

Imogen resmungou e se jogou na cama, as pernas por cima das de Darcy.

— São só as anotações do meu celular. Elas vão direto para o computador e são muito particulares.

— É claro. — Mesmo nos piores momentos de curiosidade, nunca nem havia ocorrido a Darcy abrir o laptop de Imogen. — Eu não olharia seus escritos, Gen. Você sabe disso, não sabe?

Imogen virou para ela, cansada, e ergueu uma sobrancelha.

— Tem certeza?

— É claro. Eu só estava olhando a sua coleção de fósforos.

Uma risada escapou de Imogen, baixa e sonolenta, quando ela se virou para olhar o teto de novo, os olhos quase se fechando.

— Essa é a sua confissão? Você realmente precisa sair mais.

— Seu antigo anuário estava no armário.

Imogen suspirou. Com esforço, se sentou de novo.

— OK, isso é mesmo bisbilhotice. O que você encontrou?

—Tinha uma foto de Imogen White.

— Ah. — Imogen Gray esfregou um lado do rosto com a mão.

— E uma de vocês duas no palco juntas. Ela escreveu um recado dizendo que você fica idiota de vestido, mas eu não acho que isso seja verdade.

Um meio sorriso.

— Nem eu. Mas acho que ela se referia a vestidos de babados. A gente estava naquela peça ridícula.

— Vocês duas estavam bonitas.

— Então você deve ter descoberto meu nome de verdade.

Darcy balançou a cabeça.

— Não tinha uma foto sua, e o recado de Imogen era o único no anuário inteiro. — Era tão estranho ver aquele nome se referindo a outra pessoa. — Você não tinha outros amigos.

— Vários, mas eu não estava na escola quando entregaram os anuários. Eu meio que faltei o último mês de aulas inteiro. Fui aceita cedo na faculdade, então era intocável.

Darcy respirou fundo, aliviada. Pelas últimas horas, tinha imaginado Imogen passando os anos do colégio sem amigos e humilhada. Mas em vez disso tinha sido intocável.

— Firecat levou o anuário para a minha casa. Eu só encontrei o recado dela muito tempo depois... — A voz de Imogen sumiu, então ela pigarreou e disse: — Então era isso que você queria saber? Se eu tinha amigos no colégio?

— Por que você usou o nome dela?

Imogen se virou e olhou para a porta do armário.

— Porque ela inspirou minha personagem principal. Ela gostava de fogo. Já falei isso.

— Verdade. Mas é diferente se dar o nome dela. “Imogen Gray” não é sua identidade nova? A quem estava protegendo ao não me contar quem é de verdade. Você está tentando se transformar nela, Gen?

— Não. — Sua voz estava baixa de novo. — Só me lembrar dela.

Por um longo momento, Darcy ficou ouvindo o som da respiração de Imogen. Estava pesada com álcool, cansaço e algo mais.

— Meu deus. Ela morreu?

Imogen assentiu, ainda olhando para o armário aberto.

— Suicídio. A gente acha.

— Merda. — Darcy se levantou. — Eu sinto muito.

— Parece que faz um milhão de anos.

— Ainda assim, é uma droga. — Darcy envolveu Imogen em um abraço.

— Eu estava longe, na faculdade, e não tinha dinheiro para pegar um avião de volta para casa, o que só piorou as coisas. De alguma forma eu sempre esquecia. De manhã, eu levava cinco minutos para lembrar que ela tinha morrido.

— Não era minha intenção trazer esse assunto de volta, eu juro.

Imogen balançou a cabeça.

— Não me importo de você saber. Não estava escondendo isso, na verdade. E eu meio que adoro que você queira saber de tudo.

Elas se aproximaram e o quarto ficou em silêncio por um tempo, exceto pelo trânsito começando a correr lá embaixo. A luz mudava conforme a manhã se aproximava. Darcy sentiu seu corpo mudando, se encaixando ao de Imogen. O álcool e a fumaça ficavam abafados entre os cheiros mais familiares.

Quando elas se afastaram, Darcy disse:

— Em uma escala de um a dez, com dez sendo a mais insegura, que merda de namorada eu sou?

— Você não é uma merda de namorada. Só dá trabalho às vezes.

Darcy desviou o olhar.

— Quando vi a foto dela, fiquei com ciúmes. Não por você ter sido apaixonada por ela. Porque ela fez você querer escrever seu livro.

— Muitas coisas me fizeram querer escrever. Mas sim, é verdade. — Um minúsculo sorriso surgiu na expressão de Imogen. — E foi isso que te deixou com ciúmes?

— É claro.

Imogen tombou lentamente para trás até cair na cama, como uma árvore bêbada despencando. Sua risada foi rouca e rascante.

— Como naquela noite com Kiralee, quando você ficou com ciúmes por causa da minha ideia do Fobomante. Você é hilária.

— Não sou, não. Eu sou horrível!

— É, verdade. Eu acabei de chegar em casa depois de seis horas bebendo, dançando e conversando basicamente sobre sexo com meia dúzia de mulheres lindas e geniais. E do que você está com ciúmes? De onde tirei meu nom de plume! — Ao som do próprio sotaque francês, Imogen soltou aquela risada rouca de novo. — E porque você não ouviu a ideia do meu próximo livro antes de todo mundo. É hilário.

Darcy ficou olhando para a namorada, se perguntando se deveria ter esperado ela estar sóbria para ter aquela conversa. Mas quando por fim a risada de Imogen morreu e seus olhos se abriram de novo, ela olhava para Darcy com uma clareza absoluta.

Imogen esticou a mão e prendeu uma mecha de cabelos atrás da orelha de Darcy.

— Você é incrível.

— Eu sou péssima, Gen. Não sei como não ser assim.

— Pelo menos você se importa com as coisas certas. — Imogen piscou daquele jeito lento, meio felino. — Você quer mesmo saber o meu nome de verdade?

— Você quer me contar?

— Acho que não vou morrer por causa disso.

Darcy olhou nos olhos de Imogen por um momento. As pessoas normais discutiam por esse tipo de coisa? Nomes e noms de plume e livros? Com certeza não.

— Pode manter segredo. Para mim você é Imogen.

O sorriso depois disso foi lindo.

— Está bem, mas só por enquanto. Você quer fazer a turnê comigo?

Darcy ficou paralizada inicialmente, porque não entendeu as palavras. Eram distantes demais daquela conversa para fazer sentido. Mas então ela entendeu o significado daquilo, e sorriu.

— Seria legal. Talvez um dia a gente tenha livros saindo na mesma época.

— Não estou dizendo “um dia”. Estou dizendo mês que vem.

Darcy piscou, confusa.

— Quartos de hotel não custam mais para duas pessoas — continuou Imogen. — E a Paradox está pagando pelos hotéis e pelos carros para nos buscar e por aí vai. E a comida é mais barata fora de Nova York, então vamos economizar aí. Você só ia precisar pagar pelas suas passagens de avião, e eu poderia ajudar.

— Peraí. Você quer dizer fazer uma turnê com você... e Standerson?

— Verdade, a gente tem que perguntar a ele primeiro, por educação. Mas ele gosta de você, e eu já conversei com a Nan sobre isso. Ela disse que turnês pré-publicação são ótimas, especialmente se não custarem dinheiro para a editora.

Darcy assentiu, sua mente por fim entrando em foco. Ela havia se sentido perdida desde que encontrara a foto de Imogen White, mas tinha encontrado terra firme de repente. Imogen estava falando sobre o mercado editorial, um assunto que sempre acalmava a mente de Darcy.

— Uma turnê pré-publicação? Isso existe?

— É claro. Você viaja por aí, conhece livreiros e bibliotecários, conquista todo mundo com seu charme para que eles fiquem muito animados quando seu livro sair. — O sorriso de Imogen só aumentou. — E a gente vai estar com o Standerson, então talvez o brilho de rockstar dele passe um pouco para nós.

— E a Nan disse mesmo que tudo bem?

— Ela adorou a ideia. Mas, como eu disse, vamos ter que dividir as passagens.

— Eu pago as minhas próprias passagens, boba.

— E o seu orçamento?

— Foda-se o orçamento. — Darcy jogou os braços em volta de Imogen de novo. — Eu vou sair em turnê com você o Standerson? Isso é incrível!

— Você é meio sortuda, não é?

Darcy se afastou rindo.

— Isso não tem a ver com sorte, Gen. É porque você não quer me deixar sozinha por uma semana!

— Só Deus sabe o que você ia aprontar.

— Prometo que nunca mais vou bisbilhotar suas coisas.

— Pode acreditar nesta especialista em transtorno obsessivo-compulsivo de meia tigela: você não vai conseguir se controlar. Mas não tem problema, desde que você não olhe o meu diário. — O rosto de Imogen ficou sério de novo, a voz de repente aguda e trêmula. — Minha mãe lia meus cadernos quando eu era pequena, e eu odiava mais que tudo. Então não faça isso.

— Nunca. Prometo, Gen.

A expressão dura de Imogen rapidamente se transformou de volta em sorriso; seu humor estava transformado pelo álcool.

— Fico feliz que você goste do meu nome.

— Eu amo seu nome. O nome dela. Sinto muito que você a tenha perdido.

— Eu também. — O olhar de Imogen vagou para o armário. — Mesmo que ela às vezes fosse um pé no saco.

Darcy seguiu seu olhar.

— Todos esses fósforos são para ela? Para a Firecat?

— No início, sim, mas então percebi como eles podem ser úteis. — Imogen se esticou e pegou a caixa pela metade que estava ao lado da cama. Ela observou as carteirinhas de fósforos nas laterais. — Sempre que eu preciso de um lugar ou trabalho aleatório, eu uso esses. Está vendo? Lojas de penhores, armarinhos, sapateiros, tudo aqui. Chaveiros e limpeza de carpete e estúdios de tatuagens, e olha... Restauração de telhados!

— Os fósforos são para suas histórias?

— Todas as minhas coleções são. — Imogen pegou no peitoril da janela as outras coisas, deixando-as cair em cima da cama. — Eu uso as amostras de tinta para cores. Elas têm os melhores nomes: maçã-do-amor, fumaça metálica, azul-pedra.

— E as polaroids?

— Para ver as roupas das pessoas, as caras das pessoas. Pessoas que não aparecem nas revistas. — Imogen deu de ombros, olhando para as peças espalhadas das suas coleções. O brilho no olhar estava sumindo, dominado pelo cansaço.

Darcy disse baixinho:

— Eu te amo demais, Imogen Gray.

— Te amo também. — Seu sorriso foi suave e lento, depois seus olhos se fecharam, e Imogen se enrolou na cama, os punhos embaixo da bochecha.

Darcy pegou as amostras de tinta e os fósforos e colocou de volta no lugar. Quando a cama estava limpa de novo, a respiração de Imogen já estava lenta e regular. Darcy esvaziou cuidadosamente os bolsos da caça jeans da namorada, tirando as chaves, um bolinho amassado de dinheiro...

... e o telefone de Imogen, um diário escondido em vidro negro e pedaços de titânio. Quando Darcy baixou a chavinha para silenciar o aparelho, a tela se acendeu, ansiosa.

— Nunca — sussurrou ela, pousando cuidadosamente o telefone ao lado das chaves e do dinheiro. Depois se enrolou ao lado de Imogen Gray, da sua Imogen Gray, e fechou os olhos para finalmente dormir.


CAPÍTULO 26

A escola era mais fácil de ver naquela noite. Meus olhos tinham se acostumado ao outro lado. Cada telha no telhado brilhava, clara e distinta sob o luar cinzento.

Cruzei o estacionamento, mal percebendo os ônibus escolares transparentes ao meu redor. Eu só via o passado, luminoso e real. Na primeira vez que eu tinha vindo, os degraus da escola tinham parecido lisos e comuns, mas agora estavam quebrados e salpicados de manchas de chiclete velho.

Yama estava certo. Toda vez que eu atravessava, toda vez que viajava pelo rio, o mundo fantasmagórico me dominava mais.

Mas o que importava? De acordo com ele, eu tinha nascido para isso. Eu não tinha certeza se ele me queria mais, ou se aquela briga na ilha varrida pelo mar tinha sido a última.

A porta da frente da escola estava aberta, convidativa.

— Eu não tenho mais medo — murmurei. — Eu pertenço a esse lugar.

Os corredores estavam silenciosos naquela noite. As canções fantasmagóricas das crianças haviam desaparecido ou sido afugentadas, os ecos dos meus passos lentos o único som restante. Andei com cuidado, porque o rangido de tênis nos azulejos ainda me paralisava. Levei alguns minutos para encontrar o lugar onde a voz havia nos chamado naquela primeira vez.

— Você ainda está aqui? — Minha boca ficou seca com as palavras.

Nenhuma resposta, apenas o medo na minha voz. A imagem dos armários falhou por um momento, como se o calor do deserto estivesse subindo do chão. Abafei meu pavor, deixando o lugar frio dentro de mim sufocá-lo.

— Sou eu, da outra noite. Você me seguiu até em casa. Disse que queria um aprendiz.

Nada no início, mas então um movimento brilhou na minha visão periférica, e o som de risos veio de trás de mim.

Girei, mas não encontrei nada além de uma placa na parede: NÃO CORRA.

Não era o velho no casaco remendado, só o fantasma de uma infração antiga.

Suspirei.

— Você é muito irritante, sabia?

Não estava esperando uma resposta, mas recebi uma — o som de unhas no chão, descendo pelo corredor até mim. O som estalava entre os azulejos, devagar e paciente. O som gelava minha espinha.

Quando o som passou debaixo de mim, pulei, meus pés dançando, um arrepio atravessando meu corpo.

— Puta merda. — Encarei o corredor vazio. — Estou aqui para pedir sua ajuda.

— Você quer um favor? — Veio a resposta, vazando do chão. A voz dele parecia tão satisfeita, tão afoita, que quase corri para a saída. Vi de soslaio cores voltando ao mundo.

Respirei fundo para me manter do outro lado, e respondi:

— Preciso descobrir umas coisas.

Em resposta, óleo negro borbulhou, gotejando pelas rachaduras do piso, pelos espaços entre os armários. Veio faminto até meus pés, e um momento depois eu estava afundando para o rio, pronta para encarar o velho do casaco remendado mais uma vez.

Ele estava mais brilhante do que da última vez, a pele luminosa na escuridão. Talvez fossem só meus olhos de novo, mais sintonizados agora ao brilho que nós, psicopompos, emitíamos. Ultimamente eu conseguia até ver as coisas frias e úmidas no rio, como restos de sombras flutuando na escuridão.

— Que surpresa boa — disse o velho. — Eu estava começando a achar que você não gostava de mim.

— Pode continuar pensando assim. — Minha mão foi direto ao bolso traseiro da calça, onde a faca que eu havia trazido estava guardada.

Seus olhos seguiram meu movimento.

— Meio rude, para alguém que está pedindo um favor.

— Tanto faz. — Deixei a mão relaxada ao lado do corpo. — Você disse que queria me ensinar coisas. Tenho perguntas.

— Perguntas? — repetiu ele, achando graça. — Quer dizer que tem coisas que seu namorado moreninho não sabe?

Decidi ignorar aquilo.

— Tem um homem, um assassino. Suas vítimas estão enterradas no jardim dele, acho. Estão assombrando a casa.

— Você está me oferecendo uns fantasminhas. Que amor. — Ele sorriu, mas o sorriso não chegou aos seus olhos claros. — Infelizmente, meus gostos são muito específicos.

— Não estou te oferecendo nada. Só preciso saber como lidar com esse cara.

— Ah. Está falando de vingança.

— Não exatamente. O que eu quero é... — As próximas palavras sumiram da minha boca. Dizer que queria justiça parecia pomposo demais. Eu não me importaria se o homem mau sofresse, mas eu basicamente só queria acertar as coisas. — Eu quero que a minha amiga pare de ter medo.

— Sua amiga fantasma — falou o velho. — A menininha, que estava com você quando nos conhecemos.

— Sim, a que você queria colecionar. — Ao dizer isso, me perguntei por que tinha vindo pedir ajuda ao velho. Mas não havia mais ninguém a que eu pudesse perguntar. — Ele também matou ela. Até onde sei, ele ainda pode estar matando pessoas, e eu tenho que impedi-lo.

— Interessante. — O velho falou isso com determinação. Como se nada daquilo parecesse terrível ou assustador para ele, nem mesmo estranho. Só interessante.

Eu precisava continuar falando.

— Eu tenho muitos poderes agora. Posso ir a lugares, ver o passado. Eu sei o que ele fez, mas não posso provar.

— Você quer dizer que não pode mudar. — Ele deu de ombros. — Pessoas como nós não mudam o mundo. Nós só limpamos as bagunças que os outros fazem.

— Não tem pessoas como nós. Você e eu não somos iguais! Mas você disse que queria um aprendiz, então me ensine a consertar as coisas.

Ele tinha um jeito de sorrir, a expressão surgindo devagar, como uma bolha se erguendo num poço de piche.

— Seu amigo escurinho está escondendo coisas de você, não está? É por isso que você veio se arrastando até mim.

Eu estava tão irritada que poderia tê-lo esfaqueado, mas em vez disso falei:

— Ele acha que estou mudando rápido demais. Ele quer me proteger.

— Então ele é um tolo. Não há segurança na ignorância. Quando você for chamada pela primeira vez, vai precisar saber todos os truques.

— Chamada? — Balancei a cabeça. — Por quem?

— Por quem você acha? Pela morte.

Fiquei olhando para ele, o lugar gelado dentro de mim crescendo um pouco. Cada vez que eu achava ter entendido o além-mundo, ele só ficava mais complicado.

— O que isso quer dizer? A morte não é, tipo... uma pessoa, é?

Ele riu, o suficiente para que as lágrimas brilhantes saíssem de seus olhos translúcidos.

— Um homem com uma foice, você quer dizer? Dificilmente. Ou se é isso, não estamos nos falando. Talvez a morte seja apenas uma força da natureza, ou talvez tenha um lampejo de inteligência. De qualquer maneira, uma vez que prenda seus ganchos em você, vai levá-la aonde precisa que você vá.

Eu balancei a cabeça.

— Que é...?

— Os lugares óbvios. Um incêndio, um massacre. Talvez uma guerra. A minha primeira vez juntou as três coisas, uma cidade inteira morrendo. Eu não estava completamente preparado.

— Ah. — Me ocorreu que Yama havia aparecido no aeroporto, bem quando oitenta e sete pessoas estavam sendo assassinadas. Ele provavelmente não estava ali para pegar um voo. — Então, quando muitas pessoas morrem, psicopompos simplesmente aparecem?

Ele estremeceu um pouco.

— Psicopompos. Que palavra deselegante.

— Isso é verdade. Você tem uma melhor?

— Eu penso em mim mesmo como um artista. — Ele deu um tapinha nos bolsos de seu casaco remendado. — Um dia vou te mostrar o que quero dizer.

— Não, obrigada. — Mas pelo menos o velho estava me contando coisas de que eu não sabia. Eu seria chamada um dia, aparentemente. O que mais Yama estava escondendo de mim?

— Mas talvez outra palavra para uma garota bonita como você — disse ele. — De onde eu venho, se chamavam “valquírias”. Significa “a que escolhe os mortos”.

Não respondi, mas gostei do som daquilo. Deve ter ficado óbvio, porque o velho sorriu novamente.

— Posso ajudar você com o seu assassino. Eu já fui cirurgião. — O velho deu um passo na minha direção, seu sorriso lento grudado aos lábios. Ele esticou as mãos, se aproximando no escuro. — Eu sou muito bom com tesoura e linha.

Minha mão foi para a faca no bolso.

— O que você está fazendo?

— Te mostrando isto. — Ele ajeitou o casaco remendado. Estava a apenas um braço de distância de mim agora, e eu conseguia senti-lo como um ponto frio naquele lugar. — Eu costurei isso com trapos. Como você pode ver, ele me veste muito bem.

— Por que eu me importaria com isso? — Meus dedos apertaram o cabo de metal da faca.

— Porque eu posso cortar o fantasma dele em pedaços.

— Não é isso que eu... — Minha voz desapareceu. Na verdade eu não sabia o que queria que ele fizesse.

— Confie em mim — falou ele. — É o que você precisa fazer para deixar sua amiguinha feliz de novo. Eu só tenho uma condição.

Dei alguns passos para trás, e meus ombros tocaram as coisas frias que tinham se reunido ao meu redor na escuridão. Eu me forcei a não tremer.

— O quê?

— Mate-o você mesma. Então eu faço o corte.

Olhei para o velho, tentando medir o seu sorriso. Será que ele estava brincando?

— Não posso fazer isso.

Ele alisou o casaco com um gesto lento, como se fosse de seda em vez de trapos.

— Claro que pode. É uma valquíria. Uma donzela guerreira.

— Não. — É verdade, da última vez que tinha estado na casa do homem mau, pensei em acabar com ele. Mas realmente matar alguém? — Eu nem sei como.

— Ele é só um homem. Todas as técnicas habituais se aplicam.

— Eu ainda não consigo viajar com o meu corpo real. Sou apenas um fantasma quando estou lá. — Balancei a cabeça. — Essa conversa é idiota. Eu não vou matar ninguém.

— Que decepcionante — disse o velho com um suspiro. — Você não é a valquíria que pensei que fosse.

Fiquei olhando para ele.

— Então você não vai me ajudar?

— Estou me esforçando muito para isso — disse ele com cuidado. Em seguida, enfiou as mãos nos bolsos. — Mas vejo mais um trabalho a ser realizado.

Um momento depois, ele havia desaparecido.

Voltei da escola fantasma andando para casa, com as mãos nos bolsos, respirando o ar fresco do mundo real. Parte de mim estava aliviada pelo velho ter me pedido algo que eu não podia dar. Cada momento com ele era como estar com meias molhadas; tudo o que eu queria era que aquilo acabasse.

Talvez Yama estivesse certo, e ajudar Mindy só me faria cair mais nos braços do além-mundo.

Mas foi então que vi algo do outro lado da rua. Brilhava sob a luz fosforescente, uma coluna chamativa de branco na escuridão — um telefone público antigo, com laterais plásticas arranhadas e maltratadas. Não existem muitos telefones públicos mais, e por um momento me perguntei se também era um fantasma. Se escolas e sons podiam ter fantasmas, por que não telefones?

Àquela hora já não haviam carros nem pessoas passando, só o vento e o cheiro do oceano. Então atravessei a rua, curiosa. O fone nas minhas mãos era de um plástico duro — o telefone era real. Eu meio que esperava não ouvir nada, mas o tom de discagem soou no meu ouvido.

Apertei zero, como se eu sempre tivesse pretendido fazer uma ligação.

— Telefonista? — veio a voz, distante e baixa, como algo do outro lado. Por um momento, esperei que me perguntasse qual a emergência.

— Eu gostaria de fazer uma ligação a cobrar — falei. Antes que conseguisse me segurar, falei o número do homem mau. Ele pareceu ácido na minha boca. Mas eu precisava fazer alguma coisa, não importava o quão fútil.

— Seu nome, por favor? — perguntou a telefonista.

— Como?

— Quem devo dizer que está ligando.

Levei um segundo para responder.

— Mindy.

— Por favor, aguarde enquanto faço a ligação, Mindy. — Zunidos e estalos, e o som abafado dos toques.

Então outra voz distante respondeu:

— Alô?

Cada músculo do meu corpo se retesou, e afastei o fone da minha cabeça. De repente minha respiração estava acelerada, meu suor frio na brisa. Um gosto amargo tomou minha boca, e o telefone pareceu escorregar da minha mão. Ouvir a voz do homem mau o havia feito ser um pouco mais real.

Demorei muito tempo para trazer o fone de volta ao rosto, tanto que tinha certeza de que ele havia desligado. Mas ouvi uma respiração do outro lado da linha.

— É você? — perguntei.

— Quem diabos está falando? — Sua voz estava áspera, como se tivesse acabado de acordar.

Fiquei paralisada. Só conseguia respirar.

— Eu não conheço nenhuma Mindy. Por que você está me ligando?

— Eu sei o que você fez — consegui dizer. — Eu sei o que você é.

Foi a vez dele de ficar em silêncio.

— E eu vou pegar você. — Essas palavras estavam me trazendo uma estranha calma. — Você não pode me impedir. Eu consigo atravessar paredes.

— Quem é?

— Nem a morte pode me impedir. Eu tenho um amigo que destrói almas. — Não sei de onde estavam vindo as palavras, que parte minha as estava inventando. Mas o gosto delas era doce. — Eu vou dar sua alma para as coisas frias do rio comerem. E aquelas garotinhas no seu jardim vão assistir de camarote.

Ele não respondeu, então desliguei. Conforme me afastava, as luzes fosforescentes do telefone falharam, a escuridão tremendo ao meu redor. Eu só queria assustá-lo, fazê-lo pagar um pouco por tudo que tinha feito. Pelo menos o homem mau sabia que agora havia alguém lhe procurando.

E então, quase um minuto depois, quando eu já estava quase longe demais para escutar, o telefone público começou a tocar.

Mindy estava parada no meu jardim, com os braços cruzados.

— Você fugiu de mim! Isso não foi nada legal.

— Desculpa. — Eu não tinha contado o que estava tentando fazer. Não queria que ela pensasse sobre o homem mau, psicopompos nem nada disso. — Tive que fazer uma coisa importante.

— Sério? — Sua expressão se suavizou. — Você parece triste.

— Só estou cansada. — Eu não dormia fazia duas semanas. Sono não era mais parte de mim. Quando me deitava na cama, a escuridão por trás das minhas pálpebras ficava cheia de sombras trêmulas, meu cérebro cheio de sonhos não sonhados.

Mindy riu.

— Pompos não dormem. Você podia brincar comigo! Eu estou superentediada.

Sorri para ela. Às vezes, quando o medo permitia, dava para ver a criança feliz que ela fora antes que o homem mau a pegasse.

— Certo. O que você quer fazer?

— Vamos para Nova York. Como você disse.

Fiquei olhando para ela.

— Você quer ver o Chrysler Building? Achei que tivesse medo do rio.

— Bem, você quer ver. E está tão legal desde que você começou a... me ver. — Ela abaixou a voz. — Como eu disse, fico entediada aqui.

Não consegui acreditar. Talvez fantasmas pudessem mudar. Talvez Mindy só precisasse escapar de sua invisibilidade fantasmagórica para poder crescer de novo. Talvez ela só precisasse de um amigo.

— Não vou ficar com medo se você estiver comigo — completou. — Minha psicoguarda-costas pessoal. Só não me deixe sozinha.

— É claro que não. — Sorri quando sua mãozinha segurou a minha. — Eu sempre vou te trazer para casa.

* * *

O rio Vaitarna foi gentil com Mindy em sua primeira viagem. Só sentimos poucos restos frios e úmidos de memória, e a viagem para Nova York foi rápida e calma. Talvez eu estivesse ficando melhor nisso, ou talvez minha conexão com o Chrysler Building fosse forte.

Ou foi o que pensei até sair do rio.

Estávamos em Nova York, mas o bairro estava errado. Em vez de arranha-céus, estávamos cercadas de prédios residenciais e uma grande loja de departamento. Só uma torre alta e cheia de curvas se agigantava sobre nós, coberta de vidro espelhado. Levei um momento para reconhecer — o prédio do meu pai.

— Uau — comentou Mindy. — Você estava certa. É gigante!

— Esse não é o Chrysler. Acho que fiz besteira.

Ela olhou para mim.

— Tem certeza? É tão grande!

— O Chrysler Building é, tipo, cinco vezes maior. Esse é o prédio em que o meu pai mora.

Mindy deu uma risada descrente. Ela nunca tinha ido a Nova York, ou a qualquer outro lugar, supus. Tinha passado a maior parte dos últimos 35 anos a poucos metros de distância do closet da minha mãe.

— Onde estão as casas? — perguntou ela, olhando em volta. A neve cinzenta cobria tudo. O inverno ali era dez vezes mais frio do que em San Diego, mas o ar do outro lado era da mesma temperatura indiferente.

— Não tem muitas casas aqui. Em Nova York as pessoas moram em apartamentos. — Segurei a mão dela. — Vem, vou te mostrar.

Ela me segurou.

— Aquele prédio inteiro está cheio de gente? E as pessoas moram ali?

— É. E daí?

— Então isso significa que elas morrem aí. — Ela se recusou a andar. — Deve ter um milhão de fantasmas aí dentro!

Suspirei, me perguntando se seria mais fácil simplesmente andar até o Chrysler. Mas eu estava curiosa: por que o rio havia nos levado até ali? Será que eu tinha uma conexão tão forte com o apartamento do meu pai? Nunca havia me sentindo confortável ali.

— Não se preocupe, Mindy. Esse prédio foi construído há poucos anos. Meu pai só gosta de coisas novas em folha. — Ainda assim ela não se mexeu, então prestei atenção ao cheiro do ar. Havia mais ferrugem do que em San Diego, mas nada como a casa do homem mau. — Você está vendo fantasmas?

Ela deu uma espiada lá dentro, observando o hall de mármore, o porteiro, depois as ruas em volta. O horário de Nova York era três horas adiantado, então faltava pouco para o nascer do dia, mas ainda havia algumas pessoas passando.

— Só vivente. — Os dedos dela apertaram os meus. — Mas e se é porque tem muitos pompos para pegar os fantasmas?

Suspirei.

— Meu pai diz que gosta de Nova York porque não precisa conversar com os vizinhos. Então os fantasmas provavelmente somem, certo? Ou talvez voltem para suas cidades natais, onde as pessoas se lembram deles.

— Talvez. Mas fica perto de mim, tá, Lizzie?

— Claro. — Eu a puxei gentilmente pela rua.

Ali, no outro lado, eu não conseguia nem apertar o botão do elevador, então subimos de escada. Meu pai morava no 15º andar, mas eu não estava sem fôlego quando cheguei. Aparentemente andar no outro lado não queimava calorias.

Comecei a ficar nervosa quando paramos na frente do apartamento. Eu tinha entrado em muitos lugares enquanto estava do outro lado, mas era a primeira vez que usava minha invisibilidade para espiar alguém conhecido. Precisei me concentrar por um minuto até conseguir atravessar a porta.

Lá dentro, o apartamento era como eu lembrava, algumas semanas antes — cromados e móveis de couro, janelas imensas com uma vista para a cidade iluminada pelo luar. O horizonte brilhava como o gelo pendurado no peitoril da varanda lá fora, elegante e frio.

A televisão gigante do meu pai estava ligada, mas mantive os olhos longe dela. Pelo que eu tinha experimentado em casa, sabia que TVs ficavam muito estranhas no outro lado. Parece que os gatos, com seus olhos fantasmagóricos, observam televisões totalmente apavorados. Ou talvez sejam só estranhos.

— Quem é aquela? — perguntou Mindy.

— Rachel, a namorada do meu pai. — Os dois estavam abraçados no sofá, observando a TV.

— É engraçado ele estar aqui com outra pessoa. Eu meio que sinto falta dele, mesmo que seja um bobão.

— Eu também — falei, me surpreendendo um pouco.

Mindy nunca tinha falado do meu pai, embora é claro que o conhecesse desde antes de eu nascer. Provavelmente sabia mais sobre a separação dos meus pais do que eu, e ainda assim ela ficou observando o casal no sofá como se estivesse confusa com o conceito de divórcio.

Às vezes eu me perguntava se minha mãe também sentia faltado meu pai. Ela sempre parecia tão cansada ultimamente, como se perdê-lo tivesse tirado alguma energia vital dela. Ou talvez fossem apenas todos os turnos extras que ela precisava fazer no trabalho.

Toquei minha bochecha, a cicatriz com formato de lágrima. Por um momento, pensei em deixar o outro lado e mostrar ao meu pai como ela era incrível, e como eu não a disfarçava com maquiagem. E talvez perguntar por que ele não tinha ido para Dallas três semanas antes.

Foi quando percebi que tinha sido a raiva que me levara até lá. Ultimamente, parecia que eu era um fantoche da minha raiva, indo aonde ela queria. Eu tinha perdido a paciência para vários amigos, e todos, exceto Jamie, estavam com medo de mim. A raiva me fez ligar para o homem mau, em uma débil tentativa de assustá-lo.

Ainda conseguia ouvir o telefone tocando quando fui embora. Ele provavelmente já sabia onde esse telefone público ficava agora.

Suspirei e me afastei do meu pai para olhar Rachel. Eu nunca tinha contado para a minha mãe como ela era bonita, e tinha afastado isso da minha memória por lealdade. Seu rosto brilhava sob a luz da TV, seus grandes olhos assistindo ao filme com a intensidade de uma criança.

— Ele nunca conta para ela que tem uma arma — falou o meu pai, apontando para a tela.

— Shh! — gritou Rachel. — Já falei, sem spoilers!

Revirei os olhos. Essa era a melhor fonte de diversão para o meu pai: assistir a um filme que ele já tinha visto com alguém que estava vendo pela primeira vez. Como se ele fosse algum tipo de expert em cinema, e você, um idiota por não prever o que ia acontecer.

— Não é um spoiler, na verdade — retrucou ele. — Mas é algo em que você deve prestar atenção se realmente quiser entender a motivação dele.

Rachel suspirou, e me perguntei de novo por que ela estava com ele.

Meu pai tinha muito dinheiro, claro, e minhas amigas da escola costumavam dizer que ele era gato, para um cara velho. Mas as duas razões pareciam muito fúteis para Rachel. Ela era inteligente, divertida e sabia tudo sobre história da arte. Visitar museus com ela tinha sido minha parte favorita da viagem para nova York. E ela sempre parecia saber quando eu precisava me afastar do meu pai.

Ela devia ter descoberto um lado dele que eu não conhecia. Mas espiar os dois de repente não parecia a melhor forma de descobrir.

— Vir aqui não foi uma ideia tão boa — falei.

— Pelo menos não têm fantasmas. — Mindy estava se encaminhando para o quarto. — Esse lugar é minúsculo. Achei que o seu pai fosse rico.

— Apartamentos são pequenos, comparados a casas.

— Deve ser difícil brincar de pique-esconde.

Eu ri.

— Não acho que meu pai brinque muito de pique-esconde.

— Mas deve ter crianças em Nova York. — Mindy franziu a testa. — Certo?

— Claro. — Nós estávamos no quarto do meu pai agora, o único quarto de verdade no apartamento. Durante a minha visita, eu tinha dormido no escritório, em um sofá de couro com um cheiro gostoso de antigo. — Tem um parquinho perto daqui.

Ele estava cheio de babás e crianças, e pontilhado com manchas de chiclete. Fiquei imaginando como seria sua história em uma visão, um piscar de olhos.

— Mas não tem onde se esconder — disse Mindy.

— Você acha? Dê uma olhada nisso.

A porta do armário do meu pai estava fechada, mas fui caminhando em direção a ela. Não tentei imaginar o passado, apenas continuei andando até passar. A porta de madeira ofereceu tanta resistência quanto um raio de sol empoeirado.

Quando meus olhos se adaptaram à escuridão, vi que Mindy tinha me seguido.

Ela ficou ali, na luz sem cor do outro lado, olhando para as gavetas com frente de vidro e os ternos cinzentos pendurados bem organizados na escuridão.

— Aposto que você queria que a minha mãe tivesse um closet que nem este — falei. — Muito luxuoso para um esconderijo.

— De jeito nenhum — sussurrou Mindy. — Alguém poderia se esconder aqui comigo e eu nem ia ficar sabendo!

Eu ri, mas Mindy estava certa. O closet era quase outro quarto. Mesmo em plena luz do dia o outro lado nunca era muito luminoso, mas os cantos mais escondidos do armário tinham poças de sombra que poderiam ter qualquer coisa.

Eu estendi a mão.

— Se você está com medo, podemos ir embora.

— Claro que não — disse Mindy, mas ela estava em pé perto de mim. — Ainda assim, eu não gostaria de morar com o seu pai.

— Nem eu. — Pensei na minha inquietação em ficar aqui. Talvez não fosse o mobiliário elegante e desconfortável, ou mesmo o fato de que eu não tinha perdoado meu pai por abandonar a gente. Talvez Mindy tivesse visto a coisa mais importante que faltava aqui: um lugar para se esconder, desaparecer.

Deixei meus dedos passearem pelas mangas dos casacos do meu pai, tentando sentir as sedas, lãs e linhos. Mas, como cores e aromas, as texturas também eram abafadas no outro lado. Dinheiro não importa muito quando você está morto, acho. Mesmo os melhores ternos acabam cinzentos e simples.

— Fiquei feliz por você ter me trazido aqui — disse Mindy. — Meus pais não gostavam de cidades grandes. Eu nunca vi um arranha-céu de verdade antes.

Eu olhei para ela.

— Vou te mostrar um de verdade, então. Dá para chegar no Chrysler Building em meia hora andando. É cinco vezes mais alto, eu juro.

— Sério?

— Bem mais bonito também. Tem gárgulas! Vamos.

Mas, quando me virei para sair, um sussurro flutuou até meus ouvidos, uma palavra semiformada vinda da escuridão das profundezas do closet. Congelei.

— Você ouviu isso?

— Ouvi o quê? — perguntou Mindy.

Estreitei os olhos para a escuridão, escutando com atenção por cinco respirações lentas.

— Nada, acho. — Mas um arrepio frio permanecia na minha pele, e quando me virei para a porta do armário de novo, ela pareceu muito sólida.

Estiquei a mão e a toquei. A madeira parecia bem real.

— Ah, merda.

Mindy agarrou minha mão.

Fiquei olhando para a porta. Do outro lado, ela havia parecido uma barreira trivial. Mas de dentro do closet, parecia impenetrável, sufocante. Como eu havia me convencido de que objetos sólidos poderiam ser ignorados?

Um suor frio de claustrofobia correu pelas minhas costas, um lembrete do sentimento da minha infância.

— Está tudo bem. Só...

Eu ouvi o sussurro de novo, sem palavras, suave, vindo do fundo do closet.

Fechei os olhos com força e segui em frente. Mas, como esperado, como eu sabia que ia acontecer, meu pé bateu na porta.

— Bosta. — Segurei a maçaneta interna, sentindo o metal frio e liso, mas é claro que meu corpo fantasmagórico era incapaz de mexer nas coisas do mundo real.

— Não tem problema, Lizzie. Você sabe fazer isso. É só não pensar.

— Por favor, não fala nada.

Respirei fundo devagar e pousei a mão na madeira. Tentei empurrá-la, mas a porta permaneceu sólida e inflexível.

Minha respiração estava cada vez mais rápida, mas o pânico não podia me fazer voltar ao mundo real. Meu corpo estava a quilômetros de distância.

Um pensamento horrível me atingiu com toda a força. E se eu ficasse presa aqui, meu espírito arrancado do corpo para sempre...

Foi então que ouvimos, um som na escuridão, nos profundezas do closet, atrás da parede dos fundos. Parecia como tesouras enferrujadas abrindo e fechando, passando pelo piso de madeira liso sob nossos pés.

Era o velho no casaco remendado. Tinha que ser.

Fechei os punhos e me virei para a escuridão.

— Você de novo? Sério?

A escuridão não respondeu. Nem mesmo um arranhar. Mas os choramingos de Mindy dominavam o espaço.

— Por favor, Lizzie — implorou ela. — Vamos embora.

Não falei que não conseguia sair. Não queria dizer em voz alta que o velho havia me prendido aqui, numa teia do meu próprio pânico.

— Está tudo bem. Eu não tenho medo dele. — Só tinha medo das quatro paredes, pesadas e sólidas, ao meu redor.

Mas o medo só me deixava com mais raiva. Não tinha trazido a faca, mas encarei a escuridão, pronta para socar, chutar e morder. Mindy se segurava a mim, tremendo, e por um momento o único som foi nossa respiração.

Então veio um murmúrio.

— Quero você nos meus bolsos, garotinha.

— Vamos correr — pediu Mindy. — Por favor, Lizzie!

— Só fica aqui do meu lado. — Tentei manter a voz firme, mas o ar pesava nos meus pulmões, as paredes do closet pareciam se fechar. O pânico precisava escoar para algum lugar, então se transformou num tremor que atravessou meu corpo inteiro.

— Eu quero seus segredos, garotinha — veio o sussurro do velho.

Os dedos de Mindy apertavam os meus como uma prensa, a respiração rápida como a de um coelhinho.

—Tudo bem — falei. — Não vou deixar ele te machucar.

— Estou chegando perto... — A voz estava quase no meu ouvido.

— Lizzie! — gritou Mindy, me puxando para trás, para longe da escuridão. Mas a porta me parou, firme e sólida, e Mindy fez o que era natural para ela.

Correu.

No momento em que senti Mindy fugindo, me virei e gritei seu nome. Soquei a porta, pedindo para ela esperar, para ficar aqui comigo.

Mas ela havia sumido, junto com a presença que ocupara o closet conosco. Ele queria a ela, não a mim.

— Mindy! — chamei de novo, a voz rouca. Sem resposta.

Eu precisava fugir daquele closet, então tentei pensar na primeira vez que tinha conseguido fazer aquele truque. Cobrindo os olhos com as mãos trêmulas, imaginei a torre ao meu redor desconstruída, as paredes sem tinta, os apartamentos vazios, a tubulação e os fios elétricos expostos...

Quando baixei as mãos, não havia porta de closet na minha frente, não havia closet, nem mesmo havia chão sob os meus pés. Só o esqueleto de um prédio, com vigas e a cidade cinza e fria visível em todas as direções.

— Bosta — falei quando comecei a cair.

Mas eu não estava girando como alguém que cai de uma janela. Eu era leve como uma pluma, flutuando lentamente para baixo na boca aberta da fundação do prédio. E, quando a escuridão me rodeou, me fiz atravessar a superfície do mundo para o rio Vaitarna.

Um momento depois, meus pés pousaram naquela planície ampla e vazia. O meu pânico havia sumido, transformado em raiva, mas eu não tinha ideia de como encontrar o velho.

Então só disse:

— Yama, droga, eu preciso de você.


CAPÍTULO 27

O verão acabou com relutância, esperando até meados de setembro para que o calor não fizesse mais os sacos de lixo suar e vazar. Mas, finalmente, tentáculos de ar frio se infiltraram pelas janelas abertas de Darcy à noite, e o céu se tingiu do azul-escuro do outono.

As duas seguiram nas revisões, Imogen enviando Ailuromante para a editora alguns dias antes da turnê. O livro seguia sem um título decente, mas a Paradox lhe dera o prazo de até o início do ano seguinte para tal.

Darcy tinha terminado a revisão de Além-mundos, exceto pelo novo final, que a paralisava só de pensar. Havia tentado escrever um ensaio sobre suas dificuldades, se por mais nada, para ter o que postar no seu Tumblr vazio, mas ia parecer só reclamação. Por fim ela conversou com Moxie, e uma ligação para Nan Eliot lhe ganhou uma extensão de prazo até o final de novembro.

Novembro... O mês em que Darcy havia escrito um livro inteiro. É claro que conseguiria inventar um novo final. E, nesse meio-tempo, sair em turnê com Imogen e Stanley Anderson com certeza clarearia sua mente.

* * *

Darcy e Imogen chegaram ao aeroporto JFK com quase duas horas de antecedência para o embarque, obedientemente carregando uma bagagem de mão e uma mochila cada. Standerson havia avisado que bagagens despachadas seriam perdidas no primeiro voo e jamais recuperadas. Desobedecê-lo não parecia boa ideia.

O primeiro voo era o mais longo da turnê, atravessando o país até São Francisco. De lá, eles passariam pelo sudoeste e depois pelo meio-oeste, parando em Chicago. (Standerson, é claro, continuaria por um mês inteiro, com outros jovens autores esperançosos da Paradox se juntando a ele durante esse tempo.)

Darcy esperou pelo embarque em um estado de completa animação, depois exigiu sentar no assento da janela e ficou observando a paisagem passando lá embaixo, tentando ler os grifos dos trevos das rodovias e de sistemas de irrigação em círculo. O país era tão grande. Era estranho pensar que amanhã, exemplares de Piromante surgiriam de caixas de papelão em livrarias do país inteiro, assim como cópias digitais correndo por fios e se espalhando pelo ar. E, em quase exatamente um ano, seria a vez do seu Além-mundos fazer o mesmo...

Imogen estava fazendo anotações, como sempre, caso algum dia precisasse escrever uma cena em um avião. Ela tirou fotografias do manual de evacuação de emergência, do layout da cabine, até da textura do tecido do assento. Ver Imogen fazer sua pesquisa — especialmente para um livro que ela nem havia começado a escrever — só deixava Darcy mais nervosa.

— Você nunca voou de avião antes? — finalmente perguntou Imogen.

— É claro que sim. Mas não numa turnê.

Imogen sorriu, tirando a mão de Darcy do apoio de braço entre elas. Quando seus dedos se entrelaçaram, ela disse:

— Guarde um pouco de energia para amanhã, e para mais seis dias depois disso.

Darcy ficou brincando com o cinto de segurança, se sentindo boba e infantil.

— Você ainda está feliz por ter me convidado?

— É claro. Mas este é só o primeiro de muitos.

Stanley Anderson as esperava no aeroporto de São Francisco, tendo chegado do Kentucky uma hora antes. Estava sentado perto do portão delas, lendo um exemplar de Piromante.

Darcy achou estranho vê-lo sentado ali sozinho, sem que ninguém prestasse atenção a ele. Seu mais humilde post na internet gerava centenas de respostas em minutos, e na festa dela no apartamento 4E uma bolha de atenção e expectativa havia se formado ao seu redor, com todos olhando por cima do ombro para verificar se ele era de verdade. Mas ali, no aeroporto de São Francisco, ele era apenas mais um viajante, vestido confortavelmente de jeans, tênis e uma jaqueta militar larga.

Ele ergueu os olhos quando elas chegaram perto.

— Chegaram!

— Desculpe o atraso — falou Darcy.

— Nunca é culpa dos passageiros. — Ele guardou Piromante em um grande bolso da jaqueta e esticou o puxador da mala verde-marca-texto. — Sem contar que eu meio que gosto de aeroportos. Tantas placas nos avisando para onde ir.

Ele apontou para uma acima de sua cabeça: Táxis e limousines.

Quando as duas o seguiram, Imogen arregalou os olhos para a pontinha de Piromante saindo do bolso de Standerson. O livro estava marcado em um terço, mais ou menos na altura em que Ariel Flint ganhava seus poderes incendiários.

— Vocês vão adorar nosso motorista — comentou Standerson. — Eu sempre ando com o mesmo cara, toda turnê. Ele é media escort há trinta anos e sabe todas as fofocas. Não se esqueçam de pedir para ele contar sobre a vez que botou fogo no casaco do Jeffrey Archer. Spoiler: não foi um acidente.

— Uau — disse Darcy. Ela sabia que eles teriam motoristas para levá-los de um lugar para o outro, mas “media escorts”? Parecia muito ilustre.

— Mas tem uma coisa que vocês precisam saber sobre o Anton — continuou Standerson. — Ele não sabe dirigir.

— Dirigir um carro, você quer dizer? — perguntou Imogen.

— Então como a gente vai para os lugares? — completou Darcy.

— No carro dele. — Standerson deu de ombros. — Quer dizer, ele sabe dirigir, legalmente. Só não é mais tão bom nisso quanto antigamente. Meio que está perdendo a visão, a coordenação e a concentração. Mas ele tem tantas histórias extraordinárias!

— Como um corretor de imóveis que não sabe usar uma chave — comentou Imogen. — Só que mais perigoso.

— Ele bateu algumas vezes nos últimos tempos, o que é meio assustador — seguiu Standerson, depois se animou. — Mas é um fato bem sabido que, se morrer em turnê, você vai direto para o paraíso YA!

Darcy olhou para Imogen.

— Existe um paraíso YA?

— É claro — respondeu ele. Eles estavam passando por um corredor longo e escuro, quase um túnel, que levava à área das bagagens, e a iluminação estava mudando de cor lentamente em volta deles. Era só algum comercial de uma empresa de computadores, mas pareceu muito místico, com a voz de Standerson baixa e misteriosa. — É ótimo lá em cima. Cada escritor ganha seu próprio bangalô, e todo mundo fica deitado em redes, trocando dicas de escrita. Toda noite tem uma discussão sobre construção de universos. E muita bebida.

Imogen riu.

— Eu vi esse tópico no seu fórum. A gente não ganha um time de pesquisa também, com direito a historiadores, especialistas em artes marciais e cirurgiões consultores?

— Parece legal — disse Darcy quando chegaram a uma escada-rolante que descia. — Mas e se você ainda não tiver sido impresso na hora do seu terrível acidente de carro? Ainda tem direito ao paraíso YA?

— Pergunta complexa — respondeu Standerson. — Você já tem algum elogio de capa?

— Uma do Oscar Lassiter, e a Kiralee Taylor está esperando a revisão para decidir.

— Oscar e Kiralee? Minha nossa. Então tu também irás para o reino dos céus!

Darcy ficou estranhamente aliviada com essa notícia.

A área de desembarque se abriu diante deles, centenas de malas circulando por dezenas de esteiras. Parecia estressante e caótico, e Darcy se sentiu bem por ter sua bagagem toda em mãos. Ela fez uma anotação mental para seguir todos os conselhos de Standerson no que dissesse respeito a turnês.

Na base da escada rolante, um homem alto em um terno verde-escuro acenava para eles. Ele segurava uma plaquinha manuscrita que dizia ANDERSON, e os dois homens se cumprimentaram com sorrisos e apertos de mão.

O homem se virou para Darcy e Imogen.

— Bem-vindas a São Francisco! Anton Jones, às ordens. O carro está por aqui!

Eles o seguiram, e alguns minutos depois as bolsas estavam no porta-malas de um grande sedã prateado. Standerson sentou na frente com Jones, e Imogen e Darcy ficaram no banco de trás. Suas mãos se esticaram em busca uma da outra, apertando com força. Estavam realmente juntas ali, em turnê.

Enquanto o carro deixava o aeroporto, Anton Jones contou tudo sobre seu último cliente, um chef celebridade que comandava as sessões de autógrafo do seu livro como um restaurante na hora do jantar. O chef gritava ordens aos funcionários da livraria atrás dele, que corriam para ele com livros abertos na folha de rosto, enquanto um time de assessores se escondia pelos cantos com pilhas de fotografias autografadas e rolhas de garrafa.

Era uma história muito engraçada, mas conforme Anton imitava os gritos e gestos do chef, se tornou claro que sua falta de habilidade na direção não era mais um dos fantásticos conceitos de Standerson. Jones enfiava o sedã no meio do trânsito de fim de tarde, trocando de faixa sem preocupações e pisando alternadamente no acelerador e no freio, como se estivesse tentando esmagar um furão mortal no chão do carro.

Darcy começou a suar frio e a sentir as primeiras reclamações de enjoo no estômago. Ela tentou engolir a saliva, mas o ar do avião tinha deixado sua boca seca.

Quando Jones jogou o carro para o lado tentando ultrapassar um caminhão, a velocidade fez Darcy cair em cima de Imogen. Esmagada junto à porta, ela soltou um resmungo baixo, e assim que o carro se estabilizou passou o braço pelos ombros de Darcy.

— Me conta mais sobre o paraíso YA? — pediu Darcy.

Os meninos ainda conversavam alegremente na frente, sem se importar com o perigo, então Imogen respondeu baixinho:

— Você precisa se vestir bem. Se conseguiu entrar na lista de mais vendidos do New York Times, pode usar um roupão preto com detalhes vermelhos, como o reitor de um internato.

— Isso deve deixar todo mundo bem irritado.

— Na verdade não. Os roupões parecem chiques, mas são bem quentes, e todo mundo deseja em segredo as tiaras brilhantes que só os vencedores do Printz podem usar.

— O Printz Award é tão importante assim?

— É claro! É praticamente um título de nobreza.

De alguma forma Standerson tinha ouvido a conversa, e disse por cima do ombro:

— Na verdade, é melhor, porque títulos de nobreza podem ser revogados por traições ou outros crimes graves. Mas mesmo que você vire um assassino em série, ninguém tira o seu adesivo do Printz.

— Bom argumento — comentou Imogen. — Mas prêmios não importam no paraíso YA, porque você pode ficar escrevendo o dia todo. Nada de contas, nada de cozinha, nada de limpeza. Só escrever e conversar sobre escrever, e todo mundo pode aprovar as próprias capas.

Darcy fechou os olhos e tentou imaginar que o balanço do carro era a rede abaixo dela. Por mais bobo que fosse, a ideia de um paraíso YA a fazia muito feliz. Muitas vezes, em casa, quando tinha conseguido escrever bem e elas tinham saído para jantar com Oscar, Coleman ou Johari para discutir plots e palavras a noite toda, Darcy sentia como se já estivesse lá.

* * *

Com a turnê começando cedo no dia seguinte, Darcy tinha esperado não dormir naquela noite. Mas a cama gigantesca e confortável do hotel, combinada a três horas de jet lag, a derrubaram antes de meia-noite.

A manhã seguinte começou com visitas a escolas. Anton Jones os buscou cedo, para uma viagem pelos subúrbios, onde o auditório da Avalon High esperava. Falar na frente de alunos sempre assustara Darcy, e ela estava feliz por esta ser só sua turnê de pré-publicação. Seu trabalho era puxar o saco de bibliotecários e livreiros, e de resto se manter fora de vista.

O trânsito da hora do rush matinal manteve o sedã abaixo de velocidades assassinas, e Standerson, que havia sofrido mais um de seus frequentes surtos de dispepsia na noite anterior, conseguiu tirar uma soneca no banco da frente. Tudo ia bem até o GPS anunciar que eles haviam chegado ao colégio, o que era parcialmente verdadeiro. Uma cerca de arame-farpado alta estava entre o carro e os prédios da escola, visíveis a distância depois de um campo de futebol bem conservado.

— Nunca dá para achar a porcaria da secretaria — reclamou Jones, começando a dirigir em volta da cerca. A barreira parecia seguir para sempre, sem sinal de entrada.

— Um conceito brilhante de segurança — comentou Imogen. — Só um probleminha: ninguém consegue entrar.

Jones assentiu.

— Está assim desde Columbine, o que é ridículo. Foram alunos que atiraram!

— Sua programação não tinha um número de telefone para contato? — perguntou Darcy.

— Sim, o bibliotecário da escola. — Imogen começou a procurar pelas vinte páginas com todos os detalhes da viagem e dos eventos enviadas por fax para a recepção do hotel na noite anterior. Ela pegou o celular e digitou o número. — Porcaria, está caindo na caixa postal. Teoricamente ele está nos esperando na entrada.

— Não estou vendo nenhuma entrada — falou Jones. — Essa escola é só fundos!

— As escolas do subúrbio são fortalezas impenetráveis — comentou Imogen sombriamente. — Eu sempre fui tão boa em escapar desses lugares.

Standerson se mexeu no banco e abriu um olho sonolento.

— Já chegamos?

— Desculpe, Stan — falou Anton. — É uma daquelas escolas que não dá para encontrar a secretaria.

— Mastro — murmurou Standerson, depois se encolheu de volta na janela do passageiro.

Os três se inclinaram para a frente e imediatamente apontaram à frente à esquerda, onde a bandeira americana tremulava no vento frio.

Dez minutos depois estavam no palco, encarando mil assentos vazios. Standerson parecia completamente desperto e nem um pouco dispéptico, Imogen caminhava de um lado para o outro, nervosa, e Darcy só estava enjoada da viagem de carro.

— Ensino médio — comentou Imogen. — Achei que nunca mais estaria em um colégio de novo.

— Não é? — Standerson respirou fundo. — O cheiro dos armários e dos feromônios, a petulância inocente de pôsteres feitos à mão. É uma ideia brilhante das editoras nos obrigar a fazer visitas escolares. Assim nos lembramos de como tudo isso é de verdade.

— Na verdade eu ainda não esqueci — disse Darcy, embora Standerson tivesse razão sobre os cheiros. As lembranças da escola estavam voltando à toda para o seu cérebro, como uma memória de quatro dias em vez de quatro meses. Seu alívio por não ter que subir no palco redobrava a cada minuto.

— E se a gente nunca tiver saído? — perguntou Imogen. — E se sempre estivéssemos aqui, e a vida adulta fosse só uma ilusão?

— Belo conceito — comentou Standerson. — Mas para uma trilogia ou para um tuíte?

— Não consigo mais diferenciar.

Darcy ainda estava ponderando a pergunta quando o bibliotecário, que os havia deixado para verificar alguma coisa na secretaria, reapareceu. Ele era alto e ruivo, e falava com uma ênfase nas consoantes que fez Darcy se perguntar se tinha crescido falando espanhol.

— Certo, vamos chamar as turmas agora. Infelizmente temos provas sendo administradas, então serão apenas duzentos alunos, mais ou menos, do nono e décimo anos.

Imogen soltou uma risada nervosa.

— Apenas duzentos?

— Vou fazer com que sentem na frente. — O bibliotecário se virou para Darcy. — A assessora me mandou um e-mail ontem à noite dizendo que você viria. Também é escritora?

Darcy se sentiu corar.

— Sim. Mas meu livro ainda não foi publicado.

— E você tem quantos anos?

— Dezoito.

— Isso é ótimo. Os alunos de escrita criativa vão amar ouvir sua história.

Darcy piscou, confusa.

— O quê? Não, eu...

— Tenho certeza de que sim — interrompeu Standerson. — Darcy é uma inspiração para todos nós.

— Mas eu nem ia... — começou Darcy, mas naquele momento os alto-falantes da escola estalaram e veio o aviso que ecoou pelos corredores, pedindo para que todos os alunos das aulas de inglês se encaminhassem ao auditório. Quando o aviso terminou, o bibliotecário já havia desaparecido de novo e um aluno com uma camiseta de death metal estava ao lado de Darcy, prendendo um microfone de lapela ao seu casaco.

— Então você escreveu um livro? — perguntou ele enquanto trabalhava. — Bem maneiro.

— Hum, obrigada. — Ela ergueu os olhos para a entrada do auditório, por onde os primeiros alunos chegavam. O suor frio da corrida de Anton tinha voltado.

De alguma forma ela não tinha outra escolha a não ser subir no palco, assim como os estudantes surgindo pelos portões não tinham escolha a não ser assistir. Imogen estava certa: Darcy ainda estava no colégio. Ela sempre estaria no colégio.

Momentos depois, os três foram levados para o palco, onde três cadeiras plásticas cor de laranja e um púlpito aguardavam.

Imogen cobriu o microfone com uma das mãos.

— Você teve sorte, Darcy. Pelo menos não teve tempo de ficar nervosa.

— Acho que estou chegando lá — sussurrou Darcy.

O fluxo de alunos tinha aumentado, e o barulho crescia no auditório. A conversa não parecia feita de vozes, mas de uma energia primitiva e perigosa, sem foco a não ser por um grupinho de óbvios fãs de Standerson reunido na primeira fila. Eles tiraram várias fotos do autor com os celulares, e soltavam gritinhos sempre que ele olhava na direção dos adolescentes.

Então o sinal tocou, e os alunos se silenciaram. Darcy se sentiu deixando o corpo, como se estivesse assistindo a tudo aquilo de mil quilômetros de distância. O bibliotecário apresentou os três, houve uma salva de palmas, e então Standerson começou sua apresentação. Ele não falou do livro, e sim de pessoas que o haviam inspirado a escrever. F. Scott Fitzgerald, Jane Austen, a bibliotecária da sua cidadezinha natal, e por fim uma menina bonita e inteligente que ele queria impressionar no décimo ano. Ele foi charmoso e fez tudo parecer fácil, quase como se soubesse quando as risadas viriam, quando usar cada frase de efeito.

Quando ele terminou, aplausos sinceros tomaram o auditório.

Imogen foi a próxima a se levantar. Sua voz tremeu no início, só um pouco, e suas mãos ficaram presas em punhos. Mas quando ela começou a falar sobre os distúrbios obsessivos-compulsivos que pesquisara enquanto escrevia Piromante — acumuladores, lavadores de mãos, uma moça que precisava checar a maçaneta vinte e uma vezes antes de ir para a cama —, os muitos detalhes bizarros mantiveram o público atento. As mão de Imogen também começaram a se mover, e logo sua paixão estava a toda. Darcy se viu arrebatada pela beleza da namorada.

Mas então, cedo demais e repentinamente demais, Imogen terminou.

Era a vez de Darcy.

Ela não levantou, como Imogen e Standerson, só ficou sentada na cadeira laranja com as mãos enfiadas embaixo das pernas. O microfone fez sua voz se espalhar pelo sistema de som do auditório, tornando-a imensa e incômoda, como se estivesse digitando as palavras com martelos.

— Oi, meu nome é Darcy Patel. Diferente desses caras, eu não escrevi livros. Só escrevi um. Não livros. Livro, no singular.

Ela ficou sentada naquele silêncio profundo por um segundo, surpresa que aquelas palavras tivessem soado engraçadas na sua cabeça. Mas ela precisava continuar, tinha que seguir falando. As centenas de olhos lhe observando não aceitariam o silêncio.

— Acho que é porque eu só tenho 18 anos. Ano passado, eu estava cursando o último ano do ensino médio numa escola bem parecida com esta, e me perguntei o que aconteceria se eu escrevesse duas mil palavras todos os dias durante um mês. Acontece que, no final, você acaba com 60 mil palavras.

O estranho era que as pessoas já tinham rido disso antes. Pessoas de verdade, adultas, que moravam em Nova York, tinham achado isso engraçado. Ou, pelo menos, como Darcy percebeu então, tarde demais, aquelas pessoas tinham fingido achar aquilo engraçado. Claramente tinham rido em um esforço em vão de serem simpáticas, mas aquela generosidade tinha deixado Darcy despreparada para a verdade: que a piada não era exatamente divertida. E o ensino médio só queira a verdade.

— De qualquer maneira — continuou ela —, acontece que 60 mil palavras é basicamente um livro. Então mandei meu livro para um agente, que mandou meu livro para uma editora, e agora minha profissão é escrever livros. — Conforme Darcy falava, a palavra “livro” começou a parecer estranha na sua boca, como algo que parecera cheio de significado num sonho, mas não fazia sentido uma vez que se acordasse. — Mas a questão é: eu não tive que realmente escrever duas mil palavras por dia. Quer dizer, isso dá umas seis páginas, o que é muito trabalho. Mas você pode escrever só uma página por dia, e em um ano vai ter um livro.

A última palavra reverberou no auditório, tendo perdido todo o significado que já tivera um dia.

— Enfim, as pessoas falam várias coisas sobre livros e escrever e literatura, e a maioria parece muito complicada. Mas, de um jeito esquisito, é bem simples. Você só escreve um pouquinho todo dia, e vai ficando cada vez melhor em contar histórias.

O estranho é que o silêncio havia se aprofundado conforme ela falava. Quase como se os alunos estivessem escutando.

— E é assim que todos os livros são feitos. Obrigada.

Standerson foi o primeiro a aplaudir, com gestos amplos das mãos que começaram mais largos que seus ombros e se juntavam como estouros de canhão. A plateia o seguiu, e por alguma misteriosa alquimia de graça adolescente, ouviu até alguns gritos no meio. E, naquele momento, Darcy percebeu por que um milhão de pessoas amava Standerson do fundo do coração, e por que tantas pessoas passavam a vida toda tentando fazer outros baterem palmas para elas.

Mas os aplausos pararam, e era hora das perguntas.

A primeira a perguntar era uma menina pequena com óculos grossos. Ela pronunciou cada palavra com cuidado, como uma criancinha determinada a falar bem suas duas falas numa peça da escola.

— Eu tenho uma pergunta para os três escritores. Qual dos cinco elementos de uma história você acha que é o mais importante? Trama, cenário, personagem, conflito ou tema? Obrigada.

Darcy olhou para os outros. Standerson estava coçando o queixo, levando aquilo muito a sério. Ele pigarreou e disse:

— É um fato bem conhecido que a trama é o elemento mais importante.

Imogen olhou para Darcy, dando de ombros ligeiramente.

— Por exemplo, vejam que coisa estranha aconteceu com um amigo meu — continuou Standerson. — Alguns meses atrás, a namorada dele arrumou um emprego novo. Era um trabalho normal, de nove às cinco, mas depois de algumas semanas ela começou a ficar cada vez até mais tarde. Ela só dizia que amava o emprego, mas nunca contava muito sobre ele ao meu amigo. E ela quase não parava em casa. Então por fim ele não aguentou mais e a seguiu até o trabalho. — Standerson se inclinou para a frente, a voz baixando um pouco. — E lá estava ela, saindo do prédio às cinco da tarde em ponto. Então meu amigo se escondeu e, quando ela saiu de carro, a seguiu, e descobriu onde ela estava passando tanto tempo...

Ele parou, deixando o silêncio se estender. Ouviram-se alguns rangidos das cadeiras, alguns sussurros, mas o auditório permaneceu em silêncio por incontáveis segundos.

Por fim Standerson disse:

— E é por isso que a trama é o elemento mais importante de uma história.

Muitas vozes se ergueram em confusão, quebrando o silêncio que havia dominado o salão.

— Mas o que houve? — um dos alunos gritou.

Standerson deu de ombros.

— Sei lá. Acabei de inventar.

Um tipo de rugido emergiu da plateia, meio risada, meio irritação. Enquanto o bibliotecário tentava acalmar os estudantes, Darcy ouviu os alunos apresentando teorias uns para os outros, terminando a história por si mesmos, como se a narrativa exigisse ser completada.

Quando o auditório por fim se acalmou, Standerson se recostou na cadeira e disse;

— Estão vendo? A história não tinha cenário, não tinha tema, basicamente nenhum conflito, e os dois personagens se chamavam “meu amigo” e “sua namorada”. E ainda assim vocês todos me odeiam porque nunca, nunca vão saber o que acontece. A trama manda.

Standerson tirou os óculos de sol do bolso da camisa e os largou no palco.

Houve uma onda de risadas da plateia, mas ainda misturadas à irritação.

Darcy olhou para Imogen, se perguntando como deveriam responder depois daquilo. Obviamente Standerson já tinha feito aquele esquete sobre trama antes. Mas Imogen estava sorrindo, já de pé.

Ela caminhou até os óculos de sol de Standerson e olhou para eles com desdém. Então se abaixou, pegou e colocou os óculos.

— Ele está totalmente errado. O personagem manda.

A plateia ficou em silêncio de repente, como se um interruptor tivesse sido acionado. Aquilo havia se tornado uma competição.

— Eu vou dar a vocês cem milhões de dólares — começou ela, o que causou alguns ruídos. Ela ergueu as mãos. — E vocês vão fazer um filme. Com tanto dinheiro, vocês podem colocar o que quiserem nele, certo? Dinossauros, naves espaciais, furacões, explosões. Não importa qual seja a história, seu filme vai ser muito realista, por causa de todo aquele dinheiro, e porque computadores podem fazer qualquer coisa parecer real. Exceto uma. Vocês sabem o que é?

Ela esperou em silêncio, desafiando os alunos a não responder. Finalmente um menino falou:

— Atores?

Imogen sorriu e tirou os óculos.

— Exatamente. Você vai precisar de atores, porque pessoas nunca parecem de verdade quando são feitas no computador. Ficam parecendo erradas. Bizarras. E por quê? Por que efeitos especiais conseguem fazer dinossauros e naves espaciais, mas não pessoas? Porque todo mundo que você ama é uma pessoa, e todo mundo que odeia também. Você olha para pessoas o dia todo. Você consegue perceber, com o menor tremor, quando elas estão irritadas, cansadas, nervosas e culpadas. Vocês são todos especialistas em pessoas.

Meu Deus, ela era tão linda.

— E é por isso que o personagem manda.

Imogen largou os óculos de novo no chão. A reação não foi tão intensa quando a que Standerson produziu, mas a plateia toda estava hipnotizada. Como um pêndulo, seus olhos imensos e perspicazes se concentraram em Darcy, cujo cérebro estava a toda.

O que ela devia fazer? Discutir a importância do tema? De cenário? De repente ela odiou Standerson e Imogen com toda a força. Como eles ousaram fazer daquilo uma competição?

Com aquele pensamento, a resposta ficou óbvia.

Darcy se levantou e atravessou o palco até onde estavam os óculos. Ela revirou os olhos, e os alunos soltaram risadinhas. Isso podia funcionar.

— Quantos de vocês acordaram esta manhã se preocupando com qual dos cinco elementos de uma história era o mais importante?

Mais algumas risadas, e duas ou três mãos se ergueram.

— Certo, ninguém se importa. Mas, por algum motivo, vocês estão todos esperando para ver o que eu tenho a dizer. E sabem por quê? Porque em algum momento isso se tornou uma competição.

Ela se virou para os outros dois autores. Standerson estava reclinado na cadeira, sorrindo. Ele já tinha entendido aonde ela queria chegar.

— Vocês querem saber quem vai ganhar — continuou. — É como com reality show. Milhões de pessoas ficam assistindo a competidores que não sabem cantar só para descobrir quem canta menos pior. Ou aqueles programas de sobrevivência, em que você vê completos estranhos competindo para decidir quem consegue comer mais formigas. Você nunca se importou com comer formigas, mas de repente aquilo importa, porque você quer saber quem vai ganhar.

Ela se abaixou e pegou os óculos escuros, depois os entregou para Standerson.

— É por isso que o conflito sempre ganha. Porque o conflito faz a história.

Ela cruzou o palco de novo até sua cadeira e se sentou. Seu coração estava disparado, o corpo elétrico com o instinto de fugir ou lutar. Mas a plateia não a odiava. Não estavam aplaudindo ou rindo, mas todos queriam saber o que aconteceria depois, como leitores que precisavam virar a página.

A gente tem o caldo, pensou Darcy.

— Certo, muito bem, então — comentou o bibliotecário. — Três respostas diferentes, todas muito interessantes. Quem quer fazer a próxima pergunta?


CAPÍTULO 28

Seu calor chegou antes dele, junto com o cheiro de grama queimada. Uma nuvem de faíscas surgiu da escuridão e girou ao meu redor, dançando nos invisíveis redemoinhos e correntes do rio.

E então o belo som de sua voz.

— Lizzie, o que aconteceu?

Ele estava vindo em minha direção, fogo e calor na escuridão.

— O homem do casaco remendado, ele voltou. — Minha voz ainda tremia do ataque de pânico no armário. — Ele levou a Mindy.

Yama parou, perto o suficiente para que eu pudesse sentir seu calor.

— Sinto muito, Lizzie.

— Nós temos que encontrá-la!

Ele não respondeu de início, e por um momento pensei que ele me diria que aquilo era o melhor. Que a última coisa de que eu precisava era um fantasminha me arrastando para os braços do além-mundo.

Mas então ele disse:

— Você sabe aonde ele a levou?

Eu só consegui balançar a cabeça.

Yama virou, observando o vazio ao nosso redor.

— Então eles podem estar em qualquer lugar. Predadores são difíceis de achar.

— Mas deve haver alguma maneira de segui-lo. Ele encontrou a gente, e nós estávamos a quilômetros de casa!

— Então ele tem uma ligação com você.

Fiquei olhando para ele.

— O que você quer dizer?

Yama deu um passo mais para perto e falou, com a voz calma.

— O rio é feito de lembranças dos mortos, mas são os laços dos vivos que o mantém unido. — Ele estendeu a mão e tocou minha cicatriz em forma de lágrima. — É por isso que eu consigo ouvir quando você me chama. Estamos conectados.

Eu me afastei, precisando pensar.

— Mas eu não chamei o velho, nem estou ligada a ele. Nem sequer sei o nome dele!

— Ele deve saber o seu — explicou Yama. — Nomes têm poder aqui, Lizzie.

Me lembrei da primeira vez que ele me seguiu até em casa. Mindy talvez tenha dito o meu nome na escola, ou no quarto.

— Talvez.

— Mas não é só o seu nome. Ele sente algo por você.

— Você está falando sério?

— Ele quer alguma coisa, o suficiente para que o rio o levasse até você. — Yama colocou as mãos nos meus ombros. — Conte-me tudo que ele falou.

Olhei em seus olhos. A gente não tinha se visto desde a briga, e Yama não sabia que eu tinha ido ver o velho novamente.

— Ele queria que eu matasse alguém.

— Matasse alguém? Quem?

— O homem mau.

Yama levou um momento para compreender.

— Quando ele falou isso?

Cruzei os braços, me protegendo.

— Eu fui encontrá-lo, para ver se ele poderia me ajudar com o homem mau. Isso é tudo culpa minha.

— Não, não é. Essa é a obsessão dele, não a sua. O que significa que ele não quer a Mindy. Ele quer você.

Minha respiração ficou presa na garganta, e a escuridão do rio se fechou em torno de mim, como se eu estivesse presa no closet do meu pai de novo. Um psicopompo stalker. Perfeito.

Mas, com uma corrente de pânico nas minhas veias, entendi por que o velho tinha levado Mindy em Nova York, e não na minha casa, onde eu me sentia forte e segura. Ele tinha escolhido aquele momento no armário porque queria que eu ficasse assustada.

Aquilo não tinha nada a ver com Mindy.

Afastei o pensamento, me permitindo sentir o calor das mãos de Yama nos meus ombros, sua eletricidade na minha pele. Esta era uma conexão real. Como aquele predador amarfanhado se atreveu a pensar que havia qualquer coisa assim entre nós dois?

— Ele disse que ia colocá-la nos seus bolsos.

As mãos de Yama me apertaram.

— É só uma ameaça. Levá-la era uma maneira de chamar sua atenção.

— Ele conseguiu. Então, o que vamos fazer?

— Nada. Ele virá até você quando quiser conversar de novo.

— Não posso pedir para o rio me levar até Mindy agora? — Fechei os olhos e pensei no rosto dela, mas Yama me puxou com gentileza mais para perto, tirando a minha concentração.

— Não é possível seguir um fantasma, Lizzie. O rio é feito deles.

Abri os olhos.

— Então o que devo fazer?

— Você precisa esperar. Ele vai testar a sua vontade, talvez por bastante tempo. Mas eu vou ficar aqui o quanto for necessário.

— Obrigada. — Minha voz soou tão séria que tive que fazer uma piada. — Você não tem medo de me cobrir de morte?

Yama tentou esconder um sorriso.

— Eu tenho medo por você, às vezes. Mas isso não impediu de vir quando você me chamou.

Um tremor de alívio me atravessou. Desde a nossa briga, parte de mim tinha ficado com medo de que ele não me procurasse mais.

Eu o puxei para perto, precisando do seu calor nos meus lábios, seu corpo no meu. Deslizei as mãos pelas suas costas, buscando os músculos sob a seda. Quando seu perfume encheu meus pulmões, a correnteza do rio se agitou ao nosso redor, emaranhando e bagunçando meu cabelo.

Quando nossos lábios se separaram, ficamos em silêncio por um longo tempo. Me perguntei se poderíamos ficar ali para sempre, nos braços do rio Vaitarna, sem fome, sem cansaço, sem envelhecer. No final, esquecendo a nós mesmos e sumindo, nos tornando parte do rio. Mesmo nos seus braços, meus pensamentos eram tão sombrios.

— E se for assustador demais? — perguntei.

— Então vamos para a minha ilha— respondeu ele simplesmente.

— Mas e se for tudo demais? Fantasmas, predadores, os mortos em cada pedra. E se aquele pequeno trecho de areia não for o suficiente?

— Então vamos encontrar outro lugar. Algum lugar em que você se sinta segura.

Meu coração se apertou um pouco quando percebi o que Yama dissera. Depois de mil anos à procura da sua ilha, ele simplesmente havia oferecido deixá-la de lado e encontrar outro lugar para mim.

Yama chegou mais perto, sua voz um sussurro.

— Isso tudo está acontecendo tão depressa, Lizzie. Gostaria de poder ir mais devagar.

— Eu só gostaria de poder cair no sono. — Ainda havia um toque de pânico na minha voz. — O velho disse que eu não precisava mais dormir, porque o sono é uma fatia da morte. Então eu parei de dormir, e agora eu não consigo mais.

— Ah. Isso acontece às vezes. — Ele me envolveu com os braços. — Me leve para casa que vou lhe mostrar um truquezinho.

* * *

Era estranho ver Yama no meu quarto. Eu estava com ele num ataque terrorista sanguinário, em um rio feito de lembranças mortas e nos lugares aos quais ele havia nos levado, mas nunca num lugar tão mundano, que fizesse parte assim da minha vida real.

Ainda bem que eu havia arrumado a bagunça na minha cama, não querendo que minha mãe encontrasse as pilhas de pesquisa sobre serial killers e crianças desaparecidas.

— Aqui estamos — falei, querendo ter enfiado o uniforme da escola pendurado na cadeira no cesto de roupa suja.

Yama estava olhando as fotografias em cima da mesa.

— Você tem tantos amigos.

Suspirei.

— Não mais. Desde Dallas, quase ninguém me entende mais.

— A morte mostra quem é real — comentou ele simplesmente, e se virou para mim. — Isso funciona melhor no mundo dos vivos.

— O quê?

Um sorriso brincou no seu rosto.

— Dormir.

— Ah. Certo. — Se eu não ficava com fome ou cansada no outro lado, imagino que dormir também não fizesse sentido.

Eu já estava nervosa por tê-lo ali, então poucas respirações rápidas foram o suficiente para me jogar de volta no mundo real. A luz dos postes entrando pelas janelas mostrava as cores se espalhando pelo quarto.

Yama fechou os olhos e respirou fundo devagar, como se saboreando o ar.

Estendi a mão e toquei seu rosto. Ele pareceu sólido, não como um fantasma.

— Espera — sussurrei. — Você também está aqui? Achei que nunca deixasse o além-mundo.

Ele abriu os olhos.

— Pode chamar isto de uma extravagância.

Olhei para a porta do quarto.

— Mas a minha mãe...

Yama se aproximou, até estar perto o suficiente para sussurrar:

— Não se preocupe, Lizzie. Não vamos fazer barulho.

Sua respiração tocou minha orelha como suaves dedos de ar, e um tremor me percorreu. Por um momento, nada atravessou o som do sangue correndo pelas minhas veias.

Um pouco tonta, sentei na cama. Yama sentou ao meu lado, e me inclinei para ele. Ali no mundo real não havia faíscas e fogo brincando no vento, mas ele ainda era mais quente do que qualquer outra pessoa.

— Certo. E agora?

— Você normalmente dorme de casaco? — Sua voz ainda era um sussurro, fazendo cada palavra mais clara.

— Ah. — Abri o zíper e deixei o casaco escorregar pelos ombros.

É claro que também não dormia de tênis. Tirei os sapatos e as meias. E nunca dormia de jeans. Me levantei e deixei a calça cair no chão. Então cruzei o quarto e fechei as cortinas.

Na escuridão, o brilho de psicopompo na nossa pele pareceu aumentar. O ar noturno parecia frio nas minhas pernas e meus braços.

Sentei de novo na cama, me esticando ao lado de Yama, aproveitando seu calor.

— Não sei por que, mas isso não parece muito... sonolento. — Havia um tremor na minha voz.

— Não temos pressa. — Ele estava olhando para baixo, para mim, os olhos castanhos brilhando no escuro.

Estiquei a mão e toquei sua sobrancelha direita, a curva quente debaixo dos meus dedos. Tracei a linha do seu ombro, a firmeza do osso e músculo sob a seda. Meus dedos brincaram com o primeiro botão até abri-lo, aumentando o triângulo de pele morena brilhante.

Com um movimento rápido, ele tirou a camisa ainda abotoada pela cabeça.

Perdi o fôlego. Nunca tinha estado com ele no mundo real, sem os tons de cinza suaves do outro lado, ou o fogo e as faíscas das correntes do rio. Não havia luz a não ser o brilho da nossa pele, como se nada existisse além de nós.

Ele se inclinou e tocou meus lábios com os dele numa imobilidade impossível, como se o momento houvesse sido congelado, o tempo se desfazendo. O único movimento era a respiração entre nossos lábios. Suspensa naquele instante perfeito, eu necessitava de mais.

Ele passou a ponta do dedo, leve como uma pluma, pela lateral do meu pescoço, e senti minha pulsação aumentar até ser páreo para o seu calor. Meus batimentos cardíacos gradualmente se estabilizaram naquele longo e imóvel beijo.

Quando, por fim, nossos lábios se separaram, minha respiração estremeceu um pouco. Ele ficou perto, seus olhos presos aos meus, e por um momento o feitiço foi intenso demais. Tive que quebrá-lo com um sussurro.

— Você nunca dorme, Yama?

— Às vezes.

Engoli em seco.

— Com o que você sonha?

— Com isso — respondeu ele.

Um gemido suave escapou de mim. Era como se os dedos de Yama tivessem encontrado um fio solto dentro de mim, e puxassem, me desfazendo e desvelando. A energia nervosa de todas aquelas noites sem dormir foi se espalhando por toda a minha pele.

Minhas mãos se esticaram, meus dedos mergulhados nas ondas de seu cabelo negro. Mantive-o ali, os olhos presos aos meus, o olhar submerso cada vez mais em mim toda vez que um suspiro abalava meus pulmões.

Logo o fio solto tinha se enredado em um nó, que Yama apertava lentamente, mais e mais. O medo que tinha se prendido em meus músculos finalmente estava desaparecendo, se transformando em algo brilhante, faminto e afiado. O peso de todos aqueles sonhos jamais sonhados martelava em minha cabeça, batendo e quebrando, meu corpo inteiro atraído para Yama.

No final, eu quase me desfiz, e por um momento tudo meu se perdeu, partido em inúmeras peças como as lembranças de um fantasma no rio. E eu não me importava se havia nascido amaldiçoada, manchada e marcada pela morte, porque isso tinha me trazido aqui, para os braços de Yama.

Ele me mostrou como dormir de novo, como um Príncipe Encantado ao contrário, embora no aeroporto também tenha me acordado com um beijo.

Talvez seus lábios curassem tudo.


CAPÍTULO 29

Houve outra apresentação em Avalon High, e depois mais uma em outra escola, a alguns quilômetros de distância, com o mesmo problema da entrada escondida. Então foi só no fim da tarde que Anton deixou os três de volta no hotel antes do evento na livraria, mais tarde.

Talvez fosse o jet lag, ou as lembranças por estar em escolas o dia todo, mas quando Darcy chegou ao quarto de hotel, caiu na cama sem nem trocar de roupa.

Foi só uma hora inteira depois que ela acordou, encontrando Imogen ao seu lado, de camiseta e short, digitando loucamente no laptop.

— Você não dormiu?

Os dedos de Imogen não pararam de se mover.

— Tá doida? Lançamento do livro. Tenho que postar no blog. Tenho que postar no Twitter.

— Ah, é. — Com todos os problemas da manhã, Darcy de alguma forma tinha esquecido que Piromante estava chegando no mundo naquele dia. — Você foi impressa, Gen! Autora cem por cento publicada e impressa.

— Eu sei, não é loucura? Meio que não consigo acreditar. — Finalmente Imogen parou de digitar. — Quer dizer, tinham exemplares nas escolas hoje. Mas você acha mesmo que tem milhares de livros nas prateleiras das livrarias? E se teve algum tipo de erro? E se nada disso estiver acontecendo de verdade?

Darcy pousou a mão no ombro nu de Imogen.

— É de verdade, Gen.

— Mas como eu vou saber?

— Hum, porque a sua editora te contou? E eles têm, tipo aquele prédio enorme em Manhattan.

— Faz sentido. O prédio é mesmo enorme. — Imogen tirou um fio de cabelo do rosto e ergueu os olhos para Darcy. — Provavelmente é só um caso passageiro da síndrome do impostor.

— Isso existe?

— É claro. — Imogen digitou algumas palavras e virou a tela. Entre várias abas do navegador estava aberto um artigo da Wikipédia.

Darcy passou os olhos pelos primeiros parágrafos. Síndrome do impostor significava basicamente o que o nome dizia — acreditar que tudo que você conseguiu foi fruto de sorte, de fraude ou trapaças. Temer que tudo lhe seria tomado uma vez que descobrissem a falcatrua.

— Mas que bosta. Isso não é você, Gen, sou eu!

— Todo escritor é assim. — Imogen virou o laptop para si de novo e ficou observando a tela. — OK, ler isso foi uma má ideia. Dá para pegar uma síndrome só de procurar no Google?

— Essa, dá. — Darcy estendeu a mão e fechou o laptop gentilmente. — Mas a cura é subir no palco e falar para uma centena de fãs enlouquecidos de Stanley David Anderson. Eles não deixam impostores fazerem isso.

Imogen assentiu com essa sabedoria simples.

— Afinal, quão ruim pode ser um lugar cheio de fãs de Standerson?

— Não ruim. — Darcy puxou Imogen para perto e a beijou, depois sussurrou no seu ouvido: — Só intenso.

— Ah, Stanley mandou uma mensagem enquanto você estava dormindo. Ele quer encontrar a gente para jantar cedo lá embaixo.

Darcy checou o celular. Nisha tinha mandado a mensagem: Espero que esteja tendo uma boa turnê! 364 dias até a publicação!

Ela suspirou e pulou da cama. Suas roupas pareciam grudentas, depois de ter dormido nelas.

— Vou tomar um banho primeiro.

Tomaram banho e se vestiram, Imogen usava camisa branca engomada e jaqueta de couro, cheia de metal nos dedos. Darcy ficou na ponta dos pés para ajeitar a gola da camisa, que tinha amassado dentro da mala. Ela colocou o vestidinho preto, o que havia ganhado na noite em que as duas se conheceram. Certamente ainda havia alguma sorte nele.

O restaurante do hotel era decididamente nada ilustre. Havia várias TVs penduradas nas paredes, exibindo esportes em todas as direções. O assento de vinil da cabine guinchou como uma foca quando Darcy sentou, e o cardápio era cheio de pratos ao mesmo tempo grandiosos e genéricos, como “A experiência internacional de queijos”. Aquela expressão, como Standerson apontou, era mais da metade de um haiku.

Depois que pediram as comidas menos gordurosas que conseguiram achar, ele perguntou:

— Vocês já tinham feito visitas escolares antes?

Imogen riu.

— Eu nunca achei que estaria numa escola de novo, e Darcy mal saiu da dela.

— Bem, meus cumprimentos.

— Por mais que eu goste de elogios — falou Darcy —, ainda estou brava por você ter me puxado para o palco.

Standerson ergueu as mãos.

— Foi a sua assessora! Você acha que ela mandou aquele e-mail para o bibliotecário por acidente?

— Posso ficar brava com vocês dois igualmente. Mas foi legal, acho. Eu gostei da batalha dos elementos da história.

— Porque você ganhou — comentou Standerson.

Darcy fez um barulho de pffft.

— Você foi bem mais aplaudido.

— Ninguém ganhou — comentou Imogen. — Porque a vitória não foi para trama, personagem nem conflito. Foi para cenário.

Os outros dois ficaram olhando para ela.

— A escola — explicou Imogen. — Onde mais os elementos interconectáveis e interdependentes da narrativa seriam reduzidos a comparações adversativas, quando na prática eles dependem uns dos outros para criar um todo coerente?

Darcy deu de ombros.

— Em todos os triângulos amorosos da história?

— Os argumentos das duas são válidos — concluiu Standerson. — E você deveria continuar fazendo os eventos com a gente, Darcy. Não há pesquisa melhor do que interagir com o nosso eleitorado.

Imogen riu.

— Darcy era o nosso eleitorado até, tipo, cinco meses atrás.

Darcy ignorou a namorada e perguntou:

— Qual a pior pergunta que já te fizeram?

Standerson parou para pensar nisso um segundo, depois falou, numa voz teatral e amaldiçoada:

— Onde você encontra as suas ideias?

— Essa é fácil para a Darcy — comentou Imogen. — Ela rouba as dela.

— Não roubo, não!

— E a minha cena no armário?

Darcy baixou os olhos para a mesa, as bochechas pegando fogo.

— Isso foi um acidente.

— Problemas no paraíso YA? — perguntou Standerson, os olhos brilhando. — Contem tudo.

— Precisa mesmo? — pediu Darcy.

— Sim. — Imogen virou para Standerson. — Então, Piromante é o primeiro livro de uma trilogia.

Ele assentiu.

— Está ótimo até agora.

— Obrigada... — O elogio envergonhou Imogen por um momento, mas ela conseguiu continuar. — O segundo volume foi para o copidesque, então estou começando o livro três: Fobomante. É sobre fobias em vez de fogo. A protagonista é claustrofóbica, e o livro ia começar com ela presa em um closet. Ótimo, certo? Então conto a ideia para a minha namorada (Imogen deu um peteleco no ombro de Darcy), que reescreve uma das cenas dela para que a protagonista dela fique presa num armário, inclusive com ataque de pânico claustrofóbico!

— Foi coincidência! — gritou Darcy.

— Achei que você tinha dito que tinha sido um acidente — argumentou Standerson.

— Foram as duas coisas! Uma coincidência porque eu já tinha mostrado que o closet do pai da Lizzie era incrível e imenso, e já tinha falado que a Mindy dorme em armários, então usar um closet fazia todo o sentido. Sem contar que a Gen admitiu que era bem melhor do que a primeira versão, em que o velho simplesmente aparecia e levava a Mindy embora.

— Sim, era melhor — concordou Imogen. — Mas a cena era minha!

— Mas a sua cena está melhor também! — Darcy se virou para Standerson. — Agora a personagem principal dela começa o livro presa no porta-malas de um carro! Bem mais assustador, né?

Imogen não discutiu, só arrancou pedacinhos do jogo americano de papel.

— Todos nós roubamos — argumentou Standerson. — O truque é roubar de pessoas comuns, não de outros escritores.

Imogen assentiu.

— Minha primeira namorada era piromaníaca, e não lembro metade das falas que roubei dela.

— Ariel era de verdade? — Standerson se inclinou para a frente, os olhos brilhando. — Me conta mais.

Em instantes, ele e Imogen estavam mergulhados numa discussão profunda sobre Imogen White, Piromante e as interseções entre o real e o ficcional. Logo estavam discutindo personagens e tramas tudo de novo, e planejando o que dizer no evento daquela noite na livraria.

Darcy se encolheu no seu canto da cabine, feliz por estar ouvindo. Mas a vergonha de ter roubado a cena ainda queimava na sua pele. A ideia do closet era tão perfeita para o sequestro de Mindy, e havia sido tão fácil de escrever. Foi só quando ela começou a ler as palavras em voz alta para Imogen que percebeu que o conceito inteiro tinha sido plagiado.

Talvez esse fosse o preço de amar alguém: era difícil separar onde eles terminam e você começa.

O evento daquela noite foi no centro da cidade, em uma livraria pequena de dois andares. O lugar já estava lotado quando Darcy, Imogen e Standerson chegaram. O térreo estava cheio e tinha mais jovens lá em cima, pairando sobre o pequeno palco, as pernas balançando entre as grades do parapeito.

Sem querer que a chegada de Standerson causasse um tumulto, a gerente da loja ficou esperando do lado de fora para levá-lo pela entrada de serviço. Mas Imogen insistiu em entrar pela porta da frente. Ninguém a reconheceu, nem a Darcy, é claro, e elas ficaram livres para perambular e observar.

É claro que foram primeiro ver os livros de Imogen. Tinha uma pilha perto da porta, a capa vermelho-fogo ardendo em quantidade.

— Tá vendo? — disse Darcy, arrumando o topo da pirâmide. — Você não é uma impostora.

— Eu ainda poderia ser uma impostora muito boa. — Os dedos de Imogen acariciaram uma das capas, lendo as letras em relevo do título como se fosse braile. — Mas, se for esse o caso, essas são falsificações excelentes.

Darcy revirou os olhos e puxou Imogen para a multidão.

Os fãs de Standerson estavam praticamente disparando descargas elétricas uns nos outros, de tanta ansiedade. A maioria usava crachás com os nomes de usuário na internet, para que amigos virtuais pudessem se reconhecer cara a cara. Amizades espontâneas estavam surgindo, facilitadas pelas camisetas com frases e capas de Standerson. Uma comunidade inteira estava se encontrando ao vivo pela primeira vez, e parecia tonta de felicidade com isso.

— Você não está nervosa? — perguntou Darcy.

Imogen ergueu os olhos do livro de fotografias que estava folheando.

— Eu sempre me sinto segura em livrarias.

Darcy riu.

— Então na verdade tem a ver com o cenário.

— Esse parece ser o tema do nosso dia.

— Bem, eu estou nervosa por você.

— Contanto que não seja contagioso. — Havia o mais leve tremor no olho de Imogen.

— Não vou dizer mais uma palavra.

Elas passearam em silêncio, Darcy observando a plateia. Quase todos eram adolescentes, e os adultos pareciam mais fãs de Standerson também do que pais acompanhando os filhos. Mais ou menos três quartos eram meninas, e pareciam vindos de todos os lugares — uma mistura tipicamente californiana de hispânicos, brancos, negros e asiáticos, incluindo alguns do subcontinente indiano. Mas todos tinham decidido ir até ali, uma livraria, numa quinta-feira fria e chuvosa, quando poderiam estar em casa, com mil canais e a internet inteira disponível na ponta dos dedos. Quando Standerson havia chamado aquelas pessoas de “eleitorado”, Darcy tinha estranhado, mas talvez fosse a palavra certa, afinal.

Dez minutos antes das 19h, Anton apareceu e levou Darcy e Imogen para a sala de descanso. A dona da livraria se apresentou e Anton fez a melhor introdução para Além-mundos que Darcy já tinha ouvido, captada das conversas aleatórias no carro e editada à perfeição. A dona ouviu, extasiada, e fez meia dúzia de perguntas a Darcy, nenhuma delas sobre sua idade, e Darcy se viu perdoando todas as barbeiragens de Anton.

E aí, muito repentinamente, era hora de Standerson e Imogen entrarem no palco.

— Então. Agora eu tô nervosa.

— Você vai se sair muito bem. — Darcy a abraçou, apertando com força para dar sorte.

Um momento depois, uma fileira de funcionários da livraria estava levando os três para fora, em meio a bocas abertas, gritos, lágrimas e palmas. A multidão tinha se transformado em um conduíte, um motor mandando fervor fanático para a loja. Darcy ficou ao lado do palco na livraria, a menos de um braço de distância de Imogen e Standerson. O palco tinha só meio metro de altura e uns três de largura, e os fãs se mantinham bem perto.

Standerson esperou pacientemente até o barulho diminuir, e quando a multidão finalmente se acalmou, ele os mandou de novo ao céu com um simples “Olá”. Os fãs tinham sido treinados por centenas de vídeos para reconhecer cada fio de cabelo, cada sorriso torto. E, quando Standerson começou a falar, cada vez que suas frases de efeito eram citadas — “Livros são máquinas de completar seres humanos” —, gritos de reconhecimento explodiam da plateia, quase com alívio. Ele era exatamente o que tinham esperado que fosse, só que melhor.

A intensidade dos fãs já tinha diminuído um pouco quando Standerson apresentou Imogen. Ele começou casualmente, como se ela fosse uma amiga que ele tinha conhecido no caminho para a livraria. Mas seus elogios foram aceitos sem questionamento, e a plateia já a adorava antes mesmo que ela dissesse uma palavra. Imogen fazia parte da família agora, como uma prima há muito perdida dando um discurso num casamento. E, quando ela lançou uma referência sobre frequentes surtos de dispepsia no seu discurso usual sobre obsessivos-compulsivos, os fãs a amaram ainda mais.

Darcy observou com atenção, impressionada que aquele era o mesmo homem com quem tinha jantado, a mesma mulher com quem acordava quase todas as manhãs. A plateia hipnotizada os fazia mais brilhantes, mais que reais.

Ela tentou absorver a performance, sabendo que no ano seguinte teria que fazer esse trabalho ela mesma. Mas mal conseguia imaginar uma plateia tão zelosa por ela, tão amorosa.

Uma hora depois que tudo tinha começado, a gerente da livraria declarou que era hora dos autógrafos. Os funcionários lutaram para organizar a plateia em um tipo de fila, e uma mesa dobrável foi trazida para o minúsculo palco.

Darcy conseguiu se enfiar ao lado de Imogen.

— Vocês foram incríveis.

Imogen só assentiu. Sua respiração estava rápida e rasa, como um peixe em terra firme.

— Essa foi a parte fácil — disse Standerson. — Cara a cara é que é complicado.

— Certo. Então devo deixar vocês se concentrarem?

— Fique por perto. Você pode ser nossa orelheira!

— Hum, OK. — Darcy não sabia o que era uma orelheira, mas tinha certeza de que queria ficar ali no palco com eles.

A fila de autógrafos era uma fera imensa e sinuosa. Os fãs trouxeram biscoitos para Standerson; trouxeram poemas e fanarts; trouxeram ainda mais perguntas sobre personagens, vídeos e o seu bem conhecido amor pelo ponto e vírgula. E, é claro, trouxeram livros para serem autografados. Alguns tinham a coleção inteira, outros só um exemplar surrado do seu primeiro livro. Estranhamente, alguns trouxeram edições de O grande Gatsby (que sabiam que ele amava) ou de Moby Dick (que ele notoriamente odiava).

Mais ou menos uma dúzia dos fãs de Standerson comprou o livro de Imogen naquela noite. Um punhado deles acampou no lado dela da mesa, feliz por conversar sobre as próprias manias, um pouco eufóricos pela proximidade com Standerson. Imogen os manteve distraídos falando sobre maneiras de atear fogo nas coisas, descobertas nas suas pesquisas.

Durante todo esse tempo, Darcy foi uma orelheira bem ocupada, pegando os livros dos clientes e marcando com as orelhas a folha de rosto, para que Standerson não tivesse que ficar procurando o lugar certo para assinar. Darcy logo aprendeu a diferença entre a folha de rosto e a falsa folha de rosto. (A última não tinha o nome do autor, portanto não era assinável.) Às vezes ela trocava de lugar com os funcionários da loja organizando a fila. Havia algo agradavelmente professoral em checar se todo mundo tinha post-its com seus nomes escritos, para que seus preciosos momentos na presença de Standerson não fossem desperdiçados diferenciando uma Katelyn de uma Kaitlin, Caitlin ou Caitlynne.

Foram longas duas horas e meia, e as tiradas de Standerson começaram a se repetir. A piada sobre câimbras nas mãos surgia a cada cinco minutos, sua dissertação sobre bacon defumado, a cada dez. A mente de Darcy começou a considerar a possibilidade de que ela sempre tivesse sido uma orelheira naquela fila de autógrafos. Talvez ela fosse ser para sempre uma orelheira naquela fila de autógrafos...

Mas, por fim, acabou. Os livreiros exaustos recolhiam cadeiras e levavam os últimos fãs para a saída. Centenas de post-its cobriam a mesa dobrável, folhinhas amarelas quadradas caídas e mortas. Imogen sumiu, mas logo foi encontrada deitada no carpete da sessão de biografias. Anton levou Darcy para a dona da loja mais uma vez, e as duas dividiram anedotas cansadas sobre a noite, já velhas amigas.

Todo mundo estava exausto no caminho para o hotel. Standerson ficou em silêncio, e Imogen foi deitada no banco de trás, com a cabeça no colo de Darcy. Até a direção de Anton foi pacífica, as ruas no caminho de volta escuras e vazias.

— Você vai mesmo fazer isso por mais um mês? — perguntou Imogen.

Standerson pareceu surpreso com a pergunta, e só deu de ombros.

— Quer dizer, como você aguenta tanta adulação?

— Adulação é como a chuva. Tem um limite para o quão molhado dá para ficar. — Standerson se virou para Darcy. — Você achou esta noite útil? Aprendeu alguma coisa?

Darcy assentiu, tentando encontrar as palavras. Ela se sentia mais esperta em relação aos leitores, e sua admiração pelo poder da palavra escrita só se renovara. Além disso, agora ela sabia a diferença entre a folha de rosto e a falsa folha de rosto.

Mas algo maior tinha acontecido, uma rearrumação em seu cérebro. Desde os 12 anos, Darcy não tinha vergonha em dizer que queria se tornar uma escritora famosa. Aquelas duas palavras sempre tinham significado certas fantasias para ela: escrever à mão numa varanda alta, ser entrevistada por alguém inteligente e dedicado, o horizonte de Manhattan ao fundo. Todas essas imagens eram muito calmas, até grandiosas, completamente diferente do evento daquela noite. Mas agora Darcy sentia que seus devaneios majestosos se transformavam em algo mais barulhento, mais bagunçado, e cheio de um pandemônio jubiloso.

— Posso ser sua orelheira quando você quiser — falou ela. — A dona mal pode esperar pelo Além-mundos. Ela pediu uma prova para ela, assinada para ela pessoalmente. Aliás, eu deveria anotar o nome dela, né?

— Anton vai resolver isso para você. — Standerson fez uma continência para o motorista, que riu. — Esse media escort é a definição de indispensável.

Sorrindo ao ouvir aquilo, Darcy tentou lembrar seus primeiros assustadores momentos no carro de Anton na tarde anterior. Aquela agitação de ansiedade sobre algo tão insignificante quanto a morte parecia muito distante agora, anterior à sua primeira visita escolar, seu primeiro trabalho como orelheira, seu primeiro vislumbre do paraíso YA.


CAPÍTULO 30

Durantes os dias seguintes, fiquei esperando que o velho no casaco remendado voltasse. Eu odiava não saber onde a Mindy estava e não parava de pensar nela sendo desfeita em fios de memória para a diversão do velho. A única coisa que me mantinha sã era Yama, sua presença no meu quarto à noite, seu toque e sua certeza de que Mindy estava bem.

Conseguir dormir de novo também ajudou muito. Ir para a escola estava muito mais fácil, sem que o prédio fosse tomado por fantasmas de paixonites não correspondidas e humilhações antigas. Os ecos do passado ainda estavam nos corredores, é claro, mas muito mais discretos. Meu último semestre no ensino médio aos poucos se aproximava da vida normal, quase sem graça depois de tudo que havia acontecido desde Dallas.

Mas a melhor coisa de dormir era como eu me sentia nova. Em algumas manhãs, conseguia passar cinco minutos depois de acordar sem que as memórias voltassem e me derrubassem.

* * *

— Notícias do agente secreto? — perguntou Jamie um dia no almoço. — Não tenho visto ele espiando por aí.

— Ele tem estado ocupado — falei, o que provavelmente era verdade. O agente Reyes tinha drogas para apreender, terroristas para observar. Ainda bem que o FBI tinha preocupações maiores do que ficar de olho em mim.

— Mas vocês se falam, né?

— Sim, a gente conversa quase todas as noites. — Isso também era verdade, porque eu tinha decidido que agora a Jamie estava perguntando sobre meu namorado de verdade, e não o agente secreto da última pergunta. Era incrível como eu conseguia nunca mentir para a minha melhor amiga desde que interpretasse suas perguntas de forma flexível.

— Quase todas as noites? Parece sério.

Eu sorri, porque era sério. Não só o tempo que passávamos no meu quarto, mas nossas conversas no atol varrido pelo vento, e nossas longas caminhadas em outro de seus lugares, uma montanha no que eu imaginava ser o Irã. (Yama chamava de Pérsia, porque era muito old-school.) E tínhamos feito planos de viajar para mais longe, até para Bombaim, quando eu estivesse pronta para lidar com tantos fantasmas. E, é claro, um dia num futuro distante ele me levaria para conhecer sua casa no submundo.

— Você ainda não contou para a sua mãe, contou?

Balancei a cabeça.

— Pensei nisso, mas ela está sempre cansada demais para notícias assim. Ela já tem muita coisa com que se preocupar.

— Isso não dá pra negar. — Dois alunos que não eram do último ano pararam perto da nossa mesa por um momento, se perguntando se podiam sentar ali, mas Jamie os fez ir embora com um só olhar. — Você não pode manter ela no escuro para sempre, Lizzie. Isso é maldade.

— É claro que não vou fazer isso. — Eu já tinha me perguntado como aquilo funcionaria. Quando é a melhor hora para explicar para sua mãe que você está namorando um psicopompo de mil anos? Começa contando as regras da vida após a morte? Ou o convida para jantar com uma história já preparada? — Eu estava pensando em esperar até depois da formatura. Tipo, quando eu já estiver na...

Minha voz sumiu, porque a faculdade também não era nada certa. Eu tinha enviado as inscrições no semestre anterior, mas será que valquírias iniciantes também iam para a faculdade? Para qual curso?

— Você está bem?

—Aham. — Me recompus, precisando de um momento de honestidade entre nós. — É só que tem sido difícil pensar em planejar minha vida ultimamente.

Jamie não respondeu de início, os olhos brilhando sob as lâmpadas fluorescentes da lanchonete. O intervalo já estava acabando, e o ruído de pratos encheu o silêncio entre nós.

— Quer dizer, é como se algo horrível pudesse acontecer de novo. Então pra que fazer planos?

Assenti, embora meu problema não fosse que a morte pudesse me atingir a qualquer momento, mas que a morte já estava ao meu redor. Nas paredes, no ar. Vazando como óleo negro vindo do chão. Eu não ouvia as vozes do além-mundo o tempo todo, pelo menos não por enquanto. Mas conseguia sentir seus olhos em todos os lugares, me observando.

— Isso é bem comum — dizia Jamie. — Muitas pessoas que passaram por experiências de quase morte têm dificuldade em fazer planos.

Apenas sorri. As palavras “quase morte” pareciam subestimar a verdade. Eu estava viajando pelo rio Vaitarna, tentando resgatar um fantasma sequestrado, dormindo ao lado de um senhor da morte.

Eu não tinha tido uma experiência de quase morte, eu estava nadando nela.

— Ou talvez seja culpa do sobrevivente — continuou Jamie. — Se sentir mal por ter sobrevivido quando todos aqueles outros passageiros morreram.

Revirei os olhos.

— Você comprou um livro de psicologia ou qualquer coisa assim?

— Não, isso é do Os miseráveis. — Ela se aproximou e cantou um verso assustador, quase inaudível no meio da confusão da lanchonete.

— Tudo bem. Talvez tenha a ver com isso também.

— Pelo menos você não precisa mais se preocupar com aqueles caras da Ressurreição.

Eu demorei um segundo para entender.

— O Movimento pela Ressurreição?

— Hum, sim. Os caras que quase te mataram? Você esqueceu?

Ah. Lembrei que o agente Reyes tinha falado algo sobre isso no telefone.

— Está tendo uma grande operação no quartel-general deles, né?

Ela ficou me observando.

— Você quer dizer a operação em que todos os agentes do FBI do país vão participar? Achei que você soubesse disso, Lizzie! O seu namorado não vai para lá?

— Ele não faz essas coisas.

— Bosta. — Jamie franziu a testa. — Eu fiquei imaginando ele num colete à prova de balas. Qual o meu problema? Não era de um jeito sexy, não muito.

Dei de ombros. Homens com armas me pareciam tão normais agora.

— OK — comentou Jamie. — Estou começando a achar que não é síndrome de quase morte nem culpa do sobrevivente. Você está mostrando sinais clássicos de estar em negação.

— Eu nego essa afirmação completamente — falei, o que a fez sorrir.

O sinal tocou e, quando me levantei para sair, Jamie estendeu a mão e pegou a minha.

— Não importa o que você diga, Lizzie. Eu ainda estou aqui para você. O que aconteceu mês passado não deixou de existir só porque não está mais passando na televisão.

Apertei a mão dela, tentando sorrir. Ela não sabia que o que tinha acontecido comigo nunca, jamais deixaria de existir.

Naquela noite minha mãe anunciou que faríamos ravióli.

Não é tão complicado quanto parece. É preciso abrir a massa bem fina, mas nós tínhamos uma máquina que fazia isso, e usávamos cortadores de biscoito para que os pedaços ficassem todos do mesmo tamanho. Para o recheio, minha mãe tinha escolhido ricota.

— Se eu tivesse chegado mais cedo, teria feito ricota em casa — falou ela quando começamos a trabalhar, olhando para o pote de ricota comprado no mercado com desconfiança. Mesmo antes de meu pai nos deixar, ela achava que comprar coisas era de uma preguiça absurda quando você sabia fazê-las em casa.

— A gente sobrevive.

Logo a massa estava pronta, e comecei a passar a primeira parte pela máquina, girando a alavanca para fazer girar os rolos. Minha mãe pegou a massa do outro lado, fina como uma moeda e marcada por pontinhos pretos da pimenta moída.

Trabalhamos em silêncio por um segundo. Era a primeira vez que cozinhávamos juntas desde que o velho tinha levado Mindy. Eu sentia falta de sua presença fantasmagórica no canto, o modo como ela nos observava com atenção, mas obedientemente quieta.

Minha mãe começou com seu habitual:

— Como está a escola?

— Melhor.

Ela ergueu os olhos do pote de ricota, que ela amassava com um garfo.

— Melhor?

— Meus amigos pararam de ficar com medo de mim.

— Que bom. E as outras pessoas? As que não são suas amigas?

— A Jamie mantém todas na linha.

Minha mãe sorriu.

— Como ela está?

Levei um segundo para perceber que não tinha uma boa resposta para isso.

— A gente meio que só fala sobre mim. Acho que tenho sido uma péssima amiga.

Ela esticou um pano de prato e limpou a farinha do meu queixo.

— Tenho certeza de que Jamie não acha que você é uma amiga ruim. Ela provavelmente não quer falar sobre si mesma. Quer estar ao seu lado.

— É, ela é muito boa em me fazer falar — falei, prometendo a mim mesma que da próxima vez ouviria os problemas de Jamie também.

— Então sobre o que você tem falado com ela?

Olhei para a minha mãe, desconfiada. Ela não estava nem tentando ser sutil.

— Sobre o que eu tenho pensado sobre aquele dia.

Ela me olhou de volta.

— Como o quê?

Aparentemente ela não ia me deixar sair dessa. Mas eu não podia contar a ela que discutíamos sobre meu namorado secreto, culpa de sobrevivente, e como experiências de quase morte tornam impossível planejar o futuro. E não podia contar a ela que a minha outra melhor amiga, o fantasma de Mindy, tinha sido roubada.

Mas eu precisava falar alguma coisa.

— Algumas vezes, quando acordo de manhã, eu levo um tempo até lembrar quem sou. Tipo, leva um tempo para meu cérebro fazer o download de tudo o que aconteceu no último mês. É bom não saber. Mesmo que seja só por cinco minutos.

Ela não respondeu, provavelmente porque a expressão no meu rosto não combinava com as palavras. Eu estava pensando em como os lábios de Yama me permitiam dormir.

Começamos a enrolar o ravióli. Cortamos pedaços redondos da massa de macarrão, colocamos uma colher de recheio em cada um, dobramos e fechamos com os dedos. A mamãe selava as bordas com garfo, fazendo os raviólis parecerem calzones em miniatura.

Era um processo lento, e em algum ponto eu sempre me perguntava se valia a pena tanto esforço. Levava cerca de meio minuto para fazer cada macarrão, e apenas alguns segundos para comer. Mas havia algo de pequeno e precioso neles, como móveis em uma casa de bonecas.

— Você tem falado com seu pai ultimamente?

Olhei para a minha mãe. Ela nunca falava sobre ele se pudesse evitar.

— Não desde que mandei uma mensagem agradecendo pelo telefone.

— Não estou falando de mensagens. Quero dizer realmente falando.

Isso foi definitivamente estranho.

— Mãe, eu não falo com o meu pai desde que estava em Nova York.

— Ele ainda não te ligou? — Raiva tomou sua expressão. Tinha a ver com ele, não comigo, mas ainda assim senti como se eu tivesse feito algo errado. — Vocês dois precisam conversar mais.

— De onde essa conversa surgiu?

— Ele é seu pai. Você vai precisar dele um dia.

Eu já tinha parado de enrolar o macarrão a essa altura, e agora estava abertamente encarando minha mãe. Suas mãos tremiam enquanto ela selava as bordas dos raviólis, mostrando o quanto lhe custava até mesmo mencionar meu pai.

— Pelo amor de Deus — disse ela um momento depois. — A gente nem colocou a água para ferver!

Ela se virou para lavar a farinha das mãos e jogou uma boa pitada de sal na nossa maior panela para, em seguida, enchê-la com água. O acendedor do fogão estalou algumas vezes, seguido do som da boca se acendendo.

Mamãe olhou para a água, sua expressão escondida de mim.

— Você pode terminar aqui? — perguntou ela alegremente e, depois, seguiu para o outro lado da casa. — Eu só preciso de um minuto!

— Claro. Não vou deixar a água queimar — falei, repetindo uma antiga piada idiota da minha infância. Por um momento, me perguntei se ela estava chorando. Mas por quê?

Um amigo dela provavelmente tinha dito que eu precisava da minha família agora, e para aceitar que eu precisava da presença do meu pai. Mas será que a mamãe realmente acha que eu precisava da ajuda dele para lidar com tudo aquilo?

Eu tinha minha mãe, tinha Jamie e Yama. Talvez ela não soubesse sobre ele, mas ainda assim era o suficiente. Tudo que eu precisava era trazer Mindy de volta.

Dobrei o último pedaço de ravióli. Era um restinho nada circular, uma sobra que mal continha meia porção de ricota. Consegui apertá-lo até fechar, e em seguida bati a farinha das minhas mãos.

— Pronto.

— Parece muito saboroso — veio uma voz fria atrás de mim.

Virei. O velho de casaco remendado estava ali, na minha cozinha, sua pele pálida como farinha.

Sem uma palavra, estiquei a mão para o cepo, puxando uma lustrosa faca de desossar.

— Fique calma, Lizzie. — Ele abriu as mãos estendidas. Seus olhos brilhavam cinzentos nas luzes da cozinha. — Não há necessidade disso.

— Fique quieto! — sibilei, olhando por cima do ombro para o quarto da minha mãe.

— Eu nunca estou visível, criança. Na minha idade, o mundo real faz mal para o coração.

Dei uma olhada para o chão — ele não tinha sombra. Mas ainda assim não deveria estar na cozinha da minha mãe.

— Esta é a minha casa — sussurrei. — Dá o fora daqui.

— Mas nós temos negócios a fazer.

— Não aqui.

Ele me chamou com um gesto.

— Então atravesse.

Dei uma olhada para o corredor de novo. Ainda nenhum sinal da minha mãe. Mas meu coração estava disparado, e a faca tremia em minha mão. Eu estava em pânico demais para atravessar.

A não ser que eu usasse as palavras que me fizeram atravessar pela primeira vez...

— A equipe de segurança está a caminho — sussurrei, e a faca parou de tremer, o pânico mudando para algo mais penetrante e claro: uma tensão nos meus músculos, fagulhas na minha pele. — Bem, querida, então talvez você devesse se fingir de morta.

O cheiro farinhento da massa ainda por cozinhar mudou para o de ferrugem, e a chama embaixo da panela de água se transformou num cinza-claro e sem vida.

Eu estava no outro lado, a faca brilhando na minha mão.

— Técnica interessante — disse o velho, como se não fosse verdade. Mas ele estava prestando bastante atenção.

Eu não precisava mais fazer silêncio.

— Cadê a Mindy?

— Esperando por você.

— Sem essa merda de mistério! — Estiquei a faca. — Cadê ela?

— Devo te levar até ela?

Respirei fundo devagar, depois assenti.

Ele levou a mão à boca. Como uma criança entregando um chiclete fora da lei, o velho cuspiu uma bola negra na palma da mão. Dei um passo para trás.

Apertando a bola no punho, pingos negros passaram entre seus dedos e caíram no chão, formando uma poça em volta dos seus pés, se espalhando em todas as direções.

— Técnica interessante — falei. — E por interessante quero dizer nojenta.

— O rio é o rio. — Ele abriu a mão, me chamando para a poça de óleo que havia criado.

Suspirei, tentando fingir que aquilo não era tão diferente de tocar no chão, como Yama fazia.

—- Se Mindy não estiver bem, vou enfiar esta faca no seu olho.

— Essa, sim, é a minha pequena valquíria — falou ele com um sorriso. — Mas facas não funcionam no além-mundo, mesmo em pessoas vivas. E eu não tocaria nela por nada neste mundo.

E então ele pisou na poça de óleo negro.

Segurei a faca com força, apertei o nariz com dois dedos, e o segui para baixo.

O rio Vaitarna nos levou a uma distância curta, menos de um minuto de viagem. O caminho era fácil, mas cheio de coisas frias e grudentas. Emergimos do rio em algum tipo de porão, o piso de concreto brilhando com umidade. As paredes tinham mil canos entremeados, e a única luz vinha de lâmpadas tremeluzentes em painéis cheios de interruptores e dimers.

— Não estou vendo minha amiga.

— Ela está aqui. — O velho fez um gesto vago para o espaço ao nosso redor, como se Mindy tivesse sido derretida e passada fundida nas paredes.

— O que você quer de mim?

Ele assentiu, feliz, como se eu tivesse feito a pergunta certa. Como se dependesse de mim descobrir o que teoricamente aconteceria a seguir.

— Me faça três favores, e eu a darei a você.

Apertei a faca com mais força.

— Você sequestrou a Mindy. Não é assim que favores funcionam.

— Então faça três trabalhos, que seja. Ou realize três desejos. Chame como quiser, mas o primeiro é muito simples: beije a minha mão.

Ele esticou a mão para a mim, com a palma para baixo, a pele pálida brilhando com a luz dos psicopompos. Seus olhos se apertaram até serem duas fendas sem cor.

Tive que me segurar para não tremer de nojo.

— Por que você quer que eu faça isso?

— Para tornar nossa conexão mais forte. Uma conveniência, nada mais.

O jeito que ele disse a palavra “conveniência” me fez estremecer no corpo inteiro, torcendo meus músculos em um sussurro de movimento.

— Eu não quero estar conectada a você. Não quero que você chegue perto de mim nunca mais.

— Você está entendendo mal. Posso chegar até você a qualquer momento, Lizzie Scofield. Mas quero que nossa conexão seja de duas vias. Quero que você possa me chamar.

Uma risada seca saiu à força dos meus pulmões.

— Não vai acontecer.

— Você pode precisar de mim um dia, pequena valquíria. Eu sou bom em muitas coisas que seu amigo escurinho não é. Ele talvez seja mais velho do que eu, mas posso te mostrar truques que ele é educado e certinho demais para fazer. E se eu estiver errado sobre você, e você nunca me chamar... — Ele esticou as mãos. — Nunca me verá novamente.

A promessa parecia quase tentadora demais. Mas três desejos e um beijo parecia demais um conto de fadas, um daqueles antigos, versões não editadas das histórias dos Grimm com finais horríveis. Eles estavam cheios de regras arbitrárias. Não saia do caminho. Não coma a comida das fadas. Não beije a mão do psicopompo assustador.

Sem contar que era revoltante pensar em tocar aquela pele pálida com meus lábios.

— O que mais vai acontecer se eu beijar você?

— Absolutamente nada. — Ele ergueu a mão direita. — Juro.

Fiquei ali parada, querendo poder chamar Yama. Mas se eu o chamasse, o velho iria embora, junto com as minhas chances de encontrar Mindy.

— Escute, menina. Se você não quer brincar, sempre podemos fazer isso depois. Digamos, daqui a dez anos?

— Dez anos?

— Nós dois podemos viver o quanto quisermos. Então sim, uma década é o preço por me irritar. Ou você pode beijar minha mão.

— Como eu vou saber se você não vai simplesmente ficar com a Mandy? Você coleciona crianças como ela, não?

Ele balançou a cabeça com tristeza.

— Não como ela. Ela não tem o que eu quero.

Me lembrei do que ele tinha falado na primeira vez em que nos encontramos.

— Mas e todas aquelas memórias de bolos de aniversários e histórias na hora de dormir? Você quer dizer que Mindy não tem nada disso?

— Tenho certeza de que sim, mas já tenho mil aniversários, querida. Passei de nível, para colecionar finais. Finais lindos e doces, que se vão como um pôr do sol.

— Do que diabos você está falando?

Sua voz ficou com uma cadência de canção.

— Sabe quando você termina um livro e tem a sensação de que todas aquelas pessoas nele foram para uma festa sem você? É essa dor que está nos meus bolsos.

— Mas o que diabos isso tem a ver com as crianças?

— É o que eu tiro delas, Lizzie. As que morreram cedo demais, a forma como elas se vão. Aquelas criancinhas doentes, sorrindo para os pais, sabendo que são amadas mesmo enquanto somem na escuridão.

Só consegui ficar parada, encarando o velho. Ele parecia tão feliz, seus olhos sem cor radiantes, perdidos no horizonte. Suas palavras tocavam aquele lugar gelado dentro de mim, o ponto que jamais havia se aquecido desde Dallas, não importava quantas vezes a eletricidade de Yama corresse pela minha pele.

O velho não era um sequestrador de crianças, não exatamente. Era outro tipo de monstro. Talvez simplesmente não houvesse palavras para o que ele era.

Seu sorriso sumira.

— Infelizmente o final de sua pequena Mindy foi bastante triste. Então não, não tenho nada com ela.

— O que fez você gostar disso?

— A guerra — respondeu ele com simplicidade, as mãos alisando os bolsos. — Tantos órfãos. Toda vez que eu era chamado para outra cidade em chamas, eu encontrava seus fantasminhas perdidos, mortos em horror, sozinhos. Centenas.

Fiquei olhando em silêncio. Ainda não fazia sentido.

— Saber que existem crianças que morreram sendo amadas, isso ajuda a afastar as lembranças. — Sua expressão se endureceu. — Mas chega de aula de história, menina. Faça sua escolha.

Naquele momento, parte de mim só queria começar a esfaqueá-lo e não parar até meu braço estar cansado demais para se mexer. Aí eu procuraria Mindy até encontrá-la naquele porão ou por perto. Ela era um fantasma. Não podia morrer de fome. Eu continuaria procurando nem que demorasse mil anos.

Mas o velho sabia como desaparecer em um instante. E será que era possível matar alguém — outro vivente — no outro lado?

Então não o esfaqueei. Em vez disso, falei:

— Se você estiver me sacaneando, você vai se arrepender.

Devo ter deixado transparecer meus pensamentos, porque ele arregalou os olhos, como peixes translúcidos se inflando para assustar um predador, e então, quando o sorriso voltou, parecia forçado. Mas ele esticou a mão brilhante e pálida.

Ficou ali flutuando na escuridão entre nós, uma última chance.

— Que droga — murmurei para mim mesma, e dei um passo à frente. Depois outro, mantendo meu olhar na expressão de crescente satisfação no rosto dele.

Segurei o pulso do velho, tocando apenas seu casaco remendado, a faca pronta na outra mão, só caso ele estivesse mentindo sobre isso também.

Quando baixei a cabeça, minha mente se enchia de pensamentos assustados. Contos de fada novamente: seria aquilo algum tipo de truque do além-mundo nos incautos? Será que eu estava me amaldiçoando com servidão eterna ao beijar sua pele nua?

É claro que, se isso fosse verdade, então eu já era escrava de Yama mil vezes antes.

Me forcei a baixar a cabeça mais alguns centímetros, até que meu lábios tocassem o dorso da mão do velho. Sua pele era fria como mármore, mas tinha a mesma eletricidade que eu sentira na pele de Yama ou mesmo na minha. A força do velho era mais sombria, porém, amarga como grafite.

Larguei a mão dele e recuei, outro tremor me atravessando. Respirei fundo, buscando ar — estava prendendo a respiração.

— Pronto. Feliz?

Ele suspirou.

— Muito.

— O que mais você quer?

— O meu segundo desejo é que você diga o meu nome. — Ele fez uma reverência. — Sr. Hamlyn. Prazer em conhecê-la de verdade, desta vez.

— Só isso? Dizer seu nome?

Ele assentiu.

— Você vai precisar saber disso, para me encontrar quando a valquíria dentro de você acordar. Talvez devesse falar algumas vezes, só por via das dúvidas.

Isso era muito menos repulsivo do que beijá-lo, então fiz o que ele pediu, repetindo seu nome rápido, tentando parecer casual. Mas um nervoso estava me tomando. Talvez ele só estivesse esquentando.

— Certo. Qual a última coisa?

— Eu quero que você diga algo ao seu muito impressionante amigo. Qual o nome dele mesmo?

— Yamaraj.

O velho sorriu.

— Diga a ele que estou com fome.

Com essas palavras, ele piscou e sumiu.

Fiquei parada ali, encarando o ponto que ele ocupava um segundo antes, um vazio repentino na escuridão do porão.

O que tinha acontecido? Parecera tão súbito, tão fácil, como se o velho tivesse se assustado com alguma coisa. Olhei em volta, mas não havia fagulhas na escuridão, nada além do cheiro de ferrugem.

Não fazia sentido.

Mas aí ouvi um choro, o som de uma criança fungando.

— Mindy? — chamei. — Sou eu!

Por um momento não houve resposta, mas então uma forma surgiu das sombras. Seus olhos estavam arregalados e as maria-chiquinhas, bagunçadas e despenteadas. Ela olhou para mim com olhos desbotados e cheios de lágrimas.

— Lizzie?

Corri até ela e me ajoelhei, abraçando-a. Ela estava gelada, tremendo, fraca sob meus braços.

— Está tudo bem, Mindy.

Ela me abraçou de volta, mas timidamente, como se estivesse com medo que eu me transformasse em outra coisa.

— Você prometeu que ninguém me pegaria.

Eu me afastei, olhando bem nos seus olhos.

— Eu sinto muito.

Mindy olhou de volta para mim, depois seus olhos analisaram a escuridão.

— O homem mau estava aqui.

— Não, não era ele. Era só... — Eu não queria dizer o nome dele. Não queria pensar nele. — Só um pompo qualquer. Ele foi embora agora.

Mas eu ainda não tinha ideia de por que o velho tinha desaparecido, ou se ele iria voltar. Então me levantei e peguei a mão de Mindy.

— Vamos para casa. Vamos ficar seguras lá.

Ela assentiu, sua mão pequena e fria na minha, e me deixou levá-la para o rio.

Quando chegamos no meu quarto, dei uma olhada para a cozinha. Minha mãe não estava lá, e a panela de água ainda não tinha fervido.

Me perguntei quanto tempo tinha passado. Aqueles minutos no porão pareciam ter durado séculos.

— Tenho que ir fazer o jantar — sussurrei. — Mas você pode ficar olhando se quiser.

—Tudo bem. Vou ficar no armário da Anna.

Assenti, me deixando voltar para o mundo real. Com meu coração tão acelerado, foi instantâneo. As cores tomaram o meu quarto, e o cheiro de ferrugem e sangue sumiu.

Mindy ainda estava ali, olhando para mim.

— Eu nunca vou deixar isso acontecer de novo — falei suavemente. — Prometo.

— Você não pode prometer.

— Mindy... — comecei a explicar que ela estava segura, que o Sr. Hamlyn não queria garotinhas como ela. Mas Mindy estava certa: havia outros homens maus, jovens e velhos, vivos e mortos, e alguns nem uma coisa nem outra. Muitos, demais para fazer promessas.

— Mas você veio e me salvou. — Mindy ficou na ponta dos pés e me deu um abraço de verdade dessa vez, os braços frios me apertando. — É isso que importa.

Ouvi o som da minha mãe vindo pelo corredor. Mas deixei que Mindy me abraçasse o quanto quisesse, mesmo quando ouvi a água fervendo na cozinha e a irritação da minha mãe por eu ter deixado a água queimar.


CAPÍTULO 31

A turnê continuou por mais seis dias — intensa e insana, irreal e inesquecível. O pêndulo alternava entre a energia infinita dos eventos para a estase muda de aeroportos e lobbies de hotel. Da euforia à exaustão, dos píncaros da conexão humana a engarrafamentos sem fim.

Mas então acabou, e Darcy e Imogen se viram no aeroporto de Chicago, se despedindo de Stanley Anderson. Foi tão triste quanto o final choroso de um acampamento de verão, e quando se dirigiam para o embarque, Imogen disse a Darcy:

— A ausência de antigos amigos é possível com serenidade, mas a separação de seus novos companheiros de turnê é insuportável.

O avião tomou os céus de volta a Nova York, onde Imogen e Darcy ficaram desabadas na cama por vários dias, os ecos de mil leitores zelosos nos ouvidos. Mas logo voltaram ao trabalho, pois havia um novo fim de Além-mundos a escrever, e tanto Fobomante quanto Patel Nº 2 para finalmente serem iniciados.

* * *

— Essa é a pior ideia que você já teve — falou Darcy.

— Pesquisa! — retrucou Imogen, dando a volta por trás do carro alugado. Ela apertou um botão do chaveiro e, com um bip obediente, o porta-malas se abriu. — Que estranho. Eu nem sei como chamar isso.

Darcy cruzou os braços para se proteger do frio do início de novembro.

— Chama porta-malas. Dã.

— Não, isso. — Imogen abriu um pouco mais o porta-malas, depois fechou de novo. — O que está na minha mão, a parte que se mexe. É a porta do porta-malas? A escotilha?

Darcy percebeu que não tinha ideia. Escrever fazia muito isso — a levava a perceber todas as diferentes partes das coisas, e quantas palavras não conhecia.

— Ótima pergunta. Vamos para casa pesquisar.

— Engraçadinha. — Imogen fechou a jaqueta de couro. — Vou ver na internet enquanto você estiver dirigindo por aí. O celular deve funcionar, certo?

— Eu não vou a lugar nenhum com você na mala! Não dirijo desde que saí da Filadélfia!

— Dirigir mal é bom. O cara que sequestra a Clarabella está bêbado, lembra?

— Dirigir mal não é bom! Quer dizer, você quer que eu amarre suas mãos também? Se vamos fazer isso, é melhor ir até o fim.

Depois de pensar por um momento, Imogen deu de ombros.

— Não trouxe corda.

— Você não pode pedir isso pra outra pessoa? Pelo menos se ela te matar, não vai ser minha culpa.

Imogen sorriu.

— É culpa sua de qualquer forma, porque você roubou minha cena no armário.

A frase era verdadeira o suficiente para calar Darcy. Se Fobomante ainda começasse com Clarabella presa no armário, Imogen teria feito essa pesquisa na segurança do seu lar.

Já fazia dois meses que ela reclamava que a cena inicial do livro não parecia real, porque ele nunca tinha estado presa num porta-malas. Então naquela noite havia carregado Darcy para o frio de novembro com a promessa de um restaurante chinês 24 horas. Tinha sido uma armadilha.

— E se eu bater?

Imogen deu de ombros.

— É só ir devagar. É mais seguro estar no porta-malas a 30km/h do que no banco do carona a 80km/h.

— Você inventou isso.

— Sim, mas achei que parece certo.

Darcy soltou um resmungo. Imogen não seria convencida com argumentos de segurança pessoal. Era uma mulher que escalava prédios na faculdade, e que ainda andava de metrô na passarela entre os trens quando os vagões estavam muito cheios. Darcy só tinha uma última cartada.

— Se a gente bater e você morrer, eles vão me prender por sequestro. Talvez até assassinato!

— Que nada. Deixei um vídeo no laptop explicando tudo. O máximo que vai acontecer é uma acusação de homicídio culposo.

Darcy hesitou.

— Então isso significa que posso olhar seu computador se você morrer?

— Só a pasta do vídeo! Se der uma espiadinha que seja no meu diário, vou assombrar seus sonhos.

Com essas palavras, Imogen entrou no porta-malas, e Darcy foi forçada a ir até a traseira do carro. Era um daqueles carros alugados que têm vagas especiais na rua. Imogen tinha aberto as portas com o celular e encontrado as chaves esperando no porta-luvas. O processo todo tinha sido perigosamente eficiente, ligeiro demais para os freios da sanidade segurarem.

Imogen estava encolhida em volta do ridiculamente pequeno estepe, com o pescoço em um ângulo que já parecia quebrado.

— Talvez eu devesse ter alugado um sedã.

— Imogen. Não faça isso. Por favor.

— Não seria tão ruim se o macaco não estivesse cutucando minhas costas.

— Eu não vou ajudar você a se matar! — gritou Darcy.

Um cara passeando com um cachorrão preto do outro lado da rua deu uma olhada para ela. O cachorro pareceu intrigado, mas o cara simplesmente se virou e seguiu em frente, puxando-o consigo.

— Só alguns quilômetros. Eu só preciso de dez minutos.

— Eu me recuso. Me prometeram noodles!

Imogen deu de ombros, ou pelo menos tentou, no aperto da mala.

— Então você quer que eu peça à próxima pessoa que passar por aqui. São três da manhã, a hora dos esquisitões. Tenho certeza de que consigo achar alguém que queira levar um estranho para um passeio no porta-malas.

Darcy ficou olhando para ela.

— Não acredito nisso.

— E eu não acredito em quanto tempo já perdi batendo cabeça com essa cena! — Imogen se desdobrou e conseguiu sentar ao lado do estepe. — E ela precisa ser perfeita. Se esse livro não for incrível desde a primeira página, a Paradox não vai publicar!

— Como assim? Eles compraram a trilogia inteira.

— Eles ainda podem cancelar o restante do contrato. — Imogen se curvou um pouco. — Minha agente ligou hoje. Piromante não está indo nada bem.

— Isso é loucura, Gen. Eu vi você autografando centenas de livros.

— Sim, o auge foi durante a turnê. Mas não está vendendo nas grandes cadeias, nem em nenhum outro lugar. Eles já têm dois meses de informações, e todo mundo está pirando. Minha agente foi a uma grande reunião na Paradox segunda-feira, todo mundo culpando todo mundo. A capa é vermelha demais, o título é esquisito demais, tem cigarros logo na primeira página... — Imogen soltou um suspiro. — E, é claro, meninas que gostam de meninas.

— Mas só tem um beijo.

— E a famosa cena das gotas de cera. Mas não importa em quem eles coloquem a culpa. O livro está tendo problemas, o que significa que a série está tendo problemas!

Darcy balançou a cabeça.

— Mas o livro do meio, seja lá qual o nome, sai depois. Fobomante só vai ser lançado daqui a dois anos. Até lá, todo mundo vai ter percebido como você é incrível!

— Eu não tenho dois anos. Minha agente quer que eu mande para Nan a primeira versão do livro em alguns meses, mas tem que ser excelente, para mostrar pelo que estamos lutando. — Imogen se apoiou na beirada do porta-malas. — Eu vou fazer isso de qualquer forma. É aqui que Clarabella começa a controlar suas fobias.

Darcy ficou ali parada, sem acreditar. Todos aqueles livreiros e bibliotecários, todos os fãs de Standerson — todos tinham amado Imogen. Desde a turnê, pelo menos cinquenta críticas maravilhosas de Piromante tinham pipocado na internet, e mais meia dúzia em jornais e revistas de verdade. Duas tinham até estrelinhas!

O que mais a Paradox esperava?

— Tá — concordou Darcy. — Vamos lá.

Imogen deu um sorriso que iluminou a escuridão do porta-malas, depois jogou as chaves para Darcy e se enrolou lá dentro de novo.

— Cuidado com os buracos.

— Vou tomar cuidado com tudo. — Uma respiração lenta e profunda. — Pronta?

Imogen ergueu o dedão, e Darcy fechou devagar a porta. Enquanto ia para a frente do carro, ela se perguntou se alguém estava assistindo a tudo da janela de um dos apartamentos acima. Deve ter parecido o sequestro mais estranho do mundo.

Darcy ficou sentada por um momento no banco do motorista. O carro era muito menor do que qualquer coisa que já havia dirigido antes. Seus pais sempre diziam que quanto maior, mais seguro. Embora, como Nisha gostava de apontar, o que eles queriam dizer é que era seguro para os Patel, e não para as outras pessoas na rua. Mas com sua namorada enrolada no porta-malas, Darcy teria ficado muito satisfeita com esse tipo de segurança.

Os pedais pareciam muito distantes, mas o banco do motorista não se mexia. Darcy desistiu e ligou o carro, colocando-o na rua devagar quase parando.

Era estranho ver a cidade do banco da frente, e não da parte de trás de um táxi. De forma ainda mais estranha, aquilo trazia memórias do ensino médio. Sua mente se voltou para o último ano, passageiros bêbados e brigas sobre estações de rádio. Fazer as pessoas segurarem os cigarros do lado de fora da janela, e ver seu pai checando o odômetro quando ela voltava para casa. Nisha exigindo passeios no shopping, pois com grandes poderes automotivos vinham grandes responsabilidades fraternas. Darcy queria virar para Imogen e contar tudo isso para ela.

Mas Imogen, é claro, estava no porta-malas.

— Você tá me ouvindo? — gritou Darcy.

Talvez tenha vindo um barulho da parte de trás. Mas era uma resposta? Seriam só os espasmos de um envenenamento por monóxido de carbono?

No próximo sinal vermelho, Darcy pegou o celular no bolso da jaqueta, mas, ao digitar o número de Imogen, percebeu um carro pelo retrovisor.

Um carro da polícia.

— Ah, bosta — murmurou Darcy.

A polícia não tinha motivo para pedir que encostasse e abrisse o porta-malas, é claro. Ela mal tinha passado dos 20km/h. Será que eles poderiam pará-la por dirigir devagar demais?

É claro que usar o celular no volante era ilegal. Darcy pousou o telefone no banco do passageiro e ficou olhando para a frente — uma motorista exemplar.

Então ela notou que o sinal estava aberto. Há quantos segundos?

Darcy acelerou o carro devagar. O carro da polícia a seguiu.

— Certo, indo um pouco mais rápido agora — murmurou, segurando o volante com mais força agora que a velocidade chegava aos 40km/h. Qual era o limite de velocidade na cidade, aliás? Ela não vira nenhuma placa. Será que todo mundo simplesmente sabia?

O carro da polícia ainda estava atrás dela. Sem ultrapassar, sem desviar.

Imogen não tinha previsto esse probleminha em dirigir no meio da noite — não tinha nenhum outro na rua. Darcy era um alvo óbvio e solitário para a lei.

— Bosta, bosta, bosta — murmurou ela.

Um tump sacudiu o carro. Tinha vindo do lado de dentro...

— O que é? — gritou.

Sem resposta. Os olhos de Darcy correram para o celular. Nada.

— Você está bem? — gritou ela o mais alto que conseguiu. — Pelo amor de Deus, me liga!

Mas Darcy não ousou parar. O carro da polícia estava bem atrás dela, observando e à espreita, e as pistas largas da Delancey Street estavam logo à frente. Darcy virou à direita, porque à direita era mais fácil.

O carro de polícia fez o mesmo.

— Merda! — gritou ela, batendo no volante. Outro bump veio em resposta da parte de trás. O que Imogen queria dizer?

Usando toda a força de vontade, Darcy tirou uma das mãos do volante e pegou o celular. Segurando-o abaixo da janela, ela tocou no nome de Imogen, ligou o viva-voz e largou o aparelho no colo.

— Cara! — Imogen atendeu. — Se chama tampa.

— Do que você está falando?

— Eu procurei o nome daquela coisa que fica em cima do porta-malas. Se chama a tampa do porta-malas. Idiota, né?

— Por que você estava chutando o banco de trás? — gritou Darcy.

— Pesquisa! Eu queria saber se você conseguia me ouvir com o barulho do motor.

— Eu achei que você estivesse morrendo!

— Sério? Relaxa.

— Tem um carro de polícia bem atrás de mim! — Mas exatamente quando ela falava, uma presença surgiu à esquerda. O carro tinha encostado ao seu lado, e o policial no banco do passageiro estava observando Darcy enquanto ela gritava sozinha.

Darcy ficou olhando para ele, de olhos arregalados e assustador.

A risada de Imogen encheu o carro.

— Maneiro.

— Cala a boca! — sibilou Darcy por entre os dentes.

O policial revirou os olhos para ela, e o carro seguiu em frente. Darcy manteve o volante sob um aperto mortal, dirigindo em linha reta até que o carro da polícia virou uma esquina um infinito quilômetro depois, desaparecendo de volta a Chinatown.

Darcy soltou um suspiro.

— OK, eles foram embora.

— Ótimo. Acho que esse é o máximo de pesquisa que aguento esta noite.

— Ótimo. Mas... — Darcy olhou para a frente. Erguendo-se adiante estava a ponte de Williamsburg, imensa e inescapável, graças a uma fila de cones de trânsito à direita. — Acho que estamos indo para o Brooklyn.

— Engraçadinha.

— Não, estou falando sério.

O carrinho já estava ganhando a subida da ponte, e Darcy viu um par de faróis se aproximando rápido por trás. Ela acelerou, tentando acompanhar o ritmo. O carro já estava a 80km/h quando o outro carro ultrapassou a toda.

— Cara — veio a voz de Imogen. — Tô sentindo uma velocidade louca. Dá pra diminuir?

— Não tem como! — choramingou Darcy. — É a velocidade do trânsito!

A ponte estava subindo, erguendo-a à altura das torres do Brooklyn adiante. O carro que tinha ultrapassado já sumia de vista, e o céu brilhava ao redor dela através dos cabos de suspensão. Por um momento Darcy se viu sozinha no meio da ponte, suspensa acima do rio faiscante.

Era bem bonito.

— Sinto muito que seu livro não esteja vendendo — falou baixinho.

Ela não tinha certeza de que Imogen ouvira, mas aí um suspiro veio pelo telefone.

— Né?

— Por que a Paradox está pirando tão cedo? Só faz dois meses.

— Porque se este livro não vender, as livrarias não vão pedir o próximo. Que ainda não tem um título decente.

Pela milionésima vez, Darcy revirou o cérebro por um nome melhor que Gatomante. Ela queria tanto ajudar.

— Desculpa por ter roubado a sua cena.

— Não se preocupe — respondeu Imogen com uma risada. — Aqui atrás é bem mais interessante do que num armário.

Darcy se permitiu sorrir. Talvez tenha conseguido ajudar um pouco, e pelo menos não tinha matado Imogen.

— Já estamos quase atravessando. Vou encostar no primeiro lugar que der.

— Obrigada por fazer isso.

— Você está me agradecendo? Como se não tivesse me obrigado?

— Eu coloquei uma arma na sua cabeça?

— Você ameaçou usar um estranho qualquer! É chantagem emocional.

— Eu estava brincando.

— É, OK.

Finalmente apareceu uma saída, Darcy reduziu a velocidade e se preparou para virar. Um momento depois, estava numa rua quieta, com calçadas largas e lojas fechadas. Ela parou o carro e desligou o motor, depois tirou um momento para relaxar as mãos doloridas e respirar fundo. Seu corpo todo parecia uma confusão de tendões ansiosos.

— Fique à vontade para me soltar quando quiser — anunciou o telefone. — Tá frio aqui atrás.

— Tô indo!

Darcy saiu e deu a volta no carro. Com uma olhada nos desenhos do chaveiro, ela apertou um botão e o porta-malas se abriu.

— Puta merda — falou Imogen, chutando a tampa com a bota. Ela se esticou e ficou sentada ali por um momento, alongando o pescoço.

— Tudo bem?

— Só dei um mau jeito aqui. Você não me matou.

Quando Imogen saiu do carro, Darcy a abraçou, precisando de sua presença, a maciez e a força por baixo da jaqueta de couro.

— Não, mas senti saudades.

Ao se afastarem, Darcy percebeu que a rua não estava totalmente vazia. Dois caras de chapéu estavam sentados no meio-fio por perto, e uma moça passava de skate. Os três observavam a cena.

— Nunca viram ninguém sair de um porta-malas antes? — murmurou Imogen.

Darcy só riu e passou as chaves para ela.

Elas voltaram com o carro para a mesma vaga, e Imogen usou o truque do celular para devolvê-lo. Então fez um anúncio maravilhoso...

Tinha, sim, um restaurante chinês 24h novo por ali.

Imogen foi na frente, virando uma esquina, atravessando um beco e subindo meio andar de um prédio. Àquela hora, as mesas baratas de madeira estavam vazias, com a exceção de um quarteto japonês em um double date aparentemente hilário. No canto havia um gato da boa sorte de plástico de um metro de altura, incansavelmente balançando a patinha.

Darcy pediu noodles de porco com ovos cozidos e broto de bambu, e uma cerveja para acalmar seus nervos.

— Obrigada por hoje — falou Imogen quando o garçom foi embora.

— Foi divertido, até. Depois que acabou.

— Também achei legal. Talvez agora eu vá acertar a cena.

— Então, como foi lá atrás?

Imogen pensou um pouco.

— Tem cheiro de carro, mas com mais graxa. E é muito desconfortável. Acho que passamos cem anos melhorando os bancos, então eles ficaram muito bons. Porta-malas, nem tanto.

— Sorte eu não ter batido, então. — Darcy girou o porta-copos, querendo ter uma cerveja para colocar ali. — Mas Clarabella não estaria preocupada com conforto. Ela acabou de ser sequestrada.

— Sim, mas ficar lá atrás faz você se sentir uma bagagem. Uma bagagem assustada. Não dá para ver o lado de fora, então você é jogado de um lado para o outro sem aviso.

— Desculpa.

— Não seja boba. Eu forcei você a me sequestrar com uma arma emocional.

Darcy sorriu.

— Finalmente uma confissão. Você ficou enjoada?

— Adrenalina demais. — Imogen massageou o pescoço. — E tinha uma corrente de ar, um vento frio que ficava batendo na minha cara. Dava para ouvir os pneus no asfalto, e sentir a textura diferente quando entramos na ponte.

Quando as bebidas chegaram, Darcy considerou esses detalhes. Tinham um realismo que faltava ao livro de Imogen.

— À pesquisa!

— Pesquisa! — Imogen deu um gole e pegou o telefone, sorrindo ao digitar anotações.

Darcy bebeu devagar, se perguntando que tipo de pesquisa estava faltando ao seu livro. Será que ela deveria se prender num armário? Visitar as dunas de White Sands, ir para um aeroporto à meia-noite e andar pelos corredores vazios? Ou a um clube de tiro, para ouvir o barulho das armas?

Ela olhou em volta para o restaurante, percebendo o pote de ovos em conserva no balcão, os pisca-piscas azuis pendurados nas vigas do teto. O mundo sempre tem mais detalhes do que é possível se lembrar, mais do que é possível ver, e mil vezes mais do que é possível escrever. Estamos sempre apagando e esquecendo muito mais do que conseguimos expressar em palavras.

Foi naquele momento que ela se lembrou do que Imogen havia lhe contado, que sua mente ainda rejeitava como irreal. Parecia impossível que Piromante estivesse indo mal. Com certeza havia vendido milhões de exemplares, e tudo aquilo tinha que ser algum erro de contabilidade que seria revisto pela manhã.

Enquanto observava Imogen digitando no celular, ela ruminou sua raiva e descrença, e também sentiu uma pontada de medo surgindo dentro de si. Era o menor pedaço de algo maior, um tentáculo se enfiando por baixo da porta.

O que aconteceria quando o livro dela saísse?

Nisha havia mandado a mensagem: 323 dias até publicação! Nervosa?

Imogen ergueu os olhos e viu a expressão de Darcy.

— Deixei você chateada, né?

— Não. Só estou puta com o mundo por ser idiota. E... — Ela tomou um fôlego trêmulo. — Isso pode parecer meio egoísta, mas também estou com medo. Se seu livro não conseguiu encontrar o público, o que vai acontecer com o Além-mundos?

Imogen pousou o celular na mesa e esticou a mão.

— Quem sabe? Acho que é meio aleatório às vezes. Ou talvez seja mesmo culpa da capa vermelho-fogo superóbvia, ou das meninas se beijando, ou a temível menção a cigarros.

— Mas a Ariel nem fuma!

— Mas ela fica no covil dos fumantes, como eu inocentemente menciono na primeira página. Mas você não tem com o que se preocupar. — Quando Darcy soltou um suspiro, Imogen completou: — Não porque Além-mundos não é realista e profundo! É só que você se manteve longe dos problemas óbvios.

— A não ser pelo final triste.

— Você vai encontrar o final perfeito, feliz ou não.

Darcy baixou a cerveja.

— Isso é loucura. Eu deveria estar animando você.

— Eu não preciso ser animada. Eu preciso de uma cena de abertura foda e um bom título para o livro dois.

— Merda de Gatomante — soltou Darcy, lançando um olhar acusador à criatura de plástico gigantesca no canto. O motorzinho lá dentro mantinha a patinha se movendo, trazendo boa sorte, prosperidade ou seja lá o que gatos de plásticos deveriam atrair. — Como é gato em japonês?

Imogen pensou por um segundo, depois deu de ombro e procurou no celular.

— Neko — respondeu um momento depois.

— Nekomante?

Imogen riu.

— Os fãs de mangá podem entender, mas duvido que o marketing da Paradox concorde.

Elas tentaram outras línguas: Catmante, Chatomante, Katzemante, Maomante, que as divertiram mas não produziram títulos nada úteis.

As duas tigelas de macarrão chegaram, fumegantes e cheirosas. Darcy aqueceu as mãos no pote enquanto Imogen abria os hashis das duas.

— Pelo menos vou comer noodles — falou Darcy.

— E eu consegui minha abertura. — Imogen pegou um pedaço de carne da tigela e assoprou. — Talvez você deva roubar todas as minhas cenas, assim vou ter que escrever outras melhores!

Darcy resmungou.

— Eu nunca mais vou roubar suas cenas, juro!

— Uma vez clepto, sempre clepto — comentou ela dando de ombros. — Ei, não é como se eu odiasse ladrões. Acabei de escrever um livro inteiro sobre um gatuno.

— Espera — disse Darcy, a primeira colherada parada a meio caminho da boca. Uma lâmpada estalava nos confins do seu cérebro, tentando se acender.

Imogen terminou de mastigar.

— O quê?

— Seu protagonista em Gatomante, você só chamou ele de gatuno.

— Ele é um ladrão com poderes felinos. E daí?

Darcy balançou a mão, pedindo silêncio. Ficou olhando para a tigela, fazendo força para que sua mente penetrasse pelo caldo grosso, o emaranhado de macarrão e carne.

— Poderes felinos... que ele usa para roubar coisas.

— Alguém fez logoff em você?

Darcy balançou a cabeça devagar, até que seus pensamentos desorientados entrassem no lugar.

— Cleptomante — falou baixinho.

Imogen parou por um segundo, depois baixou os hashis.

— Sabe, isso é... — Outra pausa. — Isso é muito bom.

— Porque “clepto” já existe! Todo mundo sabe o que é uma fobia, e o que é um piromaníaco. Mas nenhum dos outros títulos significa nada!

— E cleptos são obsessivos-compulsivos. — Imogen enfiou os hashis na tigela e soltou um palavrão. — Por que não pensei nisso?

— Você ficou obcecada com malucas dos gatos. — Darcy sorriu para o gato gigante de plástico.

Imogen ergueu a tigela com as mãos e fez uma saudação.

— Obrigada pela inspiração, Neko-chan.

— Ei! Nada de elogios a objetos inanimados enquanto estou bem aqui!

Imogen abriu seu sorriso para Darcy.

— Obrigada também, meu amor.

— Você gostou mesmo — murmurou Darcy, e sentiu o débito da cena finalmente sumindo. — Acho que você me deve um título.

— Que tal um nome, em vez disso?

Darcy balançou a cabeça.

— Um nome?

— Audrey Flinderson — falou Imogen baixinho.

Darcy levou um longo e confuso momento para entender.

— Esse é o seu nome de verdade? Quer dizer, seu nome antigo?

Imogen assentiu.

Darcy esperou que algo mudasse, que seu cérebro alterasse sua percepção e que Imogen se tornasse Audrey. Mas nada aconteceu.

Imogen era Imogen.

— Então posso procurar você no Google agora?

— Pode. — Imogen deu de ombros. — Mas talvez você não queira fazer isso.

Darcy ficou olhando para a sua tigela, se perguntando se poderia se esforçar e esquecer aquele nome, como um sonho que desaparece ao acordar. Mas não parecia provável.

— Você era tão ruim assim?

— Na maior parte do tempo eu era bem boa. Mas quando escrevia coisas más, elas pareciam se espalhar e ficar mais famosas. A internet meio que funciona assim.

— Você está tentando ser misteriosa de propósito?

— Não, mas estou conseguindo. — Imogen deu um gole pensativo. — Mas eu já deveria ter te contado isso. Deveria ter confiado em você. Desculpa.

Uma pontada de dor passou por Darcy.

— Achei que você confiasse em mim. Tipo, sempre.

— Você era mais nova que eu. Ainda é. E, como eu disse, mudar meu nome foi uma das melhores coisas que já fiz. — Ela respirou fundo. — Mas estou confiando em você agora, e espero que isso não mude a forma como você me vê.

— Prometo que não, Gen.

— O engraçado é que eu achei que você já sabia.

Darcy franziu a testa.

— Seu nome? Como?

— A gente passou uma semana juntas em turnê, entrando e saindo de aviões quase todos os dias. — Imogen esperou por uma reação, mas não conseguiu, então continuou. — Você precisa embarcar usando seu nome verdadeiro, sabia?

— Bosta — soltou Darcy.

Espiar as passagens de Imogen nunca nem tinha ocorrido a ela. É claro que ela jamais mexeria na carteira dela ou contrataria um detetive particular. Era isso que ela queria. Que Imogen contasse.

Ela estava tentando não rir.

— Acho que é uma boa coisa que você não escreve histórias de espionagem.

— Engraçadinha.

— Você vai me procurar no Google, não vai?

— Provavelmente.

— Foi o que pensei. — Imogen suspirou. — Só se lembre: nem sempre as coisas que escrevemos são o que nós somos.


CAPÍTULO 32

Estávamos sentados em um afloramento de rocha, negro e afiado, que se erguia do mar branco. A superfície da neve tinha sido congelada em vidro. Rajadas de vento carregavam flocos pelo ar, o sol alto os iluminando como arco-íris cinzentos. As montanhas se espalhavam em todas as direções, acabando em vales secos e arenosos.

Eu não estava usando casaco, só um suéter, mas no outro lado sentia apenas toques de frio. Ainda assim, só avistar aquela quantidade de neve já era o suficiente para me fazer tremer.

— Você tem uma coisa com lugares desolados — falei.

Yama sorriu.

— Pode ser triste, mas é quase silencioso.

Quase silencioso. Isso significava que algumas poucas pessoas tinham conseguido terminar seus dias ali em cima, talvez alpinistas sem sorte que assombravam o pico onde tinham morrido. Eu não tinha visto nenhum fantasma vagando por ali, mas Yama ouvia suas vozes nas pedras. Aquela era sua montanha na Pérsia, um dos lugares desolados de que Yama precisava para manter a sanidade. Quanto tempo levaria para que eu começasse a precisar deles também?

Afastei esse pensamento.

— Estou preocupada com Mindy. Ela passou o dia todo no armário.

— Ela tem medo há muito tempo.

— Nunca vi assim tão ruim. — Quando falei com ela naquela noite, Mindy estava encolhida no canto mais distante, atrás dos vestidos pendurados nos sacos plásticos da lavanderia. Seu cabelo estava embaraçado, as roupas desarrumadas. — A voz dela parece mais suave. Como se estivesse desaparecendo.

— Ela não pode desaparecer, Lizzie. Ela tem suas memórias e as da sua mãe para mantê-la aqui.

— Mas e se ela decidir que não quer mais existir porque é assustador demais? — Dei as costas para a paisagem nevada para encará-lo. — Fantasmas podem se fazer desaparecer? Tipo, suicídio espectral?

Ele balançou a cabeça.

— Ela vai voltar a ser como era. Fantasmas não são afetados de verdade pelo que acontece. Eles só mudam conforme as memórias dos vivos mudam.

— Então por que ela está totalmente traumatizada?

— Por causa do que aconteceu anos atrás. Isso ainda faz parte dela.

Me afastei de Yama. Eu entendia o que ele estava dizendo — Mindy ainda tinha onze anos, ainda tinha medo do homem que a assassinou muito tempo antes. Mas eu odiava a ideia de ela estar presa em seu medo para sempre. Não parecia justo dar tanto poder ao homem mau.

E se o além-mundo mantinha fantasmas congelados no tempo, o que ele faria comigo?

— Nós podemos mudar, certo?

— Você e eu? É claro.

— Mas você se sente com 17 anos? Ou muito velho?

Yama deu de ombros.

— Não tenho certeza de qual é a sensação de ter 17 anos. Eu tinha 14 anos quando atravessei, quase idade suficiente para me casar.

— Cara, isso é muito bizarro.

— Era como o meu povo vivia. — Ele dizia muito isso.

— O seu povo e o meu são muito diferentes. — Eu também dizia muito isso. — Mas você na verdade não aparenta ser muito mais velho do que eu. Parece ter 17 anos. Claro, isso provavelmente é o que o seu povo chama de meia-idade.

Sua sobrancelha se ergueu, quase como um desafio.

— Na minha aldeia, as pessoas passavam de jovens e saudáveis para velhas e frágeis em algumas estações. Não havia média suficiente para termos uma palavra que a definisse.

— OK, isso é horrível. — Não era justo sacanear pessoas que tinham vivido na Idade da Pedra, mas às vezes era simplesmente fácil demais.

— Demora um pouco para se acostumar — disse ele. — A perder tempo. Você já está dias mais jovem do que deveria ser.

Pisquei. Era estranho pensar que no meu aniversário de 18 anos eu estaria mentindo, não da idade que minha carteira de motorista alegava. Mas mais estranho foi pensar que eu poderia viver para sempre se quisesse.

— O Sr. Hamlyn me disse que nunca sai do além-mundo. Tipo, ele acha que poderia morrer de velhice a qualquer minuto.

Yama endireitou-se.

— Ele disse o nome dele?

— Sim. — Respirei fundo devagar, percebendo que estava na hora de entrar em detalhes sobre o resgate de Mindy. — Essa era uma das condições para soltar Mindy. Eu tinha que decorar o nome dele.

— Ele quer que você possa chamá-lo.

— Não sei por que, mas ele acha que vou querer fazer isso. — Cocei meus braços. A energia estranha do Sr. Hamlyn ainda estava em mim, como insetos fantasmas.

— Ele também me fez beijar a mão dele, para ter certeza de que estamos conectados. Será que era algum tipo de truque? — Tentei rir. — Quer dizer, ele vai ficar com meu primogênito agora?

Yama sorriu um pouco, me abraçou e respondeu com um beijo. O calor dos seus lábios dançou na minha pele, apagando por um momento o sabor persistente do velho. Os toques de ar gelado diminuíram ao meu redor.

Quando nos separamos, ele disse:

— Não era um truque, mas é estranho. Por que ele acha que você vai querer chamá-lo?

Eu apenas dei de ombros, sem nem querer adivinhar.

— Seu último pedido era que eu entregasse uma mensagem para você: “Diga a ele que estou com fome.” Isso faz algum sentido para você?

— Parece uma ameaça.

— Mas ele tem medo de você.

— De mim, mas não do meu povo. — A voz de Yama baixou um pouco. — Eu protejo os mortos, e ele os ataca.

Esperei por mais informações, mas Yama se perdeu em pensamentos. Conforme o silêncio se estendia, comecei a me perguntar se deveria ir embora. Às vezes, naqueles lugares desolados de Yama, eu me sentia uma estranha, um cacto transplantado para a tundra. Era meia-noite em San Diego, meio-dia na Pérsia, e o jet lag estava começando a me afetar.

— Estou vendo por que psicopompos não dormem. — Me inclinei para cima de Yama, fechando os olhos.

Ele me abraçou.

— Você ainda precisa dormir, Lizzie. O sono vai evitar que você mude rápido demais.

— Vamos embora em um minuto — falei, mas no final foi muito mais do que isso.

Quando Jamie me deu uma carona depois da escola no dia seguinte, encontramos um carro estranho na garagem. Era um carro esportivo. Elegante, vermelho-escuro, muito brilhante.

— Parece que a sua mãe tem companhia — disse Jamie ao encostarmos.

— Ela deveria estar no trabalho. — Dei uma olhada na casa. — Até as sete.

— OK, isso é estranho. — Jamie olhou para o carro misterioso. — O carro está com uma placa temporária. Você acha que ela comprou um carro novo?

— Tá de brincadeira? — Saí do carro olhando em volta, procurando qualquer um a quem o carro pudesse pertencer. Ninguém estava à espera na porta da frente. Ninguém à vista. — Desde que meu pai foi embora, a gente não comprou nem toalhas novas.

— Que pena. — Jamie estava do lado de fora, andando em volta do carro. — É um carrão.

— Sim, mas por que está aqui? — Peguei meu telefone. — Vou ligar para a minha mãe.

— Peraí. — Jamie estendeu a mão por cima do capô e tirou algo do para-brisa. — É um recado, Lizzie. Para você.

Ela deu a volta no carro e me entregou um envelope azul. Havia meu nome escrito nele, mas nada mais.

—Abre! — gritou ela.

— Tá — falei, mas em parte estava com medo. Algo estranho estava acontecendo.

Rasguei o envelope, e um único pedaço de papel saiu. Era um e-mail impresso, do meu pai para uma concessionária Chrysler em San Diego. Uma passagem havia sido destacada no meio com marca-texto amarelo.

Querida Lizzie, isto é para você, por tudo que você passou... Tive que parar e olhar para o carro. Sério?

— Meu pai me deu .

— Eu sabia! — gritou Jamie. Na hora que vi a placa temporária, sabia que era algum tipo de presente culpado por causa de terrorismo.

Balancei a cabeça.

— De jeito nenhum. Meu pai não faria isso.

— Obviamente ele fez. O que mais diz na carta?

Fiquei olhando para o papel, que tinha virado tudo o que eu pensava sobre meu pai completamente de cabeça para baixo. Mas conforme eu lia, tudo virou de ponta-cabeça de novo.

... especialmente agora, com o diagnóstico da sua mãe. Eu gostaria de poder fazer mais.

Eles vão jogar as chaves por baixo da porta. Com amor, papai.

— Não — falei baixinho.

Jamie ainda estava rindo, os dedos acariciando as linhas curvas do metal. Mas minha mente voltou correndo para duas noites antes, quando eu tinha feito ravióli com a minha mãe. O que ela falou sobre o meu pai: Você vai precisar dele um dia.

Era disso que ela estava falando.

— Minha mãe está doente.

Levou um longo e confuso momento para a risada de Jamie sumir.

— Ela o quê?

Estendi o pedaço de papel, incapaz de falar. Jamie pegou-o da minha mão e leu, sua expressão mostrando tudo o que eu estava chocada demais para sentir.

— O diagnóstico? Do que ele está falando?

Balancei a cabeça.

— Mas você saberia, Lizzie! Quer dizer, sua mãe nunca diria nada a ele antes de contar a você.

— Ela falou uma coisa outro dia — consegui falar. — Sobre eu precisar dele.

— De jeito nenhum. — Ela amassou o papel — Ele deve estar te sacaneando.

Eu queria acreditar em Jamie, mas minha mente ainda estava retomando tudo o que a mamãe tinha dito duas noites antes. Jamie não quer falar sobre si mesma. Ela quer te apoiar.

Minha mãe não estava falando de Jamie. Estava falando de si mesma.

— Ela acha que não vou aguentar — falei suavemente.

Jamie balançou a cabeça.

— Mesmo que ela estivesse escondendo alguma coisa, Anna teria dito a ele para não contar a você! Nem mesmo seu pai iria se esquecer de algo assim.

Enquanto eu estava lá parada, uma parte fria e impassível da minha mente entendeu tudo. Era mais fácil descobrir as motivações do meu pai do que pensar sobre o que aquele recado tinha acabado de me dizer.

— Ele queria estragar.

Jamie olhou para o carro.

— Você quer dizer, mimar você?

— Não. Estragar a surpresa. — Eu estava respirando com dificuldade. — Ele queria mostrar que descobriu que a minha mãe estava doente antes de mim. Mostrar que ele sabia e eu não.

De repente, minhas pernas não conseguiam mais me segurar, e me sentei ali mesmo na calçada. Não caí, só me deixei escorrer até o chão. Abracei os joelhos e meus olhos se fecharam.

Um segundo depois, Jamie estava bem ao meu lado.

— Está tudo bem, Lizzie.

— Não, não está.

Ela passou a mão pelo meu cabelo.

— Você nem sabe que tipo de diagnóstico é. Poderia ser, tipo, um tratamento de canal ou algo assim.

Eu nem sequer me preocupei em discutir. As pessoas não usam a palavra “diagnóstico” para um tratamento de cárie. Ninguém compra um carro para você quando sua mãe vai ter que arrancar um dente.

Em vez disso, eu falei:

— E se for eu?

— O que você quer dizer?

— O ataque em Dallas, o que quer que minha mãe tenha.

Abri os olhos e a encarei, suplicante. Jamie não respondeu.

— E se for tudo por minha causa? — perguntei. — Eu não sou uma valquíria. Sou uma porra de um ceifador.

— Você está sendo louca, Lizzie. — A voz de Jamie estava calma, mas firme. — Você não causou o que aconteceu em Dallas. Foram aqueles caras do Colorado. E o que quer que sua mãe tenha, é por causa de uma bactéria ou algo assim. Não você.

Balancei a cabeça. Jamie não sabia o que havia dentro de mim, o lugar frio que ressoava com a escuridão do além-mundo. Ela não sabia que eu via fantasmas, atravessava para o outro lado, e via as histórias das coisas mortas dançando na minha frente. Ela não tinha visto as menininhas, como elas me olharam, me quiseram.

Ela não sabia que agora eu fazia parte da morte.

— Está dentro de mim, Jamie.

Ela pegou uma das minhas mãos e a apertou.

— O que é?

— Desde Dallas. Tem alguma coisa diferente em mim.

— Claro que sim. Mas nada que possa fazer a sua mãe ficar doente. A gente devia ligar para ela e descobrir o que é está acontecendo.

— Talvez sempre tenha estado comigo. — Apertei a mão de Jamie. — Eu cresci com Mindy. Ela está aqui desde antes de eu nascer.

— Peraí. Quem é Mindy?

De repente, eu tinha que explicar tudo.

— A melhor amiga da minha mãe quando era pequena. Foi assassinada. Isso mudou a vida dela.

Jamie ficou apenas me olhando. Eu sabia que mal fazia sentido, mas de alguma forma não conseguia parar de falar. Tinha escondido tanta coisa dela, de todo mundo, e agora precisava falar tudo em voz alta.

— Acho que isso me mudou também. Eu cresci com o fantasma daquela menina.

Jamie olhou para mim por um longo tempo.

— Você está falando sério? Isso realmente aconteceu com a Anna?

— Quando ela estava com 11 anos, a melhor amiga desapareceu em uma viagem com os pais. Mas Mindy foi encontrada enterrada no próprio quintal. É por isso que a minha mãe está sempre com medo por mim.

Jamie soltou minha mão.

— Tipo, como naquela viagem no ano passado, quando ela ficava mandando uma mensagem a cada cinco minutos?

Assenti.

— Merda — disse Jamie. — Eu te sacaneei tanto por causa disso.

— A Mindy sempre esteve aqui, desde antes de eu nascer. É por isso que estou mudando tão rápido.

Mesmo que metade das coisas saindo da minha boca parecesse loucura para Jamie, me ajudava falar aquilo em voz alta. Eu era um psicopompo nato, como Yama dissera.

Jamie apertou minha mão com mais força.

— Você sabe que não existe esse negócio de fantasmas, Lizzie. Mas por que você nunca me contou sobre essa menina?

— Eu só descobri depois de Dallas. Minha mãe escondeu isso de mim. — Olhei para o bilhete amassado, agora no chão. — Assim como escondeu que estava doente.

— Lizzie. A gente devia ligar para a sua mãe.

— Tudo bem. — Me apoiei no para-choque do carro novo e fiz força para levantar. Eu sabia o que tinha que fazer agora. — Mas não enquanto ela está no trabalho. Aposto que também não contou para eles. Não podemos simplesmente jogar isso tudo em cima dela.

— Mas jogaram isso em cima de você!

— Não é culpa dela.

Jamie não parecia concordar, mas disse:

— Tudo bem. Mas vou ficar com você até ela voltar.

— Você não precisa fazer isso. — Respirei fundo, me forçando a sorrir. — Quer dizer, eu meio que preciso ficar sozinha. Por favor.

Ela me olhou fixamente, e olhei de volta. O lugar frio dentro de mim estava crescendo, me mantendo calma.

— Você está bem mesmo? — falou ela.

Balancei a cabeça e dei um abraço nela.

Por fim Jamie se convenceu, e eu fiquei olhando enquanto ela ia embora, sorrindo e acenando. Então fui até a porta da frente e abri. Ali no chão havia outro envelope azul. Me ajoelhei para pegá-lo. Algo de metal tilintou lá dentro.

— Lizzie?

Era Mindy, espiando pelo corredor que levava ao quarto da minha mãe.

— Está tudo bem — falei.

— Você está estranha.

Assenti. Sem dúvida estava estranha, como alguém pronto para calmamente destruir o mundo em pedaços. O envelope azul rasgado ao meio como papel de seda, as chaves do carro caindo na minha mão.

— Tenho que sair hoje à noite. Mas vou estar de volta amanhã, prometo.

— Tudo bem — disse Mindy hesitante. — Aonde você vai?

— Consertar as coisas.

O carro novo tinha um sistema de GPS sofisticado, que se acendeu quando girei a chave. Mas em vez de simplesmente me levar para Hillier Lane, em Palo Alto, o carro queria animação e tempo, para me deliciar com instruções e dicas úteis e instruções de segurança sem fim, como se quisesse me conhecer melhor.

Ele tinha escolhido o dia errado para isso. Dois minutos depois, o GPS estava desligado e eu tinha procurado o caminho no celular.

O lugar frio dentro de mim me fez, por algum motivo, pensar claramente, e eu tinha percebido uma coisa. De alguma forma — no fundo da sua mente, do seu coração, do seu espírito —, meu pai me via da mesma maneira que o Sr. Hamlyn via os fantasmas. Da mesma maneira que os dois viam todo mundo, como peças em um jogo. Nossas emoções eram apenas fios com que podiam tecer estampas divertidas.

Eu não podia consertar o meu pai, ou o que ele tinha feito com a minha mãe ao longo de 18 anos de casamento. E tampouco podia consertar o Sr. Hamlyn.

Mas podia consertar o homem mau.

Eram quase três da manhã quando encontrei a rua certa.

Eu não deveria ter levado 11 horas para chegar lá, mas havia começado a viagem no início da hora do rush, seguindo por um caminho que me obrigou a atravessar o emaranhado coração de Los Angeles. Também era possível que eu tivesse feito algumas manobras ilegais.

A bateria do meu telefone começou a acabar depois de duas horas de viagem, então desliguei o aparelho e segui a autoestrada, acompanhando as placas para Palo Alto pelo resto da viagem. No final, fiz algo ainda mais antiquado: pedi informações a um atendente de um posto de gasolina. Pouco importava o tempo de viagem. Eu era uma valquíria. Não precisava dormir.

Era estranho, ver a casa do homem mau com as cores do mundo real. Surpreendentemente, o bangalô não era cinza, mas pintado de um laranja-açafrão ensolarado, como gema de ovo crua. Mas não era uma visão alegre. Meus olhos de valquíria eram como os de um gato — metade no outro lado — e eu ainda conseguia ver as garotinhas mortas enfileiradas com suas arvorezinhas retorcidas.

Quando saí do meu carro novo e brilhante, elas se viraram para mim. Mas não me deixavam nervosas, não mais. Passei direto por elas e me ajoelhei ao lado de uma das árvores.

— Vou consertar isso — anunciei, e comecei a cavar.

Arranquei os tocos de madeira que formavam um círculo arrumadinho no pé da árvore, atirando-os para o lado. As fantasminhas olhavam, curiosas e em silêncio, enquanto eu trabalhava. Minhas mãos remexeram na terra fofa, depois chegaram ao solo cheio de pedras e insetos. Me perguntei se havia algum vizinho assistindo também, se perguntando o que diabos eu estava fazendo. Eu mesma não tinha tanta certeza. Só sabia que era levada por uma necessidade ardente de encontrar a verdade enterrada debaixo daquelas árvores.

Mas então meus dedos chegaram às raízes emaranhadas da árvore, grossas, nodosas e inquebráveis. Soltei um palavrão e ergui os olhos para a fantasma olhando para mim. Era a que vestia um macacão e presilhas brilhantes no cabelo.

— Não se preocupe — falei. Minhas mãos estavam cobertas de terra e doíam de cavar. — Ele não vai se safar.

Me levantei e me firmei no lugar, os olhos fixos na porta da frente do homem mau. Me fiz passar para o outro lado enquanto subia os degraus da varanda. Um momento depois, estava lá dentro.

Seu quarto continuava um brinco, e o homem mau estava a sono alto debaixo de cobertores pesados. Estava frio ali no norte da Califórnia. Eu nem tinha notado.

Fiquei olhando para ele, pela primeira vez sem saber o que fazer em seguida.

Talvez eu esperasse que minha raiva só fosse suficiente. Como se eu pudesse destruí-lo com um olhar. Mas a realidade foi lentamente dominando meu corpo. Meus músculos estavam tensos por dirigir por tantas horas e por cavar com as mãos. Minha cabeça latejava de tanto ranger os dentes, e parte de mim queria ligar o celular e telefonar para minha mãe. Ela, com certeza, estava morta de preocupação àquela altura.

Em vez disso, olhei para o homem mau e fiquei ouvindo sua respiração.

Eu não podia deixá-lo dormir pacificamente. Ele tinha feito tanta maldade, e a cada momento que vivia fazia mais. Foram as lembranças do homem mau que mantiveram as últimas horas de Mindy vivas.

Prendi o lábio inferior entre os dentes e mordi com força. A dor me jogou de volta no mundo real, e as cores tomaram o quarto. Como a parte externa da casa, o quarto agora estava cheio de cor: as cortinas amarelas, as paredes, de um bege rosado, os cobertores, de uma estampa verde-escura. Mesmo na escuridão, o quarto parecia alegre.

Me lembrei da pá debaixo da cama. Talvez ainda pudesse encontrar provas.

Eu me ajoelhei para espiar nas sombras, e meus olhos encontraram o brilho do metal. Minha mão agarrou a alça e lentamente puxou a pá para fora. A lâmina deslizou como uma unha gigante no chão de madeira.

Levantei de novo, com a arma nas mãos.

O homem mau não se moveu, mas eu não podia mais ouvir seu ronco.

Ele estava acordado debaixo do cobertor, se perguntando que sons eram aqueles? Ou só tinha despertado um pouco, se remexendo antes de voltar aos seus sonhos?

Esperei para descobrir, observando.

Foi então que vi os olhos me observando pela parte de baixo das janelas do quarto. As cortinas eram um pouco curtas demais, talvez para que o homem mau pudesse espiar suas árvores, seus troféus. Alinhados naquela fresta de vidro estavam cinco pares de olhos, todos olhando para mim, se perguntando o que eu faria a seguir.

Um tremor me atravessou quando percebi que não estava ali apenas por Mindy. Eu tinha vindo para que aquelas meninas pudessem desaparecer, finalmente, esquecidas. Com aqueles olhos em mim, eu não tinha mais escolha. Desenterrar seus ossos não seria suficiente.

O som agudo de uma respiração atravessou o quarto.

Era o homem mau, espreitando por debaixo das cobertas. Não para mim, mas por baixo das cortinas. Ele estava olhando para as suas preciosas árvores.

E tinha visto o buraco.

Sob o luar era fácil detectar o buraco preto, bruto e cavado com as mãos, como se algo tivesse escapado daquele chão frio.

— Eu estou aqui por você — sibilei.

Ele se virou, enrolado nas roupas de cama, me encarando com os olhos arregalados, como uma criança vendo um monstro no quarto.

Justo. Eu era uma valquíria, afinal de contas.

— Por quê? — perguntei.

Ele olhou para mim e balançou a cabeça de leve, como se não entendesse. Ou talvez não acreditasse em mim.

— Por que fazer coisas com as outras pessoas? Nós não somos seus brinquedos.

Ele não respondeu. O lugar frio estava na minha voz agora. Não soava como eu.

— Não estamos aqui para seus joguinhos, ou para sermos sequestrados, ou baleados em aeroportos porque você tem uma porra de um desejo de morte!

O homem mau deu as costas para mim. Sua mão pálida emergiu debaixo dos cobertores, procurando os frascos de comprimidos ao lado da cama.

Por fim ergui a pá e enfiei a lâmina na mesa de cabeceira. Madeira e plástico se espatifaram com um lindo som, pílulas disparando em todas as direções, deslizando pelas sombras como insetos sob uma luz súbita.

A mão pálida do homem mau ficou parada no ar, trêmula, procurando os remédios, como se ele ainda não pudesse acreditar que aquilo estava acontecendo. De seus lábios veio um som, uma série de suspiros curtos.

Subi na cama, escalando o homem mau e prendendo-o sob os cobertores. Segurando a pá com as mãos, pressionei a lâmina com força no seu peito. A respiração ficou mais difícil, fazendo seu corpo todo tremer, as ondas de choque viajando sob mim.

Pela janela, os olhinhos das meninas brilhavam.

Eu sentia o que estava acontecendo com o homem mau. Sentia isso no ar, no cheiro de ferrugem e sangue.

Depois de alguns minutos, seus tremores pararam.

— Sr. Hamlyn, eu preciso de você — falei.


CAPÍTULO 33

— Você falhou em me mandar mensagens suficientes — falou Nisha, brava. — O motivo desta ligação é questionar por quê.

— Eu mando mensagem para você todo dia! — Darcy colocou os fones de ouvido e guardou o celular no bolso. Ela estava pendurando roupa para secar quando a irmã ligou, uma atividade que fazia sua sala parecer nada inspiradora. Mas trazer a roupa molhada para casa economizava dinheiro na lavanderia, e pelo menos agora ela tinha uma distração.

— Você me manda mensagem com preocupações orçamentárias, Patel, mas não com todas as fofocas.

Darcy riu.

— O quê? Para você abrir a boca para a mamãe?

— Eu não abro a boca, Patel. Eu seleciono o que falar, escolhendo apenas os mais corretos para o paladar dos nossos pais. Eu sou a mestra das fofocas.

— Você é a mestra da baboseira.

— Só quando é preciso. Agora fala.

Darcy suspirou, pendurando uma das camisetas de Imogen em uma cadeira.

Sua irmã mais nova não ia dar descanso enquanto não recebesse as fofocas. E, na verdade, Darcy devia ter contado sobre Imogen séculos antes.

— OK. Mas essa informação é somente para discussão verbal. Nada de mensagens.

— Tenho consciência das questões de segurança.

Darcy baixou a voz, embora seus pais estivessem a quilômetros de distância.

— Estou com alguém.

— Eu sabia — falou Nisha.

— Não sabia, nada!

— Você ficou com alguém, tipo, cinco meses atrás.

Darcy só pode olhar com raiva para seus pijamas molhados.

— Vamos avaliar as evidências — comentou Nisha. — Um: você não comentou sobre ninguém. Quer dizer, você está morando sozinha pela primeira vez na vida, e não conheceu nenhum gatinho? Ninguém interessante na cidade de Nova York inteira? Isso é bizarro, Patel, mesmo para você.

— Hum, pode ser.

— Dois: você nunca nos visita. O que significa que não está sentindo falta do meu brilhantismo. E qual a única coisa melhor do que o meu brilhantismo?

— Amor verdadeiro? — chutou Darcy.

— Precisamente. E três: quando perguntei para Carla se você estava gostando de alguém, ela respondeu: “Sem comentários.”

— Você perguntou para a Carla? Isso não é meio traíra?

— Não é traíra se você já sabe a resposta. Então me perguntei, por que o segredo? Por que estamos quase sussurrando?

Darcy suspirou.

— Você deve ter teorias.

— Duas. Essa pessoa é mais velha que você, certo? O suficiente para assustar nossos pais.

— Errado! Bem, talvez um pouco. Mas ela é só... Ah, merda!

A risada de Nisha correu pela linha telefônica.

— Ela? Então minhas duas teorias estavam corretas. Existe alguma palavra em alemão que significa uma pessoa que está sempre certa?

— Acho que é chatonildestein.

— Isso foi moleza. Você me completa, Patel.

Darcy baixou a voz de novo.

— Você não comentou nada sobre suas teorias, comentou?

— Não, mas você sabe que eles não se importariam, né? Ou a Imogen ainda não saiu do armário?

— Ela já saiu totalmente do armário, mas... — Darcy soltou um resmungo. — Para com isso!

— Um tubarão não pode parar de nadar.

— Pode, sim: quando morre. Como você sabia?

— Pfft. Descobrir quem era foi a parte fácil, já que você não para de falar nela. Então a história da turnê era verdade, ou só... — Ela fez um barulho sugestivo.

— Foi aprovada pela editora! — gritou Darcy, então percebeu que seus pais se perguntariam a mesma coisa quando descobrissem. — Merda. Eu ia contar durante o feriado de Ação de Graças. Mas o assunto nunca surgiu.

— Hum, acho que você vai ter que levantar esse assunto, Patel. Ou você acha que a mamãe vai simplesmente te perguntar se você é gay?

— Eu ia falar disso, mas a Lalana estava no Havaí, e ela meio que queria estar presente também.

— Peraí. A tia Lalana sabe disso? Você contou para ela primeiro? — Um silêncio tempestuoso tomou a ligação, e Darcy percebeu que havia cometido um terrível engano.

— É só porque foi ela quem assinou meu contrato de aluguel, e prometi que contaria tudo a ela.

— Essa é uma traição muito séria, Patel. Haverá consequências.

— Desculpa. — Darcy baixou a voz ainda mais. — Mas tem uma coisa que eu queria conversar com você, uma coisa que nem a Lalana sabe. Tem a ver com o nome da Imogen.

— O nome dela? — perguntou Nisha com uma risada. — Ninguém na família se importa que ela não seja Gujarati. Bem, exceto a vovó P., mas ela vai ficar mais preocupada com essa história de “não ter um pênis”.

— Não, não é isso. A questão é que Imogen Gray não é o nome de batismo dela. É um pseudônimo, e ela nunca diz o nome de verdade.

— Que estranho. Por que não?

— Por causa das coisas que ela escreveu quando estava na faculdade. Ela não quer que os leitores do livro encontrem os textos on-line. Acho que ela também não queria que eu encontrasse.

— Então você não sabe o nome da sua própria namorada?

— Agora já sei, ela me contou. Mas eu ainda não procurei na internet. Só para o caso de ser... estranho.

— Você não está com medo de ela ser uma assassina ou sei lá o quê?

— Hum, acho que ela já teria sido presa. Ela usa o nome de verdade para viajar e tal. Sem contar que ela não precisava me contar nada disso.

— Então por que contou? — A voz de Nisha baixou para um sussurro de novo. — O nome de mentira dela é Gray? E se isso na verdade quiser dizer o Barba Cinza?

— O quê?

— Como naquele conto de fadas, o pirata que dá à nova esposa todas as chaves da casa. Mas tem uma que ela não pode usar, porque é para o quarto em que estão todas as esposas assassinadas! E se for alguma coisa assim?

— Esse é o Barba Azul, sua burra. O Gandalf é que tem a barba cinza. Você vai me dizer que ela é um mago agora?

— Não. Mas você devia mesmo usar essa chave. — Nisha parecia muito séria. — E provavelmente devia fazer isso antes de se assumir para o papai e a mamãe. Sabe, só por via das dúvidas.

Darcy refletiu. Tinha pensado que estava sendo honrada, não mexendo nas coisas que Imogen queria deixar para trás. Mas e se só estivesse sendo covarde de novo?

Talvez Nisha estivesse certa, e seria melhor tirar aquilo logo do caminho.

— OK, vou fazer isso agora. Te mando uma mensagem quando terminar.

No final das contas, não existiam tantas ocorrências para “Audrey Flinderson” assim.

A maioria dos resultados vinha do blog de Imogen na faculdade. Darcy leu alguns posts, e a única característica marcante era como eram chatos. Dava para ter vislumbres do estilo futuro de Imogen, mas as frases não eram bem definidas e as histórias eram incertas e vacilantes.

No topo da página estavam as críticas de filmes, mais recentes e bem escritas, e engraçadas de uma forma que Piromante nem mesmo tentava ser. Eram cheias de palavrões, mas nada que Imogen não teria dito na frente da plateia das livrarias. Darcy teria ficado confusa sobre por que Imogen havia escondido seu passado se não fosse por um ensaio bem no início dos resultados da busca. Era em um blog conjunto, e se chamava “Opinião pouco popular: minha ex-namorada é uma vaca”.

Darcy guardou esse para o final. Ela leu devagar e com cuidado, com o coração batendo torto no peito.

Era brilhante, de certa forma. Letal e cáustico, espirituoso e ridículo. O ensaio era sobre uma ex da faculdade, alguém ciumento, egoísta e inimaginavelmente perverso. Era um retrato hábil e selvagem, pingando veneno de cada palavra. O post era cheio de exageros óbvios, mas de alguma forma fez Darcy acreditar no inacreditável sobre aquela pessoa.

Era horripilante, mas, como um acidente sangrento na beira da estrada, Darcy não conseguia tirar os olhos. Estava envolvida demais no prazer culpado de ver um estranho ser destruído em público. Uma pessoa horrível, que merecia, e que de alguma forma Imogen havia amado por um tempo.

Quando Darcy terminou, se afastou da tela com a respiração falhando. O mais assustador é que vira toques de Imogen em casa frase — sua paixão, sua intensidade. Até conseguia imaginar suas mãos se movendo durante a reclamação interminável. Aquela era a essência de Imogen, destilada pela raiva e traição.

E ela havia sido recompensada. O post tinha mais de mil comentários, e havia sido compartilhado incontáveis vezes. Provavelmente sempre seria o primeiro resultado de qualquer busca por “Audrey Flinderson”.

Darcy tentou imaginar ler aquilo cinco meses antes, no dia em que Imogen e ela haviam se beijado pela primeira vez. Já era doloroso agora. Na época, seria como derramar óleo fervente na pele nua.

Pelo menos todo o mistério fazia sentido agora. Sentada ali, Darcy sussurrou o aviso que Imogen lhe dera na outra noite: “Nem sempre as coisas que escrevemos são o que nós somos.”

Era verdade, não era? Talvez aquele ensaio tivesse sido parcialmente escrito por um personagem. Talvez Imogen estivesse só fingindo ser aquela pessoa magoada e maldosa, como quando Darcy se imaginava como o Sr. Hamlyn. Toda escrita tinha um elemento de ficção, afinal.

A não ser, é claro, que o contrário fosse verdadeiro: talvez Audrey Flinderson estivesse só fingindo ser Imogen Gray.

Darcy estremeceu com esse pensamento, e então pegou o celular.

Só uma história assustadora, digitou para Nisha. Nada de mais.

O inverno derramou suas entranhas brancas na cidade de Nova York. Teias de gelo tomavam as janelas da sala, e a neve abafava o rugido de caminhões e carros lá fora. Não importava o quanto os aquecedores milenares estalassem e tremessem, o apartamento 4E continuava gelado, fazendo Darcy usar camadas e mais camadas de casacos e Imogen digitar com luvas sem dedos. Mas as duas nunca reclamavam, porque o frio era um pequeno preço a se pagar por tantas janelas, por aquela vista dos telhados de Chinatown, afiados com estalactites brilhantes.

Era o final de Além-mundos que fazia Darcy tremer à noite.

Ela já havia reescrito os últimos capítulos muitas vezes, uma dezena delas tentando manter Yamaraj vivo e seu par romântico junto. Em algumas das tentativas, Lizzie abria mão de sua vida humana e descia para o reino subterrâneo de Yamaraj para viver eternamente em esplendor, mas esses finais deixavam a mãe e os amigos de Lizzie sofrendo em algum lugar dos bastidores, e a ideia de caras com castelos era a prova de que aquela coisa Disney nunca tinha abandonado Darcy, de fato.

Em outras versões, era Yamaraj que desistia de sua imortalidade e ia viver com Lizzie no mundo real iluminado pelo sol. Esses finais evitavam o problema com a família e amigos de Lizzie (e não tinham castelos), mas traziam a irritante questão do povo de Yamaraj e da irmã dele, Yami. Todos aqueles fantasmas deixados para trás, desaparecendo no espelho retrovisor do livro como milhares de cachorrinhos abandonados na beira da estrada. Ainda pior: ao remover Yama do submundo, Darcy estaria apagando os últimos traços do hinduísmo de seu mundo inventado.

Ela precisava encontrar uma terceira opção, um final que mantivesse os dois personagens vivos, mas ainda assim resolvesse a história (e deixasse algo para Patel Número 2 explorar). Tinha que fazer Yamaraj ser mais profundo, mais do que um prêmio a ser conquistado.

Aqueles capítulos finais perfeitos tinham que estar por aí, no éter da escrita. Mas não importava quantas vezes Darcy reescrevesse aquelas cenas, ou o quanto observasse a rua pelas janelas congeladas do apartamento 4E, o final não surgia.

Ela pediu outra extensão, e conseguiu, até o fim de janeiro. Mas Nan Eliot foi direta — aquele era o prazo final, fatal, uma fronteira que nem mesmo um senhor dos mortos ousaria ultrapassar.

— Meus pais me perguntaram sobre o Natal — comentou Darcy uma noite em que seus escritos estavam indo particularmente mal.

— É? — Imogen não parou de digitar.

— Bem, “perguntaram” provavelmente não é a palavra certa. Eles estão esperando que eu vá e os visite por uma semana. E não é Natal, na verdade. A gente comemora o Pancha Ganapati. É um negócio de cinco dias, para honrar Ganesha.

Imogen ergueu os olhos, os dedos pausando no teclado.

— Achei que sua família não era religiosa.

— Não é — concordou Darcy. — Mas a gente pendura pisca-piscas num pinheirinho e troca presentes no último dia, que coincidentemente é 25 de dezembro. Porque essa história toda foi inventada para fazer as criancinhas hindus pararem de encher por causa do Natal.

Imogen soltou uma risada.

— Parece uma religião bem flexível.

— É bem divertido, na verdade, e não é como se eu pudesse não ir. — Darcy parou por um momento. A conversa estava se provando mais difícil do que o esperado. — Então, eu estava pensando... você quer vir comigo?

— Depende.

Darcy esperou, mas ela não falou mais nada.

— Hum, de quê?

Imogen olhou para ela.

— Eles sabem sobre mim?

— Ah. — Darcy engoliu em seco. — Não. Quer dizer, eu falo de você o tempo todo, então eles sabem que você é...

— Mas não sobre nós duas.

— A Nisha sabe.

Darcy suspirou. Sempre era frustrante quando sua nova vida se encontrava com a antiga na Filadélfia.

— É, ela me mandou uma mensagem. — Imogen fechou o laptop e se recostou na cadeira, o que significava que a conversa agora era séria. — Obviamente o assunto não surgiu quando você foi para lá no feriado de Ação de Graças.

— Eu ia falar alguma coisa, mas minha tia Lalana estava no Havaí com o namorado. Ela queria estar presente quando eu contasse.

Imogen assentiu, mas parecia meio cansada.

— OK.

— Olha, não está nada OK! Você é a pessoa mais importante na minha vida, então não é certo que eles não saibam. É só que...

Era difícil explicar. Os pais de Darcy não iam enlouquecer e deserdá-la por namorar uma menina. Era bem provável que rissem por ela ter escondido isso por tanto tempo.

Mas aqui em Nova York, todo mundo simplesmente tinha sacado que elas estavam juntas. A maioria das pessoas que conheciam já sabia pela rede de fofocas editoriais. Se algo as marcava como casal era o fato de que as duas eram escritoras de YA. Darcy amava como a primeira coisa que todo mundo falava era: “Ah, vocês são as tais duas escritoras.”

Mas na frente dos pais, o relacionamento de Darcy e Imogen seria reduzido a uma fase, assim como sua “carreira” de escritora.

— É só que... — Darcy começou de novo, mas parou. — Não parece certo, ter que contar para os meus pais.

— Então eles deveriam adivinhar?

Darcy balançou a cabeça.

— É tão fácil aqui. E, quando comparo a nova eu com a antiga eu da Filadélfia, parece que não mereço quem sou. Tipo, quando cheguei em Nova York, me deram uma carteirinha de adulto sem nem checar. Tudo isso me faz sentir síndrome de impostor.

— Acho que você está tentando dizer que teve sorte até agora.

— Como assim, sorte?

Um caminhão rugiu lá embaixo na rua, os pneus abafados pela neve como um longo e exausto suspiro.

— Eu descobri quem eu era na metade do ensino médio — começou Imogen. — Tive que explicar para o meu pai enquanto ainda morava com ele. Tive que lidar com amigos que pararam de falar comigo, professores que eram babacas sobre tudo isso, e um ônibus escolar cheio de fofocas e atletas e toda uma variedade de idiotas, toda manhã. E a cereja do bolo era um diretor que já me odiava, então imagine a animação dele quando acrescentei uma namorada com o hábito de colocar fogo nas coisas.

Darcy ficou olhando para o chão. Tendo fuxicado o anuário de Imogen, ela já deveria ter concluído a maior parte disso.

— Parece uma merda.

— Foi a coisa mais difícil que eu já fiz. Nem todos de nós conseguem, sabe.

A sala ficou em silêncio por um tempo, exceto pelos sussurros dos pneus dos carros na rua. As mãos de Darcy se enrolaram em punhos, porque, além da sua usual mistura de confusão e vergonha, agora havia raiva também, pelo que um bando de estranhos tinha feito anos antes a Imogen White e Imogen Gray.

Foi Gen que falou primeiro, espalmando as mãos.

— Mas cada um tem uma experiência diferente, todas igualmente válidas. Acho.

Darcy ergueu os olhos.

— Até pirralhas sortudas?

Imogen sorriu, mas sua expressão ainda parecia tensa.

— Você quer visitar minha família ou não?

— Um Natal em família?

— Não é Natal é Pancha Ganapati. E a Carla participa da maior parte das comemorações, então você não vai ser a única não hindu na casa.

— Mas vou ser a única mentindo sobre por que estou lá.

Darcy não respondeu. Ela não tinha pensado que manter tudo em segredo era igual a mentir, mas é claro que era. Ela sempre tinha cuidado em como mencionar Imogen para seus pais, e sempre tinha que mudar alguns detalhes nos e-mails para eles.

— Isso é porque você me procurou no Google? Não quer que eles saibam sobre mim?

— É claro que não. — Era a primeira vez que elas mencionavam o ensaio desde que Imogen revelara seu nome. — Eu não tenho pensado muito sobre Audrey Flinderson. Sério, Gen, não me importo com o que você postou quando estava na faculdade.

Imogen suspirou.

— Que bom. Então isso é só você tendo um cagaço.

— Não tem nada a ver com ter medo! — gritou Darcy. De repente tudo o que importava era que Imogen a entendesse completamente. — Quando vendi Além-mundos, não recebi só um contrato de publicação. Recebi uma vida nova inteira, uma que não vinha com suposições sobre quem eu era. E eu sei como tive sorte, como ganhar na loteria. Mas ainda é o meu bilhete premiado, e não quero abrir mão disso! E parte disso é não ter que me definir.

Imogen estava balançando a cabeça.

— Você se define o tempo todo, Darcy. Segura minha mão quando a gente anda na rua. Você acha que as pessoas não notam? Nunca ouviu quando algum babaca homofóbico falou alguma coisa?

— É claro que sim. — Darcy estendeu a mão por cima da mesa. — Mas segurar sua mão é como respirar, é fácil. Sempre foi. E é como deveria ser, né?

— É claro! Mas nem sempre as coisas funcionam assim. Na escola, segurar a mão da Firecat era como detonar uma bomba.

— Isso é uma merda, mas não é assim que tem sido comigo. E gosto da minha vida agora. Não quero ver meus pais sendo compreensivos. Quero que tudo entre nós duas continue exatamente como é entre nós duas e os nossos amigos aqui de Nova York. Eu gosto da merda do paraíso YA!

Imogen ouviu tudo isso, depois ficou olhando pela janela por um tempão. Seus dedos tremiam de leve, como se estivesse digitando sozinha.

— Claro — falou por fim. — Quem não ia querer isso?

— Então você entende?

Ela assentiu.

— Essa é a sua vida de sonho, e você não quer estragá-la. Mas não é a minha vida de sonho dormir sozinha no quarto de hóspedes da casa dos seus pais, ou roubar beijos quando ninguém estiver olhando. Não quero passar o Natal sendo sua namorada secreta cinco anos mais velha.

— Pancha Ganapati, não Natal — repetiu Darcy com clareza. — E o que isso tem a ver com você ser mais velha?

— Isso só torna tudo ainda mais vergonhoso. — Imogen olhou pela janela de novo. O aquecedor embaixo da mesa começou a apitar, preparando mais uma lufada de calor.

Darcy conseguiu abrir um sorriso.

— Quem está sendo medrosa agora?

— Você! A medrosa é oficialmente você. Mas se eu entrar na sua e mentir para seus pais, também vou ser medrosa. E eu teoricamente deveria ser mais velha e mais sábia.

— Mais velha e mais sábia do que eu? Não é muito difícil.

— Olha, todos nos sentimos como impostores às vezes, mas você não precisa se sentir assim sobre isso. Se quiser tornar sua vida de sonho realidade, tem que ligar a nova Darcy à antiga. — A voz de Imogen ficou mais séria. — Assim como eu tive que ligar Imogen Gray a Audrey Flinderson. Eu tinha que te contar, mesmo que isso fizesse você me odiar.

— Nunca — falou Darcy, apertando a mão de Imogen. — Não tem nada a ver com isso. É só que terminar o meu livro, contar para os meus pais, e tudo o mais sobre crescer... Tudo está levando mais tempo do que eu imaginava.

Na manhã do primeiro dia de Darcy de volta à Filadélfia, ela e a irmã estavam ocupadas pendurando pisca-piscas amarelinhos em volta da pintura de Ganesha que a mãe delas tinha descido do sótão mais cedo. Lorde Ganesha estava parado, um pé erguido, pronto para dançar. Mas também estava meditativo, as mãos abertas com as palmas para cima. Um galho de pinheiro recém-cortado fazia um arco em cima da pintura, emanando um aroma fresco de floresta e soltando folhinhas no carpete bege.

— Piscando ou não?

Nisha deu um passo para trás, analisando o trabalho.

— Piscando, claro.

— OK, vamos lá. — Darcy ligou o pisca-pisca na tomada.

Depois de um momento, Nisha balançou a cabeça.

— Isso mal está brilhando, Patel. É devagar demais para ser considerado piscar.

— Talvez precisem esquentar? — O pai de Darcy sempre tinha sido o responsável pelas luzes. Mas a mãe e o pai estavam na cozinha, dominando a casa com os aromas de roti e coco e açúcar no fogo. — Aliás, por que o papai está cozinhando? Achei que ele não podia chegar perto do fogão quando recebemos visitas.

— Acho que eles querem que a gente passe um tempo de qualidade juntas. — Nisha levantou um pé, meio que imitando a pose de Ganesha. — Em outras palavras, querem que eu descubra as fofocas.

— Sério?

— Você devia ver Annika toda vez que recebo uma mensagem sua. Ela quer detalhes. Ela quer análises.

— Argh. Eu achei que eles estavam melhorando. — Darcy deitou no carpete. — O papai não me enche sobre voltar para a faculdade faz, tipo, um mês. Na viagem para casa depois do trem, ontem, ele até me perguntou como a estava a minha carreira!

— É, eu falo sobre a sua “carreira” o tempo todo, basicamente para pentelhar os dois. Mas agora eles estão começando a usar a palavra também. — Nisha juntou as mãos em posição de oração e fez uma mesura. — De nada.

— Obrigada — disse Darcy. — Mas posso fazer uma observação? É uma carreira de verdade, tipo, com dinheiro de verdade.

— É o que você diz. Mas sem minha engenharia parental, você estaria recebendo visitas semanais dos Patel. — Nisha parou para limpar uma lágrima imaginária. — E em troca recebo pisca-piscas que não piscam.

Era verdade, as luzes mal estavam brilhando.

— Mas eu trouxe presentes! — Darcy apontou para uma pilha de caixas embrulhadas em papel de presente cor de laranja e esperando para serem arrumados em volta do santuário. Os objetos tinham sido escolhidos a dedo ao longo dos últimos meses, porque Nisha era uma crítica notória de presentes de má qualidade. Entre eles havia uma capinha de celular com o mapa do metrô de Nova York, passagens de trem para a cidade durante as férias de primavera e uma camiseta com a estampa versão death-metal de Glitter-Mane, o segundo Pônei Brilhante preferido de Nisha.

— Esses são meros objetos, Patel. Você me fez adivinhar toda a fofoca.

Darcy revirou os olhos. Isso tudo só porque a tia Lalana tinha descoberto sobre Imogen primeiro.

— Então você só gosta de garotas agora?

— Não sei.

— Essa resposta me entedia, Patel. Você deve olhar para as pessoas de vez em quando. Tipo, gente bonita aleatória na rua. Às vezes olha para meninos?

— Eu não olho para mais ninguém. Não penso desse jeito. — As luzes estavam aumentando de velocidade, quase piscando agora. — Talvez eu seja Imogenssexual.

Nisha riu.

— Acredito que o termo técnico seja “fofinho”.

— Por que você se importa, aliás?

— Só estou curiosa. Sem contar que os nossos pais vão perguntar essas coisas depois que você for embora. É meu trabalho ter as respostas!

Darcy respirou fundo.

— Não sei se vou contar para eles por enquanto.

— Não seja covarde, Patel.

Aquela palavra de novo. Por um momento, Darcy se perguntou se Imogen e Nisha estavam coordenando seus ataques.

— Sério, é o primeiro dia do Pancha Ganapati — insistiu Nisha. — É a hora perfeita!

Darcy levou um momento para entender. Desde que eram crianças, ela e Nisha sempre se concentravam no último dia do Pancha Ganapati, quando os presentes eram abertos. Ela meio que tinha esquecido que aquela noite, o fim do primeiro dia, era para esclarecer problemas de família e deixar tudo em pratos limpos.

— Quando você ficou toda religiosa?

Nisha deu de ombros.

— Só me importo com a matemática.

— Que matemática?

— Cara. A gente inventou o número zero. E tem um mantra de três mil anos atrás que é só potências de dez, de cem até um trilhão. Muito maneiro, né?

Darcy ergueu uma sobrancelha.

— É possível que nós tenhamos interesses diferentes.

— Escuta. O papai me deu um livro para crianças hindus que dizia que, se você colocasse fogo em todas as cópias dos Vedas, as mesmas verdades seriam redescobertas. Isso só faz sentido se você estiver falando de matemática.

— Hum. — Darcy deu uma olhada na pintura de Ganesha. As luzes finalmente tinham começado a piscar. — É só isso para você? Números?

— Só números? — Nisha riu, mas depois seu rosto adquiriu uma expressão de total certeza. — O universo é matemática em chamas, Patel. Essa é a minha fé.

Darcy não respondeu, pensando em Sagan e no seu paradoxo da Angelina Jolie. Talvez essa fosse a questão da verdade — você poderia tentar apagá-la o quanto quisesse, mas estaria lá para ser sempre redescoberta.

Para o jantar daquela noite, Annika Patel tinha caprichado no banquete Gujarati, arrumando meia dúzia de pequenos pratos para cada pessoa à mesa. Além do quiabo e grão-de-bico de sempre, havia curry feito com picles e melõezinhos. O roti era feito em casa, como se concluía pelas bordas queimadas e os palavrões que o pai de Darcy tinha soltado durante toda a tarde.

Até para Darcy, que há muito rejeitara o vegetarianismo da família, os cheiros vindos da mesa eram de dar água na boca. E, quanto mais pratos chegavam, mas ela sentia a falta de Imogen. Teria sido incrível explicar as nuances para ela, ajudá-la a dissecar os bolinhos ao molho de iogurte e as folhas de taro ao vapor, e vê-la experimentar os chutneys bem temperados.

Conhecer uma família é provar de seus banquetes, pensou Darcy, decidindo que no ano seguinte Imogen estaria lá.

Ela deu uma olhada para o outro lado da mesa, onde tia Lalana, que chegara logo antes do jantar, a observava com expectativa.

Ótimo. Mais pressão.

— A comida está com uma cara ótima, Sra. Patel — comentou Carla, e Sagan assentiu. Os dois eram convidados tradicionais da primeira noite do Pancha Ganapati, e tinham voltado de um semestre na faculdade parecendo mais velhos e mais sábios. O cabelo de Carla estava curto e liso, e Sagan tinha trocado os óculos por lentes de contato. Eram mudanças superficiais, mas faziam Darcy lembrar que os amigos estavam crescendo tão rápido quanto ela.

Quando a Sra. Patel perguntou sobre as aulas, Carla desembestou a falar de uma pesquisa sobre os livros britânicos do século XVIII.

— Existia um gênero inteiro chamado “sobrenatural explicado”. O século nem tinha virado ainda, mas vários escritores já estavam de saco cheio de assuntos sobrenaturais. Então começaram a escrever livros de terror em que todas as coisas assustadoras acabam tendo uma explicação lógica. Quer dizer, meio lógica.

— Quer dizer, tipo todos os finais de Scooby-Doo? — perguntou Sagan.

— Exatamente! Eles querem os clichês do gênero, mas não conseguem lidar com os clichês do gênero.

— Essas crianças intrometidas — brincou Sagan, abrindo um roti ao meio.

— Eu odiava isso quando era criança — comentou Darcy. — Os livros são bons?

Carla deu de ombros.

— As frases são imensas. Mas é que nem Shakespeare; você se acostuma em quinze minutos.

— Imagino que Darcy vá estudar literatura também — disse Annika Patel. — Imagine só, ficar lendo o dia inteiro.

Houve uma rápida troca de olhares entre os jovens da mesa. A carreira acadêmica de Darcy ainda era considerada certa, é claro. Mas não era a suposição de sua mãe que irritara Darcy. Era o fato de que ela já lia vários livros por semana. Talvez não tivesse mergulhado em nada gótico do século XVIII ultimamente, mas metade do que ela lia ainda nem tinha sido publicado. Com certeza era mais interessante do que ser forçado a engolir proto-Scooby-Doos.

Ela estava prestes a argumentar isso quando sua mãe continuou.

— Falando em livros, tenho algo a dizer. — Annika parou por um momento, esperando a atenção de todos, depois se virou para Darcy. — Finalmente li o seu livro.

Outra pausa, outra troca de olhares.

— Você devia esperar até ser publicado!

— Era o que eu ia fazer. Mas aí percebi que só sairia em setembro do ano que vem.

— Só 276 dias! — comentou Nisha alegremente.

— Quer dizer, sério — continuou Annika. — Leva mesmo um ano e meio só para fazer um livro?

A mente de Darcy foi tomada por respostas — conferências de vendas e copidesque, provas e design de capa —, porque ela havia se perguntado a mesma coisa muitas e muitas vezes.

Mas o que ela disse foi:

— E você leu ele inteiro?

— Você achou que eu não conseguiria terminar? — A mãe riu. — Preciso de mais do que um pouco de violência para me assustar.

— Ela leu o primeiro capítulo em voz alta para mim — comentou o pai, todo sorrisos. — De arrepiar.

— Obrigada. — Darcy esperou pelo resto. Não mais elogios, mas que sua mãe reconhecesse o fantasma de Rajani.

— Adorei como eles conseguiam ir para qualquer lugar no mundo, apenas desejando.

— O rio não funciona exatamente desejando, mãe.

— Acho que não. Mas foi esperto usar o rio Vaitarna. Não sabia que você ainda se interessava por religião.

Darcy piscou, confusa. Ela estava pensando na fé dos pais havia pelo menos seis meses, desde a revisão.

— Então você não se importou de eu usar o Lorde Yama como personagem?

A mãe balançou a mão.

— Não era o Lorde Yama de verdade. Era só um menino.

— Ah. E a Mindy?

Os outros observavam atentamente, embora só Nisha soubesse sobre a amiga de infância assassinada de Annika Patel.

— Ela é fofa. E engraçada.

— Fofa? Engraçada?

— Porque ficou igualzinha às crianças dos anos 1970. Dava para ver aquelas trancinhas. E a calça de veludo cotelê! — Ela virou para o marido. — Lembra quando você usava as suas o tempo todo?

Ele riu.

— Acho que ainda tenho alguma em algum lugar.

— Hum, mas você não notou nada de familiar nela?

Annika Patel franziu a testa.

— Como assim?

Darcy ficou ali parada, sem saber o que dizer. Kiralee tinha razão, é claro — era uma péssima ideia falar sobre Rajani em voz alta, pelo menos até a série ter terminado. Mas Darcy não conseguia acreditar que sua mãe não tinha sacado o paralelo.

Parecia uma falha na sua escrita. Ou talvez sua mãe simplesmente não se sentisse assombrada pelo passado.

— Eu só achei que você fosse notar...

Darcy não conseguia continuar. Falar de Rajani na mesa de jantar cheia de gente trazia o risco de exorcizá-la do lugar quieto e cinzento no fundo da mente de Darcy onde a história havia nascido. Era arriscar tornar cada página de Patel Número 2 de alguma forma diferente, meio que destruída por aquela revelação.

Mas por que sua mãe estava sendo tão tapada?

— O que é, querida? — perguntou Annika Patel.

A mesa inteira estava olhando para ela agora. Tinha que falar alguma coisa, qualquer coisa para proteger seu fantasminha.

— Hum, eu tenho uma namorada.

O momento de silêncio não foi muito longo, mas pareceu infinito, imenso e cheio de ecos. Os olhos de todo mundo correram de Darcy para os pais, os dois únicos da mesa que ainda não sabiam daquilo. Eles pareciam mais confusos do que qualquer coisa, mas, justiça seja feita, a revelação havia sido um imenso non sequitur. Pelo menos a tia Lalana sorria, aprovando.

Nisha foi a primeira a falar.

— Sutil, Patel.

Com o fim do silêncio, Darcy conseguiu dizer:

— Eu queria contar para vocês. Já estamos juntas há um tempo. Eu gosto muito dela.

De um jeito estranho, aquilo a fez lembrar da sua primeira performance como autora no palco da Avalon High School. Não houvera tempo para ficar nervosa, então as palavras tinham simplesmente surgido em sua boca.

— Uma namorada? Bem, eu não estava esperando por isso. — O sorriso de Annika Patel pareceu incerto por um segundo, depois se acalmou. — Você sabe que amamos você, Darcy, sempre.

— É claro que eu sei — falou Darcy, e era verdade, mas ouvir aquilo a emocionou por algum motivo. Sua respiração falhou e duas lágrimas brilharam em seus olhos, fazendo a imagem de todos na mesa parecer mais nítida e clara.

— Que ocasião auspiciosa — comentou Sagan baixinho.

Então uma expressão confusa cruzou o rosto da Sra. Patel.

— Espera aí. Eu deveria ter captado isso depois de ler o Além-mundos? Eu perdi alguma coisa?

— Não é nada disso. É só que... — Darcy não sabia o que dizer. — A Imogen é muito legal e acho que vocês vão gostar dela. Desculpa por demorar tanto para contar.

Seu pai falou:

— Você escolheu a ocasião perfeita, Darcy.

Ela sorriu para ele, como se tivesse contado na primeira noite do Pancha Ganapati de propósito, e não só porque era uma covarde sortuda. No final das contas, a hora tinha mesmo sido perfeita.

Darcy não tinha problemas em ser sortuda — aquela família, aquele feriado inventado, aquela certeza de ser amada.

Esta era sua fé.


CAPÍTULO 34

O Sr. Hamlyn ficou hipnotizado pelas garotinhas mortas, até que expliquei que não seriam do seu gosto. Elas não tinham sido amadas no final.

— E você vai me deixar com isso? — perguntou ele, apontando para o fantasma encolhido no canto.

O espírito do homem mau havia surgido alguns minutos depois que seu corpo havia parado. Era mais magro do que eu esperava, em um pijama florido e meias brancas. Ele mal havia me notado, ocupado demais encarando as cinco menininhas no jardim. Talvez ele sempre tivesse suspeitado que estivessem lá, e agora pensasse que seus pesadelos haviam se tornado realidade. Ou talvez pensasse que o pesadelo estivesse acontecendo agora. O homem não dissera uma palavra, só se arrastara para o canto mais escuro do quarto e tapara os olhos.

— Sim — respondi para o Sr. Hamlyn. — Eu matei ele. Agora faça-o em pedaços, por favor.

O velho psicopompo me olhou da cabeça aos pés, reparou na terra sob as minhas unhas, a pá nas minhas mãos. Seu sorriso cresceu até parecer torto e errado, grande demais para o seu rosto.

— Eu sabia que você conseguiria, menina.

Apontei a lâmina da pá para o fantasma do homem mau.

— Me ensine a desfazer as memórias dele.

O Sr. Hamlyn fingiu um tremor teatral.

— Essas são memórias bem terríveis. Você deveria começar com algo mais doce.

— Eu não vou fazer um cobertor com elas. Só quero que ele suma. — Espiei as garotinhas pela janela. — E que elas fiquem livres.

— Ele está morto. Suas memórias não vão segurar nada em pouco tempo. — Seu corpo se retorceu em um dar de ombros. — Mas suponho que a gente possa adiantar as coisas.

Foi então que o Sr. Hamlyn me mostrou o que havia nos bolsos do seu casaco.

Era um pedaço de lembrança que havia encontrado, algo terrível. Era tão raro, disse ele, que eu poderia viajar no rio por cem anos e nunca sentir nada assim tocando minha nuca. Mas eu certamente perceberia se isso acontecesse — o arrepio que tive ao segurar aquilo foi muito específico, como uma enguia se enrolando pela minha coluna, fria e escorregadia.

Ele disse que era como um diamante, forjada sob pressões inimagináveis, e por isso conseguia destruir lembranças com facilidade. Coisas assim se formavam somente quando algo inimaginável acontecia, como a morte de uma cidade inteira pelo fogo. Ele vira acontecer meia dúzia de vezes.

— Tenha muito cuidado com isso. Qualquer coisa capaz de cortar um fantasma é capaz de cortá-la também, mesmo no além-mundo.

Era a ferramenta perfeita para psicopompos como ele.

As garotinhas sumiram enquanto trabalhamos. O homem mau lembrava delas melhor do que ninguém, melhor até do que suas famílias. Enquanto seu fantasma era desfeito em fios brilhantes e claros, as meninas definhavam e sumiam, finalmente partindo uma a uma.

Livres, enfim, ou simplesmente desaparecendo.

Eu vi mais do que queria naquela noite, toda a horrenda carreira do homem mau passando conforme os fios pulsavam nas minhas mãos. Mas, por pior que fossem aquelas visões, havia algo de elegante no trabalho do Sr. Hamlyn. Como uma mistura de cirurgião e contador de histórias, selecionando e arrancando pequenos pedaços da bagunça de uma vida inteira.

Mas ele não tinha desejo de colecionar nada tão terrível, e no fim lançamos todos aqueles pedaços cuidadosamente extraídos no Vaitarna. Era a essência do rio — milênios sem fim de lembranças humanas misturadas em um caldo negro. Me perguntei como poderia ter um cheiro tão doce.

— Obrigada — falei para o Sr. Hamlyn quando acabamos.

— Não há agradecimento melhor do que estar certo.

Olhei para ele.

— Certo sobre o quê?

— Sobre o fato de que você me chamaria. — Ele sorriu. — Embora eu deva admitir que foi mais cedo que esperava.

Comecei a dizer que de modo algum eu o chamaria de novo. Mas como podia ter certeza? Meu futuro estava no ar, tanto como valquíria quando como ser humano.

Tudo muda quando você mata alguém.

Teria sido fácil deixar o rio me levar para casa, mas meu corpo estava ali, em Palo Alto. Não poderia deixá-lo para trás — e nem meu carro novinho em folha.

Quando liguei meu celular para descobrir como chegar à autoestrada, ele acordou gritando: seis mensagens de voz da minha mãe e catorze de Jamie.

Talvez se elas tivessem deixado só uma dou duas, eu teria ouvido. Mas pensar em ouvir suas vozes ficando cada vez mais nervosas me fez desligar o celular de novo. Mas primeiro mandei a mesma mensagem para as duas:

Estou bem. Chego em casa de manhã.

A autoestrada foi fácil de achar, e havia muitas placas indicando o caminho para Los Angeles. Mas meu timing foi péssimo novamente. Depois de quatro horas dirigindo, me vi chegando a LA bem na hora do rush matinal.

Também era hora do café da manhã, e eu não comia desde o almoço do dia anterior. Talvez não precisasse mais dormir, mas aqui no mundo superior comida não era opcional.

Parei num lugar chamado Star Diner em North Hollywood, escolhendo-o pela vaga bem na frente. Uma garçonete abençoada me trouxe ovos mexidos e torradas, que devorei em três minutos. Comer algo simples e comum me trouxe de volta à realidade.

O sol matinal atravessava com força as janelas do restaurante, como se o além-mundo não existisse. As mesas tinham bordas cromadas brilhantes e alegres. Sentada ali, tomando café, eu não me sentia como alguém que tinha destruído um fantasma na noite anterior. Eu não tinha certeza de como me sentia, na verdade. Não mais com raiva, porque o homem mau tinha desaparecido, mas também não triunfante. Eu deveria estar exausta por ter passado a noite toda dirigindo, mas até mesmo isso estava faltando. Era como se eu tivesse retirado parte de mim junto com as memórias do homem mau. Só o lugar frio permanecia.

Quando peguei minha carteira para pagar a conta, um cartão de visitas escorregou. Tinha um selo azul no canto superior esquerdo, e o nome Agente Especial Elian Reyes no centro. Lembrei o que ele falara para mim no telefone:

Você sempre deve denunciar assassinatos, é claro.

E era isso que eu tinha feito: cometido um assassinato. Do que mais você chamaria invadir a casa de um velho no meio da noite, acordá-lo e pressionar seu peito até que ele tivesse um ataque cardíaco?

Não havia sido um acidente.

O cartão estava gasto e macio pelo tempo dentro da minha carteira. Eu havia decorado os números muito tempo atrás, concluindo que, se você tem um agente especial só para você, deveria saber seu telefone. Saber o número de cor tinha parecido engraçado na época.

Não mais.

Você sempre deve denunciar assassinatos, é claro.

O que mais aconteceria em Palo Alto? Alguém encontraria o corpo do velho, mais cedo ou mais tarde. A polícia seria chamada e não deixaria de notar a mesinha de cabeceira amassada e os remédios espalhados pelo chão. Perguntaria aos vizinhos se alguém havia visto algo estranho, como um carro encostando às três da manhã. Talvez uma garota enlouquecida cavando o quintal com as mãos.

Sentada ali, encarando a sujeira embaixo das minhas unhas, senti os ovos revirando no meu estômago. Eu tinha ligado o celular na frente da casa do velho, mandado duas mensagens, e feito uma ligação a cobrar de perto da minha casa. Na base de dados de uma companhia telefônica em algum lugar, os números me ligavam àquela morte misteriosa.

O pior, é claro, eram minhas digitais no cabo da pá, que eu tinha enfiado de volta embaixo da cama antes de ir embora.

Uma risadinha seca escapou da minha garganta. Eu não era uma assassina particularmente esperta, era? A minha defesa também não seria das mais sãs já ouvidas num tribunal da Califórnia: “Eu fiz isso para libertar cinco garotinhas mortas e para que minha amiga fantasma não precisasse mais se preocupar com o homem mau.”

Respirei fundo devagar, deixando o medo de ser pega dominar meu corpo. Era melhor do que não sentir nada. Melhor do que deixar o lugar frio crescer até tomar conta de todo o resto.

Havia muitas coisas que eu não podia mudar: o que acontecera com as pessoas no aeroporto, o que quer que houvesse de errado com a minha mãe. Na noite anterior, pelo menos eu tinha feito alguma coisa em vez de nada.

E não dá para manter uma valquíria na prisão. Nós conseguimos atravessar paredes.

Se houvesse punição para o que eu fiz, ela não viria do mundo de ligações gravadas e impressões digitais, de leis e prisões. Viria das transformações acontecendo dentro de mim. Como Yama havia tentado me avisar naquela ilha solitária, não importava se fantasmas existiam ou não. O que importava era o que decidíamos fazer com nós mesmos.

Guardei o cartão do agente Reyes de volta na carteira e deixei uma boa gorjeta para a garçonete.

Minha mãe estava esperando nos degraus da frente quando cheguei.

— Belo carro — falou quando saí. Acho que estava sendo sincera.

— Né?

Paramos juntas por um segundo, impressionadas por meu pai ter gastado algum dinheiro de verdade comigo. Sentei ao lado dela nos degraus, ainda sem saber como me sentia. Encrencada parecia errado, como se fosse para crianças, não assassinos. Não consegui perceber se ela estava irritada, triste ou cansada. Ou talvez só doente.

— A Jamie contou sobre o recado do meu pai?

— É claro.

— Então o que é? Seu diagnóstico?

— Ainda não, Lizzie. — Ela ergueu a mão, trêmula. — Você desapareceu por 21 horas. Não vai decidir os termos desta conversa.

Irritada, então. Não respondi, apenas assenti.

— Onde você se meteu?

— Dirigi por aí.

— Por vinte e uma horas?

— É, eu sei. — Ainda não estava cansada. Me perguntei se voltaria a dormir algum dia. Provavelmente não sem os lábios de Yama para me ajudar, e será que ele voltaria a me tocar depois do que eu tinha feito? — Dirigir me ajudou a pensar. É um carro bem confortável.

Minha mãe respirou fundo. Dava para ouvir ela segurando palavras mais duras.

— Jamie me contou que você tem um namorado.

— Contou? Sério?

Um sorriso triste cruzou o rosto dela.

— Ela não tinha falado nada até hoje de manhã, quando você ainda não tinha voltado para casa.

Suspirei. Merda de trânsito.

— Sim, eu tenho um namorado. Mas isso não teve nada a ver com ele. Eu só precisava sair daqui.

Ela me encarou por um longo tempo, mas se virou com um suspiro, como se eu fosse algo irreconhecível.

Justo. Eu mesma não me reconhecia.

— Você vai morrer? — perguntei.

— Não tão cedo. Mas vamos voltar a isso, e ao seu namorado.

Não tão cedo. Se isso era uma boa notícia, então o mundo era uma bosta.

Ela levantou e foi até o carro. Abrindo a porta, se inclinou para dentro e exclamou:

— Jesus. Mil e quinhentos quilômetros, Lizzie?

— Como eu disse, dirigir me ajuda a pensar.

Ela fechou a porta do carro e voltou para a varanda, ficou de pé na minha frente, um pai na frente de um filho.

— Aonde você foi?

Só a verdade serviria.

— Palo Alto.

— É onde seu namorado mora?

— Não. Fui para o seu antigo bairro.

Ela ficou me encarando, a raiva embotada por um momento. Essa história de contar a verdade era estranhamente eficaz.

— Sabe aquela antiga foto no seu quarto? Eu precisava ver a casa em que você cresceu.

Ela balançou a cabeça.

— Por quê?

— Porque você nunca me contou sobre a Mindy. Ela estava te assombrando e você não me contou. Mas ela estava lá, mãe. — Senti o lugar frio dentro de mim diminuindo, então continuei falando. — Toda vez que eu brincava na rua quando era criança, ela estava lá. E até agora, quando estou viajando, ou quando vamos de carro para algum lugar, ela está lá, no jeito com que você se preocupa. Todo dia da minha vida, seu fantasma está com a gente. Todo dia!

Ela não respondeu, mas eu não tinha mais o que dizer, então ficamos em silêncio por um tempo. Me perguntei se Mindy estava do outro lado da porta, ouvindo.

Por fim, minha mãe disse:

— Você não sabe como é, quando sua melhor amiga desaparece.

— Talvez seja porque você nunca me contou.

— Eu não vou pedir desculpas por isso. Não hoje. E não era uma coisa que eu podia simplesmente contar para a minha filha. Eles a encontraram no quintal de casa, Lizzie. Você não tem ideia.

Eu assenti, mesmo sabendo melhor do que ela o quão horrível tinha sido. Eu havia visto cada detalhe nas memórias do homem mau. A única coisa que eu não entendia era por que minha própria mãe havia escondido isso de mim.

— Olha, eu entendo que foi horrível. Mas...

— Se entende, então por que desapareceu por vinte e uma horas? Por que sairia dirigindo por aí, com o celular desligado? Você sumiu, exatamente como ela! — Algo tremeu no peito da minha mãe. — Às três da manhã eu levantei e fui olhar o quintal, caso você tivesse sido enterrada lá!

Sua voz tremeu no final, e o som foi horrível, como se cada medo que ela já havia sentido estivesse preso nos seus pulmões.

— Ah, certo — foi o que consegui falar.

Ela estava olhando para mim, esperando mais, e eu queria assumir como tinha sido imprudente, como nunca mais faria isso de novo. Queria desmoronar e chorar.

Mas só conseguia ver o que eu tinha feito às três da manhã.

— Sinto muito — falei por fim. — Muito mesmo.

Ela assentiu.

— Que bom.

— Mas eu não sou a Mindy, tá?

Minha mãe pensou nisso, como se houvesse algo a se discutir. Mas por fim assentiu de novo. Até uma expressão estranha cruzar seu rosto.

— Eu nunca te falei o nome dela.

— Sério? Talvez eu tenha procurado na internet.

Ela balançou a cabeça.

— Mas esse era o apelido dela. Nos jornais eles a chamavam de Melinda.

— Então você deve ter me contado.

Deu para vê-la considerando isso, sem acreditar muito. Mas era a única explicação possível.

— Mãe, você pode me contar sobre o seu diagnóstico agora? Por favor?

— Tudo bem. — Ela assentiu e fechou os olhos. — Sabe como eu tenho estado cansada o tempo todo? Meu médico achou que fosse anemia, nada demais. Por isso estava tomando complemento de ferro.

— Estava?

Minha voz estava fraca. Agora que ela parecia estar finalmente me contando, eu não tinha certeza de que queria ouvir.

— Mas o ferro não ajudou, e meus exames de sangue só pioravam. Várias doenças poderiam causar isso, então fiz vários testes: lúpus, hepatite, HIV. — Ela abriu os olhos. — Não era nada disso. Não fazia sentido contar para você até saber de alguma coisa com certeza.

— Mas você contou para o meu pai.

Ela assentiu.

— Com os resultados dos meus exames, talvez pudesse ser algo que causasse uma falência cardíaca. Talvez acontecesse de repente. Então, sim, seu pai tinha que saber.

— Falência cardíaca? — Balancei a cabeça. — Você disse que não ia morrer tão cedo.

— Meu coração está bem. O diagnóstico acabou indo em outra direção. O que eu tenho se chama síndrome melodi... Merda. — Ela pigarreou e tentou de novo. — Síndrome mielodisplásica, é como se chama. As pessoas falam só SMD.

Segurei a mão dela.

— O que significa?

— Significa que meu sangue está todo errado, desde a origem. Os médicos finalmente resolveram testar minha medula. As células-tronco da medula produzem as células do sangue, e as minhas não funcionam.

— Não funcionam? Mas por que isso acontece?

— Eles não sabem. Quando eu era um pouco mais nova que você, trabalhava pintando casas, e a gente usava benzina para tirar a tinta na época. Acho que a gente deveria ter usado máscaras.

— E foi isso que deixou você doente? Um negócio químico que você respirou, tipo, trinta anos atrás?

— Não sabemos. — Ela segurou as minhas mãos. — Mas o importante é que não é genético. Você não precisa se preocupar com isso acontecendo com você.

— Mas eu me preocupo! — O ceifador estava em mim, se espalhando pela minha vida, pela vida de todos ao meu redor. Estava nos ossos da minha mãe. — E o que acontece agora?

— Bem, nada incrível. Transfusões de sangue, talvez um transplante de células-tronco. Provavelmente vamos viver anos tratando disso, e não sabemos como vai funcionar. Mas eu sou mais jovem do que a maioria das pessoas que tem essa doença, o que é uma sorte.

Sorte, como sobreviver a um atentado terrorista.

— Sorte de verdade é pegar outro voo — falei baixinho.

Minha mãe não me ouviu ou não entendeu.

— Meu plano de saúde é bom, então provavelmente não vamos perder a casa. E não vou ficar uma inválida por causa disso, então você não vai precisar ficar presa a mim. Vai estar na faculdade na maior parte do tempo. — Ela olhou para mim. — Está acompanhando, filhota?

Balancei a cabeça.

— Me perdi entre transfusões de sangue e perder a casa.

— OK. — Ela respirou fundo devagar. — Imagino que você não tenha dormido ontem à noite.

— Nem um pouco.

— Talvez a gente devesse deixar os detalhes para depois. Assim como a conversa sobre esse namorado.

— Eu gostaria de ir dormir.

Ela hesitou, só para mostrar que poderia me fazer ficar ali, pedindo desculpas, pelo resto do dia, mas decidiu ser misericordiosa.

— Tudo bem. Mas você sabe que vou ter que conhecê-lo, né?

Assenti.

— Ele é muito legal, e acho que você vai gostar dele.

— Espero que sim. — Ela me abraçou com força, e quando finalmente nos afastamos estava sorrindo. — Fico feliz que você tenha voltado para casa inteira.

Me senti perdoada, pelo menos um pouco, mesmo que minha mãe só soubesse de uma pequena fração do que eu fizera na noite anterior. Seu perdão tratava de coisas mais assustadoras do que ela imaginava.

Ela esticou a mão.

— Chaves.

Então eu dei a ela as chaves para o meu carro novo, como se isso compensasse todo o resto, e disse que estava indo para a cama.

Minha mãe ficou do lado de fora, dando mais uma olhada no carro novo, então entrei de fininho no quarto dela.

— Mindy?

Sem resposta, e o closet estava vazio. Um pensamento horrível me ocorreu: e se as memórias do homem mau fossem as únicas coisas evitando que ela desaparecesse? E eu seu tivesse apagado minha amiga fantasma?

Mas então ouvi uma risadinha atrás de mim.

Me virei e vi uma sombra fugindo. Segui as risadas até o meu quarto e encontrei Mindy sentada na cama.

— Finalmente! — Ela sorriu, batendo no cobertor para que eu sentasse ao lado dela. — Achei que a Anna fosse gritar com você para sempre. Ela está bem nervosa, né?

— É, ela ficou chateada.

— Você foi má, fugindo assim.

Fiquei olhando para a Mindy. Seu cabelo estava bem penteado de novo, preso em duas marias-chiquinhas arrumadas. Ela parecia tão feliz, mais tranquila do que eu jamais a vira. Era como se ela já soubesse que o homem mau estava morto.

— Você não era má antes — continuou ela, ainda sorrindo.

— Eu tive que fazer uma coisa importante. Lembra como eu falei que iria consertar as coisas?

— Como o quê? — perguntou ela, batendo no cobertor de novo.

Eu sentei, falando baixinho.

— Ontem à noite eu voltei pro seu bairro antigo e me livrei do homem mau. Você não precisa mais se preocupar com ele.

— Que homem mau?

Levei um momento para responder.

— Como assim?

— De que homem mau você se livrou? — Ela riu. — E por que ele era tão mau?

— Porque ele... — Não terminei. — Você não se lembra dele?

Ela fez uma expressão exagerada de reflexão, apertando os olhos.

— Não, a não ser que você esteja falando do seu pai. Ele era bem irritante.

É claro. A parte de Mindy que estivera aterrorizada durante todos aqueles anos só existia na cabeça do homem mau. Tudo o que restava dela agora eram as lembranças da minha mãe, uma criança despreocupada de 11 anos.

As coisas haviam sido consertadas muito mais do que eu imaginara.

Engoli em seco.

— É, ele era irritante. Mas foi embora.

— Somos só nós três! — Mindy se inclinou e me abraçou. Sua pele ainda era fria, mas havia um brilho nela que não existia antes. Quando se afastou, estava rindo de novo. — Então o que a Anna vai fazer com você por fugir?

— Ela pegou as chaves do carro. Na verdade, tenho quase certeza de que ela pegou o carro. Sabe-se lá quando vai me deixar dirigir de novo.

— Que droga. — Mindy franziu a testa. — Peraí. Quando você ganhou um carro?

— Ontem. Perdi rápido, hein?

De repente nós duas estávamos rindo, sem conseguir segurar. Depois das últimas 24 horas, eu precisava desesperadamente encontrar algo engraçado. Era uma sorte que a minha mãe estava lá fora e não conseguia ouvir.

Mas havia algo de bizarro na felicidade de Mindy. Suas três décadas de medo tinham sido apagadas da noite para o dia. Era quase como se o Sr. Hamlyn estivesse certo, e fantasmas não fossem pessoas de verdade. E se Mindy não era mais ela mesma, a culpa era minha. Eu tinha tirado dela as horas que faziam dela o fantasma que era.

Decidi fazer um teste.

— Sabe o que a minha mãe me disse?

— O quê?

— Que o seu nome de verdade é Melinda.

Uma expressão pensativa cruzou seu rosto, e ela levou um longo momento até por fim assentir.

— É verdade. Esse era o meu nome.

Era, foi o que disse. Mindy era seu nome de verdade agora, porque as lembranças da minha mãe eram tudo o que restava dela.

— Você sabia que a minha mãe estava doente?

Ela deu de ombros.

— Às vezes ela fala com uns médicos no telefone, sobre como está sempre cansada.

— Entendi. — Talvez doenças e células-tronco não fossem conceitos fáceis para uma criança. — Mas é só?

— Acho que sim. A Anna vai ficar bem?

Assenti.

— Eles descobriram o que há de errado. Agora vão consertar tudo.

Mindy sorriu, e eu sabia que mentir era a coisa certa a fazer. Se minha mãe morresse, Mindy não teria ninguém que lembrava dela como uma menina viva. O que isso significaria para um fantasma?

De todo modo, era mais fácil para mim fingir que a minha mãe estava bem.


CAPÍTULO 35

— Seis meses! — gritou Darcy. — Eu tive seis meses para fazer isso, e agora só tenho seis dias!

Imogen não respondeu. Estava ocupada na cozinha, enchendo a casa com o cheiro de carne temperada. Eram 16h30, mas o cozido de Imogen levava horas para ficar pronto. De todos os experimentos nos mercados de Chinatown, de crustáceos fritos a ouriço-do-mar, a língua de pato salgada, o ensopado de acém com osso havia se provado o mais bem-sucedido.

Mesmo no seu pânico pré-entrega, Darcy começou a sentir fome.

— É igualzinho ao colégio — murmurou para si mesma. — Eu sempre fazia tudo na noite anterior.

— É a maldição de ser esperto! — gritou Imogen.

— O quê?

Imogen saiu da cozinha, o cabelo preso e vestindo um avental adornado por uma pintura em veludo preto de Shimmer-Tail (O Pônei Brilhante favorito de Nisha).

— Todos aqueles anos fazendo o trabalho de casa na noite anterior e ainda tirando 10. Agora você adquiriu o hábito.

— Isso não é justo. Eu estou tentando escrever esse final idiota há meses!

— Sim, mas no fundo, no fundo, você sabe que não importa de verdade até a noite antes de ter que entregar. — Imogen abriu um sorriso maldoso. — Se você fosse um pouco menos esperta, teria uma ética de trabalho muito melhor.

Darcy encarou as costas dela.

— Você está elogiando minha inteligência ou insultando meu caráter?

— Só trabalhando meus próprios problemas. — E desapareceu de volta na cozinha.

Darcy nem tentou responder. Ultimamente Imogen tinha estado sobrecarregada com a própria ansiedade sobre o primeiro rascunho de Fobomante. Duas datas de entrega ao mesmo tempo talvez fossem demais.

Abertos na tela do laptop de Darcy estavam uma dúzia de documentos, as doze melhores versões do fim de Além-mundos. Algumas eram sombrias e melancólicas, outras, leves e otimistas, e algumas simplesmente “felizes para sempre”. Darcy se sentia como se tivesse escrito todos os possíveis fins para aquele livro, e agora a questão era só escolher um.

— Eu sou uma escritora, não uma decididora. — Darcy reclamou consigo mesma. As palavras dançaram em sua mente por um tempo, tão sem sentido quanto o borbulhar da água fervendo na cozinha.

Talvez ela estivesse com medo de escolher um final porque, uma vez que o livro estivesse terminado, os dados estariam lançados. Ela seria um sucesso ou um fracasso, toda a sua concretude determinada por aquele lance.

Ou talvez fosse porque ela era muito mais uma ladra do que uma escritora. Tinha roubado a fantasminha da infância da mãe, uma cena de sequestro da namorada, e o interesse romântico da própria religião. Talvez ela não tivesse um final perfeito porque não havia um para roubar.

Imogen saiu da cozinha de novo, segurando uma faca.

— O que você acha de River Treeman.

Darcy ergueu os olhos.

— Quem é esse?

— Ninguém ainda. Mas você gosta do nome?

— Parece que ele tinha pais hippies. Ou essa pessoa é um elfo?

— Merda. Deixa para lá. — Imogen sumiu de novo.

Darcy balançou a cabeça, encarando a tela do laptop de novo.

Se ao menos Kiralee Taylor tivesse simplesmente dito a ela como terminar o livro, ou feito com que Darcy ficasse envergonhada por não lutar por seu final trágico original. Mas ela havia feito com que a experiência parecesse um teste de habilidade, onde Darcy tinha que escrever um final feliz que combinasse com os temas tristes do livro, ou um final triste que ainda assim deixasse a editora que odiava finais infelizes feliz.

A palavra “feliz” estava começando a parecer errada na cabeça de Darcy, como letras aleatórias num jogo de Scrabble.

— E Amanda Shearling? — gritou Imogen da cozinha. — O que você acha do nome?

— Parece uma pessoa bem rica.

— Argh.

Aparentemente, a forma como Imogen lidava com estresse era inventando péssimos nomes de personagens e cozinhando. É claro que as duas coisas eram provavelmente mais úteis do que o que Darcy estava fazendo: ficar ali sentada como se seus olhos pudessem rearrumar as letras na tela.

E se já fosse tarde demais? E se ela já tivesse escrito tantos finais que jamais conseguiria encontrar o certo? Como crianças que contam tantas mentiras que não se lembram mais da verdade.

— Gen? — chamou ela. — Quando o ensopado estiver fervendo, acho que preciso de você.

Não demorou muito para que Imogen emergisse da cozinha de novo. Ela puxou a cadeira em frente a Darcy e se sentou.

— A carne está cozinhando, os cogumelos estão de molho. O que é?

— Todos os meus finais são uma droga.

— De quantas páginas estamos falando exatamente?

— Os últimos quatro capítulos. A Lizzie matou o homem mau e destruiu suas memórias, depois voltou para casa e descobriu a doença da mãe. Mas depois disso.... — Darcy ficou encarando o computador. — Talvez o livro já tenha terminado. Matar o homem mau é o clímax, confrontar a mãe é a conclusão. Talvez eu só esteja enrolando por mais dez mil palavras. Talvez eu já tenha terminado.

Imogen não parecia convencida.

— Isso não é um filme de ação, Darcy. Você não mata o vilão depois rolam os créditos.

— Se não é um filme de ação, o que é então? Um romance-barra-terror? Um musical de Bollywood? Um filme indie sobre um balão de hélio murcho?

— Não é um filme, Darcy, é um livro. E livros são bagunçados, complicados e difíceis. Se você terminar logo depois da morte do homem mau, ninguém vai saber o que acontece com a Lizzie e o Yamaraj.

Darcy balançou a cabeça.

— Talvez o livro não seja sobre ele. Talvez Kiralee esteja certa e ele seja só um galã YA.

— Não foi isso que ela disse. E o culto de morte? Você quer deixar isso no ar? E o Sr. Hamlyn? E a doença da Anna?

— Talvez todas essas coisas possam estar no Patel Número 2. — Dizer o não título da continuação encheu Darcy de desespero. Ela só tinha sete meses para entregar a primeira versão do livro. Como ela tinha passado de alguém que conseguia escrever um livro inteiro em trinta dias para alguém que levava meio ano para reescrever quatro capítulos?

— Quando você terminar esse livro, aí pode se preocupar com o próximo. — Imogen tirou o avental do Pônei Brilhante, o embolou e jogou para longe, cem por centro concentrada. — Você não pode esquecer o Yamaraj. Ele é a chave para seu final. Seu livro fala sobre encarar a morte!

— OK. — Um pequeno tremor de alívio percorreu Darcy. Talvez se ela ficasse ouvindo Imogen falar conseguisse entender seu livro de novo. — O que o medo da morte tem a ver com o Sr. Galã de YA?

— As pessoas não têm só medo da morte. Elas têm tesão por ela também. É por isso que adolescentes adoram filmes de terror: medo e excitação e desejo, tudo misturado numa história de assassinato. É por isso que Lizzie quer Yamaraj.

— Porque ela está apaixonada pela morte?

— Não apaixonada, com tesão. — Imogen estava rasgando o ar com as mãos, gesticulando loucamente. — Naqueles momentos no aeroporto, Lizzie encara a própria mortalidade. E Yamaraj é o cara que já fez isso. Ele ouve a morte nas pedras, ele sente o cheiro da morte no ar. Se ela ficar perto dele, talvez a morte não seja tão assustadora! É por isso que o Sr. Hamlyn coleciona as lembranças das criancinhas moribundas, porque faz com que ele sinta ter algum controle sobre a morte. Mas é claro que não funciona. É por isso que você não pode terminar com a morte do homem mau. Isso não é nem uma vitória, porque você não pode ganhar da morte.

Darcy ficou encarando a namorada, impressionada, como sempre, pelos discursos de Imogen. Mas por trás da intensidade havia algo sutil e verdadeiro, uma nova faceta de Yamaraj que Darcy não tinha percebido antes. Ele era belo, não por ser gato, e não só porque já tinha enfrentado a própria morte. Mas porque ele era nobre. Todos os dias ele lutava em uma guerra que sabia que iria perder.

Mas ela precisava perguntar.

— Então eles não estão mesmo apaixonados?

— Talvez ela precisasse amar alguém depois do que aconteceu. Mas o amor nem sempre é eterno.

Darcy suspirou. Embora provavelmente isso fosse verdade, parecia ir de encontro a tudo que livros defendiam. Nos livros, o amor era perfeito e infinito.

— Você não pode simplesmente escrever isso por mim?

Imogen soltou uma risada.

— Tô ocupada demais fazendo ensopado. E inventando nomes. O que você acha de Ska West?

— Ska, tipo a música? — Darcy balançou a cabeça. — Por que você está fazendo isso mesmo? Vai inventar vários personagens novos em Fobomante?

— Não são para personagens. São pseudônimos.

— Para quem?

— Para mim.

Imogen se levantou e saiu da mesa.

Darcy ficou ali sentada, chocada por um momento, depois seguiu a namorada para o calor da cozinha.

— Gen. Para que você precisa de um pseudônimo?

Imogen começou a cortar, a faca fatiando um maço de cebolinhas e alguns rabanetes.

— Para quando eu precisar recomeçar. Quando a Paradox desistir da minha série e nenhuma livraria me mantiver no estoque.

— Isso é loucura.

— Escritores fazem isso o tempo todo. É melhor do que ficar arrastando um histórico de vendas péssimo.

Darcy se aproximou. A ideia de Imogen escrevendo com outro nome era horrível. Como se isso fosse transformá-la em outra pessoa.

— Eles não vão cancelar sua série.

— Eu vou ficar feliz quando fizerem isso. Como naqueles livros de suspense, quando o criminoso fica aliviado por ser pego.

— Para com isso, Imogen! Você não é uma criminosa, nem impostora, e a Paradox não vai cancelar a sua série. E você não precisa de um pseudônimo, porque Imogen Gray vai ser uma autora best-seller famosa!

Seus olhos se cruzaram, Darcy desafiando Imogen a discordar. A cozinha ficou em silêncio a não ser pelo borbulhar da panela.

— Eu já tenho um pseudônimo — falou Imogen por fim.

— Não. Imogen Gray é o seu nome de verdade. É quem você é.

— Eu me lembro de quando você não pensava assim.

— Eu estava errada.

Imogen estendeu a mão para o ombro de Darcy, um sorriso brincando nos lábios. Mas um momento depois a expressão se azedou, e ela se voltou para a tábua de corte.

— Isso não tem a ver comigo, isso é sobre negócios. Livros falham. Autores falham. Nem tudo é o paraíso YA.

As duas últimas palavras doeram, como sempre doíam desde a discussão sobre Imogen visitar a família Patel no Pancha Ganapati.

— De onde você tirou isso, Gen?

— Meu agente não gostou da nova abertura.

Darcy balançou a cabeça.

— Você mandou o arquivo para ele?

— Ontem, para deixá-lo animado com Fobomante. Aparentemente não foi uma boa ideia. — Imogen se virou para mexer a panela com a colher de pau. — Ele disse que a parte de dentro da mala de um carro é o lugar errado para se começar um livro, porque não tem nada para ver.

— Mas essa é a intenção!

— Então a intenção não ficou clara. — Imogen suspirou. — Ele também disse que não está assustador. O que é verdade e faz todo o sentido. Eu não sou claustrofóbica de verdade. Quando você ficou dirigindo comigo na mala, você é quem estava nervosa. Eu estava me divertido demais!

Darcy fechou os olhos. Era verdade — Imogen não tinha medo de nada.

— Eu queria poder consertar isso para você.

— É, eu sei. Você queria que tudo fosse um paraíso YA.

Lá estavam de novo, as palavras mágicas para zombar da pequena e inocente Darcy, que achava que tudo era fácil porque nunca tinha passado dificuldades.

Ela se forçou a engolir o insulto.

— Sua carreira não acabou, Gen.

— Ainda não. Mas nunca se sabe.

— Verdade. Você pode ser atropelada por um ônibus amanhã — completou Darcy, aceitando que o mundo real era duro e brutal, que a vida pode ser uma merda. Às vezes ela se perguntava se o pessimismo de Imogen existia para torná-la mais forte. Como se Darcy fosse um projeto; um que dava trabalho, como Gen dissera na noite em que ela descobrira sobre Imogen White.

— Ou um táxi — Imogen comentou.

— Você quer ler a abertura pra mim? Às vezes ler em voz alta ajuda.

Imogen baixou os olhos para o ensopado.

— Eu leio, você mexe?

— Perfeito. E se ainda assim estiver ruim, vou pensar em alguma maneira de te dar um puta susto, pode deixar.

Finalmente Imogen sorriu, e Darcy a apertou em um abraço.

— Só me deixa tomar um banho primeiro. Tenho que lavar o fedor do fracasso. — Imogen se afastou e olhou para ela. — Obrigada por me acalmar.

— Eu não te deixei só mais irritada?

— Só no começo — respondeu Imogen, dando outro sorriso. Ela entregou a colher de pau. — Mantenha a fervura baixa e tire a espuma.

Ela foi para o banheiro, tirando a camisa no caminho.

Darcy respirou fundo devagar, se sentindo mais calma do que durante todo o dia. Ajudar Imogen a superar uma crise tinha feito a sua própria parecer contornável. Seis dias era tempo suficiente para inventar um final. O principal era não entrar em pânico.

Darcy se concentrou na panela fervente, deixando a mente vagar para longe dos finais de Além-mundos. Talvez seu subconsciente fosse inventar algo brilhante enquanto ela mexia o ensopado.

Mas suas reflexões não duraram muito, porque ficar vendo a comida ferver era chato demais. Darcy foi pegar o laptop, o apoiou na bancada da cozinha e checou o e-mail. Havia uma pergunta de Rhea, a assistente da editora: A Nan pode te ligar hoje antes do fim do expediente? Ela quer saber como o novo final está indo.

Tinha sido enviado poucos minutos antes. Darcy respondeu com um sim, e um momento depois veio a resposta: Ela vai te ligar em cinco.

A mensagem causou um ataque de pânico lento em Darcy, como se os medos de Imogen tivessem dominado a mente dela. Será que a Nan tinha alguma intuição editorial de que o negócio ia mal? E se o fracasso de Piromante tinha criado uma nova política na Paradox de que os livros poderiam ser cancelados antes da publicação caso os autores não fossem capazes de explicar as revisões em mínimos detalhes?

— Isso é bobagem — falou Darcy em voz alta. Nan só queria ter certeza de que o novo final estava dentro do prazo. Mas qual final?

Foi então que Darcy percebeu: seu celular não estava no bolso. Ela não tinha usado o aparelho o dia todo, exceto para ler a mensagem de Nisha a informando de que Além-mundos seria publicado em 241 dias. Onde ela tinha largado o celular?

Darcy baixou a chama do fogão um pouco e foi para a sala. O celular não estava na escrivaninha nem no peitoril da janela. Não estava no sofá novo e confortável que tinha destruído o orçamento de janeiro. (Orçamento revisado: segundo Nisha, seus gastos já estavam em agosto.)

Darcy voltou para a cozinha e verificou em cima da pia. Nada.

Ela abriu a porta do banheiro.

— Gen!

— Você ficou entediada e queimou o ensopado? — Veio a resposta em meio a uma nuvem de vapor.

— Ainda não. Você sabe onde está meu celular?

Uma pausa.

— Você olhou no seu bolso?

— Olhei! — Darcy grunhiu, bateu a porta e foi para o quarto. Nada de celular, nem no quarto de roupas-e-livros.

Ela imaginou Nan na sua mesa, cansada depois de um longo dia de trabalho, discando sem resposta. Que irritante. Típico desses escritorezinhos estreantes sem noção que não sabiam nada de revisar livros, só de digitar loucamente.

Os cinco minutos com certeza já tinham passado. A não ser que o e-mail de Rhea dissesse que a Nan iria ligar às cinco...

Darcy voltou ao laptop e checou. Não. Cinco minutos, dos quais três já tinham passado.

— Merda, merda, merda. — Ela mergulhou no sofá de novo, jogando as almofadas para os lados. Encontrou só poeira, 75 centavos e um brinco que Imogen tinha perdido na semana anterior.

Um minuto!

Quando Nan ligasse, o celular se faria ouvir, a não ser que estivesse no silencioso. Em cima da mesa estava o celular de Imogen. Darcy o pegou para ligar para o seu aparelho...

... e se viu olhando para o fundo amarelo do diário de Imogen.

— Nunca — murmurou, mas seus olhos desobedientes já estavam lendo a primeira linha.

Depois de tanto trabalho, outra vaca.

Darcy leu de novo, mas as palavras continuaram separadas e sem sentido, as letras como aranhas na tela. Ela sussurrou a frase, mas ainda não fazia sentido. Desligou o celular e o pousou suavemente na mesa de volta.

Ao se deixar afundar no sofá, Darcy fechou os olhos. Sua mão ainda ardia de onde segurara o aparelho. Como podia ter sido tão burra? Como um personagem num conto de fadas, que só precisa seguir uma simples regra, e ainda assim falha.

Uma vez que abriu a porta, é impossível esquecer o que há dentro do armário.

Darcy tentou racionalizar. As palavras podiam se referir a qualquer pessoa. Não havia nomes nem dicas.

Mas Darcy Patel era a única pessoa que Imogen dizia que dava “trabalho”. E “outra vaca”? Era Audrey Flinderson falando.

— Bosta — soltou Darcy. Era por isso que diários eram particulares.

Um som chegou aos seus ouvidos, um grito abafado por perto. Ela deu um pulo e virou o rosto para triangular o som. Ele surgiu de novo, e um momento depois Darcy estava de joelhos, se esticando em meio a bolos de poeira que já se acumulavam embaixo do sofá novo.

Ela pegou o celular e respondeu com um grito:

— Sim!

— Aqui é a Nan Eliot.

— É claro. Quer dizer, oi. Tudo bem?

— Tudo ótimo, Darcy. E você?

Ela estava sem fôlego. Seu coração estava pulando e batendo, como uma secadora com um tijolo dentro.

— Tudo bem.

— Eu só queria saber como a revisão está indo.

— Está tudo ótimo. — Aos seus próprios ouvidos, a voz de Darcy parecia trêmula e fraca. Depois de tanto trabalho...

— Entendo. — Nan pausou. Tinha ouvido a incerteza. — Você sabe que esse prazo é muito importante. Se perder, não teremos provas prontas para a BookExpo America. E você já está no programa da feira.

— É claro. — Darcy percebeu que o chuveiro tinha desligado. Ela não conseguiria olhar para Imogen agora. Deu as costas para a porta do banheiro e ficou observando os telhados de Chinatown. — Não vai ser um problema. Está tudo sob controle.

Outra pausa. Darcy não estava convencendo nem Nan, nem a si mesma.

— Quer dizer — continuou ela, sem jeito. — Eu já terminei o final. É só que... tem mais de um.

— Interessante. Você precisa de ajuda para escolher?

Darcy ouviu a porta do banheiro se abrir e fechou os olhos.

— Eu vou saber o que fazer.

— É meio assustador, né? Acabar seu primeiro livro.

Darcy não sabia como responder isso. Medo fazia parte do que ela estava sentindo, mas a incerteza era pior. A frase no diário de Imogen tinha exposto uma falha sísmica que atravessava sua nova vida, um corte no meio do céu do paraíso YA.

— Vai dar certo.

— Tenho certeza que sim, Darcy. Mas tem uma coisa que eu sempre falo para os meus autores de primeira viagem: seu primeiro livro é como seu primeiro relacionamento. Você não vai entender muito bem as decisões que você tomou até anos depois. — Ela riu. — E provavelmente você vai fazer besteira no final.

— Hum, eu... — A voz de Darcy falhou. — Meu primeiro o quê?

— Você se lembra da sua primeira paixão, né?

— Lembro.

— Ah, claro. — Nan riu de novo. — Provavelmente não foi há tanto tempo para você quanto foi para mim. Então você deve saber do que eu estou falando. Primeiro o amor é incrível e maravilhoso, mas tem um certo pânico correndo por trás, uma sensação de não saber bem o que fazer. Primeiros livros são assim também.

Darcy engoliu em seco. Havia um bolo do tamanho de um dedal preso na garganta dela.

— Então como eu conserto? Meu livro, quer dizer.

— Você faz o melhor que puder. Mas lembre-se: não vai ser o livro mais bem escrito, mais sábio nem mais vendedor que você vai escrever na vida. Afinal, seria uma pena chegar ao ápice no seu primeiro livro. Nós da Paradox esperamos coisas maravilhosas de você, Darcy, muito além desses dois livros.

— Mas mesmo sendo meu primeiro, ainda quero que dê certo.

— É claro. E a sorte é que você tem um superpoder agora mesmo, um que não precisa de experiência para usar.

— Qual?

— Honestidade. É só escrever o final mais honesto que conseguir.

Darcy fechou os olhos de novo. Ela não queria que nada acabasse.

— Você consegue fazer isso por mim? — perguntou Nan.

— E se o livro não tiver um final feliz?

A editora suspirou.

— Pense nisso, Darcy: a vida real não tem muitos finais felizes. Será que os livros não deveriam ser diferentes?

Darcy ficou parada em frente à janela por um tempo depois de desligar com Nan, segurando o telefone ao ouvido, meio que fingindo estar falando com alguém. Olhando para a confusão de Chinatown, ela lentamente se recompôs, até se sentir forte o suficiente para a longa caminhada até a cozinha.

— Desculpe, Gen. Queimou alguma coisa?

— Não, tudo bem. — Imogen não tirou os olhos da panela. — Quem era de tão importante?

— Nan.

— Dando um oi? — Finalmente as duas se olharam. — Nossa. Tá tudo bem?

— Tá — falou Darcy, o que era mentira, embora honestidade fosse tudo o que ela tivesse.

— O que diabos a Nan te disse? Você está com uma cara horrível.

Darcy percebeu que não estava pronta para falar sobre isso.

— Ela me disse para não esquentar, acho. — Darcy engoliu em seco e sentiu um gosto amargo na boca. — Ela disse que, não importa como for, sempre vou olhar para o meu primeiro livro com vergonha.

— Uau. Ela disse isso mesmo?

— Não exatamente. Basicamente me falou para não entrar em pânico.

— Não parece ter funcionado.

— Não — comentou Darcy, e não conseguiu se segurar. — A gente está bem? Eu e você?

Imogen pousou a colher de pau e abraçou Darcy.

— Desculpa por eu estar tão doida. Não é você, são os livros. Você sabe disso, né?

— É claro. — Ela abraçou Imogen com força. — Eu sei que estamos bem.

Mais mentiras, mas talvez mentiras fossem melhores que a verdade.


CAPÍTULO 36

Na manhã seguinte dei uma busca nos jornais locais de Palo Alto e nas edições on-line dos dois jornais de São Francisco. Nada sobre uma investigação de assassinato, nem sobre um homem encontrado morto em casa.

Era estranho não encontrar nada nos jornais, nem uma palavra. É claro que o homem mau não era exatamente um cara popular. Poderia levar semanas até que alguém o encontrasse na cama. Não era uma boa imagem.

Antes de sair para a escola, limpei o histórico do navegador caso a minha mãe estivesse me vigiando. Uma coisa era evitar perguntas dela, mas e da polícia? E se houvesse ainda alguma pista, em algum lugar, dentro do meu computador? Ou alguma evidência me incriminando naqueles sites de notícia?

Suspirei. Se alguém estivesse investigando de verdade, eu já estaria ferrada por uma dúzia de outros motivos. As ligações no meu celular, talvez as informações no GPS do carro. Em seriados policiais, bastava uma pista minúscula para pegar o assassino.

Mas na televisão o motivo sempre era claro. Quem imaginaria que uma estudante dirigiria a noite toda para matar um estranho aleatório? A não ser que a estudante já fosse famosa por um terrível encontro com o terrorismo, o tipo de experiência que faz alguém ficar obcecado pela morte.

Pelo menos eu sempre teria a defesa por insanidade.

Quando cheguei à escola procurei o carro do Agente Reyes, mas ele não estava por ali. O agente não aparecia desde as férias de inverno. Ótimo. Agora que eu era uma criminosa, não ser de interesse para o FBI provavelmente era uma coisa boa. Se o Agente Especial Reyes estivesse lá, eu teria sido tentada a fazer mais uma série de perguntas hipotéticas sobre serial killers. O que não era mais uma boa ideia.

Eu fui primeiro na secretaria entregar um recado da minha mãe. Ele explicava que ela estava gravemente doente e que talvez eu faltasse à escola alguns dias durante os próximos meses enquanto a ajudava. A mamãe era escrupulosamente honesta, e por isso o bilhete não dizia nada específico sobre a minha ausência no dia anterior. Mas todo mundo tirou as conclusões esperadas e foi muito simpático.

Eu estava no último ano. Meus documentos já haviam sido enviados para as faculdades. Era esperado que alunos como eu não se esforçassem muito no último semestre. O fato de eu ter uma boa desculpa só tornaria tudo mais fácil.

Jamie estava esperando por mim no corredor.

— Ei — cumprimentou ela com um aceno discreto, parecendo culpada. Eu tinha quase esquecido que ela abrira a jogo sobre o meu namorado secreto.

Dei um abraço nela.

— Ei, garota. Desculpa por ter desaparecido daquele jeito.

— Entendo que você precisava de espaço, mas a Anna estava totalmente apavorada. Eu tinha que dizer alguma coisa.

— Não tem problema, Jamie.

— Então eu não sou péssima por contar para ela sobre o seu namorado? Eu só pensei que seria melhor se ela soubesse que você tinha para onde ir, em vez de pensar em você dirigindo por aí a noite toda fazendo maluquices.

Soltei um riso forçado, porque “fazendo maluquices” nem começava a explicar. Jamie entendeu a risada como aceitação do seu pedido de desculpas, e nos abraçamos de novo.

Quando nos separamos, ela ainda parecia preocupada.

— Você ficou dizendo umas coisas estranhas sobre ceifadores. O que foi aquilo?

— Nada. — Dei de ombros. — Eu só estava pirando com a notícia sobre a minha mãe.

— E a Anna, o que ela tem?

— Não tenho certeza. — Me dei conta de que poderia ter passado a manhã pesquisando a doença dela em vez dos meus crimes. Mas eu era péssima filha e criminosa. — Tem algum problema no sangue dela.

— Tipo leucemia?

Balancei a cabeça.

— É um negócio de que eu nunca tinha ouvido falar. Ela diz que vai levar um bom tempo para tratar. E um bom tempo antes de sabermos se ela...

Minha voz desapareceu. Dizer tudo isso em voz alta me deixou tonta. O segundo sinal tocou, e o corredor ficou vazio.

Jamie colocou a mão no meu ombro.

— Será que você não deveria ter ficado em casa hoje?

— Minha mãe tinha certeza de que não.

— Ai. Você deve estar totalmente de castigo.

— Pois é. — A gente não tinha conversado exatamente sobre o castigo, mas minha mãe havia levado o meu carro novo para o trabalho. Tinha quase certeza de que eu não o dirigiria tão cedo. — Mas tanto faz. Mesmo que ela me deixe de castigo até eu completar 18 anos, isso é daqui a três meses.

Jamie sorriu.

— Sua rebelião foi bem cronometrada. Ela deve querer conhecer o seu namorado misterioso.

— Graças a você.

— Isso significa que vou poder conhecê-lo também? Finalmente?

Olhei para ela.

— Então foi por isso que você contou a ela?

— Nunca — prometeu ela. — Mas eu estou feliz por ter feito isso. A Anna precisa saber dessas coisas, especialmente agora.

— É, talvez. — Me perguntei quais as chances de Yama sentar para jantar com a gente, especialmente depois que eu confessasse um assassinato.

Jamie segurou a minha mão e me levou para a primeira aula.

— Vocês duas precisam parar de esconder coisas uma da outra. Você sabe disso, não é?

Balancei a cabeça, incapaz de responder. Havia tanta coisa agora que eu nunca poderia contar para minha mãe, ou a Jamie, ou a qualquer outra pessoa aqui, no mundo superior. Tinha a sensação de que eu jamais poderia ser completamente honesta.

Naquela noite minha mãe e eu cozinhamos juntas e conversamos muito também. Não sobre a doença dela, mas sobre o meu pai e sobre como ele sempre tinha sido. O estranho era que não conversávamos a sério sobre o papai desde que ele nos deixara.

— Ele vê as pessoas como peças de um jogo — falei em certo ponto, pensando no sr. Hamlyn também. — Como se nós estivéssemos aqui só para diverti-lo.

Mamãe franziu a testa, quase como se quisesse defendê-lo. Mas só balançou a cabeça e disse:

— Sinto muito. Eu era jovem.

Acabamos ficando acordadas até tarde, minha mãe dividindo uma taça de vinho comigo. Brindamos a um restante de ano maravilhoso, porque obviamente já tínhamos batido a nossa quota de desastres. Mindy nos observava de seu canto o tempo todo, feliz por fazer parte da família, então não falei nada sobre a infância da minha mãe. Agora que Mindy tinha finalmente esquecido o que acontecera 35 anos atrás, parecia cruel lembrá-la.

Quando minha mãe me mandou para a cama, Mindy já estava cheia de energia e quis pegar o rio até Nova York para espionar o meu pai.

— Outra noite. Eu preciso ver alguém.

— Você está falando do seu namorado pompo? — Ela deu de ombros. — Ele pode vir também, se quiser.

Levei um momento para entender — aquela era a nova Mindy, sem medo de homens maus. Mas as coisas que eu tinha que explicar para Yama não eram para ela ouvir.

— Hoje não. Volto antes do amanhecer.

Mindy resmungou um pouco, mas finalmente decidiu passear pelo bairro sozinha, uma fantasminha destemida.

Fiquei de pé no meio do meu quarto e afundei para o outro lado, pronta para enfrentar Yama e confessar o que eu tinha feito. Mas quando as palavras mágicas da chamada de emergência saíram da minha boca, ouvi uma voz flutuando no ar com cheiro de ferrugem do além-mundo.

— Elizabeth Scofield... Eu preciso de você.

Parecia uma menina, talvez da idade de Mindy. Meu coração gelou. E se uma das cinco garotinhas que eu tinha libertado ainda existisse e estivesse me procurando? Mas então as palavras se repetiram, e ouvi um sotaque fraco neles, como o de Yama.

Era o fantasma de sua irmã, Yami.

O rio sabia o que fazer.

Eu sempre me perguntava como Yama chegava tão rápido quando eu o chamava. Mas a correnteza do rio era impulsionada por conexões, por desejos. O Vaitarna estava agitado com a minha necessidade de saber por que tinha sido a voz de Yami a me chamar em vez do irmão. No momento em que eu me soltei na corrente, o rio me levou, furioso e agitado.

Devia ser uma razão muito simples, nada horrível. Minha mãe não tinha decretado que não haveria mais desastres neste ano?

Parei atordoada em uma parte do rio que nunca tinha visto antes. A familiar planície se estendia em todas as direções, mas o céu parecia errado. Em vez de preto estrelado, era do vermelho de um pôr do sol no fim, enferrujado e silencioso. Era estranho ver alguma cor acima daquele cinza infinito.

Yami estava lá esperando, seus grandes olhos me analisando.

— Há quanto tempo — falei.

— Nós duas estivemos ocupadas. — Suas mãos ajustaram as dobras da saia cinza. — Quando meu irmão decide negligenciar seu povo, alguém precisa tomar seu lugar.

— OK. — Yama tinha comentado sobre sua irmã não aprovar nossa relação. — Sinto muito se fui uma distração.

— Eu duvido.

Fiz uma careta.

— Eu não tenho sido uma distração?

— Sim. Mas duvido que sinta muito por isso.

Todas as minhas respostas inteligentes desapareceram: ela estava certa.

— Yami, por que você me chamou? Seu irmão está bem?

— Ele lamenta não poder vir até você. O povo precisa dele. — Ela fez uma pausa, medindo suas palavras. — Eles estão sitiados.

— Espere. Quer dizer, há uma batalha lá embaixo? — Balancei a cabeça. — O submundo tem guerras?

— Algo menor do que uma guerra, mas igualmente mortal. Um predador.

Levei um momento para compreender a palavra. Quando o fiz, monstros vieram à mente.

— Ok. Isso é assustador.

— O Lorde Yama não tem medo, mas talvez você possa... — Ela estendeu a mão. — Meu irmão vai explicar.

— Você vai me levar para o submundo?

A única reação de Yami foi levantar uma sobrancelha, como se eu não valesse uma resposta.

Yama me contara sobre sua casa, como era linda. Mas pensar em ir tão longe no submundo me assustou. Os poucos fantasmas perdidos na escola ainda me deixavam inquieta. Eu não conseguia imaginar uma cidade com milhares deles.

Olhei para o estranho céu vermelho-sangue.

— Estamos perto, não é?

— Esta é a parte mais profunda do rio. — Quando eu ainda hesitava, Yami estalou os dedos da mão erguida, e uma única gota de óleo preto caiu deles. — Venha, jovem. Ou não quer ir para o inferno?

— Ótima maneira de dizer. — Fiquei olhando para a piscina de líquido negro se espalhando entre nós.

— Me perdoe — disse ela com um sorriso. — Você prefere “Hades”? Não é um lugar ruim, sabe. Só quieto.

— Com predadores.

Ela assentiu.

— No momento. Mas meu irmão parece pensar que você pode ajudar.

Era difícil argumentar contra aquilo, e eu precisava ver Yama e contar tudo o que tinha acontecido nos últimos dois dias.

Estendi o braço para segurar a mão de Yami.

Nós fomos mais longe do que eu já tinha ido antes.

A luz era diferente ali. Uma vermelhidão dominava tudo — o céu, a terra, as roupas de Yami —, cores quase vivas comparadas ao cinza infinito do outro lado. O ar era diferente também. Meus pulmões tinham que fazer força para inspirar, como se estivesse em uma pequena sala cheia de flores cujo aroma era de ferrugem e sangue.

Pousamos em uma varanda com vista para um horizonte de formas desordenadas. Os edifícios não combinavam, mais uma colagem do que uma cidade. Eles pareciam ter sido arrancados de épocas diferentes, de casebres de pedra até mansões com colunas imponentes e modernos edifícios de apartamentos. Um panóptico de janelas olhou para mim, refletindo o céu vermelho-sangue.

Era magnífico, como uma cidade construída ao longo de milhares de anos e jamais demolida. Como se todas as cidades que já existiram na Terra estivessem juntas.

— Quem construiu tudo isso?

— É lembrado, não construído.

Edifícios fantasma. Claro.

Dei um passo para a ponta do balcão e me inclinei para ver a cidade dos mortos. Estávamos a apenas alguns andares de altura, e consegui ver que as bordas das estruturas eram turvas, os detalhes indistintos. Memórias desbotadas determinavam a forma.

E era tão sem vida. As largas avenidas estendiam-se, vazias, em todas as direções. Sem sujeira agitada pelo vento baixo e constante. Não existiam veículos, não havia semáforos.

— Onde estão todas as pessoas?

— Onde elas geralmente ficam quando há um lobo à espreita. Em casa.

Virei para ela.

— Um lobo, literal? O fantasma de um animal?

Yami balançou a cabeça, mas não disse nada, como se quisesse que eu adivinhasse.

Eu não estava no clima.

— Onde está Yama?

— Yamaraj está lá fora, onde é necessário. Ele vai voltar quando puder.

— Você disse que eu poderia ajudar. Como?

Yami pensou por um momento e então disse:

— Vamos tomar um chá?

Ela passou pelas portas da varanda, tão largas e altas quanto um gol, indicando o caminho para uma sala do tamanho da minha casa inteira. Um enorme tapete estava no meio, cercado por dezenas de almofadas. Lustres a vela estavam pendurados acima de nós. Quando entramos, homens com trajes até os joelhos e calças largas saíram das sombras, iluminando os ramos dos candelabros com velas perfumadas. Os servos tinham a pele tão cinzenta como Yami — fantasmas, é claro. Eles não falavam, embora um tenha encontrado meus olhos com uma expressão de inquietação para em seguida desviar o olhar.

Yami sentou-se em uma das almofadas e apontou para a que ficava em frente a ela.

— Sente-se, garota.

— Meu nome é Lizzie.

— Você deve mostrar mais respeito por seu nome, Elizabeth. Nomes são importantes aqui.

Não sentei, observando a beleza da sala em que estávamos. Os tetos abobadados eram pintados com arabescos avermelhados e sustentados por colunas esculpidas, e as velas em candelabros cintilavam como estrelas acima de nós.

Então Yami disse:

— O predador leva apenas crianças.

Isso fez meus joelhos cederem. Sentei, incapaz de falar por um momento, olhando para o tapete, tecido em um padrão de zigue-zagues e diamantes com cantos interligados. O desenho fazia minha visão pulsar junto com os meus batimentos cardíacos.

Apenas crianças.

Yami estalou os dedos, e dois criados se apresentaram novamente. Em vez de velas acesas, carregavam bandejas de prata nas mãos, cada um com um bule de chá fumegante e uma pequena xícara de porcelana sem alça. Yami os observou trabalhar, agradecendo a cada um pelo nome quando nos serviram. Um cheiro de rosas e açúcar queimado encheu a sala, fazendo com que o ar parecesse ainda mais espesso.

— O predador — falei. — É um de nós, um psicopompo.

Ela assentiu, esperando mais.

— E as crianças... todas morreram pacificamente, com seus pais cuidando delas. Quando estavam vivas, quero dizer.

— Então é o homem que a incomodou antes. — Suas palavras vieram lenta e claramente. — A pessoa que enviou uma mensagem para o meu irmão.

Assenti. Estou com fome — um aviso.

— Como você o trouxe aqui, garota?

— Como eu faria isso? Nunca estive aqui antes!

— De que outra forma ele teria feito uma conexão com o meu irmão?

— Uma conexão? — Tentei lembrar o que tinha acontecido no porão na noite em que o sr. Hamlyn tinha devolvido Mindy. — Eu beijei a mão dele, mas contei a Yama sobre isso.

— Pense melhor, Elizabeth. — Yami pronunciava cada sílaba do meu nome.

Fechei os olhos e ouvi a voz do sr. Hamlyn de novo.

Eu quero que você diga algo ao seu muito impressionante amigo. Qual o nome dele mesmo?

E eu tinha respondido.

— Yamaraj — falei. — Eu contei ao Sr. Hamlyn o nome dele, meio que sem querer.

Yami me encarou por um momento, depois levantou sua xícara de chá e soprou. Vapor se ergueu de seus lábios.

Eu mal conseguia respirar aquele ar pesado e com cheiro de sangue. O sr. Hamlyn tinha me achado em Nova York porque sabia meu nome.

— Eu não sabia que não podia contar. Ninguém me disse!

— Meu irmão não lhe disse — Yami fechou os olhos — porque você é uma distração. Porque ele não queria assustá-la com todas as regras do além-mundo. Porque você o transforma em um tolo, apenas por existir.

Balancei a cabeça. Yama me dissera muitas vezes que nomes eram importantes no além-mundo, só não de forma suficientemente clara. Talvez depois de três mil anos parecesse óbvio para ele. Afinal de contas, não é possível explicar tudo para novatos sem noção. Havia coisa demais que novatos não sabiam.

Minha boca estava seca de repente. Peguei a xícara de chá mas ela estava vazia, exceto pelo vapor.

— São apenas lembranças — disse Yami. Levei um momento para perceber que ela se referia ao chá. Memórias eram tudo o que existia no submundo, como quando as crianças brincam de chá da tarde com copos vazios.

— Quantas crianças? — perguntei.

— Três, até agora.

— O que posso fazer?

Yami balançou a cabeça, como se eu estivesse sendo idiota.

— Você disse que o beijou e que sabe o nome dele.

— É claro! Estamos conectados. — Me levantei com as pernas trêmulas. — Vou chamá-lo, ou rastreá-lo, ou seja lá como isso funcione.

Yami levantou a mão.

— Espere por Yamaraj. Esta vingança é dele.


CAPÍTULO 37

A escuridão se espalhava pelo vale e alcançava as colinas distantes, um cobertor de meia-noite. Não há fogueiras à vista, e na estação seca não há nascentes brilhantes refletindo o céu. Mas Darcy Patel consegue encontrar uma única moeda brilhante naquele veludo — um poço.

Sua língua seca arranha os lábios rachados, mas ela não se apressa, primeiro observando as estrelas de Corvus e Crux. Ela precisa se manter num caminho reto para alcançar aquela prata úmida antes que o sol nasça de novo. Os últimos dias trouxeram um calor avarento, derrubando os bois da expedição, depois os presos e por fim os homens livres, nesta ordem. Os guias nativos sabiamente escaparam uma semana antes.

Com o curso determinado, Darcy tropeça pela ladeira irregular com passos sedentos. A noite é longa, e sua ânsia de chegar temperada pelas quedas causadas por olhar as constelações e não os próprios pés. Leitos secos de riachos cortam o vale, e seus músculos logo ardem com cada subida e descida poeirenta. O cheiro da carne seca na mochila ferve em sua cabeça, mas a boca está ressecada demais para que a carne lhe faça qualquer bem.

Na hora mais fria da noite, bem quando o horizonte começa a brilhar, um lampejo de água surge adiante. De início, Darcy não ousa acreditar. Mas o solo parece mais macio sob seus pés, e seu nariz capta traços de acácia e menta no ar.

Ela ouve um splash ao longe, talvez um bicho bebendo seu primeiro gole do dia. Mas carne fresca é uma preocupação para depois — no momento Darcy é feita de sede. Ela já está correndo, caindo de joelhos na lama vermelha. Quando seu rosto toca a água, seu corpo treme com paixão. As chagas em seus lábios finalmente se refrescam, as rachaduras em sua garganta roubando as primeiras gotas antes de chegarem ao estômago. Leva um minuto inteiro até que ela esteja satisfeita e tente se erguer do abraço da lama.

Mas a lama não a deixa ir.

Darcy se ergue nos cotovelos, mas é o máximo que consegue fazer. Seus braços, suas pernas estão presos por alguma força invencível e viscosa. O mais estranho é que, a centímetros de seu rosto, a água está indo embora. Algo imenso se move abaixo dela, a própria terra se erguendo.

Ela ouve salpicos ao redor e estica o pescoço. Na luz rosada do amanhecer uma dúzia de animais se dispersa, fugindo do que quer que seja aquele caroço de lama abaixo dela.

A pressão sugadora nos seus braços e pernas diminui, e Darcy consegue com esforço se pôr de pé. Por um momento ela se ergue naquela colina de lama crescente. Mas de repente a terra vermelha debaixo dela se transforma em melado, e ela afunda em uma quentura viva e pulsante. Lenta e inexorável, a lama cobre seus joelhos, consome seu corpo e por fim enche seus pulmões.

Quando a terra vermelha a domina, Darcy ouve um tremor nas profundezas, um ribombar de gases antigos, um som quase como uma palavra...

Bunyip.

Darcy acordou com um susto, sem fôlego, lutando para se libertar dos lençóis. Demorou longos momentos para que ela percebesse que estava segura em sua cama, não sufocando na lama faminta e sagrada de uma nascente do deserto australiano.

Fazia séculos desde a última vez que tivera um pesadelo do bunyip. Mas deitada ali numa camada de suor, Darcy se lembrou perfeitamente dos terrores noturnos inspirados por Kiralee no início da sua adolescência. E foi então que ela percebeu que o óleo negro de Além-mundos era estranhamente similar à lama vermelha da mitologia de Kiralee Taylor.

Engraçado ela não ter mencionado isso. Será que sequer havia percebido? Ou simplesmente já estava acostumada a ser copiada?

Imogen estava enrolada no seu lado da cama, sem ser perturbada pelo pesadelo. Ainda eram nove da manhã, horas antes do que ela costumava acordar. Nas cinco semanas desde que tinha enviado Além-mundos para a editora, Darcy tinha parado de ficar acordada a noite toda, às vezes indo dormir cedo, às duas. Mas Imogen ainda escrevia a madrugada toda, tentando fazer seu Fobomante incrível demais para ser ignorado. Seus horários de sono estavam gradualmente saindo de sincronia.

Depois de tanto trabalho...

Darcy saiu da cama pé ante pé, vestiu um roupão e chinelos, foi para a cozinha fazer café. Era o filtro de Imogen esperando no balcão, a marca de expresso de Imogen na geladeira. Suas posses estavam interligadas, seus gostos entrelaçados. Mas em manhãs assim, quando Imogen ainda dormia e Darcy estava sozinha no frio do início de março, ela se sentia abandonada.

Exilada do paraíso YA, e morando com Audrey Flinderson.

Ela mediu o pó, encheu o filtro e viu a chama surgir. Enquanto esperava o gorgolejar do café, Darcy esquentou as mãos na boca do fogão.

Em algum outro universo, ela teria a sorte de cair em outra parte do diário — uma nota de pesquisa, uma ideia de história, ou um dos ridículos pseudônimos de Imogen. A Darcy daquele mundo ainda era lindamente ignorante, ainda animada para encarar mais um dia de criação. Mas esta Darcy não tinha digitado uma única palavra de Patel Número 2.

Na noite anterior, não pela primeira vez, Imogen a pegara olhando pela janela, taciturna. Fechando o laptop com um suspiro, comentara:

— Não tem nada de errado em ficar desesperada depois de terminar um livro. É só depressão pós-parto. Mas a cura é começar o próximo.

Não era um mau conselho — Patel Número 2 tinha que ser entregue em menos de seis meses. Mas Darcy ainda estava exausta dos últimos dias de revisão. Tinha jogado pela janela todas as tentativas anteriores e seguido uma direção completamente nova e louca. Mandara seus personagens para o inferno, os destruíra, e até matado um dos seus preferidos. E tinha tornado Yamaraj um verdadeiro deus da morte, finalmente, com o coração magoado e carregando o peso da eternidade.

O resultado não foi exatamente um final feliz.

O estranho é que tanto Moxie quanto Nan Eliot tinham adorado. Darcy deveria estar comemorando... depois de tanto trabalho.

Mas Imogen ainda não tinha lido o novo final, nem mesmo depois das infinitas semanas desde que Darcy havia terminado. Ficava adiando, dizendo que precisava se concentrar em Fobomante. Quando terminasse, poderia dar a Darcy sua atenção total.

Ou talvez ela só estivesse de saco cheio de ouvir falar daquilo. De saco cheio de tudo que tinha a ver com Darcy.

Talvez tudo fosse muito trabalho agora.

O café borbulhava e fervia no fogão, prometendo cafeína e consolo. Darcy se serviu, segurou com as duas mãos o calor da caneca, e se juntou ao laptop na escrivaninha da sala.

Esperando na sua caixa de entrada havia um e-mail de Rhea.

Oi, Darcy! Em anexo estão os arquivos do copidesque e as padronizações de ALÉM-MUNDOS.

Conseguimos correr com o copi, e Nan disse que, se você conseguir devolver os arquivos até sexta, as provas da BEA saem copidescadas. Yay!

Um vislumbre de animação atravessou Darcy, deixando a tristeza de lado. Havia algo agradavelmente oficial em ser copidescada — e assustador também.

Ela abriu uma das planilhas de padronização. Era uma lista com os nomes e atributos de todos os personagens de Além-mundos.

Lizzie: 17 anos, apelido de Elizabeth, branca, filha única, cor de cabelo desconhecida

Yamaraj: aparenta 17 anos (3000?), indiano (pele morena), sobrancelhas tortas, bonito, irmão de Yami

Darcy franziu a testa. Os detalhes dos personagens principais pareciam tão poucos e simples. Com certeza a cor de cabelo da Lizzie tinha sido citado em algum lugar do livro. Ela abriu o arquivo e fez uma busca rápida pela palavra “cabelo”, mas só descobriu que o de Lizzie era comprido o suficiente para prender atrás das orelhas quando molhado.

— Bosta — falou Darcy em voz alta.

Então leu a próxima descrição.

Jamie: 17 anos, tem carro, mora com o pai

— “Tem carro”? Só isso? — gritou Darcy. Nada de cor de cabelo, nada de irmãos ou irmãs? Raça? Quase nada. Mas conforme Além-mundos se desenrolou, Jamie havia se transformado em alguém discretamente incrível. Não só uma amiga, mas um porto-seguro de normalidade que evitava que Lizzie deixasse o mundo real para trás.

E ela não era nada além de uma figura de papelão.

— Merda! — gritou Darcy.

— Ei — falou uma Imogen sonolenta da porta do quarto. —Você está gritando sozinha?

Darcy assentiu.

— Copidesque. Aparentemente eu sou uma merda com personagens.

Imogen coçou a cabeça e farejou o ar.

— Café?

Elas sentaram de frente uma para a outra na mesa, cada uma com cópias impressas das padronizações.

— Essa linha do tempo é incrível — comentou Imogen.

— Né? — A copidesque tinha procurado cada referência de tempo em Além-mundos (Era dia da semana? De noite? Quantas semanas se passaram?) e colocado tudo no mesmo lugar. Darcy se surpreendeu por não ter, ela mesma, feito um documento tão óbvio e útil.

Outro documento era o manual de padronizações da Paradox. Este, porém, mais confundia do que ajudava. A editora pedia vírgulas em listagens e queria que “diálogos remissionados” ficassem em itálico. Números até cem ficam por extenso, mas acima disso deve-se usar numerais. A não ser que o número aparecesse em diálogo ou fosse um número grande redondo, tipo um milhão. Tantas questões em que Darcy jamais havia pensado. Mas pelo menos essas decisões tinham sido tomadas por alguém, para ela.

Quando Darcy se voltou ao manuscrito em si, encontrou as perguntas difíceis, as decisões a serem tomadas. Parecia haver milhares de questões, várias em cada página. Darcy correu os olhos pelo documento, lendo os comentários da copi aleatoriamente.

— O que isso significa, Gen? “Não pode sibilar sem sibilante.”

— Onde está isso? — A essa altura, Imogen estava com uma cópia de Além-mundos aberta no seu computador também.

— Quando a Lizzie está na cozinha com o Sr. Hamlyn. — Darcy seguiu a linha pontilhada do comentário para o texto. — O parágrafo que diz: “'Fique quieto’, sibilei.” O que diabos “sem sibilante” significa?

— Significa que não tem s em “Fique quieto”.

— Ah. E não dá para sibilar sem s?

— Eu consigo. Fique quieto! — sibilou Imogen, a voz se transformando num sussurro raivoso, os músculos do pescoço tensos, seus dentes à mostra como as presas de uma cobra.

— Uau — comentou Darcy. — Você total sibilou.

Ela criou uma nova caixinha de comentário e digitou “manter”. Kiralee havia ensinado essa palavrinha a ela, um feitiço para fazer mudanças desaparecerem.

— Uma já foi, faltam um milhão. — Darcy continuou a ler. — OK. Tem um comentário que diz: “A autora parece ambivalente em relação aos fantasmas. São pessoas ou não?”

— Peraí. A copidesque questionou o principal dilema moral do seu livro?

— É. Mas ela está certa, Gen. A Lizzie fica se perguntando se Mindy é uma pessoa de verdade, mas quando as cinco garotinhas somem não é nada demais!

Imogen deu de ombros.

— É porque são personagens secundários, como os caras que morrem no fundo dos filmes de guerra. Escritores são basicamente psicopompos do mal. Tratamos alguns personagens como reais, mas o resto é figuração!

— Mas se a copidesque está perguntando sobre isso, deve estar confuso. Talvez meu livro tenha uma falta de coerência ética fundamental!

— Ou talvez copidesques simplesmente odeiem ambiguidade.

— Verdade — sibilou Darcy, não tão serpentinamente quanto Imogen. — Manter.

Elas leram em silêncio por um tempo, Darcy ainda perdida em meio a tantas questões. Amanhã ela começaria do início e rever cada questão na ordem, mas no momento lê-las aleatoriamente já era assustador o bastante. Ela não queria entrar em pânico e estragar aquele momento com Imogen.

Darcy tinha sentido falta de trabalhar junto com ela, na mesma mesa, o suave som das teclas, o roçar dos papéis. Imogen ainda estava de pijama, o cabelo uma bagunça por ter acabado de acordar, crescendo estranho depois do último corte, uma linda confusão. Talvez quando Darcy começasse a escrever de novo, as palavras que encontrara no diário sumiriam da sua mente.

— O café está ótimo, aliás — comentou Imogen.

— Obrigada. — Darcy baixou os olhos para a sua caneca vazia. — E obrigada por me ajudar. Eu sei que você está ocupada com Fobomante. Mas eu ia enlouquecer sem você aqui.

Imogen sorriu e lhe deu aquela piscadela felina.

— Você deveria aproveitar, Darcy. O copidesque é a parte divertida! Você vai ficar sentada por uma semana com a cara enfiada no dicionário, tentando descobrir se é melhor usar um ponto e vírgula ou travessão.

— Você tem uma ideia de diversão diferente da minha. Quer dizer, o que isso tem a ver com histórias? Um ponto e vírgula já fez diferença em um livro ter ou não caldo?

— Cara. Ponto e vírgula dão o caldo.

— Uma vez no primeiro ano eu chamei ponto e vírgula de piscadinha em voz alta.

Imogen arregalou os olhos.

— Nunca conte isso para Kiralee. Ela vai te deserdar e nunca mais te dar um elogio de capa!

Darcy deu uma risadinha — tinha esquecido totalmente da piscadinha. Mas então falou:

— Peraí. Ela nunca mais vai me dar um elogio de capa? A Kiralee vai me dar um elogio para a capa?

— Bosta. Era pra ser segredo. Kiralee queria te contar pessoalmente, porque gostou muito do final novo. Falou que é “adequadamente brutal”. Mas espero que essa não seja o elogio em si.

Darcy sentiu um sorriso surgir no rosto, a tristeza das últimas semanas sumindo de novo.

— Obrigada por me contar, Gen, mesmo sendo segredo.

— Então, quando a Kiralee te ligar, você pode, tipo, fingir ficar surpresa?

— Não vai ser difícil. Grande parte de mim ainda não acredita que Kiralee Taylor leu meu livro, quanto mais escrever um elogio.

Imogen sorriu.

— Eu escreveria uma também, mas não acho que meu nome venderia muitos exemplares.

— Mas você não leu — soltou Darcy.

Em rápida sucessão, toques de surpresa, vergonha e irritação passaram pelo rosto de Imogen. Darcy não tinha a intenção de falar assim, ou de soar tão séria, sua voz partindo na última palavra.

— Não o final novo, de qualquer forma — completou ridiculamente.

— É, desculpa. — Imogen ergueu as mãos. — Eu tenho estado doida, eu sei.

— Parece que você está brava comigo.

— Não seja boba. Estou puta com a porcaria do Fobomante, não com você.

Darcy tentou parar, mas as palavras continuaram a sair.

— Você fica falando que eu dou muito trabalho!

— Fico?

— Bem, talvez você só tenha falado uma vez, quando eu fuxiquei seu anuário do colégio. Mas meio que ficou na minha cabeça porque... — Darcy fechou os olhos com força. Bosta. Era a hora de ser honesta. — Eu meio que olhei no seu diário.

Imogen ficou em silêncio. Darcy abriu os olhos.

— Foi sem querer. A Nan ia me ligar, e não estava achando meu celular.

— Então você usou o meu. — A voz de Imogen não revelava nada. Não parecia com raiva, desapontada ou intensa. Seu rosto estava impassível, os olhos parados. Por um momento, ela pareceu uma figura de papelão.

Imogen: 23 anos, branca, alta, cabelo curto escuro

— Eu não queria olhar nada, Gen, juro. Só ia ligar para meu celular, para descobrir onde ele estava. Mas vi uma página do seu diário sem querer. E você escreveu que eu dava trabalho, e me chamou de vaca. Que nem a outra garota.

Imogen balançou a cabeça devagar.

— Não chamei, não.

— Chamou, sim. — Agora que a sinceridade tinha finalmente chegado, Darcy não tinha escolha se não a deixar livre. Ela precisava dizer tudo. — Dá uma busca. Encontra as palavras: Depois de tanto trabalho, outra vaca.

Imogen pegou o celular no bolso e digitou na tela deliberadamente devagar. Darcy ficou ali parada, vendo as batidas do seu coração nos cantos da visão, a sala girando a cada pulsação. Quando ela piscou, uma lágrima solitária escorreu pelo rosto.

Depois de um silêncio infinito, Imogen ergueu uma sobrancelha.

— Hum. Eu nunca tinha notado isso.

— Nunca tinha notado? — Darcy balançou a cabeça. — Como você pode não ter notado? Você escreveu!

— Na verdade, não. — A voz de Imogen ainda estava furiosamente calma. — Isso não era sobre você, Darcy. Era sobre a minha cena de abertura. A versão que meu agente não gostou.

— Isso não faz sentido nenhum. Por que você diria isso sobre uma cena?

Imogen se levantou devagar. Ela estava inteira em câmera lenta, uma estátua ganhando vida.

— O V é perto do C — respondeu ela baixinho, e saiu da sala.

Darcy sabia que deveria ir atrás dela, continuar discutindo até que tudo estivesse às claras. Isso não tinha a ver com uma olhada do seu precioso diário, era sobre as duas saberem o que realmente pensavam uma da outra. Era sobre honestidade, não segredos.

Era sobre Imogen e Audrey, e se ela estava escrevendo outro textão irritado na sua cabeça, ou no diário, desta vez sobre Darcy Patel.

Mas por algum motivo ela não conseguiu se fazer andar. Estava com raiva demais, irritada demais por Imogen responder tudo com frases sem sentido.

O V é perto do C. Que merda era essa? Em que universo aquela frase poderia se referir ao início de Fobomante?

O V é perto do C...

Os dedos de Darcy tremeram, e então, de repente e por completo, ela entendeu. Não com a mente, mas nos ossos das mãos, nos músculos treinados por milhões de palavras digitadas na sua vida, todos os e-mails e trabalhos de escola e fanfictions, todos os rascunhos descartados de Além-mundos. Seus dedos tremeram de novo, soletrando as palavras, lhe dizendo o que Imogen queria dizer.

Darcy baixou os olhos para o laptop aberto à sua frente. No teclado o V realmente ficava bem ao lado do C. Ela fechou os olhos e viu as palavras de novo...

Depois de tanto trabalho, outra caca.

O dedo de Imogen tinha escorregado e acertado o V. Ou outra letra naquele círculo — X, D ou F — e o celular tinha criado um erro.

— Merda de autocorretor — sibilou Darcy.

Ela se levantou e foi para o quarto. Imogen tinha tirado o pijama e se vestido, e estava enfiando camisetas num saco plástico.

— Por favor, Gen, não. Eu entendi. Fiz merda.

Imogen se virou.

— Uma caca, você quer dizer.

Darcy tentou sorrir, mas pareceu errado.

— Sinto muito.

— Eu também — falou Imogen, e pigarreou. — Eu consegui entender quando você fuxicou meu anuário, Darcy. Fazia sentido. Você só queria saber mais sobre mim. E tinha todo o direito de saber meu nome verdadeiro. Ia encontrar aquele post mais cedo ou mais tarde, afinal de contas.

— Imogen...

— E no fim, nem era um problema tão grande que você tivesse roubado a minha cena. Não foi de propósito. Coisas assim acontecem quando dois escritores moram juntos, acho. Estava tudo bem, de verdade, contanto que eu pudesse ter uma coisa que era só minha. A merda do meu diário.

— Eu sei. Mas foi um acidente.

— Faz quanto tempo? Quando você leu isso?

Darcy olhou para o chão.

— Seis dias antes de eu ter que entregar o livro. Na noite que a Nan ligou. Eu só estava procurando meu celular.

— Claro. Mas você não deixou para lá. E não me contou que leu durante seis semanas! É por isso que você está tão deprimida, não é? Porque fica pensando naquele post.

— Sim. — Darcy tinha que ser sincera dali em diante.

— Porque aquelas palavras do meu diário se tornaram a coisa mais importante para você, porque era para ser meu segredo. Porque era meu. — Imogen deu as costas, enfiando várias calcinhas no saco de lixo. — Nada mais que eu falei nas últimas seis semanas significou nada, não é? Foi nas palavras no diário que você acreditou. Você acreditou na merda de um erro de digitação! Não em mim.

— Eu confio em você, Gen.

— Não confia, não! Qualquer coisa que eu esconda sempre vai ser mais importante do que o que digo e faço. Qualquer coisa que eu dê vai importar menos do que o que eu guardar para mim. Você sempre vai querer mais do que o que está bem na sua frente. Você sempre vai querer meus pensamentos mais profundos, minhas ideias de livros, meu nome de verdade.

— Imogen Gray é seu nome de verdade.

— Não é, não. Eu sou a Audrey, a que escreveu aquele post patético e recalcado. É assim que você me vê.

— Eu vejo você como Imogen.

— Isso é só meu pseudônimo, e talvez nem seja por muito tempo.

— Por favor, pare de falar isso. E, por favor, pare de arrumar suas coisas. — Darcy se apoiou na parede, escorregando até estar sentada no chão. — Fala comigo.

— Tá bom. Você quer saber o que eu penso sobre você de verdade? O que tenho escrito no meu diário sobre você?

— Sim... — Darcy ouviu a própria voz diminuir. — Quer dizer, a não ser que você não queira me contar. Você pode ter os segredos que quiser, Gen.

— Eu nunca achei que você fosse uma vaca, Darcy. Nem uma vez. Você é o oposto disso, uma garota muito legal. Talvez um pouco sortuda, um pouco mimada, mas esperta o suficiente para não precisar de algumas porradas do mundo. — Imogen tinha parado de arrumar as coisas, mas tinha ficado congelada de novo, a voz sem emoção e o rosto imóvel. — Esperta, mas talvez não tão sortuda quanto parece. Eu acho que você vai ser publicada cedo demais.

— Ah — soltou Darcy baixinho. Seu coração tinha acabado de se partir.

— Não que sua escrita não esteja pronta, mas porque você não está. Você não confia em mim e não vai confiar no próprio livro quando ele for publicado e as pessoas começarem a falar sobre ele. Milhares de pessoas, algumas brilhantes, outras idiotas, ou más e ofensivas. Eu tenho tanto medo por você, Darcy. Tem páginas e mais páginas no meu diário falando de como eu tenho medo por você.

— Eu não tinha ideia.

— Não tinha porque eu não queria que meus medos se tornassem seus. Porque são meus. E eu estava certa por manter segredo, afinal você passou seis semanas pirando por causa de uma merda de um erro de digitação! Como vai ser quando milhares de pessoas começarem a destrinchar seu livro?

— Eu vou ficar bem. Porque você vai estar comigo.

— Talvez.

Darcy não entendeu a palavra. Não conseguia. Balançou a cabeça.

— Eu também acho que você me conheceu muito cedo — continuou Imogen. — Isso também está no meu diário. Você quer uma coisa mais épica do que esse relacionamento, uma coisa fantástica e paradisíaca. Você quer que a gente leia a mente uma da outra.

— Não quero, não. Eu só quero que você leia a merda do meu final.

— É. Foi mal por isso. — A fachada de mármore de Imogen tinha se desfeito. Ela parecia derrotada, o cabelo bagunçado, o rosto corado, como alguém que perdeu uma briga. — Mas agora meu livro ainda está uma bosta, e não consegui escrever nada no último mês. E eu preciso mesmo clarear minhas ideias, então preciso ir para casa. Eu tenho um livro para escrever.

Imogen se virou para ir embora, enfiando suas últimas coisas no saco plástico — o carregador do celular, um punhado de anéis, um exemplar autografado do último livro de Standerson, e a caixa de carteiras de fósforos que havia trazido para ajudá-la a escrever, cheia de trabalhos aleatórios, cenários e potenciais incêndios.

Darcy tentou se levantar, tentou impedir sua namorada de ir embora. Mas a gravidade a prendeu ao chão com uma força ávida. O ar estava pesado e era impossível falar uma palavra.

Imogen passou sem dizer adeus, deixando Darcy sentada, tentando respirar. Durante sua vida inteira, sua boa sorte tinha sido um truque, uma isca, uma mentira. O fato era que a sorte de Darcy era uma merda.

Ela havia encontrado o amor de sua vida jovem demais, e por isso perderia tudo.


CAPÍTULO 38

Yama logo voltou, seu calor se derramando antes de sua chegada, fazendo os candelabros balançarem acima de nós.

— Lizzie — chamou, e por um momento me senti bem por ouvir meu nome.

Mas então tive que dizer:

— Fui eu. Fui eu que o trouxe até aqui.

Yama e a irmã trocaram um olhar. Ele parecia triste, mas a expressão dela era de uma frieza triunfal.

— Sinto muito — falei.

Ele balançou a cabeça, mas não se moveu, não se aproximou de mim, apenas olhou para a irmã. Por um momento percebi como eram parecidos. Apesar da diferença de idade, eles realmente pareciam gêmeos, exceto pela pele cinzenta de Yami, em contraste com a calorosa e marrom de Yama.

Finalmente ele olhou para mim.

— Eu devia ter te ensinado muito mais.

— Era óbvio. — Senti o gosto de ferrugem no ar nas minhas palavras. — Você me falou várias vezes que nomes são importantes.

— A culpa foi minha.

— Chega! — Yami bateu palmas, e óleo preto se espalhou pelo chão. — Haverá tempo para a penitência quando o nosso povo estiver seguro.

Balancei a cabeça e estendi a mão. As gotículas de óleo deslizaram por baixo dos nossos pés como mercúrio negro, buscando umas às outras. Elas se juntaram em uma única poça, lisa e brilhante como um disco de ônix.

— Como posso encontrá-lo?

Yama segurou minha mão.

— Não diga o nome dele. Isso só iria avisá-lo. Basta pensar em quando você o beijou.

Senti um arrepio me percorrer, mas eu me lembrei da eletricidade amarga da mão do Sr. Hamlyn nos meus lábios, a secura fria da sua pele. Me permiti odiá-lo por me enganar, por se encaixar tão perfeitamente no assassinato do homem mau. Por ser exatamente quem eu precisava naquela noite. Senti meu ódio se tornar uma conexão entre nós.

Puxei Yama para a piscina escura e deixei a corrente nos levar.

Saímos do rio para o inferno.

O céu estava em chamas, ofuscante demais para se olhar, repleto de uma centena de sóis. O ar entrou nos meus pulmões grosso como mel, a ferrugem e o sangue eram um gosto na minha boca, não mais só um cheiro. Um rugido encheu meus ouvidos e tremeu meus ossos, e eu soube que estávamos em algum lugar do submundo ainda mais profundo que a cidade de Yama.

Sob os nossos pés havia cimento destruído, esburacado e em ruínas. Por todas as direções, havia os restos de uma cidade de aparência moderna, os prédios semidestruídos, o horizonte tão irregular quanto dentes quebrados.

Não estava vendo o Sr. Hamlyn em lugar nenhum. Havia muitas luzes, muito barulho.

Yama observou a paisagem urbana destruída, protegendo os olhos do céu abrasador.

— Isto são as memórias dele. Mas de quê?

Meus olhos estavam lacrimejando por causa do calor.

— Ele ficou falando sobre uma guerra, com cidades inteiras morrendo de uma só vez, adultos, crianças, todos. Foi o que fez dele um psicopompo.

Yama estava olhando com admiração.

— A morte que cai do céu.

Foi então que eu entendi: o zumbido ensurdecedor que fazia o ar se agitar e derreter era o som de milhares de hélices, o apito de bombas caindo pelo ar. Vinha de cima mas também do solo partido sob os nossos pés, escapando de cada pedra.

Percebi que devia ser a Segunda Guerra Mundial, e um pensamento estranho me impressionou.

— Ele é bem mais novo do que você, não é?

— Alguns são velhos quando atravessam. — Yama se virou para mim. — Você consegue encontrá-lo?

Fechei os olhos por conta do céu em chamas e senti a atração do meu ódio me levando até o Sr. Hamlyn. Ele estava dentro de um prédio vazio bem na nossa frente. O lugar já tivera seis andares antes, mas agora apenas as paredes exteriores restavam, e as janelas vazias.

A fumaça quente incomodava ao falar, então só apontei. Seguimos por cem metros de asfalto destruído e passamos pelo buraco onde porta estivera. O interior do prédio estava cheio de escombros, e o rugido dos aviões e das bombas ecoava pelas paredes irregulares.

Yama me fez parar.

— Precisamos ter cuidado. O lobo é um leão no seu covil.

Eu olhei para cima. Não havia telhado, só mais céu em chamas.

— Você quer dizer que ele se sente confortável aqui?

— Estas são memórias dele, de onde foi feito.

Balancei a cabeça. Seguindo essa lógica, eu ficaria feliz em um aeroporto, o ar cheio de gritos e o chão molhado com sangue. Eu não queria imaginar aquele lugar nem mais uma vez.

Mas as lembranças do velho eram vívidas, eu tinha que admitir.

— Ele está lá em cima. — Apontei para um conjunto de escadas em ruínas que se agarrava a uma das paredes remanescentes. Elas levavam a um canto do edifício que estava mais ou menos intacto. Enquanto subíamos, senti o estrondo de bombas e aviões, como se as escadas estivessem prestes a desmoronar sob os nossos pés.

No topo havia um pavimento em que uma parte do telhado ainda estava de pé, bloqueando o céu tempestuoso. Tropeçamos sob a sombra, meio cegos por um momento.

Sr. Hamlyn estava lá, esperando por nós, sentado em um bloco de pedra quebrada, com agulha e linha nas mãos. Pedaços de pano estavam em uma pilha aos seus pés, o início de um novo casaco de retalhos. Um tremor passou por mim quando percebi que suas roupas eram feitas a partir dos restos de uma cidade bombardeada.

— Ah, você está aqui. — Ele não tirou os olhos de seu trabalho. — Não somente a jovem Lizzie, mas o impressionante Sr. Yamaraj.

Não respondemos. O chão tremeu sob os nossos pés.

— Suponho que você esteja chateado por causa das crianças desaparecidas.

— Elas estão aqui? — perguntou Yama.

Sr. Hamlyn olhou para cima e sorriu.

— Apenas em espírito. Mas tenho certeza de que você tem mais para eu provar.

Yama fechou as mãos em punhos, e faíscas começaram a sair da sua pele. O ar ficou ainda mais quente ao nosso redor.

— Eu não vou matar você — disse ele. — Mas posso marcá-lo.

Os olhos do Sr. Hamlyn brilharam.

— Você quer dizer que vamos ficar conectados?

— Você terá a minha marca. E se causar problemas ao meu povo novamente, vou encontrá-lo, onde quer que você se esconda.

O velho estendeu as mãos, ainda segurando a agulha delicadamente entre o indicador e o polegar.

— Mas eu gosto bastante daqui, e a jovem Lizzie é bem-vinda a qualquer momento. Você, por outro lado, está começando a me irritar.

Yama não respondeu, caminhando em direção a ele, faíscas cascateando de suas mãos fechadas. Sr. Hamlyn apenas sorriu.

Foi quando comecei a ficar preocupada. O velho tinha fugido em um instante quando Yama o confrontara antes, e parecia ter medo até de mim. Mas aqui, no seu inferno particular, o Sr. Hamlyn não parecia se assustar com ameaças.

Ele pousou a agulha cuidadosamente ao seu lado e pegou uma bola emaranhada de fios aos seus pés.

Por fim vi o padrão de linhas brilhantes cruzando o chão. Eram fios de memórias se esticando de parede a parede.

Cada fio brilhante levava ao emaranhado nos pés do Sr. Hamlyn.

— Yama! — gritei, bem quando a mão do velho agarrou a bola de linhas e puxou com força. As linhas entrecruzadas do chão saltaram para o ar, de repente bem esticadas, uma teia de aranha cintilante se formando ao nosso redor.

Um dos fios prendeu minha coxa, fazendo um corte profundo. Tentei me afastar, cambaleante, mas mais dois fios apareceram no meu caminho, e eu mal consegui parar tempo.

Não me atrevi a me mover. Os fios estavam ao meu redor, vibrando com o som dos aviões no céu. Yama estava preso no centro da teia. Sua mão sangrava e a camisa de seda preta, estava rasgada em meia dúzia de lugares.

— Não se mexa! — gritei. Aquelas eram as mesmas memórias afiadas que eu tinha usado no espírito do homem mau. As almas das pessoas que tinham visto sua cidade inteira queimar em uma noite, incontáveis metros delas ao nosso redor.

— Você deveria ouvir nossa jovem amiga — disse Hamlyn. Sangue escorria da mão que segurava a bola de fios, mas ele não pareceu notar. — Engraçado que você não tenha visto este truquezinho antes. Suponho que não houvesse bombas incendiárias na sua época.

Yama apenas olhou para as linhas brilhantes que lhe prendiam, surpreso.

— Conheça a população da minha cidade natal. — Quando o Sr. Hamlyn falou, os fios brilharam como cordas dedilhadas. — Engraçado como ver o que a morte de todo mundo que você conhece pode fazer com um fantasma, e que os fios desse fantasma podem fazer conosco.

O velho puxou ainda mais o novelo. As linhas brilhantes se fecharam em torno de Yama.

Ele mal conseguia se mover agora, mas sua voz era firme.

— O que você quer?

O velho riu.

— Tudo! Quero para mim todos aqueles fantasmas que você está guardando. Milhares deles! Especialmente os que morreram jovens e amados.

— Pare! — pedi. — Por favor, não machuque ele.

O Sr. Hamlyn voltou seus olhos sem cor para mim.

— Eu nunca faria mal a você, minha pequena valquíria. Mas você ouviu seu amigo. Ele está muito zangado comigo, e é muito perigoso.

— Eu nunca mais vou trazê-lo para perto de você, prometo!

— Mas preciso do povo dele, Lizzie. Todas aquelas memórias tão bem-cuidadas através dos séculos, só esperando por mim. — O velho balançou a cabeça lentamente. — Pense no que eu poderia criar com eles.

Yama rosnou, e uma chuva de faíscas surgiu do punho cerrado. O velho puxou ainda mais os fios, abrindo novos cortes na carne de Yama.

— Pare com isso! — gritei, e os dois olharam para mim. Um fio brilhante estremeceu a centímetros do meu rosto.

— Sai daqui, menina! — exclamou Hamlyn. — Eu não quero te machucar. Quero te ensinar.

— Ah, vai para o inferno!

— Lizzie. É melhor você ir embora. — Pingos de sangue se juntavam aos pés de Yama. Ele estava em uma posição desconfortável, tentando evitar que as linhas brilhantes o cortassem ainda mais.

— Sim, é melhor — disse o Sr. Hamlyn. — Antes que eu fique entediado.

Hesitei. De onde eu estava, longe do centro da teia de fios brilhantes, havia apenas espaço suficiente para que eu fugisse. Mas, se eu saísse, o velho faria Yama em pedaços.

— Certo — concordei suavemente. — Só um segundo.

Visualizei o caminho que faria pela teia antes de me mover, catalogando cada fio mortal. Então dei três passos de uma vez — cada um mais difícil e mais perigoso que o anterior — em direção ao centro.

O velho suspirou.

— Você acha que sabe mais truques do que eu, garota?

— Eu não sei nenhum truque. — Estendi a mão e toquei o ombro de Yama. —Mas, se quiser matá-lo, você vai ter que me matar também.

— Lizzie — sussurrou Yama. — Não.

O Sr. Hamlyn soltou um rosnado.

— O que faz você pensar que eu não faria isso?

Fixei meus olhos nos dele.

— Porque eu quero aprender com você.

As palavras saíram como se fossem verdadeiras, porque parte de mim realmente desejava aquilo. Eu queria saber como ele fazia o céu arder, e como a destruição de uma cidade décadas antes poderia ser tecida em uma teia mortal de luz.

O velho olhou para mim, e viu que eu queria tudo.

— Você está me tentando, menina.

— Eu não vou trazê-lo aqui de novo. E mesmo se eu fizesse isso, tenho certeza de que você teria outros truques.

— Puxa-saco. — Ele sorriu para mim. — Você vai mantê-lo sob controle?

Assenti. Naquele momento, eu não me importava com os fantasmas que o velho tinha levado. Eu só queria que Yama sobrevivesse.

— Por você, então — concordou ele. — E porque preciso dele vivo para evitar que os fantasmas desapareçam. Tome cuidado com ele. Cortes são complicados, aqui no além-mundo.

Eu o ignorei e estalei os dedos — uma gota de óleo caiu deles, escorrendo através das linhas cintilantes e se espalhando no sangue de Yama. Lentamente, ela se expandiu, pintando a pedra empoeirada embaixo de nós de preto.

Começamos a afundar no chão, e por um momento o Sr. Hamlyn pareceu estar prestes a puxar sua teia e nos cortar em pedaços. Mas, no final, ele não fez isso, e alguns longos momentos depois estávamos no rio.

Quando chegamos ao seu palácio, Yama desmoronou nos meus braços. Sua camisa estava em retalhos, e ele sangrava em vários pontos do corpo.

Eu o repousei suavemente nas almofadas, olhando ao redor. Não havia funcionários à vista, e sua irmã tampouco estava por perto.

— Yami! — chamei, e em seguida me virei para Yama. Sangue se acumulava debaixo dele, encharcando o tapete cinzento. Era vermelho brilhante, e parecia ser muito sangue. Será que a teia do velho tinha cortado uma artéria?

Então senti os filetes em mim mesma, e olhei para meu braço. O sangue estava fluindo muito rápido, como água. Uma onda de atordoamento me dominou.

— Yami! — gritei de novo.

— Nós temos que ir — Yama murmurou. — Para casa.

— Estamos em casa. Mas tem algo errado!

— Não para a minha casa. Para a sua. Rápido.

Um borrão de funcionários cinzentos surgiram nos cantos da minha visão, e ouvi a voz de Yami.

— O que aconteceu? Yama!

— O velho tinha preparado uma armadilha. — Eu olhei para o meu braço, do qual o sangue ainda corria. — Ele nos cortou. Tem alguma coisa errada.

— Leve meu irmão para o mundo superior — gritou Yami. — Agora!

Eu olhei para cima.

— O quê? Por quê?

—Você não pode se curar aqui, sua menina idiota! — Ela bateu palmas, e gotas negras caíram como chuva das suas mãos. — Seu corpo está paralisado!

Eu olhei para ela e lentamente as coisas começaram a fazer sentido. Nós não envelheceríamos, nos cansaríamos ou ficaríamos com fome no submundo, mas também não conseguiríamos nos curar. Nosso sangue não coagularia.

A pele de Yama estava cada vez mais pálida. Nós dois estávamos sangrando até a morte.

— Mas este nem mesmo é o meu corpo real — murmurei. — Pensei que isso fosse algum tipo de projeção astral.

— Meu irmão consegue viajar com o próprio corpo há três mil anos — explicou Yami. — E você é muito mais forte do que imagina. Agora vá!

Um instante depois estávamos de novo no rio, a corrente fora de controle e sem direção, um reflexo do meu pânico. Eu não conseguia pensar em qualquer hospital com que tivesse uma conexão — todas as minhas memórias de acidentes na infância eram muito distorcidas, e minha cabeça estava confusa por causa da perda de sangue.

Mas me lembrei do que Yama tinha pedido mais cedo, para eu levá-lo para casa. Pensei no meu quarto, desejando que fôssemos para lá. Talvez eu pudesse parar o pior do sangramento sozinha, e, depois, levá-lo a um hospital.

No início, o rio me obedeceu, nos levando em direção ao mundo superior. Permaneci abraçada a Yama, protegendo-o das memórias carentes do rio.

Mas então, de repente, uma nova força dominou a corrente, algo mais forte do que a minha vontade, e nos levou em outra direção.

— Yama — sussurrei em seu ouvido. — O que está acontecendo?

— O rio está chamando você. — Enquanto falava, gotas de sangue eram carregadas pela corrente furiosa. — É mais cedo do que eu pensava.

Eu gritei para o rio. Fosse qual fosse o desastre que estava acontecendo no mundo superior, não poderia acontecer agora.

A cabeça de Yama balançava sem controle, e seus músculos se relaxaram nos meus braços. Eu o segurei com mais força, como se isso fosse manter o sangue dele dentro do corpo.

Foram longos minutos até que o rio, finalmente, nos deixasse...

... em meio ao caos.

Tiros e luzes ofuscantes vinham de todas as direções, e fumaça enchia o ar. Estávamos no meio de uma floresta, cercados por pinheiros altos, os galhos pesados com a neve. Estava de noite, mas holofotes atravessavam a fumaça e a neblina. Entre as árvores havia pequenas cabanas escondidas. Figuras vestidas de preto corriam entre as casas, parando para atirar com seus rifles.

Por que o rio tinha nos levado até ali? Aquilo não parecia com qualquer lugar que eu já tivesse visto antes, ou qualquer lugar que já tivesse imaginado.

Mas Yama ainda estava perdendo sangue. Ele tinha que atravessar para o mundo real, ou eu iria perdê-lo. Até onde eu podia ver, só havia um lugar em segurança — um canto onde duas cabanas tinham sido construídas lado a lado. Arrastei Yama pela neve e através das sombras.

— Você tem que atravessar — sussurrei em seu ouvido.

Ele não respondeu. Seu rosto estava tão pálido quanto a neve no chão escuro.

— Yama! — chamei. Ainda sem resposta.

Me lembrei do que Yami tinha dito: “Você é mais forte do que imagina.” E, claro, eu também estava sangrando. O que significava que meu corpo real estivera lá em baixo, na zona de guerra do Sr. Hamlyn.

Talvez eu conseguisse...

Abracei Yama e fechei os olhos, me concentrando no espocar dos rifles ao nosso redor, os gritos de pânico.

— A equipe de segurança está a caminho — murmurei para mim mesma.

Um momento depois eu senti acontecer: nós dois rompemos a bolha do outro lado. O ar fresco do mundo superior tomou conta dos meus pulmões, assim como o cheiro escondido na memória de gás lacrimogêneo e pólvora. De repente estava muito frio, minha respiração formava nuvens na frente do rosto. O som de tiros se tornou próximo e mortal. Mas eu tinha conseguido, viajara pelo rio com meu corpo real...

Direto para uma batalha.

Eu não tinha tempo para me preocupar com balas. Puxei o tecido onde a minha camisa já estava rasgada, arrancando tiras de pano para amarrar as feridas de Yama. Os cortes pareciam profundos e dolorosos, mas pelo menos agora o vermelho estava mais escuro, fluindo como sangue em vez de água.

Quando finalmente consegui amarrar todos os cortes da melhor forma possível, já estava quase seminua. Me apertei junto a ele, tentando nos manter aquecidos. O tiroteio tinha diminuído, mas os gritos e o rugido dos motores vinham de todos os lados.

Foi então que vi o corpo nas sombras ao nosso lado.

Era um jovem, provavelmente na casa dos 20 anos. Estava deitado de barriga para cima, as mãos ao redor de seu próprio pescoço. Sangue borbulhava por entre os dedos imóveis, vermelho e grosso na neve. Ele havia sido baleado no pescoço. Os olhos me encaravam sem piscar, como se o homem tivesse tentado falar, chamar minha atenção nos seus últimos momentos.

Enquanto eu olhava para ele horrorizada, seu espírito se moveu.

Eu já tinha visto isso antes, quando o homem mau tinha morrido. Mas estava pronta daquela vez, e agora aquilo me pegava de surpresa. Uma segunda versão do jovem, pálido e de semblante sério, ergueu-se do corpo no chão.

Ele se virou e olhou para mim, estranhamente calmo.

— Você está morto — falei para ele, porque esta era a única coisa que eu sabia com certeza.

Ele balançou a cabeça, como se aquilo fizesse todo o sentido do mundo.

Um tremor passou pelo meu corpo. O frio estava me dominando.

Dei as costas para ele e vi outros. Mais fantasmas, espíritos recém-arrancados de seus corpos vagando pela floresta nevada.

— Acho que estou aqui para ajudá-lo — falei.

Psicopompos eram necessários ali, então o rio nos levou.

— Você é um anjo, então? — perguntou o fantasma.

Eu tive que rir. Com a minha camisa rasgada, eu provavelmente parecia mais uma louca que uma criatura celestial. Eu certamente não era nenhuma valquíria.

— Eu sou só uma garota.

— Mas o profeta disse que haveria anjos para nos receber. Anjos da Morte.

Um calafrio me percorreu quando percebi o óbvio. O rio tinha me trazido para as montanhas do Colorado, para a sede de um certo culto de fim de mundo, um dogma isolacionista, e um líder carismático. Um lugar que estava sendo cercado havia semanas por duzentos agentes federais — um massacre esperando para acontecer.

Mas agora eu não me importava muito com as almas que precisavam ser levadas para o submundo. O importante era manter Yama vivo. E, estranhamente, o cultista morto tinha acabado de me dar um vislumbre de esperança.

Havia agentes do FBI ali. Provavelmente havia médicos com eles.

— Volto logo — falei, me afastando suavemente de Yama.

Ele abriu os olhos, balançando a cabeça devagar, mas pelo menos estava acordado. O mundo superior e minhas ataduras malfeitas tinham ajudado um pouco, pelo menos.

O fantasma estava de joelhos agora, as mãos postas em oração. Eu o ignorei e saí das sombras para os holofotes que varriam o lugar. Estava mantendo os braços próximos ao corpo por causa do frio, mas me forcei a soltá-los e erguer as mãos. Frio era melhor do que balas.

— Olá! — gritei para a escuridão. — Preciso de ajuda!

Um momento depois, uma dezena de lanternas surgiu em meio às árvores e apontou para mim, como olhos selvagens brilhantes.

Uma voz amplificada gritou de volta:

— Para o chão!

Eu hesitei, olhando para a neve e desejando estar usando mais do que uma camisa rasgada, mas a voz soava impaciente, então caí de joelhos e em seguida de cara na neve.

— Meu amigo precisa de ajuda! — gritei. — Ele está sangrando!

Eles não responderam, e pareceu levar uma eternidade até que botas se aproximassem pelo chão duro, me cercando. Mãos ásperas puxaram meus braços para trás, e ouvi o clique de algemas. Eu já estava com frio demais para sentir o metal na minha pele.

Eles me fizeram sentar, e, finalmente, consegui vê-los. Seis homens e uma mulher usando volumosos coletes à prova de balas, com FBI escrito em amarelo brilhante.

— Meu amigo está inconsciente, sangrando e desarmado — eu disse batendo os dentes, com um gesto na direção das cabanas. — Por favor, ajudem ele!

— Vão verificar — alguém ordenou, e três dos homens seguiram para perto de Yama.

Eu olhei para o homem que tinha dado a ordem, tentando expressar algum tipo de gratidão, mas as palavras morreram na minha boca. Atrás dele estava outro agente. Ele estava entre os companheiros, parecendo um pouco confuso. Seu colete estava cheio de buracos sangrentos, e ele não lançava sombras nos holofotes que passavam pelas árvores.

— Sinto muito — falei.

Ele olhou para mim, um pouco surpreso por eu não o estar ignorando como todos os outros.

Eu queria dizer que estava tudo bem, que havia mais coisas além do véu da morte. Que parte do submundo era organizado, bem-cuidado, até civilizado. Mas o frio congelou a minha língua, e um momento depois alguém me empurrou de volta para a neve.


CAPÍTULO 39

— Pelo amor de Deus, Patel. Você está dez minutos atrasada!

Darcy suspirou.

— É bom ver você também, Nisha.

— Este lugar é assustador.

Darcy olhou ao redor e deu de ombros. A Penn Station estava um pouco fria e lotada, e o piso de mármore parecia manchado pela chuva trazida das ruas lá fora, mas não era nada assustadora.

— É a loja de sanduíche que está te assustando, irmãzinha? Ou a peixaria?

— É tudo. — Nisha empurrou a bolsa para Darcy e pegou a alça da mala de rodinhas. — O ambiente em geral me aflige.

Darcy sorriu. Ela nunca tinha pensado em si mesma como mais durona do que Nisha, ou do que qualquer um, na verdade. Mas a realidade era que quase dez meses de Nova York a tinham deixado resistente à pobreza, aos túneis subterrâneos ou multidões.

Em seguida, o peso da bolsa a atingiu.

— Mas que diabos, Nisha? Você só vai ficar uma semana. O que você trouxe, pedras?

— Livros. Sabe, caso seus amigos chiques queiram autografá-los. Durante a minha festa.

— Que festa?

— Carla e Sagan ganharam uma festa.

Darcy soltou um gemido.

— Aquele foi meu open house. E não tenho feito festas ultimamente.

— Mais uma razão para fazer uma agora.

Nisha saiu andando pela multidão. Darcy a seguiu, se perguntando por que os livros pesados não estavam na mala de rodinhas, por que ela havia ficado presa à bolsa, e de que maneira Nisha tinha, irritantemente, escolhido a direção certa para sair do labirinto que era a Penn Station.

Meia hora depois, as duas estavam no quarto de hóspedes do apartamento 4E. Nisha foi desfazendo a mala, tirando os vestidos e as jaquetas de Darcy dos cabides e os substituindo por uma ampla seleção de trajes góticos.

— Parece roupa demais para sete dias.

Nisha fez uma pausa.

— Você está se arrependendo da minha visita, Patel?

— Claro que não — respondeu Darcy, embora a conversa com sua mãe na noite anterior tivesse sido um pouco assustadora. Frases como “in loco parentis” tinham sido citadas. “Festas”, não.

— Você não parece muito feliz, só isso.

Darcy deu de ombros, mas não respondeu.

— Quero dizer, você tem um apartamento em Nova York, seu primeiro livro sai em cinco meses, e vou ficar aqui por uma semana inteira! Você deveria estar tão feliz quanto um unicórnio tomando antidepressivos, cheia de arco-íris e alegria. Mas parece que alguém acabou de afogar um balaio de gatinhos.

— Você está misturando as metáforas — disse Darcy.

— Isso era uma comparação. Achei que vocês, escritores, soubessem essas coisas.

Darcy olhou para a irmã mais nova, se perguntando por que ela estava sendo tão sem noção. Nisha sabia tudo o que havia acontecido no mês anterior, graças a dezenas de mensagens, e-mails e três longas conversas ao telefone. Parecia cruel fingir ignorância, a menos que ela simplesmente precisasse ouvir aquilo ao vivo.

Talvez o assunto fosse inevitável. Ultimamente, a separação não era medida em semanas desde que tinha acontecido, mas nos minutos após acordar que Darcy levava para se lembrar de que era real.

— Estou com saudades da Imogen.

Nisha assentiu compreensivamente.

—Você ainda não a viu?

— Só por acaso, semana passada na Canal Street. Nós conversamos, tudo muito educado. Ela me abraçou no final.

— Abraços são bons, certo?

— Abraços são uma porcaria! Abraços não são nada.

— É, abraços são os piores — concordou Nisha obedientemente. — Mas pensei que vocês ainda estavam trocando e-mails.

— Estamos. Mas não as DR’s que deveríamos estar escrevendo. Só uns recadinhos idiotas que não dizem nada, abraços em forma de e-mail. Imogen diz que tem que se concentrar até acabar de escrever o livro. A gente escrevia juntas, mas agora não estou mais a fim de escrever. Sou feita de drama. Sou feita de tumulto.

Nisha escutou em silêncio e, em seguida, sentou-se de pernas cruzadas no chão, sua posição de sabedoria.

— Mas ela ainda não escreveu um post imenso e raivoso sobre todos os seus defeitos, escreveu?

— Não. Ela não faria isso. — Darcy sempre tivera essa certeza.

— Para ser realista, ela nem mesmo terminou oficialmente com você.

— Ela diz que é só até terminar o livro. Está tentando ser legal, acho, mas só está demorando mais, e me magoando mais. — Darcy se jogou para trás no futon de visitas e olhou para o teto. — É como pular do Chrysler Building e bater em todos os mastros e gárgulas no caminho.

— Por que ela faria isso, Patel?

— Porque eu sou nova demais para ser dispensada direito! Imogen acha que eu sou nova demais para qualquer coisa.

— Sim, isso meio que é um problema para você.

Darcy levantou a cabeça para olhar a irmã.

— Você sabe que é mais nova que eu, né?

— Mas não pareço.

— Merda — gemeu Darcy, baixando a cabeça de volta no futon. — Você deve estar certa. Eu estraguei tudo. Fiquei espiando as coisas dela o tempo todo, e não contei quando estava chateada, ou prestei atenção quando ela precisava de espaço.

— Foi o que você me disse em detalhes. — Nisha tamborilou os dedos no chão por um momento, então perguntou: — Mas espiar não é uma ofensa digna de término, é?

— Acho que o pior foi não confiar nela.

— Então, confie nela agora.

Darcy sentou. Todas aquelas questões a estavam deixando inquieta.

— Como posso confiar em alguém que mal fala comigo? No que posso confiar?

— Na única coisa que ela está te dizendo: que isto não é o fim. Que ela só precisa de espaço para escrever.

— Mas era isso que a gente fazia juntas — disse Darcy. — Era quem nós éramos. Se não podemos escrever juntas, qual o sentido dessa merda?

Nisha ficou em silêncio por um longo momento, como se estivesse realmente pensando nisso. Seu tom arrogante tinha se transformado em outra coisa. Algo mais maduro.

— Imogen disse que ela nunca mais queria escrever com você?

— Acho que não. Ela diz que é só esse livro que a está deixando louca. Mas fui eu que fiz isso, Nisha.

— Não se você confiar nela, Patel. Não desista só porque ela não pode estar com você agora.

Darcy não respondeu. Ela não ia desistir. Nem em cem anos.

Mas ela estava discutindo desesperadamente com a irmã menor, que tinha entrado pela porta fazia apenas dez minutos, o que era patético. O estranho era como Nisha estava tão calma e serena, como se os eventos estivessem se desenrolando exatamente como ela havia planejado.

— É assim que você quer passar o seu tempo em Nova York? — perguntou Darcy com um suspiro. — Ouvindo minhas reclamações?

— Estou aqui para aprender. E o que você me ensinou é evitar o amor enquanto for possível. — Nisha empurrou a mala vazia para o canto. — Tem comida em algum lugar?

Darcy conseguiu dar um sorriso.

— Estamos em Manhattan. Tem comida.

A primeira parada foi o restaurante de noodles com a estátua gigante do gato. Tinha sido um dos lugares onde Darcy tinha ficado à espreita naqueles dias solitários logo após o rompimento, na esperança de esbarrar com Imogen. Isso nunca aconteceu, mas Darcy ainda sentia um fio de esperança sempre que o sino acima da porta tocava.

Sem contar que a comida era excepcional.

— Eu inventei um título aqui — disse Darcy depois que tinham feito os pedidos.

Nisha ergueu os olhos.

— Patel Número 2 finalmente tem título?

— Infelizmente, não — respondeu Darcy. O livro também permanecia basicamente não escrito, exceto por alguns rascunhos de ideias. — Mas foi aqui que pensei em Cleptomante. É o nome do segundo livro da Imogen. Muito bom, né?

— Cara. — Nisha balançou a cabeça. — Podemos falar de outra coisa?

— OK. Tudo bem. Quer falar sobre o meu orçamento? Deve ser divertido.

— Sem dúvida. — Nisha pegou o telefone e ligou a tela, sempre feliz no terreno familiar dos números. — Tenho todos os detalhes aqui.

O que se seguiu foi desagradável.

Não era apenas o aluguel prodigioso do apartamento 4E, nem as muitas passagens só de ida compradas durante a turnê de Imogen. Havia também as roupas que Darcy tinha comprado para a turnê, os vários móveis adquiridos ao longo dos últimos nove meses, e sua curiosa incapacidade de manter as despesas diárias abaixo de dezessete dólares. (A comida era sempre tão deliciosa. A cerveja era sempre tão necessária.)

Mas o pior, no final, foi o fato de que ela não tinha guardado nenhum recibo das despesas profissionais, e sua primeira declaração de imposto de renda deveria ser entregue em uma semana, junto com um pagamento gigantesco. Segundo os cálculos de Nisha, Darcy já estava quase um ano inteiro à frente do cronograma monetário.

— Por que tão surpresa, Patel? — perguntou Nisha quando terminou sua apresentação. — Mais cedo ou mais tarde você precisaria fazer um acerto de contas.

— Eu sei, mas ultimamente é só isso que eu tenho feito. — Darcy partiu os hashis, fazendo farpas voarem em todas as direções. — Acho que a minha vida inteira pode ser um acerto de contas de agora em diante. Acabei de receber o contrato de renovação do aluguel. Ele vai subir, a partir de julho. Dez por cento.

— Uau. — Nisha fez anotações no celular. — Eu falei para assinar um contrato de dois anos, Patel.

— Acho que Lalana teria notado.

— O que você vai fazer?

Darcy deu de ombros.

— Eu ainda amo o apartamento. Mas não é a mesma coisa.

— Então, encontre um lugar mais barato. Ou volte para casa!

— Nisha, eu amo vocês, mas tenho um livro para escrever. Não vou conseguir fazer nada no meu antigo quarto.

— Você escreveu Além-mundos no quarto. Em trinta dias!

— Isso foi fácil, eu não sabia o que estava fazendo.

Nisha balançou a cabeça.

— Patel, você ainda tem quase três meses de aluguel, e zero vida amorosa. Então por que não começa a escrever de verdade e vê o que pode fazer? Quer dizer, depois que me hospedar esta semana.

— Talvez. — Parecia uma boa ideia.

— Sabe — disse Nisha. — Os Patel ainda acham que você vai para Oberlin em setembro.

— Isso é improvável. O prazo de inscrição acabou há três semanas.

Nisha piscou.

— Eu pensei que você tinha um lugar guardado.

— Bem, eu perdi esse prazo também. Tipo, há quase um ano.

— Você é patética, Patel. — Nisha riu um pouco. — Não que isso importe. Você não ia conseguir uma bolsa de qualquer maneira.

— O que você quer dizer?

— A faculdade não olha só a renda deste ano, Patel. Eles olham a devolução do imposto do ano. O que mostra o dinheiro que você fez no ano passado.

Darcy engoliu em seco.

— Você quer dizer, o dinheiro que praticamente já acabou?

— Você vai receber mais dinheiro na publicação e por Patel Número 2, mas isso será um problema se você se inscrever na Oberlin ano que vem. Como sua contadora, te aconselho a seguir o plano de ser escritora por três anos.

— Hum, você bem que poderia ter mencionado isso antes. Tipo, lá no início, antes de eu jogar fora minha carreira universitária?

— Você disse que era isso que você queria! E eu não sabia que você ia gastar todo o seu adiantamento em aluguel e macarrão.

Darcy afundou na cadeira. Estava condenada.

A comida veio em seguida, mas Darcy não encontrou consolo no caldo escuro e caro dos noodles. Primeiro, o celular e o corretor automático de Imogen conspiraram para destruir sua vida, e agora o proprietário do apartamento, o imposto de renda e sua futura universidade haviam se juntado ao complô. Era apenas uma questão de tempo antes que o universo inteiro se voltasse contra Darcy. Até seus hashis estavam se comportando mal, deixando o macarrão escapar, espirrando caldo no seu rosto.

Mas o gosto do macarrão era maravilhoso, e logo as irmãs estavam falando de coisas menos deprimentes: as aulas de Nisha na escola, seus planos para a faculdade, as bobagens dos pais. Darcy dividiu todas as fofocas de Carla e Sagan, com quem tinha falado quase diariamente desde a separação, um dos poucos lados positivos do último mês.

Darcy se perguntou se deveria olhar mais para os lados positivos. Nisha estava certa sobre ela não ter uma vida. Talvez escrever fosse algo que ela ainda pudesse fazer sozinha.

— Eu só queria que outra ideia me ocorresse — comentou Darcy. — Alguma coisa imensa e estranha, como quando descobri sobre a amiga da mamãe ser assassinada.

Nisha ergueu os olhos da tigela vazia.

— Ah, certo, sobre isso. Sabe como ela não disse nada quando terminou de ler o seu livro?

— Sim? Ela falou com você sobre isso?

— Nem uma palavra, nunca. Então eu fiz um pouco de pesquisa, e acontece que era uma Annika Sutaria diferente.

Darcy olhou para a irmã.

— O quê?

— Acontece que a Índia é, tipo, cheia de gente. Por isso, muitas pessoas têm o mesmo nome. A Annika que conhecia a menina assassinada é um mês mais velha do que a mamãe. Você é péssima em pesquisa.

— Merda — soltou Darcy. Aquela fantasminha nunca tinha sido dela.

Ou talvez isso significasse que Mindy realmente era dela, porque tinha sido inventada por um caso de identidades trocadas. Ou talvez isso significasse que ela havia usado uma tragédia que tinha ainda menos direito de roubar. E se agora a outra Annika também estivesse morta, e Darcy fosse a última pessoa a se lembrar de Rajani. A última guardiã desse fantasma?

Darcy sabia apenas uma coisa com certeza: um fantasma com identidades trocadas não era uma má ideia para Patel Número 2.

— Podemos ir a uma livraria? — perguntou Nisha.

A mente de Darcy voltou para o presente.

— Sabe, eu tenho meio que tentado evitar essa coisa de mercado editorial.

— Você tem um livro para escrever, Patel. Como pode evitar essa coisa de mercado editorial?

— Essa é a coisa da escrita. — Darcy suspirou. — A coisa de mercado editorial é blogs literários, contas de Twitter sobre literatura YA, Printz Awards simulados, resenhas. Não fico on-line há semanas. — Tudo a fazia lembrar de Imogen.

— Bem, livrarias são uma coisa da leitura. Vamos.

Book of Ages era uma das últimas grandes livrarias independentes de Manhattan, mais da metade dela dedicada à literatura juvenil. As paredes eram cobertas com ilustrações infantis vintage, as prateleiras pesadas com livros YA e infantojuvenis. Havia uma seção de quadrinhos do tamanho de metade de um campo de tênis, com um foguete do Tintin quadriculado de vermelho e branco da altura de Darcy. Visitas à livraria tinham sido tradição das viagens da família Patel para Nova York quando as duas eram pequenas.

— Então, agora você é, tipo, uma rockstar aqui? — Nisha perguntou quando passaram pelas portas.

— Eu não sou uma estrela do rock em lugar nenhum — respondeu Darcy. — Eu ainda nem publiquei o livro, lembra?

— Cento e sessenta e oito dias e contando! Tipo, eles não vão te reconhecer? Não vai rolar um desconto?

Darcy olhou para a mulher atrás do balcão. Não era um dos funcionários que tinha conhecido.

— Desculpe. Nada de desconto.

— Então nada de livros para você, Patel. Como sua contadora, te declaro oficialmente dura.

— Posso cobrar um dólar cada vez que você diz “como sua contadora”?

— Duvido que isso fosse ajudar — comentou Nisha. Em seguida, ela parou, olhando para um display com paperbacks empilhados, todos com a mesma capa vermelho-fogo. — Ei, esse não é...

Darcy assentiu. Era Piromante.

— Que estranho — comentou, pegando um exemplar. — Isto só era para ser lançado em paperback no verão.

— Isso é bom ou ruim? — perguntou Nisha.

— Não tenho certeza. — Darcy virou o livro. Na quarta capa havia o antigo elogio de Kiralee, e também as resenhas estreladas, todos aqueles elogios que nunca tinham parecido ajudar o livro a vender. — Mas a Paradox ainda está tentando, acho.

O que quer que aquilo significasse, era bom ver o livro de Imogen naquela quantidade, bem na frente da loja. Darcy olhou para a foto da autora na quarta capa: Imogen parecendo feliz, com as mãos nos bolsos da jaqueta de couro para evitar tocar a cabeça.

Um nó se formou na garganta de Darcy quando ela se lembrou do dia da sessão de fotos. A Imogen daquela fotografia tinha passado todos os dias com Darcy ao seu lado.

— Divirta-se com isso — disse Nisha, e partiu em direção à parte de livros pop-up do Meu Brilhante Pônei.

Darcy abriu o livro na primeira página.

Sua parte favorita de começar incêndios sempre tinha sido os fósforos. Ela gostava do som que faziam, soldadinhos de madeira em sua caixa de papelão, e de como eles se abriam em flores incandescentes entre suas mãos. Ela adorava os sons trêmulos e rascantes que eles faziam ao lutar contra o vento. Mesmo os restos eram lindos — longilíneos, negros, reverentes —, depois de terem queimado completamente, até as pontas insensíveis de seus dedos...

As palavras tremeram na página, exatamente como na primeira vez em que ela as lera. Darcy ouviu a voz da autora na cadência das frases. Por um momento, ela esperou Imogen aparecer atrás dela e colocar a mão em seu ombro, ou dar um beijo na parte de trás do seu pescoço.

— Que timing, não é? — Veio uma voz.

Darcy virou. Era Johari Valentine.

— Ah, oi. — Elas se abraçaram, depois se afastaram. — Quanto tempo!

— Eu estava em casa, em Saint Kitts. — Johari balançou a cabeça. — Não iria suportar outro inverno aqui. Já é ruim o suficiente escrever sobre o frio sem precisar viver nele!

— Ah, é verdade. Quando Heart of Ice sai?

— Outubro. — Johari bateu os nós dos dedos na madeira da prateleira mais próxima, um pouco de magia para afastar dúvidas.

— O meu sai no final de setembro — completou Darcy. Ela olhou para a capa. — O que você quis dizer com “que timing”?

— Os paperback de Imogen saíram na hora certa.

— Para quê?

Johari franziu a testa.

— Você sabe, a filha do presidente? A foto?

Darcy balançou a cabeça.

— Eu fiquei meio... off-line.

— Minha nossa, menina. Eu devo ter ficado off-line também!

Johari olhou espantada. Aparentemente, ninguém tinha contado a ela sobre o rompimento. Parecia estranho que alguém ainda não soubesse.

— O que aconteceu? — perguntaram as duas ao mesmo tempo.

Após um momento de impasse, Darcy suspirou e falou primeiro.

— Eu não tenho visto Imogen faz um tempo. Estamos dando um tempo, acho.

— Sinto muito, querida. Vocês duas faziam um casal tão fofo.

— Ainda somos um casal. É só por um tempo. — Darcy respirou fundo, tentando seguir os conselhos de Nisha e confiar na palavra de Imogen. — Nada de mais. Mas você disse alguma sobre a filha do presidente?

Os olhos de Johari se arregalaram.

— Sim, alguém tirou uma foto dela subindo no helicóptero carregando o Piromante. Foi fácil reconhecer por causa da capa vermelha.

Darcy soltou uma risada surpresa.

— Isso é meio engraçado.

— Foi mesmo, no início. Mas depois um blog político deu um piti por causa dele, por conta do “conteúdo questionável”. Você sabe, menina colocando fogo nas coisas, beijando outras meninas. — Johari riu, balançando a cabeça. — Aí alguns canais de notícias falaram sobre isso e, por um tempo, todo mundo ficou falando sobre Imogen.

— Jura? Como eu perdi isso tudo?

— Faz só uns três dias, acho? Quatro? As pessoas bobas já começaram a falar de outra coisa agora. Mas suponho que leitores conseguem prestar atenção nas coisas por mais tempo, porque o livro ainda está vendendo.

— Uau. Mas que merdinha sortuda que ela é.

Isso fez Johari, que nunca falava palavrões, começar a rir de novo.

Darcy riu junto, já compondo um e-mail de parabéns para Imogen, e se perguntando se sua boa sorte ainda estava por perto, afinal. Talvez Imogen tivesse pegado um pouco dela emprestado por um tempo.


CAPÍTULO 40

Trinta minutos depois eu estava sentada em um acampamento improvisado a mais ou menos um quilômetro do composto. O ar zumbia com o som dos rádios e o ruído do gerador, que alimentava os enormes holofotes iluminando as árvores. As luzes eram quentes o suficiente para derreter a neve nos galhos dos pinheiros, e uma garoa suave brilhava em meio à luz.

Sentada na minha caixa, eu estava perto o suficiente para aproveitar o calor dos holofotes, enrolada em dois cobertores de mylar. Meus cortes haviam sido tratados e considerados pequenos demais para que eu fosse levada para a tenda de atendimento médico. Eu segurava uma caneca de café, me entregue por um agente muito gentil do FBI. Meu poder de atravessar paredes tinha tornado o trabalho das algemas inútil, mas ninguém parecia muito preocupado com isso. Talvez fosse porque eu era uma adolescente meio congelada, quase nua, ou talvez porque a situação estava segura, sem tiros pelos últimos quinze minutos. Fosse o que fosse, todo mundo tinha parado de apontar armas para mim.

Logo eu escaparia, mergulhando no rio, de volta em meu quarto quentinho. Mas não até que eu tivesse certeza de que Yama estava bem. Eu não sabia onde os feridos estavam sendo tratados e tinha medo de perguntar, no caso de alguém perceber que eu estava livre e me algemar de novo, o que significaria tirar de mim o café quente. Então só fiquei lá, sentada, esperando, anestesiada por tudo o que tinha visto.

O frio congelante tinha me dominado, juntando-se ao lugar gelado que existia desde Dallas. Eu me perguntei se conseguiria me aquecer de novo.

Então percebi que havia alguém olhando para mim. Ergui os olhos do meu café.

— Ah — soltei, meu coração se partindo. O ceifador que tinha atravessado minha vida continuava fazendo vítimas.

— Srta. Scofield. Que estranho vê-la aqui.

Balancei a cabeça.

— Acho que tudo isso deve parecer um pouco estranho para você agora.

O agente especial Elian Reyes olhou para mim, incerto, confuso. Mas, depois de um momento, ele se sentou em outra caixa, e ficamos observando as árvores juntos. O lugar frio dentro de mim, e o frio do mundo real que havia me tomado, estava me abatendo. Parecia muito normal, de alguma forma, estar ali com ele.

É claro que confortar os mortos era o meu trabalho agora.

— Eu esqueci que você talvez estivesse aqui — comentei.

— Eu quase não vim. Faz só quatro horas desde que desci em Denver. — Ele olhou para as próprias mãos, como se conseguisse reconhecê-las. — O último a chegar, o primeiro a entrar.

Balancei a cabeça.

— É tudo questão de tempo. Você perde o voo, e tudo muda.

— Sabe, eu quase perdi mesmo, mas pela primeira vez não tinha trânsito no caminho para o aeroporto de Los Angeles. — A risada dele foi curta e seca. — Ou talvez se eu tivesse sido um pouco mais rápido.

— Não se culpe, Agente Reyes. Todo mundo se culpa.

Ele olhou para mim.

— Você está bem, Lizzie?

— Só com muito frio.

— Frio? Então você não é... como eu, é? Mas você consegue me ver.

Balancei a cabeça.

— Eu consigo ver fantasmas por causa do que aconteceu em Dallas. Aquilo me transformou. Este é o meu novo chamado.

Agente Reyes ficou pensativo por um momento.

— Você parece um pouco jovem para esse trabalho.

Assenti, concordando por completo, desejando ter 11 anos de novo, sem saber nada sobre como o mundo funcionava. Sem saber nada sobre homens maus, segredos da morte, ou mesmo que meu pai nos deixaria em breve.

Mas não havia como voltar atrás.

— Eu deveria orientar as pessoas, acho. Não tenho certeza de como, exatamente, mas eu vou te tentar ajudar. Mas talvez... você pudesse me ajudar antes?

— Claro, Lizzie. Eu sempre quis ajudar você mais do que podia.

— Acho que eu sabia disso. — Levei um momento para continuar. — Meu amigo estava aqui, outro guia, e ele estava ferido. Eles devem ter levado ele para onde quer que os médicos estão.

— Eu estava no atendimento médico. — Agente Reyes apontou ao longe, para outro brilho em meio às árvores. — Seu amigo vai estar lá, a menos que tenha sido levado de helicóptero para outro lugar. Eu te levo.

Ele estendeu a mão e, quando a peguei, me deixei escorregar para o além-mundo. Não estava tão frio no outro lado, e agora eu tinha um fantasma para me guiar.

Agente Especial Reyes e eu achamos Yama na tenda médica, os pulsos algemados às laterais de metal da maca. Ele ainda parecia pálido, e uma bolsa de plasma estava pendurada no suporte ao lado dele. Suas feridas tinham sido enfaixadas às pressas em gaze branca, com pontos pretos espreitando para fora.

Mas seus olhos estavam abertos.

— Lizzie.

Dei um passo à frente e segurei a mão dele. Minha voz não estava funcionando. Por um momento, foi difícil me manter no outro lado. A tenda estava cheia de agentes feridos e cultistas algemados, e dois corpos jaziam num canto, com os lençóis cobrindo suas cabeças. O olhar do agente Reyes foi levado para aquela direção.

— Obrigado por me salvar — disse Yama.

Um riso abafado forçou seu caminho para fora de mim.

— Eu te levei para uma armadilha.

Ele balançou a cabeça.

— Esse erro foi meu. Estamos quites agora.

Uma médica parou ao lado da maca, provavelmente se perguntando por que Yama estava murmurando sozinho. Ele se calou quando ela apontou uma luz para cada um de seus olhos, verificou a bolsa de sangue e verificou seu pulso.

— A gente se acostuma a ser invisível? — perguntou o agente Reyes.

— Mais ou menos. — Olhei para Yama. Ele me salvara no aeroporto, e agora eu tinha salvado a ele, mas a minha estupidez havia custado a pós-vida de três de seus súditos. Eu não me sentia quite.

A médica se afastou.

— Os médicos já disseram alguma coisa? Você vai ficar bem?

— Eles não me disseram muita coisa. — Yama balançou a algema presa à maca. — Parece que eles me desaprovam.

— Em nome da agência, peço desculpas. — Agente Reyes parecia genuinamente arrependido. — Infelizmente, acho que não temos um protocolo para lidar com guias espirituais.

— Não vou ficar aqui por muito tempo. — Seus olhos se voltaram para mim. —Tenho uma cidade para proteger.

— Claro — murmurei. Sem Yama para defendê-lo, seu povo seria presa fácil. — Posso ajudar em alguma coisa?

Ele assentiu devagar.

— Yami vai chamá-la.

Eu me perguntei por um momento o que o agente Reyes estava pensando da nossa conversa. Mas ele estava observando os corpos cobertos por lençóis no canto da tenda.

Virei para Yama.

— Eu não tenho medo do Sr. Hamlyn.

— Não precisa ter. Acho que ele gosta de você.

Perdi o fôlego. Yama tinha ouvido a verdade na minha voz quando eu falei que queria aprender com o Sr. Hamlyn. O homem que tinha levado seus súditos.

— Eu sei que ele é mau.

— É possível aprender com monstros, Lizzie. Afinal, não fui o melhor professor.

— Não fale no passado, por favor. Você não vai morrer!

— Não, mas vou ter que ficar na minha cidade a partir de agora. O predador não vai deixar as pessoas em paz.

— Você vai ter que ficar lá... o tempo todo?

— Cada minuto que eu estiver longe, ele vai caçá-las.

Balancei a cabeça. Todas aquelas horas passadas juntos, no topo de montanhas agrestes ou no seu atol varrido pelo vento, subitamente pareciam tão preciosas.

— E a minha irmã estava certa — continuou ele. — Eu tenho sido preguiçoso.

Engoli em seco.

— Mas não tem problema se eu visitar você, certo?

— Lizzie, você pode fazer mais do que visitar. Você pode vir morar com a gente. — Um sorriso lento e belo dominou seu rosto quando ele falou, mas não consegui responder.

A cidade de Yama era magnífica, mas também cinzenta e silenciosa, e eu já estava tão fria por dentro. Eu conseguia me imaginar no além-mundo, sentindo o cheiro de ferrugem e sangue no ar. A morte estivera comigo desde o dia em que nasci e, além de tudo, eu era uma assassina agora.

O que viver no submundo faria comigo? Será que eu esqueceria a sensação da luz do sol? Ou começaria a ouvir as vozes dos mortos em cada pedra?

Havia tanta coisa que eu queria dizer a Yama naquela noite, mas não houve tempo. Ao nosso redor, a tenda médica estava ficando cada vez mais agitada conforme mais feridos eram trazidos.

Estendi a mão e toquei seu rosto. Com ele no mundo real e eu do outro lado, a eletricidade daquele toque era apenas uma coisa passageira.

— Minha mãe precisa de mim agora.

— Não há pressa para nós dois — disse ele.

Claro que não. Yama planejava viver para sempre. Ele podia esperar cem anos, até que minha mãe fosse uma lembrança distante, meus amigos mais antigos, todos mortos e enterrados.

Mas eu não podia esperar por ele. Não cem anos, nem cem dias. Desde quando o amor não era algo que precisava de pressa? Eu me inclinei para a frente e o beijei, e a centelha dos seus lábios ainda estava lá, mesmo através do véu do além-mundo.

Mas, quando me afastei, ele prendeu o fôlego.

— Lizzie. O que aconteceu?

— Como assim?

— Você fez alguma coisa. — Sua voz estava baixa e séria, e os gritos e agitação da tenda médica dominaram o silêncio.

Ele sabia. Ele tinha sentido o gosto em mim.

— O homem mau. Eu voltei na casa dele.

Yama balançou a cabeça. Seu rosto ficou pálido, como se as feridas estivessem sangrando novamente.

— Ele estava prendendo aquelas garotinhas lá. E as lembranças dele estavam dentro de Mindy, deixando-a com medo o tempo todo. Mas eu resolvi tudo. Ele desapareceu, cortado em pedaços.

— Pelo predador?

— Sim, pelo Sr. Hamlyn. — Baixei de novo os olhos para o chão de terra. Ele brilhava debaixo dos meus pés. Os aquecedores na tenda médica derretiam a água no solo congelado. — Mas fui eu quem o matou.

Yama fechou os olhos, seu rosto retorcido de dor. Um gemido difícil e amargo parecia vazar de todos os poros do seu corpo.

Yama havia sentido o assassinato em mim.

Eu havia me tornado como as pedras que cheiravam a sangue e sussurravam com as vozes dos mortos. Maculada, como o resto do mundo, exceto por aquela ilhota em forma de crescente no grande mar do sul.

— Você nunca matou ninguém, não é? — perguntei.

— Claro que não. — Seus olhos se abriram, brilhando com lágrimas. — Você não entende, Lizzie? Seja lá o que venha depois, a vida não tem preço.

Fiquei lá parada em silêncio. A minha quase morte tinha, na verdade, me ensinado isso, mas também tinha me ensinado muitas outras coisas. Tudo isso estava misturado no meu cérebro agora, uma confusão de regras estranhas e horrores inesperados. No final, minha raiva tinha superado tudo o mais que eu havia aprendido.

Yama mantivera suas mãos limpas por milhares de anos, e eu só tinha levado um mês para matar alguém.

— Sinto muito — falei.

Yama me lançou um último olhar horrorizado e virou o rosto.

— Você deveria ir ajudar Yami.

— Claro. — Eu teria feito qualquer coisa por ele. Mas, quando fechei os olhos e ouvi o ar parado do outro lado, não havia nada. — É só que... ela não me chamou ainda.

— Vai chamar em breve. — Ele fechou os olhos de novo. Era o fim.

Dei um passo para trás, me afastando da maca. Uma médica passou correndo, na pressa para ajudar um agente ferido que estava sendo trazido pelas abas abertas da barraca. Quando ela passou por mim, senti o choque de sua intensidade, de sua determinação para salvar a vida do homem.

Dei as costas para Yama e me afastei.

Matar alguém era muito pior do que contar o nome dele, pois isso tinha me transformado. Tudo o que ele sempre desejou era um refúgio da morte. Por algumas horas, no topo de uma montanha, ou durante alguns momentos, quando nossos lábios se tocavam. E agora aquilo não existia mais entre nós.

— Lizzie. — Era o fantasma do agente Reyes, me seguindo para fora da tenda. — Você está bem?

Assenti, ainda caminhando.

— Eu ouvi os médicos falando do seu amigo. Ele vai ficar bem, assim que ele receber um pouco de sangue.

— Obrigada. — Minha voz parecia destruída.

Agente Reyes ficou na minha frente, me forçando a parar.

— Eu ouvi o que você estava dizendo a ele, sobre um homem mau. Foi por isso que você me ligou, não foi?

Levei um momento para compreender que ele não quis dizer uma ligação na corrente do rio Vaitarna, ou como aquele tiroteio havia me chamado até o Colorado. Só queria dizer um telefonema.

— Isso. Quando perguntei sobre serial killers.

Ele assentiu.

— Não era uma pergunta hipotética.

Seu olhar era firme demais, seus olhos cinzentos, muito sérios, e eu tive que desviar o olhar.

— Suponho que você não seja mais um agente do FBI, certo?

— Não. A agência não emprega fantasmas.

Assenti.

— Bem, havia um serial killer, e eu ajudei a destruí-lo.

— Isso faz parte da sua vocação agora, Lizzie? Vingar os mortos?

Balancei a cabeça. Eu não tinha uma vocação, um propósito. Não era uma valquíria nem um guia espiritual. Eu só queria ir para casa.

— Foi só um erro, um erro horrível. Mas não tem problema. Minhas impressões digitais estão na arma do crime, e eu mandei uma mensagem para alguém bem na frente da casa dele. Eles vão me pegar.

Naquele momento, eu queria ser pega. Para ser punida, não pelo que eu tinha feito com o homem mau, mas com Yama. Com nós dois.

O agente especial Reyes segurou minha mão, só por um momento, sua expressão triste e decidida.

— Nós não pegamos todo mundo — disse ele.

* * *

Passei a noite toda no outro lado, sem dormir, paralisada, esperando pelo chamado de Yami.

Mindy ainda estava cheia de energia e me levou em uma excursão pelo bairro, me entretendo com todas as fofocas que tinha colecionado ao longo de anos de espionagem. Ela não percebeu como eu estava quieta.

Era inquietante, irreal, quase, o quanto da sua personalidade desaparecera após a morte do homem mau. Como se as partes mais profundas do seu eu tivessem sido apagadas.

Como se ela não fosse mais sequer uma pessoa.

As horas passaram e a madrugada se aproximava, e comecei a ficar preocupada com Yami. Eu sabia que ela não gostava muito de mim, mas ela só tinha a mim para proteger a cidade do irmão. Por que não tinha me chamado até agora?

Ela havia morrido jovem e lentamente, naquele campo de ossos, milhares de anos antes. Talvez o Sr. Hamlyn quisesse os fios da sua vida, e já tivesse levado ela.

Pensei em voltar para o Colorado, para dizer a Yama que sua irmã não tinha chamado. Mas se ela estava em perigo, ele deixaria sua cama em um piscar de olhos e não conseguiria se curar. Não quis imaginá-lo protegendo seu povo, pálido, exangue e cheio de pontos, como um rei zumbi em um palácio sem cor.

Mas, por fim, bem quando o sol surgiu atrás do quintal dos Anderson, ouvi um chamado fraco nos ventos do outro lado.

Elizabeth Scofield...Venha aqui.

Era a voz de Yami. Ela não tinha falado: “Eu preciso de você”, como na primeira vez que havia chamado. Aquilo era uma ordem.

Eu não hesitei, nem mesmo me despedi de Mindy, simplesmente deixei o rio me levar. Foi uma viagem curta e furiosa, muito mais rápida do que a minha primeira viagem até o submundo. E, quando o óleo negro do rio ultrapassou meus olhos, não havia um palácio cinzento para me cumprimentar, nenhum céu vermelho.

Só uma rua muito familiar em Palo Alto.

Yami estava me esperando no jardim do homem mau. Ao seu redor, as arvorezinhas retorcidas marcavam onde as garotinhas tinham estado por tanto tempo. Era estranho não vê-las ali.

— O que é isso? — perguntei. — O que você está fazendo aqui?

— Tenho notícias para você. — Yami se sentou na grama com as pernas cruzadas. — Venha se juntar a mim, menina.

Eu dei alguns passos na direção dela, mas não sentei.

— Não tenha medo, Elizabeth. É só terra.

— Você sabe o que está enterrado aí embaixo?

— Os mortos são enterrados em todos os lugares. — Yami passou a mão pela grama acinzentada. — A terra é um cemitério.

Teoricamente ela estava certa, mas ainda assim fiquei de pé. O lugar que eu tinha cavado freneticamente com as minhas próprias mãos estava liso agora.

— Yami, o que você fez?

— Nós enterramos o passado.

Dei um passo para trás, olhando para a casa. As janelas do quarto da frente me olharam malignamente.

— Você enterrou... o homem mau?

Yami suspirou.

— Não seja ridícula, Elizabeth. Ele é pesado demais. E se a polícia o encontrasse no chão, isso causaria uma comoção.

— Pesado? Mas você é um fantasma. Não pode carregar nada.

— Claro que não. — Yami estendeu as mãos em cima dos joelhos, como se estivesse meditando. — O Sr. Hamlyn foi muito útil.

Meu coração pulou uma batida.

— O Sr. Hamlyn?

— Sente-se, garota. Você não parece bem.

Finalmente obedeci. Eu não me sentia bem mesmo.

— Depois que você deixou Yamaraj, meu irmão me chamou — Yami começou. — Você conseguiu salvá-lo do predador, aparentemente.

— Hum. De nada.

Ela arqueou a sobrancelha e continuou:

— Ele me disse para voltar para casa e chamá-la lá para baixo, para ajudar a proteger a nossa cidade. Obviamente não fiz isso. Havia trabalho a ser feito lá no Colorado. Almas a colher.

Olhei para o chão, me dando conta de que não tinha feito nada para ajudar os fantasmas no tiroteio. Eu era uma péssima psicopompo além de todos os meus outros defeitos.

— Havia um agente do FBI lá — comentei. — Elian Reyes. Você o ajudou?

Yami sorriu.

— Nós nos ajudamos mutuamente. Ele me disse o que você tinha feito, destruído alguém. Era óbvio que o predador tinha ajudado com isso. Então, quando voltei para a nossa cidade, esperei. Ele veio logo, faminto, como prometido.

— Mas por que ele não simplesmente... — Minha voz desapareceu quando Yami segurou minha mão com firmeza. — Desculpe. Continue.

Ela arrumou o tecido da saia nos joelhos.

— Felizmente, o Sr. Hamlyn não é o tipo de homem que apressa as coisas. Eu pude explicar o que o agente Reyes havia me contado. Sobre suas impressões digitais, suas mensagens de telefone, sua incompetência geral.

Olhei para ela.

— Foi o meu primeiro assassinato, sabe.

— E foi muito útil, Elizabeth. Dei a entender ao Sr. Hamlyn que, se o seu crime fosse descoberto, você teria que fugir do mundo superior. O que significaria que viria morar com o meu irmão. — Ela balançou a cabeça devagar. — Nenhum de nós gostaria que isso acontecesse.

Balancei a cabeça.

— Por que o Sr. Hamlyn se importaria com isso?

— Pense, menina. Se você viesse viver no submundo, meu irmão não teria motivos para deixar a cidade desprotegida. E o predador perderia sua presa.

— Então o Sr. Hamlyn acobertou o meu crime, torcendo para que eu distraísse Yama?

— Exatamente. — Yami sorriu novamente. — Por outro lado, sei que o meu irmão vai ficar onde é necessário. Porque ele ama o seu povo mais do que ama você.

Não respondi. Depois do que eu tinha feito, ela provavelmente estava certa.

Pelo canto do olho, notei o gato, aquele que vivia por perto, nos observando. Ele estava agachado, na pose de caçador, atrás de uma das árvores retorcidas — peito e patas dianteiras perto do chão, o traseiro para o alto, músculos tensos prontos para pular. Mas do jeito que os gatos fazem às vezes, ele só ficou lá parado, e não veio atrás de nós.

Olhei para o chão.

— Então, o que o Sr. Hamlyn enterrou aqui?

— Alguns potes de comprimidos amassados, evidência de luta. Quando encontrarem sua vítima, ele vai parecer um velho que teve um ataque cardíaco durante a noite, rolou da cama e caiu com força no chão. Nada que valha a pena investigar, e mesmo que procurem impressões digitais, o Sr. Hamlyn limpou a pá. Fizemos uma aposta, ele e eu. Será que o meu irmão vai escolher seu povo, ou você? — Yami suspirou. — O Sr. Hamlyn acha que você tem muita chance. Não sei por quê.

Olhei para ela.

— Mas por que ele teve o trabalho de fazer uma aposta com você? Por que ele não simplesmente... te comeu?

— Os gostos dele são bastante específicos. — Ela estendeu a mão, me mostrando uma cicatriz suave na pele cinzenta. Tinha o formato de meia-lua, e me lembrei do caco de osso que lhe cortara. — Eu posso ter morrido jovem, mas sofri uma dor terrível.

— É verdade. Sinto muito.

Ela assentiu, aceitando aquilo como o pedido de desculpas que lhe era de direito. Então Yami estendeu a mão e tocou minha cicatriz em formato de lágrima no rosto. Seus dedos soltaram uma faísca ardente, como um estalo de eletricidade estática, mais forte e dolorida do que os do seu irmão.

— É uma pena que você tenha tomado este caminho, Elizabeth.

— Eu realmente não tive escolha.

— Você teve algumas. — Yami soltou um suspiro suave. — Às vezes me pergunto se o meu irmão teve razão ao me seguir. Meus pais perderam dois filhos naquele dia.

— Mas você quer que ele fique com você agora?

— O Lorde Yama escolheu seu caminho. — Ela ficou de pé. — Escolha o seu, Lizzie. A vida não tem preço.

Ela estalou os dedos e gotas caíram na grama ao nosso redor, brilhando como diamantes negros.

Antes que ela fosse embora, falei:

— Você provavelmente está certa. Ele não vai abandonar você, ou o seu povo. Não por mim, de qualquer maneira.

Yami me olhou um momento, depois deu de ombros antes de sumir.

— Se eu tivesse certeza da resposta, não seria uma aposta de verdade.


CAPÍTULO 41

Começou devagar no início, longos dias olhando para a tela do computador sem nenhum resultado para mostrar. Mas Darcy se forçou a ficar sentada lá, hora após hora, até que as palavras finalmente começaram a vir. Na primeira semana elas pingavam, como água de uma torneira quebrada, mas aos poucos vieram mais rápido, até que capítulos inteiros fluíssem para a página diariamente. Ela chegou às incríveis velocidades que havia alcançado naquele fatídico novembro, 18 meses antes, e depois as ultrapassou.

No final, Patel Número 2 a consumia, afogando os dramas de Darcy no clamor da história de Lizzie e de um fantasma que havia sido confundido com outra pessoa. Darcy se perdeu na estrutura das cenas, na sintaxe e nos pontos e vírgulas, na trama e nos conflitos e nos personagens, os elementos da história brigando uns com os outros por espaço nas páginas. Ela pulava da cama no meio da noite para escrever, não porque tinha medo que esqueceria as ideias, mas porque sua cabeça iria explodir se não as anotasse. Ela passou o aniversário de 19 anos escrevendo, e mal reparou.

No final das contas, o mês passou depressa, a tal galope que Darcy mal sentiu a ausência no âmago dos seus dias, a cadeira vazia à sua frente. Ela não se cansou de miojo, nem se preocupou com dinheiro e outros detalhes fugazes da vida real. E, conforme o meio de maio se aproximava, Darcy se viu prestes a completar o primeiro rascunho do seu segundo livro, a continuação de Além-mundos. Era confuso, totalmente caótico no fim, e ainda não tinha título, mas ainda havia tempo para corrigir tudo isso.

Até onde Darcy conseguia dizer, era um livro de verdade, ou quase. Tinha até alguns lampejos de caldo. E, uma semana antes da BookExpo America, ela enviou o arquivo por e-mail para Moxie Underbridge e desabou num sono de vários dias.

Os livros eram de graça aqui. Era mágico. Era enorme.

Darcy tinha acordado cedo, ansiosa para seu primeiro evento público de Além-mundos, uma tarde de autógrafos em provas não finalizadas durante a BEA. Ela ficou ainda mais nervosa quando um carro com motorista chegou para levá-la na frente do Centro de Convenções Javits.

Lá dentro, o salão principal era imenso e cheio de vida. O pé-direito tinha 30 metros, e o ribombar de trinta mil livreiros, bibliotecários e editores fazia o ar vibrar. Darcy se sentiu pequena e assustada.

Mas ali os livros eram de graça.

Alguns ficavam empilhados em pilhas modestas de vinte exemplares, outros arrumados como tijolos formando fortalezas de livros grandes o suficiente para se esconder lá dentro. Alguns eram entregues assim que alguém mostrava um lampejo de interesse, e outros eram dispostos em espirais quase bonitas demais para estragar tirando exemplares. Quase.

Meia hora antes de autografar seus livros, a bolsa vazia que Darcy tinha trazido já estava lotada, e se xingou: que neófita. Ela deveria ter trazido uma bolsa cheia de bolsa em vez disso.

É claro que a questão era: como ela carregaria todos aqueles livros? Como ela os leria?

Ainda assim, eram de graça. Não só os livros YA que ela havia conseguido arrumar com seus colegas autores ao longo do ano anterior, mas romances históricos e livros de culinária e suspense e ficção científica e até graphic novels. As datas de publicação estavam a meses de distância, e todos tinham aquele maravilhoso cheiro de recém-impresso.

Quando chegou o momento de Rhea chamá-la para dizer que estava na hora de se encontrarem no stand da Paradox para os autógrafos, Darcy tinha quase se esquecido de ficar nervosa.

Em um dos extremos do corredor cavernoso ficava a área dos autógrafos, um labirinto de filas guiando centenas de pessoas para uma longa linha de autores. Números gigantes ficavam pendurados acima de cada corredor, dando uma aparência de ordem à confusão de tamanho industrial da multidão.

Darcy Patel, autora estreante, autografando seu livro Além-mundos, tinha sido estacionada no corredor 17. Ela chegou na área de autógrafos rebocada por Rhea, que gentilmente havia guardado a bolsa cheia de livros grátis em algum lugar nas entranhas do stand da Paradox. Darcy se perguntou quantas bolsas da editora ela poderia surrupiar.

— Tem escritores autopublicados nos seus dois lados — dizia Rhea. — Eles vão ter filas grandes, mas nada louco. Você ia ficar ao lado de um ex-ator mirim autografando um livro de autoajuda, mas nós conseguimos mudar você de lugar.

— Porque a fila enorme dele ia me deixar com vergonha? — perguntou Darcy.

Rhea balançou a cabeça.

— Nós só não gostamos de estrelas de cinema ao lado dos nossos autores. Distrai. Eles são muito metidos!

Ela levou Darcy para trás de uma grande cortina preta, na área de arrumação para os autógrafos. Havia caixas empilhadas em todos os lugares, e uma empilhadeira carregada passava com estrondo quando elas seguiram para a entrada dos fundos do corredor 17. Darcy estava usando o vestido que sua mãe havia lhe dado no seu primeiro dia em Manhattan. O vestido sempre lhe trouxera sorte, mas parecia deslocado ali, em meio à correria dos bastidores.

— Boa notícia: seus livros chegaram. — Rhea apontou para uma pilha de caixas cobertas com o logo da Paradox e as palavras “Além-mundos — Patel”. — Com que tipo de caneta você assina?

— Hum. — Darcy tentou se lembrar do sábio conselho que Standerson lhe dera no ano anterior. — Uni-Ball... alguma coisa?

— Vision Elite? Jetstream? Eu prefiro as Bic Triumphs. — Rhea remexeu na bolsa. — Tome três de cada, e uma Sharpie para gessos, eco-bags, e partes do corpo.

— Obrigada. — Darcy aceitou humildemente o punhado de canetas.

— Temos cinco caixas para autografar. São mais ou menos cem exemplares. — Rhea se ajoelhou e deslizou um estilete pela fita. As abas da caixa se abriram, revelando a capa familiar, o que agora exibia os elogios de capa tanto de Kiralee quanto de Oscar Lassiter.

Darcy se ajoelhou ao lado de Rhea. Uma única cópia avançada chegara ao apartamento 4E uma semana antes, mas foi surpreendente e maravilhoso ver seu livro em quantidade. Os livros de verdade só sairiam em 23 de setembro, dali a quatro meses, mas aqueles exemplares eram, de algum modo, mais preciosos. Cada um dizia: NÃO PODE SER VENDIDO..

— Cem exemplares?

— Isso. Dá uns trinta segundos por pessoa.

Darcy olhou para Rhea.

— Vai ter mesmo tantas pessoas assim? Quer dizer, quem ouviu falar de mim?

— Muita gente conseguiu as amostras grátis. Está rolando um burburinho. — Rhea sorriu. — E são de graça, de qualquer forma.

Darcy engoliu em seco. E se você desse seus livros de graça, e ainda assim ninguém aparecesse?

A hora marcada chegou, e Darcy se viu na frente da cortina preta, empoleirada numa cadeira estranhamente alta atrás de uma mesa de autógrafos. Rhea estava ao seu lado, empilhando exemplares de Além-mundos, e na frente de Darcy estendia-se uma fila de pessoas que realmente queriam seu autógrafo.

Mas não era uma fila muito longa, talvez umas vinte e cinco pessoas. Definitivamente não cem.

— Pronta? — perguntou Rhea, e Darcy assentiu em silêncio.

O estranho era que muitos já tinham lido Além-mundos.

— Eu fiz o download no primeiro dia — disse um bibliotecário de Wisconsin. — Meus alunos adoram qualquer coisa que tenha a ver com terrorismo. Você pode escrever: “Parabéns, vencedor do concurso”?

— Ótimo primeiro capítulo — comentou a dona de uma livraria do Maine. — Mas eu estava esperando que teria mais coisas sobre o culto. Essas seitas são um problema de verdade, sabia?

— Eu amo romances com fantasmas — falou um blogueiro do Brooklyn. — Lizzie deveria ter ficado com o agente do FBI, principalmente depois que ele morreu. O que meio que foi culpa dela.

Houve mais comentários e sugestões, e muitos elogios educados. Mas as reações já eram tão variadas, e às vezes um pouco estranhas.

— Tem continuação, certo? — perguntou uma livreira do Texas. — Lizzie e Mindy deveriam começar a resolver assassinatos de outras pessoas. Seria tão fofo.

Darcy sorriu e concordou com tudo que era dito a ela, assinando seu nome com o novo autógrafo que tinha praticado a semana toda. O D era enorme e sinuoso, ocupando toda a folha de rosto, cheio de orgulho.

Mas autografar naquele centro de convenções de alguma forma passava a sensação de negócios, sem o glamour, a intensidade, ou o amor dos eventos de Standerson. Não que Darcy merecesse tal adulação, mas parte dela estava impaciente para que adolescentes de verdade começassem a ler seu livro. Estes eram formadores de opinião. Ela queria zelotes.

E não havia tantos deles. Depois de vinte dos sessenta minutos de Darcy, a fila tinha acabado. Ela tentou fazer o último moço ficar falando, mas nem queria uma dedicatória, apenas a assinatura, e logo foi embora. Por um momento desconfortável, Darcy e Rhea se entreolharam, sem dizer nada.

— Merda. Será que é melhor eu sair correndo?

— Claro que não! É só não autografar tão rápido. Mais pessoas vão aparecer. Elas vão vir dos outros corredores. — Rhea sorriu. — Está vendo? Mais duas.

Eram duas das irmãs deb de Darcy, Annie e Ashley. Elas usavam camisetas estampadas combinando: 2014!

— Ei! — chamou Darcy quando elas se aproximaram. — Irmãs debs!

O sorriso de Ashley desmoronou.

— Meu livro foi empurrado para o ano que vem. Não sou mais sua irmã deb de verdade.

Annie a abraçou, reconfortando-a.

— Eu falei, você ainda pode usar a camiseta.

— Que droga — comentou Darcy. — Mas obrigada por me mandar Planeta Carmesim. Amei como a política era complicada. E aquelas cenas de pegação em Marte! Será que a baixa gravidade funciona mesmo daquele jeito?

— Espero que sim. — Ashley estava olhando para a pilha de livros de Darcy. — Como foram os autógrafos? Você deve ter sido atropelada pelos fãs!

— Não muito — respondeu Darcy. — Mas todo mundo foi muito legal.

— Sua capa é tão incrível — comentou Annie, pegando um exemplar de Além-mundos. — Amei essa coisa da fumaça!

— Gotas estão super na moda — acrescentou Ashley.

— Obrigada. — Darcy se perguntou se as capas delas já tinham sido divulgadas. Ela não tinha ficado a par de nenhuma das capas saindo nos últimos dois meses, nem tinha comprido as promessas de entrevista com Annie, ou postado qualquer coisa no Tumblr. Ela tinha sido uma péssima irmã deb, e sentiu uma súbita necessidade de compensar esse fato. Então comentou: — Eu tenho 19 anos, aliás.

— Foi o que chutei! — Ashley começou a dançar. — Ganhei!

Ela parecia tão feliz que Darcy não apontou que tinha 18 anos quando as irmãs deb tinham feito suas apostas. Em vez disso, autografou dois exemplares de Além-mundos.

Quando as duas foram embora, Kiralee Taylor e Oscar Lassiter apareceram pelo labirinto das filas.

— Alguém me falou que tem um livro com um negócio de deus da morte hindu por aqui, é isso? — perguntou Kiralee. — Poderia tal coisa ser real?

Darcy riu. Não tinha visto Kiralee pessoalmente desde que recebera o elogio de capa.

— Muito real, e de graça para autores famosos!

— Se divertindo? — perguntou Oscar.

— Estava. Mas o movimento foi diminuindo.

— Mais pessoas virão — assegurou Kiralee. — No momento, você tem um rival de peso mais para trás.

— Você está falando do ator mirim? — Rhea franziu a testa. — Minha irmã e eu sempre odiamos aquele programa.

— Não, não é ele — respondeu Kiralee, abrindo um sorriso misterioso. — E não se preocupe, eu tuitei sobre a sua augusta presença. Prepare-se para ser completamente inundada.

Rhea entregou um livro para Darcy, já aberto na folha de rosto. Por um momento, Darcy congelou, a Uni-Ball Vision Elite pesada na sua mão.

— K-I-R...— Kiralee começou.

— Silêncio! — disse Oscar. — Ela está pensando.

Aquilo era só parcialmente verdade. Houve um lampejo de percepção na cabeça de Darcy, que poderia ser traduzido para: “Ah, merda, estou autografando um livro para Kiralee Taylor.” Mas na verdade não era nada, só um zumbido.

O livro aberto diante dela era real. Kiralee, ali à espera de um autógrafo, era real. O barulho da multidão e o cheiro de livro recém-impresso eram reais. Darcy Patel era uma autora publicada agora.

— Bem, isso é um pouco constrangedor — brincou Kiralee um momento depois.

— Ignore ela — disse Oscar baixinho. — Sem pressa.

E, de repente, Darcy sabia o que escrever.

Obrigada por todos os pesadelos com lama vermelha.

Ela assinou com um floreio, e, em seguida, passou para o de Oscar.

Escrever é um negócio solitário, exceto pelos Drinques!

Os dois foram muito fofos sobre suas dedicatórias e, ainda mais fofos quando ficaram por perto até que a fila se formasse de novo, atraindo leitores perdidos de outros corredores e alguns seguidores de Kiralee. Logo Darcy estava autografando novamente, tomando cuidado para não ir rápido demais, parando para conversar com todo mundo, pelo menos até que mais pessoas chegassem na fila. Os leitores iam e vinham, até que, de repente, a hora tinha passado e Rhea estava arrumando as coisas.

— Ótimo trabalho — aprovou ela. — Só sobrou uma caixa e meia!

Darcy estava atordoada. Não parecia que setenta pessoas tinham passado por ali, mas sua mão direita estava maravilhosamente dolorida.

— Ops, mais dois. Você assina, eu arrumo. — Rhea baixou mais dois livros na mesa e começou a empurrar com o pé a caixa de sobras para trás da cortina.

Darcy ergueu os olhos. Eram Carla e Sagan.

— De onde vocês vieram?

— Dos nossos dormitórios, onde a gente mora — respondeu Sagan. — Decidimos fazer uma road trip hoje de manhã.

— Road trip! — Carla gritou. Ela já estava segurando mais de dez livros junto ao peito.

— Como vocês entraram?

— A Imogen conseguiu passes da Paradox — explicou Sagan. — Tipo, caso você precisasse de rostos simpáticos na sua tarde de autógrafos.

— Desculpe pelo atraso — disse Carla. — Mas as coisas grátis são a força desse lugar!

— Peraí. A Imogen arrumou ingressos? — Darcy piscou, confusa. Ela não tinha verificado a programação, mas é claro que Imogen estaria ali em algum lugar. Era estranho como em dias cheios Darcy conseguia passar horas sem perceber as peças que faltavam no seu coração. Mas, quando as memórias vinham, vinham todas de uma vez.

— Por que a cara triste? — perguntou Carla.

— Ela não veio pegar meu autógrafo.

— Tá de brincadeira, Sherlock. — Carla tirou um livro da preciosa pilha. A capa era um gato preto, os olhos brilhando com um familiar vermelho-fogo. — Ela está ocupada lá no corredor 2. É por isso que a gente se atrasou.

— Sério?

— Fomos agradecer — disse Sagan. — E a fila dela estava enorme! Levamos um século para chegar aqui.

Darcy pegou a cópia avançada de Cleptomante das mãos de Carla. Tinha lido um rascunho quase um ano antes, mas nunca tinha visto a capa.

— Eu esqueci que ela ia estar aqui. Eu já contei como eu...

— Inventou o título desse livro? — disseram Carla e Sagan em uníssono, para em seguida explodirem em risos.

— Vocês são péssimos.

— Ah, sério? — Carla pegou seu exemplar de Cleptomante de volta. — É por isso que você não fala com a gente ultimamente?

— Eu estava escrevendo que nem uma louca. Escrevi um primeiro rascunho inteiro!

— Em um mês? — Sagan surpreendeu-se. — Isso é, tipo, old-school Darcy.

— Então, quais são seus planos agora? — perguntou Carla.

— Sair com vocês, óbvio. Depois da festa da Paradox.

— Não esta noite — explicou Carla. — Agora, como... no futuro. Você vai para a Oberlin? Vai ficar aqui para sempre?

— É — disse Sagan. — Você nunca contou como resolveu o negócio da renovação do aluguel.

— Ah — Darcy disse suavemente. — Eu meio que esqueci.

— Então você vai ser chutada para fora do apartamento dia primeiro de julho?

— Acho que sim. — Ao longo do mês anterior, Darcy não tinha se concentrado na situação do apartamento, ou no futuro em geral. O primeiro rascunho de Patel Número 2 a tinha consumido de corpo e alma, assim como certos detalhes domésticos, como lavanderia, limpeza, e papelada.

— Que beleza — disse Carla com uma risada. — Que bom que morar sozinha te deixou tão madura.

Darcy suspirou. Ela tinha tentado tanto crescer um pouco no tempo que passara sozinha no apartamento 4E. Mas talvez estivesse condenada a ser sempre uma adulta meio mambembe.

Ela abriu um dos livros na mesa.

— Que tal “Da sua querida melhor amiga de colégio. Obrigada por todos os conselhos sobre maturidade”?

— Péssimo! — exclamaram Carla e Sagan em uníssono.

— Vocês têm que parar de fazer isso. Falar junto é coisa de gêmeos de filme de terror.

— Eu tenho uma ideia — falou Carla. — Que tal você escrever...

— Não! Eu já tenho experiência nisso agora. Este é o meu trabalho. — Darcy refletiu em silêncio por um momento, depois levantou a caneta.

Sem vocês, toda aquela leitura não teria sido tão divertida.

Ela escreveu a mesma coisa no exemplar de Sagan.

— Está na hora de ir — disse Rhea atrás dela. — O próximo autor está esperando, e a festa é em meia hora.

— Desculpa! — Darcy saltou da cadeira. Ela pertencia a outra pessoa agora.

— Aliás, podemos ficar com você hoje à noite? — perguntou Carla.

— Dã! Vejo vocês mais tarde — respondeu Darcy, e entregou as chaves.

* * *

A festa da Paradox ficava a meia hora a pé, mas era um dia quente, e a vasta extensão da Nona Avenida não oferecia nenhuma sombra. Darcy estava suando no seu vestidinho preto quando ela e Rhea chegaram no bar.

— Guinness, certo? — Rhea perguntou enquanto se afastava.

— Sim, por favor! — gritou Darcy para as costas dela. Estava misericordiosamente fresco e escuro ali, mas ela precisava muito de uma bebida. O restaurante estava lotado com autores e editores da Paradox, assim como funcionários do marketing, assessoria de imprensa e comercial. Todos eram importantes para o seu futuro, e a maioria ela estava conhecendo pela primeira vez naquela noite. Felizmente, eles ainda estavam com as credenciais.

Mas ela se manteve afastada do centro da festa, não se sentindo pronta para mais conversa fiada depois de uma hora na mesa de autógrafos. Darcy se viu lançando olhares para as portas do restaurante, se perguntando se Imogen viria. Ela não daria um bolo na própria editora só para evitar uma ex, certo?

— Darcy! Como foi a tarde de autógrafos? — perguntou Moxie Underbridge, planando do outro lado da sala.

Darcy estremeceu um pouco. Desde que enviara seu primeiro rascunho de Patel Número 2, ela tinha começado a se perguntar se não era um pouco rascunhento demais, caótico demais. Moxie não tinha respondido, o que parecia ser um mau sinal.

— Boa, acho. Umas sessenta pessoas?

— Setenta e três! — corrigiu Rhea ao chegar, depositando uma Guinness gelada na mão de Darcy, sem esperar por agradecimentos.

— Nada mal para a primeira vez — disse Moxie.

— Melhor do que eu esperava. Mais estranho também. As pessoas efetivamente leram meu livro agora, que foi um pouco assustador. Eles tinham opiniões.

Moxie riu.

— Eles terem opiniões significa que querem uma continuação. Que está maravilhosa, por sinal. Acabei de ler ontem à noite.

— Está legal? — Darcy tomou um gole para se preparar. — Eu estava pensando que você talvez achasse um pouco... instável.

— Instável? — Moxie balançou a cabeça. — É muito melhor do que o primeiro rascunho do Além-mundos. Você cresceu muito.

— Você está brincando? Não é como me sinto.

— Você provavelmente nem se lembra de como Além-mundos começou. Aqueles dois capítulos, no início, naquele palácio bobo do submundo, e aquela última cena piegas no leito de morte de Yamaraj? Nan estava preocupada que você nunca ia conseguir acertar aquele final.

Darcy piscou, confusa.

— Você nunca me disse isso.

— Bem, não é o meu trabalho assustar você, querida. Autores estreantes precisam ser tratados com cuidado.

— Mas se Nan estava preocupada, por que Paradox me deu tanto dinheiro?

Moxie deu de ombros.

— Porque eles sabiam que tinha potencial para ser um grande livro. E o comercial adorou aquele primeiro capítulo.

— E eles só gostaram do primeiro capítulo?

— Claro que não. Mas ele mostrava muito potencial, então a Paradox acreditou. E agora está dando retorno! O burburinho está ótimo, e só vai aumentar depois de hoje. — Moxie deu um tapinha no ombro de Darcy, mas então suspirou. — Claro, nós provavelmente não conseguiríamos tanto dinheiro hoje em dia. Era uma época diferente.

— Hum, só faz um ano.

— Só isso? Deus do céu. — Moxie se abanou e tomou um longo gole do seu martíni. — Eu sinto como se você tivesse estado conosco desde sempre, Darcy.

Darcy sorriu. Nos dias em que ela conseguia escrever bem era como se sentia, como se tivesse nascido em Nova York, ou como se de alguma forma tivesse surgido do asfalto iluminado pelo sol, uma escritora completamente formado. Mas na maioria das vezes, ela ainda sentia como uma criança.

— Ei, garota. — A voz familiar atravessou Darcy com um tremor, e ela se virou.

Era Imogen, é claro. Estava vestida para sua sessão de autógrafos, com uma camisa branca engomada, os dedos cheios de anéis brilhantes. Uma jaqueta preta estava pendurada sobre um braço, por causa do calor da caminhada até ali, e uma cerveja transpirava na outra mão.

Sempre havia uma parte do cérebro de Darcy que esperava esbarrar com Imogen — nas ruas de Chinatown, no metrô, em algum restaurante que as duas amavam. Por isso, ao longo daqueles últimos dois meses e meio, ela havia criado uma centena de versões inteligentes sobre o que dizer em seguida.

Mas o que disse foi:

— Oi.

A saudação pareceu agradar Imogen.

— Boa tarde de autógrafos?

— Foi ótima. E a sua?

— Bem decente.

— Decente? Carla e Sagan disseram que sua fila estava enorme. — Darcy riu, porque dava para ver pela expressão envergonhada de Imogen que era verdade.

— Estranho, hein? Uma foto aleatória e tudo muda.

— Não teria mudado nada se o seu livro não fosse ótimo — disse Darcy, então se encolheu com o tremor sincero em sua voz. Ela tomou um gole, acertou a postura. — Obrigada por deixar meus amigos entrarem. Eu nem sabia que podia fazer isso.

O sorriso de Imogen voltou.

— Superpoderes de escritor, pequenos mas potentes.

Nenhuma das duas disse nada por um momento, mas a conversa da multidão não se apressou para preencher o silêncio. Uma barreira invisível parecia pairar ali, protegendo as duas de qualquer interrupção. Moxie tinha simplesmente desaparecido.

— Adorei o seu final — disse Imogen finalmente.

Um suspiro escapou de Darcy, como se estivesse prendendo a respiração por mil anos.

— Sério?

— Sério. Você acertou no dark.

— Eu estava me sentindo dark naquela semana. Meio realista e cética.

Uma risada escapou de Imogen.

— E corajosa, também, com Kiralee Taylor te dizendo para escrever um final feliz. Estou orgulhosa de você.

Os olhos de Darcy se abriram e fecharam, um piscar deliberado para confirmar se aquele era o mundo real — e era. Na verdade, aquela bolha de conversa com Imogen era o único mundo. Nenhum dos elogios de Moxie sobre o primeiro rascunho de Patel Numero 2 importava, nem as palavras carinhosas que tinha ouvido na sessão de autógrafos. Nada chegava perto daquilo.

— Fico feliz que você tenha gostado.

— Foi adequadamente brutal.

Darcy riu. Kiralee tinha mesmo usado essas palavras no seu elogio, e não tinha deixado o Marketing editar.

— Falando em brutal, acabei de terminar o primeiro rascunho de Patel Número 2. Fiz tudo em um mês!

— Que ótimo, Darcy. — Seus copos se encontraram com um som agudo. — Eu fiquei preocupada que você não estivesse escrevendo. Você não foi projetada para não escrever.

— É, eu meio que sou péssima em não escrever. Não vou cometer esse erro novamente.

Elas se olharam nos olhos, e mais uma vez Darcy mal percebia que havia outras pessoas na sala.

— Então Patel Número 2 ainda não tem um título? — disse Imogen por fim. — Não estou te devendo um desses?

— Eu roubei sua cena. Acho que estamos quites.

Imogen ainda sorria, mas desviou o olhar.

— Desculpa por eu ter precisado ir embora.

— Mas você precisava. — Darcy queria continuar, explicar que entendia tudo agora, mesmo tendo odiado cada minuto que passaram separadas. Que ela poderia necessitar de Imogen com cada fibra do seu ser e ainda lhe dar espaço para seus segredos, ou espaço para se afastar. Mas seria um exagero, e desejar demais tinha sido o problema de Darcy desde o início.

Então ela perguntou:

— Como o Fobomante está indo?

Imogen deu um pequeno suspiro de alívio.

— Muito bem. Quase pronto.

— Me diga que ainda começa no porta-malas.

— É claro. Meu agente ama essa parte agora! Ele diz que finalmente tem medo de verdade nela.

Darcy se sentiu tremer.

— Eu sabia que você ia conseguir, mais cedo ou mais tarde.

— Foi fácil uma vez que descobri o que eu temia.

— Você não tem medo de nada, Gen.

Imogen não respondeu de início, e Darcy se sentiu sincera demais novamente, como alguém desajeitadamente passando por seu primeiro relacionamento. Aquele não era o momento para ser jovem e tolo.

Mas, em seguida, Imogen deu um passo à frente, sua voz quase sumindo na agitação da festa.

— Acabou que fiquei com medo de que você não me esperaria. De que desistiria de mim.

— Nunca — retrucou Darcy imediatamente. — Eu confio em você, Gen.

— Não era a minha intenção que isso fosse algum tipo de teste. Eu só queria acertar meu livro antes de lidar com o nosso relacionamento. Mas foi egoísta ficar longe por tanto tempo.

Darcy só tinha ouvido uma única palavra.

— Você disse “foi”.

— O quê?

— Você usou o verbo no passado, Imogen. Foi egoísta ficar longe. Isso quer dizer que não vai mais?

Imogen assentiu, pegou sua mão.

— Ah — soltou Darcy, seu coração de novo inteiro no peito.

Havia tanta coisa a se resolver — a situação do apartamento, a confusão do seu primeiro esboço, seu desastre de orçamento, a ausência de uma carreira universitária. E havia, como Nisha tinha apontado em uma mensagem naquela manhã, a pequena questão de manter sua sanidade durante os 117 dias até Além-mundos sair. E a possibilidade de que as pessoas tivessem coisas melhores em que gastar seu dinheiro do que em um romance de estreia de uma adolescente desconhecida.

Também era possível que ela e Imogen não tivessem mudado tanto assim nos últimos dois meses e meio. Na vida real, as transformações eram lentas, relutantes e graduais.

Imogen ainda precisava dos seus segredos. Darcy ainda precisava de tudo.

— Estou ficando sem dinheiro — contou ela.

— Subitamente estou em demanda — retrucou Imogen.

— Vou ficar sem apartamento em dois meses.

— Nós podemos escrever juntas em qualquer lugar.

— Talvez eu vá para a faculdade. Em algum lugar barato.

— Isso pode ser uma boa ideia. Eu vou te visitar.

Darcy assentiu. Talvez o truque fosse não entrar em pânico. Na vida, como no desconcertante negócio de escrever histórias e as despachar para o mundo, era preciso se concentrar na página na sua frente.

— Me desculpe por ter pisado na bola — disse ela.

— A bola quica.

— Você não acredita mais que finais felizes são idiotas?

— Sua pergunta é irrelevante — disse Imogen. — Isto não é o fim.


CAPÍTULO 42

Uma semana depois me vi em um hospital novamente. Não em uma tenda num campo nevado, mas na clara e luminosa ala de quimioterapia em Los Angeles.

Minha mãe não estava fazendo quimio — pelo menos não por enquanto, de qualquer maneira. Ela estava com uma bolsa de sangue que a enchia de glóbulos vermelhos extras. Ela precisava fazer isso uma vez por semana, até que seus exames parecessem melhores, apenas o início de um longo processo com muitos mais tratamentos e testes e máquinas.

Depois que o enfermeiro arrumou tudo, ele nos deixou sozinhas e ficamos em silêncio por um tempo. Eu estava tentando principalmente não olhar para onde o tubo entrava no braço da minha mãe. Os médicos haviam colocado um pedaço de plástico nela, uma coisa chamada acesso, que permitia que introduzissem os tubos sem precisar fazer um novo furo. Eu não me importava com agulhas, mas pensar que mãe precisava de uma válvula permanente na pele me dava arrepios.

Ela alegou que gostava, porque isso a fazia se sentir um ciborgue.

— Dói? — perguntei.

— Na verdade, não. O mais irritante é que não posso comer carne vermelha por um tempo.

— Que estranho.

— Com tantas hemácias sendo bombeadas, tenho que tomar cuidado para não ter uma “sobrecarga de ferro”. — Minha mãe riu. — Parece heavy metal.

— O que é tão você — falei, fazendo uma pesquisa rápida sobre receitas vegetarianas no celular. — Certo. Que tal uma fritada de couve-flor hoje à noite?

— Sério? Não precisa ser vegetariano. Só não carne vermelha.

Procurei um pouco mais.

— Talvez um guisado de couve?

— Você está tentando me matar? Couve tem mais ferro do que carne! Salsa também é mortal.

— Uau. “Salsa também é mortal.” Aposto que ninguém nunca disse isso antes. — Para testar a minha teoria, digitei a frase no telefone. O primeiro resultado era algo chamado “Massacre da Salsa”, em que vinte mil pessoas haviam sido mortas. Tudo tinha a ver com a morte, se você olhasse bem de perto.

Guardei o celular.

Outro paciente foi trazido para a ala da quimioterapia. Ele era bem mais velho do que a minha mãe, e se moveu lentamente com uma jovem enfermeira segurando seu braço. Seu cabelo era fino e a pele se esticava nos ossos do rosto.

Andando atrás dele estava uma garotinha. Seu vestido florido parecia antigo, e não havia sombras nas dobras do tecido. Ela parecia não notar a mim e ao meu brilho de psicopompo. Ficou com a cabeça baixa, sorrindo um pouco, como uma criança tentando não rir em uma cerimônia séria.

Minha mãe e eu observamos em silêncio enquanto a enfermeira arrumava o senhor. Quando ela terminou, ele colocou fones de ouvido e se deitou com os olhos fechados. Suas mãos se moviam de acordo com a música em seus ouvidos. A menina fantasma assistia, batendo os pés como se pudesse ouvir a música também.

Respirei fundo para me firmar.

— Eu adiei a faculdade por um ano.

Minha mãe olhou para mim, os músculos do braço tensos de repente. Por um momento, pensei que o acesso fosse escapar da pele.

— Você não pode fazer isso, Lizzie.

— Está feito. — Minha voz continuou firme. — Já fiz a ligação.

— Pois ligue de novo! Diga que mudou de ideia.

— Isso seria mentira. E não posso voltar atrás agora, de qualquer maneira. Eles já deram meu lugar para outra pessoa.

Minha mãe gemeu.

— Lizzie, você não precisa fazer isso. Eu posso ficar aqui deitada com um tubo no braço sem a sua ajuda.

— Você não me quer aqui?

— Eu quero você na faculdade!

— Por enquanto — falei, preparando minha lista mental de argumentos. Eu estava me preparando para aquela conversa desde que a primeira carta de inscrição da faculdade tinha chegado. — Mas quando você começar a quimioterapia, vai precisar de alguém para te trazer até aqui. E para ajudar a lembrar quais comprimidos tomar.

Ela revirou os olhos.

— Eu não estou senil. Só estou doente.

— Mas alguns dos remédios afetam sua memória de curto prazo. E você não vai ter vontade de cozinhar na maioria dos dias. E como o adiamento é por razões médicas, o meu lugar está cem por cento garantido. Não se esqueça, você não vai ganhar muito dinheiro por um tempo, minha inscrição no programa de bolsas vai ficar incrível ano que vem. Só tem pontos positivos.

Ela me observou por um longo momento. Do outro lado da ala, o outro paciente cantarolava junto com a música. A fantasma estava sentada, imóvel, as mãos pousadas no colo.

— Você pensou demais sobre isso — disse a mamãe.

— E com isso você quer dizer que a minha lógica é irrefutável?

— Com isso quero dizer que você poderia ter me incluído mais cedo nas suas reflexões.

— Você teria me dito para não pensar.

Minha mãe suspirou em derrota, olhando para o nada.

— OK, Lizzie. Mas só um ano. Você não pode desistir da sua vida por mim.

Eu segurei a mão dela.

— Mamãe... Isto é vida. Bem aqui, nesta sala, com você, é a vida.

Minha mãe avaliou a sala — as luzes piscando na máquina de transfusão, as lâmpadas fluorescentes no teto azulejado, o tubo no braço — e me deu um olhar divertido.

— Ótimo. Então a vida é uma bosta.

Eu não discuti. A vida é mesmo uma bosta. Era uma bosta completa, porque é aleatória e aterrorizante e tão frágil. A vida era cheia de cultos de morte e psicopatas, timing péssimo e pessoas más. A vida tinha problemas, basicamente porque quatro babacas com armas podiam matar um aeroporto cheio de gente, ou algum erro microscópico na medula da sua mãe poderia tirá-la de você cedo demais. Porque você poderia cometer um erro em meio a uma ira justificada, e assim perder a pessoa que você mais amou.

Mas tudo que havia de ruim na vida também provava que ela era inestimável, porque, caso contrário, nada disso doeria tanto.

— Eu quero estar aqui com você — falei.

Minha mãe sorriu.

— Você é tão doce. Mas tem certeza de que não se trata de ficar perto do seu namorado?

Minha reação deve ter ficado óbvia.

— Ah. Não é mais namorado?

— Não sei. Não o vejo faz um tempo.

Indo para o estacionamento do hospital, passamos pela área de espera da emergência. Minha mãe teve que parar e fazer xixi, então fiquei sozinha por um momento em um corredor lotado e movimentado. Eu me apoiei na parede, os olhos no chão, na esperança de não ver mais nenhum fantasma.

Mas algo deve ter me feito olhar para cima.

Um paramédico passou empurrando uma cadeira de rodas dobrável vazia. Ele era jovem e bonito, com a cabeça raspada, um rosto sardento e uma sombra de bigode. Um rádio estava pendurado no ombro, e seu uniforme estava amarrotado, como se tivesse trabalhado um longo turno.

Ele olhou para mim quando passou, nossos olhos se encontraram por um momento, e ele diminuiu o passo. Sua pele brilhava, luminosa mesmo sob as lâmpadas fluorescentes do corredor do hospital.

Um sorriso se abriu no seu rosto cansado. Ele tinha visto meu brilho também.

— Precisa de alguma ajuda? — perguntou ele.

Levei um segundo para perceber que ele queria dizer.

— Não, estou bem. Só estou aqui com a minha mãe. — Eu olhei para a porta do banheiro.

— Beleza. É só que você parece ter pegado um caso complicado. — Ele deu uma olhada rápida para os dois lados do corredor e baixou a voz. — Por aqui, você acaba dando de cara com umas aparições bem bizarras. Uns idiotas bem indignos de manobras de ressuscitação.

— É, imagino que sim. — Um arrepio passou por mim. — Mas está tudo bem. Só foram uns dias difíceis.

— Não são todos? — comentou o paramédico, segurando a cadeira de rodas de novo. — Espero que a sua mãe esteja bem. Me avise se tiver alguma roda precisando ser lubrificada por aqui. Eu tenho contatos.

— Sério? — Finalmente consegui sorrir. — Obrigada.

Ele deu uma piscadela.

— Nós, brilhantes, temos que ficar unidos.

Com um sorriso, ele se virou e empurrou a cadeira de rodas em direção à vaga da ambulância, e me ocorreu que a maioria dos dias dele provavelmente eram mais difíceis que a maioria de meus, tanto quando os pacientes viviam ou morriam.

E percebi que finalmente tinha encontrado uma palavra melhor do que “psicopompo”.

* * *

Na viagem de volta para San Diego no meu carro novo, mamãe falou sobre todas as coisas que ia fazer quando parasse de trabalhar. Ela queria pintar a garagem e reformar a cozinha, fazer um jardim de ervas no quintal. Eu não perguntei onde ela iria arrumar o dinheiro, muito menos a energia, para fazer essas coisas. Não apontei que ela não era uma ciborgue de verdade. Não queria estragar o clima.

Nós cozinhamos juntas naquela noite, com Mindy assistindo, uma familiazinha estranha, mas feliz. Todos os futuros que eu tinha imaginado para mim mesma poderiam estar deixando de existir, mas de alguma forma isso fazia o presente mais precioso, mais real.

A viagem devia ter sido desgastante para a minha mãe, ou talvez a transfusão a tivesse deixado mal, porque ela foi para a cama cedo. Da porta de seu quarto ela chamou:

— Você pensou mesmo em como a doença aumentaria sua chance de ganhar uma bolsa ano que vem? Gostei de ver, garota.

Depois que limpei a cozinha, Mindy ainda estava pulando, então saímos para uma caminhada. Decidi passar pela escola fantasma, só como um experimento.

Ela estava menos nítida desde que a última vez que eu a tinha visto. A linha do telhado de terracota estava indistinta contra o céu cinzento. Talvez alguém que frequentara aquela escola tivesse morrido na semana anterior, deixando menos uma lembrança viva para mantê-la.

— Você se lembra deste lugar? — perguntei.

— Claro, boba. Nós entramos lá uma vez. — Mindy pegou minha mão e apertou. — Foi muito assustador.

— É, sem brincadeira. O que aquela voz disse mesmo?

— Estou te ouvindo aí em cimaaaa — cantarolou ela baixinho, e caiu na gargalhada.

Foi estranho. Mindy sabia exatamente o que tinha acontecido ali, mas soava como alguém contando a história de um filme de terror, não uma menina falando sobre o homem que a raptou. Ainda parecia que parte dela estava faltando.

Eu mesma tremi um pouco, relembrando o som da unha do velho arranhando o assoalho do meu quarto.

O Sr. Hamlyn não me incomodava desde a nossa visita ao seu inferno particular. Talvez estivesse mantendo sua promessa de esperar que eu o chamasse. E talvez um dia eu precisasse novamente dos seus conhecimentos. Por enquanto, porém, as cicatrizes que as suas teias haviam deixado nos meus braços e pernas eram o suficiente para me fazer lembrar de quem e o que ele era.

— Como estava a Anna hoje? — Mindy perguntou enquanto seguíamos para casa. — Ela estava mal-humorada por causa da transfusão?

Olhei para Mindy. Ela podia não se lembrar do seu passado horrível, mas mantinha um controle cuidadoso da doença da minha mãe agora.

— Ela ficou mal-humorada, mas não por causa do tratamento. Eu contei que ia adiar a faculdade.

— Você está em apuros — cantou Mindy, e me abraçou. — Mas fico feliz que você vai ficar por aqui.

— Eu também. Contanto que a mamãe não ligue para a secretaria e descubra que eu estava totalmente blefando. Eu tenho sessenta dias para mudar de ideia.

— Você sempre foi mentirosa — disse Mindy. — Como naquela vez que você convenceu a Jamie que havia duas luas no céu, mas uma era invisível.

— Hum. Isso foi, tipo... há oito anos.

— Sim, mas você sabia que Jamie só fingiu acreditar em você? Eu ouvi ela contar isso para Anna no dia seguinte. As duas ficaram rindo de você!

Congelei, um pouco ofendida por essa humilhação passada, mas mais surpresa por Mindy se lembrar disso. Ela nunca tinha dito nada parecido durante todo o tempo que teve medo do homem mau.

Talvez a parte dela que tinha sido esvaziado pela morte dele estava lentamente se enchendo de novo, mas com menos coisas horríveis.

Quando chegamos em casa, Mindy queria explorar. Ela estava oficialmente entediada com nosso bairro, e tinha começado a espionar as pessoas da próxima quadra. Ela queria ampliar seu mundo, então deixei que fosse sozinha.

Fiquei acordada no meu quarto, esperando no outro lado, desejando ouvir uma voz nas correntes do rio. Yama com certeza já tinha voltado ao submundo a essa altura. Ele tinha uma cidade para proteger, afinal.

Olhei para as minhas mãos, me perguntando se algum dia eu seria capaz de sentir o cheiro do sangue nelas. Talvez, conforme meus poderes de brilhante crescessem, o assassinato que eu tinha cometido aos poucos se tornaria visível, como uma mancha negra de tinta de lula nas minhas mãos.

Será que Yama ainda pensava em mim? Será que ele desejava deixar sua cidade cinzenta desprotegida e me levar a algum lugar varrido pelo vento, silencioso e sozinho?

Sua ausência era um novo lugar frio dentro de mim, uma fome na minha pele, uma rachadura no meu coração. Sem seus lábios para me acalmar, eu não dormia muito mais, e meu mundo parecia menor do que nunca. As paredes do meu quarto tinham se encolhido ao meu redor.

Assim, quando, logo após a meia-noite, uma voz me chamou pelo ar enferrujado do outro lado, no começo não acreditei ser real. Mas então ela veio novamente.

— Lizzie, eu preciso de você.

Era Yamaraj.

A essa altura eu conhecia os humores do rio suficientemente bem para saber que ele não estava me levando para o submundo. A viagem foi rápida demais, a corrente muito calma e estável. Então, ele não estava me convidando para o palácio cinzento. Eu conseguia lidar com aquilo. Qualquer lugar estava bom para mim.

Quando desci, não havia outra montanha árida. Era um lugar onde eu tinha estado antes, definitivamente um lugar com o qual eu estava ligada.

O aeroporto de Dallas.

Yama esperava por mim debaixo de uma parede de televisões em branco. Estávamos pouco depois do portão de metal que tinha impedido as pessoas de escaparem naquela noite. Ali era duas horas mais tarde do que em San Diego, bem depois da meia-noite, de modo que o portão estava abaixado, exatamente como eu me lembrava.

Meu coração batia forte no meu peito, e cores pulsavam nos cantos da minha visão. Mas eu me mantive sob controle.

— Por que aqui? — perguntei.

— Eu sinto muito, Lizzie. Isso deve ser difícil. — Sua voz estava rouca, como se tivesse discutido com alguém durante toda a noite. — Mas você é necessária aqui.

Eu encarei o portão, no lugar onde tantos tinham morrido. Parecia quase o mesmo igual a antes do ataque. Algumas dezenas de pessoas esperavam, entediadas e inquietas, que seus voos fossem chamados.

Havia apenas uma novidade. Logo depois dos portões de segurança havia um bloco de pedra cinza dentro um cubo de vidro de cerca de três metros de comprimento. Ele estava bloqueado com andaimes, ainda em construção.

Um memorial pelo ataque, lembrei. Quando o projeto havia sido publicado, um repórter ligou para a minha mãe para ver se eu queria fazer um comentário, e ela disse que não.

— Você tem certeza de que sou necessária aqui? Parece que tudo isso seguiu sem mim.

— Nem tudo — disse Yama.

Eu olhei para ele. Parecia mais velho, como se o curto período de tempo que tinha passado no mundo superior para deixar seu corpo se curar tivesse sido muito mais longo. Havia uma cicatriz no seu rosto, nova e rosada, e sua pele estava um pouco pálida. Mas ele ainda era bonito. Minha pele clamava por ele, minha cabeça atordoada por sua presença. Tsunamis de óleo negro não me perturbavam mais, mas Yama sim.

— Tem alguém que preciso que você conheça — disse ele. — Mas só se você quiser. Podemos fazer isso mais tarde.

— Pode ser agora. — Estar ali com ele, no cenário de todos os meus pesadelos, era melhor do que estar em qualquer outro lugar sozinha.

Ele estendeu a mão, e estendi a mão para ele. Seu calor, o fogo em sua pele, me atingiu como uma onda. Os lugares frios dentro de mim se aqueceram por um momento.

Eu tinha que dizer alguma coisa para não soluçar.

— Você não tem medo que o Sr. Hamlyn vá visitar enquanto você estiver fora?

Yama balançou a cabeça.

— Ele não tem bisbilhotado faz um tempo. Está jogando com calma, me fazendo esperar, pensando que vou ficar preguiçoso novamente. E isso só vai levar alguns minutos.

— Ah. — Só alguns minutos.

Eu me concentrei na sensação da sua mão na minha, na maneira como sua camisa de seda se movia na pele.

Quando passamos pelo portão onde quase morri, um fio de lembranças assustadoras me fez congelar. Mas a grade de metal era tão frágil quanto fumaça em raios de sol. Eu conseguiria andar através das montanhas agora, se quisesse.

Chegamos à área de segurança, o lugar onde tudo começou. Àquela hora, os detectores de metais e máquinas de raios X estavam em sua maioria desligados. Alguns agentes entediados esperavam, e dois Guardas Nacionais com coletes à prova de bala observavam, de costas na parede. O derramamento de sangue no Colorado ainda era recente, e Jamie me dissera que a segurança tinha sido aumentada em todos os lugares. Talvez um pouco mais por ali.

Eu não olhei para o memorial. Ele era para as outras 87 pessoas que estavam aqui naquela noite, não para mim.

— Ainda não entendi. Por que você precisa de mim?

Yama respondeu com os olhos, olhando para um menino da minha idade esperando em uma das grandes cadeiras de plástico. Eu mal tinha notado sua presença lá no canto. Ele estava murmurando para si mesmo, seu boné escondendo o rosto, quase encolhido na sua camisa de futebol.

Sua pele era cinza e sem sombras. Mas ele parecia tão nítido, suas feições mais claras do que as de qualquer fantasma que eu já tinha visto. Então percebi que milhões de pessoas ainda se lembravam de quem ele era, do que tinha feito.

Eu tinha tentado esquecer todos os detalhes daquela noite, mas até eu sabia seu nome.

— Travis Brinkman — falei.

Ele ergueu os olhos, um pouco alarmado, um pouco rebelde, como uma criança pega fazendo algo suspeito. — Eu te conheço?

Balancei a cabeça.

— Nós nunca nos conhecemos. Mas eu estava aqui naquela noite.

— Você estava? — Ele pensou por um longo momento, depois deu de ombros. — Não me lembro de você. Acho que foi uma noite ruim para fazer amigos.

— Foi ruim para tudo. — Olhei para Yama, perguntando como eu poderia ajudar. Ele me deu um sorriso suave, encorajador.

— Não sei o que mais eu poderia ter feito — disse Travis. — Ninguém estava fazendo nada. Só deixando aqueles caras atirarem.

— É. Não parecia real no início. — Era estranho, falar com alguém que tinha realmente estado lá. Era algo que pensei que nunca iria acontecer. — Ninguém estava se mexendo porque não fazia sentido nenhum. E todo mundo estar paralisado só tornou tudo ainda mais irreal.

Ele cerrou os punhos.

— Não é? Mas quando os caras ficaram sem munição, pensei que todo mundo faria alguma coisa. Então eu fiz.

Sentei ao lado de Travis. Eu havia repassado tudo que tinha acontecido naquela noite tantas vezes na minha cabeça, me imaginando pedindo ajuda mais cedo, ou guiando a multidão em uma direção mais segura, ou simplesmente perdendo meu avião de Nova York e não estando ali.

Como deve ter sido para Travis, que tinha realmente feito alguma coisa? Que tinha chegado tão perto de pará-los?

— Pena que foi só você — falei.

— Ninguém mais ajudou. — Ele estava falando sozinho de novo, as mãos tremendo um pouco com cada palavra. — Mas se eu tivesse conseguido pegar uma daquelas armas...

— Pelo menos você tentou.

— Não faz diferença nenhuma. Eles me pegaram. Eles pegaram todo mundo.

Eu olhei para ele. Provavelmente fantasmas não liam jornal. Talvez ele não tivesse ouvido toda aquela história sobre o símbolo da esperança.

— Travis. Eles não me pegaram.

Ele olhou para cima, o rosto sincero, as mãos paradas pela primeira vez.

— Você está brincando?

Eu apontei para o portão de metal.

— Eu estava lá quando tudo começou, falando no telefone com a minha mãe. E enquanto todo mundo estava sendo baleado, liguei para a emergência.

Você consegue ir para um local seguro? As palavras vibraram como estática no ar ao meu redor, me fazendo prender a respiração. Cores reluziram no mundo. Mas eu tinha que ficar ali. Eu tinha que continuar contando a minha história para Travis.

— A atendente me disse para fingir de morta, e bem naquela hora uma bala passou do lado da minha cabeça. Então eu caí.

— Você se fingiu de morta? — Ele olhou para as mãos. — Droga. Queria ter pensado nisso.

— Não foi minha ideia. A moça no telefone que me disse o que fazer. — Olhei para ele, pensando no quão perto fiquei de ser baleada. — Meu cérebro mal estava compreendendo aquilo tudo, e ela me disse o que fazer na hora certa. Se não fosse por você, eu não teria tido aqueles segundos.

Travis me deu um olhar duro, incrédulo, então apontou o polegar para Yama.

— Aquele cara te mandou dizer tudo isso?

— Não. Eu estava aqui naquela noite, de verdade.

Travis não parecia convencido.

— Ele vinha sempre aqui e discutia comigo. Me dizia que eu era um herói.

— Você é.

Ele revirou os olhos.

— Até ele se cansou de dizer isso. Não tenho visto ele faz um tempo.

— Não importa do que você queira se chamar — falei. — O cara estava apontando direto para mim quando finalmente percebi o que eu tinha que fazer. Tudo se resumiu àqueles últimos segundos...

Ele olhou para mim, e vi o quão profunda era a sua descrença. Ele estava sentado ali havia meses, com aquela teimosia típica dos fantasmas, pensando que ele tinha falhado de alguma forma. Aquela era a história que os jornais haviam contado, que ele era um herói que morrera bravamente, mas fracassara, e era assim que os vivos se lembravam dele.

Ninguém nunca tinha percebido que eu precisara de Travis Brinkman para sobreviver.

Nem mesmo eu.

— Obrigada — falei. — Por tudo o que tenho agora.

— Você tem certeza de que ajudei? — ele perguntou baixinho, e vi nos seus olhos uma pontada brilhante de esperança que permaneceu lá. A mesma que o tinha feito sair correndo desarmado contra os rifles.

— Tenho certeza. Talvez você só tenha atrasado os caras por alguns segundos, mas se não tivesse feito isso, eu estaria morta.

— Pô, eu tinha de fazer alguma coisa. — Travis olhou para Yama. — Ele é um cara legal?

Eu assenti.

— E o lugar pra onde ele quer me levar?

— É meio estranho, mas bonito. E muito melhor do que este aeroporto.

— É. Eu odeio aeroportos.

— Eu também — concordei. — São uma bosta.

— É. — Ele deu um tapa nos joelhos, levantou e olhou em volta. — Acho que estou meio que pronto para sair daqui.

— OK, que bom. Mas, Travis, você se importa se eu falar com meu amigo primeiro?

* * *

Por um longo momento Yama e eu ficamos em silêncio. Foi muito difícil falar, e ele provavelmente estava preocupado com sua irmã, sua cidade.

Mas finalmente ele disse:

— Obrigado por fazer isso, Lizzie.

— Eu devia isso a Travis. Você deve saber disso. — Eu olhei para ele. — Por que você não me trouxe aqui antes?

— Você não estava pronta.

— Talvez não. — Suspirei, olhando em volta do aeroporto. — Mas como isso é diferente de tudo que sempre acontece comigo?

— Eu não queria magoar você, Lizzie.

Olhei para ele, sem saber o que dizer, se pedir desculpas ou perdão. Eu só não queria que ele fosse embora ainda.

— Como está o agente Reyes?

Yama me deu um sorriso triste.

— Basicamente no comando da vigia da cidade. Ele não desapareceu nem um pouco. Ele deve ser bem lembrado entre os vivos.

Engoli em seco.

— Por favor, agradeça a ele por mim, por tudo. E a sua irmã, também, acho.

Yama assentiu, sério, e percebi que ele sabia pelo que eu estava agradecendo — por encobrir o assassinato que eu tinha cometido.

Minha visão começou a pulsar com a cor.

— Sinto muito, meu amor.

— Eu também. — Ele tocou a cicatriz em forma de lágrima sob o meu olho.

— É para sempre, o que você sente por mim?

— Só a morte é para sempre, e até mesmo ela muda ao longo do tempo.

Olhei para ele, me perguntando o que aquilo significava. Que o cheiro do meu assassinato iria desaparecer? Que havia algo que eu poderia fazer para apagar o que tinha acontecido?

Mas Yama não ia facilitar para mim. Ele não me deu nenhuma resposta direta, só me beijou uma vez, acendendo um fogo em meus lábios.

— Eu vou vê-la novamente — falou, e por um momento aquilo foi o suficiente.

A caminho de casa, percebi uma coisa: eu não conseguiria enfrentar o meu quarto de novo. Estava vazio demais, pequeno demais. Eu tinha passado a semana anterior encolhida lá esperando o chamado de Yama, evitando todo mundo exceto minha mãe e Mindy. Mas era hora de mudar. Não apenas de cenário, mas tudo.

Então me entreguei ao rio, deixando que ele ouvisse meu subconsciente e me levasse onde quisesse. Por um momento, a corrente girou, lenta e sem direção, mas então algo se firmou dentro de mim, e poucos minutos depois eu tinha alcançado meu destino. Era um lugar em que o rio nunca tinha me trazido antes, mas um lugar com que eu tinha uma conexão havia muito tempo.

O quarto de Jamie estava em seu estado habitual de desordem, a lição de casa de física empilhada no chão, suas roupas penduradas nas cadeiras, folhetos brilhantes de meia dúzia de faculdades espalhados por toda a cama.

Ela estava sentada em frente ao computador, com um pijama e um roupão. Vi que ela estava recortando uma fotografia de si mesma, e rapidamente me afastei. Eu tinha jurado nunca usar meus poderes para espionar os meus amigos. Atravessei a porta do quarto, passei para o mundo real, e bati.

— O que é, papai?

Eu abri a porta.

— Ei.

— Ah, oi. — Jamie piscou, confusa. — Meu pai te deixou entrar?

Por reflexo, eu quase menti. Mas fazia uma ideia de por que o rio tinha me levado ali, por que minha própria mente queria isso, e tinha a ver com ser honesto.

— Não, eu entrei sozinha.

Jamie riu.

— A esta hora? Sua esquisita. O que está rolando?

— Nada dema... — Eu me interrompi de novo e respirei fundo. — Muita coisa, na verdade.

Ela girou a cadeira e abriu um espaço na cama para mim. Os rostos sorridentes de calouros animados flutuaram para o chão como folhas no outono.

Me larguei na cama, sentindo uma fraqueza nos joelhos. Talvez eu não tivesse o direito de dizer tudo aquilo em voz alta, sobrecarregar alguém com o que eu sabia. Mas eu não conseguiria continuar sozinha.

— Eu deveria ter te ligado — disse Jamie.

Eu ergui os olhos.

— O quê?

— Você estava tão chateada a semana inteira. Mas eu não queria pressioná-la. Não sabia o que fazer. Desculpe.

— Ah. — Balancei a cabeça. — Não se preocupe com isso. Você tem sido ótima. Com tudo, juro. É que as coisas pioraram esta semana.

— Sua mãe? Ou o seu agente secreto?

Senti uma pontada de dor.

— Não é secreto, é especial. Sim, é em parte sobre ele. Mas não é só isso.

— Então vocês terminaram?

— Nós nunca fomos... — Eu respirei fundo. — A parada é: eu terminei com o meu... namorado, mas o agente especial era outra pessoa.

Seus olhos se arregalaram.

— Cara. Tinha dois deles? Não é à toa que você está tão estressada!

— Não! — Eu levantei as mãos, desejando ter pensado nessa história antes de começar a contá-la. Esse era o problema de deixar seu subconsciente tomar decisões por você. Mas já era tarde demais para voltar atrás agora.

— Leve o tempo que quiser — disse Jamie. — Vai ficar tudo bem.

Eu tentei sorrir. Tudo estava tão confuso entre Jamie e eu que eu não sabia por onde começar. Só sabia onde eu queria chegar.

— Posso te mostrar uma coisa? — perguntei em voz baixa. — É meio estranho.

Ela assentiu solenemente.

Fechei os olhos, murmurando as palavras que nunca pensei que fosse proferir diante de uma pessoa viva normal.

— A equipe de segurança está a caminho.

Jamie soltou um pequeno ruído, prendendo a respiração, confusa.

Eu ignorei.

— Você consegue ir para um local seguro?

— Lizzie? — Ela parecia assustada agora.

— Espere. — Respirei fundo e então... —Bem, querida, talvez você deva se fingir...

Eu senti a transformação acontecer, a passagem suave e certa para o outro lado. O cheiro de ferrugem e sangue, o som sem definição. A estranha sensação de que eu pertencia a este lugar agora tanto quanto ao mundo real.

E Jamie sussurrando em descrença:

— Mas que porra é essa?

Respirei fundo, deixando meu coração bater depressa com todas as minhas dúvidas e incertezas sobre fazer aquilo. Abri os olhos e a cor sangrou de volta ao mundo, a desordem do quarto de Jamie de repente colorida e acolhedora de novo.

Ela estava me olhando apavorada.

— Desculpa — falei. — Mas eu não sabia de que outra forma começar.

— Que merda foi essa? O que você acabou... — Jamie estremeceu na cadeira, mas, em seguida, acalmou-se. Seus lábios se fecharam com firmeza, e ela fez um som gutural, como um pigarro decidido. — OK, Lizzie. Você já se divertiu. Agora vai me contar essa porra direito.

Quando abri a boca para falar, algo na sua expressão me deixou incrivelmente feliz. Ela não parecia assustada, espantada, ou mesmo confusa por eu ter acabado de ficar invisível diante de seus olhos.

Na verdade, ela parecia completamente irritada comigo.

Que perfeito.

— Se chama o outro lado — comecei. — É onde os mortos caminham, e eu vou te contar como isso funciona, e sobre o submundo, e os brilhantes, e os fantasmas. A partir de agora, Jamie, eu vou te contar tudo.

 

 

                                                                  Scott Westerfeld

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades