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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALERTA FINAL - P.2 / Lee Child
ALERTA FINAL - P.2 / Lee Child

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ALERTA FINAL

Segunda Parte

 

CHESTER STONE ESTAVA SOZINHO NO BANHEIRO do octogésimo oitavo andar. Tony o forçara a entrar lá. Não fisicamente. Ele apenas ficou parado e apontou em silêncio e Stone correu pelo carpete, vestindo a camiseta de baixo, a cueca, as meias pretas e os sapatos brilhantes nos pés. Tony então baixou o braço e parou de apontar, mas ordenou que ele ficasse lá e fechasse a porta. Sons abafados vieram de fora, do escritório, e, após alguns minutos, os dois homens devem ter saído, pois Stone ouviu as portas se fechando e um ruído próximo do elevador se movimentando. Depois, tudo ficou escuro e em silêncio.

Ele sentou no chão do banheiro, as costas apoiadas na parede de granito, olhando para o silêncio. A porta do banheiro não estava trancada. Ele sabia disso. Não ouvira nenhum clique ou barulho na maçaneta quando a porta foi fechada. Sentia frio. O chão era de pedras duras, e o frio atravessa­va o algodão fino da cueca. Começou a tremer. Sentia fome e sede.

Ouviu atentamente. Nada. Moveu-se para se levantar do chão e foi até a pia. Abriu a torneira e voltou a escutar atentamente, por cima da água correndo. Nada. Inclinou a cabeça e a bebeu. Os dentes tocaram o metal da torneira, e ele sentiu o gosto clorado da água da rede pública. Encheu a boca, sem engolir, deixando a água encharcar sua língua seca. Engoliu e fechou a torneira.

Esperou por uma hora. Uma hora inteira sentado no chão, olhando para a porta destrancada e ouvindo o silêncio. Sentia dor no ponto em que o cara o acertara. Uma dor aguda, onde o punho golpeou suas costelas com tudo. Osso contra osso, sólidos, colidindo. Depois, uma sensação penetran­te de náusea vinda da barriga, onde o golpe o atingira. Manteve os olhos na porta, tentando abstrair da dor. O prédio emitia sons surdos e estrondos distantes, como se houvesse outras pessoas no mundo, mas que estavam muito distantes. Os elevadores, o ar-condicionado, a água correndo pelos canos e a brisa batendo de leve nas janelas somavam-se e se cancelavam num sussurro baixo e confortável, um pouco aquém de se tornarem discerníveis. Ele pensou ter ouvido as portas do elevador abrindo e fechando, 88 andares abaixo, talvez, batidas fracas e graves vibrando para cima, ao longo dos trilhos.

Sentia frio, câimbra, fome, dor e medo. Ficou de pé, curvado pela câimbra e pela dor, escutou. Nada. Deslizou as solas de couro pelo piso de pedra. Ficou parado, com a mão na maçaneta. Ouviu com atenção. Nada ainda. Abriu a porta. O enorme escritório estava às escuras e em silêncio. Vazio. Atravessou o carpete e parou junto à porta que dava para a recepção. Agora, estava mais próximo da fileira de elevadores. Podia ouvir os carros asso­biando para cima e para baixo pelos trilhos. Ouviu junto à porta. Nada. Abriu a porta. A recepção estava deserta, na penumbra. O carvalho tinha um brilho pálido, e o acabamento em cobre emitia alguns reflexos. Ouviu o barulho do motor da geladeira vindo da cozinha, à direita. Sentiu cheiro de café velho.

A porta para o corredor estava trancada. Uma porta grande e grossa, provavelmente à prova de fogo, conforme as rígidas leis municipais. Era revestida de carvalho claro, e dava para ver o brilho fosco do aço pela fresta onde ela encontrava a moldura. Mexeu na maçaneta, mas não conseguiu movê-la. Ficou diante da porta por um longo tempo, espiando o exterior pela janelinha de vidro, a nove metros dos botões do elevador e da liberda­de. Voltou-se para o balcão.

Ficava na altura do peito, visto de frente. Atrás, tinha uma bancada como mesa, e a barreira na altura do peito era composta de pequenos compartimentos contendo material de escritório e pastas empilhadas de forma organizada. Sobre a bancada, havia um telefone diante da cadeira de Tony. O telefone era um aparelho complicado, com um fone do lado esquerdo e botões à direita, sob uma pequena janela retangular. A janela era um visor LCD cinza em que se lia: OFF. Ele pegou o telefone e não ouviu nada além do sangue pulsando em seu ouvido. Apertou as teclas aleatoriamente. Nada. Percorreu todo o teclado, passando o dedo da esquerda para a direita sobre cada tecla, procurando. Encontrou identificada como OPERAR. Pressio­nou, e a pequena tela mudou para DIGITE CÓDIGO. Apertou números aleatórios, e a tela voltou para OFF.

Havia armários sob a mesa. Pequenas portas de carvalho. Todas tran­cadas. Sacudiu cada uma delas e ouviu as linguetas batendo nas placas de metal da tranca. Caminhou de volta ao escritório. Desviou dos móveis e foi até a mesa. Não havia nada nos sofás. Suas roupas tinham desaparecido. Nada sobre a mesa. As gavetas estavam trancadas. Era uma mesa sólida, cara, arruinada pelos sulcos do gancho, e as fechaduras das gavetas pare­ciam firmes. Ele se agachou, ridículo em sua cueca samba-canção, e puxou-as pelas alças. Moveram-se por uma fração e pararam. Avistou a lata de lixo sob a mesa. Um cilindro de metal, não era alta. Inclinou-a. Sua carteira estava lá, vazia e abandonada. A foto de Marilyn ao lado, virada para baixo. No verso do papel, havia impresso diversas vezes: KODAK. Esticou a mão para dentro da lata e pegou a foto. Virou-a. Ela sorriu para ele. Uma foto casual do ombro para cima. Estava com o vestido de seda. O sexy, que ela encomendara. Marylin não sabia que Chester sabia que ela mandara fazer.

Ele estava sozinho em casa quando a loja ligou. Disse-lhes para ligar mais tarde e deixou que ela acreditasse que ele acreditava que o comprara pron­to. Na foto, vestia-o pela primeira vez. Ela sorria timidamente, os olhos animados e desafiadores, dizendo-lhe para não descer muito com a lente, não até o ponto onde a seda fina prendera em seus seios. Ele pousou a foto na palma da mão e olhou para ela; depois, colocou de volta no lixo, porque não tinha bolsos.

Levantou-se com urgência, contornou a cadeira de couro e foi até a pa­rede de janelas. Afastou as lâminas da persiana com as duas mãos e olhou para fora. Tinha que fazer alguma coisa. Mas estava a 88 andares de distân­cia. Nada para ver, exceto o rio e Nova Jersey. Nenhum vizinho do outro lado para quem fazer gestos urgentes. Absolutamente nada do outro lado, até os Apalaches encontrarem a Pensilvânia. Ele deixou as cortinas caírem de volta, percorreu cada centímetro do escritório, cada centímetro da re­cepção e de volta para o escritório para fazer tudo de novo. Sem esperança. Estava numa prisão. Postou-se no centro da sala, trêmulo, com os olhos focalizando o vazio.

Sentia fome. Não tinha idéia da hora. O escritório não tinha relógio, ele não tinha relógio. O sol baixava no oeste. Fim de tarde, ou início de noite, e ele não tinha almoçado. Arrastou-se até a porta do escritório. Ouviu no­vamente. Nada, exceto o zumbido confortável do edifício e a vibração do motor da geladeira. Ele saiu e atravessou para a cozinha. Deixou o dedo pa­rado sobre o interruptor da luz até criar coragem para acendê-lo. Um tubo fluorescente foi acionado. Piscou por um segundo e lançou uma luminosi­dade uniforme pela sala, além do zumbido intenso que saía de seu circuito. A cozinha era pequena, com uma pia de aço inoxidável e um balcão do mesmo tamanho. Canecas lavadas de cabeça para baixo e uma máquina de café com um filtro cheio de café velho. Um refrigerador pequeno sob o bal­cão. Dentro dele, uma caixa de leite e um pacote de meia dúzia de cervejas, além de um saco da Zabar cuidadosamente dobrado. Pegou o saco. Havia algo embrulhado em jornal. Algo pesado e sólido. Ele se levantou e abriu o pacote sobre o balcão. Dentro dele, estava um saco plástico. Segurou-o pelo fundo, e a mão decepada caiu sobre o balcão. Os dedos estavam brancos e curvados. Do pulso, saía uma carne esponjosa e roxa, pontas estilhaçadas de ossos brancos e tubos azuis, vazios e pendurados. Em seguida, o brilho da luz fluorescente girou e inclinou-se diante de seus olhos enquanto ele caía, desmaiado, no chão.

 

Reacher colocou a caixa de pizza no chão do elevador, tirou a arma do cinto e fechou-a dentro da bolsa esportiva com o zíper, junto com o resto da mu­nição. Em seguida, abaixou e pegou a pizza, a tempo de o elevador se abrir novamente no quarto andar. A porta do apartamento foi aberta logo que ele entrou no campo de visão do olho mágico. Jodie o esperava praticamente no corredor. Ainda usava o vestido de linho. Estava um pouco amassado na altura dos quadris, após ela passar o dia sentada. Suas longas pernas more­nas estavam cruzadas, um pé diante do outro.

Trouxe o jantar — disse ele.

Ela olhou para a bolsa.

Última chance, Reacher. Devemos falar com alguém sobre tudo isso.

Não — respondeu ele.

Ele colocou a bolsa no chão, e ela entrou atrás dele para trancar a porta.

Está bem — disse ela. — Se for o governo fazendo alguma coisa, tal­vez você esteja certo. Talvez seja melhor ficarmos longe da polícia.

Certo.

Então, estou com você nessa história.

Vamos comer.

Ele foi para a cozinha levando a pizza. Ela tinha preparado a mesa. Dois lugares, um de frente para o outro. Pratos, facas e garfos, guardanapos de papel, copos de água gelada. Como se duas pessoas morassem no aparta­mento. Ele colocou a caixa sobre o balcão e a abriu.

Você escolhe — disse ele.

Ela estava de pé atrás dele, bem próxima. Ele a sentia ali. Seu perfume. O toque da palma da mão em suas costas. Queimava. Ela deixou a mão ali por um segundo e depois a usou para afastá-lo do caminho.

Vamos dividir — disse ela.

Equilibrou a caixa no braço e a levou de volta para a mesa. Afastou as fatias umas das outras enquanto a caixa se inclinava e oscilava. Dividiu-as pelos pratos. Ele se sentou, deu um gole da água e a observou. Ela era magra e enérgica, capaz de fazer com que qualquer atividade mundana parecesse um balé gracioso. Ela se virou, afastou-se, jogou a caixa gordurosa no lixo e voltou para a mesa. O vestido rodopiou e fluiu com ela. Ela sentou. Ele ouviu o sussurro do linho na pele, e o pé dela esbarrou no joelho dele, sob a mesa.

Me desculpe — disse.

Limpou os dedos no guardanapo, jogou o cabelo por trás dos ombros e ajeitou a cabeça em um ângulo para a primeira mordida. Comia com a mão esquerda, girando a fatia para uma posição em que pudesse mordê-la com avidez.

Não almocei — disse ela. — Você me disse para não sair do prédio.

Esticou a língua para fora e pegou um fio de queijo. Sorriu ao achar en­graçado enquanto enganchava o queijo derretido e o trazia de volta para os lábios. O óleo os deixava brilhantes. Ela tomou um longo gole de água.

Anchovas, minha favorita. Como você sabia? Mas deixam a gente com sede depois, não é? Muito salgada.

O vestido não tinha mangas, e ele via seus braços por inteiro, desde o ossinho no alto do ombro. Eram esguios, morenos e finos. Quase sem músculos, apenas bíceps pequenos como tendões. Ela era linda e o deixava sem fôlego, mas era como um quebra-cabeça, fisicamente. Era alta, mas tão esguia que ele não conseguia ver como todos os órgãos vitais cabiam dentro dela. Era magra feito um pau, mas parecia vibrante, firme e forte. Um quebra-cabeça. Lembrava-se da sensação do braço dela em torno de sua cintura, 15 anos antes. Como se alguém estivesse apertando uma corda grossa em torno de sua cintura.

Não posso ficar aqui hoje à noite — comentou ele.

Ela o olhou atravessado.

Por que não? Se tiver alguma coisa para fazer, vou com você. Como eu disse, estou com você nessa história.

Não, só não posso ficar.

Por que não? — perguntou ela de novo.

Ele respirou fundo e segurou o fôlego. O cabelo dela brilhava na luz.

Não é apropriado que eu fique aqui.

Mas por que não?

Ele encolheu os ombros, constrangido.

Porque sim, Jodie. Porque você pensa em mim como um irmão ou um tio, ou algo assim, por causa do Leon. Mas eu não sou nada disso, entende?

Ela olhava para ele.

Me desculpe — continuou.

Os olhos dela estavam arregalados.

O quê?

Isso não está certo — disse ele, com delicadeza. — Você não é minha irmã ou minha sobrinha. Isso é apenas uma ilusão porque eu era próximo do seu pai. Para mim, você é uma mulher linda e eu não posso ficar sozinho com você.

Por que não? — perguntou ela mais uma vez, sem fôlego.

Meu Deus, Jodie! Por que não? Porque não é adequado, por isso que não. Você não precisa saber de todos os detalhes. Você não é minha irmã ou minha sobrinha, e eu não consigo mais fingir isso. Esse fingimento está me deixando louco.

Ela estava imóvel. Olhando para ele. Ainda sem fôlego.

Há quanto tempo você se sente assim? — perguntou ela.

Ele encolheu os ombros, novamente constrangido.

Sempre, eu acho. Desde que te conheci. Me dá uma folga, Jodie, você não era nenhuma criança. Eu estava mais próximo da sua idade do que da de Leon.

Ela ficou em silêncio. Ele prendeu a respiração, aguardando as lágri­mas. O ultraje. O trauma. Ela apenas olhava para ele, que já lamentava ter falado. Deveria ter ficado com a maldita boca fechada. Mordido a porra do lábio e deixado por isso mesmo. Ele já tinha passado por coisa pior, embora não conseguisse lembrar exatamente onde ou quando.

Me desculpe — disse novamente.

Ela tinha o rosto pálido. Grandes olhos azuis olhando para ele. Os co­tovelos apoiados sobre a mesa. O tecido do vestido acumulou-se no colo e abriu-se para frente. Ele viu a alça do sutiã, fina e branca contra a pele do ombro. Olhou para o rosto angustiado dela e fechou os olhos, com um sus­piro desesperado. A honestidade é a melhor política? Esqueça!

Então ela fez uma coisa curiosa. Levantou devagar e se virou, afastando a cadeira do caminho. Adiantou-se e agarrou a ponta da mesa, com ambas as mãos, os músculos delgados destacando-se como cordas. Ela arrastou a mesa para o lado. Em seguida, mudou de posição, virou-se e empurrou-a de costas, com as coxas, até estar bem encostada no balcão. Reacher ficou sen­tado em sua cadeira, subitamente ilhado no meio da sala. Ela deu um passo para trás e ficou diante dele. A respiração dele congelou dentro do peito.

Você está pensando em mim como apenas uma mulher? — pergun­tou, cuidadosa.

Ele concordou.

Não como uma irmã mais nova? Não como sua sobrinha?

Ele balançou a cabeça. Ela fez uma pausa.

Sexualmente? — perguntou baixinho.

Ele concordou com a cabeça, ainda constrangido, resignado.

Claro que sexualmente. O que você acha? Olhe para si mesma. Eu mal consegui dormir na noite passada.

Ela apenas ficou lá.

Eu tinha que falar — disse ele. — Sinto muito, Jodie.

Ela fechou os olhos. Apertou-os com força. E então ele viu um sorriso. Espalhou-se por todo o rosto dela. Ela cerrou as mãos do lado do corpo e depois explodiu para a frente, atirando-se sobre ele. Caiu em seu colo, os braços fechando-se por trás de sua cabeça, e beijou-o como se fosse morrer se parasse.

Era o carro de Sheryl, mas ele mandou Marilyn dirigi-lo. Ele sentou no banco de trás, atrás de Marilyn, com Sheryl ao lado dele com os braços esmagados nas costas. A fita ainda estava em sua boca, e ela respirava com dificuldade. Ele manteve o gancho descansando no colo dela, com a ponta espetada contra a pele da coxa. A mão esquerda segurava a arma. Usou-a para tocar a parte de trás do pescoço de Marilyn com a freqüência necessá­ria para que ela não esquecesse de que ele estava lá.

Tony encontrou-os na garagem subterrânea. O expediente terminara, e o lugar estava silencioso. Tony cuidou de Sheryl, e Hobie levou Marilyn; os quatro subiram pelo elevador de carga. Hobie destrancou a porta do corredor e entrou na recepção. A luz da cozinha estava acesa. Stone esta­va estirado no chão, de cueca. Marilyn engasgou e correu para ele. Hobie observou o movimento de seu corpo sob o vestido fino e sorriu. Voltou-se e fechou a porta. Guardou as chaves e a arma no bolso. Marilyn tinha parado e olhava para a cozinha, as mãos na boca novamente, olhos arregalados, o horror estampado no rosto. Hobie seguiu seu olhar. A mão estava pousada no balcão, a palma para cima e os dedos curvos como os de um mendigo. Em seguida, Marilyn olhava para baixo, aterrorizada.

Não se preocupe — disse Hobie. — Não é dele. Mas é uma idéia, não é mesmo? Eu poderia cortar a mão dele, caso não faça o que eu quero.

Marilyn olhou para ele.

Ou eu poderia cortar a sua — disse para ela. — Eu poderia obrigá-lo a assistir. Talvez eu o obrigasse a fazer isso para mim.

Você é louco! — disse Marilyn.

Ele faria, sabe? Ele faria qualquer coisa. Ele é patético. Olha só para ele, de roupa de baixo. Você acha que ele fica bem de cueca?

Ela não respondeu.

E você? — perguntou Hobie. — Você fica bem de roupa de baixo? Que tal tirar esse vestido e me mostrar?

Ela o olhou, em pânico.

Não? — perguntou. — Está bem, talvez mais tarde. Mas e quanto à sua corretora de imóveis? Você acha que ela fica bem de roupa de baixo?

Ele se virou para Sheryl. Ela se afastava na direção da porta, retorcida com os braços presos com fita. Ficou rígida.

Que tal? — perguntou ele. — Você fica bem de roupa de baixo?

Ela o fixou e balançou a cabeça descontroladamente. A respiração as­sobiando pelo orifício na fita. Hobie chegou mais perto, prendeu-a contra a porta e enfiou a ponta do gancho por dentro da cintura da saia.

Vamos dar uma olhada.

Ele puxou com o gancho, e Sheryl balançou, desequilibrando-se quan­do o tecido foi rasgado. Os botões se espalharam, e ela caiu de joelhos. Ele levantou o pé e a empurrou com a sola para o chão. Ele acenou com a cabeça para Tony. Tony se abaixou e arrancou a saia rasgada pelas pernas trêmulas.

Meia-calça. Nossa, eu detesto meias-calças. Tão pouco românticas.

Ele se inclinou e usou a ponta do gancho para rasgar o nylon em tiras.

Os sapatos saíram dos pés. Tony pegou a saia, os sapatos e a meia rasgada e levou tudo para a cozinha. Jogou tudo no lixo. Sheryl esfregou as pernas nuas e se sentou, ofegando através da fita. Ela vestia uma calcinha branca minúscula e tentava cobri-la com a barra da blusa. Marilyn olhava para ela, a boca aberta com horror.

Ok, agora, sim, estamos nos divertindo — disse Hobie. — Não é?

Pode apostar que sim — respondeu Tony. — Mas não tão divertido quanto ainda vai ficar.

Hobie riu, e Stone se agitou. Marilyn se abaixou e ajudou-o a se sentar no assoalho da cozinha. Hobie passou por cima dele e pegou a mão decepada da bancada.

Isso veio do último cara que me chateou — disse.

Stone abria e fechava os olhos, como se pudesse modificar a cena, varrendo-a para longe. Em seguida, olhou para Sheryl. Marilyn percebeu que nunca os apresentara antes. Ele não sabia quem ela era.

Para o banheiro — ordenou Hobie.

Tony puxou Sheryl para ficar em pé, e Marilyn ajudou Chester. Hobie veio atrás deles. Entraram no escritório e seguiram para a porta do banheiro.

Para dentro — disse Hobie.

Stone foi na frente. As mulheres o seguiram. Hobie observou-os entrar e ficou na porta. Acenou para Stone.

Tony vai dormir aqui no sofá, esta noite. Portanto, não saia nova­mente. E passe o tempo de maneira produtiva. Converse com sua esposa. Nós faremos a transferência das ações amanhã. Será muito melhor para ela se tudo for feito em uma atmosfera de comum acordo. Muito melhor. De qualquer outra forma, as conseqüências seriam ruins. Entende o que estou dizendo?

Stone apenas olhou para ele. Hobie percorreu as mulheres com um olhar demorado; em seguida, acenou com a mão decepada, despedindo-se, e fechou a porta.

O quarto branco de Jodie foi inundado pela luz. Por cinco minutos, ao final de todas as tardes de junho, o sol se punha no oeste e encontrava uma fina passagem em linha reta entre os altos edifícios de Manhattan para atingir sua janela com força total. A persiana brilhava como se estivesse incandes­cente, e as paredes recebiam a luz e a refletiam ao redor até todo o lugar estar brilhando com uma suave explosão branca. Reacher achou que tudo aquilo caía muito bem. Ele estava deitado de costas, mais feliz do que ja­mais se lembrara de já ter se sentido.

Se tivesse pensado nisso, poderia ter se preocupado. Lembrava-se de alguns pequenos provérbios tolos que diziam coisas como pobre do homem que obtém o que deseja. E é melhor viajar esperançoso do que voltar. Obter algo que desejou por 15 anos poderia parecer estranho. Mas não era. Ele se sentia como se tivesse feito uma viagem maravilhosa de foguete, para algum lugar do qual não tinha idéia da existência. Tinha sido tudo o que ele sonhara, multiplicado por um milhão. Ela não era um mito. Era uma criatura que respirava, rígida e forte, vigorosa e cheirosa, quente e tímida, e dadivosa.

Estava aninhada na dobra do seu braço, o cabelo sobre o rosto. Entrava em sua boca quando respirava. A mão dele repousava nas costas dela. Ele percorria suas costelas de um lado para outro. Sua espinha dorsal ficava em uma fenda sob o músculo longo. Ele descia pelo vale com o dedo. Os olhos dela estavam fechados, mas sorria. Ele sabia disso. Sentiu os cílios dela ro­çando em seu pescoço, e podia sentir a forma de sua boca no ombro. Era capaz de decodificar a sensação dos músculos do rosto dela. Ela sorria. Ele moveu a mão. A pele dela estava fresca e macia.

Eu deveria estar chorando agora — disse ela, baixinho. — Sempre achei que ia chorar. Eu costumava pensar que, se isso acontecesse algum dia, eu ia chorar depois.

Ele a apertou com mais força.

Por que deveríamos chorar?

Por causa de todos esses anos desperdiçados.

Antes tarde do que nunca.

Ela se ergueu nos cotovelos. Apoiou metade do corpo sobre ele, os seios esmagados em seu peito.

Aquelas coisas que você me disse eu poderia ter dito a você, palavra por palavra, exatamente. Quem dera eu tivesse falado há muito tempo. Mas eu não podia.

Eu também não podia — respondeu ele. — Era como um segredo culpado.

Sim. Meu segredo culpado.

Ela subiu completamente e se sentou, montando sobre ele, as costas retas, sorrindo.

Mas agora não é um segredo.

Não — respondeu ele.

Ela esticou os braços para cima, começando um bocejo que terminou em um sorriso satisfeito. Ele colocou as mãos em sua cintura fina. Percor­reu com elas para cima, até seus seios. Seu sorriso se abriu mais ainda.

De novo?

Ele a balançou lateralmente com os quadris e a fez rolar e deitar suave­mente na cama.

Estávamos brincando de pique-esconde, certo? Todos esses anos.

Ela concordou. Apenas um pequeno movimento, sorrindo, esfregando os cabelos contra o travesseiro.

Marilyn assumiu o comando. Achou que era a mais forte. Chester e Sheryl estavam abalados, o que ela considerava compreensível, pois foram os dois que sofreram o abuso. Deviam estar se sentindo vulneráveis, seminus. Ela mesma se sentia seminua, mas não se preocuparia com isso naquele momento. Tirou a fita da boca de Sheryl e a segurou enquanto ela chorava. Então, abaixou-se atrás da amiga e começou a soltar a fita de seus pulsos, desenrolando-os até os cotovelos. Ela amassou a massa pegajosa, jogou-a no lixo e voltou para massagear os ombros dela, para que recuperasse a sen­sibilidade. Depois, pegou uma toalha de mão, molhou-a com água quente da pia e limpou as crostas de sangue do rosto de Sheryl. O nariz estava inchado e ficando preto. Ela começava a se preocupar, pois tinha de ir a um médico. Começou a repassar algumas coisas mentalmente. Já vira filmes em que havia reféns. Alguém sempre é o porta-voz, diz que não vai chamar a polícia e leva os doentes liberados para o hospital. Mas como exatamente fazem isso?

Ela pegou as toalhas da barra e deu uma para que Sheryl usasse como saia. Em seguida, dividiu o restante em três pilhas e as espalhou no chão. Sabia que o piso de pedra ficaria frio. O isolamento térmico seria importan­te. Ela encostou as três pilhas em linha contra a parede. Sentou-se com as costas contra a porta, colocou Chester à sua esquerda e Sheryl à sua direita. Segurou suas mãos e apertou-a com força. Chester apertou de volta.

Me desculpe — disse ele.

Quanto você deve? — perguntou ela.

Mais de 17 milhões.

Ela não se preocupou em perguntar se ele tinha como pagar. Não esta­ria seminu, no chão do banheiro, se pudesse.

O que ele quer? — perguntou ela.

Ele se encolheu ao lado dela, miseravelmente.

Tudo. Quer toda a empresa.

Ela concordou com a cabeça e olhou para o encanamento debaixo da pia.

O que sobraria para nós?

Ele fez uma pausa e, em seguida, deu de ombros outra vez.

Qualquer migalha que quisesse nos deixar. Provavelmente, absolu­tamente nada.

E a casa? — perguntou ela. — Ficaríamos com ela, certo? Eu a colo­quei à venda. Esta senhora é corretora. Ela disse que vale quase dois milhões.

Stone olhou para Sheryl. Depois, balançou a cabeça.

A casa pertence à empresa. Foi uma coisa técnica, mais fácil para financiar dessa forma. Hobie vai ficar com ela, junto com todo o resto.

Ela concordou e olhou para o espaço. A sua direita, Sheryl adormecera, sentada. O terror a esgotara.

Você também deve dormir — disse ela. — Eu vou pensar em alguma coisa.

Ele apertou sua mão novamente e inclinou a cabeça para trás. Fechou os olhos.

Me desculpe — disse novamente.

Ela não respondeu. Apenas alisou a seda fina sobre as coxas e olhou para a frente, pensando.

O sol tinha ido embora antes de terminarem pela segunda vez. Tornou-se uma barra brilhante, deslizando lateralmente pela janela. Em seguida, um feixe horizontal estreito, brincando pela parede branca, viajando devagar, a poeira dançando através dele. Em seguida, ele se foi, apagando como uma luz, deixando a sala sob o brilho suave e fresco da noite. Eles ficaram dei­tados, aconchegados entre os lençóis embolados, corpos relaxados, respi­rando baixinho. Então, ele sentiu o sorriso dela novamente. Ela se ergueu sobre um cotovelo e olhou para ele com o mesmo sorriso provocante que ele tinha visto quando ela saía do escritório.

O quê? — perguntou ele.

Tenho uma coisa para te contar.

Ele esperou.

Dentro das minhas atribuições oficiais.

Ele fixou o rosto dela. Ela ainda estava sorrindo. Seus dentes eram bran­cos e os olhos, azuis brilhantes, mesmo na penumbra fresca. Ele se questio­nou sobre as atribuições oficiais dela. Ela era uma advogada que limpava a bagunça quando alguém devia cem milhões de dólares para outra pessoa.

Eu não devo dinheiro — disse ele. — E acho que não tem ninguém me devendo.

Ela balançou a cabeça. Ainda sorrindo.

Como executora do testamento do papai.

Ele concordou. Fazia sentido que Leon a tivesse nomeado. Uma advo­gada da família, a escolha óbvia.

Abri e li hoje. No trabalho.

E o que tem lá? Ele era um avarento disfarçado? Um bilionário de colchão?

Ela balançou a cabeça novamente. Não disse nada.

Ele sabia o que aconteceu com Victor Hobie e escreveu tudo em seu testamento?

Ela continuava a sorrir.

Ele deixou uma coisa para você. Uma herança.

Ele concordou de novo, lentamente. Isso também fazia sentido. Leon era assim. Ele se lembraria e escolheria alguma miudeza, de valor senti­mental. Mas o quê? Percorreu suas lembranças. Provavelmente uma recor­dação. Suas medalhas, talvez? Talvez o rifle de longo alcance, que trouxera da Coréia. Um velho Mauser, de fabricação alemã, provavelmente captura­do pelos soviéticos na Frente Oriental e vendido dez anos mais tarde para seus clientes coreanos. Uma senhora arma. Leon e ele tinham especulado muitas vezes sobre as ações em que o rifle estivera envolvido. Seria bom ter aquela arma. Uma bela lembrança. Mas onde diabos ele iria guardá-lo?

Ele deixou a casa para você — disse ela.

Deixou o quê?

A casa — repetiu ela. — Onde a gente estava, em Garrison.

Ele olhou para ela, surpreso.

A casa dele?

Ela concordou. Ainda sorrindo.

Não acredito nisso — disse. — E não posso aceitar. O que eu faria com ela?

O que você faria com ela? Você vai morar lá, Reacher. E para isso que servem as casas, certo?

Mas eu não moro em casas. Nunca morei numa casa.

Bem, agora você pode morar numa.

Ele ficou em silêncio. Depois balançou a cabeça.

Jodie, não posso aceitar. Ela deveria ser sua. Ele deveria ter deixado para você. É a sua herança.

Eu não quero — respondeu ela, simplesmente. — Ele sabia disso. Prefiro ficar na cidade.

Ok, então venda a casa. Mas ela é sua, certo? Venda e fique com o dinheiro.

Não preciso do dinheiro. Ele também sabia disso. Vale menos do que eu ganho em um ano.

Ele olhou para ela.

Achei que fosse uma área cara, na beira do rio.

Ela concordou.

-E é.

Ele fez uma pausa, confuso.

A casa dele? — repetiu.

Ela concordou.

Você sabia que ele ia fazer isso?

Não exatamente — respondeu ela. — Mas sabia que não ia deixar para mim. Achei que talvez me mandasse vendê-la e dar o dinheiro para a caridade. Ex-combatentes, algo do tipo.

Certo, então é isso que você deve fazer.

Ela sorriu de novo

Reacher, não posso. Não depende de mim. Trata-se de uma instru­ção legal do testamento dele. Sou obrigada a seguir.

A casa dele — disse vagamente. — Ele me deixou a casa dele?

Ele se preocupava com você. Por dois anos, estava preocupado. Des­de que você foi desligado. Ele sabia como ia ser. Sabia que você tinha passa­do a vida em serviço e que, de uma hora para outra, ia ficar sem nenhuma perspectiva. Ele se preocupava sobre como você seguiria vivendo.

Mas ele não sabia como eu estava vivendo.

Ela concordou novamente.

Mas dava para adivinhar, não é? Ele era um velho esperto. Sabia que você estaria vadiando por algum lugar. Costumava dizer que vadiar é ótimo, por uns três ou quatro anos, talvez. Mas e quando você chegar aos cinqüenta? Sessenta? Setenta? Ele estava pensando nisso.

Reacher encolheu os ombros, deitado de costas, nu, olhando para o teto.

Eu nunca pensei sobre isso. Meu lema é viva um dia de cada vez.

Ela não respondeu. Apenas abaixou a cabeça e o beijou no peito.

Sinto como se estivesse roubando de você — continuou. — É a sua herança, Jodie. Você deveria ficar com ela.

Ela o beijou novamente.

Era a casa dele. Mesmo que eu quisesse, teria que respeitar a vontade dele. Mas o fato é que eu não queria a casa. Nunca quis. Ele sabia disso. Ele era totalmente livre para fazer o que quisesse com ela. E fez. Deixou-a para você porque queria que fosse sua.

Ele olhava para o teto, mas sua mente vagava pela casa. Descendo pelo caminho da garagem, por entre as árvores, a garagem à direita, a passagem coberta para a casa, a construção baixa à esquerda. O estúdio, a sala de es­tar, as águas do Hudson, largo e lento. A mobília. Parecia muito confortável. Talvez ele pudesse ter um aparelho de som. Alguns livros. Uma casa. Sua casa. Ele experimentou as palavras na cabeça: minha casa. Minha casa. Mal sabia como falar. Minha casa. Sentiu um arrepio.

Ele queria que fosse sua — repetiu ela. — Está no testamento. Não dá para questionar. Aconteceu. E não tem o menor problema para mim, eu juro, ok?

Ele concordou lentamente.

Ok — respondeu ele. — Ok, mas é esquisito. De verdade, muito es­quisito.

Quer um café? — perguntou ela.

Ele virou e olhou para o rosto dela. Ele poderia ter sua própria máquina de café. Na sua cozinha. Na sua casa. Ligada à eletricidade. Sua eletricidade.

Café? — perguntou ela de novo.

Acho que sim.

Ela deslizou para fora da cama e calçou os sapatos.

Preto, sem açúcar, certo?

Ali estava ela, de pé, nua, a não ser pelos sapatos. Evidente, de salto alto. Ela percebeu o olhar dele.

O chão da cozinha é frio. Sempre uso sapato lá.

Esqueça o café, ok?

 

Dormiram na cama dela, a noite inteira, até bem depois de o sol nascer. Reacher acordou primeiro, tirou o braço com cuidado de debaixo dela e conferiu o relógio. Quase sete. Ele tinha dormido por nove horas. O melhor sono de sua vida. A melhor cama. Já tinha dormido em várias camas. Cen­tenas, milhares, talvez. Essa tinha sido a melhor de todas. Jodie dormia ao seu lado. Estava de bruços e se livrara do lençol durante a noite. As costas nuas até a cintura. Ele via a curva dos seios debaixo dela. O cabelo espa­lhado pelos ombros. Um joelho para cima, descansando sobre a coxa dele. A cabeça inclinada para a frente, no travesseiro, curvada, acompanhando a direção do joelho. A posição a deixava com um aspecto compacto, atlético. Ele beijou seu pescoço. Ela se agitou.

Bom-dia, Jodie — disse ele.

Ela abriu os olhos. Depois fechou e abriu novamente. Sorriu. Um sor­riso matinal, caloroso.

Fiquei com medo de ter sonhado — disse. — Costumava sonhar com isso, antes.

Ele a beijou de novo. Ternamente, na bochecha. Depois, menos ternamente, na boca. Os braços dela se fecharam atrás dele, e ambos giraram juntos. Fizeram amor de novo, pela quarta vez, em 15 anos. Em seguida, to­maram banho juntos, pela primeira vez. Depois, café da manhã. Comeram como se estivessem mortos de fome.

Preciso ir ao Bronx — disse ele.

Ela concordou.

O tal Rutter? Eu dirijo. Tenho uma idéia de onde seja.

E o trabalho? Achei que você precisasse ir.

Ela olhou para ele, surpresa.

Você me disse que tinha horas para faturar — continuou ele. — Pa­receu muito ocupada.

Ela sorriu, timidamente.

Inventei isso. Estou bem adiantada, na verdade. Eles disseram que eu deveria tirar a semana. Eu só não queria ficar andando por aí com você, me sentindo daquele jeito. Foi por isso que corri para a cama na primeira noite. Eu deveria ter mostrado o quarto de hóspedes, você sabe, como uma anfitriã bem-educada. Mas não quis ficar sozinha com você num quarto. Teria me deixado louca. Tão perto, mas tão distante, você entende?

Ele concordou.

E o que você fez no escritório o dia todo?

Ela riu.

Nada. Fiquei sentada sem fazer nada, o dia inteiro.

Você é doida. Por que nunca me disse nada?

Por que você nunca me disse nada?

Eu disse a você.

Finalmente — disse ela. — Depois de 15 anos.

Ele concordou.

Eu sei, mas tinha medo. Achei que você ficaria magoada. Achei que isso era a última coisa que você gostaria de ouvir.

Pensei o mesmo. Achei que você me odiaria para sempre.

Entreolharam-se, sorrindo. Em seguida, deram uma risada. E, depois, uma gargalhada, que continuou por cinco minutos sem parar.

Vou me vestir — disse ela, ainda rindo.

Ele a seguiu até o quarto e achou suas roupas no chão. Ela estava no meio do closet, escolhendo uma roupa limpa. Ele a olhava e começou a imaginar se a casa de Leon tinha closets. Não, se sua casa tinha closets. É claro que sim. Todas as casas têm closets, certo? Será que ele então teria que começar a juntar coisas para enchê-los?

Ela escolheu uma calça jeans e uma camisa, vestidas com um cinto de couro e sapatos caros. Ele levou o casaco novo para a entrada e o deixou junto com a Steyr, na bolsa esportiva. Colocou vinte cartuchos soltos no bolso oposto. Todo aquele metal deixou o casaco pesado. Ela foi encontrá- lo, carregando a pasta de couro. Estava conferindo o endereço de Rutter.

Pronto? — perguntou ela.

Como sempre estive.

Mandou que ela esperasse a cada passo, enquanto ele verificava à fren­te. Exatamente os mesmos procedimentos usados no dia anterior. Antes, a segurança dela parecera importante. Agora, parecia vital. Mas tudo estava limpo e silencioso. Corredor vazio, elevador vazio, portaria vazia, garagem vazia. Entraram juntos no Taurus, e ela deu a volta no quarteirão e seguiu para o norte e depois para o leste.

Estrada a leste do rio para a 1-95, está bem para você? — perguntou ela. — Seguindo para a esquerda, é a via expressa Cross Bronx.

Ele deu de ombros e procurou se lembrar do mapa da Hertz.

— Depois, pegamos a Bronx River para o norte. Precisamos ir ao zoo­lógico.

Ao zoológico? O Rutter não mora perto do zoológico.

Não para o zoológico, exatamente. Para o Jardim Botânico. Tem uma coisa que você precisa ver.

Ela olhou de lado para ele e se concentrou na direção. O tráfego estava pesado, logo após o pico da hora do rush, mas estava se movendo. Segui­ram para o norte, pelo rio e depois para noroeste, para a ponte George Washington. Deixaram-na para trás e seguiram pelo Bronx. A via expressa estava lenta, mas a alameda para o norte estava mais rápida, pois saía de Nova York numa hora em que a cidade atraía as pessoas. Além da barreira, o tráfego para o sul estava engarrafado.

Certo. Para onde? — perguntou ela.

Passe da Universidade de Fordham. Depois do conservatório, e es­tacione no alto.

Ela concordou e mudou de pista. A Fordham passou pela esquerda, e o conservatório à direita. Ela foi pela entrada do museu e achou uma vaga logo depois. Estava quase todo vazio.

E agora?

Ele pegou a pasta de couro.

É só ficar atenta — disse ele.

O conservatório ficava cem metros à frente deles. Ele lera tudo sobre o lugar num folheto gratuito, no dia anterior. Recebera o nome de um sujeito chamado Enid Haupt, e sua construção custara uma fortuna, em 1902, e dez vezes mais quando foi renovado, 95 anos mais tarde, mas foi dinheiro bem-gasto, pois o resultado fora magnífico. Era enorme e ornamentado, a definição absoluta de filantropia urbana expressa em ferro e vidro branco leitoso.

Seu interior era quente e úmido. Reacher levou Jodie até o local que procurava. As plantas exóticas foram reunidas em enormes canteiros delimitados por muretas baixas e largas. Havia bancos ao longo dos caminhos. O vidro leitoso filtrava a luz solar, resultando num brilho nublado. Um for­te cheiro de terra úmida e pesada e de florações penetrantes.

O quê? — perguntou ela. Divertia-se, mas também se sentia impa­ciente. Ele encontrou o banco que procurava e afastou-se dele, aproximan­do-se do muro baixo. Deu meio passo para a esquerda e, em seguida, mais um, até ter certeza.

Fique aqui — disse a ela.

Ele a pegou por trás dos ombros e a colocou na mesma posição que ocupara antes. Abaixou a cabeça até a altura dela e conferiu.

Fique na ponta dos pés e olhe para a frente.

Ela ficou mais alta e olhou para a frente. Suas costas estavam retas, e o cabelo se espalhava pelos ombros.

Certo — disse ele. — Me diga o que você vê.

Nada. Bem, plantas e outras coisas.

Ele concordou com a cabeça e abriu a pasta de couro. Tirou a fotogra­fia brilhante do ocidental emaciado e grisalho, esquivando-se do rifle do guarda. Esticou-a com o braço diante dela, no limite de sua visão. Ela olhou para a foto.

O quê? — Perguntou ela mais uma vez, entre divertida e frustrada.

Compare — respondeu ele.

Ela manteve a cabeça parada e piscou alternando os olhos esquerdo e direito entre a fotografia e a cena em frente a ela. Em seguida, tirou a foto da mão dele e a segurou com o braço esticado diante de si. Seus olhos se arregalaram, e o rosto ficou pálido.

Meu Deus! — disse. — Merda! Esta foto foi tirada aqui? Bem aqui? Não foi? Todas estas plantas são exatamente as mesmas.

Ele se abaixou de novo e conferiu mais uma vez. Ela segurava a foto de forma que as plantas correspondessem exatamente. Uma folhagem de algum tipo de palmeira à esquerda, quinze metros de altura, folhas de samambaia à direita e atrás, num emaranhado de ramos. Os dois personagens estariam uns seis metros para dentro do canteiro denso, capturados por uma lente teleobjetiva que comprimia a perspectiva e tirava a vegetação mais próxima do foco. Bem mais atrás, o tronco de uma árvore da selva, que a câmera turvara na distância. Na verdade, crescia num canteiro diferente.

Merda! — repetiu ela. — Merda, não acredito nisso.

A luz também estava certa. O vidro leitoso acima deles criava uma óti­ma representação de uma selva enevoada. O Vietnã é um lugar nublado. As montanhas irregulares puxavam as nuvens para baixo, e a maioria das pessoas se lembra das neblinas e névoas, como se o próprio solo estivesse sempre vaporoso. Jodie olhou da fotografia para a realidade diante dela, movendo-se milimetricamente da esquerda para direita para obter um ajuste perfeito.

Mas e o arame? As estacas de bambu? Parece tão real...

Adereços teatrais — disse ele. — Três estacas, dez metros de arame farpado. Não é muito difícil conseguir, certo? Trouxeram aqui para dentro, provavelmente tudo embrulhado.

Mas quando? Como?

Ele deu de ombros.

De manhã cedo, um dia? Quando o lugar ainda estava fechado? Talvez conhecessem alguém que trabalha aqui. Podem ter feito enquanto o lugar estava fechado para reformas.

Ela olhava para a imagem, aproximando-a dos olhos.

Espera aí, droga! Dá para ver aquele banco. Dá para ver o canto da­quele banco lá.

Mostrou a ele o que estava vendo, com a unha posicionada precisa­mente sobre a superfície brilhante da fotografia. Havia um pequeno borrão quadrado, branco. Era o canto de um banco de ferro, para a direita, por trás da cena principal. A teleobjetiva tinha um enquadramento fechado, mas não o suficiente.

Eu não tinha visto — disse ele. — Você está ficando boa nisso.

Ela virou o rosto para encará-lo.

Não, estou ficando boa e furiosa, Reacher. Esse cara, Rutter, levou dezoito mil dólares por uma fotografia falsa.

Pior do que isso. Deu a eles falsas esperanças.

E o que vamos fazer, então?

Estamos indo visitá-lo.

Estavam de volta ao Taurus 16 minutos após saírem dele. Jodie mano­brou de volta para a alameda, os dedos tamborilando na direção e falando rápido.

Mas você me disse que acreditava neles. Eu disse que a foto provava que o lugar existia, e você concordou. Você disse que tinha estado lá, havia pouco tempo, tão perto quanto Rutter.

Tudo verdade. Eu acreditava que o Jardim Botânico existia. Tinha acabado de voltar de lá. E cheguei tão perto quanto Rutter. Fiquei de pé junto à parede baixa, de onde ele deve ter tirado a foto.

Minha nossa, Reacher! O que é isso? Um jogo?

Ele deu de ombros.

Ontem eu não sabia o que era. Quer dizer, em termos do quanto eu precisava contar para você.

Ela concordou com a cabeça e sorriu em meio à exasperação. Estava se lembrando da diferença entre o dia anterior e aquele.

Mas como diabos ele acha que pode escapar com isso? Uma estufa no Jardim Botânico de Nova York, pelo amor de Deus!

Ele se esticou. Alongou os braços até o para-brisa

Psicologia — disse. — É a base de qualquer fraude, certo? Você diz às pessoas o que elas querem ouvir. Aqueles pobres velhos queriam ouvir que o filho estava vivo. E ele diz que o menino provavelmente está. Assim, eles investem muita esperança e dinheiro, esperando em suspenso por três meses inteiros, e ele então mostra uma foto. Basicamente, eles verão tudo aquilo que mais querem ver. E o cara foi inteligente. Pediu-lhes o nome e a unidade exatos, quis imagens reais do menino, e assim pôde escolher um cara de meia-idade, mais ou menos do tamanho e jeito certos para a foto, e lhes devolveu o mesmo nome e unidade corretos. Psicologia. Eles veem o que desejam ver. Poderia ter colocado um cara fantasiado de gorila na foto, e teriam acreditado que era um representante da vida selvagem local.

Mas como você descobriu isso?

Do mesmo jeito. A mesma psicologia, mas em sentido inverso. Eu não queria acreditar, pois sabia que não podia ser verdade. Então, procurei algo que parecesse errado. Foi a farda que o cara estava vestindo que me mostrou. Você viu isso? Uma farda velha e gasta do Exército dos Estados Unidos? Esse cara sumiu há trinta anos. Não há a menor possibilidade de uma farda durar por trinta anos na selva. Estaria podre em seis semanas.

Mas por que lá? O que te fez ir procurar no Jardim Botânico?

Ele abriu os dedos contra o vidro do para-brisa, empurrando para ali­viar a tensão dos ombros.

Onde mais ele encontraria uma vegetação assim? No Havaí, talvez, mas por que pagar a passagem aérea para três pessoas quando se pode en­contrá-la de graça na porta de casa?

E o rapaz vietnamita?

Provavelmente, um garoto da faculdade. Possivelmente, aqui de Fordham mesmo. Talvez de Columbia. Talvez nem fosse vietnamita. Pode­ria ser garçom de um restaurante chinês. Rutter deve ter pagado uns vinte dólares para ele posar para a foto. Ele deve ter uns quatro amigos se reve­zando para bancar o prisioneiro americano. Um cara branco grande, um pequeno, um cara preto grande, um cara preto pequeno, todas as bases cobertas. Todos uns vagabundos, magros e abatidos. Provavelmente, pagou-os com uísque e tirou todas as fotos juntas, para usar conforme apropriado. Pode ter vendido essa mesma foto mais de dez vezes. Qualquer pessoa que tenha perdido um filho alto e branco receberia uma cópia. Em seguida, ele os faz jurar segredo com esta palhaçada de conspiração do governo, assim ninguém nunca vai comparar as anotações mais tarde.

Ele é nojento — disse ela.

Ele concordou.

Com toda certeza. As famílias CNR ainda são um mercado grande e vulnerável, e ele está se alimentando deles como uma larva.

CNR? — perguntou ela.

Corpo não recuperado. É o que eles são. MEC/CNR. Morto em com­bate, corpo não recuperado.

Mortos? Você não acredita que ainda existam prisioneiros?

Ele balançou a cabeça.

Não tem nenhum prisioneiro, Jodie. Não mais. Isso é tudo besteira.

Tem certeza?

Absoluta.

Como pode ter certeza?

Apenas tenho. Assim como sei que o céu é azul, a grama é verde e você tem uma bunda incrível.

Ela sorriu enquanto dirigia.

Sou uma advogada, Reacher. Esse tipo de prova não serve para mim.

Fatos históricos — respondeu ele. — Essa história de reféns para ob­ter auxílio americano é tudo mentira, para início de conversa. Eles preten­diam descer correndo para Ho Chi Minh assim que déssemos o fora de lá, o que era totalmente contrário ao acordo de Paris. Por isso sabiam que nunca iam conseguir qualquer ajuda, não importa o que fizessem. Então soltaram todos os prisioneiros em 1973, um pouco devagar, eu sei, mas os deixaram sair. Quando voltamos, em 1975, eles pegaram cerca de cem retardatários e nos devolveram todos eles, o que não combina com qualquer tipo de estra­tégia com reféns. Além disso, estavam desesperados para que retirássemos as minas de seus portos e não iam inventar bobagens.

Eles foram lentos para devolver os despojos — disse ela. — Você sabe, nossos rapazes mortos em aviões derrubados ou nas batalhas. Fize­ram algumas bobagens com isso.

Ele concordou.

Eles não entendiam bem. Era importante para nós. Nós queríamos dois mil corpos de volta. Eles não conseguiam entender o porquê. Estive­ram em guerra por mais de quarenta anos: Japão, França, Estados Unidos, China. Provavelmente perderam um milhão de pessoas desaparecidas em ação. Nossos dois mil eram uma gota no balde. Além disso, eram comu­nistas. Não compartilhavam o valor que nós damos aos indivíduos. Nova­mente, é uma questão psicológica. Mas isso não significa que mantiveram prisioneiros escondidos em campos secretos.

Não é um argumento muito conclusivo — disse ela secamente.

Ele concordou outra vez.

Leon é o argumento conclusivo. Seu pai e pessoas como ele. Eu co­nheço essas pessoas. Corajosas e honradas, Jodie. Eles lutaram lá, e, mais tarde, chegaram ao poder e obtiveram destaque. O Pentágono é cheio de idiotas, eu sei disso tão bem quanto todo mundo, mas sempre teve um número suficiente de pessoas como Leon por lá para mantê-los honestos. Me responde uma pergunta: se Leon tivesse conhecimento da existência de prisioneiros mantidos lá no Vietnã, o que ele faria?

Ela deu de ombros.

Eu não sei. Alguma coisa, é claro.

Pode apostar qualquer coisa que sim. Leon teria posto a Casa Branca abaixo, tijolo por tijolo, até que todos os rapazes estivessem em segurança, de volta para casa. Mas não fez isso. E não porque não soubesse. Leon sabia de tudo o que havia para saber. Não tem como manter uma coisa dessas em segredo de todos os Leons, não o tempo todo. Uma grande conspiração por seis mandatos presidenciais? Uma conspiração que pessoas como Leon não iriam farejar? Esqueça! Os Leons deste mundo nunca reagiram; portanto, isso nunca existiu. Eis a prova conclusiva, pelo menos no que me diz res­peito, Jodie.

Não, isso é fé — disse ela.

Que seja, é o bastante para mim.

Ela observou o tráfego à frente e refletiu sobre o assunto. Em seguida, concordou, pois, afinal, a fé em seu pai também era o bastante para ela.

Então, Victor Hobie está morto?

Reacher concordou.

Só pode estar. Morto em combate, corpo não recuperado.

Ela continuou dirigindo, devagar. Eles seguiam para o sul, o tráfego estava ruim.

Certo, nada de prisioneiros, nada de campos. Nada de conspiração do governo. Então, não era gente do governo que estava atirando na gente e batendo no nosso carro.

Nunca achei que fosse. A maioria das pessoas do governo que co­nheci era muito mais eficiente do que isso. Eu era uma pessoa do governo, de certa maneira. Você acha que eu erraria dois dias seguidos?

Ela virou o carro para a direita, freou e parou no acostamento. Virou-se em seu assento para encará-lo, os olhos azuis bem abertos.

Então, deve ser o Rutter — disse. — Quem mais pode ser? Ele está tocando um esquema lucrativo, certo? E está pronto para protegê-lo. Ele acha que nós vamos expô-lo. Então, está vindo atrás da gente. E agora nosso plano é ir direto para os braços dele.

Reacher sorriu.

Ei, a vida é cheia de perigos — disse ele

Marilyn percebeu que tinha caído no sono, porque acordou rígida e com frio, com os ruídos entrando pela porta atrás dela. O banheiro não tinha nenhuma, janela, e ela não tinha idéia da hora. Era manhã, supôs, porque achava que tinha dormido por algum tempo. À sua esquerda, Chester olha­va fixamente para o espaço, o olhar a mil quilômetros para além dos ca­nos sob a pia. Estava inerte. Ela se virou e o olhou diretamente, sem obter qualquer reação. À sua direita, Sheryl estava enrolada no chão. Respira­va pesadamente pela boca, o nariz tinha ficado preto, brilhante e inchado. Marilyn olhou para ela e engoliu. Virou-se novamente e pressionou a ore­lha na porta. Ouviu com atenção.

Havia dois homens lá fora. Escutou o som de duas vozes profundas, falando baixo. Podia ouvir os elevadores a distância. Um ruído de tráfego fraco, com sirenes ocasionais se perdendo no silêncio. Barulho de avião, como se um grande jato decolando do JFK seguisse para oeste, sobre o porto. Ela se levantou.

Os sapatos tinham saído durante a noite. Ela os achou enfiados sob sua pilha de toalhas. Calçou-os e foi em silêncio até a pia. Chester olhava dire­tamente através dela. Ela se olhou no espelho. Nada mal, pensou. A última vez que tinha passado a noite em um assoalho de banheiro fora após uma festa de fraternidade na universidade, havia mais de vinte anos, e ela não parecia pior do que estava agora. Ela penteou o cabelo com os dedos e jogou água nos olhos. Então voltou em silêncio para a porta e ouviu novamente.

Dois homens, mas tinha certeza de que Hobie não era um deles. Uma certa equivalência no tom agudo das vozes. Era uma conversa com idas e voltas, não ordens e obediência. Ela afastou a pilha de toalhas para trás com o pé, respirou fundo e abriu a porta.

Os dois homens pararam de falar e se viraram para olhá-la. O que se chamava Tony estava sentado de lado no sofá diante da mesa. O outro, que ela não tinha visto antes, estava sentado perto dele, na mesa de centro. Era um homem robusto, vestindo um terno escuro, não era alto, mas era pe­sado. A mesa estava vazia. Nenhum sinal de Hobie. As persianas da janela estavam fechadas, apenas com uma fresta aberta, por onde ela via o sol brilhante lá fora. Era mais tarde do que imaginara. Ela olhou de volta para o sofá e viu Tony sorrindo para ela.

Dormiu bem? — perguntou ele.

Ela não respondeu. Apenas manteve um olhar neutro, fixo no rosto dele até o sorriso se desfazer. Um a zero, pensou.

Conversei com meu marido — mentiu.

Tony olhou para ela, com expectativa, aguardando ela continuar. Ela o deixou esperando. Dois a zero, pensou.

Nós concordamos com a transferência — continuou. — Mas vai ser complicado. Vai levar algum tempo. Existem fatores que não creio que vo­cês apreciarão. Vamos aceitar, mas teremos que contar com uma coopera­ção mínima de vocês ao longo do caminho.

Tony concordou.

Como o quê?

Falarei disso com Hobie. Não com você.

O escritório ficou em silêncio. Apenas os ruídos distantes do mundo exterior. Ela se concentrou em sua respiração. Para dentro e para fora, para dentro e para fora.

Certo — respondeu Tony.

Três a zero, pensou.

Queremos café — disse ela. — Três xícaras, com creme e açúcar.

Mais silêncio. Então, Tony concordou, e o homem robusto se levantou.

Afastou o olhar e saiu do escritório em direção à cozinha. Quatro a zero, pensou.

 

O endereço do remetente na carta de Rutter correspondia a uma fachada sórdida, alguns quarteirões ao sul de qualquer esperança de reforma urba­na. Era uma construção de madeira, entalada entre estruturas de tijolos de quatro andares que podem ter sido fábricas ou armazéns antes de serem abandonados e se transformarem em ruínas, há décadas. O endereço de Rutter tinha uma janela suja à esquerda, uma entrada no centro e uma por­ta de enrolar aberta à direita, revelando uma garagem estreita. Havia um Lincoln Navigator novo em folha espremido no interior. Reacher reconhe­ceu o modelo de um anúncio que tinha visto. Era um Ford gigante, tração nas quatro, com um brilho luxuoso a mais para justificar sua superioridade dentro da linha Lincoln. Este era preto metálico e, provavelmente, valia mais do que o imóvel em torno dele.

Jodie passou direto, sem correr e sem ser muito devagar, apenas na ve­locidade plausível para aquela rua esburacada. Reacher virou a cabeça ao redor, fazendo o reconhecimento do lugar. Jodie virou para a esquerda e deu a volta no quarteirão. Reacher viu uma passagem de serviço atrás dos prédios, com escadas de incêndio enferrujadas penduradas sobre as pilhas de lixo.

Então, como vamos fazer isso? — perguntou Jodie.

Vamos entrar direto — respondeu ele. — A primeira coisa é observar a reação deles. Se souber quem nós somos, jogamos de um jeito. Se não, jogamos de outro.

Ela estacionou duas vagas depois da frente da loja, à sombra de um armazém de tijolos enegrecidos. Trancou o carro, e caminharam juntos de volta. Da calçada, podiam ver o que havia por trás da janela suja. Viram uma exposição de equipamentos excedentes do Exército, casacos de camu­flagem velhos e empoeirados, cantis e botas. Rádios de campo, rações mili­tares e capacetes de infantaria. Algumas das coisas já eram obsoletas antes de Reacher se formar em West Point.

A porta estava dura e acionou um sino quando foi aberta. Era um sis­tema mecânico simples, o movimento da porta acionava uma mola, que acionava o sino, que produzia o som. A loja estava vazia. Havia um balcão à direita, com uma porta atrás dando para a garagem. Um mostruário de roupa num cabide prateado circular e mais um monte de lixo empilhado numa única prateleira. Uma porta dos fundos saía para o beco, trancada e com um alarme. Alinhadas perto da porta dos fundos, cinco cadeiras de vi­nil acolchoadas. Em torno das cadeiras, várias pontas de cigarro e garrafas vazias de cerveja. A iluminação era fraca, mas a poeira de anos era visível por toda parte.

Reacher foi na frente de Jodie. O chão rangeu sob ele. Dois passos no interior, e ele viu um alçapão se abrindo após o balcão. Uma porta resis­tente, de velhas tábuas de pinho, com dobradiças de latão e um polimento gorduroso no qual gerações de mãos seguraram ao fechá-la. As vigas do piso eram visíveis dentro do buraco, e uma escada estreita, construída com a mesma madeira antiga, descia na direção de uma claridade elétrica e in­candescente. Ele ouviu o barulho de pés sobre o piso de cimento do porão abaixo dele.

Já estou indo, seja lá quem for! — gritou uma voz de dentro do bu­raco.

Era a voz de um homem de meia-idade, suspensa em algum ponto entre a surpresa e a irritação. A voz de um homem que não esperava ser chamado. Jodie olhou para Reacher, e ele fechou a mão no punho da Steyr, dentro do bolso.

Uma cabeça de homem apareceu no nível do chão, seguida pelos om­bros e pelo tronco, enquanto ele subia a escada. Era uma figura volumosa, com dificuldade para sair do buraco, vestido com uma farda verde-oliva desbotada. Tinha cabelos oleosos, uma barba grisalha desgrenhada, rosto carnudo e olhos pequenos. Saiu sobre as mãos e joelhos, e se levantou.

Posso ajudar? — perguntou.

Em seguida, outra cabeça e ombros apareceram atrás dele. E outra. E outra. E outra. Quatro homens subiram pela escada saindo do porão. Cada um se endireitou por sua vez e fez uma pausa, olhando diretamente para Reacher e Jodie, e depois se afastando para as cadeiras alinhadas. Eram homens grandes, roliços, tatuados e vestidos com velhas fardas parecidas. Sentaram-se com os braços grandes cruzados sobre as barrigas grandes.

Posso ajudar? — repetiu o primeiro.

Você é Rutter? — perguntou Reacher.

O homem concordou. Nenhuma expressão de reconhecimento em seus olhos. Reacher olhou para a fila de homens nas cadeiras. Representavam uma complicação que ele não antecipara.

O que você quer? — perguntou Rutter.

Reacher alterou o plano. Precisava ter uma idéia da verdadeira natureza das transações da loja e do que o porão armazenava.

Quero um silenciador — disse. — Para uma Steyr GB.

Rutter sorriu, uma cara realmente divertida no conjunto formado pela mandíbula e pela luz em seus olhos.

É contra a lei eu vender isso para você, é contra a lei você ter uma.

O jeito enfadonho como falou era uma confissão direta de que ele tinha o produto e o vendia. O tom condescendente por trás das palavras dizia tenho algo que você quer, e isso me faz melhor do que você. Falava sem qual­quer cautela. Nenhuma suspeita de que Reacher era um policial tentando armar para ele. Ninguém nunca achou que Reacher fosse um policial. Ele era grande e bruto demais. Não tinha a palidez das delegacias ou a furtividade urbana que as pessoas associam por instinto aos policiais. Rutter não estava preocupado com ele. Estava preocupado com Jodie. Não sabia quem ela era. Tinha falado com Reacher, mas olhado para ela. Ela o olhava de volta, fixamente.

Contra a lei de quem? — perguntou ela, com desdém.

Rutter coçou a barba.

Fica mais caro.

Em comparação com o quê? — perguntou ela.

Reacher sorriu para si mesmo. Rutter não estava certo sobre ela, e, com aquelas duas perguntas, meia dúzia de palavras apenas, ela o deixara perdi­do, achando que poderia ser uma socialite de Manhattan preocupada com uma ameaça de seqüestro de seus filhos, a mulher de um bilionário queren­do antecipar a herança ou a esposa de um membro do Rotary querendo sobreviver em um confuso triângulo amoroso. Ela olhava para ele como uma mulher acostumada a abrir o próprio caminho sem a oposição de ninguém. Certamente, não da lei, e, muito menos, de algum comerciante desprezível do Bronx.

Steyr GB? — perguntou Rutter. — Você quer a austríaca autêntica?

Reacher concordou, balançando a cabeça, como se fosse o cara que lida com os detalhes triviais. Rutter estalou os dedos, e um dos homens pesadões pulou fora da cadeira e se enfiou pelo buraco. Voltou após um bom tempo com um cilindro preto envolvido em papel, que o óleo da arma tinha deixado transparente.

Dois mil dólares — disse Rutter.

Reacher concordou. O preço era quase justo. A pistola não era mais fa­bricada, mas ele desconfiava de que as últimas lojas a trabalharem com ela a vendiam por oitocentos ou novecentos dólares. O preço final da fábrica para o silenciador provavelmente saía por mais de duzentos. Dois mil por um produto ilegal, dez anos mais tarde, a quatro mil quilômetros da fábri­ca, era quase razoável.

Deixa eu ver — disse ele.

Rutter limpou o tubo nas calças. Entregou-o. Reacher pegou a arma e encaixou o tubo no lugar. Não como no cinema. Não se segura a arma na altura dos olhos e se aparafusa o silenciador no lugar, devagar, com cuidado e amor. Você usa uma leve pressão rápida, dá meio giro e encaixa, como a lente em uma câmera.

Melhorava a arma. Ficava mais equilibrada. Noventa e nove vezes em cem, uma pistola dispara mais para o alto porque o coice joga o cano para cima. O peso do silenciador compensaria essa probabilidade. E um silen­ciador funciona fazendo com que a explosão de gás se disperse relativa­mente devagar, o que enfraquece o coice logo de cara.

Funciona bem mesmo? — perguntou Reacher.

Claro que sim — respondeu Rutter. — É o autêntico, de fábrica.

O cara que trouxera a peça para cima tinha voltado para a cadeira. Qua­tro sujeitos, cinco cadeiras. A maneira de neutralizar uma gangue é derru­bar o líder primeiro. É uma verdade universal. Reacher aprendera isso aos 4 anos de idade. Descubra quem é o líder, derrube-o primeiro, mas derrube para valer. A situação agora seria diferente. Rutter era o líder, mas tinha que continuar inteiro, por ora, pois Reacher tinha outros planos para ele.

Dois mil dólares — repetiu Rutter.

Teste de campo — disse Reacher.

Uma Steyr GB não tem nenhuma trava de segurança. O primeiro dis­paro precisa de uma pressão de seis quilos no gatilho, o que é considerado o suficiente para evitar um tiro acidental se a arma cair, pois é uma pressão bastante deliberada. Portanto, não há nenhum mecanismo de segurança independente. Reacher virou a mão para a esquerda e pressionou os seis quilos. A arma disparou, e a cadeira vazia explodiu. O som foi alto. Não como no cinema. Não como uma tosse. Ou como uma cuspidela discreta. Mas como pegar o catálogo telefônico de Manhattan, erguê-lo acima da cabeça e jogá-lo para baixo sobre uma mesa com toda a força. Não era um som delicado. No entanto, mais silencioso do que poderia ser.

Os quatro rapazes ficaram congelados pelo choque. O vinil estilhaçado e o estofamento de crina voavam pelo ar. Rutter olhava, imóvel. Reacher acertou-o com força, a canhota no estômago, chutou seus pés para longe e o fez despencar no chão. Depois apontou a Steyr para o cara junto à cadeira destruída.

Desçam as escadas — disse ele. — Todo mundo. Agora, certo?

Ninguém se mexeu. Reacher contou em voz alta um, dois e, no três, disparou novamente. A mesma explosão intensa. As lascas das tábuas do chão saltaram aos pés do primeiro cara. Um, dois, e Reacher disparou outra vez. E, mais uma vez, um, dois e fogo. Poeira e lascas de madeira voavam para cima. O barulho dos tiros repetidos era esmagador. O cheiro forte de pólvora queimada e da lã de aço aquecida dentro do silenciador tomou o lugar. Os homens se mexeram todos de uma vez após a terceira bala. Atropelaram-se e correram para o alçapão. Caíram e tropeçaram para dentro. Reacher deixou a porta cair, fechando-a sobre eles, e arrastou o balcão por cima dela. Rutter erguia-se sobre as mãos e os joelhos. Reacher chutou-o nas costas e continuou chutando até ele recuar completamente e sua cabeça bater com força contra o balcão deslocado.

Jodie tinha a fotografia falsa na mão. Ela se agachou e a estendeu para ele. Ele piscou e focalizou o olhar. A boca se mexia, apenas um buraco irre­gular no meio da barba. Reacher se abaixou e o segurou pelo pulso esquer­do. Levantou sua mão e pegou o dedo mínimo.

Perguntas — disse. — E vou quebrar um dedo a cada vez que você mentir para mim.

Rutter tentou lutar, usando todas as forças para se levantar e escapar. Reacher acertou-o outra vez, um golpe sólido no estômago, e ele voltou a cair.

Você sabe quem somos nós?

Não — respondeu Rutter, ofegante.

Onde esta foto foi tirada?

Acampamento secreto — ofegou Rutter. — Vietnã.

Reacher quebrou seu dedo mínimo. Apenas o virou para o lado e es­talou na articulação. Para os lados é mais fácil do que dobrando para trás, até o fim. Rutter gritou de dor. Reacher pegou o dedo seguinte. Tinha um anel de ouro.

Onde?

Zoológico do Bronx — arfou Rutter.

Quem é o garoto?

Só um moleque.

E o cara alto?

Um amigo — respondeu Rutter.

Quantas vezes você já fez isso?

Quinze, talvez — respondeu Rutter.

Reacher dobrou o dedo anelar para o lado.

É verdade — gritou Rutter. — Não passou de 15, eu juro. E eu nunca fiz nada para você. Eu nem sei quem você é.

Conhece os Hobie? — perguntou Reacher. — Lá de Brighton?

Viu que Rutter percorria uma lista mental, confuso. Em seguida, viu quando se lembrou. Percebeu que ele se esforçava para compreender como aqueles velhos otários e patéticos poderiam ter feito despencar tudo aquilo sobre sua cabeça.

Você não passa de um monte de merda nojento, não é?

Rutter girava a cabeça de um lado para outro, em pânico.

Repita, Rutter — gritou Reacher.

Eu sou um monte de merda — gemeu Rutter.

Onde fica o seu banco?

Meu banco? — repetiu Rutter, sem entender.

Seu banco.

Rutter hesitou. Reacher pressionou o dedo anelar um pouco mais.

Dez quadras — gritou Rutter.

E o documento de propriedade da caminhonete?

Na gaveta.

Reacher acenou com a cabeça para Jodie. Ela se levantou e foi para trás do balcão. Abriu as gavetas ruidosamente e pegou uma papelada. Folheou o maço de papéis e acenou com a cabeça.

Registrado no nome dele. Por quarenta mil dólares.

Reacher mudou a pegada e segurou Rutter pelo pescoço. Pressionou seu ombro e o empurrou com força até sua mão estar fazendo força sob a mandíbula de Rutter.

Vou comprar sua caminhonete por um dólar — disse. — É só balan­çar a cabeça se isso for um problema, está bem?

Rutter estava totalmente imóvel. Os olhos saltando sob a pressão de Reacher em sua garganta.

E, depois, vou levá-lo até o banco. Na minha caminhonete nova. Você vai sacar dezoito mil dólares em dinheiro, e eu vou devolver para os Hobie.

Não! Dezenove mil seiscentos e cinqüenta. Estava num fundo mú­tuo. Considere seis por cento ao ano, em juros compostos.

Certo — disse Reacher. Ele aumentou a pressão. — Dezenove mil seiscentos e cinqüenta para os Hobie e dezenove mil seiscentos e cinqüenta para nós.

Os olhos de Rutter percorriam o rosto de Reacher. Implorando. Sem entender.

Você os enganou — disse Reacher. — Disse que iria descobrir o que aconteceu com o filho deles. Não fez. E agora nós teremos que fazer isso para eles. Por isso precisaremos do dinheiro para as despesas.

O rosto de Rutter estava ficando azul. Suas mãos seguravam com força no pulso de Reacher, tentando aliviar a pressão desesperadamente.

Ok? — perguntou Reacher. — Portanto, é isso que vamos fazer. Basta balançar a cabeça se tiver qualquer tipo de problema com isso.

Rutter puxava o pulso de Reacher usando toda a sua força, mas de nada adiantou.

Pense nisso como um imposto — disse Reacher. — Um imposto sobre aplicação de golpes de merda.

Soltou a mão e se levantou. Quinze minutos mais tarde, estava no ban­co de Rutter, que protegia a mão esquerda no bolso e assinava um cheque com a direita. Cinco minutos depois, Reacher tinha 39.300 dólares em di­nheiro dentro da bolsa de lona. Quinze minutos depois, deixou Rutter no beco atrás da loja, com duas notas de um dólar enfiadas na boca, uma para o silenciador e outra para a caminhonete. Mais cinco minutos, e ele seguia o Taurus de Jodie até o posto de devolução da Hertz, em LaGuardia. Outros 15 minutos, e eles estavam no Lincoln novo, juntos, voltando para Manhattan.

 

A NOITE EM HANÓI CAI 12 HORAS ANTES DO que em Nova York, portanto, o sol que ainda estava alto quando Reacher e Jodie saíram do Bronx já tinha se pos­to por trás das terras altas do norte do Laos, duzentos quilômetros a oeste do aeroporto de Noi Bai. O céu ti­nha um tom laranja brilhante, e as sombras compridas do longo entardecer foram substituídas pela escuridão repentina do crepúsculo tropical. Os cheiros da cidade e da selva eram mas­carados pelas exalações de querosene, e o barulho das buzinas dos carros e dos insetos noturnos era eliminado pelo assobio contínuo das turbinas dos jatos estacionados.

Um gigantesco cargueiro C-141 Starlifter da Força Aérea dos Estados Unidos estava parado na pista, a pouco mais de um quilômetro dos ter­minais lotados de passageiros, próximo a um hangar sem identificação. A rampa traseira do avião estava baixada, e seus motores funcionavam o suficiente para alimentar a iluminação interior. Dentro do hangar não identificado, as luzes também estavam acessas. Havia uma centena de ar­cos luminosos pendendo do alto do telhado de metal corrugado, banhando o espaço cavernoso com um brilho amarelado.

O hangar era tão grande quanto um estádio, mas não continha nada além de sete caixas. Cada uma tinha 1,95 metro de comprimento, era fei­ta de alumínio reforçado, polido a ponto de brilhar, com uma forma que lembrava caixão, o que, na verdade era exatamente do que se tratava. Esta­vam ordenadas numa fila organizada, sobre cavaletes, todos cobertos por uma bandeira americana. As bandeiras eram recém-lavadas e muito bem-passadas, e a faixa central de cada uma estava precisamente alinhada com o reforço central de cada caixão.

Havia nove homens e duas mulheres no hangar, parados junto aos sete caixões de alumínio. Seis dos homens formavam a guarda de honra. Eram soldados regulares do Exército dos Estados Unidos, recém-barbeados, ves­tindo fardas cerimoniais imaculadas, mantendo-se em rígida posição de sentido, afastados das outras cinco pessoas. Três delas eram vietnamitas, dois homens e uma mulher, baixos, com a pele escura, impassíveis. Tam­bém vestiam farda, mas eram trajes casuais, não cerimoniais. Tecido verde-oliva, desbotado e amassado, com insígnias desconhecidas, presas aqui e ali, para indicar seus postos.

As duas últimas pessoas eram americanas, vestidas com roupas civis, mas do tipo que indicam o status militar tão claramente quanto qualquer farda. A mulher era jovem, com uma saia de tecido grosso de comprimento médio, uma blusa cáqui de mangas compridas e sapatos marrons pesados nos pés. O homem era alto, cabelos grisalhos, cerca de 55 anos, vestindo uma farda cáqui tropical sob uma capa de chuva leve presa com um cinto. Carregava uma maleta de couro marrom surrada, e um porta-terno igual­mente velho estava no chão, aos seus pés.

O homem alto e grisalho acenou com a cabeça para a guarda de hon­ra, um sinal breve, quase imperceptível. O soldado mais antigo emitiu um comando silencioso, e os seis homens formaram duas linhas de três.

Marcharam lentamente para a frente, viraram à direita, voltaram a mar­char lentamente até estarem precisamente alinhados, três de cada lado do primeiro caixão. Fizeram uma pausa no ritmo e ergueram o caixão nos ombros em um único movimento fluido. O homem mais velho falou outra vez, e eles marcharam devagar em direção à porta do hangar, o caixão per­feitamente nivelado nos braços, os únicos sons eram o dos passos de suas botas no concreto e o assobio dos motores a espera.

Na pista, viraram à direita e seguiram por um largo e lento semi-círculo em torno do jato de ar da turbina até estarem alinhados com a rampa do Starlifter. Avançaram em marcha lenta e subiram exatamente pelo centro da rampa, sentindo as faixas de metal sob os pés ali colocadas com cuidado para ajudá-los, até o âmago do avião. O piloto os aguardava. Ela era capitã da Força Aérea dos Estados Unidos, impecável em um traje de voo tropical. Sua tripulação aguardava em posição de sentido ao lado dela: um co-piloto, um engenheiro de vôo, um navegador e um operador de rádio. Diante deles, estavam o chefe de carga e sua equipe, silenciosos em suas fardas verdes. Ficaram frente a frente em duas filas imóveis, enquanto a guarda de honra passava lentamente entre eles, seguindo até o fundo da área de carga. Ali, dobraram os joelhos e baixaram o caixão com cuidado sobre uma pla­taforma presa à fuselagem. Quatro dos homens se mantiveram recuados, com as cabeças baixas. O primeiro e o último homem trabalharam juntos para colocar o caixão no lugar. O chefe de carga deu um passo à frente e firmou-o no lugar com tiras emborrachadas. Recuou novamente, juntando-se à guarda de honra, e fizeram uma demorada saudação silenciosa.

Levaram uma hora para carregar os sete caixões. As pessoas dentro do hangar se mantiveram em silêncio até o fim, quando seguiram o sétimo caixão pela pista. Sincronizaram os passos com a marcha lenta da guarda de honra e aguardaram ao pé da rampa do Starlifter, sob o calor úmido e barulhento do cair da noite. A guarda de honra saiu, a tarefa cumprida. O americano alto de cabelos grisalhos saudou-os, apertou as mãos dos três oficiais vietnamitas e acenou com a cabeça para a americana. Ne­nhuma palavra foi dita. Colocou a bolsa no ombro e subiu rapidamente a rampa para entrar no avião. Um motor lento e poderoso assobiou, e a rampa foi fechada atrás dele. Os motores aceleraram, e o avião gigante li­berou os freios e começou a taxiar. Fez uma ampla e demorada curva para a esquerda e desapareceu atrás do hangar. Seu ruído se afastou. Depois, voltou a se intensificar na distância, e os observadores o viram voltan­do pela pista de decolagem, os motores rugindo, acelerando, decolando. Virou para a direita, subindo rápido, baixando uma asa, e depois se foi, apenas um triângulo de luzes piscando cada vez menores na distância e uma vaga mancha de fumaça preta do querosene marcando o traçado cur­vo pelo ar noturno.

A guarda de honra se dispersou no silêncio repentino, a mulher ame­ricana apertou as mãos dos três oficiais vietnamitas e voltou para o carro. Os três oficiais vietnamitas seguiram em outra direção, para o próprio car­ro. Era um sedã japonês, pintado com um verde militar opaco. A mulher dirigiu, e os dois homens sentaram-se no banco de trás. Era um trajeto curto até o centro de Hanói A mulher estacionou numa área cercada por correntes, atrás de um prédio baixo de concreto cor de areia. Os homens saí­ram sem dizer nada e entraram por uma porta sem identificação. A mulher trancou o carro e deu a volta pelo prédio até outra entrada. Subiu um lance curto de escadas até sua sala. Sobre a mesa, havia um fichário aberto. Ela re­gistrou o despacho seguro da carga com uma caligrafia caprichada e fechou o fichário. Levou-o para um arquivo junto à porta do escritório. Trancou-o lá dentro e olhou pela porta, ao longo do corredor. Voltou então para a mesa, pegou o telefone e discou para um número que ficava a dezoito mil quilômetros de distância, em Nova York.

Marilyn acordou Sheryl e conseguiu trazer Chester de volta à consciên­cia antes de o homem atarracado entrar no banheiro com o café. Estava em canecas, e ele carregava duas em uma mão e uma na outra, sem saber direito onde as deixar. Parou e foi até a pia, colocando-as alinhadas na pra­teleira estreita de granito sob o espelho. Depois, virou-se e saiu sem falar.

Marilyn alcançou as canecas, uma de cada vez, pois estava tremendo e tinha certeza de que derramaria o café se tentasse pegar duas de uma vez. Abaixou-se e deu a primeira para Sheryl, ajudando-a com o primeiro gole.

Depois, virou para Chester. Ele pegou a caneca automaticamente, olhando como se não soubesse o que era aquilo. Ela pegou a terceira, encostou na pia e bebeu tudo, com sede. Estava bom. O creme e o açúcar tinham gosto de energia.

Onde estão os títulos das ações? — sussurrou ela.

Chester olhou para ela, indiferente.

No meu banco, no cofre.

Marilyn assentiu. Teve que encarar o fato de que não sabia qual era o banco de Chester. Ou onde era. Ou para que serviam títulos de ações.

Quanto tem lá?

Ele deu de ombros.

Mil, originalmente. Usei trezentas como garantia para os emprésti­mos. Tive que cedê-las para o credor, temporariamente.

E agora Hobie ficou com elas?

Ele concordou.

Ele comprou a dívida. Vão enviar os títulos para ele hoje, provavel­mente. Não precisam mais. E eu empenhei mais noventa para ele. Ainda estão no cofre. Acho que tenho que entregá-los em breve.

Mas como a transferência acontece de verdade?

Ele deu de ombros novamente, desanimado, vago.

Eu assino as ações para ele, ele pega os certificados e os registra na comissão de valores mobiliários, e, quando tiver 51% registrados, passa a ser o sócio majoritário.

E onde fica o seu banco?

Chester deu seu primeiro gole no café.

A cerca de três quarteirões daqui. Uns cinco minutos a pé. E, depois, outros cinco minutos até a Comissão. Digamos dez minutos do início ao fim, e ficamos sem um centavo e sem teto, no olho da rua.

Ele colocou a caneca no chão e voltou a fixar o olhar no vazio. Sheryl es­tava inerte. Não bebia o café. A pele parecia úmida. Talvez pela concussão, ou algo assim. Talvez ainda em estado de choque. Marilyn não sabia. Não tinha experiência. O nariz estava horrível. Preto e inchado. O hematoma estava se espalhando sob seus olhos. Os lábios estavam rachados e secos devido à respiração pela boca a noite inteira.

Tente tomar um pouco mais de café — disse Marilyn. — Vai ser bom para você.

Agachou-se ao lado dela e guiou sua mão até a boca. Inclinou a caneca. Sheryl tomou um gole. Um pouco do líquido quente escorreu pelo queixo. Deu outro gole. Olhou para Marilyn, os olhos querendo dizer alguma coisa. Marilyn não sabia o que era, mas sorriu de volta assim mesmo, um sorriso iluminado com encorajamento.

Vamos te levar para o hospital — sussurrou.

Sheryl fechou os olhos e acenou com a cabeça, como se, de repente, se enchesse de alívio. Marilyn se ajoelhou ao lado dela, segurando sua mão, olhando para a porta, imaginando como iria cumprir a promessa.

— Você vai ficar com esse troço? — perguntou Jodie.

Ela falava do Lincoln Navigator. Reacher pensou sobre isso enquanto esperava. Ficaram engarrafados ao se aproximarem de Triborough.

Talvez — respondeu.

Era mais ou menos novo. Muito silencioso e suave. Preto metálico por fora, couro curtido por dentro, quatrocentos quilômetros rodados, ain­da recendendo a couro e carpete novos, além do cheiro forte de plástico de um veículo recém-saído da loja. Assentos grandes, todos idênticos ao do motorista, vários consoles com porta-bebidas e algumas tampas sugerindo diversos espaços secretos para guardar coisas.

Acho grosseiro — disse ela.

Ele sorriu.

Comparado a quê? Àquela coisinha minúscula que você estava di­rigindo?

Que era muito menor do que este.

Você é muito menor do que eu.

Ela ficou em silêncio por um instante.

É por causa do Rutter — disse ela. — Está contaminado.

O tráfego avançou e parou outra vez na metade da ponte sobre o rio Harlem. Os edifícios de Midtown apareciam ao longe, à esquerda, nebulo­sos como uma promessa vaga.

É apenas uma ferramenta — disse ele. — Ferramentas não têm ne­nhuma memória.

Eu o odeio. Acho que mais do que já odiei qualquer outra pessoa.

Ele concordou.

Eu sei. O tempo todo em que estávamos lá, eu fiquei pensando nos Hobie, lá em Brighton, sozinhos em casa, e no olhar em seus olhos. Enviar o único filho para a guerra já é um inferno, e, além disso, mentirem e os enganarem depois... Jodie, não há nenhuma desculpa para isso. Mude a época, poderia ter sido com os meus pais. E ele fez isso 15 vezes. Eu deveria tê-lo machucado ainda mais.

Contanto que ele não faça de novo.

Ele balançou a cabeça.

A lista de alvos está diminuindo. Não restam muitas famílias cujos corpos dos filhos não foram recuperados para cair no golpe dele.

Eles saíram da ponte e foram para o sul, pela Segunda Avenida. O trân­sito estava rápido e liberado pelas sessenta quadras seguintes.

E não era ele quem estava atrás da gente — disse ela em voz baixa. — Ele não sabia quem nós éramos.

Reacher concordou com a cabeça novamente.

Não. Quantas fotografias falsas você tem que vender para valer a pena destruir um Chevrolet Suburban? Precisamos analisar a história des­de o início, Jodie. Dois funcionários em tempo integral são enviados para as Keys e depois para Garrison, certo? Dois salários em tempo integral, além de armas e passagem aérea, dirigindo um Tahoe e, em seguida, um terceiro funcionário com um Suburban que ele pode simplesmente arrebentar no meio da rua? É um monte de dinheiro, e provavelmente apenas a ponta do iceberg. Implica uma operação que pode chegar a milhões de dólares. Rutter nunca ganhou tanto dinheiro assim esfolando velhotes por dezoito mil dólares de cada vez.

— Então, que porcaria é essa?

Reacher apenas deu de ombros e continuou dirigindo, atento ao retro­visor durante todo o caminho.

Hobie recebeu a ligação de Hanói em casa. Ouviu o relatório sucinto da vietnamita e desligou sem falar. Depois, ficou parado no meio da sala de estar, inclinou a cabeça para um lado e estreitou o olho bom como se assis­tisse a algo acontecendo fisicamente diante dele. Como se assistisse a curva ascendente de uma bola de beisebol sobre o campo, numa curva em direção ao brilho dos refletores, um defensor externo correndo sob ela, a cerca se aproximando, a luva sendo erguida, a bola voando, a cerca surgindo, o de­fensor saltando. A bola passará da cerca ou não? Hobie não sabia dizer.

Ele atravessou a sala e saiu para o terraço, que dava para o oeste, sobre o Parque, trinta andares acima. Era uma vista que ele odiava, pois todas aquelas árvores o lembravam de sua infância. Mas aumentavam o valor da propriedade, e essa era a regra do jogo. Ele não era responsável por como os gostos das outras pessoas dirigiam o mercado. Apenas se beneficiava disso. Virou-se e olhou para a esquerda, onde dava para ver o prédio de seu escritório, lá do outro lado, no centro financeiro. As Torres Gêmeas pare­ciam mais baixas do que eram devido à curvatura da Terra. Ele voltou para dentro e fechou a porta deslizante. Atravessou o apartamento e desceu de elevador até a garagem.

Seu carro não sofrerá qualquer modificação para ajudá-lo com a defi­ciência. Era um Cadillac sedã, último modelo, com a ignição e a marcha à direita da coluna de direção. A dificuldade era a ignição, pois tinha que se inclinar todo para o lado, com a mão esquerda torcida para poder segurar e virar a chave. Mas, além disso, nunca teve grandes problemas. Usava o gancho para posicionar o câmbio automático em drive e sair da garagem dirigindo com a mão esquerda, o gancho apoiado no colo.

Sentiu-se melhor quando já estava descendo pela rua 59. O parque desapareceu, e ele mergulhou nos cânions ruidosos da cidade em Midtown. O tráfego o confortava. O ar-condicionado do Cadillac aliviava a coceira sob as cicatrizes. Junho era a pior época para isso. Alguma combinação especial de calor e umidade entrava em ação para deixá-lo louco. Mas o Cadillac fazia com que se sentisse melhor. Ele se perguntou se o Mercedes de Stone seria tão bom. Achava que não. Jamais confiara no ar-refrigerado dos carros estrangeiros. Portanto, ia transformá-lo em dinheiro. Conhecia um cara no Queens que faria uma festa com aquele carro. Mas essa era mais uma tarefa na lista. Muito para fazer e pouco tempo disponível. O defensor estava lá, seguindo a bola, saltando, se aproximando da cerca atrás.

Estacionou na garagem subterrânea, na vaga ocupada antes pelo Suburban. Inclinou-se, tirou a chave e trancou o Cadillac. Subiu pelo eleva­dor expresso. Tony estava no balcão da recepção.

Hanói ligou novamente — disse Hobie. — Está voando.

Tony desviou o olhar.

O quê? — perguntou Hobie.

Então, devíamos simplesmente abandonar essa história do Stone.

Vão levar alguns dias, certo?

Alguns dias podem não ser o bastante. Existem complicações. A mu­lher disse que conversou com ele, que vão fazer o negócio, mas há compli­cações que não conhecemos.

Que complicações?

Tony balançou a cabeça.

Ela não quis me dizer. Quer falar direto com você.

Hobie olhou para a porta do escritório.

Ela está de brincadeira, certo? É melhor que esteja. Não tenho como bancar qualquer tipo de complicação agora. Já fiz a pré-venda dos terrenos, três negócios diferentes. Dei a minha palavra. A máquina está em movi­mento. Que complicações?

Ela não quis me dizer — repetiu Tony.

O rosto de Hobie coçava. A garagem não tinha ar-refrigerado. A cami­nhada curta até o elevador tinha irritado sua pele. Pressionou o gancho na testa, buscando algum alívio com o metal. Mas o gancho também estava quente.

E quanto à sra. Jacob? — perguntou.

Passou a noite em casa.

Com o tal Reacher. Eu verifiquei. Estavam rindo de alguma coisa hoje de manhã. Ouvi do corredor. Depois saíram de carro para algum lugar, para o norte, pela Roosevelt. Talvez de volta para Garrison.

Não preciso dela em Garrison. Preciso dela aqui. E dele.

Tony ficou em silêncio.

Me traga a sra. Stone — disse Hobie.

Ele entrou no escritório e contornou a mesa. Tony foi para o lado opos­to, para o banheiro. Saiu um pouco depois, empurrando Marilyn diante dele. Ela parecia cansada. O tubinho de seda parecia ridiculamente fora de contexto, como se ela fosse a convidada de uma festa e ficara presa na cidade na manhã seguinte devido a uma nevasca.

Hobie apontou para o sofá.

Sente-se, Marilyn — disse.

Ela continuou em pé. O sofá era muito baixo. Baixo demais para sentar com um vestido curto e para obter a vantagem psicológica de que precisa­ria. Mas permanecer em pé diante da mesa também seria errado. Suplicante demais. Ela caminhou até a parede de janelas.

Afastou as persianas e olhou a manhã do lado de fora. Depois, virou-se e encostou no peitoril, obrigando-o a virar a cadeira para encará-la.

Que complicações são essas? — perguntou ele.

Ela o olhou e respirou fundo.

Vamos chegar lá — respondeu ela. — Primeiro, vamos levar Sheryl para o hospital.

Silêncio. Nenhum som, a não ser os rumores e barulhos do prédio po­puloso. Bem ao longe, para o oeste, ouviram uma sirene fraca. Talvez até lá de Jersey.

Que complicações são essas? — perguntou ele novamente. Usou exa­tamente a mesma voz e entonação. Como se estivesse pronto a ignorar o erro dela.

O hospital, primeiro.

O silêncio continuou. Hobie virou para Tony.

Tire Stone do banheiro — disse ele.

Stone saiu tropeçando, de roupa de baixo, com os dedos de Tony em­purrando suas costas, por todo o percurso até a mesa. Ele bateu com as canelas na mesa de café e gemeu de dor.

Que complicações são essas? — perguntou Hobie para ele.

Ele apenas olhou perdido para um lado e para outro, como se estivesse apavorado e desorientado demais para falar. Hobie aguardou. Depois, assentiu com a cabeça.

Quebre a perna dele — ordenou Hobie a Tony, voltando a olhar para Marilyn. Silêncio. Nenhum som, a não ser a respiração desesperada de Stone e os ruídos fracos do prédio. Hobie olhou para Marilyn. Ela olhou de volta para ele.

Vá em frente — disse ela em voz baixa. — Quebre a maldita perna. Por que deveria me importar? Ele me deixou sem um centavo. Arruinou minha vida. Quebre as duas pernas, se quiser. Mas isso não vai fazer você conseguir o que quer nem um pouco mais rápido. Porque existem compli­cações, e, quanto antes chegarmos nelas, melhor para você. E não vamos tratar disso até que Sheryl esteja no hospital.

Ela se inclinou para trás no peitoril da janela, as palmas para baixo, os braços afastados dos ombros. Esperava parecer relaxada e casual, mas na verdade era para se segurar e não cair no chão.

O hospital primeiro — repetiu. Ela se concentrava com esforço na própria voz, parecia a de outra pessoa. Estava satisfeita com o tom. Soava certa. Uma voz baixa e firme, tranqüila no escritório silencioso. — Depois negociamos, a escolha é sua.

O defensor externo estava saltando, a luva para cima, a bola vinha cain­do. A luva estava mais alta do que a cerca. A trajetória da bola aproximava-se do fim. Hobie bateu com o gancho na mesa. O som foi alto. Stone olhava para ele. Hobie o ignorou e olhou para Tony.

Leve a vadia para o hospital — disse, irritado.

Chester vai com eles — disse Marilyn. — Para verificar. Ele precisa vê-la entrando na emergência, sozinha. Eu fico aqui, por garantia.

Hobie parou de batucar. Olhou para ela e sorriu.

Não confia em mim?

Não, eu não confio em você. Se não for assim, você só vai levar Sheryl lá para fora e trancá-la em algum outro lugar.

Hobie continuava a sorrir.

Isso nem me passou pela cabeça. Eu ia mandar Tony atirar nela e jogá-la no mar.

Silêncio, novamente. Marilyn tremia por dentro.

Tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou Hobie para ela. — Se ela disser uma palavra no hospital, vai causar a sua morte, você sabe disso, não é?

Marilyn concordou.

Ela não vai dizer nada para ninguém, sabendo que eu ainda estou aqui com você.

—- É melhor você rezar para ela não falar.

Ela não vai. Não se trata de nós. Trata-se dela. Ela precisa de socorro.

Ela olhou para ele, reclinando-se, sentindo-se fraca. Examinava o rosto dele em busca de algum sinal de compaixão. Alguma aceitação de sua responsabilidade. Ele a olhou de volta. Não havia qualquer compaixão em seu rosto. Nada, a não ser aborrecimento. Ela engoliu em seco e respirou bem fundo.

E ela precisa de uma saia — continuou Marilyn. — Não pode sair as­sim. Vai parecer suspeito. O hospital vai envolver a polícia. Nenhum de nós quer isso. Portanto, Tony precisa sair e comprar uma saia nova para ela.

Empreste seu vestido para ela — disse Hobie. — Tire e dê a ela.

Fez-se um longo silêncio.

Não vai caber nela — disse Marilyn.

O motivo não é esse, certo?

Ela não respondeu. Silêncio. Hobie deu de ombros.

Certo — disse ele.

Ela engoliu em seco novamente.

E sapatos.

O quê?

Ela precisa de sapatos — disse Marilyn. — Não pode ir descalça.

Minha nossa! — exclamou Hobie. —- E depois disso, porra?

Depois, nós negociamos. Assim que Chester voltar e me disser que a viu entrando sozinha e ilesa, nós negociamos.

Hobie percorreu a curva do gancho com os dedos da mão esquerda.

Você é uma mulher inteligente — disse.

Eu sei disso, pensou Marilyn. Essa é a primeira de suas complicações.

Reacher colocou a bolsa de lona no sofá branco, embaixo da cópia do Mondrian. Abriu o zíper, virou a bolsa e espalhou as pilhas de notas de cinqüenta. Trinta nove mil e trezentos dólares em dinheiro. Dividiu o bolo pela metade, separando os blocos alternadamente para a esquerda e para a direita, nos dois lados do sofá. Acabou com duas pilhas bem impressio­nantes.

Quatro viagens para o banco. Abaixo de dez mil dólares, as regras para relatórios não se aplicam, e não queremos responder nenhuma per­gunta sobre onde conseguimos essa grana, certo? Vamos depositar tudo na minha conta e emitir um cheque administrativo para os Hobie de 19.650 dólares. E movimentaremos a nossa metade como o meu cartão dourado, certo?

Reacher concordou.

Precisamos de passagens aéreas para Saint Louis, no Missouri, e de um hotel. Com dezenove mil no banco, podemos ficar em lugares decentes e viajar de classe executiva.

É a única maneira de se voar — disse ela. Colocou os braços em torno da cintura dele, esticou-se na ponta dos pés e o beijou na boca. Ele a beijou de volta, com vontade.

Isso é divertido, não é? — disse ela.

Para nós, talvez. Mas não para o Hobie.

Fizeram três viagens a três bancos diferentes e encerraram num quar­to, onde ela fez o depósito final e adquiriu um cheque administrativo em nome do senhor e da sra. T. M. Hobie, no valor de US$19.650. O cara do banco colocou-o em um envelope bege, e ela o fechou em sua carteira. Em seguida, caminharam de volta para a Broadway juntos, de mãos dadas, para que ela pudesse fazer as malas para a viagem. Ela pôs o envelope do banco em sua mesa, e ele pegou o telefone e decidiu que um voo da United saindo do JFK era a melhor opção para Saint Louis, àquela hora do dia.

Táxi? — perguntou ela.

Ele balançou a cabeça.

Vamos dirigir.

O grande V-8 fez um barulho dos infernos na garagem subterrânea. Ele cutucou o acelerador umas duas vezes e sorriu. O torque sacudiu o veículo pesado, forçando-o de uma ponta a outra sobre seus amortecedores.

O preço dos seus brinquedos — disse Jodie.

Ele olhou para ela.

Você nunca ouviu isso? — perguntou ela. — A diferença entre ho­mens e meninos é o preço dos seus brinquedos?

Ele cutucou o acelerador e sorriu novamente.

O preço deste foi um dólar.

E você acabou de queimar mais dois de gasolina — disse ela.

Ele engatou a marcha e subiu a rampa. Virou para a direita, seguindo para o túnel de Midtown, pegou a 495 para a Van Wyck e seguiu para o JFK.

— Pare no estacionamento expresso — disse ela. — Podemos pagar agora, certo?

Ele teve que deixar a Steyr e o silenciador para trás. Não era fácil conse­guir passar pelo sistema de segurança do aeroporto com armas grandes de metal no bolso. Ele escondeu a arma sob o banco do motorista. Deixaram o Lincoln numa vaga em frente ao prédio da United e cinco minutos depois estavam no balcão, comprando bilhetes só de ida na classe executiva para Saint Louis. Os bilhetes caros permitiam que esperassem numa sala espe­cial, onde um garçom uniformizado lhes serviu um bom café em xícaras de porcelana com pires, e onde podiam ler o Wall Street Journal sem preci­sar pagar. Depois, Reacher carregou a bolsa de Jodie pelo acesso ao avião. Os assentos na classe executiva ficavam em pares, ocupando as primeiras seis filas. Amplos e confortáveis. Reacher sorriu.

Eu nunca fiz isso antes — disse ele.

Ele se ajeitou na poltrona da janela. Tinha espaço para se esticar um pouco. Jodie ficou perdida em seu lugar. Havia espaço suficiente para três dela, lado a lado. O comissário serviu suco antes mesmo de o avião começar a taxiar. Minutos depois, estavam voando para o oeste, passando sobre a extremidade sul de Manhattan.

Tony voltou ao escritório com uma bolsa vermelha e brilhante da Talbot e outra marrom da Bally, pendurada pelas alças de corda em seu punho fechado. Marilyn levou-as para o banheiro, e, cinco minutos depois, Sheryl saiu. A saia nova era do tamanho certo, mas da cor errada. Ela a alisou para baixo ao longo dos quadris com movimentos incertos das mãos. Os sapa­tos novos não combinavam com a saia e ficaram muito grandes. Seu rosto estava horrível. Os olhos estavam inexpressivos e submissos, como Marilyn lhe dissera que deveria olhar.

O que você vai dizer aos médicos? — perguntou Hobie a ela. Sheryl desviou o olhar e se concentrou no roteiro de Marilyn.

Eu bati numa porta — disse ela.

A voz baixa e anasalada. Embotada, como se ela ainda estivesse em estado de choque.

Você vai falar com a polícia? Ela balançou a cabeça.

Não, não vou fazer isso. Hobie concordou.

O que aconteceria se você falasse?

Eu não sei — respondeu ela. Desanimada e mecânica.

Sua amiga Marilyn morreria, com dores terríveis. Está entendendo? Ele ergueu o gancho para que ela o focalizasse do outro lado da sala.

Em seguida, saiu de trás da mesa. Deu a volta e ficou bem atrás de Marilyn. Usou a mão esquerda para afastar seu cabelo. Sua mão roçou a pele dela. Ela ficou rígida. Ele tocou sua bochecha com a curva do anzol. Sheryl con­cordou vagamente.

Sim, entendo — disse ela

Teria que ser rápido, pois, embora Sheryl já estivesse com uma saia e sa­patos novos, Chester ainda estava de cueca e camiseta. Tony mandou que os dois esperassem na recepção até o elevador de carga chegar; depois, apressou-os pelo corredor para dentro da cabine. Ele saiu na garagem e olhou ao redor. Correu com eles até o Tahoe e empurrou Chester para o banco de trás e Sheryl para o da frente. Ligou o motor e trancou as portas. Subiu a rampa e saiu para a rua.

Conseguia se lembrar, sem esforço, de cerca de vinte hospitais em Manhattan, e, até onde sabia, a maioria tinha atendimento de emergência. Seu instinto dizia-lhe para seguir para o mais ao norte possível, talvez até o Monte Sinai, na rua 100, pois achava que seria mais seguro colocar uma boa distância entre eles e onde quer que Sheryl estivesse. Mas seu tempo era apertado. Subir a cidade até o extremo norte e voltar levaria uma hora, tal­vez mais. Uma hora de que eles não poderiam dispor. Por isso, decidiu pelo St. Vincent, na 11a esquina com a Sétima Avenida. O Bellevue, na 27a com a 1a, era melhor geograficamente, mas, em geral, por algum motivo, esta­va sempre fervilhando de policiais. Essa era sua experiência. Praticamente, moravam lá. Portanto, seria o St. Vincent. E ele sabia que o St. Vincent tinha uma ampla área diante da entrada da emergência, onde a avenida Greenwich cortava a Sétima. Lembrou-se do layout de quando tinham saído para cap­turar a secretária do Costello. Uma grande área, quase como uma praça. Eles poderiam observá-la por todo o caminho até a entrada, sem precisar estacionar muito perto.

O trajeto levou oito minutos. Ele parou junto à calçada da esquerda, na Sétima, e apertou o botão para destravar as portas.

Fora — ordenou.

Ela abriu a porta e desceu para a calçada. Ficou ali, incerta. Então, afas­tou-se pela calçada, sem olhar para trás. Tony inclinou-se e bateu a porta atrás dela. Virou-se no seu assento para falar com Stone.

Fique de olho nela.

Stone já estava olhando para ela. Viu o tráfego parar e o sinal de pedes­tres acender. Viu-a andar para a frente com a multidão, tonta. Ela caminha­va mais devagar do que os outros, atrapalhando-se com os sapatos grandes.

A mão no rosto, escondendo-se. Chegou à calçada oposta bem depois de o sinal de pedestres voltar a se fechar. Um caminhão impaciente desviou para a direita e a contornou. Ela andou em direção à entrada do hospital. Atravessou a calçada larga. Em seguida, entrou no círculo de ambulâncias. Diante dela, havia um par de portas duplas. Cheias de marcas, portas plás­ticas flexíveis. Um trio de enfermeiras estava de pé ao lado delas, fazendo uma pausa para fumar um cigarro. Ela passou pelo grupo e seguiu direto para as portas. Empurrou-as, com esforço, usando as duas mãos. Elas se abriram. Ela entrou, e as portas se fecharam em suas costas.

Certo, você viu?

Stone concordou.

Sim, eu vi. Ela entrou.

Tony verificou o espelho e abriu caminho pelo fluxo de tráfego. Quando chegou cem metros mais adiante, Sheryl esperava na fila de triagem, repe­tindo insistentemente em sua cabeça o que Marilyn lhe dissera para fazer.

A corrida de táxi do aeroporto de Saint Louis até o Centro Nacional de Registros de Pessoal foi rápida e barata, e por um território familiar a Reacher. A maioria de suas viagens pelos Estados Undos envolveu pelo menos uma ida aos arquivos, procurando de volta no tempo por uma informação ou outra. Mas, desta vez, seria diferente. Ele estaria lá como civil. Não era a mesma coisa que ir fardado com a farda de major. Não era a mesma coisa de forma alguma. Ele tinha isso muito claro.

O acesso público é controlado pela equipe que ficava na recepção. Tecnicamente todo o arquivo faz parte do registro público, mas o pes­soal se dedica intensamente a manter esse fato bem obscuro. No passado, Reacher concordara com essa tática sem hesitar. Registros militares podem ser muito francos e precisam ser lidos e interpretados no contexto exato. Ele sempre se sentira satisfeito por serem mantidos longe do público. Mas agora ele era o público e se perguntava sobre como o jogo funcionaria. Ha­via milhões de arquivos empilhados em dezenas de depósitos enormes, e seria muito fácil ter que esperar dias ou semanas até que alguma coisa fosse encontrada, mesmo com a equipe correndo feito louca e aparentar estar fazendo o melhor trabalho possível. Ele já tinha visto isso acontecer antes, várias vezes, e de dentro. Era um ato muito plausível. Já vira funcionar, com um sorriso irônico no rosto.

Então eles pararam sob o sol quente do Missouri após pagarem o táxi e combinaram o que fariam. Entraram e viram um enorme aviso: Um Arqui­vo Por Vez. Posicionaram-se diante da funcionária e esperaram. Era uma mulher corpulenta, de meia-idade, com uma farda de sargento, ocupada com o tipo de trabalho cujo objetivo era realizar rigorosamente nada além de fazer as pessoas esperarem até que estivesse pronto. Após um algum tempo, ela empurrou dois formulários em branco sobre o balcão e apontou para o lugar onde um lápis estava amarrado à mesa com um pedaço de barbante.

Os formulários eram solicitações de acesso. Jodie preencheu seu último nome como Jacob e solicitou toda e qualquer informação sobre o major Jack Reacher, da Divisão de Investigação Criminal do Exército dos Estados Unidos. Reacher pegou o lápis dela e pediu toda e qualquer informação sobre o general Leon Jerome Garber. Deslizou os dois formulários de volta para a sargento, que olhou para eles e colocou em sua bandeja de saída. Ela tocou uma sineta próxima ao cotovelo e voltou ao trabalho. A idéia era que algum soldado ouviria a campainha e iria buscar os formulários para começar a busca paciente pelos arquivos.

Quem está trabalhando como supervisor hoje? — perguntou Reacher.

Era uma pergunta direta. A sargento pensou em alguma forma de evi­tar a resposta, mas nada lhe ocorreu.

Major Theodore Conrad — respondeu, relutante.

Reacher concordou. Conrad? Não era um nome do qual se lembrasse.

Você poderia dizer a ele que gostaríamos de vê-lo, rapidamente? E também encaminhar aqueles arquivos para a sala dele?

A maneira como ele falou ficava entre um pedido educado e um co­mando não expresso. Era o tom de voz que sempre achava muito útil no trato com os sargentos. A mulher pegou o telefone e fez a ligação.

Ele mandará alguém buscar vocês — disse ela, como se, em sua opi­nião, fosse surpreendente que Conrad lhes fizesse um favor tão grande.

Não precisa — disse Reacher. — Sei onde é. Já estive lá antes.

Ele mostrou o caminho para Jodie, subindo as escadas da recepção até um escritório espaçoso no segundo andar. O major Iheodore Conrad os esperava na porta. Farda de verão, o nome numa placa de acrílico sobre o bolso do peito. Parecia amigável, mas talvez um pouco amargo por seu posto. Tinha cerca de 45 anos, e ser ainda um major no segundo andar do centro de registros com essa idade significava que não tinha pressa para ir a nenhum outro lugar. Esperou, pois um soldado corria pelo corredor na direção dele, com duas pastas de arquivos grossas na mão. Reacher sorriu para si mesmo. Estavam recebendo um serviço nota 10. Quando aquele lu­gar queria agir com rapidez, conseguia ser realmente veloz. Conrad pegou as pastas e dispensou o corredor.

Então, o que posso fazer por vocês? — perguntou ele. Seu sotaque era lento e arrastado, como o Mississipi de onde ele viera, mas hospitaleiro o bastante.

Bem, precisamos de sua máxima ajuda, major — disse Reacher. — E esperávamos que a leitura dessas pastas o levasse a se sentir disposto a nos atender. Conrad deu uma olhada nas pastas que tinha nas mãos, ficou de lado e abriu caminho para que entrassem em seu escritório. Era um lugar silencioso, com as paredes revestidas. Indicou um par de poltronas de cou­ro e foi para sua mesa. Sentou-se e ajeitou as pastas, uma por cima da outra. Abriu a primeira, que era a de Leon, e começou a passar os olhos. Levou dez minutos para ver o que precisava. Reacher e Jodie ficaram sentados, olhando pela janela. A cidade banhada por um sol claro. Conrad terminou de ler os arquivos e verificou os nomes nos formulários de requisição. De­pois, ergueu os olhos.

Dois registros muito bons — disse. — Muito impressionantes mes­mo. E eu entendi a questão. Você é, obviamente, o próprio Jack Reacher, e desconfio que a sra. Jodie Jacob aqui seja a Jodie Garber mencionada na pasta como a filha do general. Acertei?

Jodie concordou e sorriu.

Achei que sim — disse Conrad. — E vocês acham que, por serem da família, por assim dizer, podem contar com um acesso melhor e mais rápido ao arquivo?

Reacher balançou a cabeça com solenidade.

Isso jamais passou por nossas mentes — disse. — Sabemos que todos os pedidos de acesso são tratados com absoluta equanimidade.

Conrad sorriu e depois deu uma gargalhada.

Você nem mexeu o rosto — disse. — Muito bom mesmo! Você joga pôquer? Deveria jogar, sabe? Então, em que posso ajudar vocês?

Precisamos ver o que vocês têm sobre Victor Truman Hobie — respondeu Reacher.

Vietnã?

Você o conhece? — perguntou Reacher, surpreso. Conrad não mu­dou a expressão.

Nunca ouvi falar. Mas, com Truman como segundo nome, ele nasceu entre 1945 e 1952, não foi? Muito novo para a Coréia e muito velho para o Golfo.

Reacher concordou. Começava a simpatizar com Theodore Conrad. Era um homem perspicaz. Gostaria de olhar os registros dele e ver o que o mantinha como major atrás de uma mesa em Missouri, aos 45 anos.

Vamos trabalhar aqui mesmo — disse Conrad. — O prazer é meu.

Ele pegou o telefone e ligou diretamente para a sala do arquivo, igno­rando a sargento do balcão de atendimento. Piscou para Reacher e pediu o arquivo de Hobie. Mantiveram um silêncio confortável até o corredor chegar com a pasta, cinco minutos depois.

Isso foi rápido — disse Jodie.

Na verdade, um pouco lento — respondeu Conrad. — Pense pelo ponto de vista do soldado. Ele me escuta dizer H, de Hobie, corre até a seção H, localiza o arquivo pela primeira e segunda iniciais, pega a pasta e corre para cá com ela. Meu pessoal segue os padrões normais do Exército em termos de preparo físico, o que significa que provavelmente ele conse­gue correr mais de um quilômetro em cinco minutos. E, apesar de isto aqui ser um lugar grande, tem bem menos de um quilômetro a ser percorrido no triângulo formado entre a mesa dele, a seção H e este escritório, pode acreditar. Portanto, na verdade, ele foi um pouco lento. Desconfio que a sargento o interrompeu apenas para me perturbar.

A capa da pasta de Victor Hobie era velha e áspera, com uma tabela impressa na frente, onde as solicitações de acesso eram registradas com cali­grafia caprichada. Havia apenas duas. Conrad percorreu os nomes com um dedo.

Solicitações por telefone — disse. — O próprio general Garber, em março deste ano. E alguém chamado Costello, ligando de Nova York, no início da semana passada. Por que todo este súbito interesse?

É o que esperamos descobrir — respondeu Reacher.

Um combatente tem um arquivo grosso, especialmente um soldado que esteve na guerra trinta anos antes. Três décadas é tempo suficiente para que todos os relatórios e observações acabem chegando exatamente ao lu­gar certo. A papelada de Victor Hobie era uma massa compacta de cinco centímetros de espessura. A velha capa esgarçada pressionava o conteúdo e moldava-se a ele. Reacher lembrou-se da pasta de couro preta de Costello, que ele vira no bar em Key West. Aproximou sua cadeira da de Jodie e da beirada da mesa de Conrad, que apoiou o arquivo na mesa e o virou sobre a madeira brilhante, abrindo-o como se fosse exibir um tesouro raro para conhecedores interessados.

 

As instruções de Marilyn foram precisas, e Sheryl as seguiu ao pé da letra. O primeiro passo era receber tratamento. Ela foi até o balcão e esperou numa cadeira de plástico duro na seção de triagem. A emergência do St. Vincent estava menos movimentada do que costumava ser, e ela foi atendi­da em dez minutos, por uma médica jovem o bastante para ser sua filha.

Como foi que isso aconteceu? — perguntou a médica.

Eu bati numa porta.

A médica a levou para um local protegido por uma cortina e a fez sentar na mesa de exames. Começou verificando os reflexos de seus membros.

Uma porta? Você tem certeza absoluta disso?

Sheryl concordou. Atenha-se à sua história. Marilyn contava com ela para isso.

Estava semi-aberta. Eu me virei e não vi. A médica não disse nada e acendeu uma luz diante do olho esquerdo de Sheryl. Depois, do direito.

Alguma vista borrada?

Sheryl concordou.

Um pouco.

Dor de cabeça?

Demais.

A médica parou e estudou o formulário de internação.

Certo, vamos bater um raio X dos ossos do rosto, é claro, mas tam­bém de todo o crânio, além de uma tomografia. Precisamos ver exatamente o que aconteceu aí dentro. Seu seguro é bom, então vou chamar um cirur­gião para dar uma olhada logo em você, pois, se precisar de reconstrução, o melhor é começar o quanto antes, certo? Você então precisa vestir um avental e se deitar. Depois, vou te aplicar um analgésico para aliviar a dor de cabeça.

Sheryl ouviu Marilyn insistir faça a ligação antes do analgésico, para não confundir e esquecer as coisas.

Preciso de um telefone — disse, preocupada.

Você pode ligar para o seu marido, se quiser — disse a médica, com voz neutra.

Não, não sou casada. É um advogado. Preciso ligar para o advogado de uma pessoa.

A médica olhou para ela e deu de ombros.

Certo, no final do corredor. Mas seja rápida.

Sheryl foi até a fileira de telefones diante da área de triagem. Ligou para a telefonista e pediu uma ligação a cobrar, como Marilyn a instruíra. Repe­tiu o número que havia memorizado. A chamada foi atendida no segundo toque.

Forster e Abelstein — disse uma voz clara. — Em que posso ajudar?

Estou ligando em nome do sr. Chester Stone — disse Sheryl. — Pre­ciso falar com seu advogado.

Seria o próprio doutor Forster — disse a voz. — Aguarde, por favor.

Enquanto Sheryl escutava a música de espera, a médica estava a vinte passos de distância, na mesa principal, também ligando. Mas a dela não ti­nha música alguma. Era para a Unidade de Violência Doméstica da polícia de Nova York.

Aqui é do St. Vincent — dizia ela. — Tenho mais uma para vocês. Essa diz que bateu numa porcaria de porta. Nem admite que é casada, mui­to menos que ele a agrediu. Vocês podem vir aqui e falar com ela quando quiserem.

 

O primeiro item do arquivo era a inscrição original de Victor Hobie para entrar para o Exército. Estava ressecada e tinha as bordas marrons devido ao tempo, escrita a mão, com a mesma caligrafia canhota de estudante que tinham visto nas cartas para casa, em Brighton. Continha um resumo de sua escolaridade, seu desejo de pilotar helicópteros e não muito mais do que isso. Diante daquilo, não se tratava de um astro em ascensão. Mas, naquela época, para cada garoto que se voluntariava, havia outros vinte comprando passagens de ônibus só de ida para o Canadá, e por isso os recrutadores do Exército trataram de agarrar Hobie com as duas mãos e mandá-lo direto para o exame médico.

Ele foi submetido a um exame para voo, que era mais rígido do que o padrão, especialmente quanto à visão e ao equilíbrio. Passou com A-l. Um metro e oitenta, 77 quilos, visão 20/20, boa capacidade pulmonar, nenhu­ma doença infecciosa. O exame fora realizado no início da primavera e Reacher podia imaginar o garoto pálido do inverno de Nova York vestindo cueca samba-canção sobre um piso de madeira nua, com uma fita métrica em torno do peito.

O item seguinte eram os vales para viagem e ordens para se apresentar no forte Dix em duas semanas. O maço de papéis a seguir era de lá. Come­çava com um formulário que ele assinara ao chegar, comprometendo-se irrevogavelmente com o serviço leal ao Exército dos Estados Unidos. O período de treinamento básico no forte Dix foi de doze semanas.

Seis avaliações de proficiência. Sua pontuação ficou muito acima da média. Nenhum comentário foi registrado.

Depois, uma requisição de vouchers de viagem para o forte Polk e uma cópia das ordens para se apresentar lá para um mês de treinamento avança­do de infantaria. Mais algumas notas sobre seus progressos com as armas. Ele foi considerado bom, o que significava muito em Polk. No Dix, você é classificado como bom se puder reconhecer um rifle a dez passos de distân­cia. Em Polk, essa classificação indicava excelente coordenação entre mãos e olhos, controle muscular firme, temperamento calmo. Reacher não era especialista em vôo, mas achou que os instrutores seriam bastante enfáticos sobre deixar um helicóptero nas mãos daquele rapaz.

Mais alguns vouchers de viagem, dessa vez para o forte Wolters, no Texas, onde ficava a escola de pilotos de helicópteros do Exército. Uma nota do comandante de Polk indicava que Hobie recusara uma licença de uma semana e preferira seguir direto para lá. Apenas uma declaração neutra, mas que guardava um tom de aprovação, mesmo após todos aqueles anos de serviço. Ali estava um sujeito que não via a hora de entrar em ação.

A papelada ficava mais densa em Wolters. Um período de cinco meses, coisa séria, como uma faculdade. Primeiro, um mês de treinamento pré-vôo, com uma concentração pesada em física, aeronáutica e navegação, em salas de aula. Era preciso passar para ir adiante. Hobie foi excelente. Os ta­lentos matemáticos que o pai esperava se voltarem para a contabilidade fo­ram decisivos naquelas matérias. Ele ficou entre os primeiros de sua turma de pré-vôo. O único ponto negativo foi uma pequena observação sobre seu comportamento. Um oficial o criticava por estar trocando favores em troca de orientação. Hobie estava ajudando alguns colegas em dificuldade com equações complexas, e, em troca, eles poliam suas botas e limpavam seu kit. Reacher deu de ombros. O oficial, obviamente, era um idiota. Hobie estava em treinamento para ser piloto de helicóptero, não uma porcaria de santo.

Os quatro meses seguintes, em Wolters, foram dedicados ao trei­namento preliminar de voo, inicialmente em Hillers H-23. O primeiro instrutor de Hobie foi um sujeito chamado Lanark. Suas anotações de trei­namento foram escritas com garranchos, muito anedóticas, nada militares.

Por vezes, muito engraçadas. Ele dizia que aprender a pilotar um helicópte­ro era como aprender a andar de bicicleta quando criança. Você levava um tombo, e mais outro, e mais outro, até que, de repente, a coisa dava certo e você nunca mais esquecia como fazer. Para Lanark, Hobie talvez tenha levado mais tempo do que deveria para dominar a técnica, mas, depois, seu progresso avançou de excelente para notável. Ele o liberou do Hiller e o passou para o Sikorsky H-19, o que eqüivalia a passar para uma bicicleta de dez marchas. Seu desempenho no Sikorsky foi ainda melhor do que no Hiller. Tinha um talento natural, e, quanto mais complicada a máquina, melhor ele se saía.

Terminou o treinamento no Wolters em segundo lugar geral de sua turma, com destaque, atrás apenas de um ás chamado A. A. DeWitt. Mais vouchers de viagem os levaram juntos para o forte Rucker, no Alabama, para mais quatro meses de treinamento avançado de vôo.

Será que já ouvi falar desse DeWitt? — perguntou Reacher. — Esse nome soa familiar.

Conrad acompanhava a leitura de cabeça para baixo.

Pode ser o General DeWitt — disse. — Ele comanda a escola de heli­cópteros lá em Wolters agora. Faz sentido, certo? Vou dar uma olhada.

Ele ligou direto para o arquivo e pediu os registros do general A. A. DeWitt. Conferiu o relógio quando desligou o telefone.

Deve ser mais rápido, porque a seção D fica mais próximo da mesa dele do que a H. A não ser que aquela sargento intrometida interfira nova­mente.

Reacher sorriu rapidamente e voltou a acompanhar Jodie na viagem de trinta anos no passado. Forte Rucker era o lugar onde as coisas aconteciam, helicópteros de ataque na linha de frente novinhos em folha substituin­do as máquinas de treinamento. Iroquois Bell UH-1, apelidados de Hueys. Máquinas grandes e ferozes, com turbinas, o inesquecível wop-wop-wop das lâminas giratórias de quase 15 metros de comprimento por 54 centímetros de largura. O jovem Victor Hobie trovejou com um deles pelos céus do Alabama por dezessete longas semanas e depois foi aprovado com créditos e distinções no desfile fotografado pelo pai.

Três minutos e quarenta segundos — sussurrou Conrad.

O corredor estava entrando com a pasta de DeWitt. Conrad inclinou-se para a frente e pegou o material. O rapaz saudou-o e saiu.

Não posso deixar vocês verem isso — disse Conrad. — O general ainda está na ativa, certo? Mas eu digo se é o mesmo DeWitt.

Ele abriu a pasta no começo, e Reacher viu partes de papéis iguais aos encontrados no arquivo de Hobie. Conrad passou os olhos e assentiu.

O mesmo DeWitt. Ele sobreviveu à selva e continuou no serviço depois. Completamente louco por helicópteros. Meu palpite é que ele vai terminar a carreira em Wolters.

Reacher concordou. Olhou para a janela. O sol ia descendo ao longo da tarde.

Vocês aceitam um café? — perguntou Conrad.

Claro — disse Jodie. Reacher concordou novamente.

Conrad pegou o telefone e ligou para o arquivo.

Café — disse. — E não é um nome para procurar no arquivo. Apenas um cafezinho. Três xícaras, a melhor porcelana, ok?

Quando o corredor trouxe o café numa bandeja de prata, Reacher já estava no forte Belvoir, em Virgínia, com seu novo colega, A. A. DeWitt, reportando-se à 3a Companhia de Transporte da Divisão da Primeira Cavalaria. Os dois rapazes ficaram duas semanas lá, o bastante para que o Exército adicionasse mobilidade aérea à designação de unidade de ambos e depois alterasse completamente, para a Companhia B, 229o Batalhão de Helicópteros de Assalto. Ao fim de duas semanas, a companhia renomeada navegou para longe do litoral do Alabama, parte de um comboio de dezes­sete navios em uma viagem marítima de 31 dias até a baía Long Mai, trinta quilômetros ao sul de Qui Nhon e dezoito mil quilômetros de distância dos Estados Unidos.

Trinta e um dias no mar é um mês inteiro, e o comando da companhia inventou o que fazer para afastar o tédio. O arquivo de Hobie indicou que ele se inscreveu para a manutenção, o que significava limpeza e lubrificação intermináveis dos Hueys desmontados para combater a maresia no porão do navio. A observação era favorável, e Hobie chegou à praia da Indochina como primeiro-tenente, após deixar os Estados Unidos como segundo e, 13 meses após entrar para o Exército, era candidato a oficial. Promoções por mérito para um recruta valoroso. Um dos bons garotos. Reacher se lem­brou das palavras de Ed Steven, no sol quente do lado de fora da loja de fer­ragens: muito sério, muito honesto, mas não muito mais do que o normal.

Creme? — perguntou Conrad.

Reacher balançou a cabeça, junto com Jodie.

Puro — disseram juntos.

Conrad serviu, e Reacher continuou lendo. Havia dois tipos de Hueys em uso naquela época: um com armas e o outro de transporte, cujo apelido era slick, escorregadio. A companhia B foi designada para os de transpor­te, atendendo às necessidades da Primeira Cavalaria no campo de batalha. Apesar de serem aeronaves de transporte, continham armas. Eram Hueys padrão, sem as portas laterais e com pesadas metralhadoras presas por ca­bos de cada lado. A tripulação era um piloto e um copiloto, dois operado­res de metralhadora e o chefe da tripulação atuando como engenheiro e mecânico. Um slick podia carregar tantos soldados quantos conseguissem se apertar na caixa de sapato atrás dos dois atiradores, uma tonelada de munição, ou qualquer combinação das duas coisas.

O treinamento prático tinha a finalidade de mostrar que o Vietnã era muito diferente do Alabama. Não havia nenhuma graduação formal liga­da ao treinamento, mas Hobie e DeWitt foram os primeiros novos pilotos enviados para a selva. A exigência era que voassem em cinco missões de combate como copilotos, e, caso se saíssem bem, assumiriam o lugar do piloto e teriam seus próprios co-pilotos. Foi então que a coisa começou para valer, tudo refletido no arquivo. A outra metade inteira do arquivo estava repleta de relatórios de missão em folhas de papel finíssimas. A linguagem era seca e objetiva. Não foram escritas por ele. Era trabalho do secretário da companhia.

Os combates foram muito esporádicos. A guerra fervia por toda parte, sem cessar, mas Hobie passou muito tempo no chão, devido ao clima. Por vários dias seguidos, a neblina do Vietnã fazia com que voar baixo pelos vales da selva fosse suicídio. Quando de repente o tempo melhorava, os relatórios se acumulavam numa mesma data: três, cinco, às vezes sete mis­sões por dia, contra a furiosa oposição inimiga, infiltrando, recuperando, abastecendo e reabastecendo as tropas no solo. A neblina então retornava, e os Hueys ficavam inertes, outra vez à espera em seus cercados. Reacher imaginou Hobie deitado, bebendo uísque vagabundo por dias sem-fim, frustrado ou aliviado, entediado ou tenso, para, de uma hora para outra, ter que entrar em ação explosiva e aterrorizante, durante horas de combate frenético.

Os relatórios estavam separados em duas metades, documentando o fim da primeira viagem, a rotina da entrega da medalha, a longa licença de volta em Nova York, o início da segunda viagem. Novos relatórios de com­bate. Exatamente o mesmo trabalho, o mesmíssimo padrão. Os relatórios na segunda viagem eram em menor quantidade. A última folha do arquivo registrava a 991a missão de combate do tenente Victor Hobie. Não foi uma missão de rotina da Primeira Cavalaria. Tratou-se de uma missão especial. Ele decolou de Pleiku, rumo ao leste, para uma zona de pouso improvisa­da próxima ao passo de An Khe. As ordens eram para que voasse em um dos dois helicópteros enviados para resgatar um pessoal infiltrado à espera na zona de pouso. DeWitt voou na retaguarda. Hobie chegou lá primeiro. Pousou no centro da pequena área de pouso, sob fogo cerrado de metra­lhadoras vindo da selva. Viram que ele levou a bordo apenas três homens. Decolou quase imediatamente. A fuselagem do Huey estava sendo atingida pelas metralhadoras. Seus próprios atiradores devolviam o fogo cegamente através da coberta das árvores. DeWitt voava em círculos enquanto Hobie se afastava. Ele viu o Huey de Hobie receber uma rajada pesada de disparos nos motores. Em seu relatório formal, conforme anotado pelo secretário, dizia que viu o rotor do Huey parar e as chamas aparecerem junto ao tanque de combustível. O helicóptero caiu através da cobertura da mata a cerca de cinco quilômetros da área de pouso, num ângulo baixo e a uma velocidade que DeWitt estimava ser superior a 120 por hora. DeWitt informou ter vis­to uma explosão verde através da folhagem, o que normalmente indicava a explosão do tanque de combustível no solo da floresta. Montou-se uma missão de busca e resgate, mas ela foi abortada devido ao tempo. Não foram vistos fragmentos dos restos. Como a área que ficava a cerca de seis quilô­metros a oeste da passagem foi considerada de mata virgem e inacessível, o procedimento era considerar que não havia tropas inimigas a pé próximas ao local. Assim, não havia risco de captura imediata pelo inimigo. Portanto, os oito homens no Huey foram considerados desaparecidos em missão.

Mas por quê? — perguntou Jodie. — DeWitt viu o negócio explodir. Por que considerá-los desaparecidos? Obviamente morreram, certo?

Major Conrad encolheu os ombros.

Acho que sim — disse ele. — Mas ninguém tem certeza absoluta. DeWitt viu uma explosão no meio da vegetação, e isso é tudo. Teorica­mente, poderia haver um depósito de munição inimigo, atingido por um tiro fortuito enquanto a máquina caía. Pode ter sido qualquer coisa. Eles só eram considerados mortos em ação quando havia certeza absoluta. Quando alguém tivesse visto a coisa acontecendo com clareza. Aviões de combate caíram a trezentos quilômetros no meio do oceano, e o piloto foi conside­rado desaparecido, pois, talvez pudesse ter nadado para algum lugar. Para serem considerados mortos, era preciso haver alguma testemunha. Eu po­deria mostrar uma pasta dez vezes mais grossa do que essa, recheada de ordens que definem exatamente como descrever as baixas.

Por quê? — perguntou Jodie novamente. — Tinham medo da im­prensa?

Conrad fez que não com a cabeça.

Estou falando de questões internas. Quando temiam a imprensa, bastava mentir. Tudo isso tinha dois motivos. Primeiro, não queriam dar a informação errada para o parente mais próximo. Acredite, coisas estranhas aconteceram. Era um ambiente completamente estranho. As pessoas so­breviveram a coisas que você nunca imaginaria serem possíveis. Apareciam mais tarde. Eram encontradas. Havia um grande movimento de busca e sal­vamento, o tempo todo. Eram feitos prisioneiros, e os vietcongues nunca fa­ziam listas. Só fizeram isso anos depois. E não dava para dizer aos parentes que o garoto morrera para depois ele aparecer vivo. Por isso, preferiam con­tinuar a dizer que estavam desaparecidos pelo maior tempo que pudessem.

Ele fez uma longa pausa.

O segundo motivo é, sim, eles tinham medo. Mas não da imprensa. Estavam com medo de si mesmos. Medo de dizer a si mesmos que estavam apanhando, apanhando feio.

Reacher examinava o relatório final da missão, queria ver o nome do copiloto. Era o segundo-tenente F. G. Kaplan. Ele foi o parceiro regular de Hobie na maior parte da segunda viagem.

Posso ver a pasta deste cara? — perguntou ele.

Seção K? — perguntou Conrad. — Cerca de quatro minutos.

Ficaram em silêncio, com o café frio até o corredor trazer o histórico da vida de F. G. Kaplan para o gabinete. Era uma pasta velha e grossa, de ta­manho e antigüidade similares à de Hobie. Tinha a mesma tabela impressa na capa, registrando os pedidos de acesso. A única anotação com menos de vinte anos era sobre uma consulta telefônica feita em abril do ano anterior feita por Leon Garber. Reacher virou o arquivo e abriu-o pela parte de trás. Começou pela penúltima folha de papel. Era idêntica à última folha da pasta de Hobie. O mesmos relatório de missão, com o mesmo testemunho ocular de DeWitt, escrito pelo mesmo funcionário, com a mesma caligrafia.

Mas a folha final do arquivo de Kaplan fora datada exatamente dois anos depois do relatório final da missão. Tratava-se de uma determinação formal feita após a devida consideração das circunstâncias pelo Departa­mento do Exército de que F. G. Kaplan tinha sido morto em ação seis qui­lômetros a oeste do passo de An Khe, quando o helicóptero em que era co-piloto foi derrubado por fogo inimigo terra-ar. Nenhum corpo havia sido recuperado, mas a morte deveria ser considerada real, para as devidas ho­menagens e o pagamento de pensões. Reacher enquadrou a folha de papel sobre a mesa.

Então, por que Victor Hobie não tem um desses?

Conrad balançou a cabeça.

Não sei.

Quero ir para o Texas — disse Reacher.

O aeroporto de Noi Bai, em Hanói, e o Hickam Field, na periferia de Honolulu, ficam exatamente na mesma latitude, por isso o Starlifter da For­ça Aérea dos Estados Unidos não voou nem para o norte, nem para o sul. Apenas seguiu uma trajetória de voo em linha reta de oeste para leste pelo Pacífico, seguindo confortavelmente entre o Trópico de Câncer e o para­lelo vinte. Pouco menos de dez mil quilômetros, a quase mil quilômetros por hora, dez horas de voo, mas começou a se aproximar sete horas antes da hora da decolagem, às três horas da tarde do dia anterior. O capitão da Força Aérea fez o anúncio costumeiro quando cruzaram a linha de mu­dança de data, e o americano alto de cabelos grisalhos na parte traseira da cabine acertou o relógio para trás e acrescentou mais um dia de bônus à sua vida.

Hickam Field é a principal instalação da aeronáutica no Havaí, mas compartilha a pista e o controle de tráfego aéreo com o Aeroporto Internacional de Honolulu, de modo que o Starlifter teve de fazer um grande e can­sativo círculo sobre o mar, à espera do pouso de um JAL 747, proveniente de Tóquio. Em seguida, virou, ficou nivelado e pousou atrás dele, os pneus cantando e os motores rugindo com a inversão do impulso. A piloto não estava preocupada com as delicadezas dos voos civis, de modo que acionou o freio com força e fez um pouso curto o suficiente para sair pelo primeiro acesso de taxiamento da pista. Havia um pedido do aeroporto para que os aviões militares fossem mantidos longe dos turistas. Especialmente, dos turistas japoneses. A piloto era de Connecticut e não tinha grande interesse pela indústria de consumo do Havaí ou pelas sensibilidades orientais. O primeiro acesso era o caminho mais curto para o complexo militar, e por isso ela sempre procurava usá-lo.

O Starlifter taxiou devagar, como apropriado, e parou a cinqüenta me­tros de um prédio longo e baixo de cimento, perto da fiação. A piloto des­ligou os motores e esperou, em silêncio. A equipe de terra, usando farda completa, marchou lentamente rumo ao ventre do avião, arrastando um cabo grosso. Prenderam-no em uma entrada sob o nariz, e os sistemas do avião foram acionados de novo com a energia do próprio aeródromo. Des­sa forma, a cerimônia poderia ser realizada em silêncio.

A guarda de honra em Hickam naquele dia era a normal, formada por oito homens, com o mosaico habitual de quatro fardas de gala diferentes das Forças Armadas dos Estados Unidos, dois do Exército, dois da Mari­nha, dois dos Fuzileiros Navais e dois da Força Aérea. Os oito marcharam devagar para a frente e esperaram em silêncio, em formação. A piloto acio­nou a chave, e a rampa traseira foi baixada, emitindo um lamento. Apoiou-se no asfalto quente do território americano, e a guarda seguiu em marcha lenta até o centro exato da barriga do avião. Passaram em silêncio entre as fileiras gêmeas dos tripulantes e seguiram em frente. O mecânico de voo removeu as tiras de borracha, e a guarda de honra levantou o primeiro cai­xão, retirando-o da prateleira e o colocando nos ombros. Marcharam lenta­mente de volta, pelo interior da fuselagem escurecida, desceram a rampa e saíram para a tarde escaldante. O alumínio polido brilhou, e a bandeira se destacou sob o sol, diante do Pacífico azul e do planalto de Oahu. Viraram à direita sobre a pista e marcharam lentamente pelos cinqüenta metros ao longo da construção baixa de cimento. Entraram, ajoelharam-se e baixa­ram o caixão. Ficaram em silêncio, as mãos cruzadas nas costas, cabeças inclinadas, e então se viraram e marcharam devagar de volta para o avião.

Levaram uma hora para descarregar os sete caixões. Somente quando a tarefa estava completa, o americano alto e grisalho deixou seu assento. Ele usou a escada do piloto e fez uma pausa no alto para esticar os membros cansados sob o sol.

 

STONE PRECISOU ESPERAR CINCO MINUTOS ATRÁS do vidro preto na parte traseira do Tahoe, porque a área de carga no subsolo do World Trade Center estava cheia. Tony ficou por perto, encostado em uma coluna no escuro e em meio ao barulho, esperando um caminhão de entrega sair com uma explosão de diesel e um momento se abrir antes que o próximo pudesse entrar. Ele usou esse momento para apressar Stone para o outro lado da garagem, até o eleva­dor de carga. Apertou o botão, e eles subiram em silêncio, de cabeça bai­xa, respirando forte, sentindo o cheiro intenso do piso grosso de borracha. Saíram na área de serviço do 88o andar, e Tony examinou a área à frente. O caminho estava livre até a porta do escritório de Hobie.

O homem atarracado estava no balcão da recepção. Caminharam em linha reta, passando por ele e entrando na sala. Estava escuro, como de costume. As persianas estavam bem-fechadas e todos estavam calados. Hobie estava à mesa, sentado imóvel e em silêncio, olhando para Marilyn, sentada no sofá com as pernas encolhidas debaixo de si.

Então? — perguntou ele. — Missão cumprida?

Stone concordou.

Ela entrou, tudo certo.

Onde? — perguntou Marilyn. — Que hospital?

St. Vincent — respondeu Tony. — Direto para a emergência.

Stone concordou, confirmando, e viu que Marilyn sorriu de leve, ali­viada.

Certo — disse Hobie, cortando o silêncio. — Essa foi a boa ação do dia. Agora, aos negócios. Que complicações são essas de que preciso saber?

Tony empurrou Stone em torno da mesa de centro até o sofá. Ele se sen­tou pesadamente ao lado de Marilyn e olhou para a frente, fixando o nada.

Então? — perguntou Hobie.

As ações — disse Marilyn. — Ele não é o proprietário direto.

Hobie olhou para ela.

E claro que é, droga. Eu verifiquei na bolsa de valores.

Ela concordou.

Bem, sim, ele é o proprietário. O que quero dizer é que não tem o controle. Não tem acesso direto a elas.

E por que não, diabos?

Existe um fundo. O acesso é regulado pelos administradores.

Que fundo? Por quê?

O pai dele instituiu, antes de morrer. Ele não confiava em Chester para deixar tudo na mão dele. Achou que ele precisava de supervisão.

Hobie olhou para ela.

Qualquer transação maior com as ações precisa de todas as assinatu­ras — continuou ela. — Dos administradores.

Silêncio.

De ambos — finalizou.

Hobie desviou o olhar para Chester Stone. Era como um feixe de luz fazendo buscas enviesadas. Marilyn observou o olho bom. Viu que estava pensando. Viu-o engolir a mentira, como sabia que ia acontecer, pois estava de acordo com o que ele já pensava. A empresa de Chester estava no buraco porque ele era um péssimo empresário. Um empresário ruim rapidamente teria sido reconhecido por um parente próximo, como um pai. E um pai responsável teria protegido o legado da família com um fundo.

É inviolável — disse ela. — Só Deus sabe como nós tentamos rom­pê-lo.

Hobie concordou. Apenas um leve movimento da cabeça. Quase imperceptível. Marilyn sorriu por dentro. Um sorriso de triunfo. Seu comentário final o convencera. Um fundo é algo a ser rompido. Tinha que ser enfrentado. Assim, as tentativas para rompê-lo provavam sua existência.

Quem são os administradores? — perguntou ele em voz baixa.

Eu sou um deles — respondeu ela. — O outro é o sócio majoritário de uma firma de advocacia.

Apenas dois administradores?

Ela concordou.

E você é um deles?

Ela concordou novamente.

E você já tem o meu voto. Só quero me livrar dessa porcaria e de você atrás da gente.

Hobie assentiu de volta para ela.

Você é uma mulher inteligente.

Que escritório de advocacia? — perguntou Tony.

Forster e Abelstein — respondeu ela. — Aqui mesmo, na cidade.

Quem é o sócio majoritário? — perguntou Tony.

Um sujeito chamado David Forster — disse Marilyn.

Como marcamos a reunião? — perguntou Hobie.

Eu ligo para ele — disse Marilyn. — Ou Chester, mas acho que, no momento, é melhor eu ligar.

Então ligue e marque para esta tarde.

Ela balançou a cabeça.

Não será tão rápido. Pode levar uns dois dias.

Silêncio. Apenas as batidas e vibrações surdas da respiração do edifí­cio gigantesco. Hobie batucou com o gancho na mesa. Fechou os olhos. A pálpebra deformada se manteve parcialmente aberta. O globo ocular gi­rou para cima, e uma faixa branca apareceu, como uma lua crescente.

Amanhã de manhã — disse em voz baixa. — No máximo. Diga que é uma questão de extrema urgência para vocês.

Os olhos se abriram de repente.

E mande que envie o contrato do fundo por fax para mim — sussur­rou ele. — Agora. Preciso saber com que diabos estou lidando.

Marilyn tremia por dentro. Ela empurrou o estofamento macio, tentan­do se estabilizar.

Não será um problema. Na verdade, é apenas uma formalidade.

Então, façamos o telefonema — disse Hobie.

Marilyn não estava firme sobre os pés. Ficou em pé, oscilante, alisando o vestido sobre os quadris. Chester a tocou no ombro, apenas um segundo. Um pequeno gesto de apoio. Ela se endireitou e seguiu Hobie até o balcão na recepção.

Aperte o nove para discar — disse ele.

Ela foi para trás do balcão, e os três homens a observaram. O telefone estava numa mesinha. Ela percorreu os botões e não viu nenhum para viva voz. Ela relaxou um pouco e tirou o fone do gancho. Apertou o nove e ou­viu o tom de discagem.

Comporte-se — disse Hobie. — Você é uma mulher inteligente, lem­bre-se, e, por ora, é melhor continuar assim.

Ela concordou. Ele ergueu o gancho. Brilhou sob a luz artificial. Parecia pesado. Era uma bela peça, cuidadosamente polida, mecanicamente sim­ples e terrivelmente brutal. Ela viu seu convite para imaginar as coisas que ele seria capaz de fazer com aquilo.

Forster e Abelstein — disse uma voz clara em seu ouvido. — Em que posso ajudar?

Marilyn Stone — respondeu ela. — Para o sr. Forster.

Sentiu a garganta subitamente seca, a voz ficou baixa e rouca. Ouviu um toque de música eletrônica e depois os ecos de um grande escritório.

Forster — atendeu uma voz grave.

David, é Marilyn Stone.

Fez-se um segundo de silêncio mortal. Naquele segundo, ela soube que Sheryl tinha feito tudo certo.

Estão nos ouvindo? — Forster perguntou em voz baixa.

Não, estou bem — disse Marilyn, com uma voz alegre.

Hobie pousou o gancho no balcão, o aço brilhando na altura do peito, a quarenta centímetros dos olhos dela.

Você precisa da polícia — disse Forster.

Não, é apenas uma reunião dos administradores do fundo. Qual o horário mais próximo que podemos nos encontrar?

Sua amiga Sheryl me disse o que vocês querem. Mas existem proble­mas. Nosso pessoal não tem como lidar com esse tipo de coisa. Não esta­mos equipados para isso. Não somos esse tipo de firma. Eu terei que achar um detetive particular para você.

Amanhã de manhã está ótimo para nós. Existe um elemento de ur­gência, eu receio.

Deixe eu chamar a polícia para vocês.

Não, David, na semana que vem será tarde demais, mesmo. Precisa­mos agir logo, se possível.

Mas não sei onde procurar. Nunca usamos detetives particulares.

Espere um momento, David. — Ela cobriu o bocal com a mão e er­gueu o olhar para Hobie.

Se você quiser que seja amanhã, terá que ser no escritório deles.

Hobie fez que não com a cabeça.

Tem que ser aqui, no meu campo.

Ela afastou a mão.

David, e depois de amanhã? Tem que ser feito aqui. Trata-se de uma negociação delicada.

Você não quer mesmo a polícia? Tem certeza absoluta disso?

Bem, existem complicações. Você sabe como as coisas podem ficar um tanto delicadas às vezes.

Certo, mas terei que encontrar alguém adequado. Posso levar algum tempo. Terei que pedir indicações por aí.

Isso é ótimo, David.

Certo — repetiu Forster. — Se você tem certeza, vou tratar disso agora mesmo. Mas não está claro para mim exatamente o que você espera conseguir.

Sim, concordo. Você sabe que sempre detestamos o jeito como papai resolveu isso. A interferência externa pode mudar as coisas, não é mesmo?

Duas da tarde. Depois de amanhã. Não sei quem irá, mas vou conse­guir alguém bom. Assim está bem?

Depois de amanhã, duas da tarde — repetiu ela. Ela informou o endereço. — Está ótimo. Obrigado, David.

Sua mão tremia, e o telefone chocalhou ao ser colocado no gancho.

Você não pediu o contrato do fundo — disse Hobie.

Ela deu de ombros, nervosa,

Não é preciso. É apenas uma formalidade. Ele ficaria desconfiado.

Silêncio, e depois Hobie concordou.

Certo — disse ele. — Depois de amanhã. Duas da tarde.

Precisamos de roupas — disse ela. — Em tese, será uma reunião de negócios. Não podemos estar vestidos assim.

Hobie sorriu.

Gosto de vocês vestidos assim. Os dois. Mas acho que Chester pode pegar meu terno emprestado de volta para a reunião. Você continua assim.

Ela concordou, vagamente. Estava cansada demais para insistir.

De volta para o banheiro — ordenou Hobie.

Vocês podem sair de novo depois de amanhã, às duas horas. Com­portem-se e receberão comida duas vezes por dia.

Caminharam em silêncio diante de Tony. Ele fechou a porta do banhei­ro e voltou para o escritório escuro, juntando-se a Hobie na recepção.

Depois de amanhã será tarde demais — disse. — Pelo amor de Deus, vão descobrir no Havaí hoje. Amanhã, no máximo, certo?

Hobie concordou. A bola estava caindo sob o brilho das luzes. O defen­sor externo estava saltando. A cerca se aproximava.

Sim, vai ser apertado, não é?

Insanamente. Você deveria dar o fora daqui.

Não posso, Tony. Dei a minha palavra no negócio, preciso dessas ações. Mas tudo vai dar certo. Não se preocupe com isso. Depois de ama­nhã, às duas e meia da tarde, as ações serão minhas, farei o registro às três, elas serão vendidas às cinco e nós dois estaremos longe na hora do jantar. Depois de amanhã, tudo estará acabado.

Mas é loucura. Envolver um advogado? Não podemos deixar um advogado entrar aqui.

Hobie olhou para ele.

Um advogado — repetiu, devagar. — Você sabe qual é a base da justiça?

O quê?

Igualdade. Justiça e igualdade. Eles trazem um advogado, nós tam­bém trazemos um advogado, não é? Para manter as coisas equilibradas.

Minha nossa, Hobie! Não podemos trazer dois advogados para cá.

Podemos — disse Hobie. — Na verdade, acho que devemos.

Ele deu a volta no balcão da recepção e se sentou onde Marilyn estivera sentada antes. O couro ainda estava quente do corpo dela. Pegou as páginas amarelas de um escaninho e abriu. Pegou o telefone, discou nove para obter uma linha. Depois, usou o topo do gancho em nove precisos movimentos curtos para discar o número.

Spencer Gutman — disse uma voz clara em seu ouvido. — Em que posso ajudar?

 

Sheryl estava de costas sobre uma cama, uma agulha de soro enfiada numa veia da mão esquerda. O soro estava numa bolsa quadrada de polietileno pendurada num suporte de aço curvo atrás dela. Ela continha um lí­quido, e Sheryl sentia a pressão das gotas sendo sugadas para dentro de sua mão. Sentia o sangue sendo pressionado com mais intensidade do que o normal. As têmporas zuniam, e ela sentia a pulsação atrás das orelhas. O líquido na bolsa era transparente, como uma água espessa, mas estava fazendo efeito. O rosto parara de doer. A dor simplesmente sumira, fazendo com que se sentisse calma e sonolenta. Ela quase chamara a enfermeira para dizer que já podia ficar sem o analgésico pois a dor já tinha ido embo­ra, mas, quando ela caiu em si, deu-se conta de que a droga é o que estava levando a dor embora e que ela voltaria na mesma hora se o soro fosse cor­tado. Tentou rir de sua confusão, mas a respiração estava lenta demais para que pudesse emitir algum som. Assim, apenas sorriu para si mesma, fechou os olhos e nadou pelas profundezas mornas da cama.

Então, ouviu um som em algum lugar diante dela. Abriu os olhos e viu o teto. Era branco e iluminado de cima. Desviou o olhar para os pés. Foi um grande esforço. Havia duas pessoas de pé junto à base da cama. Um homem e uma mulher. Olhavam para ela. Usavam fardas. Camisas azuis de manga curta, calças compridas pretas, sapatos grandes e con­fortáveis para caminhar. As camisas estavam cobertas de identificações. Algumas brilhantes, bordadas, de metal e placas. Usavam cintos repletos de equipamentos. Cassetetes, rádios e algemas. Revólveres com grandes coronhas de madeira presos aos coldres. Eram policiais. Os dois eram velhos. Um tanto baixos. Um pouco gordos. Os cintos pesados os deixavam desajeitados.

Olhavam para ela, com calma. Ela tentou sorrir outra vez. Olhavam para a paciente, pacientemente. O homem estava ficando calvo. O teto ilu­minado se refletia em sua testa brilhante. A mulher fizera um permanente crespo, tingido de laranja, como uma cenoura. Era mais velha do que ele. Devia estar na casa dos cinqüenta. Era uma mãe. Sheryl era capaz de saber disso. Ela olhava para baixo com a expressão bondosa de uma mãe.

Podemos nos sentar? — perguntou a mulher.

Sheryl concordou. O líquido espesso zumbia em suas têmporas e a dei­xava confusa. A mulher arrastou a cadeira pelo chão e se sentou à direita de Sheryl, longe do suporte do soro. O homem se sentou logo atrás dela. A mulher inclinou-se em direção à cama, e o homem se inclinou para o ou­tro lado, de forma que sua cabeça aparecia atrás da dela. Estavam próximos e era difícil focalizar seus rostos.

Sou a oficial O'Hallinan — disse a mulher.

Sheryl concordou novamente. O nome combinava com ela. O cabelo alaranjado, o rosto e o corpo pesados, ela precisava de um nome irlandês. Vários policiais de Nova York eram irlandeses. Sheryl sabia disso. Algumas vezes, era como um negócio familiar. Uma geração sucedendo a outra.

Sou o oficial Sark — disse o homem.

Ele era pálido. O tipo de palidez branca que deixa a pele parecida com papel. Tinha se barbeado, mas uma sombra cinza se mostrava. Os olhos eram fundos, mas gentis. Ficavam no meio de uma teia de rugas. Ele era um tio. Sheryl tinha certeza disso. Tinha sobrinhos e sobrinhas que gostavam dele.

Queremos que você nos diga o que aconteceu — disse a mulher cha­mada O'Hallinan.

Sheryl fechou os olhos. Ela não conseguia se lembrar do que tinha acon­tecido. Sabia que tinha entrado pela porta da casa de Marilyn. Lembrava-se do cheiro de xampu para carpete. Lembrava de ter pensado que aquilo era um erro. O cliente poderia pensar sobre o que precisava ser disfarçado. Em seguida, estava subitamente de costas no chão do saguão, a agonia explo­dindo do nariz.

Você pode nos dizer o que aconteceu? — perguntou o homem cha­mando Sark.

Eu bati numa porta — sussurrou ela. E assentiu, como se confirmas­se a história para eles. Era importante. Marilyn dissera nada de polícia. Não ainda.

Que porta?

Não sabia que porta. Marilyn não lhe dissera. Era algo sobre o qual não haviam conversado. Que porta? Ela entrou em pânico.

Do escritório — respondeu.

Seu escritório fica aqui, na cidade? — perguntou 0'Hallinan. Sheryl não respondeu. Apenas ficou olhando para o rosto bondoso da mulher.

Sua seguradora diz que você trabalha em Westchester — disse Sark. — Numa corretora de imóveis em Pound Ridge.

Sheryl concordou, cautelosa.

Então você bateu na porta de seu escritório em Westchester — disse O'Hallinan. — E agora está no hospital, a oitenta quilômetros na cidade de Nova York.

Como isso aconteceu, Sheryl? — perguntou Sark.

Ela não respondeu. A área fechada pelas cortinas ficou em silêncio. Chiando e zumbindo em suas têmporas.

Podemos te ajudar, sabia? — disse O'Hallinan.

Por isso estamos aqui. Estamos aqui para te ajudar. Podemos garan­tir que isso não vai acontecer de novo.

Sheryl concordou novamente, cautelosa.

Mas você tem que nos dizer como aconteceu. Ele faz isso com fre­qüência?

Sheryl olhou para ela, confusa.

E por isso que você veio até aqui? — perguntou Sark. — Você sabe, hospital novo, nenhuma ficha das outras vezes... Se perguntarmos em Mount Kisco ou em White Plains, o que vamos achar? Vamos descobrir que eles te conhecem por lá? De alguma outra vez, quem sabe? Das outras vezes em que ele fez isso com você?

Eu bati numa porta — Sheryl sussurrou. O'Hallinan balançou a cabeça.

Sheryl, sabemos que não foi isso.

Ela se levantou e tirou o raio X do quadro de luz preso à parede. Segurou-o contra a luz do teto, como faria um médico.

Aqui está seu nariz — disse ela, apontando.

Esses são os ossos do maxilar, aqui está a sobrancelha e aqui o quei­xo. Está vendo? Seu nariz está quebrado, assim como os ossos do maxilar, Sheryl. Uma fratura deprimida. É como o médico está chamando. Uma fratura deprimida. Os ossos são empurrados para dentro, para um nível abaixo do queixo e da sobrancelha. Mas o queixo e a sobrancelha estão bem. Portanto, isso foi feito por alguma coisa horizontal, não foi? Alguma coisa como um bastão? Vindo de lado?

Sheryl olhou para as radiografias. Eram acinzentadas e leitosas. Seus os­sos apareciam em formas borradas e incertas. O globo ocular era enorme. O analgésico zunia em sua cabeça, e ela se sentia fraca e sonolenta.

Eu bati numa porta — sussurrou ela.

A beira de uma porta é vertical — disse Sark, com paciência.

O queixo e a sobrancelha também teriam sido atingidos, não é? É uma questão de lógica, certo? Se uma coisa vertical pressionou seus ma­xilares, também teria acertado a sobrancelha e o queixo com bastante força, concorda?

Ele olhou para as radiografias com tristeza.

Podemos te ajudar — disse O'Hallinan.

Você nos conta tudo, e nós impedimos de acontecer de novo. Pode­mos fazer com que ele nunca mais faça isso com você.

Quero dormir agora — murmurou Sheryl.

O'Hallinan inclinou-se para a frente e falou com delicadeza.

Ajudaria se meu parceiro saísse? Sabe, só nós duas conversando?

Eu bati numa porta — sussurrou Sheryl. — Agora quero dormir.

O'Hallinan concordou, sábia e pacientemente.

Vou deixar o meu cartão. Se você quiser falar comigo quando acor­dar, é só me chamar, está bem?

Sheryl concordou vagamente, e O'Hallinan tirou um cartão do bolso, aproximou-se e o colocou sobre o armário junto à cama.

Não esqueça, podemos te ajudar — sussurrou ela.

Sheryl não respondeu. Já estava dormindo, ou então fingindo muito bem. O'Hallinan e Sark afastaram a cortina e foram até a mesa. O médico olhou para eles. O'Hallinan balançou a cabeça.

Total negação — disse ela.

Bateu numa porta — disse Sark. — Provavelmente, uma porta de cara cheia, pesando mais de cem quilos e segurando um taco de beisebol.

O médico balançou a cabeça.

Por que será que elas protegem esses cretinos?

Uma enfermeira ergueu os olhos.

Eu vi quando ela entrou. Foi muito estranho. Estava na minha pausa para um cigarro. Ela saiu de um carro, lá do outro lado da rua. Veio cami­nhando sozinha até a porta. Os sapatos eram grandes demais, vocês nota­ram isso? Tinha dois caras no carro observando cada passo dela, e foram embora cheios de pressa.

Qual era o carro? — perguntou Sark.

Um preto, grande — respondeu a enfermeira.

Você se lembra da placa?

Acha que eu sou a miss Memória?

O'Hallinan deu de ombros e começou a se afastar.

Mas vai aparecer no vídeo — disse a enfermeira de repente.

Que vídeo? — perguntou Sark.

Câmera de segurança, em cima das portas. A gente fica bem debaixo dela para a supervisão não controlar o tempo que ficamos lá fora. Então, o que nós vemos ela também vê.

A hora exata da chegada de Sheryl estava registrada nos papéis da recepção. Foi preciso apenas um minuto para voltar a fita até aquele ponto. Outro minuto para retroceder sua lenta caminhada, de volta pelo círculo de ambulâncias, pela praça, através da calçada, cruzando o tráfego até diante de um grande carro preto. O'Hallinan chegou a cabeça para perto da tela.

Peguei — disse ela.

Jodie escolheu o hotel para passar a noite. Fez a escolha na seção de via­gens da livraria mais próxima do prédio do Centro de Registros de Pessoal. Ela foi até lá e folheou os guias locais, até encontrar um local reco­mendado em três deles.

É engraçado, não é? — disse ela. — Estamos em Saint Louis, e a se­ção de viagens tem mais guias para Saint Louis do que para qualquer outro lugar. Então, como pode ser uma seção de viagens? Devia se chamar seção fique em casa.

Reacher estava um pouco nervoso. O método era novo para ele. O tipo de lugar que ele normalmente escolhia jamais era anunciado nos livros. Apareciam em luminosos de néon, em postes altos, anunciando atrações que já não eram mais atrações havia vinte anos para se transformar em di­reitos humanos básicos, como ar-refrigerado, TV a cabo e uma piscina.

Pegue isso — disse ela.

Ele pegou o livro e deixou o polegar na página enquanto ela se abaixava e abria a bolsa. Vasculhou o conteúdo até encontrar o telefone celular. Pe­gou o livro de volta, levantou-se e telefonou dali mesmo, do corredor, para o hotel. Ele a observou. Jamais tinha ligado para um hotel. Os lugares onde ele ficava sempre tinham um quarto, não importava a época. Deliravam se suas taxas de ocupação passassem de 50%. Ele ouviu Jodie finalizar a conversa e mencionar somas de dinheiro que lhe garantiriam cama por um mês, após alguma barganha.

Ok — disse ela. — Estamos dentro. Na suíte de lua de mel. Cama com dossel. Não é perfeito?

Ele sorriu. A suíte de lua de mel.

Precisamos comer — disse ele. — Servem jantar lá?

Ela balançou a cabeça e abriu o livro na seção de restaurantes.

É mais divertido ir comer em algum lugar — disse ela. — Você gosta de cozinha francesa?

Ele concordou.

Minha mãe era francesa.

Ela procurou no livro e usou o celular de novo para reservar uma mesa para dois em um lugar chique na região histórica, perto do hotel.

Oito horas — disse ela. — Sobra tempo para circularmos um pouco. Depois, damos entrada no hotel e nos arrumamos.

Ligue para o aeroporto. Precisamos de um vôo cedo. Dallas-Fort Worth deve resolver.

Farei isso lá fora. Não se pode ligar para o aeroporto de uma li­vraria.

Ela comprou um mapa enfeitado de Saint Louis, Reacher pegou a bolsa dela, e eles saíram para o calor do sol do fim da tarde. Ele examinou o mapa enquanto Jodie ligava para a companhia aérea da calçada e reservava dois lugares na classe executiva para o Texas, às oito e meia da manhã. Depois, caminharam para a beira do Mississipi no ponto onde ele cruzava a cidade.

Caminharam de braços dados por noventa minutos, o que perfez uns sete quilômetros, por toda a parte histórica da cidade. O hotel ficava numa velha mansão de tamanho médio em uma rua tranqüila, coberta de castanheiras. Tinha uma porta grande pintada de preto brilhante e piso de car­valho. A recepção era uma antiga mesa de mogno, solitária no canto do saguão. Reacher olhou para ela. Nos lugares onde normalmente se hospe­dava, a recepção ficava atrás de uma tela de arame ou de uma cabine à prova de balas. Uma senhora elegante de cabelos brancos passou o cartão de Jodie pela máquina, e a filipeta saiu ruidosamente. Jodie abaixou-se para assinar, e a senhora entregou uma chave de bronze.

— Aproveite sua estadia, sr. Jacob — disse ela.

A suíte de lua de mel ocupava todo o sótão. Tinha o mesmo piso de carvalho, coberto por um verniz grosso que o fazia brilhar, com tapetes antigos espalhados ao longo. O teto era um complicado arranjo geométrico de ângulos e janelas em águas furtadas. Uma sala de estar com dois sofás estampados com flores claras ocupava uma das extremidades. O banheiro vinha em seguida, e depois o quarto. A cama com dossel era gigantesca, co­berta com o mesmo tecido floral e muito alta. Jodie pulou para cima dela e se sentou, as mãos sob as dobras dos joelhos, as pernas balançando. Sorria, e o sol aparecia pela janela atrás dela. Reacher colocou a bolsa dela no chão e ficou absolutamente imóvel, apenas olhando para ela. Ela usava uma blu­sa azul, um tom que ficava entre um azul floral e o azul de seus olhos. Feita com um tecido macio, seda talvez. Os botões pareciam pequenas pérolas. O primeiro estava aberto. O peso do colarinho fazia com que a blusa se abrisse. A pele aparecia no decote, como mel, mais clara do que piso de carvalho. A camisa era pequena e ainda assim estava frouxa em seu corpo. Estava segura por um cinto de couro preto, cingido em torno de sua cintura fina. A ponta solta era comprida, pendurada para fora dos passadores da calça. O jeans era velho, lavado várias vezes e passado à perfeição. Usava sapatos nos pés sem meias. Mocassins azuis pequenos de couro fino, salto baixo, provavelmente italianos. Dava para ver as solas quando ela balançava as pernas. Os sapatos eram novos. Sem nenhum desgaste.

O que você está olhando? — perguntou ela.

Ela virou a cabeça de lado, com um jeito tímido e travesso.

Você — respondeu ele.

Os botões eram pérolas, exatamente como as de um colar, retiradas do fio e costuradas uma a uma na blusa. Eram pequenas e escorregadias em seus dedos atrapalhados. Havia cinco delas. Ele conseguiu tirar quatro de dentro das casas e gentilmente puxou a blusa para fora da calça e soltou o quinto. Ela o ajudou com as mãos, alternando a esquerda e a direita, de forma a poder soltar os punhos. Ele desceu a blusa por trás, pelos ombros dela. Ela não vestia nada por baixo.

Ela se inclinou para a frente e começou a desabotoar os botões dele. Começou de baixo. Era destra. As mãos eram pequenas, delicadas e rá­pidas. Mais rápidas do que as dele. Os punhos da camisa dele já estavam abertos. Os pulsos eram largos demais para que os punhos de qualquer camisa comprada em loja se fechassem. Ela enfiou as mãos pela camisa e a afastou com os antebraços. A vestimenta caiu pelos ombros dele, e Jodie terminou de puxá-la pelos braços. A camisa caiu no chão com o deslizar do algodão e a batida leve dos botões na madeira. Ela percorreu com o dedo a queimadura de seu peito em forma de gota.

Você trouxe a pomada?

Não — respondeu ele.

Ela fechou os braços em torno da cintura dele, inclinou a cabeça e beijou o ferimento. Ele sentiu sua boca, firme e fresca contra a pele sensível. De­pois, fizeram amor pela quinta vez em 15 anos, na cama com dossel no alto da velha mansão enquanto o sol se punha na janela voltada para o Kansas.

 

A Unidade de Violência Doméstica da Polícia de Nova York apropriava-se de cada metro quadrado que encontrasse disponível, e, no caso, tratava-se de uma grande sala na sobreloja da administração central da polícia. O'Hallinan e Sark voltaram para lá uma hora antes do fim do turno. Era a hora de preencher a papelada, e foram direto para suas mesas, abriram os cadernos no início do dia e começaram a datilografar.

Chegaram à emergência do St. Vincent quando faltavam 15 minutos para o fim do horário. Registraram como um provável incidente com uma vítima não cooperativa. O'Hallinan tirou o formulário da máquina e viu o número da placa do Tahoe rabiscado no pé da página de seu caderno. Ela pegou o telefone e discou para o Departamento de Veículos Motorizados.

Um Chevrolet Tahoe preto — disse-lhe o atendente. — Registra­do em nome de Cayman Corporate Trust, com endereço no World Trade Center.

O'Hallinan deu de ombros para si mesma e anotou tudo em seu ca­derno. Ela se perguntava se deveria ou não pôr o formulário de volta na máquina de escrever para acrescentar a informação quando o atendente do departamento ligou de novo.

Tenho outra indicação aqui — disse ele. — O mesmo proprietário abandonou um Chevrolet Suburban preto na baixa Broadway ontem. Um incidente com três veículos no tráfego. Os carros foram rebocados para o 15° Distrito.

Quem está cuidando disso? Conhece alguém no 15o?

Lamento, mas não.

O'Hallinan desligou e ligou para o setor de tráfego do 15a Distrito, mas estava na hora da mudança de turno do fim do dia, e ela não foi muito lon­ge. Anotou um lembrete para si mesma e o colocou na bandeja de entrada. O relógio marcou a hora, e Sark ficou de pé diante dela.

E estamos fora daqui — disse ele. — Muito trabalho e pouca diversão não é bom para a saúde, certo?

Certo — respondeu ela. — Que tal uma cerveja?

Pelo menos uma cerveja — disse Sark. — Talvez duas.

Com certeza — respondeu O'Hallinan.

Tomaram um longo banho juntos no espaçoso banheiro da suíte de lua de mel. Reacher então se espalhou enrolado na toalha sobre um sofá e a observou se aprontando. Ela foi até a mala e pegou um vestido. Era do mes­mo linho que ela usara no escritório, só que o primeiro era amarelo e este era azul-escuro e sedoso. Ela o enfiou pela cabeça e o acertou no lugar.

Tinha um decote simples e descia até quase o joelho. Calçou o mesmo mocassim azul. Secou os cabelos com a toalha e os penteou. Voltou para a mala e tirou o colar que ele lhe comprara em Manila.

Pode me ajudar a fechar?

Ela levantou o cabelo da nuca, e ele se inclinou para encaixar o fecho. O colar era um cordão pesado de ouro. Provavelmente, não era ouro ver­dadeiro, não pelo preço que ele pagara, ainda que qualquer coisa fosse pos­sível nas Filipinas. Seus dedos eram grandes, e as unhas estavam gastas e quebradas pelo trabalho físico com a pá. Segurou a respiração e precisou tentar duas vezes até acertar. Beijou seu pescoço, e ela deixou os cabelos caírem de volta. Estava pesado e úmido, com cheiro de verão.

Bem, pelo menos estou pronta — disse ela.

Ela sorriu e lhe jogou as roupas que estavam no chão, e ele as vestiu, com o algodão grudando na pele molhada. Ele pegou o pente emprestado dela e passou pelos cabelos. No espelho, viu um relance dela atrás de si. Parecia uma princesa que ia sair para jantar com seu jardineiro.

Talvez não me deixem entrar — disse ele.

Ela esticou e ajeitou a gola de Jack na nuca sobre a massa exagerada de seu músculo deltoide.

Como fariam para te manter do lado de fora? Chamando a Guarda Nacional?

Era uma caminhada de dez quadras até o restaurante. Uma noite de junho, no Missouri, perto do rio. O ar estava leve e úmido. A estrelas brilhavam acima deles, num céu escuro, da cor do vestido que ela usava. As castanheiras sussurravam sob uma suave brisa morna. As ruas ficaram mais movimentadas. As mesmas árvores, mas com carros se movendo e estacionando debaixo delas. Alguns dos prédios ainda eram hotéis, mas outros eram menores e mais baixos, com placas pintadas com os nomes de restaurantes em francês. As placas eram iluminadas por focos de luzes dire­cionados. Nenhum néon. O lugar que ela escolhera se chamava La Préfecture. Ele sorriu e se perguntou se os amantes numa pequena cidade francesa iriam comer num lugar chamado A Prefeitura, que era a tradução literal do francês, pelo que ele se lembrava. Mas era um lugar bastante agradável.

Um garoto de algum lugar do meio-oeste forçando um sotaque francês os saudou calorosamente e os levou para uma mesa na varanda iluminada por velas, dando para o jardim dos fundos. Uma fonte com iluminação submer­sa esguichava suavemente, e as árvores eram iluminadas por focos de luz presos aos troncos. A toalha de mesa era de linho, e os talheres, de prata. Reacher pediu uma cerveja americana e Jodie pediu Pernod e água.

Muito bom, não é? — perguntou ela.

Ele concordou. A noite estava amena, silenciosa e calma.

Me diga como está se sentindo — disse ele.

Ela o olhou, surpresa.

Me sinto bem.

Bem como?

Ela sorriu, encabulada.

Reacher, você está aprontando.

Ele sorriu de volta.

Não, apenas estou pensando numa coisa. Você se sente relaxada?

Ela concordou.

Segura?

Ela concordou outra vez.

Eu também — disse ele. — Seguro e relaxado. Então, o que isso significa?

O rapaz chegou com os drinques numa bandeja de prata. O Pernod es­tava num copo alto, e ele o serviu com uma autêntica jarra francesa de água. A cerveja veio numa caneca congelada. Nada de garrafas long-neck num lugar assim.

Então, o que isso significa? — perguntou Jodie.

Ela derramou a água no líquido âmbar, que ficou leitoso. Agitou o copo para misturar. Ele sentiu o forte odor do anis.

Significa que, o que quer que esteja acontecendo, é pequeno — disse ele. — Uma operação pequena baseada em Nova York. Estávamos nervosos lá, mas nos sentimos seguros aqui.

Ele deu um longo gole na cerveja.

É apenas um sentimento — disse ela. — Não prova nada.

Ele concordou.

Não, mas os sentimentos são persuasivos. E ainda existem algumas provas concretas. Fomos perseguidos e atacados lá, mas ninguém aqui está prestando a menor atenção em nós.

Você verificou? — perguntou ela, alarmada.

Estou sempre verificando. Andamos por aí, devagar e óbvios. Não tinha ninguém atrás da gente.

Nenhum efetivo?

Ele assentiu novamente.

Eles tinham dois caras que foram para as Keys e até Garrison, e mais o sujeito dirigindo o Suburban. Meu palpite é que isso é tudo o que eles têm, ou estariam aqui nos procurando. Portanto, é uma operação pequena, baseada em Nova York.

Ela concordou.

Acho que é Victor Hobie — disse ela.

O garçom estava de volta, com um bloco e um lápis. Jodie pediu patê e cordeiro, Reacher pediu sopa e porc aus pruneaux, que sempre fora seu almoço de domingo quando criança, quando sua mãe conseguia encontrar porco e ameixas secas nos lugares remotos onde estavam baseados. Era um prato regional do Loire, e, apesar de sua mãe ser de Paris, ela gostava de prepará-lo para o filho pois achava que se tratava de uma apresentação resumida à cultura nativa dela.

Não acho que seja Victor Hobie — disse ele.

Eu acho que é. Acho que ele sobreviveu à guerra de algum jeito e ficou se escondendo em algum lugar desde então, e acho que não quer ser encontrado.

Ele balançou a cabeça.

Também pensei nisso, desde o começo. Mas a psicologia está toda errada. Você leu seus registros. As cartas. Eu te contei o que seu velho amigo Ed Steven disse. Era um garoto certinho, Jodie. Totalmente sem gra­ça, totalmente normal. Não consigo acreditar que ele deixaria os pais no ar desse jeito. Por trinta anos? Por que faria isso? Não bate com o que sabemos dele.

Talvez ele tenha mudado — disse Jodie. — Papai sempre disse que o Vietnã muda as pessoas. Normalmente para pior.

Reacher balançou a cabeça.

Ele morreu — disse ele. — A seis quilômetros de An Mie, trinta anos atrás.

Ele está em Nova York — disse Jodie. — Agora mesmo, tentando continuar escondido.

Ele estava em seu terraço, a trinta andares do chão, apoiado sobre o parapeito, de costas para o parque. Tinha um telefone sem fio contra o ouvido e estava vendendo o Mercedes de Chester Stone para o sujeito de Queens.

Tem também um BMW — dizia. — Cupê, Série 8. Está em Pound Ridge agora. Vendo por metade do preço original, em dinheiro, numa bol­sa, amanhã.

Ele parou e ouviu o sujeito sugando o ar por entre os dentes, como os negociantes de automóveis sempre fazem quando falamos de dinheiro com eles.

Digamos... trinta mil pelos dois, dinheiro numa bolsa, amanhã.

O sujeito resmungou um sim, e Hobie passou para o próximo item de sua lista mental.

Tem um Tahoe e um Cadillac. Quarenta mil, pode incluir qualquer um dos dois no negócio. A escolha é sua.

O sujeito fez uma pausa e escolheu o Tahoe. Melhor revenda para um 4x4, especialmente para o sul, que era para onde Hobie sabia que ele levaria o carro. Desligou o telefone e entrou pela porta deslizante para a sala de es­tar. Usou a mão esquerda para abrir a pequena agenda de couro, segurou-a aberta pressionando com o gancho. Apertou o botão de novo e discou para um corretor de imóveis que lhe devia um bom dinheiro.

Estou encerrando o empréstimo — disse.

Ouviu o sujeito engolir em seco e começar a entrar em pânico. Fez-se um longo silêncio desesperado. Depois ele ouviu o sujeito se sentar, pesa­damente.

Você tem como me pagar?

Não houve resposta.

Você sabe o que acontece com quem não pode me pagar?

Mais silêncio. Mais engulhos.

Não se preocupe — continuou Hobie. — Podemos acertar alguma coisa. Tenho duas propriedades para vender. Uma mansão em Pound Ridge e meu apartamento na Quinta. Quero dois milhões pela casa e três e meio pelo apartamento. Você consegue isso para mim, e eu cancelo o emprésti­mo, certo?

O sujeito não tinha escolha, a não ser concordar. Hobie passou-lhe os detalhes do banco nas Ilhas Cayman e disse para lhe enviar os valores em um mês.

Um mês é pouco tempo — disse o sujeito.

Como vão seus filhos? — perguntou Hobie.

Mais engulhos.

Certo, um mês — disse o sujeito

Hobie desligou o telefone e escreveu $5.540.000 na página onde listara os três carros e as duas residências. Depois, ligou para a companhia aérea e perguntou sobre vôos para a costa, na noite depois do dia seguinte. Havia muitos lugares. Ele sorriu. A bola passava direto sobre a cerca, na direção da quinta fila da arquibancada. O defensor pulava feito um maluco, mas não estava nem perto de conseguir.

 

Com Hobie fora, Marilyn sentiu-se a vontade o suficiente para tomar um banho. Não teria feito isso com ele dentro do escritório. O olhar enviesado dele dizia muito. Era como se pudesse ver através da porta do banheiro. Mas o sujeito chamado Tony não era um problema. Era ansioso e obedien­te. Hobie dissera-lhe para garantir que não saíssem do banheiro. Era o que ele faria, nada mais. Não entraria lá para incomodá-los e os deixaria sozi­nhos. Ela estava certa disso. E o outro cara, o grandalhão que lhes trouxera o café, faria o que Tony mandasse. Sentiu-se, portanto, segura o bastante, mas mesmo assim colocou Chester junto à porta, segurando a maçaneta.

Esticou-se, abriu a água quente, despiu o vestido e tirou os sapatos. Pendurou o vestido cuidadosamente no trilho da cortina, longe do jato de água, mas próximo o suficiente para o vapor alisar as rugas da roupa. En­trou no boxe, lavou o cabelo e ensaboou-se da cabeça aos pés. Sentiu-se bem. Era relaxante. Levou a tensão embora. Deixou a água caindo em seu rosto e ficou um longo tempo sob o chuveiro. Depois, manteve a água aber­ta, saiu, pegou uma toalha e trocou de lugar com Chester.

Vá em frente — disse ela. — Vai lhe fazer bem.

Ele estava entorpecido. Apenas concordou e soltou a maçaneta da porta. Ficou parado por um segundo e despiu-se da camiseta e da cueca. Sentou-se nu e tirou os sapatos e as meias. Ela viu o hematoma amarelo em seu corpo.

Eles te bateram? — sussurrou ela.

Ele concordou novamente. Levantou-se e entrou no boxe. Ficou sob o jato, de olhos fechados e a boca aberta. A água pareceu reavivá-lo. Encon­trou o sabonete e o xampu, e se ensaboou.

Deixe a água correndo — disse ela. — Está esquentando o lugar.

Era verdade. A água quente deixava o ambiente confortável. Ele saiu e pegou uma toalha. Secou o rosto e enrolou-a na cintura.

E o barulho vai impedir que eles escutem a nossa conversa — disse ela. — E precisamos conversar, certo?

Ele deu de ombros, como se não houvesse muito sobre o que falar.

Não entendo o que você está fazendo. Não tem nenhum administra­dor de fundo. Ele vai descobrir isso e simplesmente vai ficar furioso.

Ela estava enrolando uma toalha no cabelo. Parou e olhou para ele em meio ao vapor que se formava.

Precisamos de uma testemunha. Você consegue entender?

Uma testemunha do quê?

Do que acontecer — disse ela.

David Forster vai mandar um detetive particular para cá, e o que Hobie pode fazer? Admitimos que não existe fundo algum, vamos todos juntos para o banco e transferimos as ações para Hobie. Num lugar público, com uma testemunha. Uma testemunha e um guarda-costas. Assim, pode­mos simplesmente sair fora.

Vai funcionar?

Acho que sim. Ele está apressado com alguma coisa. Você percebeu? Tem algum tipo de prazo. Está entrando em pânico. Nossa melhor aposta e demorar o máximo possível e depois escapar, com uma testemunha acom­panhando a coisa toda e tomando conta de nós. Hobie vai estar muito em cima do prazo para reagir.

Não entendo. Quer dizer que esse detetive particular vai testemu­nhar que estamos agindo sob pressão? E poderemos processar Hobie para pegar as ações de volta?

Ela ficou em silêncio por um instante. Chocada.

Não, Chester, não vamos processar ninguém. Hobie fica com as ações, e nós esquecemos esse assunto.

Ele olhou para ela através do vapor.

Mas isso não é bom. Assim, não vamos salvar a empresa. Não se Hobie ficar com as ações e a gente não recuperá-las.

Ela olhou de volta para ele.

Pelo amor de Deus, Chester! Você não entende nada? A empresa se foi. É passado, e é melhor você encarar isso de frente. Não se trata de salvar a porcaria da empresa. Mas das nossas vidas.

 

A sopa estava maravilhosa, e o porco, melhor ainda. Sua mãe teria ficado orgulhosa. Dividiram meia garrafa de vinho da Califórnia e comeram em um silêncio satisfeito. O restaurante era o tipo de lugar que permitia uma longa pausa entre o prato principal e a sobremesa. Nenhuma pressa para que os clientes saíssem e a mesa ficasse disponível. Reacher estava aprecian­do o luxo. Não era algo com que fosse acostumado. Recostou-se na cadeira e esticou as pernas para a frente. Seus tornozelos roçavam a perna de Jodie, sob a mesa.

Pense nos pais dele — disse ele. — Pense nele quando criança. Abra a enciclopédia em F para "Família americana normal" e você vai ver uma foto dos Hobie, todos os três, olhando direto para você. Aceito que o Vietnã tenha modificado as pessoas. Entendo que possa ter expandido um pouco os horizontes dele. Eles também sabiam disso. Sabiam que ele não voltaria para trabalhar numa pequena gráfica sem graça em Brighton. Sabiam que ele iria para o sul, trabalhar nas plataformas, voando pelo Golfo para as companhias de petróleo. Mas teria mantido contato, certo? O mínimo que fosse. Não teria simplesmente abandonado os pais. Seria uma verdadeira crueldade, muita frieza e persistência, por trinta anos consecutivos. Você vê alguma coisa nos registros dele apontando para esse tipo de pessoa?

Talvez ele tenha feito alguma coisa. Algo vergonhoso. Algo como My Lai, algum massacre, quem sabe? Talvez tenha ficado com vergonha de ir para casa. Talvez esconda um segredo do qual seja culpado.

Ele balançou a cabeça, impaciente.

Estaria em seu registro. E ele não teve oportunidade para isso, de qualquer maneira. Era um piloto de helicóptero, não um soldado de infan­taria. Nunca viu o inimigo de perto.

O garçom voltou com o bloco de pedidos e o lápis.

Sobremesa? Café?

Pediram sorbet de framboesa e café puro. Jodie bebeu o último gole de seu vinho, que brilhou com um vermelho opaco sob a luz das velas.

Então, o que fazemos?

Ele morreu. Vamos conseguir a prova definitiva, cedo ou tarde. De­pois, voltamos para contar aos velhos que eles desperdiçaram trinta anos preocupados com isso.

E o que dizemos a nós mesmos? Que fomos atacados por um fan­tasma?

Ele deu de ombros e não respondeu. O sorbet chegou, e comeram em silêncio. Em seguida, vieram o café e a conta, numa pasta de couro forrada, com o logotipo do restaurante impresso em dourado. Jodie colocou o car­tão de crédito na pasta sem conferir o total. Então, sorriu.

Ótimo jantar — disse ela.

Ele sorriu de volta.

Ótima companhia.

Vamos esquecer Victor Hobie por um tempo.

Quem? — perguntou ele. Ela riu.

Em que devemos pensar então? — perguntou ela. Ele sorriu.

Eu estava pensando em seu vestido.

Você gostou?

Achei incrível.

O quê?

Mas poderia ficar melhor. Você sabe, talvez jogado no chão.

Você acha?

Tenho certeza. Mas isso é apenas uma suposição, no momento. Eu precisaria de alguns dados experimentais. Sabe como é, uma comparação entre antes e depois.

Ela suspirou fingindo exaustão.

Reacher, precisamos estar de pé às sete. Voos cedo, né?

Você é jovem — disse ele. — Se eu agüento, você com certeza tam­bém dá conta.

Ela sorriu. Arrastou a cadeira para trás e se levantou. Afastou-se da mesa e deu uma volta lenta pelo corredor. O vestido acompanhou seus mo­vimentos. Era como um tubinho, mas não apertado. Ficava lindo de costas. Seus cabelos pareciam ouro sobre ele, iluminados pelas velas. Ela se aproxi­mou, inclinou-se e sussurrou em seu ouvido.

Certo, isso foi o antes. Vamos embora antes que você se esqueça da comparação.

 

Às sete horas da manhã em Nova York chegavam uma hora antes do que as sete horas da manhã em Saint Louis, e O'Hallinan e Sark passaram esta hora no escritório, planejando o turno. As mensagens noturnas formavam uma grande pilha nas bandejas de entrada. Chamadas dos hospitais e re­latórios dos policiais do turno da noite que haviam atendido a distúrbios domésticos. Todos exigiam exame e avaliação, e era preciso elaborar um itinerário, com base na geografia e na urgência. Fora uma noite comum na cidade de Nova York, o que significava que O'Hallinan e Sark compilaram uma lista de 28 novos casos que exigiam sua atenção e, como conseqüência, a ligação para o 15a Distrito, no Departamento de Tráfego, foi adiada para 7h50 daquela manhã.

O'Hallinan discou o número, e o sargento encarregado atendeu no dé­cimo toque.

Vocês rebocaram um Suburban preto — disse ela. — Ele bateu na baixa Broadway, uns dois dias atrás. Estão fazendo alguma coisa a respeito?

Ela ouviu o som do sujeito mexendo numa pilha de papéis.

Está no depósito. Você tem algum interesse nele?

Temos uma mulher com o nariz quebrado no hospital. Foi deixada lá num Tahoe que pertence à mesma pessoa.

Talvez ela fosse a motorista. Tivemos três veículos envolvidos, e só conseguimos um motorista. Tinha um Suburban, que causou o acidente e o motorista desapareceu. Depois, um Oldsmobile Bravada, que fugiu por um beco, e o motorista e o passageiro desapareceram. O Suburban era de uma empresa, um fundo financeiro qualquer do centro da cidade.

Cayman Corporate Trust? — perguntou O'Hallinan. — São os do­nos do Tahoe.

Isso — confirmou o sujeito. — O Bravada está em nome de uma sra. Jodie Jacob, mas foi dado como roubado antes. Não é a sua mulher de nariz quebrado, é?

Jodie Jacob? Não, a nossa é Sheryl qualquer coisa.

Certo, provavelmente a motorista do Suburban. Ela é pequena?

Bem pequena, eu acho. Por quê?

O airbag foi acionado.

É possível que uma mulher pequena se machucasse assim com o airbag. Acontece.

Você vai verificar?

Não. Nossa maneira de pensar é que temos o carro deles. Se quise­rem, eles que nos procurem.

O'Hallinan desligou, e Sark olhou para ela com um jeito indagador.

Então, o que foi isso? — perguntou ele. — Por que ela diria que bateu numa porta se, na verdade, foi uma batida de carro?

O'Hallinan deu de ombros.

Não sei. E por que uma corretora de imóveis de Westchester estaria dirigindo o carro de uma empresa que fica no World Trade Center?

Isso explicaria os ferimentos.

O airbag, talvez o aro da direção, pode ter feito isso com ela.

Talvez.

Então, devemos verificar?

Devemos tentar, eu acho, porque uma batida de carro resolve o assunto em vez de ficar como uma probabilidade.

Certo, mas não escreva isso em lugar nenhum ainda, pois se não tiver sido uma batida de carro, a coisa volta a ficar em aberto, o que pode se tornar uma enorme chateação depois.

Levantaram-se juntos e colocaram os cadernos no bolso das fardas. Desceram as escadas e apreciaram o sol da manhã a caminho do estaciona­mento para pegar o carro.

O mesmo sol seguiu para o oeste, e os relógios marcaram sete horas em Saint Louis. Entrou por uma janela do sótão, e seus raios baixos brincaram através do dossel, vindos de uma nova direção. Jodie levantou-se primeiro e estava no chuveiro. Reacher ficou sozinho na cama quente, espreguiçando-se, ouvindo um som agudo abafado vindo de algum lugar do quarto.

Verificou a mesa de cabeceira para ver se o telefone estava tocando, ou se Jodie ligara o alarme e ele não percebera na noite anterior. Nada ali. O apito continuou, abafado, mas insistente. Rolou na cama e se sentou. O novo ângulo indicava que o som vinha da bolsa de mão de Jodie. Ele deslizou para fora da cama e caminhou nu até o outro lado do quarto. Abriu o zíper da bolsa. O toque soou mais alto. Era o celular dela. Ele olhou para o banheiro e pegou o telefone. Tocava mais alto em sua mão. Ele estudou os botões e apertou SEND. O toque parou.

Alô? — disse.

Fizeram uma pausa.

Quem está falando? Quero falar com a sra. Jacob.

Era uma voz masculina, jovem, ocupada, perturbada. Uma voz que ele conhecia. O assistente de Jodie do escritório de advocacia, o cara que lhe passara o endereço de Leon.

Ela está no banho.

Ah — disse a voz.

Uma nova pausa.

Sou um amigo — disse Reacher.

Sei — respondeu a voz.

Vocês ainda estão em Garrison?

Não, estamos em Saint Louis, no Missouri.

Meu Deus, isso complica as coisas, não? Posso falar com ela?

Está no banho — repetiu Reacher. — Ela pode ligar de volta. Ou então, acho que posso anotar o recado.

Você poderia? É bastante urgente.

Espere aí — respondeu Reacher. Ele voltou até a cama e pegou o bloco e o lápis que o hotel deixara na mesa de cabeceira, ao lado do tele­fone. Sentou-se e ajeitou o celular na mão esquerda.

Certo, manda — disse ele. O cara passou a mensagem. Era um tanto vaga. O sujeito escolhia as palavras com cuidado para manter a coisa toda incerta. Claro que um amigo não podia ser confiável para ouvir detalhes legais secretos. Ele colocou o bloco e o lápis de volta. Não ia precisar deles.

Vou dizer para ela ligar de volta, caso alguma coisa não fique clara — disse ele, dubiamente.

Obrigado e perdão por interromper, bem, o que quer que eu esteja interrompendo.

Você não está interrompendo nada. Como eu disse, ela está no chu­veiro agora. Mas, há dez minutos, poderia ter sido um problema.

Meu Deus — disse o sujeito novamente e desligou o telefone.

Reacher sorriu, estudou os botões outra vez e pressionou END. Deixou o telefone na cama e ouviu a água sendo desligada no banheiro. A porta se abriu, e ela saiu, enrolada numa toalha, em meio a uma nuvem de vapor.

Seu assistente acabou de ligar para o celular. Acho que ficou um pouco chocado quando eu atendi.

Ela riu.

Bem, lá se vai minha reputação. Na hora do almoço, o escritório inteiro já vai estar sabendo. O que ele queria?

Você precisa voltar para Nova York.

Por quê? Ele te passou os detalhes?

Ele balançou a cabeça.

Não, ele foi muito discreto, muito adequado, como um assistente deve ser, eu acho. Mas você parece ser uma advogada de primeira, aparen­temente. Tem uma grande demanda por seus serviços.

Ela sorriu.

Sou a melhor, não te falei? Então, quem precisa de mim?

Alguém ligou para o seu escritório. Alguma instituição financeira com pendências a resolver. Pediu você, especificamente. Deve ser porque você é a melhor.

Ela concordou e sorriu.

Ele disse qual era o problema?

Ele deu de ombros.

O de sempre, acho. Alguém deve dinheiro para outra pessoa, parece que todos estão brigando por causa disso. Você tem que ir a uma reunião amanhã de tarde fazer com que se entendam.

Outra das milhares de ligações telefônicas que ocorrem no mesmo minuto na área de Wall Street partiu do escritório de advocacia de Forster & Abelstein para as instalações do detetive particular William Curry, um veterano da polícia de Nova York, com vinte anos de serviço, que se aposentou aos 47 disposto a pagar a pensão alimentícia trabalhando como detetive particu­lar até que sua ex-mulher se casasse de novo, morresse, ou se esquecesse dele. Estava nisso fazia dois anos, e uma ligação do sócio majoritário de um grande escritório de advocacia de Wall Street era um evento promissor, que o deixou satisfeito, mas não tão surpreso. Ele vinha fazendo um bom trabalho havia dois anos, a preços razoáveis, com o objetivo claro de criar uma certa reputação; portanto, se sua reputação finalmente se espalhava e os grandes começavam a ligar, isso o deixava satisfeito, sem que o surpreen­desse.

Mas o que o surpreendeu foi a natureza do trabalho.

Preciso fingir que sou você? — repetiu ele.

É importante — disse-lhe Forster.

- Estão esperando um advogado chamado David Forster, então é isso que vamos lhes dar. Não terá qualquer questão legal envolvida. Provavel­mente, não haverá qualquer coisa envolvida. Apenas estar lá vai manter as coisas sob controle. Será uma coisa bem direta. Está bem?

- Está bem, eu acho — respondeu Curry. Ele escreveu os nomes das partes envolvidas e o endereço onde a encenação seria realizada. Cobrou o dobro de sua taxa normal. Não queria parecer barato, não para esses caras de Wall Street. Eles sempre se impressionavam com serviços caros. Sabia disso. E, pela natureza do trabalho, achou que mereceria o pagamento. Forster concordou com o preço sem hesitar e prometeu enviar um cheque pelo correio. Curry desligou o telefone e começou a repassar suas roupas men­talmente, imaginando que diabos ele poderia vestir para ficar parecido com um advogado poderoso de um escritório de Wall Stree.

 

DE SAINT LOUIS PARA DALLAS-FORT WORTH são pouco mais de novecentos quilômetros pelo ar, em confortáveis noventa minutos, trinta subindo, trinta em cruzeiro rápido e trinta descendo para a aproximação. Reacher e Jodie estavam juntos na classe executiva, des­sa vez do lado esquerdo do avião, junto a uma clientela diferente da que voou com eles de Nova York. A maior parte da cabine estava ocupada por executivos texanos, vestindo ternos de tecido brilhoso, em tons de azul e cinza, com botas de couro de jacaré e chapelões. Eram maiores, mais rudes e barulhentos que suas contrapartes da costa leste, e davam mais trabalho para a aeromoça. Jody usava um vestido alaranjado simples, algo que Audrey Hepburn poderia usar, e os executivos olhavam de esguelha para ela, evitando os olhos de Reacher. Ele estava no corredor, com a calça cáqui amassada e os sapatos ingleses, bem gastos, e os caras tentavam situá-lo. Ele os viu andar em círculos, obser­vando seu bronzeado, suas mãos e sua companhia, imaginando que ele se­ria algum brutamontes que se dera bem num processo, e então pensando que esse tipo de coisa não acontecia mais e começando com novas espe­culações. Ele os ignorou e bebeu o melhor café da companhia aérea numa xícara de porcelana, pensando sobre como entraria em Wolters e consegui­ria que DeWitt dissesse algo que fizesse sentido.

Um policial do Exército tentando que um general lhe dissesse alguma coisa que fizesse sentido era como alguém lançando uma moeda. Cara, e você consegue um sujeito que conhece o valor da cooperação. Talvez tenha passado por dificuldades no passado, em uma ou outra unidade, e talvez alguém da Polícia do Exército tenha resolvido as coisas para ele de maneira efetiva e visível. Então, ele acredita, e seus instintos são favoráveis. Ele é seu amigo. Mas coroa será um. sujeito que talvez tenha causado suas pró­prias dificuldades. Talvez tenha feito alguma grande besteira em missão e os policiais não tenham sido discretos ao deixar isso claro para ele. Aí, não se consegue nada com ele, a não ser provocações. Cara ou coroa, mas de uma moeda viciada, pois acima de tudo, qualquer instituição despreza seus próprios policiais, assim, coroa é muito mais freqüente do que cara. Essa fora a experiência de Reacher. E, para piorar, ele era um policial do Exército que se tornara um civil. Tinha duas desvantagens antes mesmo de entrar no jogo.

O avião taxiou até o portão, e os executivos aguardaram, dando passa­gem para que Jodie passasse na frente deles. Fosse pela tradicional educação texana, fosse para olhar suas pernas e bunda enquanto ela andava, Reacher não poderia criticá-los, pois ele queria fazer exatamente a mesma coisa. Ele pegou a bagagem de mão dela e a seguiu para fora do avião, entrando no terminal. Emparelhou com ela e colocou o braço em torno de seus ombros, sentindo uma dúzia de olhares cravando-se em suas costas.

Reivindicando o que é seu? — perguntou ela.

Você viu os caras? — perguntou ele de volta.

Ela passou o braço pela cintura dele e puxou-o mais para perto.

Meio difícil não ver. Acho que seria bem fácil conseguir um encon­tro para hoje à noite.

Você teria que enxotá-los com um pedaço de pau.

É o vestido. Provavelmente, teria sido melhor usar uma calça com­prida, mas achei que as coisas aqui seriam mais tradicionais.

Você poderia estar usando uma farda de piloto soviético, toda cinza e verde, forrada de algodão, e eles ainda estariam babando.

Ela riu.

Eu já vi pilotos de tanque soviéticos. Papai me mostrou as fotos. No­venta quilos, bigodes enormes, fumando cachimbos, com tatuagens, e isso eram apenas as mulheres.

O terminal estava gelado pelo ar condicionado, e eles foram atingidos por um salto de quatro graus quando saíram para a fila do táxi. Junho, no Texas, dez e pouca da manhã, um calor úmido de mais de 38 graus.

Nossa — disse ela. — Talvez o vestido faça sentido.

Eles estavam à sombra de um viaduto, mais além, no entanto, o sol bri­lhava com um calor fulgurante. O concreto cozinhava e tremeluzia. Jodie pegou um par de óculos escuros na bolsa e os colocou, ficando ainda mais parecida do que nunca com uma Audrey Hepburn loura. O primeiro táxi da fila era um Caprice novo, com o ar-refrigerado no máximo e objetos reli­giosos pendurados no retrovisor. O motorista ficou em silêncio, e a viagem durou quarenta minutos, a maior parte por rodovias de concreto que bri­lhavam brancas no sol, congestionadas no começo e mais vazias no final.

O forte Wolters era uma grande instalação permanente no meio do nada, com prédios baixos e elegantes, jardins limpos e bem-cuidados com o aspecto estéril que apenas o Exército é capaz de obter. Uma cerca alta estendia-se por quilômetros em torno de todo o perímetro, esticada e reta em toda a sua extensão, sem sombra de mato na base. O meio-fio interno da rua era caiado. Além da cerca, as vias internas eram de concreto cinza, serpenteando aqui e ali entre os prédios. As janelas brilhavam sob o sol. O táxi fez uma curva e ficou diante de um campo, do tamanho de um estádio, com helicópteros alinhados. Pelotões de treinamento de voo mo­viam-se entre eles.

O portão principal ficava recuado em relação à estrada, com mastros brancos altos afunilando-se em sua direção. As bandeiras pendiam imóveis no calor. Uma pequena guarita baixa, com uma barreira vermelha e bran­ca, controlava o acesso. A guarita era toda de janelas acima da cintura, e Reacher viu os policiais do Exército dentro dela, observando a aproxima­ção do táxi. Estavam em traje completo de serviço, incluindo os capacetes brancos. O Exército regular da Polícia do Exército. Ele sorriu. Essa par­te não seria problema. Eles teriam mais consideração do que as pessoas a quem guardavam.

O táxi deixou-os na rotatória e seguiu de volta. Eles caminharam sob o calor cegante até a sombra da guarita. Um sargento da polícia abriu a janela e olhou para eles, indagador. Reacher sentiu o ar gelado espalhando-se em seu redor.

Precisamos nos encontrar com o general DeWitt — disse ele. — Alguma chance de conseguirmos, sargento?

O sujeito olhou para ele.

Acho que depende de quem vocês são.

Reacher disse quem era, quem tinha sido, quem Jodie e quem seu pai tinham sido, e um minuto depois estavam ambos no interior refrigerado da guarita. O sargento da Polícia do Exército pegou o telefone e ligou para o número oposto ao seu no escritório de comando.

Certo, vocês têm uma hora marcada. O general estará livre em meia hora.

Reacher sorriu. O sujeito provavelmente estava liberado naquela hora mesmo, mas a meia hora era para verificar se eles eram quem diziam ser.

Como é o general, sargento? — perguntou ele.

Nós o classificamos como GBO — disse o policial e sorriu.

Reacher devolveu o sorriso. A guarita parecia-lhe surpreendentemen­te agradável. Sentia-se em casa ali. GBO era o código da PE para "grande babaca ocasional" e era uma classificação um tanto benevolente para um sargento atribuir a um coronel. Era o tipo de classificação que indicava que, se abordado da maneira certa, o sujeito poderia cooperar. Por outro lado, significava que poderia ser exatamente o contrário. A informação dava-lhe algo sobre o que ponderar enquanto aguardava.

Após 32 minutos, um Chevrolet verde com faixas brancas estacionou dentro da barreira, e o sargento apontou-o com a cabeça para eles. O moto­rista era um soldado raso que não parecia disposto a pronunciar uma única palavra. Apenas esperou enquanto eles se sentavam, deu a volta com o car­ro e seguiu lentamente de volta para os prédios. Reacher observou a pai­sagem familiar passando pelo lado de fora. Ele jamais estivera em Wolters, mas conhecia o lugar muito bem, pois era idêntico a dezenas de outros que já conhecera. O mesmo layout, as mesmas pessoas, os mesmos detalhes, como se tivesse sido construído segundo o mesmo plano mestre. O prédio principal era uma longa estrutura de tijolos, de dois andares, de frente para uma área de desfiles. A arquitetura era exatamente a mesma do prédio prin­cipal da base de Berlim, onde ele nascera. Apenas o clima era diferente.

O carro parou em frente à escada da entrada do prédio. O motorista colocou a marcha na posição de estacionamento e olhou em silêncio para a frente, através do para-brisa. Reacher abriu a porta e saiu para o calor com Jodie.

Obrigado pela carona, soldado — disse.

O rapaz apenas continuou estacionado, com o motor ligado e olhando para a frente. Reacher subiu os degraus com Jodie e passou pela porta. Um soldado da PE estava parado no saguão fresco, capacete branco, botinas brancas e segurando um brilhante M-16 cruzado sobre o peito. Olhava fi­xamente as pernas nuas de Jodie que dançavam em sua direção.

Reacher e Garber para falar com o general DeWitt — disse Reacher.

O rapaz colocou o rifle na vertical, um movimento simbólico equivalen­te a remover uma barreira. Reacher assentiu e seguiu direto para a escada. O lugar era como todos os outros, construído conforme uma especificação mal-situada entre a prodigalidade e a praticidade, como uma escola particu­lar ocupando uma antiga mansão. Era imaculadamente limpa, e o material era o melhor disponível, mas a decoração era institucional e bruta. Uma mesa ocupava o alto da escada, no corredor, onde um solene sargento da PE se ocupava com a papelada. Atrás dele, uma porta de carvalho exibia uma placa de acrílico com o nome de DeWitt, seu posto e suas condecorações. Uma placa grande.

Reacher e Garber para falar com o general — disse Reacher.

O sargento assentiu, pegou o telefone e apertou um botão.

Seus visitantes, senhor — disse no aparelho.

Ouviu a resposta, levantou-se e abriu a porta, colocando-se de lado para lhes dar passagem, e fechou a porta atrás de si. O escritório era do tamanho de uma quadra de tênis. Era revestido de carvalho e tinha um enorme tapete escuro no chão, gasto pela ação do aspirador de pó. A mesa de carvalho era grande, e DeWitt estava sentado numa cadeira atrás dela. Tinha entre 50 e 55 anos, seco e esticado, com ralos cabelos grisalhos rentes ao couro cabelu­do. Os olhos cinzentos, semifechados, observam a aproximação deles com uma expressão que Reacher interpretou como algo entre a curiosidade e a irritação.

Sentem-se — disse. — Por favor.

As cadeiras de couro dos visitantes estavam posicionadas perto da mesa. As paredes do escritório estavam repletas de lembranças, mas todas referentes a mementos de batalhões e divisões, troféus de jogos de guerra, homenagens de batalha e velhas fotografias monocromáticas dos pelotões. Algumas fotos e diagramas mostravam dezenas de diferentes helicópteros. Mas não havia nada pessoal de DeWitt em exibição. Nem mesmo fotos de família sobre a mesa.

Como posso ajudar vocês, pessoal? — perguntou ele.

O sotaque era neutro e militar, resultado do serviço em vários lugares do mundo com gente de todos os cantos do país. Talvez ele fosse, original­mente, do meio-oeste. Talvez de algum lugar próximo a Chicago, pensou Reacher.

Eu fui major da PE — disse e aguardou.

Sei disso. Nós verificamos.

Uma resposta neutra. Nenhum sinal. Nenhuma hostilidade, tampouco qualquer aprovação.

Meu pai era o general Garber — disse Jodie. DeWitt concordou, sem falar.

Estamos aqui em caráter particular — disse Reacher, seguido de um breve silêncio.

Em caráter civil, na verdade — disse DeWitt, lentamente.

Reacher concordou. Um a zero.

É sobre um piloto chamado Victor Hobie. O senhor serviu com ele no Vietnã.

DeWitt olhou-o de maneira deliberadamente neutra e levantou as sobrancelhas.

Com ele? — perguntou. — Não me lembro.

Dois a zero. Não cooperativo.

Estamos tentando descobrir o que aconteceu com ele.

Outro momento de silêncio. Então, DeWitt assentiu, lento, divertido.

Por quê? Ele era o seu tio perdido havia muito tempo? Ou talvez fosse o seu pai, em segredo. Talvez tenha tido um triste caso com sua mãe quando era jovem e cuidou da piscina dela. Quem sabe então você tenha comprado a velha casa da infância dele e encontrou seus diários perdidos da adolescência atrás do forro das paredes com uma edição de 1968 da Playboy?

Três a zero. Não cooperativo e agressivo. O escritório voltou a ficar em silêncio. O barulho surdo das hélices de um rotor soou na distância. Jodie chegou para a frente na cadeira. Sua voz soou suave e baixa na sala silen­ciosa.

Estamos aqui pelos pais dele, senhor. Eles o perderam há trinta anos e nunca souberam o que aconteceu a ele. Ainda estão de luto, general.

DeWitt olhou para ela com os olhos cinzentos e balançou a cabeça.

Não lembro dele. Sinto muito.

Ele treinou com o senhor aqui mesmo, no forte Wolters — disse Reacher. — Vocês foram para Rucker juntos. De lá, navegaram para Qui Nhon. Vocês serviram a maior parte de suas duas idas juntos, voando em helicópteros de resgate em Pleiku.

O pai dele era militar? — perguntou DeWitt. Reacher concordou.

Fuzileiro. Trinta anos, Semper Fi.

O meu era da Oitava Força Aérea — disse DeWitt. — Segunda Guerra, voava em bombardeiros de East Anglia, na Inglaterra, até Berlim, e depois voltava. Sabe o que ele me disse quando me alistei para os helicóp­teros?

Reacher aguardou.

Ele me deu alguns bons conselhos — disse DeWitt. — Me disse para não fazer amizade com pilotos, porque todos acabam mortos, o que só nos deixa infelizes.

Reacher concordou outra vez.

O senhor realmente não consegue se lembrar dele?

DeWitt apenas deu de ombros.

Nem mesmo pelos pais dele? — perguntou Jodie. — Não parece cer­to que jamais saibam o que aconteceu com o filho, não é?

Silêncio. O som das hélices do rotor sumiu. DeWitt olhou para Jodie. Abriu as mãos pequenas sobre a mesa e suspirou pesadamente.

Bem, acho que consigo me lembrar um pouco. Principalmente dos primeiros dias. Depois, quando todos começaram a morrer, eu levei o con­selho do meu pai a sério. Acabei me fechando, sabe?

Então, como era ele? — perguntou Jodie.

Como era ele? — repetiu DeWitt. — Diferente de mim, com certeza. Diferente de todo mundo que eu já conheci também. Ele era uma contra­dição ambulante. Era voluntário, sabia disso? Eu também, e vários outros garotos. Mas Vic não era como os outros. Havia uma grande divisão naque­le tempo entre os voluntários e os convocados. Os voluntários eram todos animados, sabe, estavam lá porque acreditavam naquilo. Mas Vic não era assim. Ele era voluntário, mas era discreto como um rato, mais na dele do que o mais rabugento dos convocados. Mas voava como se tivesse hélices penduradas no rabo.

Então, ele era bom? — perguntou Jodie.

Mais do que bom — respondeu DeWitt. — O melhor depois de mim nos primeiros dias, o que não é pouca coisa, porque eu, definitivamente, nasci com hélices no rabo. E Vic era esperto com os livros. Eu me lembro disso. Era melhor do que todo mundo numa sala de aula.

Ele tinha algum problema de comportamento por causa disso? — perguntou Reacher. — Negociava ajuda em troca de favores?

DeWitt tirou os olhos cinzentos de Jodie.

Vocês pesquisaram. Estiveram nos arquivos.

Acabamos de vir do Registro de Pessoal — disse Reacher. DeWitt assentiu, neutro.

Espero que não tenham lido a minha pasta.

O supervisor não nos deixaria — respondeu Reacher.

Fizemos questão de não nos meter onde não éramos chamados — disse Jodie.

DeWitt assentiu outra vez.

Vic negociava favores — disse. — Mas diziam que ele fazia isso do jeito errado. Às vezes, o assunto vinha à tona, pelo que me lembro. Espe­rava-se que você ajudasse o colega por gosto, sabe? Pelo bem da unidade, certo? Você se lembra no que deu aquela merda?

Ele parou e olhou para Reacher, divertido. Reacher concordou. A pre­sença de Jodie estava ajudando. Seu charme o empurrava lentamente no sentido de uma maior aprovação.

Mas Vic era frio quanto a isso — disse DeWitt. — Como se tudo não passasse de mais uma equação. Como se fossem necessários a: movimentos de subida para tirar o helicóptero do chão e uma determinada quantidade de ajuda resultava em suas botas engraxadas. Eles viam isso como frieza.

Ele era frio? — perguntou Jodie.

DeWitt assentiu.

Nenhuma emoção, o sujeito mais frio que eu já vi. Isso sempre me impressionou. A princípio, achei que era porque ele tinha vindo de um lu­gar pequeno, onde não tinha nada para fazer nem ninguém para ver. Mais tarde percebi que ele simplesmente não sentia nada. Nada mesmo. Era estranho. Mas fazia com que fosse um piloto incrível.

Por que não tinha medo? — perguntou Reacher.

Exatamente — respondeu DeWitt.

Não era corajoso, porque um cara corajoso é alguém que sente medo, mas consegue superá-lo. Antes de mais nada, Vic nunca sentia medo. Isso fez com que se tornasse um piloto de guerra melhor do que eu. Fui eu que passei em Rucker em primeiro lugar, e tenho a placa para provar isso, mas, quando chegamos lá, ele foi melhor do que eu, sem dúvida alguma.

Melhor em que sentido?

DeWitt encolheu os ombros, como se não pudesse explicar.

Nós aprendemos tudo à medida que avançávamos, apenas íamos re­solvendo. O fato é que nossa formação era uma merda. Como se nos mos­trassem uma coisa redonda e pequena, e nos dissessem que aquilo era uma bola de beisebol e então nos mandassem direto para jogar nas ligas princi­pais. É algo que estou tentando resolver, agora que estou encarregado deste lugar. Jamais quero enviar garotos tão despreparados quanto nós fomos.

E Hobie era bom na hora de aprender o trabalho? — perguntou Reacher.

O melhor — disse DeWitt. — Você sabe alguma coisa sobre helicóp­teros na selva?

Reacher balançou a cabeça.

Não muito.

O primeiro problema principal é a ZP — disse DeWitt. — ZP, zona de pouso, certo? Você tem um monte de soldados desesperados e cansados, debaixo de fogo em algum lugar e que precisam ser resgatados. Eles pegam o rádio, e nosso operador lhes diz: claro, abram uma ZP, e já vamos até aí pegar vocês. Aí eles usam explosivos, serras e qualquer outra coisa que tenham em mãos para abrir uma ZP temporária na selva. Um Huey com as hélices girando precisa exatamente de catorze metros de largura por de­zoito metros de comprimento para aterrissar. Mas a infantaria está cansada e cheia de pressa, os vietcongues estão fazendo chover morteiros, e, em geral, nossas tropas não fazem uma ZP grande o suficiente. Portanto, não podemos pegá-los. Isso aconteceu com a gente duas ou três vezes, o que nos deixa arrasados, e uma noite eu vejo Vic estudando a ponta da hélice do Huey. Aí pergunto para ele, o que você está olhando? E ele responde, são de metal. E eu penso, de que mais poderiam ser? Bambu? Mas ele continua olhando. No dia seguinte, somos chamados para uma ZP temporária de novo, e, com certeza, é muito pequena, faltando uns sessenta centímetros em toda a volta. O que me impede de pousar. Mas Vic desce assim mesmo. Ele faz o helicóptero dar várias voltas e vai abrindo o espaço com a hélice. Como um cortador de grama gigante. Foi incrível. Pedaços de árvore voan­do para todo lado. Ele pega uns sete ou oito caras, e o restante de nós desce logo atrás dele e pega o restante. Isso se tornou um procedimento padrão, e foi ele que inventou, pois era frio e lógico, e não tinha medo de tentar. Essa manobra salvou centenas de caras ao longo dos anos. Centenas, literalmen­te, talvez milhares.

Impressionante — disse Reacher.

Pode apostar que foi impressionante — respondeu DeWitt. — O se­gundo grande problema que tínhamos era o peso. Imagine se você estivesse num lugar aberto, como um campo. A infantaria vinha como um enxa­me na sua direção, até a porcaria do helicóptero estar pesado demais para decolar. Assim, seus próprios atiradores começavam a bater nos caras, dei­xando-os lá no campo, talvez para morrer. Não é um sentimento agradável. Então, um dia Vic deixa todo mundo subir a bordo, e com certeza não pode sair do chão. Aí, ele coloca o manete para a frente e força o helicóptero deslizar ao longo do campo, até que a velocidade do ar aumenta debaixo das hélices e o libera. E lá se vai para o alto e se afasta. O salto em veloci­dade. Tornou-se outro procedimento padrão, que ele inventou também. Às vezes, ele fazia isso numa ladeira, até mesmo montanha abaixo, como se fosse direto para um acidente, e então decolava. Como eu disse, estávamos inventando à medida que avançávamos, e a verdade é que Victor Hobie fez um monte de coisas boas.

Você o admirava — disse Jodie.

DeWitt concordou.

Sim. E não tenho medo de admitir.

Mas vocês não eram próximos.

Ele balançou a cabeça.

Como meu pai me disse, não faça amizade com outros pilotos. E fico feliz por não ter feito. Muitos deles morreram.

Como ele passava o tempo? — perguntou Reacher. — Os arquivos mostram que muitas vezes vocês não podiam voar.

O tempo era uma merda. Uma grande merda. Você não tem idéia Eu queria que tudo isso aqui fosse transportado para algum outro lugar, talvez para o estado de Washington, onde tem um pouco de nevoeiro e neblina. Não faz sentido treinar aqui no Texas e no Alabama, se você for para algum lugar onde o tempo não ajude.

Então, como vocês passavam o tempo em terra?

Eu? Eu fazia de tudo. Às vezes, uma festa, às vezes, eu dormia. Às vezes, eu saía de caminhão à procura de coisas de que precisávamos.

E quanto a Vic? — perguntou Jodie. — O que ele fazia?

DeWitt simplesmente deu de ombros outra vez.

Não faço a menor idéia. Estava sempre ocupado, sempre metido com alguma coisa, mas não sei o que era. Como eu disse, eu não queria me misturar com os outros pilotos.

Ele estava diferente na segunda vez? — perguntou Reacher.

DeWitt sorriu rapidamente.

Todo mundo ficava diferente na segunda vez.

De que maneira? — perguntou Jodie.

Mais zangado — disse DeWitt. — Mesmo se você se alistasse de novo, imediatamente, eram nove meses no mínimo até a hora da volta, às vezes um ano inteiro. E aí, quando você voltava, descobria que o lugar tinha virado uma lixeira enquanto você esteve fora. Tudo enlameado e destruído. Construções que você fez tinham despencado, trincheiras que você cavou contra os morteiros, com água pela metade, árvores cortadas das áreas de pouso crescendo de novo. O sentimento era de que seu pequeno domínio fora destruído por um bando de idiotas ignorantes enquanto você este­ve fora. Isso nos deixava zangados e deprimidos. E, em geral, era verdade. Todo o Vietnã seguia ladeira abaixo, totalmente fora de controle. A quali­dade do pessoal só fazia piorar.

Então, você e Hobie se desiludiram? — perguntou Reacher.

DeWitt deu de ombros.

Não me lembro muito da atitude dele. Talvez ele tenha lidado bem. Tinha um forte senso de dever, pelo que me lembro.

Qual foi a última missão dele?

Os olhos cinzas subitamente ficaram opacos, como se cobertos por persianas.

Não lembro.

Ele foi atingido — disse Reacher. — Atingido no ar, bem perto do senhor. Não lembra de que missão era?

Perdemos oito mil helicópteros no Vietnã — disse DeWitt. —- Oito mil, senhor Reacher, do início ao fim. E acho que assisti pessoalmente a maioria deles sendo derrubada. Então, como posso me lembrar de algum especificamente?

Do que se tratava a missão? — perguntou Reacher.

Por que o senhor quer saber? — perguntou DeWitt de volta.

Isso me ajudaria.

Com o quê?

Reacher deu de ombros.

Com os pais dele, eu acho. Quero poder lhes dizer que ele morreu fazendo algo útil.

DeWitt sorriu. Um sorriso amargo, sardônico, gasto e caído nas extre­midades por trinta anos de uso regular.

Bem, meu caro, com toda a certeza o senhor não tem como fazer isso.

Por que não?

Porque nenhuma das nossas missões era útil. Era tudo uma perda de tempo. Um desperdício de vidas. Perdemos a guerra, não foi?

Era uma missão secreta?

Houve uma pausa. Silêncio no grande gabinete.

Por que seria secreta? — DeWitt devolveu a pergunta, em tom neutro.

Ele recolheu apenas três passageiros. Pareceu uma missão especial para mim. Não precisaria nem fazer o salto em velocidade.

Não me lembro — disse novamente DeWitt.

Reacher apenas olhou para ele, em silêncio. DeWitt olhou de volta.

Como posso me lembrar? Ouço falar de uma história pela primeira vez em trinta anos e querem que eu lembre cada maldito detalhe?

Não é a primeira vez em trinta anos. Perguntaram tudo isso ao se­nhor há uns dois meses. Em abril, deste ano.

DeWitt ficou em silêncio.

O general Garber ligou para o Registro de Pessoal, para falar de Hobie. — disse Reacher. — É inconcebível que não tenha procurado o se­nhor depois. Não pode nos dizer o que disse a ele?

DeWitt sorriu.

Disse-lhe que não lembrava.

Silêncio, novamente. O som das hélices se aproximava.

Em nome dos pais dele, o senhor não nos diria? — perguntou Jodie com delicadeza. — Ainda estão de luto por ele. Precisam saber o que acon­teceu.

DeWitt balançou a cabeça.

Não posso.

Não pode ou não quer? — perguntou Reacher.

DeWitt levantou-se devagar e caminhou até a janela. Era um homem baixo. Ficou diante da luz do sol, os olhos franzidos olhando para a es­querda, onde via, aterrissar no campo de pouso o helicóptero que estavam ouvindo.

É informação confidencial — disse ele. — Não estou autorizado a fa­zer qualquer comentário e não farei. Garber me perguntou e eu respondi a mesma coisa para ele. Sem comentários. Mas sinalizei que ele deveria pro­curar mais perto de casa e dou exatamente o mesmo conselho para vocês, sr. Reacher. Procurem mais perto de casa.

Mais perto de casa?

DeWitt ficou de costas para a janela.

Vocês viram a pasta de Kaplan?

O co-piloto dele?

DeWitt concordou.

Vocês leram sobre sua última, e única, missão?

Reacher balançou a cabeça.

Deveria ter lido — disse DeWitt. — Trabalho malfeito de alguém que já foi um major da PE. Mas não diga a ninguém que eu sugeri isso, porque vou negar e vão acreditar em mim, não no senhor.

Reacher olhou para longe. DeWitt voltou para mesa e se sentou.

É possível que Victor Hobie ainda esteja vivo? — perguntou Jodie.

O helicóptero distante desligou os motores. Ficaram em absoluto silêncio.

Sem comentários sobre isso — disse DeWitt.

Já lhe fizeram essa pergunta antes? — questionou Jodie.

Sem comentários sobre isso — repetiu DeWitt.

O senhor viu a queda. É possível alguém ter sobrevivido?

Eu vi uma explosão sob a cobertura das árvores, e só. O tanque dele estava mais da metade cheio. Tire suas próprias conclusões, srta. Garber.

Ele sobreviveu?

Sem comentários.

Por que Kaplan foi oficialmente declarado morto e Hobie não?

Sem comentários.

Ela assentiu. Pensou por um momento, reagrupou as informações como uma boa advogada diante de uma testemunha recalcitrante.

Apenas em teoria, então. Suponha que um jovem com a persona­lidade, o caráter e a formação de Victor Hobie tivesse sobrevivido a um incidente desses, certo? O senhor acha possível que alguém assim jamais entrasse em contato com os próprios pais depois disso?

DeWitt levantou-se outra vez. Estava nitidamente desconfortável.

Não sei, srta. Garber. Não sou uma porcaria de psiquiatra. E, como eu disse, tomei o cuidado de não conhecê-lo muito bem. Ele parecia um sujeito realmente dedicado ao dever, mas era frio. Em geral, acho que con­sideraria isso muito improvável. Mas não esqueça que o Vietnã transfor­mou as pessoas. Com toda a certeza, me transformou, por exemplo. Eu costumava ser um cara legal.

O policial Sark tinha 44 anos, mas parecia mais velho. Tinha um físico prejudicado por uma infância pobre e pela negligência ignorante de boa parte da idade adulta. A pele era sem brilho e pálida, e ele tinha perdido o cabelo cedo. Isso o deixara com um aspecto amarelado, emaciado e envelhecido antes do tempo. Mas a verdade é que despertara para o fato e estava en­frentando a situação. Ele lera o material que o Departamento Médico da polícia de Nova York divulgara sobre dietas e exercícios. Eliminara a maior parte da gordura da alimentação diária e começara a tomar um pouco mais de sol, apenas o bastante para quebrar a palidez da pele, mas sem o risco de causar melanomas. Caminhava sempre que possível. Ao voltar para casa, pegava o metrô, descia uma estação antes e andava o restante do cami­nho, rápido o bastante para acelerar a respiração e o batimento cardíaco, conforme orientava o material de leitura. Durante o horário de trabalho, convencia O'Hallinan a estacionar o carro de patrulha em algum lugar que permitisse uma curta caminhada até onde quer que estivessem indo.

O'Hallinan não se interessava por exercícios aeróbicos, mas era uma mulher amigável e gostava de cooperar com ele, especialmente nos me­ses de verão, quando o sol brilhava. Por isso, estacionou o carro junto ao meio-fio, à sombra da igreja Trinity, e eles se aproximaram do World Trade Center pelo sul, a pé. Isso lhes permitia uma rápida caminhada de seiscentos metros pelo sol, o que deixou Sark feliz, mas tiveram que deixar o carro num ponto entre diversos endereços postais sem deixar, na delegacia, nenhuma pista de sua localização.

— Quer uma carona de volta para o aeroporto? — perguntou DeWitt.

Reacher interpretou a oferta como uma dispensa combinada com um gesto cuja intenção era suavizar o muro de pedra que o sujeito levantara com a entrevista. Ele concordou. O Chevrolet do Exército os levaria mais rápido do que um táxi, pois já estava esperando do lado de fora, com o motor ligado.

Obrigado — respondeu ele.

Tudo bem, o prazer é meu — devolveu DeWitt.

Ele discou um número de sua mesa e falou como se estivesse emitindo uma ordem.

Esperem aqui mesmo — disse ele. — Três minutos.

Jodie ficou de pé e ajeitou o vestido. Foi até a janela e olhou para fora. Reacher foi para o outro lado e olhou para as lembranças na parede. Uma das fotos era uma reimpressão em papel brilhante de uma famosa foto de jornal. Um helicóptero decolava de dentro do complexo da embaixada, em Saigon, com uma multidão sob ele, os braços levantados como se tentassem forçá-lo a voltar para carregar todo mundo.

Era o senhor o piloto? — perguntou Reacher, com um palpite. DeWitt olhou e concordou.

Ainda estava lá, em 1975?

DeWitt concordou novamente.

Cinco períodos de combate e depois um tempo no QG. Em geral, acho que prefiro o combate.

Ouviram, um barulho distante. As batidas surdas de um poderoso helicóptero que se aproximava. Reacher juntou-se a Jodie na janela. Um Huey estava no ar, voando por cima dos prédios distantes vindo da direção do campo de pouso.

Sua carona — disse DeWitt.

Um helicóptero? — perguntou Jodie.

DeWitt sorria.

O que vocês esperavam? Afinal, isso aqui é uma escola de helicópte­ros. Para isso que esses garotos estão aqui. Não estamos numa auto-escola.

O barulho do rotor aumentava para um forte wop-wop-wop. Depois se mesclou com um som mais agudo, wip-wip-wip, enquanto se aproximava e o assobio da turbina se misturava.

Lâminas maiores agora — gritou DeWitt. — Materiais compostos. Não tem mais nada de metal. Não sei o que o velho Vic faria com isso.

O Huey deslizava de lado, flutuando sobre o campo de desfiles diante do prédio. O ruído sacudia as janelas. O helicóptero então se alinhou e pousou no chão.

Prazer em conhecer vocês — gritou DeWitt.

Apertaram a mão dele e saíram. Da mesa, o sargento da PE acenou com a cabeça para eles, em meio ao ruído, e retomou o trabalho com a papelada. Desceram as escadas e saíram para receber um golpe de calor, poeira e barulho intensos. O copiloto estava abrindo a porta deslizante para eles. Eles percorreram a curta distância correndo abaixados. Jodie sorria, e seu cabelo voava para todo lado. O co-piloto estendeu-lhe a mão e puxou-a para dentro. Reacher a seguiu. Prenderam os cintos de segurança no as­sento de trás, e o copiloto fechou a porta e voltou pela cabine. O arrepio familiar da vibração começou no momento em que a aeronave se elevou. O piso inclinou-se, oscilou, e os edifícios giraram pelas janelas, depois ape­nas seus telhados ficaram visíveis, e então os prados distantes, com as auto-estradas cruzando-os como linhas traçadas com um conjunto de lápis cinza. O nariz foi para baixo, e o ruído do motor transformou-se num rugi- do quando eles se inclinaram para fixar o curso e a velocidade de cruzeiro em 160 quilômetros por hora.

O material que Sark tinha lido chamava-se Power Walking, e a idéia era for­çar uma velocidade de sete quilômetros por hora. Dessa forma, o batimen­to cardíaco aumenta, o que é fundamental para o benefício aeróbico, mas você evita os danos pelo impacto nas pernas e nos joelhos, que é o risco da corrida propriamente dita. Era uma proposta convincente, e ele acreditou nela. Fazendo da forma correta, seiscentos metros a sete quilômetros por hora deveria levar um pouco mais de cinco minutos, mas na verdade levou quase oito, porque O'Hallinan caminhava ao seu lado. Ela estava satisfeita por andar, mas queria que fosse mais devagar. Não era uma mulher fora de forma, mas sempre dizia que era feita para o conforto, não para a velocidade. Era um compromisso. Ele precisava da cooperação dela para poder cami­nhar, então nunca reclamou do ritmo. Achou que era melhor do que nada. De um jeito ou de outro, aquilo tinha que estar fazendo algum bem.

Qual prédio? — perguntou ele.

A Torre Sul, eu acho — disse ela.

Deram a volta até a entrada principal da Torre Sul e entraram no sa­guão. Alguns seguranças uniformizados estavam atrás de um balcão, mas atendiam a um grupo de homens estrangeiros de ternos cinza, e Sark e O'Hallinan foram direto consultar o catálogo do prédio. O Cayman Corporate Trust estava listado no 88o andar. Foram até o elevador expres­so e entraram sem que a equipe de segurança notasse a entrada deles no edifício.

O chão do elevador pressionou seus pés e disparou com eles para cima. Diminuiu a velocidade e parou no 88. A porta deslizou para abrir, uma campainha abafada soou, e eles saíram em um corredor neutro. O teto era baixo, e o espaço era estreito. O Cayman Corporate Trust tinha uma mo­derna porta de carvalho com janelinha e maçaneta de bronze. Sark abriu a porta e deixou sua parceira entrar primeiro. O'Hallinan tinha idade sufi­ciente para apreciar a cortesia.

A recepção era decorada em carvalho e bronze, com um homem cor­pulento vestindo um terno escuro atrás de um balcão na altura do peito. Sark ficou no centro do lugar, o cinto carregado realçando a largura de seus quadris, fazendo-o parecer grande e imponente. O'Hallinan se aproximou do balcão, planejando a abordagem. Ela queria desestabilizar as coisas e tentou o tipo de ataque frontal que já vira os detetives usando.

Estamos aqui por causa de Sheryl — disse ela.

— Acho que preciso ir para casa — disse Jodie.

Não, você vai comigo para o Havaí.

Estavam de volta ao interior congelante do terminal do aeroporto de Dallas-Fort Worth. O Huey os deixou num ponto remoto da pista, e o co-pi­loto os transportou num carrinho elétrico pintado de verde. Mostrou-lhes a porta sem identificação que levava direto para um lance de escadas com acesso às áreas públicas.

Havaí? Reacher, não posso ir para o Havaí. Preciso voltar para Nova York

Você não pode voltar sozinha. Nova York é onde está o perigo, lem­bra? E preciso ir ao Havaí. Então você terá que ir comigo. Simples assim.

Reacher, não posso — repetiu. — Preciso estar numa reunião ama­nhã. Você sabe disso. Você atendeu à ligação, certo?

Difícil, Jodie. Você não vai voltar para lá sozinha.

Fechar a conta na suíte de lua de mel em Saint Louis naquela manhã tivera um efeito sobre ele. A parte vadia de seu cérebro, escondida bem no fundo de seus lobos frontais, alertou-o, é o fim da lua de mel, meu chapa. Sua vida está mudando, e os problemas começam agora. Ele ignorou o avi­so. Mas agora estava prestando atenção. Pela primeira vez na vida, tinha uma vítima potencial a proteger. Tinha alguém com quem se preocupar. Na maior parte do tempo, era um prazer, mas era também um fardo.

Preciso voltar, Reacher — disse ela. — Não posso deixá-los na mão.

Ligue para lá e avise que não conseguirá chegar. Diga que está doen­te, invente uma desculpa.

Não posso fazer isso. Meu assistente sabe que não estou doente, certo? E tenho que cuidar da minha carreira. É importante para mim.

Você não vai voltar para lá sozinha — repetiu ele.

Mas afinal, por que você precisa ir ao Havaí?

Porque é onde está a resposta.

Ele se afastou em direção a um balcão de passagens e pegou uma lista de vôos de uma pequena prateleira de metal. Ficou sob a luz fluorescente e abriu em D, nas partidas de Dallas-Fort Worth, percorreu a lista de destinos com o dedo até H, de Honolulu. Depois folheou até as partidas de Honolulu e verificou os voos para Nova York. Conferiu duas vezes e sorriu, aliviado.

Podemos fazer tudo, de qualquer modo. As duas coisas. Veja só. Tem um às 12h15 saindo daqui. Tempo de voo menos a mudança de fuso rumo a Honolulu, e chegamos lá às 15h. Depois pegamos o vôo das 19h de volta para Nova York. Tempo de voo menos a mudança de horário voltando para o leste e chegamos no JFK ao meio-dia de amanhã. Seu assistente disse que a reunião era de tarde, certo? Então, vai dar tempo.

Preciso de informações preliminares. Não tenho idéia do que se trata.

Terá umas duas horas para isso. Você aprende rápido.

É uma loucura. Isso nos deixa apenas quatro horas no Havaí.

É tudo de que precisamos. Vou ligar antes para deixar tudo combi­nado.

Passaremos a noite num avião. Irei para uma reunião após uma noite sem dormir numa porcaria de avião.

Então, viajamos de primeira classe. Rutter está pagando, certo? Po­demos dormir na primeira classe. As poltronas pareceram bem confortá­veis.

Ela deu de ombros e suspirou.

Loucura.

Me deixe usar seu telefone — disse ele.

Ela tirou o celular da bolsa e passou para ele. Reacher ligou para o ser­viço de informações de longa distância e pediu um número. Discou e ouviu tocar a 9.600 quilômetros dali. Tocou oito vezes, e a voz que ele queria ouvir atendeu.

Aqui é Jack Reacher. Você vai estar no escritório o dia todo?

A resposta foi devagar e sonolenta, pois era muito cedo de manhã no Havaí, mas foi a que ele queria ouvir. Desligou o telefone e se virou para Jodie. Ela suspirou para ele outra vez, mas desta vez havia um sorriso mis­turado. Ela foi até o balcão e usou o cartão dourado para comprar as pas­sagens de primeira classe, Dallas-Fort Worth para Honolulu e Nova York. O sujeito no balcão fez a reserva dos lugares na mesma hora, ligeiramen­te impressionado por ver pessoas pagando o preço de um carro esportivo de segunda mão para comprar vinte horas de viagem em um avião e mais em terra até Oahu. Ele lhes entregou os bilhetes, e, vinte minutos depois, Reacher estava acomodado numa enorme poltrona de couro e napa, com Jodie em segurança a um metro de distância, ao lado dele.

 

Havia uma rotina a ser seguida nesta situação. Jamais fora colocada em prática, mas já fora ensaiada com freqüência e exaustivamente. O homem corpulento, no balcão à altura do peito, movia a mão casualmente para o lado e usava o indicador para apertar um botão, e o dedo médio para aper­tar outro. O primeiro botão trancava a porta de carvalho que dava para o elevador. Tratava-se de um mecanismo eletromagnético que fechava a lingueta de aço de forma silenciosa e discreta. Uma vez ativada, a porta mantinha-se trancada até o mecanismo ser liberado, independentemente do que alguém pudesse tentar com a tranca ou com a chave. O segundo botão acendia uma luz vermelha no interfone sobre a mesa de Hobie. A luz vermelha era brilhante, e o escritório estava sempre escuro, era impossível não percebê-la.

Quem? — perguntou o grandalhão.

Sheryl — repetiu O'Hallinan.

Me desculpe — disse o sujeito. — Aqui não trabalha nenhuma Sheryl. Atualmente somos uma equipe de três, todos homens.

Ele chegou a mão para a esquerda, apoiando-a numa tecla marcada TALK, que ativou o interfone.

Vocês trabalham com um Tahoe preto? — perguntou O'Hallinan.

Ele concordou.

Temos um Tahoe preto na frota da empresa.

E quanto a um Suburban?

Sim, acho que temos um desses também. É sobre alguma infração de trânsito?

É sobre Sheryl estar no hospital.

Quem? — perguntou de novo o sujeito.

Sark saiu de trás de O'Hallinan.

Precisamos falar com o seu chefe.

Certo. Vou ver se isso é possível. Posso saber seus nomes?

Policiais Sark e O'Hallinan, da polícia de Nova York.

Tony abriu a porta interna do escritório e parou ali, indagador.

Posso ajudá-los, policiais? — perguntou.

Nos ensaios, os policiais teriam que se afastar do balcão e olhar para Tony. Talvez dar uns dois passos em sua direção. E foi exatamente o que aconteceu. Sark e 0'Hallinan se viraram e foram para o meio da recepção. O homem corpulento no balcão se abaixou e abriu um armário. Soltou uma espingarda do suporte e segurou-a embaixo, fora de vista.

Trata-se de Sheryl — disse O'Hallinan novamente.

Que Sheryl? — perguntou Tony.

A Sheryl que está no hospital com o nariz quebrado — disse Sark. — E com as maçãs do rosto fraturadas e uma concussão. A Sheryl que saiu de seu Tahoe para a emergência do hospital St. Vincent.

Ah, sim — disse Tony. — Não sabíamos seu nome. Ela não podia falar uma palavra, por causa dos ferimentos no rosto.

Então, por que diabos ela estava no carro de vocês? — perguntou O'Hallinan.

Fomos até a Grand Central deixar um cliente lá. Ela estava na calça­da, meio perdida. Tinha vindo num trem de Mount Kisco e estava meio que vagando por lá. Nós lhe oferecemos uma carona até o hospital, que parecia ser do que ela precisava. Então, nós a deixamos no St. Vincent, porque fica no caminho de volta para cá.

Bellevue fica mais perto da Grand Central — disse O'Hallinan.

Não gosto do tráfego por lá — disse Tony com voz neutra. — O St. Vincent era mais conveniente.

E vocês não imaginaram o que tinha acontecido com ela? — pergun­tou Sark. — Como ela se machucou?

Bem, naturalmente, nós perguntamos — disse Tony. — Pergunta­mos a ela, mas ela não podia falar por causa das lesões. É por isso que não reconhecemos o nome.

O'Hallinan ficou ali, incerta. Sark deu um passo adiante.

Vocês a encontraram na calçada?

Tony assentiu.

Do lado de fora da Grand Central.

Ela não podia falar?

Nem uma palavra.

Então, como você sabe que ela tinha vindo no trem de Kisco?

A única área cinzenta dos ensaios era escolher o momento exato para baixar as defesas e iniciar o ataque. Era uma questão subjetiva. Eles con­fiavam que, quando aparecesse, iriam reconhecê-la. E reconheceram. O homem corpulento levantou-se, engatilhou a espingarda e apontou-a por cima do balcão.

Parados! — gritou ele.

Uma nove milímetros apareceu na mão de Tony. Sark e O'Hallinan olha­ram para ele e para a espingarda, e levantaram os braços. Não um pequeno gesto derrotado, como no cinema. Esticaram-nos rapidamente para cima, como se suas vidas dependessem de tocar o isolamento acústico bem em cima de suas cabeças. O cara com a espingarda foi por trás e espetou o cano rígido nas costas de Sark, e Tony foi por trás de O'Hallinan e fez a mesma coisa com a pistola. Em seguida, um terceiro homem saiu da escuridão e parou na porta do escritório.

Sou Hook Hobie — disse ele.

Eles o olharam. Não disseram nada. Os olhares começaram no rosto desfigurado e desceram lentamente até a manga vazia.

Quem é quem? — perguntou Hobie.

Ninguém respondeu. Estavam olhando para o gancho. Ele o levantou e deixou que recebesse a luz.

Qual de vocês é O'Hallinan?

O'Hallinan abaixou a cabeça, em reconhecimento. Hobie se virou.

Então você é Sark.

Sark assentiu. Apenas uma fração de movimento com a cabeça.

Soltem os cintos — disse Hobie. — Um de cada vez. E rápido.

Sark foi o primeiro. Fez tudo rápido. Deixou caírem as mãos e abriu a fivela. O cinto pesado caiu no chão, a seus pés e esticou os braços para o teto de novo.

Agora você — disse Hobie para O'Hallinan.

Ela fez a mesma coisa. O cinto pesado com o revólver, o rádio, algemas e o cassetete despencou sobre o carpete. Ela esticou as mãos para cima, o mais alto que podia. Hobie usou o gancho. Abaixou-se e passou a ponta do gancho pelas fivelas dos dois cintos, levantou-os balançando no ar e po­sando como um pescador no fim de uma boa pescaria à beira do rio. Com a mão boa, tirou os dois pares de algemas de seus suportes gastos de couro.

Virem-se.

Viraram-se e encararam as armas apontadas para eles.

Mãos para trás.

É possível para um homem de apenas um braço colocar algemas numa vítima, se a pessoa ficar parada e com os pulsos unidos. Sark e O'Hallinan ficaram realmente imóveis. Hobie fechou em um pulso de cada vez e depois apertou as quatro argolas em suas catracas até ouvir gemidos de dor de am­bos. Levantando os cintos a uma altura em que não se arrastavam no chão, caminhou de volta para o escritório.

Entrem — chamou.

Circundou a mesa e deixou os cintos sobre ela, como itens para um exame mais cuidadoso. Sentou-se pesadamente na cadeira e aguardou en­quanto Tony alinhava os prisioneiros diante dele. Deixou-os em silêncio enquanto esvaziava os cintos. Soltou os revólveres e os jogou numa gaveta. Pegou os rádios e mexeu nos controles de volume até que começassem a chiar e estalar ruidosamente. Ajeitou-os juntos no canto da mesa com as antenas apontadas para as janelas. Inclinou a cabeça por um momento e ouviu os assobios das interferências atmosféricas. Depois, voltou-se e tirou os dois cassetetes das alças dos cintos. Colocou um deles sobre a mesa e sopesou o outro com a mão esquerda, examinando-o com atenção. Era do tipo moderno, com um cabo e uma seção telescópica embaixo. Observou-o atentamente, interessado.

Como isso funciona?

Nem Sark nem O'Hallinan responderam. Hobie brincou com o cassete­te por alguns segundos e depois olhou para o cara grande, que golpeou com a espingarda para a frente e acertou Sark no fígado.

Eu fiz uma pergunta — disse-lhe Hobie.

Você balança — murmurou ele. — Balança e depois meio que dá uma sacudida.

Ele precisou de espaço, então se levantou. Balançou o cassetete e o sa­cudiu, como se estalasse um chicote. A parte telescópica se abriu e travou no lugar. Ele sorriu com a parte não queimada do rosto. Fechou o meca­nismo e tentou de novo. Voltou a sorrir. Começou a dar voltas em círculos grandes ao redor da mesa, balançando e fazendo o cassetete se abrir. Fez o movimento vertical e, depois, horizontalmente. Usou mais e mais força. Fechou os círculos, movimentando o cassetete. Agitou-o com um golpe, e o mecanismo se abriu. Ele virou e acertou O'Hallinan no rosto.

Gostei desse negócio — disse.

O'Hallinan estava oscilando para trás, mas Tony a empurrou com a pis­tola. Os joelhos cederam e ela caiu para a frente, desajeitada, contra a frente da mesa, as mãos algemadas firmemente nas costas, sangrando pela boca e pelo nariz.

O que Sheryl disse a vocês? — perguntou Hobie.

Sark olhava para baixo, para O'Hallinan.

Que ela havia batido numa porta — murmurou ele.

Então por que vocês vieram me incomodar? Por que estão aqui?

Sark ergueu o olhar. Olhou diretamente para o rosto de Hobie.

Por que não acreditamos nela. Era óbvio que alguém tinha batido nela. Rastreamos a placa do Tahoe, e parece que isso nos trouxe ao lugar certo.

O escritório voltou a ficar em silêncio. Nada além dos chiados e asso­bios dos rádios dos policiais na ponta da mesa. Hobie concordou.

Exatamente ao lugar certo — disse ele. — Não teve nenhuma porta envolvida.

Ele assentiu em resposta. Era um homem razoavelmente corajoso. A Unidade de Violência Doméstica não era refúgio de covardes. Por defini­ção, envolvia lidar com homens capazes de atos de violência brutal. E Sark era tão bom para lidar com eles quanto qualquer um.

Isso é um grande erro — disse em voz baixa.

De que forma? — perguntou Hobie, interessado.

Trata-se do que você vez com Sheryl, e isso é tudo. Não precisa ser mais nenhuma outra coisa. Você realmente não deveria misturar mais nada com isso. E um passo muito grande usar de violência contra oficiais da polícia. Podemos fazer algo com relação ao caso de Sheryl. Pode ter havido alguma provocação, alguma circunstância atenuadora. Mas, se você conti­nuar mexendo com a gente, não poderemos te ajudar em nada. Você estará apenas se enterrando num problema ainda maior.

Ele fez uma pausa e esperou atentamente pela resposta. A abordagem costumava funcionar. O interesse próprio por parte do perpetrador em ge­ral fazia com que funcionasse. Mas não houve resposta de Hobie. Ele não disse nada. O escritório estava em silêncio. Sark preparava uma nova abor­dagem quando os rádios estalaram e um operador distante entrou no ar e o sentenciou a morte.

Cinco um e cinco dois, por favor confirmem a localização atual.

Sark era tão condicionado a responder que sua mão se moveu em di­reção aonde o cinto estivera. O movimento foi logo interrompido pelas algemas. O chamado do rádio morreu no silêncio. Hobie olhava para o espaço.

Cinco um, cinco dois, preciso de suas localizações atuais, por favor.

Sark olhava para os rádios, horrorizado. Hobie seguiu seu olhar e sorriu.

Eles não sabem onde vocês estão — disse.

Sark balançou a cabeça. Pensando rápido. Um homem corajoso.

Eles sabem onde estamos. Sabem que estamos aqui. Querem con­firmar, só isso. Eles verificam se estamos onde deveríamos estar, o tempo todo.

Os rádios estalaram novamente.

Cinco um, cinco dois, respondam, por favor.

Hobie olhou para Sark. 0'Hallinan tentava se levantar sobre os joelhos, olhando para os rádios. Tony moveu a pistola para impedi-la.

Cinco um, cinco dois, estão ouvindo?

A voz afundou sob o mar de estática e depois voltou, mais forte.

Cinco um, cinco dois, temos uma emergência de violência doméstica na Houston esquina com a avenida D. Vocês estão em algum local próximo?

Hobie sorriu.

Isso fica a mais de três quilômetros daqui — disse ele. — Eles não têm a menor idéia de onde vocês estão, não é?

Então ele deu uma risada. O lado esquerdo do rosto se enrugou em linhas não costumeiras, mas o tecido queimado do lado direito manteve-se firme, como uma máscara rígida.

 

PELA PRIMEIRA VEZ NA VIDA, REACHER ESTAVA realmente confortável num avião. Ele voava desde que nasceu, primeiro como filho de um soldado, depois ele mesmo como soldado — milhões de quilômetros no total —, mas todos eles encolhido em transportes militares barulhentos e espartanos ou dobrado nos duros assentos civis mais estreitos que seus ombros. Viajar em primeira classe numa companhia aérea era um luxo totalmente novo.

A cabine era impressionante. Um insulto calculado aos passageiros que entraram no avião e a viram antes de se misturar ao longo do corredor procurando suas próprias acomodações mesquinhas. A primeira classe era bonita, em tons pastel, quatro lugares por fila, no mesmo espaço ocupado por dez poltronas na classe econômica. Aritmeticamente, Reacher calculou que cada lugar tinha duas vezes e meia a largura das poltronas comuns, mas


a sensação dele era a de que eram ainda maiores. Pareciam enormes sofás, largos o bastante para que ele se espalhasse para os lados sem esbarrar o quadril nos braços da cadeira. E o espaço para as pernas era incrível. Era possível deslizar para baixo e se esticar todo sem tocar no assento da frente. Podia apertar o botão e reclinar quase até a horizontal sem incomodar a pessoa de trás. Acionou o mecanismo algumas vezes como uma criança com um brinquedo, depois fixou o assento numa posição intermediária e razoável, e abriu a revista de bordo, nova e estalando, e não amassada e pegajosa como a que estavam lendo quarenta fileiras mais para trás.

Jodie estava perdida em sua própria poltrona, sem sapatos e com os pés encolhidos sob ela, a mesma revista aberta no colo e um copo de cham­panhe gelado perto do cotovelo. A cabine estava silenciosa. Eles estavam bem à frente dos motores, e o barulho foi reduzido a um zumbido que não chegava a ser mais alto do que o chiado do ar-refrigerado saindo pela ven­tilação sobre suas cabeças. Não havia qualquer vibração. Reacher observava o vinho dourado borbulhando no copo de Jodie, sem qualquer tremor na superfície.

Eu poderia me acostumar com isso — disse.

Ela olhou para cima e sorriu.

Não com o seu salário — respondeu ela.

Ele concordou e voltou à aritmética. Calculou que a remuneração de um dia de escavação de piscinas permitiria que ele comprasse oitenta quilô­metros de viagem aérea na primeira classe. Em bom ritmo, isso dava cerca de cinco minutos no ar. Dez horas de trabalho, tudo consumido em cinco minutos. Ele estava gastando o dinheiro 120 vezes mais rápido do que o tempo que levara para ganhá-lo.

O que você vai fazer quando tudo isto acabar? — perguntou ela.

Não sei.

A questão estivera no fundo de sua mente desde que ela lhe contara sobre a casa. A própria casa aparecia em sua imaginação, algumas vezes be­nigna, outras, ameaçadora, como um quadro enganador que mudava con­forme a pessoa se posicionasse contra a luz. Algumas vezes, aparecia sob o brilho do sol, confortável, baixa e espalhada, cercada pela selva amigável de um quintal e se parecia com um lar. Outras, parecia uma gigantesca pe­dra de moinho, exigindo-lhe correr, correr e correr apenas para se manter alinhado na posição de partida. Ele conhecia pessoas que tinham casas. Conversara com elas, com o mesmo tipo de interesse distanciado com que conversaria com uma pessoa que tinha cobras como animais de estimação ou que participava de competições de dança de salão. As casas forçavam um certo estilo de vida. Mesmo que alguém lhe desse uma de graça, como Leon fizera, era um compromisso com um monte de coisas. Havia impos­tos sobre a propriedade. Ele sabia disso. Seguros, caso o lugar pegasse fogo ou fosse derrubado por um vendaval. A manutenção. As pessoas que ele conhecia que tinham casas estavam sempre fazendo algum reparo nelas. Substituindo o sistema de aquecimento no início do inverno, porque dera defeito. Ou vazamentos de água no porão, que exigiriam trabalhos com­plicados de escavação. Os telhados eram um problema. Ele sabia disso. As pessoas lhe disseram. Telhados tinham vida curta, o que o surpreendera. As telhas precisavam ser retiradas e substituídas por novas. As cercas tam­bém. Assim como as janelas. Ele conheceu gente que colocou janelas no­vas em suas casas. Deliberaram profunda e demoradamente sobre que tipo iriam comprar.

— Você vai arrumar um emprego? — perguntou Jodie.

Ele olhou para fora, pela janela oval, para o sul da Califórnia, seco e marrom, onze quilômetros abaixo. Que tipo de trabalho? A casa lhe custa­ria talvez uns dez mil dólares por ano em impostos, seguros e manutenção. E era uma casa isolada, por isso teria também que fazer manutenção no carro de Rutter. O carro fora de graça, como a casa, mas apenas tê-lo já custaria dinheiro. Seguros, trocas de óleo, vistorias, impostos, gasolina. Talvez mais uns três mil por ano. Alimentos, roupas e artigos de primeira necessidade ficavam em primeiro lugar da lista. E, se tivesse uma casa, iria querer outras coisas. Um aparelho de som. O CD de Wynonna Judd e um monte de outros também. Lembrou-se dos cálculos à mão da velha sra. Hobie. Ela calculara uma quantia de que precisava anualmente, e ele não conseguia imaginar ficar nem um pouco abaixo daquilo. Tudo somava, tal­vez, uns trinta mil dólares por ano, o que significava ganhar uns cinqüenta, considerando o imposto de renda e o custo de cinco dias por semana de viagens de ida e volta para onde quer que o diabo o mandasse ir trabalhar.

Não sei — respondeu ele de novo.

Você poderia fazer várias coisas.

Como o quê?

Você é talentoso. Você é um excelente investigador, por exemplo. Papai sempre dizia que você era o melhor que ele já conhecera.

Isso foi no Exército — disse ele. — Está tudo acabado agora.

As habilidades são portáveis, Reacher. Quem é bom sempre tem tra­balho.

Então, ela olhou para cima, uma grande idéia estampada no rosto.

Você poderia assumir o negócio de Costello. Ele vai deixar um vazio. Nós o chamávamos o tempo todo.

Está ótimo. Primeiro, eu levo o cara a morte, depois, roubo o negó­cio dele.

Não foi culpa sua — disse ela. — Pense nisso.

Então, ele voltou a olhar para a Califórnia e pensou. Pensou na cadeira de couro gasta de Costello e em seu corpo, envelhecendo confortavelmente. Pensou em estar sentado em sua sala de tons pastel, com a janela de vidro jateado, passando a vida no telefone.

Pensou sobre o custo de manter um escritório na avenida Greenwich e de contratar uma secretária, comprar computador e mesinha de telefone, contratar plano de saúde e pagar férias. Tudo isso além de cuidar da casa em Garrison. Teria que trabalhar dez meses por ano antes de poder contar com um único dólar.

Não sei — disse de novo. — Não tenho certeza se quero pensar nisso.

Vai ter que pensar.

Talvez — respondeu. — Mas não necessariamente agora.

Ela sorriu como se compreendesse, e voltaram a ficar em silêncio. O avião assobiou adiante, e a aeromoça voltou com o carrinho de bebidas. Jodie repetiu o champanhe, e Reacher pegou uma lata de cerveja. Folheou a revista de bordo. Estava cheia de artigos leves sobre nenhum assunto muito especial. Havia anúncios de serviços financeiros e de pequenos aparelhos eletrônicos complicados, todos pretos e operados por pilhas. Chegou à se­ção em que a frota operacional da companhia era retratada em algumas ilustrações coloridas. Descobriu o avião em que estavam e leu sobre sua capacidade de passageiros, seu alcance potência dos motores. Chegou en­tão às palavras cruzadas no final. Enchiam uma página e pareciam muito difíceis. Jodie já estava lá, em seu próprio exemplar, à frente dele.

Dê uma olhada na casa 11 — disse ela.

Ele olhou.

Podem ser pesadas — leu. — Dezessete letras.

Responsabilidades — disse ela.

Marilyn e Chester Stone estavam amontoados no sofá da esquerda, diante da mesa, porque Hobie estava no banheiro, sozinho com os dois policiais. O homem corpulento de terno preto se sentou no sofá oposto, com a es­pingarda descansando no colo. Tony estava esparramado ao lado dele, com os pés sobre a mesa de centro. Chester estava inerte, apenas olhando para a escuridão. Marilyn sentia frio e fome, e estava aterrorizada. Seus olhos disparavam por toda a sala. O silêncio era total no banheiro.

O que ele está fazendo lá com eles? — sussurrou ela. Tony deu de ombros.

Provavelmente, apenas conversando.

Sobre o quê?

Bem, perguntando sobre o que gostam e o que não gostam de fazer. Em termos de dor física. Ele gosta de fazer isso.

Deus, por quê?

Tony sorriu.

Ele acha que é mais democrático, sabe? Deixar que as vítimas deci­dam o próprio destino.

Marilyn estremeceu.

Oh, meu Deus, ele não pode apenas deixá-los ir embora? Eles acha­ram que Sheryl era apenas uma esposa espancada, só isso. Não sabiam nada sobre ele.

Bem, vão saber em breve — disse Tony. — Ele manda que escolham um número. Nunca sabem se é para escolher alto ou baixo, porque não sabem para que é. Acham que vão agradá-lo se escolherem o número certo, sabe? Levam um tempo enorme para descobrir.

Ele não pode simplesmente deixá-los ir? Mais tarde, talvez?

Tony balançou a cabeça.

Não — respondeu ele. — Está muito tenso, no momento. Isso o faz relaxar. Como uma terapia.

Marilyn ficou em silêncio por um bom tempo. Mas, então, teve que perguntar.

Para que serve o número? — murmurou ela.

Quantas horas levam para morrer — disse Tony. — Os que escolhem números altos ficam realmente chateados quando descobrem.

Seus nojentos!

Um cara uma vez escolheu cem, mas nós deixamos por dez.

Seus nojentos!

Mas ele não vai fazer você escolher um número. Tem outros planos para você.

Silêncio total no banheiro.

Ele é louco — Marilyn sussurrou.

Tony deu de ombros.

Um pouco, talvez. Mas eu gosto dele. Já sentiu muita dor na vida. Acho que é por isso que se interessa tanto por isso.

Marilyn olhou para ele, horrorizada. Alguém então tocou a campainha da porta de carvalho, no saguão do elevador. Muito barulhento no silêncio terrível. Tony e o homem corpulento com a espingarda se viraram e olha­ram naquela direção.

Dê uma olhada — disse Tony ao homem.

Tony colocou a mão dentro do casaco e sacou o revólver. Segurou-o firme apontado para Chester e Marilyn. O parceiro com a espingarda le- vantou-se do sofá baixo, deu a volta na mesa e foi até a porta. Fechou-a atrás de si, e o escritório voltou a ficar em silêncio. Tony se levantou e caminhou até a porta do banheiro. Bateu com a coronha da arma e abriu uma fresta por onde enfiou a cabeça.

Visitantes — disse em voz baixa.

Marilyn olhou para os lados. Tony estava a seis metros dela e era o mais próximo. Ela ficou em pé com um pulo e respirou fundo. Desviou da mesa de centro e do sofá do outro lado, e foi correndo até a porta do escritório. Escancarou-a com força. O homem corpulento de terno preto estava do outro lado da recepção, falando com um homem baixo parado na porta de entrada, vindo do saguão do elevador.

Socorro! — gritou ela para ele.

O homem olhou para ela. Estava vestido de calças azul-escuras e uma camisa azul, com um casaco curto aberto, do mesmo azul das calças. Al­gum tipo de uniforme. Uma pequena logomarca aparecia do lado esquerdo do peito da jaqueta. Carregava uma sacola de mercado marrom aninhada nos braços.

Socorro! — gritou ela de novo.

Duas coisas aconteceram. O homem corpulento do terno preto pulou para a frente, puxou o visitante para o lado de dentro e bateu a porta atrás dele. Tony agarrou Marilyn por trás com um braço ao redor da cintura dela. Arrastou-a de volta para o escritório. Ela se arqueou para a frente, contra a pressão dos braços dele. Dobrava-se o meio e lutava.

Pelo amor de Deus, nos ajude!

Tony ergueu-a do chão. Seu braço a pressionava sob os seios. O ves­tido curto subia pelas coxas. Ela chutava e se debatia. O homem baixo de uniforme olhava. Os sapatos dela saíram dos pés. O homem baixo então começou a rir. Caminhou para dentro do escritório atrás dela, desviando-se com cuidado com dos sapatos abandonados, carregando sua bolsa de supermercado.

Ei, deixe um pouco para mim — disse ele.

Pode esquecer — ofegou Tony atrás dela.

Essa aqui está fora dos limites, por ora.

Que pena — disse o novo sujeito. — Não é todo dia que se ve uma dessas.

Tony lutou com ela por todo o trajeto até o sofá. Jogou-a ao lado de Chester. O novo sujeito deu de ombros conformado e esvaziou a bolsa so­bre a mesa. Maços de dinheiro bateram na madeira. A porta do banheiro se abriu, e Hobie foi para a sala. Estava sem o casaco, e as mangas da camisa estavam dobradas até o cotovelo. Na esquerda, havia um antebraço. Musculoso e coberto de pelos escuros. Na direita, um pesado suporte de couro, marrom-escuro, gasto e brilhante, com tiras presas a ele subindo por dentro da manga. Na extremidade, o suporte se afunilava, com o gancho de aço brilhante saindo da ponta, reto por uns quinze centímetros e depois fazen­do a curva até terminar numa ponta.

Conte o dinheiro, Tony — disse Hobie.

Marilyn se levantou num pulo, Virou-se para encarar o novo sujeito.

Ele está com dois policiais lá — disse com urgência. — Ele vai matá-los.

O cara deu de ombros para ela.

Está bom para mim — respondeu. — Mate-os todos, é só o que eu tenho a dizer.

Ela o fitou, confusa. Tony moveu-se atrás da mesa e ajeitou os maços de dinheiro. Empilhou-os com cuidado e contou em voz alta, movendo-os de uma ponta da mesa para a outra.

Quarenta mil dólares.

Então, onde estão as chaves? — perguntou o novo sujeito.

Tony abriu a gaveta da mesa.

Estas são do Mercedes.

Ele jogou o chaveiro para o sujeito e colocou a mão no bolso para pegar o outro molho.

E estas são do Tahoe. Está na garagem lá embaixo.

E o BMW? — perguntou o sujeito.

Ainda está em Pound Ridge — respondeu Hobie do outro lado da sala.

Chaves? — perguntou o sujeito.

Na casa, eu acho — disse Hobie.

Ela não trouxe uma carteira e não parece que estejam escondidas com ela, não é?

O sujeito olhou para o vestido de Marilyn e abriu um sorriso maldoso, cheio de lábios e língua.

Tem alguma coisa lá dentro, com certeza. Mas não se parece com as chaves.

Ela olhou para ele, enojada. O desenho no casaco dizia Mo's Motors. Bordado em seda vermelha. Hobie atravessou a sala e ficou bem atrás dela. Inclinou-se para a frente e colocou o gancho na linha de visão dela. Ela olhou para ele, bem de perto. Sentiu um arrepio.

Onde estão as chaves? — perguntou ele.

O BMW é meu — disse ela.

Não é mais.

Ele aproximou o gancho ainda mais. Ela podia sentir os odores de me­tal e couro.

Eu poderia revistá-la — falou o sujeito novo. — Talvez ela esteja mesmo escondendo essas chaves. Posso pensar em uns dois lugares inte­ressantes para olhar.

Ela estremeceu.

As chaves — disse Hobie delicadamente.

No balcão da cozinha — murmurou ela de volta.

Hobie afastou o gancho e passou para a frente dela, sorrindo. O novo sujeito pareceu desapontado. Acenou com a cabeça para confirmar que ti­nha ouviu o murmúrio e caminhou devagar até a porta, tilintando as chaves do Mercedes e do Tahoe nas mãos.

Um prazer fazer negócio — disse enquanto caminhava. Então, parou na porta e olhou para trás, direto para Marilyn.

Tem certeza absoluta de que ela está fora dos limites, Hobie? Con­siderando a nossa velha amizade e tudo? Depois de termos feito tantos ne­gócios juntos?

Hobie balançou a cabeça, confirmando.

Pode esquecer. Essa aí é minha.

O cara deu de ombros e saiu do escritório, balançando as chaves. A porta se fechou atrás dele, e ouviram a segunda batida da porta de entra­da, logo depois. Depois, o gemido do elevador, e o escritório voltou a ficar em silêncio. Hobie olhou para as pilhas de dólares sobre a mesa e voltou para o banheiro. Marilyn e Chester foram mantidos lado a lado no sofá, com frio, enjoados e famintos. A luz que passava pelas fendas das persianas desapareceu no torpor amarelado da noite, e o silêncio dentro do banheiro continuou até um momento em que Marilyn imaginou ser perto das oito horas da noite. Em seguida, foi quebrado por gritos.

 

O avião seguiu o sol para o oeste, mas perdeu tempo por todo o caminho e chegou em Oahu com três horas de atraso, no meio da tarde. A cabine de primeira classe fora esvaziada antes da classe executiva e da econômica, e por isso Reacher e Jodie foram as primeiras pessoas a sair do terminal e chegar à fila de táxi. A temperatura e a umidade do lado de fora eram seme­lhantes a do Texas, mas a umidade chegava junto com a maresia pela pro­ximidade do Pacífico. E a claridade era mais suave. As montanhas verdes e irregulares e o azul do mar banhavam a ilha com o brilho precioso dos tró­picos. Jodie colocou os óculos escuros de novo e olhou para além das cercas do aeroporto com a curiosidade de alguém que passou pelo Havaí dezenas de vezes nos tempos de serviço do pai, sem nunca de fato ter parado lá. Reacher fizera o mesmo. Ele havia passado por lá como escala para o Pacífi­co mais vezes do que poderia contar, mas nunca tinha servido no Havaí.

O primeiro táxi da fila era uma réplica do que eles tinham usado em Dallas-Fort Worth, um Caprice claro, com o ar rugindo a toda força e o compartimento do motorista decorado como algo entre um santuário e uma sala de estar. Eles decepcionaram o cara, pedindo-lhe o menor trajeto de Oahu, um pulo de oitocentos metros pela estrada perimetral até a entra­da da Base Aérea de Hickam. O cara olhou para a fila de carros atrás dele, e Reacher o viu pensando sobre as tarifas melhores que os outros pilotos iriam faturar.

— Dez dólares de gorjeta para você — disse Reacher.

O cara olhou para ele do mesmo jeito que o funcionário do balcão de passagens em Dallas-Fort Worth. A tarifa mal faria o taxímetro rodar, mas uma gorjeta de dez dólares? Reacher viu uma foto do que ele desconfiou ser a família do rapaz, colada no plástico do painel. Uma família grande, crianças e uma mulher sorridentes, todos morenos, ela usando um vestido estampado alegre, todos de pé diante de uma casa clara e simples com algu­ma planta vigorosa crescendo em um canteiro de terra à direita. Ele pensou nos Hobie, sozinhos no escuro silencioso de Brighton, a garrafa de oxigênio assobiando e o assoalho de madeira gasta rangendo. E em Rutter, na poeira sórdida da loja no Bronx.

Vinte dólares — disse. — Se sairmos imediatamente, ok?

Vinte dólares? — repetiu o homem, impressionado.

Trinta. Para os seus filhos. Parecem legais.

O cara deu um sorriso no espelho, trouxe os dedos até os lábios e tocou delicadamente a superfície brilhante da fotografia. Ele acelerou o táxi para mudar de faixa e entrar na rodovia perimetral, e estacionou quase imediatamente depois, após oitocentos metros de percurso, do lado de fora de um portão militar que parecia idêntico ao do forte Wolters. Jodie abriu a porta e saiu para o calor. Reacher enfiou a mão no bolso e tirou seu rolo de dinheiro. A primeira nota era de cinqüenta, ele a pegou e empurrou pela portinhola articulada no painel de acrílico.

Fique com isso.

Em seguida, apontou para a fotografia.

Essa é sua casa?

O motorista concordou.

Está bem-cuidada? Precisa consertar alguma coisa?

O sujeito balançou a cabeça.

Tudo nos trinques.

O telhado está ok?

Nenhum problema.

Reacher concordou.

Apenas conferindo.

Ele deslizou pelo banco e se juntou a Jodie no asfalto. O táxi afastou-se através da névoa, de volta para o terminal civil. Uma brisa suave chegava do oceano. Havia maresia. Jodie tirou os cabelos do rosto e olhou em volta.

Aonde vamos?

LICHA — disse Reacher. — É aí dentro.

Ele pronunciou a sigla foneticamente, e ela riu.

Lixa? — repetiu ela. — Então, o que é isso?

L, I, C, H, A — disse ele. — Laboratório de Identificação Central do Havaí. E a principal instalação do Ministério do Exército.

Para quê?

Vou te mostrar para quê.

Então, fez uma pausa.

Pelo menos é o que eu espero.

Foram até a guarita e esperaram na janela. Um sargento estava lá den­tro, a mesma farda, o mesmo corte de cabelo, a mesma expressão descon­fiada do sujeito em Wolters. Deixou-os esperando no calor por um segundo e depois voltou a abrir a janela. Reacher deu um passo adiante e informou seus nomes.

Estamos aqui para falar com Nash Newman — disse.

O sargento pareceu surpreso, pegou uma prancheta e percorreu as folhas finas de papel. Deslizou o dedo ao longo de uma linha e assentiu. Pegou o telefone e discou um número. Quatro dígitos. Uma chamada in­terna. Anunciou os visitantes, ouviu a resposta e pareceu confuso. Cobriu o telefone com a mão e virou-se para Jodie.

Quantos anos você tem, moça? — perguntou ele.

Trinta — respondeu Jodie, confusa.

Trinta — repetiu o PE no telefone. Ouviu de novo, desligou e escre­veu alguma coisa na prancheta. Virou-se de novo para a janela.

Ele já está vindo, então venham logo.

Espremeram-se pela passagem estreita entre a parede da guarita e o pe­sado contrapeso na ponta da cancela de veículos e aguardaram na calçada quente, a um metro de onde começava, mas agora era uma calçada militar, não a do Departamento de Transportes do Havaí, e isso fazia muita diferen­ça na expressão do sargento. Não havia mais desconfiança, substituída por uma aberta curiosidade sobre por que o lendário Nash Newman estava tão apressado para receber esses dois civis na base.

A cerca de sessenta metros dali, havia um prédio baixo de concreto com uma porta lisa de serviço na parede clara. A porta se abriu, e um homem grisalho saiu por ela. Ele se virou para trancá-la e caminhou num passo apressado em direção à guarita. Usava as calças e a camisa da farda tropi­cal do Exército, com um jaleco branco esvoaçante. A quantidade de metal espetada no colarinho indicava que era um oficial de alto escalão, e nada em sua atitude distinta contradizia essa impressão. Reacher avançou para encontrá-lo, e Jodie o seguiu. O homem grisalho tinha uns 55 anos, e, de perto, era alto, com um rosto bonito e aristocrático, o corpo com um jeito atlético natural, que mal começava a exibir a rigidez da idade.

General Newman — disse Reacher. — Esta é Jodie Garber.

Newman olhou para Reacher e pegou a mão de Jodie, sorrindo.

Prazer em conhecê-lo, General — disse ela.

Nós já nos conhecemos — disse Newman.

Já? — perguntou ela, surpresa.

Você não se lembraria. Pelo menos eu ficaria muito surpreso se lem­brasse. Você tinha três anos de idade naquela época, eu acho. Nas Filipinas. Foi no quintal dos fundos do seu pai. Lembro que me trouxe um copo de ponche. Era um copo grande e um quintal enorme, e você era uma menina bem pequena. Segurava o copo com as duas mãos, com a língua para fora, concentrada. Fiquei olhando por todo o caminho, com o coração na boca, caso você deixasse o copo cair.

Ela sorriu.

Bem, o senhor está certo, acho que não lembro mesmo. Eu tinha três anos? Nossa, faz tempo demais.

Newman concordou.

Por isso perguntei quantos anos você aparentava. Não era para o sargento olhar para você e perguntar. Queria apenas a impressão subjetiva dele, só isso. Não é o tipo de coisa que se pergunte a uma dama, não é mes­mo? Mas fiquei pensando seria mesmo a filha de Leon vindo me visitar.

Ele apertou a mão dela e depois soltou. Virou-se para Reacher e bateu de leve no ombro dele.

Jack Reacher — disse. — Caramba, é bom ver você de novo.

Reacher pegou a mão de Newman e a sacudiu forte, compartilhando o prazer.

O general Newman foi meu professor — disse para Jodie. — Ele fez parte do corpo docente da universidade por um tempo, há um milhão de anos. Medicina legal avançada, me ensinou tudo o que eu sei.

Ele era um ótimo aluno — disse Newman para ela. — Pelo menos prestava atenção, o que já era mais do que o que a maioria fazia.

E o que o senhor faz, general? — perguntou ela.

Bem, faço um pouco de antropologia forense.

E o melhor do mundo — disse Reacher.

Newman desconsiderou o elogio com um aceno.

Ora, não sou nada disso.

Antropologia? — perguntou Jodie. — Mas não é o estudo de tribos remotas? Esse tipo de coisa? Como vivem? Seus rituais, crenças e por aí?

Não, isso é antropologia cultural — explicou Newman. — Existem diferentes disciplinas. A minha é a antropologia forense, que faz parte da antropologia física.

O estudo de restos humanos para encontrar pistas — disse Reacher.

Um doutor em ossos — disse Newman. — É do que se trata, no fim das contas.

Caminhavam devagar pela calçada enquanto conversavam, aproximan­do-se da porta lisa na parede branca.

A porta foi aberta, e lá estava um jovem, à espera deles no corredor de entrada. Um homem comum, 30 anos, talvez, vestindo uma farda de tenente sob o jaleco branco. Newman apontou-o com a cabeça.

Este é o tenente Simon. Ele cuida do laboratório para mim. Eu não daria conta sem ele.

Apresentou Reacher e Jodie, e todos se cumprimentaram. Simon era discreto e reservado. Reacher imaginou-o como o típico sujeito de labora­tório, incomodado pela interrupção de sua rotina controlada de trabalho. Newman os levou para o interior, pelo corredor até seu escritório, e Simon assentiu para ele em silêncio e desapareceu.

Sentem-se — disse Newman. — Vamos conversar.

Então, você é um tipo de patologista? — perguntou Jodie.

Newman ocupou seu lugar atrás da mesa e agitou as mãos de um lado para outro, indicando uma disparidade.

Bem, um patologista é formado em medicina, e não é o nosso caso, como antropólogos. Nós estudamos antropologia, pura e simplesmente. A estrutura física do corpo humano, este é o nosso campo. Ambos traba­lham post mortem, é claro, mas, em termos gerais, se um corpo está re­lativamente fresco, é trabalho para um patologista. Se houver apenas um esqueleto, é trabalho nosso. Portanto, sou doutor em ossos.

Jodie assentiu.

Claro que isso é uma pequena simplificação — disse Newman. — Um corpo fresco pode levantar questões relativas aos ossos. Suponha que haja um desmembramento envolvido. O patologista nos pediria ajuda. Po­demos examinar as marcas da serra nos ossos e ajudar. Podemos dizer se o perpetrador era forte ou fraco, o tipo de serra utilizado, se era canhoto ou destro, coisas do tipo. Mas 99% das vezes trabalho com esqueletos. Ossos velhos e secos.

Então ele sorriu novamente. Um sorriso particular e divertido.

E os patologistas são inúteis diante de ossos secos. Absolutamente inúteis. Não sabem nem por onde começar com eles. Às vezes, me pergunto que diabos eles ensinam na faculdade de medicina.

O escritório estava silencioso e fresco. Sem janelas, luz indireta de lâm­padas ocultas, o chão acarpetado. A mesa de carvalho, cadeiras de cou­ro confortáveis para os visitantes. E um relógio elegante numa prateleira baixa, avançando silenciosamente, mostrando que já eram três e meia da tarde. Apenas três horas e meia para o vôo de volta.

Estamos aqui por um motivo, general — disse Reacher. — Receio que não se trate apenas de uma visita social.

Social o bastante para parar de me chamar de general e começar a me chamar de Nash, ok? E me dizer o que vocês têm em mente.

Reacher concordou.

Precisamos de sua ajuda, Nash.

Newman olhou para eles.

Com as listas dos desaparecidos em combate?

E se virou para Jodie, para explicar.

É isso o que fazemos aqui — disse ele. — Há vinte anos que não faço outra coisa.

Ela assentiu.

É sobre um caso específico. Acabamos nos envolvendo com isso.

Newman assentiu de volta, lentamente, mas agora sem o brilho nos olhos.

Sim, eu temia isso — disse. — Existem 89.120 casos de desapareci­dos em combate aqui, mas aposto que sei qual é o que interessa vocês.

Oitenta e nove mil? — Jodie repetiu, surpresa.

E 120. Dois mil e duzentos do Vietnã, 8.170 da Coréia e 78.750 da Segunda Guerra Mundial. Não desistimos de um único sequer e juro que não desistiremos.

Meu Deus, por que tantos?

Newman encolheu os ombros; uma tristeza amargurada subitamente tomou conta de seu rosto.

Guerras — disse ele. — Explosivos, movimentos táticos, aviões. As guerras acontecem, alguns combatentes vivem, alguns morrem. Alguns morrem e são recuperados, outros não. Às vezes, não sobra nada para ser recuperado. Um impacto direto de artilharia pesada reduz um homem às suas moléculas essenciais. Simplesmente não está mais lá. Talvez uma fina névoa vermelha se dissipando no ar, ou nem isso. Ele pode ser completa­mente vaporizado. Um impacto próximo pode deixá-lo em pedaços. E a luta é uma disputa de territórios, não é mesmo? Portanto, mesmo que os pedaços dele sejam relativamente grandes, os movimentos dos tanques ini­migos ou dos tanques amigos, para a frente e para trás do território dispu­tado, moem os pedaços junto com a terra, e lá se foi ele para sempre.

Ele ficou em silêncio, o tique-taque do relógio avançando lentamente.

Os aviões são piores. Muitas de nossas batalhas aéreas ocorreram sobre o mar. Um avião cai no meio do oceano, e a tripulação é considerada desaparecida até o fim dos tempos, por mais que nos esforcemos num lugar como este aqui.

Ele acenou com a mão num gesto vago, cobrindo o escritório e todo o espaço invisível além, acabando com a mão pousada em direção a Jodie, com as palmas para cima, como um apelo silencioso.

Oitenta e nove mil — disse ela. — Achei que os desaparecidos em combate fossem apenas do Vietnã. Uns dois mil, por aí.

Oitenta e nove mil, cento e vinte — repetiu Newman.

Ainda recebemos alguns da Coréia, e, vez ou outra, algum da Se­gunda Guerra, das ilhas japonesas. Mas você está certa, a maioria vem do Vietnã. Dois mil e duzentos desaparecidos. Não é muito, na verdade. Per­diam muito mais do que isso numa única manhã da Primeira Guerra, por quatro longos anos. Homens e garotos explodidos em pedaços e amassados na lama. Mas no Vietnã foi diferente. Em parte devido à Primeira Guerra. Não vamos partir mais para aquele tipo de carnificina, o que está certo. As coisas avançaram. A população simplesmente não aceitaria aquelas velhas atitudes agora.

Jodie concordou, em silêncio.

E em parte porque perdemos a Guerra do Vietnã — disse Newman em voz baixa. — Isso faz toda a diferença. A única guerra que já perdemos. Faz com que o sentimento geral seja muito pior. E por isso damos duro para resolver as coisas.

Repetiu o gesto com a mão, indicando o complexo invisível para além da porta do escritório, e sua voz concluiu com um tom mais animado.

Então é isso o que vocês fazem aqui? — perguntou Jodie.

Esperam que os esqueletos sejam descobertos e os trazem para cá, para serem identificados? E podem, enfim, riscar os nomes das listas de desaparecidos?

Newman agitou a mão outra vez, de maneira ambígua.

Bem, não ficamos exatamente esperando. Onde é possível, vamos à procura deles. E nem sempre os identificamos, ainda que, com toda certeza, tentemos com todas as forças.

Deve ser difícil — disse ela.

Ele concordou.

Tecnicamente, pode ser muito desafiador. Os locais onde são feitas as recuperações em geral são uma bagunça. Os trabalhadores de campo nos enviam ossos de animais, ossos de gente do local, qualquer coisa. Nós separamos tudo aqui. Depois, começamos o trabalho com o que temos. O que nem sempre é muita coisa. Às vezes, tudo o que resta de um soldado americano é um punhado de fragmentos de ossos que cabem num maço de cigarros.

Impossível — disse ela.

Muitas vezes — respondeu ele. — Temos centenas de partes de es­queletos aqui, agora mesmo, sem identificação. O Departamento do Exérci­to não pode aceitar erros. Exige um padrão de certeza altíssimo, e, algumas vezes, simplesmente não temos como alcançá-lo.

Por onde vocês começam? — perguntou ela.

Ele deu de ombros.

Bem, por onde é possível. Registros médicos, em geral. Suponha que o Reacher tivesse desaparecido em ação. Se ele quebrou o braço quando garoto, poderíamos comparar o antigo raio X com a fratura recomposta nos ossos encontrados. Talvez. Ou, se encontrássemos sua mandíbula, podería­mos comparar seus dentes com os registros do dentista.

Reacher viu que ela olhava para ele, imaginando-o reduzido a ossos que ficaram amarelados no chão de uma selva, com a terra removida e comparados a raios X tirados trinta anos antes. O escritório ficou em silên­cio novamente, apenas com o barulho do relógio.

Leon esteve aqui em abril — disse Reacher.

Newman concordou.

Sim, ele me visitou. Uma bobagem, pois estava muito doente. Mas foi bom vê-lo.

Depois, virou-se para Jodie, com uma expressão de simpatia.

Era um homem muito, muito bom. Devo muito a ele.

Ela concordou. Não era a primeira vez que ouvia isso, e não seria a última.

Ele veio saber de Victor Hobie — disse Reacher. Newman concordou novamente.

Victor Truman Hobie.

O que você lhe disse?

Nada — respondeu Newman. — E também não vou lhe dizer nada.

O relógio avançava com seu tique-taque. Quinze para as quatro.

Por que não? — perguntou Reacher.

Com certeza você sabe o porquê.

Informação confidencial?

Duplamente — disse Newman.

Reacher se acomodou em meio ao silêncio, inquieto pela frustração.

Você é a nossa última esperança, Nash. Já esgotamos todas as outras possibilidades.

Newman balançou a cabeça.

Você sabe como são as coisas, Reacher. Sou um oficial do Exército dos Estados Unidos, caramba! Não vou revelar informações confidenciais.

Por favor, Nash — disse Reacher. — Viemos até aqui.

Não posso — disse Newman.

Não use essa palavra — disse Reacher.

Silêncio.

Bem, acho que você pode me fazer perguntas — disse Newman. — Se um ex-aluno meu vem até aqui e me faz algumas perguntas com base em suas próprias habilidades e observações e eu as respondo de forma pura­mente acadêmica, não vejo por que algum mal possa ser feito a quem quer que seja.

Foi como se o tempo abrisse e o sol desse as caras. Jodie olhou para Reacher. Ele olhou para o relógio. Sete para as quatro da tarde. Menos de três horas para partirem.

Ok, Nash, obrigado — disse ele. — Você está familiarizado com o caso?

Estou familiarizado com todos eles. Com esse, especialmente, desde abril.

E é duplamente classificado?

Newman concordou.

Em um nível que manteve Leon fora do circuito?

E este é um nível bem alto — assinalou Newman. — Você não con­corda?

Reacher concordou. Pensou intensamente,

O que Leon queria que você fizesse?

Ele estava no escuro — disse Newman. — Você precisa ter isso em mente, certo?

Certo — disse Reacher. — O que ele queria que você fizesse?

Ele queria que localizássemos o local da queda.

A cerca de seis quilômetros de An Khe.

Newman concordou.

Me senti mal por Leon. Não havia motivo real para que ele ficasse de fora nisso nem nada que eu pudesse fazer para alterar o código de classifi­cação. Mas eu devia muito àquele homem, muito mais do que posso contar a vocês, e concordei em procurar o local.

Jodie se inclinou para a frente.

Mas por que não foi encontrado antes? As pessoas parecem ter uma idéia de onde é.

Newman encolheu os ombros.

É tudo incrivelmente difícil. Você não faz idéia. O terreno, a burocra­cia. Perdemos a guerra, lembre-se. Os vietnamitas dão as cartas por lá. Nós operamos um esforço conjunto de recuperação, mas eles têm o controle. A coisa toda é uma manipulação e humilhação constantes. Não podemos usar fardas por lá, porque eles dizem que a visão das fardas militares dos Estados Unidos pode traumatizar as populações das vilas. Nos obrigam a alugar helicópteros de lá para circular, milhões e milhões de dólares por ano por uns velhos baldes enferrujados com metade da capacidade das nossas má­quinas. A verdade é que estamos comprando aqueles ossos de volta, e eles definem o preço e a disponibilidade. O resultado imediato é que os Estados Unidos estão pagando mais de três milhões de dólares a cada identificação, e isso me deixa furioso.

Quatro para as 4 horas. Newman suspirou de novo, perdido em pen­samentos.

Mas vocês encontraram o local? — perguntou Reacher.

—Estava programado para ocorrer em algum momento no futuro — disse Newman.

Tínhamos uma idéia de onde era e sabíamos exatamente o que iría­mos encontrar quando chegássemos lá, então não era alta prioridade. Mas, como um favor para Leon, fui até lá e negociei para adiantar a programa­ção. Queria que furasse a fila. Foi uma merda conseguir negociar alguma coisa. Eles adoram quando queremos algo em particular, ficam teimosos como mulas. Você não faz idéia. Não dá para entender.

Mas vocês encontraram? — perguntou Jodie.

Foi um horror, geograficamente — disse Newman. — Conversamos com DeWitt, em Wolters, e ele nos ajudou a marcar o local exato, mais ou menos. O lugar mais remoto que você possa imaginar. Montanhoso e inacessível. Posso garantir que nenhum ser humano tinha pisado lá, em nenhum momento da história do planeta. Foi uma viagem de pesadelo. Mas era um lugar incrível. Completamente inacessível, então não estava minado.

Minado? — repetiu Jodie. — Você quer dizer que eles colocam mi­nas terrestres nos locais?

Newman balançou a cabeça.

Não, minados no sentido de garimpados. Qualquer coisa acessível, e a população já estava em cima, havia trinta anos. Pegam colares e docu­mentos de identificação, capacetes, suvenires, mas o que mais querem são metais. As asas fixas, principalmente por causa do ouro e da platina.

Que ouro? — perguntou ela.

Dos circuitos elétricos — disse Newman. — Os Phantoms F-4, por exemplo, têm cerca de cinco mil dólares em metais preciosos nas conexões. A população costumava arrancar tudo para vender. Você compra jóias ba­ratas em Bangcoc provavelmente feitas com os circuitos eletrônicos de ve­lhos bombardeiros americanos.

O que vocês acharam lá? — perguntou Reacher.

Um estado de conservação razoável — disse Newman. — O Huey estava amassado e enferrujado, mas reconhecível. Os corpos estavam com­pletamente esqueletizados, é claro. As roupas apodreceram e se desfizeram há muito tempo. Mas não faltava mais nada. Todos estavam com suas placas de identificação. Nós os embalamos e enviamos de helicóptero para Hanói. Depois voamos com eles para cá, no Starlifter, com toda a honra. Acabamos de voltar. Três meses, do começo ao fim, um dos melhores que já fizemos em termos de escala de tempo. E as identificações serão apenas uma for­malidade, pois temos os colares de identificação. Nenhuma função para o doutor em ossos neste caso. Abrir e fechar. Lamento apenas que Leon não esteja vivo para ver isso. Isso o teria.

Os corpos estão aqui? — perguntou Reacher.

Newman concordou.

Na porta ao lado.

Podemos vê-los? — perguntou Reacher.

Newman concordou novamente.

Não deveriam, mas vocês precisam.

O escritório ficou em silêncio, Newman se levantou e fez um gesto para a porta, com as duas mãos. O tenente Simon passou. Saudou-os com a cabeça.

Estamos indo para o laboratório — disse Newman.

Sim, senhor — respondeu Simon. Ele saiu de seu próprio cubículo, e Reacher, Jodie e Newman foram para a outra direção, parando diante de uma porta lisa, numa parede igualmente lisa de tijolos cinza. Newman tirou as chaves do bolso e a destrancou. Empurrou para abrir e repetiu o mesmo gesto formal com as duas mãos. Reacher e Jodie o precederam no laboratório.

 

Do seu cubículo, Simon observou-os entrar. Quando a porta se fechou e trancou atrás deles, pegou o telefone, discou nove para obter uma linha e, em seguida, um número de dez dígitos começando com o código de área de Nova York. O número tocou por um longo tempo, porque já estavam no meio da noite, 9.600 quilômetros ao leste. Até que atenderam.

Reacher está aqui — sussurrou Simon. — Agora mesmo, com uma mulher. Estão no laboratório. Olhando.

A voz de Hobie respondeu, baixa e controlada.

Quem é a mulher?

Jodie Garber — disse Simon. — Filha do general Garber.

Também conhecida como sra. Jacob.

O que você quer que eu faça?

O telefone ficou em silêncio. Apenas o assobio da ligação de longa dis­tância via satélite.

Você pode dar uma carona até o aeroporto para eles, talvez. A mu­lher tem um compromisso em Nova York, amanhã de tarde, então acho que vão tentar pegar o voo das sete horas. Apenas se certifique de que não vão perder o vôo.

Ok — disse Simon, e Hobie desligou.

O laboratório ocupava uma sala ampla e baixa, com cerca de doze por quin­ze metros. Não tinha janelas. A luz suave das lâmpadas fluorescentes ba­nhavam todo o ambiente. O sistema eficiente de circulação do ar produzia um chiado baixo e não eliminava o cheiro de desinfetante combinado com um odor morno de terra. No outro extremo, havia uma saleta cheia de pra­teleiras ocupadas por caixas de papelão, marcadas em preto com números de referência. Talvez uma centena de caixas.

Os não identificados — disse Reacher.

Newman concordou com a cabeça ao lado dele.

Até o momento — disse, em voz baixa. — Não vamos desistir deles.

Entre eles e a saleta distante estava o corpo principal da sala. O piso era de granito, polido até brilhar. Sobre ele, vinte mesas de madeira estavam alinhadas de maneira precisa. Ficavam na altura da cintura e cobertas por um tampo bem-polido. Eram um pouco mais curtas e estreitas do que um beliche militar. Pareciam versões robustas das bancadas que decoradores usam para passar cola no papel de parede. Seis estavam completamente vazias. Sete tinham as tampas de sete caixões de alumínio polido atraves­sadas sobre elas. As últimas sete estavam com os sete caixões de alumínio em cima, em fileiras alternadas, cada um ao lado da mesa com a respectiva tampa. Reacher ficou em silêncio com a cabeça baixa; então fez posição de sentido e uma saudação silenciosa pela primeira vez em mais de dois anos.

Terrível — sussurrou Jodie.

Ela estava de pé com as mãos cruzadas atrás de si, a cabeça baixa, como se estivesse em uma cerimônia fúnebre. Reacher concluiu a saudação e se­gurou a mão dela.

Obrigado — disse Newman disse em voz baixa. — Gosto que as pessoas demonstrem respeito aqui dentro.

Como não demonstrar? — murmurou Jodie.

Ela estava olhando para os caixões, as lágrimas brotando nos olhos.

Então, Reacher, o que você vê? — perguntou Newman, em meio ao silêncio.

Os olhos de Reacher percorriam a sala iluminada. Estava chocado de­mais para se mexer.

Vejo sete caixões — disse em voz baixa. — Onde esperava ver oito. Eram oito pessoas no Huey. Cinco na tripulação, e eles recolheram três. Está no relatório de DeWitt. Cinco mais três, oito.

E oito menos um são sete — disse Newman.

Vocês vasculharam o local? Completamente?

Newman balançou a cabeça.

Não.

Por que não?

Isso você terá que descobrir.

Reacher sacudiu-se e deu um passo a frente.

Posso?

A vontade — respondeu Newman. — Me diga o que vê. Concentre-se, forte, e vamos ver do que você se lembra e do que esqueceu.

Reacher foi até o caixão mais próximo e se posicionou de modo a olhar ao longo do comprimento. O caixão continha uma caixa de madeira tosca, quinze centímetros menor em todas as dimensões do que o próprio caixão.

Isso é o que os vietnamitas nos fazem usar — disse Newman. — Nos vendem estas caixas, e somos obrigados a usá-las. Nós as colocamos em nossos próprios caixões no hangar do campo de pouso, em Hanói.

A caixa de madeira não tinha tampa. Era apenas uma bandeja rasa. Dentro, um amontoado de ossos. Tinham sido colocados em uma tentativa de seqüência anatômica. Um crânio na parte superior, amarelado e antigo. Sorria com um riso grotesco. Tinha um dente de ouro na boca. As órbi­tas vazias olharam. As vértebras do pescoço estavam alinhadas em ordem. Abaixo delas, as escápulas, clavículas e costelas foram colocados nos luga­res corretos acima da pélvis. Os ossos do braços e das pernas estavam em­pilhados dos lados. O brilho opaco de uma corrente de metal caída sobre as vértebras do pescoço destacava-se e sumia sob a planura da escápula esquerda.

Posso? — perguntou Reacher novamente.

Newman concordou.

Por favor.

Reacher ficou em silêncio por um bom tempo, depois se abaixou, pas­sou os dedos sob a corrente e a levantou. Os ossos se esticaram, estalaram e se mexeram quando ele puxou as plaquetas de identificação. Ele as levan­tou, aproximando-as, e esfregou suas superfícies com o dedão. ínclinou-se para ler o nome gravado.

Kaplan — disse. — O co-piloto.

Como ele morreu? — perguntou Newman.

Reacher deixou as identificações caírem de volta entre os ossos das cos­telas e procurou atentamente pelas pistas. O crânio estava intacto. Nenhum traço de danos nos braços, nas pernas ou no peito. Mas a pelve estava esma­gada. As vértebras na parte inferior da coluna vertebral foram esmagadas. E as costelas, fraturadas nas costas, oito delas em ambos os lados, contando de baixo para cima.

Impacto, quando o Huey bateu no chão. Sofreu um grande impacto na região lombar. Trauma e hemorragia internos maciços. Provavelmente, morreu em um minuto.

Mas ele estava preso ao assento com o cinto — disse Newman. — Uma queda de cabeça no chão, como pode ter sido atingido por trás?

Reacher olhou novamente. Sentiu-se do mesmo jeito que anos antes, na sala de aula, nervoso para não se atrapalhar diante do lendário Nash Newman. Olhou com atenção e colocou as mãos levemente sobre os ossos secos, sentindo-os. Mas precisava ter certeza. Fora um impacto esmagador na base da coluna. Não havia nenhuma outra explicação.

O Huey girou — disse. — Desceu num ângulo raso, e as árvores o fizeram girar. A cabine e a cauda se separaram, e a cabine atingiu o chão caindo de costas.

Newman concordou.

Excelente. Foi exatamente como o encontramos. Bateu de costas. Em vez de o cinto de segurança salvá-lo, o assento o matou.

Reacher passou para o caixão seguinte. A mesma bandeja rasa de ma­deira, a mesma confusão de ossos amarelados. O mesmo sorriso grotesco e acusador na caveira. Abaixo dela, o pescoço estava quebrado. Ele puxou a plaqueta de identificação para fora dos fragmentos de ossos quebrados.

Tardelli — leu.

O artilheiro de estibordo — disse Newman.

O esqueleto de Tardelli estava uma bagunça. Os artilheiros ficavam so­bre um suporte liso diante da porta aberta, praticamente sem segurança, fazendo malabarismos com a metralhadora pesada balançando numa cor­da de bungee jump. Quando o Huey caiu, Tardelli foi jogado para todos os lados da cabine.

Pescoço quebrado — disse Reacher. — Esmagado até o alto do tórax.

Ele virou o horrível crânio amarelo. Estava quebrado como uma casca de ovo.

Traumatismo craniano também. Eu diria que ele morreu na hora. Não saberia dizer qual foi o ferimento exato que o matou.

Eu também não — disse Newman. — Tinha 19 anos.

Ficaram em silêncio. Nada no ar, a não ser o leve odor adocicado do barro.

Dê uma olhada no próximo — disse Newman.

O próximo era diferente. Havia um único ferimento no peito. As plaquetas de identificação estavam misturadas aos ossos estilhaçados. Reacher não conseguiu soltá-las. Teve que inclinar a cabeça para saber o nome.

Bamford.

O chefe da tripulação — disse Newman. — Ele estaria sentado no banco da cabine, virado para trás, de frente para os três caras que eles foram buscar.

Os ossos do rosto de Bamford sorriram. Abaixo dele, o esqueleto estava completo e intacto, com exceção do estreito ferimento lateral por esmagamento, que o atravessava até a parte superior do corpo. Era como uma trincheira de oito centímetros em seu peito. O esterno foi pressionado até o nível da coluna vertebral, atingindo e deslocando três vértebras. Três cos­telas foram junto.

Então, o que acha? — perguntou Newman.

Reacher colocou a mão dentro da caixa e sentiu as dimensões do feri­mento. Era estreito e horizontal. Três dedos não cabiam em seu interior, apenas dois.

Algum tipo de impacto — disse.

Algo entre um instrumento afiado e um instrumento cego. Acertou-o no lado do peito, obviamente. Teria parado seu coração imediatamente. Foi a pá da hélice?

Newman concordou.

Muito bom. Pelo jeito, o rotor entortou ao tocar as árvores e des­ceu para dentro da cabine. Deve tê-lo atingido através do tronco superior. Como você disse, um golpe teria parado seu coração instantaneamente.

No caixão seguinte, os ossos estavam bem diferentes. Alguns com o mesmo tom amarelo desbotado, mas a maioria deles estava branca, quebradiça e corroída. As plaquetas de identificação estavam retorcidas e ene­grecidas. Reacher virou-as para colocar a gravação em destaque contra luz do teto e leu: Soper.

O artilheiro de bombordo — disse Newman.

Houve um incêndio — disse Reacher.

Como você sabe? — perguntou Newman, como um bom professor.

As plaquetas estão queimadas.

-E?

Os ossos estão calcinados. Pelo menos a maior parte deles.

Calcinados? — repetiu Newman.

Reacher assentiu e voltou 15 anos no tempo, de volta aos livros.

Os componentes orgânicos são queimados, sobrando apenas os inor­gânicos. O fogo deixa os ossos menores, mais brancos, com veios, quebradiços e corroídos.

Ótimo — concordou Newman.

A explosão que DeWitt viu — disse Jodie. — Foi o tanque de com­bustível.

Newman concordou.

Uma evidência clássica. Não um fogo lento. Uma explosão de com­bustível. Espalha-se aleatoriamente e queima rápido, o que explica a ma­neira dispersa com que os ossos foram queimados. Parece que Soper foi queimado na parte inferior do corpo, mas a parte de cima ficou de fora.

Suas palavras foram ditas em voz baixa e morreram no silêncio, en­quanto a imaginação dos três se perdia no horror. O rugido dos motores, as balas inimigas atingindo a estrutura aérea, a perda súbita de força, os jorros de combustível, o fogo, o impacto destroçante através das árvores, os gritos, as hélices cortantes vindo de cima, a vibração da batida, o metal rangendo, o esmigalhamento dos frágeis corpos humanos no solo indiferente da selva onde pessoa alguma jamais pisara desde o início dos tempos. As órbitas vazias dos olhos de Soper miravam a luz, desafiando-os a imaginar.

Examine o próximo — disse Newman.

O caixão seguinte continha os restos do homem chamado Allen. Sem queimaduras. Apenas um esqueleto amarelado, com plaquetas em torno do pescoço quebrado. Um crânio nobre e sorridente. Até mesmo os dentes brancos. Um crânio alto, sem danos. O resultado de boa nutrição e uma criação cuidadosa nos Estados Unidos da década de 1950. As costas esta­vam completamente esmagadas, como as de um caranguejo morto.

Allen foi um dos três que eles recolheram — disse Newman.

Reacher concordou, com tristeza. O sexto caixão era de uma vítima de queimadura. O nome era Zabrinski. Os ossos estavam calcinados e redu­zidos.

Provavelmente foi um cara grande — disse Newman. — As queima­duras podem fazer com que os ossos encolham até 50%, às vezes. Portanto, não o considere uma pessoa minúscula.

Reacher concordou novamente. Tocou nos ossos com a mão. Eram le­ves e quebradiços. Como cascas. Os veios os deixaram ásperos, com lascas microscópicas.

Ferimentos? — perguntou Newman.

Reacher examinou novamente, mas não viu nada.

Ele queimou até morrer — disse.

Newman concordou.

Sim, receio que foi assim — disse ele.

Horrível — murmurou Jodie.

O sétimo e último caixão continha os restos de um homem chamado Gunston. Eram restos terríveis. A princípio, Reacher achou que não havia crânio. Depois viu que estava depositado aos pés da caixa de madeira. Es­magado em centenas de pedaços. A maioria dos fragmentos não era maior do que seu polegar.

O que acha? — perguntou Newman.

Reacher balançou a cabeça.

Não quero achar — murmurou ele. — Cansei de achar.

Newman concordou, solidário.

A lâmina da hélice atingiu-o na cabeça. Era um dos três que eles recolheram. Estava sentado no lado oposto a Bamford.

Cinco mais três — disse Jodie em voz baixa.

Então a tripulação era Hobie e Kaplan, piloto e copiloto; Bamford, o chefe da tripulação; Soper e Tardelli, os artilheiros, desceram e resgataram Allen, Zabrinski e Gunston.

Newman concordou.

É isso o que nos dizem os registros.

Então, onde está Hobie? — perguntou Reacher.

Você está esquecendo alguma coisa — disse Newman. — Trabalho malfeito, Reacher, para alguém que costumava ser bom nisso.

Reacher olhou para ele. DeWitt dissera algo semelhante. Disse: "Traba­lho malfeito de alguém que já foi um major da PE." E dissera para olharem mais próximo de casa.

Eles eram da PE, certo? — disse Reacher de repente.

Newman sorriu.

Quem?

Dois deles — disse Reacher.

Dois, além de Allen, Zabrinski e Gunston. Dois deles estavam pren­dendo o terceiro. Era uma missão especial. Kaplan colocou dois PEs em campo no dia anterior. Sua última e única missão, voando solo, a que eu não li. Eles estavam voltando para buscá-los, mais o cara que foi preso.

Newman concordou.

Correto.

Quem era quem?

Pete Zabrinski e Joey Gunston eram da polícia. Carl Allen era o bandido.

Reacher concordou.

O que ele fez?

Os detalhes são confidenciais — disse Newman. — Algum palpite?

Entrando e saindo daquele jeito, uma prisão rápida? Fragmentação, suponho.

O que é fragmentação? — perguntou Jodie.

Matar seu comandante — disse Reacher.

Acontece, de vez em quando. Algum tenente mais animado, prova­velmente recém-chegado no país, está cheio de entusiasmo para avançar para posições perigosas. Os praças não estão com a mesma animação, fi­cam achando que ele está atrás de uma medalha, e entendem que o melhor é se manter fora da reta. Então, quando ele manda atacar, alguém atira nele pelas costas, ou joga uma granada, o que é eficiente, pois não precisa mirar, e a coisa toda fica mais disfarçada. E daí que vem o nome, fragmentação, do dispositivo de fragmentação de uma granada.

Então foi isso o que aconteceu? — perguntou Jodie.

Os detalhes são confidenciais — disse Newman novamente. — Mas com certeza houve fragmentação envolvida, ao final de uma carreira longa e corrupta. De acordo com os registros, Carl Allen com toda a certeza não era flor que se cheirasse.

Jodie concordou.

Mas por que diabos isso é confidencial? O que quer que ele tenha feito, Allen está morto há trinta anos. A justiça foi feita, certo?

Reacher deu um passo atrás e voltou ao caixão de Allen. Olhava para o seu interior.

Cuidado — disse Reacher. — Quem quer que fosse o tenente ani- madinho, a família dele recebeu a informação de que ele morreu como um herói, combatendo o inimigo. Se algum dia descobrirem alguma coisa di­ferente, será um escândalo. E o Comando do Exército não gosta de escân­dalos.

Correto — repetiu Newman.

Mas onde está Hobie? — perguntou Reacher novamente.

Você ainda está esquecendo alguma coisa. Um passo de cada vez, ok?

Mas o que é? — perguntou Reacher. — Onde está?

Nos ossos — respondeu Newman.

O relógio na parece do laboratório mostrava cinco e meia. Não restava muito mais do que uma hora. Reacher respirou e seguiu o caminho inverso dos caixões. Gunston, Zabrinski, Allen, Soper, Bamford, Tardelli, Kaplan. Seis crânios sorridentes e um grupo de ossos sem cabeça o encaravam. Ele deu a volta novamente. O relógio avançava com seu tique-taque. Ele parou junto a cada caixão, segurou nas laterais frias de alumínio, inclinou-se e olhou, desesperado para identificar o que estava esquecendo. Nos ossos. Começou cada busca pelo alto. O crânio, o pescoço, as clavículao, as cos­telas, os braços, a pelve, as pernas, os pés. Continuou a busca pelas caixas, com cuidado, delicadamente separando os ossos secos, procurando. Quin­ze para as seis. Dez para as seis. Jodie o observava, ansiosa. Deu a volta pela terceira vez, começando por Gunston, o policial. Passou para Zabrinski, o outro policial. Para Allen, o criminoso. Em seguida, Soper, o artilheiro. Depois, Bamford, chefe da tripulação. E foi ali que descobriu, na caixa de Bamford. Fechou os olhos. Era óbvio. Tão óbvio que parecia pintado com tinta fosforescente iluminada com uma lanterna. Percorreu os outros seis caixões, contando, confirmando. Ele estava certo. Descobrira. Seis da tarde no Havaí.

Existem sete corpos. Mas, 15 mãos.

Seis da tarde no Havaí são onze da noite em Nova York, e Hobie estava sozinho em seu apartamento, trinta andares acima da Quinta Avenida, no quarto, preparando-se para dormir. Onze da noite era mais cedo do que o normal para ele ir deitar. Em geral, ficaria acordado, lendo um livro ou assistindo a um filme na TV a cabo até uma ou duas da manhã. Mas esta noite ele estava cansado. Fora um dia puxado. Houve uma certa dose de atividade física e algum desgaste mental.

Estava sentado na beira da cama. Uma cama king size, apesar de dor­mir sozinho, como sempre dormira. Era coberta por um grosso acolchoado branco. As pareces e as venezianas eram brancas. Não porque ele desejas­se qualquer tipo de uniformidade artística em sua decoração, mas porque as coisas brancas eram sempre as mais baratas. Com o que quer que você estivesse lidando, lençóis de cama, tinta, cortinas, a opção branca sempre tinha o preço mais baixo Não havia qualquer arte nas paredes. Nenhuma fotografia, ornamento, lembranças, nada pendurado. O chão era de tábuas lisas de carvalho. Nenhum tapete.

Os pés estavam plantados no chão. Calçava sapatos Oxford pretos, brilhantes de tão polidos, plantados em ângulos retos sobre as tábuas de carvalho. Abaixou-se e, com a mão boa, desfez os laços, um de cada vez. Descalçou-os, um de cada vez. Empurrou-os com os pés para juntá-los, pe­gou os dois juntos e os ajeitou para debaixo da cama. Deslizou o polegar até o alto das meias, uma de cada vez, e as tirou dos pés. Sacudiu-as e as soltou no chão. Desfez o nó da gravata. Sempre vestia uma gravata. Sentia muito orgulho de ser capaz de fazer o nó dela com apenas uma das mãos.

Pegou a gravata, ficou de pé e foi descalço até o closet. Abriu a porta deslizante e passou a extremidade mais fina da gravata pela pequena bar­ra de metal onde a deixava pendurada durante a noite. Depois, baixou o ombro esquerdo e deixou o paletó deslizar para fora do braço. Usou a mão esquerda para puxá-lo pelo braço direito. Tirou um cabide de dentro do closet onde pendurou o paletó, com uma mão. Pendurou o cabide no su­porte. Em seguida, desabotoou as calças e baixou o zíper. Deu um passo para fora delas, agachou-se e as esticou sobre as tábuas brilhantes do chão.

Não existe outra forma para um homem com uma das mãos dobrar as cal­ças. Ele juntou as bocas, colocou uma sobre a outra, prendeu-as com um pé e esticou as pernas para ficarem alinhadas. Voltou a se levantar e pegou um segundo cabide no armário, se abaixou e passou a barra sob as pernas das calças, deslizando o cabide pelo chão até os joelhos. Levantou-se outra vez e sacudiu o cabide para que as calças caíssem perfeitamente alinhadas, e pendurou-as junto ao paletó.

Dobrou o pulso esquerdo, fechando-o em torno das casas engomadas dos botões, e desabotoou a camisa. Abriu o punho direito. Agitou os om­bros para que a camisa caísse e usou a mão esquerda para puxá-la pelo gancho. Depois, inclinou-se para o lado e deixou-a cair pelo braço esquer­do. Prendeu a barra sob o pé e puxou os braços para cima, ao longo da manga. A manga virou do avesso, como sempre acontecia, e ele apertou a mão boa para passar pelo punho. A única modificação que fora forçado a fazer em todo o seu guarda-roupa foi deslocar os botões dos punhos das camisas de forma que pudesse passar a mão esquerda com os punhos ainda abotoados.

Deixou a camisa no chão e puxou a cintura de elástico da cueca boxer, contorcendo-a para baixo dos quadris. Saiu delas e segurou a bainha de camiseta de baixo. Essa era a parte mais difícil. Esticou a barra, dobrou-se e a puxou por cima da cabeça. Mudou a mão para a gola e a puxou sobre o rosto. Puxou-a para baixo pela direita e passou o gancho para fora através da cava. Depois, agitou o braço esquerdo como um chicote até a camiseta sair e cair no chão. Abaixou-se, juntou a camisa, a cueca e as meias, levou tudo para o banheiro e jogou na cesta.

Caminhou nu de volta para a cama e sentou-se novamente na beira­da. Cruzou o peito com a mão esquerda e soltou as tiras de couro pesado em torno do bíceps direito. Eram três tiras e três fivelas. Soltou a presilha de couro e puxou-a para fora do braço. Ela rangeu no silêncio enquan­to se movia. O couro era grosso e pesado, muito mais do que o couro de qualquer sapato. Foi reforçado em camadas anatômicas. Era marrom e bri­lhante pelo uso. Ao longo dos anos, moldara-se como aço em sua forma.

Esmagava o músculo ao ser retirado. Soltou as tiras perfuradas com os de­dos, liberando-as do cotovelo. Então pegou a curva fria do gancho na mão esquerda e a puxou suavemente. O encaixe em forma de copo sugou o coto quando foi retirado. Prendeu-o verticalmente entre os joelhos, o gancho apontando para o chão, o encaixe voltado para cima. Inclinou-se para a mesa de cabeceira e tirou um maço de lenços de papel de uma caixa e uma lata de talco de uma gaveta Amassou os lenços na palma da mão esquerda e empurrou-os para dentro do encaixe, torcendo o maço como um parafuso, para enxugar o suor do dia. Em seguida, agitou a lata de talco e espalhou o pó por todo o interior. Pegou mais lenços e poliu o couro e o aço. Depois, deixou todo o conjunto no chão, paralelo à cama.

Ele usava uma meia fina sobre o coto do braço direito. Servia para impe­dir o couro de irritar a pele. Não era um dispositivo médico especializado. Era uma meia de criança. Apenas um tubo, sem calcanhar, o tipo de coisa que as mães escolhem antes de seus bebês começarem a andar. Ele compra­va uma dúzia de pares de uma só vez nas lojas de departamento. Sempre comprava as brancas. Eram mais baratas. Tirou a meia do coto, sacudiu-a e a deixou junto à caixa de lenços de papel na mesinha de cabeceira.

O próprio coto era enrugado. Restava-lhe algum músculo, mas, sem ser utilizado, reduzira-se a nada. Os ossos tiveram as pontas cortadas lixadas, para ficarem mais suaves, e a pele fora costurada por cima deles. Esta era branca, e os pontos eram vermelhos. Pareciam escrita chinesa. Pelos pretos cresciam na parte inferior do toco, pois a pele fora puxada da parte externa do antebraço.

Ele se levantou novamente e foi até o banheiro. Um proprietário ante­rior instalara um espelho na parede acima da pia. Olhou para si mesmo e odiou o que viu. O braço não o incomodava. Apenas não estava lá. Era o rosto. As queimaduras. O braço era uma ferida, mas, o rosto, uma desfigu­ração. Virou-se de lado para não precisar olhar. Escovou os dentes e carre­gou um frasco de loção para a cama. Espremeu uma gota sobre a pele do coto e espalhou-a com os dedos. Colocou a loção ao lado da meia de bebê, na mesa de cabeceira, enfiou-se debaixo das cobertas, clicou o interruptor e desligou a luz.

— Esquerda ou direita? - perguntou Jodie. — Qual ele perdeu?

Reacher estava de pé diante do caixão brilhante de Bamford, separando os ossos.

A direita — disse ele. — A mão extra é destra.

Newman se aproximou, ficou junto ao ombro de Reacher, inclinou-se e separou dois fragmentos de ossos estilhaçados, cada um com cerca de treze centímetros de comprimento.

Ele perdeu mais do que a mão — disse. — Esses são o rádio e a ulna do braço direito. O corte foi abaixo do cotovelo, provavelmente por um fragmento da hélice. Pode ter sobrado o bastante para deixar um toco decente.

Reacher pegou os ossos e passou os dedos pelas pontas estilhaçadas.

Não entendo, Nash. Por que você não vasculhou a área?

Por que deveria? — Respondeu Newman, de forma neutra.

E por que simplesmente supor que ele sobreviveu? Estava gravemente ferido. O impacto, o braço decepado... Talvez outras lesões, internas, quem sabe? No mínimo, uma perda significativa de sangue. Poderia também es­tar queimado. Tinha combustível queimando por todo lado. Pense nisso, Nash. Provavelmente, ele se arrastou para fora dos destroços, sangrando pelas artérias, talvez pegando fogo, arrastou-se uns vinte metros, caiu no meio do mato e morreu. Por que diabos vocês não procuraram por ele?

Faça esta pergunta a si mesmo. Por que não procuramos por ele?

Reacher fixou os olhos nele. Nash Newman, um dos homens mais inte­ligentes que já conhecera. Um homem tão exigente e preciso que, com um fragmento de crânio de três centímetros de largura, era capaz de dizer a quem tinha pertencido, como a pessoa viveu e como morrera. Um homem extremamente profissional e meticuloso, que já tinha executado a mais lon­ga e complicada investigação forense já vista na história e que não recebeu nada além de elogios e aplausos ao longo do processo. Como poderia Nash Newman cometer um erro tão elementar? Reacher fitou-o, respirou e fe­chou os olhos.


Jesus Cristo, Nash — disse lentamente. — Você sabe que ele sobre­viveu, não é? Você realmente sabe. Não procuraram por ele porque vocês têm certeza.

Newman concordou.

Correto.

Mas como vocês sabem?

Newman olhou em torno do laboratório. Baixou a voz.

Porque ele apareceu mais tarde — disse. — Se arrastou até um hos­pital de campanha a oitenta quilômetros de distância, três semanas depois. Está tudo em seus prontuários. Ele foi internado com febre, desnutrição profunda, queimaduras terríveis em um lado do rosto, sem um braço, ver­mes no coto. Estava incoerente na maior parte do tempo, mas foi reco­nhecido pelas plaquetas de identificação. Após o tratamento, voltou para contar a história, nenhum outro sobrevivente, só ele mesmo. É por isso que eu disse que sabia exatamente o que iríamos encontrar lá. Por isso que a prioridade era tão baixa, até Leon chegar todo agitado com essa história.

Então, o que aconteceu? — perguntou Jodie. — Por que todo esse segredo?

O hospital ficava bem ao norte — disse Newman. — Os vietcongues estavam nos empurrando para o sul, e fomos recuando. O hospital estava se preparando para a evacuação.

E? — perguntou Reacher.

Ele desapareceu na noite anterior em que seria transferido para Saigon.

Desapareceu?

Newman assentiu.

Simplesmente fugiu. Pulou para fora da maca e se mandou. Nunca mais foi visto.

Que merda — disse Reacher.

Ainda não entendo o segredo — disse Jodie.

Newman encolheu os ombros.

Bem, Reacher pode explicar. É mais a área dele do que a minha.

Reacher ainda segurava os ossos de Hobie. O rádio e a ulna de seu bra­ço direito, com as articulações perfeitas na extremidade inferior, como a natureza planejou, barbaramente destruídos e fragmentados na extremida­de superior por um pedaço de sua própria hélice. Hobie tinha analisado o lado cortante daquela hélice e viu que era capaz de cortar galhos de árvores grossos como o braço de um homem. Usara essa inspiração para salvar as vidas de outros homens, incontáveis vezes. Então, essa mesma lâmina desceu rasgando e girando para dentro da própria cabine dele e levou sua mão.

Tecnicamente, ele era um desertor — disse Reacher. — Era um sol­dado em serviço e fugiu. Mas a decisão tomada foi de não ir atrás dele. Teve que ser assim. O que o Exército poderia fazer? Se o pegassem, o que fariam depois? Teriam que processar um cara com um registro exemplar, 991 mis­sões de combate, que desertou após o trauma de uma lesão horrível e uma desfiguração. Não podiam fazer isso. A guerra era impopular. Você não pode enviar um herói desfigurado para a prisão militar de Leavenworth por desertar naquelas circunstâncias. Mas também não é possível passar a men­sagem de que deixamos desertores fugirem assim. Teria sido um escândalo de outro tipo. Eles ainda estavam detonando muitos rapazes por deserção. Os indignos. Não podiam revelar que usavam dois pesos e duas medidas. Assim, o caso de Hobie foi fechado, selado e classificado como secreto. E por isso que o registro pessoal termina com a última missão. Todo o resto está num cofre, em algum lugar no Pentágono.

Jodie concordou.

E é por isso que ele não está no Muro — disse Jodie. — Sabem que ele ainda está vivo.

Reacher estava relutante em colocar os ossos de volta. Segurou-os e passou os dedos ao longo de sua extensão. As extremidades boas estavam lisas e perfeitas, prontas para aceitar a articulação do pulso humano.

Você já verificou os registros médicos dele? — perguntou a Newman.

Seus raios X, arcada dentária e outros dados?

Newman fez que sim com a cabeça.

- Ele não desapareceu em ação. Ele sobreviveu e desertou.

Reacher voltou até o caixão de Bamford e colocou os dois cacos ama­relos delicadamente num canto da caixa de madeira áspera. Balançou a cabeça.

Simplesmente não consigo acreditar, Nash. Tudo sobre esse cara diz que ele não tem a mentalidade de um desertor. Seu passado, seus registros, tudo. Conheço desertores. Cacei vários deles.

Ele desertou — disse Newman. — E fato, está nos arquivos do hos­pital.

Ele sobreviveu à queda — disse Reacher. — Acho que não posso mais questionar isso. Foi para o hospital. Sem discussão sobre isso também. Mas suponha que não foi deserção de fato. Suponha que ele estava apenas confuso, ou grogue devido às drogas. Suponha que apenas saiu andando e se perdeu.

Newman balançou a cabeça.

Ele não estava confuso.

Mas como vocês sabem disso? Perda de sangue, desnutrido, febre, morfina?

Ele desertou — disse Newman.

A história não bate — disse Reacher.

A guerra muda as pessoas — disse Newman.

Não tanto assim — respondeu Reacher.

Newman chegou mais perto e baixou a voz novamente.

Ele matou um soldado — sussurrou. — O cara o viu saindo e tentou detê-lo. Está tudo no arquivo. Hobie disse: Não vou voltar, e bateu na cabe­ça do rapaz com uma garrafa. Quebrou seu crânio. Colocaram-no no leito de Hobie, mas ele não sobreviveu à viagem para Saigon. Esse é o motivo de todo o segredo, Reacher. Eles não deixaram fugir apenas um desertor. Mas também um assassino.

Ficaram em silêncio absoluto no laboratório. O ar-refrigerado sibilou, e o cheiro argiloso dos ossos velhos se espalhou. Reacher pousou a mão sobre a beirada brilhante do caixão de Bamford, apenas para se segurar em pé.

Não acredito nisso — disse.

Deveria — respondeu Newman. — Porque é verdade.

Não posso dizer isso para os pais dele. Simplesmente, não posso. Isso os mataria.

Que segredo horrível — comentou Jodie. — Deixaram ele fugir com um assassinato?

Política — disse Newman. — A política lá era fundamental. Ainda é, na verdade.

Talvez ele tenha morrido mais tarde — disse Reacher. — Talvez te­nha se perdido na selva e morrido lá depois. Ainda estava muito doente, certo?

Em que isso iria te ajudar? — perguntou Newman.

Eu poderia dizer aos pais dele que ele morreu, encobrir os detalhes exatos, sabe como é.

Você está se agarrando a fiapos — disse Newman.

Temos que ir — disse Jodie. — Precisamos pegar um avião.

Você verificaria os registros médicos? — perguntou Reacher. — Se eu os buscar com a família? Você faria isso por mim?

Houve uma pausa.

Já estou com eles — disse Newman. — Leon trouxe. A família libe­rou para ele.

Então, você vai verificá-los? — perguntou Reacher.

Você está se agarrando a fiapos — repetiu Newman.

Reacher se virou e apontou para as cem caixas de papelão empilhadas na saleta, do outro lado da sala.

Ele pode já estar aqui, Nash.

Ele está em Nova York — disse Jodie. — Será que você não vê?

Não, eu quero que ele esteja morto — disse Reacher. — Não posso voltar para os pais dele e dizer que o filho é um desertor assassino que este­ve andando por aí esse tempo todo sem entrar em contato com eles. Preciso que ele esteja morto.

Mas ele não está — disse Newman.

Mas poderia estar, certo? — disse Reacher. — Pode ter morrido mais tarde. De volta à floresta, em algum outro lugar, talvez longe, durante a fuga. Doença, desnutrição. Talvez seu esqueleto já tenha sido encontrado. Você vai conferir os registros? Como um favor para mim?

Reacher, precisamos ir agora — disse Jodie.

Você vai verificá-los? — perguntou Reacher, novamente.

Não posso — disse Newman. — Meu Deus! Essa coisa toda é con­fidencial, será que você não entende? Eu nem devia ter contado nada. E não posso adicionar outro nome agora nas listas de desaparecidos em ação. O Comando do Exército não aceitaria. Nós deveríamos estar reduzindo os números aqui, e não aumentando.

Você não pode fazê-lo extraoficialmente? Em particular. Você pode fazer isso, certo? Você manda neste lugar, Nash. Por favor. Para mim.

Newman balançou a cabeça.

Você está se segurando em fiapos, é só o que tenho a dizer.

Por favor, Nash — disse Reacher.

Silêncio. Então Newman suspirou.

Está bem, droga — disse ele. — Vou fazer isso para você então.

Quando? — perguntou Reacher.

Newman encolheu os ombros.

Amanhã de manhã, ok?

Telefone para mim assim que terminar. Pode ser?

Claro, mas você está desperdiçando seu tempo. O telefone?

Use o celular — disse Jodie.

Ela ditou o número. Newman anotou no punho do jaleco.

Obrigado, Nash — disse Reacher. — Fico realmente grato por isso.

Perda de tempo — repetiu Newman.

Precisamos ir — chamou Jodie.

Reacher assentiu vagamente, e eles saíram pela porta lisa aberta na parede de blocos de concreto. O tenente Simon esperava do lado de fora e lhes ofereceu uma carona pela estrada perimetral até os terminais de passageiros.

 

PRIMEIRA CLASSE OU NÃO, O VÔO DE VOLTA FOI péssimo. Era o mesmo avião, indo para o leste, rumo a Nova York. Estava limpo e perfumado, verificado e reabastecido, com uma nova tripulação a bordo. Reacher e Jodie estavam nos mesmos lugares em que tinham senta­do quatro horas antes. Reacher ficou na janela novamen­te, mas tudo parecia diferente. Tudo ainda era duas vezes e meia maior do que o normal, com estofados suntuosos em couro e napa, mas ele não sentiu prazer em sentar-se ali de novo.

As luzes foram reduzidas, para corresponder à noite. Decolaram em direção a um maravilhoso pôr do sol, incendiando o céu para além das ilhas, e tiveram que dar a volta para voar rumo à escuridão. Os motores estabilizaram num silvo abafado. Os comissários de bordo eram calados e discretos. Havia apenas um outro passageiro na cabine. Estava sentado duas fileiras à frente, do outro lado do corredor. Era um homem alto e esbelto, vestia uma camisa de manga curta listrada em cores claras. O antebraço direito estava apoiado delicadamente no braço da cadeira, e a mão pendia, solta e relaxada. Os olhos estavam fechados.

Qual a altura dele? — sussurrou Jodie.

Reacher inclinou-se e olhou em frente.

Um e oitenta e cinco, mais ou menos.

A mesma altura de Victor Hobie. Lembra do arquivo?

Reacher concordou. Olhou diagonalmente para o antebraço pálido descansando ao longo do assento. O homem era magro, e dava para ver a pon­ta proeminente do osso na altura do pulso, destacando-se na penumbra. O músculo magro, a pele sardenta e os cabelos descobridos. O osso do rá­dio era visível, percorrendo todo o caminho até o cotovelo. Hobie deixara uns quinze centímetros deste osso para trás, no local do acidente. Reacher mediu com os olhos, a partir de articulação do pulso do sujeito. Quinze centímetros chegava até a metade do caminho para o cotovelo.

Mais ou menos metade do caminho, certo? — disse Jodie.

Um pouco mais da metade — disse Reacher. — O toco precisaria ser aparado. Teria que ser limado onde estava estilhaçado. Caso ele tenha sobrevivido.

O sujeito, duas fileiras à frente, sentiu sono, puxou o braço para perto do corpo, tirando-o de vista, como se soubesse que falavam sobre ele.

Ele sobreviveu — disse Jodie. — Está em Nova York, tentando con­tinuar escondido.

Reacher inclinou-se para o outro lado e pousou a testa no plástico frio da janelinha.

Eu apostaria minha vida que não está — disse.

Manteve os olhos abertos, mas não havia nada para ver do lado de fora da janela. Apenas o céu negro da noite ao longo de toda a extensão abaixo, até o negror noturno do oceano, 11 quilômetros abaixo.

Por que isso te incomoda tanto? — perguntou ela, em meio ao silêncio.

Ele se virou para a frente e olhou para a cadeira vazia, a 1,80 metro diante dele.

Vários motivos — respondeu ele.

— Por exemplo...

Ele deu de ombros.

Tudo, como se fosse uma grande espiral para baixo. Foi um chamado profissional. Meu instinto me disse alguma coisa, e parece que eu estava errado.

Ela colocou a mão suavemente sobre o antebraço dele, onde o músculo se estreitava um pouco acima do pulso.

Errar não é o fim do mundo.

Ele balançou a cabeça.

Às vezes não é, às vezes é. Depende do problema, certo? Alguém me pergunta quem vai vencer o campeonato, e eu digo que serão os Yankees. Isso não importa, certo? Por que como eu posso saber esse tipo de coisa? Mas, e se eu fosse um jornalista esportivo que deveria saber coisas assim? Ou um apostador profissional? Suponha que o beisebol fosse a minha vida. Seria o fim do mundo se eu começasse a errar.

O que você está dizendo?

Estou dizendo que julgamentos como esse são a minha vida. É no que eu tenho que ser bom. E eu costumava fazer isso bem. Sempre podia confiar que estaria certo.

Mas você não tinha nada em que se basear.

Bobagem, Jodie. Eu tinha um monte de coisas em que me basear. Muito mais do que, às vezes, costumava ter. Encontrei com os pais dele, li suas cartas, falei com seu velho amigo, vi seu registro, falei com seu velho companheiro de armas, e tudo me dizia que era um sujeito que, sem dú­vida, não poderia se comportar da maneira como se comportou. Então, eu simplesmente estava errado, o que me corrói, pois como é que eu fico agora?

Em que sentido?

Eu tenho que contar aos Hobie — respondeu ele. — E eles vão cair duros como pedras. Você deveria tê-los conhecido. Adoravam o filho.

Adoravam o militarismo e o patriotismo daquilo tudo, a idéia de servir o país. Agora, tenho que entrar lá e dizer que o menino deles é um assassino desertor. E um filho cruel que os deixou fora da vida dele por trinta longos anos. Terei que entrar lá e matá-los de vez, Jodie. Seria melhor chamar uma ambulância com antecedência.

Ele ficou em silêncio e voltou a olhar pela janela escura.

E? — perguntou ela.

Ele se virou para encará-la.

E o futuro. O que eu vou fazer? Tenho uma casa, preciso de um emprego. Que tipo de trabalho? Não posso mais me apresentar como inves­tigador, não se tiver começado a fazer as coisas de um jeito estúpido de re­pente. O momento é maravilhoso, não é? Minhas habilidades profissionais viraram lixo bem na hora em que preciso delas para encontrar trabalho. Eu deveria voltar para as Keys e cavar piscinas pelo resto da vida.

Você está sendo muito duro consigo mesmo. — Era apenas um sen­timento, e só. Uma intuição que se mostrou errada.

As intuições deveriam acertar — respondeu ele. — As minhas sem­pre estiveram certas. Posso falar sobre uma dúzia de vezes em que segui minhas intuições, contra todas as possibilidades. Salvaram a minha vida várias vezes.

Ela concordou, sem falar.

E, pelas estatísticas, eu deveria estar certo. Sabe quantos homens fo­ram oficialmente não contabilizados após o Vietnã? Cerca de apenas cinco. Vinte e dois mil desaparecidos, mas estão mortos, todos nós sabemos disso. Nash vai acabar encontrando todos e os tirando da lista. Mas sobraram cinco caras que não puderam ser categorizados. Três deles mudaram de lado e ficaram nas aldeias depois, viraram nativos. Uns dois desaparece­ram na Tailândia. Um deles estava morando numa cabana debaixo de uma ponte em Bangcoc. Cinco pontas soltas em um milhão de homens, e Victor Hobie é um deles, e eu estava errado sobre ele.

Mas você não estava realmente errado. Estava julgando o antigo Victor Hobie, apenas isso. Todas aquelas coisas sobre Victor Hobie antes da guerra e antes da queda. A guerra muda as pessoas. A única testemunha da mudança foi DeWitt, e ele se afastou para não ver nada.

Ele balançou a cabeça novamente.

Eu levei isso em conta, ou, pelo menos, tentei. Não imaginei que poderia mudá-lo tanto assim.

Talvez tenha sido no acidente. Pense nisso, Reacher. Que idade ele ti­nha, 21 anos? Vinte e dois, por aí? Sete pessoas morreram, e talvez ele tenha se sentido responsável. Ele era o capitão do navio, certo? E estava desfigu­rado. Perdeu o braço e provavelmente também se queimou. A desfiguração física é um trauma muito grande para um cara jovem, certo? E depois, no hospital de campanha, provavelmente estava zonzo com as drogas, apavo­rado com a idéia de voltar.

Eles não o enviariam de volta ao combate — disse Reacher.

Jodie concordou.

Sim, mas talvez ele não estivesse pensando direito. A morfina, é como estar doidão, certo? Talvez ele tenha pensado que iriam enviá-lo de volta. Talvez tenha achado que iriam puni-lo por perder o helicóptero. Apenas não sabemos qual era seu estado mental na época. Então ele tentou fugir e bateu na cabeça do soldado. Depois, se deu conta do que tinha feito. Pro­vavelmente se sentiu péssimo por isso. Essa foi a minha intuição, o tempo todo. Ele está se escondendo porque se sente culpado. Deveria ter se entre­gado, porque ninguém iria acusá-lo de nada. As circunstâncias atenuantes eram óbvias demais. Mas ele se escondeu, e, quanto mais o tempo passava, pior ficava. Foi como uma bola de neve.

Ainda não bate. Você descreveu um sujeito irracional. Em pânico, fora da realidade, um pouco histérico. Eu o considerava um grande plane­jador. Muito sensato, racional e normal. Estou perdendo o jeito.

O avião gigante sibilou imperceptivelmente. A novecentos quilômetros por hora pelo ar rarefeito da altitude, o avião parecia estar suspenso e imó­vel no ar. Um enorme e pálido casulo, pendurado no céu da noite, a onze mil metros de altura, indo para lugar nenhum.

E o que você vai fazer, então? — perguntou ela.

Sobre o quê?

O futuro.

Ele encolheu os ombros novamente.

Não sei.

E quanto aos Hobie?

Não sei — repetiu.

Você poderia tentar encontrá-lo — disse ela. — Quem sabe conven­cê-lo de que nenhuma ação seria tomada agora. Colocar um pouco de bom senso na cabeça dele. Talvez pudesse levá-lo para se encontrar com os pais novamente.

Como eu poderia encontrá-lo? Do jeito que estou me sentindo ago­ra, não encontraria nem o nariz no meu rosto. E você está tão empenhada em fazer com que eu me sinta melhor que está esquecendo uma coisa.

O quê?

Hobie não quer ser encontrado. Como você imaginou, ele quer ficar escondido. Mesmo que tenha ficado confuso sobre isso no começo, evidentemente tomou gosto pela coisa mais tarde. Ele mandou matar Costello, Jodie. Mandou homens atrás de nós. Para poder continuar escondido.

A aeromoça então apagou todas as luzes da cabine, e ficaram às escuras. Reacher desistiu, reclinou o banco e tentou dormir, com o último pensa­mento dominando sua mente: Victor Hobie tinha mandado matar Costello para que pudesse continuar escondido.

 

Trinta andares acima da Quinta Avenida, ele acordou pouco depois das seis da manhã, o que era praticamente normal, dependendo da intensidade do sonho com o incêndio durante a noite. Trinta anos são quase onze mil dias, e onze mil dias eqüivalem a onze mil noites inerentes, e em cada uma da­quelas noites ele tinha sonhado com o fogo. A cabine separava-se da cauda, e as copas das árvores voavam para trás. A ruptura da fuselagem atingia o tanque de combustível, que era jogado para fora. Ele via o líquido chegar em sua direção todas as noites, em uma câmera lenta desesperadora. Brilhava e cintilava no ar acinzentado da selva. Líquido e em glóbulos, solidificando formas, como gigantescos pingos de chuva distorcidos. Giravam, mudavam e cresciam, como coisas vivas flutuando lentamente pelo ar. Foram atingidos pela luz, que os deixou estranhos e belos. Os arco-íris formavam-se em seu interior. Atingiram-no antes de a lâmina da hélice acertar seu braço. Todas as noites, ele virava a cabeça exatamente com o mesmo movimento con­vulsivo, e, todas as noites, ainda era atingido. Espirravam por seu rosto. O líquido estava quente. Deixava-o confuso. Parecia água. A água deveria ser fria. Ele deveria sentir o choque do frio. Mas era quente. Pegajoso. Mais espesso que a água. Tinha cheiro. Um cheiro químico. Espirrava por todo o lado esquerdo de sua cabeça. Em seu cabelo. Colava o cabelo à testa e escorria devagar para dentro de seu olho.

Então, ele virava a cabeça para trás e via que o ar estava em chamas. Dedos de fogo apontando para baixo, para os riachos flutuantes de com­bustível, como se fizessem acusações. Então, os dedos viravam bocas. Esta­vam comendo as formas líquidas flutuantes. Comiam rápido e deixavam as formas maiores e ardendo com o calor. Em seguida, os glóbulos soltos no ar explodiam em chamas um após o outro. Não havia mais qualquer conexão. Nenhuma seqüência. Apenas explodiam. Ele jogou a cabeça para baixo onze mil vezes, mas o fogo sempre o atingia. O cheiro era quente, de queimado, mas ele sentia frio, como gelo. Um súbito choque gelado no lado do rosto, no cabelo. Em seguida, a forma negra da hélice, vindo em arco para baixo. Quebrava de encontro ao peito do sujeito chamado Bamford, e um frag­mento lhe acertava de lado, exatamente no meio de seu antebraço.

Ele viu sua mão se soltar. Viu em detalhes. Essa parte nunca aparecia no sonho, porque o sonho era sobre o fogo, e ele não tinha necessidade de so­nhar com a mão se soltando, pois era capaz de se lembrar do acontecimen­to. A borda da lâmina tinha um corte aerodinâmico, a cor era preto fosco. Cortou através dos ossos de seu braço e parou de encontro à coxa, com a energia exaurida. Seu antebraço caiu em duas partes. O relógio ainda estava preso ao pulso. A mão e o punho caíram no chão. Ele levantou o antebraço cortado e tocou o rosto com ele, para tentar descobrir por que a pele ali em cima parecia tão fria, mas tinha um cheiro tão quente.

Percebeu, algum tempo depois, que aquele gesto salvara sua vida. Quando foi capaz de pensar direito novamente, entendeu o que tinha feito. As chamas intensas tinham cauterizado o antebraço aberto. O calor tinha queimado a carne exposta e selado as artérias. Se não tivesse tocado o rosto em chamas, teria sangrado até a morte. Foi um triunfo. Mesmo em ex­tremo perigo e confusão, tinha feito a coisa certa. A coisa inteligente. Era um sobrevivente. Proporcionou-lhe uma confiança mortal que nunca havia perdido.

Continuou consciente por cerca de vinte minutos. Fez o que tinha que fazer dentro da cabine e arrastou-se para longe dos destroços. Sabia que nin­guém rastejava junto com ele. Chegou ao mato e continuou avançando. Estava de joelhos, usando a mão restante à sua frente, caminhando sobre os nós dos dedos como um macaco. Abaixou a cabeça no chão e enfiou pele queimada na terra. Foi quando a agonia começou. Ele resistiu por vinte minutos até entrar em colapso.

Não se lembra de quase nada das três semanas seguintes. Não sabia aonde ia ou o que comeu e bebeu. Tinha lampejos de clareza, que eram piores do que não se lembrar. Estava coberto de sanguessugas. A pele quei­mada se soltou, e a carne por debaixo dela fedia a podridão e decadência. Havia coisas vivas rastejando pelo toco em carne viva. E então estava no hospital. Certa manhã ele acordou flutuando em uma nuvem de morfina. Sentia-se melhor do que jamais se sentira em toda a vida. Mas fingiu estar em agonia durante todo o tempo. Dessa forma, adiariam enviá-lo de volta.

Aplicaram curativos para queimadura em seu rosto. Limparam as larvas da ferida. Anos mais tarde, descobriu que as larvas também lhe salvaram a vida. Ele leu um relatório sobre uma nova pesquisa médica. As larvas estavam sendo usadas em um novo e revolucionário tratamento para a gangrena. Sua alimentação incansável consumia a carne gangrenada antes de a podridão poder se espalhar. Os experimentos tinham sido um sucesso. Ele sorriu. Ele sabia.

A evacuação do hospital pegou-o de surpresa. Não tinha sido avisado. Ouviu os enfermeiros fazendo planos para a manhã. Saiu de lá na mesma hora. Não havia guardas. Apenas um ordenança, por acaso, andando à toa em volta. O soldado custou-lhe uma preciosa garrafa de água, quebrada na cabeça dele, mas não o atrasou mais do que um segundo.

Sua longa jornada para casa começou ali mesmo, um metro para dentro do mato que ficava fora da cerca do hospital. A primeira tarefa era recupe­rar seu dinheiro. Fora enterrado a oitenta quilômetros de distância, num local secreto fora de seu último acampamento base, dentro de um caixão. O caixão fora apenas um feliz acaso. Fora o único receptáculo grande em que conseguira pôr as mãos na época, mas mais tarde seria um golpe de gênio absoluto. O dinheiro estava em notas de cem, de cinqüenta, de vinte e de dez, e pesava 77 quilos. Um peso plausível para um caixão. Pouco menos de dois milhões de dólares.

Àquela altura, o acampamento base já estava abandonado e muito atrás das linhas inimigas. Mas ele conseguiu chegar lá e enfrentou a primeira de suas muitas dificuldades. Como um homem doente, de apenas um braço, desenterraria um caixão? A princípio, com perseverança cega. Mais tarde, com ajuda. Ele já tinha retirado a maior parte da terra quando foi desco­berto. A tampa do caixão era visível ao longo da cova rasa. A patrulha dos vietcongues caiu em cima dele saindo das árvores, e ele achou que ia mor­rer. Mas não morreu. Em vez disso, fez uma descoberta. Alinhava-se com as outras grandes descobertas que ele fizera na vida. Os vietcongues recua­ram, com medo, murmurando, inseguros. Percebeu que não sabiam quem ele era. Não sabiam o que ele era. As queimaduras terríveis roubaram-lhe a identidade. Ele vestia uma camisola hospitalar, rasgada e suja. Não parecia americano. Não se parecia com qualquer coisa. Não parecia humano. Ele percebeu que a combinação da aparência horrível com o comportamento selvagem e mais o caixão tinha um efeito sobre qualquer um que o via. Re­motos medos atávicos de morte, cadáveres e loucura deixavam as pessoas passivas. Percebeu num instante que, se estivesse pronto para agir como um louco e se agarrar ao caixão, essas pessoas fariam qualquer coisa para ele. As antigas superstições daquele povo trabalharam a seu favor. A patrulha vietcongue completou a escavação para ele e carregou o caixão numa carro­ça de búfalo. Sentou-se em cima dele e se enfureceu, gaguejando e apontan­do o oeste, e eles o levaram por 160 quilômetros até o Camboja.

O Vietnã é um país estreito, de um lado ao outro. Foi passando de um grupo para outro e chegou ao Camboja em quatro dias. Alimentaram-no com arroz, deram-lhe água para beber e o vestiram com um pijama preto, para aquietá-lo e, ao mesmo tempo, amenizar os próprios medos primi­tivos. Em seguida, os cambojanos o levaram em frente. Ele pulava e taga­relava como um macaco, apontando para oeste, oeste, oeste. Dois meses depois, estava na Tailândia. Os cambojanos carregaram o caixão pela fron­teira, deram meia-volta e saíram correndo.

Na Tailândia, foi diferente. Quando cruzou a fronteira, foi como sair da Idade da Pedra. Havia estradas e veículos. As pessoas eram diferentes. O homem com o caixão, balbuciante e apavorado, era objeto de pena e preocupação desconfiadas. Não era uma ameaça. Conseguiu caronas em velhas caminhonetes Chevrolet e caminhões Peugeot, e, em duas semanas, fora levado pela corrente, junto com todo o entulho do Extremo Oriente, até o esgoto que se chamava Bangcoc.

Morou em Bangcoc por um ano. Reenterrou o caixão no quintal atrás do barraco que alugou, trabalhando furiosamente durante toda a primeira noite com uma ferramenta de cavar trincheiras roubada do Exército dos Estados Unidos e comprada no mercado negro. Era capaz de usar uma fer­ramenta de cavar trincheiras. Fora projetada para ser usada com apenas uma das mãos, enquanto a outra segurava um rifle.

Uma vez que o dinheiro estava seguro novamente, saiu em busca de médicos. Havia uma grande oferta em Bangcoc. Remanescentes do impé­rio, encharcados de gim, demitidos de todos os empregos por que tinham passado, mas um tanto competentes nos dias em que estavam sóbrios. Não havia muito o que pudessem fazer com o rosto. Um cirurgião reconstruiu sua pálpebra para que quase pudesse ser fechada, e só. Mas foram mais efi­cientes com o braço. Abriram a ferida de novo e limaram os ossos para que ficassem arredondados e lisos. Costuraram o músculo, dobraram a pele por cima de maneira bem justa e fecharam tudo de novo. Disseram-lhe para deixar cicatrizar por um mês, e então o mandaram para um homem que construía próteses.

O homem ofereceu-lhe uma variedade de estilos. Todos usavam a mes­ma amarração a ser usada em torno do bíceps, as mesmas tiras, o mesmo encaixe moldado segundo os contornos exatos do toco de braço. Mas havia acabamentos diferentes. Havia uma prótese de mão de madeira, esculpida com grande habilidade e pintada pela filha dele. Um com três pontas, como uma espécie de ferramenta de jardim. Mas ele escolheu o gancho simples. Identificou-se com ele, embora não pudesse explicar por quê. O homem o forjou com aço inoxidável e o poliu por uma semana. Soldou-o a uma cha­pa de aço em forma de funil e prendeu a peça ao pesado encaixe de couro. Ele esculpiu uma réplica de madeira do toco e bateu o couro em torno dela para moldá-lo; depois, mergulhou-o em resina para reforçá-lo. Costurou a presilha e prendeu as tiras e fivelas. Ajustou-o cuidadosamente e cobrou quinhentos dólares americanos pelo serviço.

Ele morou um ano em Bangcoc. No início, o gancho era irritante, desa­jeitado e incontrolável. Mas foi se acostumando. Com a prática, ficou bem. Quando desenterrou o caixão e reservou a passagem para San Francisco num cargueiro, já tinha se esquecido completamente de que já tivera duas mãos. Era o rosto que continuava a incomodá-lo.

Desembarcou na Califórnia, recuperou o caixão do porão de carga e usou uma pequena parte do conteúdo para comprar uma caminhonete de segunda mão. Um trio de estivadores amedrontados pôs o caixão ali den­tro, e ele atravessou o país até a cidade de Nova York, e ainda estava lá 29 anos depois, com o trabalho do artesão de Bangcoc colocado no chão, ao lado de sua cama, onde ele ficara todas as noites nas últimas onze mil noites.

Rolou na cama e estendeu a mão esquerda para pegar a peça. Sentou-se, deixou-a sobre os joelhos e alcançou a meia de bebê da cabeceira. Seis e dez da manhã. Mais um dia de sua vida.

 

William Curry acordou às 6h15. Era um antigo hábito, do tempo em que trabalhava no turno do dia no esquadrão de detetives. Tinha herdado o aluguel do apartamento de sua avó, dois andares acima da rua Beekman. Não era um apartamento grande, mas era mais barato e conveniente do que a maioria abaixo do Canal. Assim, mudou-se para lá depois do divórcio e lá continuou após a aposentadoria. Sua pensão policial cobria o aluguel, os gastos e a locação do escritório de uma sala na Fletcher. A receita de seu escritório particular estreante tinha que cobrir sua alimentação e a pensão da ex-mulher. E depois, quando estivesse estabelecido e crescido, deveria deixá-lo rico.

Às 6h15 da manhã, o apartamento estava fresco. Ficava protegido do sol da manhã pela sombra dos edifícios vizinhos mais altos. Ele colocou os pés no linóleo, levantou-se e se esticou. Foi para a cozinha e ligou a cafetei­ra. Seguiu para o banheiro e se lavou. Era uma rotina que sempre o deixava pronto para o trabalho às sete da manhã, e ele sempre a seguia.

Voltou para o closet com café na mão e ficou ali com a porta aberta, olhando para o que estava pendurado. Como policial, sempre usara calça e casaco. De flanela cinza, esportivos xadrez. Preferia o tweed, embora não fosse estritamente irlandês. No verão, experimentara paletós de linho, mas amassavam muito facilmente, e ele havia se acertado com misturas de poliéster fino. Mas nenhum desses trajes funcionaria num dia em que ele precisaria aparecer num lugar se parecendo com David Forster, um advo­gado muito caro. Teria que usar seu terno para casamento.

Era um terno preto e liso da Brooks Brothers, comprado para casamen­tos, batizados e funerais familiares. Fora comprado há 15 anos, e, sendo da Brooks Brothers, não parecia muito diferente de diversos artigos con­temporâneos. Ficava um pouco largo nele, pois perder a cozinha da esposa fizera com que seu peso caísse rapidamente. As calças estavam um pouco largas pelos padrões de East Village, mas não havia problema, porque ele planejava usar dois coldres de tornozelo. William Curry era um sujeito que acreditava em estar preparado. David Forster dissera que provavelmente não haveria qualquer tipo de problema envolvido e, se as coisas fluíssem daquela maneira, ele estaria satisfeito, mas, após vinte dos piores anos da polícia de Nova York, a pessoa acabava ficando cautelosa ao ouvir esse tipo de promessa. Por isso, ele resolveu usar os dois coldres nos tornozelos e colocar o grande 357 na parte de trás da cintura.

Colocou o paletó dentro de uma capa plástica que pegara em algum lugar, acrescentou uma camisa branca e sua gravata mais discreta. En­fiou o coldre do 357 num cinto de couro preto e o guardou numa bolsa, junto com os coldres de tornozelo. Guardou os três revólveres na mala, o Magnum 357 de cano longo e dois 38 da Smith and Wesson de cano curto para os tornozelos. Colocou 12 carregamentos de munição para cada arma numa caixa e guardou o pacote junto com as armas. Enfiou uma meia preta dentro de cada um dos pés de seus sapatos pretos e os colocou junto com os coldres. Planejou trocar de roupa após almoçar mais cedo. Não era ne­cessário se vestir daquele jeito por toda a manhã e aparecer depois todo amassado.

Trancou o apartamento e seguiu para o sul, até o escritório na Fletcher, carregando a bagagem, parando apenas para comprar um bolinho de banana e amêndoas com baixo teor de gordura.

Marilyn Stone acordou às sete da manhã. Tinha olheiras e estava cansa­da. Ficaram do lado de fora do banheiro até bem depois da meia-noite. O banheiro não tinha sido limpo. O rapaz corpulento de terno preto cuidou disso. Saiu mal-humorado e os deixou esperando até que o chão estivesse seco. Sentaram-se no escuro e em silêncio, atordoados, com frio e fome, sentindo-se mal demais para sequer pensar em pedir alguma comida. Tony mandou Marilyn ajeitar as almofadas do sofá. Ela supôs que ele planejava dormir ali. Inclinar-se com o vestido curto e preparar a cama dele fora uma humilhação. Ela ajeitou as almofadas no lugar, enquanto ele ria para ela.

O banheiro estava frio. Totalmente úmido e com odor de desinfetante. As toalhas tinham sido dobradas e empilhadas junto à pia. Ela as colocou em duas pilhas sobre o chão, e Chester se encolheu sobre elas sem dizer uma única palavra. Além da porta, o escritório estava em silêncio. Ela não achou que fosse dormir. Mas deve ter dormido, pois acordou com a nítida sensação de que um novo dia começava.

Havia barulho no escritório. Ela lavou o rosto e estava de pé quando o grandalhão levou o café. Pegou a caneca sem dizer palavra e deixou a de Chester na prateleira sob o espelho. Chester ainda estava no chão, sem dor­mir, apenas deitado e inerte. O sujeito passou por cima dele ao sair.

Quase no fim — disse ela.

Apenas começando, você quer dizer — respondeu Chester. — Aon­de vamos depois? Para onde vamos hoje à noite?

Ela ia dizer para casa, graças a Deus, mas então lembrou que ele já se dera conta de que, após as duas e meia da tarde, eles não teriam mais casa.

Para um hotel, eu acho.

Eles pegaram meus cartões de crédito.

E ficou em silêncio. Ela olhou para ele.

O que foi?

Nunca vai acabar — disse ele. — Será que você não vê? Nós somos testemunhas. Do que eles fizeram com os policiais. E com Sheryl. Como eles vão nos deixar ir embora?

Ela concordou, um movimento lento e curto da cabeça, e olhou para ele, para baixo, desapontada. Desapontada porque enfim ele compreendera e agora começaria a ficar preocupado e nervoso o dia inteiro, e isso só difi­cultaria as coisas.

Levou cinco minutos para que o nó da gravata ficasse certo, e então vestiu o paletó. Vestir era exatamente o inverso de se despir, o que significava que os sapatos iam por último. Ele conseguia dar o nó quase tão rapidamente quanto uma pessoa de duas mãos. O truque era prender a ponta solta sob o gancho contra o chão.

Seguiu para o banheiro. Pegou toda a roupa suja numa fronha e deixou junto à porta do apartamento. Tirou os lençóis da cama e os embolou den­tro de outra fronha. Colocou todos os itens pessoais que encontrou numa sacola de supermercado. Esvaziou o armário numa bolsa. Deixou a porta do apartamento aberta e carregou as fronhas e a sacola até a lixeira. Despe­jou tudo e fechou a portinhola. Arrastou a bolsa para o corredor, trancou o apartamento e guardou as chaves num envelope no bolso.

Fez um desvio até a mesa do zelador e deixou o envelope com as chaves para o cara da imobiliária. Foi pela escada até a garagem e colocou a bolsa no Cadillac. Trancou a bolsa no bagageiro e foi até a porta do motorista. En­trou, inclinou-se com a mão esquerda esticada e ligou o motor. Manobrou pela garagem com os pneus cantando e saiu para a luz do dia. Seguiu para o sul pela Quinta Avenida, cuidadosamente desviando os olhos até se afastar do parque e se sentir seguro no movimento dos cânions em Midtown.

Tinha três vagas alugadas no subsolo do World Trade Center, mas o Suburban se fora, assim como o Tahoe, de forma que todas estavam vazias quando chegou. Estacionou o Cadillac na vaga do meio e deixou a bolsa no bagageiro. Achou que o melhor seria ir com o Cadillac até o aeroporto de LaGuardia e abandoná-lo no estacionamento. Depois, pegaria um táxi para o aeroporto JFK, levando a bolsa, como qualquer passageiro apressado para uma transferência. O carro ficaria lá até que o mato crescesse sob ele, e, se alguém desconfiasse de alguma coisa, procuraria nos manifestos de passa­geiros de LaGuardia, não do JFK. Isso significava dar baixa no Cadillac, as­sim como no leasing do escritório, mas ele sempre se sentia bem em gastar dinheiro quando isso revertesse em algum valor para ele, e salvar a própria vida era a coisa mais valiosa em que poderia pensar.

Pegou o elevador expresso da garagem e chegou à recepção de bronze e carvalho noventa segundos depois. Tony estava atrás do balcão, da altura de seu peito, tomando café e parecendo cansado.

Barco? — perguntou Hobie.

Tony assentiu.

Com o corretor. Vão transferir o dinheiro. Querem substituir a amu- rada, onde aquele imbecil bateu com o cutelo. Disse para eles que tudo bem, era só descontar da venda.

Hobie assentiu de volta.

Que mais?

Tony sorriu, com aparente ironia.

Temos mais dinheiro para movimentar. O primeiro pagamento dos juros acabou de chegar da conta de Stone. Onze mil dólares, pontualmente. Que babacão atencioso, não é?

Hobie devolveu o sorriso.

Roubar de Pedro para pagar Paulo, só que Pedro e Paulo são o mes­mo cara. Transfira logo para as ilhas assim que o mercado abrir, ok?

Tony concordou e leu um recado.

Simon ligou de novo do Havaí. Eles pegaram o avião. Neste momen­to, devem estar sobrevoando algum pedaço do Grand Canyon.

Será que o Newman já descobriu? — perguntou Hobie.

Tony balançou a cabeça.

Ainda não. Vai começar a pesquisar hoje de manhã. Reacher o pres­sionou a fazer isso. Parece ser um cara esperto.

Não o suficiente. O Havaí está cinco horas atrás, certo?

Será hoje de tarde. Digamos que ele comece às nove, fique umas duas horas examinando, será quatro da manhã do dia seguinte aqui. Já teremos dado o fora.

Hobie sorriu de novo.

Eu disse que ia funcionar. Não falei? Não falei para você relaxar e deixar que eu pensasse em tudo?

Reacher acordou às sete, pelo seu relógio, que ainda estava com o horá­rio de Saint Louis, pelo que lembrava, o que significava três da manhã lá no Havaí, seis no Arizona ou no Colorado, ou por onde quer que estives­sem passando onze mil metros acima naquele momento, e já oito em Nova York. Espreguiçou-se, levantou e se aproximou dos pés de Jodie. Ela estava encolhida no assento, e uma aeromoça a cobrira com um cobertor xadrez fino. Dormia profundamente, respirando devagar, os cabelos sobre o rosto. Ele ficou no corredor por um momento e a observou dormir. Em seguida, foi dar uma caminhada.

Atravessou a classe executiva e foi até a econômica. As luzes estavam reduzidas e a área ficava mais cheia quanto mais para o fundo ele ia. Os assentos pequenos estavam entulhados de pessoas encolhidas sob os cobertores. Cheirava a roupa suja. Caminhou direto até os fundos do avião, deu a volta pela cozinha, onde um grupo da tripulação agitava-se silenciosamen­te, inclinado sobre os armários de alumínio. Caminhou de volta pelo outro corredor, passou pela classe econômica e entrou na executiva. Parou ali por um segundo e examinou os passageiros. Homens e mulheres com trajes de trabalho, os paletós de lado, as gravatas frouxas. Alguns tinham laptops abertos. Maletas colocadas nos assentos desocupados, repletas de documentos encadernados com capas plásticas. As luzes de leitura focalizavam as bandejas abertas. Algumas pessoas ainda trabalhavam, tarde da noite, ou de manhã bem cedo, dependendo do fuso.

Ele supôs que fossem pessoas de classe média. Bem longe da base, mas nem um pouco próximas do topo. Em termos do Exército, eram os majores e os coronéis. Eram os equivalentes civis dele mesmo. Ele saíra como major e poderia ser um coronel, se tivesse continuado a usar a farda. Encostou-se num apoio de cabeça e olhou para as nucas das cabeças inclinadas, pensou que Leon fizera dele o que era, e que agora o transformara. Leon impul­sionara sua carreira. Não a tinha criado, mas o levara a ser aquilo em que se transformou. Não tinha a menor sombra de dúvida sobre isso. Então a carreira chegara ao fim e ele começara a vadiar, depois a vadiagem acaba­ra, também por causa de Leon. Não apenas por causa de Jodie. Também devido às últimas vontades e ao testamento de Leon. O velho deixara-lhe a casa, e o legado tinha ficado ali, como uma bomba-relógio, esperando para ancorá-lo. Apenas a vaga promessa era o bastante para prendê-lo. Antes, acomodar-se era apenas uma teoria. Um país distante que ele sabia que ja­mais visitaria. A viagem até lá era longa demais. A passagem era muito cara. A dificuldade absoluta de se insinuar em um estilo de vida estranho era impossivelmente grande. Mas o legado de Leon o tinha seqüestrado. Leon o seqüestrara e o jogara exatamente naquela fronteira de um país distante. Agora, tinha o nariz pressionado contra o muro. Ele podia ver a vida espe­rando por ele do outro lado. De repente, pareceu-lhe sensato dar a volta e caminhar a distância impossível na direção oposta. Isso faria da vadiagem uma escolha consciente, e uma escolha consciente transformaria a vadia­gem em algo completamente diferente. A questão toda era que a vadiagem era uma aceitação feliz e passiva da falta de alternativas. Ter alternativas es­tragava tudo. E Leon tinha lhe colocado uma imensa alternativa nas mãos. Estava ali, tranqüila e gentil, ao lado das águas do Hudson, esperando por ele. Leon dever ter sorrido enquanto escrevia aquela decisão. Sorrido e pen­sado, vamos ver como você se sai desta, Reacher.

Ele olhou para os laptops e os materiais encadernados e contraiu-se. Como iria cruzar a fronteira do país distante sem se atrapalhar com toda aquela tralha? Os ternos e gravatas, os dispositivos de plástico preto a bate­ria? As maletas de couro e os memorandos da matriz? Arrepiou-se e viu-se imóvel contra a cabeceira da poltrona, em pânico, sem respirar, comple­tamente paralisado. Lembrou-se de um dia, menos de um ano antes, em que saíra de um caminhão num cruzamento perto de uma cidade da qual nunca tinha ouvido falar, num estado em que jamais estivera. Acenara para o motorista, colocara as mãos nos bolsos e começara a andar, com um mi­lhão de quilômetros atrás de si e um milhão de quilômetros pela frente. O sol brilhava, e a poeira acumulava-se em seus pés enquanto caminhava; ele sorria de felicidade por estar sozinho e sem qualquer idéia de para onde se dirigia.

Mas também lembrou-se de um dia, nove meses depois, em que perce­beu que estava ficando sem dinheiro, refletindo intensamente. Mesmo os hotéis mais baratos ainda exigiam alguns dólares. Assim como as lancho­netes mais simples. Ele aceitara o trabalho nas Keys com intenção de tra­balhar umas duas semanas; depois, também aceitara o trabalho noturno, e ainda estava trabalhando nos dois lugares quando Costello aparecera à sua procura, três meses inteiros mais tarde. Portanto, na verdade, a vadiagem já tinha chegado ao fim. Já era um trabalhador. Nenhum motivo para negar isso. Agora era apenas questão de onde, por quanto e para quem. Sorriu. Como a prostituição, pensou. Sem volta. Relaxou um pouco, afastou-se do encosto da poltrona e voltou para a primeira classe. O cara com a camisa listrada e braços do mesmo tamanho dos de Victor Hobie estava acordado e olhava para ele. Saudou-os com a cabeça. Reacher o cumprimentou de vol­ta e foi para o banheiro. Jodie estava acordada quando ele voltou, sentada ereta, penteando os cabelos com os dedos.

Olá, Reacher.

Oi, Jodie.

Abaixou-se e a beijou nos lábios. Desviou de seus pés e se sentou.

Tudo bem? — perguntou ele.

Ela movimentou a cabeça fazendo um oito para jogar os cabelos por trás dos ombros.

Nada mal. Nada mal mesmo. Melhor do que achei que estaria. Aon­de você foi?

Fui caminhar. Fui até lá atrás ver como os outros sobrevivem.

Não, você estava pensando. Percebi isso há uns 15 anos. Você sempre vai caminhar quando tem que pensar sobre alguma coisa.

É mesmo? — respondeu ele, surpreso. — Eu não sabia disso.

Claro que sim. Já tinha percebido. Eu costumava observar cada de­talhe seu. Estava apaixonada, lembra?

O que mais eu faço?

Você fecha a mão esquerda quando está zangado ou tenso. E mantém a direita relaxada, provavelmente pelo treinamento com as armas. Quando está entediado, pensa em alguma música. Dá para ver pelos seus dedos, como se estivesse tocando um piano ou outro instrumento. A ponta do seu nariz se mexe um pouco quando você fala.

É mesmo?

Claro que sim. Sobre o que você estava pensando?

Ele deu de ombros.

Nada de mais.

A casa, certo? Está te incomodando, não é mesmo? E eu. Eu e a casa, te amarrando no chão, como aquele cara do livro, Gulliver? Sabe aquele livro?

Ele sorriu.

Um sujeito capturado por umas pessoas minúsculas quando está dormindo. Eles o prendem com estacas, deitado, com centenas de cordinhas.

Você se sente assim?

Ele fez uma breve pausa.

Não quanto a você.

Mas a pausa fora uma fração de segundo longa demais. Ela concordou.

É diferente de estar sozinho, certo? — perguntou ela. — Eu sei, fui casada. Outra pessoa a ser considerada o tempo todo. Alguém com quem se preocupar, certo?

Ele sorriu.

Vou me acostumar.

Ela sorriu de volta.

E tem a casa, não é?

Ele deu de ombros.

É estranho.

Bem, isso é entre você e Leon. Quero que você saiba que não estou te fazendo qualquer exigência, de forma alguma. Sobre nada. São a sua vida e a sua casa. Você deve fazer exatamente o que estiver com vontade, sem pressão.

Ele concordou. Não disse nada.

Então, você vai procurar Hobie?

Ele encolheu os ombros novamente.

Talvez. Mas vai ser um inferno.

Tem que haver algum jeito. Registros médicos, esse tipo de coisa. Ele deve ter uma prótese. E, se tiver se queimado, isso também aparecerá nos registros. Você também não o perderia no meio da rua, não é? Um cara de um braço só, todo queimado?

Ele concordou.

— Ou eu poderia apenas esperar que ele me encontrasse. Ficar à toa lá em Garrison até ele mandar seus rapazes de volta.

Então, ele se voltou para a janela, olhou seu reflexo pálido contra a escu­ridão e percebeu que estava simplesmente aceitando que Hobie estava vivo. Simplesmente aceitando que estava errado. Virou-se de volta para Jodie.

Você me deixaria com o celular? Consegue passar o dia sem ele, hoje? E caso Nash descubra alguma coisa e telefone para mim. Quero saber imediatamente, se ele descobrir.

Ela sustentou o olhar dele por algum tempo e depois concordou. Abai­xou-se e abriu o zíper da bolsa de mão. Pegou o telefone e passou para ele.

Boa sorte — disse.

Ele assentiu e colocou o telefone no bolso.

Nunca precisei de sorte — respondeu.

Nash Newman não esperou até as nove para começar a pesquisa. Era um homem meticuloso, atento aos mínimos detalhes, tanto em aspectos éticos quanto em sua especialidade profissional. Essa era uma investigação não oficial, levada à frente devido à compaixão por um amigo com problemas. Por isso, não poderia ser feita durante o horário de expediente. Um assunto particular tinha que ser resolvido de maneira particular.

Assim, ele saiu da cama às seis, observando a claridade pálida do ama­nhecer tropical que surgia além das montanhas. Fez café e se vestiu. Em torno das seis e meia, estava no escritório. Achou que precisaria de cerca de duas horas. Depois, tomaria o café da manhã no refeitório e começaria o trabalho propriamente dito às nove em ponto.

Abriu uma gaveta da mesa e pegou os registros médicos de Victor Hobie. Leon Garber os reunira após pesquisas pacientes nos consultórios médicos e de dentistas no condado de Putnam. Juntara tudo numa velha pasta da Polícia do Exército que fechou com uma tira de lona velha. A tira já fora vermelha, mas o tempo a fizera desbotar para um rosa empoeirado. Tinha uma fivela de metal intrincada.

Soltou a fivela e abriu a pasta. A primeira folha era uma nota assinada pelo casal Hobie em abril. Sob ela, estava a história antiga. Ele já folheara milhares de arquivos semelhantes àquele e podia classificar, sem esforço, os rapazes em questão em termos de idade, localização geográfica, renda dos pais, habilidades desportivas e todos os diversos fatores que afetam um his­tórico médico. Idade e localização trabalhavam juntas. Um novo tratamen­to odontológico poderia começar na Califórnia e percorrer o país como uma moda, de forma que o rapaz de 30 anos que recebia o tratamento em Des Moines teria que ser cinco anos mais novo que o rapaz de 30 anos que o recebia em Los Angeles. A renda dos pais determinava se o tratamento de fato seria empregado. Os astros do futebol americano do ensino médio eram tratados por distensões nos ombros, os jogadores de beisebol tinham pulsos partidos, e os nadadores sofriam de otites crônicas.

Victor Truman Hobie não sofria de quase nada. Newman lera nas entre­linhas e imaginara um garoto saudável, bem-alimentado e sob os cuidados de pais dedicados. Tivera boa saúde. Além das gripes e resfriados, uma crise de bronquite aos 8 anos. Nenhum acidente. Nenhum osso quebrado. O tratamento dentário fora muito cuidadoso. O garoto crescera ao longo de uma época em que os serviços dos dentistas eram intensos. Segundo a experiência de Newman, eram absolutamente típicos, como qualquer ou­tro que já vira da região metropolitana de Nova York na década de 1950 e início da de 1960. O trabalho dos dentistas consistia numa guerra contra as cáries. As cáries tinham que ser caçadas. A caça era feita com poderosos raios X. Quando encontradas, eram alargadas com a broca e fechadas com amálgama. O resultado era uma série de idas aos consultórios odontológicos, que sem dúvida geraram sofrimento para o jovem Victor Hobie, mas, do ponto de vista de Newman, o processo o deixara com uma grossa pilha de imagens da boca do garoto. Eram boas, claras e numerosas o bastante para se mostrarem potencialmente definitivas.

Ele empilhou as lâminas de filmes e as levou pelo corredor. Destrancou a porta lisa da parede de tijolos cinza, caminhou por entre os caixões de alumínio até a saleta na outra extremidade. Fora das vistas, atrás de um canto, havia um terminal de computador sobre uma prateleira larga. Li­gou-o e clicou no menu de pesquisa. A tela desceu e mostrou um questio­nário detalhado.

O preenchimento era uma questão de simples lógica. Ele clicou em todos os ossos e digitou nenhuma fratura de infância, potenciais fraturas adultas. O garoto não tinha quebrado a perna jogando futebol americano no ensino médio, mas poderia ter quebrado mais tarde, num acidente de treinamento. Registros médicos às vezes se perdiam. Ele dedi­cou bastante tempo à seção dental do questionário. Digitou uma descrição completa de cada dente, conforme os últimos registros. Marcou as obturações e, em cada dente saudável, digitou cárie potencial. Era a única ma­neira de evitar erros. Simples lógica. Um dente saudável pode adoecer mais tarde e precisar tratamento, mas uma obturação jamais pode desaparecer. Observou os raios X e, no campo espaço, digitou uniforme, e em tama­nho, digitou uniforme novamente. O restante do questionário ficou em branco. Algumas doenças apareciam nos esqueletos, mas não resfriados, gripes e bronquites.

Revisou o trabalho e, às sete em ponto, clicou em pesquisar. O disco rígido zumbiu e estalou no silêncio da manhã, e o software começou sua paciente jornada pelo banco de dados.

Aterrissaram dez minutos antes da hora prevista, pouco antes do pico do meio-dia, horário da Costa Leste. Baixaram por cima das águas brilhantes de Jamaica Bay e desceram na direção leste antes de dar a volta e taxiar len­tamente para o terminal. Jodie reajustou o relógio e ficou em pé antes de o avião parar de se mover, transgressão pela qual não se era repreendido na primeira classe.

Vamos lá — disse ela. — Estou muito em cima da hora.

Formaram a fila junto à porta antes que fosse aberta. Reacher carregou a bolsa dela para fora do avião, e ela se apressou na frente dele ao longo de todo o terminal, até a saída. O Lincoln Navigator ainda estava lá, no estacionamento expresso, grande, preto e óbvio, e custou 58 dos dólares de Rutter para tirá-lo de lá.

Será que dá tempo de eu tomar um banho? — perguntou ela a si mesma.

O comentário de Reacher foi acelerar mais rápido do que deveria pela Van Wyck. A via expressa de Long Island movia-se com fluidez para o oeste, em direção ao túnel. Chegaram em Manhattan vinte minutos depois de aterrissarem e seguiram para o sul pela Broadway, aproximando-se da casa dela em meia hora.

Ainda vou conferir — disse ele. — Com banho ou sem banho.

Ela concordou. Voltar para a cidade levara o medo de volta.

Certo, mas seja rápido.

Ele se limitou a parar na rua, diante da portaria, e conferir visualmente a entrada. Ninguém lá. Guardaram o carro e subiram de elevador até o quinto andar, para descer pelas escadas até o quarto. O prédio estava si­lencioso e deserto. O apartamento, vazio e intocado. A cópia do Mondrian brilhava sob a luz do dia. Meio-dia e meia.

Dez minutos — disse ela. — Depois você me leva para o escritório, está bem?

Como você vai para a reunião?

Temos um motorista, ele me levará.

Ela atravessou a sala e foi para o quarto, despindo-se pelo caminho.

Você precisa comer? — perguntou Reacher em voz alta.

Não dá tempo — respondeu.

Ela ficou cinco minutos no banho e mais cinco no armário. Saiu com um vestido cinza-escuro e um paletó combinando.

Encontre minha maleta, ok? — gritou.

Penteou os cabelos e usou um secador. Limitou a maquiagem a uma sombra nos olhos e batom. Conferiu o resultado no espelho e correu de volta para a sala. A maleta estava à sua espera. Ele a carregou até o carro.

Fique com as minhas chaves — disse ela. — Depois você pode voltar para cá. Eu ligarei do escritório, e você vai me buscar.

Levaram sete minutos para chegar à praça do outro lado do prédio. Ela saiu do carro às cinco para uma.

Boa sorte! — Reacher gritou para ela. — Acabe com eles.

Ela acenou para ele e passou pela porta giratória. Os caras da segurança a viram e acenaram com a cabeça enquanto ela se dirigia aos elevadores. Ela chegou ao escritório antes de uma da tarde. O assistente a seguiu com um arquivo fino nas mãos.

Até que enfim — disse ele, com um tom cerimonioso.

Ela abriu a pasta e folheou as oito folhas de papel.

Que negócio é esse? — perguntou ela.

Eles estavam agitados com essa história da reunião dos sócios — disse o sujeito.

Ela voltou pelas páginas, na ordem inversa.

- Não vejo motivo. Nunca ouvi falar de nenhuma dessas empresas, e o valor é trivial.

- O motivo não é esse.

Ela olhou para ele.

- Então, qual é?

- Foi o credor quem contratou você. Não o cara que deve todo o di­nheiro. É um movimento preventivo, não é? Porque o mundo está girando. O credor sabe que, se você ficar do lado do cara que deve dinheiro a ele, vai lhe causar problemas sérios. Por isso, ele te contratou primeiro, para evitar que isso aconteça. Significa que você é famosa. É por isso que os sócios es­tão agitados. Você é uma estrela agora, sra. Jacob.

 

Reacher dirigiu lentamente de volta para a baixa Broadway. Desceu com o enorme carro pela ram­pa da garagem. Estacionou na vaga de Jodie e o trancou. Não subiu para o apartamento. Caminhou de volta pela rampa até a rua e seguiu para cima, até o café. Pediu que o balconista servisse quatro expressos num copo de pa­pelão e se sentou à mesa cromada em que Jodie ficara quando ele inspecionou o apartamento na noite em que tinha voltado de Brighton. Caminhara de volta pela Broadway e a encontrara sentada ali, olhando para a foto falsificada de Rutter. Sentou-se na mesma cadeira em que ela estivera, assoprou a espuma do expresso, sentiu o aroma e deu o primeiro gole.

O que dizer para os velhos? A única coisa humana a fazer seria ir até lá e não lhes dizer absolutamente nada Apenas que ele não chegara a lugar

nenhum. Simplesmente deixar toda a coisa vaga. Seria uma gentileza. Ape­nas chegar lá, apertar suas mãos, dar a notícia sobre a fraude de Rutter, reembolsar-lhes o dinheiro e depois descrever uma longa e infrutífera busca retroativa pela história que terminava em lugar nenhum. Depois implorar que aceitassem que o rapaz estava morto havia muito tempo e compreendessem que ninguém jamais poderia lhes dizer onde, quando ou como. Então desaparecer e deixá-los seguir com o pouco que lhes restava de suas vidas, com qualquer dignidade que pudessem encontrar sendo ape­nas mais dois em meio a dezenas de milhões de pais que abriram mão de seus filhos para a noite e a névoa que caía sobre um século aterrorizante.

Bebeu o café devagar, com a mão esquerda fechada sobre a mesa dian­te de si. Mentiria para eles, mas por compaixão. Reacher não era muito experiente em termos de compaixão. Era uma virtude que sempre correra paralelamente à sua vida. Jamais estivera no tipo de posição em que esse tipo de sentimento fizesse alguma diferença. Jamais seu dever o obrigara a dar más notícias aos parentes. Alguns de seus contemporâneos tinham essa atribuição. Depois do Golfo, criaram destacamentos encarregados disso, um oficial mais velho da unidade envolvida juntava-se a um policial do Exército, e, juntos, visitavam as famílias dos mortos, percorrendo longas e solitárias calçadas, subindo as escadas dos apartamentos, dando a notícia que suas chegadas formais e uniformizadas já anunciavam antecipadamen­te. Ele supôs que a compaixão fazia uma grande diferença para aquele tipo de missão, mas sua carreira estivera muito bem-fechada dentro do próprio serviço, onde as coisas eram sempre simples, quer acontecessem ou não, boas ou ruins, legais ou ilegais. Agora, dois anos após deixar o serviço, a compaixão subitamente se transformara num fator em sua vida. E o faria mentir.

Mas ele iria encontrar Victor Hobie. Abriu a mão e tocou a cicatriz da queimadura por cima da camisa. Ele tinha um acerto de contas. Inclinou o copo até sentir a borra do expresso nos dentes e na língua. Jogou o copo no lixo e saiu de volta para a calçada. O sol caía em cheio na Broadway, vindo levemente do sudoeste, diretamente sobre a cabeça.

Sentiu-o no rosto e virou-se em sua direção, caminhando para o prédio de Jodie. Estava cansado. Dormira apenas quatro horas no avião. Quatro horas, após mais de 24 horas acordado. Lembrava-se de reclinar a enorme poltrona da primeira classe e adormecer ali. Estivera pensando em Hobie naquele momento, como estava pensando nele agora. Victor Hobie tinha mandado matar Costello para que pudesse continuar escondido. Crystal flu­tuou em sua memória. A stripper das Keys. Não deveria estar pensando nela novamente. Mas dizia alguma coisa a ela, no bar escuro. Ela vestia uma camiseta e mais nada. E então Jodie falava com ele, na penumbra do estúdio nos fundos da casa de Leon. Sua casa. Ela lhe dizia a mesma coisa que ele dissera para Crystal. Ele dizia que deve ter pisado no calo de alguém lá pelo norte. Ela respondia que ele deveria ter acionado algum tipo de alarme, deixado alguém em alerta.

Ficou paralisado no meio da rua, com o coração disparado. Leon. Costello. Leon e Costello, juntos, conversando. Costello fora até Garrison e conversara com Leon logo antes de morrer. Leon lhe transmitira o proble­ma. Encontre um cara chamado Jack Reacher porque eu quero que ele veri­fique o paradeiro de um sujeito chamado Victor Hobie, deve ter dito Leon. Costello, calmo e profissional, deve ter entendido bem. Voltara para a cida­de e mergulhara no trabalho. Deve ter refletido profundamente e tentado um atalho. Costello fora em busca do tal Hobie antes de ir procurar o tal Reacher.

Ele correu pelo último quarteirão até a garagem de Jodie. Depois, da baixa Broadway até a avenida Greenwich, eram pouco mais de quatro qui­lômetros, e ele chegou lá em 11 minutos, seguindo os táxis que se dirigiam para o lado oeste de Midtown. Estacionou o Lincoln junto à calçada diante do prédio e subiu os degraus de pedra correndo, até a portaria. Olhou em volta e pressionou um botão qualquer.

— Correio — anunciou.

A porta interna abriu com um zumbido, e ele subiu as escadas correndo até a sala cinco. A porta de carvalho de Costello estava fechada, exatamen­te como ele a deixara quatro dias antes. Olhou em torno do corredor e experimentou a maçaneta. A porta abriu. A tranca ainda estava para trás, aberta para os negócios. A recepção em tons pastel continuava intocada. A cidade impessoal. A vida seguia em frente, ocupada, distraída e descui­dada. O ar no interior ficara viciado. Restava apenas um resíduo do perfu­me da secretária. Mas o computador continuava ligado. A proteção de tela aquosa movia-se devagar, aguardando pacientemente pela volta dela.

Foi até a mesa e tocou no mouse com o dedo. A tela clareou e mostrou a entrada do banco de dados para Spencer Gutman Ricker & Talbot, que fora a última coisa que ele vira antes de ligar para lá, quando ainda não ouvira falar de ninguém chamado sra. Jacob. Saiu daquele item e voltou à listagem principal, sem se sentir muito otimista. Procurara JACOB ali e não chegara a lugar algum. Não se lembrava tampouco de ter visto HOBIE, e o H e o J eram bem próximos no alfabeto.

Percorreu a lista de baixo para cima e desceu de novo, mas não havia nada na listagem principal. Nenhum nome real, apenas as siglas das em­presas. Saiu de trás da mesa e percorreu o escritório. Nenhum papel sobre a mesa. Contornou-as e viu uma lixeira de metal no espaço para as pernas. Continha alguns papéis amassados. Abaixou-se e espalhou o conteúdo pelo chão. Havia alguns envelopes abertos e formulários descartados. Um guardanapo gorduroso de sanduíche. Algumas folhas pautadas, arrancadas de um caderno espiral. Alisou-as sobre o tapete com a palma da mão. Nada chamou a atenção de seus olhos, mas obviamente eram anotações de tra­balho. O tipo de anotação que um homem faz quando quer organizar os pensamentos. Mas todas eram recentes. Costello era, nitidamente, um su­jeito que esvaziava a lixeira com regularidade. Não havia nada lá que tivesse mais do que uns dois dias antes de ele morrer nas Keys. Qualquer atalho que levasse a Hobie teria cerca de 12 ou 13 dias, logo após conversar com Leon, bem no início da investigação.

Reacher abriu as gavetas da mesa, uma de cada vez, e encontrou o ca­derno espiral por cima da gaveta da esquerda. Era um caderno de folhas picotadas, parcialmente usado, com uma lombada grossa à esquerda e meta­de das páginas restantes à direita. Sentou-se na cadeira de couro amassada e folheou o caderno. Após dez páginas, viu o nome Leon Garber. Saltou dian­te dele em meio a uma confusão de anotações a lápis. Viu uma sra. Jacob, SGR&T. Viu Victor Hobie. Este nome, sublinhado duas vezes, com os traços casuais de um homem pensativo enquanto reflete profundamente. Estava levemente circulado, com ovais superpostos. Ao lado dele, Costello rabis­cara CCT?? Um traço percorria a página ligando CCT?? a uma anotação dizendo 9h, o horário também circulado, dentro de outros ovais. Reacher olhou para a página e viu um compromisso com Victor Hobie, num lugar chamado CCT, às nove da manhã. Presumivelmente, às nove da manhã do dia em que fora morto.

Empurrou a cadeira para trás e contornou a mesa. Correu de volta para o computador. A listagem do banco de dados ainda estava lá. A proteção de tela ainda não tinha sido acionada. Ele percorreu a lista até o topo e per­correu todos os itens entre B e D. CCT estava bem ali, depois de CCR&W e antes de CDAG&Y. Ele moveu o mouse clicou ali. A tela desceu e revelou a entrada para Cayman Corporate Trust.

Havia um endereço no World Trade Center, além dos números de tele­fone e de fax. Algumas anotações listavam consultas de escritórios de advo­cacia. O proprietário aparecia como sr. Victor Hobie. Reacher olhou para a tela, e o telefone começou a tocar.

Desviou os olhos para o aparelho sobre a mesa. Estava em silêncio. O toque vinha de seu bolso. Ele tirou o celular de Jodie do bolso do casaco e apertou um botão.

Alô? — disse.

Tenho algumas novidades — respondeu Nash Newman.

Novidades sobre o quê?

Sobre o quê? Sobre que diabos você acha que é?

Não sei. Então, me diga.

E Newman lhe disse. Ficaram em silêncio. Apenas um chiado suave do telefone, reapresentando dez mil quilômetros de distância, e um zumbido suave da ventoinha dentro do computador. Reacher afastou o telefone da orelha, olhou do aparelho para a tela, esquerda e direita, esquerda e direita, confuso.

Você ainda está aí? — perguntou Newman. A voz chegou fraca e eletrônica, apenas um guincho distante saindo do fone. Reacher colocou o aparelho de volta junto ao rosto.

Tem certeza disso? — perguntou.

Absoluta — respondeu Newman. — Cem por cento de certeza. É definitivo. Não há uma chance em um bilhão de eu estar errado. Sem a menor dúvida.

Tem certeza? — perguntou Reacher, novamente.

Positivo. Total e absolutamente positivo.

Reacher ficou em silêncio. Apenas olhou em torno, para o escritório vazio e silencioso. Paredes azul-claras onde o sol batia ao passar pelo vidro martelado da janela, cinza-claras onde o sol não chegava.

Você não parece muito satisfeito — disse Newman.

Não consigo acreditar. Repita mais uma vez.

E Newman repetiu tudo de novo.

Não consigo acreditar — disse Reacher. — Você está absolutamente seguro disso?

Newman repetiu uma vez mais. Reacher olhou para a mesa, chocado.

Fale de novo — disse. — Mais uma vez, Nash.

Newman voltou à história toda pela quarta vez.

Não há absolutamente nenhuma dúvida sobre isso — completou. — Você já me viu errar alguma vez?

Merda! — disse Reacher. — Merda, você entende o que isso signifi­ca? Viu o que aconteceu? Viu o que ele fez? Tenho que ir, Nash. Preciso vol­tar para Saint Louis imediatamente. Preciso consultar o arquivo outra vez.

Precisa mesmo, não é? — disse Newman. — Saint Louis certamente seria minha próxima ligação. Também por uma questão de extrema urgência.

Obrigado, Nash — disse Reacher, vagamente. Desligou o telefone e jogou-o de volta no bolso. Levantou-se e caminhou devagar para fora do escritório de Costello, até as escadas. Deixou a porta de carvalho escanca­rada atrás de si.

Tony entrou no banheiro carregando o terno Savile Row em um cabide de arame dentro de uma saco de lavanderia. A camisa estava engomada, dobrada e embrulhada num papel sob o braço dele. Olhou para Marilyn, pendurou o terno no trilho da cortina e jogou a camisa no colo de Chester. Enfiou a mão no bolso e pegou uma gravata. Abriu-a em toda a extensão, como um mágico prestes fazer um truque com um lenço de seda escondi­do. Jogou-a junto com a camisa.

Hora do show — disse ele. — Estejam prontos em dez minutos.

Ele saiu e fechou a porta. Chester estava sentado no chão, agarrado à camisa embrulhada entre os braços. A gravata ficou jogada sobre as pernas, onde caíra. Marilyn abaixou-se e pegou a camisa. Passou os dedos sob a borda do papel e abriu o embrulho. Amassou o papel e o deixou cair. Sacu­diu a camisa e soltou os dois botões de cima.

Quase no fim — disse ela, como um encantamento.

Ele olhou para ela com uma expressão vazia e se levantou. Pegou a ca­misa e a passou pela cabeça. Ela se aproximou, levantou o colarinho e pren­deu a gravata.

Obrigado — respondeu ele.

Ajudou-o a vestir o terno, voltou a ficar diante dele e acertou as lapelas.

Seus cabelos — disse ela.

Ele foi até o espelho e viu o homem que costumava ser em outra vida. Usou os dedos para alisar o cabelo no lugar. A porta do banheiro se abriu novamente, e Tony entrou. Segurava a Montblanc.

Vamos emprestar isso de volta para que você possa assinar a trans­ferência.

Chester concordou, pegou a caneta e a enfiou no bolso do paletó.

E isso. Precisamos manter as aparências, certo? Com todos esses ad­vogados por aqui? — Era o Rolex de platina. Chester o pegara e o colocara no pulso. Tony saiu do banheiro e fechou a porta. Marilyn estava no espe­lho, ajeitando os cabelos com os dedos. Colocou-os por trás das orelhas e apertou os lábios, como se tivesse passado batom pouco antes, mesmo sem tê-lo feito. Não tinha nenhum para passar, era apenas instinto. Afastou-se para o meio do banheiro e alisou o vestido sobre as coxas.

— Está pronto? — perguntou ela.

Chester deu de ombros.

Para quê? Você está?

Estou pronta — respondeu ela.

O motorista da firma Spencer Gutman Ricker & Talbot era o marido de uma das mais antigas secretárias do escritório. Ele fora um burocrata que se tornara obsoleto e não tinha sobrevivido à incorporação da empresa em que trabalhava por uma concorrente mais ágil e voraz. Cinqüenta e nove anos, desempregado, sem habilidades nem perspectivas, empatou sua in­denização num grande sedã Lincoln Town Car, e sua mulher escreveu uma proposta demonstrando que seria mais barato para a empresa contratá-lo do que manter uma conta para um carro de serviços. Os sócios fecharam os olhos para os erros contábeis da proposta e o contrataram assim mesmo, posicionando o acordo em algum entre uma ajuda pro bono e a conveniên­cia. Assim, o sujeito esperava na garagem com o motor ligado e o ar-refrigerado no máximo quando Jodie saiu do elevador e dirigiu-se para o carro. Ele desceu a janela, e ela se abaixou para falar.

Você sabe aonde nós vamos? — perguntou ela.

Ele concordou e tocou na prancheta que estava ao seu lado, no banco de passageiros.

Está tudo certo — disse.

Ela sentou no banco de trás. Era uma pessoa democrática por natureza e teria preferido sentar ao lado dele, na frente, mas ele insistia para que os passageiros fossem no banco de trás. Sentia-se mais oficial. Era um homem sensível e percebera um ar de caridade em torno de sua contratação. Acha­va que, se agisse de maneira muito apropriada, isso elevaria a percepção de seu status. Vestia um terno escuro e um quepe de motorista que encontrara numa loja de uniformes no Brooklyn.

Assim que viu Jodie acomodada, manobrou pela garagem, subiu a ram­pa e saiu para a luz do dia. A saída ficava nos fundos do prédio e dava para a Exchange Place. Pegou a esquerda para a Broadway e cruzou as pistas a tempo de virar à direita, numa curva fechada para entrar na Trinity. Seguiu para a esquerda e virou, chegando ao World Trade Center pelo sul. O tráfe­go estava lento depois da igreja Trinity duas pistas tinham sido bloqueadas por um reboque da polícia parado junto a um carro patrulha estacionado junto à calçada. Os policiais olhavam para as janelas, como se estivessem em dúvida sobre alguma coisa. Ele desviou e acelerou. Diminuiu e estacio­nou próximo à praça. Manteve os olhos fixos no nível da rua, e as torres gigantescas erguiam-se sobre ele, sem serem vistas. Calado e de forma res­peitosa, manteve o motor ligado.

Ficarei esperando aqui — disse.

Jodie saiu do carro e parou na calçada. A praça era ampla e cheia de gente. Faltavam cinco minutos para as duas, e a multidão voltava do almoço para o trabalho. Ela se sentiu desconfortável. Estaria caminhando por um espaço público sem que Reacher a observasse pela primeira vez desde que as coisas tinham enlouquecido. Olhou em volta e juntou-se a um grupo de pessoas apressadas, caminhando com elas por todo o trajeto até a Torre Sul.

O endereço no arquivo dizia 88o andar. Ela entrou na fila do elevador expresso, atrás de um homem de altura mediana, vestindo um terno preto que não lhe caía bem. Carregava uma maleta barata, forrada de plástico marrom para se parecer com couro de crocodilo. Ela se apertou no eleva­dor atrás dele. A cabine estava cheia, e as pessoas pediam os andares em voz alta para a mulher que estava mais próxima aos botões. O sujeito com o terno ruim disse 88. Jodie não disse nada.

O elevador parou em quase todos os andares, e as pessoas se empurraram para fora. O avanço era lento. Eram quase duas da tarde quando o elevador chegou ao 88. Jodie saiu, e o sujeito do terno feio saiu atrás dela. Estavam num corredor deserto. Portas fechadas e indistintas levavam aos conjuntos de salas. Jodie foi para um lado e o sujeito do terno foi para outro, am­bos examinando as placas fixadas junto às portas. Encontraram-se de novo diante de uma placa de carvalho que dizia Cayman Corporate Trust. No centro da porta havia uma portinhola de vidro aramado. Jodie olhou para o interior, e o cara do terno passou por ela e empurrou a porta.

Estamos na mesma reunião? — perguntou Jodie, surpresa.

Ela o seguiu para o interior de uma recepção de carvalho e bronze. O lugar cheirava a escritório. Produtos químicos quentes das copiadoras, café passado em algum lugar. O sujeito do terno virou-se para ela e con­cordou.

Acho que estamos — disse.

Ela esticou a mão enquanto caminhava.

Sou Jodie Jacob. Spencer Gutman. Para o credor.

O homem caminhou de costas, passou a maleta plástica para a mão esquerda, sorriu e apertou a mão dela.

Sou David Forster. Forster e Abelstein.

Estavam junto ao balcão da recepção. Ela parou e olhou para ele.

Não, você não é — disse ela, confusa. — Conheço David muito bem.

O sujeito ficou subitamente tenso. A recepção ficou em silêncio. Ela se virou para o outro lado e viu o homem que, na última vez em que o encon­trara, estava pendurado na maçaneta do Bravada quando Reacher acelerou para se afastar da colisão na Broadway. Estava sentado calmamente atrás do balcão, olhando para ela. Moveu a mão esquerda e tocou um botão. No silêncio, ela ouviu um clique na porta de entrada. Depois, moveu a mão direita. Desceu vazia e voltou segurando uma arma de metal fosco.

Tinha um cano largo como um tubo e uma coronha de metal. O cano tinha mais de trinta centímetros. O sujeito do terno ruim soltou a maleta plástica no chão e levantou as mãos para o ar. Jodie olhou para a arma e pensou mas isso é uma espingarda.

O sujeito que a segurava moveu a mão esquerda e apertou outro botão. A porta para a sala interna se abriu. O homem que bateu com o Suburban no carro deles estava de pé, emoldurado pelo portal. Tinha outro revólver na mão. Jodie reconheceu a arma dos filmes que já vira. Era uma pistola automática. Na tela do cinema, fazia disparos barulhentos que lançavam as pessoas dois metros para trás. O motorista do Suburban a segurava fir­memente, apontando para um ponto à sua esquerda e à direita do outro sujeito, como se estivesse pronto para virar o pulso para qualquer uma das direções.

O sujeito com a espingarda saiu de trás do balcão e empurrou Jodie ao passar. Foi para trás do homem com o terno ruim e empurrou o cano da espingarda na base das suas costas. Um som duro de metal contra metal foi ouvido, abafado pelo tecido. O sujeito com a espingarda enfiou a mão por debaixo do paletó e pegou um grande revólver cromado. Segurou-o no alto, como um troféu.

Um acessório incomum para um advogado — disse o outro da porta.

Ele não é advogado — disse o parceiro. — A mulher disse que co­nhece David Forster muito bem e que este aí não é ele.

O homem na porta assentiu.

Meu nome é Tony — disse. — Podem entrar, vocês dois, por favor.

Ele chegou para o lado e cobriu Jodie com a pistola automática enquan­to seu parceiro empurrava pela porta aberta o sujeito que dizia ser Forster. Em seguida, sinalizou com a arma, e Jodie teve que andar na direção dele, que se aproximou e a empurrou pela porta, com uma mão aberta nas suas costas. Ela tropeçou uma vez e recuperou o equilíbrio. O interior era um grande escritório, espaçoso e quadrado. As persianas fechadas deixavam passar uma luz fraca. Móveis de uma sala de estar tinham sido colocados diante de uma mesa. Três sofás idênticos, com mesinhas laterais. Uma enorme mesa de centro de vidro e bronze preenchia o espaço entre os sofás. Duas pessoas estavam sentadas no da esquerda. Um homem e uma mulher. O homem usava terno e gravata imaculados. A mulher usava um vesti­do de festa, de seda e amassado. O homem olhava para cima, atordoado. A mulher tinha uma expressão de terror.

Havia um homem atrás da mesa. Estava sentado na penumbra, numa cadeira de couro. Tinha talvez uns 55 anos. Jodie olhou para ele. Seu rosto era grosseiramente dividido em dois, como uma decisão arbitrária, como um mapa dos estados do oeste. Do lado direito, pele lisa e cabelos grisalhos que rareavam. No esquerdo, o tecido com uma cicatriz de queimadura, ro­sado, grosso e brilhante como o modelo plástico inacabado da cabeça de um monstro. As cicatrizes chegavam ao olho, e a pálpebra era uma bola de tecido rosa, como um polegar machucado.

Ele vestia um terno arrumado, que caía sobre os ombros largos e o peito amplo. O braço esquerdo repousava confortavelmente sobre a mesa. O punho de uma camisa branca aparecia fora da manga, brilhando como neve na penumbra, e os dedos de uma das mãos com unhas bem-cuidadas, a palma para baixo, tamborilavam um ritmo imperceptível sobre a mesa.

O braço direito estava pousado de maneira simétrica ao esquerdo. O mes­mo tecido de lã fina do terno e o mesmo punho branco, mas murchos e va­zios. Não havia mão alguma. Apenas um simples gancho de aço, saindo da manga num ângulo baixo, pousado sobre a mesa. Era curvo e polido como a versão em miniatura de uma escultura num jardim público.

Hobie — disse ela.

Ele concordou, lentamente, apenas uma vez, erguendo o gancho como uma saudação.

Muito prazer em conhecê-la, sra. Jacob. Lamento apenas ter demo­rado tanto.

Depois, sorriu.

E lamento que nosso convívio venha a ser tão breve.

Ele assentiu outra vez, dessa vez para o homem chamado Tony, que a manobrou para o lado do homem que se dizia Forster. Ficaram lado a lado, esperando.

Onde está seu amigo Jack Reacher? — perguntou Hobie para ela.

Ela balançou a cabeça.

Não sei.

Hobie a observou por um longo tempo.

Certo — disse ele. — Vamos tratar de Jack Reacher mais tarde. Ago­ra, sente-se.

Ele apontou o gancho para o sofá oposto ao casal que os olhava. Ela deu alguns passos e se sentou, atordoada.

Esses são o senhor e a sra. Stone — disse-lhe Hobie. — Chester e Marilyn, para sermos mais informais. Chester tem uma empresa chamada Stone Optical. Ele me deve mais de 17 milhões de dólares e vai me pagar em ações.

Jodie olhou para o casal em frente a ela. Ambos tinham expressões de pânico nos olhos. Como se algo tivesse acabado de dar terrivelmente errado.

Coloquem as mãos sobre a mesa — ordenou Hobie.

Vocês três. Inclinem-se para a frente e abram os dedos. Quero ver seis pequenas estrelas-do-mar.

Jodie inclinou-se para a frente e pousou a palma das mãos sobre a mesa baixa. O casal diante dela fez a mesma coisa, automaticamente.

Inclinem-se mais para a frente — ordenou Hobie.

Todos deslizaram as palmas em direção ao centro da mesa até estarem inclinados, formando um ângulo. A posição colocava o peso sobre as mãos e os deixava imóveis. Hobie saiu de trás da mesa e parou diante do sujeito do terno ruim.

Ao que parece, você não é David Forster — disse.

O sujeito não respondeu nada.

Eu teria adivinhado, sabe? — continuou Hobie. — Num instante. Com um terno desses? Você deve estar de brincadeira. Então, quem é você?

Novamente, o sujeito não disse nada. Jodie olhou para ele, com a cabeça virada para o lado. Tony levantou a arma e apontou para a cabeça do sujei­to. Usou as duas mãos e fez alguma coisa com o mecanismo deslizante, com um barulho metálico ameaçador em meio ao silêncio. Apertou o dedo no gatilho. Jodie viu o nó de seu dedo ficar branco.

Curry — disse o sujeito rapidamente. — William Curry. Sou detetive particular, trabalhando para Forster.

Hobie concordou, lentamente.

Certo, sr. Curry.

Ele caminhou de volta para trás dos Stone. Parou atrás da mulher.

Eu fui enganado, Marilyn — disse.

Apoiou-se com a mão esquerda no encosto do sofá e inclinou-se bem pa­ra a frente, enfiando a ponta do gancho na gola do vestido dela. Puxou para trás, forçando o tecido, e a fez levantar lentamente. As palmas da mão dela deslizaram pelo vidro, deixando marcas úmidas no ponto onde estavam apoiadas. Suas costas tocaram o sofá, e ele colocou o gancho diante dela, apoiando-o levemente contra o queixo como um cabeleireiro ajustando a posição da cabeça de seu cliente antes de começar o trabalho. Ergueu o gancho e o levou com delicadeza para trás, usando a ponta para pentear os cabelos dela, suavemente, da frente para trás. Os cabelos eram grossos, e o gancho mergulhou entre os fios, lentamente, da frente para trás, da frente para trás. Ela fechou os olhos com força, aterrorizada.

Você me enganou — disse ele. — Eu não gosto de ser enganado. Especialmente, não por você. Eu te protegi, Marilyn. Poderia ter te vendido com os carros. Agora, pode ser que eu faça isso. Tinha outros planos para você, mas acho que a sra. Jacob acabou de usurpar sua posição em meus afetos. Ninguém me disse que ela era tão bonita.

O gancho parou de se mover, e um fino fio de sangue escorreu dos ca­belos de Marilyn por sua testa. O olhar de Hobie desviou-se para Jodie. Seu olho bom estava firme e não piscava.

Sim — disse a ela. — Acho que você pode ser meu presente de des­pedida de Nova York.

Ele empurrou o gancho com força contra a nuca de Marilyn até ela se inclinar de novo para a frente e colocar as mãos de volta na mesa. Depois, se virou.

Está armado, sr. Curry?

Curry deu de ombros.

Estava. Você sabe disso. Vocês pegaram minha arma.

O sujeito com a espingarda ergueu o revólver brilhante. Hobie assentiu.

Tony?

Tony começou a revistá-lo, sobre os ombros e sob os braços. Curry olhou para a esquerda e a direita, e o sujeito com a espingarda se aproximou e espetou o cano em sua lateral.

Fique parado — disse.

Tony inclinou-se para a frente e passou as mãos pela área do cinto do homem e entre suas pernas. Depois, deslizou as mãos de forma brusca para baixo, e Curry se virou violentamente para o lado, tentando afastar a espin­garda com o braço, mas o cara que a segurava estava bem-apoiado, com os pés afastados, e logo cortou o movimento de Curry. Usou a ponta do cano como um punho e golpeou-o no estômago. Curry engasgou e se dobrou, e o sujeito acertou-o novamente, do lado da cabeça, com força, usando o cabo da espingarda. Curry caiu sobre os joelhos, e Tony empurrou-o com o pé.

Babaca — disse com desprezo.

O cara com a espingarda inclinou-se sobre uma das mãos e enfiou a boca do cano na barriga de Curry com força suficiente para machucar. Tony agachou-se, passou os dedos sob as pernas da calça e encontrou os dois revólveres idênticos. Enfiou o dedo indicador esquerdo pelas guardas dos gatilhos e agitou-os pendurados em torno. O metal estalava, arranhava e chocalhava. Os revólveres eram pequenos, feitos de aço inoxidável. Pare­ciam brinquedos brilhantes. Canos curtos, quase inexistentes.

Levante-se, sr. Curry — disse Hobie.

Curry apoiou-se sobre as mãos e os joelhos. Estava claramente atordoa­do pelo golpe na cabeça. Jodie viu que ele piscava, tentando se concentrar. Sacudia a cabeça. Esticou a mão para o encosto do sofá e arrastou-se para ficar em pé. Hobie aproximou-se e ficou de costas para ele. Olhou para Jodie, Chester e Marilyn como se fossem o público. Abriu a palma da mão esquerda e começou a bater com a curva do gancho nela. Batia com a direi­ta e com a esquerda, uma contra a outra, os impactos aumentavam.

Uma simples questão de mecânica — disse. — O impacto na parte de fora do gancho é transferido para o toco. As ondas de choque viajam. Dissipam-se pelo que restou do braço. Naturalmente, o couro foi trabalha­do por um perito, assim, o desconforto é minimizado. Mas não podemos superar as leis da física, não é mesmo? Portanto, no fim, a pergunta é: em quem a dor chega antes? Ele ou eu?

Ele girou sobre calcanhar e socou Curry em cheio no rosto com a curva externa do gancho. Foi um golpe duro, com todo o peso a partir do ombro. Curry cambaleou para trás e engasgou.

Perguntei se você estava armado — disse Hobie, calmamente. — Você deveria ter dito a verdade: "Sim, sr. Hobie, tenho um revólver em cada tornozelo." Mas não disse. Tentou me enganar. E, como eu disse a Marilyn, não gosto de ser enganado.

O golpe seguinte foi um soco curto no corpo. Súbito e forte.

Pare com isso! — gritou Jodie. Ela chegou para trás e se sentou ereta. — Por que você está fazendo isso? Que diabos aconteceu com você?

Curry estava curvado e ofegante. Hobie se afastou dele e a encarou.

O que aconteceu comigo? — repetiu ele.

Você era um cara decente. Sabemos tudo sobre você.

Ele balançou a cabeça lentamente.

Não, não sabem — respondeu.

Neste momento, a campainha soou na porta de carvalho, no saguão do elevador. Tony olhou para Hobie e enfiou a automática no bolso. Tirou os dois revólveres pequenos de Curry do dedo, aproximou-se e pressionou um deles na mão esquerda do Hobie. Inclinou-se para mais perto e enfiou o outro no bolso de seu paletó. Um gesto curiosamente íntimo. Depois, caminhou para fora do escritório. O cara com a espingarda recuou e se posicionou num ângulo em que cobria os quatro prisioneiros. Hobie foi para a direção oposta e mirou os alvos.

Todos em silêncio — sussurrou.

Ouviram a porta da entrada abrir. Sons baixos de conversa, e depois a porta foi fechada. Um segundo depois, Tony voltou para a penumbra com um pacote debaixo do braço e um sorriso no rosto.

O mensageiro do antigo banco de Stone. Trezentos certificados de ações.

Ele levantou o pacote.

Abra — disse Hobie.

Tony encontrou o fio de plástico e rasgou o envelope. Jodie viu as gra­vuras trabalhadas impressas nos certificados. Tony folheou-os e assentiu. Hobie voltou para sua cadeira e colocou o revólver pequeno sobre a mesa.

Sente-se, sr. Curry — disse. — Ao lado de sua colega advogada.

Curry caiu pesadamente no espaço ao lado de Jodie. Deslizou as mãos

ao longo do vidro e se inclinou para a frente, como os outros. Hobie fez um gesto circular com o gancho.

Dê uma boa olhada em volta, Chester — disse ele. — O sr. Curry, a sra. Jacob e sua querida esposa Marilyn. Todos pessoas boas, tenho certe­za. Três vidas, repletas com suas próprias preocupações e vitórias mesqui­nhas. Três vidas, Chester, que agora estão inteiramente nas suas mãos.

Stone levantara a cabeça e fez um círculo com ela ao olhar para os outros três na mesa. Acabou olhando direto para a mesa de Hobie.

Vá buscar o restante das ações — disse-lhe Hobie. — Tony vai lhe fazer companhia. Direto para lá e de volta, sem truques. Assim, os três vi­verão. Qualquer outra coisa, eles morrerão. Está entendendo?

Stone concordou com a cabeça, silenciosamente.

Escolha um número, Chester — ordenou Hobie.

Um — respondeu Stone.

Escolha mais dois números, Chester.

Dois e três — disse Stone.

Certo, Marilyn fica com o três — disse Hobie. — Caso você resolva bancar o herói.

Vou pegar as ações — disse Stone.

Hobie concordou.

Acho que você vai sim — respondeu. — Mas, primeiro, precisa assi­nar a transferência.

Ele abriu uma gaveta e guardou o pequeno revólver brilhante. Depois, tirou uma única folha de papel. Acenou para Stone, que se endireitou e ficou de pé, trêmulo. Contornou a mesa, tirou a caneta Montblanc do bolso e assinou seu nome.

A sra. Jacob pode ser a testemunha — disse Hobie. — Afinal, ela é um membro da Ordem dos Advogados do Estado de Nova York.

Jodie ficou parada por um longo momento. Olhou para a esquerda, para o cara com a espingarda, para a frente, em direção a Tony, depois à direita, para Hobie atrás da mesa. Ficou de pé, aproximou-se da mesa, virou o formulário e pegou a caneta de Stone. Assinou seu nome e escreveu a data na linha ao lado.

Obrigado — disse Hobie. — Agora, sente-se novamente e continue completamente imóvel.

Ela voltou para o sofá e se inclinou sobre a mesa. Seus ombros começa­vam a doer. Tony pegou Stone pelo cotovelo e o levou até a porta.

Cinco minutos para ir, cinco para voltar — determinou Hobie. — Não banque o herói, Chester.

Tony levou Stone para fora do escritório, e a porta se fechou suavemen­te atrás deles. Ouviram a batida surda da porta de entrada e o zumbido distante do elevador. Depois, silêncio. Jodie sentia dor. A pressão do vidro nas palmas úmidas repuxava a pele sob as unhas. Os ombros queimavam. O pescoço doía. Podia ver em seus rostos que os outros também estavam sofrendo. As respirações aceleravam de repente, suspiravam. Começavam a gemer baixinho.

Hobie fez um gesto para o cara com a espingarda, e eles trocaram de lugar. Hobie caminhava nervoso pelo escritório, e o cara com a espin­garda sentou-se à mesa, com a arma apoiada sobre os punhos, girando aleatoriamente da esquerda para a direita, como o holofote de uma pri­são. Hobie verificava o relógio de pulso, contando os minutos. Jodie viu o sol deslizar para sudoeste, alinhando-se com as aberturas nas persianas da janela, lançando raios inclinados para dentro da sala. Ouvia a respiração irregular dos outros dois ao lado dela e sentia a vibração sutil do prédio que subia pela mesa até suas mãos.

Cinco minutos para ir e cinco para voltar somavam dez, mas pelo me­nos vinte minutos haviam se passado. Hobie continuava caminhando, con­sultou o relógio dezenas de vezes. Então, foi até a recepção, e o cara com a espingarda seguiu-o até a porta do escritório. Manteve a arma apontada para a sala, mas a cabeça estava voltada para seu chefe.

—- Ele pretende nos soltar? — sussurrou Curry.

Jodie deu de ombros e apoiou-se na ponta dos dedos, curvando os ombros e abaixando a cabeça para aliviar a dor.

Não sei — sussurrou de volta.

Marilyn tinha encolhido os braços e apoiara a cabeça sobre eles. Ela olhou para cima e balançou a cabeça.

Ele matou dois policiais — continuou ela. — Fomos testemunhas.

Parem de falar — ordenou o cara da porta.

Ouviram o gemido do elevador novamente e a batida fraca no chão quando ele parou. Houve um momento de silêncio, a porta da recepção se abriu, ouviram ruídos, a voz de Tony e depois a de Hobie, falavam alto e em tom de alívio. Hobie voltou para o escritório carregando um pacote branco e sorrindo com o lado móvel do rosto. Prendeu o pacote sob o cotovelo direito e abriu-o enquanto caminhava. Jodie viu mais gravuras impressas nas folhas grossas. Contornou a mesa e largou os certificados sobre os tre­zentos que ele já tinha. Stone seguiu Tony, como se tivesse sido esquecido, e ficou olhando para o trabalho de sua vida e de seus antepassados, empilha­do de qualquer jeito sobre a madeira arranhada. Marilyn olhou para cima e voltou a pousar os dedos no vidro, empurrando-se para a posição vertical com as mãos, porque já não tinha mais força nos ombros.

Certo, você já tem tudo — disse ela em voz baixa. — Agora pode nos deixar ir embora.

Hobie sorriu.

Marilyn, você é alguma idiota?

Tony riu. Jodie olhou dele para Hobie. Notou que estavam quase no final de algum longo processo. Algum objetivo em vista, que agora estava mais próximo. O riso de Tony era de alívio após dias de estresse e tensão.

Reacher ainda está lá fora — disse ela calmamente, como um movi­mento num jogo de xadrez.

Hobie parou de rir. Tocou a testa com o gancho e esfregou-o pelas cica­trizes, concordando com a cabeça.

Reacher — disse ele. — Sim, a última peça do quebra-cabeça. Não devemos nos esquecer de Reacher, não é? Ele ainda está lá fora. Mas onde, exatamente?

Ela hesitou.

Não sei, exatamente — respondeu.

Então levantou a cabeça, desafiante.

Mas está na cidade — continuou. — E vai achar você.

Hobie sustentou seu olhar. Olhou para ela, com desprezo estampado no rosto.

Você acha que isso é algum tipo de ameaça? — debochou ele. — A verdade é que eu quero que ele me encontre. Porque ele tem algo de que pre­ciso. Algo vital. Portanto, me ajude, sra. Jacob. Telefone para ele e convide-o para vir aqui.

Ela ficou em silêncio por um momento.

Não sei onde ele está — respondeu.

Tente a sua casa — disse Hobie de volta. — Sabemos que ele está hospedado lá. Provavelmente está lá agora. Vocês saíram do avião às onze e cinqüenta, certo?

Ela olhou para ele. Ele assentiu, complacente.

Nós verificamos essas coisas. Conhecemos um rapaz chamado Simon, que acredito que você também conheceu. Ele colocou vocês no vôo das sete horas, saindo de Honolulu. Nós ligamos para o JFK, e nos disse­ram que o desembarque foi exatamente às onze e cinqüenta. O velho Jack Reacher estava todo aborrecido no Havaí, segundo o nosso garoto, Simon. Ainda deve estar chateado. E cansado. Como você. Você parece cansada, sra. Jacob, sabia disso? Mas seu amigo Jack Reacher provavelmente está na cama, lá na sua casa, dormindo, enquanto você está aqui se divertindo com a gente. Então, telefone para ele e diga para vir se juntar a você.

Ela baixou o olhar para a mesa. Não disse nada.

Telefone para ele. Assim, poderá vê-lo mais uma vez antes de morrer.

Ela ficou em silêncio. Olhava para baixo através do vidro. Estava man­chado com as marcas das mãos. Ela queria ligar para ele. Queria vê-lo. Sentia-se como se sentira um milhão de vezes, por mais de 15 longos anos. Queria vê-lo outra vez. Seu sorriso preguiçoso e torto. Os cabelos desgrenhados. Seus braços, tão longos que ele parecia ter a graça de um galgo, apesar da constituição que mais parecia uma parede. Os olhos, de um azul gelado como o Ártico. As mãos, gigantes e maltratadas, cujos punhos fe­chados tinham o tamanho de uma bola de futebol. Ela queria ver aquelas mãos novamente. Queria vê-las em torno da garganta de Hobie.

Olhou ao redor do escritório. Os raios de sol tinham avançado um cen­tímetro sobre a mesa. Viu Chester Stone, inerte. Marilyn, tremendo. Curry, o rosto branco e respirando com dificuldade ao lado dela. O cara com a espingarda, relaxado. Reacher o quebraria ao meio sem nem sequer dar por isso. Viu Tony, os olhos fixos nos dela. E Hobie, acariciando o gancho com a mão bem-cuidada, sorrindo para ela, esperando. Ela se virou e olhou para a porta fechada. Imaginou-a se abrindo com um estrondo e Jack Reacher entrando por ela. Ela queria ver isso acontecer. Era o que ela queria, mais do que qualquer outra coisa que já quisera na vida.

Certo — murmurou. — Vou ligar para ele.

Hobie concordou.

Diga-lhe que estarei aqui por apenas mais algumas horas. Mas lhe diga também que, se ele quiser vê-la novamente, é melhor chegar rápido. Porque você e eu temos um pequeno encontro no banheiro, em cerca de trinta minutos a partir de agora.

Ela estremeceu, empurrou a mesa de vidro e ficou de pé. Suas pernas estavam fracas, e os ombros ardiam. Hobie se aproximou, pegou-a pelo co­tovelo e a levou até a porta. Empurrou-a para trás do balcão da recepção.

Este é o único telefone que temos aqui — disse ele. — Não gosto de telefones.

Ele se sentou na cadeira e apertou nove com a ponta do gancho. Passou o telefone para ela.

Chegue mais perto para eu poder ouvir o que ele disser. Marilyn me enganou com o telefone, e não vou deixar isso acontecer de novo.

Ele a fez se inclinar para baixo e colocar o rosto junto ao dele. Cheirava a sabão. Colocou a mão no bolso e tirou o pequeno revólver que Tony co­locara lá. Encostou a arma do lado dela. Ela segurou o telefone em ângulo, com o fone de ouvido para cima, entre eles. Estudou o console. Havia uma grande quantidade de botões. Um deles era para discagem rápida para a polícia. Ela hesitou por um segundo e, em seguida, discou o número de casa. Tocou seis vezes. Seis longos toques. A cada um, ela desejava: atenda, atenda. Mas foi a própria voz que ela ouviu, da secretária eletrônica.

Ele não está lá — disse, inexpressivamente.

Hobie sorriu.

Que pena... — disse.

Ela ficou curvada ao lado dele, atordoada com o choque.

Ele está com o meu celular — disse de repente. — Acabei de me lembrar.

Certo. Aperte nove para discar.

Ela desligou no gancho e discou nove e o número de celular. Tocou quatro vezes. Quatro toques eletrônicos, urgentes e intensos. A cada um, ela orava: atende, atende, atende, atende. Até soar um clique no fone.

Alô? — atendeu ele.

Ela suspirou.

Alô, Jack.

Olá, Jodie. O que há de novo?

Onde você está?

Ela percebeu que falava com urgência. Fez com que ele hesitasse.

Estou em Saint Louis, no Missouri — disse ele. — Acabei de voar para cá. Tive que ir ao Registro de Pessoal novamente, onde estivemos an­tes.

Ela suspirou. Saint Louis? Sua boca ficou seca.

Você está bem? — perguntou ele.

Hobie inclinou-se e pôs a boca junto ao ouvido dela.

Diga para ele voltar imediatamente para Nova York — sussurrou ele. — Direto para cá, o mais rápido que puder.

Ela concordou com a cabeça nervosamente, e ele pressionou a arma com mais força contra o seu corpo.

Você pode voltar? — perguntou ela. — Eu meio que preciso de você aqui, o quanto antes.

Fiz a reserva para o voo das seis horas — disse ele. — Chego aí em torno das oito e meia, horário local. Isso resolve? — Ela podia sentir Hobie sorrindo ao seu lado.

Será que consegue alguma hora mais cedo? Tipo imediatamente?

Ela ouvia vozes em segundo plano. O major Conrad, supôs ela. Lem­brou-se de seu escritório de madeira escura, couro desgastado, o sol quente do Missouri na janela.

Mais cedo? — perguntou ele.

Bem, acho que sim. Acho que posso chegar em cerca de duas horas, dependendo dos voos. Onde você está?

Venha para o World Trade Center, Torre Sul, 88o andar, ok?

O trânsito vai estar ruim. Digamos umas duas horas e meia para eu chegar aí.

Ótimo — disse Jodie.

Você está bem? — perguntou ele novamente.

Hobie colocou a arma diante dela.

Estou bem — respondeu. — Eu te amo.

Hobie se abaixou e desligou o aparelho, com a ponta do gancho. O fone clicou e voltou a fazer o tom de discagem. Ela depositou o fone devagar e com cuidado no aparelho. Sentia-se destruída pelo choque e pela decepção, atordoada, ainda dobrada sobre o balcão, uma das mãos aberta sobre a ma­deira sustentando seu peso, a outra tremendo no ar, um centímetro acima do telefone.

Duas horas e meia — disse Hobie com exagerada simpatia. — Bem, parece que a cavalaria não vai chegar a tempo para você, sra. Jacob.

Ele riu para si mesmo e colocou a arma de volta no bolso. Saiu da ca­deira e a pegou pelo braço em que ela estava apoiada. Ela tropeçou, e ele a arrastou para a porta do escritório. Ela se segurou com força na borda do balcão. Ele a acertou com o punho do gancho, como se fosse com as cos­tas da mão. A curva do gancho acertou-a no alto da têmpora, e ela soltou o balcão. Seus joelhos cederam, e ela caiu. Ele a arrastou até a porta pelo braço. Os calcanhares arrastavam no chão, ela chutava. Ele a jogou de volta diante dele e a empurrou para dentro do escritório. Ela caiu no tapete, e ele bateu a porta.

De volta para o sofá — rosnou ele.

Os raios de sol passavam da mesa. Avançavam pelo chão e arrastavam-se pela mesa. As unhas compridas de Marilyn Stone brilhavam na luz. Jodie arrastou-se sobre as mãos e os joelhos, ergueu-se apoiada nos móveis e cambaleou de volta para seu lugar ao lado Curry. Colocou as mãos no lugar onde tinham estado antes. Sentia uma dor aguda na têmpora. O lu­gar latejava intensamente, quente e estranho onde o metal acertara o osso. O ombro estava deslocado. O cara com a espingarda olhava para ela, assim como Tony, com a pistola automática de volta na mão. Reacher estava lon­ge, como sempre estivera a maior parte de sua vida.

Hobie voltara para a mesa, ajeitando as folhas dos certificados de ações. Formavam uma pilha de dez centímetros de altura. Acertou um lado de cada vez com o gancho. Os papéis pesados com as gravuras ajustaram-se perfeitamente no lugar.

O correio logo estará aqui — disse ele alegremente.

Então, a imobiliária recebe suas ações, eu recebo o meu dinheiro e ganho outra vez. Em cerca de meia hora, provavelmente, e depois tudo se acaba para mim e para você.

Jodie percebeu que ele estava falando apenas com ela. Ele a escolhera como veículo de informação. Curry e o casal Stone olhavam para ela, não para ele. Ela desviou o olhar para baixo, para o tapete no chão, através do vidro. Tinha o mesmo padrão que o velho tapete desbotado do escritório de DeWitt, no Texas, mas muito menor e mais novo. Hobie deixou a pilha de papéis no lugar, contornou os móveis e pegou a espingarda do outro sujeito.

Vá buscar um pouco de café para mim — disse para ele.

O cara concordou com a cabeça e saiu para a recepção. Fechou a porta suavemente ao passar. O escritório ficou em silêncio. Apenas a respiração tensa e o suave rumor do edifício no fundo. A espingarda estava na mão esquerda de Hobie. Estava apontada para o chão, balançando um pouco, para a frente e para trás, formando um pequeno arco. Não estava firme. Jodie ouvia o metal roçando a pele da mão de Hobie. Viu Curry olhando ao re­dor. Ele estava verificando a posição de Tony, que dera um passo para trás, se colocara fora do campo de ação da espingarda e apontava diretamente através dele, num ângulo reto. Sua automática estava erguida. Jodie sentiu Curry testar a força dos ombros. Sentiu que ele se movia. Viu seus braços se contraindo. Viu que ele olhava para a frente, para Tony, cerca de quatro metros diante dele. Viu que olhava à esquerda, para Hobie, pouco mais de dois metros para o lado. Viu os raios de sol, exatamente paralelos às bordas de metal da mesa. Viu Curry empurrar a ponta dos dedos para cima.

Não — sussurrou ela.

Leon sempre simplificara sua vida com regras. Tinha uma para cada situação. Quando ela era criança, isso a deixava louca. A regra geral para tudo, desde as provas dela na escola até as missões dele no Congresso era faça apenas uma vez e faça certo. Curry não tinha qualquer chance de fazer certo. Absolutamente nenhuma chance. Estava sob a mira de duas armas poderosas. Suas opções eram inexistentes. Se pulasse e virasse a mesa, na direção de Tony, receberia uma bala no peito antes mesmo de chegar no meio do caminho e, provavelmente, um tiro de espingarda no lado, que mataria também o casal Stone. E, se fosse primeiro na direção de Hobie, talvez Tony não atirasse com medo de acertar o patrão, mas Hobie abriria fogo, com certeza, e o tiro de espingarda estraçalharia Curry numa centena de pedacinhos, e ela estava em uma linha reta, direto atrás dele.

Outra das regras de Leon era que impossível é impossível. Jamais finja que não é.

Espere — murmurou ela.

Ela percebeu Curry concordar muito levemente com a cabeça e seus ombros relaxarem outra vez. Eles esperaram. Ela olhou para baixo, para o tapete através do vidro, e lutou contra a dor, minuto a minuto. O ombro deslocado doía terrivelmente contra seu peso. Ela dobrou os dedos e des­cansou sobre as articulações. Ouvia a respiração de Marilyn Stone diante dela. Ela parecia derrotada. Sua cabeça descansava de lado sobre os braços, os olhos fechados. Os raios de sol não estavam mais paralelos à mesa e ras­tejavam em direção à beirada.

Que diabos esse cara está fazendo lá fora? — resmungou Hobie. — Quanto tempo leva para me trazer uma porcaria de café?

Tony olhou para ele, mas não respondeu. Apenas manteve a automática apontada para a frente, mais na mira de Curry do que qualquer um dos outros. Jodie virou as mãos e inclinou-se sobre os polegares. Sua cabeça latejava e ardia. Hobie chutou a espingarda e descansou a boca do cano na parte de trás do sofá diante dele. Colocou o gancho para cima e esfregou a parte lisa da curva sobre as cicatrizes.

Meu Deus! — disse. — O que está demorando tanto? Vá até lá lhe dar uma mão, ok?

Jodie percebeu que ele olhava diretamente para ela.

— Eu?

Por que não? Seja útil. Café é trabalho de mulher, afinal.

Ela hesitou.

Não sei onde está — respondeu.

Então eu te mostro.

Hobie ficou olhando para Jodie, esperando. Ela concordou com a cabe­ça, subitamente satisfeita por ter uma chance de se mexer, mesmo que um pouco. Endireitou os dedos, colocou as mãos para trás aliviada e empurrou a mesa para ficar ereta. Sentiu-se fraca, tropeçou uma vez acertou com a canela a estrutura de bronze da mesa. Passou insegura diante da linha de fogo de Tony. De perto, a automática era enorme e brutal. Ele a manteve sob a mira todo o tempo enquanto ela se aproximava de Hobie. Ali, Jodie esta­va fora do alcance dos raios de sol. Hobie a levou pela penumbra, colocou a espingarda debaixo do braço apontada para cima, segurou a maçaneta e empurrou a porta.

Verificar a porta externa primeiro e, depois, o telefone.

Era o que ela repetia enquanto caminhava. Se pudesse sair para o cor­redor externo, talvez tivesse uma chance. Caso isso não funcionasse, ali es­tava o botão de discagem rápida para a polícia. Derrubar o fone do gancho, apertar o botão, e, mesmo se não conseguisse falar, o circuito automático informaria o local aos policiais. A porta ou o telefone. Ela ensaiou olhar em frente para a porta, olhar para a esquerda em direção ao telefone, o movi­mento preciso da cabeça entre os dois. Mas, quando chegou a hora, ela não olhou nem para uma coisa nem para outra. Hobie parou na frente dela, e ela deu um passo para o lado dele, olhando para o cara que tinha ido buscar o café.

Era um homem atarracado, mais baixo do que Hobie ou Tony, só que largo. Vestia um terno escuro. Estava deitado de costas no chão, exatamente centralizado na frente da porta do escritório. Suas pernas estavam retas. Os pés, virados para fora. A cabeça virada num ângulo agudo sobre uma pilha de listas telefônicas. Seus olhos estavam bem abertos. Olhavam para a frente, para o vazio. O braço esquerdo fora arrastado para cima e para trás, e a mão descansava com a palma para cima sobre outra pilha de catálogos, numa paródia grotesca de saudação. O braço direito fora puxado em linha reta, em um ângulo curto afastado do corpo. A mão direita fora decepada na altura do pulso. Estava depositada no tapete, a quinze centímetros de distância da manga da camisa, em uma linha reta e precisa com o braço de onde saíra. Ela ouviu Hobie fazer um pequeno som na garganta e virou-se para vê-lo deixar cair a espingarda e se segurar na porta com a mão boa. As cicatrizes das queimaduras continuavam com um tom vivo de cor-de-rosa, mas o restante do rosto estava ficando assustadoramente branco.

 

Reacher recebera o nome de batismo Jack do pai, um homem simples de New Hampshire, com uma aversão implacável por qualquer coisa enfeitada. Entrou na maternidade naquela terça-feira, fim de outubro, na manhã seguinte ao nascimento, entregou um pequeno buquê de flores para a esposa e disse a ela: vamos chamá-lo de Jack.

Nenhum nome do meio. Jack Reacher era o nome completo, e já estava assim na certidão de nascimento, pois ele passara no escrivão da compa­nhia a caminho da enfermaria e o sujeito assim registrara e enviara o comu­nicado por telex para a embaixada em Berlim. Outro cidadão dos Estados Unidos, nascido no exterior, filho de um soldado em serviço, este com o nome Jack-mais-nada-Reacher.

Sua mãe não fizera ressalvas. Amava o marido por seus instintos as­céticos, pois, sendo francesa, achava que os instintos davam a ele certa sensibilidade europeia que a fazia se sentir mais à vontade ao seu lado. Ela encontrara um enorme abismo entre a América e a Europa nessas décadas pós-guerra. A riqueza e o excesso da América contrastavam desconfortavelmente com a exaustão e a pobreza da Europa. Mas seu próprio cidadão de New Hampshire não tinha qualquer aplicação para a riqueza e o exces­so. Absolutamente nenhuma. Gostava das coisas mais simples, o que lhe era perfeitamente aceitável, mesmo que isso afetasse até os nomes de seus filhos.

Ele batizara o primogênito de Joe. Nada de Joseph, apenas Joe. Nenhum nome do meio. Ela amava o menino, é claro, mas o nome era difícil para ela. Era muito curto e abrupto, e ela brigava com o J inicial devido ao sotaque. Saía como ZH. Como se o garoto se chamasse Zhoe. Jack era bem melhor. O sotaque fazia com que dissesse Jacques, um nome francês muito antigo e tradicional. Traduzido para o inglês, significava James. Particularmente, ela sempre pensara no segundo filho como James.

Paradoxalmente, ninguém nunca o chamou pelo primeiro nome. Nin­guém sabia como isso aconteceu, mas Joe sempre foi chamado de Joe e Jack sempre foi chamado de Reacher. Ela mesma o chamava assim, o tempo todo. Não fazia idéia do motivo. Colocava a cabeça para fora da janela de algum bangalô de serviço e gritava: Zhoe! Venha almoçar! E traga Reacher com você! E seus dois meninos adoráveis corriam para dentro para comer.

Exatamente a mesma coisa acontecera na escola. Era mesmo a lem­brança mais antiga de Reacher. Ele fora um garoto sério, responsável, e se sentia confuso porque seus nomes eram invertidos. Seu irmão era chamado pelo primeiro nome primeiro e pelo último em último. Ele não. Num jogo de softball no quintal da escola, o garoto que era dono do taco escolhia os lados. Virava-se para os irmãos e chamava: quero Joe e Reacher. Todos os garotos faziam a mesma coisa. Os professores também. Era chamado de Reacher desde o jardim de infância. E, de algum modo, o nome viajou com ele. Como qualquer filho de militar, trocou de escola dezenas de vezes. No primeiro dia, num lugar novo em algum lugar, às vezes até em outro conti­nente, algum novo professor gritava venha aqui, Reacher!

Ele se acostumou rapidamente e não tinha problema algum em passar a vida por trás de um nome com apenas uma palavra. Ele era Reacher, sempre fora e sempre seria, para todo mundo. A primeira garota com quem saiu, uma morena alta, se aproximou timidamente dele e per­guntou seu nome. Reacher, respondeu ele. Todos os amores de sua vida o chamaram assim. Mmm, Reacher, eu te amo, sussurraram em seu ouvido. Todas elas. A própria Jodie fizera exatamente a mesma coisa. Ele aparecera no alto da escada de cimento no quintal de Leon, ela olhou para cima e disse olá, Reacher. Após 15 longos anos, ela ainda sabia exatamente como ele era chamado.

Mas não o chamara de Reacher no celular. Ele apertou o botão, disse alô, e ela respondeu, hi, Jack [oi, Jack], Entrou por seu ouvido como uma sirene. Ele então perguntou onde você está?, e ela pareceu tão tensa que ele entrou em pânico, sua mente disparou e, por um segundo, ele não percebeu exatamente o que ela estava lhe dizendo.

Seu primeiro nome, apenas uma aposta incerta. Hi, Jack significava hijack, seqüestro, em inglês. Ele precisou de um segundo para perceber. Ela estava com algum problema. Um problema grande, mas ainda era a filha de Leon, esperta o bastante para pensar da maneira certa para alertá-lo com apenas duas palavras no início de uma ligação telefônica desesperada.

Hijack, seqüestro. Um alerta. Um aviso para o combate. Ele piscou uma vez, reprimiu o medo e partiu para o trabalho. A primeira coisa que fez foi mentir para ela. Combate é uma questão de tempo, espaço e forças opostas. Como um enorme diagrama de quatro dimensões. O primeiro passo é man­ter o inimigo mal-informado. Deixá-lo pensar que seu diagrama tem uma forma completamente diferente. Presume-se que todas as comunicações te­nham sido invadidas e as usamos para espalhar mentiras e engodos. Assim, obtém-se uma vantagem.

Ele não estava em Saint Louis. Por que estaria? Por que voar até lá quando existiam telefones no mundo e ele já estabelecera uma relação de trabalho com Conrad? Ligara para ele da calçada da avenida Greenwich e explicara o que queria. Conrad ligara de volta três minutos depois, já que o arquivo em questão estava bem ali, na letra A, a mais próxima da mesa do rápido e atrapalhado soldado que ia buscá-lo. Ele ouvira com os ruídos dos pedestres ao seu redor enquanto Conrad lia o arquivo em voz alta, vinte minutos depois. Então, desligara o telefone com todas as informações de que viria a precisar.

Depois, correu com o Lincoln para o sul, pela Sétima Avenida, e o en­fiou numa garagem a uma quadra das Torres Gêmeas. Apressou-se, cruzou a praça e já estava na portaria da Torre Sul quando Jodie ligou. Apenas 88 andares abaixo dela. Estava falando com o guarda de segurança no balcão, que foi a voz que ela ouviu ao fundo. Empalideceu, em pânico, desligou o telefone e pegou o elevador expresso para o 88o andar. Saiu, respirou fun­do e forçou-se a se tranqüilizar. Fique calmo e planeje. Seu palpite era que o 89 teria a mesma disposição do 88. Silencioso e vazio. Os corredores cir­cundavam os grupos de elevadores, estreitos, iluminados por lâmpadas no teto. As portas davam para conjuntos individuais de escritórios. Tinham pequenas janelas de vidro aramado retangulares no centro, na altura de uma pessoa baixa. Cada porta tinha uma placa de metal com o nome do ocupante e uma campainha.

Ele encontrou a escada de emergência e desceu um andar. As escadas eram de serviço. Nenhuma decoração refinada. Apenas o concreto empoeirado e os corrimãos de metal. Atrás de cada porta de incêndio havia um extintor. Acima do extintor, um armário vermelho brilhante com um ma­chado vermelho atrás do vidro. Na parede do armário, um enorme número pintado indicava o andar.

Ele saiu no corredor do 88. Igualmente silencioso. Igualmente estreito, as mesmas iluminação, disposição e portas. Foi para o lado errado e che­gou à CCT por último. Era uma porta de carvalho clara, com uma placa de bronze do lado e um espelho de bronze para a campainha. Ele empurrou a porta levemente. Estava bem-trancada. Abaixou-se e olhou pela portinhola de vidro. Viu a área da recepção. Luzes brilhantes. Uma decoração de carvalho e bronze. Um balcão à direita. Outra porta, bem em frente. Aquela porta estava fechada, e a recepção, vazia. Ele se apoiou e olhou di­reto para a porta interna fechada, e sentiu o pânico subindo até a garganta.

Jodie estava lá dentro. Estava na sala interna. Podia sentir. Estava lá dentro, sozinha, uma prisioneira, e precisava dele. E Hobie deveria estar lá com ela. Deveria ter ido com ela. Abaixou-se e apoiou a testa contra o vidro frio, olhando através da porta do escritório. Ouviu então a voz de Leon em sua cabeça, com mais uma de suas regras de ouro. Não se preocupe com o motivo por que deu errado. Apenas trate de acertar as coisas.

Deu um passo para trás e olhou para a esquerda, ao longo do corredor. Ficou debaixo da luz mais próxima da porta. Esticou a mão para cima e desatarraxou a lâmpada até que ela se soltasse. O vidro quente queimou seus dedos. Fez uma careta e voltou até a porta para verificar outra vez, a um metro da janelinha, bem no meio do corredor. A recepção estava bem-iluminada, e o corredor agora estava escuro. Ele podia ver o interior, mas ninguém veria o lado de fora. É possível ver um lugar claro de um lugar escuro, mas não se consegue enxergar um lugar escuro de um lugar claro. Uma diferença crucial. Ele ficou ali, à espera.

A porta interna se abriu, e um sujeito corpulento saiu do escritório para a recepção. Fechou a porta suavemente ao passar. Um homem forte, de terno escuro. O cara que ele empurrara escada abaixo no bar em Key West. O cara que disparara a Beretta em Garrison. O cara que ficara pendurado na maçaneta da porta do Bravada. Ele cruzou a recepção e saiu de vista. Reacher se aproximou novamente e estudou a porta interna através do vi­dro. Continuava fechada. Ele bateu levemente na porta do corredor. O cara se aproximou da portinhola e olhou em torno. Reacher se empertigou e virou o ombro para a porta, de forma que seu casaco marrom preenchesse a visão.

— Correio — disse em voz baixa.

Era um prédio de escritórios, estava escuro e era uma jaqueta marrom. O cara abriu a porta. Reacher avançou aproveitando o movimento da porta, levantou a mão e pegou o sujeito pela garganta. Com rapidez e força sufi­cientes, as cordas vocais são bloqueadas antes que a pessoa emita qualquer som. Depois, é apertar os dedos mais profundamente e impedir que ela caia. O cara ficou pesado na mão em garra de Reacher, que o puxou por todo o corredor até a saída de emergência e o jogou contra a escada. O cara quicou para longe, caindo sobre o concreto, com um som rascante saindo da garganta.

Hora de escolher — Reacher sussurrou. — Ou você me ajuda ou morre.

Diante de uma escolha dessas, existe apenas uma opção razoável, mas não foi a que o cara escolheu. Ele se levantou nos joelhos e demonstrou intenção de resistir. Reacher bateu no alto de sua cabeça, com força sufi­ciente para apenas enviar o choque pelos ossos do pescoço, recuou e voltou a oferecer.

Me ajude — disse. — Ou eu te mato.

O sujeito sacudiu a cabeça para clarear a mente e se lançou sobre o chão. Reacher ouviu Leon dizendo pergunte uma vez, pergunte duas se preciso, mas, pelo amor de Deus, não pergunte três. Chutou o cara no pei­to, girou-o para trás, passou o braço por seus ombros, pôs uma mão sob o queixo, fez a alavanca e quebrou seu pescoço.

Menos um, mas tinha caído sem liberar qualquer informação e, num combate, a informação impera. Sua intuição ainda lhe dizia que era uma operação pequena, mas dois, três ou cinco sujeitos poderiam ser conside­rados uma operação igualmente pequena, e havia uma enorme diferença entre partir às cegas contra dois, três ou cinco oponentes. Parou nas escadas e olhou para o machado contra incêndio no armário vermelho. A melhor coisa depois de informações sólidas é algum tipo de distração que os re­tarde. Algo que os deixasse preocupados e confusos. Algo que os fizesse parar.

Agiu o mais silenciosamente possível e verificou se o corredor estava, de fato, vazio antes de arrastar o corpo de volta. Escancarou a porta, em si­lêncio, e ajeitou o cara no meio do chão da recepção. Depois, fechou a porta novamente e se abaixou atrás do balcão da recepção. Ficava na altura do peito e tinha mais de três metros de comprimento. Deitou-se no chão atrás dele, tirou a Steyr com o silenciador do casaco e se preparou para esperar.

Pareceu uma longa espera. Pressionava o carpete fino do escritório e sentia o concreto sólido sob ele, parecia vivo com as leves vibrações de um gigantesco prédio em funcionamento. Sentia o tremor grave dos ele­vadores parando e voltando a se mover. O fremir da tensão nos cabos. O zumbido dos condicionadores de ar e o tremor do vento. Forçou os de­dos dos pés contra a resistência da camada de nylon e tensionou as pernas, pronto para a ação.

Percebeu os passos um segundo antes de ouvir o clique na fechadu­ra. Sabia que a porta interna tinha sido aberta, pois percebeu a alteração na acústica. A recepção subitamente se abriu para um espaço mais amplo. Ouviu quatro pés pisando no carpete e parando, como sabia que fariam. Aguardou. Apresente uma visão chocante para alguém e serão necessários cerca de três segundos para que o efeito máximo seja obtido. Essa era a ex­periência de Reacher. Olharam, viram, seus cérebros rejeitaram a visão, os olhos voltaram a olhar, e a imagem penetrou suas mentes. Três segundos, do início ao fim. Ele contou um, dois, três, empurrou a base do balcão, pres­sionou o chão, com o longo silenciador preto da Steyr abrindo caminho. Esticou os braços, ergueu os ombros e depois os olhos.

O que viu foi um desastre. O sujeito com o gancho e o rosto queimado estava deixando cair uma arma, ofegante, se segurando na moldura da por­ta, mas estava do lado oposto ao de Jodie. Estava à direita dela, e o balcão da recepção estava à esquerda. Ela estava meio metro mais próxima dele. Era muito mais baixa, mas Reacher estava abaixado no chão, olhando para cima, num ângulo em que a cabeça de Jodie o encobria, o corpo totalmente diante dele. Não havia ângulo para um tiro. Nenhum tiro livre, em ponto algum. Jodie estava no caminho.

O cara com o gancho e o rosto queimado soltava alguns ruídos pela garganta, e Jodie olhava para o chão. Em seguida, apareceu um segundo sujeito atrás deles, na porta aberta. O motorista do Suburban. Ele parou atrás do ombro de Jodie e olhou. Tinha uma Beretta na mão direita. Olhou para a frente e para baixo, aproximou-se de Jodie e forçou o caminho, pas­sando por ela. Avançou um metro para o interior da sala. Ficou em plena área livre.

Reacher apertou o gatilho, seis quilos de pressão, e o silenciador dispa­rou com ruído logo antes de o rosto do sujeito ser destruído. Recebeu a bala de nove milímetros exatamente no centro e explodiu. Sangue e ossos no teto e espalhando-se pela parede distante atrás dele. Jodie ficou congelada exatamente em linha com o cara com o gancho. E o cara com o gancho era muito rápido. Mais rápido do que seria esperado de um aleijado de 55 anos. Foi para o lado com a mão esquerda e pegou a espingarda do chão. Foi para o outro com o braço direito e passou-o pela cintura de Jodie. O gancho de aço brilhou contra a roupa. Ele já a puxava antes que o outro sujeito tivesse chegado ao chão. Firmou o braço direito em torno dela, ergueu-a e a arras­tou para trás. O impacto do tiro da Steyr ainda vibrava.

Quantos? — gritou Reacher.

Ela era tão rápida quanto Leon já fora.

Dois caídos, um em pé — ela gritou de volta.

Portanto, o cara com o gancho era o único, mas já estava se posicionan­do com a espingarda. Levantou-a num arco e aproveitou o impulso para puxar o gatilho. Reacher foi pego parcialmente exposto, ainda abaixado, tentando sair de trás do balcão. Era apenas uma oportunidade mínima, mas o cara não a desperdiçou e foi em frente. Disparou baixo, a arma relampejou e explodiu o balcão da recepção em dez mil pedaços. Reacher abaixou a cabeça, mas lascas afiadas de madeira, metal e chumbo quente acertaram o lado de seu rosto como um golpe de marreta, por toda a face, até a testa. Ele sentiu o impacto violento e a dor aguda de um ferimento sério. Foi como cair de uma janela e bater primeiro com a cabeça. Rolou, atordoado, e o sujeito já estava levando Jodie de volta pela porta enquanto engatilhava a espingarda mais uma vez contra o próprio peso da arma ao se mover. Reacher estava atordoado e imóvel contra a parede do fundo e a boca do cano estava sendo levantada em sua direção. A testa estava dormente e gelada. A dor era terrível. Ele levantou a Steyr. O silenciador apontado diretamen­te para Jodie. Ele moveu a pistola levemente para a esquerda para a di­reita. Ainda apontava para Jodie. O cara estava se encolhendo atrás dela. Elevava o braço esquerdo ao lado dela, nivelando a espingarda. O dedo começava a apertar o gatilho. Reacher estava imóvel contra a parede. Ele olhou para Jodie, fixando seu rosto na mente antes de morrer. Então uma mulher de cabelos louros apareceu atrás dela, atirando-se desesperada com o ombro contra as costas do sujeito e desequilibrando-o. Ele cambaleou, girou e golpeou-a com o cano da espingarda. Reacher vislumbrou um ves­tido cor-de-rosa quando ela caiu.

Em seguida, a espingarda voltou a balançar na direção dele. Mas Jodie se sacudia e lutava contra o braço do cara. Ela chutava e se debatia. O cara cambaleava contra os movimentos dela. Foi aos trancos e barrancos de volta para a recepção e tropeçou nas pernas do motorista do Suburban. Caiu com Jodie, e a espingarda disparou contra o cadáver. O som foi ensur­decedor, além da fumaça e do jorro obsceno de sangue e tecidos mortos. O cara caiu de joelhos, e Reacher o acompanhou o tempo todo com a Steyr. O cara largou a espingarda, meteu a mão no bolso e tirou um revólver de cano curto e brilhante, puxando o da arma com o polegar. O som foi um clique alto. Jodie esforçava-se para se soltar, empurrando-o para os lados contra o braço apertado em torno de sua cintura. Esquerda e direita, esquerda e di­reita, com fúria, aleatoriamente. Reacher não tinha uma linha clara de tiro. O sangue escorria para dentro de seu olho esquerdo. Sua testa latejava e sangrava. Ele fechou o olho inútil contra a umidade e apertou o olho direi­to. O revólver brilhante subiu, para depois descer nas costelas de Jodie. Ela engasgou e parou de se mexer e lutar, e o rosto do cara saiu de trás de sua cabeça, sorrindo ferozmente.

Solte a arma, seu idiota — disse, ofegante.

Reacher manteve a Steyr exatamente onde estava. Um olho aberto, ou­tro fechado, a cabeça latejando dolorosamente, o longo silenciador apon­tando para o sorriso distorcido do sujeito.

Vou matá-la — rosnou o cara.

E eu atiro em você — disse Reacher. — Ela morre, você morre.

O homem olhou para ele. Depois, concordou.

Impasse — disse.

Reacher concordou de volta. Era o que parecia. Ele sacudiu a cabeça para limpar a mente. A dor só piorou. Empatados. Mesmo que ele pudesse disparar primeiro, o cara ainda poderia dar um tiro. Com o dedo tenso no gatilho daquele jeito e a arma enfiada do lado dela, a pulsação da morte provavelmente seria suficiente para o disparo. Era um risco alto demais. Ele manteve a Steyr no lugar, levantou-se devagar, puxou a barra da camisa para cima e enxugou o rosto com ela, mantendo a mira o tempo todo com um olho só. O cara tomou fôlego e levantou-se também, carregando Jodie junto. Ela tentou se livrar da pressão da arma, mas ele a manteve firme com o braço direito. Virou o cotovelo para fora e girou o gancho, enfiando a ponta contra a cintura dela.

Então, precisamos negociar — disse ele.

Reacher se levantou, enxugou os olhos e não disse nada. Sua cabeça zunia de dor. Zumbindo e gritando. Começava a entender que estava em sérios apuros.

Precisamos negociar — disse o cara de novo.

Sem acordo — respondeu Reacher.

O cara torceu o gancho um pouco mais e enterrou o revólver com um pouco mais de força. Jodie ofegou. Era um Smith and Wesson modelo 60. Cano de duas polegadas, aço inoxidável, calibre 38, cinco tiros no tambor. O tipo de arma que uma mulher carrega na bolsa ou um homem esconde no corpo. O cano era tão curto e o cara o enfiava com tanta força que seus dedos estavam firmes contra as costelas de Jodie. Ela estava arqueada para a frente, contra a pressão do braço. Seu cabelo caía sobre o rosto. Seus olhos estavam voltados para cima, para Reacher, e eram os mais belos olhos que ele já tinha visto.

Ninguém diz que não há acordo para Victor Hobie — rosnou o cara.

Reacher lutou contra a dor e manteve a Steyr nivelada, estável e aponta­da para a testa do sujeito, exatamente onde as cicatrizes cor-de-rosa encon­travam a pele acinzentada.

Você não é Victor Hobie — disse. — Você é Carl Allen e não passa de um monte de merda.

Silêncio. A dor martelava em sua cabeça. Jodie olhava-o mais fixamen­te, com olhos indagadores.

Você não é Victor Hobie — repetiu. — Você é Carl Allen.

O nome pairava no ar, e o cara pareceu recuar, tentando se afastar dele. Ele arrastou Jodie para trás, dando um passo sobre o cadáver do homem atarracado, virando-a para manter o corpo dela entre ele e Reacher, caminhando devagar para trás, para dentro do escritório escuro. Reacher seguiu cambaleando, com a Steyr erguida e nivelada. Havia outras pessoas no escritório. Reacher viu janelas escurecidas, móveis de sala de estar e três pessoas por ali: a mulher de cabelo louro e vestido de seda, e dois homens de terno. Todos olhavam para ele. Para sua arma com silenciador, para sua testa e para o sangue escorrendo pela camisa. Em seguida, começaram a se reagrupar como autômatos e se mover em direção ao conjunto apertado do quadrado de sofás. Seguiram caminhos diferentes no interior e se sentaram com as mãos sobre a mesa de vidro que preenchia o espaço. Seis mãos so­bre a mesa, três rostos voltados para ele, expressões de esperança, medo e espanto visíveis em cada um deles.

Você está errado — disse o cara com o gancho.

Ele recuou com Jodie num grande círculo, até ficar atrás do sofá mais distante. Reacher moveu-se com eles por todo o caminho e parou do lado oposto. A Steyr estava nivelada por cima das cabeças das três pessoas abai­xadas sobre a mesa de centro. Seu sangue pingava do queixo para o encosto do sofá abaixo dele.

Não, eu estou certo — disse ele. — Você é Carl Allen. Nascido em 18 de abril de 1949, no sul de Boston, num subúrbio qualquer. Uma pequena família normal, sem outro destino. Você foi convocado no verão de 1968. Soldado raso, capacidades avaliadas abaixo da média em todas as catego­rias. Enviado para o Vietnã como um soldado de infantaria. Um praça, um simples soldado. A guerra muda as pessoas, e, quando chegou lá, você se transformou num cara muito ruim. Começou com seus esquemas. Comér­cio de drogas, de mulheres e de qualquer coisa em que pudesse colocar suas mãos imundas. Depois, começou a emprestar dinheiro. Ficou realmente ruim. Você comprava e vendia favores. Viveu como um rei por um bom tempo. Até que alguém descobriu. Te tiraram daquela situação confortável e te mandaram para outro lugar. A selva. A guerra de verdade. Uma uni­dade rigorosa, com um oficial linha-dura. Você não gostou. Na primeira chance que teve, explodiu o oficial. E, depois, seu sargento. Mas a unidade te entregou. Muito incomum. Não gostavam de você, não é? Provavelmen­te, te deviam dinheiro. Fizeram o chamado, e dois policiais do Exército, Gunston e Zabrinski, saíram para te buscar. Ainda quer negar alguma coisa?

O cara não disse nada. Reacher engoliu em seco. Sua cabeça doía muito. Dor intensa se aprofundando por trás dos cortes. Extremamente intensa.

Chegaram num Huey — continuou. — Um garoto decente chamado Kaplan estava pilotando. No dia seguinte ele voltou, voando na retaguarda de um ás chamado Victor Hobie. Gunston e Zabrinski estavam prontos com você, esperando no chão. Mas o Huey de Hobie foi atingido na de­colagem. Desceu novamente, a pouco mais de seis quilômetros de distân­cia. Ele morreu, juntamente com Kaplan, Gunston, Zabrinski e três outros tripulantes chamados Bamford, Tardelli e Soper. Mas você sobreviveu. Se queimou e perdeu a mão, mas estava vivo. E seu pequeno cérebro malvado continuava a maquinar. Trocou as plaquetas de identificação com o pri­meiro sujeito que encontrou. Por acaso, era Victor Hobie. Você se arrastou para longe com as identificações trocadas no pescoço. Deixou as suas no corpo dele. Foi exatamente ali, naquela hora, que Carl Allen e seu passado criminoso deixaram de existir. Você conseguiu chegar a um hospital de campo, e eles acharam que estavam tratando de Hobie. Escreveram o nome dele nos registros. Então, você matou um ordenança e fugiu. Disse Não vou voltar, porque sabia que, logo que chegasse a algum lugar, descobririam que você não era Hobie. Descobririam quem você era, e você estaria de volta na merda. Então, você simplesmente desapareceu. Uma nova vida, um novo nome. Uma ficha limpa. Ainda quer negar alguma coisa?

Allen apertou Jodie ainda mais.

É tudo mentira — disse ele.

Reacher balançou a cabeça. A dor disparava em seus olhos como flashes de uma câmera.

Não, é tudo verdade — respondeu. — Nash Newman acabou de identificar o esqueleto de Victor Hobie. Está num caixão no Havaí, com as suas identificações no pescoço.

Mentira — disse Allen novamente.

Foram os dentes — disse Reacher. — O sr. e a sra. Hobie mandaram o filho ao dentista 35 vezes para deixá-lo com dentes perfeitos. Newman diz que é definitivo. Ele passou uma hora com os raios X, programando o computador. Em seguida, reconheceu o crânio quando voltou até o caixão. Correspondência definitiva.

Allen não disse nada.

Funcionou por trinta anos — continuou. — Até que aqueles dois ve­lhos, enfim, fizeram barulho suficiente, e alguém começou a ir atrás da his­tória. E, agora, não vai funcionar mais, porque você vai responder a mim.

Allen fez um muxoxo. Deixou o lado de seu rosto sem marcas tão feio quanto o das queimaduras.

Por que diabos eu deveria responder a você?

Reacher piscou para tirar o sangue do olho sobre a Steyr inabalável.

Por vários motivos — disse calmamente. — Sou um representante. Estou aqui para representar várias pessoas. Como Victor Truman Hobie. Ele foi um herói, mas, por sua causa, foi considerado um desertor assassino. Seus pais se mantiveram em agonia por trinta longos anos. Eu os represen­to. E represento Gunston e Zabrinski também. Ambos eram tenentes da PE, ambos com 24 anos de idade. Eu era um tenente da PE aos 24. Foram mortos pelo que você fez de errado. E por isso que você vai responder a mim, Allen. Porque eu sou eles. Escória como você faz com que pessoas como eu sejam mortas.

Os olhos de Allen estavam vazios. Ele mudou o peso de Jodie para man­tê-la diretamente diante de si. Torceu o gancho e apertou a arma com mais força. Concordou com a cabeça, apenas um movimento mínimo.

Certo, eu fui Carl Allen — disse. — Admito, espertinho. Fui Carl Allen, e depois isso acabou. Então eu fui Victor Hobie. Fui Victor Hobie por um longo tempo, mais tempo do que fui Carl Allen, mas acho que ago­ra isso também acabou. Agora eu vou ser Jack Reacher.

O quê?

É isso que você vai ter — disse Allen. — Esse é o negócio. E a sua troca. Seu nome, pela vida dessa mulher.

O quê?

Quero sua identidade. Quero seu nome.

Reacher apenas olhou para ele.

Você é um vagabundo, sem família — disse Allen. — Ninguém vai sentir sua falta.

E depois?

Depois você morre — disse Allen.

Não podemos ter duas pessoas com o mesmo nome andando por aí, podemos? É uma troca justa. Sua vida pela vida da mulher.

Jodie olhava em linha reta para Reacher, esperando.

Sem acordo — disse Reacher.

Vou matá-la — disse Allen.

Reacher concordou com a cabeça novamente. A dor era atroz. Estava ficando mais forte e se espalhando por trás dos olhos.

Você não vai matá-la — disse. — Pense bem, Allen. Pense sobre você mesmo. Você é um merdinha egoísta. Do jeito que você é, será sempre o número um nisso. Você atira nela, eu atiro em você. Você está a quatro metros de distância de mim. Estou mirando na sua cabeça. Você puxa o seu gatilho, eu puxo o meu. Ela morre, você morre um centésimo de segun­do depois. Você não vai atirar em mim também, porque, assim que come­çar a mirar, terá caído antes de chegar na metade do caminho. Pense bem. Impasse.

Fitou-o através da dor e das sombras. Um impasse clássico. Mas ha­via um problema. Uma falha grave em sua análise. Ele sabia disso. Acer­tou-o com uma descarga gelada de pânico. Allen percebeu exatamente ao mesmo tempo. Reacher notou, pois viu quando seus olhos se animaram.

Você está cometendo um erro de cálculo — disse Allen. — Está dei­xando de lado um detalhe.

Reacher nada respondeu.

É um impasse agora — disse Allen. — E continuará a ser enquanto eu estiver aqui e você aí. Mas por quanto tempo você vai estar aí?

Reacher engoliu, resistindo à dor. Era como marteladas na cabeça.

Continuarei aqui o tempo que for preciso — disse Allen. — Tenho tempo de sobra. Como você percebeu, sou um vagabundo. Não tenho ne­nhum compromisso urgente.

Allen sorriu.

Palavras admiráveis — continuou. — Mas você está com a cabeça sangrando, sabia? Tem um pedaço de metal grudado na sua cabeça. Dá para ver daqui.

Jodie concordou desesperadamente, os olhos cheios de terror.

Dê uma olhada, sr. Curry — ordenou Allen. — Diga a ele.

O cara no sofá sob a Steyr se virou para Reacher e ajoelhou-se no sofá. Manteve-se bem longe do braço de Reacher que segurava a arma e esticou a cabeça para olhar. Em seguida, contraiu o rosto, horrorizado.

É um prego — disse ele. — Um prego de madeira. Você está com um prego na cabeça.

Do balcão da recepção — disse Allen.

O sujeito chamado Curry se abaixou novamente, e Reacher sabia que era verdade. Assim que as palavras foram ditas, a dor dobrou, quadruplicou e explodiu. Uma agonia perfurante, centralizada na testa, um centímetro acima do olho. A adrenalina a mascarara por um longo tempo. Mas ela não dura para sempre. Reacher forçou sua mente para longe da dor com toda a sua força de vontade, mas ela continuava lá. Uma dor ruim, afiada e nausean­te, tudo ao mesmo tempo, crescendo e latejando em sua cabeça, emitindo raios brilhantes sobre os olhos. O sangue tinha encharcado a camisa até à cintura. Ele piscou e não viu absolutamente nada com o olho esquerdo. Es­tava cheio de sangue. O sangue escorria pelo pescoço, por debaixo do braço esquerdo e pingava pela ponta dos dedos.

Estou bem — disse. — Ninguém precisa se preocupar comigo.

Palavras admiráveis — repetiu Allen. — Mas você está sentin­do dor e perdendo muito sangue. Você não vai durar mais do que eu, Reacher. Você se acha durão, mas não é nada perto de mim. Eu rastejei para longe do helicóptero sem uma mão. Artérias cortadas. Estava em chamas. Sobrevivi por três semanas na selva assim. Depois, voltei livre para casa. E convivi com o perigo por trinta anos. Portanto, eu sou o cara forte aqui. Sou o cara mais forte do mundo. Mental e fisicamente. Você não poderia durar mais do que eu mesmo que não tivesse um prego enfiado em sua maldita cabeça. Portanto, não se engane, ok?

Jodie olhava para ele. Seu cabelo era dourado sob a luz difusa que passava pelas cortinas da janela. Estava caindo sobre o rosto, repartido pela curva da testa. Reacher via os olhos dela. Sua boca. A curva do pescoço. O corpo ma­gro, forte, tenso contra o braço de Allen. O gancho, brilhando em contraste com a cor de sua roupa. A dor martelava sua cabeça. A camisa encharcada estava fria contra a pele. Sentia o sangue na boca. Um gosto metálico, como alumínio. Começava a sentir os primeiros tremores de fraqueza no ombro. A Steyr começava a pesar na mão.

E estou motivado — disse Allen. — Trabalhei duro para conseguir o que eu tenho. E vou manter. Sou um gênio e um sobrevivente. Você acha que vou deixar você me derrubar? Acha que é a primeira pessoa que já tentou?

Reacher oscilou, resistindo à dor.

Agora vamos subir um pouco as apostas — continuou Allen.

Ele forçou Jodie para cima com toda a força do seu braço. Enfiou a arma com tanta força que ela se curvou para longe dela, dobrando-se para a frente, contra o braço, e para os lados, contra a arma. Ele a puxou para ficar invisível por trás dela. Em seguida, moveu o gancho. O braço deixou de esmagar sua cintura para esmagar seu peito. O gancho foi arrastado sobre os seios. Ela engasgou de dor. O gancho subiu até o braço estar num ângulo agudo esmagando seu corpo e o gancho apoiado ao lado de seu rosto. Em seguida, virou o cotovelo para fora, e a ponta de aço ficou espetada na pele de seu rosto.

Eu poderia rasgá-la — disse Allen. — Rasgar esse rostinho sem que você pudesse fazer nada, a não ser lamentar. O estresse piora as coisas, cer­to? A dor? Você está começando a se sentir fraco, certo? Você está de saída, Reacher. Está caindo. E, quando estiver no chão, acabou o impasse, acredite em mim.

Reacher estremeceu. Não pela dor, mas porque sabia que Allen estava certo. Ele sentia os joelhos. Estavam lá, eram fortes. Mas um homem em forma jamais sente os joelhos. São apenas parte dele. Senti-los bravamente agüentando 114 quilos de peso corporal significa que muito em breve não estarão mais lá. É um alerta.

— Você está caindo, Reacher — continuou Allen. — Está tremendo, sa­bia? Se afastando de nós. Uns dois minutos, e vou até aí atirar na sua cabeça. Tenho todo o tempo do mundo.

Reacher estremeceu novamente e avaliou a situação. Era difícil pensar. Estava zonzo. Tinha um ferimento aberto na cabeça. Seu crânio fora perfu­rado. Nash Newman brilhou em sua mente, segurando os ossos numa sala de aula. Talvez Nash explicasse, daqui a muitos anos, no futuro. Um objeto afiado penetrou o lobo frontal — aqui — e perfurou as meninges, causando uma hemorragia. A mão com a arma tremia. Em seguida, Leon estava lá, carrancudo e resmungando, se o plano A não funcionar, passe para o plano B.

Em seguida, o policial de Louisiana apareceu, um cara de anos atrás, de uma outra vida, falando sobre os revólveres calibre 38, dizendo que sim­plesmente não se pode confiar neles para derrubar um cara, principalmente se ele estiver indo para cima de você com tudo. Reacher viu o rosto infeliz do sujeito. Não se pode confiar num 38 para derrubar um homem. E um revólver calibre 38 de cano curto é pior ainda. É difícil acertar um alvo com um cano curto. E, com uma mulher lutando em seus braços, fica ainda mais difícil. Embora a luta possa colocar a bala bem no meio do alvo, por aci­dente. Sua cabeça girava. Estava sendo bombardeada por um gigante com uma britadeira. Sua força era drenada para fora. Se esforçava para manter o olho direito aberto, seco e ardendo, como se estivessem enfiando agulhas nele. Mais cinco minutos, talvez, pensava. E, então, estou acabado. Ele estava em um carro alugado, ao lado de Jodie, dirigindo de volta para o zoológico. Estava falando. Estava quente no carro. O sol brilhava pelo vidro. Dizia que a base de qualquer engodo é mostrar o que o outro quer ver. A Steyr vacilou em sua mão, e ele pensou ok, Leon, aqui está o plano B. Veja se você gosta.

Seus joelhos se dobraram, e ele oscilou. Voltou a ficar em pé e levou a Steyr de volta para a única faixa estreita da cabeça de Allen que ele conseguia distinguir. O cano vacilou e desenhou um círculo no ar. Pequeno, a princípio, depois um maior, à medida que o peso da arma sobrecarregava o controle em seu ombro. Ele tossiu e empurrou o sangue para fora da boca com a língua. A Steyr estava baixando. Ele percebeu a mira baixando, como se um homem forte a empurrasse para baixo. Tentou elevá-la, mas ela não quis subir. Forçou a mão para cima, mas acabou apenas se movendo para o lado, como se uma força invisível o desviasse. Seus joelhos falharam outra vez, e ele se forçou de volta para a vertical, como num espasmo. A Steyr estava a quilômetros de distância. Estava pendurada para baixo, à direita. Apontava para a mesa. Seu cotovelo estava trancado contra o próprio peso, e o braço estava curvado. A mão de Allen estava se movendo. Ele o observou com apenas um olho e se perguntou se o que sentia por Jodie era tão intenso quanto o efeito de estar doidão. O cano afastou-se de uma dobra de tecido e se libertou do casaco dela. Será que vou conseguir? Seus joelhos estavam cedendo, e ele começou a tremer. Espere. Apenas espere. O pulso de Allen moveu-se para a frente. Ele viu o movimento. Foi muito rápido. Viu o buraco negro no cano inoxi­dável. Estava afastado do corpo de Jodie. Ela abaixou a cabeça subitamente, e Reacher voltou com a Steyr para a posição, chegando muito perto do alvo antes que Allen disparasse. Entrou uns cinco centímetros no alvo. Era tudo de que precisava. Não mais do que uns cinco centímetros. Rápido, pensou ele, mas não rápido o suficiente. Ele viu o cão do revólver se mover para a frente. Em seguida, uma flor de fogo brilhante se abriu para fora do cano e um trem de carga acertou seu peito. O barulho do tiro se perdeu completa­mente atrás do imenso impacto físico da bala ao bater nele. O golpe de um martelo gigante, do tamanho de um planeta. Acertou-o em cheio e o deixou surdo de dentro para fora. Nenhuma dor. Absolutamente nada. Apenas a dormência, um enorme frio no peito e um vazio silencioso de calma total na mente. Fez força para continuar pensando por uma fração de segundo e lutou para se manter firme sobre os pés, com os olhos bem abertos por tem­po suficiente e se concentrar na nuvem de fuligem que saía do silenciador da Steyr. Em seguida, mexeu o olho apenas uma fração para ver a cabeça de Allen explodir a pouco menos de quatro metros dele. Houve um jorro de sangue e ossos no ar, uma nuvem de pouco mais de um metro de largura foi se espalhando como uma névoa. Perguntou-se, ele está morto agora? E, quando se ouviu respondendo que com certeza, deixou-se levar, revirou os olhos e caiu para trás através da escuridão e do silêncio perfeitos, que con­tinuavam para sempre e não terminavam em lugar algum.

 

SABIA QUE ESTAVA MORRENDO, POIS VIA ROSTOS indo em sua direção, e todos eles de pessoas que ele re­conhecia. Vinham em um longo fluxo, interminável, so­zinhos ou aos pares, e não havia nenhum estranho entre eles. Ouvira que era assim que seria. A vida supostamente passa em flashes diante de nossos olhos. Todo mundo di­zia isso. E era o que estava acontecendo. Portanto, estava morrendo.

Achou que seria quando os rostos parassem, e pronto. Perguntou-se de quem seria o último rosto. Havia uma série de candidatos. Quem esco­lheria a ordem? De quem era a decisão? Sentiu-se um pouco irritado por não lhe ser permitido especificar. E o que aconteceria a seguir? Quando o último rosto se fosse, o que seria?


Mas alguma coisa estava muito errada. Aproximou-se um rosto de alguém que ele não conhecia. Então percebeu que era o Exército no comando do desfile. Tinha que ser. Apenas o Exército poderia, por aci­dente, incluir alguém que ele nunca tinha visto antes. Um completo estra­nho, no lugar errado e na hora errada. Achou que era adequado. Passara a maior parte da vida sob o controle do Exército. Achou perfeitamente natural que os militares se encarregassem de organizar esta parte final. E um erro era tolerável. Normal, até aceitável, para o Exército.

Mas esse cara o estava tocando. Batendo nele. Machucando. De repente, percebeu que o desfile terminara antes desse cara. O sujeito não fazia parte. Chegou depois. Talvez estivesse ali para acabar com ele. Sim, era isso. Ti­nha que ser assim. O cara estava ali para garantir que ele morresse na hora programada. O desfile acabara, e o Exército não poderia deixar que ele sobrevivesse. Por que toda aquela trabalheira para depois ele sobreviver? Isso não seria bom. Nada bom. Seria uma lapso grave no procedimento. Tentou se lembrar de quem aparecera antes desse cara. A penúltima pessoa, que tinha sido a última, na verdade. Não lembrava. Não tinha prestado atenção. Divagara para longe e morreu sem lembrar quem tinha sido o último rosto de seu desfile.

Estava morto, mas continuava pensando. Era isso mesmo? Seria a vida após a morte? Seria uma coisa incrível. Vivera quase 39 anos pensando que não havia vida após a morte. Algumas pessoas haviam concordado com ele; outras, questionavam. Mas ele sempre fora inflexível quanto a isso. Agora, estava em plena situação. Alguém chegaria para zombar e dizer eu não fa­lei? Era o que ele faria, se estivesse do outro lado. Não livraria a cara de nin­guém completamente equivocado sobre alguma coisa sem ao menos uma provocação amistosa.

Viu Jodie Garber. Ela lhe contaria. Não, isso não era possível. Ela não estava morta. Apenas uma pessoa morta poderia gritar com você na ou­tra vida, certo? Uma pessoa viva não poderia fazer isso. Isso era bem ób­vio. Uma pessoa viva não estava na vida após a morte, e Jodie Garber era uma pessoa viva. Ele se assegurara disso. Essa tinha sido toda a questão.

E, de qualquer maneira, tinha certeza de que nunca discutira a vida após a morte com Jodie Garber. Ou será que discutira? Quem sabe há muitos anos, quando ela ainda era uma criança. Mas esta era Jodie Garber. E ia falar com ele. Sentou-se na frente dele e empurrou o cabelo para trás das orelhas. Longos cabelos loiros, orelhas pequenas.

Olá, Reacher — disse ela.

Era a voz dela. Sem dúvida. Sem chance de erro. Então talvez ela estives­se morta. Pode ter sido um acidente de carro. Isso seria uma ironia dos dia­bos. Talvez ela tenha sido atropelada por um caminhão em alta velocidade na baixa Broadway, a caminho de casa, na volta do World Trade Center.

Olá, Jodie — respondeu ele.

Ela sorriu. Houve comunicação. Então, talvez ela estivesse morta. So­mente uma pessoa morta poderia ouvir outra. Mas ele precisava saber.

Onde nós estamos? — perguntou.

St. Vincent — respondeu ela.

São Pedro, foi o que ele a ouviu dizer. Era o sujeito que cuidava dos portões do céu. Ele vira as fotos. Bem, não eram realmente fotos, mas dese­nhos, pelo menos. Era um velho barbudo que usava uma túnica. Ficava so­bre um púlpito e perguntava os motivos pelos quais ele deveria deixar você entrar. Mas não se lembrava de São Pedro lhe fazendo qualquer pergunta. Talvez isso acontecesse mais tarde. Talvez precisasse sair para depois tentar entrar novamente.

Mas quem era St. Vincent? São Vicente? Talvez o cara que dirigia o lugar em que você ficava esperando as perguntas de São Pedro. Como no acampamento de recrutas. Talvez o responsável pelo equivalente, lá, ao for­te Dix. Bem, isso não seria problema. Ele arrasara no acampamento de re­crutas. A época mais fácil de sua vida. Poderia encarar outra vez. Mas ficou irritado com isso. Fora major, pelo amor de Deus. Tinha sido um astro. Recebera medalhas. Por que diabos precisaria passar pelo acampamento de recrutas, tudo de novo?

E por que Jodie estava ali? Ela deveria estar viva. Ele percebeu que sua mão esquerda estava fechada. Estava profundamente irritado. Tinha salvado a vida dela porque a amava. Então, por que agora ela estava morta? Que diabos estava acontecendo? Ele se esforçou para ficar em pé. Alguma coisa o prendia. Que diabos! Ele conseguiria algumas respostas ou então ia sobrar para alguém.

Tenha calma — disse-lhe Jodie.

Quero falar com São Vicente — respondeu. — E quero vê-lo agora. Diga a ele para arrastar aquela bunda gorda e patética até esta sala em cinco minutos ou eu vou ficar aborrecido de verdade.

Ela olhou para ele e concordou com a cabeça.

Certo — respondeu ela.

Então, ela desviou o olhar e se levantou. Desapareceu de sua vista, e ele se deitou de volta. O lugar não era nenhum tipo acampamento para recru­tas. Era silencioso demais, e os travesseiros eram macios.

Olhando para trás, deveria ter sido um choque. Mas não foi. O quarto simplesmente entrou em foco, ele viu a decoração, os equipamentos brilhantes e pensou hospital. Deixou de estar morto para estar vivo e deu de ombros, a atenção que um homem ocupado dá ao perceber que se enganou sobre o dia da semana.

O quarto estava iluminado pelo sol. Ele virou a cabeça e viu uma janela. Jodie estava sentado numa cadeira, lendo, a seu lado. Ele manteve sua res­piração baixinho e ficou olhando para ela. Seus cabelos estavam lavados e brilhantes. Caíam além dos ombros e enrolavam um fio entre o indicador e o polegar. Usava um vestido amarelo, sem mangas. Seus ombros estavam morenos, pelo verão. Ele via as pontinhas dos ossos no alto. Os braços eram longos e finos. As pernas estavam cruzadas. Ela vestia mocassins marrons, combinando com o vestido. Os tornozelos brilhavam, bronzeados.

Olá, Jodie — disse.

Ela virou a cabeça e olhou para ele. Procurou alguma coisa em seu rosto e, quando encontrou, deu um sorriso.

Olha quem acordou... — disse ela. Ela deixou o livro de lado e se levantou. Deu três passos, curvou-se e o beijou suavemente nos lábios.

St. Vincent — disse ele. — Você me disse, mas eu estava confuso.

Ela concordou.

Você estava cheio de morfina. Eles estavam bombeando em você feito loucos. Sua corrente sangüínea teria feito a felicidade de todos os vi­ciados de Nova York.

Ele concordou. Olhou para o sol na janela. Parecia ser de tarde.

Que dia é hoje?

Estamos em julho. Você ficou apagado por três semanas.

Minha nossa, eu deveria estar com fome.

Ela deu a volta pela cama e se colocou à esquerda dele. Colocou a mão em seu antebraço. Estava virado com a palma para cima, e havia tubos en­trando pelas veias na dobra do cotovelo.

Eles estão te alimentando — disse ela. — Garanti que você recebesse aquilo de que gosta. Um monte de glicose e soro fisiológico.

Ele concordou.

Nada é melhor do que soro fisiológico.

Ela ficou em silêncio.

O quê? — perguntou ele.

Você lembra?

Ele concordou novamente.

De tudo.

Ela engoliu em seco.

Não sei o que dizer — sussurrou ela. — Você levou um tiro por mim.

A culpa foi minha. Fui muito lento. Eu deveria tê-lo enganado e acerta­do primeiro. Mas, aparentemente, sobrevivi, e ele não. Então, não diga nada. Estou falando sério. Nem toque no assunto.

Mas tenho que te agradecer — sussurrou ela.

Talvez eu é que devesse dizer obrigado. E bom conhecer alguém por quem vale a pena levar um tiro.

Ela concordou, mas não porque estava concordando. Era apenas um movimento físico, aleatório, para cortar o choro.

Então, como eu estou? — perguntou ele.

Ela fez um longo silêncio.

Vou chamar o médico — respondeu em voz baixa. — Ele pode ex­plicar melhor do que eu.

Ela saiu, e um cara de jaleco branco entrou. Reacher sorriu. Era o cara que o Exército tinha enviado para dar cabo dele no fim do desfile. Era um homem atarracado e peludo, que poderia ter encontrado trabalho como profissional de luta livre.

Você sabe alguma coisa sobre computadores? — perguntou ele.

Reacher encolheu os ombros e começou a se preocupar, achando que isso era um código inicial para as más notícias sobre uma lesão cerebral, deficiência, perda de memória ou de função.

Computadores? — perguntou. — Não muito.

Certo, então imagine um supercomputador funcionando a toda. Nós o alimentamos com tudo o que sabemos sobre a fisiologia humana e tudo o que sabemos sobre ferimentos à bala, e depois pedimos que ele projete a pessoa do sexo masculino mais bem-equipada para sobreviver a um tiro de 38 no peito. Suponha que fique ruminando os dados por uma semana. O que ele produz no final?

Reacher encolheu os ombros.

Não sei.

Uma foto sua, meu amigo — disse o médico. — É isso. Aquela por­caria de bala nem sequer penetrou seu pulmão. Seu músculo peitoral é tão grosso e denso que a fez parar antes. Como um colete de oito centímetros de espessura à prova de balas. Saiu pelo outro lado da parede muscular, bateu numa costela e ficou ali.

Então, por que apaguei por três semanas? — perguntou imediata­mente. — Não foi por um ferimento muscular ou uma costela quebrada, com certeza. A minha cabeça está boa?

O médico fez uma coisa estranha. Ele bateu palmas e deu um soco no ar. Depois, aproximou-se, com um imenso sorriso no rosto.

Eu estava preocupado com isso — disse. — Muito preocupado. Um ferimento feio. Achei que fosse de uma pistola de pregos, até que me disseram que eram os restos de um móvel atingido por um tiro de espingar­da. Penetrou seu crânio e uns três milímetros do cérebro. No lobo frontal, meu amigo, péssimo lugar para levar uma pregada. Se eu tivesse que ter um prego enfiado na minha cabeça, o lobo frontal definitivamente não seria a minha primeira escolha. Mas, se eu tivesse que ver um prego enfiado no lobo frontal de qualquer outra pessoa, eu escolheria o seu, porque você tem o crânio mais grosso do que o de um homem de Neandertal. Em qualquer pessoa normal, aquele prego teria entrado até o fundo e seria tchau e bênção.

Então, estou bem? — perguntou Reacher novamente.

Você acabou de nos economizar dez mil dólares em testes — res­pondeu o médico alegremente. — Eu lhe dei a notícia sobre o peito, e o que você fez? Analiticamente, comparou com seu banco de dados inter­no, percebeu que não era um ferimento muito grave, que não precisaria de três semanas em coma, lembrou-se da outra lesão, somou dois e dois, e fez a pergunta certa. Imediatamente. Sem hesitação. Pensamento rápi­do e lógico, organização das informações pertinentes, conclusão rápida, questionamento lúcido da fonte de uma possível resposta. Nada de erra­do com sua cabeça, meu amigo. Considere isso uma opinião profissional.

Reacher concordou, lentamente.

Então, quando posso dar o fora daqui?

O médico pegou a ficha médica que estava junto ao pé da cama. Uma pilha de papel presa a uma prancheta de metal. Ele a folheou.

Bem, sua saúde é excelente, em geral, mas é melhor você ficar em observação um pouco mais. Uns dois dias, talvez.

Sem chance. Saio hoje à noite.

O médico concordou com a cabeça.

Bem, vamos ver como se sente daqui a uma hora.

Ele se aproximou e pegou uma válvula na base de uma das bolsas de soro. Mexeu na graduação e bateu num tubo com o dedo. Observou cuidadosamente, assentiu com a cabeça e saiu do quarto. Passou por Jodie na porta. Ela estava entrando com um sujeito vestindo um paletó listrado, de cerca de 50 anos, pálido, cabelos grisalhos curtos. Reacher olhou para ele e pensou aposto que esse cara é do Pentágono.

Reacher, este é o general Mead — disse.

Comando do Exército — disse Reacher.

O cara de paletó olhou para ele, surpreso.

Já nos conhecemos?

Reacher balançou a cabeça.

Não, mas eu sabia que um de vocês apareceria farejando por aqui, assim que eu acordasse e estivesse bem.

Mead sorriu.

Ficamos praticamente acampados ali fora. Para ser franco, gostaría­mos que você ficasse em silêncio sobre essa história com Carl Allen.

Sem chance — disse Reacher.

Mead sorriu de novo e esperou. Ele era um burocrata do Exército ex­periente o bastante para conhecer como tudo funcionava. Leon costumava dizer que uma mão lava a outra.

Os Hobie — disse Reacher. — Leve os dois para Washington, de pri­meira classe, num hotel cinco estrelas, mostre o nome do filho no Muro e certifique-se de colocar um pelotão em forma, em farda de gala, saudando feito doidos pelo tempo em que eles estiverem lá. Aí eu vou ficar quieto.

Mead concordou.

Considere feito — disse ele. Levantou-se e saiu. Jodie sentou-se no pé da cama.

E a polícia? — perguntou Reacher. — Vou ter que responder por alguma coisa?

Ela balançou a cabeça.

Allen era um assassino de policiais — disse ela. — Se você acertar com a polícia de Nova York, nunca mais vai receber uma multa na vida. Foi autodefesa, todo mundo está limpo.

E sobre a minha arma? Era roubada.

Não, era a arma de Allen. Você lutou e tirou dele. A sala estava cheia de testemunhas que viram o que você fez.

Ele concordou, lentamente. Viu o jato de sangue e miolos mais uma vez, de quando atirou nele. Um belo tiro, pensou. Sala escura, estresse, um prego na cabeça, uma bala de 38 no peito, bem no alvo. Muito, muito perto de um tiro perfeito. Então ele viu o gancho novamente, no rosto de Jodie, aço duro contra o tom de mel da pele dela.

Você está bem? — perguntou ele.

Estou legal — respondeu ela.

Tem certeza? Nenhum pesadelo?

Nada de pesadelos. Já sou grandinha.

Ele concordou outra vez. Lembrou-se da primeira noite juntos. Uma menina crescida. Parecia um milhão de anos atrás.

Mas você está bem? — perguntou ela de volta.

O médico acha que sim. Me chamou de homem de Neandertal.

Estou falando sério.

Como pareço estar?

Vou te mostrar — disse ela.

Ela foi até o banheiro e voltou com o espelho da parede. Era redondo, com uma moldura plástica. Ela apoiou nas pernas dele, ele segurou com a mão direita e olhou. Ainda estava com um bronzeado incrível. Olhos azuis. Dentes brancos. Sua cabeça fora raspada. O cabelo tinha crescido de vol­ta uns três milímetros. O lado esquerdo de seu rosto estava salpicado de cicatrizes. O buraco do prego na testa se perdia em meio aos escombros de uma vida longa e violenta. Ele conseguia distingui-lo porque era uma cicatriz mais vermelha e recente do que o restante, mas não era maior do que a marca de um centímetro e meio, seu irmão Joe acertara um caco de vidro em alguma briga de infância há muito esquecida, sem motivo algum, exata­mente no mesmo ano em que o Huey de Hobie caiu. Ele inclinou o espelho e viu a ampla atadura sobre o peito, branca como a neve em contraste com o bronzeado. Achou que havia perdido apenas uns 15 quilos. De volta aos 100, seu peso normal. Ele entregou o espelho de volta para Jodie e tentou se sentar. De repente, sentiu-se tonto.

Quero dar o fora daqui — disse.

Tem certeza? — perguntou ela.

Ele concordou. Tinha certeza, mas estava com muito sono. Colocou a cabeça no travesseiro, apenas temporariamente. A cama estava quente, e o travesseiro, macio. A cabeça pesava uma tonelada, e os músculos do pes­coço eram incapazes de movê-la. O quarto estava escurecendo. Ele virou os olhos para cima e viu as bolsas de soro penduradas a distância, muito acima dele. Viu a válvula que o médico tinha ajustado. Tinha mexido na graduação. O som fora um clique plástico. Tinha alguma coisa escrita na bolsa. Estava de cabeça para baixo. Ele se concentrou para ler. Teve que se esforçar. Eram letras verdes. Dizia morfina.

Merda — murmurou, e o quarto girou para longe rumo à escuridão total.

Quando abriu os olhos novamente, o sol havia se posto. Era o início do dia. Manhã, não tarde. Jodie estava sentada na cadeira perto da janela, lendo. O mesmo livro. Tinha avançado mais um centímetro nas páginas. O vesti­do era azul, e não amarelo.

É amanhã — disse ele.

Ela fechou o livro e se levantou. Chegou perto, se inclinou e beijou seus lábios. Ele a beijou de volta, cerrou os dentes e tirou as agulhas de soro do braço, deixando-as cair ao lado da cama. Começaram a pingar no chão. Ele se arrastou, levantando-se contra os travesseiros, e passou a mão no couro cabeludo arrepiado.

Como se sente? — perguntou ela.

Ficou sentado na cama e se concentrou em pesquisar seu corpo lenta­mente, começando pelos dedos dos pés e terminando no topo da cabeça.

Bem — respondeu.

Tem umas pessoas aqui que querem ver você — disse ela. — Soube­ram que você estava de volta.

Ele concordou e se esticou. Dava para sentir o ferimento no peito. Era do lado esquerdo. Estava mais fraco ali. Esticou a mão esquerda até o su­porte das bolsas de soro. Era uma barra de aço inoxidável vertical com uma curva em espiral no alto, de onde as bolsas pendiam. Ele apoiou a mão na espiral de aço e apertou com força. Sentiu a ardência na dobra do cotovelo, onde as agulhas estiveram, e o peito sensível, por onde a bala passara, mas a espiral de aço tinha sido achatada e ficado mais oval. Ele sorriu.

Certo, mande entrar — disse.

Sabia quem eram antes de entrarem. Percebeu pelo som. As rodas do carrinho de oxigênio rangeram. A velha senhora ficou de lado e deixou o marido entrar primeiro. Estava usando um vestido novo. Ele usava o mes­mo velho terno de sarja azul. Ele empurrou o carrinho diante dela e parou. Continuou segurando o cabo com a mão esquerda e levantou a direita em uma continência trêmula. Manteve-a por um longo tempo, e Reacher res­pondeu da mesma forma. Assumiu sua melhor posição de sentido e man­teve a continência firme, com absoluta sinceridade durante cada segundo. Então, baixou a mão, e o velho empurrou o carrinho devagar em sua dire­ção, com a esposa se agitando atrás.

Eram pessoas modificadas. Continuavam velhos, frágeis, mas estavam serenos. Saber que seu filho está morto é melhor do que não saber, pensou. Ele voltou a pensar no laboratório sem janelas de Newman, no Havaí, e se lembrou do caixão de Allen com o esqueleto de Victor Hobie dentro dele. Os velhos ossos de Victor Hobie. Lembrava-se muito bem. Eram distintos O arco suave da sobrancelha, o crânio redondo e alto. Os dentes brancos e uniformes. Os membros longos e claros. Um esqueleto nobre.

Ele foi um herói, vocês sabem.

O velho concordou.

Ele cumpriu o dever.

Muito mais do que isso — respondeu Reacher. — Li seu registro. Conversei com o general DeWitt. Era um piloto corajoso, que fez mais do que deveria. Salvou muitas vidas com sua coragem. Se estivesse vivo, teria três estrelas agora. Seria o general Victor Truman Hobie, com um comando importante em algum lugar ou no Pentágono.

Era o que precisavam ouvir, mas, ainda assim, era a verdade. A velha pôs a mão magra e pálida sobre a do marido, e eles se sentaram em silêncio, os olhos úmidos e voltados para dezoito mil quilômetros dali. Contavam histórias do que ele poderia ter sido para si mesmos. O passado se estendia em linha reta e sem complicações, e agora estava bem-amputado por uma morte nobre em combate, deixando apenas sonhos honestos pela frente. Estavam recuperando esses sonhos pela primeira vez, porque agora eram legítimos. Sonhos que agora os fortaleciam, como o oxigênio assobiando para dentro e para fora da garrafa no ritmo da respiração irregular do velho.

Posso morrer feliz agora — disse ele.

Reacher balançou a cabeça.

Não, ainda não pode. Vocês devem ir ver o Muro. O nome dele esta­rá lá. Quero que me tragam uma foto.

O velho concordou, e sua esposa deu um sorriso choroso.

A srta. Garber nos disse que você talvez fosse morar em Garrison — disse ela. — Que talvez seja nosso vizinho.

Reacher concordou.

É possível — disse ele.

A srta. Garber é uma boa moça.

Sim, senhora, é mesmo.

Pare de conversa fiada — disse o velho a ela. Então comentaram que não poderiam ficar, pois o vizinho os levara de carro até lá e tinha que vol­tar. Reacher observou-os se afastar ao longo do corredor. Assim que foram embora, Jodie entrou, sorrindo.

O médico disse que você pode sair.

Então, você pode me levar? Já conseguiu um carro novo?

Ela balançou a cabeça.

Apenas um alugado. Não tive tempo para fazer compras. A Hertz me trouxe um Mercury. Tem navegação por satélite.

Ele esticou os braços acima da cabeça e flexionou os ombros. Sentia-se bem. Surpreendentemente bem. As costelas estavam bem. Sem dor.

Preciso de roupas. Acho que aquelas velhas se acabaram.

Ela concordou.

Os enfermeiros as deixaram em pedaços com uma tesoura.

Você estava aqui na hora?

Estive aqui o tempo todo. Estou morando num quarto no final do corredor.

E o trabalho?

Estou de licença. Disse a eles que ou concordavam ou eu me demitiria.

Ela se abaixou para abrir um armário laminado, de onde tirou uma pilha de roupas. Uma calça jeans nova, camisa nova, casaco novo, meias e cuecas novos, tudo dobrado e empilhado, os sapatos velhos por cima, no melhor estilo do Exército.

Nada de especial. Eu não queria ficar muito tempo fora. Queria estar com você quando acordasse.

Você ficou aqui por três semanas?

Pareceram três anos. Você estava moído. Em coma. Estava horrível. Muito mal.

E esse negócio de satélite? Será que Garrison aparece lá?

Você vai para lá?

Ele deu de ombros.

Acho que sim. Preciso pegar leve, certo? O ar do campo pode me fazer bem.

Então, ele desviou os olhos dela, para o longe.

Talvez você pudesse ficar comigo um tempo, sabe, me ajudar com a recuperação.

Ele se livrou do lençol e deixou os pés escorregarem até o chão. Levan­tou-se, devagar e sem firmeza, e começou a se vestir, enquanto ela o segu­rava pelo cotovelo para que não caísse.

 

                                                                                Lee Child  

 

                      

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