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Series & Trilogias Literarias
O vento era fresco e o frio lhe gelava as pontas dos pés. Um daqueles dias ia deixar-se ir e comprar umas botas, embora somente quando pudesse prescindir da comida.
Enquanto percorria o último quilômetro até sua casa, Anna se permitiu sorrir sob o amparo da jaqueta. Certamente, ser uma mulher lobo lhe dava mais força e resistência, inclusive em forma humana, mas o turno de doze horas que acabava de terminar no Scorci´s era suficiente para que lhe doessem inclusive seus ossos. A gente não tinha coisas melhores que fazer no dia de Ação de Graças que ir comer em um restaurante italiano?
Tim, o dono do restaurante, quem, apesar de ser irlandês e não italiano, fazia os melhores nhoques de toda Chicago, deixava-lhe fazer turnos extras, embora não lhe permitia superar as cinquenta horas semanais. O melhor salário extra era a comida grátis que tinha em cada turno. Mesmo assim, suspeitava que teria que buscar outro emprego para poder cobrir todos os gastos: tinha descoberto que a vida como mulher lobo era tão cara financeira como pessoalmente.
Usou as chaves para entrar no edifício. Não havia nada na rolha, assim agarrou o correio de Kara e o jornal e subiu as escadas até o terceiro andar, onde estava o apartamento de Kara. Quando abriu a porta, o gato siamês de Kara, Ratolín, dirigiu-lhe um olhar, cuspiu indignado e desapareceu depois do sofá.
Durante seis meses tinha dado de comer ao gato quando sua vizinha estava fora, o qual era frequente desde que Kara começou a trabalhar para uma agência de viagens organizando tours. Ratolín ainda a odiava. De seu esconderijo a amaldiçoava como somente pode fazê-lo um siamês.
Com um suspiro, Anna deixou o correio e o jornal sobre a mesinha da sala de jantar, abriu uma lata de comida para gatos e a deixou junto à tigela da água. Sentou-se
e fechou os olhos. Já estava pronta para ir a seu apartamento, um andar acima, mas antes devia esperar a que o gato terminasse de comer. Se lhe deixava sozinho,
ao retornar pela manhã encontraria a lata intacta. Pode ser que a odiasse, mas Ratolín não comia se não houvesse alguém com ele, inclusive se era uma mulher lobo
em que não confiava.
Normalmente, ligava a televisão e ficava vendo algo, mas aquela noite estava muito cansada para fazer o esforço, assim abriu o jornal para comprovar o que tinha
ocorrido da última vez que olhou um, um par de meses atrás.
Repassou sem interesse as manchetes da capa. Sem deixar de protestar, Ratolín saiu de seu esconderijo e se dirigiu molesto à cozinha.
Ao passar a página, Ratolín soube o que estava lendo de verdade. Anna deu um pulo ao ver a foto de um jovem. Era uma foto, obviamente da escola, e a seu lado havia
outra parecida de uma garota de sua mesma idade. O titulo dizia: "O sangue encontrado na cena do crime pertence ao adolescente de Naperville desaparecido". Meio
inquieta, leu o resumo do crime para os que, como ela, perderam as reportagens prévias.
Dois meses antes, Alan Mackenzie Frazier tinha desaparecido do baile da escola a mesma noite em que o cadáver de seu suposto encontro tinha sido encontrado nos
jardins da escola. A causa da morte era difícil de determinar, já que o corpo da garota tinha sido destroçado por animais, nos últimos meses, um grupo de animais
de rua tinham causado problemas na vizinhança. As autoridades não estavam seguras de que o menino desaparecido era suspeito ou não. Dado que seu sangue também estava
na cena do crime, poderia ser que fosse outra vítima.
Anna tocou a cara sorridente de Alan Frazier com dedos trementes. Ela sabia. Sabia.
Levantou-se precipitadamente da cadeira, ignorando os infelizes miados de Ratolín, e molhou os pulsos com água fria para conter as náuseas. Pobre menino.
Ratolín demorou uma hora em terminar sua comida. Então, Anna tinha memorizado o artigo e tomado uma decisão. Soube assim que leu a notícia, mas demorou uma hora
em reunir a coragem para decidir-se: se tinha aprendido algo nos três anos que levava sendo uma mulher lobo era que o melhor é não fazer nada que possa atrair a
atenção de um dos lobos dominantes. E telefonar ao Marrok, que governava a todos os lobos da América do Norte, era o modo mais rápido de atrair sua atenção.
Não tinha telefone em seu apartamento, assim usou o de Kara. Decidiu esperar uns minutos para acalmar-se, mas como não o conseguiu, discou o número que tinha marcado
em uma parte de papel enrugado.
Três tons. Então compreendeu que a uma da madrugada em Chicago seria grandemente distinta em Montana, aonde o prefixo marcado indicava que estava chamando. Eram
duas ou três horas de diferença? As horas eram de mais ou de menos? Pendurou o telefone precipitadamente.
De todos os modos, o que ia dizer-lhe? Que tinha visto o menino, obviamente vítima do ataque de um homem lobo, semanas depois de seu desaparecimento, em uma jaula
na casa de seu Alfa? Que pensava que seu Alfa tinha ordenado o ataque?
Quão único devia fazer Leo para não receber sanções era lhe dizer ao Marrok que tinha encontrado ao menino mais tarde. Talvez fosse isso o que ocorreu. Talvez
ela estivesse projetando tudo desde sua própria experiência.
Anna tampouco sabia se o Marrok se opunha ao ataque. Provavelmente aos homens lobo lhes permitia atacar a quem quisessem lhes tinham passado.
Deu as costas ao telefone e viu a cara do menino olhando-a do jornal. Voltou a examinar a fotografia atentamente e marcou de novo o número de telefone; ao menos
o Marrok não estaria muito satisfeito com toda a publicidade que tinha atraído o caso. Desta vez atenderam o telefone depois do primeiro tom.
-Bran.
Não soou muito ameaçador.
- Meu nome é Anna -disse ela, desejando que não lhe tremesse a voz.
Houve um tempo, pensou com amargura, em que não tinha medo nem de sua sombra, quem teria pensado que converter-se em uma mulher lobo a converteria em uma covarde?
Mas agora sabia que os monstros eram reais.
Pode ser que estivesse zangada consigo mesma, mas, naquele momento, não soube que mais dizer. Se Leo se inteirava de que tinha chamado ao Marrok, poderia disparar
a bala de prata que tinha comprado meses atrás ela mesma e lhe economizar o esforço.
-Chama de Chicago, Anna?
Aquilo a surpreendeu, mas imediatamente compreendeu que devia ter identificador de chamada em seu telefone. Não parecia zangado, de modo que supôs que não teria
interrompido nada importante; não se parecia com os outros dominantes que tinha conhecido. Talvez fora seu secretário ou algo assim. Aquilo fez que se sentisse melhor.
O telefone pessoal do Marrok não seria algo que circulasse alegremente.
A esperança de que não estivesse falando com o Marrok a ajudou a serenar-se; até Leo tinha medo do Marrok. Não se incomodou em responder a sua pergunta, ele já
conhecia a resposta.
-Eu gostaria de falar com o Marrok, mas possivelmente você possa me ajudar.
Houve uma pausa, depois da qual, Bran disse:
-Eu sou o Marrok, menina.
O pânico retornou com toda sua força, mas antes que pudesse desculpar-se e desligar, ouviu-lhe dizer de repente:
-Não se preocupe, Anna. Não tem feito nada mal. Me diga por que chamou.
Respirou profundamente, consciente de que era sua última oportunidade de ignorar o que tinha visto e proteger-se. Em troca, explicou-lhe o artigo do jornal e que
tinha visto o menino desaparecido na casa de Leo, em uma das jaulas que tinha para os novos lobos.
-De acordo -murmurou o lobo ao outro lado do telefone.
-Não soube que algo ia mal até que o vi no jornal -disse ela.
-Sabe Leo que viu o menino?
-Sim.
Havia dois Alfas na área de Chicago. Perguntou-se como saberia de quem estava falando.
-Como reagiu?
Anna tragou saliva, tentando esquecer o que passou depois. Assim que o colega de Leo interveio, o Alfa tinha terminado de fazê-la circular aos outros lobos para
satisfazer seu capricho, mas essa noite Leo sentiu que Justin merecia uma recompensa. Não tinha que lhe explicar isso ao Marrok, não?
Este lhe economizou a humilhação precisando a pergunta.
-Leo se zangou porque viu o menino?
-Não. Ele estava... Contente com o homem que o havia trazido.
Justin ainda tinha sangue na cara e emprestava à excitação da caçada.
Leo também se alegrou quando Justin trouxe Anna pela primeira vez. Tinha sido Justin o que se zangou; não soube que ia ser uma loba total. Os submissos são os
que têm o grau mais baixo da Alcateia. Justin compreendeu rapidamente que tinha cometido um engano ao transformá-la. Ela também o pensou.
-Já vejo.
Por alguma razão teve a sensação de que assim era.
-Onde está agora, Anna?
-Em casa de uma amiga.
-Outra loba?
-Não.
Então se deu conta de que possivelmente ele pensasse que lhe tinha contado a alguém o que realmente era, algo que estava estritamente proibido, assim que se apressou
a explicar-se.
-Não tenho telefone em casa. Minha vizinha está fora e estou cuidando de seu gato. Usei seu telefone.
-Já vejo -disse ele. - Quero que te mantenha afastada de Leo e da Alcateia a partir deste momento. Pode ser que não esteja segura se alguém averiguar que me chamou.
Por dizê-lo brandamente.
-De acordo.
-Por certo -disse o Marrok, - ultimamente recebi notícias sobre certos problemas em Chicago.
Ao compreender que tinha arriscado tudo desnecessariamente, não prestou muita atenção ao que disse a seguir.
-Normalmente teria contatado com a Alcateia mais próxima. Entretanto, se Leo está assassinando a gente, não vejo por que o outro Alfa de Chicago não teria que
sabê-lo. Posto que Jaimie não se contatou comigo, tenho que assumir que os dois Alfas estão envolvidos de uma maneira ou outra.
-Não é Leo o que está criando novos lobos -lhe disse ela. - É Justin, seu segundo.
-O Alfa é responsável pelos atos de sua Alcateia -respondeu o Marrok com calma. - Enviei a um... Investigador. De fato, aterrissará em Chicago esta mesma noite.
Eu gostaria que se encontrasse com ele.
* * *
Assim é como Anna acabou nua em plena noite entre dois carros estacionados no Aeroporto Internacional de O'Hare. Não tinha carro nem dinheiro para um táxi, mas,
riscando uma linha reta, sua casa só estava a uns oito quilômetros do aeroporto. Passavam uns minutos da meia-noite, seu lobo tinha a pelagem escura e era de compleição
bastante pequena em comparação com os outros lobos, de modo que as possibilidades de que alguém a visse e pensasse que era algo mais que um cão de rua eram escassas.
Tinha refrescado, por isso tremia de frio enquanto colocava a camiseta que havia trazido. Não havia suficiente espaço em sua pequena mochila para o casaco após
meter nela os sapatos, os jeans e um pulôver; tudo o qual era muito mais necessário.
Em realidade, nunca tinha estado antes em O'Hare e demorou uns minutos em encontrar o terminal correto. Quando chegou, ele já a estava esperando.
Depois de desligar o telefone, deu-se conta de que o Marrok não lhe tinha dado nenhuma descrição do investigador. Durante todo o caminho até ali tinha estado lhe
dando voltas aquilo, embora realmente não fizesse falta. Não poderia haver-se confundido nunca. Inclusive no concorrido terminal, as pessoas se detinham para lhe
olhar, e pouco depois apartavam a vista com dissimulação.
Os nativos americanos, embora pouco habituais em Chicago, não estavam acostumados a chamar tanto a atenção como ele o estava fazendo. Provavelmente, nenhum dos
humanos que passavam perto dele era capaz de explicar por que sentiam aquele impulso, mas Anna sabia. Era algo muito comum entre os lobos dominantes. Leo também
o exercia, mas não a esse nível.
Era alto, inclusive mais alto que Leo, e levava o cabelo, de um negro muito intenso, recolhido em uma grossa tranca que se balançava a altura de um cinturão de
pele. Seus jeans eram escuros e pareciam novos em contraste com suas gastas botas de cowboy. Moveu ligeiramente a cabeça e as luzes fizeram reluzir uns pendentes
de ouro.
Seus traços, dominados pela juventude e a pele de cor morena, eram proeminentes e robustos e refletiam uma opressiva inexpressividade. Seus olhos escuros viajavam
lentamente pela buliçosa multidão procurando algo. Posaram-se nela um instante e o impacto que lhe provocou a deixou sem respiração. Então seu olhar continuou percorrendo
o terminal.
* * *
Charles odiava voar. Especialmente quando era outro que pilotava. Tinha pilotado o pequeno jato até Salt Lake City, já que, ter aterrissado em Chicago, teria
alertado a sua presa, e preferia agarrar Leo despreparado. Além disso, depois da clausura do Meigs Field, tinha deixado de voar até Chicago, e nos aeroportos de
O'Hare e Midway havia muito tráfico.
Odiava as grandes cidades. Havia muitos aromas que obstruíam seu olfato, muitos ruídos. Captava fragmentos de centenas de conversações diferentes sem pretendê-lo,
o que podia lhe impedir de perceber o som de alguém se aproximando sigilosamente. Alguém se chocou com ele quando descia do avião e teve que conter-se para não lhe
devolver o golpe. Embora voar a O'Hare de noite evitava as aglomerações, havia muita gente para seu gosto.
Também odiava os telefones celulares. Quando ligou o seu depois de que o avião aterrissou, tinha uma mensagem de seu pai. Agora, em lugar de dirigir-se para o
balcão de aluguel de carros e depois a seu hotel, devia encontrar a uma mulher e ficar com ela para evitar que Leo ou os outros lobos a matassem. Tudo o que tinha
era um nome. Bran não tinha acreditado ser necessário lhe dar uma descrição.
Deteve-se depois da porta de segurança e deixou que seu olhar fora à deriva, esperando que seu instinto desse com a mulher. Podia cheirar a presença de outro lobo,
mas a ventilação do aeroporto bloqueava sua habilidade de localizar o rastro. Seu olhar se posou primeiro em uma jovem com aspecto de irlandesa, cabelo encaracolado
cor uísque e aspecto de alguém que é golpeado com regularidade. Parecia cansada, fria e muito magra. Não gostou do que viu. Muito zangado para estar seguro, obrigou-se
a olhar a outro lado.
Havia uma mulher embainhada em um traje que harmonizava perfeitamente com sua pele cor chocolate. Embora não tinha aspecto de chamar-se Anna, parecia ser o tipo
de pessoa que desafiaria a seu Alfa e telefonaria ao Marrok. Era evidente que estava procurando a alguém. Fez gesto de dirigir-se para ela, mas seu rosto se transformou
ao não reconhecer nela à pessoa a que tinha estado esperando.
Iniciou uma segunda varrida do terminal quando, desde sua esquerda, uma voz delicada e insegura disse:
-Senhor, acaba de chegar de Montana?
Era a garota de cabelo cor uísque. Deve ter-se aproximado dele enquanto olhava para outro lado, algo que não teria podido fazer se não estivesse no meio do maldito
aeroporto.
Ao menos não tinha que procurar mais ao contato de seu pai. Com ela tão perto, nem as correntes de ventilação podiam ocultar que era uma mulher lobo. Mas não foi
só seu olfato o que lhe disse que era algo mais que aquilo.
Ao princípio pensou que era uma loba total. Muitos homens lobo eram mais ou menos dominantes. A gente doce por natureza não estava suficientemente preparada para
sobreviver a brutal mudança de humano a licantropo. Por isso existiam tão poucos homens lobos submissos.
Então compreendeu que a repentina mudança de humor e seu desejo irracional de protegê-la da multidão que lhes rodeava eram indícios de algo mais. Embora muitos
se equivocavam com ela, não era uma loba total: era uma Omega.
Justo então soube que, além da missão que lhe tinha levado a Chicago, ia matar ao responsável por aqueles hematomas.
* * *
Desde perto era ainda mais impressionante. Podia sentir sua energia lhe percorrendo o corpo brandamente como uma serpente degustando sua presa. Anna manteve o
olhar baixo enquanto esperava sua resposta.
-Sou Charles Cornick -disse ele. - O filho do Marrok. Você deve ser Anna.
Ela assentiu.
-Veio de carro ou pegou um táxi?
-Não tenho carro -disse ela.
Ele grunhiu algo que ela não chegou a entender.
-Sabe dirigir?
Anna assentiu.
-Bem.
* * *
Anna conduzia bem, embora era muito prudente. Embora não lhe importava, agarrou-se com força ao porta-luvas do carro alugado. Ela não disse nada quando lhe pediu
que fossem a seu apartamento, mas tinha percebido sua consternação.
Lhe poderia ter dito que seu pai lhe tinha dado instruções de mantê-la viva, se pudesse, e para fazer isso devia permanecer a seu lado. Não queria assustá-la mais
do que já estava. Também lhe poderia haver dito que não tinha intenção alguma de deitar-se com ela, mas não queria lhe mentir. E, sobre tudo, não queria mentir-se
a si mesmo. Por isso se manteve em silêncio.
Quando entraram na autoestrada na SUV alugada, o Irmão Lobo passou de sentir uma fúria assassina, causada pelo bulício do voo, a deixar-se levar por uma satisfação
e uma calma completamente novas para Charles. Os dois lobos Omega que tinha conhecido ao longo de sua vida tinham feito algo similar nele, mas não com semelhante
intensidade.
Isto deve ser o mais parecido a sentir-se totalmente humano.
A fúria e cautela de caçador que seu lobo sempre demonstrava eram apenas uma lembrança, deixando somente a determinação de aproximar-se dela para emparelhar-se.
Aquilo também era novo para ele.
Embora fosse muito bonita, o que desejava realmente era alimentá-la e suavizar a rigidez de seus ombros. O lobo queria levar-lhe à cama e reclamá-la como dele.
Mas, ao ser mais cauteloso que seu lobo, esperaria a conhecê-la um pouco melhor antes de cortejá-la.
-Meu apartamento não é grande coisa -disse ela com um esforço evidente por romper o silêncio.
A aspereza de sua voz lhe indicou que sua garganta estava seca.
Tinha medo dele. Embora nunca lhe tinha gostado, era o valentão de seu pai, por isso estava habituado a despertar aquele tipo de sentimento nas pessoas.
Apoiou-se na porta do carro e contemplou as luzes da cidade. Queria lhe dar espaço para que se sentisse mais cômoda quando decidisse olhá-lo. Tinha guardado silêncio
para que ela se acostumasse a sua presença, embora agora começasse a pensar que poderia ter sido um engano.
-Não se preocupe -disse ele. -Não sou maníaco. Não me importa como é seu apartamento porque sem dúvida será mais civilizado que o povoado indígena onde cresci.
-Um povoado indígena?
-Sou mais velho do que pareço -disse ele sorrindo ligeiramente. -Faz duzentos anos um povoado indígena era algo bastante extravagante em Montana.
Como a muitos outros lobos velhos, não gostava de falar do passado, mas sabia que aquilo ajudaria a Anna a tranquilizar-se.
-Tinha esquecido que podia ser mais velho do que aparenta -disse ela desculpando-se.
Tinha captado seu sorriso, pensou ele, porque o nível de seu medo se reduziu grandemente.
-Na Alcateia de Chicago não há lobos tão velhos.
-Há alguns - discordou ele, dando-se conta de que ela havia dito "a Alcateia" e não "minha Alcateia".
Leo tinha setenta ou oitenta anos e sua mulher muitos mais. Idade suficiente para apreciar o presente que significava possuir a uma Omega. Pelo contrário, tinham
permitido que a convertessem naquela garota degradada que se encolhia quando a olhava muito tempo.
-Pode ser complicado saber a idade exata de um lobo. À maioria não gosta de falar do tema. Já é bastante duro adaptar-se sem ter que falar constantemente sobre
tempos passados.
Anna não disse nada, por isso pensou em outro tema de que pudessem falar. As conversas não eram seu forte; deixava-as para seu pai e seu irmão, ambos muito bons
conversadores.
-De que tribo é? -perguntou ela antes que ele encontrasse um novo tema. -Não sei muito sobre as tribos de Montana.
-Minha mãe era salish - disse ele. - Da tribo Cabeças-plana.
Anna lhe dirigiu um rápido olhar a sua testa com total naturalidade. Ah, pensou ele aliviado, uma boa história que lhe contar.
-Sabe por que os Cabeças-planas se chamam assim?
Ela negou com a cabeça. Sua expressão era tão solene que se sentiu tentado a zombar dela. Mas não se conheciam o suficiente, de modo que lhe contou a verdade.
-Muitas das tribos indígenas da Concha do Columbia, a maioria deles salish, estavam acostumados a aplanar as testas dos recém-nascidos; os Cabeças-planas eram
uma das poucas que não o faziam.
-Então, por que são eles os que se chamam Cabeças-planas? -perguntou ela.
-Porque as outras tribos em realidade não pretendiam aplanar a testa a não ser criar um pico na parte superior da cabeça. Como os Cabeças-planas não o faziam,
as outras tribos começaram a chamá-los desse modo. Não era um bom nome.
O aroma de seu medo ia diminuindo enquanto ele falava.
-Nós fomos os feios, os primos bárbaros, sabe? -pôs-se a rir- Ironicamente, os escravistas brancos interpretaram mal o nome. Fomos difamados durante muito tempo
por uma prática que não realizávamos. Assim que os homens brancos, como nossos primos, consideravam-nos uns bárbaros.
-Disse que sua mãe era salish -disse ela. - O Marrok também é nativo americano?
Ele negou com a cabeça.
-Meu pai é galês. Deve ter caçado peles na época dos trapaceiros e ficou porque se apaixonou pelo aroma dos pinheiros e da neve.
Seu pai o havia dito com essas mesmas palavras. Charles descobriu que voltava a sorrir sem que lhe doesse a cara, desta vez um sorriso de verdade, e notou como
ela se relaxava ainda mais. Teria que chamar a seu irmão, Samuel, para lhe dizer que finalmente tinha aprendido a sorrir sem que o rosto lhe esquartejasse. Somente
tinha necessitado a uma loba Omega para consegui-lo.
Anna virou em um beco e se introduziu em um pequeno estacionamento atrás de um dos onipresentes edifícios de tijolo de quatro novelo que alagavam os velhos subúrbios
daquela parte da cidade.
-Em que bairro estamos? -perguntou ele.
-No Oak Park - disse ela. - O lar de Frank Lloyd Wright, Edgar Frise Burroughs e Scorci´S.
-Scorci´s?
Ela assentiu e saiu do carro.
-O melhor restaurante italiano de Chicago e meu atual lugar de trabalho.
Ah, por isso cheira a alho.
-De modo que sua opinião é imparcial?
Charles saiu do carro aliviado. Seu irmão zombava dele porque não gostava dos carros, apesar de saber que existiam poucas probabilidades de morrer se tinha um
acidente grave. Charles não tinha medo de morrer, simplesmente lhe parecia que os carros corriam muito. Impedia-lhe de reconhecer o terreno pelo que circulava. E
se gostava de dar uma olhada enquanto viajava, os carros não podiam fazer sozinhos o caminho. Por isso preferia os cavalos.
Depois de que ele tirou sua bagagem do porta-malas, Anna fechou o carro com chave. O carro emitiu um assobio, e Charles se sobressaltou e não ocultou seu aspecto
irritado. Quando deu a volta, Anna tinha a vista cravada no chão.
A ira, que em sua presença tinha desaparecido, reapareceu assim que sentiu a força de seu medo. Alguém a tinha traumatizado.
-Sinto-o -sussurrou ela.
Se naquele momento tivesse estado em forma de lobo, teria a cauda entre as pernas.
-Por quê? -perguntou ele, incapaz de ocultar seu aborrecimento- Porque me assustam os carros? Não é sua culpa.
Viu-se obrigado a controlar a seu lobo, e então compreendeu que naquela ocasião teria que ser mais prudente. Normalmente, quando seu pai o enviava a resolver algum
problema, não tinha muitas dificuldades. Entretanto, com uma loba Omega ferida tão perto, teria que fazer um maior esforço por controlar seu temperamento.
-Anna -disse ele assim que voltou a ter tudo sob controle, - sou o assassino de meu pai. É meu trabalho como seu segundo. Mas isso não significa que eu goste.
Não te farei mal, dou-te minha palavra.
-Sim, senhor -disse ela sem acreditar nele.
Charles recordou que naqueles tempos a palavra de um homem não tinha muito valor. Ajudou-lhe a controlar o fato de perceber nela a mesma quantidade de ira que
de medo; ainda não estava anulada de todo.
Decidiu não insistir ao compreender que acabaria provocando o efeito contrário, Ela deveria aceitar que ele era um homem de palavra. Enquanto isso, daria-lhe algo
no que pensar.
-Além disso -disse ele brandamente, - meu lobo está mais interessado em te cortejar que em impor seu domínio.
Charles sorriu quando percebeu que tanto seu medo como seu aborrecimento tinham desaparecido, sendo substituídos pela surpresa... e por algo que poderia ser um
princípio de interesse.
Anna abriu a porta principal do edifício, entrou antes que ele e subiu as escadas sem lhe dirigir o olhar. Ao chegar ao segundo andar, seu aroma não desprendia
nenhuma emoção, além do cansaço.
Deu-se conta de que a Anna custou um grande esforço subir as escadas até o apartamento de cobertura. Sua mão tremia ao tentar colocar a chave no ferrolho de uma
das duas portas do patamar. Devia alimentar-se melhor. Os homens lobo não deveriam estar tão magros; poderia ser perigoso para os que lhe rodeavam.
? ? ?
Era um executor, disse-se Anna, enviado por seu pai para resolver os problemas que surgiam na comunidade de homens lobo. Para sobreviver naquele trabalho, devia
ser inclusive mais perigoso que Leo. Anna podia sentir quão dominante era, e sabia como eram os dominantes. Tinha que estar alerta, preparada para o mais mínimo
movimento agressivo, disposta a suportar a dor e o pânico, porque fugir seria ainda pior.
Então, por que se sentia mais segura quanto mais tempo passava com ele?
Charles a seguiu escada acima sem dizer uma palavra, e Anna decidiu não desculpar-se mais por seu apartamento. Ao fim e ao cabo, tinha sido sua ideia passar ali
a noite e acabar dormindo em um futón dobro em lugar de em uma agradável cama de hotel. Não sabia o que lhe oferecer para comer; esperava que tivesse comido algo
durante o voo. No dia seguinte iria comprar algumas coisas, depois de descontar o cheque do Scorci's que tinha deixado na porta da geladeira.
Tempos atrás, o apartamento de cobertura estava dividido em dois pisos de duas habitações, mas, nos anos setenta, alguém tinha feito uma reforma e os tinha convertido
em um piso de três habitações e um escritório.
Seu apartamento parecia usado e vazio, sem mais móveis que um futón, uma mesinha e um par de cadeiras dobradiças. O chão de parquet era quão único o fazia um pouco
acolhedor.
Anna olhou Charles atentamente quando entrou no apartamento atrás dela, mas compreendeu que sabia controlar muito bem suas emoções. Embora não pôde adivinhar o
que pensava, não lhe custou muito imaginar-lhe ao ver como olhava fixamente o futón, que era perfeito para ela, mas muito pequeno para ele.
-O banheiro está ali -disse ela desnecessariamente porque a porta estava aberta e se podia ver com claridade.
Ele assentiu enquanto a observava com os olhos opacos pela pobre iluminação.
-Tem que trabalhar amanhã? -perguntou ele.
-Não. Não trabalho até sábado.
-Bem. Então poderemos falar pela manhã.
Charles agarrou sua pequena mala e se foi ao banheiro.
Enquanto Anna procurava no armário uma manta velha e voltava a considerar que um tapete seria muito melhor que o gentil parquet, bonito, mas muito frio e duro
para dormir sobre ele, fez todo o possível para isolar-se dos estranhos sons que produzia outra pessoa dispondo-se a ir à cama.
A porta se abriu enquanto seguia de joelhos no chão tentando estender a manta a modo de colchão o mais longe possível da cama.
-Pode dormir na cama - começou a dizer e, ao dar a volta, encontrou-se cara a cara com um enorme lobo de pelagem marrom avermelhada.
Meneou-lhe a cauda e sorriu ante sua óbvia surpresa, antes de roçá-la ao passar para deitar-se na manta. Acomodou-se sobre ela, apoiou a cabeça em suas patas dianteiras
e fechou os olhos; aparentemente, dormindo imediatamente. Apesar de que Anna sabia que não era assim, não se moveu, nem lhe olhou quando foi ao banheiro ou quando
saiu vestida com um moletom mais grosso.
Não poderia dormir com um homem em seu apartamento, mas, de algum modo, o lobo lhe resultava menos ameaçador. Aquele lobo. Passou o fecho da porta, apagou a luz
e se arrastou até a cama sentindo-se mais segura do que o tinha estado desde o dia em que descobriu que o mundo estava cheio de monstros.
? ? ?
Ao princípio, os passos que ouviu na escada na manhã seguinte não lhe preocuparam. A família que vivia no apartamento de frente passava o dia e a noite entrando
e saindo. Cobriu a cabeça com o travesseiro para amortecer o ruído, mas então reconheceu a maneira de caminhar de Kara e recordou que havia um homem lobo em seu
apartamento. Ergueu-se repentinamente e olhou ao Charles.
O lobo era muito mais formoso à luz do dia que da noite; suas negras patas realçavam o vermelho de sua pelagem. Ergueu a cabeça quando Anna se ergueu e se levantaram
o mesmo tempo.
Quando Kara bateu na porta, Anna lhe indicou que se mantivesse calado.
-Anna, está aí? Sabe que alguém estacionou outra vez em sua vaga de estacionamento? Quer que chame o reboque ou tem um homem aí dentro?
Kara estava esperando ao outro lado da porta.
-Estou aqui. Espera um minuto.
Olhou a seu redor freneticamente procurando um lugar onde esconder ao homem lobo. Não cabia no armário e se fechasse a porta do banheiro, Kara quereria saber por
que o tinha feito. Além disso, exigiria saber por que tinha um cão do tamanho de um pônei, embora menos amigável, em sua sala de estar.
Jogou um rápido olhar para Charles e se dirigiu para a porta enquanto ele se encaminhava ao banheiro. Quando ouviu que a porta do banheiro se fechava, abriu o
fecho da porta do apartamento.
-Voltei - disse Kara ao entrar, deixando um par de bolsas sobre a mesa.
Sua pele estava mais bronzeada do que o habitual pela semana que tinha passado sob o sol tropical.
-De caminho para casa comprei algo para tomar o café da manhã juntas. Não come o suficiente.
Seu olhar se dirigiu à porta fechada do banheiro.
-Tem alguém aí. - Sorriu, mas seus olhos mostravam preocupação. Kara nunca lhe tinha oculto que Justin não gostava. Anna lhe havia dito que era um antigo noivo.
- Mmm...
Anna era consciente de que Kara não partiria até saber quem havia no banheiro. Por alguma razão, tinha-a protegido desde o primeiro dia que se mudou para aquele
apartamento, pouco depois de sua transformação.
Justo naquele momento, Charles abriu a porta do banheiro e perguntou:
-Anna, tem um elástico de cabelo?
Embora Anna soubesse que era impossível, estava totalmente vestido e em forma humana. Tinham passado menos de cinco minutos desde que entrou no banheiro, e um
homem lobo necessita mais tempo para recuperar sua forma humana.
Lançou um olhar desesperado a Kara, mas sua vizinha estava muito ocupada observando ao homem de pé na porta do banheiro para perceber a surpresa no rosto de Anna.
O fato de que Kara estivesse embevecida lhe permitiu observar ao Charles com mais atenção; devia admitir que, com sua larga e espessa juba cor azeviche solta até
a cintura, dando a estranha sensação de estar nu apesar de levar uma camisa de flanela e jeans, convidava a que lhe observassem. Sorriu brevemente para Kara antes
de voltar a centrar sua atenção em Anna.
-Não sei onde coloquei a minha. Tem alguma?
Anna assentiu desconcertada e entrou no banheiro. Como se tinha transformado tão rápido? Mas não podia perguntar-lhe enquanto Kara seguisse no apartamento.
Cheirava bem. Inclusive depois de três anos, resultava-lhe estranho perceber aquelas coisas da gente. Normalmente tentava ignorar o que seu olfato lhe dizia, embora
neste caso tivesse que esforçar-se para não deter-se e desfrutar daquele aroma tão embriagador.
-E você quem é? -ouviu perguntar a Kara com desconfiança.
-Charles Cornick.
Pelo tom de voz, Anna não podia saber se lhe tinha incomodado ou não o receio de Kara.
-E você é...?
-É Kara, a vizinha de baixo -disse Anna lhe dando o elástico de cabelo e partindo à sala de estar.
-Sinto muito, teria-lhes que ter apresentado. Kara, este é Charles Cornick. Veio me visitar de Montana. Charles, Kara Mosley, minha vizinha de baixo. Agora se
deem as mãos.
Tinha admoestado a Kara, a qual podia ser muito seca com alguém que não gostava. Charles levantou uma sobrancelha surpreso e divertido ao mesmo tempo, antes de
dar a volta e oferecer a Kara sua enorme mão.
-De Montana? -perguntou Kara ao estreitar-lhe firmemente.
Charles assentiu e começou a fazer uma trança com rapidez, demonstrando sua prática.
-Meu pai me enviou porque se inteirou de que alguém estava incomodando a Anna.
Com aquilo, Anna soube que ganhou Kara.
-Justin? Te vais ocupar desse rato?
Kara olhou para Charles com aprovação.
-Parece estar em boa forma, não me interprete mal, mas Justin é todo um personagem. Vivi no Cabrini Green até que minha mãe casou com um bom homem. Pessoas como
Justin crescem como um predador, é o tipo de pessoa que adora a violência. A primeira vez que lhe vi, recordei o que me tinha ocorrido vinte anos atrás. Já tinha
feito mal a outra pessoa e desfrutava com isso. Não o vais assustar somente com um aviso.
Charles pôs cara de satisfação, o que transformou completamente sua aparência.
-Obrigado pelo conselho -lhe disse.
Kara assentiu majestosamente.
-Como conheço a Anna, sei que não há nada de comida em seu apartamento. Tem que alimentá-la. Há pãezinhos e queijo cremoso nas sacolas que deixei sobre a mesa.
E não, não pretendo ficar. Tenho uma semana de trabalho por diante, mas não me posso partir sem saber que Anna comeu algo.
- Me Ocuparei de que o faça -disse Charles com o sorriso ainda no rosto.
Kara alargou o braço para lhe dar um tapinha de agradecimento na bochecha.
-Obrigada.
Kara deu um rápido abraço em Anna e tirou dinheiro de seu bolso que deixou sobre a mesa, junto às sacolas.
-Isto é por cuidar do gato. Assim não tenho que deixá-lo na residência de animais, com todos esses cães aos que odeia, e pagando quatro vezes mais. Se não o aceitar,
a próxima vez o levarei a residência só para que se sinta culpada.
Depois daquilo, partiu.
Ana esperou até ouvir os passos no andar de abaixo e então disse:
-Como se transformou tão rápido?
-Quer pãozinho de alho ou de amoras? -perguntou Charles abrindo uma sacola.
Quando viu que não ia responder, apoiou as mãos sobre a mesa e suspirou.
-Quer dizer que não ouviu a história do Marrok e sua dama indígena?
Anna não pôde entender o tom de sua voz nem decifrar a expressão de seu rosto.
-Não -respondeu ela.
Charles soltou uma breve gargalhada embora Anna não encontrou a graça por nenhum lado.
-A beleza de minha mãe lhe salvou a vida. Estava recolhendo ervas quando surpreendeu a um alce. Este a atacou violentamente. Meu pai, atraído pelo ruído, foi até
ali e lhe salvou a vida convertendo-a em uma mulher lobo.
Charles agarrou os pãezinhos e os pôs na mesa usando os guardanapos como pratos. Sentou-se e lhe indicou que fizesse o mesmo.
-Comece a comer e te contarei o resto da história.
Ofereceu-lhe um pãozinho de amoras. Anna se sentou frente a ele e comeu um bocado.
Charles assentiu com satisfação e continuou.
-Aparentemente era um desses amores a primeira vista por ambas as partes. Nenhum dos dois falava o idioma do outro, por isso o amor que sentiam se apoiava em sua
beleza. Tudo foi bem até que ficou grávida. O pai de minha mãe era um xamã e lhe ajudou a conservar sua humanidade até que eu nasci. Então, cada mês, quando meu
pai e meu irmão caçavam sob a lua, minha mãe permanecia em sua forma humana. E com cada lua se fazia mais e mais débil. Meu pai discutiu com ela e com seu pai, preocupado
porque se estava matando.
-Por que o fazia? -perguntou Anna.
Charles franziu o cenho.
-Quanto tempo faz que você é uma mulher lobo?
- Fez três anos em agosto passado.
-As mulheres lobo não podem ter filhos -disse ele. -A mudança é muito dura para o feto. Morrem ao terceiro ou quarto mês.
Anna lhe olhou fixamente. Ninguém lhe tinha contado aquilo.
-Está bem?
Não sabia o que lhe responder. Não é que estivesse planejando ter filhos, especialmente o estranho que tinha sido sua vida nos últimos três anos. Mas tampouco
tinha planejado não os ter.
-Deveriam haver lhe explicado isso antes de decidir que queria te transformar -disse ele.
Agora foi Anna que soltou uma gargalhada.
-Aqui ninguém explica nada. Por favor, continua com a história.
Charles a contemplou um bom momento e logo assentiu com solenidade.
-Apesar dos protestos de meu pai, ela esperou até meu nascimento. Debilitada pela magia durante a luta contra a chamada da lua, não conseguiu sobreviver. Nasci
sendo um homem lobo, não me transformaram como ao resto, o que me dotou de certas habilidades, como me transformar rapidamente.
-Isso estaria bem -disse ela com convencimento.
-Segue sendo doloroso -acrescentou ele.
Anna jogava com uma parte do pãozinho.
-Procurará o menino desaparecido?
Seu rosto se endureceu.
-Não. Sabemos onde está Alan Frazier.
Algo em sua voz o disse.
-Está morto?
Charles assentiu.
-Há gente muito boa investigando sua morte. Encontrarão aos responsáveis. Foi transformado sem seu consentimento e a garota que ia com ele foi assassinada. Depois
o venderam como um coelhinho da índia. A pessoa responsável pagará por seus crimes.
Anna ia perguntar lhe algo mais quando a porta do apartamento se abriu violentamente e golpeou contra a parede. Justin apareceu na soleira da porta.
Tinha estado escutando Charles tão atentamente que não tinha ouvido Justin subir as escadas. Tinha esquecido de fechar a porta com o fecho depois de que Kara saiu.
Tampouco tivesse servido de muito, já que Justin tinha a chave.
Anna não pôde evitar sobressaltar-se quando Justin entrou no apartamento como se fosse o proprietário.
-Dia de pagamento -disse ele. -Me deve um cheque.
Olhou ao Charles.
-Sai, a senhora e eu temos negócios que tratar.
Anna não podia acreditar que Justin tivesse empregado aquele tom com Charles. Observou-o para ver sua reação e compreendeu que Justin tinha metido a pata.
Charles estava entretido com seu prato, com a vista fixa na mesa. Ocultava a força de sua assombrosa personalidade.
-Não vou sair -murmurou sem levantar o olhar. -Talvez necessite minha ajuda.
Justin fez uma careta.
-Onde o encontrou? Já verá quando disser a Leo que encontrou a um cão de rua e não lhe disse.
Aproximou-se de Anna e a agarrou pelo cabelo. Levantou-a da cadeira e a embutiu contra a parede, abandonando-a com um desagradável gesto sexual e violento enquanto
aproximava sua cara a dela.
-Pode ser que diga para voltar a te castigar. Eu adoraria.
Anna recordou a última vez que lhe castigaram e não pôde ocultar seu medo. Anna percebeu como Justin desfrutava com seu pânico.
-Parece-me que desta vez não vai ser ela quem recebe o castigo -disse Charles em voz baixa.
Anna se tranquilizou, porque sabia que Charles não permitiria que Justin lhe fizesse mal. Não podia explicar como sabia. Tinha descoberto que, embora um lobo não
lhe fizesse mal, não significava que fosse protegê-la.
-Não te dei permissão para falar -grunhiu Justin, voltando a cabeça para o outro homem. -Me ocuparei de você assim que acabe com ela.
Charles se levantou com calma. Anna pôde ouvir como limpava as mãos com o guardanapo.
-Acredito que já terminou aqui -disse Charles com uma voz complemente diferente. - Solte-a.
Anna notou nos ossos o poder de suas palavras, esquentando seu estômago que se gelou de medo. Justin desfrutava mais lhe machucando do que forçando-a. Anna tinha
lutado até que compreendeu que aquilo lhe satisfazia inclusive mais. Não tinha demorado muito em aprender que não tinha nenhuma possibilidade de ganhar. Justin era
mais forte e mais rápido, e a única vez que conseguiu soltar-se, o resto da Alcateia a segurou para ele.
Depois das palavras de Charles, Justin a soltou tão rápido que Anna cambaleou, embora aquilo não impedisse que se afastasse tudo o que pôde até chegar à cozinha.
Agarrou o pau de macarrão de mármore, que tinha sido de sua avó, e o agarrou com receio.
Justin estava de costas, mas Charles viu sua arma e lhe dedicou um breve sorriso antes de centrar sua atenção em Justin.
-Quem diabos é? -cuspiu Justin. Anna percebeu o medo que se ocultava atrás de sua ira.
-Poderia te fazer a mesma pergunta -disse Charles. - Tenho uma lista com todos os homens lobo das Alcateias de Chicago e seu nome não está nela. Mas isso é somente
uma parte dos assuntos que me trouxeram aqui. Volta para casa e diga a Leo que Charles Cornick quer falar com ele. Me encontrarei com ele esta tarde, em sua casa,
às sete. Pode trazer os seus seis primeiros e a sua companheira, mas não ao resto da Alcateia.
Para surpresa de Anna, Justin emitiu um grunhido e partiu sem mais protestos.
Capítulo 2
O lobo que tanto tinha intimidado a Anna não desejava partir, mas não era suficientemente dominante para fazer algo com Charles no apartamento. Por isso, Charles
esperou alguns segundos e depois o seguiu silenciosamente pelas escadas.
No andar inferior encontrou Justin a ponto de chamar uma porta. Charles estava bastante seguro de que era a de Kara. Não lhe surpreendeu que Justin procurasse
outra maneira de castigar a Anna por sua forçada retirada. Charles golpeou o chão com sua bota e viu como o outro lobo ficava completamente rígido e baixava o braço.
-Kara não está em casa -disse Charles, - e não seria aconselhável lhe machucar.
Charles se perguntou se devia matá-lo ali mesmo... mas tinha uma reputação que seu pai não podia permitir-se que perdesse. Somente podia matar àqueles que infringiam
as regras do Marrok, e só depois de que ficasse demonstrada sua culpabilidade.
Anna havia dito a seu pai que Justin era o lobo que tinha transformado a Alan MacKenzie Frazier contra sua vontade, mas, como naquela Alcateia se produziam tantas
irregularidades, poderiam considerar-se circunstâncias atenuantes. Anna era uma mulher lobo fazia três anos e ninguém lhe havia dito que não poderia ter filhos.
Se Anna sabia tão pouco, era provável que aquele lobo tampouco conhecesse as regras.
Ignorasse ou não seus crimes, Charles desejava matá-lo. Quando Justin deu a volta, Charles o fulminou com o olhar e viu como o outro lobo empalidecia de repente
e começava a descer as escadas.
-Vá dar a mensagem a Leo -disse Charles.
Fez-lhe ter sabor ao Justin que o estava seguindo, para que soubesse o que se sentia ao ser a presa de um predador mais violento que ele.
Justin era um tipo duro. Enquanto descia a escada, ia girando para enfrentar Charles, embora somente com o olhar, vendo-se forçado a continuar adiante. A perseguição
despertou o lobo de Charles, que, ainda molesto pelo modo em que Justin tinha tratado Anna, permitiu que saísse à superfície um pouco mais do estritamente necessário.
A luta se deteve na porta principal, onde deixou que Justin partisse livremente. A caçada tinha sido muito curta.
Ao lobo de Charles tampouco tinha gostado de ver a Anna assustada. Reclamava sangue, e Charles teve que pôr em prática todo seu autocontrole para não matar Justin
no apartamento. Somente a firme suspeita de que Anna poderia voltar a lhe ter medo lhe ajudou a permanecer sentado até estar seguro de que podia controlar-se.
Subir os quatro andares deveria lhe dar tempo para tranquilizar a seu lobo. Poderia havê-lo feito, mas Anna lhe esperava no terceiro andar com o pau de macarrão
na mão.
Deteve-se a meio caminho e Anna deu a volta e começou a subir sem dizer uma palavra. Seguiu-a até a cozinha de seu apartamento, onde deixou o pau de macarrão junto
ao pote das facas.
-Por que o pau de macarrão e não uma faca? -perguntou ele com a voz áspera pela necessidade de ação.
Dirigiu-lhe o primeiro olhar depois do encontro nas escadas.
-Uma faca não o deteria, mas os ossos necessitam tempo para curar-se.
Daquilo gostou. Quem tivesse pensado que lhe excitaria uma mulher com um pau de macarrão?
-Muito bem - disse ele. - Muito bem.
Deu a volta subitamente e deixou Anna na cozinha, porque se permanecesse ali teria que agarrá-la e seduzi-la, o apartamento não era suficientemente grande para
andar de um lado a outro ou para pôr distância entre eles. Seu aroma, uma mescla de medo e excitação, era perigoso. Necessitava uma distração.
Sentou-se em uma cadeira e se reclinou sobre as pernas traseiras da mesma. Cruzou suas mãos atrás da nuca adotando uma postura relaxada, entrecerrou os olhos e
disse:
-Quero que me fale de sua transformação.
Não lhe passou despercebido que a pergunta fez estremecer a Anna. Algo mal tinha ocorrido durante sua transformação. Concentrou-se nisso.
-Por que? -perguntou ela desafiante.
Imaginou que ainda estava alterada pela visita de Justin. Anna deu a volta e se encolheu pensando que a ira lhe faria explodir.
Charles fechou os olhos. Não podia mais. Estava a ponto de deixar a um lado todo o cavalheirismo que seu pai lhe tinha ensinado e tomá-la ali mesmo, estivesse
disposta ou não. Pensou que isso ensinaria a não lhe ter medo.
-Preciso saber como funciona a Alcateia de Leo -disse ele pacientemente, embora naquele momento lhe importava pouco. -Prefiro que me dê primeiro a sua opinião
e logo já farei perguntas. Me dará uma ideia mais clara do que está fazendo e por que.
Anna o olhou cautelosa, mas Charles nem se alterou. Ainda podia cheirar a raiva no ambiente, embora pudesse ser uma reminiscência da presença de Justin. Charles
também estava excitado; Anna se encontrou respondendo a sua pergunta embora sabia que era o habitual resultado da vitoriosa confrontação entre machos. Como Charles
o estava ignorando, ela também podia fazê-lo.
Respirou profundamente e o aroma de Charles encheu seus pulmões.
Depois de pigarrear, esforçou-se por encontrar o princípio de sua história.
-Trabalhava em uma loja de música no Loop quando conheci o Justin. Disse-me que era violonista, como eu, e começou a vir várias vezes por semana a comprar cordas,
CD'S... Pequenas coisas. Flertava comigo e fazia brincadeiras.
Deu conta da insensata que tinha sido.
-Pensava que era bom menino, de modo que, quando me convidou para jantar, aceitei.
Anna olhou para Charles; parecia estar a ponto de dormir. Os músculos de seus ombros estavam relaxados e sua respiração era lenta e calma.
-Tivemos um par de encontros. Levou-me a um pequeno restaurante perto de um parque, uma das reservas florestais. Quando terminamos, fomos dar uma volta pelo bosque
"para contemplar a lua", conforme me disse.
Inclusive agora, depois de tanto tempo, era consciente da tensão em sua voz.
-Pediu-me que esperasse um momento, que voltaria em seguida.
Recordou que Justin se excitou, que estava quase frenético com as emoções contidas. Apalpou os bolsos e lhe havia dito que tinha esquecido algo no carro. Anna
temia que fora a procurar um anel de compromisso. Enquanto esperava, ensaiou diversas formas amáveis de rechaçar sua proposta. Tinham muito pouco em comum, e quase
nenhuma química. Embora parecesse agradável, havia algo nele que não lhe agradava, e seu instinto lhe dizia que tinha que romper com ele.
-Como demorava muito, decidi ir para o carro quando, de repente, ouvi algo entre os arbustos.
Sentiu uma comichão na cara, igual a aquela noite.
-Não sabia que era um homem lobo?
A voz de Charles lhe recordou que se encontrava a salvo, em seu apartamento.
-Não, pensava que era somente uma lenda.
-Me conte o que ocorreu depois do ataque.
Não tinha que lhe explicar como Justin a tinha espreitado durante uma hora, cercando-a de um lado a outro e evitando que se aproximasse da saída do bosque. Somente
queria saber coisas sobre a Alcateia de Leo. Anna dissimulou o alívio que lhe produziu aquilo.
-Despertei na casa de Leo. A princípio estava muito excitado; sua Alcateia só tem outra mulher. Então descobriram o que eu era.
-E o que é, Anna?
Pensou que sua voz era como a fumaça, suave e ligeira.
-Total -disse ela, -a categoria mais baixa. -E então, com os olhos fechados, acrescentou: - Inútil.
-Isso é o que lhe disseram? -perguntou ele pensativo.
-É a verdade.
Deveria estar mais desgostosa por isso; os lobos que não a odiavam a tratavam com lástima. Mas não queria ser dominante e ter que lutar e fazer mal às pessoas.
Como Charles não disse nada, continuou com sua história, esforçando-se por recordar todos os detalhes.
Ele fez algumas pergunta:
-Quem te ajudou a controlar a seu lobo? (Ninguém, fez-o por sua conta. Disseram-lhe que era outra prova que demonstrava que não era dominante).
-Quem te deu o telefone do Marrok? (O terceiro de Leo, Boyd Hamilton).
-Quando e por que? (Justo antes de que a companheira de Leo intercedesse por ela e evitasse que a fizesse circular entre quão machos mereciam uma recompensa. Tentou
evitar aos lobos de mais categoria. Não tinha nem ideia de por que lhe tinha dado esse número nem queria perguntar).
-Quantos membros novos se uniram à Alcateia desde que o fez você? (Três, todos machos, mas dois deles não podiam controlar-se e foram eliminados).
-Quantos membros há na Alcateia? (Vinte e seis).
Quando terminou, surpreendeu-se de estar sentada no chão, no outro lado do apartamento, com as costas pregadas na parede. Charles apoiou a cadeira sobre as quatro
pernas e levou uma mão à testa. Suspirou profundamente e a olhou pela primeira vez desde que começou o interrogatório.
Anna se sobressaltou ao descobrir o brilho dourado de seus olhos. Charles estava a ponto de transformar-se, forçado por uma intensa emoção e, embora o via em seus
olhos, não o podia ler nem em seu corpo nem em seu aroma; conseguia ocultá-lo de algum modo.
-Há regras. A primeira é que nenhuma pessoa pode ser transformada contra sua vontade. A segunda é que nenhuma pessoa pode ser transformada até que foi aconselhada
e aconteceu uma singela prova que demonstre que compreende as consequências da transformação.
Anna não sabia o que dizer, mas finalmente recordou que devia apartar seus olhos de seu intenso olhar.
-Pelo que me disse, Leo está criando novos lobos e perdendo a outros, e não informou isto ao Marrok. O ano passado veio a nosso encontro anual com sua companheira
e seu quarto, esse tal Boyd Hamilton. Disse-nos que seu segundo e terceiro estavam ocupados.
Anna franziu o cenho.
-Boyd foi seu terceiro desde que estou na Alcateia, e Justin é seu segundo.
-Disse que somente há outra fêmea na Alcateia além de ti.
-Sim.
-Deveriam haver quatro.
-Ninguém mencionou a outras -disse ela.
Charles olhou o cheque que estava sujeito na porta da geladeira.
-Ficam com seu salário. Quanto lhe devolvem?
O esforço por controlar a seu lobo fazia que sua voz soasse muito profunda.
-Sessenta por cento.
-Ah.
Fechou seus olhos de novo e respirou profundamente. Agora, Anna podia cheirar sua ira, embora seus ombros continuassem relaxados.
Quando terminou de falar, Anna disse em voz baixa:
-Posso fazer algo para te ajudar? Quer que eu vá embora? Ou que te conte algo ou ponha música?
Não tinha televisão, mas sim um velho aparelho de som.
Embora Charles continuasse com os olhos fechados, permitiu-se um leve sorriso.
-Normalmente, meu controle é melhor.
Anna esperou, mas as coisas pareciam piorar cada vez mais.
Os olhos de Charles se abriram de repente, e seu olhar frio e amarelo a imobilizou contra a parede em que estava apoiada, enquanto se desentorpecia e rondava pelo
apartamento.
O pulso de Anna se acelerou e baixou a cabeça para encolher-se. Notou que Charles se ajoelhava frente a ela. Quando lhe acariciou o rosto com suas cálidas mãos,
sobressaltou-se, e lamentou havê-lo feito assim que lhe ouviu grunhir.
Charles, ainda de joelhos, enterrou o rosto em seu pescoço e descansou seu tenso corpo de ferro sobre o dela, prendendo-a contra a parede. Apoiou as mãos nesta,
rodeando-a, e Anna deixou de mover-se. Sentia sua cálida respiração no pescoço.
Anna se sentou com um movimento precavido, aterrorizada por fazer algo que pudesse dificultar seu controle. Mas havia algo nele que lhe impedia de estar completamente
aterrorizada, algo que insistia em que não lhe faria mal. Que nunca lhe faria mal.
O qual era estúpido. Todos os dominantes fazem mal aos que estão por debaixo deles. Tinha-o aprendido a golpes. Embora as feridas se curassem rapidamente, não
era menos desagradável. Embora fosse inútil às vezes que se repetisse a si mesma que devia estar assustada com ele, um dominante entre dominantes, um estranho ao
que não tinha nunca visto até o dia anterior, ou para ser mais precisa, desde aquela manhã. Não podia lhe ter medo.
Cheirava a ira, mas também a chuva da primavera, a lobo e a homem. Fechou os olhos e deixou de lutar contra si mesma, permitindo que seu agradável aroma se levasse
todo o medo e a raiva que sentia após lhe explicar o pior que lhe tinha passado na vida.
Assim que ela se relaxou, Charles também o fez. Seus rígidos músculos se afrouxaram e seus braços se deslizaram pela parede para descansar brandamente sobre seus
ombros.
Pouco depois, Charles se tornou para atrás, mas, como ainda estava agachado, suas cabeças ficaram quase à mesma altura. Colocou delicadamente sua mão no queixo
de Anna e lhe levantou brandamente a cabeça até que seu olhar se posou em seus olhos escuros. Anna teve a súbita sensação de que se olhase aqueles olhos durante
o resto de sua vida, poderia chegar a ser feliz. Aquela revelação a assustou mais que o pânico anterior.
-Está fazendo algo para que me sinta assim? -perguntou ela sem pensar.
Charles não lhe perguntou o que sentia. Em lugar disso, inclinou sua cabeça em um gesto lupino, mas mantendo o contato visual. Anna teve a impressão de que estava
tão desconcertado como ela.
-Não acredito. Não intencionadamente.
Charles lhe segurava o rosto com ambas as mãos. Eram mãos grandes e robustas, e tremiam ligeiramente. Agachou-se até que seu queixo descansou sobre sua cabeça.
-Eu tampouco nunca me havia sentido assim.
* * *
Charles poderia ter ficado assim para sempre, apesar do desconforto de estar de joelhos sobre o duro parquet. Nunca havia sentido nada igual, e muito menos com
uma mulher a que somente conhecia fazia menos de vinte e quatro horas. Não sabia como enfrentar aquilo; de fato, embora pouco habitual nele, não queria fazê-lo.
Estava disposto a postergá-lo indefinidamente enquanto pudesse estar junto a ela.
Evidentemente, preferia fazer outra coisa, mas, se seus sentidos não lhe enganavam, alguém estava subindo pelas escadas. Quatro andares não eram suficientes para
manter afastados aos intrusos. Fechou os olhos e deixou que seu lobo analisasse o rastro e identificasse ao novo visitante.
Alguém bateu na porta.
Anna se sobressaltou. Uma parte dele estava satisfeita por como tinha conseguido distraí-la. Não tinha captado nada até então. À outra parte preocupava sua vulnerabilidade.
A contra gosto, levantou-se e se separou ligeiramente de Anna.
-Adiante, Isabelle.
A porta se abriu e a companheira de Leo apareceu à cabeça. Jogou um olhar a Anna e sorriu com picardia.
-Interrompo algo interessante?
Charles sempre tinha gostado de Isabelle, embora tentou não demonstrá-lo. Sendo executor de seu pai, fazia tempo que tinha aprendido a não afeiçoar-se de ninguém
que talvez tivesse que matar algum dia. Portanto, seu círculo de amizades era muito reduzido e se limitava a seu pai e a seu irmão.
Anna se levantou e lhe devolveu um tímido sorriso, embora Charles percebesse que ainda estava assustada. Para sua surpresa, disse:
-Sim, estava a ponto de passar algo interessante, mas não importa, adiante.
Isabelle entrou de repente, fechou a porta e estendeu a mão para Charles.
-Charles, me alegro de ver-te.
Charles tomou sua mão e a beijou brandamente. Cheirava a canela e a prego. Tinha esquecido que usava perfume para entorpecer os afiados sentidos dos homens lobo.
Suficientemente intenso para se ocultar e proteger do agudo olfato destes. A não ser que estivesse muito inquieta, ninguém podia perceber o que sentia.
-Está muito bonita -disse ele consciente de que aquilo é o que esperava. Era verdade.
-Deveria parecer que tenho os nervos destroçados -disse ela, apartando o cabelo, o qual, combinado com seus belos traços, a fazia parecer uma princesa de conto.
Era mais baixa e miúda que Anna, mas Charles nunca cometeria o engano de considerá-la frágil.
-Justin chegou em casa enfurecido dizendo algo sobre um encontro esta noite. Era de tudo menos coerente e eu disse a Leo que passaria por aqui a ver o que estava
fazendo. Por certo, o que fez para enfurecê-lo dessa forma?
Aquela era uma das razões pelas que não tinha amigos.
-Leo recebeu minha mensagem? -perguntou Charles.
Isabelle assentiu.
-E parecia bastante assustado, algo que não lhe assenta muito bem.
Inclinou-se para Charles e posou uma mão sobre seu braço com muita familiaridade.
-O que te traz por nosso território, Charles?
Charles deu um passo atrás. Embora parecesse havê-lo esquecido enquanto estava com Anna, não gostava de tocar nem que lhe tocassem.
Sua Anna.
Esforçou-se por retomar a atenção nos negócios.
-Vim para me encontrar com Leio esta noite.
O habitual semblante alegre de Isabelle se endureceu e Charles esperou que explodisse. Isabelle era tão famosa por seu caráter como por seu carisma. Era uma das
poucas pessoas que tinha estalado frente ao Marrok e tinha saído ilesa; ao pai de Charles também lhe caía bem Isabelle.
Entretanto, Isabelle não respondeu. Em lugar disso, girou a cabeça para olhar a Anna, e Charles se deu conta de que a tinha estado ignorando até então. Quando
voltou a olhar para Charles, começou a falar de novo, mas não se dirigia a ele.
-Que histórias foi contando por aí, querida Anna? Esteve queixando-se do lugar que ocupa na Alcateia? Escolhe um companheiro se você não gosta. Já lhe disse isso
outras vezes. Estou segura de que Justin te aceitaria.
Não havia veneno em sua voz. Provavelmente se Charles não tivesse conhecido ao Justin, não se teria fixado na reação de Anna. Talvez nem sequer tivesse captado
a ameaça.
Anna não disse nada.
Isabelle continuou observando Charles, mas evitando lhe olhar diretamente aos olhos. Soube que estava estudando suas reações, mas sabia que estas não transmitiam
nada. Naquela ocasião estava preparado para a reação de seu lobo, o qual podia estalar em qualquer momento para defender a Anna.
-Está deitando com ele? -perguntou Isabelle. -É um bom amante, verdade?
Embora Isabelle tivesse companheiro, gostava de paquerar com outros, e Leo lhe deixava fazer o que quisesse. Um pouco quase inaudito entre os homens lobo. Isto
não queria dizer que ela não fosse ciumenta; Leo não podia nem olhar a outra mulher. Charles sempre pensou que era uma relação estranha, mas lhes funcionava fazia
muito tempo. Quando, faz anos, Isabelle o tentou com ele, deixou-se seduzir sabendo que não era nada mais que uma aventura. Não se surpreendeu quando lhe pediu que
falasse com seu pai para que Leo pudesse ampliar seu território. Embora Charles rechaçasse a petição, tomou com bom humor.
O sexo não tinha significado nada para nenhum dos dois, embora, ao inteirar-se, a Anna sim parecia lhe haver afetado. Teria que haver sido humano para não reconhecer
a dor e a desconfiança em seus olhos ante as palavras de Isabelle.
-Seja amável, Isabelle -disse ele bruscamente.
Sua voz soou mais seca quando acrescentou:
-Vá para casa e diga ao Leo que falarei com ele esta noite.
Os olhos do Isabelle se acenderam de ira e ficou em pé.
-Não sou como meu pai -disse ele brandamente. -Não tente esse tipo de bruxaria comigo.
O medo acalmou seu temperamento, e de passagem, Charles também se acalmou. Pode ser que seu perfume encobrisse seu aroma, mas não podia ocultar o olhar fixo em
seus punhos apertados. Não desfrutava assustando as pessoas; quase nunca.
-Vá para casa, Isabelle. Terá que guardar a curiosidade até então.
Charles fechou a porta brandamente atrás dela e ficou um instante de pé junto a esta, resistente a enfrentar a Anna. Embora não tinha nem ideia de por que se sentia
culpado por algo que tinha passado muito antes de conhecê-la.
-Vai matá-la?
Olhou-a, mas não soube o que pensava realmente.
-Não sei.
Anna mordeu o lábio.
-Foi amável comigo.
Amável? Por saber tudo o que Anna tinha passado desde sua transformação, tinha pouco que ver com a amabilidade. Mas a preocupação que lia em seu rosto lhe obrigou
a guardar o comentário.
-Passa algo estranho na Alcateia de Leo -se limitou a lhe dizer. -O descobrirei esta noite.
-Como?
-O perguntarei -disse ele. -Sabem muito bem que não podem me mentir. E se eles se negarem a responder as minhas perguntas ou a me receber significará que são culpados.
Anna parecia desconcertada.
-Por que não podem te mentir?
Charles lhe tocou o nariz.
-Cheirar uma mentira é bastante fácil, a não ser que esteja tratando com alguém que não saiba a diferença entre a verdade e a mentira, embora haja outras maneiras
de as detectar.
O estômago de Anna rugiu.
-Já é suficiente -disse ele. Tinha chegado o momento de comer algo. Um pãozinho não era suficiente. -Pgue o casaco.
Charles não quis pegar o carro para ir ao Loop, onde seria difícil encontrar estacionamento, porque seu temperamento era muito imprevisível quando estava com Anna.
Não podia lhe dizer que pegassem um táxi, o qual era uma experiência nova para ele; não havia muita gente disposta a ignorar suas ordens. Mas Anna era uma Omega
e não estava obrigada, por uma necessidade instintiva, a obedecer aos lobos dominantes. Com um suspiro, seguiu-a até a estação mais próxima.
Nunca tinha viajado no metro elevado de Chicago e, se não fosse por certa mulher teimosa, seguiria sem havê-lo feito. Teve que admitir, embora somente para si
mesmo, que desfrutou quando um escandaloso grupo de baderneiros disfarçados de adolescentes decidiram lhe incomodar.
-Né, você, Índio Joe -disse um menino com roupa folgada. -Não é daqui, verdade? A senhorita está muito boa. Se gostar da carne escura, há muita por aqui.
Deu um golpezinho no peito.
Em Chicago abundavam as bandas de verdade, nascidas no centro da cidade sob o lema "comer ou ser comido". Mas aqueles meninos eram imitadores, provavelmente meninos
aborrecidos durante as férias escolares. De modo que tinham decidido entreter-se assustando a quão adultos não sabiam diferenciar entre os autênticos e os imitadores.
Embora um grupo de meninos pudesse ser perigoso nas circunstâncias equivocadas...
Uma senhora mais velha sentada a seu lado se encolheu e o aroma de seu medo lhe fez perder a paciência.
Charles se levantou, sorriu e viu como a suficiência do menino se evaporava pela confiança que desprendia.
-Sim que está boa -disse ele, - mas é minha.
-Né, tio -disse o menino que estava atrás do que tinha falado antes, - de bom cilindro, tio.
Seu sorriso se ampliou ao comprovar como retrocediam.
-Faz um bom dia. Acredito que deveriam lhes sentar naqueles lugares vazios dali. A vista é muito mais interessante.
Apressaram-se para a parte dianteira do vagão e, depois de que todos se sentaram, Charles retornou junto à Anna.
? ? ?
Havia tanta satisfação no rosto de Charles quando se sentou que Anna teve que controlar um sorriso por medo de que algum dos meninos lhes olhasse e pensasse que
estava rindo deles.
-Um excelente exemplo de envenenamento por testosterona - observou secamente. - Depois irá pelo grupo de exploradoras?
Os olhos de Charles brilharam divertidos.
-Agora já sabem que devem escolher a sua presa com mais cuidado.
Anna ia poucas vezes ao Loop, já que tudo o que necessitava, podia encontrar perto de casa. Embora não vivia ali, Charles o conhecia melhor que ela. Escolheu a
estação em que tinham que descer e se dirigiu diretamente a um pequeno restaurante grego, em uma escura ruela abaixo das vias do trem, onde o receberam por seu nome
e os conduziram a uma mesa situada em uma salinha privada.
Charles deixou que Anna pedisse o que quisesse, então dobrou o pedido e acrescentou alguns pratos mais.
Enquanto esperavam a comida, extraiu do bolso de sua jaqueta uma pequena caderneta gasta de três argolas que se fechava com um cordãozinho de pele. Abriu-a, tirou
umas folhas de papel e as estendeu a Anna com uma caneta.
-Eu gostaria que escrevesse os nomes dos membros de sua Alcateia. Se puder ser em ordem decrescente, do mais dominante até o menos.
Anna o tentou. Não sabia os sobrenomes de todos e, como estavam por cima dela, não tinha prestado muita atenção à ordem.
Devolveu-lhe o papel e a caneta com o cenho franzido.
-Deixei a muita gente e, salvo os primeiros quatro ou cinco lobos, é provável que me tenha equivocado na categoria dos outros.
Charles pôs a folha sobre a mesa, tirou outra com algo escrito nela e começou a comparar as duas listas. Anna arrastou sua cadeira até ficar ao seu lado para ver
o que estava fazendo.
Charles colocou sua lista frente à Anna.
-Esta lista são dos que deveriam estar em sua Alcateia. Marquei os nomes dos que não aparecem em sua lista.
Repassou as duas listas e retificou algumas de suas marcas.
-Este ainda está. Tinha-me esquecido dele. E este também.
Charles agarrou de novo a lista.
-Todas as mulheres se foram. A maioria dos desaparecidos são lobos velhos. Não exatamente velhos, mas não fica nenhum lobo mais velho que Leo. Também faltam alguns
lobos jovens.
Charles assinalou um par de nomes com o dedo.
-Estes eram jovens. Este, Paul Lebshak, devia fazer somente quatro anos que era homem lobo. George, não muito mais.
-Conhece todos os homens lobo?
Charles sorriu.
-Conheço os Alfas. Celebramos reuniões anuais com todos eles. Também à maioria dos segundos e terceiros. Uma coisa que fazemos nas reuniões é atualizar os membros
das Alcateias. Supõe-se que os Alfas têm que informar ao Marrok das baixas e dos novos membros. Se meu pai tivesse sabido que se foram tantos lobos, o teria investigado.
Leo perdeu a uma terceira parte de sua Alcateia, embora tenha feito um bom trabalho repondo-os.
Devolveu-lhe sua lista com os nomes marcados, incluído o dela.
-Todos estes são novos. Pelo que me disse, suponho que transformaram a todos pela força. O índice de sobreviventes de vítimas atacadas ao azar é muito baixo. Leo
matou a muita gente nos últimos anos para manter o número de sua Alcateia. Suficientes para ter atraído a atenção das autoridades. Quantos deles foram transformados
depois de você?
-Nenhum. O único lobo novo que vi era aquele pobre menino.
Anna dava golpezinhos com a caneta sobre o papel.
-Se não deixarem corpos e ampliam a caçada, podem ter oculto facilmente o desaparecimento de uma centena de pessoas na área da grande Chicago durante alguns anos.
Charles inclinou-se para trás, fechou os olhos e sacudiu a cabeça.
-Já recordo mais dados. Não conheci a muitos dos lobos desaparecidos e não recordo a última vez que vi o antigo segundo de Leo, somente que foi nos últimos dez
anos. Assim, acontecesse o que acontecesse, ocorreu depois disso.
-O que ocorreu?
-Algo ocorreu a Leo, suponho. Algo lhe aconteceu que lhe fez matar a todas as mulheres de sua Alcateia, excetuando a Isabelle, e à maioria dos lobos mais velhos.
Estes devem ter se oposto quando começou a matar gente inocente e quando deixou de ensinar aos novos lobos as regras e seus direitos. Posso entender por que tinha
que matar a eles, mas, por que às mulheres? E, por que o outro Alfa de Chicago não disse nada a meu pai?
-Possivelmente não sabia. Leo e Jaimie mantêm distância, e nossa Alcateia tem a entrada proibida em seu território. O Loop é território neutro, mas não podemos
ir para o norte a não ser que tenhamos uma permissão especial.
-Oh, interessante. Sabe por que não se levam bem?
Anna se encolheu de ombros. Tinha ouvido falar muito sobre aquilo.
-Alguém me disse que Jaimie não quis se deitar com Isabelle. Outro disse que tinham tido uma aventura, que ele a deixou e ela se ofendeu. Ou que não rompeu e Leo
teve que intervir. Outra historia conta que Leo e Jaimie nunca se levaram bem. É o que sei.
Anna olhou os nomes da lista que estavam marcados como novos lobos da Alcateia e estalou em uma gargalhada.
-O que ocorre?
-É uma tolice -disse Anna sacudindo a cabeça.
-Me conte.
Suas bochechas se ruborizaram pela vergonha.
-Tá, você busca algo que todos os novos lobos têm em comum, certo? Pois bem, estava pensando que se alguém quisesse fazer uma lista dos lobos mais bonitos da Alcateia,
seriam todos estes.
Ambos se surpreenderam pelo ataque de ciúmes que Charles não se incomodou em ocultar.
Provavelmente era um bom momento para que o garçom trouxesse o primeiro prato.
Anna começou a mover sua cadeira para o lugar onde se sentou ao princípio, mas o garçom, ao vê-lo, deixou a bandeja com a comida, aproximou-se e a ajudou a sentar-se
educadamente.
-Como vai você, senhor? -disse o garçom- Ainda vivendo longe da civilização?
-A civilização está superestimada -respondeu Charles enquanto punha as folhas de papel dentro da caderneta e a fechava. - Podendo vir uma ou duas vezes ao ano
e comer aqui, dou-me por satisfeito.
O garçom sacudiu a cabeça fingindo tristeza.
-As montanhas são belas, mas não tanto como nosso horizonte. Um dia destes lhe levarei uma noite à cidade e não quererá ir-se jamais.
-Phillip!
Uma mulher magra como um pássaro entrou na sala.
-Enquanto está aqui conversando com o Sr. Cornick, os outros clientes estão famintos.
O garçom sorriu e piscou a Anna. Beijou a mulher na bochecha e saiu da sala.
A mulher forçou um sorriso e sacudiu a cabeça.
-Este Phillip, sempre falando. Necessita uma boa esposa que o tenha a raia. Eu sou muito velha -disse pondo os olhos em branco e seguindo ao garçom.
Durante um longo momento, uma série de garçons, que pareciam da mesma família, foram trazendo comida sem parar. Nenhum deles mencionou quão estranho resultava
que só duas pessoas pudessem comer tanto.
Charles encheu seu prato, olhou o de Anna e disse:
-Poderia me haver dito que você não gosta de cordeiro.
Anna observou seu prato.
-Sim eu gosto.
Charles franziu o cenho, agarrou a colher de servir e pôs mais comida no prato de Anna.
-Deveria comer mais, muito mais. A transformação requer muita energia. Ao ser uma mulher lobo, tem que comer muito mais para manter seu peso.
Depois disso, Anna e Charles, por mútuo acordo, limitaram sua conversa a trivialidades. Falaram de Chicago e da vida na cidade. Anna pegou um pouco de arroz e
Charles a olhou até que se servisse de uma segunda colherada. Charles lhe falou de Montana. Surpreendeu-se ao descobrir que era um bom observador, e compreendeu
que a única maneira de pôr fim àquela conversa era lhe perguntar algo pessoal. Não é que não queria falar de si mesmo, mas pensou que não era o suficientemente interessante.
A porta se abriu uma vez mais e uma garota de uns quatorze anos entrou com a sobremesa.
-Não deveria estar na escola? -perguntou Charles.
A jovem suspirou.
-Férias. Todo mundo tem tempo livre, mas eu... Tenho que trabalhar no restaurante. Uma chateação.
-Já vejo -disse ele. -Possivelmente deveria chamar uma assistente social e lhe dizer que lhe exploram.
A garota sorriu.
-Isso zangaria a papai. Sinto a tentação de fazê-lo somente para ver a cara que põe. Se lhe dissesse que me sugeriu você, acha que se zangaria contigo em vez de
comigo...? Provavelmente não -acrescentou enrugando o nariz.
-Diga a sua mãe que a comida estava perfeita.
Segurou a bandeja contra seu quadril e caminhou de costas para a porta.
-O direi, mas me disse que te diga que não o estava. O cordeiro estava fibroso, mas é quão único pôde conseguir.
-Deduzo que vem muito por aqui -disse Anna pegando um pedaço de baklava sem muita vontade.
Não é que tivesse nada contra baklava, mas tinha comido para uma semana.
-Muito frequentemente - disse ele.
Anna se deu conta de que ele não tinha problemas em seguir comendo.
-Temos negócios que tratar aqui, assim tenho que vir três ou quatro vezes ao ano. O dono do restaurante é um lobo, um dos de Jaimie. De vez em quando eu gosto
de tratar certos assuntos aqui.
-Acreditava que fosse o capanga de seu pai - disse ela com interesse. -Tem que caçar gente em Chicago três ou quatro vezes ao ano?
Charles riu escandalosamente. Soava oxidado, como se não o fizesse muito frequentemente, embora devesse fazê-lo porque lhe sentava muito bem. Tão bem que, sem
dar-se conta, Anna meteu na boca a parte de baklava com que tinha estado jogando. Agora tinha que encontrar a maneira de tragar-lhe quando já não lhe cabia nada
mais no estômago.
-Não, também tenho outras tarefas. Encarrego-me dos interesses da Alcateia de meu pai. Sou muito bom nos dois trabalhos - disse ele sem incomodar-se em ocultar
a falsa modéstia.
-Com certeza que sim - disse ela.
Era o tipo de pessoa ao que lhe dava bem tudo o que se propor.
-Deixaria você investir minhas economias. Acredito que tenho vinte e dois dólares e noventa e sete centavos agora mesmo - acrescentou Anna.
Charles franziu o cenho e toda a diversão desapareceu.
-Era uma brincadeira - esclareceu ela.
Mas Charles a ignorou.
-A maioria dos Alfas ficam com dez por cento dos lucros de seus lobos pelo bem da Alcateia, sobre tudo quando é nova. O dinheiro se investe em comprar uma casa
segura, por exemplo. Uma vez que a Alcateia já esteja instalada, não se necessita tanto dinheiro. A Alcateia de meu pai se estabeleceu faz tempo e não temos necessidade
de cobrar a contribuição, já que a terra onde vivemos é nossa e temos suficientes investimentos para o futuro. Leo leva aqui trinta anos, tempo suficiente para estar
bem instalado. Nunca tinha ouvido falar de uma Alcateia que exigisse quarenta por cento a seus membros, o que me leva a acreditar que a Alcateia de Leo tem problemas
financeiros. Vendeu ao menino que saiu no jornal, entre outros, a alguém que os utiliza como coelhinho da índia para desenvolver uma droga que funcione para os lobos
igual para os humanos. Deve ter matado a muitos humanos para conseguir a um único homem lobo que sobrevivesse.
Anna pensou nas implicações de tudo aquilo.
-Quem queria as drogas?
-Saberei assim que Leo diga a quem vendeu o menino -respondeu Charles.
-Então, por que não me vendeu?
Ela não tinha muito valor para a Alcateia.
Charles se recostou sobre a cadeira.
-Se um Alfa vendesse a um homem lobo de sua Alcateia, se produziria uma rebelião. Além disso, Leo teve muitos problemas para te conseguir. Desde que te fez membro
da Alcateia, não houve mais assassinatos nem desaparecimentos.
Não era uma pergunta, mas a respondeu igualmente.
-Não.
-Acredito que pode ser a chave do mistério de Leo.
Anna não pôde reprimir um gesto de confusão.
-Eu? Leo necessitava de um novo tapete?
Charles ficou em pé tão bruscamente que a cadeira caiu ao chão, e, ao mesmo tempo, levantou a Anna de sua cadeira. Tinha acreditado que estava acostumada à rapidez
e força dos lobos, mas aquilo a deixou sem palavras.
Enquanto seguia paralisada pela surpresa, Charles rondou a seu redor, até que se deteve frente a ela e lhe deu um beijo comprido, escuro e intenso que a deixou
de novo sem respiração.
-Leo te encontrou e decidiu que te precisava - disse Charles. -Enviou Justin porque os outros lobos se dariam conta do que é. Teriam sabido inclusive antes da
sua transformação. Assim enviou a um lobo meio louco, porque nenhum outro teria sido capaz de te atacar.
Anna se apartou ofendida. Embora a fez sentir-se especial, Anna sabia que estava mentindo. Parecia que estivesse dizendo a verdade, mas não era tola. Não o era
absolutamente. Durante três anos tinha sido menos que nada. Hoje a tinha feito sentir alguém especial, mas ela sabia a verdade.
Quando suas mãos se posaram em seus ombros, notou que eram firmes e que não admitiam resistência.
-Me deixe te dizer algo sobre os lobos Omega, Anna. Me olhe.
Anna reprimiu as lágrimas e, incapaz de desobedecer a sua ordem, olhou-lhe.
-É virtualmente impossível - disse ele e a sacudiu brandamente. - Trabalho com números e porcentagens constantemente, Anna. Talvez não possa calcular a cifra exata,
mas te direi que as possibilidades de que Justin te escolhesse para te transformar por mera casualidade são quase nulas. Nenhum homem lobo atacaria a um Omega somente
por instinto. E Justin me parece um lobo que somente atua por instinto.
-Por que não? Por que não me teria atacado? O que é um Omega?
Evidentemente era a pergunta correta, porque Charles se acalmou.
-É uma Omega, Anna. Aposto que quando entra em um lugar, as pessoas se aproximam de você. Aposto também que desconhecidos lhe confessam coisas que nunca diriam
nem a suas próprias mães.
Anna lhe olhou incrédula.
-Você mesmo viu o Justin esta manhã. Pareceu-te que estava acalmado?
-Vi o Justin -acrescentou Charles com calma, - e acredito que em qualquer outra Alcateia teria sido eliminado pouco depois de sua transformação. Seu controle não
é suficientemente bom. Não sei por que não o têm feito, mas acredito que você lhe ajuda a controlar a seu lobo, e que por isso te odeia.
Depois de um instante, acrescentou:
-Não deveria estar na ordem mais baixa da Alcateia.
Suas mãos se deslizaram desde seus ombros até suas mãos. Por alguma razão, aquele gesto foi mais íntimo que o beijo.
-Um lobo Omega é como um xamã para os indígenas, está fora das hierarquias normais da Alcateia. Tiveram que te ensinar a baixar o olhar, não? Estas coisas são
instintivas para os lobos submissos. Você o aprendeu à força.
Charles continuou com seus olhos cravados nos dela:
-Traz paz a todos os que lhe rodeiam, Anna. Um homem lobo, especialmente um dominante, está sempre a beira da violência. Depois de me haver passado várias horas
no avião com toda aquela gente, cheguei ao aeroporto desejando um massacre como um drogado deseja sua próxima dose. Mas quando te aproximou de mim, a ira e o desejo
desapareceram.
Charles apertou suas mãos.
-É um presente, Anna. Um lobo Omega na Alcateia significa que mais lobos sobrevivem à transformação porque podem controlar a seu lobo mais facilmente contigo a
seu lado. Isso significa que perdemos menos machos pelas estúpidas lutas de dominantes, porque um Omega traz a calma a todos os que lhe rodeiam. Ou a rodeiam.
Mas algo falhava em seu argumento.
-E, então, o que te aconteceu antes? Quando estava tão zangado que quase te transforma?
Algo cruzou o rosto de Charles, uma emoção que não soube reconhecer, mas que sabia que era intensa.
Falou com um grande esforço, como se tivesse a garganta dura.
-A maioria dos homens lobo encontram alguém a quem amam, casam-se e passam muito tempo com o outro antes de que seu lobo a aceite como sua companheira.
Charles deixou de olhá-la, cruzou a habitação e lhe deu as costas.
Sem o calor de seu corpo, sentiu-se fria e sozinha. Assustada.
-Algumas vezes não ocorre dessa forma - disse Charles olhando a parede. - Por agora deixemo-lo assim, Anna. Já teve bastante por hoje.
-Estou farta de ser uma ignorante - soltou Anna muito molesta. - Tem quebrado todos meus esquemas, assim quero que me conte agora mesmo todas as afortunadas regras.
A ira desapareceu com a mesma facilidade com que havia aparecido, deixando-a a beira das lágrimas.
Charles deu meia volta e seus olhos se tornaram dourados, brilhantes face à tênue luz da habitação.
-Bem. Teria que havê-lo deixado, mas quer a verdade. -Embora não subiu o tom de voz, esta rugiu como um trovão. - Meu irmão lobo te escolheu como companheira.
Se não significasse nada para mim, não me teria afetado o abuso que sofreu desde sua transformação. Mas é minha, e a mera ideia de que lhe firam e não poder fazer
nada faz surgir em mim uma ira que nenhuma Omega pode acalmar.
Vá, pensou assombrada. Sabia que estava interessado nela, mas tinha pensado que era por acaso. Leo era o único lobo que conhecia com companheira. Não sabia nada
das regras. O que queria dizer com que seu lobo tinha decidido que era sua companheira? Tinha escolha naquele assunto? Era ele o responsável por excitá-la sem pretendê-lo
e de fazê-la sentir daquele modo, como se eles se conhecessem por toda a vida?
-Se me tivesse deixado -disse ele, - te teria cortejado docemente até conquistar seu coração.
Charles fechou os olhos.
-Não queria te assustar - acrescentou.
Teria que ter estado completamente aterrorizada. Em troca, apesar de encontrar-se no olho de um furacão de emoções, sentiu-se muito relaxada.
-Eu não gosto de sexo - disse ela, considerando que era algo que tinha que saber dadas as circunstâncias.
Charles se engasgou e abriu os olhos, os quais adquiriram, de novo, um aspecto humano.
-Não é que me atraía muito antes da transformação - disse ela claramente. -E depois de que me usassem como a uma puta durante um ano, até que interveio Isabelle,
eu gosto ainda menos.
Charles apertou os lábios, mas não disse nada, de modo que Anna prosseguiu:
-E nunca mais voltarão a abusar de mim.
Subiu as mangas da camisa e lhe mostrou as largas cicatrizes na parte interior do braço, do pulso até o cotovelo. As tinha feito com uma faca de prata e, se Isabelle
não a tivesse encontrado, teria morrido.
-Graças a isto, Isabelle convenceu a Leo para que deixasse de me usar como recompensa para seus machos. Encontrou-me e me salvou a viva. Pouco depois, comprei
uma arma e balas de prata.
Charles grunhiu brandamente, mas não a ela; sabia perfeitamente.
-Não estou ameaçando com suicidar-me, mas tem que sabê-lo porque, se quer ser meu companheiro, não serei como Leo. Não deixarei que te deite com outras. Mas tampouco
permitirei que abusem de mim. Já tive suficiente. Se isso me converter no cão do hortelão, que assim seja. Mas, se for tua, então você também será meu.
-O cão do hortelão? -disse Charles suspirando com um meio sorriso.
Voltou a fechar os olhos e disse em um tom razoável:
- Me surpreenderia se Leo conseguir chegar vivo até amanhã. Também me surpreenderia se conseguir sobreviver a ti - E olhando-a fixamente, acrescentou: -Tem que
saber que há muito poucas coisas que me surpreendam.
Recolheu a cadeira do chão e a pôs em seu lugar. Continuando, deteve-se frente à Anna, acariciou-lhe o queixo brandamente e ficou a rir. Ainda sorrindo, colocou-lhe
uma mecha de cabelo atrás da orelha e lhe murmurou:
-Prometo-te que comigo desfrutará do sexo.
Anna se esforçou por não cair ao chão. Não estava preparada para cair a seus pés. Ainda não.
-Isabelle disse que era um bom amante.
Charles voltou a rir.
-Não há razões para que esteja ciumenta. O sexo com Isabelle não significou nada para mim e acredito que menos para ela. Não tem nenhum sentido tentá-lo de novo.
Ouviram-se sussurros ao outro lado do reservado e Charles agarrou sua mão.
-É o momento de ir.
Ao lhe entregar o cartão de crédito, Charles lhe deu de presente alguns elogios a um homem de aspecto jovem que falava e que cheirava a homem lobo. Anna supôs
que era o dono do restaurante.
-Aonde quer ir agora? -perguntou Anna enquanto saíam do restaurante à concorrida rua.
Estava acabando de pôr a jaqueta quando se separou de uma mulher com saltos que levava uma mala de pele.
-A algum lugar com menos gente.
-Podemos ir ao zoológico - sugeriu ela. - Por estes dias há muito pouca gente, embora os meninos têm férias devido ao feriado de Ação de Graças.
Charles começou a falar quando algo em uma cristaleira captou sua atenção. Agarrou a Anna e a atirou ao chão, cobrindo-a com seu corpo. Ouviu-se uma forte detonação,
como o estalo de um escapamento, e Charles se sacudiu uma só vez. Depois ficou imóvel.
Capítulo 3
Tinha passado muito tempo desde a última vez que lhe tinham disparado, mas a horrível queimadura de uma bala de prata ainda lhe resultava familiar. Não tinha sido
suficientemente rápido e a multidão de gente lhe impediu de perseguir o carro, o qual fugiu imediatamente depois do disparo. Nem sequer pôde distinguir ao responsável,
somente um reflexo.
-Charles? -perguntou Anna debaixo dele. Tinha as pupilas dilatadas pela comoção e lhe dava tapinhas nos ombros- Alguém nos disparou? Está bem?
-Sim - respondeu ele, embora não pôde avaliar os danos até que se moveu, algo que não queria fazer.
-Não se mova até que possa te jogar uma olhada - disse uma voz firme. - Sou médico.
A autoridade com a que o médico deu a ordem não impediu que Charles se movesse. Não aceitava ordens de ninguém mais que de seu pai. Levantou-se e estendeu uma
mão a Anna para ajudá-la a levantar do frio chão.
-Maldito seja! Está sangrando. Não seja estúpido- disse bruscamente o estranho. Sente-se.
O disparo tinha enfurecido a seu lobo e girou para grunhir ao médico, um homem de meia idade loiro, de aspecto competente, com um bigode ruivo.
Então, Anna lhe apertou a mão ao homem e lhe disse:
-Obrigada. -E depois se dirigiu ao Charles. - Deixa que te jogue um olhar.
Charles conteve a vontade de lhe grunhir ferozmente.
Soltou um grunhido contido quando o estranho inspecionou a ferida; nunca mostre debilidade ante um possível inimigo. Sentia-se muito observado; muita gente se
deteve para bisbilhotar.
-Ignore-o -disse Anna ao médico, - volta-se resmungão quando está ferido.
George, o homem lobo dono do restaurante, trouxe uma cadeira para que pudesse sentar-se. Alguém tinha chamado à polícia, que chegava nesse momento com as luzes
e as sereias acesas, seguida por uma ambulância. A Charles doíam os ouvidos pelo ruído.
Alguém lhe disse que a bala tinha alcançado a parte superficial do músculo do ombro sem causar muitos danos. Tinha inimigos? Anna lhes explicou que acabava de
chegar de Montana e que devia ser alguém que disparava de um carro, apesar de não ser o típico bairro para aquele tipo de crimes.
Se o agente tivesse tido o olfato de um homem lobo, não teria aceitado a mentira. Embora fosse um policial veterano, a resposta de Anna lhe incomodou um pouco.
Mas Quando Charles lhe mostrou sua carteira de motorista de Montana, relaxou.
Como Anna estava a seu lado, Charles permitiu que lhe limpassem e enfaixassem a ferida e lhe fizessem algumas perguntas, mas por nada no mundo teria permitido
que lhe metessem na ambulância e o levassem ao hospital, embora as feridas com balas de prata dificultassem o processo de recuperação. Podia sentir a ardência da
prata filtrando-se através de seus músculos.
Enquanto deixava que os estranhos lhe manuseassem para lhe curar, e enquanto se controlava para não perder o controle, não podia tirar da cabeça a imagem do tipo
que lhe tinha disparado. Tinha olhado pela janela e tinha visto o reflexo da arma, e, continuando, o rosto da pessoa que a sustentava, envolto em um cachecol e com
óculos de sol escuro. Não podia identificá-la, mas teria jurado que o homem não olhava para ele quando apertou o gatilho. Olhava para Anna.
Não tinha nenhum sentido. Por que alguém quereria matar a Anna?
Não foram ao zoológico.
Enquanto usava o lavabo do restaurante para limpar-se, George lhe deu uma jaqueta para cobrir as bandagens. Charles não gostava de mostrar suas debilidades. Desta
vez Anna não objetou quando lhe pediu que chamasse um táxi.
Seu telefone soou enquanto se dirigiam ao apartamento, mas o silenciou sem olhá-lo. Possivelmente era seu pai, Bran, que tinha uma extraordinária habilidade para
saber quando estava em um apuro. Entretanto, não tinha nenhuma vontade de falar com o Marrok enquanto o taxista pudesse escutar a conversa. Embora certamente seria
Jaimie. George devia ter chamado a seu Alfa quando dispararam. Em qualquer caso, fosse quem fosse, teria que esperar até que estivesse em um lugar mais privado.
Fez com que Anna esperasse no táxi frente ao edifício de apartamentos até ter comprovado que não havia nada suspeito. Ninguém lhes tinha seguido do Loop, mas os
agressores provavelmente pertenciam a Alcateia de Leo e estes sabiam onde vivia Anna. Não tinha reconhecido ao autor dos disparos, mas tampouco conhecia todos os
homens lobo de Chicago.
Anna se mostrou paciente. Não discutiu com ele quando lhe fez esperar no táxi, mas o motorista lhe olhou como se estivesse louco.
A paciência de Anna ajudava Charles a controlar-se, tarefa difícil durante as últimas horas. Perguntou-se como se comportaria se sua Anna não fosse uma Omega,
cujo efeito calmante era tão bom que quase anulava a ira protetora causada pelo atentado que tinha sofrido. A dolorosa queimação no ombro, a qual cada vez era mais
intensa, como todas as feridas produzidas pela prata, não lhe ajudava a melhorar as coisas, como tampouco o fazia saber que sua habilidade para a luta estava seriamente
condicionada.
Alguém estava tentando matar a Anna. Aquilo não tinha sentido, mas durante o caminho de volta ao Oak Park, aceitou a ideia.
Satisfeito ao não encontrar uma ameaça imediata nos arredores do edifício, estendeu sua mão a Anna para ajudá-la a sair do táxi e pagou ao taxista, tudo isso sem
deixar de vigiar. Mas não havia nada.
Justo no vestíbulo do edifício, um homem que estava recolhendo sua correspondência sorriu e saudou a Anna. Trocaram uma ou duas frases, mas ao ver a expressão
de Charles, Anna começou a subir as escadas.
Tinha sido incapaz de entender uma palavra do que havia dito Anna, o qual era muito mal sinal. Sério, seguiu-a escada acima, percebendo a vibração de seu pulso
no ombro. Enquanto Anna abria a porta do apartamento, Charles estendeu e contraiu os dedos de ambas as mãos. Doíam-lhe as articulações pela necessidade de transformar-se,
mas, embora lhe custasse muito, conteve-se. Se estava tão mal em forma humana, o lobo poderia controlá-lo; sempre e quando se transformasse.
Sentou-se no futón e observou como Anna abria a geladeira e depois o congelador. Finalmente, viu como agarrava uma lata grande do fundo do armário da cozinha.
Abriu-a e esvaziou o conteúdo em uma caçarola que depois deixou sobre o fogão.
Então, ajoelhou-se diante de Charles.
-Se transforme - lhe disse enquanto lhe acariciava a cara.
Também lhe disse outras coisas que não conseguiu entender, mas que lhe pareceram mariposas lhe acariciando as orelhas.
Fechou os olhos.
Havia uma razão importante pela que não devia transformar-se, mas a tinha esquecido enquanto a observava.
-Tem cinco horas antes da reunião - disse ela com calma. Sua voz adquiria maior sentido agora que tinha os olhos fechados. - Pode se transformar em lobo e logo
recuperar a forma humana, lhe ajudará a recuperar-se.
-Não tenho controle - lhe disse ele.
Era isso. Essa era a razão.
-A ferida não é tão grave, o problema é a prata. Minha mudança será muito perigosa para você. Não posso - acrescentou.
Produziu-se uma pausa e, pouco depois, Anna disse:
-Se for sua companheira, seu lobo não me fará mal, embora não tenha nenhum controle, verdade?
Soava mais esperançosa que convencida e Charles não podia pensar com suficiente claridade para saber se tinha razão.
Os dominantes eram pouco dados a aceitar sugestões de lobos menores, de modo que Anna deixou que Charles tomasse a decisão por si mesmo enquanto controlava que
o guisado de vitela não se queimasse. Embora soubesse que tampouco pior muito pior se queimava. Tinha-o comprado nas ofertas, por volta de seis meses, e não tinha
tido a fome suficiente para comer-lhe, mas tinha proteínas, que é o que Charles precisava. Além disso, era a única carne que havia no apartamento.
Embora a ferida parecesse dolorosa, estava controlada, e nenhum dos médicos se mostrou excessivamente preocupado.
Tirou a bala do bolso dos jeans e sentiu como lhe queimava a pele. Enquanto o médico estava atendendo o ombro de Charles, este captou sua atenção e lhe assinalou
a pequena e sangrenta bala sobre o pavimento.
Respondendo a sua silenciosa instrução, a tinha guardado no bolso. Agora a deixou no balcão. A prata não lhes sentava muito bem aos homens lobo, o que significava
que não tinha sido um disparo ao azar. Anna não tinha visto quem tinha disparado e só podia assumir que tinha sido um de seus companheiros de Alcateia, provavelmente
Justin.
As feridas com prata demoram muito mais em cicatrizar, portanto, Charles teria que acudir ferido a casa de Leo.
Ouviu o ruído de unhas no parquet. Charles, em forma de lobo, deslocou-se até a cozinha e se desabou com a cabeça nos pés de Anna. Sua roupa parecia farrapos,
pulverizada por toda parte. Anna jogou uma olhada ao futón e viu que não tinha tido tempo de tirar-lhe as bandagens e tampouco tinham sobrevivido à mudança. O corte
do ombro era profundo e lhe sangrava.
Parecia mais cansado que enfurecido, e faminto, assim supôs que seus temores sobre não perder o controle não se cumpriram. Um homem lobo fora de controle, segundo
sua experiência, não deixaria de grunhir e mover-se, e nunca ficaria deitado tranquilamente a seus pés. Verteu o guisado em uma terrina e o colocou diante dele.
Comeu um pouco e se deteve depois de tragar.
-Já sei - disse ela desculpando-se, - não é alta cozinha. Posso ir até a casa da Kara e ver se tem algum bife ou algo que possa tomar emprestado.
Embora continuasse comendo, Anna sabia, por própria experiência, que se encontraria melhor depois de comer algo mais de carne. Kara não estaria em casa, mas tinha
a chave e sabia que não lhe importaria se pegasse emprestado alguma coisa de sua despensa se logo a repunha.
Charles parecia absorto na comida, de modo que se dirigiu para a porta. Antes de alcançá-la, Charles tinha esquecido a comida para ir atrás dela. Embora parecesse
lhe doer, Anna não estava muito segura de como sabia por que não tinha mostrado nenhum sinal disso.
-Precisa ficar aqui - disse. - Voltarei em um momento.
Mas quando tentou abrir a porta, Charles se interpôs entre esta e Anna.
-Charles - disse ela.
Então viu seus olhos e tragou saliva. Não reconheceu ao Charles no olhar do lobo.
Deixar o apartamento não era uma opção.
Voltou para a cozinha e se deteve junto à terrina que tinha deixado para ele. Charles ficou um momento na porta antes de segui-la. Quando terminou de comer, Anna
se sentou no futón. Charles saltou para colocar-se a seu lado, apoiou a cabeça em seu colo e fechou os olhos com um sonoro suspiro.
Abriu um olho e o voltou a fechar. Anna lhe acariciou a pelagem, com o cuidado de não tocar a ferida.
Eram um casal? Não o parecia. Uma coisa tão séria não teria uma cerimônia mais formal? Não lhe havia dito que o aceitava, e ele tampouco o tinha perguntado.
Ainda... Fechou os olhos e deixou que seu aroma lhe empapasse enquanto lhe agarrava possessivamente uma mecha de sua pelagem. Quando Anna voltou a abrir os olhos,
descobriu que o lobo a olhava fixamente.
O telefone de Charles soou em algum lugar sob seu corpo. Recolheu do resto do que ficava de suas calças e tirou o telefone para comprovar quem lhe chamava. Deu-lhe
a volta para lhe mostrar ao lobo a tela.
-É papai -lhe disse.
Mas evidentemente o lobo ainda exercia o controle porque nem sequer se incomodou em olhar o telefone.
-Suponho que pode lhe devolver a chamada quando voltar a ser você.
Confiava em que fosse logo. Imaginava que se encontraria melhor em um par de horas, embora ainda lhe afetasse o veneno da prata.
O telefone deixou de soar para voltar a fazê-lo imediatamente depois. Soou três vezes. Deteve-se. Três vezes mais. Deteve-se. Quando voltou a soar, respondeu a
seu pesar.
-Sim?
-Está bem?
Recordou ao homem lobo que havia trazido à cadeira para que Charles se sentasse enquanto era atendido. Tinha chamado ao Marrok.
-Acredito que sim. A ferida não é muito grave, somente tem um corte profundo no ombro, mas a bala era de prata e parece ser que não lhe tem feito muito boa reação.
Houve uma breve pausa.
-Posso falar com ele?
-Está em forma de lobo -disse ela, -mas está te escutando agora mesmo.
Uma de suas orelhas estava orientada para o telefone.
-Necessita ajuda com o Charles? Sua reação à prata pode ser um pouco extrema.
-Não. Não está causando problemas.
-A prata faz que o lobo de Charles perca o controle - explicou o Marrok brandamente. -Por que não te está dando problemas?
Embora não conhecia o Marrok em pessoa, não era tola. A maneira em que o perguntou era perigosa. Acaso pensava que tinha algo que ver com o fato de que disparassem
ao Charles e que agora o tinha prisioneiro em alguma parte? Tentou responder a sua pergunta apesar da vergonha.
-Um... Charles acredita que seu lobo me escolheu como companheira.
-Em menos de um dia?
A pergunta do Marrok convertia em absurda sua afirmação anterior.
-Sim.
Não podia esconder a insegurança em sua voz e aquilo incomodou ao Charles, que rodou até seus pés grunhindo Brandamente.
-Charles também me disse que era uma Omega - disse ao Marrok. - Talvez isso também tenha algo que ver.
O silêncio se alargou e pensou que possivelmente se cortou a comunicação. Então o Marrok ficou a rir.
-Oh, seu irmão vai zombar dele sem piedade. Por que não me diz tudo o que passou? Comece desde que recolheu Charles no aeroporto, por favor.
? ? ?
Anna segurava com força o volante, mas Charles não estava de humor para apaziguar seus medos.
Tinha tentado deixá-la em casa. Não queria que estivesse em meio da luta que provavelmente teria lugar aquela noite. Não queria que lhe fizessem mal e tampouco
que o visse no rol que tinham escolhido para ele muitos anos atrás.
-Sei onde vive Leo - havia dito ela. - Se não me levasse contigo, teria pegado um táxi e te seguiria. Não irá ali sozinho. Suas feridas ainda estão frescas e podem
as detectar e tomar como um sinal de debilidade.
A verdade atrás de suas palavras quase lhe fez ser cruel. Esteve a ponto de lhe perguntar o que pensava que poderia fazer ela, uma loba Omega, para lhe ajudar
na briga, mas o Irmão Lobo lhe obrigou a morder a língua. Já lhe tinham feito suficiente dano e o lobo não permitiria que lhe fizessem mais. Era a primeira vez em
sua vida que o lobo detinha sua parte humana, quando normalmente ocorria o contrário. Naquela ocasião também se teria equivocado. Recordou quando Anna empunhou o
pau de macarrão de mármore. Pode ser que não fosse agressiva, mas sua paciência tinha um limite.
Finalmente, concordou a que lhe acompanhasse. Entretanto, quanto mais se aproximavam da residência que Leo tinha no Naperville, mais se arrependia por sua incapacidade
de alegrar-se por sua presença.
-A casa de Leo tem seis hectares - disse ela. - É suficientemente grande para que a Alcateia cace livremente, mas, mesmo assim, temos que ser muito silenciosos.
Sua voz estava tensa. Tratava de lhe dar conversa para controlar sua ansiedade. Embora lhe custasse colaborar porque estava zangado, fez um esforço.
-É complicado caçar nas grandes cidades - acrescentou ele.
Então, para comprovar sua reação e porque não tinha tido a oportunidade de terminar a discussão sobre o que sentia realmente por ela, disse-lhe:
-Lhe levarei para Montana para uma caçada de verdade. Nunca quererá voltar a viver em uma grande cidade. Normalmente caçamos cervos e alces, mas como há muitíssimos
alces americanos, também os caçamos de vez em quando. São toda uma provocação.
-Acredito que prefiro ficar com os coelhos, se não te importa - disse ela. - Nas caçadas me limito a rastrear - acrescentou com um leve sorriso. -Acredito que
vi Bambi muitas vezes.
Charles soltou uma gargalhada. Sim, gostava. Tinha-lhe aceito sem discutir. Tinha-lhe desafiado, mas não o tinha discutido. Charles recordou quando lhe disse que
não estava interessada no sexo.
-Caçar é parte do que somos. Não como os gatos, os quais prolongam a matança. Além disso, como animais caçamos, pois é necessário para manter as Alcateias fortes
e sãs. Mas se te incomoda, pode também rastrear a caça em Montana. Desfrutará igualmente.
Anna conduziu até um poste com um teclado numérico diante de uma grade de cedro cinza e introduziu um código de quatro dígitos. Depois de uma breve pausa, a grade
se abriu automaticamente.
Já tinha estado um par de vezes ali. A primeira foi a mais de um século e a casa era pouco mais que uma cabana. Naquele tempo, o terreno se estendia ao longo de
vinte hectares e o Alfa era um irlandês católico chamado Willie O'Shaughnessy, o qual, surpreendentemente, tinha combinado com seus vizinhos, a maioria alemães e
luteranos. A segunda vez foi a princípios do século XX, para o funeral de Willie, um lobo realmente velho, quase tanto como o Marrok. Os que vivem tantos anos revistam
enlouquecer. Quando se manifestaram os primeiros sinais em Willie, decidiu deixar de comer, uma amostra mais da força de vontade que lhe levou a converter-se em
Alfa. Charles recordou a profunda dor que provocou em seu pai a morte de Willie. Charles e seu irmão Samuel pensaram durante os meses seguintes que seu pai decidiria
seguir o mesmo caminho que Willie.
Tanto a casa de Willie como suas terras tinham passado ao seguinte Alfa, um homem lobo alemão que se casou com a filha de O'Shaughnessy. Charles não podia recordar
seu nome, nem o que ocorreu finalmente com ele. Houve vários Alfas depois daquele, antes que Leo se fizesse com o mando.
Willie e um grupo de pedreiros alemães tinham construído a casa com um artesanato que agora seria proibitiva. Recordou o tempo em que aquelas janelas tinham sido
novas.
Charles odiava que lhe recordassem quão velho era. Anna desligou o motor e fez gesto de abrir a porta, mas Charles a deteve.
-Espera um momento.
Graças ao legado de sua prodigiosa mãe, tinha aprendido a manter-se alerta. Uma suspeita de inquietação fez com que seus sentidos se estremecessem. Olhou a Anna
e franziu o cenho. Era muito vulnerável. Se lhe ocorria algo, não se recuperaria.
-Necessito que se transforme - lhe disse Charles.
Algo em seu interior se relaxou: era isso.
-Se me passar algo, quero que corra e procure um lugar seguro. Então chama a meu pai e lhe diga que te tire daqui.
Anna vacilou.
Não era próprio dele dar explicações. Como lobo dominante na Alcateia de seu pai, raramente tinha que fazê-lo. Mas fez um esforço por Anna.
-É importante que entre ali em forma de lobo - disse enquanto se encolhia de ombros. - Aprendi a seguir meus instintos.
-De acordo.
Anna tomou seu tempo, e Charles o aproveitou para tirar a caderneta e revisar a lista. Havia dito para Justin que Leo podia trazer Isabelle e a seus cinco primeiros.
Segundo a lista de Anna, além de Isabelle, somente Boyd figurava também na lista que lhe tinha dado seu pai. Se Justin era o segundo de Leo, não havia nenhum outro
lobo que supusesse uma ameaça para ele.
A dor da ferida lhe fez retornar à realidade. Nenhum deles tinha a menor oportunidade com ele.
Anna terminou de transformar-se. Observou-a sentada no assento do condutor, ofegante, e pensou que era preciosa. Negra como o carvão com uma mancha branca no focinho.
Era pequena por ser uma mulher lobo, mas muito maior que um pastor alemão. Seus olhos eram de um azul pálido, o qual era estranho porque como humana eram marrons.
-Está preparada? -perguntou Charles.
Uivou ao incorporar-se, fazendo pequenos buracos com suas unhas no assento de pele. Sacudiu-se como se estivesse molhada e inclinou a cabeça uma só vez.
Charles não viu ninguém lhes observando das janelas, mas havia uma pequena câmera de segurança engenhosamente situada no alpendre. Saiu da SUV, assegurando-se
de não mostrar a dor que sentia ao caminhar.
No banheiro de Anna tinha comprovado que a ferida se estava curando com normalidade assim que tinha passado o efeito da prata. Tinha considerado a possibilidade
de fingir estar em pior estado, e o teria feito de ter estado totalmente seguro de que aquilo era obra de Leo. Atuar daquela forma teria feito que Leo lhe atacasse,
mas Charles não tinha nenhuma intenção de matá-lo até saber exatamente o que estava ocorrendo.
Manteve a porta da SUV aberta até que Anna saiu e, juntos, dirigiram-se para a casa. Não se incomodou em bater na porta. Não era uma visita de cortesia.
O interior da casa tinha mudado muito, as paredes escuras tinham side Branqueadas e a luz elétrica tinha substituído os abajures de gás. Embora Anna fosse ao seu
lado, não necessitava que lhe guiassem para o salão porque aquela era a única habitação com gente.
Apesar das reformas na decoração, o orgulho e a alegria do Willie eram insubstituíveis. A enorme chaminé de granito feita à mão ainda dominava o salão. Isabelle,
que sempre queria ser o centro da atenção, estava sentada no suporte da mesma. Leo estava frente a ela, com Justin a sua esquerda e Boyd a sua direita. Os outros
três lobos estavam sentados em refinadas cadeiras vitorianas. Todos, exceto Leo, estavam vestidos com escuros trajes de risca escura. Leo só usava calça, para exibir
sua pele morena e demonstrar que estava em boa forma.
O aspecto ameaçador que pretendiam transmitir ficava mitigado tanto pela cor entre rosado e púrpura da decoração e as paredes como pela roupa da mesma cor de Isabelle.
Charles avançou um par de passos pelo salão e se deteve. Anna se apertou contra suas pernas, não o suficiente para lhe fazer perder o equilíbrio, mas sim para
lhe recordar que estava ali.
Ninguém falou porque tocava a ele romper o gelo. Charles tomou ar e o conteve enquanto esperava a ver o que lhe diziam seus sentidos. Tinha herdado de sua mãe
muito mais que o tom de pele, as feições e a habilidade de trocar mais rápido que os outros homens lobo. Também tinha seu poder para ver. Não com os olhos, a não
ser com o espírito.
E havia algo corrupto na Alcateia de Leo; podia senti-lo.
Olhou no interior dos olhos azuis de Leo e não viu nada que não tivesse visto antes. Nenhum indício de loucura. Não nele, mas sim em alguém de sua Alcateia.
Observou aos três lobos que não conhecia e compreendeu o que Anna tinha comentado sobre seu aspecto. Em seu estilo de viking dinamarquês, Leo era um homem bastante
atraente, mas era um guerreiro e aquele era o aspecto que transmitia. Boyd tinha um nariz afilado e o corte militar de seu cabelo fazia com que suas orelhas parecessem
mais bicudas do que eram na realidade.
Todos os lobos que não conhecia pareciam modelos de passarela. Magros e fibrosos, e encaixavam perfeitamente em seus trajes. Apesar de pequenas diferenças na cor
de sua pele, existia alguma semelhança entre eles. Isabelle recolheu as pernas e lançou um profundo suspiro.
Charles fez caso omisso de sua impaciência porque naquele momento ela não era o mais importante. O mais importante era Leo. Centrou seu olhar no Alfa e disse:
-O Marrok me enviou para te perguntar por que vendeu o menino como escravo.
Deu-se conta de que não era a pergunta que Leo esperava. Isabelle pensava que fossem falar sobre Anna. De fato, deviam fazê-lo, mas Charles pensou que começar
com a pergunta de seu pai era melhor porque não lhes surpreenderia.
-Não tenho filhos - disse Leo.
Charles negou com a cabeça.
-Todos os lobos são seus meninos, Leo, e você sabe disso. São teus para que os ame, alimente-os, proteja-os, guie-os e os eduque. Vendeu a um jovem chamado Alan
Mackenzie Frazier. A quem e por quê?
-Não era da Alcateia - disse Leo enquanto estendia os braços. -É caro manter a tantos lobos felizes na cidade. Necessitava do dinheiro. Não tenho nenhum problema
em te dar o nome do comprador, embora acredite que somente era o intermediário.
Verdade. Tudo era verdade. Mas Leo tinha sido muito cuidadoso com as palavras que tinha empregado.
-Meu pai quer o nome e a maneira em que se contatou com ele.
Leo fez um gesto com a cabeça a um dos homens arrumados, a quem passou junto a Charles com o olhar baixo, embora dedicou um instante para olhar a Anna, que baixou
as orelhas e grunhiu.
Charles concluiu que aquele tinha exercido pouca influência sobre ela.
-Posso te ajudar em algo mais? - perguntou Leo educadamente.
Todos os lobos de Leo usavam o truque de Isabelle com o perfume, mas Charles possuía um agudo olfato e percebeu que Leo estava... triste.
-Não atualizou os membros de sua Alcateia nos últimos cinco ou seis anos - disse Charles, perguntando-se ainda sobre a reação de Leo.
Topou com rebeldia, ira, medo, mas nunca com tristeza.
-Sabia que te daria conta. Revisou a lista com Anna? Sim, sofri uma pequena rebelião e a sufoquei com severidade.
De novo a verdade, embora não toda. Leo tinha a habilidade de um advogado para utilizar a verdade precavidamente e para mentir deixando uma pista falsa.
-Por isso matou a todas as fêmeas de sua Alcateia? Rebelaram-se todas?
-Não havia muitas mulheres. Nunca há suficientes.
Outra vez. Havia algo que lhe escapava. Leo não era o lobo que tinha atacado ao jovem Frazier. Tinha-o feito Justin.
O lobo de Leo retornou. Deu a Charles uma nota com um nome e um número de telefone escritos em tinta púrpura.
Charles guardou a nota em seu bolso e assentiu.
-Tem razão. Não há suficientes fêmeas. Por isso temos que as proteger, não as matar. Matou-as você?
-Às mulheres? Não.
-A quantas?
Leo não respondeu e Charles sentiu que seu lobo se fortalecia pela proximidade da caça.
-Não matou a nenhuma das mulheres - disse Charles.
Olhou aos homens esculturais e logo para Justin, quem tinha um atrativo menos evidente.
Leo estava protegendo a alguém. Charles elevou o olhar até Isabelle, uma mulher com uma predileção especial pelos homens bonitos. Tinha mais anos que Willie O'Shaughnessy
quando este começou a voltar-se louco.
Charles se perguntou quanto tempo fazia que Leo sabia que se tornou louca. Voltou a olhar ao Alfa.
-Deveria ter pedido ajuda ao Marrok.
Leo negou com a cabeça.
-Sabe o que teria ocorrido. A teria tido que matar.
A Charles teria encantado ver a reação de Isabelle mas não podia apartar os olhos de Leo, um lobo encurralado é algo muito perigoso.
-E quantos morreram em seu lugar? A quantos de sua Alcateia perdeu? E as mulheres que ela matou por ciúmes e os que você teve que matar para protegê-la? E os lobos
que se rebelaram contra o que vocês dois estavam fazendo? Quantos no total?
Leo levantou o queixo.
-Nenhum nos últimos três anos.
A ira despertou em seu interior.
-Correto -assentiu Charles brandamente. -Não desde que tem a um valentão abusando de uma mulher indefesa que a transformou sem seu consentimento. Uma mulher a
que tratou brutalmente sem descanso.
-Se a tivesse protegido, Isabelle teria acabado odiando-a -explicou Leo. -Em troca, obriguei a Isabelle a protegê-la. Funcionou, Charles. Isabelle está estável
há três anos.
Até que tinha ido a casa de Anna aquela manhã e tinha descoberto que Charles estava interessado nela. A Isabelle nunca tinha gostado que prestassem atenção a outras
fêmeas enquanto ela estava perto.
Arriscou-se a jogar uma olhada a Isabelle e viu que, embora não se moveu do suporte, mantinha-se em posição de alerta se por acaso decidia atacar. Seus olhos tinham
trocado e refletiam um entusiasmo pela violência que sabia que estava a ponto de desatar-se. Lambeu os lábios e começou a balançar-se com impaciência.
Charles sentiu asco pelo desperdício que se produziu na Alcateia. Voltou a centrar sua atenção no Alfa.
-Não se produziram mais mortes porque têm a uma Omega para manter a calma, e porque não há outras mulheres que possam lhe fazer concorrência, salvo Anna, a qual
não está interessada em nenhum de seus lobos, não depois de que a estuprassem repetidamente cumprindo suas ordens.
-Isso manteve Anna com vida - insistiu Leo. - As duas.
Leo agachou à cabeça pedindo amparo.
-Diga a seu pai que está estável. Diga que eu me encarregarei de que não faça mal a ninguém mais.
-Hoje tentou matar a Anna - disse Charles com calma. - E embora não o tivesse feito... É uma demente, Leo.
Viu como a última luz de esperança abandonava o rosto de Leo. O Alfa sabia que Charles não deixaria a Isabelle com vida; era muito perigosa, muito imprevisível.
Leo sabia que também estava morto. Tinha trabalhado muito duro para salvar a sua companheira.
Leo lançou seu ataque sem avisar, mas Charles estava preparado. Leo não era o tipo de lobo fácil de matar. Aquela era uma briga sem concessões. Mas os dois sabiam
quem ia sair vencedor.
Anna tinha ficado petrificada ante as revelações de Leo, mas aquilo não lhe impediu de reagir quando este iniciou o ataque. Não pôde conter seu instinto de proteger
a Charles e se equilibrou para onde estavam. De repente, e apesar da sua feroz resistência, um par de fortes mãos a agarraram pelo pescoço e a arrastaram para trás.
-Quieta aqui - a voz de Boyd soou como um estrondo. - Tranquila. Esta não é sua luta.
Aquela voz, a que estava acostumada a obedecer, acalmou-a e lhe deu a possibilidade de pensar. Também ajudou o fato de que Charles evitasse o primeiro ataque de
Leo com um mínimo movimento de seus ombros.
Os outros lobos se puseram de pé e podia distinguir como Justin repetia insistentemente:
-Mata-o, mata-o.
Não soube decidir a que lobo se referia. Justin odiava a Leo pelo controle que exercia sobre ele e por ser o companheiro de Isabelle. Talvez não lhe importasse
qual dos dois morresse.
Leo lançou três murros seguidos, mas todos falharam. O terceiro, no que pôs todo seu empenho, quase lhe fez perder o equilíbrio e deu um torpe passo para diante.
Charles aproveitou a ocasião para cortar a distância entre ambos e, com um movimento que Anna foi incapaz de perceber, golpeou ao Alfa no ombro, deixando-o grunhindo
de ira e dor.
Tudo o que passou depois foi tão rápido que Anna não foi capaz de precisar a ordem em que se produziu.
Houve dois disparos seguidos. Boyd deixou de segurar a Anna enquanto amaldiçoava e Isabelle soltou uma frenética e excitada gargalhada. Com um só olhar, Anna soube
o que tinha ocorrido. Isabelle sustentava uma pistola enquanto observava a luta, esperando uma oportunidade para disparar em Charles. Anna se desfez de Boyd e cruzou
o salão a toda velocidade. Da chaminé, Isabelle olhou para Anna diretamente nos olhos e disse bruscamente:
-Detenha, Anna.
Estava tão convencida de que Anna obedeceria que nem sequer se assegurou de que esta a tivesse ouvido, voltando a dirigir toda sua atenção à luta entre Leo e Charles.
Embora Anna sentisse a força da ordem que lhe tinha dado Isabelle, ignorou-a. Impulsionou-se com as patas traseiras e se equilibrou sobre ela. Mordeu ferozmente
o braço de Isabelle sentindo o estalo do osso, satisfazendo assim a ira de seu lobo. A força de seu salto precipitou a Isabelle do suporte de quase dois metros de
altura e ambas golpearam o chão. Anna continuava mordendo o braço que sustentava a arma.
Anna se agachou esperando que Isabelle fizesse algo, mas esta não se moveu. Alguém se aproximou por detrás e Anna lhe grunhiu ameaçadoramente.
-Tranquila - disse Boyd com uma voz serena que ao menos conseguiu que Anna lhe escutasse.
Pôs as mãos sobre as costas de Anna e esta grunhiu ainda mais forte. Mas Boyd não lhe prestava atenção; estava olhando a Isabelle.
-Está morta - disse. - O merecia, por esquecer que não é uma loba total que deve obedecer suas ordens. Deixa-a, Anna. Tem-lhe quebrado a cabeça contra a chaminé.
Já está.
Quando Anna a soltou a contra gosto, Boyd se assegurou de que Isabelle não voltasse a levantar-se lhe partindo o pescoço. Continuando, recolheu a arma do chão.
Olhando fixamente o corpo destroçado de Isabelle, Anna começou a tremer. Levantou uma pata duvidando de se devia aproximar-se ou afastar-se. Uma lembrança a golpeou
de repente e aquilo lhe fez recordar que ainda havia uma luta pendente e que Isabelle tinha disparado em Charles duas vezes.
Se Charles estava ferido, não o demonstrava. Estava tão fresco como no princípio. Em troca, Leo cambaleava com um braço imprestável. Charles se colocou atrás dele,
golpeou-lhe no pescoço com o bordo da mão e Leo desabou como uma pipa quando o vento deixa de soprar.
Todos os lobos presentes, exceto Anna, soltaram um suave uivo, chorando a morte de seu Alfa. Ignorando-os, Charles se ajoelhou junto a Leo e, tal e como Boyd fazia
com a Isabelle, assegurou-se de que o pescoço estava realmente quebrado. Charles permaneceu imóvel, com se fosse um homem propondo matrimônio. Inclinou a cabeça
e fechou os olhos ao defunto.
Justin se moveu tão rápido que Anna não teve oportunidade de avisar Charles. De fato, nem sequer se tinha dado conta de que Justin se transformou. Golpeou Charles
como um aríete e este caiu ao chão debaixo de Justin. Mas, embora Anna ficasse imóvel, Boyd não. Disparou em Justin no olho assim que este golpeou Charles. Tudo
tinha terminado.
Boyd apartou o corpo inerte de Justin de cima de Charles. Anna não recordava haver-se movido, mas se encontrou sobre Charles enquanto não deixava de grunhir para
Boyd. Este retrocedeu lentamente, com as mãos estendidas e a pistola no cinto. Quando Boyd deixou de ser uma ameaça, Anna centrou sua atenção em Charles, que estava
estendido no chão, de barriga para baixo, coberto de sangue. O nariz de Anna lhe dizia que parte do sangue era de Justin.
Pelo menos, um dos disparos de Isabelle lhe tinha alcançado. Podia ver o buraco sangrento em suas costas. Em sua forma de lobo não podia ajudá-lo e necessitava
de muito tempo para transformar-se. Olhou por cima do ombro para Boyd, quem se encolheu de ombros e disse:
-Não posso lhe ajudar se não me deixa me aproximar.
Olhou-o fixamente, lhe desafiando com o olhar como nunca tinha feito antes. A Boyd não pareceu lhe importar. Esperou a que se decidisse. Seu lobo não confiava
em ninguém quando se tratava de seu companheiro, mas não tinha outra opção.
Separou-se de Charles deixando espaço ao Boyd, mas não pôde evitar lhe grunhir quando o pôs de barriga para cima para examinar as feridas. Boyd encontrou o segundo
balaço na panturrilha esquerda. Tirou a jaqueta do traje e rasgou sua camisa de seda, pulverizando os botões por todo o chão. Fez farrapos a camisa e, enquanto enfaixava
a Charles com mão perita, começou a dar ordens.
-Holden, chama o resto da Alcateia, começando pelo Rashid. Diga-lhe que traga todo o necessário para curar feridas de prata e que há orifício de saída. Quando
acabar, chama o Marrok e lhe explique o que passou. Encontrará seu número na agenda de Isabelle, na gaveta que há na cozinha, debaixo do telefone.
Anna uivou. Tinham-lhe alcançado os dois disparos de Isabelle.
-Não morrerá - disse Boyd atando as últimas bandagens. Jogou uma olhada ao salão e amaldiçoou. -Este lugar parece a cena final de Hamlet. Gardner, você e Simon
comecem a limpar este desastre. Vamos levar Charles a um lugar mais tranquilo. Não estará muito contente quando despertar e todo este sangue não ajudará muito.
Boyd pegou Charles nos braços e o levou a outra sala. Anna lhe seguiu.
? ? ?
De novo em forma humana, Anna repousava na cama junto a Charles. Tinha vindo Rashid, que era médico além de homem lobo, e tinha substituído as bandagens provisórias
por outras esterilizadas; depois tinha partido. Comunicou a Anna que Charles estava inconsciente pela perda de sangue. Boyd entrou no quarto pouco depois e lhe aconselhou
que deixasse Charles sozinho antes de que despertasse. O quarto estava reforçado para resistir investidas de um lobo raivoso, Anna não.
Não discutiram quando Anna se negou. Quando saiu do quarto, Boyd o fechou com chave. Assim que Anna esteve segura de que partiu, se trocou. A maior parte da roupa
que havia no velho armário era de tamanho único. Encontrou uma camiseta e jeans que não ficavam muito mal.
Charles não se deu conta quando retornou à cama. Anna colocou a cabeça junto à dele e escutou sua respiração.
? ? ?
Não despertou tranquilo. Estava descansando mansamente e, de repente, levantou-se sobressaltado. Anna não o tinha visto nunca transformar-se e, embora sabia que
o fazia incrivelmente rápido, ignorava que fosse tão formoso. Começou pelos pés e, como uma manta de pelagem avermelhada, a transformação percorreu todo seu corpo,
deixando a um abominável e irado homem lobo que sangrava através das bandagens.
Os brilhantes olhos amarelados observaram o quarto: primeiro a porta fechada, depois as barras na janela e finalmente a Anna. Ela estava estirada, muito quieta,
lhe permitindo que absorvesse o ambiente e compreendesse que não havia nenhuma ameaça. Quando a olhou pela segunda vez, Anna se incorporou e lhe examinou as bandagens.
Charles grunhiu e, então, acariciou-lhe o focinho.
-Perdeu muito sangue. As bandagens não lhe farão parecer mais fraco que se estivesse sangrando por toda parte. Ao menos assim não arruinará o tapete.
Quando terminou, acariciou-lhe o pescoço e aproximou sua cabeça a dele.
-Pensava que te tinha perdido.
Permaneceu um instante junto a ela e depois se dirigiu para a porta.
-Está fechada com chave - disse Anna descendo da cama e dirigindo-se à ele.
Dirigiu-lhe um olhar paciente.
Ouviu-se um ruído surdo e um homem magro de aspecto comum que parecia ter pouco mais de vinte anos abriu a porta. Ajoelhou-se e observou Charles atentamente antes
de fixar-se nela. A força que transmitiam seus olhos a deixou sem respiração, de modo que não se surpreendeu quando reconheceu sua voz.
-Dispararam-lhe três vezes em um dia - murmurou o Marrok. - Acredito que Chicago foi mais duro que o normal, filho. Será melhor que te leve para casa, não acha?
Anna não sabia o que dizer, de modo que não disse nada. Apoiou uma mão nas costas de Charles e tragou saliva.
Charles olhou a seu pai.
-O perguntou? - disse o Marrok dirigindo-se ao Charles.
Este emitiu um suave grunhido. O Marrok riu e ficou em pé.
-Não passa nada, já o farei eu. É Anna?
Aquilo não era exatamente uma pergunta. Sua garganta estava muito seca para responder. Decidiu assentir.
-Meu filho gostaria que viesse conosco para Montana. Asseguro-te que se houver alguma coisa que te incomode, encarregar-me-ei pessoalmente de que possa te instalar
em qualquer outro lugar onde se sinta melhor.
Charles grunhiu e Bran levantou uma sobrancelha enquanto olhava a seu filho.
-Sou o Marrok, Charles. Se a garota quer ir para outro lugar, tenho que deixá-la.
Anna se apoiou no quadril de Charles e disse:
-Acredito que eu gostaria de conhecer Montana.
Patricia Briggs
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