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Jace Montgomery é um homem só. Passaram-se três anos, mas não conseguiu ainda ultrapassar o misterioso suicídio da sua noiva Stacy. Não voltou a interessar-se por outra mulher desde então e a família continua a culpá-lo pela sua morte. Ao folhear um dos antigos romances de Stacy, Jace descobre uma fotografia de uma casa com uma mensagem codificada. "Nossa, mais uma vez. Juntos para sempre. Até lá". O bilhete datava do dia anterior à morte dela. Obcecado pela necessidade de entender o suicídio de Stacy, Jace procura a propriedade - Priory House, uma enorme fortaleza de tijolo em Margate, Inglaterra - e compra-a. Jace parte para Inglaterra determinado em descobrir finalmente a verdade. Não demora a perceber que a casa está assombrada por um obstinado fantasma, Ann Stuart, com quem se vê obrigado a lidar para resolver o mistério. Ann morreu em circunstâncias idênticas às da sua falecida noiva e ele tem um palpite de que existe uma relação entre ambas. Através das suas investigações e com a ajuda de uma bela jornalista, Jace vê-se forçado a estabelecer a conciliação entre a vida e a morte da noiva. Alguém para amar é uma bela descoberta sobre o tempo e o amor da autoria de uma das romancistas mais acarinhadas pelos leitores de todo o mundo.
Por vezes, um coração despedaçado só encontra consolo através do tempo... Num lugar especial, o passado regressa à vida e os sonhos tornam-se realidade.
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Margate, Inglaterra
A casa era enorme, de uma fealdade assustadora, e Jace Monrgo- mery acabara de comprá-la por quatro milhões e meio de dólares.
Ao transpor lentamente, de carro, os portões de ferro forjado, enquadrados entre colunas de tijolo rectangulares encimadas por leões de pedra, invadiu-o um certo
temor de ver a casa. Era actualmente o dono de Priory House, mas pouco se recordava da sua única entrevista com o corretor. O caminho de asfalto estendia-se, sinuoso,
através de uma zona arborizada bastante bonita. Fora informado de que os jardins datavam de 1910 e haviam sido concebidos por um famoso arquitecto paisagista. As
árvores tinham crescido, os arbustos em flor estavam no sítio certo e a relva era perfeita. Se Jace gostasse de montar a cavalo - e não era esse o caso - o parque
seria um sonho tornado realidade.
Ao aproximar-se de um enorme carvalho, parou o carro e saiu. Dali a momentos, a casa surgiria à sua frente e ele precisava de estar prepa
rado. Para não ficar com a conta bancária a descoberto, pedira ao seu tio bilionário um empréstimo a fim de proceder a esta aquisição. Uma vez que a casa se encontrava
no mercado para venda há mais de três anos, Jace sabia que, quando decidisse vendê-la, seria difícil ver-se livre dela.
Tentara alugar a casa, mas o dono não aceitara a proposta. Queria, pura e simplesmente, desembaraçar-se daquela monstruosidade.
- Ora muito bem! O que se passa de errado com esta casa? - perguntou Jace ao corretor, ou agente imobiliário, como lhes chamavam em Inglaterra. - Além de ser feia,
claro.
Imaginou uma canalização permanentemente entupida, aviões a jacto que passavam a rasar o terreno, vizinhos assassinos. No mínimo, humidade e decomposição.
- Parece que há um fantasma qualquer - elucidou Nigel Smith- -Thompson com o ar de um homem que não acredita nessas coisas.
- Mas não há sempre um fantasma em todas as casas antigas inglesas? - voltou à carga Jace.
- Informaram-nos de que este fantasma é particularmente persistente. Aparece com frequência e incomoda os proprietários.
"Assusta-os de morte, é o que é", pensou Jace. "Será por isso que a casa mudou tantas vezes de dono?"
Quando Jace pediu o dinheiro emprestado ao tio Frank a fim de comprar a casa, ele mandara proceder a uma investigação de uma ponta à outra. Desde o final do século
XIX que ninguém conseguira manter aquela casa por um período superior a três anos. O tio chegara à conclusão de que a casa era um mau investimento e que Jace não
devia comprá-la. O sobrinho não pronunciara uma só palavra, limitando-se a entregar-lhe o envelope que tinha encontrado dentro de um livro que pertencera a Stacy.
Frank retirou a fotografia do interior do envelope, examinou-a com desagrado, e devolveu-a. Nas costas da mesma, alguém escrevera "Nossa, mais uma vez. Juntos para
sempre. Vejo-te lá a 11 de Maio de 2002".
Frank levou um momento a juntar as peças.
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- Stacy morreu em...
- No dia seguinte - rematou Jace, suspirando fundo. - A doze de Maio, Stacy Evans, a minha noiva, suicidou-se num quarto por cima de um pub, em Margate, Inglaterra.
Frank pegou no envelope e examinou o carimbo dos correios.
- Isto foi enviado de Margate e o carimbo data de 8 de Abril - comentou.
Jace assentiu com a cabeça.
- Alguém lho mandou, antes de partirmos para Inglaterra.
Reflectiu na viagem que mudara a sua vida. Trabalhava no negócio
de compra e venda de propriedades da família desde que recebera o diploma universitário. A menos de uma semana da data em que se devia casar com Stacy, o seu tio
Mike, irmão de Frank, telefonara a informá-lo de que o dono de uma empresa inglesa de fabrico de ferramentas estava prestes a desistir da venda. Se isso acontecesse,
três contratos de exportação cairiam por terra e cerca de cem pessoas ficariam desempregadas. Uma vez que fora Jace o responsável pelo negócio, era ele o único que
poderia resolver a situação. Disse a Stacy que lamentava, mas teria de apanhar o avião para Inglaterra. Prometeu que trabalharia noite e dia para voltar o mais depressa
possível.
No entanto, Stacy surpreendera-o ao pedir-lhe para o acompanhar.
- Disse-lhe que não achava uma boa ideia - prosseguiu Jace. - A verdade era que não me apetecia ter de lidar com a sua madrasta. Stacy já tinha stresse que chegasse
em cima dela sem o acréscimo de uma viagem ao estrangeiro.
- Lembro-me disso - anuiu Frank. - Se a Stacy recusasse flores do campo vermelhas, Mrs. Evans iniciaria uma campanha a favor das mesmas. Tudo o que fosse para causar
problemas e chamar a atenção sobre si própria servia.
Jace desviou momentaneamente o olhar. Nunca existira amor entre a jovem e atraente Mrs. Evans e a sua enteada, apenas um pouco mais nova do que ela, mas muito mais
bonita, e bastante mais elegante. Stacy
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era o tipo de mulher que podia vestir um fato de treino, sem que isso ocultasse a sua riqueza e origens. O pai era um autodidacta, mas a mãe de Stacy provinha de
uma família aristocrata: sem dinheiro, mas com linhagem.
Fora somente após a morte de Stacy que a madrasta proclamara um grande amor pela enteada, ao mesmo tempo que transformava a vida de Jace num inferno. No funeral,
Mrs. Evans afirmara, aos gritos, que Stacy se tinha suicidado por culpa de Jace. "Foi você que a matou!", gritou à frente de todos. "Confesse que conheceu alguém
de quem gostava mais e, como tal, levou Stacy para fora do país, para longe da família, de forma a incitá-la secretamente à morte."
Tudo aquilo não passara de uma acusação absurda, obviamente, mas mesmo assim servira para magoar. Jace amara Stacy de corpo e alma e não fazia ideia do que a levara
a matar-se dias antes de se casarem.
- Achas que esta casa está de alguma forma relacionada com a morte de Stacy, não achas? - perguntou Frank.
- Não tenho qualquer outra pista por onde começar. - Jace levan- tou-se e pôs-se a percorrer a sala de um lado para o outro. - Passaram- -se três anos e, todavia,
não consigo pensar em mais nada. Aquele momento em que a irmã de Stacy me pôs o bilhete de suicídio à frente da cara e me acusou de ter matado a irmã persegue-me
a todas as horas do dia.
- O que disse o psiquiatra? - quis saber Frank, num tom suave.
- Deixei de ir ao consultório - respondeu Jace, com um aceno da mão. - Passámos seis meses a falar de Stacy e de mim. "Que coisas terríveis, profundamente ocultas
no meu íntimo lhe fizera em segredo
- escondidas mesmo de mim próprio - capazes de a terem levado ao suicídio?" Ele mostrou-se frustrado por eu não apresentar qualquer facto e pôs-se a atacar a minha
família. Quando concluiu que me sentia desprezível por ter nascido numa família com dinheiro, deixei de aparecer.
- E agora o que se segue, depois de teres comprado esta casa que mais parece um elefante branco? - indagou Frank, observando Jace com uma expressão dura.
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- Não sei - respondeu o sobrinho, voltando a sentar-se. - Apenas sei que preciso de pôr fim a esta dor. - Fitou o tio com uma tal ansiedade no olhar, que Frank sentiu
que a respiração lhe faltava. - Há três anos que não toco numa mulher. Sempre que levo alguém a sair, penso em Stacy.
- Ninguém acredita verdadeiramente que a culpa seja tua. Acho que a Stacy devia estar desequilibrada. Ela...
- É o que todos me dizem - retorquiu Jace, levantando-se de novo e com a raiva a ferver no íntimo. - Contudo, não se pode dizer que Stacy fosse desequilibrada. Era
meiga, boa e alegre. Costumávamos rir sobre as coisas mais disparatadas. Ela não queria saber do meu nome de família. Ria sempre que a revista Forbes nos mencionava
como uma das mais ricas... - Interrompeu-se e passou a mão pelo rosto. - Revi tudo isto mil e uma vezes mentalmente e também com o psiquiatra.
- E com a tua família.
- Sim - admitiu Jace. - Com todos. Sei que tenho sido um chato e uma praga, mas fico com a sensação de estar no meio de um remoinho. Sou incapaz de vir à tona, descer,
continuar, ir em direcção a qualquer lado. Se conseguisse deitar tudo para trás das costas, era o que faria. "Vive a tua vida" é o que todos me aconselham - prosseguiu
Jace, afundando- -se na cadeira. - Se percebesse o que aconteceu e porquê, talvez pudesse seguir em frente.
- E se descobrires algo que não te agrade?
- Está a pôr a hipótese de vir a descobrir que sou um monstro tal que ela sabia que se quisesse cancelar o casamento, eu recusaria? Ou, então, que a única maneira
que ela tinha de se ver livre de mim era suicidar-se?
- Não acreditas nisso, nem ninguém que te conhece acredita. O que te atormenta realmente?
Por um momento, Jace desviou os olhos e, em seguida, voltou a pousá-los no tio. Estava muito pálido.
- Preciso de compreender o que aconteceu - declarou. - O horror de toda esta situação já é demasiado mau, mas o mistério que a rodeia
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põe-me louco. Stacy e eu estávamos num hotel, em Londres, e discutimos - prosseguiu, tomando fôlego. - Afirmou, de súbito, que não queria ter filhos. Eu estava totalmente
concentrado em convencer aquele homem a vender-nos a empresa. Ele pedira uma verificação da situação financeira da nossa família, de há sete anos a essa parte. Na
verdade, ele não passava de um snobe e acho que, no fundo, o que queria era conhecer a nossa árvore genealógica, de há sete gerações para cá. Eu estava inundado
de trabalho e a tentar desesperadamente regressar a tempo do casamento. Stacy teve de repetir por duas vezes antes de lhe prestar atenção e julguei que estivesse
a brincar. Disse que andara a adiar esta confissão, mas não podia fazê-lo por mais tempo.
Jace respirou fundo e continuou:
- Foi uma discussão, que às tantas se descontrolou. Todas as minhas palavras pareciam enfurecê-la ainda mais. Ao dizer-lhe que ainda podia vir a mudar de opinião,
respondeu que estava a acusá-la de ser alguém incapaz de tomar uma decisão. Por fim, disse-lhe que concordava, que a amava o suficiente e assim continuaria, mesmo
que não tivéssemos filhos. Então, ela começou a gritar e saiu do quarto a correr. Julguei que tivesse ido dar um passeio para acalmar. Na altura não sabia, mas ela
levara o carro alugado.
Jace interrompeu o seu relato, esgotado por contar uma vez mais a mesma história. Concordara em ser hipnotizado numa tentativa de se recordar de algo mais relacionado
com essa noite, mas, mesmo ao entrar em transe, os acontecimentos permaneceram iguais.
Na manhã seguinte, ao acordar, Jace constatou que Stacy não regressara ao quarto deles. No momento da discussão, ficara mais irritado do que preocupado e depois
disso passara o tempo todo com o dono da empresa de ferramentas. À noite, depois de um longo e moroso dia, voltou ao hotel e, ao verificar que Stacy continuava sem
aparecer, telefonou à polícia.
Naquela altura, a irmã de Stacy, que estava nos Estados Unidos, já fora notificada pela polícia inglesa da morte por presumível suicídio da
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irmã. Stacy tinha tomado um frasco inteiro dos seus comprimidos para dormir. Tinha o passaporte na mala e a pessoa assinalada para ser informada era a sua irmã.
Jace não fora autorizado a aproximar-se do corpo de Stacy e a polícia olhara-o como se ele a tivesse assassinado. No espaço de três dias, Jace deixara de ser um
homem feliz que ansiava pelo casamento e passara a ser ostracizado pela família da sua falecida noiva.
Desde então, a sua vida deixara de existir. Comera, dormira e trabalhara, mas não se encontrava realmente vivo. As perguntas: "Porque aconteceu isto?" e "O que aconteceu
na verdade?" atormentavam-no sem cessar. Tentara tudo para se libertar das dúvidas que se apoderaram dele, mas foi incapaz. Saíra com algumas mulheres, mas tinha
consciência de não ser ele próprio. Mostrava uma delicadeza muito próxima da frieza e a um primeiro encontro nunca se seguia um segundo.
Jace pensara que ele e Stacy formavam um casal feliz. Que não tinham segredos um para o outro. Stacy era secretária num velho e conceituado gabinete de advogados
nova-iorquino e, até mesmo na opinião dos patrões, era ela quem dirigia a firma. Sabia onde estavam todos os processos e lembrava-se de todos os prazos devidos.
Apresentavam-na sempre aos novos clientes. Todos os jovens advogados haviam tentado sair com ela, mas ela recusara. Costumava esboçar um sorriso amável e dizer que
quando conhecesse o homem dos seus sonhos sabê-lo-ia.
E fora isso o que acontecera. Jace entrara na sala de reuniões com uma pasta cheia de documentos, respeitantes a um edifício em Green- wich Village cuja compra estava
a ser negociada pela sua empresa; erguera os olhos e vira-a. Stacy distribuía documentos a todos os advogados, mas, sem largar Jace de vista, metera-os na mão de
um deles e abandonara a sala.
Jace fora incapaz de se concentrar. Pela primeira vez na vida, tinha perdido o fio ao raciocínio e assinado contratos que nem lera. Mostrou- -se indiferente aos
esgares e sorrisos dos advogados que o rodeavam. Todos eles tinham tentado insinuar-se junto da bonita e elegante Stacy.
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Contudo, ela dissuadira-os com modos delicados e firmes. A partir daquele momento, todos se aperceberam de que a sua época de virgem intocável terminara.
Após a reunião, Jace mantivera-se do lado de fora da sala de conferências e procurara-a com o olhar. Outra secretária indicara-lhe o caminho com um sorriso e ele
aproximara-se da secretária dela. Stacy esperava-o, com o casaco vestido, e saíram juntos do escritório para ir almoçar.
Desde então, haviam-se tornado inseparáveis. Falavam e riam e Jace achara que, ao longo dos três anos em que conviveram, tinham confessado um ao outro o que havia
a saber sobre as respectivas vidas.
Porém, não era verdade. Ele contara-lhe tudo sobre si próprio, mas Stacy guardara segredos.
- Não posso seguir em frente até fazer tudo o que puder para descobrir o que aconteceu e porquê - garantiu Jace, olhando novamente para o seu tio Frank.
- E achas que esta casa tem algo a ver com o caso?
- Talvez não exactamente a casa, mas, sem dúvida, a pessoa com quem ela se encontrou nessa noite. Stacy tinha qualquer ligação com aquela cidade e alguém que lá
vivia. As pessoas da localidade sabem coisas que não contaram.
- Não podias contratar...
- Um detective privado? Pensei nisso, mas acho que se alguém aparecesse naquela cidadezinha e se pusesse a fazer perguntas, as pessoas fechar-se-iam na sua concha.
- Nesse caso, em que pode ajudar-te a compra de uma casa antiga, para além de feia?
- Talvez em nada - respondeu Jace com um encolher de ombros -, mas pensei em dizer que andava a escrever um livro sobre a história da região. Uma mulher qualquer
que assaltava diligências viveu na casa e consta que passou a assombrá-la. Escrever um livro seria uma desculpa para fazer perguntas.
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- Acautela-te. Talvez a assaltante venha a revelar-se como tendo sido tua antepassada.
- Nenhuma das mulheres da nossa família faria uma coisa dessas - replicou Jace, quase deixando escapar um sorriso.
- Já ouviste falar num antepassado nosso chamado "o Saqueador", não é verdade?
- Claro que sim - confirmou Jace, fitando intensamente o tio. - Vai ou não ajudar-me?
- Não podes alugar a casa?
Jace brindou o tio com um olhar duro. Tinha o seu próprio dinheiro, bastante, contudo grande parte estava empatado em investimentos a longo prazo. Podia dirigir-se
a uma agência de hipotecas, só que a sua família apreciava a discrição.
Jace não gostaria de ter de pedir um empréstimo, o que não impedia que também lhe desagradasse que o tio o estivesse a tratar como a uma criança.
- Vou dar-te o dinheiro - decidiu Frank.
- Empreste-me o dinheiro.
Frank assentiu com a cabeça e em seguida consultou o relógio.
- Tenho uma reunião. Diz-me quanto queres e o local de entrega e o dinheiro será enviado - acrescentou.
Fiel à sua palavra, Frank transferiu o dinheiro. Jace já devolvera uma parte mediante a venda da casa que comprara para viver com Stacy. Há anos que se encontrava
vazia, parcialmente mobilada, pronta a acolher os noivos. Jace lembrava-se muitas vezes do dia em que tinham fechado o negócio da casa. Transpusera a ombreira com
ela ao colo e ambos se mostravam perdidos de riso, fingindo que a provação do casamento passara. Tinham bebido champanhe, sentados no sofá novo que haviam escolhido
juntos e falado sobre o futuro. Stacy surpreendera-o ao afirmar que queria voltar para a universidade e acabar o curso de Direito. Jace concordara imediatamente.
Agradava-lhe a ideia de ser casado com uma advogada.
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Forçou-se a voltar à realidade e olhou para o céu. O Sol brilhava intensamente e estava um lindo dia. Tinha de meter-se de novo no carro e dirigir-se àquela casa.
Já começava a sentir saudades da família, da preocupação demonstrada por todos e do quanto se esforçavam para o alegrar. Nos anos que se seguiram à morte de Stacy,
a família nunca deixara de o ouvir e de o tentar compreender. Tinha, porém, consciência de que estava a desgastá-los. Quantas vezes podia uma pessoa repisar o mesmo
assunto? Por quanto tempo podia ficar no mesmo sítio, sem seguir em frente? No mês passado, o tio Mike dissera-lhe que ele tinha de prosseguir caminho ou morrer.
"E isso o que queres fazer?", perguntara-lhe o tio, com uma centelha de irritação no olhar. "Puseste Stacy de tal forma nos píncaros que queres morrer com ela?"
Jace não conseguiu aguentar o olhar do tio e compreendeu nesse mesmo momento que tinha de fazer qualquer coisa. Boa ou má, mas algo se impunha. Uns dias mais tarde,
ao procurar um livro, tirara para fora uma edição de bolso que caíra para o fundo da prateleira. Continuava a viver no mesmo apartamento que partilhara com Stacy.
Movida por um ataque de furia após o funeral, a irmã dela fora ao apartamento e arrebatara tudo o que no seu entender pertencia a Stacy. Jace regressara a um apartamento
quase vazio, como se Stacy nunca lá tivesse vivido com ele.
Quando o livro foi parar ao meio do chão, Jace viu que se tratava do que Stacy andara a ler pouco antes de partirem para Inglaterra. Por um momento, Jace esqueceu-se
de que ela desaparecera e quase a chamou. Ao ser novamente atingido pela realidade e lembrando-se de que ela estava morta, apertou o livro com força e deixou-se
cair numa cadeira.
Examinou o livro de capa berrante e sorriu. Costumava troçar de Stacy e acusá-la de ter "gostos populares" no que tocava a romances. "Passo a maior parte do tempo
a ler documentos jurídicos", respondera. "Portanto, em casa necessito de uma leitura divertida. Devias experimentar. São fantásticos."
Jace levantou-se com a intenção de colocar o livro na mesa-de-cabeceira, mas algo caiu no chão. Ao apanhar o sobrescrito, o seu coração
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quase parou. Tinha o carimbo postal de "Margate", a cidadezinha inglesa onde Stacy morrera.
No interior havia a fotografia de uma casa horrorosa e, nas costas, alguém escrevera que se encontraria com Stacy na noite anterior àquela em que morrera. "Foi este
o motivo de ela querer ir para Inglaterra", disse em voz alta. Não o fizera por querer estar com ele, mas para se encontrar com outra pessoa. "Quem?", interrogou-se
Jace. "Porquê? Seria um homem?"
Durante dias a fio apenas conseguia pensar na fotografia, Memorizou as palavras. "Nossa, mais uma vez." O que significavam aquelas palavras? Que Stacy já fora dona
da casa? Jace passou noites de insónia, revendo mentalmente tudo o que Stacy lhe contara sobre a sua vida. Os pais divorciaram-se quando ela tinha três anos. A mãe
mudara-se com as filhas para a Califórnia, e o pai ficara em Nova Iorque, a gerir o negócio. Quando Stacy tinha dezasseis anos, a mãe morrera de cancro. Um dia,
sentira uma dor de cabeça aguda e fora a um médico. Seis semanas depois, estava morta. Stacy fora mandada para junto do pai, um homem que só tinha visto meia dúzia
de vezes em toda a sua vida. Stacy costumava rir ao contar que, no início, os dois não "se entendiam". Tratava-se de um mero comentário. Era adolescente e sentia-se
furiosa por lhe terem tirado a mãe e mais furiosa ainda por a terem mandado viver com o pai, que estava sempre a trabalhar e nunca dispunha de tempo para ela. Stacy
dizia que conseguira ser tão insuportável que, um ano depois, o pai a enviara de volta à Califórnia, para viver com a irmã da mãe.
Depois de Stacy se ter licenciado em Berkeley, estabeleceu finalmente uma amizade com o pai. Contudo, a relação durou apenas um ano, porque entretanto o pai casou-se
com uma mulher que tinha profundos ciúmes de Stacy.
Jace tentou recordar-se de todos os sítios onde Stacy dizia que estivera. Nos Verões, durante o curso universitário, costumava viajar pela Europa com um grupo de
colegas "para ver as vistas". "A minha fase
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hippie", como Stacy lhe chamava, rindo. "Teria sido nessa altura que viu a casa?", interrogou-se Jace. "Que ela fora "deles"?"
Gostaria de fazer algumas perguntas ao pai, mas Mr. Evans dissera que... Na verdade, Jace não queria lembrar-se do que o pai dela lhe dissera no dia do funeral.
Movido por um impulso, Jace tinha ido à Internet e escrevera o nome da mais famosa agência imobiliária inglesa, indicando, em seguida, "Mar- gate" para a localização.
A casa estava à venda. Reconheceu a fotografia como sendo a do sobrescrito e teve a certeza de que a fotografia da casa fora recortada de um catálogo de vendas.
Jace fez download do catálogo da casa e leu atentamente todas as palavras. Tratava-se de uma casa antiga, em parte construída sobre as ruínas de um mosteiro fundado
no início de 1100. O catálogo mencionava que havia sido convertida numa "mansão imponente" quando a Dissolução dos Mosteiros fora decretada, em 1536.
Mal viu a casa, Jace soube o que tinha a fazer. No seu íntimo, sabia que o motivo secreto que levara Stacy ao suicídio estava dentro daquela casa. Ela já lá estivera
antes. Conhecera alguém tão importante na sua vida que, assim que ele ou ela lhe escrevera algumas palavras, Stacy arranjara um modo de ir até lá ao encontro...
dele. Jace tinha a certeza de que se tratava de um homem. Sentia ciúmes, mas tinha a objectividade suficiente para admitir que podiam existir outras razões, além
do amor, para explicar o seu comportamento.
Ao decidir comprar a casa, Jace guardou segredo da família por estar certo de que, a quem quer que contasse, essa pessoa lhe daria um motivo sensato para não efectuar
o negócio. Por fim, apenas referiu o facto ao seu tio Frank, porque ele tinha o dinheiro de que precisava para adquirir a mansão.
Quando Jace se apresentou na agência imobiliária, em Londres, o corretor mostrou-se frio e delicado, mas invadiu-o a sensação de que o homem e os colegas de trabalho
brindariam com champanhe, se algum conseguisse finalmente vender aquela velha e odiosa casa. Talvez espica-
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çado pelos remorsos, o agente imobiliário entregou a Jace uma pilha enorme de catálogos de outras casas que estavam à venda em Inglaterra. Jace sorrira delicadamente,
agradeceu-lhe e depois atirou-os para o banco de trás do seu Range Rover novo em folha e deixou-os lá.
Só viu a casa uma vez antes de a comprar. Era um domingo à tarde, chovia a cântaros e faltara a electricidade. A escuridão tornava a sombria casa ainda mais aterradora.
Contudo, pouca importância teve, porque Jace mal olhou para o local. "Stacy ter-se-ia sentado alguma vez naquele assento junto à janela, a olhar lá para fora?",
interrogou-se. "Alguma vez subira aquelas escadas?"
Uma vez que era domingo, não conhecera a governanta nem o jardineiro. O corretor mencionou que Jace podia obviamente contratar o seu próprio pessoal, mas ambos tinham
trabalhado na casa durante muitos anos e... "Sim, sim. Faço questão de mantê-los", decidira Jace, que não tencionava permanecer ali o tempo suficiente para se dar
ao trabalho de procurar outros empregados.
Portanto, estava pronto para se assenhorar da casa e do respectivo conteúdo. A troco de mais umas notas de cem, o corretor tinha convencido o antigo dono a deixar
uma grande parte do mobiliário, bem como algum equipamento doméstico. Permaneceram também algumas antiguidades, nada de muito valioso, várias cadeiras, camas e peças
de porcelana. Durante a negociação do preço, o proprietário levara mais tempo a discutir o valor do mobiliário do que o que fizera com a casa. Frustrado, Jace acabara
por desabafar: "Veja se o convence de que o fantasma pode ter ficado afectivamente ligado ao mobiliário e pode ir-se embora juntamente com ele." Dissera-o por piada
e o corretor emprestara o mesmo tom humorístico ao comentário, mas o proprietário não achou graça. Deixou imediatamente de regatear e acedeu às exigências de Jace.
Naquele momento, Jace meteu-se no carro novo e seguiu caminho. Ao deparar-se com a casa, emitiu um suspiro. Era tão aterradora quanto se lembrava. Vista do exterior,
assemelhava-se a uma enorme fortaleza rectangular, de três andares, com grossas torres de tijolo, destacando-se
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em cada esquina. Na verdade, a casa era oca - ou, pelo menos, assim lhe parecia. Embora aparentasse ser uma construção sólida, ao passar com o carro através de um
espaço entre os edifícios, entrava-se num grande pátio relvado. Se a casa fosse observada do ar, daria a impressão de um rectângulo sem nada lá dentro.
No interior, era quase como se existissem duas casas, uma para os proprietários e outra para o pessoal necessário para gerir uma habitação daquela dimensão. Dois
lados do rectângulo formavam uma casa normal, provida de amplas salas, algumas com bonitos tectos. Os restantes dois tinham divisões mais pequenas, onde se situavam
as zonas de serviço, incluindo a lavandaria e uma enorme cozinha. Havia ainda dois apartamentos para o pessoal interno.
Por cima da parte destinada ao proprietário, existiam dois andares com quartos e casas de banho. O quarto principal era grande, de nove por seis metros, com ligação
a outros dois mais pequenos que os antigos donos tinham usado como roupeiros gigantescos. O terceiro andar era um paraíso infantil, composto por quatro quartos e
duas casas de banho, sem esquecer um roupeiro enorme sob o beiral do telhado que podia servir de "esconderijo".
Jace conduziu o automóvel pela larga abertura entre os edifícios e entrou no pátio. Até esse momento não vira ninguém, nem mesmo o jardineiro, a governanta, ou um
jovem a aparar a relva. Também não vira animais. Haveria algum no terreno? Cães? Ovelhas? Vacas, talvez? Permaneceu uns instantes dentro do carro e pensou que na
sua actual situação de dono da casa deveria saber se havia ou não gado na sua propriedade.
Ao ouvir uma pequena pancada no vidro da janela, deu tamanho salto que bateu com a cabeça no tejadilho. Virou-se e deparou-se com uma mulher velha e baixinha, de
pé, no exterior. Era baixa e robusta, de faces rosadas e com um avental cheio de feijão-verde. Carregou no botão para baixar a janela.
- Saia lá! - convidou ela com um marcado sotaque que parecia comer metade de cada palavra. Demorou um segundo a entendê-la. - Vai ficar
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aí sentado o dia todo ou entrar e almoçar? Hoje sirvo a comida, em vez de Jamie.
Depois destas palavras, atravessou com um passo rápido um arco de tijolo encimado por um telhado pontiagudo. Jace hesitou durante alguns segundos e depois foi atrás
dela. "Que remédio!", pensou. Ela era o primeiro sinal de vida que observara no local. Além disso, visto que existia uma ala norte, uma sul e uma parte central,
receava que a mulher desaparecesse e não voltasse a vê-la. Por outro lado, seria ela o fantasma? Estava longe da imagem de uma assaltante de diligências, mas...
Dentro da casa não se avistava vivalma. Pairava um silêncio de morte. As paredes de grosso tijolo e de pedra abafavam qualquer som. Jace encontrava-se no hall principal
e tinha pela frente uma bela escada polida de madeira de carvalho. A meio caminho havia uma janela alta de vidro metalizado com uma inserção circular, representando
dois leões. "Onde é que ela se metera?", interrogou-se, ao mesmo tempo que o seu estômago dava sinal. Desde manhã cedo que não comia nada e já passava das três da
tarde.
Não conseguia lembrar-se da planta dos andares que o agente da imobiliária lhe mostrara juntamente com a casa. Virou à direita e percorreu um corredor, espreitando
para dentro de cada divisão, à medida que avançava. Avistou uma grande sala de estar com painéis de madeira de carvalho, que ocupavam três quartos da parede. Ao
lado, situava-se a cozinha. "Eureka!", pensou, mas não encontrou ninguém. Os armários eram bonitos, o chão e os caixilhos da janela eram de pedra. Abriu o frigorífico.
Estava vazio. Talvez a mulher cozinhasse lá fora, provavelmente, num grelhador.
Jace recordava-se vagamente de o corretor lhe ter dito que havia duas cozinhas, uma para a família e outra para Mrs. Browne. O homem nunca se lhe referiu como "a
governanta", mas usou sempre o nome, como se ela fosse uma pessoa importante.
Virou à direita e passou junto a outra salinha de estar, a que se seguia uma segunda. Janelas enormes, do chão ao tecto, preenchiam
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uma das paredes, mas a outra estava vazia. "Colocaria estantes neste sítio", pensou. "Se cá ficasse, claro!" O tecto era redondo e coberto de desenhos delicados
em gesso. A única porta era aquela por onde entrara.
Girou sobre os calcanhares e fez o caminho de volta até ao hall de entrada. Desta vez, atravessou a velha porta de carvalho, à esquerda. Viu- -se numa passagem estreita
que curvava bruscamente para a esquerda. Passou junto a uma lavandaria com tamanho suficiente para se ocupar da roupa da tripulação de um submarino, em seguida uma
pequena divisão com mais uma escada, um roupeiro embutido, um toucador e uma porta que dava para o exterior. Pusera a mão na maçaneta desta porta, quando o olfacto
o fez virar à esquerda. Entrou numa cozinha enorme que parecia retirada de uma revista histórica. Era diferente de todas as cozinhas que vira até esse momento. Por
um lado, não havia qualquer copa e nas paredes alinhava-se aquilo que parecia ser uma mistura de roupeiros e um aparador galês que exibia um conjunto surpreendente
de pratos antigos, todos eles diferentes. Numa das paredes via-se um lava-loiça antigo, na outra, um fogão cheio de portinholas tão ao gosto dos ingleses e uma enorme
mesa de madeira de carvalho no meio da divisão. As pernas da mesa tinham cerca de trinta centímetros de diâmetro e terminavam em grandes pés redondos.
Mrs. Browne estava junto ao lava-loiça, de costas para ele.
- Teve dificuldade em achar o sítio, não foi? - perguntou.
- Perdi-me completamente - respondeu Jace.
- O senhor é importante, não é? - replicou, virando-se para o olhar, segurando um prato com uma sanduíche enorme. - E quase tão bonito quanto o nosso príncipe William,
mas não tanto como o meu Jamie. Agora, sente-se e coma. Tem um ar esfomeado. Imagino que lá nos Estados Unidos se tem alimentado de salsichas e hambúrgueres. Ora
sente- -se e aprecie uma refeição a sério.
Jace obedeceu-lhe como se fosse uma criança. Puxou uma velha cadeira de carvalho e sentou-se. A sanduíche que ela lhe colocou na frente
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era divinal: rosbife, cebola frita e queijo sobre um pão que ele apostaria ser caseiro.
- Óptimo - elogiou com a boca cheia. - Excelente!
- Foi feita pelo meu Jamie.
- O seu filho? - interessou-se Jace, engolindo um pedaço.
- Céus, nem pensar! Bem gostava, aliás todos gostávamos que Jamie fosse nosso filho. - Esboçou um aceno de cabeça na direcção de uma fotografia emoldurada e pendurada
na parede. Mal a distinguia, uma vez que se encontrava semienterrada no meio de panelas, panos da louça e fieiras de alho. A fotografia mostrava um bonito jovem,
louro, de olhos azuis e pareceu-lhe vagamente familiar. - É James
Olivier1 - acrescentou, como se achasse que ele sabia de quem se tratava.
Percebendo que não era esse o caso, exibiu uma expressão desdenhosa, de olhos enrugados nos cantos.
Jace achou que, independentemente da idade que tivesse, ela não correspondia à aparência: ou era bastante mais velha do que parecia, ou bastante mais nova.
-Jamie Olivier! - pronunciou, erguendo o tom de voz, como se Jace fosse surdo e, além disso, ignorante.
Ao ver que ele mantinha o mesmo ar inexpressivo, tirou um grosso livro de cima do balcão e pousou-o na mesa, ao seu lado. Era um livro de culinária e a capa mostrava
o jovem da fotografia pendurada na parede.
- Ah! - exclamou Jace. - Um "cozinheiro".
- Cozinheira foi Julia Child - replicou Mrs. Browne, dirigindo-se ao armário junto ao lava-loiça e abrindo uma porta. No interior, havia um frigorífico do tamanho
que os Americanos usam para guardar as bebidas no barco da família. Retirou do interior uma garrafa com um líquido escuro e acastanhado, encheu um copo e pousou-o
sobre a mesa, na frente dele.
1.Jamie Olivier, presença regular nos ecrãs das televisões britânicas, é um dos cozinheiros mais mediáticos da nova geração. (N. da T.)
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Fitou-o como se esperasse que ele fizesse qualquer comentário.
- Se esta sandes é um exemplo do que Jamie Olivier consegue fazer, direi que é um artista.
A mulher examinou Jace por um momento, como se tentasse adivinhar se ele estava a mentir, e depois sorriu, mostrando a falha do canino superior esquerdo. Pareceu
agradada e regressou até junto do fogão para mexer o conteúdo de uma panela.
Jace sorriu ao achar que tinha superado o Teste Número Um e bebeu uma golada do que supunha tratar-se de cerveja. Não costumava beber cerveja durante a tarde, mas
não queria ofender Mrs. Browne - de novo. O líquido castanho era cerveja, mas com um sabor tão forte e um nível de álcool tão elevado que pensou que sufocaria. Mrs.
Browne estava de costas, mexendo o conteúdo da panela, ao mesmo tempo que lhe falava de Jamie Olivier, das suas fantásticas qualidades como chefe de cozinha, acrescentando
que seguia as suas indicações à letra. Atrás dela, Jace tentava recompor-se depois do enorme trago de cerveja. Sentia lágrimas nos olhos e via tudo à roda. Pensou
que teria de deitar-se no chão de pedra para recuperar.
Mrs. Browne virou-se na sua direcção, examinando-o de olhos semicerrados.
- Essa cerveja é forte de mais para o seu estômago americano, não é? - comentou. - Bem avisei o Hatch de que não aguentaria. "É cerveja inglesa", disse-lhe. "Os
ianques bebem coisas com light na garrafa. Não gostam dessa tua mistura caseira." Dê cá que eu bebo o resto.
No momento em que ela estendeu a mão para o copo, Jace sentiu que representava a masculinidade americana e segurou-o.
- Não! - recusou, aclarando a garganta, uma vez que a voz lhe saíra como um grasnado. - É óptima. Adoro. Quer ver? - acrescentou, bebendo o conteúdo de uma só vez.
Ao acabar, julgou que ia desmaiar mas, reunindo todas as forças, permaneceu sentado e fitou-a. Esperou que os olhos não lhe rolassem nas órbitas, pois era essa a
sensação que o invadia.
Mrs. Browne esboçou um leve sorriso, como se soubesse exactamente o que se passava e prestou novamente atenção à sua panela a ferver.
- Bom. Talvez estivesse enganada sobre os ianques - replicou. - Diga ao Hatch que gosta da sua cerveja e ele dá-lhe mais.
- Será um prazer - respondeu Jace ofegante, tentando pegar na sanduíche, mas falhando o alvo. As mãos tomaram uma direcção contrária ao sítio onde ela estava. -
Quem é o Hatch?
- Na agência da cidade não lhe disseram nada? - redarguiu, de mãos nas ancas. - Hatch é o jardineiro. Não está aqui obviamente há tanto como eu e não faço ideia
do que os pais faziam antes de ele vir, mas já anda por cá há bastante tempo. Vai querer receber instruções suas, mal tiver acabado de comer.
Jace tentou de novo agarrar na sanduíche, mas voltou a falhar o alvo.
Mrs. Browne franziu o sobrolho e colocou-lhe o prato por baixo das mãos. Ao conseguir finalmente segurar na sandes, Jace sorriu-lhe, agradecido.
- Instruções relativamente a quê? - perguntou Jace, tentando abocanhar a sanduíche. Mordeu a mão por duas vezes, mas ela estava dormente e não sentiu nada.
- Os jardins - respondeu Mrs. Browne, observando-o e abanando a cabeça. - Hatch desejará saber o que pretende fazer aos jardins.
- Não sei mesmo - respondeu Jace, ferrando os dentes na sanduíche e indiferente ao facto de o mindinho da mão esquerda estar incluído na mordidela. - Não percebo
nada de jardins.
- Então, porque comprou este grande lugar florido?
- Para ver o fantasma - respondeu Jace, mastigando e interrogando- ?se sobre quanto lhe restaria do dedo mindinho.
- E ela ficará satisfeita com a companhia - observou Mrs. Browne com um sorriso caloroso. - As duas últimas famílias apanharam um susto de morte por causa dela.
Pobrezinha!
- Nesse caso, viu-a?
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- Não - respondeu, virando-se para a panela. - Nunca a vi, nem ouvi. Não sou "sensorial", como lhe chamam. Algumas pessoas conseguem vê-la, outras não. Ela falou
com várias, mas todas elas se assustaram e fugiram. Acha que ficará calmo quando ela descer as escadas a arrastar as correntes, ao alvorecer?
- Talvez lhe dê a provar a cerveja de Mr. Hatch. Servirá para lhe soltar as correntes.
Mrs. Browne riu, produzindo um som roufenho, como se não costumasse fazê-lo.
- Vá-se embora e dê uma volta - convidou. - A menos que prefira deitar-se um pouco às custas da cerveja inglesa.
Jace içou-se com a ajuda dos braços, pois sentia-se dormente da cintura para baixo.
- Diga-me, Mrs. Browne. Estou a sangrar de algum lado? - perguntou.
- Vá-se embora - replicou ela com mais uma gargalhada roufenha.
- Passarei a tarde com o meu Jamie, enquanto trato de preparar um bom jantar. Além da cerveja, o Hatch também fabrica vinho.
- Deus me guarde - murmurou Jace entre dentes, enquanto Mrs. Browne lhe colocava as mãos sob o traseiro, empurrando-o. Ao abrir os olhos, estava lá fora e a porta
tinha sido fechada nas suas costas. A luz do sol ameaçava fender-lhe a cabeça ao meio.
- Com que então, veio para me ver, Mr. Monrgomery? - soou uma voz atrás dele, uma voz de mulher.
Jace virou-se o mais rápido que conseguiu, mas dada a sua condição física não o fez muito depressa. Não estava ninguém, mas achou que sentira um cheiro. A flores
e sândalo, pensou. Durou apenas um segundo e desapareceu.
Virou-se, levou a mão aos olhos para os proteger e observou os jardins. Árvores verdes, relva, flores. Viu tudo isso, mas não havia ninguém por perto. "Teria sido
abordado por um fantasma?", sorriu. Talvez devesse sentir-se assustado, mas assaltou-o um estranho pensamento. Podia dizer
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o que lhe apetecesse a uma mulher que estava morta, sem ter de se preocupar com as consequências.
- Não se pode magoar alguém que já está morto - pronunciou em voz alta.
- Isso prova que não conheceu o garoto desavergonhado que viveu aqui, em 1912 - chegou-lhe a voz feminina, com uma suavidade quase abafada pelo vento por entre as
árvores.
Jace soltou o primeiro arremedo de gargalhada que lhe vinha aos lábios de há muitos anos a esta parte. Enfiou as mãos nos bolsos e tentou erguer o pescoço, que estava
quase tão dormente como as mãos, após o que foi à procura do jardineiro.
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2
Na manhã seguinte, ao acordar, Jace sentia-se como se o interior da sua boca tivesse sido usado como um filtro de estopa para o secador. Pior ainda, durante um longo
momento, não conseguiu lembrar-se de onde estava. Através dos pesados reposteiros entrava a quantidade de luz suficiente para lhe indicar que era manhã, mas não
se recordava de como havia chegado aonde quer que fosse que se encontrava.
Deixou-se ficar deitado na cama, pestanejando naquela semiobscuridade. Lembrava-se do almoço de Mrs. Browne e de ter sido empurrado, em seguida, lá para fora,
onde conhecera Hatch, o jardineiro. Tratava-se de um homenzinho semelhante a um gnomo, tão baixo que fazia Jace, com o seu um metro e noventa, parecer um gigante.
Mas apesar da pequena estatura, Hatch era sem dúvida robusto. Quando Jace o viu pela primeira vez, ele servia-se de uma grande serra de mão para cortar um galho
enorme, que se quebrara e obstruía o caminho.
- Importa-se de agarrar nessa ponta? - perguntou o homem com um sotaque que tornava o de Mrs. Browne semelhante ao usado num salão inglês. - O meu ajudante adoeceu.
Se me perguntar porque adoeceu, respondo-lhe que foi aquela namorada dele. De nariz empinado, acho, a fazer com que o rapaz se julgue algo que não é. Escreva aí
que ela vai ser a ruína dele.
Toda convencida, mas a verdade é que anda a limpar as sanitas da escola. Então, o que se passa, meu rapaz? Não consegue agarrar nisso? O que lhe ensinam nessa escola?
Jace levantou-se e examinou as mãos. Conseguia vê-las, mas não senti-las e era esse o motivo que o impedia de segurar a ponta do pesado toro.
- Não sei a que escola se refere e estou sem força porque Mrs. Browne me deu a beber uma garrafa de cerveja fabricada por si.
O homenzinho endireitou-se e Jace teve a sensação de detectar um leve tom rosado na pele descorada.
- É o novo proprietário! - retorquiu.
- "O Ianque", como Mrs. Browne me chama. Jace Monrgomery - apresentou-se, estendendo a mão que o homenzinho não apertou.
- Desculpe, sir. Julguei que era o rapaz que o vigário prometeu mandar para me ajudar. Uma vez que é um indivíduo alto e forte, julguei que... - Interrompeu o que
ia a dizer, aparentemente sem saber como se livrar daquela embrulhada.
- Aceitarei as suas palavras como um elogio - disse Jace, tentando pô-lo à vontade. - Vamos tentar novamente pegar no toro?
- Não, sir. O rapaz deve estar a aparecer por aí. É um desses casos de caridade do vigário, que decidiu salvá-lo, quer ele queira ou não.
-Talvez ele fuja com a namorada do seu outro ajudante e ficará livre dos dois ao mesmo tempo.
Mr. Hatch sorriu e Jace fez outra tentativa para erguer o toro. Desta vez, concentrou-se e conseguiu ajudar a deslocá-lo até ao fundo do caminho.
- Onde é que vai dar? - inquiriu Jace, observando o trilho coberto de gravilha.
- Além - respondeu Mr. Hatch. - Os caminhos não levam a lado algum e, depois, ligam-se e levam de regresso a casa. Foram feitos para
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uma senhora da casa, que não montava a cavalo. Não há estábulos na propriedade, portanto, se quiser um cavalo, terá de construir um sítio onde o guardar. Mas como
não ficará o tempo bastante para construir alguma coisa, é escusado preocupar-se com isso.
- E não ficarei porquê?
- Por causa do fantasma. - Fitou Jace ao mesmo tempo que o rosto enrugado e desgastado se contorcia em algo parecido com uma careta.
- Ela faz medo ao susto.
- Como assim? - interessou-se Jace.
Mr. Hatch olhou em volta para verificar se o rapaz que o vigário lhe mandaria se encontrava por perto, mas estavam sós.
- Venha beber um copo do meu vinho e conto-lhe tudo. Há trinta anos que aqui estou e sei tudo de fio a pavio.
Jace não resistiu à tentação de replicar:
- Sabe mais do que Mrs. Browne?
- Bah! Essa? Passa os dias a babar-se com um rapaz qualquer em frente da televisão. Esse tal cozinheiro. Palavra de honra que tenho um espírito aberto, mas será
que cozinhar é trabalho de homem? Ainda por cima chama a si próprio "o chefe nu e cru". É coisa para um homem fazer?
Jace pensou em perguntar a Mr. Hatch se cultivar margaridas era uma ocupação masculina, mas absteve-se.
Ao chegarem a uma construção de tijolo, Mr. Hatch desapareceu no interior escuro e regressou com uma garrafa azul de vidro e duas canecas de cerâmica manchadas.
- Vamos para debaixo desta árvore - indicou. - Descansaremos um bocado e contar-lhe-ei tudo o que quer ouvir.
"Ainda lamentarei isto", pensou Jace, ao pegar na caneca de vinho. Era feito de framboesas e com um sabor delicioso, mas revelava-se ainda mais letal do que a cerveja.
Mr. Hatch despejou duas canecas cheias por cada meia que Jace bebeu, mas ainda assim, decorridos quarenta e cinco minutos, a Jace só lhe apetecia enroscar-se debaixo
da árvore e dormir.
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Contudo, apesar de todas as perguntas de Jace, Mr. Hatch não lhe contou nada sobre o fantasma. Falou demoradamente em plantar um canteiro de dálias, mas não mencionou
o fantasma - e furtou-se a todas as manifestações de curiosidade por parte do seu interlocutor. Jace ficou com a impressão de que Mr. Hatch estava tão seguro que
ele, um americano, ficaria tão pouco tempo em Priory House, que desejava conseguir melhorar ao máximo o jardim, antes que a casa fosse novamente posta à venda. E
que não desejava apressar esse final, falando do fantasma que já afugentara tantas outras pessoas.
Talvez o tivesse invadido a sensação de que os dois podiam recorrer à mesma táctica, mas a verdade é que Jace não mencionou que o fantasma lhe falara e não lhe parecera
de forma alguma tratar-se de uma assaltante de estradas.
- Ah! Cá está ele! - exclamou Mr. Hatch, esvaziando o copo pela quarta vez. - Vou dizer-lhe que o ajude a subir ao seu quarto.
- Estou bem! - ripostou Jace, enquanto apoiava a mão na árvore e tentava levantar-se. As pernas que dantes estavam dormentes mas funcionavam, haviam-se transformado
em borracha. - Ficarei bem. Só quero ouvir falar do fantasma e de...
Era a última coisa de que Jace se recordava, antes de acordar num quarto estranho e com a sensação de que a língua se transformara numa ceifeira-debulhadora. Curiosamente,
não lhe doía a cabeça, mas sentia dificuldade em raciocinar. Recordava-se de duas suaves observações feitas por uma voz desconhecida.
- Está aí? - sussurrou, mas não obteve resposta. Deixou-se ficar deitado à escuta e a pensar no que ouvira. No dia anterior, entre dois períodos de embriaguez, pareceu-lhe
ter ouvido uma voz de mulher, que troçara dele. Será que tal acontecera, ou tratava-se apenas do resultado de uma mistela extremamente forte que lhe tinham dado
a beber?
- Por favor, responda-me - pediu. - Se está aí, fale comigo, por favor. Quero entrar em contacto com alguém.
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Só depois de pronunciar estas palavras em voz alta, se deu conta de que as proferira. Garantira ao seu tio Frank que um fantasma na casa não o incomodaria, mas naquele
momento percebia que a ideia de um fantasma lhe agradava. Talvez o fantasma pudesse contactar com Stacy no seu lugar. Queria perguntar-lhe o que acontecera de tão
terrível na sua vida, que não aguentara continuar a viver.
Ao perceber que não obtinha resposta às suas perguntas, Jace começou a sentir-se idiota. Não fazia ideia de onde se encontrava, na casa. Recordava-se de que o quarto
principal tinha uma enorme cama de dossel. O homem que remodelara a casa em 1850 havia comprado a cama num leilão do mobiliário de um duque falido. A cama era feita
de uma madeira trabalhada, escurecida pelos anos, e o colchão media dois metros e meio quadrados. Para garantir que a cama ficaria na casa, o restaurador construíra
o quarto à sua volta. A única forma de retirar a cama seria cortá-la aos bocados. Ao longo dos anos, a cama fora incluída na venda, tal como as janelas e os lava-loiças.
Porém, Jace encontrava-se agora noutro quarto, com metade do tamanho do principal e muito mais bonito. Havia janelas dos dois lados e um deles formava uma agradável
alcova, onde fora colocado um banco. Imaginava Stacy enroscada nele, lendo um livro, enquanto a chuva fustigava os vidros. Ela sempre adorara a chuva.
Pela primeira vez desde a morte de Stacy, Jace sentiu-se em paz. Fechou os olhos, desejando voltar a dormir, mas ciente de que não conseguiria. Quanto tempo estivera
adormecido? Desde que desmaiara sob o que Mr. Hatch chamara a "árvore dela"? O homem disse que falaria do fantasma a Jace, mas não cumprira a promessa. Passara o
pouco tempo em que estiveram juntos a enumerar tudo o que precisava de ser feito no exterior. Havia valas a limpar, plantas a substituir e ainda a necessidade de
comprar estrume.
- Precisa de ter uns animais por estas paragens - afirmou Mr. Hatch, esvaziando, até à última gota, a caneca cheia daquele forte vinho. - Precisamos de estrume.
O facto de termos de comprar estrume de vaca para Um lugar deste tamanho vai contra todas as regras.
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Meia hora depois, Jace descobriu que havia muitas outras coisas que Mr. Hatch achava que iam "contra todas as regras".
Naquele momento, deitado na cama, pensou: "Alguém está a fazer isto. Alguém está a fazer com que me sinta calmo." Uma parte dele achava tratar-se de um absurdo,
mas a outra sabia que não sentia esta calma desde a morte de Stacy. "Se está aqui, diga-me qualquer coisa, por favor", pediu.
Ouviu-se um restolhar de tecido perto da janela e ele virou-se, na expectativa de avistar uma forma branca e transparente, mas não havia nada. Contudo, não soprava
qualquer brisa que justificasse o agitar da cortina.
Jace suspirou e pôs os pés fora da cama. Estava completamente vestido, mas tinham-lhe tirado as meias e os sapatos. "Quem o terá feito?", interrogou-se.
Foi à procura da casa de banho mais próxima. Uma das coisas que aprendera sobre as casas inglesas era que, independentemente do preço, era raro não haver uma casa
de banho "ao fundo do corredor". Na Internet, vira casas de doze milhões de dólares com um terceiro andar equipado de sete quartos e com um único toucador. Para
tomar banho, as pessoas tinham de descer as escadas.
Descobriu uma casa de banho en suite, como dizem os ingleses, ou seja, com uma porta dando para o quarto. Quando a mente começou a desanuviar-se, percebeu que o
quarto onde dormira era um dos que os antigos proprietários usavam para arrumações. Quando Jace vira o quarto, estava cheio de caixotes enormes e expositores cheios
de roupas enfiadas em sacos com fecho de correr. A sua visita fora passageira e tinha a mente muito longe, e, portanto, não se apercebera de como o quarto era bonito.
Ao ver que os seus objectos de toilette se alinhavam no lavatório, percebeu que se encontrava no quarto principal. Ficou satisfeito por ver que havia um chuveiro
e uma banheira enorme. Despiu-se e tomou um duche prolongado, escovou os dentes onze vezes, enrolou uma toalha
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" volta da cintura e foi à procura das suas roupas. Enquanto dormira, alguém lhe tirara as malas do carro e as abrira.
De súbito, toda a sua calma desapareceu e deu lugar ao pânico. Onde estava a sua mala? Tomado por um crescente presságio, pôs-se a procurar a mala grande. Levou
algum tempo, mas descobriu-a ao fundo de um roupeiro embutido na parede, num dos quartos de vestir. Puxou a mala para fora, abriu-a e apalpou o forro. Ao sentir
a moldura de cabedal que rodeava a fotografia, respirou de alívio. Trouxera uma única fotografia de Stacy e escondera-a dentro do forro da mala. Decidira que seria
preferível se mantivesse em segredo o que fazia e porquê. Diria às pessoas que estava mais interessado no fantasma da mulher espadachim, do que numa mulher que se
havia suicidado há alguns anos. Jace receava que se mostrasse a fotografia e fizesse perguntas, alguém avisasse a pessoa com quem Stacy se encontrara para sair da
cidade. Ainda não tinha certezas de como actuaria, mas sabia que teria de fazer perguntas subtis e abordar sub-repticiamente o que desejava apurar.
- Com que então, descobriu-me - disse Mrs. Browne quando, por fim, Jace deu com a cozinha.
- Sem qualquer problema - mentiu Jace.
Voltara a escolher o caminho errado. Frustrado, saíra para o exterior e tentara encontrar outro acesso. Para uma casa tão grande, dispunha de um número muito pequeno
de portas para o exterior. Por fim, tivera de dar uma volta completa ao edifício, antes de encontrar a porta por onde Mrs. Browne o empurrara para fora, no dia anterior.
Ao dar- -se conta de que a longa caminhada lhe acelerara a pulsação, percebeu que agira na perfeição ao optar por vestir um fato de treino. Uma corrida pelos seus
setenta e dois acres de terreno só lhe faria bem.
- É tarde, mas acho que ainda posso preparar-lhe qualquer coisa para o pequeno-almoço - decidiu Mrs. Browne.
Consultou o relógio de parede. Passavam cinco minutos das oito.
- Seria muita bondade sua - disse ele, sentando-se na grande mesa colocada no centro da divisão. - Onde vive? - Sabia que havia dois apartamentos
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naquela ala da casa. Informaram-no de que a governanta vivia num deles, mas o outro estava vazio. Queria ter a certeza para não pisar acidentalmente o território
privado de Mrs. Browne.
Ela estava de costas voltadas, junto ao fogão e, ao vê-la endireitar- -se, percebeu que a governanta interpretara erradamente as suas palavras.
- Tenciona despedir-me? - retorquiu Mrs. Browne.
- Expulsar a rapariga de Jamie? Como poderia fazer tal coisa?
Ela recompensou o gracejo com um arremedo de sorriso e um prato
de comida: três salsichas, três ovos estrelados, cogumelos fervidos com tomate e duas grossas fatias de pão frito. Tudo acompanhado de uma caneca de chá fortíssimo.
- É uma receita do Jamie? - perguntou, fitando-a surpreendido.
- Não. É um bom pequeno-almoço à inglesa. Mas se achar que é demasiado... - Ao dizer aquilo, estendeu o braço, fazendo menção de retirar o prato.
Jace deteve-a. Quando estava sozinho, costumava comer uma enfadonha tigela de cereais ao pequeno-almoço, mas atendendo a que na noite passada adormecera sem jantar,
sentia uma fome de lobo.
- Cá me arranjarei - retorquiu, pegando no garfo.
- Faça por isso. Está bastante magro para alguém que vive em Inglaterra.
Jace fitou as costas dela e pensou que, independentemente do que conseguisse na vida, nunca estaria à altura aos olhos de Mrs. Browne devido ao sítio onde nascera.
A comida era deliciosa, rica em calorias, carregada de colesterol e má para a saúde, mas com um sabor divino.
- Então, diga lá onde é que vive?
-Ali - respondeu ela, acenando com a mão na direcção de fora de portas.
Jace dispunha-se a fazer mais perguntas, mas, nesse preciso momento, Mrs. Browne avistou uma jovem a atravessar o pátio.
- Lá vem novamente aquela maldita rapariga! Pode escrever aí que anda a roubar framboesas. O velho Hatch diz que os pássaros as apanham,
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mas acho que estão juntos nisto. Acho que ela as vende. Se alguma vez lhe deito a mão, despeço-a. - Com estas palavras, precipitou-se para fora da cozinha na direcção
da porta que dava para o exterior. Minutos depois, Jace avistou-a a perseguir através do pátio a pobre rapariga que aparentemente estava apenas a sacudir um tapete.
Jace aproveitou a ausência de Mrs. Browne para examinar a cozinha. Havia três portas; uma era a da entrada e, portanto, fixou a atenção nas outras duas. Uma dava
para uma divisão cheia de armários e com um lava-loiça. Um olhar de relance bastou para verificar que os armários estavam cheios de pratos. Nenhum deles parecia
de boa porcelana. Podiam não ter nomes como Herend, Spode ou Wedgwood inscritos no fundo, mas chegavam e sobravam para um jantar de doze ou mais pessoas. "No caso
de eu conhecer alguém", pensou.
Recuou de volta à cozinha, certificou-se de que Mrs. Browne continuava a gritar com a pobre rapariga da limpeza e dirigiu-se à outra porta. Abria para uma copa com
três janelinhas numa parede e prateleiras na outra. As prateleiras estavam a abarrotar de latas, sacos e caixas, bem como de frascos de compota caseira e de pickles.
Chamou-lhe a atenção um frasco com a etiqueta que dizia "Pêssegos em rum".
- Estou a tornar-me um alcoólico - disse com os seus botões e, ao ouvir um ruído, espreitou pelas janelinhas. A vista estava praticamente tapada por penduricalhos
de ervas e salsichas, mas dava para a entrada do pátio. "Interessante", pensou. "Ninguém podia entrar ou sair sem escapar à vigilância de Mrs. Browne, no seu trono
da cozinha." Viu-a atravessar rapidamente a abertura, mas virou à esquerda passando por uma porta estreita. "O apartamento dela", concluiu Jace com um sorriso e
sentindo que decifrara um mistério.
Quando a governanta regressou à cozinha, Jace estava de volta à mesa, terminando o pequeno-almoço. Fitou-a para a elogiar, mas ela limitou-se a um "bah!", de uma
forma que começava a tornar-se-lhe familiar.
Após acabar de comer, Jace descobriu a porta das traseiras e saiu para o jardim. Pelo que vira até esse momento, os terrenos estavam bem
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cuidados e Mr. Hatch cumpria o seu trabalho com esmero. Tinha o estômago pesado devido ao pequeno-almoço e ainda não lhe haviam passado os efeitos da cerveja e do
vinho que bebera no dia anterior, mas, de uma maneira geral, podia dizer-se que há três anos que não se sentia tão bem. Voltou a pensar que lhe haviam feito ou dito
algo que lhe provocava aquela impressão de bem-estar.
Maravilhou-se ao percorrer o terreno próximo da casa. Havia vários canteiros cheios de flores exuberantes, e sem uma única erva daninha. Um bonito lago com peixes
dourados era rodeado por três lados de elevadas sebes verdes. Adorou uma fila de topiárias com forma de animais. Havia quatro: um cisne, um urso, um grande peixe
e algo que podia ser um dragão, caso se observasse do ângulo exacto.
Caminhou sob uma comprida pérgola, feita de colunas de tijolo rectangulares e vigas de madeira, cobertas quase totalmente de vinhas entrelaçadas. Havia um roseiral
e, para onde quer que se olhasse, bancos colocados em cada lugar que se anunciava fresco e acolhedor.
Ao fundo do roseiral, um jovem cavava um buraco, mas algo na forma como o fazia levou Jace a pensar que ele quase fora apanhado a fazer outra coisa. O seu palpite
era o de que o dito rapaz usava um ancinho para cavar.
- Bom-dia - cumprimentou Jace.
- Bom-dia, sir. É o novo senhor da casa?
Jace sorriu ao ouvir o termo antiquado e seguiu o olhar do rapaz, na direcção das árvores. Um pezinho mexeu-se. - É você o da namorada que vai ser a sua ruína? Levá-lo
à perdição? - Atrás deles, uma rapariga soltou uma risada.
- Sim, sir, o próprio - respondeu o rapaz. - Sou Mick, o ajudante de jardineiro.
O jovem era alto, robusto e parecia inteligente.
- Planeia ocupar o lugar quando Mr. Hatch se for embora?
Mick riu como se isso não fosse possível, mas a rapariga saiu do
meio das árvores, apertou possessivamente o braço de Mick e falou no seu lugar:
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- Sim. É verdade.
Jace pensou que se Mick tinha ambições, era por causa dela. Havia algo neles que lhe agradava. - Então, quando é o casamento?
Mick baixou os olhos para os pés, mas a rapariga sorriu.
- No Outono - explicou. - Estou a acabar um curso de secretária, mas o meu pai não o paga, se eu casar.
Jace lembrou-se de que Mr. Hatch dissera que a jovem "limpava sanitas" e, portanto, concluiu que ela própria pagava uma parte da sua educação. Era ambiciosa e ousada,
algo que ele admirava.
- Uma decisão sensata - aplaudiu Jace. - E, entretanto, onde se encontram?
Ao ver que Mick virava nervosamente as costas, concluiu que os encontros decorriam na sua casa. E porque não? Há anos que estava vazia.
- Mick - disse Jace - e...
- Gladys.
- Não há um apartamento vazio, um andar por cima da cozinha de Mrs. Browne? Não gostariam de viver lá, depois de casarem?
Mick arregalou os olhos, incrédulo, mas Gladys corou de satisfação.
- Oh, sim, sir - disse. - E não precisa por acaso de uma secretária?
- Gladys! - exclamou Mick. - Isso é pedir de mais.
- Na verdade, preciso de uma secretária - retorquiu Jace. - Talvez vocês os dois pudessem ocupar-se daquele gabinete junto da...
- Lavandaria - completou Gladys. - Sim, sir. Conheço bem o sítio.
Quando os dois trocaram olhares, Jace soube que ela sempre tivera
aquele plano. Com Gladys por perto, Mick zelaria bem por si.
- Talvez pudesse fazer uma lista do que eu precisaria para montar um escritório - computador, impressora e o resto - e dar-me uma lista de preços. Não se esqueça
de juntar o pedido de ordenado. Teremos tudo pronto para começar, mal receba o diploma.
- Oh! - exclamou Mick. - Ela pode começar antes. Pode trabalhar à noite, se estiver de acordo, sir.
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-Totalmente de acordo. E Mick, agora acho bem que comece a cavar um buraco aí ou Mr. Hatch vai descobrir e, a propósito, até eu sei que se cava com uma pá e não
com um ancinho.
Gladys riu-se, mas Mick corou até às orelhas.
Deixou-os e prosseguiu a sua volta pelo jardim. Sentia que acabara de fazer dois amigos e ganhara uma secretária para se encarregar do pagamento das contas e...
Não sabia muito bem para que mais precisaria de uma secretária, mas sabia que necessitava de pessoas na casa. Embora o apartamento deles não se situasse próximo
do edifício principal e estivesse separado por um longo corredor, agradava-lhe a ideia de os ter por perto. As conversas e os risos poderiam servir para que não
sentisse tanto a falta da família.
De pé, no extremo do jardim formal, antes do início do bosque, Jace virou-se e olhou para a casa. Sim, era horrorosa, mas agora que estava a fazer um verdadeiro
reconhecimento, tinha coisas a seu favor. Para o seu espírito americano, era estranho haver duas cozinhas, mas a mãe sempre lhe dissera que não existia uma única
cozinha ao de cimo da terra com tamanho para duas mulheres. "Se uma família vivesse na casa", pensou Jace "seria simpático ter um sítio exclusivamente para o marido,
a mulher e as crianças".
"Stacy gostaria desta casa", disse para si próprio. "Quando não estivesse a trabalhar, podia fazer panquecas para os filhos, aos domingos, e..."
Interrompeu-se bruscamente. Parecia que Stacy conhecera a casa, mas nunca a mencionara. E, quanto aos filhos, fora essa a discussão que dera início a tudo.
Seguiu por um caminho ao longo do bosque, que exibia acres de trilhos bem cuidados e sombreados por belas e velhas árvores. Avistou faias cobreadas, plátanos, castanheiros,
carvalhos e elmos. Não reconheceu a maioria das árvores e deduziu que se tratava de espécimes exóticos que habitualmente não cresciam em Inglaterra.
"Alguém amou muito este lugar!", pensou.
Virou à esquerda, numa bifurcação, e chegou a um alto muro de tijolo com uma porta de carvalho. Ao abri-la, deparou-se-lhe uma bela
horta. Filas de vegetais apresentavam-se rodeadas de sebes com trinta centímetros de altura, protegidas por caixas. Uma estufa erguia-se num dos lados e havia aparentemente
meio acre com compartimentos que mantinham os pássaros afastados das framboesas plantadas no interior.
Ao olhar em volta, Jace avistou a bonita rapariga com quem Mrs. Browne ralhara, a andar de um alto feijoeiro para outro. Era seguida por uma outra jovem. Não o viram
e Jace pôs-se atrás da estufa a observá-las.
Uma delas era robusta e bonita, a outra magra e vulgar. Avançavam furtivamente na direcção do compartimento das framboesas. Abriram a porta devagar para que as dobradiças
não rangessem e, depois, entraram em bicos de pés. Dado o jardim ser grande e rodeado de um alto muro de tijolo, interrogou-se sobre quem imaginavam que pudesse
ouvi-las.
Jace permaneceu escondido e observou-as a encher pequenos baldes de latão com framboesas maduras. Havia filas e filas de arbustos, cada um deles com fruta pendurada.
Lembrou-se das queixas de Mrs. Browne quanto ao roubo da fruta, mas uma vez que nem ele ou os seus empregados podiam comê-la toda, porque não deixar que as raparigas
a levassem?
Abriu a porta do compartimento, reparando no óleo a brilhar nas dobradiças, meteu uma framboesa na boca e disse:
- São boas, não são?
As raparigas sobressaltaram-se ao ouvir-lhe a voz e, em seguida, a bonita deu a sensação de que ia desatar a chorar. A outra compôs uma expressão de desafio.
- Podemos pagá-las - retorquiu, fulminando-o com o olhar.
- Vai chamar a polícia? - inquiriu a outra jovem.
- Você é...
- Daisy, sir - respondeu a bonita. - Ajudei a metê-lo na cama, na noite passada. Tirei-lhe as meias e os sapatos, embora Mr. Hatch dissesse para o deixar como estava.
- Obrigado. - Virou-se para a companheira. - E você é...
- Erin.
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- Trabalham as duas para mim?
- Sim, sir - confirmou Daisy. - Fazemos limpeza à sua casa.
- E ocupamo-nos de todas as tarefas sujas a mando de Mrs. Browne - acrescentou Erin, observando como Jace reagiria ao seu comentário.
Os seus instintos não lhe segredaram que confiasse nestas raparigas como o fizera em relação a Mick e Gladys. Receava que fossem contar a Mrs. Browne o que quer
que ele dissesse.
- Então, o que fazem com as framboesas?
As raparigas trocaram olhares, parecendo decidir se deviam ou não dizer a verdade.
- As nossas mães fazem tortas de framboesa e depois vendem-nas na loja da região - acabaram por responder.
- Posso partir do princípio de que fazem o mesmo com... - Percorreu os outros arbustos com o olhar, sem fazer a mínima ideia do que se tratava.
- Morangos, amora preta, groselha - completou Erin.
- E maçãs, marmelos, alperces, pêssegos, peras e cerejas - disse Daisy.
- E amora vermelha - acrescentou Erin. - A minha mãe faz compota e vende-a no Harrods.
- Impressionante!
- Mas a única maneira de conseguirmos obter lucro é se a fruta for de graça - prosseguiu Erin, dando um passo em frente. - Há anos que ninguém vive aqui, portanto
a fruta ia apodrecer. - Olhou para a gaiola.
- Nem sequer os pássaros conseguiam chegar-lhe.
- O que é que Mr. Hatch sabe disto?
- Tudo. Não podíamos fazê-lo sem a sua ajuda.
- E Mrs. Browne?
As raparigas voltaram a trocar olhares, mas permaneceram em silêncio.
- Se ela soubesse, despedia-vos, não era?
- Sim - respondeu Erin. - Se nos apanhasse aqui, seríamos imediatamente corridas.
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- E se lhe dissesse que não podia despedi-las? Sou o dono deste
sítio, como sabem.
- Desculpe, sir, mas é mesmo? - sorriram as jovens. - Os donos vêm e vão, mas Mr. Hatch e Mrs. Browne ficam. São eles que fazem as regras.
"Consigo perceber a situação." Não formulou as palavras, mas sabia que também ele acabaria por se ir embora.
- Talvez que se fosse eu a dizer a Mrs. Browne que as duas têm permissão para apanhar toda a fruta que quiserem...
- Oh, não, siri - ripostou Daisy. - Ela ia fazer-nos a vida num inferno e não nos podemos ir embora, porque as nossas mães precisam da fruta e todas precisamos do
dinheiro. São seis mulheres, todas com filhos, a trabalhar no negócio. Nem um homem. O meu pai está doente e o de Erin fugiu com a mulher do carteiro, portanto...
Erin olhou-a de uma forma que lhe cortou a palavra.
- O que ela quer dizer, sir - disse - é que temos famílias para dar de comer e embora seja generoso da sua parte oferecer-nos ajuda...
- Seria melhor manter-me fora disto.
- Exacto, sir - anuiu Daisy, com umas covinhas adoráveis.
Ao olhá-la, Jace teve a certeza de que a jovem casaria e ficaria grávida dentro de um ano.
- De acordo - concordou, sorrindo. - Eu não...
- Meu Deus! - exclamou Erin, agarrando no braço de Daisy e as duas agacharam-se no meio dos arbustos.
Sem saber o que se passava, Jace permaneceu de pé e depois viu que Mrs. Browne acabara de entrar no jardim, com um cesto no braço.
- Vai denunciar-nos? - perguntou Daisy, erguendo os grandes olhos azuis para Jace.
Ele abanou a cabeça e deu um passo em frente, mas Erin agarrou-lhe nas calças.
- Ela vai entrar aqui e dar connosco. Consegue distrai-la para poder- mos escapar?
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- Talvez despindo a camisa - sugeriu Daisy, tapando a boca para abafar uma risada.
Jace sentiu-se corar involuntariamente. As raparigas não deviam ter mais de dezoito anos e, com os seus trinta e dois anos, faziam-no parecer um libertino.
- Ele corou - sussurrou Erin, ao mesmo tempo que dava uma cotovelada a Daisy e também sufocava o riso.
Mrs. Browne colhera alguns feijões e dirigia-se agora ao compartimento das framboesas. Jace precisava de desviar a atenção dela, mas como?
Enquanto pensava no que devia fazer, teve uma visão extraordinária. À sua esquerda, a figura quase transparente de uma mulher atravessou o muro de tijolo. Mrs. Browne
inclinara-se nesse preciso momento para cortar algo de uma planta e não podia ver a figura.
A mulher parou a alguns centímetros de Mrs. Browne e depois estendeu o braço para tirar algo do muro. Jace não conseguia ver do que se tratava, mas ela guardou-o
com as mãos em concha. Quando Mrs. Browne se ergueu, a mulher - o espírito - abriu as mãos diante do rosto da governanta e soprou. No espaço de um segundo, Jace
viu o que lhe parecia uma aranha passar das mãos da mulher para o rosto de Mrs. Browne.
No momento seguinte, a governanta deu uma palmada na face. Deixou cair o cesto com os legumes e correu para a porta, tropeçando nos seus próprios pés. Ao lado dele,
Daisy e Erin assistiam à cena, rindo à gargalhada.
Contudo, Jace não desviava o olhar da mulher que se mantinha junto ao muro, sorrindo. Conseguia ver através dela. Tinha vestida uma blusa branca, de gola subida
e mangas compridas; à volta da fina cintura usava um cinto largo, por cima de uma saia que lhe chegava aos tornozelos e umas botas macias, de atilhos. O cabelo comprido
e preto estava apanhado na nuca, formando uma espessa trança que lhe caía pelas costas, quase até à cintura. O rosto, de perfil, denotava feições delicadas, um nariz
perfeito e olhos de pestanas compridas. Jace conseguia ver os tijolos do muro através dela.
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"Daisy e Erin riam à gargalhada, de mãos nas ancas, mas Jacc mantinha-se pregado no mesmo sítio, sem se atrever sequer a pestanejar,
fixando a mulher.
Sorrindo, o espírito virou-se e olhou para Daisy e Erin que, aparentemente, não o viam. Ao sentir-se observado por Jace, arregalou os olhos, surpreendido, e, por
um momento, os olhares de ambos cruzaram-se. Emanava uma beleza calma, como alguém saído de um velho anúncio de sopa ou de champô. Tinha olhos azuis-escuros e a
boca era pequena e perfeitamente modelada.
Ao aperceber-se de que Jace podia vê-lo, o espírito pareceu surpreendido e, durante dois ou três segundos, o seu corpo adquiriu mais substância. Não era de forma
alguma sólido, mas ele conseguia distingui-lo melhor do que aos tijolos. Passado um segundo, desapareceu. Sem mais nem menos.
Jace permaneceu um momento sem se mexer, antes de tomar consciência de que Daisy e Erin o fitavam.
- Parece que viu um fantasma, sir.
Ele afastou, relutantemente, os olhos do muro e respondeu:
- Estou só a recompor-me de cinco quilos de comida ao pequeno- -almoço. O melhor é apanharem a fruta e porem-se a andar daqui, antes que Mrs. Browne regresse.
- Claro, sir. Obrigada, sir - agradeceram, enquanto saíam rapidamente do compartimento da fruta.
Ao chegar à porta do muro de tijolo, Daisy parou, esboçou um bonito sorriso e pronunciou:
- Se precisar de alguma coisa, é só dizer. Qualquer coisa. Talvez uma massagem aos pés. Ou um... - Erin agarrou-lhe no braço e puxou-a.
- Não passarão seis meses antes de ela engravidar - murmurou Jace entre dentes.
Permaneceu algum tempo no interior da gaiola da fruta, fixando sitio onde estivera o espírito da mulher. "Ela protegera as duas alegres raparigas que estavam a
roubar as framboesas", pensou. Retirara uma
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aranha do muro e soprara-a para o rosto de Mrs. Browne para que ela fugisse sem apanhar as raparigas com a mão na fruta.
Jace sentia-se surpreendido principalmente com o facto de nem as raparigas nem Mrs. Browne terem visto algo que ele detectara com tanta rapidez.
- E o senhor - ouviu à sua direita e, ao virar-se, deu com Mrs. Browne a abrir a porta do compartimento. - Pareceu-me ver alguém aqui.
- Sim, confesso. Estava a comer framboesas - replicou, fixando novamente o sítio onde a mulher aparecera. - Vi-a dançar há um momento?
- Pode chamar-lhe assim. Uma aranha caiu do muro e aterrou em cheio na minha cara. Disse a Hatch o que pensava da sua jardinagem. Ele permite que os ajudantes andem
a mandriar. Não trabalham.
- Nada que se pareça com as suas raparigas.
- Obrigo-as a trabalhar, se é a isso que se refere. - Tentava chegar às framboesas por detrás dele, mas Jace mantinha-se imóvel. - Tem aquele olhar no rosto.
- Que olhar?
- O olhar do fantasma. Viu-a? Tenciona pôr a casa à venda?
- À venda? - repetiu Jace, forçando-se o olhar para ela. - E perder os seus fantásticos pequenos-almoços? Como podia fazer uma coisa dessas?
Mrs. Browne soltou a sua característica gargalhada roufenha.
- O senhor é um homem afável, não é verdade Mr. Monrgomery? Porque não tem mulher e filhos? Encha esta casa de crianças. É disso que ela precisa.
- Está a declarar-se? - inquiriu ele, provocando-lhe um sorriso.
- Vá-se embora, encontre algo com que se entreter e deixe-me continuar a minha lida.
Jace dirigiu-se à porta do compartimento, mas voltou para trás.
- Quanto a essa tal mulher fantasma, Mrs. Browne - pronunciou num tom sério. - As pessoas vêem-na dentro ou fora da casa?
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- Dentro. Nunca ouvi ninguém dizer que a havia visto no exterior.
O velho Hatch apanharia um susto de morte se ela aparecesse por aqui.
- Mas não me contou que algumas pessoas conseguem vê-la e outras não? Talvez ela apareça cá fora, mas ninguém a tenha visto ou possa vê- la à luz do dia.
- Está a tentar dizer-me que viu Lady Grace no exterior da casa? - retorquiu Mrs. Browne, de olhos semicerrados. - Talvez aqui, neste jardim?
- Estou a tentar usá-la como um instrumento de busca - respondeu Jace, com um leve sorriso. - Se vou escrever um livro sobre Lady Grace, preciso de saber o máximo
a seu respeito, não acha?
- Escrever um livro sobre uma mulher que não abandona a Terra? Bom... - comentou -, se é isso o que quer fazer, mas, pela minha parte, tenho mais com que ocupar
o tempo.
- Quer então dizer que ninguém a viu cá fora?
- Não, que eu saiba e eu sei...
- Tudo o que é preciso saber - completou Jace, suspirando. Talvez Mrs. Browne soubesse mais coisas, mas era difícil arrancar-lhe informações. Receava tentar descobrir
algo sobre Stacy por seu intermédio. Caso Stacy se tivesse encontrado com alguém aqui e Mrs. Browne o soubesse, era mais provável que recebesse uma lição de moral
do que uma informação.
- Acho que vou correr - declarou. - Gastar algumas calorias do pequeno-almoço como preparação para o almoço.
- E frango assado à moda de Jamie - elucidou ela. - Com alecrim.
Jace sorriu e começou a fazer jogging, recuando. Ao chegar ao ponto
do muro por onde o fantasma atravessara, fingiu sentir uma dor no tornozelo. Mrs. Browne observava-o atentamente. Esfregou o tornozelo, endireitou-se e, em seguida,
apalpou o muro. Era sólido e antigo. Não
havia qualquer porta ali e não lhe parecia que alguma vez tivesse sido
o caso.
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3
-jace fez jogging à volta de todo o parque, durante mais de uma hora.
Parou frequentemente e inspeccionou alguns locais. Quando uma
propriedade fora ocupada durante um período de quase novecentos lírios, as pessoas imprimiam as suas marcas. Encontrou quatro cabanas, todas elas fechadas à chave,
e as ruínas de outras duas. Descobriu também um bonito abrigo de pedra com uma cobertura abobadada e um chão de mármore que começava a deteriorar-se. Para lhe chegar,
viu-se obrigado a abrir caminho pelo meio de altos vinhedos e a afugentar uma família de criaturinhas peludas, que se moveram com demasiada rapidez antes de ele
conseguir ver do que se tratava. Havia semicírculos de pedra junto ao que lhe tinham dito ser um leito de rio seco. Os monges haviam mantido peixes nos lagos circundados
de pedra.
Ao regressar a casa, só teve tempo de tomar um duche antes do almoço. Comeu na cozinha de Mrs. Browne e teve de suportar uma demorada queixa sobre o desaparecimento
das framboesas. A governanta interrogou Jace pormenorizadamente sobre quem ele vira. Ele esboçou uma mentira piedosa, uma vez que contar-lhe a verdade teria sido
pior do que mentir. Dizer-lhe que o fantasma soprara uma aranha na direcção do seu rosto? Nem pensar.
Depois de um almoço delicioso, subiu ao andar superior e telefonou a Nigel Smith-Thompson, o agente imobiliário, colocando-lhe uma série de perguntas. Jace pretendia
saber se o anterior proprietário tinha ou não alugado a casa a alguém nos últimos três anos, enquanto estivera para venda, e se alguém a ocupara. O agente respondeu
que ninguém a tinha alugado. O dono da casa e a família haviam saído da casa a meio da noite e regressado ao seu país de origem, para nunca mais lá voltarem.
- Tem a certeza de que ele não alugou a casa a ninguém? - insistiu
Jace.
- Posso telefonar-lhe a perguntar - respondeu o agente, sem obviamente o desejar.
- Por favor, faça-o - pediu Jace, dando o número do telemóvel ao agente. - Quero saber quem teve permissão de ficar aqui.
- Posso responder a essa pergunta. Apenas a governanta teve permissão de ficar. O jardineiro vive na casinha, a sul da propriedade.
- Mas talvez o dono tivesse um amigo, amigo esse que usou a casa.
- O antigo dono deixou-nos a tomar conta da casa e posso garantir-lhe que não deixámos ninguém usá-la. - A voz dele acusava um certo stresse, como se Jace estivesse
a acusá-lo de uma ilegalidade. - Na minha opinião, Mr. Monrgomery, devia falar com Mrs. Browne. Se alguém que, supostamente não deveria ter ficado na casa o fez,
Mrs. Browne está a par do assunto.
- Vou falar com ela - respondeu Jace com um suspiro, por ter a certeza de que não arrancaria qualquer informação à governanta. - Mas importa-se de telefonar ao dono
e perguntar?
- Claro que telefonarei - prometeu o agente, num tom que acusava um certo cansaço.
Jace agradeceu-lhe e, em seguida, desligou e vestiu-se para sair. No caminho, passou pela cozinha e perguntou a Mrs. Browne se ficara alguém na casa, enquanto esteve
vazia. Tal como havia previsto, ela mostrou-se
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ofendida e respondeu que ninguém ali ficara. Saiu a meio do seu discurso e foi à procura do carro. No exterior, atrás de uma curva da casa, havia uma garagem para
três carros, que, por qualquer motivo, não vira antes.
Levou algum tempo a encontrar as chaves metidas numa caixinha, pendurada na parede. Ao abrir a porta do carro, verificou que o chão fora aspirado e havia um dossiê
no banco do passageiro. O interior continha uma lista dactilografada com o material de computador e outro equipamento necessário para montar um escritório. Jace
sorriu ao ver que o equipamento provinha de quatro fontes diferentes. "Tentei conseguir os melhores preços", escrevera Gladys, no fiindo da página. "Posso comprar
tudo na segunda- -feira e começar a trabalhar na terça, às duas. Tenho aulas até à uma."
Jace teve de dar a volta ao carro para entrar no lugar do condutor. Iria demorar algum tempo a adaptar-se ao facto de o volante se encontrar do lado oposto ao que
estava habituado.
Fez marcha-atrás na garagem, procurou o mecanismo para fechar a porta, mas não o encontrou. Surgido do nada, Mick apareceu e puxou a porta para baixo. Jace desceu
o vidro da janela, pôs a cabeça de fora e pediu:
- Diga à Gladys que sim, que terça-feira me convém.
Mick sorriu e esboçou um aceno de agradecimento.
A caminho de Margate, o celular de Jace - ou o telemóvel como lhe chamavam em Inglaterra - tocou. Hogel informou-o de que o proprietário garantira que nunca tinha
alugado a casa a ninguém.
- Obrigado - agradeceu Jace e desligou.
Alguém estava a mentir, ou Stacy e quem quer que fosse com quem se encontrara tinham assaltado a casa. Ou teriam sido os dois? Jace não possuía qualquer prova de
que ela mantivera o encontro. Talvez tivesse ido até à casa, aguardado a pessoa, mas esta não aparecera. Talvez se houvesse suicidado por desespero.
- Mas se ela o amava tanto, porque ia casar comigo? - interrogou- e em voz alta, após o que curvou para se desviar de um carro que se aproximava. Por uma questão
de hábito, afastara-se para o lado direito da estrada.
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Jace coryiuziu o Range Rover para o lado, parou e pousou a cabeça em cima do volante. Além de levar a fotografia de Stacy para a cidade e começar a fazer perguntas,
não sabia como proceder. Lera os relatórios sobre a sua morte. Ninguém se encontrara com ela no pub nessa noite. Chegara tarde, a mulher do dono dissera que tinha
dado uma chave a Stacy e que ela quase caíra a meio das escadas. A mulher acrescentou ainda que Stacy parecia ter chorado e o dono perguntara se podia ajudá- -la.
"Não, estou bem", respondeu Stacy. "Só preciso de uma noite de sono descansado."
Ao dirigir-se à casa antes, Jace virara em Priory House antes de chegar à cidadezinha e, por isso, não a vira. Nesse momento, achava-a mimosa e diferente, como a
maioria das pequenas cidades inglesas. Todas as mercearias estavam divididas e, por isso, havia um talho, uma padaria, uma frutaria, um lugar de hortaliça e uma
loja de vinhos. Ao fundo da rua principal, chamada High Street, como na maioria das pequenas cidades, havia um pub e um outro no extremo oposto.
"Que pub era?", interrogou-se Jace, pois a cópia do relatório da polícia estava escondida por trás da foto de Stacy e não pensara em trazê-la consigo. Talvez pudesse
visitar o sítio, onde Stacy tinha... morrido - ainda mal conseguia pensar na palavra - e descobrir. Ignorava o quê.
Ao passar junto a um pequeno edifício em tijolo com os dizeres de Biblioteca Histórica de Margate, Jace teve uma ideia.
Estacionou o carro nessa rua e percorreu a pé a distância que o separava da biblioteca. Todos aqueles por quem passava esboçavam um aceno de cabeça ao fixá-lo. Não
lhe restavam dúvidas de que sabiam que ele era o mais recente dono de Priory House. Quase conseguia ouvir o desejo de perguntarem se havia visto o fantasma. Pensava
que a sua resposta seria: "Sim, mas ele assustou-se e fugiu."
Ao chegar à biblioteca, apercebeu-se de que nem sequer trouxera uma caneta. Não podia passar por um escritor a fazer pesquisa se nem sequer viera prevenido com papel
e caneta.
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Deu meia-volta e viu que, do outro lado, havia uma papelaria. Atravessou a rua e entrou. À semelhança da maioria das lojas nas localidades inglesas, tinha dois exemplares
de cada produto, em vez de vinte e cinco, como era hábito nas lojas americanas, e não se via uma pasta, daquelas
de plástico transparente.
- Cá está você - pronunciou uma mulher alta, magra e de cabelo grisalho, por trás do balcão, ao mesmo tempo que empurrava uma caixa
na sua direcção.
- Desculpe?
- Está tudo aí - disse ela. - Verifique.
- Acho que há uma confusão. Não comprei nada.
- Alice Browne telefonou a dizer que tinha visto o fantasma, no jardim. Nunca aconteceu tal coisa, portanto sabíamos que a sua próxima paragem seria na biblioteca
para se informar sobre ele, por isso aqui está tudo o que vai precisar.
Ao ver que Jace não se mexia, empurrou a caixa, até esta quase cair do balcão.
- Vá lá! - incitou. - Fica na sua conta e depois enviarei uma factura a Gladys Arnold, no final do mês. Mas digo-lhe desde já que não concordo que ela tenha comprado
algumas coisas em Aylesbury. Pode dizer-lhe da minha parte que não compensa antagonizar com os vendedores locais.
- Deseja mais alguma coisa? - perguntou ela impaciente, ao ver que Jace não se mexia.
- Não - respondeu Jace, ao mesmo tempo que agarrava na caixa e se dirigia ao carro. Colocou a caixa sobre o banco do passageiro e pôs-se atrás do volante. Precisava
de algum tempo para se acalmar. Embora tivesse dito a Mrs. Browne que não vira o fantasma no jardim, ela não acreditara nas suas palavras. Telefonara para a papelaria
e dissera à empregada que ele passaria por lá, a caminho da biblioteca.
Sentiu o impulso de telefonar a Mrs. Browne e despedi-la. Como é que ela se atrevia a falar dos seus actos a toda a gente da povoação?
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Decorridos uns minutos de irritação, ocorreu-lhe que talvez fosse bom. Não teria de esforçar-se para levar as pessoas a acreditar que estava interessado no fantasma
e dissimular, assim, a sua verdadeira intenção. Iria supor-se que Jace era como todos os outros.
- Muito bem. É bom - comentou Jace. - Uma espécie de cobertura pré-fabricada.
Relaxando os músculos contraídos, olhou para a caixa no assento ao seu lado e pôs-se a rebuscá-la, abanando a cabeça, incrédulo. Estava cheia de todas as coisas
necessárias para um investigador: seis esferográficas pretas, quatro canetas de cor, dois blocos de apontamentos, um com linhas e um liso. E por aí fora. Havia mesmo
uma pequena lanterna a pilhas, no fundo.
Jace agarrou num grosso dossiê de papel atado com um cordel e meteu no interior o bloco de apontamentos sem linhas e duas canetas pretas, após o que se dirigiu à
biblioteca.
A bibliotecária, uma mulher aproximadamente da mesma idade que a empregada da papelaria e Mrs. Browne, cumprimentou-o com um:
- Tenho tudo o que precisa aqui - disse, ao mesmo tempo que empurrava uma caixa na sua direcção. - Chamamos-lhe a caixa da Priory House e já nem guardamos os livros.
Espero que tenha um videogravador. A Alice disse que o mobiliário não é muito, apenas o que o antigo dono deixou ficar. Se precisar de equipamento de vídeo, podemos
alugar-lho.
- Obrigado - agradeceu Jace o mais sinceramente que conseguiu, mas era difícil não ripostar. - Já encomendei o equipamento de vídeo.
- Ah, sim? A Alice não me contou...
- Mrs. Browne não sabe tudo sobre a minha vida - observou Jace num tom rígido.
- Compreendo - retorquiu a mulher, pestanejando várias vezes.
- Nesse caso, talvez não queira estes livros? - acrescentou, começando a tirá-los do balcão.
Mau grado as suas intenções, tudo apontava para que Jace tivesse voltado a ofender outra pessoa inglesa.
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- Quero esses livros, e muito - ripostou, agarrando na caixa, antes que ela pudesse levá-la. - E foi extremamente generoso da sua parte reuni- -los para mim.
- Não o fiz por si - disse ela, sem se mostrar amansada. - Juntei-os a pensar em Mrs. Grant.
- Oh? - surpreendeu-se Jace e sorriu, tentando cair nas boas graças dela. - Não a conheço.
- Claro que não! Ela foi a proprietária anterior aos quatro últimos.
- A mulher fuzilava-o com o olhar, como se ele estivesse a roubar-lhe demasiado tempo. - E agora, se não precisa de mais nada...
- Na verdade, gostaria de dar uma vista de olhos por aqui. Pesquisar outros assuntos. Se me for permitido, claro.
A bibliotecária não respondeu e limitou-se a virar as costas. Jace agarrou na caixa e pousou-a sobre uma mesa. O que realmente pretendia era ver um jornal local
do dia após a morte de Stacy. Desejava saber o que fora escrito a seu respeito e quem estivera implicado.
Sabia que a bibliotecária podia responder a muitas das suas perguntas sobre como começar a procurar, mas também sabia que ela provavelmente telefonaria a Mrs. Browne,
dali a cinco minutos. "E pedir-lhe-ia permissão?", interrogou-se Jace. "A bibliotecária perguntaria a Mrs. Browne se achava bem que ele lesse os jornais de há três
anos?"
Descobriu o que pretendia sem perguntar e colocou o jornal na máquina de leitura de microfilmes.
No dia seguinte ao corpo de Stacy ter sido encontrado, os títulos de primeira página referiam-se ao concurso de jardinagem local e, portanto, a sua morte só era
mencionada no fundo da segunda página. Sentiu um certo ressentimento por a morte dela não ser notícia de primeira página, mas, por outro lado, ficou satisfeito ao
constatar que a especulação sobre Stacy não se tornara no centro das atenções. Pensou que a morte dela fora abordada com calma e dignidade.
O artigo tinha sido elaborado por Ralph Barker. O jornal era escrito, editado e impresso por ele. Anotou o nome e a morada no bloco.
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Sabia que estava a protelar o relato da história. Respirou fundo e iniciou a leitura. Era uma notícia que se limitava a relatar os factos, sem melodrama, nem especulação.
Às três da manhã de 12 de Maio de 2002, o corpo de Miss Stacy Evans, uma americana de vinte e sete anos, foi encontrado no andar por cima do pub Leaping Stag pela
mulher do proprietário, Mrs. Emma Carew. Esta informou o detective Clive Sefton de que Miss Evans aparecera no pub por volta da meia-noite e pedira para alugar um
quarto para essa noite. Mrs. Carew acrescentou que Miss Evans estava com um aspecto horrível, pois tinha a blusa rasgada no ombro e a maquilhagem esborra- tada por
baixo dos olhos, como se tivesse chorado. Mrs. Carew perguntou-lhe se se sentia bem. Miss Evans respondeu afirmativamente, dizendo que estava apenas cansada e que
precisava muito de dormir. Pediu para não a incomodarem até à manhã seguinte, acrescentando que pagaria duas noites, caso fosse necessário. Mrs. Carew disse ainda
que ela lhe cheirou a álcool e, portanto, pensou que a mulher estivera a beber e não se sentia em condições de guiar, tanto mais que Miss Evans tropeçou ao subir
as escadas.
No dia seguinte, ao ver que Miss Evans não dava sinal de vida, Mrs. Carew começou a ficar preocupada. O marido e dono do pub, George Carew, aconselhou-a a deixar
Miss Evans tranquila, porém ela não lhe obedeceu. Serviu-se da chave mestra para abrir a porta, mas verificou que a corrente estava posta. Disse que vira Miss Evans
esparramada em cima da cama e o instinto lhe segredara que a mulher estava morta. Chamou a polícia.
O detective Clive Sefton chegou ao local às três e seis da tarde e, juntamente com Mrs. Carew, arrombou a porta. Miss Evans estava morta.
O detective Sefton encontrou a bolsa de Miss Evans de onde retirou o passaporte, e telefonou, em seguida, para o número indicado em caso de emergência.
O artigo relatava que, de acordo com a investigação, a morte de Miss Stacy Evans fora aparentemente um suicídio.
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Jace folheou os jornais dos dois dias seguintes, cheios de artigos e fotografias sobre o concurso de jardinagem da localidade. Constatou que não havia qualquer referência
no concurso à sua casa ou ao bonito jardim de Priory House.
Três dias após a morte de Stacy, descobriu mais um artigo, desta vez na página seis, de novo no fundo. Relatava brevemente a história original e declarava, em seguida,
que a irmã casada de Miss Evans, Mrs. Regina Townsend, se deslocara rapidamente de avião a Margate, a fim de levar o corpo da irmã para casa, para os Estados Unidos.
Ao ser interrogada, Mrs. Townsend respondeu ao detective Sefton que a irmã andava deprimida há algum tempo, que assumira o compromisso de casar, mas pensara melhor
e não sabia como se libertar da promessa.
Jace recostou-se na cadeira, sentindo-se como se lhe tivessem dado um pontapé. Por um instante, teve dificuldade em respirar. No funeral de Stacy, fora alvo de toda
a raiva da família dela, mas a sua família protegera-o do pior. Na verdade, Jace ficara em estado de choque, incapaz de compreender o que lhe diziam. Só mais tarde
se recordou das palavras deles e apenas em parte.
Contudo, ali estava tudo impresso no jornal, preto no branco. A irmã de Stacy, uma mulher que considerara sua amiga, declarara à polícia que Stacy estava sem saber
como se libertar da sua promessa de casar. "Uma promessa de casar comigo", sussurrou Jace.
- Sim, Mr. Monrgomery? - inquiriu a bibliotecária num tom frio.
- Precisa de alguma coisa?
- Não. Eu só... - A mulher fitava-o com expectativa e, quando avançou um passo na sua direcção, Jace desligou o aparelho de microfilme. Não queria que ela visse
o que estava a consultar.
- Apenas me interrogava porque Hatch não participou com nada de Priory House no concurso de jardinagem - acrescentou, rebobinando o microfilme e metendo-o no cesto.
- Todos fazem a mesma pergunta - redarguiu ela. - Sempre que alguém ganha o concurso dizem-lhe que isso não teria acontecido caso
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Mr. Hatch tivesse apresentado as suas flores. É frustrante para uma pessoa que passa o ano inteiro a esforçar-se para ser considerada a melhor. Talvez agora que
o senhor é proprietário de Priory House consiga falar com Mr. Hatch.
- Claro que o farei, mas deixe-me dizer-lhe que se as rosas plantadas na frente deste edifício indicam a sua perícia, não estou assim tão seguro da vitória de Mr.
Hatch.
- Dou o meu melhor - replicou Mrs. Wheeler visivelmente satisfeita com o seu comentário.
Sorrindo, Jace agradeceu-lhe mais uma vez e depois saiu. Durante um momento, teve de fazer um esforço para conseguir respirar. Meteu no carro a caixa com livros
sobre a história da casa. "E agora?", pensou, mas desceu a rua, sem hesitar, até ao pub Leaping Stag. "O tio dissera- -lhe que podia descobrir coisas que não desejaria
saber. Iria descobrir porque Stacy não queria casar? Que o desprezava?"
Ao chegar ao pub, a última coisa que Jace desejava era obter mais informação. Queria apenas uma bebida e esquecer tudo durante algum tempo.
O pub estava decorado com traves velhas e brilhantes arreios de cavalo, a perspectiva turística do que devia ser um pub inglês. Havia um casal jovem numa mesa ao
fundo, mas, de resto, o local estava vazio, exceptuando um homem por detrás do balcão. Era um indivíduo alto, na casa dos quarenta, e usava um avental à volta da
enorme barriga. Tinha todo o ar de proprietário do pub.
- Não tem por acaso uísque de malte McTarvit? - perguntou Jace.
O homem esboçou um leve sorriso e serviu a Jace um shot do uísque dourado-escuro.
- Portanto, "conheceu as três" - declarou o homem.
Jace fitou-o com uma expressão interrogativa.
- Mrs. Browne, Mrs. Parson da papelaria e Mrs. Wheeler, da biblioteca. Bem merece um uísque. Mais um?
- Duplo.
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Uma mulher bonita, mais ou menos da idade de Jace e com uma figura agradável, surgiu das traseiras.
- Céus! Que brasa! - exclamou. - Já me tinham dito, mas palavra de honra!
- Afasta lá as mãos - ordenou o barman com um ar bem-humorado.
- A propósito, o meu nome é George Carew e esta franga descarada é a minha mulher Emma. - Esboçou um aceno de cabeça na direcção de Jace.
- Ele acabou de conhecer o trio.
Emma esboçou uma expressão de pena. - Pobrezinho! - retorquiu.
- Ia oferecer-me para lhe dar de comer, mas deduzo que a Alice já o fez.
- Quanto peso consegue uma pessoa ganhar em vinte e quatro horas?
- inquiriu Jace.
- Ela vai preparar torta para esta noite, se conseguir encontrar framboesas - respondeu com um brilho cúmplice nos bonitos olhos.
- Como é que aquelas raparigas mantêm um segredo assim numa aldeia como esta? - perguntou Jace, em voz baixa. O uísque estava a começar a fazer efeito e a descontrai-lo,
mas sabia que não podia beber mais, pois receava dizer algo que não devesse.
- Faz-se tudo no Luton - explicou Emma. - A única razão por que sei da fruta deve-se a ter sido a minha mãe a começar tudo.
- E como é que Mr. Hatch está implicado? - perguntou Jace.
- A irmã mais nova está metida no negócio - respondeu Emma.
- "Nova" é um termo relativo. Ela deve andar pelos oitenta - interferiu o dono do pub.
Por um momento, Jace testemunhou um olhar de tanto amor e intimidade entre ambos que teve vontade de agarrar na garrafa de uísque e beber até à última gota. Julgava
que vivera o mesmo com Stacy, mas, aparentemente, não fora assim.
- Sim, ouvi falar da sua mulher - disse Jace sem pensar, tomando imediatamente consciência de que não podia dizer-lhes onde ouvira falar de Emma Carew.
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Contudo, o dono do bar limitou-se a esboçar um sorriso de orgulho.
- Então, já leu o livro! - retorquiu.
- Claro que sim - anuiu Jace, mas Emma observava-o e teve a certeza de que ela sabia que ele estava a mentir. Apeteceu-lhe abrir o bloco de apontamentos e escrever,
"Descobrir o livro. Ler sobre Emma".
- Mr. Monrgomery... - começou Emma.
- Jace - apressou-se ele a corrigir.
-Jace - anuiu ela, sorrindo de uma maneira que o fez sentir-se bem.
- O que me diz a uma cerveja e umas asas de frango frito à americana?
- Quem fabricou a cerveja? - inquiriu Jace, receoso.
- Não me diga que provou a cerveja de Hatch? - redarguiu George.
- Um copo.
- E sobreviveu?
- E nesse mesmo dia bebi dois copos do seu vinho.
- É um milagre que não tenha cegado.
- Não me admira que tenha adormecido ao jantar na noite passada - comentou Emma, rindo ante a expressão de Jace. - Daisy contou à mãe, que contou à minha, que, por
sua vez, me contou. E o assunto de todas as conversas por estes lados. Um homem alto e bonito como você, sozinho naquela casa enorme. A opinião geral é que precisa
de uma mulher. De facto, há algumas descomprometidas que, neste momento, estão a dar lustro aos sapatos de salto alto.
- Quem precisa de mulher? Além de mim, claro? - soou uma voz, na ombreira.
Ao virar-se, Jace deparou-se com um indivíduo de vinte e muitos anos, louro, de olhos azuis e constituição robusta. Vestia um uniforme de polícia e Jace soube intuitivamente
que se tratava do homem que abrira a porta e encontrara Stacy.
Sentou-se num banco ao lado de Jace e mandou vir uma limonada.
- Estou de serviço - explicou. - Clive Sefton. Então, não me quer dizer porque comprou a casa?
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- Achei-a bonita - respondeu Jace, sem um sorriso.
Os três emitiram um grunhido entredentes.
- A cozinha de Mrs. Browne? Os jardins?
Mais grunhidos.
Jace bebeu um gole da cerveja, uma agradável e leve cerveja americana, comeu uma das asas de frango fritas e quentes de Emma e empurrou o prato na direcção de Clive,
convidando-o a partilhar.
- Ganhei algum dinheiro com base em bons investimentos e queria um sítio para viver, por isso comprei uma casa - respondeu.
- Porquê aquela casa? - insistiu Clive.
- Para escrever um livro sobre o fantasma, claro.
- Você e todos os outros - comentou George.
- Lamento, querido - dirigiu-se Emma a Jace -, mas não se aguentará por aqui. É pena.
- Diga-me o que é que o fantasma faz exactamente? - perguntou
Jace.
- Toda a gente já sabe que o viu no jardim, esta manhã.
- Apenas vi duas raparigas a roubarem as minhas framboesas. Mrs. Browne deduziu tudo a partir daí. - Não era propriamente uma mentira, mas também não era a verdade.
- Diga-lhe lá o que lhe contaram - pediu Emma, olhando para Clive.
- O último dono disse-me que viu a figura de uma mulher sentada junto ao seu filho de sete anos - anuiu Clive, acabando de comer a sua quarta asa de frango. - O
miúdo estava no interior do fantasma e brincavam juntos com uma consola Xbox.
- Xbox? - surpreendeu-se Jace.
- Sim. Ela lê por cima do ombro das pessoas e quando elas são muito lentas, vira as páginas. O filho mais velho de um casal de proprietários anteriores contou que
a ouviu subir as escadas montada num cavalo, mas acho que o rapaz andava a fumar coisas que não devia.
- E a "árvore dela"? - quis saber Jace.
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- Isso data de há muito tempo - prosseguiu Clive. - Consta que ela enforcou um homem nela. Ele atraiçoou-a e, portanto, ela ordenou aos seus comparsas que o enforcassem.
Convença Mr. Hatch a mostrar-lhe o sítio onde costumava estar a corda. A corda foi mantida lá até há cerca de dez anos, quando o antepenúltimo dono a cortou.
- Existe ainda outra história de que ela enterrou o saque por baixo daquela árvore. Mr. Hatch passou mais do que uma noite a dormir por baixo dela com uma espingarda
no colo - prosseguiu. - Os rapazes das redondezas estão sempre a ameaçar que vão cortar a árvore e ver o que se encontra por baixo e, portanto, Hatch protege-a.
- Interessante! - comentou Jace, de olhos fixos na cerveja, deixando escapar em seguida: - Há alguns crimes por resolver nesta vila?
- Percebo - sorriu Emma. - Quer escrever sobre o crime numa aldeia inglesa, acertei?
- É o único género de romance policial que vende - vincou Jace, sorvendo um gole de cerveja. - Alguém se lembrou de fazer um estudo da população de Inglaterra comparativamente
ao número de pessoas supostamente assassinadas pelos processos mais inteligentes, em remotas vilas inglesas?
- Não posso responder afirmativamente - disse George com um sorriso. - Mas se alguém fizesse essa proposta, tenho a certeza de que o governo estaria disposto a pagar
pelo estudo.
- Na minha opinião - apressou-se a interromper Emma, antes que o marido se pusesse a dissertar sobre política - as remotas vilas inglesas são tão monótonas, que
as pessoas pensam no crime para animar o local.
- Colmatou a frase com um olhar significativo para o marido.
- Emma quer que o George a leve a Londres para uma saída nocturna - explicou Clive.
- Se ele não o fizer, terá um crime para investigar aqui mesmo, em Margate.
- Então, não aconteceu mais nada por estes lados à excepção do fantasma e da consola de Xbox?
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- Aí tem um bom título para o seu romance - retorquiu George.
- O Fantasma e a Xbox.
- Está interessado por algum crime em particular? - quis saber Clive, perscrutando o rosto de Jace.
Este desviou os olhos. Bebera de mais e havia muitos ouvidos à escuta. Ficou satisfeito quando meia dúzia de homens, que haviam largado o trabalho, entraram no pub.
A música estava ligada e todos se dispersaram.
Jace deixou-se estar no pub até às duas da manhã. Riu e conversou com os clientes e esforçou-se ao máximo por esquecer o que tinha visto de manhã e lido à tarde.
Alguns homens de cabelo ruivo e sardas no rosto levaram-no a casa de carro.
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4
Na manhã seguinte, Jace resolveu passar o dia em casa. Não estava habituado a beber muito, mas caíra inconsciente na cama dois dias e isso chegava. Ao pequeno-almoço,
Mrs. Browne interes- sou-se pelo seu fígado. Jace não respondeu, mas, na manhã seguinte, Mrs. Browne perguntou-lhe o que tinha investigado além da história do fantasma.
Jace sabia que precisava de dar qualquer resposta, caso contrário os boatos criariam a sua própria explicação.
Baixou os olhos para a tosta francesa - à Jamie Olivier - e comportou-se como se houvesse algo que estava a tentar ocultar. A governanta limpava o grande lava-loiça
numa atitude de expectativa.
Jace deu-lhe algum tempo e, em seguida, inquiriu:
- Porque é que o meu jardim não esteve representado no concurso de jardinagem local?
Mrs. Browne lançou-se imediatamente numa diatribe contra o seu adversário favorito: Mr. Hatch. Ele nunca participara no concurso por achar que seria injusto para
com os outros participantes. No fim de
contas, ele era um profissional. Mrs. Browne deu a Jace a sua opinião sobre os talentos de jardinagem de Mr. Hatch.
Com um sorriso satisfeito por achar que distraíra os cães de guarda, Jace subiu ao quarto, onde alguém colocara os livros que a bibliotecária lhe emprestara. "O
melhor é começar a examiná-los", pensou.
Na noite anterior tinha dormido na ampla cama de carvalho no quarto principal, mas, mesmo a dormir, parecera-lhe excessivamente grande e vazia. Fora aberta uma porta
na parede para que os antigos proprietários pudessem usar a divisão da ala oeste como um quarto de vestir e Jace seguiu, portanto, para leste, na direcção do que
estava a tornar-se o seu quarto favorito, onde dormira na primeira noite. Mal entrou, um sorriso desenhou-se-lhe nos lábios.
Numa parede havia uma bonita lareira em mármore trabalhado; outra tinha janelas do chão ao tecto que davam para os jardins. A parede diante dele oferecia um vão
rodeado de enormes janelas e um banco por baixo. A cama fora colocada junto à quarta parede, bem como a porta para a casa de banho.
Sentou-se no banco da janela e observou o parque, que se estendia ao longo de relvados, pontilhados de... Tinha mesmo de perguntar a Mr. Hatch se aquelas ovelhas
lhe pertenciam ou não.
Virou-se para o interior do quarto. Havia pouco mobiliário, apenas a cama, ou melhor um colchão de molas em cima de um estrado, e uma única cadeira junto à lareira.
Sabia que, lá em baixo, dispunha de várias salas com enormes sofás e, caso tivesse algum senso, desceria até lá com os seus livros, mas apetecia-lhe ficar no quarto.
Por um lado, era a única divisão que não lhe parecia vazia. A própria cozinha de Mrs. Browne, que se apresentava cheia como um ovo, possuía uma certa solidão. Mas
aqui, neste quarto...
- Continua assim Monrgomery e ainda te internam numa instituição psiquiátrica - disse Jace em voz alta. Pensou que a luminosidade era boa, havia o banco junto da
janela e não precisava de mais nada.
Estendeu-se na cama com a caixa dos livros no chão, ao seu lado. A sua primeira escolha recaiu sobre um livrinho azul publicado em 1947,
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sobre a perversa Barbara Caswell, Lady Grace. Nascida em 1660 no seio de uma família pobre, fora uma bonita mulher, que se sentia enfastiada e inquieta. Aos dezoito
anos tinha casado com um homem rico e dono de Priory House e partira do princípio de que a sua vida seria uma infindável quantidade de festas. Contudo, o marido
odiava Londres e o convívio social. Invadida por um tédio que se abeirava da loucura, a jovem mulher saía furtivamente do "quarto de paredes estampadas", subia uma
escada secreta que levava a uma das quatro divisões da torre, vestia roupas de homem e descia pela escada até ao terreno. Assobiava ao seu cavalo favorito e partia
à desfilada com o intuito de roubar pessoas, não pelo dinheiro, mas pela excitação que isso lhe provocava.
Decorridos uns meses, Lady Grace conheceu outro ladrão de estradas, Gentleman Jack, e tiveram uma relação. Durante anos a fio, passaram o tempo a roubar pessoas.
Contudo, o tédio dela acabou por levar a melhor e, na sua busca de mais excitação, começou a matar. Abateu a tiro um rapaz que vira crescer e, quando um velho criado
descobriu o seu segredo, envenenou-o. Ao descobrir Gentleman Jack na cama com outra mulher, denunciou-o ao xerife. O assaltante de estradas foi preso, julgado e
enforcado. A única preocupação de Barbara Caswell era a de que ele pudesse desmascará-la enquanto estava preso. Contudo, ele portou-se como um verdadeiro gentleman
e não o fez.
A dois terços da leitura, Jace sentiu dificuldade em continuar. A história não fazia qualquer sentido aos seus olhos, mas era supostamente verdadeira. Barbara Caswell
saíra, durante noites seguidas, anos a fio. Nunca ninguém dera pela sua falta? Nunca acontecera algo durante a noite capaz de levar as pessoas a sair da cama, dando
assim pelo seu desaparecimento?
Continuou a ler com uma certa relutância. Após anos de crime e de traição, Mrs. Caswell apaixonou-se pelo noivo da única pessoa que desconfiava dela e retirou-se
das lides. "Ah! O poder do amor", pensou Jace. Aparentemente, de uma noite para a outra, Barbara Caswell passou de uma criminosa a sangue-frio para uma dona de casa
- exceptuando
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o facto de que planeava matar o marido para se livrar dele e poder casar com o homem que amava.
Ao terminar de ler o livro, Jace mal conseguia manter os olhos abertos. Sabia que supostamente devia acreditar naquela história extremamente romântica, mas não era
o caso. Quando leu que Lady Grace saiu para um último assalto e foi abatida a tiro pelo homem que amava, sentiu-se aliviado.
"Uma morte bem merecida", comentou Jace para si próprio, voltando a atirar o livro para dentro da caixa. Apetecia-lhe dormir um pouco, mas depois lembrou-se de Emma
Carew e interrogou-se sobre o que deveria ter lido a seu respeito.
Agarrou num volume enorme, A História de Margate. Uma vez que este pesava vários quilos, decidiu não o ler desde o princípio. Consultou o índice, descobriu "Carew"
e virou as páginas. Havia uma fotografia de Emma, tirada há cerca de dez anos, exibindo um fato de banho conservador, uma coroa na cabeça e um ceptro na mão. "Miss
Margate", lia-se por baixo da fotografia. "Votada a rapariga mais bonita da aldeia."
Jace fechou o livro com um sorriso e consultou outros volumes da caixa. Havia quatro catálogos que datavam da altura em que a casa estava à venda. Folheou-os e verificou
que não mudara muita coisa, à excepção do mobiliário. Um dos proprietários enchera a casa de cromados, vidro e cabedal preto. No fundo da caixa, havia uma brochura
sobre casas assombradas inglesas e Priory House tivera direito a um longo parágrafo. Ficou a saber que o fantasma de Barbara Caswell, a assaltante de estradas, fora
visto muitas vezes. Entre outras coisas, acendia velas na janela da torre e andava a cavalo pelo interior da casa.
- Mas o marido não fazia ideia do que se passava - murmurou Jace, ao mesmo tempo que atirava a brochura para dentro da caixa.
Recostou-se nas almofadas da cama e passeou os olhos pelo quarto. O tecto não apresentava decorações e era de gesso. As paredes tinham velhos painéis de carvalho
até meio e o soalho era igualmente de carvalho.
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- Pergunto a mim mesmo como seria este quarto? - sussurrou, antes de adormecer.
Começou imediatamente a sonhar. Sonhou que estava no quarto, de pé no local onde se encontrava a cama, mas avistava uma cama estreita na parede oposta. Baixou os
olhos para as suas pernas e apercebeu-se de que tinha a esquerda dentro de um enorme roupeiro. Sobressaltado, deu um passo para a direita, saindo do roupeiro. Curioso,
estendeu a mão para o interior do roupeiro e, depois, para uma cadeira ao lado. Sabia que estava a sonhar e, portanto, usufruiu da sensação. Avançou na direcção
da lareira, atravessando uma grande otomana verde e sorriu ao passar através de uma cadeira verde acolchoada.
Junto à lareira, Jace tentou pegar nos objectos decorativos, mas a mão passou através dos mesmos. "Que sonho maravilhoso!", pensou, gozando a sensação de ver, sem
estar no local. E que divisão maravilhosa, aquela criada pelo seu espírito, embora o estilo vitoriano não fosse propriamente a sua primeira escolha. Caso lhe perguntassem,
diria que optaria por Priory House, nos seus tempos de mosteiro.
"Este quarto pertencia a uma mulher", pensou, enquanto prosseguia caminho, parando para passar as mãos sobre os pequenos frascos pousados num pequeno toucador e
examinando, em seguida, os títulos dos livros arrumados numa alta e estreita estante. Eram, na sua maioria, livros infantis, mas também havia alguns sobre a natureza.
"Pássaros", concluiu, mas sem conseguir ouvir a sua própria voz. "Ela gosta de pássaros." Ante a ausência de som, pensou que, como num filme mudo, também este era
um sonho mudo.
Não estava muito a par da História Antiga, mas supunha que a divisão datava da época da Guerra Civil Americana.
Depois de ter dado uma volta completa à divisão, Jace parou junto ao roupeiro. A sua esquerda, abria-se a porta para o corredor. Tal como deduzira, as outras duas
portas, que davam para o quarto principal, bem como para a casa de banho, não existiam. Tratavam-se de mudanças posteriores.
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Embora soubesse que estava a sonhar e tudo o que via não era real, o coração quase lhe parou ao ouvir vozes.
Duas mulheres entraram no quarto. Uma delas era alta e elegante e tinha o cabelo apanhado na nuca. Jace reconheceu-a como a mulher que soprara a aranha para Mrs.
Browne. Sentiu o impulso de a cumprimentar, mas desejava tanto saber o que aconteceria, que se meteu dentro do roupeiro, dissimulando-se num dos lados. Tinha uma
visão obscurecida, como se usasse óculos escuros dentro de casa, mas conseguia vê-las e interrogou-se sobre se elas também o veriam.
A segunda mulher era mais baixa e mais forte. Tinha um rosto bonito, mesmo com as sobrancelhas rapadas, e usava pouca maquilhagem. Segundo os padrões do século XXI
era pesada. Porém, Jace maravilhou-se com o que ela fizera ao corpo, pois embora o tronco e as ancas fossem bastante largos, tinha uma cintura tão fina que ele poderia
apertá-la entre as mãos. Por um lado, era muito vistosa, mas pensou que se lhe cortassem os atilhos do corpete, ficaria um balão.
Achou que a mulher mais alta provavelmente ficaria fantástica de biquíni.
- É uma maravilha, Ann - disse a mulher forte, ostentando o que pareciam vinte e cinco quilos de seda verde e qualquer coisa como cem metros de franjas e fitas.
A mulher mais magra, Ann, exibia na sua frente um bonito vestido de seda amarelo-claro. Tinha metade dos metros e enfeites dos da outra mulher, mas agradava mais
a Jace.
- Achas mesmo? - perguntou Ann.
- Mas parece-te que Danny irá gostar quando o puser no dia do nosso casamento?
- Acho que Danny Longstreet preferia que fosse de tafetá com riscas vermelhas e pretas e uma franja púrpura na saia.
- Provavelmente - anuiu Ann, sorrindo. - Mr. Longstreet disse que assim que for sua filha, posso ir fazer compras a Londres. Consegues imaginar, Catherine? Londres!
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- Algo que o teu pai nunca permitirá - retorquiu Catherine, após o que as feições lhe reluziram. - Ficarás na minha casa em Londres, não é verdade? Os miúdos estão
ansiosos pelo último capítulo da tua história.
- Claro que ficarei contigo, querida Catherine. E serei o teu álibi pelo tempo que passares com o teu último...Como é o seu nome?
- É meu amante e sabes perfeitamente o seu nome. Sergei. Oh, Ann! Devias vê-lo. Fantástico não serve como definição. E aquele seu temperamento russo!
- Que opinião tem o teu marido a respeito dele?
- Não faço ideia. Peregrine é amante de uma actriz.
- Julguei que amasses o teu marido - redarguiu Ann, abanando a cabeça.
- Amo e muito. Na verdade, acho que o nosso último filho deve ser
dele.
- Não tens emenda - disse Ann a rir.
- Eu? Tu vais casar com um homem que está a uma geração de ser o filho da governanta e sou eu que não tenho emenda?
- Como sabes perfeitamente, minha querida prima, há três gerações que a nossa família provém das fábricas. Foram o teu rosto e a tua cin- turinha a conseguir um
conde para marido e não a tua árvore genealógica.
- Claro, mas agora que o apanhei, reflecte-se em ti. Podias ter escolhido melhor do que o filho de Hugh Longstreet. O velho quer esta casa e apenas casa o filho
contigo para lhe deitar a mão. O teu pai usou-te para realizar o seu desejo. Tens a certeza de que não mudarás de opinião quanto a casares com ele?
- A certeza absoluta - respondeu Ann, pousando o vestido de casamento em cima da otomana e dirigindo-se ao roupeiro. - Ainda não te mostrei o meu traje de passeio.
Tem um casaco de caxemira.
- Adorava vê-lo. Eu...Ann! O que se passa?
Ann abrira a porta do roupeiro e ah estava Jace, no interior. Quando percebera que ela ia abrir a porta, tentara esconder-se, mas não conse
guiu recuar - o que o obrigaria a atravessar a parede - e, por qualquer motivo, o seu corpo não se moveu para o lado, a fim de se esconder por detrás da outra porta.
Sentiu-se incomodado com a expressão horrorizada de Ann, mas nada podia fazer. Por oposição ao que ela fizera no jardim, ele aparentemente não conseguia desaparecer
quando lhe aprouvesse. Sorriu-lhe e chegou mesmo a esboçar um aceno, o que apenas serviu para a assustar ainda mais. Estava tão pálida que receou que ela desmaiasse.
Ann levantou o braço e apontou para o roupeiro. Catherine aproximou-se e não viu nada de especial. Ela tirou as roupas todas para fora, pegou nas caixas e fez o
mesmo.
Quando Catherine se inclinou para inspeccionar o enorme roupeiro, Jace passou pela inquietante experiência de verificar que a cabeça dela atravessava o seu peito.
No momento em que atirou uma chapeleira para o exterior, ela passou através das suas pernas. Jace não conseguia desviar os olhos do que Catherine fazia, mas, decorridos
uns momentos, detectou o lado anedótico de toda a situação. Ergueu o rosto para Ann com um olhar de cumplicidade, mas ela estava prestes a desmaiar de medo.
Jace gritou a Catherine que se ocupasse de Ann, mas a sua garganta não emitiu qualquer som. Bateu com os punhos na parede do roupeiro, mas o resultado não foi melhor.
Quando o corpo de Ann atingiu o chão, Catherine virou a cabeça. Ann olhou novamente para Jace, pestanejou e ficou inerte. Mal ela desmaiou, Jace despertou e viu-se
na cama.
Permaneceu uns minutos sem se mexer, abrindo e fechando os olhos, sem saber onde estava. O quarto árido foi tomando forma aos poucos. Era o mesmo do seu sonho, mas
a semelhança parava aqui. O papel da parede - do de Ann - por cima do painel era creme com raminhos de flores presos com fitas azuis. A cama era de mogno, estreita,
mas alta. A alcatifa...
Jace esfregou os olhos, sentou-se na cama e consultou o relógio. Só adormecera há dez minutos.
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À medida que ficava mais acordado, começou a lembrar-se do que ouvira. Nomes. Danny Longstreet, Ann, Catherine, Peregrine.
Agarrou no grosso volume de A História de Margate e procurou no índice. Hubert e Daniel Longstreet constavam do capítulo sobre Priory House.
Hubert "Hugh" Longstreet era o pai de Daniel, que estivera noivo de Ann Stuart, filha do dono de Priory House. Todavia, quando o casamento não se realizou, Hugh
e o filho abandonaram Margate e mais ninguém ouviu falar deles.
- Então, e Ann? - perguntou Jace, em voz alta. - Porque não se casou com Danny Longstreet?
Ao folhear as páginas, Jace pensou em todas as doenças de que os vitorianos padeciam. Que coisa horrível acontecera a Ann para que não se tivesse casado com Danny
Longstreet?
Duas páginas à frente, havia um artigo escrito por N. A. Smythe intitulado "A Tragédia dos Stuarts de Priory House".
Jace leu rapidamente a história, em seguida abrandou, e voltou atrás. Smythe escrevia que Arthur Stuart, o filho querido e dono de Priory House, afastara-se da jovem
mulher rica que podia ter desposado e casara, em vez disso, por amor. Unira o seu destino à meiga e encantadora filha de um vigário de uma paróquia rural e levara-a
para Priory House. Infelizmente, ela e o seu amado pai tinham morrido no ano seguinte. Contudo, Arthur não ficara sozinho, pois restava-lhe a sua amada filha, Ann,
para o consolar.
- Amada - pronunciou Jace. - Toda a gente ama outra pessoa.
Em 1877, concluiu-se que a casa necessitava de grandes restauros,
mas Arthur Stuart, um célebre erudito, não tinha dinheiro para cobrir as despesas. Hubert Longstreet, um americano rico, queria comprar a casa, mas igualmente que
o seu filho casasse com o que considerava a aristocracia, a família Stuart. Embora já não houvesse qualquer título, acreditava-se que dantes existira uma ligação
com a realeza Stuart e mesmo uma ligação ao trono britânico. Longstreet pretendia elevar a sua
posição
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acima das suas modestas raízes americanas e Arthur Stuart ansiava desesperadamente por preservar a casa dos seus antepassados.
Os dois homens fecharam um contrato. Anuíram que os seus filhos se casariam e viveriam todos juntos naquela mansão. Contudo, revelou-se um pacto falhado. Danny Longstreet
era um homem rude e sem educação que bebia, jogava e frequentava casas mal-afamadas. Ann Stuart era uma jovem de elevada reputação, tranquila, culta e amada por
todos.
"Ann tentou obedecer ao pai", escrevia N.A. Smythe "mas, quando chegou a altura, não conseguiu ir por diante com o enlace. Duas horas antes do casamento, bebeu um
frasco de veneno. Preferiu suicidar-se a casar com um borra-botas como Danny Longstreet."
"Ann foi enterrada com o vestido de noiva, mas, infelizmente, teve de ser fora da circunscrição do cemitério por se ter suicidado."
"Umas semanas após a data em que o casamento se devia ter realizado, uma jovem da região de Margate revelou que o pai do seu filho ilegítimo era Danny Longstreet."
"Pobre Ann. Que descanse em paz!"
Jace fechou o livro. "Não, Ann Stuart não descansou em paz. Na verdade, não descansou. Estava condenada a vaguear por Priory House... Até quando?", interrogou-se.
"Até alguém descobrir que ela tinha sido assassinada e não se suicidara?"
Endireitou-se na cama. Assassínio. Quando Jace foi informado de que a mulher que amava se suicidara, afirmara que ela fora assassinada, mas ninguém lhe dera ouvidos.
Stacy sofria de insónias e, por conseguinte, tinha sempre soníferos consigo. Porém, ao longo dos anos em que haviam convivido, abandonara gradualmente os comprimidos.
Ele nem sequer sabia que ela ainda conservava uma receita. Depois da sua morte, um médico de que nunca ouvira falar, telefonara a desculpar-se por ter dado uma nova
receita a Stacy. "Ouvi falar da sua morte", dissera. "Ela era uma nova paciente e não fazia ideia de que fosse dependente ou maníaco-depressiva." "Mas ela não era
nada disso!", afirmara Jace, antes
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de o seu tio Mike pegar no auscultador. Mike falou calmamente com o homem durante uns minutos e, em seguida, desligou. Estava rubro de cólera. "Acho que ele está
preocupado que lhe levantemos um processo e tenta declarar que Stacy estava mentalmente afectada." A única palavra que Jace ouviu foi "estava". Stacy morrera.
Ao longo das semanas infernais que se seguiram à morte de Stacy, tudo o que Jace parecia ouvir se resumia a que Stacy era "instável" e passara por anos de aconselhamento
psicológico. Aparentemente, a família concordara que o facto de estar noiva de uma pessoa como Jace, ocupado com o trabalho, sempre em viagem, a colocara à beira
do abismo. Ela quisera livrar-se do casamento, mas não sabia como expressar esse desejo por palavras. A madrasta de Stacy afirmou que Stacy não quisera magoar os
sentimentos de Jace. "Portanto, matou-se?", ripostara Jace. Confrontada com a pergunta, a madrasta de Stacy começara a chorar. O pai de Stacy levara-a e o tio Mike
fizera o mesmo a Jace.
Não fora preciso pensar muito para concluir até que ponto a madrasta de Stacy tinha a ganhar com o facto de a morte de Stacy ser um suicídio. Agora que Stacy morrera,
dispunha de todas as atenções do marido. O indivíduo nunca se preocupara muito com a sua outra filha, Regina, que casara jovem e dera à luz quatro crianças. Stacy
fora aquela que rira e fora capaz de fazer brilhar os olhos do pai.
Jace fechou os olhos e obrigou-se a recordar algo que tentava esquecer: o funeral de Stacy. Mr. Evans estava pálido, de olhos parados e avermelhados pelo desgosto.
Stacy fora a sua favorita. Costumava dizer que ela lhe tinha causado problemas, mas valia cada um deles. No funeral, Mr. Evans afundara-se numa cadeira, entorpecido
pelo choque. A sua jovem mulher e a segunda filha que não amava pairavam sobre ele, consolando-o devido ao suicídio.
"O que teria acontecido se a morte de Stacy fosse considerada um assassínio?", pensou Jace. Roger Evans não necessitaria do conforto de duas mulheres. Transformar-se-ia
num leão enraivecido e conservaria a mulher à distância, até descobrir quem matara a sua querida filha.
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A mãe de Jace sempre disse que se se quisesse saber se alguém fizera algo, devia examinar-se o resultado. Ao culparem Jace e ao declararem à polícia britânica que
Stacy era profundamente infeliz, a madrasta e a irmã tinham conseguido duas coisas: a atenção concentrada de Roger Evans e o afastamento dos Monrgomery. Jace tinha
consciência de quanto Roger ficara satisfeito por a sua filha se casar com um Monrgomery, família rica e poderosa. O facto devia ter magoado Regina, uma vez que
o seu marido aparentemente não se conseguia aguentar num emprego.
Jace passou a mão pelos olhos. Naquele momento tudo lhe parecia nítido. Pelo menos os motivos das pessoas que continuavam vivas pareciam claros.
"Mas e Stacy?"
Jace passeou o olhar pelo quarto. Sabia, indubitavelmente, que fora trazido até esta casa. Tinha a sensação de que a carta que descobrira o esperava há três anos.
Precisara de algum tempo para ultrapassar o desgosto e o choque causados por Stacy e para perceber que tinha de descobrir a verdade. Não podia continuar a viver
com o receio de que todas as mulheres que conhecia iam... Não conseguia obrigar-se a pensar nas possíveis consequências.
Assassínio, não suicídio. Era uma ideia que nunca lhe saíra da cabeça. Mas quem, porquê? Como?
Apenas tinha a certeza de que não era coincidência o facto de poder ver um fantasma que supostamente se tinha suicidado.
Jace agarrou no livro A História de Margate e releu a saga de Ann. Pelo pouco que ouvira nos seus sonhos, parecia que tudo na história não fazia sentido. Pelo tom
de voz de Catherine, não achava que Ann fosse a "amada" filha de Arthur Stuart. E, longe de desejar livrar-se de casar com um tratante como Danny Longstreet, Ann
ansiava por fazê-lo.
- O que aconteceu? - perguntou em voz alta. - E o que posso fazer?
- Sabia que Ann aparecera a outras pessoas - ou fora vista por elas - mas só ele a vira no exterior. Isso tinha de possuir um significado.
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Jace levantou-se. Sabia que precisava de Ann Stuart. Precisava de saber o que ela vira naquela casa e sentia que ela também precisava dele. partia do princípio de
que ela procurava...Seria possível que durante cento e vinte e sete anos ela tivesse procurado alguém que a ajudasse a colocar o seu corpo no solo sagrado do cemitério?
- Ajuda-me e eu ajudo-te - prometeu, mas não obteve qualquer resposta.
O quarto, a própria casa, pareciam vazios. Sorriu ao pensar que, por duas vezes, assustara Ann: uma no jardim e outra na época a que ela pertencia. Tanto quanto
sabia, nesse momento ela estava escondida no quarto da torre de Barbara Caswell, planeando não voltar a sair.
Precisava de chegar à fala com ela e contar-lhe os seus problemas com Stacy. Tinha de convencê-la a vir ao seu encontro.
Um leve sorriso desenhou-se-lhe no rosto. Ia cortejá-la. Seduzi-la. Criaria uma teia em que ela cairia.
Sem abandonar o sorriso, Jace dirigiu-se ao quarto principal a fim de preparar a mala para uma noite. Não seria fácil, mas sabia que teria de confiar em algumas
pessoas.
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Preciso de uma pausa - disse Gladys, pousando o pincel.
- Claro, assim que eu...
Jace olhou para Mick e Gladys e detectou a forma como o fitavam. Eram jovens, estavam apaixonados e precisavam de umas horas do fim-de-semana a sós. Eram três da
tarde de domingo e obrigara-os a trabalhar desde as duas horas de sexta-feira.
- Vão lá, que eu acabo isto - disse. - Os dois... - Saíram do quarto, antes mesmo que ele acabasse a frase.
- Óptimo - ainda lhe disse Gladys, quando ela e Mick se precipitaram pelas escadas.
Jace teve de controlar os ciúmes, enquanto o riso do par ecoava pela
casa.
- Isto aqui precisa de alegria - disse, após o que recuou para observar o quarto de Ann. Gostou do que viu.
Na sexta-feira comunicara a Mrs. Browne que ia passar o fim-de-semana a Londres. Ouvira-a delicadamente explicar que, em Inglaterra, se passava a semana em Londres
e o fim-de-semana no campo. "Mas eu
não sou inglês, pois não?", reagira Jace sabendo que aos olhos dela "não ser inglês" era pior do que cometer um crime.
Ao meter-se no carro, tal como esperava, Mick estava por perto e Jace ofereceu-lhe um trabalho de fim-de-semana.
- Em Londres? Com a minha namorada?
- Se não se importarem de ficar no Claridges - respondeu Jace e julgou que Mick ia desmaiar de felicidade. Mesmo as pessoas do campo sabiam que o Claridge"s era
um hotel de fama mundial.
Uma vez que Jace não queria que os habitantes da vila soubessem o que ia fazer, encontraram-se em St. Alban"s, deixaram o carro deles num parque de estacionamento
e seguiram os três para Londres no Range Rover de Jace. Mick conduzia, Gladys ia sentada ao seu lado e Jace ia no banco traseiro a fazer esboços e a tomar apontamentos
no grande bloco de papel quadriculado que Mrs. Parsons da papelaria incluíra na caixa de material de escritório.
Jace não explicou o motivo por trás do que desejava fazer e o jovem casal não formulou perguntas. Apenas lhes disse que tencionava recriar o quarto de dormir situado
no canto da ala sudoeste da casa, como havia sido em 1878.
- O quarto estampado - replicou Mick, fitando Jace através do retrovisor.
- Aquele é o quarto estampado? - surpreendeu-se Jace, lembrando- -se de que pertencera a Barbara Caswell. - Como é que sabe?
- A minha mãe costumava limpá-lo em Priory House quando eu era miúdo. Escondia-me sempre que ouvíamos Mrs. Browne, pois sabíamos que ela despediria a minha mãe,
se me encontrasse com ela. Foi o que aconteceu e despediu-a mesmo.
Jace abriu a boca, mas Mick foi o primeiro a falar:
- Não, sir. Não descobri a escada secreta. Ninguém o fez.
"Ninguém com vida", pensou Jace, voltando a mergulhar nos seus
esboços. Não era um artista, mas desenhara bibelôs, loiça de porcelana, mobiliário, tecido, papel de parede e os vestidos de Catherine e Ann.
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- Mick? Mrs. Browne despediu muita gente? - perguntou.
Mick e Gladys emitiram em simultâneo uma gargalhada rouca e sonora que lhe serviu de resposta.
Em Londres, registaram-se em dois quartos com porta de comunicação no luxuosíssimo Hotel Cladridges. Jace ignorou as expressões dos rostos de Mick e de Gladys. Sabia
que lhes agradaria fazer tudo menos ir à procura de antiguidades, mas ainda não eram cinco horas e, portanto, Jace atribuiu-lhes tarefas. Mick devia alugar um reboque
para transportar tudo o que comprassem e dirigir-se depois a uma feira da ladra para adquirir bugigangas que remontassem a cerca de 1878.
- Não percebo nada de bibelôs - protestou Mick, olhando para Gladys.
- Eu percebo alguma coisa - disse ela, aproximando-se do namorado.
- Não podem ir juntos - replicou Jace. - Gladys, quero que faça umas pesquisas - acrescentou, estendendo-lhe um pedaço de papel. - Isto é tudo o que sei sobre uma
mulher e o seu marido que viviam em Londres, em 1878. Quero que descubra tudo o que puder a seu respeito e todas as fotografias que conseguir.
- Mil oitocentos e setenta e oito? - repetiu, parecendo intrigada com a missão e afastando-se de Mick.
- E depois disso. O que aconteceu à mulher e aos filhos? Mick, quero que me arranje muitas molduras. Pequenas - explicou, ao mesmo tempo que entregava um maço de
notas a cada um deles.
Apesar das queixas de Mick quanto à tarefa que lhe fora destinada, os três deitaram-se ao trabalho entusiasmados. Voltaram a encontrar-se no hotel às oito para um
jantar, no quarto de Jace, e contaram como lhes correra o dia.
Mick alugara o reboque e, em seguida, apanhara um táxi para uma feira da ladra, onde conhecera uma senhora de idade, baixinha, que se mostrara encantada por ajudá-lo.
"Disse-lhe que trabalhava para a BBC e devia decorar um quarto para uma jovem que viveu em 1878. Ela fez- -me perguntas sobre o quarto e falei-lhe de Priory House.
Apenas tive
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de ouvi-la contar a história de cada objecto." - Desembrulhou frascos de perfume, um conjunto de escova e espelho de mão em prata, bibelôs chineses, bonitos ganchos
de cabelo, três alfinetes de peito e um par de meias de vidro. - Se quiser mais, ela estará lá amanhã. Parece que é frequentadora assídua das feiras da ladra. A
filha mais velha... - Mick interrompeu-se com um sorriso e olhou para Gladys. - E tu, o que conseguiste?
Jace sorriu ao lembrar-se da rivalidade entre amantes. Era mais uma coisa de que sentia saudades.
- E o senhor? O que conseguiu? - quis saber Gladys.
Jace tomou consciência de que o tempo fora escasso e talvez Gladys não tivesse descoberto nada. Não quis embaraçá-la. Visitara quatro lojas de antiguidades e encontrara
uma cama muito semelhante à de Ann e uma grande otomana verde. O proprietário de uma loja disse-lhe que ele escolhera as peças mais vulgares na era vitoriana e que
se era um "conhecedor"...
Jace cortara-lhe a palavra, sem querer perder mais tempo a escutar conversa fiada. O facto de o mobiliário do quarto de Ann ser "o mais vulgar" reforçava a sua crença
de que ela não era "a filha favorita" de Art- hur Stuart.
Por uns momentos, Jace colocou a hipótese de valorizar o mobiliário. Talvez devesse comprar a cama de dossel em madeira de pau-rosa semelhante à da cama de Lincoln,
na Casa Branca. Contudo, o objectivo residia em recriar um ambiente que parecesse familiar a Ann e, por conseguinte, manteve-se fiel ao que vira.
Após mencionar as suas compras, Jace virou-se para Gladys:
- Teve tempo de descobrir o apelido de Catherine?
Gladys pediu desculpa, levantou-se da mesa e voltou, passados uns minutos, com um pequeno monte de fotocópias.
- A aristocracia inglesa não perde o rasto dos seus - declarou.
Jace agarrou nos papéis e pôs-se a examiná-los. Catherine Nightin-
gale Stuart casou com Peregrine Willmot, conde de Kingsclere, em 1872. Tiveram nove filhos.
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- Parei numa loja de turismo e obtive isto. - Esboçou um sorrisi- nho malicioso e estendeu a Jace um catálogo desdobrável em três partes, publicitando a visita a
um castelo. Tinha acres de parque, um bosque, um parque infantil, e...
Jace susteve a respiração ao desdobrar a última página. Havia a fotografia de um retrato de Catherine. "A mais bonita moradora do Castelo Veraine, Catherine Nightingale
Willmot", lia-se por baixo da foto. "Mãe de nove filhos, nunca perdeu a sua cinturinha de quarenta e cinco centímetros."
- Amanhã - pronunciou, fitando Gladys.
- Já consultei os horários de comboio para ir lá, amanhã. Voltarei à hora do jantar. Comprarei todos os livros que tenham o seu nome e todas as fotografias que dela
houver.
- Linda menina! - elogiou Jace, após o que detectou uma troca de olhares entre Mick e Gladys. Os dois haviam conversado. Gladys queria mais do que um elogio; queria
informação.
- Porque está a fazer tudo isto? - indagou Gladys.
- Para atrair um fantasma - respondeu Jace, sem desejar mentir.
Mick fez uma cara de quem queria fugir ao assunto, mas Gladys
mostrou-se interessada. "Mr. Hatch tinha razão", pensou Jace. "Ou Mick conseguia subir ao seu grau de ambição, ou ela deixava-o."
- Está a redecorar o quarto estampado. O quarto de Lady Grace - concluiu Gladys. - Mas não o preocupa um pouco a sua reputação de criminosa?
- E se lhe dissesse que a casa era assombrada por uma jovem vitoriana que as pessoas acreditam ter-se suicidado?
- Ann Stuart - replicou Gladys, provocando um sorriso em Jace.
- A Gladys sabe tudo sobre a história de Margate - interferiu Mick. - Quer vir a fazer parte da Assembleia Municipal algum dia.
- Sinto-me capaz de acreditar que Gladys poderia vir a ser primeira- -ministra - redarguiu Jace. Mick riu-se, mas Gladys ficou graciosamente corada.
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Depois de os ter posto ao corrente do que ia fazer, Jace mudou de assunto.
No sábado de manhã, os três separaram-se novamente. Mick não pediu para acompanhar Gladys na viagem de comboio. Após a vitória que a namorada conseguira na noite
anterior, Mick parecia decidido a ultrapassá-la. Mandou fazer uma cópia do esboço na posse de Jace e saiu antes das nove horas.
- Tenho um encontro - espicaçou Gladys, ao abandonar o hotel.
Jace teve um problema enorme com o papel de parede. Conseguiu encontrar um bastante parecido com o do quarto de Ann, mas ninguém tinha material que chegasse para
forrar toda a divisão. Quando o informaram de que alguém acabara de encomendar muitos rolos daquele padrão, Jace pediu à dona da loja que telefonasse a oferecer
o dobro do preço pelos mesmos. Quase ouviu o pensamento que passou pela cabeça dela: "Americanos!"
Jace obteve o papel de parede e, em seguida, comprou um serviço de chá, a condizer com os pratos que vira sobre a cornija da lareira de Ann. O vendedor, que aparentava
idade bastante para ter conhecido Ann, garantiu-lhe que o fabrico datava de 1878.
Jace deu quatro voltas por Londres, a fim de recolher as suas compras e arrumá-las no reboque alugado por Mick. Às oito da noite, encontraram-se todos no quarto
de hotel. Jace estava disposto a regressar a Priory House nesse momento e pôr-se a forrar a parede, mas desistiu após ter lançado um olhar na direcção de Mick e
Gladys. Eles desejavam mais uma noite no hotel.
Contudo, acordou-os às cinco da manhã do dia seguinte e puseram- -se a caminho. Mrs. Browne folgava aos domingos e informara-o de que passava o dia com as suas amigas
Mrs. Parsons e Mrs. Wheeler. Jace queria redecorar o quarto durante a sua ausência. Desejava, se possível, preservar a sua actividade da bisbilhotice da aldeia.
Deixou Mick e Gladys junto ao carro deles em St. Albans e regressou sozinho a Priory House.
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Ficou satisfeito por não ter de atravessar a localidade com o reboque.
Levaram três horas a mudar tudo para a casa e, em seguida, começaram a forrar as paredes. Jace não tinha a mínima experiência daquele trabalho, mas Mick e Gladys
estavam perfeitamente à vontade. Davam- -lhe ordens e troçavam da sua falta de jeito.
Ao meio-dia assaltaram o pequeno frigorífico de Mrs. Browne e a enorme despensa e cobriram a mesa com um festim à moda de Jamie. Jace faltara a vários jantares e
a maioria das iguarias continuava lá. Havia borrego assado, cenouras, chirívias e espinafres que pareciam acabados de colher do jardim de Mr. Hatch. Gladys passou
em revista a despensa de prateleiras de pedra e desencantou uma tarte com recheio de framboesa.
Jace ignorava se eles sabiam que Daisy e Erin apanhavam a fruta e não queria denunciá-las.
- Ainda bem que Mrs. Browne encontrou bastantes framboesas - comentou, o que fez Mick e Gladys desatarem a rir.
Estavam à vontade uns com os outros. Nos últimos dias, os sirs haviam sido postos de lado. Tinham passado de um patrão e dois empregados a competidores. Gladys ganhara
facilmente a competição da pesquisa e a vitória proporcionara-lhe confiança.
- Vamos regressar ao trabalho? - sugeriu Jace, depois de comerem.
Às três da tarde o papel de parede estava colocado - abençoada pré-
-colagem! - e os montes de todas as outras coisas que tinham comprado encontravam-se no quarto, mas os bibelôs continuavam embrulhados e Jace queria estar sozinho
quando os distribuísse, portanto ficou contente quando eles manifestaram o desejo de se ir embora.
Mal eles saíram, apercebeu-se de que não estava só no quarto. Sentia a presença de Ann. Estava calma, disposta a permanecer imóvel e a observar, mas sentia-lhe a
força.
O mobiliário, bem como o próprio roupeiro, encontravam-se no lugar. O vendedor ensinara a Jace como se desmontava de forma a poder
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ser transportado em partes para o andar superior e, em seguida, rapidamente montado.
Jace comprara uma pequena aparelhagem estéreo e alguns CD. Optou por um de Mozart e começou a desempacotar. Desembrulhou vagarosamente os maravilhosos objectos que
Mick encontrara com a ajuda da velha senhora. "Espero que não se importe que lhe tenha dado uma nota de cem libras como agradecimento", disse Mick, desejando agradar
ao seu novo patrão, mas igualmente satisfeito por poder dar a alguém uma gorjeta de cem libras.
Jace fez a cama, começando por colocar lençóis grossos e ásperos que nenhuma quantidade de lixívia conseguiria embranquecer. Seguiu-se um cobertor de lã, e depois
uma bonita colcha de croché feita à mão com pequenas borlas nas quatro pontas, em forma de diamante. Por último, almofadões com fronhas de linho e um bonito travesseiro
azul e branco, em forma de rolo, bordado de florzinhas silvestres a condizerem com o padrão do papel de parede. Jace teve a certeza de que a mulher que escolhera
todas aquelas coisas para Mick gostara de o fazer.
Desembrulhou uma dúzia de frasquinhos de vidro e colocou-os sobre o toucador que comprara. Os cães de cerâmica foram postos junto à lareira e as duas bailarinas
ficaram em cima da cornija.
Abriu outra caixa. Na noite anterior, Gladys permanecera levantada até tarde a recortar as fotografias que obtivera na casa do marido de Catherine. Comprara postais,
livros e panfletos, reunindo todas as fotografias de Catherine e dos filhos que conseguira encontrar. Gladys recortara as fotografias, uma por uma, de forma a caberem
nas vinte e três molduras vitorianas que Mick havia comprado, e colara uma etiqueta de identificação nas costas de cada uma delas.
Cuidadosamente, com um misto de paciência e um toque dramático, Jace foi desembrulhando as fotografias. Por vinte e três vezes a cena repetiu-se e hesitou sobre
onde colocar a moldura. E sempre que desembrulhava uma, dizia em voz alta de quem se tratava. - A filha a seguir à mais nova de Catherine, Isabella. Nasceu depois
de partires,
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portanto, nunca a viste. Quando cresceu, era quase tão bonita como a mãe.
Desembrulhou outra.
- Ah, sim. Ann, a filha mais nova de Catherine. Era tão bonita como a mãe. - Ao sentir-se envolto num perfume a flores e madeira, sorriu, mas não se virou.
Acabou de desempacotar o caixote. Havia uma fotografia dos últimos descendentes de Catherine, Lord e Lady Kingsclere. Os olhos de Catherine tinham uma certa parecença
com os de Lord Kingsclere. A mãe dele chamava-se Ann.
O perfume tornou-se mais intenso e continuou sem se virar, mesmo ao ouvir o restolhar da saia de Ann.
Quando a caixa ficou vazia, teve o cuidado de não erguer os olhos bruscamente. Arrecadou o lixo, atirou-o para o quarto principal e fechou a porta.
Restava mais um embrulho. Estava envolto em papel de jornal, atado com um cordel e encostado à lareira. Na noite anterior, Gladys fizera uma grande encenação à volta
desta descoberta. Tratava-se de uma reprodução de 60 por 90 centímetros do retrato de Catherine. Uma das empregadas da loja de recordações disse que, há uns anos,
as tinham vendido, mas haviam deixado de encomendar por serem grandes de mais para transportar de avião.
Gladys acrescentou, no meio de gargalhadas, como contara à empregada que o seu patrão americano se tinha apaixonado pelo fantasma de uma mulher que era prima direita
de Lady Catherine. Disse que o retrato era um presente do seu patrão ao fantasma de Ann Stuart. A mulher, que trabalhava na loja há trinta e tal anos, respondeu
que a história de Gladys era obviamente conversa da treta, mas que poucas pessoas sabiam que Lady Catherine tinha uma prima direita chamada Ann Stuart. Olhou para
Gladys, de olhos semicerrados. "Como morreu, essa tal Ann?" "Suicidou-se, a pobrezinha", respondeu Gladys. "Onde vivia Ann?", perguntou a mulher. "Priory House,
em Margate, Bucks." Gladys acrescentou
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que o seu patrão americano, enfeitiçado de amor, comprara a casa. A mulher ergueu uma sobrancelha e pediu: "Espere um momento." Quinze minutos mais tarde, regressara
com o grande retrato pintado em cartão e cobrara a Gladys o invulgar preço de duas libras. À laia de agradecimento, Gladys adquiriu uma enorme e cara moldura dourada
de madeira que teve dificuldade em transportar no comboio de regresso a Londres. Com
o jeito de narradora que lhe era peculiar, Gladys contou-lhes que, durante a viagem, folheara os livros e vira que a mulher que lhe descobrira o retrato era a mãe
de Lord Kingsclere, Lady Ann.
Todos riram à gargalhada com a narrativa, mesmo o próprio Jace, embora se sentisse embaraçado por a história de Gladys ter denunciado o seu amor por um fantasma.
Anotou mentalmente para, de futuro, passar a ser mais cuidadoso com o que lhe dizia. Ela era demasiado perspicaz.
Após contar a sua história, Gladys apresentou o retrato com uma fanfarra digna de um número de circo.
Depois de o ver, Jace telefonou para o serviço de quartos e mandou vir champanhe.
Nesse momento, o mais vagarosamente possível, cortou os cordéis e desembrulhou o pacote. Catherine fitou-o, com um leve sorriso, uma mulher de grande beleza. Estava
sentada numa cadeira, o que permitia divisar a sua pequena cintura. O retrato datava de 1879, o ano seguinte ao da morte de Ann, e Jace julgou detectar um brilho
de tristeza no olhar de Catherine. Havia um prego na parede por cima da lareira e, como tal, ergueu o retrato e pendurou-o naquele lugar.
Jace recuou lentamente e só parou ao encontrar-se no canto oposto do quarto, com a cama à sua direita e o roupeiro à esquerda. Tal como já esperava, Ann estava à
esquerda da lareira, fitando o retrato.
Jace estacou, receoso do próprio respirar, ao olhá-la. Não era tão transparente como quando a vira, no jardim. Continuava a ver através dela, porém a figura ganhara
mais substância. Ann erguia os olhos para
o retrato, com o rosto desviado do seu, e ele admirou-lhe a figura, alta e bem modelada, com uma farta cabeleira em que lhe apeteceu tocar.
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Quando ela se virou, Jace sorria, contente consigo próprio. Sentia- -se recompensado por todo o trabalho e despesa que fizera para que o quarto se assemelhasse ao
que era. Ela estava ali e agora podia descobrir informações sobre Stacy.
A sua satisfação quase orçava a presunção e, portanto, quando ela se virou, demorou um momento a perceber que estava irritada. Parecia como se tivesse estado a chorar,
mas o que lhe lia agora no bonito rosto era uma raiva antiga.
Ao vê-la avançar na sua direcção, Jace quis recuar, mas já estava encostado à parede e isso era impossível.
- Julgou que precisava de que me lembrassem do que me foi tirado?
- perguntou num tom alto e claro ao aproximar-se mais dele. - Julgou que esta existência que levo já não era suficientemente má e teve de a piorar?
Jace estava encostado à parede com um fantasma a gritar-lhe e passaram-lhe pela cabeça todas as histórias de terror que ouvira contar. Mais um segundo e o corpo
fantasmagórico atingiria o seu. Estaria vivo dali a dois segundos?
- Deixe-me em paz - disse ela, quando o nariz ficou ao nível do seu. Uma vez que ele era mais alto, isso significava que os pés dela não tocavam no chão.
Quando Jace abriu a boca para se defender, ela passou através do seu corpo e da parede atrás dele. Arrebatou-lhe a respiração.
Jace manteve-se imóvel e ofegante, mas o ar não lhe chegava aos pulmões. Passou um minuto sem que tivesse ar. Levou a mão à garganta, sentindo-se desfalecer. Ela
matara-o? Caiu junto à cama e, no segundo seguinte, voltou a conseguir respirar. Deixou-se ficar ali, ofegante, com a visão obscurecida e estonteado. Quando o quarto
parou de girar à sua volta, olhou para o retrato de Catherine. - Correu bem, não correu?
Passados uns momentos, caiu novamente em cima da cama. "E agora, o que faria? Voltara a embater num muro de pedra. Literalmente." Consultou o relógio.
"O pub ainda estará aberto? Preciso de uma bebida."
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ace estava sentado no banco do pub Leaping Stag com um copo de
cerveja na mão. Ao seu lado encontrava-se o jovem detective Clive
Sefton. George e Emma mantinham-se atrás do balcão a atender os outros escassos clientes. Jace acabara de dizer-lhes o quanto odiava a história de Barbara Caswell,
Lady Grace.
- Como é que alguém pode pensar que essa mulher acabaria em personagem de um romance? - comentou.
- Sabe a verdade, não sabe? - replicou Emma. - Toda essa história não passa de uma invenção.
- Mas julguei que fosse verdadeira - redarguiu Jace.
- Não conte aos turistas - sussurrou ela. - Lady Grace faz-nos aparecer em todos os policiais ingleses sobre assombrações.
- Tudo começou com um livro sobre fantasmas - explicou George, ao mesmo tempo que enchia uma caneca de cerveja preta.
- Nos anos 30, alguém escreveu um livro sobre os fantasmas de Inglaterra e disse que Priory House era assombrada pelo espírito de uma aristocrata que costumava escapar-se
durante a noite e assaltar as pessoas -
prosseguiu Emma, inclinando-se sobre Jace. - Foi tudo. Em 1946, um escritor qualquer inventou o resto da história e passou-a como verdadeira. Viu o filme?
- Não tive tempo - respondeu Jace.
- Constou-nos que foi a Londres - disse Emma, deitando um olhar ao marido por cima do ombro. - Como estava Londres? - perguntou em voz alta, ao mesmo tempo que George
abanava a cabeça.
- Como sempre - respondeu Jace e ficou a aguardar que Emma o interrogasse sobre o facto de fazer com que um quarto da sua casa se assemelhasse ao cenário de uma
peça vitoriana. Ao ver que ela não fazia qualquer referência a isso, Jace esperou que tivesse conseguido guardar, pelo menos, um segredo. - Não quero escrever o
que outro já fez. Tem a certeza de que não existem outros mistérios por aqui?
- Houve um - declarou Clive, baixando os olhos para a sua cerveja.
Emma e George resmungaram entredentes.
- Outra vez não! - exclamou Emma. - Não lhe dê corda. É o tópico favorito de Clive e já o discutiu até mais não. Foi pura e simplesmente um suicídio.
- Suicídio? - repetiu Jace, inspirando e tentando manter-se calmo.
- Sim! - anuiu Emma, com um olhar firme na direcção de Clive.
- Suicídio.
- Mas não foi essa a sua opinião? - redarguiu Jace, apertando o copo de cerveja com mais força para ocultar o tremor da mão.
- Acho que... - começou Clive.
Emma pôs-se a lavar pratos e meteu-se na conversa:
- Há três anos, uma jovem mulher...
- Uma verdadeira beldade - interrompeu o marido.
- Sim - anuiu Emma. - Uma bonita e jovem mulher suicidou-se num quarto do andar de cima. Estivera a beber e a chorar, parou aqui e perguntou se tínhamos um quarto
para alugar.
- Ainda tinham um quarto para alugar - interveio Clive.
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- Não sei se foi isso o que ela disse. Sei que eu o disse logo após termos encontrado o seu corpo, mas, mais tarde, foram-se as certezas. Havia muito ruído aqui
e posso ter ouvido mal.
- Mas encontrou o corpo dela no dia seguinte - incitou Jace em voz baixa, pois tentava manter um tom firme.
- Sim. Pobrezinha. Tinha tomado quase um frasco inteiro de comprimidos. Chamei o George e ele olhou-a através da corrente que estava posta na fechadura, depois ligou
a Clive que, devo acrescentar, era novo na brigada e não sabia nada.
- Não que agora saiba mais - replicou George, mas Clive não sorriu.
- Contudo, acha que se tratou de um assassínio - dirigiu-se Jace a Clive, mas o jovem polícia conservou-se silencioso.
- Vá lá! Conte-lhe! - incitou Emma, mas Clive não pronunciou uma palavra.
George agarrou no copo vazio de Jace e deu-lhe outra cerveja, ao mesmo tempo que dizia:
- A irmã e a mãe dela vieram dos Estados Unidos e...
- A mãe?! - exclamou Jace, após o que teve de disfarçar. - Deve ter tido dificuldade em aguentar uma cena dessas. - Bebeu um largo sorvo da cerveja.
- E teve! - redarguiu Emma. - As duas mulheres perderam o controlo. Diziam constantemente que sabiam que mais cedo ou mais tarde isso aconteceria.
- Parece que ela era louca - prosseguiu George. - A mãe mostrou- -nos uma série de cartas de psiquiatras sobre a rapariga. Não era a primeira vez que tentava suicidar-se.
- E a mãe mostrou esses documentos? - inquiriu Jace. - Seria de imaginar que estivesse demasiado perturbada com a notícia da morte da filha para se lembrar de arranjar
documentos que provassem que ela era louca.
- Foi exactamente o que pensei! - exclamou Clive, fitando Jace de olhos arregalados. - Era como se essas duas mulheres quisessem provar-
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-nos que ela estava louca. A mãe pediu para não mencionarem a sua presença aqui, nos jornais. Se aquelas mulheres não estivessem nos Estados Unidos quando tudo aconteceu...
- O quê? - incitou Jace.
- Pensaria que eram culpadas.
Emma ergueu os braços ao céu e George emitiu um grunhido.
- Diga-lhe porque acha que ela não se suicidou - declarou Emma.
- Vá lá. Diga-lhe.
- Ela tropeçou nas escadas - murmurou Clive.
- O quê? - surpreendeu-se Jace.
- Ela tropeçou nas escadas - declarou Emma num tom sonoro. - Já lhe repeti isso milhares de vezes, Clive. Ela estava embriagada. Cheirava a álcool à distância. Estava
embriagada e tropeçou ao subir as escadas, Simples.
- O que tem o tropeçar a ver com crime? - interessou-se Jace, fitando Clive.
Clive levantou a cabeça, girou no banco do bar e olhou Jace de frente.
- Sabe...
- Ele está a fugir à questão - declarou George.
Jace tentou afastar a irritação da voz e do rosto.
- Vamos sentar-nos numa mesa - sugeriu e levaram as cervejas para um compartimento num canto afastado. - Acho que pode ser este o caso de que ando à procura - acrescentou
- e, portanto, quero saber tudo. Importa-se de começar pelo princípio?
- Ia aborrecê-lo.
- Juro que não.
- Okay - anuiu Clive. - Mas aviso-o de que tudo isto se baseia numa impressão minha e nada mais. As provas demonstram que uma jovem americana, chamada Stacy Evans,
discutiu com o namorado, parou num pub, perguntou se tinham um quarto para alugar, depois subiu ao andar de cima e tomou um frasco de soníferos. A família dela foi
informada por telefone. A mãe e a irmã apanharam imediatamente um avião e apre
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sentaram documentos comprovativos em como a jovem tinha um problema de infância. A mãe morreu quando ela era pequena, o que quase a descontrolou.
- A mãe morreu? Então, quem apareceu aqui?
- A madrasta, mas explicou que fora a mãe de Stacy desde criança e, como tal, a amava - respondeu Clive, baixando os olhos para a cerveja.
- Mas não acreditou nela.
- Pois não. Disse-o ao superintendente, mas ele respondeu que eu andava a ler demasiados contos de fadas sobre madrastas perversas. Não havia qualquer indício de
armadilha, mas o quarto só tinha uma porta e estava fechada do lado de dentro. Ela tinha uma carteira cheia de dinheiro e usava brincos de diamantes. Não roubaram
nada e não existiam provas de actividade sexual recente.
Jace teve de levar a caneca ao rosto para dissimular a sua expressão. Era obviamente irrelevante, mas sentiu-se satisfeito por Stacy não lhe ter sido infiel.
- Tratou-se de um caso aberto e fechado - declarou Clive. - Uma louca suicida-se. Ponto final.
Jace fez uma careta ante a rudeza do jovem detective e comentou:
- Mas ela tropeçou nas escadas.
- Sim - concordou Clive. - Este pub costumava ser um local de má fama, sabe? Quando eu era criança... sorriu. - É preferível não lhe contar como eu era em criança.
Já ouviu falar do vigário e da maneira como ele ajuda crianças como eu?
- Na verdade, ouvi - respondeu Jace. - Foi um dos seus triunfos?
- Fui um dos seus casos mais difíceis. Cresci com... - Clive acenou com a mão. - A minha história de vida não interessa, à excepção de que desperdicei muitas horas
a meter-me em sarilhos. Não passaria pela cabeça de ninguém que uma aldeiazinha tranquila como Margate pudesse ser tão diabólica, mas era. Jogo nas traseiras, raparigas
no andar de cima, drogas vendidas na cave. Aqui, conseguia-se tudo.
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- Portanto, as escadas foram mudadas - replicou Jace, que começava a entender.
- Sim. Quando o velho proprietário deste pub morreu, os Carew compraram-no e fizeram obras. Arrancaram a parede das traseiras e meteram uma escavadora por aqui dentro.
- Uma escavadora? - surpreendeu-se Jace.
- Sim. Desfizeram-se de todas as velharias - prosseguiu Clive com um leve sorriso. - Queimaram muita coisa e nessa altura eu já estava a tentar corrigir-me, mas
permaneci aqui com os outros miúdos e respirei muito desse fumo.
Jace sentiu vontade de rir ao ouvir aquela história, mas queria que Clive continuasse a falar de Stacy:
- Mudaram tudo?
- Tudo. Devido à minha juventude desperdiçada - alegre mas desperdiçada - eu conhecia bem o lugar. Contudo, depois de Emma e George o remodelarem, deixou de ser
o mesmo aos meus olhos. Quando me tornei polícia, tive de subir essas escadas por várias vezes e tropeçava sempre no mesmo sítio. As escadas encontram-se onde estavam,
mas agora existe uma pequena curva. Emma mandou-a construir assim para poder colocar aquele belo jarrão. Vê-o daí?
Jace olhou de relance para o enorme vaso de latão no patamar das escadas e fixou novamente Clive. - Está, portanto, a tentar dizer-me que acha que essa jovem mulher...como
se chamava ela?
- Stacy Evans.
- Acha que Miss Evans já estivera tantas vezes neste pub e conhecia-o tão bem, que tropeçou na escada nova?
- É exactamente o que penso.
- Mas ainda que fosse verdade, porque é que isso tornaria o crime mais provável que o suicídio? Talvez ela tivesse encontrado um antigo namorado aqui em Margate,
discutisse com ele e depois se suicidasse por esse motivo.
- É o que todos dizem que aconteceu.
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fU
- Então, porque não acredita?
- Troçará de mim.
- Não, nem pensar.
- Ela não parecia infeliz. Faz algum sentido? Eu andei numa escola
- pelo menos chamavam-lhe assim, mas era, na verdade, uma prisão para miúdos - e portanto fui testemunha de várias tentativas de suicídio. Houve uma altura em que
eu próprio experimentei. As pessoas que querem fazê-lo têm uma expressão muito especial. Vê-se nos olhos deles e...
- Miss Evans não tinha essa expressão?
- Diria mesmo que ela parecia feliz. Estava deitada na cama com um leve sorriso no rosto. Céus! Era uma mulher muito bonita! Não acredito que tivesse alguma razão
para ser infeliz. O pai era rico... ela era... como é que vocês os ianques dizem: "de cair para o lado"?
- Stacy Evans era linda de morrer - declarou Jace num tom calmo, atraindo o olhar de Clive.
- Era mesmo.
- E morreu com um sorriso estampado no rosto. Talvez sorrisse porque ia finalmente livrar-se dos seus problemas. Não me contou que estava noiva e se tencionava casar?
- Não - respondeu Clive sem erguer a voz e observando Jace. - Não disse isso. Ninguém o disse.
- Acho que parti desse princípio. Ela ia casar.
- E você o tal, não é verdade? - redarguiu Clive, fitando-o mais atentamente. - Stacy tinha o seu retrato na carteira. Costumava olhá-lo, perguntando porque não
apareceu para a ver.
Jace levou algum tempo a tomar uma decisão. "Devia tentar mentir-lhe e esquivar-se?" Não.
- Só me informaram da sua morte quando o corpo já se encontrava nos Estados Unidos - respondeu Jace . - Vai...
- Denunciá-lo? Não. Guardo tantos segredos sobre as pessoas desta cidade que não iria acreditar. Está a ver aquele velhote? Aos dezanove
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anos, matou três homens numa rixa de bar. Passou a maior parte da vida na cadeia. Agora, cultiva peónias. Está a ver aquela mulher? Já vi que entende. Portanto,
comprou aquela mansão, Priory House, apenas para descobrir o que aconteceu a Stacy? Acho que devia tratá-la por Miss Evans, mas passei tanto tempo a estudar o seu
caso, que sinto como se a conhecesse. Como era ela?
- Era divertida, inteligente e adorava marshmallows - respondeu Jace, bebendo um largo trago de cerveja. - Gostava deles mergulhados em chocolate. Tinha uma memória
fotográfica. Era muito generosa e eu estava louco por ela. Quando morreu, quis morrer também. Não era louca e penso que foi assassinada.
Clive observou Jace durante uns momentos, pensando no que ele dissera.
- Quem mais sabe quem é e por que motivo está aqui? - perguntou em seguida, baixando a voz.
- Você é o único, e não era minha intenção que o descobrisse.
- Não o entregarei. Se alguém matou Stacy, pode começar a perse- gui-lo.
- Tem algumas suspeitas sobre quem o fez?
- Nenhuma. Nem uma só pista - respondeu Clive tão baixo, que Jace mal conseguia ouvi-lo. - Durante um ano, andei a mostrar a fotografia dela, fiz perguntas por todo
o lado, mas ninguém admitiu vê-la. Tive de questionar em segredo pois, se o chefe descobrisse, expulsava-me do caso. Não queria ter nada a ver comigo, antes do mais,
por causa do meu passado aqui em Margate, mas...
- Porque não foi a outro lugar? A sua família é daqui?
- Não tenho ninguém. Fiquei órfão muito novo e andei por aí. Não me portei muito bem em criança e queria reparar os danos. Por isso, voltei aqui para trabalhar -
replicou Clive.
- Queria provar o contrário às pessoas que diziam que nunca seria ninguém.
- Exacto - anuiu Clive, sorrindo. - Exacto.
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- Mas não podia mostrar o que quer que fosse a alguém sobre Stacy para não ser apanhado a desobedecer a uma ordem, não é?
- Sim. Portanto, o que descobriu?
- Nada - disse Jace, mas logo a seguir decidiu arriscar. Desejava mesmo falar com alguém sobre o que acontecera na sua vida nos últimos tempos. - Tenho tentado fazer
com que Ann Stuart me conte algo, mas ela afirma que me odeia e não sei o que fazer daqui em diante.
- Ann Stuart. Acho que não a conheço. E americana?
- Ann Stuart é o fantasma de Priory House.
A expressão de Clive não mudou muito, mas ele tinha bastante prática em fingir que acreditava em histórias absurdas.
- A tal que anda pelos corredores a cavalo, não é? - replicou.
- Lamento ter tocado no assunto - redarguiu Jace, mas sabia que era demasiado tarde para recuar. - Como resposta à sua pergunta, não descobri nada além do que os
jornais publicaram. Tive de lidar com Mrs. Browne e as suas duas amigas bisbilhoteiras e...
- E que aspecto tem o seu fantasma? - quis saber Clive, com um esgar. - Usa roupas esfarrapadas? Não tem olhos, esse tipo de coisas?
Jace acenou a George para que lhe desse a conta, a fim de poder ir embora.
- Confio que mantenha para si a nossa discussão, detective Sefton!
- Sem dúvida - prometeu Clive, sem largar o sorriso. - Guardarei tudo - se bem me entende - para mim.
- Entendo perfeitamente - respondeu Jace ao sair do pub.
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Na manhã seguinte, Jace acordou antes do romper do dia e manteve-se deitado a pensar no que soubera até essa altura. Sentia- -se muito contente por Clive também
acreditar que Stacy fora assassinada, mas Jace não se encontrava mais próximo do que antes quanto a descobrir quem ou porquê. Desejava não ter falado de Ann a Clive.
Era um segredo só seu e devia ter-se calado.
Levantou-se, vestiu-se e tentou imaginar o que se seguiria.
Mrs. Browne estava na cozinha e, por sinal, irritadíssima.
- Nunca vi uma confusão destas! - explodiu. - Ao chegar aqui havia pratos sujos por todo o lado e a minha despensa estava vazia. Deve ter dado uma festa para vinte
pessoas!
Era óbvio que tentava arrancar-lhe informações.
- Fizemos uma orgia! - declarou com uma expressão séria. - Americanas nuas a correrem por todo o lado.
- Bah! - exclamou, ao mesmo tempo que lhe colocava na frente um prato de bacon, ovos, tomates, tosta e cogumelos. - Se andasse nu, teria
cola de papel de forrar paredes na pele. O que fez àquele encantador quarto lá de cima?
Mais uma procura de informação.
- Refere-se ao quarto que os antigos donos usavam para arrumar os caixotes? Esse quarto encantador?
- Eram pessoas sem gosto. Gente horrível. Fiquei contente quando ela os assustou.
- Ela, quem?
- O fantasma, claro - ripostou. - O que viu no jardim.
- Ah, esse! Uma mulher alta? De cabelo ruivo flamejante? Não queria contar-lhe isto, Mrs. Browne, mas ela montava um enorme cavalo preto e dirigia-se a si. Não tem
qualquer motivo para estar furiosa consigo, pois não?
- Não. Claro que não - respondeu, mas empalideceu e, em seguida, corou, ao perceber que ele troçava dela. - Vá lá. Despache-se. Tenho mais que fazer aqui.
Sorrindo, Jace subiu ao andar de cima, agarrou no portátil e levou- -o para o exterior, sentando-se à sombra de um caramanchão coberto de rosas. Abriu uma pasta
no processador de texto e pôs-se a escrever tudo o que sabia relativamente a Stacy.
Ao terminar duas páginas de factos, verificou que havia algumas coisas que o surpreendiam. A irmã e a madrasta de Stacy tinham mostrado à polícia inglesa uma pilha
de documentos da autoria de psiquiatras, declarando que Stacy tinha "problemas" graves. O único problema que ele lhe conhecia residia na sua incapacidade de dormir
mais do que três horas seguidas. Contudo, mal Stacy passara a viver com Jace e ele começara a impedir as visitas da família, os problemas de sono haviam desaparecido.
Antes de Jace aparecer na sua vida, a irmã telefonava-lhe às três da manhã. Estava a pé com os filhos e, como tal, ligava a Stacy para obter "apoio". "As irmãs apoiam-se
entre si", dizia Regina. Stacy jamais pensaria, obviamente, em telefonar a alguém às três da manhã. Jace começou a tirar o aparelho da ficha, à noite. A família
dele
102
tinha o seu número de telemóvel, mas ninguém da família de Stacy o
sabia.
Até ao dia da morte de Stacy, juraria que não existiam segredos entre ambos, mas descobrira que ela passara anos em terapia. Tomando em consideração que a mãe morrera
quando Stacy era jovem e o pai não se incomodara a dedicar-lhe tempo, a terapia era compreensível. Mas porque motivo fora rotulada como "perturbada"?
Fechou momentaneamente os olhos. Estava a receber uma lavagem ao cérebro através das mentiras da família de Regina. Ele e Stacy estavam apaixonados. Contavam tudo
um ao outro.
Contudo, as coisas não se tinham passado bem assim. Ela não lhe dissera que conhecia Margate, nem que lá estivera antes.
Ocorreu-lhe uma vez mais que o fantasma de Ann Stuart saberia se Stacy visitara a casa. Ela via tudo, mas não lhe dirigia a palavra, e ele não sentira a sua presença
durante todo o dia.
Depois do almoço (peito de galinha recheado à moda de Jamie Oli- vier), Jace vagueou pelo quarto de paredes estampadas e experimentou todos os painéis. A história
da dama assaltante fora uma mentira, mas talvez se baseasse em qualquer facto verídico. Talvez a escada secreta existisse e, se a encontrasse, viesse a descobrir
algo sobre Ann que o levasse...
Uma pancada na porta interrompeu-lhe os pensamentos. Franzindo o sobrolho, abriu-a e deparou-se-lhe a bela Daisy na ombreira, corada como se tivesse subido as escadas
a correr. Espreitava por cima do ombro, como se esperasse que Mrs. Browne pudesse surgir repentinamente. "Nem agora, nem isto", pensou Jace, abrindo a boca para
começar um discurso sobre a diferença de idades que os separava.
Daisy estendeu-lhe um jornal enrolado. - Acho que deve ver isto, sir - disse.
- De que se trata?
A jovem voltou a espreitar por cima do ombro e avançou mais um passo na sua direcção. Jace manteve-se firme no mesmo sítio. Não ia per- nutir que ela entrasse no
quarto.
103
- É o jornal da aldeia - sussurrou. Estava enrolado em forma de tubo e parecia conter algo branco e gelatinoso no interior. - Desculpe por causa do ovo - disse Daisy
- mas tirei-o do caixote do lixo de Mrs. B. Não permita que ela saiba que o tem e não vai dizer que lho dei, pois não?
Jace franziu o sobrolho. Tinha de pôr cobro a todo este medo desencadeado pela governanta.
- Não, não lhe direi - prometeu, num tom de voz normal, sem sussurrar. Mas não tenho medo dela. É só porque me pediste. Na verdade, acho que... - Interrompeu-se,
pois Daisy ouviu qualquer ruído vindo de baixo e escapuliu-se a correr pelo corredor.
Suspirando ante o absurdo de toda a situação, Jace agarrou no jornal e fechou a porta. O franzir de sobrolho transformou-se numa expressão de descrença ao ler o
título de primeira página. Estampada no meio havia uma fotografia sua tirada há muitos anos, quando ele andava na universidade. Estivera a beber com os colegas da
república, cantando todas as canções ordinárias de que conseguiam lembrar-se. Um dos rapazes disparara a máquina. Há anos que Jace não via a fotografia, mas ali
estava ele, ocupando metade da parte superior do jornal. Tinha o cabelo espetado, a camisa desabotoada, e os braços à volta de dois dos colegas, segurando duas garrafas
de cerveja. Parecia um bêbado mal-vestido.
É ISTO O QUE QUEREMOS EM MARGATE?, dizia O título.
Jace recuou aos tropeções até os joelhos tocarem numa cadeira. Sentou-se e começou a ler.
Como todos sabem neste momento, Priory House voltou a ser comprada. Mas desta vez, a venerável mansão não foi adquirida por uma família que pretende morar aqui.
Foi adquirida por um americano rico que, no espaço de dias, ganhou reputação na cidade. Frequenta os pubs todas as noites e consta que até bebe os preparados de
Mr. Hatch. Sem esquecer que já fez uma misteriosa viagem a Londres. Quando o interrogaram sobre essa viagem, recusou explicar o motivo da deslocação, mas nós, os
habitantes de Margate, não
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tivemos de aguardar muito para descobrir. Parece que foi a Londres comprar mobiliário e acessórios para transformar o famoso quarto de paredes estampadas de Priory
House numa má reprodução de um cenário cinematográfico da era vitoriana. Será o prelúdio da abertura da casa ao público, à semelhança de uma qualquer Casa de Fantasmas?
O que todos em Margate queremos saber é qual o objectivo de Mr. Monrgomery.
O repórter, depois de uma busca diligente, descobriu que a fortuna da família Monrgomery data de há séculos. Têm mansões espalhadas pelo mundo inteiro. Mr. Jace
Monrgomery comprou uma casa com a reputação de ser a mais assombrada de Inglaterra. E vangloriou-se diante de todos os que o quiseram ouvir que viu o fantasma de
Lady Grace, em plena luz do dia, no jardim.
Planeará explorar o fantasma assassino de Priory House? A nossa festa da aldeia será substituída por recriações em honra de Lady Grace e das pessoas inocentes que
ela matou? A calma e bonita Margate será transformada numa cidade de terror? Passaremos a ver seres maléficos de plástico pendurados das encantadoras e bonitas janelas
de pedra dessa magnífica casa? Mr. Monrgomey colocará sangue fingido nas pedras? E isto o que desejamos para a nossa cidade?
Este americano riquíssimo pretende transformar a esplendorosa e histórica Priory House numa atracção turística? Este americano entediado porá fim à nossa feliz e
calma aldeia? Estamos dispostos a aceitar turistas estacionados nos nossos relvados? Estamos receptivos aos charlatães, videntes, adoradores do diabo que aparecerão
por aqui, na nossa encantadora vila?
O que acham?
Durante uns bons dez minutos, a única reacção de Jace consistiu em ficar a olhar para o jornal. O absurdo das palavras escritas fazia-lhe andar a cabeça à roda.
Alguém pegara numas poucas verdades e distorcera-as
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neste ridículo artigo de coscuvilhice. Era mais do que coscuvilhice. Era má-fé.
Sem largar o jornal, desceu ao andar de baixo até à garagem. Não ficou surpreendido ao avistar Mick, junto ao carro, com as chaves na mão.
- A esquerda, junto à biblioteca - indicou Mick, quando Jace pegou nas chaves que ele lhe estendia. - Três casas, à direita.
Jace sentia-se tão furioso que já saíra de Priory House, antes de perceber que Mick estava a indicar-lhe a localização das instalações do jornal. Ao chegar ao centro
da vila, parou numa esquina e um homem bateu na janela. Jace baixou o vidro.
- Eu daria um excelente guia turístico - disse o homem. - Trabalhei na Priory House, até o velho Mr. Hatch me despedir. Podia contar a toda a gente a história de
Lady Grace que subia as escadas a cavalo durante a noite. Posso ser tão assustador quanto quiser.
- Obrigado, mas não - agradeceu Jace. - Não faço tenção de transformar a minha casa numa atracção turística.
- Não precisaria, pois não? - contrapôs o homem, corando de raiva.
- Já é rico, portanto o que lhe interessamos nós, os que apenas tentam sobreviver?
Jace voltou a subir o vidro da janela e quando outra pessoa bateu no vidro do outro lado, não reagiu. Junto à biblioteca, virou à esquerda e estacionou diante de
uma casa antiga que tinha uma pequena tabuleta de cobre com os dizeres MARGATE POST.
Jace ignorou as duas pessoas que se precipitaram ao seu encontro quando percorreu o caminho de pedra em quatro passadas. Não se incomodou a bater, mas, em vez disso,
escancarou a porta. No interior, havia um gabinete decorado como uma sala de estar, com um televisor numa das paredes. Na parede mais comprida havia uma janela e,
por baixo, uma secretária e um computador.
- Deve ser Mr. Monrgomery - disse um sujeito baixo, gordo e mais velho, que acabava de entrar na sala. - A Nigh disse que devia esperá-lo e que o mandasse ter com
ela.
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Jace estava um pouco confuso relativamente à conversa do homem, pôs-lhe o papel em frente da cara, com uma expressão furiosa.
- Foi você que escreveu isto a meu respeito? - perguntou.
- Céus! Claro que não! - respondeu o homem, dirigindo-se ao computador. - A minha área é mais a política e indicar ao governo como deve actuar. Os escândalos locais
não me interessam. - Agarrou num punhado de cartas e pôs-se a examiná-las. - Não. O senhor deve querer falar com a Nigh.
- Nigh? - replicou Jace.
- N. A. Smythe, a autora do artigo - disse o indivíduo. - Mas com um nome como Nightingale, fez bem em optar pela abreviatura.
- Stuart - exclamou Jace, ofegante.
O homem comportara-se como se não estivesse interessado em Jace, mas pôs a cabeça de lado, com um ar especulativo.
- Ann Nightingale Stuart? - indagou com aquele ar característico dos ingleses, exímios em tornar todas as frases em perguntas.
- Tem andado a investigar, não é verdade? Tenciona mesmo transformar Priory House numa atracção turística? O lucro bem nos faz falta aqui na vila.
- Não, não tenciono... - começou Jace, mas calou-se. Este homem era um jornalista. - O que faço da minha casa só a mim diz respeito. Onde está a mulher que escreveu
esta calúnia a meu respeito?
- Calúnia? - repetiu o indivíduo, franzindo o sobrolho. - Oh! Espero que não vá processar-nos. Se o fizer, não conseguirá grande coisa, como pode ver - prosseguiu,
com um aceno indicando o gabinete. - Trata-se apenas de um jornal local e não vale muito. A propósito, sou Ralph Bar- ker, o editor. Gostaria de ouvir a sua versão
da história.
- Aposto que sim - redarguiu Jace. - Mas a única versão que provavelmente ouvirá é a do meu advogado.
- Oh, meu Deus! Vocês ianques e os vossos processos!
- Quero saber onde se encontra essa mulher! - declarou Jace, de olhos semicerrados. - Gostava de falar com ela.
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- Não está armado, pois não? - Ao detectar a expressão de Jace, esboçou um leve sorriso. - Era só uma brincadeira. Volte por onde veio, atravesse o portão que leva
à sua casa e é a primeira moradia, à esquerda. A Nigh já deve estar a pé. Espero que não a apanhe de camisa de noite. Causaria ainda mais escândalo e não é do que
precisa neste momento.
- Mais escândalo? - pronunciou Jace por entre dentes. - Não sabia que causara qualquer escândalo.
- E é isso mesmo que deve dizer à Nigh. Manterei o Post da próxima semana à sua disposição. Se tiver alguma fotografia recente...
Ele nem sequer ouviu o resto, pois bateu com a porta e meteu-se novamente no carro. Teve consciência de ultrapassar a velocidade permitida quando se dirigiu à casa
que ficava ao fundo da sua propriedade, mas, tanto quanto via, os Ingleses não prestavam atenção aos limites de velocidade.
Quando chegou a uma casinha de pedra de dois andares, na esquina das duas estradas que constituíam o limite da sua propriedade, parou tão bruscamente que quase bateu
com a cabeça no pára-brisas. Havia um pequeno muro curvo com um portão e ele escancarou-o. Uma porta azul recortava-se no interior de um pequeno pórtico coberto,
de telhado pontiagudo, e bateu com força na porta.
- Está aberta - soou uma voz de mulher.
A porta bateu na parede quando ele a abriu e entrou a passo largo numa salinha de estar. Na sua frente havia uma lareira e à esquerda um recanto na janela com uma
secretária e um portátil. Uma mulher jovem e bonita de cabelo e olhos pretos estava sentada na cadeira, à secretária. Tinha uma expressão inteligente e algo mais
que lhe escapou à primeira vista. Se se pusesse a adivinhar, diria que ela tinha visto uma série de coisas que não desejava presenciar.
Jace ergueu o jornal.
- Cada uma destas palavras é uma mentira - disse, sentindo-se tão irritado que quase não conseguia falar.
- Ah, sim? Pelo que ouvi, tudo o que escrevi tem fundamento.
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- É tudo distorcido e corrupto - acusou Jace que, por momentos, apenas conseguiu pestanejar.
Ela estendeu a mão para um bloco de estenografia e pegou na caneta.
- Nesse caso, sente-se e conte-me a verdade - pediu. - Prometo que desta vez publicarei a sua versão.
- Apenas existe um lado da verdade. Tudo o que escreveu não passam de mentiras.
A mulher fitou-o por uns momentos e, em seguida, desenroscou-se e saiu da cadeira. - Que tal uma chávena de chá? - Virou-lhe as costas com a confiança de uma mulher
habituada a que os homens obedecessem aos seus convites.
Jace seguiu-a, contrariado, através da porta e desceu os três degraus que levavam à cozinha. Numa das paredes havia armários antigos e prateleiras descobertas, cheias
de pratos desirmanados e de uma série de bilhetes enfiados no meio deles. Uma mesa estreita estava encostada à outra parede e havia uma série de portas num canto.
Quando ela fez um aceno de cabeça para a mesa, ele sentou-se com o jornal na frente e a sua antiga foto a fitá-lo.
- Onde arranjou isto? - perguntou num tom calmo.
- Na Internet. O Big Brother do mundo moderno. Demorei algum tempo, mas acabei por descobrir. A sua família é muito discreta sobre os seus bens e quem é dono do
quê.
- Há muitas pessoas a pedirem-me emprego - declarou Jace, esquivando-se à questão.
- Publicarei um desmentido e as pessoas esquecerão as minhas interrogações.
Ela mantinha-se de costas para ele, de pé junto ao lava-loiça, a encher a chaleira de água. Tinha vestidas umas calças pretas e justas que lhe chegavam a meio da
perna e uma camisola preta tricotada, de manga comprida. Não era muito alta, mas tinha a elegância de uma modelo. Ao erguer os olhos, percebeu que ela o observava
através do reflexo no vidro da janela.
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- O que pretende? - questionou Jace. - Não acredito que seja estúpida o bastante para acreditar no que escreveu. Portanto, o que pretende?
Ela pousou a chaleira no fogão e, em seguida, virou-se na sua direcção. - Não nos apresentámos devidamente, pois não? Sou Nightingale Augusta Smythe - com Ye um
E no fim. A minha mãe tentou uma compensação por se casar com um Smith e, portanto, mudou a escrita. Uma escrita antiga, mas que continua a ser Smith. A minha mãe
nasceu com o nome de Jane Bellingham e depois tornou-se Jane Smith. Odiava esse nome e, como tal, baptizou-me com um nome bastante exótico.
- Nightingale era o nome de Ann - declarou Jace, fitando-a.
A mulher observou-o por uns momentos, pestanejando, surpresa.
- Andou a ler umas coisas - concluiu, afastando-se.
De costas para ele, endireitou os ombros e perguntou:
- Gosta de Earl Grey? Mas vocês, ianques, não percebem nada de chá, pois não? Diga-me. É verdade que acrescentam montes de açúcar e depois gelo? Ou trata-se apenas
de uma dessas lendas americanas destinadas a ficarmos contentes por não termos lutado para manter as colónias?
Jace apercebeu-se de que ela estava a tentar distraí-lo. Queria obter informações dele, sem dar nenhumas em troca.
- Ann Nightingale Stuart. Algum parentesco consigo?
- Distante - respondeu. - Tenho chá em saquetas. Ou prefere o de infusão? Isto no caso de saber apreciar a diferença...
Jace não permitiu que as suas piadas o afastassem da questão.
- Meteu-se numa série de sarilhos e arriscou muito para fazer com que eu chegasse até aqui, portanto o que pretende?
- Vou usar chá de infusão - replicou ela. - É o que a rainha bebe. Sabia que a Rainha-Mãe nunca usou uma saqueta de chá em toda a sua vida? Uma verdadeira senhora!
Sorriu a Jace, mas ele não correspondeu.
- Viu realmente Lady Grace à luz do dia? - perguntou, com os bonitos olhos arregalados. - Consta por toda a vila que assim foi. Dizem que
110
a viu montada no cavalo, atacando Mrs. Browne, de cabelo ruivo flamejante. O cabelo ruivo de Grace, não de Mrs. Browne.
Jace esteve à beira de dizer que inventara tudo, mas controlou-se.
- O que lhe interessa se a vira? Desde que não abra a minha casa ao público nem tenha helicópteros a aterrar na relva, o que tem a ver com a minha vida?
- Nunca ouviu falar de uma escritora chamada Norah Lofts, pois não? - retorquiu Nigh, sentando-se na sua frente. - Não, claro que não. A minha mãe lia-a e eu costumava
meter os seus livros às escondidas por baixo da colcha. O meu livro favorito dela é sobre uma casa. Falou das pessoas que a construíram, depois situou a casa no
século XX, dividida em apartamentos, e, em seguida, voltou a convertê-la na residência de uma família.
É o que pretendo fazer e quero usar Priory House como o meu
protótipo.
Inclinara-se sobre a mesa e brindava-o com um bater das espessas pestanas. Jace via que ela tinha consciência da sua beleza e estava habituada a conseguir o que
queria dos homens. Contudo, seria preciso mais do que um rosto bonito para distrair Jace.
- Isso não se chama plagiar? Mas alguém capaz de escrever mentiras como o fez, também não se importaria em roubar, pois não?
Quando ia a responder, a chaleira apitou e ela levantou-se da mesa.
Jace observou-a em silêncio a verter água quente num bule de cerâmica, após o que deitou a água fora e voltou a enchê-lo. Pôs várias colheres de chá de infusão lá
dentro, tapou o bule com uma coberta tricotada e pousou-o na mesa. Estava imersa nos seus pensamentos, enquanto se movimentou pela cozinha e pegou em duas chávenas
e pires.
Retirou um pequeno jarro de leite de uma gaveta do frigorífico.
- Leite primeiro ou depois? - perguntou, de pé junto dele.
- Depois, tal como a rainha - respondeu, dando-lhe a entender que percebia algo sobre chá.
Ela emitiu um simulacro de gargalhada e, em seguida, serviu o chá e adicionou leite.
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Jace sorveu o seu em pequenos goles, observando-a sem pronunciar uma palavra. Se quisesse sair de toda a confusão em que se metera, teria de dar-lhe alguma informação.
- Sei muita coisa sobre Priory House - disse ela. - Possuo um arquivo enorme.
- Eu sei. Li o seu ensaio no livro.
Ela bebeu um pouco mais, parecendo reflectir no que havia de con- tar-lhe.
- Conheço uma maneira de entrar secretamente na casa - declarou finalmente.
- Sou todo ouvidos.
- Mrs. Browne tem os seus hábitos e sai aos domingos.
Jace compreendeu repentinamente o que ela estava a contar-lhe.
- Está a tentar dizer-me que entra às escondidas na casa, sempre que está vazia? - Fez uma pausa e abriu muito os olhos. - Esteve na torre, à noite - prosseguiu.
- São as suas luzes que o povo vê e não o fantasma de uma criminosa.
- Talvez - concordou. - Mas nunca tinha ouvido ninguém referir-se a Lady Grace como uma criminosa. A maioria das pessoas emociona- -se com o lado romântico da história.
- Nesse caso têm um conceito de romantismo diferente do meu
- apressou-se Jace a replicar. - Conheceu os últimos proprietários?
- Não. Só voltei a Margate há seis semanas. Tenho estado no estrangeiro em trabalho.
- Quanto tempo se ausentou? - questionou, parecendo um investigador.
Pela primeira vez, surgiu um brilho de interesse nos olhos dela e respondeu:
- Desde o final de 2001 até agora.
- Está segura das datas?
- Sim - declarou num tom firme. - A minha mãe morreu em Novembro de 2001 e fui-me embora, pois não suportava continuar aqui, sem ela. Fui viajar, esse tipo de coisa.
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- Sozinha?
- Umas vezes com namorado, outras só. Porquê?
- Já que sabe tudo a meu respeito, não devo estar na mesma posição? - redarguiu, sem lhe dar uma resposta.
- Uhmmm! - exclamou, com o som que todos os ingleses emitem como resposta a algo que não querem aprofundar. Fitava-o intensamente, como se tentasse ler-lhe os pensamentos.
- Anda à procura de algo, não anda? - inquiriu.
- Paz - saiu-lhe impulsivamente.
Ela soltou um pequeno grunhido e Jace quase sorriu.
- Podia ser-lhe muito útil. Ser sua secretária, por exemplo.
- Já tenho uma.
- Gladys Arnold - replicou Nigh num tom desdenhoso. - Gladys vai às aulas de manhã, trabalha para si à tarde e faz a limpeza de uma escola à noite. E embrulha-se
com o Mick sempre que não está a trabalhar. Portanto, o que pode fazer?
- Gladys e Mick têm sido bons amigos. Não quero ouvir dizer mal deles.
- De acordo. Mas o que acha disto? Gladys é jovem e inexperiente; eu sei como levar por diante uma investigação. Conheço todos os segredos do sistema bibliotecário
inglês. Você também? Podia servir-lhe de assistente de investigação.
- Com que fim? E não me minta sobre um livro qualquer que tenha escrito há muito tempo - espicaçou ele, baixando os olhos para a chávena. Ao ver que não obtinha
resposta, fitou-a.
Nigh observou-o durante algum tempo, sem desviar os olhos dos dele por cima da mesa. Respirou fundo e contou:
- Aos nove anos tive uma discussão com a minha mãe - sobre qualquer acontecimento vulgar - e resolvi fugir de casa. Fantasiava que os meus pais sentiriam a minha
falta e choravam por causa do amor que me tinham. O costume. Esgueirei-me pela janela da cozinha da nossa casa e corri pelos campos até Priory House. Foi numa dessas
alturas em que
113
estava vazia, pois o dono tinha sido afugentado pelo fantasma. Estava escuro e... Mais chá?
Jace ergueu a chávena, mas conservou-se em silêncio.
- Estou a maçá-lo? - indagou, ao mesmo tempo que lhe enchia a chávena.
Os olhos de Jace não largavam os dela, sempre em silêncio.
- Eu... eu senti algo nessa noite. Não conseguia encontrar o caminho para a casa e, portanto, enrosquei-me debaixo de uma árvore e desatei a chorar. Estou certa
de que oferecia uma visão patética.
- E ela foi ao seu encontro - sussurrou Jace.
- Não a criminosa de cabelo ruivo flamejante, como lhe chama, mas... não quero parecer louca.
- Ignora o que é a loucura - replicou Jace, esboçando um leve sorriso pela primeira vez.
- Sei o suficiente quanto a ser acusada de loucura para nunca ter contado isto a ninguém. Não vi um fantasma, nem ouvi um, mas foi como se alguém estivesse comigo,
como se alguém me acalmasse. Faz sentido?
- Mais do que lhe parece. O que lhe aconteceu? Passou a noite exposta à humidade e ao frio?
- Não - sorriu Nigh. - Passado algum tempo, decidi que talvez a minha mãe tivesse razão em estar zangada. A minha amiga Kelly e eu tínhamos entornado, acidentalmente,
farinha por todo o chão da cozinha, pouco antes de as senhoras do seu clube de livros chegarem. E tínhamos comido todas as sanduíches e a maioria dos bolos que ela
passara grande parte da manhã a preparar. De qualquer maneira, uma vez Priory House, e já a sentir-me mais calma, decidi regressar a casa.
- Os seus pais estavam preocupados com o seu desaparecimento?
- Foi isso o estranho. A minha mãe ia sempre ver como eu estava antes de se deitar, mas nessa noite não o fez. E o meu pai verificava sempre todas as portas e janelas
para ver se estavam trancadas, mas nessa noite não o fez. Esgueirei-me pela janela da cozinha e fui deitar-me. Nunca ninguém soube que tinha fugido.
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- E desde então ficou fascinada com Priory House.
- Exacto - concordou. - Ao longo dos anos fiz todas as pesquisas que consegui e descobri a entrada secreta quando tinha doze anos - não, não me peça que lhe diga
onde é. Tem de me pôr a par do que procura antes de lhe revelar esse segredo.
Jace bebeu um pouco mais de chá. Imaginou que andava a beber cerca de oito chávenas por dia, mas se se perguntasse a Mrs. Browne, ela responderia que ele não gostava
de chá, porque mal o provava.
- Em que me será útil? - perguntou. - E uma mentirosa e uma fala- -barato. Jamais poderia confiar em si. Isto... - Apontou para o jornal que continuava sobre a mesa.
- Isto pode ter causado danos irreparáveis à minha reputação. - Estas palavras soaram pouco sinceras aos seus próprios ouvidos.
Nigh levantou-se e dirigiu-se ao lava-loiça. Sabia que ele ia ceder.
- Desde quando vocês, ianques, se preocupam com algo excepto a liberdade? - redarguiu. - Pronunciem a palavra "liberdade" a um americano e ele começa a chorar.
- Tal como vocês, ingleses, reagem às palavras "bife e cerveja" - ripostou Jace.
Nigh virou-se e sorriu. Jace não correspondeu, mas denotava um brilho no olhar.
- Encare a questão sob esta perspectiva - sugeriu. - Se passarmos muito tempo juntos, a aldeia pensará que andamos embrulhados e desperdiçará tempo a tentar descobrir
qual é o seu verdadeiro objectivo. Porque tornou aquele famoso quarto de paredes estampadas semelhante ao cenário de um filme da época vitoriana? E quem é a mulher
do retrato pendurado sobre a lareira?
- Julguei que sabia tudo sobre Priory House - respondeu Jace.
- Só ouvi falar no retrato através de boatos. Nunca a vi. Descreva-
-ma.
- Bonita. Com uma cinturinha de vespa.
115
- A prima de Ann Stuart. Os pais eram irmãos. Ann suicidou-se de preferência a...
- Não, não se suicidou - interrompeu Jace rapidamente.
- E como sabe que ela não o fez? - redarguiu ela, mais depressa ainda.
- Ouvi Ann e Catherine a conversar. Ann desejava casar com Danny Longstreet.
Ante a frase, Nigh ficou sem palavras e limitou-se a fitá-lo.
- Pelo menos, consegui calar essa sua língua.
- Ouviu-as conversar? Isso implica uma espécie de viagem no tempo. Não me diga que...
- Não faço tenção de lhe dizer nada e se escrever sobre isto será tema de risota na vila. - Posto isto, levantou-se.
Nigh colocou-se de imediato na sua frente.
- Sei tudo o que aconteceu naquela casa e as pessoas contam-me todas as bisbilhotices daqui - disse. - Sei que partilha um segredo com Clive Sefton.
- Que segredo? - questionou Jace, com uma expressão séria. Uma coisa era partilhar informações sobre um fantasma, mas não queria que ela soubesse de Stacy.
- Não sei e tenho a certeza de que não é da minha conta. Apenas estou interessada na casa. Deixe-me investigar o que quer que esteja a tentar fazer.
- O que pretende realmente?
- Se lhe dissesse a verdade, não acreditaria - respondeu, olhando-o bem de frente.
- Experimente.
- Há algo naquela casa e eu quero descobrir o que é. Chame-lhe curiosidade ou meramente tédio por estar sempre a escrever o mesmo tipo de histórias. Seja por que
motivo for, sinto-me fascinada por ela desde os nove anos e penso que também o está. As pessoas que compram aquela casa são motivo de troça nesta vila. Algumas só
aguentam seis
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meses. A agência imobiliária faz apostas sobre o tempo que os novos donos irão ficar. Mas você...- A voz morreu-lhe na garganta.
- Sou diferente.
- Não parece de forma alguma assustado com o que quer que tenha visto ou ouvido naquela casa.
- Não são os fantasmas que me assustam, mas a coscuvilhice desta cidadezinha.
- Mas porque é que... - começou Nigh, surpreendida, após o que se interrompeu e lhe sorriu. - Temos um contrato? Mostra-me o seu e eu mostro-lhe o meu? - Ao ver
que Jace não correspondia ao sorriso, acrescentou: - Desculpe. Vou dar um tom de negócio a tudo isto. Acabaram-se as piadas sem gosto.
- Apareça amanhã e mostre-me a declaração que tiver escrito. Comeremos alguma coisa.
- Está a dizer que iremos provar os cozinhados de Jamie? Oops! Mais uma bronca!
- Ah, sim, Mrs. Browne. Terei de pedir-lhe... não que ela me governe, mas governa a casa. Quero dizer...
- Sei exactamente o que quer dizer. Não se preocupe. Posso bem com ela.
Jace atravessou novamente a sala de estar até à porta principal e, em seguida, virou-se na direcção dela, perguntando:
- E o seu namorado?
- Deu o nó há seis meses. Propôs-me casamento, mas não fui capaz de desistir da minha vida e da minha carreira para ser dona de casa.
- Ele queria que deixasse de bisbilhotar a vida das outras pessoas e, ante a sua recusa, deixou-a, não é verdade?
- Não podia ser mais arrasador que... como é que vocês, Americanos, costumam dizer?
- Não podia ser mais arrasador que um acidente de viação. Mais arrasador do que as mentiras que inventou a meu respeito.
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- Emendarei o mal que causei - prometeu, fitando-o com os olhos de longas pestanas pretas.
- Anda atrás da história ou de algo mais? - indagou num tom que não deixava lugar a dúvidas.
- Da história - apressou-se ela a responder com um sorriso. - Não se preocupe. Acho-o bastante atraente com esse bronzeado e todos esses músculos à americana, mas
não faz o meu género.
- Óptimo. Também não faz o meu - replicou Jace, passando pela frente dela e saindo. - Deixe-me reflectir. A qualidade da sua declaração determinará se iremos à caça
de fantasmas.
- Sabe que a ideia de transformar Priory House numa atracção turística ocultaria o que está realmente a fazer? - disse ela, sem erguer a voz.
- Já tenho a minha quota-parte de pessoas a pedir-me emprego. Diga que sou escritor. Quanto à decoração interior, ninguém tem nada que ver com isso, não é verdade?
- É dono da mansão e, portanto, todos os seus actos são notícia.
- Sorria-lhe de uma maneira que ele estava certo de ter levado muitos homens a desejá-la, mas não correspondeu.
Jace virou costas, meteu-se no carro e arrancou.
118
8
inco minutos após Jace se ter ido embora, Nigh estava ao telefone com Kelly Graham, a sua melhor amiga.
- Então? - inquiriu Kelly mal levantou o auscultador, sem mesmo se dar ao trabalho de perguntar quem era. Há mais de uma hora que aguardava a chamada de Nigh. -
Como correu?
- Na perfeição - respondeu Nigh.
- Sim? Vá lá. Conta-me tudo.
- Ele mostrou-se bastante incomodado com o que escrevi.
- Não o censuro. Passaste-te completamente. O que raio te passou pela cabeça? Acusaste-o de coisas horríveis e agora todos os habitantes da vila acham que ele vai
fazê-los enriquecer.
Nigh baixou os olhos para a secretária, sem saber o que responder.
- Uh! Oh! O que foi esse silêncio?
- Nada - disse Nigh. - Estava só a consultar os meus apontamentos.
- Não, não estavas. Nigh! O que se passa?
- Nada. A sério. Só que ele me pareceu diferente do que estava à espera. Perturbou-me um bocado.
- Diferente? Perturbou-te? De que é que estás para aí a falar?
- Digamos que alguns dos rapazes lá do pub vão ouvir umas das boas. Deram-me algumas informações que não correspondem exactamente à verdade.
- Como por exemplo?
- Que o novo dono de Priory House era um bêbado, um idiota, um menino rico que nunca trabalhara na vida e desinteressante.
- Entendo.
- O que queres dizer? - perguntou Nigh.
- Gostaste dele, não é verdade?
- Não posso dizer que gostei dele, mas achei-o mais interessante do que todas as pessoas que conheci desde o meu regresso.
- Os rapazes daqui não te interessaram? E o David?
- David é advogado, vive em Londres e só me encontrei três vezes com ele.
- Foi por isso que ele telefonou quatro vezes enquanto estive aí, ontem?
Ao ver que Nigh não respondia, Kelly retomou o fio à meada:
- Juro, Nigh, que se não falares comigo, vou acordar os miúdos e levá-los atrás de mim. Não sabes o que é o Inferno até te veres rodeada de três miúdos que não dormiram
a sesta.
- Okay, okay. Gostei dele. E o que querias ouvir? Mas ele não se mostrou interessado em mim. Na verdade, penso até que me detesta.
- Depois do que escreveste sobre ele? Como é que uma coisa dessas podia acontecer? E agora? O que tencionas fazer?
- Mudar-me para casa dele, espero.
- Desculpa?
- Algo de importante está a passar-se em Priory House e tenciono descobrir o que é. Olha, agora tenho de desligar. Preciso de falar com umas pessoas e, depois...
não sei o que vou fazer, mas tenho de me organizar. Ligo-te mais tarde. - Desligou sem dar tempo a que Kelly fizesse mais perguntas.
120
Nigh meteu-se no seu Mini Cooper amarelo e dirigiu-se à vila. Pensava vagamente em confrontar Lewis e Ray e dizer-lhes o que achava da partida que lhe haviam pregado.
Mas, verdade seja dita, a culpa era dela. Estivera tanto tempo afastada de Margate que se esquecera de como tudo funcionava por estes lados? Lewis e Ray tinham sido
as pestes da escola, os rapazes mal-comportados que achavam divertido colar os trabalhos de casa de um miúdo à carteira ou pintar-lhe a cara com marcador indelével.
Nunca tinham feito nada de verdadeiramente mau, como incendiar um edifício, mas os seus conceitos de partidas haviam causado muitas lágrimas.
O que levara Nigh a pensar que agora que tinham crescido e eram chefes de família se haviam tornado respeitados cidadãos? Há duas noites, sentara-se à mesa do café
com eles e ouvira-os falar do ianque que se tomara dono de Priory House. Nigh apanhara o avião do Médio Oriente na noite anterior. Estava quase em coma devido à
diferença horária e dera ouvidos aos rapazes - não conseguia imaginá-los como homens - enquanto eles lhe contavam os seus "receios" no que dizia respeito à calma
e bonita localidade de Margate. Na altura, o cansaço levara-a a confundir os problemas do Médio Oriente com os "problemas" de uma cidadezinha inglesa.
Nesse momento, via claramente do que se tratava: a vingança servida fria. Na sexta classe, Nigh apanhara Lewis a atormentar um miúdo da primeira e ela esmurrara-o
com tanta força, que tiveram de levá-lo a casa. Nenhum dos rapazes voltou a incomodar Nigh ou quem quer que estivesse por perto.
Como tal, acabaram por apanhá-la. Levara anos, mas tinham conseguido.
Ao chegar a casa de Lewis, abrandou, com intenção de virar no acesso, mas não o fez. Gritar-lhe para que viesse cá fora iria dar-lhe um mfindo gozo.
121
Em vez disso, viu-se na estrada para Aylesbury. Toda a sua roupa estava usada e com manchas. E o calçado não se apresentava em melhores condições. Precisava ainda
de um novo creme de rosto e talvez de um ou dois batons. Decidiu tirar algum tempo e fazer umas compras.
Nigh chegou a Priory House às dez para as sete. Jace não lhe indicara uma hora de jantar, mas sabia que os americanos comiam cedo. Estacionou no pátio e tentou acalmar-se.
Isto era verdadeiramente absurdo. Por duas vezes na sua vida estivera em sítios onde se largavam bombas e, por conseguinte, como é que se explicava que jantar com
este americano a pusesse nervosa?
Baixou os olhos para o vestido. Era de seda azul-escura, com um corte em viés e ajustava-se como uma segunda pele. Tinha a assinatura de qualquer estilista de que
Nigh nunca ouvira falar, mas cuja fama lhe fora garantida pelo vendedor. E os saltos deviam medir, pelo menos, dez centímetros. Torceu o tornozelo ao atravessar
o gramado que levava à porta principal, mas endireitou-se rapidamente.
Ao passar por baixo do arco, Nigh hesitou. Que porta devia usar? Era convidada, portanto, devia usar a da frente. Por outro lado, era uma habitante da pequena cidade
e ali vivera a sua infância, o que tornava mais indicada a porta da cozinha.
Rangeu os dentes por instantes. Estaria louca? Jantara duas vezes no Palácio de Buckingham e, no entanto, aqui estava a... "Okay, Nigh. Confessa que tens medo de
Mrs. Browne."
- Não terei - pronunciou em voz alta e dirigiu-se à porta principal. Mas antes de o fazer, Mrs. Browne surgiu à sua frente, vinda do nada.
- Com que então a usar a porta da frente, não é verdade? - perguntou Mrs. Browne. - E toda aperaltada, segundo vejo. O americano deu- -lhe volta à cabeça? Anda atrás
dele, hein?
- Fui convidada para jantar - respondeu Nigh, enterrando as unhas nas palmas da mão. - Mr. Monrgomery convidou-me e...
122
- Ele não me disse que tinha convidados, mas não me cabe fazer- -lhe perguntas. Porém, se me tivesse dito que a convidara, aproveitaria para lhe contar uma ou duas
coisas. O artigo maldoso que escreveu a seu respeito no jornal. Admira-me que não usasse uma arma contra si. É o que fazem na América, sabe? Dão logo um tiro. Todavia,
não é da minha conta o que ele faz no seu tempo livre. Ou com quem.
- Onde está ele? - indagou Nigh, de dentes cerrados, hesitando entre usar os punhos contra aquela horrível mulherzinha e ir esconder-se sob as saias da mãe.
- Está no redondel de pedra. Lembra-se onde é, certo? Costumava andar a bisbilhotar por aqui em criança, portanto deve lembrar-se. Este lugar era uma escola de formação
para si, não era? Constou-me que andou a bisbilhotar por todo o mundo.
"Isto é ridículo!", pensou Nigh, endireitando os ombros.
- Tem razão. Ando a bisbilhotar por todo o lado, portanto, talvez conte a Mr. Monrgomery o que aconteceu ao brandy, que supostamente devia vir com a casa. Ainda
continua com as suas velhas amigas a encher as garrafas vazias de chá frio?
Mrs. Browne empinou o nariz e afastou-se.
- Boa, Nightingale - murmurou Nigh. - Fizeste dois inimigos num só dia. Devias ter parado na casa de Lewis, gritado com ele e feito três.
Os saltos altos não eram apropriados para caminhar em macios relvados ingleses. Após se ter enterrado por três vezes na terra, descalçou- -se e levou os sapatos
na mão. O redondel designado por Mrs. Browne era o nome local para um bonito terraço de pedra do século XVIII. Tinha um chão em círculo, colunas e um belo telhado
abobadado. Pelo menos, dantes fora belo. Da última vez que o vira, Hatch usava-o para armazenar sacos de plástico cheios de areia com cascalho.
Ao caminhar através das árvores pelo caminho pouco utilizado que levava ao terraço, ocorreu-lhe uma ideia encantadora. E se Monrgomery tivesse preparado uma refeição
no terraço? A luz das velas, uma mesa coberta com uma toalha de damasco. Serviria ostras? Que prato delicioso
123
de Jamie Olivier preparara Mrs. Browne para essa noite? Por mais detestável que fosse, a verdade é que era uma reputada cozinheira.
Nigh sorriu ao pensar na noite que se seguiria. Apesar do mau ambiente que se gerara entre ela e Jace Monrgomery, sentira a atracção física. Ele era um homem encantador
e ela... bom, ela não era nada de se deitar fora. Portanto, talvez lhe tivesse perdoado o artigo no jornal e estivesse pronto para o início de algo um pouco mais
íntimo...
Quando Nigh saiu de entre as árvores pela descida pouco usada e viu o terraço, não se deparou com o que esperava. Monrgomery tinha um pequeno machado na mão e desbastava
anos de vinhas e ervas daninhas. Empapado em suor, a pele, que se divisava por baixo da camisa suja, estava cinzenta.
Ao avistar Nigh, pareceu sobressaltado, como se se tivesse esquecido do encontro para jantar, mas depois um sorriso desenhou-se-lhe aos poucos no rosto. Quer se
tivesse ou não esquecido, ela interpretara erradamente o convite. Ele referira-se a sanduíches e cerveja, enquanto ela pensara num smoking, ao luar. Nigh sentiu-se
deslocada, idiota e muito embaraçada. Apeteceu-lhe dizer que ia depois a uma festa e por isso se vestira daquela maneira, mas não o fez. Escondeu os sapatos de salto
alto atrás das costas.
- Trouxe a declaração - disse Jace. - Pode pô-la aí. Desculpe se não paro, mas...- Interrompeu-se com um encolher de ombros indicativo da desarrumação no terraço.
- Não, claro - murmurou, desejando afundar-se no chão e desaparecer. Podia, obviamente, ir-se embora, mas teria de passar por baixo das janelas de Mrs. Browne. Dar
a entender que ela, Nigh, julgara ter sido convidada para um verdadeiro jantar sentado, mas de facto assim não acontecer, seria uma humilhação demasiado grande.
Para ser honesta, sempre que os homens a convidavam para jantar costumavam esforçar- -se por agradar.
Ficou a observá-lo a arrancar alguns pés de vinha incrustados no chão de pedra.
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- Foi o avô de Ann que construiu isso.
- Ah sim? Era um homem simpático? - perguntou Jace.
- Não. Nenhum dos antepassados de Ann era simpático. - Jace puxava por um pé de vinha, mas ela viu que estava preso numa coluna, pensou que era possível que as vinhas
fossem mais fortes do que o mármore. Se se puxasse com demasiado vigor, tudo aquilo desabaria... sobre eles.
Deixou cair os sapatos na relva e agarrou num par de tesouras de jardinagem, que se encontrava no carrinho de mão, ao lado.
- Espere aí - disse, ao mesmo tempo que pisava o chão descalça e se punha a cortar os pés de vinha presos à coluna. Infelizmente, alguns deles começavam a ganhar
raiz e teve de servir-se das unhas para os arrrancar. Tanto pior para o trabalho de arranjar as unhas durante a tarde.
- Então, como era o avô? - indagou Jace, agarrando nos pés de vinha e puxando, à medida que ela os soltava.
- Acho que a morte dele diz tudo - respondeu Nigh, reflectindo um momento. - Morreu afogado quando tinha apenas vinte e oito anos. Apostou com outro homem que conseguiria
atravessar o lago a nado debaixo de água. Todos esperavam que aparecesse à superfície, mas isso não aconteceu. Parece que ficou com o pé preso numa pilha de velhos
tijolos que se encontravam no fundo do lago. O pai atirara os tijolos para lá, a fim de ser necessária menos água para encher o lago. Deixou tudo ao seu único filho,
o pai de Ann, que tinha apenas quatro anos. Não legou um só penny à jovem mulher, mas o testamento exigia-lhe que ficasse a viver em Priory House. Não queria deixar
uma jovem viúva para trás. Mãe e filho acabaram por morar apenas em algumas divisões e dispunham meramente de duas pessoas para os ajudar a tomar conta de todo esta
propriedade.
- Ah! O amor inglês pelos primogénitos! - comentou Jace, puxando os pés de vinha, enquanto Nigh os cortava da coluna.
- Não deprecie, pois foi isso que manteve as grandes propriedades intactas. Ui! - exclamou, chupando o dedo, onde um pé de vinha a cortara.
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- Vai estragar o vestido se fizer isso - replicou Jace. - Porque não deixa aí o que escreveu. Prometo ler mais tarde e telefonar-lhe.
Nigh esboçou um leve sorriso. A verdade é que não escrevera uma linha. Antes do mais, o facto de experimentar vestidos e sapatos e tratar das unhas impedira-a de
escrever algo que não queria pôr no papel. Em segundo lugar, preferia morrer a ter de passar por baixo das janelas de Mrs. Browne e dar-lhe a entender que, afinal,
não fora convidada para jantar.
- Não. Tudo bem - disse. - Foi um longo dia e um pouco de exercício não me prejudica.
- Percebo. Um dia de cão. Devia ter visto o que li no jornal esta manhã a meu respeito.
Por momentos, Nigh fitou-o surpreendida e depois esboçou um arremedo de sorriso. Não ia soltar uma gargalhada. Ele mostrava uma cara de pau e ela podia imitá-lo.
- Bom. Acho-o capaz de lidar com qualquer crítica - disse.
- Tem razão. Comecei por ficar tão furioso que só conseguia pensar em advogados, mas depois acalmei-me e cheguei à conclusão de que havia outras formas de lidar
com o assunto. Pus seis anúncios na cidade a dizer que quem escreveu o artigo estava a aceitar candidaturas e entrevistas para os vinte e oito empregos que estariam
abertos no novo Centro de Fantasmas de Priory House.
- Não é verdade! - sussurrou Nigh.
- Lamento, mas é - replicou ele, sorrindo.
- Acho que vou vomitar.
Jace desabotoou a camisa suada, tirou-a e estendeu-lha, ao mesmo tempo que dizia:
- Nesse caso, é melhor tapar o seu vestido novo.
Nigh ficou parada a olhar para o tronco dele, semelhante a quilómetros de músculos bronzeados pelo Sol. O que faria ele durante todo o dia? Lutar com touros? Era
a única justificação para um físico daqueles. Jace não pronunciou uma palavra, limitando-se a dirigir-lhe um sorriso
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sabido. Nigh agarrou na camisa e desviou os olhos. Diabos a levassem se deixaria que ele lhe lesse os pensamentos sobre os seus exercitados abdominais.
Ao pegar na camisa suada, odiou-se pela sensação agradável, por gostar do cheiro. O que havia de mais atraente que um macho quente e suado?
Agarrou num pé de vinha e puxou-o. Ao ver que este não se mexia, cortou e puxou com mais força.
- Ei! - gritou Jace. - Deixe-me algum trabalho. De onde lhe vem toda essa energia? Foi algo que eu disse?
Nigh teve uma visão de ser seguida na localidade por pessoas que lhe falavam dos seus esquemas para ganhar dinheiro num "Centro de Fantasmas".
- Então, o que esteve a fazer com a Defunta Ann durante esta tarde? - perguntou com o máximo de sarcasmo que conseguiu incutir à voz.
- Não a vi - respondeu Jace, enquanto arrancava o último pé de vinha da coluna. - Ela está zangada comigo. Na verdade, quase me matou. Deixou-me sem fôlego até ficar
roxo. Mais uns segundos e iria fazer-lhe companhia.
Nigh deixou de cortar e interrompeu a tarefa de cortar e arrancar, fixando-o.
- Matá-lo? Sufocá-lo? Julguei que talvez a tivesse visto atravessar uma parede ou algo do género. Ou ouvi-la. Tem... relações com ela?
- Acho que se pode chamar-lhe assim. Ouça. Passe a essa - disse, indicando uma coluna tão tapada, que mal se avistava o mármore branco por baixo.
Nigh continuou sempre a cortar durante uns minutos, à espera que ele prosseguisse, mas Jace manteve-se silencioso.
- Então? Vai contar-me mais, ou não? - inquiriu.
- E vou ler tudo no jornal de amanhã? A propósito, consegue sobreviver com o que lhe pagam num jornal tão insignificante?
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Nigh abriu a boca para lhe falar da sua carreira, mas voltou a fechá- -la. Ele tinha segredos; ela tinha segredos. Só que os dela eram do conhecimento público, caso
ele se desse ao trabalho de se informar a seu respeito.
- Não, não vai lê-lo no jornal. E, nesse caso, o que me faria?
- Algo criativo, algo que se ajustasse ao crime.
Nigh aguardou, mas ao ver que ele se mantinha novamente silencioso, encostou-se à coluna e pôs-se a limpar as unhas com a ponta da tesoura.
- Okay - cedeu Jace com uma gargalhada. - Vi-a em circunstâncias invulgares e quis vê-la outra vez, portanto, decidi... bom, cortejá-la. Seduzi-la, fazê-la desejar
visitar-me novamente.
Nigh pôs-se a cortar pés de vinhas e incitou:
- Vá lá. Não me obrigue a implorar. Fale.
- Quando a vi no seu quarto, eu...
- Viu-a? Como é que a viu? Ela é transparente?
- Quer esta história ou a outra?
- As duas. Quero ouvir tudo, palavra por palavra, desde o início.
- Levará horas.
- Não tenho nada que fazer. Você tem? - inquiriu ela.
- Nada - respondeu Jace, enquanto puxava a vinha que Nigh tinha cortado. - Não tem fome, pois não?
- Uma fome de lobo, mas a verdade é que me convidou para jantar.
- Oooooh! - exclamou ao mesmo tempo que a fitava, observando- -a dos pés à cabeça. Ela percebeu pelo olhar que ele viu o que ela esperara e o porquê de se ter vestido
assim. - Também eu. Desculpe, mas esqueci-me. Hoje, tive outras preocupações em mente. De qualquer maneira, Mrs. Browne tem uma cozinha a abarrotar de comida. Mal
acabemos isto e depois de contada toda a história, jantaremos.
Nigh agarrou num punhado de vinha e puxou com força.
- Ao trabalho, então! Fale! Puxe! Existe alguma esperança de vinho a acompanhar essa refeição?
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- O que houver na adega.
- Desde que não seja brandy, tudo bem. Comece, então, por me falar da primeira vez que viu Ann.
- Na verdade - começou Jace - eu tinha razão quanto à história da assaltante de estradas. A propósito, tencionava perguntar-lhe...
Ela ergueu a tesoura ameaçadoramente na sua direcção.
- Pergunte-me depois - interrompeu. - Agora, quero ouvir tudo o que sabe e tudo o que fez.
Fitava-o pelo canto do olho e teve a certeza de que as suas palavras lhe agradaram. Interrogou-se uma vez mais sobre o que o motivara a comprar uma mansão, em Inglaterra.
Vira na Internet que ele tinha uma família numerosa. Rompera com ela? Cometera um acto terrível que os levara a expulsá-lo? Ou algum dos membros fizera algo que
ele não suportara e, por conseguinte, saíra do país? Nesse caso, porque não comprara um belo apartamento em Londres? Ou, se preferisse o campo, porque não uma simpática
e antiga paróquia do tempo da rainha Anne? Algo mais conveniente?
Reflectiu durante uns dez minutos e, em seguida, a história de Jace começou a ocupar-lhe o pensamento. Ele foi obrigado por três vezes a lembrar-lhe que continuasse
a cortar, pois ela estava tão embebida pelas suas palavras que se esqueceu da tarefa entre mãos. Escondido num roupeiro, a escutar a conversa de duas mulheres, que
tinham morrido há um século? Nigh não acreditou, obviamente, numa só palavra do que ele lhe dizia, mas a narrativa era, sem dúvida, excitante.
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Não consigo ver a minha mão diante da cara - disse Jace.
- Acho melhor entrarmos.
- Claro - anuiu Nigh, baixinho. Sentia a cabeça a estalar com a história que Jace lhe contara. - Ela falou-lhe? Ela falou-lhe mesmo?
- Sim - respondeu Jace, enquanto colocava as ferramentas no carrinho de mão. - Acha que conseguiremos encontrar o caminho de volta no meio desta escuridão?
-Tenho percorrido todos estes caminhos no escuro desde...
- Já sei. Desde os seus nove anos.
- Exacto - concordou, sorrindo. - Tome. Vai precisar da camisa. Está a ficar um gelo.
- Um gelo? É assim que lhe chamam? A Inglaterra tem três climas: frio, mais frio e gélido.
Ela vivera em demasiados lugares para se sentir ofendida com as suas palavras.
- Quando está um tempo meramente frio, vamos até à Escócia para aquecer. Mas para si está mesmo frio. Uma camisola de lã, em Agosto!
- Desafio-a para uma corrida até à casa - disse Jace com uma risada, enquanto voltava a vestir a camisa.
- Aceito - respondeu e sorriu quando ele se pôs a correr.
Nigh levou o seu tempo a procurar os sapatos novos no meio da relva, enveredando, em seguida, pelo caminho escuro na direcção da casa. Escutou durante uns momentos,
mas não ouviu nada. Quando era criança, nada lhe agradava mais do que percorrer furtivamente os terrenos de Priory House. Sempre achara que Mr. Hatch estava a par
das suas visitas, mas, até essa noite, não fazia ideia de que Mrs. Browne também o sabia. Acontecia, porém, que a vida de Mrs. Browne era conhecer a vida dos outros.
Ao chegar a meio do caminho, a uns escassos metros da casa, Nigh agachou-se e atravessou uma moita de azáleas, após o que virou bruscamente à esquerda, junto a uma
antiga sebe de teixo. Seguidos mais uns metros de corrida em campo aberto e descalça, chegou à velha casa do poço. Era onde Mr. Hatch armazenava agora utensílios
de jardinagem e esperava conseguir encontrar a pequena porta. Não se afigurava uma tarefa fácil no meio do escuro e a fechadura enferrujara. Ela costumava trazer
óleo da garagem do pai a fim de manter a fechadura e as dobradiças oleadas para não rangerem.
Levou-lhe mais tempo do que costumava em criança, pois agora havia um monte de lixo diante da pequena porta, mas conseguiu abri-la o suficiente para se esgueirar
pela abertura. Viu-se obrigada a afastar espessas teias de aranha que lhe roçavam a cara, enquanto calçava os sapatos e depois achou-se no velho túnel. Em criança,
nunca se preocupara com a segurança das traves que amparavam a terra por cima da sua cabeça, agora, sim. Tateou à direita e encontrou a caixa com velas e fósforos
que ali deixara há muitos anos. Ainda acenderiam? Verdade seja dita que a Inglaterra tinha um clima muito húmido. "Monrgomery diria provavelmente que era húmido,
mais húmido e humidíssimo", pensou, franzindo o sobrolho.
- Se o nosso clima é assim tão mau, comparemos os nossos jardins com os vossos "quintais" americanos - resmungou, enquanto acendia a vela. - Não há demasiada humidade,
segundo vejo.
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Avançou cuidadosamente pelo túnel na direcção da casa, examinando, desconfiada, as traves por cima da sua cabeça. "Que estúpida em ter vindo por aqui", pensou. E
apenas o fizera porque um homem a tinha desafiado para uma corrida. Ele chegaria à casa primeiro do que ela, mas tencionava surpreendê-lo quando descesse a escada
principal. "Onde esteve?", perguntaria, como se o esperasse. "Contudo, esta brincadeira de criança valeria a sua vida?"
Pisou três coisas rastejantes e as traves por cima da sua cabeça pareceram estremecer como num presságio. Em criança, adorara todos os sons do túnel e não sentira
medo uma só vez. Porém, nessa altura não tinha ainda consciência de possíveis catástrofes. Se um filho seu alguma vez se atrevesse a percorrer um túnel assim, ela...
Parou ao dar-se conta de um som que nunca ouvira antes. Pôs-se à escuta, mas não deu por nada de invulgar. Virou novamente na direcção da casa. Faltavam-lhe uns
escassos centímetros. E se a velha porta de acesso à casa, que estava oculta no painel, tivesse agora uma pesada peça de mobiliário a obstrui-la? Já acontecera uma
vez e ela tivera de esperar até esses proprietários se mudarem para voltar a bisbilhotar. Não que entrasse na casa quando havia gente no interior, mas... Bom, talvez
o tivesse feito uma vez, mas nessa altura andava pelos treze anos e o rapaz de dezassete anos que lá vivia era um espanto. Ele...
Nigh quase gritou de alívio ao chegar ao fundo do túnel e, em seguida, empurrou cuidadosamente a porta. "Deus permita que se abra", rezou. "Por favor, por favor."
A porta escancarou-se com um enorme rangido, mas não ficou preocupada, pois sabia que dava para uma estreita escada de pedra de caracol, um legado do tempo em que
a casa era um mosteiro. Ninguém no interior da casa ouviria as dobradiças enferrujadas. A escada levava directamente à torre cimeira, a uma porta engenhosamente
escondida no chão de madeira.
Quando, por fim, pisou os degraus de pedra, soltou um suspiro de alívio. Não repetiria a proeza. Aquelas madeiras encontravam-se demasiado velhas para que corresse
o risco. Os degraus de pedra até à torre
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estavam sujos e frios e Nigh desejou não ter vindo pelo túnel. Tomou subitamente consciência de que tinha muito frio, muita fome e muita sujidade em cima. Ansiava
por uma banheira cheia de água quente e sais de alfazema.
Começou a subir a escada, planeando abandonar a torre pela porta que conduzia ao quarto de paredes estampadas quando ouviu um ruído atrás dela, no túnel. "Deixara
a porta aberta? Fora seguida por algum animal? Um cão? Um lobo?"
- Raios! - ouviu e abriu a boca de espanto. Era impossível!
Inclinando-se, escancarou a porta com um metro e vinte de altura
por onde acedera à escada e colocou a vela o máximo que conseguiu, no interior. Detectou um movimento no escuro e depois a figura de Jace Monrgomery recortou-se
na luz.
- Que raio de ideia, correr tamanho risco! - exclamou, com um esgar.
- Acho que metade destas tábuas está podre. Apenas se mantêm inteiras por recordação. Cometeu uma verdadeira estupidez, ao tomar este caminho. E pensar que o fazia
em criança! O seu pai devia ter-lhe batido com o cinto!
Nigh sentia-se por de mais admirada com a sua presença para pronunciar uma palavra que fosse. Indiferente ao que restava do seu vestido, sentou-se no degrau de pedra
e fitou-o, enquanto ele sacudia teias de aranha do corpo.
- Como é que...? - começou.
- Como é que a segui? Antepassados pioneiros. Contudo, diga-se em abono da verdade que depois fez tanto barulho como uma manada de búfalos. Ocorreu-me que, se a
desafiasse, desejaria fazer figura e entrar na casa através do seu caminho secreto. Dá a sensação de querer vencer todos seja em que jogo for, mas isto foi aterrador.
Vou mandar técnicos escorar aquela coisa com aço americano de boa qualidade. E tempo de esquecer as velhas traves. - Fitou-a. - Devia ter pensado duas vezes antes
de se meter nesta aventura. E agora, como saímos daqui? Ignoro como se sente, mas por mim estou gelado e cheio de fome.
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- Falta um lance - conseguiu articular, ainda em estado de choque devido ao seu receio do túnel e ao facto de ele a ter seguido.
Jace passou por cima dela, balançando a comprida perna sobre a sua cabeça para chegar ao degrau superior.
- Venha comigo. Não fique para aí sentada, uma vez que tem a vela. Já que falamos nisso, acho que vou mandar colocar luz eléctrica naquele túnel.
- Claro. Porque não? - disse, recompondo-se. - E que tal um bar? Uma máquina de gelo e de bebidas, e, já agora, porque não uma zona de barbecue?
- Não me parece má ideia, embora estejamos num clima inglês e, portanto, para que precisamos de uma máquina de gelo? Okay. Onde fica a porta?
- Se eu a descobri aos nove anos, não acha que pode fazê-lo com a sua idade?
- Creio que não sou tão esperto como você - respondeu.
Sorrindo, ela baixou-se mais ou menos à altura do joelho e carregou
num pedacinho de ferro que não se via de cima. Conseguira vê-la melhor em miúda, pois era mais pequena.
- Rapariga esperta! - elogiou Jace quando a porta se abriu e eles se viram no quarto de paredes estampadas. Quase esperara vê-la lá, mas a divisão apresentava-se
vazia, à excepção do mobiliário que Gladys e Mick haviam posto lá. Fechou os olhos por um momento e inspirou. Sentia-lhe o odor.
- Sempre adorei o cheiro deste quarto - disse Nigh.
Jace deitou-lhe um olhar brusco, mas não lhe explicou que aquela encantadora fragrância provinha de Ann Stuart.
- Quanto a si não sei, mas eu quero tomar um duche antes de comer - declarou, fitando-a da cabeça aos pés.
Nigh examinou-se. Dera cabo do vestido. Fizera três rasgões na bainha e estava tão sujo que jamais voltaria ao que era.
- Prefere a casa de banho do quarto principal? - perguntou ele, rindo ante a sua expressão. - Pode usá-la à vontade. Eu fico com esta.
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- A casa de banho de Ann - replicou, fitando-o por um momento.
- Nunca lhe contei que ela toma duche comigo?
Riu ao ver que Nigh franzia o sobrolho. - Vá lá - incitou. - Procure nas gavetas da casa de banho e troque de roupa. Tenho por lá algumas camisolas que pode vestir,
se as apertar. Encontramo-nos lá em baixo, o mais rapidamente possível.
Com estas palavras quase a empurrou para fora do quarto, fechando a porta nas suas costas.
Ao ver-se no corredor, Nigh hesitou. Era muito muito estúpido da sua parte, mas quase sentiu ciúmes de um fantasma.
Sacudiu a cabeça para afastar o pensamento e, em seguida, dirigiu- -se ao quarto principal. Se bem se lembrava, tinha uma enorme banheira. Só esperava que houvesse
água quente bastante para a encher.
- Demorou muito - observou Jace quando ela entrou na cozinha.
- O gosto dos ingleses pelas banheiras.
- Os ingleses apreciam o calor de todas as formas e feitios - respondeu, fixando a comida posta na grande mesa de carvalho da cozinha.
- Vejo que não esperou por mim. - Pegou numa azeitona preta e comeu- -a, o que apenas serviu para lhe recordar a sua fome de lobo. No minuto seguinte, estava sentada
à mesa a empanturrar-se e, quanto mais comia, mais Jace lhe enchia o prato.
- Já experimentou isto? - perguntava repetidamente, à medida que acrescentava algo mais. - E isto?
- Está a tentar engordar-me?
- E só pele e osso. Come mais alguma coisa além de sandes de pepino?
Nigh ia a dizer-lhe que passava demasiado tempo enfiada dentro de jipes que percorriam o deserto, ajudando o cameraman a içar equipamento atrás de equipamento para
poder comer três refeições por dia, mas calou-se.
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- É preferível a frango frito - limitou-se a comentar.
- Touche1 - sorriu ele, voltando a servir-lhe chirívias em manteiga.
- O que lhe parece, então, que a Ann deseja? - inquiriu Jace, enchendo pela terceira vez o copo de vinho de Nigh.
Pela ênfase colocada no lhe, não duvidou de que ele tivesse ideias muito pessoais sobre os desejos acalentados pelo espírito inquieto de Ann.
- Ser finalmente enterrada no terreno sagrado do cemitério? - sugeriu. - Não é esse o desejo habitual dos espíritos falsamente acusados de suicídio?
- Então, como havemos de fazer?
Nigh desviou os olhos para esconder o sorriso. Agradava-lhe aquele plural. - Se algo do que contou for verdade, o importante consiste em encontrar provas de que
ela não se matou - respondeu. - Caso não se tenha suicidado, pode ser enterrada em chão beatificado. E você? O que acha que ela deseja?
- Essa coisa do enterro foi também a minha primeira ideia, mas não sei... Por vezes, penso que há algo diferente em causa. Na visão que tive, ao vê-la com a prima,
fiquei com a impressão de que ela era bastante ousada.
- Ousada?
- Picante, sensual, penso que os ingleses lhe chamariam assim. Parecia conhecer-se bastante bem. Sabia como seria a sua vida, caso não casasse, e mostrou-se realista
quanto ao seu futuro com o sedutor Danny Longs- treet. Interrogo-me sobre como seria ele.
- Provavelmente como o seu descendente.
Jace fez uma pausa, estendendo a mão para o pão - pãezinhos caseiros com recheio de mel e retomou:
- Quer dizer que ainda há representantes da família Longstreet na povoação?
- Apenas um. A maior parte deles mudou-se.
- Oh! E que tipo de pessoa é esse tal Longstreet?
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- Somos da mesma idade e andámos juntos na escola. Muito elegante - respondeu Nigh, deitando um olhar intencional a Jace. - Parece um Super-homem baixo, com cabelo
preto e brilhante, olhos azuis-escuros e cheio de músculos. É gerente de uma oficina de reparações. Fica numa rua lateral, portanto talvez lhe tenha escapado,
mas chama-se Longs- treets.
- Elegante, independente, só que detecto aí um "mas".
- Exacto. É um pulha. Agrada às raparigas. Não me olhe assim. Gosto de homens que saibam falar. As raparigas que apenas se interessam pelo físico, mostram-se caídinhas
pelo Gerald. O verdadeiro problema com ele é que quer todas as mulheres, a toda a hora, ou, pelo menos, três de cada vez.
- Não é propriamente do tipo fiel, nesse caso? - retorquiu Jace.
- De forma alguma. E você?
- Eu o quê? - replicou Jace.
- É do tipo fiel?
- Oh, claro. Um perfeito Bulldog. Uma mulher a tempo inteiro.
- Entendo. E quem é a mulher?
- Neste momento, Ann Stuart. Qual o seu parentesco com ela?
- Não acho que exista. A minha mãe dizia que sim, mas não vejo como. Acho que ela se sentiu tão horrorizada por casar com um homem chamado Smith, que me deu o nome
mais invulgar que encontrou e, portanto, calhou-me em sorte Nightingale.2 Leu-o provavelmente em qualquer livro sobre Priory House.
- O nome adequa-se-lhe, pois anda pelo escuro como uma ave nocturna.2
- Hummm! Disse que eu fiz mais barulho que...como foi? Uma manada de búfalos!
- Talvez não fosse assim tanto - sorriu Jace, voltando a encher-lhe o copo. - Consegue, na verdade, esgueirar-se através de sítios estreitos!
2 Rouxinol. (N daT.)
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julguei que ficaria entalado na portinha daquele pequeno edifício de tijolo. Acha que o velho Hatch conhece o lugar?
- Acho que Mr. Hatch conhece cada polegada desta propriedade. Deve ter visto o terreno, no sítio onde a porta o raspou quando eu era criança.
- Espero que tenha zelado igualmente para que as tábuas não apodrecessem.
- Também eu. - Nigh esvaziou o resto do copo e, em seguida, afastou a cadeira para trás. - É tarde. Tenho de me ir embora. - Ao levantar-se, foi obrigada a apoiar-se
na esquina da mesa para se equilibrar.
- É mesmo. Vou metê-la num carro e deixar que conduza - ironizou Jace. - Vá lá. Pode dormir em qualquer dos muitos quartos desta enorme e fria mansão. Que quarto
prefere?
- O de Ann, obviamente - respondeu, levando a mão à cabeça. Sentia-se tonta e... bom, não se importaria que este homem encantador lhe tocasse.
- Não. O quarto de Ann é meu.
- Está apaixonado por ela, não está? - inquiriu Nigh, sem largar a mesa.
- Estou, sim - anuiu Jace num tom sarcástico, mas divertido. - Sofro por uma mulher que morreu há mais de cem anos.
- Cento e vinte e oito, para sermos mais exactos - assinalou Nigh, dando um passo em frente e quase caindo. - Acho que estou embriagada.
- Muito - concordou Jace, ao mesmo tempo que avançava e lhe colocava o braço sobre os ombros.
- Oooh! Que bom! - exclamou, brindando-o com um pestanejar. - Não é uma visão nada desagradável, Mr. Monrgomery.
- Devo dizer que você também não - respondeu ele, mas sem olhar de frente para ela, enquanto a conduzia até às escadas.
- Se gostamos um do outro, então porque não...
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- Espero que não se lembre disto, de manhã. Ponha o pé no degrau. Isso. Bonita menina. Agora, o outro. Muito bem. A seguir.
- Então, por quem está apaixonado? - interessou-se Nigh. - Quero dizer, alguém que esteja vivo.
- Não estou apaixonado por ninguém que esteja vivo - respondeu Jace num sussurro.
- Mas toda a gente precisa de amar alguém - ripostou ela, apoiando- -se no seu braço, enquanto ele a ajudava a subir as escadas.
- É verdade.
- Nesse caso, porque não tem ninguém?
- Não lhe vejo uma aliança no dedo. Portanto, quem é a tal pessoa para si?
- Os homens não conseguem aceitar a minha carreira - elucidou Nigh, suspirando. - Têm ciúmes. Sou melhor no trabalho do que eles. Destemida. É o que me dizem na
cara. Contudo, ouço-os. Acham-me louca e consumida pela ambição, mas sabe que mais? - acrescentou com voz entaramelada.
- O quê?
- Só o dizem por despeito. Não vou para a cama com eles. Tenho um elevado grau de auto-estima.
- Ah, sim? - sorriu Jace. - Estamos quase a chegar ao cimo.
Nigh parou na escada e fitou-o.
- É verdade - vincou. - Auto-estima, é o que tenho. E também uma baixa estima pelos idiotas.
- Folgo em ouvir The essas palavras. Se apenas... - Tentava conseguir que subissem mais dois degraus, mas vendo que ela não queria ou não conseguia, pegou-lhe ao
colo e transportou-a até ao patamar, seguindo depois ao longo do corredor até ao quarto principal, onde a pousou numa cadeira, enquanto abria a cama.
- Se fosse a Ann, desejaria alguém para amar - disse Nigh. - Não assombraria uma casa para depositar o meu velho corpo apodrecido para lá da sebe do cemitério. Sabe
o que penso?
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- O quê? - indagou Jace, puxando a colcha para trás.
- Acho que não interessa onde as pessoas colocam um corpo ou o que lhe fazem enquanto ele está na terra. Acho que cabe a Deus resolver essas coisas. Além disso,
quem decide se um chão é ou não sagrado? Um homem, um mero homem afirma que aqui é sagrado, mas ali, debaixo daquela árvore, já não é. Isso faz algum sentido?
- Nenhum. Consegue levantar-se ou precisa da minha ajuda? - inquiriu Jace, de pé à frente dela.
- Ajuda. Montes de ajuda.
Sorrindo, Jace inclinou-se e rodeou-lhe o corpo com os braços para a ajudar a pôr-se de pé.
Por um momento, Nigh encostou-se-lhe e Jace agarrou-a. Foi um escasso segundo, mas existiu e Nigh sentiu-o.
- Gosta de mim, não é verdade? - sussurrou ela contra o seu peito.
Ele afastou-a bruscamente. - Sim. Gosto de si. Devo ser masoquista,
depois do que escreveu a meu respeito, mas gosto de si.
- Não tenho culpa - disse, ao subir para a cama. - Lewis e Ray fize- ram-no para se vingarem. Dei uma tareia no Lewis quando ele tinha seis anos.
- A sério? - riu Jace, tapando-a com os cobertores.
- Lewis e Ray disseram-me coisas horríveis a seu respeito. Acreditei neles. Escrevi aquele artigo para o jornal de Ray. Ele não queria publicá- -lo, mas eu disse
que era preciso salvar a vila.
Jace sentou-se na cama ao lado dela.
- O jornal de Ralph? - redarguiu. - Não trabalha lá?
- Não - respondeu com os olhos a fecharem-se. - Trabalhei, quando era miúda, mas agora não. Agora voo.
- Está a voar neste preciso momento - comentou ele, observando-a a fechar os olhos e adormecer.
Apagou a luz e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Manteve-se um momento encostado à porta e fechou os olhos. Gostava dela.
Gostava mesmo muito dela. Era a primeira mulher que conhecia desde que Stacy tinha... partido que lhe agradava.
- O que estás a fazer Monrgomery? - pronunciou em voz alta. Sabia que nessa noite a testara. "Mas com que finalidade?", interrogou-se.
Recordava-se perfeitamente de que a convidara para jantar. No momento em que o fizera, desejara dar pontapés em si próprio, mas ela era a primeira pessoa que conhecera
que lhe dizia algo. Ao observar o casamento feliz de George e Emma e ao ver como Gladys e Mick passavam todo o tempo agarrados, sentiu o peso da solidão por se encontrar
sem ninguém num país estrangeiro.
Depois, conhecera esta bonita e jovem mulher de expressão convencida e um irreverente sentido de humor e, embora ela o tivesse ofendido, apetecia-lhe ficar sentado
na cozinha dela o dia inteiro. Era obviamente melhor do que a companhia de Mrs. Browne e das suas queixas constantes.
Antes de poder dominar-se, descobrira um motivo para ela vir à sua casa e convidara-a para jantar - sem formular o convite devidamente. Nem sequer lhe indicara uma
hora!
Às seis da tarde, depois de passar o dia a ler mais coisas sobre Mar- gate, sentira-se tão agitado que precisara de duro trabalho físico para se acalmar e por esse
motivo atacara o que Hatch chamava de "redondel de pedra", que é como quem diz o terraço.
Quando Nigh apareceu enfiada num vestido incrivelmente sensual e com os saltos altos que a faziam menear-se ao andar, resolvera continuar a trabalhar. Pensou que
se parasse e jantasse com ela, se lhe observasse o rosto do outro lado da mesa iluminada à luz das velas, acabaria na cama com ela. Contudo, ainda não estava preparado
para isso.
"Além disso", pensou, sorrindo "depois de três anos de celibato, se fosse para a cama com uma mulher... não lhe agradava prever o que sucederia."
Dirigiu-se ao quarto de paredes estampadas, o quarto de Ann, como Nigh lhe chamava. Sorriu ao recordar o toque de ciúme que lhe detectara
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na voz. Ela fazia-o sentir-se bem. Abriu o roupeiro, afastou os sapatos e levantou uma tábua do chão. Escondera a fotografia de Stacy por baixo. Pegou-lhe,
segurou-a à luz e observou o rosto que tanto amara.
"Estaria a agir bem?", interrogou-se. Talvez devesse seguir o conselho que alguém lhe dera: continuar em frente. Sempre disse que não havia uma vida à sua espera,
mas à última hora descobrira que existiam possibilidades. Vira... hesitou. Foi a primeira vez em três anos que pensou poder existir uma vida depois de Stacy.
Voltou a guardar a fotografia no esconderijo e, em seguida, colocou a velha tábua de madeira por cima e arrumou os seus sapatos no sítio.
Despiu-se e, impulsivamente, tomou um duche frio e rápido, vestiu umas calças de treino lavadas, meteu-se na cama e apagou a luz.
O luar entrava pela janela por cima do assento de recanto. Percorreu o velho quarto com o olhar, fixando o estreito painel onde agora sabia existir uma porta secreta.
O esconderijo era engenhoso e jamais o teria descoberto, excepto se estivesse prisioneiro no quarto.
O pensamento levou-o até Ann e à assaltante de estradas - se é que alguma vez existira. Teriam estado presas naquele quarto?
- Estarias disposta a fazer o que quer que fosse para sair daqui? - perguntou em voz alta a Ann. - Era por isso que estavas disposta a casar com um miúdo como Danny
Longstreet? Com metade do teu QI, provavelmente arrotava à mesa. Tratava-se de fuga ou de novidade? Ou apenas excitação? - Calou-se por um momento, mas não ouviu
nada. Não que estivesse à espera disso. Sabia que Ann estava irritada por ele ter tentado recriar o seu quarto. Olhou em volta e examinou os frasquinhos em cima
do toucador, deteve-se no retrato da sua prima Catherine, pendurado sobre a lareira. Ela esboçava um leve sorriso, mas Jace continuava a pressentir um brilho de
tristeza no olhar.
- Sabes, não é verdade que a excitação passaria. Conheço homens como Danny Longstreet, toda a gente conhece. É a novidade que os atrai. Iria tratar-te bem até se
cansar de ti e, em seguida, voltaria para as suas outras mulheres.
Jace mantinha-se quieto e à escuta, esperando ouvir algo, mas o silêncio reinava na casa. Sentindo-se idiota, virou-se de lado e fechou os olhos. Não estava embriagado,
mas bebera o suficiente para ficar com sono. Nigh estava no quarto ao lado e a ideia agradava-lhe. Sorrindo, deixou-se arrastar para aquele estado entre a sonolência
e o sonhar acordado.
- Amava-me - ouviu. - O Danny amava-me.
- Não o critico - sussurrou Jace.
No momento em que adormeceu, ouviu uma voz: - Já mo disseste.
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"Xír.l m -m.4í-
Íace e Nigh estavam sentados à mesa da cozinha, a tomar o abundante pequeno-almoço que Mrs. Browne lhes fizera, a resmungar. Jace fora o primeiro a descer e tentara
o seu melhor para preparar a governanta, fosse ela ter um choque ao saber que uma mulher passara a noite na casa com ele. Só que não "com" ele, mas... Jace revirara
os olhos, exasperados, ante a intimidação que esta mulher lhe provocava.
Contudo, Mrs. Brwone não era fácil de amenizar. Quando Nigh entrou na cozinha, ela resmungou, até o fazer pensar que as paredes rachariam. Fritou mais um prato de
bacon e ovos e, logo a seguir, saiu da cozinha, como se não conseguisse aguentar estar na mesma divisão com uma mulher como Nigh.
- Seria sempre assim com qualquer mulher que passasse a noite aqui? - perguntou Jace. - Ou é apenas consigo?
- Sobretudo comigo. Não aprova o meu emprego. Acha que é "petulante" e não se adequa a uma mulher como deve ser.
- Ah. O seu emprego. E o que faz exactamente?
Nigh ia a responder mas arrepiou caminho.
- Espeleologista - disse.
- Acho melhor comer isso tudo - riu Jace. - Talvez não tenhamos muito tempo para almoçar.
- Tenhamos? - retorquiu Nigh, comendo um pedaço de pão frito embebido numa gema de ovo.
- A não ser que tenha mais que fazer. Se vai ser a minha assistente de pesquisa... - Mexeu-se no assento. - A propósito, que salário pretende?
- Nenhum. Descobrir coisas sobre esta casa já me basta.
No preciso momento em que as palavras lhe saíram da boca, Nigh tomou consciência de que errara. Ele pensaria que ela estava a fazer isto por se ter apaixonado? Contudo,
manteve-se em silêncio. Queria conhecer a resposta.
Jace ia a dizer algo, mas calou-se. Baixou os olhos para o prato, de cenho franzido.
- Nigh...- começou. - Quanto...- hesitou. - Quanto a nós... não posso. Quero dizer, não quero que pense...
- Não quer que eu pense que você é o prémio? - interrompeu-o.
- Francamente, Mr. Montegomery, devia vigiar o seu ego. Sei que, na noite passada, estava embriagada e tenho a certeza de que me atirei a si, mas até me atiro aos
candeeiros quando estou com os copos... o que explica porque, normalmente, não costumo beber. Peço desculpa pelo que quer que tenha feito.
- Não fez nada - redarguiu ele, num tom calmo. - Na verdade, fui eu que fiz - ou não fiz - algo. Apenas queria dizer que há coisas na minha vida que... - Interrompeu
o fio do discurso e manteve-se calado.
- Ainda bem que pusemos os pontos nos ii - declarou Nigh, se bem que denotando uma certa irritação na voz. - Percebo que esteja descontrolado. A partir de agora,
vou manter-me afastada da bebida. E se passássemos ao nosso interesse comum, que é a história desta casa?
- Claro. Tudo bem - anuiu Jace. Sentia-se mal com o que ela estava a pensar, incomodado por não lhe contar a verdade. Se tivesse juízo, faria... o quê? Voltaria
aos Estados Unidos, esquecendo tudo isto?
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- Não tenho a certeza, mas acho que a Ann me falou esta noite - acrescentou, olhando por cima da cabeça dela.
- O que disse ela? "Inscreve-te num programa de ajuda para alcoólicos"?
- Não, mas sugeriu que a mandasse a si - retorquiu num tom grave.
Nigh arrancou um pedaço de pão e atirou-lho à cabeça. Ele baixou-se e o pão não o atingiu.
- Agora já sei como se sentiu o Lewis.
- Lewis? - retorquiu Nigh, preocupada. - Por favor, diga-me que não falei em Lewis na noite passada.
- Deu-lhe uma tareia quando tinha seis anos.
- Nunca mais me deixe beber, peço-lhe - gemeu Nigh, respirando fundo. - O que disse Ann realmente?
- Estive a maior parte do tempo adormecido, mas acho que disse que amava Danny Longstreet.
- Mais do que todos os seus outros pretendentes? A pobre Ann passou a vida fechada nesta casa. Quando era criança, os aldeões costumavam interrogar-se a seu respeito
e pensavam que talvez fosse aleijada.
- Ela é, na verdade, muito bonita. Quando a vi...
- Quando estava escondido no roupeiro?
- Exacto. Quando estava escondido no roupeiro, ela lamentou-se por não ser tão bonita como a sua prima Catherine. Todavia, os padrões de beleza mudam. Hoje em dia,
Catherine tomaria comprimidos para emagrecer e Ann seria manequim.
- Dificilmente. Não tinha altura bastante. Ela...- Nigh interrompeu-se porque uma tigela de barro caiu de uma prateleira do aparador, quebrando-se ruidosamente no
chão.
Nigh olhou para Jace e ele devolveu-lhe o olhar. - Pensando melhor - declarou Nigh - acho que Ann seria tão bonita como qualquer das nossas manequins hoje em dia.
Jace fixou Nigh, dando-lhe a entender que devia ser cuidadosa com as palavras. Apanharam juntos os pedaços de louça quebrada.
- Portanto, Ann amava Danny Longstreet - disse Nigh, enquanto deitava os pedaços no recipiente que Jace segurava. - Amava-o mesmo.
Ao ver que Jace não lhe respondia, fitou-o, e, deparando com uma expressão surpreendida, perguntou:
- O que foi?
- Ann não declarou que amava Danny, mas que Danny a amava. E ele assim lho disse.
- Desculpe, mas não me parece - retorquiu Nigh, olhando nervosamente à sua volta.
Jace despejou os pedaços de louça no caixote de lixo e voltou a sentar-se à mesa.
- Baseia a sua opinião no Longstreet que conhece hoje - retorquiu.
- Talvez Danny fosse diferente.
- Baseio a minha opinião no facto de, no registo da paróquia, constar que uma rapariga da aldeia deu à luz um filho de Danny Longstreet, uns meses depois da morte
de Ann. Engravidou-a quando estava noivo de Ann. Isso é um amor verdadeiro?
- Andou a fazer pesquisas, não andou? - redarguiu Jace, fitando-a, interessado. - Nesse caso, conte-me o que aconteceu a Danny.
- Morreu de uma queda de cavalo, quatro anos a seguir à morte de Ann. Nunca casou.
- Mais algum filho?
- Que eu saiba, apenas esse. A rapariga não casou com Danny, mas deu à criança o nome de Longstreet. O Gerald da aldeia é descendente desse filho.
- Se ela deu à criança o nome de Longstreet, Danny teria de concordar, não é verdade? Não se casou com ela, mas deve ter admitido que era o pai - declarou Jace.
- E talvez ajudado a criá-lo, enquanto viveu. O pai de Danny era bastante rico.
- Então, o que aconteceu às cartas de Ann? - indagou Jace, após reflectir uns momentos.
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- Os vitorianos não se desfaziam de nada. Talvez estejam na biblioteca e pudéssemos...
- Em cinzas - interrompeu Nigh. - Depois da sua morte, o pai queimou tudo o que pertencia a Ann.
- Todas as cartas? Talvez lhe tivessem escapado algumas. Talvez conseguíssemos encontrar algo no sótão.
- Arthur Stuart não só queimou as cartas da filha, como todos os seus pertences. Ficou enraivecido quando a filha se suicidou no dia do casamento. Ordenou que todo
o seu mobiliário e roupas, fosse empilhado lá em baixo, levado para o exterior e queimado. Nem sequer deu nada para obras de caridade. O vigário local mantinha um
diário e li-o. A aldeia em peso foi assistir à fogueira. Arthur Stuart declarou que a filha estava a arder no Inferno e que era onde todas as suas coisas deveriam
estar também.
- Que homem simpático! - exclamou Jace. - Não admira que Ann estivesse disposta a desposar alguém com metade do seu QI só para se livrar dele.
- E não admira que o amasse. Talvez ele fosse infiel, mas teve a generosidade bastante de dar o seu nome a um filho ilegítimo. Em 1870, não era um acto vulgar.
- Pergunto-me porque não casou com a mãe do seu filho? - questionou Jace.
- Não disse que ele estava apaixonado por Ann?
- Sei que está a ser sarcástica - retorquiu Jace. - Contudo, é possível estar apaixonado por uma pessoa e ir para a cama com outra.
- Fala a experiência? - espicaçou Nigh.
Jace brindou-a com um olhar duro.
- Não - respondeu ele de uma forma que a levou a deixar de sorrir e a desviar os olhos.
Pairou um silêncio desconfortável entre ambos. A comida que ficara nos pratos estava fria e pouco apelativa.
Nigh levantou-se.
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- Acho que vou até lá acima e... - começou Nigh, pensando em lavar os dentes e vestir algo que lhe assentasse melhor do que o enorme fato de treino de Jace, até
que se lembrou que não tinha nada consigo.
- Acho que vou até casa. Talvez possamos encontrar-nos mais tarde e...
Mrs. Browne irrompeu pela cozinha e, a julgar pelo seu ar feliz, trazia notícias desagradáveis.
- Toda a vila anda à sua procura - dirigiu-se a Nigh num tom alegre.
- À minha procura? O que querem?
- Obviamente, candidatar-se a empregos. Há dois jovens que vieram de Londres. São psíquicos. Lêem o pensamento. Dizem o que está a pensar e o que vai acontecer-lhe.
Garantiram que há mais pessoas de Londres que estão para chegar, mas tinham de aprontar as suas máquinas.
- Máquinas? - surpreendeu-se Nigh, voltando a sentar-se.
- Claro. Máquinas para caçar fantasmas. Disseram na televisão. Têm máquinas e câmaras, todo o tipo de coisas. Querem tirar fotografias da dama a cavalo. Querem gravar
as marcas dos cascos nas escadas.
- E todas essas pessoas querem falar comigo? - replicou Nigh, com a mente a transbordar de imagens horríveis.
- Corre por toda a cidade que é com a menina que devem falar.
Nigh virou-se lentamente para Jace, que se mantinha de pé com uma
expressão satisfeita. - A culpa é sua.
- Não - retorquiu ele, com um leve sorriso. - É sua. Construiu o Centro Fantasma. Limitei-me a dizer-lhes que falassem consigo e não comigo.
- Há cerca de vinte carros estacionados diante da sua casinha - informou Mrs. Browne. - Ninguém da aldeia pode passar. O Clive está a distribuir bilhetes. Disse
que se isto continuar, teremos dinheiro suficiente para reparar o telhado da biblioteca. Mrs. Wheller passou a noite acordada a escrever um catálogo sobre os fantasmas
de Priory House e Mrs. Parsons está a imprimi-lo. Vão vendê-lo a cinco libras cada.
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- Cinco libras? - surpreendeu-se Nigh.
- Estamos no século XXI e há que considerar a inflação. Bom e agora saíam os dois daqui. Preciso de fazer bolos para a casa de chá. Com todos estes visitantes na
aldeia, não há comida que chegue.
Sentindo-se como se lhe tivessem batido com um cassetete, Nigh dirigiu-se à porta da cozinha e depois virou-se:
- Mrs. Browne?
- O que é? - perguntou ela, impaciente.
- Se as pessoas vieram até cá por causa dos fantasmas em Priory House, porque não se encontram aqui nesta casa? Porque não estão a bater aos portões?
- Dissemos a verdade. Que vive aqui um americano.
Nigh não compreendeu o que ela pretendia dizer. Olhou para Jace, mas ele encolheu os ombros. Voltou a fitar Mrs. Browne.
- Armas - esclareceu Mrs. Browne, como se Jace e Nigh fossem idiotas. - A lei americana diz que todos nesse país possuem uma arma.
- É verdade - confirmou Jace num tom grave. - A nossa constituição declara que temos o direito de possuir armas. A lei foi especificamente escrita para podermos
abater ingleses.
Mrs. Browne pôs as mãos nas ancas. - Bom, eu nunca...- começou.
Jace e Nigh saíram a correr da cozinha e subiram as escadas até ao quarto principal, após o que desataram a rir.
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Sinto-me um palhaço - declarou Nigh e até para si própria parecia petulante, como uma criança amuada. Puxou acima da cintura as compridas calças do fato de treino
para não as pisar. As dobras tinham bainhas e a cintura um elástico, mas entre as duas havia metros de tecido pendente. A parte superior não era melhor. Ao inclinar-se,
o decote caía e via-se tudo até ao chão. Não era sexy. Quanto ao calçado, apenas lhe restavam os seus novos mas arruinados sapatos de salto alto. Calçou um par de
ténis de Jace.
Jace observou-a, esboçou um aceno de cabeça e voltou a fixar o ecrã do portátil.
- O que temos até agora? - disse.
Nigh estava sentada no banco da janela do quarto de paredes estampadas. Começara a chover e, por conseguinte, Jace acendeu a lareira. O quarto era acolhedor, confortável
e bonito. Noutras circunstâncias, sentir-se-ia bem. "Talvez o facto de ela e Jace se encontrarem num quarto fosse um tanto estranho, mas era o quarto que fora transformado
à semelhança do de Ann e, portanto, fazia parte da pesquisa", disse Nigh para
si própria. Contudo havia algo de errado. Não sabia o quê, mas havia. A sua vida dependera várias vezes de ter seguido a intuição e esta era uma delas.
- O que pretende provar? - inquiriu Nigh num tom mais agressivo do que fora sua intenção.
- Acho que devíamos começar por provar que Ann não se suicidou - respondeu Jace.
- Como podemos descobrir o que aconteceu há cento e vinte e oito anos? Se Ann deixou um bilhete, foi destruído pelo pai. Se escreveu cartas ou manteve um diário,
também foram destruídos.
- E se escreveu cartas a alguém? Talvez as tenham conservado - sugeriu Jace.
- O que iríamos descobrir, se lêssemos as cartas de Ann? Que queria casar com Danny Longstreet? Talvez concluíssemos que Danny queria casar com ela. Mas isso já
sabemos. Como podemos descobrir o que aconteceu naqueles últimos minutos antes de ela morrer?
- Estar apaixonado não impede ninguém de se suicidar - replicou Jace num tom baixo, fitando-a em seguida. - O que conseguiríamos se provássemos que Ann foi assassinada?
O direito de mudar os seus ossos para o cemitério? Não tenho a certeza, mas aposto que se falasse com o vigário, ele os mudaria agora.
- Provavelmente - anuiu Nigh, olhando para o exterior.
Jace pousou o portátil em cima da cama e aproximou-se dela.
- Quer que a leve a casa? - perguntou.
- E ter todas aquelas pessoas a bater-me à porta, pedindo-me um emprego para fazerem sessões?
- Sente-se mesmo furiosa? Era você ou eu e a iniciativa partiu de si - disse Jace. - Penso que...
- Não. Eu consigo lidar com essa gente - replicou Nigh, fitan- do-o. - Trata-se de outra coisa. Algo neste quarto. Acho que Ann não me quer aqui. Talvez esteja tão
apaixonada por si como você por ela.
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- Eu não estou... - começou Jace, estendendo a mão para lhe tocar no cabelo, mas recuou. - Onde fica, então, essa torre que servia para guardar a roupa da assaltante
de estradas?
- Boa ideia! - exclamou ela, saindo do assento, mas tropeçando de imediato nas calças de treino. Jace agarrou-a, antes que caísse no chão, mas largou-a de imediato.
Demoraram um minuto a abrir a velha porta. Era mais fácil abri-la do interior do túnel. Mal saíram do quarto de Ann, Nigh sentiu-se melhor. Emitiu um suspiro de
alívio e encostou-se um momento à parede de pedra.
- Você consegue vê-la, mas eu sinto-a. Acho que está frustrada por qualquer motivo e eu consigo detectar isso. Não me parece que estejamos a fazer o que ela pretende.
- Fitou Jace à luz da vela. - Ou talvez Ann esteja irritada por eu estar a tomar-lhe o seu tempo.
- Se há alguma coisa no mundo que uma pessoa sabe, é quando outra a ama - declarou Jace. - Sem pronunciar as palavras, mas sentindo mesmo. Estou certo de que saberia
se Ann ou qualquer outra mulher estivesse apaixonada por mim. Ela não está.
- Então, o que significa tudo isto? - indagou Nigh, fitando-o. - Porque lhe aparece? Ao longo de toda a minha pesquisa, nunca ouvi falar de mais alguém que tivesse
visto Ann.
- No entanto, todos os que moraram aqui viram fantasmas - redarguiu ele. - Partiram do princípio de que era a criminosa e puseram-se a andar. Não me parece que vissem
a criminosa: acho que era Ann. Porém, de tudo o que ouvi, as únicas pessoas que conseguiram comunicar com ela foram crianças.
Nigh começou a subir as escadas. Sentia o frio das pedras através das peúgas grossas, mas sabia-lhe bem ter a companhia de Jace, Subira as escadas centenas de vezes,
mas sempre sozinha e quando era criança. Será que Ann Stuart zelara por ela quando era pequena?
- Se é o primeiro adulto com quem consegue comunicar e não faz o que ela quer, talvez seja essa a sua frustração. - Virou a cabeça na sua direcção. - Se voltar a
vê-la, pergunte-lhe o que quer que faça.
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- Presumo que ela quer que encontremos o fantasma de Danny Longstreet e os unamos de forma a poderem voar juntos para o paraíso - replicou Jace, sorrindo.
Nigh não pronunciou uma palavra durante o resto da subida e Jace manteve-se igualmente silencioso.
No cimo, ficava a guarita redonda, com cerca de três metros de diâmetro. Havia uma velha cadeira na divisão e os parapeitos apresentavam- -se cobertos com velhos
ornamentos do exterior: um ninho de pássaro, três conchas, uma rocha lascada e montes de folhas secas.
Jace sabia que todas estas coisas tinham sido deixadas ali por Nigh, em criança.
- O quarto de brinquedos de uma rapariguinha - disse, pegando nos objectos e examinando-os. - Admira-me como ninguém descobriu que isto estava aqui.
- Acho que Hatch sabia, mas era o único. Os meus pais não sabiam. E obviamente a casa esteve vazia durante a maior parte da minha vida.
- Quando foi a última vez que veio aqui?
- No dia em que a minha mãe morreu. Todos queriam dar-me os pêsames, mas eu só desejava estar sozinha. Este era o único lugar para onde podia escapar-me, sem que
ninguém me descobrisse. Permaneci aqui a maior parte do dia e, quando desci, estava em condições de enfrentar as pessoas.
Ante o silêncio de Jace, ela virou-se para ele:
- Já lhe morreu alguém próximo?
-Já - respondeu num tom sucinto e brusco, obviamente desejando não se alongar sobre a questão.
- Essa morte tem algo que ver com esta casa e o motivo por que quer descobrir o que aconteceu a Ann?
Jace fitou-a, parecendo debater-se sobre o que lhe dizer. Passado um momento, olhou através da janela e respondeu:
- Sim. Tem.
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Nigh dispunha-se a fazer mais perguntas, mas ele virou-se para ela com uma expressão estranha e decidiu:
- Muito bem. É tudo o que vou dizer-lhe e se quiser manter esse emprego ou lá o que é, não me fará mais perguntas. Tenho frio, vou descer. - Virou-se e começou a
descer as escadas.
Nas suas costas, Nigh sorriu. Sentia-se como se tivesse ganho um prémio. Trespassara a sua armadura! Tratava-se de um pequeno buraco, mas tencionava alargá-lo.
Se soubesse assobiar, tê-lo-ia feito enquanto descia as velhas escadas, e, ao regressar ao quarto, um sorriso abria-se-lhe no rosto.
- Eu tinha razão. Precisamos de descobrir Danny Longstreet - disse
Jace.
- Refere-se à sua sepultura?
- Ao seu último local de residência, ou o sítio de que gostava. Qualquer coisa a seu respeito. Mas precisamos de descobrir seja o que for.
- Boa ideia! - aplaudiu Nigh. - Mas o que lhe deu tanta certeza?
- Isto - respondeu, virando o portátil, de forma a permitir-lhe ver o ecrã. Lia-se em grandes letras vermelhas: Descubra Danny Longstreet.
Nigh esfregou os braços que sentia arrepiados. - Acho que não há dúvidas - observou.
- O que sabe a seu respeito, além da morte e do filho ilegítimo?
- É tudo. O que sei provém do diário do vigário. Ele não escreveu nada sobre Danny até falar da sua morte, após o que voltou atrás e referiu a criança que fora educada
em Margate pela mãe. Li-o há anos e, portanto, não me recordo se ele disse que Danny era vivo nessa altura. Sei que, depois da morte de Ann, o pai de Danny não comprou
Priory House. - Abanou a cabeça. - Lamento. Não sei mais nada.
- Onde está o diário?
- Adivinhe.
- Na sua casa. Na que está cercada de paranormais, munidos de máquinas.
-Já alguma vez pensou em... - começou Nigh.
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- Se está a sugerir que deixe que esses charlatães entrem no quarto de Ann e se ponham a mexer em tudo, acho que a atirarei para a chuva, por aquela janela.
- Ainda bem que não está apaixonado por ela - pestanejou Nigh.
- Importa-se de acabar com essa conversa? Não se pode estar apaixonado por alguém que se "viu" três vezes.
Fitaram-se por um momento e, em seguida, Jace baixou os olhos para o computador.
- Vou telefonar ao Jerry - disse Nigh. - Talvez ele saiba algo sobre o seu antepassado. - O que foi? - acrescentou, ao ver que Jace se punha a abanar a cabeça.
- Só em Inglaterra é que alguém saberia algo sobre um antepassado tão afastado na sua árvore genealógica.
- Calculo que se ele souber, fica a dever-se ao facto de o pai de Danny ter montes de dinheiro, mas os descendentes nem um chavo. Pergunto a mim mesma para onde
foi? Jogo? Corridas de cavalos?
- Inclino-me mais para mulheres - redarguiu Jace e notou que um dos frascos de vidro caía do toucador e se estilhaçava no chão.
- Não faça isso! - pediu Nigh, dirigindo-se ao imenso espaço em seu redor. - Talvez ele consiga ver fantasmas, mas eu tenho um coração fraco.
Jace pegou no auscultador do telefone que se encontrava na mesa- -de-cabeceira e estendeu-o a Nigh.
- Se Longstreet não estiver na casa dele, conseguirá provavelmente contactá-lo na sua.
- Que graça! - exclamou Nigh. - Você é de partir o coco!
Marcou o número das informações, obteve o número da Longstreet"s
Garage e ligou. Jerry respondeu ao quarto toque.
- Jerry? Fala Nigh. Lembras-te de mim?
- Nightingale, querida, claro que me lembro, miúda.
Embora ela mantivesse o auscultador perto do ouvido, Jerry falava tão alto como se estivesse ali no quarto e Nigh soube que Jace conseguia ouvir cada palavra. Virou-lhe
as costas.
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- Tenho uma pergunta para ti - disse ela.
- Oh, doçura, também tenho umas perguntas. E algumas ideias sobre este negócio que começou. Estava a pensar num carro de fantasmas. Uma dessas coisas enormes americanas,
com abas. Podia montá-las para que se ouvissem gritos quando alguém se sentasse nele. Agrada-te a ideia?
- Adoro - respondeu Nigh. - Teremos de discuti-la em pormenor. Mas o que eu queria perguntar era sobre um teu antepassado, Danny Longstreet.
- O Atesoado Danny?
Ao ouvir o termo vulgar, ela virou-se para Jace a tempo de ver uma das figuras em cerâmica balançar da cornija. Jace apanhou-a, antes que chegasse ao chão.
- Uma coisa, Jerry - prosseguiu. - Sabes onde vivia Danny quando morreu?
- Claro. Numa casa chamada Tolben Hall. Fica em Hampshire. A minha mãe costumava dizer-nos que aquela casa devia ser nossa. O pai de Danny comprou-a depois de se
ver obrigado a pôr o filho longe de Margate, pois ele deixara demasiados bastardos atrás dele. Era perigoso permanecerem aqui.
Jace apanhou outra figura em cerâmica antes que aterrasse no chão, mas não conseguiu agarrar um dos frascos de perfume que voou do toucador.
- Que barulho foi esse? - perguntou Jerry.
- Nada. A chuva a bater na janela.
- E, então, minha querida Nigh, quando é que voltamos a ver-nos? Tenho saudades tuas. Vi-te algumas vezes na televisão, mas nada se compara a umas carícias no banco
de trás, pois não? Ainda tens aquele sinal em forma de coração no...
- Jerry! - interrompeu-o Nigh, erguendo a voz. - Foste uma ajuda enorme e agradeço-te muito. Vemo-nos por aí, tenho a certeza. Cumprimenta a tua namorada, quem quer
que ela seja agora.
- Não tenho nenhuma.
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- Eu sei - replicou Nigh, num tom que denotava cansaço e falta de paciência. - Não tens uma, tens cem.
- Lembras-te bem de mim, doçura. Telefona-me sobre o carro. Acho que será um sucesso no teu Centro Fantasma.
Nigh despediu-se, desligou logo a seguir e temeu a expressão do rosto de Jace.
Porém, ocupado como estava com o computador, ele nem sequer ergueu os olhos.
- Aqui está - disse. - Tolben Hall, em Hampshire. - Devo ligar?
- Claro - respondeu Nigh num tom hesitante e esperando que ele fizesse qualquer comentário. - Quanto ao Jerry...
- Não tenho nada que ver com isso - retorquiu, concentrando-se no
ecrã.
- Costumávamos sair no liceu e éramos amigos, nada mais. E agora por sua causa e com esta história do Centro Fantasma...
- Foi criado por si e não por mim.
- De acordo, seja o meu Centro Fantasma. Ele está muito excitado com a ideia e, bom...
Jace ergueu os olhos do computador.
- Podemos ficar nesse sítio e dar uma volta por perto. Agrada-lhe a ideia?
- A não ser que vá a casa, não tenho mais nada que vestir - replicou Nigh, agarrando no tecido cinzento das calças de treino.
- Isso levanta um problema - anuiu ele, fitando-a. - Acha que consegue esgueirar-se pelas traseiras da sua casa e juntar alguma roupa?
- Sem que me vissem? Nem sequer a meio da noite.
- Ei! Já sei. Porque não telefona ao senhorio a pedir que lhe arranje umas roupas? Ele deve ter uma chave.
- É você o meu senhorio - redarguiu, fitando-o como se ele não estivesse bem do juízo.
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- Está a brincar.
- Não sabia mesmo? O que diabo o levou a comprar esta casa enorme sobre a qual obviamente ignora tudo? - Expressara a frase como quem avança uma teoria, mas a expressão
dele fê-la entender que fizera mais um buraco na sua armadura.
Antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa, ouviram um barulho, vindo do andar de baixo. Vozes.
- Não está por acaso a pensar que Mrs. Browne os deixou entrar, pois não? - inquiriu Jace.
- Provavelmente ficou irritada com aquele seu comentário quanto a abater os Ingleses.
- Ou sente-se irritada por pensar que está a mostrar aquele seu sinal em forma de coração a mais um homem.
- Sabia que ia moer-me o juízo por causa disso. O Danny é um convencido mas tem muito sentido de humor. Pelo menos, sabe rir.
-Jerry.
- O quê?
- Disse Danny.
- Não, não disse.
Pararam ao ouvir passos na escada.
- Vem alguém buscar-nos - declarou Jace. - Um de nós vai ter de enfrentar essa gente e confessar que você inventou tudo sobre o Centro Fantasma.
- Só fiz perguntas. O toque real pertence-lhe quando falou em contratar pessoas.
- Não. Disse-lhes que você contrataria.
Os passos aproximavam-se e chegavam-lhes mais vozes.
- Siga na frente. Eu vou buscar umas coisas e encontramo-nos no meu carro - decidiu Jace.
- Se conseguir escapar.
- Não se preocupe. Mick terá a porta da garagem aberta e pronta para sairmos.
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Nigh correu a abrir a porta da escada secreta e depois fez sinal a Jace para que se despachasse. Não iria sem ele. Jace meteu o portátil e o fio debaixo do braço
e seguiu-a até ao patamar. Estava escuro como breu nas escadas e levou uns minutos a certificar-se de que a porta ficava bem fechada. Ouviam alguém a bater com força
na porta do quarto.
- Não vejo nada - disse Jace. - Onde estão as velas e os fósforos?
- No outro extremo do túnel.
- Cabecinha pensadora!
- Tinha nove anos quando a descobri - retorquiu. - O que esperava? Electricidade?
- Só espero que as malditas tábuas aguentem uma última passagem.
Ui!
- E demasiado alto. Encolha-se.
- Não sou demasiado alto. O tecto é que é baixo de mais.
- Agarre-me na mão - disse Nigh, tacteando atrás de si, enquanto avançava rapidamente pelo túnel escuro, húmido e sujo. Apalpou-lhe o peito e até mesmo o braço,
mas não conseguia encontrar-lhe a mão. Parou e estendeu as duas mãos para encontrar a dele. Demorou um minuto a perceber que ele a impedia deliberadamente de lhe
agarrar na mão.
- Passei horas fechada consigo num quarto hoje e agora quer entregar-se a jogos sexuais? Dê-me a mão para nos pormos a milhas. Uma dessas videntes pode perceber
do assunto e revelar o nosso destino às pessoas.
Jace soltou uma gargalhada, deu-lhe a mão e avançaram rapidamente até ao fundo do túnel. Era o começo da tarde, mas a chuva conferia uma tonalidade cinzenta ao céu
e o nevoeiro escondeu-os. Jace enfiou o computador por baixo da sweat-shirt e pôs-se a correr com Nigh na sua peugada. Tiveram de parar por duas vezes e esconder-se
das pessoas que nesse momento invadiam os terrenos.
- Vocês não têm leis contra a invasão de propriedade? - sibilou Jace. Sem lhe dar tempo a responder, agarrou-lhe na mão e pôs-se a correr tão depressa que ela quase
caiu, mas ajudou-a a endireitar-se e prosseguiram.
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Tal como Jace garantira, ao chegarem à garagem a porta estava aberta e o motor do carro a funcionar. Mick encontrava-se do lado de dentro da porta da garagem.
- Hatch viu-o chegar - disse Mick - e sabia onde ia. Mandou-me abrir caminho.
Fitou Nigh. - Siga pela estrada velha na direcção da auto-estrada - indicou Mick e ela assentiu com a cabeça. - Não sei como está o trânsito. Constou-nos que houve
algumas batidelas e talvez tenham problemas.
Quando se meteram no Range Rover, Nigh perguntou delicadamente se podia conduzir.
- Acha que consegue? - inquiriu Jace.
Mick encontrava-se do lado contrário ao de Jace e franziu o sobrolho. - Claro que ela consegue! - gritou, antes de fechar a porta.
- Pôs o cinto? - indagou Nick num tom calmo, enquanto tirava o pesado carro da garagem, de marcha-atrás.
Mal as pessoas os avistaram, desataram a correr. Algumas precipi- taram-se para o Rover de Jace, mas outras correram para a frente da casa, a fim de os perseguirem
nos seus carros.
A estrada das traseiras de Priory House era um caminho de serviço e estava cheia de buracos e de tudo o que lhe caíra em cima. Tal como Mick avisara, a chuva desse
dia deitara abaixo alguns ramos de árvores. Quando Nigh bateu no primeiro, Jace gritou-lhe que tivesse cuidado, mas ela ultrapassou facilmente o obstáculo, embora
a cabeça dele batesse no tejadilho.
Ao ver avançar um carro na sua direcção, Nigh não hesitou um segundo, curvou bruscamente à direita e tomou o caminho que acompanhava a descida de um rio. Se abrandasse,
sabia que o carro ficaria empanado.
Após o primeiro grito de aviso, Jace manteve-se calado, mas ficou atento ao caminho por onde ela seguia. - A direita! - gritou uma vez.
- Vire o volante à direita.
- Tinha avistado algumas rochas aguçadas que lhe haviam escapado. Nigh obedeceu e passou a rasar.
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Quando subiram pela margem do rio, encontravam-se num ângulo de quarenta e cinco graus, como quando se está sentado num jacto prestes a descolar.
- Fixe! - foi a única exclamação de Jace ao aterrarem em terra plana.
Chegaram a um pasto vedado e Nigh atravessou a rede de arame
farpado com o carro. Estavam rodeados de carneiros que os olharam placidamente, sem deixar de ruminar.
- Os meus carneiros? - perguntou Jace, agarrando-se à pega por cima da janela.
- A sua pastagem, se bem que a tenha arrendado ao pastor.
- É bom saber - comentou Jace, enquanto avançavam aos solavancos por um terreno rochoso. Susteve a respiração quando não avistou o outro lado do rochedo. Tanto quanto
sabia era uma descida a pique.
Contudo, não foi o desastre esperado. O carro balançou ao atingir o chão, passou por cima de uma vedação e recuperou o equilíbrio em plena estrada alcatroada.
O percurso relativamente calmo e suave assemelhou-se à bonança depois da tempestade. Jace inspirou fundo algumas vezes e tentou descontrair-se.
- Acho que aprendeu a conduzir no seu emprego... seja ele qual for - observou finalmente.
- Exacto - concordou ela. - Quer passar para o volante? - sugeriu, estacionando o jipe na berma da estrada e saindo. Manteve-se por instantes ao lado do carro, respirando
fundo.
Jace colocou-se ao seu lado. Ao ver que ela tremia, agarrou-a e abraçou-a por instantes.
- Tudo bem? - perguntou.
- Tudo - respondeu, mas agradou-lhe estar nos braços dele. Cheirava ao fumo da lenha da lareira e estava molhado da chuva. Apeteceu-lhe enroscar-se contra o seu
corpo e permanecer assim durante muito tempo.
Jace sabia que o abraço se transformara de paternal em algo mais e, por conseguinte, afastou-se.
164
- Pronta para seguirmos viagem? Se não formos já, um deles receberá uma mensagem do além e vai descobrir-nos - brincou.
Nigh sorriu, assentiu com a cabeça e entrou para o banco do passageiro.
Seguiram em silêncio até chegarem à auto-estrada, e depois Nigh deu-lhe instruções sobre como se dirigirem ao distrito de Hampshire.
- Há por aqui alguma cidade onde possamos parar? - quis saber Jace. - Precisamos de arranjar alguma roupa.
- Não tenho a minha bolsa, o que significa que os meus cartões de crédito...
- Pode devolver-me o dinheiro mais tarde - interrompeu, fitando-a.
- Acabou de fazer um bom trabalho - elogiou num tom calmo. - Nunca tinha visto uma mulher conduzir dessa maneira.
Nigh olhou-o de uma forma especial.
- Okay. Só os profissionais conduzem assim. Deve ter tido algum treino.
- Humm! - exclamou ela.
- Não vai contar-me?
- Só quando começar a revelar-me os seus segredos.
- Mas já lhe contei tudo sobre a Ann - protestou ele. - Não ficou uma palavra por dizer.
- E devo, supostamente, acreditar que ela é o seu segredo? Deve considerar-me burra como uma porta. Imagino que não soubesse nada sobre Ann Stuart ou Lady Grace
antes de comprar Priory House. Estou certa?
- Talvez.
- Sei que estou. Esses disparates sobre esta história de fantasmas é um extra, algo... - Nesse ponto, interrompeu-se e contemplou o seu perfil. - Morta. Quer qualquer
coisa dela, não quer? Quer algo que só uma pessoa morta lhe pode dar, certo?
- Estamos numa rotunda - disse ele. - Precisamos de estar atentos aos sinais, ou acabaremos às voltas para sempre.
165
- É essa - indicou ela. - A que diz Winchester. Mas não julgue que consegue distrair-me. Vou descobrir tudo. Já lhe contei que costumava sair com Clive Sefton?
- Nem precisava. Acho que saiu com todos os homens de Margate.
- O que pretende insinuar com isso?
- Não sei, mas parece que todos sabem onde ficam os seus sinais de nascença.
- Quero que saiba que... - Parou e depois sorriu. - Não vai discutir comigo só para me impedir de fazer perguntas.
Recostou-se no assento e sorriu. Tinha faro para as histórias e sabia que estava na pista certa.
- Portanto, ajudamos Ann e esperamos que ela o ajude, é isso? - acrescentou.
- Talvez - anuiu Jace, desta vez com um leve sorriso no canto da boca.
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Fez as reservas? - inquiriu Jace quando Nigh regressou à mesa do café. Comprara sanduíches e bebidas para os dois, enquanto ela ligava para Tolben Hall.
- Sim - anuiu com um enorme suspiro. - Fiz, mas existe um problema. Só havia um quarto disponível e, portanto, teremos de partilhá- -lo. Contudo, o dono garantiu-me
que a cama é muito grande. Podemos colocar almofadas no meio. Ressona?
- Nunca estive acordado para o saber - respondeu Jace, franzindo a testa.
- Então, Monrgomery. Não faça esse ar preocupado - retorquiu Nigh. - Tinham dois quartos e, como tal, não perturbarei a sua castidade. - Sentou-se na sua frente,
mas ele continuava de sobrolho franzido. - Quer parar com isso? - replicou. - Não estou a atirar-me a si. Era uma brincadeira. Esqueça.
Quando ele a fitou, Nigh leu-lhe algo no olhar que a levou a encostar-se no banco.
- O que o magoou tanto? - sussurrou. - Quem o magoou?
- Nada e ninguém - respondeu ele, voltando a baixar o rosto.
Não conseguiu arrancar-lhe nem mais uma palavra. Estavam em
Winchester e dispunham de uma hora antes que as lojas fechassem. Nigh sentia-se embaraçada por a verem com aquelas enormes calças de fato de treino e a camisola,
uma vez que se tornava difícil ignorar os olhares das pessoas.
- Como quer fazer estas compras? - inquiriu. - Pretende acompanhar-me como no filme Pretty Woman - Uma Mulher de Sonho?
- O quê? - retorquiu Jace, obviamente tão distraído que não compreendeu a referência.
Nigh inclinou a cabeça na sua direcção e baixou a voz para que os outros clientes não a ouvissem:
- Desculpe ter feito uma piada sobre sexo. Prometo que não repetirei. É
gay? Está aí o problema?
- Sim. É isso mesmo - respondeu Jace com um sorriso e um brilho no olhar. - Sou gay. Não gosto de mulheres, sobretudo de uma mulher sensual que fica bonita até mesmo
com roupa do dobro do seu tamanho.
- Uma mulher que ri e aprecia a vida, que é inteligente e divertida e a primeira com que saio nestes últimos três anos. Sim, sou tão gay quanto isso. Já acabou?
Vamos comprar alguma roupa e sair desta cidade.
Com estas palavras, levantou-se e saiu. Nigh acabou a bebida rapidamente e correu atrás dele.
- Escolha uma loja - disse Jace. - Entre, compre roupa, encontramo- -nos aqui dentro de uma hora e partiremos.
- Aquela - indicou Nigh, apontando para uma loja que tinha artigos Prada nas montras. - Mas parece cara.
- Meteu o nariz no meu quintal e, por conseguinte, sabe que posso dar-me a esse luxo.
- E eu pago-lhe mais tarde, de acordo?
- Sim - anuiu Jace, virando costas e afastando-se.
Nigh não sabia o que fizera para o irritar, mas fizera-o. Mas agora não podia preocupar-se com isso. Tinha muito com que se ocupar e pouco
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tempo. Entrou na loja e disse à empregada que dispunha de uma hora para reunir um guarda-roupa e que o namorado pagaria a conta.
Uma hora e meia depois encontravam-se de novo no jipe de Jace, a caminho de Tolben Hall. Estavam vestidos à boa maneira inglesa para o campo, Jace de casaco e gravata
com umas calças de algodão fino e Nigh com um vestido que parecia bastante vulgar, mas que custara na verdade uns milhares de libras. Não conseguiu impedir-se de
passar as mãos pelas mangas.
- Vou levar um tempo a devolver-lhe o dinheiro - declarou, olhando para as duas malas que Jace trouxera quando fora buscá-la. Vazias ao chegar e agora cheias de
roupa nova, mais todos os cremes que tinham comprado na farmácia.
- Muito bem. Quero a verdade - declarou Jace. - Como ganha a vida?
- Sou jornalista - respondeu.
Ele olhou-a com um leve sorriso.
- Não, o que escrevi a seu respeito não é uma amostra do meu trabalho. Isso foi...
- O quê?
- Diferença horária, talvez. E... horror. A minha vida levou uma grande volta nos últimos anos e, por vezes, falta-me distanciamento.
- Fale-me nisso - pediu Jace e havia uma tal empatia na sua voz que ela quis contar-lhe.
Disse-lhe que os pais tinham morrido com a diferença de um ano - primeiro o pai, depois a mãe - e fora como se Nigh houvesse perdido a âncora da sua vida. Passou
subitamente a odiar tudo na sua vida e só desejava abandonar Margate e todas as recordações. Queria escapar.
- Portanto, foi para Londres - concluiu Jace.
- Exacto - riu ela. - Para onde vão todos os ingleses e inglesas quando querem encontrar-se... ou perder-se. Arranjei emprego numa redacção, sobretudo a servir café
aos patrões. Ignorava o que
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desejava fazer e eles ignoravam o que fazer comigo. Porém, um dia, a apresentadora do noticiário faltou. Soubemos, mais tarde, que caíra nas escadas de casa e desmaiara.
Vivia sozinha e, portanto, não tinha ninguém que telefonasse a dar informações acerca do que lhe acontecera.
Nigh contou a Jace que haviam passado o estúdio em revista e ela era a única pessoa que, segundo diziam, não "assustaria os espectadores", portanto mandaram-na para
o gabinete de cabeleireiro e maquilhagem e puseram-na no ar. Recebeu como única instrução que devia ler o que via no teleponto.
À época, ninguém o sabia, mas aquilo funcionara como uma audição. Nigh fizera um excelente trabalho na leitura e tinha uma boa imagem. No dia seguinte, deram-lhe
um emprego a sério.
Um mês mais tarde, ouviu dizer que uma equipa seria mandada ao Egipto para cobrir a reportagem de um autocarro de turistas que fora alvejado e Nigh pediu autorização
para ir também.
- Correspondente no estrangeiro - disse Jace.
- Exacto. Durante os últimos oito anos, nunca estive mais de quatro dias seguidos num sítio. Vivo entre aviões e aeroportos. - Olhou através da janela e calou-se.
- Mas agora voltou para casa. É definitivo?
- Não sei. Sei que estou cansada. Sei que vi demasiadas carnificinas e horrores pelo mundo. - Respirou fundo. - Há onze meses, no Iraque, Steve, o meu cameraman,
foi pelos ares. Estava a cerca de um metro de mim, a filmar-me, enquanto falava com algumas mulheres e crianças. Tinha um tradutor ao meu lado e estava a inteirar-me
sobre o horror das suas vidas. Quase me desfiz em lágrimas, ao ouvi-las. No segundo seguinte, ouvi um ruído e havia sangue e estilhaços de metal por todo o lado.
Um morteiro, um míssil, ou algo que desconhecia, atingira em cheio o cameraman que trabalhava comigo, de quem gostava mesmo, casado e com três filhos. O seu corpo
explodiu por cima de nós e o equipamento ficou feito em pedaços. Muitas das crianças com quem estava a falar foram atingidas
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com gravidade. Também fui atingida, mas fiquei sobretudo em
O
estado de choque.
Jace estendeu a mão, agarrou na dela e apertou-a.
- Não me recordo de muita coisa depois disso. Entretanto, chegaram médicos e as crianças receberam tratamento.
- E você?
- Fui transportada de helicóptero, levei pontos, deram-me comprimidos e disseram-me que se quisesse falar com alguém, me escutariam.
- Fê-lo?
- Não - respondeu Nigh, num sussurro. - Não falei porque não sabia o que dizer. Quis ajudar o mundo, mas acho que não sou talhada para a morte e a destruição. Não
consigo distanciar-me do que vejo.
Virou-se, olhou para Jace e sorriu.
- Julguei que era uma pessoa capaz de lutar, mas aparentemente sou cobarde - concluiu.
- Não me parece nada cobarde - ripostou Jace. - O que lhe aconteceu traumatizaria qualquer pessoa.
- Não conhece o mundo das notícias. As pessoas que as fazem e a quem acontecem estas coisas, bebem uns uísques e voltam ao mesmo.
- Mas não foi esse o seu caso - disse Jace.
- Não. Tenho feito algumas reportagens desde essa altura, mas afasto- -me cada vez mais desse mundo. Julguei que podia...
- Podia o quê?
- Escrever sobre o que vi. Pensei que podia escrever sobre as pessoas que conheci, o que ouvi e o que vi. Regressei a casa para ficar tranquila, escutar os meus
pensamentos e pensar no que quero fazer com o resto da minha vida.
- E pensou que a sua cidadezinha estava a ser invadida por um americano grande e mau.
- Acho que sim - sorriu Nigh. - Desculpe. Estou habituada a ouvir duas frases e a transformá-las, seis minutos depois, numa história de
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primeira página. Nem lhe sei dizer quantas reportagens escrevi em helicópteros.
- E já tomou alguma decisão? - indagou Jace.
- Até agora nenhuma - respondeu. - A minha ideia de passar os dias sozinha e a dar longos passeios foi superada por uma caça ao fantasma na companhia de um americano,
que guarda mais segredos do que todo o Médio Oriente.
- Pequenos segredos. Segredos pessoais. Apenas importantes para mim. Não dos que fazem a Terra rodar como os seus segredos, ou a sua vida.
- Por ali - disse Nigh, apontando para uma tabuleta que indicava Tolben Hall.
Jace tomou pelo longo acesso e a casa surgiu no meio das árvores. Era uma encantadora mansão vitoriana com uma torre num extremo e um telhado pontiagudo. Havia um
grande alpendre com um balouço e várias janelas redondas.
- Percebo porque Longstreet a comprou em vez de Priory Hou-
se.
- Lá está! - exclamou Nigh. - Odeia a sua casa. Acha-a horrível, mas pagou uma avultada quantia por ela. Porquê?
- Não lhe disse que sou masoquista?
- Óptimo. Comprei o meu equipamento de dominadora e tratarei de o amarrar mais tarde.
Jace ia a rir quando saiu do carro e abriu o porta-bagagem para tirar as malas.
- Vou fazer o registo - disse ela, subindo os degraus até à porta da frente.
Uns minutos depois, Jace entrou, carregando as duas malas. Nigh estava a falar com uma mulher baixa, magra, de cabelo grisalho que se apresentou como Mrs. Fenney.
- Estava precisamente a informar Miss Smythe - disse - de que podem usar toda a casa. Costumamos estar cheios aos fins-de-semana,
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mas já não se pode dizer o mesmo no resto dos dias. Vão ficar muito tempo? - acrescentou, olhando para Jace.
- Três dias - apressou-se ele a responder.
- Óptimo. Vou mostrar-lhes os quartos.
Seguiram-na pelas escadas e através de um longo corredor com várias portas. Ela abriu uma delas, revelando um quarto grande e bonito, com paredes forradas de rosa
e verde. Havia um assento redondo num dos cantos.
- Este é o meu! - declarou Nigh.
- É o quarto mais bonito que temos - disse Mrs. Fenney, orgulhosa.
- E agora a sua vez, sir - acrescentou e Jace seguiu-a.
Nigh aproximou-se da janela e olhou lá para fora. Lá em baixo, avistava os acres de terreno circundantes de árvores, propriedade do hotel, e ansiou passear pelo
meio delas. Na verdade, desejava explorar a cidade e cada uma das lojas da pequena localidade.
Ao encostar a cabeça contra o vidro frio, pensou no que dissera a Jace, no carro. Quando voltara daquele pesadelo, em que vira a morte de tão perto, fora uma actriz
fantástica, sem falar a ninguém dos seus traumas. Saíra do hospital com quase uma centena de pontos, mas além de contorcer o rosto por várias vezes, não permitira
que se apercebessem da sua dor.
Fora mesmo ter com a mulher de Steve e falara-lhe. Ela chorara, mas Nigh não. Achava que se começasse a chorar, nunca mais seria capaz de parar. Steve fora um indivíduo
fantástico, divertido, optimista por natureza. Nunca se mostrava pessimista; nunca perdia a esperança. Tinha a certeza de estar a fazer algo de bom no mundo e jamais
permitia que os outros o esquecessem.
Durante sete meses, Nigh não verteu uma lágrima, mas houve um dia em que aparentemente não conseguia parar. Os anúncios de televisão faziam-ma chorar, bem como o
riso das crianças e os velhos casais que se fitavam com amor. O que quer que fizesse, dissesse, pensasse ou ouvisse bastava para rebentar num pranto.
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O seu editor, um homem na casa dos sessenta anos, foi o único a aperceber-se do desgaste de Nigh.
- Perguntava a mim próprio quando te irias abaixo - disse. - Quero que tires umas férias e penses nesta profissão. Algumas pessoas são talhadas para ela e outras
não. Com base em quarenta anos de experiência, diria que o melhor a fazer seria afastares-te. Mas trata-se apenas da minha opinião.
- Tenho alguns compromissos.
- Cumpre-os e depois regressa a casa, àquele lugar de onde todos vêm. Uma ou outra vila onde todos te conhecem.
- Margate - sussurrou Nigh.
- Exacto. Marwell ou o que quer que seja. Vai até lá e pensa no que queres fazer com os anos que te restam. Telefona-me quando decidires.
Nigh assentiu com a cabeça e dispôs-se a sair, mas ele fê-la parar.
- Smythe? - Ela virou-se na sua direcção. - Tens sorte. Possuis um coração e sentes as coisas. Mas, melhor do que isso tudo, consegues escrever. Aproveita esse dom.
Ouviu-se uma pancada na porta do quarto.
- Entre - convidou e, ao virar-se, deparou-se-lhe Jace.
- Está bem? - inquiriu ele num tom brusco.
- Perfeitamente. Apenas um pouco triste. Que tal é o seu quarto?
- Paredes azuis escuras com cama de mogno. Um quarto de cavalheiro. Interroguei-a sobre os Longstreets e tem algumas caixas cheias de papéis velhos. Prometeu que
vai tirá-los do sótão e poderemos examiná- -los amanhã.
- Óptimo! - congratulou-se Nigh, afastando-se da janela e enxugando uma lágrima.
- Ei! - exclamou Jace, pondo-lhe as mãos em cima dos ombros. -Não me parece estar em forma.
- Estou bem - replicou ela, fitando-o. - Apenas a pensar de mais. É melhor manter-me ocupada e não pensar.
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- Somos ambos da mesma opinião. E se fôssemos jantar? Disseram - me que há um restaurante óptimo, na cidade.
- Não. Acho que...
Jace colocou a mão sob o seu queixo e, em seguida, ergueu-lhe o rosto, perscrutando-lhe o olhar.
- Sei como se sente - disse num tom meigo. - Sei o que é perder alguém muito próximo e ser devorado em vida com a pergunta "porquê"? Porque é que isso aconteceu?
Que sentido faz? Sei...
Interromperam-se quando ele se baixou e colou os lábios aos dela num longo e terno beijo, mas desencadeando um tal desejo que provocou arrepios na espinha de Nigh.
Jace parou bruscamente e afastou-se dela.
- Não era minha intenção - garantiu.
-Tudo bem - disse ela. - É óptimo beijar alguém. Por mim...
- Não - interrompeu-a Jace. - Só queria dizer que não tinha intenção...
- Já o disse - retorquiu Nigh, confusa.
- Ouça - replicou Jace, passando a mão pela cara. - Ambos sabemos que nos sentimos atraídos um pelo outro. A partir do momento em que a vi, fiquei com as palmas
das mãos transpiradas. Devia sentir-me furioso consigo pelo que escreveu a meu respeito. Podia tê-la processado, mas acabei por tomar um chá consigo. E desde então
não passei mais do que dez minutos acordado longe de si - e não o quero. Não está em causa querer ou não beijá-la, ou assediá-la como vocês os Ingleses lhe chamam,
apenas estou a dizer-lhe que não era essa a minha intenção.
Jace dera-lhe tanta informação que Nigh se limitou a pestanejar. Dada a sua atitude, começara a pensar que ele era mesmo gay, mas...
- Nesse caso, quem me beijou? - perguntou, engolindo em seco.
- Palmas das mãos transpiradas?
Jace ia a dizer algo, mas em vez disso puxou-a de encontro ao corpo e beijou-a com a paixão que tinha sentido desde que a conhecera. Per- correu-lhe as costas com
as mãos, subiu até à nuca, voltou a descer, ao
mesmo tempo que lhe devorava a boca, entrelaçando a língua na dela, invadindo-a.
Soltou-a tão bruscamente quanto a agarrara e, ao afastarem-se, ficaram os dois ofegantes por um momento, observando-se com a respiração acelerada.
- Era esta a sua intenção? - conseguiu pronunciar Nigh.
- Era mesmo - respondeu, avançando um passo na sua direcção e depois parando. No momento seguinte, encontrava-se à porta do quarto dela. - Ouça, Nigh, tenho coisas
a fazer...
- Não se repita - disse ela. - Tem prioridades na vida. Também eu. Neste momento, quero tomar banho. Encontramo-nos lá em baixo dentro de uma hora. Jantaremos sem
álcool, pelo menos no que me diz respeito.
Jace assentiu com a cabeça, mas não pronunciou palavra e saiu do quarto.
Ao ficar sozinha, Nigh pensou que devia sentir-se zangada com ele. Devia dizer-lhe o que pensava dele e dos avanços e recuos na sua direcção, mas não era isso o
que sentia. Em vez disso, pôs-se a valsar pelo quarto, entoando baixinho a letra da canção "I Could Have Danced Ali Night".
Passou quase meia-hora mergulhada num banho de espuma, sem deixar de sorrir, e, em seguida, gastou outra meia-hora a maquilhar-se e a pôr um vestido de seda preta,
com umas leggings e sapatos pretos de salto alto.
Ao descer, tinha pronta uma carta para enviar por fax a Ralph, o dono do jornal que tantos problemas causara. Pedia-lhe que publicasse uma declaração a dizer que
não ia haver qualquer Centro Fantasma e que tudo não passara de um engano. Não haveria empregos. Priory House era uma residência privada e assim permaneceria.
Mostrou-a a Jace e ele quase correu à procura de Mrs. Fenney e de um fax. Passados dez minutos, voltou, agarrou no braço de Nigh e declarou:
- Tarefa cumprida.
Ambos riram, aliviados.
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Jace e Nigh meteram-se no carro e dirigiram-se imediatamente ao restaurante. Mediante um acordo de mútuo silêncio não trocaram uma palavra sobre os Longstreet ou
os Stuart, mas falaram apenas de si próprios. Jace queria saber mais do que Nigh fizera na vida e por onde andara. Ela queria inteirar-se sobre ele. Apercebeu-se
rapidamente
de que ele falaria e responderia a perguntas desde que não implicassem um passado recente. Conseguiu levá-lo a dizer algo a seu respeito, até há seis anos. Depois
disso, ele fechava-se em copas.
Fiel à palavra dada, Nigh bebeu apenas meio copo de vinho. Depois do jantar, voltaram ao hotel e separaram-se na direcção dos respectivos quartos. Não houve beijos,
nem agarrar das mãos, ou qualquer tipo de desconforto. Todavia, quando Nigh fechou a porta do quarto, manteve-se ali encostada, de olhos fechados. Era raro, mas,
por vezes, acontecia conhecer-se alguém com quem falar, rir, brincar e... talvez ficar apaixonado.
Deitou-se com um sorriso nos lábios.
Na manhã seguinte, encontrou-se com Jace às oito horas para tomar o pequeno-almoço e não se surpreendeu ao vê-lo comer fritos.
- Já não há muita gente a querer este tipo de comida - comentou Mrs. Fenney, despejando tomates acabados de fritar para o prato a abarrotar de Jace. - O meu marido
comeu fritos todas as manhãs durante quarenta anos e nunca lhe fez mal.
Nigh inclinou-se sobre a mesa e sussurrou:
- Mas ele não está aqui agora, pois não? Isso vai matá-lo.
- Não consigo evitar - replicou Jace. - Mrs. Browne estragou-me com mimos - acrescentou, mordiscando um pedaço de salsicha.
Depois do pequeno-almoço, seguiram em direcção à cidade.
- Esta vila agrada-me - disse ela. - Mais do que Margate.
- Julguei que gostasse de Margate.
- Sabem demasiado a meu respeito por lá.
- Como onde ficam os seus sinais de nascença?
- Como quando os meus pais morreram, o que vi e fiz e quem conheço. Acho que seria bom mudar-me para outro lado e começar uma nova vida. Limpa, arejada.
- E o seu emprego?
-Talvez escreva romances policiais, os venda aos Americanos e ganhe milhões.
- Ali está a igreja, e quer-me parecer que o vigário vai entrar - sorriu Jace. - Vamos lá apanhá-lo.
- Vá você. Está um dia demasiado bonito para entrar lá para dentro. Acho que vou ficar cá fora.
- Encontramo-nos...
- Vá lá - incitou com um aceno da mão. - Não me perderá. Estarei por perto.
Jace sorriu-lhe e dirigiu-se à igreja com passo rápido. Ela seguiu-o mais devagar, olhando em volta à medida que avançava. O que contara a Jace sobre a sua vontade
de começar uma nova vida, limpa e arejada, saíra- -lhe da boca espontaneamente, mas gostava da ideia. Afinal, não crescera
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com a ambição de se tornar jornalista. Fora algo que lhe acontecera. Por outro lado, sempre recebera elogios na profissão, portanto talvez o desejasse. O problema
estava em saber se o facto de ser jornalista poderia mudar o mundo?
A igreja estava rodeada por uma vedação de ferro, velha e enferrujada em alguns sítios, mas, de uma forma geral, intacta e bem conservada. À esquerda, situava-se
o cemitério e Nigh sabia que devia ir até lá e procurar a campa de Danny Longstreet, mas não lhe estava a apetecer ver lápides. Naquele momento, não queria pensar
na morte.
À direita da igreja havia uma encantadora orla de flores e um bonito banco de madeira. Sentou-se nele e contemplou a alvenaria da igreja. Fechou os olhos por um
momento e quase adormeceu. Um ruído sobressaltou-a.
Um jovem vestido com roupas de montar caminhava ao seu lado, tentando obviamente passar despercebido, mas tropeçara num ramo.
- Tentei não fazer barulho, mas falhei - disse, fitando-a atentamente.
- Conheço-a?
- Não - respondeu, devolvendo-lhe o olhar. Ele assemelhava-se um pouco a Jerry Longstreet, só que era mais elegante, mais requintado... oh céus, não conseguia libertar-se
do seu conceito de divisão de classes! Este jovem pertencia aparentemente a uma classe mais elevada. - O seu apelido não é por acaso Longstreet?
- Ou é uma vidente ou uma prima distante! - replicou ele, arregalando os olhos. - Prefiro a segunda à primeira hipótese.
- Nenhuma das duas - sorriu. - Sou assistente de investigação de um homem que comprou uma casa na vila de Margate. Estou a falar de...
- Priory House - concluiu ele.
- Exacto. Conhece-a?
- Só na parte que se refere aos meus parentes. Em 1870, um homem chamado Hugh Longstreet queria comprá-la.
- A tal ponto que forçou um casamento entre o seu filho e a filha do dono de Priory House - declarou Nigh, testando-o para ver o que ele sabia.
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- Segundo o que me constou, "forçar" não é a palavra exacta. Ouvi dizer que foi uma ligação por amor.
Nigh endireitou-se no banco.
- Também foi o que me constou, mas qual é a sua fonte? - inquiriu, pois não podia confessar-lhe que a dela eram fantasmas.
Ele sorriu-lhe de uma forma tão encantadora, que era impossível deixar de corresponder, e replicou:
- Isso corresponderia a revelar segredos de família, não acha?
Nigh olhou na direcção do frontispício da igreja, mas não havia sinal
de Jace.
- Tem alguma coisa que fazer neste momento? Gostava de lhe colocar umas perguntas - arriscou.
- Parece uma jornalista - comentou ele, sentando-se ao seu lado.
- Culpada - admitiu, virando-se para o enfrentar e de costas para a igreja. - Gostaria que me contasse tudo o que sabe sobre Danny Longs- treet, o seu pai, Priory
House e tudo o mais que quiser dizer-me. A propósito, chamo-me Nigh Smythe.
- E Nigh é o diminutivo de...
- Nightingale - respondeu, embaraçada como sempre por causa do nome.
- Como Ann Nightingale Stuart? - inquiriu num tom suave.
- É parente dela?
- A minha mãe dizia que sim, mas ignoro como seria possível. A minha mãe nasceu em Yorkshire.
- É possível, sim. Não sabia que o pai de Ann tinha vendido Priory House depois de Ann... morrer, se mudou para o Norte e voltou a casar? Acho que pode ter ido para
Yorkshire, mas não estou certo. Penso que teve mais filhos, uma vez que a sua segunda mulher era bastante nova.
Nigh pestanejou por um instante. Nunca se interessara muito por genealogia e, portanto, não tinha questionado muito a mãe sobre os seus avós. Eles já haviam morrido,
tinha Nigh três anos, e não se lembrava de os ver. Era interessante descobrir que talvez fosse parente dos Stuarts.
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- Acho demasiada coincidência que uma descendente do segundo casamento de Arthur Stuart tivesse vindo parar à pequena vila de Mar- gate - redarguiu.
- Excepto se tivesse ido até lá de propósito - contrapôs ele. - A sua mãe interessava-se pela história da família? Talvez fosse a Margate fazer qualquer pesquisa
a esse respeito.
- É altamente provável - anuiu Nigh, ao mesmo tempo que uma onda de culpabilidade a invadia. A sua mãe interessara-se muito pela história da família, mas a filha
não. Na verdade, Nigh recordava-se de protestar e portar-se mal sempre que a mãe ia buscar a sua "caixa das antiguidades", como Nigh e o seu pai lhe chamavam.
Voltou a prestar atenção ao indivíduo. Um jornalista aprendia a centrar-se mais no entrevistado do que em si próprio.
- Estou no Tolben Hall - disse.
- Encantador, não acha? Hugh comprou-o depois da morte de Ann, mas não viveu o bastante para usufruir dele.
- O que levava Hugh Longstreet a desejar tanto Priory House?
- Era o sonho da sua vida. Na verdade, pode dizer-se que é o que incentivou a sua vida. Foi o desejo de adquirir Priory House que o impeliu a tornar-se milionário.
- Fez uma pausa e sorriu. - Acho que estou a maçá-la.
- De modo algum - respondeu honestamente.
- Aquele é o seu namorado?
Ao virar-se, deparou-se com Jace, de pé, na esquina da igreja, falando com o vigário. Acenou-lhe e ele assentiu com a cabeça. Nigh virou-se para o seu novo amigo
e prosseguiu a conversa:
- Por que razão constituía Priory House o sonho da vida de Hugh?
- A mãe dele tinha sido governanta lá. Constava que... não, vou maçá-la.
- Garanto-lhe que não.
- É uma história um pouco disparatada, faz lembrar algumas de Dickens. Quando Hugh era novo, corria o boato de que descobriu que a mãe
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era mais do que uma governanta para o dono de Priory House. Era possível, mesmo provável, que o dono fosse seu pai. Também constava que no dia em que o descobriu,
Hugh roubou metade das pratas da família Stuart e fugiu para os Estados Unidos. Contaram-me que Hugh dedicou toda a sua vida a uma única coisa - ser dono de Priory
House.
- Mas Arthur não lha vendeu - sugeriu Nigh.
- Exacto. Arthur era um rapazinho quando Hugh vivia lá e Hugh tinha sido... digamos cruel para ele.
- Torturara-o impiedosamente, não foi?
- Sem cessar - respondeu, sorrindo. - Portanto, Arthur desejava vingança. Além disso, Arthur era um homem revoltado e amargo. O pai ordenara-lhe que casasse por
dinheiro, mas Arthur casara por amor com a filha de um vigário pobre. Ela morreu menos de um ano depois.
- Ao dar Ann à luz - disse Nigh.
- Sim, Arthur não conseguia suportar a ideia de ver a filha.
- Manteve-a presa quando ela era criança para que os habitantes da vila pensassem que tinha alguma deficiência - prosseguiu Nigh.
- Exacto.
- Foi então que Hugh Longstreet e o seu elegante filho apareceram em cena e fizeram um acordo.
- Sim. Foi um acordo que levou meses a negociar. Arthur deveria continuar a viver em Priory House depois da venda, mas a Hugh pouco lhe interessava quem lá vivesse.
Apenas desejava ser dono da casa que deveria pertencer-lhe por nascimento, dado ser o irmão mais velho de Arthur.
- E quanto a Ann e Danny?
- Ah! - exclamou o indivíduo com um largo sorriso. - Por vezes, acontecem verdadeiros milagres neste mundo. À primeira vista, não existiam pessoas mais diferentes
que Ann Stuart e Danny Longstreet. Ela era extremamente requintada e graciosa e ele era...
- Desregrado e irresponsável. Um seu descendente vive em Margate e conheço-o bem.
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- Ah, sim? - retorquiu o jovem, interessado. - Deve descender de...
- O filho ilegítimo de Danny.
- Ah, sim. Claro - anuiu ele, baixando a cabeça uns momentos.
- Danny era rico e elegante e todas as mulheres, novas e velhas, o adoravam.
- A imagem adequa-se a Jerry, mas talvez Danny fosse mais inteligente - riu Nigh.
- Não era estúpido, se é o que pretende dizer - ripostou ele.
- Desculpe - disse Nigh. - Não queria ofender.
- Sou eu que devo pedir desculpa. A mãe de Danny pertencia a uma família pobre mas nobre de Boston e o pai era meio aristocrata, com uma mãe da classe operária.
Danny tinha sangue de origens muito diferentes a correr-lhe nas veias e Ann despertou o que de melhor havia nele. Enquanto os pais de ambos passaram meses a discutir
quem era o dono do quê, Danny e Ann tinham liberdade para estar juntos. Possuíam um conhecimento do mundo muito diverso e, portanto, não havia competição entre eles.
Ela instruiu-o sobre poesia e flores e ele ensinou-lhe...
- Fechou momentaneamente os olhos, enquanto pensava.
- Sexo nu e cru - ajudou Nigh, rindo.
- Não diga isso! - ripostou o homem, virando-se para ela com uma expressão furiosa. - Danny respeitava Ann. Nunca lhe tocou com um dedo e limitaram-se a trocar uns
castos beijos.
Nigh endireitou-se e afastou-se um pouco do jovem indivíduo. Sen- tiu-se satisfeita por ainda ser dia, estar em público e Jace se encontrar por perto. Olhou por
cima do ombro. Ele já não estava a falar com o vigário, mas de pé, junto à esquina da igreja, encostado à parede e a observá-la. Pensou em fazer-lhe sinal para que
se aproximasse, mas receava que o seu interlocutor deixasse de lhe contar histórias acerca de Ann e Danny. Sentia-se, porém, satisfeita por saber que Jace estava
próximo.
Virou-se para o interlocutor.
- Desculpe - disse. - Acho que confundi o nosso baixo nível de moral com a elevada ética deles.
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- Sou eu mais uma vez que tenho de pedir desculpa. Reflecti durante muito tempo nestas coisas e a injustiça de tudo isto continua a enfurecer-me.
- Concordo. Eu, nós, não achamos que Ann se tenha suicidado.
- Claro que não o fez. Estava apaixonada por Danny e ele por ela. Ansiavam por se casar.
- Então, quem a matou?
- Na minha opinião, foi a rapariga da vila.
- Ah! A mãe do filho de Danny.
- Gin a mais, canções a mais, desejo a mais por uma mulher em que não podia tocar - replicou o indivíduo com um esgar. - Um acidente com uma consequência desastrosa.
- E acha que ela matou Ann.
- Acho sim. Não havia provas, mas a sua prima Catherine afirmou que foram encontrados restos de bombons no chão do quarto de Ann. A mulher em causa trabalhava numa
fábrica de chocolates.
- Que horror! - exclamou Nigh. - Pobre Ann. Foi considerada uma suicida e enterraram-na fora do cemitério.
- Isso mesmo - anuiu ele com os lábios unidos num ricto. - Ninguém conseguia acreditar que uma dama como Ann pudesse amar um rufia americano como Danny Longstreet.
Ninguém questionou que tivesse preferido matar-se a casar com ele.
- Pobre Danny! Sabe o que lhe aconteceu?
- Andou embriagado durante uma semana e depois abandonou Margate na companhia do pai e nunca mais voltou.
- Mas não deixou de sustentar a criança - interferiu Nigh - e deu- -lhe o seu nome.
Ao virar-se, avistou Jace que continuava de pé, encostado à parede, sem deixar de a observar com um olhar intenso. Não conseguia ler-lhe a expressão. "Será que,
de alguma forma, ele estava com ciúmes por vê-la a falar com outro homem? Porque não se aproximava, para ser apresentado?"
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- Não ouvi o seu primeiro nome - disse, voltando a fixar o seu jovem
interlocutor.
Ele levantou-se bruscamente, ao mesmo tempo que disse: - O seu acompanhante está a ficar impaciente, por isso acho melhor ir-me embora. Sabia que tem algumas parecenças
com Ann?
- Como sabe isso? Julguei que o pai tivesse destruído todos os seus retratos.
- Danny tinha um e conservou-o.
- Está em sua casa? Tem-no consigo? Gostaria muito de vê-lo.
- Procure em Tolben Hall e vê-lo-á. - Espreitou por cima do ombro de Nigh. - Vem aí o vigário. Tenho de me ir embora.
Nigh virou a cabeça para trás e avistou o vigário de pé, ao lado de Jace, com as mãos cheias de papéis e olhando na sua direcção. Acenou- -lhe e, em seguida, virou-se
de novo para o jovem, mas ele desaparecera. Que raiva! Queria que ele conhecesse Jace para poderem trocar impressões. Precipitou-se atrás dele, correndo para o portão,
mas não o viu. Perscrutou os dois lados da rua, mas pelos vistos o jovem esfumara-se.
Encolheu os ombros e foi ter com Jace e com o vigário.
- Deve ser Miss Smythe - cumprimentou o vigário. - Chamo-me Innis. Constou-me que anda a investigar os ex-proprietários de Tolben Hall.
- E verdade - anuiu Nigh, sorrindo e apertando-lhe a mão. - Acabei de conhecer...Ui! - exclamou quando os dedos de Jace lhe apertaram
o braço.
- É o tornozelo - explicou Jace, ao ver que o vigário se preocupara com a exclamação de dor. - O padre Innis estava a contar-me que já nenhum Longstreet vive aqui.
Danny e o pai apareceram, compraram Tolben Hall e depois ambos morreram sem que se soubesse a causa.
- Mas eu acabei...
- Agradeço-lhe por tudo - disse Jace, elevando a voz e interrompendo Nigh. - As fotocópias vão ajudar-nos muito. Tenho a certeza.
- Como lhe contei, o pouco que resta está em Tolben Hall.
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- Sim. Mrs. Fenney prometeu que iria buscar o caixote com os papéis e podíamos examiná-los hoje, depois do almoço. A propósito, estava a pensar se haveria qualquer
sítio onde vendessem comida pronta-a-levar. Regressaremos a Tolben Hall para almoçar.
Nigh não se pronunciou sobre qualquer dos planos que Jace elaborava, sem a consultar. Tinha as marcas dos seus dedos no braço e fora interrompida bruscamente, mas
percebia agora que Jace não queria que ela mencionasse o jovem com quem estivera a falar. Ele era um Longs- treet, mas o vigário garantira que nenhum Longstreet
habitava na vila. "Estaria de visita? Por outro lado, o jovem escapara-se, mal avistara o vigário. O que se passava, afinal?"
Limitou-se a escutar vagamente as instruções que o vigário dava a Jace sobre umas lojas, onde eles podiam comprar comida a quilo.
Mal se viram longe dele, Nigh questionou-o:
- O que foi aquilo? Porque me interrompeu daquela maneira?
- Não queria que mencionasse ao vigário o homem com quem estava a falar.
- Mas porquê? Ah, entendo. Secretismo. Manter o que fazemos só para nós, esse tipo de coisa.
- Mais ou menos - replicou, sem a olhar de frente.
Minutos depois, atravessaram a localidade, parando em várias lojas para comprar fruta, empadas de galinha e sumo engarrafado. E ainda bolos de chocolate com recheio
de creme.
- Vamos engordar - comentou Nigh sorrindo, pois tinha uma série de informações que estava ansiosa por partilhar com ele.
- Acho que precisaremos do chocolate - redarguiu ele, tomando fôlego. - Endomorfinas. Estamos bem precisados. Acho que vou comprar uma garrafa de vinho... ou duas,
ou três. Talvez também uísque. Gosta de malte?
- Não. E demasiado forte. Mas que diabo se passa consigo? Quero dizer, sei que você é a pessoa mais lunática ao cimo da terra, mas...
- Lunático? Não sou nada!
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- Não? Então, diga-me porque comprou Priory House.
Jace abriu a boca para falar, mas voltou a fechá-la.
- E que tal gin? Agrada-lhe? - quis saber.
- Posso saber por que razão está a tentar embebedar-me? - retorquiu, erguendo as sobrancelhas intencionalmente.
- Não é nada do que está a pensar. Só quero acalmá-la.
- Acalmar-me porquê?
- Por nada. Esqueça - respondeu, estendendo o cartão de crédito ao empregado. - Então, com quem estava a falar na igreja?
- Com um homem jovem muito simpático. Foi indelicado. Porque não se aproximou para ser apresentado?
- Não queria interrompê-los. Quem era ele?
Nigh esperou até saírem da loja e respondeu:
- Um Longstreet. É descendente de Danny Longstreet e vive perto daqui.
- O vigário não lhe disse que por estas bandas não habita nenhum Longstreet?
- Sim e achei estranho. E mais estranho foi quando o jovem viu o vigário, deu um salto e fugiu. Como se tivesse medo dele.
- Ou da água benta - murmurou Jace entre dentes.
- O quê?
- Nada. De que é que estiveram a falar?
Iam a descer na direcção de Tolben Hall. Jace levava os sacos mais pesados e Nigh os mais leves.
- De sexo - respondeu.
Jace não sorriu, mas manteve a cabeça baixa, como se escutasse atentamente cada palavra que ela pronunciava.
- De que mais? Sexo em que contexto?
- Acho que o termo usado foi "sexo nu e cru".
- De que mais? - insistiu Jace, num tom solene.
"Não ia obviamente provocar-lhe ciúmes", pensou e, por conseguinte, desistiu. Estavam a cerca de um quilómetro e meio de regresso ao B & B
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e Nigh pôs-se a falar ininterruptamente, contando a Jace tudo o que se lembrava das palavras do tal jovem.
- Mas não conseguiu saber o nome completo dele?
- Era essa a minha intenção, mas sentia-me tão fascinada pelo que ele me contava, que me esqueci de perguntar. Perguntei-lhe se era um Longstreet e ele respondeu
que sim. Tenho a certeza de que se formos à Internet, conseguiremos descobrir a sua morada.
- Acho que sei exactamente onde ele vive - disse Jace.
- Como poderia?
- Está nos documentos que o vigário me entregou. Ele fotocopiou- -me vários registos que indicam algumas mortes.
- O que tem isso que ver com este homem?
- Ele, bem... - Jace hesitou e não respondeu à pergunta. - Pobre Danny Longstreet. Aposto que tentou dizer às pessoas que Ann fora assassinada, mas o que podia fazer?
Dizer-lhes que a pessoa que matou Ann era a mãe do seu filho?
- Exacto - concordou Nigh. - Se tivesse mandado a mulher para o cadafalso, o que seria do filho? Se Danny aceitara a criança, podia encontrar-se na mesma situação
que o pai de Ann. A criança recordar-lhe-ia a morte de Ann.
- Não havia ponta por onde pegar - comentou Jace.
- Pobre virgem Ann e triste Danny. Tudo porque Danny se embebedou uma noite.
- Tirando Ann, penso que todos tiveram a sua quota-parte de culpa. Ela foi a única pessoa inocente em tudo isto.
Avistaram Tolben Hall por entre as árvores.
- Então, esse tal Longstreet disse-lhe que se parecia com Ann?
- Sim e que há um retrato dela algures, em Tolben Hall.
- Escondido debaixo das tábuas no chão do roupeiro? - resmungou Jace. - Há que tirar os sapatos e aplicar uma chave de fendas?
Nigh deitou-lhe um olhar curioso e ao vê-lo desviar a cabeça, ficou ainda mais curiosa.
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- Espero que esteja pendurado na parede - redarguiu. - Vi montes bric-à-brac vitoriano por todo o lado.
- Sim, o que há mais por aí são coisas da época vitoriana - anuiu ele. - Coisas e pessoas.
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Não acredito em si! - exclamou Nigh, fitando-o. Encontravam-se no quarto dela, emTolben Hall, com o conteúdo da caixa que Mrs. Fenney lhes emprestara espalhado sobre
a mesa. Não havia muita coisa, apenas umas cartas comerciais de Hugh Longstreet e o livro de contabilidade relativo ao custo do aluguer da casa por um ano. Nada
de documentos pessoais, nem maravilhosas cartas de amor enviadas por Ann a Danny.
O único objecto de interesse estava no fundo da caixa. Tratava-se de uma fotografia de um homem novo, encostado a uma árvore e fitando o fotógrafo, como se achasse
que o mundo inteiro existia para seu bel- -prazer.
- É ele! - disse Nigh, pegando na fotografia. - Ou seja, não é ele. Sei que este tem de ser Danny, mas é um sósia do homem com quem falei hoje. Os Longstreet têm
genes fortes, uma vez que conseguem passar as suas parecenças de uma forma tão completa. É como se as mulheres das últimas gerações não tivessem nada a ver com os
filhos.
- Parece mesmo ele, não parece? - indagou, estendendo a fotografia a Jace. Ao ver que Jace não lhe respondia, franziu o sobrolho. - Viu-o e parece ele, estou correcta?
- Imagino que deve parecer-se com ele - replicou Jace, num tom calmo.
- O que está a querer dizer? Imagina? O que viu?
Jace esboçou um sorriso que desagradou a Nigh.
- Esqueci-me de interrogar Mrs. Fenney quanto ao retrato de Ann - disse. - Talvez devamos percorrer a casa e ver se conseguimos encontrar um retrato de alguém que
se pareça consigo.
Levantou-se da cadeira e dirigiu-se à porta, mas Nigh conservou- -se sentada.
- O que está a esconder-me? - quis saber.
Jace fez uma expressão de que lhe apetecia fazer tudo neste mundo, excepto voltar a sentar-se e responder à pergunta dela. Contudo, suspirou e sentou-se na sua frente.
- Não vi ninguém - confessou, baixando a cabeça, sem querer olhá- -la de frente.
- O quê? - redarguiu Nigh, levantando-se e dirigindo-se à janela. Demorou um momento, antes de voltar a fitá-lo. - Não me agrada o que está a tentar dizer-me. É
possível que deseje convencer-me de que eu não estava a falar com ninguém?
Jace ergueu o rosto na sua direcção e esboçou um esgar.
- Não acredito em si! - exclamou, avançando para ele. - Quer saber a minha opinião? Acho que está tão obcecado com toda esta história de fantasmas, que anseia, desesperadamente,
que os outros partilhem da sua fantasia. Acho que inventou toda essa história de ver Ann e a prima a falar e agora está a tentar convencer-me de que também vi um
fantasma. Posso garantir-lhe que o homem com quem falei hoje demoradamente era tão real como você. Acho...
- Tem alguma razão para pensar que eu faria tal coisa? A fim de arranjar material para o Centro de Fantasmas, uma invenção sua?
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Nigh ia a responder algo, mas não conseguiu descobrir uma razão que o levasse a inventar a história do fantasma. Contudo, sabia que ele guardava imensos segredos.
- Ignoro porque faria uma coisa dessas, mas acho...
Interrompeu-se quando ele começou a examinar os documentos,
após o que retirou um deles, se dirigiu ao telefone e marcou um número.
- A quem está a telefonar? - perguntou.
- Ao vigário. Se não acredita em mim, talvez acredite nele.
Segundos depois, Jace estava a falar com o padre Innis.
- Desculpe incomodá-lo, padre, mas a minha assistente tem umas perguntas que gostava de lhe fazer. - Estendeu o auscultador a Nigh.
Ela agarrou-o com um olhar desconfiado. "Verifique as fontes" era uma frase que lhe fora incutida desde os seu primórdios como jornalista.
- Queria interrogá-lo sobre a sua afirmação de que não existiam representantes da família Longstreet na povoação - declarou. - Li ou ouvi algures que havia umas
pessoas com o apelido a viver na região.
- Nenhum que esteja vivo - disse o vigário, rindo. - Chegou-nos uma série de indicações de que um jovem que se adequava à descrição de Danny Longstreet tem sido
visto frequentemente no cemitério. Não quero dizer nada, pois desagrada-me dar continuidade a esses mitos, mas agora que descobriu...
- Entendo - replicou Nigh, sentindo uma fraqueza nos joelhos.
- Por que razão acha que Danny Longstreet anda por aqui?
- Não faço ideia. Ele só viveu em Tolben Hall alguns anos, mas os habitantes locais afirmam que os avós lhes contaram que ele foi o homem mais infeliz ao cimo da
Terra. Dizem que costumava subir a cavalo as escadas de Tolben Hall. Na verdade, reza a lenda de que foi assim que morreu. Chegou ao cimo das escadas a cavalo, depois
caiu, rolou pelos degraus e quebrou o pescoço. Deus do céu! Aqui estou eu a perpetuar histórias. O que queria perguntar-me?
- Esta manhã, estive a conversar com um homem novo, sentada no banco junto às flores. Ele foi-se embora antes que soubesse como se
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chamava. Perguntei a mim própria se conheceria o seu nome. - Nigh olhou para Jace, mas ele estava de costas voltadas e olhava através da janela.
O vigário conservou-se em silêncio durante algum tempo e, ao retomar a palavra, fê-lo num tom exageradamente calmo:
- Vi-a sentada no banco, de costas para nós, mas não vi mais ninguém. - Baixou a voz. - Estava a falar com o Danny? Já nos constou que várias pessoas falaram com
ele.
- Não. Claro que não - respondeu Nigh. - Tem razão. Não estava a falar com ninguém. Eu... hum... muito obrigada, padre Innis, ajudou- -me muito. Obrigada - repetiu
e, em seguida, desligou o telefone.
Jace virou-se. Os olhares de ambos cruzaram-se e Nigh não desviou o seu. Recordou cada momento dessa manhã, o facto de ter estado sentada no banco com aquele jovem
indivíduo bem-parecido, a falar dos seus antepassados - e talvez dos dela também. Mas nada da cena tinha sido real. "Quer então dizer que ele era um fantasma? Era
nisso que supostamente devia acreditar?"
Fixou Jace, viu que ele abria muito os olhos com uma expressão assustada e, no segundo seguinte, tudo escureceu à sua volta.
Quando acordou, Nigh estava deitada sobre a cama, enrolada na colcha; os reposteiros tinham sido corridos e sentiu uma toalha húmida na testa. Ao tentar sentar-se,
a porta da casa de banho abriu-se e Jace apareceu com outra toalha na mão.
- Não se mexa - disse e sentou-se ao lado dela, enquanto trocava as toalhas.
- Não quero isto! - protestou, afastando a toalha e tentando sentar- -se. No entanto, sentiu-se tonta e atordoada e caiu novamente para trás.
- Há quanto tempo estou aqui? - inquiriu, fitando Jace.
- Umas quatro horas - respondeu ele e pôs-lhe a mão no ombro para a impedir, quando ela voltou a tentar sentar-se. - O vigário chamou
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o médico local e ele deu-lhe um sedativo. Vai estar sob o seu efeito pelo menos até amanhã de manhã.
- Médico? Sedativo? - Começou a recordar-se vagamente do que lhe fora dito, antes de tudo escurecer. - Danny Longstreet - murmurou.
- Sentei-me a falar com um fantasma. - Tapou a cara com as mãos e pôs- -se a chorar.
Jace rodeou-a com os braços e acariciou-lhe as costas e o cabelo, enquanto ela chorava.
- Porque é que você não tem medo de fantasmas? - replicou, chorando contra o ombro dele. - E eu consigo lidar com bombas, mas não com fantasmas? O que querem eles
de si? De mim?
- Parece-se com Ann e é parente dela - explicou Jace num tom meigo. - Imagino que Danny quisesse estar perto de alguém ligado à mulher que amava.
- Mas nunca entraram em contacto comigo durante todo o tempo que passei em Margate - redarguiu Nigh. - Estive muitas, muitas vezes naquela casa e nunca vi um fantasma.
- Acho que sentiu a presença de Ann. Acho que ela tomou conta de si, zelou por si.
As palavras dele e a verdade que continham levou-a a chorar ainda mais por um momento e, em seguida, o choro começou a diminuir. Jace estendeu-lhe um punhado de
lenços de papel que tirou da caixa junto à cama.
- Querem que façamos algo por eles? Que investiguemos algo? - quis saber Nigh, assoando-se. - Porque nos aparecem?
- E porque nos dão informações? - contrapôs Jace. - Ajeitou-lhe as costas nas almofadas, mas manteve-se sentado ao lado dela, na cama. - Parece-lhe estranho que
estejamos juntos? Quero dizer, eu sou o dono de Priory House e você uma descendente de Ann Stuart. E agora estamos juntos e ambos vimos fantasmas.
- Pelo menos, você sonhou com eles - disse Nigh. - Portanto, pode ficar no seu perfeito juízo. No meu caso, falei com um morto em plena luz do dia.
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- O que sabemos sobre fantasmas? - perguntou Jace. - Como podemos descobrir mais?
- Não sabemos nada, porque os fantasmas não existem - respondeu Nigh, voltando a assoar-se. - Assisto a esses talk-shows na televisão e as pessoas apenas têm sensações,
sentem fantasmas. Se vêem algum, é somente uma luz. Não se sentam num banco a conversar com eles. Viu-me ali, a falar com ninguém. Deve ter achado que eu enlouquecera.
- Tinha uma ideia do que se estava a passar. Era uma situação de déjà-vu. Apenas me preocupava que acontecesse qualquer coisa má.
- Ou seja, como Ann lhe fez, quase acabando consigo?
- Exacto.
- Acho que Danny podia ter-me levado no seu cavalo. - Voltou a tapar a cara com as mãos e depois ergueu os olhos. - Esta vila devia estar assinalada com tabuletas
de zona perigosa. - "Cuidado! Pode ser abordado por um fantasma em busca do seu amor perdido. Nesse caso, consulte o médico."
- Em Margate, escreveu um falso artigo num pequeno jornal local e fomos invadidos por pessoas ansiosas por participar - observou Jace com uma risada. - Imagine o
que seria se contasse a um... desculpe... jornalista que estivera sentada num banco e conversara demoradamente com alguém que não se encontrava presente.
- Nem sequer quero imaginar - reagiu ela. - A propósito, obrigada por não me ter deixado escapar tudo aquilo... de que Danny e eu faláramos.
- Não tem nada que agradecer. Não me parece que os habitantes daqui queiram mais visões de fantasmas espalhadas por aí. Aparentemente, foram tantas as pessoas que
viram Danny, que o médico de clínica geral local é chamado com frequência.
- E tem sempre barbitúricos à mão. Assemelha-se a guardar antídoto contra o veneno de mordidelas de serpente num herpetário.
- Acho que está no seu juízo, uma vez que recuperou o sentido de humor - sorriu Jace. - Passei algum tempo com o médico, com o vigário e...
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- Quem mais é que sabe? - interrompeu-o. - Telefonou ao meu edi- tor, em Londres? Passa na CNN que uma correspondente de guerra desmaiou ante a visão de um elegante
fantasma numa vila inglesa?
- Não me disse que ele era elegante - replicou Jace, que se levantou e foi colocar-se aos pés da cama, sorrindo ao vê-la começar a defender-se. - Recebi ordens do
médico para lhe dar o que quiser comer para jantar e para a deixar falar sobre o que viu, dependendo da sua vontade.
- O que quer que seja para me impedir de enlouquecer, é isso? - retorquiu, com um olhar perscrutador. - Parece-me que reagi de uma maneira normal, depois de ter
visto um fantasma.
- Se desmaiar é normal, espero nunca estar por perto de outra pessoa que veja um - comentou ele.
- É esse exactamente o meu ponto de vista - redarguiu Nigh, enquanto ele lhe enchia um copo com água. - Sou normal. Reagi de uma forma histérica e perdi os sentidos.
Mas você não. Viu um fantasma e não se assustou. Porquê?
Jace estendeu-lhe o copo com água, mas ao ver que a mão dela tremia, sentou-se ao seu lado e levou-lho aos lábios. Quando acabou de beber, Nigh repetiu a pergunta:
- Porquê?
Jace dirigiu-se à janela e correu um pouco o reposteiro. Lá fora, estava escuro. Virou-se para ela.
- Acho que talvez eu esteja mais próximo da morte - disse num tom calmo.
- Não está doente, pois não? - quis saber Nigh, arregalando os olhos.
- É esse o seu grande segredo? - Os olhos voltaram a encher-se-lhe de lágrimas.
- Não - tranquilizou-a, sorrindo. - Não estou doente, mas obrigado pela sua preocupação. - Fez uma pausa momentânea, como se medisse as palavras seguintes. - Alguém
que eu amava muito morreu e desde essa altura que não tenho muito prazer em viver. Talvez esses espíritos sintam isso.
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Nigh pestanejou.
- Quer contactar a pessoa que morreu, não quer? - perguntou, em voz baixa. - Por isso tornou o quarto parecido com o de Ann. Desejava, como disse, atraí-la por desejar
fazer-lhe perguntas. É isso?
- É - respondeu, sorrindo de uma maneira que levou Nigh a pensar que se sentia aliviado por lhe ter contado tanto.
- Parece-me que espera demasiado - concluiu, sentindo a sua faceta de jornalista de investigação a vir à superfície. - Quando encontro pessoas noutros países, perguntam-me
sempre se conheço este ou aquele em Inglaterra. Dizem: "Uma vez apresentaram-me um inglês. Talvez o conheça."
- Onde pretende chegar?
- Será que todos os fantasmas deste planeta se conhecem uns aos outros? Conhecem todos os que morreram?
- Não sei - respondeu Jace, deixando antever irritação na voz. - Não sei mais sobre o assunto do que qualquer outra pessoa. Apenas sei que não posso magoar um fantasma.
Quem me dera poder apaixonar-me por Ann Stuart, casar com ela, deitar-me com ela, ter
filhos dela. Quem me dera poder encher aquela casa enorme de pequenas crianças
fantasmas que vivessem para sempre e nunca morressem.
Passado o impacto da raiva, Jace sentou-se na beira da cama, emocionalmente esgotado. Nigh afastou as cobertas, aproximou-se dele e rodeou-lhe o corpo com os braços,
encostando a cabeça no seu ombro.
- Lamento o que possa ter acontecido - disse. - Lamento verdadeira e profundamente.
Jace deu-lhe uma pequena palmada na mão. - Acho melhor ir-me embora - decidiu. - Desculpe a minha explosão. Há sanduíches na mesa e Mrs. Fenney prometeu que viriam
trazer-lhe um bule de chá dentro de meia-hora.
- E você? - perguntou Nigh.
- Fico bem - respondeu, levantando-se. - Talvez vá comer algo à vila. Não sei.
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- Vai à igreja, não é verdade? - replicou ela. - Vai sentar-se naquele banco e pedir a Danny Longstreet que lhe apareça.
- Eu... bom... - gaguejou, enquanto se dirigia à porta. - Acho que ficará bem. O médico disse que ia sentir-se um pouco fraca durante algum tempo, mas recuperaria.
Depois de uma noite de sono descansada, talvez tudo isto lhe pareça um sonho. Talvez não se recorde de muito. Boa-noite - despediu-se e abandonou o quarto.
Mal ele saiu, o quarto pareceu enorme, muito escuro e muito vazio. Se Jace se fora embora, e se Mrs. Fenney estava no extremo oposto da casa e não havia mais hóspedes,
ela estava sozinha. Custou-lhe algum esforço a levantar-se da cama. Sentia as pernas bambas e fracas, mas conseguiu ir à casa de banho e depois acender todas as
luzes que encontrou. Não queria ficar às escuras.
Comeu metade de uma sanduíche de galinha, bebeu uma garrafa de água, tomou um banho rápido e vestiu a camisa de noite nova. Mrs. Fenney não veio trazer-lhe o bule
de chá, o que levou Nigh a imaginar que ela estava tão receosa quanto ela.
Ainda era cedo quando Nigh voltou para a cama. Sentia-se tão cansada, como se tivesse escalado uma montanha. Desejava ir ao quarto de Jace para ver se ele tinha
regressado, mas não se achava com forças.
Meteu-se debaixo da roupa sem apagar as luzes e surgiu-lhe uma série de imagens. A falar com um homem que tinha morrido há mais de cem anos. "O que desejaria ele?",
volteava-lhe sem cessar na cabeça. "O que querem eles?" Por "eles", referia-se a Ann, Danny e Jace. "O que queria Jace? Despedir-se da pessoa que tanto amara? Falar-lhe
- e Nigh tinha a certeza de que era uma mulher - uma última vez?"
Sentia dificuldade em adormecer com todos estes pensamentos na cabeça e as luzes acesas. Avistou luzes de faróis através dos reposteiros e o coração deu-lhe um salto
no peito. As luzes intensas que se moviam através do quarto pareciam fantasmagóricas, etéreas. Fechou os olhos com força.
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Não sabia que horas eram quando acordou, mas as luzes estavam apagadas e o quarto apresentava-se mergulhado na escuridão. Sentiu medo, mas uma mão enorme e forte
acariciou-lhe a face.
- Chiu - pronunciou uma voz que aprendera a conhecer perfeitamente. - Está tudo bem. Acalme-se e descanse. - Sentiu o calor de um corpo robusto junto ao seu e uns
braços fortes a rodeá-la. Sorriu e voltou a adormecer.
Ao acordar, de manhã, os reposteiros estavam corridos e o Sol inundava o quarto. Recordou-se do que lhe acontecera durante a noite, mas as imagens não lhe pareciam
tão claras nem tão-pouco aterrorizadoras.
Tomou duche, lavou o cabelo, secou-o, vestiu-se, maquilhou-se e desceu rapidamente as escadas. Sentia-se capaz de comer um dos pequenos-almoços à base de fritos,
especialidade de Mrs. Fenney.
Jace estava sentado à mesa. Parecia fresco e barbeado, apesar das olheiras e do ar fatigado.
- Até parece que foi você a ver o fantasma - declarou alegremente, mas a piada caiu em cesto roto, pois Jace não sorriu.
- Acho que devia sair daqui hoje - disse ele por cima do rebordo da chávena. - Já viu mais que o suficiente.
Apesar de tudo por que passara, Nigh não queria ir-se embora.
- Ainda não encontrámos o retrato de Ann - contrapôs. - Danny disse que estava aqui.
Arregalou os olhos e fitou Jace com uma expressão de surpresa.
- Acabei de dizer que o Falecido Danny me indicou onde estava um retrato e menciono-o como se tivesse acabado de falar com ele ao telefone? - exclamou.
Jace estendeu a mão por cima da mesa e pegou num dossiê. No interior, havia uma fotografia de uma bonita e jovem mulher, usando um vestido preto com anquinha, à
moda de 1870. Tinha o cabelo afastado do rosto e apanhado em caracóis brilhantes atrás da nuca. Era uma mulher
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elegante e parecia alta. Como Jace dizia, se fosse viva actualmente, poderia ter sido modelo.
- Sinto-me lisonjeada por alguém pensar que me pareço com ela - observou Nigh.
- Hoje em dia achamo-la bonita, mas não acho que a considerassem assim na sua época. Era demasiado alta e magra. Sem esquecer que não tinha feições recatadas.
- Quer dizer que Ann parecia demasiado sensual.
- Sim - anuiu Jace, tirando-lhe a fotografia da mão.
Nigh dirigiu-se ao aparador e encheu uma tigela de cereais, adicionando leite. Voltou a sentar-se à mesa e serviu-se de uma chávena de chá.
- Onde arranjou essa fotografia? - perguntou.
- Mrs. Fenney tinha uma caixa cheia de fotografias antigas. Após a morte de Danny, a casa e o conteúdo foram vendidos, mas ninguém se incomodou a esvaziar o sótão,
portanto muitas coisas permaneceram na casa.
- O que aconteceu ao dinheiro da venda?
- Foi todo para pagar as dívidas de Danny - respondeu Jace, que remexia os ovos no prato. Não comera muito do abundante pequeno- -almoço à inglesa preparado por
Mrs. Fenney. - Penso que Danny sabia que ia morrer e portanto doou muito dinheiro a obras de caridade. Depois, viveu a crédito durante quatro anos. Na noite passada,
falei com um homem que é o historiador da vila e ele inteirou-me de que o dinheiro chegou à conta. A venda da casa e do mobiliário pagaram exactamente o que Danny
devia.
- Acha que ele se suicidou, não é verdade? - indagou, num tom suave.
- Penso que depois de Ann morrer, Danny não queria continuar vivo - respondeu Jace, fitando-a. - Sabia que ela morrera por culpa dele. Se não se tivesse embebedado
e engravidado uma rapariga da aldeia, ela não mataria Ann. Como pode alguém viver, sabendo que matou a pessoa que mais amava no mundo?
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As palavras soaram num tom tão sentido, que Nigh estendeu a mão para tocar na dele, mas Jace afastou-a.
- Nigh? - pronunciou.
- Sim? - Pressentia que ele tinha algo de grave a dizer-lhe e susteve a respiração.
- Tem sido uma grande ajuda para mim nestes últimos dias e uma grande companheira, mas, a partir de agora, preciso de trabalhar sozinho. Verifiquei que há um comboio
daqui para Margate. Só necessitará de fazer uma transferência. Poderá estar sã e salva na sua casa, esta tarde.
Ela não sabia se devia ficar irritada ou magoada com as suas palavras. A irritação levou a melhor.
- Assustei-me, como é normal, ao ter falado com um fantasma e, portanto, sou expulsa.
- Isso mesmo - respondeu ele, fitando-a bem nos olhos. - Não me serve de muito como assistente de pesquisa se tenho de chamar um médico porque desmaia, ou de a vigiar
a noite inteira. Desejava alguém que pudesse ajudar-me realmente com o que estou a fazer, mas é demasiado cobarde para ter utilidade. Quero que volte a Margate e
que se mantenha afastada de Priory House. Nada de continuar a meter o nariz na minha casa. Vou mandar selar a entrada do túnel. Fiz-me entender?
- Perfeitamente - respondeu Nigh, levantando-se e saindo da sala de jantar. Dez minutos depois, tinha feito as malas.
Mrs. Fenney encontrava-se lá em baixo e pronta a levá-la à estação de caminho-de-ferro.
- Lamento muito - disse ela. - Há anos que o nosso fantasma da vila não aparecia a ninguém e, portanto, achámos que talvez tivesse alcançado a paz eterna, mas o
vigário contou que passou algum tempo com ele.
Nigh só conseguiu assentir com a cabeça. Estava demasiado furiosa para ter qualquer outra reacção.
Percorreram em silêncio os seis quilómetros até à estação e, ao chegarem, Mrs. Fenney entregou-lhe os bilhetes. Eram de primeira classe.
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- Mr. Monrgomery disse-me que lhe perguntasse se precisava de algo e lhe desse isto - Tratava-se de um envelope que ela sabia conter dinheiro.
- Não quero... - começou, planeando recusar o dinheiro. Comeria quando chegasse a casa.
- Não esteja irritada com ele, minha querida - disse Mrs. Fenney, agarrando na mão de Nigh. - Tem andado muito preocupado consigo. Na noite passada, regressou tarde
e contaram-me que falou a seu respeito com o médico, com o vigário e que visitou o nosso historiador local. Quando ele voltou, tive de destrancar a porta e sei,
por mero acaso, que ele passou a noite no seu quarto. Cuidou de si. Deve amá-la muito.
- Não - ripostou Nigh. - Ele... - Interrompeu-se. Não queria falar a esta mulher dos seus problemas pessoais. - Obrigada - agradeceu.
- Obrigada por tudo. Tem uma casa encantadora e a comida era óptima.
- Ainda bem que usufruiu uma parte da sua visita - replicou ela, erguendo a voz, uma vez que o comboio estava a chegar à estação.
Nigh pôs a mochila ao ombro e dirigiu-se ao comboio.
- Tome conta dele, sim? E veja se mantém essas malditas empadas bem longe.
- Nunca fizeram mal ao meu marido - garantiu Mrs. Fenney, sorrindo.
- Ah! Mas onde está ele agora? - inquiriu Nigh ao subir para a plataforma.
- A trabalhar num poço de petróleo, no Alasca - gritou Mrs. Fenney, quando o comboio se pôs em movimento.
Nigh riu-se, acenou e depois foi à procura do seu lugar.
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Nigh convenceu o filho do dono da mercearia a dar-lhe boleia da estação até sua casa. Ele não se calou um minuto durante toda a viagem.
- Garanto-lhe, Nigh, que é a coisa mais excitante que alguma vez aconteceu na nossa vila. Sei que as pessoas acham que é Priory House e todos os fantasmas que essa
gente vê, mas por mim aposto tudo em si. Primeiro, fugiu no dia seguinte ao funeral da sua mãe e a segunda vez que a vimos estava na televisão a ler as notícias
e a seguir esteve no... Onde foi?
- Afeganistão.
- Isso mesmo. Sabia que era num desses sítios no estrangeiro. Sabe como é que alguns lugares são mais estrangeiros que outros? A Austrália é estrangeira, mas não
tanto assim. Sabe o que quero dizer? Talvez seja a língua. E os Estados Unidos são estrangeiros, mas não propriamente, embora o velho Harris do talho afirme que
país mais estrangeiro que a América não há. Mas, de qualquer maneira, acho que todos concordariam que o Afeganistão é, de todos estes países, o mais estrangeiro.
Bom. De qualquer maneira está aqui agora, esteve lá e toda a gente perdeu a conta aos lugares que visitou. Depois, aparece este americano rico e a primeira notícia
que nos chega é a de que fugiram juntos. "Mas como é possível?", perguntam todos, uma vez que escreveu aquele horrível artigo a respeito dele no jornal. Sem ofensa,
Nigh, mas se a minha namorada escrevesse uma coisa semelhante a meu respeito, deixaria de ser minha namorada, percebe-me? Contudo, talvez Harris tenha razão e os
Americanos sejam os mais diferentes, pois a verdade é que vocês os dois fugiram sabe-se lá para onde, como dois vulgares apaixonados. Mrs. B afirmou que os dois
passaram um dia inteiro naquele quarto assombrado e nem sequer saíram para almoçar. Depois, fugiram juntos e viemos a saber que você inventou tudo, que não haverá
qualquer indústria de fantasmas na vila e olhe que bem precisávamos de um negócio por estas bandas, se bem me entende. Portanto, foi com aquele americano para onde,
se me permite a pergunta?
Chegaram finalmente a casa dela. Nigh abriu a porta do carro, agradeceu a boleia e saiu.
- Se se cansar de estrangeiros, sabe onde vivo - gritou-lhe ele através da janela aberta.
- Sim, percebo - respondeu Nigh com um aceno de cabeça, após o que se apressou a entrar em casa, fechando a porta atrás de si.
Parou uns segundos a escutar o silêncio, foi até à cozinha e pôs ao lume a chaleira. Esta ainda nem sequer começara a levantar fervura quando ouviu a voz da sua
amiga Kelly. Nesse momento, a única coisa que desejava era ficar sozinha para organizar as ideias.
Nigh conseguiu mostrar um sorriso quando Kelly entrou na cozinha.
- Kelly, minha querida! Que bom ver-te! - saudou.
- Não me venhas com tretas! - ripostou Kelly, atirando a mala para cima da mesa da cozinha. - Apetece-me torcer-te o pescoço. Toda a gente me tem perguntado o que
andas a tramar e vi-me forçada a responder
- com verdade, assinalo - que não faço ideia. Quando estiveste no
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Afeganistão, mandaste-me um vídeo e uma carta a contar tudo. Quando estiveste na Arábia Saudita, mandaste-me doze postais. Telefonaste-me de sítios que nem consegui
encontrar no mapa. Contudo, agora regressas e o que acontece? Desapareces. E não só desapareces, como o fazes com um homem de quem ninguém sabe nada. Onde diabo
estiveste?
A resposta à pergunta de Kelly era tão longa e complicada que Nigh não sabia por onde começar - nem mesmo se o desejava. Manteve-se silenciosa enquanto enchia o
bule, tirou umas bolachas digestivas do armário e colocou-as num prato.
Enquanto Kelly servia o chá e adicionava o leite, não tirou os olhos da amiga. Quando esta retomou a palavra, fê-lo num tom mais calmo:
- Parece que estiveste no Inferno e voltaste.
- No Inferno estive, mas garanto-te que não voltei.
- Portanto, onde está ele?
- Numa cidadezinha em Hampshire - respondeu Nigh com um encolher de ombros.
- Passaram a noite juntos? O que aconteceu? Discutiram e romperam? - Pousou a mão por cima da de Nigh. - Desculpa, mas talvez seja melhor. Talvez...
- Não consegues pensar um pouco acima da cintura? - ripostou Nigh. - Em primeiro lugar, não fugi com ele. Se bem te lembras, toda a vila estava a enlouquecer por
pensarem que ia abrir um Centro Fantasma e todos queriam entrar.
- Mas foi o que escreveste, não foi?
- Na altura pensava que ele o faria. Foi o que me disseram.
- Quem te disse tal coisa?
- Isso agora não interessa - respondeu Nigh, abanando a cabeça. - Passou tanto tempo que não me consigo lembrar.
- Foi há três dias - redarguiu Kelly.
- Três dias podem representar uma vida.
Kelly bebeu o chá e mordiscou uma bolacha, observando a amiga.
- Conta-me tudo - pediu.
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- Não - recusou Nigh. - Impossível. - Levantou a mão no momento em que Kelly ia a abrir a boca. - Não que não tenha vontade, mas porque ignoro o que te contar.
- Queres a todo o custo que eu acredite que passaste estes dias com ele e não lhe arrancaste todos os seus segredos, inclusivamente o paradeiro da caixa secreta
que ele tinha em criança?
- Não sei mais sobre ele agora do que antes de o conhecer. Oh, sei onde cresceu e os nomes de alguns dos seus primos. Sei montes de insignificâncias, mas não o que
o motiva. Nem mesmo sei o que o levou a comprar Priory House.
- Foi por causa dos fantasmas. Mrs. B. contou a toda a gente que ele transformou o quarto assombrado de forma a parecer-se com um cenário vitoriano. Toda a gente
afirma que os Americanos não conhecem nada de História, pois não a tiveram, caso contrário ele saberia que Lady Grace não viveu na era vitoriana. Alguém devia ajudá-lo
a ordenar os períodos históricos.
- Cala-te! - pediu Nigh, tapando os ouvidos com as mãos. - Estou farta de coscuvilhices! Estou farta de ver as pessoas inventarem histórias sobre algo que desconhecem.
Kelly não teceu qualquer comentário e, quando Nigh a fitou, denotava uma expressão grave.
- Tens razão - concordou Kelly. - Tornei-me uma delas. Desci tão baixo que comecei a dar ouvidos àquela megera, Mrs. Browne. Desculpa. Se falares, escutarei, e o
que me disseres não passará desta sala. Se quiseres, até espalharei falsos boatos para que as pessoas não saibam a verdade. Pensando bem, acho que até me daria um
certo gozo.
- És uma boa amiga e quero que continues a sê-lo - replicou Nigh, agarrando-lhe na mão.
- Isso significa que não tencionas contar-me qualquer coisa.
- Exacto - anuiu Nigh. - Contudo, preciso que me dês algumas informações.
- Sob uma condição.
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- Qual?
- Arranjas-me um autógrafo de George Clooney. E tem de ser dirigido a Kelly. Não quero apenas uma assinatura anónima.
- Estás doida? Não entrevisto celebridades.
- Vi na televisão que George Clooney e o pai foram a um desses países onde tu costumas ir e...
- Okay. Prometo que se estiver em qualquer país devastado pela guerra e esbarrar com Mr. Clooney filho e Mr. Clooney pai, pedirei a George que escreva um autógrafo
destinado a Kelly. Satisfeita?
- Completamente. Então, o que queres saber?
- Tudo o que sabes e conseguires descobrir sobre Clive Sefton.
- Mais nada? - surpreendeu-se Kelly com uma expressão desiludida.
- O que me interessa saber é o que fazer para o levar a revelar-me segredos. Farei tudo excepto ir para a cama com ele. Até cozinhar.
- Tenho a certeza de que isso o levaria a falar - ironizou Kelly.
- Sabes a que me refiro - disse Nigh e, em seguida, riu-se.
- A quê?
- O filho do dono do lugar deu-me boleia da estação de caminho- -de-ferro.
- Oh! - exclamou Kelly. - Esse rapaz não se cala, pois não?
- A última vez que o vi era uma criança.
- Estiveste longe muito tempo.
- Sinto que estive aqui mais tempo do que aquele em que me afastei. - Nigh passou a mão pelo rosto. - Mr. Monrgomery tem tanto medo de alguma coisa ou de alguém
por estes lados, que não consigo arrancar- -lhe uma palavra. Preciso de saber do que se trata.
- São fantasmas - afirmou Kelly. - Toda a gente no seu perfeito juízo tem medo de fantasmas. Se visse algum, eu...
- Desmaiarias e apareceria um médico que te daria um sedativo para te pôr a dormir durante vinte e quatro horas.
- Diz-me que não estás a falar por experiência.
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- Não te vou dizer isso - respondeu Nigh. - Agora, importas-te de descobrir o que conseguires? Eu poderia fazer perguntas, mas...
- A tua pessoa causaria um motim. As pessoas estão divididas entre a fúria e a satisfação por Margate não se tornar famosa devido à sua assaltante de estradas fantasma.
O que é assim tão divertido?
- É que não tenho a certeza se alguma vez existiu uma assaltante de estradas fantasma. Contudo, tenho a certeza absoluta de que há um casal de fantasmas vitorianos
à solta por aí.
- Nesse caso, esse teu americano não é assim tão inculto.
- Não - respondeu Nigh, sorrindo. - Não é inculto, nem estúpido e não quer transformar Priory House num local para turistas. - Ergueu a cabeça. - Kelly? Os MacFarland
ainda têm aquele cãozinho horroroso que mija nas pessoas?
- Sim, só que o mantêm preso no jardim das traseiras.
- Serias capaz de fazer uma coisa horrível por mim?
- Com todo o prazer.
- Lewis e Ray continuam a almoçar juntos todos os dias no exterior do quartel de bombeiros?
- Que eu saiba, não mudaram de hábitos em dez anos. - Kelly e Nigh tinham sido as melhores amigas desde os três anos de idade e conseguiam ler frequentemente os
pensamentos uma da outra. - Espera aí! Não me digas que foram eles os pulhas que contaram as mentiras sobre o americano. E acreditaste neles?
Nigh encolheu os ombros, atrapalhada.
- Muito bem. Encarrego-me deles. Tenho a certeza de que os MacFarland vão adorar emprestar-me o cão. Palpita-me que lhes contarei o motivo. Um camião cheio de londrinos
passou por cima de um dos canteiros de flores de Mrs. MacFarland e, portanto, ela terá o maior prazer em ajudar.
- Parece-me bem. Agora vai e deita-te ao trabalho. Tenho de tratar de uns assuntos. Telefona-me assim que descobrires alguma coisa.
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- Esta noite vou deixar os miúdos com James e aparecerei com tudo. Trago o jantar.
- Perfeito - anuiu Nigh, ao mesmo tempo que empurrava a amiga na direcção da porta.
A casa voltou a ficar silenciosa e ela planeava passar o resto do dia a escrever tudo o que se conseguia lembrar sobre Jace Monrgomery. Ele não lhe contara muita
coisa, mas talvez fosse capaz de juntar algumas peças do quebra-cabeças. No comboio, tomara consciência de que o único motivo para a mandar embora, era por ter medo
dela. Dado saber que ele não receava os dois fantasmas que se haviam mantido apaixonados um pelo outro durante mais de um século, existia algo mais e Nigh tencionava
descobrir de que se tratava.
211
16
Kelly telefonou às sete da tarde e disse que não conseguia escapar-se, mas que Emma Carew sabia "tudo".
- O que significa isso? - perguntou Nigh.
- Não sei. George contou que, uma noite, Clive e o teu Monrgo- mery se mantiveram de cabeças muito juntas durante quase uma hora e conversaram muito seriamente sobre
algo.
- O que os levou a juntarem-se? - indagou Nigh.
- George disse que não se recordava, mas sabes como ele é. Tudo o que não seja política, não lhe interessa. Contou que Emma e Clive tiveram uma discussão qualquer
e que, em seguida, Monrgomery arrastou Clive para um canto. George mandou-me falar com a Emma.
- Espero que não lhes tenhas dito que era eu quem queria saber.
- Claro que não! Disse-lhes que não te tinha visto. Desculpa, mas a minha vida é aqui e neste momento o teu nome anda pelas ruas da amargura.
Nigh desligou, interrogando-se sobre o que a levara a abandonar a paz relativa que se vivia no Médio Oriente.
Fizera uma lista de tudo o que sabia sobre as actividades de Jace Monrgomery desde que ele chegara, e tentava descobrir o verdadeiro motivo que o levara a comprar
Priory House. Tinha a certeza de duas coisas. Uma era que ele não comprara a casa por gostar dela e fazer tenções de lá viver. Outra era que não se encontrava ali
por causa dos fantasmas. Aos seus olhos, os fantasmas representavam um meio para atingir algo, algo que o fizera afirmar que estava "perto da morte".
Fez um croqui, o mais completo que conseguiu, de onde ele estivera e quem conhecera. Jace tinha-lhe contado algumas coisas e ela ouvira outras. Disseram-lhe que
ele havia conhecido "as três", Mrs. Browne, Mrs. Wheeler e Mrs. Parsons. Durante a fase de crescimento, as crianças da vila tinham dedicado o seu tempo e imaginação
a acrescentar adjectivos aos nomes. Terríveis Três, Horríveis Três, e por aí fora. Kelly subiu ao pódio quando lhes chamou as Três Górgonas.
Independentemente dos nomes, as mulheres achavam que eram as governantas de Margate. Conheciam-se desde crianças e sempre haviam sido amigas íntimas, apostadas em
contarem tudo o que havia a saber sobre os outros - embora mantendo as suas vidas pessoais em segredo. Não que houvesse muita coisa que se quisesse conhecer a seu
respeito, mas o que havia era privado. O marido de Mrs. Browne tinha sido morto numa guerra qualquer - alguns diziam que fora na Primeira Guerra Mundial - e ela
regressara com um bebé e a precisar de emprego. Desde essa altura que se mantinha em Priory House. A filha fugira da pequena cidade aos dezoito anos e nunca mais
ninguém a vira ou ouvira falar dela.
O marido de Mrs. Parsons só morrera no ano anterior e tinha fama de ser o maior pau-mandado ao cimo da Terra. Ela costumava controlá- -lo na tabacaria, como se se
tratasse de um escravo. Mrs. Wheeler nascera em Margate, tal como Agnes Harkens. Fora-se embora com os pais aos dezasseis anos e regressara aos vinte e três com
o apelido de Mrs. Wheeler. Não tinha pais, marido, ou filhos, mas possuía bastante dinheiro e, por conseguinte, comprara uma casa na rua principal e abrira o que
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dava pelo nome de "biblioteca histórica". Era tão temível aos vinte e três anos como agora e ninguém se atrevera a perguntar-lhe o que havia acontecido aos pais
ou ao marido.
As três mulheres tinham reatado a sua amizade de infância e reinado em Margate durante meio século. Não havia nada que se passasse que não contassem umas às outras
e a toda a cidade.
Nigh descobriu que Jace fora submetido pelas três ao Novo Tratamento da Casa. Tinha comprado uma série de caros blocos de apontamentos e canetas a Mrs. Parsons e
Mrs. Wheeler emprestara-lhe a caixa de Priory House.
Ao consultar a lista, Nigh pensou que talvez Jace tivesse visto algo de perturbador na biblioteca.
Meteu-se na cama, bocejando. Manteve-se acordada durante algum tempo, receosa de voltar a ver Danny Longstreet, mas estava tudo calmo e lá acabou por fechar os olhos.
Sonhou com Jace, viu-o às gargalhadas, enquanto arrancava pés de vinha no terraço de pedra. Aparentemente via- -o a rir por todo o lado.
Acordou às oito da manhã e o Sol despontara. Tinha recuperado a energia e estava mais determinada do que nunca a descobrir o que Jace Mont- gomery lhe ocultava.
Conduziu o Mini pelas ruas secundárias de Margate, dado não querer usar a rua principal, e estacionou o carro por trás da biblioteca. Sabia que esta só abria às
nove, mas sabia igualmente que Mrs. Wheeler estava lá a partir das sete. Bateu na porta dos fundos.
- Ainda não está aberta - respondeu Mrs. Wheeler no seu tom imperioso ao abrir a porta, disposta a dizer à pessoa o que pensava dela. - Oh, é você!
- Sim, sou eu. Importa-se de que faça uma pequena investigação particular? Se não a incomodar, claro. - A subserviência funcionava frequentemente com Mrs. Wheeler.
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- De acordo - anuiu a outra entre dentes, mas Nigh verificou que ficara satisfeita. No fim de contas, Nigh era a celebridade local. - Não tenho muita coisa sobre
o Médio Oriente, se é o que procura. Mas tenho alguma sobre a Cornualha - acrescentou, baixando a voz.
Nigh ficou surpreendida e, em seguida, replicou num tom cúmplice:
- Andam novamente a fazer contrabando por lá?
- Não me cabe responder - reagiu Mrs. Wheeler, mas dando a entender a Nigh que sabia algo de que mais ninguém estava a par.
- Foi onde viveu todos estes anos enquanto esteve ausente de Mar- gate? - questionou Nigh num tom inocente, ao mesmo tempo que tirava o bloco de apontamentos e a
caneta da mala, como se fosse registar o que quer que a mulher lhe revelasse.
Tal como esperava, Mrs. Wheeler franqueou-lhe a entrada. - Em que posso ajudá-la? - perguntou friamente.
- Ando a fazer pesquisa sobre o nosso mais novo residente, Mr. Monrgomery.
- Ah! - exclamou Mrs. Wheeler, começando a ganhar embalo.
- É um homem bizarro. Não que eu seja de intrigas, mas Mrs. Browne conta-me as coisas mais estranhas a seu respeito. - Observou Nigh de alto a baixo. - Contudo,
não devo estar a dar-lhe uma novidade, já que passou bastante tempo com ele.
- Uma verdadeira repórter tem de fazer sacrifícios - observou Nigh.
- Ah, sim. Estou a perceber.
Nigh reprimiu um sorriso. Estava ciente de que mais uma coscuvi- lhice não tardaria a espalhar-se. Iria constar que Nigh apenas tentara arrancar uma história a Jace.
- O que me interessa é se Mr. Monrgomery procurou mais alguma coisa além de informação sobre Priory House quando esteve aqui na semana passada.
- Na verdade, sim - anuiu Mrs. Wheeler. - Como sabe perfeitamente, há anos que esse tal Hatch recusou participar com algo de Priory House no concurso anual de jardinagem.
Mrs. Browne e eu, bem como
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jyjrs. Parsons, considerámos uma atitude irresponsável da sua parte. Mr. Monrgomery quer, pelos vistos, mudar esse estado de coisas.
- Mudar o concurso de jardinagem?
- Fazer, pelo menos, com que Priory House participe. Sei como toda a cidade está cansada de ouvir dizer que as plantas de Hatch ganhariam às restantes. Acho que
seria uma competição justa e...
- Posso ver o artigo que Mr. Monrgomery consultou? - perguntou Nigh, interrompendo o que decerto seria uma tirada de horas. Ignorava o que Jace estivera a ler, mas
apostaria que não se relacionava com o concurso de jardinagem local.
- Aqui está - disse Mrs. Wheeler, estendendo a Nigh o rolo de microfilme.
Havia muita coisa num rolo de filme e, uma vez que Nigh ignorava o que procurava, levou quase duas horas a descobri-lo. Tratava-se de um pequeno artigo que ocupava
pouco espaço comparativamente às páginas de notícias sobre o iminente concurso de jardinagem, que era o mais significativo acontecimento do ano em Margate.
Tratava-se do registo de um suicídio de uma bonita jovem americana. Caso fosse o suicídio de uma habitante local, teria honras de primeira página. Contudo, os habitantes
de Margate não gostavam de pensar que uma estranha tivesse vindo até à sua pequena cidade e a usasse para fins desagradáveis. Tinha havido uma época em que Margate
não era tão limpa e "pura" como agora e as pessoas queriam esquecer esses tempos. O velho pub, com as suas personagens detestáveis, extinguira-se. Os Carews tinham
comprado o pub, transformando-o num local para famílias. Todos se sentiam embaraçados por algo tão horrível ter sucedido na pequena cidade.
Nigh carregou nos botões para imprimir cópias das duas consultas sobre o suicídio, em seguida pagou a Mrs. Wheeler e abandonou a biblioteca. Prometera falar com
Mr. Monrgomery, na tentativa de forçar Hatch a participar no concurso.
- Ele consegue convencer Hatch a fazer coisas, quase tão bem como consegue fazer o mesmo com Mrs. Browne - murmurou Nigh, enquanto
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se dirigia ao carro, onde deixou ficar os artigos. Depois, foi a pé até ao pub.
Como esperava, Emma Carew estava sozinha a preparar-se para servir o almoço, às onze. Ao avistar Nigh, destrancou a porta e colocou a chaleira ao lume.
- Sei que não se trata de uma visita social, portanto em que posso ser útil? - indagou Emma.
- Sou assim tão transparente?
- Toda a cidade está em polvorosa sobre a sua fuga com aquele deslumbrante Monrgomery. Como é ele na cama? Uma maravilha, acertei?
- Não fui para a cama com ele.
- Mas todos disseram... - começou Emma, fitando Nigh com uma expressão incrédula.
- O que sabe essa gente? Ele anda a fazer pesquisas e tenho-o ajudado. É tudo trabalho.
- Que pena. E fico desapontada. Sendo você uma rapariga vivida da cidade, julguei que... - Interrompeu-se e, em seguida, encolheu os ombros.
- Por vezes, deixo-me levar pela imaginação. Então, em que posso ajudá- -la?
- Fica entre nós? - perguntou Nigh.
- Claro. Gosto de ouvir as coscuvilhices, mas não tenho por hábito espalhá-las. Recuso-me a desapontar todas as mulheres daqui e contar- -lhes que não foi para a
cama com aquele bonitão. Elas estavam desejosas de ouvir pormenores.
- É bondoso da sua parte guardar o meu segredo - sorriu Nigh.
- Constou-me que Mr. Monrgomery e Clive Sefton passaram algum tempo juntos a conversar aqui mesmo. Sabe sobre o quê?
Emma olhou por cima do ombro para verificar se alguém se encontrava atrás delas e depois inclinou-se para Nigh, baixando a voz.
- Não posso deixar que o George me ouça, porque ficaria furioso. Ameaçou cortar a entrada a Clive se ele voltasse a mencionar o incidente. Bom, não propriamente
o incidente, mas a morte.
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- O suicídio - assinalou Nigh.
- Exacto. Clive acha que se tratou de um crime, mas é impossível. Estávamos aqui no pub, a trabalhar, e a mulher tomou comprimidos para dormir e matou-se. Contei
ao Clive que ela estivera a chorar e me pareceu infeliz. Além disso, a mãe e a irmã apareceram aqui e mostraram-nos uns papéis sobre a jovem. Ela tinha muitos problemas
psicológicos.
- Nesse caso, o que leva Clive a pensar que ela não se suicidou?
- Duas coisas - respondeu Emma, com uma expressão triste, enquanto servia duas chávenas de chá. - Primeiro, que o cadáver tinha um ar feliz e, segundo, tropeçou
nas escadas.
- Tropeçou nas escadas?
Emma colocou Nigh a par da teoria de Clive de que as escadas tinham sido mudadas e, portanto, sabia que a jovem já estivera antes no pub.
- E se realmente tivesse estado? - replicou Nigh. - Talvez se sentisse infeliz, quisesse morrer e este fosse um local familiar.
- Foi exactamente o que eu lhe disse! - exclamou Emma.
- Mas Clive não acreditou em si.
- É teimoso como uma mula. E penso que detestou profundamente a mãe e a irmã da rapariga, que vieram dos Estados Unidos. Não lhe agradou que aparecessem aqui com
papéis comprovativos de que a rapariga estava mentalmente perturbada, mas, pela minha parte, achei que foi inteligente da parte delas. Dissipou quaisquer dúvidas
que pudéssemos ter sobre porque o fez.
- Os jornais mencionaram que ela discutiu com o namorado. Chegou a conhecê-lo?
- Ele nunca apareceu. Ouvi dizer que estava em Londres. Não devia importar-se muito com ela, pois não? Estava em Londres e não se deu ao trabalho de vir a Margate,
mas a mãe e a irmã dela apanharam o avião dos Estados Unidos. Isso serviu para me mostrar como ele era. Ela devia ter-lhe posto os comprimidos na bebida dele, em
vez de os tomar.
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- Porquê este súbito interesse nisto? - indagou Emma, bebendo um pequeno gole de chá. - Clive nunca deixou de falar no assunto e, depois, este tal Monrgomery aparece
aqui e diz que quer escrever romances policiais ingleses e perguntou se tínhamos conhecimento de algum crime. Clive começa a falar do suicídio, vão os dois para
uma divisória e conversam durante uma hora. É verdade que Monrgomery quer escrever?
- Sim. Acho que sim - respondeu Nigh, pensando no suicídio e interrogando-se sobre o que mais podia descobrir a esse respeito.
- Ele devia escrever sobre a assaltante de estradas - prosseguiu Emma.
- Sabe que quando esse filme saiu foi o mais visto de toda a história de Inglaterra?
- Não, não sabia - declarou Nigh, desinteressada. Preocupava-a tanto Lady Grace quanto a Jace, o que se reduzia a zero.
- Então, como está ele?
- Quem? - redarguiu Nigh.
- Mr. Monrgomery. O homem que é o tópico de todas as conversas na cidade. Ele. O homem com quem passou uns dias, mas não conheceu na cama. Esse homem.
- Há dias que não o vejo.
- O filho do dono do lugar disse que lhe deu boleia da estação ontem, ao fim da tarde.
- Ele cresceu, não é verdade?
- Sobretudo a boca dele. Já percebi que não tenciona contar-me nada.
- Desculpe, Emma, mas tenho muita coisa em que pensar. Preciso de me ir embora.
- Se fosse a si, escondia-me em qualquer sítio. As pessoas estão um pouco zangadas consigo por causa dessa história do Centro Fantasma.
- Um grande erro da minha parte. Desculpe. Obrigada pelo chá.
Nigh saiu do pub e dirigiu-se ao parque de estacionamento que ficava
por trás da biblioteca. Permaneceu sentada no carro durante algum tempo,
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concentrada no bloco de apontamentos, passando os olhos pelo que tinha escrito. Releu as cópias que fizera dos artigos sobre o suicídio.
Não tinha a certeza nem possuía provas, mas sentia que Jace era o namorado mencionado no artigo. Seria essa a razão da sua tristeza, o facto de ter levado uma mulher
a suicidar-se? Ou tentara salvá-la e não conseguira? Tentara salvá-la, embora ela tivesse um historial de distúrbios mentais?
Nigh recostou a cabeça para trás e fechou os olhos. Lembrou-se de como Jace cuidara de si, após ela descobrir que estivera a falar com um fantasma. Cuidara dela
e sabia exactamente o que fazer. Nigh sabia que ele passara a noite com ela. Estava sob o efeito de sedativos, mas tinha a certeza de que não sonhara com a presença
dele ao seu lado.
Sendo Jace um homem tão zeloso, talvez tivesse tomado a seu cargo uma mulher mentalmente perturbada e tentado evitar que fizesse mal a si própria. Contudo, falhara
e, apesar de todas as suas precauções, ela suicidara-se.
Todavia, Clive não achava que ela se tivesse suicidado.
"Lê nas entrelinhas" ouviu a voz do editor a repetir-lhe centenas de vezes. "Lê o que eles não dizem."
Voltou a examinar os dois artigos retirados do jornal e leu-os uma vez mais. Emma fizera uma boa pergunta. Se o noivo estava em Londres, porque não lhe tinham telefonado?
Nigh sorriu ao aperceber-se de que não havia nada de errado aqui. Fora Ralph a escrever a história e, embora neste momento não passasse do editor de um jornal local,
antes de se reformar trabalhara toda a sua vida, em Edimburgo, num jornal importante. Sabia relatar factos.
"O namorado de Londres não fora contactado por não terem o seu nome, ou a sua morada", pensou Nigh. Tinham telefonado a quem constava do passaporte de Stacy Evans
para ser contactado numa emergência. Nigh imaginou Jace em Londres, à procura da noiva, doido de ansiedade, enquanto a mãe e a irmã dela apanhavam o avião, dos Estados
Unidos.
221
"Nesse caso, porque é que elas não telefonaram a Jace? Ele nunca fora visto em Margate, Clive não o conhecia e, portanto, ninguém o ligou a Miss Stacy Evans."
Ao reler os artigos, Nigh começou a ficar com uma imagem mais clara do que acontecera. Se sabia algo sobre Jace Monrgomery era que se tratava de alguém fácil de
abordar. Um homem que não temia fantasmas, nem as coisas extraordinárias que lhe haviam acontecido desde que chegara a Margate, não era pessoa para obrigar uma mulher
a casar com ele.
Nigh gostaria de ir a casa de Ralph e fazer-lhe perguntas, mas ele ensinara-lhe que quando se trata de jornalismo, não há
off the record. Se ela expressasse dúvidas
sobre um suicídio, era bem provável que Ralph publicasse a notícia no número seguinte do jornal. Pior ainda, Ralph concluiria provavelmente que havia uma ligação
entre o suicídio e o homem com quem todos em Margate achavam que ela tinha uma ligação amorosa.
- Quem me dera - pronunciou em voz alta, ao mesmo tempo que rodava a chave da ignição. Olhou pelo retrovisor para se certificar se havia alguém atrás dela e sentiu-se
gelar. De pé, na relva, do outro lado do passeio, estava Danny Longstreet. Sorria-lhe e ao observá-lo através do espelho, ele ergueu a mão e acenou-lhe. Tinha vestida
a roupa de montar, um traje que não mudara muito ao longo dos anos, mas agora ela via que era diferente, antiquado, fora de moda.
Virou-se rapidamente e olhou pelo vidro das traseiras. Não avistou nada. Não havia ninguém naquele local, apenas a relva, uma rede de arame farpado e a zona de pasto,
mais à frente.
Levou as mãos ao rosto e permaneceu sentada, por uns momentos. Danny Longstreet seguira-a até Margate. Iria segui-la até casa? Atormentá-la? Passaria a viver com
medo de avistar fantasmas para onde quer que se virasse?
Respirou fundo, depois abriu a porta do carro e saiu. Atravessou o parque de estacionamento até ao sítio relvado, onde avistara Danny.
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- Não estou para aturar isto! - pronunciou em voz alta. - Não sou Ann Stuart! Está a ouvir-me? Posso parecer-me com ela e ser sua prima distante, mas não sou ela.
Ann está em Priory House e sugiro-lhe que vá até lá, agora. Está a ouvir-me? Oh! - exclamou. - Bom-dia, Mrs. Ver- non. Parece estar um dia lindo.
A mulher passou rapidamente junto a Nigh.
- Ouviu-me e estou a falar a sério! - vincou ofegante e, em seguida, voltou a meter-se no carro.
Jace vagueou a maior parte do dia por Priory House. Depois de, no dia anterior, ter mandado Nigh de volta no comboio, dirigira-se à biblioteca local e tentara descobrir
algo mais sobre Danny Longstreet, mas não havia nada. Toda a gente a quem recorreu, lhe disse que Mrs. Fenney e Tolben Hall eram quem tinha tudo. Por fim, viu-se
obrigado a enfrentar a verdade: não havia muita coisa sobre Danny ou o seu pai.
Passou mais uma noite em Tolben Hall, mas partiu cedo na manhã seguinte, sem tomar o pequeno-almoço de fritos, à moda de Mrs. Fenney. Parou num restaurante à beira
da estrada e comeu uma tigela de cereais e apenas metade de uma tosta. Quando a bonita empregada de mesa lhe perguntou se queria mais alguma coisa, esteve prestes
a pedir que fritasse o pão, mas não o fez.
Conduziu de volta a Margate, chegando precisamente ao nascer do Sol, e a visão da feia e velha casa deprimiu-o. Nunca gostara dela, nem nunca a quisera.
Conseguiu iludir Mrs. Browne e chegar ao quarto de paredes estampadas sem que o vissem. Contudo, ao olhar à sua volta, detestou subitamente a forma como reproduzia
o quarto de Ann. Detestou o papel de parede que lhe custara tanto dinheiro, detestou o mobiliário vitoriano. A verdade é que nesse momento parecia detestar tudo.
Dirigiu-se ao roupeiro, desaparafusou o chão de tábuas de madeira e tirou para fora a fotografia de Stacy. Pela primeira vez desde a sua morte,
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não se sentiu tão próximo dela, não sentiu como se ela estivesse no quarto com ele.
Olhou pela janela na direcção da vila e pareceu-lhe ver uma pincelada amarela. Talvez fosse o reluzente Mini Cooper de Nigh que ela conduzia a uma velocidade incrível,
guinando nas curvas.
Sorriu por momentos ante a recordação de estar ao seu lado, enquanto ela conduzia o seu Rover por cima das rochas, de um tronco de árvore caído, pelo leito de um
rio, depois pela margem, de uma maneira que lhe provocou um nó no estômago. Quando ela pegara no volante, sentira-se aterrorizado, mas ao perceber que ela sabia
o que estava a fazer, guardou o medo para si próprio. Conteve-se e agraciou-lhe todo o respeito que a sua condução lhe merecia.
Na noite anterior, em Tolben Hall, deveria ter voltado a passar em revista os documentos da caixa sobre os Longstreet. Talvez lhe tivesse falhado algo. Talvez existisse
qualquer coisa importante que lhe escapara.
Contudo, em vez disso, o que fizera? Ligara o computador e pesquisara na Internet sobre N. A. Smythe, a jornalista. Viu um pequeno vídeo dela no Médio Oriente e
esboçou uma careta quando uma bomba explodiu a pouca distância. Leu meia dúzia de artigos relativos ao operador de câmara que morrera, quando estava ao lado dela.
Depois deste acontecimento, havia poucos artigos sobre ela ou escritos por ela. Citavam-na como tendo afirmado que precisava de se afastar por uns tempos e mais
nada.
Deitara-se por volta da meia-noite e sonhara com o tipo de coisas que Nigh devia ter visto. Acordou às quatro da manhã, temeu a longa espera que o separava até o
pequeno-almoço ser servido, mas decidiu não aguardar. Deixou um bilhete a Mrs. Fenney e partiu furtivamente, às cinco horas.
No longo percurso de volta a Margate, Jace pensou em como apreciara a viagem para lá, na companhia de Nigh. Tinha a certeza de que ela notara que ele se recusava
a falar da altura em que conhecera Stacy.
Havia uma parte dele que desejava falar de Stacy, pedir opinião a Nigh. Contudo, sabia que não podia fazê-lo. Se estivesse certo e alguém
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matara Stacy, essa pessoa ainda podia estar a viver em Margate. A pessoa que tinha enviado o bilhete a Stacy, marcando um encontro em Priory House, talvez ainda
permanecesse na localidade. Não conhecera ninguém de quem ela pudesse gostar, mas...
Ocorreu-lhe uma ideia tão surpreendente, que quase saiu da estrada. E Jerry Longstreet? Talvez fosse ele o motivo porque Danny aparecera a Nigh. Talvez Danny soubesse
que Jerry tinha morto Stacy. Talvez...
Os pensamentos formavam um tal turbilhão na cabeça de Jace que este teve de fazer um esforço para se manter atento à condução.
Ao regressar a Priory House, a cabeça ameaçava explodir-lhe de perguntas, mas a quem podia fazê-las? Se interrogasse Mrs. Browne, tinha a certeza de que ela responderia
que nada disso era da sua conta - e, em seguida, telefonaria a uma das suas horríveis amigas para lhe contar que Jace andava a querer saber coisas sobre Jerry Longstreet.
Jace nem sequer queria imaginar o tipo de bisbilhotice que se seguiria a esse boato.
Hatch não saberia, e, mesmo que o soubesse, nunca contaria nada. Gladys e Mick estavam demasiado absortos um pelo outro para reparar em mais alguém. As criadas eram...
Jace sabia perfeitamente que a única pessoa com quem desejava falar era Nigh.
A hora do almoço, desceu e comeu em silêncio, enquanto Mrs. Browne tagarelava sobre as suas actividades dos últimos dias.
- Guiar um carro de luxo daqueles! - comentou. - Se tivesse algum senso...
Jace ouvira o suficiente. Agarrou no prato e dirigiu-se à porta.
- A partir de agora, vou passar a comer na sala de jantar, Mrs. Browne
- declarou.
Ouviu o seu habitual "Hum!", mas também lhe pareceu escutar um "Sim, senhor".
Às três e meia, começou a chuviscar. Ele fizera jogging durante uma hora e até dormira uma sesta, mas a tarde só ia a meio. Estava na sali- nha à saída da cozinha
que ninguém usava, uma divisão onde até então
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nunca passara tempo algum. A lareira estava acesa e a chuva tamborilava de encontro aos vidros das janelas. Deveria contentar-se em ler mais coisas dos livros sobre
a história de Margate, mas aparentemente não conseguia ficar quieto.
- Desculpe, sir-pronunciou uma voz e, ao virar-se, avistou a ousada Daisy, de pé. Esperava que ela não fosse fazer outro dos seus pequenos avanços. - Mick pediu-me
que lhe entregasse isto.
- O que é? - perguntou, cauteloso.
- Um bilhete - respondeu, olhando para os dois lados do corredor para ver se Mrs. Browne se encontrava, algures, por perto. - Acho que é de Nigh - sussurrou.
Jace pôs-se de pé em segundos, mas o sorriso sabido de Daisy fê- -lo abrandar. Ao ver que ela se mantinha no mesmo sítio a observá-lo, aguardando que ele abrisse
o envelope, mandou-a embora com um olhar. Ela obedeceu, com uma risadinha.
Jace fechou a porta e depois aproximou-se da lareira para ler o bilhete:
Desculpe incomodá-lo, mas achei que gostaria
de saber. Esta manhã vi o Danny Longstreet.
Nigh
Um sorriso tão rasgado que quase lhe abriu a pele espalhou-se no rosto de Jace.
- Um problema muito sério - pronunciou, quase correndo para o telefone da entrada.
Nigh respondeu ao primeiro toque:
- Está?
- Ele não a magoou, pois não? - perguntou, deixando de sorrir.
- Danny, quero dizer.
- Não - respondeu ela, parecendo um pouco ofegante, como se tivesse corrido para atender o telefone.
- Assustou-se?
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- Na verdade, ele irritou-me - confessou Nigh. - Saí rapidamente do carro e gritei-lhe que desaparecesse.
- Fez muito bem.
- Pode ser que sim, tirando o facto de que a velha Mrs. Vernon andava a passear o cão e acho que lhe preguei um susto de morte.
- Fico satisfeito por saber que não se assustou - ouviu Jace a rir-
-se.
- Ainda me sentia demasiado envergonhada com o meu primeiro desmaio para que voltasse a acontecer. Peço-lhe desculpa por isso. Fugi indubitavelmente à tradição inglesa
de não mexer um músculo.
- Penso que até mesmo a rainha se assustaria com o que lhe aconteceu.
- Espero que não esteja a falar da nossa rainha! Depois de tudo o que a família lhe fez passar, acha que se ia abaixo com um pequeno fantasma? Não me parece!
- Não está com fome, pois não? - indagou Jace.
- Absolutamente esfaimada. Desde Tolben Hall que só como o que cozinho. A propósito, como está Mrs. Fenney?
- Óptima. Disse que fomos os hóspedes de que mais gostou.
- Imagino - riu Nigh. - Fomos pelo menos os mais excitantes.
- Que tal um chá?
- Na sua companhia?
- Excepto se preferir ... - Interrompeu-se.
- Comer aqui sozinha? Não, obrigada. Irei a sua casa. Excepto se estiver a chover.
- Desculpe. Esqueci-me. É inglesa e não está habituada a lidar com a chuva.
- Apenas pensei em levar uma muda de roupa, só isso.
- Oh, claro! - exclamou Jace. - Traga o que quiser. Pode ser que depois do chá me queira mostrar aqueles carneiros da orla da minha propriedade. Será bom conhecer
o que me pertence. Gostaria de vê-los a cem quilómetros à hora.
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- Acho uma belíssima ideia. Estarei aí por volta das quatro. Até já.
Jace pousou o auscultador e o sorriso estampou-se-lhe novamente
no rosto. "Não tinham ido directos ao assunto, mas ela vinha passar a noite", pensou, achando que estava a agir como um caloiro universitário. Encontrou Daisy na
grande sala de estar do andar de baixo. Não pusera lá os pés desde o primeiro dia em que entrara naquela casa. - Por favor, acenda a lareira - disse. - E depois
quero que ponha lençóis lavados naquele quarto... - Teve de reflectir. - Não há um quarto azul algures? Um com casa de banho?
- O quarto da senhora? - replicou ela com um sorriso malicioso.
- Fica em frente ao do senhor.
- Óptimo! E mude por favor os lençóis da cama grande do quarto principal.
- Mas costuma dormir no quarto de paredes estampadas.
- Quarto principal e o quarto azul, entendido? - redarguiu com um olhar que lhe apagou o sorriso.
- Claro, sir - respondeu, esboçando um arremedo de vénia, após o que desapareceu rapidamente pelo corredor.
Jace dirigiu-se à cozinha, a fim de dar instruções a Mrs. Browne para um fim-de-semana repleto de maravilhosas refeições.
- Temos visitas, não? - perguntou ela, mas não obteve resposta.
- E hoje às quatro quero que seja servido um chá de que Eduardo VII se orgulhasse. Fiz-me entender? - Dispunha-se a ir embora, mas virou-se. - Além disso, Mrs. Brwone,
se fizer qualquer comentário desagradável à minha visita, prepare-se para acarretar com as consequências.
A governanta arregalou os olhos e não respondeu, limitando-se a assentir com a cabeça. Era o máximo que ele podia esperar.
Subiu ao andar superior para despir o fato de treino e, ao ver Daisy e Erin a mudar os lençóis no quarto em frente ao seu, disse-lhes que transmitissem a Mick que
queria os quartos cheios de flores do jardim.
- Muito bem, sir! - anuiu Daisy, sorrindo.
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- Talvez esta velha casa recupere vida - ouviu Erin dizer, enquanto se dirigia ao quarto de paredes estampadas para tomar duche e mudar de roupa.
Olhou em volta e pensou que talvez tivesse cometido um erro ao tentar recriar o que Ann tivera. Outro erro fora ficar a dormir naquele quarto.
Ao descer as escadas para o andar de baixo, ainda parou junto de Daisy e Erin para lhes dizer que levassem as suas coisas para o quarto principal.
Desta vez, o riso delas provocou-lhe um sorriso.
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-Encantador! - murmurou Nigh com os pés apoiados na grande otomana redonda em frente da lareira. Durante o chá, contara-lhe tudo sobre ter avistado Danny Longstreet
pelo espelho retrovisor, o que demorara cerca de dez minutos. Ele contara-lhe sobre o que fizera em Tolben Hall, o que levou outros dez minutos. Depois, tinham falado
sobre...
Ela não sabia muito bem do que tinham falado, mas tema de conversa nunca lhes faltara. Depois do chá, caminharam à chuva, ambos calçados com botas de borracha de
cano alto, e observado os limites da propriedade.
Junto ao canto a sudoeste, ele fixara uma casinha. - Parece-me familiar - disse. Era a casa de Nigh.
- O agente imobiliário não lhe mostrou o que estava a comprar? - inquiriu Nigh, abanando a cabeça.
- Tenho a certeza de que me disse tudo, só não me recordo das suas palavras.
- No entanto, comprou a casa, fosse como fosse. Imagine-se.
- Humm! Imagine-se! - retorquiu e mudou de assunto. - Portanto, sou proprietário da sua casa. Com que frequência lá está?
- Raramente. Alugou-ma por um preço muito baixo e, assim, uso- -a sobretudo para arrumações. Tenho um quarto num apartamento em Londres com duas colegas, mas é pouco
importante pois passo fora a maior parte do tempo.
- Percebo.
Ela fitou-o com uma expressão interrogativa.
- Na Internet. Fiz pesquisa a seu respeito. - Ao ver que ela não respondia, acrescentou: - Então, o que tenciona fazer da sua vida?
- Não sei. Pergunte-me daqui a um ano.
- É esse o período que planeia ausentar-se?
- Nunca tive tempo disponível desde que comecei e já lá vão quase dez anos. Preciso de pensar no que quero fazer. E você?
- Também. Formei-me em História, mas até agora só tenho comprado e vendido coisas para o meu negócio de família. Tudo debaixo da supervisão do meu tio.
- Soa-me a modéstia. Deve ter tido algumas ideias próprias.
- Algumas - concordou. - Ocasionalmente. Mas sou igual a si e não tenho ideia do que quero fazer.
- Podia viver aqui - sugeriu Nigh com um sorriso.
- Em Priory House?
- Exacto. Esqueci-me de que comprou uma casa fantástica que detesta. E por que razão o fez?
- Por impulso - respondeu, desviando o olhar.
Nigh sabia que devia passar a observação sem comentar, mas foi incapaz. Não tencionava trazer à baila o assunto de Stacy; tinha de ser ele a tomar a iniciativa,
mas queria dar-lhe a entender que estava disposta a ouvi-lo.
- Comprou uma casa de que não gosta por impulso. Por capricho.
- Exacto - anuiu Jace, sem olhar para ela.
- Deve ter tido um forte motivo para o fazer.
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- Muito forte - anuiu e depois hesitou, antes de retomar a palavra. - E se você tivesse sido acusada de uma coisa horrível? O que faria para
limpar o seu nome?
- Tudo o que pudesse - respondeu.
- Nesse caso, compreende porque comprei a casa.
- De facto, não, mas fez alguns progressos para limpar o seu nome?
- Até aqui, nenhum - redarguiu Jace, abanando a cabeça. - Apenas me vi envolvido com um bando de fantasmas, uma coscuvilheira e pessoal doméstico que me acha uma
enorme fonte de entretenimento.
- Não é minha intenção obrigá-lo a nada - sorriu Nigh -, mas se quiser ajuda para limpar o seu nome, estou disponível. Teria, obviamente, de pôr-me ao corrente da
situação.
- Não me esquecerei e agradeço-lhe - replicou, sorrindo. - Pronta para regressar? Mrs. Browne está a preparar-nos borrego no forno para esta noite. E devo dizer
que vamos comer na sala de jantar.
Agora, umas horas depois, tinham comido bem e bebido melhor e estavam aquecidos pelo calor da lareira.
Jace sentara-se na cadeira ao lado dela.
- Gosto da sua companhia - declarou, baixinho.
- E eu da sua - respondeu ela.
Manteve-se quieto durante um bocado e Nigh esforçou-se ao máximo para não lhe dar a entender que tinha o coração acelerado. Aparentemente, todos os homens viviam
aquele momento, o momento em que tomavam uma decisão sobre uma mulher. Alguns tinham dado a conhecer a sua decisão, convidando-a a conhecer os pais, outros oferecendo-lhe
um anel. Nigh sabia que tudo isso era demasiado cedo tanto para ela como para Jace Monrgomery, mas esperava que ele lhe contasse o que dominava a sua vida.
- Quero dizer-lhe uma coisa - declarou ele, passado um bocado.
- Bom, para ser franco, não quero contar-lhe, mas preciso de ajuda. Acho que não consigo fazer sozinho aquilo a que me propus.
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Nigh não pronunciou palavra, limitando-se a ficar sentada, desejando que ele prosseguisse e lhe contasse tudo.
Foi isso mesmo o que aconteceu. Jace mencionou Stacy, mas ela percebeu que não lhe era fácil falar da mulher que amara e, quando lhe contou sobre a sua morte, sentiu
a angústia dele. Passada uma hora e meia, ele ficou calado e virou-se para a lareira.
Não acrescentara muita coisa ao que Nigh tinha lido e imaginava, mas permaneceu silenciosa a esse respeito. Jace pô-la maioritariamente a par dos factos e não da
dor que sentia e ela detectou-lha no olhar.
- Tem a fotografia com o bilhete? - perguntou.
- Lá em cima, no quarto de Ann - respondeu e ela seguiu-o pelas escadas.
O quarto tornara-se-lhe familiar ao longo dos anos, desde que a escada secreta existia e passara a conhecer a nova decoração na semana anterior. Só decorrera uma
semana desde que tinha conhecido Jace?
Ficou a observá-lo enquanto ele se dirigia ao roupeiro vitoriano que comprara em Londres, abria a porta e retirava uma caixa do fundo. Não conseguiu resistir e comentou:
- Deixou de esconder as coisas debaixo das tábuas do roupeiro, não é verdade?
Sentiu prazer com a expressão chocada do rosto de Jace, que, logo a seguir, sorriu com um brilho no olhar. - Escutou alguma coisa, não foi?
- Algo imprescindível na minha profissão.
Sentou-se na cama ao lado dele e, juntos, examinaram uma a uma as escassas provas que ele possuía. Ela pegou na foto de Stacy e elogiou-lhe a beleza, embora tivesse
sentido ciúmes ao pronunciar as palavras - o que era uma reacção estúpida, mas as emoções raramente têm lógica.
- "Nossa, mais uma vez. Juntos para sempre. Vejo-te lá a 11 de Maio de 2002." - leu ela em voz alta.
- Ela morreu no dia seguinte - disse Jace.
Levantou-se e dirigiu-se à lareira apagada.
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- Preciso de saber o que aconteceu - prosseguiu. - Consegue entender? Até saber o que aconteceu, até limpar o meu nome - se é que tal é possível - não posso fazer
mais nada da minha vida.
- Não quer falar com Ann por ela ser um fantasma, mas porque ela estava aqui nessa noite - retorquiu Nigh, fitando-o com uma expressão compreensiva.
- Sim - anuiu Jace. - Pensou que queria uma sessão espírita, não é verdade?
- Faz sentido.
- Nada disto faz sentido - replicou ele, passando a mão pela face.
- Porque é que Ann e Danny nos aparecem? Danny a si, Ann a mim. Ou aparecia, até a ter irritado. - Fixou o olhar no tecto. - Só estava a tentar fazer um gesto simpático
- acrescentou. - Não era minha intenção ofendê- -la ou levá-la a sentir-se pior do que se sente. Se houver algo que possa fazer para que se sinta melhor, como por
exemplo ajudá-la a sair das trevas, comunique-me.
Quando voltou a fixar Nigh, ela empalidecera.
- O que foi?
- No seu lugar, não desafiaria o destino - respondeu ela. - Você não receia os fantasmas, mas eu sim. Nunca ouviu dizer que eles andam sempre em busca de se apoderar
de corpos?
- Há um mês teria dito que podiam apoderar-se do meu.
- Amava-a tanto que não consegue esquecê-la? - perguntou Nigh.
- Sim - respondeu Jace. - E, ao mesmo tempo, não. Fiz o meu luto por Stacy até às raias do impossível. Contudo, o meu desgosto tornou-se egoísta. Preciso de investigar
o que me diz respeito. A mãe e a irmã declararam que levei Stacy ao suicídio. Afirmaram que eu era tão tirano que não lhe permitia desistir do casamento, mas isso
não faz sentido. Se ela se sentiu suficientemente livre para me dizer uns dias antes do casamento que não queria ter filhos, podia ter-me dito que não queria casar.
- Consigo imaginá-lo uma série de coisas, mas não um tirano - contrapôs Nigh. - Acho que se estavam a passar muito mais coisas que
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desconhecia e desconhece. - Voltou a observar a fotografia de Priory House e leu o que estava escrito. - Alguém por aí sabe o que se passa.
- Mrs. Browne - exclamou Jace, sem hesitar.
- Tenho a certeza, mas essa é uma velha de espírito mesquinho e preferia meter lascas de madeira por baixo das unhas a contar o que sabe. Mesmo que Stacy se encontrasse
clandestinamente com um homem aqui, Mrs. Browne acharia justo e certo que ela pagasse a pena máxima por isso.
Jace esboçou um trejeito e depois sentou-se na cama, ao lado de Nigh:
- Esta tarde, tive uma ideia. Talvez Danny Longstreet lhe aparecesse porque o seu descendente está metido nisto - explicou.
- Jerry? - repetiu Nigh com uma expressão surpreendida. - Acha que talvez Stacy se encontrasse com Jerry Longstreet aqui, em Priory House?
- Pela sua cara, vejo que discorda.
- Claro que discordo. Em primeiro lugar, olhe bem para ela. Parece uma daquelas raparigas californianas bem-nutridas que vocês Americanos referem nas canções. Jerry
é da minha altura e sempre teve barriga. Possui um certo encanto lá no fundo, mas não aos olhos de estranhos.
- Você gosta dele - contrapôs Jace.
- Cresci em Margate e foi aqui que estudei. As opções eram poucas. Agora que conheci o mundo, Jerry Longstreet é uma anedota. Acho que a sua Stacy seria da mesma
opinião. Além disso, onde o teria conhecido?
Jace voltou a levantar-se.
- E essa a questão - replicou. - Dei voltas e voltas à cabeça até quase a esvaziar. Stacy contou-me a história da sua vida. Foi para Inglaterra com a mãe e, quando
andava na universidade, fez umas viagens à Europa, mas sempre com uma acompanhante. Queixava-se de que nunca conseguiu ver nada, nem conhecer ninguém.
- Acredito que podemos apaixonar-nos por alguém num curto espaço de tempo - arguiu Nigh num tom calmo, fitando Jace.
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Ele olhou-a de frente. - Também eu - disse. Aguentou um momento, mas acabou por desviar o rosto. - Todavia, não posso pensar no futuro até limpar o meu passado.
Nigh não conseguiu reprimir um suspiro, enquanto voltava a examinar a fotografia de Stacy. Depois, arrumou tudo na caixa.
- Acho que devia manter isto escondido. Não me parece indicado deixar que alguém desta casa lhe ponha a vista em cima.
- Pensa que ela foi assassinada, não pensa?
Nigh levantou-se e baixou os olhos momentaneamente para a caixa, voltando depois a fitá-lo.
- Acho que qualquer mulher que o deixasse... - Não acabou a frase. Era demasiado piegas. Demasiado sentimental - e revelava demasiado a seu respeito.
- É tarde e sinto-me cansada - declarou. - Trouxe as minhas botas de alpinismo e, como tal, porque não damos um passeio, amanhã, até a um sítio longe desta casa
e de Margate? Passaremos em revista o que sabe e veremos como agir. - Depois, antes que ele respondesse, deu-lhe as boas-noites e saiu do quarto.
Percorreu a passo rápido o corredor até ao quarto azul, o "quarto da senhora". Sorriu ao ver que estava cheio de flores e que as suas malas tinham sido desfeitas
e arrumadas. Na primeira vez que visitara Priory House com Jace, as empregadas e Mrs. Browne haviam sido insolentes, mas tudo indicava que ele tomara uma atitude
e que, pelos vistos, estava a resultar.
Encheu a banheira e permaneceu na água algum tempo antes de vestir uma camisa de noite de flanela e meter-se na cama. Os lençóis cheiravam à luz do Sol. Sentia-se
bem por Jace lhe ter contado o que o afligia, por lhe ter revelado o seu mais íntimo segredo. Agora, apenas tinham de resolver o mistério.
Adormeceu com um sorriso nos lábios.
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Vamos - ouviu Jace a dizer.
Nigh rolou, sonolenta, na cama e olhou para as janelas de reposteiros corridos. Ainda estava escuro.
- Vá-se embora - disse.
Jace sentou-se na beira da cama.
- Levantei-me há duas horas e Mrs. Browne já está a fritar coisas. Saia da cama, calce as botas e vamos. Há um trilho pela montanha que fica a trinta quilómetros
e partiremos de lá.
- Trilho? - murmurou ela. - É uma palavra americana.
- Isso! - anuiu e ao ver que ela não se mexia, estendeu-se ao seu lado, com a grossa manta separando os corpos. - Cheira bem! - constatou, encostando a cara ao pescoço
dela.
Nigh sorriu e moveu-se, o que a aproximou mais dele. - Adoro fazer desporto de manhã - disse.
- Também eu. E parece que Ann e Danny também. - Fez-lhe cócegas com o nariz na nuca, sob o cabelo. - Acho que é por isso que estão aqui.
- O quê? - exclamou Nigh, virando-se para examinar o quarto.
Estavam sozinhos no quarto. Jace levantou-se da cama e sorriu-lhe.
- Não há quaisquer fantasmas aqui - garantiu. - Levante-se e vista- -se! Vamos. Estamos a perder o romper do dia.
- Mas que mudança de planos! - murmurou, sentando-se na cama.
- Estava a pensar num pequeno passeio de lazer pelas redondezas e não num trilho montanhoso.
- Preciso de exercício - redarguiu Jace. - Preciso de muito exercício. Na verdade, preciso de escalar uma montanha.
Nigh não conseguiu reprimir uma gargalhada, ante o significado visível das palavras. - Onde está o meu chá da manhã? Todos os bons hotéis servem o chá da manhã.
- Claro - anuiu ele. - O chá do Hotel Priory House está pronto, mas na sala de jantar. Vemo-nos lá em baixo e, se demorar mais de quinze minutos, parto sozinho.
- Uma comutação de pena! - pediu Nigh, voltando a cair pesadamente na cama.
Jace dirigiu-se à cama com uma expressão grave, pegou-lhe ao colo enrolada na manta e pô-la de pé, à entrada da casa de banho.
- Quinze minutos - declarou e saiu do quarto.
A bocejar, mas com um sorriso nos lábios, Nigh vestiu-se com camadas de roupa de que podia desfazer-se à medida que o dia aquecesse. Colada à pele, pôs uma velha
t-shirt que fora lavada centenas de vezes e lhe estava tão justa, que pouco deixava à imaginação. Por cima, vestiu uma camisola de manga comprida, e ainda uma sweat-shirt.
Enfiou umas calças de ganga e calçou peúgas grossas e botas. Pensou em maquilhar- -se, mas, em seguida, pensou que ia suar e não se deu a esse trabalho.
Dez minutos após Jace ter saído do quarto, já ela estava na sala de jantar a comer parte de um dos pequenos-almoços à base de fritos preparados por Mrs. Browne.
- Vai conseguir - disse Jace, referindo-se a que ela seria capaz de comer um daqueles enormes pequenos-almoços.
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- Espero bem que não - respondeu Nigh, mas o seu bom humor era
contagiante.
Meia hora mais tarde empilhavam pesadas mochilas no Range Rover de Jace e dirigiam-se a norte. Estava um sábado fantástico e soalheiro e, apesar da falta de sono,
ela ansiava por viver aquele dia.
- Hoje, temos uma regra - declarou ele, seguindo pela auto-es-
trada.
- Qual é?
- Hoje, só falaremos de nós, de si e de mim. De mais ninguém. Não precisou especificar de quem não falariam, mas ela sabia.
A ideia de que, pela primeira vez, não haveria fantasmas - antigos ou actuais - entre eles, provocou-lhe uma sensação maravilhosa.
- Passei a maior parte da noite acordado e pensei numa coisa - confessou ele.
- Ah, sim? - exclamou Nigh. - Em quê?
- Gosto de Inglaterra - retorquiu, fitando-a. - É húmida e fria, e excêntrica não é uma palavra suficiente para descrever o seu povo, mas existe qualquer coisa neste
lugar que me atrai.
Nigh observou-o intensamente.
- A minha avó insistiu durante anos a fio que alguém devia escrever a história da nossa família. Se remontarmos a um passado muito distante, encontraremos figuras
invulgares na nossa família. Sabemos tudo isto através da tradição oral e de algumas velhas arcas cheias de cartas, de uniformes e documentos de família. Contudo,
ninguém escreveu uma história pormenorizada sobre os meus antepassados.
Nigh ficou a aguardar que ele continuasse, mas Jace manteve-se silencioso. - Pretende dizer que está a pensar escrever a história da sua família?
- Talvez - assentiu ele.
- E viver em Inglaterra durante esse período.
- Ocorreu-me.
- E viveria em Priory House.
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- Nem pensar! - retorquiu. - Estava a pensar em comprar uma casinha, algures. Qualquer coisa antiga e simpática, mas que pudesse conservar o calor.
- Uma antiga reitoria da rainha Anne - replicou ela com uma expressão sonhadora.
- Parece-me uma ideia fantástica - aplaudiu. - Na verdade, perfeita. Mas teria de haver um jardim.
- E uma estufa. Precisaria de uma estufa. Quer saber uma coisa? Sempre pensei que gostaria de dedicar-me à escrita.
- A sério? E escreveria sobre quê?
- Sobre o que vi. E também escreveria algo fantasmagórico - acrescentou, deitando-lhe um olhar de relance. - Todavia, não deste tipo de fantasmas. Conheci velhos
jornalistas com histórias fantásticas que podiam contar. Entre eles, um velho que vira tudo desde a Segunda Guerra e poderia revelar coisas incríveis.
- Revelar? Não poderia escrevê-las?
- Nem uma palavra. Para ele, cada palavra que escrevesse era uma tarefa doméstica. Era capaz de ditar mil palavras ao telefone, mas incapaz de se sentar e escrever
uma única. E todas as histórias que ele sabia, não podiam ser contadas - pelo menos, nessa altura. Agora, poderia narrar tudo o que viu durante as muitas guerras
por que passou.
- Ele quer escrever as suas memórias?
- De que acha que se alimentam os repórteres, se não do seu ego? - resmungou Nigh.
- Bourbon? - perguntou com uma expressão inocente que a fez rir.
Falaram durante todo o caminho até ao trilho e continuaram enquanto
pegavam nas mochilas e prosseguiram caminho. Falaram muito sobre as suas casas de sonho e no que teriam, mas nem uma única vez da casa, como se pertencesse a ambos,
e de a partilharem. Tão-pouco mencionaram que estavam a pensar mudar de vida, de forma a poderem viver juntos.
Ao meio-dia, sentaram-se numa rocha à beira do trilho, comeram as sanduíches de presunto que Mrs. Browne havia preparado e beberam
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chá dos termos. Há uma hora que Nigh tirara a sua sweat-shirt, atando- -a à volta da cintura. Encostou-se a uma árvore, enquanto comiam num silêncio agradável, com
o Sol a aquecê-los.
- O Salteador - declarou ela. - Parece ser o meu género de homem.
- Referia-se à história que Jace lhe tinha contado sobre um dos seus antepassados. Durante a Guerra Civil Americana, um jovem disfarçara-se e lutara pela liberdade
do seu país. Não a perturbou que tivesse lutado contra os Ingleses.
Jace continuou de olhos fixos na floresta. Rodeavam-nos as árvores e o canto dos pássaros. Estavam sós. - Além de mascarados, qual é o seu género de homem?
Nigh viu-se obrigada a beber um gole de chá para não responder você. - Grande, musculoso, jogador de rugby - respondeu. - Ou de pólo. Gosto muito de pólo.
- Tenho um primo que joga pólo.
- Como se chama? Talvez possa apresentar-nos.
- Lillian.
Riram ambos e, minutos depois, agarraram nas coisas e puseram-se de novo a caminho. Tinham percorrido cerca de um quilómetro e meio, altura em que Nigh pediu que
parassem.
- Não sei como aguenta esta temperatura - comentou, olhando para a grossa camisa dele, ao mesmo tempo que pousava a mochila no chão.
- Sinto-me a arder de calor.
- Isto não é nada. Devia passar um Verão no Sul da América. Como conseguiu viver no Médio Oriente, se não suporta o tempo quente?
- E um calor seco - explicou, tirando a camisa de manga comprida, pela cabeça. - E... - interrompeu-se, pois Jace fixava o seu peito de olhos arregalados e a boca
aberta. Pusera a t-shirt justa para lhe chamar a atenção, mas isto era ridículo! Ele nunca vira...
Baixou os olhos para a t-shirt e percebeu que ele fixava o logotipo.
- O que se passa?
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- Isso - sussurrou Jace, apontando para o seu peito com a mão.
- Onde arranjou isso?
- É da Queen Janes School - respondeu. - Trata-se de um pequeno e fino colégio público - para si privado - a cerca de três quilómetros de Priory House. E estupidamente
caro e não conheço ninguém em Mar- gate que o tenha frequentado. Gladys Arnold trabalha lá.
- Stacy tinha uma t-shirt dessas - murmurou Jace.
- Como toda a gente que vive a cinquenta quilómetros daqui.
O colégio organiza festas de beneficência e vende objectos com o logotipo deles. Costumávamos comprar-lhes coisas até...
Jace continuava a fitá-la de olhos muito abertos.
- Não está a pensar que Stacy o frequentou, pois não? - perguntou Nigh.
- Pode ter comprado a t-shirt em vários sítios. Vendem-nas em algumas lojas de Londres.
- Isso não sei, mas é uma pista - replicou Jace. - Temos de voltar. Precisamos de descobrir se ela frequentou essa instituição. Temos de...
- Interrompeu-se e começou a percorrer com o dobro da pressa o caminho por onde tinham vindo.
Por um momento, Nigh não se mexeu. - Que dia romântico! - exclamou, após o que pegou na mochila e correu atrás dele.
Levaram apenas quarenta e cinco minutos a descer o trilho e a entrar novamente no carro, deixando que Jace conduzisse o mais depressa possível até Margate.
- Vire aqui - disse Nigh e Jace obedeceu tão rapidamente que ela agarrou na pega por cima da janela. - Suponho que quererá visitar a Queen Janes School.
- Sim - anuiu Jace, sendo esta palavra o máximo que dissera durante todo o caminho de volta.
- Siga por esse atalho - orientou-o e ele seguiu as suas instruções. Ao chegarem a um beco sem saída, ele parou o carro, saiu e examinou lá de cima a casa e os terrenos.
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Nigh manteve-se de pé ao seu lado. O colégio era uma enorme e antiga construção vitoriana bastante bonita, com relvados cuidados e sem árvores, divididos em vários
campos de jogos. Havia jovens em idade escolar, correndo atrás de bolas ou com sticks de hóquei, fardadas com as cores verde e branco do colégio.
- Como vou descobrir se a Stacy estudou aqui? - inquiriu Jace.
- Acho que podemos perguntar-lhes. Tenho a certeza de que possuem registos. Mas...
- Mas deve ter-lhes constado que uma tal Stacy Evans morreu num pub, a menos de dezasseis quilómetros da instituição e se não disseram nada na altura, também se
manterão em silêncio agora - concluiu ele.
- Exactamente o que pensei - disse Nigh.
- Talvez possamos tentar na Internet. Pode ser que tenham uma associação de estudantes.
- Têm, mas está vedada. Precisa de ser aluno para aceder ao site.
Jace fitou-a como a perguntar de onde lhe vinha essa certeza.
- Por vezes, as raparigas atrevem-se a visitar Margate para ver como vivem os aldeões - elucidou Nigh, encolhendo os ombros. - Os habitantes locais querem sempre
saber qual delas é filha de um duque ou de um conde e, portanto, costumávamos observá-las. O colégio descobriu e vedou os registos a estranhos. E agora as raparigas
só raramente têm permissão para visitar Margate e por isso não viu o logotipo espalhado pela cidade. Gerou-se uma separação entre elas e nós.
- Então, como vamos descobrir? - questionou Jace. - A jornalista é você. Como podemos saber se Stacy frequentou esse colégio?
- Além de assaltar o gabinete dos registos, não vejo outra solução.
- Deu um passo para trás, ao ver a expressão de Jace. - Estava a brincar. Não há uma forma de assaltar a instituição. Talvez fosse possível se não estivesse a funcionar,
mas há trezentas raparigas a viver lá neste momento.
Jace fixou-a um momento e depois regressou ao carro, com Nigh na sua peugada. Quando estavam no interior, ela perguntou-lhe o que tencionava fazer.
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- Contactar algumas pessoas, nomeadamente Clive e Gladys.
- Vai pedir ajuda a Clive? Ele é polícia! - redarguiu Nigh, surpreendida. Ao ver que Jace mantinha a mesma expressão, começou a sentir- -se preocupada. - Não pode
fazer isso! Não pode mesmo! E não pode sobretudo recorrer à ajuda de um polícia nesta questão.
- Conhece algo do passado de Clive Sefton?
Nigh sabia tudo a respeito do passado conturbado do indivíduo. Fora preso inúmeras vezes por jogo e drogas.
- Não pode fazê-lo - insistiu Nigh, desta vez num tom mais abafado.
Jace fez marcha-atrás, virou e dirigiu-se a Priory House. Vinte minutos depois de chegarem, telefonou a Clive e Gladys e convidou-os para jantar, juntamente com
Mick. Jace ordenara a Mrs. Browne que preparasse um festim e em seguida dirigira-se ao duche.
Nigh foi para o quarto e debateu-se sobre se havia ou não de se meter no Mini e regressar a casa. Na sua profissão, assistira demasiadas vezes às consequências de
comportamentos ilegais, Por outro lado, conhecia também consequências do comportamento legal. Numa perspectiva geral, não sabia o que era pior.
Tomou banho, depois vestiu umas calças pretas e uma camisola cor- -de-rosa de caxemira. O jantar seria servido dentro de uma hora.
-Não posso analisar os álbuns de final do ano sem um mandado de busca - declarou Clive, de boca cheia.
- Por que raio é esta instituição tão secreta? - indagou Jace, cortando mais uma fatia de rosbife. - O público tem mais acesso aos presos do que a essas raparigas.
Poderia pensar-se que Margate era uma cave de pecado e a virtude das jovens tinha de ser protegida dos nossos olhares.
Enquanto falava, as cabeças de Nigh, Clive, Gladys e Mick baixavam-se cada vez mais. Quando Jace acabou, os narizes de todos quase tocavam nos pratos.
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- Muito bem - exclamou Jace. - Despejem a verdade. O que aconteceu para o colégio passar a odiar Margate?
- Um mútuo fascínio - respondeu Nigh.
- Essa é boa - aplaudiu Clive. - Mútuo fascínio. Vou ver se não me esqueço disso.
- Há quatro anos, um rapaz local engravidou a filha de um duque - elucidou Gladys, olhando para Jace. - Verificou-se uma certa
desordem mas foi tudo abafado. O duque
ameaçou convocar os pais de todas as estudantes se o que ele chamava de "escumalha de Margate"
não fosse banida para sempre da instituição.
- Nesse caso, calculo que a filha não obteve permissão para se casar com o rapaz de Margate - comentou Jace, assentindo com a
cabeça.
Os outros riram.
- Apenas quero saber se Stacy Evans frequentou ou não esse colégio.
- Desculpe, sir - interferiu Gladys - , mas acho que também quer saber
os nomes de todas as colegas. Se essa jovem senhora frequentou
o colégio, desejará telefonar-lhes e perguntar quem ela conheceu.
Jace sorriu-lhe e, em seguida, fitou Mick. - Será melhor guardá-la bem - comentou.
- É o que tenciono fazer - disse Mick, pondo a mão em cima da de Gladys.
Uma hora antes, Jace mandara sair Mrs. Browne, obsefVando-a
a deixar a cozinha e a regressar ao seu apartamento e, depois, contara
com poucas palavras a Gladys e Mick que Stacy fora sua noiva e que pensava que a tinham assassinado. Contou-lhes que ela se encontrara com
alguém em Priory House na noite anterior ao crime e queria descobrir
de quem se tratava.
- Gladys? Tem as chaves do colégio? - inquiriu Jace.
- Não as do arquivo de documentação administrativa - apressou-se a a rapariga a elucidar num tom firme.
- Mas tem as chaves do edifício?
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Nigh e Clive gritaram "Não!", a uma só voz.
- Não posso ajudar, caso se trate de um arrombamento - pronunciou Clive. - Desculpe, Mr. Monrgomery, mas não posso arriscar o meu futuro por causa disto. Se qualquer
outro elemento da brigada fosse apanhado, iriam perdoar-lhe, mas não a mim, devido ao meu passado.
- Estou aberto a sugestões - declarou Jace, recostando-se na cadeira.
- Muito bem - declarou Clive, inclinando-se para a frente e baixando a voz. - Acho que tenho um plano.
- Mr. Monrgomery - disse a directora da Queen Janes School num tom suave. - Acho que podemos receber a sua sobrinha.
- Por norma, a nossa família não manda as crianças para colégios internos, mas a Charlotte quer ir, portanto, quem somos nós para recusar? A miúda quer jogar hóquei
de campo.
- Óptimo! Então, ela é uma atleta.
- Uma verdadeira amazona.
A mulher não deixou de sorrir, mesmo ao ser confrontada com o calão de Jace e estendeu-lhe um enorme monte de papéis.
- Está aí a nossa brochura e um impresso de inscrição no pensionato.
- Muito obrigada - agradeceu Jace, pegando nos papéis.
No segundo seguinte, o som agudo de um alarme encheu a sala e os ouvidos deles.
- O que aconteceu? - interrogou-se a mulher. - Não me parece que seja uma verdadeira emergência - gritou, acima do ruído -, mas preciso de ir ver o que se passa
com as minhas alunas. - Dirigiu-se rapidamente à porta e aguardou, com impaciência, que ele saísse do gabinete.
Jace prendeu a manga da camisa na cadeira e teve dificuldade em soltá-la, após o que tropeçou no atacador do sapato.
A mulher fixava ansiosamente as jovens, que tinham começado a reunir-se no hall principal. As chaves pendiam-lhe impacientemente da mão.
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- Lamento - desculpou-se Jace, levantando-se e avançando na sua direcção. Contudo, deixou cair os papéis e ajoelhou-se para os recolher.
- Mr. Monrgomery! - gritou ela. - Preciso de ir ter com as minhas raparigas. - Brindou-o com um olhar desdenhoso e abandonou a divisão.
Com um movimento rápido, Jace pegou no álbum do final de 1994 que se encontrava nas prateleiras junto à porta, e meteu-o debaixo do casaco. Na noite passada, reflectira
muito e concluíra que o único ano em que Stacy podia ter frequentado a instituição era 1993-94. A mãe dela faleceu no Verão de 1993, e o pai acabara de casar com
uma mulher apenas uns anos mais velha que a filha. Jace presumiu que a madrasta a devia ter enviado para um colégio interno inglês, a fim de ver-se livre dela. Jace
sabia que Stacy se formara numa instituição da Califórnia e, portanto, caso tivesse frequentado Queen Jane"s, não ficara o ano inteiro.
O alarme continuava a soar num tom agudo quando saiu do gabinete, levando nas mãos os documentos que a directora lhe fornecera. Ela encontrava-se a alguns passos
da porta do gabinete, dirigindo as estudantes, enquanto elas saíam em fila do edifício. Jace fingiu verificar se a maçaneta da porta ficava bem fechada nas suas
costas e ela assentiu com a cabeça para lhe indicar a sua aprovação.
Jace abandonou o edifício de sorriso nos lábios, enquanto as jovens à sua volta assobiavam e gritavam.
- É você o de Margate?
- Percebo porque não nos deixam ir à aldeia, se for você.
- O meu quarto fica na ala sudoeste. Atiro-lhe um lençol da cama.
- És bem capaz de atirar o colchão e saltar para cima dele.
Quando chegou ao carro, Jace estava todo corado. Estendeu o livro
a Nigh e, em seguida, saiu do parque de estacionamento.
- Na minha juventude, as raparigas não eram assim - comentou.
- Claro que eram. Sempre o foram - contrapôs ela, folheando o livro.
- Bingo! Stacy Elizabeth Evans.
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Jace fez uma pausa de segundos, a fim de deitar um olhar de relance à fotografia do álbum e, em seguida, conduziu de volta a Priory House com um sorriso no rosto.
- Agora, só nos resta descobrir com quem ela se encontrou nesta área - disse Nigh - e saberemos quem lhe enviou o convite. - Recostou- -se contra o encosto de cabeça.
- Jace?
- Eu sei - respondeu ele. - Caso tencione perguntar-me se estou preparado para o que venha a descobrir, já ouvi as mesmas palavras da boca do meu tio Frank. Devia
conhecê-lo. Têm a mesma forma de pensar.
- Aceitarei a frase como um cumprimento.
- Devia. É um bilionário que subiu a pulso.
- Oooooh, esse Frank Monrgomery.
Jace riu, enquanto enveredava pelo acesso de Priory House. Era domingo. Mrs. Browne estava de folga e fora onde quer que ia todos os domingos, deixando-os sozinhos
em casa. O plano de Clive para que se apoderasse do anuário fora tão simples, que Jace temera que não resultasse. Gladys ia frequentemente à escola aos domingos
para pôr em ordem a limpeza e tinha-lhe sido fácil puxar o alarme, a uma hora combinada. O resto ficara por conta de Jace.
Uma vez no interior da casa, Jace e Nigh debruçaram-se sobre o livro, com as cabeças praticamente juntas. Ele estava decidido a não deixar que ela ou qualquer outra
pessoa se apercebessem do seu choque e dor por a mulher que tanto amara não lhe ter contado que frequentara um colégio interno em Inglaterra. Talvez tivesse durado
uns escassos meses, mas Stacy estivera lá o tempo suficiente para se apaixonar por alguém. Anos depois, bastara ele enviar-lhe um postal com uma data e Stacy aparecera.
Para o voltar a ver, Stacy implorara ao homem que amava para o acompanhar a Inglaterra e engendrara uma discussão como desculpa para se escapar.
- Vê alguém que conhece? - perguntou Jace a Nigh.
- Algumas pessoas, mas só das colunas sociais. O melhor é consultarmos a Internet.
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Uma hora mais tarde, tinham pesquisado bastante, mas como podiam agora contactar aquelas jovens e interrogá-las?
- Não é possível telefonar simplesmente a Chatsworth e fazer-lhe perguntas sobre uma colega de uma das alunas - disse Nigh.
- Porque não? - contrapôs Jace. - Não se esqueça de que sou americano e lutámos para abolir o vosso sistema educacional.
- Por favor! - exclamou Nigh. - Será que alguém pode telefonar à sua irmã e fazer-lhe perguntas?
- Em primeiro lugar, nunca conseguiriam contactá-la. Tem três filhos e não dispõe de um só momento para...
Nigh fitou-o através de olhos semicerrados.
- Okay. Percebo onde quer chegar, mas tenho uma ideia - reagiu Jace com uma gargalhada. - Conheço uma mulher que é capaz de entrar em contacto com a instituição,
se quiser.
- Só uma pessoa ligada à equitação o conseguiria.
- Mas não precisamos disso, não é verdade? - replicou Jace. - Só precisamos de alguém que seja capaz de contactar com essas jovens e ricas inglesas, e há uma mulher
em quem confio acima de tudo neste mundo.
- Quem é?
- A minha mãe.
- Seria capaz de a pôr ao corrente de tudo? - riu Nigh.
- Sem lhe ocultar nada. Acha que Gladys comprou uma fotocopiadora a cores?
- Pelo que Mrs. Parsons afirmou, Gladys comprou todas as máquinas conhecidas, e Mrs. P. não comprou nada para ela, o que significa que Gladys conseguiu tudo por
metade do preço que Mrs. Parsons cobra.
- Vamos fotocopiar estas páginas e depois enviá-las à minha mãe. Ela conseguirá acesso às casas delas.
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Jace e Nigh passaram o dia a tentar fingir que não estavam nervosos. Jogaram scrabble - Nigh ganhou - e passearam pelo jardim, enquanto ela se pronunciava sobre
o que faria ao jardim, se a casa lhe pertencesse.
- Gosta desta casa, não gosta? Se tivesse hipótese, agradar-lhe-ia viver aqui?
- Não - respondeu ela, honestamente. - A casa é fria, cheia de correntes de ar e de fantasmas. E não me refiro somente a Ann Stuart. Acho que o espírito da minha
mãe habita aqui e talvez o do meu pai também. Ou talvez sejam apenas as minhas recordações que aqui estão - declarou, com um arrepio. - Não, não gostaria de viver
nesta casa. Além disso, existe aqui qualquer coisa que me escapa.
- Acho que é o fantasma dessa maldita assaltante de estradas. Acho que ela viveu aqui e que a sua presença se encontra aqui.
- Talvez tenha razão. Vamos verificar novamente as máquinas? Tinham passado o dia a verificar o fax, o gravador e o e-mail de Jace.
A mãe dele manteve-os informados ao longo do dia relativamente a quem
telefonara e o que descobrira. Até então, não havia qualquer pista sobre com quem Stacy se encontrara fora da instituição.
Descobriram que Stacy fora uma aluna muito, muito infeliz e extremamente reservada.
- Acho que foi por isso que nunca me contou que passara a maior parte do ano num colégio interno - replicou Jace, esforçando-se ao máximo para compreender por que
motivo Stacy lhe ocultara aquele grande segredo.
Mrs. Monrgomery telefonara a Jace há três horas e contara-lhe o que havia descoberto sobre a mulher que fora directora da instituição na altura em que Stacy a frequentara.
Quando entrara no internato, Stacy sofrera um trauma recente. A mãe morrera uns meses antes do início do período escolar e ela tinha sido enviada para morar com
o pai, um homem que raramente vira em toda a vida e que não dispunha de tempo para cuidar do negócio em expansão e de duas mulheres carentes. A sua nova esposa ganhou
a parada e Stacy foi recambiada para um colégio interno noutro país.
- Uma das raparigas com quem falei - disse Mrs. Monrgomery - contou-me que ninguém sabia muita coisa sobre Stacy. Passou os poucos meses que esteve lá fechada no
quarto.
- Mas existiu um homem... - começou Jace.
- Já lá chego, meu querido, mas tens de ser paciente - replicou ela.
- Contudo, antes do mais, preciso de saber quem está ao teu lado. Estou a ouvir-lhe a respiração ao telefone.
Nigh afastou-se do aparelho, como se tivesse recebido uma queimadura.
- E Mick, o ajudante do jardineiro - elucidou Jace.
- Nunca foste um bom mentiroso. De quem se trata?
- Tens uma caneta?
- Claro.
- Procura N. A. Smythe na Internet. Soletra-se S-M-Y-T-H-E. Ficarás inteirada a seu respeito. Vive aqui em Margate sempre que não anda a viajar pelo mundo e está
a ajudar-me com... bem, com aquilo em que preciso de ajuda.
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- Pareces-me muito melhor do que quando te foste embora, portanto transmite-lhe os meus agradecimentos.
- Assim farei - prometeu Jace, sorrindo a Nigh. - Agora, conta-me o que mais descobriste.
- Cerca de três meses depois de ter chegado, uma das raparigas com quem falei disse que Stacy tinha mudado. Mantinha-se reservada e distanciada das companheiras,
mas viam-na sorrir de vez em quando. Uma delas confessou que Stacy passava algumas noites fora.
Jace ergueu o sobrolho para Nigh, sabendo que ela ouvia a conversa.
Nigh assentiu com a cabeça, confirmando essa possibilidade em 1994.
- Escapava-se para se encontrar com alguém? - perguntou Jace à
mãe.
- Pelo menos, era o que pensavam. Acho que a segurança da escola era bastante frouxa nessa época e foi esse o motivo porque despediram a directora no ano seguinte
e contrataram a actual. Ela é indulgente?
- A segurança do aeroporto podia aprender com ela - respondeu Jace. - És capaz de continuar a fazer telefonemas e descobrir o que puderes? Preciso do nome do homem
com quem ela se encontrava.
- Jace, meu querido. Vou repetir a pergunta. Tens a certeza de que queres obter toda esta informação? Talvez descubras algumas coisas sobre Stacy que não te agradem.
- Tenho a certeza. Na verdade, quanto mais descobrir, melhor me sentirei.
- Não sei muito bem se concordo. Oh! Céus! Acabei de encontrar a tua N. A. Smythe.
É bonita! E parece uma mulher inteligente! Boa malha!
- Mãe! - exclamou Jace, a rir e ao mesmo tempo atrapalhado.
- O que significa "N. A."?
- Nightingale Augusta.
- Devia enquadrar-se bem na nossa família. Okay. Tenho de ir. Telefono-te, quando souber mais. Ou talvez te mande um fax com um nome. Amo-te.
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- Também eu a ti, mamã - declarou Jace num tom meigo e desligou.
O telefone não voltou a tocar até à uma e meia da tarde, passava pouco do almoço. Era a mãe dele e bocejava. Passara a noite às voltas com o telefone, o fax e a
Internet, tendo em conta a diferença horária em Inglaterra.
- Tenho um nome e uma morada - declarou a mãe, sem preâmbulos. - E deves ir a casa dela tomar chá, às quatro. Chama-se Carol Heat- herington e foi colega de quarto
de Stacy.
- Colega de quarto? - surpreendeu-se Jace, fitando Nigh com uma expressão triunfante. - Deu-te algum nome?
- Não. Carol quer falar pessoalmente contigo, pois sente-se muito mal relativamente a Stacy. Estava fora do país quando Stacy morreu, ou teria aparecido.
- Ela sabe que Stacy não se matou.
- Não, bem pelo contrário. Carol acha que Stacy se matou e pensa que conhece o motivo.
- Foi o que ela disse?
- Sim, Jace, meu querido. Avisei-te que podias vir a descobrir coisas que não te agradavam. Deves ir lá agora. Avisei Carol de que levarias uma amiga. Jace?
- Sim - respondeu, abalado por lhe dizerem que alguém que conhecia Stacy acreditava que ela se havia suicidado.
- Sei que tens a tua opinião formada, mas sugiro que escutes o que esta jovem vai dizer-te. Que escutes mesmo.
- Sim, claro, mãe - garantiu Jace, apático. - Agora vou até lá e ligo- -te quando regressar.
- Daqui a umas doze horas. Preciso de dormir.
- Obrigado por isto, mamã. Amo-te.
- Também eu - disse Mrs. Monrgomery com um enorme bocejo.
- Dá os meus cumprimentos a Nightingale.
- Nigh - emendou. - Encurtámos para Nigh.
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- Estou ansiosa por conhecê-la. - Desligou.
Nigh fixou Jace. Ouvira o suficiente da conversa para saber do que se tratava.
- Acho que devemos vestir as nossas melhores roupas e ir tomar chá - declarou, lendo a morada que Jace tinha anotado. - Levaremos umas boas horas a chegar lá.
Jace esboçou um aceno silencioso de cabeça e, em seguida, subiu ao andar de cima para se mudar. Não queria permitir-se tempo para reflectir sobre o que acabara de
descobrir. A realidade de que Stacy tinha uma vida que ele desconhecia estava, finalmente, a vir ao seu encontro. Sabia que, a partir de agora, o que descobrisse
lhe seria difícil de ouvir. Uma parte dele desejava parar onde se encontrava, mas a outra parte sabia que tinha de prosseguir.
- Convidei-os a vir aqui hoje sobretudo para apaziguar a minha própria culpa - declarou Carol Heatherington.
Era uma jovem, não muito bonita, mas com uma impecável pele lisa inglesa e uma presença que apenas o berço e o dinheiro podem conferir. Era dona de uma bela casa
junto a um rio, rodeada por trinta acres de terra. O marido viajava diariamente para Londres, deixando-a na companhia dos seus cavalos, dos cães e de uma criança
pequena. Parecia satisfeitíssima com a sua vida.
Carol serviu o chá em chávenas Herend.
- Receio não ter sido muito bondosa para com Stacy quando estudámos juntas. Na verdade, tinha pedido que me pusessem num quarto com a minha melhor amiga, mas em
vez disso colocaram-me com esta revoltada e sombria americana. Receio ter extravasado toda a minha desilusão sobre ela.
Jace esboçou um esgar e teve de se reprimir para não lhe dizer o que pensava de alguém que fora maldosa para uma rapariga que acabara de perder a mãe.
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Nigh pegou na chávena de chá.
- Somos todas mazinhas nessa idade - retorquiu num tom calmo.
- A ironia é que, anos mais tarde, vim a descobrir que aquela que eu pensava ser a minha melhor amiga, pedira ao avô que telefonasse para o colégio solicitando que
não me pusessem no mesmo quarto com ela. Despejei a minha raiva em Stacy quando devia tê-lo feito sobre a minha cunhada.
- A sua cunhada?
- Casei com o irmão dela, o que ia exactamente contra os seus desejos - sorriu Carol.
- Stacy encontrou-se com alguém nesse ano? Talvez um homem? - inquiriu Jace.
- Sim - anuiu Carol. - Nessa altura - não parece assim tão distante, pois não? - ainda tínhamos permissão de ir a Margate aos fins-de-semana. Todas nós, raparigas,
ficávamos juntas. Acho que éramos umas snobes insuportáveis. Viajávamos em grupinhos, cada uma pertencendo a um ou outro grupo.
- Mas Stacy não fazia parte do grupo - interferiu Jace.
- Não. Ela era americana e... Não estou a defender-me, só que, na verdade, Stacy nunca fez qualquer esforço para se integrar no nosso meio, aliás recusou-se sempre.
Também não ajudou a sua afirmação de que detestava a Inglaterra e que o pai acabaria por a vir buscar qualquer dia. Todas achávamos o internato absolutamente normal,
mas penso que Stacy o encarava como um castigo. Penso mesmo que o considerava uma prisão e que lhe competia tentar fugir.
- Com alguém? - interveio Nigh.
- Sim. Pelo menos, assim o penso. Stacy era uma pessoa muito misteriosa. Podia falar-se com ela, mas apenas dizia o que queria que se soubesse. Nunca fez realmente
quaisquer confidências. Descobriu que isso era verdade? - dirigiu-se a Jace.
- Não o teria dito, mas descobri que era verdade. Embora estivéssemos noivos e fôssemos casar, ignorava que ela frequentara um internato inglês.
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- Penso que Stacy o encarou como a maioria das pessoas teriam considerado cumprir uma sentença na prisão. Sentia-se provavelmente embaraçada em referir esse assunto.
Percebi que ela o manteria como um segredo. Sinto curiosidade em saber o que aconteceu ao pai dela e à sua jovem mulher.
- Stacy falou-lhes deles? - inquiriu Jace.
- Apenas com sarcasmo. Costumava provocar-nos o riso com o seu humor negro. Uma vez, uma rapariguinha dos seus doze anos entrou na sala de jantar e todas nos interrogámos
de quem se tratava. "E a nova mulher do meu pai", comentou Stacy.
- Parece próprio dela - observou Jace, desviando os olhos por um momento. - Disse que achava que Stacy se suicidou e que a culpa era sua.
- Tenho sido assombrada por Stacy, desde que soube da sua morte. Desejava ter sido melhor para ela, ter-me esforçado mais para a incluir nas nossas reuniões.
- Porque acha que ela se suicidou? - perguntou Nigh, tentando encaminhar a mulher na direcção do que precisavam desvendar.
- Por causa de Tony, claro.
- Tony? - retorquiu Nigh.
- Tony Vine. Era o homem por quem estava apaixonada. Pelo menos, acho que estava apaixonada por ele.
Nigh e Jace entreolharam-se.
- Pode dizer-nos tudo o que sabe sobre Mr. Vine?
- A primeira vez que o vi foi em Margate, com meia dúzia de outras raparigas - respondeu Carol, bebendo um gole de chá. - Estava uma soalheira tarde de sábado e
julguei que Stacy ficara no colégio. Perguntei- -lhe se queria ir connosco, mas disse que tinha de estudar para um exame de química. Horas mais tarde, eu estava
com as minhas colegas e era dia de mercado. Andava a dar uma vista de olhos pelos quiosques quando ergui os olhos e todas as minhas amigas haviam desaparecido. Não
as vi em lado algum e entrei em pânico. Pus-me a correr na direcção do colégio, mas ao meter por uma travessa, avistei um rasgo de luz vermelha.
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Parei onde estava. A curiosidade superou o meu receio de me ver sem o meu grupo de amigas.
- Era Stacy - arriscou Nigh.
- Assim pensei. Tinha uma bonita écharpe de seda vermelha - todas invejávamos as roupas americanas de Stacy - e pareceu-me ver a écharpe a desaparecer ao virar de
uma esquina. Olhei em volta para me certificar se alguém me via e, em seguida, tomei a direcção da travessa, onde tinha visto a écharpe.
- Quando cheguei ao que me pareceu uma garagem, avistei novamente a écharpe e dobrei a esquina. AH estava Stacy enroscada num homem. Oh, desculpe! - pediu a Jace.
- Tudo bem. Gostaria de ouvir toda a história.
- Tem de compreender que quase todas nós éramos virgens - replicou Carol, pousando a chávena de chá. - Falávamos todo o tempo de sexo e todas fingíamos que possuíamos
a experiência de uma mulher de rua, mas a verdade era que nada sabíamos. Contudo, ali estava Stacy, a tranquila e reservada americana, enroscada num homem de uma
forma que nós jamais havíamos imaginado. Tinha uma perna à volta da cintura dele e...
Interrompeu-se ao vislumbrar a expressão de Jace.
- Viu-os em Margate - retomou Nigh. - Sabe onde mais se encontraram? E como descobriu de quem se tratava?
- Receei que me vissem e afastei-me, mas voltei ao mercado. A minha curiosidade superava tudo o resto e, portanto, queria descobrir mais sobre este homem com quem
Stacy estava.
- Homem? - interferiu Nigh. - Não um rapaz?
- Oh, não! Ele devia ter uns trinta anos e nós andávamos todas pelos dezasseis. Acho que Stacy tinha dezassete.
- Um homem de trinta anos - pronunciou Jace em voz baixa.
- Voltou a vê-los? - quis saber Nigh.
- Nesse dia, não. Regressei ao internato e lá estava Stacy, enroscada na cama com o seu livro de química. Não passaria pela cabeça de ninguém
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que estivera fora da escola e muito menos enrolada com um homem com quase o dobro da sua idade.
- Depois disso, posso dizer-lhes que comecei a observar Stacy - confessou Carol, dando uma dentada numa sanduíche de pepino. - Nunca lhe falei no assunto, nem lhe
dei uma única pista sobre o que vira, mas observava-a.
- E o que viu? - interessou-se Jace.
- Segredos e mentiras - respondeu Carol. - Ela era uma grande mentirosa. Peço-lhe novamente desculpa. Não quero desrespeitar a memória de Stacy, mas vi-a mentir
descaradamente à directora, sem sequer pestanejar.
- Sobre o que mentia?
- Sobre onde estivera e o que fizera. Stacy costumava escapulir-se do nosso quarto à noite. Fui sempre dorminhoca e tinha grande dificuldade em manter-me acordada
para ver o que ela fazia, mas consegui fazê-lo três noites seguidas. Ela esperava que eu adormecesse e saía do quarto em bicos dos pés. Espreitei duas vezes através
da janela e vi-a a atravessar o relvado a correr. Ela evitava as luzes do exterior, mas conseguia vê-la.
- Sabe onde ela ia?
- Para as traseiras, na direcção da colina. Um dia subi a colina e há um atalho lá em cima. Encontrei invólucros de barras de chocolate e algumas latas de refrigerantes,
lixo junto à orla do bosque.
- Muito brega! - comentou Nigh.
- Há muito tempo que não ouvia essa expressão, mas é mesmo isso e estou certa de que o namorado de Stacy as deixara por lá - sorriu Carol.
- Desculpe o snobismo - acrescentou, dirigindo-se a Jace. - Mas "brega" significa "nada aristocrata".
Jace não lhe disse que o termo também era usado nos Estados Unidos.
- Acha que Stacy se encontrava com esse homem no cimo da colina? - indagou Jace.
-Tenho a certeza. Era uma subida íngreme, mas possível. Na segunda noite em que consegui ficar acordada para ver o que Stacy fazia, pareceu-me
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ouvir o ruído de uma motorizada. Penso que ele a esperava lá em cima, na motorizada, e depois seguiam para qualquer lado.
- Quando é que ela voltava? - inquiriu Nigh.
- Estava sempre no quarto, quando eu acordava, de manhã. Aparentemente, Stacy nunca precisava de dormir muito - declarou, fixando Jace para se certificar.
- Não, não precisava. Tinha insónias - disse ele. - Era esse o motivo por que andava sempre com receitas de comprimidos para dormir.
- Nunca a vi bocejar - prosseguiu Carol. - Nunca a vi com um ar sonolento nas aulas. Se não dormir oito horas, nove se puder, não digo coisa com coisa durante o
dia. Mas Stacy era diferente.
- Então, porque acha que Stacy se suicidou? - perguntou Jace.
- Tenho de me desculpar por essa afirmação - redarguiu Carol, olhando para Jace. - Disse-o antes de conhecer todos os factos. Não sabia nada a seu respeito, nem
que Stacy estivera noiva de outro que não fosse Tony Vine. Apenas sabia o que vi nos jornais e só os li meses depois. Julguei que Stacy tinha voltado a Margate para
reatar com Tony. Depois de todos estes anos, ela ia finalmente estar com ele, mas talvez Tony a recusasse. Stacy sempre foi uma pessoa de excessos e imagino que,
uma vez apaixonada por alguém, seria para sempre. Concluía que se voltasse para ele e se descobrisse que ele talvez se tivesse casado com outra pessoa, se sentiria
extremamente infeliz.
- Quem é Tony Vine? - perguntou Nigh. - Ou nunca chegou a saber quem ele era?
- Cerca de um mês depois de o ver com Stacy, avistei-o a descer a rua, em Margate. Era um homem muito elegante, mas não fazia o meu género.
- O que quer dizer? - indagou Nigh.
- Tudo nele era demasiado... brilhante - respondeu Carol, encolhendo os ombros. - O meu pai odeia roupas novas. Se estreia uma coisa, passa o dia a cavalo e faz
o seu melhor para que pareça usada. Era ao que estava habituada e por isso Tony chocou-me. Havia algo nele... não pense,
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por favor, que estou a ser melodramática, mas era perigoso. Parecia um homem perigoso.
- Um homem de trinta anos com uma rapariga de dezassete? - exclamou Jace. - Devia ir para a prisão.
- De qualquer maneira, perguntei a alguém de quem se tratava - prosseguiu Carol. - Acho que foi a uma mulher numa casa de chá. Ela respondeu: "É Tony Vine" e a forma
como o disse levou-me a pensar que todos na cidade o conheciam.
- Sabe onde ele está agora ou o que lhe aconteceu? - perguntou Nigh.
Carol levantou-se e dirigiu-se a um armário antigo atrás do sofá,
retirando um pedaço de papel de uma gaveta.
- Há cerca de um ano estava em Londres e vi um homem na rua - respondeu. - Sabia que o conhecia, mas não me recordava de onde. Nessa noite, lembrei-me de que era
ele o homem com quem Stacy se encontrava às escondidas. Tony Vine. Não passara muito tempo desde que ouvira falar da sua morte em Margate e, por conseguinte, anotei
o nome do edifício, de onde vira Tony a sair. - Estendeu o papel a Jace que o examinou, passando-o, em seguida, a Nigh.
- Senti muita pena ao saber o que acontecera a Stacy - disse Carol a Jace. - Ao ouvir, pensei: "Ela matou-se por causa daquele horrível Tony Vice." A certa altura,
quando estávamos no colégio interno, pensei em ir ter com a directora e falar-lhe sobre Stacy. Receava por ela, preocupava- -me por sua causa, mas, depois, o pai
apareceu no colégio, levou-a de volta à Califórnia e nunca mais soube notícias dela. Até ser informada da sua trágica morte.
Seguiram-se uns momentos em que ninguém pronunciou palavra.
-Acho que já lhe roubámos demasiado tempo - declarou Jace, levantando-se. - Não tenho palavras para lhe agradecer a sua ajuda.
Carol e Nigh também se levantaram.
- Só desejava não ter sido tão passiva, quando éramos adolescentes - replicou Carol.
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- Não acho que nada disto seja culpa sua - pronunciou Nigh, agarrando na mão da jovem mulher.
- E eu não acho que Stacy se tenha suicidado - declarou Jace.
- Mas se ela não se suicidou... - declarou Carol, de olhos arregalados. - Acha que Tony a matou?
- Se não a matou, penso que talvez saiba quem o fez. Muito obrigado por tudo isto. Não sei como agradecer-lhe a ajuda que me deu.
Trocaram mais algumas amabilidades e depois saíram da casa de Carol e meteram-se no carro de Jace. Ele recostou-se por um momento no banco, de olhos fechados. Nigh
não o perturbou. Sabia como ele se sentia. Era muita informação para absorver. Segredos e mentiras. Carol afirmara que Stacy estava cheia deles. Nigh jamais o diria
a Jace, mas concordava. Stacy não falara ao noivo daquele seu ano num colégio interno inglês, nem de um homem por quem provavelmente esteve apaixonada. Em circunstâncias
normais, isso seria compreensível, mas Stacy continuava, aparentemente, apaixonada por este Tony Vine, muitos anos depois. Amava-o tanto, que passara por muitos
problemas, só para o ver antes do seu casamento. Apenas lhe bastara mandar-lhe uma fotografia de Priory House com algumas palavras rabiscadas e Stacy pusera em risco
o seu futuro com Jace para se encontrar com Tony.
"O que aconteceu nesse encontro?", interrogou-se Nigh. "Ela dissera a Tony que ele era o único? Que queria casar com ele e com mais ninguém? Que largaria Jace se
Tony a aceitasse de volta?"
"Tony dissera que não? Que já tinha uma mulher e filhos e que não a desejava? Foi por isso que Stacy se dirigiu ao pub e tomou um frasco de comprimidos?"
Nigh olhou para Jace quando ele ligou o motor e questionou-se sobre o que ele pensava. Aos seus olhos de jornalista, cada vez se tornava mais claro que Stacy se
tinha suicidado.
Tanto quanto Nigh conseguia reunir as peças do quebra-cabeças, nos seus tempos de rapariguinha, Stacy preocupara-se em conseguir o amor do pai. Ele era o único familiar
que lhe restava e optara pela sua
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nova e jovem mulher, em detrimento da filha. Segundo a educada descrição que Carol fizera de Tony Vine, ele tinha todo o ar de ser um verdadeiro canalha. As raparigas
não obtinham a aprovação dos pais casando com homens que usavam camisas brilhantes e saíam com estudantes adolescentes.
Nigh olhou para Jace e interrogou-se sobre se Stacy o aceitara por achar que ele era o tipo de homem que o pai aprovaria para seu noivo. Jace era tudo o que um pai
sonharia para a filha.
- Está a comparar-me com Tony Vine? - inquiriu Jace.
- Sim - anuiu Nigh, sem desejar mentir.
- Começa a pensar que Stacy se suicidou porque o seu namorado do colégio interno lhe disse que já não a queria, não é verdade?
- Sim - respondeu Nigh, temendo o que ele diria ante estas palavras.
- Óptimo! - exclamou Jace, sorrindo. - Se pensa isso, ainda se sentirá mais curiosa por saber a verdade.
Ao chegarem a Margate, Nigh disse:
- Acho melhor regressar a minha casa.
- Mas deixou as coisas em Priory House - retorquiu Jace.
- Posso ir buscá-las mais tarde. Tenho outra escova de dentes e mais uma camisa de noite, portanto não há problema.
- Se é isso o que quer - redarguiu ele.
- Não é o que quero, mas... - O seu temperamento levou a melhor.
- Temos vivido praticamente juntos, desde que nos conhecemos. Estou certa de que a cidade em peso não fala de outra coisa. E o pior é que nem uma palavra do que
pensam corresponde à verdade. Somos apenas amigos e trabalhamos juntos. É tudo.
Jace estacionou o carro no pátio de Priory House e desligou o motor.
- Amigos? É o que achas que somos? - explodiu.
Ao sair do carro, soltou uma risada. Nigh manteve-se sentada no banco do passageiro de cenho franzido, mas depois sorriu, saiu do carro e dirigiu-se à casa. Entrou
pela porta principal e não pela da cozinha.
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Passaram uma noite tranquila "em casa", como Nigh começava a pensar. A semelhança de um velho casal - só que sempre que Jace se aproximava, ela sentia o coração
a bater com força. Recusava mostrar-lhe emoções, pois aparentemente ele não correspondia da mesma forma. Estaria tão interessado nela como ela estava nele? Não tinha
a sensação de que o coração se lhe acelerasse quando o seu braço roçava o dela. Nem parecia suster a respiração quando aproximava o rosto do dele.
Falaram dos futuros de cada um com rodeios, o que a alegrava e enlouquecia em simultâneo. Queria saber se ele pretendia realmente inclui- -la no seu futuro. E o
que planeava ele fazer após o que descobrisse sobre Stacy. Tencionaria pôr Priory House à venda e sair de Inglaterra para sempre? Por outro lado, dissera que gostava
de Inglaterra. "Apesar de todos os seus defeitos", era como geralmente colocava a questão.
Quanto mais pensava, menos conclusões tirava.
Mrs. Browne colocou o jantar na mesa e Jace e Nigh comeram, trocando poucas palavras, cada um imerso nos seus pensamentos.
Depois do jantar foram para a sala, onde voltaram a ficar em silêncio.
- Não descobrimos a razão por que Ann e Danny nos têm aparecido - disse Nigh.
Jace estava sentado numa cadeira, fixando o fogo.
- Provavelmente nunca viremos a descobrir - replicou. - Acho que amanhã irei a Londres.
Nigh sentiu vontade de gritar "Sem mim?", mas permaneceu calada. A decisão pertencia-lhe. Estava, sem dúvida, embaraçado por ela ter ouvido tanta coisa sobre a sua
antiga noiva.
- Acho que vou para a cama - declarou ela, bocejando. Perante o silêncio de Jace, levantou-se e dirigiu-se à porta. Quando ia a passar pela frente da sua cadeira,
ele agarrou-lhe o pulso e levou as costas da mão à face.
- Lamento não ser muito boa companhia. Desde a morte de Stacy que nunca mais fui o mesmo. Contudo, quero que saiba que é a primeira
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pessoa que conseguiu levar-me a pensar que vale a pena viver. - Sem lhe soltar a mão, ergueu os olhos para ela. - Prometo que quando resolver isto, compensarei o
tempo perdido.
Nigh baixou os olhos com um sorriso. Depois, ele soltou-lhe a mão e voltou a fixar a lareira. Sentindo-se em parte feliz e em parte frustrada, abandonou a sala e
subiu as escadas até ao quarto da senhora. A lareira fora acesa e o ambiente estava quente e confortável. "Mas não tão quente e confortável como deveria", pensou,
fixando a cama vazia.
Tomou banho, vestiu a camisa de noite e meteu-se na cama. Só apagou a luz quando ouviu Jace subir as escadas para se deitar. Avistou uma sombra por baixo da porta
e susteve a respiração.
Quando a sombra se moveu, Nigh praguejou, apagou a luz, deu um murro na almofada e preparou-se para dormir. Embora estivesse irritada com Jace Monrgomery, adormeceu
minutos depois.
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Nigh foi acordada por música. Não estava alta, mas ouvia-a ao longe. De início, ficou desorientada, sem saber onde estava. Quando se sentiu mais desperta, pôs-se
à escuta. Não lhe parecia que viesse do andar de baixo, mas do lado de fora, junto à sua porta. "Jace estaria acordado e a ouvir música? Da era da big-band, pelo
som.
Saiu da cama, dirigiu-se à porta e abriu-a. Jace ia a sair do seu quarto. Vestia umas calças de ganga, uma grossa camisola de lã e calçava botas de cabedal. Levou
os dedos aos lábios para a avisar que se calasse. A música vinha do quarto de paredes estampadas, do quarto de Ann.
O primeiro impulso de Nigh foi voltar a refugiar-se no quarto e enfiar-se debaixo da cama. Melhor ainda, talvez fosse aquele o momento ideal para se meter no carro
e ir para casa.
Mas o gesto seguinte de Jace levou-a a tomar uma decisão. O gesto indicava-lhe que voltasse ao seu quarto, fechasse a porta e se metesse novamente na cama. Achava,
obviamente, que ela era demasiado cobarde para enfrentar o que quer que se passasse no quarto de Ann.
A falta de fé nela deu-lhe coragem. Fez-lhe sinal para que esperasse por ela, enquanto vestia alguma roupa. Já era suficientemente mau enfrentar fantasmas, quanto
mais em camisa de noite. Correu de volta ao quarto e vestiu-se de forma idêntica à dele: calças de ganga, uma camisola grossa e botas. Quatro minutos depois, encontrava-se
novamente no corredor, caminhando em bicos dos pés atrás de Jace, na direcção do quarto de Ann.
A porta do quarto estava aberta e as luzes acesas. Não fora assim que o tinham deixado. Jace puxou Nigh para trás dele, espreitou, percorreu toda a divisão com o
olhar, mas não havia ninguém, nem morto nem vivo.
Nigh reuniu coragem suficiente para sair de trás dele e dar um passo para dentro do quarto. Mesmo assim, nenhum deles falou.
Mal entraram, viram que a porta secreta do túnel estava aberta e a música vinha lá de dentro.
Jace voltou a puxar Nigh para trás dele e espreitou para o recanto escuro do poço das escadas. Apontou para baixo, na direcção do túnel. A música não vinha da divisão
secreta do andar superior, mas do próprio túnel.
Nigh tocou no braço de Jace e fez um gesto, perguntando-lhe quem sabia da existência da passagem e quem poderia estar a tocar música lá dentro, às duas da manhã.
Jace encolheu os ombros, dando a entender que não fazia a mínima ideia.
Avançou para o poço das escadas, tencionando seguir na frente dela, mas Nigh agarrou-lhe no braço e abanou vigorosamente a cabeça, em sinal de desacordo. Não lhe
agradava o que se estava a passar. Talvez Hatch, que, sem dúvida, conhecia o túnel, tivesse deixado um rádio ligado, mas não lhe parecia que assim fosse. "O que
raio está Danny Longstreet a preparar?", foi o pensamento que lhe ocorreu.
Ao ver que Jace abanava a cabeça, transmitindo a Nigh que ia entrar no túnel, independentemente do que ela achasse, ergueu um dedo para indicar: Espere um minuto.
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Dirigiu-se à lareira, retirou duas velas e alguns fósforos da cornija, uma parte da autenticidade do quarto de Ann. Jace sorriu-lhe e pronunciou com os lábios "linda
menina". Se pudesse falar, Nigh teria perguntado se ele também tencionava atirar-lhe um osso.
Jace riscou o fósforo e acendeu as duas velas, entregou-lhe uma e, em seguida, começou a percorrer a antiga passagem, com Nigh apenas uns centímetros atrás. Ela
estava a tentar agir com coragem, embora sentisse tudo menos isso.
A música estava muito alta. Quem quer que a pusera a tocar, ser- vira-se de uma antiga aparelhagem estereofónica. Era Woody Herman que tocava nesse momento, uma
melodia de jazz que a fazia pensar no swing, em que os rapazes atiravam ao ar as raparigas, fazendo-as em seguida deslizar no chão, pelo meio das suas pernas.
Sorriu ante a imagem e depois lembrou-se de onde estava e o que faziam. Agarrou-se com força às costas da camisola de Jace e seguiu-o, enquanto ele avançava cautelosamente.
Encontravam-se a meio e, no chão, havia uma grande aparelhagem. Jace inclinou-se e desligou a música. O silêncio que ficou era quase ensurdecedor.
Jace virou-se para ela, fazendo-lhe sinal para que ficasse ali.
Queria dizer que devia ficar sem ele? Sabia que o seu medo era infundado. Passara muito tempo da sua infância neste velho lugar que lhe era tão familiar como o seu
próprio quarto. Contudo, nessa época, uma parte da sua segurança residia na sua certeza de ninguém saber que ela estava ali. Como é que um homem mau podia apanhá-la,
se não sabia onde ela estava?
No entanto, o que tinham visto e ouvido nessa noite - música aos berros, luzes acesas, a porta secreta aberta - assustava-a. Não tinha a menor dúvida de que era
tudo obra de Danny Longstreet. Ele apreciara sem dúvida a graça de se ter sentado ao seu lado no banco, conversando em plena luz do dia, e ela sabia que ele estava
em Margate, porque o vira.
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Jace voltou a fazer-lhe sinal para que permanecesse onde se encontrava e ela voltou a abanar a cabeça. Sabia que ele desejava investigar o resto do túnel, verificar
a entrada do exterior, mas não queria ficar ali sozinha. Alguém estivera no túnel e recentemente. Quando se deitaram, as luzes do quarto de Ann estavam apagadas
e não havia música a tocar.
Jace sorriu-lhe de uma forma que se destinava, claramente, a fazê- -la relaxar, mas não conseguiu. Ele assentiu com a cabeça. Sim, ela podia acompanhá-lo.
Agarrou-lhe na mão e, em seguida, afastou-se um passo da aparelhagem a pilhas, que estava aos seus pés.
Contudo, aquele passo foi o único que deu, pois no segundo seguinte ouviram um estrondo que Nigh já escutara duas vezes na sua vida. Bombas!
- Baixe-se! - gritou ela. - Baixe-se!
O estrondo provinha de ambos os lados do túnel, portanto não podiam fugir em qualquer das direcções.
Jace percebeu. Agarrou em Nigh e puxou-a para baixo dele, cobrindo o corpo dela com o seu e aterrando no chão duro e frio de terra.
Por baixo dele, Nigh tapou os ouvidos com as duas mãos e Jace fez o mesmo. Ela não tinha qualquer esperança de que vivessem nem mais um minuto. O velho túnel desabaria
sob as bombas colocadas em cada extremo da passagem. Se não fossem atingidos pelas vigas em queda, sê- -lo-iam pelas paredes.
Agarrou-se a Jace, enquanto o som lhe apagava todos os pensamentos. Pó, entulho, tábuas e sujidade que estavam solidificadas por centenas de anos atingiram o chão,
ameaçando esmagá-los.
As duas explosões deram-se rapidamente, mas pareceram durar uma eternidade. Jace conservou Nigh debaixo dele, protegendo-a de ser atingida por muito pó. Mantiveram-se
assim durante longos e terríveis minutos, esperando a qualquer segundo que o tecto lhes desabasse nas cabeças. Mas isso não aconteceu.
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Quando o ruído parou e até os ecos diminuíram, Jace moveu-se de cima dela.
- Está bem? - perguntou.
Nigh só conseguiu assentir com a cabeça. Sentia os ouvidos a explodir.
As velas tinham-se apagado e estavam mergulhados numa total escuridão. Sentiu Jace às apalpadelas, tacteando o chão, à procura delas. Ao encontrar uma, tirou do
bolso a caixa de fósforos e acendeu-a.
Nigh sentou-se no chão junto à aparelhagem e ficou a ver Jace a mover-se no que restava do túnel. Os dois extremos tinham desabado. Restavam cerca de um metro de
espaço à direita e outro metro e meio, à esquerda. Isso significava que havia metros de sujidade solidificada a separá-los do mundo.
Observou Jace a examinar o que os rodeava. Olhou para o muro de sujidade, arrancou alguma e, em seguida, parou, ao dar-se conta de que as traves antigas por cima
das suas cabeças começavam a ranger. Ergueu a vela para observar as barricadas e Nigh seguiu a luz. As velhas traves estavam finalmente a ceder. Formavam um arco
e, a cerca de três metros de onde se encontrava, detectou uma nova fenda numa delas.
- Quem conhece a existência deste túnel? - perguntou Jace, dando a sensação de que não era de uma importância vital.
- Mais pessoas do que sei - respondeu ela. - Quem quer que tenha colocado a aparelhagem aqui, conhecia-a.
Jace fitou-a. - Estou certo de que metade da vila ouviu esta explosão e estão provavelmente a arranjar... como é que lhes chamam? Escavadoras.
- Máquinas.
- Exacto. Escavadoras. Estão a reuni-las neste momento. Acha que Hatch os deixará cortar caminho por cima do relvado? Já o estou a ouvir dizer que os donos vêm e
vão, mas os relvados ficam para sempre.
Ela não se riu da piada. Já estivera em situações idênticas e vira pior. Não iam sair dali vivos. Com toda a probabilidade, levaria uma semana
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antes que alguém percebesse que haviam desaparecido. Os habitantes sabiam que Jace e Nigh se ausentavam frequentemente para qualquer sítio, onde ficavam durante
dias.
- Acho que não devemos mentir um ao outro, pois não? - inquiriu Nigh, baixinho. - Não darão pela nossa falta e, se derem, não fariam ideia de onde procurar.
Por um momento, Jace não a olhou e depois virou-se devagar.
- A culpa é minha - pronunciou num tom grave. - Sabia que havia perigo. Stacy foi morta e o seu assassino preparou tudo isto. Eu queria protegê-la. Queria...
Ela ergueu o rosto para ele e viu que tinha os olhos com lágrimas. Abriu-lhe os braços, ele aproximou-se e abraçaram-se.
- Lamento - repetiu Jace, vezes sem conta. - Lamento. Queria tanto partilhar tudo consigo, que perdi a noção do perigo. Devia tê-la protegido.
Nigh acariciou-lhe o cabelo e acalmou-o, abraçando-o com força de encontro ao seu corpo.
- Aconteça o que acontecer, ainda bem que me falou de... de si - disse. - Mas porque é que...
- Porque a amo - completou ele, como se fosse um facto do conhecimento geral.
- Você o quê? - exclamou, afastando-se dele para lhe observar o rosto.
Jace sentou-se e encostou-se à fria parede de sujidade, ao lado dela, enxugando os olhos. - Desculpe. Tenho tentado refrear as minhas emoções, mas por vezes...
- Sou inglesa, portanto não tente falar-me de emoções reprimidas. Quero ouvir a parte do amor.
Jace olhou-a como se ela fosse louca.
- Apaixonei-me por si na primeira vez que a vi - disse. - Julguei que soubesse.
- Desculpe a minha estupidez, mas não, não sabia.
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- Hum! - exclamou, surpreendido. - Fui a sua casa - bom, a minha casa - disposto a processá-la, mas acabei por convidá-la a viver comigo.
- Esboçou um aceno com a mão. - Mais ou menos.
Nigh desejava ouvir o que ele tinha a dizer. Queria discutir com ele, fazer qualquer outra coisa, em vez de pensar onde estavam e que nunca mais sairiam dali. A
falta de oxigénio seria a primeira coisa a matá-los?
- Muito bem - declarou, acalmando-se. Não havia motivo para morrer mais depressa do que o necessário. Manter o ar. - Nesse caso, porque não me tocou?
Jace examinava as paredes. Agarrou na vela e começou a percorrer a comprida passagem. - Ouve alguma coisa? - perguntou.
- Não - disse ela. - Quero uma resposta à minha pergunta.
- Vai troçar de mim? - redarguiu ele.
- Acho que nada neste mundo me faria rir neste momento.
- Durante um ano após a morte de Stacy, tinha medo sequer de falar com uma mulher que não fosse sua parente. Receava dizer algo que a entristecesse tanto que...
- Fosse ao ponto de se matar?
- Não. Nunca cheguei a esse ponto. Contudo, não duvidava de que Stacy tinha segredos e receava que houvesse algo de errado comigo, pois ela não confiara em mim.
- Estava a inspeccionar a superfície do túnel.
- Todos temos segredos - retorquiu Nigh. - E Stacy vivera experiências terríveis no passado. Tinha sobrevivido à morte da mãe e ao abandono do pai, tudo no mesmo
ano. Era uma mulher cheia de força.
- Começo a pensar que sim - disse Jace, virando a cabeça para a fitar.
- E quanto ao toque? Nós os dois a tocarmo-nos.
Jace inclinou-se para observar a pilha de sujidade no extremo do túnel. - Dois anos após a morte de Stacy, não tinha tocado numa mulher e fiz uma espécie de jura
ao espírito de Stacy de que isso não aconteceria até descobrir a verdade sobre a sua morte. Bom ou mau, iria descobrir.
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Nigh levou um momento a perceber o significado das suas palavras e depois sorriu. Ele fizera um voto de celibato. Ignorava porque o pensamento lhe agradava tanto,
mas era verdade. Interrogou-se sobre quantos homens eram capazes de amar ao ponto de desistirem de sexo.
Uns anos antes, Nigh estivera num lugar horrível, rodeada de homens como sempre acontecia, e esperavam para contar em três minutos aos espectadores da televisão
americana todo o horror a que haviam assistido. Um deles - que andava a fazer-lhe olhinhos há dias - perguntou-lhe o que ela procurava num homem. Consciente de até
que ponto ele era egoísta e corrupto, ripostou: "Quero um homem que seja capaz de amar." Fora uma declaração impulsiva, mas pensara nela mais tarde e sabia que era
verdade. Um homem que fosse capaz de um amor verdadeiro, um amor profundo, um amor que colocasse os outros acima de tudo.
Ficou a observar Jace que pousou a vela e começou a esgaravatar a sujidade. Sabia que era um acto inútil, mas agradou-lhe que ele estivesse a tentar. Era um homem
que amara tão completamente que lutara contra todas as ideias dos outros e permanecera fiel à sua convicção. Não acreditava que Stacy se tivesse suicidado e dedicara
a sua vida a provar que ela não o fizera. Não queria falsas acusações contra ela ou contra ele.
- Acho que devia sentar-se - pronunciou Nigh, num tom calmo.
Jace virou-se para ela e deu a sensação de ir fazer qualquer alegre
comentário sobre saírem brevemente os dois, mas pareceu mudar de opinião.
- Sim, Devemos economizar oxigénio - anuiu.
Sentou-se ao lado dela e atraiu-a de encontro ao corpo, com a cabeça dela no seu peito. Uma vela quase se apagara e a outra não duraria muito tempo. Contudo, também
o ar não duraria.
Jace apertou-a, acariciando-lhe o cabelo, e mantiveram-se calados. Nigh pensou em dizer-lhe que também o amava, mas sabia que não seria
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novidade para ele. Nunca mais se haviam separado, desde o primeiro dia em que se conheceram. Se se tivessem escapado como dois amantes nesse dia, não poderiam estar
mais juntos.
Só se apercebeu de que chorava ao sentir a camisa molhada sob o queixo dele.
- Shhhh! - pronunciou ele, acariciando-lhe a face. - Calma. Precisamos de estar tranquilos e calmos e respirar o mais lentamente possível.
Nigh assentiu com a cabeça. Era inútil fazer outra coisa. A raiva de nada serviria e falar era desnecessário.
Ignorou quanto tempo se manteve ali, com o corpo encostado ao dele, sentindo o calor, o rosto contra o seu coração, ouvindo as batidas firmes, antes de adormecer.
Ignorou quanto tempo passou antes de Jace a acordar. - Calma - pediu ele num tom rouco e sentiu como respirava fundo. Não restava muito ar no túnel. - Escuta!
Nigh tentou erguer a cabeça, mas parecia um esforço excessivo e voltou a encostá-la ao peito de Jace.
- Estás a ouvir? - perguntou ele.
Ela não ouvia nada.
Jace afastou-a dele com dificuldade e, em seguida, levantou-se, apoiando-se no muro frio e térreo. Encostou o ouvido ao muro.
- O que ouves? - sussurrou Nigh e respirou fundo algumas vezes, em busca de oxigénio.
- Não sei. - Avançou até à outra pontà do túnel e encostou o ouvido ao muro. - Talvez não seja nada - respondeu e depois apontou. O que quer que ouvisse, vinha do
local onde Nigh se encostava.
Inclinando-se devagar, Jace ajudou-a a levantar-se, ambos fazendo esforço para respirar. Ajudou-a a chegar ao fundo do muro e o mais longe possível do sítio onde
se encontravam.
Agora, ela conseguia ouvir e fitou Jace, de olhos muito abertos.
- O que...é? - inquiriu.
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Jace respirou fundo. - Máquinas - conseguiu articular e em seguida puxou-a para que se sentasse ao lado dele no chão, envolvendo-a num abraço protector.
Aguardaram à escuta de qualquer som e depois sentiram-no. Sentiam um estrondo enorme, uma vibração vinda do muro. Nigh imaginou outra explosão, ou a queda de uma
das velhas traves arrastando o tecto atrás, mas estava demasiado abstraída com a falta de oxigénio para se preocupar. Pousou a cabeça no braço de Jace começou a
enroscar-se para dormir.
Quando o enorme balde da escavadora furou o tecto, ela não estava preparada, mas Jace sim. Imaginara o que se passava e sabia que quando se fizesse um buraco no
túnel, o tecto desabaria. Tinha de ser rápido!
No momento em que a escavadora furou o tecto, ergueu o rosto, pronto a entrar em acção, mas estava com demasiada falta de ar para conseguir mover-se. Contudo, não
precisava de se preocupar. Havia uma dúzia de rostos a espreitar pelo buraco e prontos a agir. Antes de o buraco estar completamente aberto, dois homens haviam saltado
para o túnel e fizeram descer uma escada. Um indivíduo robusto içou Nigh por cima do ombro e, em seguida, Jace foi içado pela escada, com o último homem atrás dele.
Segundos depois de atingirem o topo, o que restava do túnel desabou, engolindo a escada e também quase o último homem, mas os outros puxaram-no.
Havia uma ambulância à espera, onde Jace e Nigh foram colocados e receberam máscaras de oxigénio nos rostos. Nigh seguiu deitada na cama da ambulância e Jace manteve-se
ao seu lado, agarrando na máscara.
Um homem com a farda de técnico de emergência fitou-os. - Estão bem? - perguntou e Jace assentiu com a cabeça.
Jace retirou a máscara por um momento. - Quem nos descobriu? - inquiriu, ofegante.
- Um velho chamado Hatch. Há quanto tempo estavam lá em baixo?
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Jace olhou para fora da ambulância. Era dia, mas ignorava as horas.
- Desde as duas da manhã - respondeu.
O homem esboçou um sorriso condescendente. - É impossível. Não poderiam ter aguentado com vida - replicou, saindo da ambulância e fechando a porta. Minutos depois,
seguiam a caminho do hospital.
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21
Nigh acordou aos poucos, receosa do que veria. A última coisa de que se lembrava era de estar nos braços de Jace e sabendo que não voltaria a acordar. Interrogou-se
se abriria os olhos e veria o Paraíso.
Ao abrir os olhos, sorriu ante o pensamento. Sentado numa cadeira, profundamente adormecido, tapado com uma manta, estava Jace. Observou-o um momento, sorrindo ao
vê-lo e começou a lembrar-se gradualmente do salvamento. O balde de uma escavadora atravessando o muro, depois a luz do Sol seguida de uma lufada de ar. Homens tinham
saltado para dentro do túnel, com cordas à volta da cintura, depois do que alguém a içou sobre um ombro robusto, levando-a para cima. Lembrava-se de olhar para trás
e de avistar Jace a subir pelas escadas até à relva e à luz do Sol. Atrás dele, o que restava do túnel desabou com um ruído enorme. Ouviu-se um grito quando um homem
foi puxado do tecto que caía e depois exclamações de triunfo quando todos ficaram a salvo.
Em seguida, não se lembrava de muito, à excepção de estar deitada com uma máscara sobre o rosto e de voltar a respirar.
Jace abrira os olhos e fitava-a. - Olá - saudou.
-Olá.
Trocaram sorrisos, sem necessidade de palavras. Fosse como fosse, haviam sobrevivido ao insuperável.
Sentou-se na cama e Jace levantou-se para a ajudar, ajeitando-lhe a almofada e depois dando-lhe água a beber. Tinha um tubo intravenoso no braço.
- Conta-me tudo - pediu.
- Não posso - respondeu, beijando-a na testa. - Tenho de ir a Londres.
- Londres? - repetiu, agarrando-lhe no braço. -Vais encontrar-te com Tony Vine, não é verdade?
- Sim e não olhes para mim dessa maneira. O assunto é sério. Tenho de descobrir quem matou Stacy.
Nigh apercebeu-se de que, pela primeira vez, ele pronunciou o nome sem sofrimento, sem tristeza, sem uma voz culpada. Apertou-lhe o braço com mais força. - Não podes
ir sem mim.
- Tens de ficar aqui um dia e deixar que os médicos te observem.
- E pelos vistos eles não te disseram o mesmo.
- Disseram-me, sim - afirmou Jace, com um leve esgar -, mas tenho de ir. E sozinho.
- Vou dizer-lhes onde foste - ameaçou ela.
- Nigh, minha querida, não posso levar-te comigo - replicou ele, acariciando-lhe a face. - Mal chegámos aqui na noite passada, telefonei ao meu tio e ele descobriu
umas coisas. A colega de quarto de Stacy, Carol, tinha mais razão do que sabia quanto a este tal Vine. Ele é o líder de um pequeno grupo inglês de crime organizado.
Ninguém conseguiu provar nada, mas está metido em algumas coisas bem complicadas, como drogas.
- Portanto, vais vê-lo e acusar um homem desses de ter matado a tua noiva. Tens um último desejo?
- Não vou acusá-lo de nada. Apenas quero saber o que aconteceu.
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- Precisas de entregar o caso à polícia, Jace - retorquiu ela, enter- rando-lhe as unhas no braço.
- Não achas que gostaria de fazê-lo? - ripostou ele com uma expressão dura. - Esta manhã conversei com eles e falei-lhes da explosão. Contudo, não acreditaram em
mim. Disseram que o que ouvi foi o desabamento de um túnel de trezentos anos e que devia sentir-me grato por estar vivo.
- Falaste-lhes da aparelhagem, das portas abertas e das luzes acesas?
- Claro, mas eles responderam que provavelmente se tratava do fantasma de Priory House, da assaltante de estradas. Acharam todos muita graça.
- Como sabes que este homem, Tony Vine, se encontrará contigo?
- Mandei um serviço de mensageiros em Londres entregar um bilhete na morada que Carol nos forneceu. Bastou-me mencionar o nome de Stacy e concordou em ver-me.
Nigh recostou-se na almofada. - Não podes ir sem mim. Faço parte disto - protestou.
- Ficarás com Hatch e Mick, enquanto vou a Londres.
- Na noite passada, ouvi alguém dizer que Hatch fora o único que sabia onde nos procurar. Como soube onde estávamos?
- Podes perguntar-lhe quando o vires - respondeu Jace, desviando os olhos. - Ele estará aqui dentro de uma hora - se conseguir, claro.
- O que significa isso?
- Há cerca de doze jornalistas lá fora, à espera que um de nós apareça - respondeu Jace com um esgar - Alguém da vila contou-lhes que o túnel de Lady Grace fora
descoberto e ela quase se vingara de nós, fazendo-o desabar connosco no interior. A história foi título de primeira página por toda a Inglaterra.
- E planeias deixar- me para lidar sozinha com eles.
- És jornalista, já te esqueceste? - retorquiu Jace, com uma expressão surpreendida. - Costumas encostar o microfone ao rosto de alguém.
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- Não entrevisto celebridades e definitivamente não me dedico a histórias de fantasmas locais.
- Foi assim que me conheceste! - declarou ele, exasperado. - E consegues dizer-me honestamente que nunca seguiste ninguém com um microfone, exigindo-lhe que te contasse
o que não era de tua conta?
- Não o fiz dessa maneira. Apenas relatei o que as pessoas... - Baixou os olhos para as mãos.
- Relataste o quê?
- O que as pessoas têm direito a saber - respondeu. - Pronto! Estás satisfeito?
- Não. Já fizeste isso às pessoas e, portanto, agora podes estar do outro lado. Tenho de ir.
Nigh deu meia-volta e saiu da cama, mas ficou retida pelo tubo intravenoso no braço. - Se fores a Londres sem mim, eu...
- Tu, o quê? - ripostou Jace, num tom irritado.
- Eu... - Levantou a cabeça. - Depois de nos casarmos, lembrar- -te-ei tudo isto para o resto das nossas vidas. Farei com que te sintas tão arrependido por não me
teres levado e me teres deixado aqui sozinha a enfrentar os jornalistas que lamentarás o dia em que o fizeste. Eu...
- Ganhaste - interrompeu-a. - Onde está a tua roupa?
- Não faço ideia, mas penso que está naquele armário.
Quando ele tirou a roupa, Nigh respirou fundo e arrancou o tubo do braço. Ia a dizer a Jace que se virasse enquanto ela se vestia, mas, em seguida, dirigiu-lhe um
pequeno sorriso e pôs-se nua na frente dele. Jace ficou sem fala, fitando-a e examinando cada polegada do seu corpo despido.
- Aprovas? - inquiriu ela.
- Nigh - pronunciou ele num tom meigo, atravessando o quarto numa passada, tomando o seu corpo nu nos braços e beijando-a. Era bom saber que ele a desejava, que
não sonhara que ele havia dito que a amava.
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- Londres - sussurrou Nigh, enquanto as mãos dele lhe percorriam as costas desnudas. - Tony Vine. - Ele continuou a acariciar-lhe a pele e ela sabia que se não queria
que acabassem na cama do hospital, tinha de o deter. - Voto de castidade - pronunciou, erguendo a voz. - Lembras-te de Lancelote?
Jace afastou-se dela com um sorriso e depois virou costas, enquanto Nigh se vestia.
- Quero resolver isto rapidamente - declarou.
- Também eu - riu Nigh. - Levou apenas uns minutos a pôr novamente a roupa. Jurou que a queimaria assim que pudesse, pois cheirava ao túnel. Estava húmida e suja
e, da última vez que a pusera, enfrentara a morte.
- Portanto, como saímos daqui sem que nos vejam? - perguntou Nigh.
- Segue-me - disse ele, pegando-lhe na mão e levando-a até à porta. Certificou-se de que não havia ninguém no corredor. - Pega em dois ramos de flores - indicou
com um aceno de cabeça na direcção das jarras do quarto.
Ela nem sequer tinha reparado nas flores.
- Ooooh! Quem as mandou? - inquiriu.
- Não sei - respondeu Jace. - Mas serão o nosso disfarce. - Andaremos à procura de uns doentes.
- Em vez de sermos nós os doentes - replicou. - Muito bem.
Dez minutos depois tinham saído do hospital e iam a caminho do parque de estacionamento. Jace tirou as chaves do bolso e dirigiu-se ao carro.
- Como é que isto veio parar aqui?
- Mick.
- Continuas sem me contar como o Hatch soube onde estávamos - redarguiu, ao entrar.
- Disse-lhe o Danny.
- Ah! - exclamou Nigh, de olhos muito abertos. - Ann estava com
ele?
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- Tens alguma irmã?
- Não. Nesse caso, Ann estava com ele. Mick disse que era uma mulher jovem muito parecida contigo.
- Alguém sabia que eles eram fantasmas? - inquiriu Nigh, de olhos fixos na estrada.
- O Mick não, mas acho que Hack sim, embora não tenha falado com ele. O Mick contou que um homem qualquer indicou a Hatch onde estávamos, acordou Mick e depois eles
acordaram toda a gente.
- Mas o Mick viu o homem e a mulher? - indagou Nigh.
- Sim. Falou do assunto despreocupadamente. Disse que Hatch apontou para um indivíduo qualquer que estava de pé junto à estrada e afirmou que fora ele a dizer-lhe
que nos encontrávamos no túnel. Perguntei a Mick de quem se tratava para poder agradecer-lhe, mas Mick respondeu que ele era demasiado tímido para aparecer de trás
dos arbustos. Nem sequer permitiu que a equipa de salvamento lhe agradecesse.
- Suponho que pediste a Mick que o descrevesse?
- Oh, claro. Até às botas de montar que Danny calçava.
- E quanto a Ann?
- Mick contou que o homem falava com uma mulher de vestido comprido. Mick achou que ela estava em camisa de noite, só que tinha um cinto a apertá-la.
- Ah! - exclamou Nigh assentindo com a cabeça e depois fitando- -o. - A falar com ela? Mas isso significa que Ann e Danny estão novamente juntos. Que coisa fantástica!
Ele tem assombrado Tolben Hall e Ann tem estado aqui. Portanto, agora podem ficar juntos para sempre e viver felizes. Ou em direcção à luz ou o que quer que seja.
- Foi o meu primeiro pensamento - retorquiu Jace.
- Mas e então?
- Fiz algumas perguntas a Mick a respeito deles. Contei-lhe que eram meus amigos de uma outra localidade, que lhes falara das minhas explorações do túnel e do meu
receio de que ele desabasse. Acrescentei
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que tinham tido uma grande discussão e me interrogava sobre se pareciam estar novamente juntos.
- O que respondeu Mick?
- Que pareciam tristes, mas achou que temiam que nós estivéssemos mortos, quando chegassem até nós. Demoraram algum tempo a arranjar uma escavadora e mais algum
a pensarem por onde deviam começar o trabalho.
- Acho que Danny lhes disse. Na verdade, ele podia atravessar as paredes de um lado ao outro e ver onde nos encontrávamos.
- O Mick contou que Hatch se dirigiu várias vezes aos arbustos antes de dar ordens ao homem do bulldozer para começar a escavar.
- Interrogo-me sobre como Hatch lidou com isso - pestanejou Nigh.
- Fazer perguntas a um fantasma em plena luz do dia.
- Mick contou que Hatch passou todo o tempo a beber grandes tragos de uma garrafa que trazia consigo.
- Sei como ele se sente - riu Nigh. - Já falei antes com o Danny, mas se tivesse de fazê-lo novamente, precisaria de uma boa golada da mistela do Hatch.
- Preferia enfrentar um exército de fantasmas a ter de engolir novamente um gole da mistela de Hatch - replicou Jace, provocando uma gargalhada em Nigh.
- E bom estar vivo, não é? - perguntou Jace, desviando os olhos da estrada e olhando-a.
- Maravilhoso - respondeu ela. - Fantástico, mesmo. A propósito, preciso de comer e de roupas limpas. Não quero encontrar esse gangster, vestida com umas calças
de ganga e um blusão.
- As mulheres saem muito caras, não é? - indagou Jace, com uma expressão solene.
- Lá isso é - anuiu Nigh, respirando fundo. - E tudo começa por um anel. Os diamantes cor-de-rosa são caros?
- Muito - resmungou Jace.
- Perfeito - exclamou ela a rir.
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A tarde ia adiantada quando ficaram prontos para se encontrar com Tony Vine. Dirigiram-se a uma das arcadas do moderno bairro Mayfair de Londres e compraram roupas
novas. Depois, alugaram um quarto no Cla- ridges, tomaram banho e vestiram-se. Mostraram-se muito educados, respeitando a privacidade de cada um, sem fazer comentários
sobre a cama de casal. Uma grande e confortável cama, que ocupava a maior parte do quarto.
Às quinze e trinta estavam prontos para sair.
Mantiveram-se silenciosos enquanto desciam no elevador e, ao passarem na recepção, um homem estendeu um grande envelope a Jace. Ele abriu-o no táxi, leu o conteúdo
e depois fitou Nigh.
- Tony Vice estava no hospital quando Stacy morreu - disse, após o que hesitou. - Parece que Tony tentou matar-se na noite em que Stacy morreu.
Ela tirou-lhe o papel da mão e leu por sua vez. Era do tio dele, Frank Monrgomery, e tratava-se de uma fotocópia de um registo de um hospital próximo de Margate.
- Um duplo suicídio? - redarguiu Nigh, fitando Jace com um olhar incrédulo. - Um pacto?
- Não é assim quando duas pessoas se matam ao mesmo tempo? - retorquiu ele, secamente. - Mas, então, Tony sobreviveu e Stacy morreu.
Quando o táxi parou, Nigh tinha o sobrolho franzido. Nada daquilo fazia sentido. Desceram diante de um edifício moderno, todo de vidro e aço metalizado, tão frio
quanto o aço pode ser.
- Encantador! - pronunciou Nigh, mas Jace não lhe respondeu. O rosto assemelhava-se a uma máscara severa que ela não conseguia decifrar.
Um homem vestido com um fato largo - "para esconder a arma?", interrogou-se Nigh, foi ao encontro deles e conduziu-os num elevador que tinha apenas dois botões no
painel: átrio e penthouse.
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Não trocaram palavra enquanto subiam. O apartamento era exactamente como Nigh o imaginara: com chão de mármore branco e alguns toques de cor obviamente distribuídos
por qualquer designer famoso que não se importava com os moradores, mas apenas que a casa proporcionasse boas fotografias.
Passaram junto a mais dois indivíduos de expressão sisuda, antes de entrarem numa salinha redonda que parecia projectada sobre Londres. Os homens saíram e, por um
momento, Nigh e Jace ficaram sozinhos.
- Bonitos pratos - elogiou Nigh, mas Jace não reagiu. Tinha os olhos fixos na porta do outro extremo da sala. Um minuto depois, ela abriu-se para dar passagem a
um homem que contava apenas quarenta anos, mas aparentava cinquenta. Denotava uma expressão abatida, como se tudo o que fizera na vida tivesse deixado marcas. Havia
papos enormes por baixo dos olhos. As roupas eram exactamente como Carol as descrevera: brilhantes. Eram caras e feitas à medida do seu corpo musculoso, mas pareciam
baratas. "É a pessoa que faz a roupa", pensou Nigh.
Indicou-lhes as cadeiras com um gesto gracioso e convidou-os a sentar-se. Tinha uma voz áspera, mas delicada.
- Sirvo eu? - perguntou Nigh. Jace sentara-se, mas conservava-se muito direito.
- É então você o tipo com quem a Stacy tencionava casar - comentou Tony, medindo Jace de alto a baixo. - E agora quer falar dela.
- Quero ouvir o que tem a dizer - redarguiu Jace com tanta raiva e hostilidade na voz, que Nigh teve vontade de lhe dar um pontapé por baixo da mesa.
- Chá, Mr. Vine? - inquiriu, erguendo a voz.
- Tony, por favor - sorriu ele, aceitando o chá e, por um instante, ela detectou o encanto que este homem desprendera. Não era bonito, mas tinha o seu quê de interessante.
Contudo, o poder era um afrodisíaco, não é o que dizem?
- Muito bem - anuiu Tony. - Vou falar-lhe daquela noite. Devo isso à Stacy. Mas desde já lhe garanto que não tive culpa de que ela se
suicidasse.
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Não tive nada a ver com o assunto. - Fitou o rosto inexpressivo de Jace e voltou a fixar Nigh. - A última vez que a vi foi o pior momento da minha vida.
Ela sorriu e estendeu-lhe uma bandeja com sanduíches miniatura.
- Sei que estava noivo dela - prosseguiu Tony olhando para Jace - e parece o género de homem com quem ela devia ter casado, mas digo- -lhe que não tenho tempo para
adoçar a pílula. Consegue aguentar?
- Consigo aguentar tudo o que tiver para despejar - respondeu Jace, de olhos brilhantes.
- Que tal um bolo, Tony? - interferiu Nigh, tentando desviar a visível hostilidade de Jace.
- Você é uma verdadeira dama, não é?
- Não, céus! - ripostou Nigh. - Sou uma jornalista.
Ao ouvir aquela resposta, Tony riu de tal maneira que quase se engasgou.
- Você agrada-me - declarou. - Gostava de sair comigo um dia destes?
- Desculpe, mas estou comprometida - respondeu, sem dizer com quem, mas fitando Jace e voltando a desviar o olhar.
- Okay. Basta de conversa da treta. Vamos directos ao assunto. Conheci Stacy Evans quando estávamos em pé de igualdade. Sim, sei que eu era um homem e ela uma miúda
do liceu, mas era mais velha que a sua verdadeira idade e, bom, eu só cresci quando fui obrigado. De qualquer maneira, estávamos bem um para o outro. Além disso,
ela sentia-se revoltada contra o pai rico que a trocou pela flausina da mulher e eu detestava aqueles convencidos da mansão.
- Priory House - disse Jace.
- Sim, essa mesmo. Stacy e eu conhecemo-nos em Margate. Ela entrara furtivamente no pub e comportava-se como se tivesse idade para beber. Enganou o barman, mas não
a mim. Digamos que a nossa atracção foi à primeira vista. Ela era insaciável - rematou Tony, sorrindo ao recordar-se.
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Nigh estendeu a mão por cima da mesa e pousou-a em cima da de
Jace.
- Nessa altura, a casa estava vazia, como era hábito, e fazíamos amor em todas as divisões.
- E ninguém sabia? - perguntou Jace, dando a entender que Tony era um mentiroso.
Tony não se mostrou ofendido. - Não disse isso. A vovó sabia, mas queria que eu casasse com Stacy.
- Vovó? - inquiriu Nigh.
- Toda a gente a conhece por Mrs. Browne, mas para mim será sempre vovó.
Nigh percebeu que Jace se descontraía um pouco. Estava interessado nesta nova viragem da história.
- A sua avó queria que casasse com Stacy? - retorquiu Nigh.
- Nunca o afirmou por muitas palavras, mas eu sabia que sim. Stacy era uma rapariga voluntariosa e a família era rica. Eu já me encontrava metido numa série de coisas
de que a vovó não gostava, mesmo nessa altura. Penso que ela achava que uma boa mulher serviria para me endireitar.
Tony denotou uma expressão sonhadora. - Quero deixar bem claro que Stacy foi o amor da minha vida - prosseguiu. - Nunca senti por ninguém o que senti por ela. Adorava-a,
adorava a sua aparência e o seu cheiro. A forma como falava. Ela era tudo o que eu vira na gente rica que vivia habitualmente em Priory House, mas que jamais poderia
ter. Nunca deixou de me surpreender que ela estivesse apaixonada por mim, o vulgar e ordinário Tony Vine.
- Ela estava apaixonada por si? - interferiu Nigh.
- Sem dúvida. Estava mesmo - respondeu, baixando os olhos para a chávena. - Ignoro o que teria acontecido se o pai não tivesse recuperado o bom senso e a chamasse
de volta a casa - suspirou Tony. - Ela queria ficar comigo. Queria abandonar os estudos para viver comigo, mas convenci-a a voltar. Prometi que lhe escrevia, mas
nunca o fiz.
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- Mas porque a mandou embora? - inquiriu Nigh, sem se conter.
- Uma questão de orgulho. Ela não era dessa opinião, mas eu sabia que o seu pai rico olharia para mim e...- respondeuTony, encolhendo os ombros.
- Voltou a vê-la depois de ela se ir embora? - questionou Nigh, num tom suave.
- Durante anos, não. Como já disse, Maio de 2002 foi um verdadeiro desastre na minha vida. O pior de sempre. Meti-me em sarilhos com uns rufias de Liverpool. - Encolheu
os ombros. - Apostei nas corridas de cavalos e perdi tudo. Começaram a perseguir-me.
- Fui para o único sítio, onde sabia que estaria a salvo: Priory House. A vovó deu-me comida e carinho e escondi-me nos quartos, percorrendo as camas todas. Todavia,
sentia-me farto. Farto de ser louco. Tinha um computador e uma ligação à Internet e escrevi, por impulso, o nome de Stacy. Vi que ela estava prestes a casar-se com
um qualquer tipo rico e interroguei-me sobre como seria voltar a vê-la.
- A casa estava à venda e a vovó costumava esconder-me no velho túnel sempre que o agente trazia compradores para examinar o local. Costumava subir à divisão da
torre, produzir barulhos fantasmagóricos e assustá-los.
- De qualquer maneira, recortei uma brochura de venda e enviei- -lhe um bilhete.
- "Nossa, mais uma vez. Juntos para sempre. Vejo-te lá a 11 de Maio de 2002" - declarou Jace num tom calmo.
- Vejo que descobriu o bilhete - declarou Tony, sorrindo. - Não esperava que ela aparecesse, mas fê-lo. - Mexeu-se na cadeira e olhou através da janela, para Londres.
- Contudo, não foi o mesmo. Já não tínhamos nada em comum. Ela era uma senhora e eu...
- Um rufia - completou Jace.
Nos olhos de Tony espelhou-se a raiva e, depois, sorriu. - Comparado com ela, você é um rufia.
Jace assentiu com a cabeça, como que a dizer touché.
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- Ela sentiu ... - Tony fez uma pausa, como a tentar encontrar as palavras exactas. - Sentiu repulsa por mim. - Esboçou um arremedo de sorriso. - Tentou ocultá-lo,
mas estava estampado naquele rápido brilho dos seus olhos. Vi-o, ela soube que o vi e foi o fim. Durante todos esses anos, eu pensara como poderia ter sido e acho
que ela também, pois abandonara os seus projectos de casamento para vir ao meu encontro.
- O que fez? - interessou-se Nigh.
- Ficámos toda a noite a falar - respondeu Tony, sorrindo ante a recordação. - Bebemos uma garrafa de vinho e falámos, como amigos, não como amantes. Acho que ela
se sentiu aliviada por já não me amar.
- Mas você não sentiu o mesmo, pois não? - indagou Nigh.
- Senti-me miserável, por assim dizer. Ela era tão bonita e elegante, ao passo que as mulheres com quem eu lidava... -Tony levou um momento a acalmar-se. - Não conseguia
afastar o pensamento de que fora eu a deixá-la. Ela disse que seria capaz de viver por cima de uma garagem comigo, porque me amava, mas eu recusei.
- Como afirmei, era demasiado orgulhoso para a deixar ficar - declarou Tony, respirando fundo. - Arranjei uma discussão e disse que não queria nada que ver com ela.
Disse tudo o que sabia que ela odiava.
- Foi exactamente o que ela me fez - observou Jace.
- Sim. Ela contou-me. Disse-me que se sentia muito mal com o que lhe fez e esperava que conseguisse perdoar-lhe. Contudo, acrescentou que não podia perguntar ao
noivo se ele se importava que ela passasse a noite com o ex-namorado, pois não?
- Passar a noite - pronunciou Jace, ofegante.
- Sim. Passou a noite comigo, mas não como está a pensar. Ninguém ... se despiu. Bebemos e conversámos. E pensei no que teria sido a minha vida, caso não me tivesse
deixado levar pelo orgulho. Pior ainda, nessa noite, quanto mais bebia, mais a desejava. Dizia para mim próprio que ainda éramos novos. Ainda havia tempo.
- Mas ela começou a falar de si - prosseguiu Tony, fitando Jace.
293
- O que disse ela? - perguntou Jace, dando a sensação de se preparar para más notícias.
- Que estava louca por si, que queria viver consigo para sempre e ter centenas de filhos e...
- O quê? - interrompeu-o Jace. - Queria ter filhos meus?
- Sim. Claro - anuiu Tony, voltando a fixar a paisagem de Londres.
- Lembra-se de que quando a obriguei a deixar Margate, discuti com ela? Disse-lhe que não queria ter filhos. Isso provocou-lhe lágrimas... e agradou-me. Agradou-me
que ela chorasse, pois eu estava a chorar por dentro.
- Disse-lhe que não queria filhos e ela chorou - retorquiu Jace.
- Então, ela queria filhos. Tem a certeza?
- Planeava casar com ela e ignorava isso a seu respeito? - inquiriu Tony, com um esgar a distorcer-lhe o lábio superior.
- Julguei que sabia tudo a seu respeito até à noite em que ela discutiu comigo. Disse-me que não queria filhos.
- E deixou-se cair?
- Completa e totalmente - respondeu Jace.
Tony esboçou um leve sorriso. - Ela fez-lhe o que eu lhe fiz, não é verdade? Isso significa que lhe ensinei alguma coisa. Levou um pouco de mim dentro dela.
- O que mais lhe contou sobre nós? - quis saber Jace. - Não se trata apenas de um interesse lascivo. Só que preciso mesmo de saber.
Tony pôs-se a brincar com o pesado anel que usava no dedo min- dinho da mão esquerda.
- Lascivo! - exclamou. - Não fui educado de maneira a usar palavras dessas. Sabe o que sonhava fazer-lhe? Recorda-se daquele livro em que o rapaz do estábulo foge
e regressa anos mais tarde transformado num homem rico?
- O Monte dos Vendavais - interferiu Nigh. - Heathcliff.
- Sim. Isso mesmo. Tive de o ler na escola. As raparigas derretiam- -se todas, mas nós rapazes detestávamo-lo... ou assim o dizíamos.
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De qualquer maneira, quando coloquei ponto final no meu caso com Stacy, tinha em mente que um dia regressaria e ficaria com ela. Faria fortuna e usaria um fraque.
- Fiz fortuna - continuou, sorrindo. - Na verdade, fiz meia dúzia de fortunas, mas perdi tudo. E nunca usei fraque na minha vida.
- Então, os dois passaram a noite a falar - concluiu Nigh.
- E a beber. Não esqueça a bebida. Fiquei bastante embriagado nessa noite e Stacy era tão bonita. Acho que me atirei a ela.
- Rasgou-lhe o vestido e arranhou-lhe o ombro - declarou Jace.
- Ah, sim? Não me recordo. Sei que ela fugiu da casa e se meteu no carro. Foi a última vez que a vi. Mais tarde, depois de ouvir o que ela fizera, soube que tive
muita culpa no assunto. Nessa noite, ela estava bastante bebida e deixei-a ir no carro. Ainda bem que parou na vila e alugou um quarto no pub. Se tivesse morrido
num acidente, jamais me perdoaria.
- Quando soube o que se passara, porque não foi à polícia? - inquiriu Jace com uma expressão de raiva crescente.
- Não interessa porque uma pessoa se mata, mas apenas que o fez - retorquiu Tony, também irritado.
- Todos pensaram que fui eu o motivo por que ela se matou - insistiu Jace, sem recuar.
- Devem ter tido uma bela discussão - comentou Tony, olhando para Jace. - Jamais diria algo tão mau a uma mulher que a levasse a suicidar-se.
Nigh voltou a pousar a mão no braço de Jace, tentando acalmá-lo.
- Talvez ela devesse ter ficado comigo nessa noite - declarou Tony, levantando-se. - Talvez ela e eu...
- Parem com isso! - ordenou Nigh, levantando-se e fitando os dois homens, com um brilho irritado no olhar. - Stacy não o merece! Agora, sentem-se os dois e comportem-se
como pessoas!
Os dois homens sentaram-se relutantemente, mas sem olharem um para o outro ou para Nigh.
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- Tony - começou Nigh - já sabemos que, quando Stacy morreu, você estava num hospital. Ao que parece, também tentou suicidar-se. Pode contar-nos a verdade sobre
o que aconteceu, por favor?
Tony tinha o ar de preferir contar-lhes o que quer que fosse, excepto o que acontecera naquela noite horrível.
- Por Stacy? - insistiu ela.
- Muito bem - anuiu Tony, respirando fundo. - Tentei suicidar-me. Era isso o que queriam ouvir? Já confessei que foi um dos piores momentos da minha vida. Havia
uns canalhas atrás de mim e não tinha com que lhes pagar. Pior ainda, ao ver Stacy naquela noite, percebi que ela podia ter sido minha, mas desperdicei a oportunidade.
- Estava perdido de bêbado e deprimido e, portanto, tomei uma série de comprimidos - prosseguiu, fitando Nigh que estava no outro lado da mesa. - Engoli-os com uísque.
- Quem o encontrou e lhe salvou a vida? - indagou Nigh, baixinho.
- A querida e velha vovó - respondeu Tony com um leve sorriso.
- Encontrou-me e levou-me para o hospital.
- Contou-lhe que Stacy o desprezou? - quis saber Jace.
- Se bem me lembro, disse-lhe que Stacy ficou enojada ao ver-me.
- Que mais?
- O que quer de mim? - ripostou Tony. - Você ganhou-a e eu perdi.
- Não - contrapôs Nigh. - Todos perderam.
- Muito bem. Menti. Menti à grande à minha avó. Disse-lhe que Stacy rompeu comigo quando éramos miúdos e, novamente, quando éramos adultos. Disse montes de coisas
à minha avó para que ela ficasse com uma boa imagem minha e de Stacy como a má da fita, mas se não se pode mentir à nossa avó, a quem mais se pode?
Nigh observou Jace e viu que toda a cor lhe desaparecera do rosto.
- A ninguém, Mr. Vine. Não se pode mentir a alguém - retorquiu, ao levantar-se. - Temos de ir embora. - Com estas palavras, virou-se e abandonou a sala.
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Nigh agradeceu de fugida a Tony e seguiu rapidamente atrás de Jace. Apanhou-o junto ao elevador.
- Sabes, não sabes? - perguntou-lhe.
- Sim - respondeu ele. - E tu?
- Bem de mais. E agora o que fazemos?
- Vamos à Scotland Yard.
Nigh respirou de alívio. Receara que Jace se dispusesse a fazer justiça por suas próprias mãos.
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Nigh observou enquanto a polícia levava Mrs. Browne, algemada. Ao ser confrontada pelos agentes, admitira facilmente a sua culpa. Afirmou que Stacy Evans tinha merecido
morrer, pois despedaçara o coração do seu neto Tony, não uma, mas duas vezes.
Antes de a levarem, Jace perguntou se podia dar-lhe uma palavra e a polícia concordou - desde que pudessem gravar a conversa. Jace levou- -a para a sala principal
e tratou-a como uma convidada de honra, servindo-lhe chá e indo ao ponto de empurrar a otomana na sua direcção, a fim de que apoiasse os pés.
Mrs. Browne não sentia remorsos pelo seu acto. Admitiu prontamente que se tivesse de repeti-lo, não hesitaria. Disse a Jace que se fizesse alguma ideia de que ele
viria atrás do seu querido Tony, tentaria matá-lo muito antes. - Sem ofensa - acrescentou.
- Nenhuma - replicou Jace. - Provocou a explosão do túnel, não é verdade?
- Oh, sim. Vi que tinha a morada de Tony em Londres e portanto sabia tudo e não me restava outra saída senão matá-lo. Aprendi tudo sobre
bombas na Internet e fiz algumas na cozinha. Contudo, o túnel não explodiu todo. Aquelas antigas traves eram de boa qualidade. Dantes, havia quem soubesse construir.
- Pode falar-me de Stacy?
- Era uma puta, lá isso era. Como essa Nightingale que anda sempre atrás de si. No meu tempo, as mulheres tinham moral. Tinham orgulho. Tinham...
- E a noite em que Stacy morreu?
O rosto de Mrs. Browne distorceu-se num esgar de ódio. - Sabe o que ela fez ao meu Tony? - replicou. - Quando o encontrei, estava meio- -morto. Ela brincara com
ele, como uma cobra com um rato. Ela quase o matou com os seus modos perversos. Voltou à sua vida para lhe dizer que não queria alguém como ele. Consegue imaginar
aquilo por que passei ao levar o meu Tony para o hospital? Fui obrigada a assistir enquanto lhe faziam uma lavagem ao estômago.
- Portanto, matou Stacy pelo que ela fez ao seu neto - declarou Jace num tom calmo.
- Sim. E ela bem o mereceu.
- Mas como o fez? O quarto dela no pub estava fechado pelo lado de dentro.
- Vocês são todos tão espertos e não imaginam as coisas mais simples. Subi as escadas das traseiras e bati-lhe à porta. Não sabia que havia umas escadas das traseiras,
pois não? Essa convencida da Emma Carew não quer que as pessoas saibam que ela tem escadas traseiras. Quer umas escadas novas que toda a gente veja e admire. Mas
eu costumava limpar aquele pub e conheço-o bem. Subi pelas escadas das traseiras e bati à porta do quarto dessa Stacy. - E ela abriu.
- Estava embriagada. Há mais de um ano que o meu Tony não bebia, mas ela aparece e ele embebeda-se novamente. Disse que queria falar-lhe e, portanto, deixou-me entrar.
Levara uma garrafa de vinho e sabia que ela tinha comprimidos. Virei-lhe as costas, tirei-os do frasco, despejei-os no vinho e pedi-lhe que bebesse comigo.
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- E a Stacy era sempre tão delicada, que acedeu.
- Se destruir a vida de um homem jovem e decente pode chamar- -se delicado, então, sim.
- Stacy estava viva quando se foi embora, pois trancou a porta atrás de si.
- E pendurou na porta o cartão de "Não Incomodar". - sorriu Mrs. Browne. - Viu o meu Tony, hoje?
- Sim, vimos - respondeu Jace num tom calmo.
- E como está ele?
- Muito bem e manda-lhe beijos - respondeu Jace, levantando-se e saindo da sala. Ouvira tudo o que conseguia aguentar e estivera junto de Mrs. Browne o máximo de
que fora capaz.
- É toda sua - indicou ao inspector, após o que foi ao encontro de Nigh. O sofrimento dos três últimos anos acabara.
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Nigh jamais o confessaria, mas já sentia a falta da comida de Mrs. Browne. Não havia rosbife acompanhado de quatro tipos de legumes, mas um pronto-a-comer feito
de caril em cima de arroz, um misto de cozinha chinesa e indiana.
Ela e Jace tinham regressado no carro a Margate depois de falarem com Tony e de Jace ter conversado com um inspector da Scotland Yard. Nenhum achara que Mrs. Browne
fosse fugir e, portanto, a polícia tinha esperado até de manhã para ir a Margate prendê-la.
Jace não conseguia aguentar ficar na mesma casa com aquela mulher e tinham pernoitado na casinha de Nigh. Ele não dormira muito. Ela acordara por três vezes e avistara-o,
de pé, junto à janela a observar a noite. Desejou aproximar-se e confortá-lo, mas não o fez. Calculou que ele necessitava de estar só.
Agora, estavam sozinhos na enorme casa que nunca parecera maior ou mais vazia. Nigh sabia que Jace não demoraria a pô-la à venda.
Quando entrou, ainda parecia como se carregasse o peso do mundo sobre os ombros.
- Hatch vai encher o túnel de terra e plantar flores - informou Jace.
- Ou talvez o próximo dono queira reconstruí-lo.
Nigh colocou um prato na sua frente e estendeu-lhe uma colher para que se servisse. Jace começou a encher o prato, distraidamente.
- E quanto a Danny e Ann? - perguntou Nigh, sentando-se na sua frente.
Jace fez um ar como se ignorasse do que ela falava.
- Fantasmas? Lembras-te? Falei com Danny Longstreet e Ann Stuart perseguiu-te? Lembras-te deles? Dos dois fantasmas que nos salvaram a vida?
- Sim, lembro-me - disse ele. - E daí?
- O que lhes acontecerá?
- Ignoro - respondeu, com uma expressão consternada. - Não sou padre. Talvez devesses perguntar ao vigário. Talvez ele possa...
- Ouve - interrompeu-o. - Ninguém faz nada sem um motivo. Esses dois espíritos tiveram mais de um século para aparecer às pessoas e não o fizeram.
- Isso não é verdade. Os moradores de Tolben Hall viram Danny e muitas pessoas viram Ann.
- Na sua maioria, crianças - ripostou Nigh. - E nunca ninguém os viu juntos. Nem tão pouco me constou que alguma vez tivessem salvado a vida de alguém. Estou certa
de que se verificaram acidentes nesta casa, mas Ann nunca interferiu. Fê-lo connosco.
- Talvez gostem de nós. És parente de Ann, não é verdade?
-Talvez - anuiu Nigh, remexendo a comida no prato. - Talvez, mas
continuo a pensar que há mais alguma coisa. O Mick disse que as duas pessoas que avistou nos arbustos pareciam tristes. Agora que estão finalmente juntos, porque
não desfrutam um do outro?
- Talvez não possam - sugeriu Jace. - Nunca ouvi falar de fantasmas a fornicar.
Nigh, fitou-o, de lábios entreabertos.
- O que foi? - replicou ele.
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- É isso mesmo. Não podem. E não vão abandonar a Terra até poderem.
- Poderem o quê?
- Uma mulher pode perfeitamente morrer virgem se for glorificada por isso - respondeu Nigh, comendo uma garfada. - Pensa no teu estado de Virgínia. Recebeu o nome
de uma rainha virgem, não é verdade?
- É - anuiu Jace, num tom hesitante.
- E todas essas virgens mártires. Nasceram para ser virgens. Porém, julgou-se que dado Ann estar noiva de um homem conquistador como Danny Longstreet, não era virgem.
Fiz um comentário a Danny acerca de Ann ter tido sexo antes do casamento e ele quase me arrancou a cabeça. Insistiu em vincar-me que Ann era virgem.
- Onde queres chegar? - inquiriu Jace, fitando-a, surpreendido.
- Não estou certa, mas acho que Danny e Ann estão à espera de alguma coisa.
- E do quê? - inquiriu Jace. - E não me digas, por favor, que é um exorcismo. Não quero passar por uma dessas coisas.
- Acho que eles querem fazer amor - declarou Nigh. - Por nosso intermédio.
Jace deteve-se a meio de levar o garfo à boca.
- Faz todo o sentido - declarou ela. - Tu estás celibatário há três anos e passou tanto tempo desde que fiz sexo, que posso ter-me tornado novamente virgem.
- Vamos lá - declarou Jace, estendendo a mão por cima da mesa e agarrando a de Nigh.
Ela repeliu o gesto e contou:
- Quando tinha dezasseis anos, o proprietário da altura de Priory House deixou-me revistar os sótãos para que pudesse escrever a sua história. Lá em cima, existe
uma arca com um vestido de casamento e acho que pertenceu a Ann.
- Pensava que o pai tinha queimado tudo.
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- Ele também pensava que destruíra a filha. Quero descobrir esse vestido e... - Baixou os olhos para as mãos.
Jace deu a volta à mesa e ajoelhou-se na sua frente.
- Quer casar comigo, Miss Nightingale Augusta Smythe? - perguntou.
Nigh não esperara a sua proposta, mas recompôs-se rapidamente do choque.
- Sim - respondeu, pondo-lhe os braços à volta do pescoço, mas ele recuou. Estendeu-lhe uma caixinha azul e, ao abri-la, deparou-se-lhe o mais bonito diamante cor-de-rosa
talhado em esmeralda que alguma vez vira.
- Onde? Como? Quando? - reagiu de imediato.
- Vamos ao sótão para ver se conseguimos encontrar um vestido de casamento antigo? - sugeriu ele, sorrindo. - Temos o dever de actuar para alguns velhos e queridos
amigos.
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Epílogo
Nigh chorou quando Ann e Danny apareceram pela última vez. A tristeza desaparecera-lhes dos rostos. Deram as mãos e afastaram-se através de uma parede, depois
para... Nigh não fazia ideia do lugar para onde iam os espíritos felizes. Provavelmente, para o céu.
Ela e Jace haviam passado a sua primeira noite juntos com os corpos habitados por outros, mas não se importaram. Se não fosse pela ajuda de Ann e Danny, ainda estariam
no túnel. A noite nada tivera de estranho, à excepção de que Nigh se sentira realmente muito virginal. Caso fosse verdadeiramente ela, saltaria de imediato para
a cama, mas viu-se tímida e aguardando com uma curiosidade e uma luxúria sustida que ameaçava devorá-la.
Fora fantástico sentir o sexo como se nunca tivesse lido um romance lascivo, visto um filme sexy ou tocado num homem. Tudo lhe pareceu novo e maravilhoso.
Nigh sentira-se chocada e, em seguida, deliciada com algumas coisas que Jace/Danny lhe fizera. Existira ternura e excitação, suavidade e uma alegre rudeza. A noite
fora preenchida com tudo isso.
Contudo, a tristeza também marcara presença. Sentira o amor de Ann por Danny e o dele por ela, mas sentira igualmente que eles sabiam que aquela era a sua primeira
e única experiência de amor físico. Tinham esperado, tanto, mas tanto tempo!
O facto de Jace ter tido uma atitude compreensiva fez com que Nigh o amasse ainda mais.
- A próxima é nossa - disse ele, na manhã seguinte, depois de terem visto Ann e Danny a afastar-se, flutuando juntos, de mãos dadas e sorrindo.
- Não sei muito bem. Danny Longstreet não me desiludiu - replicou Nigh. Pelo espaço de um segundo, avistou por detrás de Jace o rosto de Danny que lhe piscou o olho
e, em seguida, desapareceu para sempre.
- Importas-te se vender já esta casa? - perguntou Jace. - Não consigo estar aqui mais tempo.
- Não me importo nada - respondeu. - Para onde queres ir?
- Próximo de Cambridge ou Oxford por causa das bibliotecas - respondeu ele, saindo da cama.
O vestido de casamento de Ann estava caído, aos pés da cama. Na noite passada, ao vê-lo no corpo de Nigh, dissera que se ignorasse que elas eram parentes, ficaria
a sabê-lo nesse momento.
- Cambridge, então - decidiu Nigh, olhando para o anel. - Há quanto tempo não digo que te amo?
- Na verdade, nunca mo disseste - respondeu Jace, ficando calado.
Nigh pensou nas suas palavras. - Talvez não. Porque não te aproximas para que to diga?
- Porque não? - anuiu ele, metendo-se na cama, ao seu lado.
Jude Deveraux
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