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Series & Trilogias Literarias
No momento em que Grant Morgan viu a mulher, soube que apesar de sua beleza, ela jamais seria de nenhum homem.
Caminhou atrás do barqueiro, atravessando redemoinhos de névoa que, como uma fria nuvem, aderira a sua pele e se condensava em pérolas líquidas sobre seu casaco de lã. Com ambas as mãos metidas nos bolsos, Grant percorria incansavelmente a cena com seu olhar. À luz opaca dos abajures que penduravam sobre os maciços blocos de granito perto do rio tinha um aspecto oleoso. Duas ou três pequenas embarcações transportavam passageiros ao outro lado do Tâmisa, balançando-se sobre a água como se fossem de brinquedo. As ondas geladas esbofeteavam os degraus e a superfície do muro . Um frio vento de março envolvia o rosto e as orelhas de Grant e insistia em penetrar a borda da gravata. Contemplou a água inquieta e negra do rio e conteve um estremecimento. Ninguém poderia sobreviver mais de vinte minutos em água tão fria.
— Onde está o corpo?- Perguntou Grant, carrancudo e impaciente. Colocou a mão no casaco e tocou o estojo de seu relógio de bolso. — Não tenho toda a noite.
O barqueiro do rio Tâmisa voltou o olhar para o homem que o seguia. A neblina flutuante o rodeava com uma névoa amarela acinzentada e o fazia piscar os olhos em seu esforço por ver melhor.
—Você é Morgan, não é certo? O senhor Morgan em pessoa... Caramba, ninguém acreditará quando eu contar! Um homem que cuida do rei... Eu imaginei que você estivesse envolvido com esses negócios sujos.
—Por desgraça, não murmurou Grant.
—Por aqui, senhor... Tenha cuidado onde pisa. Perto da água, os degraus são muito escorregadios, sobre tudo em uma noite tão úmida como esta.
Grant esticou o queixo e se dirigiu para o corpo molhado, que tinha sido depositado sobre a escada.
Durante sua vida de detetive, ele tinha visto cadáveres com frequência, mas os corpos dos afogados se encontravam entre as vítimas de aspecto mais desagradável. O corpo estava colocado de barriga para baixo, mas não cabia dúvida de que se tratava de uma mulher. Estava enfraquecida como uma boneca toda abandonada por uma menina descuidada; a saia de seu vestido estava levantada ao redor de suas pernas.
Grant se agachou junto a ela, tomou o corpo da mulher pelo ombro com sua mão enluvada e começou a volta-lo, mas retrocedeu imediatamente, assombrado ao ver que ela começava a tossir e a vomitar água salgada, e que seu corpo era sacudido por espasmos.
A suas costas, o barqueiro soltou um grito de terror e logo se aproximou.
—Eu pensei que estava morta. -Disse, com voz tremula de assombro. - Juro-lhe que estava fria!
—Imbecil. - murmurou Grant.
Quanto tempo teria passado esta pobre mulher sofrendo esse intenso frio, enquanto o barqueiro tinha ido em busca de um policial à sede da rua Bow, no Covent Garden, principal estação de polícia de Londres, para que investigasse? Ela teria tido muitas mais possibilidades de sobreviver se tivesse recebido cuidados imediatosTal como estavam às coisas, suas possibilidades eram escassas. Voltou o corpo da mulher para cima, levantou-lhe a cabeça e a apoiou sobre seus joelhos; o comprido cabelo da jovem lhe empapou as calças. A pele da mulher parecia cinzenta, apesar da luz escassa se via um inchaço em um alto de sua cabeça. Mesmo assim, podia reconhecer suas delicadas feições: Ele a conhecia.
— Meu Deus! —exclamou Grant.
Ele procurava não se deixar assombrar por nada... Mas, achar nessa situação Vivien Rose Duvall... Era inconcebível.
Os olhos da mulher se entreabriram opacos pela morte iminente. Mas Vivien não pertencia a essa classe de mulheres que se rendiam sem lutar. Gemeu e estendeu a mão para cima, roçando o peitilho do colete dele, em um débil intento de salvar-se. Este gesto impulsionou Grant, que a rodeou com seus braços e a levantou.
Ela era miúda e compacta, mas a saia de seu vestido empapado duplicava seu peso. Grant a levantou, apoiando-a contra seu peito, e lançou um gemido de desconforto ao sentir que a água salgada e gelada jorrava sobre sua roupa.
—Você a levará à rua Bow, senhor Morgan? —Perguntou o barqueiro, em seu afã de procurar conversar, seguindo Grant, que subia os degraus de dois em dois—. Suponho que eu também teria que ir e dar meu sobrenome sir Ross. No meu entender, parece que tenho feito um favor a alguém, não é assim? Encontrei-a antes que se estirasse. Certamente, não necessito que me agradeçam... já é uma recompensa ter realizado uma boa ação... Mas, talvez haja uma recompensa, não é assim?
—Procure o doutor Jacob Linley respondeu Grant com aspereza. - interrompendo a ambiciosa especulação do sujeito. - A esta hora da noite, ele está acostumado a estar na cafeteria do Tom. Diga-lhe que vá a minha casa, na Rua King.
—Não posso - protestou o barqueiro. - Tenho que trabalhar você sabia? Caramba, você até poderia ganhar cinco xelins esta noite!
— Receberá seu pagamento depois de que tenha levado Linley à Rua King.
—Não posso encontrá-lo?
—Traga-o aqui em meia hora. - respondeu Grant, cortante.- Pois, caso contrário, farei que confisquem sua embarcação e que o encerrem três dias em uma ponte de tábua dessas que se usam como prisão. Isso lhe basta como motivação?
—Eu sempre acreditei que você era um bom sujeito. - disse o barqueiro com pungência. - Até agora.
Você não parece o homem que pintam nos jornais. Passei horas nos botequins, ouvindo comentários sobre suas façanhas...
O homem se afastou, manifestando sua decepção com todo seu corpo.
A boca do Grant desenhou um turvo sorriso irônico. Não ignorava o modo que os jornais descreviam seus lucros. Os editores e os jornalistas tinham exagerando suas façanhas até convertê-lo em um ser sobre-humano. O povo via nele mais uma lenda que a um homem normal, com defeitos e tudo.
Ele tinha convertido seu trabalho de polícia londrino em uma tarefa altamente rentável, e ganhou uma fortuna recuperando bens roubados dos bancos. Em algumas ocasiões tinha aceitado outra classe de casos: localizar uma herdeira sequestrada, atuar como guarda pessoal de um monarca visitante, seguir a pista de alguns assassinos, mas sempre preferia os bancos como clientes. Cada vez que resolvia um caso, seu sobrenome ficava mais famoso, até o ponto de falarem dele em cada bar e botequim de Londres.
Para Grant, o fato de que a alta sociedade o tivesse admitido em seu seio e que reclamasse sua presença em seus acontecimentos sociais, era fonte de diversão. Dizia-se que o êxito de um baile acontecia quando a anfitriã escrevia na última linha de seus convites: “Assistirá o senhor Morgan”. Entretanto, em que pese a sua aparente popularidade entre a nobreza, todos sabiam que ele não era um deles.
Era, mas, um personagem atrativo que alguém aceito pelos círculos sociais mais elevados que ele frequentava. Às mulheres se excitavam em pensar que ele era um personagem potencialmente perigoso, e os homens procuravam sua amizade para que lhes desse um brilho de valentia mais mundano. Grant era consciente de que jamais seria aceito, mas sim de modo superficial. E que jamais contaria com a confiança da gente de bem... Não conheciam seus segredos mais turvos, seus aspectos vulneráveis, seus temores e seus desejos.
Uma rajada de vento gelado se formou em redemoinhos a seu redor, e a mulher que ele levava em seus braços gemeu e tremeu. Estreitou-a com mais força e cruzou uma rua empedrada coberta de lama e esterco.
Passou por um pequeno quintal quadrado cheio de barricas de água suja, um cheiro de chiqueiro, e um carro com as rodas quebradas.
Covent Garden era cheio desses quintais; depois deles se estendiam escuras casas desmanteladas, formando um bairro assolado pelas enfermidades. Qualquer cavalheiro evitaria passar por essa parte da cidade, repleta de guaridas de ladrões, prostitutas, briguentos e criminosos, capazes de matar por uns xelins.
Mas não se podia dizer que Grant era um cavalheiro; o submundo de Londres não lhe produzia o menor temor.
A cabeça da mulher se balançava sobre o ombro de Grant, e seu fôlego débil e frio ressoava em seu rosto.
—Bom, Vivien. – murmurou - houve um tempo em que eu teria gostado de ter você em meus braços...
Mas não foi assim que imaginei.
Não podia acreditar que estiva carregando em seus braços à mulher mais desejável de Londres, passando com ela diante ruídos barracos e estábulos abertos. Açougueiros e transeuntes se detinham para observá-lo com curiosidade quando ele passava, e as rameiras se arriscavam a aparecer nas sombras.
—Vêem aqui, moço. - Chamou em voz alta uma mulher que parecia um espantalho. - Tenho algo bom para você!
—Em outra ocasião. —Respondeu Grant em tom sarcástico, sem fazer caso do ansioso grito rouco e áspero da mulher.
Morgan cruzou a esquina noroeste da pracinha e chegou à Rua King, onde as construções ruídas davam passo a uma fileira de casas, cafés e até um ou dois editoriais. Essa rua tinha um ar de limpeza e prosperidade, com suas casas de frente curvas, onde residia gente da classe alta. Grant tinha comprado ali uma casa, elegante e bem ventilada. O atarefado quartel geral da Rua Bow estava a curta distância, embora parecia muito longe desse sítio tão tranquilo.
Grant ascendeu depressa os degraus de entrada de sua casa e deu um sonoro chute à porta de mogno. Não recebeu resposta e, dando um passo atrás, voltou a chutar. De repente, a porta se abriu e ante ela parecesse sua ama de chaves, resmungando pelo trato brutal que ele tinha dispensado aos lustrosos painéis de madeira.
A senhora Buttons era uma mulher de rosto plácido, de uns cinquenta anos, de coração tenro, que reprimia seu mau humor, que tinha temperamento de aço e estava imbuída de inflexíveis convicções religiosas. Não era segredo para ninguém que ela não aprovava a profissão escolhida por Grant, a violênia e corrupção que Grant estava sujeito todos os dias a aborrecis. Mesmo assim, ela recebia de maneira infatigável uma ampla variedade de visitantes provenientes do sub mundo; e todos tratavam em partes iguais de cortesia e de reserva.
Igual a outros policiais da Rua Bow que trabalhavam sob a direção de sir Ross Cannon, Grant tinha Se submetido de tal modo nesse mundo sombrio que, em ocasiões, perguntava-se que diferença haveria entre ele e os criminosos a quem perseguia. Uma vez, a senhora Buttons perguntou-lhe se algum dia deixaria que a verdadeira luz cristã o alcançasse.
—Eu já não tenho salvação. - tinha respondido ele em tom ligeiro. - Seria preferível que enfocasse suas ambições em uma meta mais acessível, senhora Buttons.
Agora, ao ver o vulto que jorrava nos braços de seu patrão, o rosto habitualmente impassível da ama de chaves se encheu de assombro.
— Bom Deus! —exclamou a senhora Buttons—. O que aconteceu?
Os músculos de Grant começavam a cansar de levar o peso da mulher durante tanto tempo.
—Estou a ponto de afogar. - disse sem rodeios, empurrando a ama de chaves dirigiu se a escada. — Levarei-a pra minha casa.
— Mas, como? Quem...? —Perguntou à senhora Buttons, afogando uma exclamação, com um evidente esforço por recuperar-se de sua surpresa—. Não terá que levá-la a um hospital?
—Ela é uma conhecida minha. - disse ele. - E quero que veja um médico particular. Sabe Deus o que lhe fariam em um hospital.
—Uma conhecida. - repetiu a ama de chaves, apressando-se para acompanhar os passos rápidos dele.
Era óbvio que a curiosidade a consumia, mas não se atrevia a perguntar.
Mas precisamente, uma dama da noite. - detalhou Grant em tom seco.
Uma dama da... E você a trouxe aqui... —a voz da mulher gotejava desaprovação. — Sir, uma vez mais, você superou a si mesmo.
Um breve sorriso passou pelo rosto do homem.
Obrigado.
—Não é nenhum completo — informou a ama de chaves. Senhor Morgan, não preferiria que eu prepara se um dos quartos de hóspedes?
—Ela ficará no meu. - Insistiu ele, em um tom que desalentava futuras discussões.
A senhora Buttons, carrancuda, ordenou a uma de suas criadas secasse os atoleiros que tinham ficado no chão do corredor de entrada, que era de mármore, cor âmbar.
A casa, com suas janelas altas , seus móveis Sheraton e seus tapetes ingleses feitos à mão, pertencia essa classe de moradias com que Grant, em outro tempo, nunca se atreveu a sonhar. Vivia em um apartamento quando menino pequeno, em três quartos superlotados com os oito descendentes, de um matrimônio de classe média, constituído por um livreiro e sua esposa. E também a sucessão de orfanatos e asilos que tinha habitado depois, quando seu pai tinha ido parar na prisão por dividas e a família se desfez.
Grant viveu por um tempo nas ruas, um peixeiro de Covent Garden que se compadeceu dele e lhe ofereceu um trabalho contínuo e um colchão onde podia dormir pelas noites. Aconxegado contra o forno da cozinha para conservar o calor, Grant tinha sonhado com algo melhor, com algo mais, embora esses sonhos nunca tinha adotado uma forma precisa até o dia em que encontrou um policial da rua Bow.
Esse polícial estava vigiando a populosa praça do mercado e tinha apanhado um ladrão que roubava um pescado do posto de um peixeiro. Grant tinha ficado boquiaberto, contemplando à polícia vestida com seu elegante colete vermelho e armado de alfanje e pistolas. Tinha-lhe dado a impressão de ser melhor e mais capitalista que os homens comuns. Nesse mesmo instante, Grant compreendeu que sua única esperança de escapar à vida a que tinha sido empurrado. Pensava em ser um policial. Aos dezoito anos se alistou na patrulha de rua; no próximo ano, foi promovido à patrulha diurna e, poucos meses depois, fora eleito por sir Ross Cannon para formar parte da força especial composta por meia dúzia de detetives.
Para provar sua valia, Grant mergulhou em seu trabalho com zelo incansável, abordando cada caso como se fosse uma ofensa pessoal. Chegava a qualquer extremo com para apanhar um culpado e, em uma ocasião, tinha seguido a um assassino mais à frente do Canal, para capturá-lo na França. À medida que um êxito se somava a outro, Grant começou a cobrar preços exorbitantes por seus serviços privados, coisa que contribuiu para que fosse mais requerido ainda Graças ao conselho de um cliente endinheirado que lhe devia um favor, Grant tinha investido em uma empresa naval, em várias companhias têxteis, tinha comprado metade um hotel e várias propriedades seletas na zona oeste de Londres. Um pouco de sorte e decisão se somaram para ajudá-lo a subir mais alto ainda.
Aos trinta anos, estava em condições de se aposentar com uma fortuna que lhe permitiria um futuro cômodo.
Mas não abandonaria a força da Rua Bow. A emoção da perseguição, o atrativo do perigo eram necessidades intensas, quase físicas que, ao parecer, ele nunca podia satisfazer. Não tinha interesse em analisar o motivo pelo qual não podia assentar-se e levar uma vida normal, embora estivesse seguro de que essa situação não era bem o seu caráter.
Ao chegar a seu dormitório, Grant levou Vivien até a maciça cama de mogno com baldaquino, com grinaldas esculpidas na cabeceira e nos pés. Boa parte dos móveis, incluindo a cama, tinham sido confeccionados especialmente para adaptar-se a suas proporções. Ele era um homem alto, de corpo grande; para ele, as portas e as vigas de céu raso sempre representavam um risco.
—OH o cobertor! —exclamou a senhora Buttons, ao ver que a roupa de Vivien saturava de água a peça de veludo bordado em ouro e azul— Ficará arruinado!
—Se isso acontecer, comprarei outro. -Disse Grant, flexionando seus braços tensos e tirando o casaco ensopado.
Deixou cair ao chão seu casaco e se inclinou sobre o corpo inerte de Vivien. Com a intenção de lhe tirar a roupa tão rápido como fosse possível, atirou do peitilho de seu vestido. Soltou uma maldição ao ver que os botões e as presilhas permaneciam obstinadamente entrincheirados na lã enrugada e molhada.
Ao mesmo tempo em que se queixava do dano causado ao cobertor de veludo, a senhora Buttons se dispôs a ajudá-lo e logo desistiu, exalando um suspiro de frustração.
—Suponho que terá que cortá-lo para tirar-lhe Quer que vá procurar a tesoura?
Grant negou com a cabeça e colocou a mão em seu bolso esquerdo. Com um movimento que revelava certo costume, extraiu uma navalha com pedaços de marfim, cuja folha bicuda media uns quinze centímetros.
A ama de chaves abriu a boca vendo-o cortar o grosso sutiã do vestido como se fosse manteiga.
—OH, Vá!- Balbuciou ela.
Grant se concentrou na tarefa que tinha nas mãos.
—Não há ninguém tão destro no manejo de uma faca, como alguém que já vendeu pescado em Covent Garden. - disse ele com secura, ao mesmo tempo em que abria o vestido da moça, deixando descoberto uma profusão de brancos objetos interiores de linho.
A camisa de Vivien estava tão ensopada que se apegava a sua pele; através dela se transparecia os rosados mamilos. Embora Grant houvesse visto incontáveis corpos femininos, algo na figura vestida como Vivien, lhe fez vacilar. Debateu-se contra a estranha sensação de que estaria violando algo, alguém tenrro e virginal. Era absurdo, tendo em conta que Vivien Duvall era uma cortesã famosa.
—Senhor Morgan. -Disse a ama de chaves, manuseando a borda de seu grande avental branco. - Se você preferir, eu poderia fazer com que uma das donzelas me ajude a tirar a roupa da senhorita...
—Duvall.—Informou Grant em voz suave. - A roupa da senhorita Duvall.
—Eu me ocuparei de nossa hóspede. - respondeu ele em um murmúrio. Já que tantos homens, que formariam meio regimento pelo menos, tiveram o privilégio de ver nua à senhorita Duvall. Ela seria primeira em dizer Faça o que deve ser feito; ao diabo com o recato. Além disso, depois da moléstia que se tomou essa noite, tinha direito a um modesto prazer.
—Sim, senhor.
Ela o olhou com uma expressão que era mescla de estranheza e reflexão, como se ele não estivesse comportando-se em sua maneira habitual. E talvez fosse assim. Invadiu-o uma peculiar sensação, como se o frio de fora combinasse com um calor que queimava no mais profundo de seu ser.
Com semblante pétreo, Grant seguiu cortando as roupas molhadas, primeiro uma manga, depois a outra.
No preciso momento em que ele elevava a parte superior do torso de Vivien alguém entrou pela porta entreaberta e lançou uma exclamação consternada.
Era Kellow, seu valete, um jovem de ar digno, com calvície prematura, que usava óculos de arreios redondo firmemente adaptados a seu nariz. Olhou para seu patrão, que brandía uma faca sobre o corpo semi desnudo de uma mulher inconsciente e o assombro fez com que seus olhos parecessem encher os cristais de seus óculos.
—Deus querido!
Para ouvi-lo, Grant se voltou e o olhou com ar furioso.
—Trate de colaborar algo, uh? Traga uma de minhas camisas. E toalhas. E um pouco de chá com conhaque. Vamos, depressa!
Kellow ia responder, mas pensou melhor e saiu a procurar os elementos pedidos. Evitou com supremo cuidado olhar mulher estendida sobre a cama e, depois de entregar uma camisa limpa à senhora Buttons, saiu do quarto.
A necessidade que Grant tinha de que Vivien estivesse vestida e abrigada ultrapassou qualquer desejo que pudesse ter de vê-la nua. Só jogou uma breve olhada a seu corpo enquanto, com ajuda da ama de chaves, passaram os braços de Vivien pelas largas mangas de linho. Embora seu cérebro armazenasse avidamente a imagem e a reservou para saboreá-la depois.
Embora Vivien não fosse perfeita, suas imperfeições eram uma promessa de deleite. Tinha uma adorável e breve cintura, como estava acostumado a ver em mulheres miúdas, esplêndidos seios redondos e joelhos com covinhas. Seu suave ventre estava coroado por um triângulo de pêlo de picante vermelho, um tom um pouco mais escuro que a cor de sua cabeleira, que recordava ao de um entardecer. Era lógico que fosse a prostituta mais bem paga da Inglaterra. Era voluptuosa, bonita, delicada, pertencia a classe de mulher que um homem desejaria ter por vários dias em sua cama.
Cobriram Vivien com lençóis e grosas mantas, e a senhora Buttons envolveu seu cabelo rígido, manchado de sal, com uma das toalhas que tinha levado Kellow.
—É uma mulher encantadora. - Disse a ama de chaves, e a compassiva suavizou seu rosto. - E tão jovem que possivelmente consiga dar a sua vida uma mudança positiva. Espero que o Senhor deseje conservá-la.
—Ela não morrerá. - disse Grant, cortante. - Eu não permitirei. - afirmou, tocando a tez de Vivien; com o polegar, colocou uma mecha de cabelo sob a toalha. Com supremo cuidado, colocou um pano frio sobre o machucado que ela tinha na têmpora.
—Entretanto, eu diria que alguém se sentirá decepcionado se ela sobreviver.
—Me perdoe senhor, mas não lhe entendo. Ah! - Exclamou a ama de chaves, e seus olhos se aumentaram ao ver que Grant passava brandamente os nós dos dedos pela garganta de Vivien, marcando a sombra que rodeava seu magro pescoço. - Parece que alguém tentou...
—Estrangulá-la. —Completou ele, em tom realista.
—Quem faria semelhante coisa? - Perguntou-se a senhora Buttons em voz alta, com sua frente crispada de horror.
—Na maioria dos casos de assassinatos de mulheres o culpado é o marido ou o amante. - os lábios do detetive se estiraram em um sorriso desprovido de humor. - As mulheres temem os desconhecidos quando, na realidade, os que lhes causam dano são homens a quem elas conhecem.
Tão inquietante pensamento fez que a senhora Buttons sacudisse a cabeça; depois ficou de pé e alisou o avental.
—Se estiver de acordo, senhor, farei subir um unguento para os machucados e os arranhões da senhorita Duvall; eu irei lá em baixo esperar a chegada do médico.
Grant assentiu, quase sem notar que a ama de chaves saía da habitação enquanto ele cravava a vista no rosto inexpressivo do Vivien. Acomodou com delicadeza o pano sobre a frente da mulher. Acariciou a na bochecha com a ponta de um dedo e sua garganta emitiu um som que manifestava uma turva diversão.
—Jurei que lamentaria o dia que zombou de mim, Vivien. - murmurou. - A oportunidade chegou muitíssimo antes do que eu esperava.
Capítulo 2
Ela estava inundada em um pesadelo de frio e de dor. O ato de respirar era um esforço para seus pulmões.
Sentia a garganta e o peito como um fogo, como se a tivessem queimado por dentro. Tratou de falar e só emitiu uma espécie de áspero susurro; uma aguda dor a crispou.
—OH...
Umas mãos fortes corrigiram sua posição, colocando um travesseiro a mais sob sua cabeça e pescoço, e apartaram com suavidade uma mecha de cabelo que tinha sobre a frente. Uma voz resmungona soou em seus ouvidos.
—Não tente falar, tome isto a ajudará.
Ela sentiu a borda de uma colher morna nos lábios e retrocedeu um pouco. Mas o homem que estava junto a ela insistiu, sustentando com uma mão sua cabeça para trás e aproximando outra vez a colher em sua boca. Seus dentes se chocaram contra o metal e seu corpo se viu sacudido por tremores que ela não podia controlar. Tragou uma colherada quente e doce, embora o movimento dos músculos da garganta lhe provocava um sofrimento atroz.
—Muito bem. Beba outra vez.
Ela se esforçou por tragar uma segunda colherada, e uma terceira. Sentiu que voltavam a apoiar sua cabeça sobre o travesseiro e que a agasalhavam com as mantas. Então, tratou de abrir os olhos e se encolheu ao sentir a ardência que lhe produzia o resplendor de um abajur que havia perto. Um estranho se inclinava sobre ela, metade de seu rosto estava na sombra e a outra metade na luz. Era um homem atraente, de cabelo escuro, sem nenhum rasgo juvenil em seu semblante. Tinha a pele curtida e um pouco murcha e as costeletas barbeadas sombreavam sua mandíbula. O nariz largo e a boca generosa harmonizavam com as duras feições de seu rosto e a completavam com uns intensos olhos verdes. Estranhos olhos cínicos, perspicazes, que davam a impressão de atravessá-la.
—Estou morrendo...? —Perguntou, com uma espécie de rouco granido.
Doía-lhe falar, mover-se, respirar. Umas agulhas de gelo a atravessavam saindo e entrando dela e sentia como se um parafuso lhe apertasse os pulmões a impedindo de respirar. O pior de tudo eram os violentos tremores que sofria em cada um de seus músculos, estremecimentos que lhe sacudiam os ossos e as articulações até tal ponto que acreditou que iria desintegrar se. Ah, se pudesse permanecer imóvel um momento... Quando tentou manter-se rígida, os tremores se intensificaram. Estava rompendo-se em pedaços, afogando-se.
— Não, não morrerá. - Respondeu ele com calma. - Em um dado momento, os tremores cessarão. Em casos como o seu, é frequente que aconteça.
Casos como o dela? Por que estava ali? A confusão lhe encheu os olhos de lágrimas e mordeu o lábio para não chorar.
Obrigada. - resfolegou ela, embora sem saber exatamente o que lhe agradecia.
Moveu a mão procurando a mão do homem, sentindo que necessitava o consolo de um contato humano.
Então, ele se moveu, sentando-se ao flanco da cama e afundando um pouco o colchão com seu peso; ela sentiu que lhe capturava os dedos com sua mão grande. O calor da pele do homem, a marca da vitalidade de seu apertão lhe causou um impacto.
—Por favor, não me solte. - sussurrou ela, apertando a mão dele como a uma corda salva-vida—Por favor.
O formidável rosto masculino se suavizou sob a luz da lamparina, uma estranha expressão de pesar apareceu em seus inescrutáveis olhos verdes.
—Não posso suportar as lágrimas de uma mulher. Se continuar chorando, partirei-me.
—Sim. - disse ela, mordendo com força o lábio.
Mas as lágrimas continuaram caindo e o desconhecido amaldiçoou baixo.
Ele a agasalhou e, com muito cuidado, atraiu-a para seus braços, encerrando neles seus membros trementes. O alívio a fez ofegar. Desse homem emanava uma força infinita e a estreitava com força contra si.
Apoiou a cabeça em seu ombro e esmagou a bochecha contra o tecido de linho de sua camisa. O campo visual de Vivien se encheu dos detalhes do homem: a pele bronzeada, a nítida curva da orelha que recordava um sinal de interrogação, as mechas ásperas e sedosas, de seu cabelo castanho escuro talhado, segundo um estilo que não se usava.
—Tenho taan... tanto frio - disse ela, com sua boca perto da orelha dele.
—Bom isso acontece quando se nada no Tâmisa. - replicou ele com secura.- Sobre tudo, nesta época do ano.
Ela sentiu a respiração dele na testa, uma baforada de calor; sentiu que a alagava uma fervorosa gratidão: não tivesse querido sair nunca dos braços dele.
Ela sentiu a língua torpe quando tratou de umedecer seus lábios rachados.
— Quem é você?
— Não me reconhece?
—Não, eu...
Por muito que se esforçasse em recordar, pensamentos e imagens lhe escapavam. Ela não podia recordar nada. Em todas as direções, via um branco, um grande vazio que a confundia.
Ele jogou para trás a cabeça dela, sustentando-a com seus mornos dedos pela nuca. Um leve sorriso curvava os lábios masculinos.
—Grant Morgan.
—O que me aconteceu? - Perguntou ela, tratando de pensar, mesmo sentindo dor e tremores que a desconcentravam. - Eu... Eu estava na água... —recordou, evocando essa fria extensão salobre que lhe queimava os olhos e a garganta, tampava-lhe os ouvidos e lhe paralisava os membros. Tinha perdido a batalha por respirar, sentiam que lhe exploravam os pulmões e que descendia como se umas mãos invisíveis atirassem lá de abaixo—. Al... Alguém me resgatou. Foi você?
—Não. Um barqueiro que a encontrou e foi procurar um policial. E aconteceu que, ontem à noite, eu era o único que estava disponível. - respondeu ele, movendo a mão em lentamente pelas costas dela. —Como caiu no rio, Vivien?
—Vivien? —Repetiu ela, desesperadamente confundida. - Por que me chama assim?
Produziu-se um momento de silêncio que a aterrorizou. Ele esperava que ela reconhecesse esse nome: Vivien. Debateu-se em seu esforço por vincular algum significado, alguma imagem com esse nome, mas estava em branco.
— Quem é Vivien? —perguntou ela, e sua garganta inflamada se fechou tanto que quase não podia emitir nenhum som—. O que está acontecendo comigo?
Se acalme—lhe disse ele—. Não lembra de seu nome?
—Não... Não sei, eu... Não posso lembrar de nada... —disse, tremendo, e soluçando de medo. - OH...
Vou vomitar.
Morgan se moveu com notável velocidade: tirou um recipiente de louça da mesinha e obrigou a jovem inclinar a cabeça sobre ele. Uns espasmos secos sacudiram o corpo da mulher. Quando a convulsão passou, ela ficou entre os braços dele, tremendo.
Ele a acomodou sobre seu colo e apoiou a cabeça sobre sua coxa dura.
—Me ajude. - gemeu ela.
Uns dedos largos deslizaram com suavidade pela pele do rosto dela.
—Está bem, não tenha medo.
Por incrível que pareça, e embora fosse evidente que nada estava bem e que ela tinha muito o que temer, a voz, o contato, a presença dele a reconfortaram. Passou meigamente suas mãos pelo corpo dela, aquietando os tremores de seus membros.
—Respire. - disse ele, deslizando sua palma em círculos pelos costas dela, até que ela conseguiu inalar um sorvo de ar. Aturdida, perguntou-se se espíritos celestiais estavam ali presentes e iam aliviar seus sofrimentos...
Sim, assim devia ser a forma de ser tocada por um anjo.
—Dói-me a cabeça. - se queixou ela com voz rouca—. Sinto-me muito estranha... Enlouqueci? Onde estou?
—Descanse. - recomendou ele. – Veremos isso depois. Agora, só deve descansar.
—Repita-me seu nome. - rogou ela em um sussurro.
—Grant. Você está em minha casa... E está a salvo.
De algum modo, ela percebeu que, seu desejo de manter-se afastado e indiferente: ele preferia não ter sido bondoso com ela, mas não podia evitá-lo.
—Grant. - repetiu ela, capturando a cálida mão dele que estava apoiada sobre seu peito e apertando-a contra seu coração, embora sem forças— Obrigada.
Sentiu que ele ficava muito quieto, que sua coxa ficava rígida sob o peso da cabeça dela. Esgotada, ela fechou seus olhos e dormiu sobre as pernas dele.
Grant apoiou Vivien sobre os travesseiros e a agasalhou com cuidado sob as mantas. Com dificuldade, ele tratou de achar sentido no que estava acontecendo. Tinha ajudado em inumeráveis ocasiões, mulheres em apuros. A essa altura, já não era capaz de comover-se ante ao quadro de uma donzela em apuros. Manter-se eficiente, impassível e cumprir com sua tarefa era melhor para as pessoas e para si mesmo. Fazia anos que ele não chorava. Nada podia atravessar a couraça protetora que rodeava seu coração.
Mas Vivien, com sua afligida beleza e sua inesperada doçura, tinha-o afetado até um ponto que ele não tivesse acreditado possível. Não pôde ignorar a vibração de uma corda de prazer vendo-la em sua casa. . Em sua cama.
Os batimentos do coração lhe causaram um comichão na palma da mão, como se sentisse sob sua mão o ritmo da força vital dela. Ele sentia grande desejo de ficar com ela, de abraçá-la; não induzido pela paixão, mas sim pelo impulso de ampara-la com seu próprio corpo. Grant esfregou rudemente o rosto com suas mãos, passaram-nas por seu cabelo curto e ficou de pé, emitindo um gemido. Que diabos estaria lhe acontecendo?
Ainda estava fresco em sua memória a lembrança da ocasião em que Vivien e ele se conheceram. Ele tinha visto Vivien na festa de aniversário que lorde Wentworth tinha oferecido a sua amante. A essa festa se encontravam as prostitutas de alto nível, os jogadores e os libertinos que, embora não se ajustavam ao ambiente da classe mais elevada, consideravam-se muito acima das classes trabalhadoras. E posto que ninguém pudesse definir a posição de Grant na sociedade, ele recebia convites de todos os estratos da sociedade, dos mais altos até os mais baixos. Ele se relacionava com os de reta moral, com aqueles cuja ética era indiscutível e com os francamente corruptos; não pertencia a nenhum e, de uma vez, pertencia a todos esses ambientes.
Esse salão de baile, com suas complicadas cenas de gesso em baixo-relevo nas que apareciam Netunos, sereias, golfinhos e peixes que constituíam o fundo perfeito para Vivien. Ela mesma assemelhava a uma sereia, com seu vestido de seda verde que se aderia às curvas de seu corpo. O profundo decote e uma prega da saia estavam bordados de cetim branco e gaze verde escuro e as mangas eram como nuvens em seus ombros.
Nem Grant, nem nenhum outro hmem pressente, deixou de notar que Vivien tinha umedecido sua saia para que se aderissem mais a suas pernas e a seus quadris, sem parar no intenso frio que fazia lá fora.
Essa primeira visão que teve dela foi como um murro no estômago. Embora ela não fosse de uma beleza clássica, era vibrante como uma chama; em seu rosto se combinavam a doçura e o feitiço. Sua boca era uma fantasia convertida em realidade, tenra, cheia e carnuda. A massa de seus cachos da cor do crepúsculo estava sujeita no coque que usava, deixando exposto um pescoço vulnerável e uns ombros de marfim, os mais belos que Grant jamais viu. Vivien notou seu olhar intenso e retribuiu, curvando seus lábios vermelhos em um sorriso que convidava e provocava ao mesmo tempo.
—Ah, já vejo que notou a presença da senhorita Duvall. -disse lorde Wentworth, aparecendo junto a Grant, com uma irônica expressão em seu rosto coberto de rugas—. Amigo meu, advirto-lhe que Vivien Duvall deixou uma esteira de corações destroçados em seu caminho.
A quem pertence ela? —murmurou Grant, sabendo que uma mulher de sua beleza não podia estar livre.
—Lorde Gerard, até recentemente. Ele foi convidado a este baile, mas declinou o convite sem oferecer uma explicação. É minha conjetura que ele deve estar lambendo suas feridas na intimidade enquanto Vivien procura outro protetor - riu Wentworth entre dentes, ao ver a expressão especulativa de Grant— Nem o pense, homem.
—Por o que?
—Por começar, lhe exigiria uma fortuna.
—Eu não poderia pagar por isso? Perguntou Grant.
Distraído, Wentworth tirou uma mecha de cabelos cinzas.
—Ela prefere que seus amantes tenham título de nobreza, sejam casados e... Bom, um tanto mais refinados que você, meu amigo. É obvio, não é minha intenção ofendê-lo.
—Não me ofende. - murmurou Grant em forma automática.
Ele jamais tinha tratado de ocultar sua origem; inclusive, em alguma ocasião se aproveitou dele. Na verdade, muitas mulheres se excitavam com isso. Existia a possibilidade de que Vivien se agradasse em trocar seus aristocráticos protetores, com suas mãos manicuradas e suas atitudes altivas.
—É perigosa, você sabia? —insistiu Wentworth— Dizem que faz um par de semanas levou ao suicídio a um pobre imbecil.
Grant esboçou um cínico sorriso.
—Eu não tenho nada a ver com o tipo de homem que é capaz de se apaixonar por uma mulher, milord.
Ele continuou observando Vivien, que tinha extraído uma caixa de rapé de sua bolsa adornada com contas. Ela abriu a tampa, e contemplou seu reflexo em um pequeno espelho. Retocou com cuidado o lunar em forma de coração, estrategicamente, perto da comissura de sua deliciosa boca. Era óbvio que ouvia o cavalheiro que estava junto a ela tentando iniciar uma conversa. Deu a impressão de que chateavam seus cuidados porque fez um gesto, assinalando a larga mesa onde estavam as peças. O homem se afastou imediatamente para ir procurar um prato para ela, e ela continuou contemplando-se no espelho.
Ao ver sua oportunidade, Grant tomou uma taça de vinho de uma bandeja que levava um garçom.
Aproximou-se Vivien, que fechou com um golpe seco sua caixa de rapé e a deslizou de novo em sua bolsa.
—De volta tão cedo? —Perguntou, sem olhá-lo, em tom lânguido e aborrecido.
— Seu acompanhante não deveria ter deixado sozinha a uma bela mulher.
A surpresa relampejou nos olhos azuis de Vivien. Sua vista se posou na taça que ele sustentava na mão.
Então, tomou o pé da taça em forma de trompetista e bebeu com delicadeza.
—Ele não é meu acompanhante - disse.
Ele sentiu que a voz dela caía em seus ouvidos como uma cascata de veludo.
—Obrigada.
Bebeu de novo e levantou a vista para ele. Como cortesã de êxito, tinha um modo adulador de olhar a um homem: o fazia sentir o único indivíduo presente no salão.
—Era você que estava me olhando ainda pouco - comentou ela.
—Não quis ser grosseiro.
—OH, estou acostumada que me olhem desse modo respondeu ela.
—Não me resta dúvida.
Ela sorriu, mostrando uns dentes brancos perolados.
—Não fomos apresentados.
Grant lhe devolveu o sorriso.
—Quer que vá procurar a alguém para que cumpra com essa formalidade?
—Não é necessário. - respondeu ela, apertando sua boca rosada em no bordo da taça de vinho. - Você é o senhor Morgan, polícial da Rua Bow. E embora esteja adivinhando, estou segura de que acertei.
—Por o que o pensa?
—Porque você se ajusta à descrição. Sua altura e seus olhos verdes são bastante característicos. -
respondeu, franzindo seus lábios com ar pensativo— Mas há outra coisa em você... Dá-me a sensação de que não se sente a vontade neste ambiente. Suspeito que preferiria estar fazendo qualquer outra coisa em vez de estar neste salão lotado, conversando sobre tolices. Aperta muito a gravata.
Grant sorriu enquanto colocava sua branca gravata engomada que lhe rodeava o pescoço com um artístico nó. Em ocasiões, encomodava-o a pressão das gravatas o que era insuportável.
—Engana-se em uma coisa, senhorita Duvall: não há nada que quero mais nesse momento além de estar com você.
—Como sabe meu nome, senhor? Alguém lhe falou de mim? Insisto: devo saber o que lhe disseram.
—Me disseram que você tem partido muitos corações.
Ela se se pôs a rir, evidentemente encantada com essa idéia, e seus olhos azuis lançaram maliciosas faíscas.
—É certo. Mas suspeito que você também tenha sua cota de corações femininos destroçados.—É muito fácil romper corações, senhorita Duvall. O desafio mais interessante consiste e sabercomo conservar o amor de alguém, não como perdê-lo.
—Fala você do amor com muita seriedade. —disse Vivien—. depois de tudo, não é mais que um jogo.
—É mesmo? me diga quais são suas regras.
—É similar ao xadrez. Eu planejo minha estratégia com cuidado. Sacrifico a um peão quando já não me é útil. E jamais revelo a meu rival meus verdadeiros pensamentos.
—Muito pragmática.
—Em minha situação, alguém devo sêr. -Replicou, olhando-o fixamante; de repente, seu sorriso provocador se apagou um tanto.
—Não me agrada muito sua expressão, senhor Morgan.
A atração que tinha começado a sentir Grant por ela tinha começado a extinguir-se ao pensar que uma relação com ela não iria chegar a lugar nenhum. Ela era uma pessoa manipuladora, dura, que oferecia prazer sem autêntico companheirismo.
Ele queria mais que isso; não lhe importava o quanto bonito fosse a embalagem que a envolvia. O olhar da mulher percorreu suas feições impassíveis e ela fingiu uma deliciosa careta.
—Me conte quais são suas regras, senhor Morgan.
—Só tenho uma respondeu ele: total sinceridade entre minha companheira e eu.
Ela deixou escapar uma clara gargalhada.
—Isso pode resultar muito inconveniente, sabe?
—Sim, sei.
Não cabia dúvida de que Vivien confiava em seus atrativos; demonstrou-o exibindo-se, posando diante dele, projetando seus seios para fora, apoiando com graça uma mão na curva elegante de seu quadril. E
embora Grant soubesse que ele teria que estar admirando-a, não pôde ao menos perguntar-se qual seria o motivo que induzia a tantas mulheres formosas a ser tão vaidosas.
Com a extremidade do olho viu que o anterior acompanhante do Vivien se aproximava deles com rápidos passos, com um prato nas mãos. Era evidente que o sujeito estava disposto a defender seu território; Grant não tinha intenções de discutir com ele. Vivien Duval não valia uma disputa pública.
Vivien seguiu seu olhar e exalou um breve suspiro.
—Me convide a dançar antes que volte esse chato. —disse ela, em voz baixa.
—Me perdoe senhorita Duvall. —murmurou ele. - mas detestaria privar o amigo de sua companhia.
Mais ainda, ao ver o trabalho que ele teve de lhe conseguir comida.
Os olhos de Vivien se dilataram ao compreender que a tinha rechaçado. Suas bochechas e sua frente se cobriram de um rubor que chocava com o tom canela de seu cabelo. Quando foi capaz de replicar, seu tom destilava desdém: —Talvez nos encontremos de novo, senhor Morgan. Mandarei para buscá-lo se alguma vez for prejudicada por um ladrão ou um salteador.
—Faça-o, por favor. —Respondeu ele com absoluta cortesia e partiu depois de fazer uma breve reverencia.
Grant tinha suposto que o assunto estava terminado, mas, por desgraça, o curto encontro não tinha passado inadvertido para outros assistentes à festa. E Vivien se vingou explicando a situação de uma maneira que pôs em funcionamento as línguas dos fofoqueiros. Vivien tinha insinuado com delicadeza a uma quantidade de murmuradores que o temível senhor Morgan lhe tinha feito um oferecimento e que ela o tinha rechaçado em forma sumária. Todos receberam com grande diversão a idéia de que o célebre polícia da Rua Bow tivesse tentado obter os favores do Vivien Duvall e tivesse fracassado.
—Ele não é tão perigoso como dizem. - Tinha afirmado alguém com dissimulação, com intenção de que Grant ouvisse. - Uma simples mulher pode fazê-lo retroceder com tanta facilidade.
A difusão deliberada de tais mentiras tinha ofendido o orgulho de Grant... Mas para guardar silêncio sobre a questão. Ele sabia que, como acontecia com todos os rumores, este se desvaneceria mais rapidamente se não dizia nada que avivasse o fogo. Mesmo assim, cada vez que ouvia mencionar Vivien, nunca deixava de irritar-se, em especial quando havia pessoas que observavam atentamente sua reação. Fazia todo o possível para evidenciar sua indiferença embora prometesse para si que Vivien lamentaria as mentiras que tinha semeado.
Era uma promessa a que ainda estava ligada e estava decidido a cumpri-la.
Foi até a janela, abriu a cortina de damasco azul escuro e olhou através dos cristais. Seu olhar impaciente inspecionou a silenciosa rua obscurecida quando avistou a chegada do doutor Linley. Não tinha passado um minuto quando um carro de aluguel se deteve ante a casa. Linley descendeu sem chapéu, como sempre, e seus cabelos loiros reluziram à luz dos postes da rua. Não dava a impressão de estar com muita pressa, mas suas pernas se moviam a grandes pernadas que devoravam terreno. Com sua pesada maleta de médico que levava como se fosse muito preciosa, aproximou-se da entrada principal.
Grant aguardou ante a porta do dormitório e saudou o médico com uma sacudida de cabeça ao vê-lo ascender a escada principal acompanhado pela ama de chaves. O caráter progressista e a inteligência de Liniey o tinham convertido em um dos médicos mais solicitados de Londres. Tampouco danificava sua popularidade o fato de que fosse um arrumado solteiro de pouco menos de trinta anos. As damas ricas de sociedade reclamavam a gritos seus serviços, afirmando que só o doutor Linley podia curar suas dores de cabeça e seus males femininos. Frequentemente, Grant se divertiam as queixa do doutor Linley com respeito ao monopólio que exerciam sobre ele as damas do mundo elegante, um monopólio que não lhe deixava o tempo que tivesse querido dispor para ocupar-se de casos mais sérios.
Os dois homens apertaram as mãos. Sentiam uma sincera afeição mútua, pertencendo ambos a profissões que lhes permitiam ver com regularidade o melhor e o pior de que eram capazes as pessoas.
—E bem, Morgan. - disse Linley com jovialidade, será melhor que seu caso tenha mérito bastante para me arrancar do desfrute de uma taça de café com conhaque na cafeteria do Tom. O que acontece? Parece estar muito bem.
—Tenho uma hóspede que necessita de sua atenção. – respondeu Grant, ao tempo que abria a porta e o fazia passar no dormitório—. Ela foi encontrada no Tâmisa faz uma hora, mais ou menos. Eu a trouxe aqui, e ela recuperou a consciência durante uns dez minutos. O estranho é que ela afirma não recordar nada. Nem sequer pôde me dizer seu nome. É possível?
Os olhos cinza do Linley se entreabriram pensativos.
—Sim, claro. A perda de memória é mais comum do que você pensa. Em geral, é causada pela idade ou por dose excessivas de álcool.
— E quando se leva golpe na cabeça e se é atirada no rio?
O doutor franziu os lábios e emitiu um silencioso assobio.
—Pobre mulher - murmurou—. Sim, em uma ocasião vi um caso de amnésia provocado por uma ferida na cabeça. O homem tinha sido ferido em um acidente ocorrido em um estaleiro. Uma viga caiu sobre a cabeça do homem e o deixou inconsciente durante três dias. Quando despertou, tinha uma enorme contusão.
Conservou sem dificuldades os hábitos de caminhar, escrever e ler, mas não reconhecia ninguém de sua família nem recordava nada de seu passado.
—Recuperou a memória?
—Cinco ou seis meses depois. Mas tive notícias de outro caso no que a memória voltou em dois dias. Não há modo de predizer quanto tempo pode levar. - disse Linley, passando por Grant para aproximar-se da cama e deixar a maleta sobre a cadeira. Inclinou-se sobre a paciente sonolenta e murmurou assombrado, em voz tão baixa que com muita dificuldade foi ouvido pelo Grant—. A senhorita Duvall!
— A conhece?
Linley assentiu e sua expressão se tornou preocupada. Algo que viu na expressão do médico fez Grant imaginar que a consulta de Vivien foi mais séria que uma dor de cabeça.
—Desde quando?
—Você sabe que não posso divulgá-lo.
—Ela não recorda de nada... Não haverá nenhuma diferença para ela se me disser isso ou não.
O argumento não comoveu Linley.
—Se importa de sair do quarto enquanto examino a paciente, Morgan?
Antes que Grant pudesse responder, Vivien se removeu e gemeu. Esfregou os olhos e olhou o rosto desconhecido do médico. Grant, extranhamente sintonizado com os humores da mulher, percebeu o momento preciso em que ela começou a ser presa por um pânico. Em três pernadas, chegou junto à cama e tomou a mão dela, que tremia. A força de sua mão a acalmou.
—Grant. —Ela pronunciou com dificuldade, elevando a vista para o semblante dele.
—Chamei o médico. - murmurou ele— Eu aguardarei fora enquanto ele a examina. Está de acordo?
Passei um longo momento até que ela assentiu levemente e lhe soltou a mão.
—É uma boa moça.
Com gentileza, ele prendou uma mecha do cabelo dela atrás da pequena orelha.
—Parece que ficaram amigos rápido. —Comentou Linley.
—É que tenho certo dom com as mulheres. —respondeu Grant— Não podem resistir a meu encanto.
A boca do médico tremeu.
—Encanto? Jamais pensei nisso.
Os dois se surpreenderam para ouvir que Vivien, que com um fio de voz, unia-se à conversa.
—Diz isso porque você não é uma mulher.
Grant olhou fixamente e lhe sorriu, sem querer. Talvez estivesse meio morta, mas o instinto de paquerar não a tinha abandonado. E que Deus o amparasse, porque ele não se sentia nem remotamente imune.
—Por que se oferece a me defender? Brincou ele, lhe acariciando a curva da bochecha com os dedos. Mais tarde, terei que agradecer-lhe.
Uma lenta marca de rubor subiu pelo rosto de Vivien. Grant não tinha notado que seu tom era sedutor até que o doutor lhe lançou um olhar de assombro.
Grant saiu bruscamente da habitação. Carrancudo, apoiei-se contra a parede do corredor.
—Maldita seja, Vivien. —murmurou baixo.
Antes, quando via Vivien como uma mulher superficial, vaidosa e manipuladora, tinha-lhe resultado muito fácil rechaçá-la. E não lhe teria dedicado um só pensamento de não ter sido pelas mentiras humilhantes que ela tinha dito por toda Londres. Grant a teria odiado se ela tivesse sido digna de semelhante gesto de emoções.
Mas na vida de todas as pessoas há ocasiões em que as circunstâncias mudam; essa ocasião tinha chegado para Vivien. Seria possível que ela tivesse perdido a memória, ou estaria fingindo? E se, na verdade, tinha perdido a memória, isso significava que ela tinha ficado despojada de todas suas defesas, de todos os ressentimentos e os fingimentos a que entregam os seres humanos adultos para não exibir-se ante outros tais como são. Quantos homens tinham tido a oportunidade de conhecer a verdadeira Vivien? Nenhum: apostava sua vida nisso.
Um cavalheiro não se aproveitaria dessa situação. Mas ele não era um cavalheiro.
Uma vez, prometeu-se a si mesmo que Vivien pagaria por seu pequeno jogo egoísta... E que pagaria com interesses. E agora que ela estava em seu poder, não partiria até que ele tivesse visto restaurado seu orgulho.
Ia divertir-se com ela todo o tempo que desejasse até enjoar ou até que ela recuperasse a memória. O que acontecesse primeiro.
Sorriu satisfeito, o que aliviou a tensão que lhe queimava o peito. Depois de um tempo que pareceu incrivelmente longo, Linley abriu a porta e o fez entrar à habitação. Vivien tinha um aspecto sereno, mas esgotado, e seu rosto estava tão pálido como o travesseiro com sua branca capa de linho em que apoiava a cabeça. Ao ver Grant, um sorriso inseguro apareceu em seus lábios.
—Tudobem? —perguntou Grant, enquanto Linley se dobrava sobre sua maleta para fechá-la.
Linley levantou a vista.
—Ao parecer, a senhorita Duvall sofreu uma comoção cerebral que felizmente não é grave.
O termo desconhecido fez entrecerrar os olhos de Grant.
—Um golpe no crânio. —Explicou Linley—, que traz como consequência um distúrbio na atividade cerebral. Em geral, os efeitos posteriores duram umas semanas, possivelmente um mês; podem incluir confusão, náuseas e debilidade física. Além disso, amnésia neste caso em particular.
—Como a tratará? —Perguntou Grant sem alterar-se.
—Por desgraça, os sintomas da comoção, inclusive a amnésia, devem seguir seu curso. Não posso fazer nada mais que ordenar repouso. Não acredito que a senhorita Duvall sofra nenhuma sequela a raiz do episódio de esta noite, embora durante uns dias não se sinta muito bem. Deixei uns pós digestivos para rebater os efeitos da água, que ingeriu e um bálsamo para os machucados e arranhões. Não vejo sinais de ossos fraturados nem de lesões internas; só uma luxação leve em um tornozelo. - disse, indo para um lado da cama e segurando a mão de Vivien.- Durma. - aconselhou bondoso. - É o melhor conselho que posso lhe dar.
O doutor recolheu sua maleta e atravessou a habitação, detendo-se perto da porta para conversar com Grant. Seus sérios olhos cinza sustentaram o olhar do outro; falou em voz baixa para evitar que Vivien o ouvisse.
—Tem marcas de dedos no pescoço e rastros de luta. Suponho que irá investigar, não?
—Certamente.
—É óbvio que a amnésia da senhorita Duval dificultará sua tarefa. E embora não tenha grande experiência nestas questões, sei que a mente é um instrumento frágil. - Disse o médico, imprimindo a sua voz um matiz de advertência. - Aconselho que procure a senhorita Duvall em um ambiente sereno. Talvez, quando ela se sinta melhor, possa visitar pessoas e sítios familiares, que poderiam estimular sua memória. Mas tenha em conta que poderia lhe fazer dano se a obrigasse a lembrar coisas para as quais não está preparada.
—Não lhe farei mal.
As sobrancelhas de Linley se franziram.
—Bom, suas habilidades de interrogador são famosas. Ouvi dizer que pode obter uma confissão dos criminosos mais endurecidos e, se acaso estivesse pensando em forçar, de algum jeito, a recuperação da memória da senhorita Duvall...
—Já entendi. —Murmurou Grant, ofendido. - Cristo, qualquer um diria que saio por aí dando chutes em cães e assustando meninos pequenos.
Ao vê-lo zangado, Linley logo riu.
—Eu só me guio por sua reputação, homem. Boa noite; logo te enviarei a fatura.
—Faz-o disse Grant, sem dissimular sua impaciência por ver o médico.
—Uma coisa a mais... Um paciente com comoção é muito vulnerável. Se sofresse outro traumatismo causado por uma queda, possivelmente, poderia resultar em dano fatal.
—Eu cuidarei dela.
—Muito bem, Morgan - disse ao médico, dirigindo a Vivien um cálido sorriso—. Até mais, senhorita Duvall. Voltarei a visitá-la em uns dias.
A senhora Buttons apareceu com a cabeça na porta e fixou seu olhar em Grant.
—Senhor? Precisa de algo?
—Neste momento, nada - murmurou Grant, e ficou olhando como a ama de chaves acompanhava o doutor até a escada principal.
—Qual é sua reputação?- Perguntou Vivien com voz débil, evidenciando que tinha captado os últimos comentários do médico.
Grant se aproximou dela e se sentou em uma cadeira que estava proxíma à cama. Entrelaçou os dedos e estendeu suas largas pernas, cruzando à altura dos tornozelos.
—Que me condenem se sei - respondeu, levantando seus ombros, irritado. - Sou polícial. As pessoas com quem trato em meu trabalho mentem, ocultam coisas, evadem perguntas, sempre. O que acontece é que eu tenho habilidade para cortar caminho para a verdade e isso as incomoda.
Mesmo cansada, uma faísca divertida apareceu nos olhos azuis de Vivien.
—Tens “um dom” - repetiu ela, dormitada. - O que significa isso?
De súbito, ele sorriu, e não pôde reprimir o impulso de inclinar-se para diante e alisar uma mecha, apartando-o do rosto dela.
—Significa que faço o necessário para descobrir a verdade.
—Ah! —exclamou ela, bocejando, esforçando-se por não dormir embora fosse evidente que o esgotamento a afligia. - Grant. —sussurrou—, qual é minha reputação?
Adormeceu antes que ele pudesse responder.
Capítulo 3
Grant despertou quando o débil sol matinal começava a filtrar-se pelos cristais da janela. Perplexo, cravou seu olhar no céu de cetim azul do quarto de hóspedes, sentido falta das cortinas de sua cama. Então, recordou o acontecido da noite passada. Não houvia nenhum ruído da habitação de Vivien; ele se perguntou como teria passado a noite. Depois de tudo o que tinha acontecido, era provável que dormisse a maior parte do dia.
Passou as mãos pela cabeça e permaneceu deitado um minuto a mais, absorvendo a noção de que Vivien estava ali, em sua casa, a poucos metros dele. Fazia muito tempo que uma mulher não dormia sob seu teto.
Vivien Duvall, a sua mercê... A idéia o satisfez sobremaneira. E o fato de que ela não recordasse o que tinha acontecido entre eles acrescentava ainda mais o gozo que lhe proporcionava esta situação.
Grant bocejou e tocou a campainha para chamar o valete, foi até uma cadeira e se enrolou na roupa de linho e as calças cinza clara que tinham sido preparados para ele. Depois de anos de hábito, sua rotina matinal tinha ficado estabelecida. Sempre se levantava ao amanhecer, e em vinte minutos, tinha concluído sua higiene pessoal; durante meia hora seguinte, dedicava-se a devorar um grande café da manhã lendo o Teme. Depois ia andando até a sede da Rua Bow. Sir Ross Cannon exigia que todos os policiais que não estivessem em comissão se apresentassem perante ele não mais tarde que as nove.
Em menos de cinco minutos, Kellow, seu valete, apareceu com uma jarra com água quente para lavar-se, além de todos os elementos necessários. Ao mesmo tempo, uma criada preparou o fogo e limpou o quarto.
Grant jogou água quente em uma bacia e molhou o rosto com ela tratando de aparar a barba, a mais obstinada de Londres. Uma vez concluída sua barba, Grant colocou uma camisa branca, um colete cinza estampado e uma gravata de seda negra. O uniforme oficial dos policiais da Rua Bow estava formado por um colete vermelho, jaqueta azul, calças azul marinho e altas botas negras lustradas até alcançar seu máximo brilho. Grant detestava esse traje. Sobre o corpo de um homem de dimensões médias, essa vestimenta de intensas cores tinha inspirado admiração no público. Em um homem de sua altura, o efeito era desconcertante.
Grant preferia a roupa de cores escuras, bem talhadas, em tons de cinza, bege e negro, sem outro adorno que o relógio de bolso. Levava o curto por comodidade; às vezes, devia barbear-se duas vezes no dia quando devia assistir a uma reunião formal, coisa que lhe exigia tirar outros pêlos da barba, que crescia. Banhavam-se todas as noites, pois, se não o fazia, não podia dormir. O esforço físico que lhe requeria seu trabalho, para não mencionar aos personagens desagradáveis que estava acostumado e obrigado a tratar, fazia sentir-se sujo por dentro e por fora.
Muitos valetes deviam ajudar a seus patrões quando se vestiam; Grant, em troca, preferia vestir-se sozinho. A idéia de permanecer quieto enquanto outro o vestia lhe resultava um tanto ridícula. Ele era um homem são; não era um boneco de pano que necessitasse ajuda para colocar um simples traje. Uma vez, manifestou este ponto de vista a um amigo pertencente a uma classe social mais elevada; este, divertido, havia-lhe dito que nisso consistia a diferença essencial entre as classes baixas e a aristocracia.
—Acaso quer dizer que só as classes baixas sabem vestir-se? - perguntou Grant, irônico.
—Não. - tinha replicado seu amigo, depois de uma gargalhada. - o que acontece é que não têm alternativa.
A aristocracia, por sua parte, pode contar com alguém que o faça por ela.
Grant atou a gravata de seda com um nó singelo e logo tirou o nó das pontas do pescoço até que ficaram erguidas. Passou um pente por seu revolto cabelo escuro e deu uma rápida olhada no espelho. No momento em que pegou à jaqueta cinza escura, ouviu um som afogado que chegava de um quarto.
—Vivien. - murmurou e, imediatamente, deixou cair à jaqueta.
Em poucos instantes, chegou ao dormitório principal e entrou sem se incomodar em bater. A criada já tinha passado por ali e tinha aceso a um pequeno fogo no lar.
Vivien estava tentando levantar-se sozinha; a camisa de linho estava enroscada na metade de suas coxas.
Seu comprido cabelo caía em revoltas mechas pelas costas. Estava apoiada em um só pé e se mantinha em instável equilíbrio. Seu tornozelo luxado estava enfaixado e inchado e a dor que lhe causava ficou em evidência quando deu um passo para afastar-se da cama.
—Do que precisa? - Perguntou Grant, o som de sua voz a fez sobressaltar-se. Não tinha muito melhor aspecto que a noite passada: em seu rosto se via uma palidez fantasmagorica, seus olhos ainda estavam inchados e sua garganta, inflamada—. Quer ir ao banheiro?
Sem dúvida, a brusca pergunta mortificou imensamente Vivien, e sua pele se cobriu de um rubor escarlate.
Grant, divertido, pensou que ver uma ruiva ruborizar era algo fora do comum.
— Sim, obrigada - murmurou ela, em voz rouca e forçada. Deu outro precavido passo saltando sobre um pé—. Se pudesse me dizer onde...
—Eu te ajudarei.
—OH, não, obrigada...
Ela lançou uma exclamação afogada quando ele elevou seus braços no seu corpo pequeno e ligeiro, sustentando-o contra seu peito. Com ela em seus braços, Grant transpôs a curta distância que havia até ao banheiro: duas portas seguindo pelo corredor; Vivien, enquanto isso, envergonhada até não poder mais, tentava tirar a camisa de linho sobre suas pernas. Pareceu-lhe um gesto estranho em uma cortesã. Vivien era famosa por sua carência de inibições, por não falar de seu estilo de vestir, elegante e provocador. O recato não formava parte de seu repertório. Por que, então, estava agora tão perturbada?
—Logo estará mais forte. - disse ele.- Enquanto isso ficará na cama e não usará este tornozelo. Se quiser algo, o que seja, chamará uma das criadas.
—Sim, obrigada. —Respondeu ela, levando uma mão a garganta. - Lamento incomodá-lo, senhor...
Ela titubeou, e ele compreendeu que tinha esquecido seu sobrenome.
—Me chame. —Replicou ele, deixando-a com suavidade no chão—. E não é modéstia nenhuma.
Vivien saiu uns minutos depois e se surpreendeu de encontrá-lo ainda ali. Ela parecia tão pequena como uma menina, coberta com a camisa dele, cujas mangas estavam enrolada várias vezes e cujas abas lhe chegavam mais abaixo dos joelhos. Ela elevou os olhos para ele e, a seu amistoso sorriso respondeu com a dela, que era tímida.
—Estás melhor?
—Sim, obrigado.
Estendeu-lhe uma mão.
—Permita-me que ajude a voltar para a cama?
Ela se dispunha a avançar saltando sobre um pé. Grant rodeou com cuidado seu corpo esbelto, lhe passando uma mão por detrás das costas e a outra debaixo dos joelhos. E a levantou com supremo cuidado, de todos os modos, ela afogou uma exclamação quando ele a apoiou contra seu peito. De todas as mulheres que ele tinha tido em seus braços, nenhuma possuía tão deliciosa, voluptuosa delicadeza. Seus ossos eram esbeltos, mas sua carne, flexível, voluptuosa, muito desejável.
Ao voltar para dormitório, Grant deixou Vivien sobre a cama e acomodou uma pilha travesseiros detrás dela. Ela atirou as mantas para cima, até cobrir o peito. Em que pese o seu estado de desarrumação ou, precisamente por causa dele, Grant sentiu outra vez a desconcertante necessidade de embalá-la e acariciá-la.
Justamente ele, que era conhecido por seu coração de granito, ou de alguma outra substância igualmente a uma pedra.
—Está com fome?
—Em realidade, não.
—Eu quero que você coma algo quando a ama de chaves trazer a bandeja.
Sem saber bem por que, seu tom autoritário fez a mulher sorrir.
—Tentarei.
Esse sorriso petrificou Grant... Era luminoso e cálido, era como um raio de magia que iluminava seu delicado rosto. Era tão diferente da mulher egocêntrica que ele tinha conhecido na festa do Wentworth que, por um instante, perguntou-se se seria a mesma pessoa. Entretanto, ela era a inconfundível Vivien.
—Grant. —Disse ela, vacilante. - Por favor, poderia me trazer um espelho? —Pediu, apertando-as bochechas entre as mãos em um gesto inconsciente de pudor—. Não sei que aspecto tenho.
Grant custou de algum modo arrancar o olhar dela e foi até um gabinete que havia em um rincão do quarto. Revolveu as estreitas gavetas e encontrou uma nécessaire de madeira, forrada de couro. O estojo estava destinado a conter tesouras, limas e elementos de penteadeira, e na tampa havia um espelho retangular sujeito a ela pela parte de dentro. Grant voltou junto à cama, abriu o nécessaire e a deu.
Vivien tratou de sustentar o estojo perto do rosto, mas, suas mãos ainda tremiam com violência, a consequência de sua experiência da noite passada. Grant tomou e sustentou o nécessaíre enquanto ela se olhava. Ele sentiu o calor que estavam nas mãos dela sob as suas, os dedos rígidos. Os olhos da mulher se dilataram e ele notou que continha o fôlego.
— Que estranho. —Disse ao não reconhecer seu próprio rosto.
—Não tem por que se abalar. —Disse Grant, rouco.
Mesmo assim, pálida e devastada, seu rosto era incomparável.
—Você acha?
Contemplou-se no espelho sem rastros da complacência consigo mesma que tinha manifestado na festa.
Aquela Vivien não havia abrigado dúvidas com respeito a seus numerosos atrativos. Esta mulher, em troca, era muito menos segura de si mesmo.
—Todos opinam o mesmo. A consideram uma das grandes beldades de Londres.
—Não vejo por que. —Replicou ela e, ao surpreender a expressão cética dele, adicionou. - É verdade, não estou tratando de suscitar elogios... É que... Parece-me um rosto bastante comum. - prosseguiu, compondo uma cômica expressão de palhaço, como uma menina experimentando diante do espelho. Soltou uma risada trêmula. - Tenho a sensação de que não sou eu no espelho.
Seus olhos reluziam como safiras e ele soube, com um brilho de alarme, que ia começar a chorar.
—Não chore. - murmurou. - Já disse ontem à noite o que sinto á respeito de prantos.
— Sim, já sei: não pode suportar as lágrimas de uma mulher. - respondeu ela, enxugando-os olhos com os dedos. Um sorriso vacilante tocou seus lábios. Não acreditei que um policial fosse tão sensível.
—Sensível. - repetiu Grant, indignado. - Sou tão duro como o melhor.
Tomou uma parte do lençol de linho e lhe secou o rosto.
—Você é? —Perguntou ela, lançando um último suspiro e espiando-o por cima da borda do lençol, e ele viu que uma risada aparecia depois das últimas lágrimas. - Me dá a impressão de ser bem gentil.
Grant abriu a boca para discutir, mas, de repente, soube que ela estava zombando dele. Teve grandes dificuldades para afogar um inesperado calor que lhe subiu pelo peito.
— Sou tão sensível como uma pedra de moinho. —disse ele.
—Com respeito a isso, reservo minha opinião. — respondeu ela, fechando o nécessaire, e sacudindo sua cabeça, pesarosa—. Não devia ter pedido o espelho. Meu aspecto é espantoso.
Grant, carrancudo, contemplou os lábios ressecados e esquartejados dela. Tomou um pequeno frasco de cristal que havia sobre a mesinha de noite e o entregou.
—Prove com um pouco disto. Linley deixou uma mescla que é especial para curar escoriações...
—Necessitaria um barril disto-disse ela, tentando torpemente abrir a tampa de porcelana.
Grant lhe tirou das mãos o frasco e o abriu. Em lugar de voltar a dar-lhe, sustentou-o na mão e deixou vagar seu olhar sobre ela.
—Esta manhã está melhor dos tremores. - comentou ele com calma.
Vivien se ruborizou e assentiu; ele teve a impressão de que seus tremores a envergonhavam.
—Sim, mas ainda não consigo me aquecer - replicou, esfregando-a pálida pele esquartejada dos braços— Perguntava-me... Se não poderia...
—Um banho quente?
—OH, sim.
A vibração de ansiedade que notou em sua voz fez Grant sorrir.
—Isso se pode resolver. Mas terá que se mover com cuidado e deixar que as criadas lhe ajudem. Ou eu, se preferir.
Vivien o olhou boquiaberta de assombro pela proposta.
—Eu não gostaria de lhe causar tantos inconvenientes... —balbuciou.
—Não é nenhum inconveniente - disse ele brandamente.
O único indício de que estava brincando era o brilho de seus olhos verdes.
Na mente de Vivien surgiu uma imagem que não teve tempo de reprimir: ela, inundada em uma banheira fumegante, enquanto lhe lavava seu corpo nu.
—Que rubor - observou Grant com repentino sorriso—. Se isso não a faz se aquecer, nada o conseguirá -
disse, colocando um dedo no unguento que cheirava a anis e aproximando-o da boca dela—. Não se mova.
Vivien obedeceu, com seu olhar cravado no rosto dele, enquanto ele aplicava delicadamente o unguento em seus lábios. A pele, seca e inflamada, absorveu imediatamente a preparação; Grant voltou a afundar o dedo no frasco. Um profundo silêncio reinava na habitação, quebrado só pela respiração funda e trêmula de Vivien.
Grant sentiu uma pressão em seu peito que o perturbou sobremaneira. Sentiu vontades de beijá-la, abraçá-
la, reconfortá-la como se ela fosse uma menina perdida. Jamais teria imaginado que Vivien Duvall pudesse ser tão vulnerável. Que o condenasse se isto era uma atuação de sua parte, pois, se assim resultase, era provável que ele mesmo acabasse estrangulando-a.
Sem dúvida, ela já tinha provocado a um pobre qualquer para fazê-lo.
Esse pensamento fez deter-se Grant; advertiu a si mesmo que não devia deixar que ela o afetasse.
“Desfruta-a, disse-se, tira dela o que desejas... mas não pense, nem sequer um minuto, em permitir sentir carinho por ela.” Ele não necessitava de problema dessa envergadura. Esfregou um pouco mais de unguento nos dedos e o estendeu sobre a garganta machucada. Sentiu que Vivien ficava imóvel sob sua mão, com o olhar concentrado no rosto dele.
—Nos conhecemos não é assim? -sussurrou ela.
Ele baixou as pestanas e demorou um pouco em responder.
—Pode-se dizer que sim.
Deu outra suave passada com as pontas de seus dedos sobre a pele dela, para que o unguento penetrasse mais a fundo na pele.
Confusa, ela tentou analisar a sensação que provocava o contato de Grant em sua pele, a assombrosa familiaridade e o consolo que lhe brindava sua presença. Não havia nada no mundo que resultasse familiar, nem sequer o rosto... Mas, por inexplicável que parecesse, ele a fazia sentir-se segura e reconfortada. E não haveria sentido desse modo se estivesse junto a um desconhecido, não é verdade?
—Até que ponto nos conhecemos? —perguntou Vivien, insegura.
—Falaremos disso mais adiante.
Ele teria que pensar um pouco no que dizer e de que modo apresentaria a situação. Enquanto isso, ela repousaria e se curaria, e permaneceria sob seu amparo. Vivien não pareceu muito de acordo com sua evasiva, absteve-se de insistir na questão, e ele chegou à conclusão de que ainda devia estar muito fatigada para discutir. Colocou a mão no bolso de seu colete e extraiu o relógio. Ao comprovar que já era tarde, franziu o cenho.
—Devo partir. - disse ele - Hoje irei a sua casa e recolherei algumas roupas suas.
Ela fez um esforço para sorrir, mas seus olhos tinham uma expressão suplicante.
— Família ou amigos a quem possa a procurar?
—Não sei nada com respeito a sua família - admitiu Grant. - Tratarei de averiguar todo o possível. E, quanto aos amigos, certamente os tem, mas agora não é momento para visitas. Precisa descansar. - E, sem poder resistir à tentação, seguiu com um dedo as linhas de preocupação de sua frente abatida e acrescentou— Não se aflija doce. - murmurou ele.
Vivien se recostou sobre os travesseiros, e sentiu que a fadiga pesava em suas pálpebras.
—Tantas incógnitas... —suspirou ela.
—Logo terá as respostas que desejas - disse ele. Fez uma pausa e parte de sua vibrante ternura desapareceu de sua voz quando adicionou. — Embora algumas delas possivelmente não lhe agradem.
Ela o olhou com solenidade e sua mão subiu até a garganta.
—Que me aconteceu ontem à noite?
—Vou descobrir —Respondeu ele em tom sombrio, que não deixava lugar a dúvidas.
A rua desenhada em forma de arco tinha sido construída em meados do século XVI. No século anterior tinham vivido alguns famosos na Rua Bow. Mas, depois da mudança do século, só um nome realmente importante ficou relacionado com essa rua: sir Ross Cannon.
Em ocasiões, parecia que a atenção do mundo inteiro se concentrava no estreito edifício de quatro andares e seu famoso habitante. Cannon dirigia de maneira magistral à meia dúzia de detetives e a outros oitenta oficiais de diversas categorias. Os detetives tinham conquistado fama internacional reprimindo tumultos, resolvendo crimes e protegendo à família real.
Cinco anos antes, depois da morte de um dos sucessores de Fielding, baralharam-se os nomes de muitos homens importantes como candidatos a ocupar o cargo de magistrado chefe. E, entretanto, escolheu a um indivíduo relativamente desconhecido para ocupar esse posto: Ross Cannon, que antes atuou como magistrado no escritório da Rua Great Marlboro. Cannon tinha assumido seus deveres de magistrado e chefe como se tivesse nascido para esse posto. Antes que o galo cantase, havia imprimido seu selo particular ao escritório da Rua Bow, abordando a tarefa de detetive como se fosse uma ciência, inventando métodos, provando rua teorias, guiando e animando a seus funcionários com contagioso entusiasmo. Era exigente e pretendia que todos trabalhassem duro; seus homens estavam dispostos a morrer por ele... Incluindo Grant.
Grant subiu os três degraus da entrada e deu um vigoroso golpe à porta. Abriu-lhe a ama de chaves de Cannon, a senhora Dobson, uma mulher gorda e maternal, cuja cabeça estava coberta de bamboleantes cachos chapeados. Seu rosto gordinho se iluminou com um sorriso quando fez encontrou Grant.
—Outra vez sem chapéu, senhor Morgan... Um destes dias morrerá com esse vento frio que sopra do norte.
—Não posso usar chapéu, senhora Dobson. - replicou Grant, enquanto tirava seu pesado casaco negro e o entregava à mulher, a quem essa montanha de lã quase afogara.- Já sou muito alto sem ele.
As cartolas alta que estavam na moda nesse momento lhe davam uma aparência ridícula, posto que lhe somavam desnecessários centímetros a sua já imponente estatura, provocando insolentes olhares de parte dos que o conheciam.
—Bom, não acredito que ninguém o veja mais baixo porque ande sem chapéu respondeu ela.
Grant sorriu e beliscou a bochecha, arrancando uma exclamação afogada e uma repreensão. Mas suas repreensões não eram muito severas: ambos sabiam que ele era seu preferido entre todos os detetives.
—Onde está Cannon? —Perguntou ele, com seus olhos verdes reluzentes, e a senhora Dobson assinalou o escritório do magistrado.
Dentro da propriedade de número 4 da Rua Bow havia uma casa, um pequeno pátio, escritórios, um tribunal e alguns calabouços para encerrar aos prisioneiros. Cannon tinha nascido no seio de uma família de boa posição econômica e pode levar uma vida indolente, em um sítio mais luxuoso que esse... Mas isso não estava em sua natureza. Sentia paixão pela justiça e, como era muito que havia por fazer, não ficava tempo com preguiça nem a frivolidade.
Para Cannon, a vida era assunto sério, e ele vivia de acordo com essa idéia. Diziam os rumores que tinha prometido a sua jovem esposa, em seu leito de morte, que jamais voltaria a casar-se, e Cannon tinha sido fiel a sua palavra. Empregava toda sua tremenda energia no trabalho. Até seus amigos mais íntimos teriam estado dispostos a jurar que nada poderia quebrar o férreo controle que Cannon exercia sobre seu coração.
Enquanto percorria o estreito corredor que conduzia ao escritório privado de Cannon, Grant esteve a ponto de se chocar com dois detetives que saíam... Flagstad e Keyes, os dois mais antigos; ambos, próximos aos quarenta.
—Outra vez vamos custodiar os quartos traseiros reais. - disse Keyes em tom alegre.
Enquanto isso, Flagstad informava que tinham atribuído a ele uma missão mais lucrativa: custodiar o Banco da Inglaterra, posto que ali pagavam dividendos quinzenais.
—E você, no que anda esta manhã? —Perguntou Flagstad a Grant. Seu rosto curtido estava sulcado por linhas de bom humor. - Não; não me diga isso: outro roubo em um banco ou algum assalto em uma morada no lado oeste, que cobrará uma fortuna por resolvê-lo.
Grant respondeu com um sorriso, pois já estava acostumado a suportar as brincadeiras de seus colegas com respeito ao elevado preço das comissões que recebia. Tolerante, assinalou que ele tinha apanhado mais ladrões no ano anterior que os outros cinco detetives juntos.
—Eu só percebo o que estão dispostos a pagar. - disse com simplicidade.
—O único motivo por que os nobres solicitam seus serviços é porque é condenadamente elegante, disse Keyes rindo entre dentes—. O outro dia, uma dama me disse: “Entre todos os detetives, o senhor Morgan é o único que tem o aspecto devido” - disse, acompanhando a afirmação com um bufou. - Como se a aparência de um homem tivesse algo que ver com o modo em que desempenha seu trabalho!
—Eu sou elegante? —perguntou Grant, sem poder acreditá-lo.
Jogou um olhar a seu discreto traje, e logo ao almofadinha do Keyes: O penteado, cuidadosamente “revolto pelo vento”, o alfinete de ouro na gravata, as pequenas flores e lises bordadas com seda no colete. E
passou por cima do chapéu de asa larga, de cor nata, que o outro tinha inclinado sobre um olho.
—Tenho que me vestir assim na corte - disse Keyes, à defensiva.
Flagstad riu para si e convidou com um gesto Keycs a continuar seu caminho antes de que se desatasse uma briga.
—Espere - disse este, com uma nota de interesse em sua voz—. Morgan ouviu dizer que, ontem à noite, enviaram-lhe a investigar um corpo achado no rio.
—Sim.
Sua sobriedade enervou Keycs.
—Não para de falar, né? Bom, o que pode nos contar a respeito? A vítima era homem ou mulher?
—E o que importa isso? - Perguntou Grant, perplexo ante o interesse do detetive sobre o tema.
—Você cuidará do caso? —insistiu Keyes.
—É provável.
—Tomarei, se quiser. - Ofereceu Keyes. - Deus sabe que não deve ter muito interesse em investigar o caso de uma mulher morta. Ouvi dizer que não pagam muito por afogados, ultimamente.
A frouxa brincadeira arrancou de Flagstad um bufo depreciativo. Alarmado, Grant olhou para Keyes.
—Por que supõe que é uma mulher? - Perguntou. Keyes piscou e demorou um instante em responder.
—É só uma conjetura, moço. Estou certo?
Grant lhe jogou um último olhar inquisitivo e, negando-se a responder, entrou no escritório de Cannon.
Sir Ross estava sentado de costas à porta, ante o maciço escritório de carvalho que dava a grande janela retangular com vistas à rua. Uma enorme gata marrom e cinzas ocupavam uma esquina do escritório; jogou um lânguido olhar ao recém-chegado. O desdenhoso o felino tinha sido descoberto, fazia uns anos, na escalinata de frente da Rua Bow. Faltava-lhe a cauda, já fosse por acidente ou por um ato de deliberada maldade, e tinha sido apelidada Chopper. Era, sem dúvida, uma gata pouco dada e, como tal, reservava, todo seu afeto para Cannon e não tolerava ninguém mais.
Cannon fez girar sua cabeça escura e olhou Grant com expressão grata mas sem sorrir.
—Bom dia – murmurou. - Há uma jarra com café sobre a mesa do aparador.
Grant jamais rechaçava um oferecimento de café. Sua afeição a amarga bebida só competia com Cannon.
Ambos bebiam café forte e muito quente, sempre que isso fosse possível. Serviu-se de uma generosa quantidade em um jarro de louça clara e se sentou em uma cadeira que Cannon lhe apontou. O magistrado se concentrou de novo em uns documentos que tinha sobre seu escritório e assinou um com hábil gesto da mão.
Enquanto aguardava, Grant deixou vagar seu olhar pelo confortável e conhecido quarto. Um dos muros estavam mapas das cidades e os condados que a rodeavam, como também de planos de planta do Westminster Hall, o banco da Inglaterra e outros edifícios de importância. Outra parede estava coberta com prateleiras com livros que continham suficientes volumes para esmagar a um elefante. A mobilia estava composta por umas pesadas peças de carvalho, singelas e funcionais. Um globo terrestre de biblioteca estava apoiado sobre um suporte de mogno, em um rincão. Ocupava um amplo espaço da parede uma só pintura: uma paisagem de Gales do Norte, no que um pequeno arroio corria entre rochas acidentadas, com árvores escuras e cinzas colinas que se adivinhavam na distância. A paisagem dava uma discordante impressão de primitivismo em contraste com o bulício artificioso de Londres.
Por fim, Cannon se voltou para ele e suas sobrancelhas negras se arquearam á modo de interrogação. Suas feições afiadas e seus frios olhos cinza lhe davam um aspecto de lobo.
—E bem? —murmurou—. O que há sobre o afogado que investigou ontem à noite? Faz falta que um forense investigue a causa?
—Não há tal afogado - respondeu Grant, conciso— A vítima, é uma mulher, ainda estava viva. Levei-a á minha casa e mandei procurar o doutor Linley.
—Muito caridoso de sua parte. - Grant elevou os ombros.
—Conheço bastante essa dama. Chama-se Vivien Duvall.
O nome apanhou a atenção de Cannon.
—A mesma que o rechaçou na festa dos Wentworth?
—Fui eu quem a rechaçou. - disse Grant, com um arrebatamento de aborrecimento. -Não sei por que a anedota se distorceu ao passar de boca em boca.
As sobrancelhas negras de Cannon se elevaram e lançou um irônico murmúrio do fundo de sua garganta.
—Adiante-me, descreva o estado da senhorita Duvall.
Grant apertou seus dedos sobre o apoio do braço de sua cadeira.
—Intenção de assassinato: Não me cabe dúvida disso. Fortes hematomas e marcas de dedos no pescoço e, com manchas escuras, um golpe na cabeça. Segundo Linley, ela vai recuperar se... Mas existe uma dificuldade: perdeu sua memória. Não pode nos proporcionar um só detalhe do acontecido; nem sequer recorda seu nome.
— Disse o médico quando recuperará a memória, ou se a recuperará?
Grant negou com a cabeça.
— Não sabia. E, até que a investigação tenha alguma evidência, ou ela recupere sua memória, o mais seguro é que todos acreditem que esteja morta.
Fascinado, Cannon entreabriu seus olhos cinza.
—Quero que coloquem um dos detetives para investigar ou você em pessoa se ocupará do caso?
—Eu o quero. - respondeu Grant, apurando a taça; rodeou-a com seus largos dedos para ficar com o pouco calor que ficava nela. - Vou começar por interrogar seu anterior protetor, lorde Gerard. É provável que ele, ou algum outro amante ciumento tenha tentado estrangulá-la. O Diabo é testemunha de que deve haver uma larga lista de amantes ciumentos.
A boca do Cannon tremeu quando este tratou de reprimir seu humor.
—Enviarei um homem para interrogar o barqueiro que a encontrou, como também aos outros que estava transportando passageiros perto da ponte de Waterloo a noite passada. Possivelmente algum deles tenha visto ou ouvido algo que nos sirva. Mantenha-me informado sobre a marcha da investigação. Enquanto isso, onde residirá à senhorita Duvall?
Grant examinou as reluzentes gotas negras que se pegavam no interior da taça, e falou com o tom mais indiferente que foi possível: —Em minha casa.
—Estou certo de que ela deve ter amigos ou parentes que a teriam consigo.
—Estará mais segura comigo.
Grant sustentou sem pestanejar o olhar frio e penetrante de Cannon. O magistrado jamais fazia comentários sobre a vida privada de seus detetives sempre que cumprissem bem seu trabalho. Entretanto, sentia debilidade pelas mulheres e crianças e era capaz de fazer tudo que estivesse em seu poder, que não era pouco, para impedir que fossem maltratados.
Cannon deixou que o silêncio se alargasse ao incômodo, e logo falou: —Acredito que o conheço, Morgan... Conheço o suficiente para estar certo de que não se aproveitará desta mulher, por grandes que sejam as ofensas pessoais que lhe tenha inferido.
Grant respondeu com frieza: —Jamais me imporia pela força a uma mulher que me rechaçasse.
—Não me referia a “forçar” - disse Cannon com suavidade. – Refiro-me à manipulação... Oportunismo, sedução.
Grant sentiu vontades de dizer ao magistrado que se ocupasse de seus próprios assuntos, mas ficou de pé e deixou seu jarro vazio sobre o aparador.
—Não preciso de um sermão - resmungou. Não farei mal à senhorita Duvall de maneira nenhuma. Nesse sentido, pode contar com minha palavra. Mas tenha em conta que ela não é uma inocente. É uma cortesã. A manipulação e a sedução são as ferramentas de seu ofício. Sua perda de memória não modifica sua condição.
Imperubável, Cannon formou um templo unindo as pontas dos dedos e fixou em Grant um olhar especulativo.
— A senhorita Duvall está disposta a aceitar?
—Se não lhe agradar, pode ir aonde deseje.
—Certifique-se de que ela o deixe bem claro.
Grant ragou alguns comentários seletos e inclinou sua cabeça em sinal de assentimento.
—Algo mais? Perguntou, em um tom muito suave para ser zombador.
Cannon seguiu perfurando-o com um olhar examinador.
—Talvez queira me explicar por que deseja à senhorita Duvall sob seu teto, depois de ter assegurado que a detestava.
—Jamais disse que a detestava. - replicou Grant.
—Vamos - repreendeu seu chefe com suavidade.— Você não ocultou seu ressentimento quando soube que, por culpa dela, converteu-se em motivo de falatórios.
—Suponha que é minha oportunidade para me emendar. Além disso, é meu dever.
Cannon lhe dirigiu um expressivo olhar.
—Sem ter em conta o caráter da dama, ou a ausência dele, eu preferiria que mantivesse a distância dela até que recupere sua memória e conclua a investigação.
Grant se irritou até um grau intolerável e esboçou um tenso sorriso.
—Acaso não faço sempre o que você me pede?
Cannon soltou um breve suspiro e se voltou para seu escritório.
—Quem dera o fizesse. - murmurou, despedindo-o com um expedito gesto.
—Adeus, Chopper. - saudou Grant com ligeireza, mas a gata voltou à cabeça com um desdém que o obrigou a sorrir.
Park Lane, centro da prestigiosa zona de Mayfair, era o bairro mais cobiçado de Londres. Emanava dele um ar de riqueza e poder; a rua estava flanqueada por imponentes mansões decoradas com colunas e desenhadas em grande escala. Eram moradias cujo propósito consistia em convencer aos transeuntes de que seus habitantes eram superiores aos seres humanos correntes.
Grant, por sua parte, conhecia muito a vida íntima da aristocracia para deixar-se impressionar pela grandeza de Park Lane. A nobreza tinha tantos defeitos e tantas debilidades como às pessoas do comum...
Possivelmente mais. A única diferença entre um aristocrata e um homem do povo era que o primeiro contava com muitos mais recursos para ocultar suas maldades. Em ocasiões, os membros da nobreza estavam convencidos de que se achavam por cima das leis que regiam os homens ordinários. Levar ante a justiça a esta classe de indivíduos era o que mais agradava a Grant.
O nome do mais recente protetor do Vivien era William Henry Ellyot, lorde Gerard. Como futuro conde de Norbury, sua principal ocupação era esperar a morte de seu pai, para poder herdar um respeitável título e uma considerável fortuna. Por desgraça para Gerard, seu pai gozava de excelente saúde e o mais provável era que retivesse o título durante muitos anos mais. Enquanto isso, Gerard procurava encontrar modos de divertir-se, satisfazendo seu imperioso desejo pelas mulheres, a bebida, os jogos de azar e o esporte. Seu “acerto” com Vivien Duvall o tinha convertido na inveja de muitos homens. Ela representava um adorável troféu que, além disso, era muito ostentoso.
Era famoso o mau caráter do Gerard, que estava acostumado a entregar-se a violentas manhas de criança quando se via privado de algo que desejava. Embora supunha que um cavalheiro devia ser capaz de aceitar com elegância suas perdas no jogo, Gerard fazia armadilhas e mentia como tal e não aceitava a derrota.
Dizia-se que descarregava todas suas frustrações em seus serventes e que era um amo tão lamentável que era difícil conseguir pessoal doméstico para suas diversas residências.
Grant subiu os degraus de uma mansão de estilo clássico, sustentado por colunas e seus nichos com estátuas. Depois de um par de fortes golpes com sua mão enluvada, uma das portas se abriu, deixando ver o semblante azedo de um mordomo.
—Que o traz por aqui, Sr? —Perguntou o criado.
—Diga a lorde Gerard que vim vê-lo, sou senhor Morgan.
Grant percebeu o instantâneo reconhecimento no rosto do mordomo e a cautela que vibrou na voz do homem.
—Sr, lamento lhe informar que lorde Gerard não se encontra em casa. Se deixar você seu cartão de visita, eu me ocuparei de que a receba mais tarde.
Grant sorriu com descredito.
“Não está em casa” era uma frase que usavam os mordomos para significar que tal lorde ou tal lady bem poderia estar em sua casa, mas que não recebia visitas. Mesmo assim, se Grant queria interrogar a alguém, as formalidades sociais não constituíam um obstáculo para ele.
—Eu não deixo cartões - respondeu. Vá dizer a seu patrão que o senhor Morgan está aqui. Esta não é uma visita social.
O semblante do mordomo permaneceu impassível, mas toda sua pessoa expressava desaprovação. Sem dignar-se a responder, deixou Grant na entrada e desapareceu no interior da casa. Grant entrou e fechou a pesada porta empurrando-a com um pé. Examinou o vestíbulo da entrada enquanto se balançava sobre seus talões. Estava decorando com resplandecentes colunas de mármore, seus muros estavam pintados de uma cor de moda chamada “cinza parisino”. A parte superior das paredes estava coberta de obra de até o alto céu raso.
Enfrentado à porta de entrada havia um abside no qual se via uma pequena escultura que representava uma figura feminina alada.
Grant se aproximou da estátua e tocou uma das delicadas asas, admirando a elegância da obra.Nesse momento, voltou a aparecer o mordomo; ao ver Grant franziu o cenho, crispado e altivo.
—Senhor, isso forma parte da valiosa coleção de esculturas romanas de lorde Gerard.
Grant retrocedeu e respondeu, sem alterar-se: —Em realidade, é grega. O original está em Atenas, no Partenon.
—Bom... —balbuciou o mordomo, confundido— Não se deve tocar. Se tiver a amabilidade de me seguir, lorde Gerard já se encontra em casa.
Grant foi conduzido a uma espaçosa sala com suas paredes cobertas de painéis de madeira de cor clara, quase branco, e outros octagonais de damasco vermelho. O céu raso era notável: estava decorado com painéis vermelhos e dourados que se estendiam em forma de centrífuga, a partir de um sol dourado no centro. Entre um par de janelas de cristais romboidales, havia uma série de medalhões com retratos que exibiam os carnudos e dignos rostos dos últimos cinco condes do Norbury.
—Quer uma taça, Morgan?
Lorde Gerard entrou na sala embutido em uma bata de veludo verde bordada. Seu cabelo despenteado se arrepiava sobre seu rosto bochechudo, e sua pele avermelhada revelava o excesso de bebida. Gerard, com uma taça de conhaque em uma mão, avançou para uma enorme poltrona de orelhas com patas em forma de garras e se sentou com movimentos vivazes. Embora fosse um homem de pouco mais de trinta anos, sua vida relaxada lhe tinha dado a aparência de um sujeito dez anos mais velho, pelo menos. Tinha um aspecto comum, nem gordo nem magro, nem alto nem baixo, nem arrumado nem feio. Seu único rasgo distintivo eram seus olhos:escuros, pequenos e intensos.
Gerard indicou sua taça com um gesto.
—É um excelente Armagnac comentou. Quer beber um pouco?
—Para mim, é um pouco cedo. - respondeu Grant, sacudindo levemente sua cabeça.
—Não me ocorre uma maneira melhor de começar o dia.
Gerard bebeu um comprido trago do dourado líquido.
Grant manteve uma expressão amável, mas sentiu que, em seu interior, surgia algo escuro e desagradável enquanto observava Gerard. A imagem de Vivien junto com este homem, servindo-o, agradando-o, passou ante ele como um relâmpago perturbador. Ela tinha sido a rameira de Gerard e, sem dúvida, venderia-se ao próximo homem que pudesse satisfazer a seu preço. Ciumento e enojado, Grant se sentou na cadeira perto de Gerard.
—Obrigado por aceitar conversar comigo. - murmurou Grant.
Gerard desviou sua atenção da taça o tempo suficiente para desenhar um azedo sorriso.
—Pelo que entendi, não tinha alternativa.
—Não acredito que vá tomar muito tempo. - disse Grant. - Só quero lhe fazer umas perguntas.
— Está levando adiante alguma investigação? A respeito do que e a quem investiga?
Grant se reclinou em sua cadeira e adotou uma pose relaxada, mas seu olhar não se separou do rosto de Gerard.
—Queria saber onde esteve você ontem à noite por volta da meia-noite.
—Estava em meu clube, Craven’s. Tenho vários amigos que podem dar fé de minha presença ali.
—A que horas partiu?
—As quatro ou talvez às cinco respondeu Gerard, e seus lábios grossos se curvaram em um sorriso. - Tive uma rajada de sorte nas mesas de jogo e depois estive um momento com uma das moças da casa. Em síntese, uma excelente noite.
Grant formulou com brutalidade a seguinte pergunta: —Que relação tem com a senhorita Vivien Duvall?
Esse nome pertutbou as feições de Gerard. O rubor de seu rosto se intensificou e seus escuros e estreitos olhos adquiriram o aspecto de lascas. Inclinou-se para diante e pegou a taça com ambas as mãos.
—Então, isto está relacionado com Vivien? O que ocorreu? Se meteu em algum problema? Por Jesus cristo, seja o que for, espero que seja desagradável e custoso. Diga-lhe que não elevarei um dedo para ajudá-la, mesmo que ela venha para mim arrastando-se. Antes, prefero beijar um pé de Batata.
—Me fale de sua relação com ela. - repetiu Grant sem alterar-se.
Gerard acabou seu Armagnac com um ruidoso gole e limpou a boca com a manga. Ao parecer, o licor o serenou, e em seu rosto apareceu um ardiloso sorriso.
—Acredito que você já sabe, Morgan. Em uma ocasião, você mesmo demonstrou certo interesse por ela, não é assim? E ela não o aceitou. - Rindo ante a idéia, mas recuperou rapidamente a seriedade—. Essa serpente... Estive dois anos com ela. Paguei seus gastos, lhe dei de presente uma casa na cidade, jóias, uma carruagem com seus cavalos, tudo o que queria. Ao menos se supunha que seria exclusiva. Embora eu não me enganasse pensando que ela me seria fiel. Vivien é incapaz de guardar fidelidade.
—Assim acabou o acerto entre vocês? Porque foi infiel?
—Não. - respondeu Gerard, contemplando com pesar a taça vazia.- Antes que eu continue lhe respondendo, você poderia me explicar uma coisa... Por que diabos estamos falando de Vivien? Acaso lhe aconteceu algo?
—Você pode responder a minhas perguntas aqui ou na Rua Bow. - Disse Grant com calma. — Não seria o primeiro par do reino que já interroguei nesse porão.
Gerard se levantou de sua poltrona, impulsionado por um arrebatamento de raiva e incredulidade.
—Como se atreve a me ameaçar! Por Deus, alguém deveria lhe baixar a petulância!
Grant também ficou de pé, demonstrando que não tinha medo ficando, ao menos, uma cabeça de altura.
—Pode tentar se desejar. - respondeu com suavidade.
Poucas vezes aproveitava de seu tamanho para intimidar a outros, pois preferia valer-se de seu engenho.
Havia muitos homens que desejavam provar sua força, incitando-o a brigar com a esperança de impressionar seus amigos por sua audácia. Já fazia tempo que Grant se fartou de dar surras a interminável fileira de galos briguentos que o desafiavam. Só brigava se fosse indispensável... E sempre ganhava. Não lhe proporcionava um grande prazer agredir a um homem até cansar. Entretanto, era capaz de fazer uma exceção com Gerard.
A este lhe alargou o semblante ao medir com a vista o gigante que tinha diante de si. Alisou a cabeça com um gesto rápido e nervoso.
—Não, não brigarei com você. - balbuciou.- Não posso rebaixar-me a trocar golpes com um vulgar valentão.
Grant indicou a poltrona de orelhas com um gesto de exagerada cortesia.
—Nesse caso, sente-se, milord.
Pela cabeça de Gerard cruzou outro pensamento e se deixou cair pesadamente no fofo assento.
—Bom Deus - disse, em voz apagada— Vivien está morta, não é assim? Disso se trata.
Grant se sentou e se inclinou para diante, apoiando os cotovelos em seus joelhos. Pousou um atento olhar no rosto corado de Gerard.
—Porque o diz?
Gerard falou como em sonhos.
—Esteve desaparecida durante o último mês, desde que rompeu nosso acordo. Seus criados foram despedidos e sua casa, fechada. Eu estive em festas nas que se supunha que iria Vivien, a uma soiré, uma velada musical... Ninguém sabia onde estava ela nem por que não tinha ido. Todos supuseram que se encerrou com um novo protetor. Mas Vivien não permaneceria longe de Londres durante tanto tempo a menos que tivesse acontecido algo francamente ruim.
—Por que diz isso?
—Vivien se aborrece com facilidade. Tem uma permanente necessidade de estímulo e de diversão. Uma vida tranquila a deixaria louca. Odeia estar sozinha. Trabalha em excesso para assistir a alguma festa a cada uma das noites da semana. Eu nunca pude seguir seu ritmo. - disse Gerard, lançando uma breve gargalhada de derrotado— Ficou comigo mais que com nenhum outro de seus protetores... Isso me proporcionou certa dose de consolo.
—Segundo seu parecer, ela tem algum inimigo?
—Nenhum que pudesse qualificar com esse termo. Embora muitos a detestem.
—Como era a situação econômica da senhorita Duvall quando se separou de você?
—O dinheiro se escorre como água de entre os dedos de Vivien. Não tinha recursos suficientes para um tempo prolongado. Tinha que encontrar sem demora a um novo amante.
—Tem idéia de quem poderia ter sido o próximo candidato?
—Não.
—O que você sabe sobre a familia dela?
—Não tem ninguém, que eu saiba. Como pode você imaginar, poucas vezes conversamos sobre isso. -
Disse Gerard.
—Sobre o que conversavam? - Perguntou Grant. - A senhorita Duvall tinha alguma afeição ou interesse, em particular? Alguma inclinação que tivesse manifestado nos últimos tempos?
—Nada que existisse fora da cama. Até duvido de que alguma vez tenha lido um livro.
—Alguma relação nova que você tivesse notícia? Em especial, masculina?
Gerard arregalou os olhos.
—Nem o próprio Deus seria capaz de contar de todas as relações masculinas de Vivien.
—Me fale do dia em que ela acabou o acerto que havia entre vocês. Discutiram?
—Claro. Eu tinha investido muito nela; não via por que as coisas não podiam seguir do mesmo modo durante um tempo indefinido. Eu fazia vista grossa cada vez que ela tinha uma aventura. Eu me aborreci bastante, até a ameacei, mas ela riu na minha cara. Exigi-lhe que me dissesse qual era o homem que ia me substituir, pois estava seguro de que não me deixaria sem ter outro sustento. Mostrou-se muito grata e só disse que logo se casaria com alguém de grande fortuna. - Contou, bufando de raiva. - Que idéia tola!
Ninguém adquire mercadorias usada como Vivien Duvall, a não ser que queira converter-se no bobo da Inglaterra. Claro que eu a considero capaz de algo assim. Suponho que seria possível que tivesse convencido a algum viúvo decrépito de lhe fazer uma proposta.
—Tem testemunhas da discussão?
—Estou certo de que os criados de Vivien estavam por perto. Sem dúvida, eu levantei muito a voz por duas vezes.
—Você bateu nela?
—Nunca—Respondeu Gerard imediatamente, mostrando-se ofendido. - Admito que estive tentado estrangulá-la. Mas jamais machucaria a uma mulher. E, apesar de meu aborrecimento, teria aceitado de novo Vivien se ela pedisse, deixando de lado meu orgulho.
Esta afirmação fez Grant arquear as sobrancelhas. Em sua opinião, nenhuma mulher valia tanto para que um homem sacrificasse seu orgulho por ela, por muito atraente que pudesse ser. Sempre poderia encontrar outro rosto bonito, outro corpo bem formado, outro desdobramento de encantos femininos que logo apagassem as lembranças do anterior.
—Imagino no que estará pensando. - disse Gerard. - Mas há algo que você não entende: Vivien é única.
Seu aroma, seu sabor, seu contato... Não se pode comparar com nenhuma. Não havia nada que não estivesse disposta a fazer na cama. Deitou-se você, alguma vez, com uma mulher que não tivesse nada de vergonha? Se eu pudesse voltar a estar uma noite com ela, uma hora, ao menos...
Sacudiu sua cabeça e murmurou uma maldição.
—Muito bem, milord. - disse Grant.- Se ela estivesse morta... - continuou falando lentamente. – choraria por ela?
Esperei um longo momento pela resposta, mas, ao parecer, Gerard custava fazê-lo. Grant sorriu com ar cínico. Gerard era como um menino privado de seu brinquedo preferido: sentiria falta do prazer sexual que Vivien lhe tinha dado, mas não sentiria por ela verdadeiro afeto. Havia cortesãs que amavam e eram amadas por seus protetores e mantinham relações que duravam décadas. Grant conhecia mais de um homem que tinha evitado o amargo desencanto de um matrimônio tomando uma amantes que concebia seus filhos e desempenhava o papel de amorosa companheira como qualquer esposa. Quanto a Vivien, em troca, o papel de cortesã era desempenhado só por motivos comerciais e de benefícios.
— Você tem as chaves de sua casa? —Perguntou Grant a Gerard.
A pergunta o desconcertou.
—Suponho que deveria as ter. Tem você a intenção de olhar suas coisas? Que espera achar?
—No que se refere à senhorita Duvall, estou começando a compreender que não devo esperar nada-respondeu Grant cortante, sentindo que dentro de si se mesclava a curiosidade com um estranho matiz de temor ante a perspectiva de visitar a casa dela.
Quanto mais descobria a respeito de Vivien e de seu sórdido passado, mais desanimava.
Capítulo 4
Grant abriu a fechadura da porta de bronze da casa de Vivien, que era uma das tantas localizadas depois da fachada palaciana de Grosvenor. A moradia nessa prestigiosa zona, com suas fileiras de espetaculares colunas e suas entradas em arco, devia ter custado uma pequena fortuna. Pensou sombrio, que era um testemunho mais da destreza de Vivien em sua profissão.
No interior, havia penumbra e silêncio; havia um leve cheiro de mofo no ar, devido a casa estar estado fechada durante semanas. Grant acendeu um abajur e um par de tochas de parede, que arrojaram um brilho resplendor sobre as paredes cobertas de papel pintado à mão. Tomou o abajur e percorreu os quartos do andar de baixo. A casa era elegante e tinha um definido ar feminino, com abundantes pinturas a frescor de flores em cores de bolo, paredes empapeladas com papel francês, móveis delicados, de patas aguçadas, grandes espelhos emoldurados sobre cada uma das chaminés.
Subiu a escada enquanto tomava nota das luxuosas balaustradas esculpidas e os abajures em globos de cristal. A impressão geral era que não se economizaram gastos para decorar o lar de Vivien. Na parte de cima se percebia um toque de perfume no ar. Seguiu o perfume até o dormitório principal e inspecionou o ambiente com minuciosidade.
As paredes estavam decoradas com seda verde esmeralda, matiz de pedra preciosa que se repetia no suntuoso tapete de Bruxelas, de desenho floral. A moda do momento ditava que os leitos das damas deviam estar semi ocultos em um gabinete; Vivien tinha destinado a ser o principal, colocando-o sobre uma plataforma atapetada que destacava sua visibilidade. O que com mais força atraiu a atenção do Grant foi um retrato de Vivien que estava pendurado da parede, frente à cama. Tinham-na retratado nua, de modo que ficavam expostas suas brancas costas e suas nádegas. Ela olhava sensualmente por cima do ombro, e seu torso formava um ângulo de modo que mostrava o perfil de um seio, redondo e encantador.
O artista tinha idealizado Vivien, dotando a sua figura mais beleza que a real, alargando ligeiramente suas pernas e seu talhe; o cabelo solto era tão vermelho que pareciam brotar dele chama púrpura. Teria se deitado com Vivien o pintor durante alguma das numerosas sessões em que ela tinha posado para ele? Era bastante provável. Só o ato de amor tinha sido capaz de dotar seu rosto desse rubor, dessa expressão de ansiedade, dessa suavidade na linha da boca, da pesadas pálpebras sobre os olhos azuis de olhar felino.
Enquanto contemplava o retrato, Grant experimentou uma mescla de sensações que estava começando a serem familiares: gelo e fogo ao mesmo tempo... Uma labareda de intenso desejo equilibrada por uma fria especulação. A desejava; mais ainda, queria humilhá-la e castigá-la. A usaria, da mesma maneira em que ela tinha usado a tantos homens. Era hora de que Vivien Duvall recebesse seu castigo.
Aproximou-se de uma mesa de penteadeira de estilo Luis XV, com tampa de madeira e tirou daí um grande frasco de cristal que continha perfume. A fragrância tinha um intenso cheiro de rosas, moderada pela secura do sândalo. Evocou nele, de maneira que a instantânea, lembrança de Vivien na festa de Wentworth.
Usava, exatamente, esse aroma, essa era a doce fragrância que emanava de sua pele.
Grant deixou o perfume e, ao abrir as gavetas da penteadeira, encontrou umas escovas, frascos cheios de natas coloridas, adornos para o cabelo de tartaruga marinha, de marfim e de prata. Debaixo, encontrou um pequeno livro encadernado em couro marroquino vermelho.
Abriu o caderno e, ao folheá-lo, descobriu nele listas de nomes de cavalheiros, descrições detalhadas de atividades sexuais, horas e datas de entrevistas românticas. Resultaria uma formidável ferramenta para a chantagem. Reconheceu alguns sobrenomes; mais de um se vangloriava de seu sólido matrimônio e sua impecável reputação. A nenhum agradaria ver exposta sua infidelidade; sem dúvida, pagaria algo para garantir o silêncio do Vivien. Ou, talvez, até recorreria ao crime para assegurar-se de que esse silêncio fosse permanente.
—Que vida ocupada, moça. - murmurou Grant, ao mesmo tempo que guardava o livro no bolso.
Fechou a gaveta com desnecessária força. Com a mandíbula apertada, registrou metodicamente o quarto e encontrou uma mala de couro. Meteu nela as primeiras roupas decentes que pôde encontrar... Uns poucos vestidos de cores vivas, roupa intima de linho, meias e sapatos, e uma caixa que continha lenços de encaixe e três pares de luvas de cor branca. Uma vez que a mala esteve repleta, recolheu o abajur e saiu da habitação.
No dia seguinte, retornaria para revistar o terraço, mas nesse momento, só queria ver sua nova hóspede e saber como estava.
Grant tomou um carro de aluguel para retornar a sua casa e indicou a direção da Rua King. A senhora Buttons lhe abriu a porta, tremendo um pouco por causa da rajada de vento invernal que penetrou na casa.
Recebeu o casaco dele e o pendurou em seu braço.
— Boa tarde, Sr. Comerá algo hoje?
—Não tenho fome. - respondeu ele, jogando um olhar para a escada. - Como está ela?
A ama de chaves, sem se alterar ante a brutalidade da pergunta, respondeu com calma: —Muito bem, senhor. A senhorita Duvall tomou um bom banho de imersão e uma das criadas, Mary, ajudou-me a lhe lavar o cabelo. Acredito que se encontra muito melhor.
—Bom - disse ele, esquadrinhando a ama de chaves e tinha a sensação de que ela poderia lhe dizer algo mais. — Eu a considero hábil para julgar às pessoas, senhora Buttons.
Foi evidente que à mulher se orgulhava por completo.
—Penso que sim, senhor.
—Então, me diga... O que opina sobre a senhorita Duvall?
A senhora Buttons deixou de lado seu habitual reserva que foi substituída por um animado interesse e se mostrou ansiosa por responder. Baixou a voz para que não a ouvisse nenhum criado que acertasse a passar.
—Seu comportamento me deixou um tanto perplexa, senhor. Esta manhã, depois de levar a senhorita Duvall um prato com torradas e deixá-la para ir preparar seu banho, ela se levantou por sua conta e arrumou a habitação. Inclusive, fez a cama a pesar da dor que isso deve lhe haver causado. Não me ocorre por que terá feito semelhante esforço, sobre tudo se tivermos em sua conta estado de saúde. E logo, no quarto de banho, tentou levantar um dos cubos que tinha levado a criada, para ajudá-la a encher a tina. Claro que nós o tiramos imediatamente, mas ela se desculpou pelo excesso de trabalho que sua presença nos demandava. Dá a impressão de trabalhar em excesso-se por não causar dificuldades a ninguém e agradece qualquer ajuda que lhe demos, como se não estivesse acostumada a que alguém a sirva.
—Sei.
O semblante de Grant estava totalmente vazio de expressão, como acontecia cada vez que ele analisava feitos contraditórios. O tema entusiasmava a senhora Buttons: —Em minha opinião, ela é uma das jovens mais amáveis que conheci. Com o devido respeito, senhor quase não pude acreditar que seja o que você me contou ontem à noite.
—É certo. - respondeu Grant com secura.
Poderia acontecer que a perda de memória tivesse alterado, também, a personalidade de Vivien? Teria esquecido que de se comportar com sua habitual petulância e superioridade.., ou acaso estaria zombando de todos eles? Impaciente, Grant entregou a mala à senhora Buttons.
—Faça que uma criada troque a roupa da senhorita Duvall.
—Sim, senhor Morgan - disse a ama de chaves, deixando a mala no chão e olhando-o com seus serenos olhos castanhos. - Senhor, Mary ofereceu à senhorita Duvall sua melhor camisola para que a usasse, pois não tínhamos nenhuma outra roupa para vesti-la.
—Obrigado. Considerarei qualquer gesto bondoso para a senhorita Duvall como um favor que me fazem.
Diga a Mary que mande fazer uma camisola e uma bata nova, e carregue-o nas contas domésticas. Uma bonita camisola: não tem por que regular nos adornos.
A senhora Buttons lhe dedicou um sorriso de aprovação.
—Você é um amo bondoso, se me permite dizê-lo.
Grant respondeu franzindo o cenho.
—Sou um condenado; ambos sabemos.
—Sim, senhor. - respondeu a mulher com um suspiro de exasperação.
Grant foi para a escada. Em seu interior, não podia definir o que estava sentindo. Vivien Duvall fingindo ser uma donzela em apuros... Ele não estava disposto a tolerá-lo. Em poucos minutos, arrancaria-lhe a máscara, deixando exposta a farsa que ela representava. Se ela não recordava que era uma rameira sem princípios, ele a esforçaria a lembrar. Ele revelaria cada uma das facetas de sua personalidade arteira, desavergonhada, e a deixaria para que pensasse nisso durante certo tempo. Só então lhe permitiria que continuasse se fingindo de inocente.
Ao chegar a seu dormitório, abriu a porta sem bater como se esperasse, em parte, surpreender Vivien rindo pelo modo como estava enganando a todos com sua fingida virtude. Entrou no quarto e... Deteve-se em seco. Ela estava sentada em uma poltrona junto à chaminé, seus pequenos pés descalços recolhidos e um livro aberto sobre o colo. Ele viu que umas lascas de luz dourada brincavam sobre seu rosto vulnerável, quando ela o olhou para ele.
Estava vestida com uma camisola branca de pescoço alto que era um pouco grande, uma manta de casimira azul lhe cobrindo a cintura e as coxas. Ela deixou o livro no chão e levantou a manta, subindo-a até a altura do peito. A tensão cresceu no interior de Grant até alcançar um ponto doloroso. Ela tinha o rosto de um anjo e cabelo de uma das donzelas do Diabo. As mechas recém lavadas flutuavam a seu redor formando uma cortina que chegava até a cintura, em ondas e cachos como de cobre fundido, que percorriam toda a gama dos vermelhos, canela até o vermelho dourado. O seu cabelo erado tipo que a natureza em geral da as mulheres como uma forma de compensar sua falta de beleza física.
Mas Vivien tinha um rosto e uma silhueta que poderiam figurar em um quadro do Renascimento, só que em realidade eram mais delicados e afrescos do que seria capaz de mostrar qualquer pintura. Já não tinha os olhos inchados e, fixos nele, exibiam a pura intensidade azul de sua íris. Sua boca, tenra e rosada, era uma maravilha da natureza.
A respiração de Grant começou a falhar. Seus pulmões não estavam funcionando como era devido, o batimento do coração de seu coração era muito rápido; ele se viu obrigado a apertar os dentes. Se ele não fosse um homem civilizado, se não se orgulhasse do controle de si mesmo que o tinha feito famoso, possuiria-a aí mesmo, nesse mesmo momento, sem deter-se pensar nas consequências: a desejava com ardor.
Vivien lhe dirigiu um incerto sorriso de boas vindas, sem precaver-se da luta feroz e silenciosa que ocorria nele. Ele quase, enlouqueceu por esse sorriso suave e cálido, que tocou uma profunda corda dentro de seu peito. Retribuiu-lhe o sorriso com ar de segurança em si mesmo.
—Boa tarde, senhorita Duvall. É hora de conversarmos.
Vivien se manteve agasalhada na manta e fixou seus olhos no homem que tinha em sua frente. As emoções se debatiam dentro dela; a curiosidade não era a menos intensa delas. As criadas lhe tinha informado que Grant Morgan era o mais famoso detetive da equipe da Rua Bow. O homem mais valente da Inglaterra e agora Vivien compreendia por que.
Ele era um gigante. Talvez pelo medo e o desconforto que tinha sofrido ela nas últimas vinte e quatro horas, não tinha reparado em que essa voz resmungona, grave e esses melancólicos olhos verdes pertenciam a um homem... Bom, a um indivíduo tão grande. Não só era alto, mas também grande em todos os sentidos.
Como já tinha começado a recuperar-se de seu mergulho de cabeça no Tâmisa, estava em condições de observá-lo com clareza.
Os ombros dele eram tão largos como as portas de uma catedral e seu corpo esbelto exibia um impressionante desenvolvimento, com suas largas coxas musculosas e seus antebraços que esticavam as mangas de sua jaqueta. Não se podia afirmar que fosse bonito em um sentido convencional. O semblante desse homem era tão expressivo como um bloco de granito. Baixou a vista a suas mãos e sentiu que uma onda de fogo lhe cobria o rosto ao recordar quão suaves tinham sido ao tocá-la.
—Sim, eu gostaria de conversar.
Morgan sentou em uma pesada poltrona e se aproximou dela, levantando com assombrosa facilidade.
Vivien o observava perguntando-se como se sentiria alguém com semelhante força. Somente sua presença física, sua evidente masculinidade e sua vitalidade enchiam o ambiente. Ele se sentou e a observou com seus perspicazes olhos verdes, de largas pestanas e de um tom que não se parecia com o das esmeraldas. Era um tom mais profundo, uma cor que lembrava folhas de haja ou o verde defumado de uma antiga garrafa de vinho.
—Senhor Morgan. - disse ela, sem pensar em afastar sua vista dos magnéticos olhos. - Jamais poderei lhe agradecer o suficiente pelo que tem feito... Sua bondade, sua generosidade e... -Ela mesma sentiu como se condensava o rubor de seu rosto em duas manchas vivazes nas bochechas. - Eu lhe devo a vida.
—Eu não a tirei do rio. - replicou Morgan, sem se mostrar muito satisfeito com sua gratidão. - Foi o barqueiro.
Vivien se sentiu incapaz de deixar de lado o tema sem antes de fazê-lo compreender o que sentia.
—Mesmo assim, sem sua ajuda eu teria morrido. Lembro-me que estava tendida sobre os degraus e tinha tanto frio e me sentia tão desgraçada que, em realidade, não me importava se vivia ou morria. E então, apareceu você.
—Lembra de alguma outra coisa? Algo a respeito de si mesma ou de seu passado? Tem a impressão de ter lutado com alguém ou discutido...?
—Não. - respondeu ela, levando-as mãos à garganta, apalpando seu inchaço, e o olhou, inquisitiva. -
Senhor Morgan... Quem teria feito isto?
—Ainda não sei. Teria sido muitíssimo fácil se não tivesse perdido a memória.
—Lamento-o.
Ele deu de de ombros.
—Não é sua culpa.
Aonde teria ido parar aquele tenro desconhecido que a tinha cuidado a noite anterior e essa manhã? Ao Vivien custava acreditar que este fosse o mesmo homem que a tinha abraçado e consolado, que lhe tinha posto unguento nos machucados e a tinha agasalhado na cama como qualquer pai faria com sua querida filha.
Nesse momento, ele tinha um ar ameaçador e inabalável. Estava zangado com ela, embora ela não soubesse por que. Quando compreendeu isto, sentiu-se mais perdida e confusa que antes, se isso era possível. Ele era a única pessoa com quem ela contava... Não suportava que ficasse zangado com ela.
—Você está aborrecido. - disse a jovem. - O que aconteceu? Acaso fiz algo de ruim?
Essas perguntas o abrandaram um pouco. E embora não conseguisse olhá-la nos olhos, exalou um profundo suspiro como se estivesse liberando uma emoção desagradável que estava guardando.
—Não. - murmurou ele com uma breve sacudida de cabeça. - Não é nada.
Vivien pensou que possivelmente ele tivesse averiguado algo sobre ela que não lhe agradava; com ansiedade estiquou de tal modo seu corpo que lhe tremeram os músculos.
—Estou assustada. - disse ela, apoiando suas mãos crispadas sobre o colo—. Não deixo de me esforçar para lembrar algo, algo com respeito a mim mesma. Nada me resulta familiar. Nada tem sentido. E o fato de saber que alguém me odeia tanto a ponto de tentar me matar...
—Para ele, você está morta.
— Ele?
—Nenhuma mulher teria tanta força para estrangula-la com as mãos. Até mais em sua história pessoal figuram muito poucas mulheres. A imensa maioria de seus conhecidos foram homens.
—Oh.
Por que não lhe conta o que tinha para lhe dizer, em lugar de obrigá-la a fazer perguntas? Era uma espécie de tortura ter que contemplar esse rosto pétreo e pensar nos possíveis segredos de um passado que pudessem havê-la conduzido a essa incrível situação.
—Você disse que... Talvez não me agradasse de algumas das coisas que me diria sobre mim -disse ela, insegura.
Ele colocou a mão no bolso de sua jaqueta e tirou um pequeno livro encadernado em couro vermelho escuro.
—Leia - disse ele sem rodeios, deixando o caderno em suas mãos.
—Que é? —Perguntou ela, receosa.
Ele não respondeu e se limitou a observá-la com expressão inquieta, que revelava sua impaciência. Vivien abriu com cuidado o caderno e descobriu que havia muitas páginas cheias de escritura feminina. Havia listas, nomes, datas... Bastou meio minuto de leitura para encontrar uma passagem tão explícita que fechei rápido o livro, afogando uma exclamação mortificada. Elevou para ele seus olhos com expressão horrorizada.
—Por que você me mostra semelhante coisa?
Tentou lhe devolver o livro, mas ele não fez gesto de tomá-lo. Ela o jogou no chão e o olhou como se fora uma serpente a ponto de atacar.
—O que isso tem a ver comigo?
—É seu.
—Meu? —Perguntou ela, sentindo que uma fria sensação se apoderava dela, e se abrigou melhor com a manta de casimira—Está enaganado, senhor Morgan. - disse, em voz entrecortada e fria de indignação.— Eu não escrevo essas coisas. É impossível.
—Como sabe?
—Porque não poderia ter feito!
Assombrada e ofendida ela lançou-lhe um olhar de recriminação. Então, ele falou em voz monótona e tranquila.
—É uma cortesã, Vivien. A mais famosa de Londres. Ganhou uma fortuna com seu talento.
Ela sentiu que seu rosto ficava completamente branco, e seu coração batia de maneira frenética em seu peito.
—Não é verdade. - exclamou.- Esse caderno deve pertencer à outra mulher.
— Encontrei-o em sua casa, em seu dormitório.
—Porque haveria eu de... Quero dizer, por que escreveria semelhante coisa?
—É uma arma de chantagem. - insinuou ele com suavidade—. Ou, possivelmente, era o único modo que tinha de lembrar de tudo.
Vivien se levantou com tal brutalidade da cadeira que pareceu que a tinham empurrado para baixo, deixando cair ao chão à manta de casimira. Fez uma careta quando sentiu a dor em seu tornozelo enfaixado; mancou uns passos para trás, tratando de pôr distância entre eles.
—Eu não fiz nada do que está escrito aí!
Para seu pesar, o olhar do Morgan a percorreu e, então, caiu na conta de que as chamas do fogo transpassavam a musselina e iluminavam até o menor detalhe de seu corpo. Apressou-se a amontoar em suas mãos um punhado solto da camisola na parte dianteira e apertou as dobras em sua cintura.
—Eu não sou uma prostituta. - disse com veemência. - Se eu fosse, estaria segura de que, em alguma parte de mim, saberia, mas não sei por que não existe. Você está completamente equivocado a meu respeito. Se este for um exemplo de suas habilidades de investigador, não me impressionam! E agora... Agora vá e averigue mais, faça o que seja necessário para descobrir quem sou na verdade.
Morgan ficou de pé e a seguiu.
—Eu não posso modificar a verdade só porque você não gosta.
—Não se trata só de não gostar. - disse Vivien, respirando com força. - Você está enganado, entende?
Para sua humilhação, perdeu o equilíbrio, pois seu tornozelo machucado não a sustentou.
—A agradaria se eu trouxesse testemunhas capazes de jurar sobre a Bíblia que você é Vivien Duvall? -
Perguntou Morgan em tom áspero - Quer ir a sua casa e ver seu retrato nu que há na parede do dormitório?
Trouxe algumas roupas suas de lá... Quer comprovar isso? Poderia reunir muitas provas a seu respeito.
Ela tentou se afastar, mas ele a segurou, lhe rodeando as costas com um braço firme. Vivien gemeu quando ele a atraiu para seu corpo maciço. Interpôs seus braços entre os dois, para manter uma pequena distância, e jogou a cabeça atrás para olhá-lo, era tão alto para ela. Sentia, sob suas mãos quente, as costelas dele tão sólidas como vãos de uma fragata. Ele a aprisionava entre suas coxas, lhe impedindo de mover-se.
—Mesmo que prove que eu sou Vivien Duvall. - disse ela, teimosa. - Não pode provar que fiz todas as coisas que aparecem nesse livro. São histórias inventadas.
—É tudo verdade, Vivien. Você vende seu corpo para obter lucros. - replicou ele, não mais contente do que ela com o que tinha averiguado. - Vai de um homem a outro, tomando o que quer de cada um deles.
—Ah, sim? E então, onde está meu último protetor? Onde está, e por que não mandou buscá-lo?
—Quem acredita que é? —Perguntou Morgan com suavidade.
Essas últimas palavras aturdiram Vivien. Ficou boquiaberta, enjoada, afrouxou-se de repente entre os braços dele.
—Não.
—Você e eu somos amantes desde que abandonou lorde Gerard. Eu fui te visitar em sua casa em várias ocasiões. Fomos discretos, mas estávamos a ponto de redigir um contrato formal. - Grant pronunciou estas mentiras com certa sensação de culpa. Depois de tudo, o engano não podia lhe fazer danos, depois da vida sórdida que tinha vivido; em troca, servia a seus próprios propósitos. Ele a desejava, e este era o modo mais direto de tê-la.
—Então, você e eu somos... – ela completou perplexa. —Está mentindo! – se rebelou com um soluço. — Sim. Está mentindo!
Vivien fez força empurrando-o, retorcendo-se, mas os braços dele eram como feitos de aço. Muito em breve ficou exausta por seus fúteis esforços. Então pôde notar que seus movimentos o tinham excitado. A dura protuberância de sua masculinidade se apertava contra seu ventre, queimando-a com seu agressivo calor.
Em nome de Deus, como era possível que ela pudesse ter tido um contato intimo com este homem e não lembrar?
Deixou-se cair sobre ele, tremendo, e apoiou-se em seu corpo comprido e musculoso. Estava muito fatigada para mover-se. Emanava dele uma agradável fragrância, mescla de linho e sabão de barbear. Deixou cair à cabeça sobre o peito dele e apertou a orelha contra o forte batimento do seu coração.
—Está enganado. - disse ela, muito perturbada para chorar. - Eu não sou essa classe de mulher.
Simplesmente, é impossível que isso seja verdade.
Ele não respondeu, e ela compreendeu que estava tão convencido do que afirmava que não tinha sentido discutir. Uma fúria se abriu em meio a sua confusão. Muito bem. Já não se fatigaria tratando de negar a acusação... Sem dúvida, o tempo demonstraria que ele estava equivocado.
—E agora, o que quer de mim? - Perguntou ela, em voz densa.
Um estremecimento percorreu seu corpo quando sentiu que a mão dele descendia por suas costas e o calor da palma transpassava a musselina de sua camisola.
—Vou retê-la aqui. - respondeu ele. - Para seu amparo e minha conveniência.
Sua conveniência? Isso só podia significar que ele pretendia continuar com o acerto anterior entre eles, sem reparar em sua perda de cor. Jogou um olhar por cima do ombro e contemplou a enorme cama que, até esse momento, tinha-lhe parecido um refúgio. Se ele pensava possui-la essa noite, ela não estaria em condições de suportá-lo. Fugiria da casa e correria gritando pelas ruas no caminho.
—Não posso satisfazê-lo esta noite, se isso é o que pretende. - disse ela, rebelde— E tão pouco amanhã, e depois...
—Cale-se . - disse ele, pela primeira vez com uma nota de humor. - Não sou um canalha para me me impor quando ainda não se sente bem. Aguardaremos até que esteja bem o bastante para responder.
—No quero fazê-lo nunca mais! Não sou uma prostituta.
—Vai fazê-lo. Está em sua natureza, Vivien. Não pode mudar o que é.
Essas afirmações, feitas com tanta certeza, enfureceram Vivien.
—De agora em diante, não quero a nenhum homem. E muito menos, você.
O desafio dela pareceu disparar algo no interior dele, dar rédea solta a uma escura decisão de demonstrar algo a ela, e a si mesmo. Sem hesitar, atraiu-a a seus braços antes que ela tivesse tempo de pensar ou de reagir.
Levou-a até a cama e a depositou sobre as mantas. Quando se inclinou sobre ela, seu rosto escuro se interpôs ante o resplendor do fogo.
—Não. —ofegou Vivien.
A boca de Grant formou um sorriso cruel, mas quando acomodou seus lábios aos dela, seu beijo foi suave, lento e ardente. Apoiou suas mãos sobre o colchão, e ambos os lados da cabeça dela, sem tocá-la com nenhuma outra parte de seu corpo que não fosse sua boca. Se ela tivesse querido, poderia haver-se afastado dele sem dificuldade. Mas ela permaneceu debaixo dele, transportada pela doce e cálida sensação que se estendia rapidamente e que arrepiava todo o pêlo de seu corpo.
Ela elevou as mãos para o rosto dele em um gesto indeciso, para empurrá-lo, mas ele inclinou a cabeça e a beijou com mais força, fazendo desaparecer toda idéia de resistir. A língua do homem se aventurou no interior de sua boca tentando-a, acariciando-a. Ele tinha sabor de café e a alguma agradável essência masculina que incitou a sua língua e lhe responder, embora com acanhamento. Esse muito leve contato pareceu excitá-lo. Ele respirou fundo, torceu sua boca sobre a dela e seus beijos se fizeram mais prolongados, exploradores, e cada um foi mais tenro e íntimo que o anterior. Vivien relaxou debaixo dele, sem poder evitar, e um delicioso, pesado desejo se formou em seus seios, na parte baixa de seu estômago e entre suas coxas.
Sua mente já não compreendia o que estava passando, nem se importava. Tudo que existia eram as sensações, e cada uma das partes que a formavam estavam concentradas no ardente calor da boca dele. Com uma brutalidade que a deixou atônita, Morgan apartou seus lábios e a perfurou com um olhar famigerado.
—Vê? Disse com voz rouca. - E agora, me diga que tipo de mulher é.
Vivien demorou uns instantes em compreender o que lhe havia dito. Envergonhada e furiosa, rodou para um lado.
—Vi! —Tomou fôlego, tampando-os ouvidos com as mãos para não ouvir uma palavra mais das que ele pudesse pronunciar. - Deixe-Me sozinha.
Ele a observou um segundo, e a deixou, silenciosa e quieta na cama.
Grant desceu a escada, quase sem saber aonde ia, com a mente transbordante de perguntas, de sensações.
—Vivien. - murmurou, mais de uma vez, como uma maldição e outras, como uma prece.
Sem saber como, entrou na biblioteca, em seu refúgio de couro e carvalho, onde havia cômodas cadeiras gastas e prateleiras especialmente desenhadas. A fronte das prateleiras era feita de cristais biselados e vigamento de bronze nas prateleiras inferiores. Grant colecionava livros de maneira obsessiva. Os amontoamentos de periódicos empilhados sobre escritórios e mesas estavam acostumadas a provocar queixa da senhora Buttons que dizia que essa casa era a mais propensa aos incêndios de toda Londres.
Grant jamais se sentava a descansar sem ter um livro ou um periódico à mão. Quando não estava trabalhando ou dormindo, lia. Algo, para não pensar no passado. Naquelas noites em que os pesares ficavam estancados em sua cabeça como fantasmas e afastavam dele qualquer possibilidade de dormir, ia à biblioteca, bebia conhaque e lia até que as palavras se rabiscarem ante seus olhos.
Enquanto passeava frente às prateleiras cheias de talismãs forrados em couro, Grant procurou algo que distraísse sua atenção. Roçou levemente com seus dedos nas reluzentes levas de cristal, abriu uma, roçou uma fileira de livros. Mas, esta vez, o contato do couro lhe repugnava... Sua mão ansiava o contato da suave pele feminina, do sedoso cabelo, dos seios e quadris arredondados...Surpreendeu sua imagem no cristal e viu que seu semblante tinha uma expressão dura e desventurada.
Voltou-se lançando um gemido e foi até um aparador encaixado entre um par de pequenos armários que formavam parte do mesmo jogo. Um dos armários utilizava como uma mínima adega para vinhos. Rebuscou no gabinete até que sua mão tocou uma garrafa chata de forma redonda em cujo interior se agitava um escuro líquido. Era conhaque. Abriu e bebeu um gole, sentindo que a plenitude do custoso conhaque francês rodava por sua garganta. Esperou que a conhecida calidez se estendesse por seu peito, mas só sentiu vazio.
Sua mente evocou a imagem de Vivien, a doçura de sua boca, a inocência de sua reação. Foi como se ela não estivesse acostumada que a beijassem, como se fosse uma discípula torpe, mas disposta, em mãos de um perito professor. Tudo isso era uma ilusão.
—Inocência. - murmurou, lançando uma áspera gargalhada, e bebeu mais conhaque.
Sem a menor dúvida, Vivien era mercadoria de primeira qualidade embora, uma prostituta. E ele era um bobo por sentir o impulso de protegê-la, por desejá-la e, o que era pior, por gostar dela. Sentou-se em um sofá e apoiou os pés sobre a borda do escritório, reconhecendo essa verdade que o mortificava. Se ele não soubesse quem era Vivien, o que era, teria ficado louco por ela. Que homem não enlouqueceria? Era encantadora, inteligente e parecia vulnerável. Sua reação, ao saber que era uma cortesã, tinha sido uma mescla perfeita de ira e consternação: a reação de uma mulher inocente. Poucas vezes, os instintos e o cérebro de Grant tinham enviada mensagens tão contraditórias e, as poucas vezes que assim tinha acontecido, ele tinha optado por confiar nos primeiros. Mas, neste caso, não.
Ele conhecia bem a peculiar marca da falsa inocência de Vivien. Sem que importasse como se conduzisse ela no presente, cedo ou tarde sua personalidade se revelaria. Em consequência, ele não podia permitir-se apaixonar-se por ela. Mas, maldição... Não séria fácil.
Capítulo 5
Vivien se deitou se em uma larga cama, bufando de indignação e de angústia até que, por fim, envolveu-se em uma névoa de esquecimento. Mas não achou paz dormindo, apenas um sonho estranho que se se tornou cada vez mais sinistro.
Ela andava depressa por uma rua escura, perseguida por estranhos sem rosto. Em cada pontotanto se detinha, ria e os provocava e logo se voltava e começava a correr antes que a alcançassem. Ao aproximar-se de uma ponte, subiu o aterro e subiu a um pilar, rematado por uma estátua de bronze que representava a uma densidade do rio. Os homens que tinham ficado abaixo procuravam alcançá-la, subindo atrás dela, mas ela ria zombadora, e lhes dava chutes para afastá-los. De súbito, viu com horror que a estátua de bronze que estava junto a ela começava a mover-se. Imensos braços de metal a rodearam, aprisionando-a em um frio abraço em misericórdia.
Gritou de terror e lutou contra a estátua, mas esta a apertava, fazendo-a voltar-se para o rio... Até que a empurrou fazendo-a cair em suas negras e geladas profundidades. O peso da estátua a afundava rapidamente e via como a superfície se afastava dela. Gritou sob a água, e ninguém a ouviu, e sua boca e sua garganta se encheram de líquido, afogando-a.
—Vivien. Maldição, Vivien, acorde.
Ela, sobressaltada, seguiu debatendo-se contra os braços que a rodeava, até que viu sobre o seu o rosto de Morgan. Esse rosto estava carrancudo, preocupado, e a levantou para sentá-la sobre seu colo, enquanto lhe pegava com uma mão seu cabelo. Seu torso só estava vestido por uma magra camisa de linho aberta no pescoço que deixava ver o pescoço. Desorientada, Vivien se esforçou por recuperar o fôlego. Olhou ao redor e comprovou que estavam no chão.
—Tem que se levantar até a cama. - informou Morgan.
—Tive um pesadelo.
—Me conte. - pediu ele com suavidade.
Como ela guardou silêncio, lhe alisou uma das sobrancelhas com o dedo polegar. De algum modo, esse gesto íntimo obteve o que as palavras não tinham conseguido: fazer-lhe falar. Nervosa, Vivien mordeu o lábio inferior.
—Sonhei que estava me afogando. Era tão real... Que não podia respirar.
Da garganta do homem brotou um som tenro e rouco. Começou a lhe acariciar as costas com um ritmo acalentador, balançando-a como se ela fosse uma menina. O calor de seu corpo transpassou os tecidos que se interpunham entre eles, enfraquecendo-a. Por um momento, ela teve vontades de empurrá-lo, sentindo renovar-se em seus ouvidos as desagradáveis acusações que lhe tinha feito.
Mas permaneceu imóvel, apoiada contra ele. Certo que era odioso e arrogante, mas, ao mesmo tempo, era tão forte que a fazia sentir-se tão segura... Brotava dele um aroma delicioso, feito de conhaque, de sal e de linho, uma mescla que lhe recordava algo... A alguém que ela levava impresso em sua memória e que a reconfortava. Seria um pai ou um irmão, possivelmente? Um amante que ela adorava?
Confusa e frustrada mordeu com mais força o lábio, empenhando-se em recordar.
—Não faça isso. - disse Morgan, lhe tocando a boca com dedos delicados. - Trate de relaxar. Quer beber algo?
—Não sei.
Continuou abraçando-a um pouco mais, embalando-a em seu colo até que o batimento de seu coração foi diminuindo e adotou seu ritmo habitual. A mão masculina deslizou sobre sua perna e seu quadril e posou na curva de sua cintura.
Vivien se sentiu transpassada pela súbita sensação de que esse contato era, para ela, familiar e natural.
Como se seu lugar estivesse nesses braços, apertada contra esse corpo... Como se, na verdade, eles tivessem sido amantes. Moveu a o rosto para secar suas lágrimas sobre a camisa dele, e sentiu que a boca dele lhe roçava o cabelo.
Morgan a levantou com cuidado, a colocou sobre a cama e se dedicou a ordenar o monte de lençóis e mantas. Foi até a mesinha de noite e serviu uma pequena quantidade de licor em um copo de cristal adornado com folhas.
—Tive a impressão de que necessitaria de um pouco disso durante a noite - disse. - De vez em quando, sonhará com isto. E, em algumas ocasiões, esses sonhos serão tão vívidos que despertará gritando. Isso acontece quando se esteve a ponto de morrer.
Ao tempo que recebia o copo de suas mãos, Vivien pensou que ele parecia saber muito sobre o tema.
Sorveu a deliciosa bebida, que tinha um leve gosto a frutas.
—Você esteve alguma vez perto da morte?
—Uma ou duas vezes.
—Que aconteceu?
—Eu nunca comento minhas proezas. - respondeu ele com um sorriso zombeteiro que suavizava os ângulos de seu rosto. - Para um policial, é uma tentação adquirir o hábito de gabar-se; então passamos a perder todo nosso tempo urdindo complicadas histórias... Por isso, é preferível não falar de trabalho absolutamente, pois, do contrário, não se faz nada.
—De todos os modos, vou averiguar. —Disse Vivien. Bebeu outro gole de licor, este mais generoso, e sentiu que um grato fogo corria por suas veias e restaurava seus nervos alterados. - A senhora Buttons me contou que já se publicaram várias novelas populares relatando suas aventuras.
—Puro lixo; só servem para acender o fogo. - disse ele com um ar desdenhoso—. Não encontrará essa classe de livros em minha casa.
—Sim, encontrarei-os. Um criado seu os coleciona.
—Não me diga. - murmurou ele, surpreso ante a notícia—. Mentecaptos! Não acredite uma palavra do que dizem.
—Isso o incomoda. - Disse ela, com certa satisfação, e ocultou um sorriso fugaz em seu copo.
—Com quem esteve falando? Com a senhora Buttons? Com alguma das criadas? Se tiverem mexericando, arrancarei a cabeça a alguém.
—Os criados são muito orgulhosos de você. - disse Vivien, encantada de ter encontrado um ponto débil para chateá-lo. – Ao que parece, você é uma lenda. Dedica-se a resgatar herdeiras, e seguindo o rastro dos assassinos, e resolvendo casos impossíveis...
—Uma lenda... Uma ova! —replicou Morgan, reagindo como se ela tivesse estado zombando por ter ferido a sua reputação. — Sobre tudo recupero dinheiro roubado de bancos. Sinto um grande carinho por bancos e, em especial pelo dinheiro que oferecem como recompensa. Sir Ross e qualquer um dos policiais podem dizer que tenho um cofre lugar de coração...
—Está tentando me convencer de que não é um herói. - disse Vivien, em tom interrogante.
—Se tomar como base no que ocorreu ainda pouco não concordaria comigo?
Ela refletiu a respeito da pergunta e respondeu: —É óbvio que não é um homem perfeito, como se pudesse existir uma pessoa perfeita, mas tem feito bem a muitos e, às vezes, a risco de sua própria vida. Isso o caracteriza como alguém heróico, embora eu não esteja inteiramente de acordo.
—Você não está de acordo ? - repetiu ele, perplexo.
—Não. Parece-me muito ruim o fato de pagar os serviços de uma mulher como eu.
O comentário o divertiu e o intrigou, ao mesmo tempo.
—Caramba, Vivien - brincou ele. – O que diz não é próprio de vocêi.
—Ah, não? —Disse ela, brincando, tímida, com a borda dos lençóis. - Não tenho idéia do que é próprio de mim ou não. O que sei é que, quanto mais me conta de mim mesma, quanto mais me pergunto por que razão você, ou qualquer outro, poderia desejar minha companhia. Mais estou certa de que o que penso não é proprio de mim.
Um tenso silêncio caiu sobre eles. O olhar de Morgan era examinador, analítico, como a de um cientista que examinasse os inesperados resultados de um experimento. Sem falar, voltou-se e caminhou para a porta; Vivien pensou que partia. Mas ele levantou uma bandeja que tinha sido deixada sobre uma mesa lateral e voltou com ela pra cama.
—Seu jantar. - anunciou, apoiando a bandeja sobre o colo dela e reacomodando uma peça de prata que deslizou para uma borda. - Estava subindo quando a ouvi gritar.
—Você estava trazendo uma bandeja com comida para mim? —perguntou Vivien, assombrada de que não tivesse ordenado a algum criado que o fizesse.
Morgan leu em sua expressão a pergunta não formulada.
—Tinha intenções de lhe trazer isso junto com uma desculpa. - disse, acrescentando em um tom brusco. -
Não tinha por que trata-la do modo que a tratei mais cedo.
Sua encantadora aspereza fascinava Vivien. E seu instinto lhe indicou que ele era sincero. Embora fosse indubitável que ele não a respeitava nem a estimava, estava disposto a lhe pedir desculpas quando acreditava haver-se comportado em forma equivocada. Possivelmente ele não fosse o monstro que lhe tinha parecido.
Tratou de lhe retribuir com a mesma honestidade.
—Só estava dizendo a verdade.
—Teria que ter sido bastante amável para dizê-la. Não sou o que se poderia chamar de uma pessoa diplomática.
—Eu não culparia você pelo que disse. Depois de tudo, que culpa tem você de que eu seja...?
—Uma mulher bela e fascinante. - concluiu ele, em seu lugar.
Vivien ruborizou, manusiou seu guardanapo e a estendeu sobre seu peito. Não se sentia bela nem fascinante e, por certo, tampouco uma prostituta mundana.
—Obrigada. - disse, envergonhada. - Mas eu não sou a mulher que você acredita... Ao menos, no presente, não o sou. Eu não lembro nada de mim mesma. E não sei como me comportar com você.
—Está bem. - interrompeu Morgan, ao tempo que se sentava em uma cadeira, a beira da cama. Parecia depravado, despreocupado, mas seus olhos não se apartaram um instante dela. – Se comporte como quiser.
Ninguém vai obrigar-la a fazer o que você não queira; eu, menos ainda.
Embora lhe resultasse em uma extrema dificuldade, Vivien respirou fundo e lhe devolveu o olhar.
—Então, não quer que eu...?
—Não. - respondeu ele, sereno— Já havia lhe dito que eu não vou incomodar-la de maneira nenhuma, até que você o deseje.
—E se alguma vez o desejar? —Perguntou ela com esforço, com um fio de voz.
— A escolha fica por inteiro em suas mãos. - assegurou ele, e sua boca se torceu em um sorriso irônico. -
Mas lhe advirto isso: meus atrativos podem envolve-la cada vez mais.
Cheia de pudor, Vivien deixou cair à vista, e passou o olhar sobre a comida que tinha diante. No prato havia umas fatias de pão, uma porção de pudim, uma colherada de nata de vegetais. Tomou um pão-doce e o mordeu. Teve que fazer um enorme esforço para mastigar e engolir o bocado.
—Esta é sua habitação, verdade? Queria me mudar à habitação de hóspedes logo que seja possível. Não quero priva-lo de sua própria cama.
— Fique aqui. Quero que esteja cômoda.
— Isso é estupendo, mas a cama é muito grande parar mim e...
Vivien vacilou, sentindo-se incapaz de lhe dizer que, nesse quarto, sentia-se rodeada por ele até quando ele não estava presente. Seu aroma e sua definida aura masculina perduravam no ar.
— Eu já estive antes aqui? —Perguntou ela, de repente. - Em sua casa... Neste quarto?
—Não. Esta é a primeira vez que está em minha casa.
Ela queria dizer, nas ocasiões de intimidade entre eles, deviam ter pulado na cama dela ou em algum outro lugar. Sentia-se muito envergonhada para perguntar detalhes.
—Senhor Morgan... Grant há algo que quero perguntar.
—O que é?
—Me prometa que não vai rir, por favor.
—De acordo.
Ela tomou um garfo de prata e ficou a brincar com seus dentes, concentrando sua atenção no utensílio.
—Existia amor entre nós? Alguma classe de afeto? Ou era só um acordo de negócios?
Com muita dificuldade podia suportar a idéia de que tivesse vendido seu corpo só por dinheiro. Sua cara ardia de vergonha enquanto esperava a resposta. E, para seu alívio, ele não zombou e nem sorriu.
—Não era só negocio. - disse ele com cautela. - De meu ponto de vista, você me oferecia paz e um pouco de diversão, coisas que eu necessitava muito.
—Portanto, pode-se dizer que fomos amigos? —Perguntou Vivien, agarrando com tanta força o garfo que seus dente lhe deixaram marcas vermelhas na palma da mão.
—Sim, fomos... —Respondeu Morgan. Logo, interrompeu-se, tirou-lhe o garfo e esfreguei a zona machucada de sua mão com seu polegar. Embalou a mão dela na sua e franziu a sombracelha ao ver as pequenas marcas vermelhas. - Não se aflija. Não poderia dizer que fosse uma qualquer... Foi uma cortesã exclusiva, e havia poucas pessoas que pensassem mal de você por isso.
—Eu sim. - replicou Vivien, ressentida. - Eu penso muito mal de mim por isso. Quem dera tivesse sido qualquer outra coisa.
—Esqueça isso.
—Isso é o que temo. - sussurrou ela.
Algo, na expressão dela o comovia, incomodava-o. Soltou-lhe a mão e, murmurando uma imprecação, deixou a habitação enquanto ela contemplava, sem ver, a comida que se esfriava no prato.
—OH, eu não posso aguentar isso. - disse Vivien, contemplando o vestido que alguém tinha desdobrado para ela.
Era um dos quatro que o senhor Morgan havia trazido de sua casa e, ao mesmo tempo em que ela estava segura de que era dela, duvidava muito de que fosse um objeto de bom gosto. Era um vestido muito bem desenhado e confeccionado, feito de um veludo escuro que capturava os tons intensos de uma ameixa amadurecida ou de cerejas negras, e que se chocaria com a cor de seu cabelo. Acrescentou com acritude: —Com esta juba de cenoura, não posso usá-lo. Seria um horror.
A senhora Buttons a observou com ar crítico enquanto Mary a ajudava a sair do banho e começava a secá-
la com uma enorme toalha branca.
—Em minha opinião, você terá uma grata surpresa, senhorita Duvall. Não quer provar e ver?
—Sim, provarei. - respondeu Vivien, tremendo quando o ar fresco roçou sua pele nua, lhe causando arrepios em todo o corpo. - Mas o mais provável é que me sinta ridícula.
—Eu lhe asseguro que isso é impossível. - replicou à senhora Buttons.
Nos últimos três dias, a atitude da ama de chaves para Vivien tinha mudado, passando de uma distante cortesia a uma cálida bondade; o resto do pessoal a tinha imitado rapidamente. Como Vivien se sentia sinceramente reconfortada pela ajuda que lhe ofereciam, elogiava e agradecia aos criados cada vez que lhe apresentava uma oportunidade.
Se ela tivesse sido uma mulher da nobreza, de alta fila, supunha que teria aceitado como algo natural os serviços que lhe brindavam e não teria se preocupado por familiarizar-se com eles. Entretanto, ela estava longe de ser uma aristocrata e, pelo que sabia a respeito de seu passado dissoluto, pensava que os criados da casa de Morgan eram mais que bondosos com ela. Não cabia dúvida de que todos eles sabiam quem era ela; mesmo assim, tratavam-na com a deferência que tivessem tido com uma duquesa. Quando Vivien comentou este fato com a senhora Buttons, esta lhe explicou com sorriso ácido: —Por uma parte, o senhor Morgan deixou em claro que você é valiosa para ele e que deseja que seja tratada como uma hóspede respeitada. Mas, além disso, seu caráter fala em seu favor, senhorita Duvall. Digam o que digam de você, os criados vêem que é uma jovem boa e decente.
—Mas não o sou. - replicou Vivien.
E baixou a cabeça, sentindo-se incapaz de olhar à ama de chaves à no rosto. Fez-se um prolongado silêncio, logo a moça sentiu o contato da mão suave da senhora Buttons sobre o ombro.
—Todos cometemos enganos. - disse a ama de chaves em voz baixa. - E os seus não são os piores dos que eu tenha ouvido mencionar. Graças à profissão do senhor Morgan, vi e conheci personagens mais canalhas do que se pode imaginar, a quem não fica um ápice de bondade nem esperança. Você, em troca, está longe de ser um caso perdido.
—Obrigada. - sussurrou Vivien, com absoluta humildade. Tentarei justificar sua bondade para comigo.
A partir desse momento, a senhora Buttons tinha assumido um papel maternal e protetor com ela. No que tocava a Grant, Vivien não o via quase nunca posto que ele se dedicasse a investigar seu caso e um ou dois mais. Pela manhã, ia ver como estava, conversavam uns minutos, depois ele partia e não voltava todo o dia.
De noite, retornava, tomava um jantar sóbrio e solitário e lia na biblioteca. Para Vivien, Morgan era um ser misterioso. As novelas, publicadas em edições ordinárias que lhe tinha emprestado Mary, a criada, não tinham iluminado muito sua personalidade.
As novelas sublinhavam o aventureiro da natureza de Morgan, proporcionando detalhes dos crimes que havia resolvido e de sua famosa caça a um assassino. Contudo, era evidente que o autor não o conhecia em pessoa, absolutamente. Vivien abrigava a suspeita de que poucas pessoas desejavam conhecer a verdadeira natureza de um homem, pois preferiam as histórias exageradas que constituíam sua lenda. Em geral, assim acontecia com os homens famosos: Gente que queriam conhecer seus lucros, sua força e não sua vulnerabilidade.
Entretanto, o que mais interessava a Vivien eram os pontos fracos de Morgan. Ele dava a impressão de que fossem escassos. Era um homem reservado, que parecia invulnerável, a quem não lhe agradava falar de seu passado. E Vivien não podia menos que perguntar-se que segredos e que lembranças estariam armazenadas nesse coração guardado com tanto zelo. De uma coisa estava segura: Morgan jamais lhe confiaria esse tipo de coisas.
Vivien tinha plena consciência do desprezo que Morgan sentia para a vida que ela tinha levado antes de seu “acidente”. Não cabia dúvida de que não lhe agradava a mulher que ela tinha sido, coisa que compreendia porque ela sentia o mesmo. Por desgraça, durante o transcurso de sua investigação, Morgan ia descobrindo mais feitos desagradáveis relacionados a ela. Ele admitiu que tivesse estado interrogando a pessoas que a conheciam. Ao parecer, além do que lhe haviam dito, não tinha resultado útil nem, tão pouco, muito prazeiroso.
Vivien franziu o cenho e tratou de confinar tão deprimente idéia ao fundo de sua mente. Sujeitei-me ao respaldo de uma cadeira para conservar o equilíbrio enquanto Mary grampeava seu vestido de veludo. Seu tornozelo melhorou rapidamente e estava quase são só lhe doía quando permanecia de pé muito tempo.
—Isso é. - disse a senhora Buttons, satisfeita, retrocedendo para observar Vivien, sorrindo.
— O vestido é bonito e a cor não poderia ser melhor.
Vivien se dirigiu, com cuidado, para o espelho que havia sobre a mesa da penteadeira, e que lhe permitia a visão dos três quartos de sua figura. Descobriu, para sua surpresa, que a ama de chaves tinha razão. O veludo de cor cereja escura dava a sua pele um aspecto de porcelana e destacava a luz rubi de seu cabelo. Um galão de seda negra bordada com um recatado decote, e o mesmo galão se repetia em um corte vertical que ia do decote até a altura da clavícula, permitindo uma visão de pele branca. O vestido, de linhas singelas, não tinha nenhum outro detalhe que o recarregasse, umas bordas de seda negra na prega da ampla saia. Era um objeto elegante, apropriada para uma dama de qualidade. Vivien comprovou com alívio que contava com alguns objetos que não proclamavam sua ocupação de cortesã ante qualquer que acertasse a vê-la.
—Graças a Deus-murmurou, dedicando a Mary e à senhora Buttons um sorriso de desprezo para si mesmo. - Sinto-me quase respeitável.
—Sim, senhorita Duvall-lhe. - disse Mary. – Gostaria de escovar seus cabelos e recolhê-los como é devido.
Então, parecerá realmente uma dama elegante... E que contente ficará o senhor Morgan ao vê-la com tão fino aspecto!
—Obrigada, Mary.
Vivien foi para a mesa da penteadeira, mas se deteve para recolher umas toalhas úmidas que tinham ficado do banho.
—Não. - repreendeu a criada, precipitando-se para ela ao mesmo tempo em que a senhora Buttons. -Já disse, senhorita Duvall, não tem que ajudar com estas coisas!
Vivien entregou a toalha com sorriso dócil.
—Eu posso recolher a roupa suja com a mesma facilidade que você.
—Mas não lhe corresponde fazê-lo. - replicou Mary, conduzindo-a para a cadeira que estava ante a penteadeira.
A senhora Buttons permaneceu de pé, perto de Vivien, e a olhou nos olhos pelo espelho. E embora a ama de chaves sorrissecom placidez, em seus olhos se via uma expressão especulativa.
—Não acredito que você esteja acostumada que a sirvam. - comentou ela.
Vivien suspirou.
—Não recordo de estar acostumada.
—A uma dama que tivesse criados não lhe tivesse ocorrido ordenar um quarto nem preparar seu próprio banho, por mais que tivesse esquecido todo o resto.
—Mas eu sei que tive criados. - replicou Vivien, recolhendo uma forquilha de uma pequena caixa que havia trazido Mary, e percorreu o bordo ondulado com seu dedo — Ao menos, assim foi o que me informou o senhor Morgan. Eu fui uma criatura consentida, que não fazia nada, salvo...
Interrompeu-se, seu cenho se crispou em sinal de confusão. A senhora Buttons observou como Mary escovava uma das largas mechas do suntuoso cabelo vermelho de Vivien.
—Por certo, não se comporta você como uma “criatura consentida” —disse a ama de chaves — E, em minha opinião, há em sua conduta algo que não pode ser mudado por mais que tenha perdido a memória. - adicionou, depois de encolher os ombros e ensaiar um filosófico sorriso. - Contudo, tenha em conta que eu não sou médica. E, com muita dificuldade posso manter ordem em minha própria cabeça para pretender adivinhar o que há na de outra pessoa.
Mary penteou Vivien formando um nó de tranças no cangote, e deixou que umas poucas mechas se frisassem em volta do pescoço e das orelhas. Vivien começou a desfrutar com a sensação de estar bem vestida e penteada; decidiu que queria visitar outros setores da casa.
—O mero feito de me sentar durante um momento em um quarto que não seja este será um distração para mim. –disse. - Haverá uma pequena sala ou possivelmente uma biblioteca no andar de baixo? Terá o senhor Morgan alguns livros que eu possa dar uma olhada?
Não entendeu por que sua pergunta fez com que a ama de chaves e a donzela trocassem se um sorriso.
—Há alguns. - respondeu à senhora Buttons— Eu a conduzirei à biblioteca, senhorita Duvall. Mas deverá tomar cuidado de não machucar outra vez o tornozelo, tampouco deverá fatigar-se. Impaciente, Vivien segurou o braço da mulher, e desceram juntas a escada, degrau a degrau, com supremo cuidado. A casa era muito formosa, com abundância de painéis de escuro mogno, espessos tapetes ingleses, móveis de singelas linhas, e paredes revestidas com generosas pranchas de mármore. À medida que se aproximavam da biblioteca, fazia mais intensa à fragrância de cera de abelhas, couro e pergaminho. Vivien registrou com prazer esses aromas, que entrou na estadia. Foi até o centro, girou lentamente seus olhos que aumentaram de assombro e prazer.
—É uma das maiores habitações da casa. - disse com orgulho a senhora Buttons. - O senhor Morgan não poupa gastos com seus preciosos livros, e os guarda da melhor forma possível.
Com expressão reverente, Vivien contemplou os altos armários acristalados, os gabinetes para mapas com letras douradas gravadas, os bustos de mármore colocados em cada esquina da habitação. Sua vista pousou sobre as mesas carregadas de livros, muitos dos quais estavam abertos, amontoados uns sobre outros, como se tivessem chamado em urgência o leitor em metade de uma passagem muito interessante.
—Não é uma coleção feita só por vaidade, certa?—Perguntou em voz alta.
—Não, o patrão é muito afeicionado aos livros. - respondeu a senhora Buttons, aproximando uma cômoda cadeira ao alegre fogo e correndo uma cortina para deixar entrar plenamente a luz do dia—. A deixarei tranquila para que explore senhorita Duvall. Quer que lhe faça trazer o chá?
A jovem negou com a cabeça e foi passando ante uma prateleira atrás de outro, esquadrinhando rapidamente as tentadoras fileiras. De súbito, a ama de chaves pôs-se a rir.
—Até este momento, nunca tinha visto ninguém que olhasse os livros do mesmo modo que faz o senhor Morgan. - comentou a mulher.
Vivien não percebeu a partida da ama de chaves; abriu a porta de cristal de um dos armários para examinar uma fileira de volumes de poesia. À medida que ia lendo os títulos lhe aconteceu algo estranho. Muitos deles lhe resultavam assombrosamente familiares e as palavras se relacionavam de um modo que a fez estremecer-se de surpresa. Fascinada, tomou um dos livros. Abriu-o, sentindo sob seus dedos a suave textura do couro que o cobria, e encontrou um poema do John Keats, titulado “O de uma urna grega . “Você, noiva pura da quietude...” Teve a impressão de ter lido esses versos milhares de vezes. Em sua mente uma porta se abriu e iluminou um conhecimento que tinha estado armazenado ali até esse momento. Estremecida até o mais fundo, Vivien apertou o livro contra seu peito e tirou outro da prateleira, e logo outro...
Shakespeare, Keats, Donne, Blake. Havia muitos outros poemas que reconhecia e, inclusive, fragmentos que podia recitar de cor. O alívio de recordar algo lhe produziu tal excitação que se sentiu enjoada. Tirou e sustentou em seus braços tantos livros como pôde, apertando-os contra seu corpo; em sua pressa, caíram alguns. Tivesse querido levá-los a todos a um lugar tranquilo e ler, ler, ler e ler.
Em uma prateleira mais baixa descobriu volumes de filosofia, muito usados. Tirou as Meditações de Descartes, abriu-o e leu em voz alta uma passagem: “Entre todas as coisas que, alguma vez, acreditei verdadeiras, não existe nenhuma sobre a qual não me permita duvidar...”
Vivien abraçou o livro aberto contra seu peito e sua mente se transbordou de imagens caóticas. Estava certa de que, alguma vez, tinha estudado esse livro, tinha lido essas palavras com alguém a quem queria muito.
O familiar das palavras lhe dava uma sensação de segurança e consolo que ela necessitava com desespero.
Fechou os olhos e apertei com mais força o livro, esforçando-se por capturar alguma lembrança.
—Bom. - disse uma voz, em tom sardônico. - Não esperava ncontra-la na biblioteca. Encontrou algo que a interesse?
Capítulo 6
Vivien voltou-se e viu Morgan, que enchia o vão da porta, os lábios curvados em uma dura careta que parecia ser um sorriso. O cinza escuro de suas calças e colete estavam equilibrados por uma jaqueta de cor musgo que realçava o verde de seus olhos. Excitada, ela avançou e cambaleou para frente, ansiosa por compartilhar com ele seu descobrimento.
Grant se agitou, sentindo que seu coração galopava com um ritmo irregular. Alguns livros caíram de seus braços muito carregados.
—Encontrei estes... Lembrei de ter lido alguns deles. Não pode imaginar o que sinto disse, deixando escapar uma espécie de gargalhada de frustração. OH, por que não posso lembrar de mais? Ah, se pudesse...
—Vivien. - disse ele em voz baixa, e seu sorriso desapareceu.
Em três pernadas, chegou junto a ela e a ajudou a estabilizar o instável montão que levava em seus braços.
Quando Vivien viu o semblante de preocupação que crispava em seu rosto compreendeu que devia parecer meio louca. Sentiu que outras palavras subiam borbulhando a seus lábios, mas ele a fez calar com gentileza.
—Me permita. - disse ele, tomando a pesada carga de seus braços inseguros.
Deixou-a sobre uma mesa que havia perto e se voltou para ela. Agarrou-a pelos ombros com suas mãos grandes e a aproximou de seu corpo. Reteve-a em um abraço tranquilizador, acariciando com sua mão as costas do vestido de veludo e esfregando com suavidade a parte mais baixa da coluna dela. Quando falou, seu fôlego agitou os finos cabelos de sua têmpora.
—Me conte o que lembrou.
O prazer que lhe provocava estar em seus braços fez Vivien estremecer.
—Sei que li alguns destes livros com alguém a quem queria muito. Mas não posso ver seu rosto nem ouvir sua voz. Tenho a impressão de que, quanto mais me esforço, mais escapa.
— Você leu estes livros? - Perguntou Grant, incrédulo, lançamdp um olhar a formidável pilha que havia junto a eles.
Vivien assentiu, com sua cabeça sobre o peito dele.
—Até me sinto capaz de recitar algumas passagens.
—Hum... Duvidou ele.
Ela ficou perplexa ante o som; observou sua expressão cética.
—Por que dúvidas? Acaso não acredita em mim?
Viu-se contida nesse olhar intenso e atento.
—Não tem nada que ver com sua personalidade - disse ele, por fim.
—Estou dizendo a verdade. - insistiu ela, defendendo-se.
—Leu Descartes. - comentou ele, remarcando cada sílaba com acento descrente. - Nesse caso, eu gostaria de escutar sua opinião com respeito ao dualismo cartesiano.
Vivien pensou por um momento e, em seu interior, sentiu o alívio de comprovar que entendia a pergunta.
—Suponho que deva se referir à teoria de Descartes de que o espírito e a matéria são duas entidades separadas. De que não podemos confiar em nossos sentidos sobre a base do conhecimento. Eu acredito que ele tem razão, penso que... - Interrompeu-se, e logo prosseguiu com maior lentidão. - Penso que alguém reconhece a verdade com seu coração, mesmo que a evidência pareça demonstrar o Embora a expressão de Morgan não revelasse grande coisa, Vivien soube que o tinha surpreendido.
—Ao que parece, tenho em minha casa uma filósofa - disse e, de repente, em seus olhos brilhou uma faísca de humor. Deixou o livro sobre a mesa da biblioteca e tomou outro da prateleira—. Diga-me, então, como interpreta Locke, e quais são suas diferenças com Descartes.
Vivien tomou o livro das mãos dele e estendeu sua mão pequena sobre a coberta de couro marroquino.
—Locke sustenta que a mente humana, ao nascer, é como uma lousa vazia... Não é assim? - disse, lançando um olhar a Morgan e recebendo dele um gesto de ânimo— E diz que o conhecimento se apóia na experiência. O pensamento só pode apresentar-se depois de que aprendemos por meio de nossos sentidos.
Entretanto, eu não estou completamente de acordo com ele. Nós não nascemos como louza vazia não é certo? Penso que algumas coisas já existem quando nascemos, antes que a experiência comece a exercer sua influência sobre nós.
Morgan tomou esse livro de suas mãos, guardou-o de novo em seu lugar, se voltou para ela. Com inexprimível delicadeza, colocou detrás de sua orelha uma fina mecha de cabelos vermelhos.
—Poderias me dizer que outros livros conhece?
Vivien foi até outro grupo de prateleiras e começou a tirar volumes das fileiras: história, novelas, teologia e teatro. Começou a empilhá-los sobre a mesa, em outro monton.
—Estou certa de que li este e este e este... Oh; este era um de meus preferidos.
O entusiasmo da jovem lhe fez sorrir.
— É notável, é muito bom que tenha lido, mesmo sendo uma mulher.
—Por que diz uma coisa como essa? - Perguntou ela, surpreendida.
—Lorde Gerard me assegurou que não gostava de ler.
—Mas isso não deve ser verdade.
—É um camaleão, Vivien. - disse ele com tranquilidade. – Se adapta ao gosto da pessoa com quem está, qualquer que seja.
— Você insinúas que eu ocultava meu gosto pela leitura e me fingia estúpida para atrair lorde Gerard disse ela.
—Não seria a primeira mulher em usar esse estratagema. Há muitos homens que se sentem inseguros ante uma mulher inteligente.
—Acaso lorde Gerard pertence a essa classe de cavalheiros? - Perguntou ela e, ao adivinhar a resposta no semblante dele, lançou um forte suspiro. - Todos os dias descubro algo novo a respeito de mim. E nenhuma dessas coisas me agrada.
Grant contemplou sua cabeça baixa e o assaltou um estranho desejo que jamais tinha experimentado até então. Tinha estado seguro do que era ela, de quem era Vivien Rose Duvall... Mas ela voltava a confundi-lo outra vez.
Percorreu-a com seu olhar em uma minuciosa inspeção. A imagem dela com o vestido de veludo, de um vermelho tão escuro que parecia negro, provocou nele uma resposta que o alarmou por sua intensidade.
Nunca, nenhuma só vez se permitiu imaginar que, em algum lugar do mundo, pudesse existir uma mulher que não só fosse bela, mas também, também, inteligente, boa e sem afetações. Deixava-o atônito o fato de que a tivesse achado em Vivien. Uma vez mais, incomodou-o de não ter tido o conhecimento prévio de sua personalidade.
O alto penteado que recolhia seu cabelo castanho avermelhado revelava o par de orelhas mais delicadas que ele tivesse visto jamais, uma nuca vulnerável, uma mandíbula cuja suave curva ardia em desejos de explorar. Murmurou seu nome, e ela elevou a vista e o olhou com seus claros e profundos olhos azuis, onde não se viam rastros de astúcia. Grant balançou a cabeça ao recordar maliciosa e sedutora que tinha sido esse olhar em uma ocasião.
—O que é? —Perguntou ela.
— Tem os olhos de anjo.
O olhar do homem passou por seu rosto até que uma marca rosada foi cobrindo-a.
—Obrigada. - disse ela, insegura.
Grant a tirou do abraço com doçura.
—Venha comigo.
Conduziu-a até uma cadeira junto ao fogo e a fez sentar, enquanto Vivien o olhava com receio.
—Continuará me interrogando?
—Não. - respondeu ele, e um relutante sorriso se estirou em seus lábios.
Por agora, estava disposto a ignorar as contradições do caráter de Vivien e se permitiria desfrutar de sua companhia, simplesmente. Uma mulher formosa, uma lareira, uma habitação repleta de livros e uma garrafa de vinho... Talvez não fosse a idéia de felicidade que tinham todos os homens, mas Deus era testemunha de que essa era a de Grant.
Tomou uns livros e os levou junto a Vivien, depositando a pilha no chão, perto de seus pés. Ela começou a compreender que ele não queria outra coisa do que passar um tempo com ela e então se dedicou a ver o que havia na pilha de livros, enquanto ele tirava uma garrafa de borgona de um aparador e a abria. Grant encheu duas taças e logo, sentou-se em uma cadeira junto a Vivien e lhe deu uma delas. Ele notou que ela bebia imediatamente, sem seguir o habitual costume daquelas pessoas que estavam acostumadas a provar vinhos finos: nada de fazer girar a taça para sentir a fragrância, nem observar esses pequenos riachos que os ingleses chamavam “pernas” e os franceses, mais poeticamente, “lágrimas”. E não tinha o aspecto de uma cortesã mundana, acostumada às coisas refinadas da vida, mas bem parecia uma jovem ingênua em um ambiente protegido.
—Isto me dá esperanças. - Comentou ela, levantando o primeiro livro da pilha e tendo-o sobre seu colo. -
Já sei que é insignificante lembrar que tenho lido alguns destes livros mas, se tiver recuperado este fragmento de minha memória, isso significa que possivelmente depois virão outras coisas.
—Disse que tinha evocado a lembrança de ler com alguém. - disse Grant, bebendo um sorvo, sem apartar a vista do rosto adorável dela, iluminado pelo fogo. - Ao falar dessa pessoa a mencionou em masculino. Tem alguma impressão dele? Qualquer detalhe de seu aspecto ou de sua voz? Ou do lugar em que poderia ter estado com ele?
—Não - respondeu ela, e as suaves curvas de sua boca adquiriram uma expressão nostálgica — Mas, quando tento recordar, sinto... - interrompeu-se e contemplou as profundidades de cor rubi do vinho.
—Sinto-me sozinha. - Prosseguiu, com evidente esforço. - Como se tivesse perdido algo ou a alguém muito querido pra mim.
Um amor perdido pensou Grant, e sentiu um súbito golpe de ciúmes. Para ocultar tão desagradável emoção, fixou a vista em sua taça.
—Pegue - murmurou Vivien, lhe dando o livro do Keats. - Diga-ne qual é sua passagem preferida.
Vivien observou a cabeça baixa de Morgan, enquanto este virava as gastas páginas. A luz do fogo brincava sobre seu cabelo escuro e lhe arrancava brilhos de ébano. Levava-o muito curto; inclusive assim, mostrava cachos e ondas que a intrigavam. Pensou que ele deveria deixar de crescer para dar um toque de suavidade aos inflexíveis planos de seu rosto.
Deslocou seu olhar para o livro que a mão dele, de compridos dedos, parecia tragar. Não devia haver nenhum escultor que quisesse esculpir no mármore essas mãos de brutal força... e era uma pena. Para Vivien, eram mil vezes mais atraentes que as mãos esbeltas e finas de um cavalheiro. Além disso, tivesse sido ridículo que um homem de seu imponente tamanho tivesse mãos pequenas e delicadas. Ao pensá-lo, sorriu.
Nesse momento, Morgan levantou a vista, surpreendeu a expressão dela e elevou uma sobrancelha com expressão interrogante: —Que a diverte tanto?
Ela se levantou, ajoelhou se junto a ele e sua saia ondeou um instante e se assentou no chão como um atoleiro de vinho escuro. Em resposta, ela se apoderou de uma das mãos dele e a mediu com a sua, unindo as Palmas. Os dedos dele ultrapassavam em muito os dela.
—Não lembro dos outros cavalheiros que conheci. - disse ela, mas não me cabem dúvidas de que você deve ser o maior homem que conheci. - entre as palmas unidas dos dois brotou uma corrente de calor; Vivien asfastou a sua e alisou o vestido. - Como é ser tão grande? —Perguntou-lhe.
—É uma permanente dor de cabeça. - respondeu Morgan com secura, apartando o livro. - Minha cabeça conhece bem todas as portas de Londres.
O sorriso de Vivien adquiriu um matiz de simpatia.
—Deve ter sido um menino fraco, de pernas largas.
—Como um macaco com pernas de pau. -admitiu ele, fazendo-a rir.
—Pobre senhor Morgan. Os meninos zombavam de você?
—Continuamente. E eu passava o tempo trocando insultos e, se não, brigando. Todos queriam ser o que tinha dado uma surra no maior menino da Senhora da Misericórdia.
—Senhora da Misericórdia. - repetiu Vivien, pois não conhecia esse nome. - É uma escola?
—Um orfanato.
Morgan lamentou havê-lo dito assim que a palavra saiu de seus lábios. Como Vivien guardou silêncio, lhe dirigiu um olhar inescrutável. Por um instante, ela percebeu um raio de desafio, ou talvez fosse de amargura, que ardia nas profundidades verdes grisáceas de seus olhos.
—Não fui sempre um órfão —murmurou ele. - Meu pai era livreiro, um bom homem embora péssimo comerciante. Fez alguns maus empréstimos a uns amigos, a isso seguiu um ano de poucas vendas, e toda a família foi para prisão como devedores. É obvio, uma vez que entra ali, jamais volta a sair. Não existe maneira de que um homem na prisão obtenha dinheiro para pagar suas dívidas.
—Quantos anos você tinha?
—Nove, possivelmente dez. Não o recordo com exatidão.
—Que aconteceu?
—Na prisão houve uma epidemia. Morreram meus pais e duas de minhas irmãs. Meu irmão menor e eu sobrevivemos, e nos enviaram à Senhora da Misericórdia. Um ano depois, puseram-me na rua por “perturbar a ordem interna.”
Embora ele relatasse o acontecido em voz monótona, despojada de emoção, Vivien percebeu a dor e a hostilidade ocultas atrás dessa fachada de serenidade.
—Por quê? —murmurou ela.
—Meu irmão Jack era pequeno para sua idade e muito sensível. Por isso, os outros meninos o incomodavam.
—E você brigou para defendê-lo-disse ela.
Ele assentiu.
—Houve uma briga bastante dura; o diretor do orfanato revisou minha ficha, em que abundavam términos como: “violento” e “incorrigível”. Chegou à conclusão de que eu representava um risco para os outros meninos. E assim, encontrei-me fora dos muros do orfanato, sem nada para comer nem posse alguma salvo a roupa que levava no corpo. Permaneci junto ao portão durante dois dias e noites, gritando para que me permitissem voltar a entrar. Eu sabia o que ia acontecer a Jack se eu não estivesse ali para protegê-lo. Por fim, um dos professores saiu e prometeu que faria tudo o que estivesse em seu poder para cuidar de meu irmão. E me aconselhou que partisse e que tentasse vover minha vida própria. E isso fiz.
Vivien tratou de imaginar como seria ele menino, pequeno e assustado, afastado do vínculo com a última pessoa que ficara viva de sua família, obrigado a continuar a vida. E ele tinha terminado por servir à mesma sociedade que o tinha convertido em vítima. Mesmo assim, ele não fazia o menor intento de apresentar-se como um herói. Mas bem, ao contrário, apresentou a si mesmo como um caipira auto-suficiente, que defendia a lei só pelos benefícios econômicos que isso lhe dava. Que classe de homem era esse que, enquanto ajudava a outros, subtraía interesse a suas boas motivações?
—Isto é, por quê? Por que virou policial?
Morgan se elevou de ombros e sua boca tomou uma expressão cínica.
—É algo natural em mim. Quem poderia entender melhor os criminosos que alguem que se criou junto a eles? Eu estou a um só passo deles.
—Isso não é verdade. - disse ela, veemente.
—Sim, é. -murmurou ele. Eu não sou mais que o outro lado da mesma má moeda.
Fez-se silêncio e, enquanto esse silêncio persistia, Vivien se entreteve em endireitar a pilha de livros que havia no chão. Refletiu com respeito às amargas palavras dele, percebeu a imobilidade desse corpo tão volumoso, a tensão que vibrava no ar. Ele parecia tão insensível como um bloco de granito, mas ela suspeitava que sua invulnerabilidade fosse uma ilusão. Tinha sido pouca a ternura, pouco o consolo que ele tinha recebido em sua vida. E ela sentiu que um poderoso impulso se apoderava dela: o impulso de aproximar-se dele e abraçá-lo, de apoiar a cabeça escura de Grant sobre seu ombro. Entretanto, prevaleceu nela o sentido comum. O mais provável seria que ele não quisesse nem aceitasse receber consolo por parte dela e, silo fazia, ele poderia lhe retribuir seus gestos com uma humilhante mofa. O mais prudente, seria deixar de lado o tema, no momento.
Mas lhe escapou outra pergunta e não pôde contê-la.
—Onde está agora seu irmão?
Morgan não deu sinais de havê-la ouvido.
—Onde está Jack? —voltou perguntar ela, ajoelhando-se ante ele e fixando os olhos no rosto de Grant.
Os olhos verdes deslocaram seu olhar, que se encontrou com os dela, lhe provocando um intenso impacto.
—Por favor. - insistiu a jovem com suavidade. - Você conhece o pior de mim. Não tenho dúvida de que, a estas alturas, pode confiar. Diga-me isso.
Um escuro rubor cobriu o rosto do homem. Era como se fosse um segredo terrível envenenando o em seu interior .
Vivien quando estava começando a acreditar que ele não iria responder, ele começou a fervuras, em sua voz áspera entrecortada.
—Assim que pude, voltei a procurar Jack: Tinham conseguido trabalho para ele, no posto de um peixeiro, onde eu limpava e envasilhava pescado. Eu sabia que o deixariam sair do orfanato se havia um parente que fosse responsável por ele. Eu tinha uns quatorze anos, era um homem em mais de um sentido, e estava disposto a cuidar dele. Mas, quando fui à Senhora da Misericórdia e perguntei pelo Jack... Disseram-me que partiu.
—Que havia partido? —Repetiu Vivien— Tinha fugido?
—Varíola. A metade dos meninos do orfanato a tinham contraído. Jack morreu ali, sem mim... Sem ninguém que o amasse.
A Vivien faltaram as palavras. Olhou-o com compaixão e apertou com força sua mão sobre a coxa para conter-se, para não tocá-lo.
—E soube... —disse ele em voz rouca, soube que se tivesse ido antes... Poderia havê-lo salvado.
—Não. - replicou Vivien.- Não tem que pensar assim.
—É um fato. Não há outro modo de pensar nisso.
—Não é justo consigo mesmo.
—Eu falhei-disse ele. - Isso é o que importa.
Ficou de pé com um só movimento, voltou-se para o fogo e cravou a vista nas brasas que chispavam.
Tomou um atiçador e moveu um tronco até lhe fazer brotar chamas.
Vivien também ficou de pé com os punhos apertados e contemplou suas costas larga, sua cabeça escura recortada contra o resplendor do fogo. Sua compaixão para ele ultrapassou qualquer preocupação que tivesse sentido por seus próprios problemas. Morgan tinha dedicado sua vida a salvar a outros porque não tinha podido salvar a seu irmão. Entretanto, por mais que tivesse resgatado, ajudado ou servido a outras pessoas, jamais poderia absolver a si mesmo por seu único grande fracasso. A culpa o acussaria durante o resto de sua vida. Vivien sentiu todo seu ser repleto de um só desejo: encontrar algum modo de ajudá-lo. Mas nada podia fazer.
Tocou o ombro de Grant, demorou sua mão aí e logo a deslizou para a nuca quente do homem. A seu contato, todo o corpo de Grant ficou tenso e ela sentiu a crispação dos nervos em seu pescoço. E se afastou com brutalidade e lançou uma maldição afogada, como se lhe tivesse parecido uma adaga.
—Não. -disse, com tom brutal. - Não preciso de compaixão de uma... - Interrompeu-se, como se o resto da frase o afogasse.
A palavra não pronunciada flutuou no ar entre os dois.
Vivien sabia muito bem o que ele tinha estado a ponto de dizer e a dor a machuquou. Mas, por que não tinha completado frase? Por que tinha se contido no último segundo, esforçando-se por não ferir seus sentimentos? Ela o olhou com curiosidade, e uma sensação de calma artificial desceu sobre ela.
—Obrigada. - disse Vivien, com uma voz em que vibrava um leve tremor. - Obrigada por não dizê-lo.
—Vivien. - disse ele em tom resmungão—, eu...
—Eu não deveria te haver feito perguntas tão pessoais. - disse ela, aferrando-se a esse magro retalho de dignidade, e começou a retirar-se da habitação. - Estou muito cansada, senhor Morgan. Acredito que subirei para descansar.
Ela ouviu que ele dizia algo mais, mas fugiu da biblioteca o mais rápido que pôde, e ele ficou contemplando o fogo com ar melancólico.
Morgan saiu de casa muito antes do jantar, e Vivien jantou sozinha. Ela tentou imaginar que companhia procuraria ele essa noite, procuraria um botequim onde vadiar e participaria de alguma discussão política ou iria a seu clube jogar cartas, com uma empregada descarada sentada em seus joelhos. Um homem como ele nunca padeceria por escassez de mulheres.
Morgan tinha a aparência de um cavalheiro, mas também possuía esse ar de fanfarrão guia de ruas, duas caracteristicas que formavam uma combinação irresistível para qualquer mulher. Sem dúvida, devia ter inspirado inúmeras fantasias nas londrinas, tanto nas de classe alta como as de classe baixa.
Uma sensação de frio e pesar se instalaram em seu peito e não pôde tragar mais que uns poucos bocados do jantar. Vivien se rendeu a sua habitação levando consigo vários livros, e leu até a meia-noite. Mas os livros não conseguiram exercer sua magia. Não podia deixar-se levar pelas palavras escritas com a quantidade de problemas que pareciam sobrevoar sobre sua cama como um espírito maligno.
Alguém havia tentando assassiná-la e era possível que voltasse a tentá-lo quando descobrisse que estava viva. E embora ela confiasse na capacidade de Morgan para protegê-la e descobrir a identidade de seu atacante, também sabia que ele não era infalível. E ela, em lugar de ajudá-lo lhe dando informações esclarecesse tudo, seguia aí como, sabendo que todos os fatos relevantes estavam encerrados em algum impenetrável rincão de sua mente. Era enlouquecedor.
Deixou de lado o livro e se virou de bruços, contemplando as sombras que projetava o abajur da mesinha de cabeceira. O que seria dela?
Ela mesma tinha arruinado ao escolher um caminho que nenhuma mulher decente estaria disposta a seguir. Não ficavam muitas alternativas, fora de voltar para a prostituição, de encontrar um homem que, talvez, aceitasse se casar com ela, ou possivelmente tentar a sorte em alguma classe de trabalho respeitável que, talvez, desse-lhe dinheiro suficiente para se sustentar. A única possibilidade que lhe parecia aceitável era a terceira. Mas, quem lhe daria emprego sabendo que era uma mulher pública?
Desanimada, Vivien fixou a vista em uma mecha de cabelo vermelho que se estendia em cachos sobre a cama. Sem alardes de vaidade, compreendeu que sua aparência bastava para atrair aos homens, embora ela não desejasse seus cuidados. Além disso, nunca poderia ocultar o fato de que uma vez tinha sido uma prostituta. A verdade sempre terminava por sair à luz. Qualquer fosse a posição que ela ocupasse, sempre haveria homens ofendendo-a, lhe fazendo propostas, lhe oferecendo acordos sexuais em troca de dinheiro.
Vivien se debateu contra esses pensamentos cada vez mais desagradáveis e logo terminou por cair em um sonho inquieto. Voltou a sofrer pesadelos, a sonhar com água em que se afundava e se afogava. Retorceu-se entre os lençóis, agitou os pés e lutou até que a cama ficasse totalmente desordenada. Por fim, despertou lançando um grito e incorporando-se bruscamente, respirando com força, seus olhos perdidos na escuridão.
—Vivien. A voz suave a fez tremer, sobressaltada.
—O que?
—Ouvi você gritar e vim ver se estava bem.
“Morgan” pensou ela, mas sua presença familiar não lhe serviu de alivio. Por uma fração de segundo, temeu que ele tivesse ido reclamar um lugar em sua cama. Ou na cama dele, para ser mais precisa.
—Só foi um pesadelo. - disse ela, tremendo. - Já estou bem. Lamento haver incomodado.
Assustada, Vivien viu a silhueta de Morgan na escuridão, uma alta figura que se aproximava da borda da cama; seu coração se agitou e se deteve. Ela se encolheu, deslocando-se para o centro da cama e ficou rígida quando ele se apoderou das mantas. Com uns poucos movimentos, velozes e destros, Grant arrumou a roupa de cama e dobrou o lençol de acima sobre a borda das mantas.
—Quer beber um copo de água? —Perguntou ele, em tom neutro.
A pergunta foi tranquilizadora. Embora Vivien não recordassem nenhum de seus anteriores conhecimentos a respeito dos homens e das questões sexuais, não acreditou que fosse possível que um sedutor oferecesse a uma mulher um copo de água antes de violá-la.
—Não, obrigada. - murmurou ela, pegando um dos travesseiros. Deu uma risada trêmula—. Poderia acender o abajur? Os pesadelos são tão fortes que tenho medo de dormir outra vez. Que tolice, não? Sou como uma menina assustada na escuridão.
—Não, não é uma tolice. - disse ele, com uma voz distinta, muito tenra. - Permita-Me que fique com você esta noite, Vivien? Falta pouco para que amanheça.
Confusa, ela guardou silêncio.
—A abraçarei como um amigo. - disse ele em voz baixa. - Como um irmão. Só o que quero é manter a longe os pesadelos. - fez uma pausa e, quando voltou a falar, em seu tom revelava uma nota de humor. - Bom, não é só o que quero... Mas isso ficará reservado para mais adiante. Fico, ou prefere que acenda o abajur?
Com bastante assombro, Vivien compreendeu que, em efeito, ela desejava que ele ficasse. Não era a mais prudente das decisões. Era indubitável que, desse modo, estava propiciando a aparição de dificuldades. Mas a presença de outro ser humano manteria longe os pesadelos, sem dúvida nenhuma... E tampouco estava mal que esse ser humano fosse um homem grande e forte, que a nada temia.
—Antes, me permita perguntar algo - disse ela, receosa. – Está vestido?
—O que? —Perguntou ele, desorientado.
Ela decidiu ser franca:
—Não está nú, não é?
—Visto uma camisa—respondeu ele. - Está decepcionada?
—Não. -respondeu ela, de maneira tão imediata que o fez rir.
—Sem roupa, eu tenho um aspecto muito impressionante.
—Aceitarei sua palavra nesse sentido.
—Decida se, senhorita Duvall: fico ou vou?
Vivien vacilou por um longo momento antes de responder.
—Fique. - disse, em voz baixa.
Capítulo 7
O considerável peso de Morgan afundou o colchão. Vivien conteve o fôlego e apertou com força os punhos na boca do estômago para acalmar a agitação nervosa que sentia em seu interior. As mantas se levantaram e seu corpo comprido e grande se deslizou junto ao dela. Imediatamente, sentiu-se rodeada pelas capas de linho e lã. Com supremo cuidado, Morgan passou seu braço em volto da cintura dela e a atraiu de modo que as costas dela ficaram apertadas contra ele, como colheres em uma gaveta. Vivien não pôde impedir que lhe escapa-se um soluço ao perceber o calor e a dureza de seu corpo, que transpassava a roupa de dormir interposta entre os dois.
—Não tem medo verdade? —murmurou ele, para ouvir o suave som.
—Não. - respondeu ela, agitada. - Mas me custa pensar em você como um amigo.
O braço que rodeava sua cintura se apertou em forma quase imperceptível.
—Bom. - disse ele em voz apagada.
Vivien permaneceu quieta um tempo, absorvendo a sensação que lhe proporcionava estar entre os braços dele. Sentiu o aroma de sabão, de pele masculina, e o calor que a protegia do frio da noite. Sentiu suas extremidades pesadas e frouxas, também que sua coluna vertebral se adaptava à forma do corpo dele. Moveu-se um pouco para trás procurando intensificar esse delicioso contato com ele, mas a mão de Grant se apoiou com suavidade em seu quadril, lhe impedindo de mover-se.
—Não se mova muito - advertiu ele em tom um tanto áspero—Não sou eunuco.
Vivien sentiu que a tragava uma onda de vergonha, ao notar o vulto de sua ardente ereção apoiada na parte alta das nádegas.
—Não acredito que isto tenha sido uma boa idéia. - conseguiu dizer ela. - Assim, jamais dormirei.
—Queres que eu vá embora?
Confusa, Vivien pensou em silêncio, debatendo-se entre seus escrúpulos de consciência e o puro prazer físico de estar em seus braços. Sua consciência não demorou muito em ser decepcionada.
—Bom... —disse insegura— Não dormirei, mas, ao menos, não terei pesadelos.
E riu entre dentes:
—Alegra-me que confie em mim. Eu esperava que rechaçasse meu oferecimento.
—Estive a ponto de fazê-lo. - respondeu ela. - Mas pensei que, se fosse violar-me, antes desta noite já teve várias oportunidades.
—Jamais me imporia pela força a uma mulher que não me aceitasse.
—Eu diria que não te terá encontrado com muitas dessas.
—OH, houve algumas. - disse ele com secura.
Vivien se afrouxou, apoiada nele, sentindo que sua respiração lhe agitava os finos cabelos da nuca. Um de seus pés descalços tocava o tornozelo dele, e o roçar de seu duro pêlo masculino lhe produzia uma agradável comichão na pele.
Ele era uma criatura redondamente masculina; imaginou que deveria atemorizá-la saber que uma palavra dela era o que mantinha sob controle toda sua força e sua virilidade. Em troca, em lugar de atemorizá-la a fascinava. Não cabia dúvida de que brincar com o perigo era uma sensação embriagadora.
—Grant? —Chamou ela com suavidade—. Por que não se casou?
Ele riu quedamente.
—Não sou dos que se casam.
Ele levantou a grossa trança de Vivien e brincou com ela.
—E pensa ter esposa e filhos?
—Para que? Não sinto um desejo irrefreável de continuar a linha de descendência de uma família tão pouco distinguida. Tampouco confio muito em minha capacidade de me manter fiel a uma mulher durante toda uma vida. Quando quero companhia feminina, posso consegui-la. Meus criados cuidam minha casa e se ocupam de minhas comidas e de minha comodidade. Para que me serviria uma esposa?
—Alguma vez conheceu uma mulher que nunca conseguiu esquecer?
Sentiu-o sorrir com a boca apoiada em sua cabeça.
—Você tem lido muitas novelas.
—Estou certa de que tem razão. - disse ela, em tom pesaroso. - De todos os modos... Não acredita que lamentará quando ficar velho, tiver os cabelos cinza e não ter uma companheira com quem recordar?
—Nem netos que brinquem sobre meus joelhos. - concluiu ele. - Não, obrigado, não tenho a ambição de conceber uns descendentes que puxem minhas costeletas e escondam meu distintivo atrás do sofá. Preferiria ter um pouco de paz em minha velhice. Se é que viverei até lá.
—Que cínico é.
—Sou. - reconheceu, sem alterá-lse alterar. - o mais estranho é que você também é. Embora, a escutando, qualquer um pensaria que é inocente e idealista.
—Não me sinto cínica. - comentou ela depois de uma pausa—. Não me sinto nenhuma das coisas que você diz.
A este último comentário seguiu um pensado silêncio e ela sentiu a pressão da mão morna dele sobre seu ombro.
—Grant. - disse ela, afogando um bocejo. - quanto tempo falta para que possa ver minha casa?
— Isso será quando o doutor Linley disser que está em condições de levantar e de sair.
—Bom. Virá a verme amanhã. Estou certa de que não porá objeções a que vá.
—Por que tanta pressa? —Perguntou Morgan com suavidade. - Que esperas encontrar na casa?
—Minha memória. - respondeu ela, esmagando mais sua cabeça na benévola brandura do travesseiro. -
Quando vir meus objetos conhecidos e meus livros, estou segura de que tudo voltará para mim. Estou farta de me sentir tão... Tão em branco...
—Ali não há muitos livros. - disse ele. - Não recordo ter visto mais de três ou quatro.
—Oh ! - exclamou ela, girando para ele, e seus narizes quase se tocaram na escuridã. - Por que eu gosto agora, fala que não me agradavam antes?
— Não sei. - disse ele, e seu fôlego, que cheirava a canela e a um leve sotaque de café, soprou sobre o queixo de Vivien. - Possivelmente Linley possa responder a isso.
—Que acha que ocorrerá quando eu recuperar minha memória? Voltarei a ser como era antes?
—Isso espero. - murmurei ele.
—Por o que? —Perguntou ela, ferida pela franca afirmação—. Você não gosta como sou agora?
—Eu gosto muito. - disse ele com aspereza—. E me será muito duro...
—O que diz?
Ele se absteve de responder, e se limitou a resmungar um juramento que fez arder às orelhas de Vivien.
—Advirto-lhe Vivien: está jogando comigo, é muito provável que acabe se matando.
—Não estou jogando. - replicou ela, machucada e ofendida. - Por que teria que fazê-lo? Acredite-me que se tivesse algo que dizer com referência à pessoa que tratou de me afogar, haveria-lhe isso dito imediatamente.
Eu não estarei a salvo até que ele seja apanhado, não é assim?
—Não, não estará. O qual nos leva a um último ponto... Você não irá a nenhuma parte sem mim.
—Claro que não. Não sou tola.
Com suas grandes mãos, ele a fez voltar-se de costas a ele e a empurrei para o centro da cama, até que ficaram a um braço de distância, pelo menos.
—E agora, fique aí. – disse. - E tome cuidado de não voltar para mim durante a noite, pois, se o faz, acontecerá algo que não a agradará.
—Não há perigo disso acontecer. - respondeu ela com vivacidade. - Esta cama é tão grande que bem poderíamos estar em distintos condados.
De algum modo, ao contrário do que Vivien esperava, dormiu anoite e não a perturbou nenhum pesadelo.
Uma ou duas vezes despertou e viu o escuro contorno do corpo do Morgan. Dormir com um homem era uma sensação nova e reconfortante, uma forte sensação de amparo. Possivelmente, eles servissem para algo, pensou em dormir, antes de afundar-se em um sonho satisfeito.
Para Grant, aquela foi uma das piores noites de sua vida. Tinha sido uma absoluta loucura oferecer-se para ficar com Vivien, e a tinha pago caro. Sua intenção tinha sido ser amável... Não voltaria a repetir esse engano.
Não, corrigiu-se, em um intento de ser honesto consigo mesmo: a amabilidade não tinha tido nada que ver com seu oferecimento. Simplesmente, ele queria abraçá-la. Até contra sua vontade, Vivien gostava; isso somava a intensa atração física que sentia, era impossível manter-se longe dela. Ele queria converter-se na única pessoa que ela confiasse, queria encher todas suas necessidades. E isso era ruim. Por que seu singelo plano de vingança estava convertendo-se em um problema tão grande?
Porque Vivien era cálida, corajosa e inesperadamente inteligente todas as qualidades que ele admirava em uma mulher. Embora ainda não tivessem feito amor já sabia que não passaroa só uma noite, uma semana, um mês com ela. A queria por muito tempo. E a queria assim, sem memória, sem a sofisticação e a vaidade que tanto lhe tinham repugnado antes.
Maldita Vivien, quanto mais fácil teria sido se ela tivesse continuado sendo assim. Nesse caso, ele a teria usado sem remorsos para logo abandoná-la, rindo em sua cara se ela se zangasse, lhe dizendo que merecia o que estava acontecendo. Mas agora isso não era possível. Não podia ferir Vivien; o mais provável era que ele matasse a qualquer um que tentasse.
Abriu seus olhos irritados e contemplou esse corpo esbelto contra a sua com tanta confiança. Fazia perto de uma hora, ela tinha se aproximado dele provocando um protesto maciço de seus nervos. A vontade de lhe tirar a camisola era tão intensa que lhe fazia tremer as mãos. Ocorreu-lhe possuí-la nesse momento, antes que despertasse, penetrar seu suave calor feminino até que os dois chegassem ao êxtase. Mas não ia trair sua confiança... E não podia afasta-la. Portanto, permaneceu assim, sofrendo e esperando, com seu membro ardendo de desejo que com muita dificuldade podia controlar.
Com aspecto sombrio, repassou as últimas horas: cada uma delas tinha sido uma tortura pior que a anterior. Cada movimento do corpo de Vivien e cada suspiro que escapava de seus lábios o tinham excitado e estimulado até um grau insuportável.
Ele, que sempre se orgulhou de poder dominar suas paixões, sentia-se como um boneco de pano. E tudo por uma pequena mulher que, de todos os modos, já tinha se deitado com a metade dos homens de Londres.
Inclusive já começava a não se importar com isso, até começava a urdir desculpas para justificar a legião de amantes que ela tinha tido. Amaldiçoava-os a todos, mas só queria ser um deles.
O corpo em repouso da mulher se ajustava ao seu com perfeição; a prega de sua camisola estava enroscada em volto de seus joelhos. Seus magros tornozelos e suas panturrilha estavam colocados entre as pernas dele. Ela era miúda e delicada como uma boneca. O aroma de sua pele morna, sem perfumes, acelerava-lhe o sangue até enjoá-lo. Apoiou seu queixo barbudo sobre a seda de seu cabelo, desejando desfazer as onduladas tranças e as estender sobre seu peito e sua garganta.
Como se, de algum modo, tivesse-lhe comunicado a intensidade de seus pensamentos, ela suspirou em sonhos e colocou um de seus pequenos pés entre os dele. Isso foi sua perdição. Grant já não pôde deixar de tocá-la, do mesmo modo que não tivesse podido impedir que seus pulmões inalassem ar ou seu coração pulsasse. Pôs a mão sobre a curva da cintura de Vivien e roçou a borda inferior de seu torso. Sentiu o corpo dela flexível e suave sob sua mão. Acalorado, moveu sua mão mais acima e seus dedos exploraram a tenra curva inferior de seu seio, cavando-se sob sua protuberância. Sua palma se encheu com essa suave redondeza; ele se perguntou o que teria Vivien que a fazia tão diferente de qualquer outra mulher que tivesse conhecido.
Era como se estivesse feita para ele. Quantos homens teriam sentido o mesmo para a ela? Pensou sombrio, debatendo-se contra a primitiva urgência de lhe imprimir sua própria marca, de apagar cada beijo e cada carícia que não fossem os seus.
Com um polegar, riscou um lento círculo sobre o mamilo até que sentiu a resposta esperada. Não lhe bastava já sentindo-a através do tecido da camisola de alto pescoço. Morria por acariciar sua pele nua, saboreá-la, apertar sua boca em cada uma de suas partes. Acariciou com o polegar e o bico do mamilo da mulher, sentiu como mudava sua respiração e seu ritmo depravado se tornava superficial e rápido.
Por debaixo de sua quietude, houve um movimento apenas perceptível, um tremor no mais profundo, que a delatou. Estava acordada... Sabia que ele estava acariciando-a, e não fazia intentos por escapar dele. Algo significava isso, já fosse que ela se contivesse pela impressão, por sua vontade ou por pura curiosidade: isso era difícil de discernir. Com cautela, ele soltou o seio e deslizou sua mão para baixo, para a cintura de Vivien...
Com lentidão, chegou ao ventre e à zona mais elástica que se encontrava onde o tênue algodão cobria um arbusto de cachos de cor canela. Sentiu estremecer o corpo dela e trocou o peso de lugar, como se preparando para escapar.
Grant apertou sua boca sobre o pescoço dela, e foi subindo até detrás de sua orelha, sussurrando frases tranquilizadoras, lhe dizendo que a queria, que a necessitava, que seria doce e paciente. Deixou escorregar sua mão, deslizando-a entre as coxas dela, cavando-a um pouco, ao tempo que sua ereção pressionava com força o quadril dela. Cedeu-lhe todas as possibilidades de se afastar, se isso era o que ela desejava. Mas Vivien ficou junto a ele e reagiu com uma estranha estupidez, como uma virgem ardente e transtornada. Com o fôlego entrecortado, ela girou tratando de ficar de cara com ele, com os olhos bem fechados, e apoiou as mãos nos ombros de Grant. Ele a beijou com beijos lentos e exploradores, enredando sua língua na dela, em tentadoras carícias. Ela gemeu e suas mãos se deslizaram mais para suas costas, aproximando-o, ao mesmo tempo em que ele se elevava sobre ela...
Um golpe fez vibrar a porta, que se abriu antes que pudessem responder. Era a criada que, seguindo sua rotina cotidiana, tinha ido limpar a chaminé e acender o fogo. A criada entrou no quarto e, imediatamente, viu que na cama havia duas pessoas em lugar de uma. deteve-se e soltou uma exclamação consternada. Vivien percebeu a intrusão e Grant a sentiu congelar-se debaixo dele, com seus olhos azuis cheios de pânico.
Grant levantou a cabeça e olhou com doçura à criada.
—Agora não - disse, cortante.
—Sim, senhor. - balbuciou a moça, fugindo da habitação e fechando a porta detrás de si.
É obvio a culpa não era da moça. Os criados da casa de Morgan não estavam acostumados a epsódios como este, posto que Grant estava acostumado a visitar suas ocasionais companheiras de leito em suas casas, em lugar de as levar a sua. Nunca tinha exigido certo grau de intimidade em seu dormitório. Mas isso ia mudar. Furioso, Grant decidiu, para si mesmo, dizer à ama de chaves que imediatamente estabeleceria um novo sistema.
Pela expressão consternada de Vivien era evidente que qualquer inclinação amorosa que tivesse tido tinha desaparecido. Seu corpo estava rígido debaixo de Morgan, e seu rosto, avermelhado de vergonha. Carrancudo, Grant rodou até ficar de pé e viu como ela saía rastejando da cama. Uma persistente ereção fazia palpitar cruelmente seu pênis. Era muito provável que, se não encontrasse logo alívio, ficaria aleijado.
Vivien ajeitou sua camisola e se apressou a atar o cinturão que fechava o objeto. Foi até o lavatório, jogou um pouco de água fria em um recipiente e salpicou nas rosadas bochechas. Grant a observava com atenção; notou a rigidez de suas costas e a brusca pressa de seus movimentos. Ela secou o rosto com um pano, dando-se palmadas, nos ombros, e girou para ele com a expressão de alguém que enfrentasse uma tarefa desagradável.
— Quer que retorne à cama? —Perguntou, com a vista cravada.
A pergunta surpreendeu Grant. De fato, sim queria... Mas antes precisava saber por que ela tinha perguntado. Perguntou, e ela seguiu evitando olhá-lo.
—Devo-lhe isso-disse ela, em tom inexpressivo-. Você me salvou a vida, deste-me hospitalidade e amparo e, além disso, devemos considerar nossa relação anterior. Não é mesmo se não tivéssemos feito....antes. Se tiver em conta tudo isso, seria uma hipócrita lhe negando isso, portanto, se você quiser, estou disposta a voltar para a cama.
Estava resolvida como uma mártir; sua postura rígida e seu rosto esquivo esfriaram a paixão de Grant com maior eficácia que se tivessem jogado nele um balde de água gelada.
—Não, não quero. - murmurou ele, frustrado e carrancudo. - Que me condenem se aceitar que venha à cama como se fosse um maldito sacrifício.
Levantou-se e fechou com brutalidade a frente de sua desarrumada bata, soprando ao ver que o rubor dela se intensificava quando espionou uma fugaz porção de sua nudez.
—Esse rubor virginal não combina com você Vivien. Não esqueça de que a conheci antes que perdesse a memória.
—Que quer de mim? Ofereci a você o uso de meu corpo. Se entendi bem, o problema é que não demonstre isuficiente entusiasmo. – Disse olhando-o de modo significativo.
—Suficiente entusiasmo? - Repetiu ele, ácido. - O mesmo entusiasmo que tinha Joana D’Arc. ante a fogueira.
O ambiente se carregou de um pesado silêncio. O belo rosto de Vivien tinha tina expressão penitente e ao mesmo tempo, seus olhos, divertidos. Voltou-se com rapidez, mas não alcançou a ocultar o tremor da risada de seus lábios ao olhar Grant.
—Sinto-o. - disse, em voz amortecida. —Isso não foi muito adulador, verdade?
—Não, não foi. - resmungou ele.
Também riria se não estivesse com uma dolorosa ereção. Voltou para a cama, rodou até ficar de barriga para baixo, afundou a cara no travesseiro e se esforçou por acalmar sua feroz ereção. Ao sentir que Vivien se aproximava, levantou a cabeça e lhe lançou um olhar de advertência.
—Mantenha-se afastada de mim... Ou venha deitar comigo, de todos os modos.
—Sim, senhor. - respondeu, em tom dócil. - Possivelmente seja melhor que recolha minhas roupas e vá vestir-me em outro quarto.
—Faz isso. - Ele deixou cair à cabeça no travesseiro e exalou um explosivo suspiro.
Vivien colocou um vestido de um suntuoso azul, de veludo de seda passada com laços italianos, de mangas largas, na parte superior e juso no cotovelo até o punho. As mangas estavam terminadas com uma série de branco encaixe de Bruxelas, igual à borda de pescoço alto. Torceu-se com dificuldade para abotoar todos os botões das costas que pôde alcançar; resolveu que mais tarde pediria a Mary que a ajudasse a acabar a tarefa.
Penteou seu cabelo e passou os dedos por entre as mechas onduladas marcadas pelas tranças e se moveu para contemplar sua imagem em um espelho oval preso à parede estofada de damasco. O vestido lhe sentava bem, realçava o azul de seus olhos e o rebelde rubor que persistia em suas bochechas.
Ao pensar que Grant estava na habitação vizinha, exalou um trêmulo suspiro. Sentia o corpo quente e as mãos quentes; mas toda ela ardia com uma desconcertante mescla de agitação e deleite. Nesse mesmo momento, sentiu desejos de voltar para ele, de lhe pedir que a tocasse outra vez, deixar que a possuísse, ela queria estar debaixo dele.
Embora compreendesse a mecânica do ato, não tinha lembranças de havê-lo realizado, nenhuma idéia clara do que devia fazer. Todo isso que não conhecia a deixava nervosa. Fazia uns momentos, ele se tinha mostrado incrivelmente delicado e ela tinha estado muito perto de entregar-se a suas mãos. Ninguém, e muito menos ela, poderia negar que Grant Morgan tinha seu atrativo. Mas ela não o amava. E um instinto muito profundamente enraizado que lhe dizia que a intimidade do ato do amor devia reservar-se para um homem que ela amasse muito. Essa sensação se contradizia por completo com o modo em que se supunha que ela tinha vivido até que ocorreu seu acidente.
Frustrada, Vivien apertou a cabeça com as mãos e gemeu. Podia compreender por que Grant suspeitava que ela estivesse jogando. Como poderia se não explicar seu estranho comportamento? Ela era uma prostituta; ninguém poderia mudar sua história de um dia para o outro.
—Oh, por que não posso recordar? —Disse em voz alta, apertando-as têmporas com os punhos, apertando os nódulos com força no lugar onde pulsava.
Grant se vestiu e saiu para a Rua Bow sem comer nem ler, nem dizer uma palavra a Vivien. Sem dúvida, a criada devia ter contado aos outros serventes à cena que tinha presenciado essa manhã, em seu dormitório.
Todos eles, inclusive a senhora Buttons, tinham-no tratado com tão cuidadosa cortesia que ele teve vontades de lhe arrancar a cabeça com os dentes a um deles.
Entrou na Rua Bow entregou seu casaco à senhora Dobson. Essa manhã, na sede da polícia reinava um ambiente calmo, enquanto sir Ross Cannon terminava de ler a última edição do The Foge Ana’ Cry. Era um relatório semanal que circulava entre os magistrados de um extremo a outro da Inglaterra; nele se expor detalhes relacionados com os criminosos não apreendidos e seus delitos.
Quando Grant chegava ao escritório de Cannon, o magistrado apareceu na entrada e entregou uma folha de papel e um lápis.
—Alegra-me de que esteja aqui. - disse Cannon com vivacidade. - De uma olhada nisto. Dentro de dez minutos, sairá para a imprensa.
Grant apoiou o ombro no marco da porta e leu rapidamente o documento, anotando alguma correção menor aqui e ali. Quando terminou, entrou no escritório de Cannon e encontrou aí la Keyes, folheando um livro de procedimentos. Feito um dandy, como sempre, Keyes levava calças cor verde musgo, um colete bordado de brocado cor nata e uma jaqueta castanha de bom corte. No pescoço tinha um laço arrumado em um complicado nó, que caía em forma de catarata e lhe mantinha alto o queixo.
—Bom dia - disse Grant, enquanto punha The Foge Ana’ Cy sobre o escritório de mogno de Cannon.
Keyes emitiu uma espécie de grunhido que não significava nada preciso, pois tinha achado a passagem que procurava. Leu meia página, fechou o livro e voltou a colocá-lo na prateleira, junto a outros.
Enquanto isso, Grant se sentou em uma cadeira que havia junto ao escritório de Cannon. Colocou a mão no bolso e tirou a pequena caderneta encadernada em couro que tinha encontrado na casa de Vivien e a olhou mal-humorado. Tinha lido a página várias vezes procurando informação. A essas alturas, os sórdidos detalhes tinham deixado de impressioná-lo, mas os atos relatados nessa escritura tão feminina seguiam lhe produzindo uma incômoda sensação. Cada uma das acesas palavras estava gravada em sua memória como se as tivessem esculpido nela.
—Que está lendo? —Perguntou Keyes.
Grant respondeu com uma breve gargalhada amarga.
—Não é apropriado para sua tenra idade, Keyes.
—Isso é. - respondeu o outro, tirando o livro da mão de Grant. Abriu-o, leu uma ou duas páginas e suas espessas sobrancelhas se arquearam como um par de aranhas subindo pela frente. Que material tão sujo. — Comentou, devolvendo o livro a Grant— Quem tem escrito isso?
Grant sorriu zombeteiro.
—Não te agradaria conhecê-la, Keyes. É uma bruxa torturante. Basta um sorriso dela para converter suas vísceras em um trapo.
Embora a atitude do Keyes foi cuidadosamente indiferente, seus olhos amendoados refletiam um agudo interesse.
—Isto se relaciona com o corpo que tiraram do rio, não é assim? Ela está com vida... E você está abrigondo-a em sua casa. Ouvi os rumores.
Grant reclinou se em sua cadeira e olhou de soslaio à polícia.
—Não deveria dar ouvidos aos rumores, Keyes.
—Quem é ela? —insistiu o outro—. Deu o nome de seu atacante?
—Por que está tão fascinado com meu caso? —Perguntou Grant —Só quero oferecer minha ajuda, se for necessário. - disse Keyes. - Depois de tudo, você me ajudou várias vezes. Vejo um pouco a, fazer... Faço-te uma pergunta singela e você me olha com hostilidade; parece um urso em uma armadilha.
—Se necessitasse de sua ajuda, pediria-lhe.
—Então peça. - respondeu Keyes com sorriso neutro, logo saiu do escritório.
Grant permaneceu sentado, em áspero silêncio. Keyes estava na lama: ele estava a defensiva e de mau humor, como estaria qualquer outro homem em sua situação.
Quando estava com Vivien, resultava-lhe fácil esquecer quem ela era em realidade e do que era capaz.
Mas, quando se achava longe dela, via a situação sob sua verdadeira luz. Ela era uma cortesã, uma mulher que tinha demonstrado ser incapaz de dar amor ou de guardar fidelidade. Alguém tinha tentado assassiná-la e o mais provável era que fosse algum de sua legião de antigos amantes. Consistia em encontrar a quem a tinha atacado e apanhá-lo. Então, tiraria Vivien Duvall de sua casa e de sua vida para sempre... Antes que lhe rasgasse o coração.
Sir Ross reapareceu no escritório e se aproximou. Ao mesmo tempo, sua gata, Chopper, entrou sem pressa pela porta, saltou sobre uma esquina livre do escritório, e ficou de lado, observando Grant com ar solene.
—Bom dia, Chopper. - murmurou Grant, estirando-se para acariciar a larga calda peluda.
Chopper o olhou com desdém e entrecerrou os olhos até que ficaram convindos em duas finas ranhuras.
Suportou as suaves palmadas com certa vacilação e baixou a cabeça apoiando-a sobre as patas. Grant não pôde menos que sorrir ante a demonstração de paciência.
—É igual a uma mulher. – murmurou. - Só brinda seu afeto a um homem quando quer algo dele.
Cannon se serviu em uma taça com o pouco líquido que ficava na cafeteira. Fez uma careta ao provar a infusão, que estava temperada e cheia de felpa.
—Senhora Dobson. - gritou, aparecendo a cabeça escura pela porta. - a cafeteira está vazia.
Do corredor chegou um protesto que levava em uma admoestação.
—Seus nervos, senhor.
—Meus nervos estão bem. - replicou ele, deixando escapar uma irritação—. Tenho por diante uma grande quantidade de trabalho, senhora Dobson. Preciso de outra cafeteira que dure toda a manhã-insistiu, indo para sua cadeira e sorrindo enquanto se sentava. Um brilho de humor iluminou um instante seu semblante sombrio. - Deus nos livre das mulheres que acreditam que sabem o que nos convém.
—Amém - murmurou Grant, unindo-se à prece.
Cannon se respaldou em sua cadeira e seus frios olhos cinza se entreabriram para observar Grant.
—Você tem um aspecto horrível. Está enfermo?
Uma pergunta tão insólita por parte de Cannon teria bastado para alarmar os policiais. Cannon jamais se interessava pela vida privada de seus homens em tanto cumprissem bem com suas tarefas. Grant franziu o cenho, ressentido ante o caráter pessoal da pergunta do magistrado.
—Não pude dormir. - disse, conciso.
—Problemas com a senhorita Duvall?
—Nada de importância. - murmurou.
—Como está a saúde da jovem? —Quis saber Cannon.
—Acredito que está bastante recuperada. Mas não houve progressos no que corresponde a sua memória.
Cannon assentiu e tomou o livro que Grant lhe tendia.
—Que é isto?
—É um diário e uma agenda de entrevistas. Achei-o na casa da senhorita Duvall. Penso que nele poderia estar o nome da pessoa que tentou matá-la, quem quer que seja.
Enquanto o via folhear a caderneta, Grant se perguntava o que opinaria Cannon de um material de tão explícita informação sexual, precisamente ele, que fez algo equivalente a um voto de celibato. Seria completamente natural que o magistrado manifestasse algum signo de emoção, mas não apareceram mudanças de cor reveladoras, tensão nem suor. Esse homem possuía um assombroso controle sobre si mesmo.
—Ao parecer, a senhorita Duvall levou uma vida bastante pitoresca. - Comentou o magistrado, sem enfeite. - Por que supõe você que seu atacante pode aparecer neste diário?
—O intento do assassinato foi um crime passional. - disse Grant, convencido. - A senhorita Duvall não possui antecedentes de entendimentos delituosos com ninguém, nem associações iníquas, nem dívidas significativas: sempre esteve bem resguardada. Só tem uma larga lista de amantes; foi infiel à maioria deles.
Levou um escrupuloso registro deles... E de suas particulares referências. Para ela, isto foi um negócio; como pode ver, ela era muito organizada a respeito. Cada vez que lhe apresentava uma oportunidade melhor, abandonava a seu ocasional amante sem olhar para trás.
—Sua opinião é que algum deles se indignou de tal modo por seu abandono que tratou de matá-la?
—Sim. - Cannon lhe devolveu o jornal.
—Será conveniente que reduza rapidamente essa lista, Morgan. Em questões deste tipo, não se pode conceder muito tempo a um suspeito para que se reponha; se o faz, o caso está perdido.
Grant cravou a vista no pequeno volume que tinha em suas mãos e passou os polegares sobre o suave couro da coberta.
—Eu queria. - disse, lentamente—, encontrar um modo de trazer a público que Vivien ainda está viva.
Assim, quem tentou mata lá saberá que fracassou.
—Voltaria a atacá-la. - murmurou Cannon . - Isso seria um grande risco para a senhorita Duvall.
—Não - respondeu Grant, imediatamente. - Agora, ela está sob meu amparo; se esse canalha voltar a tentá-lo, eu estaria esperando-o.
—Muito bem. Então, revemos que a senhorita Duvall esteja em Londres. Já decidiu em que lugar e em que momento o fará?
—Ainda não.
—Nesse caso, permita-me lhe sugerir algo. Uma amiga minha, lady Lichfield, oferece uma festa este mesmo sábado a noite. Os convites para qualquer festa que ela organize são muito requeridos; sempre se publica uma detalhada relação delas na sociedade. Eu a convencerei de que envie a você um convite e que inclua em sua lista de convidados a qualquer pessoa que você escolha.
—Levar Vivien à propriedade de lady Lichfield?
—Por que não?
—Vivien não é aceita com facilidade pela assim chamada sociedade decente. Ao menos, não é aceita pela metade feminina. Ela se deitou com vários de seus maridos.
—Muito melhor se assistisse algum de seus anteriores amantes. - Respondeu Cannon.
A conversa foi interrompida pela aparição da senhora Dobson levando uma bandeja com uma cafeteira fumegante e taças.
—Você bebe muito café. - disse desaprovando-o-. Os dois.
—O café estimula os sentidos e ajuda a pensar com claridade. - Disse Cannon, enquanto lhe servia uma taça.
Ele a recebeu com ansiedade e a rodeou com suas largas mãos.
—E o mantém acordado a metade da noite. - arreganhou a senhora Dobson, sacudindo a cabeça e fazendo balançar seus cachos chapeados. Voltou-se para Grant como se ele fosse um aliado em sua causa. -
Sir Ross nunca dorme mais de quatro horas por noite, nunca tem tempo para comer uma comida quente e...
Para que? Quanto mais trabalho faz, mais se acumula .
Ross lhe dirigiu um olhar carrancudo.
—Se eu fizesse tudo o que a senhora Dobson quisesse - comentou a Grant. - eu logo ficaria tão gordo e preguiçoso como Chopper.
A gata reacomodou seu corpo rechonchudo sobre o rincão do escritório e olhou a seu amo com insolência. A senhora Dobson saiu do escritório sem deixar de sacudir a cabeça. Cannon soprou com suavidade em sua taça para esfriar o café.
—Muito bem. - disse, perfurando Grant com seu olhar. - Com sua permissão, eu abordarei lady. Lichfield e lhe pedirei que o inclua em sua lista de convidados.
—Obrigado. - disse Grant, para logo adicionar, com ar pensativo. - Há uma novidade que ainda não mencionei... Algo que disse lorde Gerard, quando o interroguei. Não sei bem até que ponto lhe acreditar, posto que não pudesse confirmá-lo e um diário da senhorita Duvall nem com nenhuma outra das pessoas que entrevistei.
—Sim? —Apressou Cannon.
—Gerard tinha dito que acreditava que a senhorita Duvall esperava casar-se logo. Com alguém de considerável fortuna.
—Vá. Que homem de fortuna escolheria umas “botas velhas”? - Refletiu Cannon em voz alta, empregando a frase popular que aludia a alguém que se casava com a amante de outro homem.
—Exato. - disse Grant. - Como assinalou lorde Gerard, “um não se casa com mercadoria avariada como Vivien Duvall salvo que queira se converter no bobo da Inglaterra”. Mas é possível que ela tenha encontrado alguém muito ancião, que estivesse disposto a aceitá-la.
Apesar do esforço de Grant para falar indiferenmente, seu tom revelou certo grau de amargura que não escapou a observação de Cannon. Grant se amaldiçoou quando foi submetido ao tom desalentador de seu chefe.
— Diga-me qual é sua opinião sobre a senhorita Duvall, Morgan. - disse o magistrado com calma.
— Minha opinião não tem importância. - replicou Grant, ficando de pé para eliminar uma imaginária amora de pó na perna suas calças. - Se referir você aos indícios...
—Pedi-lhe sua opinião. - insistiu Cannon, inflexível. - Sente-se, por favor.
De repente, o escritório ficou asfixiante. Grant ansiava por ignorar a pergunta. O olhar frio e perspicaz de Cannon o irritava. Pensou em evitar a pergunta com uma réplica insolente ou com um ma mentira, mas preferia deixar-se condenar antes que lhe temer à verdade fosse qual fosse. Carrancudo, voltou a sentar-se.
—Existem duas mulheres dentro da senhorita Duvall. - disse, com ar pétreo. - O que você quiser pode encontrar nesse caderno, mulher de experiência, dissipada, ambiciosa... Uma cadela perversa. E depois, está que reside atualmente em minha casa.
— E como é esta?
—Inteligente, doce, amável. A fantasia de quase todos os homens.
—E a sua? —murmurou Cannon.
Grant segurou os braços da cadeira como se estivesse algemado a ela.
—E a minha-admitiu ao fim, a contra gosto.
Cannon o olhou com certo grau de simpatia que era quase intolerável.
—Tome cuidado, Morgan. - foi tudo o que disse.
Passou pela cabeça de Grant a idéia de tranquilizá-lo com seu modo habitual, jocoso... Mas, por alguma razão, as palavras não sairam.
—Muito bem. - murmurou Cannon, despedindo-o. Grant partiu, com mal dissimulado alívio.
Capítulo 8
—Uma festa?
Vivien ficou olhando Grant como se estivesse louco. Estavam sentados na sala no andar de baixo; ali lhe tinha contado o plano que tinha urdido com sir Ross. Grant se dirigia a ela com simpatia, mas, para aflição da moça, não parecia lhe dar nenhuma alternativa de escolha.
—Está me pedindo que apareça em público? - seguiu dizendo Vivien, inquieta. - não só em público, mas também em uma grande festa formal, para que toda Londres saiba que estou viva. E, então, correrei um perigo pelo menos dez vezes maior que o atual.
—Estará sob meu amparo. - replicou Grant com calma, indo sentar-se junto a ela sobre o sofá estofado de damasco dourado. Tomou na sua a mão pequena, fechada em um punho, e a apertou com suavidade até que afrouxou. - Confid em mim. - lhe disse, sorrindo fracamente enquanto olhava seu rosto preocupado. - Não permitirei que ninguém a faça mal, nunca.
— Mas não conheço ninguém. - disse ela, agarrando-se a sua mão. - Não saberia o que fazer nem o que dizer.
— Não tem que fazer nem dizer nada. A única coisa que tem que fazer é aparecer.
— Não quero fazê-lo. - rogou ela, esfregando-à frente com a mão livre para aliviar uma palpitante dor de cabeça.
—Entendo. - respondeu com suavidade. - Mas é preciso fazê-lo, Vivien. Agora... Quero leva-la a sua casa para que pegue algo para vestir. Tem duas dúzias de vestidos de festa, pelo menos; para mim seria um trabalho desonesto escolher um. Você disse que queria visitar seu lar; este é o momento ideal para fazê-lo.
Vivien olhou carrancuda, com os dedos entrelaçados nos deles, aspirou uma grande baforada de ar tratando de aquietar seus nervos estremecidos. Todos a olhariam. Como faria ela para conversar banalidades, sorrir e dançar se não conhecia uma só pessoa de sua vida anterior? Não queria ter que mover-se entre desconhecidos que, sem dúvida, pensariam dela que era uma estranha, que era uma fraude ou algo igualmente desagradável. E o que mais temia, era converter-se em um branco tão evidente. E se o homem que a tinha atacado voltasse para acabar o que tinha começado? E se Morgan fosse ferido ou, inclusive, morto?
—Não tem sentido. - disse ela. - Por que tenho que ir a esse baile e me expor tanto? Acaso não pode fazer que a informação apareça de alguma outra maneira? Não tem idéia de quem quer me matar, verdade? Este é um intento desesperado para fazê-lo aparecer, porque você não pode acusar um suspeito.
—Quero apanhar a esse canalha. - disse Morgan. E este é o modo mais fácil de obtê-lo.
Obrigou-a a levantar do sofá, guiou-a até o vestíbulo de entrada e fez gestos à ama de chaves para que trouxesse seus casacos. Logo depois de colocar a capa sobre os ombros de Vivien, ele colocou em sua cabeça um chapéu de veludo. Pendurava a asa um véu de gaze lilás, ocultando o rosto atrás dessa clara nuvem.
Vivien lhe jogou, de abaixo do véu, um olhar em demonstrava seu aborrecimento.
—Este parece um chapéu de duelo. - disse ela. - Como se fosse a um funeral. Espero que não seja o meu.
Grant riu com suavidade.
—É o chapéu mais discreto que pude encontrar. E eu não deixarei que aconteça nada a você. O mundo se converteria em um lugar mais aborrecido, embora mais aprazível.
Uma vez que Morgan pôs seu casaco, um lacaio os acompanhou até a carruagem que os aguardava. Vivien tinha acreditado que iriam a um veículo alugado; surpreendeu-se ao descobrir que se tratava e uma elegante carroça particular, pintada com reluzente madeira negra, com detalhe dourado mate, enfeitado por dois zainos que formavam um par perfeito. Vivien não pôde evitar sentir-se impressionada pela elegância do veículo.
—Não imaginei que você possuísse uma carruagem como esta. - Comentou ela. - Eu acreditei que os policiais fossem andando a todas as partes.
Os olhos verdes de Grant demonstraram diversão.
—Podemos fazê-lo, se você o preferir.
Ela sorriu, respondendo a suave brincadeira.
—Não, obrigada. - disse, esforçando-se por parecer despreocupada. - Conformo-me com isto.
O lacaio a ajudou a subir a carroça e a agasalhou com uma grosa bata de viagem de casimira. Vivien agradeceu e se assentou no assento de suave couro, lançando uma exclamação agradável. Era agradável o roçar do ar fresco depois dos dias de enclausuramento. Morgan se sentou no espaço que havia junto a ela e tomou as rédeas com mão perita. Esperou a que o lacaio tivesse subido ao assento que havia na traseira do veículo, fez estalar as rédeas e estalou a língua para que os cavalos ficassem em marcha. Fizeram-no com um passo fácil, sincronizado, e a carruagem, dotada de bons moles, rodou sem inconvenientes sobre os paralelepípedos da rua.
Vivien, com a mente em branco, olhava o espetáculo que se estendia ante eles; sua vista esquadrinhava, trabalhando em excesso por encontrar qualquer mínimo detalhe que pudesse lhe resultar familiar. Cada rua tinha sua própria personalidade: uma povoada de impressores e escritores, outra, de açougueiros e padeiros, outra mais que exibia uma imponente fileira da Iglesias. Alguns aristocratas se cruzavam na trajetória lhe ziguezagueavam de prostitutas e mendigos. A riqueza e a pobreza se misturavam, apresentando agudo contraste. O ar estava carregado com os aromas de animais, de comida, o sal do rio, águas, pó... Logo, o nariz dela recebeu muitos estímulos e perdeu a capacidade de distinguir os aromas. Viram, ao passar, a um grupo de marotos que chateavam a um mequetrefe embainhado em cetim, a um bêbado libertino que saía dando tombos de um botequim com uma rameira de cada braço, camelôs com suas caixas de madeira penduradas do pescoço por meio de correias.
Em pouco tempo, a atenção de Vivien se concentrou em Morgan, que conduzia o carro com destreza em meio de outros carros e transeuntes que entupiam essa parte da rua. Sentia-se muito gosto na agitação da vida urbana; estava familiarizado com cada ruela e com cada esquina. Ela pensou que Morgan era um dos poucos homens de Londres que se mesclava com todos, da realeza até o pior dos ladrões.
Chegaram ante uma fila de casas elegantes e se detiveram junto a uma que tinha uma grande porta de bronze.
—Está é minha casa? —Perguntou Vivien, insegura, contemplando o grande portal de arco flanqueado por colunas.
Morgan lhe lançou um olhar inexpressivo.
—Sim é.
O lacaio se apressou a ocupar-se dos cavalos, enquanto Morgan ajudava Vivien a desembarcar do carro.
Baixou-a com suavidade, sustentando seu peso até que ela apoiou os pés. Ofereceu-lhe o braço e juntos foram até a porta que ele abriu com a chave.
Vivien entrou na casa em atitude cautelosa e permaneceu imóvel na entrada enquanto Morgan procedia a acender abajures e tochas de parede. A casa, com suas paredes decoradas com tecido francês floreado e seu delicado mobiliário uso Luis XIV, era bela, feminina, e tinha um entristecedor ar familiar. Tirou o chapéu e o deixou sobre o extremo da balaustrada da escada.
A luz alagou o vestíbulo. Com passo lento, Vivien passou de um espelho de pé com marco até uma mesa de madeira dourada com tampa de mármore. Tirou da mesa uma delicada peça de porcelana e a observou com atenção. Nela, um cavalheiro e uma dama conversavam, enquanto que ela se inclinava para recolher flores silvestres que colocava em um cesto sobre seu colo. A cena era de uma encantadora inocência. Mas quando Vivien deu volta a porcelana viu que a mão do cavalheiro estava por debaixo da saia da dama, até bem acima. A grosseira brincadeira a fez franzir o cenho e deixou a peça sobre a mesa, lançando um rápido olhar a Morgan. Ele a observava com uma estranha mescla de diversão e resignação.
— Não se lembra de nada ainda? - Perguntou ele.
Ela negou com a cabeça e foi para a escada. Morgan a seguiu de imediato, ajustando seu passo medido ao dela, que se dirigia ao andar de cima. O abajur que ele levava arrojava sombras disformes a seu passo. Vivien se deteve no último patamar, sem saber aonde ir.
—O dormitório está ali. - assinalou Morgan.
Levou-a pelo cotovelo com delicadeza e a conduziu até a última habitação, a direita. Entraram em um quarto revestido de seda verde escuro, onde uma cama de profuso esculpido se assentava sobre um soalho.
Vivien teve a impressão de que estava ante um pequeno cenário, onde tudo estava preparado para a representação. Incômoda, carrancuda, Vivien cravou um olhar na cama enquanto Morgan acendia mais abajures. Então, ela se voltou e viu a pintura.
Por um momento, quão único distinguiu foi uma surpreendente extensão de pele, uma engenhosa exibição de carne feminina.., então tomou consciência de quem era a pessoa retratada.
—Sou eu. - disse, em um suspiro estrangulado.
Sua cara se cobriu de um violento rubor. Voltou-se afogando uma exclamação, incapaz de seguir suportando-o.
—Deduzo que não se lembra de ter posado para o quadro.
Na voz de Morgan vibrava um leve tremor de suspense e ironia. Vivien, em troca, não podia compartilhar seu humor, nem sequer podia arriscar isso. Estava muito aflita pela vergonha; sua cólera só se dirigia para si mesmo. Até então, em uma pequena parte de sua mente, sempre tinha existido a convicção de que ela não tinha feito as coisas das que a acusava. Mas agora, a verdade estava aí, rodeada por um pesado marco dourado, aí estava seu passado, exposto e realçado em todos os detalhes.
—Como ou pude... Como pode alguém posar assim? —Perguntou, cobrindo o rosto com as mãos.
—É frequente que os artistas pintem modelos nuas. Você sabe.
— Não cabe dúvida de que o retrato não perseguia nenhum objetivo artístico. - disse ela, desdenhosa.
— Seu único propósito é... Excitar. - propôs, ele em tom suave.
Ela baixou as mãos e as apertou, mas ainda sem olhá-lo. Parecia-lhe impossível sentir tanta humilhação.
Sentia que lhe queimava o interior de suas veias.
—Baixa-o , cobre-o. - pediu, desesperada.
Já sem rastros de diversão em sua voz e até um pouco desconcertado, ele replicou: —Já o vi antes, Vivien.
Embora não tivesse sentido, ela não podia suportar que o retrato estivesse aí, diante deles: era como estar nua ante ele.
— Não me agrada. - disse com veemência. - Não posso permanecer neste quarto com isso pendurado aí.
Faça algo com ele, por favor. - Ficou rígida enquanto ele se aproximava dela por detrás e agarrava com suas mãos os ombros estreitos dela.
—Está tremendo. - murmurou surpreso—. Não há motivo para alterar-se.
—Não diria isso estivesse nu pendurado aí.
De súbito, ele soprou.
—Não acredito que exista um artista vivo que aceitasse pintar um nu meu, tesouro. Não sou um tema apropriado.
Vivien pensou para si que aquilo era discutível. Por isso tinha visto dele, Morgan era tão atraente como qualquer corpo masculino que já tivesse sido pintado, mas não tinha a menor intenção de dizer-lhe.
Com delicadeza, ele fez que ela o olhasse.
— Vamos, não é tão mau. - Faz uma inspiração profunda.
Obstinada, ela resistiu, mantendo a cabeça baixa e o olhar no chão.
—Não vou mover-me enquanto não tirar esse quadro.
Uma gargalhada breve e morna lhe roçou a orelha.
—Maldição; está bem. - disse ele. Soltou-a e se aproximou da pintura. Ela ouviu um ruído de algo que raspava um fraco rangido e logo a voz seca do Grant que interrompia o tenso silêncio. - Já pode abrir os olhos.
Ao voltar-se, Vivien viu que ele tinha baixado o quadro e havia virado contra a parede.
—Obrigada. - disse ela, exalando um suspiro. - Quero queimar esse objeto espantoso.
—Talvez mude de idéia depois que tiver recuperado a memória.
—Não me importa o que aconteça depois que recuperar a memória. - replicou ela com cuidado. - Já disse antes: Não quero continuar sendo uma cortesã.
Morgan lhe dirigiu um olhar de franco ceticismo, que a irritou além de toda razão.
—Veremos. - murmurou.
Outra pintura atraiu a vista dela: Era um pequeno óleo com um delicado marco dourado. Estava pendurado na parede, junto a penteadeira, como se alguém quisesse olhá-lo enquanto se aplicava perfumes e escovava o cabelo.
Aproximou-se mais e observou o quadro com crescente curiosidade. Não tinha relação alguma com o resto da casa. Sem dúvida, tinha sido pintado por um aficionado, com cores vivas e alegres. A cena representava uma pequena cabana de campo construída de madeira, de grafite e branco e rodeada de um tapete de urzes de cor lavanda; mais atrás se viam alguns chapeados. Umas roseiras carregadas de delicados pimpolhos brancos tampavam quase a fachada da cabana.
Vivien não podia tirar os olhos do quadro. Estava convencida de que ela tinha estado nesse lugar alguma vez, que era um lugar onde tinha sido feliz.
—Que estranho. - murmurou—. Penso... Penso que alguém me deu esta pintura, alguém que...
Interrompeu-se, confundida—. Oh, nos se separamos onde está esta cabana!
— Poderia estar em qualquer lugar da Inglaterra disse Grant em tom irônico.
Vivien tocou a assinatura que havia em uma esquina de tecido.
—Devane - leu em voz alta. - Soa-me muito familiar. Devane. ‘Será um amigo ou, possivelmente, até um...?
—Amante? —propôs Grant em voz baixa.
Ela retirou a mão e franziu o cenho.
—Talvez pudesse ser.
As lembranças empurravam um muro impenetrável de sua mente. Frustrada, Vivien se encaminhou para um maciço alto armário com grandes peças de espelho fixas nele e flanqueado por gabinetes com prateleiras para a roupa branca. Abriu uma porta e contemplou uma larga fileira de vestidos feitos em todas as cores imagináveis, de seda, veludo e cetim, com saias como asas de mariposas.
Muitos dos objetos se desprendiam um aroma de perfume, uma combinação de rosas e madeira que chegava a suas fossas nasais com doce intensidade.
—Ao parecer, tem todos os estilos. - comentou, sentindo sobre si o olhar de Morgan. - Tem tudo, do mais discreto até o mais impressionante. Que efeito quer provocar?
—Vivien Duvall em toda sua glória disse ele.
Ela o olhou por cima do ombro.
—O que eu usava quando nos conhecemos?
—Um vestido de sereia. De seda verde, com pequenas mangas de gaze.
Diligente, ela registrou a coleção de vestidos até encontrar o que coincidia com a descrição.
—Este? -Perguntou ela, levantando-o para que ele pudesse inspecionar.
O assentiu; seu semblante adquiriu uma expressão áspera. Vivien sustentou o vestido contra seu corpo e se olhou. Era um objeto muito bem feito, de um resplandecente verde, com pequenos volantes de cetim branco no decote, que lhe recordaram a espuma das ondas. Em efeito, parecia o traje de uma sereia. Era evidente que tinha um gosto excelente para a roupa... E como podia não o ter? A primeira preocupação de uma cortesã devia ser a arte de levá-la do melhor modo possível, destacando suas virtudes.
—Poderia usar este para a festa. - disse ela. - O que acha? Posso sair com ele?
—Não.
Pelo semblante de Grant passou uma sombra; contemplou o vestido com óbvio desagrado. Perdida em seus pensamentos, Vivien voltou a guardar o vestido no armário.
— Não foi bem naquele primeiro encontro, não é verdade? - Perguntou ela, repassando a fileira de vestidos. A voz dele soou crispada pela tensão.
—Lembra?
—Não... Mas pela expressão de seu rosto... Qualquer um adivinharia que não tem uma lembrança muito agradável.
—É verdade. - confirmou ele.
—Acaso eu te desagradei ou foi à inverso?
—Acredito que o desagrado foi mútuo.
—Então... Como é que... Quer dizer, por que quis chegar a um acordo comigo?
—Tem certa tendência a se atravessar na garganta de um homem.
—Como um espinho de peixe? - disse ela, irônica, e se se pôs a rir.
Extraiu um vestido branco, um de cor bronze e outro de cor lavanda e os levou até a cama em um colorido diverso. Começou a pregar com cuidado os delicados objetos, sob a observação de Morgan.
— Um destes servirá com perfeição. - Não provará nenhum? —Perguntou ele.
— Para que teria que me incomodar? São meus. Como poderiam não ir bem?
— Você emagreceu um pouco desde que caiu ao Tâmisa.
Ele se aproximou para provar a medida da cintura dela com suas grandes mãos, que quase abrangiam toda sua circunferência. Seu contato, a sensação de solidez as suas costas, sobressaltaram Vivien. Bastou à combinação da presença de Grant e de um leito coberto de objetos de seda para balançar seus nervos.
Recordou a maliciosa delicadeza de suas mãos quando exploravam seu corpo e sua boca, quando depositava quentes e deliciosos beijos sobre sua pele e tratou de conter um forte tremor. Sem dúvida, ele percebeu o involuntário tremor, porque suas mãos rodearam a cintura de Vivien e seus lábios se aproximaram da orelha até lhe fazer sentir a carícia de seu fôlego.
— Não é necessário que provar nada. - conseguiu dizer Vivien. - Além disso, não poderia me vestir com tantos botões.
—Eu poderia te ajudar.
—Não duvido. - respondeu ela com um sorriso que se tomou vacilante.
As sensações, ou a deliciosa promessa delas, corriam por seu corpo e se juntavam na parte baixa de seu ventre, lhe afrouxando os joelhos. Por um instante, surgiu em sua cabeça à idéia de reclinar-se, arquear o pescoço em convite, elevar as mãos dele até seus seios.
Mas, no preciso momento em que estava por fechar os olhos, captou a imagem do ostentoso leito refletido em um espelho... Desse quarto onde tinha recebido a tantos homens... De repente, a idéia a repugnou.
Certamente, Morgan teria certas fantasias íntimas e esperaria que ela as cumprisse. Mesmo que ela o desejasse com como faria para sustentar sua própria reputação? Não recordava nada a respeito de como se podia satisfazer a um homem. Não deveria recordá-lo, acaso?
Sem dúvida, recordava muitas das coisas que tinha lido nos livros... Por que não tinha retido um fragmento de seus vastos conhecimentos sobre as artes sexuais? Perplexa, separou-se dele.
—Grant. - disse, confunsa. - há algo que preciso saber. Quando você e eu fizemos... Quero dizer, quando nós... —Lançou para a cama um olhar desventurado e logo voltou a olhar os acordados olhos verdes. – Como foi a experiência? Quer dizer... Como eu fui? Fiz honra a minha reputação? Acaso eu...? Oh, já sabe o que quero dizer!
Com o rosto avermelhado manteve o olhar fixo na dele. Por estranho que parecesse, teve a impressão de que Morgan se sentia tão incômodo como ela ante suas perguntas.
—Não posso compara-la com nenhuma das outras mulheres com quem me deitei. - disse, evitando a pergunta.
—Sério? —Disse ela, animando-o a continuar.
Grant estava calado e tenso; sentia-se encurralado. Ainda zumbia em seus ouvidos a encantada descrição que tinha feito lorde Gerard das destrezas amorosas de Vivien. Ouviu-se repetir algumas das palavras de Gerard em um tom monocórdio, que não transparecia sua agitação.
—Não tem pudor na cama. Isso a converte em uma companheira ao menos interessante.
—Que estranho. - murmurou ela, com o rosto ainda avermelhado. - Porque sinto uma grande dose de pudor fora da cama. Olharam-se com idêntico desassossego, como se cada um estivesse protegendo segredos que não quisesse que o outro soubesse jamais.
Capítulo 9
Como veterano de inumeráveis bailes, Grant tinha chegado aconclusão de que todos eram iguais. Um desfile de roupa escura, formal, por parte dos cavalheiros, reveladores vestidos para as damas... Os convidados de mais idade jogando cartas na sala de jogos, enquanto que os mais jovens dançavam no salão e os casais de apaixonados ficavam na sala de estar. Um pianista, um violinista e um cellista tocavam música, as damas se sentavam em pequenas cadeiras ao redor do salão, aguardando que as convidasse a dançar, o murmúrio dos convidados nos salões de jantar, o copioso jantar. E o calor, as falações, o chatos sorrisos sociais, carentes de sinceridade, a mescla de pomadas feitas em apóie a açúcares e graxas, e exageradas quantidades de perfumes.
Uma verdadeira farsa, todas e cada uma dessas festas. Entretanto, essa noite seria diferente. Ele ia apresentar-se com uma mulher a quem boa parte dos habitantes de Londres supunha que estava morta. Ao dia seguinte, todos saberiam por todas as capas da sociedade a notícia de que Vivien Duvall estava viva, e de que tinha aparecido na festa dos Lichfield, ao braço de Grant Morgan. Não tinha dúvida de que, depois das revelações dessa noite, o homem que tinha tentado matá-la estaria impulsionado a agir novamente.
Grant bebia uma taça de conhaque enquanto aguardava no vestíbulo da entrada de sua casa. Sua carruagem negra e dourada, escoltado por cavaleiros acompanhantes e por lacaios, estava ante a porta principal. Já tinham passado dez minutos da hora em que tinha indicado a Vivien que estivesse lista, mas ele sabia, por experiência, que as mulheres sempre chegavam tarde a ocasiões semelhantes. Mary, uma das criadas, descendeu a escada a passo rápido, com seu rosto iluminado pelo entusiasmo.
—Já está quase pronta, senhor. A senhora Buttons está arrumando os últimos detalhes. - Grant fez uma breve sacudida de cabeça e, ao olhar a seu redor, comprovou que o vestíbulo de entrada estava começando a encher-se de lacaios, e mordomo, as criadas e até o Kellow, seu valete; todos eles dirigiam olhares de espectadores para a escada. Intrigava-lhe o prazer que eles manifestavam por compartilhar esses preparativos.
A presença de Vivien tinha enchido de vida a casa, tinha alterado de maneira sutil a rígida atmosfera masculina, até o ponto que já não parecia à residência de um solteiro.
Poderia ter sido a reunião usual de quão criados esperavam, ansiosos, a aparição da senhora da casa embelezada com seus melhores ornamentos, ritual que se repetia em muitas das residências elegantes de Londres... Mas que nunca tinha ocorrido na sua.
Grant olhou com aspereza ao grupo de criados, mas nenhum deles notou sua irritada desaprovação.
Vivien não era a senhora da casa; entretanto, nenhum deles se dava conta desta circunstância. Ela tinha enfeitiçado a todos, até ele mesmo, utilizando para isso o poder de seu encanto e sua doçura para enfeitiçá-los, desde a ama de chaves até a mais humilde empregada de cozinha. Ele os desprezava inclusive a si mesmo, porque tinham se deixado encantar por ela.
No momento em que Vivien apareceu e a criadagem deixou escapar um suspiro coletivo de admiração, desapareceram todos os pensamentos que habitavam a cabeça de Grant. Ela baixou a escada embainhada vestindo um resplandecente vestido de cor bronze que se apertava em torno de seus quadris e suas pernas como se fosse de metal líquido. Nenhuma outra cor teria conseguido ressaltar até esse ponto o luxo de seu cabelo nem os tons de pêssego e de nata de sua cútis.
O profundo decote empurrava e apertava para cima a redondeza de seus seios; a boca de Grant encheu de água, literalmente. Tragou com força e cravou a vista nela enquanto a taça de conhaque balançava entre seus dedos ameaçando cair. E nem sequer advertiu que Kellow a tirava com discrição de seus dedos inseguros.
As mangas curtas deixavam descobertas as curvas dos ombros de Vivien, enquanto que seus braços estavam ocultos em compridas luvas brancas. Um xale de seda francesa, de colot bionce bordado de ouro, pendia frouxamente de seus cotovelos. O único adorno de vestido era uma bandagem bordada em ouro e bronze, rodeada um pouco mais acima de sua breve cintura.
O olhar de Grant se encontrou com o de Vivien, e o sorriso que iluminava seus olhos azuis de espessas pestanas fez martelar o coração dele contra suas costelas, obrigando-o a executar um curioso batimento de coração de mais. Ela levava o cabelo sujeito em uma coroa régia de tranças e cachos, em um penteado que ele não tinha visto nunca, mas que, sem dúvida, seria copiado por todas as mulheres de Londres no dia seguinte.
Não levava jóias: até esse momento, ele não tinha pensado nisso. A antiga Vivien teria exigido alguma classe de adorno, sobre tudo para assistir a um baile no que todas as outras mulheres usariam as jóias mais ostentosas.
Mas, ao parecer, Vivien e as criadas tinham improvisado. Tinham-lhe posto uma parte de gaze de pura cor bronze no pescoço que servia para ocultar os restos de seus hematomas. Para sujeitar a gaze por diante tinham empregado um minúsculo alfinete de gravata de ouro em forma de coroa. O alfinete era inconfundível: Era um presente que o rei tinha obsequiado a todos os policiais que o tinham custodiado em ocasiões especiais. Era o único luxo pessoal que possuía Grant.
O distintivo policial em forma de coroa posto no bonito pescoço de Vivien desataria uma corrente de falatórios.
Todos os assistentes à festa tirariam a inevitável conclusão de que Vivien era a amante de Grant.
Lisonjeado e irritado ao mesmo tempo, Grant lançou a Kellow um olhar interrogativo. A larga frente calva de Kellow avermelhou.
—Bom... a senhora Buttons me perguntou se havia algum alfinete que pudessem usar. - disse, em tom de desculpa. - E foi o único pude encontrar senhor.
—Em adiante, não empreste meus objetos pessoais sem me pedir permissão. - murmurou Grant.
—Sim, senhor.
Vivien chegou junto a Grant e arqueou uma sobrancelha de cor canela a modo de silenciosa pergunta.
Grant a olhou sem sorrir.
—Não está mal. - disse, sem alterar-se.
Não tivesse podido dizer nada mais sem que lhe quebrasse a voz. Fez-se um momento de silêncio, e ele notou os olhares de recriminação dos serventes. De repente, todos a uma, romperam em efusivos elogios como se quisessem compensar a sobriedade de seu amo.
— Você esta tão encantadora como um quadro, senhorita! Nenhuma lhe fará sombra!
—Com esse vestido, parece uma rainha!
Uma espécie de calor percorreu o peito de Grant; ele teve vontades de esmurrá-los por ser tão exageradamente solícitos na expressão de seus sentimentos para uma rameira profissional. Mas não pôde...
Porque ele estava tão enfeitiçado como eles.
A desconexa conversa dentro do carro fechado terminou por silenciar e viajaram assim até a entrada da avenida que ingressava na propriedade londrina dos Lichfield. Era evidente que Vivien estava nervosa, e Grant sentia certa culpa por não aquietar seus temores. Ela estava por enfrentar uma multidão de desconhecidos. A isso se somava a pressão de saber que, depois dessa noite, ela enfrentaria outra vez quem tinha tentado matá-la. Grant admirava sua coragem, sua calma aparente, sua disposição a lhe confiar a ele sua segurança. Contudo, lhe negava a tranquilidade que ela necessitava. Sentia uma obstrução na garganta que lhe impedia de facilitar a situação a ela. Estava zangado com ela por ser tão bela, e porque tinha levado uma classe de vida que fazia que tudo isso fosse necessário. Queria castigá-la por ter sido tão pródiga com seus favores sexuais... Por não se guardar só para ele.
E embora esse pensamento o sacudisse, não pôde tirar da cabeça. Ele pretendia ter sobre Vivien direitos de exclusividade passados, pressente e futuros. E essa pretensão não era possível nem razoável.
Se sentiu um hipócrita por reprovar Vivien de seu passado. Devia recordar que ele tampouco tinha vivido como um monge. E Vivien não tinha o poder de modificar o que tinha feito no passado. Ela afirmava lamentar sua promiscuidade, e ele acreditava. Entretanto, não podia controlar seus ciúmes, ciúmes de uma prostituta... Oh, que malicioso prazer sentiria, tanto seus amigos como seus inimigos se soubessem. Ninguém; menos ainda Vivien, devia saber quanto lhe importava.
—Quantas pessoas acreditam que assistirão? —Perguntou Vivien, olhando pela janela para a casa.
A enorme mansão com gabinetes, desenhada em forma de E, com um pesado alpendre dianteiro e duas asas contidas dentro de uma cavidade de pedra de cor âmbar. As zonas que havia aos lados e ao fundo da imponente mansão estavam rodeadas de jardins cercados por altos muros, que rematavam em leões de pedra que pareciam observar tudo o que os rodeava com régio desdém.
—Umas trezentos, pelo menos. - respondeu Grant.
Um tremor visível percorreu os ombros nus de Vivien, que seguiu inclinada para a janela.
—Quantas pessoas me observando... Por sorte, não poderei dançar.
Tornou-se para trás, elevou a saia de seu vestido e deixou descoberto seu esbelto tornozelo coberto com uma meia de seda; contemplou-o com descuido.
Grant entreabriu os olhos, olhando o tornozelo exposto em elegante pose. Tinha tal desejo de tocá-lo, de deslizar sua mão para cima até o joelho, tocar o interior da coxa e mais à frente, que lhe ardiam os dedos.
Dentro do carro reinou uma tensa calma; Vivien o olhou aflita.
—Algo não está bem. - disse com franqueza— Você parece... Bom, parece distante. Será possível que esteja sofrendo um ataque de nervos, como eu? Ou há alguma outra coisa que o incomoda?
O que o incomodou foi, precisamente, que ela tivesse que perguntar a respeito de algo era evidente para qualquer mulher com experiência, por isso a segurou e a sacudiu.
—Adivinha. - disse, em tom áspero.
Vivien sacudiu a cabeça, perplexa.
—Se acaso houver disse ou fiz algo que o ofendesse... Oh - disse de repente, interrompendo-se, seus dedos se posaram no alfinete da gravata que levava no pescoço. - Trata-se disto, não é certo? —Perguntou pesarosa. - Eu sabia que não deveria havê-lo usado, mas não tínhamos nenhuma outra coisa e eu queria ocultar as marcas que tenho no pescoço. Disse à senhora Buttons a Kellow, mas eles disseram que você nunca... —Tentou tirar o alfinete de ouro. O sinto muito. Ajude-me a me tirar isso antes de entrar; perdoe-me por tomar emprestado...
—Basta. - Cortou ele. - Não se trata do maldito alfinete.
Como ela continuava tirando o alfinete, ele se inclinou para frente no estreito interior da carruagem e sujeitou as nervosas mãos da moça entre as suas. Ela ficou quieta, com o rosto perto do dele, o voluptuoso desdobramento dos seios sob seu nariz e seu queixo. Sem muito esforço, ele poderia tirar a mão e deixar livres essas deliciosas curvas, as acariciar e as beijar, fechar a boca sobre os suaves mamilos rosados e passar a língua sobre eles.
Apertou os dedos de Vivien até lhe fazer doer, mas mesmo assim, ela não tentou retirar as mãos. Grant soube que seu fôlego estava traindo-o: começava a respirar como um corredor que queria manter-se ao mesmo tempo do carro de seu amo. Com cada profunda inalação, percebia uma doce e pura fragrância que o penetrava e lhe alagava a cabeça como se fora uma droga.
—Que aroma é esse? —Murmurei.
Vivien respondeu em voz rouca: —A senhora Buttons destilou um pouco de infusão de baunilha para mim. Gosta?
—Trouxemos um perfume de sua casa. Por que não usou?
O olhar da mulher se posou na boca dele e logo voltou para seus olhos.
—Não combinava comigo. - sussurrou ela. - Era muito forte.
Grant aspirou outra baforada dessa delicada fragrância de baunilha.
—Cheira como uma bolacha doce comentou resmungão.
Uma bolacha que ele tinha muitíssimas vontades de morder. Seu perfume era inocente, doméstico, apetitoso, o fazia bulir o sangue e endurecer os músculos de intenso desejo. Devido ao forte aperto, nas mãos de Vivien seu corpo relaxou e se submeteu à proximidade do outro. Seus fôlegos se mesclaram; Grant viu que um suave rubor aparecia no rosto dela. Por sua mente se deslizaram certos pensamentos... Pensou em indicar ao chofer que seguisse adiante; enquanto o carro rodava e se balançava pelas ruas de Londres, faria amor com Vivien aí mesmo, sentando-a sobre seu colo e acomodando seu corpo ao dela, fazendo-a retorcer-se de prazer.
O lacaio bateu na porta do carro e a abriu sem mais cerimônias. Grant soltou Vivien com uma brutalidade que a fez ofegar. Perturbada e encantadora, ela se ocupou de recolher um casaco de seda marrom e de colocar-lhe sobre os ombros. O ar noturno se infiltrou no carro e sua bem-vinda frescura contribuiu a devolver o cérebro de Grant o seu bom funcionamento. Ele esfregou com força os olhos como se despertasse de um profundo sonho e desembarcou do carro. O lacaio dispôs uma escada de estorva junto à porta da carruagem e ajudou Vivien quando esta desceu do veículo.
Quase imediatamente, Vivien atraiu a atenção dos cavalheiros e as damas que se dirigiam para a entrada da mansão. Seu cabelo vermelho apanhava cada raio de luz procedente dos abajures dos carros e resplandecia com vida própria. Ela aceitou o braço de Grant com uma atitude enganosamente suave, mas ele sentiu que os dedos dela se cravavam na manga de sua jaqueta.
—Meu Deus. - murmurou alguém muito perto. - É possível que seja verdade?
—Olhe...! —exclamou outra pessoa.
—Mas eu tinha ouvido dizer que...
—Não a tinha visto...
Murmúrios os seguiram durante a breve caminhada do carro até a casa. O rosto de Vivien estava vazio de expressão, e seu olhar disparava de um lado a outro. Uniram-se à corrente de convidados que entravam na casa, enquanto os anfitriões davam a bem-vinda a cada grupo. O enorme interior da casa dos Lichfield estava decorado ao estilo italiano, com suntuosos painéis de carvalho e céus rasos e paredes profusamente talheres dourados. Quando chegaram ao grande salão, com suas paredes adornadas com pilastras e sua chaminé de pedra, Vivien tirou da manga de Grant. Ele inclinou a cabeça para ouvir seu sussurro.
—Quanto tempo devemos ficar?
A Pergunta lhe fez sorrir a contra gosto.
—Nem sequer conhecemos lady Lichfteld, e você já quer partir?
—Eu não gosto do modo como me olham... Como se eu fosse um macaco de feira.
A avaliação dela era correta. Em efeito, a olhavam abertamente, assombrados ao comprovar que os rumores com respeito à morte de Vivien tinham sido mentiras... E em uma ocasião e um lugar como esses!
Sua aparição na festa de lady Lichñeld, acontecimento que ela jamais teria sido convidada em circunstâncias ordenadas, produzia indignação nas damas e um profundo desassossego nos cavalheiros. Muitos dos elegantes senhores pressente essa noite tinham gozado no passado dos favores de Vivien e não tinham o menor desejo de encontrar-se frente a ela tendo a seu lado a suas perspicazes esposas.
Grant tocou a mão pequena que se agarrava a seu braço e passou seus dedos sobre os dela em uma carícia fugaz e tranquilizadora.
—É obvio que estão olhando. - murmurou ele. -. Estiveram correndo por toda Londres rumores sobre seu desaparecimento. Surpreende-os ver que continua viva.
—Como já me viram, quero voltar para casa.
—Mais tarde.
Grant conteve um tenso suspiro, sem fazer caso de seu próprio desejo de retornar com ela imediatamente a sua casa, em lugar de fazê-la vítima da crítica generalizada da sociedade. Aquilo prometia ser uma longa noite.
—Enquanto isso trati de demonstrar certa firmeza moral. A antiga Vivien teria desfrutado tanta atenção.
Teria agradecido qualquer oportunidade de se mostrar.
—Se não tivesse firmeza moral, não estaria aqui. - replicou ela, baixo.
Chegaram até lady Lichfield, uma mulher roliça de uns quarenta anos que em outra época tinha sido a beldade de Londres. E embora os anos de vida desenfreada tivessem deixado rastro em seu rosto deslumbrante, ainda era uma mulher notavelmente atraente. Seus olhos azuis de espessas pestanas seguiam brilhando sobre suas terminantes bochechas, e seu reluzente cabelo negro estava recolhido em uma espiral sobre sua cabeça, destacando seu perfil clássico. Era uma rainha nos círculos da elite londrina, viúva que levava uma vida aparentemente circunspeta... Embora dissessem que recebia com frequência a amantes jovens que recompensava com generosidade por seus serviços. Por certo, tinha flertado com Grant a última vez que se encontraram em uma soirée, no começo da temporada; ela tinha insinuado sem rodeios que lhe agradaria “aprofundar o conhecimento mútuo”.
Assim que o viu, lady Lichfield lhe estendeu as mãos.
—Como pode ser que esta seja apenas a segunda vez que nos encontramos? - Perguntou. - Sinto sua presença como se fôssemos velhos amigos, senhor Morgan.
—Digamos, “queridos amigos” - sugeriu Grant, deixando o beijo de rigor sobre o dorso de sua mão enluvada. - A palavra “velho” jamais deve estar junto de seu nome, minha senhora.
Ela deu uma risada e pareceu muito satisfeita de si mesma.
—Não acredito ser o primeiro nem o último para cair presa de suas adulações; você é um descarado encantador.
Sorriu e reteve as mãos dela um pouco mais do estritamente correto.
—Eu tampouco serei o último em cair sob o encanto de uma feiticeira com os olhos mais azuis da Inglaterra.
Foi evidente que o elogio a satisfez, embora houvesse em sua risada certo matiz de ironia.
—Basta, senhor Morgan, se não queira que derreta a seus pés. - disse, voltando-se para Vivien e submetendo-a a um escrutínio da cabeça aos pés. A calidez de seu sorriso baixou vários graus. - Bem-vinda, senhorita Duvall. Vejo que goza você de boa saúde, contradizendo os assombrosos rumores que estiveram circulando durante em mês passado.
—Obrigado, milady - disse Vivien, fazendo uma reverência e observando-a com um sorriso inseguro.
Desculpe-me, por favor, mas... Conhecemo-nos antes?
Todo indício de bom humor desapareceu da expressão de lady Lichfield.
—Não. - respondeu em voz baixa. - Entretanto, acredito que em uma ocasião você conheceu muito bem a meu defunto marido.
Não havia modo de confundir o significado de suas palavras. Vivien não pôde responder, vendo-se ante outro testemunho mais de seu escandaloso passado. Sentiu-se aliviada quando Grant a afastou dali, deixando que lady Lichfield seguisse recebendo a outros convidados.
—Não gosta de mim. - disse Vivien em tom seco, detendo-se para que Grant pudesse lhe tirar a capa e entregá-la a um criado que aguardava.
—Poucas mulheres gostam.
—Obrigada por reforçar tanto minha confiança. A multidão de cumprimentos que derramou sobre mim me fazem sentir muito melhor.
Entraram no salão exageradamente reaquecido; assim que apareceram, o murmúrio das conversações se intensificou.
— Acredito que metade deles não me fariam mal - disse Vivien, encolhendo-se ao ver que centenas de olhares a disparavam flechas. - Embora agora me faça sentir tola e vaidosa por estar entrel eles.
Grant, com a aparência de sentir-se cômodo a pesar do público, saudou com um movimento de cabeça respondendo à saudação de um conhecido, levou Vivien para um espaço desocupado que havia a no salão.
Contemplou-a com seus ardentes olhos verdes.
—É bela. – disse. - A mulher mais bela e desejável que conheci. Jamais desejei ninguém como desejo você.
E tenho medo de olhar para você por muito tempo, pois, se o faço, posso acabar fazendo-a minha no meio do salão.
—Oh.
Confusa, Vivien brincou com a borda da bandagem. Não podia dizer que Grant fosse Byron. Mas essas bruscas afirmações tinham provocado pequenos nós de excitação e prazer que crispavam em seu estômago.
Devolveu-lhe o olhar diretamente.
—Por que flertou com lady Lichfieid? – Perguntou - Foram amantes em outro tempo?
—Não. Ela se diverte em brincar com homens mais jovens; é bastante fácil agradá-la. Ela já deu provas de que é um ótimo contato. Além disso, ela me agrada.
Vivien ficou carrancuda e sentiu um pouco de ciúmes.
—Você não teria uma aventura com uma mulher de sua idade, não é?
—Não pode dizer que seja uma relíquia. -disse ele. De repente, passou por seus lábios um sorriso. - É
uma mulher atraente em seus quarenta.
—Mas é uns dez anos mais velha que você. Possivelmente, até quinze.
As sobrancelhas escuras de Grant se elevaram.
—E não acha comum que as mulheres dessa idade tenham aventuras com homens mais jovens?
Vivien fez um esforço para aliviar a desagradável tensão que sentia na garganta.
—Eu não estou em posição de criticar a ninguém.
—Os franceses têm uma atitude mais solta que a nossas com respeito destas questões. Eles consideram que os encantos de uma mulher aumentam com a maturidade e a experiência, e se uma mulher como ela concede seus favores a um homem jovem, pensa-se que este é bastante afortunado.
—Nesse caso, por favor, não permita que o atrapalhe. - disse Vivien zangada. - Por que não vai para junto dela?
—Não penso ter uma aventura com lady Lichfield. - murmurou ele, e na profundidade de seus olhos verdes apareceu um brilho divertido.
—Por que sorri desse modo?
Ela se sentia amargurada e incômoda, como se tivesse comportado de maneira tola.
—Porque está com ciúmes.
—Não, não estou. - replicou Vivien, cada vez mais sobressaltada. - Na verdade, estou... —interrompeu-se ao ver que uma figura escura se aproximava deles. - Quem é esse? - Perguntou receosa.
Grant olhou por cima do ombro e logo girou para encarar o recém-chegado. Não houve nenhuma mudança em sua expressão, mas, mesmo assim, Vivien percebeu que este era um homem a quem Grant apreciava e respeitava muito... Uma das poucas pessoas sobre a terra cuja opinião favorável lhe importava.
—Sir Ross. - disse ele, ao adiantar-se para Vivien. - Permita-me lhe apresentar à senhorita Duvall.
Sir Ross Cannon, o magistrado da Rua Bow. Vivien o saudou com uma reverencia e cravou nele um atento olhar: aparentava ser um personagem extraordinário mesmo que não soubesse definir por que. Sir Ross era um homem alto, embora não chegasse a imponente altura de Grant. Tinha uma característica que trasluzia certas coisas, uma sensação de grande poder mantido sob controle. Seu cabelo era negro, sua textura talvez um pouco magra e tinha uns estranhos e luminosos olhos cinza que davam a impressão de ter visto muitos assuntos alheios. O mais impressionante de sua aparência era sua atitude remota, como se ele não formasse parte da reunião mesmo que estivesse misturado com outros. Por outra parte, parecia muito a vontade em seu isolamento. Pela mente de Vivien cruzou um pensamento que a mortificou... Grant apresentava seus informe a esse homem, consultava-o. Sem dúvida, ele devia saber tudo a respeito dela, até as coisas que ela tinha escrito na malfadada caderneta. Movida pelo instinto, aproximou-se mais a Grant. O olhar observador do Cannon não se separou dela.
—Senhorita Duvall... é um grande prazer conhecê-la.
—Acaso nos havemos...? —começou dizer Vivien, mas mordeu a língua.
Compreendeu que não podia perguntar a cada um dos pressente se tinham se conhecido antes.Cannon entendeu a pergunta inconclusa, e respondeu com gentileza: —Infelizmente, não.
Ela observou o semblante do homem procurando sinais de censura ou sarcasmo, mas não as achou. Os frios olhos cinza tinham uma expressão impassível que resultava reconfortante. Cannon e Grant trocaram um olhar que equivalia a toda uma conversa. Cannon dirigiu outra saudação com a cabeça a Vivien e os deixou, depois de um murmúrio cortês. Grant tomou o cotovelo do Vivien.
—Vêem, senhorita Duvall. – disse. - Parece-me que já é hora de que conversarmos com os outros convidados.
— Ah, sim? —Perguntou ela, acompanhando-o. Atemorizava-a a perspectiva de topar com alguém sem ter modo de saber se a pessoa que tinha diante era amigo ou inimigo. - Em troca, pensava que já era hora de beber uma taça de vinho. Ou dois.
—Mais tarde, poderá beber todo o vinho que deseje. - Pegou sua mão a apressou o passo. Para dissimular sua inquietação, Vivien deu a seu semblante uma expressão serena e composta. Entre muitos olhares especulativos se aproximaram de um grupo que estava constituído por duas damas e três cavalheiros; fizeram-se as apresentações. Lorde e lady Wenman, lorde Fuller e a senhora Marshall: todos eles observaram Vivien em atitude pomposa e especulativa. Por fortuna, ela não tinha muita obrigação de falar. Vivien lançava frequentes olhares a Grant, que conversava com os outros. Embora a expressão dele fosse aprazível, seus olhos estavam atentos e ela percebia que ele não deixava de medir às pessoas, de provar, de esperar.
Vivien posou seu olhar em lorde Wenman, quem dava a impressão de estar tranquilo, salvo pela agitação que manifestava o matraqueio de seus pés no chão. Devolveu-lhe o olhar e seus pálidos olhos azuis se carregaram de uma insolência que a deixou perplexa. Wenman... Ela não reconhecia seu rosto, mas seu sobrenome lhe resultava extranhamente familiar. Onde o teria visto ou ouvido antes?
Grant conduziu Vivien até outro grupo e a apresentou, muito especialmente, visconde Hatton. O
visconde era um ancião cavalheiro de cabelo cinza amarelado e pele que parecia papel enrugado. Suas maneiras eram corteses, mas olhava a jovem com uma mescla de acusação e receio que era impossível confundir. Vivien não demorou muito em recordar que ele e Wenman eram dois dos sobrenomes mencionados em seu jornal.
Ela tinha tido aventuras com eles. O desconforto a envolveu como uma brisa geada. Já era bastante ruim ter lido os detalhes de suas aventuras nessa maldita caderneta, mas era muito pior ver-se obrigada a encontrar-se cara a cara com os homens com quem se deitou. Quantos outros seus amantes do passado estariam ali, essa noite? Voltou-se para o Grant com uma acusação na ponta da língua.
Mas, antes que pudesse pronunciar uma palavra, foi abordada por um homem cujos olhos eram como pequenas brasas, muito fundos em seu rosto corado. A diferença de outros, ele não fingiu ser um desconhecido. Aproximou-se dela imediatamente e tomou as mãos em atitude possessiva, sem precaver-se de que Grant, que estava junto a ela, ficava rígido.
—Por Deus, Vivien. - disse o homem, em voz estrangulada. - Pensei que estava morta. Como é possível que tenha desaparecido assim? Acaso não se importa o que me tem feito passar? Não tinha modo de me comunicar com você, nem de me assegurar de que estivesse bem. - disse, e seu fôlego alcoólico flutuou pesadamente até o rosto dela. Embora, conhecendo como eu a conheço, não deveria ter desperdiçado um instante me preocupando com você. - fez uma pausa, lançou um olhar malévolo e logo voltou sua atenção a Vivien. - Sempre cai em pé, como os gatos, não é assim?
Vivien não resistiu e deixou suas mãos nas dele. Incômoda, percebia que a atenção de todos os presentes no salão se concentrava neles.
—Boa noite, Gerard - disse em voz suave.
Claro: lorde Gerard, seu anterior protetor. Vivien forçou um sorriso, embora lhe tremesse os lábios. Ira, rebelião, vergonha, todo isso correu por suas veias em uma marejada quente. Sentiu-se como se a tivessem posto em exibição para diversão dos esnobes da alta sociedade... Não cabia dúvida disso. Gerard, muito ébrio para notar que estava chamando a atenção geral, apertou com mais força as mãos enluvadas do Vivien.
Inclinou-se, e lhe murmurei no ouvido, com voz opaca: —Me prometa que mais tarde escapará para se encontrar comigo. Tenho que falar com você.
—Prometo-o - murmurou ela, lutando com suas mãos até as liberar.
Gerard se afastou com passo vacilante, e Vivien entrou em direção oposta, sem saber bem aonde iria.
Grant a seguiu, tão pouco satisfeito como ela com a situação. Ao sair do salão, Vivien entrou em uma larga galeria de quadros em que havia numerosos bancos estofados. Deteve-se ante o retrato de um antecessor dos Lichfield, de rosto altivo e permaneceu com os braços cruzados sobre o peito.
Sem dar volta, Vivien sentiu que Grant estava perto. A cólera lhe endurecia a mandíbula, embora procurasse manter um tom suave, pois havia outro casal contemplando as obras de arte no extremo oposto da galeria.
—Como diabos conseguiu? Cruzei com três antigos amantes em menos de dez minutos. Fez questão que fossem incluídos na lista de convidados todos os que aparecem em meu diário.
—Lady Lichfield foi persuadida de que ampliasse sua lista de convidados.
—Que solícita. - respondeu Vivien com amargura.
—Que diabos você acredita que viria Vivien? Você sabia que estávamos aproveitando esta ocasião para que você aparecesse em público.
—Mas você tem feito mais que isso. Convidou a todos e cada um dos que poderiam me desejar algum dano! Mostra diante deles como se eu fosse uma um sacrifício vivo esperando a morte!
—Há meia dúzia de policiais e oficiais aqui, esta noite, para não mencionar a mim mesmo e a Sr Ross.
Nenhum de nós a perdeu de vista. Não corre perigo.
Essas palavras sortiram o mesmo efeito que se tivesse engolido um conhaque com fogo. Ela estalou de fúria, e seus lábios retraídos deixaram descoberto seus dentes.
—Poderia haver me dito o que tinham planejado! Mas não fez, porque não queria que eu estivesse preparada, queria que fosse humilhada e envergonhada quando me encontrasse com todos os homens com quem me deitei!
—Pensa que isto é um castigo deliberado que preparei para você? - Disse ele em tom desdenhoso. - Pensa-o bem, Vivien. A Rua Bow tem coisas melhores para fazer do que dedicar-se às vinganças pessoais. Meu trabalho consiste em apanhar ao homem que tentou matá-la, e este é o melhor modo de fazê-lo. Se a evidência de seu passado a incomoda, não é culpa nossa.
—Era um arrogante manipulador!
Enquanto tratava de pensar na palavra mais dura possível, levantou a mão para esbofeteá-lo.
—Ande, faça-o. - disse Grant em voz baixa. - se isso fizer que se sinta melhor...
Vivien ficou olhando-o, tão arrumado com seu traje negro de noite, tão forte e invulnerável que uma bofetada não faria outra coisa que diverti-lo. Fechou a mão formando um punho e o apertei contra a cintura; tratou de controlar, assim, suas tumultuosas emoções.
—Com muita dificuldade pode suportar a idéia de fazer mal a alguém, não? —murmurou ele. Embora o mereça. Mas isso não é próprio de você. Você estava acostumada a romper o coração de um homem e esmagá-lo sob seu pé, sem mais escrúpulos que os que teriam por uma mosca. Que diabos aconteceu?
Ela nunca havia se sentido, realmente, uma prostituta até esse momento. De repente, pela primeira vez desejou poder converter-se na outra Vivien, na mulher desavergonhada e indiferente que fazia exatamente o que lhe desejava. Possivelmente, assim, a dor da traição se esfumaria. Até esse instante, tinha considerado Morgan como seu protetor e seu amigo. Apaixonou-se por ele, embora não esperava que resultasse nada desse amor. Mas ele não era seu amigo: era um adversário, do mesmo modo que o resto das pessoas que estavam ali essa noite. Sentia-se muito sozinha, como se ela fosse uma mulher a que estavam por lapidar.
Bom... Ao inferno com todos eles, que olhassem tudo o que quisessem.
Levantou a cabeça e olhou com firmeza; a cor se desvaneceu de seu rosto, com exceção de dois arcos de intenso rubor em suas bochechas.
—Está bem. - disse, em voz baixa. -Esta noite darei a cada um o que quiserem, inclusive você.
—Que demônios significa isso?
—Só significa que quero facilitar seu trabalho.
Endireitou os ombros e saiu da galeria com passo decidido, entrando de novo no salão como um gladiador. Grant a seguiu, mais lento, sua vista cravada no corpo pequeno e esbelto. Já não ficavam nela nem rastros de vergonha ou de acanhamento. Deslocava-se entre os convidados com as costas retas e a cabeça em pose altiva. Teve a impressão de que a antiga Vivien havia retornado, tão atraente como sempre.
Vivien começou a atrair aos homens como moscas por um pote de mel, flertando e brincando abertamente. Não tinha passou muito tempo até ter cinco a seu redor. Três deles eram antigos amantes e, de acordo com todas as aparências, todos estavam dispostos a reatar seus anteriores acertos com ela. Com uma taça de vinho entre seus delicados dedos, Vivien a apurou com muita rapidez, e aceitou outra.
Grant se adiantou, sentindo-se como quem morre de fome e é obrigado a observar como outros se abarrotam com sua comida. Nesse momento, sentiu a pressão de Sr Ross no ombro, que o conteve.
—Deixe-a fazer. - disse Cannon, em frio murmúrio. - Ela está o que é necessário. É uma mulher inteligente, sua amiga.
Vivien não está fazendo outra coisa além de voltar a ser o que era. - Disse Grant, com amargura. - Não ficará tranquila até que não haja um só homem no salão que não a deseje.
—Vamos. - repreendeu Cannon, em tom seco. - Concentre-se melhor, Morgan, e me diga o que vê.
—Uma cortesã divertindo-se muito. - Grant bebeu um grande gole de conhaque.
—Pois, sim? Eu vejo uma mulher com a frente coberta de suor, que apura uma taça de vinho como se quisesse estrangulá-la. Vejo muita tensão em uma mulher que desempenha um penoso dever, disfarçando a confusão que isso lhe causa.
Grant soprou com desdém.
—Ela é incapaz de sentir confusão.
Cannon o olhou com expressão especulativa.
—Se você diz... Mas, neste momento, eu não tenho muita confiança em sua objetividade.
Grant esperou a que o magistrado se afastasse e logo replicou, pelo baixo: —Eu tampouco.
Continuou observando Vivien, sentindo que o ciúme e a cólera fermentavam dentro dele. Assim acontecia com qualquer um que fosse louco o bataante para se apaixonar por Vivien. Ela foi flertar e conversar com seus anteriores amantes; recordar os repugnantes detalhe que ela tinha feito com todos e cada um deles. Quis esmagar, dar de murros, atravessarem, estrangular a alguém... Fazer algo que represasse a essa violência crescente. Ignorava que era capaz de uma raiva tão irracional; a consciência disso o afligiu.
Até esse momento, Vivien ignorava que fosse possível oferecer uma aparência de prazer e alegria enquanto em realidade se sentia triste e desventurada. Constituía uma tortura de a pior classe estar aí, fingindo interesse sexual por todos os homens que a rodeavam quando tudo o que queria era estar sozinha.
Embora não olhasse diretamente para Grant, viu-o com a extremidade do olho: um turvo gigante que parecia haver engolido um enxame de vespas. Não pôde ao menos que lhe atribuir à origem de seus problemas... Embora isso não fosse de tudo justo. Se ela não tivesse levado a classe de vida que tinha levado, não teria necessitado do amparo dele. Ela tinha a culpa da situação. Mas ele, com sua maldita arrogância, não tinha por que tratá-la com semelhante ambivalência: em um momento, era bondoso e carinhoso e, ao seguinte, era sarcástico com ares de superioridade. Seria mais fácil para ambos se decidisse odiá-la ou querê-la, em lugar de atormentá-la com suas caprichosas mudanças de humor.
Lorde Gerard atraiu seu olhar de longe. Ele estava perto das portas que davam ao jardim. Inclinou a cabeça a modo de interrogação e indicou a porta com um gesto.
Vivien compreendeu que ele queria encontrar-se com ela lá fora; piscou os olhos, um olho a modo de aceitação, embora seu coração estremecesse de temor ante semelhante perspectiva. Não lhe cabia dúvida de que ele tentaria seduzi-la... Ou, talvez, estrangulá-la. Por ter sido seu protetor, com fama de ciumento por natureza, bem poderia ter sido quem a jogou no Tâmisa. Ela tinha medo de estar a sós com ele. Mas Grant lhe havia dito que estaria a salvo, e acreditava nele.
Compreendeu que precisava separar-se da multidão que se agrupou em torno dela; procurou ver Grant.
Durante um instante, apanhou seu olhar em um homem alto, de certa idade, com juba cinza acerada e rosto comprido e anguloso, que a olhava fixamente. Não era um homem bonito, mas tinha uma aparência inegavelmente distinta. O que atraiu sua atenção foi o ódio que expressavam seus olhos.
Desassossegada, afastou sua vista dele e continuou procurando Grant. Descobriu sua alta e conhecida figura em meio da concorrência e lhe dirigiu um olhar significativo. O sutil sinal foi tudo o que Grant necessitou. Ele esteve a seu lado em um instante, abrindo-se passo entre o rebanho de encantados admiradores. Sem fazer caso dos protestos do grupo, tirou-a com puxões dali.
—Que aconteceu? —Murmurou ele, inclinando a cabeça para ouvi-la.
—Dance comigo.
O pedido o fez franzir o cenho.
—No sei dançar bem.
—Lorde Gerard me disse que quer encontrar-se comigo no jardim. Eu esperava que você me levasse dançando até as portas que estão no outro lado do salão e me ajudasse a escapar discretamente para fora.
Grant vacilou e lançou um olhar para as portas que davam ao exterior. Era muito provável que do encontro entre Gerard e Vivien extraísse valiosa informação. O fato de que Vivien estivesse disposta a enfrentar-se com um ex-amante que podia ser quem tinha tentado matá-la, e de fazê-lo sem o auxílio de sua memória, era uma prova de valentia. Apesar de tudo, ele não queria que ela o fizesse. Estava com ciúmes e preocupado pela segurança dela; nesse momento não havia nada no mundo que quisesse mais que estar a sós com ela.
—E o tornozelo? —perguntou.
—Posso lhe dar cm ele - respondeu isso ela, imediatamente—. Só sinto um pequeno incomodo de vez em quando.
—Quando sair deve ficar à vista da casa-disse ele em voz baixa—. Não te arriscará a passar das portas que dão aos prados mais abaixo. De acordo?
—Sim, certamente.
A contra gosto, quando começou a valsa, ele a conduziu para o redemoinho de bailarinos. Face à tensão que tinha passado entre ambos, ou possivelmente por causa dela, Vivien caiu na tentação. A afirmação de Grant não tinha sido falsa modéstia: por certo, não era um bom bailarino. Era correto, mas carecia de elegância e a dirigia como se ela fosse uma boneca de trapo.
Corajosos, seguiram adiante fazendo progressos firmes embora lentos para o outro lado do salão. Grant contemplava os brilhantes cachos cor de fogo, reunidos no auto da cabeça de Vivien, enquanto riscava mecanicamente os passados da valsa. Estava aterrorizado ante a possibilidade de pisá-la. Um pisão dele e a deixaria aleijada para o resto de sua vida. Vivien estava silenciosa, parecia tão incômoda como ele, até que ouviu um som afogado que parecia um soluço. Grant interrompeu o ritmo o tempo suficiente para empurrar com seus dedos o queixo dela e lhe fazer levantar o rosto. Os lábios da moça tremiam e em seus intensos olhos azuis brilhavam divertidos.
—Isto é espantoso. - ofeguou Vivien, e mordeu o lábio para conter uma gargalhada.
Grant se sentiu aliviado e ofendido ao mesmo tempo.
—Eu avisei - resmungou.
—A culpa não é sua. Sério. Faria-o muito melhor com uma companheira mais alta. Nós não somos compatíveis. - disse ela movendo a cabeça; em seu tom vibrou uma suave nostalgia. - Fazemos um mau casal.
—Sim.
Mas Grant não estava de acordo ou não se importava. Adorava as pernas curtas dela, sua alta cintura, suas mãos pequenas... Amava senti-la em seus braços... Amava cada um dos detalhes dela, os perfeitos e os imperfeitos. Essa certeza se fortaleceu dentro dele com espantosa velocidade. Por que... De todas as mulheres que tinha conhecido... Por que tinha que ser ela?
A música subiu em uma nota e todo salão de baile ia convertendo-se em um redemoinho de cor e de luz, Grant empurrou Vivien para a porta que dava ao exterior.
—Vá. – murmurei. - Gerard está esperando.
E a escondeu com suas costas enquanto ela se deslizava para fora para encontrar-se com seu ex-amante.
Capítulo 10
Um grande lance de degraus em suave ângulo levava a para baixo, no jardim, de aspecto aveludado, bordado de ligustrinas pulcramente podadas. Era um jardim de estilo antigo, muito cuidado, com quadros de flores de formas geométricas. Um biombo de ferro forjado dava acesso aos prados mais baixos, e seus altos pilares de pedra estavam coroados por urnas de bronze.
Vivien não viu sinais de lorde Gerard e desceu As escadas. Grant lhe tinha advertido que não descesse aos prados, mas ela viu que não tinha outra alternativa. Conteve um tenso suspiro desceu. As folhas rangiam e ouviu o cochoar de um sapo na noite.
—Vivien. - ouviu ela o murmúrio surdo de lorde Gerard. - Por aqui.
Uma mão se insinuou entre as aberturas da grade e o dedo do homem lhe indicou que se aproximasse.
Seria nos jardins inferiores, pois. Vivien transpôs a grade, tremendo na fresca penumbra, e enfrentou Gerard.
À luz azulada da lua, seu rosto estava tão pálido como um prato de leite. Era um homem de altura e corpulência médias, que começava a mostrar uma iminente calvície no alto da cabeça. Vivien o observou pensando que, se na verdade tivessem sido amantes, ela recordaria algo, algo a respeito dele. Entretanto, nem seu rosto nem o som de sua voz convocaram fantasma algum do vazio que era sua memória. Ele fez um gesto para abraçá-la e ela, imediatamente, retrocedeu. Gerard lançou uma gargalhada fica e meneou a cabeça, admirado: —Vivien - murmurou. - Está tão esplêndida como sempre. Deus é testemunha de que meus olhos sentiram falta de ve-la.
—Não ficarei muito tempo. - respondeu ela, obrigando-se a fazer uma careta. Como estive tanto tempo fora da cidade, não queria perder uma só palavra das intrigas que se dizem no salão.
—Onde esteve durante esses últimos meses? Vamos, pode confiar em seu velho amigo.
—Você é meu amigo? —Perguntou ela com suavidade.
—Se eu não o for, então não tem nenhum.
Por desgraça, era muito provável que isso fosse certo. Vivien inclinou a cabeça afetando uma pose de coquete, enquanto se enroscava uma pequena mecha de seus cabelos em um dedo.
—Não é de sua incumbência onde estive, milord.
O pôs-se a andar, descrevendo um semicírculo em volta dela.
—Estou convencido de que tenho direito de fazer alguma pergunta minha pequena.
—Tem cinco minutos. Depois, voltarei para baile.
—Muito bem, comecemos com o tema de nosso querido amigo Morgan. O que tem ele a ver com você?
Não acredito que o tenha aceitado como seu atual protetor... Ou, acaso, suas exigências desceram tanto da última vez que nos vimos? Bom, admito que ele deva exercer uma atração primitiva sobre certas mulheres...
Mas é só. Pelo amor de Deus, é um caçador de ladrões. Que tipo de comédia está representando?
—Nenhuma comédia—respondeu ela, com dissimulado desdém. Como se atrevia este indivíduo indolente, a desprezar Morgan porque não tinha sangue azul? Ah, por certo que Morgan tinha seus defeitos, mas era cem vezes mais homem do que Gerard podia ter a esperança de ser algum dia. - É um homem atraente. Ele me diverte. E pode permitir-se pagar meus gastos. Por hora, isso me basta.
—Você é muito mais apropriada para mim. - comentou Gerard. - E ambos sabemos disso - deixando escorregar sobre ela, com avidez, a olhar de seus olhos negros como em dia de chuva. - Já resolvemos o problema que nos separava e, em consequência, não vejo motivos para que não possamos reatar nossa anterior relação.
—Problema? Que problema? - Vivien dissimulou um sobressalto de curiosidade por meio de um delicado bocejo. -Você falou de mim para Morgan .
O tom do homem adquiriu um ar de desculpa.
—Eu achei que estivesse morta; se não , jamais haveria dito uma palavra a esse canalha.
—Contou sobre o nosso “problema”?
—É obvio que não. Isso não falei a ninguém; além disso temi que, o fato de que tivesse desaparecido, acendesse uma luz de suspeita sobre mim. - disse ele e depois de uma pausa, acrescentou com ar submisso— Já que o menciona, como terminou?
—Como terminou o que?
—Não seja obtusa, querida. A gravidez é claro. É evidente que tiveste um aborto espontâneo, ou possivelmente... Deliberado - interrompeu-se, incômodo. - Depois de ter refletido muito, admito que me equivoquei ao negar reconhecer a criança, mas já sabe a relação que há entre minha esposa e eu. A saúde dela é delicada, e se tivesse informado de sua gravidez a enlouqueceria. Além disso, não há provas de que o menino fosse meu.
Vivien se voltou, sentindo que sua mente ardia com esse informação. Ela tinha estado grávida. Sua mão subiu lentamente para seu ventre chato e tremeu quando pegou nele. Desesperada, pensou que não podia ser verdade. Senhor querido, o que se teria feito desse pequeno? Sentiu-se sacudida por uma série de tremores, ora quentes, ora frios, enquanto sua mente revisava as possibilidades. Deve ter tido um aborto espontâneo posto que a outra alternativa fosse algo que ela não suportava imaginar, sequer.
Fechou os olhos e os apertou com força, horrorizada. Ela não teria sido capaz de abortar deliberadamente, verdade que não? As perguntas voavam a seu redor como pássaros presos, que a bicavam e a rasgava fazendo-a encolher-se.
—Viven. - disse Gerard, percebendo sua evidente confusão e chegando à conclusão de que ela se inclinou por um aborto deliberado. - Bom, não é preciso que se culpe por isso, querida. Não se pode dizer que seja uma mulher maternal. Seus talentos se manifestam em outro campo.
Os lábios da moça se abriram, mas não pôde emitir som algum. Em meio de sua culpa e sua dor, só podia pensar em um fato urgente: Grant não devia inteirar-se. Se ele soubesse o que ela, muito provavelmente, fazia seu desprezo não teria limites. A desprezaria para o resto da vida... Embora não mais do que ela se desprezasse.
—Vivien. - ouviu a voz de Gerard, penetrando no redemoinho de desespero de seus pensamentos. Ele se aproximou dela por trás e capturou seus braços enluvados, deslizando suas mãos em uma carícia descendente.
- Vivien, deixe Morgan e volte para mim. Esta noite. Ele é apenas um policial de meia tigela. Ele não pode fazer por você o que eu posso. Você já sabe.
Subiram a sua boca palavras venenosas, iradas e conseguiu a conter. Era preferível não converter a esse homem em um inimigo... Chegado o momento, ele poderia lhe ser útil. Voltou-se para ele luzindo um trêmulo sorriso.
—Pensarei - disse ela. Mas não me espere esta noite. Agora... Voltaremos para o salão separados. Não quero incomodar Morgan aparecendo com você.
—Antes de partir, me dê um beijo. - pediu Gerard.
O sorriso de Vivien se apagou, fez-se provocadora.
—Depois do primeiro, não poderia me deter, querido. Separemos-nos, simplesmente, por favor.
Ele capturou sua mão e a oprimiu, depositando um beijo sobre o dorso da luva. Assim que ele se afastou, o sorriso do Vivien desapareceu. Passou o dorso dos dedos pela fronte fria coberta de suor e conteve a vontade de gritar. Por um caminho diferente de que tinha empregado Gerard, encaminhou-se de volta para a casa.
Consumida pelo arrependimento e por certo amargo temor, Vivien se deteve junto a um espesso jardim que circundava uma estátua de pedra. Uma oportuna brisa a refrescou. Sentia-se quente, aturdida; sabia que deveria recompor-se antes de entrar. Não queria enfrentar à multidão que estava no salão e, sobre tudo, não queria enfrentar Grant.
—Rameira. - disse uma voz de homem, carregada de ódio, atravessando o silêncio e sobressaltando-a— Não descansarei até vê-la morta.
Atônita, Vivien se voltou procurando a origem da voz. Umas sombras ao seu redor. Seu coração pulsou em ritmo acelerado. Um ruído de passos lhe fez saltar como uma lebre espantada. Aferrou de qualquer maneira a saia e, deixando escapar um soluço amortecido, subiu correndo os degraus de pedra tropeçando, cambaleando, para as luzes que se filtravam das portas do salão. Um de seus pés escorregou em uma zona úmida ou, possivelmente, em uma folha solta, e caiu pesadamente golpeando-a tíbia contra a borda de um degrau. A dor lhe fez gritar e se levantou para seguir correndo, mas era muito tarde: um par de braços já tinha começado a fechar-se em volto dela.
—Não! - Gemeu, agitando os braços para defender-se, mas se sentiu firmemente sujeita como por uma mão de ferro.
Uma voz áspera retumbou em seu ouvido; ela necessitou de uns segundos para reconhecer o som familiar.
—Vivien, fica aquieta. Sou eu. Olhe-me, maldita seja.
Ela piscou e o olhou fixo, até que sua vista se livrou do pânico.
—Grant. - disse, entre violentas baforadas de ar.
Ele deve tê-la visto da casa e ido em sua busca no instante em que a viu em pânico. Ele a sustentou, sentado sobre um degrau, seu rosto escuro a escassos milímetros do dela. A luz da lua destacava o comprido plano de seu nariz e projetava as sombras de suas espessas pestanas sobre as bochechas da jovem. Vivien, trêmula e aliviada, aferrou-se a ele, lhe rodeando apertadamente o pescoço com seus braços.
—Oh, graças a Deus...
Que aconteceu? —Perguntou ele, sem rodeios— Por que corria?
Ela passou a língua pelos lábios ressecados e se esforçou por responder com coerência.
—Alguém me assustou, estava atrás da estátua.
—Era Gerard?
—Não, acredito que não... Não parecia sua voz, mas não sei... Oh, olhe! - exclamou, assinalando uma silhueta escura que se afastava da estátua e desaparecendo arás dos arbustos.
—Esse é Flagstad. - murmurou Grant. - Um dos detetives Se houver alguém nesta zona, ele o encontrará.
— Não teria que persegui-lo você também?
Grant brincou com um dos cachos que se soltaram do alto do penteado dela e o colocou com delicadeza em seu lugar. De repente, apareceu em seus lábios um sorriso acariciador.
—Acaso que que a deixe sozinha?
—Não. - respondeu ela imediatamente, rodeando mais seus braços ao pescoço dele. - Depois do que me disse esse sujeito, não.
O sorriso de Grant desapareceu imediatamente.
—O que ele disse, Vivien?
Ela titubeou, pois lhe pesava a aguda consciência de que devia ser prudente. Não tinha que mencionar nada com respeito a gravidez... A menos até que averiguasse algo mais a respeito. Acomodou-se melhor nos braços dele, apoiando-se na sólida musculatura de seu corpo e respondeu com cautela: —Que não descansará até me ver morta.
—A voz te soou conhecida?
—Não.
Com delicadeza, Grant arrumou uma das luvas de Vivien, que tinha baixado, e apoiou o polegar com gesto suave e íntimo no braço da mulher. Embora ele também usasse luvas, seu contato foi sólido e tranquilizador.
—Ele a machucou? —Perguntou ele.
—Machuquei uma perna... tropecei, mas acredito que não é mais que um machucado... - Lançou um chiado de protesto quando ele começou a levantar a saia. -Não, aqui não! Espere...!
—A pele parece estar sã. - disse Grant, inspecionando com atenção a tíbia que começava a inchar, sem fazer caso das resistências de protesto dela—. Fique aquieta.
—Não ficarei quieta até me soltar. Oh, me solte!
Mortificada, cobrou consciência de que havia alguém mais na escada, perto deles. Grant voltou a lhe baixar a saia ocultando a perna ferida, mas sir Ross Cannon já tinha chegado junto a eles. Vivien oculto seu rosto avermelhado contra o peitilho da jaqueta de Grant e espiou a Cannon.
—Flagstad não pôde distinguir o rosto do tipo na escuridão. - disse Cannon sem expressão—. Mas alcançou a ver que nosso homem é alto, de cabelos cinza e textura magra. Além disso, dá-se a interessante coincidência de que uma carruagem pertencente à lorde Lane, que se ajusta a essa descrição, está afastando-se da propriedade enquanto nós falamos.
—Lane - repetiu Grant, com cenho de perplexidade. - Ele não está na lista de suspeitos.
—Estava mencionado no jornal da senhorita Duvall?
—Não - disseram Grant e Vivien a um som.
Vivien tirou da jaqueta de Grant.
—Na sala havia um homem que me olhava fixamente. Observava-me com expressão de ódio. Seu nariz se parecia com o bico de um falcão. Pode ter sido lorde Lane?
—É possível. - respondeu Grant, pensativo. - Mas, que me condenem se posso imaginar que relação tem com você. Ninguém o tinha mencionado até agora.
—Me permita investigar que importância poderia ter ele no caso da senhorita Duvall. - disse Cannon.
Embora tivesse falado como se pedisse permissão era óbvio que não o precisava. – Existe a casualidade de que Lane encabece a oposição contra minha solicitação de aumento da patrulha de vigilância noturna. -
explicou, sorrindo com ar sombrio. -Agradaria-me lhe devolver o favor.
—Por favor, faça-o. - respondeu Grant.
Levantou Vivien e a ajudou a ficar em pé. Para ela foi um alívio a ocultação parcial que brindava a escuridão a seu redor, pois tinha consciência aguda do desarrumado traje e do modo em que as mãos de Grant se apossavam em seus quadris.
—Posso voltar para casa agora? —Perguntou ela em voz fraca; sir Ross lhe respondeu.
—Não vejo motivos para que não o faça. Esta noite, desempenhou seu papel muito bem, senhorita Duvall. Em minha opinião, não acredito que passe muito tempo antes que o caso conclua. Logo, poderá voltar para sua vida normal.
—Obrigada. - disse Vivien em voz oca.
Talvez fosse uma ingrata, mas a perspectiva de retornar a sua vida normal não era algo que ela esperasse com impaciência. E sua memória perdida? Como e quando voltaria? Voltaria? E se ela fosse passar o resto de sua vida sem um passado, sem os segredos e as lembranças que completam a uma pessoa? Até no caso de que Cannon e Grant descobrissem o mistério de seu provável assassino e ela ficasse livre da ameaça de futuros ataques, mesmo assim enfrentaria seu futuro com temor. Não sabia quem era. Que castigo tão estranho era esse de ter perdido a primeira metade de sua vida.
Talvez Grant percebesse seu desespero interior, pois tomou seu braço com amabilidade. Conduziu-a para um atalho que circundava a mansão e chegava até a fileira de carruagens detidas com o passar de o caminho circular de acesso.
—Que pensara lady Lichfield e outros se desaparecermos sem nos despedir? —Perguntou Vivien.
—Acharão que fomos embora cedo porque estava louco para me deitar com você.
Tão franca resposta a fez piscar e, ao mesmo tempo, sentiu que estremecimentos frios e quentes se alternavam em sua pele. Pensou no humor dele e teve vontades de lhe perguntar se isso era, em realidade, o que ele tinha intenções de fazer. Mas as palavras se atropelaram entre si e se uniram formando uma grande bola que a afogava... Porque descobriu que isso, exatamente, era o que ela queria que ele fizesse. Esse desejo tinha certa relação com a inquietação e a desesperança, e com a necessidade básica de gozar uns breves momentos de prazer e intimidade. A quem faria mal se se entrega a ele? Já o tinham feito antes. Só que ela não podia recordá-lo. Por que não ia permitir que acontecesse de novo? Depois de tudo, não tinha reputação alguma para proteger. Sentia-se vazia, só e assustada... Queria agradar a ele... E a si mesmo.
Teria que ter retrocedido o caminho na direção contrária a que seguiam seus pensamentos. E, entretanto, sentiu uma louca e desagradável embriaguez, como se já tivesse começado a percorrer um caminho que já era muito tarde para retroceder. O lacaio os viu aproximar-se do carro e se apressou a colocar a escada portátil para que Vivien pudesse subir. Estava muito bem treinado para expressar sua surpresa ante a partida prematura do casal nem fazer perguntas, salvo para averiguar aonde iriam.
—A casa. - respondeu Grant, resmungão, ajudando ele mesma Vivien a subir e indicando ao lacaio que o comunicasse ao chofer.
Vivien colocou a mão sob a saia e tocou o palpitante inchaço na tíbia, encolhendo-se levemente.
—Dói? —Perguntou Grant, carrancudo.
—Não muito, mas... - titubeou ela, jogando uma olhada ao compartimento embutido que continha várias garrafas de cristal. - Poderia beber um gole de conhaque? Ainda me sinto um pouco nervosa pelo acontecido.
Sem dizer uma palavra, Grant serviu uma pequena quantidade de conhaque em um pequeno copo e ofereceu a ela. Vivien aceitou o copo, o levou aos lábios e o esvaziou de um só gole. Um fogo aveludado se estendeu, descendo por sua garganta, por seu peito, fazendo que seus olhos se umedecessem. Reprimiu uma tosse e lhe estendeu o copo.
—Mais, por favor. - disse, com voz rouca.
Ele arqueou uma sobrancelha, olhando-a com curiosidade, e voltou a encher o copo. O segundo conhaque baixou com mais fluidez que o primeiro; sua agradável calidez lhe percorreu todo o corpo. Vivien exalou um breve suspiro, devolveu-lhe o copo e se agachou em um rincão do assento.
—Oh, agora me sinto melhor - murmurou.
—Não há motivos para sentir temor, Vivien. - disse Grant, pois sem dúvida tinha chegado à conclusão de que esse era o motivo que impulsionava Vivien a beber. - Não permitirei que Lane, nem nenhum outro, façam-lhe mal.
—Sim, sei.
Dirigiu-lhe um sorriso confiante, confiança que ele não demorou para destruir com suas seguintes palavras.
—De que falaram Gerard e você no jardim?
—De nada significativo. - disse ela.
—Me conte o que falaram. Eu decidirei se for significativo ou não.
Posto que nenhuma força sobre a terra poderia obrigá-la a lhe confiar o segredo de ua gravidez, ela pensou o que poderia lhe dizer.
—Bom... Lorde Gerard me perguntou por que estava eu com você e disse que você não era mais que um policial de meia tigela.
O comentário provocou um sorriso irônico. Vivien deduziu que Grant já tinha sido muitas vezes, chamado de semelhantes coisas.
—Eu diria que ele sabe julgar às pessoas. - respondeu Grant com secura. - Continue.
—Logo, pediu-me que o abandonasse e que retornasse com ele.
—Que respondeu você?
—Não disse que sim nem que não; só disse que ia pensar.
—Foi uma sábia manobra. - reconheceu ele com frieza. - Em sua situação, é conveniente deixar todas as opções abertas.
—Não voltarei a ser amante dele. - disse ela, sentindo-se ofendida de que ele pudesse supor essa alternativa.
—Quem sabe? —Disse ele, tratando de provoca-la de maneira deliberada. - Pois quando tudo isso terminar...
—Isso é o que você quer que eu faça?- Perguntou ela, zangada. - Que volte com lorde Gerard? Ou que encontre outro homem que me mantenha?
—Não. Não é isso o que eu quero.
—Então, o que quer você...?
Ela afogou uma exclamação quando ele a atraiu para si, veloz como um tigre ao ataque, e a sentou sobre seu colo. Com uma de suas grandes mãos desfez seu penteado, danificando a construção de cachos e esparramando uma quantidade de fivelas no piso do carro.
A respiração de Grant era feita de trêmulas explosões, e o calor subia para seu rosto. Sentia-se enciumado, frustrado, dolorosamente excitado; todo isso se devia a essa provocadora criatura que tinha em seus braços.
Estava farto de desejar o que não podia possuir, de que sua própria consciência o detivesse uma e outra vez.
Sentiu Vivien como um montão de carne e seda sobre seu colo, e ele ansiou perder-se nesse calor.
—Quero que fique comigo. - disse ele, rouco. - Quero que seja minha.
Vivien cravou nele a vista de seus olhos azuis, com suas pálpebras entre abertas, e pareceu que entendia sua tortura. Tocou o rosto dele com suavidade, com sua fria mão enluvada.
—Então, ficarei. - murmurou ela, e seu doce fôlego carregado de conhaque flutuou até ele. Porque eu também o desejo.
Essas palavras liberaram o demônio que morava nele. Incapaz de conter-se, Grant agarrou a luva de Vivien e a tirou. Apoderou-se de sua mão nua e a apertou com força contra sua boca e sua mandíbula, e saboreou avidamente a tenra pele. Sua boca percorreu a palma dela e fechou os olhos, sumindo-se na luxúria e o prazer.
Vivien lutou para liberar sua mão e, assim que conseguiu, deslizou seus dedos trêmulos por detrás do pescoço tenso dele. Ele não necessitou mais. Inclinou a cabeça e esmagou sua boca contra a dela, lhe exigindo que a abrisse para ele. Os lábios do Vivien se separaram recebendo-o em sua doçura, e sua própria língua se rendeu aos agressivos embates e o roçar da dele. Grant exalou um gemido, apertou-a com mais força e torceu sua boca sobre a dela. O beijo se tornou frenético, à medida que ele trabalhava em excesso por penetrar mais a fundo sua boca na dela; em lugar de saciar-se, cada vez a desejava com mais desespero.
Ele tirou sua boca da dela, queixando, e seu olhar explorou o rosto avermelhado dela.
—Não consigo parar de querê-la. -disse com voz rouca. - é tão bela, tão doce... Vivien me deixe...
Com mãos torpes, mediu a parte de atrás do vestido dela e tirou, fazendo saltar os primeiros botões. O
tecido de cor bronze cedeu com ruído, os ganchos saltaram de suas presilhas, e o sutiã caiu, deixando a mostra sua pele branca. A mão do homem cavou sob o firme globo de um de seus seios e seu polegar acariciou o suave mamilo rosado até fazê-lo contrair-se e obscurecer-se, adquirindo uma brilhante cor encarnada. Vivien mordeu os lábios e se retorceu quando a cabeça escura dele se inclinou sobre seu seio.
Sentiu que o calor úmido da boca dele banhava seu seio e que ele disparava flechas seu mamilo com a língua.
Perdida em uma nuvem de sensações, Vivien rodeou a cabeça dele com seus braços. Ele beijou seu mamilo com suavidade, com destreza, e seu corpo robusto se estremeceu pela intensidade de seu desejo.
Vivien fechou os olhos e se entregou a essa pura sensação física. Só um breve resto de vergonha irrompeu em seus pensamentos, a desesperada consciência de que só uma mulher descarada, uma cortesã, podia permitir que um homem lhe fizesse tais coisas no interior de um carro. Mas não lhe importava. Não lhe importava como, quando ou onde a tocava. Desejava-o com tanta intensidade como ele a ela; agora, nada no mundo poderia separá-los.
Ele procurou o outro seio e seus dentes capturaram o tenro bico e sua língua foi riscando círculos e tocando até que ela se arqueou para cima e gemeu. Cada carícia da língua a fazia sentir um comichão delicioso no fundo do estômago, e mais abaixo, entre as pernas. Perturbada, afastou-as e levantou os joelhos, procurando, de maneira instintiva, aliviar esse desejo crescente.
Grant arrancou a luva, capturou o tornozelo de Vivien e os calos de sua mão se engancharam na seda da meia dela. Abriu bem os dedos e foi subindo para o joelho da mulher e ainda mais à frente, até o ponto onde a liga sujeitava a seda contra a coxa. Explorou a pele suave por cima da liga e deslizou a mão por debaixo dos enrugados calções de linho. Seguiu subindo cada vez mais, até encontrar o espesso arbusto de cachos.
Um reflexo de recato fez com que Vivien resistisse, tremendo sobre o colo dele, e exalando um sufocado protesto. No mesmo instante, sua boca se apoderou da dela em um beijo urgente. Ela gemeu, rodeou com seus braços os largos ombros dele, e todo resto de resistência se derreteu como o gelo ao sol. As mãos dele procuraram a dianteira das calças dela, encontraram a abertura do objeto, bordada de cintas, e se meteram no objeto. Seus dedos se deslizaram com delicadeza por entre os cachos, e um dedo percorreu esse pêlo púbico que protegia o lugar secreto. Percorreram o corpo de Vivien tremores de confusão, temor e excitação, e deixou cair sua cabeça sem forças contra o ombro dele.
A maliciosa exploração continuou, e seu dedo provocador repetiu sua leve carícia até que os lábios femininos ficaram turgentes e sensíveis. Ele tocou o clitóris, riscou círculos a seu redor, lhe brindando um prazer tão visceral que lhe provocou desejos de gritar. Sobre o colo dele, Vivien se retorceu sentindo o vulto sobressalente que pressionava para cima entre suas nádegas. Uma risada estremecida subiu desde sua garganta quando compreendeu que ele estava mais que disposto a possui-la ali mesmo, no carro.
Os dedos masculinos tinham encontrado uma curiosa fonte de umidade e sondavam esse tenro oco. Sem aviso prévio, ele deslizou seu dedo médio para o interior. Ao princípio, ao sentir como uma leve queimadura, ela resistiu a doce invasão arqueando-se para afastar-se. Mas a carne de seu interior o capturou ele, e suas coxas se fecharam em volto da mão do homem, e ele derramou palavras rodeadas e beijos na pequena cova que se formava sob o lóbulo da orelha feminina.
—Está muito agitada. - disse ele, em voz densa. - Por quê? Acaso tem medo?
—Sim. - sussurrou ela, enquanto seus sentidos giravam formando um torvelinho.
—Não tem nada a temer.
—Eu... Não recordo como se fazia isto. - disse, afogando-se.
O dedo dele se deslizava, agora, com mais facilidade, pois uma inesperada umidade tinha preparado o caminho. Uma lenta investida, logo outra, formando um ritmo sedutor que lhe fez arquear os quadris, presa de ansiedade. Esse doloroso prazer se tornou mais forte, mais agudo, até fazê-la tremer e cravar suas unhas nas costas de Grant.
O mundo saltou de seu eixo e girou. Ela precisava tocar sua pele, mas se interpunham entre eles várias capas de tecido, algumas delas engomadas, e várias fileiras de botões. A depositou sobre o assento do carro encurvou-se sobre ela e apoiou um pé no piso. Sustentou a cabeça de Vivien no seu braço e a beijou. Sua boca lhe transmitia aspereza, calor, agitação; o prazer turbulento desse beijo fez gemer ambos.
A carruagem se converteu em um refúgio que saltava, balançava-se, um ninho de sombras e couro, com seu interior cheio de perfume de baunilha de Vivien. Ela se estirou para o Grant, rodeou seus poderosos ombros com os braços e afundou o nariz no pescoço dele.
—Eu te amo. - sussurrou ele, empurrando-a sobre o assento e contemplando seu rosto.
—Não tem por que dizê-lo. - Disse ela, insegura, embora essa declaração a tinha enchido de um intenso prazer.
— Eu te amo. - repetiu ele, e seus olhos verdes resplandeceram na escuridão como os de um gato.
Ela perguntou se na verdade ele era consciente do que dizia ou se pertenceria a essa classe de homens que não distinguem entre o amor e o desejo, e o olhou em silêncio. O carro se deteve e ela soube que tinham chegado à Rua King. A cabeça negra de Grant baixou, e sua voz soou como um rocçaráspero no ouvido da moça.
—Vivien faça amor comigo esta noite.
Capítulo 11
Era tarde, os serventes já tinham ido todos se deitar, exceto um solitário lacaio que abria a porta. Depois de uma piscada de surpresa, o lacaio apartou a vista evitando olhar esse pequeno corpo com a roupa em desordem que Grant levava em seus braços.
Grant, com seu precioso vulto nos braços, envolto apertadamente em sua jaqueta, contemplou o rosto semi oculto de Vivien enquanto a levava a para o andar de cima. Estava ruborizada e silenciosa; em sua expressão se via incerteza, mas não desagrado. Recordou que no carro tinha pronunciado palavras de amor e também avermelhou, embora não lamentava, não lamentaria tê-las dito. Era a primeira vez em sua vida adulta que ele dizia a uma mulher que amava. Tinha descoberto uma parte de si cuja existência tinha ignorado até essa noite; queria demonstrar a Vivien toda a ternura e a paixão de que era capaz.
Chegaram à habitação. Grant deixou Vivien junto à cama. Alisou com suas mãos revolto cabelo dela e a beijou na boca, adaptando a forma de seus lábios a dela. Tirou as fivelas da acesa juba e soltou suas tranças, deixando que seu cabelo caísse suave e morno, sobre suas mãos.
—Me diga o que devo fazer. - sussurrou ela, deslizando suas mãos por debaixo da jaqueta dele, explorando as linhas firmes de sua cintura e suas costas. - Não sei como devo agrada-lo. Não recordo de como se faz isto.
—Não é preciso que recorde. - disse ele, em voz baixa e veemente. Estreitou-a contra seu corpo, contra sua tremenda ereção; a deliciosa sensação de tê-la assim lhe cortou o fôlego. Apertou sua boca no pescoço dela e saboreou sua pele delicada, descendendo até chegar ao vale entre seus peitos, que cheirava a baunilha.
Vivien começou a tremer e jogou a cabeça para atrás, reclinando-se em seu braço, enquanto seu coração pulsava veloz sob o influxo de sua boca exploradora.
A despiu com lentidão, desatando os laços das roupas dela. A pele que acabava de desvelar era branca e luminosa, seu corpo tenro, de abundante curva... Grant fechou um instante seus olhos, debatendo-se no esforço por dominar sua violenta paixão.
Quando voltou a abri-los, Vivien tinha afastado dele e se apressou a subir à cama, e a tampar-se com os lençóis para esconder sua nudez. Seu pudor era tão autêntico, tão... Bom, tão virginal que ele se perguntou se ela teria sido assim muito tempo atrás, antes de iniciar sua carreira de cortesã.
—Não te cubra. - murmurou ele. - Seu corpo é muito belo para que o oculte.
O lençol não desceu nem um milímetro.
—Tenho frio. - disse ela, sem fôlego, com suas bochechas avermelhadas.
—Eu a esquentarei. - prometeu ele com súbito sorriso, tirando-a jaqueta.
Enquanto ele ia tirando uma a uma as roupas, Vivien o observava, via como ia ficando descoberto uma pele mais áspera e escura que a sua, coberta de pêlo em alguns lugares e de cicatrizes em outros. A potência e a elegância de seu corpo, ao que o esforço e o exercício tinham endurecido até não deixar nele rastros de brandura a deixaram maravilhada.
—Tinha razão.- disse ela com certa vacilação. - Nu, é um espetáculo impressionante.
Ele sorriu e se aproximou apoiando as mãos a ambos os lados de seus quadris ao tempo que se inclinava sobre ela. Pressionou-a com todo seu corpo e, de repente, ela descobriu que o rugido do pulso em seus ouvidos era tão fragoroso que não lhe permitia ouvir. Seus pensamentos se dispersaram, desvaneceram-se; só ficaram as sensações: o assombroso calor da pele de Grant, o pêlo áspero de seu peito, o delicioso deslizamento da boca dele sobre sua garganta, ombros e peitos. Sentia as mãos do homem por toda parte, apalpando, explorando, escorregando sobre seus membros sem fazer caso de pudor algum.
Se acaso tinham persistido algumas dúvidas no fundo de sua mente, dissolveram-se imediatamente. Ela não podia imaginar que um homem tão familiarizado com a dureza da vida pudesse ser tão tenro, que suas mãos fossem tão delicadas, ao percorrer os rincões mais íntimos de seu corpo. A respiração dele se acelerou como se tivesse feito um grande esforço, e cada exalação a queimava como se fosse vapor. Ele a esmagou contra o colchão e beijou e acariciou o bico de seus seios e mordeu brandamente as pontas erguidas.
Ela ofegou, rodeou a cabeça escura do homem com seus braços e sentiu que o prazer e uma estranha tensão a faziam retorcer debaixo dele. De repente, surgiu em sua cabeça um pensamento isolado. Como era possível que ela tivesse feito isto com tantos homens diferentes? Era um ato que requeria mais confiança e intimidade das que ela tivesse imaginado. Não era possível... Havia algo errôneo relacionado com ela... Mas, antes que pudesse afundar mais nessa idéia, desapareceu de sua mente.
Sentiu que a mão dele encerrava seu punho e conduzia seus dedos para baixo até fazê-los roçar uma superfície de pele quente e sedosa. Com um grave murmúrio destinado a animá-la, Grant apertou a mão de Vivien contra seu pênis. Curiosa, excitada, ela fechou sua mão sobre o membro masculino e o apalpou com acanhamento, percebendo sua ereção. Ao parecer, seu contato despertou nele uma paixão quase intolerável.
Deu-lhe um profundo beijo, afundando sua língua dentro dela, ao tempo que o fazia separar suas coxas e baixava seus quadris para elas.
Vivien sentiu uma pressão na vagina que lhe provocou uma leve queimação. Reagiu ficando rígida; sentiu que o peso dele se hospedava com mais força sobre ela e que essa pressão aumentava. Antes que ela pudesse protestar ou afastar-se, ele emitiu um som gutural e investiu com um enérgico ataque. Vivien perdeu o fôlego e experimentou uma dor diferente a qualquer conhecido até então... Estava segura disso. Nenhuma mulher podia senti-lo e não recordá-lo depois. Suas mãos se contraíram sobre o peito dele e tratou de empurrá-lo, mas ele voltou a investir. De repente, sentiu-o penetrar nela; seu sólido membro estava agora profundo e duramente agasalhado em seu interior.
Ela captou um semblante atônito depois de uma fulgurante cortina de lágrimas.
—Vivien, fique quieta. - disse ele com rudeza, mas ela lutou e se retorceu inutilmente, pois o peso dele a reteria.
Estupefato ao sentir o aperto da vagina de Vivien, ao perceber a dor evidente da moça e a inevitável conclusão a que estava chegando seu cérebro, Grant se moveu em forma automática para aliviá-la e acautelar futuras dores.
—Está me machucando. - ofegou ela.
Grant a manteve estreitamente apertada e murmurou palavras tranquilizadoras em seu ouvido, lhe dizendo que a amava que cuidaria dela, que se ela o permitisse, ele ia aliviar sua dor. Pouco a pouco, ela se afrouxou e se apertou contra ele, cravando as unhas nos duros músculos de suas costas. Sem sair dela, ele deslizou sua mão para baixo pelo corpo feminino. Seu polegar pinçou entre o úmido arbusto de pêlo avermelhado e se apoiou com leveza sobre esse ponto sensível escondidos entre os cachos. Riscou lentos círculos a seu redor, procurando provocar realções no corpo dela.
Vivien gemeu e elevou os quadris para a carícia, e assim ele soube que a dor ia diminuindo. Seguiu estimulando-a, acariciando-a e, ao mesmo tempo, moveu-se dentro dela com suavidade. Vivien lançou um grito e seu corpo se inclinou por instinto para recebê-lo, enquanto suas mãos passeavam inquietas, pelas costas dele. Ele iniciou um ritmo lento, adaptando-se ao dela para lhe agradar; todo seu ser se concentrou no deleite de possuí-la. Ela chegou ao orgasmo com assombrosa rapidez, seu corpo se ateu ao redor dele e a surpresa fez tremer seus membros. Grant permaneceu dentro dela, e experimentou o orgasmo mais violento que teve em sua vida. Gemeu e afundou o rosto na curva do ombro da mulher, sentindo palpitar seu membro, martelar seu pulso, alagar-se seu corpo de prazer.
Fez-se um pesado silêncio; ao retirar-se com cuidado de Vivien, Grant se encontrou com um significativo sinal que desafiava toda lógica. Perplexo, arrependido furioso consigo mesmo, Grant se enfrentou com um fato que jamais teria podido acreditar se não tivesse contado com uma evidência física.
Ela era virgem... Ou o tinha sido até esse momento. Contemplou o rosto embriagado de Vivien e sacudiu a cabeça, incrédulo. Ela mediu em busca do lençol e a estendeu sobre si, devolvendo o olhar de Grant com uma mescla de confusão e suspense. Ele apoiou sua mão na curva do quadril dela e Vivien se crispou, mas não se apartou.
—Por que doeu tanto? - Perguntou ela, em voz entrecortada. Ele não respondeu imediatamente, concentrado como estava sua mente em uma corrente de perguntas.
—Porque você era virgem. - disse ele, por fim.
—Mas... Isso não é possível. Eu sou Vivien Duvall.. Não é certo? Você me disse...
Interrompeu-se e cravou nele um olhar atônito.
—Cristo. - murmurou ele para si mesmo, tratando de entender como pode cometer um engano de semelhante magnitude. - Não é possível que você seja Vivien.
—E se fosse? E se você, e todos outros, estivessem enganados com respeito a mim? E se...?
—Não existe possibilidade alguma de que Vivien Duvall seja virgem. - Disse ele, olhando-a como se não a tivesse visto nunca. - É impossível. É uma cópia exata dela, do ponto de vista físico... Mas não é Vivien.
—Mas, como é possível que me assemelhe de tal modo a alguém, a menos que ela e eu estejamos aparentadas... Possivelmente até...?
Interrompeu-se, pois tinha cruzado outro pensamento por sua mente.
—Gêmeas? —concluiu ele, com semblante turvo—. Se tivermos em conta a notável semelhança física, isso é altamente provável. Embora ninguém insinuou, sequer, a possibilidade de que Vivien tivesse uma irmã, e muito menos uma gêmea idêntica.
—Tem certeza de que eu não sou Vivien? —Perguntou ela, em um murmurio desconcertado. - As coisas que disse de mim... Os homens com os que me deitei... O que dizia nesse diário... Não era eu?
—Não era você. - confirmou ele em voz baixa.
Ela explodiu em lágrimas, surpreendendo-o, levando-as mãos ao rosto, e entre seus dedos se filtraram brilhantes rios de lágrimas. Grant a colocou no colo e a oprimiu contra seu peito nu. Quando sentiu suas lágrimas sobre a pele, um cruel remorso o machucou. Amaldiçoou e se esforçou em fazer o melhor possível para consolá-la.
—Não posso te devolver sua inocência. Danifiquei-te de um modo imperdoável.
—Não, não. - soluçou ela, com seu rosto apertado contra o ombro dele—. Não estou chorando por isso.
Acontece que me sinto aliviada de não ser Vivien; entretanto... —cortei-se, tratando de conter outro soluço, mas lhe escapei com mais força ainda—. Eu acreditei que sabia quem era, e isso constituía certo consolo, embora não pudesse recordar nada. Agora, em troca... —soluçou, e um novo ataque de pranto a afogou—.
Quem sou? Não posso suportar mais tempo sem sabê-lo. Sinto-me tão... - Os soluços já não a deixaram continuar.
Grant a abraçou, deixando-a chorar, sentindo-se mais culpado e arrependido com cada instante que passava.
—Eu o descobrirei. - disse, resmungão. - Juro que o farei. Maldita seja... Não chore mais, por favor.
Enquanto acariciava a revolta cabeleira, Grant se perguntou quem seria ela e como tinha chegado a ocupar o lugar de Vivien. E por que não havia ninguém a procurando? Em alguma parte devia haver um familiar, amigos, alguém que estivesse preocupado por sua ausência. Até existia a possibilidade de que estivesse prometida. Não era lógico que ninguém se preocupasse com uma moça tão jovem e tão bela. Esses pensamentos o sacudiram até mais. Ela tinha toda uma vida da que nenhum dos dois sabia nada.
Onde demônio estaria à verdadeira Vivien? Acaso a teria encontrado o assassino e teria terminado o trabalho?
Grant, confundido pela volta que deram os acontecimentos, posto que não podia pensar nela sob nenhum outro nome, acalmou-se um tanto e se levantou com suavidade. Pegou uma bata, amarrou o cinturão e foi, a grandes passos, até o cordão da campainha. Chamou Kellow, que apareceu em menos de cinco minutos. O
valete se vestiu depressa e levava o cabelo revolto e os olhos carregados de sono. Grant saiu a seu encontro na porta, que manteve fechada para que o criado não pudesse ver Vivien.
—Uma bacia de água quente e panos de lavar. - ordenou, conciso.
—Sim, senhor.
O valete desapareceu e Grant retornou junto à cama. Vivien não se moveu. Ao princípio, ele acreditou que talvez estivesse adormecida, mas quando se aproximou viu que seus olhos estavam abertos. Seu olhar estava perdido; ela parecia estar dando voltas a uma quantidade de pensamentos que não podia ou não queria compartilhar com ele.
—Eu a compensarei pelo que fiz. - disse ele em voz fraca.
Então, ela se moveu, girou a cabeça e o olhou com sorriso trêmulo no rosto.
—Não tem por que fazê-lo. - murmurou ela, com seus olhos reluzentes de lágrimas—. Não foi sua culpa que me confundisse com Vivien... Todos o fizeram. Ninguém duvidou de minha identidade. Não posso jogar a culpa em você porque tenha aceitado o que parecia óbvio. - prosseguiu, exalando um suspiro trêmulo. - No que se refere a isto... —assinalou com gesto rápido e sobressaltado as roupas de cama em desordem e baixou a vista—. Eu estive mais que disposta. -disse, em um sussurro envergonhado—. E você não podia saber que eu era virgem.
—Isso não me faz menos responsável. - Sentou na metade da cama junto a ela, tomou uma mecha de cabelos de Vivien em sua mão e esfreguou entre seus dedos os sedosos fios.
—Vivien... —Disse, e se interrompeu assim que esse nome saiu de seus lábios. - Maldição. Como deveria chamá-la agora?
Os lábios de Vivien esboçaram a mais leve dos sorrisos.
—Pode continuar me chamando de Vivien. A estas alturas, já estou acostumada; além disso... Não queria escolher outro nome errado. Só quero descobrir o meu.
— Na verdade, alegra-me de que não seja Vivien. - murmurou ele, brincando ainda com a mecha de cabelos, enquanto a olhava fixamente. – Estou mais que satisfeito que nenhum homem a tenha tocado, somente eu.
Ela titubeou e em seus olhos azuis apareceu uma expressão interrogante quando o olhou.
—A mim também.
Olharam-se profundamente durante um momento que pareceu interminável, sumidos na lembrança do que aconteceu entre eles em instantes atras e no pensamento de como isso tinha mudado tudo. Grant pensou no modo em que a tinha tratado e se sentiu profundamente pesaroso. Tinha ficado em uma situação insustentável. Precisamente ele, que tinha dirigido sua vida de um modo tão eficiente, tão cuidadoso. Agora, apaixonou-se contra sua vontade, para acabar descobrindo que ela não era a mulher que ele pensava que fosse, e depois lhe tinha arrebatado, sem querer, a virgindade. Via-se ante uma brutal dor na consciência. A única alternativa que ficava era lhe dizer a verdade e descobrir suas próprias mentiras, na esperança de que ela pudesse perdoá-lo e voltar a confiar nele. Mas, mesmo que assim o fizesse, ele tinha todas as possibilidades de perdê-la quando ela recuperasse a memória e voltasse para sua vida anterior.
Grant jamais havia sentido semelhante responsabilidade em relação a uma mulher, nem um vínculo emocional e físico tão intenso como o que agora sentia. O ato sexual parecia novo, quase, como se ao apoderar-se de sua inocência ele tivesse recuperado parte da própria, de algum modo. Quis voltar a lhe fazer o amor, lhe ensinar, explorar e compartilhar com ela. Embora antes dessa noite ele tivesse admitido, a contra gosto, seu amor por ela, agora seus sentimentos cheios de promessa, de maravilhas; tinha desaparecido todo rastro de amargura. Sentia-se humilhado, torpe, quase, como um terrível apaixonado cujas únicas esperanças de felicidade adoecessem de uma estranha precariedade.
Grant, impaciente, perguntou-se onde estaria Kellow e por que demorava tanto em cumprir com um pedido tão singelo. Abriu a porta e observou o corredor em sombras. Seu pé roçou a borda de um objeto no chão. Olhou para baixo e viu uma bandeja sobre a que havia uma grande jarra com água quente, panos de lavar, conhaque e uma taça. Kellow tinha demonstrado seu tato deixando a bandeja junto à porta.
Grant levantou a bandeja e fechou a porta com o pé. Voltou junto à cama e apoiou a bandeja sobre a mesinha de noite.
—Venha. - disse, entregando um pano a Vivien.
Ela enxugou seus olhos carregados de lágrimas e soou o nariz com um infantil vigor que lhe fez sorrir. Ele encheu de água quente uma terrina de louça, molhou outro pano e o escorreu. Vivien, envergonhada, deu volta ao rosto rosado e inchado, enquanto ele começava a limpá-la. O pano morno passava sobre sua pele delicada apagando os rastros salgados das lágrimas que tinham ficado sob seus olhos e em suas bochechas.
Em voz baixa, lhe indicou que se recostasse, e ela obedeceu. Ele molhou de novo o pano e começou a lavá-la como se ela fosse uma menina. Lavou-lhe debaixo dos braços, o peito, o estômago, as pernas. Seu semblante sereno a contagiou sua serenidade e, pouco a pouco, ela se afrouxou e não resistiu nem sequer quando ele a lavou entre as pernas. Empreguou outro pano limpo para tirar todo rastro de sangue e de sêmen.
E embora ele o fizesse com a maior delicadeza possível, o íntimo de seus cuidados fez que ela se crispasse sem poder evitá-lo.
Quando tinha terminado a tarefa, cobriu-a com as mantas, despiu se e lavou seu próprio corpo. Apagou o abajur deixando o quarto em escuridão e se meteu na cama ao lado dela. Embora esgotada, Vivien, ainda acordada, permaneceu imóvel quando o peso do Grant afundou o colchão.
—O que está fazendo? - Perguntou ela, em um sussurro.
—Abraçoando-a.
Com parcimônia, lhe beijou a têmpora, a curva da orelha, o flanco do pescoço, deslocando sua boca sobre ela em passadas leves e cálidas. Vivien piscou, pigarreou e separou dele.
—Outra vez, não. - disse insegura—. Estou muito cansada.
Ele sentiu que não viu seu rubor quando ela acrescentou: —E inflamada.
—Não a machucarei, prometo-lhe isso.
Beijou um mamilo dela e o roçou com a língua até que sentiu que se convertia em um casulo sensível.
Sustentou ambos os seios com suas mãos e se atrasou primeiro em um, logo no outro, até que Vivien exalou um suspiro tremendo e levou as mãos à cabeça dele. Ao princípio, ele acreditou que ela pretendia apartá-lo, mas sentiu que seus dedos agarravam sua cabeça e que o atraíam para ela. Ele apertou os quadris dela com suas mãos e foi deixando um rastro de beijos que desceu até o umbigo de Vivien. Com sua língua em ponta, cravou brandamente a diminuta pele uma e outra vez. Quando sua boca iniciou um atalho candente em direção às coxas da moça, ela afogou uma exclamação e se cobriu com a mão.
—Espere-disse, e ressonou em sua voz uma nota suplicante.
—Não posso.
Ela ofegou quando ele começou a beijá-la através da barreira de sua mão, pinçando entre as separações dos dedos. Sua boca se posou sobre o dorso da mão dela e riscou pequenos círculos molhados com a ponta de sua língua até que todo o corpo de Vivien sentisse cócegas de excitação e de surpresa.
—Tira a mão. -o indicou com voz rouca, atirando com suavidade seu punho.
Ela seguiu cobrindo-se e ele foi lambendo cada um de seus dedos rígidos, da base para a ponta. Sua língua era ágil, infatigável e brincava com os punhos, a mão e os dedos de Vivien, até que ela gemeu e já não pôde seguir suportando-o.
—Me deixe fazer o que quero maldição. - sussurrou ele com ternura. - Tire a mão, querida.
Ela acessou, descobriu o lugar que tinha estado protegendo, e Grant lançou um murmúrio de satisfação.
Roçou com o nariz a suave mata de cachos vermelhos e, empregando os dedos, fêz-la abrir-se. Bastou uma só passada de sua língua pela salgada cova para sentir que todo o corpo dela se estremecia. Depois outra vez, ele se atrasou nessa ávida exploração, estimulando-a, assolando-a, até que seus próprios sentidos começaram a girar em um espiral de prazer.
Grant sentiu que ela empurrava sua cabeça, mas sem fazer caso do débil gesto, concentrou-se nessa carne delicada que tinha sob a língua. Os dedos dela tremeram em sua cabeça e seus quadris se elevaram em involuntária oferenda. Ela já não podia conter sua reação, pois seu corpo transbordava de desejo e se esticava seguindo um ritmo inconfundível. Ele soube que, nesse momento, poderia fazer com ela o que quisesse e, por um instante, sentiu a tentação de elevar-se e investir penetrando sua palpitante calidez. Mas o desejo de sentir em sua boca o orgasmo dela era igualmente poderoso, por isso permaneceu onde estava movendo a língua em rápidos arremessos até que ela reprimiu um grito e foi sacudida por um comprido e doce estremecimento de prazer.
—Oh... —exclamou Vivien, entre ofegos—. Eu não sabia... Jamais teria imaginado...
Seu corpo tremia com violência; Grant se incorporou e a atraiu para o refúgio de seu peito.
Grant oprimiu sua boca contra o cabelo de Vivien e beijou a úmida cabeça.
—Isto não é mais que o começo. - prometeu ele. - É uma amostra do gozo que sentirá comigo.
Ela se tinha jogado voluntariamente ao fogo. Se queimasse, a culpa seria só dela. Esse foi o primeiro pensamento que foi à mente de Vivien quando despertou mais tarde, seu corpo estendido em diagonal sobre a larga cama. Sentiu acender-se dentro dela um fio de esperança, ao pensar que talvez tivesse sonhado um sonho muito real.
Mas no travesseiro sobre a qual apoiava sua cabeça persistia uma fragrância masculina e, sob o lençol e a manta, ela estava nua. Entreabriu os olhos turvos de sono. Quando apartou as mantas, viu rastros de hematomas nas brancas pernas e quadris, como se alguém a tivesse agarrado com muita força.
Doíam-lhe partes de seu corpo que jamais lhe tinham doído até então. Notava uma pontada entre as coxas causada pela inflamação e sentia os músculos internos das pernas e joelhos como se tivessem feito um grande esforço. Também lhe doíam os ombros e o pescoço. No preciso momento em que evocava com desejo um banho quente, alguém entrou na habitação.
Vivien atirou das mantas cobrindo-se até o queixo quando viu que Grant se aproximava da cama. Ele já havia se banhado e se vestido. Barbeou-se e tinha o cabelo úmido, pulcramente penteado. Essa manhã tomou-
se muito trabalho com sua aparência: a gravata de seda negra estava atada com precisão, a camisa, engomada, contrastava com a imaculada jaqueta cinza e o colete negro. As calças cinza pérola estavam sujeitos com correias sobre as botas negras lustradas até despedir um brilho segador.
Vivien fixou seu olhar nos olhos verdes e alertas do homem e se sentiu transbordada por sentimentos contraditórios. Ela não podia culpá-lo por lhe haver arrebatado sua virgindade, e não o faria. Ofereceu-se a ele porque ela quis. Eles tinham compartilhado a experiência, mas intima que podem compartilhar um homem e uma mulher; uma parte dela o celebrava. Mesmo assim, não podia admitir em voz alta seu amor por ele. Teria que ocupar-se de assuntos muitos mais urgentes... Como também de certas suspeitas que se agitavam no fundo de sua mente.
Grant se aproximou dela, tomou o rosto com as mãos e se apoderou de sua boca em um beijo longo e ardente.
—Bom dia. - murmurou ele, com leve sorriso.
Olhou-a de um modo, com uma expressão tão acesa pela intimidade, que ela se ruborizou.
—Você não teria que estar na Rua Bow? —Perguntou ela, com voz espessa a causa do sono.
A julgar pela intensidade da luz que inundava o quarto, a manhã estava avançada. Em geral, quando o sol ainda não tinha completado sua ascensão, Grant já tinha partido.
—Esta manhã não irei ao quartel da Rua Bow. - replicou ele, aproximando dela e afundando com seu peso um dos lados do colchão.
Ela pensou em uma resposta enquanto sua mão pequena retorcia o lençol.
—Por ontem à noite? —Perguntou ela.
—Iremos ver o Linley.
—Eu não preciso de um médico. - disse ela, inclinando-se para ele para aspirar sua picante fragrância masculina. - A maioria das mulheres sobrevive a primeira vez sem necessidade de recorrer a um médico.
—Possivelmente seja eu quem necessita de um médico. - disse ele, sardônico, esfregando a bochecha contra os sedosos fios de seu cabelo enredado. - O diabo é testemunha de que, ontem à noite, foi uma tão doloroso para mim assim como foi para você. - comentou tornando-se um pouco para trás e olhando o semblante preocupado dela; logo adicionou com suavidade. - Seria conveniente que você estivesse presente enquanto eu falo com o Linley, tesouro. O bom do doutor nos deve alguma resposta a certas perguntas.
Ele se estirou sobre a cama, recolheu o que parecia uma pilha de seda de cor Borgonha, sacudiu-o, e ela descobriu que era uma bata, que ele sustentou para que ela a pusesse. Vivien tratou de passar os braços pelas mangas sem deixar de cobrir seus seus.
—Vi milhares indícios de sua inocência - comentou ele, liberando com cuidado os cabelos dela do objeto, de modo que flutuasse solto, sobre as costas. Em um tom baixo de pesar, e com um escuro rubor que subia até as bochechas a ponta do nariz. - Até ontem à noite, acreditei que eram todos falsos. Não passou pela minha cabeça que você pudesse não ser Vivien Duvall.
Tomou uma mão dela, e levou ao seu rosto apertou a palma contra sua bochecha. Roçou com sua boca a leve seu punho.
—Me perdoe. - murmurou, com evidente esforço que demonstrava o quão difícil que lhe resultava pronunciar a palavra.
—Não há nada que perdoar. - respondeu Vivien, sentindo que a tensa bochecha barbeada lhe provocava um comichão. - Não me fez mal. Abrigou-me e me protegeu; eu... Continuarei confiando em você.
Entretanto...
Interrompeu-se, procurando as palavras adequadas, mas sem as achar.
Grant baixou a mão e a olhou com preocupação.
—Sim, contudo? —Perguntou com uma ruga entre suas sobrancelhas negras.
—Penso que não deve haver mais intimidade entre nós. - conseguiu dizer ela, com esforço. - Ao menos, por um tempo.
O semblante de Grant permaneceu inexpressivo, mas ela, de todos os modos, percebeu que estava preparando inumeráveis argumentos.
—Por quê? —Perguntou.
Vivien se envolveu melhor na bata e reunindo toda a dignidade que pôde, respondeu: —Preferiria não explicá-lo agora.
Aliviada, que ele não insistisse, embora era indubitável que não estava de acordo, absolutamente, com seu pedido, menos ainda disposto a aceitá-lo. Mesmo assim, lhe dirigiu um sorriso transbordante de encanto.
—Não fugirá de mim, sabe disso? - Disse ele com suavidade.
Vivien conteve uma gargalhada irônica, tão comovida como assustada ao compreender que ele estava resolvido a conquistá-la. Deixou-se acompanhar ao quarto de banho, onde tinham deixado uma fileira de toalhas sobre um aquecedor junto ao fogo; ali havia uma banheira de assento esmaltada cheia de água fumegante. Era tão larga que formara uma cauda de seda; ela teve que recolher punhados de tecido para não tropeçar.
—Eu a ajudarei no banho. - se ofereceu Grant.
—Não, obrigada. - replicou ela com firmeza. - Quero ter uns minutos de intimidade, por favor.
—A esperarei no quarto.
Enquanto deixava que a água quente aliviasse suas dores menores, Vivien procurou um momento de trégua para descansar das aflições que a atormentavam. Mas nada podia as conter. As perguntas a torturavam uma e outra vez: perguntava-se quem era e o que era, em realidade. Sem dúvida, não era filha de um aristocrata de origem elevada, ela não se sentia como alguém da nobreza. Tampouco era uma cortesã. Não tinha nome, família nem memória. Sentia-se naufragar de novo, sentia-se insignificante, frustrada e indefesa.
E se alguma vez descobrisse quem era ela, na verdade? Seria possível formar uma nova vida sem saber nunca o que e a quem poderia ter deixado atrás: amigos, família, possivelmente um homem a que amava?
Chegou uma criada para ajudá-la com o banho, levando consigo um vestido confeccionado em luxuosa casimira verde. Esse objeto tão singelo se aderia aos contornos de seu corpo e se fechava no custódio esquerdo com um broche dourado. As mangas estreitas estavam terminadas. Com uma cinta verde, igual o amplo pescoço em forma de echarpe. O profundo decote levava um suplemento de nível encaixe, que contrastava com o suave matiz de pedra preciosa da casimira. A criada trançou o cabelo ainda úmido de Vivien e o arrumou em coque sobre no alto da cabeça.
Vivien agradeceu à criada e foi para a porta do dormitório onde a aguardava Grant. Titubeou antes de entrar, tentando reunir valor para lhe fazer a pergunta que pesava em sua mente. Quase tinha medo de conhecer a resposta, mas sabia que comportar-se com covardia não era bom para ninguém; menos ainda para ela. Era preciso enfrentar a verdade cara a cara, por desagradável que fora. Quadrou os ombros e entrou no quarto.
Grant estava sentado em uma cadeira junto à janela; ficou de pé imediatamente dirigindo seu olhar para ela.
—Como se sente? —Perguntou em voz baixa.
Ela tratou de sorrir, mas tinha os lábios muito tensos.
—Eu penso que... começou a dizer, e tragou saliva. - Penso que há algumas coisa que ainda não me disse, não é?
A expressão do homem não revelou nada.
—Por exemplo?
—Quereria saber que relação tinha com a verdadeira Vivien.
Capítulo 12
Grant fez que Vivien se sentasse em uma cadeira estofada de damasco e logo se sentou junto a ela.
Inclinou-se para diante, apoiou os braços sobre os joelhos e contemplou as brasas da chaminé durante um tempo que pareceu interminável. Quando em fim falou, Vivien. Não gostou do modo escrupuloso em que formava suas palavras, como se dispusesse a apresentar uma situação repugnante do modo mais suave que fosse possível.
—Muito bem. - disse, por fim Grant, lhe lançando um olhar desconfiado. - Tem todo o direito do mundo de conhecer meu comportamento com relação a Vivien Duvall... Mas, antes, me deixe dizer... — Interrompeu-se, como se fosse difícil falar; de seus lábios escapou uma maldição. - Maldita seja. Olhe que tenho feito muitas coisas em minha vida, poderia fazer uma lista de meus pecados de um quilômetro. Alguns deles os cometi por uma questão de sobrevivência; outros, por pura cobiça e egoísmo. E me arrependo. Mas não me arrependo tanto de nenhum de dos pecados cometi como do fato de ter mentido para você. E te juro por minha vida, não, juro sobre a tumba de meu irmão que jamais o voltarei a fazer.
—Mentiu para mim? - Perguntou Vivien.
O seguiu com seu olhar cravado no fogo e não respondeu. Ela contemplou seu perfil, e começou a entender.
—Com respeito a Vivien Duvall? – Adivinhou. -Ela nunca foi sua amante... Não é assim? Jamais te deitaste com ela, como afirmou havê-lo feito. Mas, por quê? - Perguntou, olhando-o com absoluta perplexidade. - Por que teve que mentir em algo assim?
Grant precisou lançar mão de toda sua disciplina para suportar o peso inflexível de seus olhos claros.
Nunca tinha tido dificuldades para se responsabilizar por suas maldades. Sempre explicava alegremente seus enganos, assinalando que ele, afinal de contas, não era mais que um ser humano. Neste caso, não podia mostrar-se tão desaprensivo e saltar por cima desse fato e esquecê-lo. O que tinha feito era aproveitar-se de uma pessoa, de uma mulher e, para o cúmulo, tinha exercido sua mesquinha vingança sobre a pessoa errada.
A culpa adicionou pesar a sua voz quando respondeu: —Eu quis me vingar, porque Vivien tinha divulgado, em todas as carriolas de Londres, uma mentira com respeito a mim. A noite que eu te encontrei e te trouxe aqui tinha decidido me deitar com você, como uma maneira de curar meu orgulho ferido.
—E depois, o que iria fazer? Deixá-la? Feri-la, em vingança pela vergonha que ela tinha feito cair sobre você?
Ele assentiu com um só gesto da cabeça. Vivien fez uma profunda inalação. Possivelmente tivesse devido sentir-se melhor ao saber que não tinha sido ela alvo de Grant, a não ser outra mulher, mas não se sentia melhor. Não queria acreditar que ele fosse capaz de semelhante baixeza, de um ato tão desonroso. E lhe doía de uma maneira espantosa saber que, para ele tinha sido só uma vingança o que para ela tinha sido um ato de entrega.
—Entendo.
—Não, não entende.
—Não se importou que eu estivesse machucada e indefesa—murmurou ela. - Pior ainda: meu estado deixou as coisas mais fáceis.
Nos olhos do homem apareceu uma expressão de frustração e ela percebeu a súbita ebulição de suas emoções sob a superfície de aparente controle.
—Tudo saiu mal desde o começo. Você não se comportou como a mulher que eu pensei que fosse A calma de Vivien se esfumaçou; sentiu no mais profundo de seu ser a sensação de ter sido traída.
—Você foi a única coisa sólida para mim, a única pessoa em que podia confiar... E mentiu desde o começo.
—Só com respeito a nossa suposta aventura.
—Só? —Repetiu ela, irritada ao ver que ele tentava tirar importância a suas ações. - E se eu tivesse sido a verdadeira Vivien, e se fosse tão promíscua, egocêntrica e desagradável como você supunha? Isso não desculpa, absolutamente, seu comportamento.
—Se eu soubesse quem era em realidade... Ou quem não era, jamais te teria feito dano.
—Mas fez. - respondeu isso ela com amargura.
—Sim, o dano parece. - admitiu ele em tom despojado de emoções—.O que posso fazer agora é tratar de reparar o dano e te pedir que me perdoe.
—Que eu operdoe? - Perguntou ela. - Veremos se Vivien o perdoa.
Grant a olhou como se, de repente, ela houvesse ficado louca.
—Quer que me apresente ante essa mulher com o chapéu na mão ?
—É a única reparação que aceitarei. - disse ela, olhando-o sem pestanejar. - Quero que quando encontrar Vivien peça desculpas pelas cruéis intenções para com ela. Se ela te perdoar, eu também te perdoarei.
—Quer que eu peça desculpa a Vivien. - repetiu ele, subindo o tom até alcançar um volume de trovão. Mas eu não me deitei com ela. Deitei-me com você.
—Me diga; se na verdade te tivesse deitado com ela como tinha planejado, estaria arrependido?
—Não. - respondeu ele secamente.
—Isso significa que não se arrependeria de ter manipulado e enganado a alguém, se pensasse que essa pessoa merecia? - Perguntou com o rosto tenso por causa da decepção e aborrecimento. - Não achei que fosse capaz de semelhante crueldade!
—Já disse o que sinto, maldita seja!
—Mas não o sente. - respondeu ela com suavidade. - Não se arrepende de ter urdido esse plano tão horrível, só lamenta não ter ferido à pessoa a que queria fazer mal. Jamais poderia amar a um homem que se comportasse assim.
Ela sentiu certa satisfação ao ver como ele se esforçava por controlar sua ira. Ele fechou os olhos e conseguiu reprimir a explosão, embora seu rubor se intensificasse e sua mandíbula se estremeceu sacudido por um tic visível.
—É hora de partir. - disse Grant, ao fim. - Já avisei a Linley.
Embora a residência do doutor Linley estivesse a curta distância e poderia ir caminhando. Grant tinha ordenado que preparassem seu carro. Durante a viaje reinou um incômodo silêncio; por fortuna, foi breve.
Vivien jogava frequentes olhares ao enorme e carrancudo homem que estava sentado diante dela. Grant se achava em um estado de cólera contida, mais que estava disposto a extravasar... Embora não tivesse com quem fazê-lo.
Vivien suspeitava que devesse estar pensando na discussão que tinham tido e argumentando interiormente contra todos os argumentos que ela tinha exposto. Ela ansiava dizer algo que o aliviasse, abrandá-lo com algumas palavras suplicantes, até enrolá-lo para convencer lo de aceitar seu ponto de vista. Mas manteve a boca fechada: Ele teria que resolver sozinho esta questão. Ela sabia que não gostava da verdadeira Vivien, mas isso não desculpava seus atos. Nenhum homem tinha direito a mentir a alguém ou a aproveitar-se dessa pessoa só porque não o respeitasse. Chegaram à casa de Linley, uma entre uma larga fila de residências com fachadas de estilo grego cobertas de imaculado estuque branco e adornadas com colunas. Grant ajudou a descer do carro e subiram juntos uns breves lance de escada; ali foram conduzidos imediatamente ao interior da casa pelo mordomo. O doutor Linley os aguardava na biblioteca, uma habitação pequena e ordenada, coberta de estantes de livros e mobiliada com cadeiras Hepplewhite com respaldo em forma de escudo e uma mesa que fazia jogo com elas.
Linley os saudou com cordialidade e fez sentar Vivien em uma poltrona junta a escrivaninha. Sorriu e apartou uma mecha de cabelos loiros que lhe tinha cansado sobre a frente.
—Senhorita Duvall - murmurou o doutor. - espero que se sinta melhor.
Vivien abriu a boca para responder, mas logo voltou a fechá-la. Cravou a vista no médico e soube que estava avermelhando ao cair na conta de que o objeto principal da visita era comentar o descobrimento de sua virgindade e sua relação com o caso dela. Como tinha chegado ela a cair em uma situação tão ignominiosa?
Linley a olhou com certa perplexidade e logo voltou sua atenção para Grant, cuja expressão era pétrea.
Nos olhos cinza do médico apareceu uma faísca de interrogação.
—Morgan tive que cancelar duas entrevista depois da mensagem que me enviou esta manhã. - comentou ele. -Faria-me o favor de explicar a urgência desta visita?
—O caso da senhorita Duvall tomou um giro inesperado. - respondeu. - Suponho que leva um histórico de seus pacientes. Queria ver a da senhorita Duvall, sem que omita nenhum detalhe.
—O histórico só podemos vê-la senhorita Duvall e eu—replicou Linley sem alterar-se.
—Tem importância para minha investigação. - explicou Grant; interrompeu-se, incômodo, com seus narizes dilatados. - Diga-Me, Linley, quando examinou a senhorita Duvall, ela era virgem?
Com expressão perplexa, o doutor olhou primeiro a cabeça baixa de Vivien, logo o rosto de Grant.
—É obvio que não. - respondeu ele, tiroteando uma mecha dourada que tinha cansado de novo sobre sua frente.
—Bom, pois ela o é... Ou, mas bem, era, até ontem à noite.
Fez-se o silêncio na habitação. O doutor cuidou de manter uma expressão composta.
—Está certo disso? —Perguntou, olhando a ambos Vivien avermelhou e não pôde olhá-los.
—Não sou um rapaz inexperiente Linley. - respondeu Grant.
Linley se esforçou por empregar um tom sensato.
—Então, esta não é a mulher que eu examinei. Vivien Duvall estava no começo de uma gravidez. Quando a vi em sua casa, supus que teria tido um aborto, talvez espontâneo ou possivelmente provocado. Observei que o útero tinha recuperado seu tamanho normal e que não havia hemorragia. Não me incumbia fazer um comentário com respeito a sua decisão. E eu não estava tratando de comprovar sua virgindade.
—Cristo. - exclamou Grant, olhando Vivien enquanto absorvia essa informação. Ao comprovar que ela não se surpreendia com a notícia, seus olhos verdes se entrecerraram suspeitas. - Você sabia , disse. De algum jeito você sabia da gravidez.
—É provável que o filho fosse de lorde Getard. - disse ela. - Ele me disse isso quando estivemos conversando ontem à noite no jardim.
—Por que diabo não me disse isso?
—Imaginava sua reação se pensasse que eu teria interrompido a gravidez. - respondeu ela. - Você sempre me desprezou. Por isso decidi reservar essa informação durante um tempo.
Grant respondeu com uma enxurrada de maldições e olhou o médico com ar ameaçador.
—O histórico, Linley. Quero saber se houver outros detalhes menores que me esteve ocultando.
Muitos homens se haveriam sentido intimidados ante esse gigante furioso que Linley tinha ante si, mas ele não demonstrou a menor inquietação.
—Está bem, Morgan, pode ver o maldita histórico. Mas antes falarei com a senhorita Duvall... Bom, quero dizer, com esta jovem, a sós.
—Por que a sós? —Perguntou Grant.
—Porque acima de tudo devo me ocupar de seu bem-estar. Eu atendi a mulheres recém casadas com ataques de histeria depois de sua noite de bodas. Além disso, eu gostaria de comprovar por mim mesmo que ela está bem e não contribui à tranquilidade de seus nervos.., nem à minha, tampouco. Que você esteja passeando de um lado a outro como um javali furioso.
—Nervos! - Soprou Grant, desdenhoso, torcendo a boca. - Os nervos dela estão bem -disse, embora lançasse um rápido olhar ao rosto voltado de Vivien, em um súbito impulso de preocupação. - Não é assim?
Ela não respondeu; seguiu sentada, retorcendo as mãos sobre seu colo.
—Fora – ordenou Linley com firmeza, desfrutando do estranho privilégio de dizer a Grant o que devia fazer. - Você conhece a casa, velho amigo. Vá se divertir na sala de bilhares. Beba uma taça ou fume um charuto. Em uns minutos, mandarei alguém para busca-lo.
Da garganta de Grant brotou um grunhido de advertência, mas os deixou, embora a contra gosto.
Vivien elevou a vista quando Linley se aproximou dela. Preparou-se para receber uma censura; em troca, só encontrei bondade e preocupação em seus olhos cinza. Linley pediu permissão para sentar-se em uma cadeira perto dela e a observou com um suave sorriso.
—Detrás de todos esses grunhidos e bravatas se ocultava um dos melhores homens que conheço-comentou ele. - Morgan é talentoso em muitos sentidos, mas não quanto às mulheres. O que quero dizer é que não está acostumado a seduzir a moças inocentes.
—O queria vingar-se de certa maldade que lhe tinha feito Vivien. - Respondeu ela em voz amortecida. -
Pensava deitar-se com ela e deixá-la depois.
Linley moveu sua cabeça.
—Isso não é próprio dele. - disse pensativo.
—Agora quer reparar o dano feito, é obvio. - disse Vivien. - Acredito que, inclusive, está tentando convencer-se de que me ama.
—Eu diria que depois do que aconteceu você merece qualquer compensação que Morgan esteja disposto a lhe oferecer.
—Não. - murmurou ela. - Não quero compensações... Eu só quero saber quem sou.
—É obvio. - admitiu o médico, olhando-a com franca simpatia.- Temo que eu não possa fazer grande coisa para ajudar-la. Contudo, ao menos gostaria de lhe assegurar que as moléstias que você sente são passageiras. Tudo se faz, mas fácil nas proxímas ocasiões.
Em lugar de lhe esclarecer que não haveria seguintes ocasião, Vivien assentiu brevemente.
—Entendo. - disse ela. - Não é necessário dizer nada mais, doutor Linley. - Dirigiu-lhe um sorriso reconfortante.
—Fique comigo um momento mais. Eu quero que você entenda que quando um homem e uma mulher fazem amor deve haver sinceridade, afeto e confiança. Não se entregue a um homem salvo que esteja convencida de que compartilha essas coisas com ele. Nesse caso. Se trata de uma experiência estupenda que não deveria perder-se.
Vivien pensou no homem que estava rondando pela casa enquanto eles falavam e sentiu em suas vísceras um espasmo de desejo. Perguntou se teria valor suficiente para voltar a confiar nele e se ele seria digno de tal confiança.
—Morgan é um bom tipo. - lhe assegurou Linley, como se tivesse lido os pensamentos. – É arrogante, obstinado, mas também é compassivo e valente. Espero que não se dê por vencida logo, querida minha. Sobre tudo, em vista do que ele sente por você.
— Por mim? —Perguntou Vivien, assombrada. - Não sei a que se refere.
O doutor sorriu irônico.
—Faz cinco anos que conheço Grant Morgan; jamais o tinha visto no estado que está hoje por causa de uma mulher. A culpa é a mais insignificante das emoções que estão lutando dentro dele.
—Se estiver você tratando de sugerir que ele está apaixonado por mim...-Começou a dizer Vivien, receosa.
—Não importa o que eu esteja sugerindo. O fato é que ele está apaixonado por você. - disse Linley, indo para a porta. Antes de abri-la disse, em tom prático. - O que acontecer daqui em diante depende de você.
Linley encontrou Grant na sala de bilhar, sentado em uma cadeira ante a mesa coberta de pano de chão, com o braço e o queixo apoiados na borda. Fazia rodar várias bolas de marfim em diversos caminhos, as impulsionando para uma fresta em uma esquina, onde havia uma rede de seda verde que as recolhia. Falou enquanto seguia com a vista o percurso das bolas.
— Como está ela?
—Se tivermos em conta tudo o que teve que suportar na noite em que foi tirada do rio, muito bem. É uma moça resistente.
Grant sentiu que algo se desenredava em sua garganta. Confiava em Linley. E poderia considerar-lhe um perito, sabendo que fazia tempo que tinha atendido as diversas doenças físicas e emocionais femininas em Londres. Grant agarrou a última bola de marfim, cobriu-a por completo e a fez rodar com suavidade para a fresta.
—Há um assunto que queria esclarecer com você, Linley. - murmurou, - seu silêncio com respeito a gravidez da verdadeira Vivien...
—Eu estava obrigado a guardar silêncio. - disse Linley em tom realista. - O dia que me visitou, a senhorita Duvall deixei claro que o futuro desse menino, e possivelmente o dela, dependiam da discrição. E, embora ela tivesse certa tendência ao dramático, eu acreditei. Ela não se mostrou muito contente quando lhe confirmei a gravidez, e partiu com suspeita urgência. Como se tivesse medo de algo... Ou de alguém.
—Tinha que haver me dito isso antes! —Exclamou Grant, ficando de pé e mexendo distraído seu curto cabelo. Pelo amor de Deus, alguém está tentando matá-la! Sua gravidez poderia ser uma das chaves mais importantes para saber o que lhe aconteceu e por que.
—Morgan. - disse o médico com calma. - sabe qual seria meu futuro se soubesse que eu divulguei informação confidencial sem o consentimento da mulher? Sabem quantas pacientes minhas se vêem obrigadas a manter em segredo as circunstâncias de seu estado, por um motivo ou outro?
—Posso imaginar. - Pespondeu Grant, irônico.
Frequentemente, as damas respeitáveis de Londres escapavam a seus matrimônios de conveniência, sem amor, tomando um amante. Em ocasiões, faziam passar a seus filhos ilegítimos como se fossem de seus maridos. Não cabia dúvida de que o popular doutor Linley era o depositário de muitos segredos.
—Compreendo o conceito de discrição. - seguiu dizendo Grant. - Mas, o mais provável é que a verdadeira Vivien esteja viva e se oculte em alguma parte. É quase certo que esteja grávida; sem dúvida, está em perigo e a moça que viu hoje, aqui, também está em perigo. Portanto, se lembrar algo a respeito do que disse Vivien aquele dia, fará bem em me dizer isso.
A boca de Linley se estendeu em um sorriso.
—Está bem. Mas, antes que voltemos para a biblioteca a revisar meus históricoa, queria te dar um conselho. É a respeito de Vivien... Quero dizer, da jovem que está nos esperando. Como se compreende, não tem muitos desejos de comentar sua recente, experiência com você, mas me parece uma moça bastante sensata e não acredito que tenha sofrido muito.
—Você tinha pensado que passar uma noite comigo bastaria para lhe dar um susto de morte? -Perguntou Grant com atitude.
A boca de Linley se distendeu em um sorriso sem humor.
—Surpreenderia-te saber tudo o que descobre um médico em relação com as mulheres, Morgan. Atendi a algumas tão refinadas que não podem pronunciar palavras tais como “estômago” ou “seio”. Há mulheres que não tem valor para me dizer o que lhes passa; por isso tenho uma boneca de trapo em uma gaveta de meu escritório, então lhes peço que assinalem a parte do corpo que lhes dói. Advirto-o: são mulheres adultas, casadas. Em ocasiões, suspeito que finge escrúpulos, mas não há dúvida de que existem aquelas que se sentem muito incômodas com os assuntos referidos a sua sexualidade e seu organismo.
—Graças a Deus, Vivien não é tão delicada.
—Tem razão. - disse o médico. - mas até nesse caso, poderia acontecer que ela albergasse certos temores íntimos que só você, ou seu próximo amante, seriam capazes de acalmar.
—Não haverá um “próximo amante”. - respondeu Grant, de maneira automática, indignado ante a só idéia. - Eu sou o único homem que ela terá.
—Bom, para a maioria das mulheres, a segunda experiência sexual é mais importante, ainda, que a primeira, posto que confirme ou desmente seus piores temores. Em minha opinião de profissional, a maioria das mulheres que atendo e que afirmam serem frígidas por natureza, em realidade foram tratadas com estupidez por maridos ou amantes.
Grant lhe lançou um olhar candente.
—Sei agradar a uma mulher, Linley. Ou acaso te dispõe a expor sua vasta experiência com as mulheres?
O doutor lançou uma súbita gargalhada.
—Não, deixarei essa questão com vocês. Capazes mãos.
Voltaram para a biblioteca e encontraram Vivien junto a uma estante repleta de enormes volumes médicos e científicos. Seu olhar se transladou da fila de livros com títulos gregos e latinos ao rosto de Grant.
Trocaram um olhar cauteloso; ela se perguntou do que teriam falado Grant e Linley. Ele primeiro mostrava uma expressão zangada, com suas negras sobrancelhas franzida. Pressuroso, o doutor Linley rebuscou em seu gabinete e suas gavetas até que tirou um magro maço de papéis atados com uma corda.
—Ah, aqui está-exclamou, estendendo os papéis sobre a mesa da biblioteca. Imediatamente, Grant se aproximou dele. Vê? —Continuou Linley, seguindo com o dedo as notas escritas na página. - Nada fora do normal, exceto...
Manipulou as folhas até que, de súbito, um pequeno papel quadrado deslizou e caiu flutuando ao chão.
Vivien se apressou a recolhê-lo. Era uma carta selada com cera marrom e dirigida a V. Devane, White Rose Cottage, Forest Crest, Surrey.
—Que é isso? —Perguntou Grant.
Vivien permaneceu calada enquanto fixava a vista na carta. Algo na maneira em que se agrupavam as palavras, a frase “White Rose Cottage”, tocou suas lembranças adormecidas que a agitou. Seus lábios se abriram e leu a direção uma e outra vez.
— Linley? —quis saber Grant, interrompendo a concentração do Vivien.
O médico se encolheu de ombros, e adotou um ar envergonhado.
—Por Deus, tinha esquecido isso.
—De onde saiu?—Perguntou Grant, impaciente.
—A senhorita Duvall o deixou aqui o dia que confirmei seu estado. Como já te havia dito, ela se inquietou o bastante. Em sua pressa por partir, deixou cair à bolsa. O conteúdo se esparramou e ela recolheu tudo. Depois de que ela partiu, descobri que não tinha visto esta carta que, como é óbvio, tinha intenções de enviar a alguém.
Eu pensava devolver-lhe na seguinte visita. Guardei-a com seu histórico para que não se extraviasse.
—E não te ocorreu que esta carta poderia ser importante?
—Sou um homem atarefado, Morgan. - disse o médico, ficando à defensiva, e cruzando os braços magros sobre o peito. - Tenho coisas mais importantes que fazer que me ocupar da correspondência de meus pacientes. Agora bem; se quer pode seguir me arreganhando por um pequeno deslize ou abrir essa maldita carta e lê-la.
Vivien já tinha quebrado o selo. Desdobrou o papel pulcramente dobrado e se encontrou com umas poucas linhas escritas com traços floridos. Algumas das palavras tinham sido riscadas depressa e havia letras sem terminar.
“Não, não deve vir à cidade. Aqui se encontram problemas, mas eu posso me encarregar. Partirei para resolver algumas questões sem importância; depois irei a Surrey. Logo estaremos juntos. Querido...
Vivien”
Vivien, quase sem notar que Grant estava lendo por cima de seu ombro, seguiu com a vista cravada na carta.
—Vivien teria intenções de enviar-lhe a seu amante? —Murmurou ela.
—É provável.
—Você acredita que, talvez, ela esteja aqui, agora? Neste White Rose Cottage?
—Averiguaremos. Hoje mesmo irei lá - afirmou Grant. - Imediatamente depois de ter informado Cannon.
—Quero ir com você.
—Não sabemos quem estará lá nem o que podemos esperar. Estará mais segura aqui.
—Isso não é justo! —Exclamou Vivien. - Se a verdadeira Vivien estivesse em Surrey, eu também quero vê-
la. Talvez ela possa me explicar como acabei ocupando seu lugar. Até poderia saber quem sou eu. Devo ir com você!
—Não. - disse Grant. - Você ficará em Londres, protegida em minha casa. Porei a um policial para que a vigie esta noite, se por acaso eu tiver que ficar mais tempo do esperado.
Ao ver sua expressão desventurada, ele a rodeou com um braço e inclinou a cabeça para lhe dizer em voz baixa: —Não quero pôr em perigo nenhum fio de seus preciosos cabelos. Não sei o que posso encontrar em Surrey... E prefiro que você fique aqui, segura e cômoda. Deixe que eu me ocupe disto.
Vivien assentiu, reconfortada com a preocupação que ele sentia por ela.
— Voltará logo? —Perguntou.
Ele apertou os lábios sobre a testa da moça, e ela sentiu sorrir com a boca apoiada em sua pele.
—Acredite-me... O único lugar do mundo onde quero estar a seu lado.
Durante breve viagem de volta, Vivien manteve a vista fixa na carta que tinha sobre o colo, percorrendo com a ponta do dedo essa letra feminina. V. Devane... O sobrenome era familiar, parecia perturba-la, mas não evocava lembranças concretas, como lhe acontecia com tantas coisas.
—Recorda o pequeno quadro que havia no dormitório de Vivien, junto a sua penteadeira? Perguntou ela.
Era uma cabana com rosas brancas, e estava assinado por Devane. Esse homem deve ter representado muito para que ela conserve o quadro em seu dormitório, vai até ele quando tem dificuldades.
Brinquou com a carta até que Grant estendeu a mão para ela.
—Dê-me isso, se continuar assim a destruirá - disse.
Vivien entregou o papel sem protestar.
—Você acredita realmente que Vivien ainda está viva? - perguntou ela em voz baixa.
Passou sua mão sobre o joelho da moça e pressionou, para reconfortá-la.
—Acredito que sempre cai em pé, como os gatos.
Essa resposta a aliviou.
—Sinto um impulso protetor para ela. Seremos parentes? Acredita que ela e eu poderíamos ser irmãs?
—Parecem-se muitíssimo, poderiam ser.
Ela fechou os olhos e exalou um tenso suspiro.
—Quero saber coisas de minha família... De meus amigos... Quero saber por que ninguém está me procurando. Não é possível que uma pessoa desapareça sem que ninguém note... Não haverá ninguém que sinta falta de mim? —Disse, e sua voz foi debilitando-se até ter um suspiro. - Ninguém que me ame?
—Sim.
Surpreendida, Vivien levantou a vista para o semblante resolvido dele, e seu coração começou a pulsar com força. Maravilhada, pensou que devia estar se referindo a si mesmo.
—Talvez encontre Vivien hoje —disse Grant, e seus olhos verdes se encheram de calidez. – Mas nada mudará entre nós. E quando você recuperar a memória me importará muito do que lembrará e de quem. Pois embora não faça parte de seu passado, tenho intenções de estar em seu futuro.
—Se acaso estiver se referindo a uma maneira de reparar o que aconteceu ontem à noite...—Gaguejou ela.
- já disse que não é necessário...
—Não, não refiro a isso. Estou falando de meus sentimentos por você.
Essas palavras provocaram em Vivien parte iguais de deleite e consternação. Para Vivien não existia melhor coisa que o amor de um homem como Grant Morgan. Entretanto, temia que ele ainda se sentisse culpado por lhe haver arrebatado sua virgindade e não queria que lhe propusesse matrimônio só porque a tinha “tirado”. O mais importante era não representar para ele uma obrigação que lhe tivesse sido imposta. E
tampouco tinha esquecido o que ele disse em uma ocasião sobre o matrimônio. Havia-lhe dito que não precisava de uma esposa. Que não queria ser fiel a uma mulher durante toda a vida. Se ele tivesse falado com menos convicção, com menos cinismo, mas não tinha deixado lugar a dúvidas. Portanto, se sentisse obrigado a ter uma esposa, que na verdade não deseja, poderia ficar profundamente ressentido.
—Não me faça promessas. - rogou ela, lhe tampando a boca com os dedos para lhe fazer calar quando viu que ele pretendia dizer algo. - Ainda não.
Tomou a mão, beijou-lhe os dedos, logo a palma e as delicadas veias do braço.
—Falaremos disso quando retornar.
O carro se deteve; Vivien percebeu que haviam chegado.
—Que tenha boa viagem. - lhe disse, apertando sua mão com força.
—Não se preocupe - respondeu ele. - Penso achar Vivien Duvall e resolver esta confusão infernal.
Depois... —fez uma careta—. Pedirei-lhe perdão, maldita seja.
—Você fará?
Ela o olhou perplexa, entreabrindo os lábios pela surpresa.
—Embora me custe à vida.
Grant esboçou um sorriso torcido.
—Talvez aconteça isso —acrescentou ele, acompanhando a frase com uma breve gargalhada, inclinando-se para lhe roubar um beijo antes de ajudá-la a desembarcar do carro.
Capítulo 13
A pequena aldeia de Forest Crest estava Intacta, e meio escondida entre colinas cobertas de árvores.
Forest Crest tinha duas ruas principais, uma igreja e um prado com acácias. Ao parecer, a libélula era uma espécie de símbolo da aldeia, pois estava esculpida na fachada de alguma tenda e na estalagem da aldeia. E, na verdade, havia muitas libélulas zumbindo pelo ar, no prado. Grant deteve seu carro em um flanco da rua central e foi à padaria do povo. O ambiente era quente e doce; ele inalou com deleite enquanto se internava na loja. Uma mulher roliça e de braços musculosos estava tirando uma bandeja de grandes pães doces de um forno.
—Quer pão recém assado, senhor?
Grant negou com sua cabeça.
—Não, obrigado. Estou procurando o White Rose Cottage... Poderia me indicar onde está?
—Sim. Ali viveram durante anos o professor da escola do povoado e sua filha, os Devane. Eram umas pessoas encantadoras, sempre rodeadas de livros até as orelhas e rodeadas de meninos. Mas o pobre senhor Devane morreu de uma parada cardíaca, faz dois anos. Sua filha ainda vive nessa cabana. Siga pela Rua Cottagc até o beco que há detrás da igreja de Todos os Anjos. Mais adiante, no brejo, verá a cabana. Tome cuidado para não assustar a moça, que é tímida. Faz semanas que não a vemos no povoado. Só vimos à criada.
- a mulher fez uma pausa e perguntou um tanto carrancuda. - Poderia lhe perguntar o que tem a tratar com ela, senhor?
Ele sorriu.
—Pode perguntar, mas eu não vou responder.
A esposa do padeiro lançou uma risada.
—Eu diria que é uma moça afortunada se um jovem grande e arrumado como você aparece ante sua porta. Como é bonito!
Grant retornou ao carro e atiçou aos cavalos com uma sacudida impaciente das rédeas. A ligeira carruagem avançou dando tombos sobre o abrupto caminho até que Grant chegou à cabana de madeira e teto de palha. A pequena construção se elevava ao final do prado, em meio de uma profusão de roseiras. O
silêncio era tão grande que Grant ouvia o zumbido das libélulas e insetos que voavam sobre as flores. O
denso aroma das rosas o rodeou quando se aproximou da entrada flanqueada com dois grossos postes de madeira. A cabana recordava as ilustrações dos contos de fadas, com seu jardim de pedras disposto perto da casa e um regato que corria em meio de um bosque de discos e salgueiros.
Sem notá-lo, Grant conteve o fôlego enquanto golpeava a porta com as mãos em punho. Sentiu um movimentos dentro da casa, algo que se arrastava, um sussurro, uma reação de alerta ante a visita de um desconhecido. Depois de uma espera que pareceu interminável, golpeou de novo. Uma jovem criada abriu a porta; tinha o cabelo dentro de uma touca azul e uma expressão de incerteza em seu semblante.
—Bom dia, senhor. - balbuciou.
—Quero falar com a dama que vive aqui.
—Ela não está, senhor. - disse a moça, que não sabia mentir. - Não há ninguém na casa.
Grant pensou com ironia que nunca ninguém estava “em casa” quando chamava um policial.
—Vá buscá-la - disse em voz suave. - Disponho de pouco tempo Grant empurrou a porta abrindo a de par em par: uma mulher estava na habitação principal da cabana.
Tinha posto um vestido de musselina ramada, e o tênue tecido se esticava sobre seu ventre inchado. O olhar de Grant passou no ventre à pistola que ela sustentava com sua mão pequena e firme.
A arma vacilou um pouco quando a mulher viu a cara do recém-chegado.
—Meu Deus! —exclamou ela—. É você, Morgan?
—Vivien? —Perguntou com um tom carregado de ironia. Ou haverá mais de duas circulando pela Inglaterra? Correio e ainda menos paciência.
A criada ruborizou obviamente perturbada.
—Por favor, senhor, pode partir?
Antes que ele pudesse responder, uma voz fria e aveludada se deixou ouvir do interior da cabana.
—Eu falarei com ele, Jane. Possivelmente isto seja um argumento o bastante convincente para que parta.
Capítulo 14
Vitória. Por fim, tinha descoberto o nome de sua amada. Durante sua viagem de volta a Londres, Grant o tinha repetido uma e outra vez em sua mente. Vitória e Vivien eram gêmeas. Quando começou sua atividade como cortesã, Vivien tinha adotado o sobrenome Duvall. Vitória tinha ficado em Forest Crest com seu pai.
No White Rose Cottage reinava um ambiente quente e acolhedor, embora fosse evidente que os Devane viviam em uma digna pobreza. O lugar estava repleto de livros empilhados em todos os rincões; em sua maioria eram velhos volumes de tampas danificadas. As paredes se achavam cobertas de pequenas pinturas que representavam cenas da aldeia, realizadas em um estilo alegre por um aficionado. Todas elas tinham o mesmo sinal: Vitória Devane.
Depois de ter falado essa tarde com Vivien, Grant ainda custava acreditar que duas mulheres idênticas por fora pudessem ser tão opostas em todos outros aspectos. Vitória era uma inocente dama jovem, típica de uma zona rural, que passava suas horas lendo, dando aulas aos meninos do lugar, pintando, recolhendo flores no campo. Vivien, pelo contrário, amava os prazeres e era egoísta... E guiava sua conduta em um código moral retorcido. Persistia na mente de Grant um fragmento da conversa que ambos tinham tido, quando ele tinha acusado Vivien de atrair, de propósito, a seu inocente irmã, que indo a Londres acabou por desviar o perigo de sua pessoa.
—Jogou-a nos lobos para se salvar. - havia dito Grant, com fria firmeza. - Você queria que a confundissem com você, e assim foi. E, uma vez que se livrou convenientemente dela, decidiu viver aqui e se fazer passar por ela.
A dura acusação crispou o rosto de Vivien, que replicou entre dentes com voz de felino: —Decidi ficar aqui porque não estou em condições de ir em busca de minha irmã perdida. Quase morri de angústia me perguntando onde poderia estar ela, e o que poderia lhe haver passado. Deduzi que ela teria ido a Londres e que, ao descobrir que eu não estava ali, voltaria para cá. Para que saiba, enviei-lhe uma mensagem advertindo que não fosse à cidade!
—Esta? —disse ele, depreciativo, tirando a carta do bolso dianteiro de sua jaqueta.
Vivien recebeu o papel dobrado e o leu rapidamente.
—De onde tiraste isto?
—Deixou-o esquecido no consultório do doutor Linley.
—Não é certo! —Replicou ela com veemência. Eu o despachei assim que... —de repente, interrompeu-se, levou-se a mão aos lábios e sua voz se apagou. - Deveria havê-la enviado. - murmurou, por fim. - Estou quase certa de que enviei a carta, mas.. Tinha tantas coisas no que pensar... Oh, Meu deus! —exclamou, deixando cair o papel como se fosse uma serpente e olhando-a surpresa. - Eu nunca quis que Vitória fosse à cidade. A culpa é dela, por meter-se onde não a chamavam. Não posso me sentir culpada pelo que lhe passou, aposto que ela deveria ter tido a sensatez de ficar aqui.
—Ninguém está pedindo que sinta culpa. - tinha replicado Grant, sem se alterar. – Tu o que peço é que me ajude, e que ajude a sua irmã; para isso, deve responder algumas perguntas.
Vivien tinha aceitado imediatamente, deixando em evidência que estava mais que disposta a contribuir para que desaparecesse o perigo que pendia sobre sua cabeça.
—Direi tudo o que queira saber - disse ela. - E, quando tivermos terminado, você quererá falar com outra pessoa: com lorde Lane.
Infelizmente, essa noite, lorde Lane não se encontrava em sua residência em Londres. Grant conseguiu surrupiar seu mordomo; assim soube que ele passava a maior parte do tempo livre em seu clube, o Boodles, refúgio de gentil-homens rurais que preferiam falar de caça e não de política.
Grant conduziu a carruagem até a rua St. James, sob um céu que retumbava ameaçador e em meio de uma crescente escuridão. Estava impaciente e cansado de viajar; mas, sobre tudo queria ficar junto a Vitória.
Transbordava de impaciência pensando no momento quando por fim pudesse chegar a seu lado e contar-lhe tudo: seu nome, sua identidade, como e por que tinha acontecido aquele pesadelo. Queria fazê-la sentir-se a salvo, segura. Ela tinha tido que acontecer situações terríveis, e ele queriam convencer a de que o pior já tinha passado. Em adiante, se ela o permitisse, ele faria que a vida dela fosse cômoda e prazeirosa.
Era a primeira vez que Grant se sentia assim, com a cabeça cheia de planos para o futuro e de ânimo otimista. Ele acabaria com o problema que significava Vivien Duvall e logo se disporia a viver feliz com Vitória. Já levava muitos anos de detetive; começava a fartar-se de brigas guias de ruas, de sufocar distúrbios e de perseguir criminosos por becos e antros de corrupção. Já era hora de deixar o trabalho de infantaria para outro pobre diabo, hora de que ele desfrutasse de diversões e prazeres da vida.
Boodle, que devia seu nome ao primeiro chefe de garçons, era um sítio deliberadamente aborrecido, aonde os cavalheiros iam em busca de paz e descanso. Sentavam-se em cadeiras estofadas, fumavam e bebiam conhaque; contemplavam quadros representando cenas de caça, de tiro e outras atividades rurais. Tudo que se ouvia nesse ambiente depravado era o ocasional ranger de um periódico e o murmúrio de um criado que atendia aos cavalheiros na cafeteria. Era a classe de lugar que jamais admitiria Grant, pois, embora ele tivesse suficiente fortuna, não possuía um sobrenome distinto nenhuma propriedade no campo e, na realidade, sua caça se limitava à perseguição de seres humanos.
Grant entrou no clube e se deteve para olhar pela famosa janela de arco, junto à qual os cavalheiros se sentavam a fumar. Imediatamente, aproximou-se um mordomo que não parecia muito contente de vê-lo.
—Senhor? —Perguntou o homem, com a expressividade de uma perca. O que o traz por aqui?
—Me disserão que poderia encontrar aqui lorde Lane. Sou Morgan, do escritório da Rua Bow.
Uma expressão de surpresa tomou os olhos do mordomo. Sem dúvida, não concebia que um paroquiano de Boodle estivesse envolto, em modo algum, nos assuntos da Rua Bow.
—Lord Lane o espera, senhor Morgan?
—Não.
—Nesse caso, terá que vê-lo em outro momento, senhor. E em outro lugar.
No intuito de encerrar a intromissão de Grant, o homem fez gesto de voltar-se para fechar a porta, mas um pé enorme, metido em uma bota, interpôs-se em seu caminho.
—Me perdoe se lhe dei uma impressão errada. Talvez você tenha acreditado que eu estava pedindo permissão. De fato, vou ver lorde Lane. Esta mesma noite. Aqui. E agora. Então você me dirá em que sala ele está ou devo revirar eu mesmo este lugar? Tenha em conta que nem sempre sou muito educado em minhas buscas. Às vezes, algumas coisas se quebram.
O rosto do mordomo ficou rígido de pânico ao imaginar os estragos que poderia causar nesse aprazível clube, um detetive tão grande e tão irritado.
—Isto é uma fatalidade. - exclamou, indignado. - Não se deve incomodar aos clientes. Seria horrível.
Acredito que lorde Lane está na cafeteria. Se for você capaz de guardar uma mínima discrição; rogo-lhe...
—Sou o indivíduo mais discreto que existe. - assegurou Grant com sorriso radiante. - Tranquilize-se, terei uma conversa com Lane e terei partido antes de que seus clientes tenham notado minha presença.
—Não acredito. - disse o mordomo observando consternado como entrava o intruso nesse território sagrado.
Grupos de silenciosos cavalheiros se sentavam ante as mesas redondas, reclinados em suas cadeiras Hepplewhite, estofas de tecido de crina. Um abajur com miçangas de cristal pendia do céu raso, talher de painéis brancos. Um sombrio quadro que representava a caça do cervo pendurava sobre o suporte de chaminé e dava ao ambiente um ar decididamente misógino. Quando Grant entrou na cafeteria, as cabeças giraram para ele e um grande número de olhares condenatórios passeou sobre suas roupas, poeirentas da viagem, e seu cabelo curto e desordenado. Grant não demonstrou desconforto por sua aparência e dirigiu seu olhar alerta para cada uma das mesas, até que viu um homem que estava sozinho junto ao fogo.
Era um cavalheiro magro, de largas pernas, cabelo cinza e rosto anguloso, sulcado de profundas rugas.
Seus olhos, situados sobre um nariz aquilino, concentravam o olhar em um periódico. Ante ele havia um prato com bolachas, outro com um pouco de queijo de stilton e outro com geléia vermelha.
Grant se aproximou da mesa com passo moderado.
—Lorde Lane. - disse em voz baixa. O homem não levantou a vista do periódico embora, é obvio, tenha-o ouvido. - Sou Morgan, da polícia.
—Sei quem é você. - murmurou Lane, acabando de ler um parágrafo antes de dignar-se a deixar a um lado o periódico.
Sua voz, embora fosse cultivada, tinha uma qualidade seca e áspera, como se esfregasse um com outros dois velhos ossos.
—Quero falar com você.
Os estranhos olhos descoloridos de Lane o examinaram com frieza.
—Como se atreve a me abordar em meu clube!
—Se você o preferir, podemos ir a qualquer outro lugar. - propôs Grant, com um ar exageradamente cortês, que constituía uma brincadeira indubitável.
—O que eu preferiria é que você partisse Morgan.
—Temo que não poderei agradá-lo, milord. Tenho que tratar com você um assunto urgente. Bom, falamos aqui, diante de seus amigos, ou em algum dos salões privados?
Lane lançou um olhar a um criado que observava a cena, ansioso, em um lado do salão. Era óbvio que o criado não tinha idéia de como dirigir essa inesperada intrusão.
—Acredito que ordenarei à administração do clube que o mandem embora daqui. - disse Lane, estalando os dedos para chamar o criado, que se aproximou com presteza.
Grant elevou uma mão lhe indicando que se detivesse e indicou ao servente que voltasse para seu lugar junto à parede. Dirigiu um sorriso carente de calidez.
—Não estou com ânimo para jogar, milord. Mais até, estou a esta distância. - disse, mostrando um espaço de poucos milímetros entre o polegar e o indicador— de tirá-lo daqui e levá-lo a Rua Bow, à sala para interrogatórios que temos ali.
Os altos das maçãs do rosto de Lane se tingiram de vermelho.
—Não se atreveria.
—Certamente que me atreveria. - assegurou Grant. - Atrai-me muito a idéia de prender um sócio do Boodle em sua própria cafeteria, só para demonstrar aos clientes que é possível fazê-lo. Mas me conterei, milord, se você fizer um esforço e aceitar responder às perguntas.
Os olhos de Lane flamejaram de fúria impotente.
—Pedaço de refugo de latrina!
—Sei, sei. - interrompeu Grant, ao tempo que o fazia um gesto ao aflito criado, que acudiu imediatamente.
Uma jarra de café, por favor. Preto. - adicionou, fazendo uma pausa para olhar Lane com uma sobrancelha arqueada. - Onde vamos conversar milord?
—Está desocupado o quarto número quatro? —Perguntou Lane, a contra gosto.
—Isso acredito, milord.
—O número quatro, então. - disse Grant. - Leve meu café para lá.
—Sim, senhor.
Os dois homens, seguidos pelos olhares de todos os presentes no salão, caminharam até além das mesas e transpuseram a soleira. Seguiram por um corredor, passando ante uma série de quartos privados.
—Você não sabe até onde se estende minha influência. - disse Lane, desdenhoso. Posso fazer substituirem seu chefe em um dia, se assim o desejar. Posso fazer que o encerrem e o encadeie por sua insolência, cão ignorante!
—Falemos com respeito à Vivien Duvall. - propôs Grant com suavidade.
A cor de Lane, que não era muito saudável desde o princípio, empalideceu até adquirir o de um pergaminho velho.
—Em nome de Deus, do que está você falando?
O criado entrou na estadia com uma bandeja em que havia café e bolachas; serviu uma taça para Grant e partiu depressa. Uma vez que a porta esteve bem fechada, Grant bebeu de um só gole a metade de seu café e posou um olhar firme sobre o rosto alerta de Lane.
—Faz um mês, alguém tentou assassiná-la—disse. Eu suspeito que você possa esclarecer um pouco a questão.
Esse nome fez chiar os dentes ao velho cavalheiro.
—Nego-me a dizer algo que se relacione com essa maldita rameira.
—Ela tampouco forma parte de minha lista de pessoas preferidas. - Respondeu Grant. - Mas você tem mais motivos para odiá-la que eu, não é certo? Você a culpa pelo suicídio de seu filho.
—Ela é responsável pela morte do Harry. – reconheceu —Responsável em que sentido?
Lorde Lane fez um esforço por dissimular suas emoções, mas em sua voz vibraram traiçoeiros tremores de dor e de fúria.
—Meu filho sofreu melancolia durante anos; isso o levou a cometer toda classe de excessos em seu comportamento. Era presa fácil de trapaceiros e ladrões... E de mulheres como essa Duvall. Ela teve uma aventura com Harry; quando a rameira encerrou a relação, meu filho se Matou.
—Isso não é tudo o que você reprova. - Disse Grant. - Depois da morte de Harry, Vivien seduziu o filho dele, Thomas, o único neto que você tem, e urdiu um plano para casar-se com ele.
Fez-se um prolongado silêncio durante o qual Lane tentou dissimular suas emoções.
—Não estou informado de nenhum plano relacionado com meu neto. - Disse, em tom frio e seco.
Grant pensou que Lane era um mentiroso bastante aceitável, mas os fatos eram muito próximos a seu coração e sua cólera era muito forte para que pudesse dissimular a verdade durante muito tempo.
—Quando você descobriu que Vivien estava com Thomas, comprou um posto para ele na Índia e o embarcou no primeiro navio que zarpou para lá. - prosseguiu Grant. Deduzo que deve ter acreditado que ali, enfrentando os pagãos, com o risco de apostas descontroladas e enfermidades exóticas, estaria mais a salvo que se ficasse exposto à influência de Vivien. Deus é testemunha de que possivelmente você tenha razão. Mas deveria haver-se detido aí, milord. E não contratar a alguém para que assassinasse Vivien, foi você muito longe.
—Tolices. - replicou Lane com vivacidade. - Se eu tivesse querido que essa prostituta estivesse morta, a teria assassinado com minhas próprias mãos.
—Os homens que ocupam posições como a sua nunca o fazem por si mesmo. Entretanto, surpreende-me que tenha contratado você a um idiota para que se encarregasse de seus assuntos sujos. Ele não cumpriu a tarefa. Esse asno incompetente não pôde matar a uma pequena e indefesa mulher, algo que você soube a noite do baile de Lichfield, quando viu que Vivien ainda estava com vida. É compreensível que se empenhou em fazer que esse canalha acabasse o trabalho pelo qual você pagou.
No semblante de Lane se refletiu uma indignação contida com muita dificuldade, que se poluí de astúcia e complacência para si mesmo.
—Que prova tem você de tudo o que diz?
—Terei suficiente prova quando concluir minha investigação e tiver apanhado o assassino que você contratou.
Nesse momento aconteceu algo estranho, algo que jamais tinha ocorrido em tantos anos que Grant tinha dedicado a seu trabalho detetivesco. De repente, a barreira defensiva se quebrou e Lane cravou nele um resplandecente e malicioso olhar de triunfo. Então, pronunciou uma confissão de quatro palavras: —Você não o apanhará.
Essa admissão de sua culpa foi por completo inesperada. Se Grant tivesse estado na posição de Lane, teria empregado infinitas argúcias e se protegeria com o escudo de sua idade, sua respeitabilidade e sua influência política. Lane não tinha por que confessar nada. Depois, Grant chegaria à conclusão de que Lane se sentia invulnerável; nesse sentido, era algo compreensível. Lane devia estar seguro de que um homem de sua posição, um par do reino, jamais seria acusado pela morte de uma prostituta. Mais até, Lane estava tão indignado pelo suicídio de seu filho que, no mais profundo de seu ser, quis que alguém soubesse que Harry tinha sido vingado. Era um ancião, lhe restava muito poucos anos de vida, e lhe tinham tirado a seu único filho.
Imóvel, Grant foi testemunha de que o velho seguia falando com uma tranquila certeza que lhe provocou calafrios nas costas.
— Muito em breve, Vivien Duvall estará em sua tumba, seu assassino desaparecerá da Inglaterra e você não poderá fazer nada para impedi-lo.
—O imbecil que você contratou nem sequer poderá aproximar-se do Vivien disse Grant com suavidade.
Até agora, não pôde lhe pôr um dedo em cima. Do começo deste lamentável acordo entre vocês, esteve perseguindo a mulher errada, entendeu? A mulher que ele atacou e jogou no Tâmisa, essa mesma mulher que foi comigo ao baile dos Lichficld, não é Vivien Duvall. É sua irmã. Vivien esteve escondida todo este tempo e seu homem esteve tentando matar a sua inocente irmã.
—Isso não é verdade! - Exclamou Lane ficando de pé com tal brutalidade que sua cadeira caiu para trás.
Foi evidente que a idéia de que Vivien Duvall estava sã e salva, e fora de perigo, foi suficiente para enlouquecê-lo. Até as pontas de seu áspero cabelo cinza pareciam estalar em fúria. - Canalha mentiroso! Só um estúpido acreditaria semelhante patranha!
—Por causa de sua estupidez a irmã de Vivien teve que sofrer um inferno - disse Grant, e sua própria ira brotou também em uma corrente incontrolável. - E esta mesma noite terminará o pesadelo que ela esteve vivendo.
Sem saber bem o que fazia, suas mãos se fecharam em volto do pescoço do outro homem, ameaçando estrangulando-o.
—Quer que lhe faça o mesmo que mandou fazer a ela? —Perguntou, com voz densa. - E ver como se sente depois de um bom intento de estrangulamento e um bom banho no Tâmisa!
— Tire as... Mãos... De... cima! —resfolegou o ancião.
—Me diga o nome de seu homem; assim poderemos acabar com esta maldita tolice. - disse Grant, turvo. -
Diga-Me canalha.
A cara de lorde Lane se tornou purpúrea e seus olhos se sobressaíram, transbordantes de amarga fúria.
—Se for verdade. - ofegou. - que são duas irmãs... Farei que destruam a ambas, só para estar seguro...
—Jamais. Isto terminou, entendeu? —insistiu o detetive, apertando os dedos na traquéia de Lane. - Seu nome. - repetiu, cravando seu olhar de anjo vingador nos olhos aquosos do ancião.
Lane cuspiu o nome com tal força que salpicou o rosto do Grant com gotas de saliva. Imediatamente, as mãos de Grant se afrouxaram e ficou olhando, atônito, ao homem que ofegava.
—O que disse? —Perguntou, esforçando-se por ouvir por cima do repentino zumbido que sentia em seus ouvidos. Lorde Lane se cambaleou para trás e repetiu o sobrenome como se fosse uma obscenidade: —Keyes - cuspiu. - Neil Henry Keyes... Um de seus malditos camaradas. Um policial. -Acrescentou, lançando uma brutal gargalhada. – Precisava de dinheiro. Eu deveria ter sabido que um de sua raça seria incompetente para cumprir o trabalho. Mas contratarei outro, ouviu-me? Vivien Duvall jamais estará a salvo!
Grant pôs-se a andar para a porta, negando com a cabeça, com a sensação de que estava pisando em areias movediças. Afogava-se, não podia respirar...
—Meu deus. - ofegou tão horrorizado que não podia pensar com coerência.
Pela primeira vez em sua vida, experimentou um pânico tão imenso que o paralisou durante uns instantes.
Keyes era quem devia cuidar essa tarde de Vitória. Com a aprovação do próprio Grant, Vitória tinha sido posta nas próprias mãos do assassino.
—Se chegar a lhe acontecer algo —disse a Lane em um rouco sussurro. - sua vida está acabada.
E também a dele. Correu, tropeçando-se, abriu-se passo, pressuroso por sair do clube, com seu ambiente sepulcral; fora o recebeu o golpe frio da chuva.
—Minha vida acabou quando terminou a de Harry. - gritou Lane, correndo atrás de Grant; sua voz ressonava no silêncio estupefato que se hospedou sobre os presentes no Boodle. Uma terrível dor oprimia seu peito, esmagando, apertando-o, mas sua raiva lhe permitiu ignorá-lo. - Agora, meu único motivo para viver é ver morta essa rameira! Não descansarei jamais até que ela mora, entende-me? Embora tenha que afogar seu último hálito de vida com minhas próprias mãos!
Lane se deteve no centro do grande salão, e tanto os criados como clientes se precipitaram para ele.
Rodeou-o uma nuvem escura e ele gritou, em meio dessa névoa cada vez mais espessa, enquanto essa dor terrível aumentava e se estendia por seu peito. Sentiu umas mãos sobre ele, uma infinidade de vozes que tratavam de acalmá-lo, mas isso o enfureceu ainda mais. Seus gritos foram debilitando-se até converter-se em ofegos de vingança e começou a cair, enquanto o chão se elevava para ele de modo inexorável... Sentiu que se dissolvia em muito ódio ao que nunca, jamais poderia renunciar.
Capítulo 15
—O detetive está aqui, querida. - anunciou a senhora Buttons, da porta da biblioteca. - Trata-se do senhor Keyes; é um cavalheiro bom e amável, o homem com mais experiência que podia oferecer sir Cannon. O senhor Morgan o tem em muito alta estima. Asseguro-lhe que nos deixaram em boas mãos.
—Agradeça ao senhor Keyes por ocupar-se de tudo durante a ausência do senhor Morgan. -Murmurou Vivien.
Deteve-se ante a janela da biblioteca com um livro na mão e observou a tormenta que se aproximava. A tarde tinha aspecto de noite, por causa de uma capa de nuvens escuras; fortes rajadas de vento sacudiam as árvores do jardim. Iniciou-se um pingo de chuva e começaram a cair gotas gordas e pesadas que anunciassem tormenta.
—Senhorita, quer agradecer você mesma? —Perguntou a ama de chaves. Ele está aguardando no vestíbulo de entrada; parece decidido a falar com você imediatamente.
—Claro. - disse Vivien, a contra gosto. - Faça-o entrar, por favor.
—Sim, senhorita.
Vivien manteve apertado o livro de poesia contra sua cintura, abriu os dedos sobre a coberta de couro esculpido e lançou um grande suspiro. Não queria cercar conversa com o senhor Keyes, só queria que Grant retornasse imediatamente à casa. O fato de saber que não podia ficar em contato com ele durante um tempo lhe causava um estranho desassossego. Tinha chegado a apoiar-se nele de uma maneira tão completa que detestava ver-se separada de Grant, fosse de dia ou noite.
Mas não podia permitir-se ceder a semelhantes sentimentos. A relação, tal como estava entre eles, ia acabar muito em breve e ela devia conservar certos vestígios de dignidade quando se separassem. Revelava-se quanto desejava sua atenção, seus sorrisos, sua companhia, não obteria outra coisa que provocar uma situação embaraçosa para ambos. Ela tinha por diante uma vida inteira em que Grant Morgan estaria ausente; era conveniente que se acostumasse a arrumar-lhe sem ele.
Vivien respirou fundo e devagar, afrouxou a pressão com que segurava o livro e se voltou no preciso momento em que a senhora Buttons conduzia o detetive à biblioteca. O senhor Keyes era um homem de textura média e levava uma jaqueta de cor salmão evidentemente custosa. Sujeitava na mão um chapéu cinza de asa larga. Era um homem atraente e aostentoso, com seu cabelo prateado cavado e revolto pelo vento.
Vivien não podia desviar os olhos dele. Seu aspecto elegante contradizia o conceito que ela tinha a respeito da aparência que devia ter um detetive. Vivien compôs um sorriso cortês quando o homem se aproximou dela. A senhora Buttons emitiu um breve murmúrio e fez gesto de partir.
Mas Keyes a deteve tocando-a ligeiramente.
—Faça o favor de esperar, senhora Buttons. - disse ele. - Seria conveniente que ouvisse você o que devo dizer à senhorita Duvall.
—Sim, senhor.
Obediente, a ama de chaves uniu as mãos e permaneceu ali, com um cenho que expressava certa perplexidade.
—Para começar, senhorita Duvall. - disse o detetive, empregando um tipo de cortesia passado de moda, por dizer o menos. - sinto-me gratificado de que me tenham atribuído o dever de protegê-la.
—Obrigada - disse Vivien, notando que lá fora a chuva tinha começado a minguar, embora seguisse ameaçando o céu. - A senhora Buttons me assegurou que você é muito estimado por meu... —interrompeu-se, subitamente confusa, e um rubor lhe subiu pelo rosto e o pescoço. - Pelo senhor Morgan. -conseguiu dizer com muita dificuldade.
Que outras palavras reveladoras teriam escapado se não se reprimisse a tempo? Por Deus! Ela não tinha direito de aplicar a Grant uma palavra que implicasse posse, que denotasse um vínculo. Em nenhum sentido podia dizer que esse homem lhe pertencesse. Como podia perder o controle com tanta facilidade?
Keyes não fez caso do deslize e deu a impressão de que procurava aliviar a confusão da jovem. Seu rosto curtido e atraente se crispou em um sorriso.
—Eu farei tudo o que esteja a meu alcance para justificar a confiança que o senhor Morgan deposita em mim.
—Obrigada, senhor Keyes.
—Nesse sentido-continuou ele, devo lhe informar que houve uma leve mudança de planos. Não se inquiete: não está você em perigo, mas justo antes de vir para aqui, recebi a ordem do Sr Ross para levá-la à Rua Bow imediatamente.
—Eu preferiria ficar aqui. - respondeu Vivien, surpreendida, levando a mão à garganta.
Keyes moveu a cabeça.
—Entendo-o, senhorita Duvall. De todos os modos, em ausência de Morgan, sir Ross recebeu nova informação, como resultado do qual requer a sua presença em seu escritório.
—Que tipo de informação, senhor? —perguntou à senhora Buttons, ao tempo que se aproximava de Vivien.
—Não tenho autorização para dizê-lo. - respondeu Kellow, sorrindo a duas afligidas mulheres.
— Mas lhe asseguro que o senhor Morgan quer que você obedeça. Além disso, asseguro-lhe que não há em Londres um lugar mais seguro que o número quatro da Rua Bow.
—Quanto tempo devo permanecer lá? —Perguntou Vivien.- Até que Morgan retorne?
—É possível - respondeu o homem e, de repente, uma crispa de impaciência esticou sua boca. - Vamos senhorita Duvall, estamos perdendo o tempo. Sir Ross me pediu que leve você imediatamente ante ele.
—Está bem.
A inesperada mudança de planos perturbou Vivien; invadiu-a uma desagradável sensação. O senhor Keyes parecia um bom homem, mas havia algo nele que não lhe agradava, algo difícil de definir. Tinha a impressão de que sua fachada jovial ocultava algo falso e frio. O instinto lhe dizia que o evitasse. Seu coração se acelerou e pulsava ansioso e irregular. Era assombrosa a reação de seu corpo, tendo em conta que sua mente não podia discernir a causa de semelhante reação. Aumentou nela o desejo de escapar a esse homem; custou-lhe um esforço reprimir o impulso de sair fugindo.
—Senhor Keyes. - pôde dizer, ao fim, - posso levar comigo a uma das criadas? Preferiria contar com uma companhia feminina.
—Mary irá com você. - disse a senhora Buttons, dando sua evidente aprovação à idéia.
Imediatamente, Keyes negou com a cabeça.
—Não é necessário. Esta não é uma visita social, senhorita Duvall, a não ser um assunto oficial. Preferiria que nos partíssemos imediatamente, se não lhe importar, antes que aumente a tormenta.
Vivien trocou um prolongado olhar com a ama de Chaves. É “de confiança este sujeito?”, Perguntava seu olhar; a resposta silenciosa da senhora Buttons era: “Acredito que Sim. Era evidente que a senhora Buttons estava preocupada; inclinou sua cabeça cinza em uma postura que expressava uma relutante aceitação.
—Senhorita Duvall - murmurou a mulher. - se o senhor Keyes disser que deve ir, não acredito que possa negar. - prosseguiu; sua frente se enrugou em um gesto de preocupação. - E é verdade o que ele diz: não há um lugar mais seguro para você que o escritório da Rua Bow.
Vivien olhou pela janela, para o céu que ia obscurecendo-se.
—Muito bem. - disse com calma.- Se me desculpar, senhor Keyes, preciso trocar os sapatos e pôr um casaco com capuz.
—Claro senhorita Duvall.
Vivien retrocedeu um passo e o olhou com atenção. Em seu cérebro bulia e se retorcia uma lembrança, e essa lembrança empurrava com premente força contra o muro do esquecimento.
—Senhor, conhecemo-nos antes, verdade?
—Não acredito senhorita.
Ela viu escondido no olhar dele, uma inimizade que lhe provocou um espasmo de medo no estômago.
Percebeu que não lhe agradava. Devia ter ouvido o que se dizia dela ou, mas bem, da verdadeira Vivien, e devia acreditá-lo no pé da letra. O retumbar de um trovão rompeu o silêncio; Keyes girou a cabeça para jogar um olhar à escuridão cada vez mais intensa. Havia algo em seu perfil, no pequeno caroço da ponta do nariz, no contorno do cabelo, no modo em que a protuberância do queixo se afundava nas dobras brandas do pescoço que o fazia chiar os nervos acendendo o alarme nela.
Keyes voltou à vista para ela e captou o arrebatamento de tensão no rosto da jovem.
—Não temos muito tempo, senhorita Duvall.
Ela girou e saiu da estadia esforçando-se por caminhar com normalidade, embora o pânico tivesse começado a filtrar-se e a difundir-se por todo seu corpo. Sua respiração se converteu em ofegos cada vez mais profundos; jogou um olhar fugaz por cima do ombro. Keyes permaneceu no pé da escada observando-a com soma atenção. Tinha o aspecto de um demônio malévolo que pretendia arrastá-la para as vísceras do inferno.
Tudo o que queria era alcançar a segurança de sua habitação. A escada se erguia ante ela como a ladeira de uma montanha; tropeçou um pouco quando começou a subir em forma precipitada. Passou uma eternidade até que se encontrou ante a porta de seu dormitório. Com estupidez, encerrou-se e permaneceu ali, tremendo.
Tinha a sensação de estar afogando-se; custava-lhe respirar e seus membros foram ficando rígidos, como defendendo do frio que a rodeava.
—Grant - tratou de chamá-lo, suplicando desesperadamente sua ajuda, mas tinha perdido até a capacidade de sussurrar—. Grant...!
Então, uma lembrança se equilibrou sobre ela com tal violência que lhe fez cair de joelhos. A noite do ataque... O homem de cabelos chapeados e rosto cruel... Mãos robustas que se apertavam em volto de seu pescoço, polegares que se afundavam em sua traquéia até esmagá-la, quase... Perdeu a batalha que liberava para respirar, a escuridão a consumiu... E logo, o terrível frio da água, a negrume do rio, arrastaram-na para baixo. Era o senhor Keyes quem a tinha atacado. A convicção surgiu do fundo de sua alma. Ele tinha tentado matá-la, havia fracassado uma vez e voltaria a tentá-lo.
Por um instante, a sensação de ter sido traída aumentou seu terror.
“Grant, como pôde enviá-lo aqui? Como pôde me deixar aqui com ele?”
Mas seu coração repetia, teimando, que ele não tinha a culpa. Ele não teria sido capaz de lhe fazer algo assim de propósito. Estava em perigo, e estava no preciso lugar que, até esse momento, tinha sido um refúgio para ela. Arrastou-se tremendo, ofegando até a mesinha de noite onde estava o urinol. Mas a quebra de onda de náuseas diminuiu em uns momentos e Vivien encheu seus pulmões com ávidos sorvos de ar.
Fechou os olhos e se apoiou no flanco do gabinete de mogno, sentindo o alívio da frescura da madeira em seu rosto quente e molhado. Pela primeira vez, desde fazia semanas, ela sabia seu nome.
—Vitória Devane. - pronunciou em voz alta. – Sou Vitória.
Moveu os lábios repetindo sem cessar esse som... Seu nome, seu nome verdadeiro. Era como a chave que pudesse abrir os lugares selados de sua mente. Desfilaram ante ela imagens de seu passado... A cabana no campo, onde ela passava seus dias ocupando-se dos livros e de visitar as escolas. Seus amigos da aldeia... Uma remota viagem pela borda do mar... O funeral de seu pai.
Fechou com força os olhos e evocou o rosto paciente e bondoso de seu pai. Tinha sido um homem sábio, um filósofo, que preferia seus livros à dura realidade do mundo que existia fora da casa. Vitória o adorava; tinha passado horas, dias inteiros lendo junto a ele.
Ela nunca tinha amado a nenhum homem no sentido romântico, nunca tinha querido amar. Desde que sua mãe se foi de Forest Crest, a Vitória só tinham importado seu pai, e sua irmã, a que rara vez via... Não havia espaço para ninguém mais. O amor era muito perigoso; era muito melhor estar sozinha, segura. No aprazível refúgio da aldeia, ela não tinha outra responsabilidade que para de si mesmo. Jamais teria se aventurado a sair desse lugar se a irresponsável de sua irmã não se colocasse em problemas tão grandes que não podia resolvê-los.
Foi entristecedor o alívio de lembrar de si mesma, de recuperar suas lembranças, sua identidade, embora não ia poder convencer ao homem que a aguardava abaixo de que ela não era sua irmã.
—Oh, Vivien. - sussurrou, trêmula. - Se sobreviver a isto, terá que responder por umas quantas coisas.
Enxugoue um fio de suor que escorregava por sua bochecha para o bordo do queixo. Sentia-se como um camundongo apanhado em um barril junto com um gato. Seu primeiro impulso foi meter-se na cama, cobrir-se com as mantas até a cabeça e alimentar a esperança de que Keyes a deixasse em paz. Mas, claro, ele não a deixaria em paz. Empenharia-se em arrastá-la fora dali e os criados não fariam nada por detê-lo. Acreditariam mais nele que nela... Suporiam que a amnésia a tinha desequilibrado.
Jamais aceitariam uma afirmação dela de que o respeitado detetive do quartel da Rua Bow fosse um desumano assassino. Por certo, não era à Rua Bow aonde Keyes queria levá-la. Desesperada, pensou o que poderia fazer. Como Grant não era o único homem que poderia protegê-la era Sr Ross. Tinha que chegar imediatamente a ele. Escapou de seus lábios um trêmulo suspiro e se secou a frente com a manga. Não sabia com exatidão onde se achava o escritório da Rua Bow; só sabia que estava em alguma parte para outro lado do Covent Garden. Mas era um lugar tão conhecido que sem dúvida não seria difícil encontrá-lo.
Ficou em ação imediatamente, para não se arrependere. Correu até o armário, encontrou um casaco verde escuro de mangas largas e com um capuz como a de um monge capuchino, que lhe ocultava o cabelo e o rosto. Depois de trocar seus sapatos por umas botas cômodas, até o tornozelo, abriu a porta do dormitório e observou o corredor vazio.
Seus dedos trêmulos se agarraram na porta. Era difícil proceder com precaução posto que todos seus sentidos lhe exigiam que se pusesse a correr como um coelho aterrorizado. Suas veias palpitavam de alarme com muita dificuldade contido. Com cautela, deu um passo no corredor, logo outro, até que se pôs a andar a passo rápido para a escada de caracol que utilizavam os criados situados no fundo da casa. Uma luz cinzenta que entrava pelas janelas de pequenos cristais proporcionava uma magra iluminação; servindo-se dela começou a descender depressa os estreitos degraus em espiral. Aferrava-se com frequência à balaustrada de ferro para manter o equilíbrio enquanto seus pés voavam para baixo pelos degraus.
Uma silhueta escura se materializou no patamar do primeiro andar, e Vitória se deteve contendo um grito que subia por sua garganta. “Keyes” foi o primeiro que pensou... Mas compreendeu imediatamente que era a figura de uma mulher miúda. Era Mary, a criada, que carregava um cesto com lençóis pregados.
A donzela se deteve e a olhou, surpreendida e confusa.
—Senhorita Duvall? —Perguntou vacilante. O que está fazendo você aqui, na escada de serviço? Necessita algo? O que posso fazer...?
—Não diga a ninguém que me viu. - disse Vitória em voz baixa e premente. Por favor, Mary, o rogo!
Quero que todos acreditem que ainda estou em minha habitação.
Pela expressão da criada, supôs que devia estar duvidando de sua prudência.
—Mas, aonde pretende ir com esta tremenda tormenta que se aproxima?
—Me prometa que não o dirá a ninguém.
—Quando voltará? —Perguntou a criad-a, preocupada. Senhorita, se algo acontecer a você, e eu não disser a ninguém que a vi partir, poderia perder meu posto. Ficaria na rua! OH, por favor, senhorita, não vá a nenhum lugar...!
—Mary. - urgiu Vitória-não tenho tempo de ficar aqui. Voltarei quando o senhor Morgan voltar para a casa. Mas, enquanto isso, não diga a ninguém. E, em último caso, aguarde uns minutos. Para mim, é questão de vida ou morte.
Vitória passou pela moça, e seguiu avançando velozmente para o andar de baixo. Chegou ao final do patamar, transpôs a porta da carvoeira e depois a cozinha. Por fortuna, não topou com outros criados enquanto caminhava para a porta que dava ao exterior e a abria. A atmosfera estava pesada, carregada de eletricidade, ameaçava chuva. Vitória respirou fundo e cruzou o pequeno trajeto do serviço e correu por um atalho de cascalho que ia até o jardim fechado. Um espesso sebe de álamos se sobressaía por cima dos muros de tijolo talheres de hera. Passou sob um arco de frente e atravessou correndo os quinze metros do jardim, sorteando uma mesa de pedra rodeada de cadeiras Windsor e de vasos de barro de pedra com em flor.
O esforço lhe fez pulsar o coração com mais força, mas não diminuí o passo e saiu pela porta que se abria no fundo do jardim. A cada passo que dava, afastando-se da casa, cresciam dentro dela a esperança e o alívio.
Rodeou o estábulo e a garagem, e cruzou rapidamente a grama que bordeava a parte traseira da fileira de casas da Rua King.
Sua mente não albergava dúvida alguma de que o melhor que podia fazer era partir dali. Que Keyes ficasse convencido de que a tinha encurralado. Quando ele descobrisse que ela tinha desaparecido, já teria passado muito tempo de sua fuga. Vitória imaginou a frustração do homem quando descobrisse que ela se partiu; de seus lábios escapou uma risada nervosa, quase frívola. Apertou o passo enfiando para a agitação e o bendito bulício do Covent Garden.
As lajes grandes e lisas da estrada logo cederam seu lugar a um lance irregular, à medida que se aproximava da praça do parque. Vitória se manteve sobre o pavimento, baixando-a capuz sobre o rosto. Viu, passar, os carrinhos dos trabalhadores que limpavam as calçadas ante casas elegantes, aos que acendiam os abajures de petróleo penduradas de seus suportes de ferro e a músicos itinerantes que tocavam violinos e pandeiros. A rua fervia de carretas, carrinhos de mão e animais e de todo isso se elevava uma catarata de sons que invadiu seus ouvidos.
Caíram algumas gotas mais, como prometendo o alívio dos aromas mesclados de fumaça e esterco que subia pelo ar turvo. Mas a tormenta se atrasava como se estivesse aguardando um sinal para estalar. Umas mulheres calçadas com galochas arrancavam tinidos ao pavimento, enquanto que uns senhores andavam com seu guarda-chuva colocado sob o braço e jogavam olhadas furtivas ao manto de nuvens que cobria o céu.
Essa prematura escuridão dava à cena um ar detestável; Vitória estremeceu entre as dobras de seu casaco.
Disse que a Rua Bow estava a pouca distância dali. Cruzaria Covent Garden tratando de passar o mais inadvertida possível, pouco depois chegaria ao escritório de Cannon, onde estaria a salvo.
A pedido de Keyes, a senhora Buttons lhe serviu vinho enquanto aguardavam a volta de Vivien a sala, Keyes estudou a peça com atenção. Sua forma era singela e elegante, a borda, levemente alargada, a terrina terna e gentil.
—Morgan está muito bem. - refletiu a voz alta, em um tom que não tinha nada de admirativo. - É mais rico que qualquer detetive que eu tenha conhecido. Tem talento para fazer dinheiro, não é assim?
—O senhor Morgan trabalha muito duro, Sr. - replicou a ama de chaves, sentindo-se impelida a sair em defesa de seu empregador. - Morgan é um homem inteligente, valoroso e célebre; é justo que receba uma generosa compensação por seus lucros.
—Não mais que o resto de nós. - observou Keyes, compondo um sorriso enquanto seus olhos se mantinham frios. - Entretanto, ele vive como um rei enquanto que eu...
Sua voz foi apagando-se e sua expressão se apagou, como se tivesse arrependido de suas palavras.
—Bom. - disse a senhora Buttons, dissimulando sua inquietação. - Em nome do pessoal do senhor Morgan, eu queria lhe agradecer por cuidar da senhorita Duvall. Confiamos em que ela estará tão segura sob seu amparo como se estivesse com o próprio senhor Morgan.
—Sim. - respondeu, - eu cuidarei de seu precioso mascote.
A senhora Buttons inclinou a cabeça, duvidando de havê-lo ouvido bem.
— Como disse senhor?
Antes que o aludido pudesse responder foram interrompidos por uma pequena criada de cabelos escuros com o rosto tenso e sulcado de lágrimas. Estava muito inquieta e apertava os punhos tremendo.
—Senhora Buttons. - disse, em voz débil. Senhora Buttons, pareceu-me que devia dizer imediatamente, embora ela me pediu que não o fizesse... OH, não sei o que fazer, embora por nada do mundo quisesse que ela sofresse algum dano, de verdade!
Mary disse a ama de chaves preocupada, aproximando-se imediatamente à moça enquanto que Keyes se erguia em sua cadeira.
—Do que se trata? - Perguntou o homem com aspereza. - A quem se refere? Acaso à senhorita Duvall?
A criada assentiu com um brusco movimento de cabeça.
—Ela partiu senhor.
— Quem partiu? —Repetiu a senhora Buttons, surpreendida, ao tempo que Keyes, por sua parte, levantava-se de um salto.
—Como partiu?
O tom do homem se tornou sinistro; os olhares das duas mulheres se cravaram nele com expressão surpreendida.
A criada respondeu com um rabisco incoerente: —Faz menos de cinco minutos, eu topei com ela na escada de serviço, e ela me pediu que não... Oh, não deveria haver dito nada, mas... Bom, ela esta em perigo aí fora, não é assim? - Quis confirmar a moça, jogando à ama de chaves um olhar de abjeta consternação. - Senhora Buttons, acaso tenho feito algo mal?
—Não, Mary - tranquilizou a ama de chaves, lhe aplaudindo o braço—. Fez exatamente o que o senhor Morgan tivesse querido que fizesse.
—Maldita cadela. - explorou Keves, arrojando a taça ao chão, sem lhe importar e veio se derramar sobre o fino tapete feito à mão. Rapidamente, uma desagradável mancha da cor de sangue se estendeu entre os desenhos amarelos e azuis. - Não me escapará. - prometeu, saindo a pernadas da habitação e pedindo a gritos seu casaco e seu chapéu.
A senhora Buttons se assustou sentindo que uma dor leve, ao princípio, mas insistente, começava a formar-se na parte dianteira de sua cabeça. Inquietas especulações esculpiram profundas linhas em suas feições.
—Este homem está comportando-se de um modo estranho. - disse, para mais si mesmo que para a moça que estava a seu lado. - É evidente que não sente o menor apreço por nossa senhorita Duvall.
—Espero que a encontre. - comentou Mary, em tom abatido. - Quando isso ocorrer, ela estará a salvo.
Não é assim?
A ama de chaves não respondeu; foi até o vestíbulo da entrada, encolhendo-se quando a pesada porta se fechou com um golpe depois da partida do detetive.
Covent Garden, que tinha começado a formar-se a partir de um par de aristocráticas praças onde se erguiam espaçosas mansões e uma pequena igreja, tinha passado por diversas reencarnações durante os séculos anteriores. Em seu estado atual, gabava-se de contar com os mais famosos teatros do mundo, por não falar dos cafés lojas cheias de escritores, pintores e músicos.
Tinha meio hectare, pelo menos, e seu bulício e sua agitação pareciam aumentar com cada ano que transcorria. Claro que fazia já muito tempo que a nobreza tinha abandonado suas elegantes mansões e, na atualidade, os imponentes e antigos edifícios com suas majestosas escalinatas estavam ocupadas por lojas, botequins e os personagens do submundo de Londres.
Com cautela, Vitória transpôs os arcos da galeria coberta por onde a gente ia e vinha, percorrendo lojas e postos. confundiu-se com a multidão imediatamente e deixou que a corrente de pessoas a arrastasse ante uma profusão de cestos com flores, com suas anciãs vendedoras que armavam os Ramos a pedido. Dúzias de mãos passavam por cima das montanhas de verduras, escolhendo e recolhendo as escolhidas para comprar.
Nos postos de pescado penduravam réstias de enguias, e uns homens limpavam as vísceras com destreza das novas presas e as envolviam. Um vendedor de pássaros sujeitava com a mão enluvada a um papagaio que chiava, enquanto que canárias cotovias e mochos enjaulados anunciavam, ruidosamente, sua disponibilidade para a venda.
Vitória passou ante uma loja que vendia ervas e raízes, onde se viam recipientes de cristal com sanguessugas alinhadas sobre suportes de madeira, e ante uma perfumaria com a vitrine cheia de unguentos crema e azeites de densos perfumes encerrados em coloridos frascos de cristal.
—Aqui, meu amor-ouviu um grito que parecia um grasnido, e Vitória se voltou, sobressaltada, ao tempo que uma mão como uma garra a agarrava pela manga. Uma velha diminuta, vestida com roupas chillonas e adornada com braceletes, echarpes e com uma saia vermelha, sujeitava-a com força do braço. -Deixe-Me te dizer a fortuna, querida... Um xelim para te contar os segredos do manhã! Só um xelim, note e... Com um rosto como o seu, deve ser um futuro esplêndido!
—Obrigada, mas não tenho dinheiro -disse Vitória em voz baixa, soltando-se de um puxão e afastando-se.
Mas a adivinha da sorte insistiu, seguindo-a com passo enérgico e voltando a sujeitá-la pela boneca.
—Direi-lhe isso por nada, amor! —chiou, elevando a voz áspera, muito semelhante às dos papagaios do vendedor de pássaros. Venham, todos... Quem quer ouvir a fortuna da encantadora moça?
Vitória caiu na conta de que a mulher queria usá-la como uma espécie de publicidade, e atirou com força para largar-se dessa mão que a capturava.
—Não - disse com veemência. Solte-Me.
Essa pequena resistência atraiu alguns olhares; Vitória jogou uma olhada temerosa a seu redor, ao tempo que se soltava da adivinha da fortuna. De súbito, sua vista captou o chapéu cinza claro de um cavalheiro e seu peito se oprimiu dolorosamente de medo. Era idêntico ao que levava o senhor Keyes. Mas, era impossível que ele tivesse podido segui-la tão logo, não?
Aguçou a vista tratando de ver de novo o chapéu, mas tinha desaparecido. Ansiosa, pensou que possivelmente ela o tivesse imaginado; pôs-se a correr em direção ao este, para o pórtico flanqueado de colunas do teatro da ópera. As quatro altas colunas deformadas davam à multidão que bulia pelos arredores do edifício o aspecto de uma colônia de formigas. Estava por desenvolver uma sorte de protesto posto que uma turfa se juntasse diante do teatro, gritando ante as portas fechadas. Tanto cavalheiros como mendigos contribuíam ao tumulto, vociferando e protestando com vozes roucas contra um recente aumento no preço das entradas.
—Os preços de antes!—exclamavam muitos dos zangados paroquianos. Queremos os preços de antes!
—Muito caros muito caros! —Gritavam outros.
Vitória mergulhou na buliçosa multidão e abriu passo entre a multidão até que chegou a casa das colunas dóricas. Apoiou-se contra a pedra fria e permaneceu muito quieta, com o pulso palpitante, enquanto a multidão reanimava, vaiava e se movia ao redor dela. Fixou a vista nos relevos esculpidos em um painel que tinha diante, onde se via a figura do Shakespeare, das Musas e, mais acima, uma estátua representando à Comédia, metida em um nicho.
Keyes estava seguindo-a: ela o percebia.
Keyes acreditava que ela era Vivien, e ia mata-la, fosse por vingança ou porque tinha sido contratado para fazê-lo. Se ele sabia que ela tinha abandonado a casa, poderia adivinhar que ela pensaria no numero quatro como refúgio. E ele faria tudo o que pudesse por impedir que ela chegasse onde Sr Ross.
De súbito, Vitória sentiu um golpe de cólera pelo injusto da situação: estava em perigo embora ela não tivesse culpa de nada. Tinha sido a preocupação por sua irmã o que a impulsionasse a ir a Londres; após, tinham tido um acontecimento insólito atrás do outro, até chegar à presente situação.
Pareceu que o céu se abria e, de repente cataratas de água se precipitaram dispersando a multidão, que correu a proteger-se. A intensa chuva saturou a água jorrando sobre guarda-chuva e chapéus, ensopando roupas e calçado. Vitória fez uma profunda inalação olhou outra vez ao outro lado da coluna e jogou uma olhada por cima da multidão.
Voltou a ver o chapéu cinza e reconheceu Keyes com um sobressalto de terror. Estava a uns cinquenta metros dela e interrogava a alguém seu semblante fechado e frio, sua postura que delatava uma extrema tensão.
—Oh, Deus-murmurou ela.
Como se tivesse percebido seu olhar, Keyes se voltou e olhou diretamente para onde estava ela.
Imediatamente, seu rosto inexpressivo se contraiu de ira. Empurrou ao homem a quem estava interrogando e pôs-se a andar para Vitória com expressão assassina. Vitória se lançou a correr imediatamente, abrindo-se passo em meio da turfa que se dispersava e correndo em sentido paralelo à ópera. Viu a esquina da Rua Russell e atira sobre a pavimentação a caminho de carretas. Debateu-se tratando de recuperar o equilíbrio, consciente de que Keyes cortava a distância entre ambos. Não me deterá, pensou, com sombria determinação.
“Chegarei à Rua Bow, maldito seja...” Tinha chegado muito longe; agora não podia fracassar.
Grant entrou depressa pela porta da frente de sua casa, seu rosto branco como o de um cadáver, e viu um espetáculo pouco frequente: no vestíbulo da entrada estavam reunidos os criados, lacaios e criadas, agrupados ao redor da senhora Buttons.
—Senhor Morgan! —exclamou a ama de chaves, avançando de maneira precipitada muito diferente a seu habitual estilo digno e calmo.
Parecia ansiosa, perplexa, uns fios de seu cabelo grisalho escapavam de seu penteado que estava acostumado a ser impecável. Grant nunca a tinha visto tão desarrumada.
—Onde está ela? —Perguntou em tom enlouquecido, ao mesmo tempo em que, por dentro, gritava negando a óbvia resposta.
—Graças ao Senhor, está você de volta - tagarelou, nervosa, a senhora Buttons—. Já estava por me ocupar eu mesma de enviar uma nota à Rua Bow, posto que não soubesse quando poderia retornar você; pareceu-me importante verificar o pedido de Sr Ross...
—De que diabo está falando?
Passou o olhar pelas fúnebres expressões dos criados reunidos.
—Onde está Vitória? —Perguntou com brutalidade.
A pergunta provocou confusão entre os pressente.
—Vitoria? —Perguntou o ama de chaves, perplexa.
Grant sacudiu a cabeça, impaciente.
—Vivien. A senhorita Duvall. A mulher que esteve vivendo aqui as últimas semanas, maldição. Donde está ela? Onde está Keyes?
Depois de suas palavras, fez-se um pesado silêncio, que encheu os nervos de Grant de alarme e de fúria.
Compreendeu que ninguém queria lhe responder e, em sua angústia, soltei uma espécie de latido que sobressaltei a todos.
—Maldita seja; que algum de vós me conte o que aconteceu!
Mary se adiantou com os ombros cansados e a cabeça baixa como se suspeitasse que ele pudesse ceder à tentação de golpeá-la.
—Foi minha culpa, senhor-disse. - em voz débil. - Eu vi que a senhorita Duvall saía da casa. Encontrei-a na escada de serviço que sai ao exterior pela cozinha. Ela me pediu que não dissesse nada a ninguém. Disseme que era questão de vida ou morte para ela. Mas eu pensei que seria melhor que a senhora Buttons soubesse, e isso fiz.
O sangue de Grant começou a bombear de um modo tão brutal que sentiu um tremor nas têmporas.
—De vida ou morte - repetiu, em voz densa.
Vitória tinha compreendido o perigo em que se achava e tinha fugido. A senhora Buttons alisava uma e outra vez a parte da frente de seu avental como se não pudesse limpar suas mãos.
—O senhor Keyes disse, assim que chegou, que sir Ross lhe tinha pedido que levasse a senhorita Duvall ao quartel da Rua Bow. É certo senhor? Tinha uma atitude estranha, fria. Faz anos que o conheço e nunca o tinha visto assim. Era evidente que a senhorita Duvall não queria partir com ele; pediu-lhe permissão para ir trocar de roupa. E, enquanto ele a aguardava na biblioteca, ela se escapou da casa. Suponho que qualquer mulher em uma situação similar sentiria certo temor para os desconhecidos.
—Quando partiu, eu a observei pela janela. - interveio Mary. Dirigia-se para o mercado, ao que parece. E o senhor Keyes foi diretamente atrás dela.
—Ela vai para a Rua Bow-murmurou Grant.
Até onde Vitória sabia, era o único lugar seguro fora dessa casa. Disparou uma ordem a um dos lacaios, lhe indicando que tomasse um cavalo e fosse a toda carreira para a Rua Bow.
—Diga a Cannon que convoque a todos os homens disponíveis. Diga-lhe que devem cobrir com oficiais, policiais e vigilantes cada centímetro do Covent Garden e as ruas adjacentes até que encontrem Keyes e à senhorita Duvall. De pressa: quero que tenha o traseiro no escritório do Cannon em menos de cinco minutos!
—Sim, senhor.
O lacaio partiu correndo para a parte de atrás da casa, seguindo o caminho mais curto possível para a cavalariça. Grant se precipitou para fora, quase sem notar a chuva que lhe empapava o cabelo e as roupas.
Fazia presa dele uma estranha sensação, um medo como jamais havia sentido antes. Nunca pouco nem muito em sua própria segurança, convencido de que possuía suficiente inteligência e força física para rebater qualquer perigo que o ameaçasse. Mas este medo por outra pessoa, esta mescla de amor, terror e fúria era uma tortura de quão piores tinha tido que sofrer.
Correu para o Covent Garden a velocidade espantosa, enquanto que animais e carros chapinhavam pelas ruas molhadas e sujas e os pedestres se apressavam a proteger-se da tormenta. Se algo chegasse a acontecer a Vitória.... Desde só pensá-lo, sentia uma diabólica dor no peito; os pulmões pareciam estar cheios de fogo em vez de ar.
Passou ante a igreja do St. Paul, cujo cemitério albergava dois séculos de restos humanos. Assaltou-o o aroma de corsário quando dobrei pelo pórtico leste da igreja. Covent Garden se estendia ante ele como uma mistura de tráfico e sujeira. Ladrões, alcoviteiros, almofadinha, ladrões e provocadores vagavam por ali, uma mulher de rosto bonito e cabeleira vermelha despertaria grande interesse em todos eles. O pânico o transbordou enquanto tentava deduzir se Vitória teria rodeado a praça e seguido por becos escuros, povoados de vagabundos e criminosos ou se, em troca, teria cruzado diretamente pelo mercado. Ele tinha que encontrá-
la antes que a achasse Keyes.
—Vitória, onde está? —murmurou, sentindo que sua frustração se duplicava com cada minuto que passava.
Teve que apelar a todo seu controle sobre si mesmo para não gritar a pergunta.
Vitória piscou com força para liberar seus olhos de dilúvio; com ambas a mão tirou-se a água do rosto e tomou por uma rua lateral que se bifurcava no Russell, até que comprovou se desesperada, que estava andando na direção equivocada. Para esse momento, já deveria ter chegado à Rua Bow. Ah, se conhecesse o caminho... Se tivessem acontecido uns minutos mais antes que Keyes se precavesse de sua ausência...
A saia, ensopada pela chuva, lhe enredava nos tornozelos enquanto corria internando-se em um amontoamento desordenado de construções ruinosas. A semelhança de qualquer outro bairro de Londres havia uma mescla de prostíbulos, guaridas de ladrões e choças humildes, escondidas depois das ruas dos bairros mais luxuosos, de fachadas elegantes. Sem deter-se para olhar, Vitória corria em busca de um lugar onde refugiar-se, que mais perto encontrasse. Baixou à carreira a escada que levava ao porão de um edifício que tinha na fachada uns pôsteres onde se anunciava que se tratava de um lugar de apostas.
Agitada, tratando de recuperar o fôlego, abriu uma porta de madeira e se precipitou no interior desse salão escuro iluminado com abajures e que se achava debaixo do nível da rua. Estavam ocupados por uma dúzia de homens, quando menos, todos muito concentrados no desenvolvimento do jogo para advertir imediatamente sua presença.
Tanto cavalheiros como caipiras se inclinavam sobre um mostrador coberto de potes de tabaco e maços de puros, estudando as listas de apostas que estavam expostas na parede do fundo. Um corredor de apostas que levava um saco de couro a cada lado dos quadris ia e vinha atrás do mostrador e levava adiante as transações a ritmo ágil.
Flutuava no ar um rançoso aroma masculino, mescla de suor, tabaco e lã e pano molhados pela chuva.
Vitória se agachou em um rincão, baixou mais o capuz sobre o rosto e aguardou abraçando-se a si mesmo com força. Rogou para seus adentros que Keyes passasse de comprimento ante a casa de apostas e prosseguisse sua busca em algum outro lugar. Keyes conhecia bem essa zona de Londres, posto que de vez em quando os detetives recebessem ordens de registrar os bairros baixos em busca de criminosos. Nesse, precisamente se destacavam os detetives: em rastrear e apanhar a suas presas.
—Bom bom... Interrompeu seus pensamentos a voz cultivada de um cavalheiro; viu um par de botas negras que se aproximavam dela—. Parece que um bonito pássaro encontrou um lugar seco onde refugiar-se enquanto dure a tormenta.
As apostas se interromperam um momento, e a presença de Vitória se fez manifesta. A moça mordeu o lábio inferior e procurou não encolher-se quando o homem lhe tirou o capuz que lhe cobria o rosto. Ouviu que o homem continha o fôlego e viu que uma mão carnuda tomava uma mecha de seus empapados e reluzentes cabelos avermelhados.
—Uma mercadoria encantadora. - disse o homem em voz densa, e lançou uma gargalhada enquanto a devorava com seu olhar. - No que anda pequena? Está procurando um acompanhante para passar a noite? Se for assim, encontraste seu homem. Tenho no bolso uma bonita moeda para ti.
—Apostaria que não é só isso o que tem no bolso —disse alguém e o comentário foi seguido por estrondosas gargalhadas masculinas.
Vitória tomou consciência de que estava convertendo-se no centro da atenção; olhou o homem no rosto.
Tinha o aspecto de um cavalheiro; talvez até fosse alguém da nobreza, com seu redondo rosto barbeado, seu corpo robusto embainhado em calças cor café, uma jaqueta de pano de pescoço alto e uma gravata atada com um elegante coque.
—Alguém estava me seguindo no mercado. - disse ela em voz baixa. Ocorreu-me fugir dele ocultando-me aqui uns minutos.
O homem estalou a língua em um arremedo de simpatia e deslizou um braço pelas costas da moça com uma insultante familiaridade.
—Pobre pomba. Eu te brindarei todo o amparo que queira. - disse, levando sua mão ao peitilho do casaco de Vitória e começando a desabotoá-la, sem fazer caso da exclamação indignada da jovem—. Não tem por que protestar; eu só queria jogar uma olhada à mercadoria.
A essas alturas, a atenção de todos os presentes no salão estava concentrada neles. Até o corredor de apostas tinha feito uma pausa para observar a cena, unindo-se aos gritos de ânimo que lançavam os homens, desejosos de ver o que se ocultava sob o casaco.
—Vim aqui para evitar a um homem que me incomodava. - protestou Vitória, apartando as mãos do sujeito e retrocedendo mais para o rincão—. Não estou procurando outro.
O comentário só obteve que o torpe sujeito sorriu convencido de que ela estava jogando com ele.
—Estou-te oferecendo uma noite com um brioso garanhão e uma generosa recompensa por seus serviços. - disse o homem. O que outra coisa poderia querer uma mulher?
—Eu ofereço a você uma recompensa se me chegar à Rua Bow-respondeu ela. Sem dúvida, terá ouvido falar você do senhor Grant Morgan. Eu estou segura de que se você consegue me levar ali sã e salva, ele o considerará como um favor pessoal.
A expressão luxuriosa do homem se desvaneceu em parte e a olhou com um interesse diferente.
—Sim, ouvi falar de Morgan. Que relação tem você com ele? - Em meio da angústia de Vitória irrompeu um fio de esperança. Não cabia dúvida de que a menção de Grant tinha atraído a atenção do homem.
Conseguia-se convencer o de que a levasse a Rua Bow, estaria a salvo de Keyes. Desespera-se por persuadi-lo, agarrou-o pela manga e a reteve com força. Mas, antes que pudesse pronunciar uma palavra, alguém entrou no salão de apostas.
Bastou uma olhada no chapéu cinza do recém-chegado para lançar uma exclamação assustada.
—É ele-disse, tremendo.
—O homem que estava te incomodando? —Perguntou o insólito protetor de Vitória.
Vitória assentiu e, ao olhar Keyes, fechou a garganta. Ele respirava agitadamente como consequência do esforço da perseguição e seu semblante estavam tenso e cheio de fúria. Assim que a viu, brilhou em seus olhos uma expressão de malévolo triunfo.
—Sou um policial da Rua Bow depois dos rastros de uma suspeita. - Pronunciou em voz fria e clara.
Entreguem-Me essa mulher.
A novidade da presença de um policial no local provocou um murmúrio generalizado de consternação em todos os ali reunidos. O corredor de apostas saiu atrás do mostrador e se lançou a um zangado discurso de protesto.
—Eu administro um negócio decente, sim senhor! O que faz falta para que vós porcos, apaguem-me de sua lista?
Era bem sabido que corredores de apostas e policiais se desprezavam mutuamente posto que os segundos estivessem acostumados a registrar com frequência os salões de apostas em busca de criminosos. Em opinião dos detetives, os apostadores estavam só um degrau mais acima que os delinquentes reais e, pelo comum, tratavam-nos como se fossem.
—Estou aqui por um assunto relacionado com a Coroa. - disse Keyes com firmeza, indo para Vitória—.
Agradeceria-lhes que me entregassem à empregada, que é requerida para ser interrogada.
—Ele mente! —Gritou Vitória, equilibrando-se para o cavalheiro que estava junto a ela, aferrando-se até ao amparo mais mesquinho a que pudesse jogar emano. - Eu não tenho feito nada mal!
—De que crime a acusa? —Perguntou o homem, rodeando Vitória com um braço.
—Não tenho tempo para enumerar seus delitos. - respondeu Keyes. - Vamos, solte à mulher e ocupe-se de seus assuntos.
—Faça o que ele diz. - ordenou o corredor de apostas. - Deixe-o que se leve a mercadoria e se vá. É mau para o negócio que haja um policial presente.
O homem lançou um suspiro e começou a empurrar com suavidade a Vitória para diante.
—Bom você queria ir à Rua Bow, pomba. Ao parecer, já tem quem te acompanhe.
—Ele não me levará ali! —gritou ela, desagarrando-se dele. - Quer me matar. Não deixem que me leve!
—Matar? —Repetiu o homem, rindo com o que para ele era um amalucado exagero. - Vamos, pomba, seja o que for que tenha feito, não deve ser tão mau. Quando estiver no estrado mostra ao juiz seu melhor sorriso e, estou seguro, ele te deixará livre sem dificuldades.
—Por favor-disse ela, desesperada, me ajude a chegar ante Sr Ross Cannon. Ou o senhor Morgan. Se... O
rogo por minha vida.
O homem cravou sua vista nela e a incerteza escorregou por sua expressão. O que viu nos olhos dela o convenceu, e o braço com que a rodeava se atou mais.
—Muito bem-disse—. Certamente, não poderia dar a esta úmida noite um emprego pior que resgatar a uma rapariga em apuros. - disse, elevando seu olhar para o Keyes com um sorriso afável e condescendente. -
Não cabe dúvida de que não haverá nada de mal em que acompanhe à moça até a Rua Bow - disse. Esse é o lugar onde quer levá-la, não é assim? Que problema pode haver se eu a levo em seu lugar de você?
Keyes se aproximou deles, e Vitória ficaram tensa, observando os olhos escuros e letais em seu rosto impassível. Ele dava a impressão de estar pensando uma resposta, tal como faria alguém que participa de uma conversa razoável.
—Eu lhe mostrarei qual é o problema-disse, sem elevar a voz.
Enquanto falava, tirou um objeto do interior de seu casaco e o elevou, riscando um rápido arco com a mão. Vitória viu imediatamente que se tratava de uma pesada clava que usavam os policiais para submeter aos delinquentes rebeldes. Soltou um grito e se voltou no preciso momento em que Keyes golpeava o homem na cabeça e os ombros três vezes, em rápida sucessão. Sentiu repercutir os golpes através do grosso corpo do homem, até que este se derrubou dando um gemido e caiu no chão como uma confusão de roupa e seu braço a soltou.
Keyes se apoderou de Vitória sujeitando-a por um braço que lhe retorceu detrás das costas, lhe provocando um relâmpago de dor que lhe queimou as costas e o ombro. Vitória gemeu entre os dentes apertados e se dobrou para diante para aliviar essa penetrante dor. Percorreu todo o salão um estalo de furiosos gritos que a voz de Keyes cortou em seco.
—Se alguém mais quer atar-se comigo, o denunciarei por interferir a um funcionário no cumprimento de seu dever. Vocês gostariam de passar uma noite na prisão do Newgate? - perguntou lançando uma gargalhada depreciativa à concorrência, subitamente apaziguada —Saque seu traseiro de meu local - soltou o corredor de apostas e se somou ao pequeno grupo que se reuniu em volto do homem ferido cansado no chão.
—Com gosto. - respondeu Keyes, atirando de Vitória e empurrando-a para a escada, de volta à chuva.
—Agora não me pode matar.- gritei, ela, piscando para o fio da cortina de chuva que açoitou seu rosto. Há testemunhas... Todos eles dirão que você foi quem me levou. Será julgado... O pendurarão.
—Eu já estarei muito longe antes ainda de que tenha começado a investigação. - replicou Keyes com desdém, sem deixar de retorcer o braço de Vitória enquanto a levava pela rua, rodeando uma transbordante sarjeta de refugos que havia no meio.
—Por faz isto? —Gritou Foi surpreendente que Keyes a ouvisse pesar do fragor da tormenta.
—Sou muito velho para ser policial e só conto com umas poucas libras para viver quando me retirar. Que me condenem se me contento vivendo como um cão o resto de meus dias.
—Que... Quem lhe pagou para que me mate?
Ele empurrou seu braço para cima e ela se interrompeu lançando um grito de dor.
—Já chega de falatório. - disse ele.
Giraram em uma esquina e se internaram em um bairro baixo. Encaminharam-se rapidamente para uma fábrica abandonada. Os muros do edifício davam tal impressão de decadência e instabilidade que parecia que ninguém se animou a ocupa lo nem sequer quão pobres viviam apinhados nos tugúrios dos arredores, como coelhos em sua toca. Vitória gritou enquanto Keyes tratava de obrigá-la a entrar.
Vitória sentiu uma aguda explosão de dor no flanco de sua cabeça e soube, de maneira difusa, que ele a tinha golpeado com força para vencer sua resistência. Cambaleou caindo sobre ele com a mente aturdida e esforçando-se por limpar a cabeça. O sabor do amido e do suor lhe provocou arcadas à moça.
Keyes levou as mãos de Vitória para trás e lhe colocou as quentes argolas de metal das algemas nos punhos. Impotente, Vitória avançou a tropeções, empurrada pelo detetive que a levava para um lance de degraus quebrados. Os que ainda ficavam rangiam e se estilhaçavam a medida que eles subiam. Teria reinado a mais completa escuridão se não tivesse sido porque uma boa parte do teto tinha cansado, e havia buracos e fissuras nas paredes. A atmosfera era fedorenta e estancada, toda superfície visível estava coberta de pó e de graxa que nem sequer as rajadas de vento carregadas de chuva que penetraram ao interior conseguiam mover.
Abatida, Vitória pensou que ninguém a encontraria, e ofegou, falta de fôlego, quando Keyes a empurrou, obrigando a subir o segundo andar da fábrica.
Então, ele ficou imóvel, contemplando as meias ensopadas de Vitória. Seu rosto se esticou de um modo que lhe causei repugnância.
—Tinha pensado em acabar com você rapidamente-disse o homem. Mas agora quero levar algo mais, em compensação pelas moléstias que me causou cadela fastidiosa. Não desdenharei uma porção do que Morgan desfrutou.
De repente, nada lhe pareceu real a Vitória. Aturdida, lhe ocorreu que devia estar sofrendo um pesadelo, que muito em breve despertaria e que Grant estaria ali, lhe dizendo que não se preocupasse. Sua mente se concentrou desesperadamente na idéia de que tudo era um horrível sonho. Não se encolheu sequer, quando Keyes se inclinou sobre ela e começava a soltar os botões de suas calças.
—Você não será uma grande perda para o mundo. - murmurou. - Conheci milhares como você. Mas admito uma coisa: é uma pequena cadela resistente. Nenhuma mulher teria suportado o que você suportou nesse momento seu tom revelou um ciúme candente. Todo o melhor para Morgan... Sim, é uma parte seleta de carne.
Enquanto seguia balbuciando zangado, levantou a saia de Vitória, que já começava a desejar estar morta.
Capítulo 16
Tal como Grant tinha exigido, Covent Garden e seus arredores logo buliram de patrulhas a pé, capitães, detetives e vigilantes. Patrulhas a cavalo, constituídas por soldados de cavalaria retirados dividiram a zona em regiões e as cobriram com precisão militar. Como era lógico, Cannon permaneceu no quartel da Rua Bow, depois de ter dado a ordem de que lhe informassem imediatamente de qualquer acontecimento que acontecesse.
Grant sabia que o interesse de Cannon em achar a Vitória já Keyes ia além da preocupação pessoal. O público, suspicaz, estava sempre à pesca de qualquer indício de corrupção que surgisse entre as forças que ocupavam a sede da Rua Bow. Se comprovasse que Keyes tinha cometido uma maldade, a notícia seria usada contra Cannon, contra todos eles; isso prejudicaria o plano que este tinha para reorganizar e expandir a tarefa policial. O mais provável era que esta preocupação pesasse nas mentes de todos os detetives, esporeando-os a que procurassem com mais afinco ainda.
—Morgan - disse Flagstad, preocupado, inclinando a asa de seu chapéu para proteger-se da chuva torrencial, nem que fosse a vida nisso, poderia imaginar que motivo teria a senhorita Duvall para fugir assim do Keyes. Talvez, tenha perdido a cabeça, tenha sofrido um ataque de pânico... Mas, por quê? Todos sabemos que Keyes é um bom homem.
Grant meneou a cabeça e pôs-se a andar para a ópera. Ele esforçou em emitir uma resposta entre os dentes apertados.
—Não tenho certeza de nada. - respondeu com aspereza.
—É obvio que sabe. - insistiu Flagstad, apressando-se para ficar ao mesmo tempo em que Grant, dava grandes pernadas. Keyes não há feito nada incorreto: só está procurando à senhorita Duvall, tal como estamos fazendo-o todos nós, para leva-lá de volta a um lugar seguro!
A defesa que Flagstad fazia de seu amigo de toda a vida devia ter comovido Grant. O rosto curtido do homem estava crispado de perplexidade a consequência dos acontecimentos dessa noite. Fazia anos que Flagstad conhecia Keyes, e haveria sentido sobremaneira angustiado ante qualquer insinuação de que ele pudesse ter feito algo mau.
Grant sabia que deveria ter demonstrado competência e talvez dizer um par de palavras que aliviassem a evidente aflição de Flagstad. Mas, ao contrário, deteve-se e aferrou a seu companheiro do peitilho de sua jaqueta.
—Se assim fosse, onde está ele? —perguntou, em uma explosão de fúria que tinha estado contendo até esse momento e que se acendeu como uma fogueira—. Não me diga que classe de homem é Reis... Você só me ajude a encontrar a esse bastardo!
—Sim... Sim... —respondeu Flagstad, apartando as mãos de Grant de sua jaqueta. Cravei a vista nele, com expressão consternada. Tranquilize-Te, Morgan. Meu Deus, nunca te vi assim... Sempre conservaste sua cabeça fria, inclusive em meio de um tumulto!
Grant o soltou, emitindo um grunhido de fúria contida. Sim, sempre tinha mantido a frieza em meio de tumultos, turfas, batalhas e escaramuças de toda classe. Mas isto era diferente. O tempo de Vitória estava acabando. Ela corria perigo de morte, e a impossibilidade de chegar a seu lado fazia que algo desumano o alagasse por dentro e transbordasse a superfície. De repente, caiu em conta de que se não se tranquilizasse acabaria por matar alguém. Como uma máquina, obrigou-se a seguir caminhando em direção à ópera, onde o capitão de uma patrulha tinha reunido a dois homens.
—Não acreditará que fugiram juntos, não é certo? —refleti Flagstad em voz alta. Quero dizer que Keyes é atraente e a senhorita Duvall tem uma forte reputação nesse sentido...
—Me deixe em paz. - interrompeu Grant, em voz baixa e mortífera. - Saia, antes que o mate.
Flagstad compreendeu que não era uma ameaça vã. Empalideceu, deteve-se e se apressou a afastar-se.
—Melhor, irei pedir ao capitão Biogdon um relatório sobre os progressos de sua patrulha. – —Morgan! Morgan! Gritou alguém. Sem fôlego, despertando Grant imediatamente. Um oficial corria a toda velocidade desde as ruas que estavam ao norte da praça do mercado, e em direção a opera—. Senhor Morgan... Mandaram-me lhe dizer...
Grant chegou junto a ele em três pernadas, com tal violência que quase lhe fez cair.
—O que?
—A casa de apostas no beco que está além do Russell... Você, sem dúvida, quererá sabê-lo...
O oficial, ofegando frenético, fez uma pausa e deixou cair à cabeça tratando de recuperar o fôlego.
— Diga-me maldição! —urgiu-o Grant—. Depois poderá respirar.
—Sim, senhor. - disse o oficial, assentindo com presteza, e com esforço, seguiu informando - O passador de apostas e alguns de seus clientes afirma..- Interrompeu para inalar outra baforada de ar - que esta noite, uma moça entrou no salão pedindo que alguém a ajudasse a chegar à Rua Bow. Dizem que entrou um detetive e a obrigou a ir com ele.
—Deus seja louvado! - Exclamou Fiagstad, que se tinha demorado para ouvir o relatório. O alívio tinha transformado sua expressão. - Não cabe dúvida de que são Keyes e a senhorita Duvall. O encontrou? Já tudo está solucionado.
Grant ignorou o entusiasmo do detetive e interrogou em tom áspero o oficial.
— Quanto faz que ocorreu isso?
—Ao parecer, faz menos de dez minutos, senhor.
Flagstad interrompeu ansioso.
—Eu irei diretamente à Rua Bow a esperá-los. Sem dúvida, Reis estará com ela ali, em uns momentos.
O corredor de apostas o olhou entreabrindo os olhos.
— Você deve ser Morgan. - Ela perguntou por você, a moça que entrou em meu local e provocou todo este maldito alvoroço.
—Conte ao senhor Morgan o que aconteceu insistiu um dos oficiais.
—O detetive entrou em meu salão procurando à garota, e ela não queria sair com ele. Essa cabeça oca disse que ele ia matá-la.
—E desatou uma briga-contribuiu o oficial.
—Sim-admitiu o apostador com atitude. Um de meus clientes tratou de ficar com a moça e o detetive golpeou o meu cliente. Condenados para sempre tratando de arruinar o negócio honesto de um homem!
Grant sofreu uma tortura mescla de pânico e dor que foi subindo sem cessar até lhe fazer sentir calor e pressão no centro da cabeça.
—Em que direção partiram? —ouviu-se a si mesmo perguntar com voz rouca.
A pergunta arrancou ao apostador um sorriso matreiro, que se estendeu de uma costeleta à outra.
—Talvez saiba-disse o corredor de apostas com desconfiança, ou talvez não.
Um dos oficiais o agarrou impaciente o sacudiu um pouco, lhe arrancando um chiado de protesto.
—Se voltar a me maltratar-ameaçou o apostador—e não direi aonde foram! O que lhe pareceria mandar a dormir à moça em uma fossa?
—Que diabos quer você? - Pergunto Grant em voz bronca, cravando a vista no apostador com um selvagem intensidade que estremeceu ao indivíduo.
O homem piscou inquieto.
—Quero que, de agora em diante, seus pestilentos mantenham seu traseiros fora de meu salão!
— Concedido.
—Mas, senhor Morgan... Disse o oficial, protestando pelo trato feito com tanta urgência.
Sua voz foi desvanecendo-se ante o olhar assassino de Grant, que girou bruscamente para ele, congelando-o por um instante.
O apostador jogou a Grant um olhar suspicaz.
— Como sei que cumprirá sua palavra?
—Não saberá. - respondeu Grant, elevando sua voz até convertê-la em um trovão que rivalizava com os da tormenta . se inteirará de que o matarei nos próximos dez segundos se não me disser aonde diabos foram!
—Está bem. -disse o apostador e começou a chamar um tal Willie.
Imediatamente, apareceu um magro rapaz de uns onze ou doze anos, talher de objetos esfarrapados que ficavam muito grandes e uma boina que se tragava, quase, sua pequena cabeça bicuda.
—Meu corredor de apostas-disse orgulhoso, o dono do salão. Eu o mandei para que seguisse a esse canalha quando ele se levou a moça.
—Foram a um edifício velho que não está muito longe daqui-disse o menino, agitado. Eu o guiarei senhor Morgan.
O pequeno pôs-se a correr pela rua imediatamente olhando por cima do ombro para comprovar se Grant o seguia. Este, em efeito, não demorou um segundo em seguir seus passos.
—Eu sei exatamente onde é senhor. - gritou o menino, e apertou o passo até alcançar um ritmo de carreira.
O edifício ou, melhor dizendo, o que ficava dele, erguia-se como um desmantelado sentinela em uma esquina, com seus muros crivados de buracos e partes de cristais quebrados.
—Aqui está-gritou Willie, ao tempo que se detinha poucos passos da entrada, que observava com desconfiança—. Aqui entraram. Mas eu não vou entrar senhor... Em todo o lugar não há uma madeira que não esteja podre.
Grant quase não o ouviu enquanto transpunha a soleira. A fábrica chiava e corredor a seu redor, como se toda ela fosse desmoronar se em qualquer momento. A chuva jorrava das rupturas das paredes e o teto, e seu limpo aroma não contribuíam grande coisa a refrescar o rançoso ambiente. Não se ouviam vozes, não havia sinais de luta; parecia impossível que Vitória estivesse ali. Por um momento, Grant pensou que o menino poderia haver-se confundido ou que, possivelmente, o próprio apostador lhe tivesse indicado que o fizesse para engana-lo. Se esse lugar não era o que procurava, estaria perdendo um tempo precioso. Mas atraíram sua atenção uns rastros de pegadas que se viam no chão; seu olhar. Voou para a escada. No terceiro degrau e no quarto se viam mais pegadas e mais acima também. Alguém tinha estado ali fazia pouco tempo.
Ao ver os rastros, Grant encolheram as vísceras. Sem hesitar, precipitou para a escada acima sem fazer caso da madeira que rangia sob seu peso e subio com mãos e pés. Até esse instante, jamais tinha conhecido o verdadeiro desespero, nunca a havia sentido correndo como azeite fervendo por suas veias até o ponto de que parecia que sua pele ia arder. Tinha que chegar junto a Vitória antes que fosse muito tarde... E se o era...
Estava seguro de que não poderia seguir vivendo em um mundo onde ela não existisse.
Chegou à segundo andar. Viu, através de uma névoa vermelha de fúria, dois corpos em meio da fábrica...
Keyes, inclinado sobre o corpo prostrado de Vitória, subindo com estupidez a saia, enquanto um relâmpago arrojava um brilhante resplendor que entrava pelas rupturas do teto. A única cor que havia nessa estadia era o cabelo de Vitória, com o luxo dos rubis, esparso como um atoleiro sob sua cabeça. Estava amordaçada. Com os olhos fechados, imóvel, jazia debaixo do detetive e não se via nela algum movimento.
Da garganta da Grant brotou um grito atroz, um grito endiabrado que surgiu do fundo de sua alma. Já sem consciência de seus atos, equilibrou-se sobre o Keyes, com todo seu ser concentrado na urgência de atacar e matar. O outro só teve uma fração de segundo para elevar a vista quando Grant já estava sobre ele.
Keyes soltou uma maldição quando se viu arrojado ao outro lado da estadia. Rodou, mediu em busca de sua pistola, mas, não tinha alcançado a agarrar a culatra da arma quando Grant lhe tinha obstinado o braço e o esmagava contra o chão com uma força que lhe rompeu os ossos. A dor fez gritar Keyes, que lançou seu outro punho, estampando-o no queixo de Grant. Este, em seu afã de matar, quase não sentiu o golpe.
—Ela não é nada, idiota! —gritou Keyes, cravando no rosto selvagem e impiedoso de Grant um olhar furioso— Não irás matar-me por uma puta!
Grant não respondeu; em troca, procedeu a moê-lo a golpes até que já não brotaram mais palavras da boca de Keyes. Pouco a pouco, este deixou de lutar e levantou os braços para proteger o rosto e a cabeça.
Quando o detetive ficou reduzido a uma espécie de vulto, Grant tirou uma faca de sua bota, sentindo o contato reconfortante em sua mão. Só ficaria satisfeito com a morte; nesse momento, já nada o deteria. Todo aquilo no que acreditava a rigor da lei, e a justiça, desvaneceram-se como pó no vento. A sede de sangue o tinha levado a borda da loucura; levantou a faca no ar.
Um som afogado lhe fez deter-se. Olhou nessa direção e viu vitória que estava ofegando e exalando violentas baforadas de ar. Ela havia se voltado de lado e o olhava, sua garganta se movia sem emitir som, seus olhos estavam dilatados e cravavam nele seu olhar sobre a mordaça que cobria sua boca. Grant ficou tenso até tremer de força contida. Não podia apartar seu olhar do rosto dela. Os olhos azuis de Vitória o capturavam, lhe impedindo de mover-se. Um fiapo de prudência perfurou as primeiras capas de sua fúria agressiva, mas ele resistiu com ferocidade.
—Te volte não olhe-disse, com uma voz que parecia alheia a ele.
Vitória negou com a cabeça, compreendendo que ele não poderia matar a um homem enquanto ela o olhasse.
—Maldita seja, te volte-grunhiu Grant.
Ela não fez conta. Os olhares de ambos se encontraram; a dele, demoníaca, a dela insistente. Aquilo durou até que ela o derrotou. Ele cedeu, lançando um gemido surdo e voltou a colocar a faca dentro da bota.
Obsequiou ao Keyes com um último golpe, deixando-o inconsciente, e registrou rapidamente seus bolsos.
Encontrou a chave das algemas que sujeitavam os braços de Vitória e se aproximou dela, deixando cair de joelhos a seu lado. Ela estremeceu enquanto ele fazia girar a chave na fechadura e as algemas caíam de Seus punhos machucados.
Assim que Grant tirou a mordaça do rosto de Vitória, molhado de lágrimas atraiu-a para ele, sentou-a sobre suas pernas e a estreitou contra seu corpo. Senti-la assim, tão suave, tão pequena e viva lhe fez lançar um soluço de alívio. Suas mãos a percorreram passaram pela boca, meteram-se com avidez entre seus cabelos, tocaram-lhe a pele, as roupas, como se queria devorá-la toda.
—Grant-ofegou, encolhendo-se ante a força de seus beijos.
Exalou um grunhido quase animal de prazer e de desejo e esmagou com força seus lábios sobre os dela.
Sentiu que Vitória lhe deslizava um braço pelo pescoço; quando lhe falou, seu fôlego lhe acariciou a orelha.
—Pensei que ia morrer aqui. Pensei... Que seu rosto seria o último veria nesta vida.
—Meu rosto será o último verá nesta vida.
—Lembrei de tudo... Esse sujeito, Keyes... foi ele quem tentou me matar da outra vez.
Grant estava consciente de que estava a estreitando com muita força, mas não podia afrouxar os braços.
—Sinto-o - conseguiu dizer, por fim—. O sinto muito. A culpa é minha...
Não, não. Por favor, não diga isso. - pediu ela, apertando com suas mãos a dura nuca dele. - Como me encontrou? Como soube?
—Descobri o trato que ele fez com Lord Lane. Durante a ultima meia hora, quase enlouqueci pensando que não chegaria a tempo. - confessou ele, afundando o rosto na curva do pescoço dela e emitindo um gemido. - Oh, Deus!
Ele sentiu que os dedos de Vitória passavam com suavidade por entre seus cabelos molhados e que ela murmurava algo ininteligível.
—Nunca mais a perderei de vista. - disse ele, com sua voz amortecid.
—Bom... Bom. Por mim, está muito bem.
A tormenta seguia rugindo e soprando fora e a fábrica rangia e se estremecia. Os ruídos tiveram a virtude de fazer entrar em ação Grant. Levantou vitória de cima e a ajudou a incorporar-se.
—Tenho que tirá-la daqui. - murmurou.
—Sim.
Jogou um olhar de repugnância a esse lugar malfadado e seu olhar se atrasou sobre a figura que jaza de Keyes.
—E o que fará com ele?
—Deixaremos que outros se ocupem dele - disse Grant, sem se importar se o edifício inteiro caisse em cima do canalha... quanto antes eles saíssem e ficassem a salvo. Passou o braço pelas costas de Vitória para sustentá-la. - Pode caminhar, Vitória?
Ela assentiu e, para seu assombro, viu que um sorriso estirava seus lábios esquartejados.
—Que há? —Perguntou ele, pensando se o terror que ela tinha sofrido nos últimos minutos a tinha desequilibrado por um tempo.
—Disse meu nome. - disse ela, em voz rouca e forçada, mas sem abandonar o sorriso. Como sabe...?
—Explicarei-lhe isso mais tarde.
Grant não pôde conter-se e se dobrou para apoderar-se de sua boca em um beijo duro e apaixonado.
—Vamos.
Descenderam com cuidado pela desmantelada escada; Grant ia diante. Provava cada degrau e cada patamar antes de permitir que Vitória seguisse adiante. Assombrou-lhe comprovar quão débeis sentia suas pernas; embora já se sentisse a salvo, não podia deixar de tremer. Percorreram sua pele tremores e estremecimentos; ela reagiu ficando rígida.
—Ele a machucou? —perguntou Grant em um momento dado; embora a voz fosse serena, ela percebeu sua angústia e sua preocupação.
—Não. - respondeu ela, apertando os dentes para conter uma corrente de palavras. - Não me... Bom, você chegou antes que... —guardou silêncio, enquanto Grant a elevava com delicadeza para ajudá-la a passar sobre um degrau quebrado. - Estou muito bem. - disse, reafirmando sua voz, desejosa de tranquilizá-lo.
Entretanto, ele não se convencia. Vitória se encolheu ao ver a dureza de seu perfil; soube que, ele devia estar reprovando-se severamente pelo que tinha acontecido.
Tiveram a impressão de que tinha transcorrido uma eternidade até que, por fim, chegaram ao exterior.
Assim que pisaram em chão firme, Grant a levou em seus braços, apertando-a contra seu peito. Vitória lhe tocou o ombro ao precaver-se de que estavam rodeados por um numeroso grupo de oficiais, detetives e curiosos olheiros.
—Eu posso caminhar. - murmurou.
Um rumor de louvores e de alívio percorreu a multidão. Grant não fez caso de suas palavras e seguiu com ela. Um capitão da patrulha a cavalo se aproximou, desmontou e saudou Grant com uma respeitosa sacudida de cabeça.
—Senhor. - lhe disse. - alegra-me ver que a senhorita Duvall está sã e salva. - fez uma pausa e jogou um olhar à ruída fábrica. - O senhor Keyes ainda está aí dentro? Quer dizer, o que devemos fazer...?
—Ele está vivo. - respondeu Grant, sem manifestar muita alegria pelo fato. - Mas necessitará ajuda para descer.
O capitão franziu o cenho, consternado.
—Este lugar é uma armadilha mortal, senhor. Eu não posso garantir a segurança dos homens que se aventurem a entrar.
—Nesse caso, derrube o edifício e sepulte Keyes entre os escombros. - disse Grant, sem vacilar—. Não me importa.
O capitão piscou perplexo ante a dureza que manifestava Grant. - Senhor permita-me lhe oferecer meu cavalo?- Assinalou um membro da patrulha a cavalo, que trazia da rédea a um enorme alazão.
Grant levou a Vitória, colocando-a sobre a montaria e, imediatamente, saltou e montou atrás dela. Joguou um frio olhar para o edifício desmantelado.
—Quando tiverem resgatado o senhor Keyes. - disse ele ao capitão. - prenda-o e envie-o ao calabouço da rua Bow. - Tenho um assunto pendente com esse canalha... Quando Cannon tiver terminado com ele, quero-o para mim.
—Sim, senhor Morgan. - disse o capitão, olhando-o com uma mescla de pasmo e temor.
Não cabia dúvida de que Grant era um individuo ao que não convinha desgostar.
Vitória, muito exausta para fixar-se no recato, ia escarranchado no cavalo, com a saia elevada até os joelhos. Apoiou-se em Grant, e seu braço firme a rodeou por diante. Os largos dedos do homem se curvaram sobre seu torso e a apertou contra ele o tempo que esporeava o cavalo, lhe imprimindo um trote imediato.
Como o corpo de Vitória estava muito tenso e fatigado para mover-se com naturalidade, sofreu um pouco as sacudidas. Mas para ela foi um alívio sentir o tamborilar da chuva no rosto e a dor dos membros; todas elas eram sinais de que estava viva.
Pensou, maravilhada, que Grant tinha ido a seu resgate. Tinha impedido que Keyes a matasse. Era um milagre muito grande para apreendê-lo. Agora, ela estava segura de que ele arriscaria tudo, que faria algo por ela, de que ela era para ele mais importante do que tinha sido nunca para ninguém. Sabia, também, que ele estava disposto a matar a Keyes, mas que o tinha deixado com vida porque ela o tinha imposto. Um estremecimento de prazer ao compreendê-lo, Grant era um homem magnífico e dono de si mesmo... Mas ela tinha influência sobre ele. Porque ele a amava.
Vitória se apoiou com mais força nele, saboreando, sem lhe importar o frio nem o desconforto do trote.
A escuridão brocada pela chuva estava iluminada, com muita dificuldade, pela luz, quando chegaram ao número 4 da Rua Bow. Grant desmontou primeiro, estendeu seus braços a Vitória e a baixou com cuidado.
Manteve suas mãos na cintura dela para sustentá-la. Ela elevou os olhos para ele e sorriu, percebendo a preocupação que havia depois da fachada inexpressiva de seu rosto.
—Estou bem. - disse ela.
O queixo do homem ficou tenso.
—Não posso deixar de pensar em você, estendida no chão dessa fábrica. E em Keyes em cima de você..
—Mas você o deteve.
Ela estirou a mão e lhe acariciou a bochecha, assombrando-se ante a trudeza da pele sob seus dedos. Uma intensa emoção provocou um tremor que sacudiu Grant; ela sentiu a vibração em sua palma.
—E se tivesse chegado muito tarde? —Perguntou ele em voz áspera, e seus olhos tão obscurecidos que pareciam negros em lugar de verdes.
Vitória o contemplou compadecida compreendendo que ele necessitava tanto de consolo como ela, talvez mais ainda. Desde que tinha morrido o irmão do Grant, ele jamais tinha enfrentado a possibilidade de perder a um ser amado. E não se permitiu amar de verdade a alguém porque não queria correr o risco de sentir outra vez uma dor semelhante.
—Você não tem culpa. - disse ela com cautela. - Há algumas coisas que escapam a seu controle.
Ela comprovou subitamente divertida que não era isso o que ele queria ouvir. Ele não pertencia a essa classe de homens capazes de admitir que existisse algo fora de seu controle.
—Esse é um consolo bastante frio. - murmurou ele, e uma de suas escuras sobrancelhas se arqueou, lhe dando uma expressão sardônica. - Não poderia me dar melhor?
Ela conseguiu sorrir ao comprovar que pouco a pouco ele estava recuperando sua maneira de ser.
—Bom; não chegou tarde. -disse. - Chegou a tempo para me salvar. Por que se preocupa pelo que poderia ter acontecido?
—Porque eu... —disse Grant, e se interrompeu carrancudo. - Porque não è todos os dias um homem descobre que uma mulher pequena, frágil, com tendência a sofrer acidentes se converteu no eixo de sua existência.
—Com tendência a sofrer acidentes? —Repetiu ela, com certo tom de fingida indignação, enquanto que, ao mesmo tempo, seu coração dava um tombo de sorte a consequência das outras palavras.
Ernest, o mensageiro de Sr Ross, saiu do edifício para encarregar do cavalo e levá-lo ao estábulo que estava na parte de atrás da casa. Para surpresa de Vitória, Grant não a levou ao escritório que se achava na entrada do pequeno pátio que dava ao sul a não ser, diretamente, ao interior da casa. O edifício principal estava comunicado com uns escritórios que havia atrás as que, a sua vez, comunicavam com uma sala de audiências onde se levavam a cabo os interrogatórios e se apresentavam os casos.
—Quem são .estas pessoas? —perguntou Vitória, apertando-se de maneira instintiva contra Grant, e olhando fixamente à multidão que se amontoou em todos os rincões concebíveis do edifício.
—Informantes, criminais, possíveis jurados, advogados... O que queira.
—Sempre há tanta gente aqui?
—Isto não é nada. Vi este sítio tão repleto que parecia que as paredes arrebentavam.
Grant olhou por cima da multidão e saudou com uma sacudida de cabeça à ama de chaves, uma mulher roliça, de cabelos chapeados, que tentava dirigir o trânsito desse fluxo humano para as salas correspondentes.
Captou o olhar dele e se aproximou depressa. Detiveram-se quando já estava perto e sua boca se abriu em uma Ou de consternação.
—Meu Deus. - murmurou olhando a Vitória, que estava suja, molhada e desarrumada.
A boca de Grant desenhou um deprimido sorriso, mas foi evidente que não estava de humor para conversar.
—Preciso ver imediatamente o Sr Cannon - disse cortante. Só contamos com uns minutos. A senhorita Duvall... Quero dizer, a senhorita Devane teve uns momentos muito duros; é preciso que descanse.
—Sim, é obvio. - disse a ama de chaves observando Vitória com bondosa preocupação. Venha por aqui, por favor.
Conduziu-os rapidamente por entre a multidão, e os levou ao escritório de Sr Ross, uma pequena habitação de janelas retangulares que davam à rua. O escritório estava mobiliado com móveis de carvalho, pesadas estantes para livros e um globo terrestre.
Sr Ross, que estava falando com dois homens que podiam ser empregados ou auxiliares, interrompeu-se em meio de uma frase quando Grant fez entrar com Vitória na habitação.
—Morgan. - disse, e seus olhos cinza lançaram um relâmpago quando posou a vista em ambos—. Onde está Keyes?
—Logo o trarão. - Respondeu Grant com simplicidade.
Em certo modo, foi como se Cannon tivesse entendido com precisão o que tinha acontecido, só por observar o semblante de Grant. Fechou os olhos e os ombros caíram um tanto. Esfregou as têmporas como se, de repente, tivesse-lhe atacado uma tremenda dor de cabeça.
—Senhora Dobson. - disse à ama de chaves. - traga algo quente para beber e mantas.
—Sim, senhor.
A mulher desapareceu imediatamente.
Cannon não demorou em fazer sair aos outros dois indivíduos da habitação, logo fechou a porta. O barulho e o movimento de fora ficaram amortecidos, embora seguissem ouvindo-se. Cannon se voltou para Grant e Vitória e lhes indicou que tomassem assento.
Vitória estremeceu contente de sentir o braço protetor de Grant nas costas quando se sentou na cadeira de carvalho. Suas roupas estavam molhadas e quente e se sentia muito incômoda pela sujeira que se aderiu a seu casaco e a seu cabelo. Nunca tinha desejado com tanta urgência um banho como nesse momento. Ansiava estar limpa e seca a dispor de uma cama abrigada onde dormir.
—Isto não nos levará muito tempo. - murmurou Grant, notando sua fadiga.
Cannon ouviu o comentário dito em voz baixa e o confirmou.
—É obvio que não. - disse, aproximando uma cadeira até diante de Vitória. Tomou a mão da moça na sua, grande e fria, e a olhou com intensidade, fazendo-a sobressaltar-se. Os olhos da jovem se encontraram com os olhos cinza do homem. Senhorita—começou a dizer, e se interrompeu.
Devane -disse ela, com trêmulo sorriso.
—Devane. - repetiu ele com suavidade. Suponho que deva se sentir mal.
—Sinto-me bastante mal.
—O fato de que um de meus detetives tenha sido a causa de uma situação tão dura me aflige tanto que não posso expressá-lo com palavras. Nunca poderia lhe oferecer suficiente compensação pelo que você sofreu, dou-lhe minha palavra de que, se alguma vez posso lhe ser de alguma utilidade, empregarei todos os meios de que disponha para servi-la. Só terá que pedi-lo.
—Obrigada. - respondeu Vitória em voz baixa, um pouco nervosa de ter ante si a um dos homens mais poderosos de Londres, lhe pedindo perdão.
Satisfeito, Cannon soltou sua mão e esperou que a senhora Dobson trouxesse as mantas. Uma vez que Vitória esteve cômoda, envolta em uma capa de lã, e com um jarro fumegante apertado entre seus dedos gelados, o olhar implacável do magistrado voltou se para ela.
—Senhorita Devane, por favor, me conte o que aconteceu esta noite.
Vitória descreveu tudo o qye tinham acontecido desde que Grant a tinha deixado essa manhã; cada tanto vacilava, procurando as palavras. De vez em quando, intervinha Grant, completando o relato com as explicações necessárias. A única interrupção ocorreu quando a porta do escritório tremeu ao influxo de um estranho movimento, como se algo a arranhasse. Para ouvir o peculiar ruído, Vitória se interrompeu e olhou ao redor com expressão interrogante.
Cannon pôs os olhos em branco e se levantou abrir a porta. Imediatamente, uma enorme gata a raias e sem cauda entrou no escritório e inspecionou aos visitantes com olhar especulativo.
—Chopper - disse Cannon em tom de advertência que tivesse feito arrastar-se até um rincão a qualquer outro ser.
Chopper, em troca, lançou-lhe um olhar rebelde e saltou sobre o colo de Vitória. Em forma automática, ela deu a Grant seu jarro a meio vazio, enquanto a gata se acomodava sobre suas pernas como um grande vulto de pele.
Cannon murmurou uma desculpa e se dispôs a tirar a criatura, mas Vitória negou com a cabeça e sorriu: —Não há problema - disse. Eu gosto dos animais.
Cannon respondeu também com um sorriso e seus olhos brilharam.
—Bom, acaba de conhecer quem manda de verdade na Rua Bow. - comentou, assinalando ao petulante felino, e logo voltou a sentar-se.
Enquanto a gata ronronava brandamente em seu colo, Vitória concluiu a descrição de tudo o que tinha acontecido, até que a fadiga lhe fez piscar. O ambiente quente e a certeza de que estava a salvo, fizeram-na sentir-se em paz pela primeira vez em semanas. Sentia a mão de Grant apoiada na nuca, sob o corto molhado e sujo e esse delicado contato a relaxava.
Fez-se um prolongado silêncio de reflexão e Cannon, abstraído, posou sua vista na paisagem que pendurava da parede. A pintura mostrava um pequeno e brilhante arroio que corria entre rochas contra um fundo de colinas arborizadas. Vitória imaginou que em momentos como o presente o magistrado desejaria estar em um lugar tão sereno como o da paisagem.
—Keyes - disse o funcionário em voz baixa, como se estivesse repassando suas lembranças em sua mente.
Em seus olhos se acendiam pequenas luzes quentes que revelavam sua fúria e um de pesar. Para Cannon, tratava-se de uma tragédia pessoal tanto como profissional.
—Lamento o que aconteceu. - disse Vitória com sinceridade, posando em Grant seu olhar afligido. As coisas ficarão mais difíceis para você e para os outros detetives?
Os olhos verdes de Grant a acariciaram com seu olhar, ao mesmo tempo em que lhe sorria, apenas.
—Não tem por que preocupar-se, meu doce. A sede da Rua Bow já resistiu piores situações.
—Já é hora de que a senhorita Devane volte para casa. - disse a Cannon. - Amanhã ocuparemos dos assuntos oficiais.
—Meu carro os levará a Rua King.
Cannon abriu a porta, chamou a seu mensageiro e lhe deu instruções em voz baixa. Ao mesmo tempo, apareceu a ama de chaves perguntando se podia lhe trazer algo mais a Vitória.
—Por agora, terminamos. - disse Cannon— Obrigado, senhorita Devane. Espero que se reponha logo depois deste dia desastroso.
—Depois de um bom descanso, estarei muito bem. - assegurou ela. O comentário de Cannon fez Grant franzir o cenho, preocupado.
—Terei que mandar chamar Linley. - disse. Será conveniente que a olhe, depois do que passou.
—Outra vez? —exclamou Vitória, negando com a cabeça. - Certamente, não tenho nenhuma necessidade de ver um médico duas vezes ao mesmo dia. Você pode ir ver o doutor Linley se tanto desejas. Eu quero ir pra casa.
—A casa iremos - disse ele em voz fica, conduzindo-a fora do escritório.
A senhora Dobson saiu ao corredor para ver como partiam os dois. Quando voltou seu olhar para sir Ross, em seu rosto se via uma expressão satisfeita, um pouco absorta.
—Bom – comentou. juraria que por fim nosso senhor Morgan se apaixonou.
—E muito. - adicionou Ross com ironia. - Pobre tipo.
O rosto gordinho da senhora Dobson se iluminou com um sorriso carinhoso.
—Algum dia, senhor, uma pequena moça como esta poderia deixá-lo reduzido ao mesmo estado em que se acha nosso pobre senhor Morgan.
—Antes, cortaria o pescoço. - replicou ele sem alterar-se. - Enquanto isso quero uma jarra com café.
O pedido indignou a ama de chaves.
—A esta hora? Nem pensar. Você necessita de descanso, e bastante; não essa bebida que lhe destroça os nervos...
Cannon suspirou, voltou para seu escritório e se dispôs a suportar o sermão que lhe esperava.
Capítulo 17
Ao retornar à casa da Rua King, uma aflita senhora Buttons e uma chorosa Mary receberam a Vitória, as duas ficaram pasmadas ao inteirar-se de que Keyes tinha abrigado más intenções para ela.
—Tinha que ter nos avisado, senhorita! —exclamou a ama de chaves. -Se você me houvesse isso dito, eu teria feito o que fosse ajudá-la.
—Sinto-o. - respondeu Vitória com sorriso humilde. - O golpe que significou para mim recuperar a memória e o medo que tinha ao senhor Keyes me fizeram perder a cabeça.
Ela não queria ferir os sentimentos de ninguém e por isso não podia admitir que não tivesse a certeza de poder confiar em que os criados ficassem de seu lado e contra um detetive da rua Bow.
—E, em qualquer caso – adicionou. - graças ao senhor Morgan, tudo terminou bem.
—Estou segura de que de tudo isto sairá em outra novela. - disse a senhora Buttons—. Mais excitante aventura do senhor Morgan, a lenda da Rua Bow.
—O mais provável é que falem do incompetente da Rua Bow. - murmurou Morgan—. Todo este embrulho se armou por minha culpa. Em um princípio, eu queria que Flagstad cuidasse de Vitória... Jamais teria que ter aceitado que o fizesse Keyes.
—Você não tinha como saber - protestou Vitória. - Ninguém suspeitava dele... Nem sequer sir Ross.
Grant ficou carrancudo, demonstrando que não aceitava o argumento com que a jovem o defendia. Ele levantou uma mão com suavidade e apartou uma mecha de cabelos da frente dela.
—Senhora Buttons - disse, sem deixar de olhar fixamente a Vitória, estou seguro de que a senhorita Devane necessita um banho. E, talvez, um pouco de leite morno com conhaque.
—Oh, sim. - exclamou Vitória, estremecendo-se de agradar ante a perspectiva de inundar-se em água quente.
—Cuidaremo-la muito bem, senhor Morgan - assegurou a ama de chaves e fez um gesto à criada que estava perto dela—. Mary, que você e as moças preparem o banho da senhorita Devane, depois outro no quarto de hóspedes para o senhor Morgan.
—Sim, senhora. - respondeu Mary com presteza, para desaparecer sem demora.
Em tom suave, Grant se dirigiu a Vitória.
—Queres que a leve acima nos braços?
Respondeu-lhe sorrindo e negando com a cabeça. Estava tão apanhada na cálida ternura do olhar dele que quase não notou a ausência da ama de chaves.
—Virá para ver-me depois de me banhar? Perguntou ela.
Com semblante inexpressivo, mas com um gesto de ternura na boca, ele se inclinou para ela e lhe deu um beijo na têmpora.
—Não - murmurou tão baixo que ela com muita dificuldade conseguiu ouvi-lo. Surpreendida, Vitória se afastou um pouco.
—Já suportaste bastante para um só dia... esta noite não necessita que um grande bruto visite sua cama.
Ela, incapaz de conter-se, estirou-se para ele e se estreitou contra seu duro peito.
—E se eu quiser?
—Precisa dormir. - respondeu ele com firmeza.
—Dormir é uma perda de tempo.
Até contra sua vontade, ele soltou uma gargalhada que retumbou em sua garganta e rodeou lentamente a Vitória com seus braços. Ela sentiu que a respiração de lhe agitava os cabelos em cima da orelha.
—Isso demonstra quão esgotada está: não sabe o que diz.
—Sim, sei-replicou Vitória, sem lhe permitir que a apartasse.
—Meu tesouro... —disse Grant, em voz um tanto estrangulada. Também para mim foi um dia difícil.
Temo que, se esta noite te visitar... —interrompeu-se, procurando as palavras apropriadas—. Não acredito que possa...
—Não? —aventurou ela.
—Me controlar.
—Ah-exalou Vitória, tragando com dificuldade, enquanto observava seu rosto inescrutável. - Mas, se você...
—Vê - murmurou ele, soltando a e fazendo-a girar de volta à escada. Deu-lhe um enérgico tranco. -
Suportei muitas coisas, Vitória. Esta noite, não confio em mim mesmo estando com você. Vá e descanse. A verei amanhã pela manhã.
Carrancuda, Vitória subiu a escada, detendo-se cada tanto para jogar um olhar ao Grant. Ele esperou a que ela tivesse chegado ao último degrau, logo girou sobre si mesmo e foi à biblioteca a servir o conhaque que tanto necessitava.
Com ajuda das criadas, Vitória soltou o cabelo suspirando de deleite à medida que a água quente arrastava consigo todo resto de sujeira. O banho aliviou a dor de seus músculos cansados e o frio que tinha penetrado em seus ossos. Alem de, uma taça de leite quente enfeitado com conhaque, contribuiu a relaxá-la a fundo.
Colocou uma camisola limpa de musselina e uma bata que sujeitei em frente com uma fila de diminutos botões de pérolas. Sonolenta, sento-se ante o fogo enquanto as criadas desenredavam com esmero seus cabelos molhados, deixando que o calor do fogo secasse os avermelhados fios.
—Mais leite? —Perguntou a Buttons. Ou algo para comer? Umas torradas, um pouco de sopa... Talvez um ovo...
—Não, obrigada.
Vitória esfregou os olhos e bocejou. A ama de chaves compreendeu que estava fatigada e necessitava intimidade; depois de fazer um gesto com a cabeça a Mary, ambas se dispusera a abandonar a habitação.
—Toque a campainha se necessitar algo senhorita Devane. - disse com suavidade a senhora Buttons.
Com os olhos já médio fechados, Vitória aproximou os pés descalços do fogo e contemplou como brincava sua luz amarela com eles. Perguntou se Grant teria terminado de banhar se e se já estaria dormido no quarto de hóspedes. Estava certa de que ele manteria sua promessa de não visitá-la essa noite, posto que tivesse decidido que era provável que ela dormisse. Sem dúvida, tinha razão. Mas ela precisava estar com ele, que a abraçasse que a reconfortasse e, a sua vez, reconfortá-lo também.
Essa noite, ela tinha estado a ponto de morrer e com muita dificuldade tinha passado um mês do primeiro atentado contra sua vida; quando pensava nisso, sentia uma desesperada necessidade de saborear cada instante de vida que restou. É obvio, o sonho era uma perda de tempo, sobre tudo tendo em conta que o homem ao que amava estava em um dos quartos vizinhos.
Antes de ter tomado consciência de sua decisão, Vitória estava ante a porta da habitação de hóspedes. Seus dedos tremiam um pouco quando fez girar o atirador e entrou no pequeno hall continuo do dormitório. Ao igual à na habitação principal, na chaminé ardia um pequeno fogo que pulverizava uma luz avermelhada que lhe piscavam no quarto e projetava sombras nos rincões.
E, sobre a cama... O que viu a deteve em seco, agitada, com o coração pulsando, forte e pesado, dentro do peito. Grant estava estirada sobre a cama de hóspedes, com um pé pendurando fora dela e um joelho ligeiramente flexionado. Sustentava um livro na mão e lia, com uma leve ruga em sua fronte e um gesto vexado em sua boca. Estava completamente nu.
A luz do fogo dava a sua pele um leve matiz ambarino e pulverizava toques dourados em seu reluzente cabelo negro. Estava à vista cada detalhe de seu comprido corpo musculoso, do oco triangular da base do pescoço até as salpicaduras de escuro pêlo de suas pernas. Em meio de um tumulto de excitação e confusão, Vitória se perguntou por que lhe pareceria muito maior nu que vestido. Ela nunca tinha visto tanta pele nua.
Quando viu que ele girava para ela seus olhos entre abertos e, com um movimento automático, cobria-se o ventre com o livro aberto, Vitória soube que deveria ter feito algum ruído. Esse gesto de defesa a divertiu; seu cenho ameaçador acentuou o efeito cômico. Ela apertou com força os lábios para conter uma gargalhada e se aventurou para o interior da habitação.
—Não deveria ler com uma luz tão fraca-disse, e lhe quebrou, apenas, a voz. Estava mais nervoso do que tinha imaginado—. Assim, forçará seus olhos.
O cenho do Grant se intensificou.
—Isso não será a única coisa que forçarei se não retornar a seu quarto.
Sem fazer caso da advertência, ela fechou a porta e se aproximou da cama com passos cautelosos.
—Não tenho sono.
Grant se incorporou, baixou as pernas pelo flanco da cama sem soltar o livro com que a cobria, e os músculos de sua barriga ondularam.
—Se te metesse na cama e fechasse os olhos, estaria dormindo em menos de um minuto.
Entretanto, seu olhar escorregou sobre a branca barra de musselina que ela levava, deteve-se na fileira de pequenos botões que a fechavam; ela sentiu como trocava o ritmo de sua respiração. Respirada, aproximou-se mais a ele.
—Falei sério, Vitória-advertiu ele—. Esta noite, não.
—Não quer estar comigo?
—Eu quero o melhor para ti.
—Você é o melhor para mim.
Ela cravou seu olhar nos olhos verdes dele e levou sua mão ao primeiro botão de sua bata, tratando de desabotoá-lo. Em silêncio, Grant seguia contemplando-a sem piscar. Ela, em um súbito ataque de pudor, retorceu a presilha e o botão se soltou e caiu sobre o tapete. Cada vez mais exasperada, Vitória pensou que ainda ficavam mais de uma dúzia de botões. A esse ritmo, demoraria toda a noite para tirar-se só a barra.
Desistiu de tão inútil tarefa e olhou ao Grant com expressão de chateio.
—Não sou uma sedutora muito eficaz, verdade?
Nesse mesmo instante, o livro voou até o outro lado da habitação e aterrissou no chão com ruído surdo.
Vitória conteve uma exclamação ao sentir-se levantada no ar e depositada sobre a cama. Grant se inclinou sobre ela lhe tampando com seus largos ombros a visão do fogo.
—Se tivermos em conta o fato de que tenho uma ereção dura como uma lança. - disse ele com voz rouca, - eu diria que o tem feito bastante bem.
Vitória se viu apertada contra essa humanidade masculina de um metro oitenta, com uma ereção que empurrava em seu ventre e uma musculosa coxa fazendo pressão entre os dela. Algo vacilante, lhe rodeou a cintura com seus braços e posou suas mãos sobre as duras costas do Grant. Assombrou-a o calor de seu corpo, que ardia com intensidade quase febril.
—Que quente está sua pele. - sussurrou ela, deslizando seus dedos frescos pelo plano de suas costas flexionada.
Ele deixou escapar seu fôlego entre os dentes, como se algo lhe doesse, e ela, insegura, paraliso-se.
—Fiz algo errado?
—Não, não... Disse Grant, afundando seu rosto entre as mechas soltas do cabelo de Vitória, esfregando sua bochecha contra essa seda avermelhada—. Quando você me toca, e como se estivesse entr o céu e o inferno.
—E isso é bom?
—É bom - disse ele, com a voz amortecida pelo cabelo dela.
Ela sorriu, com a boca pega à orelha dele e rodeou seus braços nas costas dele, abraçando-o com todas suas forças. Grant murmurou palavras amorosas com a boca em seu pescoço e em suas bochechas, foi derramando beijos sobre sua pele, enquanto lhe desabotoava a bata. Fez-o sem a menor pressa; tomou todo o tempo do mundo para liberar a cada pérola da prisão de sua presilha.
—Me beije disse Vitória, com a respiração agitada, desejosa de algo mais que esses leves e provocadores roçar de sua boca.
Os lábios de Grant ficaram suspensos sobre os dela, provocando-a com sua contenção, e lhe rodeou o pescoço com os braços e atraiu sua cabeça para beijá-lo. Não pôde reprimir um gemido quando lhe deu o beijo que ela desejava, com a boca aberta, explorando-a com a língua, em passadas voluptuosas, sufocando há um pouco.
Vitória advertiu que sua bata estava aberta e lutou para livrar-se dela. Ele a apaziguou com mais beijos, passou seu maciço braço por debaixo do pescoço dela e a ajudou a tirar a bata. Tudo que os separava era a magra capa da camisola. Ele a acariciou através da fina musselina encontrou o contorno de seu seio e o conteve na mão morna oprimindo-o com delicadeza até sentir que o mamilo se erguia contra sua palma.
Vitória começou a tremer de excitação e ao tocá-lo cada vez com maior audácia, afundando seus dedos no vale de suas costas, essa dura concavidade flanqueada das duras protuberâncias de seus músculos. Logo, mais abaixo, na carne firme de suas nádegas, captando com suas mãos a sólida curva do corpo viril. Esse corpo se moveu quando ela o tocou ali, em seus quadris pressionaram os dela, prementes, o vigoroso contorno de sua ereção empurrou contra a dobra de musselina que se formou entre as pernas dela. A involuntária investida dele sobressaltou a Vitória, que recordou à íntima ruptura de seu corpo e a dor que lhe tinha causado a primeira vez que ele a possuiu.
Grant percebeu seu desassossego e se imobilizou em cima dela, apoiando seu peso sobre os cotovelos para não esmagá-la.
—Não tenha medo. - disse ele com voz rouca.
—Não temo - mentiu ela, obrigando-se a abrir seus punhos e apoiando as mãos abertas sobre os ombros dele. - Você disse que não me faria mal se estivesse preparada para isso.
—É certo.
Ele a beijou, e sua boca lhe brindou uma sensação indescritivelmente deliciosa girando sobre a dela. Ela se abriu por inteiro a seu beijo, deixando que seu corpo fosse dócil e crédulo debaixo do dele. Não voltou a ficar tensa, nem sequer quando ele se interrompeu para lhe tirar a camisola. Ele sustentou e levantou seus seios com ambas as mãos, beijou um dos rosados bicos, logo a outra. Abriu seus lábios sobre um dos sensíveis mamilos, e ela sentiu que fazia escorregar a língua acariciando-o. Esse suave roçar lhe fazia cócegas a impulsionou a arquear-se mais para cima, mais perto da boca do homem. A mão de Grant lhe capturou o joelho e começou a ascender, sem deter-se até que chegou ao arbusto de pêlo que protegia sua tenra carne feminina. As pontas de seus dedos brincaram entre os cachos vermelhos, escorregando e provocando-a até fazê-la gemer e elevar seu pequeno monte para a mão dele.
O esforço de não possuí-la nesse mesmo instante fez tremer Grant. Ele sabia que ela já estava preparada para recebê-lo, sentia a umidade que se filtrava por entre os sedosos cachos de cor canela...
— Espera ainda não. - Não, até que ela suplicasse. Sussurrou-lhe seu amor, acariciou-a nesse lugar íntimo, tocando com a ponta do dedo a suavidade de sua carne até que encontrou a porta de entrada a seu corpo. E
se regozijou quando a sentiu conter a respiração, estremecer-se de repente, quando ele afundou o dedo mais dentro, tocando essa escorregadia quente profundidade. Ela se aferrou a seus ombros, como se não soubesse se preferia atrai-lo ou afastá-lo. Ele contemplou seu rosto enquanto afundava o dedo o mais profundamente que pôde, contemplou seus olhos fechados, suas finas sobrancelhas acobreadas franzidas. Dobrou-se sobre seu seio, apanhou com sua boca um dos rosados mamilos e o chupou ritmicamente.
—Por favor - exalou ela, ao fim, sem saber que elevava os joelhos e separava as coxas.- Por favor, é muito, eu...
—Deseja-me agora? —perguntou ele.
—Por favor - suplicou de novo, com o rosto aceso e úmido. O coração de Grant martelou de desejo enquanto se colocava sobre ela e exercitando uma firme pressão na vulnerável abertura de seu corpo. De súbito, os olhos de Vitória se abriram e pôs as mãos entre os corpos dos dois. Empurrou os tensos músculos do peito dele, retorceu-se e lutou, tratando de lhe dar capacidade.
—Oh, não posso... —disse, titubeando.
Me recebera inteiro. - sussurrou ele. – Me receberá, Vitória. Deixe-me entrar.
Ele aumentou a pressão e sentiu que o corpo dela cedia se fazia escorregadio e lhe dava as boas-vindas quando ele começava a penetrá-la. Exalou um gemido de alívio e a penetrou com uma lenta investida, sem deter-se até ficar por completo dentro do suntuoso calor de seu corpo. Ela gemeu, rodeou-o com seus braços, encerrando-o entre eles. Dentro de Grant, as sensações e as emoções formaram um redemoinho que o alagou de deleite.
Em uma zona de sua mente se formou um espaço escuro e silencioso, onde se extinguiu todo pensamento e reinou suprema a percepção física. Começou a mover-se com tacadas fundas, adotando um ângulo para apertar seu corpo o dela. Ela, a sua vez, impulsionou-se para cima, saindo ao encontro das investidas, esforçando-se por estar mais perto dele. Ele gemeu de prazer e deslizou suas grandes mãos sob as nádegas da mulher e lhe imprimiu seu ritmo para que se igualasse ao dele.
Vitória rodeou as costas dele com seus braços e elevou os quadris com tanta força que quase o levantou, embora o peso dele fosse enorme. Foi como se toda sua existência se concentrasse nesse espasmódico desejo de prazer. Fixou a vista no rosto escuro que se abatia sobre o dela, contemplou suas feições duras, molhada de suor, e logo toda se rabiscou e sentiu uma deliciosa contração entre as pernas. Grant ofegou e incrementou seus movimentos, ao tempo que afundava os dentes nessa delicada zona onde o pescoço de Vitória se unia com o ombro.
Vitória se arqueou, levantou-se, enquanto sentia que uns anéis concêntricos de êxtase se desdobravam para fritasse todo seu corpo ficou alagado de prazer. Em meio desse cataclismo, em algum momento, sentiu que também Grant alcançava seu orgasmo, quebrava seu ritmo com umas poucas investidas finais e brotava de sua garganta um violento gemido. Permaneceu dentro dela uns minutos e logo a liberou de seu peso e se deixou cair a seu lado. Ela se deitou no seu braço, acalorada, exausta e saciada, sentiu que a boca do homem lhe roçava a têmpora e a borda da orelha.
—Amo você. - sussurrou ela, e ouviu que ele também dizia ao mesmo tempo.
Sorriu, adormencendo, e se deixou arrastar pela maré de fadiga, caindo em um sono sem sonhos, rodeada pelo aroma e o contato dele.
Capítulo 18
Vitória despertou quando sentiu que Grant deixava a cama e emitiu seu protesto com um gemido sonolento. Ouviu-o rir baixo e o sentiu retornar a seus braços um instante e lhe dar um suave beijo no pescoço. A barba cheia das primeiras horas da manhã lhe roçou a pele lhe provocando um grato estremecimento.
—Durma - disse ele, em um murmúrio—. Eu tenho que ir à Rua Bow.
Rodeou-lhe o pescoço com seus braços.
—Já amanheceu?
—Temo que sim.
Ele afundou o nariz na revolta cascata do cabelo da mulher. Vitória lhe acariciou as costas de músculos poderosos. Transmitia-lhe sensações deliciosamente masculinas: o peso de seu corpo, o raspar de sua bochecha sem barbear... e uma perna peluda que se insinuava entre as suas.
—Fica comigo - implorou ela, retorcendo-se de prazer quando ele tomou um de seus seios.
Grant respondeu com uma gargalhada que era metade risada, metade gemido, resistindo com dificuldade à tentação.
—Não posso meu doce amor. Cannon está me esperando; hoje há muito que fazer... Mas retornarei muito em breve. - respondeu, beijando a suave pele do seio. - Minha intenção é não passar mais que umas poucas horas longe de seus braços.
Vitória lhe acariciou o curto cabelo negro e contemplou seu rosto com mal dissimulado desejo.
—Espero que sim, Os olhos verdes do homem a observaram com intensidade, e sua mão iniciou uma lenta carícia sobre o torso dela, fazendo-a tremer.
—Por que não seria, meu amor?
—Talvez por que... —vacilou impedida de pensar com clareza com a mão dele apoiada no ventre, seu polegar lhe roçando o contorno do umbigo. -Bom, por um lado estão os sonhos. - conseguiu dizer. - e por outro está a realidade.
—Já tive suficiente dose de realidade. - informou Grant. - Agora, queria concretizar um sonho ou dois.
— Por exemplo?
—Para começar, me casar com você.
Essa afirmação tão direta aturdiu a Vitória. De todas as coisas que pôde esperar ao despertar, essa manhã, uma proposta de matrimônio não era uma delas. Fez um esforço para recuperar a lucidez e respondeu vacilante: —Eu... Eu sei que qualquer mulher do mundo se sentiria honrada por semelhante oferecimento.
—E você? —Perguntou ele em voz baixa.
—Temo que você... —Vitória se interrompeu e o olhou com ar de incerteza, apartando-se de seu corpo morno.
Recolheu as roupas de cama as aproximando de seu corpo e olhou Grant com uma expressão de muda súplica que lhe fez franzir o cenho.
—Vitória—disse ele, e estendeu sua mão para juntar seus cabelos, que formaram uma espécie de reluzente rio vermelho fluindo sobre seu ombro. Tocou-a com grande cuidado, roçando apenas a delicada pele com as pontas de seus dedos.- Eu não deveria ter iniciado agora esta conversa. Ainda está fatigada e eu tenho pouco tempo. Mas, de maneira nenhuma irei até que não me diga do que tem medo.
Vitória respondeu mantendo a vista fixa na reluzente seda azul da colcha.
—Penso que possivelmente só me deseje porque sou uma cópia de minha irmã.
Grant não emitiu o menor som e, depois de uma breve pausa, ela continuou dizendo: — Foi ela a quem desejou em primeiro... Eu posso entendê-lo. Ela é sofisticada, excitante, e todos os homens a desejam. Nesse aspecto, jamais poderia me equiparar a ela. Eu não seria capaz de suportar que uma manhã ao despertar junto a você, visse decepção em seus olhos.
Grant ficou atônito, se perguntando o porque desse inesperado ataque de insegurança. Como era possível que Vitória se sentisse tão perdida sob a sombra de sua irmã? Por Deus, as escassas muretas de seu quarto que Vivien conhecia jamais lhe teriam dado nem sequer uma fração da atração que Vitória exercia sobre ele.
Sobre qualquer homem. Vitória era cálida, inteligente, generosa... Uma companheira ideal na cama e fora dela.
—Você, doce... Formosa... Está insegura. - murmurou. - Como demônios pode pensar que eu prefiro sua irmã? Como é possível que duvide de meus sentimentos? Acredite que há diferenças entre vocês; sinto-me capaz de escolher o que quero.
As dúvidas que ela albergava com respeito a seu próprio valor o encolerizaram, e afastou as roupas de cama sem fazer caso da exclamação de surpresa de Vitória. Sem dificuldades, tomou seu punho e conduziu a mão dela até seu pênis. Sob a pressão da pequena mão fria, sentiu um instantâneo palpitar de desejo em sua carne floresceu rapidamente e se ergueu por completo.
—Isto toque. - disse rouco, ficando a seu nível e cravando um duro olhar no rosto dela até ver que suas bochechas se ruborizavam . Sintam-me, me olhe nos olhos e me diga se vê decepção neles.
—Você me ofereceu matrimônio só porque eu era virgem - disse ela, - e está tratando de ser um cavalheiro e fazer o que acredita correto.
Grant cobriu a boca dela com a sua e lhe deu um beijo ardente, que só parou quando ouviu o gemido de desejo vibrando no fundo de sua garganta.
—Não sou tão cavalheiro assim. - disse, em voz baixa.
O olhar dúbio de Vitória sustentou o dele.
—Em uma ocasião, você me disse que não é do tipo dos que se casavam.
—Sou-o, no que se refere a você.
—Não tem por que fazê-lo. - disse ela, sincera, retirando a mão. - Eu quero que entenda que não tem nenhuma obrigação por causa do que aconteceu. Podemos nos separar como amigos, como íntimos amigos...
—Eu não quero uma amiga. Quero você. Todos os dias e todas as noites. Cada minuto do resto de minha vida.
Grant a abraçou com força e contemplou seu pequeno rosto ruborizado. O que viu lhe obrigou a perguntar: —Acaso não é isso o que você quer?
A cor das bochechas de Vitória se acendeu mais ainda; so atinou a assentir com a cabeça e a pronunciar um inaudível sim.
—Graças a Deus. - disse ele, lhe afastando os cabelos do rosto. Porque eu não poderia viver sem você.
Bom, há alguma coisa que se interponha em nosso caminho?
—Seu trabalho... —disse ela, e lhe quebrou a voz, pela dor que lhe causava sua própria sinceridade. Para mim, seria difícil saber que passas tanto tempo exposto ao perigo, que todas as manhãs, quando se afasta de mim, poderia não voltar. Possivelmente, se não te amasse tanto, poderia suportá-lo... Mas não acredito poder suportar isso.
Os braços dele a rodearam com mais força.
—Eu já tinha decidido deixar o que faço. - disse ele. - Já passei muitos anos de minha vida nas ruas. Agora se abrem ante mim outras opções... Encontrarei alguma outra coisa no que me ocupar.
— Isso é o que quer fazer? —Perguntou ela, com seriedade. O assentiu e apertou a boca sobre a testa dela.
—Sim minha esposa, Vitória.
Vitória não pôde responder e ficou olhando seus firmes olhos verdes. Amava-o mais do que tivesse acreditado possível amar. Mas havia algo dentro dela, uma inquietação da que precisava livrar-se. Tratou de arrancar da raiz esse sentimento, de desdobrá-lo ante ela e de examiná-lo para encontrar as respostas que necessitava. Mas não podia fazê-lo nesse momento. Precisava estar sozinha e necessitava tempo para pensar.
—Deixe tomar uns dias - rogou. Não posso adotar tão depressa uma decisão desse calibre. - Quero ir a minha casa, ver minha irmã e... Encontrar-me outra vez.
Grant franziu o cenho e meneou levemente a cabeça.
—Se encontrar? Disse que tinha recuperado por completo a memória.
—Sim, mas ainda não sinto que tornei a ser como era antes. E ainda não estou preparada para começar a fazer mudanças em minha vida, antes de ter acontecido uns dias em paz, na intimidade de meu lar.
—É uma questão singela, Vitória. - disse ele—. Me ama ou não?
—Sim, amo.
Com ternura, lhe tocou o flanco Do rosto; de repente, seus olhos se nublaram de emoção.
—Sim, amo -repetiu ela, em voz baixa e fervente.
—Então, aceita minha proposta.
—Ainda não. - disse ela, tão teimosa como ele.
Grant soltou uma gargalhada de frustração e lhe jogou um olhar como se tivesse vontades de sacudi-la.
—Maldita seja, por que não te limita a dizer que sim? Está adiando algo inevitável.
—Darei-te minha resposta quando estiver em condições de fazê-lo. - disse ela. - Se pudesse ter paciência...
—Não posso ter paciência. Desejo-te muito...
A boca de Grant caiu sobre a dela e a beijou de uma maneira que apagou qualquer outra coisa que não fosse uma sensação pura. A língua dele brincou acariciando o interior de sua boca; o incentivo dessa espécie de penetração a fez apertar-se contra ele com avidez. Tinha ficado a metade do lençol apanhado entre eles...
Ela lutou para tirá-la sentindo, de repente, que precisava sentir toda a pele dele na sua.
Ele em seguida compreendeu e acoplou o corpo pequeno dela ao dele, mais largo, esfregando-a contra os planos duros de seus músculos e de suas articulações, enquanto seu sexo palpitava insistente, entre as coxas dela. Vitória se abriu a ele e de sua garganta brotou um som de aceitação, fazendo-o sorrir com sua ansiedade.
—Vitória - murmurou Grant, ao tempo que introduzia sua mão entre os dois corpos, procurando o arbusto de cachos vermelhos e estimulando-a e riscando círculos com seus dedos sábios— Você sabe que me pertence, não?
Pulverizou um pingo de umidade sobre a carne branda e suave, preparando-a para a posse. Apertou sua boca contra o pescoço de Vitória, tomou um instante para aspirar o que ficava da fragrância de baunilha que ela se aplicou depois do banho dessa noite. A candente e sedosa cabeça do membro se ajustou ao corpo feminino; a moça o sentiu entrar nela com enlouquecedora suavidade.
—Mais. - disse ela, ofegando, desejosa de que ele empurrasse mais fundo, com mais força, mas ele exercia um delicioso controle e se movia com um ritmo preguiçoso que a fazia retorcer-se, se desesperada.
Grant lhe sussurrou que tivesse paciência, que relaxasse debaixo dele, mas ela ainda era muito inexperiente para controlar suas reações. Trêmula, suada, arqueava-se para ele uma e outra vez, atirando se a ele, aferrando-se a ele até que, por fim, Grant cedeu a tempo que lançava uma gargalhada ofegante. Uniu os quadris dos dois cedendo à silenciosa exigência dela e lhe imprimiu um profundo movimento rítmico que atravessou a Vitória com golpes de prazer intensos como raios. Ela o rodeou e gemeu, enquanto a alagava uma doce liberação que se estendia nela até sentir que cada fragmento de seu ser resplandecia de deleite.
—Bom - disse Grant uns minutos depois, afogada sua voz pelos suaves seios de Vitória, já tem algo no que pensar.
Vitória não pôde conter um sorriso e encerrou a cabeça dele no círculo de seus braços, para logo depositar um beijo entre seus grossos cabelos negro.
—Vá logo. - murmurou ela. - Se não, vai chegar tarde ao trabalho... E eu não gostaria nada que tivesse que explicar o motivo.
—Não terá necessidade - respondeu ele, sem mover-se. - Tenho em minha cama à mulher mais bela da Inglaterra... Pediriam-me explicações se não chegasse tarde.
Resultou que Grant chegou ao escritório de Cannon só uns minutos depois do acostumado. Ao ver a expressão séria que se transluzia nos olhos de Cannon, teve a precaução de dissimular seu bom humor. como sempre, o magistrado tinha um semblante composto, mas Grant percebia o tumulto de idéias e de preocupações que buliam baixo essa aparência. Não cabia a menor duvida de que os escritórios da Rua Bow deviam estar sitiados pela imprensa, o público e o governo.
Grant era consciente de que ele também teria tido o mesmo semblante arrasado pelas preocupações se não tivesse tido uma noite de prazer passada entre os braços de Vitória. Esteve a um tris de aconselhar ao magistrado que se conseguisse uma mulher, mas Grant não cometeria a estupidez de colocar o nariz nos assuntos de outra pessoa... Menos ainda nos de um homem tão escrupulosamente cuidadoso de sua intimidade como seu chefe.
Cannon perguntou pela saúde de Vitória, logo informou a Grant que Keyes se encontrava sob custódia em um calabouço; já tinha brindado uma confissão completa em presença de Cannon e um empregado. Grant não se surpreendeu com as notícias, pois sabia que seu chefe era capaz de fazer confessar a uma pedra. Keyes seria acusado e julgado; tudo o que Cannon necessitava de parte de Vitória Devane era que ela se fizesse presente antes da segunda sessão desse dia e que declarasse ante um empregado. Ia dirigir se a questão do modo mais eficiente e discreto que fosse possível, tratando de não excitar mais ao público.
—Isso significa que Vitória não terá que enfrentar ao Keyes no tribunal. - disse Grant, que já tinha um argumento preparado ao chegar ali.
—Estava disposto a ir até ao inferno para evitar que Vitória tivesse que enfrentar Keyes.
—Não, não é necessário fazer passar à senhorita Devane por outra situação árdua. - respondeu Cannon. -
Com o testemunho que ela dê aqui, somado à confissão de Keyes, bastará para condená-lo e enviá-lo ao tribunal do rei.
—E o que me diz de lorde Lane? —Perguntou Grant. - Será detido esta manhã? De ser assim, eu me ofereço com gosto para cumprir a tarefa.
O magistrado interrompeu o movimento para levar o jarro de café aos lábios e cravou em seu subordinado um olhar de surpresa.
—Isso quer dizer que não está você informado: lorde Lane está morto.
Grant sacudiu sua cabeça, duvidando de ter ouvido bem.
—Que diz?
—Ao parecer, ontem à noite sofreu um ataque de apoplexia imediatamente depois de que você partiu do Boodle’s.
Grant esfregou um instante o queixo barbeado e se debateu em meio de uma mescla de emoções. Por um lado, alegrava-se de que por fim esse velho canalha tivesse ido encontrar se com o Criador. Por outro, lamentava que lorde Lane tivesse conseguido escapar à vergonha e a humilhação de ser acusado, julgado e castigado.
—Bom - disse, ao fim com expressão turva. – Querida ter podido ficar no Boodle’s o tempo suficiente para desfrutar desse espetáculo.
O desumano comentário fez franzir o cenho do magistrado.
—É um sentimento que está por debaixo de você, Morgan, embora entenda a que se deve.
Grant não respondeu a serena recriminação. Não se arrependia absolutamente do que havia dito. Em sua opinião, a morte de lorde Lane tinha sido muito mais piedosa do que ele merecia. De todos os modos, havia outra coisa que lhe preocupava e que deveria abordar antes de falar de qualquer plano com respeito a seu futuro.
—Eu não tenho um temperamento tão imparcial como o seu senhor... Embora Deus saiba que queria o ter.
—Bom imparcial ou não, tenho que lhe fazer uma proposta. E espero que a pense com cuidado.
—Que tipo de proposta?
—Bom... Relaciona-se com o fato de que eu acabo de aceitar uma proposta de ser juiz em Essex, Kent, Herfordshire e Surrey, além dos cargos que já tenho.
Grant lhe dirigiu um olhar surpreendido e emitiu um assobio ficou e admirado. As novas comissões aumentaram grandemente o alcance da autoridade de Cannon. Até então, tinha estado desempenhando o trabalho de duas pessoas. Agora, realizaria o de seis. Que Grant soubesse, nenhum magistrado da polícia tinha recebido nunca semelhante autoridade.
—O clamor público não tem feito mais que começar. - continuou dizendo Cannon com secura. - De acordo com o consenso generalizado, diria-se que eu estou obcecado pelo poder e que quero chegar muito além da jurisdição que me corresponde. E, talvez, seja certo. É que não me ocorre outro modo de enfrentar o crime como não seja tomando o assunto como se fosse uma guerra.
—Portanto, quem o critica podem ir e pendurar-se. - comentou Grant.
—Oxalá o fizessem. - desejou Cannon.
Sorridente, Grant estreitou a mão do magistrado.
—Felicitações-lhe disse, alegre—. Espera a você um trabalho de todos os diabos. Não queria estar em sua pele, mas estou seguro de que você achará o modo de arrumar-se. Por que não?
—Obrigado. - murmurou Cannon; sua única manifestação foi um súbito brilho divertido em seus olhos de lobo. - Em realidade, isso nos leva a questão que queria lhe expor. Quero propôr a você como meu magistrado policial auxiliar, para trabalhar junto à mim.
Grant o olhou boquiaberto e a idéia enraizou nele imediatamente. Desempenhar-se como juiz policial lhe permitiria seguir vinculado com esse trabalho que o fascinava e, ao mesmo tempo, manteria-o longe do perigo das ruas. Teria que aprender muito a respeito das leis, uma mudança que agradecia, mas seguiriam chamando-o para investigar os casos difíceis. Contudo, não pôde menos que pensar no que sabia com respeito à vida celibatário, ordenada e industriosa do magistrado e compará-la com a sua. Um sorriso de dúvida e de brincadeira dirigida para se mesmo se desenhou em seus lábios.
—O posto confere, em forma automática, a dignidade de par—assinalou Cannon, se por acaso gosta da você.
—Sr Grant-disse, com uma breve gargalhada, e meneou a cabeça ante quão estranho soava. Diabos deveria me equilibrar sobre tão boa oportunidade, mas, não acredito ser a pessoa apropriada.
—Por que não?
Grant titubeou, e olhou as mãos. A pele de seus nódulos de sua Palma estava arranhada e machucada por causa de suas experiências do dia anterior.
—Você viu o que fiz a Keyes - murmurou.
—Sim - disse Cannon, ao cabo de um momento—. Foi você muito violento com ele. Mas, terá que ter em conta que tinha sofrido provocação.
—Estive a ponto de matá-lo Tinha tirado minha faca e... O teria matado se Vitória não estivesse olhando.
—No calor da luta...
—Não, não houve tal calor.- interrompeu imediatamente Grant, justificando-se ante ele—. Por um momento. Meus pensamentos foram frios e claros. Converti-me em juiz, jurado e carrasco. Concedi-me o poder de acabar com sua vida, e o teria feito com gosto. O problema foi que eu não queria que ela me visse fazê-lo e ficasse essa lembrança para sempre no fundo de sua mente. - dirigiu ao Cannon um sorriso amargo.
- Ainda quer você que me desempenhe como magistrado, sabendo que sou capaz de semelhante tropeção?
O magistrado o observou pensativo, pensando a resposta.
—Veja Morgan... Eu não sou imparcial por natureza, embora as aparências assim o induzam a acreditar. Se eu tivesse visto que atacavam desse modo à mulher que amo, talvez tivesse feito o mesmo que você, ou algo pior. Todos damos tropeções lamentáveis. Como já lhe disse, eu não sou um homem perfeito. E não seria lógico que esperasse mais de você que o que espero de mim mesmo.
Então, Grant sorriu aliviado ao comprovar que o magistrado não considerava imperdoáveis suas ações.
—Bom, está bem, então aceito o cargo. Não me viria mal um pouco de respeitabilidade. Estou começando a me fartar de passar os dias perseguindo ladrões e criminosos. Além disso, se me acompanhar a sorte, logo terei uma esposa e uma família nas que pensar.
—Ah, ou seja, que você quer casar-se com a senhorita Devane.
Grant imaginou Vitória esperando-o em sua casa e sentiu que um sorriso, um sorriso cálido, despojado de cinismo, de sua boca.
—Durante muitos anos, eu considerei o matrimônio como um laço atado no pescoço. – Disse. - E jurei que nunca aconteceria comigo. Mas agora não me parece nada mau.
Tão levianas palavras ocultavam um súbito desejo que surgiu em seu interior. Precisava de Vitória... Sua vida não estaria completa sem ela. Experimentou uma repentina urgência por retornar junto a ela e dedicar-se a convencê-la a de que aceitasse sua proposta.
Quase jurou que Cannon tinha sorrido para ouvir seu comentário.
—Não é nada mau. - assegurei o magistrado—. E se for com a mulher apropriada, pode ser... -Titubeou procurando a palavra, mas se perdeu em uma doce lembrança esquecida fazia muito tempo. Depois de uns segundos de silêncio, recuperou-se. Ao Grant pareceu que seus olhos cinza eram mais quentes do que ele nunca houvesse visto. - Boa sorte, Morgan.
Vitória passou a maior parte da manhã no jardim privado da casa. Era um dia frio e úmido, o céu estava carregado de nuvens, agitavam o ar brisas temperadas. Ela se sentou à mesa de pedra e leu um momento, logo se passeou pelos atalhos talheres de cascalho, bordeados por maciços de lilás, jasmins e madressilvas. O
cuidado jardim estava rodeado dê álamos e muros talheres de hera. Quadros repletos de arbustos florais e frutíferos se alinhavam ao longo dos atalhos e enchiam o ar de perfume.
Nesse pequeno mundo fechado dava a impressão de que a cidade se achava a centenas de quilômetros. Era difícil não sentir-se a gosto nesse âmbito tão belo. Entretanto, ela tinha consciência de um desejo cada vez mais premente de retornar ao White Rose Cottage. Precisava ver sua irmã e convencer-se de que Vivien estava bem. Mais ainda; Vitória sentia um forte impulso de retornar ao ambiente familiar e voltar para descobri a si mesmo na comodidade de seu próprio lar. Embora tivesse recuperado a memória, ela sabia que não sentiria a mente nem o coração serenos até que não tivesse passado uns dias em White Rose Cottage.
Sentada ante a mesa de pedra do jardim, apoiei a cabeça sobre as mãos.
—O que está fazendo aqui?
Uma voz masculina irrompeu no meio do redemoinho de seus pensamentos. Vitória levantou a cabeça e sorriu ao ver o Grant. Ele se sentou em uma cadeira perto dela e tomou sua mão na dele. Com a mão, acariciou a fria pele de sua bochecha, roçando brandamente com o polegar uma das sombras que ela tinha sob seus olhos.
—Deveria fazer uma sesta. – murmurou. - Esta tarde, vou leva-lá outra vez à Rua Bow para que faça uma declaração; quero que esteja bem descansada.
Vitória apoiou um lado de sua cara na mão dele.
—Não posso dormir. Não posso deixar de pensar.
—Em o que, meu amor?
—Quero ver minha irmã. Quero ir a Forest Crest e dormir em minha própria cama.
Grant tirou o casaco e o pôs sobre os ombros, envolvendo-a no pano forrado de seda. O objeto conservava o calor e o aroma de seu corpo, e ela se amassou apertadamente nele. Pareceu-lhe que a voz dele era como uma carícia de veludo quando o sentiu falar por cima de sua cabeça.
—A levarei depois da declaração. Ficaremos em sua casa o tempo que quiser.
—Obrigada, mas... é preferível que vá sozinha. Quero pensar com clareza, e não poderei fazê-lo se você estiver comigo.
Grant se calou; ela soube que estava tratando de conter um arranque de impaciência. Quando falou, fez-o em voz calma.
—Em que quer pensar?
Vitória deu de ombros.
—Quem sou... Meu passado... Meu futuro...
Os dedos largos de Grant tomaram o queixo e a fizeram elevar, obrigando-a a olhar seu rosto inexpressivo.
—Refere a seu futuro comigo. - disse ele.
—Só quero ir a minha casa e refletir sobre tudo o que me aconteceu. Acaso não compreende que minha vida mudou muito rápido?
Com um breve suspiro, ele expressou um mundo de frustração. Estirou-se para ela, levantou-a e a sentou sobre suas pernas e colocou a mão por debaixo do casaco. O calor de sua mão atravessou o vestido dela e passou até o flanco de seu peito.
—Entendo. - disse ele, impaciente. - Mas eu não gosto da idéia de que viaje sozinha e fique em Forest Crest sem meu amparo.
O tom possessivo que empregou fez sorrir a jovem.
—Grant... Antes de conhecê-lo, vivi um longo tempo sem o amparo de ninguém.
—Isso vai mudar. - resmungou ele.
—Me deixe ir sozinha a Forest Cresct. - disse ela em tom persuasivo, embora os dois soubessem que, em realidade, não estava pedindo.
Por alguma razão, Grant não pôde lhe devolver seu sorriso. Na única coisa que podia pensar era em seu próprio temor de que, se a perdia de vista, talvez ela decidisse não casar-se jamais com ele. Depois de tudo, ele não poderia lhe brindar a aprazível vida rural a que ela sempre tinha estado acostumada. Ele não era um cavalheiro; ela tinha visto a evidência da rudeza e a violência que moravam nele, ela tinha visto seus numerosos defeitos. Ele pertencia à classe de homens que ela desprezava e temia em sua protegida existência anterior.
—De acordo. - disse ele com dificuldade. - A enviarei a Forest Crest depois da declaração. Irá em meu carro, com meu chofer e um lacaio para protegê-la. E eu irei te buscar dentro de uma semana.
—Uma semana? Mas isso não dá para nada...
Vitória se interrompeu em metade da frase, pois compreendeu que ele fazia ouvidos surdos a seu protesto.
Seus lábios desenharam um sorriso irônico.
—Está bem.
Ao Grant lhe ocorreu uma idéia diferente e ficou carrancudo.
—Não irás ver algum pretendente em Forest Crest, não é assim?
Um brilho malicioso apareceu nos olhos dela.
—Não, senhor Morgan, jamais fui cortejada por nenhum dos moços da aldeia.
—Por que não? Em nome de Deus, o que acontece com eles?
—Nunca respondi suas insinuações. - disse Vitória, acomodando-se melhor em seu colo. - Sempre estive ocupada em cuidar de meu pai, em ler livros. – com um gesto tenro, apoiou a cabeça no ombro dele. -
Suponho que esterei esperando você. - disse, e sentiu que os braços do Grant a estreitavam quase esmagando-a.
Capítulo 19
Vitória tinha ordenado ao chofer que a deixasse no caminho para que continuasse a pé, agora caminhou até White Rose Cottage. A vista familiar da cabana de teto de palha a apaziguou; ela absorveu avidamente com seus olhos a aprazível cena. Seu pequeno mundo privado não tinha sido cuidado durante sua ausência.
As roseiras de flores de cor marfim e nata precisavam ser podados e os quadros de grama, malmequeres e estavam invadidos pelas molezas. Mas era seu lar. Apertou o passo ao aproximar-se da pequena arcada da entrada, com a sensação de que tinha estado ausente um ano e não um mês.
Só uma coisa estragava sua felicidade: a imagem de Grant quando ela partiu de Londres. Ele tinha negado a lhe dar um beijo de despedida e ficou olhando-a, com expressão zangada, enquanto ela o saudava com a mão pelo guichê do carro. Tão divertida como comovida, Vitória tinha estado a ponto de dizer ao chofer que desse a volta. Para Grant tinha sido motivo de infinita frustração o fato de que ela ainda se negasse a aceitar sua proposta de casamento.
Ela ardia em desejos de casar-se com Grant Morgan, mas, era aconselhável uma união entre eles, ou poderia terminar em ruínas? Temia a possibilidade de que um dia ele se cansasse dela e se arrependesse de haver-se casado... Isso era algo que não poderia suportar.
Tinha muitos desejos de falar com sua irmã, o único familiar que tinha no mundo. Face às extravagâncias de Vivien, ela era uma mulher mundana, prática, que conhecia muito os homens. E Vitória sabia que, a seu modo, sua irmã a queria o bastante para escutar o relato de seus problemas e lhe dar o melhor conselho possível.
Com o coração pulsando de ansiedade, com uma sensação de volta ao lar, Vitória golpeou e entrou sem esperar resposta.
—Jane? —disse uma voz de dentro. - Não imaginei que voltaria tão cedo...
A voz se desvaneceu quando Vivien apareceu no quarto principal e a viu, boquiaberta, a recém chegada.
Vitória dirigiu um sorriso radiante a sua irmã. como sempre, impressionei-lhe a sensação de que Vivien era, a um tempo, conhecida e estranha para ela. Como era possível amar a alguém e, entretanto, não compreendê-lo jamais? Vivien pertencia a um mundo tão alheio ao dela que custava pensar que provinham da mesma família, e muito menos, que fossem gêmeas.
Vivien foi a primeira em romper o silêncio.
—Finalmente, resultou que tinha razão quando rechaçava tudo meus convites para ir à cidade. Não cabe dúvida de que Londres não é um lugar para você, camundongo de campo.
Vitória rompeu a rir e se aproximou com os braços abertos.
—Vivien... Não posso acreditar!
A gravidez de sua irmã era evidente, a julgar por seu volumoso ventre e sua pele clara, como iluminada. O
estado de Vivien lhe tinha dado um inesperado aspecto de vulnerabilidade que a fazia mais encantada que nunca.
—Estou gorda. - disse Vivien.
—Não, está formosa. Sério.
Vitória abraçou a sua irmã com grande cuidado, e sentiu que Vivien relaxava e exalava um suspiro de alívio.
—Minha querida Vitória. - murmurou ela, lhe devolvendo o abraço. - Eu pensei que talvez me desprezasse pelas penas que causei. Tinha medo de enfrentar você.
—Jamais poderia desprezar a minha irmã. Você é tudo o que tenho. - Vitória afrouxou seu abraço, andou um pouco para trás e sorriu. - Oh Vivien... Quanto odiei me fazer passar por você!
Vivien se mostrou, alternativamente, à defensiva e divertida; por fim riu —Não me cabe dúvida de que devia se sentir incômoda atuando como cortesã. Mas asseguro que foi muito melhor que estar sepultada em vida aqui, no Forest Crest.
—Eu estive muito perto de ser sepultada. - replicou Vitória em tom seco.
Vivien assentiu, com ar contrito.
Perdoe-me, querida. Você deve saber que eu jamais te teria causado o menor dano de forma intencionada.
Se te tivesse ficado aqui em vez de ir a Londres...
—Eu estava preocupada com você.
—De agora em diante, tenha em conta que eu sei cuidar de mim mesma muito melhor que você, a julgar pelo acontecido. - disse Vivien, ao tempo que eu apoiava uma mão na parte baixa das costas e se dirigia para o gasto sofá de veludo. - Tenho que me sentar: doem-me os pés.
—Que posso fazer? —Perguntou Vitória, com imediata preocupação.
Vivien indicou com uma poltrona junto a ela.
—Te sentar aqui e conversar. Por sua presença aqui devo supor que tudo terminou?
—Sim. O homem que tentou me assassinar está no cárcere. Resultou que lorde Lane tinha contratado a um detetive da polícia para me matar... Bom, a você, que era o que ele acreditava.
—Meu Deus. Que detetives?
A história foi saindo a tropeções, arrancando Vivien algumas exclamações feitas em voz baixa. Vitória comprovou, aliviada, que sua irmã tinha a delicadeza de não alegrar-se ao saber da morte de lorde Lane.
—Imagino que agora estará com seu filho, Harry - comentou Vivien, alisando a saia de seu vestido com exagerado esmero. - Que descanse em paz. - disse, e levantou a vista com expressão preocupada. - Ambos eram homens extremamente desventurados, sobre tudo Harry. Por isso tive uma aventura com ele: pensei que uns dias de prazer não lhe viriam mau. Mas não quis aceitar que eu não pudesse ficar com ele para sempre.
Possivelmente lorde Lane tivesse razão... Se eu não me tivesse deitado com Harry, talvez ele estivesse vivo ainda.
—Mas também poderia ser que não. - replicou Vitória, surpreendida e contente de que Vivien estivesse sofrendo remorsos. Era grato descobrir que sua irmã ainda era capaz de arrepender-se. - Não te angustie conjeturando o que poderia ter sido Vivien. Só me prometa que não voltará a perseguir o filho de Harry: O pobre moço já sofreu o suficiente.
—Não o farei. - respondeu Vivien.- Temo que lorde Lane me acuse de sua tumba. Eu sinto carinho pelo moço, Vitória. Ele é doce, sincero e cativante. Não acredito que me tenha amado antes um homem tão honrado. Agora sei que foi tolo e equivocado pensar, sequer, em sua proposta. Mas me deixei arrastar por ele durante um tempo, sem poder evitá-lo.
Vitória apertou a mão de sua irmã.
—Que fará agora? Espero que fique comigo e permita que cuide de você até que nasça o menino.
Vivien respondeu com uma resolvida sacudida de cabeça.
—Penso que irei à Itália. Ali tenho muitos amigos e, depois do mês que passei, necessito um pouco de diversão. Além disso, há certo cavalheiro... Um conde, para ser mais precisa... Que me perseguiu durante anos.
E é tão rico como Creso.
Sorriu, sentindo prazer de antemão e desvanecido todo rastro de nostalgia.
—Penso que, talvez, já seja hora de deixar que me apanhe.
—Mas não pode seguir vivendo desse modo. - murmurou Vitória, aflita.
—Claro que posso. Não se preocupe, não deixarei que o pequeno sofra, em nenhum sentido. Ele ou ela terá o melhor de tudo; disso pode estar segura. Assim que tenha nascido e eu tenha recuperado minha forma, encontrarei um novo protetor e farei algum acerto para o menino. O Senhor é testemunha de que tenho suficientes criadas para que me ajudem a cuidá-lo.
Vitória teve consciência de uma pesada decepção para ouvir as palavras de sua irmã.
—Mas, me diga, não está cansada de viver como amante de algum homem? Eu farei tudo possível para te ajudar a encontrar uma nova situação; o senhor Morgan fará o mesmo.
—Eu não quero uma nova situação. - disse Vivien, pragmática. Eu gosto de ser uma cortesã. É agradável, fácil e proveitoso. Por que não teria que continuar em uma profissão em que me destaco? E te rogo o que me economize todo comentário a respeito da decência e a honra... Em minha opinião, há certo tipo de honra em fazer algo o melhor que alguém seja capaz de fazê-lo.
Vitória meneou a cabeça com ar causar pena.
—OH, Vivien...
—Basta. - disse sua irmã em tom vivaz. - Não tenho desejos de discutir mais isto. Irei à Itália; isso é tudo.
—Tem que me prometer algo-insistiu Vitória—. Se desse o caso de que não quer ao menino, não o dê aos criados ou a uns desconhecidos para que o criem. Por favor. Não poderia suportar a idéia de que alguém de nossa família pudesse... Bom, entregue-me.
Vivien ficou olhando-a com expressão cética.
—Que estranho. Por que quer fazer algo pelo bastardo de lorde Gerard?
—Porque também é seu filho... E minha sobrinha. Ou sobrinho. Me dê sua palavra, Vivien.
Ao ver que sua irmã ainda vacilava, Vitória adicionou: —Deve-me isso.
—Oh, está bem: prometo-lhe isso.
Vivien levantou os pés calçados com sapatilhas e indicou a sua irmã que lhe aproximasse um pequeno tamborete coberto de flores bordadas em ponto de tapeçaria. Enquanto Vitória tirava a sua irmã o calçado e lhe acomodava os pés sobre o tamborete, percebeu o olhar especulativo de Vivien.
—Não disse uma só palavra de sua relação com o senhor Morgan. - Comentou Vivien com enganosa falta de interesse.
Vitória levantou a vista e contemplou os perspicazes olhos azuis de sua irmã gemeu.
—Que disse ele quando veio aqui?
Vivien rompeu a rir e enroscou uma mecha de reluzentes cabelos avermelhados em volto de seu dedo.
—Pelo pouco que me disse, eu pude adivinhar. Bom, conte-me, Vitória... Ele é tão bom de cama como parece?
Vitória ruborizou e assentiu brevemente.
—Sim, ele me pediu matrimônio.
—E você aceitou?
Vitória negou com a cabeça.
—Tenho certas dúvidas sobre a conveniência desta união.
—Oh, Por Deus. - murmurou Vivien, olhando-a com uma espécie de carinhosa exasperação. Outra vez, estiveste pensando muito. Bom, me conte suas preocupações.
Para Vitória foi um prazer sesabafar para a única pessoa no mundo que realmente podia entender como tinha sido sua vida até esse momento.
—Não sei se é o que nosso pai queria para mim. - Disse. - Tampouco sei se uma mulher como eu está preparada para essa classe de vida. Oh, Vivien, o senhor Morgan é um homem notável; não posso evitar o temor de que ele necessite mais do que eu posso lhe dar. Não somos parecidos, em caráter nem em temperamento... Não acredito que ninguém pudesse nos considerar um casal adequado...
—E então, por que não o rechaçou?
—Porque o amo. Mas acontece que temo que não sejamos apropriados o um para o outro.
Vivien emitiu um som que expressava desdém.
—Economizemos tolices, Vitória. Aqui não se trata de quão apropriados você é ou ele. Você é perfeitamente capaz de se adaptar a novas circunstâncias... E se casar com um homem que tem uma boa fortuna, embora careça de título; não é algo tão ruim.
Vivien pôs os olhos em branco e suspirou.
—É próprio de você isso, analisar a situação até que a torne dez vezes mais complicada do que em realidade é! É o mesmo que estava acostumado a fazer nosso pai.
—Papai era um homem maravilhoso. - disse Vitória, ficando rígida.
—Sim... Um maravilhoso mártir, virtuoso e solitário. Depois de que mamãe o abandonou, ele se meteu em sua torre e se ocultou do mundo. E você ficou com ele e tratou de compensá-lo por tudo o que lhe tinha acontecido se convertendo em alguém idêntico a ele. Esteve vivendo nesta maldita cabana, lendo sempre os mesmos livros. Isso é algo doentio, asseguro-lhe isso.
—Você não entende... —começou a dizer Vitória com veemência.
—Ah, não? —cortou Vivien. - Eu entendo seus temores melhor que você. Sempre pareceu mais seguro se esconder aqui, sozinha, que correr o risco de amar a alguém e que a abandone depois. Isso é o a preocupa.
Mamãe a abandonou e agora pensa que qualquer outra pessoa que possa amar você faria o mesmo.
O acento de verdade que tinham suas palavras deixou atônita a Vitória. Fixou o olhar em sua irmã e sentiu em seus olhos a ardência das lágrimas.
—Suponho que... —começou a dizer, mas se calou e não pôde falar.
Vivien tinha razão: ela não havia tornado a ser a mesma desde que sua mãe a tinha abandonado. Tinha-lhe sido arrebatada a capacidade de sentir-se a gosto com o amor, de confiar em alguém com todo seu coração, obrigando-a a levantar um escudo de amparo que ninguém pudesse atravessar. Até que conheceu Grant.
Mas ele merecia sua confiança. Ele merecia ser amado sem reservas nem temores, sem que se guardasse nada. Tudo o que ela tinha que fazer era rachar a fortaleza dentro de si mesmo.
—Era muito mais fácil quando papai ainda vivia. - disse Vitória. - Eu me tinha convencido de que ele era tudo o que eu necessitava. Cada um impedia que o outro se sentisse sozinho. Mas agora, ele já não esta...
Interrompeu-se e mordeu o lábio quando começaram a emanar as lágrimas.
Vivien suspirou, ficou de pé com dificuldade e procurou um lenço em uma pequena gaveta de uma mesa lateral. Deixei cair o quadrado de linho sobre o colo de Vitória.
—Isso faz dois anos —comentou Vivien—. Já é hora de seguir adiante com sua vida.
Vitória enxugou o rosto com o suave pano e assentiu com vigor.
—Sim, sei. - disse, em voz afogada. - Estou cansada de lutar. Estou cansada de estar sozinha. E amo tanto Grant que não posso suportar a idéia de perdê-lo.
—Graças a Deus. - disse sua gêmea em tom sentido.- Eu me atreveria a afirmar que papai diria que já teve suficiente penitencia. E, já que falamos do tema, vou dizer algo que sempre quis dizer. Amar a um homem não converte em uma “má mulher”, como sempre considerou mamãe e a mim.
—Não, eu nunca pense...
—Sim, fez-o. Tenho uma idéia bastante aproximada das coisas que papai dizia com respeito a mim e a mamãe, a nossas costas. E é provável que algumas delas fossem muito más. - sua voz adquiriu um tom zombador. - Admito que, talvez, seja muito liberal para outorgar meus favores. Mas há uma coisa da que estou segura: entregar-ee a um homem que amas, como acontecem a você com o Morgan, não é ruim. Por outra parte, apodrecer aqui, em Forest Crest, isso é um crime. Portanto, eu abandonarei esta aldeia esquecida de Deus assim que estiver em condições de fazê-lo; aconselho que você faça o mesmo. Por favor, case com Morgan... Estou segura de que poderia ter sido muito pior.
—Em certo modo. - disse Vitória com amargura. – tive a impressão de que você e ele não se gostavam. O que aconteceu para que isso acontecesse?
—Oh, ele realmente não me agrada - lhe assegurou Vivien, rindo. - Na verdade, eu não gosto. Mas... Bom, é evidente que ele a ama, pois, se não fosse assim, ele não teria apresentado essa absurda desculpa que você lhe exigiu.
—Ele fez? —Perguntou Vitória, maravilhada e encantada. - De verdade se decidiu a dizer que o sentia?
—Sim, confessou-me tudo e me pediu perdão. - disse Vivien, com sorriso felino. - E confesso que foi bastante doce vê-lo engasgar-se com essa desculpa só porque você tinha pedido que o fizesse. Portanto, se eu estivesse em seu lugar, casaria-me com esse homem se não quisesse que lhe rompesse o coração. O... — interrompeu-se, pois lhe tinha ocorrido outra idéia inspirada. Ou poderia vir comigo! Poderíamos ir a Veneza ou a Paris... Imagina que classes de atenção atrairiam duas irmãs com nosso aspecto? Eu te ensinaria tudo o que sei sobre os homens... Bom Deus poderíamos fazer sensação!
Vitória contemplou o semblante animado de sua irmã e negou com a cabeça com gesto decidido. Não —É uma boa idéia. - respondeu Vivien, à defensiva. - É uma pena que não tenha um pouco mais de imaginação e menos escrúpulos.
Sobre o pequeno fogão de ferro fundido fervia uma caçarola com batatas, ervilhas, verduras cortadas e cebolas. O apetitoso aroma enchia a cabana e saía flutuando pelas janelas abertas. Ao recordar todas as vezes que tinha preparado esse prato para seu pai, Vitória sorriu nostálgica. Seu pai nunca tinha sido muito amante da comida, pois considerava que só era uma necessidade para o corpo e não algo que se pode desfrutar. As poucas vezes em que Vitória tinha feito pudim de ameixas ou tinha levado pão-doces com passas da padaria, ele tinha dado um par de dentadas a esses manjares, mas logo perdia o interesse. As únicas vezes que ela o tinha visto comer com vontades, com evidente prazer, foi quando ela guisava verduras.
—Pai. - murmurou com carinho, interrompendo a tarefa de dobrar roupa e guardá-la em um velho baú de couro. - Espero que não se incomode que me case com um homem tão diferente de você.
Grant era um homem que preponderava o aspecto físico; ele tinha um forte apetite pela vida. Ele jamais teria se escondido do mundo como tinham feito ela e seu pai. Ao contrário, Grant lutava contra problemas perigosos, complexos, frequentemente sórdidos. Ele via o pior da humanidade, enquanto que os Devane tinham preferido contemplar só sua melhor parte. Entretanto... Ela pensou que talvez a seu pai tivesse gostado de Grant, a final das contas, embora mais não fosse por admiração a sua profunda coragem no que tocava a enfrentar as realidades da vida.
Vitória foi revolver o guisado, cantarolando desafinada, e jogou um pingo de sal na caçarola. Reatou a tarefa de recolher suas coisas; estava dobrando um velho xale de ponto quando ouviu bater na porta. Toda a cabana se estremeceu com a força dos golpes.
Perplexa e um tanto inquieta, foi abrir a porta. Deu um passo atrás ao ver Grant. Estava tão arrumado que lhe cortava o fôlego, vestido com uma atrativa jaqueta negra, gravata-borboleta também negro, colete cinza prateado e calças cinza escura. Embora fossem singelas, suas roupas tinham um corte perfeito que se ajustava a seus ombros largos e seu torso esbelto. Ele parecia grande, perigoso, e até um pouco colérico.
Entretanto, contemplando seus acesos olhos verdes, Vitória não sentiu temor a não ser só um desejo instintivo de beijar seus lábios firmes e de obrigá-lo a abrandar-se contra os dela.
—Olá - disse, vergonhosa, alisando o cabelo, que pendia em uma desordenada trança por suas costas.
A resplandecente figura dele a fazia mais consciente de que tinha posto um vestido velho e gasto de desbotada musselina floreada, que só servia para realizar as tarefas da casa e do jardim. Sorriu, contemplando o rosto escuro dele, prolongando o delicioso momento, antes de jogar-se em seus braços.
—Que faz aqui?
—Demorou muito tempo. - murmurou ele, carrancudo.
Semelhante afirmação arrancou a Vitória uma gargalhada de surpresa.
—Tínhamos acordado que ficaria uma semana.
—Passou uma semana.
—Passaram, exatamente, dois dias e meio. - informou ela.
—Como se tivesse sido todo um ano.
Vitória stremeceu ao sentir que ele tomava pela cintura e a atraía para si.
—Eu também senti sua falta. - confessou ela, sorrindo. Grant apoiou uma mão no flanco do rosto de Vitória, cavando-a sobre sua bochecha; ela a sentiu quente na pele.
—Onde está Vivien? —Perguntou ele.
—Já partiu para Londres. Fartou-se da vida do campo. E eu também. - disse Vitória, assinalando o baú cheio pela metade e a pilha de roupa que havia juntado.- Ia retornar antes - admitiu. Descobri que não tinha tantas coisas no que pensar como tinha acreditado.
—E nosso compromisso? —Perguntou ele, com semblante sério—Tens uma resposta para mim?
—Sim. - respondeu ela, em voz contida pela emoção—. Sim, casarei-me com você... Se ainda me quiser.
—Só para toda a vida. - disse Grant em voz densa, contemplando seu pequeno rosto radiante.
Ela fechou os olhos no preciso momento em que a boca dele descendia sobre a sua, mas não com o apresso que ela tivesse esperado a não ser com uma lenta e férvida ternura que arrancou um suspiro de prazer de seu peito. Os lábios do homem acariciaram os sua com total leveza, como jogando, lhes infundindo umidade e um íntimo calor, impulsionando-a para cima, para ele, procurando um contato mais profundo. E
ele o concedeu, selando sua boca com a dele e empregando sua língua para penetrar nela. Ela gemeu e respondeu com paixão, sentindo que não lhe bastava a mais intensa proximidade a esse duro corpo masculino, não lhe bastava o abraço mais apertado.
De repente, Grant se afastou um pouco e pôs-se a rir, com a respiração agitada, com os olhos verdes cheios de ternura e calidez.
—Um dia destes terei que te ensinar a ter paciência. - murmurou ele, fazendo escorregar suas mãos mornas para cima e abaixo pelos flancos do corpo dela.
—Por o que?
Vitória não entendeu por que a perguntao fez rir de novo.
—É muito melhor quando não acontece a todo vapor.
—Mas eu gosto desse modo. - disse ela em tom provocador. Grant sorriu e voltou a beijar sua boca, seu queixo, seu pescoço, murmurando palavras de amor enquanto lhe desabotoava os botões das costas de seu vestido de desfiada musselina.
Uma das mangas, que chegavam até o cotovelo, separou-se do ombro de Vitória, logo a outra, e a boca dele se dirigiu para as zonas de pele que acabava de deixar ao descoberto.
—Se soubesse que vinha. - disse Vitória, poria um bonito vestido e teria me penteado com fitas...
—Por mim, seria melhor que pusesse nada.
Que foi precisamente o que logo aconteceu, conforme teve ocasião de comprovar Vitória, quando ele foi baixando o vestido sobre seus quadris até que caiu ao chão. Depois dele foram as anáguas, depois de que ele teve baixado os suspensórios pelos braços da mulher, e atirado do objeto para baixo até que, também, ficou descartada. Ela ficou ante ele coberta só com calções, meias e sapatos; seus seios nus tremeram quando a leve brisa que entrava pela janela a fez estremecer. O calor de suas mãos, que se cavavam com delicadeza em volto desses pálidos montes, foi assombroso, e seus mamilos se ergueram contra as Palmas dessas mãos. A respiração de Vitória se acelera e ela apóia suas costas na fresca parede revogada que tinha detrás. Ele beijou sua boca, seus lábios entre abertos com profundos beijos acariciadores que a relaxavam e a excitavam, ao mesmo tempo, sem que pudesse explicar-lhe Ela emitiu um gemido ao sentir que ele agarrava os mamilos de seus seios entre as pontas de seus dedos e atirava deles, beliscando-os com suavidade. Ele deslizou os dedos sob seus seios, levantou esses mornos e sedosos globos e abriu os lábios, tomando neles um dos eretos mamilos. Chupou com força, sugando esse pico tenso, o fazendo cócegas com sua língua; ela se meneou ao sentir que se iniciava um delicioso palpitar na parte baixa de seu corpo.
—Me toque. - suplicou ela, exalando um ofego quando ele concentrou sua atenção no outro seio e seus quadris fizeram um involuntário e brusco movimento para diante.
—Onde?- Perguntou ele em voz rouca; ao senti-lo sorrir contra seu seio, ela soube que estava provocando-a.
Impaciente, Vitória mediu as cintas que sujeitavam seus calções, ansiosa por livrar-se do objeto. Descobriu, para sua exasperação, que as cintas se enredaram e que, em seus esforços pelas desatar, cada vez as atava mais.
Grant apartou as mãos dela dos nós e lhe deu um beijo na cintura.
—Não se mova-murmurou.
—Por o que? O que vai oh...?
Interrompeu-se e emitiu um chiado de alarme quando viu reluzir uma comprida faca bicuda. Antes que ela pudesse mover-se, tinha talhado as cintas atadas e as pernas das calças de seus calções, e o magro objeto de linho caía em fiapos a seus pés.
—Grant. -disse ela, em voz um pouco mais aguda que de costume. - essa coisa me põe nervosa.
Ele sorriu e voltou a guardar a faca no cano de sua bota.
—Demonstrou ser útil em numerosas ocasiões.
—Sim, mas eu não...
—Vamos, levanta o pé.
Ajoelhou-se ante ela, tirou-lhe um sapato, logo o outro, e começou a agarrar borda das meias. Mas se interrompeu, deslizando as mãos pelos flancos dos quadris de Vitória.
—Penso que será melhor que as deixemos. - murmurou. - Eu gosto de como fica emoldurada nelas.
—Grant. - protestou Vitória, avermelhando sob o olhar dele.
Nunca havia sentido tão vulnerável, de pé ante ele, quase nua, enquanto que ele estava completamente vestido.
Ele passou com suavidade as pontas dos polegares pela pele tenra, quase transparente da parte superior das coxas, onde se distinguia o delicado percurso das veias violáceas.
—Vou comprar-te meias de seda e encaixe-disse ele em voz fica. Negras. E ligas com cintas e adornos brilhantes.
Vitória quase não podia falar.
—Vamos para o quarto. - disse, em voz rouca.
—Ainda não.
Com as pontas dos dedos, penteou brandamente o enredado arbusto de pêlo avermelhado, separando os cachos reluzentes.
—Que adorável é.
Vitória tremeu, tendo o apoio da parede a suas costas, enquanto tivesse que estar de pé, entre os joelhos separados de Grant. Ele se inclinou para diante e lhe beijou o estômago, explorando o delicado contorno do umbigo com a ponta da língua. A respiração dele também estava tomando-se rápida e agitada, e soprava sobre a pele dela em vaporosas baforadas. Um ruído escapou da garganta de Vitória e ele levantou a vista para o rosto dela, com seus quentes olhos verdes.
—Queres que a beije, Vitória?
Ela assentiu, e seu rubor se fez mais intenso.
O semblante de Grant estava tenso de paixão; mesmo assim, ela captou um muito leve sorriso em seus lábios.
—Onde?
“Não posso”, pensou ela, mortificada e excitada, ao mesmo tempo, fechando os punhos aos flancos de seu corpo. Grant seguia imóvel, contemplando-a com uma provocadora mescla de humor e desejo, esperando a que ela fizesse o movimento seguinte. A tensão aumentou até que pareceu que o ar mesmo faiscava de paixão; Vitória sentiu que ardia de rubor. Sem poder conter-se, ela estirou as mãos trementes e deslizou os dedos entre as escuras e grossas mechas do cabelo dele, guiando sua cabeça para o sítio onde mais desejava que estivesse. Sentiu o candente calor de sua boca que a cobria, a língua dele explorando sua carne tenra, disparando para o sensível casulo onde morava o centro de seu desejo. Afrouxaram-lhe os joelhos; ela teria caido se não fosse pelas mãos dele que sustentavam pelas nádegas, aferrando-a e sustentando-a. Ela gemeu e se tendeu para essa língua que a enchia de deleite, atormentando-a, escorregando, até que começou a ficar tensa sentindo o iminente orgasmo.
Com uma urgência que a surpreendeu, ele retirou a boca e se incorporou o rosto a ela, e passou um olhar que queimou o corpo ardente de Vitória.
—Por favor, Grant...
Ele respondeu com um fico murmúrio enquanto media em busca do broche de suas calças. Para estupefação de Vitória, ele não a depositou no chão, mas sim a levantou em seus braços, de modo que as pernas dela ficaram ao redor da cintura dele. Grant sustentou seu peso sem dificuldade, apoiando-a contra a parede para não perder o equilíbrio, protegendo-a com um braço da aspereza da parede. Os olhos da mulher se dilataram quando sentiu o contorno duro, seu sexo que empurrava, sondava e se deslizava com facilidade dentro dela. Grant a encheu empalou-a, e o corpo de Vitória permaneceu aberto, indefeso contra a potente invasão. Ela se aferrou aos ombros dele, ofegando de prazer, fincando os dedos na lã suave da jaqueta do homem. Era uma sensação estranhamente erótica a de estar esmagada contra o corpo dele, totalmente vestido, sentir sobre sua pele nua o comichão produzido pelo roce do tecido. Ansiou sentir a pele dele e, tirando a gravata-borboleta negra, afundou a boca a um flanco de seu pescoço.
—Me ama? —murmurou ele, deixando que o corpo dela pressionasse para baixo, penetrando mais a fundo com sua rígida ereção.
Ela se arqueou e gritou, enquanto o prazer chegava a seu topo dentro dela, e se estendia por todo seu ser em profundas quebras de onda.
—Diga me. - pediu isso ele com aspereza, movendo-se com investidas lentas e cada vez mais profundas, que o fizeram chegar até o centro mesmo de seu corpo.
Ela se retorceu, flexionei as pernas, e a sensação que começava a minguar, cresceu de novo.
—Amo. - ofegou— Amo... Amo...
Essas palavras o impulsionaram mais à frente do bordo difuso de seu orgasmo, e se impulsionou para ela lançando um gemido, enquanto seus sentidos se dissolviam em uma bem-aventurada liberação.
Afirmou as pernas e permaneceu erguido, sujeitando-a com força, negando-se a soltar o bota de cano longo de sedosa carne feminina que agarrava entre seus braços.
—Vitória. - exalou ao tempo que a beijava com veemência nos lábios, enquanto ela se esforçava por recuperar o fôlego.
—Agora, tire a roupa —disse ela, dispondo-se imediatamente a desenredar a negra gravata que ele levava no pescoço.
Grant se se pôs a rir e afrouxou os braços, deixando que os pés da moça tocassem o chão.
—E depois?
Vitória deixou cair à gravata e aproximou o rosto do pescoço dele, aspirando sua salgada fragrância masculina.
—Depois demonstrarei outra vez quanto o amo. - respondeu ela, tornando-se atrás e olhando-o com um sorriso esperançado—. Se estiver em condições.
Sorriu e lhe atirou um quente beijo nos lábios.
—Não sou homem de recusar um desafio.
—Sim, eu sei.
Ela também pôs-se a rir, exultante, enquanto ele a elevava nos braços para o quarto.
Epílogo
Vitória acreditava que conhecia bem a seu marido; entretanto, descobriu muitas coisas relacionadas a ele nos primeiros seis meses de matrimônio. Ela também pensava de acordo com a opinião geral que Grant não era desses homens que se adaptavam com facilidade à vida doméstica e se dispôs a lhe conceder toda a liberdade que ele necessitasse. Tinha decidido que jamais emitiria uma opinião com respeito às companhias que ele escolhia. Se ele resolvia ficar fora todas as horas da noite fazendo vida social, bebendo e participando de farras que assim o fizesse. E se ele se deixava arrastar para situações perigosas ela tentaria refrear suas críticas. Devia ter em conta que ele tinha sido um homem extremamente independente até que se prendeu a ela; se ela tentava freá-lo, ele resistiria. Vitória não tinha nenhum desejo de ele a sentir como uma pedra de moinho pendurada do pescoço.
Para seu assombro, ele de todos outros que conheciam o Grant, ele se adaptou à vida de casado como se nunca tivesse conhecido outra classe de existência. Fez-se cargo de seu papel de marido com facilidade e gozo e manifestou essa classe de devoção com a que sonham a maioria das esposas. Em lugar de desfilar pelos botequins de Londres com seus amigos Grant preferia passar as noites em casa, com Vitória, compartilhando livros e garrafas de vinho, bebendo conversando e fazendo amor até altas horas da noite.
Grant a levava a todas as partes: a bailes, jantares e veladas musicais como também a brigas de boxe carreiras e inclusive casas de jogo clandestino de apostas. Embora a protegia não a confinava e permitia que visse tanto o lado desagradável de Londres como suas belezas. Tratava a Vitória como a uma sócia, uma querida companheira, uma amante; graças a ele, a vida dela se encheu de um vigor, de uma intensidade com os que ela jamais teria sonhado no Forest Crest.
Pelas noites, ficavam em casa e Vitória ajudava Grant a estudar e analisar montanhas de livros de lei e de teoria emprestados por sir Ross. Grant tinha descoberto que o trabalho de um magistrado da polícia era exigente, mas também fascinante e que apresentava um desafio maior que o de ser um simples detetive.
Gozava de um poder cada vez maior para resolver disputas legais e levar adiante investigações; tinha começado a acumular certo grau de influência política. Isso somado a seu título honorário de par, tinha-lhe outorgado uma estatura social que excedia com muito, sua anterior celebridade.
Vitória por sua parte fez tudo o que pôde por encontrar seu próprio lugar na sociedade londrina, selecionando com cuidado os convites entre os montões que chegavam cada semana. Pediu conselho a arquitetos e decoradores com respeito à mansão que Grant pensava construir no Mayfair, e também aos flamejantes amigos que tinha feito em Londres. Não passou muito tempo até que se uniu aos comitês de damas que realizavam obras de caridade para beneficiar às prostitutas reformadas e aos meninos carentes, embora dava a impressão de que os esforços desses comitês eram insignificantes em comparação com a dimensão dos problemas que pretendiam resolver.
—É entristecedor o número de mulheres e de meninos que necessitam ajuda.- disse Vitória a Grant uma noite em que se sentia mais abatida que esperançada com respeito a um encontro de caridade que estavam planejando. - Mesmo que os esforços do comitê dessem seus frutos, só estaríamos beneficiando a uma fração dos necessitados. Pergunto-me por que deveríamos seguir tentando sequer.
Grant a atraiu a seus braços apartou para trás uma mecha de cabelo e lhe deu um beijo na frente.
— Sempre é preferível tentá-lo-murmurou ele, contemplando seu rosto preocupado. No passado, eu me senti do mesmo modo, quando me perguntava para que arriscava minha pele apanhando a um canalha ladrão, se sabia que havia outros milhares por aí.
—E então por que seguiu fazendo-o?
Ele encolheu levemente de ombros.
—Pensei que, ao tirar um criminoso das ruas talvez estivesse salvando a alguém no futuro.E salvar embora seja a uma só pessoa, vale a pena não é assim?
Vitória sorriu e o abraçou, sentindo uma enorme quebra de onda de amor.
—Sabe - disse e sua voz soam amortecidas contra o ombro dele. No fundo, é um idealista.
Sentiu o sorriso dele contra sua orelha.
—Ensinarei você a me atribuir qualidades, minha senhora.
Jogou-lhe a cabeça atrás e a beijou até deixá-la sem fôlego.
Grant, absorto nas páginas de apontamentos referidos a uma investigação que estava levando a cabo, emprestou escassa atenção ao golpe na porta de seu escritório da Rua Bow —Sim disse, em tom resmungão molesto ao ver que interrompiam sua concentração.
A porta se entreabriu, deixando ver o rosto da senhora Dohson.
—Sir Grant, tem uma visita.
Sua reação consistiu em ficar carrancudo.
—Já lhe disse que não receberia visitas até que tenham concluído as sessões desta tarde...
—Sim, sir, mas... Trata-se de lady Morgan.
O cenho se apagou imediatamente de seu rosto. Era estranha a ocasião em que Vitória se aventurava a apresentar-se no escritório da Rua Bow, o qual estava bem posto que o lugar era frequentado por pillastres e criminais. Mesmo assim qualquer ocasião de vê-la em metade do dia era muito bem recebida.
—Pelo amor de Deus não a faça esperar. - disse. - Faça-a entrar imediatamente.
A ama de chaves sorriu, abriu mais a porta e Vitória entrou. Era uma visão encantadora sobre o fundo murcho do escritório, com sua esbelta figura embainhada em um vestido de musselina rosa pálido, de pescoço alto e mangas bordadas de cintas também rosadas. O sutiã do vestido estava vincado> adornado com cordões de seda que estavam sobre as tentadoras curvas de seus seios. Grant se levantou da cadeira, esperou a que a senhora Dobson tivesse fechado a porta e abraçou a sua esposa, apanhando sua boca sorridente com um beijo apaixonado.
—Isso era tudo o que eu precisava. - murmurou quando seus lábios se separaram. Uma moça bonita para aliviar meu aborrecimento.
—Espero não ter interrompido nenhum trabalho importante. - disse ela, a modo de desculpa.
—Nenhum trabalho é tão importante como você.
Ele brincou com a fita que adornava o pescoço de Vitória e inalei o suave perfume que emanava dessa zona de atrás do lóbulo de sua orelha.
—Me diga o que te traz aqui, minha senhora. Tem que apresentar alguma queixa ou denunciar algum crime?
Ela riu pelo baixo.
—Não exatamente.
—Dar um testemunho ou alguma informação?
—Em certo modo, sim.
Ele se sentou, atraiu-a para seu colo e seus olhos verdes brilharam maliciosos.
—Quero uma confissão completa, milady.
—Não, Grant. - disse ela com risada turvada, retorcendo-se sobre seus joelhos e lançando olhares inquietos para a porta—. Poderia entrar alguém e... O que pensariam?
A mão do Grant se meteu por debaixo da saia e ascendeu audaz, até o joelho.
—Que sou um homem recém casado e que desejo a minha esposa.
—Grant. - rogou ela, com as bochechas acesas; ele se pôs a rir, compadecendo-se de Vitória.
—E eu que pensei que já não tivesse pudor. - disse ele, lhe apertando o joelho. - Está bem... Tratarei de me reprimir. Diga-me por que veio.
Vitória lhe rodeou o pescoço com os braços, e sua expressão se tornou séria.
—Não queria incomodar, mas.....hoje mandei chamar o doutor Linley.
—Linley-repetiu Grant, preocupado.
Vitória confirmou com um gesto de assentimento.
—Sabe? Ultimamente não me sentia bem; para não preocupá-lo sem necessidade, não disse nada, até que...
Interrompeu-se, fazendo uma careta de dor ao sentir que ele, sem notá-lo, apertava-lhe a perna. Grant -
exclamou, olhando-o com consternação.
O coração de Grant pulsava com dolorosos e bruscos batimentos do coração. Um fluxo de temor instintivo o fazia difícil falar.
—Vitória. - disse, em voz áspera. - Está doente?
—Oh, não não... Não, querido só... —fez uma pausa e tratou de pensar em algo apropriado, mas sua própria ansiedade lhe impedia de achar algo para dizer -. Estou grávida. - disse, esfregando o peito dele com suas mãos enluvadas, para tranquilizá-lo. - Não tem por que preocupar-se. Vamos ter um menino..
O alívio começou a atravessar o súbito redemoinho de pânico. Ele a atraiu para si,e sepultou o rosto entre os suaves Montes de seus peitos e tratou de normalizar a respiração.
—Por Deus, Vitória-disse.
Ouviu que sua mulher lançava uma risada trêmula e lhe aferrava a cabeça.
—Que sente ante a idéia de que se aumente a família? —Perguntou ela.
—Que é um milagre, simplesmente.
Grant girou a cabeça para apoiar a orelha contra o coração de sua mulher, e ficou escutando o rápido batimento do coração, pensando que o que mais lhe importava no mundo estava aí mesmo, em seus braços.
—Um milagre bastante frequente. - assinalou ela em tom sorrindo. - Nas famílias, é algo que acontece todos os dias.
—Na minha, não.
Ele jogou um pouco para trás e contemplou o corpo esbelto de Vitória, imaginando seu ventre volumoso por seu filho.
—Como se sente? —Perguntou, preocupado.
Vitória lhe acariciou o rosto.
—Impaciente - respondeu. Com muita dificuldade posso esperar o dia em que tenha a um recém-nascido em meus braços.
Entretanto, um recém-nascido foi entregue na casa dos Morgan muito antes do que esperavam. Quase um mês depois de haver-se revelado a gravidez de Vitória, ela e Grant estavam jantando em sua casa, quando a senhora Buttons os interrompeu.
A ama de chaves tinha uma estranha expressão quase cômica como se algo a tivesse surpreendido e ainda não recuperou da surpresa.
—Lady Morgan - disse a ama de chaves, inquieta, chegou um... Um pacote para você... Da Itália.
—A esta hora? —Perguntou a aludida, intercambiando um olhar perplexo com seu marido — Possivelmente seja um presente de minha irmã. —disse. - Que maravilhoso. Faz meses que não tínhamos notícias dela. Há uma carta junto com o pacote, senhora Buttons?
—Sim, mas...
—Por favor, me traga a carta agora e faça que deixem o pacote na sala familiar. Abriremo-lo depois do jantar.
Antes que a ama de chaves pudesse responder, um estranho som fez que Vitória se paralisasse. Era um berro agudo, como o miado de um gato... Ou o pranto de um bebê.
Grant se levantou da mesa, limpando-a boca com um guardanapo.
—Não acredito que este tipo de pacote goste de ficar na sala. – murmurou passando junto a ama de chaves para a porta da sala de jantar.
—Um recém-nascido? —Perguntou Vitória, e seu olhar topou com a da senhora Buttons.
A ama de chaves assentiu, confirmando a dúvida.
—Sim senhora. Foi enviado da Itália, junto com um ama de leite que só fala italiano.
—Oh, Senhor - exclamou Vitória correndo atrás de seu marido, seguindo o som até o vestíbulo de entrada.
Vários criados se reuniram no vestíbulo e contemplavam, sobressaltados à ansiosa jovem de cabelo escuro, vestida com roupas de camponesa sobre as que levavam um grosseiro avental cinza. A criada tinha entre seus braços um vulto do qual emergiam choramingos; dava a impressão de que ela também estava a ponto de estalar em lágrimas.
—Senhora - disse, ao ver aparecer a Vitória.
Vitória posou uma mão sobre o ombro da jovem, para tranquilizá-la.
—Está bem - disse, na esperança de que a moça entendesse seu tom se não as palavras em si mesmas. -
Obrigada por ter trazido o menino são e salvo. Você deve estar cansada e faminta.
Jogou um olhar à senhora Buttons; isso bastou para que ela ordenasse a uma das criadas que preparasse uma habitação para a moça. Vitória assinalou ao pequeno que chorava e dirigiu à moça um sorriso bondoso.
—Me permite? —Pergunto.
A moça lhe entregou o vulto imediatamente, com ar de alívio. Vitória recebeu ao recém-nascido com certo cuidado e contemplou o diminuto rosto purpúreo do pequeno coroado por um topete de cabelos alaranjados atados com uma fita. Era impossível não dar-se conta de que era o filho de Vivien.
—Oh, querida criatura. - murmurou oscilando entre a risada e as lágrimas. - Preciosa, doce menina...
—Vêem, dêem-me isso. - disse Grant com brutalidade indo detrás dela. - A cabeça está pendurada.
Vitória lhe entregou a menina e tomou a carta que trazia aama de leite. Era dirigida a ela; a escritura era do Vivien, sem lugar a dúvidas. Vitória franziu o cenho, rompeu o selo e leu a carta em voz alta.
“Minha querida Vitória, tal como tinha prometido envio a minha filha, pois nestes momentos eu estou muito atarefada para cuidá-la. Se quiser, acerta que alguém se ocupe de Isabela posso reembolsar a importância dos gastos quando retornar a Inglaterra. Como sempre, você envio meu amor...
Vivien”
Vitória se voltou para seu marido ao notar que a menina se calou e contemplava o rosto escuro de Grant com seus olhos redondos e fixos. Uma mão minúscula lhe aferrava um dedo, e os pequenos dedos estavam brancos nas pontas pela pressão que exercia.
A menina parecia diminuta em contraste com o largo peito do Grant; ao parecer estava contente com a segurança que sentia em seus braços.
—Eu não sabia que tinha experiência com recém-nascidos. - comentou Vitória, contemplando a essas duas pessoas com um sorriso maravilhado.
Grant balançou a menina com um ritmo regular e sedativo e respondeu em voz baixa.
—Não tenho. Acontece que me dou bem com ruivas.
—Acredito em você.
Com um leve sorriso e o cenho franzido, Vitória acariciou o cabelo de intensa cor que coroava a cabeça da pequena.
—Pobre pequena Isabella-murmurou.
—Será que alguma vez virá Vivien a procurar a sua filha? —Perguntou Grant, sem afastar o olhar da menina.
—É impossível afirmá-lo com segurança, mas... —Vitória se interrompeu e, ao olhar fixamente a seu marido, resultou-lhe impossível adornar a verdade—. Não - disse em voz baixa—. Não quererá ter perto a uma filha que lhe recorde o passar dos anos... E nunca desejou ser mãe. Não acredito que venha jamais a procurar a sua filha.
—Então o que faremos com ela?
—Você se oporia a que aumentássemos a família antecipadamente? —Perguntou Vitória, vacilante.
Por um momento, a Grant custou acreditar que estava avaliando a possibilidade de converter-se em pai de fato da filha bastarda de Vivien Duvall. Vivien não lhe caía bem; jamais lhe tinha agradado. Mas, enquanto contemplava a pequena cabeça aconchegada em seu ombro, não viu nela nada de Vivien. Só viu a vulnerabilidade e a inocência de uma menina, e o dominou o instinto elementar de protegê-la.
—Imagino que ninguém poderia cuidar melhor nós. - murmurou, mais para si que para Vitória.
Sua esposa se aproximou mais a ele e lhe rodeou a cintura com um braço.
—Suponho que não. - coincidiu ela, com um sorriso. - OH Grant... Eu sabia que não se negaria-exclamou, ficando nas pontas dos pés para lhe dar um beijo. Você jamais me decepciona, sabe?
A ele lhe ocorreram umas quantas réplicas irônicas, mas ao olhar os resplandecentes olhos azuis de sua esposa, sentiu-se tão cheio de amor que não expressou nenhuma delas em voz alta.
—Jamais - repetiu Vitória, lhe sustentando o olhar. Não quero mudar nenhuma só de suas características.
—Bom, minha senhora. - respondeu ele com suavidade. - por isso me casei com você.
Lisa Kleypas
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