Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALICE / Joseph Delaney
ALICE / Joseph Delaney

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

“Muitas coisas sombrias aconteceram quando eu era mais nova e nunca contei ao meu amigo mais querido, Tom Ward. Coisas sombrias e assustadoras que eu esperava ter deixado para sempre...”
Ao longo dos anos, Alice lutou lado a lado com o caça-feitiço e seu aprendiz, Thomas Ward. Mas agora Alice está sozinha — no reino das trevas. E as criaturas que ela ajudou a banir para lá, agora têm a chance de se vingar.
Alice deve procurar a arma final para destruir o Maligno. Se ela falhar, o mundo cairá em desespero e escuridão. Se ela tiver sucesso, significa enfrentar a morte pelas mãos de seu querido amigo. Mas ela pode impedir que as trevas a dominem completamente...?
A penúltima parte das Aventuras do Caça-feitiço segue Alice, a companheira leal de Thomas Ward, até o lugar mais aterrorizante de todos.


Perfis de Personagens

Alice
Alice tem parentesco com dois dos clãs de bruxas mais malignos (os Malkins e os Deanes) e foi treinada como bruxa contra sua vontade. Nascida da união entre a bruxa malevolente Lizzie Ossuda e o próprio Maligno, Alice se considera uma aliada da luz e, durante anos, luta com o Caça-feitiço e seu aprendiz, Tom Ward. Em suas batalhas, ela tem sido cada vez mais forçada a confiar na magia negra para salvar seus amigos, e teme que toda vez que o faça a atraia cada vez mais perto das trevas.

Lizzie Ossuda
Lizzie Ossuda era uma bruxa poderosa que matou crianças e usou seus ossos em rituais sombrios. Por dois anos, ela treinou Alice para se tornar uma bruxa malevolente. Depois de libertar a avó, Mãe Malkin, de uma cova no jardim de Chipenden, Lizzie se viu presa pelo Caça-feitiço na mesma cova. Posteriormente, ela escapou e conseguiu estabelecer um breve domínio sobre a Ilha de Mona, mas posteriormente morreu por lá depois que a bruxa Adriana invocou um bando de gaivotas para bicá-la até a morte.

Grimalkin
Grimalkin é a atual assassina do clã Malkin. Muito forte e veloz, ela tem um código de honra e jamais apela para trapaças. Apesar de sua honestidade, Grimalkin também tem um lado negro e é conhecida por utilizar tortura para atingir seus objetivos. Recentemente firmou uma aliança improvável com Tom Ward contra seu inimigo comum, o Maligno. Mas será que uma verdadeira serva das trevas pode ser confiável?

O Maligno
O Maligno é o mal encarnado, o mais poderoso de todos os seres das trevas e o mais velho dentre os deuses antigos. Ele tem muitos outros nomes, inclusive Diabo, Satã, Lúcifer e Pai das Mentiras. Juntos, Tom Ward e seus aliados conseguiram cortar a cabeça do Maligno em batalha, mas a luta para destruí-lo de uma vez por todas apenas começou...

 


 


A destruição do Maligno pode ser alcançada da seguinte forma. Primeiro, os três objetos sagrados devem estar em mãos. São as espadas de herói fabricadas por Hefesto. A principal delas é a Espada do Destino; a segunda é a adaga chamada de Corta Ossos, que lhe será entregue por Slake. A terceira é a adaga chamada Dolorosa, às vezes chamada de Espada da Tristeza, que você deve recuperar das sombras.

O local também é importante: deve ser particularmente propenso ao uso de magia. Portanto, o ritual deve ser realizado em uma colina alta a leste de Caster, que é conhecida como Wardstone.

Primeiro, o sacrifício de sangue deve ser feito desta exata forma: uma fogueira capaz de gerar muito calor deve ser construída. Para isso, será necessário construir uma fornalha.

Durante o ritual, a vítima voluntária para o sacrifício deve demonstrar grande coragem. Se em algum momento ela gritar e trair sua dor, tudo será perdido e o ritual irá falhar.

Utilizando a adaga Corta Ossos, os ossos dos polegares devem ser extraídos da mão direita do sacrifício e jogados ao fogo. O corte para retirar os ossos da mão esquerda deverá ser feito apenas se ela não gritar. Esses também serão jogados na fogueira.

Em seguida, utilizando a adaga Dolorosa, o coração deve ser extraído e, enquanto ainda estiver batendo, deverá ser jogado no fogo.


Eu estava sendo treinada como bruxa quando conheci Tom Ward, o aprendiz do Caça-feitiço, e deveríamos ser inimigos. No entanto, após um início incerto, nos tornamos amigos. Lutei contra as trevas ao lado dele, e foi nessa época que aprendi a terrível verdade sobre minha origem: eu era uma das filhas do Maligno, e Lizzie Ossuda era minha mãe.

No entanto, continuei ajudando Tom e o velho Gregory. Apesar do meu passado, eu me recusei a ser atraída para o escuro. Lutamos juntos contra o Maligno, com a ajuda de Grimalkin, a feiticeira assassina, e, por fim, desferimos um golpe terrível: cortamos sua cabeça e amarramos seu corpo com lanças de prata, para que ele ficasse preso em sua carne morta.

Sabendo que seus servos nos perseguiriam incansavelmente, Grimalkin fugiu com a cabeça do Maligno embrulhada em uma bolsa de couro, lutando contra qualquer criatura das trevas que encontrasse. Seria apenas uma questão de tempo até que ela fosse capturada, eu tinha certeza — nem mesmo a poderosa feiticeira assassina poderia derrotar tantos seres das sombras. Depois que matassem Grimalkin e recuperassem a cabeça, eles a levariam de volta para a Irlanda e a reuniriam com o resto do corpo do Maligno; então ele seria libertado no mundo mais uma vez e uma nova era de escuridão e terror começaria.

Há apenas uma chance de detê-lo e destruí-lo de uma vez por todas. Meu amigo Tom Ward deve realizar um ritual de sacrifício à meia-noite do próximo Halloween, agora a menos de quatro meses. Ele usará três lâminas, conhecidas como espadas de herói. Duas dessas armas já estão em sua posse; a terceira está escondida no escuro, e cabe a mim recuperá-la.

Os detalhes do ritual foram comunicados a ele por sua própria mãe, que foi a primeira e mais poderosa de todas as feiticeiras lâmias. Ela morreu na Grécia lutando contra a Ordeen, um dos Deuses Antigos. Mas seu espírito ainda é forte e ela nos apoiou em nossa luta contra o Maligno.

Mas havia algo sobre o ritual que Tom tinha escondido de mim; algo que eu tive que descobrir por mim mesma...

Envolve um sacrifício e a vítima deve estar consentindo. Alguém deve morrer... E Tom terá que sacrificar a pessoa que ele mais ama no mundo.

Esse alguém sou eu.

Então, adentrei nas trevas para encontrar a adaga chamada Dolorosa — a lâmina que eventualmente será usada para me matar.

Apenas uma coisa é pior que a escuridão, não é mesmo? E é isso que está lá dentro — as coisas que chamam isso de lar...

Muitos dos meus inimigos estariam por lá, servos do Maligno. Então usei minha magia para me tornar invisível, insegura de sua eficácia. A escuridão é de onde a magia vem, e é a morada dos Deuses Antigos. E eu estava sozinha.

Eu já estive lá uma vez antes — arrebatada pelo Maligno. Como todos os deuses antigos, Pan tem sua morada lá, um território que pertence apenas a ele. Ele me resgatou e me trouxe de volta ao mundo acima. Pan, como alguns outros, quer ser deixado sozinho — completamente sozinho — e não é gentil com invasores. Se eu encontrasse um caminho para o domínio de Pan, nenhum dos meus inimigos estaria me esperando lá. Claro, não havia garantia de que desta vez, em retaliação, ele não iria me destruir.

Pan pode aparecer em dois aspectos. Um deles, que eu gostaria de nunca conhecer, é terrível. A própria visão daquele rosto deixaria qualquer um louco; a outra forma era a que eu esperava poder conversar.

Entrar no domínio de Pan com minha poderosa magia deve ser relativamente fácil. Ele mora principalmente nas Trevas, mas também é o deus da natureza. Sua casa nunca está tão longe do nosso mundo.

Qualquer pessoa que esteja sozinha em uma floresta já sentiu sua presença. Há momentos em que tudo fica parado e silencioso, tudo o que pode respirar parece prender a respiração. Não há farfalhar na vegetação rasteira, nem mesmo uma brisa, apenas uma sensação de uma presença invisível gigantesca.

O que significa que Pan está próximo.

Então, fui para uma área arborizada a sudeste de Chipenden, não muito longe do rio Ribble. Se voltasse sã e salva com a adaga, não teria muito tempo para encontrar Tom Ward.

Depois de escolher um local isolado, sentei-me na grama, encostada contra o tronco de uma árvore. Eu estava com medo, todo o meu corpo tremia. Respirei fundo, devagar e profundamente para me acalmar. Então eu esperei que as condições ficassem favoráveis.

Aconteceu muito perto do anoitecer.

Tudo ficou quieto e silencioso, como eu previa. Pan estava por perto. Era como se ele estivesse logo atrás de uma cortina, tão perto que eu poderia tocá-lo.

Usei minha magia e tentei entrar no domínio dele. Foi muito mais difícil do que eu esperava; levei muito tempo para encontrar uma maneira de entrar. Era como tatear uma pequena fechadura numa porta gigantesca com os olhos vendados. Foi difícil localizar e resistiu às minhas tentativas por tanto tempo que achei que certamente falharia. Então, de repente, cruzei o limiar invisível, com uma mistura de sentimentos: euforia pelo meu sucesso, nervosismo ao entrar no domínio de Pan, e um toque de medo.

Eu estava parada perto de um lago que brilhava em um verde reluzente. No entanto, não refletia a luz, pois o céu acima era escuro. Tudo ao meu redor emitia aquele brilho, até os troncos das árvores. Verde, a cor da natureza, é a cor de Pan.

Na margem do rio havia juncos altos e, além deles, na margem oposta, mudas de freixo, mas tudo estava absolutamente imóvel. Nada se mexia além do meu peito, que estava subindo e descendo rapidamente. Respirei fundo três vezes, tentando desacelerar meu coração.

Eu tinha que manter a calma.

Além das árvores de freixo, eu distinguia a beira de uma floresta, de árvores altas com folhas envelhecidas de uma espécie que eu não conhecia. Elas estavam em plena floração, como no começo da primavera. As flores não eram rosas e nem brancas, mas verdes também. Era como se essa floresta estivesse viva, ouvindo minha respiração ofegante e as batidas desordenadas do meu coração. A palavra “pânico” vem do nome Pan; diz-se que aqueles a quem ele aparece em sua forma terrível experimentam um forte sentimento de pavor com sua proximidade. Poucos sobrevivem para contar a história.

Ele estava se aproximando nesse aspecto agora? Se fosse esse o caso, não estava sentindo medo.

Naquele momento, ouvi altas e finas notas musicais à distância. Poderia ser Pan em sua forma mais benigna, tocando seus canos de junco?

Eu só podia esperar o melhor.

Então, eu contornei o lago verde, cruzei a linha de freixos e entrei na floresta. Guiada pela melodia, cheguei à beira de uma vasta clareira coberta de samambaias. No centro, elas haviam sido esmagadas por muitas criaturas: lebres, coelhos, ratos, ratazanas, um par de texugos e uma raposa vermelha com uma cauda espessa. Acima deles, os galhos se curvavam sob o peso de uma multidão de pássaros. Todos estavam em silêncio e imóveis, presos à fonte daquela música requintada.

Ele parecia um jovem garoto, de rosto pálido e cabelos loiros. Pan estava sentado em um tronco tocando sua flauta de canos de junco, exatamente como eu me lembrava dele. Suas roupas pareciam ser feitas de grama, folhas e cascas de árvore. E o seu rosto pareceria humano se não fosse por suas orelhas alongadas e pontiagudas despontando por entre seus longos cabelos despenteados. Notei também que suas unhas dos pés descalços eram verdes e tão compridas que se curvavam em espiral.

O deus antigo virou-se para mim e parou de tocar. Imediatamente, o encanto da sua música foi quebrado, e as criaturas da floresta fugiram, enquanto uma nuvem de pássaros subia para o céu, fazendo os galhos dançarem no alto. No momento seguinte estávamos sozinhos.

Ele olhou para mim, e seu rosto começou a se distorcer em uma expressão bestial que me encheu de um terror gélido. O garoto adorável estava prestes a desaparecer e eu enfrentaria seu outro aspecto terrível!

— Por favor! — Eu gritei. — Eu sou Alice. Você não se lembra de mim? Você me ajudou uma vez antes. Por favor, me escute! Eu não quero te ofender, me perdoe!

Para meu alívio, a transformação cessou e o jovem reapareceu, mas seu rosto estava extremamente sério, sem a sombra de um sorriso. Então, com um olhar zangado, ele me chamou com uma voz seca:

— Eu acho você muito ousada. Diga-me por que não devo matá-la agora mesmo?

— Não tenho más intenções. — Disse-lhe. — Perdoe-me por entrar sem permissão! Sou muito grata pela ajuda que você me deu há algum tempo. E preciso da sua ajuda novamente. Eu tenho que buscar um objeto no escuro, e aqui é o único lugar em que eu poderia entrar com segurança: os muitos inimigos que me esperam nunca ousariam entrar em seu domínio.

— Mas você se atreveu! E há um preço a pagar por essa presunção.

— Pagarei o que quiser, desde que você me deixe viver. Eu não tenho medo da morte, toda criatura deve morrer um dia, mas eu absolutamente preciso encontrar uma lâmina escondida sob o trono do Maligno. Apenas me guie até a fronteira de seu domínio e depois permita que eu escape pelo caminho que me trouxe até você.

Pan parecia intrigado.

— Por que essa lâmina é tão importante para você?

Eu descobri, muito tarde, que deveria ser sacrificada. Após Tom Ward ficar inconsciente durante seu confronto contra Siscoi, o deus vampiro, acabei encontrando dentro de seu bolso uma carta e depois de lê-la, diversas vezes, eu memorizei cada palavra. Não vi motivo para não revelar a verdade ao deus. Afinal, ele já sabia como havíamos impedido o Maligno. E foi esse enfraquecimento do poder do Maligno que permitiu a Pan me trazer de volta ao mundo acima.

— Três itens sagrados serão necessários para Tom Ward realizar o ritual que destruirá o Maligno de uma vez por todas: as espadas de herói forjadas pelo Velho Deus Ferreiro.

— Conheço essas armas. — Disse Pan. — Elas trouxeram muitos males e causaram muito sofrimento aos seres humanos. Qual delas está escondida no escuro?

— Tom já possui Lâmina do Destino e Corta Ossos. A que estou buscando é chamada Dolorosa. — Disse a ele.

— Ah, mas a Espada da Tristeza é de longe a pior das três. Seria melhor para a humanidade se não fosse devolvida ao seu mundo.

— Ao usá-la, podemos destruir nosso pior inimigo.

Balançando a cabeça lentamente, Pan olhou para mim com um olhar de pena.

— Pequena humana tola! Você não pode ver o que vai acontecer? Você pode destruir o Maligno, mas não destruirá as trevas, pois elas sempre se oporão à luz. Acabe com a situação atual e um novo equilíbrio será estabelecido. Se você derrubar a entidade mais poderosa do escuro, outra tomará o seu lugar.

Não era o tipo de discurso que eu queria ouvir. Eu iria sacrificar minha vida por nada? No entanto, o deus estava falando à longo prazo. Eu estava lutando pelo presente, o futuro não me preocupava.

— O que tem que acontecer vai acontecer, e eu não posso evitar. Mas nós já atacamos o Maligno e o machucamos muito. Se ele recuperar seus poderes, sua vingança será terrível. Não tenho medo por mim mesma, por Tom ou pelo velho Gregory. Mas o mundo inteiro sofrerá. Devemos, a todo custo, realizar o ritual. Depois do Halloween ou será tarde demais.

Pan olhou fixamente para mim por um longo tempo e meus joelhos cederam. Por um momento, considerei usar o poder da minha magia, mas sabia que não tinha chance contra nenhum dos deuses antigos nas profundezas de seu território. Ele poderia me matar ali mesmo, e tudo o que eu fizesse seria em vão.

Finalmente, ele me deu um breve aceno de cabeça.

— Conte-me sobre esse ritual. — Ele ordenou.

— Será realizado em uma colina especial no Condado chamada Wardstone. É preciso construir uma fornalha lá. — Expliquei. — A adaga chamada Corta Ossos — que foi muito bem nomeada — será a lâmina que cortará os polegares da vítima, o direito e depois o esquerdo. Ela não deve gritar, por mais intensa que seja sua dor; caso contrário, o sacrifício falhará. Então, seus ossos devem ser atirados ao fogo. A outra lâmina, a que eu vim buscar, será usada para cortar o coração da vítima, que também será jogado, ainda batendo, nas chamas.

— Você usa as palavras “sacrifício”, “polegares”, “coração da vítima” como se fossem sobre outra pessoa. Mas é você quem terá que suportar esses horrores. Você não sabe disso? — Pan me perguntou.

Eu assenti e, incapaz de encarar seu olhar feroz, abaixei os olhos.

— Eu sei disso. Falar sobre isso de maneira desapegada é a única maneira de aceitar essa ideia.

— Você se considera capaz, mas quando chegar a hora, suportará tal tortura? No instante em que a lâmina cortar sua carne, seu corpo pode te desobedecer e você irá gritar de qualquer maneira. Para vocês, seres humanos fracos, existem algumas coisas que são simplesmente impossíveis de suportar.

— Farei o meu melhor, é tudo o que pode ser pedido de mim.

Pan assentiu e pareceu menos zangado.

Quando ele falou novamente, sua voz era mais branda:

— Você pode ser tola, jovem humana, mas é corajosa. Vou acompanhá-la pelo meu território para levá-la à próxima etapa da sua jornada.

Andamos em silêncio entre as árvores, Pan cinco passos à minha frente. Nada se movia ao nosso redor, e nossa jornada parecia interminável para mim, pois era difícil julgar a passagem do tempo nas trevas. E isso foi uma preocupação.

Aprendi com a minha incursão anterior que o curso do tempo era diferente aqui. Eu acreditava que tinha sido prisioneira do Maligno por muitos anos, quando apenas algumas semanas haviam se passado. Pelo que eu sabia, o tempo poderia estar passando mais rapidamente no Condado, onde agora restavam apenas quatro meses antes do Halloween. Mesmo se eu trouxesse de volta a adaga, talvez voltasse tarde demais.

A floresta estava diminuindo agora; mudas e arbustos substituíram as grandes árvores antigas. Vi uma vasta planície disforme à minha frente, dividida por um caminho que começava logo além da última árvore. Além do brilho verde da floresta, era possível avistar um território escuro no qual havia apenas um caminho estreito recortado por pequenas pedras brancas.

— Preciso deixar você agora. — Disse Pan. — Siga o caminho branco através do abismo que fica entre cada domínio. Isso levará você para o próximo.

— Aquele é o do Maligno? — Perguntei.

Pan balançou a cabeça.

— Quem sabe? Nada é estável no escuro. Seus territórios mudam constantemente de lugar. Se, após a conclusão da sua missão, você voltar para cá, eu a ajudarei a retornar ao mundo de onde você veio. Mas lembre-se! Você entrou no meu domínio sem ser convidada, exigirei que você pague o preço de sua presunção.

Examinei o caminho por um momento. Quando me virei para perguntar a Pan qual era o preço, ele já havia sumido.

Eu não estava me mexendo. No entanto, a floresta atrás de mim estava encolhendo rapidamente até não ser maior que a lua vista da Terra. Um momento depois, não era maior que uma estrela; então ela simplesmente desapareceu. Ela tinha ficado menor ou se afastado? Era impossível dizer.

Eu estava sozinha, e agora ao meu redor só havia escuridão. Cheirei três vezes, procurando por perigo. Tudo parecia bem, então entrei no caminho e comecei a andar, as pedras sendo trituradas a cada passo cauteloso dos meus sapatos pontiagudos. Era perfeitamente reto, tornando-se cada vez mais apagado até que, à distância, parecia não ser mais do que uma linha tênue. Apenas as pedras brancas eram visíveis. Comecei a andar mais rápido, acelerando meu passo.

Novamente, foi difícil julgar a passagem do tempo, e não sei quanto tempo andei quando ouvi um uivo distante em algum lugar à minha esquerda. Parecia o grito de caça de um lobo ou outro grande predador.

De repente assustada, aumentei um pouco meu ritmo, alerta. Percebi o barulho alto dos meus sapatos no caminho de cascalho. Se fosse algum tipo de lobo e não tivesse sentido meu cheiro, certamente o som dos meus passos o traria na minha direção. Decidi continuar andando ao lado do caminho e não exatamente por ele. No entanto, no primeiro passo, meu sapato esquerdo afundou no vazio. Não havia nada lá. Sem chão.

Pan havia dito que havia um abismo se estendendo entre todos os domínios. Em outras palavras, era um nada sem fundo.

Avançando na escuridão, girei meus braços para recuperar o equilíbrio e caí de volta no caminho. Então, com o coração batendo forte após escapar por um triz, me ajoelhei e olhei para baixo. Eu não conseguia ver nada. Por todos os lados só havia escuridão absoluta. Com a mão esquerda, abaixei-me, mas não senti nada. O que poderia fazer se não continuar minha jornada na estrada branca?

Assim que meu coração voltou ao seu ritmo normal, parti novamente, meus passos esmagando o cascalho. Que explicação poderia ser dada para esse fenômeno estranho? Ou o chão se foi ou o caminho foi elevado. Nesse caso, o que o sustentava?

O grito do predador ecoou novamente, muito próximo, mas veio de baixo. Então segui em frente, a criatura não poderia me alcançar, a menos que encontrasse uma maneira de subir até mim.

Logo ouvi o uivo mais uma vez — mais alto e mais próximo — e imediatamente fiquei mais nervosa. Estaria ele à espreita?

Eu andei ainda mais rápido, me perguntando que tipo de criatura estava em meu encalço. Eu estava sendo caçada? Era algum tipo de demônio?

Eu olhei para trás e, ao longe, pude ver algo andando em minha direção de quatro. Parecia um cachorro pequeno, talvez parecesse assim por causa da distância? Eu comecei a correr. As pedras rolando sob meus pés me atrasaram; Escorreguei e quase caí de cabeça.

Arrisquei outro olhar para trás e imediatamente me arrependi. A fera parecia muito grande e estava ganhando terreno. Um detalhe incomum me ocorreu: seu rosto bestial era o de um lobo, mas sua expressão era astuta, ardilosa e quase humana.

Um calafrio percorreu minha espinha: eu sabia quem estava me perseguindo.

Era o kretch, a criatura que havia sido criada pelas bruxas para matar Grimalkin e recuperar a cabeça do Maligno. Ele, que foi gerado pelo demônio Tanaki, possuía grandes poderes de regeneração e ficava cada vez mais forte, aprendendo com cada embate com a feiticeira assassina. Uma de suas armas era um veneno mortal que enfraquecera Grimalkin; somente com a ajuda da minha magia ela finalmente conseguiu matá-lo.

Agora ele tinha uma nova existência nas trevas. E eu era seu alvo.

Eu esperava entrar no mundo inferior sem ser descoberta por ninguém além de Pan. Que tola eu fui! As criaturas estavam alertas aqui, e esse monstro já havia me encontrado.

Eu não queria usar minha magia: era um recurso limitado e talvez eu precisasse dela mais tarde. Não apenas isso... Cada uso de magia negra me aproximava de ser uma bruxa malevolente de pleno direito, com um coração de pedra. Isso era o que mais me preocupava.

Mas aqui eu não tinha escolha. Decidi ser econômica com meu poder e usar o mínimo. Eu exerci minha vontade e uma névoa espessa começou a se formar no caminho, para que eu não pudesse mais ver o kretch. Acrescentei a isso um feitiço de atordoamento.

Eu não sabia o quão eficaz isso seria contra uma criatura assim, mas em segundos ela uivou novamente — não mais o grito cruel e triunfante de um caçador, mas um lamento confuso.

Sem saber quanto tempo sua confusão duraria, retomei minha corrida, deixando a neblina e o kretch bem atrás de mim.

Eu rapidamente tive outro motivo de preocupação: agora eu podia ver o fim da trilha à minha frente. A linha branca de pedras simplesmente parou e, além dela, não havia nada além de escuridão.

E se eu tivesse ficado presa em um espaço entre os territórios? O caminho que eu segui acabava em nada? Eu pensei.

Então eu vi um penhasco escuro e rochoso e vi que o caminho branco não terminava, afinal; afundava na abertura estreita de uma caverna.

Essa era a entrada para o próximo domínio?

Uma luz amarela brilhava do lado de dentro. A menos que eu estivesse enganada, era a luz bruxuleante de uma vela. A quem isso pertenceria? Cautelosamente, cheguei à entrada e parei, olhando para dentro.

Um par de vívidos olhos azuis de safira me encaravam. Eu vi uma garota da minha idade. Seu cabelo preto estava cortado curto e ela tinha uma pequena tatuagem na bochecha esquerda — de um urso. Ela estava sentada de pernas cruzadas no chão, levantando as mãos em minha direção. Ela havia sido mutilada — suas mãos estavam pingando sangue, e a causa era terrível. No lugar dos polegares, restavam apenas dois tocos sangrentos.

— Você deve ser Alice. — Ela disse. — Meu nome é Thorne.


Thorne era garota que Grimalkin treinara para ser uma feiticeira assassina. Nós nunca nos conhecemos; quase ninguém sabia de sua existência, mas eu sabia tudo sobre ela, e especialmente as circunstâncias de sua morte. Ela havia sido morta pelos servos do Maligno à beira do Vale das Feiticeiras Mortas. Eles cortaram seus polegares enquanto ela ainda vivia, e o choque e a perda de sangue a mataram.

O olhar sério que ela lançou sobre mim era surpreendentemente gentil, mesmo que seu corpo flexível, vestido com tiras de couro das quais pendiam armas, fosse o de uma guerreira.

— Você está sendo seguida, está ciente disso? — Ela me perguntou.

— Sim. Eu acho que é o kretch. Eu o mantive à distância magicamente, mas não irá segurá-lo por muito tempo.

Isso era verdade. Ele estava além da morte agora. Como poderia detê-lo?

Como se a criatura soubesse o que estávamos discutindo, houve outro uivo vindo da escuridão, mais uma vez um grito de caça; parecia muito próximo.

Thorne ficou de pé.

— Rápido! Pegue a vela e siga-me!

Olhei para além dela e vi que a caverna se abria em um túnel.

Thorne virou-se para ele, e eu peguei a vela e corri atrás dela.

Às vezes, o teto da galeria era tão baixo que tínhamos que rastejar de quatro. De certa forma, isso me tranquilizou: o kretch nunca entraria naquele espaço tão estreito.

De vez em quando passávamos brevemente por cavernas tão vastas que a luz da vela não chegava a iluminar o teto. Haviam bordas bem acima de nós, e eu senti olhos malevolentes e hostis nos olhando.

— De quem é esse domínio? — Eu perguntei, chocada ao ouvir os ecos da minha voz reverberando através da enorme vastidão.

Thorne se virou e, com um dedo nos lábios, me silenciou. O sangue continuava pingando de suas mãos mutiladas.

Em voz muito baixa, ela explicou:

— Ainda estamos em um lugar entre domínios, mas o caminho branco às vezes leva a túneis razoavelmente seguros, muito apertados para deixar entrar algo grande e perigoso.

— E o kretch? Grimalkin me disse que ele era do tamanho de um cavalo pequeno. Ele seria capaz de nos alcançar?

— Sim, se essa for sua vontade. — Respondeu Thorne. — As leis de tamanho, matéria e distância daqui são muito diferentes da Terra. Ele poderia muito bem nos pegar agora. Mas há coisas piores que seu tamanho. Seu pai é Tanaki, um dos demônios ocultos que assombram o abismo. Ele também poderia vir atrás de nós, mas felizmente é grande demais para entrar neste sistema de túneis.

Eu perguntei a ela então:

— Você estava me esperando?

Thorne assentiu.

— Nesse lugar, você tem tantos amigos quanto inimigos. Vou ajudá-la da melhor maneira possível. Mas por que você veio? Os vivos não devem entrar no escuro.

Hesitei por um momento. Eu poderia confiar nela? Então me lembrei de todas as coisas boas que Grimalkin disse sobre ela. Eu nunca tinha ouvido uma feiticeira assassina falar de outra com tanto afeto. Além disso, eu estava sozinha no escuro, sem esperar nenhum apoio. Uma aliada tão corajosa aumentaria minhas chances de sucesso.

— Eu preciso encontrar o domínio do Maligno. — Eu disse a ela. — Há uma adaga sob seu trono que deve ser usada em um ritual específico destinado a destruí-lo. Mas e você, Thorne? Como você sabia quando eu chegaria e onde me encontrar?

— Discutiremos isso mais tarde e irei lhe contar um pouco do que sei sobre o escuro. — Disse Thorne. — Há muito para você aprender, mas agora precisamos alcançar o próximo domínio. Com sorte, será o do Maligno. Você apenas terá que pegar o que precisa e partir desse lugar.

Eu gostaria de ter uma resposta para minha pergunta. No entanto, se eu já havia passado algum tempo no escuro, fora como prisioneira; Thorne havia sobrevivido aqui. Então, por enquanto, parecia melhor aceitar que ela sabia mais do que eu e permitir que ela nos conduzisse.

Logo estávamos fora da rede de túneis, e o caminho branco se estendeu novamente acima do abismo. Parecia idêntico ao que havíamos deixado para trás. Pelo que pude perceber, nós havíamos andado em círculos e retornado ao ponto em que entramos pela caverna.

Thorne abriu caminho pela passagem, então apaguei a vela e a guardei no bolso da minha saia.

— Quando chegaremos ao próximo domínio? — Eu perguntei.

Ela encolheu os ombros.

— É impossível prever. Tudo está em constante mudança por aqui. Não estou no escuro há muito tempo. Algumas criaturas se movem com mais facilidade do que outras, especialmente demônios. Eles sabem como ir de um ponto a outro em um piscar de olhos.

Este era um lugar perigoso e assustador. Thorne me encontrou; se ela pôde fazer isso, um servo demônio do Maligno poderia fazer o mesmo. Ainda assim, refletir sobre esse tipo de pensamento era inútil. Eu teria que enfrentar as ameaças à medida que surgissem.

Enquanto caminhávamos na escuridão e no vazio, parecia que nada existia, exceto nós duas e a estrada branca, e o esmagamento rítmico das pedras sob nossos pés.

Foi difícil julgar a passagem do tempo, então comecei a contar meus passos para tentar me localizar. Quase cheguei a mil quando o uivo do kretch surgiu atrás de nós. Ele conseguira atravessar o túnel estreito!

Em resposta, Thorne começou a andar mais rápido. Quando o som retornou, ela começou a correr e eu corri atrás dela.

Os uivos se tornaram mais frequentes e mais altos. A criatura havia nos encurralado.

Thorne parou de repente e virou-se para olhar de volta para o caminho. Eu segui seu olhar: a fera era pouco visível, mas avançava em nossa direção, cada vez mais próxima; e mais cedo do que esperava pude vê-la em detalhes.

Era como Grimalkin havia descrito — semelhante a um enorme lobo — mas ao se aproximar, eu detectei algumas diferenças significativas. Embora ele corresse com o que pareciam ser quatro patas, seus membros frontais eram vigorosos, semelhantes a braços musculosos, capazes de quebrar os ossos de um oponente e rasgar sua carne em pedaços sangrentos. Seu pêlo era preto, mas havia manchas prateadas nas costas poderosas. Haviam bolsos fixados sobre seu corpo, dos quais os punhos de armas se projetavam, mas ele também tinha garras afiadas e venenosas. Um arranhão quase matou Grimalkin, deixando-a com crises recorrentes de fraqueza que a tornaram vulnerável a seus inimigos.

Não queria que a mesma coisa acontecesse comigo agora. Eu estava me preparando para usar minha magia quando Thorne teve outra ideia.

— Fique atrás de mim, Alice! — Ela me ordenou.

E então ela deu um passo à frente para enfrentar o kretch.

Para minha surpresa, ela tirou os sapatos pontudos e, equilibrando-se em uma perna, deslizou o pé esquerdo em direção a uma das tiras de couro que cruzavam seu corpo. Segurando o cabo de uma adaga com os dedos dos pés, ela a retirou da bainha.

O kretch estava saltando em sua direção agora, olhos ardendo de ódio, presas prontas para rasgá-la em pedaços. Thorne chutou violentamente; a lâmina voou dos dedos dos seus pés. Ela ricocheteou na testa da fera, errando os olhos por um triz. Ela mudou de perna, agora se equilibrando na esquerda. Dessa vez, os dedos do pé direito selecionaram uma lâmina.

Eu admirava sua calma. O kretch estava quase em cima dela quando a segunda lâmina disparou e afundou até o punho no olho esquerdo da fera — bem no alvo. Rugindo de dor, ele ficou de pé sobre as patas traseiras, tentando tirar a adaga da órbita ocular. Foi então que Thorne despachou uma terceira lâmina e acertou o outro olho.

O sangue escorria pelo rosto da criatura, encharcando seu pêlo e pingando pelo seu queixo. Cego, ele golpeou loucamente a garota, que já havia recuado. Com um longo uivo, o kretch perdeu o equilíbrio e mergulhou no abismo, seu grito diminuindo gradualmente até desaparecer por completo.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Thorne já havia retomado sua corrida.

— Rápido! Isso colocará o seu pai, o demônio Tanaki, atrás de nós!

Corremos a toda velocidade pelo caminho, Thorne segurando os sapatos com sua mão esquerda mutilada. O modo como ela se livrou do kretch me impressionou. No entanto, tínhamos que chegar ao próximo conjunto de túneis, porque se Tanaki aparecesse estaríamos em grande perigo. A outra face do penhasco estava agora à vista, e o caminho desapareceu mais uma vez na boca da caverna.

Quando nos aproximamos, ouvimos um som que se tornou mais preocupante e assustador a cada passo que dávamos. Começou como um rosnado baixo. Então ganhou intensidade, a ponto de as pequenas pedras brancas do caminho começarem a tremer e a pular.

— É Tanaki! — Exclamou Thorne. — Ele é grande, muito grande! Seus gritos em breve serão insuportáveis!

A essa altura, até os meus dentes estavam vibrando. Um raio branco-azulado de repente iluminou a escuridão. O estrondo ensurdecedor foi simultâneo.

— Corra! Corra! — Thorne gritou, correndo à frente. — Esse raio significa que está quase chegando!

Se Tanaki ainda estava invisível, sua abordagem era perceptível. Eu corri para a frente, certa de que ele iria aparecer a qualquer segundo.

Felizmente, chegamos ao refúgio da caverna a tempo.

Thorne caiu de joelhos, ofegante.

— Estamos seguras por enquanto. — Disse Thorne. — Tanaki nunca desiste, no entanto. Toda vez que seguirmos pelo caminho entre os domínios, ele nos perseguirá.


Thorne parecia exausta. O sangue ainda escorria dos tocos de seus polegares. Ela tentou se levantar, mas suas pernas cederam e ela se sentou.

— Desculpe, preciso descansar um pouco. Esse combate me esgotou.

— Não tem problema. Você precisa descansar até se sentir melhor. Foi um bom truque atirar facas com os pés! — Eu disse a ela.

Thorne olhou para mim por um momento.

— Eu tive que aprender sozinha a fazer isso. Posso lançar punhais com os dedos, mas não consigo fazer a metade do que podia quando tinha polegares. É doloroso também, dificulta a concentração. Mas fui treinada por Grimalkin e ela me ensinou a improvisar e nunca desistir.

— Deve ter sido bom ser ensinada pela feiticeira assassina. — Eu disse. — Tive muito azar, Lizzie Ossuda me ensinou e tive que suportar dois anos de crueldade e miséria!

— Eu nunca a teria escolhido. — disse Thorne.

— Eu também não! — Exclamei com um sorriso.

— Você não precisava ter sido ensinada por ela, precisava? — Ela me perguntou a seguir.

Meu tempo com a feiticeira dos ossos não era algo que eu gostava de lembrar, nem comentar sobre isso. Mas as palavras de Thorne me irritaram.

— Fácil de dizer! — Exclamei com raiva. — Você acha que eu tive uma escolha? Lizzie não aceitou o meu não como resposta. Ela decidiu se encarregar da minha educação e foi isso que ela fez, ponto final.

— Você nunca pensou em fugir? — Perguntou Thorne.

— Eu tentei em várias ocasiões, mas toda vez ela me encontrava e me arrastava de volta. Sempre que tentava escapar, sofria dias e noites de dor, fome e terror como punição. — Eu disse.

— Lizzie usava larvas contra mim, elas tentavam se alimentar abrindo caminho até meu cérebro.

Larvas são entidades recém-nascidas das sombras, ainda tentando entender quem são e qual é o seu lugar. Elas possuem tentáculos como ganchos e dentes afiados, e poderiam tentar entrar dentro da sua cabeça se você não tomasse cuidado, forçando-se a subir pelo nariz ou pelos ouvidos.

— Então, na maioria das vezes, fiz como me foi dito. — Prossegui. — Se Lizzie dissesse: “Estude!” Eu estudava. Ela me assustava com sua magia, e eu lembro dos cortes e da grande faca afiada que ela usava. Às vezes isso doía muito. Tenho cicatrizes por todo o meu corpo. Ela tirou sangue de mim na maioria das vezes para ajudar com seus feitiços.

Olhei para Thorne, que colocou as mãos sobre os ouvidos e estremeceu, cerrando seus olhos.

— O que há de errado? — Eu exclamei.

Abaixando as mãos, ela se virou para mim.

— Quando você disse que Lizzie veio até você com uma faca. Isso me lembrou como eu morri. — Respondeu ela. — Eu tenho recordações terríveis. O kretch me arrastou com os dentes e me levou até o mago chamado Bowker. Então as bruxas me seguraram. Eu lutei com toda a minha força, mas havia muitas delas. Quando Bowker cortou meus ossos do polegar a dor foi terrível, mas havia algo ainda pior. Eu sabia que era o fim do meu tempo na Terra; eu nunca seria uma feiticeira assassina como Grimalkin. E eu queria muito seguir seus passos. Eu queria ser a melhor — a maior feiticeira assassina do clã Malkin que já viveu. E isso foi tirado de mim.

— Desculpe. — Eu disse. — Não pretendia trazer más lembranças.

— Não é sua culpa. Eu me recordo como morri muitas vezes seguidas.

Houve um barulho repentino vindo de algum lugar do túnel, e nós duas nos levantamos em um instante. Teria Tanaki enviado algo menor atrás de nós? — Me perguntei.

— Precisamos continuar. Quanto antes chegarmos ao próximo domínio, melhor! — Disse Thorne.

Eu esperava ver o caminho novamente, mas emergimos do túnel diretamente para outro domínio.

Havia luz suficiente irradiando do céu púrpura acima para vermos o lugar terrível em que chegamos. Não havia árvores e nem grama, nada além de uma extensão árida coberta de pedras e pedregulhos, dividida com longas fissuras das quais o vapor escapava. O ar, que cheirava a enxofre, estava quente, embora não tão quente quanto o chão sob nossos pés. Inclinando-me para tocá-lo, eu rapidamente afastei meus dedos.

Este era um lugar estranho e aterrorizante. Eu me perguntava a quem pertencia. Que tipo de deus faria disso um lar?

Thorne e eu olhamos uma para a outra e partimos pela encosta mais próxima. Quando chegamos ao topo, pude ver montanhas diretamente à frente.

— Deveríamos ir até lá. — Thorne apontou para elas. — Em um terreno mais elevado poderemos nos orientar melhor.

— O que é este lugar? Quem gostaria de morar aqui? — Perguntei.

— Bem, essa é uma boa pergunta, Alice. Você disse que viu o domínio de Pan. É adequado para ele, não é? Deve ser verde e exuberante, porque ele é um deus da natureza...

Percebi onde ela queria chegar.

— Então, que tipo de criatura seria feliz vivendo nesse deserto quente e árido? — Falei. — Algum tipo de entidade de fogo, sem dúvida.

Thorne assentiu.

— Parece provável; seja o que for, não queremos conhecê-lo. Não demorará muito para que o proprietário saiba que estamos aqui e venha nos procurar. Precisamos sair daqui o mais rápido possível. Das encostas dessas montanhas à frente talvez consigamos ver uma boa rota para seguirmos.

Não havia como discutir isso, então partimos o mais rápido que pudemos. Não foi fácil, no entanto. Às vezes, enormes pedregulhos bloqueavam nosso caminho e tínhamos que dar a volta. Escapamos por pouco quando um jato de vapor jorrou do chão cerca de dez passos à nossa esquerda. Um pouco mais perto e teria escaldado nossos rostos. Estava tão quente que tivemos que nos afastar.

Às vezes, o chão tremia sem parar, embora não com tanta violência como quando Tanaki se aproximara. Segundo Thorne, ele era principalmente uma ameaça entre domínios. O que quer que estivesse fazendo o chão tremer era algo característico desse lugar.

Eu estava pensando novamente sobre que tipo de deus teria isso como sua casa quando, como se ela tivesse lido meus pensamentos, Thorne falou:

— Você sabe o que penso? — Ela disse. — Acho que este é um novo domínio que não existe há muito tempo. Grimalkin viajou muito e me contou sobre suas jornadas. Ela disse que havia visitado recentemente uma ilha cheia de vulcões. O chão estava quente sob os pés, com vapor escaldante assim. O pescador que ela forçou a levá-la até lá disse-lhe que três anos antes não havia nada além de mar; era uma nova ilha nascida do fogo que explodiu das ondas. Parece ser algo parecido.

— Isso faz sentido. — Eu disse a ela. — Talvez seja um deus novo, que acabou de nascer. A maioria dos deuses é antiga, mas todos tiveram que começar em algum lugar, não é?

Thorne assentiu em concordância.

— Grimalkin tem suas próprias ideias sobre isso. — Disse ela. — Ela aprendeu coisas em suas viagens que aquelas bruxas de Pendle, acomodadas em suas casas, nem sonhariam. Ela acha que um demônio às vezes pode crescer em poder até se tornar um deus; ou que o contrário pode acontecer.

Eu sempre soube que havia muito a aprender com Grimalkin. Ela não é só uma grande assassina, como também adquiriu uma grande quantidade de conhecimento.

— Isso é verdade. — Eu concordei. — O velho Gregory achava que havia acontecido isso com um demônio chamado Flagelo. Ele estava preso atrás de um portão de prata no labirinto sob a Catedral de Priestown. Antes era um deus, mas como não era mais adorado, gradualmente se tornou mais fraco.

— Essa é uma explicação possível. — Concordou Thorne. — Um deus pode ter aparecido aqui porque milhares de pessoas o veneram em algum lugar da terra.

O pensamento de que novos deuses pudessem surgir no escuro me fez estremecer. Já havia o suficiente!

— Bem, vamos torcer para que nunca o encontremos. — Eu disse. — E vamos tentar encontrar o domínio do Maligno! Eu preciso pegar essa adaga.

Seguimos em frente e comecei a ficar com sede — embora percebesse que não estava nem um pouco com fome. Talvez fossem as trevas, mas eu estava aqui com meu corpo humano. Certamente tinha as mesmas necessidades que na Terra. Eu me perguntava como seria para os mortos. Thorne precisava comer?

Tentei me lembrar de como havia sido quando eu era prisioneira do Maligno, todos esses meses atrás, mas pude lembrar pouco. Quando cheguei, ele imediatamente me entregou a seus servos. No começo, eu fui mantida em uma gaiola e lembrei de uma esponja molhada sendo empurrada através das barras para minhas mãos. Eu a chupei ansiosamente, desesperada por qualquer gota de umidade. Às vezes, os servos do Maligno embebiam a esponja em vinagre ao invés de água, e eu lembrei da intensa dor ardente entrando em contato com meus lábios ressecados e rachados. Uma vez, eles me seguraram e esfregaram-na em todos os meus cortes. A lembrança me deixou mais determinada do que nunca a desempenhar meu papel na destruição do Maligno — não importava o que me custasse.

Mais uma vez, foi difícil julgar a passagem do tempo. Atravessando o abismo, o tempo se movia muito lentamente; porém aqui passou rapidamente, e me pareceu que estávamos nos aproximando das montanhas muito mais rápido do que teríamos feito na Terra. Eu já conseguia distinguir seus topos brancos.

Eu apontei para cima.

— Neve e gelo!

Thorne examinou os picos irregulares.

— Sim. Na Terra, quanto mais alto você vai, mais frio fica. O mesmo pode se aplicar neste domínio.

— Neve e gelo significam água! — Exclamei. — Não sei sobre você, mas nunca senti tanta sede. Minha boca está tão seca que mal consigo engolir. Se houver gelo lá em cima e estiver quente aqui embaixo, em algum momento nessas encostas deve virar água. Haverá riachos descendo a encosta da montanha!

Thorne assentiu, sem dizer se também estava com sede, e seguimos em frente. Logo estávamos subindo, mais uma vez abrindo caminho entre pedregulhos e mantendo distância das fendas. A qualquer momento elas podiam enviar jatos de vapor escaldante.

Quanto mais perto chegávamos das montanhas, mais formidáveis e inacessíveis pareciam; logo elas se tornaram muito íngremes para subir. Mas então Thorne apontou para a nossa esquerda.

— Lá! Um vale! Vamos por lá!

Provou-se ser um desfiladeiro estreito, com não mais de cem passos; duas paredes de rocha nos confinavam de ambos os lados. Lá estava muito escuro, e o céu era apenas um estreito fio luminoso serpenteando acima de nós.

Logo emergimos em um platô e vi o que tanto queria! Estava sedenta! Nós chegamos a uma área quase circular cercada por todos os lados por paredes de rocha maciça. No centro, havia um lago... Mas depois de um olhar para a água, minha alegria se transformou em decepção. Não havia como sequer me aproximar dele, muito menos beber. A superfície borbulhava e espumava, e o vapor subia para formar uma nuvem acima de nossas cabeças. A água estava fervendo.

— Impossível beber isso! — Eu lamentei, subitamente consciente do calor do chão através das solas dos meus sapatos pontudos.

— A água deve vir de algum lugar para encher o lago, Alice. — Apontou Thorne. — Provavelmente dos picos das montanhas. Deve haver riachos descendo as encostas e atravessando o solo em direção a ele. Eles devem estar mais frios.

Então começamos a seguir a curva das paredes de pedra que delimitavam o platô, movendo-se para a esquerda, em meia lua. Logo encontramos um riacho estreito, mas ele também chiava nas pedras e soltava vapor enquanto serpenteava em direção ao lago quente.

— Vamos continuar! — Eu disse a Thorne. — Pode haver algo melhor adiante.

Saltamos pelo riacho e continuamos na mesma direção. De repente, tivemos sorte. A água descia pela rocha verticalmente e caía como uma chuva forte um ou dois metros além dela.

— Não está fumegante. — Falei. — A água não parece quente. Talvez ela esteja caindo de muito mais alto?

Fui em direção à cachoeira e cuidadosamente encostei meus dedos nela. Estava morna. Momentos depois, Thorne e eu estávamos dançando, encharcadas, rindo e gritando de felicidade. Levantei minha cabeça, abri minha boca e molhei meus lábios rachados e a língua seca. Em seguida, aproximei-me da face da rocha, coloquei as mãos em concha embaixo da água e bebi até ficar satisfeita.

Foi então que notei algo estranho. Embora Thorne estivesse feliz em deixar a água a molhar e estivesse ocupada lavando o rosto, os braços e os cabelos, ela não estava bebendo nada.

Os mortos não precisavam de água ou comida?

Mas esse pensamento foi imediatamente desviado da minha cabeça. Ouvi uma sequência de cliques, como galhos secos estalando sob pés. Procurei a fonte do som. Parecia vir da face da rocha cerca de quatro ou cinco passos além da cachoeira.

Houve um estalo na rocha e eu pude ouvir algo dentro dela. Foi um rato? Me perguntei.

Eu estava curiosa, mas também muito cautelosa; me preparei para usar minha magia, caso fosse necessário. Então algo brilhou na escuridão. Houve um silvo alto e raivoso e dois olhos ameaçadores olharam nos meus. Afastei-me da fenda. Os olhos eram enormes — grandes demais para um rato. O que poderia estar escondido em uma fenda estreita assim? Que tipo de criatura estava lá embaixo?


Eu observei, apavorada, quando uma coisa semelhante a um galho apareceu, fazendo um curioso movimento circular, como se estivesse testando o ar. Era cinza, com múltiplas articulações e muito comprida. Parecia a perna de um inseto gigante. Quando ela se abaixou para fazer contato com o chão, um segundo membro o seguiu, fazendo o mesmo movimento espasmódico em espiral. No momento em que a cabeça emergiu, eu soube imediatamente o que era a criatura. Seu crânio fino e focinho alongado eram familiares para mim. Eu os conhecia muito bem.

— Thorne! — Gritei, pois ela ainda estava debaixo d’água. — Um suga-sangue!

Não tirei os olhos dele enquanto o resto da criatura espinhosa passava pela rachadura.

Os dois segmentos articulados do corpo eram estriados e duros, tão rígidos quanto armaduras. Parecia um cruzamento entre uma lagosta e um louva-a-deus, com oito pernas como uma aranha. A criatura olhou para mim e senti seu poder de fascinação. Havia poder naqueles olhos; a capacidade de congelar sua presa no local enquanto se aproximava deles.

Os Suga-sangue são seres muito perigosos. Eu os testemunhei em ação matando vítimas como parte de um ritual praticado pelas feiticeiras da água; eles também atacaram Tom Ward no moinho de água ao norte de Caster — Bill Arkwright havia matado as criaturas.

O focinho comprido era um tubo de osso que grudava na garganta ou no peito das vítimas para sugar seu sangue. A criatura era um assassino cruel — maior do que eu, muito mais forte e muito rápida.

Eu sabia que poderia lutar com o suga-sangue usando minha magia, mas isso tinha que ser meu último recurso. Havia muitas razões pelas quais eu precisava manter meu uso da magia no mínimo; percebi muito rapidamente que talvez eu precisasse de todas as minhas reservas para fazer o que precisava e escapar das trevas.

O suga-sangue estava se movendo lentamente em minha direção agora, suas articulações estalando e rangendo enquanto passava delicadamente sobre as pedras quentes. Eu podia sentir seu poder enquanto tentava controlar minha mente e me congelar no local, como um arminho faz com um coelho. Eu lutei e comecei a resistir, mas minha força ainda estava se esvaindo. Pelo canto do olho, vi Thorne correndo em minha direção. Ela segurava uma adaga em cada mão e seu rosto estava retorcido de dor.

A criatura sentiu sua aproximação e a encarou, pronta para enfrentar seu ataque. De repente, fiquei livre de sua influência.

Essa foi a minha chance. Peguei uma pedra — uma grande, que eu só conseguia levantar com as duas mãos. Então fiz o que Bill Arkwright havia feito quando salvou Tom Ward. Quando o suga-sangue se ergueu nas duas pernas dianteiras, pronto para se defender do ataque de Thorne, derrubei a pedra na parte de trás da sua cabeça com toda a minha força. Houve um estalo, seguido de um som esmagador e estridente quando a cabeça do suga-sangue se partiu. Suas pernas desabaram e começaram a convulsionar. Estava morto ou quase morrendo.

Para minha surpresa e espanto, Thorne não disse nada. Ela recolocou as lâminas nas bainhas, ajoelhou-se ao lado do suga-sangue e começou a sorver o sangue e o fluído quentes de seu crânio rachado.

Eu dei um passo para trás, horrorizada.

Thorne olhou para cima e viu a expressão no meu rosto. O sangue manchou seus lábios, escorreu pelo canto da boca e pelo queixo.

— Não me olhe assim! — Ela rugiu. — Faço o que for preciso para manter minhas forças. Esta é a regra, no escuro. De que outra forma os mortos sobreviveriam?

Então, sem prestar mais atenção em mim, ela continuou a beber o sangue em goles generosos e desesperados, me ignorando.

Enojada, eu não consegui assistir; virei as costas para ela e me afastei lentamente da face da rocha, voltando para o lago fervente. Enquanto eu caminhava, gradualmente comecei a me acalmar. Muitas bruxas de Pendle usavam magia de sangue, mas geralmente era em pequenas quantidades. O resto do tempo elas comiam comida normal, como carne de carneiro, bacon e pão. Era verdade que Lizzie tinha um bom apetite pelo sangue de ratos, mas as únicas feiticeiras que sorviam sangue como Thorne estava fazendo agora eram as mortas, presas aos ossos, como as do vale a leste de Pendle.

As regras devem ser diferentes aqui — como eu estava começando a descobrir. Eram as trevas, e os mortos aqui precisavam de sangue. Como então eu poderia julgar ou culpar Thorne? Ela estava apenas fazendo o que era necessário para sobreviver.

Embora eu ainda estivesse a alguma distância do lago, percebi que já podia sentir o calor no meu rosto. Estava emitindo muito mais calor do que poderia ser explicado pela água quente que entrava nele. Talvez houvesse atividade vulcânica diretamente abaixo dele? E se de repente explodisse em uma grande onda de fogo e água fervente?

Eu parei. De repente, tive medo do lago borbulhante e agitado. Cheirei rapidamente três vezes, tentando descobrir que ameaça isso representava. Eu sempre fui boa em cheirar as coisas. Algumas bruxas são melhores nisso do que outras, mas a habilidade veio facilmente para mim. Foi uma das poucas coisas que pareceu impressionar Lizzie Ossuda quando ela começou meu treinamento. Desta vez, eu estava tendo dificuldades para coletar informações. Eu tentei novamente — mais três cheiradas rápidas.

Ainda não consegui determinar com precisão qual era a ameaça do lago fervente: senti que algo poderia surgir a qualquer momento.

Então, enquanto eu observava, uma pequena criatura saiu rastejando do lago em minha direção. Como poderia ser? Como algo poderia realmente viver dentro da água nessa temperatura?

Mais criaturas emergiram do lago e depois mais outras. Em segundos, havia pelo menos uma dúzia, todos indo na minha direção.

Foi quando eu percebi que elas não eram pequenas, afinal. O lago estava muito mais longe do que eu imaginei. As criaturas pareciam pequenas por causa da distância entre nós. Mas elas se moviam muito rápido e ficaram cada vez maiores — o que significava que estavam cada vez mais próximos.

De repente, eu sabia o que eram. O fato de estarem a alguma distância e terem se arrastado para fora de um lago fervendo atrapalhou minha percepção.

Eles também eram suga-sangue!

Eu me virei e corri de volta para Thorne.

— Suga-sangue! Mais suga-sangue! — Gritei o mais alto que pude.

Ela olhou de onde estava se alimentando da cabeça do suga-sangue e, a princípio, não fez nada além de olhar. Eu sabia que ela estava olhando para o lago além de mim. Ela também era capaz de ver as criaturas.

Lentamente, ela se levantou, mas ficou parada. Ela era corajosa, Thorne, e eu sabia que ela esperaria até estarmos juntas antes de correr. Ela era verdadeiramente leal — Grimalkin havia se assegurado disso — e não fugiria enquanto eu ainda estivesse em perigo.

Eu tinha razão. Quando cheguei ao lado dela, Thorne fez um gesto em direção ao platô, e corremos a toda velocidade. Logo eu estava ofegante, minha garganta pegando fogo — embora Thorne parecesse cheia de energia, respirando em ritmo constante. Isso foi resultado do sangue que ela acabara de beber?

Olhei para trás algumas vezes, mas embora os suga-sangue ainda parecessem nos seguir, eles não estavam nos alcançando. Eu precisava recuperar o fôlego, então parei na beira da ravina estreita, puxando Thorne para o meu lado e olhei para trás.

Os suga-sangue pareciam ter abandonado a perseguição. Eles se viraram e estavam voltando lentamente para o lago fumegante.

Por que eles desistiriam? Talvez eles não quisessem se aventurar muito longe de casa?

Continuamos nossa jornada em um ritmo mais lento e expressei minha surpresa:

— Eles saíram de água fervente. Os suga-sangue não podiam viver nessas condições na Terra.

— Esses estão mortos, e as leis das trevas são diferentes. — Thorne me lembrou. — Estes são os suga-sangue que morreram na Terra. Regras diferentes se aplicam aqui... Agora que eles se foram, devemos retomar nossa subida, encontrar a localização do portal.

Eu não sabia o que ela queria dizer.

— Estamos procurando outra parede de rocha e uma caverna para nos levar de volta ao caminho entre os domínios? É isso o que você quer dizer com portal?

— Não... sair de um domínio não é o mesmo que entrar. Um portal de saída é tão cheio de magia que geralmente emite um feixe de luz bordô. Ele é fácil de se ver na escuridão, mas muito difícil se um domínio estiver bem iluminado. Suponho que essa luz não chegue no portal em momento algum, então não teremos muitos problemas. No entanto, será mais fácil enxergá-lo em um nível mais alto.

Logo, depois de percorrer um caminho pavoroso e fumegante de rochas vulcânicas, nós finalmente o avistamos. Thorne viu primeiro, mas teve que apontar duas vezes antes de eu ver. Era um fino feixe vertical de luz bordô.

Observamos a sua exata localização e descemos a ladeira em direção a ela. Nós duas estávamos com receio que o dono deste domínio pudesse nos encontrar antes que pudéssemos fugir.

— Cheire! — Ordenou Thorne. — E me diga como o cheiro se parece.

Cheirei três vezes e instantaneamente localizei a direção do feixe, que era invisível da nossa posição atual. Havia um forte cheiro de ovos podres.

— Ovos! — Exclamei, torcendo o nariz. — São como ovos fedorentos!

— Isso mesmo, Alice. Lembre-se desse cheiro, é outra maneira de localizar um portal. Às vezes você não pode ver a luz bordô.

Quando estávamos perto, Thorne me empurrou para a esquerda e nos aproximamos de lado. O que havia sido uma linha vertical mudou primeiro para uma crescente, dando lugar gradualmente a uma forma oval. Quando estávamos diante dele, vi sua verdadeira forma.

O portal era formado por três círculos concêntricos de luz bordô flutuando no ar, aproximadamente à altura da cintura. Através dele, vislumbrei outra paisagem — algo muito diferente deste deserto vulcânico.

Sua posição dificultava o acesso. Eu me aproximei sofregamente.

— Você precisa atravessar sem tocar a borda. — Instruiu Thorne. — Encoste por acidente e você poderá perder um membro. A borda do portal é mais afiada que uma das lâminas de Grimalkin! Vá você primeiro, eu vou segui-la. Assim que você cruzar, deixe-se rolar no chão!

Então eu me preparei para passar através do portão — sabe-se lá para onde.


Eu me lancei para a frente, como Thorne havia me dito, e atingi um solo macio. Ela veio logo atrás de mim e imediatamente ficou de pé, segurando as lâminas, pronta para qualquer coisa.

Era noite, mas o ar estava mais quente que o condado em um dia de verão: havia a mesma sensação úmida, como se, apesar do céu limpo, a chuva não estivesse longe. Foi um grande alívio após o calor seco do último domínio. O céu estava escuro e aparentemente sem nuvens, embora eu não pudesse ver estrelas.

Bem à nossa frente havia uma encosta gramada e sem nos falarmos começamos a subir. Quando chegamos ao cume, vi uma lua cheia no horizonte.

Estava vermelho-sangue.

Eu já testemunhara uma lua assim, na noite em que as feiticeiras de Pendle trouxeram o Maligno através de um portal para o nosso mundo; na mesma noite em que o clã Malkin enviou sua feiticeira assassina para caçar Tom Ward e matá-lo.

Em algum lugar à frente, pude ouvi aves marinhas chamando e, antes de chegarmos ao topo, outro som áspero e rítmico — o vai e vem das ondas do mar em uma praia de cascalho.

No topo, paramos e olhamos para baixo. Abaixo de nós estava o que parecia ser uma grande cidade costeira. Seu amontoado de ruas estreitas descia para encontrar a ampla curva de uma baía. Os barcos de pesca balançavam ancorados ou estavam encalhados na praia, onde uma maré vermelha lambia, faminta, as pedras.

— Esse é o domínio do Maligno? — Perguntei, olhando para a assustadora lua vermelha, com a certeza de que estava certa e muito aliviada por tê-lo encontrado tão rapidamente.

Mas, para minha consternação, Thorne balançou a cabeça, parecendo tensa. Eu pensei ter visto medo nos olhos dela.

— Eu nunca estive lá, então não sei como é. Mas sei onde estamos: em um dos territórios mais perigosos, onde a maioria dos seres que pertenceram às trevas se reúne. Existem muitas feiticeiras mortas e ab-humanos, sem mencionar demônios e outras entidades. Foi para cá que eu vim quando morri. Saí daqui o mais rápido que pude!

— Eu pensei que estávamos no domínio do Maligno por causa daquela lua vermelha, a mesma que brilhava na noite em que ele veio à Terra.

— Essa lua nunca se põe aqui; está fixada em uma única posição. Aqui é sempre escuro. Este é um lugar terrível. — Thorne murmurou.

— Nesse caso, não há necessidade de descer! O melhor é refazer nossos passos, certo?

Mas Thorne balançou a cabeça.

— Queria que fosse assim tão fácil, Alice! Eu sei onde encontraremos a saída. Há apenas uma neste domínio, mas está lá embaixo naquela cidade feia e perigosa. Se queremos deixar esse domínio, temos que descer por essas ruas.

Isso era ruim! Em uma cidade assim, o perigo nos vigiava em cada esquina. E, se Thorne — a quem Grimalkin considerava uma das pessoas mais corajosas que já conhecera — não escondeu seu medo, eu também tinha todos os motivos para ter medo.

— Certamente tenho muitos inimigos aqui. — Falei. — Você acha que eles detectarão minha presença? Eu fiz o meu melhor para me esconder.

Thorne assentiu.

— O mais poderoso feitiço de ocultação não fará nada: você ainda está viva. É muito raro ver alguém vivo nessas redondezas. Envia estranhas ondulações nas sombras, e alguns dos mortos serão hábeis em farejar onde você está.

— Não gostaria de me encontrar com Lizzie Ossuda... — Eu disse.

De todos os meus inimigos, ela foi a primeira que me veio à mente. Havia muitas coisas pelas quais aquela bruxa gostaria de me ver pagar. Lembrei-me de como tinha ajudado Tom Ward a escapar da cova onde Lizzie o havia aprisionado. Isso havia permitido que o velho Gregory a capturasse e a jogasse em uma cova em seu jardim. Mas ela não era a única a quem eu precisava temer.

— E há todos aqueles que eu destruí ou ajudei a destruir! Eles também estarão esperando por mim — falei a Thorne.

Thorne não encontrou o meu olhar. Ela mordeu o lábio inferior e virou as costas para mim.

— O que há de errado? — Eu perguntei.

Ela se virou para mim e, por um momento, pensei ter visto lágrimas em seus olhos. Lágrimas de sangue. Sem dúvida um jogo de luz, devido a esta estranha lua.

— Muitos estarão esperando por mim também. — Respondeu ela. — Ajudei Grimalkin por muitos anos e tirei muitas vidas com minhas próprias lâminas. Mais uma razão para agir rapidamente! Vamos para o portal sem demora!

O que ela disse fazia sentido. Quanto mais esperávamos aqui em cima, mais provável era que nossos inimigos pudessem nos farejar. Então começamos a descer a ladeira em direção à cidade.

Enquanto caminhávamos, decidi abordar o assunto sobre os mortos beberem sangue. Havia coisas que eu precisava saber e também queria compensar minha reação quando vi Thorne bebendo o sangue do suga-sangue. Era melhor abordar sobre esse assunto e descobrir o que levava a tais circunstâncias.

— Então os mortos precisam de sangue. E se você resistir a esse desejo e não beber?

— É impossível resistir! — A voz de Thorne estava cheia de dor, e eu sabia que ela devia ter lutado contra isso. — A fome de sangue só aumenta até que você não possa resistir mais.

— E quanto a mim? — Perguntei. — A regra é diferente para alguém que entra nas trevas enquanto ainda está vivo? — eu não sentia vontade de beber o sangue daquele suga-sangue morto, apenas nojo. — A verdade é que não tenho fome de comida. De vez em quando fico com sede.

— Tenho más notícias para você, Alice. Tudo o que você pode fazer é beber água. Você não pode comer nada daqui. Se você beber sangue ou comer alguma coisa, nunca poderá voltar ao mundo dos vivos. É assim que as coisas funcionam aqui, uma das regras que você deve seguir. Não é provável que você sinta vontade de comer. Mas a verdade é que, no momento, você está usando a força vital do seu corpo. É isso que está te alimentando. Você está utilizando suas próprias reservas. Fique nas trevas por muito tempo e você usará tudo. Você retornaria como pele e osso, e não viveria por mais de algumas semanas, ou mesmo dias. Portanto, esse é mais um motivo para encontrar o que você precisa rapidamente e sair daqui.

Geralmente é bom saber a verdade, mas cada nova informação fazia minha situação parecer pior. No entanto, havia muitas outras razões além da minha própria sobrevivência para acelerar meu retorno ao condado.

— Você está certa, Thorne. — Eu disse a ela. — Preciso voltar com a adaga a tempo de concluir o ritual no Halloween. Grimalkin pode ser poderosa, mas ela não pode manter a cabeça do Maligno longe das garras de seus servos para sempre. Há muitos deles e eles vão alcançá-la um dia. Eu preciso voltar antes que isso aconteça. Essa é uma das razões pelas quais você está me ajudando, Thorne, para ajudar Grimalkin?

Em resposta, Thorne deu um aceno quase imperceptível. Ela morreu pelas mãos dos servos do Maligno. Sem dúvida, a vingança era outro dos motivos dela. Então pensei em outra pergunta. Era algo que eu realmente não queria pensar, mas tinha que saber o pior.

— O que acontece com aqueles que morrem no escuro?

— Se os mortos morrem aqui novamente, eles se desfazem e deixam de existir. Isso significa esquecimento. Depois de um tempo, alguns dos mortos não lutam mais para sobreviver. Eles preferem ser nada do que existir em tormento eterno aqui nas sombras. Esse provavelmente será o meu destino. Mas não sei as consequências para você, Alice. Não vi outras pessoas vivas aqui. Talvez haja outros que sabiam o que acontece...

Eu não tinha a intenção de permanecer nas trevas por mais tempo do que o necessário, mas nada disso era bom de se ouvir.

Foi quando nos aproximamos que notei algo sobre a cidade abaixo de nós. Era formada principalmente por uma rede de ruas estreitas e pequenas casas que levavam à praia de cascalho, mas também haviam algumas construções maiores. Uma delas era muito semelhante à um castelo, havia uma igreja e outras duas construções que pareciam depósitos que, na Terra, poderiam ter sido usadas para armazenar grãos.

— Isso é um castelo? — Apontei para a maior estrutura que ficava na parte mais alta das ruas.

— Não. Essa é a basílica. É uma grande igreja, como uma catedral na Terra. — Respondeu Thorne.

Eu levantei minhas sobrancelhas em surpresa. A única catedral que eu já tinha visto antes era a de Priestown, a igreja mais importante do Condado, com um campanário alto. Este edifício tinha uma torre quadrada ao invés de um pináculo, mas seu tamanho era impressionante. O que uma grande igreja como essa estaria fazendo nas Trevas?

— As pessoas vão à igreja e oram no escuro?

— Sim, eles oram. — Respondeu Thorne. — Mas não é como voltar à Terra, onde as pessoas fazem suas orações a Deus. Como você sabe, os mortos aqui adoram principalmente o Maligno, embora alguns orem a outras divindades sombrias como Morrigan ou Golgoth, o Senhor do Inverno. Bem, existem altares para todos eles na basílica.

— Deve haver alguns que não se curvam a nenhum deus, outros que também são inimigos do Maligno aqui? Fiquei imaginando se alguém seria capaz de nos proteger enquanto passamos por esse domínio.

— Existem alguns que podem nos ajudar se tivermos problemas sérios. — Disse-me Thorne.

— Temos aqui amigos que poderíamos chamar se nossa necessidade for grande o suficiente. Mas eu não contaria com isso. Só podemos fazer isso se a nossa situação for terrível, estaríamos colocando-os em sério perigo.

Eu só podia esperar que não chegasse a isso. Mas eu faria o que fosse necessário para levar a adaga de volta para Tom.

— Então, onde fica a saída desse domínio? — Perguntei a Thorne em seguida.

— O portal nunca fica no mesmo lugar por muito tempo, à deriva; eu sei que algumas das entidades mais fortes aqui podem manipular sua localização. Às vezes, eles cobram um preço pelo uso. Teremos que procurá-lo. Nós vamos descobrir isso eventualmente.

— Mas você deixou esse domínio uma vez antes, Thorne. Você teve que pagar um preço?

Thorne assentiu.

— Sangue é a moeda aqui. Eu os paguei em sangue.

Não gostei de pensar no que ela foi forçada a fazer, mas tive que questioná-la. Eu pensei que deveria saber todos os detalhes do que eu poderia ter que enfrentar. Mas antes que eu pudesse falar, Thorne havia virado as costas para mim e estava caminhando rapidamente.

Depois de descer a ladeira, chegamos a um terreno plano. Entre nós e as primeiras habitações, sem janelas iluminadas, o solo pantanoso se erguia cheio de árvores mortas e tufos de junco. Thorne liderou o caminho e seguimos em frente, nossos sapatos pontudos afundavam na lama a cada passo.

Algumas figuras apareceram à distância. Com a lua escondida atrás dos prédios, era difícil identificá-los bem na penumbra — homens e mulheres, que pareciam vagar sem rumo. Alguns estavam andando em círculos. Eu podia ouvir murmúrios incompreensíveis.

— Eles são chamados de “Os Perdidos”. — Thorne me explicou. — Eles não sabem que estão mortos e suas memórias da Terra são confusas. Eles são a presa mais fácil de todas, seu sangue é fácil de coletar, por isso, não duram muito.

Por fim, o chão ficou mais firme. Quando estávamos saindo do pântano, de repente senti como se estivesse sendo observada, e meu cabelo ficou arrepiado na parte de trás do meu pescoço. Eu me virei duas vezes, mas não havia ninguém lá. Então, pelo canto do olho, vi um movimento.

— Algo nos segue à nossa esquerda... — Sussurrei em voz baixa.

Uma sombra parecia surgir do pântano; ela se foi assim que sentiu meu olhar.

— Ande e a ignore. — Ordenou Thorne. — Não se preocupe! Os seres que assombram esses pântanos escuros não são fortes o suficiente para sobreviver na cidade. Provavelmente é um glipp.

Eu nunca tinha ouvido o termo, mas Thorne explicou:

— É um elementar de baixo nível que gosta de lama e piscinas estagnadas. Um demônio engoliria isso em um instante, e ele provavelmente está com mais medo do que nós, mas sei que às vezes eles ficam com muita fome e isso pode deixá-los desesperados.

Chegamos à primeira habitação — uma casa de dois andares com janelas rachadas e cortinas de renda esfarrapadas. Estava escuro lá dentro, mas vi uma cortina se contraindo e depois algo fino e cinza se afastando, de volta para a sala da frente.

— Não há necessidade de se preocupar com isso também. — Disse Thorne. — Como eu disse, as entidades mais perigosas se reúnem perto da beira-mar ou dentro e ao redor da basílica.

Eu só podia esperar que ela estivesse certa. Ela era a única amiga que eu tinha aqui embaixo.

Estávamos agora andando por um beco estreito entre dois prédios de pedra, mas eu podia ver as luzes à frente e ouvir o murmúrio de vozes. Momentos depois, emergimos em uma ladeira cheia de gente, pavimentada com pedras. Velas tremeluziam por trás das janelas e havia tochas nos suportes de parede no lado escuro da rua, que não eram tocadas pelo brilho maligno da lua de sangue. Mas isso não parecia com lugar nenhum na Terra.

Por um lado, em vez de serem cinzas, como costumavam ser no Condado, essas pedras eram pretas e brilhantes como pedaços de carvão. Mas a coisa mais sinistra foi o canal de esgoto que corria ao lado da rua, perto das casas à nossa esquerda. Um líquido escuro escorria em nossa direção. Ofeguei quando percebi que parecia sangue velho — as coisas que são varridas do chão de um açougue quando um dia de trabalho termina. Eu podia sentir o cheiro; havia um repugnante odor de podridão no ar.

Havia pessoas também — os mortos, que se arrastaram com os olhos fixos nas pedras. Principalmente suas roupas estavam em frangalhos, seus sapatos desgastados. Uma mulher de cabelos emaranhados tinha uma ferida aberta no pescoço, da qual o cabo de uma faca se projetava para fora. O vestido dela estava ensopado de sangue.

Olhei de soslaio para Thorne. Suas mãos mutiladas ainda estavam sangrando também. Assim, a maneira de sua morte foi transportada para o domínio sombrio dos mortos... Se eu estivesse certa, logo poderia ver horrores muito piores do que esses.

— Olhe para baixo! — Thorne sussurrou para mim. — Caso contrário, você chamará a atenção para nós!

Olhei de lado e vi que ela estava andando com a cabeça baixa. Eu fiz o mesmo, apesar de me perguntar por que isso importava.

— Todo mundo está olhando para o chão de qualquer maneira, então como eles podem perceber como nos comportamos? — Eu sussurrei de volta.

— Haverá mais tempo para perguntas depois, Alice. — Thorne murmurou isso tão baixo que eu mal podia ouvi-la. — Não é com essas pessoas que devemos nos preocupar. Estes são o que chamamos de mortos abatidos, pobres almas que na maioria são apenas presas. De onde você acha que os mais fortes se alimentam? Esses mortos são apenas uma fonte de sangue, essa é a moeda aqui!


Viramos uma esquina e outra rua semelhante se estendeu à frente, ainda seguindo para cima. Havia mais dos mesmos mortos confusos e mais janelas iluminadas por velas — atrás das quais eu senti olhos hostis invisíveis nos observando.

De repente, ouvi um grito sinistro ao longe. Estremeci, cheia de pavor. Eu sabia que tinha ouvido esse som antes... Onde teria sido?

O grito soou novamente. Desta vez foi muito mais alto. O que quer que tenha feito isso, se aproximava rápido em nossa direção.

Na terceira vez que o grito ecoou por aquela rua estreita de paralelepípedos, percebi que estava vindo do céu. E instantaneamente eu soube o que era. Era o grito de um pássaro-cadáver — ou noturno — um pássaro que voa à noite no Condado. Eu usei esse chamado sobrenatural como um sinal noturno secreto quando quis entrar em contato com Agnes Sowerbutts. Como eu poderia ter esquecido? Então um calafrio percorreu minha espinha quando me lembrei de alguém que o usava como um fâmulo.

Alguém que Grimalkin havia matado e enviado para o escuro: Morwena, a mais poderosa das feiticeiras da água e outra filha do Maligno.

A perspectiva de conhecê-la me encheu de pavor. Ela tinha grande força e velocidade, e um olhar sanguinário que poderia congelar você no local enquanto te rasga em pedaços e drena seu sangue. Ela era perigosa em vida e poderia ser ainda mais terrível agora que estava morta. Meu coração começou a acelerar com ansiedade.

O pássaro pairou por um momento acima dos telhados, sua plumagem ardeu como brasa com o brilho da lua de sangue. Para minha surpresa, em segundos ele desapareceu e, quando ouvi seu grito novamente, soou a alguma distância. Ele estava nos procurando, assim como procurara Tom Ward no pântano perto do moinho de água de Bill Arkwright? Se ele realmente tivesse nos visto, sua senhora aterrorizante logo apareceria — disso eu tinha certeza.

Com a ajuda de Tom Ward, Grimalkin matara Morwena e seu familiar. E certamente desempenhei meu papel nos eventos que desencadearam a morte dela — como ela sem dúvida teria escutado de outras pessoas no escuro. Eu era sua inimiga e ela se vingaria.

Uma coisa, no entanto, funcionou a meu favor e tornou a ameaça menos imediata: o elemento natural de Morwena era a água, e ela não podia sobreviver por muito tempo fora de um ambiente úmido ou pantanoso. Longe da água, ela logo se enfraqueceria. No entanto, nesta cidade de solo pavimentado, o único elemento líquido era o sangue.

Mas e se as regras fossem diferentes aqui? Afinal, ela era uma dos mortos. Ela ainda precisava de um ambiente aquoso para protegê-la?

Então, à distância, na direção da basílica, ouvi um sino tocar, cada badalar poderoso vibrando os meus dentes e mandíbula; parecia que até os paralelepípedos pretos debaixo dos meus pés estavam ressoando com aquele som terrível.

Thorne pegou meu braço, me puxando para fora da rua e entrando em um beco estreito. Ela pressionou meu ombro, indicando que deveríamos nos agachar.

O toque do sino silenciou na décima terceira balada. Quase imediatamente, ouvi um grito mais adiante na rua, e então, muito próximo, alguém começou a lamentar angustiado.

— O que está acontecendo? — Perguntei, mantendo a voz baixa.

Thorne colocou os lábios perto do meu ouvido e começou a sussurrar.

— Esse sino toca frequentemente, mas o momento exato não pode ser previsto, portanto nunca é seguro andar por essas ruas. O sino marca o que é conhecido como a Escolha: se você for escolhido para morrer novamente, será convocado na badalada final. Uma terrível voz de comando soa em sua mente e você deve ir diretamente à basílica para ser drenado até a morte.

— E se os escolhidos não forem?

— A maioria não consegue resistir à voz, mas, de qualquer forma, é melhor obedecer à convocação. Aqueles que o fazem morrem com uma pequena dor. Aqueles que fogem são caçados sem piedade e sofrem um longo fim cruel.

— Você viu isso acontecer? — Perguntei.

— Sim, uma vez, não muito tempo depois que eu morri e me encontrei aqui. Eu assisti um grupo de bruxas arrastar um homem no chão na praça do mercado atrás da basílica e lentamente rasgá-lo em pedaços. Havia pedaços de seu corpo espalhados pelos paralelepípedos, mas ele ainda estava gritando.

Eu me encolhi só de imaginar, mas senti que havia algo que Thorne não tinha me dito. Não me enganei, pois, após um breve silêncio, ela acrescentou:

— Mais uma coisa: assim que o sino termina, os predadores têm o direito de caçar quem eles quiserem por um curto período de tempo. Então, uma única badalada soa, anunciando o fim da caçada.

Mais gritos surgiram na rua. Mais perto de nós, no final do beco, alguém gemia de medo ou dor, era impossível dizer. Dividida entre o desejo de investigar o som e oferecer alguma ajuda ou consolo; eu não me mexi. De qualquer maneira, Thorne estava segurando meu ombro com tanta força que eu não poderia ter me mexido.

Por duas vezes, algo passou pelo nosso esconderijo, primeiro da esquerda para direita e depois pelo outro lado. Como se não tivesse nos percebido da primeira vez, mas sentindo que estávamos lá, voltou para uma segunda olhada. Não era o pássaro-cadáver — eu tinha certeza disso; era muito maior.

Um momento depois a criatura voltou, soltando um grito como o guincho estridente de um corvo gigante. Desta vez, não nos sobrevoou. Ele pairava diretamente acima de nossas cabeças, e tive tempo de vê-lo corretamente pela primeira vez. Tinha alguma semelhança com um morcego, mas era tão alto quanto um humano e extremamente magro, com asas longas de couro e com ponta de osso, além de olhos vermelhos brilhantes. Ele também tinha quatro membros finos, terminando não em pés, mas em mãos com garras.

— Ele nos escolheu como presa! — Thorne exclamou, levantando-se, pronta para se defender.

O que quer que fosse, não parecia muito poderoso — embora as aparências pudessem enganar. As garras eram assassinas afiadas, e sem dúvida tinha agilidade e velocidade.

Relutante, preparei-me para usar minha magia, mas justamente quando pensei que a criatura estava prestes a mergulhar e atacar, um único toque profundo do sino ecoou nos telhados. Em resposta, ela deu um grito agudo, bateu as asas de couro e voou para longe.

Thorne apontou para a entrada do beco e nos levantamos de novo.

— Estaremos seguras até a próxima vez que o sino tocar.

— Pelo menos o período em que os predadores podem caçar é curto. — Comentei.

Por enquanto, a sorte estava do nosso lado.

— Isso é verdade, mas muitas vezes um predador vê uma presa provável e a persegue, enquanto permanece invisível. Você nunca sabe onde o perigo ocorrerá.

— Então, essa coisa nos acompanhará até o próximo período de caça... Eu compreendi.

Thorne assentiu.

— A entidade que pairava diretamente acima de nós é chamada chyke. É de uma classe de demônios menores, mas é perigoso porque muitas vezes caça em bandos. Ele nos marcou agora e poderá nos cheirar. Pode até transmitir essas informações a outros de sua espécie, para que eles possam participar da caçada. Quanto mais tempo ficarmos aqui, maior a ameaça.

— E Tanaki? — Perguntei. — Podemos ter certeza de que ele não vai nos seguir até aqui?

— Existe o risco de ele vir atrás de nós. — Admitiu Thorne. — Mas ele assombra principalmente o caminho e a área entre os domínios. É lá que estaremos em maior perigo com ele. É onde ele estará nos esperando.

Voltamos para a rua e, quando Thorne inclinou a cabeça dessa vez, eu imediatamente fiz o mesmo e segui atrás dela. Logo ela virou à esquerda em uma rua ainda mais estreita, que subia degraus. À frente, erguendo-se acima das casas, vi a estrutura ameaçadora da torre da basílica, banhada pela luz misteriosa da lua de sangue; nós parecíamos estar indo diretamente para ela.

Os mortos ainda estavam se arrastando diante e atrás de nós. Os que subiam caminhavam pelo lado esquerdo da rua, mantendo-se perto do ralo e do sangue escorrendo; aqueles que vieram em nossa direção mantinham-se à direita. Todos mantiveram os olhos baixos.

— Para onde essas pessoas estão indo? — Eu perguntei.

— Alguns vão à basílica para adoração. Outros estão procurando comida. Existem lojas onde as vítimas são presas e lentamente drenadas de sangue. Uma medida de sangue é a recompensa por denunciar quem fugiu da Escolha. Esse tipo de denúncia é comum; aqui é cobra engolindo cobra.

Pensando sobre o ataque do chyke, comentei:

— Qual o sentido de olhar para o chão e evitar o contato visual se os predadores puderem vir do céu?

— Alguns dos que caçam são metamorfos: eles podem estar andando atrás de nós disfarçados de humanos, esperando seu momento de atacar. Muitos deles têm o poder de congelá-lo no local com um olhar, ou plantar um pensamento em sua mente que o obrigará a esperar em algum lugar, pronto para atacar no momento em que o sino tocar. Portanto, olhar nos olhos de outro morto é muito arriscado.

— Podemos ser escolhidas? — Eu perguntei, aterrorizada ao pensar em ouvir uma voz na minha cabeça me chamando para a basílica.

— Você não está morta, Alice. Você está segura, pelo menos por enquanto. Eu poderia ser escolhida. Por isso fugi desse domínio o mais rápido possível. Eu corro um grande risco ao voltar.

Eu balancei a cabeça silenciosamente, apreciando sua coragem. De certa forma, ela estava em mais perigo do que eu. Me perguntei se não seria mais justo agradecê-la, mandá-la embora e enfrentar o perigo sozinha.

Apesar de seu aviso sobre manter os olhos baixos, arrisquei um olhar para cima na basílica. Havia algo sobre isso que me fez sentir desconfortável. Eu tinha visto a cidadela da Ordeen na Grécia emergir de um vórtice de fogo; jamais esquecerei seus três pináculos retorcidos, com suas longas janelas estreitas, através das quais vislumbrei demônios e outras entidades circulando em todas as direções.

Eu também fui levada como prisioneira para julgamento em Priestown e havia olhado para a terrível gárgula sobre a entrada principal de sua catedral — a imagem da terrível entidade chamada Flagelo... Eu andara pelo labirinto nos túneis abaixo dele e, eventualmente, fui presa por esse demônio...

Ambos eram lugares assustadores, mas essa basílica dos mortos, iluminada pela lua com a cor do sangue, me aterrorizou de uma maneira diferente... Até agora, eu não sabia o porquê.

Quanto mais subíamos, mais estreita a rua se tornava e mais espaçadas as tochas. A lua de sangue iluminava os telhados, mas as fachadas das casas e os paralelepípedos no chão permaneciam na sombra.

Havia também menos mortos por ali. Thorne, que estava andando na frente, diminuiu a velocidade. Eventualmente, ela parou e cheirou ruidosamente três vezes. Então ela se virou e o olhar em seu rosto me aterrorizou.

— Não poderia ser pior. — Ela bufou. — O portal está agora dentro da basílica.

— Suponho que não é provável que tenha apenas chegado lá? — Perguntei. — Um dos meus inimigos sabia que eu estava procurando?

— Você está certa, Alice. Certamente não está lá por acaso. — Respondeu Thorne. — Servos poderosos do Maligno o moveram para lá, para que você seja forçada a entrar. Eles estarão esperando por você.

— É uma armadilha... — Eu respirei fundo. — Mas eu tenho que continuar. O tempo está se esgotando e eu tenho que pegar a adaga, custe o que custar. Mas não há necessidade de você vir também, Thorne. Sou grata por sua ajuda. Você já se arriscou o suficiente.

Thorne me olhou diretamente nos olhos. Quando ela falou, estava com uma voz estranhamente suave:

— Existe outro jeito, Alice. Conheço um lugar onde os amigos estarão esperando por você, os que mencionei anteriormente.

— Amigos? Quem são eles?

— Alguns deles você pode conhecer; outros são inimigos do Maligno, o que os torna seus amigos. Recusei-me a aceitar a ajuda deles, não queria colocá-los em perigo. Agora que o portal está dentro da basílica, não tenho escolha. Nós precisamos deles; eles podem conhecer uma passagem.

— Você quer dizer que existem entradas secretas? — Perguntei. Lembrei-me do túnel que levava da capela em ruínas às masmorras da Torre Malkin.

— Poderia ser. Algumas dessas pessoas estão aqui há muito tempo. Eles sabem quase tudo sobre o escuro.

Eu assenti.

— Vamos encontrá-los. — Eu concordei.

Thorne continuou na direção da basílica até que sua enorme estrutura pairou sobre os telhados. Ela nos levou a uma casa maior do que as outras que eu já tinha visto. Não era um terraço, mas ficava longe da pista estreita de paralelepípedos, no que parecia ser seu próprio pedaço de terra, cheio de ervas e urtigas altas.

Quando nos aproximamos, nossos pés derraparam no chão encharcado. A porta da frente estava entreaberta e Thorne não bateu. Ela abriu e nos levou através de uma sala vazia a alguns degraus de pedra que levavam para baixo.

Quando nossos sapatos pontudos pisaram sobre a pedra, sinalizando nossa chegada, fiquei cada vez mais desconfortável. Eu poderia nunca ter descido esses degraus antes, mas eles me lembraram algo do meu passado; algo assustador e terrível.

Nós emergimos em um porão que se espalhava por uma área maior do que a antiga casa acima de nós. Cerca da metade foi ocupada por um grande poço cheio de água turva. Eu conhecia esse lugar agora. Era a réplica exata de um certo porão na Terra; um lugar que eu lembrava muito bem.

Contra a parede havia uma única cadeira grande.

Estava ocupada.

Diante de mim estava uma mulher grande, de rosto pálido, com olhos de porco. Seus cabelos eram grisalhos e despenteados. Ela estava olhando para mim sob as sobrancelhas eriçadas, o ódio irradiando de todos os poros do corpo.

Era Betsy Gammon, uma velha inimiga minha. Alguém que tinha motivos de sobra para me fazer mal.

Isso era uma armadilha.

Thorne havia me traído.


Para explicar sobre Betsy Gammon, tenho que voltar ao meu tempo com Lizzie.

Nasci a leste de Pendle, na sombra daquela grande colina tenebrosa. Sendo de uma família de feiticeiras, eu tenho o mal no meu sangue. Era inevitável que eu fosse treinada como bruxa, e eu tive dois anos de aprendizado no ofício das trevas com uma das feiticeiras mais poderosas de todas — Lizzie Ossuda. Foram dois anos terríveis. Ela me ensinou muitas coisas obscuras e há coisas que aconteceram durante o meu tempo com ela — coisas que nunca contei ao meu amigo, Tom Ward; coisas sombrias e assustadoras que me levaram ao meu primeiro confronto com Betsy.

Uma das piores semanas que passei com Lizzie foi quando me levou com ela para tentar matar um caça-feitiço.

Eu estava no porão de sua casa escura e sombria, estudando. Ouvi o som de seus sapatos pontudos descendo os degraus frios de pedra. Eu estava surpresa. Ainda faltava mais de uma hora até a meia-noite e eu não esperava Lizzie até o amanhecer — ela fora a uma reunião do Clã dos Malkin.

Levantei os olhos do meu livro enquanto ela se movia para a luz das velas. Lizzie não era uma mulher de má aparência, tinha cabelos escuros e olhos grandes, mas uma expressão carrancuda estava sempre estampada em seu semblante. Murmurava algo baixinho — feitiços e maldições principalmente — e eu podia dizer que ela estava de mau humor agora porque os cantos da sua boca tremiam.

— Isso é leitura suficiente por enquanto. Vamos a Bury. — Ela me disse.

Era o meio da noite e não fiquei muito satisfeita com esta notícia. Eu estava cansada e ansiava rastejar para a cama.

— Onde é isso? — Perguntei.

— É uma vila não muito ao sul de Ramsbottom.

Também nunca tinha ouvido falar de Ramsbottom. Eu vivi no distrito de Pendle a vida toda e não conhecia muito do Condado além disso.

— Temos trabalho a fazer... trabalho das Trevas. — Lizzie sibilou. — Ordens do Clã. Tiramos a sorte no palito e, das treze, o meu era o mais curto. A feiticeira assassina está ocupada em outro lugar, então coube a mim esse trabalho. Eu vou matar um caça-feitiço. Ele fez por merecer a morte. Nós o amaldiçoamos antes, mas de alguma forma ele sobreviveu. Ele está nos causando problemas há muito tempo, isso não pode continuar.

Lizzie provavelmente notou minha relutância, porque ela olhou para mim e fez uma careta.

— Certo, garota! Você já demorou o suficiente. De pé, ou você desejará nunca ter nascido! — Ela bateu o pé. Imediatamente, coisas desagradáveis e contorcidas com tentáculos e dentes afiados começaram a se formar nos cantos mais escuros da sala, lugares onde a luz tremeluzente da chama da vela não podia alcançar.

Elas eram larvas, crias das sombras — aquelas entidades recém-nascidas, ainda tentando entender quem eram e qual era o seu lugar. Lizzie poderia invocá-las para cumprir suas ordens, e ela era boa nisso: elas poderiam aterrorizar, atormentar ou até matar se houvesse a oportunidade. Eu estremeci. Lizzie adorava usá-las contra mim — ela sabia como eu tinha medo delas. A primeira vez que ela colocou larvas em mim, ela me contou a história de uma jovem garota Malkin que havia sido morta por elas. A bruxa que a treinava era velha e um pouco distraída. Ela convocou as larvas para punir a garota por queimar a torrada, mas acabou esquecendo delas. Ela era surda também, então não ouviu os gritos. E quando ela finalmente foi procurar a garota, era tarde demais. Seu cérebro tinha sido devorado por completo. Seus olhos eram órbitas vazias, e haviam buracos sangrentos por onde as larvas passaram após terminar de se alimentar e sair de seu corpo.

Foi por isso que fiquei tão aterrorizada. Se eu não me levantasse imediatamente, as mais poderosas chegariam muito próximas e começariam a me beliscar e arranhar. Eu teria que fechar minha boca com firmeza e segurar minhas narinas para impedir qualquer uma de subir pelo nariz. Mas enquanto eu fizesse isso, elas tentariam entrar nos meus ouvidos... Eu simplesmente não tinha mãos suficientes para combatê-las. A dor piorava cada vez mais, enquanto meu pânico aumentava lentamente. Foi uma experiência desagradável, e eu realmente acreditava que se eu irritasse Lizzie o suficiente, um dia ela iria embora e me deixaria ser comida.

Então fechei o grimório, o livro de feitiços mais antigo de Lizzie, levantei-me e empurrei o banquinho para debaixo da mesa. Quando as larvas começaram a desaparecer, apaguei a vela e a segui pelas escadas.

Estávamos indo matar um caça-feitiço, e eu não gostei disso nem um pouco. Isso foi muito antes de conhecer John Gregory, mestre de Tom Ward;

Naquela época, eu só ouvia histórias das bruxas sobre eles — eram nossos inimigos e lutavam contra fantasmas, aparições, ogros e feiticeiras malevolentes como Lizzie. Eu acreditava que cair nas mãos deles era o pior destino possível. Alguns te jogavam em covas e te deixavam apodrecer lá pelo resto de sua vida miserável. Ou eles podiam arrancar seu coração e comê-lo para impedir que você voltasse dos mortos.

Eu sabia que alguns caça-feitiços eram melhores em seu trabalho do que outros. Se esse caça-feitiço havia enfrentado o clã de Lizzie, que era o mais perigoso de Pendle, ele era sem dúvida bom e sabia o que estava fazendo. Talvez combater feiticeiras fosse sua especialidade? Nesse caso, ele teria uma corrente de prata e muitas covas prontas para prender suas vítimas.

Não gostaria de passar o resto da minha vida em uma cova. Mas como eu não tinha escolha, segui Lizzie noite adentro.

Lizzie estava com pressa: partimos para o sul em um ritmo acelerado, e lutei para acompanhá-la. Mas, pouco antes do amanhecer, nos acomodamos em um bosque para passar o dia. Eu estava cansada e fiquei satisfeita por Lizzie me deixar dormir até o anoitecer, quando ela me mandou caçar coelhos. Eu era boa nisso — era capaz de montar armadilhas desde que eu era uma garotinha. Eu também sabia como encantar um coelho. Se você sussurrasse exatamente da maneira correta, eles viriam direto para a sua mão.

Peguei dois e voltei para descobrir que ela já havia acendido uma fogueira, então comecei a preparar o jantar. Às vezes, Lizzie gostava de carne crua — ela adorava de ratos — mas nessa ocasião ela se contentou em comer seu coelho direto no espeto.

— Você tem sorte de vir comigo, garota. — Ela lambeu os dedos. — Não há muitos que têm a chance de ver um caça-feitiço receber uma punição.

— Como você vai lidar com ele, Lizzie? — Perguntei nervosamente.

Eu ficava imaginando o caça-feitiço me pegando e me enterrando viva em uma cova, onde eu teria que sobreviver comendo lesmas, caracóis e ratos. Lizzie havia me ensinado o feitiço para convocar um rato, mas eu sabia que não poderia comê-los crus.

— Há várias maneiras, garota.

Pela primeira vez, Lizzie pareceu satisfeita com o meu interesse.

— Poderíamos tentar amaldiçoá-lo, mas isso é lento e o caça-feitiço, sendo um sétimo filho de um sétimo filho, tem alguma imunidade a isso. Então, precisamos chegar perto e fazer do modo mais difícil. A melhor maneira seria conseguir que alguém o matasse por nós...

— Quem faria isso? — Perguntei. — Você colocaria um feitiço em alguém?

Havia feitiços de compulsão que podiam levar as pessoas a fazerem coisas contra a sua vontade, especialmente os homens. Homens são muito mais fáceis de controlar do que mulheres. E Lizzie era cruel, com um estranho senso de humor — especialmente quando se tratava de homens. Havia um moleiro que trabalhava ao sul da vila de Sabden, um homem grande com mais cabelos nos braços do que na cabeça. Sempre que passávamos, ela o fazia correr de um lado para o outro latindo como um cachorro.

— Por que desperdiçar sua magia quando você pode conseguir que os inimigos do caça-feitiço façam isso por você? — ela retrucou.

— Conhecemos algum inimigo dele aqui mora perto? — Perguntei. Sem dúvida, ele teria muitos em Pendle, mas éramos estranhas por aqui.

— Conhecemos alguns, garota, mas não pessoalmente. Os nomes Annie Cradwick e Jessie Stone significam alguma coisa para você?

Eu balancei minha cabeça.

— Não é de surpreender: as duas foram idiotas o suficiente para se casar e mudar de nome. Mas ambas eram de Pendle originalmente. E quando seus maridos morreram, elas começaram a praticar o ofício novamente. Esse caça-feitiço capturou e matou as duas com um mês de diferença da outra, e agora elas estão presas em covas no jardim dele. Depois que as libertarmos, essas duas feiticeiras mortas terão prazer em fazer o trabalho por nós.

Partimos para o sul novamente e chegamos aos arredores de Bury algumas horas antes do amanhecer. Apesar da escuridão, Lizzie não demorou muito para encontrar a casa do caça-feitiço. Ele morava cerca de uma milha a leste da aldeia, no final de um caminho estreito. Os membros do clã revezavam para tentar espioná-lo e descobrir suas fraquezas, mas pude ver que a casa certamente não era uma delas. Como Lizzie apontou, sua única falha defensiva era que podia ser vista de uma colina próxima. Foi ali que nos acomodamos para observar, escondidas, entre os arbustos e a grama alta em seu cume.

A casa do caça-feitiço tinha dois andares, com um extenso jardim cercado por altos muros de pedra e com um único portão. Dentro do jardim havia um bosque de árvores; em algum lugar embaixo de seus galhos haviam as covas das duas feiticeiras.

Nenhuma luz brilhava pelas janelas, mas nós observamos até o amanhecer, depois nos revezamos para dormir, Lizzie dormindo a maior parte do tempo. Esperamos o dia todo até nossos olhos doerem sem ver o menor sinal de vida.

— Ele deve estar fora. — Disse Lizzie quando o sol começou a se pôr. — Vamos esperar por mais uma hora, depois desça e dê uma olhada ao redor.

— Devo pegar alguns coelhos para nós primeiro? — Perguntei. Eu estava faminta.

Lizzie balançou a cabeça.

— Trabalhe primeiro, coma depois! — Ela retrucou.

— Qual é o nome do caça-feitiço?

— O nome dele? O que isso importa, garota? Ele estará morto em breve e não precisará de um nome para onde está indo!

— Nem mesmo para o túmulo dele? — Perguntei.

Lizzie sorriu.

— Não restará nada dele para enterrar quando essas feiticeiras enfiarem seus dentes e garras nele. Elas querem vingança por passar anos na terra fria e lamacenta!

A hora passou rapidamente, mas eu percebi que Lizzie estava nervosa. Bruxas como Lizzie farejam a grandes distâncias para detectar o perigo se aproximando. Foi algo que achei muito fácil de aprender; para dizer a verdade, eu já era muito melhor nisso do que Lizzie. Mas não funciona com um caça-feitiço, porque são sétimos filhos de sétimos filhos, então eu sabia que ela estava preocupada com a possibilidade de ele voltar enquanto estivéssemos em seu jardim.

A noite caiu, mas o céu permaneceu limpo e havia uma lua crescente acima de nós, lançando luz prateada o suficiente para que pudéssemos ver. Por fim, Lizzie nos levou até a parede do jardim. O portão era de ferro, o que causava muita dor às bruxas, então eu sabia que ela não gostaria de passar por cima disso. Ela me deu um sorriso malicioso e acenou com a cabeça em direção ao muro de pedra.

— Vá em frente, garota! Se apresse! E me chame depois de verificar se é seguro.

Ela não queria ir lá sozinha! Cabia a mim assumir os riscos. No entanto, eu mal podia protestar.

Então subi na parede e, uma vez acima, rolei de bruços para cair para o outro lado. Dobrando meus joelhos para amortecer o choque, rolei na grama. Então, perfeitamente imóvel, eu escutei atentamente. Eu estava nervosa. Parecia um risco tremendo invadir a propriedade de um caça-feitiço assim.

Eu podia ouvir uma leve brisa assobiando através das árvores próximas, mas fora isso e um único ruído de uma coruja distante, tudo estava silencioso.

— É seguro? — Lizzie sussurrou.

Cheirei rapidamente três vezes. Parecia seguro o suficiente para mim.

Levantei-me devagar e avisei que a barra estava limpa. Momentos mais tarde, depois de aterrissar com um baque no chão macio, a bruxa estava parada ao meu lado.

— Prazer em vê-la ainda inteira. — Ela disse com um sorriso de escárnio. — Nunca se sabe quais artimanhas e armadilhas um caça-feitiço pode usar para proteger sua propriedade. Por exemplo, o velho Gregory de Chipenden, ele é o caça-feitiço mais forte do condado e tem um ogro que protege suas terras. Rasga qualquer intruso em pedaços.

Sem olhar para trás, Lizzie partiu em direção ao bosque de árvores. Eu a segui, furiosa. Eu nunca ouvi falar de um caça-feitiço mantendo um ogro manso. Se esse outro caça-feitiço também mantivesse alguém para guardar seu jardim, eu já estaria morta. Lizzie tinha me usado para garantir sua própria segurança.

Uma vez entre as árvores, Lizzie foi direto para o local onde duas pedras negras estavam lado a lado.

— Annie e Jessie estão enterradas debaixo dessas grandes pedras. — Disse ela. — Alguns caça-feitiços usam barras de ferro para aprisionar uma bruxa e impedi-la de cavar até a superfície. Mas Jacob Stone é da velha guarda, e foi muquirana com isso. Os pedregulhos estão soltos; você só precisa de muitos braços fortes para colocá-los em posição sobre cada sepultura, e os trabalhadores não custam muito caro.

Então o nome do caça-feitiço era Jacob Stone. Comecei a sentir quase pena dele. Sem dúvida, as duas feiticeiras presas eram como Lizzie, que eu tinha certeza de que havia matado crianças e bebido de seu sangue para aumentar o poder de sua magia. Eu nunca a vi fazer isso, mas às vezes, quando ela passava a noite toda fora, ela trazia polegares cortados e os fervia em uma panela borbulhante para remover a carne. Alguns eram pequenos demais para pertencerem a um adulto.

— Então, vamos contratar alguns trabalhadores? — Perguntei. — Não dá para ver de que outra maneira vamos mover esses enormes blocos e libertar as feiticeiras mortas.

Eu estava zombando de Lizzie, porque essa era a última coisa que ela faria. Uma feiticeira como Lizzie nunca pagou por nada. Mas ela não notou isso porque eu mantive minha voz toda inocente. Imaginei que ela usaria algum tipo de magia negra, mas não fazia ideia do que poderia ser.

Lizzie sorriu.

— O que precisamos é de ratos, garota. Muitos ratos gordos e suculentos!

Com essas palavras, ela se sentou de pernas cruzadas e começou a murmurar um feitiço. Não demorou mais de trinta segundos para o primeiro rato correr em direção a ela. Pareceu idiota para mim. Como ratos podiam mover blocos enormes de pedras como esses?

O rato, um grande cinzento com bigodes compridos, foi direto para sua mão esquerda. Ela bateu levemente na cabeça dele com o dedo e ele imediatamente caiu imóvel. Mas ainda estava vivo. Eu podia ver sua barriga arfando. Em questão de minutos, Lizzie tinha treze ratos dispostos em fila. Ela lidou com cada um de uma maneira que me enojou...

Lizzie mordeu a cabeça de cada rato e as cuspiu aos seus pés antes de jogar seus corpos fora.

Depois dos dois primeiros, tive que sair, lutando para não vomitar. Mas eu sabia que ela me chamaria de volta e eu queria seguir meus próprios termos, então, alguns minutos depois, quando meu estômago parou de revirar, voltei para encontrá-la de joelhos diante de uma pequena pilha de cabeças de ratos... Ela estava recitando feitiços novamente, desta vez com os olhos fechados. Tudo ficou realmente parado no jardim: a brisa havia diminuído e tudo que eu podia ouvir era o murmúrio da bruxa. Então ouvi outra coisa — o zumbido de uma mosca, e ela parecia ser uma das grandes.

Eu odeio todos os tipos de bichos rastejantes, mas moscas e aranhas acima de tudo. Eu não aguentava a sensação delas na minha pele, então eu pulei para trás.

Uma enorme mosca varejeira pousou no olho esquerdo vítreo da cabeça do rato mais acima. O zumbido ficou mais alto e um zunido frenético encheu o ar, mais alto que um enxame de abelhas. Uma nuvem negra de moscas famintas desceu sobre as cabeças decepadas dos ratos. Elas se contorciam, zumbiam e se deleitavam, em uma massa compacta.

Lizzie curvou-se para frente até sua testa quase tocar o amontoado coberto de moscas. Então ela pronunciou uma palavra na língua antiga, e as moscas se elevaram do festim e enxamearam, como uma massa única, em direção à cabeça e ombros de Lizzie, cobrindo completamente seu rosto. Mas então um buraco apareceu e eu percebi que ela havia aberto sua boca ao máximo. Ela estendeu a língua para fora, até que também ficasse coberta de moscas.

Eu me virei e cobri meus ouvidos com as mãos para silenciar aquele som medonho.

A próxima coisa que pude distinguir, foi um toque sobre meu ombro e me virei para ver Lizzie rindo bem na minha cara e lambendo seus lábios.

As moscas haviam partido; sem dúvida, a maioria delas voou para longe, mas conhecendo Lizzie, ela teria engolido um bocado até ficar de barriga cheia.

— Você é sensível demais, garota! — Ela me disse. — Uma feiticeira precisa ser firme. De qualquer maneira, eu gosto de comer ratos, adoro o gosto do sangue deles, e algumas moscas não me incomodam muito, embora não sejam tão saborosas. Por que as moscas devem me preocupar quando tenho o que preciso em troca? Elas me deram a força necessária para mover esses pedregulhos!

Havia um brilho estranho em seus olhos, algo que eu nunca tinha visto antes.

— Algo mais que você deveria saber... — Ela continuou. — Esse poder vem de um poderoso demônio chamado Belzebu. Um dos principais servos do Maligno, senta-se ao seu lado esquerdo. Melhor ter muitos amigos diferentes no escuro, e ele é um dos meus. Me ajuda bastante. Não esperava muito em troca, também. Mas veja o que ele me deu agora!

Suas palavras me fizeram tremer. Lizzie caminhou até a pedra mais próxima e a empurrou, rolando-a para longe como se não fosse mais pesada que um saco de penas. Quando a cova foi descoberta, houve um som de sucção úmida e um fedor de lama macia. Momentos depois, ela moveu a outra pedra também.

Fiquei surpresa com a demonstração de força de Lizzie. Mas era um feitiço que eu certamente não usaria — não suportava pensar em arrancar cabeças de ratos e ficar coberta de moscas.

— Certo... — Lizzie tirou uma faca do bolso de sua saia esfarrapada. — Agora é hora de libertar essas duas feiticeiras mortas. Preciso de mais sangue para isso, mas o sangue dos ratos é inútil. Eu preciso de sangue humano. Então venha aqui, você não sentirá nada!


Eu congelei na mesma hora. Não gostei nem um pouco do que ouvi.

— Venha aqui, garota. Preciso do seu sangue agora! — Ordenou Lizzie.

Ela quer me matar? Eu pensei. Eu era algum tipo de sacrifício? Foi por isso que ela me trouxe?

— Meu sangue? — Eu olhei assustada para a lâmina afiada.

— Não posso usar o meu. — Lizzie sibilou. — Eu preciso manter minhas forças. Não se preocupe, garota. Vou deixar apenas o suficiente para manter seu coração batendo, embora por um tempo ele possa palpitar um pouco.

Com essas palavras, ela me agarrou pelo braço esquerdo e levantou minha manga. Senti uma picada aguda, e então meu sangue estava pingando na cova. Porém, ainda não tinha terminado. Havia a segunda cova para derramar meu sangue, e ela fez um corte no meu braço direito também. Cerrando os dentes contra a dor, vi as grossas gotas caírem no solo úmido. Eu estava tremendo e meu estômago se embrulhou com o medo.

Foi a primeira vez que Lizzie usou meu sangue na sua magia. Haveria muitas outras ocasiões — eu ainda tenho as cicatrizes no meu corpo para provar isso, embora elas estejam ocultas por debaixo das minhas roupas e não sejam visíveis.

Quando Lizzie guardou a faca de volta no bolso, ela balançou a cabeça.

— Não é tão ruim, garota. — Ela me disse. — Pare de resmungar. Precisamos desse sangue porque temos problemas por aqui. Há um truque desagradável que os caça-feitiços usam. Annie e Jessie provavelmente foram enterradas de cabeça para baixo para que, ao tentarem sair, afundem ainda mais em suas covas. Provavelmente teremos que puxá-las para fora pelos pés. Mas seu sangue lhes dará um pouco de incentivo e as guiará na direção certa. Elas irão cheirar e farão um esforço excepcional para se libertar.

Muito antes do que eu esperava, comecei a ouvir pequenos distúrbios no solo e, em seguida, três dedos saíram da cova à nossa esquerda para se contorcer à luz da lua. Momentos depois, duas mãos inteiras estavam livres e o topo da cabeça estava aparecendo. Então, mais dedos começaram a brotar para fora da segunda cova também.

— Nos deu um pouco de dor de cabeça, esse Jacob Stone. Mas ele foi desleixado aqui! Deve estar perdendo o jeito! — Comentou Lizzie. — Enterrou-as de cabeça para cima. As duas estarão aqui em um instante!

As duas bruxas não levaram mais de cinco minutos para se arrastarem para fora de suas covas. Elas certamente não precisaram de nenhuma ajuda nossa — pelo que fiquei feliz. Eu já vi uma feiticeira morta antes, mas essas duas fizeram minhas mãos e joelhos tremerem novamente. Jessie e Annie provavelmente não foram beldades em vida — mas mortas, elas eram as criaturas mais feias e repulsivas que eu já tinha visto.

Elas estavam cobertas de lama fedorenta e seus cabelos lisos estavam emaranhados e grudados no rosto. Jessie, a bruxa mais robusta, tinha apenas dois dentes —eram tão grandes que se curvavam para baixo sobre o lábio inferior como presas. Ambas tinham queixos proeminentes e olhos estreitos que cintilavam brancos ao luar. E as duas começaram a avançar em minha direção, farejando e fungando, suas mãos estendidas e unhas compridas prontas para atacar, com apenas uma coisa em mente.

Para elas, eu era o único item no menu.

Meu sangue congelou dentro das minhas veias e todo o meu corpo começou a tremer. As feiticeiras mortas são incrivelmente fortes. Às vezes, elas sugam sangue avidamente até que suas vítimas estejam mortas. Outras vezes, entram em frenesi e rasgam suas presas em pedaços. Aterrorizada, me escondi atrás de Lizzie. Não sei o que estava esperando — ela apenas riu da minha situação.

— Sentiram o gosto do seu sangue, garota, e agora elas querem mais. — Ela se gabou, antes de se virar para as bruxas.

— Ouçam bem, Annie e Jessie. — Ela gritou. — O sangue dessa garota não é para vocês! Ela lhes fez um favor. Foi o sangue dela que fez vocês acordarem, e fui eu quem retirou as duas pedras. Peguem alguns ratos, o suficiente para continuar por um tempo. Mas vocês precisam se vingar de Jacob Stone. Precisam matar aquele que as matou, não esta garota aqui. Bebam o sangue dele e vocês estarão livres para caçar quem quiserem.

Com isso, Lizzie murmurou algo baixinho, e muitos mais ratos começaram a correr, guinchando em nossa direção, sem perceber que estavam correndo para a morte. Era um feitiço que Lizzie já havia me ensinado; outro que eu dificilmente usaria.

Lizzie pegou cada roedor rapidamente e os jogou nas mãos das feiticeiras mortas, que logo começaram a mordê-los e sorver seu sangue.

— Certo, garota, enquanto essas duas recuperam suas forças, vamos olhar dentro da casa do velho caça-feitiço. Quem sabe o que podemos encontrar por lá...

Lizzie liderou o caminho, e eu a segui, muito feliz por me afastar das feiticeiras mortas.

A porta da frente era de carvalho maciço, mas a força mágica que Lizzie havia invocado estava longe de se esgotar. Ela agarrou a maçaneta e arrancou a porta das dobradiças, jogando-a de lado da entrada com um estrondo. Em seguida, puxou uma vela preta e grossa do bolso de sua saia longa e a acendeu com uma palavra murmurada em voz baixa. Com isso para iluminar nosso caminho, entramos na casa do caça-feitiço.

Eu não queria ser uma bruxa e matar pessoas e beber seu sangue — mas mais tarde tive que admitir, havia algo em Lizzie que uma pequena parte da minha mente achou interessante. Em Pendle, passei muito tempo sentindo medo e apenas esperando sobreviver. Mas Lizzie era tão confiante e competente como uma bruxa... seria bom ser assim, no controle das coisas e sem medo. Seria bom ser forte o suficiente para afastar aqueles que me ameaçassem.

Mas esses pensamentos estavam longe de mim naquela época. Eu estava nervosa. Esse caça-feitiço não se incomodou em colocar armadilhas em seu jardim, mas e se houvesse algo nos esperando lá dentro? Lizzie não parecia nem um pouco preocupada. Ela nos levou a uma pequena sala repleta de estantes de livros — todas empoeiradas e cobertas de teias de aranha. Não parecia que o velho Jacob Stone tivesse lido nenhum de seus livros há muito tempo.

— Vamos ver o que temos aqui. — Disse Lizzie, erguendo a vela, seus olhos começando a disparar pelas prateleiras da biblioteca do caça-feitiço.

Deveria ter algumas centenas de livros, com títulos como “A Amarração de Ogros” e “Demônios e Elementais”, quase todos eles lidando com algum aspecto das trevas. Mas, após uma rápida inspeção, Lizzie pegou apenas um e, soprando as teias de aranha, enfiou-a debaixo do meu nariz. Estava encadernado em couro marrom e o título na lombada era: “As Práticas das Feiticeiras Malevolentes”.

— Vamos levar esse aqui conosco. — Ela me deu para levar. — Será útil saber exatamente o que um caça-feitiço acredita sobre nós. Vou adicioná-lo à minha própria biblioteca!

Eu realmente não me importava com o que um caça-feitiço pensava sobre nós. Eu só queria sair desta casa e daquele jardim o mais rápido possível.

Mas Lizzie insistiu em fazer uma busca completa na casa, encontrando pouco o que pudesse interessá-la. Foi só quando chegamos ao último cômodo, no sótão no topo da casa, que seus olhos se iluminaram com o que parecia ser excitação e ouvi sua respiração acelerar.

— Tem algo especial aqui! — Ela disse. — Algum tipo de tesouro!

O sótão era grande, cobrindo todo o andar superior da casa. Parecia estar sendo usado principalmente para armazenamento. Havia muitas caixas abertas cheias de lixo; nada a ver com o trabalho de um caça-feitiço — havia apenas utensílios domésticos e até uma pintura de uma paisagem com árvores e uma casa à distância. Parecia uma cena em algum lugar do Condado, porque chovia e uma névoa ondulava.

No entanto, não era nos itens armazenados que Lizzie estava interessada. Ela nem inspecionou as caixas. Depois de me entregar a vela, ela se ajoelhou, cheirando as tábuas do chão, o nariz quase tocando a madeira áspera. Seria bem feito se uma lasca de madeira entrasse no seu nariz!

Eu também cheirei três vezes muito rápido, fazendo isso em silêncio para que Lizzie não ouvisse. Ela estava certa. Havia algo embaixo do assoalho — algo muito estranho.

— Está aqui! — Ela gritou, parando finalmente.

Ela empurrou a mão com força e suas unhas perfuraram a madeira. Em um movimento frenético, ela arrancou uma tábua do chão e jogou-a de lado. Outra a seguiu em segundos. Então ela olhou para o buraco escuro e começou a procurar na cavidade com as duas mãos. Momentos depois, ela levantou algo à luz das velas.

A princípio, pensei que fosse algum tipo de ovo; um ovo grande, maior que meu punho. Mas então vi que era artificial, costurado em uma forma oval com várias peças de couro preto rígido.

— Aproxime a vela, garota! — Ordenou Lizzie, e eu fiz o que ela mandou.

Dei um passo à frente, segurando a vela perto do ovo de couro para que ela pudesse examiná-lo mais de perto. Percebi então que estava coberto por uma escrita que espiralava de um lado para o outro.

— Está em um idioma que eu nunca vi antes, mas está assinado com um nome na parte inferior: Nicholas Browne. Mas quem diabos seria ele? Pode estar escrito em um idioma estrangeiro, mas soa como um nome do Condado. — Murmurou Lizzie. — Talvez seja algum tipo de advertência...

Ela aproximou o objeto estranho do rosto e apertou os olhos, virando-o primeiro para um lado, depois para outro, com a boca apertada. Ela farejou três vezes.

— Penso que pode haver um poder real aqui, mas há perigo também. Aquele velho caça-feitiço astuto escondeu isso para que ninguém como nós pudesse pôr as mãos nele. Precisamos saber onde esse tolo o conseguiu e tudo o que ele sabe sobre essa coisa. Isso significa que precisamos mantê-lo vivo por um tempo.

Lizzie desceu as escadas imediatamente. Mas era tarde demais. Assim que chegamos à porta, ouvimos um grito terrível.

Vindo da direção do portão do jardim.

Quando chegamos, as duas feiticeiras mortas já haviam se banqueteado.

O velho caça-feitiço mal tinha conseguido atravessar o portão antes de elas pularem sobre ele, arrastando-o pela grama alta e afundando os dentes em sua carne. Agora Jacob Stone estava drenado e deitado de costas, frio e morto, seus olhos cegos olhando para a lua. Eu lamentei por ele. Ele era velho — muito além da idade em que deveria ter se aposentado de um ofício tão perigoso.

Não havia sinal de Annie e Jessie, mas o portão de ferro estava aberto — elas obviamente haviam saído para caçar, fortalecidas pelo sangue do velho caça-feitiço. Elas queriam um pouco mais. Alguma pobre família local sofreria em breve.

— Isso não é o fim do mundo! — Disse Lizzie, chutando o cajado de sorveira-brava do caça-feitiço de sua mão sem vida. — Se não podemos questionar os vivos, então questionaremos os mortos!

Com isso, ela sacou uma faca com uma lâmina afiada e se ajoelhou ao lado do corpo. Eu me afastei com nojo, meu estômago revirando. Eu nunca tinha presenciado Lizzie fazer isso antes, mas sabia que ela estava cortando os polegares do velho. Com eles, ela poderia convocar a alma dele e obter as respostas de que precisava.


Partimos em direção à Pendle imediatamente. Lizzie estava ansiosa para voltar para sua cabana e descobrir o que era o ovo de couro e o que ele poderia fazer.

Chegamos depois do anoitecer, mas, apesar de sua impaciência, ela não conseguiu começar imediatamente. Primeiro, teve que entrar em contato com o clã para informar formalmente sobre o sucesso de sua expedição para matar o caça-feitiço. Tive a sensação de que ela não iria contar a eles sobre o objeto misterioso que havia encontrado escondido embaixo das tábuas do assoalho. Isso era algo que ela guardaria para si mesma. E Lizzie era uma das bruxas mais poderosas de Pendle, capaz de esconder suas atividades contra o olhar mais astuto.

Então foi só na noite seguinte, pouco antes do crepúsculo, que Lizzie finalmente começou a trabalhar. Ela pegou seu maior caldeirão, que era deixado próximo à porta dos fundos de sua cabana. Recebi a ordem para acender um fogo embaixo dele e depois enchê-lo com três quartos de água. Isso significou meia hora de trabalho pesado rolando o balde do poço até o fundo do jardim. Uma vez que a água começou a ferver, dei um passo para trás e Lizzie começou o ritual.

Ela posicionou um banquinho de madeira perto do caldeirão e sentou-se olhando o vapor que subia da superfície borbulhante. Em seguida, ela jogou os polegares de Jacob Stone; cada um soltando respingos até submergirem em direção ao fundo. Enquanto eu observava à distância, ela começou a murmurar baixinho, adicionando salpicos de ervas e outras plantas na panela.

Durante um ritual, Lizzie costumava me explicar o que estava fazendo e o propósito de cada adição ao caldeirão, mas isso era importante demais; ela não podia se incomodar em ensinar-me agora. Na verdade, eu já sabia o nome da maioria das plantas que ela usava e o que elas podiam fazer, e sabia que a parte difícil começaria quando a carne amolecesse e fervesse dos ossos; era quando ela tentaria assumir o controle do espírito do velho caça-feitiço e fazê-lo contar as informações de que precisava.

Estava escurecendo agora, mas Lizzie não se incomodou em acender uma vela. Logo eu soube o porquê. Havia um brilho fraco do lado de dentro do caldeirão; gradualmente, ficou mais brilhante, até iluminar perfeitamente o rosto da bruxa. Sua boca estava apertada e seus olhos revirados. As pupilas, reviradas para trás. Mais e mais rápido, ela murmurou o encantamento. A água estava fervendo furiosamente agora, e de repente duas coisas brancas subiram à superfície, projetando-se como galhos com a casca removida. Os ossos dos polegares de Jacob estavam flutuando.

Momentos depois, os ossos sumiram de vista. Não foi porque eles afundaram. A grande nuvem de vapor do caldeirão inchou e se transformou em uma enorme nuvem de tempestade que subiu à altura da cabana. Também estava brilhando, e eu meio que esperava ver um raio bifurcado. Em vez disso, um rosto começou a se formar dentro da nuvem; um que eu vi pela última vez encarando a lua com seu olhar opaco e sem vida.

Era o espírito de Jacob Stone.

A primeira coisa que me impressionou foi que o velho não parecia nem um pouco com medo. Ele olhou para Lizzie calma e pacientemente sem dizer uma palavra.

Foi a primeira vez que testemunhei a evocação de uma pessoa morta. Quando a maioria das pessoas morre, elas precisam passar pelo Limbo. Depois disso, eles vão para a escuridão ou para a luz, dependendo do que eles foram e de como viveram suas vidas. Aqueles que vão para a luz encontram seu caminho em alguns dias, no máximo. É por isso que Lizzie ficou tão impaciente para iniciar o ritual. Se uma bruxa consegue convocar um espírito, ela pode mantê-lo preso no Limbo indefinidamente e causar-lhe dor suficiente para forçá-lo a fazer o que ela quer.

Como um caça-feitiço, Jacob Stone saberia tudo sobre o que uma bruxa como Lizzie poderia fazer com ele. E o mesmo deveria ter ficado aterrorizado por ser mantido no Limbo à sua mercê. Mas ele não estava, e isso era estranho.

— Você é meu, velho! Meu para fazer o que quiser. — Lizzie cantarolou. — Apenas me diga o que preciso saber e deixarei você ir. É simples assim.

Indo direto ao ponto, ela perguntou:

— Qual é o propósito do ovo de couro que eu encontrei embaixo do chão do seu sótão? O que ele é? E o que ele pode fazer?

— Não vou lhe dizer nada. — Disse o espírito de Jacob Stone calmamente. — Durante toda a minha vida lutei contra as trevas e protegi as boas pessoas do Condado. Por que deveria ser diferente depois da minha morte? Não farei nada para ajudar você ou alguém como você. Nada!

— É o que você diz agora! Então eu terei que fazê-lo sofrer. Darei a você uma dor como nunca sentiu antes!

— Eu já sofria de dores antes e suportei. Posso resistir novamente se for preciso!

— Você acredita nisso, velho? Você esqueceu o estado de seus joelhos nos últimos meses? Tanto que você começou a mancar? Muitos anos vagando pelo Condado em todas as condições climáticas desgastaram suas articulações. Agora está pior! Você sente isso?

— Sou um espírito! Não tenho mais corpo e nem joelhos! Eu não sinto nada! Nada mesmo! — Exclamou Jacob Stone.

No entanto, quando Lizzie retomou seu encantamento, as linhas de sua testa se aprofundaram e suas feições se estreitaram. Mostrando que, apesar de suas palavras corajosas, ele agora estava com muita dor.

— Não tem tanta certeza agora, não é? — Lizzie exultou, sua voz ecoando triunfante. — Seus ossos estalam dentro de suas cavidades. Seus joelhos estão começando a ceder. Isso é agonizante. Você não suporta mais a dor!

Jacob Stone estremeceu, soltando apenas um gemido. Lizzie entoou o feitiço por mais um momento, visivelmente perturbada pela resistência do velho. De repente, em um ataque de fúria, ela apontou para o espírito dele e bateu o pé esquerdo no chão três vezes.

— Estou enfiando uma agulha em brasa no seu olho direito! — Ela esbravejou. — Consegue senti-la girando e penetrando mais fundo, centímetro por centímetro. Indo em direção ao seu cérebro! Responda à minha pergunta e vou parar a dor. Então você pode seguir seu caminho!

O espírito do caça-feitiço gritou em agonia, e eu pude ver uma gota de sangue fluindo de seus olhos, seguindo pela bochecha direita até escorrer do queixo. No entanto, ele não revelou nada.

Era algo terrível de se ver — por ele ser um espírito, mas ainda sentir tanta dor. Senti pena do caça-feitiço morto e queria ir embora para evitar ver coisas ainda piores. Mas não ousei me mexer: isso interromperia o ritual e Lizzie ficaria tão brava comigo que um encontro com larvas seria a menor das minhas preocupações.

Seu rosto exibia intensa concentração. Mas, pela maneira como ela apertou os lábios e cerrou os punhos, imaginei que tivesse falhado: ela não havia quebrado o espírito do caça-feitiço. Uma bruxa só pode usar esses feitiços por alguns breves momentos antes de se cansar. Lizzie simplesmente não poderia continuar a causar tanta dor por mais do que dez ou vinte segundos por vez. Depois disso, ela teria que parar.

E assim fez, soltando o fôlego com raiva. Ela começou a andar de um lado para o outro na frente do caldeirão, com os olhos fechados, como se estivesse perdida em pensamentos.

O rosto de Jacob Stone relaxou. A dor havia parado e ele estava olhando para a feiticeira com calma e dignidade.

Lizzie parou de repente, uma expressão astuta nos olhos.

— Você é forte e resiste à dor, velho! Eu admito. — Ela disse. — Mas o que acontece se eu machucar outra pessoa? Você tem alguma família?

— Eu nunca casei. — Ele disse. — Um caça-feitiço não pode ser distraído por uma mulher. Ele dedica sua vida ao seu ofício, à sua vocação. O povo do Condado é a família dele!

— Mas você é o sétimo filho de um sétimo filho, então terá irmãos e talvez irmãs também! E sem dúvida eles terão filhos. E se eu trouxer um de seus sobrinhos ou sobrinhas aqui e machucá-los? Sem dúvida, você me diria o que eu quero saber para salvar essa criança!

O espírito sorriu.

— Você falhou de novo, bruxa! — Ele disse para ela. — Eu era o sétimo e o mais novo, mas nossa casa pegou fogo quando eu ainda era criança. Toda a minha família pereceu. Meu pai me resgatou e depois morreu devido a suas queimaduras. Não tenho família para você atormentar.

— Tem que ser da sua família, velho? — Lizzie zombou. — Qualquer criança servirá. Para salvar uma criança do sofrimento, você me dirá exatamente o que preciso saber.

O espírito não respondeu, apenas sua expressão angustiada revelou que Lizzie havia acertado. Ela soltou uma risada aguda e murmurou uma palavra baixinho. Imediatamente, o rosto desapareceu e a nuvem que pairava sobre o caldeirão se dispersou no ar noturno.

— Ele ficará preso até eu soltá-lo. — Disse Lizzie. — Precisamos raptar uma criança amanhã, talvez mais de uma, e usá-la para quebrar seu espírito. Agora vá me fazer um jantar e seja rápida!

Entrei e fiz como Lizzie havia ordenado, apenas satisfeita por me afastar dela. Não gostei da direção que as coisas estavam tomando. Eu sabia que Lizzie assassinara crianças para conseguir seus ossos, mas ouvi-la dizer em voz alta me embrulhou o estômago. Depois que ela usasse os pequenos para conseguir o que precisava do caça-feitiço, seria melhor se estivessem mortos.

Depois do jantar, Lizzie me fez limpar os pratos e depois esfregar bem a mesa. Uma vez seca, ela a inspecionou atentamente, o nariz a poucos centímetros da superfície.

— Você fez um bom trabalho, garota. — Disse ela finalmente. — Todo cuidado é pouco. Um grão de sujeira poderia arruinar tudo.

Dito isto, ela retirou o ovo de couro de seu esconderijo no quarto e o posicionou bem no centro da mesa. Em seguida, sentou-se em um banquinho, apoiou os cotovelos na mesa e ficou olhando o objeto estranho por um longo tempo. Ela não se mexeu e eu nem pude ouvi-la respirar, mas algumas vezes ela deu uma fungada. Ela estava fazendo todo o possível para aprender tudo sobre aquilo.

Eu tinha um mau pressentimento sobre esse ovo. Era perigoso, disso eu tinha certeza. Nem queria estar na mesma sala.

— O que há dentro disso é o que precisamos saber. — Murmurou Lizzie, mais para si mesma do que para mim. — Mas isso não parece certo hoje à noite... — Ela sentiu um leve arrepio. — Há bons e maus momentos para investigar mistérios como este, e às vezes as coisas não devem ser forçadas. Cortá-lo pode muito bem arruiná-lo. Mas existem outras maneiras... Vou pensar um pouco e ver o que posso inventar.

Pareceu-me que sempre seria um mau momento para me meter com aquele ovo de couro. Mas Lizzie teria o que queria. O que eu poderia fazer?

Pondo um fim ao seu murmúrio, Lizzie apertou o ovo de couro no peito e o levou de volta ao seu esconderijo.

Eu não sabia se ficava aliviada ou decepcionada. Eu também estava curiosa sobre o que havia dentro do ovo, mas uma sensação de perigo irradiava dele. Era melhor deixá-lo em paz, disso eu tinha certeza.


No dia seguinte, Lizzie ficou impaciente mais uma vez. Ela não tocou no ovo, mas quando o sol se pôs, decidiu atacar o espírito de Jacob Stone novamente, forçando-o a contar tudo o que ela precisava saber sobre aquilo.

Como sempre, o trabalho duro de retirar a água, encher o grande caldeirão e acender o fogo foi deixado para mim.

Desta vez, os ossos estavam livres da carne do caça-feitiço. Brancos e brilhantes, eles estavam na palma da mão esquerda suja de Lizzie. Quando ela os jogou no caldeirão, eles afundaram brevemente, mas depois subiram à superfície, exatamente como no dia anterior. Mais uma vez, o caldeirão brilhou e a nuvem de vapor subiu acima dele — mas desta vez havia uma grande diferença.

O rosto de Jacob Stone não estava em lugar algum.

Lizzie murmurou seus feitiços com crescente desespero, mas sem sucesso.

— Ele está livre! — Ela gritou. — Foi para a luz. Quem teria pensado que o velho era tão forte?

Eu também não podia acreditar. O velho Jacob Stone era realmente forte. Gostaria de saber como ele conseguira fazer isso. Isso me fez perceber que havia muita coisa que Lizzie não sabia — ela certamente não era toda poderosa: até um caça-feitiço morto poderia lhe causar problemas.

Mas seu fracasso em fazer o espírito do caça-feitiço contar-lhe os segredos do ovo deixou Lizzie de mau humor.

Naquela noite eu não dormi bem.

Levantei-me cedo e fui realizar a primeira das minhas tarefas matinais. Comecei coletando ovos, procurando cuidadosamente na sebe na borda leste do jardim, onde as galinhas mais jovens costumavam pôr. Cheirei cada ovo duas vezes para ter certeza, apenas colocando os favoritos de Lizzie na minha cesta. Ela gostava dos que continham mais manchas de sangue — não consegui o suficiente deles. Depois de meia dúzia, voltei para casa. Lizzie costumava acordar tarde, mas para minha surpresa ela já estava acordada, esperando na cozinha como um gato pronto para o creme.

Ela pegou a cesta de mim, colocou na mesa e selecionou um dos ovos manchados. Depois de cutucar com sua unha até o fim, ela inclinou a cabeça para trás e derramou o conteúdo do ovo cru na boca. Quando ela lambeu os lábios, pude ver grandes coágulos de sangue em sua língua.

— Que ovo saboroso! — Disse Lizzie. — É quase tão bom quanto um filhote de pássaro prestes a chocar! Por que você não experimenta, garota?

Eu balancei minha cabeça e torci o nariz com nojo.

— Você é uma tola por recusar uma refeição tão deliciosa. Pode ser a única coisa que você comerá até a noite. Não há tempo para preparar o café da manhã. Nós partimos imediatamente.

— Para onde iremos? — Perguntei.

— Você descobrirá em breve, mas ficaremos dias no Norte, onde moram nossas irmãs pegajosas... Vamos torcer para que elas não odeiem você!

Não me preocupei em perguntar o que ela queria dizer com irmãs pegajosas — sem dúvida, descobriria em breve.

Eu nunca me senti feliz por ter sido treinada por Lizzie; às vezes isso realmente me afetava. Nunca descartei a ideia de tentar escapar, mas não me sentia confiante ao ponto de me afastar. Ela com certeza viria atrás de mim e me arrastaria de volta. Ainda assim, se as coisas ficassem realmente ruins e a chance se apresentasse, eu sabia que cairia fora.

Lizzie logo terminou os outros ovos e, depois de me empurrar para fora e trancar a porta, partiu em um ritmo acelerado, indo para o sudoeste. Eu segui em seus calcanhares enquanto o sol subia no céu oriental. A noroeste, estava o amontoado tenebroso de Pendle. Muito antes do meio-dia, contornamos as encostas do sul e chegamos à margem do rio Ribble.

Lizzie olhou desconfiada para o local de travessia.

— Você vai ter que me carregar, garota. — Ela retrucou, pulando nas minhas costas e passando os braços em volta do meu pescoço.

Feiticeiras não podem passar pela água corrente. É por isso que existem represas de bruxas na maioria dos rios da região de Pendle. Isso interrompe temporariamente o fluxo da água, para que as bruxas não precisem percorrer um longo caminho para contornar o rio. Não havia possibilidade de fazer o mesmo com um rio tão largo quanto o Ribble; custaria todas as minhas energias e a força de vontade de Lizzie para levá-la para o outro lado.

Parti tão rápido quanto ousei. Eu tinha que atravessá-la antes que minhas energias se esgotassem. As pedras próximas da margem eram escorregadias demais e a situação piorou quando entramos na água. O rio havia subido muito e estava fluindo rapidamente entre os meus tornozelos. Lizzie começou a gritar de dor e apertou os braços firmemente em volta do meu pescoço de tal maneira que eu mal conseguia respirar.

Eu cambaleei e quase caí — a água estava nos meus joelhos agora. Justo quando me senti incapaz de dar outro passo, o chão sob meus pés se inclinou para cima e o nível da água desceu aos meus tornozelos novamente. Estávamos quase lá! Caímos em um barranco próximo à margem. Eu vacilava em exaustão e Lizzie tremia com a dor e o trauma da travessia. Ela começou a praguejar comigo quase a ponto de explodir de raiva, mas eu sabia pela primeira vez que ela não fez aquilo por mal. Ela estava realmente assustada. Poucas coisas aterrorizam uma bruxa como água corrente. Lizzie tinha sido corajosa ao correr o risco de ser transportada por aquele rio largo.

Descansamos por uma hora e depois continuamos para o oeste. No início da noite, estávamos subindo uma grande colina que Lizzie me disse que era o Pico do Parlick. A certa altura, ela parou e olhou através do vale com os olhos estreitos, como se procurasse algo. À distância, pude ver Pendle. Perto havia outra colina de forma semelhante, que ela disse ser chamada de Long Ridge. Nada se movia no vale além de ovelhas e gado. Então Lizzie apontou para uma grande floresta a oeste. Ao lado, havia um aglomerado de casas; a fumaça das chaminés flutuava para o leste com a brisa.

— Aqui é Chipenden. — Ela me disse. — E na beira dessa floresta vive um caça-feitiço muito perigoso. Em seu jardim, ele mantém uma parente minha, Mãe Malkin, ainda viva, mas presa em uma cova. Ela é uma das bruxas mais poderosas e perigosas que Pendle já conheceu. Um dia, voltaremos aqui para resgatá-la e acabar com ele, mas será muito mais difícil do que lidar com Jacob Stone. É aquele John Gregory que eu te falei antes: ele é o caça-feitiço mais poderoso que já percorreu as terras do condado.

Pareceu arriscado para mim. Eu só esperava que Lizzie esquecesse tudo. Enfrentar um caça-feitiço perigoso como aquele era loucura.

Não nos demoramos perto de Chipenden, mas seguimos para o norte a noite toda, atravessando picos mais encharcados antes de descer para contornar o que Lizzie me disse que era a cidade de Caster. Era um lugar onde eles não gostavam de bruxas, optando por enforcá-las ao invés de queimá-las.

Pelo menos o corpo de uma bruxa enforcada poderia ser recolhido por sua família e levado para se juntar às outras bruxas mortas no vale a leste de Pendle, pensei. O fogo manda você direto para as Trevas, sem esperança de retorno. De qualquer forma, Lizzie não estava disposta a se juntar às irmãs no Vale das Feiticeiras e tinha medo dessa cidade com sua grande fortaleza antiga.

Finalmente chegamos a um canal. Eu estava cansada, mas Lizzie insistiu em continuar na escuridão; ela manteve um ritmo alarmante ao longo da margem escorregadia. Pouco antes do amanhecer, ela parou de costas para a água e apontou através dos campos.

— Lá, escondido atrás daquelas árvores, há um moinho de água onde vive outro caça-feitiço problemático. O nome dele é William Arkwright. Ele caça nossas irmãs pegajosas. Um dia eu vou acabar com ele também, pode apostar se não sou capaz disso!

Decidi que era hora de perguntar:

— Irmãs pegajosas? Quem são elas?

— Elas são feiticeiras, garota, como nós em alguns aspectos, mas diferentes em outros. Elas vivem na água e na lama. Qualquer uma delas poderia estar embaixo da água turva do canal, apenas aguardando o momento apropriado. A qualquer segundo, nesse instante, ela poderia emergir, colocar suas garras em você, e você estaria morta. Ela a puxaria para a água, drenando cada gota de sangue antes mesmo de você se afogar. Há muitas feiticeiras da água nessas partes.

Eu olhei para o canal nervosamente. De repente, os cães começaram a latir; soou como se estivessem nas árvores que obscureciam a casa do caça-feitiço chamado Arkwright, e por um momento vi o medo nos olhos de Lizzie. Mas então sua boca se contorceu nos cantos, seus olhos se encheram de determinação, e ela partiu para o norte novamente em um ritmo furioso. Logo saímos do canal, virando um pouco para oeste.

Passamos as horas da luz do dia dormindo sob uma cerca viva e, ao entardecer, partimos novamente. Havia uma lua e à distância eu via o mar. Estávamos subindo agora, e quanto mais subíamos, mais água agitada eu podia ver se estendendo até o horizonte. Eu me perguntei se alguma vez viajaria para outras terras. Eu sabia que não, era muito provável que eu me tornasse uma bruxa. O mar estava cheio de sal e as bruxas geralmente ficavam o mais longe possível. E é isso que eu parecia destinada a me tornar.

Uma feiticeira malevolente.

Eu não queria isso. Tais bruxas matam até crianças pequenas, apenas para ganharem poder. Esse poder as impulsiona até que todos os sentimentos humanos eventualmente as abandonem. Elas se tornam frias por dentro e são capazes de qualquer coisa. Não, eu não queria isso.

Enfim, já passava da meia-noite quando passamos por uma pequena vila com uma grande igreja. Então estávamos subindo de novo, em direção à uma colina gramada. Foi um trabalho árduo, e logo Lizzie xingou baixinho. Eu sabia que não devia perguntar para onde estávamos indo — ela estava de mau humor.

Mas, finalmente, quando estávamos atravessando um platô rochoso, eu pude sentir o cheiro de fumaça, Lizzie parou e me puxou para perto, suas unhas cravando no meu braço.

— Aqui embaixo, em um buraco fedido, vive um tolo santo, um eremita! — Ela sibilou. — Ele vai nos dizer o que precisamos saber sobre esse ovo!

— Como ele vai saber, Lizzie? — Perguntei.

Ela não respondeu, então eu a segui em silêncio por alguns degraus de pedra até chegarmos à boca de uma pequena caverna. Ela entrou como se o lugar lhe pertencesse. Diante de nós havia uma figura com uma mecha de cabelo emaranhada que descia até os ombros e uma longa barba grisalha, sentada na frente de uma fogueira. Lizzie olhou para ele por um longo tempo, mas ele nem olhou para cima; apenas olhou para as brasas.

— Olhe para mim! Olhe para mim agora! — Ela ordenou.

O rosto virou-se lentamente para cima e ele encontrou o olhar de Lizzie. Quem quer que fosse, o homem parecia calmo e sem medo. Eu esperava que ela tivesse mais sorte aqui do que teve com Jacob Stone; caso contrário, ela ficaria de mau humor por um mês e eu sabia que sofreria.

— Você é um radiestesista, velho. O melhor do Condado, dizem. Quero que você faça algo por mim.

— Não vou encontrar ninguém para você, bruxa! — O homem respondeu. — Volte de onde você veio e me deixe em paz. Seu tipo não é bem-vindo nessas partes.

Ele era um homem corajoso para falar com Lizzie dessa maneira. Ele não sabia do que ela era capaz? Talvez tenha sido por isso que ela o chamou de “tolo santo”?

— Ouça-me, Judd Atkins, e ouça bem. Faça o que eu pedir e deixarei você em paz para apodrecer em seu buraco fedido. Enfrente-me e cortarei seus ossos do polegar e os ferverei no meu caldeirão. Você entendeu?

Judd Atkins olhou para ela calmamente, sem um traço de medo em sua expressão. Um momento depois, tudo isso mudou.

Lizzie simplesmente murmurou algumas palavras em voz baixa. Era um fragmento de magia negra que ela já havia me ensinado. Não funcionava contra outras bruxas, mas era muito eficaz contra alguém como o eremita. Era o feitiço chamado Receio.

Em segundos eu sabia que, aos olhos dele, ela começaria a se transformar em algo aterrorizante e monstruoso; seus cabelos se tornando um emaranhado de serpentes negras contorcidas, seus olhos se transformando em dois carvões ardentes mais brilhantes do que as brasas reluzindo na fogueira dele.

Judd Atkins levantou-se apressadamente, o rosto cheio de terror frenético. Ele gritou como um porco acuado e começou a se afastar de Lizzie. Então ele caiu de joelhos, cobrindo os olhos com as palmas das mãos. Todo o seu corpo tremia e ele estava gemendo de terror com o que Lizzie aparentemente havia se transformado. O Receio não envolve uma mudança física real; é uma ilusão combinada com um forte pulso de medo direcionado à vítima. Mas, é claro, o velho eremita não sabia disso.

Lizzie voltou lentamente à sua aparência normal e, quando falou novamente, sua voz era mais suave e tranquilizadora. Era quase como se ela estivesse falando com uma criança pequena ou um animal assustado.

— Ouça, velho. — Ela disse. — Não é necessário que as coisas fiquem feias. Basta fazer o que eu peço e seguiremos nosso caminho. O que você diz?

Judd Atkins não respondeu, mas um gemido baixo escapou de seus lábios.

— Tire as mãos do seu rosto e olhe para mim! — Ordenou Lizzie, sua voz assumindo um tom de impaciência.

O eremita fez o que ela mandou, com a boca aberta e os olhos cheios de terror.

— Farei o que puder, mas por favor não me machuque. — Ele implorou. — Quem você quer que eu encontre?

— Ninguém!

— É algo que você perdeu, então? Ou você está procurando ouro escondido? Sou bom em encontrar tesouros — ele procurou no bolso da calça e puxou um pequeno pedaço de barbante, preso ao qual havia um pedaço de cristal transparente e incolor. — Com o mapa certo, posso encontrar quase tudo. Você trouxe um mapa com você?

Lizzie sacudiu a cabeça e, como resposta, alcançou a pequena bolsa que carregava sobre o ombro e tirou o estranho ovo de couro.

— Quero saber o que é isso. Quero saber o que isso pode fazer. — Ela exigiu.

— Isso vai ser difícil, esse é o tipo mais difícil de radiestesia. — Ele olhou para o ovo, uma expressão dúbia no rosto. — Tudo o que podemos fazer são perguntas. E as respostas serão apenas sim ou não, em cada caso. Pode demorar muito tempo; realmente muito tempo.

— Quanto mais cedo começarmos, melhor.


No canto da caverna, havia uma pequena tábua retangular de madeira usada pelo eremita como mesa. Não tinha pernas, mas descansava em quatro pedras. Lizzie se ajoelhou diante dela, varreu os pratos e xícaras com as costas da mão e depois limpou a superfície cuidadosamente com a barra da saia. Em seguida, devagar e com reverência, ela colocou o ovo de couro na superfície de madeira.

Eu não ousei olhar para aquilo. Tive uma sensação muito ruim de que Lizzie estava se metendo em algo realmente perigoso. Mas tentar explicar isso a ela não passaria de uma perda de tempo — antes que eu percebesse, haveria larvas subindo pelo meu nariz e pelos meus ouvidos. Então fiquei quieta e me afastei um pouco.

Lizzie fez sinal para o eremita se aproximar e, com certa dificuldade, ele se ajoelhou diante dela, com a mesa entre eles. Ouvi seus joelhos rangerem e seu rosto se contorcer de dor. Ele posicionou a mão diretamente acima do ovo, de modo que o cristal no final do pedaço de corda fosse suspenso apenas alguns centímetros acima dele.

— Estou pronto. — Disse ele. — Faça sua primeira pergunta. O cristal girará no sentido horário para um sim e no sentido anti-horário para um não.

— Este ovo pertence ao escuro? — Perguntou Lizzie, sem perder tempo.

O cristal entrou em movimento e começou a girar no sentido horário. Não foi nenhuma surpresa para mim.

— Isso é um sim. — Disse o eremita.

— Não sou cega. — Retrucou Lizzie. — Cale a boca, velho, e deixe-me falar. Agora, minha segunda pergunta: este ovo pode conceder poderes mágicos ao seu dono?

Mais uma vez o cristal girou no sentido horário e, pela primeira vez em dias, Lizzie sorriu.

— Como o dono pode obter esses poderes? — Ela perguntou, esquecendo que não se podia responder a essa pergunta com simples sim ou não, então o cristal não se mexeu.

Sua boca começou a tremer nos cantos, e seus olhos reviraram — o que era um sinal de que ela estava se concentrando, pensando no que fazer a seguir. Isso a fez parecer mais feia do que nunca e duas vezes mais tola do que qualquer idiota da aldeia. Eu teria rido se não estivesse com tanto medo desse ovo.

De repente, Lizzie arregalou os olhos, murmurou um feitiço e cuspiu no rosto do velho eremita. Sua boca se abriu de surpresa, mas ele não esboçou outra reação.

— Eu perdi muito tempo com esse seu joguinho idiota. — Ela olhou para o rosto dele: nesse momento, seus olhos pareciam vidrados, como se ele estivesse cego. — Agora você é o ovo... Faça isso! Torne-se agora! Apenas me diga o que eu preciso saber!

Isso era algo novo. Eu nunca tinha visto Lizzie fazer algo assim antes. Às vezes os poderes dela me surpreendiam.

— Como se chama esse feitiço? — Perguntei.

— Quieta, garota! — Ela rosnou para mim. — Você não vê que estou tentando me concentrar!

Então ela continuou falando, olhando para o ovo e não para o eremita.

— Eu quero o seu poder. O que você precisa em troca? — Ela exigiu. — Você precisa de sangue?

O cristal começou a girar no sentido horário para um sim.

— Quanto sangue?

A corda nem se mexeu. Em vez disso, o eremita abriu a boca e falou, mas sua voz estava diferente agora. Parecia o rosnado de um animal, embora as palavras fossem claras o suficiente: elas me arrepiaram a espinha.

— Me dê o sangue dos corações de sete crianças humanas na noite de lua cheia. Treze bruxas terão que se unir para realizar essa tarefa, e quem é a dona do ovo receberá o que seu coração deseja: mais poder do que ela jamais sonhou. Assim que minha sede por sangue for saciada, deixe-a expressar seu desejo. Ele será respondido antes de sete dias.

Meu coração se retraiu e minha garganta se apertou contra uma sensação de náusea. Lizzie não hesitaria em fazer o que era necessário. Sete crianças seriam arrancadas dos pais e assassinadas para que ela conseguisse o que queria.

— Isso pode ser feito com bastante facilidade. — Disse Lizzie com um sorriso. — Agora me diga exatamente o que você é!

— O que eu sou, você não precisa saber. — Rosnou a voz pela garganta do eremita. — E lembre-se de que você não terá sucesso sozinha. Treze feiticeiras terão que combinar suas forças!

Eu vi a raiva no rosto de Lizzie. Ela não queria compartilhar poder com seu clã. Mas parecia que ela não tinha escolha.

Partimos imediatamente e descemos a colina. Lizzie parecia determinada a cobrir o máximo de terreno possível antes do amanhecer. Surpreendentemente, ela deixou o eremita vivo. Imaginei que ela pensasse que ele poderia ser útil novamente um dia.

Quando o amanhecer se aproximava, estávamos indo para o leste, o mar visível do nosso lado direito. Encontramos refúgio em um bosque e Lizzie me enviou para caçar coelhos. Quando voltei, ela tinha feito uma pequena fogueira, eu limpei e estripei os coelhos e os cozinhei no espeto enquanto ela estava sentada de pernas cruzadas diante das chamas, os olhos fechados.

Comemos em silêncio, mas de vez em quando Lizzie tremia, os olhos revirando para trás deixando apenas os brancos olhando cegamente para o fogo. Quando ela finalmente falou, parecia estar pensando em voz alta.

— Não vou voltar ao clã Malkin com isso. — Ela murmurou, levantando o ovo de couro da bolsa e segurando-o contra o peito. — Não vou compartilhar isso com ninguém. Todo o poder será meu. Mas há apenas duas de nós, apenas eu e uma garota muito jovem para contar. Então preciso de doze outras bruxas para formar um novo clã. Bruxas que não são muito inteligentes e não esperam nada além de sangue. Elas são perigosas de se trabalhar, são nossas irmãs pegajosas, mas isso pode ser feito... Isso pode funcionar!

Lizzie nem se incomodou em explicar seu plano para mim. Ela não dormiu naquele dia e partimos bem antes do anoitecer. Estávamos bem perto do mar, mas a maré estava baixa e, a princípio, vi apenas uma grande extensão de areia. Então eu avistei um grupo de pessoas ao longe, indo em direção à costa. Além de uma carruagem puxada por cavalos ali embaixo.

— É um atalho perigoso através da areia. — Lizzie me disse. — Embora haja um guia que lidera pequenos grupos de viajantes a atravessar, incluindo as carruagens. Nós, feiticeiras, temos que percorrer o caminho ao longo da baía, porque de tempos em tempos passamos pela água salgada. Melhor seguir em frente, garota, antes que eles cheguem à praia e nos vejam!

No entanto, assim que partimos novamente, ouvimos sons de latidos do grupo que cruzava as areias, e Lizzie me puxou para trás de uma moita de arbustos.

— Poderia ser? Poderia ser...? — Ela sussurrou. — Talvez sejam apenas cães de fazenda... mas eu poderia ter essa sorte? Realmente? Algumas vezes tem coisas que simplesmente devem acontecer, e isso poderia ser uma delas!

Gostaria de saber o que Lizzie estava falando. Grande professora, ela era — sempre se esforçava ao máximo para explicar o que estava acontecendo.

Havia um homem alto com a cabeça raspada andando atrás da carruagem, com cães enormes de cada lado dele. Cruzei meus dedos para que eles não nos farejarem, pois pareciam imensos cães de caça.

— É William Arkwright, o caça-feitiço de que falei. — Disse Lizzie, animada. — Ele estará caçando nossas irmãs pegajosas mais ao norte. Pode ficar fora por dias, ele certamente precisará da maré certa antes de poder atravessar a baía novamente. A casa dele estará vazia, não poderia ser melhor!

Lizzie não se deu ao trabalho de explicar nada, mas depois que o grupo seguiu em frente, alcançando a costa pelo menos 800 metros mais ao sul, ela nos levou à frente novamente.

— Estamos indo para o moinho onde ele mora? — Perguntei.

— É isso o que nós faremos, garota. Há um pântano atrás do moinho que ele mantém livre de nossas irmãs pegajosas. Mas é um lugar sagrado para elas. Enquanto o gato está longe, os ratos fazem a festa, tenho certeza disso. Toda feiticeira da água por quilômetros ao redor seguirá para aquele pântano. E nós estaremos lá para conhecê-las!

Viajamos durante a noite até chegarmos ao canal novamente e viramos para o sul ao longo de sua margem ocidental. Antes do amanhecer, deixamos o caminho para não encontrar com barqueiros ou qualquer outra pessoa que pudesse identificar Lizzie como uma bruxa. Mas nós não descansamos; pelo contrário, Lizzie nos levou a um ritmo ainda mais frenético. A essa altura, o céu estava nublado e uma leve garoa era soprada em nossos rostos.

Por fim, cerca de uma hora antes do anoitecer, chegamos ao moinho que abrigava o caça-feitiço. Estava escondido por árvores e cercado por altas paliçadas de ferro; uma vala marcava a fronteira do jardim.

Não gostei da aparência dessa vala. Lizzie estava me arrastando para o perigo novamente. Eu gostaria que pudéssemos voltar para casa.

— É como o fosso que circunda a Torre Malkin! — Exclamei.

— Sim, garota, é exatamente o que é, mas é um tipo muito especial de fosso. Arkwright dissolve tonéis de sal para manter as feiticeiras da água afastadas — eu me perguntava como atravessaríamos, mas Lizzie não parecia muito incomodada.

— Isso não vai nos parar. Não é uma travessia tão difícil quanto aquele grande rio. Você poderia facilmente me transportar. Eu adoraria explorar esse velho moinho. O velho Jacob Stone tinha aquele ovo de couro. Sem dúvida, Arkwright também tem algo escondido. É isso que os caça-feitiços fazem. Se eles encontrarem algo útil para as sombras, eles o destroem ou o escondem de nós!

Lizzie liderou o caminho até o portão e ficou olhando o velho moinho quebrado por um longo tempo. Fiquei pensando se ela me pediria para carregá-la através do fosso, mas finalmente ela balançou a cabeça. Dei um suspiro de alívio.

— Estou tentada, mas decidi que não vale a pena arriscar, garota. Você sabe qual é o maior perigo?

Eu pensei por um momento, e então a resposta veio a mim.

— Os cães. — Eu disse. — Se atravessarmos o fosso, eles receberão nosso cheiro. Arkwright seria capaz de usar aqueles cachorros enormes para nos caçar!

Por um minuto, Lizzie pareceu quase orgulhosa de mim.

— Ele faria isso, garota. Se esses cães de caça podem seguir a trilha de nossas irmãs pegajosas através de um pântano, eles não terão problemas em nos encontrar. E precisamos ficar aqui até que nossos negócios terminem.

Com isso, Lizzie deu as costas para o moinho e nos levou por um caminho estreito através do pântano. Pântanos pegajosos, com amontoados de junco e capim pantanoso, compunham a maior parte; também havia piscinas escuras e estagnadas de água que pareciam realmente profundas. Estava escorregadio, e eu estava com medo de cair. E se houvesse feiticeiras da água se escondendo logo abaixo da superfície do pântano? Tudo estava muito bem, Lizzie dizendo que iria trabalhar com elas e formar um clã temporário. Mas elas ainda não sabiam disso. Elas podem apenas atacar qualquer coisa que se mova através de seu território. E como Arkwright estava fora, muitas delas poderiam estar a caminho nesse instante! Algumas já poderiam estar aqui!

O medo aguçou meus sentidos, e pensei ter visto coisas pelo canto do olho ou ouvido as mais fracas ondulações ou outros pequenos distúrbios da água. Talvez fosse apenas a minha imaginação. Ou talvez fossem alguns pequenos insetos noturnos ou criaturas aquáticas. Eu não conseguia ver nada, mas seria tão fácil para uma feiticeira da água se esconder embaixo da obscuridade e da lama, e eu meio que esperava que uma mão surgisse do pântano e agarrasse meu tornozelo. No entanto, logo caminhar se tornou menos escorregadio e enlameado; nós estávamos andando em terra seca novamente. Ao escalarmos uma pequena colina, vi duas paredes de pedra e as ruínas de um edifício em seu cume.

— Aqui se chama Colina dos Monges. — Lizzie me disse. — Isso foi uma vez um mosteiro, até que os monges foram levados e o seu sangue drenado, um a um. Este pântano costumava ser o lar de dezenas de feiticeiras aquáticas que faziam o que queriam. Até que os caça-feitiços se tornassem mais fortes no Condado, é isso. Mesmo agora, se não fosse Arkwright e seus cães, elas logo regressariam de uma vez por todas. Não há dúvida sobre isso, garota.

Lizzie liderou o caminho até o topo da encosta e se agachou de costas para a parede, de frente para o pântano. Eu me acomodei ao lado dela e segui seu olhar. Nada mudou, mas eu me senti muito desconfortável. Não havia nem um sopro de vento, e uma névoa estava começando a subir, seus tentáculos parecidos com serpentes se torcendo nas encostas mais baixas da colina.

De repente, Lizzie cheirou três vezes antes de me dar um sorriso maligno.

— Elas estarão aqui em breve, mas ficaremos as observando sem que nos notem.

Não me incomodei em cheirar por mim mesma: eu tinha certeza de que Lizzie estava certa — eu podia sentir o perigo se aproximando.

Ela começou a murmurar baixinho, e eu reconheci o feitiço de camuflagem.

— Isso deve nos manter escondidas. — Disse Lizzie.

Eu estava confusa.

— Eu pensei que você queria formar um clã com elas?

— Tudo depende de quais de nossas irmãs pegajosas apareceram aqui. — Respondeu ela. — A maioria das feiticeiras aquáticas é estúpida, um pouco melhor que animais. Em troca de um pouco de sangue, elas me ajudarão a capturar as sete crianças de que preciso. Mas há uma irmã que é realmente perigosa, não quero lidar com ela: ela irá querer o ovo só para si. O nome dela é Morwena e o pai dela é o próprio Maligno. Não, não queremos que ela nos veja!

Quando Lizzie falou o nome ‘Morwena’, uma onda de medo congelante subiu pela minha espinha. Eu tinha certeza de ter ouvido esse nome antes; era como se alguém tivesse passado por cima do meu túmulo.

Fiquei surpresa ao ver medo nos olhos de Lizzie também.

— Quão perigosa ela é? — Perguntei. — Ela tem uma poderosa magia negra?

— Sim, ela tem, garota. Ela é mais forte e mais rápida do que qualquer uma de suas irmãs, e tem uma arma mortal: um olho cheio de sangue. Um olhar e você estará paralisado, enraizado no local como uma árvore indefesa diante de um lenhador com um grande machado afiado. Você estará desamparado enquanto ela afunda suas presas afiadas na sua garganta. Então, se a virmos aqui hoje à noite, sairemos e procuraremos em outro lugar a ajuda que preciso.

Esperamos em silêncio até a escuridão cair e não conseguimos mais ver a beira do pântano. Mas o céu estava clareando, e logo uma lua brilhou, banhando toda a área com sua luz prateada.

De repente, vi um movimento lá embaixo — e desta vez eu não estava imaginando: uma ondulação na água, o mais leve dos salpicos e, em seguida, uma forma escura se arrastou para o chão seco ao pé da colina. Foi a primeira das feiticeiras da água, e ela ficou de costas para nós, a água pingando de suas roupas esfarrapadas, que pareciam ser compostas por erva daninha e lodo, em vez de pano.

Repentinamente, ela se virou em nossa direção e cheirou muito forte, como se estivesse procurando por nós. Prendi a respiração, mas a magia de camuflagem de Lizzie se mostrou resistente o suficiente. A feiticeira virou-se para encarar a água, mas não antes que eu visse as presas longas saindo de sua boca aberta e as garras afiadas que brotavam de cada dedo. E então eu notei que cada um dos seus dedos indicadores era excepcionalmente longo.

Logo outras feiticeiras da água se juntaram a ela na margem e começaram a conversar. Eu digo “conversar”, mas dificilmente era fala. Reconheci algumas palavras, como “fome” e “sangue”, mas na maioria das vezes eram apenas uma série de grunhidos e arrotos.

Eu sempre desprezei a maioria dos Malkins. O fedor de suas cabanas, com os montes de ossos deixados na pia ou perto da porta, revirava meu estômago; mas essas criaturas eram muito piores. Lizzie estava certa: essas feiticeiras da água eram pouco melhores que animais. Nós realmente queríamos nos unir a elas? Eu me perguntei.

Logo havia cerca de uma dúzia de feiticeiras pingando na beira do pântano; algumas estavam arrastando algo estranho para a margem. Era uma gaiola tubular de madeira, cerca de uma vez e meia o comprimento de um homem alto, mas consideravelmente mais estreita que um torso humano. Dentro dela, algo estava se movendo.

E mais estava por vir. As próximas três feiticeiras que emergiram da água trouxeram prisioneiros: dois homens e uma mulher, que estavam quase se afogando. Eles estavam sufocando e engasgando, os brancos dos olhos aparecendo, e cobertos de lodo da cabeça aos pés. Eles foram jogados na lama sem cerimônia, rolados de costas, arrastados cerca de dez passos um do outro e dispostos em fila. Em seguida, estacas curtas foram fixadas ao chão a uma curta distância de suas cabeças e pés. Então, suas mãos e pés foram rapidamente amarrados às estacas com uma corda apertada. Os dois homens mal estavam respirando agora, mas a mulher gemeu quando a corda foi puxada, esticando seus braços e pernas.

As feiticeiras formaram uma fila na margem e se voltaram para os prisioneiros. Isso significava que elas agora estavam olhando para mim e Lizzie também. Quando elas deram as mãos e começaram a cantar, eu me perguntei se o poder mágico combinado delas lhes permitiria ver através do manto mágico que Lizzie havia conjurado. Isso me deixou nervosa.

Eu não sou ruim em encobrir feitiços, mas não importava o quanto eu quisesse, não ousaria adicionar meu próprio feitiço ao dela. Ela tomaria isso como um insulto — pareceria que eu duvidava dela.

Não precisei me preocupar: a magia dela se mostrou forte o suficiente. Logo as bruxas da água pararam de cantar, e uma delas saiu da fila. Esta não se aproximou dos prisioneiros, como eu supus que ela faria. Ela foi direto para a gaiola de madeira. Em segundos, ela abriu uma porta com dobradiças no final; então ela se juntou às suas companheiras pegajosas.

Eu olhei para a gaiola, fascinada. Por alguns instantes, nada se moveu; então algo emergiu lentamente da porta aberta. Parecia um inseto grande e pisava delicadamente em longas pernas finas. De repente, vi sua cabeça alongada e comecei a tremer de medo. Tinha um focinho longo e fino — que eu sabia que era chamado de “tubo ósseo”. Eu nunca tinha visto uma criatura assim em carne e osso antes, mas tinha visto desenhos em um livro da pequena biblioteca de Lizzie sobre magia negra.

Esta criatura era um suga-sangue.

Por um momento pareceu estar olhando diretamente para mim. De repente, deu um assobio alto e se virou para encarar os três cativos. Com um encolher de ombros, ele pareceu aumentar e, em oito pernas articuladas, correu em direção ao homem mais próximo. Ele enfiou o focinho longo no peito e a vítima gritou de dor. Imediatamente vi o tubo ósseo escurecer. Se eu tivesse visto pela luz do sol ao invés da luz da lua, teria visto o tubo transparente ficar vermelho vivo. A criatura estava sugando o sangue de sua vítima a um ritmo alarmante.

Após o primeiro grito de dor, a vítima apenas deu uma série de gemidos, que gradualmente se tornaram mais fracos. Quando o suga-sangue retirou o tubo ósseo, o homem ofegou alto. Eu sabia que ele tinha dado o seu último suspiro.

Agora o suga-sangue voltou sua atenção para o próximo da fila. Essa era a mulher; ela começou a lutar contra seus laços e gritar no limite de sua voz. Mas em vão: o suga-sangue saltou sobre ela em segundos, desta vez lançando seu focinho afiado em seu pescoço. Mais uma vez o tubo escureceu e os gritos da mulher se tornaram um gorgolejo sufocante — até que o suga-sangue drenou todo seu sangue e ela se contorceu e ficou imóvel.

A terceira vítima não gritou ou lutou. Ele começou a orar em voz alta.

— Pai, perdoe-as! — Gritou pela noite a dentro. — Que elas vejam o erro de seus caminhos e se afastem das trevas. Eu aceito a dor da minha morte. Use-o para diminuir a dor dos outros.

Eu me perguntei se ele era um padre. Mas padre, fazendeiro, estalajadeiro ou barqueiro, não fazia diferença para o predador que subia em seu corpo. O homem tentou falar de novo, mas seu corpo convulsionou quando o suga-sangue perfurou seu pescoço. Logo ele também ficou quieto.

O suga-sangue se afastou lentamente de seu corpo e depois se virou em direção às feiticeiras, que estavam caladas e calmas, como se esperassem algo.

Certamente não iria atacá-las? Eu pensei. De quanto sangue a terrível criatura precisava?

Mas não foi o suga-sangue que atacou.

Foram as feiticeiras!

Elas começaram a vir em nossa direção, seus olhos estavam sedentos de sangue.


Por um momento aterrorizante, achei que Lizzie e eu éramos o alvo. Mas eu estava errada. Como que obedecendo a um sinal inaudível, elas correram em direção ao suga-sangue, bocas arreganhadas, mostrando as suas presas afiadas. Esticaram as mãos em direção a ele; longas garras brilhando ao luar. A criatura tentou passar furtivamente por essa horda para chegar à água; mas as suas adversárias eram demasiado numerosas e muito rápidas.

Ferozmente, elas caíram sobre o suga-sangue e, para meu horror, começaram a despedaçá-lo. Braços, pernas e cabeça foram arrancados do corpo enquanto o sangue começava a acumular-se no solo lamacento: sem dúvida o seu próprio sangue, bem como o das três vítimas de quem se tinha empanturrado. Tal como o corpo de alguns insetos, o seu era articulado em dois segmentos, e foi rapidamente dividido por mãos com garras. Mesmo depois, as pernas e os segmentos do corpo continuaram a contorcer-se.

Percebi que estas feiticeiras da água eram excepcionalmente fortes, e perguntei-me como Lizzie ousava tentar recrutá-las à nossa causa. E se elas se virassem contra nós? Toda a sua magia seria ineficaz contra entidades tão ferozes que dificilmente seriam humanas.

Por agora alimentavam-se dos restos do suga-sangue, rompendo as suas cavidades corporais para se alimentarem, dividindo os seus membros com os seus dentes para tirar a carne de dentro.

Observei-as, espantada e, no entanto, incapaz de desviar o meu olhar da cena. Foi então que ouvi o latido ...

As bruxas olharam para cima do seu banquete frenético. Agora, para além do ladrar dos cães que se aproximavam, eu podia ouvir o bater de botas pesadas.

— São Arkwright e aqueles cães de caça, de volta mais cedo do que esperávamos! — Lizzie sibilou em meu ouvido. — Faça o que fizer, garota, não se mova e não faça barulho. A capa deve nos proteger do caça-feitiço, mas o maior perigo é que os cães possam nos farejar. Com sorte, eles estarão muito ocupados arrancando pedaços de nossas irmãs pegajosas!

Quando os cães emergiram da névoa, os dentes brilhando ao luar, a saliva pingando de suas mandíbulas abertas, a maioria das feiticeiras correu para a água. Entraram rapidamente, quase sem salpicos, submergiram e desapareceram da vista.

Por alguma razão, cerca de cinco delas seguiram por outro caminho em direção ao pântano. Pensei que elas também conseguiriam escapar, mas a última delas foi vagarosa demais.

O primeiro cão de caça agarrou o seu tornozelo com as mandíbulas. Ela caiu de joelhos, mas revidou ferozmente contra o animal. As longas garras teriam perfurado seu crânio, mas, bem a tempo, o segundo cachorro saltou sobre ela e agarrou seu pulso com firmeza entre suas mandíbulas, sacudindo-o como um rato.

Os cães pareciam capazes de acabar com ela, e ela começou a gritar e se debater, tentando se arrastar de volta para a beira da água. Mas então o caça-feitiço de cabeça raspada emergiu da névoa e, murmurando uma maldição, golpeou a feiticeira com seu longo cajado, atingindo-a na parte de trás do crânio. Ela ficou mole e sem hesitação ele a agarrou pelos longos cabelos emaranhados.

— Boa menina! Bom rapaz! — Ele exclamou. — Agora soltem, vamos levá-la de volta e colocá-la onde ela pertence!

Com isso, os cães abandonaram obedientemente sua presa e Arkwright começou a arrastar a feiticeira pelas pernas, sua cabeça balançando ao longo do caminho lamacento.

Lizzie sorriu ao ver isso. Eu não conseguia entender. Este caça-feitiço era inimigo das bruxas. Poderiam facilmente ser nossas cabeças batendo no chão.

Dentro de instantes, caça-feitiço, bruxa da água e cães desapareceram na névoa.

Quando os sons da retirada deles desapareceram, Lizzie se virou para mim e torceu o rosto em um sorriso maligno.

— Bem, garota, isso poderia funcionar melhor do que eu esperava! — Disse ela, cheia de alegria.

— Eu não entendo. Isso não estraga seu plano? — Perguntei.

— Seja paciente e explicarei mais tarde. Apenas fique quieta e calada.

Mas eu estava curiosa e não pude resistir a fazer uma pergunta a Lizzie.

— Por que as bruxas deixaram o suga-sangue se alimentar primeiro, antes de tirar o sangue das vítimas em segunda mão? Elas são muito fortes. Poderiam ter feito em pedaços aquelas pessoas com as próprias mãos!

— Claro que sim, garota! — Lizzie disparou. — Mas isso faz parte do ritual. Tirar sangue humano que o suga-sangue já sugou triplica a força da magia.

Depois de cerca de meia hora, para minha consternação, ouvi mais uma vez o latido dos cachorros ficando cada vez mais alto.

— Eles devem ter nosso cheiro. — Disse a Lizzie nervosamente. — Vamos correr!

— Você fica quieta, garota. Eles têm muitos cheiros, mas não são nossos, não se preocupe.

Eu não entendia como ela podia ter tanta certeza. Mais uma vez, os cães saltaram para fora da névoa, o caça-feitiço de rosto sombrio logo atrás deles. Por um momento tenebroso, pensei que eles iam correr na nossa direção, mas então os cães pararam na margem perto da gaiola, farejando o chão encharcado de sangue e se movendo em círculos cada vez maiores.

Em poucos instantes, eles haviam saltado pelo caminho percorrido pelas bruxas em fuga, e Arkwright os seguiu, segurando seu cajado, o rosto rígido de determinação.

Quando finalmente o som de sua perseguição desapareceu na distância, sussurrei para Lizzie:

— Não gostaria de encontrá-lo em uma noite escura.

— Você não poderia ter dito melhor, garota. Eles não poderiam ser mais cruéis. Uma coisa é lidar com um velho caça-feitiço como Jacob Stone; enfrentar os Arkwrights deste mundo é um assunto diferente. Ele é implacável, e nunca desiste. Esses cães dele podem rastrear uma presa até mesmo através de um pântano; antes do amanhecer, ele sem dúvida pegará pelo menos mais uma de nossas irmãs pegajosas. Mas enquanto ele estiver fora, teremos tempo para libertar a primeira!

Com essas palavras, Lizzie partiu, voltando na direção de onde viemos, em direção ao velho moinho de água onde vivia o caça-feitiço.

Quando chegamos à beira do fosso, Lizzie parou e me olhou fixamente.

— O que eu quero? — Ela perguntou finalmente.

— Ser carregada através da água salgada. — Respondi.

— Claro que sim, garota, então o que você está esperando? Não deveria ter que perguntar. Você sabe o que precisa ser feito! — Ela sibilou.

Então, eu tive que carregar Lizzie em minhas costas pelo fosso, através da água fria que estava acima dos meus joelhos. Eu ainda não era uma bruxa, então nem a água nem o sal me preocupavam. Uma vez do outro lado, ela avançou pelo caminho em direção ao moinho degradado. Pensei que ela ia tentar entrar pela porta da frente, ou talvez quebrar uma janela. Ao invés disso, ela deu a volta pela lateral, indo em direção à roda d’água. Faltavam pedaços dela — não parecia ter se movido há anos, apesar do riacho que ainda fluía sob ela.

Havia uma porta estreita ao lado da roda, mas quando Lizzie virou a maçaneta e empurrou, ela descobriu que estava trancada.

— Em breve irá se abrir. — Ela guinchou, inclinando-se para frente para que sua boca ficasse no nível da fechadura. Então ela cuspiu dentro dela e murmurou um feitiço que eu desconhecia. Ela encostou sua cabeça e colocou sua orelha próxima a porta, como se estivesse ouvindo algo.

Não sei por que ela precisava colocar sua orelha imunda tão perto. Ouvi a três passos de distância — o rangido e o clique quando a fechadura se abriu. Com um sorriso de triunfo, Lizzie agarrou a maçaneta novamente, girou-a e abriu a porta.

Dentro havia um fedor de madeira podre e o ar estava úmido. Estava lamacento debaixo dos pés, e à nossa esquerda, através da escuridão, eu podia ver a grande curva da roda d’água. Com um murmúrio, Lizzie arrancou algo do bolso da saia. Instantaneamente uma chama tremeluziu viva, ela a ergueu e seguiu pelo caminho à frente.

Ela se moveu lenta e cautelosamente. Sem dúvida, ela achou que o caça-feitiço poderia ter armado algum tipo de armadilha para pegar qualquer um que conseguisse entrar. Ela se mexeu para a direita e para a esquerda, como se procurasse por algo. Então, finalmente, ela o encontrou.

Chegamos à beira de um poço quadrado com treze barras no topo. Lizzie estendeu a vela para iluminá-la. O poço estava cheio de água, mas havia uma plataforma de lama de um lado e a feiticeira da água capturada estava deitada de costas, olhando para nós, seus olhos brilhando à luz da vela.

Eu pensava que algumas das feiticeiras de Pendle eram feias, mas essa feiticeira da água era realmente grotesca, com suas grandes presas assustadoras. Estaríamos seguras se Lizzie a libertasse da cova? Perguntei-me.

— Ouça, irmã. — Lizzie gritou para ela. — Viemos para te libertar. Em troca, tenho uma proposta para você, e mais onze da sua espécie. Você vai nos levar à sua guardiã para que possamos discutir sobre os termos?

Eu me perguntei o que Lizzie quis dizer com “sua guardiã”, mas como sempre ela não se preocupou em explicar o que estava acontecendo.

A feiticeira ajoelhou-se e olhou diretamente para a Lizzie. Então eu a vi assentir com a cabeça.

— Certo. — Lizzie sorriu para mim. — Temos um acordo, garota. Eu logo vou tirar ela daqui. Não há tempo para a magia de ratos e moscas, então é uma sorte não estarmos em Chipenden enfrentando uma das covas de feiticeira de John Gregory. Lá, as barras são fixadas com segurança no lugar e, sem magia, precisaríamos da ajuda de um ferreiro para puxá-las para fora. Aqui é apenas uma tampa articulada com duas fechaduras. Você sabe por que Arkwright torna tão fácil entrar e sair desta cova?

Dei de ombros. Eu não tinha a menor ideia.

— Quando John Gregory coloca uma feiticeira em uma cova, ele quer que ela fique lá até o fim de seus dias, então as grades são permanentes. Esse não é o caso de Arkwright. Se uma feiticeira mata um adulto, fica um ano na cova; dois se for uma criança. Ele é como um juiz passando a sentença e, no final do tempo, ele as tira e as mata. Para garantir que elas não voltem dos mortos, ele retira o coração, o corta ao meio e dá para seus cachorros.

Bill Arkwright era um caça-feitiço realmente assustador. A história de Lizzie me deixou nervosa. E se ele se cansasse da perseguição e voltasse? Eu não gostaria de estar trancada em uma de suas covas pegajosas!

Lizzie cuspiu em cada fechadura, e dentro de momentos ambas se abriram. A tampa estava livre, mas não havia como ela tocá-la.

— Essas barras são feitas de ferro. Você terá de levantar a tampa. Como ainda não é uma feiticeira, não deve sentir muito. Ande logo com isso!

Lizzie podia estar me treinando como bruxa, mas eu ainda tinha um longo caminho a percorrer. Por isso ela tinha razão: tocar naquelas barras de ferro não doeu em nada. O problema era o peso. Lutei por algum tempo antes de conseguir levantá-la alto o suficiente para que Lizzie se ajoelhasse à beira da cova e se inclinasse para oferecer as mãos à feiticeira da água.

Meu corpo inteiro tremia com o esforço, mas consegui segurá-la por tempo suficiente para que a feiticeira da água fosse arrastada para um lugar seguro. Assim que ela estava no chão de lama ao lado da cova, deixei a tampa cair de volta no lugar com um estrondo.

Então recuei dois passos muito rapidamente. A feiticeira da água estava agachada, o rosto distorcido em um rosnado bestial, como se estivesse pronta para saltar sobre nós. Ela parecia mais faminta por sangue do que grata por ter sido resgatada.

— Certo. — Disse Lizzie, que não parecia nem um pouco perturbada com a atitude da feiticeira. — Vamos sair daqui antes que Arkwright volte com aqueles seus cães do pântano. Vá em frente, irmã. — Disse ela. — Guia-nos para algum lugar seguro.

Em resposta, a feiticeira da água apenas fez uma espécie de careta; torceu seu rosto de modo que sua boca se abriu, revelando mais de seus afiados dentes amarelos. Ela estava coberta de lodo e pingando água. Ela cheirava mal também — o fedor de lama, podridão e lagoas estagnadas. Enquanto ela caminhava à nossa frente, cambaleou ligeiramente. Se eu não estivesse tão nervosa, teria rido. Feiticeiras da água não tinham sido feitas para andar sobre a terra.

Saímos do moinho e, para minha surpresa, a feiticeira da água nos conduziu para o leste, para longe do pântano. Atravessamos o canal pela ponte mais próxima e nos mantivemos nas sebes.

Onde poderíamos estar indo? E como poderíamos estar seguras? Assim que aqueles cães de caça sentissem nosso cheiro, eles nos rastreariam com certeza. Lizzie não disse que Arkwright era implacável e nunca desistia?

Por fim, depois de quase duas horas lutando pelo campo lamacento, a feiticeira apontou para uma grande extensão de terra. Não havia nada à frente, exceto outra cerca viva distante. No entanto, eu podia sentir algo; uma coisa invisível.

Mas então a feiticeira proferiu alguns ruídos guturais nojentos e acenou com o braço, fazendo sinais no ar.

O ar tremeluziu e de repente o contorno de um edifício apareceu. Estava oculto por magia — algum tipo de feitiço de camuflagem poderoso que eu nunca tinha visto antes. Ao nos aproximarmos, vi que outrora fora uma casa de fazenda, mas agora parecia deserta. Não havia animais nos campos; nenhum cachorro para guardar a casa. Estava na escuridão total.

Então, à luz da lua, vi que havia um grande lago ao lado da casa. A maioria dos lagos, como os sambaquis, foram mantidos a alguma distância para evitar vazamentos no porão da casa. Este havia sido estendido — e de uma forma muito incomum. A água era profunda e chegava até às paredes da casa, encostando-se à alvenaria de tijolos. Havia algo mais estranho também. No que deveria ter sido o pátio da fazenda, havia um enorme monte de terra quase tão grande como a casa. Estava coberto de relva e urtigas, mas não parecia natural. Quem o tinha colocado ali? Qual era o seu propósito, e de onde tinha vindo essa terra toda?

Sem olhar para trás, a feiticeira deslizou na água escura e desapareceu de vista. Ela se ausentou por um bom tempo e eu me perguntei se ela estaria reunindo algumas de suas irmãs para nos arrastar atrás dela. Mas então houve um lampejo de luz vindo de uma janela do andar de cima.

— Deve haver uma entrada sob a água. — Disse Lizzie. — Sem dúvida, o porão foi inundado deliberadamente. Mas nós não vamos entrar por ali. Vamos voltar para a porta da frente.

Seguindo o caminho para além da lagoa, ela dirigiu-se para a lateral da casa. O vidro havia sumido das janelas, mas ele havia sido substituído por tábuas para que não se pudesse ver o seu interior. A porta da frente parecia podre, mas estava fechada. Achei que um bom pontapé com um sapato pontudo iria estilhaçá-la em pedaços encharcados.

Contudo, não precisamos fazer isso. Eu ouvi o som de correntes sendo soltas e ferrolhos sendo puxados, e então a porta se abriu lentamente, rangendo nas dobradiças.

Uma mulher corpulenta de rosto redondo e olhos de porco estava de pé no umbral da porta, para examinar melhor nossos rostos. Seu cabelo era um emaranhado de cinza e suas sobrancelhas estavam desgrenhadas: cabelos espetados como os bigodes de um gato. Ela parecia tudo menos amigável.

— O que você quer? — Ela exigiu abruptamente.

— Resgatamos uma das suas de uma cova no moinho do caça-feitiço. — Disse Lizzie, como se fosse tudo o que ela precisava dizer para entrar na casa.

Mas, nesse caso, ela estava errada. Eu não gostei da aparência desta mulher e senti alguma ameaça por parte dela. Ela não era uma bruxa, mas parecia muito confiante ao encarar Lizzie. Isso era incomum. Esta devia ser a “guardiã” das feiticeiras da água a que Lizzie se referiu anteriormente. Eu não conseguia entender por que ela iria morar aqui com todas aquelas feiticeiras. O que ela ganhava com isso?

— Sim, eu sei disso, mas o que você quer?

Lizzie forçou um sorriso no rosto.

— Há algo que precisa ser feito, então quero sua ajuda para formar um coven com aquelas que você abriga. Só uma vez e para algo especial. Haverá muito sangue para elas; poder também. O que você me diz?

— Qual é o seu nome e de onde você é?

— Meu nome é Lizzie Ossuda e sou de Pendle.

— Não há muita afinidade entre as de Pendle e as que abrigo aqui. — Respondeu a mulher. — Houve problemas no passado, mortes de ambos os lados.

— Você não terá problemas comigo, ou com a garota. — Lizzie acenou para mim. — Deixe que o passado fique para trás. O que proponho será para o benefício de todos nós. Não posso entrar e falar sobre isso? Qual é o seu nome, você não pode pelo menos me dizer com quem estou falando?

A princípio pensei que ela fosse recusar, mas depois ela assentiu.

— Meu nome é Betsy Pernil e vou lhe dar apenas cinco minutos do meu tempo.

Com isso, ela se afastou, então eu segui Lizzie para dentro. Betsy nos levou para os fundos da casa e para a cozinha. Estava sujo, cheio de lixo, e havia moscas por toda parte, a maioria delas moscas varejeiras nojentas. Havia uma pequena porta à direita, e ela a abriu e começou a descer alguns degraus estreitos de pedra, sua vela enviando sombras assustadoras na parede. Quando chegamos ao porão, olhei ao meu redor com espanto.

Era enorme — pelo menos três ou quatro vezes a área da casa da fazenda acima. Em algum momento, muitas escavações foram feitas — o motivo, eu percebi, para a enorme pilha de terra ao lado da casa. Cerca de metade do porão era ocupado por um grande fosso cheio de água, mas em uma enorme plataforma de barro havia várias mesas e mais de vinte bancos. No canto mais distante estavam quatro daquelas gaiolas tubulares de suga-sangue. Duas delas estavam ocupadas; as criaturas nos encararam com olhos famintos, seus longos tubos de ossos projetando-se através das barras e tremendo de ansiedade.

Betsy se acomodou em um banquinho e olhou para nós com astúcia. Ela não nos convidou para sentar.

— Bem. — Disse ela finalmente. — Diga-me qual é a sua proposta.

Embora a mulher não fosse uma bruxa, havia algo muito ameaçador sobre ela. Ela era uma das pessoas mais horríveis que já conheci — e isso diz muito quando você vem de uma aldeia de feiticeiras de Pendle como eu.

— Convoque doze das irmãs primeiro. — Disse Lizzie. — Vou dizer a todas elas enquanto você me conta o que elas dizem.

Betsy Pernil balançou a cabeça.

— Eu não acho que você entende como as coisas funcionam por aqui. Elas não são muito espertas, pelo menos a maioria delas. Então elas me ouvem e fazem exatamente o que eu digo. Eles têm garras e dentes, e eu tenho cérebro.

Ela bateu na cabeça e nos deu um sorriso maligno.

— Então, não me faça perder mais meu tempo. Explique exatamente porque você está aqui! Não adianta tentar passar a perna na Betsy!

O rosto de Lizzie ficou vermelho de raiva e ela começou a murmurar baixinho.

— E não desperdice seus feitiços de Pendle comigo! — Gritou Betsy. — Não tenho magia própria, mas sou protegida pelas irmãs. Seus feitiços não podem me machucar. E tudo o que tenho a fazer é assobiar, e vinte ou mais das que abrigo vão sair daquele fosso e rasgar você e a garota em pedaços. Estou quase decidida a fazer isso de qualquer maneira! Ela se levantou com um salto.

Eu pulei de terror, mas então Lizzie falou.

— Não, ouça-nos... — Sua voz era surpreendentemente gentil, acalmando a mulher. — Eu não sabia como funcionavam as coisas por aqui, mas você nos mostrou. Eu posso ver que você comanda as coisas. Aqui, deixe-me mostrar uma coisa...

Lizzie tirou o ovo do bolso, desdobrou lentamente o pano de seda azul e mostrou a Betsy.

— Há poder nisso, muito poder! — Ela exclamou, os olhos brilhando de excitação.

— Roubei de um caça-feitiço. E um coven poderia obter esse poder para si. Estou oferecendo compartilhar com aquelas que você abriga.

Betsy fez uma careta para Lizzie, seus olhinhos de porco quase perdidos em seu rosto inchado.

— Por que você viria aqui quando poderia compartilhar isso com seu próprio clã em Pendle?

— Tive uma briga com minhas irmãs lá. — Lizzie mentiu suavemente. — Quase enviaram a feiticeira assassina Malkin atrás de mim. Melhor eu ficar longe até que as coisas esfriem um pouco. É por isso que vim até você.

— Você está praticamente morta se eles mandarem Grimalkin atrás de você... — Betsy concordou com a cabeça, a voz suavizando também. — Então, diga-me: o que precisa ser feito para obter esse poder?

— É lua cheia daqui a três noites. — Disse Lizzie. — Para que isso dê certo, precisamos sacrificar sete crianças e pingar seu sangue no ovo. Então, todo o coven que realizar este ritual obterá poder. Cada uma de nós pode fazer qualquer desejo e ele se tornará realidade em sete dias!

Lizzie era astuta. Lembrei-me das palavras exatas do que o ovo havia dito: “Me dê o sangue dos corações de sete crianças humanas na noite de lua cheia. Treze feiticeiras terão que se unir para realizar essa tarefa, e quem é a dona do ovo receberá o que seu coração deseja! Mais poder do que ela jamais sonhou. Uma vez satisfeita a minha necessidade, deixe-a expressar seu desejo e ele será atendido antes de sete dias”.

Lizzie estaria segurando o ovo, e somente ela realizaria seu desejo. As outras seriam enganadas. E para isso, sete crianças seriam assassinadas.


Eu sabia que a Lizzie matava pessoas pelos seus ossos. Eu sabia que ela provavelmente às vezes assassinava crianças — embora ela nunca o tivesse feito na minha frente antes.

Não havia nada que eu pudesse fazer. Se eu fizesse um alvoroço, seriam os meus ossos que ela tomaria. Ela não precisava me explicar. Eu sabia como era.

Mas isto era pior do que tudo o que tinha acontecido até agora.

Sete crianças iriam ser assassinadas para que Lizzie pudesse obter o seu desejo a partir daquele ovo de couro maligno. E desta vez eu estaria bem no meio disso.

Eu seria tão culpada quanto a Lizzie.

Eu nunca quis ser uma bruxa, mas que escolha eu tive?

Gosto de pensar que fiquei chateada na noite terrível em que Lizzie veio me buscar, mas não me lembro de chorar. Minha mãe e meu pai estavam mortos e gelados sob a terra úmida havia três dias, e eu ainda não tinha conseguido derramar uma única lágrima — embora não fosse por falta de tentativa. Tentei me lembrar dos bons tempos, realmente tentei. E houveram alguns, apesar do fato de que eles brigavam feito cão e gato e me estapeavam mais forte do que eles jamais fizeram um contra o outro. Quero dizer, você deveria estar chateada. É sua própria mãe e seu pai que acabaram de morrer, então você deveria ser capaz de derramar pelo menos uma lágrima.

Só muito mais tarde descobri que eles não eram minha mãe e meu pai de verdade, afinal. Não só isso, eles foram assassinados por Lizzie, usando um feitiço que fez o sangue deles ferver e borbulhar em suas veias, de forma que mais tarde pareceria que eles haviam morrido de febre. Ela fez isso para poder me controlar e me ensinar as artes das trevas.

Eu tinha uma tia, Agnes Sowerbutts, e ela foi gentil comigo e me acolheu. Mas Lizzie me queria, então foi assim. Na noite em que ela me buscar, houve uma forte tempestade. Um raio bifurcado rasgou os céus; trovões atingiram as paredes da casa e sacudiram as panelas na cozinha.

Mas isso não se comparava ao que Lizzie fez depois. Fiquei nervosa o dia todo, esperando que ela chegasse, mas Agnes previu que ela só apareceria à noite, seu horário favorito. Finalmente, ela bateu na porta com tamanha violência que seria capaz até de acordar os mortos em decomposição e, quando Agnes puxou o ferrolho, Lizzie Ossuda entrou na sala, o cabelo preto emaranhado da chuva, a água escorrendo de sua capa e caindo nas lajes de pedra. A pobre Agnes estava apavorada, mas ela se manteve firme, corajosamente se colocando entre mim e Lizzie.

Mas eu não era nada corajosa — estava apavorada — tanto que meus joelhos bateram um no outro e solucei tão forte que mal conseguia respirar.

— Deixe a garota em paz! — Agnes disse calmamente. — Essa é a casa dela agora. Ela será bem cuidada, não se preocupe.

A primeira resposta de Lizzie foi um sorriso de escárnio. Dizem que existe uma semelhança de família entre nós, mas eu nunca poderia ter torcido meu rosto do jeito que ela fez naquela noite. Era o suficiente para azedar o leite ou fazer o gato gritar pela chaminé como se o próprio Velho Nick tentasse pegá-lo.

Eu sempre fiz o meu melhor para ficar fora do alcance de minha tia Lizzie. Fazia mais de um ano desde que eu a vi pela última vez e ela estava mais assustadora do que nunca. Mas, no dia anterior, recebemos notícias de que ela queria que eu morasse com ela. Agnes deveria me levar para a cabana de Lizzie, mas eu implorei a ela que não o fizesse, e ela mandou dizer que não faria isso. Nós duas sabíamos que não seria o fim de tudo.

— A garota pertence a mim, Sowerbutts. — Disse Lizzie, sua voz fria e baixa, cheia de malícia. — Compartilhamos do mesmo sangue negro. Devo ensiná-la o que ela precisa saber. É de mim que ela precisa.

Eu sabia que Lizzie queria que eu vivesse com ela, mas não tinha percebido que ela queria treinar-me como bruxa. Isso foi um verdadeiro choque.

Lembro-me de pensar que ela era a última coisa de que eu precisava, mas como disse, fiquei com muito medo e mantive minha boca fechada.

— Alice não precisa ser uma bruxa como você! — Respondeu Agnes. — A mãe e o pai dela não eram bruxos, então por que ela deveria seguir seu caminho sombrio? Deixe-a em paz. Deixe a garota comigo e cuide de seus negócios.

— Há sangue de bruxa dentro dela e isso é o suficiente! — Lizzie sibilou com raiva. — Você é apenas uma estranha e não serve para criar a garota.

Isso não era verdade. Agnes era uma Deane, mas ela havia se casado com um homem bom e honesto de Whalley, um latoeiro. Quando ele morreu, ela voltou para Roughlee, onde o clã de feiticeiras Deane vivia.

— Sou tia dela e serei sua mãe de agora em diante. — Replicou Agnes. Ela falava com ousadia, mas estava terrivelmente pálida. E eu vi seu queixo rechonchudo e suas mãos tremendo de medo.

A esta altura, já me tinha afastado para o canto mais distante da sala, me perguntando se poderia esgueirar-me para a cozinha, alcançar a porta dos fundos e sair correndo. Eu sabia que a discussão entre Lizzie e Agnes não iria durar muito. Eu sabia quem iria ganhar.

Em seguida, Lizzie bateu com o pé esquerdo. Nada mais. Em um piscar de olhos, o fogo morreu na lareira, as velas tremeluziram e se apagaram, e toda a sala ficou instantaneamente escura, fria e assustadora. Ouvi Agnes gritar de terror e eu também gritei, desesperada para fugir. Eu teria corrido pela porta fechada, pulado por uma janela ou até mesmo escalado pela chaminé. Eu teria feito qualquer coisa, apenas para escapar.

Mas eu não consegui mover um músculo, fiquei paralisada de medo.

Eu saí, mas com Lizzie ao meu lado. Ela apenas me agarrou pelo pulso e me puxou para fora. Não adiantava tentar resistir — ela era muito forte e me segurou com força, suas unhas cravando-se na minha pele. Eu pertencia a ela agora, e não havia como ela me deixar ir. E naquela noite ela começou meu treinamento como bruxa. Foi o início de todos os meus problemas.

Foi assim que tudo começou com Lizzie, e meu treinamento foi realmente difícil e desagradável.

Com o assassinato de sete crianças, a situação ficaria muito pior.

Eu estava prestes a dar o primeiro passo para me tornar uma feiticeira malevolente. Se eu ajudasse Lizzie com isso, não haveria como voltar atrás.

Betsy colocou dois dedos na boca e soltou um guincho agudo. Era o suficiente para fazer seus ouvidos sangrarem. Alguma coisa saiu da água e pôs-se de pé no chão macio à sua frente. Água lamacenta se espalhou por toda parte e eu dei um rápido passo para trás.

Era uma feiticeira da água, usando trapos cobertos de resíduos verdes e marrons, o cabelo emaranhado, o rosto sujo de lama. Já tinha visto aquelas garras assassinas antes, mas o que não tinha reparado eram os seus pés mortíferos. A bruxa tinha dedos dos pés palmados, cada um terminando em uma garra afiada. Achei que eles deveriam impulsioná-la rapidamente pela água; ela podia lutar, cortar e matar com todos os quatro membros.

Betsy Pernil começou a falar com ela na língua das feiticeiras da água. A maior parte era constituída por grunhidos e outros ruídos — algo entre um latido e um gato velho cuspindo uma bola de pelo. Mas havia algumas palavras que reconheci: “sangue” e “suga-sangue” eram duas que eu teria esperado que fizessem parte da conversa entre uma feiticeira aquática e a sua guardiã, e ambas foram ditas diversas vezes.

Eu também ouvi o nome “Arkwright” — o que não me surpreendeu. O caça-feitiço local devia ser um perigo sempre presente para essas feiticeiras. Ele as caçava com seus dois cães assustadores e as mantinha longe das ruínas do mosteiro, um lugar sagrado para elas. Havia também o perigo considerável de que um dia ele descobrisse o paradeiro dessa fazenda e acabasse com sua guardiã, espalhando as feiticeiras e dificultando suas atividades como coven. Elas deveriam estar usando uma magia poderosa para encobrir o prédio e impedir os cães de seguir o cheiro de uma feiticeira aqui. Mas por quanto tempo elas conseguiriam manter isso? O uso de magia pode ser muito desgastante; deve exigir uma boa quantidade de sangue.

Em resposta ao longo monólogo de Betsy, a feiticeira da água deu apenas um único grunhido antes de se virar e mergulhar de volta na água quase sem salpicar. Ela nem olhou para nós. Quando ela desapareceu, a guardiã se virou para confrontar Lizzie novamente.

— Está feito. — Disse ela. — Mas primeiro precisamos de crianças. É melhor ter mais do que sete. Extras sempre são úteis, os suga-sangue amam seu doce sangue jovem. Eles serão apanhados no Leste, bem longe do território do caça-feitiço local. Iremos fornecer-lhe doze crianças. Você deve nos trazer a décima terceira. Todos nós contribuímos. Não é justo?

Estremeci, mas Lizzie concordou.

— Sim, isso é muito justo. Eu farei minha parte.

— Então volte aqui uma noite antes da lua cheia e traga seu sacrifício! Mas primeiro vou preparar um jantar para você. Nada como uma boa refeição para fechar um acordo!

Eu não queria comer nada daquela cozinha suja, mas não tinha muita escolha.

— Pernil é o meu sobrenome e pernil é o que eu adoro comer! — Betsy gargalhou como se isso fosse uma ótima piada e, em seguida, pediu que nos sentássemos à mesa suja e distribuíssemos os pratos.

Ela cozinhou o pernil para que derretesse em nossas bocas. O problema era que imediatamente tive um ataque de tosse. O pernil sempre costuma ser salgado, mas esse era quase intragável, e me vi sufocar.

Lizzie mordiscou um pouco, tentando esconder seu aborrecimento por receber pernil tão salgado. Então eu a vi maliciosamente cuspindo debaixo da mesa quando Betsy não estava olhando. As bruxas tinham aversão ao sal. Mesmo na comida, pode ser perigoso. Betsy sabia disso muito bem e estava gostando do desconforto de Lizzie.

A própria Betsy não era uma bruxa. Havia um pequeno pote de sal sobre a mesa e ela não parava de mergulhar os dedos nele e lambê-los com gosto.

Depois de um tempo, Lizzie comentou sobre isso.

— Você certamente gosta de um pouco de sal na comida, Betsy. — Disse ela com um sorriso malicioso e insinuante.

— Sim, sim — respondeu ela. — É por isso que alguns me chamam de Betsy Salgada!

Lizzie e Betsy deram uma boa gargalhada por causa disso, mas assim que se acalmaram, Betsy ficou séria.

— Eu não tenho nenhuma magia própria, como você pôde notar. Nada para mantê-las à distância. E as irmãs pegajosas podem ser engraçadas às vezes. É a sede de sangue que faz isso. Elas podem se virar contra você em um instante. Mas o sal as desencoraja. Portanto, eu como muito. Também o espalho no meu cabelo. Funciona muito bem!

Com aquela refeição o acordo foi selado e, deixando Betsy ainda enchendo a boca com pernil salgado, eu segui Lizzie pela porta em direção ao ar frio da noite.

Lizzie olhou para a lua e para as estrelas desbotadas, e depois fez um círculo lento, seus olhos varrendo a casa, árvores próximas e o horizonte distante a oeste.

— Só fixando este local na minha cabeça, garota. — Ela me disse com um sorriso. — Não faria bem apanhar nosso pirralho e não poder encontrar esse lugar novamente.

Não tínhamos avançado mais de cinquenta passos para o leste antes que a velha fazenda, seu lago e grande monte de terra desaparecessem todos de vista, camuflados novamente por magia negra.

Percorremos cerca de 20 quilômetros antes do amanhecer e depois nos abrigamos da luz do sol em um pequeno bosque. Estávamos a menos de três quilômetros de uma aldeia e havia luzes acesas em algumas casas de fazenda à frente, os fazendeiros já acordados e começando suas tarefas antes do amanhecer.

— Estou faminta, garota! Traga-nos alguns coelhos! — Lizzie vociferou.

Eu ainda estava com fome também, não tendo conseguido comer mais do que um bocado daquele pernil salgado. Assim, peguei, esfolei e eviscerei um par de coelhos e os cozinhei na menor fogueira que pude fazer. Não eram mais do que brasas quando a ponta do sol apareceu no horizonte. Não queríamos que a fumaça denunciasse nossa posição.

Com o estômago cheio, nos acomodamos para dormir. Eu ainda estava pensando em tudo o que havia acontecido nos últimos dias, mas Lizzie já estava deitada de costas, com a boca aberta e roncando. Ocasionalmente, ela murmurava durante o sono e um sorriso lhe partia o rosto. Ela estava sonhando — provavelmente com seu esquema inteligente para enganar as feiticeiras da água e sua guardiã, e ter o poder do ovo de couro só para ela. Mas eu não conseguia dormir, por mais que tentasse.

Eu não conseguia parar de pensar no que estávamos planejando fazer. Assim que a noite caísse, Lizzie voltaria seus olhos para uma das casas da vila e roubaria uma criança de lá. E essa criança morreria — ou como parte do ritual ou para ser drenada por um suga-sangue.

Eu também seria uma assassina.

Lizzie conseguiu dormir durante todo o dia até o pôr do sol. No momento em que a luz do dia começou a desvanecer, ela se sentou, espreguiçou-se, bocejou e cuspiu nas brasas frias e cinzentas da fogueira.

— Bem, garota, vamos em frente. — Disse ela, pondo-se de pé.

Eu a segui para fora das árvores e, mantendo-nos ao abrigo de uma cerca viva, nos aproximamos da mais próxima de duas fazendas.

Lizzie fez uma pausa e cheirou três vezes.

— Aqui não! — Ela exclamou. — Não há ossos jovens; apenas um velho fazendeiro magricela e sua esposa gorda e fedorenta. E eles têm grandes cães de guarda!

Ao mesmo tempo, ouviu-se um latido e Lizzie avançou rapidamente, mantendo-se à distância da ameaça.

Nós nos dirigimos para o nordeste, aproximando-nos da aldeia em uma tangente. Estava escuro agora, e a lua ainda não havia nascido, mas havia luzes que se manifestavam das janelas dos quartos de uma das casas. Estava a uma certa distância das outras, e Lizzie seguiu em sua direção.

Desta vez, depois de parar para cheirar, ela deu uma gargalhada de deleite.

— Apenas uma mulher e sua filha pirralha, não poderia ser melhor! — Ela exclamou. — E nenhum cachorro, também.

Enquanto ela caminhava para a porta da frente, consegui distinguir a silhueta de um gato no degrau.

O pobre animal cometeu dois erros. Primeiro ele sibilou para Lizzie. Isso já era ruim o suficiente. Mas quando ela tentou tirá-lo do degrau com as costas da mão, ele a arranhou e se pendurou nela, as garras cravadas em sua carne.

Mais rápido do que uma cobra, Lizzie agarrou-o com as duas mãos e torceu o animal violentamente. Houve um estalo agudo, como o de um galho quebrando sob os pés. Ela jogou o corpo em uma moita de urtigas. Então ela se ajoelhou e cuspiu na fechadura.

Momentos depois, a fechadura clicou e a Lizzie abriu a porta. Ela entrou e se virou para me encarar.

— Espere por mim ao pé da escada. Se alguém passar por mim, não os deixe sair de casa, entendeu?

Eu acenei com a cabeça, embora meu coração estivesse batendo, e vi Lizzie subir lentamente em direção ao quarto. Estava escuro dentro da casa — as luzes do quarto estavam apagadas agora — e ela desapareceu na escuridão acima. Eu a ouvi abrir uma porta e, de repente, uma criança começou a gritar de terror. Os gritos rapidamente cederam lugar a uma súplica frenética e estridente.

— Mamãe! Mamãe! Ajude-me, por favor! Uma coisa horrível está aqui. Ela me pegou. Me ajude! Me ajude, mãe!

Uma parte de mim sentia pena da criança e queria ajudá-la. Não pude deixar de me colocar no lugar dela e experimentar o terror de ser pega por uma bruxa no meio da noite. Mas não havia nada que eu pudesse fazer.

Ouvi outra porta se abrir e, em seguida, passos pesados. A mãe estava acordada e correndo em direção à filha. Mas que chance ela tinha contra uma bruxa como Lizzie Ossuda?

Houve outro grito terrível — desta vez da mulher — seguido por um baque pesado.

— Você matou a mamãe! — A criança gritou. — Oh, mãe! Mamãe! Minha pobre mãe!

Lizzie havia assassinado a mãe! E na frente da própria filha também! Eu me senti mal do estômago.


— Você será a próxima se não calar sua boca imunda! — Lizzie gritou, e eu a ouvi descendo as escadas na minha direção.

Ela passou, carregando a criança, que soluçava lamentavelmente. Ela era uma coisinha magra, não tinha mais de seis anos. De repente, fiquei com raiva. Corri atrás de Lizzie, agarrei seu braço e a fiz parar. Ela se virou para me encarar, os olhos selvagens de raiva.

— Por que você teve que matar a mãe dela? — Eu protestei. — O resto não é ruim o suficiente sem isso?

Lizzie olhou para mim. Se suas mãos estivessem livres, ela teria me dado um tapa forte, com certeza. Eu estava tremendo de medo com o que tinha acabado de fazer — agarrar o braço dela e gritar assim com ela. É verdade que havíamos conversado antes, mas nunca fui tão abertamente desafiadora.

— Saiba o seu lugar, garota, ou você vai se arrepender! — Ela avisou, sua boca se contraindo perigosamente, mostrando como ela estava perto de me machucar. — Eu somente usei um simples feitiço de dormir nela. A mãe dela não deve estar morta, a não ser que ela tenha quebrado o seu pescoço inútil ao cair. E isso a ensinaria por ela ser tão gorda!

Com isso, ela se afastou em direção ao oeste, no escuro, arrastando a criança que soluçava atrás de si.

Eu realmente queria ajudar aquela garotinha. Mas o que eu poderia fazer contra a magia de Lizzie? Se ela parasse para dormir ou descansar, eu poderia ter a chance de tentar algo, mas seria arriscado: eu pagaria um preço terrível se fosse pega. Provavelmente estava perdendo meu tempo pensando nisso, porque sabia que ela não iria parar até chegarmos ao covil das feiticeiras da água.

Pela manhã, haveria um alvoroço — isso se a mãe se recuperasse dos efeitos do feitiço de Lizzie. Se ela tivesse quebrado o pescoço, poderia levar horas ou até dias antes que os vizinhos encontrassem seu corpo e percebessem que a menina estava desaparecida. Mas sem dúvida as feiticeiras estavam capturando outras crianças agora, e a caça aos sequestradores começaria. Cada pessoa fisicamente capaz por quilômetros ficaria revoltada. Apesar da distância do moinho, eles finalmente alertariam o caça-feitiço, Arkwright. Seus cães e olhos poderiam ficar confusos com a magia de camuflagem, mas toda a área seria revistada. Eu sabia que Lizzie queria chegar a esse refúgio o mais rápido possível.

Voltamos bem antes do amanhecer e descobrimos que a camuflagem da fazenda estava perfeita como sempre. Lizzie fungou e praguejou, estudando as estrelas e o horizonte com frustração por quase uma hora. Eu esperava que ela pudesse entregar a garota para mim — eu poderia fingir que havia tropeçado e permitir que ela fugisse. Mas Lizzie manteve um controle feroz em sua presa a cada segundo do caminho. Finalmente, ela voltou atrás e nos levou a um lugar onde o ar tremeluzia para revelar a casa.

Betsy estava esperando na porta aberta, ela sorriu e acenou para que entrássemos. Enquanto a seguíamos descendo os degraus do porão, ouvi os gritos. A criança que Lizzie carregava ainda soluçava, mas isto era uma lamentação estridente de mais de uma criança: uma cacofonia de sofrimento.

A visão que me saudou naquele porão sombrio me embrulhou o estômago. Havia mais de uma dúzia de novas gaiolas agora — maiores, destinadas a conter crianças, em vez de suga-sangue. Quatro deles tinham ocupantes; um estava dormindo, os outros três chorando de medo. Todos estavam cobertos de lodo e um deles, um garotinho sem dois dentes da frente, estava ensopado.

Havia mais suga-sangue confinados do que da última vez também; seis deles agora, todos olhando para as crianças e se contorcendo de fome.

— Dê ela para mim! — Betsy Pernil exigiu, e Lizzie entregou a menina sem questionar. A mulher gorda a levantou e segurou-a com o braço estendido.

— Uma coisinha magra, mas melhor do que nada! Precisamos alimentá-la! — Ela declarou antes de colocá-la em uma gaiola e encaixar a fechadura no lugar.

— Ainda faltam dois dos sete que precisamos. — Disse Lizzie. — Mas cumpri minha parte no trato.

— Isso você fez. — Concordou Betsy. — Mas não se preocupe, amanhã à noite um grupo das minhas meninas estará a caminho de um lugar onde deverá haver uma boa colheita. É um orfanato administrado por algumas freiras velhas e magras. Logo teremos pirralhos de sobra!

Os próximos dias se tornaram um pesadelo. Lizzie e Betsy estavam se dando muito bem — às mil maravilhas — gargalhando juntas em um quarto do andar de cima e bebericando licor de dente-de-leão. Enquanto elas faziam isso, eu recebia todas as tarefas para fazer, a pior sendo cuidar das crianças que elas haviam roubado.

Eu não queria encará-los; não queria ser confrontada por sua miséria... Mas alguém tinha que fazer isso — eles precisavam ser alimentados e mantidos vivos até o ritual na lua cheia. Lizzie ficaria feliz se eu enfiasse pão velho pelas grades da gaiola e entornasse um copo cheio de água em cada boquinha.

No entanto, eu não poderia deixá-los sentados lá em seu próprio fedor, então lidei com eles um de cada vez, abrindo cada gaiola para deixá-los sair para serem alimentados e limpos.

Uma noite Lizzie me pegou perguntando a uma menina seu nome. Eu estava apenas tentando ser amigável e fazer a criança se sentir um pouco melhor, mas Lizzie zombou de mim.

— Você é uma tola, garota! — Ela sibilou no meu ouvido, dando um sorriso falso para a criança.

— Por que perder seu tempo aprendendo o nome dela quando ela estará morta em breve? Seria melhor se você estivesse estudando seus feitiços.

Mas depois que Lizzie foi embora, continuei como antes. Também dei dez minutos para cada criança andar e esticar um pouco as pernas. A maioria fungou e soluçou, enquanto olhavam para os suga-sangue enjaulados de boca aberta, claramente apavoradas com as criaturas.

Poucas horas antes da meia-noite, no dia em que elas deveriam ser sacrificadas, eu estava limpando a menina que Lizzie havia sequestrado. Ela não parava de falar e suas palavras eram dolorosas de ouvir:

— A mamãe está morta! Ela a matou. Atirou-a ao chão, morta! — Lamentou ela.

— Ela não está morta. — Tentei fazer minha voz o mais suave e reconfortante possível. — Foi apenas um feitiço para fazê-la dormir. Ela já deve ter acordado. Então não se preocupe. Sua mãe está bem.

— Ela bateu com a cabeça ao cair. Fez um grande baque. Havia sangue escorrendo de seu ouvido. Eu vi.

— Ela vai se recuperar. Sua mãe é forte. Vai precisar mais do que uma pancada na cabeça para acabar com ela — insisti, pegando sua mão.

Apesar das minhas palavras tranquilizadoras, comecei a me perguntar se a mãe da menina poderia realmente estar morta. Não gostei do que ela disse sobre sangue escorrendo de sua orelha. De volta a Pendle, uma vez vi um menino escalar uma grande árvore, incentivado por seus amigos. Ele escalou muito alto, em um galho fino que não suportou o seu peso. Ele se partiu e o menino mergulhou em direção ao chão, batendo com a cabeça em uma pedra. Ele sangrou pelas duas orelhas e nunca mais acordou. Eles o carregaram para casa e ouvi que ele morreu logo depois.

— Mas e se mamãe estiver machucada e não puder andar? Ela pode morrer de sede sem ajuda. Ela pode estar morrendo agora!

Com isso, a menina soltou sua mão da minha e correu para a porta. Consegui alcançá-la antes que ela chegasse ao topo da escada. Ainda bem que fiz, ou teria me arrependido amargamente. Ela chutou e gritou enquanto eu a carregava de volta para sua gaiola, tranquei-a lá dentro e fui forçada a alimentá-la através das grades.

— Qual é o seu nome? — Perguntei quando ela finalmente se acalmou.

— Emily. Meu nome é Emily Jenks. — Ela respondeu com uma fungada.

— Bem, Emily, não precisa se preocupar. Sua mãe vai ficar bem.

— Será que algum dia a verei novamente?

— Claro que você vai.

— Talvez fosse melhor se mamãe estivesse morta. — Disse Emily, suavemente.

— Por que você diz isso? — Perguntei.

— Porque então eu a verei novamente. Estaremos juntas novamente quando ambas estivermos mortas.

— Não seja boba, você é apenas uma criança. Vai demorar muito antes de você morrer. — Menti.

— Não foi isso que a senhora gorda disse. Ela disse que seríamos entregues a essas coisas horríveis! — Emily chorou, apontando através das barras em direção à gaiola do suga-sangue mais próxima; o ocupante estava olhando para nós com evidente interesse. — Ela disse que isso enfiaria seu focinho comprido e afiado em nós e sugaria nosso sangue até que nossos corações parassem de bater.

Algumas das crianças mais próximas ouviram isso e começaram a chorar. Fiquei chocada. As crianças já estavam assustadas o suficiente. Por que piorar, dizendo a eles que morreriam de uma maneira tão horrível?

Que tipo de monstro era Betsy Pernil? Em alguns aspectos, ela era muito pior do que as feiticeiras que mantinha. Sem ela, a matança seria aleatória e menos frequente. Ela organizou as feiticeiras da água e fez com que a matança de inocentes acontecesse em uma escala maior. Claro, desta vez Lizzie tinha começado isso, buscando o poder daquele ovo.

— Olhe, isso não vai acontecer. — Eu disse, esperando que uma das bruxas cacarejantes do andar de cima não decidisse de repente fazer uma visita às crianças. — Ela só está tentando assustar você.

— Então por que vocês me roubaram da minha mãe e me trouxeram aqui? E por que essas criaturas nas gaiolas estão olhando para nós o tempo todo. Elas estão com fome? Elas querem nosso sangue? — Emily gritou.

Eu era tão culpada quanto Lizzie.

— Não se preocupe, eles não vão tirar o seu sangue. — Eu disse.

— Mas a gorda disse que sim.

— Não é verdade. Eu não vou deixar isso acontecer.

— Você é apenas uma garota. O que você pode fazer? As feiticeiras são ferozes, com grandes dentes e garras, e há muitas delas!

Eu pensei por um momento antes de responder. Até agora, eu apenas tentei ser alegre e otimista; para dar esperança à criança. Então, as palavras simplesmente fluíram de minha boca como se minha resposta tivesse vindo de outra pessoa.

— Eu sou Alice e não vou deixar que elas te machuquem: posso impedi-las. Eu posso e vou!

Devo ter dito isso com verdadeira convicção, porque os olhos da menina se arregalaram e sua boca abriu de espanto. Pela primeira vez ela parecia calma.

Terminada a tarefa no porão, subi de volta os degraus até o térreo. Ouvi Lizzie e Betsy ainda conversando e rindo juntas no andar de cima. Não conseguia suportar a visão de nenhuma delas, então saí para o quintal e fiquei olhando para o lago por um tempo, pensando nas coisas.

Como fui tola ao afirmar que poderia evitar que a criança se machucasse. O que eu realmente posso fazer? Eu me perguntei.

Coisa nenhuma! Nada mesmo!

Não... isso não era bem verdade. Em poucas horas, todas essas crianças estariam mortas, mas eu poderia fazer algo por mim mesma. Eu poderia fugir deste lugar terrível para que, quando morressem, eu não estivesse mais aqui. Eu não seria uma assassina, então.

Não só isso — eu poderia escapar de Lizzie. Dessa forma, eu não teria que me tornar uma feiticeira.

Mas o quanto ela me queria de volta? Na última vez ela soube que eu estava com Agnes Sowerbutts. E Agnes não fora forte o suficiente para me proteger de uma feiticeira malevolente tão forte. Mas desta vez eu poderia fugir para longe de Pendle, e Lizzie não saberia para onde. Mesmo se ela conseguisse adivinhar meu paradeiro, ela estaria muito ocupada manejando o poder daquele ovo de couro para se preocupar comigo.

Então, por que perder tempo? Melhor ir agora, neste exato minuto.


Sem olhar para trás, deixei o pátio e caminhei para o leste, de volta na direção do canal. Eu pretendia segui-lo para o sul, mas não iria em direção a Pendle. Eu continuaria até estar muito além do Condado. Eles disseram que o tempo estava mais quente no Sul e que não chovia tanto. Seria bom ter um pouco mais de sol no rosto. Eu odiava esse clima úmido e tempestuoso do Condado.

A luz estava começando a desvanecer, então o sol deveria estar muito próximo ao horizonte. Não que houvesse muita chance de vê-lo. Nuvens baixas e cinzentas vinham do Oeste. Logo choveria.

Não senti meu ânimo melhorar, nenhuma felicidade ao pensar que estava deixando minha antiga vida para sempre. No meu peito, onde deveria estar meu coração, havia um pedaço de chumbo frio que tornava difícil respirar. Continuei vendo os suga-sangue famintos e aquelas crianças assustadas em suas gaiolas. Sete delas seriam sacrificadas para liberar o poder do ovo; o restante seria dado a aquelas criaturas sanguinárias.

Quanto mais eu andava, pior me sentia. Mesmo se eu estivesse a muitos quilômetros de distância enquanto eles matavam aquelas crianças, ainda seria culpada, não seria?

Eu mantive vigilância enquanto Lizzie pegou a criança e machucou — talvez tenha até matado — a mãe. Havia mais de um tipo de culpa: você poderia fazer algo horrível de que mais tarde iria se arrepender. Mas você também poderia se sentir culpado por algo que não fez! Se eu não ajudasse as crianças de alguma forma, essa culpa ficaria comigo para o resto da minha vida.

Algo me atingiu como um raio. Eu poderia ir contar a Arkwright, o caça-feitiço, e levá-lo até as crianças. Eu poderia levá-lo através da ilusão mágica, direto para a casa.

Mas isso seria muito arriscado. Ele poderia presumir que eu era uma bruxa e me colocar em uma cova ou me matar à primeira vista! Mesmo assim, havia uma chance. Eu poderia ser capaz de persuadi-lo do perigo que as crianças enfrentavam; e eu era a única que poderia guiá-lo através da ilusão mágica para salvá-las...

Uma vez lá, eu poderia fugir enquanto ele cuidava das feiticeiras e daquela porca nojenta da Betsy Salgada. Sem dúvida, Lizzie escaparia; ela era astuta e tinha mais vidas do que um gato.

Sim, isso é o que eu faria, pensei. Então, fui mais rápido em direção ao canal. Assim que o alcancei, o moinho ficava apenas um pouco mais ao norte.

Eu não poderia estar a mais do que cinco minutos do canal quando começou a chover muito forte — o tipo de aguaceiro que pode ensopar você até os ossos em minutos. Em seguida, um raio bifurcado de repente dividiu o céu, sendo seguido momentos depois por um trovão alto quase diretamente acima. Isso me lembrou daquela forte tempestade na noite em que Lizzie me arrebatou da casa de Agnes.

Sempre tive medo de ser atingida por um raio. Isso me assustava quase tanto quanto aranhas e moscas. O clã Malkin já foi pego por uma forte tempestade na serra de Pendle. Um deles foi morto no local. E quando eles carregaram seu corpo de volta para a aldeia, estava todo enegrecido e queimado. Aconteceu antes de eu nascer, mas dizem que o fedor de seu corpo carbonizado pairou no ar por semanas depois.

Onde eu poderia me abrigar? Havia algumas árvores isoladas, mas era perigoso refugiar-se debaixo delas, e a cerca viva próxima não me manteria seca por muito tempo ou a salvo de raios.

Estava quase escuro e ao longe enxerguei uma luz fraca — parecia vir do Sul do canal. Isso provavelmente significava uma fazenda. Talvez eu pudesse me abrigar em um dos prédios externos. Sem dúvida haveria cães — eles sentiriam meu cheiro e latiriam alto o bastante para acordar os mortos — mas o fazendeiro provavelmente não se aventuraria em um clima tão desagradável depois de escurecer.

Então comecei a andar mais rápido, atravessando duas grandes porções de terra e escalando um portão, o tempo todo seguindo direto para aquela luz.

Por culpa da cobertura das nuvens, não havia lua nem estrelas para iluminar meu caminho, e a chuva estava batendo horizontalmente em meu rosto, tornando difícil ver muito além. Então, foi só quando cheguei muito próxima da luz que percebi meu erro.

Sua fonte não provinha uma janela de casa de fazenda ou uma lanterna pendurada na porta de um celeiro.

Vinha de uma barcaça atracada no canal.

Parei no caminho à beira rio e olhei para ela. Era grande, preta e brilhante, muito diferente das embarcações de trabalho que normalmente navegavam no canal, carregando comida, carvão e outros materiais entre Caster e Kendal. Tinha um convés plano e uma escotilha fechada.

Então olhei para a fonte da luz que me atraíra pelos campos como uma mariposa tola para a chama que iria consumi-la. Na proa estavam treze grandes velas pretas: elas queimavam continuamente sem a menor oscilação, apesar das rajadas de vento que arrancavam o fôlego de minha boca aberta. Ainda estava chovendo forte, agitando a superfície do canal, mas nenhuma gota atingiu o convés daquela barcaça misteriosa.

As velas me incomodaram. As pretas eram usadas por feiticeiras — elas me faziam pensar nas trevas. Mas a barcaça era muito grande e bonita, o que me fez deixar de lado a maior parte dos meus temores.

Eu estava enraizada no lugar, incapaz de desviar meu olhar das velas e fugir. Então, com o canto do olho, percebi um movimento. Finalmente me virei e vi que a escotilha estava lentamente se abrindo.

Fiquei espantada com o que foi revelado. Havia degraus que levavam para baixo — muitos degraus. Os canais não eram profundos, portanto, as barcaças eram de fundo plano. Estes degraus desciam demais. Era impossível, mas eu podia vê-los ali na minha frente.

Qualquer pessoa com um pingo de bom senso teria se virado e fugido. Mas eu não estava pensando direito. Senti-me obrigada a pisar no convés daquela barcaça preta e descer para aquele porão profundo. E foi o que eu fiz, como se estivesse caminhando em um sonho.

Um sonho? Pensando melhor, foi um pesadelo!

Além de dezenas de velas posicionadas em grupos, havia apenas um objeto naquele grande porão: um grande trono de madeira escura e brilhante. Estava coberto de esculturas de criaturas de aparência maligna — dragões, cobras e todos os tipos de monstruosidades. Mas o trono estava desocupado; não havia mais ninguém no porão — pelo menos ninguém que eu pudesse ver. Os cabelos da minha nuca começaram a se arrepiar e eu senti como se alguém estivesse me observando. Mesmo assim, avancei e fiquei de frente para o trono vazio.

Quem se sentaria em um trono assim, afinal?

Eu não havia dito essas palavras em voz alta, mas imediatamente obtive uma resposta à minha pergunta.

— Um bom amigo seu se sentaria naquele trono se pudesse, Alice. Eu sou esse amigo. Um dia, com sua ajuda, isso pode ser possível.

Eu estava confusa. Eu não tinha bons amigos. As palavras vieram de alguma distância atrás do trono. Era uma voz jovem; a de um menino.

— Como você sabe meu nome? — Perguntei.

— Eu sei seu nome tão bem quanto sua situação, Alice. Sei que você serve a Elizabeth dos Ossos de má vontade e teme o que ela possa fazer em breve a várias crianças inocentes.

Nunca a tinha ouvido ser chamada por esse nome, mas sabia que ele se referia a Lizzie Ossuda.

— Quem é você? E como você sabe tanto sobre mim? — Perguntei nervosamente. Notei que enquanto as chamas das velas no convés ardiam continuamente apesar da tempestade, aqui, na perfeita calma do porão, elas tremeluziam descontroladamente, como se em resposta a algum vento fantasmagórico.

— Eu sou um príncipe invisível deste mundo e é meu dever saber tudo sobre meus súditos. Eu posso te ajudar, Alice. Tudo que você precisa fazer é pedir.

— Onde você está agora? Eu poderia te ver?

— Estou longe, mas você pode ver minha imagem por um momento. Olhe diretamente acima do trono. Mas não pisque — ela não pode ficar aqui por muito tempo!

Conforme solicitado, olhei para um ponto logo acima daquele trono de ébano brilhante. Por um momento nada aconteceu, mas então houve um vislumbre e um rosto, sem corpo, apareceu diante de mim.

Era o rosto de um menino de cerca de treze ou quatorze anos — pouco mais velho do que eu. Ele tinha um sorriso largo e seu cabelo era uma massa de cachos dourados que brilhavam à luz das velas. Ele era bonito de se ver: era claro que ele cresceria e se tornaria um rapaz muito bonito. Não só isso: bondade e amizade irradiaram para mim. Eu senti como se ele realmente se importasse com o que acontecia comigo; como se ele fosse fazer qualquer coisa que pudesse para me ajudar. Ninguém nunca se importou muito comigo — exceto Agnes, talvez. Minha mãe e meu pai foram cruéis comigo e eu não tinha convivido muito com Agnes de qualquer maneira. Então aqueceu meu coração ver alguém me olhando assim. Senti que minha vida poderia começar bem se ele fosse meu amigo.

— Você poderia me ajudar, por favor? — Eu me peguei dizendo. Todo o medo e nervosismo haviam me deixado. Eu me sentia feliz e certa de que de alguma forma as coisas acabariam bem.

— Eu quero ajudar essas crianças. Eu estava indo ver Arkwright, o caça-feitiço, e levá-lo para a casa onde as crianças estão presas.

— Você não precisa perder seu tempo procurando a ajuda de um caça-feitiço — ele respondeu enquanto sua imagem desbotava e desaparecia. — Olhe dentro de você. Você tem força e poder para fazer o que quiser! Você não precisa de ninguém além de você mesma!

Recordei do Teste em Pendle; o momento em que uma jovem bruxa em potencial é testada para ver quais são seus pontos fortes e que tipo de magia ela deve usar. A minha experiência havia sido terrível, acabara mal. Mas eu havia aprendido com ela que um dia eu poderia me tornar muito poderosa. Agora eu estava ouvindo novamente. Será que eu poderia começar a acreditar nisso?

— O que posso fazer contra todas aquelas feiticeiras ferozes? — Perguntei. — Lizzie sozinha daria conta de mim em segundos. Ela já esqueceu mais feitiços do que eu consegui aprender até agora. E quanto aos dentes afiados e garras das outras? O que eu tenho para equiparar isso?

— Equiparar? Você pode ultrapassá-las com facilidade. Como eu disse, o poder está dentro de você. Procure-o agora! Procure dentro de si mesma! — Continuou a voz desencarnada.

— Como posso fazer isso? — Perguntei.

— Comece fechando os olhos... — Disse a voz, suavemente.

Eu obedeci, ansiosa para aprender. Não seria maravilhoso ser poderosa e não passar minha vida assustada? Pensei.

Eu podia ver a luz cintilando através do sangue dentro de minhas pálpebras.

— Relaxe e deixe se levar! — Comandou a voz. — Mergulhe na escuridão, bem no fundo de si mesma.

Por um momento, lutei contra essa instrução. A ideia de mergulhar na escuridão era assustadora. Mas eu já estava me movendo; era tarde demais. Afundei lentamente no início, depois cada vez mais rápido. Deixei meu corpo pesar e caí, como uma pedra chutada em um abismo, antecipando algum impacto terrível quando chegasse ao fundo. Eu estava apavorada. Eu estava perdida e prestes a ser destruída. Por que eu dei ouvidos a esse garoto?

Mas não houve nenhum golpe, nenhuma colisão. Em vez disso, me vi flutuando na escuridão, totalmente em paz. E de repente descobri o poder de que o belo rapaz havia falado. Estava dentro de mim, parte de mim; algo que eu possuía. Era algo com que nasci. Até aquele momento eu não sabia que possuía tal força. Considerando que antes eu me sentia vulnerável, propensa a ser empurrada e machucada por aqueles ao meu redor, agora eu não tinha dúvidas de que tinha força para contra-atacar.

— Veja, você não precisa de feitiços, Alice, mas fale-os se eles deixarem você confortável. Tudo o que você precisa fazer é concentrar sua mente e exercer sua vontade! Deseje o que quiser. Diga a si mesma: “Meu nome é Alice”. Então seja Alice. Nada pode então se opor a você. Você acredita em mim?

— Sim! Sim, eu acredito! — Exclamei. Era verdade. Eu tinha fé absoluta no que a voz prometia. Quando prometi à pequena Emily que a impediria de ser machucada, as palavras saíram de mim sem pensar antes. E eu realmente acreditei no que disse a ela. Talvez porque, no fundo, uma parte de mim já sabia que eu possuía o poder de fazê-lo acontecer?

— Então vá em paz e faça o que deve ser feito para salvar aquelas pobres crianças. Um dia nos encontraremos novamente, e então você poderá me ajudar.

Em um instante, eu estava vagando feliz na escuridão absoluta; no seguinte, eu estava parada no caminho do canal na chuva com o trovão ribombando lá em cima.

A barcaça havia desaparecido.

Sem hesitar, com a terrível certeza de que poderia intervir e resgatar aquelas crianças das feiticeiras, parti para o leste em direção à casa de Betsy Salgada.

Eu parti imediatamente — mas será que eu chegaria tarde demais?


Eu estava ensopada no momento em que estava no meio do caminho, meu cabelo encharcado e meus sapatos pontudos chiando na grama encharcada. E enquanto eu caminhava, a confiança e determinação que tinham vindo a mim no canal lentamente se desvaneceram.

Agora, a barcaça e seu estranho ocupante não pareciam nada além de um sonho. Isso realmente acontecera? Se assim fosse, aquilo em que acreditei na hora agora parecia tolice. Lizzie era uma bruxa malevolente muito forte. Pensei nas larvas que ela poderia invocar do escuro para me atormentar. Elas geralmente apenas arranhavam e beliscavam um pouco, mas a ameaça do pior estava sempre lá. Uma delas certa vez se enfiou para dentro da minha narina esquerda. Se eu não tivesse gritado por misericórdia para fazer Lizzie ceder, ela poderia ter rastejado até o meu cérebro e começado a se alimentar. Poderia desobedecê-la? Eu me perguntava.

Não havia estrelas visíveis, então eu não tinha certeza da hora, mas tinha que estar se aproximando da meia-noite. Andei ainda mais rápido, até começar a correr.

Onde era a casa? Devia estar perto agora. Então eu lembrei como tinha sido difícil até mesmo para Lizzie encontrá-la. E ela tinha estudado o horizonte a fim de notar sua posição. Eu tinha feito o mesmo, mas havia sido à luz do dia; agora era noite, as nuvens baixas e a chuva obscureceram tudo. Não só isso, a camuflagem mágica era muito forte.

Eu fiquei desesperada. A esta altura, as bruxas já poderiam ter começado a matar as crianças. Onde ficava a casa?

Apareça! Pensei desesperadamente. Apareça!

E de repente, iluminada por um relâmpago, a casa apareceu.

Não foi como se eu tivesse tido sorte e tivesse tropeçado no disfarce por acaso. Por causa da chuva e da má visibilidade, como um pequeno barco batalhando contra uma tempestade, eu tinha me desviado do curso. Estava a cerca de duzentos passos à minha esquerda. Eu estava prestes a passar direto por ele.

Eu tinha de alguma forma rompido aquele poderoso véu mágico com minha vontade? Eu havia recorrido à magia dentro de mim sem nem mesmo murmurar um feitiço, assim como o garoto na barcaça me disse que eu poderia?

Eu me virei e comecei a correr em direção à casa. Talvez eu não tivesse chegado tarde demais, afinal...? Mas o que eu faria quando chegasse lá?

Com suas janelas cobertas por tábuas, a casa parecia estar na escuridão, apenas um contorno contra as nuvens. Mas eu sabia que lá embaixo no porão, velas e tochas cintilantes iluminariam uma cena de horror.

O relâmpago brilhou de novo quase diretamente acima, mostrando a superfície do lago agitado sob a força da chuva, que martelava no telhado e descia em cascata das calhas sobrecarregadas.

Cheguei à porta da frente e testei a maçaneta. Ela girou, mas a porta resistiu à minha pressão. Elas a haviam trancado. Inclinei-me para frente, me preparando para cuspir na fechadura e usar o feitiço de abertura. Lizzie tinha dominado isso, mas minha compreensão disso era incerta. Eu não o tinha usado sozinha antes. Mas depois me lembrei do que o garoto a bordo da barcaça havia dito:

— Você não precisa de feitiços, Alice, mas fale-os se isso te deixar confortável. Tudo que você precisa fazer é concentrar sua mente e exercer sua vontade! Deseje o que quiser. Diga a si mesma: “Meu nome é Alice.” Então seja Alice. Nada pode então se opor a você. Você acredita em mim?

A casa se revelou em resposta ao meu comando. Então, endireitando minhas costas, olhei para baixo, concentrada, para a fechadura.

— Abra! Ordenei.

Houve um clique, e em obediência ao meu desejo, a fechadura girou. Eu gostei daquilo. Isso me fez sentir no controle. Isso me fez acreditar que talvez eu pudesse resgatar essas crianças apesar das grandes probabilidades contra mim.

Abri a porta e entrei, fechando-a suavemente atrás de mim. Estava escuro lá dentro, mas lembrei-me do caminho para os degraus do porão. Esperei por um momento antes de descer, meu senso de urgência temporariamente sobrecarregado pela nova onda de medo que me lavou.

Mas os sons que ouvi de baixo estimularam meus pés a começar uma descida rápida. Havia lamentos de medo; uma criança gritou como se estivesse a um passo de perder sua vida.

Quando cheguei ao pé dos degraus de pedra, esperei por um segundo ou dois, analisando a cena diante de mim. Parecia que as feiticeiras da água tinham decidido começar coletando sangue dos suga-sangue a fim de aumentar seu poder. Sete das crianças ainda estavam em suas gaiolas. Elas devem ser as escolhidas para o ritual com o ovo de Jacob Stone mais tarde. Outras seis já estavam presas no chão do porão; um suga-sangue estava sendo liberado de sua gaiola enquanto eu observava tudo.

Algumas das feiticeiras da água estavam reunidas em torno das crianças aterrorizadas. Contei-as rapidamente, observando suas posições; haviam doze, fazendo Lizzie o décimo terceiro membro do coven temporário. Ela estava sentada em um banquinho segurando o ovo de couro em seu peito, um sorriso de satisfação no rosto. Outras feiticeiras estavam na água, claramente apreciando os procedimentos. Algumas surgiram como focas excitadas, apenas para mergulhar de volta com quase nenhuma ondulação. Ninguém parecia estar olhando na minha direção.

Mas onde estava Betsy Salgada? Não havia sinal dela.

Eu tinha analisado tudo com pouco mais do que um olhar. Eu me senti afiada e alerta. Então notei que o suga-sangue estava avançando em direção a uma das crianças. Ele correu para a frente, suas pernas articuladas num borrão, tubo de osso levantado, pronto para mergulhar no pescoço de sua primeira vítima aos gritos.

Eu tinha que fazer algo rapidamente...

Raiva e repulsa me enchem.

Eu me concentro.

Olho fixamente para a criatura que avança.

Eu quero afastá-lo da criança. Empurro-o com minha mente.

Ele é jogado para trás, bem alto no ar, como se fosse agarrado por uma mão gigante invisível. Ele para de forma impossível perto do teto; flutua lá como se o tempo estivesse congelado; em seguida, é arremessado violentamente contra a parede oposta do porão.

O suga-sangue bate contra as pedras, sua cabeça se parte com um estalo forte. Ele desliza para baixo como um inseto esmagado, deixando um rastro viscoso de sangue e miolos, depois mergulha na água com um respingo alto e rapidamente desaparece de vista.

Há um momento de silêncio.

As crianças param de chorar; os gritos pausam.

Todas as feiticeiras se voltam para olhar para mim, ódio e raiva gravados em seus rostos.

É Lizzie quem ataca primeiro. Segurando o ovo em sua mão direita, ela corre em minha direção, os dedos de sua outra mão estendidos como se quisesse arrancar meus olhos.

Espero calmamente, tomando um fôlego profundo e lento.

Eu não estou com medo.

Meu nome é Alice.

Eu me afasto e a mão de Lizzie erra meu rosto. Eu estendo meu pé. Ela tropeça nele, caindo de cabeça no chão lamacento do porão. O ovo de couro escorrega de sua mão e rola para longe, direto para a borda da água.

As crianças estão em silêncio.

São as feiticeiras que gritam agora. Elas gritam de raiva.

Eu olho para Lizzie, que está esparramada na lama. Ela me encara com ódio. Sua boca se torce em um sorriso de escárnio.

Ela ainda é uma ameaça, e eu vou ter que lidar com ela muito em breve.

Mas são as feiticeiras da água que representam o perigo mais imediato. Loucas de raiva, elas correm para mim, com suas presas e garras. Elas têm uma força tremenda — poderiam me rasgar membro a membro, devorar minha carne, beber meu sangue e mastigar meus ossos em fragmentos.

Elas poderiam. Mas eu não vou permitir isso.

Não tenho minhas próprias garras. Meus dentes são dentes comuns. Não tenho lâminas à minha disposição...

Eu tenho apenas minha magia.

E há mais de uma maneira de usá-la.

Eu gostaria de ter as habilidades de outra pessoa — alguém mais capaz de lidar com esta ameaça.

Tiro meus sapatos de bico fino e seguro um em cada mão. Seus calcanhares serão minhas armas. Tudo que eu preciso é de habilidade. Por isso, manipulo minha magia e a reúno para mim. Eu exerço minha vontade. Agora tenho a capacidade inata e a habilidade aperfeiçoada do maior guerreiro. Sinto-a transbordar em meu corpo.

Meu nome é Alice.

A primeira feiticeira da água me alcança. Eu me afasto e bato forte com o salto do meu sapato pontudo. Ela cai. Ela agora tem um terceiro olho na testa; um vermelho, pingando sangue.

Eu giro e rodopio, fazendo a dança de Grimalkin; a dança da morte. E eu ataco à esquerda, à direita e à esquerda novamente. Cada golpe selvagem faz contato. Cada golpe derruba uma inimiga. E eu desejo que elas fiquem apavoradas. Essa é a minha vontade.

Logo elas estão fugindo.

Algumas mergulham na água e escapam por ali. Outras correm pelos degraus.

Eu me sinto tão forte. Mesmo a ameaça de Morwena não me diz respeito. Deixe-a vir. Eu vou lidar com ela também!

Mas Morwena não aparece. É quase uma decepção...

Agora só Lizzie permanece.

Ela se levanta com dificuldade, coberta de lama.

O momento do acerto de contas chegou.

Algo dentro de mim quer matá-la. Ela é uma assassina, uma caçadora de crianças inocentes. O mundo seria um lugar muito melhor sem ela. Eu reúno minha vontade, mas então eu hesito. Eu não posso fazer isso.

Ela é da família. Não vou tirar a vida dela.

Então eu me lembro o que ela fez comigo e eu sorrio.

As larvas! Usarei as larvas para atormentá-la!

Posso fazer isso? Obedecerão ao meu comando? Minha magia é tão forte assim? Usando minha vontade, eu as convoco do escuro. Cheias de fome, elas surgem em nosso mundo.

Eu lanço-as em Lizzie.

Quando saio com as crianças, ela está com sérios problemas...

Ela está gritando.

Uma larva já está tentando entrar no ouvido dela. Ela está lutando desesperadamente, em vão. Outra está abrindo caminho até a narina esquerda. Então eu coloco um limite nas coisas. Dou-lhe cinco minutos antes que as larvas voltem à escuridão.

Em seguida, olho para onde o ovo está equilibrado na borda da plataforma lamacenta. Caminho em direção a ele. Mas então algo estranho ocorre. Algo se contorce para cima; um membro longo e fino, multiarticulado.

Reconheço-o imediatamente.

É a perna dianteira de um suga-sangue. Deve ter ficado à espreita na água. O membro se move em direção ao ovo de couro.

Eu avanço para agarrá-lo. Deve ser mantido seguro, longe das garras de Lizzie.

Mas então eu paro e relaxo.

Deixe o suga-sangue levá-lo. Será mais seguro fora do alcance de Lizzie...

No entanto, considero que as feiticeiras da água ainda podem ser capazes de localizá-lo e recuperá-lo...

Eu hesito por tempo demais.

O membro agarra o ovo de couro e o puxa para baixo, sob a superfície, com pouco mais do que uma ondulação. É uma coisa estranha para o suga-sangue fazer. Por que ele quer o ovo? Eu afasto isso da minha mente. As crianças devem ser devolvidas para suas casas...

Enquanto eu saía da casa, percebi que ainda estava chovendo. Mas as crianças não pareciam se importar. Quando olhei para elas, vi que a maioria estava conversando animadamente, felizes por estarem longe das feiticeiras e dos suga-sangue assustadores.

Algumas voltariam para suas famílias; outras para o orfanato. Eu me perguntei se elas eram felizes lá.

Então notei Emily, a garota cuja mãe Lizzie havia atacado. Ela não estava falando com ninguém. Resolvi voltar, pegá-la pela mão e pedir que caminhasse ao meu lado. Mas de repente eu estava distraída.

Quando passamos pelo lago, uma figura saiu das sombras e correu em minha direção. As crianças se dispersaram, mas eu mantive minha posição.

Era Betsy Pernil.

— Você estragou as coisas para mim, garota! — Disse ela, cuspindo suas palavras em fúria, seus olhos de porco quase saltando de sua cabeça. — Não posso usar magia, mas essa era a minha única chance de ter esse tipo de poder. Minhas garotas teriam me dado de bom grado! Você tirou isso de mim!

Ela tinha uma longa lâmina curva na mão direita, e eu não tinha dúvida de que ela pretendia me matar. Ela estava quase dentro do alcance de ataque. A morte estava em seus olhos, então me defendi instintivamente. Usando magia, eu a empurrei para longe de mim.

Ela voou de volta, no ar, de ponta-cabeça, e caiu no lago com um barulho alto.

Momentos depois, ela veio à superfície, cuspindo e arfando. Ela começou a agitar os braços e seu rosto se encheu de pânico.

Percebi que ela não sabia nadar.

Era estranho pensar que ela era uma guardiã das feiticeiras da água e que seu ambiente natural poderia ser sua morte. Eu me senti dilacerada. Eu poderia usar minha magia novamente para salvá-la. Mas para que eu a salvaria? Para que ela pudesse organizar suas feiticeiras de novo? Para que outras crianças morressem?

Angustiada, presa entre ação e inação, eu não fiz nada. Observamos em silêncio da margem enquanto ela lutava e finalmente desaparecia de vista.


Depois que Betsy Pernil se afogou, levei as crianças para casa.

Ao nos aproximarmos do primeiro vilarejo, vi homens descendo a rua principal carregando tochas. Alguns estavam armados com porretes; um, provavelmente um ex-soldado, tinha uma espada em seu cinto. Sem dúvida, eles eram um grupo de busca.

Eu não queria chegar muito perto. Meus sapatos pontudos me identificariam como uma feiticeira, e eles poderiam pensar que eu havia participado dos sequestros — o que, com uma pontada de culpa, reconheci que era verdade.

— Esses são meu pai e meu tio! — Um garotinho exclamou, um sorriso se alargando em seu rosto.

— Vão até eles! — Ordenei às outras crianças. — Eles irão levá-los para casa.

Alguns correram em direção às figuras distantes ansiosamente, enquanto outros caminharam atrás com muito menos entusiasmo. Eu coloquei minha mão no ombro de Emily.

— Você vem comigo. — Eu disse suavemente. — Eu mesma irei te levar para casa.

Ela veio comigo, feliz. Segurei sua mão, saímos do caminho e contornamos o vilarejo antes de irmos em direção à aldeia onde Lizzie a raptou.

Ao nos aproximarmos de sua casa, percebi que estava escuro. Isso não era promissor. Claro, sua mãe poderia ter ido se juntar a outro grupo de busca, ou ela poderia estar com amigos ou familiares.

Mas então ficou pior. Eu vi que a porta da frente ainda estava destrancada.

Eu a abri e lentamente subi as escadas, Emily nos meus calcanhares. Nenhuma de nós disse nada, mas ela começou a chorar baixinho. Nós duas temíamos o pior.

Quando alcançamos a escuridão do quarto, ouvi alguém respirando. Os sons eram ásperos, sugerindo que estávamos ouvindo uma intensa luta para puxar o ar para os pulmões que precisavam desesperadamente dele. Enfiei a mão no bolso e tirei o toco de vela que sempre carregava. Murmurei um feitiço por hábito, percebendo ao fazer isso que as palavras eram desnecessárias. A vela ganhou vida.

A mãe de Emily estava de quatro, olhando para nós. Não havia nada em seus olhos que me dissesse que ela reconhecia sua própria filha. Ela tentou falar, mas só saiu algo sem sentido.

Então ela tentou se levantar, mas imediatamente caiu sobre as mãos e os joelhos novamente. Emily se agachou ao lado dela e colocou os braços em volta do pescoço da mãe.

— Oh, mãe! Mãe! — Ela gritou. — Você não me conhece? Sou eu, sua filha, Emily. Você não consegue falar?

A pobre mulher apenas gemeu e revirou os olhos. Poderia muito bem ser que ela estivesse morrendo. Algumas bruxas acreditam que um golpe forte na cabeça pode fazer o cérebro inchar até ficar grande demais para o crânio e escorrer pelas orelhas e nariz. Certamente havia um feitiço para provocar isso.

Também era possível que, apesar dos danos no cérebro, a pobre mulher continuasse viva, incapaz de falar ou reconhecer a própria filha.

Poderia ajudá-la? Eu me perguntei. Minha magia era forte o suficiente para curá-la? Eu não tinha certeza de que poderia fazer alguma coisa. A magia negra é útil para lutar contra os inimigos e forçar a obediência aos outros. Pode matar, mutilar e aterrorizar, mas seu uso na cura é incerto. Alguns acreditam que os curandeiros usam uma magia mais gentil e benigna.

Minha magia provavelmente era do tipo errado, mas eu tinha que tentar.

— Afaste-se, Emily. — Eu disse suavemente. — Deixe-me ver se posso fazer alguma coisa para ajudar sua mãe.

A menina fez o que pedi e eu me ajoelhei ao lado de sua mãe, colocando minha mão direita em sua cabeça. Ela apenas me encarou, seus olhos arregalados, parecendo totalmente perplexa.

Desejei que a mulher melhorasse. Com todas as minhas forças, empurrei esse desejo para ela. Por alguns segundos, nada aconteceu. Então eu senti um calor intenso se espalhando pelo meu braço e pela minha mão.

A expressão nos olhos da mulher mudou. Ela olhou para mim com raiva e, em seguida, afastou minhas mãos. Ela se levantou e olhou para a filha.

— Emily! — Ela gritou. — Pensei que nunca mais te veria!

Ela foi pegar a filha e começou a chorar. Logo as duas estavam chorando; elas pareciam ter se esquecido completamente de mim. Saí do quarto, desci as escadas e saí da casa.

Enquanto voltava para Pendle, pensei no que tinha acabado de fazer. Eu curei a mãe de Emily. Portanto, minha magia poderia fazer o bem tanto quanto a outra... talvez houvesse esperança para mim?

Eu caminhei como se estivesse em um sonho.

Caminhei? Eu estava quase flutuando, flutuando sem esforço em direção a Pendle.

As amoreiras se moveram para o lado quando eu me aproximei, galhos baixos se ergueram para que eu pudesse passar por baixo deles e borboletas tremulavam na minha retaguarda.

Eu até caminhei pelo meio de uma pequena vila em plena luz do dia, meus sapatos pontudos estalando nos paralelepípedos. Desejei que as pessoas não me vissem e fiquei instantaneamente invisível para elas. Havia um pequeno mercado na praça e me servi de uma fruta bem na frente do dono da barraca. Ele não percebeu nada, e aquela maçã rosada provou ser uma das mais doces e suculentas que eu já havia saboreado. Ou talvez tenha sido apenas a maneira como eu a tinha apanhado que a fez ter um sabor tão delicioso!

A certa altura, ao passar ao sul da grande serra ameaçadora, choveu forte, um aguaceiro torrencial que achatou o trigo nos campos e fez riachos de água da chuva descerem pela encosta. Mas nada disso me tocou. Nenhuma gota caiu sobre minha cabeça e meus sapatos estavam tão secos como se houvesse uma estrada empoeirada sob meus pés.

O interior da minha cabeça estava cheio de música — um coro de estrelas invisíveis cantava em harmonia apenas para mim — e fui consumida por uma enorme sensação de exultação. Eu era mais forte do que todas elas. Eu estava livre de Lizzie. Livre para fazer o que eu quisesse.

Eu era poderosa, forte e invulnerável.

Ninguém podia me tocar.

Nem Lizzie. Nem mesmo Grimalkin.

Já estava escuro quando cheguei à aldeia de Roughlee. Subi por entre as árvores em direção à cabana de Agnes Sowerbutts. Eu tinha sido feliz aqui. Eu ficaria feliz novamente.

Eu não merecia um pouco de felicidade depois de tudo que passei?

Uma luz estava acesa na janela à esquerda da porta da frente. Eu tinha um chamado secreto que eu costumava usar para avisá-la que eu estava a caminho. Era o grito de uma ave-cadáver, ligeiramente modulado para que Agnes soubesse que era eu e não o chamado aleatório de um pássaro noturno.

Mas desta vez eu não me dei ao trabalho de usá-lo. Só queria que Agnes soubesse que eu estava aqui. E funcionou. A porta do casebre se abriu e eu pude vê-la de pé na entrada da porta.

Fui até ela e lhe dei um grande sorriso.

Ela não sorriu de volta.

Ela me esbofeteou com muita força no rosto.

— Sua tolinha! — Ela gritou com raiva.


O que foi isso, Agnes? O que eu fiz de errado? Você deveria estar feliz! Eu disse, meus olhos se enchendo de lágrimas. Não foi a dor. O tapa doeu, mas muito pior foi a maneira como Agnes estava olhando para mim.

Ela me pegou pelo ombro e me arrastou para dentro da cabana, batendo a porta atrás de nós.

— Nenhuma feiticeira ostenta seu poder assim ou ele a consumirá. E tanto poder ainda. Eu posso sentir o fedor evaporando da sua pele! Conte-me tudo! — Ela exigiu. — Algo aconteceu, algo importante. Conte-me tudo!

Então sentei-me em um banquinho na cozinha de frente para Agnes e contei a ela tudo que conseguia me lembrar: o ovo de couro, o encontro com Betsy Pernil, as feiticeiras da água e a captura das crianças para serem sacrificadas. Então contei a ela minha decisão de fugir de casa.

— Eu estava com medo, mas sabia que tinha que fazer algo. Eu estava tão desesperada que decidi pedir ajuda ao caça-feitiço local. Mas os trovões e os relâmpagos começaram, a chuva caiu e eu precisava de abrigo. Vi uma luz à frente e pensei que fosse uma fazenda. Quando cheguei mais perto, vi que era uma estranha barcaça preta no canal; a luz vinha de velas no convés. A chuva deveria tê-los apagado, mas não o fez ...

Em seguida, contei a ela como subi na barcaça e desci muitos degraus para ver o grande trono antes de falar com o misterioso barqueiro.

— Como ele era? — Perguntou Agnes. — Conte-me tudo sobre ele.

— Bem, ele era invisível no início. Disse que não poderia estar aqui pessoalmente, mas que um dia, com a minha ajuda, ele poderia se sentar naquele trono. Por alguns segundos, ele apareceu acima dele. Ele era pouco mais velho do que eu, mas tinha um rosto sorridente e cabelos dourados. No entanto, foi a maneira como ele se comportou que me afetou. Ele foi gentil e amigável e olhou para mim como se realmente se importasse comigo. Poucas pessoas olharam para mim dessa forma. Disse-me que tinha poder dentro de mim e não precisava de nenhum caça-feitiço para ajudar aquelas crianças — eu poderia fazer isso sozinha!

— Ele te disse quem ele era, Alice? Ele deu a você o nome dele?

Eu balancei minha cabeça.

— Ele disse que era um dos príncipes invisíveis deste mundo.

— Sua garota tola! Foi o próprio Maligno, se não me engano — gritou Agnes, balançando a cabeça.

Eu olhei para ela com espanto.

— Isso não pode ser verdade! O Maligno é feio e velho, com uma expressão astuta no rosto. Ele também tem grandes chifres curvos — todo mundo sabe disso.

— Não, garota, há mais nele do que isso. Ele pode se tornar grande ou pequeno e mudar sua forma para o que quiser. Ele poderia se tornar um belo garoto de cabelos dourados em um piscar de olhos de uma donzela — como muitas descobriram, com um alto custo!

— Mas por que o Maligno teria me usado para salvar aquelas crianças? Ele é do escuro, e ainda assim me ajudou a impedir o escuro. Por que ele faria isso? Não faz sentido.

— Sim. Faz todo o sentido se você apenas pensar nisso. Ele reconheceu sua culpa e remorso pelo que você estava envolvida. Ele percebeu seu desespero para consertar as coisas. Então ele deu a você o que você precisava. Criança, ele deve te querer muito...

— O que você quer dizer... com me querer?

— Ele quer sua alma, criança. — Disse Agnes. — Ele quer sua lealdade. Ele quer que você fique ao lado dele e lute contra a luz. Algumas feiticeiras são relativamente fracas. Tudo o que podem fazer é eliminar uma verruga ou envenenar um inimigo. Outras têm um poder que pode ser desenvolvido ao longo de suas vidas. Lizzie é uma dessas. Ela se esforça para ficar mais forte. A cada ano que ela vive, seu poder cresce. Mas existem algumas bruxas, muito poucas, com extremo poder inato; raras que nascem incrivelmente fortes. E é isso que você é, Alice. Eu sempre soube. E o Maligno quer que você use seu poder para ajudá-lo. É por isso que eu queria cuidar de você e educá-la. Eu queria mantê-la longe das bruxas que despertaram essas habilidades sombrias dentro de você. Mas Lizzie levou você embora... e agora chegou a este ponto! Escute-me... você não pode usar esse poder para nada ou ninguém ou ele irá destruí-la. Ele vem do próprio coração das trevas, e se você o usar à toa como acabou de fazer, ele a tomará para si e levará sua alma. Mostre-me sua marca! — Ordenou Agnes.

— Que marca? — Perguntei.

— Não tente esconder as coisas de mim, criança. Mostre-me a marca secreta que fala de seu potencial.

Comecei a tremer. Eu sabia o que ela queria dizer, mas não queria nem pensar sobre isso. Em Pendle, toda criança do sexo feminino com potencial para se tornar uma feiticeira tinha essa marca. Era um sinal do que ela poderia se tornar.

— Onde está, criança?

Levantei minha saia acima do joelho para revelar a mancha escura do lado de fora da minha coxa esquerda. Tinha sido uma meia-lua quando olhei pela última vez.

— Cresceu? — Perguntou Agnes.

— Um pouco. — Admiti. Definitivamente parecia mais espesso agora.

— Cada vez que você usar magia — Agnes me disse — vai ficar maior. O uso de magia negra tem um efeito cumulativo no usuário. Com o tempo, essa lua crescente se tornará uma lua cheia escura, e então você pertencerá inteiramente à escuridão. Sua alma ficará dura e fria como gelo. Toda compaixão humana terá deixado você. Você entende o que eu estou dizendo?

— Mas o que eu posso fazer, tia? — Chorei. — O que eu deveria fazer?

— Sobreviva, Alice. Isso é tudo que você pode fazer. Isso é tudo que qualquer uma de nós pode fazer. Mas você não pode usar esse poder, certamente não da maneira que acabou de fazer. Você deve limitar seu uso, melhor não usá-lo de forma alguma.

— Mas Lizzie vai querer vingança pelo que eu fiz a ela!

— O que você fez? — Perguntou Agnes.

Então eu disse a ela como salvei aquelas crianças; como eu matei algumas das feiticeiras da água e afastei o resto; como eu afoguei Betsy Pernil.

— E quanto a Lizzie? Ela não iria simplesmente deixar você ir embora depois disso. O que você fez com ela? — Exigiu Agnes.

— Paguei-lhe de volta pelo que ela costumava fazer comigo. — Respondi. — Eu invoquei uma dúzia de larvas e os coloquei para trabalhar nela. Ela não gostou nem um pouquinho disso e virá atrás de mim, com certeza. Aquelas feiticeiras da água também — elas vão querer vingança. Sem o uso da minha magia eu ficarei indefesa. Posso estar morta e enterrada antes do fim da semana, Agnes.

Agnes escondeu o rosto nas mãos. Ela não falou por um longo tempo, mas então ela olhou para mim.

— Sim, você está em grande perigo. Não há nada a fazer; apesar de minhas dúvidas, você terá que usar um pouco de seu poder uma última vez. Só um pouco, veja bem. Apenas deseje confusão para Lizzie e aquelas irmãs nojentas. Deseje que elas esqueçam sua parte em tudo. Faça-as esquecer que o ovo já existiu. É um risco usar sua magia ainda mais uma vez, mas não vejo outra maneira. Não sou forte o suficiente para mantê-la protegida dela, então volte para Lizzie e continue seu treinamento por enquanto. Pode não ser para sempre. Às vezes, as coisas mudam quando você menos espera; um dia você pode se livrar dela.

Então fiz o que Agnes aconselhou. Usei um pouco do meu poder mais uma vez. Então, no dia seguinte, voltei tristemente para a cabana de Lizzie.

Ela parecia confusa e durante dias caminhou como se estivesse em um sonho. Então ela voltou ao normal e começou a dificultar minha vida novamente. Mas funcionou. Ela nunca mencionou aquele ovo de couro ou as feiticeiras da água. Foi como se nunca tivesse acontecido.

Meu treinamento como bruxa continuou, mas sempre escondi de Lizzie do que eu realmente era capaz. Eu sabia que Agnes estava certa. Foi o Maligno que falou comigo naquela noite, despertando meu poder latente. Se eu continuasse usando, eventualmente pertenceria a ele. Meu coração endureceria e eu me tornaria uma entidade do mal sem sentimentos humanos. Eu não deixaria isso acontecer.

Agnes provou que estava certa também de outra maneira. Meu tempo com Lizzie chegou ao fim quando eu menos esperava. Ela nos levou de volta a Chipenden, com a intenção de resgatar Mãe Malkin da cova no jardim do Caça-feitiço e depois matá-lo.

Mas as coisas não correram como ela esperava.

Foi então que conheci Thomas Ward, o aprendiz do Velho Gregory, e minha vida mudou para sempre. Meu tempo como amiga do aprendiz do Caça-feitiço foi o mais feliz da minha vida.


Tudo isso aconteceu anos antes, mas agora, aqui embaixo no escuro, enquanto eu olhava para Betsy Pernil, parecia que havia sido ontem.

Ela sorriu para mim de sua cadeira, encostada na parede úmida do porão. O lago profundo e sujo estava à sua direita. As feiticeiras da água provavelmente estavam esperando sob a superfície.

— Não esperava ficar cara a cara comigo de novo, não é, garota?

Voltei-me para Thorne, minha traidora, pronta com palavras raivosas, mas ela já havia desaparecido. Eu podia ouvir o som de seus sapatos pontudos retrocedendo até os degraus.

— É triste quando as pessoas te decepcionam, não é? — Disse Betsy, levantando-se e dando um passo em minha direção. — Mas todo mundo tem seu preço, e Thorne não é exceção.

Eu a encarei, sentindo-me magoada. Eu pensei que Thorne fosse minha amiga. Como a garota que lutou ao lado de Grimalkin poderia ter mudado tanto? A feiticeira assassina não tinha nada além de elogios para ela.

— Você sabe qual foi o preço dela? — Perguntou Betsy.

Eu não respondi. Eu estava considerando minhas opções. Minha melhor chance era escapar escada acima. Mas sem dúvida alguém ou algo estaria lá agora, pronto para me impedir.

— É possível que uma bruxa renasça. Você sabia disso, garota?

— Alguns acreditam, mas eu nunca conheci uma feiticeira que alegasse estar levando uma segunda vida. — Respondi.

— Oh, é muito raro — continuou Betsy — requer muito poder, sim. Pelo menos dois dos Deuses Antigos têm que combinar sua vontade para alcançá-lo. E requer habilidade especial para detectar a posição de uma pessoa viva que entra no escuro. A melhor nisso é Morwena, a mais poderosa das feiticeiras da água. No momento em que ela soube que você havia entrado no escuro, ela começou a trabalhar. Então Thorne recebeu a promessa de outra chance de viver na Terra em troca de trazê-la aqui. Ela quer muito uma oportunidade de provar que é a maior feiticeira assassina de todas — ainda maior do que sua professora, Grimalkin. A chance de se tornar isso é a sua recompensa. Morwena a colocou no seu caminho e disse a ela para esperar. Você a seguiu sem pensar duas vezes. Ela a conduziu até nós como um cordeiro!

Mais uma vez, não fiz nenhum comentário. Eu queria perguntar a Thorne como ela sabia onde me encontrar, mas nunca tive oportunidade de perguntar. Agora eu sabia. Agnes estava certa: eu era uma tola.

— Está tudo acabado para você agora, garota; não há nada que você possa fazer para se salvar. Você tem magia poderosa, mas não vai ajudar desta vez. Você vê, a magia negra não funciona na basílica e na área ao redor dela. É uma zona proibida. E há muitos de nós e apenas uma de você!

Betsy colocou dois dedos na boca e deu um assobio longo e estridente. Imediatamente, em resposta, uma dúzia de feiticeiras emergiu da água. Algumas se arrastaram até o chão lamacento; outras se lançaram como salmões e aterrissaram sobre seus pés palmados e com garras, água escorrendo delas. Elas me encararam com olhos famintos.

As feiticeiras da água normalmente começam afogando suas presas. Elas as arrastam para a água e, enquanto estão se afogando, começam a sugar seu sangue — tão rapidamente que o coração para antes que o afogamento ocorra.

Alternativamente, elas poderiam apenas me rasgar em pedaços. De qualquer forma, esperava que fosse rápido.

Talvez Betsy tenha mentido sobre não ser capaz de usar magia? Eu pensei. Eu não queria que minha vida acabasse aqui: eu tinha que encontrar a adaga. Precisávamos acabar com o Maligno.

Então eu exerci minha vontade.

Nada.

Nenhuma resposta.

Magia realmente não funcionava aqui.

Não consegui pegar a adaga de que Tom precisava. Agora o Maligno triunfaria e meu melhor amigo morreria também. Tudo tinha sido em vão. Eu estava cheia de raiva.

Se esse fosse o meu fim, pelo menos eu machucaria Betsy mais uma vez.

Eu chutei forte, e a ponta do meu sapato foi fundo em sua barriga gorda. O ar saiu dela com uma lufada de ar, e ela se dobrou e caiu de joelhos.

Mas então muitas mãos em garras me agarraram e me arrastaram para a água. Eu lutei, mas elas eram extremamente fortes e havia muitas delas. Dentes como presas apareceram a centímetros do meu rosto. Um hálito rançoso encheu minhas narinas. Então a água se fechou sobre minha cabeça e me senti sendo puxada para baixo. Aconteceu tão rápido que não tive tempo de respirar e, quando afundei na escuridão, a água subiu pelo meu nariz e pela boca aberta. Eu estava sufocando, me afogando, desesperada por ar.

Eu me debati, mas não consegui me livrar do aperto implacável das minhas inimigas. Depois de um tempo, tudo escureceu e eu senti minha consciência se esvaindo. Tudo que eu podia ouvir era o baque surdo do meu coração, cada vez mais lento. Talvez elas estivessem drenando meu sangue. Nesse caso, não havia outra dor além daquela em meu peito — a necessidade frenética de respirar.

Então não havia nada.

Nada mesmo.

Quando dei por mim, eu estava de volta à margem lamacenta, sobre minhas mãos e de joelhos, vomitando.

— Você gostou disso, garota? — Betsy se deleitava, mais uma vez sentada em sua cadeira. De ambos os meus lados, uma feiticeira da água segurava meus ombros com uma mão em garra. — Agora você sabe como é se afogar. Você sabe como me senti quando você fez isso comigo. Mas ainda não acabou! Assim que você recuperar o fôlego, tudo começa de novo! Uma morte muito lenta e dolorosa é o que eu planejo para você!

Ela cumpriu com sua palavra. Em um minuto, fui novamente arrastada para a água. A essa altura, havia apenas duas feiticeiras da água presentes, mas eu teria ficado impotente contra apenas uma.

Desta vez, consegui respirar fundo primeiro. Mas tudo o que isso fez foi atrasar minha agonia. Mais uma vez, a pressão em meus pulmões era tão grande que fui forçada a respirar e logo a água estava correndo para dentro de meu nariz e boca mais uma vez.

Houve um estrondo em meus ouvidos; Trevas; então, mais uma vez, me vi de joelhos, ofegando por ar e vomitando água.

Perdi a conta de quantas vezes o processo foi repetido; em todas as ocasiões, Betsy zombava e se gabava de sua cadeira enquanto eu passava pelo agonizante processo de recuperação.

Mas tudo deve chegar a um fim.

Levantei os olhos pela enésima vez, com água escorrendo do nariz e da boca, tentando respirar dolorosamente pela primeira vez, quando percebi que era Betsy quem havia chegado ao fim.

Ela estava recostada, afundada na cadeira, uma faca enterrada até o cabo na garganta. Mesmo enquanto eu observava, vi seu corpo começar a se desintegrar. Sua cabeça havia caído agora e escorregava entre os joelhos. Lembro-me vagamente de me perguntar se isso era o que geralmente acontecia quando você morria pela segunda vez.

Momentos depois, eu soube a resposta.

Não havia mais mãos com garras segurando meus ombros. As duas feiticeiras da água estavam deitadas ao meu lado, estiradas no chão lamacento do porão. Cada um tinha uma faca entre as omoplatas. Seus corpos estavam começando a desintegrar-se também.

Uma mão agarrou meu braço e me colocou de pé. Fiquei cara a cara com Thorne e, com raiva, tentei me afastar. Mas eu estava muito fraca, ainda lutando para respirar.

— Vamos! Vamos! — Ela gritou na minha cara. — Morwena pode chegar a qualquer momento.

Ela me arrastou em direção aos degraus e me puxou até o topo. Eu estava fraca demais para resistir.

Atravessamos a sala e saímos pela porta da frente. Cambaleei pelo terreno pantanoso com Thorne. Finalmente nos agachamos na sombra de uma parede de pedra, fora da luz da lua de sangue.

— Sinto muito. — A voz de Thorne era pouco mais que um sussurro.

Eu estava prestes a lhe dizer o que pensava, mas meu estômago embrulhou, tudo começou a girar, e me inclinei para o lado e vomitei na grama.

Por fim, recuperei o fôlego e a amaldiçoei com minha raiva.

— Você sente muito? Sente muito? Sente muito pelo quê? Por me trair e me mandar para a morte? Sente muito por me impedir de pegar a adaga e destruir o Maligno! E de quem ele iria atrás primeiro? Não tenho muitas dúvidas sobre isso! Grimalkin, eu acho, por causa do que ela fez. Ótima maneira de retribuir alguém que a treinou! Grimalkin não ficaria satisfeita com o que você fez. Você foi corajosa em vida; ela esperava que você fosse corajosa na morte. Isso é o que ela me disse. Mas você não foi corajosa, foi? Você foi uma covarde que não pode encarar o fato de estar no escuro e faria qualquer coisa pela chance de ter uma segunda vida!

Thorne não disse nada; ela apenas abaixou a cabeça e olhou para o chão.

Depois de um tempo, minha raiva começou a diminuir e falei novamente.

— Por que você voltou?

Ela respondeu sem erguer os olhos.

— Mesmo antes de chegar ao topo da escada, me arrependi do que fiz. Não parecia real até então. Então ouvi o que estava acontecendo abaixo. Você afogou Betsy lá na Terra, mas a morte dela não foi nada comparada ao que você experimentaria aqui. Depois de um tempo, não consegui mais suportar. Então vim para ajudá-la.

— E agora? — Perguntei.

— Eu vou te ajudar a pegar a adaga.

— Eu estaria melhor sozinha. — Retruquei. — Como posso confiar em você depois disso? Falou com mais alguém quando saiu do porão? Você disse a eles por que estou aqui, que preciso alcançar o domínio do Maligno?

Isso era importante. Se eles soubessem o que eu queria e para onde estava indo, eles estariam lá esperando por mim.

— Não, Alice, eu não tive tempo. Eles ainda não sabem... então pense nisso. Você tem mais chance comigo do que sozinha; nós precisamos uma da outra. Depois do que acabei de fazer, eles estarão atrás de mim também. Sem dúvida, eles vão planejar uma segunda morte horrível e lenta para mim. Você está perto agora de onde deseja ir. Os domínios se movem, mas eles dizem que o domínio do Maligno está sempre perto deste com sua basílica para adoração. Há uma boa chance de que este portão nos leve até lá. Confie em mim novamente, por favor. Deixe-me ajudá-la...

Eu pensei com cuidado. Havia verdade no que ela acabara de dizer. E ela tinha voltado por mim.

— Eu preciso entrar na basílica e evitar a armadilha que eles armaram. — Disse a Thorne. — Devo alcançar aquele portal. Você pode me ajudar a fazer isso?

— Dentro da basílica teremos que confiar na sorte. Eu nunca estive lá e o portal pode estar em qualquer lugar, teremos que procurá-lo. Mas talvez eu consiga nos levar para dentro sem sermos vistas. Eu conheço alguém que pode ajudar de verdade. Mas você terá que esperar aqui. Será mais fácil e rápido se eu for sozinha.

— Quanto tempo você vai demorar?

— O tempo que for preciso, apenas espere.

Então Thorne se foi e eu fiquei sozinha na sombra da parede, tremendo com minhas roupas molhadas.


Era difícil avaliar a passagem do tempo, e fiquei agachada ali, molhada e desconfortável, pelo que pareceu uma hora ou mais.

Comecei a me perguntar se Thorne algum dia voltaria. Talvez ela tivesse mudado de ideia novamente e estaria do lado dos meus inimigos mais uma vez. Talvez ela tivesse sido pega.

Eu só podia esperar mais um pouco. Não havia como saber quanto tempo havia se passado na Terra — já poderia estar perto do Halloween. Logo eu teria que tentar encontrar meu próprio caminho para a basílica.

Mas finalmente Thorne reapareceu e, sem uma palavra de explicação, curvou o dedo em um sinal de que eu deveria segui-la.

Seguindo principalmente por becos secundários, nos aproximamos da basílica em uma espiral lenta no sentido anti-horário. Chegamos ao lado do enorme prédio. Entre nós e a parede havia uma grande área pavimentada, talvez com cem passos de largura. Se olhávamos para o sul, norte, leste ou oeste, era impossível dizer em um domínio onde a lua de sangue permanecia fixa na mesma posição.

Thorne parou e, quando nos agachamos, ela apontou.

— Você vê a terceira porta à esquerda? — Perguntou ela.

Contei rapidamente. Havia cinco portas de tamanhos variados. A terceira, de formato oval, era a menor de todas. Eu concordei.

— Essa é a melhor maneira de entrar. Disseram-me que geralmente não é guardada. — Disse Thorne.

— Você confia nas pessoas com quem falou? — Eu disse.

— Tanto quanto você pode confiar em qualquer pessoa que está no escuro há algum tempo. Quanto mais tempo você fica aqui, mais desesperado você se torna. Falei com um grupo de pessoas e confio em uns mais do que em outros. Mas todos concordaram que essa era a porta a ser usada.

Eu não estava cheia de confiança, mas tinha que correr o risco. Eu balancei a cabeça novamente e Thorne apontou para a porta e colocou o dedo nos lábios antes de sair imediatamente. Eu segui em seus calcanhares.

Estávamos a menos de cinquenta passos da porta para a qual fomos direcionadas quando ouvi um sino começar a soar; aquele que convocava o escolhido para ser morto na basílica e então a tomada de sangue aleatória; agora estávamos em perigo imediato.

Ao décimo terceiro toque daquele sino terrível, algo gritou lá de cima. Eu o reconheci imediatamente — o grito estridente de um chyke. E não estava sozinho. Outros estavam descendo em nossa direção, uma dúzia ou mais de criaturas semelhantes a morcegos, suas mãos em garras estendidas para rasgar nossa carne, seus olhos brilhando vermelhos como brasas. Da última vez, estimei que a criatura tinha aproximadamente o tamanho humano, mas eles pareciam ainda maiores.

Thorne tinha suas lâminas, mas eu não tinha nenhuma arma e, como acabei aprendendo a duras penas, a magia não funcionava perto da basílica. Decidi tentar de novo de qualquer maneira: bati no chyke mais próximo com minha mente — um feitiço de repulsa. Não funcionou. A criatura continuou a deslizar em minha direção, suas mandíbulas abertas pingando saliva.

Começamos a correr em direção ao abrigo da porta oval escura.

O chyke atacou, descendo, e eu mergulhei, me lançando para frente. Mas não antes de sentir uma dor aguda na testa. Quando me pus de pé, sangue escorria pelos meus olhos, mas Thorne tinha voltado para se colocar sobre mim e, apesar da dor que deveria estar sentindo nas mãos, segurava duas lâminas e tentava afastar o agressor.

Olhei ao meu redor e conheci um momento de verdadeiro terror. Outros chykes estavam vindo atrás de nós — muitos para Thorne se defender sozinha. Estávamos prestes a ser feitas em pedaços.

Balançando em meus próprios pés,mantive os meus braços erguidos para proteger o meu rosto. Eu antecipei o rasgo da minha carne, mas não houve dor. Em vez disso, as garras que estavam mirando no meu rosto se foram. Eu olhei para cima e vi os chykes fugindo de outro ser alado maior. Um fora lento demais e, gritando de terror, foi capturado por seu perseguidor. Foi rapidamente feito em pedaços, os fragmentos ensanguentados caindo nas lajes atrás de nós.

Meu estômago revirou quando vi o assassino se inclinando e voando em nossa direção. O resto dos chykes havia fugido. Éramos nós sua nova presa? Eu me perguntei. Mas então reconheci o predador.

— É Wynde, a feiticeira lâmia que tombou diante das paredes da Torre Malkin. — Disse Thorne. — Ela foi uma amiga em vida e será assim na morte.

Grimalkin tinha me dito que ela tinha observado das ameias da torre, incapaz de ajudar, enquanto Wynde tinha sido morta pela kretch. Ele havia comido seu coração, enviando-a diretamente para a escuridão. Mas a feiticeira lâmia lutou bravamente, e outros tiveram que ajudar a kretch a vencê-la — entre eles o mago negro Bowker e três bruxas que a espetaram com facas em varas compridas.

Mais tarde, Grimalkin matou todos eles.

Wynde pousou perto de nós.

— Por que você, que ainda vive e respira, entrou no escuro? — Ela exigiu de mim. — Por que você arriscou tanto?

Sua voz era gutural e suas palavras, difíceis de entender. Às vezes, quando uma lâmia estava em processo de mudança de forma em direção ao feral, ela temporariamente perdia por completo o uso da linguagem. Nessa forma alada final, geralmente voltava, mas ainda era difícil entender o que ela estava dizendo.

— Estou aqui para obter os meios de destruir o Maligno. O portal de que preciso para chegar ao domínio dele está em algum lugar dentro da basílica e devo usá-lo. — Disse a ela. — Há algo vital que devo recuperar.

— Inimigos esperam por você além daquela porta. — Disse ela, ríspida.

Thorne fez uma careta.

— Você foi traída novamente, Alice, mas não foi culpa minha, eu juro. Os amigos de quem falei eram bruxas que às vezes cuidavam de mim depois que meu pai cruel me batia. Eu esperava que eles pudessem ser confiáveis. Me desculpe, eu te decepcionei outra vez.

— Você fez o seu melhor, Thorne. — Disse a ela.

— Há outra entrada, uma alta, no telhado. — Disse Wynde. — Vou carregá-las até lá. Quem será a primeira?

— Vá primeiro! — Thorne ordenou. — Você não tem armas.

Não houve tempo para discutir. Wynde bateu suas asas e pairou diante de mim, seus joelhos escamosos no nível do meu rosto.

— Segure nas minhas pernas! — Ela comandou.

Eu mal consegui me segurar adequadamente antes que ela subisse; o solo recuou a uma velocidade assustadora. Momentos depois, ela estava voando em direção à massa escura da basílica. Eu estava virada para trás e a primeira indicação que tive de que estávamos sobre ela foi quando passamos pela torre, a ponta da asa da lâmia quase roçando nas pedras. Então ela dobrou suas asas perto de seu corpo e despencou para baixo como uma pedra. Engoli em seco quando deixei meu estômago para trás.

O telhado precipitou-se ao nosso encontro, mas no último momento Wynde abriu suas asas e meus pés fizeram contato com as telhas. Eu liberei meu aperto em suas pernas e ela voou novamente, voltando para pegar Thorne.

Olhei à minha volta: estava de costas para uma enorme coluna que sustentava a torre quadrada. À minha frente havia um caminho estreito que conduzia entre dois telhados inclinados até uma parede com uma porta estreita. Isso era uma maneira de entrar na basílica? Não podíamos agora ser vistas por aqueles que estavam no solo, mas alguns teriam notado nossa jornada com a lâmia. Entretanto, outros dentro do prédio poderiam estar correndo para nos interceptar. Precisávamos nos mover rapidamente.

Esperei impacientemente que a lâmia trouxesse Thorne até mim. Por que estava demorando tanto? Tive um momento de medo. E se nesse meio tempo ela tivesse sido atacada pelos chykes novamente? Quanto tempo ela poderia esperar manter um bando tão feroz à distância?

Então ouvi o bater de asas e suspirei de alívio quando Wynde baixou Thorne para ficar ao meu lado. Pairando diante de nós, a lâmia alada apontou para a porta com a mão em garra.

— Esse é o caminho. — Ela confirmou. — Pode haver outros lá dentro que estejam dispostos a ajudar, mas é incerto se eles irão lutar ao seu lado.

— Agradecemos sua ajuda. — Disse a ela.

— Agradeça-me obtendo o que procura. Agradeça-me pondo um fim ao Maligno! — Ela gritou. Então ela subiu no alto, voou ao redor da torre e se perdeu de vista.

Sem perder tempo, corremos para a porta. Não havia maçaneta visível. E se estivesse trancada? Eu me perguntei. O feitiço de abertura não funcionaria neste lugar.

Mas eu não precisava ter medo. Ela se abriu com a pressão da minha mão e girou para dentro, as dobradiças rangendo. Estava muito escuro lá dentro e peguei a vela no bolso; mas quando a tirei, lembrei que sem magia eu não seria capaz de acendê-la. Thorne deu de ombros, passou por mim e entrou lentamente pela porta, as mãos estendidas à sua frente. Ela estava tocando a parede, tateando seu caminho no escuro.

— Parece uma escada em espiral. — Disse ela, sua voz pouco mais que um sussurro. — Vai no sentido da esquerda sempre. Sinta o corrimão à direita.

Empurrando a vela de volta para o bolso, atravessei a porta aberta com cautela. Deslizando minha mão pelo corrimão, me equilibrei enquanto descia os degraus de pedra, seguindo a espiral descendente. Cercada por paredes de pedra fria em ambos os lados, eu me sentia claustrofóbica. Não havia como impedir que nossos sapatos pontudos batessem nos degraus de pedra, e eu esperava que nada estivesse nos esperando lá embaixo: haveria muitos avisos de nossa chegada.

Devemos ter descido pelo menos algumas centenas de degraus quando percebi uma luz amarela piscando mais abaixo que me permitiu ver a silhueta de Thorne. A constante virada para a esquerda estava começando a me deixar tonta e parecia estar ficando mais quente, o que não estava ajudando.

Saímos para um estreito parapeito, e olhando para além dele, a minha vertigem piorou e eu quase caí para a frente. O espaço que contemplava era vasto e o chão estava muito abaixo. Parecia uma caverna gigantesca, e o meu primeiro pensamento foi que o interior da basílica era de alguma forma maior do que o exterior. Depois lembrei-me da casa onde Betsy Pernil tinha sido a guardiã das feiticeiras da água, e percebi que o efeito se devia a algo semelhante. O nível mais baixo da basílica havia sido escavado da mesma forma. O seu chão era muito mais baixo do que o chão exterior do edifício.

Nada parecia se mover abaixo, mas pude ver várias estruturas. Eram altares para os vários Deuses Antigos das trevas?

— Onde fica o portal, então? — Perguntei, percebendo imediatamente que havia cometido um erro. Eu mantive minha voz baixa, mas ela foi amplificada pela vasta área interna da basílica e ecoou de parede a parede.

Eu tinha alertado ainda mais nossos inimigos de nossa presença?

Em resposta à minha pergunta, Thorne colocou um dedo em alerta contra os lábios e apontou para baixo.

Mas como poderíamos chegar lá? A borda estreita não inclinava para baixo. Ela corria ao longo da parede na mesma altura. No entanto, Thorne partiu ao longo da borda, dando passos lentos e cuidadosos. Eu mantive meus olhos em seu ombro direito, o mais próximo da parede, não ousando olhar para o abismo assustador. Atrás dela, vi um arco na parede. Quando Thorne abaixou a cabeça e entrou, eu a segui. Degraus estreitos conduziam para baixo na escuridão, lentamente tornando-se mais largos, as paredes úmidas pressionando em ambos os lados.

Mais uma vez, pensei que alguém ou algo estaria esperando por nós lá embaixo. Será que todos os nossos movimentos eram conhecidos? Mais uma vez tive a sensação de estar sendo vigiada. Desta vez, estava mais forte do que nunca.

Eu podia ver as luzes piscando à frente. Abaixo de nós havia uma câmara, com velas em suportes de parede.

Thorne sussurrou:

— Estamos chegando mais perto do portal. Mas se está lá, então também estão nossos inimigos. Eles o controlam.

Ela ainda estava descendo, mas seus passos estavam desacelerando. Então ela de repente parou completamente.

— Volte! — Ela gritou, girando para me encarar e gesticulando descontroladamente. — É uma armadilha! Eu posso ver os inimigos esperando abaixo!

Mas já era tarde demais. Botas pesadas estalavam nos degraus atrás de nós. Eu não conseguia ver quem eles eram, mas sabia que havia muitas botas e muitos inimigos. Estávamos encurraladas.

Thorne desembainhou as lâminas e desceu correndo os degraus em direção à câmara. Eu segui com força em seus calcanhares. Uma vez no nível do solo, eu fiquei posicionada na altura do seu ombro direito e olhei para os ocupantes da pequena sala sem janelas em que nos encontrávamos.

Haviam três deles.

Dois estavam vestidos com trajes de bruxas de Pendle, com vestidos pretos esfarrapados e sapatos de bico fino. O terceiro era um enorme ab-humano com muitos dentes para caber em sua boca.

Encarei três velhos inimigos: Lizzie Ossuda, Mãe Malkin e Tusk.


Eu deveria ter percebido que pelo menos um dos inimigos que derrotei na Terra estaria esperando na basílica para se vingar.

Tusk, o ab-humano, foi morto pelo Velho Gregory, o Caça-feitiço de Chipenden. Pouco depois disso, Tom Ward usou sal e ferro para enfraquecer Mãe Malkin e, em seu desespero para escapar, ela fugiu para o chiqueiro na fazenda da família Ward. Aqueles porcos famintos tinham comido cada pedaço dela, incluindo seu coração, enviando-a para a escuridão para sempre.

Ela era pequena; o uso de sal e ferro por Tom Ward a haviam reduzido a um terço de seu tamanho anterior. E agora, após a morte, ela estava presa naquela forma, mas ainda era terrivelmente perigosa.

Lizzie Ossuda tinha sido amarrada em uma cova por John Gregory até que a guerra chegou ao Condado e as feiticeiras de Pendle a resgataram. Meu confronto final com ela foi na Ilha de Mona. Tom e eu a perseguimos, e ela caiu de um penhasco no mar. Destruída pela água salgada, seu coração sendo eventualmente devorado por peixes, ela também estava presa no escuro e estaria desesperada por vingança.

— Bem, filha. — Disse Lizzie, com um sorriso de escárnio no rosto. — Por fim, tenho a chance de retribuir. Agora vamos fazer você sofrer!

A velha Mãe Malkin também se precipitou para frente. Eu vi que seus longos cabelos brancos estavam emaranhados com sujeira. Magia não funcionava aqui, mas uma vez esta bruxa velha e nodosa fora a mais poderosa do Condado, e seu corpo enrugado ainda mostrava uma força terrível e desumana. Embora ela mal chegasse aos meus joelhos, suas garras estavam estendidas para mim, seus olhos vermelhos brilhantes desesperados por meu sangue.

Eu dei um passo para trás; Thorne deu um passo à frente.

— Bem, veja só quem resolveu aparecer por aqui! — Lizzie exclamou. — Morwena não vai gostar da maneira como você voltou atrás com sua palavra. Ela não ficará muito satisfeita; ela cortará mais do que apenas seus polegares!

Thorne não desperdiçou palavras em resposta. Ela nem sequer olhou para Lizzie. Uma lâmina estava em sua mão e ela golpeou Mãe Malkin horizontalmente, abrindo uma larga boca vermelha em sua testa enrugada.

A velha feiticeira gritou e cambaleou para trás, o sangue vertendo em cascata sobre seus olhos, cegando-a. Eu ataquei também e golpeei Lizzie com minha mão esquerda, minhas unhas errando por pouco os seus olhos.

Mas antes que eu pudesse fazer mais alguma coisa, fui agarrada por Tusk. Ele me pegou por trás, prendeu meus braços ao lado do corpo e me levantou para que meus pés ficassem longe do chão. Eu chutei seus joelhos para trás com os saltos dos meus sapatos de bico fino, mas ele começou a me apertar tanto que eu mal conseguia respirar.

Ele me apertou mais e mais forte, até que senti como se minhas costelas fossem se partir. Eu não conseguia mais puxar o ar para os meus pulmões. Ele estava me matando. Minha única esperança era que Thorne, de alguma forma, interviesse e o matasse.

— Deixe-a ir! Solte-a! — Gritou Thorne.

— Então, largue suas lâminas! — Lizzie gritou de volta para ela.

À essa altura, minha visão havia escurecido, mas ouvi o som de suas lâminas batendo no chão. Houve outros ruídos também: mais botas pesadas descendo os degraus e entrando na sala atrás de nós.

Estávamos acabadas. Agora eu nunca seria capaz de pegar a adaga. A chance de destruir o Maligno estava perdida.

Quando dei por mim, eu estava deitada de bruços no chão de pedra fria. A voz de uma mulher falou em algum lugar atrás de mim.

— Ela está acordada. Agora vou ensiná-la tudo sobre sofrimento!

Senti uma dor aguda e repentina nas minhas costelas. Eu sabia que era um chute de um sapato pontudo e reconheci a voz. Eu tinha sido chutada por Lizzie Ossuda — minha própria mãe.

Enrolei-me em uma bola, tentando me proteger, mas fui forçada a ficar em pé por um punho fechado sobre meus cabelos. Os olhos de Lizzie estavam fixos nos meus. Ela parecia louca de raiva.

— Agora você vai receber sua punição, garota! — Ela gritou, banhando-me com saliva. Quase arrancando meu cabelo pela raiz, ela me torceu para longe dela para que eu caísse nos braços de Tusk mais uma vez. Ele rugiu para mim, abrindo bem a boca. O mau hálito era um vento quente em meu rosto fazendo-me recuar. As presas amarelas estavam quase tocando minhas bochechas, e havia muito mais dentes afiados dentro de sua boca — duas fileiras duplas deles.

Por um momento, pensei que ele fosse morder meu nariz ou arrancar um pedaço de carne do meu rosto, mas em vez disso ele me deu um sorriso maligno, me colocou de pé e me virou para encarar uma porta escura em frente aos degraus. Quando me virei para encarar as bruxas, vi que Lizzie tinha uma lâmina em cada mão, apontando para mim.

Essas eram as lâminas que Thorne estivera segurando. A assassina estava sendo detida por dois homens brutos que nos seguiram escada abaixo. Outros estavam atrás dela — talvez uma dúzia ao todo. Achei ter reconhecido alguns deles como alabardeiros que serviram Lizzie na Ilha de Mona, onde ela tentou se tornar rainha.

Por um segundo, olhei nos olhos de Thorne. Mesmo que ela não falasse, de alguma forma eu entendi que nem tudo estava perdido. Ela largou as lâminas e se rendeu para me salvar. Caso contrário, eu teria morrido — minhas costelas teriam cedido e a vida teria sido espremida de meu corpo por Tusk. Eles a haviam desarmado: eu não conseguia ver nenhuma outra lâmina nas bainhas fixadas nas tiras de couro que cruzavam seu peito.

No entanto, eu sabia que o arsenal de Thorne era uma duplicação do de Grimalkin: havia uma bainha menor logo abaixo de seu braço esquerdo contendo outra arma — a tesoura que era usada para cortar os ossos do polegar de uma feiticeira morta.

Se não fosse pela minha situação desesperadora nas mãos de Tusk, ela ainda estaria lutando. E eu sabia que na primeira oportunidade favorável ela lutaria novamente.

Thorne havia dito que o portal poderia estar em algum lugar desta sala. Olhei em volta rapidamente, mas não consegui ver nada. Qual seria a sua aparência, afinal? Os portais assumiam formas diferentes e podiam ser manipulados por aqueles que os controlavam.

— Aqui! — Lizzie vociferou, empurrando-me em direção à porta.

Avancei para entrar em outra sala. Esta era longa e estreita — não mais do que três pessoas podiam andar lado a lado. No chão, estava um tapete vermelho-sangue. Andei bem na frente de Lizzie, Tusk e Mãe Malkin, tentando não demonstrar meu medo.

Fui pressionada a avançar por pontas de lâminas espetando-me as costas, em direção ao entalhe sombrio da outra extremidade. Ao nos aproximarmos, meu primeiro pensamento foi que continha um trono, mas então vi uma figura encapuzada relaxada em uma cadeira de madeira simples com encosto alto. Vestido com uma túnica e capuz, ele poderia facilmente ter sido confundido com um caça-feitiço. Colocado em cada lado dele estava um grande balde. E não precisei olhar para saber o que continham: o fedor me disse.

Era um cheiro metálico inconfundível, acobreado.

Os dois baldes estavam cheios de sangue.

Olhei ao meu redor, ciente de que todos os olhos estavam fixos no rico sangue no balde — a moeda de troca no escuro. Mas minha atenção foi rapidamente atraída de volta para a figura encapuzada.

Lentamente, a cabeça se ergueu e vi olhos dourados brilhando para mim na escuridão de dentro do capuz. Eles eram enormes; pelo menos cinco ou seis vezes maiores do que os normalmente encontrados em um rosto humano.

O que exatamente era a criatura diante de mim, outro ab-humano como Tusk? Eu me perguntei.

Muito lentamente, a entidade ergueu a mão esquerda em direção ao seu rosto. Os dedos eram longos e ossudos e pareciam cobertos de cerdas pretas curtas. Eles puxaram para trás o capuz para revelar o que tinha sido escondido dentro de suas sombras.

Mas o rosto! O horror daquele rosto terrível! Os olhos eram multifacetados, bulbosos e enormes. E cada um continha a imagem de uma garota apavorada. Levei alguns momentos para perceber que estava olhando para o meu próprio reflexo, repetidamente.

A cabeça era de uma mosca gigante, coberta de cabelos escuros, com uma língua comprida e bruxuleante. Era um ser saído diretamente dos meus piores pesadelos.

Lembrei-me novamente daquele dia em que partimos para matar o velho caça-feitiço, Jacob Stone. Lizzie havia mordido a cabeça de treze ratos e atraído um enxame de grandes moscas negras para reunir magia suficiente para mover duas grandes pedras e libertar as feiticeiras mortas. Lizzie me disse que a fonte de seu poder era o tenente negro que se sentava ao lado esquerdo do Maligno. E agora, após a morte, ela claramente se tornara sua discípula e serva no escuro.

Eu estava encarando o demônio Belzebu, às vezes chamado de Senhor das Moscas.

— Bem, garota. — Lizzie praguejou atrás de mim. — Você sempre temeu moscas. Mas nada que você já tenha visto na Terra se iguala a isso. Você vai ter exatamente o que merece! Agora lembro-me como me enganou sobre o poder contido naquele ovo de couro. Bem, é hora de pagar você de volta!

A língua do demônio entrava e saía da boca, produzindo um estranho rangido, um som vibrante. Será que Belzebu estava tentando falar comigo?

Um momento depois, percebi que era realmente algum tipo de comunicação — mas não era dirigida a mim.

Era um comando.

O Senhor das Moscas tinha convocado suas próprias criaturas especiais à sua presença.

Começou como um zumbido fraco, que aumentou constantemente de volume. De repente, uma mosca estava circulando minha cabeça — uma mosca do tamanho de uma abelha. Ela foi rapidamente acompanhada por mais duas, e depois outra. E foi só quando o número aumentou para uma dúzia ou mais que vi de onde vinham as moscas.

Elas estavam saindo da boca aberta de Belzebu, uma linha constante delas voando cada vez mais rápido para se aglomerar em volta da minha cabeça. Gritei de medo, lembrando-me de como, lá no jardim de Jacob Stone, elas se estabeleceram no rosto de Lizzie, obscurecendo cada centímetro dele, até mesmo pousando em sua língua. Eu estava tomada por um terror claustrofóbico com a ideia de isso acontecer comigo. Mas as moscas rapidamente me deixaram e desceram em duas nuvens sobre os baldes de sangue de cada lado do demônio.

Elas ainda estavam saindo daquela boca horrível, passando pela língua longa e áspera para formar um meio de vida, um monte de moscas se contorcendo; uma cobertura escura pulsante em cada balde de sangue.

Momentos depois, os dois enxames deixaram os baldes e se juntaram em uma nuvem enorme a menos de meio metro do meu rosto. O zumbido deles tornou-se um rugido e tentei recuar, sentindo imediatamente as pontas afiadas de duas lâminas contra minhas costas enquanto o fazia.

A nuvem escura começou a transformar-se em uma forma oval irregular. Então, a partir daquela forma de ovo simples, uma estrutura mais complexa começou a se formar. No início pensei que fosse apenas minha imaginação: muitas vezes vejo imagens assim nas nuvens, ou mesmo nas folhas de arbustos e árvores. Se você olhar com atenção, verá que os rostos estão por toda parte.

Mas eu sabia que minha imaginação não estava desempenhando nenhum papel aqui. O enxame assumiu a forma de um rosto enorme com nariz adunco, olhos bulbosos e uma boca bem aberta que exibia dois conjuntos de dentes afiados. E houve mais um toque de horror.

As moscas tinham se alimentado do sangue dos baldes. Algumas delas devem ter estado imersas nele sob o peso daquelas que pressionavam de cima para baixo. Agora essas moscas tinham formado os lábios e os dentes do enorme rosto, e estavam cobertas de sangue.

De repente, detectei um leve cheiro de ovo podre. O portal devia estar em algum lugar próximo, eu percebi. Olhei ao meu redor, procurando um brilho marrom, mas não consegui ver nada.

A boca se moveu e o zumbido mudou, tornou-se mais profundo.

Ele estava falando comigo.

— Você é a filha do meu mestre! — Clamou a voz murmurante e ruidosa. — Por que você o traiu? Você poderia ter tido tanto. Por que você se voltou contra ele? O poder era seu, bastaria pedir!

Eu balancei minha cabeça.

— Não há nada que eu queira dele. — Eu disse. — Era melhor não ter nascido do que tê-lo como pai e aquela bruxa suja atrás de mim como mãe.

Isso me rendeu um chute de Lizzie, mas eu mordi meu lábio para me impedir de gritar de dor. Não queria dar a ela essa satisfação.

— Por que você está aqui? — Perguntou aquela boca enorme. — Por que você entrou nas Trevas?

Pareceu-me que, mutilado como estava, o Maligno poderia de alguma forma ter descoberto minha intenção e transmitido a seus servos. Mas talvez a mãe de Tom tenha conseguido esconder seu plano dele e de seus servos no escuro. Eles não sabiam que esperávamos destruí-lo por meio do ritual. A mãe de Tom o amarrou uma vez e ele agarrou a lâmina e a levou para o escuro. Mas se eles ainda não sabiam que eu estava aqui para pegar aquela adaga — a terceira espada heroica, a Lâmina Dolorosa — talvez não demorassem muito para descobrir. Eu certamente não revelaria nada.

Não queria que eles esperassem por mim na sala do trono do Maligno quando fosse buscá-la.

Ainda havia esperança. Thorne tinha suas tesouras — mas ela teria a chance de usá-las? Ou eles nos matariam aqui e agora?

Eu estava esperando minha chance também. Eu não poderia usar magia aqui, mas não tinha intenção de desistir sem lutar.


Não o deixe esperando por uma resposta! Lizzie gritou em meu ouvido. — Você não acreditaria no que ele é capaz!

— Vou lhe dar mais uma oportunidade de responder. — Disse a boca, abrindo e fechando, pingando sangue enquanto as moscas zumbiam cada palavra. — Eu conheço seu medo secreto. Continue em silêncio e isso vai acontecer com você agora!

Meu medo secreto! O que Belzebu quis dizer? Eu tinha muitos medos: que não conseguiria recuperar a adaga; que eu voltaria tarde demais para que o ritual fosse realizado; que algo poderia ter acontecido com Tom; que Grimalkin deixaria de manter a cabeça segura e que o Maligno caminharia pela terra novamente; que eu não teria coragem de ficar calada quando Tom tomasse meus ossos; que um dia eu seria atingida por um raio; que...

De repente, eu sabia o que o demônio queria dizer. Uma memória passou pela minha mente que me fez estremecer. Mais uma vez, vi Lizzie no jardim de Jacob Stone, com moscas rastejando por todo o rosto.

Era isso que eu temia aqui e agora, e Belzebu sabia disso! Bichos rastejantes. Depois das aranhas, eu temia enxames de moscas. Eu não conseguia suportar a ideia deles rastejando sobre meu rosto.

— Não diga nada a ele! — Gritou Thorne.

Eu olhei para onde ela ainda estava presa por dois brutamontes. Eu concordei. Ela estava certa. Eu não poderia dizer a eles por que eu havia entrado no escuro.

— Assim seja! — Disse a boca, que imediatamente se fechou. As feições voltaram ao formato oval simples que os dera à luz. Então o enxame de moscas subiu no alto e voou em minha direção.

Eu ataquei com minhas mãos, tentando mantê-las longe. Mas não havia esperança. Havia mais chance de se defender de granizo com uma agulha de costura. Em segundos, as moscas cobriram meu rosto e minha cabeça. Elas cobriram meus olhos para que eu não pudesse ver; zumbiram em meus ouvidos e no meu nariz. Eu senti o peso delas inclinando minha cabeça para frente.

Meu nariz estava bloqueado e eu não conseguia respirar... Eu entrei em pânico. Havia apenas uma coisa que eu podia fazer; algo que eu estava desesperada para evitar.

Eu precisava abrir minha boca para inspirar o ar precioso...

Mas se eu fizesse isso, as moscas conseguiriam entrar.

Peguei meu nariz e esmaguei o máximo que pude, sentindo-as se transformarem em gosma sob meus dedos desesperados. Eu apertei minhas narinas e espirrei para fora as moscas. Mas eu tive menos de um segundo de alívio antes de elas rastejarem pelo meu nariz novamente. Mãos fortes agarraram as minhas e puxaram meus dedos para longe do meu rosto para que eu não pudesse obter nem mesmo um momento de alívio adicional.

Eu aguentei o máximo que pude, meus pulmões estourando, suportando o horror daquelas varejeiras azuis, grandes e gordas rastejando por todo o meu rosto e se emaranhando nos meus cabelos.

Então, finalmente, não tive escolha.

Eu abri minha boca e engoli em seco.

E as moscas entraram.

Tentei cuspi-las para fora, mas haviam muitas delas. Elas estavam por toda parte na minha língua e comecei sentir náuseas enquanto elas rastejavam pela minha garganta. Momentos depois, ela também foi bloqueada. Caí de joelhos, engasgando por causa das moscas na minha garganta, e depois vomitei. Isso me deu outro segundo de alívio; uma breve entrada de ar fresco antes de encherem minha boca e garganta mais uma vez.

Meus pulsos ainda estavam presos com força, meus braços agora torcidos nas minhas costas. Meus olhos estavam cobertos e eu não conseguia respirar. Eu estava na escuridão, morrendo lentamente.

De repente, o peso sumiu da minha cabeça e eu vi o amarelo bruxuleante da luz da tocha. O enxame havia saído de cima de mim e estava mudando para formar um rosto gigantesco novamente. Cuspi a última mosca da minha boca e ergui os olhos para ele.

Com o canto do olho, pude ver Tusk, ainda atrás de mim. Ele estava segurando meus pulsos com tanta força que os ossos estavam sendo esmagados. Lizzie estava agora à minha direita, um sorriso exultante no rosto.

— Nunca gostou de moscas, não é, garota? — Disse ela. — No entanto, elas parecem gostar de você; não se cansam de você!

A boca enorme se abriu novamente e as palavras ressoaram:

— Fale agora. Me diga o que eu quero!

Eu balancei minha cabeça e encarei o enxame desafiadoramente.

— Você é corajosa e pode suportar provações difíceis. — Disse a boca gigante. — Mas eu sinto outra fraqueza dentro de você. Outro medo. Você não deixaria que nenhum mal afetasse um amigo a quem você tem o poder de salvar! Traga a outra garota para mais perto!

Lizzie deu um passo para o lado para permitir que os dois homens arrastassem Thorne para o meu lado.

— Desta vez, não vou ceder até que você me diga o que desejo saber. — Disse a voz. — E se você recusar, ela, que é sua amiga, morrerá a segunda morte!

O rosto tornou-se um ovo escuro novamente e moveu-se para mais perto do teto, formando um enxame furioso, pronto para descer sobre Thorne.

Eu fui derrotada. Eu teria que dizer ao demônio o que ele queria saber.

Éramos prisioneiras e tínhamos poucas esperanças de alcançar nosso objetivo. A pouca esperança que eu tinha agora estava em Thorne encontrar uma oportunidade de nos libertar usando sua arma restante — a tesoura.

Ela não poderia fazer isso se eu permitisse que as moscas a sufocassem. Então, o que importaria se eles soubessem que eu vim aqui para pegar a adaga?

Abri a boca com a intenção de dizer a Belzebu o que ele desejava saber...

Mas, naquele segundo, Thorne se libertou. Aconteceu muito rápido. Ela puxou a tesoura da bainha, mas em vez de usá-la em seus captores, correu direto para a cadeira onde Belzebu estava sentado.

Ele era um demônio, mas só conseguira manipular as moscas porque eram parte dele, parte de quem ele era; eram como membros extras, partículas do eu que ele podia controlar usando sua mente. Em qualquer outro lugar, exceto dentro desta basílica, ele teria explodido Thorne com uma magia poderosa, arremessando-a através da sala ou incinerando-a no local. Mas mesmo sua magia demoníaca não funcionava aqui.

Thorne foi rápida. Ela pegou Belzebu de surpresa. No último momento, sua língua tremeluzindo para dentro e para fora de sua boca, ele se levantou e tentou se defender do ataque dela com sua mão esquerda.

Isso foi um erro. Provavelmente o maior que ele já havia cometido nas incontáveis eras que havia passado no escuro.

Ele nunca conhecera uma humana tão corajosa, rápida e mortal quanto Thorne. Ela fora treinada por Grimalkin. Ela pensava como Grimalkin. Ela lutava como Grimalkin.

E, como Grimalkin, Thorne ousava fazer coisas que alguns nem podiam imaginar!

A tesoura brilhou ao captar a luz da tocha mais próxima. As lâminas se fecharam.

E ela cortou o polegar da mão esquerda do demônio.

Belzebu gritou e ergueu a mão direita para se proteger.

Ela pegou aquele polegar também.

Ela pegou cada polegar enquanto ele caía, segurando-os com a mão esquerda enquanto o demônio cambaleava para trás, gritando como um porco preso.

Naquele momento, mais uma vez percebi aquele fedor fraco de ovo podre. Era o portal? Cheirei três vezes rapidamente e, para minha surpresa, meus olhos foram atraídos para o enxame de moscas. Elas estavam perdendo a forma de ovo; começando a formar outra coisa.

Então Thorne girou para enfrentar uma nova ameaça. Era Tusk, rugindo como um touro e avançando pesadamente em sua direção, pronto para rasgá-la membro a membro enquanto Lizzie e Mãe Malkin permaneciam imóveis, bocas abertas, paralisadas pelo choque.

Ela estava pronta para ele. Eu sabia exatamente o que ela faria antes mesmo de atacar. Lembrei-me de como John Gregory lidara com Tusk no Condado. Ele o esfaqueara na testa com a lâmina de prata retrátil do seu bastão de caça-feitiço. Trespassado até o cérebro, Tusk caíra morto como uma pedra.

Agora Thorne fizera o mesmo, mas com a tesoura. Rapidamente, ela se aproximou do aperto forte de Tusk. Quando os braços dele se fecharam para tentar esmagá-la, ela atacou. Por um momento, a tesoura trespassou o centro da testa de Tusk. Ele não emitiu nenhum som, mas suas mãos se depositaram de lado e ele caiu de joelhos, os olhos já vidrados.

Ela puxou a tesoura, olhou diretamente para mim e apontou para o enxame de moscas.

— O portal! — Ela gritou.

O enxame não tinha mais a forma de um ovo; nem havia formado o rosto que permitira que Belzebu falasse conosco. Elas haviam se tornado três grandes círculos concêntricos, sua cor mudando de preto para marrom, e elas estavam voando rapidamente no sentido anti-horário, fazendo com que parecesse que os aros estavam girando. Dentro desses círculos havia outra coisa.

Outro domínio.

Eu podia ver colunas e arcos escuros... algum tipo de edifício.

— Vá em frente, Alice! Você primeiro! — Gritou Thorne.

Por um momento, hesitei. E se eu conseguisse passar e ela fosse deixada para trás?

Mas eu precisava encontrar a lâmina. Tudo dependia disso. Eu olhei para cima e vi Mãe Malkin e Lizzie estendendo as mãos para mim com suas unhas compridas e afiadas.

Passei correndo por elas e pulei o portal das moscas.


Estávamos sentadas em banquinhos de madeira diante de um caldeirão, e Thorne estava segurando os polegares do demônio acima da água fervente. Ela queria o poder que o uso deles poderia trazer. Isso aumentaria nossas chances de sucesso e sobrevivência.

Thorne havia me seguido pelo portal e, por fim, exatamente como ela previra, nos encontramos no domínio do Maligno. Recordei de algo da minha última visita. Não havia dúvida. De um lado, havia o odor difuso: um cheiro de enxofre; uma sugestão de algo sendo queimado. A luz era distinta: tinha um estranho brilho acobreado, como se estivéssemos vendo tudo através de um vidro colorido antigo.

A única diferença era que desta vez seus servos, os demônios menores que me atormentaram e torturaram, estavam ausentes. Na verdade, no momento o domínio parecia deserto.

Estávamos na grande cozinha com lajes de pedra de um vasto edifício que poderia ter sido um castelo ou um local de culto como o que tínhamos acabado de deixar. Eu nunca o tinha visto de fora, embora já tivesse passado algum tempo em suas masmorras e sido arrastada por algemas por seus intermináveis corredores de pedra úmida. Tudo estava voltando para mim agora, o horror da minha visita anterior aqui.

Caldeirões, potes, panelas e utensílios de cozinha estavam por toda parte. Mas não havia chefs e não vimos comida. Quando Thorne colocou os polegares do demônio na água fervente, eles começaram a cozinhar.

Então notei os polegares da própria Thorne... Ela os tinha de volta. Era como se ela nunca tivesse sido mutilada.

— Como isso aconteceu? — Perguntei espantada. — Certamente deve ser resultado de magia, mas pensei que não seria possível dentro da basílica.

Ela encolheu os ombros e sorriu.

— Talvez seja o resultado de alguma lei natural das trevas. Eu vim para cá sem polegares porque tê-los cortados fora foi o que me matou. Mas aqui no escuro eu simplesmente tomei os polegares de Belzebu, um poderoso demônio. Então, eu os tenho de volta.

— Grimalkin ficaria orgulhosa de você! — Eu disse. — Tomar os polegares de um demônio é algo que ela provavelmente nunca fez.

— Ela ajudou a cortar a cabeça do Maligno, no entanto. — Disse Thorne com um sorriso.

— Como foi que as moscas se tornaram o portal? — Eu me perguntei, observando os polegares girando na água fervente. Pude sentir o cheiro do portal quando enfrentamos Belzebu, mas nunca imaginei que fossem as moscas. Eu pensei que elas eram parte dele...

— Elas eram, mas acho que ele usou o portal para nos atrair à sua presença. Para controlá-lo, ele teve que torná-lo temporariamente parte de si mesmo. Mas quando eu cortei seus polegares, a dor o fez perder a concentração, e o portal se soltou e tomou sua forma natural, usando as moscas como moldura.

— Você sabia que isso aconteceria?

— Eu não tinha certeza. — Respondeu Thorne. — Mas achei que havia uma chance. Em todo caso, eu apenas fiz o que Grimalkin me ensinou: quando você enfrentar muitos inimigos, machuque o mais forte primeiro.

Depois de um tempo, a carne cerdosa soltou dos ossos do polegar e eles começaram a dançar na água agitada. Thorne se levantou e se inclinou sobre o caldeirão, o rosto concentrado no que precisava ser feito.

Ela precisava retirar os ossos da água escaldante, ignorando a dor. Eles deveriam ser apanhados exatamente ao mesmo tempo. Deixar cair um faria com que a magia se perdesse.

Thorne se moveu rapidamente, suas mãos como um borrão, então ela olhou para mim, sorrindo em triunfo, um dos dedões do demônio em cada mão.

Demorou mais meia hora para fazer um pequeno orifício em cada osso com uma lâmina adaptada para o propósito: era longa, fina e muito dura na ponta.

Eu estava impaciente para procurar a sala do trono — a mãe de Tom disse a ele que a lâmina estava escondida sob o trono do Maligno. No entanto, eu mordi meus lábios. Precisávamos de toda a ajuda que pudéssemos conseguir, e aqueles ossos do demônio fortaleceriam Thorne consideravelmente.

Assim que terminou, ela transferiu os ossos para seu colar para se juntarem aos outros.

— Deve haver mais poder aí do que nos ossos até mesmo da feiticeira mais forte. — Comentei.

— Então vamos torcer para não precisarmos disso. Está muito quieto aqui, mas isso não vai durar.

— Por que eles simplesmente não pularam o portal atrás de nós? — Perguntei.

— Já estava se fechando quando pulei. — Respondeu Thorne. — Belzebu estava com muita dor para controlá-lo, e ele se afastou dele. Mas eles vão encontrá-lo de novo eventualmente, e então irão nos seguir.

— Eles saberão que ele leva ao domínio do Maligno?

— Isso é o que eles vão adivinhar, embora os portais nem sempre levem ao mesmo domínio. Se ele se mover antes que eles possam encontrá-lo, eles não saberão para onde fomos e precisarão de uma magia incrivelmente forte para nos localizar novamente; eles terão que estar bem longe da basílica para usá-lo. Você sabe onde fica a sala do trono do Maligno?

Eu balancei minha cabeça.

— Eu vi muitas masmorras, mas nunca a sala do trono... Pelo menos, não me lembro de estar lá. A verdade é que foi tão terrível que minha mente não me deixa lembrar de quase nada.

— Então, são duas coisas que temos que procurar: a lâmina e o portal para nos tirar daqui. Vamos procurar a lâmina primeiro. — Disse Thorne.

Mas a dificuldade que enfrentávamos logo se tornou aparente. Saímos da cozinha, descemos três lances de escada para um pátio e nos deparamos com uma escolha de três corredores. Escolhemos o central e mais largo, que tinha um teto alto em arco.

Corremos, mas depois de cerca de uma hora ainda não tínhamos chegado ao fim; nem tínhamos ideia de para onde ele estava levando.

— Este lugar é vasto. — Observou Thorne. — Poderíamos procurar por anos e ainda não o encontrar.

Era verdade. O tamanho do domínio do Maligno tornou nossa tarefa quase impossível.

Mas tínhamos que seguir em frente. Quando, depois de mais meia hora, finalmente chegamos ao final da passagem, não gostei do que vi. Nós nos encontramos em um vasto espaço circular aberto. Acima de nós havia uma cúpula tão alta que poderíamos estar olhando para as nuvens. Diante de nós estava um lago cinza escuro, suas águas calmas e ameaçadoras. Sua superfície era como vidro e parecia profundo o suficiente para esconder qualquer coisa. Ele preenchia quase toda a área, exceto por um caminho estreito que conduzia à nossa esquerda, abraçando a parede de pedra curva.

De repente, ouviu-se um grito lá de cima — o guincho de uma ave-cadáver. Nós duas olhamos para cima e vimos o pássaro voando pelo lago calmo em nossa direção. Ele planou por alguns segundos, mergulhou mais baixo, depois fez uma curva para longe, voltando para o centro.

— Ele provavelmente é familiar de Morwena. — Eu disse. — Este lago seria o lugar ideal para ela se esconder.

— Mas nós ouvimos aquele grito no último domínio. — Protestou Thorne. — Como ela pode estar aqui? O portal se fechou atrás de mim, e eles ainda não podem ter encontrado uma maneira de passar.

— Nós o ouvimos assim que entramos na cidade. — Eu disse. — Ela teve muito tempo para usar o portal antes de enfrentarmos Belzebu. E ela não apareceu quando você matou Betsy e as feiticeiras da água. Então ela provavelmente já tinha partido.

— Mas como ela saberia que estávamos vindo para este domínio?

— Ela é poderosa e astuta. Ela pode ter descoberto por si mesma. Como filha leal do Maligno, ela pode ter recebido mais informações do que o resto de seus seguidores. Talvez ela saiba sobre a adaga que a mãe de Tom usou contra o Maligno antes. Não se esqueça, ela foi a primeira a saber quando entrei no escuro.

— Mesmo que Morwena esteja aqui, juntas somos páreas para ela! — Afirmou Thorne com confiança, e eu sabia que ela estava se sentindo culpada por ter sido aliciada por Morwena e Betsy para me enganar. — Ela só pode usar o olho de sangue em uma pessoa de cada vez. Grimalkin me contou como ela e Tom lutaram contra as feiticeiras da água. Eles ficaram cara a cara com Morwena e ela paralisou Grimalkin com seu olho cheio de sangue. Mas Tom não foi afetado, então ele usou sua corrente de prata para amarrá-la, colocando-a de joelhos. Isso libertou Grimalkin, e ela matou a feiticeira da água. Nós podemos fazer o mesmo. Quando ela colocar uma de nós sob seu controle, a outra pode matá-la. Assim ela estará morta para sempre — será o seu fim.

Thorne fez com que tudo soasse fácil, mas Morwena era muito perigosa, mesmo para alguém tão forte quanto uma feiticeira assassina. As pálpebras do olho esquerdo daquela feiticeira estavam presas junto com um pedaço de osso. Quando ela o abria, um olhar daquele olho de sangue terrível poderia congelá-lo no local. Mas era verdade que ela só poderia usá-lo em uma pessoa de cada vez.

Então, se a enfrentássemos, eu esperava que ela me paralisasse, para que Thorne fosse quem a matasse. Eu não queria usar o tipo de magia necessária para destruí-la, a menos que fosse absolutamente necessário.

Thorne se virou para olhar para mim.

— Então, o que vamos fazer, voltar ou seguir o caminho ao redor do lago e correr o risco de sermos atacadas? Você decide, Alice, mas faça isso rapidamente. Você não pode ficar no escuro por muito mais tempo sem um grande custo para si mesma. E quem sabe quanto tempo já se passou no outro mundo?

Ela estava certa: eu não conseguia hesitar. Eu me decidi instantaneamente. A ideia de refazer meus passos me encheu de consternação.

— Vamos seguir o caminho. — Eu disse.

Lâminas prontas, Thorne assumiu a liderança. O caminho era estreito, porém seco, pois a água estava pelo menos trinta centímetros abaixo dele.

Nos primeiros minutos, fizemos um bom progresso, embora eu não pudesse ver nada que sugerisse que o caminho levaria a qualquer lugar significativo.

Foi então que percebi a névoa que parecia se formar no centro do lago. Gavinhas estavam se espalhando por sua superfície calma, serpenteando em nossa direção.

— Mais rápido! — Thorne gritou, tendo notado também. Começamos a correr, mas em poucos instantes tivemos que diminuir o ritmo para uma caminhada novamente. A névoa estava ao nosso redor agora, tão densa que eu mal conseguia distinguir a forma do corpo de Thorne, embora ela estivesse apenas alguns passos à frente.

Para piorar as coisas, o caminho de repente se estreitou e ficou escorregadio. Era pouco mais alto do que o lago agora e, em alguns lugares, submergia, de modo que nossos sapatos pontudos salpicavam na água rasa.

A qualquer momento eu esperava que Morwena surgisse e atacasse, mas depois de alguns momentos tensos, o caminho se alargou novamente. De repente, havia paralelepípedos sob nossos pés e, onde meu ombro e meu braço esquerdo estavam quase raspando na parede, agora parecia ter recuado. Havia espaço à nossa esquerda, mas quanto? E se ele estava se desviando do lago, onde esse caminho levava?

A névoa ainda estava densa, então eu ergui minha mão esquerda na minha frente para me impedir de tropeçar na parede. Mas, quando saímos do lago, meu medo da feiticeira da água diminuiu lentamente.

O ataque nos pegou de surpresa. Não houve nem o mais leve aviso.

Morwena não estava à espreita no lago. Embora ela fosse uma entidade que raramente se aventurava longe da água, ela estava nos esperando em terra firme.

Ela apareceu da névoa, de pé diretamente diante de mim. Pés palmados com garras agarravam-se aos paralelepípedos; sua saia e avental estavam cobertos de lama e limo verde. Sua boca estava aberta, revelando quatro grandes presas amarelas, e seu nariz sem carne era um osso triangular afiado.

Todas essas coisas pude constatar em menos de um segundo. Mas então um aspecto terrível dela chamou minha atenção total.

Seu olho cheio de sangue estava olhando diretamente para mim. O osso que o prendia havia sido removido.

Eu havia realizado meu desejo: agora eu era seu alvo.


Eu estava paralisada, enraizada no lugar. Aquele olho vermelho, cheio de sangue, parecia cada vez maior. Eu estava com medo, mas uma parte de mim estava distante porque eu tinha fé em Thorne. Era melhor assim; era melhor que Morwena tivesse voltado sua atenção para mim, se eu quisesse evitar o uso de minha magia.

Mas de repente percebi que Morwena não estava sozinha. Havia outras feiticeiras da água movendo-se para o lado dela e atacando Thorne, que agora estava sendo rechaçada pela ferocidade daquele ataque violento de presas e garras.

Morwena deu um passo em minha direção, os braços estendidos, pronta para arrancar a carne de meus ossos. Eu não estava mais distante. Eu estava apavorada. Mais e mais feiticeiras da água passaram por mim para atacar Thorne. Mesmo sua grande habilidade e coragem certamente não a capacitariam a derrotar tantas com rapidez suficiente para retornar e me salvar.

O mau hálito da poderosa feiticeira estava em meu rosto agora, suas presas prontas para morder. Eu não conseguia pensar. Minha mente estava paralisada como meu corpo. Eu não conseguia convocar nenhuma vontade. Mesmo se eu quisesse, agora era tarde demais para usar minha magia. Havia terminado para mim. Eu pretendia entregar minha vida por Tom para que ele pudesse usar minha morte para destruir o Maligno para sempre. Agora eu morreria por nada. Tudo o que eu fiz desde o momento em que nasci foi em vão.

Então aconteceu algo que eu não conseguia entender...

Algo estava emergindo da boca aberta de Morwena.

No começo eu pensei que fosse algum tipo de língua — talvez um aspecto de uma feiticeira da água que eu nunca tinha visto antes. Era afiado e estriado. Também estava coberto de sangue.

O sangue jorrou da boca de Morwena, descendo em cascata pelo queixo, e vi que seu olho de sangue não estava mais olhando para mim. Ambos os olhos estavam fechados e ela gritou de agonia.

Descobrindo que agora era capaz de me mover, rapidamente dei um passo para trás, fora do alcance dela. Ela se virou e, naquele momento, percebi o que havia acontecido com ela.

Um enorme suga-sangue surgira atrás de suas costas e a havia trespassado com seu tubo ósseo, enfiando-o na nuca de modo que saísse de sua boca. Enquanto Morwena cambaleava e caía de cara no chão, o suga-sangue removeu o tubo ósseo e o cravou novamente, bem entre as omoplatas. Imediatamente, o tubo translúcido ficou vermelho brilhante enquanto sugava o sangue de seu corpo.

Outras feiticeiras gritaram de raiva e correram em seu socorro, mas imediatamente tiveram seus próprios problemas. Havia mais suga-sangues correndo pelo chão, cada um mirando em uma feiticeira da água.

A névoa estava se dissipando, a visibilidade melhorando a cada segundo — teria sido criada pela magia negra de Morwena? Parecia provável. Outro suga-sangue correu em minha direção, suas pernas finas com múltiplas articulações como um borrão. Ele se moveu tão rápido que eu mal tive tempo de reagir. Passou a menos de um braço de distância, mas nem olhou para mim; toda a sua atenção estava voltada para as feiticeiras pegajosas, que tentavam desesperadamente fugir.

— Alice!

Virei-me e vi Thorne correndo em minha direção, as lâminas vermelhas de sangue. Várias das feiticeiras estavam no chão, cada uma sob o ataque de um suga-sangue.

Thorne apontou para a parede de pedra e vi um pequeno arco que a névoa havia escondido de nossa vista. Corremos por ele e nos encontramos em uma grande antecâmara oval com três passagens estreitas que saíam dela.

Qual deles levava à sala do trono? Me perguntei. Talvez nenhum deles, mas em qualquer lugar parecia mais seguro do que perto da beira da água.

— Vou tentar farejá-los uma vez. — Disse a Thorne.

Farejar longamente às vezes pode alertar sobre o perigo. Pelo menos eu poderia evitar escolher uma passagem que representasse uma ameaça direta para nós. Mas antes que eu pudesse começar, algo se moveu para dentro da câmara atrás de nós.

Foi um suga-sangue.

Thorne preparou suas lâminas e se moveu entre mim e a criatura mortal. Por um momento ele parou e olhou para nós — talvez já estivesse saciado com o sangue das feiticeiras e não precisasse de mais sustento — mas então, de repente, ele correu em direção à entrada da passagem à esquerda. Lá, ele fez uma pausa e olhou para nós, antes de desaparecer de vista.

Estaria retornando ao caminho pelo qual tinha vindo? Nesse caso, outros poderiam segui-lo a qualquer momento, e alguns deles ainda poderiam estar com fome.

Mas algo muito estranho aconteceu: o suga-sangue lentamente recuou para fora da passagem até que seus grandes olhos vermelhos estivessem nos encarando mais uma vez, então reentrou na passagem. Não nos mexemos. Observei a entrada da câmara para o caso de mais suga-sangues entrarem; Thorne observou a passagem que o único suga-sangue havia tomado.

Foi então que a criatura voltou para a câmara pela segunda vez. De novo, ele nos olhou com seus olhos vermelhos — eram exatamente da mesma cor dos rubis nas espadas do herói.

Era estranho que a imagem de um suga-sangue adornasse os punhos dessas armas. Eu me perguntei qual era a conexão entre eles. Será que a adaga Dolorosa, a lâmina que vim recuperar, seria moldada de maneira semelhante?

— Acho que quer que o sigamos... — Eu disse lentamente, tentando entender seu estranho comportamento.

— Por que um suga-sangue faria isso? — Thorne desafiou. — Se fôssemos seguir, os outros poderiam nos seguir, e então estaríamos presas entre eles.

— Pode querer nos levar para a sala do trono.

— Por que isso deveria nos ajudar?

— Nem todas as criaturas das trevas estão do lado do Maligno, não é? Eles não nos atacaram agora. Eles mataram as feiticeiras da água e nos deixaram em paz.

Thorne parecia em dúvida.

— Verdade, mas aqueles suga-sangues no domínio quente não eram exatamente amigáveis. Os que saíram daquele lago fervente teriam drenado nosso sangue com certeza se tivessem nos pegado.

— Talvez eles estivessem apenas excepcionalmente famintos. Talvez os suga-sangue sejam diferentes aqui no domínio do Maligno? Talvez estejam divididos entre si, assim como nós, feiticeiras? Alguns são pelo Maligno e outros contra ele. Não vale a pena arriscar? Como você sempre me lembra, meu tempo está acabando.

Sem nem mesmo esperar pela resposta de Thorne, atravessei e entrei na passagem. Momentos depois, ouvi seus sapatos pontudos estalando atrás de mim. Caminhamos em silêncio por vários minutos. A certa altura, a passagem ficou muito escura e eu tirei o toco de vela do bolso e o acendi com um simples desejo. Foi um pequeno uso de magia — melhor do que ser incapaz de ver o perigo à frente. Eu não conseguia ouvir o suga-sangue à nossa frente, mas tinha que estar lá.

Emergimos em um espaço vasto e cavernoso. Eu segurei a vela, mas sua luz era fraca — como um vaga-lume solitário tentando iluminar uma floresta escura à meia-noite. A princípio, não consegui entender o que estava vendo. A sala era enorme, mais comprida do que larga, e olhei para cima, de repente ciente de outra coisa.

As cortinas pareciam estar penduradas nas vigas de madeira em arco muito acima.

Percebi que finalmente, após nossa longa busca, havíamos chegado à sala do trono. Não havia dúvida: todo o propósito deste espaço era fornecer uma abordagem para aquele trono. Havia um caminho que conduzia a ele, mas ao invés de ser coberto de mármore ou carpete, era formado de grama e flores.

Havia uma infinidade de flores com pétalas amarelo-claras, que reconheci como prímulas. Havia margaridas também, botões de ouro e flores que não reconheci, todas enchendo o ar com um cheiro agradável. Parecia estranho — mais apropriado para o domínio de Pan do que o do Maligno. Eu me perguntei se as coisas estavam mudando aqui por causa da ausência do Maligno. Mas então ouvi o zumbido de insetos e estremeci, pensando em Belzebu. Escutando mais de perto, decidi que pareciam mais pernilongos e mosquitos de uma bela noite de verão do que as varejeiras azuis que encheram meu nariz e minha boca.

Sem dúvida, muitos prisioneiros aterrorizados foram arrastados para este lugar para sofrer a ira cruel do Maligno, mas eu certamente nunca estive aqui antes.

Comecei a caminhar ao longo do caminho gramado. Era macio e flexível sob os pés, com uma verdadeira elasticidade. Bem à frente, pude ver o próprio trono. Estava velado, parcialmente obscurecido por aquelas cortinas diáfanas que quase chegavam ao chão. A princípio, pensei que não estava a mais de uma dúzia de passos de distância. Mas então percebi meu erro: estava pelo menos dez vezes mais longe do que isso.

Lembrei-me de que o Maligno pode mudar de tamanho. Depois da batalha do Velho Gregory contra as feiticeiras na Serra de Pendle, o Maligno tentou destruir Tom, que se refugiou no sótão da fazenda de seu irmão; aquela sala tinha sido protegida pela magia de sua mãe e o Maligno não fora capaz de entrar nela. Mas depois uma cicatriz escura apareceu na encosta sul da Colina do Carrasco, marcando a rota que ele havia seguido para atacar a fazenda. Na rápida fúria de sua passagem, ele derrubou uma enorme faixa de árvores, mostrando o quão grande ele era.

Quando encontrei o Maligno, ele tinha talvez três vezes o tamanho de um homem. Mas aquelas árvores achatadas e o tamanho do trono davam uma indicação de como ele poderia ser verdadeiramente terrível. O ser que sentou aqui em sua temível majestade era grande o suficiente para que coubesse um humano em sua boca; ele era muito mais alto do que a árvore mais alta do condado.

Continuei caminhando com cautela, Thorne logo atrás de mim. Continuei dizendo a mim mesma para ser corajosa. Afinal, não havia como o Maligno estar aqui agora. Sua cabeça ainda estava no saco carregado por Grimalkin. Ele estava preso naquela carne morta.

Quando cheguei à primeira das cortinas, parei e meus joelhos começaram a tremer. Eu vi agora o que realmente era.

Era uma teia.

— Que tipo de aranha poderia ter feito tantas teias pendentes enormes como essas? — Me perguntei.

Foi Thorne quem pronunciou seu nome.

— É Raknid.


Raknid e eu tínhamos nos encontrado antes, há muito tempo, e seu nome trouxe outra enxurrada de memórias terríveis do tempo que passei com Lizzie. Aconteceu um mês antes de ela descobrir o ovo de couro e nos encontrarmos com Betsy Pernil.

Foi no Teste.

— Bem, garota. — Lizzie me disse uma manhã. — Tenho algo para você ir se preparando. Em uma semana, na Noite de Lammas, você será testada!

Lammas era um dos quatro principais sabás das feiticeiras — as ocasiões em que a magia mais poderosa era executada e os clãs de Pendle eram mais perigosos.

Não gostei da expressão no rosto de Lizzie. Eu sabia que toda garota treinada como feiticeira tinha que passar por algum tipo de ritual chamado Teste. Mas os detalhes nunca eram discutidos; nada era passado de bruxa para bruxa.

— Mas eu não sou uma Malkin, sou uma Deane! — Protestei. — Minha mãe era uma Malkin, mas meu pai era um Deane. Eu sou Alice Deane, então não preciso ser testada.

Lizzie me deu um sorriso estranho.

— Você está comigo e sendo treinada por mim, então isso a torna uma Malkin. É melhor você se acostumar com isso, garota.

Agora, anos depois, sei porque Lizzie sorriu de forma tão estranha. Descobri mais tarde que ela era minha mãe, e meu pai era o Maligno — o próprio Diabo. Mas eu não sabia disso na época, então fiquei em silêncio. Lizzie costumava dar sorrisos estranhos — tudo que me preocupava era o teste. Parte de mim não queria saber o que o Teste envolvia, mas era sempre melhor estar preparada para o pior.

— Para que serei testada? — Perguntei.

— Duas coisas, garota. Primeiro, para ver que tipo de feitiçaria será mais adequada para você: magia de ossos, magia de sangue ou magia familiar. A seguir, para descobrir o quão poderosa você provavelmente será quando se tornar uma feiticeira.

Minha boca estava realmente seca agora, mas me forcei a fazer a próxima pergunta.

— Como elas testam você? O que elas fazem?

Lizzie sorriu. Ela provavelmente estava gostando da expressão de medo no meu rosto.

— É melhor você apenas esperar e ver. Você vai descobrir na noite, garota. Mas enquanto isso, há três coisas que você precisa fazer a fim de se preparar para o teste. De agora em diante, não se lave. Você precisa de uma semana inteira de sujeira para endurecer seu corpo e ficar pronta.

— Por que eu preciso estar suja? — Perguntei.

— Sujeira e magia negra andam juntas, pensei que você sabia disso. Quanto mais suja a pele, mais escura e mais forte é a magia! Em segundo lugar, não coma carne, nem mesmo molho ou sopa com vestígios de carne. E em terceiro lugar, pense bem sobre com o que você gostaria de trabalhar como uma bruxa: sangue, osso ou um familiar. Porque você terá que expressar sua escolha.

Não dormi na noite anterior ao Teste. Eu estava com medo, e meu estômago estava se revirando em nós dolorosos. Algumas pessoas falam sobre sentir borboletas no estômago quando estão nervosas. Comigo era mais como grandes cobras com presas e vermes se contorcendo dentro de mim, mordendo minhas entranhas.

Levantei ao amanhecer, mas isso significava que eu deveria aguardar o dia inteiro antes do teste ao anoitecer. Eu realmente queria me lavar, mas Lizzie havia proibido, e eu estava suja da cabeça aos pés, meu cabelo coberto de sujeira. Continuei coçando minha cabeça com comichão, mas isso só parecia piorar a situação.

Deanes não costumavam chegar perto da Torre Malkin. Se eles entrassem, provavelmente nunca sairiam vivos. Havia histórias aterrorizantes sobre câmaras manchadas de sangue bem abaixo dela, onde os Malkins torturavam seus inimigos antes de jogá-los em masmorras úmidas e profundas para morrer de fome.

O dia passou e logo estávamos caminhando através de Crow Wood, e aquela terrível torre de pedra escura estava bem à frente. Era um lugar assustador, sim, pelo menos três vezes mais alto que as copas das árvores. Me lembrava de uma torre de castelo por causa das ameias no topo e as janelas estreitas e pontudas. Ela também tinha um fosso largo com uma ponte levadiça. Mas a grande porta de madeira da torre estava fechada. Estava cravejada de ferro enferrujado — um metal que as feiticeiras não suportavam tocar.

Lizzie caminhou até a ponte levadiça e eu a segui relutantemente. Alguém acenou para ela das ameias — provavelmente uma das feiticeiras de seu coven; um momento depois, ouvimos pesados ferrolhos sendo puxados e então a porta começou a se abrir lentamente, rangendo nas dobradiças. Entramos e a porta se fechou atrás de nós. Eu fiquei lá, os olhos ardendo com a fumaça que enchia a grande sala sombria onde o clã vivia. Reconheci alguns de seus rostos porque passei por eles na rua da aldeia. Mas alguns eram completamente estranhos para mim, e me perguntei se essas bruxas já haviam, algum dia, deixado a torre.

Agora minha boca estava seca, meu coração batendo contra minhas costelas, prestes a explodir. Coisas terríveis aconteceram nesta torre. Eu temia que isso acontecesse comigo.

Nos cantos da sala havia fogueiras com panelas — e montes de ossos. Alguns pareciam ossos de animais, mas outros poderiam facilmente ser humanos. Havia também o fedor de corpos sujos e gordura de cozinha; sacos e lençóis sujos amassados estavam empilhados no chão contra a curva da parede: obviamente as camas das bruxas. No meio da sala havia outro fogo com um grande caldeirão borbulhando sobre ele.

O coven me olhou com curiosidade. As feiticeiras estavam vestidas com longos vestidos escuros que não pareciam muito limpos e seus rostos estavam manchados de sujeira e graxa. Elas cheiravam a suor rançoso e gordura animal. Lizzie estava certa: sujeira e magia negra realmente andavam juntas. Mas havia uma mulher alta que se destacava das demais; alguém que parecia limpa e de olhos brilhantes. Seu corpo era entrecruzado por tiras de couro, e presas a elas havia bainhas, segurando lâminas. Uma arma não estava visível, mas todos sabiam sobre ela... Ela a usava em uma bainha especial sob o braço esquerdo: era uma tesoura pontuda, que ela usava para cortar os polegares de seus inimigos.

Eu nunca a tinha visto antes, mas sabia que essa feiticeira não era membro do coven dos treze. Ela tinha que ser Grimalkin, a assassina do clã Malkin. Nossos olhos se encontraram e ela sorriu: eu vi que por trás de seus lábios pintados de preto, seus dentes eram afiados.

Lizzie me agarrou pelo braço e me arrastou em direção à parede oposta, onde uma mulher grande com longos cabelos brancos estava olhando para nós. Eu a conhecia de reputação. Era Maggie Malkin, a líder do clã.

Ela fez uma careta para mim e pegou meu braço esquerdo logo acima do cotovelo, apertando-o com tanta força que eu gritei de dor.

— Coisinha magra, não é? — Maggie disse. — Não há muita carne sobre esses gravetos. Você disse a ela o que acontece se ela falhar no teste?

Lizzie me deu um sorriso maligno.

— Achei melhor guardar esse prazer para você, Maggie. Eu não gostaria de roubar seus louros!

Foi a primeira vez que vi Lizzie sendo tão agradável. Isso me fez perceber que, como um grupo, essas bruxas eram realmente poderosas: ela ficava nervosa com elas, não importava o que ela dissesse sobre elas em particular.

Com um aceno apreciativo em direção a Lizzie, Maggie me puxou para o grande caldeirão no centro da sala. Ao lado, havia uma mesa de madeira com várias caixas pequenas, junto com três xícaras de madeira, cada uma coberta com um pano vermelho. Além disso, ao lado da mesa estava o que parecia ser uma caixa muito grande com um pano de seda preta colocado sobre ela. Talvez fosse uma cômoda? Eu me perguntei o que havia dentro dela.

Eu tentei cheirar furtivamente para ver se conseguia alguma pista do que poderia ser, mas não obtive nada em resposta. Sem dúvida, o coven tinha colaborado entre si para criar um feitiço poderoso para impedir pessoas intrometidas como eu.

Duas outras garotas estavam esperando na sala, parecendo tão assustadas quanto eu. Maggie soltou meu braço e me empurrou ao lado delas. Eu as conhecia de vista, embora nunca tivéssemos nos falado. Eu morava com minha mãe e meu pai na vila Deane de Roughlee, enquanto eles eram Malkins e vieram de Goldshaw Booth. A garota mais alta se chamava Marsha, a mais baixa, Gloria.

O coven se moveu para nos cercar. Eu podia sentir Lizzie parada atrás de mim, seus olhos perfurando minha nuca.

— Quem é a responsável por essas garotas? Quem vai lhes ensinar o ofício? — Exigiu Maggie em voz alta.

Em resposta, senti a mão de Lizzie apertar meu ombro esquerdo. Eu mantive meus olhos à frente, mas sabia que duas outras feiticeiras Malkin teriam feito o mesmo com Marsha e Gloria.

— Três garotas que vejo diante de mim! — Exclamou Maggie. — Vocês são três garotas assustadas, e não há vergonha nisso. Mas as coisas serão piores do que vocês imaginam. Não é uma maneira fácil de dizer isso, mas uma de vocês vai morrer esta noite!

Com isso, todas as bruxas deram um grito tão forte e alto que as pilhas de ossos nos cantos da sala começaram a vibrar e se espalhar pelas lajes de pedra.

Um tremor de medo percorreu meu corpo. Isso foi ainda pior do que eu esperava. Eu pensei que estávamos prestes a sermos testadas como um tipo de bruxa, não escolhidas para morrer. Como elas decidiriam qual de nós seria?

Maggie prosseguiu, nos contando o que eu já soubera de Lizzie:

— Cada uma de vocês será testada duas vezes: primeiro para nos mostrar que tipo de magia será mais adequado para vocês. O segundo teste irá prever sua força como bruxa. Mas então uma de vocês deve morrer para que sua força possa ser absorvida pelas outras duas. Tem sido sempre assim... Bem, há mais alguma coisa que vocês desejam saber antes de os rituais começarem? — Ela olhou para cada uma de nós por vez.

Não achei que valia a pena perguntar qualquer coisa, porque isso iria acontecer de qualquer maneira, e talvez seja melhor não saber com antecedência. Mas, para minha surpresa, Marsha falou.

— Eu sei o que funciona para mim! — Ela gritou. — Sangue é o que eu preciso!

Achei que Maggie ficaria zangada e avisaria a garota para ficar quieta; o coven certamente decidiria o que era melhor para ela. Em vez disso, sorriu para ela, alcançou o outro lado da mesa e levantou uma das xícaras de madeira.

— É agradável quando uma jovem bruxa em potencial sabe o que é bom para ela. — Disse Maggie, pegando o pano e estendendo a xícara para a ansiosa Marsha.

Eu podia sentir o cheiro do sangue quando ela o levou aos lábios e começou a engoli-lo com avidez. Era sangue humano também — eu podia sentir o cheiro e me perguntei onde elas o conseguiram. Alguém tinha sido assassinado para fornecer o que precisavam? Talvez fosse o sangue de algum prisioneiro que elas mantinham nas masmorras abaixo da torre.

Fiquei enojada ao vê-la engolir. Marsha estava tão ansiosa para drenar o copo que o sangue escorreu dos cantos da boca e começou a pingar do final do queixo. Com um sorriso satisfeito, ela devolveu a xícara a Maggie, que a recolocou na mesa, pegou a segunda xícara e a entregou para a menor, Gloria.

Eu poderia dizer pelo olhar no rosto de Gloria que ela não gostou nem de um gole do que aquele copo de madeira continha. Ela tentou, é verdade. Primeiro, ela segurou o nariz com o polegar e o dedo indicador da mão direita. Ela trouxe o copo para os lábios duas vezes, cada vez afastando-o no comprimento do braço, seu estômago revirando. Finalmente ela conseguiu tomar um gole, mas então seu estômago convulsionou: sangue misturado com vômito jorrou de sua boca e espirrou no chão entre ela e a bruxa.

Maggie não ficou nada satisfeita e lançou à pobre garota um olhar furioso antes de arrancar o copo de sua mão. Então ela ofereceu a terceira xícara para mim, mas cruzei os braços e balancei a cabeça.

— Eu não sou uma bruxa de sangue. — Disse a ela. — Eu posso cheirar daqui e não é para mim.

— Você vai tentar, garota, se sabe o que é bom para você. — Advertiu Maggie. — Se você não tentar, vamos forçá-lo goela abaixo.

Eu sabia que elas fariam exatamente isso, então relutantemente tomei um pequeno gole. Estava frio, salgado e tinha um sabor metálico. Não havia como engolir aquilo, então cuspi e balancei a cabeça novamente. Por um momento, pensei que Maggie iria cumprir sua ameaça e me forçar a beber toda a quantia, mas ela franziu a testa, agarrou o copo e o recolocou na mesa antes de abrir uma das caixinhas e tirar algo dela.

— Estenda sua mão esquerda, garota... — Ela caminhou para me encarar novamente. Pude ver que ela estava segurando um par de ossos do polegar. Ela os colocou na palma da minha mão esquerda. — Segure-os com força e me diga a quem pertenciam e como seu dono morreu.

Era algo que eu costumava praticar com Lizzie. Aprendi a dizer muito apenas tocando um osso.

Fiz como instruído e estremeci imediatamente. Eles estavam frios como gelo. Instantaneamente, as imagens de um terrível assassinato passaram pela minha cabeça. Um padre estava descendo uma trilha estreita na floresta em direção a uma ponte sobre um riacho de fluxo rápido. Estava escuro, mas uma lua crescente e fina salpicava o chão com sombras dos galhos e folhas. Ele se virou para olhar para trás na trilha, e eu vi seus olhos se arregalarem de medo. Ele estava sendo seguido por feiticeiras.

O padre começou a correr. Se ao menos ele pudesse alcançar o riacho ele estaria seguro, pois as bruxas não poderiam atravessar a água corrente. Mas ele estava muito velho para correr rápido e elas o pegaram facilmente. Haviam três feiticeiras, e eu reconheci duas delas: uma era Maggie, a outra Lisa Dugdale — uma bruxa de rosto amargo que não sabia o que era um sorriso. Elas o seguraram e ele começou a gritar enquanto cortavam seus polegares enquanto ele ainda estava vivo. Ele tinha um grande cálice em sua bolsa, e elas o usaram para coletar seu sangue. Em seguida, elas jogaram seu corpo no rio e a correnteza o carregou rio abaixo. A última coisa que vi foram seus olhos sem vida olhando para a lua.

De repente, percebi que ele havia sido morto na noite anterior. Não estava apenas segurando seus ossos do polegar, de onde a carne fora fervida menos de uma hora atrás; era o sangue dele que fui forçada a beber.

— Bem, garota, o que você aprendeu? — Perguntou Maggie.

— Os ossos pertencem a um velho fazendeiro. — Disse eu. Ele foi ferido por um touro. Enquanto ele estava morrendo, uma bruxa veio e recolheu seus ossos do polegar.

Eu menti porque nunca iria me tornar uma bruxa de ossos. Elas assassinavam pessoas para conseguir os ossos que usavam em rituais mágicos; muitas delas eram apenas crianças. Eu jamais faria uma coisa dessas.

— Bobagem! — Maggie rebateu, pegou os ossos de mim e os entregou a Gloria, cujos olhos reviraram em sua cabeça no momento em que os tocaram. Seus dentes rangeram e ela começou a trepidar e a tremer por inteiro.

— Eles são os ossos de um padre morto! Não gostei do sangue dele, mas amei seus ossos velhos! — Ela gritou.

Maggie sorriu.

— Eles são seus, garota. Fique com eles. Você vai se tornar uma feiticeira de ossos, com certeza. Mas o que vamos fazer com você, Alice Deane? — Ela exigiu. — Só sobrou uma coisa. Falhe nisso e você não poderá ser uma bruxa de jeito nenhum. E se você não pode ser uma bruxa, você pode muito bem morrer. Então é isso que vai acontecer!

Ela foi até a mesa e pegou outra caixinha. Maggie abriu, então se abaixou e sacudiu algo no chão aos meus pés.

— Este pode ser seu primeiro familiar, garota. Vamos ver se ele gosta de você.

Eu olhei para baixo, horrorizada, para o que estava se contorcendo no chão a menos de um palmo do meu pé.

Eu tinha medo de bichos rastejantes desde que eu conseguia me lembrar. Às vezes, quando criança, eu tinha pesadelos em que ficava presa na minha cama, olhando para o teto do quarto, que estava coberto por teias de aranha. Eu sentia um terror mortal, deitada parada de costas, esperando que uma aranha grande aparecesse.

E essa era a maior e mais peluda aranha que eu já havia visto. Este tipo de aranha não pertencia ao Condado, então tinha que ser do exterior. Ou isso ou foi especialmente criada usando magia negra. Parecia que poderia morder. Poderia até ser venenosa.

Uma bruxa familiar faz um pacto com uma criatura. Ela o alimenta com seu sangue e, em troca, ele torna-se seus olhos e ouvidos e cumpre suas ordens. Ter um familiar era melhor do que ser uma bruxa de sangue ou de ossos, mas embora eu pudesse ter lidado com um gato ou talvez algum tipo de pássaro, eu temia e odiava aranhas.

Depois que Lizzie me contou sobre o Teste, fiquei muito preocupada com isso e decidi que, se tivesse que escolher um tipo de magia, familiar seria o melhor, e o animal com o qual lidaria melhor seria um gato.

— Uma aranha não é minha escolha de familiar! — Gritei. — Eu preciso de um gato. Isso é o que me convém!

— Você vai fazer o que for mandado, garota! — Maggie disparou. — Você precisa começar pequeno. Você treina usando uma aranha porque ela não vive muito tempo. Talvez mais tarde você possa ter um gato.

Eu encarei a aranha com horror. Só o pensamento disso me tocando me fez estremecer.

Ela correu em minha direção.

E se ela subisse na minha saia...!

Eu agi sem pensar. Eu apenas fiz o que tinha que fazer...

Eu dei um passo à frente e esmaguei aquela aranha nojenta com a ponta do meu sapato pontudo esquerdo, espalhando-a no chão.

Quando recuei, o ar encheu-se de gritos de indignação. Olhei para os rostos zangados que me encaravam e, mesmo agora, lembro que apenas um era diferente. Apenas um rosto não estava contorcido de raiva.

Grimalkin estava sorrindo.

Maggie deu um passo em minha direção, então me deu um tapa forte no rosto, trazendo lágrimas aos meus olhos. Em seguida, ela me arrastou até a mesa pelos cabelos e pegou uma faca.

— Ela corrompeu o Teste. Outra deve substituí-la. Essa garota é adequada para ser uma feiticeira do clã Malkin? — Ela exigiu.

— Inadequada! Inapta! Incapaz! — O coven entoou em uníssono, até que as pilhas de ossos começaram a vibrar e chocalhar.

— Ela merece morrer? Devo matá-la agora? — Maggie gritou.

Eu olhei de volta para Lizzie. Seu rosto era difícil de ler e ela não estava entoando com suas irmãs, mas ela curvou a cabeça ligeiramente, como se em deferência à vontade do clã. Eu não poderia esperar ajuda dela.

— Mate ela! Mate! Mate! Mate! — Gritaram os membros do coven, terminando seu canto com um coro de gritos.

Maggie ergueu a faca acima da cabeça e se preparou para esfaquear meu peito. Fechei os olhos, sentindo meu estômago embrulhar. Eu iria morrer.


— Pare agora! — Uma voz solitária gritou em tom de comando. Abri meus olhos e observei Grimalkin sair do círculo e se aproximar de Maggie.

— Você ousa demais! — Maggie sibilou. — Pelo comportamento dela, a garota terá que pagar com sua vida.

Olhei para Lizzie, cujos olhos se arregalaram de espanto.

— Ela é apenas uma criança e tem muito que aprender. — Disse Grimalkin, retirando o cabo de uma adaga de sua bainha para que o metal afiado da lâmina brilhasse à luz do fogo. — Tirar a vida dela pode desperdiçar um talento raro. Ela tem coragem e merece passar para a segunda prova. Vamos ver o quão forte ela pode se tornar.

Maggie apertou meu cabelo com mais força.

— O clã votou pela morte dela. Como líder, tenho o dever de matá-la. O Teste foi corrompido. Vamos matar a garota e nos reunir novamente no próximo sabá para um novo teste.

Grimalkin retirou sua adaga mais um centímetro de sua bainha e deu mais um passo em direção a Maggie. Ela estava equilibrada na ponta dos pés, enrolada como uma mola, pronta para atacar. Um silêncio mortal e expectante caiu sobre a multidão.

— Os líderes do clã podem ser substituídos. — Sibilou Grimalkin. Então seus olhos percorreram o círculo de feiticeiras. — Este coven também pode!

Eu vi o medo nos olhos das bruxas. Algumas recuaram; uma olhava para a porta como se calculasse suas chances de fuga. Elas estavam todas claramente com medo de Grimalkin — até mesmo Lizzie. Eu pensei que a assassina era controlada pelo clã e cumpria suas ordens sem questionar. O equilíbrio de poder aqui não era o que eu esperava.

— Você fala bobagem. Nada foi contaminado. Continue com o Teste. Deixe Raknid decidir. — Continuou Grimalkin, seu tom mais conciliador. — Se ele marcar essa garota para morrer, então vou aceitar essa escolha.

Eu me perguntei quem era Raknid. Olhei em volta rapidamente, mas não vi nenhum homem na sala. O coven também tinha servos, mas nenhum parecia estar presente nesta reunião.

Maggie deu um suspiro, soltou meu cabelo e deu um passo para trás.

— Muito bem. Seríamos tolas em discutir por causa dessa criança. Em breve será resolvido, de uma forma ou de outra. Vamos passar para o segundo teste.

Grimalkin acenou com a cabeça, embainhou sua lâmina e recuou para se juntar ao círculo de bruxas. Eu chamei a atenção de Lizzie e ela acenou para mim. Eu obedeci e voltei para minha posição original.

Fiquei grata pela intervenção de Grimalkin — ela salvara minha vida. Mas por que ela fez isso? Não tive oportunidade de pensar mais a respeito porque era hora da segunda parte do teste.

Maggie olhou para cada uma de nós.

— Por enquanto, vocês três ainda vivem. Mas a morte se aproxima a cada segundo que passa. Agora vou convocar Raknid, o Testador. Ele avaliará seus pontos fortes e selecionará aquela que morrerá.

— Quem é Raknid? — Marsha perguntou.

Achei que Maggie se recusaria a responder, mas Marsha era claramente sua favorita.

— Era uma vez um perigoso ogro que as pessoas chamavam de Estripador de Pendle. Ele era usado por nosso clã para atacar nossos inimigos. Era formidável, matando mais de cem deles ao longo de menos de quarenta anos. Os forasteiros supõem que ele esteja morto ou adormecido, mas há setenta anos, através do uso de uma poderosa magia negra, elevamos aquele ogro ao nível de um demônio. Ele ainda obedece às nossas ordens, mas passa a maior parte do tempo nas Trevas, apenas entrando em nosso mundo quando convocado. Sua principal tarefa é avaliar novas feiticeiras e decidir qual das três deve entregar sua força e vida às outras.

Fiquei muito irritada com Lizzie. Certamente ela poderia ter me avisado sobre o que aconteceria esta noite? Minha vida estava em risco, mas eu entrei na torre como um cordeiro para o matadouro.

Maggie caminhou em direção à grande caixa ao lado da mesa e tirou o pano preto que a cobria. Quando ela o dobrou, colocando-o cuidadosamente sobre a mesa, meus olhos foram atraídos para o grande objeto que havia sido revelado. Eu esperava algum tipo de caixa de madeira, mas esta era feita de metal. Ela se apoiava em quatro pernas de ferro esculpidas na forma de pés escamosos, cada uma com três dedos do pé em garras afiadas. Era um armário quadrado, seu topo feito de vidro, com um pequeno orifício circular bem no centro.

Para o que serviria aquilo? Me perguntei.

A um sinal de Maggie, o coven começou a entoar novamente. Eu reconheci isso como um feitiço de convocação. Elas estavam chamando o demônio.

O ar esfriou muito rapidamente e comecei a tremer. Eu pensei ter ouvido um estrondo distante de um trovão, mas então percebi que o som vinha de algum lugar abaixo. Fora algo nas masmorras?

Logo o chão começou a tremer e a própria torre pareceu se mover. Houve um rugido, como o grito de advertência de algum animal feroz, e o armário de metal começou a vibrar. Então, de repente, tudo ficou muito quieto e silencioso novamente.

Havia magia negra perigosa sendo implantada aqui. Eu estava com medo do que poderia acontecer a seguir. Alguma de nós estava a salvo de uma entidade tão poderosa?

— Raknid está aqui. — Anunciou Maggie. — E está pronto para começar o Teste. Você será a primeira, venha aqui, criança!

Maggie estava apontando para Gloria, e a garota se adiantou para ficar ao lado do líder do clã, que colocou a mão em seu ombro e a conduziu até o armário de metal.

— Coloque sua mão no armário com a palma para cima, garota, e deixe lá. Mas antes de fazer isso, olhe para Raknid.

Gloria olhou para baixo pelo vidro e vi seus olhos se arregalarem.

— Não. — Ela murmurou. — Por favor... Eu não quero fazer isso.

— Você não tem escolha, garota. Cada feiticeira em nosso clã enfrentou isso. Você deve colocar sua mão no armário. E não tente removê-la até eu dar permissão. Remova-a mais cedo e você ficará sem uma mão pelo resto de sua vida. Entendeu?

Gloria acenou com a cabeça e, muito lenta e relutantemente, colocou a mão pelo buraco circular. Em segundos, ela estava gritando como um leitão prestes a ter a garganta cortada.

Ouvi-la gritar assim me fez tremer toda. O que havia naquele armário? Logo minha mão estaria dentro dele.

Depois de cerca de trinta segundos, Maggie disse a Gloria para puxar a mão para fora do buraco, e ela voltou ao seu lugar, apertando-a contra o peito. Sangue pingava dela — o demônio claramente a mordera. Tirar sangue sem dúvida fazia parte do processo de teste.

Em seguida, foi a vez de Marsha. Ela se adiantou com um olhar confiante no rosto, mas quando olhou através do vidro para o armário, vi o medo distorcer suas feições também, e seus joelhos começaram a tremer. Qual foi a forma assumida pelo demônio? Deveria ser algo realmente assustador.

Mas qualquer que fosse a aparência e qualquer que fosse a dor, Marsha era muito mais corajosa do que Gloria. Ela gritou apenas uma vez e depois ficou em silêncio enquanto o demônio fazia seu trabalho. Rápido demais, foi a minha vez de ser chamada à frente.

— Isso não poderia ser melhor, Alice Deane. — A líder do clã me disse. — Há uma certa justiça aqui depois do que você fez antes. Olhe para baixo!

Eu olhei para baixo através do vidro e imediatamente comecei a tremer de medo. O demônio tinha assumido a forma de uma gigantesca aranha peluda. Seu corpo era do tamanho de uma cabeça humana, cada uma de suas oito pernas eram do comprimento do meu antebraço.

Já tinha sido um ogro, antes de se tornar mais poderoso e se transformar em um demônio. Os ogros peludos geralmente assumiam a forma de gatos, cachorros, cabras ou cavalos. Nunca tinha ouvido falar de algum parecido com uma aranha. Era raro e provavelmente muito perigoso.

— Coloque sua mão esquerda no armário, garota! — Maggie ordenou. — Palma para cima.

Comecei a suar e tremer. As aranhas estavam no topo da lista dos rastejadores que eu temia. Isso era um pesadelo. Como eu poderia fazer isso?

Mas Maggie esteve perto de me matar. Se eu recusasse agora, perderia minha vida. Mesmo Grimalkin seria incapaz de me salvar.

Precisou de toda a minha força de vontade para forçar meu corpo a obedecer. Devagar e nervosamente, com a boca seca, passei a mão pelo buraco em direção à enorme e assustadora aranha.

Apesar do meu medo, estava determinada a não deixar transparecer. Eu não choraria de dor. Por que dar a eles essa satisfação?

A aranha colocou uma de suas pernas peludas em meu pulso. Estremeci com seu toque. A perna parecia muito pesada e eu sabia que estava prendendo minha mão para que eu não pudesse movê-la. Quando a criatura abriu a boca, precisei de todas as minhas forças para não gritar, pois tinha as presas longas, curvas e venenosas de uma cobra.

Ela mordeu rapidamente o monte macio de carne abaixo do meu polegar. Eu gemi, mas de alguma forma consegui não gritar. A dor era forte. Era como se duas agulhas quentes estivessem pressionando cada vez mais fundo em minha carne. Então o sangue começou a escorrer, formando uma poça vermelha na palma da minha mão. Pareceu durar muitos minutos — muito mais do que as outras duas garotas tiveram que suportar — mas finalmente Maggie me disse para retirar minha mão.

Eu não a segurei contra meu vestido como as outras duas fizeram. Qual era o sentido daquilo? Eu só teria trabalho para tirar as manchas depois — isso se eu sobrevivesse àquela noite. Eu apenas deixei-a repousar ao meu lado e voltei para o meu lugar com Lizzie, deixando um rastro de sangue nas lajes.

Uma voz ressoou do gabinete, fazendo as pilhas de ossos vibrarem novamente. Era severa e áspera, como os dentes de uma lima grossa esfregando contra o metal dentado.

— A mais fraca é a garota Gloria. Sua magia de ossos dificilmente valerá o nome. Ela seria uma serva melhor do que uma feiticeira, mais adequada para cozinhar e limpar. Quanto a Marsha, ela é três vezes mais forte e se tornará uma poderosa feiticeira de sangue. A mais poderosa de todas, entretanto, é a garota Alice. Ela só precisa de um familiar adequado.

Eu vi o rosto de Maggie se contorcer de raiva e as outras bruxas arfaram de surpresa. Maggie queria que eu fosse a mais fraca e Marsha a mais forte — eu tinha certeza disso. Mas tive pena da pobre Glória. Como fora declarada a mais fraca, ela seria aquela que perderia sua vida. Quanto ao que ele disse sobre mim, fiquei surpresa. Eu era uma feiticeira em treinamento contra minha vontade e não achava que tinha nenhuma aptidão especial para o ofício — não queria ser boa nisso.

Mas o demônio ainda não havia terminado.

— Embora ela seja a mais forte, Alice deve perder sua vida agora. Eu sinto perigo. Um dia ela poderá se tornar uma inimiga das Trevas. Melhor prevenir do que remediar, então pegue a força dela agora e compartilhe-a com as outras duas!

— Isso não é justo! — Gritei, discutindo meu próprio caso pela primeira vez. — Passei no teste e venci as outras duas! Eu sou a mais forte. Por que eu deveria morrer?

— Cale a boca, garota! Aceite o que Raknid diz, pois a palavra do Testador é lei. Até Grimalkin irá aceitar isso. Não é verdade? — Maggie perguntou, olhando para a feiticeira assassina.

Eu me virei para Grimalkin, esperando contra todas as probabilidades que ela interviesse novamente, mas ela simplesmente apertou os lábios e deu um leve aceno de cabeça.

Então, em seguida, voltei para implorar a Lizzie.

— Ajude-me! — Gritei. — Como isso pode estar certo quando eu sou a mais forte?

— Não posso fazer nada, garota. A lei é a lei.

Ninguém me ajudaria agora. Era isso.

Eu pensei que elas iriam me entregar a Raknid, mas para minha surpresa, as bruxas começaram a cantar novamente. Mais uma vez, o armário de metal começou a vibrar e a sala ficou cada vez mais quente. Quando o feitiço foi concluído, houve uma sensação de paz e calma. Raknid havia partido. O demônio havia retornado às trevas.

— Traga a garota aqui! — Maggie ordenou, e Lizzie me empurrou em sua direção.

Para minha surpresa, havia uma expressão triste no rosto da líder do clã.

— Já fiz isso muitas vezes, garota. — Ela disse. — E eu sei que você deve estar com medo, então gostaria de lhe oferecer algumas palavras de conforto. Em primeiro lugar, posso prometer que não irá doer muito. Haverá uma pressão dentro de sua cabeça, e então você cairá em uma escuridão reconfortante e a dor desta vida terá passado. Em seguida, quero que você pense em como estará ajudando seu clã, para que sua morte não seja em vão. Duas outras jovens feiticeiras, Marsha e Gloria, receberão sua força e poderão atender melhor às nossas necessidades. E você tem muito poder para ceder, então lembre-se disso. Você deixará um legado, garota. Fique feliz em nos servir.

Eu olhei para Lizzie. Não que eu esperasse qualquer ajuda, porque ela me disse claramente que não podia fazer nada para se opor às leis do clã. Mas achei que ela poderia pelo menos estar um pouco triste por eu morrer; até um pouco irritada por causa do tempo que ela perdeu me treinando. Mas seu rosto era uma máscara — nenhum traço de emoção — e seus olhos eram como duas brasas negras.

— Não está certo! — Gritei. — Acha que eu me importo com o que tenho para oferecer a vocês? Minha vida não vale um tostão para vocês. Eu estarei morta!

— Estar morta não é tão ruim. — Maggie me disse. — Vamos carregar seu corpo para o Vale das Feiticeiras e enterrá-la lá em uma cova rasa sob as folhas apodrecidas. Será agradável e aconchegante para você, e quando o primeiro raio da lua cheia cair sobre seu túmulo, você voltará à vida e poderá ir à caça de vítimas. As feiticeiras mortas realmente adoram o sabor de sangue. E há diversos sabores deliciosos: ratos, camundongos, coelhos, até mesmo humanos, se você conseguir pegar um.

— Você está mentindo! — Gritei. — Isso só acontece com feiticeiras mortas e eu ainda não sou uma feiticeira. Irei direto para as Trevas e você sabe disso!

Maggie não respondeu. Ela sabia que o que eu havia dito era verdade.

Eu me virei e corri em direção à grande porta, mas depois percebi que não tinha esperança de escapar porque estava trancada. Teria levado vários minutos para atravessar cada barra, e mesmo assim eu provavelmente não teria tido forças para abrir aquela porta pesada sozinha; a ponte levadiça provavelmente também fora levantada. Mas eu não estava nem mesmo pensando na época. Eu estava desesperada, como um animal acuado em uma armadilha esperando o guarda-caça vir buscá-lo.

As bruxas me pegaram facilmente e me trouxeram de volta para ficar diante de Maggie. Minhas mãos foram amarradas nas minhas costas e fui forçada a ficar de joelhos diante dela. Eu me senti entorpecida: não conseguia acreditar que isso estava acontecendo comigo. Memórias da minha infância passaram pela minha mente. Eu vi minha mãe e meu pai rolando no chão, brigando; ele estava tentando estrangulá-la enquanto ela arranhava seus olhos com suas unhas compridas. Mas havia outras mais felizes também: andando pela floresta sozinha, apenas ouvindo os pássaros. Minha vida mal havia começado, no entanto. Eu esperava que de alguma forma as coisas começassem a melhorar, mas acabaria aqui na Torre Malkin.

Não havia nada que eu pudesse fazer para me salvar. Elas haviam se decidido, e eu não era forte o suficiente para lutar contra todas.

Fui mantida na posição por duas bruxas enquanto Gloria e Marsha colocavam cada uma a mão em meu ombro esquerdo. Em seguida, Maggie colocou as mãos no topo da minha cabeça e exerceu uma pressão constante, começando o cântico cantante que atrairia minha força e vida para os corpos das duas garotas, deixando-me morta como uma pedra nas lajes.

No começo eu lutei, mas então senti o início da dor: uma pressão lenta crescendo bem dentro da minha cabeça. A dor cresceu até que pensei que minha cabeça fosse explodir. Agora eu mal conseguia pensar. Tudo o que restou foi a emoção — uma mistura de raiva e ressentimento.

Por que eu deveria morrer enquanto Marsha e Gloria viveriam? Eu pensei. Não era justo!

Eu devo ter gritado, ou talvez tenha apenas chorado de raiva. Quando me dei conta, as mãos haviam soltado seu aperto e Maggie havia caído para longe.

Eu me levantei, cambaleando. Maggie estava deitada de costas, se contorcendo no chão, os olhos revirados, cuspindo pequenos pedaços de dente, enquanto o vômito escorria de sua boca. As duas bruxas que me seguraram estavam de joelhos, colocando as mãos contra o peito, os rostos retorcidos de dor. Ambas as meninas estavam chorando.

Eu olhei em volta e vi olhos me encarando com horror. O que tinha acontecido? Mas, mais uma vez, Grimalkin estava sorrindo. Ela deu um passo à frente para agarrar meu braço, depois se virou e falou com Lizzie.

— A menina está livre para ir. — Ela disse. — Outra vida deve ser perdida.

Lizzie acenou com a cabeça e sorriu de volta. Em poucos instantes, minhas mãos foram liberadas; as grandes portas da Torre Malkin foram abertas e a ponte levadiça baixada. Espantada, saí para o ar fresco com Grimalkin ao meu lado. Lizzie estava nos seguindo. Eu não conseguia acreditar que tinha acabado e eu ainda estava viva.

Na ponte levadiça, a feiticeira assassina se aproximou da minha orelha esquerda.

— Eu teria pisado naquela aranha também, Alice. — Ela sussurrou. — Isso é o que fazemos. Nós somos as mais fortes: esmagamos tudo que não gostamos. Qualquer coisa que nos ameace será esmagada!

Durante todo o caminho para casa, Lizzie Ossuda se recusou a responder às minhas perguntas, mas de volta à cabana ela finalmente cedeu.

— Elas ainda virão atrás de mim? — Perguntei. — Eu ainda terei que morrer?

Lizzie balançou a cabeça.

— Não, garota, você está segura por enquanto. Maggie não era forte o suficiente para sugar seu poder. Então ela pagou o preço. Quando ela estiver bem o suficiente, uma das outras meninas terá que morrer em seu lugar. Será Gloria, pois ela é a mais fraca.

— Por que Maggie não pôde fazer isso? — Perguntei. — Por que ela não conseguiu tomar meu poder?

— Quem sabe? — Disse Lizzie, dando-me um sorriso estranho. — Mas a feiticeira que assume o poder de outra deve ser mais forte do que sua vítima. Caso contrário, ela pagará um preço alto.

— Você está dizendo que de alguma forma eu sou mais forte do que Maggie? — Perguntei, espantada.

— Ainda não, garota, então não tenha ideias acima de sua posição. Ainda há muito trabalho pela frente. Mas você deve ter o potencial, caso contrário, Maggie não teria sofrido aquele ataque.


Eu ainda me lembrava do meu próprio Teste como se tivesse acontecido ontem — como eu esmaguei aquela aranha com o salto do meu sapato pontudo; como fui forçada a colocar minha mão no armário com tampo de vidro e deixar Raknid, o demônio-aranha, me morder. Depois ele disse que eu era a mais forte das três garotas...

As palavras de Raknid realmente provaram estar corretas. Eu era inimiga do Maligno e de seus servos, e isso agora significava que Raknid era meu inimigo. Se ele conseguisse o que queria, eu morreria aqui.

Mas não se eu pudesse evitar! Eu era forte e faria o que fosse necessário.

— Olhe! Lá em cima! — Gritou Thorne, apontando para algo quase diretamente acima de nós. Era o suga-sangue que nos trouxera até aqui. Parecia estar se contorcendo, as pernas se retorcendo em movimentos espasmódicos, suspenso no que parecia ser uma corda.

Não — aquilo não era uma corda. A criatura fora amarrada rapidamente por um fio de seda fiado do corpo do demônio, ainda fora de vista, bem acima de nós. E agora o suga-sangue estava sendo puxado para cima. Observei-o ser puxado cada vez mais para a escuridão do telhado, onde a luz da minha vela não alcançava; até o lugar onde o demônio-aranha estava esperando para se alimentar.

A criatura pagou um preço terrível por nos guiar até a sala do trono.

— Talvez Raknid esteja muito ocupado com o suga-sangue para nos notar... — Sugeriu Thorne.

Mas não havia convicção em sua voz. Ambas sabíamos a verdade.

Raknid saberia que estávamos aqui. Ele se alimentaria rapidamente, drenaria o suga-sangue e então seríamos as próximas do menu. Para escapar da sala do trono, teríamos que combatê-lo de frente.

— Vamos encontrar a lâmina e dar o fora daqui. — Eu disse, correndo em direção ao trono gigantesco.

Mas quanto mais nos aproximávamos, menos eu gostava do que via. O trono fora erguido sobre uma base que ficava acima do caminho gramado. Poderíamos andar por baixo dele e procurar sem ter que nos abaixarmos. Parecia quase fácil demais. Era uma armadilha? Havia mais alguma coisa aqui, além do demônio-aranha? Assim que esse pensamento entrou em minha cabeça, vislumbrei algo se movendo sob o trono. Havia olhos refletidos no brilho da chama da vela.

Eu pisei sob o trono do Maligno, a vela colocada diante de mim, Thorne ao meu lado. Mas então eu vi que havia muitos olhos pertencentes a diferentes insetos grandes. Alguns deles eram enormes. O mais próximo parecia uma centopeia e tinha um corpo longo e ondulado da espessura do meu braço.

Mais rastejadores assustadores...

Então, outro horror foi revelado à luz da vela.

Todas essas criaturas tinham rostos humanos.

A centopeia falou, sua voz pouco mais do que o farfalhar e estalar de folhas mortas secas agitadas pelo vento. Mas de alguma forma comunicou extrema tristeza.

— Uma vez caminhamos sobre a terra com corpos humanos. — Explicou. — Nós servimos ao Maligno na Terra, mas eventualmente o desagradamos. Esta é a nossa punição: assumir essas formas e rastejar por toda a eternidade sob seu trono. Existem outros como nós que vivem nas abóbadas por baixo da basílica e também em algumas das cavernas mais profundas da cidade. Odiamos ser contemplados. Saia daqui e deixe-nos sofrer.

A criatura apertou os olhos em direção à chama da vela e seus olhos começaram a lacrimejar.

Os próprios olhos de Thorne se arregalaram de espanto e pena, e coube a mim responder.

— Vamos partir assim que pudermos. — Respondi. — Mas primeiro devemos procurar por algo. Há uma adaga escondida sob este trono. Mostre-nos onde fica e partiremos imediatamente.

Nenhuma daquelas criaturas deploráveis respondeu; em vez disso, tão acostumados à escuridão que ficaram deslumbrados com a luz fraca de minha vela, eles se viraram e fugiram.

Sem dizer uma palavra, Thorne e eu começamos a procurar na área gramada sob o trono. Onde poderia estar a adaga?

Poderia estar escondida na grama; aquele não era mais o tapete perfumado e florido que levava da porta ao trono. Estava encharcado e fedia a podridão, de modo que nossos sapatos rangiam a cada passo, e estava coberto de detritos nojentos — pele morta derramada pelas criaturas que fugiram, junto com cabelo áspero e protuberâncias verrucosas. Evitei tocá-lo com a mão e apenas empurrei tudo de lado com meus sapatos.

Concluímos nossas buscas ao mesmo tempo. Não tínhamos encontrado nada.

— Talvez esteja enterrada no solo? — Sugeriu Thorne.

Teríamos que desenterrar toda a área sob o trono? Eu me perguntei.

— A lâmina pode estar em qualquer lugar. — Eu disse. — E se já tiver sido movida? Se Morwena soubesse que estávamos vindo aqui para pegá-la, ela poderia tê-la levado.

Então, de repente, tive uma sensação de aperto na boca do estômago.

— Há outro alguém que poderia tê-la escondido... — Eu murmurei.

Thorne concordou com a cabeça.

— Você quer dizer Raknid? Sim, acho que é muito provável.

Juntas, saímos debaixo daquele imenso trono e olhamos para cima. O suga-sangue não era mais visível. Fios de teia estavam presos às paredes e a várias partes do chão, cada um mais grosso que o meu indicador; havia até mesmo um par preso no alto do trono.

Segurei a vela o mais alto que pude. Ela iluminou a borda inferior da parte central da teia. Tinha sido construída em uma vasta escala, e havia coisas presas a ela: coisas dessecadas, mortas há muito tempo — as vítimas de Raknid.

Mas não eram as moscas que você pode encontrar em uma teia de aranha comum.

Estes tinham braços e pernas; cabeças também.

Eles eram humanos.

— Se eu fosse Raknid, esconderia a lâmina no alto da minha teia, assim qualquer um que a procurasse teria que escalar para alcançá-la. — Disse Thorne.

— Isso é o que eu preciso que fazer... — Eu percebi.

Eu estava com medo, mas não tinha percorrido todo esse caminho e passado por tanto para falhar agora.

Thorne apontou para o fio de teia mais próximo e balançou a cabeça.

— É grudento, você ficaria presa nele. E no momento em que você tocá-lo, a teia vibrará, alertando o demônio-aranha. Os pés dele não grudam na teia como os seus. Ele vai correr e injetar veneno em você. Você ficará paralisada. Então ele vai puxar você para a escuridão e começar a se alimentar de você. Você estará consciente o tempo todo e em agonia. Ele não vai apenas tomar seu sangue. Ele vai sugar o cérebro do seu crânio. Ele vai drenar cada pedacinho de fluido de seu corpo até que você seja apenas uma casca seca e morta. Você não vê? Ele quer que você escale. Portanto, não faça isso, Alice. Tem que haver outra maneira.

Então, como se ele tivesse ouvido cada palavra que pronunciamos, Raknid falou conosco da escuridão acima, sua voz profunda e áspera vibrando em minha cabeça e me fazendo cerrar os dentes.

— Sim, suba até mim, pequena feiticeira! Vamos ver o quão corajosa você realmente é. Não dê ouvidos à sua amiga covarde morta. O que ela sabe? Eu tenho a lâmina Dolorosa que você procura. Você é corajosa o suficiente para tentar tirá-la de mim?

— Vou escalar e confrontá-lo! — Disse Thorne furiosamente. — Eu me prenderei à sua teia, mas quando ele atacar, não serei uma presa fácil. Esta lâmina lhe arrancará os olhos!

— Espere um momento. Deixe-me falar com ele primeiro. — Segurei o braço de Thorne para evitar que ela subisse na teia mais próxima.

Uma raiva lenta começou a crescer dentro de mim. De volta à Torre Malkin, esse demônio havia tirado meu sangue e me condenado à morte. Agora eu não só pegaria a lâmina. Eu retribuiria o mal que Raknid havia me feito.

— Acho que você está mentindo! — Gritei no escuro. — Não acredito que você tenha a lâmina.

— Porque eu mentiria? A lâmina está aqui comigo.

— Então mostre para mim! Prove que você a tem. Por que eu deveria subir aí para nada?

— Para uma pequena feiticeira, você nos causou um grande problema. Eu soube que seria assim quando provei do seu sangue. Você é forte para uma mera garota, e em seu auge poderia ter se tornado incomparável; mas você não sobreviverá para cumprir seu potencial. Eu estava certo sobre o perigo que senti dentro de você. Você é uma grave ameaça para meu mestre. Mas vou lhe mostrar a lâmina porque sei que ela vai trazê-la para mim! E então eu vou te matar!

De repente, a enorme teia estremeceu. Raknid provavelmente estava agachado em uma saliência bem acima. Agora ele estava pisando nos fios, fazendo-os tremer. Ele descia em nossa direção. Em segundos, ele havia assumindo uma posição bem no centro de sua teia.

Ele era enorme — muito maior do que no armário de metal na Torre Malkin. A parte central arredondada de seu corpo, era coberta por um longo cabelo castanho-avermelhado sedoso; era talvez do tamanho de um touro, mas suas oito longas e finas pernas pretas triplicaram seu tamanho.

E ali ao seu lado estava uma adaga, presa à teia.

— Vejo uma lâmina! — Gritei. — Mas como eu sei que é a Dolorosa? Não há como saber desta distância. Traga-a mais perto para que eu possa ter certeza!

— Não, pequena feiticeira. Você deve subir até mim!

Inclinei-me para sussurrar no ouvido de Thorne:

— Quando ele cair, esteja pronta para matá-lo.

Seus olhos se arregalaram de espanto.

Então avancei para frente e segurei a chama da minha vela contra o fio mais próximo da teia. Fumegou um pouco, mas o fio permaneceu intacto. Não pegara fogo.

A vela tremeluziu e estava prestes a se apagar.

— Sua tola! — Raknid riu.

Mas não era tola; apenas desesperada o suficiente para fazer o que precisava ser feito. Eu estava reunindo meu poder. Esse foi o motivo do atraso. Eu não disse uma palavra. Eu não precisava de feitiços — embora soubesse que poderia haver um preço a pagar mais tarde.

Lembrei-me do aviso que Agnes Sowerbutts me disse uma vez sobre o meu uso de magia: Você não pode usar esse poder para nada ou ninguém ou ele irá destruí-la. Ele vem do próprio coração das trevas, e se você o usar à toa como acabou de fazer, ele a tomará para si e levará sua alma.

Mas eu tive que arriscar.

Então, eu simplesmente desejei... e foi feito.

A chama da vela ficou mais brilhante, pegou e correu pela teia diretamente para o demônio-aranha.

Por um segundo, Raknid não reagiu. Talvez ele não pudesse acreditar no que estava acontecendo...

A teia inteira subiu em uma lufada de chamas, amarela e laranja, tão brilhante que machucou meus olhos.

Raknid também estava queimando. Ele estava queimando e gritando — tão estridente que pareciam agulhas afiadas sendo enfiadas em meus ouvidos. Seu pelo vermelho estava ficando preto.

Agora ele estava caindo. Caindo como um meteorito caindo na Terra.

Mas a adaga estava caindo mais rápido.

Como um falcão curvando-se sobre o pulso de um falcoeiro, a lâmina Dolorosa veio direto para minha mão.

Eu a peguei pelo cabo e a joguei na direção de Thorne.

Ela girou repetidamente, de ponta cabeça, e Thorne a pegou também.

— Mate-o! — Ordenei.

Raknid, ainda gritando, atingiu o chão em uma chuva de faíscas.

Thorne o liquidou rapidamente.

Ele permaneceu em silêncio.

Então corremos.


A primeira vez que paramos para recuperar o fôlego, examinei a adaga com cuidado. Ela se assemelhava à outra necessária para o ritual. A espada e as adagas eram de comprimentos diferentes, mas os punhos eram idênticos, com suas cabeças de suga-sangue e olhos vermelhos-rubi. Mas esta era a lâmina Dolorosa — aquela que seria usada para tirar minha vida.

Então, enquanto eu segurava aquela adaga, uma onda de tristeza passou por mim. Isso não se parecia com nada do que eu já havia experimentado antes. Não era simplesmente porque aquilo estava vinculado à minha própria morte iminente; era como se eu estivesse subitamente conectada à tristeza de milhões de almas. Eu cambaleei e quase deixei cair a lâmina, e Thorne segurou meu braço para me firmar.

— Você está bem? Você está indisposta? — Ela perguntou, preocupada.

Não via sentido em lhe contar o que havia experimentado, então eu apenas sorri.

— Estou cansada, só isso. Devemos seguir em frente. Eu tenho que deixar este lugar.

Então partimos novamente. Levou algum tempo para farejar o portal; muitas horas de busca. O tempo todo eu estava com medo e muito ciente de que estávamos sendo caçadas por seres poderosos.

E nossos inimigos tinham muitos motivos para tentar nos impedir.

Thorne tinha ferido Belzebu e matado Tusk; havíamos lutado contra as feiticeiras da água e estávamos lá quando Morwena fora morta. Nós tínhamos destruído o demônio Raknid. E agora estávamos fugindo com a lâmina Dolorosa, uma das três espadas de herói que poderiam ser usadas para destruir o Maligno.

Eles fariam qualquer coisa para nos pegar.

Mas finalmente encontramos o portal e o atravessamos com segurança; nos encontramos mais uma vez no caminho branco que cruzava o abismo negro, unindo um domínio a outro.

Foi então, ao nos aproximarmos de uma caverna, que o demônio Tanaki nos encontrou.

Em um piscar de olhos, com um som de trovão, o pai do kretch havia chegado.

Ele era um colosso — grande demais para caber na caverna — mas se materializou entre nós e nosso refúgio. Eu tinha chegado tão perto, mas agora nossa chance de fuga se fora.

Era impossível dizer se Tanaki estava flutuando ou parado em algo bem abaixo do caminho, mas ele ancorou nele, suas pernas niveladas com nossas cabeças, enquanto sua cabeça e seu corpo se elevavam acima de nós. Ele era uma visão assustadora e, como seu filho, o kretch, sua aparência se assemelhava muito com a de um lobo.

Sua mandíbula peluda era alongada e grandes caninos pontiagudos projetavam-se para cima e para baixo, grandes demais para caber dentro dela. Ele abriu a boca e rugiu, seu hálito quente e rançoso se precipitou sobre nós como vapor escaldante, de modo que fui forçada a proteger os olhos com o antebraço. Eu poderia caber facilmente dentro daquela boca. Eu não era mais do que um naco de carne para um monstro desses, que seria mastigado e engolido em um instante.

Mais uma vez Thorne se interpôs entre mim e a ameaça. Ela era corajosa e perigosa, mas que chance ela tinha contra um monstro daqueles?

Ela já estava deslizando uma adaga de sua bainha. Mas o demônio não era apenas enorme; ele era muito rápido. Ele golpeou Thorne para baixo com uma mão com garras escamosas. Ela deu uma cambalhota para trás, mas Tanaki lhe deu um golpe de relance no ombro e a atirou contra as pedras.

Ele agarrou ambos os lados do caminho com suas mãos monstruosas, boca bem aberta, pronto para esmagar Thorne entre suas mandíbulas.

Eu tinha que fazer algo.

Mas eu ousaria usar minha magia mais uma vez?

Certamente eu quase havia alcançado um caminho sem volta...


Cada vez que eu usava meu poder mágico, a marca crescente na minha coxa ficava cada vez maior; agora estava perto de se tornar uma lua cheia.

O jarro de sangue que usei para manter o Maligno longe de Tom parecia fazer pouca diferença. Mas na Irlanda, usei meu poder para salvá-lo da morte. Tanta energia mágica havia emergido de mim que causara um terremoto localizado. Eu tinha salvado nossas vidas, mas da próxima vez que verifiquei minha marca, ela havia se tornado uma meia-lua.

Então, logo após a morte de Thorne, eu usei minha magia para ajudar Grimalkin a recuperar a cabeça do Maligno de seus servos. Eles estavam prestes a embarcar para a Irlanda, onde teriam reunido sua cabeça e corpo, devolvendo o Maligno ao seu antigo estado, solto no mundo. Eu tinha usado minha magia para conjurar uma tempestade e queimar seu navio. Com minha ajuda, Grimalkin finalmente triunfou, mas o custo para mim foi terrível. Mesmo antes da queima do demônio aranha, Raknid, a marca na minha coxa havia crescido para uma lua minguante. Depois, eu nem ousei olhar para ela, com medo do que poderia ser revelado. O gasto adicional de magia poderia fazer um círculo completo. Então eu pertenceria às trevas para sempre.

A desafortunada e destemida Thorne teve uma morte horrível na Terra, seus polegares cortados pelo mago das trevas Bowker na borda da Vale das Feiticeiras. Agora ela enfrentaria uma segunda morte pelas mandíbulas do demônio Tanaki.

Como eu poderia permitir isso depois de tudo que ela fez para me ajudar?

Mas como eu poderia usar minha magia novamente quando eu sabia qual poderia ser o resultado?

Meus joelhos tremiam e meu coração ameaçava sair do meu peito. Mas me forcei a dar um passo à frente até ficar entre Thorne e aquela monstruosa boca cheia de dentes selvagens e vingativos.

Eu não usaria minha magia descuidadamente. Eu não iria usá-la para me manter seca em uma tempestade ou fazer galhos se curvarem no meu caminho, como fiz em minha caminhada de volta para Pendle para ver Agnes. Eu iria usá-la para lutar contra o demônio Tanaki. Eu estava fazendo isso por Thorne.

— Para trás! — Gritei, erguendo os punhos para o demônio. — Deixe-a em paz! Você não pode tê-la!

Por um momento, a enorme cabeça parou. Eu vi a expressão faminta nos olhos bestiais mudar rapidamente, revelando três coisas: humor, raiva e finalmente desprezo.

Foi o último deles que fez com que a fúria subisse como bile na minha garganta.

— Você não sabe quem eu sou! — Gritei para ele. — Você não sabe quem eu realmente sou!

A risada zombeteira do demônio retumbou no abismo. Tanaki se divertiu com minha explosão.

Então falei de novo — desta vez baixinho; palavras sussurradas de meus lábios como se pronunciadas por outra pessoa.

— Meu nome é Alice. — Anunciei. — E você não é forte o suficiente para ficar contra mim!

Se eu pude queimar Raknid, poderia fazer o mesmo com Tanaki.

Eu não tinha escolha. Custe o que custar, isso deveria ser feito.

Minha raiva tornou-se fogo. Estremeci de êxtase quando ele deixou meu corpo, subindo pelos meus ombros e braços para sair pelos meus punhos cerrados. Os dois jatos de chamas brancas atingiram seus alvos simultaneamente — os olhos do demônio.

Fiquei cambaleando, quase flutuando no caminho, tão extrema era minha sensação de exultação. O demônio estava gritando agora, seus olhos derretendo e descendo por suas bochechas. Então, como uma enorme árvore derrubada pelo machado de um lenhador, ele lentamente tombou para o lado e caiu no abismo.

Eu me virei e coloquei Thorne de pé. Ela parecia confusa e me encarou com olhos arregalados. Ela abriu a boca para falar, mas nenhuma palavra saiu. Eu agarrei seu braço, e ela se apoiou em mim enquanto caminhávamos, tropeçando ao longo do caminho para o abrigo da caverna. Uma vez lá, ela deu de ombros, então eu puxei a vela do meu bolso novamente, acendi-a com minha vontade e indiquei o caminho rumo à escuridão.

Entramos três vezes em sistemas de cavernas e localizamos portais que nos levaram a outro lugar. Uma vez acabamos em um lugar de gelo e neve, e teríamos morrido se o portal de saída não estivesse por perto. Uma vez retornamos ao domínio quente, onde os suga-sangues tinham rastejado para fora do lago fervente. Mas já havíamos estado lá antes; o portal ainda estava no mesmo local. Saímos rapidamente, mas eu estava começando a me sentir exausta.

Finalmente emergimos em um domínio de escuridão total; podíamos ouvir o rugido de enormes predadores e o baque surdo de seus pés gigantes se aproximando.

Foi muito difícil, mas encontramos o portal antes que eles nos encontrassem.

Algo estava realmente começando a me preocupar. Eu estava me sentindo cada vez mais fraca. Thorne havia me dito que ficar nas trevas enquanto ainda estava viva gastaria minha força vital; que se eu ficasse muito tempo, terminaria como uma casca seca, capaz de viver apenas alguns dias uma vez de voltasse à Terra.

Eu precisava sair do escuro o mais rápido possível agora.

Já era tarde demais para mim?

Agora estávamos no caminho branco novamente; ele desaparecia diretamente à frente em uma caverna na base de um enorme penhasco negro. Thorne tinha certeza de que esse levaria ao domínio de Pã. Além disso, o mundo exterior me esperava — a terra dos vivos.

Estávamos quase lá.

Eu estava quase em casa.

Quase segura...

Depois de alguns minutos, Thorne colocou a mão no meu ombro.

— Vamos descansar um pouco. Eu quero conversar. — Ela disse.

Eu estava me sentindo trêmula e fiquei muito feliz em parar, então nos sentamos de pernas cruzadas, uma de frente para a outra, e coloquei a vela bruxuleante entre nós.

— Como você fez isso com o demônio? — Perguntou Thorne.

Minha resposta foi um encolher de ombros.

— Raknid também. — Ela continuou. — Você queimou a teia dele e o trouxe para o chão em chamas. E a adaga voou para suas mãos como se tivesse asas. A minha foi a parte fácil. Tudo que eu tinha que fazer era acabar com ele. Grimalkin me disse que você tinha magia poderosa, mas eu não esperava por isso. Eu nunca vi tal poder sendo usado por uma feiticeira.

— É o fim do Tanaki? — Eu disse, tentando mudar de assunto.

— As coisas são difíceis de prever aqui. — Respondeu Thorne. — Mas acho improvável. Como eu disse a você, se algo que nasceu e morreu na Terra é morto aqui pela segunda vez, ele deixa de existir, a alma é destruída. Portanto, o kretch provavelmente sucumbiu em sua segunda e última morte. Morwena também se foi para sempre. Mas Tanaki é diferente; como seu filho, ele tem grandes poderes de regeneração. Se ele sobreviver à queda, ele poderá eventualmente conseguir seus olhos de volta. E uma vez estabelecido um curso, ele nunca se desviará até que sua vontade seja realizada; qualquer derrota apenas o tornará mais forte. Cada vez que ele luta, ele se torna mais formidável. Mesmo Raknid pode não ser verdadeiramente destruído. Ele terá eras para se regenerar. Mas outras entidades sombrias vingativas estarão nos caçando agora...

Eu não disse nada. Eu não tinha palavras de conforto para Thorne, que realmente precisava mais delas do que eu. Logo eu sairia do escuro, mas ela teria que ficar para trás, e os servos do Maligno continuariam a caçá-la. Muitos eram como Tanaki — eles nunca desistiam.

Ficamos de pé e partimos novamente; logo estávamos entrando em outra caverna. Então, após uma série de túneis e cavernas, emergimos no caminho branco novamente. Desta vez, não havia caverna em seu final; apenas uma minúscula estrela verde que cresceu rapidamente para primeiro se tornar uma orbe e, então, finalmente, um oásis de verde flutuando no abismo.

Eu havia alcançado o domínio de Pan.

— Envie meus cumprimentos à minha mestra, Grimalkin. — Disse Thorne. — Diga a ela que sinto muito por ter vacilado e traído você. Mas, por favor, diga a ela que voltei para ajudar; que suas palavras me alcançaram nas trevas e que eu tentei muito me tornar o que ela desejava: tão corajosa na morte quanto fui em vida!

— Você tentou e teve sucesso. Não tenho dúvidas sobre isso. — Eu disse com um sorriso. — Vou contar a ela tudo o que você fez. Como você pegou os ossos do polegar de Belzebu e esfaqueou Raknid nos dois olhos, depois cortou suas pernas. Ela vai gostar disso. Ela mesma não poderia ter se saído melhor!

Olhamos uma para a outra por um momento e um nó subiu na minha garganta. Talvez eu não tivesse muito tempo de vida, mas pelo menos veria a Terra mais uma vez. Eu estava indo para casa; Thorne ficaria presa no escuro para sempre — a menos que ela eventualmente fosse vítima de um de seus predadores. E então ela não seria nada. Sua alma seria obliterada.

Eu me dirigi para aquele oásis verde. Pouco antes de entrar, olhei para trás.

Thorne estava se afastando, ficando cada vez menor.

Eu me senti muito triste.


Assim que entrei no domínio de Pan, levantei minha saia e verifiquei a marca na minha coxa.

À primeira vista fiquei apavorada: parecia a lua cheia escura sobre a qual eu havia sido avisada por Agnes Sowerbutts. Mas não me senti diferente e, olhando mais de perto, pareceu-me que ainda não tinha atingido seu tamanho máximo.

Ainda havia esperança.

Avancei ao encontro de Pan. Ele estava vestido com folhas e casca de árvore, sentado em um tronco tocando uma flauta de tubos, exatamente como na última vez que conversamos. Era como se todos os perigos que enfrentei nas trevas não fossem mais do que um sonho, e ele estava esperando aqui por mim para que abrisse meus olhos e o visse mais uma vez.

Ele era o mesmo menino bonito, agradável de se ver, apenas suas longas orelhas pontiagudas e unhas verdes encaracoladas o marcando como algo diferente de um humano.

Ele sorriu para mim e baixou os tubos de junco da boca. Eu sorri de volta.

— Você teve sucesso! — Ele exclamou, apontando para a adaga em meu cinto.

— Espero que sim. — Respondi. — Eu tenho a lâmina que vim buscar, mas cheguei tarde demais? Quanto tempo se passou na Terra? O Halloween não veio e se foi, não é?

— É trinta de setembro. Resta um mês antes do Halloween. Você não está muito atrasada. Mas antes de retornar ao seu mundo, você deve primeiro pagar o preço de sua presunção ao entrar em meu domínio sem ser convidada!

— Então, por favor, me diga o que é. — Eu disse, prendendo a respiração com medo do que ele poderia exigir.

Ele sorriu novamente.

— Eu ajudei você. Tudo que eu peço é que você me ajude.

— Ajudar você a fazer o quê?

— Por enquanto, não é necessário que você saiba. Com o tempo, direi a você. O preço é simples: esteja pronta para atender ao meu chamado e me dar a ajuda de que preciso. O que quer que você esteja fazendo quando ouvir minha flauta, venha até mim imediatamente. Você entendeu?

— Sim, eu entendo. — Respondi, tão desesperada para encontrar Tom que teria concordado com qualquer coisa.

— E você vai fazer o que eu pedir?

— Sim. Quando eu ouvir os tubos, irei até você.

O que mais eu poderia dizer? Se eu não concordasse, ele nunca me deixaria ir para casa.

— Então, por enquanto, volte para o mundo e faça o que você deve fazer! — Ele ordenou.

Tudo parecia girar ao meu redor. Eu me senti enjoada e fechei meus olhos.

Quando os abri novamente, estava sentada na grama, com as costas apoiadas em uma árvore. Eu estava mais uma vez na floresta perto do rio.

Eu estava em casa.

Parti imediatamente para Chipenden. Eu estava ansiosa para ver Tom. Teríamos um pouco de tempo juntos antes do ritual — quase um mês. Eu teria que fazer o melhor que pudesse.

Era fim de tarde e o sol estava quente no céu. O clima estava ameno para o último dia de setembro no Condado. Eu podia ver a fumaça das chaminés da aldeia subindo acima das árvores. Peguei o caminho para a esquerda; aquele que me levaria para longe daquelas casas e direto para a casa do Velho Gregory.

Mas na encosta alguém esperava nas sombras das árvores.

Era Grimalkin.

Há quanto tempo ela estava esperando aqui por mim? Sem dúvida, ela previu a hora provável em que eu emergiria do escuro. Fiquei aliviada ao ver que ela ainda carregava o saco de couro contendo a cabeça do Maligno. Mas ela tinha algo mais em sua mão esquerda. Parecia um livro — um livro fino encadernado em couro marrom.

— Eu tenho boas e más notícias para você. — Grimalkin anunciou, sem hesitar. Ela estava com o rosto sombrio e meu coração deu um salto.

— Tom está bem? — Perguntei, minha voz tremendo de pânico. — Nada aconteceu com ele, não é?

— Tom está seguro, Alice. O que tenho a lhe dizer não diz respeito a ele de forma alguma. Na verdade, é melhor que ele não saiba de nada.

— O que então? O que está errado?

— A má notícia é que você não precisava viajar para as Trevas, afinal de contas. A adaga que você segura não é necessária. Você arriscou sua vida e sua própria alma por nada. A boa notícia é que você não precisa entregar sua vida às lâminas de Tom. Você não precisa ser sacrificada. Eu encontrei outra maneira de destruir o Maligno.

Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo.

— Aqui... — Grimalkin continuou, segurando o livro em minha direção. — Isto é tudo de que precisamos.

Senti uma estranha relutância em até mesmo tocar no que ela oferecia. Assim que estava em minhas mãos, eu soube por quê. Em letras prateadas gravadas na capa marrom estava o título — uma palavra que me arrepiou o coração:

Doomdryte.

Também gravado em prata estava uma imagem sinistra que reconheci imediatamente: a cabeça e os membros dianteiros de um suga-sangue.

Essas criaturas sedentas de sangue tiveram um grande papel em minha vida recentemente: os encontros com elas no escuro; as cabeças dos suga-sangue davam forma aos punhos das espadas de herói; e agora esta capa. Parecia mais do que apenas uma série de coincidências. O que eles tinham a ver com a destruição do Maligno?

Este livro foi o grimório mais poderoso que já foi escrito, e alguns acreditavam que tinha sido ditado a um antigo mago chamado Lukrasta pelo próprio Maligno. Cada feiticeira de Pendle conhecia o potencial do Doomdryte, e algumas passaram suas vidas procurando por ele. Continha apenas um feitiço muito longo que precisava ser recitado sem o menor erro, por um período de muitas horas. Dizia-se que a leitura bem-sucedida do feitiço, combinada com certos rituais, daria ao leitor os poderes de um deus: invulnerabilidade e imortalidade.

Havia um problema. A história demonstrava que completar uma leitura perfeita era impossível.

Todos que haviam tentado o encantamento haviam morrido no processo — inclusive Lukrasta. Apenas uma hesitação ou pronunciação errada, e isso seria o seu fim.

— Você tem a força e a capacidade de fazer isto, Alice. — Disse-me Grimalkin. — Use sua magia para aumentar sua concentração e completar o encantamento. Então, com o que você extrair do Doomdryte, você será capaz de destruir o Maligno.

Eu apenas encarei a feiticeira assassina, sem saber como responder. O que ela me dizia provavelmente era verdade. O poder do livro e minha própria força mágica combinados poderiam muito bem ser o suficiente para fazer o que fosse necessário.

Mas a que custo para mim?

Seria melhor me permitir ser sacrificada, afinal?

Mas então Grimalkin me disse algo que me fez deixar de lado minhas próprias preocupações.

— Também vim ao seu encontro com notícias de um grande perigo. — Ela disse. — Eu estive em uma viagem muito ao norte, onde eu encontrei uma estranha espécie não-humana chamada Kobalos; eles têm magos poderosos, capazes de exercer uma magia estranha que pode eventualmente representar uma ameaça para o Condado. Eles têm a capacidade de criar criaturas monstruosas e escravizar mulheres humanas porque não têm mulheres próprias.

— Não há mulheres? Como isso pode ser possível? — Eu perguntei.

— Eles mataram todas elas há muito tempo. — Respondeu Grimalkin. — Temo que, em breve, eles sairão de seu território ao norte e iniciarão uma guerra que terá consequências terríveis para os humanos. Eles vão matar todos os nossos homens e meninos, e nossas mulheres se tornarão escravas. É vital que lidemos com o Maligno rapidamente e acabemos com ele de uma vez por todas. Feito isso, podemos começar a nos preparar para essa nova ameaça. Alice, devemos usar o Doomdryte!

Isso encheu meu coração de tristeza por ter chegado tão perto da casa do Velho Gregory sem poder falar com Tom. Eu sentia muito a falta dele... Quando Grimalkin me guiou para longe de Chipenden, pensei que meu coração fosse explodir de dor.

Mas ela estava certa. Ela me convenceu de que deveríamos usar o Doomdryte. E isso era algo que não podíamos dizer a Tom nem a seu mestre, pois eles se esforçariam para impedir que acontecesse.

Acredito que minha magia me permitirá manter concentração suficiente no recital do longo feitiço para que eu possa completá-lo com sucesso. Feito isso, usarei o poder que irei adquirir para destruir o Maligno.

Mas sei que as consequências para mim serão terríveis.

A marca na minha pele rapidamente se tornará uma lua cheia escura.

Estarei presa às trevas para sempre, algo sem consciência, compaixão ou um fiapo de sentimento humano.

Esse é um sacrifício mais terrível do que morrer nas mãos de Tom Ward, mas é o caminho que eu escolhi.

Por enquanto, a feiticeira assassina e eu estamos vivendo em uma cabana em ruínas não muito longe da casa do Caça-feitiço. Era o local onde uma vez fiquei com Lizzie enquanto ela planejava a morte de John Gregory, na esperança de libertar Mãe Malkin da cova de seu jardim. Fora daquela cabana que uma vez eu parti e conheci Tom pela primeira vez.

Agora seria o local onde eu triunfaria ou morreria tentando.

Eu devo ser valente.

Devo fazer o que deve ser feito.

Meu nome é Alice.

 

 

                                                   Joseph Delaney         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades