Biblio "SEBO"
A Casa Real dos Karedes
ALMA DE RAINHA
Após a trágica morte de seus pais, Xavian Al'Ramiz está prestes a se casar por dever. Sua noite de núpcias será apenas o cumprimento de um acordo entre duas dinastias que o fará rei de dois reinos. Mas sua união com a rainha Layla de Haydar será muito mais desafiadora... e prazerosa... do que ele jamais imaginou. Layla aprendeu a ser forte pelo bem de seu povo. No entanto, mesmo governando seu reino com pulso firme, ainda precisa de um marido que lhe dê os herdeiros de que tanto precisa. Ela passou anos se preparando para este momento, mas o homem ao qual foi prometida é capaz de surpreendê-la... e fazê-la descobrir a magia do amor...
Layla não fechou os olhos quando as criadas a cobriram com véus. Em vez disso, olhou-se no espelho enquanto, um por um, seu colo generoso, suas pernas alvas e as delicadas tatuagens de hena desapareciam por baixo das camadas douradas do vestido coberto de jóias de ouro. Depois, observou enquanto seus longos cabelos negros, seu rosto maquiado e seus lábios carnudos também desapareciam, até que seus olhos foram tudo o que restou.
Olhos que piscaram nervosamente quando ela compreendeu que, tirados os véus, não haveria o alívio de costume. Aquilo não significaria que ela estava em casa, em seu palácio em Haydar, onde podia relaxar. Não. Os véus seriam tirados diante de seu marido; ela estaria no Deserto de Qusay, em sua noite de núpcias.
O rei Xavian Al’Ramiz, o homem a quem ela estava prometida desde a infância, resolvera, depois de muitos anos, honrar o compromisso e finalmente pedira que ela se tomasse sua noiva.
Ele a deixara esperando. E, o que era mais significativo para Layla, deixara o país dela esperando.
A vida dela não fora, na verdade não era, nada senão um constante estado de espera. Layla era a mais velha de sete filhas. Sua mãe morrera tentando gerar um herdeiro homem; Layla ouvira os soluços de choro e a raiva quando cada parto extenuante resultava, todavia, noutra colheita ruim. E o povo profundamente tradicionalista de Haydar se recusara ainda mais, a cada nascimento, a ser governado por uma rainha.
Ah, mas o pai dela fora sábio. Um acordo fora fechado muitos anos antes com o rei de Qusay, cujo casamento produzira apenas um filho: os dois se casariam. Xavian interviria e apaziguaria o povo de Haydar. E eles, claro, gerariam um filho, que um dia governaria os dois países.
Como a união não se realizou, Layla tornou-se rainha com a morte do pai. Os anciãos queriam que ela governasse apenas pro forma, de modo que eles pudessem dar-lhe conselhos e manter o povo seguro. Mas ela pretendia levar sua tarefa a sério. Ela defendera suas idéias e recusara-se a assinar ou dar voz a qualquer coisa com a qual não concordasse.
E quanto a seu antigo noivado, ora, Xavian estava muito ocupado com sua vida de solteiro e não queria abrir mão de seus costumes. Foi preciso que seus pais morressem para que ele se visse obrigado a casar; e ela amadurecera muito enquanto esperava pela convocação dele para o casamento. Layla governara seu país do jeito dela, e a responsabilidade tornou-a sábia. Xavian havia demorado muito para exigir obediência, motivo pelo qual ela não abaixaria a cabeça dali em diante nem entregaria tudo de mão beijada a um homem que não se interessava por ela nem como rainha nem como mulher.
A morte recente dos pais dele claramente provocara uma reavaliação imediata, e o príncipe playboy retornara da Europa e assumira com magnificência o papel de rei de Qusay. Líder nato, apesar de sua perda particular, ele guiava seu povo em tempos sombrios; Layla sabia, pois observara. Eles nunca haviam se falado, ela o vira apenas de longe e só ouvira falar de seus hábitos de luxúria. Mais recentemente, no entanto, ela abrira espaço em sua agenda atribulada para acompanhá-lo mais de perto, gravando e observando seus discursos, que eram eloqüentes e incisivos. Ele não era mais o príncipe Xavian, e sim um rei de verdade.
E um rei precisava de uma noiva.
Era uma transação comercial.
Layla estava ciente disso. No entanto, quando observava de longe o homem que um dia seria seu marido levando uma vida selvagem e corrompida, mais do que com raiva, ela tinha inveja. Inveja da liberdade de que Xavian usufruía para ter amantes, levar uma vida selvagem e libertina enquanto ela tinha que esperar.
Ela estava com 26 anos de idade.
E naquela noite, finalmente, era a vez dela.
Naquela noite, quer se tratasse de transação comercial ou não, de noivado por conveniência, mesmo que, em geral, eles fossem levar suas vidas afastados um do outro, naquela noite ele a levaria para o Deserto de Qusay.
Naquela noite, Layla ficaria frente a frente com seu marido... De repente ela ficou feliz por estar usando véus, pois debaixo deles, ela ruborizava... Naquela noite, o rei Xavian Al’Ramiz se tomaria seu amante. Seu único amante.
Estranhamente, ela gostaria que ele não fosse tão bonito, que o rosto que ela seguira nos jornais, na televisão e na Internet não tivesse tamanho encanto taciturno e arrogante. Ela examinara com todo o cuidado os traços de seu rosto, dando pausa no vídeo de vez em quando, perdendo o fôlego por um instante quando os olhos negros dele se voltavam para ela, observando-a. Ele tinha aparência de rei, do nariz grego, reto, até as faces barbeadas e a atraente cabeleira negra e espessa de formato perfeito. Ele era de boa linhagem.
Ele também tinha aura, uma confiança natural, uma presença que o envolvia. Ela mesma tinha testemunhado, invisível a distância, quando suas respectivas agendas os mantinham desempenhando as mesmas funções. Escondida atrás do véu, Layla observara seu futuro marido, desejando que aqueles olhos negros a descobrissem, que ele lhe desse um sorriso ou mesmo um rápido sinal de reconhecimento, qualquer coisa que pudesse indicar curiosidade com relação a sua futura mulher.
Ele não lhe deu nada.
Menos que nada. Ele estivera a seu lado na coroação da rainha Stefania de Ariosto no ano anterior e simplesmente a ignorou.
A vergonha daquele dia ainda queimava; a indiferença dele, seu tédio evidente diante da futura união entre ambos ainda humilhava Layla.
— Vossa Alteza...
Ela apertou os olhos com impaciência quando, já coberta com o véu, Imram, um de seus muitos conselheiros, entrou em seu quarto para despachar sobre assuntos de última hora, detalhar algumas questões, requerer instruções finais com sua voz nasalada, antes que sua rainha tirasse uma rara folga de uma semana de seus deveres oficiais.
— E precisamos de uma assinatura urgente para a alteração da proposta referente à mina de safira...
No dia do casamento dela!
Mas o dever em primeiro lugar. E, como rainha de Haydar, havia muitas obrigações. Uma comitiva a acompanhara até Qusay para o casamento: uma equipe de conselheiros, junto com as criadas e sua principal dama de honra, Baja.
Ah, como os conselheiros e os mais velhos lamentavam o dia em que a rainha dera sua opinião pela primeira vez, recusando-se a dizer simplesmente sim, para que eles perpetuassem os costumes do passado. Em vez disso, para desgosto deles, Layla continuou a afirmar-se, o que significava lembrá-los constantemente de que, como rainha, todas as decisões eram dela em última instância...
Era cansativo, de fato exaustivo, sempre ter de conferir fatos e números diversas vezes, sabendo que sua assim chamada equipe mantinha-se permanentemente alerta para uma desatenção dela, para o momento em que pudessem fazer passar um documento sem que ela notasse, quando seus olhos deixassem de perceber uma pequena cláusula... Esperavam que Haydar pudesse permanecer fixa e imutável, em vez de aproveitar as muitas oportunidades que o rico país oferecia a seu povo.
— Tudo isso pode esperar! — disse Layla, olhando fixo para Imram. — Hoje, não assino nada.
Ela notou que ele apertava os lábios.
— Isso pode esperar até minha volta. — A perfuração deve começar...
— Vai começar quando eu voltar! — exclamou Layla. — Quando eu tiver lido a alteração e se eu aprová-la.
Ainda assim, apesar de suas palavras firmes, ela pôde sentir lágrimas arderam em seus olhos cuidadosamente pintados, lágrimas que ela jamais deixaria Imram ver; por isso, ela deu as costas para ele e fitou o mar de Qusay.
No dia do casamento dela!
Com certeza, com certeza, ela conquistara o direito de não ser nada senão uma mulher por um dia e uma noite?
Aparentemente, não!
— Nós também precisamos discutir a prorrogação da visita do rei a Haydar... — disse Imram, implacável.
— Não pode haver discussão até que estejamos casados — respondeu Layla, ainda de costas para ele, consciente de que, se notasse alguma fraqueza nela, Imram aproveitaria a oportunidade.
— Agora, se o senhor fizer a gentileza de permitir que eu trate desse assunto menor que é meu casamento, eu poderia dar toda a minha atenção de novo a Haydar.
Ele foi dispensado, mas continuou ali, e Layla sabia o que estava por vir. Sem se virar para ele, por cima dos ombros, ela falou primeiro:
— Permita que eu reitere: nada, e com isso quero dizer nada, deve ser aprovado em minha ausência.
— Claro — respondeu Imram suavemente. — Embora, naturalmente, se fosse urgente, a senhora confiaria a seu Comitê de Anciãos...
— Imram. — Suas lágrimas secaram, e seus olhos estavam firmes quando ela se virou e o encarou. Sua voz, assim como suas ordens, estava clara como cristal.
— Vou levar meu computador comigo. Se, por algum motivo, não conseguirem me contatar pelo computador, você vai pegar um helicóptero para me encontrar no deserto.
— Pensei que a senhora fosse preferir não ser perturbada — arriscou Imram.
— Eu já lhe disse antes, Imram, nunca suponha saber quais são meus pensamentos.
— E claro, Vossa Alteza.
Então ele se retirou, e, embora faltasse muito pouco tempo até a hora do casamento, a tensão que ela sentiu na barriga estava reservada para Imram.
— Respire fundo, Layla — disse Baja com delicadeza. Baja, querida Baja, que ficava calada nas reuniões, mas ouvia tudo. Baja, que vira as lágrimas que ela derramara em algumas noites. Baja, a única que entendia de verdade o fardo diário que ela carregava sobre os ombros.
— Ele vai se aproveitar do tempo que eu permanecer fora para fazer algo... — disse Layla.
— Seria tolice dele — disse Baja. — Suas ordens foram claras.
— Eles distorcem minhas palavras.
— Depois as anotam.
Ela era muito grata a Baja por sua sabedoria, sua paciência, e Layla confiava nela quase que totalmente.
Quase... porque Layla aprendera há muito que a única pessoa em quem ela podia confiar de verdade era em si mesma.
— Eu irei.
— Mas primeiro — disse Baja — a senhora tem de se casar.
Ela foi conduzida pelo palácio de Qusay, com seus corredores cobertos com retratos de ancestrais. Era mais fácil pensar numa pintura na parede, se concentrar nas portas largas que estavam sendo abertas, ou ouvir o sussurro de seu véu enquanto ela caminhava, e só então tentar compreender que, num instante, estaria ao lado dele.
O calor do deserto a atingiu assim que pôs os pés fora do palácio. Ela foi levada por um caminho branco, através de um jardim de plantas podadas, um oásis no deserto, literalmente. Pequenos pássaros coloriam as árvores como jóias, suas asas batiam no mesmo ritmo do piscar de olhos de Layla até que ela finalmente parou para esperar seu noivo.
A cerimônia de casamento seria rápida. Na semana seguinte, quando o véu dela, mulher casada, fosse tirado, conforme a tradição de Haydar, o casal seria apresentado a dignitários e governantes numa recepção formal. Por ora, no entanto, havia apenas o juiz e os anciãos de ambos os países como testemunhas.
Ela ficou à sombra relativamente fresca de uma laranjeira, sentiu a fragrância da floração dos jardins, ouviu o gotejar contínuo das fontes, e ainda esperou.
Ele a fez esperar por dez anos; portanto, que diferença fariam dez minutos a mais? Foi o que Layla se perguntou.
Ou outros dez!
Trouxeram-lhe uma cadeira, mas Layla a recusou. Preferiu ficar de pé, ardendo de vergonha. Será que ele conseguiria deixar mais clara a indiferença que sentia por ela?
Ela queria caminhar. Queria dar as costas à tradição, exigir um carro, dizer a ele onde ele podia enfiar seu acordo de negócios.
— O rei estará aqui em breve.
Ela olhou sua mão, viu os dedos firmemente entrelaçados, teve de plantar seus pés no chão a fim de impedir a si mesma de olhar para trás e andar. Teve de trancar a boca por trás do véu para impedir a si, mesma de dizer algo de que seu povo certamente se arrependeria se ela o fizesse.
— Talvez Vossa Alteza devesse sentar-se... — Mais uma vez ofereceram-lhe uma cadeira. Um dos juízes anciãos já estava sentado, abanando-se. Talvez trouxessem bebidas, pensou Layla num desvario, ou cortassem as laranjas dos pés carregados. Então todos eles poderiam ficar por ali brincando de virar os copos de bebida enquanto discutissem o que fazer quando um rei se recusa a comparecer a seu próprio casamento.
Eis o inferno do dever. Ficar de pé. Envergonhar-se. Esperar.
Layla faria aquilo por seu povo iria adiante com aquela união se era aquilo que a tradição mandava. Mas ela jurou a si mesma enquanto esperava, pálida e a ponto de desmaiar, ainda assim recusando-se a se sentar, que ele pagaria por aquela ofensa.
Se ele pensava que poderia tratá-la tão mal, se ele pensava que ela obedeceria humildemente, caminharia a seu lado e seguiria suas ordens, seria essa a desgraça dele.
O rei Xavian deveria ter feito sua pesquisa mais exaustivamente. Deveria saber que por trás daqueles véus havia uma mulher forte e orgulhosa.
Que por trás da multidão de anciãos e assessores havia uma governante forte... Forte demais, segundo eles.
Naquela noite, ela diria a ele, muito claramente, o que pensava de seu comportamento. Ele não tinha idéia do que o esperava, pensou Layla, com um discreto sorriso de satisfação nos lábios. Sorriso que logo sumiu... Pois ele ainda a fazia esperar.
O rei Xavian Al' Ramiz releu a carta.
Era uma entre muitas que lhe desejavam tudo de bom no dia de seu casamento. Vinha do rei Zakari de Calista, que estendia seus parabéns e dizia que ele estava ansioso para cumprimentá-lo formalmente na semana seguinte, durante a recepção oficial.
Era a terceira carta.
A primeira enviara condolências pela morte de seus pais e o convidara a passar uns dias no Palácio de Calista.
Xavian não respondera. Esta carta, ele queimara.
Depois chegara outra, que agradecia o presente do povo de Qusay pelo nascimento do filho deles, o príncipe Zafir.
Mas Xavian não a respondera, embora a tivesse guardado por alguns dias, lendo e relendo-a até que finalmente ela foi queimada.
E agora aquilo.
Não havia nada que a desabonasse, disse Xavian a si mesmo ao ler a carta talvez pela centésima vez. Ele não sabia o que procurava entre as palavras. Havia centenas de cartas como aquela, desejando tudo de bom, mas Xavian não conseguia deixar de ler nas entrelinhas daquela carta...
Sua noiva o esperava, ele já estava indesculpavelmente atrasado. No entanto, ele ainda refletia sobre a carta.
Era uma carta formal do rei Zakari de Calista e de sua mulher, a rainha Stefania de Aristo. A união de ambos reunificara o reino de Adamas. Sendo assim, refletia Xavian, por que Zakari escolhera escrever em papel de Calista em vez de usar a insígnia de Adamas? Xavian observava o brasão, passou os dedos sobre a insígnia, e não conseguia compreender por que ela o intrigava. Mas ela simplesmente o intrigava.
Estivera preocupado desde a coroação da rainha Stefania, desde que ela o olhara nos olhos e ele notara pavor...
Não, disse Xavian a si mesmo, pavor, não. Ela estivera prestes a desmaiar, e ele conversara com ela até que seu marido percebesse que havia algum problema e a levasse embora delicadamente. Ela estava grávida, como se veio a saber, o que explicava tudo.
A não ser pelo fato de que não explicava nada.
Porque a inquietação em sua alma começara antes que Stefania o tivesse cumprimentado, quando o rei Zakari já tinha começado a caminhar para o altar. As batidas rápidas do coração dele tinham começado... Batidas rápidas que o acordavam à noite e haviam reaparecido ali, naquele exato momento.
Embora ele não pudesse exatamente aceitá-lo como tal, aquilo era medo.
— Está tudo pronto, Vossa Alteza.
Xavian não se virou quando Akmal, seu vizir, entrou na suíte.
— Vossa noiva o aguarda.
Xavian podia ouvir a nota de inquietação na voz de Akmal; afinal, sua noiva, a rainha Layla de Haydar, já o esperava há algum tempo, os procedimentos estavam prestes a ter inicio, e até então o noivo não aparecera. Akmal voltara aos aposentos reais para certificar-se de que nada de grave tinha acontecido, e para encontrar o noivo no mesmo lugar onde o vira da última vez, de pé em frente às janelas francesas, ainda com a carta nas mãos e fitando, taciturno, o mar.
— Estarei lá num instante.
— Vossa Alteza, posso sugerir...?
— Você ouviu o que eu disse?
Só então Xavian se virou, com olhos furiosos por causa da intrusão, pondo o assessor em seu devido lugar, lembrando-o de quem era o rei. Vestido com a farda militar completa de Qusay, uma soberba roupa verde-oliva, o peito adornado com medalhas, as pernas envolvidas pelos canos altos de botas de couro pretas, uma espada na cintura e um fio de ouro prendendo sua cafia, Xavian era uma figura imponente. Mas, pensando bem, ele sempre tivera esse porte. Media quase l,92m de altura, tinha ombros largos e uma estrutura forte e musculosa, não precisava de medalhas, espadas ou de um régio galão de ouro para impor respeito.
— Ela pode esperar até que eu me apronte.
— Vossa Alteza.
Akmal era sábio o bastante para não discutir. Assim, fez uma discreta reverência e foi embora. Mais uma vez, sozinho. Xavian continuou a contemplar o mar lá fora. Ela iria esperar. Xavian tinha certeza disso.
Ela já esperara uma década por aquele dia. Prometido a ela desde a infância, ele deveria ter casado dez anos antes, mas resolvera não casar, em vez disso, se concentrara em aproveitar sua liberdade.
Só que agora aquilo já estava acabado.
Xavian foi ate a sacada e desejou que a vista dali desse para o deserto, não para o mar. Para o deserto, onde ele encontrava a paz rara; para o deserto, aonde ele levaria sua noiva aquela noite.
Como ele estava cansado daqueles pensamentos.
Desde que seus pais haviam morrido num acidente de avião, seus conselheiros estavam fazendo hora extra. Sua vida de playboy iria acabar; ele se tomara rei, e reis não viviam como príncipes. Reis se casavam e produziam herdeiros, e era hora de Xavian fazer o mesmo. Depois de três meses de luto profundo, o casamento que ele vinha adiando tinha de ocorrer imediatamente.
A ocasião era delicada, dadas as circunstâncias: era inadequado fazer celebrações gigantescas tão pouco tempo depois daquela perda para o país. O povo seria informado na manhã seguinte que o rei se casara e que se recolheria com sua noiva no deserto antes da recepção oficial. Depois de um outro período apropriado de luto, aconteceria a coroação. Então o povo comemoraria.
Comemoração em dobro, talvez. Os anciãos haviam sido brilhantes na deliberação: nove meses depois do casamento, seria bom ter um príncipe a caminho.
Xavian fora aconselhado por Akmal a se abster de encontros sexuais na semana anterior ao casamento, para se assegurar de que seu sêmen fosse abundante e potente. Foi um conselho que Xavian fez questão de ignorar.
Seu sêmen sempre fora abundante!
Eram acordos comerciais, nada além disso. Haydar estava lutando sob o governo de uma mulher, e a presença forte de Xavian, embora ocasional, ajudaria a orientar o país.
É claro que ele teria uma amante. Muitas, talvez.
Ele não tinha a intenção de dormir sozinho à noite.
A inquietação que Xavian sentia naquele instante não decorria essencialmente da ansiedade por causa do casamento, e não era orgulho o que o fazia negar estar inquieto. Muito antes de o casamento ter sido confirmado, muito antes de seus pais terem morrido, havia uma agitação profunda em sua alma.
Um problema que ele não conseguia definir.
Um lugar dentro dele que ele não queria visitar.
Às vezes, quando ele, de pé, fitava uma carta, como naquele momento, atrás de pistas que certamente não existiam, ele realmente pensava que estava ficando louco.
Às vezes, ele acordava de madrugada com o coração acelerado. Sentia a presença de uma bela mulher a seu lado na cama, enroscada nele, e ainda assim ele a olharia com menosprezo, se levantaria e se vestiria, ou mandaria que ela se retirasse e fosse para outro quarto. Não era como ele gostaria de ser visto. Seu coração estava acelerado, a respiração, curta, enquanto seus olhos negros examinavam o mar ondeante. Ele sentiu a náusea vir como se ele estivesse em alto-mar. Podia sentir o suor porejar em sua testa, podia sentir seu corpo balançando com as ondas. As cicatrizes grossas em seus pulsos ardiam e cocavam, como acontecia de vez em quando. Seus olhos perscrutaram o vasto mar, procurando ele não sabia o quê. Então ele desviou seu olhar, desejoso de que seu coração desacelerasse, para que a loucura parasse. Ele consolou a si mesmo, não com a lembrança da noiva virgem, mas com o conforto do deserto convidativo. Sim!
Ele se livraria logo da cerimônia de casamento, a levaria para o deserto, consumaria o casamento e, então, no dia seguinte poderia caminhar, poderia ouvir a alma do país que ele governava e pedir que o país lhe trouxesse paz.
Mais feliz, ele veio da sacada e atravessou o quarto, com a carta ainda nas mãos. Parou ao lado de uma vela grossa e ficou em pé examinando o papel pesado e enrolado, e a divisa de Calista brilhou quando as chamas a tocaram. Então ele a jogou na antiga lareira, do mesmo modo como fizera com as outras cartas, e, terminado aquele ritual, ele foi para seu casamento.
Quando abriu a porta, Akmal praticamente caiu para dentro. Xavian ficou parado tempo suficiente para lançar a seu vizir um olhar fulminante. Depois, confiante, avançou pelo palácio a passos largos, passou pelos retratos de seus ancestrais, atravessou o corredor e foi até os jardins, pronto para cumprir seu dever.
Os anciãos estavam sentados, mas se levantaram quando ele entrou.
Sua noiva não olhou em volta. Ela vestia uma túnica dourada resplandecente, tinha a cabeça coberta e se manteve cabisbaixa enquanto Xavian se aproximava.
Ele não estava ansioso por aquilo!
Haydar tinha costumes rígidos. As mulheres usam véu e túnica até que se casem. No entanto, mesmo as numerosas camadas de tecido não conseguiam disfarçar suas formas bastante rechonchudas.
Alegria, alegria em dobro, pensou Xavian com ironia. Uma amante gorda e inexperiente para emprenhar. Será que seus deveres não tinham fim?
Numa concessão rara aos tempos modernos, os anciãos de Haydar tinham concordado que o anúncio fosse acompanhado de fotos. Não era hora para grandes banquetes ou celebrações, mas ainda se precisava muito de boas notícias para os povos de Haydar e Qusay.
O juiz falou, perguntando a Layla se ela seria uma esposa fiel, se iria servir seu marido, dar-lhe filhos, alimentá-lo e também à sua prole.
Sua voz era suave quando ela disse que sim.
O juiz perguntou-lhe de novo.
De novo, ela disse que sim.
Repetiu-se a pergunta pela terceira vez, e Xavian observou os olhos dela piscarem, embora ela ainda não tivesse levantado o olhar na direção dele, como seria certo.
— Sim.
Então chegou a vez de Xavian. Ele seria o provedor dela?
Foi tudo o que lhe foi perguntado, e apenas uma vez. Um rei não precisava repetir-se.
— Sim.
Ela olhou para cima, e os olhos que cruzaram com os dele eram de um violeta profundo. Depois, longos cílios negros cobriram aqueles olhos. Xavian viu-se levemente apaziguado, eles eram claros e brilhantes e realmente muito bonitos, talvez ele pudesse pedir-lhe que os mantivesse abertos à noite!
Terminou rápido. Os olhares de ambos tinham se cruzado por menos de um segundo, ainda assim, aquela fora a imagem captada e seria transmitida pelo mundo pela manhã. Sheik rei Xavian Al’Ramiz de Qusay, e agora de Haydar, e sua noiva, rainha Layla Al’Ramiz de Haydar, e agora de Qusay.
A tão esperada união era agora oficial.
— Partiremos para o deserto em uma hora... Pela primeira vez, ele se dirigia a sua mulher.
— Posso confiar que meus funcionários estão sendo prestativos?
Ela não respondeu. Ainda cabisbaixa, fez apenas um breve meneio com a cabeça.
— Você precisa de alguma coisa? — Xavian tentou entabular uma conversa, ao menos procurou dar-lhe descanso, mas tudo o que conseguiu dela foram um meneio ou um balançar de cabeça. Ela se recusava a dar-lhe até mesmo um olhar de relance com aqueles bonitos olhos cor de violeta, e Xavian soltou entre os dentes um silvo de irritação.
— Vejo você em uma hora.
Evidentemente, Xavian pensou enquanto subia até sua suíte, pisando com força, ao som metálico das fivelas de suas botas no chão de mármore polido, que a noite seria extremamente monótona.
— Eu NÃO vou passar um mês lá! — disse Xavian a Akmal, de cara amarrada, enquanto seu camareiro o ajudava a se livrar da farda militar e a separar túnicas para o deserto, iniciando os preparativos da lua de mel.
— Só concordo com uma semana em Haydar.
— Eu compreendo sire, mas nossos conselheiros estão simplesmente respondendo àquilo que ouviram das pessoas...
Ele engoliu em seco.
— A rainha estava conferindo as notícias na imprensa e pediu que...
— O quê? — perguntou Xavian girando a cabeça. Ele estava se admirando no espelho, mas as palavras de Akmal exigiam uma resposta curta e grossa.
— Por que você iria incomodá-la com esses detalhes?
— Foi ela que pediu para ver.
Akmal apertou os lábios com força, com tanta força que levou um tempo para que ele os relaxasse o suficiente para continuar a falar.
— Ela também pediu que o senhor passasse um mês no país dela... Ela pressente que o povo de Haydar vai querer ter o novo rei como residente durante um tempo, de modo que eles possam compreender que o senhor também lhes dará apoio em caso de necessidade. Eles precisam dessa união, sire...
Xavian não estava nem um pouco impressionado. Uma semana no deserto... Era preciso que ele aceitasse. Uma semana: com sua noiva à noite, e passeando pelo deserto durante o dia. Depois da recepção, para acalmar o povo, ele concordara em passar uma semana em Haydar, onde ele cumprimentaria formalmente seu novo povo, assinaria documentos essenciais e, depois, independentemente das necessárias formalidades e das noites ocasionais passadas com ela, em sua época fértil, eles poderiam tratar de suas próprias tarefas.
Havia inquietação em Haydar, no entanto. Xavian sabia disso. A mulher submissa e calada que ele acabara de desposar dificilmente imporia respeito a seus assessores, muito menos a seu povo. Mas Xavian era durão. Às vezes, havia imensa pressão de parte dos anciãos, de Akmal, mera e completa resistência a mudanças, mas Xavian era um governante forte, seguro de seu papel. Ele nunca duvidara, nunca questionara que estivesse certo. Sim, ele ouvia seus conselheiros, ponderava, pedia conselho ao deserto às vezes, mas sempre tomava suas decisões. E, uma vez tomadas, ele não se deixaria influenciar. Ninguém ousaria tentar.
No entanto, concluiu Xavian com um sorriso debochado, deve ser um inferno ser rainha!
— Duas semanas... — disse Xavian, numa concessão rara. Mas a testa de Akmal se franziu de preocupação, pois ele já havia falado com a rainha.
— Diga a ela que estou preparado para ficar duas semanas no país dela...
— Acho que seria mais prudente passar um mês em Haydar... — disse uma voz suave que preenchia o quarto, fazendo o camareiro e Akmal ficarem perplexos. Era Layla que entrava, sem ser convidada e sem anunciar-se, nos aposentos do rei!
— A senhora não pode ficar aqui... — disse Akmal, atravessando o quarto como um raio, pronto a fazê-la sair dali às pressas. Mas os olhos cor de violeta o detiveram. E a voz soou menos suave quando ela disse logo a seguir.
— Trate-me por "Vossa Alteza"...
Ainda coberta, ela permaneceu bem calma enquanto Akmal se inclinou em reverência profunda. O pobre sujeito estava claramente dividido entre o protocolo real e a proteção a seu amo, mas Xavian não se aborreceu. Com efeito, ele estava se divertindo muitíssimo, e um sorriso incomum moveu seus lábios enquanto Akmal lutava para acalmar ambos.
— Vossa Alteza, eu já ia ter com senhora para informar sobre a decisão do rei.
— É tão cansativo... — disse ela, que não olhava mais para Akmal. Em vez disso, seus olhos fitavam os de Xavian, que abriu um sorriso. — Marido e mulher se falarem por meio de conselheiros...
Ela ainda fitava os olhos de Xavian.
— O senhor pode informar ao rei que, no que tange a esse detalhe, a rainha não pode, lamentavelmente, ceder? O povo de Haydar precisa ver que o novo rei se delicia com sua função, que ele quer ajudar a guiá-los, e uma visita curta não vai satisfazê-los.
— Vossa Alteza... — Akmal começou, como era sua obrigação, a transmitir as palavras dela.
— A rainha...
— Silêncio! — disse Xavian a seu vizir, rudemente.
— Deixe-nos.
Quando Akmal enxotou o camareiro, Xavian caminhou lentamente até onde ela estava, mas ela não se mexeu, mal piscou. Apenas seus olhos podiam ser vistos, e dessa vez eles não se abaixaram quando ele se aproximou.
— Eu levei em conta sua solicitação — disse Xavian com a voz ameaçadoramente calma. — E, como levo a sério meus novos deveres...
— Tão a sério — interrompeu ela —, que sequer se deu ao trabalho de aparecer em seu casamento na hora marcada!
Que ousadia a dela!
Ela não deveria questioná-lo, não deveria sequer deixar transparecer que tinha percebido. Em vez disso, deveria ficar orgulhosa; orgulhosa de que o rei de Qusay era agora seu marido, ainda que ele estivesse sendo recebido com reclamações e exigências.
— Eu tive minhas razões para me atrasar.
Ele não tinha de dar satisfação a ela, e certamente não precisava dar explicações; então por que ainda havia silêncio?
Ele nunca tivera de dar explicações. Suas decisões, suas palavras e sua presença sempre bastavam. Será que ela realmente pensava que ele fosse ficar ali discutindo razões?
Ela estava esperando uma explicação.
Um sorriso sem alegria se desenhou no rosto dele diante do rosto descoberto da esposa. Talvez ele devesse lhe dizer, e observar sua reação quando ela descobrisse que seu novo marido às vezes pensava que iria enlouquecer; que às vezes as cicatrizes em seu pulso ardiam tão intensamente que ele pensava que sua pele se rasgaria, que às vezes, quando estava sentado e quieto, ele podia jurar ouvir o riso de uma criança. Ele só podia imaginar sua reação consternada, principalmente quando ele lhe disse que achava que a criança era ele.
— Você me deixou esperando quase uma hora — disse ela, olhos nos olhos. — E nem me deu explicação; ainda assim, espera que eu acredite que você leva seus deveres a sério. Hoje, você tinha um dever! — Os lábios de Layla estavam apertados sob o véu. — E você o cumpriu pavorosamente.
— Silêncio!
Sua mão coçou quando ele pensou em esbofeteá-la.
Naquele instante, Xavian, que nunca batera em uma mulher, que nunca bateria em uma mulher, pensou em esbofeteá-la. No entanto, em rápida auto-avaliarão, percebeu que a raiva que crescia dentro dele se dirigia na verdade para ele mesmo.
Ele tinha cumprido mal seus deveres naquele dia. Sempre meticuloso, sempre consciencioso, fora, naquela rara ocasião, moroso. Ele raramente fazia concessões, mas, para ser um bom governante, às vezes isso era preciso. Desse modo, em vez de esbofeteá-la, ele fez algo incomum.
— Não foi nada relacionado a você.
Ele viu duas linhas verticais de tensão aparecerem entre aqueles olhos inquiridores.
— Não se tratava de deixar você esperando, ou de me esquivar de meu dever, ou de fazer troça do casamento...
Xavian podia ouvir as palavras saírem de sua boca, no entanto, mal podia acreditar que fossem dele, que ele estivesse se explicando pela primeira vez.
Um pouco dele mesmo.
— Chegou uma carta... — Ele viu as duas linhas ficarem mais fundas. — Eu devia ter deixado para depois. Eu sabia que ela podia me distrair. — Ele engoliu em seco antes de continuar. — E me distraiu.
Ele deu pouca explicação, mas ela sabia que aquilo era mais do que ele jamais fizera, então, depois de um breve instante de hesitação, ela lhe fez um aceno cortês com a cabeça.
Estou certa de que você estava com a cabeça cheia — ela admitiu. — Eu também senti falta de meus pais hoje, mas sua perda é mais recente. Aceito suas desculpas.
Na verdade, ele não havia se desculpado, queria salientar Xavian. Ou havia? Será que ele tinha mesmo de dizer "sinto muito" para que valesse com desculpa?
Xavian continuou.
— Se agradará ao povo ter mais tempo com seu novo rei, então garanto a você seu mês. E claro que o povo de Qusay também vai querer tempo com a nova rainha. Sugiro que, depois do deserto, em vez de seguirmos direto para Haydar depois da recepção oficial, passemos primeiro uma semana aqui.
O que ele estava fazendo? A boca de Xavian se movia, palavras calmas eram pronunciadas, mas sua mente estava acelerada; ele estava se comprometendo por seis semanas: uma semana no deserto, uma semana no lugar onde estava, um mês em Haydar. Seis semanas com ela... Seis semanas quando deveriam ser duas... Seis semanas com aquela mulher que o tinha desafiado com tanta audácia... Seis semanas com uma mulher que não abaixara os olhos, que mesmo naquele momento ousava encará-lo enquanto respondia com voz suave.
— Eu ficaria honrada de passar algum tempo me aproximando do povo de Qusay.
— Bom — cortou Xavian.
Ela ainda olhava para ele, e Xavian sentiu uma grande tentação de levantar o véu para ver sua noiva, para revelar a mulher que seria sua companheira de leito pelas próximas semanas. Mas é claro que ele não levantou. Em vez disso, abriu a porta, e de novo Akmal praticamente caiu para dentro do quarto.
— Espero que você tenha ouvido isso — disse Xavian.
— Devemos permanecer em Qusay por uma semana depois da recepção, então a rainha e eu ficaremos em Haydar por um mês. Pode publicar essa informação junto com a foto do casamento.
Layla fez um breve meneio com a cabeça e saiu do quarto. Xavian aguardou, com as costas eretas, o queixo travado, enquanto ela se dirigia a Akmal.
— Traga-me o novo comunicado para que eu o aprove. Ela se voltou para Xavian.
— Gosto de checar pessoalmente todos os comunicados de imprensa... Tenho certeza de que você também.
Xavian ainda estava aborrecido quando o helicóptero levantou voo para levá-los aos confins do deserto. Como ela ousava entrar nos aposentos dele e fazer exigências com tamanha audácia? Como ousava dizer a ele o que era prudente? Como ousava falar como se fosse uma igual? Por quê? Ele era rei de Qusay, rei de um país rico e próspero que produzia petróleo e esmeraldas, um país avançado onde as pessoas prosperavam sob uma liderança forte. O país dela é que precisava dele; era o povo de Haydar que precisava de uma liderança forte que o tirasse da Idade das Trevas! Era de sua voz que ela precisava para abafar a agitação crescente.
Ele também estava aborrecido consigo mesmo, por ter dado explicações a ela, por ter ficado noivo dela. Ele não queria mesmo ter uma esposa, e certamente não queria ninguém por perto.
Sua própria companhia já era o suficiente por ora.
E ele não havia pedido desculpas!
Ele se sentia tentado a dar-lhe um tapinha no ombro e dizer isso.
A vastidão dourada de areia que se alongava embaixo não contribuiu para aliviá-lo. Xavian estava muito perturbado, e pronto a lembrá-la do lugar dela. Baja, sua principal dama de honra, os acompanhava no helicóptero, e ele podia sentir seu silêncio de desaprovação quando ele tomou a mão de sua nova esposa, agradavelmente surpreso com os dedos longos e alvos que ele segurava, admirando aquelas unhas pintadas. Pela primeira vez, ele ficava realmente ansioso por desvelá-la, por descobrir o que havia no pacote que esperava por ele.
— Há uma festa esperando por nós — disse Xavian, sorrindo para si mesmo quando ela piscou suas pálpebras baixas. Então ele inclinou-se em direção a ela e notou quando seus olhos se fecharam na primeira mostra de nervosismo que ele vira até então. E isso também lhe deu prazer; então ele foi adiante.
— E depois que comermos, uma outra festa nos espera. A equipe do deserto saiu para cumprimentá-los e estender um longo tapete, do ponto onde o helicóptero pousara até a morada em forma de tenda. Claro, a equipe era maior do que de costume, não só porque era lua de mel, como porque as criadas de Layla também estavam lá para cumprimentar o casal real.
Ver as sandálias dela enfeitadas com jóias junto às dele quando ele entrou no palácio do deserto, deu ao lugar um ar estranho. Normalmente, Xavian ia ao deserto para ficar só. Ah, ás vezes ele mandava chamar uma amante, mas aquele lugar era para seu refúgio, e ele não tinha certeza do que sentiria ao compartilhá-lo. Mas ele tinha de compartilhar, pelo menos daquela vez.
Estava casado.
Sinos minúsculos tinham sido espalhados pelas paredes da tenda e presos ao teto de todos os corredores, sinos que serviriam aos noivos como adequado alerta da aproximação da criadagem. E eles tilintavam naquele instante, momento em que o casal real penetrava no coração da morada do deserto. O ar tinha uma fragrância de incenso, pétalas haviam sido espalhadas sobre os grossos tapetes persas que cobriam o chão macio e, quando uma pesada cortina de seda se abriu, Xavian observou Layla entrar na sala de estar principal. Ela era decorada de acordo com a tradição: tapetes adornavam as paredes da tenda e havia sofás baixos cobertos com almofadas ricamente coloridas e mantas de veludo. Mas também era decorada esplendidamente com esculturas complexas e instrumentos musicais, além de antigos espelhos dourados que brilhavam e cintilavam, refletindo a luz suave das velas e das lamparinas a óleo. Havia uma mesa baixa para eles, com pratos de ouro maciço e taças decoradas com pedras preciosas e raras, as louças estavam guarnecidas com um delicioso banquete de casamento, enquanto os mais habilidosos músicos de Qusay tocavam o qanoon suavemente.
Estava tudo perfeito... Então por que, perguntava-se Xavian, ela não fazia nenhum comentário?
Talvez ela estivesse maravilhada, admitiu Xavian. Talvez ela estivesse preocupada que a morada real de Haydar no deserto fosse parecer precária diante de tanto esplendor. Ou talvez, como percebeu Xavian quando Baja se aproximou e Layla ficou rígida e tensa, ela estivesse preocupada quanto a se desvelar para o marido.
Ela tinha toda a atenção dele!
Xavian ficou em silêncio, observando Baja, que ajudava a noiva a tirar as capas douradas que envolviam seu corpo. Enquanto as muitas capas eram desenroladas, Xavian notou que estava prendendo o fôlego com ansiedade, percebendo que havia, lamentavelmente, julgado mal a figura que lentamente ia sendo revelada a ele. Ah, como havia curvas. Mas eram curvas perfeitas, femininas que o encantavam. Ele andou lentamente ao redor dela, admirando-a. Apesar de tudo, a noite não seria de adversidades. Ela usava um vestido dourado fartamente enfeitado caras jóias que abraçava suas carnes de mulher. Sua pele era incrivelmente alva, mesmo para alguém da realeza de Haydar. Seus tornozelos delgados haviam sido pintados com hena para ele, minúsculas flores castanho-avermelhadas subiam dos pés em espirais, dirigindo o olhar até suas panturrilhas. Mas não havia tempo para refletir ou apreciar, pois Baja retirava naquele instante o véu que cobria o rosto de Layla, e Xavian se sentiu perdido por um segundo quando sua mulher foi exibida a ele.
Ela era espantosamente bonita.
Muito, muito mais esplêndida do que ele jamais pudera sonhar.
Os cabelos negros e espessos desciam longos e encaracolados até suas costas e por sobre seus ombros leitosos, emoldurando seu rosto delicado. Suas bochechas estavam suavemente pintadas de ruge; seus lábios carnudos eram deliciosos, e havia neles um tremor leve, indício único do nervosismo dela. Layla era tão feminina que Xavian se perguntou se havia interpretado mal as palavras duras ditas por ela pouco antes. É claro que interpretara mal, pois certamente nada exceto doçura poderia vir daqueles lábios.
Ele lhe estendeu a mão para levá-la até a mesa posta, mas ela fez objeção.
— Eu gostaria de dar uma olhada por aí.
— Claro — concordou Xavian amistosamente. Ela estava fascinada, disse ele a si mesmo, fascinada com a idéia não apenas de jantar com ele, mas com o banquete que se seguiria.
— Eu lhe mostro — disse ele. Mas ela já caminhava pela morada do deserto e, apesar de ela estar deslumbrante, Xavian sentia sua irritação aumentar quando ela verificava e questionava tudo.
Ela apertou seus esplêndidos olhos quando se voltou para Baja.
— Onde está meu computador?
Quando a velha senhora se desculpou pelo descuido, Xavian viu que aquilo já era demais.
— É sua lua de mel, ninguém espera que você vá trabalhar...
— Ah — exclamou ela, os olhos reluzindo e a boca paralisada no movimento de pronúncia daquela pequena palavra. Era tudo o que Xavian conseguia ver, lábios luxuriantes que ele esperava que ficassem quietos, a boca que ele queria alimentar com as frutas da mesa e depois beijar por inteira. Mas em vez disso, aquela boca mais uma vez o desafiava.
— Eu não me dei conta de que passaríamos a semana inteira nos conhecendo um ao outro...
Ela abriu um sorriso inquiridor.
— Eu tinha entendido que você queria passar um tempo no deserto...
— Claro que eu vou passar meus dias no deserto — resumiu Xavian. — É justo que eu passe um tempo com a terra, e peça-lhe conselhos sábios.
— E espera que eu me junte a você? Um sinal de ruga franziu-lhe de leve a testa alva.
— Eu ficaria feliz...
— Não! — disse Xavian, esforçando-se para que sua voz não soasse áspera, horrorizado com aquela idéia. — Esse tempo é para eu refletir, sozinho.
— Entendo — disse ela com um breve meneio de cabeça, como que a agradecer a ele, depois se virou para Baja.
— Nesse caso, vou querer meu computador.
— O helicóptero já partiu — disse um criado, para acrescentar rapidamente —, Vossa Alteza.
— Ótimo — disse ela, fazendo murchar, com um olhar fixo, o criado insolente.
— Então ele vai chegar logo ao palácio. Faça com que retome imediatamente com meu computador Afinal... — e ela sorriu de novo para Xavian — não se pode esperar que eu fique aqui sem fazer nada o dia inteiro, enquanto meu marido ouve conselhos da terra; tenho um reino para governar.
Ela sabia que estava parecendo distante, que estava sendo irritante... Mas era esse seu plano. Melhor do que revelar seus verdadeiros sentimentos, pois ela estava, de fato, mais do que nervosa; aterrorizada seria uma descrição melhor de como ela se sentia. O dia inteiro fora vivido no limite, abandonada nos jardins do palácio enquanto os minutos passavam, e sem que seu noivo aparecesse. Ele não queria aquele casamento, e o atraso apenas confirmava a pouca consideração que ele tinha por ela. Como ela quisera ter condições de ir embora com os próprios pés.
Tudo isso lhe tinha vindo à mente enquanto ela esperava nos jardins do palácio, mortificada sob o véu e com raiva. Então ele apareceu de repente; o homem com quem ela se casaria finalmente a seu lado, como um noivo relutante. E a mortificação e a raiva foram substituídas por uma inquietude. Ah, ela já sabia que ele era bonito, tinha ouvido falar de seu sucesso estrondoso com as mulheres, e quando o casamento fora anunciado, ela ficou nervosa, como muitas mulheres ficariam, diante da perspectiva de perder a virgindade com um amante de reputação tão formidável...
E então lá estava ele ao lado de sua esposa.
Houve frenesi quando ele chegou, açoitando o ar enquanto se deslocava para ficar ao seu lado. Então tudo ficou normal, só que de um jeito diferente, uma atmosfera nova: seu perfume ácido de tangerina, sua altura imponente e sua presença, sua inquestionável presença masculina. Ela fora tomada por um desassossego diferente com relação a tudo que um casamento implicava, frente ao que estava por vir, e aquele momento estava bem próximo!
Com um nó na garganta, ela caminhou até o quarto de dormir e, à visão da grande cama, desviou o olhar, puxou uma cortina e olhou em direção ao interior do banheiro, onde ela seria preparada para ele. Havia espelhos por toda parte, uma grande banheira no centro e bancos ao lado, onde as criadas lhe dariam banho.
— Gostaria que eu lhe mostrasse os jardins agora?
O sarcasmo dele fez surgir o primeiro sorriso genuíno dela.
— Eu admirei a bonita areia que você tem quando pousamos — respondeu Layla com seu humor característico, mesmo que Baja franzisse a testa, sem entender a piada.
— Deve dar muito trabalho mantê-la com tão boa aparência.
— Horas! — disse Xavian, virando os olhos. Ela quis rir, mas se conteve. Não era hora de baixar a guarda, tinha de dar o tom.
Não importava que ele fosse o homem mais sensual que ela já tinha visto, com uma beleza de tirar o fôlego. Não importava que aquele homem fosse usufruir de seu corpo e compartilhar a cama dela. Não importava que ela quisesse dar meia-volta e correr ante à visão imponente dele. Era imperativo que ela permanecesse no controle da situação e ditasse suas intenções logo de início.
Ela podia parecer uma rainha passiva aos olhos de seu povo, mas se Xavian pensava que ela fosse consentir, ele teria de perceber rapidamente que sua mulher tinha voz!
— Agora vamos comer — disse Xavian, interrompendo os pensamentos dela com uma ordem clara, tão clara que Layla percebeu que seria insignificante discutir. — Nosso banquete de casamento nos espera.
Ela sentou-se à mesa baixa, com os joelhos na direção dele, enquanto um criado discreto enchia duas pesadas taças de ouro com um drinque de sabor forte e doce. Ela sabia de suas leituras, e dos ensinamentos de Baja, o que era aquilo: uma variedade excepcional de mel grosso misturada a vinte grãos de amêndoas e cem pinhões para ajudar na excitação. A essa mistura rara eram acrescentadas sementes de papoula moídas, para romper a inibição, e a bebida lhes seria oferecida todas as noites no deserto, como era o costume. Ela deixou que ele lhe desse a bebida potente que prometia a ele a completa excitação de sua esposa, e teve de engolir o líquido viscoso quando ele o verteu rapidamente, rápido demais para sua garganta e boca tensas. Parte do líquido escorreu até seu queixo, e seus dedos pegaram as gotinhas que escapavam. Por ter de beber até o fim, como mandava o costume, Layla lambeu os dedos e percebeu que estava tremendo. Percebeu, quando levantou a taça para dar a Xavian sua parte da poção, que não queria fazê-lo.
Não queria alimentá-lo, estimular seu ardor. Ele era tão másculo.
E logo ela ficaria feliz com isso, lembrou Layla a si mesma. Logo ela estaria grata por seu parceiro ter um físico tão privilegiado, por seu homem, que seria seu único amante e pai de seus filhos, que lhe daria os herdeiros de Haydar, fosse um espécime tão magnífico.
Ela precisava apenas se livrar logo daquilo, ver pela primeira vez um homem nu, cumprir sua obrigação de esposa e, mais cedo ou mais tarde, disse Layla a si mesma, o corpo dele, sua masculinidade, não a assustariam tanto; mais cedo ou mais tarde, ela prometera a si mesma, aquilo deixaria de ser algo estranho.
O músico sentado continuava a tocar com delicadeza o qanoon, dedilhando habilmente as cordas, bem mais devagar do que as batidas rápidas do coração de Layla. A música que soava como harpa preenchia a tenda e inflamava seus nervos.
Ela segurou a taça diante dos lábios dele e verteu a bebida com hesitação, observando-o engolir, temendo aquela boca que logo estaria sobre a sua, e aquele corpo que logo comprimiria o seu.
Ela estava tonta com o medo nascido de muitas noites sozinha. Baja lhe contara um pouco do que esperar e lhe diria mais, assim o prometera, quando a preparasse.
Ele terminou sua poção e ela permaneceu a seu lado.
Como era o costume.
O banquete de casamento fora preparado cuidadosamente. Diferente do banquete pomposo que adornaria as mesas na recepção oficial, aquela refeição era leve, cuidadosamente escolhida pra um casal de noivos, para que seus estômagos não ficassem cheios e seus sentidos permanecessem aguçados. Ela consistia de frutas doces e suculentas que dariam energia e estimulariam a fertilidade, e era para ser comida com os dedos.
Não houve conversa, apenas olhos que se observavam e esperavam enquanto um alimentava o outro. Quando ele se inclinou para frente, chegando tão perto que ela podia sentir o calor de sua pele quando ele colocava os cabelos dela para trás para que ela pudesse comer as frutas pegajosas, ela sentiu um embrulho no estômago de ansiedade pelo que estava por vir. Ele inalava o perfume dela e ela sentia a respiração dele em seu pescoço, um hálito fresco como uma brisa, e o medo que crescia em seu interior se transformava em algo diferente. Um estranho palpitar de excitação tomava conta de seu corpo. Naquela noite ela saberia, naquela noite lhe seriam revelados o segredo, a recompensa, a resposta que ela buscava nas noites solitárias e vazias.
Pequenos pratos foram oferecidos, saboreados e depois retirados, até que a mesa ficasse vazia. Logo chegaria o momento. Ela o observou partindo uma romã e oferecendo-lhe a metade. As minúsculas sementes em forma de conta adoçavam sua língua, mas sua cabeça ainda girava. O perfume de almíscar a estava deixando atordoada, e as notas do qanoon soavam mais prementes. Ela tomou um chá de menta para que sua boca ficasse fresca para ele, e os olhos dele passeavam pelo seu corpo, demorando-se em seus seios, que ela já sentia pesarem. Ela nunca estivera tão consciente deles. Escondidos e seguros por trás de túnicas, ela raramente pensava neles. Mas, naquele momento, eles doíam sob o exame minucioso e lânguido daqueles olhos. Então eles se moveram lentamente ao longo da onda cor-de-rosa que lhe subia pelo peito e pescoço e aquecia suas bochechas. Os olhos dele encontraram os dela e os prenderam, e ela não conseguia respirar. Ela sentiu a língua lenta demais, tensa demais quando a colocou para fora a fim de umedecer os lábios secos, e foi inundada com o desejo irreprimível de que os lábios dele exigissem os dela, para provar não a fruta, e sim, a ele.
Ela estava pronta, percebeu Xavian.
Então chegou o momento, e ela teve vontade de ficar mais um pouco à mesa, desejou que ele a tivesse beijado, desejou que a noite não fosse tão formal, desejou que estivessem a sós. Pois por alguns instantes, ela tivera o primeiro vislumbre de excitação. A beleza rara dele, seu perfume excepcional, o modo descarado como ele a tinha olhado a fizeram ficar ávida por mais. No entanto, Baja a estava levando para se banhar, enquanto Xavian se dirigia para a cama, e ela nunca sentira tanto pavor. Mas também nunca estivera tão excitada.
Uma parte dela queria correr para o deserto, fugir, mas ela começava a perceber que queria aquele momento também. Ela não queria mais que tudo acabasse, pois seu corpo estava curioso de um jeito diferente, pois fora dos limites da aura de Xavian, o coração e as sensações dela estavam baixando até ficarem quase normais, e ela estava certa de que aquilo nada tinha a ver com frutas ou sementes de papoula.
No banheiro, as criadas davam-lhe banho e passavam óleo em seu corpo. Ela fora pintada com hena para ele em Haydar, seus tornozelos e mãos estavam adornados com um caminho de flores em espiral. Sentiu um frio na barriga e estremeceu à lembrança súbita daquela boca voluptuosa em sua...
Mas Baja lhe dizia que esperasse algo diferente.
Talvez houvesse um beijo indiferente, explicou Baja quando ela saiu da banheira perfumada e as criadas a prepararam, para que então o rei cuidasse de tudo. Ela levantaria a camisola, haveria mais óleo junto à cama, e, esperançosamente, o rei o usaria. Se não usasse, a banheira onde ela se estirara tinha óleo; portanto ela estaria suave e macia.
Não demoraria, Baja lhe assegurou. Duas, talvez três investidas para tirar sua virgindade. E como o rei não estaria usando preservativo, e o ato aconteceria depois da comida potente, e com a rosa e o almíscar inebriantes nos quais ela se banhara, tudo acabaria rápido.
Mas Layla queria mais; queria mais do que tinha visto de relance à mesa dele.
— Eu devo tocá-lo? — perguntou Layla. Ela era perfeccionista, era boa em tudo, e de repente, também quis ser uma boa amante para seu marido. Mas Baja simplesmente riu; até as criadas deram risadinhas. Ah, elas sabiam tudo sobre o rei Xavian e suas incontáveis mulheres. Reinava a fofoca entre a equipe palaciana, mesmo que os reinos estivessem separados por quilômetros. Baja tinha um primo que trabalhava nos aposentos reais no palácio de Qusay, sabia que havia amantes à espera e prontas para aparecer assim que Layla estivesse segura em casa e o rei, de volta a seu palácio.
O corpo de Layla era necessário apenas por uma razão; ela não precisava se preocupar com tais coisas!
— As amantes dele vão cuidar de tudo isso para você. — Baja procurou assegurar-lhe novamente, mas suas palavras agiram como granizo sobre o corpo quente de Layla. Frias e pungentes, elas lhe trouxeram uma nova emoção: ciúme dos rostos desconhecidos que atenderiam às necessidades mais secretas de seu marido.
— Não se preocupe, Vossa Alteza — prosseguiu Baja, chamando-a por seu título de nobreza, como sempre fazia na presença das criadas.
— A senhora deverá suportar as investidas dele uma ou duas vezes por mês, até que seja fecundada. Depois, poderá descansar por um ano, pelo menos.
Uma camisola cobriu-lhe o corpo úmido e oleoso. Seus cabelos foram escovados e seus lábios pintados com batom. Em seguida, anunciaram que ela estava pronta. Ela abriu as leves cortinas e entrou no quarto dele. Lamparinas a óleo e velas iluminavam o quarto; a cama grande e baixa estava decorada com fina organza. O qanoon ainda tocava na área principal da tenda, quebrando o silêncio do deserto. Suas notas suaves e sedutoras tinham sido pensadas para facilitar a entrega dela a ele.
Ele estava na cama, nu, certamente, sob o lençol de seda que lhe cobria a parte de baixo do corpo. Ele era igualmente impressionante, mesmo sem a farda. Seu peito largo, seus braços longos e musculosos facilitariam o trabalho dos alfaiates do palácio, pois sua masculinidade não carecia de realce. Havia marcas escuras em volta de seus pulsos. De início, à luz das velas, Layla pensou que ele também tivesse sido pintado com hena, mas não. Eram cicatrizes. Mas não era função dela notar aquilo, portanto, ela olhou para ele, observou quando seu rosto altivo e arrogante se suavizou um pouco quando ela caminhou em direção a ele.
Por um instante, ela desejou ser sua amante, não sua mulher.
O óleo fazia a camisola grudar em seu corpo enquanto ela subia na cama para ficar ao lado dele.
— Não fique nervosa.
— Não estou — disse Layla, que, no entanto, tremia. Ele a beijou. Ela sentiu os lábios dele pressionarem os seus, a língua dele escorregou para dentro de sua boca, e ela tentou retribuir o beijo, mexendo a boca, imitando a dele.
Enquanto foi princesa, ela nunca houvera nada de beijos. E ela desejou ter mais experiência, sentiu-se envergonhada com a própria inocência. Ela não conseguiu desfrutar os beijos dele, apenas sentiu o comprimento da masculinidade dele fazendo pressão entre suas coxas, e o tamanho dele a deixou tonta. Ela rezou para que ele a lubrificasse com óleo.
Ela levantou a camisola.
— Sem pressa...
Ele se recostou; queria continuar a beijá-la, para que ela relaxasse, para que ela ao menos provasse e desfrutasse de seu dever como rainha.
— Eu preferia que já tivesse acabado — disse ela com voz forçada.
Ele também, pensou Xavian — enquanto se perguntava se seria vergonhoso chamar uma amante em sua lua de mel.
Ele adorava sexo. Muito nunca era o suficiente para Xavian, e ele estava sempre de prontidão. Mas aquela inflexível mulher de negócios, que fora até a cama dele para uma união tão fria, não parecia nem um pouco com a fêmea luxuriante que ele tinha alimentado e preparado.
Francamente, se era aquele o desejo dela, ele também ia querer se livrar logo!
Ele era atencioso; mergulhou os dedos na louça dourada junto à cama e lambuzou a carne macia e rósea de Layla. Sentindo o calor doce, ele enrijeceu mais ainda. Dever cumprido.
Layla viu que o que já parecia ameaçadoramente grande crescia mais, e sua abertura era estreita. Ela sentia agora a mão dele lá, e o viu tão duro e ereto que quase ficou enjoada. Ele a viu olhando, viu aquela mistura de pavor e fascinação, e seu dedo demorou-se, acariciando-a em um ponto especial durante algum tempo.
Ela quis fechar as pernas, não o queria tocando-a. Aquilo parecia errado e aumentava o seu nervosismo; aquele sexo, aqueles toques, aquela troca que ele depois faria com outra pessoa!
— Agora você vai passar óleo em mim.
Ele gostava de acariciá-la, gostava da sensação da umidade dela se encontrando com os dedos dele, e ela podia sentir as pontas dos dedos dele pressionando-a de leve e repetidas vezes, o que lhe dava um frio na barriga enquanto mergulhava os dedos trêmulos na tigela.
Baja não a advertira sobre aquilo, não dissera que seus dedos também deveriam estar sedosos e melados. Ela não quis tocá-lo lá, mas talvez isso a ajudasse mais tarde. Ela se forçou a fazer aquilo, seus dedos indecisos deram um rápido lustre de óleo ao longo de seu membro comprido, e em seguida ela desviou o olhar de suas impressionantes e monstruosas proporções, mas, sem querer, o olhava de volta para lá. A sensação de tocá-lo era tão diferente de sua aparência dura e furiosa... A pele sob os dedos dela era macia como veludo de qualidade.
— Mais...
Ele ainda a acariciava. Ela sentiu um peso no ventre e nas coxas também, e não gostou. Não gostou daquelas sensações estranhas. Ela queria seu controle habitual, então terminou aquela distração sem sentido. Ela estava em seu período mais fértil; o casamento fora marcado em função de seu ciclo menstrual. O modo como respondeu a ele a desencorajou: a reação incomum de seus sentidos, o estranho enfraquecimento que ele causara em sua mente. Era hora de ser corajosa, de acabar com aquilo; hora de recuperar o juízo.
— Agora. — Ela tirou a mão dele de suas partes íntimas e se deitou. — Faça agora.
Xavian estava cansado dos jogos dela. Ele sentira Layla se entregando por um segundo, mas recusando-se a ceder e desfrutar de suas carícias.
Ele tinha esperado mais de uma esposa, mas imaginara menos.
Uma pena, no entanto, pois ela era bonita, seu corpo era carnudo e perfeito, os cabelos negros. E aqueles lábios conseguiriam beijar se simplesmente aprendessem, aquele corpo poderia conhecer o prazer se ela simplesmente permitisse.
— Tire sua camisola... — disse Xavian, pois precisava de algo que o fizesse avançar. Ele fez o que lhe tinham ensinado e certamente foi uma ajuda o fato de que ela era bonita, pensou Xavian, quando se debruçou sobre Layla e ela abriu as pernas, como deveria; toda ajuda era muito bem-vinda enquanto ele cumpria seu dever com aquele belo membro. Xavian estava nervoso.
Pela primeira vez na vida, sentia um pouco de temor diante de uma mulher quando forçou a entrada de seu sexo e não encontrou o obstáculo usual. Ele imaginou o corpo dela para se manter firme, e abaixou a cabeça um instante para sugar seus seios, para provar sua carne perfeita em benefício próprio. Mas, ainda que ele a estimulasse para obter uma reação, não houve nenhuma.
O momento chegara e Layla estava apavorada. Ela não podia demonstrar isso a ele, claro, nunca podia mostrar a ninguém seus medos particulares. Ela era rainha, sempre no comando, sempre segura.
Ele pôde sentir as lágrimas no rosto de Layla quando encostou sua bochecha na dela. Ele estava forçando a entrada nela e notou que ela queria que aquilo acabasse, que apesar de sua lágrimas silenciosas aquilo tinha de ser feito, e ele ficou zangado.
Zangado com sua recusa em até mesmo tentar desfrutar daquilo, zangado com seu jeito de martirizada, com o fato de o ter incitado a fazer logo quando ele queria beijá-la, queria prazer não só para si mesmo, mas para ela.
Uma rara ternura se aproximou no último instante, não foram apenas suas lágrimas salgadas que o comoveram, tampouco sua beleza o fez questionar seu dever, foi ela.
Aquele seu olhar de relance ele tinha visto à mesa, e apenas por um instante na cama.
Porém, mais do que isso, foi a mulher que entrara em seu quarto, dizendo-lhe para fazer melhor, que o havia intrigado. Ela insistira por algo melhor vindo dele, e ele queria dar-lhe o melhor.
Aquela mulher que se zangava e se aborrecia, ele percebeu, estava nervosa, e para Xavian havia ali também uma culpa incomum.
Claro que sim. Não podia ser de outro jeito. Sem dúvida, ele devia ter uma virgem como noiva.
Mas com sua longa recusa a se comprometer, ele tinha negado a ela aquele prazer. Negado a ela conforto, negado a ela consolo até aquele momento. Para Xavian, sexo era apenas aquilo. Um momento em que ele desembarcava de sua mente, para o qual ele escapava e vivia por um momento, uma hora, uma noite.
Ele podia dar isso a ela também, se ela pelo menos cedesse.
Num relance, ele via um futuro diferente; um futuro que podia ser o dela se ela o quisesse. Um lugar que era para eles dois. Ele queria que ela também visse esse futuro, queria que o dever e a obediência sumissem, queria que o consolo que ele encontrava naquela noite se estendesse a ela.
— Não tem de ser assim. — No último minuto ele titubeou, provou as lágrimas dela com seus lábios e tentou soprar vida naquela morte sem sentido. — Não tem de ser um dever.
Então sua boca pressionou as bochechas salgadas dela e tentou confortá-la. Mas ela virou o rosto.
Ela não podia explicar as lágrimas, só dizer que as palavras de Baja a atormentavam.
Qual a razão da intimidade, qual a razão de entregar-se a ele se haveria outras?
— Suas amantes se enfrentam por você — disse ela, num soluço. — Que sejam elas a lhe dizer quão maravilhoso você é. Eu só quero acabar logo com isso.
— Por que eu teria uma amante? — perguntou Xavian junto ao seu ouvido. Ele estava quase lá, podia sentir a resistência de sua inocência apesar de sua atitude ousada e ríspida.
— Porque é isso que você vai fazer... Eu estarei em Haydar, e você, aqui...
Ah, então ela já estava com ciúmes. Xavian sorriu em triunfo, mas algo dentro dele que buscava conforto na suposição dela de que ele teria uma amante mudou quando ele a tomou nos braços.
Ela era uma rainha.
Ele abraçava uma mulher que estava no nível dele. E não apenas a título de nobreza. Ela o desafiava, e curiosamente Xavian queria ainda mais dela. Ela toda, talvez?
O que significava que ela também precisava dele ainda mais.
— Por que precisaríamos de amantes — perguntou ele, com a boca perto da orelha dela —, se nos satisfazemos um ao outro?
Ele se afastava assim do centro das atenções dela, e com uma das mãos a acariciava entre as coxas, enquanto alisava os seios com a outra. Em seguida, ele moveu a cabeça até um de seus mamilos, sugou-o, enquanto ela olhava para baixo para ver sua língua brincando e seus lábios beijando seu peito.
— Nós temos uma esquadrilha de aviões a nosso dispor, e sempre há... — disse ele, olhando para cima, com os olhos negros cintilando — um telefone.
Ela deu uma risadinha de espanto ao pensar neles dois aos sussurros ao telefone, de noite na cama, sobressaltada pela excitação com os jogos que eles podiam inventar, assustada com o fato de que eles podiam ter uma vida juntos, com o fato de que as maneiras de Baja e as de antigamente não tinham de ser seguidas.
— É meu dever satisfazer você, Layla.
Ele colocou seu peito bem fundo na boca e sorveu com força, até que ela se contorcesse num prazer inebriante.
— E, apesar do que eu disse antes, eu levo meus deveres a sério. Você não vai querer ter um caso...
— Ter um caso?
— Se eu for menos do que um marido deve ser... — disse Xavian, orgulhoso do poder de sua façanha, descendo com a língua enquanto ela estremecia embaixo dele, lambendo a pequena borboleta que fora pintada para seu prazer e sentindo a suave curva de seu ventre em sua bochecha.
Layla percebeu que ele estava lhe dando as mesmas regras! Ela sabia que aquilo acontecia. Sua irmã Noor era casada com um príncipe que era impotente com as mulheres, e Noor foi autorizada a arranjar um amante discreto... Era diferente estar casada, mas sua irmã era uma princesa, Layla era rainha, por que ela precisaria de um amante?
Ele estava de volta, seus dedos tocavam-na com mais firmeza, e ele continuava a beijar seu ventre, dizendo-lhe com mãos e lábios que era direito dela ser satisfeita, levando-a a um mundo novo, compartilhando com ela o segredo de que aquilo era um direito dela. Então ele desceu com a cabeça, beijou uma outra borboleta e viu que ela lhe pertencia.
Como ele amava as mulheres.
Como ele amava senti-las se abrindo em suas mãos. Mas seu prazer não fora maior do que ver o cinismo de Layla derreter-se sob seus lábios. Com a língua, tocou-a de leve, sentiu o tremor em suas coxas e ouviu os suspiros curtos que lhe disseram que ela estava pronta. Mas ele queria seu beijo, queria aquela boca que o provocara com fruta, que dissera palavras tão duras, mas que se tomara suave quando ele a beijara. Então ele a beijou de novo, e ela retribuiu o beijo.
A língua de Xavian buscou a de Layla, encontrou-a e a sugou. Então encontrou seus lábios e os sugou também. Depois a beijou com tanta força e tão intensamente que os seios dela ficaram achatados contra seu tórax, as pernas dela se enrodilharam em torno de suas pernas, os dedos dele perdidos nos nós de seus cabelos. Ele quase se esqueceu da inocência dela quando o corpo dele o levou para dentro dela, em direção a seu único presente, porque Layla estava louca por ele, disposta a se entregar. Ele fez pressão sobre seu lugar protegido; ela estava esperando por ele, loucamente. Soluçou quando ele ardeu dentro dela, e perplexo com sua própria ferocidade, com medo de que tivesse sido afoito demais, ele levantou a cabeça, viu lágrimas nos olhos dela e repreendeu a si mesmo. No entanto, ela estava bem desinibida embaixo dele, era como se ela estivesse livre, como se de algum modo, ele a tivesse libertado, pois os lábios dela tocavam sua bochecha naquele instante, seus dedos o apertavam, no início devagar, mas a cada investida hesitante, ela implorava que ele fosse mais fundo, a cada movimento do corpo dele, ela pedia mais.
— Acabou...
Íaja caminhava de um lado para o outro, mas ao ouvir o rito de sua senhora sentou-se com as criadas, orgulhosa de sua rainha e feliz por ela, feliz porque aquela longa noite havia acabado. A não ser pelo fato de que os gritos continuavam, as criadas continuavam ali, cabisbaixas, o rosto da mais jovem delas estava ruborizado, e Baja tentava tranqüiliza-Ia.
— Vai acabar logo...
Layla não queria que aquilo terminasse. Embora soubesse o que esperar, ainda assim ela sonhara intimamente com aquela noite. Mas nem as previsões sombrias de Baja, nem o mais caprichoso de seus sonhos chegara perto do êxtase da realidade! Beijos incômodos movimentos desajeitados tinham sido substituídos por uma torrente de sensações, sentimentos, de Xavian arrebatando-a até aquele lugar incomum onde ela era ela mesma, uma Layla melhor, vulnerável, uma mulher nos braços dele. E ele a segurava enquanto a preenchia, a volta de seus ruídos involuntários, e o êxtase dele dentro dela era sem igual, até o momento seguinte. Pois, assim que ela aceitava a sensação nova de Xavian dentro dela, as coisas mudavam de novo. Quando ele se movia dentro dela, ela se sentia envolvida, absorta, mimada, e até mesmo vulnerável ao extremo, com ele dentro dela, sua pele roçando na dela, sua respiração selvagem e irregular em seus ouvidos, mesmo quando ele a levou para um lugar novo, perigoso e desconhecido, ela se sentiu totalmente segura. Suas coxas doíam, ela sentia um frio na barriga e o rosto dele colava no dela. Tudo o que ela conseguia ouvir era a respiração dele quando se movia lentamente, e embora não houvesse um parâmetro que lhe servisse de comparação, havia em Layla uma necessidade de que Xavian se movimentasse com mais rapidez, de que ele correspondesse à ânsia repentina do corpo dela. Ela sentia seus quadris elevando-se, pedindo mais, mas ele se recusava a ceder àquele apelo. Quando muito, movimentava-se mais devagar, ia mais fundo, quando o corpo dela implorava que ele se unisse a ela.
A penetração dele havia machucado, ela sentiu que ardia, mas quando ele se movia lentamente, era uma ferida diferente, quase uma dor. Como um beijo em ar rarefeito ela disse o nome dele, implorando, quando ela nunca precisara pedir. Layla mal reconhecia sua própria voz, aquele soluço, aquele queixume vindo de lábios normalmente tranqüilos. Mas ela soltou um grito quando uma torrente de calor atravessou seu corpo. Os dedos dela fincavam em suas costas enquanto exigia que ele se unisse a ela, mas ele não a atendia, mesmo quando ela se submetia e estremecia debaixo dele. Seus gritos ficavam sem resposta; ele aparentemente estava inacessível ao contorcer-se no corpo dela, e ele continua a se mover dentro dela...
O triunfo fluiu dentro dele quando ele a balançava, quando ele a sentiu desmilinguindo-se debaixo dele, quando ouviu os gritos de seu consentimento. E ele queria unir-se a ela, mergulhar na inconsciência, mas a subida até o cume era assombrosa. Ali o ar era mais puro; os sons, mais vividos; as cores, mais brilhantes, e ele queria demorar-se, a fim de encontrar a resposta para o que aconteceria se ele ficasse, se ele se demorasse, se ele continuasse a se arriscar num lugar inexplorado.
Ele a beijou, tocou os lábios cansados e surpresos dela com os seus e confirmou sua intenção. Então ele lhe falou, mirou o negro luxuriante das pupilas dela e lhe mostrou um caminho diferente.
— Era assim que podia ser.
Ela pensou que seu corpo estivesse cansado, mas não estava nem perto disso. O amor langoroso e devagar com o qual ele a tinha provocado foi substituído, e a pressão premente e exigente que ela procurara um pouco antes lhe era dada agora. Ele era implacável, seus braços a envolviam, seu rosto apertando o dela, beijando seus olhos, sua boca, seu rosto, suas orelhas, indo fundo nela enquanto seus quadris se elevavam a um ritmo que combinavam com o dele. E ela chorava e implorava, pois estavam perto demais do cume, onde ela nunca quisera se aventurar, embora quisesse estar lá mesmo assim. Com medo de saltar, de cair, ela queria retomar no último minuto, para se salvar, mas Xavian tinha acabado de saltar, seu corpo movia-se rápido e depois se aquietava enquanto ele se liberava. E era como se ela tivesse sido atingida por um relâmpago. Então ela teve uma visão, como se ele estivesse oferecendo sua mão a ela. E em vez de recuar, ela a tomava e saltava com ele para um lugar de liberdade, onde podia gritar o nome dele enquanto os espasmos tomavam seu corpo, enquanto ele se esvaziava dentro dela, seus músculos femininos pulsando em ritmo perfeito com os dele. Então ele a pegou, com investidas suaves e profundas que a fizeram recobrar lentamente os sentidos, que relaxaram seu corpo contraído, até que ela ficasse num estado de calmaria.
Uma calmaria tranqüila como ela nunca vivera.
Todo o calor desaparecera, seus corpos brilhantes esfriavam enquanto ele a trazia de volta ao mundo com um beijo. Então ele disse de novo.
— Era assim que podia ser.
Xavian raramente dormia.
Claro que ele dormia: seria impossível não dormir e viver. Mas mesmo durante o sono uma parte dele permanecia alerta, prestando atenção aos sonhos que o afligiam e conjurando-os. Ele era orgulhoso demais para deixar que suas amantes vissem sua aflição, mas amantes eram facilmente descartadas. Não tão facilmente, seria sua mulher, e na noite de núpcias.
Ele estava determinado a permanecer vigilante durante o sono, concluindo que descansaria adequadamente em sua temporada no deserto. Ele dormiria profundamente por um tempo no abrigo de um cânion que ele conhecia bem, de modo que pudesse ficar de guarda à noite. No entanto, pela primeira vez em várias noites, e certamente pela primeira vez com uma mulher em sua cama, o sono, o sono de verdade, o derrotou.
Ele podia sentir o perfume dela, sentir seu corpo macio ao lado dele, mas era mais do que isso. O amor que tinham feito fora como um bálsamo; ele nunca se sentira tão pleno. E embora ele a tivesse aconchegado nos braços, embora sua intenção fosse só cochilar, seu subconsciente ditava outra coisa...
Ele acenava para que continuasse, e tolamente Xavian continuou, mas então recobrou o juízo e resistiu por um momento, lutou para abrir os olhos. Ele acenou de novo. Na verdade, era um elogio que Xavian tivesse dado as costas a ela, que pela primeira vez ele tivesse descansado de verdade com uma mulher.
Havia o som suave de sinos, o conforto da presença dela e aquele estranho chamamento que ele deveria seguir, o que ele fez...
Ele estava num palácio.
Não no seu palácio. Talvez, pensou Xavian, era Haydar. Mas não, quando ele olhou as pinturas nas paredes, de algum modo percebeu que aquilo não era um sonho, e sim uma memória.
Ele podia ouvir o som incomum de risos realmente desinibidos, e o som vinha de uma criança que parecia com ele.
Havia um pássaro!
Um pequeno pássaro prateado tinha se precipitado palácio adentro e tudo virara um caos.
Ele estava correndo, rindo, vibrando, encantado enquanto o perseguia pelos corredores.
O deleite o preenchia quando as criadas entraram com vassouras, tentando encurralá-lo, mas o pássaro alçou vôo rapidamente, batendo as asas e arremetendo, quase zombando delas. E como aquilo o fazia rir... Um riso que vinha de dentro, uma onda de alegria que o preenchia com uma felicidade pura, um prazer inocente que aquecia e inundava suas veias normalmente frias.
Uma alegria autêntica, como ele nunca tinha sentido.
Mas que sentia naquele momento.
Ainda que tivessem ralhado com ele.
Ele sentia a janelinha que seus dentes tinham deixado depois de caírem quando sorriu para um rosto que não era para ser conhecido, mas que sua alma reconhecia como sendo de sua mãe quando ela mandou que saísse.
Ele adorava aquele sonho, adorava aquele lugar, aquele palácio, onde as crianças ainda riam.
Ele adorava sentir os dedos de Layla em seus ombros, descendo até os braços, o sussurro da sua respiração em suas costas quando ali ficava a seu lado enquanto ele continuava a sonhar.
Havia uma praia, com água, diversão e a liberdade completa do oceano, e ainda por cima a sensação dos delicados dedos de Layla em seu pulso. E a inocência acabou. Aquele mundo seguro e infantil terminara quando ele se encontrou pela primeira vez com o medo. Medo real que percorreu seu corpo e roubou sua juventude em questão de segundos.
Havia sangue na água e um inferno em sua alma, seu coração disparou e sua mente o quis de volta ao mundo real. Ele estava preso a um sonho e insistia em despertar, porque logo os lençóis estariam ensopados com seu suor, e ele sabia que dali a pouco ele iria gritar.
Ele precisava acordar naquele instante, antes que ela testemunhasse a verdade dele. Mas já havia escapado: um grito preencheu a noite silenciosa, seu corpo enrijecido, as batidas de seu coração, e então algo inesperado.
Aquele pesadelo era conhecido demais, o inesperado era o conforto dos braços dela, a pressão dos lábios dela em sua nuca, a estranha invasão da calma.
Layla ouvira os sinos sumindo quando Baja e as criadas se recolheram ao alojamento da criadagem e eles dois ficaram a sós.
O casamento havia se consumado.
Dever cumprido.
Layla nunca compartilhara uma cama e, embora seu corpo estivesse cansado, sua mente estava bem consciente do homem que tinha a seu lado.
Ele a estava abraçando, mas tinha se virado quando o sono chegou. Suas costas contra as dela; ela podia ouvir a respiração suave dele, ouvir ventos que eram desconhecidos.
Todo deserto trazia canções diferentes; ela aprendera isso há muito tempo, as vastas planícies e dunas e cânions emitiam seus próprios tons, e o Deserto de Qusay cantava alto agora que ela tentava abafá-lo e dormir.
Ele era realmente bonito.
Mesmo dormindo, mesmo encostado nela, mesmo no escuro, ela podia sentir sua beleza rara. E ele a tornara mais corajosa do que ela pudera imaginar. Porque ela não conseguiu resistir quando o impulso chegou. Ela esticou os braços e correu os dedos em seus ombros, sentiu a musculatura sob a pele suave e desejou que ele se virasse, que a tomasse de novo, mas ele dormia profundamente, a respiração regular e lenta, e ele nem se mexia quando ela o tocava.
Então ela estava um pouco mais corajosa.
Seguindo caminho pelos braços dele, até seu pulso, ela pôde sentir com os dedos as cicatrizes espessas, quase sentiu a dor. Então ela o sentiu se mexer e rapidamente afastou a mão, consciente de que o havia invadido.
Então, não se sabe de onde, a tempestade se formou e caiu.
O medo dele foi tão imediato, tão palpável que por um instante Layla realmente pensou que tivesse acontecido algo, algo real, tão terrível que ela também veria num segundo, como um terremoto, um incêndio, ou um intruso. Enquanto a tensão o atravessava, seu coração acelerava e seu corpo se agitava, ela pensou que ele fosse saltar da cama, que a ameaça fosse aparecer.
Tudo isso ocorreu em segundos, então veio o grito dele, e ela teve noção.
O medo dele era real, a ameaça estava presente, mas só para Xavian.
Foi quando ela percebeu que ele estava preso num pesadelo, e que ele não ia querer que ela testemunhasse aquilo, que o mais certo a fazer seria virar-se, fingir que dormia enquanto ele sofria, que o grito dele não a tinha acordado, fingir que dormia quando ele acordasse e acendesse a luz . Mas, em vez disso, ela o abraçou.
Ela não disse nenhuma palavra, apenas o abraçou, beijou-o com delicadeza na nuca gelada, abraçou-o até que seu coração desacelerasse, até que sua respiração se acalmasse. E Layla sabia que abraçava não apenas Xavian, mas um segredo.
Um segredo que não deve ser debatido.
Um segredo que era apenas de Xavian, até que resolvesse dividi-lo.
Ele não conseguiu olhá-la nos olhos pela manhã.
A leve dor de cabeça que ele sentia seria aliviada com um café. Mas ele se sentia sem jeito, envergonhado, e não gostava daquela sensação.
Quando as criadas entraram no quarto e prepararam o café da manhã, ele deu uma espiada e observou, quando as lamparinas foram acesas, que ela estava ruborizada. Ela se sentou e as criadas arrumaram seus travesseiros. O rubor ainda não havia sumido quando elas colocaram sobre as pernas do casal a bandeja do café com quitutes: frutas, iogurtes, pastéis finos, leite com mel, café e jarras de chá aromático. Ele tinha certeza de que ela estava constrangida por ele ter gritado, mas piscou os olhos, surpreso, quando, depois de as criadas terem saído, ela tapou a boca com a mão e soltou uma risadinha. Os olhos dela se arregalaram, surpresos, quando ela admitiu que estava constrangida; só que aquilo não tinha nada a ver com o sonho dele.
— Elas me dão banho, elas me vestem...
Ela sabia de tudo aquilo, mas ainda assim estava envergonhada por estar nua sob os lençóis com ele, pelo fato de o ar estar pesado com os odores ainda da noite de amor, e tudo o que ela sabia era o que ela disse.
— Eu não gosto quando elas entram aqui. Ele também não gostava.
Ela ficou ruborizada de novo, mas por um motivo diferente, quando ele retirou a bandeja, desceu da cama e ficou nu na frente dela.
— O que você quer comer?
Ela franziu a testa diante dessa pergunta.
— Massa.
— E para beber?
— Leite.
Ela observou quando ele enrolou um robe em tomo dos quadris, tirou o leite, a jarra de café e as pequenas xícaras de cima da bandeja e os colocou na mesinha de cabeceira. Ele retirou os quitutes e colocou os pratos sobre a cama, e então, certamente pela primeira vez, o rei limpou a mesa.
Ele levou a bandeja para fora, e ela pôde ouvir os sininhos tocando enquanto ele a carregava pelo corredor da tenda. Depois ele voltou, tirou o robe e subiu de novo na cama.
Ela sabia o que iria acontecer.
Ela ouviu os sininhos de novo, era Baja, sem dúvida, que corria para ver o que estaria acontecendo, e então ouviu a voz baixa e firme dele.
— Não queremos ser perturbados.
Ela podia imaginar Baja paralisada, pois os sininhos tinham parado de soar por um momento, e depois indo embora apressada. Então só se ouviu o barulho da bandeja sendo retirada, e Layla percebeu que eles estavam realmente a sós.
— Este é o nosso lugar.
Ela o olhou bem nos olhos e agora ele também podia olhar para ela, enquanto ela dizia que aquele lugar era deles, um lugar onde eles podiam ficar à vontade, e ele ficou infinitamente grato por ela não ter lhe feito perguntas, por não ter lhe pedido qualquer explicação sobre o que ocorrera na noite anterior; muito, muito grato pela compreensão inesperada de sua esposa.
— Então você tem seis irmãs?
Ele ficou deitado, tomando café, sem comer nada. Layla se sentou na cama, bebeu do leite adoçado com mel e devorou os quitutes. O café da manhã se estendeu por um longo tempo, ele ali com ela, contando histórias bobas, histórias que ele nunca havia compartilhado antes porque, de fato, não tinha ninguém com quem compartilhar. Histórias, por exemplo, de como Akmal ouvia por trás das portas, como Akmal significava "perfeito", coisa em que Akmal acreditava! Histórias bobas, talvez, a não ser pelo fato de que eram pensamentos que ele nunca compartilhara, pequenas histórias que nunca tinham sido consideradas importantes, e de repente, tinham se tomado importantes.
— Você dá conta?
— Às vezes — riu Layla. — Mas nunca tudo de uma só vez!
Ela notou que ele ficou confuso e explicou. — Eu estou sempre conversando com uma ou duas e deixando de conversar com outras tantas, mas nós sempre nos preocupamos umas com as outras. Neste exato momento, elas provavelmente estão preocupadas comigo.
— Por quê?
— Porque estou aqui...
Ele observou a fome dela ir embora, observou alguns dos quitutes que tinham sido saboreados voltarem ao prato dourado.
— Elas não precisam se preocupar, claro. Elas sabem que você é um bom provedor, que vai ser um bom marido e vai me dar herdeiros. — Ela sorriu discretamente e voltou os olhos cor de violeta para ele. — Elas não têm com o que se preocupar. Eu, no entanto, gostaria de ter mais de meu marido.
Ela rompeu os padrões de muitas maneiras.
Ela o desafiou, ela o satisfez, e lhe deu algo mais; o que Xavian estava rapidamente percebendo raramente acontecia a um rei, e também era muito raro para ela...
Conversa.
Conversa de verdade na qual o status não podia interferir Uma mente e uma voz que não seriam influenciadas por título de nobreza.
Nunca, nem uma única vez, nem por um só momento, ele esperou que sua noiva, seu dever, as restrições por ser rei lhe trouxessem aquilo.
Aquilo...
Era uma honra ser rei, claro.
Da habilidade com armas de fogo à conduta, à façanha militar, ele era o mais homenageado, disseram-lhe. O único. O escolhido.
Ainda assim, quando ele atirou num pombo de argila, e depois num falcão, e depois mostrou seu valor em combate, as homenagens não significavam nada. Incontáveis vezes lhe disseram o que ele sentia, quem ele era e como tinha de ser.
Na noite anterior, no entanto, ele se sentiu escolhido por ser quem era.
E ela queria mais. Xavian, no entanto, não estava certo de que poderia dar algo que não sabia o que era. Ele mesmo.
— Você queria ter tido irmãos? Ele balançou a cabeça.
— É um desperdício desejar algo que não se pode mudar... Seja como for, tenho três primos, nós brincávamos um pouco quando crianças... Eles são como irmãos.
— Um é o Kareef? — perguntou Layla, porque ela sabia alguma coisa de seus primos. — Você o vê com freqüência?
— Ele vive ocupado, governando Qais. Nós conversamos ocasionalmente.
— E o do meio?
— Rafiq — apressou-se Xavian. Ainda havia coisas que não eram para serem debatidas. — Ele é um homem de negócios, está sempre trabalhando, viajando.
Ela o notou engolir com um leve desconforto. — Não me encontro com Tahir — disse ele, antes que ela perguntasse, para que pudessem mudar de assunto. — Ele partiu por algum tempo...
— Então eles não são como seus irmãos — disse Layla. — Ou melhor, não são como irmãos com quem você se dê bem.
— Como eu disse — falou Xavian asperamente —, não se pode perder o que não se conhece.
— Eu não consigo imaginar não ter minhas irmãs para conversar — sussurrou ela, questionando a sabedoria de querer ser franca demais. — E claro que há coisas que eu não ousaria contar a elas... Baja sabe de algumas...
— Como o quê? — Ela balançou a cabeça, mas sua curiosidade fora provocada. — O que é que Baja sabe que você não pode contar a suas irmãs?
— Nada.
Se ele não ia se abrir mais, tampouco ela o faria! Layla esquecera suas próprias regras. As sementes de papoula da noite anterior tinham soltado sua língua, e ela a mordia para que se calasse.
— Conte-me.
— Não.
— Você pode...
— Não posso.
— Você poderia.
Ainda assim, ela hesitava, seus verdadeiros sentimentos eram muito inconstantes para serem compartilhados, mesmo com o seu marido. Assim, ela lhe ofereceu uma semente, uma que ela esperava que ele fosse tratar com gentileza. Por ora, apenas uma pequena semente, em vez do vasto jardim que era sua mente.
Uma pequena semente sobre um tolo momento adolescente em que ela se perguntara sobre um homem... um príncipe visitante. Ah, não tinha acontecido nada, exceto que ela dera uma risadinha e havia pensado coisas demais sobre ele, mas quando ela lhe contou, ela se preparou para o vigor da mão dele em sua bochecha, como a de Baja. Mas o vigor não veio, só os seus lábios. Depois, uma rara desculpa por tê-la feito esperar tanto tempo.
E pouco a pouco, apesar de suas próprias regras, ela começou a confiar nele.
Layla não ligou seu computador... E Xavian não partiu para o deserto.
O mundo podia esperar, pois novas prioridades haviam sido estabelecidas.
Não importavam as decisões frias por trás do matrimônio, os pais deles, talvez sem se darem conta, haviam entendido corretamente.
Não se tratava mais apenas de negócios.
Baja ficou ao lado dela no começo. Ela temia por sua rainha por causa daquele bruto que lhe fora imposto. Ela tirou as sementes de papoula do elixir noturno, reduziu a quantidade de pinhões, mas os efeitos potentes dos primeiros drinques não tinham passado. Sua senhora estava um pouco atordoada, mesmo algumas manhãs depois, quando lhe davam banho, Xavian era tudo sobre o que Layla conseguia falar.
— Ele é maravilhoso, Baja... — disse Layla enquanto uma criada lavava seus cabelos. — Nós conversamos sobre qualquer coisa.
— O que a senhora disse a ele? — perguntou Baja, apertando os olhos astutos.
— Um monte de coisas — disse Layla, projetando o queixo para frente num gesto de desafio. — Ele é meu marido, não posso confiar a ele o que quer que seja?
— Deixe que eu termino... — Baja tomou a jarra das mãos da criada e ordenou que ela se retirasse, derramando a água sobre os cabelos de Layla um pouquinho menos delicadamente do que a criada, e Layla percebeu o sentido das perguntas de Baja. Ela sentia a tensão de Baja antes mesmo de ela falar.
— Você sabe que minha única preocupação é com você.
— Eu sei disso — disse Layla, sentindo a água espumosa arder nos olhos e os dedos ossudos de Baja esfregando óleo em seu couro cabeludo.
— Você é sempre tão cuidadosa...
— Sou — concordou Layla com os lábios apertados.
— Claro que é... — Pobre Baja. Ela se esforçava tanto para escolher as palavras com cuidado. Embora tivesse criado Layla desde a morte de sua mãe, fosse sua única e verdadeira confidente e pudesse falar com a rainha de um jeito que as demais pessoas jamais falariam, ainda assim tinha de ser cautelosa. — Mas ele é o governante de outro país. O coração dele pertence ao povo de Qusay — disse Baja. — Ele sempre dará prioridade a seu povo.
— Como é o certo — disse Layla, pois o povo dela também sempre viera em primeiro lugar.
— Você lutou muito para ser líder, Layla — disse Baja, passando óleo nos cachos negros de Layla. — Se o rei soubesse o quanto isso cansa você... — Ela se calou um instante e passou o óleo, antes de prosseguir, com hesitação. — Ele, certamente, iria querer ajudá-la.
— Não vou entregar meu reino...
— Claro que não. As minas de safira são abundantes, e você sabe as melhorias que pode realizar — disse Baja, e Layla fechou os olhos.
Ela sabia o que Baja estava insinuando. Haydar tinha um potencial tão mal explorado, e o sonho de Layla era ver seu país prosperar, explorar a mineração com sabedoria, construir hospitais e escolas. Será que os sonhos de Xavian eram os mesmos. Será que o projeto dele era tão sólido para o povo dela?
— Ele é um rei poderoso — ponderou Baja. — Mas um rei nunca pode ter poder demais.
— Eu não vou entregar... — Layla podia culpar o sabão pelas lágrimas em seus olhos. — Mas se ele soubesse o quanto isso me cansa, se soubesse dessa carga, decerto compartilhar com meu marido...
— Os segredos são as armas dos homens... — interrompeu Baja. Ela ultrapassara o limite e receberia punição, pois ela temia por sua rainha e temia por seu país. — Seus segredos são o poder dele. Guarde-os com prudência.
Layla não castigou Baja, pois, embora não tivesse gostado do que tinha ouvido, dava valor à opinião dela. E, ao sentar na banheira e deixar que o óleo ensopasse seus cabelos, ela sabia que a velha senhora falava sem malícia.
Ela queria tanta coisa para seu povo. Haydar era a paixão dela, e não existia quem lutasse pelo país como ela lutou; certamente, não o rei de um outro país.
Baja estava certa. Era imperativo que ela separasse seu coração de sua cabeça.
Um marido amoroso, um amante sensual, um amigo também, talvez. Mas talvez Xavian não precisasse saber de tudo que se passava na mente dela.
Enquanto Baja enchia uma jarra para enxaguar-lhe de novo os cabelos, ela observou os ombros da velha senhora enrijecerem-se quando as cortinas foram abertas, e o rei entrou.
— Permita-me.
Ele tomou a jarra de Baja e ficou quieto até que ela saísse. Layla, perguntando-se a si mesma se ele teria ouvido a conversa delas, ficou tensa na água parada, enquanto Xavian se aproximava e lentamente vertia água sobre os cabelos dela.
— Você não deve me ver nos preparativos.
— Por quê? — perguntou Xavian.
— Eu devo ir até você só quando eu estiver bonita.
— Você está bonita agora — disse Xavian.
E ela estava mesmo: besuntada de óleo, molhada e quente. Como ele estava cansado do protocolo, das criadas e dos criados que invadiam o espaço deles, e de Baja, que permanecia numa guarda silenciosa ao redor dela.
— Estou enjoado dessa equipe — admitiu um taciturno Xavian, despindo-se para juntar-se a ela na banheira. — Enjoado de ver Baja rondando, e cansado desse qanoon tocando toda noite.
Layla deu uma risadinha.
— É enfadonho às vezes.
— Nós poderíamos dispensá-los. Layla arregalou os olhos.
— Todos eles — disse Xavian. — Poderíamos enviá-los de volta ao palácio...
— Quem me daria banho? — perguntou Layla com um sorriso nervoso. Mas as mãos dele responderam.
— Quem prepararia nossa comida?
— Nós.
— Eu não sei...
Sozinha com ele, sem Baja para acalmá-la... Ele era tão intenso, tão perigoso para os princípios dela que ela realmente não sabia o que fazer. Assim, ela continuou a lhe dar banho, como ele fizera com ela.
— Nós lhes diremos que sejam mais discretos — estabeleceu Layla, com as mãos em concha a lhe derramar água sobre os ombros tensos.
— Estou acostumada a ter pessoas a meu redor. Você deveria tentar ter seis irmãs!
Ela o sentiu relaxar sob suas mãos macias. E ele até riu quando ela lhe contou histórias sobre si mesma e suas irmãs, sobre os problemas que elas causavam às criadas quando crianças.
E num raro momento de descuido, ele também lhe contou algumas histórias.
— Eu me lembro de ir à casa de meus primos... Eles estavam sempre discutindo, brigando. Apenas às vezes riam... Então eu voltava ao palácio, e era então que eu sentia falta de meus irmãos — disse Xavian, para então, por causa do lapso, franzir a testa e se corrigir — Era então que eu sentia falta de irmãos.
— Então você pode perder o que nunca teve! — sorriu Layla, feliz por ele estar mais aberto, mesmo que ela tivesse medo de estar.
— E quanto à escola? — perguntou Layla. — Todo mundo queria ser amigo do futuro rei?
— Meu aprendizado escolar ocorreu em casa.
Seus olhos negros cruzaram com os dela; ele estava sendo honesto.
— Sim, eu me sentia muito só.
Ele era mais doce do que apaixonado, e suas palavras é que eram íntimas; os pensamentos é que iriam uni-los ainda mais. E pouco a pouco, apesar das advertências de Baja, ela sentia que era tão certo contar-lhe mais coisas, confiar mais nele. Layla até falou sobre Noor, porque logo ele estaria em Haydar, e lá toda a família já sabia. Mas não houve sinal de surpresa, e a reação dele a surpreendeu.
— Eles são felizes?
— Sim.
Layla piscou com a resposta dele.
— Ahmed ama Noor de muitas maneiras, não apenas na intimidade, como caberia ao marido. Eles tiveram de casar; estavam prometidos um ao outro desde a infância.
— Como nós?
— Como nós — aquiesceu Layla.
— E melhor que Ahmed tenha confiado a ela seu segredo. Hoje eles têm uma vida maravilhosa, e os respectivos povos vivem felizes.
Xavian estava pensativo com relação a seus anos perdidos.
— Talvez, se tivéssemos nos conhecido antes, se tivéssemos nos falado...
— Mas nós nos encontramos — corrigiu Layla. — Eu estava ao seu lado na fila durante a coroação de Aristan.
Eu tinha esperança de que você ao menos me reconhecesse, mas depois que a rainha passou... — Tempos depois daquilo, ela ainda ruborizava com a lembrança humilhante. — Aquilo foi uma falta de consideração de sua parte, pelo que eu me lembro.
— Não foi, não.
— Foi — engasgou-se Layla com a raiva que a tomou de repente. Ela não queria mexer em antigas feridas, mas ele a tinha magoado. — Você olhou através de mim.
— Eu estava pensando em outras coisas naquele dia.
— Em quê, por exemplo? — A raiva dela ainda ardia, pois aquele fora outro ano em que ele a negara. — O que teria sido tão importante naquele dia que impedisse você de olhar e sorrir para sua prometida?
As mãos dela, que massageavam seus músculos tensos, não o estavam acalmando. E as perguntas dela estavam se tomando invasivas demais.
— O que aconteceu aqui?
Ela tentava mudar de assunto, tentava superar antigos ressentimentos, então fez uma pergunta diferente, tocando as grossas cicatrizes escuras em volta dos dois pulsos dele com os dedos.
— Eu fui uma criança doente — respondeu Xavian, de olhos fixos nas conhecidas cicatrizes, recordando sua distração na coroação, recordando os olhos da rainha Stefania se arregalarem quando ela também notara suas cicatrizes. De repente, Xavian sentiu que era imperativo explicar a presença delas a Layla, e que ela acreditasse.
— Eu era muito doente. Eu tinha convulsões... Tinham de me amarrar à cama pois às vezes eu delirava e perambulava...
— Ah.
Ele podia ver a confusão nos olhos dela, e não era a primeira vez que Xavian também se perguntava.
— Amarravam você?
Os dedos macios dela tocavam suas cicatrizes, seguindo-as, examinando-as como ele mesmo fazia às vezes. E a mente de Layla certamente fazia as mesmas perguntas que a dele. Era príncipe, herdeiro do trono. Certamente havia enfermeiras que cuidavam dele. Certamente não teria havido necessidade de amarrá-lo.
— O que havia de errado com você? — Ele afastou os pulsos. — O que fez você ser tão doente?
— Isso importa?
— Talvez — desafiou Layla. Afinal era ela quem deveria educar seu filho, embora nada lhe tivessem dito a esse respeito.
— O que foi que aconteceu com você?
Xavian se arrastou para fora da banheira, enrolou uma roupa na cintura e notou que pela primeira vez desde a chegada deles ao deserto ele precisava de seu espaço, precisava ficar sozinho. As sondagens dela, suas perguntas, estavam lhe dando nos nervos.
— Eu vou para o deserto hoje.
Ela não entendeu a mudança nele. Ele a deixou tremendo de frio na água já morna. Ela estava confusa, sem saber o que tinha dado errado. Ela se enrolou numa toalha e o seguiu até o quarto de dormir, onde ele se vestiu sem ajuda.
— Eu achei que nós fôssemos passar um tempo...
— Você não quer — salientou Xavian. — Sugeri que dispensássemos a equipe e arranjássemos tempo para nos conhecer, mas você está preocupada com quem vai preparar suas refeições.
— Não — disse Layla com calma, certa de que não era isso o que o tinha aborrecido tanto. O humor dele só mudou quando ela perguntou sobre as cicatrizes. — Eu não estou preocupada com as refeições...
— Você está preocupada com quem lhe daria banho.
— Você disse que me daria banho...
Ele estava vestido com uma túnica branca que refletiria o calor excessivo e destacaria sua pele escura e rosto não barbeado. Ela ficou no quarto, enrolada num robe, recusando-se a ficar quieta.
— Quanto tempo você vai ficar...?
Ele riu, um sorriso sem alegria que era desconhecido para ela.
— Por quê? Você está com medo de deixar o jantar queimar?
A enorme tenda parecia pequena demais, os olhos dela, intensos demais e sua presença invasiva demais. Ele precisava sair dali.
— Vou voltar quando quiser.
O deserto o ajudou. No silêncio, ele conseguia respirar, pensar, mesmo que não quisesse.
Ele aceitara a explicação quando, ainda criança, perguntara à mãe sobre as cicatrizes.
— Você foi uma criança tão doente, Xavian. — Lágrimas enchiam os olhos dela quando ela tentava responder às muitas perguntas dele. — Você era tão frágil, tão doente...E depois, quando você tinha sete anos, foi como um milagre. Lentamente, você foi ficando bom...
E ela lhe contava sobre seus estados doentios, sobre as convulsões. Mas sempre restavam mais perguntas. Quando era adolescente, inteligente, curioso, ele conversara com o médico do palácio quando ele estava para ser treinado para uma corrida de jipe no deserto.
— Posso dirigir?
— Claro.
— Eu tenho convulsões...
— Faz muitos anos que você não as tem — disse o médico. —Você se livrou delas.
Ele caminhou durante horas até sentar-se, observou fixamente a paisagem dourada que ele governava, e depois olhou para baixo, levantou as mangas de sua túnica e olhou as cicatrizes escuras e altas, girou o pulso e perguntou de novo: quem amarraria em príncipe herdeiro com uma corda?
Ele podia sentir a corda. Ele estava lá, sentado, e o deserto era mais paciente do que seus pais, pois deixava que ele perguntasse, em vez de silenciá-lo.
Ali ele podia pensar, podia mergulhar fundo em si mesmo, o que fazia com freqüência.
Na época da morte de seus pais, ele vagou durante dias, pedindo sabedoria para guiar seu povo.
Ele estivera ali no ano passado, quando sua mente estivera sombria, mas antes da tragédia da morte de seus pais.
Ao voltar de Aristo, da coroação da rainha Stefania, ele tinha ido para lá em busca de paz. Ele não ignorara Layla deliberadamente naquele dia. Na verdade, ele esperava trocar umas poucas palavras com ela, para descobrir alguma pouca coisa sobre a mulher com quem ele se casaria inevitavelmente. Mas a coroação lhe despertara sentimentos estranhos, que não eram memórias, pois ele não conseguia imaginar nada.
Xavian sabia que seria mais seguro ignorar os sentimentos; e foi o que tentou fazer.
Ele viajara até a Europa, se divertira, representara o papel de príncipe playboy com entusiasmo, mas nada aplacara sua crescente inquietação.
E naquele instante, sozinho no deserto, Xavian se viu em busca de silêncio, de sossego para sua mente agitada. Mas o barulho do vento através dos cânions parecia convidá-lo a ouvir, e a areia dourada parecia se mover, balançando seu corpo como se ele estivesse no mar... Ele ouviu um riso de criança. Certamente era o vento, mas não havia dúvida: era um grito brincalhão. Quieto no deserto, ele sentiu uma liberdade rara; pôde percebê-la de relance, tocá-la; mas daquela vez não pôde culpar os sonhos, pois seus olhos estavam bem abertos.
Layla o havia acalmado, mas ela também o perturbara.
Ela trouxera algo de familiar à alma dele, algo que ele não conseguia identificar, algo que o fazia questionar tudo.
Ele não permitiria mais perguntas.
Então se recostou e mirou o céu azul... Seus olhos se fecharam por causa do brilho do sol, e quando sua mão escorregou da barriga tensa e lisa, em vez de tocar a areia, tocou a água, e seus dedos mergulharam na água fria do mar. Isso o impeliu a sentar-se ereto, e quando ele olhou sua mão seca, na esperança de ver nela gotinhas, ele notou o que estava acontecendo de novo; a loucura se aproximava em silêncio...
Era esse o governante de Qusay?
Ele não queria ficar louco, e não queria pensar, tampouco queria ouvir, porque ele tinha medo de que pudesse ter as respostas.
Quando a escuridão baixou, o céu noturno que emergia o guiou de volta ao recolhimento diferente de sua tenda no deserto, e à sua noiva.
A tenda estava difusamente iluminada quando ele entrou. O qanoon medonho começou a tocar no momento em que ele pôs os pés no lugar. As velas tremeluziam e a mesa estava posta. Mas Layla não estava lá, esperando por ele.
— A rainha estava cansada — explicou um criado nervoso. Nervoso porque uma boa esposa teria esperado por ele. — Ela já se recolheu.
Xavian não estava com fome, tampouco cansado.
Agitado e com energia, ele entrou no quarto e viu que ela fingia estar dormindo.
— Eu sei que você está acordada.
Seus olhos permaneceram fechados, mas ela encolheu os ombros.
— Então você deveria saber que eu estou fingindo dormir porque não quero falar com você.
Perto da meia-noite, a franqueza dela arrancou um meio sorriso de Xavian, e só então ela abriu os olhos para ele.
— Já é tarde — destacou Layla. — Você é sábio o suficiente para saber que o deserto é perigoso à noite...
— Estou acostumado ao deserto.
— Não à noite, sem suprimentos, sozinho lá fora... Ele era sozinho.
Com isso ele era sozinho
Xavian apagou a lamparina e subiu na cama para ficar ao lado dela. Mas, mesmo quando a música parou, sua mente não conseguiu descansar. Ele falara com o médico do palácio recentemente, e foi preciso coragem para fazê-lo. Ele contara ao médico sobre seus medos, e este o aconselhara a não falar sobre aquilo com ninguém. Dissera-lhe que a sensação de déjà vu era às vezes uma forma suave de convulsão. O médico lhe dera umas pílulas pequenas, que Xavian aceitou, mas secretamente se recusou a tomar.
Ele não confiava no médico.
Ah, mas a paranóia não era um outro sinal de insanidade?
Ele se virou na cama e tentou fechar os olhos.
E ele não podia confiar em Akmal. Como é que ele podia dizer àquele homenzinho presunçoso que às vezes ele, o rei, tinha dúvidas sobre seu próprio estado mental?
— Xavian?
Mais valente no escuro, aliviada por ele estar em casa, esperando que a discussão acabasse, Layla não esperou ser chamada. Ela estendeu as mãos, seu corpo se enrolou no dele, mas ele deteve a mão dela com o pulso, empurrou-a e então se deitou, tenso e zangado, no escuro enquanto sentia a confusão dela ao lado.
Ele fechou os olhos, quis dormir, mas quando estava caindo no sono ele sentia como se estivesse de novo na água, deitado no meio do deserto... Ele sentiu o oceano subir e descer embaixo dele, sentiu o sol torrando seu corpo. Não havia lugar aonde Xavian pudesse ir; nem um quarto de amante para mandá-la até lá.
No deserto, não importava o quanto ele lutasse, ele estava ficando cada vez mais insano, e não havia nada que ele pudesse fazer. O medo, um medo que ele nunca havia sentido antes ou sequer admitido, significava que era ele que a buscaria, pois ela era macia e quente, respirava, era real e estava viva.
— O que há de errado, Xavian... ?
Ele ouviu a pergunta na voz dela, mas não pôde responder, pois não sabia a resposta. Assim, destruiu as perguntas dela com os lábios.
Layla ficara assustada durante a ausência tão demorada dele, assustada quando ele retomara de mau humor, nervosa e insegura quando ele se deitara na cama ao lado dela, e envergonhada quando ele a rejeitara. Mas quando ele a cobriu, quando seus lábios a apertaram com tanta força que ela nem conseguiu respirar, não havia medo, não havia temor. Ela sentiu de novo uma faceta diferente do que ela descobrira há tão pouco tempo.
O corpo dela, e a deliciosa chama dos dois juntos. Ela estava confusa, mas não assustada. De algum modo, sabia que aquele homem, seu marido, precisava de algo que ela poderia lhe dar.
Ele estava tirando sua camisola, o rosto dela coberto com musselina, e ela levantou os braços quando ele a descobriu.
Ele tinha gosto de sal e deserto, tão incrivelmente másculo. Não barbeado, sua boca rude buscava a dela, seus joelhos afastando as coxas dela. Mas ela resistiu. Não ao corpo dele, mas a sua velocidade, porque ela também precisava deixar sua mente fugir. Ela rolou até ficar por cima dele, com as coxas abertas sobre ele, mas Xavian não se impressionou.
Ele queria fugir. Ele a tinha procurado, e agora aquilo...
Ele não precisava de uma noite de amor prolongado naquele dia ...
Talvez depois, mas por ora não...
Só que ela beijava sua boca mal-humorada, descendo até seu queixo, lambendo seus mamilos escuros e mordendo sua carne, provando sua pele suada, e ele a sentia o tempo todo, firme e meiga em tomo do seu centro... Ele podia sentir os seios macios roçando sua pele e quis tocá-los, empurrá-la para trás de modo a...
E para Layla foi uma revelação conseguir ser tão corajosa: negá-lo, quase, e ainda assim prolongar aqueles momentos. Porque ele a estava tocando, tocando seus seios com uma das mãos e a acariciando lá com a outra.
Ela perdeu o ritmo, mas ele segurou seus quadris, puxou-a para o lado dele e então se deitou em cima dela. Repetiu o movimento até que fosse ela a ficar com vontade. Ela estava gritando o nome dele quando ele se uniu a ela, quando as ondas os atingiam. Então ele foi fundo dentro dela até que ela ficasse sem forças, depois a puxou para seus braços.
Ele ficou deitado no escuro, com o vento uivando ao redor; um sonoro vento do deserto que arrancou a sensatez da cama deles atendendo ao chamado dela, e não havia necessidade de se investigar.
Ele quase foi capaz de perguntar a ela.
Ele podia sentir o cheiro dos doces óleos do corpo dela, podia sentir seus seios macios pesando sobre sua mão, ouvir a respiração profunda e regular... E talvez ele conseguisse o que queria, sua resposta.
Com ela ao seu lado toda noite, talvez o sono fosse chegar mais facilmente, pois de algum modo ela o deixava descansar, o deixava sonhar. Então ele ouviu sua própria voz.
— Por que eles me amarrariam com uma corda?
Houve um longo silêncio, e ele sabia que ela não podia responder. Mas ela levantou a mão e ele sentiu seus lábios frios pressionando a ferida infeccionada. Depois ele ouviu sua própria voz de novo.
— Estou começando a me lembrar.
Ele percebeu a pausa que ela fez, e então ouviu a pergunta.
— Lembrar o quê?
— Não sei.
Tudo que ela sabia é que aquilo era vital, que aquilo exigia toda sua atenção que, como rainha, ela estava acostumada a dar. Assim, ela se sentou na cama e acendeu a lamparina. Quando a luz inundou o quarto, ela viu que ele fechou a cara e percebeu o quão tola ela acabara de ser, pois ela agira como por obrigação, e não por ser sua mulher, e muito menos não como uma amante. Ela teria se deitado no escuro e segurado a mão dele, mas já era tarde demais.
— Do que você está começando a lembrar?
— Esqueça.
Ele virou para seu lado, e daquela vez aquilo não era um gesto de confiança ou um elogio.
— Xavian?
— Durma.
E foi então que Layla percebeu que o havia perdido.
Observando o palácio do helicóptero, Layla perdeu o fôlego. Ao sol do final da manhã, ele parecia uma jóia. As conchas e as pedras semipreciosas incrustadas nos muros do palácio absorviam a luz, e ele reluzia na superfície do deserto como um oásis.
Ela o vira ao chegar, orgulhoso e alto, localizado num promontório, mas estava nervosa demais com o casamento para absorver tudo aquilo. Agora que eles se aproximavam vindo do deserto, em vez de vir pelo oceano, ele parecia diferente. Tudo era diferente. Mulher casada, ela não precisava mais se cobrir com véus, mas era mais do que isso. O homem ao seu lado não havia apenas despertado sua sexualidade, como também lhe dera algo mais, algo inesperado, motivo pelo qual ela o amava.
Por mais fechado e cauteloso que ele fosse, ela o amava.
— Que bonito... — disse Layla ao homem sentado ao seu lado, olhando tudo o que estava à frente. Mas Xavian simplesmente deu de ombros.
Ela não estava completamente certa de que Xavian sequer quisesse seu amor. Ela nunca tivera um relacionamento e não tinha referência, nenhum parâmetro que a guiasse. A noite de amor fora maravilhosa... Ela só acordara de manhã com Xavian encaixado atrás dela; estivera mergulhada profundamente na floresta do orgasmo antes de ter abertos os olhos. Mas mesmo na hora em que eles tomaram banho juntos e se vestiram, ela sentira o distanciamento dele. O homem que estava sentado ao seu lado estava muito distante do homem que ela vira de relance. Ele era mais do que um livro fechado, ele valia por uma biblioteca inteira, e mesmo que ela vivesse para sempre, ainda assim sobrariam volumes não lidos.
Repetidas vezes ela lamentou a decisão que tomara de inundar o quarto com luz aquela noite, pois ele havia mergulhado na escuridão.
Ah, como eles falavam, mas não diziam nada. Pelo menos, nada que fosse importante, ela se corrigiu. Eles falavam, sim, sobre coisas importantes, como palácios e reinos. Acontece que, de repente, essas coisas não tinham mais importância para ela.
Ela piscou para Baja, que obviamente não via nada de errado na atitude indiferente de Xavian. Baja tinha dito que ela não esperasse ou quisesse nada além, mas ainda assim Layla esperava e queria.
Embora à noite Xavian a levasse para além de seus sonhos mais selvagens, Layla ainda queria mais. Não apenas pelo corpo dele, mas pela companhia de seu espírito. Não houve palavras grosseiras desde aquela noite, mas todos os dias desde então Xavian tinha se levantado antes de o sol nascer e saído em direção ao deserto, voltando para casa muito depois de a noite cair. A proximidade e a cumplicidade que haviam começado a surgir, sumiram de repente. Toda manhã quando ela acordava, emocionada, eleja não estava ali.
— As pessoas já chegaram!
Mesmo do alto, Layla podia ver que o palácio era um formigueiro de atividade. Ela podia ver os jatos e helicópteros particulares que lhe diziam quais dignitários já haviam chegado para a recepção do dia seguinte. Mas a noiva e o noivo não teriam de se encontrar com eles até a cerimônia oficial, e Layla estava bem aliviada. Uma semana longe e ela não tinha sequer ligado seu computador, ou falado com suas criadas, e certamente haveria muita coisa para fazer!
— Queria que minhas irmãs chegassem hoje...
Os olhos dela observaram os jatinhos, tentando decifrar os brasões conforme eles se aproximavam, mas Xavian não demonstrou qualquer interesse em se juntar a ela nesse jogo.
Ao aterrissarem, a fim de guardar sua entrada triunfal para o dia seguinte, eles foram levados para a principal ala real do palácio, que era vedada aos convidados, e Xavian mostrou-lhe o lugar, como era sua obrigação: dos jardins exuberantes às portas e passagens secretas, o quarto de dormir no qual eles ficariam juntos quando Layla estivesse em Qusay. Era impressionante. A cama era tão gigantesca e tão ricamente adornada que deveria ser a atração do quarto, mas era uma banheira junto às janelas francesas que lhe chamava a atenção.
— Você pode tomar banho e olhar o oceano lá fora, se quiser — disse Xavian, abrindo as janelas francesas para mostrar a praia em todo o seu esplendor. Então ele viu o rosto perplexo dela. — Ninguém pode ver você.
— E se alguém estiver caminhando na praia? — perguntou Layla, enquanto caminhava com ele até a sacada.
— Essa enseada é para nosso uso exclusivo — explicou Xavian. — Essas escadas são o único acesso. Existe outra faixa de praia exclusiva do palácio, mas essa é só nossa.
Era realmente lindo. O projeto impressionante assegurava total privacidade; toda a ala deles fora construída num ângulo tal de modo que ninguém pudesse observá-los. Até a rota dos tráfegos aéreo e marítimo, explicou Xavian, fora programada para evitar aquela ala do palácio.
— Agora... — continuou Xavian, no instante em que Layla falou também.
— Acho que eu preciso...
Ela deu um sorriso tenso quando eles falaram juntos. Ela odiava as situações embaraçosas entre eles, e acenou com a cabeça para que Xavian falasse primeiro.
— Preciso trabalhar. Espero que não me tome muito tempo, mas depois de uma semana fora...
— Eu ia dizer a mesma coisa — admitiu Layla. — Terei muito que fazer agora. — Ela virou os olhos. — Muita coisa deve ter acontecido enquanto eu estive fora.
— Muita coisa? — perguntou Xavian, franzindo o cenho.
— Não importa.
Estavam de volta aos negócios e ela sabia que não seria apenas ao trabalho, mas no casamento deles também.
— Preparei um escritório para você.
— Já deveria estar arrumado — disse Layla. — Pedi que minha equipe garantisse que haveria um pronto para mim quando eu voltasse.
Havia.
O escritório grande de Xavian tinha uma sala menor anexa, onde seus assistentes pessoais poderiam trabalhar e se reunir, mas a equipe fora temporariamente realocada, e a sala fora preparada para Layla, seguindo estritamente as orientações dela. Seu computador já estava instalado, e uma papelada esperava para felicitá-la. Mas havia flores de laranjeira nos vasos e água gasosa gelada sobre a mesa. Depois que entrou na sala, Layla abriu imediatamente as portas que davam para o jardim, mas havia uma brisa forte, e o mar estava ficando bravo, então ela rapidamente optou por fechá-las.
— É bem pequena — salientou ela, pois mesmo que o amasse, ela ainda era rainha, e por isso não aceitava ter de ser adaptar a certas condições.
— Vou providenciar algo mais adequado para a próxima vez que você estiver na residência — devolveu Xavian. — Acho que minha equipe trabalhou bastante bem, tendo sido avisada com tão pouca antecedência.
— Você foi avisado com anos de antecedência... — retrucou Layla secamente. — Você e todos os seus assessores sabiam que você se casaria com uma rainha que trabalha...
Xavian teve que segurar sua língua para não responder à altura. Ele não estava acostumado a ser repreendido.
— Suponho que exista um escritório grande e totalmente equipado esperando por mim lá em Haydar, para quando eu estiver na residência... — respondeu ele, com mais do que uma dose de sarcasmo.
— É claro que existe — disse Layla sorrindo de leve, achando graça quando ele franziu os lábios diante de sua resposta. — Você usa um sistema de computador diferente do meu, mas ele foi instalado para você, e há papel e envelopes com o brasão real de Qusay, e um lacre com seu nome...
— Posso imaginar — disse Xavian. — Está bem, é mesmo pequeno, mas por ora você pode trabalhar no meu, ao meu lado.
— Não, obrigada, mas gostaria de deixar a porta aberta, se não for incômodo para você.
— Nós podemos acenar um para o outro—disse Xavian em tom de piadinha, mas Layla tinha outros planos.
— Não vou ter tempo para acenos, Xavian. Quero terminar meu trabalho o quanto antes. Amanhã temos a recepção oficial; há muito a ser feito.
O que o fez lembrar. De novo! Não que ele tivesse tempo de pensar longamente no assunto . Depois da semana que ele tinha passado fora, havia muitos documentos para assinar. Mas ele estava ansioso para encarar o trabalho, esquecer a chegada dos convidados e a recepção do dia seguinte, para se concentrar no que ele fazia de melhor: governar seu reino.
Akmal, tendo passado os olhos nos documentos, comunicou a Xavian as informações importantes e esperou sua resposta enquanto os outros funcionários entravam e saíam da sala. Era um formigueiro de atividade... Algumas horas depois, enquanto tomava café, que Layla recusara, preferindo beber água a fazer uma pausa com ele, Xavian notou que ela trabalhava completamente sozinha.
Ele não conseguia entender.
Ela trouxera um séquito para Qusay: anciãos, conselheiros, suas criadas, Baja... Mas ainda assim ela não queria a assistência de ninguém. Ele ficou observando, apreciando o som da digitação dela no computador, ou o barulho da caneta quando ela assinava alguma coisa ou riscava uma página, e ele gostava de ver a profunda concentração no rosto dela quando ela estudava minuciosamente um documento.
Ele não conseguia tirar os olhos dela.
Eles tinham estilos de trabalho completamente diferentes. Layla mal se mexia, trabalhava em silêncio; já Xavian trabalhava com explosões rápidas e curtas, andando para lá e para cá em seu escritório, sua mente inquieta resolvendo as coisas. Ele parou e observou um helicóptero pairar um tempinho antes de pousar. Os lábios dele estavam secos.
O trabalho tinha deixado de ser uma distração.
Em breve... Ele podia sentir. Em breve eles estariam ali.
Ele olhou para onde ela estava sentada, mas Layla não levantou o olhar, então Xavian passou por ela.
— Posso dar uma sugestão?
Layla estava tão absorta em seu trabalho que não o ouviu se aproximar, e ele já estava sentado na ponta de sua mesa, olhando-a de cima para baixo...
— Por favor... — respondeu Layla, educada, mas friamente.
— Akmal, ou algum outro assessor meu, sempre leu os documentos para mim, destacando os trechos relevantes. É claro que eu preferiria ter tempo para ler tudo pessoalmente, mas...
Ele olhou o documento que ela segurava.
— Posso?
Seus olhos sagazes o escancaram em questão de minutos.
— Aqui Akmal teria destacado o fato de que eu já aprovei o início da perfuração da nova mina de safira...
— disse ele, passando os olhos na página mais uma vez.
— E aqui está o prazo que você aprovou para que a mina financie o hospital e pague os médicos...
Ele estava gostando da situação, de ajudá-la a ver quanto tempo ela estava desperdiçando, de mostrar-lhe como nem sempre era necessário fazer as coisas do jeito mais difícil. Fosse como fosse, ele queria mesmo era subir com ela e ir para a cama.
Na verdade, reinar era a segunda coisa que ele mais gostava de fazer!
— Não há nada de novo neste documento; você só precisa assinar.
— Não — disse Layla de modo bem deliberado e muito lentamente. — Eu aprovei a perfuração para uma nova mina de opala; o lucro dessa mina serviria para financiar um hospital-escola, para que Haydar comece o processo de formação de médicos em vez de importá-los.
— Entendo.
— Não, Xavian, você não entende. Seus anciãos e conselheiros ouvem você. Escutei você hoje de manhã dando ordens e esperando que elas fossem cumpridas.
— Claro.
— Meu país resiste a mudanças. Sou da opinião de que contamos demais com as minas de safira para nos sustentar a longo prazo. Sim, somos ricos, mas estamos longe da auto-suficiência. Eu compro minhas roupas em Aristo. Enviamos nossas crianças mais promissoras para estudar no exterior. Sim, temos os melhores médicos, porque contamos com as minas para financiá-los... O que vai acontecer se as minas não produzirem?
— Mas as reservas minerais são enormes.
— E se uma grande mina de safira for descoberta aqui em Qusay? — perguntou Layla. — Nós exportamos outros produtos, claro, mas eu gostaria de ver Haydar crescer e prosperar de verdade, para ser realmente auto-suficiente.
Ela passou a mão cansada sobre a testa.
— Eles fazem pequenas mudanças o tempo todo, detalhes que esperam que eu não perceba...
— Demita-os.
— Não posso. Quando não conseguiu produzir um filho, meu pai aprovou longas e complicadas leis para apaziguar o povo. Os anciãos têm uma influência considerável.
— Mas você é a rainha — disse Xavian. — No final das contas, é você quem manda.
— Claro — respondeu Layla. — E por isso que checo tudo, é por isso... — disse ela com um sorriso tão leve que nem moveu os lábios — que vou continuar trabalhando muitas horas, lendo a papelada que eles esperam que eu não consiga ler de tão cansada que estou.
Ela baixou a cabeça e tentou continuar a leitura. Ele sabia que devia deixá-la trabalhar, em qualquer outro dia era o que ele teria feito, só que os helicópteros continuavam a pousar lá fora, e logo eles estariam lá. Ele preferia ficar com ela no escritório a estar sozinho com seus pensamentos, concluiu Xavian, brincando com uma mecha do cabelo dela.
— Deixe isso para depois, Layla.
— Não posso — disse ela, mordendo os lábios, enquanto a mão dele percorria-lhe os cabelos, lhe acariciava a nuca. — Com o tempo, quando você entenderá os costumes de Haydar...
Ele se levantou, e ela nem olhou para cima. As palavras que Layla precisava ler ficaram embaçadas na folha quando ele levantou os cabelos dela. Ela sentiu os lábios dele em sua nuca. Como ela queria virar-se para ele, pedir sua ajuda, confiar a ele seus encargos. Mas ela já havia confiado em alguém antes: o marido de Noor, Ahmed, seu próprio cunhado. Também príncipe, ele agüentou alguns dos encargos até que os anciãos conseguiram convencê-lo a fazer o que eles queriam, lembrando-o de seu segredo culpado, e da vergonha que seria se ele viesse à tona. Mas Ahmed era fraco, lembrou Layla a si mesma, e Xavian era forte.
Seus lábios quentes fizeram cócegas na sua nuca. Como ela queria largar aquela papelada, para ficar com ele, para ser sua mulher.
— Deixe isso para depois, Layla. Isso pode esperar. Então ela vislumbrou a impossibilidade de tudo aquilo. A primeira obrigação de Xavian era com Qusay, e naquele exato instante seu primeiro dever era satisfazer seu ardor. O que importava a ele que ela abrisse mão de um hospital pelo qual ela lutara por tanto tempo se ela fizesse o que ele queria?
— Certamente você pode esperar.
— Esta noite, temos de dormir separados... Xavian lembrou-a da irritante tradição, segundo a qual, mesmo casada, ela teria de estar, na noite anterior à recepção oficial, preparada como se fosse uma noiva. As mãos dele estavam agora sobre os seios dela enquanto ele ainda beijava sua nuca, acariciando-os, apertando-os com as mãos em concha sobre o tecido. Ela podia sentir sua calcinha ficar úmida e queria recostar-se contra o corpo dele, só que ela não podia, não devia ceder e ficar em seus braços; o dever em primeiro lugar.
— Estou tentando trabalhar, Xavian! Sou voz soou frágil, e ela movimentou o corpo bruscamente, para longe dele. Era aquilo ou sucumbir.
— Então trabalhe — disse Xavian asperamente. E quando ele a deixou sozinha com seus preciosos documentos, não saiu muito satisfeito. Ele não estava acostumado a mulheres fortes, nem a mulheres que rejeitavam suas investidas.
Ele foi até a janela e, em silêncio, ferveu por dentro, olhando, mas sem focar a chegada dos convidados. O vidro espesso abafava o barulho dos rotores dos helicópteros, o barulho dos reis e seus assessores se esparramando pelo gramado decorado... Mas então sua mente parou de pensar em trabalho, e numa esposa que às vezes não agia como tal. Seu sangue congelou quando a rainha Stefania desceu do helicóptero... Como ela mudara. Não mais existiam os vestidos desalinhados que ela usava nos primeiros dias de seu casamento com o rei Zakari; agora, mesmo tendo acabado de dar à luz, ela estava insinuante e bem arrumada. Mas foi só uma olhadela que ele dirigiu a Stefania... Os olhos dele estavam fixos na porta do helicóptero, ele podia sentir o suor pingando de sua testa e fechou as mãos em punho enquanto esperava. Então, de repente, lá estava ele.
O rei Zakari Al'Farisi, vestido numa túnica azul claro, atravessou o gramado e alcançou sua mulher. Ela deve ter dito algo que o agradou, pois ele sorriu e depois olhou o palácio, direto para a janela onde Xavian estava. Embora ele soubesse que era impossível, que ninguém conseguiria vê-lo, Xavian deu um passo atrás. Ele sabia que logo eles estariam dentro do palácio, e sua respiração saía rapidamente pelas narinas, pois sua boca estava fechada. O pavor que o perseguia, cercando-o há tanto tempo, o havia capturado, aprisionando-o... Então ele se virou e viu Layla, despreocupada, calma, e ele a desejou de um modo diferente.
— Layla!
Ela olhou para cima e ele a viu franzir a testa. Ele queria que ela viesse até a janela para mostrar-lhe, contar-lhe... Foi quando bateram na porta e Akmal entrou. Xavian sentiu como se às vezes vivesse num aquário de peixinhos dourados, daqueles bem grandes e luxuosos, talvez, mas de qualquer forma um aquário.
— Espere até que eu diga para você entrar! — disse Xavian asperamente, e Layla sentiu suas bochechas ficarem vermelhas só de pensar o quanto teria sido embaraçoso se Akmal tivesse entrado apenas alguns minutos antes. Ou pior, se ela tivesse cedido a seus desejos íntimos e aos apelos de Xavian.
— Perdão, sire, mas gostaria de informar ao senhor que o rei Zakari de Calista e a rainha Stefania de Aristo chegaram.
— Estamos esperando muitos convidados — respondeu Xavian sem alterar a voz, mas havia algo nela que fez Layla olhar para ele. Ela pôde ver um músculo se mover em uma de suas faces enquanto ele falava. — Não preciso ser informado de que as pessoas estão chegando. É costume cumprimentá-las no dia seguinte, na recepção oficial.
— Eles perguntaram se poderiam jantar com o senhor hoje à noite — disse Akmal com insolência. — É claro que isso foge às regras, mas eles são os governantes do reino de Adamas.
— Não — disse Xavian, sem explicação ou adjetivos. Simplesmente, um sonoro não.
— Talvez eu deva sugerir que vocês se encontrem esta tarde paia tomar uns refrescos. Eles têm de pegar o avião de volta para Calista logo depois da recepção e pediram que eu explicasse que o filho deles, príncipe Zafir, é jovem demais para ficar sozinho em casa.
— Não.
Mais uma vez, a resposta de Xavian foi direta, e ele dispensou um Akmal de aparência perturbada, que de algum modo teria de suavizar a dura recusa de seu rei.
— Talvez fosse agradável jantar com eles... — sugeriu Layla quando eles ficaram a sós. Foi melhor do que discutir na frente de Akmal. — Ou apenas passar um tempinho com eles. Talvez eles tenham algum conselho a nos dar, afinal, eles também governam dois países...
— Eu já dei a minha resposta.
— O convite é extensivo aos dois. — Layla não se calaria. — Eu adoraria aceitar.
— Você vai respeitar a minha vontade — retrucou Xavian asperamente. — Em meu palácio, em minha casa, vai obedecer minhas regras.
— Eu obedeço as minhas próprias regras, Xavian — disse Layla, desafiando-o. — Não tente me forçar a fazer as coisas do seu jeito. Certamente, teremos tempo de sobra para tomar refresco com eles.
— Achei que você tinha dito que tinha de trabalhar — retrucou Xavian. — Você deixou bem claro que estava muito ocupada para perder seu tempo comigo, para me satisfazer, e no entanto, fica feliz por poder ficar de papo com estranhos.
— Satisfazer você — encrespou Layla, usando o palavreado dele.
— É para isto que estou aqui?
— Nós deveríamos estar produzindo um herdeiro... — disse Xavian com grosseria. — Tenho certeza de que seu povo preferiria que você se concentrasse em ficar grávida e não se preocupasse com hospitais ou como Haydar vai gastar os seus bilhões.
Ela ficou aturdida demais para dar uma resposta. Então, ele continuou, barbaramente.
— Sugiro que você escolha suas prioridades, Layla, pois, francamente, elas estão confusas.
E com isso ele se retirou. Layla piscou os olhos quando ele bateu com força a porta pesada atrás de si. Ela não tinha noção do que acabara de acontecer. Aquele humor sombrio vinha sem aviso, simplesmente surgia do nada. Mas ela se recusou a correr atrás dele, mesmo que isso significasse não vê-lo até a hora da recepção.
Ela se sentou e apanhou seus documentos, disposta a se concentrar, embora suas mãos tremessem, embora seu coração batesse com força. Mas ela não conseguiu. Colocando os documentos sobre a mesa, descansou a cabeça nas mãos. Ah, as palavras dele tinham machucado, e ela estava muito longe de confiar a ele seus encargos. Mas havia algo além daquilo revirando-lhe o estômago, algo que deixava seu coração apavorado.
Havia algo de muito errado. Ela sabia.
Fechou os olhos, projetou sua mente de volta à última vez em que Xavian agira daquela maneira, o dia em que ele resolvera de repente penetrar bem fundo no deserto...
Eles estavam na banheira, conversando, tomando banho, rindo, se amando, compartilhando...
Então ela olhou para cima, olhou para cima sem ver nada, piscando os olhos seguidas vezes. Ela conversara sobre a coroação, sobre a noite em que ela ficara ao lado dele e ele nem tinha notado a presença dela ali. Ficou falando da princesa Stefania e do rei Zakari naquela ocasião também.
Mas aquilo não fazia sentido. Como é que governantes de um outro país, pessoas que ele mal conhecia, poderiam afetá-lo tanto?
Ele havia destruído aquele dia.
Xavian não acordou porque não dormira. Ficara tentado, de tantas maneiras, a quebrar a tradição e unir-se a Layla; chegou até mesmo a tomar o caminho do corredor. Mas Baja estava sentada do lado de fora do quarto, guardando a rainha, garantindo seu descanso, e seus olhos vermelhos o observaram por um longo e silencioso momento antes que Xavian se retirasse.
Durante meses ele teve pavor daquilo; não do casamento, mas da recepção.
Na verdade, desde a coroação de Aristan. Na fila de cumprimentos no palácio de Aristan, aguardando a rainha coroada há pouco, ele tinha pouca noção do que o esperava.
Houve momentos anteriores àquele, claro. Ao longo dos anos, ele às vezes entrava por engano num corredor e ficava meio confuso quando a porta que ele pensava encontrar não estava lá. E, além disso, sempre havia os sonhos.
Sonhos que, mesmo quando criança, o perturbavam, embora não fossem pesadelos. Xavian nunca tinha andado a cavalo. Em seus sonhos, no entanto, ele cavalgava, podia sentir o movimento poderoso do animal, ouvir seus irmãos rindo.
Ele sonhava com aquilo que mais queria, explicou sua mãe, com os irmãos que ela não podia lhe dar e com os cavalos que ela o proibia de ter.
E aquilo fazia sentido.
Até a coroação.
Olhando para a fila lá embaixo, ele sentira seus olhos se dirigirem ao rei Zakari, a um rosto que ele conhecia bem, e ele percebera o pavor crescendo dentro de si. Em seguida, notara que não estava sozinho com aquele sentimento, pois quando a rainha o cumprimentara, Xavian vira o choque no rosto de Layla, o questionamento em seus olhos quando ela olhara os dele. Tal fora o choque que ela ficara pálida e quase desmaiara. Zakari aparecera então, a levara embora sem sequer olhar na direção de Xavian.
Isso deveria ter sido esquecido.
Mas então as cartas começaram a chegar.
E os telefones a tocar.
Às vezes, um convite.
Ele ignorou tudo, embora o dever não lhe deixasse escolha a não ser enfrentá-los.
Normalmente, Xavian ficava muito feliz quando estava sozinho e pensativo. Mas naquele dia ele não queria pensar. Só para matar o tempo, ele até inspecionara o salão de baile onde ocorreria a cerimônia. Ele não podia ficar sozinho. Aquele dia seria impossível sem Layla ao lado dele.
Normalmente ele não dava importância para organização, mas ele sentiu uma necessidade incomum de ordenar as coisas, para tê-la a seu lado naquele dia, por razões outras que não o dever.
Até conhecer Layla, ele não sabia nada sobre o que era precisar, todos os seus desejos, fossem eles sede, mulheres ou poder, eram imediatamente satisfeitos. Mas com Layla não havia fim. A necessidade continuava. Uma necessidade diferente; uma necessidade infinita, que ele não conseguia explicar.
Barbeado e de banho tomado, e com muito tempo livre até a hora de ver Layla de novo, a paciência de Xavian se esgotou quando Akmal chegou para checar com ele os mínimos detalhes.
— Aqui está o colar de esmeraldas de Qusay. — Ele abriu a caixa para que Xavian o visse. — A rainha vai usar isto esta noite.
Xavian olhou as jóias cintilantes que a esposa do rei de Qusay deveria usar na cerimônia oficial. Era uma clara demonstração de riqueza, as mais finas pedras tinham sido lapidadas e polidas para mostrar o melhor de Qusay. E certamente seria ele quem daria o colar a ela.
— Eu mesmo vou dar o colar a Layla.
— Mas ela tem de usá-lo esta noite — salientou Akmal. — Ela está sendo arrumada...
— Então, eu vou levá-lo até ela agora mesmo.
Os olhos dele desafiaram Akmal à discussão. Ele estava cansado da tradição, disse Xavian a si mesmo, quando convocou seu camareiro e vestiu as túnicas do casamento de rei; era uma tradição tola, concluiu ele, quando sua cafia foi presa com uma pesada trança de ouro. Eles já eram marido e mulher; por que deveriam se manter afastados? Ele era o rei, ele dava as regras, e certamente, pensou ele quando caminhava pelos corredores até a porta de seu quarto, que seria uma tradição melhor que ele, o governante, a presenteasse com aquele mimo.
Tudo isso ele disse a si mesmo quando abriu a porta, não inteiramente preparado para admitir que a única pessoa que ele queria ver naquele instante, a única pessoa com quem ele precisava passar aquele dia, era ela.
Ela ficou sentada nas águas leitosas, sua pele macia banhada em óleos e fragrâncias, seus cabelos negros enrolados sobre a cabeça, enquanto olhava para o oceano, através das portas abertas da varanda. Suas damas de companhia estavam preparando seu vestido, tudo estava em seu lugar, mas, mesmo assim, não conseguia relaxar. Ela já estivera em vários eventos oficias em sua vida, eventos demais para que pudesse se lembrar, e conhecia muito bem a solidão de se sentar para comer refeições sofisticadas com uma aia ao lado.
Naquela noite, porém, ela estaria com Xavian, teria o marido ao lado e, ainda assim, se sentia solitária. Ele fazia com que ela se sentisse solitária. Ele não havia nem tentado pedir desculpas. Não era atribuição dele pedir desculpas, Xavian com certeza lembraria a ela, caso insistisse num pedido de desculpas.
Ele lhe prometera que supriria suas necessidades; e o havia feito.
Ele lhe prometera um herdeiro. Sua mão pousou sobre a barriga e ela divagou sobre o milagre que talvez já estivesse ocorrendo. Devia estar contente, mas não estava.
Layla quase desejou que Baja estivesse certa e que o relacionamento deles fosse apenas superficial, como mais uma tarefa a ser cumprida. Mas era muito mais... e ela ainda não estava satisfeita; queria não apenas um herdeiro, mas um filho. Queria um marido de verdade.
Então ele entrou e seus olhos perturbados e confusos se voltaram para ele, enquanto ela permanecia deitada na banheira e ele dispensava os funcionários e fechava porta.
Ele nunca estivera tão lindo.
Com a barba feita pela primeira vez desde o deserto, vestia túnicas cor-de-rosa bordadas em ouro. Estava poderoso, autoritário, simplesmente de tirar o fôlego. Mas Layla era muito orgulhosa e estava muito irritada.
— Você não deveria estar aqui.
— Essa é uma regra idiota.
— Para você, talvez — disse Layla. — Mas eu gosto dela. É bom ter paz. É bom descansar e se preparar para essa ocasião.
— É burrice dormirmos separados.
— Passaremos muitas noites juntos, em breve. Layla deu de ombros, a água formando círculos ao seu redor, e tudo o que Xavian queria fazer era entrar e lhe beijar a boca que se franzia numa expressão de descontentamento.
— Não sentiu saudades de mim na noite passada? — disse Xavian. — Não ficou acordada pensando em mim?
— Claro que fiquei — disse Layla. — Eu estava com tanta raiva que fiquei deitada, acordada, desejando poder lhe dar uma bronca, dar a resposta perfeita para suas palavras rudes. E foi bastante frustrante, admito.
E até mesmo naquele dia, quando o terror tomava conta do coração dele, e medos desconhecidos surgiam, ela conseguia fazê-lo sorrir.
Ela era o seu par perfeito.
Ele se sentou na borda da banheira, sem emitir uma palavra, apenas a observando e, então, estendeu o presente para sua rainha.
Ela possuía inúmeras jóias e já usara tantas peças bonitas que jóias, às vezes, a deixavam entediada. Mas não aquela. Era um colar de esmeraldas e diamantes em cascata que fizeram com que seus olhos se arregalassem.
— É assim que pede desculpas? Jóias não irão me aplacar.
— Desculpe-me pelas coisas que disse. — Ele nunca dissera palavras como aquelas e ela não esperava ouvi-las dele. — Estou muito preocupado.
— Como o quê, por exemplo? — desafiou ela. Xavian fez que não com a cabeça.
— Você não vai me contar?
— Você me contou tudo, Layla? — perguntou Xavian, enquanto a observava corar. — Você me contou todos os seus pensamentos?
— Não.
— Por quê?
O silêncio era interminável e foi Xavian quem o quebrou.
— Um dia nós faremos isso. Espero que em breve estejamos prontos para compartilhar, mas não hoje. Há coisas que precisamos enfrentar, coisas que precisam ser feitas. Peço perdão a você por ontem, peço que aceite que tenho muitas coisas me preocupando e que saiba que espero algo diferente para nós. Você é mais do que uma esposa para mim, Layla.
— Você é mais do que um marido para mim — admitiu Layla. — E aceito suas desculpas e seu presente.
— As desculpas são minhas — disse Xavian. — O presente é da terra rica. Este colar foi usado por minha mãe e por minha avó, e por muitas mulheres antes delas. Ao longo de gerações, a noiva do rei o usou.
Sua voz era tão hipnótica quanto as jóias que tirou da caixa:
— As pedras mais preciosas do coração de Qusay foram lapidadas e transformadas nesta jóia. Este colar lembra nosso povo das riquezas da terra que nos mantém a todos bem nutridos com seus recursos raros.
Ele se inclinou para frente e colocou o colar no colo de Layla, e ela sentiu o peso gélido das pedras em sua pele. Em seguida, ele se posicionou atrás dela para prender o fecho do colar e deixar que a jóia caísse em seu peito.
— Hoje à noite, use o colar Qusay; nosso povo verá a beleza desta união.
Ele se orgulhava dela, estava lhe dizendo isso, e era o mais próximo que Layla chegara de seu amor.
— Encontraremos um meio de sair dessa situação. — Ele beijava seu ombro nu, lenta e profundamente.
Suas mãos quentes ensaboavam seus seios. Ela queria se inclinar de volta para ele, e saber que não podia estimulava seus sentidos. Ele estava vestido com os trajes mais elegantes e ela se contorcia nua sob seu corpo. Estava tonta, sem fôlego.
Layla podia sentir as pequenas batidas do pulso sob a água, estava excitada e querendo mais. De repente, ele ficou em pé e olhou para ela.
— Você não pode ir embora assim — ela protestou.
— Estou guardando você para depois. Será nossa recompensa quando a noite acabar.
Ele lhe contemplou a beleza, sabia que era sua e que tudo estava bem.
— O que é isso que você faz comigo, Layla?
Ele não sabia que também causava a mesma sensação nela. Tomava-a ousada, viva e lasciva.
— Você descobrirá mais tarde.
Seu corpo vibrava com a promessa do depois, mesmo quando ele já havia saído. Calçando os sapatos de salto alto com contas, ela finalmente estava pronta e era empolgante ver seu reflexo e antecipar a apreciação nos olhos de Xavian. O colar era mesmo maravilhoso, os brincos de esmeralda em forma de lágrima eram o toque final. Era hora de serem apresentados ao mundo como um casal
Ela sentia como se o coração fosse explodir de alegria, porque sempre sonhara com aquilo. Akmal anunciou a chegada do rei, e Baja e as servas desapareceram ao longe, enquanto ele entrava no aposento.
— Você está linda.
— Você também. E eu tenho um presente para você — disse ela, entregando-lhe um anel. — É uma safira rara, de Haydar.
— Combina com seus olhos — disse Xavian enquanto olhava para a escura pedra azul. — Vou usá-la com orgulho. Seu pai usou esta jóia?
— Nossas tradições são diferentes, Xavian. O presente que me deu é de sua terra, seu país, enquanto este presente é meu para você. Você tem razão, foi escolhido porque combina com os olhos de sua noiva, mas não deve ser passado adiante. Leve isso com você para o túmulo.
Ele ofereceu o braço e ela o pegou. Andavam pelos corredores do palácio, passando por retratos e antigos ornamentos beduínos, através de salas repletas de história.
Aquele era um momento significativo, Qusay e Haydar se casariam, dois regentes iriam se unir. Ela percebeu as vozes do salão de dança silenciarem quando a chegada do casal real foi anunciada, e seus olhos se encontraram com os de Xavian.
— Nervosa?
— Claro que não. — Layla mentiu, porque essa era sua regra número um: nunca deixar que ninguém se aproximasse demais, nunca deixar que soubessem do peso que carregava, do esforço que fazia.
Todos os olhos se voltaram para eles e viram pela primeira vez a rainha que estivera oculta sob um véu.
— Sua Alteza Real, dignitários, distintos hóspedes. Por favor, dêem as boas-vindas à noiva e ao noivo, o rei Xavian de Qusay e a rainha Layla de Haydar. Eu os apresento ao rei e à rainha de Qusay e Haydar.
Havia uma quantidade irritante de realezas e dignitários, mas, de acordo com qualquer outro padrão real, aquilo era pequeno. Primeiro, foram apresentados os sucessores imediatos de Xavian até que Layla produzisse um herdeiro.
— O sheik príncipe Kareef de Qais — anunciou Akmal, e Kareef fez uma reverência, e depois falou com Xavian, antes de sorrir para Layla. — É uma honra estar aqui.
Layla sorriu e o saudou de volta. Os olhos dele eram do mesmo azul das pinturas que cobriam as paredes do palácio.
— Meus primos — disse Xavian. — Contei muitas histórias sobre vocês a Layla.
E isso bastou para que seu coração se acelerasse, porque Xavian estava dizendo e mostrando à família que aquilo era mais do que um casamento arranjado.
— Sheik Rafiq de Qusay. — Akmal fez com que prosseguissem e ela foi saudada por um primo muito diferente. Rafiq estava vestido com roupas ocidentais. Estava impecável. Parecia arrogante e confiante, mas pelo sorriso se podia dizer que era bastante agradável.
— Tahir está aí? — perguntou Xavian.
Houve uma ligeira pausa antes de Kareef responder suavemente:
— Ele não conseguiu sair. Envia suas desculpas e, é claro, oferece a vocês dois os melhores votos de felicidade futura.
Xavian sabia que a ausência de Tahir não devia ser comentada, mas estava realmente curioso. O primo mais novo de Xavian era seu preferido, mas saíra de Qusay havia alguns anos e nunca voltara. Xavian ainda sentia saudades dele e se perguntava como estaria.
A fila era longa e tudo o que Xavian queria era que aquilo acabasse logo, mas, como sempre, o dever e o protocolo não permitiam que seguisse o desejo.
Quando as apresentações familiares acabaram, Layla sentiu que algo mudara em Xavian. Havia uma tensão crescente enquanto percorriam a fila, e ela não compreendia o que era.
— O sheik rei Zacari e sua rainha Stefania, do reino de Adamas.
— Alteza. — O sorriso de Layla vacilou enquanto ela cumprimentava a rainha Stefania, porque a rainha de Aristo não estava olhando para ela no momento. Em vez disso, seus olhos estavam em Xavian.
— Rainha Layla. — Ela fez uma reverência profunda. — Estamos honrados por estar aqui.
E então Layla conheceu o rei Zakari. Ofereceu a mão e olhou dentro dos olhos dele, que pareciam cheios de profunda preocupação.
— Adamas oferece suas preces e seus melhores votos. A voz era ríspida e ela podia perceber o nervosismo, mas Xavian continuou rapidamente, indo até o fim da fila. Finalmente acabou, finalmente foram levados a seus lugares, com todos de pé, até que o rei e a rainha estivessem devidamente sentados.
Ela queria saber o que estava acontecendo. Podia sentir que Zakari a observava.
— Está tudo bem?
— É claro. — Xavian tomou um longo gole de água gelada.
— Tem alguma coisa acontecendo.
— Não sei do que está falando.
— O rei Zakari...
Layla. — A voz de Xavian saiu fria, interrompendo-lhe a pergunta, e ela se espantou com a aspereza. Até ele parecia ter se arrependido do tom que usara. — Não queria incomodá-la com isso, mas como insiste em saber... Logo que entramos, o sheik Rafiq foi informado de que havia ocorrido uma explosão num armazém na Nova Zelândia. Alguns de seus funcionários foram feridos e deve entender que ele teve que sair às pressas.
— Então ele partiu?
— É claro. Tem que cuidar de sua equipe. Estamos honrados por ele ter ficado aqui tanto tempo.
Layla olhou para a mesa e seus olhos se encontraram novamente com o olhar preocupado da rainha Stefania. Dessa vez, Layla respondeu com um sorriso de reconhecimento, um aceno positivo, para que a outra soubesse que Xavian lhe explicara o problema.
Então, por que Stefania não sorriu de volta?
E por que Layla ainda se sentia como se não soubesse , de nada?
Havia vestidos finos e jóias à mostra, um banquete a ser consumido, música tradicional para dançar. E, ainda assim, apesar de todas as promessas feitas mais cedo, a noite pela qual Layla ansiava parecia ter terminado com a entrada deles. Era apenas uma negociação, só isso, algo que não era exatamente fácil para Xavian, rígido e formal a seu lado.
Fora daquele jeito que ela imaginara o futuro, mas não como sonhara que seria recentemente.
Fosse como fosse, já estava acabando. O protocolo dizia que os recém-casados deviam sair antes, e Akmal lhes dissera estar na hora.
— Vamos — disse Xavian. — Vamos para cama. Ela sentiu que Xavian estava tenso e percebeu que estava ignorando Akmal enquanto subia as escadas.
— Alteza. Peço desculpas por incomodá-lo, mas o rei Zakari e a rainha Stefania pediram para lhe falar
— Estou indo para cama.
— Alteza.
— Não ouviu o que eu disse? Já me recolhi por hoje.
Não queria conversa. A noite inteira sentira os olhos do rei Zakari sobre ele, a rainha Stefania o observando.
— Eles fizeram um pedido formal, Alteza. São monarcas vizinhos, é inadmissível declinar o pedido.
— Minha esposa está exausta.
As cicatrizes em seu pulso costumavam doer e, naquele instante, latejavam.
— Estou bem — atalhou Layla, sem deixar que Xavian falasse por ela ou a usasse como desculpa. — É claro que devemos nos encontrar com eles.
Xavian sentia suor na testa. Não queria que Layla o visse daquele jeito, que ouvisse as novidades daquela maneira.
— Eu os verei sozinho. Vá para a cama. Não sei quanto tempo isso vai demorar. Não me espere.
Ele estava apavorado.
— Não há motivo para chorar. — Baja a despiu e a vestiu novamente com um roupão. — Seu período fértil já passou. Talvez você já esteja grávida. É melhor que seu corpo descanse do que sirva às necessidades dele toda noite. — Você não compreende — choramingou Layla. Ele a promessa. — Não foi como você disse. Foi melhor. Foi melhor do que eu poderia esperar.
— Que bom. — Baja a levou até a cama. — Fico feliz que ele tenha tido consideração. Mas agora é hora de descansar. Não perca a cabeça, Layla. Sua mente deve ficar clara para governar.
— Ele é meu marido.
— Cujos desejos você deve honrar e respeitar sem questionar! Mesmo que seja a rainha, na cama, em particular, é esposa dele. — Baja era a única pessoa que podia falar daquele jeito com Layla. Era mais mãe do que sua própria mãe fora para ela. E, mesmo que não gostasse do que dizia, Baja sempre falava com sabedoria.
— Ele disse que as coisas seriam diferentes, que, depois da recepção, as coisas seriam diferentes.
— E novamente provou o contrário — observou Baja.
— Estou tão confusa.
Ela simplesmente estava cansada e perplexa de tanto tentar persuadi-lo.
— Os homens fazem isso. — Baja sorriu. — Eles sabem o que dizer, o que fazer para que nossos corpos sucumbam. Mas uma rainha nunca, nem por um minuto, pode perder a cabeça, e seu coração pertence ao povo. Essas últimas palavras são suas, Layla.
Elas haviam sido.
Antes de conhecer Xavian, aquelas haviam sido suas palavras, mas as coisas não eram mais tão simples.
— Então não posso amar meu marido?
— É claro que pode. Mas deve permanecer em segurança e se lembrar de que ele é o rei, antes de qualquer outra coisa. Seu coração estará com o povo.
Mas Layla queria que o coração dele estivesse com ela.
Ele não queria que as coisas fossem daquele jeito.
Xavian não queria ter aquela conversa. Fechou os olhos. Era o rei, era forte, podia lidar com tudo, até mesmo com a verdade.
Tomou fôlego, endireitou os ombros e saiu do estúdio. Fez um sinal com a cabeça para que Akmal abrisse a porta, mas, quando o vizir entrou atrás dele, Xavian se virou.
— Sozinho.
Akmal não tinha coragem de discutir. Percebia que o rei estava com humor instável, mas se sentia como um gato colocado sob a chuva. Normalmente, se sentava com dignitários internacionais, e o rei e a rainha Adamas eram pessoas importantes.
As saudações foram apertos de mão semiformais, todos se sentaram e houve um momento de conversa educada. Então Zakari pigarreou. Sua esposa, a rainha Stefania, torcia as mãos nervosamente.
— Gostaríamos de agradecer a você e ao povo de Qusay pelo presente de nascimento de nosso filho — disse Zakari.
— Não há de quê — respondeu Xavian. Normalmente, tinha pouca ou nenhuma idéia do presente enviado, os servos cuidavam de tais detalhes. Mas, naquele caso, Xavian havia se interessado mais. Uma maravilhosa esmeralda de 18 quilates fora polida e enviada para celebrar o nascimento.
— Como vai seu filho?
— Zafir vai bem. — Xavian podia sentir os olhos de Zakari sobre ele e manteve o rosto impassível, mas ouvir Zakari dizer o nome da criança trouxe uma nova sensação de desconforto. Quase uma confirmação do porquê de estarem ali. — Você sabe alguma coisa a respeito de nossa história?
— Mas é claro — respondeu Xavian prontamente.
— Duas ilhas, Aristo e Calista, que foram reunidas por casamento para formar o reino de Adamas. É por isso que é um prazer tão grande falar em particular com você. Layla e eu temos grandes expectativas quanto a Qusay e ao futuro de Haydar. Seria interessante discutirmos o assunto.
— Eu estava me referindo à história de minha família
— interrompeu Zakari. — Sabe alguma coisa sobre ela?
— Um pouco. — A voz de Xavian de repente ficou áspera e ele se serviu de um pouco de água.
— Minha mãe morreu e meu pai se casou novamente.
— Entendo. — Xavian deu um sorriso sem vontade.
— Ele trouxe cinco filhos do primeiro casamento. Anya, rainha de Calista, não podia ter filhos, por isso nos adotou... Os cinco filhos.
— Sei disso — disse Xavian. — Talvez possamos discutir como o povo de Calista...
— Quando éramos meninos, dois dos meus irmãos, os gêmeos Aarif e Kaliq, construíram um barco. Queriam velejar. Nosso irmão mais novo, Zafir, que tinha apenas seis anos na época, implorou para se juntar a eles nessa aventura. Foram tolos ao permitir isso, claro, mas adolescentes com freqüência são tolos. Acabaram capturados por piratas.
Xavian ficou de pé:
— Devo lhe desejar uma boa-noite.
— Seus pulsos ficaram amarrados durante dois dias e duas noites. — Zakari se levantou. — Zafir conseguiu se desamarrar e libertou os irmãos. Aarif levou um tiro no rosto quando tentavam escapar. Ele caiu na água. Kalif mergulhou para salvá-lo, mas o barco, com Zafir a bordo, se afastou, levado pelas águas.
Xavian se recusava a ser educado agora. Saiu do aposento, atravessou a sala de estar. Zakari ousou detê-lo, segurando-o pelo braço.
— Por favor, ouça.
— Já ouvi o suficiente. — Xavian estava suando. Ainda assim, sua voz era calma. — Minha esposa está cansada e espera por mim.
— Zafir nunca mais foi visto. Procuramos sem parar.
— Sinto muito por sua perda — disse Xavian pacientemente, mas Zakari não estava ouvindo. Stefania estava chorando ao fundo. — Preciso ir.
— Por favor — a voz forte de Zakari ficou embargada —, ouça. Na coroação de Stefania, você ajudou minha esposa quando ela desmaiou. Ela viu as cicatrizes no pulso, ela reconheceu seus olhos. Zafir, eu reconheço você.
— Chega. — Xavian tentou puxar o pulso, mas não conseguiu. Era tão forte quanto Zakari. Não era a força dele que o impedia de se mexer, mas a força da verdade.
— Estas são as marcas no pulso de meu irmão. — Os olhos negros de Zakari ficaram cheios de lágrimas quando viu as marcas grossas.
— Impossível — disse Xavian. — Como isso pode ser possível? Eu não posso ter simplesmente aparecido do nada.
— Xavian. — Era a primeira vez que Stefania falava. — Você se lembra de quando me senti tonta na coroação e você me ajudou?
Xavian fez que sim com cabeça.
— Levou algum tempo, mas quando tudo acabou, lembrei das cicatrizes em seus pulsos e, quando olhei nos seus olhos, senti como se o reconhecesse. Você tem olhos iguais aos de seus irmãos.
Xavian nunca chorara em toda a vida e não queria chorar de forma alguma naquele momento. Ficou ali e agüentou o golpe, enquanto seu mundo desmoronava.
— Receava falar com Zakari. Não parecia fazer sentido que você, soberano de Qusay, fosse de algum modo irmão dele. Fiz algumas pesquisas, há meses estou lendo sobre a família, sobre você. Li em jornais antigos que havia um herdeiro de Qusay no passado que nunca era visto, havia boatos de que era uma criança doente.
— Eu era doente — disse Xavian. — Tive ataques. Quando era bem pequeno, eu...
— Encontrei um artigo, uma reportagem, que lançava a suspeita de que você estava à beira da morte. Isso aconteceu dois dias depois de Zafir ter desaparecido. O jornal dizia que uma fonte confiável dentro do palácio afirmara que o povo de Qusay devia se preparar para más notícias.
— Fui uma criança frágil.
— No dia seguinte, o jornal desmentiu as informações anteriores. O médico do palácio fez um discurso e disse que sim, realmente, o jovem príncipe estava gravemente doente, mas se esperava que logo se recuperasse completamente. Esperava-se que, em poucas horas, uma criança sensível e adoentada, quase à morte, se recuperasse completamente. Não há fotos de Xavian quando criança, exceto um retrato oficiai, no qual aparece dormindo.
— Você não sabe de nada. — Xavian fez uma expressão de desprezo e abriu a porta bruscamente.
Akmal praticamente caiu e, a julgar por seu rosto pálido, ouvira pelo menos uma parte do que fora dito.
— Isso é verdade?
— É claro que não, senhor. Isso é absurdo, uma mentira.
Xavian podia não gostar muito de Akmal, mas nunca duvidara de que falava a verdade. E, devido a sua indignação, sabia que Akmal não estava mentindo.
— Sim, você ficou gravemente doente em certa época. Eu não era tão experiente na época, mas falei com os mais velhos. O médico ficou a seu lado dia e noite e você se recuperou lentamente. Foi um milagre, de verdade; estava muito doente.
Olhou fixamente para o corpo forte, musculoso de seu rei e piscou os olhos várias vezes. Apenas ficou ali em pé, piscando, enquanto seu próprio mundo começava a desabar.
— Não. Eu estava aqui. Eu saberia. — Então ele piscou novamente, abriu a boca e disse algo. Houve um silêncio de perplexidade que durou muito tempo. Pela primeira vez, Akmal foi rude com a realeza. — É claro que não é verdade. Eles mentem. Recusam-se a aceitar que Zafir está morto.
— E verdade. — A voz de Xavian era forte, finalmente dizia a verdade de que durante meses, talvez anos, tentara escapar. Mirou os olhos negros do irmão e reconheceu os seus, Depois olhou para as grossas cicatrizes nos pulsos, que às vezes pareciam queimá-lo à noite. — Soube que havia algo errado desde a coroação. Meus pais não queriam que eu fosse. Agora sei por quê.
— Há quanto tempo você sabe a verdade? — perguntou Zakari, com lágrimas nos olhos pela dor do irmão.
— Há cinco minutos — admitiu Xavian. — Mas isso tem crescido dentro de mim há algum tempo. Achei que estivesse enlouquecendo. Eu podia ouvir crianças rindo. Eu me lembro de perseguir um passarinho no palácio.
Pela primeira vez, Zakari quase sorriu.
— Eu também me lembro.
— Minha mãe? — Aquele rosto que reconhecera em sonhos surgiu diante dele. —Anya, minha madrasta?
— Ela morreu — O rosto de Zakari estava pálido, porque só agora podia perceber o terror que o irmão sentia. Durante anos, havia procurado, rezado, sonhado com aquela reunião, mas nunca antes vira tanta dor. — Nosso pai também.
Xavian estava irritado e Akmal era o mais próximo:
— Claro que você sabia! Vocês todos sabiam!
— Não! Eu não era vizir na época. Jamais teria mentido para você. — E, então, Akmal desmoronou e sua própria verdade veio à tona. — Eu questionei as coisas durante muitos anos, mas fui silenciado. Uma noite, tivemos certeza de o termos perdido. — Ele se corrigiu, enquanto Xavian fechava os olhos. — Achávamos que tínhamos perdido o príncipe Xavian. Mas, no dia seguinte, o médico disse que você ainda lutava pela vida. Algumas semanas depois, vi a rainha andando consigo no jardim. Ainda estava fraco, numa cadeira.
Akmal chorava com a recordação de algo que, na época, o havia alegrado.
— Eu falei?
— Não. Ficou em silêncio durante muito tempo, exceto com seus pais. Achamos que os ataques podiam ter afetado seu cérebro, mas você ficou mais forte e era tão inteligente, mas nunca foi uma criança feliz. Rei Xavian
— implorou Akmal — , isso não pode sair daqui. Pense no efeito que terá sobre o povo.
— Olhe o que isso nos causou — desafiou Zakari.
— Em nossa família também. Perdemos um irmão, um filho, um príncipe real. Ele deve retomar para o povo que o ama, que o tem pranteado sem motivo.
Mas Xavian não estava ouvindo. Queria respostas, não apenas para si mesmo, mas para o verdadeiro Xavian.
— Chamem o médico do palácio.
Ele chegou algum tempo depois, se ajoelhou e pediu perdão, enquanto seus pecados eram expostos. — Foi ordem do rei. Eu era seu médico.
— Você também é meu médico! — Os olhos de Xavian brilharam de ódio. — Fui procurá-lo porque achei que estava enlouquecendo. Aqueles sonhos...
— Os remédios deviam tê-los feito parar.
— Eram lembranças! — rosnou Xavian. Mas, no momento, não pensava em punição. Tudo o que queria era a verdade. — Conte tudo.
A dor devia ser algo particular.
Enquanto caminhava ao longo da praia, a rainha Inas Al’Ramiz pensava no que aconteceria.
Conselheiros.
Câmeras.
Jornalistas.
Anciãos.
Mais conselheiros.
E, pior, haveria perguntas: quanto tempo o jovem príncipe ficou doente? Foi por isso que o público nunca viu Xavian? Será que o rei Sagr Al’Ramiz poderia abdicar? Será que ele deveria abrir caminho para seu irmão, o sheik Yazan, para governar Qusay junto com a esposa, Rihana, que tinha três filhos vivos e saudáveis, com olhos como os de Xavian? Mas as semelhanças paravam por ali.
Inconsolável, Inas cambaleava ao longo da praia. Pedira ao rei e ao médico do palácio aquele tempo para si, antes de seu mundo ser invadido.
— Deixe-me lamentar, deixe-me ser uma mãe e não a rainha por mais algum tempo.
Havia um acesso direto ao aposento particular da suíte real. Degraus de pedra haviam sido entalhados nas paredes cravejadas de jóias do palácio e eles conduziam a um raro refúgio. Inas se encaminhara, cega de lágrimas, sozinha até a praia afastada, o único lugar em Qusay onde podia ficar a sós consigo mesma.
Nenhum servo era permitido, câmeras não podiam ir atrás dela. Ali ela podia ser ela mesma. Podia andar a esmo com o rosto banhado em lágrimas e gritar para um Deus que não a escutava.
— Xavian — gritou ela. Sentiu que a alma dele passava através dela, arrancando sua carne enquanto partia. Ela o amava tanto que preferia morrer naquele instante a continuar vivendo sem ele. Mas era a rainha.
Sedada, ficaria em pé ao lado do rei, enquanto ele fazia o que a honra determinava e abdicava, por conta de sua incapacidade de produzir herdeiros. Ou, talvez, prometessem ao povo de Qusay, por meio de um porta-voz, que seu útero dolorido logo produziria.
Enlouquecida, Inas perambulava, gritando de ódio para o oceano, o céu, a areia, o sol, que continuaram existindo quando seu bebê desaparecera.
Ela fora avisada de que aquele dia chegaria. O médico informara, horas antes do parto, que o filho, tão ansiosamente aguardado, era fraco e estava doente demais para sobreviver.
Sendo uma mãe em sua essência, Inas simplesmente se recusara a ouvir e passara os sete anos seguintes se negando a aceitar a realidade, cuidando do filho enfermo e o protegendo do olhar faminto do público. A medicina moderna, ervas raras e a sabedoria milenar haviam sido visitantes freqüentes do palácio, em vão.
Os ataques lhe arrasavam o corpo com mais freqüência. Rumores de que o jovem príncipe estava doente, fraco e que não iria jamais estar em forma para ser rei haviam se intensificado.
Inas persistira. Ela o protegera como uma leoa. E, mesmo assim, não fora suficiente.
A morte, o ladrão que entrara no palácio naquela noite, levara seu bebê. Ela estava desesperada para abraçá-lo, desesperada para senti-lo ainda quente.
E agora, devia voltar ao palácio, para encarar um mundo sem ele. Mas não faria isso. Não podia.
Enfrentando o oceano, implorava a ele que a levasse. Queria que o mar a levasse se isso significasse poder ficar com Xavian.
— Estou com saudade, meu bebê! — gritava ela. — Dê-me meu bebê — implorava, mesmo sabendo ser inútil. Afinal, rezara pedindo herdeiros saudáveis durante anos. Depois de anos tentando, apenas uma criança nascera e, agora, ela fora tirada de seus braços.
Não existia Deus. Ela sentia que o oceano a puxava, sentia que as ondas a arrastavam e, então, entrou em pânico. Percebeu o que estava fazendo. Ela era a rainha, uma soberana. Deve haver esperança, tem de haver alívio. Que lição ensinaria ao povo se deixasse que o oceano a tragasse?
Choramingou ela, voltando para a praia. — Sinto muito, sinto muito. Por favor, me mostre o que fazer. Mostre-me o que fazer.
E lá estava ele.
Uma sombra na praia, a pele escura se misturando com a areia molhada, as roupas amarrotadas como algas marinhas. Só podia estar vendo coisas. Ainda imersa no mar até a cintura, se movendo através das ondas, Inas sabia que só podia estar tendo alucinações, porque ali, na areia da praia, estava seu filho. Era uma ilusão, disse a si mesma, enquanto corria na direção dele. A tristeza devia tê-la enlouquecido. Ainda assim, quanto mais perto chegava, mais real aquilo se tomava: grossos cachos negros, idênticos aos de Xavian depois de seu banho noturno, longos cílios escuros, bochechas amareladas e, quando se ajoelhou, percebeu que estava vivo. Os pulsos estavam ensangüentados e feridos, o rosto queimado de sol e, ainda assim, apesar de seu estado, apesar dos ferimentos, era lindo: lábios bem cheios, carne e músculos sobre os ossos. Quando abriu as pálpebras, os olhos eram negros, não o azul tradicional que marcava a linhagem dos Al’Ramiz, mas Inas desconsiderou aquele detalhe. Aquele era Xavian, nascera forte. Deus ouvira suas preces!
Após recolhê-lo da areia, ela correu para o palácio. O tempo era curto e o prazo para revelar a morte de Xavian se aproximava.
Bem no íntimo, ela sabia que não era Xavian. Ainda assim, sua esperança estava viva ao subir os degraus de pedra, segurando o corpo contra o peito, ate que o médico, que ainda estava colocando a mortalha sobre o corpo de Xavian, tirasse a criança de seus braços.
— Xavian! — falou Inas, enquanto o médico o examinava.
— Inas! — O rei tinha lágrimas nos olhos ao implorar à esposa que agisse com bom-senso. — Este não é Xavian, este é o sheik príncipe de Calista. Isso apareceu em todos os noticiários, em todos os jornais, eu mesmo liguei para o rei Ashraf, para oferecer as preces do reino de Qusay.
Ele percebeu que a esposa estava tão imersa no problema de saúde do filho que não ouvira.
— Três dos príncipes foram arrastados para o mar, onde foram capturados por piratas. Dois deles escaparam, mas o jovem Zafir ainda está desaparecido. Estão procurando por ele há dias, a mãe tem procurado por ele há dias. A mãe está desesperada.
— Ela não é a mãe — rosnou Inas. — Ela se casou com o rei, criou os filhos dele, como pode ser justo que tenha cinco e eu nenhum? Ela nunca deu à luz. Eu, sim.
— Inas...
— Quem iria saber? — disse Inas. Porque, para ela, a solução era simples. — Cuidaremos dele até que fique bom de novo, ele pode ser nosso filho e um dia será o regente de Qusay.
— Nosso filho está morto.
— Mas não tem que ser assim. Você não vê? Minhas preces foram ouvidas! Isso tinha que acontecer!
— Inas, por favor — implorou o rei. — Ele é membro da família real de Calista. Se nós o devolvermos a seu povo, isso fará bem a nossa nação. Seremos vistos de forma favorável.
— Como você pode pensar nesse tipo de coisa numa hora dessas? — Ela estava enlouquecida de ódio. — Você realmente quer que Yazan seja regente? Está dizendo que quer que esse tirano seja o rei de Qusay?
Ele nunca vira a mulher daquele jeito. Naquele dia soturno, ela estava deixando a esperança incendiá-lo também. Ele não queria abdicar, não queria que o irmão sádico, Yazan, fosse rei, não queria abrir mão de seu direito.
Talvez aquele fosse o jeito. Talvez Inas estivesse certa, fosse o destino.
— Os olhos dele não são azuis — disse Saqr com voz hesitante. — Como poderíamos explicar isso?
E Inas sentiu uma onda de alívio ao perceber que, em vez de recusar o sonho desesperado, o rei estava tentando encontrar um jeito de fazer com que ele se realizasse.
— Não havia retratos — disse Inas rapidamente. —A única foto divulgada o mostra dormindo.
— Será que poderíamos?
O rei olhou para o médico, que fez que não com a cabeça.
— Do ponto de vista ético, não posso permitir isso. — O dr. Habib pusera soro na criança fraca e a embrulhara num cobertor. Sua voz soava preocupada. — Devemos informar o palácio de Calista imediatamente.
Inas chamou o marido para um canto, esquecendo as regras, esquecendo como ela se comportava habitualmente. Seu bebê estava morto, por isso, não havia regras. Ali estava sua chance de segurar uma criança nos braços doloridos e ser mãe.
— Então, devemos informar ao povo que nosso irmão Yazan será rei.
Inas olhou fixamente para o marido e percebeu que ele se encolhia. Ah, Yazan fingia muito bem, mas Saqr contara a ela sobre o lado cruel do irmão, sua natureza nociva.
— Quer isso para seu povo?
— É claro que não.
— Então, diga ao médico que isso irá acontecer. Faça com que aconteça. Se não por mim, pelo povo. — Inas prendeu a respiração, tremendo e molhada e ainda anestesiada pela dor. Viu quando o marido lhe concedia seu maior desejo.
— Você é o médico desta família real — disse o rei. — E entendo que isso o coloque numa posição muito difícil. Você terá de fazer visitas várias vezes ao dia para curar esta criança, o que fará com que precise trabalhar menos com seus outros pacientes. É claro que receberá uma compensação financeira adequada.
— Não posso — começou a dizer o médico, mas já concordando. E não apenas pelo dinheiro. Ele também estava assustado demais para negar um pedido do rei.
— Isso pode ser feito? — perguntou o rei novamente. Pálido e suando, o médico concordou:
— Acho que sim.
— Sabe que sim! — ordenou o rei. — Diga-me como.
— As pessoas sabem que o príncipe está doente. Se nós o mantivermos escondido por mais algum tempo, isso as deixará alarmadas.
— Há boatos sobre a morte de Xavian? — perguntou o rei, exigindo uma resposta honesta.
— Há boatos de que ele está gravemente doente — disse o dr. Habib. — Assim como esta criança está doente.
— Fale com os conselheiros — disse o rei. — Diga a eles que Xavian adoeceu à noite e que mais cuidados foram necessários, mas que temos esperança de que, no momento oportuno, o príncipe se recuperará totalmente.
— Mas, e Xavian? — perguntou o médico. — O que farei com seu filho? — Ele esperava que Inas começasse a chorar de novo, mas ela estava embalando a criança na cama, cuidando dos ferimentos nos pulsos, amando-o como havia amado o próprio filho.
— Você lidará com ele.
O jovem príncipe foi posto em sua última morada e, cheio de culpa, o dr Habib voltou ao palácio para ver seu paciente, bem a tempo de presenciar o príncipe sheik Zafir abrir os olhos pela primeira vez.
— Ommah? — A criança confusa chorava, chamando pela mãe, os olhos se esforçando para enxergar direito, assustada.
— Ommah está aqui, Xavian — falou Inas.
E finalmente, certa tarde, algumas semanas depois, já um pouco mais forte, com lábios mais vermelhos, corpo mais robusto, o jovem príncipe acordou, seus olhos se fixaram na rainha e o futuro de Qusay foi assegurado.
— Ommah!
A lavagem cerebral estava completa.
— Onde está ele? — perguntava Xavian. Sentia náusea. — Onde está o verdadeiro Xavian? No cemitério real? Quero ir lá. Akmal, providencie transporte.
O cemitério real ficava perto do palácio, bastava dirigir um pouco até lá. Murado e vigiado, era aberto ao público de vez em quando. A última vez fora no dia seguinte ao do enterro de seu pai, e Xavian não estava muito ansioso para voltar, mas era essencial que fosse naquele momento.
— Não está lá. — O médico estava pálido.
— Então, onde? — Xavian exigia ver Akmal. — Você irá me dizer onde ele está.
— Senhor, não sei nada a respeito disso.
— Akmal fala a verdade. — O médico interrompeu o pedido de Akmal. — Ninguém sabe. Foi tudo arranjado entre seus pais e eu.
— Meus pais? — A voz de Xavian soava como uma chicotada. — Eles não eram meus pais. Onde está Xavian?
— Eles me pediram para cuidar de tudo. — O médico estava ajoelhado, implorando por um perdão que jamais teria. — Quando órfãos morrem, há um lugar à beira do deserto...
— O cemitério dos mendigos? — exclamou Xavian. Akmal quebrou o protocolo mais uma vez e pediu para que o rei ficasse calado, mas Xavian não concordaria com aquilo.
— Você está me dizendo que o príncipe foi enterrado numa sepultura sem identificação, no cemitério dos mendigos? Leve-me até lá agora mesmo.
Foi Akmal quem dirigiu. Quando chegaram ao cemitério, Xavian se sentia como se tivesse sido enterrado, como se olhasse para si mesmo, uma vida, uma pessoa que fora descartada tão facilmente, uma criança que fora enterrada e esquecida.
Akmal pediu para que ele voltasse para o carro, para que aquela noite terrível terminasse, para que a verdade voltasse para dentro da garrafa e ele pudesse colocar a rolha nela de novo.
— Rei Xavian — chamou ele. — Nós temos de... — Mas não conseguiu terminar.
— Este é Xavian. — Seus olhos negros se detiveram nos de Akmal e ele viu medo neles, porque só então o verdadeiro horror da mentira se revelava. — E será nomeado e honrado: terá um túmulo real.
— Não — pediu Akmal. — Se alguém ficar sabendo disso, se a verdade for revelada... Não vê o que fará com nosso povo?
Não apenas não haveria um rei, mas eles perderiam as adoráveis lembranças que tinham de seus pais.
— Senhor, isso matará o espírito de Qusay. Devemos viver a mentira. Por favor, imploro para que reconsidere, pense melhor quando estiver calmo.
Xavian sempre soubera. Em algum lugar dentro dele, a lembrança sempre estivera lá, se debatendo, tentando sair. Ao voltarem, caminhou pela praia, onde fora entregue a sua mãe naquela noite fatídica, a Inas... Olhou para o vasto oceano e se perguntou como, sendo uma criança sozinha, havia sobrevivido àquilo. E, por um instante aterrador, se perguntou se não seria tudo mais fácil caso tivesse morrido. E, de alguma maneira, havia mesmo morrido.
Perdera a identidade, tudo lhe fora tirado. Até mesmo sua idade era diferente. Zakari lhe dissera a verdadeira data de nascimento, tinha 28 anos, não 29.
Xavian, o rei Xavian, filho de Inas e de Saqr, havia desaparecido.
Então, quem era ele?
Anos haviam sido apagados, sua infância fora apagada. Cada elogio, cada vez que haviam dito que o amavam, não se referiam a ele, mas a um fantasma.
O povo de Qusay ficaria arrasado. E, depois, havia sua esposa.
Mas será que Layla era mesmo sua esposa? Ela havia se casado com alguém que não existia.
Xavian sempre sentira que era seu dever que o fazia diferente, sempre ficara afastado dos demais. Arrogante, diziam alguns; desligado, diziam outros. Não tinha vida social, a não ser por breves visitas à casa de primos. E agora ele sabia por quê.
Lentamente, ao longo dos anos, sofrerá uma lavagem cerebral. Podia ver Layla andando pela praia particular em sua direção, ainda de camisola, descalça, o rosto inchado de tanto chorar. O sol nascente estava atrás dela e ele podia ver sua silhueta através do tecido fino.
Haviam feito amor. Mais que isso, haviam encontrado o amor. Pela primeira vez, Xavian deixara uma mulher entrar em seu coração, só para expulsá-la. Porque, se ele fizesse o que Akmal pedia, se escolhesse viver essa mentira, então devia fazer isso sozinho.
Ele não podia sobrecarregá-la com um peso que era seu. A verdade poderia deixar a ela e seu povo arrasados e arruinar muitas vidas. A dele também, pois queria ser rei.
Ele era um bom rei, um ótimo rei, e não queria fugir de tudo aquilo. Será que poderia viver uma mentira?
— Venha para cama, Xavian. — Ela nunca pedira antes, mas estava assustada, com medo do desconhecido. Layla passara uma noite sem dormir, andando pelos corredores do palácio, ouvindo os carros saindo e as vozes em tom alto. Baja a levara para cama, mas, ainda assim, ela não tinha conseguido dormir.
Caminhando até a varanda para tomar um pouco de ar, ela vira Xavian andando pela praia, seus roupões reais molhados e cheios de areia, sendo arrastados atrás dele e sem cafia. Mesmo de longe, podia sentir a raiva, a dor, e ela queria compartilhar daquilo.
— O que está acontecendo?
— Não quero conversar.
— Então não converse — falou Layla. — Mas venha para dentro, venha para cama.
— Quero ficar sozinho.
— Não. Nós dissemos que poderíamos conversar depois da recepção, que iríamos discutir as coisas.
— Esse dia pode esperar — disse Xavian. — Akmal está em pânico. Fui convidado a ficar em Calista.
— Isso é bom — ponderou ela. — Podemos ter algum tempo...
— Sozinho — interrompeu Xavian. — Só eu fui convidado.
— Não.
— Layla, teria sido bom. Mas ambos sabemos que esse é um casamento arranjado: você é soberana de Haydar.
Ela estava balançando a cabeça, se recusando a acreditar que, em breve, ele retiraria todas as promessas.
— Agora existe uma oportunidade de melhorar nosso relacionamento com Calista e Aristo. O reino de Adamas há muito tempo está fora de nosso alcance e será bom para nosso povo.
— Mas não é bom para nós. — Eles tinham se casado havia uma semana, a semana mais maravilhosa de sua vida, e ele lhe dissera que as coisas seriam diferentes, e eles haviam feito amor inúmeras vezes. — Ontem, você prometeu que em breve iríamos compartilhar as coisas. Xavian, deixe-me estar a seu lado.
Ele não podia fazer isso com ela. Era melhor que o odiasse, porque em breve, muito breve, poderia ter de contar a verdade a ela e a todo o país, ou viver com uma mentira permanente entre eles.
— Por favor, não vá sem mim, Xavian.
— Sabe do que eu gostava em você, Layla? Sabe o que fazia você ser diferente? Implorar não combina com você. Eu preferia quando você me deixava sem saber o que iria fazer em seguida.
Ele tentou lutar contra a própria mente, que o impelia a beijá-la.
— Preciso ir para Calista — disse Xavian. — Sozinho.
— Isso é algo que irá beneficiar apenas o povo de Qusay? Algo que você não gostaria de compartilhar com Haydar? — Ele não respondeu e Layla concluiu que Baja estava certa, para ele, era tudo uma questão de dever. —Assim como houve um evento formal aqui em Qusay, meu povo irá esperar o mesmo. Eu não o envergonhei e, mesmo assim, você pede que volte sem um noivo. Que me tome uma noiva que não traz o marido para casa.
— As pessoas sabem que é uma negociação.
— Eles não precisam que isso seja esfregado em seus rostos.
— Diremos que estamos no deserto. Finalmente, ela cedeu um pouco:
— Vá fazer seu acordo com Calista, mas não vou ficar trancada num palácio, fingindo para sempre. Você tem uma semana. Se escolher, depois disso, não voltar para Haydar, se escolher me desonrar fazendo isso, então nunca mais me peça para ficar a seu lado como esposa, em nada que não seja dever.
Ela o empurrou para longe de si.
— Resolva tudo, Xavian. Tem uma semana.
Depois que ele se permitira lembrar, as memórias voltavam com força redobrada. E quando entrou no palácio de Calista, foi como se estivesse sendo bombardeado por elas. Podia ouvir a risada de sua mãe e seu próprio riso juvenil enquanto perseguia um passarinho que voara para dentro do palácio.
Ele podia ver a si mesmo correndo pelos corredores, abrindo portas que nunca conhecera. E, depois, nos estábulos, enterrou o rosto no pescoço do garanhão mais bravo, chamado Morte e inalou o odor dos estábulos.
— Meus pais me proibiam de andar a cavalo — disse Xavian. — Como seu único herdeiro, eu devia ser responsável. Um dia, os desafiei e montei o cavalo mais bravo do estábulo. Eu mesmo selei o animal e o montei facilmente. Simplesmente sabia fazê-lo.
— Você era como um menino cigano. — Zakari sorriu. — Amava seus cavalos. — Fez uma pausa. — Tudo isto é seu, Zafir.
— Não me chame assim.
— Você é Zafir.
— Isso vai matar meu povo.
— Não me importo com seu povo — disse Zakari.
— Qusay roubou meu irmão. Eles já tiveram você emprestado por muito tempo, não me sinto culpado por pedir aquilo que é nosso.
— E minha esposa? — rosnou Xavian. — Ela se casou com um rei.
— E agora, fica com um príncipe. — Zakari deu de ombros. — Você pode ajudá-la.
— Ajudá-la! — Xavian deu uma risada. — Ela não precisa de minha ajuda, ela governa a seu modo.
— Então, deixe que haja assim — disse Zakari, como se isso fosse simples. — Todo mundo sabe que isso não passa de um casamento arranjado. Ela pode continuar a reinar sobre Haydar, você pode seguir em frente e ser príncipe. E, de qualquer maneira — Zakari deu de ombros —, o casamento talvez nem seja legal agora.
Aquilo foi como uma facada no peito.
— Você pode ter sua vida de volta, Zafir, a vida que Qusay lhe negou, a vida que estava destinado a ter. Venha — disse Zakari. — E hora de informar seus irmãos.
— Não! — Xavian o deteve. — Ainda não. Eu digo quando estiver pronto.
— Eles sentiram sua falta, eles choraram por você. — Alguns dias a mais não farão diferença. Zakari lhe concedeu pelo menos isso.
Apesar de suas palavras corajosas, Layla não conseguia eliminar de si o desejo.
Tentou arduamente, tentou simplesmente odiá-lo.
A cada manhã, Baja a banhava e a borboleta de hena que ele beijara desaparecia um pouco. Preenchia os dias com leituras, com longas caminhadas pela praia. Escrevia páginas tediosas no diário, enquanto esperava por sua volta. Mas, à noite, ela ardia por ele. Desejava nunca tê-lo conhecido, porque até então ela havia conseguido dormir.
Agora, seu corpo tinha espasmos como uma mistura de fios elétricos, os nervos todos despertos, todos sentindo falta do que não tinham havia uma semana.
Ela lhe dera uma semana e, ainda assim, como sempre, ele a fizera esperar. Dera-lhe mais um dia, porque... Bem, porque tinha que fazê-lo. Mas, no nono dia ainda não tinha notícias dele, nenhum sinal de sua volta. Não podia mais agüentar aquilo. Tinha direito a algo melhor e, por isso, convocara Akmal.
— Providencie o vôo. Quero que meu povo saiba que estou voltando para Haydar.
— Talvez mais alguns dias, Alteza. Há documentos que precisam ser assinados, precisam da assinatura de ambos.
— Diga isso ao rei.
— Isso não vai ficar bem. — Akmal se ajoelhou e implorou que Sua Majestade lhe desse mais tempo. — Ele tem tanto com que se acostumar.
Até Stefania e Zakari terem solicitado uma audiência, as coisas haviam sido perfeitas. Bom, não perfeitas, mas melhores.
— Ele está ocupado...
— Com o quê? — indagou Layla. — Com um negócio que com certeza irá beneficiá-lo e à sua família, não é mesmo, Akmal?
— Não tem nada a ver com pedras preciosas ou jóias.
O vizir inclinou a cabeça. Para Akmal, revelar até mesmo aquele pouco fazia com que o coração tremesse de medo.
— Então, o que é? Com o que meu marido está lutando tanto para se acostumar? — Mas, mesmo ao fazer essa pergunta, ela sabia que o principal dever do leal Akmal era para com o rei. Ainda assim, sua resposta foi mais reveladora do que ela podia suspeitar.
— Seu marido parece tratá-la mal. — Os lábios de Akmal tremeram com sua própria indiscrição. — Para que um rei deixe sua rainha assim, sozinha... — Seus olhos imploravam para que ela o ouvisse e o compreendesse, para que lesse nas entrelinhas e fizesse algo, porque era um fardo muito mais pesado do que Akmal podia suportar. — Ainda assim, acredito que voltará logo, que tudo ficará bem, se você puder lhe dar algum tempo.
Layla ficou parada, assustada. Estava gelada de medo. Mas Xavian era forte. O que será que o atormentava tanto? Ela queria saber de qualquer maneira.
— Mudança de planos: vou para Calista. — Ela viu os olhos de Akmal se arregalando. — Isso lembrará o rei das conseqüências, caso ele escolha não voltar a meu país comigo.
Pela primeira vez em dias, Akmal teve esperança. Ele nunca vira Xavian tão apaixonado por uma mulher, talvez a rainha Layla pudesse persuadi-lo. Porque, se ele perdesse Qusay, iria perdê-la também. A rainha de Haydar certamente preferiria estar casada com um rei!
— Você não pode ir procurá-lo ainda. Seus olhos estão inchados de tanto chorar, seu cabelo está desfeito e eu sei do que o rei Xavian gosta. Deixe-me ajudá-la, Alteza.
Ela concordou.
Talvez funcionasse, pensou Akmal, enquanto andava de um lado para o outro, batendo palmas para chamar os servos. Chamou esteticistas, maquiadores, os melhores designers. Quando o rei Xavian visse a noiva, certamente voltaria para casa.
— Ainda não! — gritou Baja quando Akmal bateu à porta, mas a rainha passou por cima da voz dela, permitindo que o vizir de Xavian tivesse a última palavra.
— Estou bem assim?
Apesar de ele próprio nunca ter encontrado o amor, Akmal concluiu que, com certeza, não havia nada mais bonito do que uma mulher apaixonada. Ela escolhera bem. Sua pele branca estava realçada por um vestido tão negro que era quase azul, feito de seda tão pesada que parecia lã, e se agarrava a suas curvas.
Antes, Layla era uma mulher plena, vestida para os olhos de seu marido. Mas, agora, devia se vestir para outros e Baja a ajudou a colocar o véu.
— Estamos prontas — disse Baja a Akmal, mas Layla possuía outros planos.
— Não, Baja. Irei sozinha para Calista.
— Você não sabe o que a espera — disse Baja, porque a reputação do rei Xavian era lendária. — Tem que levar alguém com você.
— Vou enfrentá-lo sozinha.
— Irei acompanhá-la — disse Akmal.
— Ele poderia despedi-lo — observou Layla. — Pode estar furioso com minha chegada. Você não precisa arriscar o emprego.
— Vou com você.
A viagem levou quatro horas. Ela queria que sua chegada não fosse anunciada, por isso, em vez de aterrissar no palácio, o avião real posou no aeroporto de Calista, onde um carro de luxo a levou pelas ruas antigas a um lugar onde nunca estivera.
Ela estava feliz por ter Akmal com ela, porque houve uma certa dificuldade nos portões do palácio.
Foi Akmal quem suavizou o caminho e sugeriu que seria extremamente rude mantê-la esperando. Após um breve momento, os portões foram abertos e Layla convidada a entrar.
— Você pode voltar para o avião — disse Layla. — Xavian não precisa saber que me trouxe aqui.
— Esperarei por você — disse Akmal. — Entre. Conheço muitos dos auxiliares do rei Zakari, passarei o tempo conversando com eles.
Uma rainha Stefania bastante confusa a saudou à entrada, enquanto a babá se afastava com um bebê aos choros.
— Perdoe-me. — A rainha Stefania ficou de pé. — Estava dando comida ao bebê Zafir, não a estávamos esperando. Zafir não... — Ela parou e abanou a cabeça. — Desculpe-me, Xavian não... Aceita um chá? Alguma coisa para beber?
— Só quero falar com meu marido.
— Por favor. — Stefania gesticulou. — Não quer se sentar?
— Não, obrigada.
Havia uma impetuosidade em Layla que Stefania reconheceu como igual à de uma época em sua própria vida: não importava quem estivesse presente, ela dizia o que pensava. Claramente preocupada, Stefania ordenou que a serva saísse como precaução.
— Ele saiu para andar a cavalo — disse Stefania.
— Quando voltará?
— Sinto muito, não sei. Você não quer dar um passeio pelo jardim?
— Não vim aqui para passear. Estou aqui para ver meu marido. Para saber o porquê de, uma semana depois do casamento, ele escolher passar o tempo conhecendo sua família em vez de sua noiva.
— Talvez haja coisas sobre as quais os reis precisem conversar.
— Isso é uma piada? Acha isso aceitável? Deve achar, afinal você o convidou para se juntar a Calista. Estou errada em querer ver meu marido?
— E claro que não. — Stefania chorava, se lembrando do inferno de sua própria lua de mel, quando Zakari dissera a ela que seu casamento era por conveniência apenas.
Depois de um tempo, o casamento deles era forte e amoroso, e em tudo Zakari a ouvia. Mas não no que dizia respeito ao irmão desaparecido. Para Zakari, era simples: Zafir precisava voltar para casa.
— Quero ver meu marido — disse Layla finalmente.
— Sinto muito se isso a deixa desconfortável ou se é uma imposição, mas não vou embora até falar com ele.
— Só então ela se sentou e Stefania sabia que Layla não ia a lugar algum até obter respostas.
— Ele saiu com Morte antes do amanhecer.
— Morte?
— O cavalo. Dissemos que não era aconselhável, mas ele estava querendo tanto que não ouviu ninguém. Partiu faz...
— Não acredito em você. Quero que me leve até meu marido.
— Está escuro agora, o sol já se pôs há horas. Layla se negou a aceitar a impossibilidade.
— Xavian não anda a cavalo, seus pais o proibiam de fazer isso.
— Por favor, Layla — implorou Stefania. — Zakari foi procurar por ele. Estou do seu lado. Quero que você fale com Xavian.
— Então, irá me mostrar onde ficam os estábulos.
— Você não pode sair.
— Não vou sair para procurá-lo. Vou esperar por sua volta, antes que você e seu marido cheguem até ele e falem em meu nome.
Ela recusou a oferta de Stefania para se juntar a ela e, em vez disso, seguiu suas orientações até chegar ao luxuoso complexo de hipismo.
Era evidente que cavalos eram parte importante da vida da família real de AlTarisi, porque o local era moderno, arejado e brilhante. Mas ninguém poderia manter Xavian seguro ao cavalgar na escuridão. Em que diabos ele estaria pensando? Ela esperou uma eternidade.
Então ela o ouviu, ou, pelo menos, ouviu sons de cascos que podiam ser do cavalo de Zakari. Mas não, quando olhou para a porta do estábulo, era Xavian.
Ele desmontou do animal e o levou ao pátio. Layla tirou os véus no escuro e ficou observando o rei se aproximando, se perguntado qual seria sua reação quando descobrisse que ela estava ali.
Ele cavalgara o dia todo, galopara a toda velocidade pelo deserto e, ainda assim, não encontrara paz, nem clareza de pensamento, apenas raiva: uma fúria ardente.
Estava cheio de Zakari, de Stefania, de eles ficarem dizendo o que devia fazer. Ninguém sabia o quanto estava atormentado.
— Xavian.
Ele abriu a porta, acendeu a luz e lá estava ela, de pé, de vestido preto e salto alto, as pernas nuas, o cabelo com cachos negros e selvagens, o colar da legítima rainha de Qusay no pescoço.
— Meu avião está esperando no aeroporto. Se você não voltar comigo para Qusay, partirei para Haydar esta noite.
— Então vá embora.
— Há papéis que precisamos assinar, coisas sobre as quais precisamos conversar.
— Não tenho nada a conversar com você e não assino documentos no estábulo.
— Xavian?
Algo dentro dele se retorceu, porque ela nem ao menos sabia seu nome.
— Quando estiver vestida mais adequadamente, você poderá se encontrar comigo no palácio e falaremos de negócios.
— Eu não quero ir ao palácio.
— O que você quer? O que quer de mim? Diga agora.
— O que tínhamos antes — disse Layla. Só Xavian sabia que aquilo era impossível.
— Você quer um rei?
— Não! Eu quero você, Xavian. É você que eu quero.
— Eu? — Que piada... Ela nem ao menos sabia quem ele era. Xavian chutou a porta do estábulo, fechando-a atrás de si.
— Você não sabe nada sobre mim — rosnou Xavian. — E, ainda assim, exige tudo. Fizemos um acordo, agora você resolveu mudar as regras.
— NÓS resolvemos! — O grito de Layla foi tão poderoso quanto o dele. — Quando fizemos amor, quando nos beijamos, quando conversamos; aquilo não eram apenas negócios.
— Então, você está reclamando que fui bom demais para você? Que o sexo foi bom demais?
— Você está distorcendo minhas palavras. — Ela se recusava a simplesmente dar a costas e voltar e, agora, Xavian a admirava por isso. Mas ele temia por ela também. Por causa da vergonha que o escândalo poderia causar e, também, no seu íntimo, porque não queria ver a decepção em seus olhos quando ela descobrisse quem ele era.
— Não quero negócios. Não quero vidas separadas, você com suas amantes, com outras mulheres. Quero você todo para mim. — Layla tentava articular sua confusão, mas Xavian não podia mais agüentar.
— Por isso veio aqui vestida como uma prostituta?
— Como você preferia que eu me vestisse? — Layla exigiu saber. — Você me transformou nisto, Xavian. Eu estava preparada para fazer apenas sexo, mas você exigiu mais. Você trouxe à tona a mulher que há em mim, e agora está me mandando de volta, agora quer a humilde virgem que o obedece. Bem, ela se foi.
— Vá embora! — gritou ele. — Volte para o palácio.
— Eu não quero voltar! — Ela estava implorando novamente. Era a rainha e nunca havia implorado, mas não podia mais agüentar aquilo.
— Quero que faça amor comigo.
— Bem, por que não disse isso, simplesmente? — Xavian gritava, andando em direção a ela e abrindo o zíper de sua calça de montaria. Ela o viu ereto e, então, lhe sentiu a boca, selvagem e forte, sobre a sua. Ele a estava empurrando para o chão, suas mãos estavam por toda parte, seu corpo era um peso sólido sobre o dela, imobilizando-a, levantando-lhe o pesado vestido de seda, lhe rasgando a calcinha, lhe esmagando a boca, com os joelhos empurrando suas coxas. E, então, Xavian parou.
— E isso o que você quer? — perguntou ele, e Layla estava a ponto de chorar como nunca estivera antes. Era melhor gritar.
— Você sabe que não!
O rosto dele se enterrou em seu pescoço e Xavian sentiu o frio colar, os séculos de tradição. Podia manter tudo aquilo, junto com a mulher que estava em seus braços, se pudesse permanece calado, se não contasse a ela a verdade.
— O que é que você quer?
— Você.
— Não posso ser rei.
Daquela vez, ao ouvir o desespero daquele homem forte, ela não agiu como rainha, porque já havia aprendido a lição. Ela não exigiu respostas. Em vez disso, agiu como amante dele, porque sabia que aquilo era terrível, sabia que não conseguia pensar, porque, se pensasse, então deveria falar.
Era Layla quem o beijava agora, beijos frenéticos para tentar evitar o que viria a seguir. Ela sabia que ele estava sofrendo, também temia por ele. Por isso, o afastou pela última vez daquela sensação ruim que ele sentia e, de repente, eram só os dois de novo. Ela realmente acreditava que eles podiam dar certo, e seu corpo, longe de lutar contra ele, o estava aceitando, se igualando ao frenesi de seu desejo.
— Quero você — disse Layla e, por ora, ele lhe pertencia.
Estava dentro dela. E, ainda assim, ela queria mais; não queria chegar ao clímax, porque sabia que então, tudo acabaria, mas seu corpo estava vivo e ela tentou controlá-lo.
Xavian estava fazendo força para dentro dela e seu corpo ansiava por ele, o tragava e, ainda assim, ela lutava contra aquilo. Mas o estava segurando firme em seu centro, as mãos o puxavam mais e mais para dentro, enquanto a mente, contrária, lutava por apenas alguns minutos a mais.
Aquela paixão, todo aquele desejo não podia ser sustentado por uma só pessoa, e ela sabia em seu íntimo que Xavian estava prestes a romper o acordo.
Ele foi surpreendentemente carinhoso depois: beijou-a, ajudou a ficar de pé e se vestir. Tirou a sujeira de sua roupa.
Em seguida, olhou bem fundo nos olhos dela:
— Há certas formalidades que precisam ser cumpridas. Devo voltar para Qusay por algum tempo e é claro que você tem que voltar para Haydar e... — Ele fez uma pausa, esperando por uma pergunta, esperando que Layla o interrompesse. Mas ela não o fez, e ele não podia ter ficado com mais orgulho dela.
Podia ver que Layla estava se preparando para enfrentar o que quer que tivesse para lhe dizer.
— Se ainda quiser permanecer casada, iremos prosseguir com nosso acordo original. Com uma diferença: eu irei morar em Calista.
— Calista? — Agora era ela que o questionava. Havia se preparado para o fato de que não a desejasse, de que não quisesse governar a seu lado. Nesse caso, aceitaria os fatos com dignidade. Mas aquilo ela não era capaz de compreender. As palavras de Xavian não faziam o menor sentido.
— O que está querendo dizer? Se eu ainda quiser continuar casada? Não pode haver divórcio.
— Eu não sou o rei Xavian de Qusay. Sou o desaparecido príncipe sheik Zafir de Calista.
— Não entendo — sussurrou Layla. — Xavian.
— Meu nome é Zafir — corrigiu ele. — Isso significa que nosso casamento não é válido. O Xavian com quem você se casou não existe. Eu nunca fui esse homem. Eu não sou seu marido.
— Procuramos durante anos... Eles estavam no palácio de Calista. Layla estava sentada, tremendo, bebendo chá de camomila para acalmar os nervos despedaçados, mas aquilo não estava adiantando de nada: seus joelhos ainda tremiam. Stefania lhe colocara o manto em volta dos ombros e a sala estava aquecida, mas Layla não parava de tremer.
No seu íntimo, ela sabia o quão arrasadora aquela novidade contada por Xavian poderia ser para muita gente. No entanto, ainda assim, sua mente não estava preparada para aceitar todas as dimensões do problema de uma só vez.
Zakari e Stefania a ajudaram gentilmente a juntar A mais B, mas Xavian, ou melhor, Zafir, permaneceu em silêncio. Havia um escudo invisível em volta dele, mantinha uma distância, construíra uma barreira que o protegia, e Layla sabia muito bem que tudo o que poderia fazer seria ouvir e tentar colocar de lado sua terrível perda pessoal. Sua mente, mesmo numa época de desespero, tinha que pensar primeiro no reino.
— Meu pai não poupou despesas. Apesar de a lógica dizer que ele devia estar morto, ainda havia esperança de que estivesse vivo em algum lugar. Havia detetives, o submundo foi infiltrado e havia rumores de que ele fora adotado.
— Procuramos em todos os reinos. — Os lábios de Zakari estavam contorcidos de raiva e amargura. — Meu pai falou até com o rei de Qusay. Ele ofereceu sua ajuda total.
Zakari se virou para o irmão, que só olhava fixamente para frente.
— Sentimos sua falta todos os dias. É hora de você voltar para casa.
— Como? — A voz de Zafir não mostrava desamparo, em vez disso, exigia respostas. — Meu povo ficará arrasado. Eles já estão de luto. E o povo de Haydar? — Ele olhou para Layla. — Você beijou um rei e ele se transformou num príncipe.
— O povo de Haydar irá acolher...
— Por favor. Eu não sou o consorte para uma rainha. Não preciso de nenhum papel honorário. Poderiam nos dar licença? — pediu ele ao irmão e à cunhada.
Quando ficaram sozinhos, levou algum tempo até que um deles falasse.
Layla ficou em pé. Estava acostumada a tomar decisões difíceis em segundos, a pesar as opções, explorar as possibilidades e chegar a conclusões rápidas. Mas aquela era a coisa mais difícil que sua mente já havia cogitado.
— Eu mentirei por você.
Ele enrugou a testa quando ela disse aquilo, viu as lágrimas rolando pelas bochechas de Layla. Arriscava honra e reputação, e o povo que amava, para subir a bordo da mentira com ele. Ele não podia deixar que ela o fizesse.
— Não.
— Vou mentir. Pode confiar, jamais revelarei seu segredo.
— Não!
— Akmal nunca dirá nada. Você com certeza poderá convencer seu irmão.
— Não! — gritou ele. — Layla... — Ele não olhou para ela desta vez, apenas encarou a noite escura. — Verei o que meu pessoal pode fazer. Mas, se o casamento for irreversível, então lhe oferecerei a anulação.
— Eu não quero a anulação.
— Casei-me com você por dever.
— E quanto à minha honra?
— Estou preparado para dizer que nosso casamento jamais foi consumado. Que descobrimos a verdade sobre minha identidade no dia de nosso casamento e que passamos todo esse tempo tentando descobrir o que fazer.
— Ah! E eu achei que você estava tentando deter as mentiras. Quer queira, quer não, o casamento está consumado, estamos casados.
— Como queira. — Zafir deu de ombros.
— Então você viria comigo a Haydar?
— E receber suas ordens?
— Eu teria de ensiná-lo nossos costumes.
— Ensine. Você checaria meu trabalho? Teria que assinar também?
— Não sei — admitiu Layla, porque ela era a rainha e havia governado por muito tempo, mas nunca imaginara compartilhar tanto.
— E ler discursos? — insistiu Zafir.
— Não.
— E depois uma recompensa por me deixar brincar de rei dormindo com você à noite? Preferia ser um príncipe.
— A ficar comigo?
— Minha decisão está tomada. Hoje à noite retomarei a Qusay. Quero providenciar um local de descanso digno para Xavian. Mas o povo não precisa saber o quão displicentemente ele foi descartado. Depois que isso estiver feito, informarei ao povo sobre o que ocorreu.
— Como contarei isso a eles? — O rosto de Layla estava lívido.
— Em cadeia nacional, pela televisão — respondeu Zafir. — Nos próximos dias, assim que Xavian estiver em seu local de descanso, que lhe é de direito, e antes que boatos comecem a se espalhar. Farei contato com Kareef e direi que ele é o rei.
— Contarei a verdade a meu povo depois de você. — Os olhos de Layla estavam arregalados e o rosto pálido. Ela pensou em Kareef e nas notícias que ele receberia em breve, em quantas vidas seriam salvas. — E, depois, voltarei para Haydar.
— Sozinha — lembrou Zafir. — Preciso de tempo com minha família, mas é claro que a visitarei quando for a hora. — Ele não podia suportar pensar no povo dela, em seus olhos curiosos quando o rei deposto desse o primeiro passo para fora do avião. Sua vergonha era imensa, ele se sentia privado de sua masculinidade, mas não poderia jamais, jamais deixá-la ver isso.
— Sinto saudade de ser um príncipe. Ela deu um sorriso tenso.
— Então, um príncipe você será, como eu disse, eu informarei ao meu povo.
— Por favor, faça isso — disse Zafir com frieza, achando mais prudente mantê-la afastada. — Partirei para Qusay agora. Há muito a ser feito.
— Você será bem-vinda se quiser ficar aqui, Layla — ofereceu Stefania, quando ele não disse que ela poderia ficar com ele. — Até que a notícia seja transmitida.
Ela não podia suportar a idéia de dormirem em quartos separados, de compartilharem seu palácio e não sua cama, por isso, concordou, com gratidão.
Zakari e Stefania eram excelentes anfitriões. Eles aceitaram o fato de que ela estava em choque e suas refeições foram levadas ao seu quarto.
Stefania, doce e gentil, a sentou na cama nas primeiras horas de sua última manhã lá e o bebê Zafir ficou deitado entre elas, chutando com suas perninhas gordas, sorrindo.
Todos eles deveriam viajar para Qusay. Zakari e Stefania iriam ao enterro, enquanto Layla esperaria no palácio de Qusay e então a verdade seria revelada.
— Haverá celebração nas ruas aqui em Calista, depois eu... — Layla ainda estava de camisola, os cabelos presos num coque, os olhos inchados de tanto chorar. — E haverá lamentação em Qusay.
— E quanto a Haydar?
— Eu não sei — confessou Layla, e admitiu um pouco mais — Eles não estão felizes sob meu reinado. Com Zafir a meu lado, teria sido muito mais fácil. — Lágrimas lhe encheram os olhos e Stefania balançou a cabeça com tristeza.
— Ouvi-o falando com Zakari. Ele é rei ou nada. Seu orgulho não o deixará ser de outra maneira.
Quando o pequeno Zafir começou a chorar, foi Layla quem o pegou. Ela sentiu que seu choro parou e desejou que seu homônimo fosse tão fácil de confortar quanto ele. Mas sua simpatia só iria fazer com que as coisas piorassem.
— Eu sabia do problema que isso causaria — disse Stefania, com tristeza. — Eu sabia da confusão que isso seria para Zafir. Fui criada como uma menina pobre, era empregada do palácio quando descobri ser, na verdade, rainha. Mas foi tão pior para Zafir. Pelo menos, eu conhecia minha mãe e ainda tinha minha identidade, ainda tinha algumas verdades. Zafir não tinha nenhuma.
— Eu me pergunto se Inas e Saqr tinham alguma idéia da dor que isso causaria.
— Duvido. — disse Stefania sabiamente. — Eles deviam estar tentando poupá-lo da dor na época. Mas tudo o que conseguiram fazer foi passá-la adiante, e ela se multiplicou.
O enterro de Xavian foi pequeno, mas repleto de amor.
Zafir nunca se entendeu bem com Akmal, sempre o achou muito antiquado, metódico, mas ao ver aquele homem orgulhoso chorar, ao ver como aquilo o havia afetado, Zafir pôde compreender o que o povo de Qusay sentiria em breve.
Stefania e Zakari estavam em pé a seu lado, mas ainda assim o fato de estarem juntos só acentuava seu isolamento. Xavian foi colocado junto com seus pais; Zafir dissera que não, a princípio, mas fora aconselhado por seu irmão mais velho e compreendeu que podia acabar se arrependendo daquela decisão mais tarde. Por isso, Xavian finalmente descansou onde deveria.
Zafir viu seu nome, seu passado, seu futuro também, tudo enterrado. E então ele viu Layla se juntar ao pequeno grupo.
Ela estava usando um terninho preto com um véu simples no rosto, mas ele a teria reconhecido em qualquer lugar; e ela estava usando as esmeraldas.
— Você não foi convidada.
— Estou aqui para prestar minhas homenagens também.
Ela tirou o colar, que fora dado com amor, e o devolveu.
— Eu o passarei adiante para Kareef
— Espero que isso traga mais felicidade a sua esposa do que trouxe a mim. — Então ele viu que os dedos dela estavam sobre o anel que lhe dera. — Eu lhe disse antes que aceitasse a pedra: isso irá com você para o túmulo. Pelo menos esse é o costume da Haydar. O que você faz com essa tradição, é escolha sua.
— Layla. — Zafir se recusava a ser manipulado. — Você fala como se tivesse ido às minas pessoalmente para escolher a pedra para mim. Você nem me conhecia na época.
— Certo, disse Layla. — Eu tive que respeitar a escolha de meus pais para mim, mesmo que isso significasse dar a pedra preciosa para um homem pelo qual não sentia nada, mesmo que isso me causasse repulsa. — Ela olhou para ele e eles já não estavam mais falando da jóia. — Ainda assim, esse presente foi dado. O que meu marido escolher fazer agora... — Ela engoliu lágrimas que surgiram de repente. — Tenho orgulho de vir de Haydar. Quando nós damos um presente, é para sempre.
Ela olhou para as esmeraldas em sua mão para provar o que dizia.
— Há algo que precisa saber. — Ele esperou por um tapa, por palavras cruéis merecidas, mas nada disso aconteceu. — Podemos fazer dar certo; eu o amo, Zafir.
Ele não conhecia nem a si mesmo, como é que ela poderia amá-lo? Ele estava cansado de banalidades, de Zakari e Stefania o insuflando com aquelas palavras, de seus irmãos lhe esperando, do amor incondicional apenas por causa de seu nome, do amor que amarrara Layla ao casamento.
— O amor — disse Zakari, segurando as pedras na palma da mão — não fazia parte do acordo.
— Não — concordou Layla. E foi tudo.
Ela não iria mais implorar; apenas esperava que não sentisse tanto a sua falta.
— Vamos acabar logo com esse dia para que eu retorne a Haydar...
Voltaram de carro, percorrendo rapidamente a curta distância até o palácio, onde foram saudados por Akmal.
— Falei com os anciãos. Eles acham que a notícia não deve vir de você. Se eu falar primeiro...
— Eu mesmo contarei ao povo! — Zafir foi insistente. Era a última coisa que podia fazer por seu povo, e ele era corajoso o suficiente para tomar a responsabilidade para si.
— Faça o anúncio — deu a ordem. — Diga à imprensa que falarei para a nação antes do pôr do sol.
Akmal se voltou para Layla.
— E seu povo? — Ele esqueceu de acrescentar Alteza ao seu dirigir a ela, mas nenhum dos dois se importou ou percebeu isso. Layla estava comovida porque no momento mais difícil, Akmal havia pensando nos súditos dela também. — O que irá dizer a eles?
— A verdade. Que ainda sou rainha e que meu marido agora é o príncipe Zafir de Calista. Ele escolheu não ser rei. Vamos acabar logo com isso. Quero voltar para Haydar. Talvez tirar alguns dias de descanso. Gostaria de passar algum tempo com minhas irmãs.
Enquanto Akmal pedia licença e saia, Layla se moveu para fazer o mesmo. Ela não agüentaria ficar nem mais um minuto, por isso se virou para ir embora. Mas ele a pegou pelo braço. Havia algo que precisava saber:
— Você está grávida? — perguntou Zafir. — É por isso que precisa de alguns dias de descanso?
— Não para a primeira pergunta — disse ela. — E não para a segunda também. Vou ouvir a coletiva de imprensa e depois prepararei meu discurso.
— Irei para Haydar em breve. — Ele exigira a separação, percebeu Zafir, mas ainda assim não conseguia vê-la partir.
— Isso não será necessário.
— Eu lhe prometi herdeiros.
— E você os terá. Pense em mim quando fizer isso.
Ele não entendeu. Ela explicou melhor.
— Estamos no século XXI, Zafir. Haydar pode não produzir seus próprios médicos, mas tem hospitais maravilhosos. E um centro de fertilidade.
— Não.
— Sim — disse Layla. — É tudo ou nada.
Qusay estava imersa em luto pesado. O anúncio havia sido feito e a imprensa ficara chocada com tantas perguntas. Até mesmo o apresentador do programa de televisão, quando a câmara cortou de volta para ele, tinha lutado por alguns instantes para continuar. Até as servas que trouxeram o almoço de Layla estavam chorando.
Mulheres e até homens adultos choravam e uma longa fila se formou do lado de fora do cemitério real enquanto as pessoas vinham prestar suas homenagens ao príncipe Xavian. Nunca houve nada igual.
A multidão de conselheiros não conseguia concordar em como deveria anunciar Zafir, que nome utilizar. Pilhas de papel descartado se acumulavam enquanto eles tentavam escrever seu discurso final, mas Zafir recusou sua oferta final.
— Falarei de improviso.
— Você tem que dizer...
— Quem tem? — interrompeu ele. — Quem tem que dizer o quê? Eu sou o rei deles? Sou Xavian hoje ou sou Zafir?
Ele se sentou por algum tempo em silêncio. Quando foi ao banheiro e lavou a maquiagem do rosto, olhou para o maxilar não barbeado e para os olhos avermelhados. Havia perdido tudo.
Ah, ele ainda era riquíssimo. Ganhara uma família, irmãos, um título que lhe pesava menos. E, depois disso, teria que fazer o discurso mais difícil de sua vida, de sua vida verdadeira: a vida de Zafir. Mas, ainda assim, ele a havia perdido.
Reis não choravam, mas ele não era mais rei. E ainda assim, ele não conseguia fazer isso; se recusava a deixar que o borrão diante de seus olhos abrisse uma porta que ele percebera tarde demais ser a errada. Ele ouviu a voz dela enquanto ela se reclinava na cadeira de maquiagem e seus conselheiros faziam seu trabalho: aconselhavam. — Ressalte seus conhecimentos — uma voz disse. — Ressalte que ele não é rei, mas um príncipe de Calista. Mencione a riqueza desta terra e os raros diamantes rosa, a rica linhagem que seus novos herdeiros trarão para Haydar, diga que esta união continua sendo boa para nosso povo.
— Falarei com minhas próprias palavras, Imram.
— Alteza.
— Você me deixará em paz para que eu me prepare para isso — respondeu Layla bruscamente.
— Mas esta não é uma época comum.
— Então, um discurso incomum se faz necessário! — Layla respondeu, esperta, e Zafir sentiu um sutil sorriso em seus próprios lábios enquanto ela falava em sua voz áspera e arrogante; apenas um pequeno sorriso, resultante do privilégio de conhecê-la melhor, de um modo diferente dos demais.
— Algo que sou mais do que capaz de preparar, pelo menos por algum tempo, se me deixar sozinha.
E então ela ficou sozinha com Baja, e Zafir sabia que tinha de ir embora, porque logo falaria ao povo. Ele gentilmente foi fechar a porta, mas ouviu a voz dela novamente.
Não era a Layla que ele havia conhecido, não a Layla que ele havia descoberto, mas outra Layla; uma que ele não reconheceu.
— Não posso fazer isso Baja. — Ele ouviu o terror na voz dela e a pura exaustão.
— Vossa Alteza pode fazer isso.
— Não posso sair. Estou tão cansada, Baja.
— Seu povo será gentil.
— Não me importo com o povo! — soluçou ela, e Zafir sentiu seu coração ficar paralisado com a honestidade crua de sua voz.
— Às vezes, Baja, às vezes, só por alguns instantes, eu realmente quero cuidar de mim mesma. Hoje a questão não é o rei que eles perderam, ou o acordo que não deu certo, ou o fato de que eles tiveram que sofrer sob o reinado de uma mera rainha. Hoje a questão também sou eu.
— Layla — implorou Baja, deixando de lado o título, envolvendo-a em seus braços —, eu sei melhor do que ninguém o quanto isso é difícil pra você.
Zafir percebeu que ela estava assustada e seu instinto foi de tranqüilizá-la.
— Eu não quero — chorou Layla.
— Você não deve dizer isso — insistiu Baja.
— É a verdade. Amanhã, na semana que vem, talvez eu esteja forte novamente, mas, por ora, não quero ser rainha.
— Isso vai passar — implorou Baja. — Lembre-se disso. Sentimentos passam. Em certos dias você se sente fraca e então volta mais forte.
— Não desta vez.
— Sim, desta vez. — insistiu Baja.
— Estou cansada de ser forte — chorou Layla. — Cansada de sempre ter de ser forte. Cansada de ser durona. Estou cansada de ser rainha.
— Você não tem escolha. Baja tirou seu aplicador de maquiagem e colocou um pouco nas bochechas. — Você tem que ser duas vezes mais forte do que qualquer outro homem para reinar sobre Haydar.
Mas ela não fez isso, Zafir sabia que com ele ao seu lado, ela podia ser ela mesma.
— Layla! — E ele observou sua tensão, viu suas feições voltarem ao local habitual.
— O que está fazendo aqui? Com certeza deve estar na hora de seu discurso?
— Alteza! — A voz fina do conselheiro voltou. — Preciso informá-la.
— Agora não! — gritou ela para Imram, chocada com o que Zafir poderia ter ouvido. Ela estava lutando para manter-se controlada. — Já disse que estou ocupada. Quero ser deixada sozinha.
— É claro. — Imram se curvou ligeiramente. — Só que houve um terremoto em Haydar.
Zafir observou seu rosto pálido.
— Há feridos? Quantos se machucaram?
— Apenas recebemos as notícias, não há relatórios de feridos.
— Onde? — perguntou Layla. — Na cidade ou nas vilas?
— Ainda é cedo — aconselhou o auxiliar. — Sinto muito por importuná-la num momento tão difícil.
— É claro, você tinha de me informar. Perdoe minha resposta seca.
— Uma outra coisa. — Ele mostrou um folder. — Este documento deve ser enviado a Haydar; o portador está esperando.
— É claro... — Os olhos de Zafir se estreitaram enquanto ele observava o esforço que ela fazia para manter a compostura, sua mão tremendo enquanto ela assinava seu nome.
— Sabemos as proporções do terremoto ? — perguntou Zafir a uma serva.
— Assim que eu tiver maiores informações, eu as transmitirei.
— Alteza. — De repente, um agitado Akmal apareceu. — O que está fazendo? Está na hora, as câmeras estão prontas.
Zafir foi guiado pelos corredores do palácio e levado até uma mesa enorme e, ao se sentar, empurrou para o lado o aplicador de pó, deixou de lado seus próprios pensamentos, deixou de lado até mesmo Layla, pois pela primeira vez ele falaria à nação como seu soberano.
Ele tinha de ser mais forte do que eles, tinha de guiá-los naquela época difícil, mostrar a eles o caminho, mesmo que ele próprio estivesse esgotado.
Era muito solitário ser rei. E ser rainha também. Xavian percebeu as câmeras ligadas.
— Povo de Qusay — Zafir limpou a garganta —, peço sua total atenção. Peço que ouçam minhas palavras e parem de se lamentar um momento para ouvir o que digo, e rezo para que possa acalmar seus temores. O príncipe Xavian está junto de seus pais. Muitos de vocês vieram honrá-lo hoje. O cemitério real fechou antes do pôr do sol, mas será reaberto do nascer ao pôr do sol por mais uma semana. Entendam que vocês precisam honrar Xavian e talvez perdoarem o rei e a rainha, como eu também espero fazer.
Ele não podia ver que os olhos de Akmal estavam fechados, como se rezasse.
— Eles tentaram enganar a morte. Esse foi seu pecado. Mas tenho certeza de que não foi intenção deles, na época, mentir para seu povo. Eles estavam tentando, acredito eu, não causar dor, mas preveni-la; queriam manter seu filho, o futuro regente, vivo. Eu não pude, não consegui entender e ainda estou começando a compreender. Porque compreender isso me deu uma escolha: trapacear a morte novamente. Viver uma mentira. Poupar vocês dessa dor. Mas o povo de Qusay é forte.
Zafir olhou para Akmal e ele abriu os olhos, concordou sutilmente com a cabeça.
— Forte e orgulhoso, por isso, preferiria a dor da verdade, sei disso. Mentiras se espalham. Mentiras invadem feito câncer. Mais gente teria descoberto. Meus irmãos teriam se lamentado caso soubessem da verdade. Minha esposa.
Layla observava de outro aposento e constatava por que ele devia ser rei: todos estavam hipnotizados por suas palavras seguras e tranqüilizadoras.
— Povo de Qusay, os filhos do rei Yazan, Kareef, Rafiq e Tahir são seus príncipes. Enquanto conversamos agora, os anciãos estão falando entre si para informá-los da mudança. O príncipe Kareef de Qusay será nosso novo rei. Ele já é, como você sabem, um soberano mais forte e mais justo, e confio vocês, povo de Qusay, a ele.
Imagens de Tahir, Rafiq e do próprio Kareef foram projetadas na tela. E Zafir saiu dali. Ficou sozinho no corredor. Akmal veio até ele.
— Obrigado.
— Volte — disse Zafir. — Diga-me a resposta. Tenho muito trabalho a fazer.
Foi quando ele a viu, passando rapidamente por ele, seu rosto como porcelana, seus belos olhos, seu cabelo brilhando, caminhando com confiança, seus olhos passeando levemente sobre os dele enquanto ela dava um aceno de cabeça à guisa de saudação.
— Três ponto oito. O terremoto, que você queria tanto informar à rainha, foi medido em três ponto oito.
— Ela gosta que a mantenham informada. Deixe-me ver os documentos que ela assinou.
— Isso é assunto de Haydar. — Imram piscou os olhos rapidamente.
— Quer que eu grite? — perguntou Zafir. — Quer descobrir o estrago que meu grito pode causar?
— É claro que não — disse o servo rapidamente. — Mas é um documento particular. E você é apenas um príncipe.
— Sou rei — disse Zafir e, apesar de dever ter dito isso primeiro a ela, se sentia bem, se sentia maravilhosamente bem ao dizer aquelas palavras. — Sou o rei Zafir Arparisi de Haydar e você seria um tolo se não me entregasse o documento. Traga-me uma cadeira para que eu possa sentar ao lado da rainha.
Ele viu em seus olhos que ela concordava. Aquela não era a hora de brigas, talvez, mas enquanto ele se sentava ao lado dela, Layla falou baixo:
— Prefiro fazer isso sozinha.
— Eu ficaria orgulhoso e honrado por reinar a seu lado. Orgulhoso por poder ajudar a liderar o povo de Haydar.
Houve uma pausa agonizante enquanto Layla percebia que estavam ao vivo na televisão. Suas bochechas pálidas ficaram vermelhas quando ela se virou para a câmera, as palavras grudadas em sua garganta.
— Meus súditos — começou ela, e depois hesitou. As lágrimas eram grandes demais para permitir que continuasse o discurso mais importante na história de seu país: não poderia haver lágrimas, nenhuma fraqueza, nenhuma prova de suas emoções. E mesmo assim, não conseguia falar. Depois, de algum modo, conseguiu encontrar as palavras de que necessitava para continuar.
Sua voz, sem hesitação, se dirigiu aos presentes, dizendo ao povo que tudo ficaria bem, que Haydar iria crescer e prosperar.
Sua mente confusa lutava parar assimilar a declaração de Zafir. Ela estava assustada demais para acreditar que daquela vez ele falava a verdade, que não iria tirar aquilo dela novamente.
— A rainha irá responder a perguntas.
Ela achava que tais perguntas seriam sobre Zafir, sobre qual seria seu papel, mas, em vez disso, uma jornalista a surpreendeu;
— A senhora concordou em adiar a construção do novo hospital-escola?
Layla podia apenas expressar surpresa, virando-se para as servas, que olhavam rigidamente para frente.
— Assinou o acordo hoje mesmo — continuou a jornalista, com ousadia, e Layla finalmente se deixou desmoronar, sabia naquele instante o que acontecera. Porque era o que ela temera por muito tempo.
Seus servos e auxiliares haviam esperado pelo momento de fraqueza e aproveitaram a oportunidade, mas não havia nada, nada que ela pudesse fazer. Anos de trabalho em prol de seu povo haviam sido jogados fora por sua própria assinatura.
— Não existe acordo algum. — A voz poderosa de Zafir preencheu a sala silenciosa.
— Zafir. — A voz dela estava embargada, sua mão buscando a dele para detê-lo, porque sabia o que fizera, mas ele tirou os dedos de debaixo da mesa e os apertou com firmeza e, de algum modo, naquele momento, uma confiança hesitante surgiu, e Layla sabia que tudo o que tinha que fazer era se agarrar a ele.
— Sei de fonte segura que o acordo foi assinado — desafiou um jornalista. Depois, acrescentou apressadamente: — Alteza.
— Eu sugiro — a voz de Zafir também tinha tom de desafio — que peça a sua fonte que providencie o documento, o que ela não pode fazer, porque o documento não existe.
Debaixo da mesa, sua mão soltou a dela, mas ela ainda podia sentir seu calor.
Era mais do que um toque, era apoio oferecido em silêncio quando ela sentia que não poderia mais continuar; era como as coisas poderiam ser.
Naquele, o mais triste dos dias, ela viu a possibilidade de uma fantasia se tomar realidade.
— Qual será seu papel? — Outro jornalista deu continuidade à entrevista, fazendo a pergunta que estava na ponta da língua de todos. — Ficará dividido entre Calista e Haydar? Tem alguma palavra para o povo de Haydar?
— Hoje, há um choque. — A voz de Zafir era forte. — Em Qusay e em Haydar, todo o povo está em choque. Amanhã nós iremos dar boas-vindas a essas mudanças. Qusay tem um novo rei: o rei Kareef e Haydar...
Ele fez a coisa mais corajosa, mais inesperada: Zafir abriu um leve sorriso.
— Eu disse para minha esposa. Ela beijou um rei e ele virou um príncipe. Mas um príncipe que tem orgulho de servi-los da melhor maneira possível. Terei orgulho de servir ao lado de minha esposa como rei.
E tudo o que restava para Zafir fazer era partir de Qusay. Andar pelo palácio, olhar para os retratos de seus predecessores de olhos azuis e finalmente entender por que nunca havia sentido que aquele era o seu lugar.
— Você voltará, lhe assegurou Stefania. — Qusay sempre o receberá de braços abertos.
— Eu sei disso.
— E você, virá para Calista em breve? — Zakari tinha lágrimas nos olhos pelo irmão que havia procurado tanto tempo. Agora que o havia encontrado, ele já estava partindo.
— É claro — disse Zafir. — Tenho irmãos para conhecer, uma vida para me atualizar, mas preciso ir a outros lugares agora. — Ele olhou para Layla, que estava calma e comportada, mas ele sabia que ela tremia por dentro.
— Nós não sabemos qual será a reação em Haydar. Não é justo que Layla volte sozinha.
Ele abraçou seu irmão e sua cunhada e depois beijou o pequeno Zafir, que levava sua memória. E mesmo que fosse difícil dizer adeus, ele sabia que não seria por muito tempo. A parte mais difícil ao partir naquela noite, era dar adeus ao seu vizir de confiança, um homem que ele havia considerado esnobe, mas que havia ficado ao seu lado e se oferecido para continuar a fazê-lo.
— Precisam de você aqui, Akmal — disse Zafir.
— Para mostrar ao rei Kareef como as coisas são feitas.
— Ele pegou o belo colar de esmeraldas e o devolveu a Akmal. — Para quando for a hora certa.
Qusay não precisava de mais nada dele dali em diante, por isso ele subiu a bordo do jato real de Haydar, sentou ao lado de Layla e olhou pela janela durante e decolagem, observando as luzes de Qusay diminuindo de tamanho e fazendo uma prece pelo povo que ficaria seguro sob a liderança de Kareef
Ele estava grato por Layla estar quieta, mas ainda assim desejava o calor suave de suas mãos. Então Baja entrou.
— Alteza, o capitão me disse para pedir desculpas. Sinto muito.
Zafir franziu sua expressão enquanto a mulher falava com sua rainha, porque Baja não parecia nem um pouco arrependida.
— Há um pequeno problema técnico, não podemos transmitir as notícias de Haydar para o avião.
— Como poderei medir a reação de meu povo? — perguntou Layla bruscamente, depois mandou Baja sair, cansada demais para discutir. Mas, mesmo ao mandá-la embora, queria chamá-la de volta. Porque, sem Baja, Layla ficaria sozinha com Zafir pela primeira vez desde o comunicado e ela não tinha certeza de que gostaria de ouvir as respostas àquelas perguntas.
Ela não queria descobrir que aquilo havia sido apenas um exercício de relações públicas: um discurso bem feito para conquistar seu afeto para que ela fosse esquentar sua cama à noite.
— Eu estava confuso — ele falou primeiro, e ouvir aquele homem poderoso e seguro admitir uma fraqueza fez com que Layla virasse o rosto para ele. — Mais confuso do que qualquer homem jamais poderia se sentir.
Eu não tinha nada, Layla. Não tinha nem mesmo certeza de possuir uma esposa.
— Nós estivemos na frente de um juiz.
— Aquele não era eu.
— Era você na cama naquela noite — disse Layla. — Você, qualquer que seja seu nome ou título, que tirou muito mais do que minha virgindade. Você me mostrou como as coisas poderiam ser e depois, quando o primeiro sinal de problemas apareceu, você tirou isso de mim.
— Eu queria lhe dar uma chance — disse Zafir, e Layla percebeu que era a primeira vez que ela havia tido uma chance. Sim, ela já havia tomado muitas decisões, mas uma escolha pessoal? Não havia tido nenhuma, absolutamente nenhuma questão quanto ao rumo de sua vida.
Ela fora criada para ser rainha, mas até isso seria tirado dela se um irmão viesse junto.
Esperava-se que ela se casasse com um homem que nunca havia visto, para produzir herdeiros, para governar Haydar; mas ela nunca tivera escolha. E sim, a seu modo, Zafir havia lhe oferecido uma opção.
— Eu não sou o que você esperava. Ele a fez rir, mas o riso engasgou em sua garganta e ela começou a chorar.
— Não preciso conferir sua assinatura. Não preciso ler seu discurso. Eu sei que você está do meu lado. Mas eu menti para você, Zafir. — Ela engoliu em seco.
— Eu sei — disse ele. — Ouvi você falando com Baja sobre como às vezes o fardo é pesado demais para que você possa carregar.
— Não é que... — Ela balançou a cabeça negativamente. — Eu quero não apenas seu amor, não apenas seu corpo, mas sua sabedoria também. — E ele a envolveu em seus braços. — Eu tenho tanto medo de ir fundo demais, mas não foi só sobre isso que menti.
— Diga-me. — Ele sorriu, e ela não sentia mais medo. Bem, só um pouco.
— Quando voltamos do deserto. — Layla engoliu em seco. — Quando você foi para Calista, menti para você.
— Não compreendo.
— Quando você perguntou se eu estava grávida.
Ele estava lívido, mas havia um esboço de sorriso esperando para aparecer e isso a estimulou a prosseguir.
— Eu menti quando disse que não havia bebê...
Ele a beijou e foi maravilhoso, mas ele não entendia muito bem a situação...
— Por que você mentiria? Você devia saber o que ia encontrar, e toda aquela história de clínicas de fertilidade...
— Eu jamais abdicaria de meu título, a não ser que o perdesse, ou se aquele terremoto tivesse sido grande demais e eu estivesse voltando hoje à noite para enfrentar uma catástrofe. Zafir, eu queria estar certa do que você estava me dando e queria que você visse tudo de que estávamos desistindo. Era tudo ou nada, e eu queria que você compreendesse isso. Posso lidar com qualquer coisa, se puder dormir a seu lado à noite.
— Então, agora nós temos tudo.
O medo, a solidão, aquilo que ele havia sentido durante tantos anos, tudo saiu de seu peito e deixou seu coração batendo livremente, enquanto as doces palavras dela lhe banhavam os sentidos.
Ela teria um bebê. E enquanto eles tentavam assimilar a notícia, ele não era rei, nem o consorte para uma rainha, e Layla não era rainha. Em vez disso, eles eram um casal. Mortais que haviam feito um milagre.
As notícias não eram mais sobre a linhagem dos herdeiros; uma nova família real estava emergindo e reinaria com uma nova compreensão do que realmente importava na vida.
— Estou tão nervosa — admitiu Layla, olhando para a tela da televisão. O rosto de Kareef, o novo soberano de Qusay, piscou diante de seus olhos, depois, imagens dos irmãos, Rafiq e Tahir e imagens do povo nas ruas e sua reação de choque ao tentar compreender tudo o que havia acontecido. Sua mente, como costumava fazer, mesmo nos momentos de maior ternura, se voltou para seu próprio povo e para como eles aceitariam as novidades.
— Tanta coisa mudou.
— Tanta coisa foi consertada — redarguiu Zafir, e o noticiário foi desligado enquanto as luzes da cabine eram diminuídas e eles se preparavam para a aterrissagem.
Layla podia sentir seu coração martelando em seu peito enquanto tentava avaliar qual seria a reação de seu povo. Ela havia saído de lá como uma rainha virgem envolta num robe para unir Haydar a Qusay e prometera voltar com um rei...
Mas, quando a mão dele envolveu a dela, Layla soube que, assim como esperava que seu povo também soubesse em breve, que ele era muito melhor do que o que diziam sobre ele. O povo teria seu tão aguardado rei. Mas, talvez demorasse até que ele fosse aceito.
— O que são essas luzes? — Zafir olhou pela janela, para a nova terra que o aguardava.
— Deve ser o palácio — disse Layla, sem seguir seu olhar, seus olhos fixos adiante, porque ela odiava aterrissagens.
— Não, nas ruas — começou Zafir, mas não prosseguiu, sentindo sua tensão e segurando a mão dela enquanto o trem de pouso tocava a pista e o avião lentamente parava, numa aterrissagem perfeita.
As luzes da cabine se acenderam e Baja se aproximou com a assistente de maquiagem.
— Agora não. — Layla balançou a cabeça. — São duas da manhã.
— Mas haverá fotógrafos.
— Então me proteja! — disse Layla. — Não quero fotógrafos até que eu saiba da reação de meu povo e... — Ela parou onde estava. — Graças aos problemas técnicos, não pudemos assistir ao noticiário. Não quero que isso se repita.
Mas Baja não estava ouvindo e instruiu a maquiadora para que continuasse, o que ela fez, mexendo nos cabelos e no vestido de Layla mesmo com ela parada. Layla estava nervosa demais para reclamar, distraída demais para perceber o sorriso secreto de Baja. Mas Zafir percebeu.
Seu cenho franzido, olhando em direção a Baja indicava uma pergunta, e não chateação, mas ela não respondeu, apenas baixou os olhos modestamente, e ainda assim aquele sorriso dançava em seus lábios. E então a porta foi aberta e Layla simplesmente perdeu o fôlego.
A pista ficava em solo real, mas mesmo assim gritos vindos das ruas próximas cobriram a distância. As luzes que Zafir havia visto eram velas sendo seguradas. Certamente todas as famílias de Haydar haviam saído para saudar a realeza!
— Saúdem o rei Zafir, de Haydar!
— Saúdem a leal rainha Layla!
— Eu queria que fosse uma surpresa — Baja falou sem permissão. — Seu povo a ama, Layla, todos só querem vê-la feliz. — Olhos escuros e sábios se viraram para Zafir. — Eles também o amam, Alteza...
Estava escuro, era tarde, mas eles nem pensavam em ir deitar.
Haydar queria celebrar e o novo casal real deveria participar. Um carro aberto foi chamado e eles desfilaram acenando enquanto eram levados pelas ruas em meio ao clamor da população. Haydar nunca estivera tão vibrante.
Aquela era o novo começo pelo qual eles haviam ansiado.
— Estou em casa. — As palavras de Zafir se perderam no ruído ensurdecedor da multidão, e Layla teve que se inclinar em direção a ele para tentar compreender o que ele dizia, mas o barulho era alto demais para que ele pudesse explicar.
Durante anos, intermináveis e solitários anos, havia ocorrido uma busca por algo que ele não conhecia: paz, felicidade, por si mesmo. E ali estava ela, a liberdade.
A liberdade que o amor lhe trazia, a liberdade de ser ele mesmo.
Era uma liberdade que não podia ser encontrada num palácio que ele não havia herdado por direito, e muito havia mudado para que ele encontrasse a liberdade verdadeira numa terra da qual fora separado havia duas décadas.
— Estou em casa — disse ele novamente e, daquela vez, Layla o ouviu e não precisou de esclarecimento ou explicações, porque sentiu o mesmo. Seu povo, sua vida, suas responsabilidades não seriam mais um fardo. O amor reinava naquela terra.
— Também estou em casa — disse Layla. — Meu lar é com você.
Carol Marinelli
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