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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ALMA NEGRA / Holly Black
ALMA NEGRA / Holly Black

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

MEU IRMÃO, BARRON, está sentado ao meu lado tomando um restinho de chá batido com leite por um largo canudo amarelo, fazendo barulho. O banco do meu Mercedes foi todo reclinado para trás, e Barron está com os pés no painel, os saltos dos sapatos pretos de bico fino arranhando o plástico. Com o cabelo penteado para trás e os óculos espelhados, ele parece o exemplo perfeito de vilania.
Na verdade, ele é agente federal júnior, ainda em treinamento, claro, mas com carteira, distintivo e tudo.
Para ser justo, ele também é vilão.
Bato os dedos enluvados com impaciência na curva do volante e levo o binóculo aos olhos pela milionésima vez. Tudo o que vejo é um prédio com janelas cobertas por tábuas no lado ruim do Queens.
– O que ela está fazendo lá dentro? Já faz quarenta minutos.
– O que você acha? – pergunta ele. – Sendo malvada. É o trabalho de meio-período dela agora. Cuidar dos negócios escusos para que as luvas de Zacharov fiquem limpas.
– O pai dela não a colocaria em situação real de perigo – digo, mas o tom da minha voz deixa óbvio que estou tentando convencer a mim mesmo mais do que ao meu irmão.

 


 


Barron ri com deboche.

– Ela é novata como soldada. Tem que provar seu valor. Zacharov não poderia deixá-la longe do perigo nem se tentasse e ele não vai se esforçar muito. Os outros estão de olho, esperando que ela demonstre fraqueza. Esperando que faça besteira. Ele sabe disso. Você também deveria saber.

Penso nela aos doze anos, uma garota magrela com olhos grandes demais para o rosto e um ninho de cabelo louro embaraçado. Nas minhas lembranças, ela está sentada no galho de uma árvore, comendo uma tira de alcaçuz vermelho. Os lábios estão melados por causa do doce. Os chinelos, pendurados nos dedos. Lila está entalhando suas iniciais no tronco, bem no alto, para o primo não poder dizer que ela está mentindo quando contar que chegou mais alto do que ele.

Garotos nunca acreditam que sou capaz de superá-los, ela me disse na época. Mas eu sempre ganho no final.

– Talvez ela tenha visto o carro e tenha saído por trás – cogito.

– Não há como ela ter nos identificado. – Ele suga o canudo. O barulho de copo vazio ecoa pelo carro. – Nós somos ninjas.

– Alguém aqui é presunçoso – retruco.

Afinal, seguir uma pessoa não é fácil, e Barron e eu não somos tão bons, independentemente do que ele diga. Minha superior na agência, Yulikova, me encorajou a colar em Barron para aprender de perto e ficar em segurança até ela decidir como dizer para os chefes que tem um mestre de transformação com comportamento ruim e registro criminal. E, como Yulikova está no comando, Barron tem que me ensinar. Isso é só por alguns meses, até eu me formar em Wallingford. Vamos ver se nos suportamos por tanto tempo.

Obviamente, tenho certeza de que Yulikova tem em mente outro tipo de aprendizado.

Barron sorri, e os dentes brancos brilham como dados lançados.

– O que você acha que Lila Zacharov faria se soubesse que você a está seguindo?

Dou um sorriso em resposta.

– Provavelmente me mataria.

Ele assente.

– Provavelmente. E me mataria duas vezes por ajudar você.

– Você provavelmente merece – digo.

Ele ri.

Nos últimos meses, consegui tudo o que sempre quis, mas joguei no lixo. Tudo o que achei que jamais poderia ter me foi oferecido em uma bandeja de prata: a garota, o poder, um trabalho como braço direito de Zacharov, o homem mais temível que conheço. Nem teria sido tão difícil trabalhar para ele. É provável que fosse até divertido. E, se eu não me importasse com quem eu machuco, tudo isso ainda seria meu.

Levanto o binóculo e observo a porta de novo: a pintura gasta descascando e se soltando como migalhas de pão, a parte de baixo irregular, como se tivesse sido roída por ratos.

Lila ainda seria minha.

Minha. A linguagem do amor é assim, possessiva. Deveria ser o primeiro aviso de que esse sentimento não vai incentivar a melhora de ninguém.

Barron geme e joga o copo vazio no banco de trás.

– Não acredito que você me chantageou para virar agente da lei e agora tenho que suar cinco dias por semana com os outros recrutas enquanto você usa minha experiência para seguir sua namorada. É justo?

– Um: acho que você está se referindo ao benefício extremamente duvidoso da sua experiência. Dois: Lila não é minha namorada. Três: eu só queria ter certeza de que ela está bem. – Eu conto cada item com os dedos cobertos de couro. – Quatro: a última coisa que você deveria esperar é justiça.

– Fique na cola dela na escola – diz Barron, ignorando tudo o que acabei de falar. – Vamos. Tenho uma ligação para fazer. Vamos acabar com essa aula e comer umas fatias de pizza. Eu até pago.

Eu suspiro. O carro está abafado e cheira a café velho. Eu gostaria de esticar as pernas. E Barron deve estar certo, é melhor desistir. Não pelos motivos que ele citou, mas pelo que ficou implícito. Não é certo ficar se esgueirando em frente a construções para espionar a garota de quem você gosta.

Meus dedos estão procurando com relutância a chave quando Lila sai pela velha porta, como se minha desistência a tivesse atraído. Está usando botas pretas de montaria e um sobretudo cinza. Observo os gestos ágeis das mãos enluvadas, o balanço dos brincos, o som dos saltos nos degraus e o movimento do cabelo. Ela é tão linda que mal consigo respirar. Atrás dela vem um garoto com o cabelo trançado na forma de dois chifres de antílope. A pele é mais escura do que a minha. Ele está usando calça jeans folgada e um casaco com capuz e enfia no bolso de dentro um bolo de alguma coisa que parece dinheiro.

Fora da escola, Lila não se dá o trabalho de usar lenço. Vejo o colar escuro de marcas no pescoço dela, cicatrizes pretas onde a cinza foi enfiada. É parte da cerimônia quando você entra para a família criminosa do pai dela, cortar a pele e jurar que você morreu para a vida antiga e renasceu na perversidade. Nem mesmo a filha de Zacharov foi poupada.

Ela pertence ao grupo deles agora. Não tem volta.

– Olha só – diz Barry com alegria. – Aposto que você está pensando que acabamos de observar o encerramento de uma transação muito ilícita. Mas vamos considerar a possibilidade de que a pegamos fazendo algo totalmente inocente, apesar de constrangedora.

Olho para ele sem entender.

– Constrangedora?

– Como um encontro para jogar aqueles jogos de cartas em que você tem que colecionar tudo. Pokémon. Magic the Gathering. Talvez estejam treinando para um torneio. Com todo o dinheiro que ela acabou de entregar para ele, imagino que ele tenha vencido.

– Engraçadinho.

– Talvez ele esteja dando aulas de latim para ela. Talvez eles estivessem pintando miniaturas. Ou ela pode estar aprendendo a fazer bonecos com sombras.

Ele simula um pato com a mão enluvada.

Dou um soco no ombro de Barron, mas não com muita força. Só o bastante para fazê-lo calar a boca. Ele ri e ajeita os óculos, empurrando-os para cima.

O garoto de tranças atravessa a rua de cabeça baixa, o capuz erguido para encobrir o rosto. Lila anda até a esquina e levanta a mão para chamar um táxi. O vento balança o cabelo dela, tornando-o um emaranhado de ouro esvoaçante.

Eu me pergunto se ela fez o dever de casa para segunda-feira.

Eu me pergunto se ela poderia voltar a me amar.

Eu me pergunto o quão furiosa ela ficaria se soubesse que estou aqui, observando-a. Provavelmente muito, muito furiosa.

O ar frio de outubro toma conta do carro de repente e joga o copo vazio para o outro lado do banco de trás.

– Vamos – chama Barron, se inclinando para a porta e sorrindo para mim. Eu nem reparei quando ele saiu. – Pegue umas moedas para o parquímetro e as suas coisas. – Ele indica a direção do garoto das tranças com um movimento de cabeça. – Vamos segui-lo.

– E aquele telefonema? – Estou tremendo, só de camiseta verde. Minha jaqueta de couro está embolada no banco de trás do carro. Estico a mão para pegá-la e a visto.

– Eu estava entediado – diz Barron. – Agora, não estou mais.

De manhã, quando ele me disse que treinaríamos seguir pessoas, escolhi Lila como alvo de brincadeira, um pouco por um desejo doentio. Não achei que Barron fosse concordar. Não achei que a veríamos saindo do prédio e entrando em um táxi. Eu certamente não achava que viria parar aqui, perto de descobrir de verdade o que ela anda fazendo quando não está na escola.

Saio do carro e bato a porta.

Esse é o problema da tentação. É tentadora demais.

– Quase parece trabalho de agente de verdade, não é? – comenta Barron enquanto andamos pela rua de cabeça baixa contra o vento. – Sabe, se pegássemos sua namorada cometendo um crime, aposto que Yulikova nos daria um bônus por sermos alunos exemplares.

– Só que não vamos fazer isso – digo.

– Achei que você quisesse que fôssemos mocinhos.

Ele dá um sorriso largo demais. Está se divertindo ao me provocar, e minha reação só piora tudo, mas não consigo parar.

– Não se significar machucá-la – retruco, com a voz tão seca quanto consigo. – Ela, nunca.

– Entendi. Machucar, ruim. Mas que desculpa você dá para persegui-la e aos amigos dela, irmãozinho?

– Não estou dando desculpas – digo. – Apenas estou fazendo isso.

Seguir, perseguir alguém não é fácil. Você tenta não olhar demais para a nuca da pessoa, tenta ficar longe e agir como se fosse qualquer um congelando no fim de outubro nas ruas do Queens. Acima de tudo, tenta não parecer um candidato a agente federal mal treinado.

– Pare de se preocupar – aconselha Barron, andando ao meu lado. – Mesmo se formos identificados, o sujeito provavelmente vai acabar ficando lisonjeado. Ele vai achar que está subindo na vida se tem gente do governo o seguindo.

Barron sabe agir com casualidade melhor do que eu. Acho que é de se esperar. Ele não tem nada a perder se formos vistos. Lila não o odiaria mais do que já odeia. Além do mais, ele deve se preparar para isso o dia todo, enquanto fico em Wallingford estudando para entrar no tipo de faculdade que não vou frequentar de jeito nenhum.

Isso ainda me irrita. Desde que eu era criança, nós competimos por muitas coisas. Na maioria das vezes, eu perco.

Éramos os dois mais novos e, quando Philip saía com os amigos nos finais de semana, Barron e eu ficávamos fazendo qualquer tarefa que papai pedia, ou treinando a habilidade que ele achasse que precisávamos aprender.

Em particular, ele queria que melhorássemos nossa habilidade em bater carteiras e arrombar fechaduras.

Dois garotos são a equipe perfeita de batedores de carteira, ele dizia. Um para cometer o furto e o outro para distrair ou receber o que foi furtado.

Nós dois treinávamos o golpe. Primeiro, identificávamos onde papai deixara a carteira. Procurávamos um volume no bolso de trás ou observávamos se um dos lados do casaco balançava com mais peso por haver alguma coisa dentro. Depois, vinha o furto. Eu era bom; Barron era melhor.

Em seguida, treinávamos a distração. Chorar. Pedir ajuda para achar o caminho. Dar uma moeda para o alvo alegando que ele deixou cair.

É como um mágico de palco, dizia papai. Vocês têm que me fazer olhar para outro lugar a fim de não reparar no que está acontecendo bem na minha cara.

Quando papai não sentia vontade de se defender das nossas tentativas desajeitadas de furto, ele nos levava para o celeiro e nos mostrava a coleção. Ele tinha uma caixa de ferramentas velha de metal com trancas de todos os lados, e você tinha que vencer o desafio de abrir sete trancas diferentes. Barron e eu nunca conseguimos.

Depois que descobrimos como abrir uma fechadura com uma ferramenta, tivemos que aprender a abri-la com um grampo de cabelo, com um cabide, depois com um palito ou qualquer outro objeto encontrado. Eu ficava torcendo para ser naturalmente bom com fechaduras, pois na época tinha certeza de que não era mestre e já me sentia um pária na família. Eu achava que, se houvesse algo em que eu fosse melhor do que todos eles, isso compensaria todo o resto.

É horrível ser o caçula.

Se você abrir a caixa supersegura, vamos ver o filme que você escolher, dizia papai. Ou: Coloquei balas aí dentro. Ou: Se você quer mesmo aquele jogo de videogame, abra a caixa e vai ganhar de presente. Mas não importava o que ele prometia. O que importava é que eu só arrombei no máximo três trancas; Barron conseguiu cinco.

E aqui estamos de novo, aprendendo várias coisas novas. Não consigo deixar de me sentir um pouco competitivo e um pouco decepcionado comigo mesmo por já estar tão atrás. Afinal, Yulikova acha que Barron tem futuro de verdade na agência. Ela me disse. Falei para ela que sociopatas são sempre encantadores.

Acho que ela pensou que eu estava brincando.

– Que mais ensinam na escola de agente federal? – pergunto a Barron.

O fato de ele estar se encaixando tão bem não deveria me incomodar. E daí se estiver fingindo? Problema dele.

Acho que o que me incomoda é ele estar fingindo melhor do que eu.

Ele revira os olhos.

– Nada de mais. Coisas óbvias: fazer as pessoas confiarem em você com comportamento espelho. Você sabe, fazer o que a outra pessoa estiver fazendo. – Ele ri. – Sinceramente, ser agente disfarçado é como ser golpista. São as mesmas técnicas. Identificar o alvo. Fazer amizade. Depois, trair.

Comportamento espelho. Quando um alvo toma um gole de água, você faz o mesmo. Quando sorri, você também deve sorrir. Se você for sutil, e não apavorante, é uma boa técnica.

Mamãe me ensinou quando eu tinha dez anos. Cassel, disse ela, quer saber como ser o cara mais encantador que qualquer pessoa já conheceu? Seja parecido com a pessoa favorita delas. A pessoa favorita de todo mundo é ela mesma.

– Só que agora você é o mocinho – digo e dou uma gargalhada.

Ele também ri, como se eu tivesse contado a melhor piada do mundo.

Mas agora que estou pensando em mamãe, não consigo deixar de me preocupar. Ela está sumida desde que foi pega usando seu talento de mestra de emoção para manipular o governador Patton, um cara que odiava mestres de maldição e aparece no noticiário nacional todas as noites com uma veia saltada na testa, exigindo o sangue dela. Espero que permaneça escondida. Eu só queria saber onde ela está.

– Barron – chamo, prestes a iniciar uma conversa que já tivemos um milhão de vezes, em que dizemos um para o outro que ela está bem e vai entrar em contato em breve. – Você acha...?

À frente, o garoto com as tranças entra em um salão de sinuca.

– Aqui – diz Barron com um movimento de cabeça.

Entramos em uma delicatéssen do outro lado da rua. Fico feliz pelo calor. Barron pede dois cafés e nos posicionamos perto da janela, esperando.

– Algum dia você vai superar essa coisa com a Lila? – pergunta ele, quebrando o silêncio e me fazendo desejar que tivesse sido eu a falar, para poder escolher outro assunto. Qualquer outro assunto. – Parece doença. Há quanto tempo você gosta dela? Desde que tinha o quê, onze anos?

Eu não respondo.

– É por isso que você queria segui-la, não é? Porque não se acha digno dela, mas torce para ela fazer algo bem horrível e então talvez vocês passem a se merecer.

– Não é assim que funciona – falo baixinho. – Não é assim que o amor funciona.

Ele dá uma risada debochada.

– Tem certeza?

Eu mordo a língua e engulo cada resposta sarcástica que me ocorre. Se ele não me atingir, talvez pare, e talvez eu possa distraí-lo. Ficamos assim por vários minutos, até ele suspirar.

– Estou entediado de novo. Vou fazer aquela ligação.

– E se ele sair? – pergunto irritado. – Como vou...?

Ele arregala os olhos fingindo consternação.

– Improvise.

A campainha toca quando ele sai pela porta, e o cara do balcão grita o costumeiro Obrigado-pela-visita-volte-sempre.

Na calçada em frente à deli, Barron flerta loucamente enquanto anda de um lado para outro, soltando nomes de restaurantes franceses como se os frequentasse todas as noites. O celular está apoiado na bochecha, e ele sorri, como se acreditasse na besteirada romântica que está dizendo. Sinto pena da garota, seja lá quem for, mas fico feliz.

Quando ele sair do celular, não vou parar de tirar sarro dele. Morder a língua não vai me fazer parar. Eu teria que morder minha cara inteira.

Ele me vê rindo pela janela, vira de costas e anda até a entrada fechada de uma casa de penhores a meio quarteirão de distância. Faço questão de balançar as sobrancelhas enquanto ele está olhando na minha direção.

Sem mais nada para fazer, fico esperando. Bebo mais café. Jogo no celular um jogo de atirar em zumbis.

Apesar de estar esperando, não me sinto preparado quando o garoto de trança sai do salão de sinuca. Ele está com um homem, um sujeito alto com maçãs do rosto afundadas e cabelo oleoso. O garoto acende um cigarro atrás da mão curvada, apoiado na parede. Esse é um daqueles momentos em que um pouco mais de treinamento ajudaria. Obviamente, sair correndo da deli e sacudir os braços para Barron é o gesto errado, mas não sei como agir se o garoto sair andando de novo. Não faço ideia de como avisar meu irmão.

Improvise, ele disse.

Saio da deli fingindo o máximo de indiferença que consigo. Talvez o garoto só tenha saído para fumar. Talvez Barron repare em mim e volte sem eu precisar chamá-lo.

Vejo um banco de ônibus e me encosto a ele para tentar vê-lo melhor.

Isso não é uma missão de verdade, digo para mim mesmo. Não importa se eu o perder de vista. Não deve haver mesmo nada para ver. Seja lá o que ele estiver fazendo para Lila, não há motivo para eu achar que está envolvido nisso neste momento.

É nessa hora que percebo a forma grandiosa como o garoto gesticula, com o cigarro deixando um rastro de fumaça. Atrair a atenção para o lugar errado é um clássico dos truques mágicos e golpes. Olhe para cá, diz uma das mãos. Ele deve estar contando uma piada, porque o homem está rindo. Mas vejo a outra mão dele sair de dentro da luva.

Dou um pulo, mas é tarde demais. Percebo um vislumbre de pulso e polegar.

Começo a andar na direção dele, sem pensar; atravesso a rua e só percebo o guinchar do freio do carro depois que já passei. As pessoas se viram na minha direção, mas ninguém está observando o garoto. Até o idiota do salão de sinuca está olhando na minha direção.

– Corra – grito para ele.

Mas o homem de maçãs afundadas ainda está olhando para mim quando o garoto fecha a mão na parte da frente do pescoço dele.

Seguro o ombro do garoto, mas é tarde demais. O homem, quem quer que fosse, desaba como um saco de farinha. O garoto gira na minha direção, os dedos nus procurando pele. Seguro o pulso dele e giro o braço com o máximo de força possível.

Ele geme e me dá um soco na cara com a mão enluvada.

Eu cambaleio para trás. Por um momento, só nos olhamos. Vejo o rosto dele de perto pela primeira vez e fico surpreso ao reparar que as sobrancelhas são arcos perfeitos. Os olhos são grandes e castanhos. Ele aperta esses olhos para mim. Em seguida, se vira e sai correndo.

Saio correndo atrás dele. É automático, instintivo, e me pergunto o que raios estou fazendo enquanto corro pela calçada. Arrisco um olhar para Barron, mas ele está curvado sobre o telefone, então só vejo as costas dele.

Grande surpresa.

O garoto é rápido, mas eu treino corrida há três anos. Sei como controlar meu ritmo e permito que ele se distancie no começo, quando dispara, para alcançá-lo quando estiver sem fôlego. Seguimos quarteirão atrás de quarteirão, e vou me aproximando cada vez mais.

É isso que terei que fazer quando for agente federal, não é? Perseguir bandidos.

Mas não é por isso que estou indo atrás dele. Sinto como se estivesse caçando minha própria sombra. Sinto que não consigo parar.

Ele se vira e olha para mim, e acho que percebe que o estou alcançando, porque tenta uma nova estratégia. Entra abruptamente em um beco.

Dobro a esquina a tempo de vê-lo pegar alguma coisa debaixo do moletom. Pego a primeira arma que encontro, um pedaço de madeira jogado perto de uma pilha de lixo.

Balançando-o, eu alcanço o garoto na hora em que ele puxa a arma. Sinto meus músculos queimando e ouço o estalo quando a madeira atinge o metal. Derrubo a pistola contra a parede de tijolos como se fosse uma bola de beisebol e eu estivesse no campeonato mundial.

Acho que fico tão surpreso quanto ele.

Dando passos lentos, levanto o pedaço de madeira, que se quebrou, um pedaço grande pendurado por uma lasca e a ponta irregular mais parecendo uma lança. Ele me observa, e cada parte do seu corpo está tensa. Não parece muito mais velho do que eu. Talvez seja até mais novo.

– Quem é você, afinal?

Quando ele fala, vejo que alguns dos dentes são de ouro e brilham no sol poente. Três embaixo. Um em cima. Ele está respirando com dificuldade. Somos dois.

Eu me inclino e pego a arma com a mão trêmula. Meu polegar solta a trava. Me livro do pedaço de madeira.

Não faço ideia de quem sou agora.

– Por quê? – pergunto, arfando. – Por que ela pagou para você matá-lo?

– Ei – diz ele, levantando as mãos, uma com e outra sem luva, em um gesto de rendição. Apesar disso, parece mais perplexo do que com medo. – Se ele era seu amigo...

– Ele não era meu amigo.

O garoto baixa as mãos lentamente, até ficarem em repouso nas laterais do corpo, como se tivesse chegado a uma conclusão sobre mim. Talvez que não sou da polícia. Talvez que não haja problema em relaxar.

– Eu não pergunto por que as pessoas querem as coisas. Não sei, tá? Foi só um trabalho.

Eu faço que sim com a cabeça.

– Me mostre seu pescoço.

– Não tenho marcas. – Ele puxa a gola da camisa, mas não tem cicatriz nenhuma. – Sou freelancer. Sou bonito demais para essa merda toda. Ninguém coloca coleira em Gage.

– Tudo bem – digo.

– Aquela garota, se você a conhece, sabe como ela é.

Ele enfia a mão na boca e puxa um dente mole, verdadeiro, preto e podre no alto. Parece uma pérola defeituosa na palma da mão enluvada dele. Em seguida, sorri e acrescenta:

– Que bom que assassinato paga tão bem, né? Ouro é caro.

Eu tento esconder a surpresa. Um mestre de morte que só perde um dente a cada golpe é um cara muito perigoso. Cada maldição, seja física, de sorte, de memória, de emoções, de sonhos, de morte e até de transformação, provoca algum rebote. Como diz meu avô, toda maldição atinge seu mestre. O rebote pode aleijar e até matar. Maldições de morte apodrecem alguma parte do corpo de um mestre, qualquer coisa desde um pulmão a um dedo. Ou, aparentemente, algo menos importante, como um dente.

– E por que um mestre de morte precisa de uma arma? – pergunto.

– Essa arma tem valor sentimental. Foi da minha avó. – Gage pigarreia. – Olhe, você não vai atirar. Já teria atirado se fosse fazer isso. Então será que podemos...

– Tem certeza de que quer me desafiar? – retruco. – Tem certeza?

Isso parece deixá-lo abalado. Ele suga o dente.

– Tudo bem, só sei o que ouvi, e não foi... dela. Ela nunca disse nada além de onde eu o encontraria. Mas há boatos de que o cara, o nome é Charlie West, fez besteira em um trabalho. Matou uma família quando deveria ter feito só um roubo. É um bêbado covarde...

Meu celular começa a tocar.

Pego o celular no bolso, depois olho para baixo. É Barron, que deve ter acabado de perceber que o abandonei. Naquele momento, Gage pula a cerca de arame.

Eu o vejo ir e minha visão fica embaçada. Não sei quem estou vendo. Meu avô. Meu irmão. A mim mesmo. Qualquer um de nós poderia ser o garoto, poderia ter sido como ele, depois de um golpe, pulando uma cerca antes de levar um tiro nas costas.

Não grito para que se abaixe. Não faço um disparo de alerta nem alguma outra coisa que poderia fazer, algo que um agente federal em treinamento que presencia a fuga de um assassino deveria fazer. Apenas o deixo ir. Mas, se ele está no papel que era para ser meu, não faço ideia de como ser a pessoa que fica no beco. O mocinho.

Limpo a arma na camisa verde e a enfio na cintura da calça jeans, na parte da lombar, onde o casaco vai escondê-la. Depois que acabo, ando até a entrada do beco e ligo para Barron.

Quando chega, ele está com um bando de caras de terno.

Ele me segura pelos ombros.

– Que diabos você estava fazendo? – Sua voz sai baixa, mas ele está realmente abalado. – Eu não fazia ideia de onde você estava! Você não atendeu o celular.

Exceto daquela última vez, eu nem ouvi tocar.

– Eu estava improvisando – digo com arrogância. – E você teria me visto se não estivesse tão ocupado dando em cima de uma garota qualquer.

Se a expressão dele indica alguma coisa, apenas a presença de outras pessoas o impede de me estrangular.

– Esses caras apareceram na cena do crime logo depois dos policiais – conta ele, me lançando um olhar carregado. Por mais furioso que esteja, entendo que está tentando se comunicar. Eu não os chamei, diz a expressão dele. Não falei nada sobre Lila. Não traí você. Ainda não traí você.

Os agentes tomam minha declaração. Digo para eles que segui o assassino, mas ele se distanciou e pulou a cerca. Não vi para onde foi. Não dei uma boa olhada nele. Ele estava de capuz. Não, ele não disse nada. Não, ele não tinha arma, ou pelo menos nenhuma outra além da mão nua. Sim, eu não deveria tê-lo seguido. Sim, eu conheço a agente Yulikova. Sim, ela pode atestar que me conhece.

Ela atesta. Eles me deixam ir sem me revistar. A arma fica enfiada na parte de trás da cintura da calça jeans, roçando a base da minha coluna enquanto Barron e eu vamos até o carro.

– O que aconteceu de verdade? – pergunta Barron.

Eu balanço a cabeça.

– E o que você vai fazer? – indaga, como se estivesse me desafiando. Como se houvesse alguma dúvida. – Lila foi a mandante daquele crime.

– Nada – respondo. – O que você imaginou? E você também não vai fazer nada.

Meu pai uma vez me avisou que garotas como ela viram mulheres cujos olhos são buracos de bala e cujas bocas são feitas de facas. Estão sempre inquietas. Sempre famintas. São mau presságio. Elas bebem você como uma dose de uísque. Apaixonar-se por elas é como cair de um lance de escadas.

O que ninguém me falou, apesar de todos esses avisos, é que, mesmo depois que você cai, mesmo depois de saber o quanto é doloroso, você ainda entra na fila para passar por tudo de novo.


CAPÍTULO DOIS

NAS NOITES DE DOMINGO,

a escola Wallingford fica cheia de alunos exaustos tentando fazer o dever de casa que tinham certeza de que seria fácil na sexta, quando o fim de semana estava à frente, cheio de promessas de horas preguiçosas. Eu bocejo quando entro, tão culpado quanto todo mundo. Ainda tenho uma redação para escrever e uma parte enorme de Les Misérables para traduzir.

Meu colega de quarto, Sam Yu, está de bruços na cama, os fones de ouvido cobrindo as orelhas e a cabeça balançando ao ritmo da música que não consigo ouvir. Ele é um cara grande, alto e pesado, e as molas da cama gemem quando se vira para me olhar. Os alojamentos são cheios de camas baratas com estrados que ameaçam quebrar cada vez que nos sentamos, cômodas de madeira aglomerada e paredes rachadas. Não que o campus de Wallingford não tenha salas lindas com paredes revestidas de madeira e tetos altos e janelas de vidro grosso. Mas esses espaços são para professores e para as pessoas que investem dinheiro. Podemos entrar neles, mas não são para nós.

Entro no armário e subo em uma caixa bamba. Em seguida, enfio a mão embaixo da minha jaqueta, pego a arma e grudo na parte de trás com fita adesiva, acima das roupas. Organizo uma confusão de livros velhos na prateleira logo abaixo para escondê-la.

– Você só pode estar brincando – diz Sam.

É claro que ele viu tudo. Eu nem o ouvi se levantar. Devo estar perdendo a sensibilidade.

– Não é minha – explico. – Eu não sabia o que fazer com ela.

– Que tal se livrar dela? – sussurrou ele. – É uma arma. Uma arma, Cassel. Uma aaaaaaarma.

– É. – Eu desço da caixa com um pulo e caio com um baque. – Eu sei. Vou fazer isso. Só não tive tempo. Amanhã, prometo.

– Quanto tempo demora para jogar uma arma em um lixão?

– Eu queria mesmo que você parasse de dizer a palavra 'arma' – retruco, me deitando na cama e pegando o laptop. – Não tem nada que eu possa fazer agora, a não ser jogá-la pela janela. Vou resolver isso amanhã.

Ele geme, volta para o seu lado do quarto e pega os fones de ouvido. Parece irritado, mas nada pior do que isso. Acho que está acostumado comigo agindo como criminoso.

– De quem é? – pergunta ele, indicando o armário com a cabeça.

– De um cara. Ele deixou cair.

Sam franze a testa.

– Isso parece bem provável. E quando digo 'provável', o que quero mesmo dizer é 'nada provável'. A propósito, você sabia que, se alguém encontrar essa coisa aqui, além de ser expulso, você será extirpado da memória da escola? Vão apagar seu rosto dos anuários de Wallingford. Arrumarão uma equipe de mestres de memória para fazer com que ninguém se lembre de ter estudado com você. Esse é exatamente o tipo de coisa que prometem aos pais que nunca vai acontecer na Escola Preparatória Wallingford.

Um tremor percorre minha coluna à menção dos mestres de memória. Barron é um deles. Usou seu poder para me fazer esquecer de muitas coisas: que sou mestre de transformação, que me fez virar um assassino de eficiência perturbadora, até que transformei Lila em um animal e ele a manteve dentro de uma gaiola durante anos. Meu irmão mais velho sociopata, que roubou pedaços da minha vida. O único irmão que ainda tenho. O que está me treinando.

Isso que é família. Não dá para viver com eles; não dá para assassiná-los. A não ser que Barron me dedure para Yulikova. Aí é possível que isso seja exatamente o que vou fazer.

– É – digo, tentando recuperar o rumo da conversa. – Vou me livrar dela. Prometo. Não, espere, eu já prometi. Que tal jurar pela minha mãe?

– Inacreditável – fala Sam, mas percebo que ele não está com raiva. Enquanto estou ocupado determinando isso, vendo o desenrolar das emoções em seu rosto, reparo que ele está com uma dezena de canetas empilhadas no cobertor azul-marinho ao lado e que usa cada uma delas para escrever em um bloco.

– O que você está fazendo aí?

Ele sorri.

– Comprei essas canetas no eBay. Um lote inteiro de canetas com tinta que desaparece. Legal, né? Eram usadas pela KGB. São ferramentas de espionagem de verdade.

– O que você vai fazer com elas?

– Há duas possibilidades, na verdade. Uma pegadinha incrível ou uma potencial utilidade para nossa operação de apostas.

– Sam, já conversamos sobre isso. É tudo seu se quiser, mas eu estou fora.

Recolhi apostas das coisas mais ridículas da escola desde que cheguei em Wallingford. Se você quisesse apostar dinheiro no jogo de futebol americano, me procurava. Se quisesse apostar se haveria ou não filé Salisbury no almoço três vezes por semana ou se a diretora Northcutt e o supervisor Wharton estavam tendo um caso ou se Harvey Silverman morreria de intoxicação alcoólica antes de se formar, você também me procurava. Eu calculava as chances, ficava com o dinheiro e cobrava uma comissão pelo trabalho. Em uma escola com muitos alunos ricos e entediados, era uma boa forma de encher os bolsos. Era inofensivo até o dia em que deixou de ser. Até os alunos começarem a apostar sobre quais alunos eram mestres. Até esses alunos virarem alvos.

Aí começou a parecer que eu estava aceitando dinheiro sujo.

Sam suspira.

– Bem, ainda há pegadinhas infinitas que poderíamos fazer. Imagine uma sala inteira de gente fazendo prova, e de repente não há nada escrito em nenhuma das provas entre vinte e quatro e quarenta e oito horas depois. Ou que tal se você desse uma delas na mão de um professor na hora em que ele for anotar no diário de classe? Caos.

Eu dou um sorriso. Caos, lindo caos.

– E aí, qual você vai escolher? Minhas habilidades de batedor de carteira estão aos seus serviços.

Ele joga uma caneta na minha direção.

– Tome cuidado para não fazer o dever com ela – avisa ele.

Eu a pego no ar um momento antes de a caneta se chocar contra meu abajur.

– Ei! – digo, me virando para ele. – Cuidado. Que jogada foi essa?

Ele está me olhando com uma expressão estranha no rosto.

– Cassel. – A voz dele está baixa e séria. – Você acha que pode falar com Daneca por mim?

Eu hesito, olho para a caneta nas minhas mãos, viro-a sobre os dedos enluvados e volto a olhar para ele.

– Sobre o quê?

– Eu pedi desculpas – diz ele. – Vivo pedindo desculpas. Não sei o que ela quer.

– Aconteceu alguma coisa?

– Nos encontramos para tomar um café, mas tudo virou a mesma discussão de sempre. – Ele balança a cabeça. – Não entendo. Foi ela que mentiu. Foi ela que não me contou que era mestra. E provavelmente nunca teria contado se o irmão não tivesse falado. Por que eu é que tenho que pedir desculpas?

Em todos os relacionamentos, há um equilíbrio de poder. Alguns são uma briga constante para ver quem fica por cima. Em outros, uma pessoa está no comando, embora nem sempre seja quem pensa que está. E acho que há relacionamentos tão equilibrados que ninguém precisa pensar sobre isso. Não sei nada sobre esses. O que sei é que o poder pode mudar em um instante. No começo do relacionamento, Sam sempre cedia em prol de Daneca. Mas, quando ficou com raiva, era como se ele não conseguisse afastar o sentimento.

Quando ele estava pronto para ouvir o pedido de desculpas dela, ela não queria mais pedir desculpas. E assim eles ficaram nessas últimas semanas, nenhum dos dois arrependido o bastante para acalmar o outro, nenhum dos dois arrependido na hora certa, os dois certos de que o outro está errado.

Não sei se isso quer dizer que eles terminaram ou não. Nem Sam.

– Se você não sabe por que está se desculpando, seu pedido provavelmente não vale de nada – sugiro.

Ele balança a cabeça.

– Eu sei. Mas só queria que as coisas voltassem a ser como eram.

Conheço esse sentimento bem demais.

– O que você quer que eu diga para ela?

– Só descobrir o que posso fazer para consertar as coisas.

Há tanto desespero na voz dele que acabo concordando. Vou tentar. Ele deve saber que está mal se veio me pedir ajuda em questões do coração. Não preciso jogar na cara dele.

De manhã, atravesso a praça, torcendo para que o café que tomei no salão estudantil comece a agir logo, quando passo por minha ex-namorada, Audrey Dolan, e seu grupo de amigas. O cabelo cor de cobre brilha como uma moeda nova ao sol, e os olhos me seguem com reprovação. Uma das amigas diz alguma coisa baixo o bastante para que eu não escute, e o restante ri.

– Ei, Cassel – grita uma delas, e eu tenho que me virar. – Ainda aceita apostas?

– Não – respondo.

Eu estou tentando ser certinho. Estou tentando.

– Que pena – grita a garota –, porque eu queria apostar cem pratas que você vai morrer sozinho.

Às vezes, não sei por que luto tanto para ficar aqui em Wallingford. Minhas notas, sempre determinada e consistentemente medíocres, tiveram uma queda no ano passado. Não estou tentando ir para a faculdade. Penso em Yulikova e no treinamento que meu irmão está recebendo. Eu só precisaria largar a escola. Só estou adiando o inevitável.

A garota ri de novo, e Audrey e as outras riem junto.

Eu só continuo andando.

Na aula de ética do mundo em desenvolvimento, conversamos um pouco sobre jornalismo tendencioso e como isso influencia o que pensamos. Quando pedem que alguém dê um exemplo, Kevin Brown cita um artigo sobre minha mãe. Ele acha que muitos repórteres culpam Patton por ser um alvo fácil.

– Ela é criminosa – argumenta Kevin. – Por que tentar agir como se o governador Patton tivesse que estar preparado para o caso de uma namorada querer amaldiçoá-lo? É um exemplo óbvio de repórter que tenta desacreditar a vítima. Eu não ficaria surpreso se Shandra Singer o tivesse enfeitiçado também.

Alguém dá uma risadinha.

Fico olhando para a mesa, concentrado na caneta que tenho na mão e no som do giz arranhando o quadro enquanto o Sr. Lewis logo começa a falar de uma notícia recente sobre a Bósnia. Sinto o hiperfoco estranho que ocorre quando tudo se dirige para o presente. O passado e o futuro desaparecem. Só há o agora e os momentos que passam, até que o sinal toca e vamos para o corredor.

– Kevin – digo baixinho.

Ele se vira com um sorrisinho no rosto. As pessoas circulam perto de nós, com suas bolsas e seus livros. Elas parecem manchas de cores na minha visão periférica.

Dou um soco tão forte no maxilar de Kevin que sinto o impacto até nos ossos.

– Briga! – gritam dois garotos, mas os professores aparecem e me arrancam de cima de Kevin antes que ele consiga se levantar.

Eu deixo me levarem. Sinto-me todo entorpecido, a adrenalina ainda correndo nas veias, os nervos latejando de desejo de fazer mais. De fazer alguma coisa com alguém.

Sou levado para a sala do supervisor e deixado lá com uma folha de papel na mão. Eu a amasso e jogo contra a parede quando me levam para dentro.

A sala do supervisor Wharton é cheia de papéis. Ele parece surpreso em me ver, se levanta e tira uma pilha de pastas e palavras cruzadas da cadeira em frente à mesa dele e indica que devo me sentar. Normalmente, as confusões em que me meto são tão ruins que sou enviado diretamente para a diretora.

– Briga? – fala ele, olhando para o papel. – É advertência dupla se foi você quem iniciou.

Eu faço que sim com a cabeça. Não sei se sou capaz de falar.

– Quer me contar o que aconteceu?

– Na verdade, não, senhor – respondo. – Eu bati nele. Eu... eu não estava pensando direito.

Ele assente, como se estivesse considerando o que falei.

– Você entende que, se for advertido mais uma vez por qualquer motivo, vai ser expulso? Não vai se formar no ensino médio, Sr. Sharpe.

– Sim, senhor.

– O Sr. Brown estará aqui logo. Vai me contar o lado dele da história. Tem certeza de que não tem mais nada a dizer?

– Não, senhor.

– Tudo bem – diz o supervisor Wharton, empurrando os óculos para massagear a ponte do nariz com dedos cobertos por luvas marrons. – Vá esperar lá fora.

Eu me sento em uma das cadeiras na frente da secretária da escola. Kevin passa por mim resmungando a caminho da sala de Wharton. A pele da bochecha dele está ganhando uma coloração esverdeada interessante. Ele vai ficar com um hematoma e tanto.

Ele vai dizer para Wharton: Não sei o que deu em Cassel. Ele ficou doido. Eu não o provoquei.

Alguns minutos depois, Kevin sai. Ele dá um sorrisinho debochado quando segue para o corredor. Retribuo o sorriso na mesma moeda.

– Sr. Sharpe, pode entrar, por favor?

Eu entro. Sento-me de novo na cadeira e olho para as pilhas de papel. Basta um empurrãozinho para uma pilha cair e derrubar todas as outras.

– Você está com raiva de alguma coisa? – pergunta o supervisor Wharton, como se fosse capaz de ler meus pensamentos.

Abro a boca para negar, mas não consigo. Parece que carrego esse sentimento comigo há tanto tempo que eu nem sabia o que era. Wharton, dentre todas as pessoas, descobriu exatamente qual é meu problema.

Estou furioso.

Penso no fato de não saber o que me fez derrubar uma arma da mão de um assassino. No quanto foi satisfatório bater em Kevin. No quanto tenho vontade de fazer isso repetidas vezes, tenho vontade de sentir ossos quebrarem e sangue escorrer. Em como foi ficar de pé acima dele, a pele pegando fogo de fúria.

– Não, senhor – consigo dizer.

Engulo em seco porque não sei quando me distanciei tanto de mim mesmo. Eu sabia que Sam estava com raiva quando falou sobre Daneca. Como foi que não percebi que eu também estava furioso?

Wharton pigarreia.

– Você passou por muita coisa, a morte do seu irmão Philip e a situação da sua mãe com... questões legais.

Questões legais. Bacana. Eu assinto com a cabeça.

– Não quero vê-lo seguir por um caminho do qual não pode voltar, Cassel.

– Entendido – digo. – Posso voltar para a aula agora?

– Pode. Mas lembre-se de que você tem uma advertência dupla, e o ano não chegou nem à metade. Mais uma e você está fora. Expulso.

Eu me levanto, coloco a mochila no ombro e chego ao centro acadêmico a tempo do sinal seguinte. Não vejo Lila nos corredores, embora meu olhar pare em qualquer garota loura que passa por mim. Não faço ideia do que vou dizer a ela se encontrá-la. Parece preciso demais comentar: Eu soube que você encomendou seu primeiro assassinato. Como foi?

Além do mais, quem falou que foi o primeiro?

Entro no banheiro, abro a torneira e molho o rosto com água fria.

Sinto um choque quando o líquido escorre pelas bochechas e desce para a cavidade do pescoço, molhando minha camisa branca. Escurecendo minhas luvas. Estupidamente, me esqueci de tirá-las.

Acorde, digo para mim mesmo. Saia dessa.

Refletidos no espelho, meus olhos escuros parecem mais sombrios do que nunca. Minhas maçãs se projetam, como se a pele estivesse apertada demais.

Estou me adaptando perfeitamente aqui, falo para mim mesmo. Papai sentiria tanto orgulho. Você é mesmo encantador, Cassel Sharpe.

Ainda consigo chegar à aula de física antes de Daneca, o que é bom. Teoricamente, nós continuamos amigos, mas ela tem me evitado desde que começou a brigar com Sam. Se quiser falar com ela, vou ter de cercá-la.

Não temos lugar marcado, o que quer dizer que é fácil pegar uma carteira perto de onde Daneca costuma sentar e colocar minhas coisas na cadeira. Em seguida, me levanto e converso com alguém do outro lado da sala. Willow Davis. Ela parece desconfiada quando pergunto sobre o dever de casa, mas responde sem hesitar muito. Ela está me dizendo alguma coisa sobre haver dez dimensões diferentes no espaço e uma no tempo, todas encolhidas ao redor das outras, quando Daneca entra.

– Entendeu? – indaga Willow. – Portanto, poderia haver outras versões de nós vivendo em outros mundos, e pode haver um mundo em que fantasmas e monstros são reais. Ou onde ninguém é hiperbatogâmico. Ou em que todos temos cabeça de cobra.

Eu balanço a cabeça negativamente.

– Isso não pode ser real. Não pode ser ciência de verdade. É incrível demais.

– Você não leu o texto, leu? – pergunta ela, e concluo que esse é o momento de voltar para minha nova carteira.

Quando volto, vejo que meu plano deu certo. Daneca está sentada no lugar de sempre. Pego a mochila que guardava o lugar e me sento. Ela levanta o rosto com uma expressão surpresa. É tarde demais para se levantar sem ficar óbvio que ela não quer se sentar ao meu lado. Ela observa a sala como se estivesse revirando o cérebro em busca de uma desculpa para mudar de lugar, mas os lugares estão quase todos ocupados.

– Oi – digo, forçando um sorriso. – Quanto tempo.

Ela suspira, parecendo resignada.

– Ouvi dizer que você se meteu em uma briga.

Daneca está usando o blazer e a saia xadrez de Wallingford com uma meia-calça roxa-néon e luvas roxas ainda mais chamativas. A cor delas combina mais ou menos com as mechas também roxas um tanto apagadas no cabelo castanho-escuro. Ela chuta a perna da mesa com um sapato estilo boneca pesado.

– Então você ainda está com raiva de Sam, hein?

Sei que não é assim que ele deve querer que eu toque no assunto, mas preciso de informações, e a aula já vai começar.

Ela faz uma careta.

– Ele falou isso?

– Somos colegas de quarto. A cara emburrada dele me falou isso.

Ela suspira de novo.

– Não quero magoá-lo.

– Então não magoe – digo.

Daneca se inclina para perto de mim e baixa a voz.

– Preciso te fazer uma pergunta.

– Sim, ele lamenta muito mesmo – falo. – Ele sabe que exagerou. Que tal vocês dois se perdoarem e começarem...

– Não sobre Sam – diz ela na hora em que a Dra. Jonahdab entra na sala. A professora pega um pedaço de giz e começa a desenhar a lei de Ohm no quadro. Sei o que é por causa das palavras “lei de Ohm” escritas em cima.

Abro o caderno.

Escrevo “Sobre o quê, então?” e viro o caderno para Daneca ver.

Ela balança a cabeça e não diz mais nada.

Não sei se entendo melhor a relação entre corrente, resistência e distância no fim da aula, mas, no fim das contas, Willow Davis estava certa sobre a coisa da dimensão de cabeças de cobra ser possível.

Quando o sinal toca, Daneca segura meu braço, e os dedos enluvados afundam logo acima do meu cotovelo.

– Quem matou Philip? – pergunta ela de repente.

– Eu... – começo a falar. Não posso responder sem mentir, mas não quero mentir para ela.

A voz de Daneca é um sussurro baixo e urgente.

– Minha mãe era sua advogada. Ela fez o acordo de imunidade, o que tirou os agentes federais de cima de você, não foi? Você fez um acordo para contar a eles quem matou as pessoas naqueles arquivos. E Philip. Para ter imunidade. Por que você precisava de imunidade? O que você fez?

Quando os agentes federais largaram um monte de pastas no meu colo e me disseram que Philip prometeu citar o assassino, eu não impedi Daneca de dar uma olhada nelas. Eu sabia que era um erro antes mesmo de saber que eu havia transformado todas as pessoas naqueles arquivos, uma lista de corpos que nunca foram encontrados e continuam assim. Mais lembranças que faltam.

– Nós temos que ir – digo. A sala de aula está vazia e alguns alunos começam a entrar para a aula seguinte. – Vamos nos atrasar.

Ela solta meu braço com relutância e me segue porta afora. É engraçado como nossas posições se inverteram. Desta vez, é ela que está tentando me encurralar.

– Estávamos trabalhando naquele caso juntos – diz Daneca. O que é em parte verdade. – O que você fez? – sussurra ela.

Eu olho para seu rosto, procurando o que ela pensa ser a resposta.

– Nunca machuquei Philip. Nunca machuquei meu irmão.

– E Barron? O que você fez com ele?

Eu franzo a testa, tão confuso que por um momento não consigo pensar no que dizer. Não faço ideia de onde ela tirou isso.

– Nada! – respondo, balançando a mão para dar ênfase. – Barron? Você está maluca?

Suas bochechas ficam levemente vermelhas.

– Não sei – diz ela. – Você fez alguma coisa com alguém. Precisou de imunidade. Pessoas de bem não precisam de imunidade, Cassel.

Ela está certa, claro. Não sou uma pessoa de bem. O engraçado sobre as pessoas de bem como Daneca é que elas não entendem o impulso de fazer o mal. Têm uma dificuldade incrível em aceitar a ideia de que alguém que as faz sorrir também pode ser capaz de coisas terríveis. E é por isso que, apesar de estar me acusando de assassinato, ela parece mais irritada do que com medo de ser assassinada. Daneca insiste na crença de que, se eu ouvisse e entendesse o quanto minhas escolhas ruins são ruins, eu pararia de fazê-las.

Paro perto da escada.

– Que tal a gente se encontrar depois do jantar para você me perguntar o que quiser? E também podemos conversar sobre Sam.

Não posso contar tudo, mas ela é minha amiga, e posso oferecer mais do que já falei. Ela merece o máximo de verdade que eu puder dar. E, quem sabe, talvez, se eu ouvir para variar, passe a fazer escolhas melhores.

Elas não poderiam mesmo ser piores.

Daneca prende um cacho castanho atrás da orelha. A luva roxa está manchada de tinta.

– Você vai me contar o que é? Vai me dizer isso?

Eu inspiro fundo, sinceramente surpreso. Em seguida, dou uma gargalhada. Nunca contei a ela meu maior segredo, que sou mestre de transformação. Acho que está na hora. Ela deve ter chegado a alguma conclusão, ou não teria perguntado.

– Você me pegou – digo. – Você me pegou nisso. Tá, vou contar. Vou contar tudo o que puder.

Ela assente devagar.

– Tudo bem. Vou para a biblioteca depois do jantar. Tenho um trabalho para começar.

– Ótimo.

Desço a escada correndo e disparo quando chego à praça, a fim de chegar à aula de cerâmica antes do último sinal. Já tenho advertência dupla. Já me meti em confusão demais para um dia só.

Meu vaso fica totalmente deformado. E devia ter uma bolha de ar lá dentro, porque, quando o coloco na fornalha, ele explode e destrói potes e vasos de outras pessoas.

No caminho do treino de corrida, meu celular toca. Eu o abro e apoio entre a bochecha e o ombro.

– Cassel – diz a agente Yulikova. – Eu queria que você viesse ao meu escritório. Agora. Sei que suas aulas do dia acabaram e pedi que você fosse liberado. A secretaria está sabendo que você tem uma consulta médica.

– Estou indo correr – falo, torcendo para ela ouvir a hesitação na minha voz.

A bolsa pendurada em meu ombro bate na minha perna. Acima, as árvores balançam com o vento e cobrem o campus com um tapete de folhas da cor da aurora.

– Já perdi muitos treinos.

– Então ninguém vai perceber se perder mais um. Sinceramente, Cassel. Você quase morreu ontem. Eu gostaria de discutir o incidente.

Penso na arma grudada com fita adesiva no armário do meu quarto.

– Não foi nada de mais – digo.

– Fico feliz em saber.

Com isso, ela desliga.

Sigo na direção do carro e chuto folhas no caminho.


CAPÍTULO TRÊS

MINUTOS DEPOIS,

a agente Yulikova está reunindo pilhas de papéis e tirando-as do caminho a fim de poder olhar melhor para mim. Ela tem cabelo grisalho e liso, cortado na altura do maxilar, e o rosto de um pássaro, delicado e com nariz comprido. Há vários colares enormes de contas pendurados em seu pescoço. Apesar de estar segurando uma xícara de chá fumegante e de usar um suéter por baixo do paletó de veludo azul-marinho, os lábios têm um tom azulado, como se ela estivesse com frio. Ou talvez esteja resfriada. Seja como for, parece mais uma professora de Wallingford do que a chefe de um programa federal que treina adolescentes mestres. Sei que deve se vestir assim de propósito, para fazer os adolescentes se sentirem à vontade. Ela deve fazer tudo de propósito.

Funciona de qualquer jeito.

Ela é meu contato, a pessoa responsável por me levar para o programa assim que eu fizer dezoito anos, como diz o acordo que fiz com os agentes federais. Até então, bem, não sei o que ela deveria fazer comigo. Desconfio de que ela também não saiba.

– Como você está, Cassel? – pergunta ela, sorrindo. Ela age como se quisesse mesmo saber.

– Bem, eu acho.

É uma mentira enorme e ridícula. Mal tenho dormido. Estou atormentado por arrependimentos. Estou obcecado por uma garota que me odeia. Roubei uma arma. Mas é o que você diz para gente como ela, que está avaliando seu estado mental.

Ela toma um gole de chá.

– Como tem sido acompanhar seu irmão?

– Legal.

– A morte de Philip deve fazer você se sentir mais protetor com Barron – diz ela. O olhar é gentil, nada ameaçador. O tom é neutro. – Só têm vocês dois agora. Apesar de você ser o irmão mais novo, já carregou muita responsabilidade... – Ela para de falar.

Eu dou de ombros.

– Mas, se ele colocou você em perigo ontem, precisamos acabar com isso agora mesmo.

– Não, não foi assim – interponho. – Estávamos seguindo uma pessoa, uma pessoa qualquer, e Barron recebeu uma ligação. Fiquei sozinho por alguns minutos e vi o assassinato. Saí correndo atrás do garoto, do assassino, o que foi uma idiotice, eu acho. Mas ele fugiu, e isso foi tudo.

– Você falou com ele? – pergunta ela.

– Não – minto.

– Mas você o encurralou no beco, correto?

Eu faço que sim, mas penso melhor.

– Bem, por um segundo ele ficou encurralado. Mas correu para a cerca.

– Encontramos uma tábua quebrada perto do local. Ele atacou você com aquilo?

– Não – nego. – Não, não aconteceu nada assim. Talvez ele tenha pisado na tábua quando estava correndo. Tudo aconteceu tão rápido.

– Você poderia descrevê-lo?

Ela se inclina para a frente na cadeira e fica me observando, como se fosse capaz de ver, nas rugas e nos rubores involuntários do meu corpo, cada pensamento fugidio que tenho. Espero que não seja verdade. Eu minto bem, mas não sou o melhor mentiroso do mundo. Tenho mais experiência com dois tipos diferentes de adulto: criminosos, que agem de formas que consigo prever, e alvos, que podem ser manipulados. Mas, com Yulikova, estou fora da minha zona de conforto. Não faço ideia do que ela é capaz.

– Acho que não – digo, dando de ombros.

Ela assente algumas vezes, como se estivesse absorvendo minha resposta.

– Tem mais alguma coisa que você queira me contar sobre o que aconteceu?

Sei que eu devia admitir que peguei a arma. Mas, se confessar agora, ela vai me perguntar por que a peguei. Ou talvez pergunte a Barron o que estávamos fazendo. Quem estávamos seguindo. Se ele estiver com o humor certo, talvez até conte. Ou pior, talvez invente uma história tão fantasiosa que vai acabar levando-a direto a Lila mais rápido do que a verdade levaria.

Não que eu queira ser essa pessoa, que faz a coisa errada de novo, mentindo para Yulikova. Quero aprender a fazer a coisa certa, mesmo que eu odeie. Mesmo que eu a odeie por isso. Mas não consigo desta vez.

Mas, na próxima vez... na próxima vez, vou me sair melhor. Vou contar tudo. Na próxima vez.

– Não – digo. – Não foi nada de mais. Eu fui um idiota. Vou tomar mais cuidado.

Ela pega um maço de papéis presos por um clipe e o solta na minha frente com um olhar intenso. Sei o que diz ali. Quando eu assinar, não serei mais um cidadão comum. Significa que vou concordar com um grupo particular de regulamentos e leis. Se eu fizer besteira, já terei concordado em ser julgado em uma corte particular. Nada de júri para pessoas como eu.

– Talvez seja hora de você sair de Wallingford e ser treinado com Barron e todos os outros alunos em tempo integral.

– Você já disse isso antes.

– E você disse não antes.

Ela sorri. Abre uma das gavetas da mesa e pega um lenço de papel. Tosse nele. Vejo uma coisa escura manchar o papel antes de ela amassá-lo.

– Estou supondo que você vai dizer não de novo.

– Quero ser agente federal e trabalhar para a DLM. Quero... – Eu paro. Quero ser melhor. Quero que você me faça ser melhor. Mas não posso dizer isso porque é loucura. Então só falo: – Abandonar o ensino médio não é um sonho. De qualquer modo, meu acordo de imunidade...

Ela me interrompe.

– Pode ser que consigamos forjar um diploma para você.

Eu imagino não ter que ver Lila, com o cabelo branco-dourado comprido o bastante para fazer uma curvinha na base do pescoço, a voz rouca capaz de me distrair a ponto de eu nem prestar atenção no que estou fazendo quando ela fala. Imagino não ter que trincar os dentes para evitar chamar seu nome cada vez que passo por ela no corredor.

– Em breve. Só quero terminar o ano.

Yulikova assente, como se estivesse decepcionada, mas não surpresa. Eu me questiono sobre a tosse dela e o lenço de papel. Era sangue? Não acho certo perguntar. Nada disso parece certo.

– Como você está indo com os amuletos? – pergunta ela.

Enfio a mão no bolso e pego. Cinco círculos perfeitos de pedra com buracos no meio. Cinco amuletos de transformação para impedir a maldição de um mestre como eu, não que haja muitos. Fazer os amuletos foi exaustivo, mas pelo menos não houve rebote. Eles ficaram no meu porta-luvas por uma semana, esperando para serem entregues.

– Muito raros – diz ela. – Você já usou um amuleto desses e fez uma maldição?

Eu balanço a cabeça.

– O que aconteceria se eu fizesse isso?

Yulikova sorri.

– Um monte de nada. A pedra racharia e você ficaria exausto.

– Ah – digo, estranhamente decepcionado.

Eu não sabia o que estava esperando. Balançando a cabeça para mim mesmo, coloco os amuletos na mesa à frente dela. Eles rolam, giram e batem como moedas. Ela olha para eles por um tempo e levanta os olhos para mim.

– É importante para mim que você fique em segurança.

Ela toma outro gole de chá e sorri de novo.

Sei que deve dizer isso para dezenas de recrutas em potencial, mas gosto quando fala para mim mesmo assim.

Na hora de ir embora, a mão enluvada toca no meu braço por um instante.

– Teve notícias da sua mãe?

A voz de Yulikova é delicada, como se ela estivesse mesmo preocupada com um garoto de dezessete anos sozinho e com medo por causa da mãe. Mas aposto que está querendo pescar informações. Informações que eu queria ter.

– Não – respondo. – Ela pode estar morta, até onde sei.

Pela primeira vez, não estou mentindo.

– Eu gostaria de ajudá-la, Cassel – diz ela. – Você e Barron são importantes para nós aqui do programa. Nós gostaríamos de manter sua família unida.

Eu faço que sim com a cabeça de forma evasiva.

Criminosos acabam sendo capturados, é um risco de estar nessa vida. Mas talvez a realidade seja diferente com agentes do governo. Talvez as mães deles fiquem fora da prisão para sempre. Acho que eu devia torcer para isso.

A parte externa do prédio é comum, uma estrutura de concreto sem graça de tamanho médio no meio de um estacionamento, com janelas espelhadas brilhando com a luz refletida do sol poente. Ninguém imaginaria que uma agência federal ocupa os pisos superiores, principalmente porque a placa na frente diz RICHARDSON & CO. ADESIVOS E SELANTES, e quase todo mundo que entra e sai está usando um terno elegante.

No alto, as árvores estão marrons e nuas, com os vermelhos e dourados do início do outono apagados pelo vento frio de outubro. Meu Mercedes está onde o deixei, me lembrando da vida que eu poderia ter tido se houvesse aceitado a proposta do pai de Lila para me tornar a arma secreta dele.

Cada vez mais me sinto como o garoto que corta o nariz fora para estragar a cara.

Volto para Wallingford e chego a tempo de deixar a bolsa no quarto e pegar uma barrinha de cereal para comer antes do meu encontro com Daneca na biblioteca. Subo a escada correndo e estou prestes a destrancar a porta do quarto quando percebo que já está aberta.

– Olá! – digo enquanto entro.

Tem uma garota sentada na minha cama. Eu já a vi no campus, mas acho que nunca conversamos. É do primeiro ano, oriental. Acho que é coreana, tem cabelo preto e comprido até a cintura como uma cascata e usa meias brancas grossas que vão até os joelhos. Os olhos estão delineados com lápis azul purpurinado. Ela olha para mim por baixo dos cílios compridos e dá um sorriso tímido.

Fico um pouco perturbado, tenho que admitir. Isso não acontece com frequência.

– Você está esperando Sam?

– Eu gostaria de falar com você. – Ela fica de pé, pega a bolsa e morde o lábio inferior. Hesitante, acrescenta: – Sou Mina. Mina Lange.

– Você não devia mesmo estar no meu quarto – falo enquanto coloco a bolsa com meu material esportivo no chão.

Ela sorri.

– Eu sei.

– Eu estava de saída – digo, olhando para a porta.

Não tenho ideia de que tipo de jogo ela está fazendo, mas, na última vez que uma garota apareceu na minha cama, o desastre foi inevitável. Não estou exatamente otimista.

– Sem querer ser rude, Mina, mas, se tem alguma coisa que você quer me dizer, é melhor falar logo.

– Você não pode ficar? – pergunta ela, dando um passo em minha direção. – Tenho um grande favor a pedir, e não há mais ninguém que possa me ajudar.

– Acho difícil acreditar. – Minha voz sai meio tensa. Penso em Daneca e todas as explicações que tenho pela frente. A última coisa de que preciso é chegar atrasado e ter mais ainda para explicar. – Mas posso esperar alguns minutos se for importante.

– Quem sabe a gente pode ir a outro lugar – sugere ela. Os lábios são rosados e cintilantes, com uma aparência macia. O dedo envolto em uma luva branca enrola com nervosismo uma mecha do cabelo preto e comprido. – Por favor.

– Mina, fale logo – ordeno, mas o tom da minha voz não é muito imperativo. Não me importo de me entregar à ilusão de que há algo vital que posso fazer por uma garota bonita, mesmo não acreditando. Não me importo de ficar um pouco mais, de fingir.

– Você está ocupado – diz ela. – Eu não devia atrapalhar. Sei que não somos... sei que você não me conhece bem nem nada. E é tudo minha culpa. Mas, por favor, podemos conversar alguma hora?

– Podemos – confirmo. – Claro. Mas você não queria...

Ela me interrompe.

– Não, eu volto. Vou encontrar você. Sabia que você seria legal, Cassel, simplesmente sabia.

Ela passa por mim, perto o bastante para eu sentir o calor do seu corpo. Momentos depois, ouço os passos leves no corredor. Fico sozinho no meio do quarto por um tempo tentando entender o que acabou de acontecer.

O ar passou de frio a um gélido que penetra nos ossos e se aloja na medula. O tipo de gélido que faz você continuar tremendo mesmo depois de entrar em uma sala quente, como se tivesse que afastar o gelo das veias. Estou quase na biblioteca.

– Ei – chama alguém atrás de mim. Conheço a voz.

Eu me viro.

Lila está de pé na beirada do gramado, olhando para cima. Usa um casaco preto comprido, e, quando fala, a respiração condensa como os fantasmas de palavras não ditas. Ela mesma parece um fantasma, toda em preto e branco na sombra da árvore sem folhas.

– Meu pai quer ver você – fala ela.

– Tudo bem – digo e a sigo.

É simples assim. Eu provavelmente a seguiria mesmo se ela pulasse de um penhasco.

Lila me leva até um Jaguar XK prateado no estacionamento. Não sei quando ela comprou o carro nem quando tirou a habilitação e tenho vontade de comentar alguma coisa sobre isso, dar algum tipo de parabéns, mas, quando abro a boca, ela me lança um olhar que me faz engolir as palavras.

Entro silenciosamente no banco do passageiro e pego o celular. O interior tem cheiro de chiclete de menta, perfume e fumaça de cigarro. Uma garrafa de refrigerante diet pela metade descansa no porta-copos.

Pego meu celular e mando uma mensagem de texto para Daneca: Não vou poder ir hj.

Alguns segundos depois, o celular começa a tocar, mas coloco para vibrar e ignoro. Sinto culpa por furar com ela depois de prometer ser mais sincero, mas parece impossível explicar para onde estou indo e o porquê.

Lila olha para mim com metade do rosto iluminada pela luz de um poste, os cílios louros e as sobrancelhas em arco transformados em ouro. Ela é tão linda que meus dentes doem. Na aula de psicologia do nono ano, o professor falou sobre a teoria de que todos temos um “instinto de morte”, uma parte de nós que nos empurra para o nada, para o mundo inferior, para Tânatos. A sensação é de euforia, como dar um passo na beirada do telhado de um arranha-céu. É assim que me sinto agora.

– Onde está seu pai? – pergunto a ela.

– Com sua mãe – diz Lila.

– Ela está viva?

Fico tão surpreso que não tenho tempo de me sentir aliviado. Minha mãe está com Zacharov? Não sei o que pensar.

O olhar de Lila encontra o meu, mas o sorriso não me consola.

– Por enquanto.

O motor é ligado e saímos do estacionamento. Vejo meu rosto refletido na curva da janela escura. Eu talvez esteja indo para minha própria execução, mas não pareço tão atormentado por causa disso.


CAPÍTULO QUATRO

ENTRAMOS NA GARAGEM

subterrânea, e Lila estaciona em uma vaga numerada ao lado de um Lincoln Town Car e duas BMW. É o sonho de qualquer ladrão de carros, exceto pelo fato de que qualquer um que roube de Zacharov vai acabar jogado de um píer usando botas de cimento.

Quando Lila desliga o motor, percebo que vai ser a primeira vez que verei o apartamento onde ela mora quando está com o pai. Ela ficou quieta ao longo do caminho, tempo suficiente para que eu me perguntasse se ela sabe que a segui ontem, que estou sendo recrutado para a Divisão Licenciada da Menoridade, que a vi encomendar um assassinato e que estou com a arma de Gage.

Para eu me perguntar se estou prestes a morrer.

– Lila – chamo, me virando no banco e colocando a mão enluvada no painel. – O que aconteceu com a gente...

– Não. – Ela olha diretamente nos meus olhos. Depois de um mês sendo obrigado a evitá-la, sinto-me nu diante de seu olhar. – Você pode ser o filho da mãe encantador que quiser, mas nunca vai abrir caminho até meu coração com essa merda de novo.

– Eu não quero isso – falo. – Nunca quis isso.

Ela sai do carro.

– Venha. Temos que voltar para Wallingford antes do toque de recolher.

Sigo-a até o elevador enquanto tento me comportar, enquanto tento entender as palavras dela. Ela aperta o botão C3. Acho que o C é de “cobertura”, porque em pouco tempo estamos subindo os andares tão rápido que meus ouvidos estalam. Ela deixa a bolsa cair do ombro e se encolhe para a frente dentro do casaco preto e comprido. Por um momento, parece frágil e cansada, como um pássaro se protegendo contra a tempestade.

– Como minha mãe veio parar aqui? – pergunto.

Lila suspira.

– Ela fez uma coisa ruim.

Não sei se está falando da maldição em Patton ou de outra coisa. Penso na pedra avermelhada que minha mãe usava no dedo na última vez que a vi. Penso também na foto que encontrei na casa velha, de uma versão bem mais jovem dela vestida de lingerie e parecendo Bettie Page, uma foto tirada por um homem que não era meu pai e talvez fosse Zacharov. Tenho muitos motivos para me preocupar.

As portas do elevador se abrem em uma sala enorme com paredes brancas, piso de mármore preto e branco e o que parece um teto de madeira em estilo marroquino pelo menos cinco metros e meio acima de nós. Não tem tapete, e o som dos nossos sapatos ecoa quando seguimos na direção da lareira acesa na parede oposta, flanqueada por sofás, e onde duas pessoas se escondiam parcialmente nas sombras. Três janelas enormes mostram o Central Park à noite, uma mancha de escuridão quase total no meio da cidade cintilante ao redor.

Minha mãe está sentada em um dos sofás. Segura uma bebida cor de âmbar e usa um vestido branco e fino que nunca vi. Parece caro. Minha expectativa é que ela dê um pulo, que seja a pessoa exuberante de sempre, mas o sorriso que ela me oferece é controlado, quase temeroso.

Apesar disso, eu quase desabo de alívio.

– Você está bem.

– Bem-vindo, Cassel – diz Zacharov.

Ele está de pé perto do fogo, e, quando nos aproximamos, vai até Lila e lhe dá um beijo na testa. Ele parece o lorde de uma mansão baronal em vez de um chefe do crime em um apartamento enorme em Manhattan.

Eu inclino a cabeça no que espero ser um aceno respeitoso.

– Apartamento legal.

Zacharov sorri como um tubarão. O cabelo branco fica dourado diante da luz do fogo. Até os dentes parecem dourados, o que me faz lembrar desconfortavelmente de Gage e da arma presa na parede do meu armário.

– Lila, pode ir fazer seu dever de casa.

Ela toca de leve na garganta, os dedos enluvados acompanhando as marcas que ela assumiu, as marcas que a tornavam uma integrante oficial da família criminosa, não só filha dele, com fúria em cada linha do rosto. Ele nem repara. Tenho certeza de que não percebe que acabou de dispensá-la, como uma criança.

Minha mãe pigarreia.

– Eu gostaria de falar com Cassel sozinha por um momento, se não houver problema, Ivan.

Zacharov assente.

Ela se levanta e caminha até mim. Passa o braço no meu e me leva por um corredor até uma cozinha enorme com piso de madeira de ébano e uma ilha no centro feita de pedra verde que parece malaquita. Enquanto me sento em um banco, ela coloca uma chaleira de vidro transparente em uma das bocas. É assustador quão bem ela parece conhecer o apartamento de Zacharov.

Tenho vontade de segurá-la pelo braço para me tranquilizar e sentir que minha mãe é real, mas ela está se movendo com agitação, sem parecer reparar em mim.

– Mãe – digo. – Estou tão feliz de você... Mas por que você não ligou para nós ou...?

– Eu cometi um erro grande – fala mamãe. – Enorme.

Ela tira um cigarro de sua cigarreira de prata, mas, em vez de acendê-lo, só o coloca sobre a bancada. Nunca a vi tão agitada.

– Preciso da sua ajuda, querido.

Tenho uma lembrança desconfortável de Mina Lange.

– Estávamos muito preocupados – conto. – Não tivemos notícias suas por semanas, e você está no noticiário, sabia? Patton quer sua cabeça.

– Nós? – pergunta ela, sorrindo.

– Eu. Barron. Vovô.

– É bom ver você e seu irmão tão unidos de novo – comenta ela. – Meus garotos.

– Mãe, você está em todos os canais de notícias. É sério. A polícia está procurando você por toda parte.

Ela balança a cabeça e ignora minhas palavras.

– Quando saí da prisão, eu queria ganhar dinheiro rápido. Era difícil, querido, lá dentro. Quando eu não estava elaborando aquela apelação, estava planejando o que faria quando saísse. Eu tinha alguns favores para pedir e algumas coisas reservadas para um dia difícil.

– Como? – pergunto.

A voz dela fica mais baixa.

– O Diamante da Ressurreição.

Eu vi no dedo dela. Ela usou uma vez, quando saímos para almoçar depois que Philip morreu. A pedra tem uma cor bonita e diferente, como uma gota de sangue espalhada em uma poça d’água. Mas, mesmo quando o vi, achei que devia estar enganado, que devia ter entendido errado, porque, apesar de eu saber que Zacharov usava um diamante falso no prendedor da gravata, isso não queria dizer que tinha perdido o original. E claro que não queria dizer que minha mãe o tinha pegado.

– Você roubou? – falo apenas com movimentos labiais e aponto para a sala. – Dele?

– Muito tempo atrás – diz ela.

Não consigo acreditar que ela esteja lidando com isso com tanta leveza. Mantenho a voz baixa.

– Quando você estava trepando com ele?

Depois de todos esses anos, acho que finalmente a choquei.

– Eu... – começa ela.

– Encontrei uma foto – digo. – Quando estava arrumando a casa. O cara que tirou estava usando o mesmo anel que vi em Zacharov numa foto na casa do vovô. Eu não tinha certeza, mas agora tenho.

O olhar dela se desvia na direção da sala, depois se volta de novo para mim. Ela morde o lábio inferior e mancha os dentes de batom.

– Sim, tudo bem, nessa época – diz ela. – Em uma daquelas vezes. De qualquer modo, eu roubei e mandei fazer uma imitação, mas sabia que ele iria querer o verdadeiro de volta, mesmo depois de todo esse tempo. Não fica bem para ele não ter o verdadeiro.

O eufemismo do ano. Se você é o chefe de uma família criminosa, então não, você não quer que as pessoas descubram que seu bem mais valioso foi roubado. E não quer que as pessoas saibam que foi roubado anos atrás e que você usa um falso desde então. Principalmente se seu bem mais valioso é o Diamante da Ressurreição, que, de acordo com a lenda, torna quem o usa invulnerável; a perda dele vai fazer você parecer vulnerável de repente.

– É – digo.

– Então pensei em vender de volta para ele – fala mamãe.

Esqueço-me de manter a voz baixa.

– Você o quê? Você é maluca?

– Tudo ia correr bem.

Ela coloca o cigarro nos lábios e se inclina na direção de uma das bocas do fogão para acender na chama. Inspira profundamente, e as brasas brilham. Ela sopra a fumaça.

A água do chá começa a ferver. A mão da minha mãe está tremendo.

– Ele não se importa de você fumar na casa dele?

Ela prossegue sem me responder.

– Eu tinha um bom plano. Trabalhei com um intermediário e tudo. Mas acabou que eu não tinha o verdadeiro. A pedra sumiu.

Fico olhando para ela por um longo momento.

– Então alguém encontrou o seu e trocou?

Ela assente depressa.

– Deve ter sido isso.

Isso está virando uma daquelas histórias em que cada informação nova é tão pior do que a anterior que perco a vontade de pedir mais detalhes, mas tenho certeza de que não tenho como escapar.

– E?

– Bem, Ivan talvez não se incomodasse de pagar um pouco para ter de volta o que era dele, principalmente porque já devia ter desistido de recuperar o objeto. Acho que teria feito a troca. Mas, quando descobriu que a pedra era falsa, bem, ele matou o intermediário e descobriu que eu estava por trás de tudo.

– Como ele descobriu isso?

– Bem, o jeito como ele matou o intermediário foi...

Eu levanto a mão.

– Tudo bem. Vamos pular essa parte.

Ela traga longamente o cigarro e sopra três anéis perfeitos de fumaça. Quando eu era criança, adorava isso. Eu tentava passar a mão por eles sem que a brisa do movimento os destruísse, mas nunca dava certo.

–Ivan... ele ficou zangado. Bem, mas ele me conhece, então não quis me matar na mesma hora. Temos uma história. Ele me disse que eu tinha que fazer um serviço para ele.

– Um serviço?

– O serviço com Patton – conta ela. – Ivan sempre se interessou pelo governo. Ele disse que era importante impedir que a proposição número dois fosse aprovada em Nova Jersey, porque, se fosse aprovada em um estado, poderia ser aprovada em qualquer lugar. Eu só tinha que fazer Patton renunciar à proposição, e Ivan achava que a coisa toda desmoronaria...

Eu coloco a mão na testa.

– Pare. Espere. Não faz nenhum sentido! Quando tudo isso aconteceu? Antes de Philip morrer?

A chaleira começa a apitar.

– Ah, sim – confirma mamãe. – Mas, sabe, eu estraguei tudo. O serviço. Não consegui desacreditar Patton. Na verdade, acho que aumentei a chance de a proposição número dois ser aprovada, mais do que nunca. Mas você sabe, querido, isso nunca foi meu forte, a política. Eu sei fazer os homens me darem coisas e sei escapar antes que a situação se complique. Os ajudantes xeretas de Patton estavam sempre fazendo perguntas e pesquisando coisas sobre mim. Não é assim que eu trabalho.

Eu faço que sim com a cabeça, entorpecido.

– Agora, Ivan diz que tenho que recuperar a pedra. Só que não faço ideia de onde esteja! E ele diz que não vai me deixar ir embora até eu devolver, mas como vou devolver se nem posso ir procurar?

– Então é por isso que estou aqui.

Minha mãe ri, e por um momento quase se parece com ela mesma.

– Exatamente, querido. Você vai encontrar a pedra para a mamãe, e eu vou poder voltar para casa.

Claro. Ela vai poder sair valsando do apartamento de Zacharov e para os braços expectantes de todos os policiais de Nova Jersey. Mas eu faço que sim de novo enquanto tento entender tudo o que ela disse.

– Espere. Quando me encontrei com você e Barron para comer sushi, na última vez que vi você, você estava usando o anel. Zacharov já tinha colocado você no serviço de Patton?

– Sim. Já te falei isso. Mas concluí que, como o diamante era falso, eu podia muito bem usá-lo.

– Mãe! – falo em um grunhido.

Zacharov aparece na porta, uma sombra com cabelo prateado. Ele passa por nós, vai até o fogão e apaga o fogo. Só quando a chaleira para de berrar é que percebo como zunia alto.

– Vocês dois terminaram? – pergunta ele. – Lila disse que está na hora de voltar para Wallingford. Se você quiser ir com ela, sugiro que vá agora.

– Mais um minuto – peço.

As palmas das minhas mãos estão suando dentro das luvas. Não faço ideia nem de por onde começar a procurar o verdadeiro Diamante da Ressurreição. E, se eu não encontrá-lo antes de Zacharov perder a paciência, minha mãe pode acabar morta.

Zacharov olha longamente para minha mãe e depois para mim.

– Rápido – aconselha enquanto volta pelo corredor.

– Então – digo para minha mãe. – Onde estava a pedra da última vez que a viu? Onde você a guardava?

Ela assente.

– Eu escondia em um vestido no fundo de uma gaveta da minha cômoda.

– Ainda estava lá quando você saiu da prisão? Exatamente no mesmo lugar?

Ela assente de novo.

Minha mãe tem duas cômodas, as duas bloqueadas por pilhas enormes de sapatos, casacos e vestidos, muitos já podres, a maioria comida por traças. A ideia de que alguém revirou aquilo tudo e então as gavetas parece improvável, principalmente se a pessoa não soubesse que tinha que procurar no quarto.

– E mais ninguém sabia que estava lá? Você não contou para ninguém? Nem na prisão, nem em outra ocasião? Ninguém?

Ela balança a cabeça em negativa. A cinza na ponta do cigarro está ficando comprida. Vai cair na luva dela.

– Ninguém.

Eu reflito por um momento.

– Você disse que trocou a peça por uma falsa. Quem fez a falsa?

– Um falsário que seu pai conheceu em Paterson. Ainda está na ativa e tem a reputação de ser discreto.

– Talvez o sujeito tenha feito duas imitações e ficou com a verdadeira – sugiro.

Ela não parece convencida.

– Você pode anotar o endereço dele? – pergunto, olhando na direção do corredor. – Vou lá falar com ele.

Ela abre algumas gavetas perto do fogão. Facas em um bloco de madeira. Panos de prato. Finalmente, encontra uma caneta em uma gaveta cheia de fita adesiva e sacos de lixo. Ela escreve no meu braço “Bob – Central Fine Jewelry” e a palavra “Paterson”.

– Vou ver o que consigo descobrir – digo e dou-lhe um abraço rápido.

Ela envolve meu corpo com os braços e aperta até doerem os ossos. Depois me solta, se vira de costas e joga o cigarro na pia.

– Vai ficar tudo bem – falo.

Mamãe não responde.

Sigo para a sala. Lila me espera com a bolsa no ombro e já de casaco. Zacharov postou-se ao seu lado. As expressões dos dois estão distantes.

– Você entendeu o que tem que fazer? – pergunta ele.

Eu assinto.

Ele nos leva até o elevador, que fica onde estaria a porta do apartamento de outras pessoas. A parte de fora é dourada e tem um desenho cheio de curvas.

Quando as portas se abrem, eu olho para ele. Os olhos azuis estão pálidos como gelo.

– Se você tocar na minha mãe, eu mato você – ameaço.

Zacharov sorri.

– É esse o espírito, garoto.

As portas se fecham, e Lila e eu ficamos sozinhos. A luz do teto pisca quando o elevador começa a descer.

Saímos da garagem e seguimos para o túnel que leva para fora da cidade. As luzes intensas de bares, restaurantes e clubes passam por nós, clientes se espalham pela calçada. Táxis buzinam. Em Manhattan, a noite está começando em sua glória enfumaçada.

– Podemos conversar? – pergunto a Lila.

Ela balança a cabeça.

– Acho que não, Cassel. Acho que já fui humilhada o bastante.

– Por favor – insisto. – Só quero falar o quanto lamento...

– Não.

Ela liga o rádio e passa direto pelo noticiário em que o apresentador discute a demissão de todos os indivíduos hiperbatogâmicos do governo, quer tenham sido condenados por algum crime ou não. Escolhe uma estação que toca música pop. Uma garota canta sobre dançar dentro da mente de alguém, colorindo os sonhos dessa pessoa. Lila aumenta o som.

– Eu nunca quis machucar você – grito mais alto que a música.

– Eu vou machucar você se você não calar a boca – devolve ela. – Olhe, eu sei. Sei que foi horrível eu ter chorado, implorado para que você fosse meu namorado e me jogado em cima de você. Eu lembro como você ficou acuado. Eu me lembro das mentiras. Tenho certeza de que foi constrangedor. Foi constrangedor para nós dois.

Eu desligo o rádio, e o carro fica silencioso abruptamente. Quando falo, minha voz sai rouca.

– Não. Não foi assim. Você não entende. Eu queria você. Eu amo você, mais do que já amei qualquer pessoa. Mais do que vou amar qualquer pessoa. E, mesmo se você me odiar, ainda é um alívio poder dizer isso. Eu queria proteger você de mim e do que eu sentia porque não confiava em mim mesmo para me lembrar de que não era realmente... de que você não sentia o mesmo... Seja como for, sinto muito. Sinto muito por você estar constrangida. Sinto muito por ter constrangido você. Espero que eu não... Me desculpe por ter deixado as coisas chegarem aonde chegaram.

Por um momento, ficamos em silêncio. De repente, ela vira o volante para a esquerda, os pneus cantando quando ela sai da estrada e faz uma volta que nos leva de novo para a cidade.

– Tudo bem, acabei – digo. – Vou calar a boca agora.

Ela bate no rádio, o liga e aumenta tanto o volume a ponto de preencher o carro todo com o som. A cabeça dela está virada para longe de mim, mas os olhos brilham, como se estivessem úmidos.

Seguimos por mais um quarteirão, e ela para no meio-fio de repente. Estamos na frente de um ponto de ônibus.

– Lila... – chamo.

– Saia – diz ela. A cabeça está virada para o outro lado e a voz está tremendo.

– Pare com isso. Não posso pegar o ônibus. Falando sério. Vou perder o toque de recolher e vou ser expulso. Já tenho advertência dupla.

– Não é problema meu.

Ela remexe a bolsa e pega um par grande de óculos de sol. Coloca no rosto e esconde metade dele. A boca está com as pontas curvadas para baixo, mas não é tão expressiva quanto os olhos.

Ainda assim, percebo que ela está chorando.

– Por favor, Lil – digo, usando um apelido que não uso desde que éramos crianças. – Não vou dizer nada durante todo o caminho de volta. Eu juro. Me desculpe.

– Deus, eu odeio você – retruca ela. – Tanto. Por que os garotos acham que é melhor mentir e dizer para uma garota o quanto eles a amaram e que só a largaram para o bem dela? Que só tentaram rearrumar o cérebro dela para o bem dela? Isso faz você se sentir melhor, Cassel? Faz? Porque da minha perspectiva é uma droga.

Eu abro a boca para negar, mas lembro que prometi não falar. Só balanço a cabeça.

Ela se afasta do meio-fio de repente, e a força da aceleração é suficiente para me jogar contra o encosto. Mantenho os olhos na estrada. Ficamos em silêncio durante todo o caminho para Wallingford.

Vou dormir cansado e acordo exausto.

Enquanto visto o uniforme, não consigo deixar de pensar no apartamento enorme e frio de Zacharov, onde minha mãe está aprisionada. Eu me pergunto como é para Lila acordar lá em uma manhã de sábado e entrar naquela cozinha para tomar café.

Eu me pergunto quanto tempo Lila vai conseguir olhar para minha mãe antes de contar para Zacharov o que minha mãe fez com ela. Eu me pergunto se, cada vez que Lila a vê, lembra como foi ser obrigada a me amar. Eu me pergunto se, a cada vez, ela me odeia um pouco mais.

Penso nela no carro, com a cabeça virada para o outro lado, os olhos cheios de lágrimas.

Não sei nem como começar a fazer Lila me perdoar. E não faço ideia de como ajudar mamãe. A única coisa que me vem à mente e que pode manter Zacharov tranquilo, além de encontrar o diamante, é eu aceitar trabalhar para ele. O que quer dizer trair os agentes federais. O que quer dizer desistir de tentar ser bom. E quando eu começar a trabalhar para os Zacharov... Bem, todo mundo sabe que pagar uma dívida para a máfia é impossível. Os juros só vão aumentando.

– Venha – chama Sam, coçando a cabeça e deixando o cabelo de pé. – Vamos perder o café da manhã de novo.

Eu resmungo e sigo para o banheiro para escovar os dentes. Faço a barba. Quando tiro o cabelo da cara, faço uma careta ao perceber quanto meus olhos estão vermelhos.

No refeitório, preparo um café misturado com chocolate quente. O açúcar e a cafeína me acordam o bastante para terminar dois problemas que tenho que entregar na aula de probabilidade e estatística. Kevin Brown olha para mim de cara feia do outro lado do salão. Há um hematoma escurecendo a bochecha dele. Não consigo evitar e sorrio.

– Sabe, se você fizesse seu dever à noite, não teria que fazer nas outras aulas – fala Sam.

– Isso também seria verdade se alguém me deixasse copiar as respostas – digo a ele.

– De jeito nenhum. Você tem que andar na linha agora. Nada de colar.

Eu resmungo e me levanto, empurrando a cadeira para o lado.

– Vejo você no almoço.

O tempo todo, durante os anúncios da manhã, fico com a cabeça apoiada nos braços. Entrego meu dever feito às pressas e copio novos problemas do quadro. Quando saio da aula de inglês no terceiro tempo e ando pelo corredor, uma garota passa a me acompanhar.

– Oi – diz Mina. – Posso andar com você?

– Hã, claro. – Eu franzo a testa. Ninguém nunca me perguntou isso. – Você está bem?

Ela hesita e diz as palavras com pressa.

– Tem uma pessoa me chantageando, Cassel.

Eu paro de andar e olho para ela por um momento, enquanto alunos caminham ao nosso redor.

– Quem?

Ela balança a cabeça.

– Não sei. E não importa, não é?

– Acho que não – digo. – Mas o que eu posso fazer?

– Alguma coisa – responde ela. – Você fez Greg Harmsford ser expulso da escola.

– Eu não.

Ela olha para mim por entre os cílios abaixados.

– Por favor. Preciso da sua ajuda. Sei que você é capaz de dar um jeito nas coisas.

– Acho que não posso fazer tanto quanto...

– Sei que você fez boatos sumirem. Mesmo quando eram verdade. – Ela olha para baixo quando fala, como se estivesse com medo de eu ficar com raiva.

Eu suspiro. Havia vantagens em ser o anotador de apostas da escola.

– Eu nunca falei que não tentaria. Só que você não deve esperar muito.

Ela sorri para mim e joga o cabelo brilhante por cima dos ombros. Os fios caem pelas costas como uma capa.

– E – digo, levantando uma das mãos, avisando-a para não ficar animada com a resposta – você vai ter que me contar o que está acontecendo. Tudo.

Ela assente, e o sorriso diminui um pouco.

– Agora seria bom. Ou você pode continuar adiando e...

– Eu tirei fotos. – Ela fala de repente e aperta os lábios com nervosismo. – Fotos minhas, fotos nuas. Ia mandar para meu namorado. Nunca mandei, mas deixei na câmera. Burrice, né?

Algumas perguntas não têm respostas boas.

– Quem é esse namorado?

Ela olha para baixo e estica a mão para ajeitar a alça da bolsa, o que a faz parecer menor e mais vulnerável.

– Nós terminamos. Ele nem soube das fotos. Não tem como estar envolvido nisso.

Ela está mentindo.

Não sei que parte é mentira, mas, à medida que entramos nos detalhes, ela dá os sinais. Evita contato visual. Movimenta-se com agitação.

– Então acho que alguém as pegou – sugiro, incitando-a a continuar.

Ela assente.

– Minha câmera sumiu duas semanas atrás. Domingo passado, alguém enfiou um bilhete por baixo da porta do meu quarto. Dizia que tenho uma semana para arrumar cinco mil dólares. Tenho que levar esse dinheiro para o campo de beisebol às seis da manhã na quinta, senão a pessoa vai mostrar as fotos para todo mundo.

– Para o campo de beisebol? – Eu franzo a testa. – Me deixe ver o bilhete.

Ela enfia a mão na bolsa e me dá uma folha de papel branco dobrada, provavelmente saída da impressora de um dos laboratórios de computação do campus. O bilhete diz exatamente o que ela me contou.

Franzo a testa. Alguma coisa não faz sentido.

Ela engole em seco.

– Não tenho esse dinheiro, não do jeito que o bilhete quer, mas posso pagar você. Posso encontrar algum jeito de pagar você.

Pela forma como ela fala, os cílios tremendo e a voz magoada, sei o que está insinuando. E, apesar de achar que ela não iria até o fim, penso que deve estar em pânico para escolher essa abordagem.

Muitas pessoas são enganadas porque não sabem de nada. São apenas otárias. Mas muitas ficam desconfiadas no começo de um golpe. Talvez o investimento inicial seja pequeno e elas não tenham tanto problema em perder. Talvez estejam entediadas. Talvez estejam esperançosas. Mas você ficaria surpreso em saber quanta gente começa a cair em um golpe sabendo que há uma boa chance de estar sendo enganada. Todos os sinais estão lá. Elas só os ignoram. Porque querem acreditar na possibilidade de alguma coisa. E assim, apesar de saberem, apenas deixam acontecer.

– Então você vai encontrar um jeito de me ajudar? – pergunta ela. – Vai tentar?

A falta de habilidade de Mina para mentir toca meu coração. Sei que estou sendo enganado, assim como todos os otários, mas, de alguma forma, frente à tentativa incrivelmente óbvia de manipulação, não posso recusar.

– Vou tentar – digo.

Não entendo muito dessa situação, exceto que há uma garota bonita olhando para mim como se eu fosse capaz de resolver todos os problemas dela. Eu quero. É claro que eu ajudaria se ela me falasse a verdade sobre eles.

Uma vitória seria algo bom para mim.

Ela joga os braços ao redor do meu pescoço para agradecer. Inspiro o aroma da colônia dela, com cheirinho de coco.


CAPÍTULO CINCO

ENTRO NA AULA DE FÍSICA

e me sento no meu lugar novo, ao lado de Daneca. Ela está abrindo o caderno e ajeitando as pregas da saia preta. Vira-se para mim e me lança um olhar terrível. Eu afasto os olhos e reparo que o fio dourado do emblema de Wallingford no bolso do blazer dela está desfiando.

– Me desculpe por não ter conseguido ir à biblioteca ontem – digo e coloco a mão enluvada sobre o coração. – Eu queria mesmo ter ido.

Ela não responde. Só puxa o cabelo com pontas roxas e o prende em um coque frouxo, depois tira um elástico do pulso e prende ao redor do coque. Não parece que vai segurar, mas segura.

– Eu esbarrei com Lila – conto. – Ela precisava me falar uma coisa sobre minha família. Não dava para esperar.

Daneca dá uma risada debochada.

– Pergunte a ela se não acredita em mim.

Ela pega um lápis mordido da bolsa e aponta na minha direção.

– Se eu fizesse uma pergunta, você responderia com sinceridade?

– Não sei – digo.

Tem coisas sobre as quais não posso falar e outras que não sei se quero. Pelo menos posso ser sincero com ela sobre minha incerteza. Mas não sei se ela vê isso da mesma forma que eu.

– O que aconteceu com aquele gato que salvamos do abrigo de animais?

Eu hesito.

O problema de falar a verdade é o seguinte: as pessoas inteligentes descobrem as partes que você não cita. Uma mentira pode ser compacta, fácil. A verdade é uma confusão. Quando contei a Daneca que meus irmãos alteraram minha memória, que eles queriam que eu matasse Zacharov e que haviam capturado Lila, deixei um detalhe essencial de fora. Nunca contei a ela que eu era mestre de transformação.

Eu estava com muito medo. Já havia confiado tanto nela que não conseguia abrir mão desse último segredo. E estava com medo do segredo em si, de dizer as palavras em voz alta. Mas agora Daneca destrinchou a história toda e encontrou a falha. O gato que ela me viu segurar, o mesmo que nunca mais viu.

– Posso explicar – começo a dizer.

Daneca balança a cabeça.

– Imaginei que você diria isso.

Ela se vira.

– Pare com isso – peço. – Posso mesmo explicar. Me dê uma chance.

– Já dei – sussurra ela na hora em que a Dra. Jonahdab começa a fazer a chamada. – Você estragou.

Por mais zangada que Daneca esteja comigo, sei que ela sempre quer mais respostas. Mas talvez sinta que já as tem.

Algo a fez começar a pensar sobre coisas que aconteceram sete meses atrás. Talvez Lila tenha dito alguma coisa, talvez até tenha lhe contado que eu era mestre de transformação, que por minha causa ela passou anos presa em um corpo que não era dela, que ela era o gato que nós roubamos. Ela e Daneca andam passando muito tempo juntas. Talvez Lila precisasse desabafar com alguém. O segredo é tanto de Lila quanto meu.

Agora, acho que é segredo de Daneca também.

Falto ao treino de corrida, me sento no sofá do salão estudantil do alojamento e pesquiso no Google o Central Fine Jewelry em Paterson. Um site horrível promete comprar ouro e alega aceitar consignação. Fica aberto só até as seis, então não tenho como chegar lá antes de fechar.

Ligo para o número listado. Finjo ser um cliente que quer verificar quando Bob trabalha e alego que ele é o único a quem confio certas peças. A mulher mal-humorada do outro lado da linha diz que ele vai estar lá no domingo. Eu agradeço e desligo. Parece que tenho planos para o fim de semana.

Só que a Central Fine Jewelry não parece o tipo de lugar onde se continua trabalhando depois de fazer o pé de meia com a venda do Diamante da Ressurreição, então não estou muito otimista.

Um link no site deles mostra amuletos. Parece coisa séria. Eles não alegam ter amuletos de transformação. Alegar é sinal claro de golpe, já que só um mestre de transformação pode fazê-los. A maioria das pedras no estoque são para feitiço de sorte. Eles listam alguns poucos amuletos menos comuns, que impedem feitiço de memória e feitiço de morte (bem, impedem uma vez, antes de o amuleto quebrar e você ter que comprar um novo), mas nada bom demais para ser verdade. Concluo que, como conhecia meu pai, Bob tinha contato com mestres de maldição. O inventário dele é prova de que ainda tem.

Faz sentido um falsário estar envolvido com mestres. O fato de os feitiços de maldição serem ilegais transforma todo mundo que os usa em criminosos. E criminosos são unidos.

Esse pensamento faz minha mente se voltar para Lila.

Por mais que me odeie agora, ela vai me odiar bem mais quando eu assinar os papéis e me tornar agente federal. Em Carney, onde passávamos nossos verões quando crianças, se um mestre de maldição entrasse para o governo, essa pessoa era considerada traidora, do tipo mais baixo, alguém em quem não vale cuspir nem se estivesse pegando fogo.

Parte de mim sente um prazer perverso em levar a cabo a única coisa que vai fazer um bando de assassinos, golpistas e mentirosos levarem um susto e tremerem nas bases.

Aposto que não achavam que eu fosse capaz.

Mas eu nunca quis magoar Lila, não mais do que já magoei. E, independentemente do que qualquer um deles pense de mim, nunca vou deixar o governo botar as garras nela.

Outro aluno do último ano, Jace, entra no salão estudantil e liga a televisão. Ele escolhe um canal que está passando um reality show sobre modelos presas em uma ilha deserta. Não estou prestando atenção. Minha mente está voltada para Mina Lange e chantagem.

Não quero nem tentar entender por que pensar em Lila me levou até Mina.

Mesmo assim, reviro a história dela sem parar, tentando ver se vejo alguma pista no pouco que ela me contou. Por que o ladrão demorou duas semanas para começar a chantagear Mina? As pessoas que roubam câmeras normalmente não querem mais a câmera do que o que tem nelas? Por que se dar o trabalho de ver as fotos de outra pessoa? A maioria dos alunos de Wallingford tem dinheiro para comprar uma câmera, e é estranho quantos jovens ricos roubam por diversão. Eles furtam a loja de conveniência da esquina, entram nos quartos uns dos outros para pegar caixas de biscoito e arrombam portas para pegar iPods.

E isso, infelizmente, só aumenta a lista de suspeitos, em vez de diminuir. O chantageador poderia ser qualquer um. E, mais do que provavelmente, a pessoa está brincando sobre os cinco mil e o campo de beisebol, tentando assustar Mina. A crueldade remota aponta para uma garota ou um bando de garotas. Seja lá quem for, ela ou elas só devem querer deixar Mina nervosa.

Se eu estiver certo, é um belo golpe. Mesmo se Mina encarar o blefe, não há muito que ela possa fazer, porque não vai querer que as fotos sejam divulgadas. Mas as garotas provavelmente são incapazes de segurar as risadinhas quando Mina entra no refeitório ou não conseguem deixar de fazer provocações na aula, mesmo que não falem nada sobre as fotos.

Eu só queria ter certeza de que Mina estava falando a verdade.

Tarefas como essa são as que os agentes do FBI fazem, certo? Em uma escala maior, mas ainda usando as mesmas técnicas. Isso pode ser como um dos exercícios designados a Barron, só que esse é meu. Uma pequena investigação para eu praticar em segredo. Assim, quando eu por fim entrar, vou ser melhor do que ele em alguma coisa.

Uma pequena investigação para provar a mim mesmo que estou tomando a decisão certa.

Ainda estou avaliando formas de atrair o chantagista quando o programa sobre as modelos é interrompido por imagens do governador Patton. Ele está nos degraus do tribunal, cercado de microfones, falando alto.

– Vocês sabiam que há órgãos do governo com equipes inteiras de mestres de maldição, mestres com acesso aos seus arquivos confidenciais? Vocês sabiam que ninguém exige testar candidatos a cargos do governo para determinar quem entre nós é potencialmente um criminoso perigoso? – pergunta ele. – Temos que tirar todos os mestres do nosso governo! Como podemos esperar que nossos legisladores fiquem em segurança quando os funcionários, os auxiliares e até seus constituintes podem estar tentando minar as medidas tomadas para revelar esses predadores sinistros porque isso seria inconveniente para eles?

A imagem volta para o rosto sério e bem-maquiado da repórter, e ouvimos que um senador de Nova York, James Raeburn, fez uma declaração condenando o posicionamento de Patton. Quando mostram o senador Raeburn, ele aparece na frente de uma cortina azul, atrás de um púlpito com a insígnia do estado.

– Estou profundamente decepcionado com as palavras e ações recentes do governador Patton. – Ele é jovem para um senador, tem um sorriso que parece ter usado para convencer pessoas, mas não parece golpista. Quero gostar dele. Ele me lembra meu pai. – Não somos ensinados que aqueles que enfrentaram a tentação e a venceram são mais virtuosos do que os que ainda precisam enfrentar seus próprios demônios? Aqueles que nascem hiperbatogâmicos e são tentados pela vida criminosa, tentados a usar o poder para benefício próprio, são pessoas como nós, e, se resistem à tentação e preferem trabalhar para nos proteger dos semelhantes com menos moral, eles não deveriam ser celebrados em vez de serem alvos da caça às bruxas do governador Patton?

O âncora do noticiário nos diz que mais detalhes virão e mais declarações são esperadas de outros integrantes do governo.

Procuro o controle remoto e mudo o canal para um game show. Jace está com o laptop aberto e não parece reparar, e fico grato por isso. Acho que qualquer coisa que distraia Patton de falar sobre minha mãe é uma boa, mas ainda odeio ver a cara dele.

Antes do jantar, sigo até meu quarto para deixar os livros. No alto da escada, vejo Sam correndo pelo corredor. O cabelo está desgrenhado, e as bochechas, vermelhas. Os olhos parecem brilhantes demais, como acontece com as pessoas apaixonadas, com raiva ou completamente malucas.

– O que foi? – indago.

– Ela quer que eu devolva tudo dela.

Ele bate com a mão na parede e racha o gesso, um gesto nem um pouco característico, e só fico olhando. Ele é um cara grande, mas essa é a primeira vez que o vejo usar seu tamanho para a violência.

– Daneca? – pergunto, como um idiota, porque é claro que ele está falando de Daneca. É só que a coisa toda não faz sentido. Eles andaram brigando, claro, mas é por um motivo idiota. Os dois se gostam, sem dúvida mais do que ligam para um mal-entendido exagerado. – O que aconteceu?

– Ela me ligou e disse que acabou. Que já tinha acabado semanas atrás. – Ele vacila, com o braço dobrado contra a parede e a testa apoiada nele. – Nem quis me ver para pegar as coisas. Falei que sentia muito, falei um monte de vezes, e que faria qualquer coisa para tê-la de volta. O que mais posso fazer?

– Talvez ela só precise de tempo – sugiro.

Ele balança a cabeça de um jeito que dá pena.

– Ela está saindo com outra pessoa.

– Não acredito – digo. – Pare com isso. Você só está sendo...

– Mas é verdade – insiste ele. – Ela falou.

– Quem?

Tento pensar em qualquer pessoa com quem eu tenha visto Daneca conversando, qualquer pessoa para quem ela tenha olhado um pouco mais ou com quem tenha andado pelo corredor mais de uma vez. Tento pensar em qualquer sujeito que tenha ficado depois do fim das reuniões do HEX para conversar com ela. Mas nada me vem à mente. Não consigo visualizá-la com ninguém.

Ele balança a cabeça.

– Ela não quis me contar.

– Olhe – falo. – Sinto muito, cara. Vou largar a mochila no quarto e podemos sair do campus. Vamos comer uma pizza ou alguma outra coisa. Sair deste lugar por umas horas.

Eu estava planejando me encontrar com Mina no refeitório, mas afasto esse pensamento.

Sam balança a cabeça.

– Não. Só quero ficar um pouco sozinho.

– Tem certeza?

Ele assente e se afasta da parede para descer a escada.

Entro no nosso quarto e largo a mochila na cama. Estou quase saindo de novo quando vejo Lila de joelhos espiando debaixo da cômoda de Sam. O cabelo dourado e curto está caindo no rosto, e as mangas da camisa estão dobradas. Reparo que ela não está de meia-calça, só meias curtas.

– Oi – digo, perplexo.

Ela se senta. Não consigo interpretar a expressão dela, mas as bochechas estão meio rosadas.

– Não achei que você fosse estar aqui.

– Eu moro aqui.

Ela se vira e se senta no chão com as pernas cruzadas, a saia pregueada no alto das coxas. Tento não olhar, não lembrar a sensação da pele dela contra a minha, mas é impossível.

– Você sabe onde está a coruja de pelúcia de Daneca? Ela jura que deixou aqui, mas Sam diz que nunca viu.

– Eu também nunca vi.

Ela suspira.

– E o exemplar dela de Steal This Book, de Abbie Hoffman?

– Foi mal – falo, tirando o livro de uma das minhas gavetas. Ela olha para mim. – Que foi? Pensei que fosse de Sam quando peguei emprestado.

Ela se levanta em um movimento fluido e pega o livro da minha mão enluvada.

– Não é isso. Não sei. Não sei como me convenceram a fazer isso. Daneca estava tão chateada.

– Ela estava chateada? Foi ela que partiu o coração dele.

Fico esperando que Lila diga alguma coisa cruel sobre Sam ou sobre mim ou sobre o amor em geral, mas ela só assente.

– É.

– Ontem à noite... – começo a dizer.

Ela atravessa o quarto balançando a cabeça.

– E uma camiseta com as palavras NERD HERD? Você viu?

Faço que não com a cabeça enquanto ela começa a pegar roupa suja no chão.

– Então vocês andam bem amigas? Você e Daneca? – pergunto.

Lila dá de ombros.

– Ela está tentando me ajudar.

Eu franzo a testa.

– Com o quê?

– Com a escola. Estou um pouco atrasada. Talvez não fique aqui muito mais tempo.

Lila se empertiga com uma camiseta enrolada na mão. Quando olha para mim, parece mais triste do que zangada.

– O quê? Por quê?

Dou um passo na direção dela. Lembro-me de alguma coisa que Daneca disse sobre Lila ter aulas de apoio. Ela não estuda desde os quatorze anos; é muita coisa para se inteirar. Mesmo assim, achei que conseguiria. Achei que ela fosse capaz de lidar com qualquer coisa.

– Só vim para cá por sua causa. Não sou boa nessas coisas de escola.

Lila desgruda um cartão-postal da parede acima da cama de Sam, e para isso ela sobe no colchão de um jeito que acende todos os pensamentos ruins que já tive.

– Pronto. Acho que acabou.

– Lila – digo quando ela vai em direção à porta. – Você é uma das pessoas mais inteligentes que conheço...

– Ela também não quer ver você – diz Lila, me interrompendo. – Não faço ideia do que você fez a Daneca, mas acho que ela está com mais raiva de você do que de Sam.

– De mim? – Baixo a voz a um sussurro para não sermos ouvidos. – Não fiz nada. Foi você que contou para ela que transformei você em gato.

– O quê? – Lila abre um pouco a boca. – Está maluco? Nunca falei isso!

– Ah – digo, intrigado de verdade. – Achei que você tivesse dito. Daneca veio me fazer um monte de perguntas, perguntas muito estranhas. Me desculpe. Eu não quis dizer nada. A história é sua, você conta se quiser. Não tenho o direito...

Ela balança a cabeça.

– É melhor você torcer para ela não descobrir. Com as maluquices de advogada de mestres da mãe, ela provavelmente iria direto para o governo. Você acabaria enfiado em um daqueles programas de lavagem cerebral federal.

Dou um sorriso culpado.

– É, estou feliz por você não ter dito nada para ela.

Lila revira os olhos.

– Sei guardar segredo.

Quando ela sai com as coisas de Daneca, fico com vergonha ao me dar conta de quantos segredos Lila realmente guardou. Ela tinha meios para estragar minha vida desde que voltou a ser humana. Bastaria uma palavra para o pai, e eu estaria morto. Como minha mãe a amaldiçoou, Lila tem um motivo ainda melhor. O fato de ela não ter feito isso é um milagre. E não tenho a menor ideia do porquê, já que ela tem todos os motivos, já que a maldição passou.

Eu me encosto na cama.

Minha vida toda, fui treinado para ser um golpista, ler o que as pessoas querem dizer por trás do que dizem. Mas, no momento, não sou capaz de lê-la.

No jantar, Mina nega conhecer qualquer pessoa que pudesse chantageá-la por maldade. Ninguém nunca a provocou em Wallingford, ninguém nunca riu nas costas dela. Ela se dá bem com todo mundo.

Nós nos sentamos juntos e comemos frango assado e batatas enquanto ela responde minhas perguntas. Espero que Sam apareça, mas ele não chega. Lila também não dá as caras no refeitório.

Quando pressiono Mina, ela diz que o ex-namorado não estuda em Wallingford. O nome dele é Jay Smith, ao que parece, e ele estuda em uma escola pública, mas ela não sabe direito qual. Ela o conheceu no shopping, mas fica um pouco confusa na hora de dizer onde. Os pais dele são muito rigorosos e ela nunca teve permissão de ir à casa dele. Ela apagou o número do telefone dele quando terminaram.

Tudo é um beco sem saída.

Como se ela não quisesse que eu desconfiasse de ninguém. Como se não quisesse que eu investigasse exatamente o que me pediu.

Como se já soubesse quem a está chantageando. Mas isso não faz sentido. Se ela soubesse, não precisaria me envolver.

Quando me levanto, Mina me abraça e diz que sou o garoto mais fofo do mundo. Apesar de ela não estar falando sério e provavelmente estar falando isso pelos motivos errados, a sensação é boa.

Encontro Sam deitado na cama e com fones no ouvido quando volto para o quarto. Ele fica assim durante todo o tempo de estudo, fungando baixinho nas cobertas. E adormece de roupa.

Na quarta, ele quase não fala e quase não come. No café, belisca a comida e responde às minhas piadas mais absurdas com um grunhido. Quando o vejo nos corredores, ele parece perturbado.

Na quinta, ele tenta falar com Daneca e corre atrás dela na praça depois do café da manhã. Eu os sigo com um medo entalado na boca do estômago. O céu está nublado, e está frio o bastante para eu não me surpreender se cair chuva com neve em vez de chuva apenas. A escola parece apagada, cinzenta. Por um momento, Sam e Daneca estão de pé bem próximos, e penso que ele tem chance. Mas ela recua e sai andando na direção do centro acadêmico, as tranças balançando.

– Quem? – grita ele atrás dela. – Só me diga quem é. Só me diga por que ele é melhor do que eu.

– Eu não devia ter contado nada – grita ela em resposta.

As pessoas gostariam de fazer apostas acerca da identidade do sujeito misterioso, mas ninguém quer revelar a Sam seus palpites. Ele vive com um olhar enlouquecido e anda pelo campus como um maluco. Quando as pessoas me procuram, fico feliz de já ter largado o negócio.

Na sexta-feira, já estou preocupado o bastante a ponto de fazer Sam ir para casa comigo. Deixo o Mercedes em Wallingford e seguimos para a casa antiga da minha mãe no rabecão movido a óleo. Paramos, e reparo que já há outro carro estacionado perto da garagem. Vovô resolveu fazer uma visita.


CAPÍTULO SEIS

ENTRO PELA PORTA DA FRENTE

com Sam logo atrás. Está destrancada, e consigo ouvir o barulho da lava-louças. Meu avô está de pé em frente à bancada, cortando batatas e cebolas. Ele tirou as luvas, e os cotocos enegrecidos onde ficavam os dedos estão claramente visíveis. Quatro dedos, quatro assassinatos. Ele é mestre de morte.

Um desses assassinatos salvou minha vida.

Vovô levanta o rosto.

– Sam Yu, certo? – diz ele. – O colega de quarto.

Sam assente.

– Você veio de Carney – falo. – E está fazendo o jantar. O que está acontecendo? Como sabia que eu vinha para casa este fim de semana?

– Eu não sabia. Você teve notícia da sua mãe? – pergunta vovô.

Eu hesito.

Ele dá um grunhido.

– Foi o que pensei. Não quero você envolvido nas merdas dela. – Ele assente na direção de Sam. – O garoto sabe guardar segredo?

– No momento, ele guarda quase todos os meus – comento.

– Quase todos? – brinca Sam, erguendo o canto da boca. É o mais perto que ele chega de sorrir há dias.

– Então prestem atenção, vocês dois. Cassel, sei que ela é sua mãe, mas não tem nada que você possa fazer por ela. Shandra se meteu em confusão. Tem que sair sozinha. Entendeu?

Eu concordo.

– Não fique concordando se quiser dizer não – diz vovô.

– Não estou fazendo nenhuma loucura. Só estou vendo se consigo encontrar uma coisa que ela perdeu – conto, olhando na direção de Sam.

– Que ela roubou – retruca vovô.

– Ela roubou do governador Patton? – pergunta Sam, claramente desconcertado.

– Eu queria que ela precisasse se preocupar só com aquele idiota – diz vovô, voltando a cortar legumes. – Vocês dois, sentem-se um pouco. Vou fazer bife. Tem o bastante para três.

Eu assinto com a cabeça, entro na sala e solto a mochila perto do sofá. Sam vai atrás.

– O que está acontecendo? – pergunta ele. – De quem seu avô está falando?

– Minha mãe roubou uma coisa e tentou vender uma réplica para o dono original.

Essa parece a explicação mais simples. Os detalhes só deixam tudo mais confuso. Sam sabe que o pai de Lila é chefe da máfia, mas não sei se pensa no pai ou na mãe de alguém como uma pessoa potencialmente letal.

– O cara quer o verdadeiro, mas minha mãe não lembra onde colocou.

Sam assente devagar.

– Pelo menos, ela está bem. Escondida, mas bem.

– É – resmungo, mas não me sinto convencido.

Sinto o cheiro da cebola quando cai na gordura quente da frigideira na cozinha. Minha boca saliva.

– Sua família é demais – diz Sam. – Todos elevam muito o padrão de ser demais.

Isso me faz rir.

– Minha família é composta de loucos que elevam muito o padrão de loucura. Falando nisso, não ligue para meu avô. Hoje, podemos fazer o que você quiser. Fugir para um clube de strip-tease. Ver filmes ruins. Passar trote para garotas da escola. Dirigir até Atlantic City e perder todo o nosso dinheiro no gin rummy. Você que manda.

– Tem mesmo jogo de gin rummy em Atlantic City?

– Provavelmente não – admito. – Mas aposto que tem uns coroas dispostos a entrar em um jogo e levar seu dinheiro.

– Eu quero encher a cara, e muito – diz ele com tristeza. – A ponto de esquecer não só esta noite, mas os últimos seis meses da minha vida.

Isso me faz pensar com desconforto em Barron e nos feitiços de memória. Eu me pergunto o quanto Sam pagaria para fazer exatamente isso. Para esquecer Daneca. Para esquecer que a amou.

Ou fazê-la esquecer que parou de amá-lo.

Da mesma forma que Philip mandou Barron fazer Maura, a mulher de Philip, esquecer que ia abandoná-lo. Não deu certo. Eles viviam tendo as mesmas brigas sem parar enquanto ela ia deixando de amá-lo como antes. Sem parar. Até que ela deu um tiro no peito dele.

– Cassel – chama Sam, empurrando meu ombro com a mão coberta pela luva. – Tem alguém aí dentro?

– Me desculpe – digo, balançando a cabeça. – Ficar bêbado. Certo. Me deixe verificar a situação alcoólica.

Sempre houve um armário de bebidas na sala de jantar. Acho que ninguém o abre desde antes de papai morrer e mamãe ser presa. Havia muita coisa amontoada na frente e não era de acesso muito fácil. Encontro duas garrafas de vinho no fundo, junto com algumas garrafas de uma bebida marrom com rótulos que não reconheço e algumas coisas com aparência mais recente na frente. Os gargalos estão cobertos de poeira. Pego tudo e empilho na mesa de jantar.

– O que é Armagnac? – pergunto para Sam.

– É conhaque caro – responde meu avô da cozinha. Alguns momentos depois, ele coloca a cabeça na porta da sala. – O que é isso tudo?

– As bebidas da mamãe.

Ele pega uma das garrafas de vinho e olha para o rótulo. Em seguida, vira de cabeça para baixo.

– Tem muito sedimento. Ou vai ser a melhor coisa que você já bebeu ou vai ter virado vinagre.

O inventário resulta em três garrafas de vinho possivelmente estragado, o Armagnac, uma garrafa de uísque de centeio quase cheia, conhaque de pera com um globo pálido de fruta flutuando dentro e um recipiente de Campari, que é vermelho e tem cheiro de xarope para tosse.

Vovô abre todas as três garrafas de vinho quando nos sentamos para jantar. Serve a primeira em uma taça. Tem uma cor âmbar escura, quase da mesma cor que o uísque de centeio.

Ele balança a cabeça.

– Já era. Jogue fora.

– Não deveríamos ao menos experimentar? – pergunto.

Sam olha para o meu avô com nervosismo, como se esperasse se meter em confusão por causa de nossa aventura no armário de bebidas. Não comento que, para a maioria das pessoas que conheço, a idade legal para beber não é exatamente um problema. Sam devia se lembrar do velório de Philip.

Vovô ri.

– Pode experimentar se quiser, mas você vai lamentar. É capaz de ficar melhor no tanque de gasolina do que no seu estômago.

Prefiro acreditar no que ele diz.

O conteúdo da garrafa seguinte está quase preto como tinta. Vovô toma um gole e sorri.

– Pronto. Vocês vão ter uma experiência e tanto. Não virem o copo.

Nas revistas chiques que minha mãe lê quando está atrás de homens, dão notas para vinhos e os elogiam comparando-os com coisas que não parecem boas de beber, como manteiga e grama recém-cortada e carvalho. As descrições me faziam rir, mas esse vinho tem mesmo gosto de ameixa e pimenta-do-reino, com uma acidez deliciosa que preenche toda a minha boca.

– Uau – diz Sam.

Terminamos o vinho e passamos para o uísque de centeio. Sam serve o dele em um copo de água.

– E qual é o problema? – pergunta vovô.

Sam bate com a cabeça de leve na mesa e vira a bebida em três longos goles. Tenho certeza de que já esqueceu o medo de ficar encrencado com alguém.

– Minha namorada me largou.

– Ah – diz vovô, assentindo. – A jovem que estava com você no enterro de Philip? Eu me lembro dela. Pareceu legal. Que pena. Lamento, garoto.

– Eu a amava... de verdade – fala Sam. E enche o copo.

Vovô vai até a outra sala buscar o Armagnac.

– O que aconteceu?

– Ela escondeu de mim uma coisa importante, e, quando descobri, fiquei furioso. E ela pediu desculpas. Mas, quando eu estava pronto para perdoá-la, era ela quem estava furiosa. E eu tive que pedir desculpas. Mas não queria. E, quando quis, ela já tinha arrumado um namorado novo.

Vovô balança a cabeça.

– Às vezes uma garota tem que se afastar para saber o que realmente quer.

Sam serve um pouco do Armagnac no copo junto com o restinho do uísque de centeio. E completa a mistura com uma dose de Campari.

– Não beba isso! – aviso.

Ele faz um brinde a nós e vira a bebida toda.

Até vovô faz uma careta.

– Nenhuma garota vale a ressaca que você vai ter de manhã.

– Daneca vale – diz Sam, já arrastando as palavras.

– Você tem muitas moças pela frente. Ainda é jovem. O primeiro amor é o mais doce, mas não dura.

– Nunca? – indago.

Vovô me olha com uma seriedade que reserva para momentos em que quer que eu preste mesmo atenção.

– Quando é a primeira vez que amamos alguém, não amamos realmente a garota. Nós amamos estarmos amando. Não temos ideia de como ela é nem do que é capaz. Só amamos nossa ideia dela e quem nos tornamos perto dela. Somos idiotas.

Eu me levanto e começo a empilhar pratos na pia. Não estou muito firme sobre os pés, mas me viro.

Quando eu era criança, acho que amava Lila assim. Mesmo quando pensei que a tivesse matado, eu ainda a via como a garota ideal, a perfeição que nenhuma outra garota seria nem chegaria perto de ser. Mas, quando ela voltou, tive que vê-la como era, complicada, zangada e muito mais parecida comigo do que jamais imaginei. Posso não saber do que Lila é capaz, mas a conheço.

O amor nos muda, mas nós também mudamos a forma como amamos.

– Venha – diz Sam da mesa, servindo bebida vermelha em xícaras de chá que encontrou em algum lugar. – Vamos virar.

Acordo com um gosto horrível de xarope para tosse na boca.

Alguém está batendo na porta da frente. Eu me viro e cubro a cabeça com um travesseiro. Não me importo com quem seja. Não vou descer.

– Cassel! – A voz do meu avô explode pela casa.

– O quê? – grito em resposta.

– Tem uma pessoa aqui para ver você. Disse que é do governo.

Resmungo e saio da cama. Não tenho como fugir disso. Visto uma calça jeans por cima da cueca boxer, esfrego os olhos para me livrar do sono e pego uma camiseta e um par de luvas limpas. Sinto a barba por fazer coçar nas bochechas.

Enquanto escovo os dentes para tentar afastar da boca o gosto da noite anterior, o medo enfim toma conta de mim. Se meu avô imaginar que estou pensando em trabalhar para Yulikova, não faço ideia do que vai fazer. Para sujeitos como vovô, não há tipo pior de traidor. E, por mais que eu saiba que ele me ama, também é uma pessoa que acredita em colocar os deveres na frente dos sentimentos.

Eu desço a escada.

É o agente Jones. Fico surpreso. Não o vejo, nem o agente Hunt, desde que entregaram a mim e Barron para a Divisão Licenciada da Menoridade. Ele parece não ter mudado, de terno escuro e óculos espelhados. A única diferença que detecto é que a pele pastosa está vermelha nas bochechas, com uma queimadura de sol ou talvez de vento. Ele está de pé na porta, o ombro encostado na moldura, como se quisesse forçar a passagem para entrar. Vovô obviamente não o convidou.

– Ah, oi – digo, me aproximando da porta.

– Posso falar com você... – Ele olha de forma sombria para meu avô. – Lá fora?

Eu faço que sim, mas vovô coloca a mão nua no meu ombro.

– Você não precisa ir a lugar nenhum com ele, garoto.

O agente Jones está olhando para a mão do meu avô como se fosse uma cobra.

– Está tudo bem – falo. – Ele estava trabalhando no assassinato de Philip.

– Como se isso tivesse ajudado em alguma coisa – comenta vovô, mas me deixa passar. Ele vai até a bancada e serve café em duas canecas. – Você coloca alguma coisa no seu café, sanguessuga do governo?

– Não, obrigado – diz Jones, e aponta para a mão de vovô. – Você se machucou?

– Não fui eu quem ficou machucado.

Vovô me entrega uma das canecas.

Tomo um gole e sigo Jones pela varanda até o jardim da frente.

– O que você quer? – indago baixinho.

Estamos perto do carro brilhante com janelas escuras. A brisa fria entra pelo tecido fino da minha camiseta. Aperto a caneca mais perto do corpo por causa do calor, mas o café está esfriando rápido.

– Algum problema? Está com medo de o coroa descobrir o que você anda fazendo? – O sorriso dele está exultante.

Imagino que seja demais esperar que, só porque Jones e eu estamos do mesmo lado, ele vá começar a agir em conformidade.

– Se você tem alguma coisa para me dizer, diga logo.

Ele cruza os braços. Vejo o volume da arma. Jones me lembra de todos os mafiosos que já conheci, só que é menos educado.

– Yulikova precisa ver você. Pediu para eu dizer que ela lamenta incomodar você em um fim de semana, mas aconteceu uma coisa importante. Ela disse que você vai querer saber.

– Importante demais para dizer para você o que é?

Não sei por que o estou provocando. Acho que sinto medo de ele esfregar na cara do meu avô minha ligação com o FBI. E estou com raiva, o tipo de raiva que queima por dentro. O tipo de raiva que deixa você burro.

Ele curva os lábios.

– Ande. Entre no carro.

Eu balanço a cabeça.

– De jeito nenhum. Não posso. Diga que vou mais tarde. Só preciso pensar numa desculpa.

– Você tem exatamente dez minutos para dar um jeito com seu avô, senão vou contar que você armou para seu próprio irmão. Que você o entregou para nós.

– Yulikova não mandou você fazer isso – digo. Um tremor me percorre, e só parte dele é por causa do frio. – Ela ficaria furiosa se soubesse que você está me ameaçando.

– Talvez, sim. Talvez, não. De qualquer modo, é você que está ferrado. E então, vem comigo?

Eu engulo em seco.

– Tudo bem. Me deixe pegar o casaco.

O agente Jones ainda está sorrindo quando volto para casa. Bebo o restante do café, apesar de estar frio como gelo.

– Vovô – grito. – Querem me fazer umas perguntas sobre mamãe. Volto logo.

Meu avô desce metade da escada.

– Você não precisa ir.

– Vai ficar tudo bem.

Pego um casaco preto comprido, o celular e a carteira.

Sinto-me uma pessoa terrível.

Posso ter dúvidas sobre muitas coisas, mas tenho certeza de que não devemos enganar as pessoas que amamos.

Vovô me olha por bastante tempo.

– Quer que eu vá junto?

– Acho que é melhor alguém ficar com Sam – digo.

Ao ouvir seu nome, Sam levanta a cabeça do lugar em que está deitado, no sofá. Uma expressão estranha surge no rosto dele e, um momento depois, ele corre até a lata de lixo.

É difícil acreditar, mas alguém está prestes a ter uma manhã pior do que a minha.

Não falo nada enquanto o agente Jones dirige. Jogo um joguinho no celular e olho pela janela de tempos em tempos para ver onde estamos. Em determinado ponto, percebo que não estamos pegando as ruas certas para o escritório de Yulikova, mas continuo sem falar nada. O que faço é começar a planejar.

Mais dois minutos e vou falar que preciso ir ao banheiro. E vou fugir dele. Se eu encontrar um carro velho por perto, posso fazer ligação direta, mas seria melhor arrumar uma carona. Penso em várias histórias e decido procurar um casal de meia-idade, um marido grande o bastante para não ficar intimidado pela minha altura nem pela minha pele morena e uma mulher para argumentar a meu favor, idealmente um casal que talvez tenha filhos mais ou menos da minha idade. Pretendo contar uma história sobre um amigo bêbado que não quis me dar a chave e me largou na rua sem ter como voltar para casa.

Vou ter que trabalhar rápido.

Enquanto penso, paramos no estacionamento de um hospital, com três torres enormes de tijolos ligadas na base, uma ambulância piscando as luzes vermelhas na entrada do pronto-socorro. Solto a respiração. Fugir de um hospital é moleza.

– Vamos encontrar Yulikova aqui? – pergunto com incredulidade. Mas penso melhor. – Ela está bem?

– Tão bem quanto sempre – diz ele.

Não sei o que isso significa, mas não quero admitir. Em vez de responder, tento girar a maçaneta e, quando consigo abri-la, pulo para fora do carro. Andamos juntos até uma das portas laterais. O corredor é antisséptico, típico. Ninguém pergunta nada.

Jones parece saber para onde estamos indo. Passamos por uma estação de enfermeiras, e o agente cumprimenta uma mulher idosa. Seguimos por outro corredor comprido. Olho por uma porta aberta e vejo um homem com barba grisalha e balões ao redor dos pulsos, impedindo-o de levar as mãos ao rosto. Ele se vira para mim com uma expressão perturbadora.

Paramos na porta seguinte, fechada, e o agente Jones bate uma vez antes de entrar.

É um quarto de hospital como os outros, mas maior e com mobília melhor do que alguns dos quartos pelos quais passamos. Há uma colcha colorida no pé da cama e várias plantas na janela. Há também duas cadeiras confortáveis e com aparência genérica na frente da cama.

Yulikova está usando um robe de batik e chinelos. Está molhando as plantas com um copo de plástico quando entramos. Não usa maquiagem, e o cabelo não parece volumoso e, sim, despenteado, mas, fora isso, não parece mal.

– Oi, Cassel. Agente Jones.

– Oi – cumprimento e fico na porta, como faria com um parente doente que não vejo há um tempo. – O que está acontecendo?

Ela olha ao redor e ri.

– Ah, isto. Sim, deve parecer meio dramático.

– É, e o agente Jones me arrastou para cá como se uma casa estivesse pegando fogo e eu fosse o único balde de água da cidade. – Não pareço tão aborrecido quanto estou, e estou muito. – Eu nem pude tomar banho. Estou de ressaca e devo feder como alguém que usou bebida alcoólica como loção pós-barba, só que também nem pude fazer a barba. O que foi?

Jones faz cara de raiva.

Ela ri um pouco e balança a cabeça para ele.

– Lamento ouvir isso, Cassel. Tem um banheiro ali que você pode usar se quiser. O hospital tem pacotinhos com artigos de higiene.

– Tudo bem – digo. – Talvez eu use.

– E o agente Jones pode ir à lanchonete buscar alguma coisa para a gente comer. O hospital não tem muita coisa, mas não é tão ruim quanto antigamente. Tem uns hambúrgueres e lanches gostosos. – Ela caminha até o outro lado da cama e abre uma das gavetas da mesa de cabeceira para pegar uma bolsinha de couro marrom. – Ed, por que você não traz uns sanduíches diferentes e uns copos de café? O de salada de ovo não é ruim. E uns sacos de batatas fritas, algumas frutas e algo para a sobremesa. Traga uns saquinhos a mais de mostarda para Cassel, sei que ele gosta. Vamos nos sentar e comer um bom almoço.

– Muito civilizado – comento.

O agente Jones ignora o fato de que ela está procurando a carteira e vai até a porta.

– Tudo bem. Volto logo. – Ele olha de mim para ela. – Não acredite em tudo o que esse malandro contar. Eu o conheço de antes.

Quando ele sai, ela me olha como quem pede desculpas.

– Me desculpe se ele foi difícil. Precisei envolver um agente nisso e eu queria alguém que já tivesse trabalhado com você. A última coisa de que preciso é um monte de gente sabendo que você é mestre de transformação. Mesmo aqui, não tenho como contar com discrição total.

– Você está com medo de essa informação vazar?

– Queremos ter certeza de que, quando e se as pessoas descobrirem sobre você, elas recebam a informação diretamente de nós. Você sabe que corre um boato sobre um mestre de transformação na China? Muita gente do nosso governo acha que essa informação foi cuidadosamente plantada.

– Se é que eles têm um, é o que você quer dizer?

Ela assente, e um sorriso repuxa o canto da boca.

– Exatamente. Agora vá se lavar.

No banheiro, consigo ajeitar o cabelo com água e passo uma lâmina de barbear no rosto. Em seguida, faço gargarejo com enxaguante bucal. Quando saio, estou envolto em uma nuvem de hortelã.

Yulikova arrumou uma terceira cadeira e está arrumando todas as três perto da janela.

– Muito melhor – diz ela.

É bem algo que uma mãe diria. Não minha mãe, mas uma mãe.

– Precisa de ajuda com alguma coisa? – pergunto a ela. Não parece que ela deveria estar arrastando móveis.

– Não, não. Sente-se, Cassel. Estou bem.

Eu pego uma cadeira.

– Não quero ser xereta – digo –, mas estamos em um hospital. Você tem certeza de que está bem?

Ela dá um suspiro pesado.

– Não dá para enrolar você, não é?

– Também costumo reparar quando a água está molhada. Minha mente é afiada como a de um detetive.

Ela tem a delicadeza de sorrir.

– Sou mestra física. Isso quer dizer que consigo alterar os corpos das pessoas. Não tanto quanto você, mas com coisas básicas e brutais. Sou capaz de quebrar pernas e curá-las. Remover alguns tumores, ou ao menos reduzir o tamanho deles. Acabar com uma infecção no sangue. Fazer pulmões de crianças funcionarem.

Tento não demonstrar o quanto fico surpreso. Eu não sabia que mestres físicos eram capazes disso. Achei que só provocavam dor, cortes na pele, queimaduras e bolhas. Philip era mestre físico. Nunca o vi usar isso para ajudar ninguém.

– E às vezes faço todas essas coisas. Mas isso me deixa muito mal. Tudo e qualquer coisa, machucar e curar. E, com o tempo, fiquei mais doente. Permanentemente.

Não pergunto sobre a legalidade do que ela está fazendo. Não ligo, e se ela também não liga, bem, talvez tenhamos alguma coisa em comum, afinal.

– Você não pode se curar?

– Ah, o velho clamor de 'Doutor, cure a si mesmo!' – diz ela. – É uma pergunta perfeitamente lógica, mas infelizmente não posso. O rebote nega todo e qualquer efeito positivo. Por isso, tenho que vir para cá de tempos em tempos.

Eu hesito antes de fazer a pergunta seguinte, porque é horrível. Mesmo assim, preciso saber se estou prestes a abrir mão do livre-arbítrio com base nas promessas dela.

– Você está morrendo?

– Estamos todos morrendo, Cassel. Só que alguns de nós estão morrendo mais rapidamente do que outros.

Eu concordo. Isso vai ter que bastar, porque o agente Jones volta para o quarto com uma bandeja laranja de lanchonete cheia de sanduíches, bolinhos, frutas e café.

– Coloque na cama. Podemos pegar tudo ali – instrui ela.

Pego um sanduíche de presunto, um copo de café e uma laranja e me sento enquanto Jones e Yulikova escolhem a comida.

– Ótimo – comenta ela, tirando o papel do que parece ser um bolinho de limão com sementes de papoula. – Então, Cassel, tenho certeza de que você conhece o governador Patton.

Dou uma risada debochada.

– Patton? Ah, sim. Amo aquele cara!

Jones parece querer me esganar para arrancar de mim o sarcasmo, mas Yulikova só ri.

– Achei que você fosse dizer algo assim – afirma ela. – Mas você precisa entender que, depois do que sua mãe fez e do que fizeram nele para consertá-lo, ele foi ficando cada vez mais instável.

Abro a boca para protestar, mas ela levanta a mão.

– Não. Entendo seu impulso de defender sua mãe, e é muito nobre, mas agora isso é irrelevante. Não importa de quem é a culpa. Preciso contar algo confidencial e preciso da sua garantia de que isso não vai sair deste quarto.

– Tudo bem – digo.

– Se você o viu nos noticiários recentemente – diz Yulikova –, quase pode vê-lo perdendo o controle. Patton diz e faz coisas extremas, até para antimestres radicais. Mas o que não dá para perceber é quanto ele ficou paranoico e reservado. Pessoas de altas posições no governo estão preocupadas. Quando a proposição número dois for aprovada, tenho medo de ele tentar isolar o estado de Nova Jersey, depois prender todos os mestres. Acredito, e não sou a única, que ele quer trazer de volta os campos de trabalho.

– Isso não é possível – comento.

Não que eu não acredite que Patton possa querer isso; a questão é que não consigo acreditar que ele realmente fosse tentar ir em frente com a questão. Ou que Yulikova pudesse admitir desconfiar disso, principalmente para mim.

– Ele tem muitos aliados em Washington – continua ela. – E vem angariando cada vez mais deles. A polícia do estado o apoia, assim como uma boa quantidade de gente em Fort Dix. Sabemos que ele anda tendo reuniões.

Penso em Lila segurando com força as barras enquanto Sam, Daneca e eu estávamos sentados na cela depois da manifestação em Newark. Nada de ligações, nada de acusações, nada de nada. E penso nas outras pessoas, que ficaram detidas lá por vários dias, segundo declararam.

Olho para o agente Jones. Ele não parece ligar muito, mas deveria. Mesmo que não queira admitir, o fato de estar trabalhando nessa divisão do governo federal significa que também é mestre. Se Patton for mesmo tão maluco, um distintivo não vai salvar Jones.

Concordo com a cabeça para encorajá-la a prosseguir.

E ela continua.

– Tive conferências com meus superiores, e concordamos que temos de impedi-lo antes que ele faça algo pior. Há boatos de assassinatos, boatos de coisas terríveis, mas nada de provas. Se o prendermos agora, ele poderá usar isso para obter vantagem política. Um julgamento muito público, no qual não tivéssemos muitas evidências, seria útil nas mãos dele.

Faço que sim de novo.

– Consegui permissão para uma pequena operação com o objetivo de retirar Patton do poder. Mas preciso da sua ajuda, Cassel. Prometo que sua segurança vai ser nossa maior prioridade. Você pode abortar a missão a qualquer momento se não se sentir seguro. Vamos cuidar de todo o planejamento e gerenciar os riscos.

– De que estamos falando aqui? – pergunto.

– Queremos que você transforme Patton.

Yulikova lança para mim um olhar gentil, como se qualquer resposta que eu desse fosse ser a correta. Ela toma um gole de café.

– Ah – murmuro.

Por um momento, fico tão chocado que as palavras dela apenas ecoam na minha cabeça.

Só então percebo que estava claro que esse momento chegaria. Ser mestre de transformação é a coisa mais valiosa em mim, o motivo para me quererem no programa, para terem me deixado sair ileso após cometer um assassinato.

Eles me deixam escapar das acusações de um assassinato a fim de que eu possa cometer assassinato para eles.

– Me desculpe – digo. – Só estou surpreso.

– É muita coisa para absorver – comenta Yulikova. – Sei que você fica pouco à vontade com o que é capaz de fazer.

O agente Jones faz um som debochado, e ela o olha de cara feia.

Quando se volta para mim, ainda há um pouco de raiva em seus olhos.

– E sei que o que estou pedindo não é fácil. Mas precisamos que não haja rastros dele. Isso não pode parecer assassinato.

– Mesmo sendo? – indago.

Isso parece pegá-la de surpresa.

– Nós gostaríamos que você o transformasse em uma criatura viva. Entendo que é possível que ele sobreviva indefinidamente assim. Ele não vai estar morto. Só contido.

Ser enjaulado, ficar preso como Lila no corpo de gato, para sempre, parece tão horrível quanto a morte. Mas talvez permita que Yulikova durma melhor à noite.

Ela se inclina na minha direção.

– Consegui aprovação para lhe propor algo, por conta do enorme serviço que você prestará para nós. Vamos fazer as acusações contra sua mãe desaparecerem.

Jones bate com a mão no braço da cadeira.

– Você vai fazer outro acordo com ele? A família dele é mais escorregadia do que gelo negro na estrada.

– Vou ter que pedir que você espere lá fora? – A voz dela parece aço. – Essa é uma operação perigosa, e ele ainda nem é parte do programa. Ele tem dezessete anos, Ed. Deixe que tenha uma coisa a menos com que se preocupar.

O agente Jones olha para mim e para ela, depois afasta de nós dois o olhar.

– Tudo bem – diz ele.

– Aqui na DLM, costumamos dizer que heróis são as pessoas que sujam as mãos a fim de que as mãos de outros possam ficar limpas. Somos terríveis para que você não precise ser. Mas, nesse caso, você precisa, ou pelo menos estamos pedindo que seja.

– O que acontece se eu não concordar? A respeito da minha mãe?

Yulikova arranca um pedacinho do bolinho.

– Não sei. Tenho autorização do meu chefe para oferecer isso, mas ele é que faria acontecer. Imagino que sua mãe possa continuar a fugir da justiça, ou talvez seja capturada e extraditada se estiver fora do estado. Eu recearia pela segurança da sua mãe se ela ficasse presa em algum lugar a que Patton tivesse acesso.

Sou tomado por uma certeza de que Yulikova sabe exatamente onde minha mãe está.

Eles estão me manipulando. Yulikova está me deixando ver o quanto está doente, dizendo coisas legais, nos fazendo almoçar juntos. Jones está sendo um tremendo babaca. É a encenação clássica do policial bom e do policial mau. O que não quer dizer que não esteja funcionando.

Patton é mau e está atrás da minha mãe. Quero impedi-lo e quero que ela fique em segurança. Fico muito tentado por qualquer proposta que me permita ter as duas coisas. Além do mais, tem o fato de que estou encurralado. Mamãe precisa de perdão.

E, se eu não confio nos meus instintos em relação ao que é certo e errado, preciso confiar no de alguém. É por isso que eu queria entrar para o governo, certo? Para que, se eu fizesse coisas ruins, ao menos fosse a serviço de gente do bem.

Eu sou uma arma. E me coloquei nas mãos de Yulikova.

Agora, preciso me permitir ter a utilidade que ela acha adequada.

Eu respiro fundo.

– Claro. Posso fazer isso. Posso enfeitiçá-lo.

– Cassel – diz Yulikova. – Quero que você entenda que pode recusar esse trabalho. Você pode dizer não.

Mas não posso. Ela fez de tudo para que eu não pudesse.

Jones não diz nada irritante.

– Eu entendo. – Assinto com a cabeça para mostrar que entendo. – Entendo e estou dizendo sim.

– Essa vai ser uma missão muito discreta – declara Yulikova. – Uma equipe muito pequena vai operar com o apoio tácito dos meus superiores, mas nós a executaremos. Se não conseguirmos, eles vão negar qualquer conhecimento. Eu vou cuidar disso, qualquer pergunta deve ser feita diretamente a mim. Ninguém mais precisa saber. Acredito que posso contar com a discrição de vocês dois.

– Você quer dizer que, se alguma coisa der errado, pode custar nossa carreira – sugere Jones.

Yulikova toma um gole do café.

– Cassel não é o único que tem escolha. Você não precisa fazer parte disso.

O agente Jones não diz nada. Eu me pergunto se vai prejudicar a carreira dele de alguma forma. Eu me pergunto se ele sabe que está bancando o policial mau. Desconfio de que não.

Eu como meu sanduíche. Uma enfermeira coloca a cabeça na porta e diz que vai trazer os remédios em dez minutos. Yulikova se levanta e começa a reunir copos vazios e a jogá-los no lixo.

– Eu posso fazer isso – digo, levantando-me para pegar uma embalagem de sanduíche.

Ela coloca as mãos enluvadas no meu braço e olha nos meus olhos, como se estivesse tentando ver a resposta para uma pergunta que não fez.

– Não tem problema você mudar de ideia, Cassel. A qualquer momento.

– Eu não vou mudar de ideia – falo para ela.

Ela aperta os dedos.

– Acredito em você. De verdade. Entro em contato daqui a alguns dias com mais detalhes.

– Não vamos cansá-la – diz Jones, franzindo a testa. – É melhor a gente ir.

Sinto-me mal por deixar Yulikova com a bagunça, mas o olhar dos dois mostra que a entrevista acabou. Jones anda até a porta e eu vou atrás.

– Só para deixar registrado, não estou gostando de nada disso – retruca o agente Jones, com a mão enluvada no portal.

Ela assente uma vez, como se compreendesse as palavras dele, mas há uma sombra de sorriso nos lábios dela.

A conversa deles me deixa ainda mais seguro de que fiz a escolha certa. Se o agente Jones aprovasse o que fiz, eu ficaria preocupado.


CAPÍTULO SETE

SIGO O AGENTE JONES

pelos corredores do hospital, mas, quando chego ao estacionamento, não aguento mais. O sujeito me odeia. De jeito nenhum vou deixar que me leve de volta para casa. Não quero que ele fale com meu avô de novo.

– Vou sair fora – digo para ele. – Nós nos vemos por aí.

O agente Jones olha para mim com incredulidade e ri com deboche.

– Você está planejando dar uma caminhada?

– Vou ligar para um amigo.

– Entre no carro – rosna ele, mudando de divertido a impaciente em uma respiração só. Algo na expressão dele me deixa ainda mais seguro de que segui-lo é má ideia.

– Me obrigue – retruco. – Eu o desafio.

Como ele não pula em cima de mim, pego o celular e ligo para Barron.

– Irmãozinho – diz ele com voz arrastada, atendendo no primeiro toque. – Você precisa largar a escola e virar agente federal. Ontem à noite, invadimos uma boate de strip-tease de mestres, e fui atacado por um monte de luvas lascivas. Você sabia que ninguém mais usa luvas de velcro nem de cadarço? O novo tipo tem fechos de ímãs e desliza da mão...

– Isso é, hã, interessante – comento. – Mas agora preciso mesmo é de uma carona.

– Onde você está? – pergunta ele.

Digo-lhe o nome do hospital enquanto o agente Jones me olha com expressão fria e furiosa. Não nos gostamos. Ele deveria ficar aliviado por não ser obrigado a passar mais tempo comigo, mas obviamente está vibrando de raiva. Quanto mais estudo a expressão dele, mais nervoso fico. Ele não está olhando para mim como um adulto diante de um garoto irritante. Está me examinando da maneira como um homem observa um oponente.

Sento-me nos degraus gelados e espero, deixando que o frio penetre na minha pele. Barron demora um tempo para aparecer, o suficiente para eu começar a me perguntar se deveria ligar para outra pessoa. Mas, na hora em que decido que vou ter que entrar e arrumar algo quente para beber ou descolar um cobertor com uma das enfermeiras, Barron se aproxima em uma Ferrari vermelha. Ele abaixa o vidro com película escura e me dá um sorriso.

– Você roubou isso – observo.

– Melhor ainda. Este belo carro foi rebocado durante uma batida. Dá para acreditar? Tem um armazém inteiro de coisas confiscadas que ficam lá até a papelada ser organizada. É o melhor armazém do mundo. Ande, entre.

Não preciso que ele fale duas vezes.

Barron parece muito satisfeito consigo mesmo.

– Não só arrumei um carro novo, mas também enchi o porta-malas com um monte de latas de caviar e garrafas de Krug que estavam dando sopa. Ah, e alguns celulares que tenho certeza de que consigo revender. No todo, foi um bom sábado. E você?

Eu reviro os olhos, mas já estou relaxando no calor do aquecedor, encostado no banco.

– Preciso contar umas coisas. Podemos ir a algum lugar?

– Aonde você quiser, garoto – diz Barron.

Apesar da proposta extravagante, acabamos comprando comida chinesa e vamos para a casa dele em Trenton. Ele arrumou o lugar um pouco e substituiu as janelas quebradas que antes só estavam cobertas de papelão. Até comprou alguns móveis. Nós nos sentamos no sofá de couro preto novo e apoiamos os pés no baú que serve de mesa de centro. Ele me passa o pote de lo mein.

Olhando por alto, a casa parece mais normal do que antes, mas, quando vou até o armário pegar um copo, vejo o padrão familiar de bilhetes grudados na geladeira, lembrando-o do número do celular, do endereço, do nome. Sempre que ele altera a memória de alguém, o rebote arranca parte da dele, e Barron não tem como ter certeza de que parte vai embora. Meu irmão pode perder um detalhe, como a lembrança de ter jantado na noite anterior, ou algo relevante, como a lembrança do enterro do nosso pai.

Você vira uma pessoa diferente se não tem passado. Isso consome quem você é, até que tudo o que sobra é construído, puro artifício.

Eu gostaria de acreditar que Barron parou de enfeitiçar pessoas como prometeu que faria, que todos esses lembretes estão aqui por força do hábito ou para o caso de uma emergência. Mas não sou idiota. Aquele armazém não estava sem guardas. Tenho certeza de que alguém precisou ser forçado a “lembrar” uma papelada dando permissão a Barron para carregar o carro com o que quisesse e sair dirigindo-o de um prédio do governo. E, depois, essa mesma pessoa teve que ser obrigada a esquecer.

Quando volto para a sala, Barron está misturando molho de pato com mostarda picante no prato.

– E aí? – pergunta ele.

Explico sobre mamãe e sua tentativa fracassada de vender o diamante ao próprio Zacharov, e sobre o caso antigo que ela, ao que parece, teve com ele. Em seguida, percebo que preciso explicar como foi que ela o roubou.

Barron olha para mim como se estivesse considerando me acusar de mentiroso.

– Mamãe e Zacharov?

Eu dou de ombros.

– Eu sei. É estranho, não é? Estou me esforçando muito para não pensar nisso.

– Você está falando sobre a parte que, se Zacharov e mamãe se casassem, você e Lila passariam a ser irmãos?

Ele começa a rir e se encosta nas almofadas.

Jogo um punhado de arroz branco nele. Alguns grãos grudam na camisa. Outros ficam grudados na minha luva.

Ele continua rindo.

– Vou falar com o falsificador amanhã. É um cara em Paterson.

– Claro, podemos fazer isso – diz ele, ainda rindo um pouco.

– Você quer ir?

– Claro. – Ele abre o frango com molho de soja de grãos pretos e vira a embalagem em cima da mistura de mostarda e molho de pato. – Ela também é minha mãe.

– Tem outra coisa que preciso contar a você – aviso.

Ele faz uma pausa com a mão sobre um pacote de shoyu.

– Yulikova me perguntou se eu estou disposto a fazer uma coisa. Um trabalho.

Ele derrama o molho e come o primeiro pedaço.

– Achei que você não podia trabalhar porque ainda não entrou oficialmente.

– Ela quer que eu cuide de Patton.

Barron franze as sobrancelhas.

– Cuide? No sentido de transformar?

– Não – falo. – No sentido de tomar conta dele. Ela acha que formamos um belo casal.

– Então você vai matá-lo? – Ele me olha com cautela. Depois faz uma mímica de arma com os dedos. – Bum?

– Ela não me contou o plano, mas... – começo a falar.

Ele joga a cabeça para trás e ri.

– Você devia ter entrado para os Brennan, se ia se tornar um assassino. Poderíamos ter ganhado muito dinheiro.

– Isso é diferente – comento.

Barron ri e ri. Uma vez que começou, não há como fazê-lo parar.

Espeto o lo mein com meu garfo de plástico.

– Cale a boca. Isso é diferente.

– Diga que pelo menos você vai ser pago – pede ele quando consegue respirar.

– Eles disseram que vão retirar as acusações contra mamãe.

– Que bom. – Ele assente. – E vai ter alguma grana junto disso?

Eu hesito, mas tenho que admitir:

– Eu não pedi.

– Você tem um talento. Sabe fazer algo que mais ninguém consegue – diz Barron. – Falando sério. Sabe o que é bom nisso? É valioso. No sentido de que você pode trocar por bens ou serviços. Ou dinheiro. Lembra que falei que era um desperdício em você? Eu estava certo.

Eu resmungo e enfio arroz na boca para não virar a caixinha toda na cabeça dele.

Depois que terminamos de comer, Barron liga para o vovô. Ele conta uma série longa e complicada de mentiras sobre as perguntas que os agentes federais fizeram e que nos safamos de respondê-las com nosso charme e nossa inteligência inerentes. Vovô ri na linha.

Quando pego o telefone, vovô me pergunta se alguma coisa do que Barron disse era verdade.

– Uma parte – digo.

Ele fica em silêncio.

– Tudo bem, pouco – acabo por admitir. – Mas tudo está bem.

– Lembre-se do que eu disse. Esse problema é da sua mãe, não seu. Nem de Barron. Vocês dois precisam ficar fora disso.

– Tá – concordo. – Sam ainda está aí? Posso falar com ele?

Vovô passa o telefone para Sam, que ainda parece grogue, mas não muito chateado por ter sido abandonado durante boa parte do dia e o restante da noite de hoje.

– Tudo bem – garante ele. – Seu avô está me ensinando a jogar pôquer.

Se eu conheço vovô, isso significa que ele deve estar na verdade ensinando Sam a roubar.

Barron se oferece para me deixar dormir na cama dele e diz que dorme em qualquer lugar. Não sei se está sugerindo que há camas na cidade toda disponíveis para recebê-lo ou apenas que não é fresco quanto a dormir em qualquer parte da casa, mas vou para o sofá para não ter que descobrir.

Ele pega dois cobertores que ficavam na casa velha. Estão com cheiro de casa, um odor um tanto poeirento que não é totalmente agradável, mas que aspiro com vontade. O cheiro me lembra de quando eu era criança, vivia seguro, dormia até tarde aos domingos e assistia a desenhos de pijama.

Esqueço onde estou e tento esticar as pernas. Meus pés se chocam com o braço do sofá e lembro que não sou mais criança.

Sou alto demais para ficar à vontade, mas me encolho no sofá e acabo adormecendo.

Acordo com o barulho de Barron fazendo café. Ele empurra uma caixa de cereal para mim. Meu irmão fica péssimo de manhã. Precisa de três xícaras de café antes de organizar direito uma frase.

Eu tomo um banho. Quando saio, ele está usando um terno risca-de-giz cinza-escuro com camisa branca por baixo. O cabelo ondulado está esticado para trás com gel, e ele está com um relógio novo de ouro no pulso. Eu me pergunto se também é do armazém do FBI. De qualquer modo, ele parece ter feito um esforço impressionante para uma tarde de domingo.

– Por que você está tão arrumado?

Barron sorri.

– As roupas fazem o homem. Quer alguma roupa limpa emprestada?

– Pode deixar – digo enquanto visto a camiseta do dia anterior. – Você parece um mafioso, sabe.

– Essa é outra coisa em que sou bom e a maioria dos meus colegas não é – comenta ele enquanto pega um pente e passa pelo cabelo uma última vez. – Ninguém adivinharia que sou agente federal.

Quando estamos prontos para sair, já é começo de tarde. Entramos na Ferrari ridícula de Barron e seguimos para o norte, na direção de Paterson.

– E como está Lila? – pergunta quando alcançamos a estrada. – Você ainda está a fim dela?

Eu olho para ele.

– Considerando que você a trancou em uma gaiola por vários anos, acho que ela está bem. Comparativamente falando.

Ele dá de ombros e olha na minha direção com uma expressão maliciosa.

– Minhas escolhas eram limitadas. Anton a queria morta. E você nos surpreendeu ao transformá-la em um ser vivo. Depois que superamos o choque, foi um alívio, embora ela tenha se transformado em um bicho de estimação péssimo.

– Ela foi sua namorada – lembro. – Como você pôde ter aceitado matá-la?

– Ah, pare com isso – retruca ele. – Nosso relacionamento nunca foi tão sério assim.

Eu bato com a mão no painel.

– Você é maluco?

Ele sorri.

– Foi você que a transformou em gato. E estava apaixonado por ela.

Eu olho pela janela. A estrada tem muros enormes à prova de som dos dois lados, com trepadeiras crescendo pelas aberturas.

– Talvez você tenha me feito esquecer quase tudo, mas sei que eu queria salvá-la na época. E quase salvei.

A mão enluvada dele toca no meu ombro inesperadamente.

– Me desculpe – diz ele. – Eu comecei mesmo a alterar sua memória porque mamãe disse que seria melhor você não saber o que era. Aí, quando tivemos a ideia de entrar no ramo do assassinato, acho que concluí que, desde que você não se lembrasse de nada, nada que fizéssemos você fazer contaria de fato.

Não faço ideia do que dizer. Decido não dizer nada. Então só encosto a bochecha no vidro frio da janela. Olho para a estrada de asfalto à nossa frente e me pergunto como seria deixar tudo para trás. Nada de agentes federais. Nada de irmão. Nada de Lila. Nada de mamãe. Nada de máfia. Com apenas um pouco de magia, eu poderia mudar meu rosto. Poderia abandonar minha vida por completo.

Com apenas alguns poucos documentos falsos, eu poderia ir a Paris. Ou Praga. Ou Bangkok.

Lá, eu não precisaria tentar ser bom. Lá, eu poderia mentir, enganar e roubar. Eu não seria eu de verdade, então não contaria.

Mudar minha identidade. Mudar meu nome. Deixar que Barron cuide de mamãe.

Ano que vem, Sam e Daneca vão para a faculdade. Lila vai se ocupar de qualquer negócio ilegal que o pai mandar. Onde eu vou estar? Matando gente para Yulikova. Tudo está planejado, tudo com a melhor das intenções, e tão lúgubre quanto uma estrada deserta.

Barron bate na lateral da minha cabeça.

– Ei, tem alguém aí? Você está quieto há uns quinze minutos. Não precisa me dizer que me perdoa nem nada assim, mas poderia dizer qualquer coisa. ‘Bom discurso.’ ‘Cale a boca.’ Qualquer coisa.

Eu esfrego o rosto.

– Você quer que eu diga alguma coisa? Tudo bem. Às vezes, acho que sou o que você fez de mim. E às vezes não sei quem eu sou. E, de uma forma ou de outra, não sou feliz.

Ele engole em seco.

– Tudo bem...

Eu respiro fundo.

– Mas, se você quer perdão, tudo bem. Você tem meu perdão. Não estou com raiva. Não mais. Não de você.

– Ah, sei. Você está com raiva de alguém – retruca ele. – Qualquer idiota vê isso.

– Só estou com raiva – digo. – Uma hora vai passar. Tem que passar.

– Sabe, essa pode ser sua deixa para dizer que lamenta ter me forçado a entrar nesse programa de treinamento para ser agente federal...

– Você nunca esteve tão bem – afirmo.

– Mas você não sabia disso – argumenta ele. – Eu poderia estar infeliz agora e ser tudo sua culpa. E aí você se sentiria mal. E lamentaria.

– Pode ser que sim. Mas não lamento agora – insisto. – Ah, e... bom discurso.

Realmente, foi um belo discurso. O melhor que eu poderia esperar do babaca sociopata e amnésico que tenho como irmão mais velho.

Estacionamos na rua. Paterson é uma coleção estranha de prédios velhos e toldos coloridos com letreiros em néon anunciando celulares baratos, leituras de cartas de tarô e salões de beleza.

Eu saio e coloco algumas moedas no parquímetro.

O telefone de Barron toca. Ele o tira do bolso e olha para a tela.

Levanto as sobrancelhas, mas ele só balança a cabeça, como se não fosse nada importante. Os dedos enluvados apertam teclas. Ele levanta a cabeça.

– Vá na frente, Cassel.

Sigo em direção ao endereço do Central Fine Jewelry, que se parece com todas as outras lojas na rua, suja e mal-iluminada. A vitrine da frente está cheia de uma variedade de brincos de argola e cordões compridos. Uma placa em um canto diz PAGAMOS EM DINHEIRO POR SEU OURO HOJE. Não há nada de especial nela, nada que faça o lugar se destacar como a oficina de um excelente falsário.

Barron abre a porta. Um sino toca quando entramos, e um homem atrás da bancada levanta o rosto. Ele é baixo e está ficando careca, usa óculos enormes com armação de marfim e tem uma lupa de joalheiro pendurada em uma corrente no pescoço. Está bem-arrumado, com camisa preta de botão. Anéis grossos brilham em cada dedo, sobre as luvas.

– Você é Bob? – pergunto no caminho até a bancada.

– Quem quer saber? – diz ele.

– Sou Cassel Sharpe – respondo. – Este é meu irmão Barron. Você conhecia nosso pai. Não sei se você se lembra dele, mas...

Ele abre um sorriso enorme.

– Olhe para vocês! Todos crescidos. Vi fotos dos três garotos Sharpe na carteira do pai de vocês, que Deus o tenha. – Ele bate no meu ombro. – Vai entrar para os negócios? O que quer que você precise, Bob resolve.

Eu olho ao redor. Uma mulher e a filha estão observando uma vitrine de crucifixos. Elas não parecem prestar atenção em nós, mas devemos ser o tipo de gente em quem as pessoas se esforçam para não reparar.

Eu baixo a voz.

– Queremos falar com você sobre uma peça encomendada há muito tempo pela nossa mãe. Podemos ir para algum lugar nos fundos?

– Claro, claro. Venham até minha sala.

Nós o seguimos por uma cortina que na verdade era apenas um cobertor preso no alto de uma moldura de plástico. A sala em que entramos é uma confusão, com um computador centralizado em uma escrivaninha de madeira, bamba e de rodinhas, cuja superfície estava tomada de papéis. Uma das gavetas está aberta, e lá dentro há peças de relógio e envelopes com pedras dentro.

Eu pego um envelope. Nele está escrito Robert Peck. Bob.

– Queremos saber sobre o Diamante da Ressurreição – diz Barron.

– Opa. – Bob levanta as mãos. – Não sei como você ouviu qualquer coisa sobre isso, mas...

– Nós vimos a falsificação que você fez – conto. – Agora, queremos saber sobre o verdadeiro. Precisamos saber o que aconteceu. Você vendeu?

Barron se aproxima de Bob e para a uma distância intimidadora.

– Sabe, eu trabalho com memória. Talvez possa ajudar você a se lembrar de alguma coisa.

– Olhe – começa Bob com a voz um pouco trêmula, ficando um pouco alta demais. – Não sei o que fez vocês dois assumirem esse tom nada simpático comigo. Fui um bom amigo do seu pai. E nunca contei para ninguém que copiei o Diamante da Ressurreição, que eu sabia quem roubou. Quantas pessoas fariam isso, hein, quando havia tanto dinheiro em jogo? Se acham que sei onde seu pai o guardava ou se o vendeu, eu não sei. Éramos próximos, mas não tanto assim. Eu só fiz as falsificações.

– Espere. Pensei que você tivesse feito a pedra para a minha mãe – retruco. – E o que você quer dizer com falsificações? Quantas?

– Duas. Foi o que seu pai pediu. E não havia como eu trocar nada. Ele não me deixou ficar com o diamante original por mais tempo do que o necessário para tirar as medidas e algumas fotos. Ele não era tolo, sabe. Acham que ele deixaria algo tão valioso nas mãos de outra pessoa?

Eu troco um olhar com Barron. Papai podia ser muitas coisas, mas não era preguiçoso com os golpes.

– O que aconteceu? – pergunto.

Bob se afasta de nós e abre uma gaveta na mesa, separa uma garrafa de bourbon. Tira a tampa e toma um gole longo.

Em seguida, balança a cabeça, em reação à queimação na garganta.

– Nada – diz ele. – Seu pai veio com a porcaria da pedra. Disse que precisava de duas cópias.

Eu franzo a testa.

– Por que duas?

– Como é que eu vou saber? Uma das falsas eu coloquei no prendedor de gravata no lugar da original. A outra, coloquei em um anel. Mas a original, a verdadeira? Deixei solta, como seu pai queria.

– São falsificações boas? – pergunta Barron.

Bob balança a cabeça de novo.

– A do prendedor de gravata, não. Phil veio aqui e pediu que fosse rápido, sabe? Para o mesmo dia. Mas me deu mais tempo para a segunda. Foi uma bela peça. Agora vocês dois vão me contar qual é o motivo disso?

Eu olho para Barron. Tem um músculo contraído em seu maxilar, mas não consigo saber se ele acredita em Bob. Estou tentando pensar, entender essa história. Talvez mamãe tenha dado a pedra a papai e dito que precisava de uma falsificação muito rápido, antes que Zacharov reparasse que a original tinha sumido. Papai foi direto até Bob, mas pediu duas pedras porque já sabia que ia roubar o diamante para si, será que por raiva, por ter descoberto que mamãe estava transando com Zacharov? Papai levou uma das falsificações para ela, e ela devolveu para Zacharov antes que ele desse falta. Em seguida, papai disse que tinha um presente para ela, um anel com o Diamante da Ressurreição, que na verdade era a segunda falsificação. Se foi isso que aconteceu, o original poderia estar em qualquer lugar. Papai poderia ter vendido anos atrás.

Mas por que colocar o diamante em um anel que mamãe não pode usar fora de casa sem chamar a atenção? Quanto a isso, não sei. Talvez ele estivesse tão furioso que gostasse de ver aquilo na mão dela e saber que a enganara.

– Que valor uma coisa dessas teria no mercado negro? – indago.

– O verdadeiro? – pergunta Bob. – Depende se você acredita mesmo que vai impedir que o matem. Como pedra com valor histórico, tenho certeza de que vale muito, mas o tipo de gente que compra pedras assim não quer uma coisa que não possa exibir. Mas se você acredita... bem, qual é o preço da invulnerabilidade?

Barron está com um brilho nos olhos que me diz que considera a pergunta de maneira séria e não retórica, avaliando o preço da pedra em dólares e centavos.

– Milhões – diz meu irmão, por fim.

Bob cutuca o peito de Barron com o dedo enluvado.

– Na próxima vez, antes de virem aqui com essa atitude ruim, conheçam a história direito. Sou um homem de negócios. Não engano as famílias, não engano outros mestres e não engano meus amigos, independentemente do que sua mãe possa ter dito. Bem, antes de vocês saírem, é melhor comprarem alguma coisa bonita. Algo caro, entenderam? Senão, vou contar para alguns amigos meus o quanto vocês foram grosseiros com Bob.

Vamos até a bancada. Bob pega algumas peças na faixa de preço certa para compensar nossa transgressão. Barron escolhe um coração de diamante com ouro branco que custa quase mil dólares. Consigo parecer convincentemente sem dinheiro, o que não é difícil, por ser verdade, e recebo permissão de comprar um pingente de rubi bem mais barato.

– Garotas gostam de presentes – comenta Bob quando nos leva até a porta e ajeita os óculos. – Se vocês quiserem ser um cara encantador como eu, têm que encher sua garota de presentes. Mandem lembranças para sua mãe, garotos. Ela está bonita nos noticiários. Aquela mulher sempre soube se cuidar!

Ele pisca, e estou prestes a dar um soco nele, mas Barron segura meu braço.

– Vamos. Não quero ter que comprar os brincos do conjunto.

Voltamos para o carro. Foi nossa primeira missão juntos e deu tudo errado. Apoio a cabeça no metal enquanto Barron pega a chave.

– Bem, isso foi... interessante – diz ele, destrancando as portas com um clique. – Para um beco sem saída.

Eu entro e me sento no banco do passageiro com um gemido.

– Como é que vamos encontrar essa coisa? A pedra já era. Não tem como.

Ele assente.

– Talvez devamos tentar pensar se há outra coisa que podemos dar a Zacharov.

– Eu – sugiro. – Eu poderia...

Ele liga o carro, se afasta do meio-fio e entra no tráfego como se estivesse desafiando os outros motoristas a entrarem numa corrida.

– Não. Você já está enrolado até a cabeça. Mas talvez estejamos olhando pelo ângulo errado. Mamãe tem um bom apartamento onde ficar e um cavalheiro mais velho como companhia. Três refeições por dia. Patton não tem como chegar a ela. De que exatamente estamos tentando salvá-la? Considerando o que sabemos sobre a história dela com Zacharov, ela talvez até esteja...

Eu levanto a mão para não escutar o que ele está prestes a dizer.

– LÁ, LÁ, LÁ. Não estou ouvindo.

Ele ri.

– Só estou pensando que talvez ela fique melhor se não for salva, mais segura, mais feliz, o que é excelente, porque, como você disse, nossas chances de encontrar a pedra são praticamente nulas.

Encosto a cabeça e olho para o teto solar escuro da Ferrari.

– Só me deixe em Wallingford.

Ele pega o celular e manda uma mensagem de texto enquanto dirige, o que quase o faz mudar de faixa sem querer. Um momento depois, o celular vibra e ele olha para a tela.

– Ah, tá. Perfeito, então.

– O que você quer dizer?

– Tenho um encontro dos bons – conta ele, sorrindo. – Preciso que você suma.

– Eu sabia – digo. – Eu sabia que você não estava arrumado assim para ver o Bob.

Barron tira as mãos do volante para ajeitar as lapelas e colocar o celular no bolso interno do paletó.

– Acho que Bob gostou da minha roupa. Ele me fez comprar o pingente mais caro. Você pode achar que foi desvantagem para mim, mas aceito que o status venha com um preço.

– Normalmente, não de forma tão imediata. – Eu balanço a cabeça. – Espero que você não esteja dando em cima de agentes federais. Elas vão prender você.

O sorriso dele aumenta.

– Eu gosto de algemas.

Eu dou um gemido.

– Tem alguma coisa muito errada com você.

– Nada que uma noite sendo enfeitiçado por uma representante gostosa da justiça não possa consertar.

Observo as nuvens pelo teto solar. Acho que vejo uma com formato de bazuca.

– Ei, então você acha que papai mentiu para mamãe sobre o segundo diamante falso? Ou acha que mamãe mentiu para nós?

– Para você – diz ele. – Ela nem tentou me contar.

O sorriso aumenta nos lábios dele.

– É. – Eu suspiro. – De qualquer modo, é um tremendo beco sem saída.

Barron assente. Ele empurra o pé no acelerador e passa para a pista rápida. Eu não protesto. Pelo menos, ele tem uma coisa boa para a qual voltar correndo.

Barron me deixa em frente ao Strong House. Saio do carro e me alongo. Em seguida, bocejo devagar. Está anoitecendo. Os últimos raios de sol brilham no horizonte e criam a impressão de que todos os prédios estão pegando fogo.

– Obrigado pela carona – agradeço.

– Ah, tá – diz ele, com a voz cheia de impaciência. – Me desculpe, mas tenho que ir. Me ligue quando falar com a mamãe, desde que não seja esta noite.

Dou um sorrisinho debochado e bato a porta do carro.

– Divirta-se no seu encontro.

– Tchaaau – diz ele, acenando.

Sigo para o alojamento, mas continuo atento ao estacionamento. Fico esperando um movimento dos faróis com a partida dele, mas a Ferrari ainda está ali. Ele só chegou um pouco para a frente. Está mesmo esperando que eu alcance a porta do alojamento, como se eu fosse um garotinho em quem não se pode confiar que vá chegar em casa depois do anoitecer? Estou correndo algum perigo que desconheço? Não me vem à mente um bom motivo para ele ficar parado perto do meio-fio quando queria tanto ir embora.

Entro no prédio com o cérebro a mil, ainda remontando as peças do quebra-cabeça. Só quando chego no corredor e pego a chave no bolso de trás da calça jeans é que paro abruptamente.

Ele queria que eu fosse embora.

Corro até o salão estudantil e ignoro o grito de protesto de Chaiyawat Terweil quando pulo os fios que ligam o PlayStation dele à televisão. Em seguida, caio de joelhos na frente da janela. Enquanto espio, parcialmente escondido atrás de uma cortina poeirenta, vejo uma pessoa sair das sombras, andar até onde Barron está esperando e abrir a porta do passageiro.

Ela não está de uniforme, mas a reconheço mesmo assim.

Daneca.

As tranças com pontas roxas brilham sob a luz dos postes. Os saltos são mais altos do que qualquer outro que já a vi usando, altos o bastante para ela oscilar quando se inclina. Não há motivo no mundo para ela olhar ao redor do campus de Wallingford como se tivesse medo de alguém vê-la, não há motivo para entrar no carro de Barron, não há motivo para estar vestida daquele jeito, não há motivo que faça sentido. Não há motivo, exceto um.

O cara com quem ela anda saindo é meu irmão.


CAPÍTULO OITO

DE JEITO NENHUM

vou contar para o Sam. Ele está no nosso quarto do alojamento, ainda com cara de ressaca, tomando uma latinha de água de coco.

– Oi – diz ele, rolando na minha direção. – Seu avô é maluco, sabia? Depois que jogamos pôquer, ele me mostrou um monte de fotos. Achei que seriam fotos de você quando pequeno, mas não. Eram velhas fotos de moças burlescas sem luvas. De antigamente.

Eu forço um sorriso. Ainda estou pensando em Daneca e em meu irmão, me perguntando quantas vezes ela saiu com Barron, me perguntando por que saiu com ele uma única vez. É difícil me concentrar.

– Você viu pornografia com meu avô?

– Não era pornografia! Sua avó era uma das moças.

Claro.

– As roupas eram incríveis – comenta ele com voz sonhadora. – Penas e máscaras e lugares como nunca se viu. Tronos de lua crescente e uma rosa enorme com pétalas que se abriam como portas.

– Você reparou nas locações? – Estou rindo de verdade.

– Eu não queria ficar olhando para as mulheres. Eu não sabia quais eram parentes suas! E seu avô estava bem ali!

Dou mais algumas risadas. Mamãe me contou sobre os teatros da época, com balcões acortinados onde mestres podiam fazer negócios enquanto o show oferecia um disfarce legítimo. Então, vieram as batidas. Hoje, ninguém se arrisca a fazer esse tipo de negócio.

– Imagine você em um lugar assim. Você esquematizaria atos burlescos zumbis com todo mundo.

– Mercado inexplorado – anuncia ele. Em seguida, bate com o dedo enluvado na lateral da cabeça. – Sempre pensando. Esse sou eu.

Ele não parece feliz, mas também não está arrasado e infeliz, como ficou durante toda a semana. Se ainda está pensando em Daneca, pelo menos não é só nela. Mas, se soubesse sobre Barron, se soubesse que é com meu irmão que ela está saindo, isso mudaria.

Sei que, se quero ser uma pessoa melhor, isso inclui ser menos mentiroso. Mas às vezes uma mentira por omissão é necessária até o mundo começar a ser justo de novo.

Quando Lila encontrar outra pessoa, espero que todos mintam para mim.

Acordo com o alarme do celular vibrando junto à cabeça. Bocejando, olho para Sam. Ele ainda está dormindo, o edredom meio caído no chão. Eu me levanto depressa, pego umas roupas e vou ao banheiro.

Coloquei o alarme no silencioso para poder procurar Daneca antes que Sam acordasse e reparasse em pequenas coisas, como eu gritando com a ex-namorada dele. Antes que Daneca tenha a oportunidade de sair de novo com o imprestável do meu irmão. Antes de essa situação piorar.

Eu tomo um banho e faço a barba, tão rápido que corto o pescoço bem perto do maxilar. Lavo o sangue, jogo uma loção pós-barba ardida e vou correndo para o refeitório.

Chego cedo, o que é raro. Para comemorar, tomo duas xícaras de café preto e como uma torrada com bacon crocante. Quando Daneca entra, estou cogitando tomar uma terceira xícara.

O cabelo dela está preso por uma presilha de sândalo e ela usa uma meia-calça marrom com estampa em zigue-zague e um par de sapatos boneca marrom. Ela tem a mesma aparência de sempre, o que por algum motivo me surpreende. Minha ideia de quem ela é mudou por completo. Ela está saindo às escondidas com meu irmão há dias, talvez semanas. Tudo o que disse, todas as perguntas que tinha de repente fazem sentido para mim. Mas a resposta faz meu mundo girar no eixo.

Espero até ela seguir pela fila e vou até sua mesa.

– O que você quer? – pergunta ela enquanto coloca a bandeja na mesa.

– Ele não é quem você pensa – respondo. – Barron. Seja lá o que ele disse, não é verdade.

A surpresa a faz dar um passo para trás. No flagra. Mas ela se recupera e parece ainda mais furiosa do que antes. Nada deixa uma pessoa tão furiosa quanto ser descoberta.

Acredite em mim, eu sei.

– É, eu vi você ontem à noite – digo. – Você é péssima em sair escondida.

– Só você para achar que eu deveria sentir vergonha disso – retruca ela.

Eu respiro fundo e tento controlar a raiva. Não é culpa dela ter sido enganada.

– Tudo bem, olha. Diga o que quiser sobre mim. Pense o que quiser sobre mim. Mas meu irmão é um mentiroso compulsivo. Não consegue se controlar. Metade do tempo, acho que nem se lembra da história real, então a preenche com fantasias.

– Ele está tentando – diz Daneca. – É mais do que eu posso dizer sobre você. Ele me contou o que você fez. Com Lila. Com Philip. Com ele.

– Você está brincando comigo? – pergunto a ela. – Ele disse o que ele fez com Lila?

– Fique longe de mim, Cassel.

As garotas estão dizendo muito isso para mim nos últimos tempos. Começo a pensar que não sou tão encantador quanto gosto de acreditar.

– Só me diga que ele não tirou as luvas – insisto. – Não, na verdade, prefiro que você diga que tirou. Porque não tem como a Daneca que eu conheço cair no sorriso torto e no papo-furado do meu irmão.

– Ele me disse que você diria isso. Praticamente me falou as exatas palavras que você usaria. E não estava mentindo sobre isso, estava?

Eu suspiro. Meu irmão sabe ser inteligente quando quer.

– Daneca, olhe. Tem dois jeitos de ele saber o que eu diria. Um: ele me conhece muito bem. E dois: ele sabe a verdade. A verdade verdadeira. E é o que estou dizendo...

– Você vai me contar a verdade? Que piada.

Ela vira as costas para mim, pega a torrada e sai andando até a porta.

– Daneca – grito para ela.

Minha voz soa alto o bastante para as pessoas erguerem o olhar da comida. Vejo Sam na entrada do refeitório. Daneca esbarra nele ao sair. Ele olha para ela. E se vira para mim. Há tanta raiva no rosto dele que fico paralisado, até ele se virar de costas e sair andando.

Ligo para Barron antes de entrar na aula de estatística, mas a ligação cai na caixa-postal. A aula passa sem eu perceber. Quando saio, ligo de novo.

Desta vez, ele atende. A ligação está ruim, cheia de estática.

– Como está meu irmão favorito e o único vivo? – pergunta ele.

– Fique longe dela.

Minha mão treme com a urgência de dar um soco nele. Aposto qualquer coisa que ele estava falando com ela quando persegui aquele mestre de morte. Aposto qualquer coisa que ele amou falar com Daneca na minha frente sem eu perceber. Mandar mensagens de texto para ela do carro. Gabar-se sobre o encontro.

Ele ri.

– Não seja tão dramático.

Eu me lembro do que ele disse muito tempo atrás, quando o acusei de namorar Lila só porque ela era filha de Zacharov. Talvez eu esteja com ela só para provocar você.

– Seja lá o que você estiver tentando fazer... – digo, mantendo a voz controlada. – Seja o que for, não vai dar certo.

– Eu e ela... incomoda você, não é? Vi como você se irritou quando conversei com ela, primeiro no evento de Zacharov, quando você matou Anton, e depois no enterro de Philip. Você ficou incomodado, mas ela corou. Acho que você não devia tê-la levado se a queria para você.

– Daneca é minha amiga. Só isso. Não quero que ela se magoe. E sei que é impossível você sair com uma garota e não a magoar, então quero que a deixe em paz.

– Você só está tentando me convencer porque não a convenceu. Boa tentativa, Cassel, mas acha mesmo que eu vou recuar?

A voz dele é arrogante.

O problema dos celulares é que você não pode bater com força quando desliga. Sua única opção é jogá-los, e, se fizer isso, eles só se chocam contra o chão e racham. Não é nada satisfatório.

Fecho os olhos e me inclino para pegar todas as peças.

Só penso em uma pessoa que poderia convencer Daneca a ficar longe de Barron: Lila.

Mando uma mensagem de texto para Lila dizendo que posso encontrá-la onde ela quiser, que preciso contar uma coisa, que não é sobre ela nem sobre mim, que é importante. Ela não responde. Não a vejo nos corredores nem no refeitório no almoço.

Mas Sam segura meu braço assim que eu entro no refeitório, então, mesmo que ela estivesse lá, eu não poderia lhe dizer muita coisa. O cabelo dele está desgrenhado, e ele me olha com a expressão de alguém cuja sanidade está por um fio.

– Por que você não me acordou? – pergunta ele em tom que sugere falsa calma. – Você saiu escondido. Não queria que eu visse você com ela.

– Opa. – Eu levanto as duas mãos em sinal de rendição. – Você resmungou e abriu os olhos. Achei que já estivesse acordado.

É mentira, mas espero que seja crível. Muitas vezes falei coisas, rolei para o lado e voltei a dormir. Mas Sam normalmente chuta minha cama de novo antes de sair.

Ele pisca duas vezes, depressa, como se estivesse se esforçando para se controlar.

– Sobre o que você e Daneca estavam brigando hoje de manhã? – pergunta ele.

– Eu disse que ela estava sendo babaca – conto, franzindo a testa. – Que você não merecia a forma como ela estava tratando você.

– É? – Ele se encolhe um pouco. Sinto-me o cretino que sei que sou. Percebo que ele quer acreditar em mim. – Tem certeza? Parecia pior. Ela parecia com muita raiva.

– Acho que talvez eu não tenha dito de um jeito simpático – comento.

Ele suspira, mas a fúria sumiu.

– Você não deveria falar com ela assim. Ela é sua amiga também.

– Não é mais – digo, dando de ombros.

Ele faz uma expressão de gratidão, e eu me sinto ainda pior, porque pareço um amigo leal que está declarando a firmeza da minha posição ao lado dele, quando na verdade é ela que não quer saber mais de mim.

– Cassel – chama uma voz de menina atrás de nós.

Eu me viro e vejo Mina Lange olhando para mim. Ela sorri, mas parece cansada, o que me provoca um sentimento protetor.

– Podemos conversar sobre amanhã?

Sam olha para ela e para mim. Em seguida, olha para o céu, como se fosse a única explicação para alguém ter tanta sorte como eu.

Garanto que não é de lá que vem.

– Hã – resmungo. – Claro. Andei pensando nas coisas e...

Estou improvisando, pois não pensei muito no problema de Mina desde nossa última conversa. O fim de semana chegou e arrastou tudo.

– Aqui não – diz ela, me interrompendo.

Eu indico a porta com a cabeça.

– Claro. Vamos para a biblioteca. Não vai ter muita gente lá e podemos encontrar um lugar tranquilo nos fundos.

– O que está acontecendo? – pergunta Sam.

– Ah – retruco. – Sam, Mina. Mina, Sam.

– Temos aula de estudos cinematográficos juntos – conta Sam. – Eu sei quem ela é.

– Só a estou ajudando com um assunto. – Percebo que é a oportunidade perfeita para distrair Sam de tudo relacionado a Daneca. – Mas você devia vir à biblioteca conosco. Para ser o Watson do meu Sherlock, o Hawk do meu Spenser, o Mouse do meu Easy, o Bunter do meu Wimsey.

Sam ri com deboche.

– O Sancho Pança gordo do seu Quixote psicótico.

Ele olha para Mina e seu pescoço fica vermelho, como se tivesse percebido que deixou nós dois com uma imagem ruim.

– Acho que não... – começa Mina.

– Sam é totalmente confiável, embora modesto demais – falo. – Tudo o que você me contar também pode contar a ele.

Ela o olha com desconfiança.

– Tudo bem. Mas vai ser amanhã. Antes precisamos pegar a câmera de volta ou encontrar um jeito de pagar ou...

– Na biblioteca – reforço.

– Tudo bem. – Mina assente com expressão aliviada.

Pego algumas frutas na tigela perto do leitor de cartão e atravessamos a praça juntos. Alguns alunos estão sentados na biblioteca, estudando durante o intervalo de almoço. Sigo por entre eles, vou para o fundo e escolho um lugar perto das estantes que dizem SOCIEDADES, SECRETAS, BENEVOLENTES ETC. Eu me sento no tapete.

Entrego maçãs para eles e mordo a minha.

– Vamos começar repassando os fatos do caso mais uma vez. Isso vai deixar Sam a par de tudo, e ele vai poder nos ajudar a ver a coisa toda com novos olhos.

Sam está parecendo meio perdido, talvez por eu falar como se estivéssemos realmente bancando os detetives.

Mina olha para Sam.

– Tem alguém me chantageando. Tenho que pagar a essa pessoa cinco mil dólares. Mas não tenho esse dinheiro. E preciso entregar o dinheiro amanhã de manhã. – Ela olha de novo para mim. – Por favor, me diga que sabe o que devo fazer, Cassel.

– O que essa pessoa tem contra você? – pergunta Sam. – Você colou em uma prova, por acaso?

Mina hesita.

– Fotos – conto. – Do tipo ousado.

Ela me olha com uma expressão chateada.

– Ei – diz Sam. – Não é nada para se ter vergonha. Todos tiramos fotos assim. Não eu pessoalmente, mas a avó de Cassel, você tinha que ver...

– Tudo bem – falo. – A questão é que as fotos estavam na câmera. A câmera foi roubada. Mina, quanto mais eu penso, mais acho que alguém do seu alojamento deve ter feito isso. Uma das garotas. Talvez tenha entrado no seu quarto para roubar um pacote de chocolate, viu a câmera e a pegou. Uma semana depois, ela foi olhar o que havia lá, encontrou as fotos de nudez e, durante uma longa noite rindo e comendo muita porcaria, ela e as amigas planejaram uma pegadinha engraçada.

– Você disse que ia me ajudar.

Desta vez, quando Mina olha para mim, os olhos estão úmidos. Ela não está exatamente chorando, mas há lágrimas grudadas nos cílios, o que a faz parecer sensual e terrivelmente vulnerável. A infelicidade dela me faz duvidar de mim mesmo.

– Estou tentando ajudar você – digo. – Sinceramente, faz sentido. Mas olhe, amanhã de manhã, Sam e eu vamos acordar cedo, iremos até o campo de beisebol e vamos observar. A pessoa que está armando contra você desse jeito com certeza vai querer ver se você caiu na chantagem.

– Você a está chateando – diz Sam.

Mina se vira para ele.

– Ele não acredita em mim.

Eu suspiro. Acho mesmo que ela está escondendo algo, mas, como não sei o que é, não posso fazer nada. Dizer-lhe que não acredito em nada também não vai ajudar.

– Se o chantagista aparecer para pegar o dinheiro, vamos saber quem é.

– Mas e o dinheiro? – pergunta Mina. – Eu não vou ter.

– Leve uma bolsa grande o bastante para parecer que há a possibilidade de você estar com o dinheiro.

Mina olha pela janela, desconsolada, e respira, trêmula.

– Vai ficar tudo bem – conforto-a, e coloco a mão enluvada no braço dela de um jeito que espero ser solidário. Ela parece cansada.

O sinal toca alto o bastante para nos dar um susto. Mina levanta de um pulo e limpa a saia. Quando joga o cabelo para trás, ele se move como uma onda. Da forma como os cabelos se movem nos filmes.

Cabelo de verdade não é assim.

Dou outra olhada nela quando Mina coloca uma mecha atrás da orelha.

– Você parece legal – diz ela para Sam. – Obrigada por tentar ajudar.

Não tem pontas duplas, eu percebo. E, apesar de a franja dificultar a percepção, vejo que o alto da cabeça mostra uma cor sutilmente diferente do restante da pele.

Sam assente com expressão grave.

– Farei o que puder.

– Vamos resolver isso – asseguro.

Ela me dá um daqueles quase sorrisos que algumas garotas são capazes de dar, em que o lábio treme e ela parece tão vulnerável que você se vê desesperado para encontrar um jeito de obter dali um sorriso de verdade. Os cílios ainda estão úmidos das lágrimas que não caíram. Eu me pergunto como seria limpar essas lágrimas com o polegar. Imagino a maciez da bochecha dela na minha pele. Ela pega a bolsa com estampa de morangos antropomórficos cantantes e sai da biblioteca.

A peruca vai ondulando junto.

O restante do dia é uma confusão de mensagens de texto escritas na pressa e que não são respondidas. Lila não está no salão estudantil do alojamento dela, e tive que prometer uma cópia do meu dever de estatística a Sharone Nagel para que ela fosse olhar. O carro de Lila nem está no estacionamento. Quando descubro que não foi jantar, fico praticamente fora de mim de tanta vontade de encontrá-la.

Daneca também não vai jantar.

Sam pelo menos está lá, olhando um catálogo de máscaras, sem nem prestar atenção à pilha de bolo de carne no prato.

– E então – diz ele –, vai me contar o que é essa coisa com Mina?

– Não tenho nada para contar. Vamos salvar uma donzela em perigo, como os cavaleiros de antigamente. Eu só queria saber exatamente de que perigo vamos salvá-la. A coisa toda é suspeita.

– Você não acredita no que ela disse sobre as fotos? – pergunta ele, pausando em uma página que mostrava um focinho emborrachado de lobisomem que tinha que ser preso com verniz para postiços.

– Não sei. A única coisa de que tenho certeza é que ela está mentindo sobre algo. Mas talvez não seja nada importante. Todo mundo mente, né?

Isso o faz rir com deboche.

– E qual é o plano, Sir Bonehead?

– Aquilo mesmo que eu falei. Vamos ver quem aparece para chantagear Mina ou para rir do quanto ela é fácil de enganar.

Olho para o lugar onde Mina está sentada com as amigas, brincando com uma mecha da peruca e bebendo refrigerante diet. Mesmo tendo quase certeza de que o cabelo não é de verdade, me encanto com ele. Parece de verdade, melhor do que real, ao cair pelas costas em uma camada brilhante.

Será que ela teve alguma doença? Se teve, deve fazer tempo suficiente para que ninguém de Wallingford se lembre da ausência dela na escola, mas não tanto a ponto de dar tempo de o cabelo crescer. Ou acho que poderia ser outra coisa. Talvez ela goste da conveniência de não se preocupar em arrumar o cabelo de manhã.

Eu me pergunto o que poderia fazer alguém querer chantagear uma garota como ela. Qualquer pessoa, se olhasse direito, perceberia que a família dela não é rica. O relógio dela é bonito, mas ela sempre usa o mesmo. A tira de couro está gasta. E os sapatos são sapatilhas pretas. Bonitas e baratas. Não que ela não tenha dinheiro para coisas de qualidade. Ela tem um celular do ano passado e um laptop de dois anos coberto de cristais cor-de-rosa. É mais do que muita gente tem. Além do mais, estuda em Wallingford. Mas ela não seria a pessoa que eu escolheria se quisesse arrumar cinco mil com facilidade. Só pode ser pegadinha.

A não ser que o chantagista saiba de alguma coisa que eu não sei.

Depois do jantar, volto para o estacionamento, mas o carro de Lila ainda não está lá. Penso que talvez ela e Daneca estejam juntas, pois nenhuma das duas estava no jantar. Talvez Daneca tenha ouvido o que eu disse sobre Barron, apesar de ter fingido que não. Talvez até tenha começado a duvidar dele. Se correu até Lila, talvez seja por isso que ela não me respondeu. A casa de Daneca fica perto; não seria nada de mais ir até lá jantar. Imagino-as na cozinha de Daneca, comendo pizza e falando sobre o quanto os garotos Sharpe são babacas. O pensamento não me incomoda. Na verdade, é um grande alívio em comparação a todas as outras possibilidades. Tenho duas horas até a verificação dos quartos e não tenho nenhuma ideia melhor, então decido passar na casa de Daneca.

Sei o que você está pensando. Está pensando quanta ironia há no fato de Barron, que erra tanto sobre tantas coisas, estar certo sobre eu ter o hábito de perseguir pessoas.

Depois de estacionar na rua da casa dela em Princeton, atravesso o quarteirão e passo por casas grandiosas de tijolos, cada uma com gramado bem-cuidado, arbustos esculpidos e aldravas brilhantes. Os jardins estão cheios de decorações de outono: milho e abobrinha secos ou vasos com pirâmides de abóboras empilhadas, e até mesmo um espantalho ocasional.

Quando ando pelo caminho até a casa dela, percebo que minha ideia estava errada. Nenhum dos dois carros está ali, e fui até lá por nada.

Eu me viro e começo a me afastar quando a porta da frente se abre e a luz da varanda é acesa.

– Olá? – chama a mãe de Daneca na escuridão.

Ela está com a mão enluvada erguida, protegendo os olhos. A luz da varanda tem o efeito inútil que as luzes de varanda costumam ter: quase a cega e me transforma em sombra.

Eu chego mais perto.

– Sou eu, Sra. Wasserman. Cassel. Eu não queria assustar você.

– Cassel? – diz ela, como se ainda estivesse nervosa. Talvez mais nervosa. – Você não deveria estar na escola?

– Eu estava procurando a Daneca. Como estamos no último ano, podemos sair do campus se voltarmos na hora. Mas eu deveria mesmo estar em Wallingford. Vou voltar agora.

Faço um gesto vago na direção do carro.

Ela fica em silêncio por um momento. Em seguida, fala:

– Acho que é melhor você entrar.

Caminho até a entrada de mármore e entro na casa com piso de madeira encerado. Sinto o cheiro do que restou do jantar deles, alguma coisa com molho de tomate, e ouço a televisão na sala. O pai de Daneca e Chris, que não é exatamente irmão dela, estão sentados nos sofás assistindo à tela. Chris olha na minha direção quando passo, os olhos brilhando na luz refletida.

A Sra. Wasserman faz sinal para eu ir até a cozinha, e a sigo.

– Quer beber alguma coisa? – pergunta ela, e vai até o fogão depois de encher uma chaleira. Isso me traz a lembrança desconfortável de ver a minha mãe na casa de Zacharov.

– Não, estou bem.

Ela aponta para uma cadeira.

– Pelo menos se sente.

– Obrigado – digo, e me sento desajeitado. – Olhe, me desculpe por incomodá-la...

– Por que você achou que Daneca estaria aqui e não em Wallingford?

Eu balanço a cabeça.

– Não sei onde ela está. Só quero conversar com ela sobre o namorado. Ela está namorando meu irmão. Se você o conhecesse, entenderia por que eu...

– Eu o conheci – conta a Sra. Wasserman. – Ele veio jantar.

– Ah – resmungo lentamente, porque aposto que ele falou alguma coisa bem ruim que explica o desconforto dela perto de mim. – Barron veio aqui? Jantar. Aqui?

– Só quero que você lembre, Cassel, que sei como as coisas podem ser difíceis para crianças mestras. Para cada criança como Chris, que encontra um lugar para chamar de lar, há muitas outras jogadas nas ruas, acolhidas por famílias criminosas e vendidas para os ricos, obrigadas a suportar rebotes contínuos para os outros encherem os bolsos ou obrigadas a virarem criminosas. E deve ser ainda pior ser criado acreditando que você foi obrigado a fazer essas coisas. Não sei o que você fez nem o que seu irmão fez, mas...

– O que você acha que nós fizemos?

Ela olha para meu rosto como se estivesse procurando alguma coisa. Por fim, diz:

– Não sei. Daneca ligou para cá hoje, mais cedo. Disse que você não aprovava o namoro dela com seu irmão. Sei que você está preocupado com Daneca. Você é colega de quarto de Sam, e vejo que você quer protegê-la. Talvez queira proteger os dois. Mas, se espera ser perdoado pelo que fez, precisa reconhecer que seu irmão também merece uma segunda chance.

– O que você acha que eu fiz? O que ele disse que fiz?

– Isso não é importante – diz ela. – Está no passado. Tenho certeza de que você quer que fique lá.

Abro a boca, mas volto a fechar. Quero me defender, mas é verdade que fiz coisas ruins. Coisas que quero que fiquem no passado. Mas também quero saber o que ele disse, porque duvido que tenha contado a história toda.

O problema de gente como a Sra. Wasserman é exatamente esse. Ela é gentil. É boa. Quer ajudar as pessoas, mesmo as que não deveria. Como Barron. Como eu. É fácil se aproveitar do otimismo dela, da fé em como o mundo deveria funcionar.

Eu sei. Já fiz isso.

Quando olho no rosto da Sra. Wasserman, sei que ela é um alvo natural desse tipo particular de golpe.


CAPÍTULO NOVE

SE VOCÊ É UMA PESSOA MALUCA

que precisa marcar encontros clandestinos, então, assim como acontece com imóveis, o mais importante é a localização.

Você quer ter o controle da situação, por isso é melhor controlar o terreno. Nada de surpresas. Nada de prédios, nada de árvores, nada de cantos escuros onde seus inimigos possam se esconder. Você só quer que esses locais escondidos sejam ocupados por gente sua. Mas o lugar não pode ser tão aberto a ponto de um transeunte ter uma linha de visão clara. Encontros clandestinos têm que permanecer clandestinos.

O campo de beisebol não é uma escolha terrível. É longe de outros prédios. Um bosque próximo é o único lugar de esconderijo e nem fica tão perto. A hora também é boa. Seis da manhã é cedo demais para a maioria dos alunos estar acordada, mas não há regra que proíba a circulação nesse horário. Mina não vai precisar sair escondida, e há tempo suficiente para a troca de itens antes de as aulas começarem. O chantagista poderia pegar o dinheiro, guardar com calma e ainda ir tomar café da manhã.

Por outro lado, seis da manhã parece cedo demais para garotas fazerem pegadinhas em qualquer lugar que não seja a cama. Imagino que estarão de pijama, inclinadas na janela do alojamento, rindo, quando Mina voltar do campo de beisebol sem que ninguém tenha aparecido no encontro. Se eu estiver certo, é isso que vai acontecer. É nessa hora que a verdadeira negociação vai começar, porque ainda tenho de convencê-las a devolver a câmera e o que tem nela. É nessa hora que vou descobrir o que de fato está acontecendo.

O despertador de Sam toca como uma sirene às quatro e meia da madrugada, uma hora que espero nunca mais ver. Jogo meu celular no chão na tentativa de desligá-lo, antes de perceber que o som vem de outra parte do quarto.

– Acorde – digo, e jogo um travesseiro na direção dele.

– Seu plano é uma droga – murmura Sam ao sair da cama e seguir para o chuveiro.

– É – resmungo baixinho para mim mesmo. – Me diga uma coisa que não é uma droga neste momento.

É cedo demais para ter café pronto. Olho de um jeito idiota para a jarra vazia no salão de convivência enquanto Sam pega um pote de café instantâneo.

– Não – aviso.

Ele pega uma colherada e enfia na boca sem prestar muita atenção. O som crocante é horrível. Ele arregala os olhos.

– Seco – geme ele. – Língua... encolhendo.

Eu balanço a cabeça e pego o pote.

– É desidratado. Você tem que acrescentar água. Que bom que você é quase todo composto de água.

Ele tenta dizer alguma coisa. O pó marrom suja a camiseta dele.

– Além disso – digo –, é descafeinado.

Ele corre até a pia para cuspir. Sorrio. Não há nada tão engraçado quanto a infelicidade de outra pessoa.

Quando saímos, já me sinto um pouco mais desperto. Está tão cedo que a neblina da madrugada ainda paira sobre a grama. O orvalho se cristalizou nos galhos vazios das árvores e em pilhas de folhas secas, deixando-as pálidas com a geada.

Andamos até o campo de beisebol, e a umidade toma conta de nossos sapatos. Ainda não tem ninguém lá, e é essa a ideia. Você nunca deve ser a última pessoa a chegar a um encontro clandestino.

– E agora? – pergunta Sam.

Eu aponto para o bosque. Não é ideal, mas fica perto o bastante para vermos se alguém aparecer, e, depois de perseguir um mestre de morte, tenho confiança de conseguir alcançar um aluno se precisar.

O chão está congelado. A grama estala quando nos sentamos. Eu me levanto para verificar alguns ângulos até ter certeza de estarmos bem escondidos.

Mina chega quinze minutos depois, bem quando penso que Sam não vai parar de se mexer inquietamente até a morte. Ela segura um saco de papel com nervosismo.

– Hã, olá! – chama ela da beirada das árvores.

– Aqui – digo. – Não se preocupe. Vá até o meio do campo, à direita, perto da primeira base, e lembre-se de virar para que possamos ver você.

– Tudo bem – fala Mina, a voz tremendo. – Me desculpe por ter arrastado você para isso, mas...

– Agora, não. Fique lá e espere.

Sam solta um suspiro sofrido quando ela sai andando.

– Ela está com medo.

– Eu sei – concordo. – Eu só não sabia como... Não temos tempo para isso.

– Você deve ser o pior namorado do mundo – sussurra Sam.

– Provavelmente – digo, e ele ri.

Esperar é difícil. É chato, e, quanto mais entediado você fica, mais quer fechar os olhos e cochilar. Ou pegar o celular e jogar um joguinho. Ou conversar. Os músculos ficam doídos. A pele começa a formigar para avisar que o pé vai ficar dormente. Talvez ninguém apareça. Talvez você tenha sido visto. Talvez você tenha feito um cálculo errado entre um milhão de outros. Tudo o que você quer é uma desculpa para sair de onde está e ir tomar um café ou dormir na própria cama. O tempo se arrasta, como uma formiga andando por sua coluna.

Passar por isso uma vez torna mais fácil acreditar que pode enfrentar essa situação de novo. Sam se mexe com desconforto. Mina parece pálida e angustiada, andando de um lado para outro. Eu me revezo entre procurar algum sinal no rosto dela de que o chantagista chegou e planejar o que vou dizer a Lila.

Daneca não vai acreditar em mim. Conte a ela o que Barron fez.

Chego a esse ponto, mas minha mente para. Não consigo imaginar o que ela diz em resposta. Nem a expressão no rosto dela. Não me sai da cabeça a lembrança de que ela não quis olhar para mim depois que falei que a amava. Que não acreditou em mim. E então me lembro da boca de Lila na minha e da forma como ela me olhou quando estávamos deitados na mesma grama para a qual estou olhando agora, só que a grama estava quente e Lila estava quente, dizendo meu nome como se mais nada no mundo importasse.

Aperto as pontas dos dedos enluvados sobre os olhos para afastar as imagens.

Sam treme do meu lado, e afasto as mãos lentamente. A postura de Mina enrijeceu, e ela está olhando pelo gramado para alguém que não vemos. Adrenalina corre pelas minhas veias e faz meu coração disparar. Nesse ponto, o risco é sermos ansiosos demais. Precisamos esperar até que o chantagista esteja de costas para nós e nos deslocar o mais rapidamente possível quando isso acontecer.

Mina se vira um pouco quando a pessoa se aproxima. Ela faz exatamente o que pedi, só que lança um olhar na nossa direção. Nossos olhares se cruzam, e tento dizer silenciosamente que ela nunca mais deve olhar para cá.

De repente, a pessoa aparece.

Não sei o que eu estava esperando, mas não era um calouro. O homem é alto, magro e tão cheio de tiques que relaxo quando o vejo. Talvez ele tenha encontrado a câmera e decidido ganhar uma grana rápida. Talvez ache que chantagem é o equivalente do ensino médio a empurrar uma garota de quem você gosta em uma poça de lama. Não sei. Só sei que ele está dando um passo grande demais.

Atacá-lo parece cruel, então dou o golpe mais implacável do mundo. Tomando o cuidado para que ele esteja de costas para mim, enfio a mão no bolso do casaco e aponto o indicador e o dedo do meio para imitar o formato de uma arma, como as crianças fazem.

Atravesso o gramado depressa, rápido o suficiente para que, quando ele me ouvir chegando, eu esteja bem perto.

– Parado – digo a ele.

É cômico o som que o garoto faz quando me vê. É um grito tão agudo que não ouço nem metade. Até Mina parece chocada.

Sam se aproxima até estar de pé ao lado do calouro, olhando-o de cima.

– É Alex DeCarlo – diz ele, olhando para baixo. – Fazemos clube de xadrez juntos. O que ele está fazendo aqui?

Eu levanto a arma falsa dentro do bolso.

– É. O que exatamente você quer com cinco mil?

– Não – retruca Alex, com o rosto vermelho de infelicidade. – Eu não queria... – Ele olha para Mina e respira fundo com nervosismo. – Não sei sobre os cinco mil dólares. Eu só tinha que trazer o envelope que, hã, ele me deu. Mina é minha amiga e eu nunca...

Mentindo, mentindo. Todo mundo está mentindo. Consigo ouvir nas vozes. Percebo na forma como as expressões não combinam com as palavras, em uma dezena de pistas pequenas.

Bem, eu também posso mentir.

– Se você não falar a verdade, vou explodir seu cérebro.

– Me desculpe – guincha ele. – Me desculpe. Mina, você não disse que ele estaria armado.

O garoto parece prestes a vomitar nos sapatos.

– Alex – dispara ela com voz dura, como um aviso.

Sam dá um passo, aproximando-se dela.

– Ei, vai ficar...

Alex respira e fala com a voz trêmula:

– Ela disse que eu só precisava vir aqui e contar essa história, mas não quero morrer. Por favor, não atire. Não vou contar para ninguém...

– Mina? – pergunto com incredulidade. Deixo de lado o fingimento da arma, tiro a mão do bolso e pego o envelope da mão de Alex. – Me deixe ver isso.

– Ei! – diz Alex. E então, quando começo a rasgar o envelope, ele fala: – Espere. Não era de verdade? Você não está armado?

– Ah, ele está, sim – diz Sam.

– Não! – exclama Mina. Ela estica a mão para tirar o envelope de mim. – Por favor.

Olho para ela de cara feia. Há fotos impressas dentro do envelope, nada de negativos nem de cartão de memória, muito menos uma câmera.

Mas é tarde demais. Já estou olhando.

Há três fotos, com Mina de perfil em todas elas, com a peruca preta e comprida caindo pelos ombros. Ela não está nua. Na verdade, está com o uniforme de Wallingford. A única coisa nua nela é a mão direita.

Os dedos nus estão tocando a clavícula do homem ao lado dela, o supervisor Wharton. A camisa branca de botão dele está aberta no pescoço. Ele está com os olhos fechados, talvez por medo ou prazer.

Deixo as fotos caírem. Elas se espalham no chão como folhas mortas.

– Você está estragando tudo – diz Mina, com a voz quase selvagem. – Fiz isso para fazer você acreditar em mim. Eu tinha que convencê-lo.

Sam se abaixa e pega uma das fotos. Ele fica olhando, provavelmente, como eu, tentando entender o que poderiam significar.

Eu reviro os olhos.

– Me deixe ver se entendi. Você mentiu a fim de que acreditássemos em você?

– Se você soubesse o que estava acontecendo desde o começo, se soubesse que um supervisor estava envolvido, não teria aceitado me ajudar.

Mina olha de mim para Sam e para Alex como se estivesse tentando concluir qual de nós ainda estaria vulnerável ao apelo dela. Os olhos se enchem de lágrimas.

– Acho que nunca saberemos – digo a ela.

– Por favor – pede ela. – Você consegue entender por que eu não queria... entende por que eu estava com medo?

– Não faço ideia – retruco. – Você mentiu tanto que não faço a menor ideia de por que você estaria com medo.

– Por favor – repete ela de um jeito trágico.

Apesar de tudo, uma parte de mim se sente mal por ela. Já estive na posição em que ela está, tentando manipular pessoas porque sentia medo demais para fazer qualquer outra coisa. Porque estava convencido demais de que elas jamais me ajudariam se eu não as enganasse.

– Mentirosos não ganham o benefício da confiança duas vezes – digo a ela, tentando manter a voz firme.

Ela cobre o rosto com a mão fina e enluvada.

– Você me odeia agora, aposto. Você me odeia.

– Não – falo, cedendo com um suspiro. – Claro que não. Só que, desta vez, deixe a história toda clara, certo?

Ela assente depressa e limpa os olhos.

– Prometo. Vou contar tudo.

– Pode começar pelo seu cabelo – sugiro.

Ela toca nele com constrangimento, passando os dedos enluvados pelo volume negro.

– O quê?

Eu me inclino para a frente e dou um puxão em uma mecha. O cabelo todo desliza para o lado, e ela ofega, levantando as mãos depressa para ajeitar.

Alex também leva um susto.

– Isso é peruca? – pergunta Sam, não exatamente perguntando, mas daquele jeito de quem ainda não entendeu bem.

Ela cambaleia para longe de mim com o rosto vermelho.

– Pedi para você me ajudar. Tudo o que eu queria era sua ajuda! – A voz dela está trêmula e gutural. Ela começa a chorar de repente, e desta vez tenho certeza de que a reação é verdadeira. O nariz começa a escorrer. – Eu só queria...

Ela se vira e sai correndo na direção do alojamento.

– Mina! – grito, mas ela não se vira.

Sam sugere que deveríamos sair do campus para tomar café da manhã em vez de ficar no meio do campo de beisebol congelando enquanto discutimos as informações que obtivemos de Alex depois que Mina saiu correndo. Passa pouco das seis da manhã, e as aulas só começam às oito. Panquecas cairiam bem para mim.

Entro pela porta do passageiro no rabecão de Sam. Encosto a cabeça no banco e fecho os olhos. É só por um momento, mas de repente Sam está me sacudindo para me acordar. Estamos parados atrás do Bluebird Diner.

– Acorde – diz Sam. – Só pode dormir no meu carro quem já está morto.

Dou um bocejo e saio do carro.

– Desculpe.

Eu me pergunto se o que aconteceu de manhã cedo foi algum tipo de treinamento para meu trabalho como agente federal. Depois que eu me formar em Wallingford na primavera e me matricular no programa oficial de treinamento com Yulikova, vou aprender a pegar chantagistas de verdade. Chantagistas que não são como Alex DeCarlo e não acreditam que estou com uma arma de verdade quando estico dois dedos dentro do bolso da jaqueta.

Chantagistas que estão realmente chantageando alguém.

Nós entramos. Uma garçonete que deve ter pelo menos uns setenta anos, as bochechas pintadas de vermelho como as de uma boneca, nos leva até uma mesa e nos entrega cardápios. Sam pede café.

– O refil é de graça – informa a garçonete com a testa franzida, parecendo torcer para não sermos o tipo de gente que pede refis infinitamente. Já tenho certeza de que somos exatamente essas pessoas.

Com um suspiro, Sam abre o cardápio e começa a escolher a comida.

Alguns minutos depois, estou tomando minha terceira xícara de café e atacando uma pilha de panquecas redondas. Sam espalha cream cheese em metade de um bagel e coloca salmão e alcaparras em cima.

– Eu devia ter notado aquela peruca – diz ele, apontando com a faca para o peito. – Sou o cara dos efeitos especiais. Devia ter reparado.

Eu balanço a cabeça.

– Que nada. Nem sei como eu reparei. Além do mais, não faço ideia do que quer dizer. Por que garotas usariam perucas, Sam?

Ele dá de ombros e termina mais uma xícara de café.

– Minha avó usa para manter a cabeça aquecida. Será que é isso?

Eu sorrio.

– Talvez. Quem sabe, né? Poderia ser um sinal de que ela estivesse se tratando de uma doença séria. Ela faltaria aula.

– Cabelo não cai por causa de estresse? Talvez mentir tanto tenha afetado Mina. Ela não é a profissional que você é.

Dou um sorriso debochado.

– Ou às vezes as pessoas sofrem de um distúrbio em que arrancam o próprio cabelo. Vi em um daqueles reality shows que passam de madrugada. Elas também comem os folículos. E podem ficar com uma bola gigantesca e mortal de cabelo no estômago chamada tricobezoar.

– Tricotilomania – diz ele, com um orgulho arrogante de si mesmo por tirar a palavra de algum lugar da memória. Em seguida, faz uma pausa. – Ou poderia ser rebote.

Eu concordo, aceitando a ideia. Acredito que nós dois estávamos pensando a mesma coisa.

– Você quer dizer que acha que aquelas fotos são de Mina enfeitiçando o supervisor Wharton? Eu também acho. A primeira pergunta é: quem as tirou? E a outra é: por que dá-las a nós? E a terceira: se ela o está amaldiçoando, o que está fazendo com ele?

– 'Por que dá-las a nós?' Mas ela não deu. Você pegou das mãos de Alex – lembra Sam, levantando a xícara e sinalizando para a garçonete que precisamos de mais café. – Não é possível que ela quisesse que víssemos as fotos.

– Que nada. Ela devia querer – sugiro. – Se não quisesse, para que mandar Alex ir até lá com elas? E por que as tirou, antes de qualquer outra coisa? Acho que ela se chateou por termos visto as fotos sem ouvir o que ela queria que a gente ouvisse.

– Espere. Você acha que ela tirou as fotos? E que não há chantagista?

Sam está me olhando como se estivesse esperando que eu dissesse que Mina é um robô do futuro que voltou para destruir o mundo.

– Eu acho que ela é a chantagista – digo.

Depois que Mina foi embora, pedimos a Alex para explicar a história que ela o tinha mandado contar. Mina falou para ele dizer que o chantagista era o Dr. Stewart, e que ele queria cinco mil para não destruir a carreira de Wharton e a reputação de Mina. O Dr. Stewart estava mandando recados por Alex para que Mina arrumasse o dinheiro e o levasse até ele. Senão, ela iria sofrer as consequências.

Eu tive aula com Stewart no ano passado. Ele é durão. O tipo de professor que sempre parece satisfeito quando você tira nota baixa. Eu sempre o vi como um cara que ama regras e acha que, se você não as seguir, merece as consequências.

Não exatamente do tipo criminoso.

Há vários outros problemas com a história além do vilão improvável. Um deles é que envolver Alex é burrice. Se Stewart estivesse mesmo tentando encobrir os rastros, usando Mina para não ser descoberto por Wharton, então não tem como ele ser burro o bastante para convocar um aluno que não tinha nada a perder se contasse a todo mundo.

– Não entendo – diz Sam.

– Nem eu – falo. – Não mesmo. Ela é bolsista?

Ele dá de ombros.

– É possível.

– Precisamos saber se ela está fazendo alguma coisa com Wharton ou para Wharton. Ele a está pagando ou ela o está obrigando, sei lá, a fazer alguma coisa que a beneficia?

– Ele a está pagando – sugere Sam. – Porque, se não fosse ele quem está pagando, ela não ia querer que houvesse documentação do que está acontecendo, certo? Ela não nos deixaria ver as fotos. Não as teria dado para Alex. Não sacudiria o barco. Se você estiver certo sobre essa parte, então Wharton contratou Mina.

Pego uma das fotos e coloco no centro da mesa. Sam afasta a xícara e os pratos para abrir espaço.

Olhamos para os dedos nus de Mina e para a forma como a cabeça de Wharton está virada, como se ele tivesse vergonha do que está fazendo. Estudamos a composição, as pessoas não centralizadas, como se as fotos tivessem sido tiradas sem que alguém ajeitasse a posição. Há formas de fazer isso, até mesmo com um celular. O aparelho pode ser programado para tirar fotos em intervalos de minutos. A única parte complicada para Mina seria garantir que Wharton estivesse no lugar certo.

– Você gosta dela? – pergunta Sam.

Eu levanto o olhar rapidamente.

– O quê?

– Nada. Maldição de sorte, talvez. Ela pode ser mestra de sorte. Ele pode ter problema com jogos de azar – diz Sam.

– Ou ela pode ser mestra física como Philip, embora o cabelo dele não caísse.

Tento não pensar no que Sam acabou de perguntar, mas não deixo de imaginar se ele está interessado em Mina. Tem alguma coisa especial em uma donzela em perigo, todos querem salvá-la. E não há nada como levar um pé na bunda para deixar uma pessoa doida por um novo relacionamento.

– Talvez ela seja mestra física e esteja curando a calvície de Wharton – diz Sam, e nós dois rimos. – Mas, falando sério, o que você acha? O que Mina estava tentando fazer?

Eu dou de ombros.

– Acho que ela queria o dinheiro, certo? Deve ter achado que poderíamos ajudá-la a conseguir. Talvez tenha achado que encontraríamos um jeito de intimidar Stewart até obter o dinheiro ou de ajudá-la a chantagear Wharton e culpar Stewart.

A garçonete coloca a conta na beirada da mesa e leva nossos pratos. Interrompemos a conversa até ela estar longe.

Eu me pergunto onde Lila está.

– Mas para que Mina precisa de cinco mil? – pergunta Sam, procurando a carteira com uma das mãos e esticando a outra para pegar a xícara de café.

Volto a pensar no presente.

– É dinheiro. Poderia ser para qualquer coisa, talvez só para ter. Mas, se Wharton está pagando para que ela o enfeitice, então acho possível que os pagamentos estejam chegando ao fim. Todos os golpistas sonham com o grande golpe.

– O grande golpe? – Sam sorri com provocação.

– Claro – digo. – Aquele que vai sustentar você para o resto da vida. O golpe lendário. O que vira sinônimo do seu nome. Admito que cinco mil não é tanto, mas é bastante para alguém no ensino médio. E, se ela acha que não vai mais ganhar dinheiro regularmente com ele, talvez não haja motivo para não correr atrás disso.

Coloco dez dólares na mesa. Ele faz o mesmo, e nos levantamos.

– Nenhum outro motivo além de ser pega – diz Sam.

Eu concordo.

– É por isso que o grande golpe é um mito. Um conto de fadas. Porque ninguém para depois de um golpe bem-sucedido. Quem consegue fica burro e arrogante e acha que é invulnerável. Alguém o convence a fazer só mais um, só mais uma vez. E depois acontece tudo de novo, porque, se um golpe dá errado, você quer tentar de novo para tirar o gosto de fracasso da boca. E, se dá certo, você dá mais outro golpe para dar continuidade ao sentimento.

– Até você? – pergunta Sam.

Eu olho para ele, surpreso.

– Eu não – respondo. – Já fui fisgado pelo FBI.

– Meu avô me levou para pescar algumas vezes – diz Sam enquanto abre o rabecão. – Eu não pescava muito bem. Sempre tinha dificuldade com o molinete. Talvez seja assim.

Quero responder alguma coisa engraçada, mas as palavras ficam presas na minha garganta.

Em vez de ir para a aula, sigo para o alojamento de Lila. Penso que vou falar com ela sobre Daneca, mas isso se misturou tanto com um desejo puro e louco de ver Lila que não faz sentido de verdade.

Achei que estivesse ficando melhor nisso. Achei que estivesse começando a aceitar o fato de estar apaixonado por uma garota que me despreza, mas acho que não consigo aceitar tão bem assim. Em algum momento, fiz um acordo sombrio com o universo sem perceber, um acordo que dizia que, se eu pudesse vê-la, mesmo que nunca nos falássemos, eu conseguiria conviver com isso. Mas uma semana sem ela derrubou todo o meu pensamento racional.

Sinto-me um viciado, doido pela próxima dose e sem saber se vou obtê-la.

Talvez ela esteja tomando café da manhã no quarto, digo para mim mesmo. É um pensamento sensato, um pensamento normal. Posso chegar lá pouco antes de ela sair. Não vou deixar que perceba a importância que tem.

Subo correndo a escada do Gilbert House e passo por duas calouras, que riem.

– Você não deveria estar aqui – diz uma, fingindo chamar a minha atenção. – É o alojamento feminino.

Faço uma pausa e dou meu melhor sorriso conspiratório. Aquele que treino na frente do espelho. O que supostamente promete todo tipo de maravilha cruel.

– Que bom que tenho você para me ajudar.

Ela sorri e enrubesce.

No alto da escada, chego no corredor de Lila na hora em que Jill Pearson-White sai. Ela está com a mochila no ombro e uma barra de proteína na boca. Nem presta atenção em mim e desce dois degraus de cada vez.

Eu sigo depressa pelo corredor porque, se a supervisora do alojamento de Lila me vir, estou ferrado. Tento abrir a porta dela, mas está trancada. Não tenho tempo para nada elaborado. Pego um cartão de banco na carteira e deslizo pelo vão da porta. Esse truque funcionou na minha porta, e tenho sorte, porque também funciona aqui.

Espero ver Lila sentada na cama, talvez amarrando os sapatos. Ou calçando um par de luvas. Ou imprimindo um trabalho no último minuto. Mas ela não está fazendo nada disso.

Por um momento, penso que entrei no quarto errado.

Não há pôsteres nas paredes. Não há estante, nem baú, nem penteadeira, nem chaleira elétrica ilícita. A cama está sem lençol e não tem mais nada lá dentro.

Ela foi embora.

A porta se fecha atrás de mim quando atravesso o quarto vazio. Tudo parece ter ficado mais lento e as beiradas estão um pouco difusas. A percepção de tudo, a perda dela, me atinge nas entranhas. Ela foi embora. Foi embora e não tem nada que eu possa fazer sobre isso.

Meus olhos são atraídos pela janela, cuja luz gera uma sombra estranha. No parapeito, apoiado em uma das vidraças, vejo um único envelope.

Meu nome está escrito nele com a caligrafia dela. Eu me pergunto há quanto tempo está ali. Imagino-a colocando todos os seus pertences em caixas e carregando escada abaixo, com o próprio Zacharov ajudando-a, como todos os outros pais fazem. Com dois capangas com armas presas na cintura auxiliando-o.

O pensamento deveria me fazer sorrir, mas não faz.

Eu me sento no chão com o papel contra o peito. Apoio a cabeça na madeira. Em algum lugar ao longe, ouço um sinal tocar.

Não tenho motivo para me levantar, então não me levanto.


CAPÍTULO DEZ

QUANDO FINALMENTE ABRO

a carta, também abro um sorriso, apesar de tudo. E, por algum motivo, isso torna ainda pior o fato de ela ter ido embora.

3|8| 3/2/3|4/ 7|8|3| 6|2/ 3|7/2 2|6/2 6|2 3|7//2/6/5/2 - 3| 8|3|6 6|2/ 7//6/8| 2|6/2| 3|6 3|7//7|3/3// - 3|8| 7//3|6/3| 7//6/8|2|3| 6/ 7|8|3| 7//3|7/4/2 7|8|2|3/ 2/7/3|7//2/3|7//7//3| - 7//3|6/3| 7//6/8|2|3| 7|8|3| 5/8|4/ 8|7/4/2 7|8|3| 6/2/8|7/ - 3| 6|8|6|2/2 3/2/3|4/, 6// 4/6|8/3|58/2 8/6/2/3| 7/7/ 6|2/ 8|7/ 88|3/ 7/2|3|5/ - 7//3|4/ 7|8|3| 6|3|6 7//3|6/3| 3/6/4/ 3/2/4/5/ - 2// 7|7//7//6/2// 6|2/ 8/288/2 8/6/2/3| 2/6/6/ 7//3| 8/6/2/3| 3/6/7//7//3| 4/6/7/8|8|, 6// 8/6/2/3| 3|7/2 5/4/8/7/3|

8/6/2/3| 2/6|3 7/3| 7//3|7/ 5/4/8/7/3|, 6// 8/2/ 8|7/ 7|8|3| 7//3| 3|7//3/6/7/2/2/ 6/7// 7//3| 7|8|4/7//3|7/ 7|7/6|3|2/3|7/ 2//7//4/6

–5/4/5/2

Está em código. Um código que reconheço imediatamente, porque Lila e eu fazíamos bilhetes um para o outro quando éramos crianças. É bem simples. Ninguém com um segredo de verdade e algum conhecimento de criptografia usaria isso. É só pegar um telefone e copiar o número que acompanha cada letra no teclado. O L viraria um “5” e o A viraria um “2”. Mas, como tem mais de uma letra para cada número em um teclado, o código tem um segundo símbolo. Uma barra ou uma linha vertical indicam a posição da letra no botão do telefone, assim: |/. Portanto, o código final para o L é “5/” porque é a letra que fica à direita no teclado. E o A é “2” porque fica à esquerda. E, se for um daqueles números com quatro letras, você acrescenta uma barra adicional, de forma que “9/” é o Y e “9//” é o Z, e assim por diante. Dá trabalho traduzir, mas é fácil, principalmente se você tem um telefone para olhar.

A existência da carta, o fato de ela saber que eu viria aqui e a encontraria, de ter lembrado nosso antigo código e acreditado que eu também lembraria, faz minha garganta doer. Ninguém nunca me vê como realmente sou por baixo de tudo. Mas ela viu. Ela vê.

Estico o papel no chão, pego o recibo do restaurante e uma caneta e começo a traduzir.

Eu falei que não era boa na escola. E também não sou boa em despedidas. Eu sempre soube o que seria quando crescesse. Sempre soube que lugar teria que ocupar. E nunca falei, mas invejava você por não ter tudo planejado. Sei que nem sempre foi fácil. As pessoas não tratavam você como se você fosse importante, mas você era livre.

Você ainda pode ser livre, mas vai ter que se esforçar mais se quiser permanecer assim.

– Lila

Passo os dedos sobre o papel codificado, pensando em quanto tempo ela deve ter levado, imaginando-a deitada na cama, escrevendo símbolo após símbolo com dedicação, quando meu celular toca.

Levo um susto e me enrolo para atender, pois lembro de repente que não deveria estar no alojamento das garotas e que, se alguém ouvir alguma coisa, vai querer investigar. As alunas que dormem aqui estão todas na aula.

– Alô – digo, mantendo a voz baixa.

– Cassel. – É Yulikova. – É você?

Eu me levanto, atravesso o quarto e apoio o braço no portal da porta fechada.

– É, sou eu. Desculpe.

– A operação está seguindo em frente. Vamos pegar você na próxima quarta, certo? Preciso que não conte para ninguém, mas talvez você fique alguns dias fora. Vai precisar de uma história. Alguém da família no hospital, alguma coisa assim. E faça uma mala.

– Alguns dias? Quando o evento de verdade...

– Me desculpe. Não estou autorizada a dizer isso, apesar de, obviamente, desejar.

– Você pode pelo menos me contar qual é o plano?

Yulikova ri.

– Nós vamos contar, Cassel. Claro. Queremos que você esteja o mais envolvido possível. Mas não pelo telefone.

Obviamente. Claro.

A linguagem de alguém que está se esforçando muito para me convencer. Até demais.

– Tudo bem – digo. – Semana que vem, então?

– Queremos que você fique em segurança, então apenas aja com normalidade. Fique com seus amigos e planeje como passar alguns dias fora sem ninguém reparar. Comece a preparar o terreno para a desculpa que você acha que funcionaria melhor. E, se precisar que nós providenciemos alguma coisa...

– Não – falo –, pode deixar.

Eles não confiam em mim. Ela precisa de mim, mas não confia em mim. Não por completo. Não o bastante. Eu me pergunto se Jones falou alguma coisa para ela, mas acho que não importa.

Vou cuidar da situação, mas não tenho que gostar.

Vou às aulas da tarde e tento não pensar nas aulas da manhã que perdi. No quanto estou perto de ser expulso de Wallingford. No fato de pouco me importar. Tento não pensar em Lila.

No treino de corrida, eu corro em círculos.

Assim que consigo dar uma desculpa, tiro o uniforme e vou para o carro, sem ir ao refeitório jantar. Sinto-me estranhamente distante, com as mãos enluvadas girando o volante. Sinto uma esperança sombria no meu coração, do tipo que não quero examinar com muita atenção. É frágil. Só de olhar para ela diretamente eu poderia esmagá-la.

Vou até o prédio de Lila. Nem me dou o trabalho de entrar no terreno, com os portões fechados a trancas codificadas. Encontro uma vaga a dois quarteirões, torço para não ser rebocado e entro no prédio.

Na recepção, um homem grisalho sentado em frente a vários monitores me pede a identidade. Quando entrego minha habilitação, ele liga para o apartamento de Zacharov. Pega um telefone cinza velho, espera alguns momentos e pronuncia meu nome errado.

Ouço estática e uma voz do outro lado, tão distorcida que nem reconheço. O homem da recepção assente uma vez, depois tira o fone e me devolve a habilitação.

– Pode subir – diz ele, com um leve sotaque do leste europeu.

O elevador está tão brilhante e frio quanto eu lembro.

Quando as portas se abrem, Zacharov está ali, andando de um lado a outro de calça social e uma camisa branca abotoada até a metade, olhando para a televisão.

– Vou arrancar a cabeça dele – grita ele. – Com minhas mãos nuas.

– Sr. Zacharov – digo, minha voz ecoando. – Me desculpe... eu... o porteiro disse que eu podia subir.

Ele se vira.

– Sabe o que aquele babaca fez agora?

– O quê? – pergunto, sem saber de quem estamos falando.

– Olhe.

Ele aponta para a tela plana.

Patton está apertando a mão de um homem grisalho que não reconheço. Olho para tela, e na parte de baixo leio as palavras “Patton propõe empreendimento para testar funcionários do governo em reunião com o governador Grant”.

– É o governador de Nova York. Você sabe quanto dinheiro eu doei para a campanha de reeleição dele? E agora ele está agindo como se aquele lunático tivesse algo importante a dizer.

Não se preocupe com Patton. Ele vai sumir em breve. É o que tenho vontade de dizer, mas não posso.

– Talvez Grant só esteja deixando que ele fale.

Zacharov se vira para mim e parece perceber minha presença de verdade pela primeira vez. Ele pisca.

– Você veio ver sua mãe? Ela está descansando.

– Eu estava querendo ver Lila.

Ele franze a testa por um momento e aponta para a escadaria curva que leva a um arco no segundo andar. Não sei se ele lembra que não sei andar aqui ou se não se importa.

Subo os degraus em uma corridinha.

Quando estou na metade do caminho, Zacharov diz:

– Ouvi dizer que aquele seu irmão inútil está trabalhando para o FBI. Isso não é verdade, é?

Eu me viro e mantenho o rosto cuidadosamente vago, um pouco intrigado. Meu coração bate tão rápido que meu peito dói.

– Não – respondo, e forço uma gargalhada. – Barron não lida bem com autoridade.

– E quem lida bem, não é mesmo? – pergunta Zacharov, e também ri. – Diga para ele se manter limpo. Eu odiaria ter que quebrar o pescoço dele.

Eu me apoio no corrimão.

– Você me prometeu...

– Algumas traições nem eu posso aguentar, Cassel. Ele não estaria apenas virando as costas para mim. Estaria virando as costas para você e sua mãe. Estaria colocando você em perigo. E Lila.

Eu assinto com a cabeça em um movimento entorpecido, mas meu coração pula como uma pedra na superfície de um lago logo antes de afundar. Se ele soubesse o que fiz, se soubesse sobre Yulikova e a Divisão Licenciada da Menoridade, atiraria em mim assim que me visse. Ele me mataria seis vezes seguidas. Mas ele não sabe. Pelo menos, acho que não sabe. A expressão dele, com um lado ligeiramente erguido da boca, não me diz nada.

Continuo a subir os degraus, e cada passo é mais pesado do que o anterior.

Entro em um corredor.

– Lila – chamo baixinho quando passo por várias portas de madeira enceradas e com dobradiças e maçanetas pesadas de metal.

Abro uma porta aleatória e vejo um quarto vazio. Está arrumado demais para ser qualquer coisa além de um quarto de hóspedes, o que quer dizer que eles têm quartos suficientes para colocar minha mãe em um deles e contar com pelo menos mais um sobrando. O apartamento é maior do que eu pensava.

Bato na porta seguinte. Ninguém responde, mas, perto do fim, outra porta se abre. Lila sai para o corredor.

– É um armário de roupa de cama – diz ela. – Tem uma máquina de lavar e uma secadora aí dentro.

– Aposto que não é preciso ter moedas para usá-las – comento, pensando nos alojamentos.

Ela sorri e se encosta no portal, com cara de quem acabou de sair do chuveiro. Está com uma camiseta branca e calça jeans skinny preta. As unhas dos pés descalços estão pintadas de prateado. Algumas mechas de cabelo claro molhado grudaram nas bochechas; outras estão grudadas no pescoço, junto à cicatriz.

– Você pegou minha carta – diz ela, chegando mais perto. A voz está suave. – Ou talvez...

Toco no bolso da jaqueta com constrangimento e dou um sorriso torto.

– Demorei um pouco para traduzir.

Ela tira o cabelo da cara.

– Você não devia ter vindo. Coloquei tudo na carta para não termos que...

Ela para de falar, como se o restante da frase tivesse sumido de sua cabeça. Apesar das palavras, Lila não parece com raiva. Ela dá outro meio passo na minha direção. Estamos perto o bastante para eu ouvir se ela sussurrasse.

Eu a olho e penso na sensação que tive quando a vi no meu quarto na casa antiga, antes de saber que ela tinha sido amaldiçoada, quando tudo parecia possível. Vejo o contorno delicado da boca e a limpidez dos olhos e me lembro de sonhar com esses traços quando ainda parecia que ela podia ser minha.

Ela foi a paixão épica da minha infância. Foi a tragédia que me fez olhar dentro de mim mesmo e ver meu coração corrupto. Ela foi meu pecado e minha salvação, que voltou do túmulo para me transformar para sempre. De novo. Na época, quando ela se sentou na minha cama e disse que me amava, eu a queria tanto quanto jamais quis qualquer outra coisa.

Mas isso foi antes de termos entrado em um arranha-céu e rido até passar mal e conversado no velório de uma forma que nunca conversei com ninguém e talvez nunca mais converse. Isso foi antes de ela deixar de ser uma lembrança e começar a ser a única pessoa que me fez sentir eu mesmo. Isso foi antes de ela me odiar.

Eu a queria nessa época. Agora, praticamente não quero mais nada.

Vacilante, me aproximo de Lila, esperando que recue, mas ela fica onde está. Minhas mãos se levantam, os dedos enluvados se fecham ao redor dos braços dela e a puxam na minha direção para que minha boca encontre a dela. Eu me preparo para ser impedido, mas o corpo dela se encaixa no meu. Os lábios são quentes e macios e se abrem em um único suspiro.

Não preciso de mais do que isso.

Eu a empurro contra a parede e a beijo como nunca me permiti beijá-la. Quero engoli-la. Quero que ela sinta meu arrependimento no movimento da minha boca e que sinta o gosto da devoção na minha língua. Ela faz um som que é em parte ofego e em parte gemido e me puxa. Fecha os olhos, e tudo são dentes, respiração e pele.

– Temos que... – diz ela contra minha boca, a voz parecendo vir de uma distância enorme. – Temos que parar. Temos que...

Eu cambaleio para trás.

O corredor parece muito iluminado. Lila ainda está encostada na parede, com uma das mãos no reboco, como se isso a estivesse sustentando. Os lábios estão vermelhos, e o rosto, corado. Ela me encara com olhos arregalados.

Sinto-me bêbado. Minha respiração é tão pesada que parece que eu estava correndo.

– Acho que você devia ir – diz ela em tom instável.

Eu faço que sim, embora seja a última coisa que quero.

– Mas preciso falar com você. É sobre Daneca. Foi por isso que eu vim. Eu não pretendia...

Ela me lança um olhar nervoso.

– Tudo bem. Fale.

– Ela saiu com meu irmão. Ela anda saindo com ele, eu acho.

– Barron?

Ela se afasta da parede e anda pelo corredor.

– Lembra quando eu achei que você tinha contado para ela sobre eu ser mestre de transformação? Então, foi ele. Não sei exatamente o que contou para ela, mas misturou verdades com mentiras para que eu seja incapaz de convencê-la a ficar longe dele. Não consigo convencê-la de nada.

– Isso não é possível. Ele não é o tipo de cara de quem ela gostaria. Daneca é inteligente demais para isso.

– Você saiu com ele – digo antes de poder pensar melhor.

Ela me olha com irritação.

– Nunca disse que sou muito inteligente. – O tom dela deixa claro que, se ela fosse inteligente, não teria ficado encostada na parede ainda agora com minha língua na boca. – E eu era criança.

– Por favor – peço –, fale com ela.

Lila suspira.

– Vou falar. Claro que vou. Não por você. Daneca merece coisa melhor.

– Ela devia ter ficado com Sam.

– Todos queremos coisas que não são boas para nós. – Ela balança a cabeça. – Ou coisas que não são o que parecem.

– Eu não – replico.

Ela ri.

– Se você está dizendo.

No corredor, uma porta se abre, e nós dois levamos um susto. Um homem de calça jeans e suéter aparece, com um estetoscópio ao redor do pescoço. Ele começa a tirar luvas de plástico enquanto caminha na nossa direção.

– Ela está passando bem – informa ele. – Descansar é a melhor coisa para ela agora, mas em mais uma semana eu gostaria de testar a mobilidade daquele braço. Ela vai precisar mexê-lo assim que for capaz de fazer isso sem dor.

Lila olha para mim com olhos ligeiramente arregalados. Como se estivesse tentando avaliar minha reação. Como se houvesse alguma coisa à qual eu reagiria.

Eu arrisco um palpite.

– Sua paciente é minha mãe – digo.

– Ah... eu não sabia. Pode ir vê-la agora, claro. – Ele enfia a mão no bolso e pega um cartão. Dá um sorriso e mostra uma boca cheia de dentes tortos. – Me ligue se tiver alguma pergunta. Ou Shandra. Ferimentos a bala podem ser complicados, mas esse foi dos limpos. Entrou e saiu.

Pego o cartão e enfio no bolso enquanto começo a atravessar o corredor. Estou andando rápido o bastante para Lila precisar correr se quiser me alcançar.

– Cassel – chama ela, mas eu nem reduzo o passo.

Abro a porta: é um quarto de hóspedes comum, como o outro. Tem uma cama grande de dosséis, mas nesta minha mãe está deitada, assistindo à televisão sobre a cômoda. Tem uma atadura ao redor do braço dela. O rosto está pálido, sem a maquiagem de sempre. O cabelo é uma confusão de cachos. Eu nunca a vi assim. Ela parece velha e frágil, sem nenhuma semelhança com minha mãe indomável.

– Vou matá-lo – declaro. – Vou assassinar Zacharov.

O choque distorce as feições dela.

– Cassel? – diz ela com medo na voz.

– Nós vamos embora daqui.

Eu vou até a lateral da cama, pronto para ajudá-la a se levantar. Meus olhos procuram uma arma, qualquer arma, pelo quarto. Há uma cruz de metal com aparência pesada acima da cama. É um pouco primitiva, com beiradas irregulares.

– Não – diz ela. – Você não entende. Acalme-se, querido.

– Você está brincando, não é?

A porta se abre e Lila aparece, com expressão quase de medo. Ela passa por mim e logo olha para minha mãe com irritação.

– Me desculpe – diz ela, virando-se para mim. – Eu teria lhe falado, mas sua mãe nos fez prometer não contar. E ela está bem. Se não estivesse, eu teria dito. Independentemente de qualquer coisa. Eu juro, Cassel.

Eu olho de uma para outra. É difícil até imaginar as duas no mesmo aposento juntas. Talvez tenha sido Lila quem atirou nela.

– Venha aqui, querido – chama minha mãe. – Sente-se na cama.

Eu me sento. Lila fica de pé perto da parede.

– Ivan tem sido muito bom comigo. No domingo passado, ele disse que eu podia ir à igreja, desde que fosse com algumas das pessoas dele. Não é gentil?

– Você levou um tiro na igreja?

Eu me pergunto a que religião ela alega pertencer, mas guardo a pergunta para mim mesmo.

– No caminho de volta. Se não fosse pelo querido Lars, teria sido o fim. O carro encostou e eu nem vi, mas ele viu. Acho que é papel dele como guarda-costas. Ele me empurrou e eu caí, o que me deixou furiosa na hora, mas ele salvou minha vida. A primeira bala me acertou no ombro, mas as outras erraram, e o carro saiu cantando pneus.

Ela parece estar recitando o enredo de um episódio particularmente empolgante de uma novela, e não me contando algo que de fato aconteceu com ela.

– Você acha que estavam querendo pegar você? Especificamente? Não era um inimigo de... – Eu olho para Lila. – Você não acha que foi mal-entendido?

– As placas eram do governo – conta minha mãe. – Eu não reparei, mas pode apostar que Lars reparou. Instintos incríveis.

Placas do governo. Patton. Não era de surpreender que Zacharov estivesse furioso.

– Por que você não ligou para mim na mesma hora? Ou para Barron? Para qualquer um de nós. Ou para vovô, pelo amor de Deus. Mãe, você está ferida.

Ela inclina a cabeça e sorri para Lila.

– Você poderia nos dar dois minutos sozinhos?

– Sim – concorda Lila. – Claro.

Ela sai pela porta e a fecha quando passa.

Mamãe estica as mãos e puxa meu rosto para perto do dela. Não está usando luvas, e as unhas afundam na pele da minha garganta.

– O que vocês andam aprontando, garotos? Se metendo com agentes federais? – sibila ela, com voz baixa e cruel.

Eu me afasto e sinto o pescoço arder.

– Eu não criei vocês assim – diz ela. – Criei vocês para serem mais inteligentes. Sabe o que vão fazer se descobrirem o que você é? Vão usá-lo para ferir outros mestres. Vão usar você. Contra seu avô. Contra todos os que você ama. E Barron... aquele garoto acha que consegue se safar de qualquer coisa, mas, se você o meteu nisso, ele está bem encrencado. O governo nos colocava em campos. E vai fazer isso de novo se encontrarem meios legais para tanto.

Fico com o eco desconfortável das palavras de Lila sobre Daneca ser inteligente demais para se envolver com Barron. Acho que somos todos inteligentes para algumas coisas e burros para outras. Mas o governo federal não é apenas um namorado ruim. Se mamãe soubesse o que querem que eu faça, acho que teria uma opinião diferente. Ao olhar para ela, pálida e furiosa debaixo da pilha de cobertores, fico mais comprometido do que nunca a me livrar de Patton.

– Barron sabe se cuidar.

– Você não está negando – diz ela.

– O que há de errado em querer fazer uma coisa boa na vida?

Ela ri.

– Você não reconheceria uma coisa boa nem se ela mordesse sua bunda.

Eu olho para a porta.

– Lila... ela sabe?

– Ninguém sabe – fala minha mãe. – As pessoas desconfiam. É por isso que eu não queria que você soubesse do meu pequeno acidente. Não queria que você viesse aqui, nem você nem seu irmão. Não é seguro. Um garoto disse que você estava se relacionando com alguns agentes.

– Tudo bem – digo. – Vou embora agora. Fico feliz por você estar bem. Ah, e eu fui à joalheria. Não deu em nada, mas descobri uma coisa. Papai mandou fazer duas réplicas. Aliás, teria ajudado se você tivesse mencionado que foi ele que foi procurar Bob.

– Duas? Mas por que ele... – Minha mãe para de falar quando a resposta óbvia surge em sua mente. Ela sofreu um golpe do próprio marido. – Phil jamais faria isso. Jamais. Seu pai não era ganancioso. Ele nem queria vender a pedra. Só queria guardar como seguro, para o caso de precisarmos de dinheiro. Nosso fundo de aposentadoria, era assim que ele chamava.

Eu dou de ombros.

– Talvez ele estivesse irritado por causa do seu caso. Talvez achasse que você não merecia coisas boas.

Ela ri de novo, agora sem malícia. Por um momento, parece minha mãe de verdade.

– Você já ouviu falar de golpe de amor? Acha que seu pai não sabia?

Golpes de amor são o pão com manteiga da minha mãe desde que meu pai morreu. O primeiro passo era encontrar um cara rico. Depois, enfeitiçá-lo para que ele se apaixonasse por ela. Em seguida, pegar o dinheiro dele. Ela até foi para a prisão por um de seus golpes menos bem-sucedidos, embora a condenação tivesse sido descartada na apelação. Mas nunca achei que tivesse feito uma coisa assim enquanto papai estava vivo.

Eu olho para ela com a boca aberta.

– Então papai sabia sobre você e Zacharov?

Ela ri com deboche.

– Você é tão moralista, Cassel. É claro que sabia. E pegamos a pedra, não foi?

– Tá bom – digo, tentando afastar todos os pensamentos do que ela fez. – Então o que ele faria com a pedra?

– Não sei. – O olhar dela se afasta de mim e ela contempla as marcas na parede. – Acho que um homem tem direito a alguns segredos.

Eu olho para ela por um bom tempo.

– Só que não muitos – acrescenta ela e sorri. – Agora venha dar um beijo na sua mãe.

Lila está no corredor quando eu saio. Encostada na parede, perto de uma pintura modernista que deve valer mais do que tudo o que tem na casa da minha mãe. Os braços de Lila estão cruzados.

Pego meu celular e faço questão de demonstrar que estou copiando as informações do médico do cartão que ele me deu. Era só um número sem nome nenhum, então o chamo de Dr. Doutor.

– Eu devia ter contado – diz ela por fim.

– Sim, você devia ter me contado – retruco. – Mas minha mãe sabe ser muito convincente. E ela fez você prometer.

– Algumas promessas não devem ser mantidas. – A voz dela sai em um tom mais baixo. – Acho que foi burrice eu pensar que poderia simplesmente largar a escola e sumir da sua vida. Estamos todos enrolados, não estamos?

– Você não está condenada a mim – digo em tom rígido. – Essa coisa com a minha mãe vai ser resolvida, você vai conversar com Daneca e depois... – Faço um gesto vago com a mão.

Depois vou estar fora da vida dela, ou algo assim.

Ela ri abruptamente.

– A sensação deve ter sido essa, eu seguindo você para todo lado, implorando por atenção, obcecada, como se você estivesse condenado a mim. Eu até estraguei aquele casinho intermitente que você tinha com a Audrey, não foi?

– Acho que eu consegui estragar isso sozinho mesmo.

Lila franze a testa. Percebo que não acredita em mim.

– Então por quê, Cassel? Por que dizer que me ama e depois fazer Daneca me enfeitiçar para eu não sentir nada por você, para depois dizer que me ama de novo? Por que vir aqui me beijar contra a parede? Você gosta de confundir minha cabeça?

– Eu... Não! – Eu começo a dizer mais, querendo dar alguma explicação, mas ela não para de falar.

– Você era meu melhor amigo do mundo todo, e de repente se torna o motivo de eu ter virado um animal enjaulado, e então age como se nem ligasse. Sei que tiraram suas lembranças, mas eu não sabia na época. Eu odiava você. Queria que estivesse morto. E aí, você me libertou da minha prisão, e, antes que eu conseguisse aceitar essas coisas todas, fui obrigada a me apaixonar desesperadamente por você. E agora, quando o vejo, sinto tudo, todas essas coisas, tudo ao mesmo tempo. Não posso me dar ao luxo de me sentir assim. Talvez você estivesse certo. Talvez fosse melhor se eu não sentisse nada.

Eu não sei o que dizer. Só consigo falar:

– Me desculpe.

– Não, não peça desculpas. Não estou falando sério – sussurra Lila. – Eu queria poder desejar isso, mas não desejo. Estou péssima agora.

– Não está – digo.

Ela ri.

– Não me venha dar um golpe.

Quero tocá-la, mas os braços cruzados dela me impedem. Então vou até a escada. Eu me viro e olho para ela.

– Independentemente do que aconteça, independentemente do que mais eu sinta, independentemente do que você acredite, espero que saiba que sempre vou ser seu amigo.

Um dos cantos da boca de Lila se levanta.

– Eu quero acreditar.

Enquanto desço, vejo Zacharov de pé perto da lareira conversando com um garoto. Reconheço as tranças, afastadas da cabeça como chifres, e o brilho dos dentes dourados. Ele olha para mim com olhos escuros e insondáveis e ergue uma das sobrancelhas perfeitamente feitas.

Eu fico paralisado.

Hoje, ele veste algo bem diferente do moletom com calça jeans que o vi usar quando o persegui pelas ruas do Queens. Está usando uma jaqueta roxa com calça jeans e alargadores dourados nas orelhas. Está de lápis no olho.

Gage. Foi esse nome que ele disse para mim.

Zacharov deve ter visto o olhar que trocamos.

– Vocês dois se conhecem?

– Não – respondo logo.

Espero que Gage me contradiga, mas ele não faz isso.

– Não. Acho que não era ele.

O garoto anda ao meu redor, leva a mão enluvada ao meu queixo e vira meu rosto na direção dele. É um pouco mais baixo do que eu. Eu me afasto e me solto do toque dele.

Ele ri.

– É difícil acreditar que eu esqueceria um rosto assim.

– Conte para Cassel a história que você me contou – pede Zacharov. – Cassel, sente-se.

Eu hesito e olho para o elevador. Se corresse, acho que chegaria lá, mas quem sabe quanto tempo demoraria para as portas se abrirem. E, mesmo que chegasse ao térreo, provavelmente eu nunca sairia do prédio.

– Sente-se – ordena Zacharov. – Pedi para Gage vir aqui porque, quanto mais eu pensava no seu irmão trabalhando para o FBI, mais tinha certeza de que, se fosse verdade, você tentaria encobrir. Principalmente porque ameacei a vida dele. Eu retiro isso. Mas, depois que Philip se mostrou traidor, acho que nós dois entendemos que temos muito a perder se seu irmão começar a falar.

Eu inspiro fundo e me sento em um dos sofás. Chamas tremulam na lareira e enchem a enorme sala com sombras oscilantes e estranhas. Sinto as palmas das mãos começarem a suar.

Lila olha por cima do corrimão.

– Pai? O que está acontecendo?

As palavras dela ecoam pela sala grande e quicam no teto de madeira e no piso de pedra.

– Gage veio fazer uma visita – diz Zacharov. – Eu soube que ele teve umas complicações outro dia.

Gage olha para ela e sorri. Eu me pergunto há quanto tempo os dois se conhecem.

– Fiz aquele trabalho como você queria. Foi rápido. Ele estava no primeiro lugar que procurei.

O rosto de Lila está à sombra. Não consigo ler a expressão dela.

– Charlie West não deu trabalho? – pergunta Zacharov.

Lila começa a descer a escada.

Gage suga os dentes em um som de desprezo.

– Eu não dei a ele oportunidade para isso.

Lila caminha pelo piso preto e branco de mármore. Os pés descalços quase não fazem barulho.

– Será que Cassel devia estar ouvindo isso?

Percebo que houve uma época em que eu pensava nela como parte da classe de pessoas que têm magia. Eu sabia que existiam pessoas comuns e que existiam mestres, e que mestres eram melhores do que as pessoas comuns. Era nisso que todas as pessoas de Carney acreditavam, ou ao menos o que me diziam. Quando eu era criança, o primo de Lila, melhor amigo do meu próprio irmão, não queria que eu me aproximasse dela porque achava que eu não fosse mestre.

Mas, mesmo entre mestres, há papéis diferentes. Lila está herdando a posição de Zacharov, em que você encomenda assassinatos, mas não precisa executar nenhum. Ela não segura a arma, só anuncia os disparos.

– Deixe Gage contar a história dele – diz Zacharov. – Nós confiamos em Cassel, não confiamos?

Ela vira a cabeça na minha direção. As chamas acentuam a curva do maxilar dela e a ponta do queixo.

– Claro que sim.

Zacharov uma vez me perguntou se eu me importaria de receber ordens da filha dele. Na época, falei que não. Agora, eu me pergunto como realmente seria. Eu me pergunto se me ressentiria disso.

Gage limpa a garganta.

– Depois que acabei com ele, um maluco metido a bonzinho decidiu me perseguir pelas ruas e quase quebrou meu braço. – Ele ri. – O cara pegou uma tábua e a usou para tirar a arma da minha mão. Se eu tivesse sido uns dois segundos mais rápido, ele teria levado um tiro.

Eu me concentro em não reagir e tento manter uma expressão vagamente interessada no rosto.

– Você o descreveu com uma aparência como a de Cassel, não foi? – pergunta Zacharov.

Gage assente, com o olhar em mim. Ele está rindo com os olhos.

– Claro. Cabelo preto, pele bronzeada, alto. Bonito. Roubou minha arma.

Zacharov anda até onde Lila está e coloca a mão enluvada nos ombros dela.

– Poderia ter sido o irmão dele? Eles são bem parecidos.

– Barron não é metido a bonzinho – retruco.

Gage balança a cabeça.

– Sem uma foto, não posso ter certeza, mas acho que não.

Zacharov assente.

– Conte o resto.

– Tive que pular uma cerca para fugir – continua Gage. – Três quarteirões depois, fui pego por caras de terno preto. Eles me enfiaram em um carro, e achei que fosse meu fim, mas eles me disseram que, se eu contasse o que aconteceu, não investigariam o assassinato.

– E você contou para eles? – pergunta Zacharov, embora eu note que ele já ouviu a história e sabe a resposta.

Lila se afasta do pai e se acomoda na beirada do sofá.

– Bem, primeiro eu disse que não, não sou delator, mas acontece que eles não ligavam para quem me deu a ordem de fazer o serviço nem para o que eu fiz. Só queriam saber sobre o bonzinho maluco. Eles me soltaram só por ter falado sobre um cara com quem conversei por uns dois segundos. Falei que ele pegou minha arma.

Tenho uma estranha sensação de tontura. Quase como se fosse cair.

– Eles queriam saber se nos conhecíamos. Queriam saber se ele se identificou como agente federal. Eu disse não para as duas perguntas. E então, quando me soltaram, vim até o Sr. Z. porque achei que talvez ele soubesse o que estava acontecendo.

– Não parece nem um pouco algo que meu irmão faria – digo, olhando para eles da forma mais firme que consigo.

– Nunca se pode ser cuidadoso demais – comenta Zacharov.

– Lamento não ter podido ajudar mais – fala Gage. – Se precisar de mais alguma coisa, me avise.

– Tenho que ir – anuncio, me levantando. – Isto é, se tivermos terminado aqui.

Zacharov assente.

Começo a andar na direção do elevador. Meus sapatos batem em um ritmo intenso no piso de pedra. Ouço passos repentinos atrás dos meus.

– Espere – diz Gage. – Vou descer com você.

Olho para trás e vejo Zacharov e Lila do outro lado da sala, nos olhando. Lila levanta a mão em um aceno tímido.

Eu entro no elevador e fecho os olhos quando as portas se fecham.

– Você vai me matar? – pergunto no silêncio que vem em seguida. – Odeio esperar.

– O quê? – Quando olho para ele, Gage está com a testa franzida. – É você o maluco que me atacou.

– Você é mestre de morte. Achei que tivesse mentido lá em cima porque queria algum tipo de vingança pessoal. – Dou um suspiro. – Por que fez aquilo? Por que não falou para Zacharov que era eu?

– Não foi nada de mais. Você me deixou ir embora, e eu pago minhas dívidas. – Ele tem feições precisas, quase delicadas, mas é musculoso por baixo do casaco. Percebo pelos ombros. – Só quero minha arma. É uma Beretta 1943. Herança de família. Pertenceu à minha avó. Ela ganhou de um namorado italiano depois da guerra... e me deu quando meus pais me expulsaram de casa. Dormi durante toda a viagem de ônibus até Nova York com aquela coisa debaixo do que eu estava usando de travesseiro. Me deixou seguro.

Eu concordo.

– Vou devolvê-la.

– É só entregar a arma para Lila. Ela vai me repassar – diz ele. – Olha, seja lá para o que aqueles agentes queriam você, acho que não é da minha conta. Não me pareceu que você era um deles, e Lila não me agradeceria se eu metesse você em confusão com o pai dela.

Franzo a testa.

– O que você quer dizer?

– Você é o irmão Sharpe mais novo, certo? Cassel. Lila fala sobre você desde sempre. – Ele dá um sorriso apreciativo enquanto ergue as sobrancelhas. – Eu achava que você não podia ser tão bom assim, mas é raro um garoto conseguir me pegar.

Eu dou uma gargalhada.

– Há quanto tempo você a conhece?

– Fiz um trabalho para o pai dela quando eu tinha treze anos. Acho que ela tinha uns doze na época. Nossa amizade decolou como uma casa em chamas. Nós entrávamos no quarto da mãe dela para experimentar roupas e cantar em frente ao espelho grande. Íamos criar uma banda chamada Céus de Tóquio, mas não sabíamos tocar nenhum instrumento nem cantar.

Demoro um momento para me dar conta de que ele quer dizer que matou uma pessoa para Zacharov quando ainda era criança. Fico chocado antes de lembrar que eu fazia a mesma coisa para Anton.

E logo me dou conta de que vou fazer isso de novo. Para Yulikova, desta vez. Yulikova, que sabe que já menti para ela uma vez.

Meu estômago despenca quando as portas do elevador se abrem. Sinto como se o fundo do mundo estivesse caindo.


CAPÍTULO ONZE

NA MANHÃ SEGUINTE,

sou chamado na sala do supervisor Wharton logo após os anúncios da manhã.

Fico de pé em frente à escrivaninha de madeira polida e tento não pensar nas fotos que vi dele, na mão nua de Mina puxando a gola da camisa branca engomada. Acho que todo mundo tem um lado sombrio, mas eu não estava preparado para que isso se estendesse aos docentes idosos de Wallingford.

Wharton não é um cara em quem eu tenha pensado muito. É o supervisor de alunos, já deve estar perto de se aposentar, e tem tufos de cabelo grisalho cuidadosamente penteados na cabeça. Nunca gostou muito de mim, mas eu dei a ele muitos motivos para isso quando coletava apostas, com o sonambulismo e pelo fato de minha mãe ser uma criminosa condenada.

Mas sinto que estou olhando para ele com novos olhos. Vejo o jornal de hoje meio escondido na pilha de pastas, aberto nas palavras cruzadas e com algumas marcas trêmulas de caneta azul nas margens. Vejo a tampa de uma caixa de comprimidos debaixo da escrivaninha e um único comprimido amarelo. E, talvez o mais revelador de tudo, vejo o tremor na mão esquerda, o que pode ser um tique nervoso, mas mostra o quanto ele está no limite. Só que talvez eu o esteja lendo ao contrário, vendo o que quero ver. Sei que ele está fazendo alguma coisa ruim, então espero que esteja nervoso.

Eu só queria saber exatamente o que ele está fazendo.

– Sr. Sharpe, vir à minha sala duas vezes em duas semanas não é bom sinal para nenhum aluno. – O tom dele é tão exasperado e severo como sempre.

– Sei disso, senhor – digo com o máximo de arrependimento possível.

– Você matou as aulas da manhã ontem, rapazinho. Achou que não haveria consequências?

– Sinto muito, senhor. Eu não estava me sentindo bem, senhor.

– Ah, é mesmo? E você tem um bilhete da enfermaria?

– Eu apenas voltei a dormir. E, quando me senti melhor, fui à aula.

– Então nada de bilhete? – pergunta ele, erguendo as sobrancelhas grisalhas.

Tudo bem, digamos que Mina seja mestra de sorte. Digamos que ele tenha problemas com jogatina. Talvez esteja se aproximando da aposentadoria e tenha percebido que não tem dinheiro suficiente guardado. Imagino que seja um cara que andou na linha, ao menos quase sempre. Mas as pessoas honestas também se ferram. As coisas dão errado. Uma pessoa da família fica doente e o seguro não cobre nem o começo do tratamento. Por algum motivo, talvez ele tenha saído do caminho honesto.

Meu olhar é atraído para o único comprimido amarelo no tapete.

Contratar um mestre de sorte é bem fácil. Ele não precisaria escolher uma aluna, embora eu ache que talvez, por ser tão correto, Wharton não soubesse onde procurar. Mas usar feitiço de sorte para ganhar no jogo é uma ideia bem incerta. Por mais que às vezes as pessoas se safem, a maioria das pistas de corrida e cassinos costumam se proteger contra feitiços de sorte.

É claro que ele talvez precisasse de sorte por outro motivo. Talvez Northcutt vá sair e ele queira ser o novo diretor.

– Nada de bilhete – digo.

– Você vai ter que cumprir uma detenção de sábado comigo, bem aqui nesta sala, Cassel. Quero você aqui às dez da manhã. Sem desculpas. Ou vai receber a terceira advertência, com a qual anda flertando.

Eu concordo.

– Sim, senhor.

O comprimido debaixo da escrivaninha talvez não seja nada. Talvez seja aspirina ou remédio para alergia. Mas não tenho muitas pistas, e quero essa. Eu devia deixar alguma coisa cair no chão, porém todas as coisas leves que fariam sentido eu pegar estão na minha mochila. Não estou com chaves, nem canetas nem nada.

– Pode ir – diz ele, me entregando um passe sem me olhar diretamente. Penso em deixar o passe cair, mas o imagino flutuar até o chão bem longe de onde preciso que esteja. É impossível mirar onde uma folha de papel vai cair.

Fico de pé e dou alguns passos na direção da porta, mas tenho uma ideia. Não é muito boa.

– Hã, com licença, supervisor Wharton.

Ele ergue o olhar com as sobrancelhas franzidas.

– Me desculpe. Deixei cair minha caneta.

Ando até a escrivaninha, me inclino e pego o comprimido. Ele empurra a cadeira para olhar, mas me levanto depressa.

– Obrigado – digo, e vou até a porta antes que ele possa pensar demais no que aconteceu.

Quando começo a descer a escada, olho para o comprimido na minha mão. É possível fazer uma busca on-line sobre medicamentos. Você pode botar detalhes, como a cor, o formato e as marcas, e ver uma galeria inteira de comprimidos para comparar. Não preciso fazer nada disso porque esse comprimido tem ARICEPT impresso de um lado e 10 do outro.

Eu sei o que é; vi os comerciais na televisão de madrugada.

É medicação para controlar o mal de Alzheimer.

Daneca me espera em frente ao refeitório no almoço. Está sentada em um dos bancos, o cabelo castanho e roxo caindo no rosto. Ela acena para mim e tira a bolsa de cânhamo do assento para eu poder me sentar.

Eu me encosto e estico as pernas. Está frio e uma tempestade se aproxima, mas ainda há sol suficiente para ser gostoso ficar em uma área ensolarada.

– Oi – digo.

Ela se mexe, e vejo o que o cabelo estava escondendo antes: olhos vermelhos e pele inchada ao redor. Linhas de sal nas bochechas marcam o mapa das lágrimas.

– Lila ligou para você, é? – Não quero parecer insensível, mas as palavras saem com esse tom.

Ela seca os olhos e assente.

– Sinto muito. – Eu enfio a mão no bolso na esperança de ter um lenço de papel. – Sinceramente.

Ela faz um som debochado e pega o celular, no colo dela, sobre a saia pregueada de Wallingford.

– Terminei com Barron uns dez minutos atrás. Espero que você esteja feliz.

– Estou – digo. – Barron é um sujeito sórdido. É meu irmão, eu sei das coisas. Sam é um cara muito melhor.

– Eu sei disso. Sempre soube disso. – Ela suspira. – Me desculpe. Estou com raiva de você por estar certo, mas não devia estar. Não é justo.

– Barron é sociopata. Eles são muito convincentes. Principalmente se você for uma dessas garotas que acham que podem consertar um garoto.

– É – retruca ela. – Acho que eu era. Eu queria acreditar nele.

– Você tem um gosto e tanto por coisas sombrias – falo.

Ela afasta o olhar de mim e olha para o céu nublado, para a massa de nuvens amorfas em movimento.

– Eu queria pensar que havia uma parte dele que só eu via. Uma parte secreta que queria gentileza e amor, mas não sabia como pedir. Sou burra, né?

– Ah, é. Tem gosto por coisas sombrias, mas não tem estômago.

Ela se encolhe.

– Acho que mereço isso. Me desculpe por ter acreditado no que ele disse sobre você, Cassel. Sei que você não me contou tudo, mas...

– Não. – Eu suspiro. – Estou sendo babaca. Estou com raiva porque queria que você fosse a pessoa que sempre sabe diferenciar o certo e o errado. Não é uma expectativa justa com ninguém. E acho... achei que éramos melhores amigos, apesar de criticarmos tanto um ao outro.

– Amigos fazem besteira às vezes – comenta ela.

– Talvez ajudasse se eu colocasse as cartas na mesa. Me diga o que Barron disse e eu vou contar a verdade. É uma oferta única.

– Porque amanhã você vai voltar a mentir, é isso? – pergunta ela.

– Não sei o que vou fazer amanhã. Esse é o problema. – E essa é uma das coisas mais sinceras que já falei.

– Você nunca me contou que tipo de mestre você é, mas Lila e Barron me disseram. Não o culpo por não me contar. É um segredo bem grande. E é verdade que você só descobriu na primavera passada?

– Foi – respondo. – Eu achava que não era mestre. Quando eu era criança, fingia que era mestre de transformação. Imaginava que poderia fazer qualquer coisa, se fosse. E isso é quase verdade.

Ela assente enquanto pensa.

– Barron disse que você contou para os agentes federais... o que você é em troca de imunidade por todos os crimes passados.

– Sim – confirmo.

– Imunidade por ter assassinado Philip, por exemplo.

– É isso que Barron pensa? – Eu balanço a cabeça e dou uma gargalhada sem realmente achar engraçado. – Que eu matei Philip?

Ela concorda com receio. Não sei se é receio de me ouvir falar o quanto ele é idiota ou porque acha que estou prestes a confessar a coisa toda.

– Ele diz que o cara que estão culpando pelo assassinato de Philip estava morto bem antes de Philip.

– Isso é parcialmente verdade – afirmo.

Ela engole em seco.

– Ah, pare com isso. Eu não matei Philip! Sei quem matou, só isso. E não, não vou contar para você nem se perguntar, porque não tem nada a ver com nenhum de nós dois. Vamos só dizer que o cara morto podia muito bem carregar uma acusação de assassinato além de seus muitos outros crimes. Ele não era nenhum anjo.

– Barron disse que você o matou e que o guardou no freezer da sua casa. Que você era um tipo de assassino. Que foi você quem matou as pessoas naqueles arquivos que você me mostrou depois do enterro de Philip.

– Eu também não sou um anjo – falo.

Ela hesita. Há medo em seus olhos, mas pelo menos ela não foi embora.

– Lila explicou. Ela disse que eles, que Barron mexeu com sua memória. Você não sabia o que tinha feito. Não sabia o que era nem o que aconteceu com ela.

De forma egoísta, eu me pergunto se Lila disse mais alguma coisa. Não faço ideia de como eu poderia persuadir Daneca a me contar.

– É verdade que ele a deixava em uma jaula? – pergunta Daneca com voz baixa.

– Sim – confirmo. – A maldição de memória apaga parte de quem você é. Se somos quem lembramos ser, então como é ter grandes partes da sua identidade faltando? Como você conheceu a garota sentada ao seu lado. O que você jantou na noite anterior. Férias de família. O livro de direito que você leu na semana anterior. Barron substitui tudo isso com o que ele inventa no momento. Não faço ideia se ele realmente se lembrava de quem Lila era nem de que tinha um gato na casa dele.

Ela assente devagar e afasta o cabelo cacheado.

– Eu falei para ele que o que ele fez foi desprezível. Falei que jamais o perdoaria por mentir para mim. E falei que ele era um babaca.

– Parece um sermão e tanto – comento, rindo. – Espero que ele tenha sido devidamente castigado.

– Não deboche de mim. – Ela fica de pé e pega a bolsa. – Ele pareceu triste mesmo, Cassel.

Eu engulo tudo o que tenho vontade de falar para ela. Que ele mente muito bem. Que é o príncipe das mentiras. Que o próprio Lúcifer Estrela da Manhã poderia aprender uma ou duas coisas com a convicção com que Barron mente.

– O almoço está quase acabando – lembro. – Vamos comer um sanduíche enquanto ainda dá tempo.

As aulas da tarde passam em uma sequência de anotações diligentes e testes. Uma xícara feita de cerâmica sai do forno inteira, e passo quase quarenta minutos pintando-a de vermelho-argila, com as palavras ACORDE PARA A VIDA com letras pretas.

O Dr. Stewart está na sala dele quando passo lá antes de ir correr. Ele franze a testa ao me ver.

– Você não está em nenhuma das minhas turmas este semestre, Sr. Sharpe. – Seu tom deixa claro que ele acha isso muito bom para nós dois. Ele ajusta os óculos de aros grossos pretos. – Você não veio aqui para me pedir para mudar uma nota antiga, não é? Mantenho minha posição de que qualquer pessoa que falte tantas aulas como você não devia nem...

– Mina Lange me pediu para passar aqui e deixar uma coisa por ela – anuncio, tirando um saco de papel da bolsa.

Não que eu acredite que o Dr. Stewart tenha alguma coisa a ver com chantagem, Wharton ou Mina. Mas quero ter o máximo de certeza possível.

Ele cruza os braços. Não sei dizer se está irritado por eu tê-lo interrompido antes de ele poder me dizer de novo que alunos suspensos por quase caírem do telhado deveriam frequentar aulas de verão, no mínimo.

– Mina Lange também não está em nenhuma das minhas turmas, Sr. Sharpe.

– Então isto não é para você?

– Bem, o que é? – pergunta ele. – Não consigo imaginar o que ela poderia me enviar.

– Quer que eu olhe?

Tento parecer o mais alheio possível. Sou só o mensageiro idiota.

Ele levanta as mãos em uma repulsa óbvia.

– Sim, abra e pare de me fazer perder tempo.

Faço um gesto exagerado para abrir o saco.

– Parece um trabalho de pesquisa e um livro. Ah, e é para o Sr. Knight. Me desculpe, Dr. Stewart. Eu achei mesmo que ela tinha dito seu nome.

– Ah, claro, tenho certeza de que ela está feliz por ter confiado em você para entregar o material.

– Ela não está se sentindo bem. Foi por isso que não pôde trazer.

Ele suspira, parecendo se questionar por que é punido constantemente pela presença de intelecto inferior.

– Adeus, Sr. Sharpe.

Ele pode não ser um cara legal, mas Stewart nunca chantageou ninguém na vida.

Eu adoro correr. Adoro o fato de que, mesmo em uma maratona, só preciso me preocupar com os pés batendo no chão e os músculos queimando. Não há culpa e não há medo. Sou só eu seguindo em frente o mais rápido que posso, sem ninguém para me impedir. Adoro o vento frio nas costas e o suor aquecendo o rosto.

Às vezes minha mente fica vazia quando corro. Outras, não consigo parar de pensar e fico repassando tudo na cabeça.

Hoje, chego a algumas conclusões diferentes.

Um: ninguém está chantageando Mina Lange.

Dois: Mina Lange é mestra física e está consertando o mal de Alzheimer de Wharton.

Três: como o mal de Alzheimer não tem cura, ela não pode parar nunca de enfeitiçá-lo, o que quer dizer que vai piorar cada vez mais enquanto ele fica igual.

Quatro: apesar de todas as mentiras, Mina deve estar mesmo encrencada.

Na cama, Sam olha para mim quando entro em nosso quarto do alojamento. Estou com uma toalha enrolada na cintura e acabei de sair do banho.

Ele espalhou vários livretos ao seu lado, faculdades que os pais querem que ele considere. Nenhuma tem um departamento que ensine efeitos visuais. Nenhuma vai deixá-lo fabricar máscaras de borracha. Todas são Ivy League. Brown. Yale. Dartmouth. Harvard.

– Oi – diz ele. – Conversei com Mina no almoço ontem. Ela disse que sentia muito. Basicamente, admitiu o que você disse. Que queria que a gente chantageasse Wharton por ela.

– É? – Começo a procurar uma calça de moletom e visto a que encontro debaixo de uma pilha de roupas no fundo do armário. – Ela disse por que precisava do dinheiro?

– Disse que queria sair da cidade. Não entendi direito, mas parece que alguém está agenciando o acordo entre ela e Wharton. Essa pessoa não quer deixá-la ir, então ela tem que fugir. Você acha que são os pais dela?

– Não – respondo, pensando em Gage e em mim e Lila e no que a Sra. Wasserman disse quando eu estava na cozinha dela. Há muitas outras crianças que são jogadas nas ruas, acolhidas por famílias criminosas e vendidas para os ricos. – Provavelmente não os pais dela.

– Você não acha que podemos ajudar? – pergunta ele.

– Tem muita coisa estranha nessa situação, Sam. Se ela precisa de dinheiro, devia chantagear Wharton ela mesma.

– Mas ela não pode. Tem medo dele.

Eu suspiro.

– Sam...

– Você quase arrancou a peruca dela em público. Não acha que deveria compensá-la por isso? Além do mais, falei para ela que a empresa investigativa Sharpe & Yu ainda estava no caso.

Ele sorri, e fico feliz ao ver que tem uma distração. Pergunto-me de novo se ele gosta de Mina. Espero de verdade que não.

– Acho que ela está doente, Sam – digo. – Acho que ela está curando Wharton e isso a está deixando doente.

– É mais um motivo para fazermos alguma coisa. Pressioná-lo a dar o dinheiro para ela. Explicar a situação. Você sabe, deixar claro que ela não está sozinha. Foi Wharton quem a colocou nisso. Temos as fotos.

– Ela é uma jogadora – falo. – Ainda pode estar jogando com a gente.

– Pare com isso, Cassel. Ela é uma moça com problemas.

– Ela é o problema. – Eu coço o pescoço onde me cortei fazendo a barba. – Olha, tenho detenção sábado com Wharton. Vou estar sozinho na sala dele. Talvez possamos falar com ele nesse dia.

– E se ela não puder esperar até o fim de semana?

– Vamos lidar com isso quando chegar a hora. – Eu abro o laptop. – Qual é a dos livretos?

– Ah – diz ele. – Tenho que preencher formulários de faculdade. E você?

– Tenho que planejar um assassinato – comento, entrando na rede da escola e abrindo a ferramenta de busca. – Eu sei. Estranho, né?

– Cassel Sharpe: garoto assassino. – Ele balança a cabeça. – Você devia ter sua própria história em quadrinhos.

Dou um sorriso.

– Só se você for meu companheiro nanico que usa calça de lycra.

– Nanico? Eu sou mais alto do que você!

Ele se senta, e as molas da cama gemem, parecendo ecoar o que ele diz.

Abro um sorriso.

– Nos meus quadrinhos você não é, não.

Matar uma pessoa é bem parecido com dar um golpe. Você precisa saber muito das mesmas coisas.

Talvez os agentes federais tenham me deixado no escuro, mas preciso seguir meus instintos. Se alguma coisa der errado com o plano deles, vou precisar improvisar. E, para fazer isso, vou ter que estudar minha vítima.

Patton é uma figura pública. Descobrir coisas sobre ele não é difícil; cada detalhe de sua vida foi analisado pela imprensa, todos os defeitos foram enumerados pelos oponentes. Olho para as fotos até memorizar o rosto dele, até conseguir ver as linhas de maquiagem no pescoço quando ele está pronto para a câmera, até ver como penteia os poucos cabelos brancos que tem e como se veste para combinar com os tons dos discursos. Olho fotos dele em casa, em comícios, beijando bebês. Examino notícias e colunas de fofoca e guias de restaurante para ver com quem ele se encontra (muita, muita gente), a comida favorita dele (espaguete à bolonhesa), o que pede na lanchonete que frequenta (ovos com gema mole, torrada com manteiga, salsicha de peru) e até como prefere o café (com creme e açúcar).

Também estudo a segurança dele. Dois guarda-costas o seguem por toda parte. Não são sempre os mesmos dois caras, mas todos têm narizes quebrados e sorrisos debochados. Há alguns artigos que falam sobre Patton usar fundos para contratar ex-condenados na sua segurança, homens que perdoou pessoalmente. Ele nunca vai a lugar nenhum sem eles.

Vejo vários vídeos dele no YouTube falando sobre teorias da conspiração, mestres e o grande governo. Escuto os traços leves de sotaque, a forma como ele fala, a pausa que faz logo antes de dizer algo que acha muito importante. Vejo a forma como gesticula, esticando os braços para a plateia como se tivesse esperança de abraçar todos.

Ligo para minha mãe e obtenho mais alguns detalhes, fingindo estar interessado em como ela entrou na vida dele. Descubro onde ele compra os ternos (Bergdorf; a loja já tem as medidas dele, então ele pode simplesmente ligar e mandar fazer um terno de um dia para outro para alguma aparição pública). As línguas que ele fala (espanhol e francês). Os remédios que toma para o coração (Capoten e uma única aspirina infantil). A forma como anda, pousando o calcanhar no chão primeiro, o que faz com que a parte de trás dos sapatos sempre fique gasta primeiro.

Eu observo, procuro, escuto e leio até sentir o governador Patton de pé atrás do meu ombro, sussurrando no meu ouvido. Não é uma sensação boa.


CAPÍTULO DOZE

NA TARDE DE SEXTA,

quando estou voltando das aulas, meu telefone vibra no bolso da calça do uniforme. Eu o pego, mas o número é privado.

– Alô.

– Vamos pegar você amanhã à noite – avisa Yulikova. – Limpe sua agenda. Queremos estar na rua às seis da tarde.

Alguma coisa está errada. Muito errada.

– Você disse que tudo ia acontecer na quarta que vem, não neste sábado.

– Sinto muito, Cassel – diz ela. – Planos mudam. Temos que ser flexíveis agora.

Baixo a voz.

– Olha, aquela coisa de eu ir atrás do mestre de morte... me desculpe por não ter contado sobre a arma. Eu sei que você sabe. Mas eu entrei em pânico. Ainda estou com ela. Não fiz nada. Posso levá-la para você.

Eu não devia fazer isso. Prometi a Gage.

Eu devia fazer. Devia ter dado a arma para ela logo de cara.

Ela não fala por um momento.

– Não foi seu gesto mais inteligente.

– Eu sei – admito.

– Por que você não entrega a arma amanhã à noite e deixamos tudo como um mal-entendido?

– Certo.

Minha sensação de desconforto cresce, embora eu não saiba por quê. Mas há alguma coisa errada no tom dela. Uma coisa que me faz sentir que ela já se distanciou dessa situação.

Fico surpreso por ela me deixar escapar de forma tão tranquila da história da arma. Nada disso parece certo.

– Eu estava lendo sobre Patton – conto para mantê-la falando.

– Podemos conversar sobre isso quando pegarmos você. – Ela fala com gentileza, mas ouço o tom de dispensa na voz dela.

– Ele tem seguranças particulares o tempo todo. Caras durões. Eu estava me perguntando como vamos contornar isso.

– Eu juro, Cassel, que temos pessoas boas cuidando de tudo. Sua parte é importante, mas pequena. Vamos cuidar de você.

– Me explique – peço, colocando na voz um pouco da raiva que sinto.

Ela suspira.

– Me desculpe. É claro que você está preocupado. Entendemos o risco que você está correndo e apreciamos isso.

Eu espero.

– Um deles está na nossa folha de pagamento. Vai enrolar o outro guarda por tempo suficiente para você resolver as coisas. E vai cuidar de você.

– Tudo bem – digo. – Encontro você em Wallingford. Ligue quando chegar aqui.

– Tente não se preocupar – aconselha Yulikova. – Tchau, Cassel.

Meu coração está disparado e meu estômago revira quando desligo o celular. Não há nada pior do que a sensação de medo crescente e amorfo... até aquele momento em que o que você devia estar temendo o tempo todo fica claro. Quando você percebe que não é coisa da sua cabeça. Quando você vê o perigo.

O FBI não precisa que eu cuide de Patton. Não precisa nem um pouco. Se um dos guarda-costas está na folha de pagamento, eles podem fazer Patton desaparecer na hora que quiserem.

Eu me sento nos degraus da biblioteca e ligo para Barron.

Ouço o ruído do trânsito ao fundo quando ele atende.

– Você quer alguma coisa? – Ele parece irritado.

– Ah, pare com isso – retruco. Também não estou exatamente satisfeito com ele. – Você não pode estar com raiva de verdade só porque achava que eu não era capaz de convencê-la de que você estava mentindo quando estava realmente mentindo.

– Então você ligou para se gabar? – pergunta ele.

– Yulikova adiantou a data daquela coisa e já tem um homem envolvido na situação. Uma pessoa posicionada que pode fazer o trabalho bem melhor do que eu. Isso parece suspeito para você?

– Talvez – diz ele.

– E aquele mestre de morte que eu persegui. O pessoal dela o pegou depois para ver se menti sobre alguma coisa.

– E mentiu?

– Menti. Peguei uma coisa dele e... o deixei ir embora. Ela sabia disso e não disse nada.

– Isso parece estranho. Acho que você está ferrado. É uma droga ser você, Cassel. Parece que os federais não são seus amigos, afinal.

Ele desliga e me deixa no silêncio.

Não sei por que eu esperava algo diferente.

Fico sentado nos degraus por um bom tempo. Não vou ao treino de corrida. Não vou jantar. Só fico virando o celular nas mãos até me dar conta de que terei que me levantar e ir a algum lugar em algum momento.

Ligo para o número de Lila. Não espero que atenda, mas é isso que ela faz.

– Preciso da sua ajuda – declaro.

A voz dela soa baixo.

– Nós já nos ajudamos o bastante, você não acha?

– Só preciso conversar sobre algumas coisas com alguém.

– Não deveria ser eu.

Eu respiro fundo.

– Estou trabalhando com o FBI, Lila. E estou encrencado. Muito encrencado.

– Estou pegando meu casaco – diz ela. – Me diga onde você está.

Combinamos de nos encontrar na casa velha. Pego a chave e vou para o carro.

Estou sentado na cozinha, no escuro, quando ela abre a porta. Penso no cheiro das cigarrilhas do meu pai e em como era a vida quando éramos muito novos e nada tinha importância.

Ela acende a luz, e eu olho piscando para ela.

– Você está bem?

Ela se aproxima da mesa e coloca a mão enluvada no meu ombro. Está usando calça jeans preta justa e uma jaqueta de couro surrada. O cabelo louro brilha como uma moeda de ouro.

Eu balanço a cabeça negativamente.

Em seguida, conto tudo para ela: sobre Patton, sobre Maura, sobre querer ser bom e não conseguir, sobre segui-la naquele dia em que persegui Gage sem saber por que, sobre Yulikova e a arma. Tudo.

Quando termino, ela pega uma das cadeiras, vira-a para o lado contrário e senta-se com o queixo apoiado nos braços. Já tirou a jaqueta.

– Com quanta raiva de mim você está? – pergunto. – Exatamente o quanto, em uma escala de um a dez, em que um é me dar uma surra e dez é me jogar em um tanque de tubarões?

Ela balança a cabeça ao ouvir minha escala.

– Você acha isso porque me viu decidir a morte de uma pessoa e depois viu Gage matá-la? Porque está cooperando com a lei, talvez até trabalhando para ela? Porque você nunca me contou nada disso? Não estou feliz. Você ficou incomodado pelo que me viu fazer?

– Não sei – respondo.

– Você acha que tenho gelo no sangue? – Ela faz a pergunta de um jeito casual, mas sei que a resposta é importante.

Eu me pergunto como deve ter sido ser criada para assumir a chefia do crime.

– Você apenas é o que sempre iria ser.

– Lembra quando éramos crianças? – pergunta ela. Há um sorriso leve em seus lábios, mas a forma como ela me olha não combina muito bem. – Você achava que eu é que faria acordos e inimigos, trairia e mentiria. Dizia que ia sair por aí, viajar pelo mundo. Não seria levado pela vida.

– Isso só mostra o quanto eu sei.

– Esse jogo que você está jogando é longo, Cassel. Longo e perigoso.

– Eu não queria que tudo ficasse tão doido. Aconteceu uma coisa depois da outra. Eu precisei consertar coisas. Alguém tinha que consertar as coisas para Maura, e eu era o único que sabia, então não tinha mais ninguém. E eu tinha que impedir Barron de ir aos Brennan. E tinha que impedir a mim mesmo... – Eu paro de falar porque não posso dizer o restante. Não posso explicar o quanto eu precisava me impedir de estar com ela. Não posso explicar que quase falhei.

– Tudo bem, pare. – Ela faz um gesto amplo com as mãos, como se estivesse dizendo algo tão óbvio que não precisa ser dita. – Você fez o que achava que tinha que fazer, mas ainda tem como sair, então aproveite. Se afaste dos agentes federais. E, se não quiserem deixar você pular fora numa boa, se esconda. Eu ajudo. Falo com meu pai. Vejo se ele pode tirar um pouco da pressão dessa história com sua mãe, pelo menos até você resolver isso. Não deixe que manipulem você.

– Eu não posso parar. – Afasto os olhos para o papel de parede que está descascando acima da pia. – Não posso. É importante demais.

– O que faz você ansiar tanto por jogar sua vida na primeira causa que aparecer?

– Isso não é verdade. Não era isso que eu estava fazendo...

– Nada disso é culpa sua. Por que você se sente tão culpado que chega a agir como se você não importasse? – A voz dela se eleva, e ela também se levanta e dá a volta na mesa para empurrar meu ombro. – O que faz você pensar que tem que resolver os problemas de todo mundo, até os meus?

– Nada. – Eu balanço a cabeça e viro o rosto para o outro lado.

– Jimmy Greco, Antanas Kalvis e os outros? Eu os conhecia, e eles eram mesmo homens ruins. O mundo é um lugar melhor sem eles.

– Pare de tentar fazer eu me sentir melhor – digo. – Você sabe que não mereço.

– Por que não? – grita ela, como se as palavras fossem arrancadas das entranhas. Ela está com a mão no meu braço, tentando me fazer olhá-la.

Eu não olho.

– Você – digo, me levantando. – Por causa de você.

Por um momento, nenhum de nós dois fala.

– O que eu... – começo, mas não consigo fazer essa frase seguir um bom caminho. Eu recomeço. – Não consigo me perdoar... não quero me perdoar.

Eu me sento no piso de linóleo e digo o que nunca falei antes.

– Eu matei você. Eu me lembro de ter matado você. Eu matei você. – As palavras se repetem sem parar, como se rolassem para fora de mim. Minha voz está rouca. Falhando.

– Eu estou viva – diz Lila, se ajoelhando de uma forma que me obriga a olhar para ela, me obriga a vê-la. – Estou bem aqui.

Eu respiro fundo, tremendo.

– Nós estamos vivos – insiste ela. – Nós conseguimos.

Sinto-me prestes a desmoronar.

– Eu estraguei tudo, não foi?

É a vez dela de não me olhar nos olhos.

– Eu nunca deixaria Daneca me enfeitiçar – conta ela, lenta e cuidadosamente, encadeando as palavras como se deixar uma fora do lugar fosse fazer tudo desmoronar. – Mas não parei de amar você. Porque eu sempre amei, Cassel. Desde que éramos crianças. Você precisa lembrar: eu desfilei de calcinha na minha própria festa de aniversário.

Isso me arranca uma gargalhada de surpresa. Toco na orelha que ela furou naquela noite, no buraco fechado agora, e tento imaginar um mundo em que eu não era o único que sentia alguma coisa.

– Eu não achei que aquilo significasse...

– Porque você é um idiota – retruca ela. – Um idiota. Quando a maldição passou, eu não podia deixar você ver que o sentimento não tinha ido embora. Eu achei que era a única que tinha sentido alguma coisa.

Ela entrelaça os dedos nos meus e os aperta com força, o couro esticado sobre os nós.

– Você era gentil. Você sempre foi gentil. Achei que tinha fingido me amar até não conseguir fingir mais. E eu não podia deixar você pensar que ainda precisava fingir. Por isso, eu furava minha mão com tesouras ou canetas, com qualquer coisa afiada que estivesse por perto, sempre que eu pensava em você. Então, quando eu via você, me concentrava naquele momento de dor... E, apesar disso, eu ainda queria ver você.

– Eu não estava fingindo, Lila – revelo. – Nunca fingi. Sei o que pareceu quando pedi a Daneca para fazer você não sentir nada. Mas eu beijei você antes de saber o que minha mãe tinha feito, lembra? Beijei você porque queria fazer isso havia muito tempo.

Ela balança a cabeça.

– Não sei.

– Naquela noite, no seu quarto no alojamento... Lila, você foi enfeitiçada – digo. – E eu quase não me importei. Foi horrível, porque você agia como se de fato sentisse todas aquelas coisas, e eu tinha que me lembrar constantemente que não era real, e às vezes ficava arrasado ao ter essa percepção. Eu queria bloquear o quanto me sentia mal. Eu sabia que não era certo, e mesmo assim não me impedi.

– Tudo bem – diz ela. – Está tudo bem.

– Mas eu jamais ia querer...

– Eu sei disso, Cassel – replica ela. – Você podia ter explicado.

– E dito o quê? Que eu queria ficar com você? – pergunto. – Que não confiava em mim mesmo o bastante? Que...

Ela se inclina para a frente e leva a boca até a minha. Nunca fiquei tão profundamente feliz de ser forçado a calar a boca.

Eu fecho os olhos, porque mesmo algo tão simples quanto olhar para ela é demais agora.

Sinto-me como um homem que estava vivendo a pão e água e de repente se vê diante de um banquete. Sinto-me como alguém que ficou acorrentado no escuro por tanto tempo que a luz passou a ser apavorante. Meu coração quer bater até saltar do peito.

Os lábios dela são macios contra os meus. Estou perdido num beijo atrás do outro. Meus dedos enluvados acariciam a pele da bochecha dela e o vão na garganta até ela gemer na minha boca. Meu sangue está fervendo e se acumulando na base das minhas entranhas.

Ela desamarra minha gravata com dedos rápidos. Quando recuo para olhá-la, ela sorri e puxa o adereço do meu colarinho com um único movimento.

Eu levanto as sobrancelhas.

Com uma gargalhada, Lila se levanta do chão e estica a mão enluvada para me ajudar a levantar.

– Venha – diz ela.

Eu a sigo. De alguma forma, minha camisa saiu de dentro da calça. Logo estamos nos beijando de novo e cambaleando escada acima. Ela para e tira as botas, apoiando-se em mim e na parede. Eu tiro o paletó.

– Lila – chamo, mas isso é tudo o que sai da minha boca até ela começar a desabotoar minha camisa branca.

Que cai no chão do corredor.

Entramos depressa no meu quarto, onde a imaginei mil vezes, onde achei que a tivesse perdido para sempre. Essas lembranças parecem confusas, difíceis de considerar importantes ao lado da vividez da mão fria e coberta de couro passando pela minha barriga e pelos músculos do meu braço. Eu inspiro fundo.

Ela recua para puxar a luva com os dentes. Quando a deixa cair, meu olhar acompanha a queda.

Seguro a mão nua e beijo os dedos, o que a faz me olhar com olhos arregalados. Eu mordo a base da mão dela, e ela geme.

Quando tiro as luvas, minhas mãos estão trêmulas. O gosto da pele dela está na minha língua. Sinto-me febril.

Se eu tiver que morrer amanhã quando os agentes federais forem me buscar, este é o último pedido do meu coração. Isto. A visão dos meus cílios roçando o rosto dela quando seus olhos se fecham. A pulsação na garganta dela. A respiração dela na minha boca. Isto.

Já estive com garotas de quem gostava e com garotas de quem não gostava. Mas nunca estive com uma garota que eu amava mais do que qualquer outra coisa no mundo. Estou atordoado, tomado pelo desejo de fazer tudo certo.

Minha boca desce para acompanhar a cicatriz no pescoço dela. Ela afunda as unhas nas minhas costas.

Lila se afasta um pouco para puxar a blusa pela cabeça e jogá-la no chão. O sutiã é azul, coberto de borboletas de renda. Ela volta para meus braços, abrindo os lábios, a pele impossivelmente macia e quente. Quando passo as mãos nuas por ela, o corpo se arqueia contra o meu.

Ela começa a abrir a fivela do meu cinto com dedos trêmulos.

– Você tem certeza? – pergunto, me afastando um pouco.

Em resposta, ela dá um passo para trás, leva a mão às costas, abre o sutiã e joga na direção da blusa.

– Lila – murmuro, indefeso.

– Cassel, se você me fizer falar sobre isso, vou matar você. Vou matar você literalmente. Vou estrangulá-lo com sua gravata.

– Acho que a gravata está lá embaixo – comento, lutando para lembrar por que eu queria conversar quando ela se aproxima para me beijar de novo. Os dedos se prendem no meu cabelo e puxam minha boca para a dela.

Alguns passos curtos e caímos de costas na cama, derrubando travesseiros no chão.

– Você tem alguma coisa? – Ela está falando com a boca no meu ombro e com o peito nu contra o meu. Eu tremo a cada palavra e me obrigo a me concentrar.

Ainda demoro um momento para me dar conta do que ela quer dizer.

– Na carteira.

– Você sabe que não fiz isso muitas vezes. – Há um tremor na voz dela, como se estivesse nervosa de repente. – Tipo, só uma vez.

– Podemos parar – falo, interrompendo o movimento das mãos. Respiro de forma incerta. – Devíamos...

– Se você parar – diz ela –, também vou matar você.

Então eu não paro.


CAPÍTULO TREZE

ACORDO COM O SOL

entrando pela vidraça suja. Estico os dedos nus esperando tocar em pele quente, mas eles se fecham em uma confusão de lençóis. Ela já foi embora.

Eu nunca deixei de amar você, Cassel.

Minha pele está viva com a lembrança das mãos dela. Eu me espreguiço, os ossos de toda a coluna estalando de um jeito lânguido. Minha cabeça está mais lúcida do que nunca.

Sorrio para o gesso rachado do teto e a imagino saindo em silêncio do quarto enquanto eu ainda estava dormindo, hesitando na hora de me dar um beijo de despedida, sem deixar bilhete nem nada que uma pessoa normal faria. Claro que não. Ela não ia querer parecer sentimental. Ela se vestiria no banheiro e jogaria água no rosto. Carregaria as botas e correria pelo gramado de meias. Voltaria na surdina para a cobertura elegante antes que o gênio do crime que ela tem como pai se desse conta de que a filha passou a noite na casa de um garoto. Na minha casa.

Não consigo parar de sorrir.

Ela me ama.

Acho que posso morrer feliz.

Sigo para o quarto dos meus pais, reviro as coisas e encontro uma bolsa de couro surrada, na qual coloco algumas camisetas e a calça jeans de que menos gosto. Não faz sentido levar nada de que gosto, pois não faço ideia de para onde Yulikova vai me levar nem se vou voltar a ver essas coisas. Coloco a carteira e a identidade debaixo do colchão.

Meus objetivos são simples: descobrir se Yulikova vai me trair, fazer o serviço para que Patton não faça mal à minha mãe e voltar para casa.

Depois disso, vamos ver o que acontece. Não assinei nenhum papel, então não sou integrante oficial da DLM. Ainda posso sair fora se quiser. Pelo menos, acho que posso. Estamos falando do governo federal, não de uma família criminosa com juramentos de sangue e marcas de cortes no pescoço.

É claro que, mesmo se eu não virar agente, ainda vou ter que encarar todo mundo que estiver em busca de uma pessoa com meus talentos particulares.

Imagino por um momento estar sozinho depois do ensino médio, morando em Nova York, trabalhando de garçom e me encontrando com Lila para tomar café de madrugada. Ninguém precisaria saber o que sou. Ninguém precisaria saber o que sou capaz de fazer. Voltaríamos para meu apartamento minúsculo, beberíamos vinho barato, assistiríamos a filmes em preto e branco e reclamaríamos de nossos empregos. Ela poderia me contar sobre guerras de gangues e todas as coisas novas que obteve ilegalmente, e eu poderia...

Eu balanço a cabeça para mim mesmo.

Antes de me envolver demais em fantasias de um futuro impossível, é melhor eu aparecer na detenção. Senão, não vou nem me formar em Wallingford.

Olho o relógio do celular e vejo que tenho meia hora. Isso me dá tempo para voltar ao alojamento, pegar Sam e decidir o que vamos dizer em nome de Mina. Vai ser apertado, mas vai dar.

Estou indo para o carro com a bolsa no ombro quando meu celular toca.

É Barron. Eu atendo.

– Alô – digo, surpreso.

A voz dele está cuidadosamente neutra.

– Andei pesquisando.

Eu paro e me encosto na frente do Mercedes, a chave ainda na mão.

– Que tipo de pesquisa?

– Depois do que você falou sobre Patton e aquele serviço, persuadi uma das minhas colegas a me deixar usar a identificação dela para xeretar uns arquivos. Você estava certo. É armadilha, Cassel. É para você ser pego.

Fico todo gelado.

– Eles querem me prender?

Ele ri.

– A parte engraçada é que querem que você transforme Patton em uma torradeira, sei lá, para encobrir a besteira que eles mesmos fizeram. Eles podiam entrar com as armas a toda se Patton não estivesse tão instável por culpa deles. Essa confusão é deles.

Eu olho para o gramado. Quase todas as folhas caíram, deixando os troncos das árvores nus, com galhos pretos se esticando na direção do céu como dedos longos em mãos infinitas.

– O que você quer dizer?

– Os assessores de Patton chamaram o FBI quando perceberam que mamãe o tinha enfeitiçado. Se ela não tivesse sido tão descuidada, você não estaria nessa situação.

– Ela não teve tempo de fazer um serviço melhor – retruco. – De qualquer modo, política não é exatamente o forte dela.

– Ah, o que quero dizer é que li os relatórios, e houve uma cagada fenomenal. Depois que os assessores chamaram o FBI, levaram um mestre de emoções sancionado pelo estado para “consertar” Patton. Mas, sabe, o governo é cheio de idiotas hiperbatogâmicos que foram ensinados a só usar os poderes se realmente precisarem, então o agente mestre de emoções que enviaram não tinha um talento muito bom. Ele enfeitiçou Patton para odiar e ter medo de mamãe, achando que emoções fortes eram o único jeito de anular o que ela fez. Mas Patton acabou ficando completamente descontrolado. Sem controle nenhum. Com ataques de violência e crises de choro.

Eu tremo ao pensar em como seria ser obrigado a sentir duas coisas contraditórias ao mesmo tempo. É pior quando percebo que foi o que pedi que Daneca fizesse com Lila. Amor e indiferença lutando um com outro. Não sei o que poderia ter acontecido. Pensar nisso é como olhar para a ravina profunda na qual você se deixou cair no escuro.

Barron prossegue.

– Agora, a base para fazer com que a proposição dois passe é ter o apoio de mestres que também são cidadãos de destaque. Ter integrantes proeminentes da comunidade se oferecendo para testes voluntários faz com que o restante de nós fique mal, mas também faz o programa parecer bom. Seguro. Humano. O problema foi que Patton decidiu que era a hora de ser louco. Ele fez todo mundo com teste de HBG positivo ser despedido. Em seguida, começou a pedir que funcionários federais fossem testados. Botou uma pressão enorme sobre eles. Queria que as unidades federais com agentes hiperbatogâmicos fossem desativadas.

– Como a DLM – digo, pensando em Yulikova e no agente Jones. – Mas Patton não tem autoridade sobre eles.

– Eu falei que isso era uma comédia de erros – comenta Barron. – Claro, ele não pode fazer nada para que isso aconteça. Mas pode ameaçar constrangê-los ao contar para a imprensa como o enfeitiçaram contra a própria vontade. Assim, com toda a sabedoria que eles têm, o que você acha que a Equipe Boazinha faz?

– Não faço ideia – digo. Outra chamada faz meu celular vibrar, mas eu a ignoro.

– Eles mandam outro mestre para consertar o trabalho malfeito no cérebro de Patton.

Eu dou uma gargalhada.

– Aposto que isso foi muito bem.

– Ah, foi. Patton o matou. Deu tudo certo mesmo.

– Matou?

Como é Barron falando, é possível que esteja exagerando, isso se não estiver mentindo. Mas a que está contando faz bem mais sentido que a de Yulikova. A história de Barron é confusa, cheia de coincidências e erros. Como mentiroso, sei que a marca registrada das mentiras é que elas são simples e diretas. São a realidade do jeito que queríamos que fosse.

– É – continua Barron. – O nome do agente era Eric Lawrence. Casado. Dois filhos. Patton o estrangulou quando percebeu que o agente Lawrence estava tentando enfeitiçá-lo. Incrível, não é? Assim, eles têm um governador homicida nas mãos, e os superiores dizem que eles precisam limpar a sujeira antes que haja um escândalo enorme.

Eu respiro fundo e solto o ar devagar.

– Então, depois que eu transformar Patton, o que acontece? Eles me prendem, eu acho. Tenho um motivo, por causa da mamãe. Aí, me mandariam para a cadeia. Mas para que, se querem que eu trabalhe para eles? Não posso trabalhar da prisão e, mesmo se eu trabalhasse, o que eu poderia fazer seria bem limitado. Transformar outros detentos. Transformar cigarros em barras de ouro.

– Essa é a parte brilhante, Cassel – argumenta Barron. – Você não está entendendo. Além de ter um bode expiatório, quando você se tornar um criminoso que não é mais protegido por um acordo de imunidade, vai ter bem menos liberdades civis. Eles vão poder controlar você. Por completo. Vão ter exatamente a arma que querem.

– Você descobriu onde isso vai acontecer? – indago, e abro a porta do carro. Sinto-me entorpecido.

– No discurso de segunda-feira perto de Carney, no local de um antigo campo de prisioneiros. Vão montar barracas perto do memorial. O FBI está com a segurança sob controle, mas quem se importa, Cassel? É óbvio que você não vai.

Mas eu tenho que ir. Se eu não for, Patton escapa ileso, e mamãe, não. Eu posso não achar minha mãe uma boa pessoa, mas ela é melhor do que ele.

E também não quero que os agentes federais escapem ilesos.

– Vou, sim – digo. – Olha, obrigado por fazer isso. Sei que você não precisava, e ajuda muito saber exatamente no que estou me metendo.

– Tudo bem, vá. Mas apareça e estrague tudo. O que eles vão fazer, dar uma bronca em você? Erros acontecem. Você estraga tudo o que faz mesmo.

– Eles vão armar para mim de novo – retruco.

– Você vai estar à espera.

– Eu já estava à espera – afirmo. – Mas ainda não via o que estava acontecendo. Além do mais, alguém precisa deter Patton. Eu tenho a oportunidade.

– Claro – diz ele. – Alguém precisa. Alguém que não esteja sendo vítima de uma armadilha. Alguém que não seja você.

– Se eu não levar isso adiante, o FBI ameaçou ir atrás da mamãe. E é o melhor que pode acontecer, pelo que podemos esperar, porque Patton vai matá-la. Ele já tentou uma vez.

– Ele fez o quê? O que você quer dizer?

– Ela levou um tiro e não queria que a gente soubesse. Eu teria contado para você, mas da última vez que nos falamos você bateu o telefone na minha cara.

Ele ignora o resto do que eu disse.

– Ela está bem?

– Acho que sim. – Coloco o cinto de segurança. Em seguida, suspiro e ligo a ignição. – Mas, olhe, temos que fazer alguma coisa.

– Nós não vamos fazer nada. Já fiz tudo o que ia fazer ao olhar aqueles arquivos. Estou cuidando de mim mesmo. Você devia tentar fazer isso.

– Eu tenho um plano. – As aberturas de ventilação enchem o carro de ar frio. Ligo o aquecedor e apoio a cabeça no volante. – Ou melhor, não exatamente um plano, mas um esboço. Só preciso enrolar Patton. Descobrir onde ele vai estar na segunda e mantê-lo lá a fim de que se atrase para o discurso. Pelo bem de mamãe. Você nem precisa ir me visitar na cadeia.

– Faça uma coisa por mim, então – diz ele depois de uma pausa.

As chances de eu fazer isso e escapar ileso são tão baixas que não estou com medo de qualquer plano do mal no qual meu irmão possa tentar me envolver agora.

É meio libertador.

– Tudo bem. Eu lhe devo um favor. Mas depois. Não tenho tempo agora. – Olho o relógio no painel. – Na verdade, não tenho tempo nenhum. Tenho que ir para Wallingford. Já estou atrasado.

– Me ligue depois desse compromisso na escola – diz Barron e desliga.

Eu jogo o celular no banco do passageiro e saio da garagem, desejando que meu único plano não dependesse de confiar nas duas pessoas em quem menos confio no mundo: Barron e eu mesmo.

São dez e dez quando entro no estacionamento de Wallingford. Não tenho tempo de ir até o quarto, então pego o celular enquanto atravesso o gramado, pensando em ligar para Sam e pedir que leve as fotos de Wharton. Mas, quando começo a pensar nas fotos, tenho a terrível sensação de que deixei passar alguma coisa. Na lanchonete, eu falei que achava que Mina devia ter planejado que nós víssemos as fotos, mas ela não só cuidou para que as víssemos. Ela cuidou para que tivéssemos cópias.

Um medo gelado sobe pela minha espinha. Ela queria que outra pessoa chantageasse Wharton. Alguém que alegasse ter tirado as fotos e pedisse dinheiro. Mas não precisamos ir às vias de fato. Só precisamos parecer que estamos fazendo isso.

Burro, burro. Sou tão burro. Enquanto penso nisso, o celular toca na minha mão. É Daneca.

– Alô – digo. – Não posso conversar. Estou atrasado para a detenção, e se eu tomar outra advertência...

Ela chora, um som líquido e horrível, e eu paro de falar o que planejava.

– O que aconteceu? – pergunto.

– Sam descobriu – conta ela, engasgando nas palavras. – Que eu estava saindo com seu irmão. Estávamos na biblioteca juntos hoje de manhã, estudando. Tudo estava normal. Não sei, eu queria vê-lo e descobrir se ainda havia alguma coisa entre nós, se eu sentia...

– Aham – digo, atravessando o gramado, torcendo para Wharton ainda estar na sala dele. Torcendo para estar errado sobre os planos de Mina. Torcendo para que Sam esteja em algum lugar queimando aquelas fotos, embora tenha certeza de que está ocupado demais se sentindo arrasado, e, mesmo que não estivesse, ele não tem motivo algum para achar que estamos encrencados. – Talvez ele supere.

Não faz sentido pensar que o fato de nenhum deles superar coisas foi exatamente o que os separou. Ele vai ficar furioso com ela e duplamente furioso comigo por não ter contado sobre Barron. O que, previsivelmente, eu mereço.

– Não, escute. Saí do aposento por um minuto e quando voltei... Bem, Barron deve ter me mandado uma mensagem de texto. E Sam leu a mensagem... e as outras também. Ele começou a gritar comigo. Foi horrível.

Eu faço uma pausa.

– Você está bem?

– Não sei. – Ela parece tentar lutar contra mais lágrimas. – Sam sempre foi tão gentil e doce. Eu nunca pensei que pudesse ficar com tanta raiva. Me deu medo.

– Ele machucou você?

Estou abrindo a porta do prédio administrativo e tentando pensar.

– Não, nada assim.

Sigo para a escada. Não tem ninguém em nenhuma das salas. Meus passos soam alto nos corredores. Os únicos sons que escuto são os que faço. Todo mundo foi passar o fim de semana em casa. Meu coração dispara. Wharton foi embora, e Mina já deve ter contado para ele que Sam e eu o estamos chantageando. Ele vai revistar nosso quarto e, se fizer isso, vai encontrar as fotos... e, ah, Deus, a arma. Ele vai encontrar a arma.

– Sam jogou os livros longe e ficou muito frio e distante – conta Daneca, embora seja difícil me concentrar nas palavras dela. – Foi como se uma coisa tivesse se desligado dentro dele. Ele me disse que tinha que se encontrar com você e não ligava se você não aparecesse. Disse que ia cuidar das coisas de uma vez. Disse que tinha uma...

– Espere. O quê? – pergunto, ficando totalmente alerta. – O que ele disse que tinha?

Um tiro soa pela escada do andar de cima e ecoa pelo prédio vazio.

Não sei o que espero ver quando entro na sala de Wharton, mas não é Sam e o supervisor lutando no tapete oriental antigo. Wharton está engatinhando na direção de uma arma que parece ter deslizado para longe dos dois enquanto Sam tenta derrubá-lo.

Eu corro para a arma.

Wharton olha para mim atordoado quando viro o cano na direção dele. O cabelo branco está todo em pé. Sam desaba com um gemido. É aí que percebo que a mancha vermelha ao redor de Sam não faz parte da estampa do tapete.

– Você atirou nele – falo para Wharton, sem acreditar.

– Me desculpe – diz Sam entredentes. – Eu fiz besteira, Cassel. Fiz uma besteira enorme.

– Você vai ficar bem, Sam – afirmo.

– Sr. Sharpe, você está vinte minutos atrasado para sua detenção – anuncia o supervisor Wharton do chão. Eu me pergunto se está em choque. – Se não quiser se encrencar ainda mais, sugiro que me dê essa arma.

– Você está brincando, né? Vou chamar uma ambulância.

Vou até a mesa de madeira manchada de Wharton. As fotos de Mina estão ali, em cima dos papéis.

– Não! – exclama Wharton, ficando de pé. Ele pula na direção do fio do telefone e o arranca da parede com um movimento violento. Está respirando com dificuldade e me olha com olhos vidrados. – Eu o proíbo. Está terminantemente proibido. Você não entende. Se o conselho descobrir sobre isso... Bem, você não entende a posição difícil em que vai me colocar.

– Eu posso imaginar – digo, pegando o celular com uma das mãos.

Não consigo ligar e manter a arma apontada para ele ao mesmo tempo.

Wharton cambaleia na minha direção.

– Você não pode ligar para ninguém. Guarde esse celular.

– Você atirou nele! – grito. – Fique onde está, senão atiro em você!

Sam geme de novo.

– Dói muito, Cassel. Dói demais.

– Isso não pode estar acontecendo – diz Wharton. E olha para mim de novo. – Vou falar que foi você! Vou dizer que vocês dois vieram me roubar e começaram a brigar, aí você atirou nele.

– Eu sei quem atirou em mim – retruca Sam. Ele faz uma careta ao colocar pressão sobre a perna. – Não vou dizer que foi Cassel.

– Isso não vai importar. De quem é essa arma, Sr. Sharpe? – indaga Wharton. – Aposto que é sua.

– Não – digo. – Eu roubei.

Ele me olha de repente sem entender. Está acostumado com garotos bonzinhos de uniformes arrumados que só brincam de serem encrenqueiros antes de fazerem o que lhes mandam, e a desconfiança repentina de que não sou nem um pouco assim parece desorientá-lo. Ele retorce os lábios.

– Isso mesmo. Todo mundo sabe das suas origens. Em quem vão acreditar: em você ou em mim? Sou um integrante respeitável da comunidade.

– Não quando virem as fotos de você com Mina Lange. É coisa bem pesada. Você não vai passar uma boa imagem. Está doente, não é? O cérebro começando a falhar. Primeiro, você esquece coisas pequenas, depois, outras maiores, e o médico dá a notícia de que só vai piorar. É hora de se aposentar de Wallingford. Não tem muito que você possa fazer legalmente, mas ilegalmente... Bem, agora estamos nos entendendo. Você pode comprar crianças, garotinhas como Mina, e ela não pode curar você porque a doença é degenerativa, mas pode dar um alívio. Assim, você não piora e ela começa a ficar mal. Primeiro, você racionaliza. Ela é jovem. Vai melhorar. E daí se ela faltar a algumas aulas? Não é nada que deva deixá-la chateada. Afinal, você arrumou uma bolsa de Wallingford para ela, uma escola de prestígio, para poder tê-la por perto sempre que precisasse.

"Quando ela falou que estávamos com as fotos, você devia estar disposto a pagar. Mas, assim que Sam entra aqui, ele diz algo que faz você perceber que o dinheiro é para Mina. E isso o coloca em uma saia justa. Se ela for embora, você fica doente de novo. Se alguém vir as fotos, você perde seu emprego. Você não pode aceitar isso, então tenta pegar a arma."

Wharton olha na direção da mesa como se quisesse tentar pegar as fotos. A testa dele está coberta de suor.

– Ela estava envolvida?

– Ela orquestrou isso. Tirou as fotos. A única coisa que não esperava era que alguém fosse realmente tentar ajudá-la. Sam fez isso porque é um cara legal. Veja aonde isso o levou. Agora, vou fazer essa ligação, e você não vai me impedir.

– Não – retruca Wharton.

Eu olho para Sam. Ele está muito pálido. Eu me pergunto quanto sangue já perdeu.

– Olhe, não ligo para Mina, nem para o dinheiro, nem para a possibilidade de você perder a memória – digo. – Pegue as fotos. Guarde seu segredo. Diga para o pessoal da ambulância o que quiser quando chegarem. Mas ele está mesmo machucado.

– Certo. Me deixe pensar. Você deve conhecer alguém – sugere o supervisor com a voz baixa e suplicante. – O tipo de médico que não vai relatar um disparo.

– Você quer que eu chame um médico da máfia?

A ansiedade no rosto dele é exagerada, maníaca.

– Por favor. Por favor. Dou qualquer coisa. Vocês dois podem se formar com nota máxima. Podem matar todas as aulas. Se vocês derem um jeito nisso, por mim podem fazer o que quiserem.

– E sem advertências – diz Sam com a voz fraca.

– Tem certeza? – pergunto a Sam. – Esse médico não vai ter tudo o que um hospital de verdade...

– Cassel, pense bem – pede Sam. – Se uma ambulância vier, estamos todos encrencados. Todos nós perdemos.

Eu hesito.

– Meus pais – sugere ele. – Eu não posso... eles não podem descobrir.

Eu olho para ele por um momento e lembro que foi Sam quem levou a arma para a sala do supervisor e o ameaçou. Pais normais não iriam gostar de uma atitude dessa. Aposto que juízes também não. Isso não é um jogo de soma; zero para o supervisor, para Sam e para mim. Todos os lados estão encrencados.

Com um suspiro, eu aciono a trava, enfio a arma no bolso e faço a ligação.

O médico de dentes tortos chega meia hora depois. O serviço de atendimento não perguntou meu nome nem disse o dele. Na minha cabeça, ainda o chamo de Dr. Doutor.

Ele está com uma roupa parecida com a que usava quando o vi da última vez: casaco de moletom e calça jeans. Reparo que está usando tênis sem meias e tem um machucado no tornozelo. As bochechas estão mais afundadas do que eu lembrava, e ele está fumando um cigarro. Eu me pergunto quantos anos tem. Parece que está na casa dos trinta, a cabeça cheia de cachos selvagens e a barba por fazer de um homem que não se dá o trabalho de se barbear todos os dias. A única coisa que indica que é médico é a valise preta que carrega.

Eu elevei a perna de Sam e a cobri com minha camiseta. Estou sentado no chão fazendo pressão. O supervisor Wharton enrolou meu casaco em Sam para que ele parasse de tremer. Fizemos o melhor que podíamos, e estou me sentindo o pior amigo do mundo por não insistir para que o levássemos imediatamente ao hospital, independentemente das consequências.

– Tem um banheiro aqui? – pergunta o médico, olhando ao redor.

– Por aquela porta, no corredor – diz o supervisor Wharton, olhando para o cigarro do médico com reprovação, ainda tentando manter o controle da situação. – É proibido fumar neste prédio.

O doutor olha para ele com incredulidade.

– Preciso me lavar. Tire tudo da mesa enquanto eu estiver lá. Vamos ter que colocar o paciente ali em cima. E consiga mais luzes. Preciso ver o que vou fazer.

– Você confia naquele homem? – pergunta o supervisor Wharton enquanto pega pilhas de papéis e enfia no arquivo de qualquer jeito.

– Não – digo.

Sam faz um som engasgado.

– Eu não quis dizer desse jeito – retruco. – Você vai ficar bem. Só estou furioso. Principalmente comigo mesmo. Não, esqueça isso, principalmente com Wharton.

O supervisor arrasta um abajur de piso até a mesa vazia e acende. Posiciona mais dois abajures nas estantes, virando as hastes flexíveis para que as lâmpadas fiquem apontadas para a mesa, como rostos olhando para uma exibição.

– Me ajude a levantá-lo – peço.

– Não me levantem – fala Sam, arrastando as palavras de leve. – Consigo pular.

Isso parece uma péssima ideia, mas não vou discutir com um homem ferido. Coloco o braço dele ao redor do meu pescoço e o levanto. Ele faz um som baixo no fundo da garganta, como se estivesse sufocando um grito. Os dedos enluvados afundam no meu braço. Seu rosto se contorce de dor e frustração, e os olhos se fecham com força.

– Não coloque peso na perna – lembro a ele.

– Dane-se – diz ele trincando os dentes, o que interpreto como uma demonstração de que ele está bem.

Atravessamos a sala com o corpo dele meio caído sobre o meu. Minha camiseta cai da perna dele, e o sangue escorre lentamente do buraco enquanto Sam sobe na mesa.

– Deite – digo, esticando a mão para pegar a camiseta. Não faço ideia do quanto as coisas estão limpas, mas tento secar o excesso de sangue e reaplicar pressão.

Wharton recua e fica nos olhando com o que parece uma mistura de nojo e pavor. Deve estar lamentando o estrago na mesa.

O médico volta para a sala sem o cigarro. Está segurando o que parece ser um poncho e usando luvas de plástico. O cabelo está preso com uma bandana.

Sam geme.

– O que... o que ele vai fazer?

– Vou precisar de um assistente para isso – diz o médico, olhando para mim. – Você não se incomoda de ver sangue?

Eu digo que não.

– Você teve sorte. Meu último trabalho não foi muito longe daqui. Às vezes, fico bem ocupado.

– Aposto que sim – comento. Eu queria que ele parasse de falar.

Ele concorda.

– Então... Preciso do dinheiro. Vão ser quinhentos de entrada, como meu serviço de atendimento já deve ter avisado. Talvez mais, dependendo de como as coisas forem, mas preciso receber agora.

Eu olho para Wharton, e ele mexe em uma das gavetas na mesa. Deve estar acostumado a pagar as pessoas em dinheiro, porque destranca um compartimento no fundo da gaveta e conta uma pilha de notas.

– Aqui tem mil – diz o supervisor, com a mão tremendo enquanto entrega o dinheiro. – Vamos cuidar para que tudo vá bem. Sem complicações, entendeu?

– Dinheiro é cheio de germes. É coisa suja. Pegue você, garoto – pede o Dr. Doutor. – Coloque na minha bolsa. E pegue o vidro de iodo. Depois, antes que faça qualquer outra coisa, quero que vá lavar as mãos.

– As luvas? – pergunto.

– As mãos – diz ele. – Você vai usar um par de luvas de plástico. Essas aí estão péssimas.

No banheiro, eu me esfrego com vontade. As mãos. Os braços. Ele está certo sobre minhas luvas de couro. Estão tão encharcadas de sangue que minhas mãos ficaram manchadas de vermelho. Jogo água no rosto por precaução. Nu da cintura para cima, sinto que devia tentar me cobrir, mas não tem nada que eu possa usar. Minha camiseta já era. Meu casaco ainda está no chão da sala.

Volto para a sala do supervisor e encontro o médico com a valise aberta. Há uma confusão de vidros, panos e pinças. Ele pega instrumentos de metal afiados e assustadores e os coloca em uma mesinha que posicionou ao lado da escrivaninha. Coloco um par de luvas finas de plástico e pego o iodo.

– Cassel – diz Sam com voz fraca. – Eu vou ficar bem, não vou?

Eu faço que sim.

– Eu juro.

– Diga para Daneca que sinto muito. – Lágrimas estão se formando nos cantos dos olhos dele. – Diga para minha mãe...

– Cala a boca, Sam – retruco com rispidez. – Eu disse que você vai ficar bem.

O médico resmunga.

– Pegue um chumaço de algodão, molhe com iodo e limpe o buraco da bala.

– Mas... – digo, sem saber como proceder.

– Corte a calça dele.

Ele parece exasperado, e vejo que está pegando um frasco vermelho e uma agulha grande.

Tento manter a mão firme quando pego a tesoura e corto a calça cargo de Sam. O tecido se abre até a coxa e vejo o ferimento, bem acima do joelho, pequeno e cheio de sangue.

Quando meus dedos tocam a pele, espalhando o líquido marrom, ele se contorce.

– Está tudo bem, Sam – falo.

Do outro lado da sala, Wharton se senta pesadamente em uma cadeira e apoia a cabeça nas mãos.

O médico anda até Sam segurando uma seringa. Dá um peteleco nela, para tirar o ar.

– Isso é morfina. Deve ajudar com a dor.

Sam arregala os olhos.

– Você precisa estar sedado – avisa o médico.

Sam engole em seco e assente após ficar claro que está se preparando para o que vai acontecer.

O médico enfia a agulha em uma veia no braço de Sam. Ele faz um som que é meio gemido e meio engasgo.

– Você acha que ela gosta mesmo dele? – pergunta Sam.

Sei de quem ele está falando. Barron. E não sei mesmo a resposta.

O médico olha para mim e depois para Sam.

– Não – respondo. – Mas talvez você não devesse se preocupar com isso agora.

– Distrai...

Sam revira os olhos, e o corpo fica inerte. Eu me pergunto se ele está sonhando.

– Agora você precisa segurá-lo – orienta o médico. – Enquanto eu tiro a bala.

– O quê? – indago. – Segurar como?

– Só impeça que ele se mexa muito. Preciso que a perna fique firme. – Ele olha para o supervisor Wharton do outro lado da sala. – Você. Venha aqui. Preciso de uma pessoa para me entregar o fórceps e o bisturi quando eu pedir. Coloque essas luvas.

O supervisor se levanta e atravessa a sala em estado de torpor.

Vou para o outro lado da mesa e coloco uma das mãos na barriga de Sam e a outra na coxa, apoiando o peso nela. Ele vira a cabeça e grunhe, embora continue apagado. Eu o solto na mesma hora e dou um passo para trás.

– Segure-o. Ele não vai se lembrar disso – diz o médico, o que não me consola nem um pouco. Tem muita coisa de que não me lembro, mas isso não quer dizer que não aconteceu.

Eu coloco as mãos no lugar de novo.

O Dr. Doutor se inclina e aperta a pele ao redor do ferimento. Sam geme de novo e tenta mudar de posição. Eu não deixo.

– Ele vai ficar semiconsciente. É mais seguro assim, mas quer dizer que você precisa mesmo impedir que ele se mova. Acho que a bala ainda está lá dentro.

– O que isso quer dizer? – pergunta o supervisor Wharton.

– Quer dizer que temos que tirar – explica o médico. – Me dê o bisturi.

Eu viro a cabeça na hora em que a ponta do instrumento afunda na pele de Sam. Ele se contorce sob minhas mãos, mexendo-se cegamente e me obrigando a colocar todo o meu peso nele. Quando olho de novo, o médico fez um corte fundo. Sangue escorre do corte.

– Afastador – diz o médico, e Wharton passa para ele. – Pinça.

– O que é isso? – pergunta Wharton.

– A coisa prateada com ponta curva. Demore o tempo que precisar. Isso não é uma emergência.

Lanço um olhar terrível para o médico, mas ele não está olhando. Está enfiando um instrumento na perna de Sam, que geme baixo e se mexe de leve.

– Shhh – sussurro. – Está quase acabando. Está quase acabando.

Sangue jorra da perna de repente e atinge meu peito e meu rosto. Eu cambaleio para trás em choque, e Sam quase cai da mesa.

– Segure-o, seu idiota! – grita o médico.

Eu seguro a perna de Sam e me jogo em cima. O sangue pulsa com o coração, aumentando e diminuindo. Tem tanto sangue. Está nos meus cílios, espalhado na minha barriga. É todo o cheiro e todo o gosto que sinto.

– Quando eu digo que é para segurar, não estou brincando! Você quer que seu amigo morra? Segure-o. Preciso encontrar a veia que cortei. Onde está a pinça?

A pele de Sam está grudenta. A boca está azulada. Eu viro a cabeça para o outro lado, os dedos afundando nos músculos dele, segurando-o com o máximo de firmeza que consigo. Trinco os dentes e tento não ver o médico prender a artéria, tirar a bala e começar a costurar a ferida com fio preto. Eu seguro e vejo o peito de Sam subir e descer, lembrando a mim mesmo que, enquanto ele estiver respirando, gemendo e se mexendo, enquanto estiver sentindo dor, está vivo.

Em seguida, eu me sento no chão e escuto o médico dar instruções ao supervisor Wharton. Meu corpo todo dói, meus músculos estão exaustos de tanto lutar com os de Sam.

– Ele vai ter que tomar antibióticos por duas semanas. Senão, corre sério risco de infecção – avisa o médico, colocando a gaze no lugar e tirando o poncho cheio de sangue. – Não posso passar uma receita, mas isto basta para uma semana. Meu serviço de atendimento vai fazer contato com quem ligou para falar de mais antibiótico.

– Eu entendo – diz o supervisor.

Eu também entendo. O Dr. Doutor não pode dar receita porque a licença dele foi revogada. É por isso que ele trabalha para Zacharov e para nós.

– E, se você precisar de serviço de limpeza para cá, conheço umas pessoas muito discretas.

– Eu agradeceria muito.

Eles parecem dois homens civilizados discutindo assuntos civilizados. São dois homens do mundo, um da medicina e um das letras. Provavelmente não se veem como criminosos, independentemente do que tenham feito.

Quando o médico sai pela porta, eu pego o celular no bolso.

– O que você está fazendo? – pergunta o supervisor Wharton.

– Vou ligar para a namorada dele – respondo. – Alguém vai ter que passar a noite com ele. Eu não posso, e ele não ia querer que fosse você.

– Você tem coisa mais importante para fazer?

Eu olho para Wharton. Estou exausto. E odeio o fato de não poder ficar, embora tudo isso seja culpa minha. Minha arma. Minha brincadeira idiota com Mina, o dedo no meu bolso que fez parecer que trazer uma arma era a coisa certa.

– Eu não posso.

– Eu proíbo você de ligar para outra aluna, Sr. Sharpe. Esta situação já está caótica o suficiente assim.

– Dane-se – retruco, e os dedos enluvados deixam marcas marrons grudentas quando digito nas teclas.

– Você o encontrou? – diz Daneca, em vez de “alô”. – Ele está bem?

A ligação não está muito boa. A voz dela parece falhada e distante.

– Você pode vir até a sala do supervisor Wharton? – pergunto. – Se puder, acho que devia vir agora. Sam precisa de você. Ajudaria muito se você viesse agora. Mas não entre em pânico. Por favor, não entre em pânico e venha agora.

Ela diz que vai fazer isso com um tom perdido que me faz pensar que devo ter falado de um jeito estranho. Tudo parece vazio.

– Você devia ir – falo para o supervisor Wharton.

Quando Daneca chega, ele já foi.

Ela olha ao redor, para o tapete encharcado de sangue e para os abajures nas estantes, para Sam deitado na escrivaninha enorme de Wharton, inconsciente. Olha para a perna dele e para mim, sentado no chão sem camisa.

– O que aconteceu? – pergunta ela, andando até Sam e tocando na bochecha dele de leve com a luva.

– Sam... levou um tiro. – Ela faz uma expressão de medo. – Um médico veio cuidar dele. Quando acordar, sei que vai querer você com ele.

– Você está bem? – pergunta ela.

Não faço ideia do que ela quer dizer. É claro que estou bem. Não sou eu quem está deitado em uma mesa.

Eu fico de pé e pego o casaco. E faço que sim.

– Mas preciso ir, tá? O supervisor Wharton sabe sobre isso. – Faço um gesto vago na direção do tapete. – Acho que não podemos deslocar Sam enquanto ele não acordar. Que horas são? Meio-dia agora?

– Duas da tarde.

– Certo – digo, olhando para as janelas. O supervisor Wharton fechou as persianas, eu lembro. Não que eu fosse capaz de dizer a hora pela luz do sol. – Não posso...

– Cassel, o que está acontecendo? O que houve? O lugar aonde você vai tem a ver com Sam?

Eu começo a rir, e Daneca parece ainda mais preocupada.

– Na verdade – falo –, não tem relação alguma.

– Cassel... – pede ela.

Eu olho para Sam deitado na mesa e penso na minha mãe na casa de Zacharov, recuperando-se do ferimento à bala. Fecho os olhos.

No final da vida de um criminoso, é sempre o erro bobo, a coincidência, o descuido. O momento em que ficamos tranquilos demais, o momento em que vacilamos, o momento em que alguém mirou um pouco para a esquerda.

Já ouvi as histórias de guerra do vovô mil vezes. Como finalmente pegaram Mo. Como Mandy quase escapou. Como Charlie morreu.

Do nascimento ao túmulo, sabemos que nosso dia vai chegar. Nossa tragédia é que esquecemos que o dia de outra pessoa pode chegar primeiro.


CAPÍTULO QUATORZE

ESTOU TREMENDO QUANDO

saio da sala de Wharton, tremendo com tanta força que fico com medo de tropeçar ao descer pela escada. O sangue de Sam está manchando minha pele, encharcando minha calça. Eu me obrigo a atravessar a praça encolhido, para que o casaco esconda o pior da sujeira. A maioria dos alunos volta para casa no fim de semana, e tomo o cuidado de não seguir por nenhum dos caminhos usuais e de desviar quando vejo alguém. Fico nas sombras das árvores e na escuridão.

Quando chego ao corredor do alojamento, sigo direto para o banheiro coletivo. Eu me olho no espelho. Tem uma mancha vermelha no meu maxilar, e, por um momento, enquanto tento limpar, mas só espalho mais, parece que estou olhando para um estranho, um cara mais velho com bochechas afundadas e lábios curvados em expressão de raiva. Um maluco que acabou de matar alguém. Um doente. Um assassino.

Acho que ele não gosta muito de mim.

Apesar da expressão de raiva no rosto, os olhos são pretos e estão úmidos, como se ele estivesse prestes a chorar.

Eu também não gosto muito dele.

Meu estômago dá um pulo. Quase não tenho tempo de entrar em uma cabine quando começo a vomitar. Não comi nada, então o que sai é bile azeda. De joelhos no piso frio, engasgando, a onda de raiva e desprezo próprio que toma conta de mim é enorme e crescente. Imagino que não vá sobrar nenhuma parte de mim que não seja levada por ela. Sinto que não sobrou nada. Não há vontade de lutar em mim.

Tenho que me concentrar. Yulikova vai chegar em poucas horas, e há coisas que preciso resolver, que precisam acontecer antes que eu vá com ela. Planejamentos. Últimos detalhes e instruções.

Mas estou paralisado de horror por causa de tudo o que aconteceu e tudo o que ainda vai acontecer. Só penso em sangue e no som gutural e rouco de Sam gemendo de dor.

É melhor eu me acostumar.

Tomo um banho tão quente que minha pele parece queimada de sol quando termino. Em seguida, me visto para o encontro com os agentes federais: uma camiseta velha que foi mastigada pela secadora, minha jaqueta de couro e um par novo de luvas. Coloco as roupas cheias de sangue debaixo da torneira até estarem menos imundas, depois as enrolo em um saco plástico. Apesar de ser um risco, fico com o celular, boto-o no silencioso e enfio-o na meia.

Enfio algumas outras coisas na jaqueta, coisas que planejo colocar na bolsa que deixei no carro. Cartões e uma caneta. Gel de cabelo e um pente. Algumas fotos dobradas de Patton que imprimo com a impressora velha de Sam. Um livro surrado de detetives.

Vou até a loja da esquina e largo a sacola com roupas sujas de sangue na lata de lixo do lado de fora. O Sr. Gazonas sorri para mim, como sempre.

– Como está sua amiguinha loura? – pergunta ele. – Espero que a leve a algum lugar legal neste sábado à noite.

Dou um sorriso e peço um café e um sanduíche de queijo e presunto.

– Vou dizer a ela que foi ideia sua.

– Faça isso mesmo – diz ele enquanto me dá o troco.

Espero poder levar Lila para sair em algum sábado à noite. Espero ter a chance de vê-la de novo.

Tentando não pensar nisso, volto para o estacionamento e me obrigo a comer sentado no carro. Tudo tem gosto de cinzas e poeira.

Ligo o rádio e fico mudando as estações. Não consigo me concentrar no que estou ouvindo e, depois de um tempo, também não consigo ficar de olhos abertos.

Acordo com uma batida na janela. A agente Yulikova está de pé ao lado do carro, com o agente Jones e outra mulher que não reconheço.

Por um momento, eu me pergunto o que aconteceria se eu me recusasse a sair. Se eles acabariam indo embora. Se arrumariam um daqueles instrumentos de salvamento e cortariam o teto do meu Mercedes como se fosse uma lata de alumínio.

Eu abro a porta do carro e pego minha bolsa.

– Teve um bom descanso? – pergunta Yulikova.

Ela dá um sorriso doce, como se fosse a chefe do meu grupo de escoteiros e não a moça que quer me jogar no xilindró. Parece melhor de saúde do que quando estava no hospital. O frio deixou as bochechas dela rosadas.

Dou um bocejo forçado.

– Você me conhece – digo. – Sou a pura preguiça.

– Agora vamos. Você pode dormir no nosso carro se quiser.

– Claro – concordo, trancando o Mercedes.

O carro deles é previsivelmente preto, um daqueles Lincolns enormes nos quais dá para se espalhar. E eu faço isso. Enquanto estou me ajeitando, me inclino para botar a chave na bolsa e pego discretamente o celular. Em seguida, ao me recostar, coloco-o no compartimento da porta do carro.

O último lugar onde vão procurar artigos contrabandeados é no próprio veículo.

– Você tem alguma coisa para entregar? – indaga Yulikova. Ela está na parte de trás comigo. Os outros dois agentes estão na frente.

A arma. Ah, não, a arma. Deixei na sala de Wharton, debaixo da mesa.

Ela deve ver a expressão de horror no meu rosto.

– Aconteceu alguma coisa? – pergunta ela.

– Eu esqueci – respondo. – Me desculpe. Se você me deixar sair, eu vou pegar.

– Não – diz ela, trocando um olhar com a outra agente. – Não, tudo bem, Cassel. Podemos pegar quando viermos trazer você. Por que você não nos conta onde está?

– Se você quiser que eu vá buscar... – digo.

Ela suspira.

– Não, tudo bem.

– Você vai me contar o que está acontecendo? – pergunto. – Eu me sentiria bem mais à vontade se estivesse por dentro do plano.

– Nós vamos contar tudo. De verdade – assegura ela. – É bem simples e direto. O governador Patton vai dar uma coletiva de imprensa, e, quando acabar, nós gostaríamos que você usasse seu dom para transformá-lo... bem, em uma coisa viva que possa ser enjaulada.

– Você tem alguma preferência?

Ela me olha como se estivesse tentando avaliar se a estou testando ou não.

– Vamos deixar por sua conta, o que for mais fácil, mas é imperativo que ele não fuja.

– Se não fizer diferença, vou transformá-lo em um cachorro grande. Talvez um daqueles galgos bacanas com cara pontuda... o nome é saluki, né? Não, um borzói. Um cara que minha mãe conhecia tinha um. – O nome dele era Clyde Austin. Ele me bateu na cabeça com uma garrafa. Deixo esses detalhes de fora. – Ou talvez um besouro grande. Vocês poderiam guardar em um vidro. Só se lembre de fazer buracos para ele respirar.

Há um brilho repentino de medo nos olhos de Yulikova.

– Você está preocupado. Consigo ver – diz ela, esticando a mão enluvada e tocando a minha. É um gesto íntimo e maternal, e preciso me obrigar a não me encolher. – Você sempre fica sarcástico quando está nervoso. E sei que não é fácil para você não saber os detalhes, mas precisa confiar em nós. Ser agente do governo é sempre se sentir um pouco no escuro. É assim que mantemos uns aos outros em segurança.

O rosto dela é tão gentil. O que está dizendo é sensato. Ela parece sincera, não dá sinais óbvios que indicariam o contrário. O pensamento de que Barron possa ter inventado tudo o que me falou sobre os arquivos me perturba. Isso seria profundamente horrível e totalmente plausível.

Eu concordo.

– Acho que estou acostumado a contar comigo mesmo.

– Quando você veio a nós, eu sabia que seria um caso especial. Não só por causa do seu poder, mas por causa de suas origens. Raramente temos contato significativo com rapazes como você e Barron. A média dos recrutas da DLM é de garotos que moram nas ruas, ou por terem saído de casa ou por terem sido obrigados a sair. Às vezes, uma família faz contato conosco sobre uma criança que acham que é mestra, e a trazemos para o programa.

– Famílias não mestras, você quer dizer? – pergunto. – Eles ficam com medo? Os pais?

– Normalmente – responde ela. – Às vezes, a situação é tão potencialmente violenta que temos que realocar a criança. Temos duas escolas no campo para crianças mestras com menos de dez anos.

– Escolas militares – digo.

Ela assente.

– Há coisas piores, Cassel. Você sabe quantas crianças mestras são assassinadas pelos próprios pais? As estatísticas são uma coisa, mas já vi os ossos, ouvi as desculpas apavoradas. Recebemos o relato de uma criança que pode ser mestra, mas, quando chegamos à cidade, o garoto está hospedado com “parentes”, mas ninguém tem informações de contato confiáveis sobre a família. O garoto foi transferido para outra escola, só que não há registro de onde ele esteja. Normalmente, estão mortos.

Não tenho nada para dizer sobre isso.

– E há as crianças negligenciadas, as agredidas, garotos que são criados para pensar que a única escolha que têm é se tornarem criminosos. – Ela suspira. – Você está se perguntando por que estou contando isso tudo.

– Porque é com isso que você está acostumada, não com rapazes como eu, com mães como a minha e irmãos como os meus.

Ela assente e olha para a frente do carro, onde está o agente Jones.

– Não estou acostumada a ser vista como o inimigo.

Eu olho para ela.

– Não é isso que eu penso.

Ela ri.

– Ah, eu queria tanto ter um detector de mentiras agora, Cassel! E a pior parte é que percebo que é pelo menos em parte nossa culpa. Só sabemos sobre você porque você não teve escolha além de se entregar. E agora, com sua mãe metida em uma potencial confusão, bem, vamos dizer que nossas lealdades não estão alinhadas. Tivemos que fazer acordos, você e eu, e não é assim que quero que prossigamos. Quero que estejamos sintonizados, principalmente ao iniciar uma missão tão importante.

Ela me deixa pensar nisso por um tempo. O carro acaba parando em frente a um Marriott. É um daqueles hotéis enormes, perfeitos para se vigiar alguém, porque todos os andares levam a um saguão principal. Se for um andar alto, você só precisa de uma pessoa fora do quarto e talvez outra na escada e uma perto do elevador. São três pessoas, exatamente o número de gente que tem comigo no carro.

– Tudo bem – digo quando o agente Jones desliga o motor. – Afinal, estou nas mãos de vocês.

Yulikova sorri.

– E nós estamos nas suas.

Pego minha bolsa, eles pegam malas e pastas no porta-malas e seguimos para a entrada principal. Sinto como se estivesse indo para uma festa do pijama muito chata.

– Espere aqui – anuncia Yulikova, e me deixa de pé no saguão com a agente sem nome enquanto ela e Jones fazem o check-in.

Eu me sento no braço de uma poltrona bege e estico a mão.

– Cassel Sharpe.

Ela me olha com toda a desconfiança que Jones costuma demonstrar. O cabelo ruivo curto está preso em um rabo de cavalo baixo, e o terno azul-marinho combina com a bolsa de viagem. Usa sensatos sapatos de cor bege. Meia-calça, inacreditável. Pequenos aros dourados nas orelhas completam o efeito de uma pessoa que não diz nada sobre si mesma e sem vida interior. Não consigo nem avaliar a idade dela; pode ser qualquer coisa entre vinte e tantos e trinta e tantos.

– Cassandra Brennan.

Pisco várias vezes, mas, quando ela estica a mão, eu a seguro, e nós trocamos um aperto de mãos.

– Entendo por que deram esse trabalho a você – digo. – Família Brennan, hein? Yulikova disse que não trabalhava com muitas pessoas que vêm de famílias mestras. Mas não disse que não trabalhava com nenhuma.

– É um nome bem comum – comenta ela.

Yulikova volta e seguimos para os elevadores.

Meu quarto é parte de uma suíte, ligado aos quartos onde Yulikova, Jones e Brennan vão dormir. É claro que não me dão uma chave. Minha porta, previsivelmente, não leva ao corredor, mas sim a uma sala principal, onde há um sofá horrível, uma televisão e um frigobar.

Deixo a bolsa no quarto e volto para a sala central. O agente Jones está me observando como se eu estivesse prestes a fazer algum movimento ninja e fugir pelo duto de ventilação.

– Se quiser alguma coisa da máquina no corredor, peça para um de nós ir com você. Senão, você não vai poder voltar para o quarto. As portas se trancam automaticamente – avisa ele, como se eu nunca tivesse me hospedado em um hotel. Jones é tão sutil quanto uma porrada na cara com um pedaço de madeira.

– Ei – digo. – Onde está aquele seu parceiro? Hunt, não era?

– Foi promovido – diz ele simplesmente.

Eu sorrio.

– Dê a ele meus parabéns.

Jones está com cara de quem quer me bater, o que é só ligeiramente diferente do jeito normal dele de me olhar, como se eu fosse uma lesma.

– Está com fome? – pergunta Yulikova, interrompendo nossa conversinha. – Já jantou?

Penso nos restos do sanduíche mofando no meu carro. A ideia de comer ainda me dá uma sensação de enjoo, mas não quero que eles reparem.

– Não – respondo. – Mas estou ansioso para ouvir detalhes do que vai acontecer.

– Perfeito – fala Yulikova. – Por que você não toma um banho, e a agente Brennan e eu podemos sair para comprar comida. Deve ter um restaurante chinês por aqui. Aí vamos conversar. Cassel, tem alguma coisa de que você não gosta?

– Eu gosto de tudo – digo, e entro no quarto.

Jones vai atrás.

– Posso dar uma olhada naquela bolsa?

– Vá em frente. – Eu me sento na cama.

Ele dá um sorriso fraco.

– Faz parte dos procedimentos.

Minha bolsa parece entediá-lo depois que ele tateia pelo forro e olha para as fotos e cartões em branco.

– Também preciso revistar você – avisa ele.

Eu fico de pé e penso no celular no compartimento da porta do carro. É difícil não sorrir, mas lembro a mim mesmo que me parabenizar pela minha própria inteligência é uma boa forma de ser pego.

Ele sai, e passo algum tempo lendo meu livro. A história conta a improvável situação em que o detetive e o assassino que ele está perseguindo são na verdade a mesma pessoa. Fico incrédulo com o tempo que ele demorou para descobrir. Eu descobri bem mais rápido quando isso aconteceu comigo.

Pouco tempo depois, escuto a porta externa da suíte se abrir e vozes conversando. Então alguém bate na minha porta.

Quando saio, Brennan está distribuindo pratos de papel. O cheiro de gordura me dá água na boca. Eu achava que não estava com fome, mas de repente estou faminto.

– Tem mostarda picante? – pergunto, e Jones me passa alguns pacotinhos.

Enquanto comemos, Yulikova coloca um mapa na mesa. É de uma área aberta, um parque.

– Como falei no carro, é um plano bem simples. As complicações devem ser evitadas. Não permitiríamos que você participasse de uma operação na qual não estivéssemos confiantes, Cassel. Sabemos que você é inexperiente. O governador Patton vai dar uma coletiva de imprensa em um antigo campo de trabalho de mestres. Ele quer apresentar a proposição dois como forma de ajudar os mestres, mas também quer lembrar sutilmente todo mundo e ficar com medo.

Ela pega uma caneta esferográfica no paletó e marca um X em uma clareira.

– Você vai ficar aqui o tempo todo, em um dos trailers. O único perigo real é você ficar entediado.

Dou um sorriso e como outro pedaço de frango kung pao. Pego um pedaço de pimenta e tento ignorar a ardência na língua.

– Vão construir um palco aqui. – Ela aponta no papel. – E um trailer para Patton se vestir vai ser posicionado aqui. Deste lado tem mais alguns trailers para a equipe dele. Conseguimos um cuja segurança nos foi garantida.

– Então vou estar sozinho?

Ela sorri.

– Vamos ter pessoas em toda parte do lado de fora, vestidas de policiais locais. Também temos algumas pessoas na equipe de segurança de Patton. Você vai estar em boas mãos.

O que meio que faz sentido. Mas, se eu estiver sozinho no trailer e sair para atacar Patton, vai parecer que eu estava agindo sozinho, e isso também faz sentido. Os agentes federais vão estar de fora.

– E câmeras de segurança? – pergunto.

A agente Brennan ergue as sobrancelhas.

– Como é ao ar livre, não haverá nenhuma – diz Yulikova –, mas nossa preocupação são as câmeras da imprensa. – Ela faz um ponto azul na frente de onde marcou o palco. – A área de imprensa é aqui, mas vai haver vans paradas no estacionamento aqui, onde nossos veículos também vão estar. Se você ficar no trailer, não vai ser visto.

Eu faço que sim.

O agente Jones se serve de mais frango com gergelim e arroz, jogando molho em cima de tudo.

– O governador Patton vai fazer um discurso curto e depois vai responder perguntas de repórteres – continua Yulikova. – Você vai entrar em um dos trailers e vai ficar lá até o governador Patton subir no palco. Temos um monitor ligado para que você assista ao noticiário local. Vão transmitir o evento ao vivo.

– Sobre o que é o discurso?

Yulikova tosse discretamente.

– O senador Raeburn atacou Patton na imprensa. Essa é a chance dele de redirecionar a conversa e também de apelar para o restante do país. Se a proposição número dois passar em Nova Jersey, outros estados vão começar a elaborar legislações similares.

– Certo, então espero Patton sair do palco. E depois? Conto até três e pulo nele?

– Temos um uniforme para você. Você vai ter uma prancheta e um fone com microfone. Vai parecer parte da equipe dos bastidores. E temos uma tinta preta especialmente formulada para cobrir suas mãos. Vai parecer que você está de luvas, mas seus dedos vão estar descobertos.

– Inteligente.

Estou ansioso para ver isso. Meu avô ficaria feliz de saber que o governo está escondendo brinquedos secretos e legais de nós. Pena que não posso contar.

– Enquanto Patton estiver fazendo o discurso, você vai para o camarim dele e vai ficar esperando lá. Quando ele entrar, bem, o espaço é bastante apertado. Não deve ser difícil você colocar as mãos nele. Vamos nos comunicar com você pelo fone com microfone, então, se você tiver alguma pergunta ou quiser saber a posição do governador, vamos dar todo o apoio de que precisar.

Eu faço que sim de novo. Não é um plano terrível. É bem menos complicado do que o esquema de Philip de se esconder no banheiro a noite toda para matar Zacharov. E também é assustadoramente familiar. Acho que os assassinatos por meio de feitiço de transformação seguem certo padrão.

– Então tá. O governador Patton é um borzói. Todo mundo está surtando. E depois? Qual é minha saída estratégica? Tenho um minuto ou dois, talvez menos, antes que o rebote me atinja. Os guarda-costas dele estão bem do lado de fora.

Ela faz um círculo no papel no local onde vai ficar o trailer.

– Imagino que o confronto aconteça aqui.

A agente Brennan se inclina para a frente a fim de ver a marca.

– O guarda-costas que trabalha para nós, o homem que vai estar à esquerda, vai explicar que Patton não quer ser perturbado. Patton sem dúvida vai estar bem agitado, mas...

– Sem dúvida – reforço.

Ninguém nunca ri dessas coisas.

– Acreditamos que, por causa do comportamento instável dele, nosso agente vai poder explicar a agitação e os sons que virão em seguida. Quando você estiver pronto, avise pelo fone e vamos tirar vocês dois de lá.

– Não vou poder sair imediatamente – digo. O agente Jones começa a falar, e eu levanto a mão enluvada enquanto balanço a cabeça. – Não, estou dizendo que não posso. O rebote me faz ficar mudando de forma. Vocês podem até me deslocar por uma distância curta, mas vai ser complicado e eu não vou poder ajudar.

Eles se entreolham.

– Eu já vi isso – diz Jones. – Por mais que eu odeie dizer, ele está certo. Vamos ter que enrolar para ganhar tempo.

Yulikova e a agente Brennan estão me olhando com olhar de dúvida.

– É tão ruim assim? – pergunta a agente Brennan. – Quer dizer...

Eu dou de ombros.

– Não sei. Eu não vejo. Às vezes, não tenho como olhar, se é que você me entende.

Ela fica vermelha. Acho que é a primeira vez que consigo apavorar uma agente do FBI.

Parabéns para mim.

– Tudo bem – concorda Yulikova –, vamos mudar o plano. Vamos esperar o rebote de Cassel e, depois, tirá-lo de lá. Um carro vai estar aguardando.

Eu dou um sorriso.

– Vou precisar de uma coleira.

O agente Jones me lança um olhar avaliador.

– Para Patton. E uma guia. Podemos levar uma bem constrangedora?

As narinas dele se dilatam.

– É um pensamento muito prático.

Yulikova parece sincera e calma, mas a agitação de Jones me deixa irritado. Pode ser que ele fique assim antes das missões, mas está me deixando maluco.

– E é isso – diz Yulikova, pegando outro rolinho primavera. – O plano todo. Alguma pergunta, Cassel? Alguma pergunta, alguém?

– Onde vocês vão estar?

Eu toco no mapa e empurro um pouco na direção dela.

– Aqui – diz ela, com o dedo enluvado batendo na mesa, indicando um lugar vago e distante na frente do palco. – Tem uma van que podemos usar como centro de comando, onde Patton não vai se sentir ameaçado pela nossa presença. Ele exigiu apenas segurança própria, então não podemos ser muito óbvios. Mas estaremos lá, Cassel. Bem perto.

Bem perto, mas não em um lugar que eu saiba onde é. Que ótimo.

– E se eu precisar procurar vocês? – indago. – E se o monitor não estiver funcionando ou o fone der defeito?

– Vou dar a você um conselho muito bom que já me deram uma vez. Às vezes, nas missões, as coisas dão errado. Quando isso acontece, você tem duas escolhas: seguir em frente porque o que deu errado não era importante ou abortar a missão. Você tem que seguir seu instinto. Se o monitor quebrar, fique no lugar e não faça nada. Se não parecer certo, não faça nada.

É um bom conselho, o tipo de conselho que não parece útil dar a alguém que você quer que seja pego. Eu olho para Yulikova, bebendo refrigerante diet e comendo. Penso no meu irmão. Estou mesmo tentando decidir qual deles merece mais minha confiança?

– Certo – digo, pegando o mapa. – Posso ficar com isto? Quero conhecer bem a disposição do lugar.

– Você age como se já tivesse feito isso antes – comenta a agente Brennan.

– Venho de uma longa linhagem de golpistas – explico. – Já dei um ou dois golpes.

Ela ri e balança a cabeça. Jones olha com raiva para nós dois. Yulikova abre o biscoito da sorte e pega o papel. Impresso em letras grandes na tira de papel estão as palavras: “Você vai ser convidado para um evento incrível.”

Eu me recolho logo depois.

Olho para o telefone do hotel ao lado da cama e fico ansioso para ligar para Daneca e saber notícias de Sam. Mesmo sabendo que deve estar grampeado, fico tentado. Mas ele deve estar descansando, e nem sei se vai querer falar comigo.

Qualquer menção a ele ter levado um tiro faria os agentes federais tirarem conclusões erradas e fazerem perguntas demais. Mais uma coisa de que nenhum de nós precisa.

Eu também não devia ligar para Lila, apesar de a noite anterior parecer mais sonho do que realidade. Pensar nela quando me sento no edredom áspero do hotel, me lembrar da pele dela na minha, da forma como ela riu, da curva da boca... por si só parece arriscado. Como se até a lembrança dela pudesse dar aos agentes federais algo que poderiam usar contra mim.

Agora que ela sabe que estou trabalhando com a agência, eu me pergunto o que vai fazer com a informação. Eu me pergunto o que vai esperar que eu faça.

Deito-me na cama e tento dormir, com os pensamentos girando entre Lila e Sam. Escuto a risada dela e vejo o sangue dele, sinto as mãos nuas dela e ouço os gritos dele. Sem parar, até que todo mundo esteja rindo e todo mundo esteja gritando nos meus sonhos.

Na manhã seguinte, cambaleio até a sala. O agente Jones está lá, sentado no sofá, tomando uma caneca de café entregue pelo serviço de quarto. Ele olha com cara feia na minha direção, com o jeito de um homem que começou um plantão muitas horas antes. Aposto que os três ficaram revezando a noite inteira para garantir que eu não fugisse.

Encontro outra caneca e sirvo café. É horrível.

– Ei – digo, pensando de repente na minha mãe em um hotel totalmente diferente deste. – Dá mesmo para fabricar metanfetamina com uma cafeteira de hotel?

– Claro – responde ele, olhando de forma pensativa para a caneca.

Parece que mamãe estava certa quanto a alguma coisa.

Depois que tomo um banho e me visto, encontro todos na sala, pedindo café da manhã. O dia se arrasta à nossa frente quase sem nada para fazer. Jones quer assistir a um jogo de basquete na grande televisão de plasma, então passo a tarde jogando cartas com Yulikova e Brennan à mesa. Primeiro, apostamos balas da máquina do corredor, depois moedas e depois a escolha de que filmes vamos alugar.

Escolho A ceia dos acusados. Estou precisando rir.


CAPÍTULO QUINZE

NA MANHÃ DE SEGUNDA,

acordo sem lembrar onde estou. De repente, tudo volta: o hotel, os agentes federais, o assassinato.

A adrenalina invade minha corrente sanguínea com tanta força que chuto o cobertor e começo a andar pelo quarto sem ideia de para onde ir. Entro no banheiro e evito meu olhar no espelho. Estou quase vomitando de nervosismo, sinto os espasmos no corpo.

Não sei se acredito em Barron ou não. Não sei se estão armando para mim. Não sei mais quem são os mocinhos.

Eu achava que as pessoas que viviam ao meu redor quando eu era criança, a maioria criminosas, eram diferentes das pessoas comuns. Sem dúvida diferentes da polícia, de agentes federais com distintivos brilhantes. Eu achava que golpistas e malandros nasciam maus. Achava que havia uma falha interior em nós. Algo corrupto que significava que jamais seríamos como as outras pessoas, que o melhor que podíamos fazer era imitá-las.

Mas hoje eu me pergunto: e se todo mundo é igual e são mil pequenas escolhas que formam a pessoa que você é? Nada de bom e mau, nada de branco e preto, nada de demônios ou anjos interiores sussurrando as respostas certas nos nossos ouvidos como se tudo fosse uma prova cósmica. Só nós, hora a hora, minuto a minuto, dia a dia, fazendo as melhores escolhas que conseguimos.

O pensamento é apavorante. Se for verdade, então não existe escolha certa. Só existe escolha.

Fico diante do espelho tentando decidir o que fazer. Fico assim por muito tempo.

Quando me acalmo o bastante para ir até a sala, encontro Yulikova e Jones já vestidos. Brennan não está com eles.

Bebo o café ruim do serviço de quarto e como ovos.

– Estou com seus adereços – diz Yulikova, indo para o quarto dela.

Ela volta com um pincel, um pequeno tubo do que parece tinta a óleo, um moletom marrom, um cordão com uma identificação e um fone de ouvidos.

– Ah.

Eu viro a identificação nas mãos. O nome George Parker está escrito nela, debaixo de uma foto manchada que poderia passar como minha. É uma boa identificação. A foto é fácil de esquecer e seria inútil em um pôster de procurado ou espalhada pela internet.

– Coisa boa.

– Esse é nosso trabalho – comenta ela com ironia.

– Me desculpe.

Ela está certa. Eu estava pensando neles como amadores, funcionários do governo sinceros e corretos tentando executar um plano ao qual não estão acostumados, mas vivo esquecendo, é isso que eles fazem. São criminosos golpistas e talvez estejam me enganando.

– Vou precisar que você tire as luvas – avisa ela. – Este produto demora muito para secar, então, se você precisa de algum preparativo de última hora, melhor fazer agora.

– Ela quer dizer dar uma mijada – retruca o agente Jones.

Eu visto o moletom e fecho o zíper, depois vou até o quarto, onde dobro as fotos de Patton e as coloco no bolso de trás da calça jeans. Coloco o pente no outro bolso, junto com os cartões. A caneta e o gel de cabelo eu coloco no bolso da frente do moletom, junto com a chave do carro.

Volto até a mesa, tiro as luvas e abro os dedos sobre o compensado enquanto me sento.

Yulikova olha para meu rosto e minhas mãos. Pega minha mão direita com os dedos enluvados e a puxa para perto, virando a palma para cima.

Jones está nos observando, cada linha do corpo preparada. Se eu tentasse segurar a pele nua do pescoço dela, ele pularia da cadeira e cairia em cima de nós em segundos.

Se eu pegasse o pescoço dela, ele chegaria tarde demais. E acho que ele sabe.

Ela abre o tubo e espreme o gel preto e frio na minha mão. Não parece nada tensa, só calma e eficiente. Se me vê como mais perigoso do que qualquer outro garoto mestre que está treinando, não demonstra.

As cerdas do pincel fazem cócegas; não estou acostumado com nada tocando minha mão tão diretamente. Mas a tinta cobre a pele com precisão e seca com um brilho opaco de couro. Yulikova toma o cuidado de pintar tudo, até as pontas dos dedos, e tomo o cuidado de não me mexer, por mais que esteja com vontade de rir.

– Pronto – diz ela, fechando o tubo. – Assim que secar, estaremos prontos para sair. Pode relaxar agora.

Eu observo o rosto dela.

– Você prometeu que as acusações contra minha mãe vão ser descartadas depois disso, certo?

– É o mínimo que podemos fazer – diz ela.

Não há nada na expressão dela que me dê motivo para não acreditar, mas suas palavras não são exatamente garantias.

Se ela estiver mentindo, eu sei o que tenho que fazer. Mas, se não estiver, vou ter jogado tudo fora por nada. É uma escolha impossível. A única chance que tenho é provocá-la até que fale alguma coisa.

– E se eu não quiser entrar para a DLM? Depois dessa operação? E se eu decidir que não fui feito para trabalhar como agente federal?

Isso a faz interromper o processo de limpeza do pincel em um copo de água.

– Isso seria muito difícil para mim. Meus superiores estão interessados em você. Tenho certeza de que você pode imaginar. Um mestre de transformação é coisa rara. Na verdade...

Ela pega uma pilha de papéis que me parece familiar. Os contratos.

– Eu ia esperar para fazer isso depois, quando tivéssemos alguns minutos a sós, mas acho que a hora é agora. Meus chefes ficariam bem mais à vontade se você assinasse.

– Pensei que tivéssemos concordado em esperar minha formatura.

– Esta operação me obrigou a mudar isso.

Eu faço que sim com a cabeça.

– Entendo.

Yulikova se recosta na cadeira e passa os dedos enluvados no cabelo grisalho. Ela não deve ter tirado toda a tinta da luva, porque um pouco se espalha como fuligem na franja dela.

– Entendo se você tiver dúvidas. Pode pensar sobre elas, mas lembre-se por que você falou em se juntar a nós. Podemos impedir que se torne um prêmio pelo qual famílias criminosas rivais vão lutar. Podemos proteger você.

– Mas quem vai me proteger de vocês?

– De nós? A sua família tem alguns dos piores... – começa a dizer Jones, mas Yulikova faz as palavras dele pararem com um movimento de mão.

– Cassel, isso é um verdadeiro passo à frente para você. Estou feliz que esteja me perguntando isso, feliz por você estar sendo sincero.

Eu não digo nada. Estou prendendo a respiração sem nem saber por quê.

– É claro que você se sente assim. Escute, sei que você está em conflito. E sei que quer fazer a coisa certa. Vamos continuar conversando e sendo sinceros. De minha parte, estou dizendo com sinceridade que, se você abandonar a DLM, meus chefes não vão ficar felizes com sua decisão e não vão ficar felizes comigo.

Eu me levanto e flexiono os dedos, em busca de falhas nas luvas falsas. Elas se movem como se fossem uma segunda pele.

– Isso tem a ver com Lila Zacharov? – pergunta Yulikova. – É o motivo de você estar hesitante?

– Não! – respondo, fechando os olhos por um longo momento, contando minha respiração. Eu não provoquei Yulikova. Ela é que me tirou do sério.

– Nós sempre soubemos que vocês dois tinham um relacionamento íntimo. – Ela inclinou a cabeça e está observando minha reação. – Ela parece uma boa moça.

Eu dou uma risada debochada.

– Tudo bem, Cassel. Ela parece uma garota muito cruel de quem você gosta muito. E também me parece que ela não ia querer ver você trabalhando para o governo. Mas a decisão é sua e é você quem tem de tomá-la. Você e seu irmão estão bem mais seguros aqui. Ela vai aceitar se gostar de verdade de você.

– Não quero falar sobre ela – digo.

Yulikova suspira.

– Tudo bem. Nós não precisamos falar sobre ela, mas você precisa me dizer se vai assinar.

Há algo de tranquilizador na pilha de papéis. Se eles fossem me jogar na prisão, não precisariam que eu concordasse com nada. Teriam todo o poder de barganha depois que eu estivesse atrás das grades.

Eu pego o cordão e o penduro no pescoço. Em seguida, pego o fone na mesa. Não vou descobrir nada assim. Nós poderíamos conversar por uma eternidade e Yulikova não escorregaria, não revelaria nada por acidente.

– Os Zacharov são criminosos, Cassel. Eles vão usar você e cuspi-lo longe se você deixar. E ela também. Ela vai ter que fazer coisas em nome da família que vão mudá-la.

– Eu falei que não quero falar sobre isso.

O agente Jones se levanta e olha para o relógio.

– Está quase na hora de ir.

Eu olho para o quarto.

– Devo arrumar minhas coisas?

Jones balança a cabeça negativamente.

– Vamos voltar aqui à noite antes de levarmos você de volta para Wallingford. Para deixar você dormir depois do rebote e para lavar essa tinta.

– Obrigado – falo.

Ele grunhe.

Tudo isso parece possível. Eu talvez volte mesmo para aquele quarto, Yulikova e Jones talvez sejam mesmo agentes federais tentando decidir como lidar com um garoto cujo passado criminoso e cuja habilidade valiosa o tornam ao mesmo tempo uma vantagem e um problema. Eles podem estar planejando não me trair.

Está na hora de ir com tudo, para um lado ou para outro. Está na hora de decidir no que quero acreditar.

Você bota seu dinheiro e assume o risco.

– Tudo bem – digo, suspirando. – Me dê os papéis.

Eu pego a caneta presa no moletom e assino na linha pontilhada com um floreio.

O agente Jones ergue as sobrancelhas. Eu sorrio.

Yulikova se aproxima e olha para os papéis, passando o dedo enluvado debaixo do meu nome. Ela coloca a outra mão no meu ombro.

– Vamos cuidar bem de você, Cassel. Eu prometo. Bem-vindo à Divisão Licenciada da Menoridade.

Promessas, promessas. Eu guardo a caneta. Uma vez que a decisão final foi tomada, eu me sinto melhor. Mais leve. Todo o peso foi tirado dos meus ombros.

Nós saímos do quarto. No elevador, eu pergunto:

– Onde está a agente Brennan?

– Já está lá – responde Jones. – Preparando o terreno para nós.

Atravessamos o saguão e vamos até o carro. Quando entro, vou para o mesmo lado em que me sentei no percurso de ida. Enquanto mexo no cinto de segurança, pego o celular no compartimento lateral da porta e enfio no bolso.

– Você quer parar para comer um burrito de café da manhã ou alguma outra coisa? – pergunta Jones.

Última refeição, penso, mas não digo as palavras em voz alta.

– Não estou com fome – respondo.

Olho para a estrada pela janela com película escura e repasso em silêncio todas as coisas que vou ter que fazer quando chegarmos à coletiva de imprensa. Listo todas elas mentalmente e refaço a lista.

– Vai acabar logo – diz Yulikova.

Isso é verdade. Tudo vai acabar logo.

Eles me deixam sozinho no parque. Aperto os olhos por causa do sol forte. Mantenho a cabeça baixa ao passar pela segurança, erguendo minha identificação. Uma mulher com uma prancheta me diz que há uma mesa com café e donuts de cortesia para os voluntários.

Um palco grande com uma cortina azul cobre a parte de trás. Alguém está ligando um microfone a um púlpito de aparência impressionante com um emblema de Nova Jersey. Uma seção VIP separada por cordas está sendo preparada em um dos lados da área de imprensa. Mais duas pessoas empilham alto-falantes embaixo do palco, que tem uma cortina mais curta na frente, branca.

Atrás disso fica a área dos trailers, parados em semicírculo em torno de várias mesas em que os voluntários estão arrumando pilhas de folhetos, placas e camisetas. Há também uma mesa mais distante, com comida. Várias pessoas estão lá perto, conversando e rindo. A maioria usa fones de ouvido como o meu.

Yulikova fez o dever de casa direitinho. A organização é idêntica ao mapa que me mostrou. Passo pelo trailer que o governador Patton vai usar e sigo para o que Yulikova separou para mim. Dentro, há um sofá cinza, uma penteadeira, um pequeno banheiro e uma televisão pendurada na parede, ligada em um canal de notícias que promete transmissão ao vivo do discurso. Dois apresentadores estão conversando. Abaixo deles passa a legenda do que estão dizendo, um pouco atrasada, pelo que percebo com minha capacidade limitada de leitura labial.

Eu verifico o celular. São 7h40 da manhã. O discurso de Patton só acontecerá às nove. Tenho algum tempo.

Aperto a tranca frágil e balanço um pouco a porta. Ela parece fechada, mas não confio na tranca. Acho que a arrombaria mesmo vendado.

Ouço um estalo no fone de ouvido e surge a voz da agente Brennan.

– Cassel, você está aí?

– Estou, tudo perfeito aqui – digo no microfone. – Nunca esteve melhor. E você?

Ela ri.

– Não fique convencido, garoto.

– Pode deixar. Vou só ficar assistindo à TV e esperando.

– Faça isso. Falo com você em quinze minutos.

Tiro o fone e coloco sobre a mesa. É um inferno ficar ali sem fazer nada, principalmente com tanta coisa a fazer. Quero começar, mas também sei que vão estar prestando atenção agora. Mais tarde, vão ficar entediados. Pego os cartões e a caneta e me divirto tentando descobrir em que parte do aposento uma câmera poderia ter sido escondida. Não que eu tenha certeza de que haja uma. Mas acho que, se eu continuar sendo o mais paranoico possível, não tenho como errar.

Por fim, escuto o estalo no fone de ouvido de novo.

– Alguma coisa a relatar?

– Nada – respondo, pegando-o e falando ao microfone. – Tudo tranquilo.

São quase oito horas. Uma hora não é muito tempo.

– Falo com você em quinze minutos – diz ela.

– Pode ser em vinte – digo, torcendo para usar um tom casual.

Em seguida, encontro o botão e desligo o fone. Como não me disseram especificamente para não fazer isso, concluo que, apesar de não ficarem felizes, eles também não vão me procurar por causa disso.

Se houver algum tipo de rastreador GPS em mim, foi colocado na identificação, no moletom ou no fone. Estou apostando que não é na identificação, pois ela precisa ser examinada. Tiro o moletom e o deixo sobre a mesa. Em seguida, vou até o banheiro e ligo as torneiras para abafar qualquer ruído.

Tiro as roupas. Dobro-as e coloco na mesinha com toalhas e sabonete antibacteriano para luvas. Pego e desdobro minhas fotos. Então, nu, eu me agacho e apoio as mãos nas coxas. O chão está frio. Afundo os dedos na pele.

Concentro-me em tudo o que descobri na última semana, em cada detalhe que sei. Concentro-me nas fotos na minha frente e nos vídeos que vi. Puxo o governador Patton para o olho da minha mente. E, então, eu me torno ele.

Dói. Sinto tudo mudar, ossos estalarem, cartilagens cederem, a carne se remodelar. Faço um grande esforço para não gritar. Consigo quase o tempo todo.

Quando estou começando a me levantar, o rebote ataca.

Parece que minha pele está se abrindo, minhas pernas derretendo. Minha cabeça parece ter a forma errada e meus olhos estão primeiro fechados, depois arregalados, vendo tudo por mil lentes diferentes, como se eu estivesse coberto de olhos que não piscam. Tudo está tão claro, e todas as diferentes texturas da dor se desdobram ao meu redor, me puxando.

É muito pior do que eu me lembrava.

Não sei quanto tempo se passa até eu me mover de novo. Parece bastante. A pia encheu, e a água derramou no chão. Fico de pé e giro as torneiras enquanto pego as roupas. A camiseta e a cueca cabem por pouco. Mas não consigo colocar a calça jeans.

Eu me olho no espelho, olho para a cabeça careca e para o rosto enrugado. É perturbador. É ele. Com o pente e o gel, ajeito os poucos fios grisalhos na cabeça para que fiquem como nas fotos.

Minhas mãos estão tremendo.

Quando eu era criança, queria ser mestre de transformação porque era raro. Era especial. Se você era um desses mestres, você era especial. Era tudo o que eu sabia. Nunca pensei muito no poder em si. Depois, quando descobri que eu era um deles, ainda não entendia de verdade. Quer dizer, eu sabia que era único, poderoso e legal. Sabia que era perigoso. Sabia que era raro. Mas ainda não compreendia de fato por que assustava as pessoas tão profundamente. Por que elas me queriam tanto do lado delas.

Hoje sei por que as pessoas têm medo dos mestres de transformação. Sei por que querem me controlar. Agora eu entendo.

Posso entrar na casa de alguém, beijar a esposa dele, me sentar à mesa e comer o jantar. Posso roubar um passaporte no aeroporto e em vinte minutos vai parecer que é meu. Posso ser um melro olhando pela janela. Posso ser um gato andando por um peitoril. Posso ir a qualquer lugar que queira e fazer as piores coisas que puder imaginar, sem nada para me ligar a esses crimes. Hoje, posso ter minha aparência, mas amanhã posso ter a sua. Posso ser você.

Caramba, eu também estou com medo de mim agora.

Com o celular em uma das mãos e os cartões na outra, desviando de onde acho que as câmeras podem estar para não ser capturado em imagens, saio do trailer.

As pessoas viram a cabeça, de olhos arregalados para o governador Patton de cueca, de pé ao ar livre.

– Porcaria de trailer errado – resmungo, abrindo a porta do trailer de Patton.

Ali, como eu esperava, está o terno que encomendei na Bergdorf Goodman, fechado em um saco protetor e feito sob medida. Um par novo de sapatos e meias e uma camisa branca nova, ainda no plástico. Uma gravata de seda está pendurada no cabide do terno.

Fora isso, o trailer se parece muito com o meu. Tem um sofá, uma área para se vestir. Uma televisão e um monitor.

Segundos depois, uma assistente entra pela porta sem bater. Ela parece em pânico.

– Me desculpe. Nós não sabíamos que o senhor tinha chegado. Estão prontos para fazer sua maquiagem, governador. Ninguém viu o senhor entrar, e eu não... Bem, vou deixar o senhor terminar de se arrumar.

Eu olho para o celular. São oito e meia. Perdi cerca de meia hora inconsciente e ainda por cima perdi o contato de verificação com a agente Brennan.

– Venha me buscar em dez minutos – digo, tentando modular a voz como ele. Vi um monte de vídeos e treinei, mas não é fácil soar totalmente diferente de si mesmo. – Tenho que terminar de me vestir.

Quando ela sai, ligo para Barron.

Por favor, digo para o universo, para o que quer que esteja ouvindo. Por favor, atenda o telefone. Estou confiando em você. Atenda o telefone.

– Oi, irmãozinho – diz Barron, e afundo no sofá de alívio. Até aquele momento, não sabia se ele ia fazer a parte dele. – De um zangão do governo para outro, como você está?

– Só me diga que você está mesmo... – começo a falar.

– Ah, eu estou. Definitivamente. Estou aqui com ele agora. Eu estava explicando que nossa mãe é agente federal e que tudo isso foi uma conspiração do governo.

– Ah – retruco. – Hã, que bom.

– Ele já sabia de quase tudo. – Ouço o sorriso na voz dele. – Só estou fornecendo os detalhes. Mas vá em frente e conte para todos que o governador Patton vai precisar atrasar a coletiva de imprensa em meia hora, certo?

Acho que, se você pede a um mentiroso compulsivo para enrolar um cara que é totalmente paranoico, ele vai usar teorias loucas de conspiração para isso. Eu devia ficar feliz por Barron não estar dizendo que o governador da Virgínia está mirando um laser para a lua e que eles precisam ir para bunkers subterrâneos imediatamente.

– Posso fazer isso.

Desligo, pego a calça do terno e enfio o pé pelo buraco da perna. São roupas melhores do que quaisquer outras que já usei. Tudo nelas parece caro.

Quando a assistente volta, estou ajeitando a gravata e pronto para ser maquiado.

Você pode estar se perguntando o que eu estou fazendo. Eu também me pergunto. Mas alguém tem que deter Patton, e essa é minha oportunidade.

Há um monte de gente na equipe de apoio do governador, mas por sorte a maioria ainda está na mansão dele, esperando o verdadeiro Patton sair. Só preciso lidar com quem aparece. Eu me sento em uma cadeira de diretor ao ar livre e deixo uma garota de cabelo curto e espetado borrifar base no meu rosto emprestado. As pessoas me fazem um monte de perguntas que não posso responder sobre entrevistas e reuniões. Alguém me leva café com creme e açúcar, mas não bebo. Um juiz liga e pede para falar comigo. Eu balanço negativamente a cabeça.

– Depois do discurso – digo e estudo meus cartões, quase todos em branco.

– Tem uma agente federal aqui – me informa um dos ajudantes. – Ela diz que pode ter havido uma falha na segurança.

– Eu esperava que eles fizessem algo assim. Não, eu vou fazer o discurso. Eles não podem me impedir – declaro. – Quero um dos nossos seguranças cuidando para que ela não me perturbe quando eu estiver no palco. Nós vamos aparecer ao vivo, não é?

O ajudante assente.

– Perfeito.

Não sei quais são e quais não são as suspeitas de Yulikova e dos outros, mas em poucos minutos não vai importar.

É nessa hora que a agente Brennan aparece na lateral do trailer em que eu deveria estar, segurando o distintivo.

– Governador – diz ela.

Eu me levanto e faço a única coisa em que consigo pensar. Ando até o palco, na frente do pequeno grupo de partidários segurando cartazes e do grupo maior de correspondentes da imprensa com câmeras de vídeo apontadas para mim. Pode não ser muita gente, mas é o bastante. Fico paralisado.

Meu coração dispara no peito. Não acredito que estou mesmo fazendo isso.

É tarde demais para parar.

Limpo a garganta e rearrumo os cartões, então ando até o púlpito. Vejo Yulikova falando freneticamente em um rádio.

– Colegas cidadãos, distintos convidados, membros da imprensa, obrigado por me darem a cortesia de sua presença hoje. Estamos no exato lugar em que centenas de cidadãos de Nova Jersey foram detidos depois que a proibição foi aprovada, durante um período obscuro na história da nossa nação. E estamos aqui olhando para uma legislação que, se for aprovada, pode mais uma vez nos levar em direções que não previmos.

Há aplauso, mas cauteloso. Esse não é o tom que o verdadeiro Patton usaria. É provável que ele dissesse alguma porcaria sobre testar mestres ser benéfico para a segurança deles. Falaria sobre estarmos na aurora de um dia glorioso.

Mas, hoje, quem está com o microfone sou eu. Jogo os cartões por cima do ombro e sorrio para a plateia. Pigarreio.

– Meu plano era ler uma declaração curta já pronta e responder algumas perguntas, mas vou desviar do meu procedimento habitual. Hoje não é um dia para as políticas de sempre. Hoje quero falar para vocês palavras que vêm do coração.

Eu me apoio no púlpito e respiro fundo.

– Eu matei muita gente. E, quando digo 'muita', estou falando de muitas pessoas mesmo. Eu também menti, mas, para ser sincero, depois de ouvir sobre os assassinatos, duvido que vocês se importem com algumas mentirinhas. Sei o que estão se perguntando. Ele quer dizer que matou gente diretamente ou apenas que encomendou as mortes? Senhoras e senhores, estou aqui para dizer que estou me referindo às duas coisas.

Olho para os repórteres. Eles cochicham uns com os outros. Câmeras piscam. Cartazes oscilam.

– Por exemplo, eu matei Eric Lawrence, de Toms River, Nova Jersey, com minhas próprias mãos. Mãos enluvadas, claro. Não sou nenhum pervertido. Mas eu o estrangulei. Vocês podem ler os relatórios policiais... bem, poderiam se eu não os tivesse recolhido. Vocês devem estar se perguntando: por que eu faria uma coisa dessa? E o que isso tem a ver com minha cruzada contra os mestres? E o que me levou a dizer qualquer uma dessas coisas em voz alta, ainda mais em público? Bem, quero falar sobre uma mulher muito especial na minha vida. Sabe como é quando a gente conhece uma garota e fica meio doido?

Eu aponto para um cara alto na frente.

– Você sabe o que eu quero dizer, não sabe? Bem, quero ser claro em relação a Shandra Singer. Eu posso ter exagerado em algumas coisas. Se sua namorada termina com você, às vezes você se chateia e pode ficar tentado a ligar doze vezes seguidas implorando para que ela aceite você de volta... ou talvez pinte alguma obscenidade com tinta spray no carro dela... ou talvez arme para ela ser culpada de uma conspiração enorme... e tente fazer com que leve um tiro no meio da rua... E, se você estiver muito chateado, pode tentar acabar com todos os mestres do estado. Quanto mais você a ama, mais louco fica. Meu amor era enorme. Meus crimes foram maiores. Não estou aqui pedindo perdão. Não espero perdão. Na verdade, espero um circo da mídia no meu julgamento, seguido de um longo período de encarceramento.

“Mas estou contando isso hoje porque vocês, meus colegas cidadãos, merecem minha sinceridade. É melhor tarde do que nunca, e tenho que dizer que é muito bom desabafar. Em resumo, eu matei pessoas. Vocês não devem dar muito valor às outras coisas que falei antes, e... ah, é. A proposição dois é uma ideia terrível que apoiei para distrair vocês dos meus outros crimes. Alguma pergunta?

Por um longo momento, só há silêncio.

– Tudo bem, então – digo. – Obrigado. Deus abençoe a América e Deus abençoe o grande estado de Nova Jersey.

Cambaleio para descer do palco. Há pessoas com pranchetas e auxiliares de terno olhando para mim como se tivessem medo de se aproximar. Dou um sorriso e faço sinal de positivo.

– Discurso bom, né? – comento.

– Governador – chama um deles, vindo na minha direção. – Temos que discutir...

– Agora não – digo a ele, ainda sorrindo. – Traga meu carro, por favor.

Ele abre a boca para dizer algo, talvez que não faz ideia de onde esteja meu carro, pois ainda deve estar com o verdadeiro Patton, quando meu braço é puxado para trás do corpo e eu quase perco o equilíbrio. Dou um gritinho quando sinto metal nos pulsos. Algemas.

– Você está preso. – É Jones, com o terno preto e alinhado de agente federal. – Governador.

Flashes espocam. Repórteres correm na nossa direção.

Eu não consigo evitar. Começo a gargalhar. Penso no que acabei de fazer e rio ainda mais.

O agente Jones me leva para longe da multidão agitada, até um ponto vazio da rua onde há carros de polícia e vans de televisão estacionados. Alguns policiais se aproximam para tentar conter a confusão de câmeras de TV e os paparazzi.

– Você cavou mesmo sua cova – murmura ele. – E eu vou colocar você nela.

– Diga isso mais alto – sussurro. – Duvido que tenha coragem.

Ele me leva até um carro, abre a porta e me coloca dentro. Sinto alguma coisa passar pela minha cabeça e olho para baixo. Três dos amuletos que fiz, os que impedem transformação, que dei para Yulikova, estão pendurados no meu pescoço.

Antes que eu possa dizer qualquer coisa, a porta é fechada.

O agente Jones senta no banco do motorista e liga o motor. Flashes piscam pela janela quando começamos a nos afastar da multidão.

Eu me recosto e faço meus músculos relaxarem o máximo possível. As algemas estão apertadas demais e não consigo tirar, mas não estou preocupado. Não mais. Eles não podem me prender. Não por isso, não se podem prender Patton sem dificuldade. Mentiras simples são sempre melhores do que uma verdade complicada.

Explicar que o Patton na televisão, o que confessou, não era o Patton de verdade, mas que o verdadeiro Patton de fato cometeu aqueles crimes, é confuso demais.

Eles podem gritar comigo, podem não me querer mais na DLM, mas vão acabar tendo que admitir que resolvi o problema. Eu acabei com Patton. Não do jeito que eles queriam, mas ninguém se machucou, e isso precisa ter algum valor.

– Onde está Yulikova? – pergunto. – Vamos voltar para o hotel?

– Nada de hotel – diz Jones.

– Você pode me dizer para onde vamos? – indago.

Ele não diz nada, só continua dirigindo.

– Pare com isso – digo. – Me desculpe. Mas eu recebi informações de que havia um plano para me incriminar por enfeitiçar Patton. Você pode negar se quiser, e talvez a informação estivesse errada, mas fiquei com medo. Olhe, sei que eu não devia ter feito isso, mas...

Ele para de repente no acostamento. Os carros passam por nós de um dos lados e tem um bosque escuro de árvores no outro.

Eu paro de falar.

Ele sai e, ao abrir minha porta, está com uma arma apontada para mim.

– Saia – diz ele. – Devagar.

Eu não me mexo.

– O que está acontecendo?

– Agora! – grita ele.

Estou algemado; não tenho muitas escolhas. Eu saio do carro. Ele me empurra até a parte de trás e abre o porta-malas.

– Hã – digo.

Ele abre os dois botões de cima da minha camisa para poder colocar os amuletos sobre minha pele. Quando fecha os botões e aperta minha gravata, os amuletos ficam presos embaixo. Não tenho chance de tirá-los.

– Entre – ordena ele, indicando o porta-malas.

Não tem muita coisa lá dentro. Só um estepe e um kit de primeiros socorros. E um pedaço de corda.

Nem me dou o trabalho de dizer não, apenas saio correndo. Mesmo com as mãos algemadas nas costas, acho que posso fugir.

Desço a encosta, deslizando mais do que correndo. Os sapatos sociais são horríveis e meu corpo é pesado e nada familiar. Não estou acostumado com o jeito como se move. Fico perdendo o equilíbrio, esperando que minhas pernas sejam mais compridas. Escorrego, e a calça do terno desliza na grama lamacenta. Logo me levanto e corro para as árvores.

Estou indo devagar demais.

Jones cai com tudo nas minhas costas e me derruba no chão. Eu luto, mas não adianta. Sinto o cano frio da arma na têmpora e o joelho na base da coluna.

– Você é covarde como uma porcaria de doninha. Sabia disso? Uma doninha. É isso que você é.

– Você não me conhece – digo, cuspindo sangue na terra. Não consigo evitar; começo a rir. – E também não sabe muito sobre doninhas.

O punho dele acerta a lateral do meu corpo, e quase apago com a dor. Um dia vou aprender a ficar de boca calada.

– Levante-se.

Eu me levanto. Andamos de volta até o carro. Não faço mais piadas.

Quando chegamos lá, ele me empurra para o porta-malas.

– Entre – exige ele. – Agora.

– Me desculpe – digo. – Patton está bem. Está vivo. Não sei o que você pensa que eu fiz...

A arma faz um único clique ameaçador perto do meu ouvido.

Eu o deixo me empurrar para o porta-malas. Ele pega a corda e envolve minhas pernas, ligando-a à corrente das algemas nas minhas costas. Fica tão apertado que mal consigo me mexer. Não vou ter mais como correr.

Ouço o barulho de fita adesiva e sinto-a sendo enrolada nas minhas mãos em dois casulos separados e grudentos. Ele prende alguma coisa nas palmas das minhas mãos, algo pesado. Pedras. Quando termina, ele me rola, de forma que fico olhando para ele e para a estrada. Cada vez que um carro passa, penso que talvez alguém vá parar, mas ninguém para.

– Eu sabia que você era um risco muito grande quando o trouxemos. É perigoso demais. Nunca vai ser leal. Tentei avisar Yulikova, mas ela não quis ouvir.

– Me desculpe – falo com certo desespero. – Eu falo com ela. Falo que você está certo. Só avise para ela onde estamos.

Ele ri.

– Não. Mas você não é mais Cassel Sharpe, é? Você é o governador Patton.

– Tudo bem – digo, o medo me fazendo tagarelar. – Agente Jones, você é um dos mocinhos. Você tinha que ser melhor do que isso. Você é agente federal. Olhe, eu vou voltar. Vou confessar. Vocês podem me prender.

– Você devia ter nos deixado pegar você – retruca o agente Jones, cortando um pedaço de fita adesiva prateada com um canivete. – Se ninguém tiver controle nenhum, se você estiver solto por aí, livre para fazer acordos com qualquer pessoa, como vão ser as coisas? É só questão de tempo até que algum governo estrangeiro ou alguma empresa lhe faça uma proposta. E aí, você vai ser a arma perigosa que deixamos escapar. É melhor tirar você da equação.

Quase não registro que eu estava certo, que eles estavam querendo me pegar no flagra.

– Mas eu assinei os...

Ele coloca a fita na minha boca. Tento cuspir e virar a cabeça, mas ele aperta bem sobre meus lábios. Por um momento, esqueço que posso respirar pelo nariz e entro em pânico ao tentar inspirar ar.

– E, enquanto você estava fazendo seu discursinho, eu tive uma ideia. Liguei para umas pessoas bem malvadas que estão ansiosas para se encontrarem com você. Acho que você conhece Ivan Zacharov, não conhece? Acontece que ele está disposto a pagar uma boa grana pelo prazer de assassinar pessoalmente certo governador. – Ele sorri. – Que azar o seu, Cassel.

Quando o porta-malas se fecha, me joga na escuridão, e, enquanto o carro começa a andar, eu me pergunto se já tive alguma outra coisa na vida.


CAPÍTULO DEZESSEIS

NÃO DEMORA PARA O AR

ficar quente no porta-malas, e a fumaça do óleo e da gasolina me dá vontade de vomitar. Pior, cada buraco na estrada me joga de um lado para outro contra o metal. Tento me apoiar com os pés, mas, assim que viramos uma esquina ou passamos por um buraco, minha cabeça, meu braço e minhas costas batem em uma das laterais. Da forma como estou amarrado, não posso nem me encolher para diminuir o impacto.

Considerando isso tudo, é um jeito bem ruim de passar as últimas horas de vida.

Eu tento avaliar minhas opções, mas elas são mínimas. Não posso me transformar, não com três amuletos pendurados no pescoço. E, como não posso tocar a minha própria pele com as mãos, mesmo que eu arrancasse os amuletos, não sei se conseguiria.

Uma coisa que tenho que admitir sobre o agente Jones: ele é meticuloso.

Escuto o momento em que saímos da estrada. O ruído de tráfego diminui. O barulho do cascalho debaixo dos pneus quase parece o som de chuva forte.

Alguns minutos depois, o motor é desligado e a porta do carro bate. Ouço vozes, distantes e baixas demais para serem reconhecidas.

Quando o agente Jones abre o porta-malas, estou com os olhos arregalados de pânico. O ar frio entra e começo a lutar contra as amarras, apesar de não ter como fazer nada além de me machucar.

Ele só me observa.

Depois, pega o canivete e corta a corda. Enfim consigo esticar as pernas. Faço isso devagar, com os joelhos doendo por terem ficado dobrados por muito tempo.

– Para fora – ordena ele.

Tenho dificuldade de me sentar. Ele precisa me ajudar a ficar de pé.

Estamos ao ar livre, debaixo de uma estrutura industrial enorme, com peças de ferro gigantescas que sustentam uma torre alta acima de nós, que cospe fogo no céu nublado do fim da manhã. Nuvens de fumaça sobem e escondem as pontes de aço brilhante que levam a Nova York. Parece que vai chover.

Viro a cabeça e vejo que há outro carro preto a três metros de mim, ao qual Zacharov está recostado, fumando um charuto. Stanley está de pé ao lado dele, prendendo um silenciador a uma arma preta muito grande.

Quando começo a achar que nada pode piorar, a porta do passageiro se abre e Lila sai do carro.

Ela está usando uma saia-lápis preta com casaco cinza acinturado e botas até as panturrilhas. Óculos de sol cobrem os olhos dela, e a boca está pintada da cor de sangue. Em luvas cinza, suas mãos seguram uma pasta.

Não tenho como sinalizar para ela. O único olhar que ela me lança é frio e casual.

Eu balanço a cabeça, não, não, não. O agente Jones só ri secamente.

– Aqui está ele, como prometi. Mas nunca mais quero ver o corpo dele. Entendeu?

Lila coloca a pasta ao lado do pai.

– Estou com seu dinheiro – diz ela para Jones.

– Que bom – fala o agente Jones. – Vamos começar.

Zacharov assente e sopra uma nuvem de fumaça que sobe em espiral, como a fumaça dos prédios.

– Que garantia tenho de que você não vai tentar culpar minha organização? Sua oferta foi uma surpresa. Não costumamos fazer acordos com agentes do governo.

– Isso fui eu. Um homem fazendo o que acha ser certo. – O agente Jones dá de ombros. – Sua garantia é que estou aqui. Vou ver você matá-lo. Minhas mãos podem estar limpas, mas nós dois somos responsáveis pela morte dele. Nenhum de nós quer uma investigação. A perícia pode encontrar um jeito de me colocar na cena do crime. Se eu denunciar você, vou junto no mínimo por sequestro. Vou sustentar meu lado do acordo.

Zacharov assente devagar.

– Está com medo? – pergunta Jones. – Você vai ser um mestre herói e vai eliminar um cara que anda atirando em vocês ultimamente.

– Aquilo foi um mal-entendido – diz Zacharov.

– Você quer dizer que não está dando abrigo a Shandra Singer? Engano meu. – O agente Jones nem tenta disfarçar o sarcasmo.

– Nós não temos medo – retruca Zacharov.

– Eu faço isso – anuncia Lila. Ela olha para Stanley e aponta para a arma. – Me dê isso.

Eu arregalo os olhos em um apelo silencioso. Mexo o pé na terra, torcendo para escrever uma coisa rápido. Faço um E de cabeça para baixo, para que ela consiga ler. EU é o que quero escrever.

O agente Jones acerta a lateral da minha cabeça com o coldre da arma, com força suficiente para fazer o mundo girar e sair de foco. Sinto como se meu cérebro estivesse sendo sacudido dentro do crânio. Caio sobre a barriga, as mãos ainda algemadas nas costas. Eu nem o tinha visto puxar a arma.

Fico deitado, ofegante.

– É uma surpresa tão boa vê-lo se contorcendo no chão – comenta Zacharov, andando até mim e se inclinando para bater na minha bochecha com a mão enluvada. – Governador, você achou mesmo que era intocável?

Eu balanço a cabeça, sem saber direito que mensagem isso vai passar. Por favor, eu penso. Por favor, me pergunte alguma coisa que precise de resposta. Por favor, arranque a fita. Por favor.

Lila dá um passo à frente com a arma na lateral do corpo. Ela me olha por um longo momento.

Por favor.

Zacharov fica de pé. O casaco preto esvoaça ao redor dele como uma capa.

– Levante-o – diz ele ao agente Jones. – Um homem deve estar de pé para morrer, até mesmo esse aí.

O cabelo louro de Lila voa delicadamente ao redor do rosto, uma auréola dourada. Ela tira os óculos de sol. Fico feliz. Quero olhar nos olhos dela uma última vez. Azul e verde. As cores do mar.

Uma garota assim, vovô diz, se perfuma com ozônio e partículas de metal. Usa os problemas como uma coroa. Se algum dia ela se apaixonar, vai ser como um cometa, queimando o céu no processo.

Pelo menos é você quem vai puxar o gatilho. Eu queria poder dizer ao menos isso.

– Tem certeza? – pergunta Zacharov.

Ela assente e leva o dedo enluvado ao pescoço, de forma quase inconsciente.

– Eu aceitei minhas marcas. Encaro o desafio.

– Você vai ter que se esconder até termos certeza de que não vai poder ser associado a você – diz Zacharov.

Lila assente de novo.

– Vai valer a pena.

Impiedosa. Essa é a minha garota.

O agente Jones me levanta. Eu cambaleio como um bêbado. Tenho vontade de gritar, mas a fita sufoca o som.

A arma na mão dela treme.

Dou uma última olhada e fecho os olhos com tanta força que ficam úmidos nos cantos. Com tanta força que vejo pontos dançando na escuridão da visão.

Eu queria poder me despedir dela.

Espero que o tiro seja a coisa mais alta do mundo, mas me esqueci do silenciador. Só escuto um ruído de surpresa.

Lila está inclinada sobre mim, tirando as luvas para colocar a unha debaixo de um dos cantos da fita adesiva. Ela a arranca da minha boca. Estou olhando para o céu do fim da manhã, tão grato por estar vivo que mal percebo a dor.

– Sou eu – digo, afobado. – Cassel. Juro que sou eu...

Nem me lembro de ter caído, mas estou deitado no cascalho. O agente Jones está ao meu lado, imóvel. O sangue forma uma poça na terra. O sangue dele é vibrante como tinta. Tento rolar para o lado. Ele está morto?

– Eu sei.

Ela toca na lateral do meu rosto com dedos nus.

– Como? – pergunto. – Como você...? Quando?

– Você é tão imbecil – comenta ela. – Você acha que não assisto à televisão? Eu ouvi seu discurso louco. É claro que eu sabia que era você. Você me contou sobre Patton.

– Ah – digo. – Isso. Claro.

Stanley revista Jones e destranca minhas algemas. Assim que são abertas, a fita é retirada e leva pele e as pedras e tinta junto, então eu enfio a mão pela gola, tiro os amuletos e os jogo no chão.

Só quero me livrar desse corpo.

Pela primeira vez, a dor do rebote parece uma libertação.

Acordo em um sofá desconhecido, com um cobertor sobre o corpo. Começo a me sentar e percebo que Zacharov está sentado do outro lado da sala, em uma área iluminada, lendo.

O brilho da lâmpada desenha no rosto dele linhas angulares de uma escultura. Um estudo de um chefe do crime em repouso.

Ele olha para mim e sorri.

– Está se sentindo melhor?

– Acho que sim – digo, da maneira mais formal que consigo de uma posição deitada. Minha voz falha. – Estou.

Eu me sento e ajeito as dobras do terno. Não cabe mais em mim, pois meus braços e pernas são longos demais para as mangas e as pernas da calça, e as sobras de roupa ficam penduradas em mim como pelancas.

– Lila está lá em cima – diz ele. – Ajudando sua mãe a fazer as malas. Você pode levar Shandra para casa.

– Mas eu não encontrei o diamante...

Ele coloca o livro sobre a mesa.

– Não faço elogios com facilidade, mas o que você fez... foi impressionante. – Ele ri. – Você destruiu sozinho uma lei que venho tentando detonar há muito tempo e eliminou um inimigo político meu. Estamos quites, Cassel.

– Quites? – repito, porque não acredito. – Mas eu...

– É claro que, se você encontrar o diamante, eu gostaria muito que o devolvesse para mim. Não acredito que sua mãe o perdeu.

– Isso é porque você nunca foi à nossa casa – comento, o que não é exatamente verdade. Ele entrou na cozinha uma vez e talvez tenha estado lá em outras ocasiões sem eu saber. – Você e minha mãe têm uma história e tanto.

Depois que as palavras saem da minha boca, percebo que qualquer coisa que ele diga em seguida é algo que não quero ouvir.

Ele parece achar graça.

– Tem alguma coisa nela... Cassel, eu conheci muitas pessoas más na vida. Fiz negócios com elas, bebi com elas. Fiz coisas que eu mesmo tenho dificuldade em aceitar, coisas terríveis. Mas nunca conheci alguém como sua mãe. Ela não tem limites. Ou, se tem algum, ainda não encontrou. Ela nunca precisa aceitar nada.

Ele diz isso de forma pensativa, com admiração. Eu olho para o copo na mesa lateral e me pergunto o quanto ele bebeu.

– Ela me fascinou quando éramos mais jovens. Eu a conheci pelo seu avô. Nós, ela e eu, nunca nos gostamos muito, só que, às vezes, sim. Mas... seja lá o que ela disse para você sobre o que houve entre mim e ela, quero que você saiba que eu sempre respeitei seu pai. Ele era tão honesto quanto um criminoso pode ser.

Não sei se quero ouvir isso, mas de repente fica claro por que ele está me contando: não quer que eu fique com raiva em nome do meu pai, mesmo sabendo que eu sei que ele dormiu com minha mãe. Eu pigarreio.

– Olha, eu não vou fingir entender, não quero entender. Isso é coisa sua e dela.

Ele assente.

– Que bom.

– Acho que meu pai pegou – digo. – Acho que foi por isso que sumiu. Estava com ele.

Zacharov me olha de um jeito estranho.

– O diamante – digo, percebendo que o que falei não fez sentido. – Acho que meu pai pegou o diamante da minha mãe e colocou um falso no lugar. E ela nunca soube que não estava mais com o verdadeiro.

– Cassel, roubar o Diamante da Ressurreição é como roubar a Mona Lisa. Se você tem um comprador esperando, pode ser que consiga alguma coisa próxima do valor real, senão só rouba por ser amante da arte ou para mostrar para o mundo que é capaz de fazer isso. Não dá para vender por aí. Chamaria atenção demais. Você teria que cortá-lo em pedaços, e ele só chegaria a uma fração do valor. Daria no mesmo roubar um punhado de diamantes comuns em qualquer joalheria da cidade.

– Daria para pedir resgate – sugiro, pensando na minha mãe e no plano maluco dela para obter dinheiro.

– Mas seu pai não pediu – argumenta Zacharov. – Se é que estava com ele. E só deve ter ficado com ele por uns meses.

Olho para ele por um tempo.

Ele dá uma risada debochada.

– Você não está se perguntando de verdade se eu fiz seu pai sofrer um acidente de carro, está? Acho que você sabe que não sou assim. Se eu tivesse matado um homem que eu sabia que tinha roubado de mim, teria feito disso um exemplo. Ninguém deixaria de saber quem foi responsável por uma morte assim. Mas nunca desconfiei do seu pai. Ele trabalhava com coisas menores, não era ganancioso. Já sua mãe eu cheguei a considerar, mas descartei a possibilidade. Erroneamente, no fim das contas.

– Talvez ele soubesse que ia morrer – digo. – Talvez acreditasse mesmo que a pedra fosse mantê-lo vivo. Como Rasputin. Como você.

– Não consigo pensar em ninguém que não gostasse do seu pai. E, se ele estivesse mesmo com medo, teria procurado Desi.

Desi, meu avô. Levo um susto ao ouvir o primeiro nome dele; vivo esquecendo que ele tem um.

– Acho que nunca vamos saber – falo.

Nós nos olhamos por um longo momento. Eu me pergunto se ele vê meu pai ou minha mãe quando olha para mim. Mas o olhar dele parece se focar em alguma outra coisa.

Eu me viro. Lila está na escada, de saia-lápis e botas, com uma camiseta branca fina. Ela sorri para nós, a boca curvada para cima em um dos lados, o que torna a expressão sarcástica.

– Posso roubar Cassel por um minuto?

Eu me viro para a escada.

– Traga-o de volta inteiro – grita o pai para ela.

O quarto de Lila é exatamente o que eu deveria esperar e nada como imaginei. Fui ao quarto dela no alojamento de Wallingford, e acho que pensava que seu lugar em casa seria uma versão melhorada daquele. Ou não levei em conta o dinheiro da família e o amor por mobília importada.

O quarto é enorme. Em um canto, tem um sofá-cama comprido de veludo verde-claro ao lado de uma penteadeira com espelho. A superfície encerada está cheia de pincéis e potes abertos de maquiagem. Há vários pufes acetinados no chão ali por perto.

Do outro lado, junto à janela, há um espelho decorado enorme, com falhas em algumas partes da moldura prateada, revelando sua antiguidade. Perto dele fica a cama. A cabeceira parece velha e francesa, entalhada em madeira clara. A superfície toda tem cetim em cima, uma colcha e travesseiros amarelo-claros. Uma estante lotada funciona como mesa de cabeceira, com pilhas de livros e um abajur dourado grande. Um lustre dourado enorme fica pendurado no teto, brilhando com cristais.

É um quarto de jovem estrela de antigamente. A única coisa incongruente é o coldre pendurado de um lado da penteadeira. Bem, isso e eu.

Eu me vejo no espelho. Meu cabelo preto está desgrenhado, como se eu tivesse acabado de acordar. Tenho um hematoma no canto da boca e um galo na têmpora.

Ela me leva para dentro e para, como se não soubesse o que fazer.

– Você está bem? – pergunto, indo me sentar no sofá-cama.

Sinto-me ridículo no que sobrou do terno de Patton, mas não tenho outras roupas. Tiro o paletó.

Ela levanta as sobrancelhas.

– Você quer saber se eu estou bem?

– Você deu um tiro em uma pessoa – falo. – E fugiu de mim antes disso, quando a gente... sei lá. Achei que você pudesse estar chateada.

– Eu estou chateada. – Ela fica um tempo sem falar. E começa a andar de um lado para outro. – Não acredito que você fez aquele discurso. Não acredito que quase morreu.

– Você salvou a minha vida.

– Salvei! Salvei mesmo! – diz ela, apontando para mim com um dedo enluvado acusador. – E se eu não tivesse salvado? E se eu não estivesse lá, se não tivesse percebido que era você? E se aquele agente federal achasse que alguém tinha mais problema com Patton do que meu pai?

– Eu... – Inspiro fundo e solto devagar. – Acho que eu estaria... morto.

– Exatamente. Você não pode sair fazendo planos por aí que têm como consequência você ser morto. Em algum momento, algum deles vai funcionar.

– Lila, eu juro que não sabia. Eu achava que ficaria encrencado, mas não tinha a menor ideia sobre o agente Jones. Ele surtou. – Não falo sobre o medo que senti. Não conto a ela que achei que fosse morrer. – Nada disso estava nos meus planos.

– Você fica falando, mas não faz sentido. É claro que você incomodou gente do governo. Você fingiu ser o governador de Nova Jersey e confessou um monte de crimes.

Não consigo evitar o pequeno sorriso que brinca nos cantos da minha boca.

– E então – pergunto –, como foi?

Ela balança a cabeça, mas também está sorrindo.

– Bombástico. Está sendo transmitido em todos os canais. Estão dizendo que a proposição número dois nunca vai passar. Feliz?

Sou surpreendido por um pensamento repentino.

– Mas, se ele tivesse sido assassinado...

Ela franze a testa.

– Acho que você está certo. Teria passado com facilidade.

– Olhe – digo, me levantando e indo até ela. – Você está certa. Chega de esquemas malucos e planos lunáticos. De verdade. Vou ser bonzinho.

Ela me observa, tentando decidir se estou falando a verdade. Coloco os dedos nos ombros estreitos e torço para ela não me afastar quando levo a boca até a dela.

Ela faz um som baixo e fecha a mão no meu cabelo, puxando-o com força. O beijo é frenético, machuca. Sinto o gosto do batom, sinto os dentes, estou bebendo os ofegos da respiração dela.

– Eu estou bem – falo sobre a boca de Lila, ecoando as palavras dela, envolvendo-a com os braços e apertando-a com força contra o corpo. – Estou bem aqui.

Ela encosta a cabeça no meu pescoço. A voz está tão baixa que mal identifico as palavras.

– Eu atirei em um agente federal, Cassel. Vou ter que me afastar por um tempo. Até as coisas esfriarem.

– O que você quer dizer? – pergunto, o medo me emburrecendo. Quero fingir que entendi errado.

– Não vai ser para sempre. Seis meses, talvez um ano. Quando você se formar, é possível que as coisas tenham passado e eu volte. Mas significa que... bem, não sei como vamos ficar. Não preciso de promessas. Nós nem...

– Mas você não devia ter que ir – digo. – Foi por minha causa. É minha culpa.

Ela sai dos meus braços, vai até a penteadeira e seca os olhos com um lenço.

– Você não é o único que pode fazer sacrifícios, Cassel.

Quando ela se vira, vejo as sombras do rímel que ela limpou.

– Vou me despedir antes de ir – afirma ela, olhando para o chão, para o desenho decorado do que deve ser um tapete ridiculamente caro. Em seguida, olha para mim.

Eu devia dizer que vou sentir saudades e que alguns meses não são nada, mas sou silenciado por uma fúria tão terrível que trava minha garganta. Não é justo, eu tenho vontade de gritar para o universo. Acabei de descobrir que ela me ama. Tudo estava só começando, tudo estava perfeito, e agora está sendo arrancado de mim de novo.

Dói demais, tenho vontade de gritar. Estou cansado de sentir dor.

Como sei que não são coisas boas de dizer, fico calado.

O silêncio é rompido por uma batida na porta. Após um momento, minha mãe entra e me diz que está na hora de ir embora.

Stanley nos leva para casa.


CAPÍTULO DEZESSETE

QUANDO ME LEVANTO

na manhã seguinte, Barron está no andar de baixo fritando ovos. Mamãe está sentada de roupão, bebendo café em uma caneca de porcelana lascada. O cabelo preto volumoso está enrolado em mechas e preso assim mesmo, com um lenço colorido, para que tudo fique no lugar.

Ela fuma um cigarro e joga as cinzas em um cinzeiro azul de vidro.

– Tem coisas de que vou sentir falta – diz ela. – Claro que ninguém gosta de ser prisioneiro, mas, se você vai ficar preso, é melhor... Ah, oi, querido. Bom dia.

Eu bocejo e me espreguiço, os braços esticados na direção do teto. É maravilhoso usar minhas roupas de novo, estar no meu corpo de novo. Minha calça jeans é confortável, velha e surrada. Não quero nem pensar na ideia de colocar o uniforme.

Barron me entrega uma caneca de café.

– Tão negro quanto sua alma – comenta ele com um sorriso.

Está usando uma calça preta e sapatos sociais. O cabelo está desgrenhado. Ele parece não ter preocupação nenhuma no mundo.

– Acabou o leite – informa mamãe.

Eu tomo um grande gole com gratidão.

– Posso sair para comprar.

– Pode mesmo?

Mamãe sorri e toca no meu cabelo para tirá-lo da testa. Eu deixo, mas trinco os dentes. Os dedos nus roçam minha pele. Fico feliz por nenhum dos meus amuletos rachar.

– Sabe o que os turcos dizem sobre café? Tem que ser preto como o inferno, forte como a morte e doce como o amor. Não é lindo? Meu avô me contou isso quando eu era pequena, e nunca esqueci. Infelizmente, ainda gosto de leite.

– Talvez ele fosse de lá – sugere Barron, voltando-se para os ovos.

E é possível mesmo. Nosso avô contou várias histórias diferentes para explicar nossa pele sempre bronzeada, entre elas a de sermos descendentes de um marajá indiano, de escravos que fugiram e de algo a ver com Júlio César. Mas de turcos eu nunca tinha ouvido. Ainda.

– Ou talvez ele tenha lido em um livro – retruco. – Ou talvez tenha comido uma caixa de doces turcos, e era isso que estava escrito atrás.

– Tão cínico – diz minha mãe, então pega o prato, joga as migalhas de torrada no lixo e coloca na pia. – Fiquem bonzinhos, garotos. Vou me vestir.

Ela passa por nós e ouço seus passos na escada. Tomo outro gole de café.

– Obrigado – falo. – Por enrolar Patton. Apenas... obrigado.

Barron assente.

– Ouvi no rádio que o prenderam. Ele tinha muito a dizer sobre conspirações, mas o crédito é todo meu. Era coisa boa. É claro que, depois daquele discurso, todo mundo vai saber que ele é doido. Não sei de onde você tirou aquilo tudo...

Dou um sorriso.

– Ah, pare com isso. Foi só retórica refinada.

– É, você é um Abraham Lincoln dos tempos modernos. – Ele coloca um prato de ovos e torradas na minha frente. – Deixe meu povo ir.

– Isso foi Moisés quem disse. – Eu pego o moedor de pimenta. – Bem, meus anos na equipe de debate por fim recompensaram, pelo visto.

– É – concorda ele. – Você é o herói do momento.

Eu dou de ombros.

– E daqui para a frente? – pergunta ele.

Balanço a cabeça. Não posso contar a Barron o que aconteceu depois que desci do palco, que o agente Jones tentou me matar e foi assassinado, que Lila vai ter que sair da cidade. Para ele, tudo deve parecer uma pegadinha em grande escala, uma piada que preguei em Yulikova.

– Acho que já chega de FBI para mim. Com sorte, talvez também não queiram mais saber de mim – digo. – E você?

– Você está de brincadeira? Eu adoro ser um homem do governo. Entrei para ficar. Vou ser tão corrupto que vou me tornar uma lenda em Carney. – Ele sorri sentado à minha frente e rouba um pedaço de torrada do meu prato. – Além do mais, você me deve uma.

Eu faço que sim.

– Claro – falo, receoso. – E pretendo pagar. É só dizer.

Ele olha na direção da porta e depois para mim.

– Quero que você conte para Daneca o que fiz por você. Que eu o ajudei. Que fiz uma coisa boa.

– Tudo bem – digo, franzindo a testa. Deve ser uma pegadinha. – Só isso?

Ele assente.

– É, apenas conte a ela. Convença-a de que eu não precisava, mas fiz mesmo assim.

Dou uma risada debochada.

– Tudo bem, Barron.

– Estou falando sério. Você me deve um favor, e é isso que eu quero.

Ele faz uma expressão que não costuma fazer. Parece estranhamente retraído, como se estivesse esperando que eu dissesse algo muito cruel.

Eu balanço a cabeça.

– Tudo bem. Isso é fácil.

Ele sorri aquele sorriso tranquilo e descuidado de sempre e pega a geleia. Bebo o que sobrou de café na caneca.

– Vou comprar o leite da mamãe – anuncio. – Posso pegar seu carro?

– Claro – diz ele, apontando para o armário perto da porta. – A chave está no bolso do casaco.

Tateio pela calça jeans e me dou conta de que minha carteira está lá em cima, debaixo do colchão, onde a deixei por segurança antes de partir com os agentes federais.

– Posso pegar cinco pratas emprestadas?

Ele revira os olhos.

– Vá em frente.

Encontro a jaqueta de couro dele e reviro o bolso de dentro, e acabo encontrando a chave e a carteira. Abro a carteira e estou pegando o dinheiro quando vejo uma foto de Daneca em um dos compartimentos de plástico.

Tiro-a junto com o dinheiro e saio rapidamente, batendo a porta na pressa.

Quando chego ao mercado, fico olhando para a foto no estacionamento. Daneca está sentada em um banco de parque, com o cabelo voando ao vento leve. Está sorrindo para a câmera de um jeito que nunca a vi sorrir antes, nem para mim nem para Sam. Ela parece iluminada por dentro, vibrando com uma felicidade tão grande que é impossível ignorar.

Atrás, há a caligrafia do meu irmão: “Esta é Daneca Wasserman. Ela é sua namorada e você a ama.”

Eu leio mil vezes o texto, tentando decifrar algum significado por trás do óbvio: é verdade. Eu não sabia que Barron podia sentir algo assim por alguém.

Mas ela não é mais namorada dele. Ela terminou com ele.

Apoiado no capô do carro, dou uma última olhada na foto antes de rasgá-la em pedacinhos. Jogo os pedaços no lixo na frente do mercado, apenas um punhado de confete colorido em cima de sacos e garrafas de refrigerante jogados fora. Em seguida, entro para comprar leite.

Digo a mim mesmo que ele ia jogar fora a foto de Daneca, que ele só esqueceu. Digo a mim mesmo que me livrei dela para o próprio bem dele. A memória dele é cheia de buracos, e um lembrete antigo só traria confusão. Ele talvez acabasse esquecendo que eles terminaram e passaria por alguma situação constrangedora. Digo a mim mesmo que jamais teria dado certo entre eles e que ele vai ser mais feliz se a esquecer.

Digo a mim mesmo que fiz aquilo por ele, mas sei que não é verdade.

Quero que Sam e Daneca sejam felizes juntos, como eram antes. Eu fiz por mim. Fiz para conseguir o que quero. Talvez eu devesse me arrepender, mas não consigo. Às vezes, você faz uma coisa ruim e torce por um resultado bom.

Um carro preto com o motor ligado está parado ao lado da entrada da garagem quando volto.

Passo por ele, estaciono e saio. Quando ando na direção da casa, a porta do passageiro se abre, e Yulikova desce. Ela está usando um terninho marrom com os colares pesados de sempre. Eu me pergunto quantas das pedras são amuletos.

Ando um pouco na direção dela, mas paro, e assim ela tem que percorrer a distância final.

– Oi, Cassel – diz ela. – Temos algumas coisas para conversar. Por que você não entra no carro?

Eu levanto a garrafa de leite.

– Me desculpe – digo. – Estou meio ocupado agora.

– O que você fez... você não pode pensar que não vai haver consequências.

Não sei se ela está falando do discurso ou de algo pior, mas não ligo.

– Você armou para mim – retruco. – Um golpe e tanto. Não pode me culpar porque não fui ingênuo o bastante. Não pode culpar o alvo. Não é assim que funciona. Tenha respeito pela natureza do jogo.

Ela fica em silêncio por um longo momento.

– Como você descobriu?

– Tem alguma importância?

– Eu não pretendia trair sua confiança. Foi pela sua segurança tanto quanto por qualquer outra coisa que concordei que deveríamos implementar...

Eu levanto a mão enluvada.

– Me poupe das justificativas. Achei que vocês eram os mocinhos, mas não existem mocinhos.

– Isso não é verdade. – Ela parece chateada, mas aprendi que não sei interpretá-la. O problema de um mentiroso excelente é que você apenas supõe que está sempre mentindo. – Você jamais passaria uma noite sequer na cadeia. Nós não íamos prender você, Cassel. Meus superiores sentiram que precisávamos de um pouco de controle sobre você, só isso. Você não tem sido exatamente confiável.

– Você tinha que ser melhor do que eu – falo. – De qualquer modo, está feito.

– Você acha que sabe a verdade, mas há mais fatores em ação do que imagina. Você não entende o contexto mais amplo. Não faz ideia. Não sabe o caos que criou.

– Porque você queria se livrar de Patton, mas também queria que a proposição número dois passasse. Então decidiu transformá-lo em mártir. Dois coelhos, uma cajadada só.

– Não é questão do que eu quero – replica ela. – É maior do que isso.

– Acho que acabamos aqui.

– Você sabe que isso não é possível. Mais pessoas sabem de você agora, pessoas em posições altas do governo. E todo mundo está ansioso para conhecer você. Principalmente meu chefe.

– Com isso e um dólar quase dá para comprar um copo de café.

– Você assinou um contrato, Cassel. É um compromisso.

– Assinei? – pergunto com um sorriso debochado. – Acho que você devia verificar. Tenho certeza de que vai descobrir que não assinei nada. Meu nome não está em lugar nenhum. Meu nome sumiu.

Obrigado, Sam, penso. Eu jamais teria pensado que uma caneta com tinta que desaparece seria tão útil.

A irritação dela aparece no rosto pela primeira vez. Sinto um triunfo estranho. Ela pigarreia.

– Onde está o agente Jones?

Ela fala como se essa fosse sua carta na manga.

Eu dou de ombros.

– Não faço ideia. Você o perdeu? Espero que encontre, embora... Falando sério, ele e eu nunca nos demos bem.

– Você não é essa pessoa – diz Yulikova, balançando a mão no ar na minha direção. Não sei o que ela estava esperando. Está claro que ficou frustrada com minha reação. – Você não é tão... tão frio. Você quer tornar o mundo um lugar melhor. Saia disso, Cassel, antes que seja tarde demais.

– Eu tenho que ir – falo, indicando a casa com um movimento de cabeça.

– Sua mãe poderia ser acusada – afirma ela.

A fúria me faz curvar os lábios. Não ligo se ela perceber.

– Você também. Eu soube que você usou um garoto mestre para incriminar um governador. Você pode até estragar minha vida, mas vai ter que destruir a sua junto. Eu juro.

– Cassel – diz ela, com a voz subindo vários decibéis. – Sou a menor das suas preocupações. Você acha que estaria livre se você estivesse na China?

– Ah, pare com isso – retruco.

– Agora, você é um problema maior do que Patton era, e você viu como meus superiores lidaram com aquele problema. O único jeito de isso acabar para você é se...

– Isso nunca vai acabar – grito. – Alguém sempre vai estar atrás de mim. Sempre tem consequências. Pois então, MANDA VER. Estou de saco cheio de sentir medo e estou de saco cheio de você.

Com isso, vou andando para casa. Mas hesito ao chegar na varanda. Olho para Yulikova. Espero até ela voltar ao carro brilhante, entrar e ir embora. Depois, me sento no degrau.

Fico olhando o pátio por um tempo, sem pensar em nada, só tremendo de raiva e adrenalina.

O governo é grande, maior do que qualquer pessoa tenha condições de encarar. Pode ir atrás de gente de quem gosto, pode ir atrás de mim, pode fazer algo em que não pensei ainda. Pode agir hoje ou daqui a um ano. E vou ter que estar pronto. Sempre e eternamente pronto, a não ser que queira abrir mão de tudo o que tenho e de todo mundo que amo.

Eles podem ir atrás de Lila, que atirou e matou uma pessoa a sangue-frio. Se descobrissem isso e a culpassem pelo assassinato do agente Jones, eu faria qualquer coisa para libertá-la.

Ou podem ir atrás de Barron, que trabalha para eles.

Ou...

Enquanto penso, percebo que estou olhando para nosso velho celeiro. Ninguém vai lá há anos. Está cheio de móveis velhos, ferramentas enferrujadas e um monte de coisas que meus pais roubaram e não quiseram mais.

Foi onde meu pai me ensinou a arrombar fechaduras. Ele guardava todo o equipamento lá, inclusive a caixa supersegura. Tenho lembranças vívidas do meu pai com a cigarrilha no canto da boca trabalhando, lubrificando os mecanismos de uma fechadura. Minha memória acrescenta o pino da tranca, a roseta e a contra-testa.

Eu lembro que ninguém era capaz de abrir aquela caixa. Mesmo sabendo que havia balas lá dentro, nós não conseguíamos.

O celeiro foi o único lugar que vovô e eu não arrumamos.

Deixo o leite em um degrau, vou até a porta dupla grande e gasta e levanto o trinco. A última vez que entrei lá foi em sonho. Parece sonho agora, com poeira subindo a cada passo meu, a única luz entrando pelas frestas nas tábuas e vidraças cinzentas de tantas teias de aranha e sujeira.

O cheiro é de madeira podre e habitação animal. A maior parte da mobília está embaixo de cobertores comidos por traças, o que dá a tudo uma aparência fantasmagórica. Vejo um saco de lixo cheio de sacos plásticos e várias caixas velhas de papelão abarrotadas de vidros de leite. Tem um cofre velho, tão enferrujado que a porta está imobilizada, aberta. Dentro, só encontro uma pilha de moedas, esverdeadas e grudadas umas nas outras.

A bancada de trabalho de papai também está coberta com um pano. Eu o puxo de uma vez só, vejo a confusão das ferramentas dele: um torno, um removedor de cilindro, um decodificador Sesame, um martelo com cabeças intercambiáveis, a caixa supersegura, um rolo de arame e várias gazuas enferrujadas.

Se meu pai estivesse com o Diamante da Ressurreição, se quisesse guardá-lo, se não pudesse vendê-lo, imagino que o guardaria onde nenhum estranho pensaria em olhar e nenhuma pessoa da família tivesse habilidade suficiente para mexer. Fico decidindo o que fazer por alguns minutos e faço o que jamais pensaria em fazer quando era criança.

Prendo a caixa no torno. Em seguida, ligo uma serra tico-tico reta na tomada e corto a caixa.

Fragmentos de metal se espalham pelo chão em pilhas cintilantes até eu terminar. A caixa está destruída, a tampa foi totalmente cortada.

Não tem diamante dentro, só um monte de papéis e um pirulito muito velho e meio derretido. Eu teria me decepcionado imensamente se a tivesse aberto quando criança.

Estou decepcionado agora.

Desdobro os papéis, e uma foto cai nas minhas mãos. São vários garotos muito louros de pé em frente a uma casa enorme, uma daquelas mansões antigas de Cape Cod com um pequeno terraço no alto e colunas, com vista para o mar. Eu me viro e vejo três nomes com uma caligrafia espalhada que não reconheço: “Charles, Philip, Anne.” Parece que um deles não era garoto, afinal.

Por um momento eu me pergunto se encontrei a preparação para um antigo golpe. Em seguida, desdobro outra folha de papel. É a certidão de nascimento de um Philip Raeburn.

Não Sharpe, um nome que eu sempre soube que era tão falso quanto o prêmio em uma caixa de biscoito. Raeburn. O sobrenome verdadeiro do meu pai. Do qual ele abriu mão, o nome que escondeu de nós.

Cassel Raeburn. Eu experimento mentalmente, mas o som é ridículo.

Tem um recorte de jornal também, falando que Philip Raeburn morreu em um acidente de barco perto da costa de Hamptons aos dezessete anos. Uma forma ridiculamente cara de se morrer.

Os Raeburn tinham dinheiro para comprar qualquer coisa. Sem dúvida, tinham dinheiro para comprar um diamante roubado.

A porta se abre e eu me viro, assustado.

– Encontrei o leite perto da porta. O que você está fazendo aqui? – pergunta Barron. – E... o que você fez com a caixa do papai?

– Olhe – digo, levantando o pirulito. – Tinha mesmo um doce aqui. Dá para acreditar?

Barron fica me olhando com a expressão horrorizada de alguém que se dá conta de que talvez seja o irmão estável, afinal.

Estou de volta a Wallingford logo depois do jantar. O supervisor do meu alojamento, Sr. Pascoli, me olha de um jeito estranho quando tento entregar o bilhete que minha mãe escreveu.

– Está tudo bem, Cassel. O supervisor já explicou que você talvez saísse por alguns dias.

– Ah – digo. – Certo.

Eu quase tinha esquecido sobre o acordo que o supervisor Wharton fez comigo e com Sam. Havia tanta coisa prestes a acontecer naquele momento que tirar vantagem de tudo era um fio de esperança. Mas, agora que voltei para Wallingford, eu me pergunto do que consigo mesmo escapar.

Eu me pergunto se poderia ficar na cama e dormir até não estar mais cansado, por exemplo.

Provavelmente não.

Não sei o que esperar quando entro no quarto, mas não é Sam deitado na cama com a perna enrolada em gaze. Daneca está sentada ao lado dele, e eles estão absortos no que parece ser um jogo bem intenso de gin rummy.

Tem uma garota no nosso quarto e, obviamente, Sam está se safando. Eu admiro a ousadia dele.

– Oi – digo, encostado na porta.

– O que aconteceu com você? – pergunta Daneca. – Estávamos preocupados.

– Eu estava preocupado – replico, olhando para Sam. – Você está bem? Quer dizer... sua perna.

– Ainda dói. – Ele a abaixa com cuidado até o chão. – Tenho que usar uma bengala e talvez fique mancando depois, pelo que o médico disse. Talvez nunca pare de mancar.

– Aquele charlatão? Espero que você tenha ido atrás de uma segunda opinião.

A onda de culpa que sinto faz as palavras saírem com mais rigor do que eu pretendia.

– Nós fizemos a coisa certa – diz Sam, respirando fundo. Há uma seriedade no rosto dele que não me lembro de estar lá antes. A dor é evidente. – Não me arrependo. Eu quase estraguei meu futuro. Acho que não valorizava antes... de tudo. A boa faculdade, o bom emprego. Eu achava que o que você fazia parecia empolgante.

– Sinto muito – falo, e sinto mesmo. Sinto tanto ter sido isso que ele pensava.

– Não – diz ele. – Não fique assim. Eu era burro. E você me salvou de me meter em um monte de confusão.

Eu olho para Daneca. Sam é sempre generoso demais, mas tenho certeza de que ela me diria se achasse que fiz algo errado.

– Eu nunca quis que você... nunca quis que nenhum de vocês dois se machucassem por minha causa.

– Cassel – diz Daneca, com o tom exasperado e carinhoso que reserva para nós quando estamos sendo idiotas. – Você não pode se culpar por Mina Lange. Ela não é uma pessoa que você botou nas nossas vidas. Ela estuda aqui, lembra? Você não causou isso. E não pode se culpar por... por qualquer outra coisa em que esteja pensando. Somos seus amigos.

– Esse pode ser seu primeiro erro – falo baixinho.

Sam ri.

– Estamos de bom humor, é?

– Você viu? – pergunta Daneca. – A proposição dois não vai passar. E Patton renunciou. Bem, ele foi preso, então acho que teve que renunciar. Você deve ter visto. Ele até admitiu que sua mãe não fez nada de errado.

Penso em contar a verdade para Daneca. De todas as pessoas que conheço, ela é quem mais sentiria orgulho de mim. Mas parece injusto envolver os dois, principalmente porque essa é uma situação bem maior e mais perigosa do que qualquer outra em que me meti antes.

– Você me conhece – comento, balançando a cabeça. – Não sou muito de política.

Ela olha para mim com malícia.

– Que pena que você não viu, porque, se eu for escolhida para o discurso da turma, adoraria ter ajuda para escrever meu discurso, e o de Patton é o modelo perfeito. Dá o tom correto. Mas, se você realmente não liga para esse tipo de coisa...

– Você quer contar para todo mundo que hoje é o dia em que você fala palavras que vêm do coração e confessa todos os seus crimes? Porque eu achava que você não tinha tanto assim para confessar.

– Então você viu! – diz Sam.

– Você é um mentiroso, Cassel Sharpe – retruca Daneca, mas sem energia. – Um mentiroso falso que mente.

– Acho que ouvi alguém falando sobre isso em algum lugar. – Sorrio olhando para o teto. – O que você quer? Um leopardo não pode mudar suas pintas.

– Se o leopardo fosse um mestre de transformação, poderia – sugere Sam.

Tenho a sensação de que talvez eu não precise dizer nada. Eles parecem ter chegado a uma teoria própria.

Daneca sorri para Sam.

Tento não pensar na foto na carteira de Barron nem na forma como ela estava sorrindo para meu irmão. Principalmente, tento não comparar com o sorriso dela agora.

– Quero entrar na próxima rodada – anuncio. – O que estamos apostando?

– A pura alegria da vitória – responde Sam. – O que mais?

– Ah – diz Daneca, e se levanta. – Antes que eu esqueça. – Ela vai até a bolsa e pega uma camiseta enrolada. Desenrola o tecido e o afasta. A arma de Gage está ali, lubrificada e brilhando. – Tirei isso da sala de Wharton antes de o pessoal da limpeza chegar.

Fico olhando para a velha Beretta. É pequena e tão prateada quanto as escamas de um peixe. Brilha sob a luz do abajur.

– Livre-se disso – diz Sam. – De verdade agora.

No dia seguinte, começa a nevar. Os flocos caem e cobrem as árvores com um pó fino, fazendo a grama brilhar com o gelo.

Saio da aula de estatística e vou para a de ética do mundo em desenvolvimento e depois para a de inglês. Tudo parece bizarramente normal.

De repente, vejo Mina Lange correndo para a aula, usando uma boina preta com uma camada branca.

– Você – chamo, entrando na frente dela. – Você fez Sam levar um tiro.

Ela me encara com os olhos arregalados.

– Você é péssima golpista. E não é uma pessoa muito legal. Quase sinto pena de você. Não faço ideia do que aconteceu com seus pais. Não faço ideia de como você passou a ter que curar Wharton, sem perspectiva de parar, sem solução e sem amigos em quem confiar o bastante para pedir ajuda. Não posso nem dizer que eu não teria feito o mesmo. Mas Sam quase morreu por sua causa, e por causa disso eu nunca vou perdoar você.

Os olhos dela se enchem de lágrimas.

– Eu não pretendia...

– Nem tente. – Eu enfio a mão no casaco e dou a ela o cartão de Yulikova e a camiseta enrolada. – Não posso prometer nada, mas, se você quiser pular fora mesmo, pegue isto. Tem um mestre de morte, um garoto chamado Gage, que quer a arma de volta. Entregue a ele, e aposto que ele estará disposto a ajudar. Pode ensinar você a cuidar de si mesma, a conseguir trabalho e não ficar em débito com ninguém. Ou você pode ligar para o número no cartão. Yulikova pode fazer você entrar para o programa dela. Ela também está procurando a arma. Também vai ajudar você, mais ou menos.

Mina fica olhando para o cartão, vira-o na mão, segurando a camiseta enrolada contra o peito, e eu me afasto antes que ela possa me agradecer. A última coisa que quero é a gratidão dela.

Dar-lhe essa escolha é minha vingança pessoal.

O restante do dia segue tão bem quanto qualquer outro. Faço outra caneca na aula de cerâmica que não se desfaz toda. O treino de corrida é cancelado por causa do tempo. O jantar é um risoto grudento de cogumelos, vagens e brownie de sobremesa.

Sam e eu fazemos dever de casa na cama, jogando bolinhas de papel um no outro.

Neva com mais intensidade quando estamos dormindo, e de manhã temos que abrir caminho até a aula em meio a uma chuva de bolas de neve. Todo mundo chega com gelo derretendo no cabelo.

O clube de debate tem reunião de tarde, então vou até lá e desenho no caderno. Por pura falta de atenção, acabo ficando com o tópico “Por que videogames violentos são ruins para a juventude dos Estados Unidos?”. Tento argumentar para fugir dele, mas é impossível debater com toda a equipe de debate.

Estou atravessando a praça a caminho do meu quarto quando meu celular toca. É Lila.

– Estou no estacionamento – diz ela, e desliga.

Caminho pela neve. A paisagem está silenciosa, quieta. Ao longe, só ouço o som de carros em movimento na lama de neve.

O Jaguar está parado perto de uma pilha de neve que o limpador deixou no canto. Ela está sentada no capô, de casaco cinza. O gorro preto tem um pompom fofo e incongruente em cima. Mechas de cabelo dourado voam ao vento.

– Oi – digo, chegando mais perto. Minha voz soa rouca, como se eu não falasse há anos.

Lila desliza do carro e vem docemente para meus braços. Ela está com cheiro de cordite e algum tipo de perfume floral. Não está de maquiagem, e os olhos trazem uma vermelhidão um pouco inchada que me faz pensar em lágrimas.

– Eu falei que me despediria. – A voz dela é quase um sussurro.

– Não quero que você vá – murmuro junto ao cabelo dela.

Ela se afasta um pouco e passa os braços no meu pescoço, puxando minha boca até a dela.

– Me diga que vai sentir saudade.

Eu a beijo em vez de falar, levando as mãos até seu cabelo. Tudo está silencioso. Só sinto o gosto da língua dela e o lábio inferior inchando, a curva do maxilar. Só há o tremor ofegante da respiração dela.

Não há palavras para o quanto vou sentir saudades de Lila, mas tento beijá-la de uma forma que ela perceba. Tento beijá-la para contar a história toda do meu amor, o quanto sonhei com ela quando estava morta, que todas as outras garotas pareciam um espelho que refletia o rosto dela. O quanto minha pele doía de desejo por ela. Como beijá-la me faz sentir como se estivesse me afogando e sendo salvo ao mesmo tempo. Espero que ela consiga sentir o gosto disso tudo, agridoce, na minha língua.

É emocionante perceber que enfim tenho permissão para fazer isso, que neste momento ela é minha.

Ela dá um passo oscilante para trás. Seus olhos brilham com coisas não ditas; a boca está vermelha de ficar apertada contra a minha. Ela se inclina e pega o gorro.

– Tenho que...

Ela tem que ir, e eu preciso deixá-la ir.

– É – digo, fechando as mãos nas laterais do corpo para me impedir de agarrá-la. – Desculpe.

Eu não devia estar sentindo tão intensamente a perda dela, considerando que ela nem foi ainda. Já tive que deixá-la ir tantas vezes; a prática devia tornar isso mais fácil.

Vamos juntos até o carro. Esmago a neve com os pés. Olho para os alojamentos frios de tijolos.

– Eu estarei aqui – falo. – Quando você voltar.

Ela assente e dá um sorrisinho, como se estivesse querendo me satisfazer. Acho que não percebe há quanto tempo estou esperando, quanto tempo ainda vou esperar por ela. Por fim, me olha nos olhos e sorri.

– Só não me esqueça, Cassel.

– Nunca – digo.

Eu não conseguiria nem se tentasse.

Acredite em mim, eu já tentei.

Ela entra no carro e fecha a porta do motorista com força. Percebo que é difícil para ela agir com casualidade, me dar aquele último aceno e sorriso, engrenar o carro e começar a sair do estacionamento.

É nessa hora que percebo. Em um momento, tudo fica repentinamente, gloriosamente claro. Tenho outra escolha além dessa.

– Espere! – grito, correndo até lá e batendo na janela.

Ela aperta o freio.

– Eu vou com você – digo quando ela abre a janela. Estou rindo como um bobo. – Me leve com você.

– O quê? – O rosto dela está vazio, como se não tivesse certeza de que está ouvindo direito. – Você não pode. E a formatura? E sua família? E sua vida toda?

Durante anos, Wallingford foi meu refúgio, prova de que eu podia ser um cara comum ou que podia fingir bem o bastante para ninguém perceber a diferença. Mas não preciso mais disso. Já aceitei ser golpista e trapaceiro. Ser mestre. Ter amigos que com sorte vão me perdoar por partir em uma viagem louca. Estar apaixonado.

– Eu não ligo. – Eu entro pelo lado do passageiro e bato a porta para todo o resto. – Quero ficar com você.

Não consigo parar de sorrir.

Ela olha para mim por um tempo, depois começa a rir.

– Você vai fugir comigo de mochila e com a roupa do corpo? Eu posso esperar você ir até o alojamento, ou podemos parar na sua casa. Você não precisa pegar nada?

Eu balanço a cabeça em negativa.

– Não. Não tem nada que eu não possa roubar.

– Que tal contar a alguém? Sam?

– Eu ligo da estrada.

Ligo o botão do rádio e encho o carro com música.

– Você não quer nem saber aonde vamos?

Ela está me olhando como se eu fosse um quadro que roubou, mas com o qual nunca vai poder ficar. Parece exasperada e estranhamente frágil.

Olho pela janela e fico observando a paisagem coberta de neve enquanto o carro começa a andar. Talvez possamos ir para o norte e ver a família do meu pai; talvez possamos encontrar o diamante do pai dela. Não importa.

– Não – digo.

– Você é maluco. – Ela está rindo de novo. – Você sabe disso, não sabe, Cassel? Maluco.

– Passamos muito tempo fazendo o que temos que fazer – explico. – Acho que deveríamos começar a fazer o que queremos. E é isso que eu quero. Você é o que eu quero. Você é o que eu sempre quis.

– Ah, que bom – diz ela, prendendo uma mecha de cabelo dourado atrás da orelha e se recostando no banco. O sorriso dela está bem aberto. – Porque não dá para voltar atrás agora.

A mão enluvada gira o volante com força, e sinto a emoção vertiginosa que só acontece no fim das coisas, que acontece quando, apesar de tudo, percebo que nos safamos.

O grande golpe.

 

 

                                                                  Holly Black

 

 

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